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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SEGREDO DOS FLAMENGOS / Federico Andahazi
O SEGREDO DOS FLAMENGOS / Federico Andahazi

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Uma névoa avermelhada cobria a cidade de Florença. Desde o Forte da Basso até o de Belvedere, desde a Porta al Prato até a Romana. Como se fosse sustentada pelas grossas muralhas que rodeavam a cidade, uma cúpula de nuvens vermelhas mal dava passagem para as luzes de um novo dia. Tudo era vermelho debaixo daquele vitral carmim, que lembrava o grande vitral da igreja de Santa Maria del Fiore. A carne das ovelhas abertas ao meio e penduradas no mercado, e a língua dos cães famintos lambendo poças de sangue que caíam das vacas igualmente penduradas; as telhas da Ponte Vecchio e os ladrilhos desnudos da Ponte alle Grazie; as gargantas crispadas dos vendedores ambulantes e o nariz inchado de cada passante; tudo era encarnado, mais vermelho do que normalmente já era.

Um pouco além, subindo pela ribeira do Arno até a via della Fonderia, uma modesta procissão arrastava os pés entre as folhas secas da parte mais escondida do velho cemitério. Longe dos mausoléus monumentais, do outro lado dos pinheiros que separavam os túmulos das grandes famílias do terreno baldio, semeado de cruzes tortas e lápides deformadas, três homens, curvados mais pelo cansaço do que pelo pouco peso do tosco caixão que de forma desequilibrada levavam, lentamente avançavam até a cova recém-aberta pelos coveiros no chão. Quem comandava o cortejo, carregando sozinho a parte dianteira do caixão, era o mestre Francesco Monterga, talvez o mais conhecido pintor protegido pelo mecenato pouco generoso do duque de Volterra. Atrás dele caminhavam, um de cada lado, seus próprios alunos, Giovanni Dinunzio e Hubert van der Hans. E fechando a procissão, com os dedos cruzados junto ao peito, iam dois religiosos, o abade Tomasso Verani e o prior Severo Setimio.

 

 

 

 

O morto era Pietro della Chiesa, o discípulo mais jovem do mestre Monterga. A Compagnia della Misericordia havia custeado o pobre enterro, uma vez que o defunto não tinha família. De fato, tal como demonstrava seu sobrenome, Della Chiesa, ele havia sido deixado nos braços de Deus, poucos dias depois de nascer, quando o abandonaram na porta da igreja de Santa Maria Novella. Tomasso Verani, o padre que encontrara o pequeno corpo, roxo de frio e muito doente, e que o batizou, era o mesmo que agora, dezesseis anos depois, com uma voz baixa e monocórdia, lhe desejava um rápido caminho até o Reino dos Céus.

O caixão era feito de madeira de álamo, e por suas frestas já começava a escapar o cheiro nauseante da decomposição que se acelerava há dias, de tal forma que o outro religioso, com um olhar autoritário, ameaçou o padre, para que deixasse de lado os trechos menos importantes da oração. Foi uma oração rápida que terminou com um prematuro “amém”. Imediatamente, o prior Severo Setimio mandou que os coveiros terminassem o serviço. A julgar pela expressão do seu rosto, era possível dizer que Francesco Monterga estava profundamente desconsolado e incrédulo frente ao terrível espetáculo que a decidida indiferença dos coveiros lhe mostrava.

Cinco dias depois de seu inesperado desaparecimento, o cadáver de Pietro della Chiesa havia sido encontrado fora dos muros da cidade, num depósito de lenha pouco distante da vila onde viviam os servidores do Castelo Corsini. Tinha a aparência da escultura de Adônis violentamente derrubada de seu pedestal. Estava completamente nu, rígido e virado de bruços. A pele branca, tensa e cheia de hematomas lhe dava um aspecto semelhante ao mármore. Em vida, tinha sido um jovem de uma beleza frágil, e agora, seus restos endurecidos lhe conferiam uma formosura macabra, ressaltada pela tensão de sua pouca musculatura. Os dentes haviam ficado cravados no chão, mordendo a terra úmida; tinha os braços abertos em cruz e os punhos fechados, numa posição de defesa e de resignação. A cara estava enterrada numa poça de seu próprio sangue, e um dos joelhos estava dobrado sob seu corpo.

A causa da morte era uma pequena ferida de arma branca que cruzava seu pescoço do centro até a jugular. A pele do rosto havia sido retirada, deixando expostos os ossos. O mestre Monterga teve muitas dificuldades para reconhecer nesse cadáver inchado o corpo de seu discípulo, mas, por mais que tivesse resistido a convencer-se de que aqueles restos eram de Pietro della Chiesa, as provas eram irrefutáveis. Francesco Monterga o conhecia melhor que qualquer outro e, com muita dor, admitiu que a pequena cicatriz no ombro direito, a mancha alongada nas costas e os dois sinais na nádega esquerda correspondiam, sem dúvida, às marcas particulares de seu discípulo preferido. E, para afastar qualquer dúvida, suas roupas haviam sido encontradas espalhadas pelo bosque.

O estado de decomposição em que se encontravam os restos era tão avançado que nem foi possível fazer um velório com caixão aberto. Não apenas por causa do mau cheiro que exalava o corpo, mas porque, além disso, a rigidez do corpo era tanta que, para colocá-lo no caixão, fora preciso quebrar os braços, que pareciam decididos a permanecer abertos.

Naquele momento, o mestre Monterga, com o olhar perdido em um ponto impreciso, muito além do fundo da cova, recordava o dia em que havia conhecido aquele que seria seu mais fiel discípulo.

 

Num dia de 1474, o abade Tomasso Verani apareceu no ateliê de Francesco Monterga com uns papéis enrolados embaixo do braço. O padre Verani, que dirigia o Ospedale degli Innocenti, saudou o pintor com uma expressão fulgurante, estava mais animado do que nunca, incapaz de esconder sua euforia. Desenrolou com grande expectativa as folhas sobre uma mesa do ateliê e pediu ao mestre sua qualificada opinião. Francesco Monterga examinou sem grande interesse o primeiro desenho que o padre lhe mostrava. Pensando que fosse uma temerária tentativa do próprio abade nos mares da pintura, tentou ser piedoso. Sem nenhum entusiasmo, com um tom que parecia querer desestimular o outro, balançando levemente a cabeça, disse sobre o primeiro desenho:

- Não está mal.

O desenho a carvão retratava os nove arcos do pórtico do orfanato construído por Brunelleschi, e o mestre pensou que podia ser muito pior, por se tratar de um principiante. Chamou a atenção para o bom manejo da perspectiva que dominava a visão do pórtico, ao fundo, o bom traço com que havia sido desenhado o campanário da Santissima Annunziata. O uso de luz e sombra era um tanto torpe, mas pelo menos estava próximo do procedimento usual. Antes que pudesse formular uma crítica mais conclusiva, o padre Verani abriu outro desenho sobre o primeiro, que o mestre ainda não havia examinado completamente. Era um retrato do próprio abade, uma sanguina (N.R.: Giz de cera de cor vermelha.) que revelava um traço inocente mas decidido e solto. A expressão do padre havia sido alcançada no retrato. De qualquer modo, disse o mestre para si mesmo, entre a correção que os desenhos mostravam e o talento de um artista havia um oceano intransponível. Ainda mais considerando a idade do abade Verani. Procurou encontrar as palavras adequadas para, por um lado, não ferir o amor-próprio do padre e, por outro, para não entusiasmá-lo em vão.

- Meu querido abade, é evidente a dedicação que estes trabalhos revelam, mas na nossa idade... - titubeou. - Quero dizer... seria a mesma coisa que se eu, na minha idade, aspirasse a ser cardeal...

Como se tivesse acabado de receber o maior dos elogios, o padre Verani, com os olhos brilhando, interrompeu o veredito:

- E o senhor ainda não viu nada - disse o padre.

O padre Verani tomou o braço de Francesco Monterga e praticamente o arrastou até a porta, deixando sobre a mesa o resto dos desenhos. Levou-o escadas abaixo e, antes que o mestre pudesse falar, já estavam na rua, a caminho do Ospedale degli Innocenti.

O mestre conhecia a veemência do padre Verani. Quando metia algo na cabeça, não havia razão capaz de dissuadi-lo de alcançar seus propósitos. Caminhava sem soltar o braço de Monterga, que, enquanto tentava seguir o passo do abade, não se perdoava por ter sido brando em seu veredito. Quando dobraram na via dei Servi, o pintor se soltou da mão pegajosa que apertava seu braço e esteve a ponto de gritar ao padre o que devia ter dito minutos antes, no ateliê. Mas já era tarde. Estavam na porta do hospício. Cruzaram em diagonal a piazza, passaram por baixo do pórtico e entraram no edifício. Armado com um escudo de paciência e resignação, o mestre estava disposto a perder a manhã com o novo capricho do abade. O pequeno cubículo a que foi conduzido era um ateliê improvisado, escondido atrás do ambulatório; era um lugar tão reservado que parecia ser clandestino. Aqui e ali se amontoavam tábuas, telas, papéis, pincéis, carvões e se respirava o cheiro áspero do atramento (N.R.: Tinta escura também usada como verniz.) e de extratos vegetais. Quando se acostumou um pouco à escuridão, o mestre conseguiu ver num dos cantos do quarto as costas de um menino sobre o fundo claro de uma tela. A mão do pequeno ia e vinha pela superfície da tela com a mesma desenvoltura de uma andorinha voando pelo céu transparente. Era uma mão tão pequena que quase não conseguia segurar direito o carvão. Conteve a respiração, emocionado, temendo que o menor ruído pudesse estragar o espetáculo. O padre Verani, com as mãos cruzadas sob o abdômen e com um sorriso santificado, contemplava a expressão perplexa e maravilhada do mestre.

O menino era Pietro della Chiesa e ainda não tinha cinco anos. Desde o dia em que o recolhera, abandonado na porta da igreja de Santa Maria, quase morto, e, contrariando todos os prognósticos, sobreviveu, o padre soube que não seria como os demais meninos do orfanato.

Assim como todos os seus irmãos de infortúnio, o pequeno foi registrado no precário, ilegível e muitas vezes esquecido Registro da Nascita, com o sobrenome Della Chiesa (N.R.: Literalmente, “Da Igreja”, sobrenome dado aos órfãos.). Mas, diferentemente dos outros, cujos nomes correspondiam ao do santo do dia em que ingressavam no Ospedale degli Innocenti, o padre Verani decidiu quebrar a regra e batizá-lo Pietro, em sua própria homenagem, uma vez que se chamava Pietro Tomasso. O menino logo demonstrou uma curiosidade nada comum. Seus olhos, negros e vivos, examinavam tudo com um inusitado interesse. Talvez por ser o protegido do padre, sempre gozou, no Ospedale, de maiores atenções que os demais. Mas o certo é que, muito mais cedo que o normal, começou a fixar seu olhar nos objetos ao seu redor e começou a desenhá-los. Para isso, muito precocemente, aprendeu a utilizar tudo aquilo que pudesse servir para deixar rastros, tanto no chão como nas paredes, em sua roupa e até no próprio corpo. A irmã Maria, uma portuguesa de pele morena que era encarregada dele, dia após dia descobria, escandalizada, as novas peripécias do pequeno. Qualquer coisa era boa para deixar testemunho de sua iniciante vocação: barro, pó, restos de comida, carvão, gesso arranhado das paredes. Qualquer matéria que caía em suas mãos era utilizada de maneira impiedosa sobre qualquer imaculada superfície que estivesse a seu alcance. Se a irmã Maria o colocava de castigo, sempre dava um jeito de não interromper sua obra: insetos amassados pacientemente misturados a seus próprios excrementos eram, para o pequeno Pietro, a mais estimada das têmperas. O grande pátio central era seu mais extraordinário armazém de provisões. Em todo canto, tinha ao alcance da mão as melhores aquarelas: frutas maduras, grama, flores, terra e pólen das mais variadas cores. A paciência e a tolerância de seu protetor pareciam não ter limites. A irmã Maria não conseguia entender por que razão o abade, que costumava manter uma severa disciplina, permitia que o pequeno transformasse o Ospedale em um verdadeiro chiqueiro. Antes de mandar limpar as paredes, o abade ficava extasiado olhando a hedionda obra de seu protegido, como se contemplasse os mosaicos da cúpula do batistério. Um pouco para que a irmã Maria parasse de cacarejar sua indignação e terminasse lançando imprecações em português, um pouco para alimentar a paixão de seu protegido, o certo é que o padre Verani levou para o pequeno um punhado de pedaços de carvão, umas sanguinas, um lápis trazido de Veneza e uma pilha de papéis rejeitados pela imprensa do arcebispado. Foi um verdadeiro achado. O lápis se acomodava à sua mão como se fosse parte de sua anatomia. Pietro aprendeu a desenhar a si mesmo antes de aprender a dizer o próprio nome. E, a partir do momento em que recebeu aqueles presentes, o menino limitou-se à superfície das folhas, mesmo que nunca tivesse abandonado seu afã de experimentar elementos menos convencionais. Os avanços eram surpreendentes, mas as habilidades precoces do menino iam se encontrar com um muro difícil de superar.

As zangas da irmã Maria com Pietro eram tão fortes como efêmeras, em contraste com o carinho incondicional que lhe dava. E, certamente, seus pequenos momentos de ira não eram nada em comparação com a silenciosa fúria que o menino despertava naquele que haveria de se converter em uma verdadeira ameaça para sua feliz permanência no orfanato: o prior Severo Setimio.

Severo Setimio era quem supervisionava todos os estabelecimentos pertencentes ao arcebispado. A cada semana, sem que ninguém pudesse prever o dia e a hora, fazia uma visita surpresa ao Ospedale. Com as mãos cruzadas às costas, o queixo saliente e altivo, percorria os corredores, entrava nos claustros e revistava com cuidado, até debaixo das camas, para que tudo estivesse em ordem. Diante do olhar assustado dos internos, Severo Setimio andava acompanhado pelo padre Verani, que pedia em silêncio que nada irritasse o terrível espírito do prior. Mas as silenciosas súplicas do padre pareciam nunca encontrar abrigo na Santíssima Vontade: uma ruga nas cobertas, um gesto que pudesse revelar falta de respeito, o mais imperceptível murmúrio eram motivos para que, inexoravelmente, alguma coisa fosse apontada e condenada pelo indicador de Severo Setimio. Então apareciam as punições sumárias e inapeláveis: os pequenos eram condenados a ficar horas ajoelhados em grãos de milho ou, se as penas eram mais graves, o próprio prior se encarregava de descarregar o rigor da vara nos dedos dos jovens delinquentes. O fato mais insignificante era motivo para que se criasse uma espécie de tribunal inquisitorial: se, por exemplo, durante a inspeção, um jovem deixava escapar um leve sorriso nervoso misturado com a perplexidade que a figura marcial do prior inspirava, a silenciosa fúria não se fazia esperar. Imediatamente, ordenava que todos ficassem em duas filas opostas e, passando por aquele estreito corredor infantil, examinava cada rosto, ao acaso, e escolhia um fiscal para o juízo sumário. O acusador escolhido devia indicar o culpado e determinar a pena que lhe cabia. Se o infeliz escolhido demonstrava uma atitude de cumplicidade, alegando desconhecer a identidade do responsável, então passava a ser o culpado pelo fato, e outro menino era escolhido para decidir a pena que lhe correspondia. Se o prior considerava que o castigo era muito brando e apoiado na camaradagem, então o indulgente verdugo também era acusado. E assim, condenando inocentes como se fossem culpados, conseguia que alguém confessasse o delito original. Mas os castigos antes indicados eram piedosos se comparados com o mais temido de todos, que despertava nos meninos um terror superior ao causado pela ira de Deus: la casa dei morti. Por esse nome era conhecido o velho presídio, o temido inferno a que desciam aqueles que, por seus graves delitos, eram expulsos do Ospedale. A casa dos mortos era uma fortaleza que ficava no alto de um penhasco que coroava uma montanha sem nome. Cercada por cinco muros que se precipitavam no abismo e por uma fossa de águas negras que paravam ao pé do monte, era impossível sequer imaginar um modo de fugir. De maneira que, por mais cruel que fosse o castigo, cada vez que o prior dava uma sentença para ser cumprida dentro dos muros do Ospedale, o réu soltava uma suspiro de alívio. O inspetor do arcebispado parecia ter um especial interesse no jovem Pietro. Ou, dizendo de outra forma, o antigo rancor que o prior tinha em relação ao padre Verani convertia o preferido do padre em alvo de todo o ressentimento de Severo Setimio. Nem bem havia sabido da recém-descoberta vocação de Pietro, determinou que estava proibida qualquer manifestação em papéis, tábuas, telas e, principalmente, em muros, paredes ou em qualquer superfície do orfanato. E, obviamente, confiscou todos os instrumentos que servissem para a pintura. De modo que, cada vez que a irmã Maria escutava a voz do prior Severo Setimio, se apressava a apagar qualquer marca que ficasse da obra demoníaca de Pietro. O padre Verani fazia verdadeiros esforços para distrair o inspetor do arcebispado, a fim de dar tempo para a religiosa limpar as paredes, esconder os utensílios de pintura e limpar as mãos do pequeno, cujos dedos sujos delatavam o crime. De qualquer forma, mesmo que o prior nem sempre conseguisse reunir provas suficientes, ele sabia que o padre Verani escondia as atividades de Pietro. Na dúvida, de todos os modos, sempre dava uma castigo para o preferido do abade.

O padre Verani sabia que, se um espírito generoso e piedoso não protegesse o pequeno Pietro, quando ele tivesse idade suficiente seria inevitavelmente levado à casa dos mortos.

 

Naquele distante dia, quando Francesco Monterga conheceu o protegido do abade, não conseguia esconder o assombro, enquanto via a destreza com que o pequeno movia o carvão sobre a tela. O menino se levantou, olhou para o velho mestre e fez uma reverência. Então o padre Verani fez um gesto discreto para o menino, apenas um movimento de sobrancelhas. Sem dizer nada, o pequeno Pietro pegou um papel, comum, não-prensado, subiu em uma cadeira e, ajoelhado, chegou à altura da mesa. Cravou seus olhos no rosto do mestre e o examinou dos pés à cabeça. Francesco Monterga era um homem corpulento. Sua barriga avantajada ficava dissimulada em virtude de sua grande estatura. A cabeça, colossal e completamente calva, parecia de mármore. Uma barba densa e cinzenta lhe dava um ar santo e assustador. A aparência do mestre florentino impunha respeito. No entanto, o tom de sua voz e seus modos contrastavam com aquele porte de lenhador: tinha um tom de voz levemente agudo e falava com entonação amaneirada. Seus dedos, compridos e finos, nunca paravam, e seus fortes braços acompanhavam cada palavra com um gesto redundante. Quando, por alguma razão, ficava nervoso, parecia não conseguir controlar os olhos, que piscavam de modo irritante. Nesses momentos, seus olhos, castanhos e profundos, se transformavam em duas pedras tímidas e evasivas, feitas de incertezas.

E esse era o caso no momento, enquanto inesperadamente posava para o artista precoce. O menino apertou o carvão entre seus dedos pequenos e se dispôs a começar o trabalho. Com certa malícia, Francesco Monterga virou, de repente, a cabeça na direção oposta. Pietro trabalhava concentrado no papel e eventualmente olhava para o mestre, e parecia nem se importar que este tivesse mudado de posição. A vela que queimava sobre a mesa levou mais tempo para queimar do que o menino para terminar seu trabalho. Desceu da cadeira, caminhou até o mestre, lhe entregou o desenho e fez nova reverência. Francesco Monterga olhou para o desenho, e era como se ver em um espelho. Meia dúzia de riscos que resumiam com precisão as feições do pintor. Abaixo da figura, em letras românicas, era possível ler: Francesco Monterga Florentinus Magister Magistral. O coração do mestre saltou no peito e, mesmo sendo um homem de emoções comedidas, ficou comovido. Nunca havia recebido um elogio semelhante; nenhum colega havia se dado ao trabalho de fazer um retrato do mestre. Nem mesmo ele havia se permitido a íntima homenagem de um autorretrato. Era a primeira vez que via seu rosto fora do espelho quebrado de seu quarto. E, mesmo gozando de reconhecimento em Florença, nunca o haviam honrado com o título de Magister Magistral. E agora, enquanto contemplava o retrato, pela primeira vez pensou na posteridade.

Vendo-se no papel, confirmou que era um homem velho. Sua vida, pensou, não era nada mais que uma sucessão de oportunidades não aproveitadas. Podia ter brilhado com a mesma força que Dante vira em Giotto, acreditava ter o mesmo direito ao mesmo reconhecimento de que gozava Piero della Francesca, e certamente merecia a mesma riqueza que Jan van Eyck havia acumulado em Flandres. Como o holandês, poderia ter aspirado à proteção da Casa de Borgonha ou mesmo à de Médicis, e não teria que depender do pobre mecenato do duque de Volterra. Agora, no outono de sua existência, pensava que não havia deixado, em sua rápida passagem por este vale de lágrimas, a semente de sua descendência. Estava completamente sozinho.

Era possível dizer que o padre Verani podia ler nos olhos ausentes de Francesco Monterga.

- Estamos velhos - disse o abade, e conseguiu arrancar do mestre um sorriso amargo.

O padre colocou as mãos sobre os ombros do pequeno Pietro e o aproximou um pouco mais do pintor. Tossiu, buscou as palavras mais adequadas, adotou um ar circunspecto e, depois de um longo silêncio, com uma voz insegura mas decidida, disse:

- Tome conta deste menino.

Francesco Monterga ficou petrificado. Quando conseguiu entender o sentido daquelas quatro palavras, enquanto voltava seu rosto para o padre Verani, seu rosto foi se transfigurando. Até que , como se tive visto o próprio demônio, deu um passo atrás, num movimento espasmódico. A ruga que atravessava suas sobrancelhas revelava uma mistura de espanto e fúria. E pensou ter entendido a razão de tanta homenagem. Francesco Monterga era capaz de passar da calma à ira em menos tempo do que tarda o trovão após o relâmpago. Nessas ocasiões, sua voz ficava ainda mais aguda, e suas mãos desenhavam no ar a forma de sua fúria.

- Era isso o que querias de mim.

Sacudiu o retrato que ainda tinha nas mãos, e não parava de repetir:

- Era isso o que querias...

Então atirou o papel na cara do padre, deu meia-volta e, com passo decidido, se dispôs a sair do ateliê improvisado. O pequeno Pietro, mais decepcionado do que amedrontado, juntou o retrato e tentou alisar a folha com a palma da mão. No mesmo momento em que Francesco Monterga buscava o caminho da rua, o abade, que transformava sua surpresa em indignação, o segurou pelo braço com toda a força enquanto gritava:

- Miserável!

Francesco Monterga parou, voltou-se para o padre Verani e, vermelho de raiva, pensou em um rosário inteiro de insultos e xingamentos. E, justo quando ia soltá-los, viu como o menino assustado se escondia atrás do hábito cor púrpura do padre. Então, engolindo as palavras, limitou-se a agitar o indicador no ar. Tentando recuperar a calma, o padre Verani disse que era um pecado indesculpável condenar o menino outra vez à orfandade e que estava seguro de jamais ter visto tanto talento em uma criança. Pediu-lhe que olhasse o retrato mais uma vez e disse que o mestre jamais se perdoaria por desperdiçar esse potencial que Deus havia posto em seu caminho. Vendo que Francesco Monterga se aproximava da porta para sair, o padre Verani concluiu:

- Aquele que não tem um discípulo não merece ser chamado de mestre.

Aquela última frase pareceu causar um efeito imediato. Os momentos de fúria de Francesco Monterga costumavam ser tão fortes quanto efêmeros; imediatamente as águas voltavam para o curso normal de seu espírito, e a fúria se dissipava tão rapidamente como havia iniciado. O pintor deteve-se no vão do portal, olhou para o pequeno Pietro e não pôde deixar de lembrar de seu próprio mestre, o grande Cosimo da Verona.

Francesco Monterga, de cabeça baixa e um pouco envergonhado, lembrou ao abade que era um homem pobre, que quase não tinha dinheiro para seu próprio sustento; que seu trabalho de decoração do Palácio Médici, sob a direção de Michelozzo, além de acabar com suas costas, não lhe deixava mais que uns poucos ducados.

- Nada tenho para oferecer a este pobre órfão - se lamentou, olhando para o chão.

- Talvez ele tenha muito para lhe oferecer - respondeu o abade, enquanto via como Pietro baixava a cabeça, ruborizado, sentindo-se responsável pela discussão.

Então o padre Verani explicou formalmente ao pintor as regras que envolviam a tutoria, segundo as quais o benfeitor tinha o direito de servir-se do trabalho do afilhado e, no futuro, podia receber pelos gastos com alimentação e manutenção, depois que o desamparado atingisse a maioridade. O padre observou ao pintor que, nas mãos daquele menino, havia uma verdadeira fortuna, insistiu que, sob a tutela do mestre, o menino se transformaria no maior pintor já surgido em Florença e concluiu dizendo que Deus retribuiria aquela generosidade com riquezas na Terra e com um lugar no Reino dos Céus por toda a eternidade.

 

O padre Verani, tomado por uma tristeza que lhe apertava a garganta e com uma expressão de pena dissimulada por trás de um sorriso satisfeito, viu como a enorme figura do mestre se afastava, seguida pelo passo curto, rápido e feliz do pequeno Pietro della Chiesa, finalmente salvo das vontades do prior Severo Setimio. Ao menos por algum tempo.

 

E agora, vendo como os coveiros terminavam de fazer sua macabra tarefa, Francesco Monterga evocava o dia em que aquele menino de olhos negros e cachos dourados havia entrado em sua vida. A primeira vez que o pequeno Pietro adentrou em sua nova casa sentiu uma felicidade como nunca antes havia experimentado. Seus enormes olhos não foram suficientes para ver as maravilhas que, aqui e ali, abarrotavam as estantes do ateliê: pincéis de todas as formas e tamanhos, espátulas de diversas grossuras, pilões de madeira e de bronze, carvões de tantas variedades como jamais havia imaginado, esfuminhos, conta-gotas, paletas que, de tão abundantes, pareciam geradas com a mesma naturalidade com que crescem as alfaces; sanguinas e lápis com cabo de vidro, óleos de todas as tonalidades, frascos repletos de pigmentos de cores inéditas, tintas e telas e tábuas e molduras, e inumeráveis objetos e substâncias de cuja utilidade nem sequer suspeitava. Em sua pequena estatura, Pietro olhava fascinado os compassos, as réguas e os esquadros; na ponta dos pés, se aproximava dos imensos cavaletes e, virando a cabeça para todos os lados, observava a quantidade de papéis e pergaminhos, e até os velhos trapos com que o mestre limpava os utensílios pareciam, para ele, verdadeiros tesouros. Parou absorto diante de um painel inacabado, um velho retrato do duque de Volterra que Francesco Monterga há anos não conseguia terminar. Observava cada traço, cada uma das pinceladas e a superposição de distintas capas de tintas com a ansiedade típica do menino que era. Olhou de soslaio para seu novo tutor com uma mistura de timidez e admiração. Seu coração estava imensamente feliz. Tudo aquilo estava, agora, ao alcance de sua mão. Gostaria de, naquele mesmo instante, tomar uma paleta e começar a pintar. Mas ainda não sabia o quanto faltava para que chegasse esse momento.

Nessa noite, o mestre e o pequeno discípulo comeram em silêncio. Pela primeira vez em muitos anos, Francesco Monterga compartilhava sua mesa com alguém além de sua própria sombra. Não se atreviam a se olhar; seria possível dizer que o velho mestre não sabia como se dirigir a um menino. Pietro, por seu lado, tinha medo de importunar seu novo tutor; comia tentando fazer o menor barulho possível e não parava de mover nervosamente as pernas, que pendiam da cadeira e não chegavam a tocar o chão. Gostaria de agradecer a generosidade do mestre, por tê-lo tomado a seus cuidados, mas, diante do silêncio de seu tutor, não se animava a dizer qualquer palavra. Até este momento, Pietro nunca se havia questionado sobre a própria orfandade, não conhecia outro lar além do Ospedale e não sabia exatamente o que era um pai. E agora que tinha uma casa e, de alguma maneira, uma família, uma tristeza desconhecida se instalou em sua garganta. Quando terminaram de comer, o pequeno desceu da cadeira e recolheu os pratos, examinou a cozinha e, com os olhos, procurou a pia para lavá-los. Sem levantar-se, Francesco Monterga apontou o lugar. Sentado em sua cadeira, enquanto o menino lavava a louça, o mestre florentino olhava seu inesperado hóspede com uma mescla de estranheza e satisfação. Quando terminou sua tarefa, Pietro aproximou-se de seu tutor e lhe perguntou se precisava de mais alguma coisa. Francesco Monterga deu um meio sorriso e balançou negativamente a cabeça. Impulsionado por uma espécie de inércia incontrolável, o pequeno foi até o ateliê e outra vez ficou a contemplar os tesouros que abarrotavam as prateleiras. Respirou fundo, enchendo os pulmões com aquele aroma feito da mistura de verniz, de pinho e de sementes usadas para preparar óleos e resinas. Então sua tristeza se dissolveu nos eflúvios daquela mistura de perfumes até quase perder os sentidos. O mestre decidiu que era hora de dormir e o conduziu até o pequeno mezanino, que daquele momento em diante seria seu quarto.

- Amanhã teremos tempo para trabalhar - disse, e entregou ao menino um lápis com cabo de vidro.

Pietro dormiu com o lápis apertado entre as mãos, desejando que a manhã seguinte chegasse o quanto antes.

 

Quando acordou, teve medo de abrir os olhos e descobrir que tudo aquilo havia sido apenas um sonho. Temia despertar e encontrar diante de si a mesma paisagem: o teto descascado do orfanato. Mas ali estava, em sua mão, o lápis que Francesco Monterga lhe dera na noite anterior. Então abriu os olhos e viu o céu radiante do outro lado da pequena janela do quarto. Levantou-se num salto, vestiu-se tão rapidamente quanto pôde e desceu as escadas correndo. No ateliê, de pé, em frente ao cavalete, estava o seu mestre preparando uma tela. Sem olhar, Francesco Monterga chamou sua atenção, de modo amável mas severo, de que aquelas não eram horas de começar o dia. Ele teria que se acostumar a levantar antes do amanhecer. O pequeno Pietro abaixou a cabeça, e, antes que pudesse pensar em uma desculpa, o velho mestre lhe disse que tinham uma longa jornada de trabalho pela frente. Imediatamente, pegou um frasco cheio de pincéis e o colocou nas mãos de seu novo discípulo. O rosto de Pietro se iluminou. Finalmente, ia pintar como um verdadeiro artista, sob os sábios cuidados de um mestre. Quando estava quase escolhendo um dos pincéis, Francesco Monterga lhe mostrou uma tina cheia de água marrom e ordenou:

- Quero que fiquem bem limpos, que não se veja nem um resto de tinta.

Antes de retomar seu trabalho, o pintor apareceu novamente no vão da porta e acrescentou:

- E cuidado para que não soltem um só pelo.

O pequeno Pietro ficou corado, envergonhado de suas desatinadas ilusões. No entanto, colocou-se sobre um banco e começou sua tarefa com todo o empenho. Os sinos da igreja haviam tocado duas vezes quando terminou de limpar o último pincel. antes que desse por encerrado seu trabalho, Francesco Monterga aproximou-se de seu aprendiz e perguntou onde estava o lápis que lhe havia dado na noite anterior. Com as mãos molhadas e os dedos brancos e enrugados, Pietro remexeu na bolsa que estava presa na cintura e de lá tirou o lápis e o ergueu em frente a seus olhos.

- Muito bem - sorriu o mestre -, é hora de começar a usá-lo.

Pietro não se atreveu a alegrar-se, mas, quando viu que Francesco Monterga trazia um papel e lhe oferecia, seu coração bateu com força. Então o mestre apontou para a imensa estante que se perdia na penumbra do teto e lhe disse que organizasse tudo o que se amontoava nas infinitas prateleiras, que limpasse o que estivesse sujo e que, depois, com o lápis e o papel, fizesse um inventário de todas as coisas. E, antes de voltar para o cavalete, disse que lhe perguntasse sempre que não soubesse o nome de algum objeto. Sem que Pietro imaginasse, aquele era o primeiro degrau da íngreme escada da formação de um pintor. Assim havia escrito o grande Cosimo da Verona, que tinha sido o mestre de Francesco Monterga. Em seu Tratado de pintura, dizia:

 

A primeira coisa que quem aspira a ser pintor deve conhecer são as ferramentas com que vai trabalhar. Antes de fazer o primeiro esboço, antes de traçar a primeira linha sobre um papel, uma tábua ou uma tela, deverás familiarizar-te com cada instrumento, como se fosse parte de teu corpo; o lápis e o pincel deverão responder à tua vontade da mesma maneira como o fazem teus dedos. (...) Por outro lado, a ordem é a melhor amiga do ócio. Se, vencido pela preguiça, deixas sujos os pincéis, será muito maior o tempo que gastarás para retirar as crostas secas da tinta velha. (...) O melhor e o mais caro dos pincéis de nada serve se não está em condições, pois arruinaria tanto a tinta quanto a tábua. (...) Terás que saber qual é a ferramenta mais adequada para cada fim. Antes de usar um carvão, deves comprovar sua dureza: um carvão muito duro pode arruinar o papel, e um muito tenro não deixaria marca em uma tábua; um pincel de pelos rígidos arrastaria o material que ainda não estava completamente seco, e outro muito flexível não fixaria as capas grossas de tinta. Por isso, antes de iniciar-te no desenho e na pintura, deves poder reconhecer cada uma das ferramentas.

 

Já havia caído a noite quando Pietro, cochilando sobre o papel e fazendo esforços sobre-humanos para manter os olhos abertos, terminou de fazer a lista com cada um dos objetos da estante. Francesco Monterga olhou para as prateleiras e percebeu que nunca as tinha visto tão arrumadas. Frascos, pincéis e ferramentas estavam reluzindo e dispostos com uma ordem metódica e escrupulosa. Quando o mestre baixou o olhar, viu o pequeno Pietro adormecido sobre suas anotações. Francesco Monterga felicitou-se por seu novo investimento. Se tudo se ajustasse, como na previsão do abade, em alguns anos iria colher os frutos da trabalhosa tarefa de ensinar. Sempre seguindo os passos de seu próprio mestre, Cosimo da Verona, Francesco Monterga se fixava nos preceitos de que o ensino de um aprendiz se completa no décimo terceiro ano. Em termos ideais, a educação de um aspirante devia começar exatamente aos cinco anos.

 

Primeiramente, é necessário um ano para estudar o desenho elementar que depois vai ser transposto aos quadros. Mais tarde, junto com um mestre no ateliê, para colocar-se a par de todas as ramificações de nossa arte, começar por moer as cores, cozinhar as colas, amassar os gessos, ganhar prática no preparo dos quadros, realçando-os, polindo-os, dourar e fazer bem o granado, serão necessários seis anos. Depois, para estudar as cores, fixá-las com mordentes, fazer roupagens douradas e iniciar-se no trabalho em murais, são necessários mais seis anos, desenhando sempre, não deixando o desenho nem em feriados, nem em dia de trabalho. (...) Há muitas pessoas que afirmam que aprenderam a arte sem mestres. Não acredites. Este livro, por exemplo, se tu o estudasses dia e noite sem praticar com algum mestre, não chegarias a lugar nenhum, nunca estarias entre os grandes pintores.

 

Durante os primeiros tempos, o pequeno Pietro resignou-se à sua nova existência, que consistia em limpar, organizar e classificar. Em alguns momentos, sentia falta de sua vida no orfanato; sem dúvida, o alegre padre Verani era uma boa recordação em comparação com seu novo tutor, um homem áspero, severo e mal-humorado. Pietro dava-se conta de que agora conhecia uma grande quantidade de pigmentos, óleos, tintas e ferramentas cuja existência antes ignorava completamente; reconhecia que podia falar de igual para igual com seu mestre sobre diferentes materiais e técnicas e sobre os artefatos mais extraordinários, mas também se perguntava de que servia toda aquela erudição se tudo aquilo lhe estava vedado, a não ser para limpar, organizar e classificar. Mas Francesco Monterga sabia que quanto mais retardasse os ímpetos de seu discípulo, tanto maior seria a força com que libertaria seu talento contido quando chegasse o momento.

E o grande dia chegou quando Pietro menos esperava. Numa manhã qualquer, o mestre chamou seu pequeno aprendiz. Diante dele estavam uma pequena tábua, três lápis, cinco formões bem afiados e um frasco de tinta negra. Como uma homenagem a seu mestre, Francesco Monterga encomendou a Pietro della Chiesa seu primeiro exercício. No coro da capela do hospital de São Egídio, havia um pequeno retábulo de madeira, obra de Cosimo, conhecido como O triunfo da luz. O mestre florentino deu a seu discípulo a tarefa de copiar a obra e gravá-la na madeira com os formões resplandecentes. A gravura era a mais completa e a mais complexa das técnicas; combinava o desenho, o entalhe e a pintura. Sem ter as três dimensões da escultura, a figura devia imitar a mesma profundidade; sem contar com a vantagem da cor, devia apresentar a impressão das tonalidades somente com o uso da tinta preta e o fundo branco do papel. Os enormes olhos negros de Pietro quase saltaram das órbitas quando ouviu a encomenda do mestre. Um sorriso involuntário instalou-se em seu rosto, e o coração lutava para sair do peito. Além disso, aquela era uma demonstração de confiança, já que o menor descuido no uso dos afiados formões podia causar um terrível acidente. Sem dúvida, era um prêmio muito maior do que podia esperar por sua paciência.

Em poucos dias, o trabalho estava terminado. Francesco Monterga estava maravilhado. O resultado foi surpreendente: a gravura não só fazia justiça ao original, como podia-se dizer que, somente com o uso da tinta negra, emanava uma profundidade e uma sutileza ainda superiores. Mas nem Pietro, nem Francesco Monterga imaginavam que aquelas quatro tábuas mudariam o curso de suas vidas.

 

Junto à fossa retangular que com cada nova porção de terra ia devorando os restos corrompidos daquele que até pouco tempo apresentava o aspecto de um efebo, Francesco Monterga não podia evitar uma caótica sucessão de recordações. Da mesma forma que a evocação de um filho remete à lembrança do pai, Francesco Monterga pensava agora em seu próprio mestre, Cosimo da Verona. Com ele havia aprendido tudo o que sabia e dele havia herdado, também, tudo o que ignorava. E, de fato, Francesco Monterga parecia muito mais obcecado por todos os mistérios que não conseguia desvelar do que pelo punhado de certezas de que era dono. Mas o que mais o atormentava, o que nunca podia se perdoar era a vergonha de ter permitido que seu mestre morresse na prisão, onde fora parar por causa das dívidas que tinha. Preso, velho, cego e na mais absoluta indigência, nenhum discípulo, incluindo o próprio Monterga, teve a generosidade de pagar seus credores e tirá-lo da prisão. Mas o velho mestre Da Verona, longe de converter-se em um misantropo corroído pelo ressentimento, conservou, até o dia de sua morte, a mesma filantropia que sempre o guiou. Teve até a imensa generosidade de deixar nas mãos do, na época, jovem Francesco Monterga seu mais valioso tesouro: o tratado Diversarum Artium Schedula. Sem dúvida, aquele manuscrito do século IX excedia com vantagens o montante de sua dívida, mas Cosimo da Verona nunca ia permitir que acabasse nas mãos miseráveis de um ganancioso. Antes disso, preferia morrer em sua cela. E assim o fez. Segundo Cosimo da Verona havia revelado a Francesco Monterga no dia em que lhe confiara o tratado, aquele manuscrito continha o segredo mais procurado pelos pintores de todos os tempos, aquele mistério pelo qual qualquer artista daria sua mão direita ou, até, o dom mais valioso para um pintor: sua visão. Nesse manuscrito, estava o valioso Secretus coloris in status purus, o mítico segredo das cores em estado puro. No entanto, quando Francesco Monterga leu com avidez o tratado e releu várias vezes o último capítulo, Coloribus et Artibus, longe de encontrar, como esperava, a mais preciosa das revelações, deparou-se com uma inesperada surpresa. Em lugar de uma explicação clara e sucinta desse segredo, não havia nada mais que um longo fragmento de Os livros da ordem, de Santo Agostinho, em cujas linhas se intercalava uma série de números sem arranjo aparente e sem nenhuma ordem. Durante mais de quinze anos, Francesco Monterga tentou decifrar o enigma sem conseguir elucidar sentido algum. O mestre guardava o manuscrito a sete chaves. O único a quem revelou a existência do tratado foi Pietro della Chiesa.

Seu discípulo havia aprendido o ofício rapidamente. O precoce talento que aquela distante primeira gravura revelava era uma pálida antecipação de seu potencial. Em doze anos de estudo junto ao seu mestre, segundo todas as opiniões, havia superado Taddeo Gaddi, o mais conhecido aluno de Giotto, que permaneceu vinte e quatro anos com o célebre pintor.

Com o passar dos anos, Pietro havia se transformado em um jovem magro, alegre e disciplinado. Tinha um olhar inteligente e um sorriso afável e claro. Seu cabelo crespo e loiro contrastava com aqueles olhos negros, profundos e cheios de perguntas. Falava com uma voz suave e serena, e tinha herdado aquele jeito levemente amaneirado do mestre, mas sem sua afetação. Conservava os mesmos traços que tinha quando menino, agora modificados pela puberdade, e conduzia sua nada usual beleza com certa timidez.

À sua queda natural para o desenho havia somado o estudo metódico da geometria e da matemática, as proporções áureas, a anatomia e a arquitetura. Era possível dizer que era um verdadeiro florentino. O manejo impecável da perspectiva e dos escorços (N.R: Representação de uma figura em proporções menores do que ao natural.) revelava uma perfeita síntese entre a sensibilidade nascida do coração e o cálculo minucioso das fórmulas aritméticas. Francesco Monterga não podia dissimular um orgulho que lhe enchia o peito diante dos comentários elogiosos de doutos e leigos sobre o talento de seu discípulo. Mas, como correspondia à sua natureza austera, despojada de arrogância, Pietro conhecia suas próprias limitações; podia admitir que, com muitos esforços, tinha alcançado o domínio das técnicas de desenho e o manejo da perspectiva, mas, na hora de aplicar as cores, sua serenidade desaparecia diante da tela, e seu pulso, seguro com o lápis, tornava-se vacilante e indeciso com o pincel. E mesmo que suas tábuas não revelassem suas incertezas íntimas, as cores eram para ele um mistério indecifrável. Se todas as virtudes do futuro pintor que Pietro exibia eram obra do paciente ensino de seu mestre, com a mesma justiça era preciso admitir que as fissuras em sua formação eram responsabilidade de Francesco Monterga. E, a bem da verdade, quem sabe sem perceber, o mestre florentino havia instalado no espírito de seu discípulo suas próprias carências e obsessões.

Mesmo sendo um homem velho, Francesco Monterga não queria morrer sem poder desvendar o segredo das cores. Quem sabe seu aprendiz, jovem, inteligente e profundamente inquieto, poderia ajudá-lo a resolver o enigma. Juntos, trancados na biblioteca, passavam noites inteiras relendo e estudando, uma e outra vez, cada um dos dígitos que se misturavam com o texto de Santo Agostinho e que não pareciam ter uma lógica inteligível.

No momento da tragédia, Pietro della Chiesa estava muito perto de completar sua formação e converter-se, por fim, em um pintor. E, sem dúvida, um dos mais brilhantes que Florença gerou. De modo que todos podiam compreender o desconsolo, em alguns momentos patético, de Monterga. Era possível dizer que o mestre florentino via como se evaporavam diante de seus olhos as esperanças de vingar suas próprias frustrações com a consagração de seu filho de ofício.

 

Enquanto assistia à terrível cerimônia dos coveiros atirando terra úmida sobre o triste caixão, Francesco Monterga mantinha um ar abstraído, de quem se concentra profundamente em seus pensamentos. O prior Severo Setimio, com a cabeça baixa e as mãos cruzadas sobre o peito, com seus pequenos olhos de ave movendo-se de um lado a outro, examinava cada um dos presentes. Sempre fora sua vocação suspeitar. E era isso exatamente o que fazia. Sua presença nos funerais de Pietro della Chiesa não tinha o propósito de elevar orações pela alma do morto nem de render-lhe homenagens póstumas. Se durante os primeiros anos de Pietro o antigo inspetor do arcebispado tinha se convertido em seu mais temível pesadelo, agora, dezesseis anos depois, parecia disposto a persegui-lo até o além. Quis o destino que a comissão ducal constituída para investigar a morte do jovem pintor fosse presidida pelo velho inquisidor infantil Severo Setimio. Mais calvo e um pouco curvado, ainda conservava o mesmo olhar desconfiado. O prior não manifestava nenhum pesar; ao contrário, suas antigas suspeitas com relação ao preferido do abade Verani pareciam ter sido aprofundadas com o passar do tempo. Talvez por não tido a sorte de poder mandar o pequeno Pietro para a casa dei morti, por causa, quem sabe, do velho desejo não realizado, por mais paradoxal que pudesse parecer, todas as suas suspeitas dirigiam-se à própria vítima. Os primeiros interrogatórios que fez giravam em torno de uma pergunta não-formulada: que ato terrível havia cometido o jovem discípulo para ocasionar este final?

À direita do prior, com o olhar perdido em um ponto incerto situado acima das copas dos pinheiros, estavam os outros dois discípulos, Giovanni Dinunzio e Hubert van der Hans. Os olhos fugidios de Severo Setimio estavam agora pousados sobre este último, um jovem alto, de cabelo liso e tão loiro, que, envolto pela claridade da manhã, apresentava a aparência de um albino. De fato, o prior não conseguia concluir se sua expressão chorosa e congestionada era fruto da aflição pela morte de seu colega ou se estava incomodado pelo sol oblíquo que começava a bater em seu rosto e, portanto, não conseguia parar de fazer caretas acompanhadas de lágrimas e corrimentos nasais.

O prior Severo Setimio, durante as primeiras indagações, soube que Hubert van der Hans havia nascido na cidade de Maaselk, em Limburgo, perto do limite oriental dos Países Baixos. Seu pai, um próspero comerciante que exportava sedas de Flandres a Florença, havia descoberto a precoce vocação do primogênito para a pintura. De modo que decidiu apresentar seu filho aos mais prestigiados mestres flamengos, os irmãos Greg e Dirk van Mander. Sendo um menino de apenas dez anos, Hubert chegou a ser o mais adiantado aprendiz dos irmãos de Flandres. Sua intuição para preparar cores, misturar componentes de tinta, os pigmentos e vernizes, e imitar com precisão as tonalidades das pinturas antigas lhe indicava um futuro venturoso sob o mecenato de Juan de Baviera. Hubert permaneceu dez anos no ateliê dos irmãos Van Mander, mas os altos e baixos do mercado da seda obrigaram a família Van der Hans a se mudar para Florença. Tinha se tornado muito mais rentável importar tecidos de Flandres, utilizar as novas técnicas florentinas de tintura e então exportar o produto de volta para os Países Baixos e outros reinos. Uma vez instalado em Florença, o pai de Hubert, seguindo recomendação do duque de Volterra, decidiu colocar seu filho como aluno do ateliê do mestre Francesco Monterga, para que não perdesse a continuidade de seus estudos.

Diante de quem quisesse ouvir, Dirk van Mander se lamentava amargamente, dizendo que a deserção de Hubert significava uma verdadeira afronta, não somente porque o pintor florentino lhe tinha tomado o discípulo predileto, mas porque, além disso, aquele feito era um novo passo na silenciosa guerra que travavam desde há muito.

De fato, entre o mestre Monterga e o mais jovem dos irmãos Van Mander havia crescido uma rivalidade que, de algum modo, sintetizava a disputa pela supremacia da pintura europeia entre as duas grandes escolas: a florentina e a flamenga. Não eram os únicos; muitos outros estavam metidos numa guerra cujo prêmio eram os mecenas, príncipes e duques, os discípulos e os mestres, os nobres retratados e os novos burgueses cheios de vaidade e desejo de posteridade, os muros dos palácios e as abóbodas das igrejas, os panteões da corte de Borgonha e os recintos papais. E nessa guerra antiga, à qual Francesco Monterga e Van Mander se haviam somado tempos atrás, os combatentes estabeleciam alianças e estratégias, receitas de cores e técnicas secretas, métodos de espionagem e sistemas de ocultação e criptografia para as fórmulas. Procuravam-se textos antigos, e eram guardados como tesouro manuscritos de autênticos sábios e de duvidosos alquimistas. Tudo fazia parte de um território em disputa que todos pretendiam dominar, num combate em que lutavam armados de pincéis e espátulas, pilões e cinzéis. E quem sabe, também com outras armas. O prior Severo Setimio não ignorava que, tanto em Florença como em Roma, na França ou em Flandres, coisas estranhas tinham acontecido. Masaccio morrera muito jovem, envenenado, em 1428, em circunstâncias nunca esclarecidas. Havia muitas suspeitas em torno da trágica morte de Andrea del Castagno, e, segundo algumas versões um tanto duvidosas, seu assassino era Domenico Veneziano, discípulo de Fra Angelico. Outros rumores, mais obscuros e menos documentados, que haviam chegado aos ouvidos do prior falavam de vários pintores mortos por causa de supostos envenenamentos causados pelo uso descuidado de certos pigmentos que, como o branco de chumbo, podiam ser mortais. No entanto, os céticos tinham fundamentos para duvidar.

 

Em meio a essa silenciosa luta que parecia não ter limites, o jovem Hubert van der Hans havia se convertido em um involuntário prêmio de guerra. Segundo o prior Severo Setimio havia podido estabelecer, em seus breves interrogatórios, as relações entre o discípulo flamengo e Pietro della Chiesa nunca tinham sido muito amáveis. Desde o dia em que o novo aprendiz cruzara a porta do ateliê, o “primogênito”, por assim dizer, não pudera evitar um sentimento contraditório. Poderia-se dizer que experimentara o ciúme natural de um menino diante do nascimento de um irmão; o paradoxo, no entanto, é que o novo “irmão” era dois anos mais velho que ele. De modo que nem sequer tinha o consolo da autoridade que o primogênito tem sobre o irmão menor. Na verdade, o “caçula” era quase duas cabeças mais alto, e sua voz grossa e seu ar mundano, seu sotaque estrangeiro, suas roupas caras e um pouco exóticas e sua evidente superioridade no manuseio das cores logo deixaram Pietro em uma condição de inferioridade aos olhos de Francesco Monterga. Sofria em silêncio. Ficava aterrorizado com a ideia de perder o pouco que tinha: o amor de seu mestre. De um dia para outro, não podia evitar o sentimento de que o inimigo havia entrado em sua própria casa. Pietro della Chiesa havia crescido ouvindo as maldições que Francesco Monterga lançava contra os flamengos. Cada vez que chegava a notícia de que um florentino havia sido retratado por um pintor do norte, o mestre gritava furioso. Havia qualificado de traidor o cardeal Albergati, o enviado do papa Martin V, por ter posado, em Brugges, para Jan van Eyck. Repudiava o casal Arnolfini por ter sido retratado também pelo miserável flamengo, e desejava para os descendentes do casal a mais completa ruína, enquanto lhes dedicava os insultos mais raivosos.

Por essa razão, longe de entender a nova “aquisição” de Francesco Monterga como uma peça capturada ao inimigo, Pietro della Chiesa não conseguia entender por que motivo seu mestre revelava os mais preciosos segredos de sua arte àquele que havia sido protegido de seu maior inimigo. O certo é que, além do prazer maldoso de exibir o troféu conquistado, Francesco Monterga recebia das mãos do pai de Hubert uma quantia mais que generosa.

Ao mestre florentino, faltavam palavras para maldizer os flamengos. Ficava rouco condenando os novos ricos dos Países Baixos e seu miserável senso artístico, cujo mecenato havia rebaixado a pintura a miseráveis critérios estéticos. Mostrava a pobreza do uso da perspectiva, sustentada em apenas um ponto de fuga. Deplorava o tosco emprego dos escorços, que, em sua opinião, ficavam pouco dissimulados por um detalhamento tão trabalhoso como inútil, e que substituíam a espiritualidade própria da pintura pela ostentação doméstica que caracterizava a burguesia. Entretanto, os novos mecenas retratados não podiam esconder sua origem: por baixo dos luxuosos ornamentos, das ricas roupas douradas, era possível ver o sapato do homem comum, que se deslocava a pé e não a cavalo ou em liteira, como fazia a nobreza. A pintura de Van Eyck comprovava isso: o marido do casal Arnolfini, embora se tivesse feito pintar rodeado de pompas, sedas e peles, aparecia posando com rústicos tamancos de madeira.

No entanto, atrás da fúria verbal de Francesco Monterga, escondia-se um ressentimento construído com a cal da inveja e a argamassa de uma inconfessável admiração. Era certo que os novos mecenas eram burgueses com pretensões aristocráticas, mas não era menos certo que seu próprio benfeitor, o duque de Volterra, lhe dava apenas uns míseros ducados para manter as aparências. Sua “generosidade” não era suficiente para que o mestre Monterga não se visse obrigado a trabalhar, quase como um operário, nas reformas do Palácio Médici. Também era verdade que Francesco Monterga tinha um talento inigualável no uso da perspectiva e que suas técnicas de escorço obedeciam a fórmulas matemáticas secretas guardadas cuidadosamente em sua biblioteca. Certamente até o mais talentoso dos pintores flamengos daria tudo para conhecê-las. Mas também era certo que a melhor de suas têmperas ficava opaca diante da luminosidade do mais torpe dos quadros pintados por Dirk van Mander. As velaturas (N.R.: Camada transparente de tinta aplicada sobre a base ou sobre alguma cor.) de seus colegas dos Países Baixos emanavam um realismo total, que dava aos retratos a impressão de estarem animados pelo sopro vital dos mortais. Francesco Monterga se perguntava qual seria o composto secreto que era misturado aos pigmentos para que as pinturas tivessem semelhante brilho inalterável. Intimamente dizia que daria sua mão direita para conhecer a fórmula. Pietro della Chiesa o havia escutado sussurrar essa frase e sorria amargamente cada vez que a ouvia, pois o mestre costumava dizer com frequência que ele era sua mão direita.

Fiel a seu aprendizado em Flandres, Hubert não tinha uma noção muito boa da perspectiva e dos escorços. O aprendiz flamengo desenhava sem ordem e cálculo matemático, e nem era possível identificar um ponto de fuga em algum lugar da tábua. Era dono de um fino espírito observador, mas os resultados de seu trabalho eram rascunhos caóticos, cheios de linhas apagadas com o punho, o que enfurecia o mestre Monterga. No entanto, na hora de aplicar as cores, aquele esboço enredado em seus próprios traços ganhava uma gradual harmonia que repousava mais na lógica das tonalidades do que na lógica das formas. Ao contrário de Pietro della Chiesa, a cuja tendência natural para o desenho se haviam somado o estudo sistemático e disciplinado das ciências e a leitura dos antigos matemáticos gregos, Hubert van der Hans compensava seu escasso talento com o lápis com uma inata intuição para as cores e a boa escola de seu mestre do norte. E isso Pietro só podia invejar.

Por sua parte, Hubert van der Hans não mostrava a menor estima por seu colega. Costumava rir de sua voz aflautada e de sua pouca estatura, e o atormentava chamando-o de la bambina. Vermelho de raiva, com as veias do pescoço a ponto de estourar, ao pequeno Pietro, considerado o tamanho de seu oponente, não restava outra alternativa a não ser esconder-se para chorar.

No dia anterior à desaparição de Pietro della Chiesa, o mestre Francesco Monterga havia surpreendido seus dois discípulos discutindo acalarodamente. E pôde escutar como Hubert, com o indicador ameaçador, mandava o jovem Pietro guardar certo “segredo” ou assumir as consequências. Quando os interrogou, não conseguiu arrancar uma palavra e deu o assunto por encerrado, com a convicção de que aquilo era apenas mais uma das habituais brigas infantis a que já estava acostumado.

 

Os olhos inquietos do prior, que se mantinha num discreto segundo plano, estavam agora disfarçadamente fixos sobre o terceiro discípulo de Francesco Monterga. Giovanni Dinunzio tinha nascido em Borgo San Sepolcro, nas proximidades de Arezzo. Tudo indicava que o pequeno Giovanni, assim como seu pai e o pai de seu pai, acabaria sendo artesão, do mesmo modo que seus irmãos e todos os Dinunzio de Arezzo há muitas gerações. No entanto, o caçula do casal, desde sua mais tenra infância, tinha desenvolvido uma repulsa pelos vapores do couro, que certamente se transformaria numa moléstia rara. O contato com as peles curtidas lhe provocava uma variedade de reações que iam desde o surgimento de bolhas e comichões, que chegavam a apresentar o aspecto de sarna, até a falta de ar e angustiantes afogamentos que o deixavam exausto.

Seus primeiros passos na pintura foram guiados pelas necessidades de sua saúde frágil. Antonio Anghiari fora seu médico antes de ser seu mestre. Os conhecimentos de anatomia do velho pintor e escultor o haviam convertido, na falta de alguém melhor preparado, no único médico do povoado. Por causa das frequentes e prolongadas crises, o pequeno Giovanni passava a maior parte do tempo na casa do mestre Antonio Anghiari. O cheiro das dormideiras e dos pigmentos de cinábrio (N.R.: Sulfeto de mercúrio, vermelho, brilhante.), o perfume das folhas amassadas e dos óleos que reinava no ateliê de Antonio Anghiari pareciam exercer um efeito curativo imediato sobre a delicada saúde de Giovanni Dinunzio. Desse modo, a passagem de paciente a discípulo se produziu de um modo quase espontâneo. A relação que Giovanni Dinunzio estabeleceu, literalmente, com a pintura era tão natural e imprescindível como a respiração, pois encontrara no óleo das dormideiras o antídoto para todos os seus males. Sem que ninguém pudesse perceber, começava a germinar, em seu corpo e em seu ânimo, uma necessidade vital de respirar as emanações do óleo que se extraía da papoula. Giovanni Dinunzio permaneceu seis anos junto a seu mestre, que, vendo que o talento potencial do jovem superava seus pobres recursos, convenceu o velho artesão de que deveria enviar seu filho para estudar em Siena, cidade vizinha. Quando Giovanni finalmente chegou à cidade, os tons de ocre o fizeram compreender o sentido mais essencial da cor siena (N.R.: Pigmento de óxido de ferro, usado como corante.). Uma felicidade nunca antes sentida confirmou a sentença escrita na porta Camolilla: Cor magis tibi Siena pandit (Siena te abre ainda mais o coração.). No entanto, sua sorte não duraria muito. O mestre recomendado por Antonio Anghiari, o célebre Sassetta, o esperava, horizontal, pálido e pétreo, dentro de um caixão. Acabava de morrer. Matteo di Giovanni, seu aluno mais destacado, se encarregou do aprendizado do jovem recém-chegado de Arezzo. Mas ficou apenas oito meses junto a ele. Giovanni Dinunzio não conseguiu manter-se afastado da tentação da aventura florentina. E quis o destino que, quase acidentalmente, ele se encontrasse com o mestre Francesco Monterga.

O jovem provinciano produziu em Francesco Monterga uma espécie de fascinação imediata. Seus olhos, tão azuis quanto tímidos, seu cabelo negro e desordenado, a modesta candura com que mostrava seus trabalhos, quase envergonhado, conseguiram comover o velho mestre florentino. Depois de analisar cuidadosamente seus desenhos e pinturas, Francesco Monterga chegou à conclusão de que a tarefa que tinha diante dele era a de demolir antes para reconstruir depois. A breve passagem de Giovanni Dinunzio pelas terras de Lorenzo de Mônaco havia sido suficiente para que adquirisse todos os vícios da escola de Siena: as figuras, demasiadamente alongadas e pretensiosamente espirituais, os cenários carregados e os floreios amaneirados ao estilo francês, os tecidos apresentando pregas e curvas impossíveis, o excesso pedagógico que revelavam as cenas, com uma obviedade narrativa irritante, e os fundos ingênuos e decorativos constituíam para o mestre Monterga o decálogo das coisas que uma pintura não deveria ser.

Seu novo discípulo era uma verdadeira prova. Giovanni Dinunzio era o oposto exato de Pietro della Chiesa. Este era como a argila fresca, maleável e dócil; o recém-chegado, ao contrário, tinha a tosca materialidade de uma pedra. E não porque não tivesse talento: se ainda mantivesse a mesma disposição para livrar-se de todos os vícios que havia sabido assimilar em tão pouco tempo, ainda havia esperança. Para Pietro della Chiesa, ao contrário do que se podia esperar, a chegada do novo colega de Arezzo significou um alívio. A timidez e a modéstia de Giovanni contrastavam com o altivo cinismo de Hubert van der Hans. Giovanni Dinunzio aceitava as observações críticas de Pietro della Chiesa e, mesmo sendo dois anos mais velho, concordava em seguir suas indicações e sugestões. Pietro della Chiesa e Giovanni Dinunzio tornaram-se amigos em pouco tempo. Ao mais antigo discípulo do mestre Monterga, não incomodava nem um pouco a dedicada atenção que este prestava ao novo aluno. O flamengo, por outro lado, não podia evitar um tratamento que beirava o desprezo para com o recém-chegado. Os costumes provincianos, a aparência despojada e o espírito simples do filho de artesão lhe provocavam algo próximo da repulsa.

Em uma tarde de agosto, enquanto Giovanni Dinunzio trocava de roupas para trabalhar, Pietro della Chiesa acidentalmente o encontrou no momento em que estava se despindo. Para sua surpresa, pôde ver que seu colega tinha pendurado entre as pernas um badalo que parecia do tamanho do que batia no sino da catedral. Contemplava aquela espécie de animal morto, marcado por veias azuis que se bifurcavam como rios, e não conseguia entender como o jovem carregava aquele fenômeno com tanta naturalidade. Desde aquele dia, Pietro della Chiesa não podia evitar certa pena de si mesmo cada vez que via as pequenas dimensões que Deus lhe havia dado, ou melhor, negado. Mas houve uma segunda descoberta que o espantaria ainda mais.

Certa noite, Pietro della Chiesa escutou um ruído suspeito que vinha da biblioteca. Assustado e temendo que fossem ladrões, decidiu espiar pelo buraco da fechadura. Então pôde ver como Francesco Monterga acabava de descobrir o oculto prodígio de seu novo discípulo. E, segundo comprovou, o mestre ficou tão assombrado que, desconfiando de sua vista, apelava para o tato, e, se este último também o enganasse, recorreria ao paladar. A surpresa do afilhado de Francesco Monterga foi tanta que acabou perdendo o equilíbrio. E o fez com tão pouca sorte que tropeçou e caiu contra a porta, que se abriu de par em par. Os três se olharam aterrorizados. Enquanto Giovanni Dinunzio corria envergonhado, o mestre se recompôs e, com um rosto desconhecido, olhou severamente para Pietro della Chiesa sem pronunciar nenhuma palavra. Foi uma sentença clara: ele não havia visto nada. E isso aconteceu exatamente um dia antes de seu desaparecimento.

Mas o prior Severo Setimio, por mais que quisesse descobrir através do silêncio daquele grupo, nada podia saber desses episódios domésticos acontecidos entre quatro paredes.

 

Conforme o sol se elevava por sobre os montes de Calvana, a bruma avermelhada começava a dissipar-se. A sombra oblíqua dos pinheiros se deslocava, imperceptível como o ponteiro de um relógio de sol, até o meio-dia da capela localizada no centro do cemitério. A brisa da manhã trazia o remoto perfume das videiras de Chianti e das oliveiras de Prato. O prior Severo Setimio, recolhido sob o capuz púrpura, observava todos, reunidos em volta da sepultura, enquanto cruzavam olhares furtivos, baixando a vista quando eram surpreendidos olhando uns aos outros. Era possível dizer que o absoluto silêncio em que se escondiam não era causado somente pela angústia. Cada um parecia guardar uma suspeita impronunciável ou um recôndito segredo, cujo depositário, de um modo ou de outro, era sempre o morto. Pietro della Chiesa, fiel à silenciosa ordem de seu mestre, levava para o túmulo a horrível descoberta de que ninguém deveria se inteirar. Na verdade, aquela derradeira e acidental visão na biblioteca não fora uma descoberta, mas uma dolorosa confirmação.

Severo Setimio não ignorava que, já há algum tempo, circulavam certos rumores sobre a relação de Francesco Monterga e seus discípulos. Cada vez com maior insistência, proliferavam histórias ditas a meia voz. Pietro della Chiesa jamais havia dado ouvidos a semelhantes comentários que, de fato, o envolviam. No entanto, era tão pequena a importância que dava ao assunto que nunca lhe passara pela cabeça perguntar sobre os boatos. Na verdade, se não conseguira deixar de olhar pelo buraco da fechadura, fora por uma razão muito precisa: poucos dias antes havia surpreendido Hubert van der Hans remexendo o arquivo de Francesco Monterga e tentando arrombar o pequeno cofre onde era guardado o manuscrito do monge Eraclius, o tratado Diversarum Artium Schedula. Pietro della Chiesa sabia muito bem o que significava aquele livro para o mestre. Naquela ocasião, entrou intempestivamente na biblioteca e lembrou a seu colega que Francesco Monterga havia proibido terminantemente o acesso ao arquivo. Antes que o florentino subisse ainda mais o tom de voz e temendo que o mestre, alertado pelo barulho, pudesse aparecer por ali, Hubert van der Hans empurrou Pietro para fora da biblioteca e o arrastou pelo corredor até o ateliê. Ali o segurou pelo pescoço e literalmente o levantou do chão, deixando-o com os pés balançando no ar. Cara a cara, sem deixar de chamá-lo de “bambina”, apontando com o queixo para um frasco que continha limalha de óxido de ferro, lhe disse que se ele tinha a vaga ideia de mencionar o assunto a Francesco Monterga, ia encarregar-se pessoalmente de transformá-lo em pó para pigmento.

Foi nesse momento que o mestre entrou e presenciou o epílogo da cena. Pediu explicações sem muita convicção, mais incomodado pelo escândalo que pelo motivo da discussão, e diante do silêncio que obteve como resposta, sem dar maior importância à discussão, deu meia-volta e retornou a suas ocupações.

Pietro della Chiesa estava disposto a contar tudo a seu tutor, mas a ideia de que Hubert van der Hans poderia ficar sabendo da denúncia o aterrorizava. Pensou que deveria esperar pelo momento oportuno, porque, a partir desse dia, Pietro teve a firme convicção de que seu colega era, na verdade, um espião enviado pelos irmãos Van Mander. Mas a pergunta era: como eles haviam ficado sabendo da existência do manuscrito que somente ele e seu mestre conheciam? Possivelmente Pietro nunca conseguiria encontrar a resposta para essa pergunta. Ou, quem sabe, ao respondê-la, havia encontrado o motivo de sua morte. O certo é que, para Pietro, o espaço da biblioteca havia se convertido, nas últimas semanas, num lugar de pesadelos ou, melhor dizendo, de sua própria condenação.

Por outro lado, nesse mesmo lugar, Hubert também havia testemunhado um estranho episódio. Ao longo dos primeiros interrogatórios, Severo Setimio tomou conhecimento de um fato que chamou sua atenção: algumas semanas antes, havia chegado a Florença uma dama, a esposa de um comerciante português, com o propósito de ser retratada pelo mestre. Por alguma razão, Francesco Monterga manteve sua nova encomenda no mais absoluto segredo. Tal cliente chegava à casa de forma discreta e, envolta num véu que lhe cobria o rosto, com a cabeça baixa, passava rapidamente para a biblioteca. Cada vez que batiam à porta, o mestre mandava que seus discípulos se fechassem em uma sala próxima ao ateliê e somente os deixava sair depois que a enigmática visita se retirasse. Muitas vezes, Francesco Monterga havia se queixado das excêntricas veleidades dos burgueses, mas isso passava dos limites. Uma tarde, corroído pela curiosidade, Hubert van der Hans deslizou silenciosamente até a porta do recinto privado onde o mestre trabalhava. A porta estava levemente aberta, e, através da pequena fresta, pôde ver a mulher: as costas, o meio perfil de seu busto adolescente e apenas uma das faces de seu rosto fugidio. Isso bastou para inferir que se tratava de uma pessoa muito jovem e, com seu ardor juvenil, a imaginou imensamente bela. À frente da jovem, de pé junto ao cavalete, estava Francesco Monterga fazendo os primeiros esboços com carvão.

As visitas se prolongaram ao longo de uma semana, mas, no último dia, a visitante, tão sigilosa até aquele momento, rompeu inesperadamente o silêncio. Os gritos da portuguesa chegaram até o ateliê. Indignada, se queixava ao pintor, gritando e manifestando sua inconformidade com o avanço do trabalho. Hubert não acreditava que houvesse alguém capaz de dirigir-se desse modo ao mestre florentino. O escândalo terminou com uma porta batida com violência. Obviamente, jamais algum dos discípulos se atreveu a comentar esse acalorado episódio com Francesco Monterga. Esse acontecimento aparentemente sem maior valor - nada mais que uma afronta passageira - teria de ser ligado com um fato posterior, cujas consequências, naquele momento, não eram imaginadas.

 

Quando os coveiros terminaram de pisotear a terra, Francesco Monterga rompeu num choro engasgado e tão íntimo que não admitia sequer a tentativa de consolo. Talvez por essa razão, o abade Tomasso Verani conteve o impulso de se aproximar e lhe oferecer uma palavra de consolo. Limitou-se a olhar sucessivamente para cada um dos presentes, como se quisesse penetrar no mais escondido recanto de seus espíritos para ali encontrar a resposta para a pergunta que ninguém se atrevia a formular: quem matou Pietro della Chiesa?

 

                             AZUL ULTRAMAR

Na mesma hora em que acabava de enterrar Pietro della Chiesa em Florença, na extensa concavidade afundada entre o mar do Norte e as Ardenas, no outro extremo da Europa, o sol era apenas uma conjectura atrás de um teto de nuvens cinzas. Como se fossem galhos verticais em busca de um pouco de luz, as altíssimas cúpulas das igrejas de Brugges se perdiam entre as nuvens, escondendo suas pontas. Era a hora em que deviam soar, ao mesmo tempo, os sinos das três torres que dominavam a cidade: da Salvatorskathedraal, da igreja de Nossa Senhora e da torre do Belfort. No entanto, o carrilhão dos quarenta e sete sinos estava mudo. Escutou-se somente um sino débil, cuja reverberação se perdeu com o vento. Já havia muitos anos a máquina do relógio tinha parado. Um silêncio sepulcral reinava na Cidade Morta. Brugges já não era o coração palpitante da Europa do norte que brilhava sob o esplendor do florescimento dos grêmios. Já não era a pérfida e altiva dama de Flandres sob o reinado de Borgonha, mas um fantasma cinza, arruinado e silencioso.

Desde que o leito do rio Zwin se convertera, de um dia para outro, em um pântano, a cidade ficara órfã do mar. A caudalosa corrente de água que unia Brugges ao oceano havia se transformado em um lodaçal inavegável. Aquele porto que antigamente acolhia em seus canais os barcos vindos através de todos os marés e rios do mundo agora não era mais que uma série de muros em torno do pântano. Além disso, a absurda morte de Maria de Borgonha, esmagada sob o peso de seu cavalo, havia marcado o fim do reino dos duques de Borgonha. Mas quando ao rigor da fatalidade somou-se a necessidade dos novos governantes, que haviam aumentado os impostos injustamente, a paciência dos cidadãos chegou ao limite, e o príncipe Maximiliano, viúvo de Maria, acabou preso na torre de Cranenburg pelas mãos do povo.

Todos os reinos da Europa se surpreenderam com a notícia. Quando o rei Federico III, pai de Maximiliano, enviou suas tropas, o príncipe foi libertado depois de fazer a promessa de respeitar os direitos da poderosa burguesia. Mas a vingança de Maximiliano seria descomunal, e significou uma sentença de morte para a cidade de Brugges: o príncipe decidiu transladar para Gante a residência imperial e ceder para Amberes as prerrogativas comerciais e financeiras que Brugges detinha. Desde essa data, e durante os cinco séculos seguintes, a cidade passaria a ser conhecida como a Ville Morte.

Naquela manhã, sob esse sudário de nuvens cinzas, Brugges se via mais triste do que nunca. Somente se escutava o lamento do vento, uivando contra a agulha da cúpula que coroava a torre de Cranenburg. No centro da cidade, na praça do Mercado, o outrora barulhento mercado era agora um pequeno deserto de pedra. Mais além, sobre a pequena ponte que cruzava sobre a rua do Asno Cego, erguia-se o singular ateliê dos irmãos Van Mander. Era um diminuto cubo de vidro construído sobre o arco elevado, cujas paredes laterais eram duas janelas que ficavam uma de frente para a outra. O acesso ao ateliê era indecifrável, um caminho labiríntico que iniciava em uma porta próxima à esquina da rua. Para chegar na parte alta, depois de cruzar a porta, estreita e baixa, era preciso atravessar um corredor escuro, subir uma escada apertada e tortuosa e decidir, na sorte, por uma das três portas que apareciam no andar superior. De modo que os visitantes ocasionais preferiam gritar desde a rua para as janelas da ponte.

Esse era o caso do mensageiro que, depois de vários fracassos, entrando e saindo por todas as portas que encontrava, de um e de outro lado da rua do Asno Cego, decidiu romper o silêncio matinal, gritando o nome de Dirk van Mander. O mestre estava preparando a impressão de uma gravura. Seu irmão mais velho, Greg, sentado junto ao fogo da lareira, selecionava pelo tato os materiais que depois iria moer para elaborar pigmentos. Quando escutaram o grito do mensageiro, não se assustaram; estavam acostumados a tal procedimento. Dirk ergueu-se, deixou o quadro, chegou até a janela e comprovou que não conhecia o recém-chegado. Um pouco contra a vontade, já que o frio lá fora era muito e a casa se mantinha quente, abriu um dos lados da janela.

Um vento gelado lhe feriu o rosto. O mensageiro lhe disse que trazia uma carta em seu nome. Sabendo da dificuldade que significava explicar o caminho até a casa, e com a preguiça que a ideia de descer lhe provocava, Dirk van Mander baixou desde o alto da pequena ponte uma bolsa de couro suspensa por uma corda, preparada para tais circunstâncias. Quando tomou a carta em suas mãos, rompeu o lacre e desenrolou o papel com displicência. Leu a nota rapidamente e não conseguiu evitar um acesso de euforia. Jamais imaginara que aquela grata notícia iria significar uma virada tão grande em sua resignada existência.

 

Era verdadeiramente notável a destreza que o mais velho dos irmãos Van Mander tinha para o preparo das cores. Suas mãos iam e vinham, de frasco em frasco, separando o pó dos pigmentos, misturando-os com as emulsões e os solventes com uma precisão extraordinária. Nem precisava, para tais manipulações, da ajuda da balança, dos conta-gotas ou de medidores. Era possível afirmar que era capaz de trabalhar com os olhos fechados, e, de fato, era assim que Greg van Mander fazia, já que havia ficado cego. Precisamente quando se encontrava no ponto mais alto de sua carreira, havia sofrido uma tragédia. E esse fato coincidiu com outro. Naquela época, Greg van Mander estava trabalhando sob a proteção dos duques de Borgonha. Em 1441, Jan van Eyck, o maior dos pintores de Flandres e, na opinião de muitos, o que melhor conhecia as chaves das cores, carregou consigo suas fórmulas secretas para a sepultura na igreja de Santo Donaciano.

Nesse momento, o duque Felipe III encomendou a Greg van Mander a difícil tarefa de voltar a descobrir as receitas com que Van Eyck obtinha aquelas cores inigualáveis. E, contrariando todos os prognósticos, Greg van Mander não só conseguiu igualar as técnicas de seu antecessor, como chegou a conceber um método que era inclusive melhor.

A partir de seus achados, começou a pintar A virgem do manto dourado, a obra-prima através da qual pretendia mostrar seu descobrimento a Felipe III. Aqueles que tiveram o raro privilégio de ver as sucessivas fases do trabalho de Greg testemunharam que, de fato, nunca, até então, haviam contemplado nada semelhante. Não tinham palavras para descrever o vivo ardor das velaturas; a pele da Virgem apresentava, por um lado, a exata aparência da matéria viva e, por outro, a inacessível substância da santidade. Parecia que os olhos tinham sido feitos da mesma cor dos pigmentos que tingem a íris, e que guardavam a luz de quem era testemunha da milagrosa concepção. Outros observavam que até o manto dourado estava livre da artificialidade que o uso de ouro em pó misturado com verniz ou aplicado na fina camada dos tecidos costumava apresentar. No entanto, quando faltavam os últimos retoques, e sem que nada indicasse, Greg van Mander perdeu completamente a visão sem conseguir concluir sua obra. Esse fato, e outros igualmente obscuros e pouco conhecidos, cercaram essa Virgem de Van Mander de uma onda de obscurantismo e superstição. O certo foi que o próprio pintor, furioso por ter sido vítima de um destino tão cruel, decidiu destruir sua pintura antes que Felipe III pudesse vê-la. O irmão mais moço, Dirk, que na época era muito jovem, quase um menino, foi testemunha do irado desconsolo de Greg, e chegou a oferecer-se para concluir o trabalho. Mas Greg nem sequer permitiu que ele voltasse a ver a obra, que atirou ao fogo.

Dirk, que tinha começado como miniaturista, herdou rapidamente o ofício de seu irmão mais velho. Greg lhe ensinou todos os segredos do trabalho; no entanto, absteve-se escrupulosamente de revelar aqueles que diziam respeito à preparação das cores, ou melhor, revelou apenas rudimentos e noções fundamentais. A decisão de legar ao irmão aquela herança fundamentava-se numa cláusula única: Dirk se dedicaria unicamente à execução das obras, enquanto Greg se encarregaria de preparar as telas e quadros, as têmperas, os vernizes e os óleos de papoula e nozes com os quais dissolvia os pigmentos. E Dirk teve que jurar que nunca se meteria nas técnicas que seu irmão mais velho guardaria sempre consigo.

Com o passar dos anos, os irmãos Van Mander tornaram-se os sucessores de Van Eyck. Suas pinturas eram admiradas na corte dos duques de Borgonha, e o reconhecimento de sua obra acabou viajando para além dos limites das cidades de Brugges, Amberes, Gante e Hainaut, e inclusive cruzou as fronteiras e se difundiu além das Ardenas. Dos lugares mais remotos da Europa chegavam jovens que suplicavam para ingressar em seu ateliê como discípulos ou aprendizes.

Suas têmperas sobre madeira, seus óleos e afrescos eram perfeitos e conseguiam deslumbrar monarcas e banqueiros de toda a Europa. Sua fama ia crescendo com cada nova obra terminada: cardeais, príncipes e comerciantes prósperos solicitavam seus serviços e acreditavam que passariam à posteridade retratados por eles. No entanto, nenhuma das pinturas chegou perto de ser uma remota sombra de A virgem do manto dourado. Cego e silenciosamente indignado com seu destino, Greg van Mander renegou a técnica perfeita que havia descoberto e fez o irmão jurar que jamais tentaria sequer investigar qualquer técnica que tentasse superar a de seus antecessores, os Van Eyck.

No período final do império dos Borgonha, Maximiliano, quando decidiu transferir a residência ducal para Gante, propôs a Greg e Dirk que fossem juntos para a nova e próspera capital. Mas o mais velho dos irmãos não estava disposto a abandonar Brugges, e nunca perdoaria o duque pela sentença de morte que fizera cair sobre sua cidade natal. Como uma espécie de reação em cadeia, um silencioso ressentimento ia pouco a pouco perfurando o espírito de Dirk: assim como Greg, assistindo à progressiva ruína de Brugges, alimentava seu rancor contra Maximiliano, Dirk, enquanto via como sua juventude se consumia na negra melancolia da Cidade Morta, maldizia o destino a que seu irmão lhe havia condenado.

Assim, mesmo tendo se convertido em um dos pintores mais reconhecidos da Europa, Dirk van Mander acabou convivendo com a desesperadora sensação de estar trabalhando com as mãos atadas. Por um lado, pesavam sobre seus ombros o juramento e a proibição de conhecer os ingredientes que compunham as pinturas que utilizava para realizar sua obra; por outro, renegava intimamente a pobreza de seus conhecimentos sobre a técnica da perspectiva e dos escorços. Talvez essas limitações escapassem aos olhos de neófitos e também de muitos de seus colegas flamengos, mas não podia enganar a si mesmo; cada vez que examinava suas próprias obras, vinha à sua memória a lembrança das obras que havia contemplado durante uma rápida viagem a Florença. Desde aquele distante dia, perdia o sono pensando nas fórmulas matemáticas que regiam a aplicação da perspectiva nas pinturas daquele que acabaria sendo seu mais detestado rival, o mais terrível de seus inimigos, o mestre Francesco Monterga.

 

Sem deixar sua cadeira junto ao fogo, Greg van Mander perguntou a seu irmão pelas notícias que o mensageiro havia trazido. Então Dirk leu a carta.

 

A Vossas Excelências, os cavalheiros Greg van Mander e Dirk van Mander

Quis a Providência que, na longa derrocada que tem sido minha vida, a sorte colocasse diante de meus olhos os ancestrais tesouros do Oriente. Assim como as maravilhas das Índias e os admiráveis monumentos do Nilo e do Egeu. Mas nunca como agora fiquei de joelhos, entregue ante a contemplação de vossas pinturas. Olhos nunca viram arte tão excelsa e prodigiosa. Há pouco tempo, o destino concedeu-me a graça de descobrir vossa Anunciação da Virgem, no palácio do duque de Gama, na cidade do Porto. Devo confessar que, desde aquele dia, me converti em seu mais devoto fiel. E outra vez, como se estivesse predestinado, a boa ventura concedeu-me o melhor dos presentes. Durante uma recente e rápida passagem por Gante, chegou a meus ouvidos a notícia de que, nos arredores da cidade, o conde de Cambrai guardava uma de vossas preciosas tábuas. Tanto supliquei para ver a pintura que, por intermédio de um amigo conhecido do conde, fui convidado a seu castelo. Mais uma vez meu espírito comoveu-se diante da visão de tão magnânima obra: A família. Nunca antes me foi concedido ver tanta beleza; o vívido calor das velaturas parecia feito do mesmo sopro que anima a matéria. Ávido para ver toda vossa obra, percorri cada cidade de vossa pátria. De Gante até Amberes, de Amberes até o Valle del Mosa e as Ardenas. Segui as pegadas de vossos quadros por Hainaut, Bruxelas, Haya, Amsterdam e Roterdam, conforme me guiaram as notícias ou a intuição. E agora que o destino dos negócios, tão semelhantes ao dos ventos, vai me levar finalmente a Brugges, invade-me uma emoção semelhante à que sentiria um peregrino ao se aproximar da Terra Santa.

Mas, no entusiasmo de manifestar minha devoção para com Vossas Excelências, deixei de me apresentar. Não possuo título de fidalgo e nem sequer de cavalheiro, não tenho cargo público nem diplomático. Não sou nada mais que um modesto armador de navios. Seguramente, Vossas Altezas nunca ouviram falar de minha desconhecida pessoa. Mas talvez, sim, tenham visto ancorado no porto de Brugges os mastros de algum de meus barcos. Tenho estaleiro em Lisboa, que vale o mesmo que dizer o mundo. Na pequena cidade que se ergue junto aos molhes do Tejo, posso ver os diamantes trazidos de Mausilipatam, o gengibre e a pimenta de Malabar, as sedas da China, o cravo das Molucas, a canela do Ceilão, as pérolas de Manar, os cavalos da Pérsia e da Arábia e os marfins da África. Nas tabernas, se pode escutar o agradável burburinho da mistura dos flamengos e dos alemães, dos ingleses e dos franceses. Meu espírito lusitano, feito da mesma madeira dos cascos dos barcos, não pode resistir ao chamado do mar. E agora, prestes a levantar âncora, meu coração se comove por uma dupla razão.

Imagino que suspeiteis qual é o motivo desta nota. Suplico a Vossas Excelências que aceiteis o pedido de vossos serviços. Nada neste mundo me faria mais feliz. Não desejo ficar para a posteridade, pois não sou ninguém. Da mesma forma que os navios deixam nas águas pegadas fugazes, que logo desaparecem, somente espero o simples esquecimento para o dia em que minha vida se apague. Sou um homem velho, e esse dia não deve estar muito distante. Mas acredito, sim, que a beleza deve perpetuar-se na própria beleza. Portanto, suplico que retrateis minha esposa. Pagarei o que vós pedirdes.

No entanto, devo fazer uma confissão. Não gostaria que a notícia vos chegasse distorcida ou pela boca de terceiros. Movido pela ansiedade de ver imortalizada a beleza de minha esposa em um quadro, em nossa passagem por Florença e por influência de um certo cavalheiro, cujo nome desejaria esquecer, me ocorreu a infeliz ideia de contratar os serviços de certo mestre florentino, cuja identidade minha honra me impede mencionar. E mesmo que ele ouse chamar-se de mestre e se vanglorie de ter discípulos, incluindo um procedente de Flandres, não merecia ostentar tal título. A ilusão foi tão grandiosa quanto a desilusão. Antes que ele desse por concluída a obra, vendo a duvidosa evolução do retrato e diante da comparação obrigatória com vossas pinturas, decidi rescindir o contrato. Paguei, no entanto, até a última moeda acertada, como corresponde a um cavalheiro. Se naquele momento não busquei vossos serviços, não foi por outra razão que não a vergonha. Não me atrevia a importunar Vossas Excelências. E se agora mesmo esta carta for atirada ao fogo, aceitai minhas desculpas e esquecei minha existência. Em poucos dias, estarei em Brugges. Então enviarei um mensageiro para conhecer vossa resposta.

A vossos pés,

Dom Gilberto Guimarães

 

Greg não pôde ser testemunha da expressão vitoriosa de Dirk quando terminou de ler a carta. No entanto, imaginou. Sem dúvida, o pintor florentino mencionado pelo armador português não podia ser outro além de Francesco Monterga. Seu irmão menor saboreava intimamente o doce sabor da vingança. Aquelas palavras do armador português tinham o valor de uma vingança. Era o golpe mais doloroso que podia acertar em seu inimigo. Greg van Mander, iluminado pelo fogo da lareira, continuou, indiferente, o seu trabalho. Mas sabia que Dirk acabava de vencer a última guerra daquela batalha sem sentido. As palavras lapidares que Gilberto Guimarães dedicava a Francesco Monterga eram, para o mais moço dos Van Mander, o mais valioso dos reconhecimentos. Agora, a esposa do comerciante português poderia converter-se no último troféu de guerra tomado do inimigo. Greg podia imaginar que Dirk pensava em utilizar a ocasião para restabelecer-se, com vantagens, de sua última derrota: a deserção de Hubert van der Hans, o discípulo que o havia recompensado com a fuga. Era como trocar um peão por uma rainha.

 

Numa tarde, o estalo dos cascos dos cavalos e das rodas de uma carruagem contra o desigual e perigoso calçamento rompeu brutalmente o silêncio da tranquila rua do Asno Cego. Há muito tempo que não passava, por baixo da pequena ponte, alguém além de um eventual caminhante, um viajante perdido ou a figura corcunda de Hesnut O louco, em seu solilóquio costumeiro. Dirk van Mander, com um pincel preso entre os dentes e segurando outros dois, um em cada mão, se assustou de tal forma que bateu com o joelho no canto da banqueta, derramando o conteúdo oleoso dos frascos e derrubando espátulas e estopas. A última vez que havia escutado o galope de cavalos fora na remota e trágica manhã em que as tropas enviadas pelo imperador Felipe III entraram à força para libertar o filho do rei, o príncipe Maximiliano da Áustria, de seu cativeiro na torre de Cranenburg.

Como se fosse atirado por uma catapulta, pisando o barro oleoso que acabara de provocar, Dirk correu até a janela a tempo de ver a carruagem parando pouco antes de chegar à ponte. O cocheiro trancou o freio e, com uma agilidade que lembrava um macaco, desceu da boleia para o estribo. Olhou para a ponte sobre a qual se erguia o ateliê e tentou descobrir qual seria a entrada. Então percebeu a figura de Dirk atrás do vidro. Sem mudar sua expressão quadrúmana, fez um sinal com os braços. Dirk abriu um dos lados da janela, e então o cocheiro pronunciou seu nome em forma de interrogação. O pintor, atingido por um golpe de vento frio, pensou ter ouvido que o cocheiro anunciava a chegada do casal Guimarães. Quando Greg, que havia começado a limpar o desastre que seu irmão acabara de causar, ouviu a notícia, ficou surpreso. Supunha-se que o português enviaria um mensageiro para conhecer a resposta. E, na verdade, os dois nem tinham ainda terminado de discutir o assunto. Greg não havia se mostrado muito entusiasmado com a proposta do armador. Conhecia muito bem como funcionava a lógica mercantil dos novos ricos. E, no fim de sua existência, Greg van Mander não estava disposto a tolerar os caprichos de um mercador extravagante. A carta, apesar de todos os elogios desmedidos, era uma espécie de confissão que antecipava um espírito tormentoso. O velho pintor era cego, mas não néscio; além disso, possuía o equilíbrio suficiente para perceber que seu colega florentino era um dos melhores retratistas de toda a Europa. O modo como Guimarães havia se referido, mesmo sem mencioná-lo, ao mestre Francesco Monterga lhe parecia, na melhor das hipóteses, ofensivo e carregado de uma obscura vontade de criar intrigas. Tinha muitos motivos para supor que o português mantivera o mesmo tipo de correspondência, anteriormente, com Francesco Monterga e, seguramente, também havia se desfeito nos mesmos elogios que agora lhes fazia. Nada impedia supor que os mesmos adjetivos desdenhosos que Gilberto Guimarães dedicava ao mestre Monterga não recairiam, também, sobre o respeitado nome dos irmãos flamengos.

Dirk, ao contrário, ofuscado pelo resplendor da iminente vingança, não podia esperar a hora de ver seu nome consagrado por cima da humilhada figura de seu rival florentino. Mas agora, diante da chegada inesperada do casal, precisavam chegar a um veredicto urgente.

Sem saber ainda qual seria a resposta, sem sequer parar para consultar a opinião do irmão mais velho, Dirk van Mander desceu para receber os visitantes.

 

Quando o cocheiro abriu a porta da carruagem e estendeu a mão para o interior escuro, Dirk van Mander viu aparecerem as infinitas pregas de uma saia de veludo verde, abaixo da qual um pé enfiado em um tamanco de madeira lutava para alcançar a superfície do estribo. Então apareceu uma mão pálida e fina, cujo dedo anular exibia dois pares de anéis, um na terceira falange e outro na segunda, e que se adiantou para apoiar-se discretamente na mão direita do cocheiro. Imediatamente saiu à luz uma cabeça, ainda abaixada, com um penteado que terminava em duas armações cônicas que lhe escondiam o cabelo. Com alguma dificuldade, a mulher finalmente pisou no calçamento e, suspirando, um pouco agitada, ergueu o rosto ao céu para recuperar o ar que a cansativa viagem lhe havia tirado.

Dirk van Mander ficou perplexo. Era o rosto mais formoso que já tinha visto. A pele, lisa e juvenil, revelava a cor das oliveiras das terras lusitanas. Os olhos, tão negros que não diferenciavam a pupila da íris, contrastavam com o cabelo loiro e acinzentado, que quase não se podia ver, por causa do hennin que lhe cobria a cabeça. Dirk aproximou-se da mulher, fez uma reverência e lhe deu as boas-vindas. O silencioso sorriso que ela guardou e sua expressão um tanto desconcertada revelaram ao pintor que a recém-chegada não tinha motivos para entender o flamengo. E então, justo quando o pintor se dispunha a oferecer um cumprimento formal a Gilberto Guimarães, estendendo a mão para o interior do carro, o cocheiro fechou a porta bruscamente, quase no rosto do anfitrião. Olhando através da pequena janela, Dirk van Mander comprovou, um tanto assombrado, que dentro da carruagem não estava o armador, mas outra mulher, uma senhora com a boca um tanto aberta, que dormia quase na horizontal sobre o assento. A mulher mais jovem, a que havia descido, lendo os olhos surpresos de Dirk van Mander, lhe disse, num alemão pausado, vacilante e com uma pronúncia inconfundivelmente portuguesa, que tivera que viajar sozinha com sua dama de companhia porque seu marido havia ficado doente em alto-mar, e as autoridades do porto de Ostende o haviam impedido de desembarcar. A lembrança da recentemente devastadora peste negra que havia se estendido do Marrocos até as costas do Mediterrâneo, propagando-se através de Gibraltar por todos os portos do Atlântico, desde o Cantábrico até chegar ao mar do Norte, ainda produzia terror. De modo que todos os viajantes chegados do Sul que apresentassem algum tipo de enfermidade evidente eram, por precaução, convidados a permanecer a bordo, enquanto o barco estivesse aportado. Vendo a expressão preocupada de Dirk van Mander, a mulher apressou-se a explicar que não havia motivos para alarmar-se, que não era nada mais que uma febre alta mas inofensiva, e queixou-se do excesso de zelo das autoridades de Ostende. Quando terminou sua longa e cansativa explicação, recheada de fragmentos e palavras incompreensíveis, a jovem dama lembrou que ainda não tinha se apresentado. Com um sorriso que lhe iluminou o rosto, pronunciou suavemente seu nome:

- Fátima.

Tinha a simplicidade calorosa dos ibéricos e uma espontânea simpatia, despojada da formalidade dos saxões. Vendo o calamitoso estado de sua dama de companhia - a viagem a havia deixado realmente exausta -, Fátima ordenou ao cocheiro que levasse a velha a Cranenburg, onde iriam passar a noite, e que depois voltasse para buscá-la. Quando Dirk van Mander a convidou a entrar em sua casa, comprovou, observando seu passo leve e ondulante, que tinha a simplicidade graciosa das camponesas, isenta da afetação que tanto o incomodava nas poucas mulheres que ainda restavam em Brugges.

Além disso, nesse momento Dirk van Mander ficou dolorosamente consciente de que há muito tempo não conhecia uma mulher.

 

Se - tal como pensaram no princípio - a chegada inesperada do casal Guimarães antes de que pudessem definir uma resposta constituía um compromisso de fato, a visita de Fátima a Brugges era agora uma questão de honra para os Van Mander. Ainda mais se fosse levado em conta o esposo enfermo num barco ancorado em Ostende. Enquanto a mulher relatava, com muita dificuldade, as peripécias da viagem, Greg não podia dissimular um ar grave de contrariedade. O mais velho dos irmãos havia se convertido em um homem áspero. Estava acostumado à solidão de Brugges e só tolerava as visitas graças a um resignado estoicismo. Na verdade, o que o incomodava era a ruptura da ordem que, paciente e sistematicamente, havia conseguido construir em seu pequeno cosmos. Sua casa tinha se convertido em seu universo. Apesar da cegueira, Greg podia deslocar-se por toda ela sem nenhuma dificuldade; conhecia cada canto de seu pequeno mundo com calculada exatidão. Tudo estava disposto de tal forma que podia estender seu braço e pegar o que quisesse, sem possibilidade de enganar-se. Além de seu talento natural para preparar as misturas das cores com extrema meticulosidade, conhecia a ordem em que estavam organizados todos e cada um dos frascos que guardavam os pigmentos e podia identificar o conteúdo pelo tato, segundo a consistência. Derramava os solventes, óleos, emolientes e secantes (N.R.: Substância que acelera a secagem dos óleos.) sobre os diferentes pós na proporção exata e os reconhecia sem vacilar somente pelo olfato.

Além disso, encarregava-se de quase todas as tarefas domésticas. Pela manhã, removia os restos das brasas, selecionava a lenha, acendia o fogo da lareira e do aquecedor da cozinha; preparava o almoço e a janta. Nada escapava de seu controle absoluto. Até as eventuais desordens que seu irmão provocava estavam dentro de seus cálculos. Tudo se movia de acordo com uma ordem semelhante à que rege o movimento das estrelas. Por essa razão, qualquer visita era um estorvo em seu metódico universo. Era um novo volume movimentando-se dentro de seu espaço, um corpo estranho e imprevisível que podia chegar a causar um cataclismo. Além disso, Greg não tolerava a ideia de que o olhar de um desconhecido o estivesse observando na escuridão. Mas sabia, no seu íntimo, que o que realmente o atormentava era a vergonha. Odiava a ideia de que alguém pudesse apiedar-se de sua condição. Quase não lembrava qual era o seu próprio aspecto. Podia conhecer a aparência de sua barba, que cortava cuidadosamente todos os dias. Podia imaginar o comprimento do cabelo, que sempre conservava à altura dos ombros. Com o sensível toque das pontas dos dedos, contabilizava cada nova ruga que, dia após dia, ia aparecendo em seu rosto. Mas não conseguia fazer uma imagem geral de si mesmo. Quase não lembrava como eram suas feições no dia em que perdera a visão. Sentia uma enorme vergonha de expor-se à vista de um estranho. Ainda mais quando se tratava de uma mulher. Fazia realmente muito tempo que não respirava o agradável perfume feminino.

Era tamanha a naturalidade com que Greg se movia que é possível que Fátima não tivesse percebido que era cego até que o viu à sua frente, quando o mestre lhe ofereceu uma bebida amarelada, um pouco escura e espumosa. Só então a jovem pode ver os olhos mortos atrás das pestanas. Tinham uma cor de estranha beleza, um azul-turquesa coberto por uma cortina aquosa e pálida. No entanto, não apresentavam a sombria materialidade dos corpos que perderam a vida, mas a cativante aparência de pedras preciosas.

Se para Greg a inesperada presença de Fátima representou um sinal próximo da desgraça, para Dirk, ao contrário, aquela visita foi uma espécie de bênção. O menor dos Van Mander era um homem ainda jovem e jamais se acostumara à melancolia da cidade devastada pelo esquecimento. Ainda trazia fresca na lembrança a Brugges da época de sua infância, quando chegavam legiões de viajantes e comerciantes. Naquele tempo, a cidade fervia sob os pés dos caminhantes que iam por todos os lados, perdendo-se entre as ruazinhas, entrando e saindo das tabernas, esbarrando uns nos outros na praça do Mercado, congregando-se às centenas para a procissão do Santo Sangue, embriagando-se e cantando abraçados enquanto cruzavam a ponte do canal. Os barcos traziam homens, mulheres e intrigas. Cada navio que chegava vinha carregado de ventos de aventuras e levantava âncora deixando uma tempestade de tragédias passionais. Todos os dias, viam-se caras novas, ouviam-se falar línguas indecifráveis e proliferavam as roupas exóticas. Cada dia se apresentava como uma promessa. Agora, ao contrário, a existência não era nada mais que uma sonolenta repetição, opressiva e previsível. E, enquanto olhava para aquela mulher jovem e sorridente, Dirk comprovava como seu coração batia com uma resolução agradecida e ao mesmo tempo perturbadora. Descobriu que se sentia profundamente feliz. Escutava maravilhado a voz doce e um pouco grave de Fátima, as graciosas vacilações e frases ininteligíveis nas quais se enredava tentando fazer-se entender. E concluía tudo com um sorriso sutil e um pensamento qualquer, cheio de graça, rindo de si mesma. Tinha a frescura das camponesas e, ao mesmo tempo, a elegância espiritual de quem já viajou por todo o mundo. Dirk fazia verdadeiros esforços para fixar seus olhos nos dela, mas um misto de timidez e turvação o obrigava a baixar o olhar.

À medida que os minutos iam passando, aproximava-se o momento do veredicto. Dirk observava seu irmão com o canto do olho e, vendo seu rosto severo e imperturbável, começava a temer pelo pior. Sabia que a última palavra era de Greg. Não existia nenhuma possibilidade material de que fosse de outra forma. Fátima bebeu o último gole daquela bebida amarelada e um pouco amarga, e, diante da evidente curiosidade da mulher, Dirk explicou-lhe que era feita a partir da mistura de lúpulo com cevada.

Sem perder o sorriso, mas com um acento de seriedade, Fátima disse a seus anfitriões que se sentia envergonhada de ter chegado de forma imprevista, mas explicou que a reviravolta inesperada dos acontecimentos, quando seu esposo adoeceu, havia precipitado as coisas. Disse que não se ofenderia em absoluto se eles recusassem a proposta de seu marido e acrescentou que o simples fato de ter tido o privilégio de conhecer os dois maiores pintores de Flandres já justificava a viagem, mesmo que tivesse que regressar a Ostende no dia seguinte. Suplicou que não se vissem obrigados a responder naquele exato momento, lhes disse que iria passar a noite em Cranenburg, que pensassem serenamente durante a noite, e que, na manhã seguinte, ela voltaria para conhecer a decisão. Greg concordou em silêncio, aceitando a última proposta da mulher. Então Fátima levantou-se, e Dirk pôde ver a graciosa figura recortada contra a janela através da qual entravam as últimas luzes do dia. O mais moço dos Van Mander acompanhou a visitante até a rua, onde o cocheiro a esperava, cochilando na boleia. Dirk cumprimentou Fátima pela última vez, estendeu a mão direita para ajudá-la a subir e pensou ter sentido, na frágil mão da mulher, um pequeno tremor que revelava, talvez, uma inquietude idêntica à sua.

De pé sobre o calçamento, o pintor viu como a carruagem se perdia na penumbra, além da rua do Asno Cego. Acabava de anoitecer; e, no entanto, Dirk van Mander já desejava que chegasse o novo dia.

 

                             AMARELO DE NÁPOLES

Era noite fechada em Florença. Uma lua gigantesca, redonda e amarelada flutuava trêmula nas águas do Arno. O ar quieto e carregado de umidade criava pequenos círculos coloridos ao redor das tochas acesas. O calçamento das ruas próximas ao rio brilhava como se tivesse acabado de chover. Os poucos transeuntes caminhavam colados às paredes com passo lento e cauteloso, com medo de escorregar. O silêncio letárgico da cidade era uma espécie de força do acaso, um tipo de expectativa que ninguém podia precisar. Na verdade, qualquer coisa podia ser um sinal da presença iminente da emboscada de um inimigo: se o rio subia subitamente ou se, ao contrário, baixava até converter-se num réptil esquálido, se havia lua cheia e céu limpo ou lua nova atrás das nuvens, se não chovia durante semanas ou se percebia uma tormenta se formando, se o ar estava quieto ou soprava um vento furioso, se as videiras cresciam impetuosas ou deitavam-se de costas, se as aves voavam em bandos ou um pássaro solitário cortava o céu, se a água criava redemoinhos no sentido dos ponteiros do relógio ou no sentido contrário; tudo podia indicar um perigo se formando ou o desenlace iminente de uma tragédia. Consequentemente, tudo estava traçado de acordo com as regras para a defesa diante do surpreendente ataque do inimigo. As cidades estavam construídas sob as leis da suspeita. Havia muralhas incomensuráveis ao redor dos povoados, torres altas e vigias competiam em altura para antever a distante presença dos potenciais invasores; pontes levadiças, fossos infestados de animais, falsos portões, vegetações que escondiam catapultas, ruelas tortuosas para aprisionar o intruso. E, dentro das casas, a lógica era a mesma: os castelos estavam recheados de emboscadas, de máquinas que escondiam complexos mecanismos de relojoaria, quartos separados do exterior por janelas tão estreitas como o buraco de uma agulha e, do interior, por portas duplas, reforçadas com grades, ferrolhos ocultos e cadeados que precisavam ser acionados por mulas, passagens secretas e túneis subterrâneos. O prêmio podia ser um ducado, o reino, a pequena vila ou a cidade. Mas também os tesouros ocultos atrás dos muros. Ou as mulheres. Damas de companhia, sentinelas, votos de virgindade ou, se fosse o caso, o mais expeditivo cinto de castidade, qualquer coisa era boa para preservar a esposa ou a filha. As bibliotecas eram fortificações interiores; os livros verdadeiros permaneciam ocultos atrás das lombadas falsas e não podiam ser abertos sem deschavear o cadeado que prendia as capas. E o inimigo podia ser qualquer um: o povo vizinho ou o que vinha do outro lado do mar, o irmão do príncipe ou o filho do rei, o conselheiro do duque ou o ministro, o cardeal que falava ao ouvido do Papa ou o próprio Sumo Pontífice, o leal discípulo ou o abnegado mestre; todos podiam ser vítimas da conspiração ou executores da traição.

E esse era exatamente o ar que se respirava no ateliê do mestre Monterga desde a morte do pequeno Pietro della Chiesa.

 

Nada foi igual desde o dia em que foi encontrado o corpo jovem de Pietro della Chiesa mutilado naquele galpão de lenha abandonado nas proximidades do Castelo Corsini. Francesco Monterga e seus dois discípulos, Hubert van der Hans e Giovanni Dinunzio, haviam se convertido em três almas penadas. Durante os últimos dias, o mestre parecia intranquilo; se batiam à porta, ficava assustado, como se esperasse por uma notícia fatídica. Diante de qualquer ruído imprevisto, ficava sobressaltado, arrepiado como se fosse um gato. As inesperadas e cansativas visitas do prior Severo Setimio o deixavam alterado a ponto de não conseguiir esconder o incômodo. Já havia relatado mais de uma vez ao antigo inspetor do arcebispado as circunstâncias do desaparecimento de Pietro. Com uma paciência estoica, mesmo que sem ocultar certa inquietação, permitia que os homens da guarda do ducado revistassem a casa. Os interrogatórios e buscas costumavam estender-se por horas, e, quando finalmente terminavam, Francesco Monterga estava exausto.

Com uma irritante freqência, o mestre caminhava até a biblioteca, comprovava que tudo estava em seu lugar e voltava a sair, sempre verificando se a porta tinha ficado bem fechada. Quando tentava concentrar-se em uma tarefa, imediatamente se perdia em preguiçosas abstrações e assim, com uma expressão congelada, o olhar fixo em um ponto incerto, perdido em seus próprios e secretos pensamentos, podia ficar durante horas inteiras, segurando inutilmente um pincel entre os dedos. Se, por acaso, cruzava com Giovanni Dinunzio na estreita escada que ligava o ateliê à rua, ambos baixavam o olhar com uma espécie de sentimento de culpa, dando-se passagem mutuamente até o ridículo, para evitar o mínimo contato. Quase nem se atreviam a falar. Durante as noites, Francesco Monterga trancava-se na biblioteca e não saia até o amanhecer. Tinha os olhos irritados, e grossas olheiras, cheias de sono atrasado, tinham brotado em sua face.

Hubert van der Hans, por sua parte, mostrava-se completamente alheio aos acontecimentos. No entanto, o exagero quase teatral de sua indiferença revelava, certamente, uma profunda preocupação que ele disfarçava em forma de desprezo. Desde o amanhecer até a noite, trabalhava sem pausa: enquanto esperava que uma têmpera secasse em um quadro, preparava a destilação de pigmentos de zinco e, durante o tempo que demorava o cozimento que separa as impurezas no fogo do caldeirão, iniciava o rascunho a carvão de um novo quadro. Quando secava a tinta, voltava para aplicar a segunda camada e, uma vez terminada, corria para tirar o preparado do fogo antes que o líquido grudasse no fundo da panela. A sua figura, que, de tão pálida, parecia transparente, dava uns saltos longos e deselegantes, semelhantes aos de uma ave pernalta, indo daqui para lá, sempre envolvida em múltiplas tarefas. Entretanto, tanta dedicação parecia também querer dissimular outra coisa: todas as vezes que Francesco Monterga ia e vinha da biblioteca para comprovar que a porta estava fechada, o discípulo flamengo esperava que o mestre se afastasse e, quando ninguém via, deslizava pelo estreito corredor e girava a maçaneta algumas vezes com a evidente esperança de que a porta tivesse ficado aberta. Se ouvia algum ruído, voltava com seu passo longo e, como se nada tivesse acontecido, retomava suas frenéticas tarefas. No canto mais escuro do ateliê, junto a uma dezena de quadros não terminados e pinturas defeituosas que esperavam ser repintadas, estava, em primeiro lugar, o retrato por terminar de uma jovem dama. Por alguma estranha razão, ninguém atinava voltar a pintar sobre a superfície daquele quadro abandonado. Era apenas um esboço desenhado a carvão e colorido com poucas camadas experimentais.

Apesar de sequer ser possível identificar completamente as feições, era a pintura de uma inquietante beleza. Fátima aparecia de pé, no centro de um quarto cujas proporções eram, evidentemente, as do ateliê. Entretanto, nem os móveis, nem os objetos que decoravam o cenário correspondiam ao lugar de trabalho de Francesco Monterga. O esboço havia sido feito, de fato, no ateliê do mestre, mas, a pedido de Gilberto Guimarães, o recinto devia se parecer com o quarto do casal. O ponto de vista do observador não estava situado no centro, mas levemente deslocado para a esquerda do quadro. Na parede do fundo, destacava-se o marco de um espelho oval que, apesar da precariedade do esboço, refletia uma figura borrada que poderia ser a de Gilberto Guimarães. A luz provinha de uma janela parcialmente aberta, localizada na parede da direita. No parapeito da janela, havia umas pequenas flores amarelas. Abaixo do espelho, havia uma banqueta sobre a qual, de modo casual, repousava uma cesta cheia de frutas. Encostada à parede da esquerda, via-se parte da cama, cujo capitel subia até o teto e do qual pendia uma cortina púrpura. Fátima usava um vestido de veludo verde cuja longa saia se desdobrava sobre um piso de tábuas de carvalho que formavam quadrados, idêntico ao do ateliê. Nas mãos, segurava o que parecia ser um rosário. O penteado de Fátima terminava num coque em forma de cone, preso na ponta e coberto por um tule transparente que lhe caía até os ombros, altos e vigorosos. O decote do vestido apresentava uma borda de pele, igual à das mangas. O busto estava preso por um laço que, paradoxalmente, ao mesmo tempo o apertava e realçava. O esboço parecia causar em todo mundo um tipo de estranheza difícil de explicar. Hubert recordava a rápida visão que tivera de Fátima, através da porta entreaberta, enquanto Francesco Monterga a retratava. Surpreendia-se com a generosidade com que o mestre havia representado o busto, que, na verdade, era muito menor do que se via na pintura.

Giovanni Dinunzio mantinha uma silenciosa admiração pela pintura. Cada vez que via como o mestre Monterga contemplava o esboço condenado à morte antes de nascer, pensava ver, nos olhos do velho pintor, um misto de desconsolo e incredulidade; parecia não compreender por que arbirária razão a portuguesa havia desdenhado o retrato antes que pudesse sequer começá-lo. Por acaso, a mulher, em sua total ignorância, imaginava que a aparência final de uma pintura ficava plasmada na execução da primeira camada? Por mais que tivesse tentado convencê-la de que aquilo era apenas um esboço, não teve forma de dissuadi-la. Fátima havia posado apenas uns poucos dias para o mestre. Era como pensar que o esqueleto de um barco constituía o aspecto final de um galeão no dia em que é lançado ao mar. Mas a paciência de Francesco Monterga com a esposa do armador lusitano acabou de vez quando ela pronunciou o nome dos Van Mander como exemplo de expeditiva beleza. O discípulo flamengo escutou os gritos do mestre enquanto discutia com sua cliente e a reação indignada da mulher, que terminou com o estrondo de uma porta batendo. Ela havia conseguido enfiar seu inocente indicador na chaga aberta da obsessão do mestre.

Para Francesco Monterga, foi a maior humilhação que podia ter recebido de seu inimigo, Dirk van Mander.

 

O humilhante episódio do casal Guimarães não era somente uma das maiores ofensas que Francesco Monterga tinha recebido, mas revelava a verdadeira medula da antiga disputa que mantinha com seu inimigo flamengo: a fórmula secreta do mítico preparo de seus óleos. Mesmo que Greg van Mander houvesse renunciado ao Oleum Pretiosum, as pinturas a óleo que preparava eram muito superiores às que o mestre florentino utilizava. Destacavam-se pelo brilho particular e a perfeita textura, absolutamente uniforme e isenta de vernizes transparentes aplicados sobre a última camada. Mas o mais surpreendente era a rapidez com que secavam, uma vez que não trabalhavam com têmpera de ovo, mas com óleo. Francesco Monterga pintava com têmpera ou óleo de papoulas, segundo as circunstâncias. Mas a aplicação de uma ou outra técnica estava sempre sujeita a uma consequência inevitável: a têmpera permitia uma secagem rápida entre uma camada e outra, mas jamais, nem aplicando vernizes incolores no final, podia conseguir o brilho e o calor das velaturas trabalhadas com óleo. Os pigmentos ligados ao óleo, ao contrário, permitiam uma maleabilidade e, sobretudo, uma grande resistência à luz, à umidade, ao calor e à passagem do tempo; no entanto, a secagem entre as camadas demorava dias e, em alguns casos, meses inteiros, até terminar de evaporar os fumos oleaginosos. Ninguém poderia saber como os irmãos Van Mander haviam conseguido resolver esse dilema aparentemente insolúvel. Em Flandres, todos os segredos pareciam ficar entre irmãos e extinguirem-se com a morte deles. Entre os profanos, existia a crença de que os irmãos Van Eyck haviam inventado o óleo, mas eram poucos os pintores que ignoravam que o uso dos azeites era quase tão antigo como a própria pintura. Porém, por uma estranha razão, muito poucos conseguiram compor as diferentes fórmulas que apareciam, de forma mais ou menos enigmática, nos velhos tratados, e alcançaram a perfeição da cor e a rapidez da secagem com fórmulas ignoradas. Francesco Monterga sabia que haviam sido empregados óleos de linho e de alfazema nas antiquíssimas pinturas que decoravam os tesouros dos povos do Nilo. Plínio havia afirmado, no capítulo XIV de sua História universal, que “todas as resinas são solúveis em óleos”, prevenindo que não era o caso do óleo retirado da azeitona. Aécio, no século VI, escreveu que o óleo de nozes era um bom óleo secante, apto para fabricar vernizes que protegiam os dourados e a pintura encáustica (N.R.: Tipo de pintura em que os pigmentos são misturados com cera quente.). No manuscrito de Lucca, do século VIII, havia menção, também, às lacas transparentes obtidas do óleo de linhaça e das resinas. No Manual do monte Athos, se descrevia a mesma técnica, aplicando o peseri ou extrato de linho fervido e misturado com resinas, até converter-se em verniz, e se recomendava o uso em veladuras, combinado com têmperas ou ceras para as vestimentas, os fundos e os acessórios. O mistério das virgens negras encontradas no Oriente tinha sua explicação justamente no uso dos óleos. Inumeráveis exegeses haviam sido feitas em torno do descobrimento das efígies. Padres, teólogos, eruditos e místicos haviam exposto as hipóteses mais esotéricas. No entanto, o mistério tinha explicação num problema muito mais terreno, com o qual costumavam se enfrentar todos os pintores: a oxidação do aglutinante dos pigmentos. As virgens negras eram imagens bizantinas cujas carnes haviam sido pintadas a óleo, enquanto que, na superfície das roupas, se haviam aplicado outros procedimentos. De modo que o rosto e as mãos haviam ficado enegrecidos por causa do contato com a luz e com o ar, enquanto que as partes pintadas com têmpera conservavam sua cor original. Este foi um dos motivos que haviam desanimado os antigos pintores a empregar a técnica do óleo, em vez de tentar aperfeiçoá-la. No tratado de Teófilo, o Diversarum Artium Schedula, o monge alemão expôs com a maior simplicidade o uso dos óleos, em especial o óleo de linhaça, para diluir as cores moídas, e afirmava que esse procedimento era aplicável a quase todos os pigmentos e era especialmente indicado para a pintura sobre madeira, “posto que a pintura deve ser secada ao sol” - in opere ligueo... tantum in rebus quae sole siccari possunt, escreveu. No Tratatto de Cennino Cennini, também aparecia uma menção clara ao uso de diferentes óleos como veículo para os pigmentos e era dada a fórmula empregada por Giotto: “O óleo de linho deve ser misturado ao sol com verniz líquido na proporção de uma onça de verniz por uma libra de óleo, e nesse meio devem ser pulverizadas todas as cores. Quando quiseres pintar uma vestimenta com as três gradações, divide os tons e os coloca cada um na sua posição com teu pincel de pelo de esquilo, fundindo uma cor com a outra, de modo que os pigmentos fiquem espessos. Depois de vários dias, olha como ficaram as cores ou o que quiser, e as montanhas, árvores e tudo mais”. Em outro capítulo, Cennino indicava que sobre determinadas partes de uma pintura feita com têmpera de ovo se devia aplicar óleo, mas prevenia que este último demorava muito a secar. A combinação de óleo e têmpera era justamente um recurso a que muitas vezes havia apelado Francesco Monterga para que, dessa maneira, fossem menores as superfícies de óleo, o que acelerava a secagem.

Apesar de tudo, ainda existia outro problema: as cores diluídas em óleo ficavam demasiadamente espessas. E os escritos não eram muito específicos a esse respeito. Em De re aedificatoria, Alberti alude ao problema, mas não indica uma solução: “Para que o óleo fique menos espesso, é possível refiná-lo; não sei como, mas, quando posto em uma vasilha, se torna mais claro por si mesmo. No entanto, sei que existe uma maneira mais rápida de manejá-lo”.

Outro texto contemporâneo ao anterior, o Manuscrito de Estrasburgo, estabelece um procedimento quase idêntico àquele de que falava Cennino: “Deve-se ferver o óleo de linhaça ou de nozes, misturando logo com determinados secantes como a caparrosa blanca. A mistura obtida, branqueada ao sol, adquire uma consistência não muito espessa e se faz diáfana como o ar. Aqueles que puderam ver afirmam que é de uma transparência mais pura que a do diamante. Esse óleo possui a particularidade de secar rapidamente e fazer todas as cores ficarem delicadamente claras e brilhantes. Poucos pintores o conhecem e, mesmo conhecendo, poucos puderam prepará-lo. Por sua excelência, é chamado de Oleum Pretiosum. Com ele se pode moer e temperar todas as cores. No entanto, mesmo não sendo venenoso, antigos manuscritos falam de sua periculosidade, mas nenhum diz em que consiste essa precaução”. Esta última fórmula era a que tirava o sono de Francesco Monterga, já que reunia as propriedades até então irreconciliáveis: brilho e versatilidade, inalterabilidade ao passar do tempo e secagem rápida. No entanto, a prática resistia à fórmula. Em inumeráveis ocasiões, Francesco Monterga seguiu passo a passo o procedimento indicado, mas o resultado era sempre o mesmo: ao expor o quadro ao sol, o calor torcia a madeira até chegar a quebrá-la. Havia experimentado com todos os óleos secantes que eram mencionados nos antigos manuscritos: dissolveu os pigmentos em óleo de linhaça, de papoulas, de nozes, de cravo, de alfazema e até naqueles totalmente contraindicados, como o de oliva. Os resultados eram sempre desalentadores; quando os pigmentos não alteravam sua cor, transformando-se em tonalidades inclassificáveis, a mistura ficava tão espessa que quase não se desgrudava do fundo do caldeirão; se, ao contrário, sua consistência era sutil e se deixava espalhar suavemente pelo quadro, a secagem poderia demorar até meio ano. As vezes em que conseguiu associar uma mistura em que as cores não se modificavam, ao mesmo tempo que sua consistência ficava delicada e secava em um tempo razoável, os desenlaces foram sempre iguais: em poucos dias, a pintura começava a rachar até desfazer-se por completo. Essas experiências tomavam-lhe um precioso tempo, material e intelectual. Derrotado, voltava para a preparação das velhas têmperas e, enquanto quebrava os ovos separando as claras das gemas, não conseguia deixar de sentir-se um triste cozinheiro. Rodeado de cascas, espantando as moscas que sobrevoavam a mistura, se perguntava vez e outra qual era a fórmula dos Van Mander. Por outro lado, precisava ser muito cauteloso em suas tentativas e devia fazê-las fora da vista de eventuais testemunhas, já que existiam severos regulamentos que regulavam as associações, os grêmios, as corporações e os particulares. O artigo IV do regulamento, inspirado na carta dos mestres de Gante, dizia:

 

Todo pintor admitido na corporação deverá reproduzir propriamente a cor da pele, sobre pedra, tela, trípticos em madeira e outros materiais, e, se for pego em falta, pagará dez ducados de multa.

 

O artigo VI indicava:

Em toda obra que deva ser realizada com azur (N.R.: Na heráldica, azul-escuro, também representado através de grossas linhas horizontais em pinturas em preto e branco.) e sinople fina (N.R.: Na heráldica, verde-claro, também representado por linhas diagonais em pinturas em preto e branco.), se o decano e os jurados comprovam que foi cometida fraude nos materiais, o delinquente terá que pagar quinze libras de multa.

 

O artigo X prescrevia:

Os jurados estão obrigados a fazer visitas domiciliares em qualquer tempo e lugar, como bons e escrupulosos inspetores, para saber se algum dos artigos precedentes foi violado, ou se qualquer outra infração foi cometida, e as visitas serão feitas sem que nenhuma pessoa possa impedi-lo.

 

Os estatutos eram tão rígidos com os artistas que se poderia dizer que cuidavam da pureza das pinturas com o mesmo cuidado com que os doutores da Igreja perseguiam a bruxaria. E, certamente, fazer experiências com materiais pouco convencionais e, mais ainda, com péssimos resultados podia pôr em perigo seu prestígio, seu escasso capital e, acima de tudo, a prática do ofício e o exercício do ensino. O único confidente de Francesco Monterga em todas essas atividades e especulações tinha sido Pietro della Chiesa. Com seu mais antigo discípulo, junto à cauta luz de uma vela, passava noites inteiras fervendo óleos, misturando resinas e polvilhando todo tipo de limaduras. Qualquer testemunha eventual teria jurado que estava presenciando os preparativos de um ritual macabro.

Agora, sem seu mais leal aprendiz, o mestre Monterga não tinha com quem confrontar suas hipóteses e lamentar-se por seus fracassos. Mas, se a consecução da fórmula do Oleum Pretiosum ocupava boa parte da existência cotidiana de Francesco Monterga, não era essa a única nem a mais importante das preocupações do mestre florentino; o enigma que realmente lhe tirava o sono era o enigma das cores.

 

As suspeitas de Pietro della Chiesa sobre seu colega Hubert van der Hans tinham seus fundamentos. De fato, o havia surpreendido futricando na biblioteca do mestre. As ameaças do jovem flamengo e, um pouco mais tarde, a morte do próprio Pietro haviam impossibilitado que o discípulo predileto informasse a Francesco Monterga sobre as obscuras atividades de Hubert.

Mas não era necessário. Francesco Monterga guardava a suspeita de que Van der Hans pudesse ser um espião enviado por Dirk van Mander. Mas o que podia ele ter que interessasse aos irmãos flamengos? Quem sabe, pensava o mestre, fosse o segredo das fórmulas matemáticas da perspectiva e do escorço. No entanto, nas aulas diárias, o mestre percebia pouco interesse de Hubert a respeito disso. Deliberadamente, havia deixado à vista do aluno flamengo algumas anotações - certamente falsas - que aludiam ao problema da perspectiva, e pôde comprovar que o jovem não manifestara a menor curiosidade.

Se havia alguém interessado em conhecer, a qualquer preço, o segredo, esse alguém era Francesco Monterga. E esse segredo estava nas mãos dos Van Mander. Mas e por que o mestre florentino tolerava a presença de um espião em seu próprio ateliê? Por que abria a porta de sua casa ao inimigo? As razões eram muitas. O discípulo flamengo era um veículo, em primeiro lugar, para saber o que podiam estar procurando os Van Mander. Quem sabe, se dizia Francesco, não seria ele o dono de um segredo que nem ele mesmo conhecia. Em segundo lugar, nutria a esperança de que o próprio Hubert, tendo em vista que havia sido discípulo dos irmãos flamengos, conhecesse, mesmo que em parte, a fórmula do Oleum Pretiosum. Tratava-se de jogar, pacientemente, o jogo da caça e do caçador.

Francesco Monterga não ignorava o indisfarçável interesse de Hubert van der Hans pela biblioteca. E sabia que o maior tesouro que aquele recinto guardava era o manuscrito que havia herdado de seu mestre, no qual se revelava, justamente, o enigma das cores. O mestre Monterga, durante anos, tinha quebrado a cabeça tentando decifrar o hieróglifo que seguia aquele título revelador. No entanto, as árduas noites junto a Pietro della Chiesa, tentando romper a rocha intransponível dos misteriosos números que se intercalavam no texto de Santo Agostinho, haviam sido sempre completamente estéreis. Mas, inesperadamente, agora que já não podia contar com a colaboração próxima de Pietro, Francesco Monterga havia encontrado um sucessor que o ajudaria a revelar aquele enigma.

Sem que ele mesmo soubesse, Hubert van der Hans ia ser o nexo que o conduziria ao esclarecimento do enigmático capítulo do manuscrito.

Mas o que era, exatamente, o Secreto coloris in status purus?

 

O lugar onde fora encontrado o corpo mutilado de Pietro della Chiesa ficava em uma região que não era desconhecida para Francesco Monterga. Nas vastas terras que pertenciam ao Castelo Corsini, atrás das oliveiras que se estendiam pela encosta do monte Albano, escondida entre as folhagens agrestes, carvalhos e pinheiros, encontrava-se uma velha cabana que o mestre visitava com frequência. Seu envelhecido teto de palha não era mais alto que a vegetação em redor. Eram poucos os que sabiam de sua existência, mesmo entre os habitantes da vila. Se algum caminhante perdido se aventurava a subir pelo estreito e tortuoso caminho que atravessava o bosque, era imediatamente convencido a não seguir sua marcha por uma matilha que saía em seu encalço, fustigando com grunhidos ferozes. Eram seis cães, grandes como lobos, que exibiam seus dentes ao mesmo tempo em que se arrepiavam os pelos de seu corpo.

Mas, se o caminhante era reconhecido pelo cão mais velho, que era também o mais temível e o que comandava todo o grupo, imediatamente os animais abriam o caminho. Então, como um grupo de mansos filhotes, disputavam a mão do visitante buscando carícias, enquanto o escoltavam ao longo do caminho. Esse era o caso de Francesco Monterga. Todas as sextas-feiras, antes do meio-dia, o mestre tomava um cajado que lhe dava um aspecto franciscano e, acompanhado de seu discípulo Pietro, fazia a saudável caminhada ladeira acima, através dos bosques que cobriam a encosta do monte Albano. Nunca tomavam o mesmo caminho. Como se fosse uma espécie de desafio, às vezes escolhiam a lateral mais íngreme e, outras vezes, penetravam por lugares até então desconhecidos. Com frequência acontecia de perderem o rumo; no entanto, sabiam que não tinham com o que se preocupar, pois sempre, do lugar mais inesperado, abrindo caminho por entre a vegetação, apareciam os cães, que os conduziam até o escondido caminho que levava até a cabana. Qualquer um poderia pensar que eram cães selvagens, mas eles tinham um amo.

De pé, junto à entrada da arruinada cabana, alertado pelos latidos, um homem esperava a chegada dos visitantes segurando um cajado ameaçador. Tinha o aspecto de um ermitão, usava uma espécie de toga de pele, roída e desbotada, presa na cintura por uma corda igualmente envelhecida. Umas sandálias atadas com tiras esfiapadas mal lhe protegiam os pés dos espinhos e do frio. A barba grisalha e enredada se movia ao vento como se fosse algo que não pertencesse a seu corpo. No entanto, se era verdade que tinha a cara de um ancião, seu corpo era tão forte e ereto como o de um homem que ainda não havia chegado à velhice. Os poucos que sabiam de sua escondida existência o chamavam de Il Castigliano (N.R.: O castelhano. Em italiano no original.), mas seu verdadeiro nome era Juan Díaz de Zorrilla. A impressão agreste e hostil que passava aos desconhecidos não coincidia com a disposição demonstrava com os visitantes. Quem o conhecia podia afirmar que era um homem amável e hospitaleiro, mesmo que de pouca conversa e dono de um espírito sóbrio. Era evidente que preferia a silenciosa companhia de seus cães à dos homens.

O motivo das frequentes visitas de Francesco Monterga era sempre o mesmo, de modo que o encontro durava somente o tempo necessário para o pequeno negócio que, a cada sexta-feira, acontecia naquela perdida cabana. Il Castigliano preparava e selecionava os melhores pigmentos que se podiam conseguir em todos os reinos da península itálica. Com o metódico cuidado de um herbário, o velho monge, carregando um cesto nas costas e vários sacos na cintura, recolhia raízes de rúbia (N.R.: Planta que produz um pigmento avermelhado.) para preparar garança (N.R.: Planta que produz um pigmento avermelhado - aqui a própria tintura.) rosa e os tons de violeta. Francesco Monterga ignorava como os conseguia, pois era sabido que as cores obtidas da rúbia, tão fulgurantes como efêmeras, primeiro empalideciam, e, poucos dias depois se descoloriam por completo. No entanto, as raízes da mesma planta, depois de passarem pelo pilão de Il Castigliano e depois de combinadas com outro pó de origem indecifrável, alcançavam uma firmeza eterna.

Era incansável em suas caminhadas. Nos sacos presos no cinto e nas bolsas que levava às costas, o eremita costumava levar pedras de azurita e malaquita, terras verdes e ocres, e, na sua cabana, guardava montes de certos caracóis marinhos que recolhia em viagens até a costa e com os quais fabricava o melhor vermelho púrpura que os olhos humanos haviam visto.

Os azuis eram um autêntico tesouro. O eremita percorria as encostas rochosas dos montes que se estendiam entre os Alpes Apuanos ao longo do Chiana e às margens do Arno, até a Marema e a Toscana Meridional. Nas colinas metalíferas, perto dos saffoni - as fumaças brancas de vapor carregadas de boro e que brotam das pedras -, havia encontrado uma verdadeira jazida de azurita. Uma das grandes dificuldades que essa pedra apresentava era a de separá-la dos outros componentes aderidos. Os antigos tratados falavam de cansativas operações de trituração e lavagem que a faziam uma pedra excessivamente cara e nunca completamente pura. Ninguém conseguia explicar como o anacoreta espanhol conseguia um pigmento despojado de toda a impureza. Francesco Monterga sabia que cada ducado que gastava era um verdadeiro investimento, cujos frutos ficavam plasmados em céus diáfanos e em roupagens sem igual.

Os amarelos eram luminosos como o sol e perigosos como o inferno. O chumbo presente em seu amarelo de Napoles dava à cor um aspecto tão brilhante quanto venenoso era seu efeito. Era preciso manipular esses amarelos com o maior cuidado. A ingestão acidental produzia morte imediata; a absorção pela pele provocava um envenenamento lento e progressivo que, após uma dolorosa agonia, acabava com a vida da vítima que se tivesse deixado acariciar por essa cor luminosa. Francesco Monterga havia proibido terminantemente a seus discípulos o uso desses pigmentos.

O preto de marfim era obtido dos cornos do cervo. Il Castigliano era um caçador implacável. Ajudado pelos cães, entrava no bosque armado com uma besta por ele mesmo inventada, e não havia jornada de caça que não rendesse frutos. Era um trabalho metódico e paciente. Os cães iam à frente com os focinhos grudados no chão e as orelhas erguidas e atentas. Quando sentiam o rastro do animal, corriam cada um em uma direção distinta, formando um círculo de até três acres. Latindo e grunhindo, sem sequer tê-lo visto, iam levando o cervo até onde estava o amo, fechando cada vez mais a circunferência. Quando a vítima, aterrorizada e encurralada, ficava à vista do homem, antes que pudesse fugir, recebia uma flecha entre os olhos. Cada um recebia sua parte. Os cornos, o lombo, os quartos traseiros e a pele eram para o amo. As entranhas, as tripas e todas as vísceras, para os cães. As orelhas eram uma oferenda para Deus; cada vez que voltava da caçada, arrancava as orelhas do cervo e as deixava ao pé de uma cruz de madeira que havia cravado perto de sua cabana. Os cornos eram cuidadosamente separados do crânio e, logo após, calcinados sobre as brasas em uma vasilha fechada. Mais tarde, os dissolvia em ácidos e, ao esquentar a mistura, queimava deixando poucas cinzas. O resultado era o pigmento mais negro e brilhante que se havia visto. No entanto, fabricava esses preparados com o único propósito de vendê-los. Para seu próprio proveito, lançava mão de outras técnicas, certamente muito menos convencionais. Absolutamente ninguém conhecia suas pinturas. E tinha seus motivos. Juan Díaz de Zorrilla pintava com a única determinação de se livrar de seus fantasmas. Os pigmentos que utilizava surgiam de uma particular concepção do Universo, visto através da pintura. Sustentava que, para que a pintura não fosse mais que um torpe e defeituoso simulacro, a cor deveria ser própria do objeto representado. Na verdade, pensava, se o Universo sensível está composto de matéria e a cada substância é dada uma cor, as leis da pintura não deveriam ser diferentes das leis da natureza. Afastar-se um pouco que fosse dessas leis significava alterar a ordem universal do mundo sensível. Em termos práticos, isso se traduzia da seguinte forma: se, por exemplo, decidia representar sua cabana e o bosque que a rodeava, elaborava os pigmentos com as mesmas substâncias que formavam cada um dos elementos que queria representar. Assim, da madeira com que estava feita sua casa, extraía sua cor exata. A têmpera com que pintaria o teto de palha retirava das próprias tiras que o constituíam, e não de outras. Para pintar as árvores, a folhagem, os frutos e as flores, retirava os extratos de cada um dos objetos. Se fosse pintar o cervo, os vernizes para cada elemento representado seriam feitos da mesma matéria que havia constituído o animal. Ninguém sabia com que aglutinante conseguia ligar as cores sem que perdessem seu fulgor efêmero. Mas se o Universo, além de sua constituição sensível, escondia ao mesmo tempo que revelava seu substrato ideal, a pintura não podia ser uma banal representação da representação. Isto é, além da aparência externa, o objeto caracterizado requeria necessariamente algo da ideia que o sustentava.

Assim, para representar a ideia de vitalidade em uma figura, não bastava a perfeita percepção dada pelas formas. Era necessário insuflar o espírito, imperceptível aos olhos. Assim, Il Castigliano havia elaborado uma cuidadosa classificação de ideias às quais correspondiam determinados elementos que transportavam, em sua substância, os espíritos que animam a matéria. De acordo com tal nomenclatura, o esperma de cavalo, por exemplo, continha a ideia da vitalidade, da exuberância, da épica, da lealdade e da nobreza. Se precisava expressar sofrimento, abnegação, laboriosidade ou sacrifício, agregava à mistura gotas de suor. As lágrimas diluídas na têmpera emprestavam a essência da piedade, da misericórdia, da injustiça e da culpa. O sangue era um daqueles preciosos elementos que reuniam, ao mesmo tempo, a cor da matéria, a ideia e os espíritos. Para representar a carne, não vacilava em empregar seu próprio sangue diluído em óleo de papoulas. Algumas vezes, num excesso de loquacidade mística, o pintor espanhol havia comentado algo sobre tudo isso com Francesco Monterga. Ao mestre florentino, além de parecer, no mínimo, um procedimento tenebroso, esse fato confirmou a ideia de que seu colega havia perdido definitivamente a razão.

Ao longo de uma das últimas visitas que Francesco Monterga e seu discípulo lhe fizeram, Il Castigliano, sentado no canto mais escuro da cabana, estava desenhando em uma tábua com um carvão. Ao mestre Monterga, pareceu que estava fazendo um rascunho do rosto de Pietro della Chiesa. Interessado em conhecer o traço de seu colega espanhol, o mestre florentino aproximou-se com o propósito de ver mais de perto o desenho. Mas Il Castigliano imediatamente virou a tábua. Tinha um ciúme doentio de sua obra. Francesco Monterga não deu muita importância ao fato, pois sabia que seu colega estava um pouco louco.

Nenhuma das pessoas que conheciam seu estranho comportamento fez algum caso das excentricidades do intratável espanhol. Até que apareceu, muito perto do lugar em que ficava sua escondida cabana, o cadáver do discípulo de Monterga com o rosto dilacerado.

 

Ninguém tinha motivos para suspeitar de que aquele ermitão vestido com um farrapo de pele gasta, pouco menos selvagem que os cães com que convivia, havia sido protegido de Isabel, a rainha de Castela, e de seu marido Fernando, o rei de Aragão. Ninguém poderia imaginar que essa sombra entre as folhagens que afugentava os homens e dormia em um galpão havia recebido desses reis suas maiores encomendas. Juan Díaz de Zorrilla havia nascido em Paredes de Navas, em Castela. Fora colega de seu conterrâneo Pedro Berruguete, pai de Alonso, que, anos mais tarde, seria considerado o pai da pintura espanhola. Juan e Pedro foram como irmãos. Com a morte de seu mestre, seus destinos se separaram. Juan Díaz de Zorrilla se transferiu para a Itália e fixou-se na Umbria. Seu talento se fez notar imediatamente, e, com apenas quatorze anos, recebeu uma calorosa recomendação de Piero della Francesca: “O portador desta é um jovem espanhol que vem à Itália para aprender a pintar, e que me pediu permissão para ver o desenho que comecei em seu salão. Assim, é necessário que tu procures, seja como for, dar a ele as chaves, e, se podes servir-lhe de algo, faça-o por meu amor, pois é um excelente rapaz”. Os primeiros sinais de um espírito difícil apareceram nesses anos. Não se sabe qual foi exatamente o episódio que modificou o parecer de seu protetor, mas, em outra carta, contradiz abertamente sua recomendação: “Fui informado de que o espanhol não conseguiu entrar no salão; agradeço-lhe e peça, de minha parte, ao guardador que, quando o veja, que o trate do mesmo modo que aos demais”.

Depois de um infrutífero périplo que começou em Roma e terminou em Florença, regressou à Espanha. Em Zaragoza, por encomenda do vice-chanceler de Aragão, fez o retábulo e a sepultura de uma capela do mosteiro dos frades Jerônimos de Santa Engrácia. Durante todos esses anos, trabalhou como escultor, principalmente em Zaragoza, até que Isabel de Castela o chamou, nomeando-o pintor e escultor de câmara. Foi então que lhe foram encomendados vários projetos que o poderiam ter consagrado para sempre. No entanto, nunca saíram do papel. As autoridades consideraram sua obra excessivamente obscura, sombria e carregada de alegorias indecifráveis. Mesmo que ninguém ignorasse seu talento e sobretudo sua técnica, os rascunhos que fazia eram estranhas iconografias inseridas em paisagens assustadoras. Sua versão da decapitação de São João Batista era tão perturbadora que, para muitos, era difícil olhá-la. Seja por ironia de seus superiores ou por puro azar, foi nomeado escrivão criminal, com uma modesta renda que lhe permitia viver com alguma dignidade. Foi nessa época que começou a pintar secretamente. Assim como os necromantes (N.R.: Aquele que prediz o futuro ao entrar em contato com os mortos.), que se escondiam para conceber seus furtivos conjuros, Juan Díaz de Zorrilla, enclausurado em um recôndito porão, desenterrava os demônios de seu espírito encerrando-os nas tintas sobre os quadros. Mas foi descoberto. Os fantasmas que exorcizava em suas pinturas deviam ser tão pavorosos que foi convidado a abandonar a Corte castelhana.

Em Soria, cidade vizinha, conheceu Ana Inês de la Serna, com quem se casou. Ana era a filha mais velha de um próspero comerciante de especiarias. O casamento foi tão infeliz como fugaz. Juan Díaz de Zorrilla se recolhia a pintar por dias inteiros. Nesses períodos, não comia nada nem via a luz do sol. E nem sua esposa podia interromper seus retiros. E desde então, para que ninguém descobrisse suas pinturas, assim que terminava de pintá-las, as destruía ou pintava outra vez por cima. Cada tábua podia ocultar até vinte pinturas sobrepostas. Foi nessa época que começou a fazer experiências com pigmentos de sua própria criação e a elaborar suas próprias receitas. Necessitava que as pinturas secassem tão rápido como vinham seus demônios, para, então, poder voltar a pintar em cima da obra concluída. Num confuso episódio que jamais foi esclarecido, foi levado à prisão: sua esposa apareceu morta por envenenamento. O estado do cadáver apresentava os horrorosos sinais que a carícia venenosa do amarelo de Nápoles deixa. No entanto, o tribunal não pôde comprovar as circunstâncias do envenenamento, e o pintor foi absolvido.

A prematura ascensão e a queda brutal de Juan Díaz de Zorrilla estavam impulsionadas por uma força inversamente proporcional àquela que guiava o destino de seu antigo colega, Pedro Berruguete, que havia se convertido em um dos mais apreciados pintores de sua terra. Por sua parte, esquecido, desprestigiado e cada vez mais atiçado por seus íntimos demônios, Juan decidiu retirar-se do mundo dos homens e partiu para seu selvagem refúgio na Toscana.

 

Com a desculpa de comprar pigmentos, Francesco Monterga encaminhou-se à casa de Il Castigliano. Quando entrou no bosque, surpreendeu-se pelo fato de que os cães não vieram ao seu encontro. Quando chegou à cabana, comprovou suas suspeitas: Juan Díaz de Zorrilla havia abandonado o lugar. O depósito de lenha onde havia aparecido o cadáver de Pietro della Chiesa ficava a uma légua da casa do pintor espanhol.

 

                                         VERDE DA HUNGRIA

Uma chuva fina e gelada caía sobre os telhados enegrecidos de Brugges. Como se quisesse remover o mofo do esquecimento e fazer reluzir seu antigo esplendor, a água batia contra as crostas do abandono com a inútil crença de um formão sem fio. As gotas repicavam sobre a superfície parada do canal, formando bolhas que, ao rebentar, deixavam escapar um fedor putrefato; era como se um enxame de insetos roesse a carne de um cadáver já bastante decomposto. As árvores de outono e os mastros de bandeiras órfãos ou, pior ainda, exibindo os farrapos dos pendões que recordavam as velhas épocas de glória, conferiam à cidade um aspecto desolador. Aquela não era a triste imagem de uma cidade desabitada, mas, ao contrário, ela estava povoada de memórias que apresentavam a materialidade dos espectros. Era possível dizer que as ruelas que brotavam da praça do mercado não estavam desertas, mas cheias de espantalhos visíveis apenas para aqueles que resistiram ao êxodo. E, justamente para os poucos que haviam ficado, a chegada de um estrangeiro constituía um raro acontecimento. Havia poucos motivos para visitar aquele poço pestilento, de modo que imediatamente começavam a correr os mais variados rumores em torno ao recém-chegado. Menos frequente ainda era a chegada de uma mulher jovem acompanhada apenas por sua dama de honra. Mas se, além disso, a mulher em questão se libertava de sua dama de companhia e, ao anoitecer, entrava sozinha na casa de dois homens solteiros, a curiosidade se convertia em maliciosa diversão.

Cada vez que Fátima saía à rua, podia comprovar que os olhares furtivos tinham o peso da condenação e do apedrejamento público. Quando passava, escutava as janelas se abrindo e, pelos cantos dos olhos, observava as cabeças espiando por entre as frestas. De modo que, enquanto esperava a resposta dos Van Mander, Fátima se via obrigada a passar a maior parte do dia trancada em seu quarto nos altos do edifício de Cranenburg.

Na mesma noite da visita de Fátima, os irmãos tiveram uma acalorada discussão. Greg não queria aceitar o pedido de Gilberto Guimarães. Argumentava que, por mais generoso que parecesse o pagamento, jamais iria compensar as dores de cabeça posteriores; sabia como pensavam os comerciantes, achavam que tinham direito a qualquer coisa em troca de uma bolsa cheia de moedas de ouro. Nada os deixava satisfeitos e, além disso, eram donos de uma ignorância tão imensa como sua soberba. E o melhor exemplo era o ofensivo desplante que havia feito a Francesco Monterga. Dirk, ao contrário, opinava que precisavam desse dinheiro; desde que se haviam desvinculado da Casa dos Borgonha, quando decidiram ficar em Brugges, o estado de suas finanças era preocupante. Dizia isso com um tom que mal podia dissimular velhas mágoas. Sentia que seu irmão maior, com sua obstinação, o havia condenado a ancorar naquela cidade que não oferecia nenhum horizonte. Mas quanto mais Dirk achava argumentos em seu favor, mais irredutível parecia ser a posição de Greg. O mais velho lembrou ao irmão que nada o prendia ali, chegou a dizer que, se Dirk assim o queria, tinha a plena liberdade de mudar-se para Gante, Amberes ou onde quisesse; que não tinha motivos para preocupar-se com ele, pois, como bem o mais novo sabia, podia cuidar de si mesmo. E, nesses momentos de disputa, Dirk tinha que fazer um grande esforço para ficar quieto e não lembrar ao irmão que este era um pobre cego e que, se ainda podia se dedicar à pintura, era somente pelo fato de o mais jovem ter-se convertido em seus olhos e mãos. E, como se fosse pouco, o mais velho ainda lhe pagava com a moeda da mesquinhez: nem sequer havia tido a generosidade de revelar-lhe o segredo do preparo de suas pinturas, condenando-o, desse modo, também a uma espécie de cegueira. Não podia ignorar que ambos constituíam uma unidade. Nenhum dos dois podia existir sem o outro.

Até que houve um momento em que Greg foi terminante: sem rodeios, perguntou a seu irmão menor qual era o motivo de tanta veemência, se era a ânsia de retratar sua cliente ou a própria cliente. O longo silêncio de Dirk foi considerado uma resposta. Só então, e sem acrescentar nenhuma explicação que justificasse seu repentino consentimento, o mais velho dos Van Mander concordou com o pedido de Gilberto Guimarães. Nesse mesmo instante, ambos puderam escutar os cascos dos cavalos que acabavam de entrar na rua do Asno Cego.

 

Depois de saudar a dama, e tomado pela curiosidade, Greg van Mander quis conhecer os motivos do extraordinário entusiasmo que seu irmão demonstrava pela visitante. Com uma atitude subitamente paternal, o velho pintor aproximou-se da mulher e pediu que lhe deixasse fazer uma composição mais precisa de sua pessoa. Antes que Fátima pudesse compreender o pedido, Greg esticou suavemente a mão direita e deslizou o indicador pelo perfil do rosto da mulher. Na pequena porém sensível ponta de seu dedo, pôde sentir a pele lisa de sua testa alta e logo o diminuto contorno de seu nariz, reto e delicado. A mulher, que permanecia imóvel, nem sequer se atrevia a piscar, e não pôde evitar um estremecimento quando a mão do pintor se deteve na superfície de seus lábios apertados. Fátima estava assustada, como se temesse que um íntimo segredo fosse revelado em virtude daquele ato. Um finíssimo véu de suor frio cobriu a borda superior de sua boca. E, enquanto percorria, agora em sentido horizontal, os lábios de Fátima até o limite dos cantos da boca, que estavam contraídos, Greg pôde ter uma ideia exata daquele rosto jovem e imensamente formoso. Foi uma rápida inspeção; no entanto, para Fátima, pareceu uma eternidade. Para Greg, ao contrário, foi apenas uma fugaz viagem à remota pátria das recordações. Desde o distante dia em que perdeu a vista, levado pelo pudor e pelo amor-próprio, havia prometido renunciar às mulheres. Mas agora, pelo simples contato com aqueles lábios cálidos, todas as suas convições pareciam a ponto de desabar. Um tremor, mistura de brios viris e pensamentos culposos, agitou seu ventre e um pouco mais abaixo. Desde esse momento, o indicador de Greg van Mander, marcado pelo estigma inesquecível da pele de Fátima, havia que apontar para sempre o caminho dos juramentos quebrados.

Dirk presenciou a cena sem dar nenhuma importância. De fato, alegrou-se ante o inabitual gesto de hospitalidade de Greg para com a hóspede. Mas talvez tivesse experimentado uma emoção diferente se tivesse podido testemunhar o silencioso abalo que acabara de acontecer no espírito de seu irmão.

Fátima não manifestava nenhuma preocupação pela saúde do marido. Dirk van Mander não deixava de surpreender com o bom humor que a mulher sempre mantinha. Em todo momento e em qualquer circunstância, Fátima mostrava um pequeno sorriso que parecia grudado em seus lábios, carnosos e vermelhos. Num tom mais formal, que, no entanto, ocultava uma interessada curiosidade, Dirk interrogou sua hóspede sobre alguns assuntos gerais, relativos a seu esposo. Fátima, sem poder evitar um evidente incômodo, respondia de modo evasivo e rápido e, imediatamente, mudava o rumo da conversação.

Entretanto Greg, ainda confuso, escondia seu atordoamento atrás da cortina aquosa de seus olhos e tentava mostrar-se mais interessado nas questões práticas, relativas ao trabalho que tinham por fazer, do que na pessoa de sua cliente. Depois de todas as resistências anteriores, agora, incompreensivelmente, queria pôr mãos à obra o quanto antes. E quis saber com quanto tempo podiam contar. A mulher explicou que o barco permaneceria no porto de Ostende durante trinta dias para, logo depois, voltar a Lisboa. Ao ouvir isso, o rosto de Greg se transformou numa careta amarga. Pôs-se de pé e, fixando suas pupilas mortas nos olhos da jovem, sentenciou:

- Impossível. Em trinta dias, é impossível.

Fátima ficou petrificada por causa do medo que a expressão de Greg, tão parecida com um olhar vivo, havia lhe provocado. O velho pintor girou a cabeça na direção de seu irmão com um gesto eloquente, como se assim confirmasse todos os argumentos que havia manifestado momentos antes. Dirk, consternado, baixou a cabeça. Sabia que era materialmente impossível terminar o trabalho em apenas trinta dias. Fátima não tinha por que sabê-lo; de modo que o mais jovem dos irmãos, tentando ser um pouco amável, explicou que era pouco tempo para fazer um trabalho digno de sua pessoa.

Fátima não conseguia mover-se em sua cadeira. Mostrava-se completamente atônita. Era possível dizer que não conseguia decidir entre levantar-se e sair correndo do lugar ou fazer votos para que a terra se abrisse e se dignasse a sepultar sua envergonhada humanidade. Titubeando em seu alemão cheio de obstáculos e pudor, dirigindo-se a Greg, disse:

- Tinha entendido que as têmperas e os óleos de Vossas Excelências, além de serem os mais maravilhosos, como jamais se viram, permitiam trabalhar com mais rapidez que qualquer outro neste mundo... - vacilou uns segundos, como se tentasse buscar as palavras menos ofensivas, e continuou: - Em menor tempo, certo mestre florentino havia se comprometido a terminar meu retrato...

Sem poder abandonar seu tom resoluto, Fátima deixou a frase por terminar, refletiu um momento mais e, finalmente, com uma firmeza que deixava claro seu ânimo ofendido, sentenciou:

- Lamento haver feito um juízo equivocado sobre vossas artes. Haviam-me falado de certas técnicas novas, de certas virtudes de vossos óleos, brilhantes e capazes de secar como nenhum.

As últimas palavras da mulher pareceram exercer o efeito de dois punhais certeiros apontados ao centro do coração de cada um dos irmãos. Tanto que não tiveram tempo de se surpreender com os conhecimentos de pintura que Fátima acabava de pôr em evidência. Para Dirk, foi uma nova declaração de guerra; o fantasma de seu inimigo, Francesco Monterga, havia voltado a afundar seu dedo na dolorida chaga. Greg pensou adivinhar o pensamento de seu irmão: se a traição de seu discípulo Hubert, comparada com o troféu que significava a visita de Fátima logo após sua decepcionante passagem pelo ateliê do mestre florentino, era como trocar um peão pela rainha, não aceitar agora o desafio representaria a derrota definitiva na partida.

O convulsionado espírito de Greg ardia agora como uma fogueira: à pira que acabara de se acender por obra da fricção da pele com a pele, agregava-se a lenha da paixão pelo ofício ao qual havia decidido renunciar. Seus antigos juramentos cambaleavam na borda de seu indicador, ainda ardente. Greg podia sentir-se orgulhoso de suas pinturas; tal como Fátima acabava de dizer, seus preparados eram, de fato, insuperáveis em brilho, textura e pigmentação, e, além disso, podia, se assim o quisesse, fabricar os óleos mais puros e providos de um poder de secagem que superava a mais rápida das têmperas. A resposta ao desafio, aparentemente trivial, que Fátima acabava de propor não se fez esperar. Dirk fixou os olhos nos olhos de seu irmão e comprovou que, no mais recôndito silêncio, estava pensando o mesmo que ele. E esse pensamento podia resumir-se em duas palavras: Oleum Pretiosum. Dirk sabia que Greg havia jurado a si mesmo nunca mais voltar a preparar essa fórmula que o havia colocado no mesmo pedestal que Jan van Eyck e à qual havia decidido renunciar por misteriosas razões, mas não desconhecia que a firmeza do juramento era proporcional à tentação de voltar a prepará-la. Se não fosse assim, não seria necessário jurar. O mais novo dos Van Mander sabia quanto trabalho custava a seu irmão abrir mão da sedução do fascínio que o Olem Pretiosum exercia em seu espírito. As pinturas que preparava todos os dias, mesmo sendo as melhores, não se aproximavam nem um pouco das que podia fazer. Era como se fosse dono das asas de um anjo que, podendo voar a céu aberto, estivesse condenado por decisão própria à condição pedestre. Por outro lado, Dirk jamais havia tido o privilégio de abastecer sua paleta com a pintura mais apreciada por qualquer pintor; e, inumeráveis vezes, havia cedido ao doce sonho em que conseguia acariciar com seus pincéis a suave superfície do Oleum Pretiosum. Imaginava a si mesmo espalhando sobre uma tábua o rastro sutil da fórmula, cujo conhecimento lhe era negado pelo próprio irmão. Mas nunca, como agora, os irmãos flamengos se haviam visto tão próximos da tentação. Era certo que, desde o dia em que Brugges havia se transformado em uma cidade morta, não se havia apresentado a eles a ocasião de voltar a preparar a fórmula secreta. No entanto, Dirk tinha a íntima esperança de que esse dia havia de chegar. E nesse momento não teve dúvidas de que, por fim, o dia havia chegado.

Quanto mais olhava para o enigmático rosto de sua hóspede, menos Dirk podia evitar a ilusão de retratá-la com as tintas que seu irmão insistia em negar-lhe. Não foi necessário que os Van Mander mantivessem uma conversação privada; cada um sabia exatamente o que o outro estava pensando. Greg se moveu na poltrona, acariciou a pelúcia com as pontas dos dedos, fechou os olhos, que se haviam enchido de uma vitalidade inédita, como se estivessem animados pela luz que o destino lhes havia tirado, e, finalmente, sentenciou:

- Se queremos ter o trabalho pronto em trinta dias, deveríamos começar imediatamente.

 

Um raio de sol atravessou um pequeno espaço aberto naquele sudário de nuvens cinzas, estendendo uma cortina de tule amarelada feita de gotas de chuva que dividiu a cidade em dois: para o sul do canal, reinava uma penumbra ainda mais acentuada pelo contraste com a metade iluminada. Nos vidros molhados das janelas do ateliê, sobre a ponte da rua do Asno Cego, formavam-se pequenos círculos em cujos centros a luz se fragmentava em seus componentes, imitando ao tímido arco-íris que logo rasgou o céu. Mesmo que ainda chovesse com fúria, há muito tempo, talvez alguns meses, não se via o sol brilhando sobre Brugges. Era um sinal feliz; se aquele era o início de bom tempo, os vapores de água começariam a desaparecer, e as tábuas perderiam a umidade acumulada durante o outono; as telas se fariam mais permeáveis para os preparados de cola de peixe e giz, e as impressões se deixariam absorver mais facilmente. Por outro lado, o sol era vital para apressar a secagem completa do Oleum Pretiosum, uma vez terminada a pintura. De uma hora para outra, a chuva deixou de repicar sobre o telhado, e as nuvens se abriram de par em par. Se ainda existia algum resto de dúvida no espírito dos Van Mander, este desapareceu subitamente, assim como as nuvens no céu azul que se viam através da janela. Dirk, sem perder tempo, pediu a Fátima que se preparasse para posar, ao mesmo tempo em que estendeu uma tela no parapeito da janela. Greg ajeitou a lenha que ardia no fogo e foi até um canto do quarto, onde estavam amontoadas verticalmente várias tábuas de diferentes formatos e tamanhos. Com as pontas dos dedos, percorreu a superfície das madeiras, tocou o canto dos bastidores e as separou em dois grupos, deixando de lado as que apresentavam alguma falha. O coração do mais velho dos Van Mander batia com uma força inédita. Não o animava o sentimento pecaminoso de quem acaba de romper um juramento, mas o entusiasmo de quem revê os termos de uma promessa. Dizia a si mesmo que, se deixasse Dirk trabalhar com o apreciado Oleum Pretiosum, quem sabe dessa forma iria diminuir sua curiosidade, e ele nunca mais voltaria a insistir em conhecer a fórmula.

Fátima olhava o súbito movimento com a curiosidade nascida do desconcerto; nem sequer podia imaginar que sua pessoa havia sido a causa da eclosão do antigo e subterrâneo magma que se movia no espírito dos irmãos e que, agora, depois de anos, vinha à superfície com uma força por muito tempo contida. Enquanto arrumava o cabelo em frente ao espelho, pelo canto do olho tentava decifrar o motivo de tanta excitação. Dirk se assegurou de que a tela estivesse completamente seca, a retirou da janela e a colocou sobre a tábua que Greg havia selecionado. Com a perícia de um passamaneiro (N.R.: Aquele que fabrica passamanes: fitas, franjas, bordados que enfeitam cortinas, roupas, móveis...), Dirk cortou a tela, estendeu-a sobre a superfície da madeira e, enchendo a boca de pregos, começou a martelar a parte de trás da tábua. Quando a tela ficou bem esticada, espalhou uma suave camada de cola, fazendo-a filtrar através da trama da tela. Deixou a tábua exposta ao sol, enquanto preparava um grude fino e um pouco nojento. Em um caldeirão de cobre, ferveu ossos de arenque até as cartilagens perderem a consistência, a ponto de se converterem em uma pasta aguada. Fátima, sem deixar de se arrumar, vendo o reflexo no espelho, perguntava com ingênua curiosidade sobre cada um dos passos metódicos dados por Dirk. Com ânimo pedagógico e com certo ar de importância, o pintor explicou que a cola feita de peixe servia para dar maior aderência à tela. Depois selecionou umas bagas de zimbro. Retirou o caldeirão das brasas e o deixou esfriar. Tomou um dos frutos azuis e, com uma faca de lâmina afiada, o abriu. Do interior do fruto, saíram umas sementes, que ele mostrou a Fátima. Depois disse que o óleo essencial era obtido delas, que, agregadas à mistura, davam à tela uma aderente flexibilidade que protegia da umidade e evitava fissuras posteriores. Tomou um pote de cristal e virou uma pequena porção de seu conteúdo em sua mão aberta. Fátima esticou o indicador e tocou as gotas que descansavam sobre a palma da mão de Dirk; com uma mistura de apreensão e divertida sensualidade, examinou o óleo, quis saber qual seria o sabor, e aproximou as gotas de seus lábios. Dirk viu como a língua da mulher acariciava a superfície do próprio dedo. Como se não tivesse chegado a uma conclusão sobre o sabor do líquido, fez um gesto de dúvida, tomou a mão de Dirk e a aproximou de seu rosto. O mais novo dos Van Mander tremeu como uma folha. Sobre as linhas de sua palma, como um pequeno rio, ainda rolava uma gota do viscoso óleo. Inesperadamente, Fátima fechou os olhos e percorreu com sua língua o rastro oleoso na mão do pintor. Greg, completamente alheio ao recente episódio, mexia o caldeirão, perto dali. Dirk, com a mão direita estendida entre as finas mãos da mulher, olhou para seu irmão como se temesse que este tivesse testemunhado a cena silenciosa. Então Fátima deu meia-volta, deixando Dirk com o braço estendido e a expressão desconcertada, enquanto dizia:

- Muito amargo. Vocês têm alguma fruta?

O ânimo de Dirk encheu-se daquela luz primaveril, e ele pensou ver a cidade como na época de esplendor; subitamente, tudo ganhou um ar de otimismo. Olhou para Fátima, de pé, pronta para servir de modelo, e a viu mais bela do que nunca. Teve a inquietante certeza de que estava completamente apaixonado.

No fundo de sua alma, sabia que aquela alegria quase infantil escondia a semente da tragédia.

 

Antes de cair a tarde, o esboço final estava quase terminado. De modo urgente, porém preciso, as mãos de Dirk iam e vinham sobre a superfície da tela. Usava uma túnica improvisada enrolada na cabeça e que caía sobre seus ombros. Trabalhava com um carvão duro e bem-apontado e com um pincel médio de pelo de marta. Com um definia as linhas do contorno e com o outro esboçava os volumes, espalhando rápidas pinceladas. Enquanto utilizava um, segurava o outro entre os dentes e assim, como um malabarista, em rápidos movimentos, alternadamente passava o pincel para a mão direita e o carvão para a boca. Se precisava abrandar as linhas, esfregava a ponta do polegar sobre o traço. Fixava seus olhos no perfil de Fátima e desenhava quase sem olhar para a tela. Num caderno pequeno que deixava sobre os joelhos, fazia breves anotações ilegíveis e traçava linhas cuja geometria somente ele era capaz de compreender. Fátima permanecia imóvel sentada sobre uma banqueta. Era possível dizes que havia dedicado sua vida a posar. Havia adotado uma cômoda posição, o rosto distendido e a expressão fresca que sempre a acompanhava. Posava com os ombros levemente erguidos, de maneira que as costas retas ressaltavam o pequeno volume do busto, e mantinha as mãos cruzadas sobre o regaço e as pernas juntas nos joelhos e calcanhares. Parecia que podia adivinhar quando o pintor estava trabalhando nos contornos; então aproveitava para mover um pouco o pescoço e relaxar a coluna. Dirk nem precisou dar instruções. Por momentos, Fátima se distraía observando as tarefas de Greg, e seguia cada movimento do mais velho dos Van Mander como se quisesse penetrar no sentido de suas estranhas tarefas. Não podia deixar de admirar a habilidade com que manipulava cada objeto; movia-se como se realmente pudesse ver. Greg era um homem alto de queixo forte e ar decidido. Sua estatura era bastante superior à de seu irmão e, mesmo sendo alguns anos mais velho, tinha um porte e uma atitude mais vigorosos. Dirk, ao contrário, tinha as costas curvas e o semblante abatido, como se carregasse um peso tão grande como antigo. Fátima olhava os braços fortes de Greg contraindo-se cada vez que erguia as pesadas madeiras, seus músculos e as veias inflamadas que contrastavam com seus dedos finos e tão sensíveis como certamente haviam sido seus olhos.

Dirk havia percebido a forma como a mulher olhava para seu irmão e, por um instante, não conseguiu evitar um sentimento semelhante ao ciúme. Mas, imediatamente, libertou-se daquela ideia peregrina como quem espanta um mosca. Há pouco, Fátima havia dado mostras de qual era o objeto de seu interesse. Por outro lado, pensou, seu irmão era quase um velho e, ainda por cima, cego. No entanto, Dirk havia notado que, depois do breve e secreto episódio do óleo essencial de zimbro, Fátima não lhe havia mais dirigido a palavra. Nem sequer o havia olhado. Havia adotado uma atitude de falsidade ou talvez de arrependimento. Antes de mais nada, pensou, era uma mulher casada. Na verdade, Dirk se viu invadido por uma avalanche de conjecturas desencontradas. Quem sabe o contato físico fosse um costume comum entre os portugueses e não escondesse nenhum outro significado nem segundas intenções. Ou, talvez, a atitude indiferente da mulher fazia parte de um jogo de astúcia ou de uma estratégia de sedução. O certo é que Dirk teve que admitir que, desde a chegada de Fátima, não podia pensar em outra coisa. E, enquanto a retratava, ao mesmo tempo em que fixava o olhar em seu perfil adolescente, tentava penetrar na parte mais escondida de sua alma, para adivinhar que pensamentos se escondiam atrás desses olhos negros e enigmáticos. No meio dessa chuva de hipóteses, chegou a pensar que o recente episódio não havia sido mais que uma invenção de sua imaginação turvada pela longa abstinência de carne. De modo que decidiu tomar a iniciativa. Naquele justo momento, o pulso tremeu a ponto de quebrar o carvão entre os dedos; o coração galopava em seu peito como um cavalo encabritado. Com a desculpa de buscar um novo carvão, caminhou até o outro extremo do quarto. Fátima aproveitou para distender-se, movendo a cabeça para a direita e para a esquerda. Ao passar por trás dela, Dirk deteve-se um momento e pousou sua mão suavemente no pescoço da mulher. Sentiu pânico por seu atrevimento, mas como viu que Fátima mantinha um silêncio cúmplice, deslizou a palma até o ombro. Fátima o deixava fazer. Dirk havia descoberto que as carícias secretas provocavam um malicioso prazer que ia além da volúpia; na verdade, descobriu que o que era realmente excitante era a ausente presença de Greg. Era como provocar um silencioso terremoto em seu universo metódico e controlado diante dos olhos inertes do irmão. Mas, enquanto pensava em tudo isso, também notou que a passividade com que Fátima permitiu que acariciasse seu pescoço não revelava nenhuma disposição lasciva nem tampouco ternura. Na verdade, sua indiferença parecia mais uma recusa que um consentimento. De modo que Dirk, ante a inexplicável apatia que Fátima demonstrava, retomou o caminho até a pequena despensa onde havia dezenas de lápis, carvões, sanguinas e plumas minuciosamente ordenadas. Procurava entre os carvões um que tivesse a mesma dureza daquele que acabara de quebrar. Visivelmente contrariado, remexia nervosamente, esparramando tudo sobre a prateleira. Abria e fechava os caixotes ruidosamente e, quanto mais procurava, menos podia encontrar. Importunado com o barulho, Greg virou a cabeça na direção da despensa e, com um tom parcimonioso, que na verdade revelava seu incômodo, perguntou ao irmão o que ele procurava. Dirk, sacudindo o carvão quebrado, respondeu com certa hostilidade. Incomodava-lhe profundamente que seu irmão se metesse em tudo. Mas sabia que Greg tinha um longo inventário de tudo o que havia no ateliê, trabalho a que, certamente, Dirk nunca se havia dado.

Greg não teve que pensar muito para dizer que aquele era o último carvão que restava, aproveitando para reprovar o ato descuidado do irmão, de quebrá-lo, e o descaso de não ter feito as compras da semana. Disse que, se quisesse continuar com o trabalho, ainda restavam quinze minutos para ir até a praça do mercado, atravessá-la na diagonal, cruzar o canal e chegar na loja para comprar mais carvões. Dirk suspirou seu incômodo, pegou algumas moedas da pequena bolsa, deu meia-volta e, sem dizer nada, foi até a porta, a caminho da rua.

No mesmo momento em que Dirk saiu, Fátima levantou-se, moveu a cabeça de forma circular e arqueou a coluna. Percebeu que tinha as costas cansadas e as pernas um pouco inchadas. De pé, junto à janela, sentiu a necessidade de fazer uma massagem nas pernas. De modo que levantou o pesado vestido e, colocando alternadamente os pés sobre a banqueta, despiu suas pernas longas, magras e firmes. Por um momento, sentiu vergonha da presença de Greg, que estava muito próximo a ela, mas, por fim, pensou, ele não poderia perceber. Primeiro, esfregou as coxas, descrevendo pequenos círculos, depois desceu até as panturrilhas e seguiu até os tornozelos. Nessa posição, perguntou a Greg se seu irmão demoraria muito.

- Não o suficiente - respondeu Greg, de modo enigmático.

O mais velho dos Van Mander pôde sentir a respiração próxima de Fátima e parece que até intuiu a proximidade de sua carne nua. Os olhos do pintor, mortos e, no entanto, cheios de uma vivacidade inquietante, estavam fixos sobre os olhos dela. Sua expressão era tão semelhante a um olhar que Fátima chegou a duvidar de que fosse realmente cego. Um pouco para comprovar essa última impressão e também por uma inadiável inércia, a mulher aproximou seus lábios dos de Greg o suficiente para sentir o leve roçar de seu bigode meio loiro e prateado. E assim permaneceu, refreando seu impulso de tocar os lábios. Greg estendeu sua mão e, tomando a jovem pela nuca, a aproximou ainda mais de sua boca. Mas não a beijou. Queria sentir o calor da pele contra a pele. Então, Fátima trocou sua mão, aquela com que seguia acariciando suas coxas, pela mão dele. Greg permanecia com os olhos abertos, semelhantes a duas pedras turquesas sobre o leito de um lago escuro. Fátima pensou que o espírito de Greg era assim como esse lago escuro e que, como aquelas pedras, era a essência que se ocultava. Parecia que bastava mergulhar o braço naquelas águas sombrias para alcançar o verdadeiro azul de seu coração. Então tomou firmemente as mãos de Greg e, com elas, esfregou suas coxas, duras como pedra, mas suaves e frágeis como o veludo de seu vestido. Às vezes, Fátima se afastava um pouco e, sem soltar os pulsos do pintor, guiava suas mãos até alguma parte de seu corpo, como se o desafiasse a adivinhar de que parte se tratava. E assim, transitando pouco a pouco por cada ponto de sua pele, arrastou o indicador de Greg até sua boca, o umedeceu com sua saliva, baixou um pouco o decote do vestido e o conduziu até o bico do seio, pequeno e crispado, do tamanho e da consistência de uma pérola. Com a ponta do dedo de Greg, Fátima traçava linhas discretas sobre a superfície de seu corpo, deixando um rastro úmido que parecia a pegada de um caracol. Se o pintor tentava tocar além dos limites impostos por Fátima, então ela pressionava com força os pulsos de Greg e o conduzia para onde ela queria. As mãos de Greg se deixavam domesticar e eram levadas pelos desejos de sua nova dona. De uma hora para outra, o criador daquele pequeno universo arrumado à sua imagem e semelhança, o cego onisciente ao redor do qual tudo se movia com a precisão de um cosmos, o todo-poderoso a cujo controle nada escapava, havia ficado à mercê de uma menina. Movendo-se candidamente na teia da aranha, Greg mergulhava no adiado sonho da volúpia. Fátima pôde ver a crescente protuberância ressaltada pelo cinto que prendia as calças na cintura e se ligava por baixo das virilhas. Fátima aproximou sua mão daquele promontório que lutava por escapar do perímetro do triângulo formado pelo cinto de couro. Mas não o tocou. Sussurrava em português, no ouvido do pintor, tudo o que seria capaz de fazer se o tivesse nas mãos. E assim, sem tocá-lo, percorria com sua mão o contorno daqueles proeminência cada vez mais vertical. A mão de Fátima parecia exercer um curioso efeito magnético: sem que existisse contato, quando as pontas dos dedos se moviam seguindo a forma do volumoso animal em cativeiro, este parecia agitar-se, como um peixe agonizando, de acordo com o vaivém da mão. As coxas e panturrilhas de Fátima se retesavam conforme mexia sua cintura e tomava entre suas pernas o joelho de Greg.

No mesmo momento em que o pintor conseguiu libertar uma de suas mãos da tirania das mãos da mulher e começava a subir pelas coxas dela, os dois escutaram os apressados passos de Dirk avançando pela rua do Asno Cego. Então Fátima levantou-se devagar, pousou sua boca sobre a do pintor e deslizou sua língua suavemente sobre a superfície de seus lábios, arrumou o vestido e, lentamente, voltou a sentar na banqueta. Nesse instante, a porta se abriu, e Dirk entrou. O panorama com que se deparou era exatamente igual ao que havia deixado minutos antes, a não ser por um leve rubor nas faces de Fátima e o surdo terremoto que acabava de acontecer no espírito de seu irmão.

 

                                       BRANCO DE CHUMBO

Na mesma hora, nos arredores de Florença, a comissão da guarda ducal, chefiada pelo prior Severo Setimio, revistava minuciosamente a cabana abandonada de Juan Díaz de Zorrilla. A surpreendente desaparição do pintor espanhol havia acontecido quando já existia em toda a região um extenso rastro de suspeitas ao redor de uma série de acontecimentos tão graves como inexplicáveis. Primeiro fora a morte violenta de Pietro della Chiesa e o encontro de seu cadáver nos arredores do Castelo Corsini. Coincidindo com esse fato, viera a notícia do desaparecimento de dois outros jovens que viviam no povoado próximo ao castelo. Poucos dias depois, um deles foi encontrado morto, também no meio do bosque, mal escondido por um monte de galhos. Havia sido assassinado da mesma forma que o discípulo: o rosto desfeito e um profundo corte de faca na garganta. Do outro rapaz desaparecido, nada se sabia. Uma onda de medo e indignação apoderou-se da pequena vila que se estendia ao pé da montanha em que estava localizado o castelo. Uma chorosa delegação de anciãos, mulheres e familiares das duas vítimas havia suplicado ao duque que a comissão presidida pelo prior encontrasse, de uma vez, o assassino. Severo Setimio, resmungando indignado por ficar clara sua própria inoperância, se apresentava, vermelho de vergonha e de ira, diante do duque. Se ainda não havia descoberto o culpado, então, como em seus velhos tempos de inquisidor infantil, tinha que apelar para os antigos recursos.

E um dos principais suspeitos, mesmo não sendo o único, era o estranho pintor eremita. Entre os numerosos objetos abandonados por Juan Díaz de Zorrilla, os homens da guarda ducal encontraram numerosas sanguinas que representavam um homem jovem. Misturadas entre os frascos que guardavam óleos, diluentes e pigmentos, acharam garrafas que continham sangue. Em um pequeno cofre, havia chumaços de cabelo humano e restos de unhas cuidadosamente cortadas.

Quando Francesco Monterga foi interrogado pela guarda ducal, não teve dúvidas em reconhecer os traços de Pietro della Chiesa nos desenhos abandonados pelo pintor espanhol. No entanto, não pôde afirmar categoricamente se o cabelo e as unhas eram de seu discípulo. Quanto ao sangue, tampouco podia afirmar com segurança que fosse humano. O mestre florentino expôs ao prior as estranhas fórmulas que Díaz de Zorrilla aplicava para preparar suas pinturas. Revelou que o espanhol, segundo havia confessado, costumava utilizar sangue de animais entre os diluentes e os diferentes pigmentos. Mas não sabia se alguma vez tinha usado sangue humano. A comissão não tardou em decidir-se: por fim, Severo Setimio tinha um assassino. Determinou imediata busca e captura do espanhol. Vivo ou morto. Francesco Monterga pediu ao prior que concedesse a seu velho colega o benefício da dúvida, mas era uma decisão tomada. Bastou que a notícia corresse para que uma multidão de habitantes do povoado saísse desordenada, todos armados de tridentes, foices e pás, para fazer trovejar o castigo.

 

Desde a morte de Pietro della Chiesa, o ateliê de Francesco Monterga havia se convertido em um silencioso ninho de suspeitas. A surpreendente condenação sumária que pesava sobre Juan Díaz de Zorrilla parecia não convencer a todos. Nem sequer ao prior Severo Setimio, que, apesar da necessidade de dar o caso por encerrado para vingar sua fragilizada figura perante o duque, guardava in pectore algumas dúvidas. Durante os últimos dias de sua breve existência, o jovem discípulo tinha sido testemunha involuntária de muitos acontecimentos sombrios. O prestígio de Francesco Monterga havia sido posto em dúvida por alguns rumores que Pietro, contrariando sua expectativa e para sua inteira desilusão, acabara confirmando. E se o discípulo preferido do mestre não tivesse sido o único que presenciara os encontros secretos - se é que houve mais de um - entre Francesco Monterga e Giovanni Dinunzio? De fato, o flamengo havia deixado deslizar algum comentário afiado, embora suficientemente ambíguo para semear a dúvida. Em algum lugar de seu insidioso espírito, Hubert van der Hans parecia aninhar uma suspeita. Na verdade, atrás de seu olhar sempre alucinado, através daqueles olhos de albino que evitavam a luz, não havia detalhe que pudesse escapar à sua disfarçada curiosidade. Não existia um só ponto no ateliê que não tivesse sido minuciosamente examinado pelo flamengo. Em suas secretas excursões noturnas à biblioteca, havia revistado tudo. De modo que não seria uma hipótese absurda pensar que também ele tivesse testemunhado algum outro encontro entre o mestre e Giovanni Dinunzio. Parecia que Hubert guardava a suspeita de que Francesco Monterga tivesse desejado cegar a vergonha e a desonra a qualquer preço. Nem mesmo Giovanni parecia escapar ao receoso olhar de Hubert; seu colega não era o transparente jovem provinciano que parecia ser. Atrás de sua bucólica inocência, ocultava-se um espírito vulcânico, sombrio e dado à fraqueza da carne. Várias vezes Hubert havia surpreendido Dinunzio segurando desesperadamente em suas mãos o frasco que continha o extrato de papoulas, inalando os vapores narcotizantes do solvente. Sabia que não podia abrir mão dos eflúvios obtidos da flor da papoula e que a mansidão de seu espírito somente obedecia a seus efeitos lenitivos. Numa ocasião, um pouco para saciar sua curiosidade, mas também por um pouco de malícia, Hubert havia escondido deliberadamente o apreciado frasco para que Giovanni não o pudesse encontrar facilmente. A descoberta foi surpreendente: nunca havia visto o flamengo tanto desespero e tanta fúria contida. Vendo o colega andar como uma fera no cativeiro, procurando freneticamente, tomado por tremores e envolto por um véu de suor gelado, não teve dúvidas de que aquele dócil camponês teria sido capaz de matar. Mas Hubert também sabia que Francesco Monterga, que se ocupava escrupulosamente para que nunca faltasse o óleo de papoula, se aproveitava do desespero de seu discípulo. Talvez os encontros secretos fossem conseguidos pelo mestre em troca da apreciada poção, que com frequência era aplicada na diluição dos pigmentos, sozinha ou combinada com o óleo de linhaça, por causa de sua capacidade de secagem. Hubert van der Hans guardava a conjectura de que a morte de Pietro della Chiesa havia sido obra de Francesco Monterga ou de seu discípulo, ou de uma associação secreta entre os dois. No entanto, era possível dizer que não dava a isso grande importância. O objeto máximo de sua curiosidade estava, evidentemente, em outra parte.

Por outro lado, os receios do flamengo pareciam ser exatamente simétricos aos de Giovanni Dinunzio. A excessiva curiosidade de Hubert não escapava de ninguém. Sem saber exatamente do que se tratava, o discípulo de Borgo San Sepolcro não ignorava que na biblioteca se escondia um segredo inexpugnável. Giovanni também não ficava alheio às incursões de seu companheiro àquele recinto que havia sido explicitamente proibido para eles. Além disso, o profundo desprezo que Hubert dedicava a ele era o mesmo com que tratava Pietro quando, rindo de seu pequeno corpo imberbe, o humilhava chamando de la bambina. Mas Giovanni também sabia quanto ciúme se escondia no coração de Hubert. Pietro era dono de uma técnica de desenho e composição que muitos pintores consagrados queriam para si. Sabia que os olhos entreabertos do flamengo olhavam com uma inveja inalcançável as tábuas pintadas pelo predileto do mestre. Mesmo que se orgulhasse de ter estudado com os melhores pintores de Flandres, Hubert mal podia disfarçar a certeza de que nunca iria igualar la bambina no manejo das formas. Giovanni também não ignorava que, entre os três, existia uma silenciosa competição. Um deles, somente um, podia sonhar em ingressar como pintor na Casa Médici. E, por certo, até o dia da tragédia, havia um favorito.

O mestre Monterga, por sua parte, parecia estar afundado em um profundo poço de melancolia. Ia e vinha pelo ateliê como um fantasma sem forças. Era a sombra de sua sombra. Quando finalmente se produziu a sentença sobre seu colega espanhol, acabou por derrubar-se. Trancava-se na biblioteca e ali permanecia durante horas. Em poucos dias, envelheceu dez anos. E quando saía de seu retiro na biblioteca, já nem sequer tomava o cuidado de trancá-la. Várias vezes escutou a porta se abrir e chegou a ver Hubert entrar furtivamente, mas foi com se não desse nenhuma importância. Olhava seu discípulo de Flandres com uma mescla de temor disfarçado de indiferença.

Sem que ninguém o tivesse avisado, Hubert van der Hans, cada vez que entrava na biblioteca, estava fazendo um trabalho admirável.

 

Durante alguns dias, Francesco Monterga parecia ter perdido todo o interesse na obsessão que, desde muitos anos, ocupava a maior parte de sua existência. Mas numa manhã, como se tivesse despertado de um longo sonho, recuperou os velhos brios. Perto da meia-noite, costumava trancar-se na biblioteca e, como faria um exegeta das Escrituras, passava horas interpretando as páginas do tratado que herdara de seu mestre Cosimo da Verona, à luz de uma vela que se consumia antes do que seu afã dedutivo. O antigo escrito do monge Eraclius, o Diversarum Artium Schedula, eram, em termos gerais, um manual de ordem prática. Constava de vinte e cinco capítulos, cada um dos quais aportava uma lista de conselhos ao pintor, desprovidos de qualquer consideração teórica, especulativa ou histórica. Numerava os distintos pigmentos conhecidos e a forma de obtê-los, moê-los e misturá-los; mencionava os solventes, diluentes e aglutinantes; classificava os diversos tipos de óleos e o modo de conseguir vernizes. Aconselhava como obter têmperas firmes e duráveis, como fazer impressões em tábuas, de que maneira preparar as paredes para pintar afrescos em interiores e decorar paredes exteriores. Consignava ferramentas e suas aplicações adequadas, usos e formas de fabricar os diferentes tipos de pincéis, espátulas e carvões. Havia algumas breves considerações sobre a cópia da figura humana e de como apreender os distintos objetos de uma paisagem, segundo volumes e distâncias. Alguns dos conselhos eram amplamente conhecidos pela maioria dos pintores, mas outros eram verdadeiras revelações, com certeza cuidadosamente guardadas por Francesco Monterga. Além disso, eram mencionadas certas fórmulas cuja aplicação parecia impossível na prática. Depois do último capítulo, vinha uma espécie de anexo ou um livro à parte, intitulado Coloribus et Artibus. e, na página seguinte, aparecia um subtítulo: Secretus coloris in status purus. Mas quando o leitor tentava saciar sua curiosidade e virava a página, encontrava-se com um fragmento de Os livros da ordem, de Santo Agostinho, entre cujas letras se intercalava uma sucessão de números dispostos sem obedecer a uma ordem inteligível.

 

Credite.si 654238vultis nani quomodo id652988explicem

nescio.Ego78935niirabar et taccbamTryg 18635 elitis autem

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Durante anos, Francesco Monterga havia tentado encontrar a chave oculta naquela série interminável de números. Cada vez que acreditava ter se aproximado de uma interpretação de seu significado, o trabalhoso edifício de sentido que havia conseguido construir terminava fazendo água na série numérica seguinte e desabava como um castelo de cartas. Somava, diminuía, multiplicava e dividia; substituía cada número por sua letra correspondente em todos os alfabetos conhecidos, de trás para frente e de frente para trás. Recorreu à cabala, à numerologia e aos obscuros postulados da alquimia. Acreditou encontrar uma possível relação com a sucessão numérica que regia a ordem do Antigo Testamento, mas sempre, uma e outra vez, por um caminho ou por outro, chegava ao mesmo lugar: o mais desolador dos zeros. Então recomeçava. Por outra parte, o texto de Santo Agostinho não fazia menção, nem explícita, nem tácita, nem metafórica, a nada que tivesse alguma relação com as cores. Por momentos, Monterga perdia a noção do que estava procurando. E, na verdade, era possível que não soubesse que entidade ontológica podia ter a cor em estado puro. Na realidade, nem sequer conseguia explicar o que era exatamente a cor. Francesco Monterga, como todos os pintores, era um homem prático. Pensava que a pintura não era nada mais que um ofício e que seu exercício não era muito diferente do trabalho do carpinteiro ou do pedreiro. Por mais que a figura do artista se revestisse de pompas, seu avental manchado e sujo, suas mãos cheias de calos, os pulmões queixosos, o ateliê tomado por cascas de ovos e moscas e, sobretudo, seu magro patrimônio eram o mais terminante testemunho de sua condição. De muito pouco podia lhe servir o estudo das leis do Universo se não sabia misturar as gemas de ovo com os pigmentos. De nada lhe servia conhecer os teoremas dos antigos gregos se não podia estabelecer uma perspectiva ou um escorço para pintar um modesto presépio. Não era necessário recitar Platão de memória para representar uma caverna. No entanto, o entendimento do conceito de cor em estado puro o havia levado muito além do cotidiano do trabalho artesanal. Cada vez que preparava uma cor na paleta, não podia deixar de se perguntar sobre a sua natureza. A cor era um atributo do objeto? Podia existir independente dele? Se, como afirmava Platão, o mundo sensível era apenas um pálido reflexo do mundo das ideias, por acaso a cor com que trabalhava todos os dias não era um pobre arremedo da cor essencial? Da cor em estado puro? Se a realidade sensível era uma mísera cópia do mundo das ideias, então a pintura, como representação artificiosa da natureza, era apenas uma cópia da cópia. De modo que, se existisse a cor em estado puro, quem sabe a pintura deixaria de ser uma deficiente reprodução e se converteria em uma arte verdadeiramente sublime. Mas por acaso poderia fundir-se, numa tela, a mundana matéria do universo sensível com a inacessível ideia da cor em estado puro? A resposta para aquela pergunta conduziu Francesco Monterga à metódica leitura de Aristóteles. Lia e relia passagens de De Anima, De Sensu et Sensibili e De Coloribus, e todas as reflexões pareciam coincidir em uma mesma definição: “A essência da cor está na propriedade dos corpos de mover o diáfano na ação”; ou seja, o diáfano, forma empregada por Aristóteles para denominar o éter luminoso, em si mesmo invisível, que se manifesta sobre os corpos e as propriedades particulares de cada corpo, é que determina uma ou outra cor, segundo se deduz do capítulo VII de De Anima. Em Sensu et Sensibili, Aristóteles agrega outra definição: “A cor é a extremidade do perspícuo no limite do corpo”; isto é, a cor representa a fronteira exata entre o éter luminoso (o perspícuo) e a matéria. Francesco Monterga deduzia, então, que a luz, o éter, era a natureza inteiramente metafísica, na medida em que não era perceptível aos sentidos por si mesma, mas apenas mediante os corpos sobre os quais jazia. Assim como a alma se manifesta através do corpo e se torna imperceptível quando este se corrompe e morre, da mesma maneira a luz é apreensível somente quando pousa sobre um objeto. A cor é o limite exato entre a luz, de ordem metafísica, e o objeto, de ordem física. Para Francesco Monterga, o problema da pintura residia no caráter inteiramente material dos elementos que a constituíam: as cores eram tão perecíveis quanto o corpo condenado à decomposição, à morte e, finalmente, à extinção. Então como capturar esse limite e separá-lo do objeto? Intuía que a resposta estava no problema da luz. O mestre florentino, depois de soprar a chama da vela, quando se decidia a dormir, e uma vez envolto na penumbra do quarto, se perguntava se a cor seguia existindo quando a luz se ausentava. Pergunta que costumavam fazer os antigos gregos. Muitas vezes, depois de passar horas trabalhando na mistura de uma cor, ou depois de ter terminado um quadro, ao apagar o candelabro, lhe assaltava a desesperadora ideia de que, junto com a extinção da luz, também podia ter sido extinta a cor. Acendia e apagava o candelabro tantas vezes quantas lhe atacava a dúvida. Francesco Monterga tinha a ideia de que a luz era imanente a Deus, que Deus era a pura luz e Deus não podia ser visto a não ser através dos objetos de sua criação. A cor era, então, a fronteira entre Deus e o mundo sensível. E era uma fronteira cuja essência estava separada de qualquer conceito. Um homem nascido cego pode entender o teorema de Pitágoras, pode imaginar um triângulo e compreender o conceito da hipotenusa; mas não existe conceito nem forma de explicar a um cego, por definições, o que é uma cor. Mas a mesma incerteza, pensava Francesco Monterga, era extensiva a quem gozava do dom da vista. Com frequência, perguntava a Pietro della Chiesa:

- Como saber se tu não vês vermelho isto que eu chamo de verde, mesmo que também chames de verde e acreditemos estar de acordo? - dizia, segurando com a mão direita uma couve.

Por outra parte, os pigmentos, mesmo os melhores e mais valiosos, não passavam de meras imitações. Por mais realista que pudesse parecer uma velatura, não era nada mais que uma mescla de vegetais e minerais que chegavam a uma aparência de carne. A solução proposta por Juan Díaz de Zorrilla, isto é, retirar as cores dos objetos que se quer representar, além de parecer cruel, era para Francesco Monterga uma mera substituição de lugar, consistia em transpor a matéria do objeto para a tela. Ou seja, por esse caminho não se conquistava a cor inerente ao objeto, mas sua própria matéria.

O mestre florentino estava convencido de que o hieróglifo de seu velho manuscrito revelava, tal como o título indicava, o modo de se obter a cor despojada de seu efêmero sustento material. O arco-íris era a prova de que, sob determinadas circunstâncias, a cor não precisava de objeto algum e podia permanecer pura no éter. De maneira que, se realmente existia a coloris in status purus, bastava descobrir a forma de fixá-la sobre uma tábua ou uma tela. O Santo Sudário de Turim podia constituir uma mostra de como a cor, por obra da luz divina, podia fixar-se sobre uma tela. No juízo de Francesco Monterga, existiam inumeráveis provas de que a cor podia separar-se do objeto. Bastava fechar fortemente os olhos para ver uma infinita sucessão de cores, clarões cujas tonalidades não existiam na natureza e não se prendiam a nenhum objeto. As crônicas dos viajantes que haviam navegado rumo ao Norte, até os confins do mundo, juravam ter testemunhado auroras no meio da noite, cortinas de cores que se mexiam sobre o céu noturno, sobre o éter puro e sem repousar em nenhum astro.

Francesco Monterga acariciava a ideia de poder pintar abrindo mão dos mundanos recursos do óleo de gema de ovo, das poeirentas resinas e dos minerais venenosos. Queria, como o poeta que separa a coisa de sua essência, trabalhar com a mesma limpa pureza com que se escreve um verso. Assim como Dante pôde descer aos infernos, navegar pelos pestilentos rios de Caronte, narrar os tormentos mais espantosos e emergir límpido e puro por obra da palavra, também ele, Francesco Monterga, desejava converter a pintura em uma arte sublime, despojada das corrompidas contingências da matéria. Assim como a palavra é a própria ideia e prescinde do objeto que designa, da mesma maneira a cor em estado puro haveria de prescindir de um veículo material, de um pigmento e de um diluente. E tinha a certeza de que aza sucessão de números escondia a chava do segredo da cor em estado puro.

 

Se as primeiras incursões de Hubert van der Hans na biblioteca de Francesco Monterga eram secretas e tão esporádicas quanto eram escassas as oportunidades que se apresentavam, agora que Pietro della Chiesa estava morto e o mestre vagava pela casa como uma alma penada, o discípulo flamengo tinha o caminho completamente aberto. A tímida presença de Giovanni Dinunzio não chegava a ser um obstáculo para ele; era como se Hubert tivesse um tácito pacto de silêncio com seu colega. O certo é que, quando a tarde caía e o mestre Monterga se retirava para descansar, a pálida e longilínea figura de Hubert van der Hans deslizava pelo corredor e, sem impedimento algum, entrava na biblioteca. Podia permanecer horas inteiras comodamente sentado na poltrona de seu mestre. Francesco Monterga, além de não mais lembrar de passar a chave na porta, deixava o cofre em que guardava o manuscrito completamente desprotegido. Hubert já havia conseguido abrir a fechadura e, cada vez que completava sua tarefa diária, ajeitava o cadeado, dando a impressão de que tudo estava em seu lugar. O discípulo flamengo pulava as primeiras páginas do manuscrito e abria o livro diretamente nos hieróglifos. Hubert van der Hans levava uma vantagem sobre Francesco Monterga: todo o trabalho acumulado e deixado de lado pelo mestre florentino durante anos estava cuidadosamente anotado em um grosso caderno de capa de pele de cordeiro, que era guardado junto com o manuscrito. Ali apareciam as diferentes hipóteses, as chaves que podiam levar a algum caminho, as possíveis concordâncias entre números e alfabetos, e, mesmo que todas as tentativas tivessem resultado falhas, para Hubert representavam economia de anos de trabalho. Ao menos lhe indicavam os caminhos que não chegavam a lugar algum. Afastando as mechas esbranquiçadas de cabelo que lhe caíam sobre os olhos de morcego, o flamengo trabalhava com firmeza. Lia e relia de cima abaixo, de baixo para cima, da esquerda para a direita e da direita para a esquerda como os hebreus. Hubert van der Hans parecia estar seguindo uma pista precisa e dava a impressão de que se encontrava cada dia mais perto de achar um caminho possível. Havia um detalhe que lhe dava uma paradoxal vantagem: sua forte miopia. As dificuldades para ver de perto o texto davam-lhe um panorama mais ou menos distorcido e geral. As letras às vezes ficavam borradas para seus olhos, e ele via somente formas incertas, nebulosas, como aquele que adivinha animais mitológicos nas nuvens ou que identifica rostos na umidade das paredes. E quanto menos rigoroso era seu método, tanto mais proveitosos pareciam ser os resultados. Sua condição quase albina somava-se ao trabalho de miniaturista, aprendido ainda quando era aluno dos irmãos Van Mander. A laboriosa tarefa de pintar figuras às vezes tão pequenas como a cabeça de um prego havia causado muito dano a seus olhos. Sob a vacilante luz de uma vela, Hubert tomava notas e traçava complexas coordenadas que somente ele era capaz de entender.

A mesma pergunta que Pietro della Chiesa costumava fazer-se sobre os motivos que Francesco Monterga podia ter para aceitar como discípulo alguém que havia sido aluno de seu mais tenaz inimigo era a que o próprio Hubert se formulava cada vez que entrava na biblioteca. Não conseguia explicar a cândida hospitalidade com que havia sido aceito no ateliê, a inocente generosidade com que Monterga lhe revelava seus mais valiosos segredos e a cega confiança que lhe dedicava ao deixar cada canto da casa à sua inteira disposição.

Parecia que Hubert desconhecia o conceito de lealdade. No entanto, quem age pelo princípio da traição não pode ignorar sua contrapartida. E talvez, por um caminho insuspeitado e paradoxal, sem sequer perceber, na mesma medida em que consumava a traição, pela primeira vez estava sendo fiel a seu mestre. Na verdade, já começava a se perguntar sobre quem era, realmente, seu verdadeiro mestre.

 

Sete figuras fantasmagóricas moviam-se contra o céu crepuscular daquela tarde. Uma brisa fresca que descia dos montes de Calvana as balançava suavemente, fazendo-as girar sobre seu eixo de um lado para outro. Penduradas nos galhos de um carvalho murcho, as sete figuras pareciam frutos macabros. Rodeadas, desde o céu, por um bando de corvos impacientes e vigiados pelos aldeões desde o pé da árvore em cujos galhos estavam, os corpos pendurados de Il Castigliano e de seus seis leais cães eram exibidos como troféus de caça por uma multidão excitada. Haviam sido literalmente caçados pelos furiosos habitantes do burgo pertencente ao Castelo Corsini. Depois de dois dias de busca sem trégua, com o auxílio dos espertos e ferozes cães tigrados de Nápoles, que o próprio duque havia deixado à disposição, Juan Díaz de Zorrilla foi encontrado pela multidão, exausto e com um tornozelo quebrado, nas proximidades de Fiesole. A matilha do espanhol lutou contra os mastins napolitanos, mas o pintor, vendo que seus cães estavam sendo destroçados a dentadas, ordenou que deixassem a luta. Por outra parte os aldeães os queriam vivos. Pretendiam obter uma confissão e sabiam que os cães eram a família do pintor. Um a um, foram laçados e amarrados a uma árvore. Queriam averiguar o que o eremita havia feito com o jovem que permanecia desaparecido e cujo cadáver não conseguiram encontrar.

Primeiro, foi brutalmente interrogado pelo prior. O pai do jovem morto teve que ser detido por quatro membros da comissão ducal para que não atravessasse com o tridente o pintor espanhol. As perguntas chegavam atropeladas, gritadas e acompanhadas de pontapés e golpes de gadanho que passavam bem próximos da cara de Il Castigliano. Vendo que aquilo terminaria em um infrutífero linchamento popular, a mãe do jovem desaparecido suplicou que não o matassem até saber o que havia feito com seu filho. O círculo iracundo abriu-se, e então um homem velho, mas de expressão assustadora, se converteu no porta-voz da excitada multidão. Para cada pergunta que ficava sem resposta, um dos cães era degolado. O ânimo da plebe era exaltado pelas degolas e logo após acalmado pelos breves discursos do prior Severo Setimio. Alimentados pela morte, os cães de Nápoles sentiam o perfume do sangue e latiam com a boca cheia de espuma. Juan Díaz de Zorrilla somente se pronunciou para suplicar pela vida de seus cães. No mesmo momento em que ia cair o fio do gadanho sobre o mais velho dos cães, que desafiava seu agressor mostrando todos os dentes, o espanhol anunciou sua disposição de confessar, mas com a condição de que não matassem o cão. Com a voz quebrada e vacilante, reconheceu que havia assassinado os jovens para extrair seu sangue e com ele preparar pigmentos. Disse que o corpo do outro homem estava enterrado debaixo de um penhasco, próximo à sua cabana. Bastou que dissesse isso para que o círculo da multidão se fechasse sobre Juan Díaz de Zorrilla. Severo Setimio afastou-se uns passos e observou de uma distância imparcial. Foi uma morte horrorosa: foices, gadanhos, tridentes, pás e socos caíram de uma só vez sobre seu frágil corpo. Em uma elevação coroada por um grande carvalho, improvisaram um cadafalso e o penduraram pelos pés, já que estava praticamente decapitado. Seus cães tiveram o mesmo fim.

A multidão desceu da montanha com a sede de vingança finalmente saciada. O abade cruzou as mãos abaixo do abdômen e deu o caso por encerrado.

 

Quando Francesco Monterga ficou sabendo da notícia da morte de seu colega espanhol, não conseguiu conter um choro afogado. Não os unia uma grande amizade, não compartilhavam uma mesma ideia sobre a existência nem algum conceito de pintura, e aos discípulos de Monterga surpreendeu que tivesse tanta piedade do assassino de seu protegido, Pietro della Chiesa. Longe de ver seu espírito confortado pela morte daquele que havia tirado a vida de seu mais leal aluno e arrancado pela raiz a ilusão de ver triunfar aquele que estava predestinado a ser um dos melhores pintores de Florença, Francesco Monterga não podia dissimular sua amargura. E, talvez para diminuir sua tristeza, o mestre se impôs uma tarefa tão difícil como inútil. Numa manhã, tirou o pó de um velho esboço que meses atrás havia sido encomendado e logo recusado por Gilberto Guimarães. Colocou a tábua no cavalete e se dispôs a concluir o retrato de Fátima, a esposa do armador português. A mesma obsessiva compulsão que, até poucos dias, ocupava a maior parte de seu tempo quando se trancava na biblioteca, agora mudava de objeto. Como nos velhos tempos, quando pintar era uma paixão urgente e inadiável, quando preparar uma tela ou imprimir uma gravura era o decisivo prólogo para entregar-se, por fim, à fantasia da paleta, agora voltava a pintar com aquele mesmo fervor juvenil. Há muitos anos que o mestre Francesco Monterga não via na pintura uma fonte de sustento. Os numerosos trabalhos que tinha feito por encomenda de seu avaro mecenas não eram mais que banais caprichos decorativos e, por certo, sequer asseguravam uma vida mais ou menos decorosa. Seu nome alguma vez havia tido o mesmo brilho que os daqueles cujas pinturas enriqueciam os palácios dos Médicis, mas agora, caído no esquecimento, derrotado como pintor, como mestre, como digno discípulo de Cosimo da Verona, vendo que o tempo que lhe restava de vida não seria suficiente para descobrir o segredo do coloris in status purus, voltava a aferrar-se à pintura como sua única redenção. A recusa de seu trabalho por parte de Gilberto Guimarães havia sido uma humilhante ofensa. Aproveitando aquela encomenda, Monterga parecia querer demonstrar, mesmo que fosse para si mesmo, que ainda era um dos melhores pintores de Florença. Mas agora, mesmo que a tarefa fosse em vão e o quadro morresse no esquecimento, estava disposto a concluir o retrato de Fátima. Segundo disse a Hubert, o que lhe daria mais prazer seria que o acaso fizesse Gilberto Guimarães ver terminada a pintura que ousara desprezar. Então, nem que lhe suplicasse de joelhos, nem que lhe oferecesse até a última de suas riquezas, não lhe venderia o quadro. Nas primeiras luzes do dia, quando o sol era uma fraca virtualidade atrás das montanhas, Francesco Monterga, com o ânimo subitamente recuperado, começava sua tarefa. Enfeitado com um avental da época de estudante e um gorro que datava dos tempos em que ainda tinha cabelo, pintava alegre e apaixonadamente. Parecia obcecado pelo rosto de Fátima: nem bem terminava as cansativas velaturas, antes que a têmpera secasse, desfazia o trabalho e voltava a começar. Podia passar horas contemplando o semblante da portuguesa. Nessas ocasiões, ficava extasiado, e algumas vezes os discípulos que lhe sobraram presenciaram como acariciava as faces rosadas do retrato, como se tivesse perdido a razão. Ou como se um vínculo secreto o unisse a Fátima.

Examinando a pintura e a expressão do mestre, Hubert van der Hans não pôde evitar que uma ideia arrepiante passasse por sua branca cabeça. Nessa mesma noite, escreveu uma carta para um destinatário em Brugges. Não era a primeira vez que isso acontecia. Francesco Monterga, sem que o discípulo soubesse, havia encontrado numerosas cartas ocultas entre os pertences de Hubert. Sabia exatamente os dias em que seu aluno flamengo ia até o Ufficio Postale, com as cartas escondidas entre as roupas. Mas exultante como estava desde que havia retomado o velho retrato, o mestre Monterga parecia alheio a tudo que acontecia ao seu redor.

Como se o destino de ambos estivesse sendo escrito com a mesma pena, como se o azar ou a fatalidade quisesse uni-los sem eles mesmos o soubessem, nesse exato momento Francesco Monterga e seu acérrimo inimigo flamengo, Dirk van Mander, outra vez duelavam. Mesmo que um e outro ignorassem, ambos estavam pintando a mesma pessoa. O destino de ambos agora tinha um só nome: Fátima.

 

                         PRETO DE MARFIM

No mesmo momento em que Francesco Monterga retocava pela enésima vez o rosto de Fátima, tão distante como uma lembrança, Dirk van Mander, com um pincel de pelo de camelo, esfumava sobre a tela de seu estúdio o rubor das faces tão próximas como esquivas. Haviam passado mais de três semanas desde a chegada de Fátima a Brugges. Segundo o prazo estabelecido, faltavam somente três dias para terminar o retrato. Apesar dos esforços de Dirk para convencer sua cliente de que o trabalho, de fato, ficaria concluído na data que haviam combinado, Fátima não conseguia ver no quadro nada mais que um esboço. Por muito que se desmanchasse em explicações técnicas e jurasse que o óleo que iria empregar tinha a propriedade de secar em questão de minutos, a portuguesa tinha bons motivos para duvidar. De acordo com a breve carta que Gilberto Guimarães mandara desde Ostende, sua saúde melhorava notavelmente, mas ainda manifestava sua indignação para com as autoridades do porto, pois estas seguiam em sua negativa para que ele pudesse desembarcar. Dizia, além disso, que em três dias o barco devia levantar âncoras e começar o regresso para Lisboa.

Dirk recebeu a notícia com uma mescla de alegria e desgosto. Alegrava-se com o anúncio de que Gilberto Guimarães não chegaria em Brugges, mas não podia fazer nada além de lamentar que em pouco tempo Fátima teria que partir. Guardava a esperança de que o prazo se estendesse, mesmo que fosse por uns poucos dias a mais. Deliberadamente, estava atrasando a conclusão da pintura com o propósito de forçar uma prorrogação e, desse modo, prolongar a estadia da portuguesa. Sabia que, com o preparado do Oleum Pretiosum, a pintura podia estar terminada em pouco tempo, mas Dirk havia se proposto um trabalho muito mais árduo e cuja matéria era mais difícil de dominar que o mais venenoso dos pigmentos: o coração de Fátima. Sabia que a consistência espiritual da jovem portuguesa era de uma substância semelhante à do Oleum Pretiosum: tão luminosa e cativante como obscura e misteriosa era sua secreta composição; tão firme em seu caráter, e ao mesmo tempo tão insensível como os óleos mais preciosos. A jovem simples e amável, de sorriso radiante e fresco, dona da simplicidade dos camponeses, por momentos se transformava em uma mulher ativa, de expressão dura e amarga. A mulher apaixonada, a mesma que buscava secretamente a boca de Dirk e lhe oferecia um beijo fugitivo, às vezes terno, às vezes lascivo, sem que motivo algum indicasse, se convertia imediatamente em um indício de perfídia. Mas o coração de Fátima era muito mais turvo do que Dirk podia perceber. O mais jovem dos irmãos sequer suspeitava que, na sua ausência, Fátima mantinha um obscuro, turbulento e por momentos selvagem romance com Greg. Para Dirk, Fátima era uma tortuosa esperança de um amor ascético. Para Greg, ao contrário, era uma voluptuosa promessa carnal, uma luxuriosa e mundana urgência. Para Dirk, ela fechava seu coração tão logo o abria. Para Greg, oferecia seu corpo como uma suculenta fruta e, no momento da sonhada mordida, o afastava da boca.

Durante os últimos dias, Greg passava a maior parte do tempo trancado no único lugar reservado somente para ele e que era vedado para seu irmão menor. Os quatro muros daquele frio recinto escondiam os elementos que compunham a fórmula do Oleum Pretiosum. Era tão grande o cuidado de Greg em manter o segredo, sobretudo em relação a Dirk, que não permitia a ninguém que entrasse em seus domicílios escuros. A única exceção era Fátima. A jovem portuguesa havia conseguido em poucos dias o que ninguém conseguira durante anos: que o próprio pintor lhe abrisse as portas. Na primeira vez em que Fátima entrou naquele recinto, acreditou saber exatamente o que era ser cego. Nem que quisesse poderia descrever aquele lugar fechado, cujas janelas haviam sido amuradas, pela simples razão de que não entrava nem um fio de luz do exterior, pois Greg não precisava iluminar-se. Além de não haver uma mísera vela, o pintor havia imposto a ela, como condição para entrar, que não acendesse o fogo. Um intenso perfume de pinho contrastava com a penumbra e o fechamento. Para Fátima, pareceu um lugar agradável e ao mesmo tempo assustador. No meio da mais fechada escuridão, tinha a impressão de estar perdida em um labiríntico bosque de pinheiros. E se não fosse pela mão de Greg, que a conduzia a cada passo, sem dúvida ela teria sido incapaz de encontrar a saída por si mesma. Aquele era agora o lugar de seus encontros furtivos. Como dois cegos, tateando e guiados pelo mapa único da forma de seus corpos, percorriam-se mutuamente com as mãos, com a boca, com a língua, com as pontas dos dedos. Enredados naquela noite de escuridão infinita, prendiam-se na única certeza das respirações agitadas, das palavras entrecortadas ditas a meia voz. No meio daquele oceano tenebroso, no qual não havia nem acima nem abaixo, nem oriente nem ocidente, Fátima confiava somente na bússola firme e ereta que Greg lhe oferecia. Sempre quem manejava o timão era ela, e, invariavelmente, cada vez que Greg se dispunha a tomar o comando e conduzir o barco ao porto, cada vez que suas mãos pretendiam avançar sobre o desejado estuário, Fátima levantava-se, ajeitava as roupas e suplicava que ele a levasse até a saída.

- Ainda não - suspirava Fátima, antes de perder-se atrás do vão da porta e emergir na luz.

 

Sozinho na profunda solidão de sua cegueira. Sozinho na inexpugnável solidão das sombras entre quatro paredes. Sozinho na funda solidão dos sonhos carnais adiados, Greg van Mander, depois de anos, voltava a preparar a fórmula do Oleum Pretiosum. O velho pintor cego era, por assim dizer, a demonstração palpável de que a cor existia independentemente da luz. Naquela negrura incomensurável que cheirava a pinho, Greg, sem que ninguém pudesse testemunhar, se movia desviando dos móveis, das vigas de madeira que atravessavam o teto baixo e dos desníveis que marcavam a superfície do chão. Ia e vinha levando e trazendo diferentes frascos, moendo pequenas pedras num pilão de bronze, mesclando óleos e resinas. Era uma espécie de sabá íntimo e invisível. Trabalhava com a mesma destreza e dedicação com que, vinte anos antes, quando ainda enxergava, havia feito pela primeira vez o magistral preparado a pedido de Felipe III, quando o nobre francês havia lhe encomendado a tarefa de descobrir a fórmula de Jan van Eyck.

Todo mundo soube que Greg van Mander não somente conseguiu reproduzir as técnicas do grande mestre, como ainda fez óleos que eram superiores. No entanto, o próprio executor da maravilhosa receita não conseguiu ver sua invenção, o Oleum Pretiosum, pois perdeu a visão durante o preparo. Desde aquela época, Greg havia jurado não voltar a elaborar o apreciado óleo por mais elevadas que fossem as fortunas que chegassem a lhe oferecer. Assim, sua secreta atividade daqueles dias foi para Greg como retornar à juventude. A chegada de Fátima havia provocado uma verdadeira alteração não só no universo cotidiano do velho pintor, como também em seu recôndito inferno amuralhado.

No iluminado ateliê da ponte sobre a rua do Asno Cego, outra tormenta passional se avizinhava. Enquanto Dirk terminava os detalhes para a primeira capa de pintura que seu irmão estava preparando, Fátima, posando resplandecente diante da janela, pôde escutar as inesperadas palavras do jovem pintor. Ouviu-as perfeitamente, mas não estava segura de ter entendido. No entanto, seu corpo se moveu num tremor. Olhou para Dirk com uns olhos cheios de perturbação, como se pedisse que ele repetisse as palavras. E somente então pôde confirmar o que acreditava não ter entendido.

- Vamos fugir - repetiu Dirk, com a voz entrecortada.

Ela olhou, incrédula.

- Vamos fugir hoje mesmo - implorou ele pela terceira vez.

Fátima, congelada no banquinho, olhava-o sem pronunciar uma palavra. Então Dirk, pousando o pincel sobre a base do cavalete, tirou o turbante, caminhou até a mulher e, olhando-a no centro dos olhos, com uma expressão desconhecida, começou um violento monólogo. Disse-lhe que sabia que ela não amava seu esposo, que já havia percebido que aquele ancião, de quem ela jamais falava e cuja saúde nem sequer importava a ela, provocava-lhe um profundo desprezo. Disse que ela era uma mulher jovem e bela e que não tinha o direito de condenar-se à infelicidade ou, pior ainda, ao lento remorso de esperar o feliz dia da morte daquele que, seguramente, nem podia lhe dar filhos. Sem medir as consequências da ofensa que podia estar fazendo, Dirk disse a Fátima que aquele vil comerciante que ela tinha por marido não podia lhe oferecer nada além de dinheiro e que ela merecia muito mais que isso. Implorou que fugissem juntos nesse mesmo dia, assegurou que ambos estavam presos por um destino tão cruel quanto injusto e, finalmente, disse que ele também era vítima dos tirânicos arbítrios de seu irmão mais velho, a quem já não se sentia ligado nem mesmo pela piedade por sua cegueira. Assim como ela mesma estava cativa entre as enfeitadas paredes de seu palácio de Lisboa, ele estava preso naquela pestilenta cidade morta que não podia lhe oferecer nada. Disse que não estava disposto a ver seus últimos anos de juventude se consumindo na fúnebre solidão da Ville Morte. Isento de toda modéstia, mas falando com uma convicção profunda, não vacilou em afirmar que sabia que era um dos melhores pintores da Europa e que, ficando junto ao irmão, estava perdendo seu futuro; explicou que Greg sempre lhe havia negado o conhecimento da fórmula daquelas mesmas pinturas que ia empregar para retratá-la, e que não podia mais seguir pintando com as mãos atadas. De joelhos, suplicou a Fátima que escapassem nesse mesmo dia. Podiam ir a qualquer lugar do reino de Flandres; em Amberres ou em Bruxelas, em Gante ou nas Ardenas, em Namur, Hainaut ou Amsterdam, ele seria recebido como um príncipe. Se ela assim o quisesse, podiam ir mais além, a Veneza, a Florença ou a Siena. Até estava disposto a fugir para Portugal, para a cidade do Porto. Ele sabia que poucos pintores tinham sua arte e seu talento, e que, portanto, poderia trabalhar em qualquer uma das cortes do continente. Rendido aos pés de Fátima, lhe tomou a mão e, pela última vez, lhe implorou:

- Vamos nesta mesma noite.

A mulher pediu que ele ficasse de pé, e, puxando-o para junto de seu peito, o abraçou como a um menino.

Nesse mesmo momento, a porta se abriu, e Greg entrou. Por fim, havia terminado de preparar o óleo. Na mão direita, trazia um frasco de vidro em cujo interior era possível ver uma espécie de diamante em estado líquido, dono de um fulgor que parecia irradiar luz própria. Fátima afastou Dirk lentamente e, presa a um encantamento semelhante ao produzido pelo olhar de uma serpente para suas vítimas, levantou-se e caminhou ao encontro do velho pintor. Contemplava aquela substância que parecia não pertencer a este mundo e que, mesmo não apresentando cor alguma, emitia raios que pareciam conter todas as tonalidades do universo. Fátima olhou para Dirk e viu que as lágrimas que corriam por sua face, comparadas com aquele néctar, eram como gotas opacas de água parada.

 

Pela primeira vez em mais de vinte anos, Greg van Mander tinha outra vez entre suas mãos o néctar que havia jurado não voltar a preparar, aquela substância que havia conquistado uma fama quase mitológica: o Oleum Pretiosum, que, por mais paradoxal que fosse, nunca pôde ser visto por seu próprio criador. Em três dias de trabalho, havia feito uma quantidade que quase não era suficiente para a primeira camada. No entanto, o mais rico dos pintores teria dado toda sua fortuna em troca desse líquido que brilhava no frasco. Greg o entregou a seu irmão; o pulso de Dirk tremeu, e, por um momento, ele teve medo de que pudesse cair de sua mão, cuja palma estava empapada em um suor frio. Não havia a menor margem para erro.

Mas, mesmo deslumbrado pela visão daquele verniz mais claro que o ar e que irradiava raios iridescentes, Dirk não podia esquecer do brilho dos olhos de Fátima. Olhava contra a luz aquele diamante aquoso pelo qual qualquer pintor estaria disposto a dar sua mão direita, mas não conseguia escapar da magia dos lábios de Fátima. Tentava decifrar nesse líquido a matéria secreta de sua composição, mas mais importante era conhecer a resposta que Fátima ainda não lhe havia dado. E enquanto se debatia entre aqueles dois tesouros, Dirk teve a convicção de que podia, sem dúvida, fugir de seu irmão, mas nunca fugiria do Oleum Pretiosum. Uma ideia cruzou sua mente, e, por um momento, teve medo de si mesmo. Uma ideia da qual temia não conseguir se libertar, e um terror que haveria de se instalar para sempre em seu espírito. Olhou para Fátima e acreditou que a mulher acabava de ler seu pensamento. Sentiu vergonha e repugnância, mas teve a impressão de que nos olhos dela havia um sinal de aprovação. Talvez, Dirk ousou pensar, finalmente pudesse ter os dois tesouros.

 

O sol vertical do meio-dia havia retirado as sombras das coisas. A Cidade Morta havia se animado com uma estranha alegria, semelhante ao silêncio quebrado pelo canto de um pássaro num cemitério. O tempo havia melhorado numa proporção inversa ao espírito de Dirk, turvado agora por uma nuvem que obscurecia seus pensamentos. Fátima não podia tirar os olhos daquele óleo inédito. Quando o menor dos Van Mander confirmou a seu irmão que o preparado havia ficado perfeito, Greg se dispôs à tarefa crucial: dar cor ao Oleum Pretiosum. Comparado com o trabalho que era a preparação da fórmula do verniz, o segundo passo era aparentemente simples. No entanto, havia o risco de se equivocar nas proporções ou de utilizar pigmentos deficientes, em cujo caso todo o trabalho teria sido em vão. O óleo obtido do azeite de nozes ou de linho tolerava bem a diluição de um pigmento imperfeito, mas a perfeita liquefação do Oleum não admitia o menor vício de nenhum de seus componentes. Greg, com a mesma naturalidade e precisão com que manipulava têmperas feitas com ovo, derramou uma pequena quantidade sobre a paleta. O delgado fio que caía do frasco apresentava a aparência de um arco-íris diminuto e vertical. Pegou no armário um preto de marfim que ele mesmo havia preparado queimando uma presa de elefante trazida do Oriente, comprovou sua consistência com as pontas do indicador e do polegar, separou uma quantidade no interior de um dedal e, finalmente, espalhou o pó sobre o verniz. O líquido se apoderou do pigmento, atraindo-o para si como se se tratasse de um organismo vivo. Nem era preciso misturar. O Oleum Pretiosum trabalhava, amalgamando-se ao marfim queimado como o faria uma medusa com o sangue de sua vítima. Em poucos minutos, ficou pronta uma verdadeira porção de nada em estado puro. Se, como sustentava Aristóteles, o preto era a ausência de cor, era isso o que havia acontecido na paleta: havia sido produzido uma espécie de buraco na matéria somente comparável à ideia impossível do nada. Aquela cor preta podia definir-se não por alguma de suas qualidades, mas exatamente pela ausência absoluta de qualquer característica. E dizer preto era, em si, uma abstração para denominar o inominável, já que, na verdade, se era possível ver algo naquele ponto da paleta, era o nada.

Fátima e Dirk assistiam atônitos à transformação da matéria em seu contrário. Mesmo que se pudesse tocar com um pincel, mesmo que parte de sua consistência fosse feita com a substância que compõe a presa de um elefante, aquela cor preta indescritível era a pura ausência. Não emitia nenhum reflexo nem se podia dizer que tivesse volume. Não se podia deduzir seu peso nem dizer que era etéreo. Nada. Simplesmente nada. É possível ter uma noção conceitual do infinito; é possível aceitar a razoável ideia dos gregos de que em uma reta existem infinitos pontos. Da mesmo maneira, diante do cotidiano conceito de ente é possível deduzir o seu contrário: o não-ente, ou seja, o nada. No entanto, ninguém se atreveria a afirmar que alguma vez viu o nada. Exceto Fátima e Dirk, que estavam presenciando como aquele nada se espalhava na superfície da paleta.

 

No princípio, foi o Oleum Pretiosum, e logo Greg fez as trevas que se abriam na face do abismo e o chamou de Preto.

O espírito de Greg se movia sobre a face do abismo. E Greg disse: seja Azul, e fez-se o Azul. E, sem vê-lo, soube que o Azul era bom.

E Greg separou a luz das trevas. E disse: faça-se o Amarelo. E fez-se o Amarelo.

E assim criou, também, o Vermelho.

E o Vermelho era bom.

Greg, outra vez dono e senhor de seu universo, fazia e desfazia segundo sua vontade e, cego como era, envolto em suas íntimas trevas, criava cores que sequer podia ver. Sentado em seu trono, a barba caindo sobre seu largo peito, com o indicador estendido, tocava isto ou aquilo, e tudo se transformava em cor. Como um Midas da luz, convertia os mais toscos minerais, as terras mais pisoteadas, os ossos queimados das bestas em cores nunca vistas, somente pelo contato com o mágico Oleum Pretiosum.

E Greg disse: que exista o Branco.

Derramou a última parte que estava no fundo do frasco sobre a paleta e agregou um fino pó do branco de chumbo. Então, ao se misturar com o verniz, que parecia milagroso, se produziu o indizível. Fátima e Dirk puderam comprovar a afirmação de Aristóteles de que o branco era a soma de todas as cores e de todas as sensações. Se o negro era a ausência pura, o branco era a soma total. À medida que o Oleum Pretiosum se apoderava do pó de chumbo, uma quantidade infinita de clarões de incontáveis tonalidades começou a surgir da mistura. Com os olhos alucinados, Dirk e Fátima viram como aquelas refulgências iam formando imagens concretas e ao mesmo tempo inapreensíveis. Estavam vendo o Todo. Estavam sendo testemunhas da História do Universo. Se o branco era a luz, se a luz se eternizava em seu rumo pelo Cosmos, aquele branco era a síntese de todas as imagens do mundo sobre a pequena superfície da paleta. Confirmando o testemunho do monge Giorgio Luigi di Borgo, que assegurava ter visto o mítico Aleph, da mesma forma, nesse branco que guardava a luz de todos os acontecimentos, Fátima e Dirk puderam ver o mesmo que o poeta de Borgo escrevera: “Vi o denso mar, o amanhecer e a tarde (...), vi um labirinto sujo (era Londres), vi intermináveis olhos imediatos olhando-se em mim como em um espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu. (...) vi cavalos de crina retorcida em redemoinhos, numa praia do mar Cáspio no amanhecer, vi a delicada ossatura de minha mão (...) senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetural, cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum homem viu: o inconcebível universo”.

 

Branco, negro, vermelho, azul, amarelo. Se assim podiam ser definidas as inusitadas cores que Greg havia preparado na paleta, tudo estava arrumado e pronto para que Dirk estendesse a primeira camada de pintura sobre o quadro. O pulso do menor dos Van Mander não parava de tremer na hora de misturar as cores segundo seu critério. Agora que não podia contar com nenhum auxílio além de seu próprio trabalho, uma vez que Greg já havia feito a sua parte, tinha a inexplicável impressão de que era a primeira vez que se confrontava com um quadro. Levantava a vista da paleta e não conseguia evitar a sensação de que a realidade não era nada mais que uma pobre falsificação feita de sombras comparada com as cores que descansavam sobre sua mão. Depois de três dias de trabalho, Greg estava exausto e, quando se retirou para descansar, deixou atrás de si uma ausência e um silêncio tão sólidos que pareciam tangíveis. Dirk, segurando um pincel vacilante entre os dedos, temia que, ao mesclar as cores, o Oleum Pretiosum se corrompesse. Mas o temor que governava suas mãos era o mesmo que havia se instalado em seu espírito; desviava os olhos de Fátima, e o inflamado monólogo que havia empreendido um momento antes parecia tê-lo deixado sem palavras. Esperava uma resposta. Poucas vezes na vida - talvez nunca - um homem se encontra com o objeto mais cobiçado em seus sonhos: para Dirk, ter na mão direita o óleo com o qual todo o pintor sonhou alguma vez significava chegar à mais alta ambição de sua existência. Além disso, o tão desejado Oleum Pretiosum se apresentava a ele para um retrato daquela que ocupava o centro de seu coração. Dirk pensava que esse milagre só podia ser obra do destino. E estava disposto a armar-se de paciência.

Sentada sobre a banqueta, Fátima permanecia com a cabeça baixa e em silêncio. Pegou a carta que seu marido havia enviado e a contemplou por um tempo, mas não a estava lendo. Nervosamente, apertava a carta entre os dedos, dobrava, desdobrava e voltava a dobrar como se estivesse tratando de decidir o futuro de seu marido na forma daquele papel. Dirk seguia atentamente os movimentos de Fátima e desejou atirar a carta ao fogo que começava a consumir lentamente a última lenha. A mulher suspirou como se quisesse romper o silêncio e voltou a deixar a carta no pequeno scriptorium, sobre o que pareciam ser outras cartas. Com a mesma displicência com que havia deixado a nota de Gilberto Guimarães, tomou da mesa uma das cartas. Se diria ter sido um ato involuntário, e Dirk nem sequer pareceu perceber. Aparentemente distraída, Fátima recorreu com os olhos aquela escritura incompreensível para ela - estava escrita em flamengo -, sem prestar a menor atenção. No entanto, quando chegou ao final e viu a assinatura, mudou de expressão. A rubrica pertencia a Hubert van der Hans. Dirk notou a expressão de Fátima, viu a carta que segurava entre os dedos e perguntou qual era o motivo da surpresa. Somente então a portuguesa se deu conta do atrevimento. Desculpou-se, ruborizada, e, como se estivesse se desfazendo de uma arma utilizada num crime, devolveu a carta à mesa. Dirk, vendo que havia sido um ato espontâneo e ingênuo, pôde apenas sorrir e desculpá-la. No entanto, voltou a perguntar o motivo do sobressalto. Fátima não conseguiu dissimular um certo incômodo, por mais que tentasse não dar importância ao assunto. Então Dirk deixou a paleta e tomou a carta para ver de qual delas se tratava. Sem deixar de sorrir, o menor dos irmãos quis saber se aquele nome que lhe havia mudado a expressão era conhecido para ela. A mulher encolheu os ombros. Depois de vacilar por um momento, Fátima reconheceu que lhe parecia vagamente familiar, embora não recordasse exatamente de onde nem por quê. O sorriso de Dirk se apagou, e, como se estivesse fazendo uma acusação, disse:

- Consta que é seu conhecido. Na verdade, ele me falou a seu respeito.

Fátima empalideceu, o coração deu uma volta em seu peito, e ela sentiu que o ateliê girava ao seu redor.

- Mas que frágil memória - agregou Dirk, desafiando-a.

Uma inexplicável expressão de pânico invadiu o rosto da mulher, que na confusão não conseguia pronunciar uma palavra.

Depois de manter uma enigmático silêncio, Dirk voltou ao cavalete, tomou a paleta e o pincel e, enquanto finalmente se decidia a juntar as cores, com um tom debochado, murmurou:

- Florença lhe diz alguma coisa?

Quanto mais crescia o mistério, mais Fátima parecia espantada, a ponto de que, se as pernas lhe obedecessem, teria saído correndo da sala. Mas ela só atinou a perguntar timidamente:

- Ele falou de mim?

Dirk assentiu com a cabeça e acrescentou:

- A senhora não imagina o quanto me contou a seu respeito.

Fátima sacudia a cabeça de um lado para o outro, como se quisesse encontrar uma explicação e, ao mesmo tempo, como se estivesse tentando encontrar as palavras mais adequadas para uma defesa.

- Conheço-a tanto... tanto... - insistiu Dirk.

O pintor falava oculto atrás do cavalete. Fátima, presa em um tremor irrefreável, olhou ao redor e, assegurando-se de que Dirk não a via, silenciosamente pegou de cima da lareira uma faca afiada que Greg usava para separar a casca da lenha.

Com o punho crispado, apertando o cabo da faca com uma força quase masculina, Fátima avançou lentamente até o cavalete.

 

A rua do Asno Cego era um deserto. O sol acabava de se pôr no meio das cúpulas gêmeas da Onze Lieve Vrouwekerk, a igreja de Nossa Senhora. Era a hora em que a luz banhava os telhados enegrecidos da cidade com uns reflexos dourados que, mesmo por poucos minutos, devolviam a Brugges parte de seu antigo esplendor. Era a hora em que deviam soar os sinos da basílica do Santo Sangue, condenados ao silêncio há muito tempo. Nessa mesma hora, uma grossa gota de sangue escorria, descendente, pela pele de Dirk van Mander, seguindo o curso das veias e dos traços do pescoço. Uma gota sanguínea que se bifurcava, buscando o caminho dos tendões inflamados, e tentava abrir passagem através dos selvagens pelos do peito do pintor. Fátima empunhava a faca na mão direita e via, no reflexo da lâmina, a marca vermelha cuja origem era a boca apertada de Dirk. Mais precisamente, a abertura de seus lábios. Era uma gota de um vermelho tão vivo que recordava a fatídica marca deixada pela morte. O mais jovem dos irmãos sentiu como caíam levemente as gotas sobre a pele e levou a mão ao pescoço. Então comprovou que do pincel que ainda segurava entre os dentes estavam caindo uma poucas gotas de pintura, desperdiçando o valioso Oleum Pretiosum. Como se aquele derramamento de vermelho arroxeado fosse uma espécie de vaticínio, Fátima seguia avançando sigilosamente até o cavalete. Enquanto limpava o rastro do óleo, e sem ter visto Fátima ainda, Dirk retomou a palavra para refrescar a memória da mulher. Do outro lado do quadro, alheio aos propósitos da portuguesa, recordou a ela que Hubert van der Hans, aquele que assinava a carta, era um jovem discípulo seu que, há muito tempo, estava cumprindo uma “missão” - foi esse termo que empregou - em Florença, mais precisamente no ateliê de Francesco Monterga. Foi ali que se conheceram, disse para Fátima. Hubert escrevera dizendo que uma bela mulher portuguesa havia chegado a Florença para ser retratada pelo mestre Monterga, que a dama havia permanecido poucos dias na cidade e, descontente com o progresso do retrato, havia decidido desistir dos serviços do velho pintor.

Quando ouviu essas palavras, Fátima, que já havia erguido o braço com o propósito de descê-lo sobre seu interlocutor, prontamente respirou aliviada, deixou a mão que segurava a faca cair languidamente e, tão silenciosamente como havia chegado até o cavalete, refez seus passos e voltou a sentar-se na banqueta.

- Agora eu lembro - disse Fátima, sorridente, e, tentando buscar a imagem em sua memória, acrescentou: - Um jovem muito loiro, alto e um pouco desengonçado, sim... - sussurrou, como se fosse para si mesma, fechando os olhos.

Dirk concordou, animado.

Com certo assombro, como se custasse a entender, Fátima disse a Dirk que havia pensado que Hubert era discípulo do mestre Monterga. Dirk riu com vontade. Picada pela curiosidade e pelo desconcerto, a mulher lhe perguntou se poderia saber qual era a “missão” de Hubert em Florença. Agora foi o pintor que se pôs de pé, caminhou até o quarto no qual seu irmão estava descansando, deu meia-volta, regressou ao ateliê e fechou a porta. Fátima se dispôs a escutar uma inesperada confidência, mas antes prometeu guardar o segredo.

Dirk van Mander falava sussurrando. Mostrou a paleta de tintas que segurava na mão direita à mulher e disse que desconhecia qual era a razão que seu irmão tinha para jurar nunca mais preparar o Oleum Pretiosum; há muitos anos, se perguntava por que seu irmão havia desistido da glória, das riquezas e de um lugar à direita de Felipe III. E não fora só a proteção da Casa de Borgonha que ele rejeitara. Havia recebido ofertas incalculáveis, riquezas e promessas de poder de outros poderosos senhores. Mesmo o Santo Padre havia feito chegar um mensageiro oferecendo-lhe a regência dos artistas do Vaticano em troca não da fórmula, mas da execução de um pequeno mural na Santa Sé pintado com o óleo milagroso. Mas Greg estava decidido em sua negativa. Dirk dizia a Fátima que o que nunca poderia perdoar em seu irmão era o miserável fato de negar sua confiança. Não conseguia entender como o irmão não havia sido capaz de confiar a ele, sangue de seu sangue, o segredo da fórmula. Queixou-se amargamente de que o irmão o havia condenado a ser seu guia na cegueira, seu braço executor.

Ele apenas sabia que a fórmula não era uma invenção de seu irmão, mas que ele a havia copiado de um certo manuscrito, provavelmente de um antigo livro do monge Eraclius, que foi grande pintor e mestre de Francesco Monterga. E Dirk tinha bons motivos para suspeitar que o manuscrito agora estava nas mãos do mestre florentino. Hubert van der Hans, o jovem que ela havia conhecido no ateliê de Florença, era seu último discípulo e o mais talentoso. Quis o azar que o pai do menino, um próspero comerciante, se visse obrigado a estabelecer-se em Florença com sua família. Foi ao inteirar-se dessa circunstância que lhe ocorreu a ideia: aproveitar a partida de Hubert para que este se apresentasse ao mestre Monterga e pedisse para ser aceito em seu ateliê como discípulo. Era uma jogada arriscada, já que existia uma antiga inimizade entre ele, Dirk, e o velho mestre florentino. Talvez Francesco Monterga se negasse a acolher em sua casa alguém que havia sido aprendiz de seu mais feroz inimigo. Embora, talvez, por causa dessa mesma rivalidade, decidisse tomar Hubert como um troféu arrebatado ao adversário. E assim foi.

Dirk confessou a Fátima que o jovem Hubert, com quem mantinha uma secreta e fluida correspondência, havia conseguido penetrar nas entranhas do inimigo. Dirk estava para continuar o seu relato, mas se deu conta de que estava falando mais do que devia. Na realidade, a inesperada confissão do menor dos Van Mander parecia esconder uma segunda intenção. Quem sabe, abrindo seu coração para Fátima, somente pretendesse abrandar um pouco o dela.

A mulher ficou calada, como se estivesse esperando a conclusão do novo solilóquio do pintor, e, diante do fechado silêncio, só conseguiu perguntar:

- Por que ir buscar tão longe, em Florença, um segredo que se esconde tão perto, nesta mesma casa?

Dirk balançou a cabeça e respondeu:

- Porque jurei a meu irmão jamais entrar em seus negros aposentos.

Fátima não podia acreditar estar ouvindo uma resposta tão simples e infantil. E pensou que ele mentia. Podia imaginar, sem equivocar-se, quantas vezes Dirk havia entrado secretamente no recinto de seu irmão; podia vê-lo mexendo aqui e ali, buscando uma e outra vez, sem sorte, o segredo que Greg guardava. Então não pôde evitar a réplica que se impunha:

- Por acaso Greg não acabou de romper seu próprio juramento ao voltar a preparar a fórmula?

Dirk suspirou profundamente e cobriu o rosto com as mãos. Então, Fátima foi ainda mais além:

- Por acaso não colaboraste com a falta de Greg ao aceitar executar com tuas próprias mãos a quebra do juramento?

Dirk vacilou um instante, buscou as palavras mais adequadas e finalmente disse:

- Se cometi um crime, foi o de pretender reunir, talvez para meu mal, em uma as duas coisas pelas quais se debate meu coração: a pintura mais desejada e a mulher que amo.

Antes que o Oleum Pretiosum começasse a endurecer-se sobre a paleta, Dirk regressou ao cavalete e se dispôs a concretizar no quadro o que acabava de confessar.

Ainda esperava uma resposta de Fátima.

 

                                       SIENA NATURAL

O retrato de Fátima estava quase terminado. Francesco Monterga afastou-se uns passos do cavalete e observou a pintura a distância. Estava intimamente satisfeito. Pensou na cara endurecida pela inveja com que ficaria seu inimigo, Dirk van Mander, se tivesse a oportunidade de ver o quadro concluído. Mas não chegou a imaginar a expressão desse rosto, já que, na realidade, o pintor florentino e o flamengo, por mais curioso que pudesse parecer, jamais se haviam visto. Sua longa rivalidade sempre havia sido mediada por uma série de correntes cujos elos, por um motivo ou outro, terminavam sendo os objetos em disputa. Assim havia sido o recente caso de Fátima e de Hubert. Francesco Monterga caminhava de um lado para outro no quarto considerando o retrato de todos os ângulos possíveis. Sem nenhuma modéstia, pensou: “Perfeito”. E não estava errado. De fato, talvez fosse uma de suas melhores obras. E a mais inútil. Não haveria de render uma só moeda. No entanto, poucas vezes sentiu-se tão reconfortado em seu espírito. Descobriu que o ressentimento era um incentivo muito mais poderoso que o mais alentador dos elogios. Havia pintado com o mais profundo dos ódios, com o mais amargo dos fracassos. E o resultado era assombrosamente belo. Assim como para fazer o mais delicioso dos vinhos era essencial o apodrecimento das uvas, assim como o repugnante verme produzia a mais apreciada seda, assim, com os elementos mais terríveis de seu espírito, o mestre Monterga havia conseguido a que era, quem sabe, sua obra mais excelsa. Qualquer entendido juraria que era uma pintura feita a óleo. No entanto, não havia nela uma só gota de óleo. Assim testemunhavam as cascas de ovos disseminadas aqui e ali. E as moscas. Era uma têmpera de uma textura perfeita. O quadro podia ser examinado com uma lupa e nem assim seria encontrado o rastro de uma pincelada. A superfície era tão limpa e parelha como a de um cristal ou de um remanso de água quieta. As cores eram tão brilhantes como as de Jan van Eyck, o rosto de Fátima parecia saído do pincel de Giotto, e os escorços e as perspectivas podiam ter sido executados pela matemática invenção de Brunelleschi ou Masaccio. Francesco Monterga encheu os pulmões com o ar feito de seu próprio orgulho e pensou que aquele pequeno quadro poderia ter um lugar no incerto inventário da posteridade. Então, envolto em seu avental manchado de gema de ovo, a cabeça coberta por um gorro gasto, tomou o quadro do cavalete, contemplou-o longamente, deu meia-volta e o atirou ao fogo. O rosto de Francesco Monterga, iluminado pelas chamas avivadas pela madeira, tinha a expressão serena de quem celebra um triunfo. Estava tratando de imaginar o rosto de Dirk van Mander descomposto pela inveja.

Quem também parecia estar festejando uma silenciosa vitória era Hubert van der Hans. Aproveitando o fechamento de seu mestre no ateliê, havia passado a maior parte do dia na biblioteca. Até que, concluídas por parte de ambos as respectivas tarefas realizadas às escondidas do outro, os dois se encontraram na escada. Não se dirigiram a palavra nem se olharam nos olhos, mas tanto um como o outro tinham o rosto iluminado por uma euforia íntima, por um grato cansaço. Antes de se perder para além do vão da porta, Hubert anunciou ao mestre que ia sair e lhe perguntou se necessitava algo do mercado. Francesco Monterga negou com a cabeça e seguiu seu caminho. Mas imediatamente foi assaltado por uma dúvida - um espinho duro, afiado como um mau presságio, se instalou em seu espírito. Apressado, desceu a escada e chegou ao outro lado da porta. Quando comprovou que seu discípulo, com passo alegre, se afastava a caminho do mercado, voltou a subir a escada tão rápido como sua idade permitia e seguiu até a biblioteca. A porta não estava chaveada. Entrou e foi direto até a caixa onde guardava o manuscrito. Colocou-o sobre a mesa e procurou as chaves do cadeado que trancava suas capas. Quis abrir, mas, por causa do nervosismo, as mãos tremiam a ponto de não acertar a pequena fechadura. Então, sem querer, puxou a argola e comprovou que o cadeado havia sido violado e que agora abria sem a necessidade de uma chave. Procurou rapidamente as páginas do antigo livro e depois, animado pela mesma frenética inércia, saiu da biblioteca rumo ao pequeno sótão próximo ao telhado. Ali estavam os pertences de Hubert. Quando se acostumou um pouco à escuridão do cubículo, procurou com a ponta dos dedos debaixo de uma das tábuas quebradas do piso, até que tocou em uma superfície de couro. Levantou a tábua frouxa e extraiu uma bolsa surrada. Em seu interior, havia um maço de cartas e um caderno. Aproximando as folhas da pequena janela, separou a carta de data mais recente e, com seu precário conhecimento de alemão e francês, deduziu com dificuldade o texto flamengo.

Francesco Monterga empalideceu de terror. Saiu do sótão e desceu a escada em busca de seu discípulo.

Temia que já fosse tarde.

 

E foi demasiado tarde.

A comissão ducal presidida pelo prior se apresentou na casa de Francesco Monterga. Giovanni Dinunzio, trêmulo e pálido, explicava que há dois dias não tinha notícias de seu colega Hubert nem de seu mestre. O prior, com o braço, afastou Giovanni, que permanecia de pé, imóvel no vão da porta, e ordenou que os guardas revistassem a casa. Um punhado de curiosos se amontoava na rua. Sem saber o que procuravam exatamente, os guardas abriam e fechavam caixas, revistavam armários, remexiam na infinidade de frascos, principalmente naqueles cujo conteúdo era vermelho, examinavam os quadros, as telas e separavam tudo aquilo que consideravam relevante. Subiam e desciam a escada, entravam na biblioteca e iam ao sótão. Giovanni, parado sob a soleira da porta, olhava por cima do ombro com olhos incrédulos a gente que se reunia na porta da casa e, dentro, o pequeno exército que acabava de invadir o ateliê. Se o desaparecimento do mestre e de seu colega o haviam mergulhado em um medo paralisante, a súbita e violenta irrupção da guarda ducal o encheu de pânico. De repente, tinha diante de si um grupo de homens que não deixavam de interrogá-lo: com rosto ameaçador e gestos incesssantes, com gritos e empurrões, sacudindo-o pelos braços, exigiam uma verdade que ele jurava não conhecer. Nada indicava que o pintor e seu discípulo tivessem se ausentado voluntariamente. Todas as roupas estavam na casa, e não havia indício nem notícias de uma possível viagem. De nada pareciam servir as vacilantes explicações de Giovanni, que, com um rosto banhado em pranto, recordava ao prior que ele mesmo lhe havia avisado do desaparecimento.

Nesse mesmo momento, um cavaleiro que chegava a galope obrigou o grupo de curiosos que se amontoava na rua a se dispersar caoticamente. O cavalo, banhado em um suor brilhoso que denunciava uma viagem longa e urgente, parou diante da porta da casa. Com um salto ágil e decidido, o cavaleiro, que vestia as mesmas roupas que os membros da guarda ducal, desmontou e, sem parar, correu e subiu os degraus do pequeno átrio da casa. O prior saiu a seu encontro e ali, na entrada, recebeu a trágica e previsível notícia.

Dois guardas pegaram Giovanni Dinunzio pelos braços e o conduziram até uma das carruagens.

Seguindo o cavaleiro que acabara de chegar, em formação marcial, a caravana partiu rumo à Porta Romana e transpôs a muralha fortificada para fora da cidade. Giovanni Dinunzio, com as mãos presas por uma corda que enlaçava seu pescoço, de maneira que qualquer tentativa de usar os braços significaria seu próprio enforcamento, rompeu em um choro infantil.

 

Os habitantes da vila pertencente ao Castelo Corsini pareciam condenados a não ter paz. E nem o atribulado prior Severo Setimio, que teve que convencer o duque de que ele não tinha nada a ver com a brutal execução do pintor espanhol; ao contrário, argumentou que fizera o possível para conter a fúria da turba. Como se a morte fosse pouco, agora os aldeães tinham que lidar com o peso de suas próprias consciências. Alguns dias depois da execução sumária de Juan Díaz de Zorrilla, quando a sede de vingança foi saciada e, assim, acalmaram-se um pouco os ânimos, um novo e macabro fato teve lugar no bosque do povoado. O remorso pela cruel injustiça se transformou em um medo supersticioso. Da mesma forma que os corpos de Pietro della Chiesa e do jovem camponês, outro corpo nu, cheio de hematomas, degolado e com o rosto desfigurado foi encontrado muito perto do fatídico monte de lenha.

Os pais do rapaz desaparecido mantinham a dolorosa esperança de reencontrar-se com seu filho, mesmo que fosse para lhe dar uma sepultura cristã. Correram desesperados ao lugar fatídico. No entanto, o morto era outro. A guarda ducal conduziu Giovanni Dinunzio até a árvore em cuja sombra estava o cadáver mutilado. Não teve dúvidas; aquele corpo, longo, estendido, desprovido de cor e cuja cabeleira, de tão loira, parecia albina, pertencia a seu colega, Hubert van der Hans. Ao medo e ao desconcerto de Giovanni, somou-se o horror. À diferença dos assassinatos anteriores, este parecia ter sido feito com uma certa pressa. Não só porque desta vez o assassino não havia se dado o trabalho de esconder o corpo, mas porque a crueldade com que havia arrancado a pele do rosto denunciava a brutal estupidez, produto da urgência. E agora, outra vez, chegava o suplício para Giovanni, amarrado como um cordeiro, ajoelhado aos pés do prior. Um dos guardas lhe perguntou o que havia feito com Francesco Monterga e com o jovem cujo cadáver permanecia desaparecido. Diante do silêncio do aprendiz, o homem puxava a corda, conseguindo ao mesmo tempo oprimir a garganta e levantar os punhos, amarrados às costas, até a altura das omoplatas. O prior Severo Setimio dirigia o tormento, e em seus olhos se revelava a fúria por sua própria imperícia, desviada agora ao expiatório prisioneiro. Era uma dor indescritível cuja fonte parecia estar nos globos oculares, como se fossem sair de suas órbitas e rebentar como uvas. Subia dos olhos até a testa, como se uma coroa de espinhos fosse atravessar o crânio, não da pele até os ossos, mas do interior dos ossos para fora. Ao mesmo tempo, a brutal pressão sobre os punhos lhe produzia uma queimação nas pontas dos dedos a ponto de deixar de senti-los, como se os tivessem cortado. O movimento ascendente dos braços para além do que permitiam os ossos e articulações fazia soar os ossos com um som sofrido, semelhante ao que fazem os galhos quando quebram. Giovanni Dinunzio, próximo da asfixia, tentava falar, mas era em vão. As veias do pescoço a ponto de estalar, arroxeado como uma cereja, movia a boca como se fosse um peixe apanhado numa rede, sem poder pronunciar uma palavra sequer. Não considerou a cena paradoxal, de fato sequer, em tais circunstâncias, gozava do dom da razão, mas, se fosse testemunha da cena e não o protagonista, Giovanni teria perguntado como alguém seria capaz de responder uma pergunta ao mesmo tempo que lhe impediam de falar. E nesse paradoxo residia a eficácia do tormento. O que ele mais desejava era que lhe deixassem dizer algo. No momento em que o pássaro da morte descia até tocar com seus esporões o desfalecido coração de Giovanni, seu verdugo diminuía a pressão da corda e permitia que tomasse um pouco de ar. Quando via que o jovem, depois de um acesso de tosse e espasmos, se dispunha a falar, então, como num pesadelo, voltava a puxar a corda e começava, outra vez, o tormento. O prior repetia a pergunta ao mesmo tempo em que o verdugo fechava a possibilidade de resposta. Diferentemente da execução de Il Castigliano, desta vez os habitantes da vila permaneciam em silêncio e a uma distância equivalente a seus próprios medos. Não se escutavam pedidos de vingança aos gritos nem pragas vociferadas. Ao contrário, algumas mulheres, vendo o jovem afogar-se em seu próprio silêncio, não podiam evitar um gesto de piedade. Já eram demasiadas mortes. E demasiada injustiça. O fantasma do pintor espanhol equivocadamente justiçado, Juan Díaz de Zorrilla, sobrevoava a cena do tormento e cravava seus olhos injustamente cegados na remordida consciência de cada um dos presentes.

O pai do rapaz desaparecido, o mesmo que havia pedido a morte de Il Castigliano, avançou três passos e, apoiado sobre o tridente como se fosse um cajado, suplicou ao prior Severo Setimio que deixasse o jovem falar. O verdugo olhou indignado, reprovando os que quisessem dizer a ele como fazer seu trabalho, e descarregou sua fúria apertando ainda mais o nó da forca. Vendo que, agora sim, Giovanni estava morrendo, o prior ordenou que o soltassem. O guarda ducal suspirou contrariado e, com um empurrão brutal, o deixou cair, fazendo com que a cara do jovem afundase no barro. O camponês o virou com o cabo do tridente e, quando comprovou que ainda estava vivo, perguntou o que havia feito com seu mestre. Giovanni encheu os pulmões como se fosse a primeira vez que respirava e se dispôs a falar.

Nunca desejou tanto falar.

 

A última vez que Giovanni Dinunzio viu Francesco Monterga foi na tarde em que presenciou o mestre sair correndo atrás de Hubert van der Hans. Mas depois de uma ou duas horas, antes que o sol caísse, escutou a porta abrir e percebeu os passos de Francesco subindo a escada. Giovanni permanecia no ateliê preparando um quadro e, dali mesmo, ouviu os passos, primeiro na biblioteca e depois sobre sua cabeça, no sótão. Não chegou a vê-lo, mas acreditou ouvir que passava pela cozinha e voltava a descer a escada até a rua. Assegurou ter escutado a porta se fechando. Nunca mais voltou a saber dele.

O que Giovanni nunca soube foi sobre a descoberta que Francesco Monterga fizera no sótão. Depois do embaraçoso episódio que protagonizara com seu mestre na biblioteca, aquele que acidentalmente Pietro della Chiesa presenciara antes de sua morte, Giovanni ficou afundado em uma vergonha da qual não conseguiu se libertar. De fato, a partir daquele dia, prometeu não entrar jamais naquele recinto e evitar qualquer situação que o enfrentasse, a sós, com Francesco Monterga. No entanto, sua ingovernável compulsão pelos narcotizantes eflúvios do óleo de papoulas o obrigava a ceder ao repulsivo apetite de seu mestre. Nessas ocasiões, Francesco Monterga, depois de submetê-lo a prolongadas abstinências que o deixavam à beira do desespero e imerso em um mundo tenebroso feito de tremores, suores frios, insônias intermináveis e pensamentos amargos, lhe prometia o desejado elixir em troca, é claro, daqueles favores que Pietro havia presenciado. Giovanni sentia uma profunda repugnância por seu velho mestre. E muitas vezes quis vê-lo morto. Mas, para sua própria desgraça, não podia deixar de depender de sua nefasta pessoa, ou melhor, daquilo que ele lhe dava. Giovanni chegara a sentir um sincero afeto por seu colega, Pietro della Chiesa. E não conseguia compreender como aquele rapaz frágil, sensível e talentoso podia guardar um sentimento de carinho filial para com esse ancião desprezível. Não entendia como Pietro não via a abominável miséria que o velho mestre tinha no coração. Teve que comprovar com os próprios olhos no dia em que os surpreendeu na biblioteca. Deus sabe o quanto Giovanni lamentava a morte de Pietro. E quando via como Francesco Monterga derramava suas histriônicas lágrimas de desconsolo diante dos olhos de quem quisesse ver, não podia entender como cabia tanta hipocrisia num só corpo. Ninguém mais interessado que Francesco Monterga em que aquele episódio se mantivesse em silêncio, ainda mais quando os crescentes rumores sobre suas inclinações começavam a ser ouvidos. Giovanni não tinha dúvidas de que Francesco Monterga havia assassinado Pietro della Chiesa. Quis denunciá-lo; no entanto, seu mestre o tinha prisioneiro de sua própria e irrefreável necessidade. De modo que decidiu permanecer em um covarde silêncio. Não queria inteirar-se de nada mais. Resolveu fechar os olhos, tapar os ouvidos e cerrar a boca. Aceitava seu triste destino como o único consolo que significava pintar. Se algo ainda o mantinha preso à borda do precipício era a paixão pela pintura.

Por Hubert van der Hans, não sentia nada além de uma profunda indiferença. Recebia as ofensas do flamengo com estoica impassibilidade. As veladas alusões à sua origem provinciana, à frágil linhagem de sua família e à sua árvore genealógica não lhe incomodavam. Não tinha nada de que se envergonhar. Mas não podia evitar uma interna rebelião cada vez que via os modos agressivos com que se dirigia a Pietro della Chiesa. Escutava como maldosa e impunemente o chamava de la bambina, aproveitando-se da frágil constituição e da indefesa estatura de Pietro. Quantas vezes Giovanni esteve a ponto de pegar Hubert pelo pescoço e dizer que tivesse a valentia de enfrentar alguém do seu tamanho. Mas sabia que a humilhação seria ainda maior para o pequeno Pietro. Por outra parte, Giovanni não ignorava a suspeita curiosidade de Hubert pelos recônditos meandros da biblioteca. Via como ia e vinha escondido de Francesco Monterga e como fugia para o recinto cada vez que o mestre se distraía. Mas tudo isso era indiferente para ele. Nada lhe importava, nem a miserável existência de Francesco Monterga, nem as obscuras intrigas de Hubert. A única coisa que Giovanni queria era pintar e que não lhe faltasse aquilo de que não podia prescindir. E tentava relevar os amargos favores que lhe exigia o mestre por conta de sua infinita bondade.

A isso se limitava sua existência.

No dia em que Francesco Monterga e Hubert van der Hans desapareceram, soube que teria problemas. Sabia que faltava um culpado e que o culpado estava no ateliê. De modo que, sendo ele o único sobrevivente da inexplicável tragédia, não restava outra alternativa. Quando decidiu avisar a comissão ducal, tinha a certeza de estar cavando a cova em que seria sepultado.

 

O que Giovanni ignorava era o motivo que havia levado Francesco Monterga a correr atrás de Hubert van der Hans. Ele sabia que a curiosidade que Hubert tinha pela biblioteca era proporcional à que o mestre tinha pelos pertences de Hubert. Com o mesmo furtivo empenho com que o flamengo remexia nos papéis, o velho florentino revistava os sempre ordenados pertences de seu discípulo.

O que Giovanni nunca soube foi que ambos tinham suas razões. De fato, quando o mestre Monterga decidiu aceitar Hubert van der Hans como aprendiz, foi por um duplo motivo. O primeiro tinha o doce sabor da vitória sobre seu inimigo. Não pôde abrir mão da enorme felicidade de arrebatar a Dirk van Mander seu único aluno. O segundo motivo podia medir-se em cifras sonantes: o pai de Hubert lhe oferecia um pagamento anual muito superior ao magro dinheiro que recebia das mãos de seu benfeitor, o duque de Volterra. No entanto, para sua completa decepção, não demorou a descobrir que o destino não podia ser tão generoso com a sua desafortunada pessoa. Levou pouco tempo para compreender que, na realidade, seu novo discípulo era um oculto emissário de seu inimigo, Dirk van Mander. Na primeira vez que o viu circulando pelas proximidades da biblioteca, percebeu qual era a razão de sua chegada àquela casa: o velho manuscrito que herdara de seu mestre Cosimo, o tratado do monge Eraclius, seu bem guardado Diversarum Artium Schedula.

Naquele dia, Francesco Monterga se maldisse por sua infinita bondade e prometeu vingar sua ingenuidade na figura albina do jovem flamengo. Perguntava-se como podia ter sido tão estúpido diante de uma manobra tão evidente. Cegado pela fúria, esteve a ponto de expulsar a pontapés o impostor de seu ateliê, mas, num súbito momento de sensatez, percebeu que, talvez, fosse melhor deixar a farsa seguir seu curso e esperar que a jogada feita pelo inimigo rendesse algum fruto para, chegado o momento, usá-la em seu próprio proveito. Além do que, pensou, em tantos anos de incontáveis tentativas, ele não havia conseguido um só resultado positivo. Havia fracassado, uma vez depois da outra, em suas tentativas de decifrar o enigma oculto no manuscrito. Agora deixaria o trabalho nas mãos de seu inimigo. Quem sabe tivesse melhor sorte. A partir daquele dia, decidiu facilitar um pouco a tarefa, fazendo vista grossa cada vez que Hubert entrava na biblioteca. Sabia que o jovem flamengo era inteligente e trabalhava com vigor. Se aplicava na resolução do hieróglifo o mesmo esforço obstinado que demonstrava na aprendizagem dos escorços e das perspectivas, talvez houvesse esperanças. Para facilitar as coisas, Hubert fazia escrupulosas anotações, apontamentos e diagramas. Não foi difícil para Francesco Monterga descobrir onde Hubert escondia os progressos de seu trabalho. Toda vez que podia, o mestre ia até o sótão, levantava a tábua frouxa do piso e revisava seus avanços. A princípio, comprovou que o flamengo ficava à deriva em um mar de confusão e terminava naufragando na pequena ilha do mais absoluto fracasso. No entanto, via como se aventurava em hipóteses francamente audazes que nunca lhe haviam ocorrido e que, por certo, não estavam desprovidas de alguma lógica. O mestre não perdia nada ao dar tempo ao jovem; além disso, Francesco Monterga seguia recebendo o generoso pagamento do pai do discípulo. Era uma situação inédita e impossível de ser melhorada: tinha alguém que trabalhava por ele e, ainda por cima, em vez de pagar, recebia por isso. O que mais poderia pedir?

Além das cuidadosas anotações, Hubert, uma vez por mês, escrevia uma carta para seu verdadeiro mestre, Dirk van Mander. E de cada uma guardava uma cópia. Nessas missivas, relatava, ponto por ponto, o estado da pesquisa e alguns pormenores de métodos de preparação de quadros, de utilização de pigmentos e do uso dos óleos que o mestre florentino empregava. O mestre Monterga não cabia em si de orgulho quando lia frases tais como: “As paisagens desdobradas a partir de dois, três e até quatro pontos de vista são um achado maravilhoso. Nunca havia vista nada semelhante”. O uso das têmperas com ovo ocupava um lugar destacado nas cartas do jovem espião. Francesco Monterga também não podia evitar uma íntima vaidade cada vez que lia:

“São um verdadeiro prodígio as têmperas que consegue, têm brilho e a consistência do mais puro dos óleos”.

Mas, no que dizia respeito à resolução do enigma da cor em estado puro, tudo ficava limitado a uma vaga promessa:

“Não posso afirmar ter alcançado grandes avanços, mas desconfio que, em pouco tempo, poderemos ver alguns resultados”.

E não eram promessas vãs. Em menos tempo do que se esperava, surpreendido por sua boa estrela, Hubert van der Hans chegou a elucidar, finalmente, o enigma.

Ele mesmo não saía de seu asssombro; a solução sempre havia estado tão perto que, por causa dessa proximidade, ninguém tinha conseguido vê-la.

 

Naquela tarde em que Giovanni Dinunzio viu Francesco Monterga e Hubert van der Hans pela última vez, o mestre florentino descobrira que, muito antes do esperado, seu discípulo de Flandres havia resolvido o enigma do tratado. E não foi somente isso. Quando desdobrou a cópia da última carta de Hubert, Monterga compreendeu que o jovem flamengo havia saído, com a desculpa de ir ao mercado, a fim de entregá-la ao Ufficio Postale. Na realidade, a carta já devia estar seguindo viagem para Brugges. Francesco Monterga leu com voracidade e urgência:

“Os esforços não foram em vão. Creio ter encontrado, por fim, a chave do manuscrito”.

O mestre florentino, querendo evitar as frases de formalidades e os preâmbulos, lia caótica e avidamente; mas quanto mais tempo queria ganhar, tanto mais se enredava num idioma que não era o seu. Então voltava ao princípio. E assim, com as mãos trêmulas, na pouca luz que complicava tudo, ia e vinha pela superfície do texto sem poder penetrar em seu sentido. Tentou acalmar-se, tomou um bocado de ar e começou novamente.

 

A meu caro mestre, Dirk van Mander:

Tenho a honra de informar que o trabalho parece ter dado seus frutos. Depois de errar sem rumo e temer jamais encontrar o norte neste labirinto, me atrevo a afirmar que a sorte me mostrou sua face sorridente. Os esforços não foram em vão. Creio ter encontrado, por fim, a chave do manuscrito. Não vos apresseis em celebrar minha genialidade, pois a obra foi feita mais pelo acaso do que por minha modesta perspicácia. E, a bem da verdade, devo confessar que foi minha torpe condição que me levou a resolver o hieróglifo que, por momentos, parecia não ter solução.

Reproduzo aqui a página do manuscrito.

 

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Como podeis ver, o texto corresponde a um fragmento do Tratado da Ordem, do grande Santo Agostinho. Seguramente, vós deveis estar perguntando que relação pode haver entre El Africano (N.R.: Santo Agostinho, nascido na Numídia, África.) e um tratado de pintura. Também eu fiz essa pergunta. E, como bem sabeis por meus informes, por mais exegeses que eu tenha tentado aplicar às palavras, não encontrei nenhum resultado. Deveis ter percebido também as séries numéricas que se intercalam no texto e que, obviamente, não se relacionam com ele. Não imaginais a quantidade de cálculos que ensaiei sem chegar a estabelecer uma só cifra que parecesse indicar alguma coisa.

Uma noite, exausto pela infrutífera busca, com os olhos cansados diante da exigência, quando acreditava ter perdido toda possibilidade de chegar a algum porto, no meio daquela escuridão pensei ter visto, de repente, a luz. Sabeis que meus olhos não são bons, que vejo pouco se falta luz e pior ainda na sombra; que mal distingo um objeto se está muito longe e menos ainda se está muito perto. Somai à minha natural condição quase cega a fadiga física e mental. Chegou um momento em que não podia distinguir as letras, não via mais que formas nubladas, e o texto se converteu em um monte de linhas e colunas sem significado legível. Foi precisamente nesse momento que, na planura confusa do papel, surgiu uma forma reveladora. Foi como se de repente, em virtude da desordem imposta a meus olhos, se separassem as letras e os números como figuras independentes. Como se o próprio título da obra de Santo Agostinho, Ordem, fosse um apelo à harmonia, separei aquelas duas entidades de natureza diferente: cifras e palavras, como formas puras e não por seus significados. Num papel, reproduzi o desenho que formavam os números, suprimindo o texto do Grande Agostinho. O resultado foi surpreendente. Vos apresento agora o que se formou no papel:

 

 

                   654238                               652988        

                     78935                                 18635            

                 35825364                            35825364      

             25363698789103               85363698788601  

         258791420369422 267     248532142036942212  

777631 135641454 13231156565623202556354323448912

2                                           463                                          2

3                                           589                                             3

4                                           487                                             4

5                                          697                                             5

6                                      354                                             6

7                                     369                                             7

8                                    523                                             8

9                                           654                                             9

8                                      357                                             8  

1                                     513                                             7    

2                                      254                                             2

3                                      781                                           3

4                                      323                                             4

5                                     966                                             5      

6                                     653                                             6

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                           654238                               652988        

                       78935                                 18635            

                   35825364                           35825364      

               25363698789103             85363698788601  

         258791420369422 267     248532142036942212  

777631 135641454 13231156565623202556354323448912

2                                           463                                           2

3                                           589                                             3

4                                           487                                            4

5                                           697                                             5

6                                      354                                             6

7                                     369                                            7

8                                     523                                             8

9                                      654                                             9

8                                      357                                            8  

1                                     513                                             7    

2                                      254                                             2

3                                      781                                             3

4                                      323                                             4

5                                     966                                             5      

6                                     653                                             6

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Como já haveis descoberto, é uma forma geométrica muito particular. Nem bem se fez presente e recordei, de imediato, que figura era aquela. O manuscrito do monge Eraclius, como bem o sabeis, esteve durante anos nas mãos de Cosimo da Verona, mestre de Francesco Monterga, a quem deixou seu mais valioso tesouro antes de morrer na prisão. Pois bem, vos afirmo que o segredo da cor em estado puro é um acréscimo do grande Cosimo ao manuscrito original.

Existe na capela do hospital de São Egídio, bem perto daqui, um pequeno painel de Cosimo da Verona. Trata-se de um entalhe tão estranho quanto formoso que se conhece como O triunfo da luz. Várias vezes me detive a vê-lo; sua contemplação sempre exerceu em meu espírito um efeito tão inquietante quanto agradável. É uma série de quatro imagens nas quais se destaca a luminosa presença do Menino e da Virgem sobre as outras três, que são sombrias e tétricas representações do mal. Ao menos é o que pareciam ser. Pois bem, a forma que se origina separando as letras dos números coincide, exatamente, com o desenho do painel de Cosimo. Até me dei ao trabalho de vos reproduzir aqui o entalhe da capela de São Egídio:

 

Vos surpreendereis ao ver o que surge do painel. Vereis quão extraordinariamente familiares resultarão os significados que dali brotarão. A primeira figura mostra a Virgem e o Menino montados sobre o burrico de Natal. Se vos fixais nos detalhes, vereis que o Menino não se agarra ao colo da mãe ou às crinas do animal, mas abraça a cara deste. Imagino que a esta altura já suspeitais o significado. E se isso fosse pouco, na legenda que aparece na base se pode ler claramente Via Crucis. Além da estranheza que a legenda produz em relação à figura, já que não combina com ela, a palavra “Via” se destaca mais do que “Crucis”. E já tereis adivinhado o significado que aparece de forma transparente: “Via” é “Rua”; o burrico com os olhos cobertos é o Asno Cego, ou seja, a rua do Asno Cego. A mesma por onde passa a ponte sobre a qual está vosso ateliê. Se ainda existisse alguma dúvida acerca de que se trata de uma indicação de lugar, a segunda imagem não dá lugar a equívocos. A representação presidida pelo diabo, em torno do qual um grupo de mulheres parece estar oficiando uma obscura cerimônia, representa claramente um sabá. Se observais, na parte superior aparece o escudo do reino de Castela. E em castelhano Brugges significa Bruxas. De modo que até aqui o painel nos diz que existe algo na cidade de Brugges, mais precisamente na rua do Asno Cego. Podeis imaginar minha surpresa: chegar até Florença para descobrir que o círculo se fecha no lugar de partida. A terceira representação, o quadro do homem cavando uma fossa vazia na profundeza da terra, em direção ao reino de Lúcifer, parece ser, em primeira instância, outra indicação de lugar. A figura da Parca que sobrevoa a cena vos será familiar: vos recordareis que essa mesma figura se encontra entalhada em uma das vigas dos aposentos privados de vosso irmão, exatamente a viga central que sustenta o telhado. Ali deve estar a chave. Talvez se trate de um mecanismo secreto para abrir uma porta que, tal como sugere o entalhe, conduza a um porão. Por último, o quarto quadro aparenta representar uma visão dos infernos: pecadores torturados afundando no pestilento rio Caronte. No entanto, as nuvens que aparecem na parte superior indicam que existe um firmamento. E, se há céu, então não poderia ser o inferno. Se olhardes com atenção, vereis que a figura principal desse quadro tem as órbitas dos olhos vazias; perdeu a vista. Neste momento é que nos perguntamos por aquele objeto luminoso, aquela esfera incandescente que, com maior ou menor preponderância, aparece nas quatro cenas. Não é difícil deduzir que se trata do objeto em questão, a cor em estado puro. E a esfera parece ser o que causou a cegueira do pecador. A mensagem parece conter uma advertência: para aquele que olha o que está proibido, a cegueira será seu castigo. E, outra vez, tudo se torna familiar. Vosso irmão Greg, aquele que parece ser o dono do segredo, aquele que, conhecendo o Secretus Coloris in Status Purus, é o único capaz de fazer o Oleum Pretiosum, ficou cego quando estava preparando a fórmula. Não pude evitar que um arrepio corresse por minhas costas quando lembrei que também Cosimo da Verona morreu cego.

A sentença que surge do painel parece irrevogável: quem tentar desenterrar o segredo da cor encontrará a morte da vista, isto é, a cegueira, segundo se confirma outra vez pela representação da Parca, em cuja foice leva os olhos cortados ao pecador.

Vos digo mais uma vez: aquilo que me mandastes buscar em Florença está em Brugges, no subsolo da casa da rua do Asno Cego, exatamente debaixo de vossos pés. Não quero que a tragédia esteja convosco.

Mas ainda há algo mais que vos devo informar.

 

Francesco Monterga respirou profundamente e prosseguiu com a leitura da carta. O mestre florentino sentiu que o mundo desmoronava debaixo de seus pés. A primeira parte da carta era a revelação daquilo que nunca havia podido ver por estar, precisamente, em frente ao seu nariz, e compreendeu que o momento mais esperado de sua existência havia chegado tarde demais. Aquele instante de glória com que tinha sonhado durante a maior parte de sua vida havia escapado por poucos minutos. Mas, se o que havia lido até esse momento não o tirava de seu assombro, as linhas que seguiam o encheram de pânico. Quem sabe ainda houvesse tempo, pensou.

Foi então que correu escada abaixo com a esperança de encontrar Hubert antes que este enviasse a carta.

 

Em meio às pessoas do mercado, ele encontrou Hubert. Mas era tarde demais. Sendo assim, se Francesco Monterga havia perdido a corrida contra o relógio nas curtas ruas que o separavam do Ufficio Postale, ainda podia chegar a Brugges antes da carta. Só que ainda havia um trabalho pela frente. E o fez. Com pressa e certo descuido. Mas o fez.

A viagem foi longa e desgastante. Com a mesma perseverante vontade que governa as bússolas, Francesco Monterga tomou o caminho rumo ao Norte. Sempre para o Norte. A pé, em lombo de mula, a cavalo, por água e por terra, subindo rios e montanhas, seguindo a rota tortuosa e escarpada dos Alpes, com o férreo e obstinado empenho que move os salmões contra a corrente, o mestre florentino se propôs a chegar a Brugges antes da carta. De Florença chegou a Bolonha e de Bolonha a Verona, onde se encontrou com o muro dos Alpes. Quando alcançou o vale do Adige, chegou até Innsbruck. Em Estrasburgo, alcançou as desejadas margens do Reno. A bordo de um paquete lento e barulhento que parecia sempre a ponto de encalhar, uma barcaça frágil abarrotada de almas que fugiam da lei ou da guerra, da fome ou da injustiça ou simplesmente do tédio, Francesco Monterga avançava rumo ao Norte. Sempre para o Norte. Se a carta seguia a rota marítima que unia o colar de pérolas que se iniciava passando por Gênova e por Marselha, por Barcelona, Cartagena e dali, pela estreita porta de Gibraltar, entrava no Atlântico; se a nota iria acariciar a borda amável de Portugal, dobrar a esquina de La Coruña e, rumo ao Norte, alcançar a Normandia e cruzar o canal da Mancha para por fim chegar aos Países Baixos, Francesco Monterga ganhava terreno através dos vales interiores, das montanhas e dos rios, sempre em linha reta. Sempre para o Norte. Acompanhado por aqueles que falavam o idioma do silêncio ou o das armas, se contagiou pela dor e pela desesperança, pela febre e pela épica, se curou e voltou a ficar enfermo. Contraiu febres de todas as cores conhecidas e também das outras. Teve que defender sua honra a ponta de faca em companhia de ladrões e desterrados. E descobriu que não era nem mais, nem menos que eles. Foi ferido, e também ele afundou o metal na carne. E, pela primeira vez, não se sentiu um covarde. Pela primeira vez, matou com honra, dando a punhalada franca, cara a cara com seu adversário. Pela primeira vez, não matava à traição e de surpresa. Pela primeira vez, não preparava o golpe astucioso contra a inocência de um jovem indefeso. Pela primeira vez, não tinha que ocultar a marca de sua autoria, nem desfigurar o rosto, nem derramar lágrimas de dor simulada.

Assim, Francesco Monterga chegou por fim a Brugges, limpando com sangue o sangue que havia em suas mãos.

 

                         COLORIS IN STATUS PURUS

O retrato de Fátima estava concluído. Era possível dizer que a pintura estava animada pelo hálito da vida. Tinha a mesma luminosa vitalidade que a portuguesa irradiava. A mesma obscuridade que se espírito escondia. Nesse dia, expirava o prazo estipulado por Gilberto Guimarães. E nesse dia terminava, também, o tempo para a resposta que Dirk esperava. Ainda estavam em tempo de fugir juntos. Fátima, no entanto, não podia prestar atenção em outra coisa que não fosse seu próprio retrato. Contemplava a si própria na superfície do quadro como se desejasse ser aquela mulher e não a que era. Dirk, de pé junto à janela, olhando sem ver a Cidade Morta desde a pouca altura da pequena ponte da rua do Asno Cego, implorava em silêncio que ela pronunciasse uma resposta antes que a tarde caísse. Mais cedo do que esperava, escutou os cascos dos cavalos aproximando-se. Dirk viu, derrotado, como se aproximava a carruagem que deveria conduzir Fátima ao porto de Ostende. No entanto, para avivar as brasas de suas últimas esperanças, o menor dos Van Mander descobriu que o homem que agora se aproximava de sua porta não era o cocheiro, mas um mensageiro. Com passo lento, Dirk saiu ao seu encontro. A mulher, desde o alto, viu que uma carta lhe foi entregue. O pintor voltou a entrar no ateliê tamborilando o rolo lacrado sobre a palma de sua mão. Fátima não demorou em compreender quem era o remetente. Sem demasiada impaciência, Dirk se dispôs a quebrar o lacre. Então Fátima rompeu o silêncio. Aproximando-se do pintor, ao mesmo tempo em que lhe estendia a mão, confessou que não sabia se teria a valentia suficiente para abandonar tudo, deixar seu esposo e a casa de Lisboa. Dirk se comoveu, e de repente sua cara ficou iluminada. Fátima buscava suas mãos. O menor dos Van Mander deixou a carta sobre a mesa e apertou a mulher num abraço ao mesmo tempo prolongado e contido. Chegava a hora. Tinham que pensar com clareza e urgência. O modo como Fátima havia se entregado a seus braços, relaxada e dócil, como se estivesse se libertando de uma opressão tão antiga como dolorosa, era a resposta que Dirk estava esperando. O pintor poderia permanecer assim por toda a eternidade. Mas agora era preciso ser rápido. Separou-a lentamente de seu peito e, sem soltar suas mãos, lhe disse que ia preparar tudo para a fuga. Falou como se não estivesse se referindo aos próximos minutos, mas ao resto de sua vida. Com a voz quebrada pela emoção, sussurrou que agora mesmo iria preparar os cavalos e todo o necessário para a viagem e que antes de a tarde cair estaria tudo pronto para a partida. Voltou a abraçá-la e, então sim, cruzou a porta rumo à rua.

Do alto da janela, a mulher viu como o pintor se afastava rua abaixo. Quando o perdeu de vista, virou-se e, presa a uma urgência inadiável, correu até onde estava a carta, tomou-a entre as mãos e, com o pulso inquieto, rompeu o lacre.

Uma pelo longo mas sereno caminho dos mares, e o outro pela curta mas tortuosa rota interior, ambos, a carta e Francesco Monterga, haviam chegado a Brugges ao mesmo tempo.

Fátima desdobrou o rolo e viu diante de seus olhos, claro e transparente, o mapa do tesouro. O tempo a apressava. Segurando a carta entre as mãos ao mesmo tempo em que a lia, ia seguindo passo a passo as indicações, agora póstumas, mesmo que ela não o soubesse, de Hubert. Atravessou o ateliê e correu até o escuro refúgio de Greg. Entrou no quarto sem se anunciar, assim como fazia cada vez que Dirk se ausentava de casa, aplainando o caminho para os furtivos encontros com Greg. Mas os propósitos de Fátima nesta ocasião eram outros; de fato, guardava a esperança de que o velho pintor não estivesse em sua íntima fortaleza de trevas. No entanto, quando o mais velho dos irmãos percebeu o passo leve da portuguesa entrando na sala, teve a equivocada certeza de que aquela seria a despedida, o mais ansiado dos encontros. Quando Fátima viu que Greg se levantava e, tateando, ia até ele, retrocedeu um passo e colou as costas na parede. Apertou a carta em sua mão e, enquanto o homem avançava, se contraiu como uma gata encurralada, vislumbrando um caminho de fuga entre Greg e a parede oposta. Teria que se desviar da volumosa humanidade que se aproximava e alcançar a alta viga oblíqua que a carta indicava, aquela em que estava o entalhe da Parca. No momento em que estava prestes a dar o primeiro passo, com a rapidez de um predador, o velho pintor se atirou sobre ela. Lutaram. Fátima tentava com desespero libertar-se do assédio, mas Greg, com suas mãos gigantescas, tinha os punhos dela presos atrás do corpo. A mulher compreendeu que gritar somente podia piorar as coisas. Tentava defender-se utilizando os joelhos, a cabeça e os dentes. Mas quanto mais lutava para se libertar, tanto mais se complicava e perdia as forças. Cada nova tentativa de Fátima lhe fazia perder o ar, e ela ficava inteiramente à mercê do mais velho dos Van Mander. A tal ponto que Greg conseguiu segurar as mãos da mulher com apenas uma mão e, com a direita livre, começou a percorrer seu corpo convulsionado de medo e repulsa. Longe de ser uma situação incômoda e difícil, para Greg sua evidente superioridade naquela luta parecia lhe proporcionar um certo deleite. Com um ímpeto brutal, primeiro percorreu as coxas da mulher de baixo para cima, enquanto mordiscava seu pescoço marcado pelas veias inchadas. Fátima não pôde conter um grito de espanto quando sentiu que a mão avançava, rápida e precisa, abrindo caminho por baixo de suas saias, até o meio de suas pernas. Então o grito de Fátima juntou-se em uníssono com o de Greg. O pintor havia perdido o sentido da visão e agora pensava que o tato também se perdia. Quando seus dedos buscavam a lisa geografia do púbis, se encontraram com uma protuberância inesperada. Foi um momento de incerteza que antecedeu o horror. E chegou o grito. Então Fátima, livre de repente da mulher que havia aprendido a ser, despojada, tristemente, de sua condição feminina, juntou as forças de homem que já não era e empurrou Greg, fazendo-o cair estrepitosamente. Em seguida, pegou a pesada pá que descansava contra a parede, e então ele, o que havia sido Pietro della Chiesa, exumado contra sua própria vontade, descarregou um golpe seco e feroz no rosto do velho pintor. Vendo que Greg não se movia, ajeitou as saias, recompôs o cabelo, alisando-o com a palma da mão, e, segurando a pá, Fátima, agora sim, decidiu enterrar para sempre o pequeno Pietro.

 

Dirk caminhava com passo decidido até as cavalariças que estavam do outro lado do canal. Na ponte sobre as águas quietas, cruzou por um homem que caminhava no sentido oposto. Os passos apressados de ambos ressoaram nas tábuas contra o silêncio da cidade morta. Em outra circunstância, os dois teriam trocado um olhar de curiosidade, mas Dirk, impulsionado pela necessidade e pela urgência, sequer reparou no forasteiro que apresentava a aparência de um mendigo. Um e outro haviam imaginado muitas vezes como seria o rosto do inimigo. E agora, quando finalmente tinham a oportunidade de se ver cara a cara, Dirk van Mander e Francesco Monterga cruzaram um pelo outro sem se olhar.

Na casa sobre a ponte do Asno Cego, Fátima, com a carta na mão direita, seguia as instruções que Hubert havia deduzido. Levantou um pouco as saias e passou por cima do corpo horizontal de Greg. Buscou um castiçal no ateliê e o acendeu. Depois, elevou os olhos em direção ao teto e viu a viga oblíqua na qual mal se distinguia a figura da Parca. Primeiro tentou alcançá-la parada na ponta dos pés e depois dando pequenos e esforçados saltos. Mas a viga estava muito alta. Aproximou uma banqueta, subiu nela e, assim que alcançou a viga, tentou movê-la com todas as suas forças. No entanto, a grossa madeira permanecia imóvel. Então, abraçando-se nela, se soltou do banco, e, por fim, com o peso do próprio corpo, a madeira começou lentamente a ceder, movendo-se como se fosse uma alavanca. Nesse momento, Fátima escutou o rangido de um mecanismo e pôde ver como, a seus pés, nas tábuas do chão, se abria um abismo quadrado e negro. Soltou-se da viga e se aproximou cautelosamente daquele inferno de trevas como se temendo que um demônio fosse aparecer na boca do porão e levá-la com ele. Aproximou o castiçal da boca do porão e viu uma escada vertical que parecia infinita.

Foi uma descida complicada: com uma mão, sustentava o castiçal e a carta e, com a outra, se segurava nos degraus rangentes que ia deixando para trás. Quando chegou no fundo, iluminou o corredor que se abria à sua frente. Corria um vento frio cuja origem era impossível de determinar. Seguiu abrindo o caminho na escuridão até chegar a uma porta que parecia muito mais antiga que o resto da casa. Um arrepio correu por sua espinha. Encheu os pulmões com aquele ar gelado, se infundiu de ânimo e abriu a porta. Encontrou-se numa sala de pedra, pequena, úmida e fria. Uma espécie de altar pagão erguia-se no centro, conferindo àquela câmara fria um ar estranhamente sagrado. Sobre aquele esquisito relicário de pedra, um monólito despojado de qualquer ornamento, repousava um cálice de ouro coroado por uma pesada tampa em cuja parte superior havia a imagem de uma coruja que parecia vigiar cuidadosamente a entrada. Fátima compreendeu que estava diante daquilo com que todo pintor havia sonhado alguma vez, aquilo que alguns imaginavam como uma fórmula e outros pensavam ser uma imprecisa quimera; o mais apreciado segredo, apenas uma conjectura sem forma ou uma hipótese impronunciável: a cor em estado puro. E agora estava ali, ao alcance de sua mão. Fátima deixou cair a carta e caminhou, seduzida, até o cálice. Estendeu o braço para levantar a tampa. Nunca chegou a ler o alerta que Hubert havia escrito no final da carta.

 

Francesco Monterga, a barba crescida até o peito, magro como nunca havia estado e com o olhar perdido em sua própria angústia, corria sem rumo certo pelas ruelas de Brugges. Atravessou na diagonal a praça do Markt e entrou num pequeno labirinto que se iniciava atrás da igreja do Santo Sangue. Como um cachorro que se guiava pelo olfato, dobrou a esquina e, de repente, estava diante da ponte que cruzava sobre a rua do Asno Cego, a mesma que Hubert descrevera na carta. Caminhou até a fina sombra que a ponte projetava sobre o calçamento, olhou para todos os lados tentando decifrar qual daquelas seria a porta e, com mais sorte que juízo, entrou na casa dos Van Mander. Sem medir as consequências, correu escada acima até alcançar a passarela que unia as duas ruas. Como não viu ninguém nem escutou nada que delatasse presença alguma, entrou no ateliê com passo decidido. Chegou à cozinha e, do outro lado, viu uma porta entreaberta. Empurrou-a sutilmente e, sem abri-la por completo, espiou a pequena faixa iluminada que tinha diante de si. Quando se acostumou um pouco à penumbra, distinguiu um corpo que jazia no centro do quarto. Entrou, desviou da viga que descia estranhamente até o chão e descobriu o espaço negro e quadrado que se abria junto ao corpo do mais velho dos irmãos. Temeu que tivesse chegado tarde demais. Desceu pela estreita escada vertical pulando vários degraus e nem sequer sentiu a queimação causada nas palmas das mãos pela fricção contra o corrimão. Literalmente, Francesco Monterga caiu ajoelhado no subsolo. Machucado, mas insensível à dor, correu pelo corredor escuro até a porta entreaberta, em cuja entrada se via a fraca luz de um castiçal. Com suas últimas forças, o mestre florentino alcançou a câmara de pedra. Empurrou a porta e viu seu discípulo, Pietro della Chiesa, vestido como uma mulher, com a mão pousada sobre a coruja, e a ponto de levantar a tampa do cálice.

- Não, Pietro! - Francesco Monterga conseguiu gritar.

Fátima escutou claramente e se assustou. Mas não reconheceu como seu aquele nome que acabavam de pronunciar. Virou a cabeça por cima do ombro e custou a reconhecer seu velho mestre naquele homem magro, envelhecido e feito de pele e osso. Havia passado muito pouco tempo desde a última vez que se viram, mas pareciam séculos. Fátima não queria recordar. Resistia a lembrar do dia em que decidiram criar a farsa. Aquele distante dia em que criaram Fátima, a portuguesa, e seu inexistente marido armador, Gilberto Guimarães. O dia em pela primeira vez se disfarçou de mulher para que Hubert a espiasse na biblioteca durante suas supostas visitas secretas. Aquela mulher inspirada na pessoa da Irmã Maria, a querida ama de Pietro no Ospedale degli Innocenti, com quem aprendera o idioma e cuja cândida simplicidade e modos camponeses ele havia imitado. Mas para dar a luz a Fátima era necessário, primeiro, matar Pietro. De pé, junto ao cálice de ouro que continha o objeto de seus sonhos, Fátima não quis recordar o dia em que, para enterrar definitivamente o pequeno discípulo, tiveram que assassinar um camponês inocente, com um porte semelhante ao seu, e desfigurar seu rosto para que ninguém pudesse suspeitar da mudança de identidade do corpo. A ponto de revelar o segredo da cor in status purus, Fátima se negava a evocar o problema que havia surgido assim que mataram o jovem camponês: a família do defunto iria reclamar como seu o cadáver encontrado no bosque. Então foi necessário ocultar a morte com mais morte. A desaparição de uma segunda vítima causaria confusão, sugeriria a ideia de que as mortes eram causadas por uma mente perturbada. A invenção de Fátima tinha que ser a isca perfeita para que Dirk van Mander mordesse o anzol. O que seria mais tentador que aceitar o trabalho para o qual seu inimigo, Francesco Monterga, havia sido finalmente recusado? Que melhor maneira de entrar na casa do inimigo: uma mulher bela em uma cidade morta, uma mulher jovem e formosa na casa de dois homens solitários e derrotados. Que melhor vingança haveria para Pietro, por todas as humilhações de Hubert, o espião flamengo, aquele que, caçoando de sua pequena e imberbe humanidade, o chamava de la bambina, que se converter em uma verdadeira bambina e vingar as ofensas na pessoa do maestro de Hubert? E agora, diante do segredo mais desejado, Fátima não gostaria de ficar sabendo da injusta morte de Juan Díaz de Zorrilla, Il Castigliano, nem dos imperdoáveis tormentos que fizeram Giovanni Dinunzio, seu único amigo, sofrer. Fátima não gostaria de saber da morte de Hubert nas mãos de Francesco Monterga no dia em que enviou a carta. De pé no centro daquela cripta gelada, Fátima não quis recordar os abusos de Francesco Monterga contra seu discípulo de Borgo San Sepolcro nem a tarde em que os surpreendeu na biblioteca. De costas para o cálice e sem deixar de olhar seu velho mestre florentino, Fátima se dispôs, por fim, a abrir o recipiente dourado.

- Não, Pietro! - voltou a gritar Francesco Monterga. Mas já era tarde. Agora, sim, Pietro della Chiesa estava definitivamente enterrado.

Fátima levantou a tampa da copa de ouro.

 

Quando Fátima levantou a tampa do cálice, aconteceu algo que ela jamais poderia relatar. Porque, na verdade, não o viu, já que estava de costas para o altar, olhando os olhos de Francesco Monterga, que, contra sua vontade, mantinham-se fixos sobre a copa de ouro. Um resplendor de uma brancura indescritível emergiu do recipiente e invadiu todo o recinto. O mestre florentino, por fim, encontrou o desejado segredo da cor em estado puro. Viu o Tudo e o Nada ao mesmo tempo, viu o branco e o negro, viu o caos e o cosmos se repetindo até o infinito e viu o infinito expandido do universo e também o infinito inverso, introvertido, aquele que Zenão de Elea havia intuído. Foi testemunha do princípio e do fim, viu a resolução de todas as aporias e compreendeu o sentido último de todos os paradoxos, viu todas as pinturas, desde aquelas que se escondiam nas remotas cavernas da França, quando a França não tinha nome, as do Egito e as da Grécia, as de seu mestre e as de seus discípulos e as que ele mesmo havia feito. E também viu as que ainda não haviam sido pintadas. Viu a cúpula de uma capela e o indicador de Deus dando a vida ao primeiro homem, o sorriso incerto de uma mulher contra um fundo abismal e beatífico, as perspectivas mais maravilhosas jamais feitas por um homem, escadas que subiam e desciam ao mesmo tempo, infinitamente. Viu Saturno devorando seu filho e uma fila de homens sendo executados com armas desconhecidas, viu uma navalha cortando a orelha e um campo de girassóis como ninguém havia concebido, viu a catedral de Notre Dame repetida, idêntica e diferente conforme a orientação do sol, viu escarpas precipitando-se ao mar e bosques saxões solitários e tenebrosos, viu mulheres alegres, nuas, desoladas em bordéis de um futuro distante e sórdido, viu um pintor no reflexo de um espelho e uma incógnita família real, viu um cavalo disforme estirando sua língua disforme em um caos disforme sob a devastação da distante e ibérica Guernica. E não viu nada mais. Nunca mais. Da mesma forma que seu mestre Cosimo da Verona, da mesma forma que Greg van Mander - que havia protegido os olhos de seu irmão menor até o último de seus dias -, da mesma forma que todos aqueles que viram o segredo da cor revelado, os olhos de Francesco Monterga se apagaram numa noite negra e fechada.

Pietro della Chiesa, Fátima, que permanecia de costas para o cálice, voltou a colocar, sem se virar, a tampa sobre a copa, e então se restabeleceu a sombra. Francesco Monterga, de joelhos e cobrindo os olhos mortos, suplicou que lhe desse o cálice. Parecia não dar nenhuma importância à sua súbita cegueira. Nada lhe importava mais que ter aquela pura aura, sob cujo clarão o verniz mais ordinário se transformava na mais perfeita das cores. Não queria nada mais que essa luz absoluta que tornava o pigmento mais rústico, por sua simples exposição, na mais inalcançável das pinturas. Havia pago o preço e agora queria o que lhe pertencia. Mesmo que não pudesse vê-lo nunca mais.

Fátima olhava seu velho mestre dando braçadas no ar, maldizendo e suplicando, e, no fundo de seus olhos mortos, percebeu a cobiça mais profunda e inexplicável. Tomou a grossa tocha que descansava na parede, caminhou silenciosamente até a porta e, quando estava a um passo, saiu correndo da cripta, fechou a pesada porta de ferro e a trancou, por fora, atravessando os aros metálicos com o castiçal. Enquanto se afastava pelo escuro corredor até a escada que conduzia à superfície, Fátima escutou pela última vez os gritos abafados de Francesco Monterga.

 

Do ateliê sobre a ponte do Asno Cego, Fátima contemplava o entardecer sobre a cidade morta. Abriu as janelas de par em par e encheu os pulmões com aquele ar frio. Caminhou até a bacia que continha água fresca e enxaguou a cara e os braços. Diante do espelho, limpou as manchas de seu vestido de veludo verde, alisou o cabelo com a palma da mão e ajeitou o penteado rematado em um cone do qual caía um tule. Então escutou o trovejar de cavalos. Contemplou-se pela última vez e correu, radiante, escadas abaixo.

De cima da boleia, Dirk estendeu a mão e, com um ágil salto, Fátima sentou a seu lado. O sol era uma virtualidade que dourava o calçamento. A portuguesa pensou no remoto perfume do mar e no amável rebuliço de Lisboa. Daquela sua Lisboa na qual nunca havia pisado e que tanto lhe pertencia. A carruagem passou por baixo da ponte da rua do Asno Cego e se perdeu do outro lado do canal.

 

 

                                                                  Federico Andahazi

 

 

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