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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SENHOR SHA / Erik L’Homme
O SENHOR SHA / Erik L’Homme

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Guillemot de Troïl é um menino do País de Ys, terra isolada entre o Mundo Certo e o Mundo Incerto, onde se encontram, ao lado de computadores e salas de cinema, cavaleiros de armadura ou feiticeiros com poderes sur­preendentes.

O dia em que Mestre Qadehar, o mais famoso Fei­ticeiro da Guilda, descobre em Guillemot predisposição para a magia, o destino do jovem dá uma virada.

Embora continue a vida de colegial, Guillemot tor­na-se Aprendiz de Feiticeiro e descobre, com o novo Mestre, a arte dos Grafemas. Esses Grafemas, na origem da feitiçaria, foram revelados à Guilda pelo Livro das Estrelas. Lamentavelmente, essa obra preciosa foi rou­bada há tempos e ninguém hoje sabe onde se encontra.

É então que, surgidos do terrível Mundo Incerto, por ordem da Treva, poder demoníaco e malfeitor, monstros raptam Ágata de Balangru, o terror do colégio, diante dos olhos de Guillemot. Quando descobre que é ele o verdadeiro alvo cobiçado pela Treva, escapando à vigi­lância dos Feiticeiros que o puseram em segurança no monastério de Gifdu, Guillemot decide ir ao Mundo Incerto a fim de libertar Ágata, injustamente capturada. Para socorrê-la, vai necessitar de toda a magia que mal começara a aprender.

Nessa perigosa empreitada, leva consigo os amigos de sempre: Âmbar, Gontrand, Romaric e Corália. Mas, devido a um erro na formulação do encantamento, os cinco amigos se separam, sendo cada um levado a aven­turas extraordinárias, cheias de armadilhas, através de um mundo povoado de espantosos personagens.

Enquanto Âmbar encontra uma maga de olhos ver­des, que a enfeitiça, apagando-lhe a memória, Guillemot conhece Kyle, um jovem habitante do perigoso Deserto Voraz.

Quando, afinal, apresenta-se em Yâdigâr, o ponto de encontro deles, Guillemot é feito prisioneiro. Qual não é sua surpresa ao reencontrar na cadeia os amigos! Assim como Ágata de Balangru, todos cativos do comandante Thunku, que governa a cidade.

Graças à intervenção de Mestre Qadehar — e a uma fórmula mágica de Guillemot, que não dá certo — os sete jovens acabam fugindo.

Embora afinal consigam voltar juntos e sãos e salvos para o País de Ys, muitas interrogações permanecem. Quem se oculta atrás da Treva e por que se interessa por Guillemot? Quem é o misterioso Senhor Sha, de quem Ágata ouviu falar em Yâdigâr e que estaria à procura de um filho desaparecido? Qual o segredo que envolve o Aprendiz de Feiticeiro e qual destino deve abraçar?

 

 

 

 

Guillemot ia depressa pelo caminho que percorriam diversas vezes por dia os poderosos ginetes dos Cava­leiros do Vento. Era início de outono e a mata da Terra dos Korrigãs já tomava matizes melancólicos. O inver­no anunciava-se duro...

Guillemot dirigia-se a passos largos rumo ao Castelo de Bromotul, a fortaleza-escola da Confraria. Estava com pressa, não por temer as ciladas dos Korrigãs que, de todo modo, jamais se aproximavam do atalho, mas porque tinha uma novidade extraordinária. E estava impaciente para partilhá-la com Romaric!

Ia tão absorto nos pensamentos que só no último momento percebeu dois cavaleiros de armadura turque­sa em galope triplo atrás dele. Jogou-se de lado, evitan­do por pouco ser esmagado pelos cascos pesados dos cavalos de batalha. Os Cavaleiros do Vento reprimiram uma praga e logo pararam os cavalos numa nuvem de poeira.

— Olá, pequeno! Está tudo bem?

— Tudo bem, tudo bem... senhores Cavaleiros — res­pondeu Guillemot, todo envergonhado, espanando o mato que tinha amortecido sua queda.

Os cavalos, felizmente seguros pelas rédeas firmes dos Cavaleiros, batiam as patas. Guillemot jogou de volta para trás a mecha de cabelo castanho que lhe cobria a testa e, mancando, avançou os poucos metros que o separavam dos Cavaleiros. Olhando para cima, com a expressão luminosa, desculpou-se.

— Foi minha culpa! — tentou sorrir. — Eu estava so­nhando, não ouvi os senhores chegando.

— O importante é que você esteja inteiro — murmurou um dos Cavaleiros.

— Aposto que está indo a Bromotul e foi escolhido para tornar-se Escudeiro! — disse o outro Cavaleiro, louro e delgado, ao contrário do companheiro, moreno e robusto.

— Bem, não... — disse Guillemot, enrubescendo. Acabava de se lembrar que seis meses antes, seu

mais louco e caro desejo era pertencer à Confraria dos Cavaleiros do Vento.

— Ora, Ambor — disse o primeiro Cavaleiro —, não está vendo que o menino leva a sacola dos Aprendizes de Feiticeiro?

— Mas é verdade! — reconheceu Ambor. — Então, Bertolen...

Bertolen e Ambor trocaram um olhar, depois exami­naram Guillemot com curiosidade.

— Diga-nos, meu menino, você não é Guillemot de Troïl, por um acaso? O que foi ao Mundo Incerto e com­bateu os bandos da Treva?

Guillemot hesitou, depois assentiu. Ainda não esta­va acostumado à notoriedade que cercava seu nome após a aventura do verão passado!

Os Cavaleiros exultaram.

— Ficamos muito honrados de conhecer você, Guille­mot! — exclamou Bertolen.

— Não, não, sou eu que fico honrado de conhecer os senhores — atrapalhou-se Guillemot, incomodado com tanto entusiasmo e admiração.

— E o que é que traz você à terra, Guillemot? — per­guntou Ambor.

— Meu primo! Ele é Escudeiro em Bromotul. Hoje é o dia de visita...

— É verdade — confirmou Bertolen. — Mas o sol já vai alto no céu e ainda faltam duas horas de caminhada boa: não terá muito tempo para ver seu primo.

— Eu sei... — suspirou Guillemot. — Mas tive um teste de matemática hoje de manhã, não pude faltar à aula... E depois de Dashtikazar, só encontrei uma carruagem, que me possibilitou avançar apenas algumas léguas.

— Sabemos o que é isso — opinou Bertolen, piscando o olho para Ambor. — Matemática é importante, sem dúvida! Mas não a ponto de se perder o dia de visita em Bromotul. Ande, suba!

Guillemot levou alguns segundos para compreender que os Cavaleiros estavam propondo levá-lo. Mas não se fez de rogado e, com um grande sorriso, montou atrás de Bertolen.

— Genial! — exclamou.

— Mas segure-se! — advertiu o Cavaleiro. — Não quero que torne a cair no matagal!

— Nem eu — aprovou Guillemot.

Ambor e Bertolen caíram na gargalhada e soltaram as rédeas dos cavalos, que saíram galopando. Guillemot agarrou-se ao cinto que prendia a espada de Bertolen, deixando-se inebriar pela sensação de velocidade. Pou­co tempo depois, distinguia o vulto volumoso do caste­lo de Bromotul.

Tinha sido em Bromotul que, alguns séculos antes, nascera a Confraria dos Cavaleiros, a ordem guerreira que dedicava toda a sua energia a defender o País de Ys e ajudar seus habitantes. Hoje, a Confraria dispunha de um castelo mais recente e confortável no coração da cidade de Dashtikazar e possuía diversos fortes ocupa­dos por pequenas guarnições, espalhadas pelo conjunto do País de Ys. O castelo de Bromotul transformara-se numa escola, onde os Escudeiros, jovens voluntários escolhidos por seu talento e motivação, recebiam a dura educação de Cavaleiro.

A escola consistia em um grande edifício quadrado de pedra talhada, dando para um pátio de terra batida, protegido por altos muros, onde eram feitos os exercí­cios eqüestres. O térreo estava reservado às cavalariças. Um porão abrigava um poço e a adega. O primeiro andar compreendia a sala das armas, o ginásio, a biblio­teca e o estudo. O segundo andar, a cozinha, o refeitório, o banheiro e os dormitórios. Por fim, o último servia de depósito de armas e material. O conjunto exibia um as­pecto particularmente austero.

De um lado, as muralhas cinza da fortaleza se erguiam no topo de falésias que dominavam o mar, enquanto de outro, confrontavam as extensões gramadas da mata. Por que o castelo tinha sido erigido naquele lugar? Ninguém saberia dizer. Mas a Confraria levava o nome do vento que soprava sem cessar naquela região desolada, áspera e austera de Ys, à imagem dos Cavaleiros que eram ali formados...

Romaric bufava, ofegante, batendo de qualquer jeito a espada no sólido poste de carvalho que ficava num canto do pátio, sob o olhar atento e severo de um sargen­to instrutor. A espada, que segurava com as duas mãos, era pesada e os ombros lhe doíam. O suor corria pelo torso nu e o cabelo louro, que teria que cortar curto quando se tornasse Cavaleiro, estava molhado.

— Pode parar e ir descansar, Escudeiro — disse o ins­trutor.

— Não estou cansado, Cavaleiro — protestou Romaric.

— Pode ser, mas outros esperam a vez. Não esqueça de limpar e lubrificar a espada antes de mudar de roupa.

Romaric cedeu o lugar a um rapaz robusto, que logo cortou o poste, fazendo voar lascas de madeira. Dirigiu-se ao banco em que se encontravam suas coisas e sen­tou-se, fazendo careta. Ainda bem que o Cavaleiro ins­trutor deu ordem para parar: cinco minutos mais e esta­ria totalmente morto! Pousou a espada atravessada nos joelhos e suspirou.

Tinha explodido de alegria quando o Comandante da Confraria em pessoa veio ver seus pais e propor levá-lo como Escudeiro para Bromotul, seis meses antes da idade requerida. O pai ficou muito orgulhoso; tio Uriano chegou a mandar uma mensagem, felicitando-o... Ro­maric via seu sonho realizar-se! Mas, na época, não ima­ginava que seria tão difícil...

Não era tanto a formação que tinha dificuldade de suportar, mas a atitude dos Escudeiros para com ele. Acreditavam que tinha sido aceito em Bromotul por causa das aventuras no Mundo Incerto, e não por sua capacidade. E embora às vezes o próprio Romaric não estivesse longe de pensar a mesma coisa, fazia de tudo para se mostrar à altura: tentava ser bom camarada, esforçava-se para fazer sempre mais e provar que só devia seu lugar nos bancos da escola a si mesmo.

Mas cansava-se muito mais do que era necessário e sentia-se sozinho. Para seu azar, o vilarejo de Bunic, onde os pais viviam, encontrava-se no outro extremo do país, de modo que as visitas eram raras. Tio Uriano já tinha vindo umas três vezes, é verdade, mas passava mais tempo a bater papo com os velhos instrutores, anti­gos Cavaleiros como ele próprio, do que dando atenção ao sobrinho!

Os Escudeiros, para quem Bromotul representava o colégio, ou o liceu, só eram liberados durante as férias... enquanto que o Aprendiz era liberado assim que deixa­va seu Mestre ou seu professor! Esse era o inconvenien­te de ser escudeiro, em relação a ser aprendiz...

Romaric pensou em Guillemot, com certeza a colher plantas ou discutir Grafemas com Mestre Qadehar. Depois lembrou dos amigos, Gontrand, Âmbar e Corá-lia. Corália... Jamais teria imaginado que um dia essa menina salvaria a sua vida! Tornou a ver-se nadando freneticamente para escapar dos Gommons canibais e, depois, das Medusas queimantes. Recordou como, es­gotado, achou que aquele fosse o seu último momento. Foi então que, do nada, surgiu Corália, que o ajudou a subir na jangada do Povo do Mar.

Romaric estremeceu e apertou as mãos em torno da espada, grande demais para ele. Nunca mais fugiria. Logo, logo, seria Cavaleiro, capaz de enfrentar qualquer perigo! Pousou um olhar confiante na lâmina de aço. Aquela espada, que lhe tinham dado na ocasião da ceri­mônia dos escudeiros e que seria dele por toda a vida, representava o seu sonho mais profundo: rachar ao meio Orks e Gommons, em duelos. Mas, depois de um mês de escuderia, estava desanimado. Como podia ser?

Pegou um pedaço de feltro e pôs-se a limpar cuida­dosamente a arma.

Um ruído de botas desviou-o dos pensamentos. Era o Cavaleiro encarregado da vigilância que vinha em sua direção.

— Escudeiro! — chamou, em voz alta. — Tem visita para você.

Romaric franziu as sobrancelhas. Quem poderia ser? Com certeza não era o tio Uriano: ele nunca se anunciava na entrada e percorria Bromotul como se estivesse em seu castelo de Troïl! Intrigado, Romaric botou a espada na bainha, apanhou na bolsa uma camisa e, enquanto a enfia­va, dirigiu-se à porta maciça que dava para o campo.

 

Perto da entrada, Romaric reconheceu, emoldurado por dois Cavaleiros de armadura, uma silhueta que lhe era familiar: pulando de alegria, passou pelo guarda e correu a seu encontro.

— Guillemot! Não é possível! — gritou.

— Romaric!

Os primos se jogaram um nos braços do outro, sob o olhar divertido de Ambor e de Bertolen.

— Eu devia ter feito a relação — disse Bertolen ao companheiro. — Esse Escudeiro também se chama de Troïl: só podia ser parente de Guillemot!

— E o velho Uriano de Troïl, o veterano, aquele que fala alto e que a toda hora distribui taponas nos ombros, também é parente? — perguntou Ambor.

— É nosso tio... — responderam, ao mesmo tempo, Guillemot e Romaric, fazendo careta.

— Foi um Cavaleiro de valor — interveio o guarda. — Hoje está, a bem da verdade, um tanto, como dizer...

— Um tanto chato? — sugeriu Romaric.

O guarda franziu as sobrancelhas enquanto Ambor e Bertolen caíam na gargalhada.

— Desculpem, senhores Cavaleiros... — interrompeu-os Guillemot, educadamente. — Mas não tenho muito tempo e Romaric e eu temos coisas a nos dizer...

— Voltamos para Dashtikazar hoje à noite — disse Bertolen. — Partimos daqui a duas horas. Se quiser viajar conosco...

— Agradeço, aceito! Espero pelos senhores à porta daqui a duas horas.

— Venha, Guillemot — impacientou-se Romaric. — Vou mostrar a você a minha nova escola!

Pegou o primo pelo braço e o levou em direção ao banco onde tinha deixado suas coisas.

— Puxa vida! — exclamou Guillemot, ao perceber a espada embainhada que Romaric ajustava nas costas, ao lado da bolsa. — Era dessa que você falava nas cartas? Nossa! E bem mais impressionante que uma sacola de Aprendiz!

— Sim, mas não é nada eficaz quando a pessoa não sabe usá-la — suspirou o Escudeiro.

— Ora vamos, não faz um mês que você é Escudeiro!

— encorajou-o Guillemot. — Eu, com um mês de aprendi­zagem, era incapaz de gravar dez nomes de ervas e acre­ditava que corrente telúrica era uma doença.

— E, tem razão — aprovou Romaric. — Mas diga-me, como fez para convencer os dois melhores Cavaleiros da Confraria a lhe servirem de babá?

— Ah! — respondeu Guillemot, dando de ombros — é o preço da glória... Tenho a impressão de que lhes deu prazer tomar conta de mim.

— Entendo... Também foi a glória que me trouxe para cá. Mas, comigo, ninguém tem esse tipo de atenção! — queixou-se Romaric.

— Pois é! Esta é a vantagem de quem tem aparência frágil! — ironizou Guillemot. — As pessoas têm vontade de me proteger! Enquanto que a um parrudão como você, elas querem é afrontar e pôr à prova...

— Então que venham a mim os candidatos a combate

— afirmou Romaric, dando soquinhos no ar. — Estou esperando, firme e forte!

Levantaram-se e seguiram rumo às cavalariças. Romaric apresentou-lhe os cavalos que os Escudeiros tinham o direito de montar durante os exercícios, depois levou-o aos compartimentos de alguns dos poderosos cavalos de batalha que pertenciam aos Cavaleiros.

— Recebemos a espada no início da Escuderia e o ca­valo no fim — explicou. — Se não abandonarmos o curso! Nesse caso, perdemos tudo...

— Tenho confiança em você — disse Guillemot, acari­ciando o focinho de um jumento que se chamava Tor­nado. — Sei que será um Cavaleiro excepcional.

O rosto de Romaric iluminou-se.

— Você... você interrogou os Grafemas? — perguntou. — Eles deram indicações sobre o meu futuro?

— Não, mas como já levei muita porrada de você, sei que ficará perfeito no papel de bárbaro de armadura!

— Idiota! — exclamou Romaric, fingindo que ia bater no primo.

— Está vendo? O que é que eu estava dizendo? Romaric refreou a vontade de jogar o primo na palha. Arrebentando-se de rir, os dois meninos deixaram a estrebaria.

Seguiram para o dormitório dos Escudeiros. Cada aluno dispunha de um leito e de um baú grande, onde po­dia guardar os objetos pessoais. Romaric pôs aí a espada.

Depois, passaram à Biblioteca, que estava deserta. Guillemot examinou atentamente as prateleiras.

— A maior parte dos livros aqui é de manuais milita­res e filosofia de guerra — desculpou-se Romaric.

— O que é que você imaginava que eu esperava en­contrar na escola dos Cavaleiros? Obras sobre flores? — inquiriu Guillemot, zombeteiro. — Tranqüilize-se, Ro­maric: você é um Escudeiro e está sendo treinado para a guerra; eu sou um Aprendiz e estou treinando para a magia. Como você sabe, o País de Ys tem necessidade de Cavaleiros e de Feiticeiros, assim como precisa de eletricistas e vendedores de bala. Ninguém nos obriga a ser uma coisa ou outra: nós escolhemos. E se escolhe­mos, assumimos a escolha.

Espantado, Romaric levou em consideração o que dizia o primo. Gomo tinha mudado em poucos meses! Antes, era para ele que Guillemot se voltava quando sentia necessidade de confiança; hoje, era Guillemot quem o confortava...

Sentaram-se em poltronas de couro usadas por gera­ções de Escudeiros, em torno de uma mesa baixa, onde se espalhavam revistas de esgrima e equitação.

— Tem notícia dos outros? — perguntou Romaric.

— Recebo cartas de Âmbar...

— Olhe só! — interrompeu o primo, piscando o olho.

— Desde a viagem ao Mundo Incerto ela está numa boa com você, não é?

— Você não presta! — retorquiu Guillemot. — Nem per­gunta o que ela diz... Se fala de Corália, por exemplo...

— Tem razão — reconheceu Romaric, de boa vontade.

— E então, o que diz?

— Em primeiro lugar, que se lembrou do meu aniver­sário! Ela!

— Bem, está bem, então — defendeu-se Romaric. — Prometo que no ano que vem não esqueço. E incrível! Isso mesmo! Você acabou de fazer treze anos e já está me atormentando como o tio Uriano! Conte, o que mais diz Âmbar nas cartas?

— Que as duas voltaram às aulas, em Krakal. Mas que, na verdade, não tem grande coisa acontecendo. Esperam com impaciência as férias de Samain. A pro­pósito — lembrou-se de repente —, sabe que tenho uma novidade?

— A coisa continua de pé, em relação a Samain? — interrompeu Romaric, cheio de alegria com a perspecti­va da festa.

— Continua... O pai de Âmbar e Corália está de acor­do e vai nos emprestar o apartamento de Dashtikazar. Ficaremos nos primeiros camarotes!

— Genial! O que mais escreve Âmbar?

— Que tem uns sonhos esquisitos depois que voltou do Mundo Incerto.

— Sonhos esquisitos?

— Sonha com uma mulher de olhos verdes que não conhece, com uma floresta onde jamais pôs os pés e ani­mais que não existem!

— Entendo... — disse Romaric, meditativo. — Não acha que está inventando?

— Não sei. Não faz o estilo dela... E depois, está doente, de cama há três dias! Você devia escrever para ela. Tenho certeza de que ficaria contente.

— Três dias sem se mexer? Coitada! Deve estar à morte! Mas tem razão, vou escrever.

— Chega de falar das meninas! — cortou Guillemot, de repente. — Agora, escute, tenho uma novidade incrível!

— Sim, sim, sei...

— Sabe? — disse Guillemot, boquiaberto.

— Sei, recebi uma mensagem de Gontrand. Ele entrou para a Academia de Música! Deve estar entrando estes dias.

— Ele também me escreveu — confirmou Guillemot, deixando escapar um suspiro de alívio.

O primo não sabia de nada, ia fazer-lhe uma grande surpresa!

— É formidável — prosseguiu. — Mas não é essa a novidade incrível..

— Não? Então qual é?

No mesmo instante, um grupo de Escudeiros entrou ruidosamente na Biblioteca, pondo fim à conversa. Pelo ar bravo deles, Guillemot imaginou que não tinham vindo para estudar...

 

Um dos Escudeiros, autoconfiante, aproximou-se de Romaric.

— Olhe! O protegido! — gritou. — Geoffroy está espe­rando você na sala de armas. É do seu interesse ir até lá, se não for covarde. E depressa!

Em volta, os outros Escudeiros riram. Eram quatro e ficaram de braços cruzados, junto à porta, como guardas do regimento. Todos tinham um ar meio teatral e Guille­mot olhou para o primo com espanto. Este suspirou, dei­xando a poltrona.

— Não lhe disse que as pessoas aqui não têm por mim a mesma consideração que você tem?

Mediu os colegas e, apontando Guillemot, acrescen­tou, no mesmo tom pomposo com o qual se tinham diri­gido a ele:

— Este aqui será a minha testemunha...

O menino que tinha lançado o desafio aceitou, com um sinal de cabeça. Depois, de olho em Romaric e Guillemot, o grupo tomou a direção da sala de armas. No ouvido do primo, Guillemot perguntou:

— Estão chamando você para um duelo?

— Estão — sussurrou Romaric. — E esse “estão” se refere à mais bruta criatura deste mundo!

— Não está exagerando um pouco?

— Digamos que é a mais bruta que Bromotul já abrigou!

Entraram na sala que servia de ginásio e sala de armas para os alunos de Bromotul. Um rapaz bem alto, louro como Romaric, mas mais velho, estava de pé, no meio. Seu rosto duro era tomado por tiques. A camisa, em grande parte aberta, deixava adivinhar músculos impressionantes. Tinha nas mãos dois grandes bastões.

— Vai nos provar que está aqui porque merece — riu, quando viu Romaric.

E jogou-lhe um dos bastões. Romaric pegou a arma no ar e adotou, como o adversário, posição de combate.

— Não devia vir me perturbar, Geoffroy! — ralhou Romaric, à guisa de resposta.

Guillemot e os quatro Escudeiros puseram-se pru­dentemente de lado. Os adversários observaram-se, dan­do voltas; Geoffroy, em seguida, fez o primeiro ataque. Romaric aparou o golpe e respondeu. O adversário fez o mesmo. Romaric recuou. O suor porejou em sua testa.

Guillemot viu que o primo não ia se sair bem. Enco­rajou-o, mentalmente.

De repente, de um bote, Geoffroy atingiu a barriga de Romaric. Dobrado em dois, ofegante, este recuou alguns passos. Certo da vitória, o adversário então avan­çou. Brandia tranqüilamente o bastão por cima da cabe­ça, pronto para vencer. Foi aí que Romaric, em vez de tornar a levantar-se, jogou-se no chão, derrubou Geof­froy segurando-o pelo pé e lançou a arma com toda a força sobre o agressor. Geoffroy gemeu, largou o bastão e rolou pelo chão.

Romaric levantou-se e constatou com satisfação que o adversário estava fora de combate. Mas, no mesmo momento, viu os outros escudeiros, cada um munido de um bastão, avançar com ar ameaçador em sua direção. A situação ficou delicada...

Guillemot então decidiu intervir. Aquela história es­tava ameaçando acabar mal para o primo... Além disso, os Escudeiros acabavam de provar sua profunda covar­dia: Guillemot não via por que ter escrúpulos com gente capaz de tão franca deslealdade! Só que precisava agir com discrição pois era rigorosamente proibido usar mágica no seio da Confraria! Qadehar, seu Mestre, fre­qüentemente repetia: Feiticeiros e Cavaleiros trabalham juntos, mas de modo bem distinto. Cada um guarda para si sua especificidade.

Refletiu rapidamente. Que podia fazer? Já Romaric aparava um ataque e recuava, debaixo de novos golpes.

Um sorriso veio iluminar o rosto do Aprendiz: sabia qual era a solução! Fechou os olhos, procurou por Ingwaz em meio a todos os Grafemas que se encontravam enfileirados em seu espírito. Invocou-o, tornou a abrir os olhos, depois murmurou, pensando em cada um dos Escudeiros que cercava Romaric:

— Ingwaz... Ingwaz... Ingwaz... Ingwaz...

O Grafema da Fixação devia ser invocado tantas vezes quantas eram as pessoas a serem imobilizadas. No verão passado, na ocasião do ataque dos Orks, perto de Troïl, omitira essa característica, coisa que lhe custou caro. Mas, hoje, Guillemot dominava perfeitamente os seus Grafemas.

Não tendo sido Ingwaz gritado, mas murmurado suavemente, as pernas dos Escudeiros foram ficando pesadas de maneira imperceptível. Os meninos passa­ram a se deslocar desajeitadamente, sem se darem conta do que estava acontecendo. Romaric, de sua parte, rapi­damente percebeu que os adversários estavam mais len­tos, que alguma coisa travava seus movimentos. Levan­tando o bastão, pulou em cima de um deles e bateu nele de lado. O Escudeiro gritou e se esparramou no chão. Romaric aparou com facilidade o ataque lento demais de um segundo, fazendo-o valsar com um golpe em baixo do ombro. Livrou-se do terceiro com um soco no estômago; depois acertando as contas com o último, num pontapé de lado, que o atingiu no peito. Em segui­da, aproximou-se do primo com os olhos risonhos.

— O que você fez para ficarem tão lentos de repente?

— Eu? — disse Guillemot, divertido. — Nada, nadinha, ora! Você é que aplicou neles uma bela duma surra!

— O que não deixa de ser verdade, mesmo que você tenha me ajudado bastante!

— Oh, tão pouco... Este duelo glorioso, no entanto, vai ajudar na sua reputação, hein, primo! Francamente, duvido que tornem a provocá-lo!

— A menos que este duelo me transforme no homem a ser abatido — suspirou Romaric, ao mesmo tempo car­regando Guillemot para fora do ginásio. — Não vamos ficar aqui. Não que eu tenha medo desses idiotas, mas se um Cavaleiro aparece e descobre o uso de magia no recinto de Bromotul, vai ser a minha caveira...

— Não descobrirão nada — assegurou-lhe o Aprendiz.

— O efeito do meu Grafema vai se dissipar dentro de alguns minutos. De todo modo, está na hora de eu me encontrar com Ambor e Bertolen...

Desceram de quatro em quatro degraus a grande escadaria de pedra que dava na porta de entrada.

— A propósito, Guillemot — disse, de repente, Roma­ric, quando estavam chegando ao pátio —, qual era aque­la novidade incrível da qual você falava a toda hora?

— Novidade? Que novidade? — perguntou Guillemot.

— Ah, sim! — prosseguiu, num tom de voz falsamente indiferente. — Eu só queria avisar que os Feiticeiros da Guilda analisaram todas as informações que trouxemos do Mundo Incerto, e estão agora preparando um ataque contra a Treva... Mas, guarde isto para você! — gritou, correndo para alcançar Ambor e Bertolen, que o espera­vam diante da porta. — Não tenho permissão para contar a todo mundo!

Guillemot alçou-se, atrás de Bertolen, dando um último aceno de adeus a Romaric, de pé no meio do pátio, siderado com a novidade extraordinária, depois desapareceu numa nuvem de poeira.

 

Umas boas duas horas depois, Gontrand aguardava pacientemente nos corredores da Academia de Música que viessem buscá-lo. Tinha posto a citara num banco e, enquanto esperava, andava de lá para cá pelo chão de cerâmica do grande saguão, com as mãos atrás das cos­tas. Aquela falta de pontualidade da parte dos professo­res que tinham a atribuição de ensinar-lhe — se fosse bem-sucedido na última entrevista — o respeito às medi­das e aos tempos chocava-o bastante!

À sua chegada, entretanto, tinha ficado imediata­mente seduzido pelos edifícios compridos da Academia, que se estendia ao longo da floresta de Tantreval. Os cantos dos pássaros pareciam rivalizar com as escalas dos alunos. Estes últimos, internos ou semi-internos, recebiam três vezes por semana a melhor formação que Ys era capaz de oferecer aos jovens promissores.

A música, com efeito, era uma instituição em todo o país. Cada aldeia tinha sua própria orquestra e todos os dias acontecia um baile em algum lugar. Os habitantes de Ys adoravam dançar e ver competir os grandes flau­tistas e tocadores de citara quando havia concursos musicais. Os pais de Gontrand tinham adquirido assim uma tal notoriedade, que se viam, hoje, entre os músicos de mais prestígio do país.

Gontrand era o maior amigo de Romaric e um dos membros da banda. Meio alto demais, meio magro demais, o cabelo negro cuidadosamente penteado e os olhos castanhos cintilantes, era de natureza fleumática, que o tornava um companheiro precioso nos momentos difíceis. Tinha sido bem-sucedido na façanha de escapar de uma terrível situação, no Mundo Incerto, ganhando a amizade de um guerreiro bárbaro graças à música. Mas foi sua performance na citara, no castelo de Troïl, por ocasião do aniversário de Uriano, que lhe valeu o convi­te da Academia para fazer os exames de admissão...

— Gontrand de Grum!

Gontrand voltou-se. Uma mulher de idade madura, vestida sobriamente, convidou-o a acompanhá-la. Conduziu-o a uma sala de paredes caiadas, iluminada por janelas imensas. Atrás de uma mesa, dois homens e uma mulher o observavam atentamente. A mulher fechou a porta depois dele entrar.

— Repouse a citara e ponha os braços para a frente, com as mãos bem abertas — ela disse.

Gontrand, um tanto surpreso, fez o que ela mandou. A mulher observou seus dedos, depois balançou a cabe­ça, com ar satisfeito.

— Não está tremendo — constatou. — Não parece so­frer de ansiedade.

Gontrand logo compreendeu o motivo da espera no corredor! Mas não teve tempo de imaginar os ardis que a comissão de recepção empregava na Academia para selecionar seus alunos, pois um membro do júri tomou a palavra.

— Pegue a citara outra vez e toque para nós a Balada dos Velhos Tempos.

Gontrand fez o que ele pedia, esmerando-se para pôr todos os seus sentimentos na interpretação da velha ária. Quando terminou, a examinadora instalou-se ao piano e interpretou uma melodia bastante complexa.

— Agora cante o que acaba de ouvir.

Gontrand cantou sem esquecer uma única nota. Deram-lhe, então, uma folha de papel e um lápis.

— Transcreva o que vou tocar — continuou a pianista. Mordendo a língua, o jovem músico foi escurecendo a pauta à medida que anotava o ditado musical. A cabe­ça começava a zumbir.

— Pegue este instrumento e componha uma ária do seu gosto a partir deste tema — prosseguiu a examinadora.

E estendendo-lhe uma flauta transversa, tocou ao piano uma melodia curta. Gontrand levou a flauta aos lábios e fechou os olhos.

Um silêncio absoluto reinou na sala grande. O meni­no sentiu gotas de suor correrem pelas costas. Nada! O nada total! Nada lhe ocorria... Era estúpido demais. Estava tão perto do final!

Ia desistir quando de repente ouviu dois pássaros se chamarem, voando de uma das janelas. Os pios logo o inspiraram. Teve a idéia de fazer uma introdução. De­pois, interpretou — tomando o cuidado de utilizar o tema musical imposto pela examinadora — o canto insistente do pássaro que tinha escutado.

Quando tornou a abrir os olhos, viu que os quatro pro­fessores tinham abandonado o ar severo e lhe sorriam.

— Apresente-se segunda-feira pela manhã na Admi­nistração. E não esqueça a sua citara. As aulas começa­rão à tarde.

— Isto quer dizer... — disse Gontrand com a voz em­bargada, pois não tinha imaginado que sua sorte seria determinada assim tão rapidamente — quer dizer que fui aceito na Academia?

— Todo ano recebemos vinte alunos novos — confir­mou a mulher que o havia submetido às provas. — Você está entre eles...

Gontrand despediu-se e saiu da sala, atônito. Deixou­ se cair num banco do corredor, para ter tempo de reco­brar a calma. Já imaginava a recepção triunfal que o esperava em casa... Mas, antes, é claro, mandaria uma mensagem, por meio de um pombo, para Romaric; outra para Guillemot e outras duas ainda para Âmbar e Corália, anunciando-lhes a boa notícia!

 

Âmbar jogou a raquete de tênis na cama, tirou os sapatos, que arremessou a um canto do quarto. Depois, ao mesmo tempo em que enxugava o rosto com o aves­so da camiseta, dirigiu-se ao banheiro. O professor a tinha feito suar hoje! E desde que deixara a quadra de terra batida, tinha apenas uma idéia na cabeça: tomar um bom banho! Tentou, em vão, abrir a porta. Tinha alguém lá dentro e estava trancada a chave.

— Corália! — gritou. — Não me diga que ainda está no banho!

— Já estou acabando — respondeu uma voz abafada pelo ruído da água.

Âmbar suspirou. A irmã já estava no banheiro quan­do saiu para o tênis... Âmbar e Corália eram gêmeas. A primeira, de cabelo negro curto, temperamento esporti­vo, voluntarioso e o jeito franco de falar, tinha tudo para ter nascido menino. A segunda, com a longa cabeleira, os ares coquetes e olhos azul-oceano, parecia recém-saída de uma revista feminina. Mesmo não sendo sem­pre bom se apegar às aparências...

— Mamãe! — gritou Âmbar. — Corália não quer deixar eu usar o banheiro! Está lá dentro há três horas!

— Não é verdade! — exclamou Corália, de trás da porta. — Só preciso de mais cinco minutos! E só o tempo de secar o cabelo...


— Secar o cabelo! — exclamou Âmbar, em desespero. — Mas isso vai levar uma hora! Mamãe... Faça alguma coisa!

— Vamos, filhas, acalmem-se — respondeu dona Krakal, da sala, onde tomava chá com duas amigas.

— É sempre assim — resmungou Âmbar, retornando a seu quarto, depois de socar a porta do banheiro. — A senhorita toma seu banho. Aos outros resta apenas espe­rar que ela se digne a sair!

Passando na porta do quarto da irmã, Âmbar hesi­tou, depois parou. Corália tinha esquecido de trancá-lo? Mexeu na maçaneta; a porta se abriu.

Âmbar esgueirou-se e entrou. Era agora ou nunca. O momento de tentar descobrir o que Corália anotava, ho­ras a fio, no caderno que tinha batizado “Meu Diário”. Tinha lido na capa, um dia em que Corália não conse­guiu escondê-lo com rapidez suficiente — “Meu Diá­rio”... Grotesco!

A cama, coberta de cor-de-rosa, estava desfeita. A escrivaninha, que servia, principalmente, de mesa de maquiagem, encontrava-se limpa. Em contrapartida, via-se uma das gavetas entreaberta.

Aproximando-se, Âmbar viu o famoso caderno. Pegou-o, folheou-o, leu uma frase, depois outra e ainda uma outra, ao acaso. Era só sobre Romaric. Âmbar ficou febril. Com certeza ia ficar sabendo de muita coisa! Estava se preparando para continuar a leitura, quando ouviu o ferrolho do banheiro abrir-se.

— Tinha que ser... — resmungou. — Em geral, leva um tempo danado para arrumar o cabelo!

Saiu precipitadamente e meteu-se no próprio quarto. Esticando-se na cama, pegou uma revista e fingiu ler. Alguns instantes depois, bateram à porta.

— Quem é?

— Corália!

— Entre...

Corália botou a cabeça no vão.

— Fui o mais rápida que pude. Pronto, está livre. Não sabia que você ia voltar do tênis tão cedo!

— Não faz mal... Obrigada.

Âmbar ouviu a irmã retornar a seu quarto e lá se fechar. Ficou um momento a meditar sobre os pequenos segredos de Corália, que a deixavam doente de curiosi­dade. Por que tinha tanta dificuldade de suportar o fato de que a irmã possuísse segredos? Depois que Corália deu início ao diário, quando voltaram do Mundo In­certo, passou a fazer muito menos confidencias à irmã gêmea. Âmbar ficou magoada... Virou-se na cama, massageando as têmporas.

Tinha ficado doente três dias seguidos e a dor de cabeça continuava. O médico diagnosticou resfriado forte, a entupiu de ordens e instruções e a abandonou com uma fadiga extrema. Sem que pudesse explicar, estava convencida de que a dor de cabeça tinha ligação com os sonhos perturbadores que vinha tendo há algum tempo. Nunca ficara doente antes! Antes de quê, a pro­pósito? Antes da estada no Mundo Incerto...

De repente, sentiu-se melancólica. Precisava de ânimo. Abriu a gaveta da mesa-de-cabeceira e tirou três folhas de papel, amassadas de tanto terem sido manipu­ladas. Leu o começo da primeira:

 

Querida Âmbar,

Vi Guillemot ontem. Veio visitar-me em Bro­motul. Disse que você estava doente. Achei estra­nho, é difícil imaginar você doente! Enfim, espero que fique boa logo e que não nos faça falta nas fes­tas de Samain! Espero com impaciência esse mo­mento em que todos vamos nos rever! Já lhe contei do meu treinamento para Escudeiro?...

 

A menina sorriu. Bem que gostaria de ser Escudeira, se a Confraria fosse menos conservadora, mais aberta ao seu tempo!

Pensou no diário da irmã e lamentou não ter podido descobrir mais coisas sobre seus arrulhos com Ro­maric... Dobrou a carta deste último. Apanhando a se­gunda folha, percorreu a caligrafia de Gontrand:

 

... um verdadeiro triunfo! Em suma, eis-me recebido na Academia de Música de Tantreval! Não fique com inveja, minha cara. Um dia, também vai encon­trar seu caminho (independentemente do que se diga!). Mas Guillemot informou-me que você estava de cama com uma febre cavalar. Não é brincadeira, hein? Estamos todos vivendo em função das festas de Samain! Portanto, fique boa logo!...

 

Será que achavam que não estava tão impaciente quanto eles para encontrá-los nas festas de Samain, em Dashtikazar, no mês seguinte? Em todo caso, receber as cartas a tinha reconfortado enquanto tremia de frio no quarto. Pegou a última folha, a carta de Guillemot, tam­bém a mais amassada...

 

...em Dashtikazar, para o Samain.

Um beijo, Guillemot

 

Um beijo! Tinha lido e relido aquela frase cem vezes. Sabia muito bem que não queria dizer grande coisa: beija-se a irmã, a mãe, o avô! Bem, mas estava lá.

Ouviu passos no corredor. Deu um beijo furtivo na carta de Guillemot, depois guardou as três folhas na gaveta. Pulou da cama e correu para o banheiro, antes que mais alguém se trancasse lá.

 

— Guillemot!

Guillemot ergueu os olhos do caderno e olhou para o homem de cabeça calva e óculos grossos, com a camise­ta meio aberta sobre o peito magro. Era professor de his­tória e de geografia deles já há dois anos. Dois anos e um mês e meio.

— Sim, senhor?

— Que tal você descrever aos colegas o Mundo Incerto como o viu?

Guillemot suspirou.

Depois dos acontecimentos extraordinários do verão, sua vida tinha mudado muito. Para começar, entrou na quarta série e teve que se familiarizar com um monte de matérias novas, como as instituições de Ys, geometria e atletismo. Depois, a celebridade recente atraía inúmeros sinais de amizade da parte dos outros meninos e meninas do colégio. Por fim, essa mesma celebridade lhe valia todas as atenções dos professores... Sobretudo a do professor de geografia. Sem essas aten­ções, talvez até pudesse encontrar prazer em vir à escola!

Guillemot sentiu pousar sobre ele o olhar insistente do professor e os olhares cheios de esperança de toda a turma, muito feliz em escapar da aula e passar o final do tempo escutando. Finalmente, decidiu-se:


— O Mundo Incerto — começou, em meio a murmú­rios de alívio — é um dos Três Mundos.

— Quais são os outros dois mundos, Camila? — o pro­fessor perguntou de repente a uma aluna que se pôs a conversar no fundo da sala.

— Hã... O Mundo Certo e o País de Ys? — respondeu ela.

— Exato. E vamos deixar de papo, por favor! Conti­nue, Guillemot.

— Chega-se lá através de uma das Portas situadas numa colina, ao lado de Dashtikazar...

— Cédric, todo mundo pode usar essas Portas? — tor­nou a perguntar o professor a um aluno que sonhava acordado, olhando pela janela.

— Perdão? Não ouvi a pergunta, professor...

— Meu Deus! — irritou-se o professor. — Por que não está escutando? Guillemot viveu uma aventura única! Você deveria ter consciência disto e ouvir.

— Então — prosseguiu Guillemot, pacientemente — somente os Feiticeiros podem utilizar essas Portas. A do Mundo Incerto conduz a territórios imensos e selvagens. As pessoas que lá vivem são bastante rústicas. E preciso dizer que não têm escolha: têm de conviver com mons­tros como Orks ou Gommons, mas também com homens cruéis como o Comandante Thunku, que gover­na a cidade de Yâdigâr. Esse bruto possui um exército de verdadeiros crápulas, que só pensam em pilhagem e guerra. Ao lado de pessoas mais ou menos normais, encontramos tribos estrangeiras: os Homens das Areias, por exemplo, que vivem no meio de um deserto vivo, o Deserto Voraz, que come tudo o que não for de pedra! O Povo do Mar, que vive em jangadas sobre o Mar das Queimaduras, infestado de medusas...

À medida que contava suas lembranças do Mundo Incerto, Guillemot sentia a excitação crescer. Toda a turma estava, então, cativada, e o professor exibia um sorriso triunfante.

— ...os Homenzinhos de Virdu são do tamanho de crianças e exploram minas de pedras preciosas; são os banqueiros do Mundo Incerto. Vestem-se com casacos muito confortáveis! Também existem negociantes, como aqui. Mas eles são obrigados a contratar os servi­ços de mercenários para proteger seus comboios dos ladrões. A maior cidade se chama Ferghânâ. E a cidade gêmea de Yâdigâr. Uma estrada de pedra liga as duas. Entre os dois territórios há uma cidade chamada Yénibohor. E ocupada por padres aparentemente indese­jáveis! Todo mundo tem medo deles.

O professor, de pé junto do quadro-negro, desenha­va a giz o mapa do Mundo Incerto, seguindo as indica­ções de Guillemot.

— O mar que contorna Ferghânâ chama-se mar dos Grandes Ventos e, bem no alto, em cima da Ilha do Meio — sublinhou o menino, fazendo um gesto para o profes­sor —, ficam as estepes do Norte Incerto. São habitadas por guerreiros nômades. Ao leste, existe uma floresta grande como um mar, que tem o nome de Irtych Violeta. Acho que ninguém sabe o que há lá atrás.

— E ao sul? — inquiriu o professor.

— Só deserto, a perder de vista — hesitou Guillemot.

— Aí também não se sabe o que há... A oeste, fica o Oceano Imenso. Aparentemente, é guardado por mons­tros marinhos.

Um silêncio acolheu esse último detalhe. Cada um a seu modo imaginava o universo que Guillemot acabava de descrever, achando que o País de Ys, apesar de suas terras misteriosas e densas florestas, seus Feiticeiros e Korrigãs, era, afinal, um bocado banal!

— Alguém quer fazer alguma pergunta a Guillemot? — perguntou o professor.

No mesmo instante, a campainha que indicava o fim das aulas soou. O professor interrompeu bruscamente a agitação que tomou conta da sala, anunciando:

— Só vão sair depois de copiarem o mapa do Mundo Incerto nos cadernos. Haverá um teste sobre isso amanhã!

Apesar dos protestos, todos tornaram a sentar-se, com pressa de desenhar o mapa.

— E claro que você está dispensado deste exercício — especificou a Guillemot. — Obrigado pela contribuição a esta aula de geografia um pouco... especial! Você pode ir.

Guillemot não esperou que repetisse. Cumprimen­tou o professor educadamente e deixou a sala.

Atravessou depressa o pátio do colégio. As grandes faias começavam a tomar belas cores castanhas e doura­das, mas mal as olhou. Apressava-se para transpor o portão quando ouviu uma correria atrás. Voltou-se e per­cebeu Ágata de Balangru e Tomás de Kandarisar, os dois terrores do estabelecimento, vindo em sua dire­ção...

— Guillemot! Você está aí! — exclamou Tomás, um menino forte e rechonchudo, de cabeleira ruiva.

— Estamos procurando você por toda parte desde de manhã — explicou Ágata. — Estou dando uma festa em minha casa esta tarde e seria genial se pudesse vir!

Guillemot observou a menina alta, um pouco magra, que sorria, a boca grande demais. Quem diria que antes de arrancá-la das garras do Comandante Thunku, no Mundo Incerto, era sua pior inimiga e seu mais horrível pesadelo! Hoje, Ágata de Balangru não sabia mais o que fazer para se mostrar agradável...

Guillemot sentiu uma leve picada no coração. À força de tanto a olhar, afinal, não a achava tão má assim. O caráter que se lia em seus traços, aliado ao magnetis­mo que irradiava, substituía a beleza que não tinha...

Mas o rosto severo de Âmbar irrompeu em seu espí­rito, e ele se recriminou por esses pensamentos.

Quanto a Tomás, a fera que tinha salvado das garras de um Gommon numa praia de Ys, embora retomando seu lugar ao lado de Ágata, continuava com o olhar per­dido de admiração pelo Aprendiz de Feiticeiro!

— Que pena, Ágata — respondeu Guillemot, com um suspiro sincero. — Seria um prazer, mas... tenho que me encontrar com o Mestre Qadehar. Ele está me esperando.

Com efeito, lamentavelmente, os ensinamentos de Qadehar, seu Mestre Feiticeiro, depois da volta tinham se intensificado! Ao ponto, aliás, de lhe roubarem a tarde de quarta-feira...

— Paciência — disse Ágata, expressando decepção. — Fica para a próxima vez.

— Isso. Divirtam-se!

Guillemot fez um gesto, ao mesmo tempo se descul­pando e dizendo adeus, depois foi-se. Estava atrasado. E Mestre Qadehar não gostava de esperar.

 

— Cinco minutos mais e eu ia procurar você! — excla­mou Qadehar, o Feiticeiro.

Ofegante, Guillemot acabava de surgir ao pé do dólmen onde o Mestre marcava os encontros de trabalho, nas colinas que dominavam Dashtikazar.

— O senhor ainda tem medo que um Ork tente me levar? — perguntou o Aprendiz, demorando a recuperar o fôlego.

— Tenho mais medo de que você se distraia e esque­ça a hora da aula!

Qadehar desceu agilmente da enorme laje de granito em que estava instalado, aguardando Guillemot.

Sua estatura era de atleta: o rosto quadrado, o cabe­lo curto. Os olhos eram azul-aço. Tinha a voz quente e o sorriso benevolente que lhe vinha freqüentemente aos lábios adoçava sua expressão de dureza. Era difícil atribuir-lhe uma idade: talvez tivesse em torno de trinta e cinco, quarenta anos. O casaco escuro e a sacola de lona que sempre usava indicavam que pertencia ao mundo da magia. Mestre Qadehar, inimigo jurado da Treva, era o Feiticeiro mais famoso da Guilda.

— O que vamos fazer hoje, Mestre? — perguntou Guillemot.

— Vamos andar pelo mato. O tempo está agradável, portanto, vamos fazer exercício! É claro, aproveitare­mos para trabalhar um pouco...

Guillemot acolheu o programa com ar satisfeito. Os passeios com o Mestre eram freqüentemente ocasião para se abordar assuntos que ultrapassavam o quadro restrito de seu aprendizado! Puseram-se a caminho em meio à urze e às giestas. Ao cabo de alguns metros, Qa­dehar se pôs a fazer perguntas ao Aprendiz.

— Você sente, Guillemot, que se apropriou definiti­vamente dos vinte e quatro Grafemas?

— Sim, Mestre. Basta eu fechar os olhos e lá estão eles, todos brilhantes.

— Você faz esforço, todos os dias, para se manter em contato com eles?

— Sim, Mestre. Chamo-os ao meu espírito pelo nome e eles ronronam.

— Você sabe como utilizar os Grafemas?

— Sei projetá-los, gritando ou murmurando os nomes. Sei reforçá-los, adotando Sthada. Sei ligá-los entre si, entrelaçá-los, compondo Galdr, encantamen­tos...

— O que é um Galdr?

— E um sortilégio, Mestre, no qual se utilizam os Grafemas como palavras numa frase...

— O que é um Grafema, Guillemot?

— É uma letra de um alfabeto mágico, escrito nas estrelas, que permite acesso ao Wyrd.

— E o Wyrd, o que é?

— É uma espécie de teia de aranha gigantesca, cujos fios estão ligados a tudo o que existe. Os Grafemas, ao se abrirem para o Wyrd, permitem que se aja sobre todas essas coisas.

— Quais são as duas melhores armas do Feiticeiro no Wyrd?

— A prudência e a humildade.


— Agora, qual é o Grafema da viagem?

— Raidhu, a Carruagem de Nerthus, o quinto, pela ordem.

— Existem Grafemas maus e bons?

— Não. Os Feiticeiros é que são maus ou bons. Os Grafemas constituem energias neutras, cujo efeito depende somente de quem os utiliza... Conheço isto um pouquinho, Mestre!

Qadehar sorriu, depois sacudiu a cabeça.

— Você tem resposta para tudo, meu rapaz. E uma qualidade indispensável... para quem quer se tornar negociante, ou para um professor! Mas quando se ambi­ciona tornar-se Feiticeiro, veja, é preciso um pouco mais que isso...

Mal tinha pronunciado essas palavras, recuou com presteza. Adotou o Sthada de Ingwaz e lançou sobre o Aprendiz o poder do Grafema:

— Ingwaz!

Guillemot reagiu imediatamente. Tinha visto seu Mestre adotar a posição do símbolo da Fixação e, preve­nido, adotou a postura de Naudhiz, que neutralizava os ataques mágicos. Foi o tempo exato de invocar para si o Grafema protetor. Deu-se um clarão de luz dourada. O ataque de Qadehar fracassou.

— Nada mal, nada mal — reconheceu o Feiticeiro. — Vejo que você é mais que um garganta!

— De palavra em palavra, a palavra me levará; de ato em ato, o ato me levará, Mestre! — respondeu o Aprendiz com um jeito meio metido.

Era uma das frases que os Feiticeiros tinham tido o cuidado de destacar, no Livro das Estrelas, há muito tempo atrás.

— Olhe só! — ressaltou ironicamente Qadehar. — Você agora se interessa por conselhos sábios?

De volta à postura habitual, o Feiticeiro mantinha-se a alguns passos do aluno. De repente, fez um sinal com a mão na direção de Guillemot.

Desta vez, o Aprendiz não foi tão rápido; só teve tempo de soltar um grito de espanto. Viu-se pregado ao chão.

— Como foi que o senhor fez isso, Mestre? Não fez Sthada e não o ouvi chamar Ingwaz!

— Sim, Guillemot — explicou Qadehar, liberando o aluno do feitiço. — Simplesmente, existe outro meio além dos Sthada de se reforçar ou utilizar silenciosa­mente os Grafemas!

Guillemot, sentado no chão, tinha tirado da sacola o caderno de capa de couro preto no qual anotava tudo o que lhe parecia importante.

— Você me disse há pouco — continuou Qadehar — que sabia usar os Grafemas, gritando ou murmurando os seus nomes, adotando Sthada e ligando-os em Galdr, os encantamentos. Hoje, vou ensinar-lhe a usá-los de uma outra maneira, mais delicada, menos poderosa, talvez mais rápida e mais discreta.

— Estou ouvindo, Mestre! — Guillemot encorajou-o, pois adorava esses momentos em que seu Mestre, dei­xando de lado os nomes entediantes das plantas ou a dinâmica complicada dos ventos, ensinava-lhe as técni­cas da verdadeira magia.

Com a ajuda das mãos, Qadehar desenhou a forma de cada um dos vinte e quatro Grafemas. Seus gestos eram rápidos e vivos. Ao mesmo tempo, explicava ao aluno, pasmo:

— Estes são Mudra, gestos com as mãos no ar, que reproduzem a forma dos Grafemas... Como os Sthada, os Mudra permitem invocar seu poder em silêncio, ou então reforçá-lo. Nesse último caso, basta murmurar o nome dos Grafemas ao mesmo tempo em que desenha a forma.

— E quais são as vantagens e os inconvenientes dos Mudra, em relação aos Sthada? — interrogou Guillemot, franzindo as sobrancelhas.

— Já disse: os Sthada reforçam a força da magia. Mas são de utilização mais lenta, e menos discretos que os Mudra. Sthada e Mudra permitem igualmente reforçar os Galdr. Por exemplo, o Galdr do Deserto, que exige uma grande energia, não poderia funcionar com os Mudra.

— Entendi, Mestre. Se eu estiver com pressa, ou se não quiser que reparem em mim, utilizo os Mudra. Se tiver necessidade de força, utilizo os Sthada!

— Você compreendeu o essencial — aquiesceu Qa­dehar. — O resto virá com a prática! Você domina sufi­cientemente os Sthada?

— Acho que sim, Mestre.

— Perfeito. Vamos então tratar dos Mudra. Dê-me as suas mãos...

O Feiticeiro passou o resto da tarde sentado no chão, no mato, ensinando ao aluno os gestos mágicos. Quando teve certeza de que Guillemot os dominava a todos, le­vantou-se.

— Bem, vamos retomar nosso passeio, meu rapaz. Ainda temos um tempo pela frente. E, depois, preciso falar com você.

O Feiticeiro caminhava sem nada dizer. A seu lado, Guillemot esperava pacientemente que ele rompesse o silêncio — o que não tardou.

— Logo, logo, Guillemot — começou Qadehar —, você terá nas mãos tudo o que é necessário para começar a aprender de verdade a Feitiçaria.

— Quando será, Mestre? — entusiasmou-se o Aprendiz.

— Já disse, logo, logo — respondeu Qadehar, que pare­cia, subitamente, preocupado com um outro pensamento.

A resposta do Mestre o decepcionou, mas Guillemot não insistiu e calou-se, por sua vez. De novo andaram em silêncio no atalho que corria pela terra dos Korrigãs. Em seguida, Qadehar voltou a falar, num tom relaxado:

— Tenho consciência, meu rapaz, de que fui um boca­do rápido com você. Revelo segredos e ensino práticas que um Aprendiz comum só descobre ao cabo de dois ou três anos. Mas se ajo assim, Guillemot, é porque acho que é possível! E, acima de tudo, que é necessário...

— O que o senhor quer dizer, Mestre? — inquietou-se Guillemot, que raramente ouvia Qadehar abrir-se daquele jeito.

— É um menino inteligente, Guillemot. A magia em você é poderosa, e você sabe disso: não bateu num Gommon e imobilizou um Ork? Não abriu a Porta do Mundo Incerto e destruiu o palácio do Comandante Thunku? E então estava aprendendo há apenas três meses!

— Sim, mas o que tem isso a ver com meu aprendizado?

— Lembra dos seus dissabores com os Grafemas no Mundo Incerto, porque não os tinha modificado em fun­ção das estrelas do céu no mundo de lá?

— Claro, Mestre, lembro. Em vez de me ajudar a me concentrar, Isaz congelou dois ladrões! Quanto a Thursaz, que deveria vir em meu socorro contra os guar­das de Thunku, provocou um tremor de terra.

— O problema todo é esse, Guillemot — suspirou Mestre Qadehar. — Você possui um Önd, uma força inte­rior, enorme. Mas ainda lhe faltam os meios para con­trolá-la. Ao iniciá-lo na magia, despertei essa força em você; mas para que ela não provoque outras catástrofes, é preciso que aprenda a dominá-la.

— E vai ser necessário que eu trabalhe muito, não é, Mestre?

Guillemot tinha dito aquilo com um ar tão sério que o Feiticeiro não pôde deixar de sorrir.

— Sim, meu filho. Sei que não é fácil para você, que preferiria passar o tempo com seus amigos e se divertir. Mas nós dois temos uma responsabilidade em relação às forças mágicas. E você e eu estamos presos a um com­promisso assumido sob o selo de um juramento: o meu é ensinar a você a magia e o seu, aprendê-la...

Guillemot viu-se, como se fosse ontem, a apertar a mão do Feiticeiro, misturando o sinal da paciência com o da obediência — traçados na palma da mão de cada um deles com carvão de if. Nunca tinha questionado esse compromisso! Ao tornar-se Aprendiz, encontrou, afinal o seu lugar. Para os amigos, os colegas de colégio e todos os outros que o conheciam e que ele não conhecia, era Guillemot, o Aprendiz de Feiticeiro, aquele que tinha arrancado Tomás das garras de um Gommon e tra­zido Ágata de volta do terrível Mundo Incerto. Via-se com novas responsabilidades, e seguir seu aprendizado com assiduidade constituía a primeira de suas obriga­ções. Sabia disso e aceitava. O fato de seu Mestre re­ferir-se ao juramento o surpreendeu...

— Sei de tudo isso, Mestre. Por que repetir?

— Uma expedição reunindo os melhores Feiticeiros da Guilda — explicou Qadehar, após um instante de hesi­tação — irá ao Mundo Incerto e tomará de assalto o refú­gio da Treva...

— Também sei disso, Mestre — espantou-se Guille­mot. — Mas o que o senhor não me disse — continuou ele, com esperança — é onde a Treva se esconde no Mundo Incerto...

— Isso não tem importância, pelo menos para você — respondeu o Feiticeiro, fazendo um gesto evasivo com a mão. — Por outro lado... o que eu não lhe disse, Guille­mot, é que durante o ataque, você será colocado em segurança no monastério de Gifdu. Não, não proteste, é inútil! Entendo que tenha más lembranças daquele lugar, mas nosso Grande Mago, Charfalaq, tomou essa decisão. A propósito, o Prefeito, e até mesmo a sua mãe, estão de acordo, achando que é uma precaução razoável. Quem sabe como a Treva reagirá ao nosso ataque?

Guillemot abriu a boca para protestar, mas o tom autoritário de Qadehar o dissuadiu. Logo seria trancado em Gifdu, de onde teve que fugir para encontrar os ami­gos! Mesmo imaginando que, mais dia menos dia, vol­taria ali, nunca pensou que fosse tão cedo e daquela ma­neira! Maldisse Charfalaq intimamente, aquele velhote manhoso, que o deixava de cabelo em pé e, naquele momento, impunha o seu retorno ao monastério.

Calculou o número de dias que faltava para as festas de Samain: ufa! Tinha uma margem... Voltaria a Dashtikazar a tempo de usufruir das férias com Romaric, Gontrand, Âmbar e Corália. E, depois, se fosse o caso, simplesmente fugiria outra vez!

A perspectiva de tornar a encontrar Geraldo, o Feiti­ceiro bonachão da informática, e Qadwan, o velho profes­sor do ginásio, ajudou a tornar menos desagradável a idéia do retorno a Gifdu. Guillemot voltou-se para Qadehar:

— Quando devo partir?

— Vamos à noite. O tempo de você pegar as suas coi­sas e se despedir da sua mãe e de eu arrumar um cavalo com o seu tio.

— Tão depressa assim? — exclamou Guillemot. — Mas por que? O que está acontecendo?

— Tendo consultado os astros, nosso Grande Mago decidiu adiantar o ataque contra a Treva. Estava previs­to para o mês que vem. Mas acontecerá daqui a uns dias.

 

Guillemot reviu, sem prazer, um dos quartinhos que davam aos visitantes, na parte alta do monastério e que, ainda desta vez, compartilhava com seu mestre. Era parecido com aquele que tinham ocupado na passagem anterior por Gifdu: simples e limpo, com duas camas, uma mesa, duas cadeiras e um banheiro adjacente. A diferença era que este não se situava na ala sul, no ter­ceiro andar, onde a vista ia longe, além das gargantas. Depois de sua fuga, com uma corda, no verão passado, tomaram o cuidado de mantê-lo distante das fachadas externas.

A janela do cômodo abria-se, portanto, do segundo andar, para o pátio interno, cercado por uma arcada onde os Feiticeiros gostavam de passear e conversar, em fren­te ao portão maciço por onde se entrava no monastério.

Como da primeira vez, logo sentiu-se sozinho. O Mestre, com quem dividia o quarto, era sempre solicita­do e de todos os lados. Com efeito, trinta Feiticeiros, dos mais poderosos da Guilda, tinham sido escolhidos para dirigir o ataque à Sombra, e Qadehar, designado o chefe...

O monastério de Gifdu, a cúpula da Guilda, estava, portanto, em grande efervescência. Guillemot rapida­mente constatou: uma multidão de Feiticeiros zanzava pelos corredores com ar atarefado e, até mesmo Geral­do, o mestre dos computadores, com quem se entendia muito bem, em função disso, contentou-se com um aceno rápido de mão para saudá-lo. Quanto a Qadwan, o velho Feiticeiro responsável pelo ginásio, também tinha pouco tempo, como os outros, para lhe conceder. A única pessoa que parecia apreciar suas visitas era Eugênio, o Feiticeiro encarregado do correio do monas­tério que, naqueles dias, bem mais que de costume, via-se debaixo de toneladas de correspondência.

Para disfarçar o tédio e a decepção de ter sido excluí­do dos preparativos da expedição, Guillemot dedicava uma hora ou duas à triagem das cartas, antes de retomar o caminho das bibliotecas. Pegava os corredores que só as Pedras Falantes — pedras com inscrições indicando as direções a seguir — permitiam distinguir umas das outras. O monastério era imenso, tanto na superfície como no subsolo, e seus corredores, todos parecidos, formavam um verdadeiro labirinto. Os Aprendizes que iam ali pela primeira vez perdiam-se constantemente, enquanto não descobriam o segredo das Pedras Falantes...

Naquela manhã, Guillemot demorou-se na Biblio­teca do Mundo Incerto. Tinha passado ali bastante tempo no verão anterior, preparando sua escapada. Nem um volume nas prateleiras de metal da saleta escapou à sua curiosidade!

Na espaçosa sala de lambris da Biblioteca de His­tória, lendo um capítulo sobre a história de Gifdu, ficou sabendo que o monastério tinha sido construído qui­nhentos anos antes de Dashtikazar, a velha capital de Ys — com mil anos.

Seus passos o levaram em seguida à Biblioteca da Natureza, com seus animais empalhados, onde viu um documentário sobre gaivotas. Na saída quase abalroou um Feiticeiro apressado...


— Upa! Desculpe!

— Não foi nada. Mas tome cuidado da próxima vez!

Guillemot olhou com curiosidade o sujeito, que arrumava o colarinho da camisa. Seu manto de Feiti­ceiro, imaculado, parecia novo em folha. O jovem apa­rentava uns dezesseis anos. Tinha cabelo bem comprido, penteado para trás, e estatura mediana, mas aparência vigorosa. Os olhos escuros eram zombeteiros e os lábios pareciam estar sempre sorrindo, irônicos. O tom da sua voz era insolente. Por fim, fato raro em Ys, usava barbicha no queixo e bigode ralo.

— O senhor é novo? Ainda não o tinha visto — decla­rou Guillemot, após tê-lo examinado.

— Eu também não tinha visto você — respondeu o jovem Feiticeiro, num tom de voz que deixava entrever sarcasmo. — Nada surpreendente, aliás, pequeno como é...

— Pode ser perigoso fiar-se nas aparências — respon­deu Guillemot, insensível aos ares arrogantes do jovem. — Veja Charfalaq, nosso Grande Mago: parece ser um Feiticeiro poderoso, não é? E, no entanto, é um velho maluco!

O jovem Feiticeiro ficou um instante parado, de estupor, depois caiu na gargalhada. Deu um tapa amigá­vel no ombro de Guillemot:

— Um garoto impertinente, dotado de humor... Não será você o Guillemot, de quem todo mundo fala?

— Espero que não tenha acreditado em tudo o que dizem...

— Até aqui, sim. Mas como contam que você é gran­de como um urso e que seus olhos lançam relâmpagos, daqui em diante serei mais crítico!

— Mas tenha cuidado, mesmo assim — continuou Guillemot: — grande como um urso está claro que não sou, mas quanto aos relâmpagos...

— Ah, deixa para lá, você não me impressiona. E não me chame de senhor que sinto-me um velho gagá! Meu nome é Bertram — prosseguiu, dando a mão a Guillemot, que a apertou com franqueza.

— Encantado, se posso me permitir — respondeu Guillemot, arremedando a voz de Geraldo, que o tinha acolhido com essa frase na ocasião de sua primeira vinda ao monastério.

— Pare com isso também! Para seu governo, Geraldo é... enfim, foi... durante cinco anos meu Mestre Feiticeiro!

— Cinco anos? Achei que bastavam três para se poder usar o manto da Guilda...

— Olha o respeito... — ironizou Bertram. — Na verda­de, Geraldo é um sádico, um Mestre muito mais exigen­te que os outros. Nada a ver com Qadehar, por exemplo, que é uma verdadeira babá...

— Não acredito numa palavra disso — declarou Guillemot, sério, desconcertando por um momento o Feiticeiro recém-formado. — E melhor dizer a verdade.

— A verdade, jovem e presunçoso Aprendiz, é que tenho todas as qualidades para ser um grandíssimo Feiticeiro, só isso. Só Geraldo achava que eu era, como dizer?, um tanto louco... um cachorro novo louco! Foi o que disse de mim durante cinco anos.

— E o que fez com que ele mudasse de opinião?

— O medo de eu o acabar mordendo!

— Não tente sempre escapar com brincadeiras — disse Guillemot, olhando-o diretamente nos olhos. — Isso, comigo, não pega.

Bertram observou o menino de pé à sua frente; por um instante pareceu-lhe que ele era o Aprendiz e Guille­mot o Feiticeiro. Sacudiu os ombros, para espantar aquela impressão desagradável.

— E por que eu deveria justificar-me diante de um menino?

— Não sei — disse Guillemot, franzindo as sobrance­lhas. — Talvez porque eu seja o único, além de Geraldo, que não teme o seu ar altaneiro e desdenhoso!

— Era só o que faltava! — exclamou Bertram. — Que garoto chato!

Pela primeira vez em muito tempo alguém corrigia Bertram. Mas, o pior é que não se envergonhava...

— Bem — aquiesceu Bertram. — De acordo! Mas, vamos e venhamos, já que temos que fazer confidencias um ao outro, selemos um pacto de amizade. Dê-me sua mão...

Guillemot estendeu-a sem hesitar. Bertram tirou um pedaço de carvão de if da sacola e desenhou nela o signo da amizade. Fez o mesmo na própria palma. Em segui­da, eles apertaram vigorosamente as mãos, misturando os traços de carvão.

Guillemot insistiu:

— Agora que somos amigos oficialmente, por que Geraldo mudou de opinião, permitindo-lhe fazer o jura­mento dos Feiticeiros?

— Porque prometi me comportar — respondeu Ber­tram com uma piscadela de olho.

Guillemot teve a sensação de lhe estarem dando uma volta, mas não pôde retrucar pois foram interrompidos por Eugênio, carregado de uma quantidade impressio­nante de correspondência, que ainda precisava dele. Guillemot deixou Bertram, marcando um encontro no refeitório na hora do jantar. Enquanto acompanhava Eugênio em direção ao pombal, onde se encontrava o correio do monastério, disse a si mesmo que a estada em Gifdu prometia, graças ao jovem Feiticeiro, ser menos entediante que o previsto.

 

Na hora da refeição, aqueles hóspedes do monasté­rio que não optavam por jantar tranqüilamente no quar­to agrupavam-se, por afinidades, em torno das mesas de madeira do refeitório. Feiticeiros e Aprendizes serviam-se, à vontade, quantas vezes quisessem, num balcão, sobre o qual o mestre-cuca depositava diversos pratos, também de várias qualidades.

Bertram e Guillemot estavam sentados à mesma mesa, na companhia de um Feiticeiro oriundo do outro extremo do País de Ys, que tinha vindo mostrar Gifdu a seu Aprendiz, o qual não parava de arregalar os olhos.

Tendo engolido toda a porção de frango com ervilha, Bertram inclinou-se em direção a Guillemot:

— Você vai ver só...

Invocou, num Mudra discreto, Laukaz, o Grafema em forma de gancho, utilizado em todos os processos de crescimento, e o dirigiu à cadeira do Intendente Geral de Gifdu, um homem alto, barbudo e de ar severo. Logo, o assento ficou um metro mais alto, elevando o Feiticeiro acima da mesa.

— Quem fez isso? Quem fez isso? — berrou o Inten­dente enquanto os vizinhos de mesa o ajudavam a des­cer, contendo o riso.

Bertram só fez abaixar a cabeça, com o sorriso irôni­co preso aos lábios. À sua frente, o Feiticeiro da provín­cia e seu Aprendiz só tinham olhos para o furioso ho­mem de barba.

“E inacreditável”, pensou Guillemot, siderado. “Ele tem a maturidade de um Aprendiz no início do ciclo! Como Geraldo permitiu que se tornasse Feiticeiro?”

— E para me vingar de todas as troças para calouros que esse velho mocho me fez passar — explicou Bertram no ouvido de Guillemot. — Venha, vamos, não fiquemos aqui mofando...

Guillemot hesitou um instante, mas ao notar o olhar malvado que lhe lançava o Intendente Geral, apressou-se a seguir o jovem Feiticeiro. Depois do episódio da falsa Pedra Falante, que tinha fabricado com papier mâché, provocando uma perambulação dos bandos de Aprendizes pelas lavanderias do subsolo, tinha se torna­do a ovelha negra do Intendente Geral!

— Eu achava que não tínhamos o direito de usar ma­gia contra outros Feiticeiros — espantou-se Guillemot, quando se afastaram.

— Obedecer à risca não é muito divertido — resmun­gou Bertram, jogando o cabelo para trás, com um movi­mento de cabeça. — Além do mais, se é verdade o que dizem, quem é você para me dar lição de moral!

Guillemot hesitou antes de responder. “Ele próprio”, disse a si mesmo, “não passava de um Aprendiz, en­quanto Bertram era, oficialmente pelo menos, um ver­dadeiro Feiticeiro. Um jovem Feiticeiro, ainda em for­mação, é claro, mas isso bastava para fazer a diferença!” Guardou as reflexões para si, atendo-se aos argumentos de Bertram.

— Tem razão, mas mesmo assim, coitado do Inten­dente...

— Não vai morrer por causa disso! E, depois, mere­ceu! Chega deste assunto. Acompanhe-me: vou levar você para ver uma coisa realmente apaixonante!

— Ah, é? E o que é?

— Você é curioso demais. Você vai ver... Andaram algum tempo pelos corredores, Bertram dando de ombros, e Guillemot, como de costume, mer­gulhado em seus pensamentos. Alguma coisa em Bertram intrigava Guillemot. Era seu sotaque, que não se parecia com nada conhecido em Ys. O Aprendiz deci­diu colocar francamente a questão.

— Diga, Bertram, de onde você é, em Ys?

Bertram hesitou por uma fração de segundo, depois respondeu:

— De um buraco perdido, como você. Em Ys, só há buracos perdidos. Aliás, ao que parece, chamam-se vila­rejos...

— Está tentando se esquivar. Já disse que isso não dá certo comigo...

— Venho da aldeia de Jaggar, nas Montanhas Doura­das. E aí, está satisfeito?

Bertram acelerou a marcha, com ar contrariado. Guillemot mordeu os lábios. A aldeia de Jaggar tinha sido dizimada alguns anos atrás pelos bandos da Treva, pouco antes dos Cavaleiros do Vento expulsarem os Orks e seu senhor para a escuridão do Mundo Incerto, de onde tinham saído! Bertram com certeza teria paren­tes e amigos entre os mortos, encontrados aos montes pela estrada...

— Bravo, Guillemot — disse ele a si mesmo. — Você não erra uma!

Aproximou-se do jovem Feiticeiro.

— Hum... Desculpe, Bertram. Lamento muito. Eu não devia ter...

— Não, deixe para lá. Você não pode fazer nada e nem eu.

Bertram logo retomou seu ar de soberba, tornando a fazer aquela cara exasperante. Guillemot até ficou satis­feito de vê-lo voltar a ser ele mesmo. De repente, Ber­tram fez-lhe sinal para calar-se. Aproximaram-se silen­ciosamente de uma porta entreaberta que dava para um salão.

Lá dentro, Qadehar e os Feiticeiros escolhidos para conduzir o ataque à Treva faziam uma seqüência de pos­turas e de gestos.

— O que estão fazendo? — perguntou Guillemot, interessadíssimo na cena que se desenrolava diante de seus olhos.

— Treinando para dominar os Grafemas do Mundo Incerto. Nossos Grafemas funcionam de maneira dife­rente lá.

— Sim, eu sei — interrompeu Guillemot. — Eu, ao pro­jetar Thursaz, desfiz um nó telúrico!

Bertram observou Guillemot com visível interesse.

— Geraldo disse-me que você possui o Önd mais poderoso que ele já viu.

— Foi isso o que me disse também o mestre Qadehar — acrescentou Guillemot, com modéstia. — Sabe, não é grande mérito meu! Parece que já nasci assim.

— Puxa vida! Que sorte! Se eu tivesse apenas a meta­de da sua força mágica, seria, com os meus talentos, o Feiticeiro mais poderoso da Guilda!

Guillemot ficou espantado com a altivez que exibia a cara do amigo.

“Que presunçoso!”, pensou.

Se a impertinência de Bertram o divertia, sua auto-suficiência o irritava.

— O orgulho pode ser um péssimo defeito — acabou dizendo.

— Não é orgulho, é a verdade! — insurgiu-se Bertram.

— Sou um Feiticeiro um bocado brilhante, acredite!

— Fazer uma cadeira erguer-se no refeitório não é façanha tão grandiosa assim — objetou Guillemot. — Escute, Bertram, quero muito permanecer seu amigo, mas com a condição de você deixar de lado a sua pre­sunção. Acredite nestas palavras: é muito perigoso esquecer que Prudência...

— ...e Humildade são as palavras-chave do Feiti­ceiro! Pare com isso, por favor! Parece que estou ouvin­do meu Mestre!

— Talvez o tenha ouvido, mas não o levou a sério o bastante — retorquiu Guillemot. — Se tivesse passado o que eu passei, pensaria como eu. Com o Wyrd não se brinca.

Desta vez Bertram nada encontrou para responder. Considerou Guillemot, que o encarava, de mãos na cin­tura, tremendo de emoção e, subitamente, sentiu-se pequeno diante daquele Aprendiz, com a maturidade de um Mago. Aquele menino devia ter vivido coisas terrí­veis! Coisas que o tinham obrigado a crescer depressa demais...

— De acordo — admitiu o jovem Feiticeiro. — Você tem razão. Há coisas com as quais não se pode brincar.

Um sorriso veio iluminar o rosto de Guillemot.

— Não é bem isso — especificou este, piscando o olho para Bertram. — Podemos brincar com tudo, mas não devemos desprezar nada.

Nesse instante, Qadehar percebeu a presença dos meninos atrás da porta e pôs um fim ao intercâmbio filo­sófico, mandando-os para os quartos, num tom que não admitia qualquer réplica. O Aprendiz e o Feiticeiro jovem demais sumiram dali sem dizer palavra.

 

Guillemot não conseguiu pegar no sono. Virando-se na cama, procurou posição para poder adormecer. Em vão. Deu uma olhada na cama do Mestre. Este ainda não tinha voltado. Devia estar ainda trabalhando com os Feiticeiros na sala que Bertram e ele tinham descoberto.

Por que o Mestre Qadehar não aproveitava aquele momento excepcional para mantê-lo junto a si? Afinal, era seu Aprendiz! E ali estava um meio excelente de se aprender uma porção de coisas!

Guillemot mexeu a cabeça no travesseiro buscando um canto mais fresco. Sentia calor. Com certeza, o Mestre Qadehar tinha as suas razões. Até as tinha reve­lado: temia ir depressa demais com ele no caminho da magia. Mas esse temor contradizia um outro medo: o de que Guillemot não tivesse suficiente conhecimento, e experiência, para dominar sua força... Guillemot agitou-se ainda um tempo sobre os lençóis, depois levantou de um salto. Tinha tomado uma decisão: ia descer à sala de treinamento e dar uma espiada. Só uma espiada.

Vestiu-se, apanhou um candelabro e saiu do quarto sem ruído. Enfiou-se pelos corredores, encostado às paredes, parando com o coração a bater a cada esquina. Não tinha vontade alguma de justificar sua presença num corredor àquela hora da noite, diante do Intendente Geral! Com a mão protegia a pequena chama da vela, que projetava no teto uma luz vacilante, mas clara. Felizmente, era tarde e não cruzou com ninguém.

Logo viu-se diante da porta, que permanecia entreaberta, pela qual escapava um raio de luz no chão. Apro­ximou-se, prendendo a respiração e olhou lá dentro.

Os Feiticeiros estavam todos reunidos em volta de Qadehar. Sentia-se que estavam cansados com os exer­cícios do dia. Discutiam. Um deles, um homem seco e nervoso, envolvido num grande manto escuro, dirigiu-se a Qadehar.

— Imaginemos, Qadehar, que eu seja atacado pela própria Treva ou por um de seus prepostos...

— Aí, já pode fazer suas orações! — deixou escapar um outro Feiticeiro.

O comentário provocou risos. Sentia-se que todos tinham necessidade de relaxar.

— Continue, Ulriq — encorajou-o Qadehar.

— Eu estava me perguntando — continuou o Feiticeiro — se não valia mais a pena, no Mundo Incerto, para nos protegermos de um ataque físico ou mágico, utilizar a Armadura de Elhaz ou então o Elmo do Terror.

Guillemot esticou a orelha. Elhaz? Era o décimo quinto Grafema do alfabeto. Desbloqueava situações e tirava obstáculos. Nunca tinha sentido nele poder algum de proteção mágica...

— É uma ótima pergunta — respondeu Qadehar. — Como vocês sabem — continuou o Feiticeiro, dirigindo-se a todos — Elhaz torna-se proteção mágica quando é empregado sob a forma de um Galdr ou de um Lokk! Em caso de ataque físico ou mágico, refugiar-se sob a proteção da Armadura de Elhaz ainda é o meio mais cômodo. Até mesmo no Mundo Incerto...

Qadehar movimentou-se para que todos os Feiti­ceiros pudessem vê-lo.

“Lokk? Que é um Lokk?” espantou-se Guillemot, silenciosamente. “Vou ter de perguntar a Bertram!”

— A Armadura de Elhaz — prosseguiu Qadehar, jun­tando o gesto à palavra — se obtém, associando-se seis vezes Elhaz a si mesmo num Galdr; no Mundo Incerto, como no de Ys, mas levando em conta as novas formas que aí tomam os Grafemas, visualizam-se, depois tra­çam-se no ar ou gravam-se em torno de si seis represen­tações do Elhaz. O encantamento não muda: “Pelo poder de Erda e Kari, Rind, Hir e Loge, Elhaz na frente, Elhaz atrás, Elhaz à esquerda, Elhaz à direita, Elhaz por cima, Elhaz por baixo, Elhaz, me proteja! ALU!”

Qadehar, que tinha desenhado no pó os símbolos e pronunciado as palavras mágicas, logo viu-se ao abrigo de um campo de força, uma espécie de parede invisível, na qual alguns Feiticeiros vieram bater com o dedo. Guillemot estava atônito.

— Conhecemos bem essa proteção — disse um Feiti­ceiro. — Mas será que é eficaz lá, aonde vamos?

— É — respondeu Qadehar, apagando os Grafemas traçados no chão e, ao mesmo tempo, a proteção. — Na condição de se traçar corretamente os Elhaz Incertos! Não é assim tão fácil. E é por isso que não os aconselho, enquanto não dominarem totalmente os Grafemas In­certos, a obter a proteção de Elhaz tendo como cobertu­ra o Elmo do Terror!

— Mas o Elmo é mais poderoso que a Armadura! — espantou-se um homem robusto, cujo manto de Feiti­ceiro estava curto demais.

— É verdade — reconheceu Qadehar —, mas é também de realização mais complexa. Eu explico: obtém-se o Elmo do Terror misturando-se oito vezes o Grafema de Elhaz com ele próprio num Lokk; para isso, desenha-se nos ares, em volta da sua cabeça, ou grava-se debaixo dos pés oito Elhaz misturados, formando uma estrela de oito pontas, cada uma delas terminando num tridente. Obtém-se assim, é verdade, um novo Grafema, Aegishjamur, mais sólido, porque único e concentrado, que os seis Elhaz associados no Galdr da Armadura... Mas basta um só dos oito Elhaz estar malfeito para tornar o Lokk inoperante. Enquanto que, se um dos seis Elhaz necessários à Armadura estiver malfeito, se terá um Galdr frágil, com certeza, mas que, mesmo assim, fun­cionará.

Qadehar fez essa demonstração traçando nos ares, com a ajuda de Mudra, um Elmo do Terror perfeito e um outro defeituoso, uma Armadura perfeita e uma outra cambaia. Os Feiticeiros puderam, assim, verificar que dizia a verdade. Escondido atrás do vão da porta, Guille­mot não perdia uma migalha daquela fabulosa lição.

— Então, Qadehar — concluiu o Feiticeiro Ulriq —, o senhor nos aconselha a, no Mundo Incerto, preferir o Galdr ao Lokk?

— Se está fazendo esta pergunta, é porque não tem experiência suficiente. Então, meu conselho é ir ao mais simples! E o Galdr é sempre mais simples que o Lokk! Agora, meus amigos, está tarde e se tenho outro conse­lho para dar aos senhores é irem deitar-se. Amanhã, o dia vai ser duro!

Todos riram e aquiesceram. Depois, rumaram em direção à saída, em grupos pequenos, comentando a últi­ma aula de Qadehar — o único dentre eles que já tinha ido àquele Mundo terrível que estavam, justamente, preparando-se para descobrir...

Assim que ouviu Mestre Qadehar despedir-se dos Feiticeiros, Guillemot saiu desabalado e voltou ao quar­to. Não tinha entendido tudo da lição que roubara. Mas tinha entendido o suficiente para que novas perspectivas se abrissem à sua mágica! Obtendo, com manha, de uns e outros, as informações que lhe faltavam, superaria rapidamente uma nova etapa em sua iniciação! Com ou sem a ajuda do Mestre.

Qadehar entrou sem ruído no quarto e deitou-se, tomando cuidado para não acordar o aluno. Nem se deu conta de que este não estava dormindo. Guillemot, com efeito, organizava cuidadosamente na memória tudo o que tinha visto e escutado durante a noite, e demorou um longo tempo para pegar no sono.

 

No dia seguinte, Guillemot perambulava pelo mo­nastério à procura de Bertram, quando Qadwan, ligeira­mente afobado, apareceu.

— Faz uma hora que corro atrás de você — resmungou o velho.

— O que está havendo? — perguntou o menino.

— É Qadehar, está esperando no quarto. A viagem está prevista para amanhã e ele quer ver você antes de ir.

Guillemot agradeceu ao Feiticeiro e precipitou-se pela escada.

— Queria ver-me, Mestre? — perguntou Guillemot, entrando no quarto onde Qadehar esperava por ele, sen­tado numa das camas.

— Sim, Guillemot. Consegui uma pausa nos prepara­tivos do ataque. Vamos aproveitar para trabalhar.

— Por que o senhor me exclui desses preparativos? — reclamou o Aprendiz.

— Logo logo será a sua vez de preparar-se para enca­rar o inimigo — respondeu secamente Qadehar. — Apro­veite ainda um certo prazo... E, depois, existem diversas espécies de preparativos. No seu nível, comece prepa­rando-se... para se tornar Feiticeiro!

Guillemot, mordendo o lábio, fez cara de quem acei­tava os argumentos do Mestre e ficou atento.

— O que vamos fazer hoje?

— Vamos treinar a fixação dos Grafemas.

O Feiticeiro tirou da sacola um punhal estranho, curto, com a lâmina afiada. Estendeu-o a Guillemot, que o apanhou com curiosidade.

— E um Ristir, um punhal gravador. Serve para fixar os Grafemas. Eventualmente, pode-se enfiá-lo no pesco­ço de um agressor, caso não se tenha tempo nem possibi­lidade de invocar os Grafemas! Mas aí, é outra história...

— Que belo objeto, Mestre! — exclamou Guillemot, contemplando o punhal com entusiasmo.

— É, acima de tudo, bem prático! Gritados, murmu­rados ou traçados no ar, os Grafemas sempre terminam sumindo. Agem, principalmente, no momento em que são liberados. Se quisermos estender seu poder no tempo, é preciso fixá-los e, portanto, gravá-los... E por essa razão que estão gravados na porta do monastério ou sobre as Portas dos Dois Mundos! Agora, pegue este Ristir e grave no chão os Grafemas um, dois, três, cinco, oito, onze, treze, catorze, quinze, vinte e dois e vinte e três...

Guillemot pegou o punhal gravador e traçou com aplicação, no chão, os Grafemas que o Mestre tinha escolhido no alfabeto das estrelas.

— Fehu, o Espólio dos Razzia; Uruz, a Vaca Ruça; Thursaz, o Gigante e o Espinho; Raidhu, a Carruagem de Nerthus; Wunjo, o Estandarte e a Via; Naudhiz, a Fagulha e a Mão; Isaz, a Brilhante e o Gelo; Eihwaz, a Velha Árvore e o Galho Bifurcado; Perthro, o Cone de Dados; Elhaz, a Avó e o Cisne; Ingwaz, a Rica e o Prego; Dagaz, Luz da Aurora e do Crepúsculo, murmu­rou Guillemot, à medida que reproduzia na poeira a forma dos Grafemas.

— Está bom — reconheceu Qadehar, tendo observado os gestos seguros e precisos de Guillemot.— Um Galdr se fixa do mesmo modo. Escute-me com atenção: cada Grafema, como você sabe, possui um ou diversos poderes. Quando se os evoca, pela boca ou pela mão, nos ares ou sobre um suporte, esses poderes têm um efeito sim­ples e direto. O Galdr associa os Grafemas com o obje­tivo de obter um resultado mais complexo. Assim, para utilizar a Porta dos outros Mundos, o Grafema da Viagem não é suficiente. O da Comunicação entre os universos também não. O da Coesão ainda menos. Lan­ce, separadamente, contra a Porta, as seguintes idéias: “tenho um veículo e quero partir em viagem”, “desejo que se estabeleça uma comunicação entre os Mundos” e “permaneceremos juntos”. Você não vai se ver no Mun­do Incerto! Ao contrário, se você ligar essas palavras para constituir uma frase coerente, vai dar qualquer coisa como: “tenho um veículo e quero partir em via­gem em grupo, portanto, preciso que se estabeleça a comunicação”; aí sim, você chegará ao Mundo Incerto com os seus amigos. Na condição de não esquecer um dos três Grafemas do seu Galdr!

Guillemot enrubesceu. O Mestre fazia alusão ao erro que ele tinha cometido no verão anterior, quando abriu a Porta do Mundo Incerto... Ficou envergonhado. Mas Qadehar não estava zombando dele. Simplesmente esta­va lembrando que era necessário ser prudente na mani­pulação dos Grafemas.

Logo o Feiticeiro levantou-se para partir, visivel­mente satisfeito com o aluno, que entendeu tão depressa a lição. Mas Guillemot o reteve pela manga.

— Mestre, por favor...

— Estou escutando, Guillemot.

— Falaram-me sobre os Lokk. O que é isso?

— Quem falou?

Guillemot hesitou um instante, depois disse:

— Bertram, Mestre.

Qadehar balançou a cabeça, embaraçado.

— Eu tinha em mente abordar esse assunto da magia das estrelas com você mais tarde — disse. — Mas, já que está me falando dele, vou responder à pergunta, sem aprofundar, porém. E um pouco complicado, e depois, no momento, você não está precisando disso...

O Feiticeiro tornou a sentar-se.

— Escute, Guillemot: existe uma outra maneira dife­rente dos Galdr de associar Grafemas entre si — são os Lokk. O Galdr liga os Grafemas, fabrica uma frase com palavras. O Lokk, por sua vez, funde e mistura os Gra­femas, e cria uma nova palavra. O Galdr põe em relação poderes que se somam. O Lokk, de seu lado, mistura esses poderes para obter um novo poder... Parece difícil de entender, não é?

— Sim, Mestre — admitiu Guillemot.

— Bem, imagine que os Grafemas são pedregulhos e que o seu objetivo consista em quebrar uma parede de vidro que o mantém prisioneiro. Usar um só Grafema seria o mesmo que atirar uma pedrinha na parede. Se ela for fina, ou seja, se o seu objetivo for simples, isso bas­tará para quebrá-la. Está me acompanhando?

— Muito bem, Mestre.

— Mas se a parede for mais grossa, a pedrinha não bastará. Será necessário, então, fabricar um Galdr, isto é, reunir diversos pedregulhos, que você lançará de encon­tro à parede de vidro. Isso pode bastar para quebrá-la. Mas, se ela for verdadeiramente espessa, os pedregulhos vão bater e voltar. Essa explicação parece clara?

— Como o vidro, Mestre!

— Hum... Seu danadinho! Então, como é que você vai fazer para atingir o seu objetivo? Vai criar um Lokk, e pegar diversas pedrinhas, que transformará numa pedrona! Como bolinhas de massa de modelar que se junta para fabricar uma bola grande! Porque se você lan­çar contra a parede de vidro uma pedrona, ao invés de diversas pedras pequenas, tem grande chance de quebrá-la... e poder escapar! E esse o princípio do Lokk, em relação ao Grafema utilizado sozinho, e em relação ao Galdr] Entendeu?

— Entendi — respondeu Guillemot.

Guillemot sentia-se exultante. Tinha obtido, sem que o Mestre desconfiasse, resposta para as suas pergun­tas! Além do mais, tinha diversas chaves na mão: basta­va botar mãos à obra.

— Você não imagina as possibilidades que vão se abrir para você quando eu terminar sua instrução! — con­tinuou Qadehar. — Com os vinte e quatro Grafemas do alfabeto das estrelas e os sortilégios de base que você terá assimilado, estará livre para compor sua própria magia! Para misturar ou associar, chamar, desenhar nos ares ou gravar conforme a sua vontade as chaves do Wyrd, de acordo com as suas necessidades! E claro, você terá sempre em mente que... que foi, Guillemot?

— “Que a Prudência e a Humildade ditam os atos do Feiticeiro.”

— Perfeitamente! E nunca esqueça as recomendações do Poema da Sabedoria dos Aprendizes: “Sabe como se deve gravar?...”

— ...“Sabe como se deve interpretar? Sabe como se deve colorir os Grafemas? Sabe como provar? Sabe como pedir? Sabe como sacrificar? Sabe como ofere­cer? Sabe como projetar?... Mais vale não pedir que sacrificar demais; uma doação é sempre recompensada. Mais vale não oferecer que projetar demais...”

— Está bem, Guillemot. Agora, suma. Tenho que ir encontrar-me com meus amigos Feiticeiros.

Guillemot não esperou que ele repetisse. Estava mesmo na hora do jantar! Ganhou a porta. Ali, hesitou, depois virou-se para Qadehar, que tinha se levantado.

— Mestre?

— Estou escutando, Guillemot.

— Tenha cuidado, amanhã.

— Prometo, meu rapaz.

Guillemot sentiu os olhos se embaçarem. Depois, corrigiu-se: que papel estava fazendo diante do Mestre! Acenou para Qadehar e saiu apressado para ir encontrar-se com Bertram no refeitório.

 

No dia seguinte, ao romper o dia, os trinta represen­tantes da Guilda escolhidos para conduzir o ataque ao Mundo Incerto reuniram-se no ginásio. E é claro, Guillemot e Bertram estavam presentes, assim como todos os hóspedes de Gifdu. Quem ia querer perder o acontecimento? Os Feiticeiros que iam participar da expedição demonstravam firmeza, vestidos com os casacos escuros e munidos das sacolas de instrumentos e livros: a Treva seria, sem dúvida, um adversário pode­roso e nada deveria ser deixado ao acaso.

— Acho que jamais se viu uma reunião como esta! — sussurrou Bertram para Guillemot. — Temos aqui o melhor que se conhece em matéria de Feiticeiros!

— Não diga! — ironizou Guillemot. — E você não está entre eles!

— Muito engraçado!

Um tumulto na entrada do ginásio chamou a aten­ção: o Grande Mago Charfalaq, chefe supremo da Guil­da, vinha também assistir a partida da expedição. Curva­do, quase cego, o rosto dissimulado pelo capuz do casa­co, o velho avançou lentamente, com a ajuda de um bas­tão, em direção a Qadehar. Mesmo sendo aquele homem o Grande Mago, ao qual todos deviam solicitude e res­peito, a Guillemot ele inspirava profunda antipatia. Antipatia talvez ligada ao fato de que, no verão passado, o velho Feiticeiro tenha querido retê-lo contra a vontade no monastério! Mas mesmo esse episódio à parte, sem saber por quê, alguma coisa no velho Feiticeiro o aterro­rizava.

Charfalaq segurou a mão de Qadehar entre as pró­prias mãos magras e dirigiu-se aos homens presentes no ginásio.

— Feiticeiros da Guilda — começou, com sua voz rouca — é um grande dia. Talvez estejamos a ponto de pôr um fim na ameaça que a Treva há tempos faz pesar sobre o nosso País de Ys.

O velho foi sacudido por um longo ataque de tosse.

— Decidi confiar a Qadehar a responsabilidade pelo ataque — prosseguiu. — Ninguém mais do que ele está à altura de tal honra.

Aplausos vieram de todas as partes para saudar a de­claração. Charfalaq levantou um braço, traçou nos ares Kenaz, o Grafema do fogo que reconforta e, à guisa de bênção, o empurrou em direção ao grupo de Feiticeiros prontos para partir. Em seguida, afastou-se. Os Feiticei­ros juntaram-se e deram-se as mãos, formando uma cor­rente. Qadehar, na frente, escrupulosamente imitado pelos outros, adotou rapidamente oito posturas sucessi­vas, correspondendo a oito Grafemas. Cantaram todos juntos o Galdr correspondente à seqüência. Mal tinha soado a última palavra e o ginásio se iluminou, pelo tempo de um relâmpago: como que aspirados pelo nada, os trinta Feiticeiros desapareceram bruscamente, diante dos olhares atônitos da platéia.

Tendo a expedição partido, cada um retomou seus afazeres. Charfalaq sumiu, Eugênio retomou seu posto no pombal do monastério e Qadwan voltou a dominar o ginásio. Quanto a Guillemot, privado de seu Mestre, optou por ficar perto de Bertram, que aceitou a compa­nhia, não sem protestar em alto e bom som que não era babá de menino e que se não tivessem selado a amizade com um pacto, ia mandá-lo passear naquela mesma hora. Mas, na realidade, Bertram estava contente!

— Esse Galdr do Deserto é uma coisa surpreendente — confiou Bertram a Guillemot, evocando a partida ful­gurante dos Feiticeiros. — E a primeira vez que o vejo funcionar.

Os dois meninos dirigiram-se à sala dos computa­dores.

— É muito prático — respondeu Guillemot. — Com esse Galdr, não há mais necessidade de Porta! Calcula-se precisamente sua trajetória e se vai de um Mundo a outro com a mesma facilidade que se pode ir de um extremo a outro de Ys!

— Você já viu alguém fazer isso em Ys? — espantou-se Bertram, franzindo as sobrancelhas.

— Sim. Meu Mestre. Um dia, veio em meu socorro entrando numa árvore e saindo num rochedo, a mais de um quilômetro.

— Teoricamente — concedeu Bertram — eu também sei fazer isso! Mas nunca tentei...

— Qadehar diz que é preciso uma experiência sólida do Wyrd para se conseguir esse efeito. Não é aconselhá­vel, portanto, para Aprendizes e jovens Feiticeiros!

Os dois riram. Como tinham chegado a uma bifurcação, verificaram o rumo numa Pedra Falante.

— Aliás — continuou Bertram —, me dá uma coisa ficar aqui enquanto os outros Feiticeiros arriscam a vida contra o Senhor Sha!

Guillemot achou que seu coração ia parar de bater.

— O que foi que você disse? — perguntou ele a Ber­tram, com a voz trêmula. — Senhor Sha?

— Sim, senhor, Senhor Sha! Aquele da torre de Djaghataël. Você não sabia que ele é a Treva?

— A Treva? Como assim, a Treva? — engasgou-se Guillemot.

— Foi Charfalaq quem chegou a essa conclusão — explicou Bertram, que observava Guillemot, circuns­pecto. — De acordo com as descrições feitas por Gontrand, aquele seu amigo que toca banjo, o que escapou da torre de Djaghataël, correndo perigo de vida, consi­dera-se essa torre como o possível feudo da Treva. E como quem a habita, o Senhor Sha, é grande amigo de Thunku, o homem que mandou os Gommons e os Orks para levar você, Charfalaq daí deduziu que Sha e a Tre­va são uma só pessoa... Por que você está nesse estado?

Guillemot não teve vontade de responder. Sentiu uma profunda confusão invadi-lo. Depois que Ágata, na volta do Mundo Incerto, lhe tinha confiado que o Senhor Sha procurava recuperar um menino de sua idade, que talvez fosse seu filho, tinha imaginado todas as suposi­ções, até mesmo as mais loucas. Mas não ousou falar disso com o Mestre, e menos ainda com a mãe! De vez em quando, passava noites inteiras a se perguntar se não lhe mentiam em relação ao próprio pai. Não tinha che­gado a uma conclusão satisfatória... Enquanto isso, saber que seu Mestre ia atrás de Sha, que talvez fosse a Treva, mas que também, com certeza, sabia alguma coisa sobre sua origem, o abalava profundamente.

Sentou-se no chão e, enquanto Bertram, incrédulo, tentava reconfortá-lo, chorou baixinho.

— Estou aqui, Mestre. O senhor queria falar comigo?

— Sim, Lomgo... escriba fiel... Tenho que escrever duas cartas... Duas cartas muito importantes...

O homem com olhos ávidos observava, sem emoção aparente, a forma de contornos indistintos que se agita­va no fundo do cômodo de paredes cinzentas. Havia mesas cobertas de mapas e folhas rabiscadas com escri­turas em código; instrumentos e livros cobriam o chão. O Mestre, naqueles últimos tempos, vinha tendo acessos freqüentes e não habituais de excitação e até mesmo Lomgo, que era considerado seu confidente, ignorava a razão. Ele suspeitava de que a euforia do Mestre estava, de uma maneira ou de outra, ligada àquela criança que procurava há tantos anos e tinha afinal encontrado. Mas, com o Mestre, como ter certeza?

A silhueta envolta em trevas aproximou-se do escriba, impassível, em sua túnica branca comprida. A cabe­ça raspada, pequena, do homem brilhava à luz das tochas, cuja chama vacilava à passagem do Mestre.

— Lomgo, você não será esquecido na hora do meu triunfo... Fiel, sim, escriba fiel...

A voz forte e cavernosa, que fazia tremer os criados da casa, tornou-se carinhosa e Lomgo sentiu-se orgulho­so. Deu alguns passos até à cadeira próxima da única lucarna que iluminava a peça, onde se sentava sempre para escrever, ouvindo o ditado do Mestre. Abrindo a escrivaninha, com a mão na qual faltava um dedo, tirou uma pluma.

— Primeiramente vamos escrever a Thunku... De­pois, escreveremos a nosso amigo... Nosso velho amigo, que se sente bem sozinho em sua torre...

O Mestre soltou uma gargalhada sinistra que, pela primeira vez em muito tempo, gelou Lomgo.

 

Os trinta Feiticeiros tornaram a aparecer nas ruínas da antiga cidade de Djaghataël. Ao abrigo das paredes de uma casa meio arruinada, observavam as vizinhan­ças. Sua chegada ao Mundo Incerto não tinha provoca­do qualquer efervescência.

Na verdade, reinava uma calma assustadora. Um silêncio de morte. As aves marinhas, geralmente tão ba­rulhentas, estavam silenciosas. Aquela atmosfera torna­va-se opressora. Qadehar não perdeu tempo refletindo: era preciso agir. Deu, então, suas últimas instruções e os Feiticeiros avançaram em direção à torre alta que se erguia, sombria e ameaçadora, sobre as falésias que caíam abruptamente no Oceano Imenso.

Mas a apreensão deles, longe de se atenuar, cresceu à medida da aproximação do abrigo do inimigo. Não podiam deixar de lançar olhares inquietos em volta.

— Este silêncio é estranho — ia pensando Qadehar. — E depois está tudo muito fácil. A Treva não é iniciante que se possa surpreender com facilidade! O que está esperando para vir contra nosso ataque com seus sortilégios? Não estou gostando disto!

Chegaram ao pé da torre, diante da única porta de acesso. Sólida, aferrolhada, era protegida por poderoso sortilégio. O silêncio, quebrado somente pelo som regu­lar das ondas que batiam contra os rochedos, em baixo, continuava esmagador. Recuaram para ver melhor a construção.

O Feiticeiro Ulriq aproximou-se de Qadehar.

— Você que conhece os hábitos deste Mundo, sabe o que significa isto?

— Não tenho a menor idéia — reconheceu Qadehar. — Mas, de fato, há algo errado.

— Acha que a Treva nos ouviu chegar e fugiu?

— Essa solução não seria, sem dúvida, a pior — admi­tiu Qadehar, observando a torre com atenção.

De um lado, perceberam vigas fixas na muralha, que subiam em espiral até o topo.

— Sem dúvida foi por aí que Gontrand escapou — anunciou com satisfação Qadehar aos Feiticeiros, que o rodeavam. — Arrombar a porta de entrada nos tomaria tempo demais. Vamos pelo caminho mais fácil: pelas vigas, em sentido inverso, entrando na torre pelo alto!

No mesmo instante, uma algazarra espantosa soou atrás deles. Os Feiticeiros se voltaram como um só homem, adotando todos, instintivamente, o Sthada de Naudhiz, o Grafema da resistência às agressões.

— Não é assim! — berrou Qadehar, ao olhar os condiscípulos. — Estamos no Mundo Incerto, pelo amor de Deus!

Para dominar o alfabeto mágico no Mundo Incerto era preciso, com certeza, proceder a inúmeros ajustes e modificar o aspecto dos Grafemas em função das for­mas diferentes das constelações...

Confusos por terem se enganado daquela maneira, os Feiticeiros retificaram a postura e esperaram, firmes, o ataque que acreditavam ser da Treva. Mas o que rolou sobre eles, brotando das ruínas, nada tinha de treva...

— Orks e Híbridos! — gritou um dos Feiticeiros. — Mas de onde saíram? São centenas!

— Caímos numa armadilha! — murmurou Qadehar. — Estavam nos esperando!

Com efeito, surgindo da antiga cidade, uma multi­dão de Orks, criaturas gigantes talhadas para a corrida e para a luta, e Híbridos, mistura de Orks e seres huma­nos, caíram sobre eles, aos berros, brandindo machados e maças.

Qadehar avaliou rapidamente a situação. O movi­mento de cerco dos monstros era perfeito: os Feiticeiros estavam acuados contra a torre e, mais adiante, o oceano.

— Estamos cercados! — anunciou Qadehar. — Temos que enfrentá-los e combatê-los!

Lamentavelmente, apesar de seu treinamento nos porões de Gifdu, os Feiticeiros estavam habituados a usar o poder dos Grafemas sob o céu de Ys. Surpresos com o ataque em massa e incomodados por seu desco­nhecimento dos Grafemas do Mundo Incerto, faltou-lhes tempo para fabricar o Galdr que os teria posto ao abrigo dos agressores.

Os primeiros Orks foram presos ao chão por Ingwaz projetados de maneira tosca. A segunda vaga foi imobi­lizada por uns Thursaz fracos demais. A terceira chegou perto antes de poderem reagir... Bem ao lado de Qa­dehar, um Feiticeiro levou um golpe de maça cravejada de pregos na cabeça e desabou. Mais longe, outro teve o ventre furado pela lâmina de uma espada e caiu, perden­do sangue. Alguns foram bem-sucedidos por momentos, colocando-se ao abrigo de uma Armadura de Elhaz, embora mal construída. E, como Qadehar tinha previsto, os golpes impetuosos daqueles monstros desabalados acabaram por vencer os Galdr fragilizados devido aos Grafemas tão mal evocados.

Apesar da atitude heróica dos Feiticeiros, que puse­ram fora de combate numerosos monstros, a expedição ao País de Ys foi pouco a pouco dizimada pelos golpes dos brutos sanguinários.

Qadehar repeliu, com a ajuda de um Thursaz proje­tado com raiva, o ataque de um Híbrido gigantesco. Este, grunhindo, desabou na poeira. A seu lado, ao abri­go de uma Armadura de Elhaz que parecia se manter, dois Feiticeiros lançavam encantamentos contra o ini­migo. Adiante, protegidos pelos Sthada de Naudhiz, três outros companheiros enfrentavam os Orks, que babavam. Qadehar varreu o campo de batalha com o olhar. Seis! Só havia seis Feiticeiros de pé, dos trinta que com­punham o grupo na partida de Ys! Cerrou os punhos. Tinham que se pôr ao abrigo, a qualquer preço.

— A torre — gritou, dirigindo-se aos companheiros. — Vamos recuar para a torre!

Deixando a proteção de seus sortilégios, os Feiticei­ros lançaram-se atrás dele. Chegaram diante das vigas vacilantes que conduziam ao topo da torre com uma pequena vantagem em relação ao exército dos Orks.

— Oh, não! — gemeu Qadehar.

Estupefatos, os Feiticeiros contemplaram as tábuas mais próximas do chão, que tinham sido serradas, com o fim de impedir o acesso ao torreão. Atrás, os monstros se aproximavam.

— Não há tempo a perder — disse Ulriq, um dos Feiticeiros ainda vivos. — Vocês quatro, aí! Dois, tomem a postura de Naudhiz, para proteger os outros. Dois, lan­cem Thursaz! Andem! Mas retenham os Orks o maior tempo possível!

Em seguida, voltou-se para Qadehar:

— Vou ajudá-lo a subir até às primeiras vigas. Você terá de entrar nesta torre maldita e lutar contra a Treva.

Qadehar protestou.

— Jamais abandonarei vocês!

Ulriq dirigiu-lhe um olhar suplicante.

— É a nossa única chance. A única chance de não morrermos por nada. Peço-lhe, Qadehar, você é o único capaz disso.

Os Orks pararam na barreira mágica dos Feiticeiros. Mas esta não suportaria muito tempo. Ulriq, então, apoiou-se na muralha e fez um sinal a Qadehar.

O Mestre Feiticeiro decidiu-se rapidamente e subiu nos ombros do companheiro. Tocou na viga. Depois, tomou impulso para içar-se para cima da tábua. Ulriq lançou-lhe um último olhar e correu para ajudar os outros.

O Mestre Feiticeiro tinha lágrimas nos olhos. Ao pé da torre, seus amigos eram massacrados pelas hordas de Yâdigâr, cujo brasão tinha reconhecido no pescoço de diversos monstros: um leão a bramir, cercado de cha­mas. O infame Thunku não perdia por esperar! Mas Ulriq tinha razão: para que o sacrifício dos homens da Guilda não fosse em vão, era preciso que ele penetrasse na torre e vencesse a Treva, o inimigo.

Fechou o espírito para os gritos de desespero e dor dos Feiticeiros e concentrou-se no combate que ia travar.

Firmando o pé na plataforma, logo alcançou uma porta estreita, fechada por um simples ferrolho. Projetou Elhaz em sua forma Incerta e, sob o efeito do Grafema desbloqueador, a porta se abriu, revelando uma escada que descia para as profundezas do edifício. Foi por ela.

Mais em baixo, descobriu uma porta metálica. Esta­va entreaberta. Empurrando-a, penetrou num cômodo redondo grande, forrado de tapeçarias vermelho-sangue.

Ali reinava uma desordem indescritível; tudo estava de cabeça para baixo. Os móveis e mesas virados, os li­vros pelo chão, ao lado de instrumentos alquímicos que­brados. Poderia se dizer que a sala tinha sido revirada pelo avesso.

No centro, uma Porta, parecida com a que permitia o acesso ao País de Ys, aos Mundos Certo e Incerto, pela qual Gontrand, com certeza, chegara à torre, tinha sido demolida a golpes de maça.

Qadehar pulou por cima dos móveis revirados, livros e restos de instrumentos. Olhou atrás de cada tapeçaria. Depois, deixou o cômodo e explorou o resto da torre.

Estava deserta.

Retornando à plataforma, por sobre o campo de batalha e o borbulhar do oceano, berrou sua raiva e sua cólera.

 

Bertram achou melhor levar Guillemot para o quar­to. Pareceu-lhe a decisão mais sábia que podia tomar. Sábia? Decididamente, aquele menino o influenciava! Não entendia ainda por que suas revelações a respeito da Treva tinham mergulhado o Aprendiz em tamanho desespero. Guillemot sabia de alguma coisa sobre o Senhor Sha que os outros ignoravam?

Propôs fazer-lhe companhia, mas Guillemot recu­sou, com um pálido sorriso de desculpas, assegurando-o de que se sentia bem e preferia ficar sozinho.

O jovem Feiticeiro deixou-o no quarto e desceu a escada em direção ao pátio interno, no centro do monas­tério.

No pátio, aberto para um céu sem nuvens, meteu-se pela galeria das arcadas. Nesse instante, ouviu um baru­lho, proveniente da porta grande... Um barulho surdo. Parou.

Inicialmente achou que estavam batendo, do lado de fora, para entrar. Mas, à medida que as batidas foram ficando cada vez mais fortes e a porta começou a tremer, compreendeu que estava acontecendo algo não habi­tual... e grave.

Olhou rapidamente à sua volta: estava só. Os outros Feiticeiros encontravam-se dispersos, um pouco por toda parte, pelo monastério. Ninguém poderia duvidar de que o quartel-general da Feitiçaria de Ys estava sendo tomado de assalto naquele mesmo instante! Gifdu jamais tivera guardião; a porta era suficiente, só ela. Até hoje...

Um choque mais violento que os outros fez vacilar as pesadas traves de carvalho. Bertram escondeu-se atrás de uma coluna, o coração batendo. Procurou febril­mente na cintura a sacola de Feiticeiro, mas lembrou-se de que a tinha deixado no quarto. Abafou um palavrão. De repente, com um rangido assustador, a porta cedeu e abriu-se, deixando escapar uma fumaça branca, através da qual logo surgiu um indivíduo de grande estatura, envolvido num manto vermelho, cor de sangue.

— É a Treva, com certeza é a Treva! — pensou Ber­tram, recuperando o sangue-frio. — Por Deus! O que vou fazer? Espíritos de Gifdu, ajudem-me!

O homem de vermelho avançou num passo pesado. Fez um gesto e a porta se fechou atrás dele, batendo vio­lentamente.

— É preciso prevenir Charfalaq — disse Bertram a si mesmo. — Se alguém pode se opor à Treva, é ele! Mas como adverti-lo?

Enquanto o Feiticeiro refletia qual a melhor maneira de agir, o intruso fazia, numa voz grave, um Galdr con­tra a porta.

— O sino! O sino de honra! — lembrou-se Bertram, subitamente. — Ele serve para anunciar as visitas excep­cionais. Se eu o tocar, os outros talvez entendam que está acontecendo alguma coisa! Ande, meu velho — con­tinuou dizendo, para tomar coragem. — Se você de fato vale o que pensa que vale, prove-o! Faça honra a Ge­raldo e mostre a ele que teve razão ao fazer de você um Feiticeiro, contra a opinião de todos!

Bertram respirou fundo e pulou em direção à parede de onde pendia a corrente que acionava o pesado sino de bronze. O homem de vermelho voltou-se, mas uma fra­ção de segundo tarde demais: seu Grafema de neutrali­zação só atingiu Bertram no momento em que este empunhava a corrente.

O jovem Feiticeiro caiu no chão, como que fulmina­do por uma descarga elétrica; enquanto isso, o sino, posto em movimento, soltou seu toque vigoroso.

O homem de vermelho não pareceu se afobar. Com calma, invocou Perthro, o Guia, e misturou Elhaz, que retirava os impedimentos. Uruz, que pacificava os espíri­tos de um lugar e Isaz, que ajudava na concentração. Em seguida soprou o nome de Guillemot sobre o Lokk que tinha criado... Deixou o sortilégio penetrar em seu espíri­to, depois, como se soubesse com antecedência exata­mente onde ir, entrou pelos corredores do monastério.

O dobre não habitual do sino de honra tirou Guille­mot de suas meditações. Que visitante excepcional Gifdu estaria recebendo? Arrastando os pés, aproximou-se da janela do quarto. De onde estava, pôde ver Ber­tram estendido no chão, inconsciente, junto à porta de entrada. E a seu lado a silhueta volumosa de um homem envolto num manto vermelho-sangue...

Guillemot afastou-se precipitadamente da janela. E agora? Era a Treva? Fosse quem fosse, tinha conseguido forçar as defesas de Gifdu e eliminar um Feiticeiro!

Voltou à janela e observou atentamente o intruso. Não podia ouvi-lo, é claro, mas seguindo com os olhos os dedos que formavam Mudra e desenhavam Grafemas no ar, compreendeu rapidamente que compunha um sor­tilégio.

“Perthro, Elhaz, Uruz, Isaz...”, murmurou Guille­mot para si mesmo. “Galdr ou Lokk, esse cara está fabri­cando uma bússola para superar todos os obstáculos! Está procurando alguém, com certeza! E temo que seja eu! Seja como for, a última coisa a fazer é permanecer aqui.”

O Aprendiz de Feiticeiro pegou a sacola e, enquanto o invasor penetrava no edifício, meteu-se voando pela escada de emergência que levava ao pátio.

Uma vez debaixo das arcadas, precipitou-se em direção à porta de entrada, parou na passagem para veri­ficar se Bertram ainda respirava, depois tentou abrir, em vão. A porta estava trancada por dentro.

Guillemot pensou depressa. A única chance que tinha de sair dali, se era mesmo ele quem o homem de vermelho queria apanhar, era desaparecer no labirinto de corredores do monastério e lá se esconder... Sem per­der mais um segundo enterrou-se por ali.

No mesmo momento em que o Aprendiz deixava o pátio, o homem de vermelho entrava no quarto que ele tinha abandonado alguns instantes antes. Com uma olhada verificou que Guillemot já não se encontrava lá. O Lokk de investigação não deixou que perdesse tempo, conduzindo-o aos corredores do térreo.

Na virada de um corredor, deu de cara com um pequeno grupo de Feiticeiros que Qadwan e Geraldo conduziam em direção à porta de entrada. Elaborou, com velocidade espantosa, um sortilégio de imobilização que prendeu os desgraçados no chão.

Depois, sem mais prestar atenção nos Feiticeiros, que gesticulavam e gritavam de cólera, meteu-se pelo labirinto. Hesitou diante de uma primeira bifurcação, e tomou a direita. O itinerário parecia levar em direção ao subsolo. Na segunda bifurcação, o homem consultou uma Pedra Falante e teve a confirmação de que estava mesmo mergulhando nas profundezas de Gifdu...

 

De corredor em corredor, Guillemot penetrou no coração do monastério.

Da sacola, tirou o mapa geral, pirateado na ocasião de sua primeira estada na memória central do computa­dor, há três meses. Quando tinha uma dúvida sobre sua posição ou sobre a direção geral a tomar, consultava o mapa com atenção. As placas de líquen fosforescente que carcomiam as paredes e tetos o iluminavam fraca­mente.

As Pedras Falantes confirmavam suas escolhas. Algumas não eram tocadas há muito tempo e antes de poder decifrá-las, tinha que retirar a camada de poeira que as recobria. E claro, tentava fazer o máximo possí­vel de desvios para enganar o perseguidor.

Ouvia passos, de vez em quando, ressoando ao lon­ge, pelos corredores. Era o homem de manto vermelho que se aproximava, tinha certeza!

No íntimo sabia que seria difícil distanciá-lo: no pátio, tinha visto o indivíduo formar um sortilégio de orientação e busca, com certeza destinado a ele! Custas­se o que custasse, precisava manter à distância o homem de vermelho, esperar que ele se cansasse ou que o en­cantamento se desmanchasse...

Logo Guillemot se viu diante de uma encruzilhada maior. Fez uma pausa e consultou o mapa: o corredor da esquerda tornava a subir diretamente à superfície; o da frente, levava a um beco sem saída; o da direita, em direção a minas antigas. Se precisava desviar o perse­guidor, o momento era aquele!

Parou um instante para refletir sobre a melhor maneira de proceder. Espantava-se de ser capaz de tanto sangue-frio, uma vez que naquela caçada a própria vida, sem dúvida, estava em jogo! Mas eram, na verdade, as situações de emergência as que preferia. Talvez porque só contava a ação, e a ação impede questionamentos dolorosos.

Começou tirando da sacola a falsa Pedra Falante em função da qual, um dia, tinha ficado sem sobremesa! Hoje, talvez o ajudasse a salvar a vida.

Molhando com saliva os signos que indicavam a direção a seguir, remodelou-os, soprando depois, para tornar a endurecê-los. Sobre a Pedra do caminho das minas, colou a falsa, indicando também um segundo beco sem saída. Tomou em seguida o corredor da es­querda, que retornava à superfície, por uma centena de metros; depois, voltou à encruzilhada pelo mesmo ca­minho.

Aí, invocou Dagaz, o Grafema que suspendia o tempo, ao mesmo tempo em que conferia invisibilidade mental quando se o formulava de outra maneira, e o estabilizou com um Mudra.

Em seguida, entrou pelo corredor da direita, em direção às minas.

Pouco tempo depois, o homem de vermelho parou na encruzilhada. A força do Lokk de investigação come­çava a fraquejar. Mas ainda indicava com clareza que a presa tinha tomado o corredor da esquerda. Consultou a Pedra Falante: o caminho conduzia à superfície. “O jo­vem Aprendiz não deve ter hesitado muito tempo...”


O homem verificou, entretanto, os destinos que ofe­reciam os outros corredores: dois becos. Não hesitou, apressou o passo determinado no caminho que levava à superfície.

Logo, Guillemot deixou de ouvir barulho atrás de si. Seu subterfúgio tinha sido bem-sucedido! Deixou-se cair no chão de uma sala, provavelmente um antigo depósito, da época em que as minas eram exploradas.

Agora que a caçada estava terminada, tremia inteiro. Por reflexo, tentou segurar debaixo do suéter o meda­lhão em forma de sol que o pai lhe tinha deixado antes de desaparecer e que nunca tirava do pescoço — até Ágata apoderar-se dele. O que valeu à ladra ser captura­da em seu lugar pelos Gommons. Mas como era estúpi­do! A jóia não se encontrava lá! Ágata não tinha conse­guido devolvê-la ao Aprendiz: um soldado de Thunku a tinha roubado na sua chegada ao Mundo Incerto. Guillemot sentiu tanta necessidade de apoio naquele momento! Mesmo apoio de um pai desconhecido!

Foi preciso um tempo para recuperar a calma. Ele gravou Dagaz na terra com o seu Ristir, para que o Grafema conservasse a força. Depois, tirou da sacola a garrafinha de água e duas maçãs que sempre levava con­sigo. Agora era só esperar.

 

Guillemot roeu a metade de uma maçã e bebeu um gole de água. Em seguida, instalou-se confortavelmente, tirou da sacola uma veste longa cinza, macia e leve: era um casaco de Homenzinho de Virdu, que tinha rou­bado do monastério no verão anterior e usado durante toda a viagem pelo Mundo Incerto. Não se separava mais dele. Enrolou-se ali, com uma sensação de reconforto e, fatigado devido à corrida opressora, deixou-se vencer pelo sono.

Teve um sonho estranho. Mestre Qadehar tamborilava na porta do monastério e dizia:

— Guillemot, Guillemot, abra para mim! Acordou sobressaltado, segurou a cabeça entre as mãos. A imagem de Qadehar tinha desaparecido, mas ele continuava ouvindo distintamente a sua voz!

— Guillemot — ela dizia — está me ouvindo?

— Mestre? É mesmo o senhor? — articulou Guille­mot, estupefato.

— Sim, sou eu. Mas é inútil gritar, meu rapaz. Estou falando dentro da sua cabeça. Responda do mesmo modo.

— Mas... como é possível isso?

— Construí um sortilégio em torno de Berkana, o Grafema que permite entrar em comunicação com os espíritos. Tive dificuldade de localizar você...

— É porque gravei Dagaz a meu lado... Mas o que o senhor faz aí?

— Caímos numa armadilha no Mundo Incerto. Não tenho tempo de explicar. Pelo amor de Deus, Guillemot, antes diga-me o que está acontecendo! Estou diante do monastério e a porta se recusa a abrir! Ninguém respon­de aos meus chamados!

— É a Treva, Mestre! — explicou o Aprendiz, forman­do as palavras na mente. — Alguém muito poderoso, com uma imensa capa vermelha! Conseguiu abrir a porta e neutralizar Bertram... Talvez até mesmo todos os Feiticeiros! Eu o vi lançar um encantamento de busca. Está me perseguindo, Mestre!

— Calma, Guillemot. Onde você está?

— Estou no subsolo. Num corredor que leva às minas antigas. Acho que consegui escapar dele.

— Cuidado, Guillemot. Treva ou não, esse homem parece possuir uma magia muito forte!

— Precisa ajudar-me, Mestre... Faça alguma coisa!

— A porta está bloqueada por dentro, e os sortilégios lançados pela Guilda em torno de Gifdu me impedem de utilizar os caminhos do Wyrd para ir ter com você. Eu vou ver o que posso fazer, mas está me parecendo... Atenção, Guillemot! Alguém está tentando interceptar nossa comunicação! Vou ter que apagar Berkana para que não cheguem até você...

A voz de Qadehar desapareceu e Guillemot tornou a ver-se sozinho. Mas sabia que o Mestre estava ali, pron­to para vir em seu auxílio! Essa idéia o reanimou. No entanto, o misterioso perseguidor, confundido por um instante, estava, visivelmente, outra vez em seu encalço.

Talvez não tivesse mais muito tempo à frente.

— Reflita, meu velho, reflita — ele mesmo se encora­java.

Tinha que, a qualquer custo, desbloquear aquela maldita porta de entrada e se pôr a salvo do alcance do homem de manto vermelho, a tempo para que o Mestre viesse em seu socorro. O segundo problema pareceu-lhe mais fácil de resolver e logo atacou-o. Pôs-se a pensar em voz alta.

— Tenho que me preparar para a chegada do homem de vermelho... Mas como me proteger? Uma noite des­sas, o Mestre Qadehar me falou do Galdr da Armadura de Elhaz e do Lokk do Elmo do Terror... Disse que um era mais seguro de se usar e o outro, mais potente. Qual escolher? É verdade, domino melhor os Galdr. Mas será suficiente contra esse homem? Vejamos... Ele conseguiu entrar em Gifdu. Tenho medo de que mesmo o Lokk do Elmo do Terror seja fraco demais para imobilizá-lo! E se... se eu tentasse uma outra solução? Por Deus, se eu for capaz!

Deslocou-se para o centro do cômodo, pegou o punhal e, como viu o Mestre fazer diante dos Feiticeiros na sala de treinamento, gravou seis símbolos em sua volta. Mas não era Elhaz que estava fixando no chão! Esforçava-se para reproduzir seis vezes em seguida e o mais exatamente possível o Lokk do Elmo do Terror que o Mestre tinha desenhado no ar, diante de seus olhos, na noite passada.

“Estou jogando alto”, pensou. “Mestre Qadehar disse: um só erro e o Lokk não funciona. Fiz seis deles! Seis vezes mais de chances da coisa andar!”

Terminado o trabalho, descansou um instante. A concentração o fez transpirar, sentia-se esgotado. De­pois, pronunciou o encantamento do Galdr da Arma­dura, modificando-o ligeiramente.

— Pelo poder de Elhaz, Erda e Kari, Rind, Hir e Loge, Aegishjamur na frente, Aegishjamur atrás, Aegishjamur à esquerda, Aegishjamur à direita, Aegishjamur em cima, Aegishjamur em baixo, Aegishjamur, me proteja! ALU!

Tinha combinado a força de um Lokk com a de um Galdr. Seria aquilo suficiente para imobilizar seu perse­guidor? Guillemot sentiu o ar tremer em torno dele. Em seguida, tudo se normalizou.

— Desde que funcione... — suspirou.

Agora, restava-lhe ocupar-se da porta de entrada.

— Mas como? — perguntou-se. — Como abri-la, dali do subsolo, onde se encontrava? Seus conhecimentos não eram grandes o suficiente para agir à distância com um sortilégio. E o homem de vermelho devia ter travado a entrada com Grafemas protetores! Era necessário pen­sar num meio diferente. Sim, um meio em que o homem de vermelho não teria pensado...

Tomado por uma inspiração súbita, Guillemot reme­xeu na sacola. Tirou de lá o caderno e de dentro dele uma folha dobrada em quatro, na qual estava impressa a lista dos arquivos disponíveis no programa de informá­tica de Gifdu, roubada do computador ao mesmo tempo que o mapa do monastério. Consultou-a febrilmente.

— Previsão dos cardápios para o mês de novembro, Orçamento do ano corrente, Lista de pessoas hostis à Guilda... Ah, aqui está: Segurança do monastério! Estou seguro de que há aqui dentro uma solução para a abertu­ra da porta! Só... Só que me encontro no lugar mais dis­tante possível da sala de informática, e não tenho com­putador dentro da sacola!

Ouvir a própria voz lhe fazia bem. Refletia a toda a velocidade. Dava pancadinhas maquinalmente no chão e parou de repente. Deus! Mas ali estava a solução! Não tinha computador? Bastava fabricar um!

Tornou a pegar o Ristir e traçou na terra, o mais pre­cisamente possível, os contornos de uma tela e de um teclado de computador. Era a etapa mais fácil. Entregou­ se, então, à reflexão por um momento. Em seguida, decidiu fabricar um Galdr, invocando Féhu, que trans­formava os objetos em energia, e Gebu, que estabelecia as comunicações:

— Pelo poder de Frey e da Aranha, de Gefn e da Doação, Féhu que cresceu com o lobo, Gebu, abrigo dos despossuídos, dos que dormem e dos que correm, eu invoco vossas energias! FEG!

A tela do computador desenhada no chão por Guille­mot iluminou-se fracamente. Inclinando-se, ele viu, ali­viado, o cursor tremelicar no alto, à esquerda. Não se via grande coisa, mas era o suficiente!

Tomando o cuidado de fazer os toques de leve na terra do teclado, digitou “O Senhor da Torre”, a palavra-chave que já lhe tinha dado acesso ao programa secreto. Mal reconheceu a página de entrada, tão fraca estava a luz da tela. Conseguiu distinguir “Senha”, que tremia sobre o fundo de céu estrelado.

Fez o mesmo truque de mágica da outra vez, dese­nhando Elhaz e obrigando o Grafema a dissolver o obs­táculo eletrônico. Logo tornou a ver-se diante do menu proibido. Entrou diretamente no arquivo “Segurança do monastério” e, com um pouco de terra na ponta do dedo, tocou onde dizia “Enviar”.

— Vejamos... Vamos dar uma olhada na rubrica “Em caso de urgência”.

O toque em “Enviar”, ligeiramente apagado, respon­deu menos bem. Guillemot então descobriu, na sub-rubrica “Porta de entrada”, um arquivo intitulado “Um melhoramento assinado por Geraldo”. Logo entrou nele.

— Genial — rejubilou-se Guillemot. — Pode-se abrir a porta através de um computador! Ela está ligada a um sistema de destravamento mecânico... Geraldo deve se aborrecer com o fato dos outros desprezarem seus computadores. E ponho minha mão no fogo como não con­tou isto para ninguém!

Guillemot clicou no ícone que comandava a abertu­ra mecânica de urgência da porta.

— Oh, é simples demais! — gemeu.

Deu-se conta de que a palavra “Enviar” estava quase totalmente apagada. Tornou a pegar o estilete e dar-lhe forma, depois acionou-a de novo. Desta vez, o computa­dor registrou o pedido. Não havia possibilidade de veri­ficar se, lá em cima, os motores que acionavam a porta, instalados pelo prudente Geraldo, iam se confirmar mais poderosos que os sortilégios do homem de vermelho. Mas ele, com todas as suas forças, desejou que fosse assim!

A sua frente, a tela do computador da sorte tremeu e depois se apagou. O Aprendiz varreu-o com a mão e pôs-se outra vez à espera.

 

Um ruído de passos provocou no menino um sobres­salto. Um passo pesado, tranqüilo. Alguém se aproxi­mava da sala onde tinha se refugiado!

Guillemot verificou, sem afobação, que os Lokk com que se cercara e que tinha tecido num Galdr de pro­teção estavam ainda no lugar.

Com o coração batendo, logo viu um vulto surgir no final do corredor de pedra. Uma silhueta maciça, envolta num grande manto vermelho, cor de sangue! Ao se depa­rar com Guillemot, o homem parou. Tirou o capucho e mostrou o rosto, tomado por uma barba de alguns dias.

Tinha o cabelo castanho e encaracolado e olhos muito bonitos, cor de ametista. Não era muito velho — talvez trinta ou trinta e cinco anos.

Dirigiu-se a Guillemot num tom de voz grave.

— Puxa, meu rapaz! Você me fez correr, hein! Muito astucioso o golpe da falsa Pedra Falante. E aposto que escondeu sua identidade mental com um bom Dagaz! Estou errado?

— Quem é o senhor? — interrogou Guillemot, desar­mado pelo aspecto e a voz amigável daquele homem que o tinha encurralado.

— De onde venho chamam-me de Senhor Sha.

— O... Senhor Sha? — espantou-se Guillemot.


— Você me conhece? — o homem de vermelho se sur­preendeu.

— Digamos que... Contam uma história a seu res­peito...

— Uma história que, com certeza, nada tem a ver com a verdade, acredite, interrompeu-o o Senhor Sha. — A minha história de verdade talvez chegue aqui, em parte, à sua conclusão... Não tenha medo. Não lhe farei mal.

Ele se aproximou. Instintivamente, o Aprendiz fez um movimento de recuo; depois, lembrou-se de que estava ao abrigo de um Galdr e tornou a erguer a cabe­ça, em sinal de desafio. Seu desejo continuava ardente de que o sortilégio fosse resistente o bastante...

A menos de um metro de Guillemot, onde os Aegish­jamur tinham sido desenhados, o homem se chocou com uma parede invisível. Grunhiu de surpresa. Recuou alguns passos e fez nos ares um gesto complicado. Faíscas douradas crepitaram.

A proteção da Armadura de Elhaz, construída pelo Aprendiz e reforçada pelo poder de um Lokk, vacilou, mas manteve-se firme. O Senhor Sha soltou um assovio de admiração.

— Bravo, meu rapaz! Não sei se eu teria feito melhor! Olhou o menino com uma expressão divertida, que

Guillemot encarou sem fraquejar.

— Imagino que seja inútil pedir-lhe que baixe as suas defesas: eu lhe dou medo e compreendo isso. Eu pode­ria, é claro, pôr abaixo a sua proteção, com um pouco de tempo, mas não quero pegar você. Só desejo saber uma coisa. E para isso um simples sortilégio será suficiente.

O homem desenhou nos ares uma nova sucessão de Grafemas e murmurou palavras incompreensíveis. Lo­go, Guillemot sentiu-se muito estranho.

Parecia que uma coisa qualquer se metia em sua cabeça, entrava pelo seu cérebro. Soltou um gemido.

Queria se opor àquela invasão assustadora, botar para correr aqueles dedos invisíveis que vasculhavam seu espírito!

Tentou chamar os Grafemas em seu auxílio, mas nenhum respondia. Depois, a sensação gelada desapare­ceu com a mesma rapidez com que surgiu. Do outro lado da Armadura de Elhaz, o Senhor Sha o olhava tris­temente.

— Estou amargurado, meu rapaz. Tinham me dito... Eu pensei que... Mas você não é a pessoa que queria encontrar. Ai de mim... Espero que me perdoe por ter assustado você...

No momento em que pronunciava essas palavras enigmáticas, ouviu-se um barulho. No segundo seguin­te, Qadehar irrompeu na sala.

— Guillemot! — ele gritou, vendo seu Aprendiz senta­do no centro de uma Armadura de Elhaz, de frente para um vulto imponente. — Como está?

— Bem, Mestre! E loucamente contente de ver o senhor.

— Eu também, meu menino!

Qadehar virou-se para o homem de capa vermelha, que não se mexeu.

— Seja quem for, vai se arrepender de ter invadido Gifdu e perseguido meu aluno! — ralhou.

O Feiticeiro adotou um Sthada ofensivo e encarou o adversário. Mas quando prestou atenção no rosto do Senhor Sha, ficou imobilizado de espanto.

— Você! Mas eu achava que estava morto! Onde se escondeu? O que está fazendo aqui?

— Pois é, sou eu, velho camarada! — respondeu o homem com um sorriso triste. — Quanto ao resto, terá de encontrar sozinho uma resposta...

Aproveitando-se do estupor que tinha tomado conta de Qadehar, o Senhor Sha inclinou-se para a frente e atacou o Feiticeiro com um soco. Depois, fugiu pelo corredor.

Guillemot rapidamente apagou com o pé o sortilégio de proteção e foi socorrer o Mestre, que ficara ali caído, inanimado.

— Como o senhor está se sentindo, Mestre? Guillemot tinha ajudado Qadehar a sentar-se contra uma das paredes do cômodo e lhe tinha dado para beber o resto de sua garrafa de água.

— Bem, bem, agradeço a você, Guillemot. Se não estivesse esgotado por essas viagens entre os Mundos, jamais me teria deixado surpreender.

— Não era o caso de ir atrás do homem de vermelho? Qadehar fez um gesto cansado.

— Inútil. A esta hora já deve ter deixado Ys.

— O senhor viu Bertram? Estava caído, perto da entrada. Voltou a si?

— Seu amigo estava voltando a si quando a porta... A propósito, como foi que você fez para abrir? E o que estava fazendo no meio de uma Armadura de Elhaz?

— Vou contar-lhe, Mestre — fugiu Guillemot, enrubescendo. — O senhor tem notícia de Geraldo e dos outros?

— Sim, estão sãos e salvos, a se debaterem num sor­tilégio de imobilização. Com exceção de Charfalaq, que não se manifestou. De qualquer maneira, isolado em sua torre, ele não escutaria nem se Ys soçobrasse numa inundação! Não tive tempo de libertá-los, estava com pressa de encontrar você.

— Então, o Senhor Sha não é tão mau, pois não ma­tou ninguém!

— O Senhor Sha? Como sabe que ele é o Senhor Sha? — perguntou Qadehar, estonteado.

— Ele me disse isso, Mestre. Além do mais, não pare­cia me querer mal. Simplesmente estava querendo veri­ficar alguma coisa. E acho que, afinal, ficou um bocado decepcionado...

— O Senhor Sha! — repetiu Qadehar, de repente pensativo. — Estaríamos no caminho errado desde o início? Por Deus, já não estou entendendo nada!

— O que aconteceu, Mestre, no Mundo Incerto? Qadehar encostou-se à parede e suspirou.

— Estavam à nossa espera. Caímos numa embosca­da. Orks nos atacaram, às centenas. Enquanto minha escolta de Feiticeiros era dizimada por seus golpes, entrei na torre do Senhor Sha, onde achávamos que íamos encontrar a Treva. Mas estava deserta. Enquanto isso, Sha forçava a porta de Gifdu...

— Onde ele também achava que ia encontrar alguém — continuou Guillemot. — Mas alguém que não sou eu! Quem, eu não sei...

— Está querendo dizer que esse homem... Que você não é quem ele buscava? Tem certeza? — perguntou Qadehar, observando Guillemot pelo canto do olho.

— Foi o que ele me disse. Isto surpreende o senhor, Mestre?

— Não, não... — Qadehar disfarçou. — Visivelmente, cada um esperava encontrar uma outra pessoa — acres­centou, perplexo.

— O que o senhor quer dizer? Oh, Mestre, suplico, me responda! Depois de tudo o que passei hoje, tenho o direito de saber!

— Acalme-se, Guillemot. Sim, você tem o direito. O que quero dizer é que nós atacamos Djaghataël porque pensamos que o Senhor Sha e a Treva eram uma única e mesma pessoa. Ora, Sha não é a Treva...

— Como é que o senhor sabe?

— Porque esse que disse a você que se chamava Sha é, na realidade, Yorwan, ex-colega de estudos, mais jovem que eu, em Gifdu. É o Feiticeiro brilhante e promissor que um dia desapareceu, levando o Livro das Estrelas, e que ninguém foi capaz de localizar no Mundo Incerto. Embora acreditássemos que tivesse morrido...

Sha reapareceu perto de sua torre, nas ruínas de Djaghataël. Mal tinha deixado Gifdu, usando o Galdr do Deserto para voltar para casa.

Correndo pelos corredores do monastério, que nele despertaram lembranças mais ou menos dolorosas, disse a si mesmo que foi sorte conseguir enganar Qadehar com tanta facilidade! Aparentemente, o antigo colega desenvolveu seus poderes num nível impressionante: para quebrar os encantamentos por ele colocados na porta de Gifdu, era preciso possuir potência mágica for­midável. Tinha feito bem em utilizar contra o Feiticeiro o punho, ao invés de Grafemas!

Enquanto se dirigia à sua torre, pensou naquela criança, da qual se desprendia uma força espantosa, e que poderia ter sido... Um terrível sentimento de decep­ção o invadiu.

Ao se aproximar da entrada da torre de Djaghataël, viu os primeiros cadáveres de Orks e os corpos dos Feiticeiros ainda envoltos em seus inimitáveis mantos escuros. Deixou escapar um grito de espanto.

— O que foi que aconteceu?

Abriu, então, a porta da torre e correu para a escada. Empurrou a porta metálica de seu laboratório e parou, imobilizado pelo espetáculo que acabava de descobrir. Toda a peça tinha sido saqueada. Praguejando, dirigiu-se às tapeçarias vermelhas. Arrancou-as e pronunciou um sortilégio de abertura. Um pedaço da parede se abriu, revelando um armário. Vazio.

— Estamos perdidos! — gemeu Yorwan, prostrando-se no chão.

 

Guillemot abriu a porta da casa onde morava com a mãe, na entrada do vilarejo de Troïl, e correu para a cozinha. Botou na mesa o pão que acabara de comprar na padaria, depois subiu a toda velocidade a escada que levava ao seu quarto.

Jogou-se na cama e tirou da sacola de Aprendiz os quadrinhos que tinha comprado na loja grande do vilare­jo, que vendia absolutamente de tudo, de material de tra­balho até bombom, passando por jornais e acessórios para informática. Folheou as páginas da revista, demorando-se em alguns desenhos bonitos, depois iniciou a leitura.

— Guillemot, você não esqueceu do pão?

— Não, mamãe! Botei na cozinha!

— Obrigada, meu querido!

Ouviu a mãe indo e vindo em baixo e sentiu um alí­vio inexprimível. As portas de armário que se abriam e fechavam, o tilintar dos copos que ela arrumava, a água correndo da torneira, tudo participava, para Guillemot, da marcha normal do universo!

Hesitou, abandonando, por fim, a leitura e deitando-se de costas, com as mãos em baixo da cabeça. Defini­tivamente seu universo não era grande coisa: a casa, a mãe, o colégio, Ágata e Tomás, a mata e Gifdu, Mestre Qadehar... sem esquecer, é claro, Âmbar, Corália, Gontrand e Romaric! Nem todo mundo tinha a sorte de dispor de amigos como aqueles!

No verão passado, na ocasião em que voltaram das aventuras no Mundo Incerto, o Prefeito tinha organiza­do uma grande festa em honra deles. Dançaram muito, Âmbar e ele, em volta do fogo — foi um momento agra­dável... Menos no final: achou que ela o olhou de um modo meio esquisito...

Gontrand veio apresentar sua conquista, uma linda menina ruiva, do vilarejo de Atteti, nas Montanhas Dou­radas. Depois juntaram-se a Corália e Romaric em torno de uma mesa e de um copo de corma. O rosto do primo estava vermelho e Corália, mais jovial que de costume...

Guillemot mordeu o lábio: era um idílio que estava prestes a se tecer entre eles? Pobre Romaric! Ou pobre Corália...

O Aprendiz de Feiticeiro não pôde deixar de sentir inveja da despreocupação deles. Sentia-se tomado por problemas demais, para os quais não era capaz de encontrar resposta. O desfecho de seu reencontro com Sha, sobre o qual ainda não tinha dito uma palavra aos amigos, lhe pesava. — Ele está procurando o filho que lhe roubaram; um filho que teria hoje cerca de doze anos — havia-lhe confiado Ágata, quando voltaram do Mundo Incerto. — Você não é quem eu pensava encontrar — tinha dito o homem de vermelho.

O que significava aquilo tudo? Então, seus dons para a magia não tinham nada a ver com as tentativas de rapto de que tinha sido alvo? Não seria a Treva quem es­taria por trás de todas aquelas manobras, mas o Senhor Sha? Convencido de que Guillemot era seu filho, teria tentado recuperá-lo? Como saber... E qual a relação com o Livro das Estrelas, que Sha-Yorwan tinha roubado quando era jovem?

Esses pensamentos giravam numa velocidade verti­ginosa em sua cabeça, entrechocando-se dolorosamente. Alguém possuiria a resposta? Alguém conheceria a ver­dade?

No meio desse fluxo de incertezas, uma coisa, ao menos, era certa: sem poder explicar por quê, Guillemot sentia-se decepcionado. Decepcionado, talvez, por não ser aquele filho que Sha esperava. Decepcionado por não ser filho de um pai qualquer...

Suspirou, mas, em vez de continuar a ruminar, mer­gulhou de novo nos quadrinhos.

Alguns minutos mais tarde, completamente absorto na leitura, a mãe gritou do térreo.

— Meu querido! Visita para você!

Guillemot detestava ser incomodado quando estava lendo.

Ergueu-se nos cotovelos e perguntou, com uma voz desagradável:

— Quem é?

— Uma colega de turma! Mando subir?

Colega de turma? Guillemot deu tratos à bola. Não, não imaginava quem poderia vir visitá-lo em Troïl. Cheio de curiosidade, respondeu que sim e sentou-se na cama.

Alguém subiu a escada ligeiro, hesitou diante da porta onde Guillemot tinha colocado um cartaz, com os dizeres “NÃO PERTURBE. FEITICEIRO PODEROSO EM LUTA CONTRA FORÇAS MALÉFICAS!”, depois bateu.

— Entre!

Um vulto familiar esgueirou-se quarto adentro e fechou a porta. O coração de Guillemot disparou.

— Bom-dia, Guillemot! Tudo bem? Era Ágata! Ágata de Balangru...

— Hein? Tudo bem, sim, obrigado — balbuciou o me­nino, estupefato.

— Eu disse à sua mãe que era sua colega de escola — explicou a menina alta, aproximando-se dele. — O que está lendo?

— Um gibi... Com feiticeiros, cavaleiros e trolls. É legal...

Ágata acomodou-se na cama com uma incrível sem-cerimônia e se pôs a folhear a revista. Guillemot sentia as bochechas rubras...

Não acreditava nos próprios olhos! Beliscou-se dis­cretamente: não, não sonhava! Sua ex-pior inimiga ali estava, em sua casa, em cima de sua cama, lendo sua revistinha! Tremeu ao imaginar Âmbar entrando naque­le momento no quarto. Esteve a ponto de sentir falta da época em que Ágata o martirizava.

— Hum... — tentou dizer, para combater o mal-estar que o invadia — e... e Tomás? Não veio com você?

— Não — respondeu ela, voltando para Guillemot os grandes olhos negros, meio fechados. — O pai precisou dele. Aproveitei o fato de estar sozinha para vir ver você.

— Ah, bom. E... e por quê?

— Não adivinha?

De repente, Guillemot sentiu uma secura na gargan­ta e teve dificuldade de engolir. — N...Não...

— Para convidar você para ir à festa de Samain, é claro! Meu pai vai deixar a casa dele para mim. Só esta­remos lá Tomás e eu.

Guillemot conteve-se e não soltou um grande suspi­ro de alívio. Como era burro! Por um instante acreditou que ela ia tentar alguma coisa com ele!

Recuperando a calma, respondeu:

— É muita gentileza, Ágata, mas... já estava previsto eu passar o Samain com Romaric, Gontrand e as gê­meas. O sr. Krakal nos emprestou o apartamento dele!

— Que pena! — suspirou Ágata, sacudindo o cabelo escuro, que tinha resolvido deixar crescer. — Eu estava meio em dúvida, sabe? Vocês são mais ou menos do tipo inseparáveis, os cinco! Enfim — acrescentou ela, levantando-se — nos veremos, com certeza. A festa dura três dias, e Dashtikazar não é tão grande!

— É certo que vamos nos encontrar — confirmou Guillemot, ao mesmo tempo desejando muito que acon­tecesse o contrário.

Âmbar, sem dúvida, não receberia nada bem as no­vas relações que Ágata tentava estabelecer com ele...

— Bem, tenho que me mandar. E um estirão para vir ver você!

Antes dele poder reagir, Ágata aproximou-se e bei­jou-o no rosto. Depois sumiu. Guillemot ficou atônito. Pelo amor de Deus, tomara que não a encontrassem durante a festa de Samain!

 

— Qadehar, está na hora.

Dois Feiticeiros de cujos nomes não se lembrava tinham vindo buscar o Mestre no quarto onde este se encontrava, aprisionado. Qadehar suspirou e levantou da cadeira na qual meditava há longas horas.

— Estou pronto.

Saiu para o corredor. Os carcereiros improvisados conduziram-no em direção ao ginásio. Assim que entrou no vasto salão, o burburinho das conversas cessou e cen­tenas de olhos voltaram-se para ele. Tinham sido instala­dos uns bancos e cerca de cento e cinqüenta homens, ves­tindo os mantos escuros da Guilda, estavam ali, sentados.

“Deram o toque de chamada”, disse a si mesmo Qadehar, esboçando um sorriso desiludido.

Seus guardiães o levaram ao centro da sala. Diante dele, sobre um estrado, encontrava-se um colegiado de cinco Feiticeiros.

Qadehar reconheceu aquele que ia desempenhar o papel de promotor naquele processo grotesco: o Mago do monastério de Gri, estabelecimento da Guilda situa­do no outro extremo da Terra do Amargor. Qadehar não gostava daquele homem, um velhote seco e enrugado, que a vida tinha amargurado mais que evoluído. Aliás, aquele homem dava trabalho desde o dia em que o Mes­tre Feiticeiro riu de um livro sobre leitura do futuro atra­vés das entranhas dos peixes, na presença do Mago de Gri, seu autor...

Os quatro outros membros do Conselho eram Char­falaq, que parecia dormir, por trás dos olhos mortos; Geraldo, com cara de enterro, e dois Feiticeiros de uma certa idade e de segunda linha, nos quais tinha vagamen­te reparado uma vez, em Dashtikazar, ou em outro lugar.

O Mago de Gri levantou-se e tomou a palavra.

— Qadehar, irmão Feiticeiro. A Guilda reuniu este Conselho para esclarecer todo o dramático incidente de Djaghataël. Vamos ouvir as suas explicações.

Qadehar, numa voz tranqüila, mas forte o bastante para que a assembléia pudesse ouvir, tomou a palavra.

— Todo este teatro é ridículo! Já contei a vocês o caso nos menores detalhes! Disse que caímos numa armadi­lha, montada por Thunku com seus Orks de Yâdigâr. Não acredito que tenha sido ele quem instigou a embos­cada. Oh, não! Sem dúvida, trabalhava sob ordens de alguém... No entanto, repito, já estavam à nossa espera em Djaghataël!

— É muito “acredito” e “sem dúvida” — interrompeu-o secamente o Mago de Gri. — O senhor não tem nada mais convincente a nos dizer?

— Escutem — continuou Qadehar, que estava perdendo a paciência —, eu vi Feiticeiros, muitos deles meus ami­gos, morrerem diante de Djaghataël! O que mais querem?

— Veja, Qadehar — prosseguiu o Mago de Gri, fran­zindo os olhos —, o que nos parece estranho é que o senhor seja justamente o único que voltou são e salvo dessa horrível aventura...

Murmúrios indignados e algumas palavras de apoio a Qadehar percorreram a assembléia.

— O que ousa insinuar? — rosnou o Mestre Feiticeiro. — Que gostei de ver meus amigos serem massacrados diante de meus olhos?

Geraldo, por sua vez, levantou-se, e sua voz, ligei­ramente trêmula, impediu o Mago de Gri de retomar o ataque.

— Vamos deixar que Qadehar nos explique o que aconteceu.

A assembléia aprovou, num vozerio, e o Mago aca­bou aceitando, com evidente má vontade. Qadehar esforçou-se para recuperar a calma, e tornou a falar, com a voz clara:

— Obrigado, Geraldo. Nosso objetivo, ao irmos para o Mundo Incerto, era atacar a Treva. Quando percebe­mos que a situação estava virando desastre, decidimos sem demora desafiar nosso inimigo em sua torre. Meus companheiros insistiram em que fosse eu. Ai de mim! Não encontrei ninguém no edifício e, quando voltei, os Feiticeiros tinham todos sucumbido...

— Sozinho? Por que o senhor foi sozinho a essa tor­re? — perguntou o Mago de Gri, rabugento.

— Porque ou os outros já estavam mortos ou estavam às voltas com os Orks. E, enfim, porque só eu estava à altura de afrontar a Treva...

— Que orgulho! — exclamou o Mago, que logo calou-se, vendo Charfalaq levantar a mão, pedindo a palavra.

— Qadehar — disse simplesmente o Grande Mestre da Guilda, com sua voz rouca, antes de ser tomado por um terrível ataque de tosse — é, efetivamente, o Feiticeiro mais capaz da Guilda...

— Obrigado por nos ter confirmado, Mestre — agra­deceu o Mago de Gri, num tom de voz hipócrita, incli­nando servilmente o busto. — Mas isto — prosseguiu, num tom bem mais agressivo, e virando-se para Qa­dehar — não basta para nos explicar porque o senhor é o único sobrevivente!

O Mago de Gri, em seguida, voltou-se para a assem­bléia, perturbada com seus argumentos:

— Pois é realmente estranho que nosso irmão Feiti­ceiro tenha sido o único a sair de lá! Do mesmo modo que é estranho que nossa expedição tenha sido esperada em Djaghataël, já que foi preparada dentro do maior segredo! Acho que fomos traídos... E que o traidor encontra-se aqui! Diante de nós! Proponho que ele seja neutralizado por um sortilégio coletivo e colocado numa das sólidas masmorras de Gri!

A conclusão da acusação provocou um clamor geral. Os Feiticeiros levantaram dos bancos e muitos gritaram, contra a calúnia e a mentira. O Mago de Gri repetia: “à masmorra!”, teatralmente apontando Qadehar com o dedo. Este achou melhor esperar que a calma voltasse. Charfalaq parecia completamente alheio aos aconteci­mentos. Geraldo afinal conseguiu silêncio, levantando diversas vezes os braços.

— Vamos, vamos! Calma! Sejamos sensatos! A mas­morra... Neste caso, por que não a tortura, ou o assassi­nato?

A assembléia pareceu aliviada com sua intervenção, enquanto o Mago lançou-lhe um olhar negro.

— Quero propor uma coisa mais sensata, uma comis­são especial, que investigue com a maior seriedade a tra­gédia de Djaghataël. Enquanto esperamos suas conclu­sões, Qadehar será confiado a Gifdu, onde permanecerá, proibido de sair. O que acha o Conselho?

Charfalaq, para quem todos os olhares convergiram, parecia ter adormecido.

— Sou contra! — rugiu o Mago de Gri.

— Quem mais é contra? — prosseguiu Geraldo, fixan­do diretamente os olhos dos outros dois Feiticeiros, que abaixaram as cabeças. — Ninguém? Bem, o Conselho aceita, então, minha proposta como sendo a melhor. Fim da sessão!

O Mago desceu do estrado furioso e logo deixou o ginásio, levando consigo os poucos Feiticeiros de Gri que tinham vindo com ele da Terra do Amargor.

Qadehar foi posto em liberdade. Mas todos tomaram o cuidado de evitá-lo, na saída. Ao passar por ele, Geraldo piscou o olho.

 

De pé no quartinho ao qual tinha sido relegado, no coração do monastério, sentimentos contraditórios tomavam Qadehar de assalto. Como aquilo podia ter acontecido?

Alguns dias antes, designado para conduzir o mais audacioso ataque jamais ousado pela Guilda contra a Treva, era considerado o mais capaz dos Feiticeiros de Ys e todos diziam que ele, em breve, sucederia Char­falaq. Ironia do destino! Hoje, destituído de seus direitos e objeto da desconfiança geral, era prisioneiro em Gifdu, esperando as conclusões de uma absurda comis­são de investigação...

É claro, ia e vinha livremente pelo edifício. Mas não podia deixá-lo, e sabia que estava sendo discretamente espionado: o mínimo movimento seu era objeto de cons­tante vigilância!

Qadehar fechou os punhos de cólera. Sentia-se ma­goado com a atitude dos outros Feiticeiros.

Quando explicou ao Conselho o que de fato ocorrera em frente à torre de Djaghataël, ninguém, aparentemen­te, acreditou nele, fora Geraldo, que tomou sua defesa. Charfalaq, o Grande Mago, contentou-se com renovar sua estima por ele, mas nada mais fez para tirá-lo daque­la situação ruim. O raciocínio do Mago de Gri era muito simples, parecendo até mesmo coerente: posto que a expedição tinha sido preparada no maior segredo, por que casualidade seriam os Feiticeiros aguardados em Djaghataël? Eis aí o que contrariava o Feiticeiro: que homens da Guilda pudessem duvidar de sua palavra...

Mas o caso o inquietava além das questões pessoais. Pois o Mago de Gri tinha razão: ninguém, fora da Guil­da, conhecia o projeto do ataque. Isso significava que alguém, no seio da Guilda, tinha passado informações a Thunku! Havia, portanto, um traidor entre os Feiticei­ros. Um traidor que, talvez, estivesse também a serviço da Treva.

Qadehar estremeceu diante dessa idéia.

O que Geraldo pensava disso? Saiu do quarto, tre­mendo, e dirigiu-se à sala de informática, onde tinha a certeza de encontrá-lo.

Enquanto perambulava pelos corredores, lembrou o outro episódio que tinha abalado suas certezas: Yorwan! Estava muito vivo e perfeitamente à vontade, lhe pare­cia, na pele do Senhor Sha!

Quando saiu à sua procura pelo Mundo Incerto, na ocasião em que Yorwan roubou o Livro das Estrelas, vasculhou tudo, conduziu uma longa e rigorosa investi­gação, chegando à constatação de seu desaparecimento. Yorwan tinha se evaporado e todo mundo acreditou que bandidos o tinham matado e saqueado, fazendo desapa­recer seu corpo.

Anos mais tarde, quando o Senhor Sha fez sua apa­rição em Djaghataël, os relatórios dos Perseguidores des­creveram um mágico originário de Ferghânâ, dotado, mas sem escrúpulos, com má reputação no Mundo Incerto. Depois disso, nada fez o Senhor Sha que atraísse a atenção, de modo que os Perseguidores ficaram nisso.

Quem poderia suspeitar que o Senhor Sha e Yorwan eram uma só pessoa? Qadehar lembrou-se da surpresa que o tomou quando reconheceu o antigo colega nos tra­ços do homem que perseguia Guillemot. E aí, também, era tudo complicado: o que significavam as palavras misteriosas que Yorwan pronunciou antes de fugir? Yorwan estava, de uma maneira ou de outra, implicado no massacre de Djaghataël? E quais eram as suas rela­ções com a Treva?

Por mais que revirasse aquelas perguntas na cabeça, era incapaz de respondê-las. Uma coisa era certa, entre­tanto: a Treva, Sha, o Livro das Estrelas... Charfalaq, apesar da idade avançada, via certo desde o início: tudo girava em torno de Guillemot! Por que motivos? Logo acabaria sabendo. Aos diabos a comissão de investiga­ção, aos diabos a Guilda e o Grande Mago! A verdade estava em algum outro lugar, e ele ia encontrá-la...

Penetrou na grande sala onde ronronavam os com­putadores que Geraldo punha à disposição dos hóspedes de Gifdu. O Feiticeiro encontrava-se à sua mesa, na entrada. Ao lado dele, um jovem, de aparência altaneira, o ajudava a classificar fichas.

— Que boa surpresa! — exclamou Geraldo, ao ver Qa­dehar. — Achei que você ia fazer greve de fome dentro da cela!

De pequena estatura, barrigudo, os óculos por sobre o olhar malicioso, Geraldo era conhecido — e até famo­so! — por seu senso de humor e impertinência. A cabeça quase careca abrigava a maior inteligência da Guilda e, mesmo não sendo o melhor no manejo dos Grafemas, por isso atraindo facilmente o desprezo dos mais jovens, sua capacidade de reflexão fazia dele um Feiticeiro muito ouvido pelos mais sábios.

Isso explicava o fato de ter conseguido ganho de causa diante do Conselho, salvando Qadehar da masmorra de Gri!

Qadehar designou, com um movimento interrogativo do queixo, o jovem que o fixava com um olhar direto.

— Não tenha medo, meu amigo — confortou-o Geral­do. — Apresento a você Bertram, Feiticeiro recém-ordenado, que foi meu Aprendiz. Ele tem toda a minha con­fiança.

— Bertram, claro! — aquiesceu Qadehar. — Desculpe, eu não o tinha reconhecido: da última vez que o vi, esta­va caído na entrada do monastério!

Bertram ia responder com uma insolência, que era a sua especialidade, mas Geraldo o conteve, pondo-se a rir.

— Não mexa muito com ele! É muito tímido!

— Estou acostumado — respondeu Qadehar. — Tenho um Aprendiz que se inflama diante da menor reflexão!

— Isto não me surpreende — disse Geraldo. — Para a Guilda, você passou a ser um monstro!

Qadehar tornou a ficar sério.

— Para quantas pessoas continuo sendo um Feiticeiro digno de confiança?

— E difícil responder. Em todo caso, para mim mesmo e para Qadwan, não há dúvida, como para mui­tos outros... de segunda classe, infelizmente. Charfalaq estima você, sem dúvida. Mas está ficando cada vez mais difícil saber o que pensa aquela velha toupeira...

— No que me diz respeito, o ódio que lhe manifesta o Mago de Gri basta para torná-lo simpático! — interveio Bertram.

— Obrigado, Bertram — respondeu Qadehar, após um momento de surpresa. — Compartilhamos o mesmo sen­timento...

Depois, voltando-se para Geraldo:

— Mas tem um aspecto muito bom, esse jovem Fei­ticeiro, não é?

— Não estou insatisfeito com ele — confirmou Geraldo.

— Pensei muito — continuou Qadehar, voltando ao sério. — Acho que há um traidor dentro da Guilda.

Bertram estremeceu, mas seu antigo Mestre não demonstrou surpresa.

— Também cheguei à mesma conclusão.

— Na sua opinião, o que devo fazer? Geraldo olhou Qadehar nos olhos e declarou:

— Essa história não convence. Alguém tem que dar uma solução a ela. Qadwan está ficando velho. Quanto a mim, com Charfalaq se apagando na senilidade, tenho que tomar conta de Gifdu. Qadehar, meu amigo, você é o único que pode agir!

— Então, está me aconselhando a...

— A sumir daqui! Para conduzir a sua própria inves­tigação, com toda a liberdade. Por que acha que sugeri a idéia dessa comissão estúpida? Para ganhar tempo! Então, aproveite...

Qadehar refletiu um instante. Pesou os prós e os contras.

— Sim, é viável. Sei onde encontrar refúgio: conheço uma pessoa que não tem esse apreço todo pela Guilda e me acolherá de braços abertos! Mas, o problema é que a minha investigação vai me conduzir ao Mundo Incerto.

— E daí? — inquiriu Geraldo.

— Guillemot ficará sozinho em Ys, sem ninguém para protegê-lo. É chato... Ao mesmo tempo, não posso correr o risco de confiá-lo a um monastério da Guilda, onde talvez se encontre o traidor!

Só com a menção ao nome de Guillemot, o rosto de Geraldo se iluminou.

— Ah, esse aí... E a primeira vez que encontro um Feiticeiro tão dotado com os Grafemas como com o teclado de um computador!

— Guillemot é Aprendiz — corrigiu Qadehar. — Não Feiticeiro...

— Quando alguém é capaz de abrir uma porta blo­queada por um sortilégio, inventando um computador na areia e pirateando um sistema protegido por meus cuidados, esta pessoa deveria ser promovida a Grande Mago logo de cara — entusiasmou-se Geraldo.

— Está bem, está bem... — Qadehar cedeu.

Depois do episódio dos subsolos de Gifdu, quando Guillemot enfrentou o Senhor Sha, construindo um sor­tilégio em que nem os Magos conseguiam sempre sucesso, também Qadehar passou a se perguntar onde se situavam os limites de seu Aprendiz.

— Mas isto não resolve o meu problema... — acres­centou ele.

Geraldo pensou e, de repente, estalou os dedos.

— Tenho uma idéia! Virou-se para Bertram:

— Bertram e Guillemot tiveram tempo de se conhe­cer e se gostar. Estou errado, Bertram?

— De modo algum, Mestre. O senhor tem toda razão — confirmou com um grande sorriso o jovem Feiticeiro.

— Por que não fazer de Bertram o guarda-costas de Guillemot? Ao conseguir desencadear o alarme debaixo do nariz do Senhor Sha nos provou que é, ao mesmo tempo, capaz e corajoso. Oficialmente, poderia ser enviado pela Guilda para fazer trabalhar o seu Aprendiz durante a sua ausência! O que acha disso, Bertram?

— Quer me transformar na babá oficial daquele mole­que? — gritou Bertram, ao mesmo tempo orgulhoso da demonstração de confiança e entusiasmado com a idéia de rever Guillemot. — Por Deus, estou de acordo! Aceito.

— E uma boa idéia — reconheceu Qadehar.

— Perfeito! — concluiu Geraldo, esfregando as mãos.

— Qadehar, prepare suas coisas: vamos organizar sua fuga. Enquanto isso, vou fabricar um atestado falso da Guilda, ligando Bertram a Guillemot!

Mestre Qadehar, retomando a confiança diante da virada no rumo que estavam tomando os acontecimen­tos, voltou ao seu quarto num andar ligeiro. Geraldo, ao mesmo tempo em que redigia o atestado, fez um sermão a Bertram sobre a responsabilidade que ia ter. O próprio Bertram não pensava em outra coisa: junto de Guille­mot, sua vida seria mais emocionante que em Gifdu!

 

— Pediu para me ver, Uriano?

— Pedi, Valentim. Venha sentar-se.

O mordomo do senhor de Troïl acomodou-se junto ao fogo, sobre o tamborete onde gostava de fazer com­panhia ao colosso, quando este meditava, à noite, o olhar perdido nas chamas. Uriano, com certeza, estava desejoso de falar. Valentim conhecia-o bem! Estiveram juntos em Bromotul, juntos nas estradas de Ys e nos caminhos do Mundo Incerto... Juntos há tanto tempo...

O senhor e amigo começaria a falar assim que sen­tisse necessidade, disse Valentim a si mesmo, e esperou pacientemente.

— Estou entediado, meu velho companheiro — disse, afinal, Uriano. — Entediado, arrastando-me numa vida destituída de ação e de interesse.

— Ora, a sua vida de hoje com certeza é diferente da de ontem, mas até o presente você não reclamava. O que está acontecendo?

Uriano soltou um grande suspiro.

— Foi depois que visitei Romaric, em Bromotul. Te­nho a impressão de me ver, na idade dele. E, sobretudo, o sentimento de que todos os anos, depois, passaram depressa como o estalar de dedos!

A dança das chamas iluminava de vez em quando a barba grisalha e desordenada do gigante afundado na cadeira de madeira maciça.

Valentim sorria diante do amigo, tomado pela ago­nia da nostalgia. O rosto ossudo, o cabelo branco, a silhueta nervosa e longilínea do mordomo muito con­trastavam com Uriano, todo carne e músculo. A diferen­ça não parava por aí...

Adolescentes na época em que era preciso pertencer a uma grande família para entrar na Confraria, cada um chegou a Bromotul por um caminho diferente: Uriano, o mais velho dos Troïl, entrou como Escudeiro, e ele, últi­mo filho de uma família modesta de Dashtikazar, como cozinheiro.

Um dia, exasperado com o desprezo com que certos Escudeiros o tratavam, desafiou vários, fazendo-os cha­furdar na poeira. Agradando com esse gesto ao Grande Cavaleiro que então dirigia Bromotul, este lhe propôs deixar as cozinhas e entrar para a Escuderia. A condição era um Escudeiro aceitar apadrinhá-lo. Só Uriano, que sempre achou que a única nobreza é a do coração, ofereceu-se, indiferente ao clamor dos colegas, que o reprovavam... Valentim ficou eternamente reconhecido e uma sólida amizade veio reforçar esse laço.

Mais tarde, quando decidiram formar uma equipe de Cavaleiros, receberam o apelido de os Dom Quixote, devido à aparência, ao caráter idealista e ao relaciona­mento dos dois.

Quando chegou a época de se afastarem e cederem o lugar a Cavaleiros mais jovens e fogosos, Uriano propôs muito naturalmente a Valentim que o acompanhasse, indo morar em Troïl. E, para não levantar críticas da boa sociedade de Ys, este último optou, por sua própria von­tade, por fazer o papel de mordomo...

Um relâmpago atravessou as pupilas douradas de Valentim.

— Os Dom Quixote... Lembra?

Um sorriso iluminou o rosto apagado de Uriano.

— É claro que me lembro! Quantos golpes não distri­buímos por causa desse apelido, antes de aceitá-lo como um título glorioso!

— Acho que ninguém se igualou a você no manejo do machado de guerra. Nem no da lança! Quantos adversá­rios eliminou em torneios?

— E você? ímpar na esgrima... Quantos pretensiosos abateu com a espada?

Foram os dois se entusiasmando à medida que evo­cavam as lembranças.

— Acho que foi no Mundo Incerto que nos vimos frente a frente com combatentes do nosso quilate — con­cluiu Valentim, sacudindo a cabeça.

— Ainda lembro do golpe de maça que me deu no braço aquele Ork gigantesco — confirmou Uriano.

— Isso aconteceu em frente a Ferghânâ, quando está­vamos à caça do Errante que ameaçava destruir a Porta da Ilha do Meio, não é?

— Isso... Que aventuras! Pelo que há de sagrado! Que aventuras!

Uriano deu um golpe violento com o punho no braço da cadeira.

— E hoje, e hoje, Valentim? — gemeu. — Passo o tem­po comendo, sonhando e dormindo, como quase todo mundo em Ys! Esperando sentado enquanto a Treva prepara uma armadilha...

— Vamos, Uriano — Valentim tentou acalmá-lo. — Fi­zemos o que tínhamos que fazer. Hoje é a vez de outros agirem.

— Nada disso! — descontrolou-se Uriano. — Hoje só dá a Guilda! É quem decide tudo, quem toca o baile. A Confraria ficou reduzida ao papel de totó: obedece candidamente às recomendações dos Feiticeiros! Não, por Deus! A Treva talvez seja uma criatura demoníaca. Mesmo assim, sempre será a força, e não truques de má­gica, o que a vai fazer recuar! Lembra-se das Montanhas Douradas?

Imagens de pilhas de cadáveres numa estrada, de Orks escarnecendo e de um vulto arrastando atrás de si um halo obscuro impuseram-se a Valentim que, estre­mecendo, espantou-as com um movimento da cabeça.

— Imagine, meu bravo Valentim — continuou Uriano, num tom desesperado —, que o País de Ys chega ao cúmu­lo de mandar meninos para combater a Treva! Meninos!

— Não aconteceu exatamente assim — objetou Valen­tim. — Romaric e seu bando partiram à revelia das auto­ridades, e para ir procurar a pequena Balangru...

— Você não quer ver! O que quero dizer é que não há mais homens dignos desse nome em Ys. Agora temos que esperar que rapazes façam o serviço em nosso lugar!

— Não são tão fracos assim! — objetou Valentim. — Parece que Guillemot destruiu o Palácio de Thunku com uma só palavra mágica...

— Bobagens! — rugiu Uriano. — Qadehar estava lá! Foi ele quem fez tudo! E atribuíram o mérito a Guillemot.

— Está sendo injusto — suspirou o mordomo. — O seu ódio por esse menino é cego. E não tem motivo para isso...

— É filho daquele frouxo, daquele traidor!

— Também é filho da sua irmã.

— Uma pena para mim e para o nome dos Troïl!

O rosto de Uriano estava púrpura. Valentim sabia que nesse estágio da conversa era inútil insistir.

No entanto, muito apreciaria poder influenciar o amigo no sentido de nutrir melhores sentimentos com relação a Guillemot, que pagava pelo erro de outra pes­soa! Sentia-se próximo daquela criança, rejeitada como ele próprio tinha sido. Para outros, bastava ser bem nas­cido. Eles tinham que cumprir grandes feitos para serem reconhecidos...

Levantou-se e afastou-se da lareira, deixando Uria­no às voltas com seus pensamentos sombrios.

 

Qadehar optou por deixar o monastério de Gifdu numa noite de tempestade. Em primeiro lugar porque a escuridão é sempre propícia a projetos desse gênero. Depois, porque as trovoadas que abalavam o venerável edifício mascaravam os ruídos inevitáveis que acompa­nham qualquer evasão. Por exemplo, o de um golpe seco numa nuca, um gemido, um corpo que cai, incons­ciente, nas lajes de um corredor... Qadehar verificou, justamente, se a queda do Feiticeiro postado à porta de seu quarto não tinha chamado a atenção de ninguém. Em seguida, pegando-o pelos pés, arrastou-o para den­tro da cela e instalou-o na cama, cobrindo-o com o cobertor. Assim, ganharia tempo...

Depois, avançou em silêncio pelo corredor, tomando o rumo do pátio, até à porta de entrada, aferrolhada por dentro com um sortilégio coletivo.

— Geraldo? — chamou o Feiticeiro, sem proferir um som.

— Estou aqui, meu velho — respondeu, na sua cabeça, a voz do técnico em informática. — Está pronto?

— Estou.

Qadehar recuou. A porta, sob o efeito de alavancas comandadas por Geraldo, pelo computador, gemeu, depois entreabriu-se, num horrível rangido, felizmente em parte coberto por um rugido no céu.

— Dá para você passar?

— Dá. Não sou gordo!

— Não tripudie! Passar o dia todo diante de uma tela ou de fichas, não deixa ninguém esbelto! Não tenho opor­tunidade de estar o tempo todo fazendo exercício como você, escalando torre e escapando de monastérios!

Qadehar não pôde deixar de sorrir.

— Pare de se queixar. Todo mundo vai ouvir.

— E você, desapareça daqui! Boa sorte, meu velho.

— Obrigado, amigo.

A comunicação mental foi interrompida. Qadehar evocou o Grafema da invisibilidade psíquica, Dagaz, e o fez flutuar sobre si com um Mudra. Escafedeu-se; do lado de fora, tomou o caminho das gargantas. A chuva começou a cair. Puxou por sobre a cabeça o capuz do manto de Feiticeiro.

— O que está acontecendo? — rugiu Uriano de Troïl, despertando ao som de fortes batidas na porta do castelo.

— Acho que é alguém pedindo abrigo, por causa da tempestade — respondeu Valentim, enrolado num velho robe de chambre, segurando uma lanterna.

— Vá abrir, em nome de Deus! Vou reanimar o fogo. Com um tempo destes, essa criatura deve estar enchar­cada!

O sentimento de hospitalidade era muito forte em Ys. Se alguém fosse surpreendido pela noite ou pelo mau tempo, podia pedir asilo em qualquer lugar, não im­porta de quem fosse a casa. Abrigo e cobertor eram sem­pre garantidos, mesmo pelas famílias mais modestas, que consideravam um dever ajudar todo indivíduo em dificuldade.

Entretanto, na maioria das vezes, um visitante que não conhecesse ninguém na aldeia em que se encontra­va, dirigia-se ao Qamdar, o chefe de clã mais próximo, que possuía, mais que os outros, meios para assumir essa solidariedade.

— “A riqueza tem que servir para outras coisas, além de dar festas ou freqüentar as melhores tavernas!” — gos­tava de repetir Uriano que, debaixo da aparência valentona, sempre mostrava disponibilidade aos que precisa­vam dele.

Valentim tirou o ferrolho e Qadehar entrou pelo saguão, pingando.

— Ufa! Até que enfim no seco! — exclamou o Feiti­ceiro, sacudindo-se.

— Dê-me seu manto e vá para a sala de jantar — orde­nou gentilmente o mordomo, decidido a fazer as pergun­tas mais tarde. — Uriano já se encontra lá. Está reanimando o fogo.

— Obrigado, Valentim.

Qadehar dirigiu-se à vasta peça no fundo da qual Uriano remexia na lareira.

— Qadehar! — gritou o colosso, ao vê-lo, afinal. — Que surpresa! Aproxime-se, venha secar-se junto ao fogo!

Jogou sobre as brasas avermelhadas um feixe de faia seca, que inflamou-se, crepitando. O Feiticeiro instalou-se num tamborete e estendeu as pernas diante das chamas.

— Estava sonhando com este momento! — admitiu Qadehar.

O senhor de Troïl acomodou-se na sua cadeira, enquanto Valentim vinha ao encontro deles com uma chaleira fumegante.

— Obrigado, Valentim — acrescentou Qadehar, apa­nhando a xícara que lhe estendia o mordomo.

— Por Deus! O que está fazendo lá fora com um tempo destes? — espantou-se Uriano.

— Se eu disser, corro o risco de você me botar para fora.

— Está espicaçando a minha curiosidade, Qadehar!

— Meu velho Uriano, você abriu a porta para um fu­gitivo. Um fora-da-lei. Um pária da Guilda.

Valentim empalideceu.

— O que quer dizer?

— Vou contar a história toda... Há alguns dias, a Guil­da fez um ataque contra a Treva, no Mundo Incerto, uma operação secreta que me foi confiada. Essa operação foi malsucedida e fui o único sobrevivente. A Guilda me atribuiu a responsabilidade pelo desastre e me aprisio­nou em Gifdu. Fugi esta noite.

Uriano e Valentim passaram um momento em cho­que. Depois, o velho guerreiro deu um soco no braço da cadeira.

— Em nome do que há de mais sagrado! Qadehar, você escolheu muito bem o seu refúgio! O meu castelo é seu! A Guilda não vai alcançar você aqui, juro!

— Mas não entendo, Qadehar — continuou Valentim. — Não faz sentido! Você é o Feiticeiro mais íntegro da Guilda e todo mundo sabe disso. Seria um complô con­tra você? Para afastar você da sucessão de Charfalaq?

— Andei desconfiando disso, mas não tenho certeza. Mesmo que meu pior inimigo, o Mago de Gri, esteja conspirando para ficar no lugar do Grande Mago... A Guilda acha que a operação fracassou por causa de um traidor. O fato de eu ter sido o único a escapar depõe contra mim. A Guilda não investigou mais a fundo, sou um culpado ideal.

— É ridículo! — exclamou Uriano.

— O que é ridículo — insistiu Qadehar, depois de to­mar um gole do chá — é suspeitarem logo de mim. Por outro lado, não é ridículo se pensar que existe um traidor na Guilda. E vou até mais longe...

Uriano e Valentim trocaram um olhar inquieto.

— O que quer dizer?

— Quero dizer — anunciou Qadehar tranqüilamente — que a própria Guilda pode estar sendo vítima de um complô e que a Treva dispõe, sem dúvida, de apoio ali, já há muito tempo.

— Eu sabia! — deixou-se levar Uriano. — Eu disse a você, Valentim! Essa maldita Guilda é poderosa demais em Ys! Só faltava agora a Treva controlar...

— Calma, Uriano — interveio Qadehar. — Eu não disse que a Treva controla a Guilda, mas que, certamente, dis­põe de espiões ali!

— O que faz você pensar em um complô? — surpre­endeu-se Valentim.

— Um fato muito preocupante. Vocês não vão acredi­tar em mim... Imaginem que Yorwan está vivo! A pro­pósito, é chamado de Sha. O Senhor Sha! Desembarcou em Gifdu enquanto eu estava no Mundo Incerto. E per­seguiu Guillemot pelo subsolo do monastério...

Qadehar pensou que Uriano ia explodir. Valentim deu-lhe grandes tapas nas costas.

— O quê? — rugiu ele, por fim. — O que está dizendo? Ainda vivo?

— Cale-se, Uriano — comandou secamente Valentim. — Qadehar ainda não acabou de falar.

Uriano ainda tossiu, mas tornou a sentar-se, o rosto vermelho de cólera. O Feiticeiro continuou:

— Aparentemente, Yorwan e eu fomos simultanea­mente mandados atrás de pistas falsas. Alguém está se divertindo em nos confundir. Enfim... Não sei o que aconteceu quando Yorwan alcançou Guillemot, mas disse que não era ele o menino que procurava — termi­nou Qadehar, baixando os olhos.

Um trovão não faria maior efeito sobre os dois anti­gos Cavaleiros. Valentim foi o primeiro a recuperar a calma.

— Quer dizer... Quer dizer que Guillemot não é filho de Yorwan?

— Absurdo! — interrompeu-o Uriano. — Yorwan era noivo da minha irmã! Guillemot tem de ser filho dele!

O colosso ergueu-se, tomado por grande agitação, e pôs-se a andar para lá e para cá pelo salão.

— Era o que eu pensava, também — confiou Qadehar a Valentim, baixando a voz. — E achava que isso explica­va o dom de Guillemot para a magia. Com um pai como Yorwan...

— Nunca entendi o que aconteceu — respondeu Va­lentim, verificando que Uriano não podia ouvi-los. — Yorwan amava Alicia apaixonadamente. Por ela, rom­peu o voto de celibato e deixou a Guilda. Por que come­teu a loucura de roubar o Livro das Estrelas às vésperas do casamento?

— Ninguém jamais entendeu — disse o Feiticeiro. — Mas, hoje, acho que é preciso se investigar o verdadeiro motivo que levou Yorwan a agir assim.

— Um motivo que teria uma relação com o complô que você evocou?

— Talvez...

— Alicia com certeza sabe alguma coisa — anunciou Uriano, com voz sombria, pondo-se à frente deles. — Vou agora mesmo à casa dela. Em nome do sagrado! Ela tem interesse em falar!

— Sente-se, Uriano — mandou Qadehar, em tom con­vincente. — Tenho certeza de que Alicia não vai nos informar nada verdadeiramente importante... Não, a res­posta às nossas perguntas encontra-se em outro lugar.

— Onde, então? — perguntou Uriano, vencido, dei­xando-se cair na cadeira.

— No Mundo Incerto, meus amigos! O que diriam de uma fugidinha ao país dos Orks e dos bandidos?

Inicialmente incrédulo, o rosto de Uriano iluminou-se de repente.

— Qadehar, boas falas! Valentim! Tire nossas armas do armário, santo Deus! Nossa, até que enfim um pouco de ação!

Valentim olhou com atenção para Qadehar; depois, vendo que ele não estava brincando, permitiu-se um grande sorriso.

A vida voltava a ser apaixonante!

 

— Enfim... Enfim em minhas mãos... Meu Livro, este Livro que espero há tantos anos...

De pé diante de uma mesa sólida, no centro do cômodo em que gostava de ficar, o vulto nebuloso aca­riciava as páginas amareladas de um manual de feitiça­ria, com a capa preta pontilhada de estrelas.

— Sim, sortilégios, sortilégios muito poderosos... Estão todos aqui... Para mim... Para o meu triunfo... Mas é cedo demais, ainda cedo demais...

O vulto tornou a fechar o livro, alisando as bordas com os dedos. Retalhos de trevas correram aqui e ali, onde pousou as mãos.

— Ainda está me faltando o menino... Mas logo esta­rá lá... E assistirá a minha subida... ao meu triunfo...

Os murmúrios cavernosos deram lugar a uma garga­lhada glacial.

— Senhor?

— Sim, Lomgo... O que quer?

O vulto não se virou. Mesmo assim, o escriba cur­vou-se, e respondeu:

— Os homens que partiram para o Sul Incerto estão de volta, afinal, Mestre.

— Faça-os entrar... Lomgo, fiel Lomgo... Lomgo?

— Senhor?

— Você serviu bem ao seu Senhor trazendo de volta o Livro da casa do nosso velho amigo... Você não será esquecido, não, não será...

— Obrigado, Senhor — respondeu o escriba, com cara de ave de rapina, afastando-se para deixar passar um grupo de três homens, de cabeça raspada, sujos e cansa­dos, que arrastavam um menino amarrado.

— Senhor — começou um deles —, encontramos para lá dos desertos um menino que corresponde exatamente à descrição.

O vulto voltou-se e observou o menino, de olhos verdes, que tremia, prostrado no chão. Os três homens desviaram os olhares.

— Imbecis... Livrem-se desse garoto... Ainda não souberam da novidade? Encontrei o menino, o verdadei­ro... Completamente sozinho... Eu o encontrei, num outro Mundo...

Os homens olharam-se, aterrorizados.

— Sumam, já disse... Antes que eu mesmo me livre da presença de vocês...

Não esperaram que repetisse a ordem: desaparece­ram correndo pela escada e arrastando junto o menino. A silhueta de trevas tornou a concentrar sua atenção no Livro.

— Enfim... Enfim em minhas mãos...

 

As festas de Samain, no início do mês de novembro, duravam três dias. Rezava a tradição que o primeiro des­ses dias fosse consagrado aos ancestrais e à sua memó­ria, que se honrava visitando os cemitérios e ouvindo com polidez os discursos dos pais e avós sobre o tempo antigo.

Os dois outros dias eram bem mais divertidos: todos os estudantes de Ys encontravam-se em Dashtikazar, a capital, para celebrar, com jogos e danças, o fim da bela estação e a espera impaciente por seu retorno. Naquela ocasião, assim como no carnaval, quando se queimava simbolicamente o inverno, o Prefeito dava instruções aos Cavaleiros encarregados de manter a ordem na cida­de no sentido de serem bastante tolerantes.

Para escapar do tumulto, os habitantes mais idosos iam para a casa de parentes ou amigos no campo e, segundo um costume muito antigo, acendiam fogueiras nos morros, trocando, em torno das chamas, lembranças e votos de que o inverno não fosse longo demais...

Tendo feito o sacrifício à tradição dos ancestrais em seus respectivos vilarejos, Guillemot, Romaric, Gontrand, Âmbar e Corália tinham se reunido no apartamen­to que Utigern de Krakal, o pai das gêmeas, lhes havia emprestado para a temporada da festa, na rua das Sarabandas.

— Gontrand, não dá para você parar um pouco? — reclamou Romaric.

— Impossível — respondeu Gontrand, que arranhava as cordas do instrumento, sentado no tapete, as pernas cruzadas, no centro da vasta sala de jantar. — A Acade­mia me recomendou fazer escalas todos os dias.

— Então vá para a varanda — suspirou o Escudeiro. — Não se ouve mais ninguém falar por causa da sua guitarra!

— Fora de questão — continuou Gontrand, impassí­vel. — Tem barulho demais lá fora. E depois, para o seu governo, não é uma guitarra, é uma citara.

Fora, de fato, grupos de jovens riam e gritavam, su­bindo a rua, muito justamente batizada de Sarabandas, em direção à grande praça de Dashtikazar.

— Deixe — interveio Guillemot —, é importante para ele...

— Sim — insistiu Corália —, e quanto mais depressa ele terminar as escalas, mais cedo ficaremos livres!

— Vocês são todos uns ignorantes! — disse Gontrand, do canto da sala, para onde se tinha retirado.

— É isso, Chatotorix, é isso aí! — respondeu-lhe Ro­maric. — Dê-se por satisfeito de não termos amarrado você numa cadeira para ter paz!

Âmbar voltou da cozinha com uns sanduíches. Gontrand logo abandonou o instrumento para jun­tar-se ao grupo de esfomeados.

— Olhe só! — ironizou Romaric. — O músico genial não resiste ao apelo da barriga?

— Da cozinha, escutei “fazer escalas”, não “fazer uma boquinha”! — zombou Âmbar.

— Vocês todos resolveram abrir a boca para me abor­recer? — irritou-se o menino alto. — Sou o único que tra­balha, aqui. Só eu deveria ter o direito de comer!


Corália aproximou-se dele por trás, e despenteou-o.

— Ah, não! Tenho horror disso!

Gontrand tornou a se pentear, raivosamente, lançan­do olhares maus, e dando, sem querer, o sinal para o ata­que geral. Os amigos só o deixaram levantar-se quando estava com o cabelo completamente desgrenhado.

— Está certo, vocês venceram, paro por hoje — rendeu-se Gontrand, que resolveu rir da situação. — Mas vai ser culpa de vocês se a Academia de Música me expulsar!

— Vamos correr o risco — disse Romaric.

— De todo modo — concluiu Corália —, não ia poder tocar muito tempo: está anoitecendo, logo será hora da caça ao Jeshtan!

No mesmo instante, bateram à porta de entrada do apartamento. Os cinco amigos se olharam.

— Algum de vocês está esperando alguém? — pergun­tou Âmbar.

Os outros fizeram sinal que não. Mas Guillemot, sem que ninguém se desse conta, empalideceu repenti­namente.

“Meu Deus!”, imaginou. “Tomara que não seja a Ágata.”

Âmbar foi abrir.

Um personagem estranho apareceu: costas arqueadas, cabeça erguida e olhar zombeteiro, usava no queixo uma barbicha e por cima do lábio, um bigode fino. Vestia um manto de Feiticeiro...

— Bertram! — exclamou Guillemot, precipitando-se ao seu encontro. — Mas o que está fazendo aqui?

— Vou explicar — prometeu Bertram, apertando calo­rosamente a mão de Guillemot. — Não me apresenta aos seus amigos?

— Hum... Sim, sim, é claro. Bertram, este é Romaric; é meu primo, é Escudeiro em Bromotul.

— Mais um daqueles brutos descerebrados? — co­mentou o Feiticeiro, erguendo exageradamente a so­brancelha e estendendo a mão distante a Romaric, que ficou de boca aberta.

— E, hum... ele é Gontrand — continuou Guillemot, pouco à vontade; vem de Bunic e estuda na Academia de Música em Tantreval.

— Um matuto que toca gaita de fole! — disparou Ber­tram, medindo-o dos pés à cabeça.

— Eis Corália, filha de Utigern de Krakal — prosse­guiu Guillemot, rapidamente, para impedir que Gon­trand respondesse.

Bertram pousou os olhos em Corália e ficou imobi­lizado.

— Que beleza! Permita, senhorita, que eu beije as suas belas mãos!

— Você não se permita coisa alguma e deixe a minha irmã em paz — interveio Âmbar, as mãos nas cadeiras e o olhar furioso.

— Hum... Esta é Âmbar, irmã de... — tentou dizer Guillemot.

— Aí está uma bela potranca! — exclamou Bertram, aproximando-se da jovem de cabelo curto. — E com caráter!

Bertram não teve tempo de dizer mais nada. Âmbar deu-lhe uma joelhada no baixo-ventre que dobrou o Fei­ticeiro em dois e o fez gemer, deitado no tapete.

— Bravo, Âmbar! — gritou Gontrand, no céu.

— Adoro você! — acrescentou Romaric, com vene­ração.

— Está louca? Que bicho deu em você? — protestou Corália. — Ele só queria me beijar as mãos para homena­gear minha beleza!

— Que comece homenageando o tapete — disse Âm­bar, friamente, voltando-se, em seguida, para Guillemot. — Você conhece esse imbecil?

— Deve-se tratar de um mal-entendido — defendeu-se Guillemot. — É Bertram, um Feiticeiro de Gifdu. Nor­malmente, não é assim... Quer dizer, pelo menos não completamente... Não estou entendendo.

— Ei, parece que ele quer dizer alguma coisa! — cha­mou Corália, que tinha se aproximado de Bertram, ainda dobrado em dois e gemendo no chão.

O jovem Feiticeiro, de fato, segurava o meio das pernas com uma das mãos e estendia a outra desesperadamente em direção a Guillemot. As palavras lhe saíam da boca com dificuldade. Mal conseguia articular.

— Você tem razão, Corália — reconheceu Romaric. — Parece que quer dizer alguma coisa.

— E tocante ver uma minhoca tentando se comunicar — acrescentou Gontrand. — Acho que deveríamos abre­viar seu sofrimento, esmagando-a — propôs Romaric.

— Excelente idéia — aquiesceu Gontrand.

— Vamos parar um pouco, todos dois! — resmungou Guillemot, aproximando o ouvido dos lábios de Bertram.

— Olhem só! — suspirou Gontrand. — Nosso Guille­mot nunca consegue deixar de ir em socorro dos desgra­çados! Acho que precisamos de um chefe mais enérgico para o bando. Âmbar, por exemplo!

— Completamente de acordo com você — continuou Romaric.

— Chega! — intimou Guillemot. — Não estou ouvindo o que ele diz!

— Brincando... Eu... Humor... Na minha terra... en­tende a brincadeira...

— Está pedindo uma morte rápida? — perguntou Gon­trand, cheio de esperança.

— Ou a assistência de um advogado, para o último desejo? — acrescentou Romaric.

Bertram tinha segurado Guillemot pelo colarinho, e este continuava traduzindo para os amigos.

— Coisa grave... Qadehar... Substituir...

Depois, de repente, Bertram recuperou o fôlego e a voz.

— FUI MANDADO AQUI POR QADEHAR! ACONTECEU ALGUMA COISA GRAVE COM ELE! PEDIU QUE O SUBSTI­TUÍSSE E FICASSE PERTO DE VOCÊ!

— E antes? — perguntou-lhe docemente Romaric, en­quanto Guillemot recuava, abatido — o que você estava dizendo antes?

— ERA UMA BRINCADEIRA! NA MINHA TERRA AS PESSOAS ENTENDEM AS BRINCADEIRAS! TÊM SENSO DE HUMOR!

 

— Andem logo — suplicou Corália, torcendo as mãos. — Vamos perder a caça ao Jeshtan!

— Espere um pouco — Gontrand acalmou-a. — Guille­mot não está pronto...

— Guillemot! — berrou Corália, que sapateava na escada. — Ande logo!

Guillemot, com o choque das revelações que Ber­tram acabava de fazer, estava ainda sentado no tapete da sala. Agora, a algazarra alegre subia da rua pela grande janela de vidro entreaberta. Perto, Âmbar e Romaric tentavam convencê-lo a ir com eles, diante do olhar per­plexo de Bertram, que se mantinha bem à distância da menina.

— Ande, primo! Sei, não tem graça o que aconteceu com Mestre Qadehar... Mas ficar se lamentando não vai ajudar nem mudar nada...

— Ele tem razão, Guillemot — repetia Âmbar. — Não seja idiota! É a primeira vez desde as férias longas que estamos os cinco juntos. Não estrague nosso reencontro, como o outro zuavo está tentando fazer, desde que che­gou...

— O zuavo em questão se chama Bertram — arriscou o Feiticeiro, levantando o dedo.

— Um nome tão ridículo como seu bigode e seus tocos de pêlos no queixo — retorquiu Âmbar, ácida.

— Escute — suspirou Bertram —, vamos tentar partir de novas bases. Lamento o que aconteceu. E a minha maneira de ser engraçado e...

— Bertram tem razão — interveio Guillemot. — O que está acontecendo com o meu Mestre já é bastante terrí­vel. Nossos pequenos aborrecimentos...

— Ah, estão vendo? — triunfou Bertram.

— Pequeno aborrecimento, pequeno aborrecimento... Falar é fácil... — objetou Romaric, encarando o Feiti­ceiro.

— Seja como for — prosseguiu Bertram, recuperando a soberba — tenho aqui um papel da Guilda que me con­fia Guillemot. Queiram vocês ou não, eu...

— Sabe onde pode colocar o seu papel? — respondeu Romaric, escarnecendo.

— Estou avisando... — disse Gontrand, com seu ar plá­cido. — Corália está prestes a ter uma síncope na escada.

Guillemot decidiu-se.

— Bom — resmungou ele, levantando-se. — Não tenho ânimo para me divertir, mas vou com vocês assim mes­mo. E Bertram também. Sou Aprendiz de Feiticeiro, tenho que me conformar à vontade de meu Mestre, que deseja que Bertram me proteja...

— Exatamente! — disse Bertram, sacudindo a cabeça.

— Podemos tentar suportá-lo — concedeu Âmbar, após refletir.

— Sim — continuou Gontrand. — Mas será apenas uma tentativa. Digamos, esta noite...

No mesmo instante, Corália, fora de si, irrompeu no apartamento e impediu Bertram de se insurgir contra essa idéia de tentativa.

— Vocês resolveram estragar a festa de Samain, puxa vida!

— Estamos indo, estamos indo — replicou Romaric, em tom de zombaria.

— Guillemot estava terminando de se arrumar e não sabíamos se dispensávamos a maquiadora ou se ficáva­mos com ela...

— Cretino! — respondeu o Aprendiz de Feiticeiro que, no entanto, não pôde deixar de sorrir.

— Você está me tirando a palavra da boca — acrescen­tou Bertram.

Desceram todos a escada numa algazarra terrível.

Na rua, bandos de jovens corriam para todos os lados, gritando e rindo. A caça ao Jeshtan, que inaugura­va a primeira noite de festa, tinha começado! O Jeshtan era, na tradição de Ys, um gnomo maléfico que atacava as reservas de alimentos acumuladas durante o verão para se passar a má estação. Era, portanto, indispensável procurar por ele e inutilizá-lo antes da chegada definiti­va do inverno...

— Eu o vi! — berrou uma menina. — Por ali! A multidão se deslocou em sua direção.

— Depressa, vamos! — disse Corália, toda excitada.

— Foi-se! — respondeu Gontrand, pondo-se a correr junto com ela.

Os outros quatro foram atrás deles andando mais devagar.

— Aprisionar Mestre Qadehar! — protestou Guille­mot, furioso. — Não têm o direito!

— E você está dizendo, Bertram, que a Guilda julgou Qadehar como um criminoso vulgar? — perguntou Ro­maric.

— Sim — respondeu Bertram. O Feiticeiro decidiu adotar uma atitude conciliadora. — O único que tentou defendê-lo foi Geraldo, meu antigo Mestre. No fim, o Grande Mago Charfalaq fez uma cara muito triste, mas a verdade é que o Conselho suspendeu as funções do Mestre Qadehar...

— Não faz sentido isso! — decretou Âmbar. — Se é Sha o responsável pelo massacre de Djaghataël, por que ele não matou os Feiticeiros de Gifdu? E por que não levou você, Guillemot?

Guillemot não respondeu logo. Não tinha, é claro, contado tudo aos amigos. Nem o que Ágata lhe tinha confiado no verão passado a propósito de Sha em busca do filho desaparecido, nem as palavras misteriosas do Senhor de Djaghataël. E muito menos a história de Yorwan, o ladrão do Livro das Estrelas!

Bertram respondeu em seu lugar, pavoneando-se.

— Foi graças a mim que Guillemot conseguiu fugir! Eu, dando provas de uma coragem inaudita...

— Também estou achando essa história toda estranha — interrompeu-o Guillemot, tendo surpreendido Roma­ric e Âmbar trocarem um olhar exasperado. — Mas uma coisa está clara: a Guilda errou.

— Por condenar Qadehar? — perguntou Romaric.

— Evidentemente.

Uma agitação súbita em torno deles interrompeu a conversa: tinham encontrado Jeshtan. Âmbar, Guille­mot, Bertram e Romaric deixaram-se levar e mistu­raram-se aos outros adolescentes de Ys que corriam pelas ruas.

Logo, na grande praça de Dashtikazar, iluminada por centenas de tochas naquela noite, um grupo de me­ninas, gritando de alegria, sacudia um manequim — que era um gnomo — fazendo careta.

— Ih! — gritou Corália, com desprezo. — Elas tiveram sorte, só isso.

O grupinho encontrava-se em torno de uma fonte em forma de concha gigante, esculpida em mármore, de um lado da praça.

Por fim, reuniu-se ao cortejo e subiu até o palácio do Prefeito, que era ao mesmo tempo prefeito de Dash­tikazar e prefeito do País de Ys. Lá, à vista divertida e vigilante dos Cavaleiros enfileirados, as meninas que tinham achado o Jeshtan de palha e pano passaram uma corda em torno do pescoço do espantalho e o pendura­ram num lampião. Aplausos e hurras se misturavam.

Em seguida, os Cavaleiros lançaram aos jovens, que se amontoavam diante do palácio, máscaras com caretas e outros bonecos assustadores. Quem queria pegava e saía pelas ruas, exibindo-os ou brandindo-os. À meia-noite, era preciso ornamentar com eles os lampiões da cidade, onde ficariam até o final de Samain, para adver­tir os maus espíritos do que os aguardava caso se aven­turassem no País de Ys!

Gontrand tinha posto uma cabeça de ogro de pape­lão e se divertia, para maior alegria de Corália e Ro­maric, e sob o olhar condescendente de Bertram, a botar medo nas crianças mais novas, que saltitavam como dia­bos naquela confusão. Um pouco mais longe, atrás deles, Âmbar fazia companhia a Guillemot. O Aprendiz não conseguia se desvencilhar de sua tristeza.

— Isso vai se arrumar — a amiga tentava confortá-lo. — Todo mundo sabe que Qadehar é um homem excep­cional. A investigação da comissão o absolverá.

— Não é só isso... — suspirou Guillemot.

— O que é, então?

— É que... — respondeu Guillemot, que hesitava em fazer a confidencia a Âmbar. — É que a vida me parece extremamente complicada desde a noite do aniversário do tio Uriano! Eu nunca devia ter desmaiado...

— Quanto a isso, não pode fazer nada. Mas é verdade que muita coisa mudou depois! E não somente para você...

— O que você quer dizer?

— Quero dizer — hesitou Âmbar, piscando o olho para ele —, enfim, quero falar de... Não, deixe para lá...

— Quer falar dos sonhos que descreve nas cartas? — perguntou ingenuamente Guillemot, que não tinha repa­rado na confusão da moça.

— Não. Bem, um pouco.

— E aí?

— Vamos falar disso amanhã, é melhor. Gostaria que aproveitássemos a noite! Estamos bem, aqui, os dois... ou... todos juntos, não é? Apesar da presença do seu pre­tensioso guarda-costas!

— Bertram é muito simpático, pode crer. Dê-lhe uma oportunidade! Mas, é verdade, você tem razão, estou estragando a festa com a minha cara de enterro. Vamos. Vamos nos encontrar com o pessoal.

Alcançaram Corália e Bertram, que se afastou rapi­damente da jovem assim que notou Âmbar. Depois, o pequeno grupo correu para encontrar Romaric e Gon­trand, no momento em que este último amarrava a más­cara num poste. Em seguida, rumaram para a praia de Dashtikazar, onde já ardia a grande fogueira dos Pedregulhos Brancos. Aproximaram-se do grande cesto con­tendo centenas de pedras brancas. Cada um pegou uma e escreveu em cima seu nome, com uma tinta que não temia as chamas. Jogaram as pedras no braseiro: se o calor não a fizesse estalar, e se a encontrassem intacta na manhã seguinte, aquilo seria um bom presságio para o ano por vir! O jovem Feiticeiro parecia pensativo, con­templando o fogo, e não fez nenhum comentário desa­gradável.

Chamado por jovens do vilarejo de Krakal, que ti­nham reconhecido Âmbar e Corália, o pequeno bando se juntou por um momento ao outro grupo. Depois, an­daram pela praia, Bertram atrás, simplesmente felizes por estarem juntos.

Quando sentiram a umidade da noite, decidiram vol­tar para o apartamento, no centro da cidade, onde esva­ziaram diversos copos de corma, a cerveja leve com mel de Ys. Corália, Romaric e Gontrand brindaram com Bertram, que se lançou num discurso inflamado, reco­nhecendo que realmente desejava ser amigo deles.

— Se quer ser amigo de Romaric — confidenciou-lhe Gontrand ao ouvido — pare de olhar assim para Corália e de andar atrás dela...

Sussurrando, Bertram defendeu-se das acusações, mas enrubesceu ligeiramente. Âmbar e Guillemot em seguida se aproximaram e, falando de tudo e de nada, esperaram o cansaço chegar para se enfiarem nos sacos de dormir.

 

— Puxa, Bertram! Como você ronca! — exclamou Âmbar, saindo do colchão. — Era só o que faltava! Cha­teia de dia e de noite!

— Não ronco, você está dizendo bobagem — retorquiu o Feiticeiro, com a voz sonada, encoscorado nas cober­tas que lhe tinham emprestado.

— Ronca, sim, Bertram — confirmou Guillemot, que botava as tigelas para o café da manhã sobre a mesa. — Vamos, todo mundo de pé!

— De pé, larvas! — repetiu Romaric, vigiando a panela do leite no fogão elétrico. — O dia está muito lindo lá fora!

Guillemot puxou as cortinas e o sol inundou a gran­de sala onde todos tinham dormido, sobre colchões colocados no próprio chão. Gontrand, Bertram e Corália reclamaram e puseram a cabeça ao abrigo da luz. Âmbar, de pijama vermelho, pulou da cama e saiu distri­buindo pontapés nos preguiçosos.

— Olhe aqui, pseudofeiticeiro, isto é pelos seus ron­cos desta noite! E isto pelos arranhões de guitarra, Gon­trand! Você, tome isto, minha velha, por todas as vezes que fiquei esperando na porta do banheiro!

— Pare, Âmbar! Não tem graça!

Âmbar juntou-se a Guillemot e Romaric, à mesa. Os outros não demoraram a levantar, por sua vez, queixando-se de terem sido despertados tão brutalmente.


— Qual o programa de hoje? — perguntou Corália, bocejando.

— À noite, danças na praça grande em torno da fo­gueira — respondeu Romaric, mexendo com uma colher a tigela de chocolate.

— “Exa” tarde — continuou Guillemot, que se debatia com um enorme sanduíche de Nutella — xão os jogos de arremexo, no extádio!

— E de manhã? — interveio Bertram, cocando o rosto.

— De manhã temos que ir ver nossas pedras na praia — lembrou Âmbar, que olhava, desolada, Guillemot com os dedos cheios de Nutella.

— Nesse caso... Primeira no banheiro! — gritou Co­rália, fingindo que ia se levantar.

— Nada disso! — berraram os outros quatro, abando­nando o que estavam fazendo e caindo em cima dela.

Só Bertram permaneceu à mesa, siderado.

Lavados e vestidos, deixaram o apartamento, to­mando o caminho da praia.

As ruas, estreitas e sinuosas, estavam sombrias: os imóveis que as bordeavam tinham quatro, cinco anda­res, e o sol ainda não estava suficientemente alto no céu para iluminar o calçamento de granito claro.

Desembocaram, aliviados, na praia que ocupava em parte a baía, ao fundo da qual se estendia Dashtikazar. Ainda era cedo e a maioria dos colegiais, que tinha fes­tejado até tarde na noite anterior, ainda dormia.

O bando dirigiu-se à fogueira, que ainda fumegava em alguns pontos. Com a ajuda de galhos, espalharam as cinzas quentes na areia e puseram-se a procurar suas pedras. Corália foi a primeira a encontrar a sua, bem do lado da de Bertram.

— Minha Pedra Branca está intacta! — exclamou, ale­gremente.

— A minha também — disse Bertram, mostrando-a e sorrindo. — É um sinal!

— Sinal de quê? — perguntou Romaric, com a voz glacial.

— Bem... — gaguejou Bertram, que tinha visto Ro­maric sem camisa na hora de dormir e concluído que não estava a salvo de uma grave derrota em caso de enfrentamento físico. — E um sinal de sorte! Para mim! Ter encontrado minha pedra intacta!

— Achei a minha — anunciou Gontrand. — Também está intacta.

— Eu também — disse Guillemot — soprando a que ti­nha nas mãos, para tirar as cinzas.

— A minha se rompeu — declarou Âmbar, com cara de infeliz.

Reuniram-se sem dizer uma palavra em torno da jovem, que tinha preso entre os dedos um pedaço de pedra em que se lia a metade de seu nome.

— Não faz mal — Guillemot tentou consolá-la.

— Faz sim — respondeu Corália, em tom de catástro­fe. — Não está vendo?

— Ela tem razão, é mau sinal — disse Âmbar, em voz grave.

Diante do desespero da irmã, Corália avançou num passo decidido, rumo ao cesto em que tinham apanhado as pedras brancas. Escolheu uma bonita, escreveu Âm­bar em cima, com a caneta que pendia na ponta de um barbante, e a estendeu.

— Tome. Agora todos temos nossa Pedra Branca in­teira.

Âmbar olhou Corália com reconhecimento e a abra­çou afetuosamente. Depois, com um esforço, sorriu e aceitou a nova pedra, jogando nas cinzas a que tinha se partido.

— Faz muito bem, Âmbar, em reagir assim — aquies­ceu Bertram, que estava esperando por uma oportunida­de de se mostrar gentil para com ela. — É só uma pedra, afinal!

Ela agradeceu e, juntos, voltaram para a cidade.

— Então, e aqueles sonhos? — perguntou Guillemot a Âmbar, quando andavam, de novo, sozinhos, atrás dos outros, em direção ao estádio onde haveria jogos de des­treza, que marcavam o segundo dia de festa.

— Ah, você sabe, eu lhe disse tudo nas minhas cartas — respondeu Âmbar, depois de um silêncio. — Desde que voltei do Mundo Incerto tenho sonhos estranhos.

— Freqüentemente?

— Quase todas as noites.

— São sempre os mesmos sonhos?

— Sim e não. Na verdade, sempre sonho com uma floresta imensa. Depois, os sonhos mudam. Às vezes, sou perseguida por animais que parecem javalis, mas têm cabeça de cachorro. Às vezes, também, monto num cavalo, na garupa de uma mulher de cabelo muito com­prido e olhos verdes. Ou ainda, estou deitada numa cama muito dura e ouço uma canção que me faz ador­mecer... O pior de tudo é que, nesses sonhos, tenho a impressão de ter verdadeiramente vivido tudo isso. En­quanto que, na realidade, nunca fui a essa floresta e jamais conheci essa mulher!

Guillemot ficou perplexo.

— Não sei o que responder, Âmbar. Talvez esteja tudo ligado ao fato de você ter passado mal na viagem através da Porta do Segundo Mundo, como Mestre Qadehar explicou já... Lembre a dor de cabeça e o sono que você sentia ao chegar ao Mundo Incerto!

— É impossível esquecer... — resmungou Âmbar. — Ainda no mês passado eu estava de cama, com a mesma dor de cabeça! A propósito, obrigada por ter me escrito.

— Ah, nada de mais... É preciso um apoio nos mo­mentos difíceis. Somos amigos, não?

— Sim, somos amigos — disse Âmbar, mordendo o lábio.

Fez-se um breve silêncio. Depois a menina recome­çou a queixar-se.

— Mesmo assim, fui a única, este ano, a cair doente. Como também fui a única a sofrer por conta da nossa estada no Mundo Incerto! Como sou a única, hoje, que teve a Pedra Branca quebrada...

— A que Corália lhe deu não era bonita? — perguntou Guillemot, que não queria que ela tornasse a mergulhar na melancolia.

— Sim... — ela respondeu, fazendo esforço para sorrir. — Digamos que vai resolver!

— Você quer que a gente fale sobre os seus sonhos com Bertram? — propôs Guillemot. — Afinal, ele é Fei­ticeiro! Talvez tenha uma idéia.

— Não — recusou Âmbar, com um vigoroso movi­mento de cabeça. — Não é porque eu duvide da compe­tência de Bertram, mas... Prefiro que isto fique entre nós. Como um segredo.

Ergueu em direção a ele os grandes olhos azuis.

— Se quer assim... — gaguejou Guillemot, subitamen­te confuso e pouco à vontade.

Alcançaram os amigos diante de uma grande bacia de água, em cuja superfície boiavam enormes maçãs.

— Se conseguirmos pegar uma com os dentes, signi­fica que seremos bem-sucedidos em tudo o que empre­endermos no ano! — anunciou Corália, mostrando os dentes de uma brancura radiante.

Deixou que amarrassem suas mãos nas costas e entregou-se à pesca das maçãs. Soprou, ficou sem respi­ração, respingou água para todos os lados. Os jovens presentes em torno da bacia riam dela, enquanto seus amigos a estimulavam. Finalmente, Corália tornou a erguer a cabeça, pingando água, os dentes presos numa maçã que quase lhe tirava o ar.

— Bravo, Corália! — felicitou-a a irmã.

— É sua vez, Bertram — comandou Romaric.

— Eu? Por que eu? — espantou-se o Feiticeiro.

— Quero verificar uma coisa.

— Verificar o quê? — perguntou Bertram, desconfiado.

— Você vai ver... Ande! Você é feito de açúcar, é? Instigado diante de todos, Bertram pôs as mãos nas costas e tentou a sorte, por sua vez, sob as graçolas de uns e o encorajamento de outros. Também veio com uma maçã, que cuspiu, adotando uma postura de vitorioso.

— Ninguém mais quer tentar a sorte? — perguntou Bertram, enxugando o rosto com uma toalha que lhe estendeu um dos meninos em torno da tina.

— Não, obrigado — respondeu Gontrand. — Não quero pegar friagem.

— Diga a verdade: não quer é molhar o cabelo! — alfinetou-o Corália, borrifando água nele.

— Ah, não! — exclamou Gontrand, ajeitando o cabe­lo. — Vai começar de novo?

Guillemot tornou a despenteá-lo e Gontrand fugiu, protestando, perseguido pelos amigos. Bertram segurou Romaric pela manga.

— O que é que você queria verificar, com a história da maçã?

— Se você não ia nos trazer azar — respondeu o meni­no e saiu correndo atrás dos outros.

 

Mais tarde, quando a noite começou a tomar o lugar da claridade do segundo dia de festa, o bando se encon­trava junto à fogueira acesa no centro da grande praça.

Enquanto os músicos esquentavam sobre um estra­do, Âmbar e Corália, diante do olhar zombeteiro de Bertram, mostravam alguns passos a Romaric, que con­tinuava querendo aprender a dançar.

Em seguida, regalaram-se com grelhados que os Cavaleiros assavam sobre braseiros gigantescos.

Quando a festa começou, Âmbar levou Guillemot outra vez para o meio dos dançarinos e não o largou mais. Para evitar ser escolhido, como sempre acontecia, por uma parceira não muito bonita, Gontrand decidiu procurar uma a seu gosto. Descobriu, afinal, a feliz elei­ta: a fez rir, inicialmente, com algumas brincadeiras, depois tirou-a de seu grupo, para levá-la à pista onde se dançava uma dança alegre. Corália logo viu-se a sós com Bertram e Romaric.

— Que noite magnífica! — exclamou, sentando-se na borda da fonte em forma de concha, o olhar perdido no meio das estrelas.

— Sim, a noite está muito linda! — confirmou Ber­tram, que achava realmente uma pena Romaric estar entre eles...

— Realmente muito linda! — disse, por sua vez, Ro­maric, que maldizia Mestre Qadehar por lhes impor a presença daquele Feiticeiro, que ele ainda hesitava em classificar entre os indivíduos simplesmente grotescos ou de fato perigosos. — A propósito, Bertram, é verdade que os Feiticeiros fazem voto de castidade?

— Exato — respondeu Bertram, reticente, erguendo as sobrancelhas. — Mas fazer voto de castidade não quer dizer que não se possa ter uma amiga! — acrescentou logo, dando uma olhadela furtiva em direção à Corália.

Romaric resmungou uma coisa qualquer sobre as pessoas que brincavam com as palavras, mas não disse mais nada. Um pesado silêncio instalou-se, subitamente interrompido por uma silhueta, vinda de uma ruela.

— Boa-noite a todos! Guillemot não está com vocês? Estou procurando por ele em toda parte desde ontem.

— Ágata! — surpreendeu-se Corália.

Era mesmo Ágata. Vestia um conjunto lindo e, pela primeira vez, usava maquiagem, de bom gosto. Romaric olhou para ela como se jamais a tivesse visto antes.

— Tomás não está com você? — perguntou ele, afinal.

— Tomás, Tomás... — ela respondeu, contrariada. — Por que vocês estão sempre me perguntando por To­más? Não sou casada com ele, que eu saiba!

— Não, mas temos o hábito de ver você com ele — gaguejou Romaric.

Perguntava-se por que, até àquele momento, não tinha reparado que Ágata era, na verdade, bonita.

— Não me apresentei — disse Bertram, dando um passo à frente e inclinando-se ligeiramente. — Bertram, Feiticeiro da Guilda, amigo de Guillemot.

Ágata observou-o, circunspecta; depois, convencida de que se tratava de um verdadeiro Feiticeiro, e não de uma brincadeira do bando, inclinou a cabeça e estendeu-lhe a mão. Bertram pegou-a e nela pousou os lábios.

— Que homem galante é o senhor, Bertram!

— Que mal-educado! — retorquiu Corália, vexada por não ser mais o centro do interesse do jovem Feiticeiro.

Romaric recuperou a esperança.

— Bertram é um grande Feiticeiro — insistiu, dirigin­do-se a Ágata. — Já salvou a vida de Guillemot uma vez!

— Ah, é? — contentou-se em dizer Ágata. — E Guille­mot, onde está? — acrescentou.

— Está dançando com Âmbar — respondeu Romaric, irritado.

Ele tinha desejado desviar a atenção de Bertram para a recém-chegada.

— Ah, sim, Âmbar... — murmurou Ágata, com a expressão sombria.

— E, sim, Âmbar... — repetiu Bertram, feito eco, no mesmo tom, com uma careta à lembrança do golpe mal­vado que tinha levado na véspera.

— Oh, e que importância tem! — decidiu Ágata. — Não estou fazendo nada de errado, afinal... Simplesmente tenho vontade de conversar com Guillemot. E eles não são casados...

— Se posso lhe dar um conselho — arriscou Romaric —, tenha cuidado. Conheço muito bem Âmbar e detalhes do estilo “só quero conversar com ele” não fazem o gênero dela...

— Eu até diria que a minha irmã dá uns sopapos com uma certa facilidade quando se trata de Guillemot! — acrescentou Corália.

Corália fazia alusão à noite de aniversário do tio Uriano, no decorrer da qual, Âmbar tinha batido na me­nina alta na frente de todo mundo. Ágata ignorou seu comentário.

— Boa-noite! — ela disse, e foi-se.

Dirigiu-se ao centro da praça e viu Guillemot entre a multidão de dançarinos.

— Devíamos segui-la — propôs Romaric. — Na minha opinião, isso vai acabar mal.

— Jóia! — exclamou Corália. — Adoro quando minha irmã fica encolerizada!

— Mas, digam-me — inquiriu Bertram, estupefato —, Guillemot vive correndo atrás das meninas, é?

— Oh, tudo isso é recente — retificou Romaric. — E para ser exato, na verdade, são as meninas que correm atrás dele...

— Que sorte! — gemeu Bertram. — Você conhece o se­gredo dele?

— Oh, nada mais fácil — ironizou Romaric. — Você dá uma sova nuns Gommons, abate dois ou três Orks e, por fim, destrói o palácio do alcaide do Mundo Incerto. Isso basta para impressioná-las... Mais alguma pergunta?

Bertram ficou quieto.

Enquanto isso, Ágata avançava em direção a Guille­mot, gritando “oi!” e acenando.

— Parece que é Ágata! — espantou-se Âmbar, de re­pente, parando de dançar e vendo a menina alta apro­ximar-se.

— E ela mesma — reconheceu Guillemot, com a morte na alma.

Pronto. Aquilo que mais temia acontecia! Deu-se conta de que ainda não possuía a fórmula para desapare­cer embaixo da terra, se é que ela existia de verdade... Prometeu a si mesmo remediar essa lacuna se saísse vivo daquele confronto.

Âmbar recebeu Ágata bem friamente.

— O que veio fazer aqui?

— Vim dizer boa-noite a Guillemot — respondeu Ágata, sem lhe dar mais atenção e dirigindo ao menino um sorriso sedutor. — Oi, Guillemot! Tudo bem desde a última vez que nos vimos?

— Última vez? Que última vez? — Âmbar se aborreceu.

— Hum... isto é... — Guillemot hesitou.

— A última vez em Troïl, ora! — disse Ágata, sem levar em conta os olhares enlouquecidos que o Aprendiz lhe lançava. — Você sabe, Guillemot, adoro o seu quarto!

Âmbar empalideceu e pousou em Guillemot os olhos cheios de lágrimas. Depois voltou-se para Ágata com um olhar assassino.

— Por favor, não faça papel de idiota! — quis intervir Guillemot. — Ágata só passou para me ver e lemos uma revista.

— Você! — assobiou Âmbar, entre os dentes, com um ar tão terrível que Ágata piscou os olhos e deu um passo atrás. — Vou estrangular você!

Âmbar jogou-se em cima da rival com as unhas de fora.

— Guillemot! — berrou Ágata, no meio do burburinho do baile, estupefata com a reação de Âmbar. — Faça alguma coisa! Ela vai me matar!

Âmbar deu uma gargalhada, e Ágata correu.

— Não, Âmbar! — gritou Guillemot, ao ver a jovem sair correndo atrás de Ágata.

E saiu correndo atrás das duas meninas.

— O que deu em você? — gritou Romaric, vendo o primo passar a toda diante dele.

— Âmbar. Quer estrangular Ágata!

Romaric saiu atrás dele, seguido de Bertram e Co­rália. De passagem, arrancaram Gontrand dos braços de sua parceira, atônita, e em duas palavras explicaram-lhe a situação.

— O amor é isso! — comentou Corália, radiante, enquanto galopava ao lado de Romaric.

— Está é louca furiosa — rosnou o Escudeiro.

— Mas o que deu nela? — gritou Gontrand, furioso de ter que abandonar sua parceira, de qualquer maneira.

— Só agora... vocês perceberam... que essa menina é louca de hospício? — disse Bertram, resfolegando.

A fuga-perseguição os foi levando por ruas cada vez menos iluminadas. Logo ultrapassaram as últimas casas de Dashtikazar e viram-se bem no meio do mato.

— Por aqui! — Guillemot os chamou.

Alcançaram o amigo e correram ainda alguns minu­tos no meio da urze, felizmente guiados pela aura lumi­nosa da lua. De repente, ouviram Ágata berrar.

— Tarde demais! — gemeu Gontrand. — Âmbar a deve estar destripando!

Depois, de repente, foi a vez de Âmbar gritar.

— Em todo caso... — observou Bertram, sem fôlego — Ágata parece... defender... bem a vida...

Desembocaram bem no meio de um grande círculo de mato queimado. Pararam de repente. Bertram e Guille­mot se entreolharam.

— Poderia se dizer... — disse o jovem Feiticeiro, sem fôlego — uma pista de dança...

— ...de Korrigãs! — confirmou Guillemot, lançando olhares inquietos em volta. — Depressa, vamos embora!

Não tiveram tempo para fazer um gesto: uma rede caiu sobre eles e logo uma multidão de pequenas mãos em forma de patas de gato se pôs a atá-los cuidadosa­mente.

 

— Guillemot! Faça alguma coisa! — Corália conse­guiu gritar antes que um Korrigã lhe pusesse uma sólida mordaça na boca.

O Aprendiz mal podia responder ou agir. Como Bertram, Romaric, Gontrand, Ágata e Âmbar, estava com as mãos e os pés amarrados, a boca fechada por um grande pedaço de pano! O que podia fazer um Feiticeiro incapaz de chamar, com a voz ou com o gesto, a magia capaz de o libertar? Guillemot, reduzido à impotência, a exemplo de Bertram, revirava os olhos, furioso, e tinha que se contentar com assistir ao próprio rapto pelo pequeno povo dos Korrigãs.

Os Korrigãs estavam presentes no país bem antes dos homens aí se instalarem. Antigamente, antes da tempestade desligar Ys da costa da Bretanha, projetando o país entre o Mundo Certo e o Mundo Incerto, os Korrigãs viviam nas matas bretãs.

Foi antes que os homens do mundo real, esquecendo o Pacto Antigo, perseguissem e eliminassem aqueles que não se pareciam com eles; antes que desencantas­sem o mundo em que viviam para, finalmente, se verem sós nele.

Por outro lado, a coabitação dos seres humanos com aquela raça muito antiga nunca tinha dado problemas em Ys.

De um lado, porque os habitantes do País de Ys, que viviam em harmonia com uma natureza, na qual o homem era considerado uma simples criatura entre outras, nunca tiveram a idéia de exterminar um povo para tomar seu lugar — ao contrário dos colonos da Amé­rica do Norte, por exemplo, em relação aos índios.

De outro lado, pelo fato de que os homens e os Korrigãs na realidade tinham poucas ocasiões de encon­tro. Os Korrigãs, que se contentavam com o território da mata, passavam a noite a dançar em roda ao clarão da lua e o dia a comer e se divertir nas grutas.

Assim, os contatos entre os homens e os Korrigãs eram raros. O Prefeito de Dashtikazar de vez em quando encontrava-se com Kor Mehtar, o rei dos Korrigãs, e o Grande Mago de Gifdu às vezes recebia pedidos de arbi­tragem da parte dos Korrigãs que, unidos como os dedos da mão quando se tratava de se divertir, eram incapazes de se entender quanto a assuntos sérios.

Quanto aos homens que se perdiam pelo mato no momento errado e no lugar errado, podiam ser vítimas do senso de humor muito particular do pequeno povo, como por exemplo, serem obrigados a passar a noite toda dançando, a inventar letra para uma canção ou a fazer rir o rei com uma boa piada. Em troca, recebiam prêmio por seu desempenho; geralmente, uma bolsa cheia de moe­das de ouro — se soubessem mostrar-se convincentes — e uma corcunda nas costas, em caso contrário.

Um taverneiro de Dashtikazar conseguiu comprar seu estabelecimento graças aos Korrigãs. Tinha conse­guido fazê-los rir imitando, com um saco velho na cabe­ça, o Mestre da Guilda, Charfalaq. A história de sua boa sorte correu todo o país. Um invejoso, tentando obter a mesma coisa, voltou para casa com um braço metade mais curto que o outro! Depois disso, mais ninguém jamais ousou tentar a sorte, e todo encontro com um Korrigã tornou-se acidental!

Coisa que não impediu os colegiais de Ys — em nome da cultura geral, e por polidez em relação a seus singulares vizinhos — de se iniciar muito cedo no korriganês, a língua dos Korrigãs, bem mais complicada que o ska, a língua do Mundo Incerto.

Os Korrigãs eram pequenos (mediam entre setenta e noventa centímetros), enfezados e todos enrugados. A força deles não era menos prodigiosa. Podiam, sem can­sar, transportar nos ombros um cachorro grande durante quilômetros.

Tinham a pele escura e eram muito peludos. As vezes trançavam o cabelo ou o escondiam debaixo de grandes chapéus. Botões de cobre brilhavam sobre suas roupas negras. Uma calça de veludo bufante e tamancos de ferro completavam sua indumentária.

Enfim, exibiam na testa dois chifres minúsculos e na parte de baixo das costas, um rabinho buliçoso. Quanto às mãos, pareciam patas de gato.

Guillemot, Romaric, Gontrand, Âmbar, Corália, Ágata e Bertram, cada um levado por dois Korrigãs, um segurando os pés, e o outro os braços, foram conduzidos para a mata sob o olhar divertido da lua. Ao cabo de uma marcha que aos jovens pareceu interminável, os raptores pararam ao pé de um outeiro, no topo do qual se erguia um dólmen.

O condutor do grupo dos Korrigãs aproximou-se de um dos pilares de pedra que sustentavam a imensa laje de granito. Pôs a mão sobre um signo pintado em ver­melho, gravado sobre uma aresta. Guillemot, que obser­vava todos os seus gestos, não reconheceu esse signo. O condutor em seguida murmurou uma coisa qualquer em korriganês. O Aprendiz não entendeu absolutamente nada. Seguiu-se um ruído assustador e a terra se rasgou ao pé do pilar, revelando uma escada de pedra. Por aí entrou a estranha coluna.

Afundaram na terra por uma galeria estreita com cheiro de cogumelo e madeira bolorenta, à luz de uma tocha de junco que o guia tinha acendido.

Guillemot, sacudido por seus carregadores, tentou uma última vez desfazer as amarras. Em vão. Estava muito aborrecido com Âmbar. O que deu nela para que­rer estrangular Ágata? As duas meninas podiam discutir e até chegar às vias de fato, se quisessem, mas dentro dos limites! Âmbar e Ágata podiam se socar, puxar os cabelos uma da outra... Ele próprio, com certeza, não seria capaz de evitar gritos e queixas... Mas ver-se naquela situação! No coração do reino korrigã, amarra­do e amordaçado!

Guillemot não estava com medo, mas temia ter que passar, com os amigos, pelo humor galhofeiro dos pequenos seres. Se apenas lhe desatassem as mãos!

Desembocaram numa caverna imensa. O castelo de Troïl cabia inteiro lá dentro! Milhares de pirilampos, dispostos em bocais, no fundo de pequenos nichos cava­dos na própria rocha, iluminavam as paredes suadas de umidade.

Tinham sido construídas, em alturas diferentes, pla­taformas, passarelas e escadas em espiral que permitiam o acesso a esses nichos. Dezenas de Korrigãs estavam ali instalados, sentados, as pernas penduradas no ar, rindo e conversando. Por todos os lados sentavam-se diante de mesas grosseiras, bebendo, comendo e cantan­do com aparência alegre.

Alguns jogavam: aqui, mandavam, com uma cata­pulta, uma bola para dentro de um cesto; ali, empurra­vam, soprando com toda a força, uma bola de madeira para o campo adversário; ali, ainda, um audacioso tenta­va, sob aplausos, equilibrar-se sobre uma viga instável. O ar estava cheio de risos e gritos.

— Parece que estamos no estádio de Dashtikazar no dia de Samain — pensou Guillemot.

Atravessaram a caverna em meio a indiferença geral: ninguém se virou ou deixou sua atividade. Uma vez no fundo da gruta, foram postos no chão. Depois, tiraram-lhe a mordaça e as cordas. Enquanto se levanta­vam, como podiam, massageando os punhos doloridos, Guillemot e Bertram trocaram um olhar. Aqueles Korrigãs iam ver só!

— Que esses senhores Feiticeiros esqueçam os maus pensamentos, ou logo se arrependerão!

Os sete jovens levantaram os olhos. Empoleirado num trono talhado num enorme rochedo, um Korrigã os media de cima em baixo, com ar de troça.

A coroa de ouro que usava na cabeça não deixava dúvida alguma sobre sua identidade: deviam estar dian­te de Kor Mehtar, o rei dos Korrigãs, soberano autoritá­rio e mágico poderoso.

O rei caiu numa gargalhada infantil e recomeçou, sempre em korriganês, a língua poética e complicada do povo da mata:

— Pequenos amigos de Dashtikazar — exclamou, abrindo os braços. — Alegremo-nos com o acaso! Sejam bem-vindos a Bouléagant, o palácio do rei dos Korrigãs!

Kor Mehtar fez um sinal com a mão e uma penca de Korrigãs liberou, praguejando, a mesa onde estava comendo. Em seguida, o rei convidou o bando a se ins­talar ali.

— Eca! — fez Ágata, enojada, empurrando um osso roído pela metade.

— Não é o caso de jogá-lo nos outros — resmungou Âmbar, lançando-lhe um olhar mau.

Mas não tiveram ânimo de prosseguir na discussão. Por culpa delas, estavam prisioneiros dos Korrigãs. Não era hora de brigar...

Âmbar estava calma, quase em paz. Não saberia dizer por que tinha reagido com tanto vigor contra a rival. Todo o tempo, durante a perseguição, tinha a sen­sação de ser uma outra pessoa. Essa sensação não lhe era desconhecida. Sempre que via Guillemot ameaçado, alguma coisa a levava a reagir assim. Era aquilo o amor? Sentiu uma ligeira dor de cabeça.

O rei deu ordens. Korrigãs rabugentos limparam e depois puseram a mesa.

— Não é com isto que vamos nos defender caso as coisas andem mal — resmungou Romaric, pegando a grande colher de madeira que lhe tinham dado, junto com uma taça e um prato.

— O que fazemos, Guillemot? — perguntou Âmbar, massageando as têmporas.

— Esperamos — ele respondeu. — Por enquanto, pare­cem estar de bom humor. Com um pouco de sorte, nos soltam, se honrarmos o convite para a refeição...

— Na minha opinião, seria melhor usarmos nossos poderes e sumirmos daqui — sugeriu Bertram, baixando a voz.

— Você não viu Kor Mehtar? — objetou o Aprendiz. — Logo compreendeu que somos da Guilda, e isso não pareceu lhe dar medo. Diz-se em toda parte que ele é um grande mágico... Não, acho que é preciso esperar... Vamos ver como a coisa vai rolar e comportemo-nos como convidados bem-educados.

Trouxeram grandes bilhas de vinho, com o qual encheram as taças de estanho. Depois serviram um gui­sado grosso e escuro. Os Korrigãs subiam na mesa para servi-los e seus pequenos tamancos de ferro batiam na madeira dura das tábuas.

— O vinho está delicioso — apreciou Gontrand, esta­lando a língua. — Tem gosto de figo.

— O que tem aí dentro? — inquietou-se Corália, debruçando-se por sobre o prato cheio de uma comida não muito apetitosa.

— Tem que provar — respondeu Romaric, mergulhan­do a própria colher e levando-a à boca. — Pu! — disse, fazendo uma careta horrível e ficando vermelho: cuida­do, isto tem gosto de mofo e, além do mais, com uma pimenta danada!

Sobre seu trono, Kor Mehtar parecia divertir-se um bocado.

— Esses Korrigãs são incorrigíveis — suspirou Guille­mot. — São ao mesmo tempo gentis e cruéis. O vinho é delicioso e a comida, infecta. Esse é o senso de humor deles...

— Pois muito bem — desabafou Bertram, que tinha provado, por sua vez, o infame grude —, não estou achan­do graça nenhuma! Nunca comi uma coisa tão ruim! Nem em Gifdu! E uma vergonha, uma injúria, uma afronta!

Diante do ar catastrófico deles, o rei exclamou, hilá­rio:

— Então, meus amigos, eu menti? Não os estou recebendo como reis?

Rubro de indignação, Bertram levantou-se e fulmi­nou Kor Mehtar com o olhar.

— Não se faça de idiota! — suplicou Guillemot. — Sente-se!

Mas Bertram, determinado, tomou a palavra com vi­rulência e, enrolado com a língua complicada dos Korri­gãs, gaguejou.

— Kor Mehtar, velho tratante, não é nada sábio fazer piada assim com os visitantes...

— E para mim é muito difícil ouvir nossa língua sagrada assassinada por um imbecil! — disse o rei, que já não sorria.

— Perdoe-o, Majestade — interveio Guillemot, levantando-se, por sua vez, enquanto Bertram, perturba­do, sentia-se pequeno diante dos olhares severos de Âmbar e de Romaric.

— O korriganês é uma língua difícil... Você, meu menino, Que fala como um Korrigã, apresente-me aos seus companheiros. Quem são meus atuais hóspedes? — pediu o rei.

— Todos nós viemos do alto — começou Guillemot, aplicado.

— Bertram é o nome do idiota.

— Mas eu... — ia dizendo Bertram, melindrado, quan­do Âmbar lhe deu um pisão no pé.

— Âmbar e Corália, as gêmeas, são a linda e a bela — continuou Guillemot, suando para falar korriganês.

— Gontrand é o moreno alto, Romaric, meu primo. Ágata...

— ...parece uma batata — Âmbar não resistiu e lhe disse ao ouvido.

— Bem... trança não tem — concluiu Guillemot, enxu­gando a testa.

— Quanto a mim, senhor, sou Guillemot, para servi-lo.

O rei, que tinha escutado Guillemot com uma aten­ção polida, logo se levantou no trono.

— Você disse Guillemot? O Aprendiz eleito? — insistiu, com um sorriso a ilu­minar o rosto escuro, coberto de pêlos.

— Diria que ganhei meu dia!

Fez outro sinal e diversos Korrigãs, deixando as brincadeiras, aproximaram-se.

Os sete amigos se entreolharam, inquietos.

 

— Ó, senhor do palácio — arriscou Guillemot, — não estou entendendo. Por que o rei ganhou o dia!

— Sem querer botei a mão num moleque muito procurado — explicou laconicamente o rei.

— Conheço alguém, que amanhã ficará louco de alegria e me recompensará!

— Bem, Majestade — interveio Gontrand, no lugar de Guillemot que, apavorado com as revelações do rei, ficou hesitante — quais são as vossas intenções em relação aos prisioneiros todos eles gentis e bons?

— Se se comportarem vamos nos entender — respondeu o rei, secamente — pois seria desagradável mandar enforcá-los.

Bertram avançou a mão vacilante em direção à saco­la de Feiticeiro, depois mudou de idéia.

— Vamos conjugar nossos poderes e escapar — propôs a Guillemot.

— Não — respondeu o Aprendiz, no mesmo tom. — Além de serem muito numerosos, sem dúvida teríamos dificuldade para sair de debaixo da terra sem sua ajuda. Vamos guardar nossos trunfos mágicos como último recurso.

— Mas o que vamos fazer? — gemeu Corália, que tinha se aproximado.

— Não vamos perder a esperança — tentou confortá-la Guillemot, pensando, sem perder tempo. — Os Korrigãs são jogadores. Talvez exista uma coisa que possamos tentar...

Os Korrigãs iam pondo sobre eles as mãozinhas em forma de pata de gato quando Guillemot teve uma idéia repentina. Voltou-se para Kor Mehtar:

— Senhor do palácio, lhe proponho jogar nossa liberdade.

Kor Mehtar levantou a mão. Os Korrigãs, que se preparavam para prender os jovens, recuaram. Reagindo à palavra “jogo”, que tinham escutado na boca do Aprendiz de Feiticeiro, os outros Korrigãs interrompe­ram as atividades e, virados para seu rei, aguardavam a decisão, no maior silêncio.

— Jovens irresponsáveis, minha resposta é favorável!

Uma torrente de aplausos acolheu essas palavras. Um conselho reuniu-se imediatamente em torno do trono e um debate se deu, muito animado, com certeza a respeito da escolha do jogo e suas modalidades. O bando aproveitou para se isolar.

— Tinha certeza que ia funcionar — vangloriou-se Guillemot. — Os Korrigãs nunca resistem a um desafio! Só espero que não sejam muito corruptos.

— Diga — quis saber Gontrand que, depois de Guille­mot, era quem melhor compreendia o korriganês —, esse “alguém” de quem o rei falou, e que quer você, não seria a Treva?

— E possível — reconheceu o Aprendiz, que logo se recompôs, para não inquietar demais seus amigos — mas os Korrigãs são honestos. Quer dizer, normalmente! Se ganharmos o jogo, nos deixarão partir.

— Por que não utilizar os seus Grafemas para nos tirar daqui? — espantou-se Romaric.

— Estamos guardando de reserva — explicou Bertram no lugar do Aprendiz. — É uma estratégia que criamos, Guillemot e eu, e que me parece...

— Não quer nos explicar em korriganês? — ironizou Âmbar que, por sua vez, recebeu do Feiticeiro um olhar negro.

— A bela de quem você falava, Guillemot — questio­nou Corália — sou eu ou Âmbar? Por que linda não é ruim, mas é bem menos do que bela, e eu acho que...

— Não chateia o Guillemot — zangou-se Romaric. — Ele fez o que pôde. Você sabe muito bem como é difícil falar korriganês...

— No que me diz respeito — interveio Bertram — a bela é você, Corália, sem dúvida alguma!

— Obrigada, Bertram! Ainda bem que você está aqui! — respondeu ela, abrindo-lhe um imenso sorriso.

— Bertram, o Feiticeiro de cabeça dura, altivamente apelidado de idiota pelo grande Guillemot quer que lhe dê um soco na cara? — ameaçou Ro­maric, imitando a língua dos Korrigãs.

— A propósito, Guillemot — inquiriu Ágata —, você não me vê mesmo de trança?

— Não é bem isso... Eu tinha que encontrar alguma coisa para terminar minha frase, nada mais...

— Eu propus “batata” — disse Âmbar, com a voz gla­cial, fechando os punhos. — Mas “Pan! Soco no baço” também funciona...

— Ei, calma, Âmbar — meteu-se Romaric. — Tudo isto já não basta para você? É por sua culpa que estamos aqui! Pelo amor de Deus, o que você tem na cabeça?

— Muita coisa, pode acreditar — resmungou Âmbar, olhando para Ágata.

No mesmo instante, Kor Mehtar fez um sinal. Um Korrigã os empurrou em direção ao trono.

— Jovens imprudentes, terão que vencer, sem que isso diminua o número certo de provas — anunciou o rei, enquan­to seus súditos dançavam de alegria.

— Organizem-se aos pares um jogando com as pernas e o outro com a cabeça. Se o primeiro é vencido...

— Desculpe, senhor Mas o que quer dizer? — perguntou Guillemot. — Se o esportista derrapa, o criativo ataca: respondendo como se deve responder corretamente à pergunta do rei!

— Uma coisa não está clara na minha cabeça: duas vezes três são seis, e não sete — espantou-se de novo Guillemot.

— Prefiro manter ao meu lado o Aprendiz, que sabe tão bem korriganês — disse Kor Mehtar com uma ponta de malícia na voz.

Depois, Âmbar, Ágata, Corália, Gontrand, Romaric e Bertram foram conduzidos pelos homenzinhos de tamancos de ferro e cauda agitada ao centro da caverna. Reunidos nos andaimes de madeira que corriam ao longo das paredes da gruta, os Korrigãs comentavam o evento num burburinho indescritível.

— Tratem de se esforçar — ordenou Romaric que, na ausência de Guillemot, que tinha ficado junto do rei, tomava as rédeas. — Bem, o rei decidiu nos separar. Paciência, formemos os pares: Âmbar com Gontrand, Bertram com Ágata e Corália comigo.

— Romaric! Eu terei que responder às perguntas? Oh, tenho medo! — gemeu Corália.

— Não se preocupe, bela Corália — tentou confortá-la Bertram, batendo na sacola. — Se a situação ficar ruim, tenho mais de uma saída na minha sacola!

— Conta como prova ficar ouvindo essas besteiras? — reclamou Âmbar. — Bem, Gontrand, para mim a prova e para você a pergunta.

— Tudo bem — aceitou Gontrand.

— Por Deus, doce Ágata — embalou-se Bertram, virando-se para a parceira — e nós, como vamos dividir? Cruel dilema! Serei melhor atleta ou sábio? O que acha?

— Nada — respondeu Ágata, dando de ombros. — Seja como for, é maluquice minha me ligar assim a esse pé frio de Aprendiz de Feiticeiro! Da primeira vez, por causa dele, os Gommons me raptaram e uma bruta fedo­renta me tratou como escrava durante semanas. Agora, eis-me nas mãos dos Korrigãs e de seus jogos débeis! Se pelo menos tivesse um bom parceiro, capaz de juntar três palavras sem dizer bobagem...

— Bom, você decide — concluiu Bertram, mortificado, diante dos sorrisos maliciosos de Âmbar, Gontrand e Romaric.

Um Korrigã de chapéu azul deu uns passos à frente, inclinando-se. Kor Mehtar encheu-se de júbilo, reclinado no trono de pedra. O Korrigã de chapéu azul curvou-se diante do rei, depois dirigiu-se aos jovens.

— Querido bando de palhaços, serei vosso árbitro!

— Pois bem, não ganharam ainda... — murmurou Âmbar no ouvido de Gontrand.

— Que os intelectuais se aproximem do rei, e os outros permaneçam quietos! — continuou o árbi­tro, que gesticulava de maneira teatral e falava alto.

Corália, tremendo toda, Ágata, arrastando os pés e Gontrand, assobiando, aproximaram-se do trono, ao lado do qual Guillemot esperava.

— Coragem, Corália, vai dar certo! — Guillemot enco­rajou-a, recebendo como resposta um sorriso crispado.

O Korrigã que desempenhava o papel de árbitro dirigiu-se, então, a Âmbar, Romaric e Bertram, que fica­ram sozinhos no meio da pista.

— Qual atleta se acha bastante hábil com as mãos ?

— Eu tenho habilidade com as mãos — anunciou Bertram aos outros, agitando os dedos. — A manipulação dos Grafemas...

Âmbar e Romaric olharam-se, céticos, mas acaba­ram resignando-se. De todo modo, cada um deles teria direito a uma prova.

— De acordo, vá você! Bertram deu um passo à frente.

— Eis, então, o temerário que será vencido!

O comentário do árbitro fez a assistência chorar de rir.

“Estão querendo nos fazer de bobos”, pensou Guille­mot, cerrando os punhos de raiva. “Com certeza vão roubar no jogo!”

Como que dando razão a Guillemot, o árbitro expli­cou a Bertram, estupefato, que ele tinha que dar a volta na caverna andando sobre as mãos e sem cair. Âmbar e Romaric ficaram atônitos; só a menina seria capaz dessa proeza!

— Na próxima vez — resmungou Âmbar — seria do nosso interesse refletir bastante!

Bertram dirigiu um olhar desesperado aos compa­nheiros.

Depois, mentalmente, tomou coragem.

“Bertram, meu velho, você vai se dar mal, mas a sua honra está em jogo! Pelo menos, tem que tentar.”

Abandonou de má vontade a sacola e o manto. Depois, pôs as mãos no chão e, jogando as pernas para o ar, tentou buscar o equilíbrio. Quando conseguiu, por fim, avançou pela areia da pista.

— Ele tem, afinal, uma certa coragem — reconheceu Romaric.

— É o que também chamamos de atrevimento — espe­cificou Âmbar.

— Mas você tem razão. No fundo, esse desajeitado tem bom coração!

Com o estímulo dos amigos, Bertram conseguiu progredir uns dez metros, depois caiu no chão, para grande alegria dos Korrigãs.

— Desculpem... — suspirou Bertram, para Âmbar e Romaric.

O Feiticeiro sacudiu a poeira.

— Você fez o que pôde — consolou-o o Escudeiro, batendo-lhe amigavelmente no ombro.

— E não foi tão mal assim — disse Âmbar, dando-lhe seu primeiro sorriso.

Em seguida, viraram-se em direção ao trono.

— Quem virá socorrer esse pacóvio? — inquiriu o rei.

— Eu, senhor rei — respondeu Ágata, lançando a Kor Meh­tar um olhar carregado de desprezo, que não o afetou a mínima.

— Então, jovem imprudente responda ao senhor do palácio. Um mendigo e sua filha viajam com um rei e a gentil esposa. E são apenas três. Por quê?

Ágata entendia um pouco de korriganês, como todos os colegiais de Ys, mas mesmo assim Guillemot tradu­ziu a adivinhação, para estar certo de que ela tinha entendido bem.

— É fácil! — pensou Guillemot com vontade. — Es­pero que ela não se deixe confundir com o mendigo e o rei. Meu Deus! Tenho que ajudá-la...

O mais discretamente possível, Guillemot formou um Mudra com os dedos, o Grafema da Tocha, Kénaz, que estimula a criatividade. Depois, enviou-o para Ágata.

Nada aconteceu. Ágata, que continuava pensando, parecia tomada pela incerteza.

“Parece que Kénaz não está funcionando”, espan­tou-se Guillemot, no seu íntimo. “E agora essa! Espero que isto não queira dizer que os Grafemas não funcio­nam em território Korrigã! Seria uma catástrofe...”

O rei começou a se impacientar.

— Você está demorando! O que tem a responder ao rei dos Korrigãs?

Felizmente, a menina teve a presença de espírito de se expressar em francês, deixando a Guillemot o traba­lho de traduzir sua resposta para o korriganês.

— São três porque o rei e o mendigo são uma só pes­soa — explicou Ágata, com a voz segura. — Com efeito, quem mendiga e nada possui, não é escravo das necessi­dades, é rei de si próprio! O rei-mendigo viaja, portanto, com a família: com a mulher e a filha!

— O que minha amiga me disse em voz baixa — tradu­ziu Guillemot, sem demonstrar preocupação e desejan­do com todas as forças que Kor Mehtar não falasse a lín­gua de Ys, — ó grande soberano perspicaz, é que a filha do deserdado é também a mulher do rei. O rei, o mendigo e a filha Estão, portanto, unidos na mesma família!

Ágata empalideceu quando viu que tinha errado o caminho, e que poderia, sem a intervenção de Guille­mot, ter provocado a derrota de todos. Mas conseguiu causar boa impressão ao rei, que a observava com o ar desconfiado e a cara franzida. O árbitro esperou um sinal de Kor Mehtar. Depois disso, pulou outra vez para o centro da caverna.

— Vocês tiveram uma sorte incrível! Mas a segunda prova será mais difícil...

 

O Korrigã de chapéu azul saboreava a ansiedade que lia nos rostos de Âmbar e Romaric. Continuou:

— Digam-nos, então, minhas crianças, quem de vocês dois acha que tem a perna ligeira para ser voluntário ?

— Nada de precipitação — preveniu Âmbar. — Vamos refletir. O que pode significar ter perna ligeira?

— Ele vai nos fazer correr num pé só? Jogar malabares? Dançar o cancã francês? Como saber? — irritou-se Romaric.

Enquanto Âmbar e Romaric, para decidir qual deles encararia a segunda prova, tentavam adivinhar em que esta consistia, Ágata, perto do trono, deixava-se reconfortar. Corália admitiu que também não teria encontrado a resposta certa e Gontrand louvou a sua boa idéia de responder em francês.

— Pensei demais — corrigiu-se Ágata. — De repente achei que, com o espírito enroscado dos Korrigãs, a solução era, com certeza, complicada...

— Foi por isso que ele escolheu um rei e um mendi­go, para levar você à direção errada — disse Guillemot.

— Seja como for, obrigada por ter me salvado mais uma vez — declarou a menina alta, jogando-se sobre o Aprendiz e beijando-o no rosto.

Guillemot desviou-se como pôde do abraço de Ágata, e olhou na direção de Âmbar. Mas a jovem, absorta na discussão com Romaric, não pôde ver a cena. Corália fingiu que olhava para o outro lado e Gontrand conteve-se para não estourar de riso.

Nesse instante, Âmbar aproximou-se do Korrigã de chapéu azul e todos os olhares pousaram sobre ela. O árbitro explicou, esfregando as mãos, o que a esperava: ela tinha que pular corda quarenta vezes. Romaric suspi­rou de alívio. Tinham escolhido certo!

Dois Korrigãs trouxeram uma corda. Cada um pegou numa extremidade e começaram a fazê-la girar.

Âmbar fechou os olhos. Na escola primária, era a campeã inconteste em pular corda. Alguma coisa disso devia ter ficado nela! Tornou a abrir os olhos, respirou fundo, aproximou-se da corda, que rodava mais depres­sa, e pôs-se a dar pequenos pulos.

— Um, dois, três, quatro... — contavam seus amigos, em voz alta. — Onze, doze, treze, catorze...

Âmbar saltitava agilmente, perfeitamente concen­trada. O árbitro fez uma careta e lançou um olhar ao rei, que parecia furioso. Este fez um sinal imperceptível aos dois Korrigãs que manipulavam a corda e a velocidade acelerou-se de maneira significativa.

— Não... é... justo... — disse Âmbar, sem fôlego.

— Trinta e um, trinta e dois, trinta e três, trinta... O! A corda bateu em Âmbar, derrubando-a no chão, sob os gritos de alegria dos Korrigãs que, de excitação, faziam tremer as passarelas e plataformas em que se encontravam.

— Mas... eles roubam! — exclamou Corália, rubra de indignação.

— É claro que roubam! — suspirou Gontrand, aproxi­mando-se do rei. — Bem, agora é minha vez. Espero que eu esteja à altura.

Romaric correu para ajudar Âmbar a se levantar. A raiva dela não passava. Seus olhares dirigiram-se para o trono.

O rei tinha mandado buscar um jovem Korrigã e ter­minava de lhe dar instruções, no ouvido. O jovem Korrigã aproximou-se, em seguida, de Guillemot com um grande sorriso e levantou polidamente seu grande chapéu.

— Bom-dia! Meu nome ser Kor Hosik! Eu entender a língua de vocês! Meu rei me pedir para vigiar o que vocês dizer! Meu rei ter medo de roubalheira!

— E o cúmulo! — rosnou Ágata.

— Muito bem, Kor Hosik, satisfação em lhe conhecer — respondeu simplesmente Guillemot, desejando muito que Gontrand respondesse corretamente a pergunta do rei e mais ainda que — depois de uma olhadela para Corália — Romaric vencesse a terceira prova física...

— Meu menino — começou Kor Mehtar, dirigindo-se a Gontrand, — Responda, então, à minha questão: é um monte de marfim no fundo de um quarto negro...

— É só isso mesmo? — perguntou Gontrand a Guillemot, depois que este fez a tradução.

— Só isso — confirmou Guillemot simplesmente, diante do olhar e do ouvido atentos de Kor Hosik.

Na expressão que leu nos rostos de Ágata, Corália e Guillemot, Gontrand compreendeu que, mesmo na ausência do espião Korrigã, não poderia contar com ajuda de ninguém! Pôs-se, então, a refletir calmamente sobre o enigma.

Imaginou as explicações as mais inverossímeis, mas foi batendo nos próprios dentes, distraído, que encon­trou, por acaso, a resposta.

— Ó, rei dos Korrigãs — respondeu, diretamente em korriganês, todo feliz de ter resolvido o enigma, — o quarto negro é a boca e o monte de marfim são os dentes!

Kor Mehtar tremeu de raiva no trono, enquanto Ága­ta, Corália e Guillemot felicitavam o companheiro.

O Korrigã de chapéu azul, que já não ria mais, cor­reu para Romaric e lhe soprou, num tom impertinente:

— a última prova é para você. Não pense que vai se sair assim... Comigo vai fazer uma terrível queda de braço!

Alguns Korrigãs trouxeram uma mesa e duas cadei­ras baixas. Romaric sentou-se de um lado e o Korrigã de chapéu azul à sua frente.

— Um árbitro que toma parte num jogo, onde já se viu! — comentou com frieza Âmbar.

— Se me permitem, o gnomo de chapéu azul esco­lheu seu campo desde o início!

— Você tem razão — ela reconheceu. — Espero que Romaric o derrote!

— Quem dera! Temo que não — disse Bertram, soltan­do um suspiro sincero.

O Korrigã pousou o cotovelo na mesa e apresentou a mão em forma de pata a Romaric, que a pegou, repri­mindo um arrepio.

— Está pronto, jovem tolo?

— Estou, velho gagá! — respondeu Romaric, em tom de desa­fio.

O adversário lançou um olhar mau ao menino e ime­diatamente começou a prova de força. Romaric logo compreendeu que, apesar de seu gabarito, o adversário era bem mais forte. Decidiu, mesmo assim, bater-se o melhor que podia.

O contato na sua palma da mãozinha peluda, com garras, não ajudava na concentração! Segurou o máxi­mo de tempo que pôde, depois, à beira da exaustão, rendeu-se. O adversário o fez tocar a mesa com as cos­tas da mão.

A platéia comemorou o triunfo do Korrigã, que jogou o chapéu pelo ar.

— Oh, não! Agora é minha vez! — lamentou-se Corália. — Não posso pular a vez?

— E difícil, você é a última — respondeu Ágata, com condescendência.

— Você vai conseguir, tenho certeza — Guillemot ten­tou dar força à menina, que se aproximava do trono. — Você não conseguiu se sair bem no caso das medusas do Mar das Queimaduras?

— Consegui — admitiu Corália, num fio de voz. — Mas não era a mesma coisa. Agora tudo depende de mim!

— A vida de Romaric também dependia de você, no Mundo Incerto, e você o salvou. Eu tenho confiança em você...

— Obrigada, Guillemot — disse Corália, com a voz embargada, beijando seu rosto.

— Mais uma a beijar você! — disse baixinho Gon­trand, no ouvido do Aprendiz. — Vai ter que me revelar o seu segredo! Vou revendê-lo a preço de ouro a Bertram...

— Você não pode ficar sério cinco minutos?

— Só com um instrumento musical. E mesmo assim talvez não dê cinco minutos...

Kor Mehtar, divertiu-se com a apreensão da menina, depois decidiu fazer sua pergunta.

— Linda filha de Ys, é — preciso que reflita:

é uma casa forte, mas que não tem porta; há gente dentro mas não há barulho de voz...

Guillemot traduziu o enigma e interrogou Corália com o olhar. Esta tinha fechado os olhos para se concen­trar. Ansiosos, Romaric, Bertram e Âmbar, esperavam.

— Se é para dizer alguma coisa inteligente na vida, que seja agora — suspirou Âmbar.

No trono, o rei estremecia de impaciência. Num tom de voz alegre, interrompeu as reflexões de Corália.

— Então, minha beleza, o que encontrou?

— Sutil majestade — respondeu Corália, com a voz calma e num korriganês perfeito — na verdade, foi fácil. Essa casa do mistério não é senão um cemitério! Seus habitantes, embora numerosos, são todos silenciosos; E como a chance de saírem é pouca, nem precisam de porta!

Gritos e gemidos encheram a caverna. O rei berrou de raiva. O árbitro pôs-se a comer seu chapéu, rolando pelo chão. Âmbar correu, afastou os amigos apertados em torno de Corália para felicitá-la e festejar. Ela abra­çou a irmã.

— Como é que você fez? — espantou-se.

— Não sei — admitiu Corália, confusa. — Tudo de repente me pareceu fácil. Até o korriganês, que de hábi­to tenho a maior dificuldade de falar.

— Como explica isso, Guillemot? — perguntou Ro­maric, todo orgulhoso do feito da amiga.

— Acho que Corália é menos burra do que imaginam, só isso — respondeu Guillemot, evasivo.

O Aprendiz sabia muito bem o que tinha acontecido. O Kénaz, o Grafema estimulante das funções cerebrais, que tinha invocado para ajudar Ágata, funcionou com retardo, agindo sobre Corália. Mais um mistério!

— No Mundo Incerto — pensou consigo — onde o céu não é o de Ys, os Grafemas e seus poderes são diferen­tes. Mas, aqui, estamos em Ys! Será que o fato de estar­mos embaixo da terra enfraquece os Grafemas? Será que os Korrigãs possuem sortilégios capazes de se con­trapor aos nossos?

A experiência tinha ensinado que o melhor era dar o golpe adiantado. Mesmo que tivesse que desativá-lo mais tarde... Aproveitando-se da agitação geral, Guille­mot construiu mentalmente um Galdr complexo e o lan­çou discretamente, com a ajuda de Mudra, ao centro da caverna. Como esperava, nada aconteceu. O contrário teria sido, na verdade, um bocado incômodo! Seus ami­gos, em seguida, o empurraram na direção do trono.

— Ande, peça que agora nos liberte — exigiu Âmbar. — A brincadeira já durou bastante!

Guillemot curvou-se diante do rei dos Korrigãs.

— Como podeis ver, Majestade, em vossas provas triunfamos. Vossa palavra é firme: deveis nos libertar!

O rei torceu as mãos e gemeu.

— Quem me dera, meu menino! E verdade, você tem razão. Eu lhes prometi a liberdade, como prêmio por seu valor... Mas, de qualquer maneira, tenho que entregar você àquele alguém mais poderoso que um soberano e a quem nada posso recusar!

— O quê? Mas é traição! — indignou-se Corália.

— Não tendes o direito! — berrou Ágata.

— Eu acreditava que os Korrigãs tinham mais honra que isso — disse Gontrand, com desprezo.

Kor Mehtar, indiferente às exclamações indignadas dos jovens de Ys, fez sinal para que os aprisionassem.

Bertram ainda deslizou a mão pela sacola, como que procurando ali dentro alguma coisa. Guillemot sur­preendeu seu gesto e lançou-lhe um olhar interrogador. O Feiticeiro enrubesceu e logo tirou a mão, com ar cul­pado.

— Bom — sussurrou no ouvido de Guillemot, descul­pando-se. — Você vai ver de que um Feiticeiro é capaz quando seus amigos estão em perigo.

Bertram levantou os braços e fez uma cara terrível.

 

— Tomara que sua cabeça seja dura, rei perjuro! Porque, velho murcho, vai ter a maior surpresa da vida! — gritou Bertram, mais teatral que nunca, num korriganês ruim.

Antes que Guillemot tivesse tempo de intervir, seu amigo esboçou uma série de Sthada, ao mesmo tempo murmurando um sortilégio, no qual entravam um vento que varria os Korrigãs, relâmpagos destruindo a caver­na, e uma fenda que lhes permitisse desembocar ao ar livre. Tendo lançado, por fim, seu Galdr, Bertram imo­bilizou-se numa postura ao mesmo tempo ameaçadora e triunfante.

Absolutamente nada aconteceu.

O Feiticeiro se descompôs e lançou um olhar enlou­quecido para Guillemot, que nada pôde fazer além de sa­cudir a cabeça e soltar os braços, em sinal de impotência.

A assembléia Korrigã caiu na gargalhada e até o rei voltou a ficar de bom humor.

— A magia da gente de Ys é famosa — disse Kor Mehtar, rindo, ao Feiticeiro, abalado — quando praticada por indivíduos capazes! Mas, tenha certeza, jovem idiota, não é o seu caso. Permita que eu, em poucas palavras, explique uma coisa a você. Os Korrigãs também têm sua feitiçaria! A de vocês é jovem e única, a nossa, dupla e ancestral; a de vocês vem das estrelas, a nossa, da terra e da lua. Não Grafemas cabalísticos, mas Oghams vermelhos e telúricos... Calo-me: deixei-me levar, falei demais. E basta de agito: no meu palácio, nada de magia!

Os Korrigãs encarregados de os aprisionar, tendo recuado instintivamente quando Bertram adotou a pos­tura inquietante, tornaram a se aproximar.

“Ainda está muito cedo”, pensou Guillemot. “Seria uma catástrofe se nos fizessem sair agora da caverna... É preciso ganhar tempo de qualquer maneira!”

— Rei dos Korrigãs — gritou, apesar do tumulto, somos seus prisioneiros! Seria muito elegante nos permitir um último desejo, já que traiu nossa confiança, nos deve uma confidencia...

— O que quer saber jovem Aprendiz antes de ir para o escuro com os seus amigos? — respondeu Kor Mehtar.

— Em primeiro lugar, quero saber da magia dos Korrigãs, que vem do fundo dos tempos, e os torna tão poderosos...

Por um momento o rei observou Guillemot, que se encontrava diante dele, de braços cruzados. Depois, fez vir Kor Hosik, o Korrigã tradutor e falou em seu ouvido.

— Primo — espantou-se Romaric —, sei que você é um aluno consciencioso, mas não acha que o momento não é propício para se interessar pela feitiçaria dos Korrigãs?

— Sei o que estou fazendo — respondeu Guillemot, bastante decidido a aproveitar-se da ausência de Kor Hosik para advertir os amigos. — Escutem, em alguns instantes, vai acontecer uma coisa que vai deixar a gruta em desordem. Fiquem prontos para me seguir...

— O que vai acontecer? — questionou Corália, com curiosidade.

— Não diga nada — interrompeu Âmbar. — Bertram vai se despir e fazer a dança do ventre no meio da pista!

— Muito engraçado! — disse o Feiticeiro, envergo­nhado.

— Vamos — insistiu Gontrand —, semelhante talento para palhaço não é dado a todo mundo!

— Parem de chateá-lo — interveio Corália —, ele fez o que pôde para nos tirar daqui!

— Aí é que está todo o problema — deixou escapar Ágata, sarcástica: — ele sempre faz o que pode e nunca é grande coisa.

— Calem-se! — intimou Guillemot. — Kor Hosik está chegando.

O Korrigã aproximou-se com um largo sorriso, fez uma reverência e começou, numa espécie de francês:

— Meu rei aceitar falar a vocês sobre nossos Oghams. Escolheu a mim para fazer isso, porque assim, todos vocês compreendem. E porque eu não saber gran­de coisa, portanto, não poder trair segredos! Oghams ser signos mágicos dos Korrigãs. Cada Ogham ter nome de um vegetal porque folhas iluminadas pela lua e raízes nutridas pela terra. Vegetal ser traço de união entre coi­sas da superfície e coisas do interior. Oghams pintados em vermelho porque terra e lua ligadas por laços de san­gue. Em outras épocas os homens também acariciavam os Oghams. Depois, outros homens vieram pelo mar, com outra magia escondida nas estrelas, e homens esquecer Oghams. Eis aí! Mim não saber mais. Mim ainda jovem demais! Só cento e sessenta anos!

— Efetivamente — comentou Gontrand — não aparen­ta a idade que tem...

— Obrigado — respondeu o Korrigã, aparentemente feliz.

Kor Hosik virou-se para o rei, indicando que havia terminado. O rei logo deu ordem para que pegassem os jovens e os levassem.

— Agora — disse Guillemot, entre dentes — agora... Por favor, maldito Galdr, aja agora...

Como que atendendo a sua oração, de repente ar­mou-se uma confusão ali onde Guillemot tinha, há pouco tempo, lançado seu sortilégio. Um espiral estrela­do jorrou do chão, cresceu e se pôs a girar em turbilhão. Depois, explodiu e inundou a caverna com uma chuva de estrelas minúsculas.

Tomados pelo pânico, os Korrigãs baquearam. Em pencas compactas pelo chão das plataformas, corriam para todos os lados, urrando de pavor.

O rei Kor Mehtar ergueu-se no trono e pôs-se a dan­çar, formando com os braços e as mãos arabescos com­plicados:

— Cweorth! O que faz ruído, banco de gelo do vento, pelo poder do olho da noite, e do viajante que ruge, que cesse agora o fogo em turbilhão!

Surgiram faíscas vermelhas no ponto onde a magia de Kor Mehtar se encontrou com o Galdr de Guillemot. Mas o sortilégio continuou valendo, para espanto do rei.

— É muito forte quem gerou este sortilégio! A magia das estrelas nunca nos fez mal antes! Tremei, jovens inconscientes, pois com seus mistérios enfureceram o rei dos Korrigãs!

Kor Mehtar voltou-se para o bando, que não tinha se mexido do lugar, e recomeçou as invocações.

— O que estamos esperando para sumir daqui? — gemeu Corália.

— Ainda não — respondeu Guillemot. — Esperem meu sinal!

No trono, o rei dos Korrigãs dançava freneticamente, gesticulando e cantando.

— Ear! Viajante da noite, Elmo das reprimendas, pelo poder do astro do povo da mata e daquele que geme cave uma tumba de poeira para estes filhos do ar grande!

O Ogham solicitado pelo rei esguichou na direção deles com um relâmpago vermelho. Mas, no meio do caminho, foi freado pela poeira brilhante dos Grafemas, que tinham explodido. Kor Mehtar sufocou de raiva.

— Agora! — berrou Guillemot, pegando uma lanterna de pirilampo ao lado e levando consigo os amigos.

Meteram-se pelo corredor com cheiro de terra úmida pelo qual tinham passado um tempo antes. Os Korrigãs, que tinham tornado a sentar-se, prepararam-se para correr atrás deles. Mas, ao mesmo tempo, sentiram os membros entorpecidos e os movimentos mais lentos...

— Guillemot! Por Deus! Como foi que fez isso? — interrogou Bertram, no auge do espanto.

Andava, curvado, atrás do Aprendiz, ao longo do corredor estreito.

— Da primeira vez que lancei um sortilégio — respon­deu Guillemot — notei que agiu com retardo. Então, quando senti que as coisas podiam acabar mal, preparei um Galdr com antecedência...

— Genial! Ó, é genial! — entusiasmou-se Bertram. — E o que você botou dentro?

— Naudhiz, que neutralizou o primeiro ataque mági­co de Kor Mehtar. E depois, Yéra, a Rejeitada, o Grafema do Ciclo, que tornou mais lento o segundo ataque. Por fim, Dagaz, que suspende o tempo, para freá-los um pouco.

— Você previu tudo isso? — perguntou Bertram, atô­nito. — Que o rei ia nos atacar duas vezes, antes que os outros se lançassem em nosso encalço?

— Era mais ou menos lógico — explicou Guillemot. — Com o efeito de retardo mais a magia dos Korrigãs den­tro da caverna, eu sabia que os meus três Grafemas fun­cionariam um depois do outro. Tinha certeza de que o rei tentaria destruir meu Galdr e, em seguida, nos ataca­ria com sua magia, antes de pensar em utilizar meios físicos...

— Guillemot, Guillemot, adoro você! — embalou-se Bertram. — Você é meu herói, meu ídolo, meu mestre!

— Hum... Não acha que está exagerando um pouco? Imagine se eu levasse ao pé da letra o que você diz? Ia se aborrecer um bocado.

— Aprendiz genial — continuou Bertram, como se nada tivesse ouvido — diga, por que o Galdr explodiu?

— Não sei de nada — admitiu Guillemot. — Talvez em reação à magia dos Korrigãs. Em todo caso, isso em nada mudou os poderes do meu sortilégio. Ao contrário, os reforçou!

— Não podem falar mais alto? Não estamos ouvindo nada — gritou Âmbar, atrás.

— Isso não diz respeito a vocês — respondeu Bertram, virando-se. — E uma conversa secreta e da mais alta importância entre membros da Guilda e...

— Silêncio! — ordenou Guillemot de súbito. — Temos um problema...

Todos sete se agruparam em torno do Aprendiz. Os pirilampos, na lanterna, iluminavam naquele momento um pequeno espaço, de onde partiam três galerias.

— Alguém se lembra por qual corredor viemos? — perguntou Guillemot.

 

Uriano, equipado dos pés à cabeça, andava de lá para cá pelo salão do castelo. Parou diante da lareira, em cima da qual se exibiam, orgulhosos, os brasões da família de Troïl: um pássaro branco voando por sobre a terra negra, com um céu vermelho ao fundo.

O colosso sentia-se emocionado. Quantas vezes tinha acariciado com o olhar as cores ancestrais antes de se lançar numa daquelas causas impossíveis em que, definitivamente, a única coisa que se ganhava era auto-estima? Uriano tinha a sensação de reviver!

— Já está aí, velho camarada? — perguntou Valentim, num tom jovial, depositando no chão os sacos de via­gem que tinha preparado.

— Pelo que há de mais sagrado, meu amigo! — respon­deu Uriano, antes de explodir numa gargalhada alegre. — Eu estava com muito medo de perder a hora da partida!

— Realmente, a armadura cai muito bem em você — constatou Valentim, com admiração.

— Acha? — disse Uriano. — Bah! O que é uma arma­dura, comparada com isto?

O colosso tirou o machado de guerra da capa e fez a arma girar em sua volta.

— Parece um belo rapaz! — alfinetou-o Valentim, com um sorriso.

Ele próprio também sentia-se completamente exci­tado.

— Qadehar não vem? — inquiriu Uriano, guardando o machado.

— Está descansando. Vai nos encontrar mais tarde. Acha que vale mais a pena chegar ao Mundo Incerto no meio da noite.

Uriano grunhiu de impaciência. Mas logo se acal­mou. A espera que precedia a ação tinha um sabor parti­cular, que sabia apreciar.

Jogou na lareira um feixe de lenha, em seguida, aproximou dois tamboretes do fogo. Valentim e ele ins­talaram-se ali. Alguns instantes mais tarde, os dois homens rememoravam, com animação, suas façanhas de tempos passados...

— Estão prontos? — perguntou Qadehar, irrompendo na sala.

Uriano e Valentim sobressaltaram-se. Uma parte da noite tinha se escoado; tinham parado de falar já há tem­pos, o olhar absorto no jogo das chamas. Cada um mer­gulhado nas lembranças mais pessoais, especialmente aquelas em que se aperceberam da morte...

— Estamos prontos, Qadehar — respondeu Uriano. — Pelo que há de sagrado! Sim, estamos prontos!

— Peguem as coisas, então. Vamos partir.

O Feiticeiro levou os dois Cavaleiros ao centro da sala de jantar. Estavam carregados com os sacos arru­mados por Valentim.

— Só tem uma coisa que me dói — gemeu Uriano. — Ter de partir sem cavalo!

— Sinto muito — explicou Qadehar. — Os cavalos suportam mal o trajeto entre os Mundos. Agora, con­centrem-se, e tratem de reproduzir com o maior cuidado cada movimento meu. O Galdr do Deserto exige muita atenção.

— Sim, você já nos explicou tudo — cortou-o Uriano, com uma voz irritada.

— Se estou repetindo, é porque sei com quem estou lidando — respondeu Qadehar num tom de voz seco, ful­minando o colosso com o olhar.

Uriano baixou a cabeça e mordeu os lábios.

— Vamos, Uriano — murmurou gentilmente Valentim —, não banque a criança...

— Bem, e aí? — impacientou-se Qadehar. — Não va­mos ficar aqui o resto da noite, que eu saiba!

Uriano pegou documente a mão do Feiticeiro e estendeu a outra ao amigo.

Qadehar adotou sucessivamente a postura dos oito Grafemas que compunham o Galdr, enquanto cantarola­va o sortilégio.

Os Cavaleiros o imitaram o melhor que puderam.

De repente, ouviram uma porta se abrir, depois fechar brutalmente. Foram engolidos por um poderoso turbilhão e precipitados num buraco negro.

Os três homens tinham deixado Ys.

Em sua torre de pedra, a Treva andava para lá e para cá. O vulto tenebroso parecia tomado de uma impaciên­cia terrível. Em sua agitação, fagulhas de escuridão se destacavam, indo morrer de encontro às paredes, encarquilhadas.

— O que estão todos esperando para me trazerem a criança? Avisei... Todos aqueles que me respeitam ou temem... que queria a criança rapidamente... Bem rapi­damente... Que pagava o preço... Será possível que tenho de fazer tudo eu mesmo? Incapazes... Incapazes... Estou cercado de incapazes...

Ouviu-se um ruído de passos na escada. A Treva voltou-se, e ficou parada de frente para a porta. Lomgo entrou, todo esbaforido.

— Uma mensagem, Senhor. Vem do Mundo de Ys.

— Muito bem. E o que está esperando, fiel escriba?

Leia, leia a mensagem... E reze para que as notícias sejam boas...

Lomgo recuperou o fôlego e depois de olhar inquie­to para a silhueta que parecia tremer por trás do manto de sombra, leu lentamente:

— Tenho o prazer, sinistro senhor, de vos informar que o Senhor do Palácio tem seu menino nas mãos. Dizei onde e quando quereis que seja entregue o jovem bandido. Querei Vossa Velhice acolher minha polidez!

— Os Korrigãs... Os Korrigãs foram os primeiros a encontrá-lo... Malditos sejam esses gnomos e sua impertinência... Vão me pagar... um dia... Mas o essencial é que a criança seja minha... minha...

A Treva caiu numa gargalhada de demente. O escriba tratou de sumir dali depressa.

 

Todos os sete observavam, perplexos, os três corre­dores que se ofereciam.

— Na minha opinião, chegamos por este aqui — decla­rou Gontrand.

— É? — disse Ágata. — Eu apostaria neste da esquerda.

— Tudo bem, já entendi — suspirou Guillemot. — Mais uma vez será preciso confiar nos Grafemas!

— O problema — objetou Bertram, franzindo as so­brancelhas — é que estamos arriscados a ter que esperar.

— Eu sei — respondeu Guillemot. — Mas, mais uma vez, não temos escolha...

O Aprendiz fechou os olhos e invocou Perthro, o Cone de Dados, que os Feiticeiros freqüentemente utili­zam como guia no Wyrd e em caminhos labirínticos. Sussurrou seu nome. Como esperava, o Grafema não se manifestou.

— Esperemos que Perthro chegue antes dos Korrigãs nos alcançarem — disse Guillemot simplesmente, sen­tando-se no chão.

Todo mundo o imitou.

— E se jogássemos um jogo enquanto esperamos? — propôs Corália.

Como resposta, os outros a olharam de cara feia. Até Romaric resmungou.

— Puxa, a única vez que tentei fazer uma piada! — queixou-se ela.

— Seja como for — comentou Âmbar —, acho que até o momento nos saímos superbem.

— É verdade — aprovou Romaric. — Verdadeiros cam­peões!

— Tanto que, se os Korrigãs fossem honestos, esta­ríamos repartindo um saco de moedas de ouro!

— Sim, amigos, tudo acabou muito bem — aquiesceu gravemente Bertram. — Felizmente! Quanto a mim, fa­lhei... Ainda bem que a doce Ágata lá estava para repa­rar meu serviço malfeito!

— Ora, Bertram! — consolou-o Romaric. — Eu também não me saí melhor! A única que poderia realizar essa prova era Âmbar, se os Korrigãs não tivessem roubado.

— Quanto à minha intervenção... — falou Ágata, com o ar moribundo. — Tenho até vergonha de pensar. Se Guillemot não estivesse lá...

— Podemos agradecer a Guillemot que nos tirou de uma boa! — exclamou Gontrand.

— Estou completamente de acordo com você! — entusiasmou-se Bertram. — Proponho uma salva de pal­mas para o nosso salvador!

— Hum... mas não muito alta, certo? — respondeu Guillemot, enrubescendo ligeiramente. — Não seria bom que os Korrigãs...

— A nosso herói, amigos! — continuou Bertram, sem escutar. — Hip, hip, hip...

— Hurra! — gritaram todos.

— Hip, hip, hip... !

— Hurra!

Guillemot levantou a mão para pedir silêncio, fe­chou os olhos e concentrou-se.

— E isso aí — anunciou. — Perthro está se manifestan­do! Não há dúvida: temos que pegar o corredor do meio.

Gontrand e Ágata, que teriam ido, um pela direita, a outra pela esquerda, olharam-se com a cara aborrecida.

— Depressa! — ordenou Romaric. Os Korrigãs talvez já estejam nos nossos calcanhares.

Meteram-se sem demora pela galeria e avançaram o mais depressa possível. Adiante encontraram outra bifurcação, mas, guiados pelo Grafema, logo tomaram a direção certa.

Chegaram, enfim, ao pé da escada que levava ao dólmen. A passagem tinha permanecido aberta; pularam de quatro em quatro os degraus de pedra.

— Ufa! — exclamou Âmbar, respirando vorazmente o ar da noite. — Nunca pude imaginar que um dia sentiria tanta falta do ar livre!

— Eu fiquei contente de rever as estrelas! — admitiu Guillemot, trocando com Bertram um olhar cúmplice.

— Lamento ter que dar uma de estraga-prazeres — anunciou Romaric — mas é melhor não demorarmos. Estou ouvindo uns gritos debaixo da terra...

— Tem razão — disse Guillemot. — Em marcha! Avançaram pela mata, em direção a Dashtikazar.

— Os Korrigãs são rápidos na corrida? — inquietou-se Corália.

— Mais ou menos duas vezes mais rápidos que um ser humano, minha bela — respondeu Bertram.

— Acha que chegaremos a Dashtikazar antes que nos alcancem?

— Se o que Romaric ouviu ainda agora são eles, não.

— Então vamos logo — inquietou-se Ágata, virando-se, inquieta.

Atrás deles, a mata zumbia com mil pisadas.

Os sete amigos puseram-se a correr em meio à urze e os arbustos, incomodados com as estranhas sombras que a lua desenhava no chão.

— Mais rápido, mais rápido! — berrou Romaric, que tinha ficado para trás para apressar os retardatários.

Corália soltou um grito. Na corrida, trombou com Ágata e as duas rolaram pelo chão. Romaric correu para ajudá-las a se levantar.

Os outros pararam para esperar.

— O que fazemos? — perguntou Bertram, aproximan­do-se de Guillemot.

— Acho que não há nada a fazer. Os Korrigãs estão chegando perto...

No mesmo instante, uma multidão de patas de gato agarrou-se às pernas e braços dos fugitivos. Em alguns segundos, os sete amigos viram-se de novo prisioneiros.

 

— O que vocês fazer? O que vocês fazer? — lamentou Kor Hosik, o jovem Korrigã, à frente dos perseguidores. — Agora, o rei estar realmente com raiva!

Os cativos foram colocados em fila, um ao lado do outro. Nem amarraram suas mãos tão seguros de si esta­vam os Korrigãs.

Ao som insólito de uma trombeta esculpida em raiz, Kor Mehtar apareceu, sobre uma liteira. Assim que os seis carregadores o depositaram no chão, o rei pulou, fazendo uma pirueta.

— Vocês me ofenderam gravemente ao tentar escapar! Minha vingança será tão terrível quanto a evasão de vocês foi risível!

De fato, sua expressão era furiosa. Não parava de dar cabriolas enquanto falava.

— Lamentamos, Senhor do ... — Guillemot tentou explicar, mas foi interrompido pelo rei, que ergueu em sua direção a mão ameaçadora.

— Silêncio! Felizmente para você não tenho o direito de punir sua impertinência!

Kor Mehtar fez sinal para dois Korrigãs prenderem Guillemot.

— É só você que quero. A seus amigos, pode dizer adeus: meus Korrigãs vão fazê-los dançar por toda a eternidade! Quanto a você, não invejo a sua sorte, que será pior que a morte!

Guillemot empalideceu. Os outros sentiram as per­nas faltarem. Entre os Korrigãs, um clamor de alegria acolheu o anúncio do rei. Vários precipitaram-se em direção a Corália, Ágata, Bertram, Gontrand, Âmbar e Romaric.

— E não tente invocar as estrelas, senão seus amigos vão se dar mal! — ameaçou Kor Mehtar, fixando seu olhar sombrio nos olhos verdes de Guillemot.

Depois, o rei dirigiu-se à liteira. Os dois Korrigãs que seguravam Guillemot firmemente levaram o jovem para o mato.

— Guillemot! Não! — berrou Âmbar, debatendo-se.

— Pare, Âmbar! — Romaric tentou acalmá-la. — Não pode fazer nada por ele.

Mas, como se tomada pela loucura, a jovem conti­nuou debatendo-se. Seus olhos revirados ficaram bran­cos. Um grunhido surdo, aterrorizador, lhe saiu da gar­ganta.^

— Âmbar! O que está acontecendo com você? — Ro­maric entrou em pânico.

— Garanto que nada aconteceu no quarto de Guille­mot, em Troïl — exclamou Ágata, aterrorizada.

Mas Âmbar, indiferente aos gritos inquietos dos amigos, só parecia interessada em Guillemot, que leva­vam para longe. De súbito animada por uma força titânica, despachou com um só gesto o Korrigã que a segura­ va pelo braço. Em seguida, deu um golpe tão violento no que segurava sua perna, que o derrubou. Depois, num andar de autômato, foi em linha reta atrás de Guillemot e seus raptores.

Um Korrigã tentou interpor-se. Fez mal: Âmbar pe­gou-o pelo pescoço e jogou-o numa moita.

Um movimento de loucura percorreu a coluna dos Korrigãs.

— Por Deus! Isso acontece sempre com ela? — per­guntou Bertram, arregalando os olhos.

— Acho que é a primeira vez — admitiu Romaric.

— Eu ju... juro — gaguejou Ágata, engolindo em seco — e faço uma promessa solene diante de todos vocês que jamais tornarei a me meter em seu caminho!

— E bem o estilo dela nocautear um Korrigã! — co­mentou Corália. — Mas eu não imaginava que fosse tão forte!

— Uma Hamingja — murmurou Bertram.

— O que está dizendo? — inquiriu Romaric.

— Digo que o comportamento dela não é natural e que só há uma explicação: um encantamento.

— Explique-se...

— É uma coisa que se fazia antigamente — continuou Bertram. — Condicionavam-se as pessoas, nelas impri­mindo um sortilégio, para forçá-las a reagir de uma de­terminada maneira em determinadas circunstâncias. Sem que as pessoas saibam ou se dêem conta... Eram as Hamingjas. Mas, hoje, essas práticas são proibidas...

— Alguém teria enfeitiçado a minha irmã? — espan­tou-se Corália. — Impossível! Decididamente você não é nada romântico, Bertram! Não vê que é o amor que a torna capaz de tudo?

— Na minha opinião — disse Gontrand, com cara de dúvida —, Âmbar está tendo um acesso de loucura. Não suportou terem levado Guillemot. Todo mundo sabe que os loucos são muito mais fortes que as pessoas normais.

— Pensem o que quiserem — resmungou Bertram, envergonhado por ninguém mais lhe dar crédito. — Vejo o que vejo e sei o que sei.

Durante esse tempo, Kor Mehtar tinha subido no teto da liteira e, dançando, invocava o poder de um Ogham. Projetou-o sobre Âmbar, que avançava sempre rumo a Guillemot, num andar teso de autômato. O Ogham atingiu a menina num jato de faíscas vermelhas. Âmbar caiu no chão.

— Âmbar! — berrou Romaric.

— Pensam que estão no circo? — assoviou Kor Mehtar. — Começo a me cansar das peças que pregam, que merecem a forca. Fogos de artifício mágicos, fugas frustradas, lamentáveis palhaçadas! Vamos, meus Korrigãs, vamos, meus filhos, peguem esses malvados!

Sem se preocupar com as ameaças de Kor Mehtar, Corália correu para a irmã. Âmbar jazia inconsciente, mas não parecia estar ferida. Acariciando docemente o cabelo da irmã, não pôde impedir que uma lágrima lhe corresse pelo rosto. O que tinha dado nela para correr assim em socorro de Guillemot?

Amava-o a esse ponto? Sentiu no coração uma pica­da de ciúme. E ela, quando viveria, afinal, uma verda­deira história de amor? Aquele idiota do Romaric não ia se declarar nunca?

Corália foi brutalmente arrancada da irmã por dois Korrigãs. Tentou se debater, mas um dos agressores deu-lhe um soco violento. Romaric ficou vermelho de cólera e fez menção de ir em seu auxílio. Foi instanta­neamente dominado. Ágata e Gontrand gemeram de inquietação. A situação estava completamente fora de seu controle.

“É demais!”, pensou Bertram. “Meu velho, desta vez, é preciso ouvir seu orgulho de Feiticeiro e agir! Diga que é a única solução, mesmo que não seja a mais bonita! Nem muito legal... Comer comida infecta, tudo bem; jogar jogos idiotas, vá lá que seja... Mas isto ultra­passa todos os limites! Desde quando se bate em mulher?”

Reunindo toda a sua coragem, respirou fundo e mer­gulhou a mão trêmula na sacola de Feiticeiro. Tirou dali um objeto estranho, curto e metálico, que apontou na direção do rei.

Ouviu-se uma gritaria geral. Os Korrigãs olhavam, horrorizados, para o jovem Feiticeiro, que ameaçava Kor Mehtar com uma arma.

— Você não tem o direito! Está infringindo todas as leis! — berrou este último, balançando num pé e no outro.

— E eu lhe aconselho, grande soberano — respondeu Bertram, avançando um passo em sua direção — a abrir bem os ouvidos e acalmar os anões: que sua cambada com seus sopapos solte meus amigos. E se não quiser barulho, suma daqui!

— O que é? — perguntou Gontrand, que não via bem o objeto empunhado por Bertram.

— Acredito que seja uma... uma pistola! — respondeu num silvo Romaric, de olhos arregalados. — Seja lá o que for, parece com essas pistolas que se vêem em filmes!

— Mas é rigorosamente proibido em Ys! — indignou­ se Corália. — Nada de arma de fogo em nosso Mundo, é uma das principais leis!

— Pode ser — disse Ágata, dando de ombros. — Mas hoje não sou eu quem vai reclamar!

Em cima da liteira, Kor Mehtar parecia particular­mente pouco à vontade.

Com a aparente indecisão que paralisava o rei, Bertram interpelou-o de novo, na língua dos Korrigãs:

— Você se decide?

Melhor verter lágrima pelos cativos que chorar o vazio que deixa uma arma!

Diante dos olhares estupefatos da assembléia de Korrigãs e de seus amigos, Bertram atirou para o ar, como se tivesse passado a vida a fazer aquilo. Um tro­vão não teria feito mais barulho. Um berreiro de espan­to subiu da mata. Bertram recarregou a pistola e tornou a apontá-la para o rei e seus acólitos. Voltou-se para Kor Hosik, o tradutor.

— Falar na sua língua complicada não me diverte mais. Diga ao rei que é do interesse dele nos deixar par­tir. Se não, não vou hesitar em usar esta arma.

O Korrigã traduziu as palavras de Bertram. O rei considerou por um longo intervalo o grupo que o enfrentava desde o meio da noite. Depois, deu uma série de ordens. Logo, os Korrigãs se espalharam pelo mato e os raptores abandonaram Guillemot, pés e punhos ata­dos, no chão. Kor Mehtar, em seguida, instalou-se na liteira, soprou algumas palavras a Kor Hosik e se foi, tão depressa quanto permitiram as pernas dos carregadores.

— Meu rei estar cansado — explicou o tradutor. — Vocês decididamente são muito fortes. E depois, logo vai chegar a aurora e os Korrigãs não gostam do sol...

A leste, de fato, o horizonte começava a empalidecer e se distinguiam, na distância, as casas de Dashtikazar.

Kor Hosik, antes de se afastar, atrás do rei, virou-se uma última vez para eles e agitou seu chapéu.

— Até à vista! Até à vista!

— Espero que não — resmungou Gontrand.

O capim e os arbustos tremeram mais uma vez. De­pois, mais nada. Foi como se despertassem abruptamen­te de um pesadelo. Encontravam-se sozinhos na mata.

Ágata e Gontrand foram libertar Guillemot das cor­das e da mordaça que o prendiam. Em seguida, o peque­no bando agrupou-se em torno do corpo inanimado, mas vivo, de Âmbar. Junto com o despontar da aurora, senti­ram um imenso alívio. Todos se congratularam, no fun­do do coração, pelo final feliz daquela incrível aventura.

 

O bando dos sete, com Ágata e Corália à frente, se­guidas por Romaric e Gontrand, apoiando Âmbar, que voltava à consciência e, depois, por Guillemot e Ber­tram, a fechar a marcha, alcançou Dashtikazar quando os primeiros raios de sol despontavam por sobre a terra.

As ruas estavam desertas, mas isso nada tinha de surpreendente num dia seguinte a uma festa. Sem cruzar com uma alma viva, retornaram ao apartamento de Utigern de Krakal.

Lá dentro, armaram barricadas, deixando-se cair, em seguida, pelo assoalho do salão.

— Ufa! Não agüento mais! — disse Gontrand, deitando-se de costas.

— Nem eu! — admitiu Corália. — Acho que sou capaz de dormir horas!

— Âmbar, como está se sentindo? — perguntou Guillemot, pegando a mão da menina.

A jovem fez um esforço para sorrir.

— Sinto-me melhor agora.

— Você nos botou muito medo! — disse Romaric. — Puxa vida... O que deu em você? Atacou os Korrigãs, queria a todo custo ir atrás de Guillemot...

— Eu... Eu não sei — admitiu Âmbar, baixando os olhos. — Não me lembro de nada.

— É típico de encantamento — repetiu Bertram. — Mas não querem acreditar em mim!

— Encantamento? — admirou-se Guillemot.

— Bertram acha que Âmbar foi condicionada por um sortilégio. O que explicaria por que ficou completamen­te louca quando viu você ir com os dois Korrigãs — resu­miu Gontrand.

— Apresenta todos os sintomas de encantamento — prosseguiu Bertram. — Olhos convulsionados, gestos automáticos, ausência de lembrança e dores de cabeça...

— Um encantamento — disse Guillemot, pensativo. — Por que não, afinal? Mas não! Não bate! Quem o teria feito? E quando? E por quê?

— Bom — resmungou Bertram —, não obrigo ninguém a acreditar em mim! Vocês estão livres para atribuírem ao amor ou à loucura o comportamento estranho da sua amiga...

— Como conhece tão bem os encantamentos? — ques­tionou Corália, em tom de suspeita.

— Adorável jovem — respondeu Bertram, com uma ponta de arrogância na voz — lembro que sou Feiticeiro!

— E pistola faz parte dos acessórios normais dos Feiticeiros? — disse Romaric secamente.

A intervenção do Escudeiro foi uma ducha de água fria. Fez-se um silêncio pesado. Os olhares pousaram em Bertram. Este fez cara de birra e cruzou os braços.

Guillemot aproximou-se dele e pousou a mão sobre seu ombro, num gesto afetuoso.

— Bertram — disse, com doçura —, talvez não salte aos olhos, mas nós somos seus amigos de verdade. Você e eu misturamos os signos da amizade, que você mesmo traçou nas nossas mãos com carvão! Todo mundo aqui ama você muito. Até Romaric, por trás da aparência rabugenta. Gontrand também, apesar de seu ar distante. E até mesmo Âmbar, que não é sempre uma fúria...

— E eu também, gosto muito de você! — apressou-se a dizer Corália.

— Está vendo? Corália também — continuou Guille­mot, enquanto Romaric arregalava os olhos para a meni­na. — Acredite em mim. Eu os conheço! Mas a amizade se alimenta de uma coisa essencial: confiança. Portanto, lembre-se, é dando que se recebe!

Bertram olhou Guillemot diretamente nos olhos, depois rendeu-se.

— De acordo. Vou conquistar a confiança de vocês por­que não tenho tantos amigos para permitir-me perdê-los! Minha história não é muito longa, e é um pouco triste...

Calou-se por um momento.

Diante dele, os amigos, apesar do estado de esgota­mento, esperavam, atentos, que falasse.

— Um dia, Guillemot — começou —, você ficou espan­tado com meu sotaque e perguntou de onde eu vinha. Lembra-se disso? Respondi que era de Jaggar, a aldeia das Montanhas Douradas, que foi destruída pelos exér­citos da Treva...

— Sim, lembro-me — aquiesceu Guillemot.

— Foi para você não me fazer outras perguntas incô­modas. Na verdade, nasci no Mundo Certo!

Se um Gommon irrompesse na sala, surtiria menos efeito.

— Como? Você nasceu no Mundo Certo? — pergun­tou Guillemot. — Está mesmo falando do Mundo Real, para lá da Primeira Porta?

— Sim — confirmou Bertram. — Nasci e vivi lá onze anos. O que explica meu sotaque e meu jeito às vezes meio estranho para a realidade de Ys. Existem hábitos que não se perdem com facilidade...

— Todos os filhos do Mundo Certo têm pistolas? — interrogou Romaric.

— Mas é claro que não! Meu pai era militar. Tinha uma arma de serviço, uma pistola. Ensinou-me muito cedo a tomar cuidado com ela e, na mesma ocasião, a usá-la...

— Está falando no passado — atentou Ágata. — O seu pai... morreu?

— Morreu com minha mãe num acidente de carro confiou Bertram, com a voz triste.

— De fato, é uma história triste! — emocionou-se Corália.

— E por que acaso veio parar em Ys? — admirou-se Gontrand. — É engraçado! E a primeira vez que escuto alguém dizer que foi autorizado a vir do Mundo Certo para Ys!

— Meu caso é um tanto particular — admitiu Bertram. — Com efeito, meu pai foi um Desistente... Como o seu, Guillemot, acho eu! E seu sonho era tornar-se Cava­leiro, exatamente como você, Romaric! Foi aceito como Escudeiro na Confraria, mas não conseguiu ser sagrado cavaleiro. Sua decepção foi terrível. Por isso deixou Ys, tornando-se militar no Mundo Certo, onde conheceu minha mãe. Quando me vi órfão, meu padrinho, que era amigo de infância de meu pai, obteve a autorização excepcional para me levar para Ys e tomar conta de mim. Eu trouxe a pistola, como lembrança do meu pai. Escondi-a. Ninguém sabe que a tenho comigo.

— Não é só triste, também é trágica! — exclamou de novo Corália. — Pode-se dizer que sua história saiu de um livro de contos!

— No entanto, é a pura verdade, pode acreditar em mim — respondeu Bertram.

— Seu padrinho, então, é uma pessoa de Ys! Nós o conhecemos? — perguntou Romaric.

— Vocês, não; mas Guillemot, sim — disse Bertram, voltando-se para o Aprendiz.

— Geraldo! — Guillemot exclamou, ainda emociona­ do com a evocação que Bertram acabava de fazer de seu pai, um Desistente como o dele, talvez...

— Exato — confirmou Bertram — Geraldo, Mestre Feiticeiro da Guilda! Era Aprendiz quando meu pai era Escudeiro. Sofreu muito com a separação e sempre se esforçou para manter o contato, apesar da distância dos Mundos. Felizmente, para mim... Depois, foi como um segundo pai. É uma pessoa muito boa. Eu o amo demais.

— E foi assim que você se viu Aprendiz na Guilda... — prosseguiu Guillemot.

— Foi também assim que me tornei Feiticeiro, sem ter merecido, na verdade. Ou melhor, sem ter um dom parti­cular para a magia, apesar das minhas fanfarronadas!

Um silêncio acolheu as confidencias de Bertram. Depois, Guillemot falou, com a voz cheia de gravidade:

— Tudo sempre acaba se explicando! Obrigado por sua franqueza, Bertram. Estou orgulhoso de ter você como amigo.

— Eu também — disse Romaric, apertando vigorosa­mente a mão de Bertram. — E obrigado por ter nos tirado daquela situação ruim na mata!

— Sim, você foi formidável — confirmou Corália, beijando-o no rosto.

— E agora que sabemos por que você é esquisito — zombou Gontrand — vamos esperar e ver se está brincan­do ou não antes de bater em você!

— O que vai fazer com a pistola? — perguntou Âmbar, de repente.

— Vou jogá-la no mar, para lá das falésias — anunciou Bertram, sem pestanejar. — Ys tornou-se meu único país, tenho que respeitar suas leis! E uma delas diz: Nada de armas de fogo no Mundo de Ys! Acredito que seria esse o desejo de meu pai.

— Acho ótima idéia — apressou-se a dizer Ágata, vendo, com inquietude, Âmbar olhando de soslaio a arma de Bertram.

 

Âmbar e Corália tinham voltado para Krakal, Gon­trand passou por Grum e depois retornou para a Aca­demia de Música de Tantreval. Ágata retornou à sua casa, em Dashtikazar. Romaric foi diretamente para Bromotul e Bertram para o monastério de Gifdu.

Todos tinham prometido não contar uma palavra da aventura a ninguém e até mesmo jurado segredo, sobre o caderno de Aprendiz de Guillemot, o que tinham de mais sagrado à mão. Guillemot voltou para a sua casa, em Troïl, e passou o resto do dia num estado de sonolência que lhe valeu, por parte da mãe, um monte de comen­tários zombeteiros sobre jovens que festejam demais. Esgueirou-se para o quarto assim que acabou o jantar.

No dia seguinte, levantou-se ainda bem cansado. Preparou um bom banho quente e dedicou-se, afinal, a pensar na incrível aventura que acabava de viver com os Korrigãs.

Apesar das peças malvadas das pequenas criaturas, o Aprendiz não conseguia ficar encolerizado. O modo de pensar e de se comportar dos Korrigãs era muito dife­rente dos deles para que se pudesse julgá-los com cora­ção humano! Por outro lado, bem que gostaria de saber mais sobre a magia misteriosa dos Oghams.

Quanto àquele “alguém” a quem Kor Mehtar queria entregá-lo... Alguém a quem nada posso negar... tinha admitido o rei. Tratava-se da Treva?

Em seguida, enquanto se enxugava e vestia roupa limpa, Guillemot refletiu sobre o encantamento do qual Âmbar talvez fosse vítima. Era verdade que não tinha visto Âmbar entrar em transe, mas de todo modo, o comportamento da amiga não era normal. Será que aquilo teria alguma relação com os sonhos estranhos que tinha descrito?

Balançou a cabeça: nenhuma resposta veio-lhe ao espírito. Saiu do banheiro e decidiu esfriar a cabeça com um bom livro...

Estava no último capítulo de Capitão Estrondo, um de seus livros preferidos, que lia pela terceira vez, quan­do ouviu uma coisa esquisita dentro da cabeça. Inicialmente, achou que era tonteira, sem dúvida, devi­da às últimas noites, curtas demais. Mas a impressão de flutuar ficou mais nítida. Guillemot então identificou os mesmos sinais de quando seu Mestre tentou comunicar-se com ele diretamente no interior da cabeça!

Suspirou de alívio. Desde o retorno do mato, não recebia notícia alguma de Qadehar, e isso o preocupava. Tentou respirar com calma e se pôs a pensar, com con­centração.

— Mestre? Mestre, é o senhor?

Ouviu um assovio longe. Um grunhido rouco.

— Mestre?

Guillemot começou a inquietar-se. Perguntava-se o que fazer, quando uma voz, que reconheceria entre mil, ressoou em seu crânio.

— Guillemot... Escute. Não tenho muito tempo. — O... Senhor Sha!

— Sou eu mesmo. Não posso falar muito. É absoluta­mente necessário que eu me encontre com você...


Guillemot entrou em pânico. O Senhor Sha continuou:

— Você precisa confiar em mim. Siga as indicações ao pé da letra e tudo correrá bem. Escute: pegue a Porta do Mundo Certo e me encontre esta tarde numa loja cha­mada O Ouro dos Mundos. Não fale sobre isso com nin­guém. Ninguém...

A voz extinguiu-se antes de Guillemot poder fazer perguntas. O coração do menino batia à toda. Eis que o Senhor Sha, depois de o ter perseguido nos subterrâneos de Gifdu, marcava encontro com ele no Mundo Certo! Não fazia sentido algum! Sacudiu a cabeça diversas vezes para ter certeza de que não estava sonhando.

A prudência mais elementar lhe teria ordenado a advertir imediatamente a Guilda e colocar-se sob a sua proteção. Mas, aos olhos de Guillemot, de uns tempos para cá, a onipotência dos Feiticeiros tinha sofrido um desgaste singular, assim como o modo deles encararem a justiça... No monastério de Gifdu, o Senhor Sha não tentou fazer-lhe mal. Não hesitou: ia correr o risco de ir até lá sozinho.

No íntimo, desejava ardentemente que o homem de vermelho, que não conseguia odiar, apesar de ter rouba­do o Livro das Estrelas, lhe trouxesse as respostas de que tinha absoluta necessidade...

No caso de o Senhor Sha aprontar uma armadilha para ele, redigiu um bilhete rápido endereçado ao seu Mestre, que enfiou debaixo do travesseiro.

Anunciou à mãe que ia passear, depois escapou em direção a Dashtikazar e, além, rumo à colina onde haviam sido construídas as Portas dos Dois Mundos.

As Portas dos Dois Mundos, que se pareciam com portas, mas eram bem maiores, permitiam que se fosse, através de uma, ao Mundo Incerto, de outra, ao Mundo Certo.

Essas duas portas, em madeira de carvalho, nas quais estavam gravados inúmeros Grafemas, funciona­vam somente num sentido, para proteger Ys dos outros Mundos. Mas, em caso de urgência, era possível utilizá-las nos dois sentidos.

Os criminosos de Ys eram mandados para o exílio definitivo no Mundo Incerto, onde tornavam-se Erran­tes, mas os Feiticeiros e Cavaleiros Perseguidores que ali cumpriam missões, estes podiam retornar ao País de Ys. Do mesmo modo, as pessoas de Ys que desejassem viver no mundo real, como tinha feito o pai de Bertram, e talvez o de Guillemot, tornavam-se para sempre Desistentes; o que não impedia os livros didáticos de chegar até Ys! Nem mesmo um Mestre Feiticeiro de repatriar o afilhado que ficou órfão...

Bem entendido, para passar de um Mundo a outro, era preciso conhecer os sortilégios de abertura e sobre­tudo ser capaz de empregá-los! Só os Feiticeiros podiam fazê-lo e mesmo assim não todos. Pois o mecanismo que punha em contato os Mundos exigia uma enorme ener­gia interior. Guillemot já chegara até lá sem dificuldade uma vez, quando levou os amigos para o Mundo Incerto. Esperava hoje entrar no Mundo Certo com a mesma facilidade...

Só dois Cavaleiros do Vento guardavam as Portas. Desde que se soube que a Treva dispunha do Galdr do Deserto para passar à vontade do Mundo Incerto ao País de Ys, sem a ajuda das Portas, a guarda tinha sido rela­xada na colina.

O Aprendiz de Feiticeiro sabia como burlar a vigi­lância dos guardas. Até achou que a aventura tinha certo ar de déjà vu! Invocou Dagaz, a Ampulheta, que mode­lava o tempo, e murmurou para a brisa que soprava. Os Cavaleiros foram afetados pelo Grafema sem se darem conta: seus gestos foram ficando mais lentos progressivamente e logo estavam petrificados. O tempo passava muito mais lentamente para os dois homens que para Guillemot, que passou diante deles como se fosse invi­sível. E dirigiu-se rumo à Porta que conduzia ao Mundo Certo sem dificuldade alguma.

Localizou os signos gravados que marcavam com precisão seu destino no espaço e tocou-os com a mão direita. Depois, concentrou-se para fabricar o Galdr que abriria a Porta e o conduziria para lá, para muito longe: Perthro, o Guia, para não perder a porta principal do mundo real; Raidhu, a Carruagem; Eihwaz, o Eixo dos Mundos. Não tremia, ao contrário das vezes anteriores...

“O ofício se incorporava!”, pensou.

Quando ficou pronto, sussurrou seu sortilégio:

— Pelo poder da Cometa e da Matriz, da Via, de Nerthus, de Ullr e do Galho Bifurcado, Perthro em cima, Raidhu em baixo e Eihwaz na frente, leve-me! PRE!...

A Porta do Mundo Certo iluminou-se por um breve instante e Guillemot desapareceu, engolido pelo nada.

 

Alguns segundos depois do fim de seu encantamen­to, Guillemot reapareceu num lugar desconhecido e totalmente diferente da colina que acabava de deixar: encontrava-se no térreo de uma velha torre de pedra gasta pelo tempo e cujas aberturas se viam obstruídas por andaimes. Fora, distinguia um verde. Era uma flo­resta? Tentou passar para o exterior.

— Ei, você! — rosnou um homem, vestindo uniforme azul e com um capacete na cabeça. — É proibido brincar nos andaimes! Não sabe ler?

O homem veio ajudar Guillemot a sair do amontoa­do de passarelas e tubos metálicos.

— Lamento, senhor — desculpou-se Guillemot, lan­çando em sua volta um olhar curioso.

A torre encontrava-se num parque, no centro de uma praça. Datava, evidentemente, da Idade Média, o que explicava a presença de andaimes para restaurá-la.

— Não fique zanzando por aqui! E cuidado — falou o homem, com voz doce, desarmado pelo sorriso do jovem —, é perigoso.

— Sim, senhor — aquiesceu Guillemot. Olhando-o uma vez mais, reconheceu, por ter visto na televisão, um policial — o equivalente, aproximada­mente, dos Cavaleiros de Ys no mundo real, encarrega­dos de velar pela segurança dos habitantes.

— Você tem um sotaque engraçado! Não é francês?

— Sou, senhor! Enfim, quase... É o sotaque da Bre­tanha — gaguejou Guillemot. — Diga, senhor... Conhece um lugar chamado O Ouro dos Mundos?

O policial parou para pensar.

— Tem uma loja de antigüidades que se chama assim, de fato. Não muito longe daqui, numa rua por ali...

E apontou uma direção.

— Obrigado — respondeu Guillemot que, acenando, deixou o parque.

Uma vez na calçada, ficou imobilizado. Então era aquilo os carros! Tinha visto na televisão, sem dúvida, mas não imaginava que pudessem ser tão barulhentos, nem que tivessem cheiro tão ruim!

Instintivamente, tapou os ouvidos e franziu o nariz. Depois, achou melhor não chamar atenção e voltou à atitude normal.

Constatou, com satisfação, que o modo de vestir em Ys e no mundo real eram muito semelhantes, como a televisão permitia supor: com suas calças jeans, suéter e tênis, não estava fora da moda. Até a sacola de Aprendiz lembrava mochila de colegial...

Tomou a direção indicada pelo policial.

Perambulou pelas ruas, lançando olhares curiosos por toda parte a sua volta.

Tudo o espantava! E o que via era tão mais concreto que na televisão! O asfalto, que substituía as pedras do calçamento e tinha cheiro tão forte! As pessoas, que cru­zavam por ele sem dizer bom-dia. O grunhido surdo dos carros, que rodavam a toda velocidade de um lado e do outro dos prédios...

Pediu informações diversas vezes aos passantes que se prestavam a parar e acabou por encontrar a loja que procurava.

Sobre uma vitrine imunda exibia-se, em letras meio apagadas, o nome da loja: O Ouro dos Mundos, An­tigüidades.

Uma coberta de lona usada, pendurada na frente impedia que se visse o interior.

Guillemot hesitou, depois empurrou a porta de entrada. Esta rangeu horrivelmente e desencadeou uma campainha fininha. O menino tornou a fechar a porta depois que entrou, e avançou pelo cômodo mal ilumina­do. Tudo parecia programado para fazer o cliente fugir!

Ele viu uma luz através de uma cortina, no fundo da loja. Aproximou-se dela, vacilou outra vez, depois afas­tou o pano grosso.

— Entre, Guillemot. Eu estava esperando por você. Sentado de pernas dobradas no tapete, o Senhor Sha, envolto no casacão vermelho cor de sangue, fez sinal para que se aproximasse.

Guillemot olhou em volta com curiosidade: pratelei­ras atulhadas de artigos de todo gênero. Reconheceu, surpreso, objetos que já tinha visto no Mundo Incerto.

Percebeu, com emoção, colocada sobre uma almofada, numa certa altura, uma Gamburi, flor das areias — que Kyle e seu povo pegavam no Deserto Voraz e ven­diam em Ferghânâ! Refreou a curiosidade e sentou-se sobre o tapete.

— Eu sabia que você viria — começou a falar Sha, depois do menino ter se instalado à sua frente. — Na ver­dade, você não sentiu medo de mim no outro dia, nos corredores de Gifdu. E, depois, para um Aprendiz que destruiu o palácio de Thunku quase que com um espirro, a travessia para o Mundo Certo deve representar uma simples formalidade!

Guillemot observou por um momento o rosto brin­calhão do Senhor Sha.

— Existe alguma coisa que o senhor não saiba sobre mim? — acabou perguntando.

Sha deu uma risadinha.

— Oh, com certeza! Quer beber alguma coisa?

— Chocolate, por favor. Se o senhor tiver...

O Senhor Sha fez que sim e pegou atrás uma panela em que botou leite e cacau em pó. Misturou tudo e pôs o recipiente para ferver sobre um pequeno fogareiro insta­lado ao lado da lâmpada a óleo que iluminava a peça com luz aveludada.

— Gosto muito do Mundo Certo — disse Sha, em tom de confidencia. — Evidentemente, não é tão bom como o País de Ys, mas é mais tranqüilo que o Mundo Incerto. Passo aqui a metade do meu tempo!

— E o que faz o senhor no Mundo Certo? — questio­nou Guillemot, acolhendo com olhos gulosos a tigela que Sha colocou à sua frente.

— Oficialmente, sou antiquário. Especializado em objetos raros e exóticos! Isso me permite explicar mi­nhas longas ausências. Oficiosamente... é segredo!

— O senhor vende objetos que vai buscar no Mundo Incerto? — admirou-se Guillemot.

— Exato — admitiu o Senhor Sha, com um sorriso.

— Graças ao Galdr do Deserto, hein? Não é assim que o senhor faz?

— Não. O Galdr do Deserto só funciona entre Ys e o Mundo Incerto. Para entrar e sair discretamente do Mundo Certo, utilizo Portas que eu mesmo fabriquei...

Diante do ar surpreso de Guillemot, ele fez uma pau­sa. Depois continuou.

— Você não compreende, parece. Talvez não saiba que os Grafemas não têm poder no Mundo Certo.

— Não têm poder? Quer dizer... — inquietou-se Guillemot. — Se me atacarem e eu invocar Thursaz, não acontecerá nada?

— Absolutamente nada. Na melhor das hipóteses, você conseguirá assustar o seu agressor com os berros!

— Não é nada engraçado!

— Lamento — desculpou-se Sha. — Estava tentando...

— Eu falava dos Grafemas, que não funcionam no Mundo Certo! — insistiu Guillemot.

— Tem razão, não é engraçado — confirmou Sha, em­punhando uma chaleira e servindo-se uma xícara de chá quente. — Enquanto em outros lugares a magia nos torna poderosos e suscita respeito, aqui, a gente se sente desagradavelmente comum.

— Se o poder dos Grafemas não chega até aqui — interrogou Guillemot — como o senhor fez para entrar em contato comigo?

— Quando fiz o contato, encontrava-me no Mundo Incerto. Lá os Grafemas funcionam, se nos dermos o trabalho de ajustá-los! Usei uma das Portas que permi­tem o acesso a Ys para estabelecer a comunicação. Por outro lado, como lhe dizia, a ausência de magia no Mun­do Certo obriga a usar Portas para se sair ou entrar! Possuo uma aqui, na minha loja, e outra na torre, em Djaghataël. Aliás, foi por isso que demorei a entrar em contato com você depois do nosso último encontro; des­truíram a Porta que eu tinha conseguido construir em Djaghataël, e tive que consertá-la...

Guillemot ficou preocupado e respirou fundo.

— Escute, é absolutamente preciso que eu saiba a verdade. Meu Mestre está tendo muitos problemas neste momento e é muito importante...

— O que quer saber? — perguntou Sha, num tom ami­gável.

— Foi o senhor que... Foi o senhor que matou os Feiticeiros diante da torre de Djaghataël?

O Senhor Sha fixou os olhos de ametista nos olhos de Guillemot.

— Vou ser franco com você, e tudo o que direi será a verdade. Tem a minha palavra.

 

Guillemot sentiu que o homem estava sendo sincero. O Senhor Sha instalou-se mais confortavelmente sobre o grande tapete que cobria o chão da parte de trás da loja e prosseguiu.

— Não sou de modo algum o responsável pela em­boscada que surpreendeu os Feiticeiros em Djaghataël. Na véspera do ataque, meu intendente transmitiu-me uma mensagem anônima que me prevenia de que você estaria em Gifdu, na companhia de Feiticeiros de impor­tância menor. Meu misterioso correspondente já tinha, no passado, fornecido informações exatas; eu não tinha a menor razão para não acreditar nele daquela vez! Você quase sozinho em Gifdu... era aquele o momento... Quando voltei a Djaghataël, vi os corpos dos Feiticeiros e os dos Orks a serviço de Thunku. Também encontrei minha torre saqueada...

— Então — objetou Guillemot, na dúvida —, o coman­dante Thunku é seu amigo, certo? E foi ele quem enviou os Gommons e os Orks, por ordem sua, ao País de Ys, para me raptar?

O Senhor Sha fez cara de espanto.

— Thunku é meu amigo, é verdade. Mas também é amigo de numerosos crápulas! Mais exatamente, Thun­ku é amigo de quem paga ou de quem dá medo. Quanto a isso de que me acusa... Pelos deuses, não! Nunca ten­tei raptar você!

Guillemot viu que o Senhor Sha não mentia.

— Quem, senão o senhor, no Mundo Incerto, teria sido capaz de mandar Orks ao País de Ys?

Sha refletiu um instante.

— Diversos nomes me vêm à cabeça. Mas um deve­ria bastar: a Treva.

— O senhor sabe quem é a Treva?

— Ninguém sabe.

— Pelo menos — reconheceu Guillemot, com alívio — não é o senhor!

O homem riu.

— Eu, a Treva! Ora, vamos! Quem poderia imaginar uma coisa dessas?

— Os Feiticeiros que atacaram sua torre — respondeu tranqüilamente Guillemot.

Sha deixou de sorrir.

— Mas é ridículo!

Guillemot deu-se o trabalho de contar a aventura de Gontrand em Djaghataël.

— ...e a Guilda concluiu que o senhor poderia ser a Treva — terminou Guillemot.

— Estou entendendo melhor — suspirou Sha. — Agora, escute com atenção: meu verdadeiro nome é Yorwan. Venho do País de Ys. Fui, como você, Aprendiz na Guilda e cheguei a receber o título de Feiticeiro! Um dia, e bastante contra a minha vontade, pode acreditar, tive de deixar Ys de repente, para pôr a salvo um livro precioso, o Livro das Estrelas, do qual você, com certe­za, já ouviu falar...

— Sim. Mestre Qadehar me contou sua história. Mas disse que o senhor roubou esse livro. Aliás, é o que todos acham, em Ys.

Sha soltou um suspiro.

— Sei que acreditam nisso... e pouco importa! O essencial é que o Livro das Estrelas tenha ficado escon­dido todo esse tempo... Mas aconteceu uma coisa muito grave e é por esse motivo que marquei encontro com você aqui... Quando olhei em seu espírito, em Gifdu, vi imediatamente que você é uma pessoa confiável, com quem se pode contar em caso de dificuldades. E estou precisando de você. Estou precisando de você para con­vencer o seu Mestre a me ajudar. Antigamente, Mestre Qadehar era meu melhor amigo... Então, escute bem. Você vai dizer a ele o seguinte, vai dizer a ele que o Livro das Estrelas, que até há pouco estava sob a minha guarda, desapareceu e, desta vez, de verdade. Alguém o roubou da minha torre enquanto eu procurava por você em Gifdu...

— Mas Mestre Qadehar acha que o senhor é um ladrão! Jamais acreditará no senhor... — interrompeu-o Guillemot, balançando a cabeça.

O rosto de Sha ficou sombrio.

— E por essa razão que preciso da sua ajuda, Guille­mot. Outro dia, cometi um erro, o primeiro depois de muitos anos: na alegria de reencontrar você, deixei para trás o livro pelo qual eu era responsável e que até então nunca tinha deixado.

Guillemot tremia.

— O senhor disse, em Gifdu, que pensava que eu era uma outra pessoa...

Sha observou por longo tempo o menino, que tinha ficado completamente pálido.

— Quer mesmo saber?

— Sim, quero saber!

— Há mais ou menos catorze anos, eu era um jovem Feiticeiro. Apaixonei-me por uma jovem extraordinária, que conheci durante as festas de Samain. Ela comparti­lhava os meus sentimentos e nós ficamos noivos. Estávamos a ponto de nos casar, quando, de repente, tive de ir embora com o Livro das Estrelas. Não me pergunte por quê, não vou responder... Saiba apenas que era vital para o País de Ys... Assim, tive que ir embora sem ter tempo de explicar o meu gesto à mulher que eu amava. Fiquei louco de dor. Muito tempo depois, recebi uma carta misteriosa, escrita pela mesma mão que recente­mente me informou da sua presença em Gifdu. Essa carta me anunciava que minha noiva, que eu tinha dei­xado no País de Ys, tinha tido um filho meu... Um filho que o Livro das Estrelas me roubou, posto que preferi o dever ao amor!

O homem ficou emocionado e sua voz tremeu ligei­ramente quando terminou.

— Essa mulher se chamava Alicia. Alicia de Troïl.

O coração de Guillemot parou dentro do peito. Ele balbuciou:

— Mas, então... Então, o senhor... O senhor é...

— Eu deveria ser o seu pai, Guillemot. Mas li a ver­dade em você... Lamento, menino. Você não é meu filho. Meu correspondente misterioso mentiu.

Guillemot tinha a garganta travada de emoção. Não entendia mais nada... Ainda perguntou:

— Por quê... Por que o senhor esperou esse tempo todo para tentar me encontrar?

— Só vim a saber da sua existência tardiamente, repi­to. E, aí, quando tive de deixar sua mãe, Uriano, irmão dela, ficou com uma raiva louca. Não podia saber que eu tinha sido obrigado a afastar-me de Ys por uma razão importante. Caso não fosse necessário ser eu, teria fica­do junto de Alicia para sempre. O ódio do seu tio, que podia contar com a ajuda da Confraria, e talvez o medo de rever sua mãe depois de todos esses anos, encarar o olhar dela, impediram-me de ir ao seu encontro em Ys.

Sua presença em Gifdu, longe dos Cavaleiros e na ausência dos Feiticeiros poderosos que poderiam tê-lo protegido, foi na verdade a primeira ocasião que se apre­sentou para eu entrar em contato com você...

Mas Guillemot já não escutava, tomado por uma dúvida terrível.

 

Guillemot despediu-se do Senhor Sha contendo as lágrimas com grande esforço. O homem do manto verme­lho, sinceramente desolado, tentou consolá-lo assegurando-lhe que a verdade um dia ia acabar vindo à tona.

Não soube responder ao Aprendiz quando este per­guntou se conhecia um Desistente que pudesse ser seu pai. O Senhor Sha não tinha contato com os Desistentes... Para fazê-lo esquecer seu sofrimento, propôs que levasse tudo o que quisesse da loja. Mas Guillemot, sem ânimo, não queria nada, nem mesmo a flor das areias que lembrava Kyle, o amigo distante.

Guillemot deixou para trás a loja de antigüidades e não se demorou no Mundo Real. Tudo andava depressa demais, e com muito estrépito... Os veículos, as pessoas, que iam com pressa pelas calçadas, sem lhe dispensa­rem um olhar — tudo o deixava pouco à vontade. Mas, acima de tudo, acima de tudo, tinha algo muito impor­tante a fazer em Ys.

O Senhor Sha explicou que a Porta que se encontra­va em sua loja estava configurada unicamente para se chegar ao Mundo Incerto. Era preciso, então, para voltar a Ys, fazer o mesmo itinerário da vinda. Esperou ficar sozinho na praça e se esgueirou como pôde para a torre em reforma.

Sobre uma das paredes, dissimulados entre os signos dos quebradores de pedras, Guillemot distinguiu os Grafemas que iam levá-lo para casa. Como se tivesse passado toda a vida fazendo aquilo, construiu maquinal-mente seu Galdr e, no tempo de uma breve passagem para esse nada que começava a lhe ser familiar, viu-se de novo em Ys, diante da Porta do Mundo Certo.

Os dois Cavaleiros, que tinha enfeitiçado na partida, ainda se encontravam sob o efeito do sortilégio. Guillemot aproveitou-se disso e rapidamente deixou a colina.

Chegou ao dólmen próximo de Dashtikazar, onde Mestre Qadehar tinha o hábito de encontrar-se com ele. Aquele mesmo dólmen, junto ao qual lhe tinha revelado os mistérios e a beleza do Livro das Estrelas...

Subiu ali e sentou-se com as pernas cruzadas.

Devia encontrar-se com o Mestre o mais rapidamen­te possível e revelar o que sabia sobre o roubo e o recen­te desaparecimento do Livro das Estrelas. Tinha prome­tido isso ao Senhor Sha. E, para tanto, ia utilizar o Lokk de comunicação mental. Era a primeira vez que tentava. Aplicou-se na mistura de Berkana, o Grafema da Bétula e da Orelha, servindo para a comunicação entre os espí­ritos, a Elhaz, que desbloquearia eventuais impedimen­tos, e a Isaz, que ajudaria sua concentração.

Edificado o sortilégio, pensou com o máximo de concentração possível em Qadehar, e projetou o Lokk. Este se perdeu no vazio. Guillemot foi tomado por uma dúvida. Tinha feito o que era preciso? Tentou conseguir com alguma outra pessoa. Formou o rosto de Bertram no espírito e enviou energicamente o Lokk em sua dire­ção. Ouviu, como retorno, no interior de sua cabeça, a voz gemida do jovem Feiticeiro.

— Não precisa gritar dessa maneira! Quem me chama?

— Sou eu, Guillemot. Desculpe! É a primeira vez que uso este Lokk!

— Guillemot! — gritou o amigo. — Estou contente por ouvir você! Posso ajudá-lo?

— Talvez... estou tentando falar com Mestre Qade­har, e não consigo.

— Nada surpreendente. Geraldo acaba de me dizer que Qadehar deixou Ys e está no Mundo Incerto, com seu tio Uriano e um outro Cavaleiro, de nome Valentim.

Guillemot ficou estupefato.

— Que catástrofe... Tenho uma coisa muito, muito importante a dizer-lhe...

— Muito importante? Muito, muito importante? — repetiu Bertram.

— Muito. Muito importante. Capital mesmo!

— E... do que se trata?

— Imploro, Bertram, não insista, não posso dizer-lhe nada! A mensagem destina-se unicamente ao Mestre Qadehar.

— Muito bem, e o que está esperando para ir ter com ele no Mundo Incerto?

Bertram respondeu num tom irritado, mas Guille­mot falou:

— E o que vou fazer, tem razão...

— Ei, Guillemot, eu estava brincando, você sabe muito bem!

— Não, Bertram, o que tenho a dizer a Qadehar é da maior importância...

— Nesse caso... Nesse caso... Vou com você!

O Aprendiz hesitou um momento. Estava fora de questão arrastar outra vez os amigos para uma aventura duvidosa! Mas Bertram? No fundo, sentia-se aliviado imaginando-o a seu lado. Bertram insistiu.

— E aí, Guillemot? Está de acordo, não é?

— De acordo. Apareça amanhã ao meio-dia na minha casa.

— Genial, genial, arquigenial! Bom, vou correndo me preparar. Até amanhã.

— Até amanhã.

A comunicação interrompeu-se. Apesar da desor­dem em que o tinham mergulhado as confissões do Senhor Sha, Guillemot não pôde deixar de sorrir pen­sando no entusiasmo de Bertram. Era um menino estra­nho, mas tão, hum... legal!

Desceu do dólmen num salto e tomou a direção de Troïl. Restava-lhe algo de importante a fazer. Mais importante ainda que as revelações a serem passadas ao mais importante dos Feiticeiros...

Guillemot chegou em casa no momento em que a mãe botava os pratos na mesa.

— Está chegando em boa hora! — disse ela. — Lave as mãos e termine de botar a mesa, enquanto tiro o assado do forno.

Guillemot correu para a pia e passou as mãos em baixo da água.

— Com sabão! — ordenou a mãe, de costas. Suspirou, perguntando-se como ela via o que ele estava fazendo, sem olhar. Aí estava algo que ultrapas­sava sua ciência de pequeno Aprendiz!

Obedeceu e botou os copos, os garfos e facas sobre a mesa. Depois sentou-se. Alicia depositou o prato fumegante à sua frente.

— Hum! Que cheiro bom! Qual é o acompanhamento?

— Batata frita!

— Genial! Mamãe, adoro você!

— Ande, coma enquanto está quente.

Guillemot cortou belas fatias de assado e serviu a mãe antes de botar uma em seu prato. Tremia ligeira­mente. Tinha prometido a si mesmo, naquela noite, per­guntar uma coisa a ela, uma coisa que jamais, antes, tinha ousado perguntar. Queria saber. Queria pacificar a dúvida que o atormentava.

Olhou para ela e a achou muito bonita, com sua magnífica cabeleira loura. Sentiu amor por ela. Não, não podia. No entanto...

— Mamãe... — começou, com a voz embargada.

— Sim, meu querido? — respondeu Alicia, empalidecendo diante de seu ar grave. — O que está acontecendo?

— Eu queria... eu queria saber se...

Guillemot nunca tinha imaginado que aquilo pudes­se ser tão difícil.

— Eu queria saber se você teve algum outro marido, além de papai.

Pronto. Tinha dito. E agora estava arrependido. Não ousava mais olhar para a mãe. Alicia observou-o um longo tempo, depois levantou, aproximou-se dele e o abraçou. Guillemot logo se refugiou ali.

— Meu querido! Coitado! Sei o quanto é difícil para você! Eu sei, acredite, eu sei! Mas escute bem o que vou dizer: nunca houve em minha vida outro homem que não o seu pai. E pouco importa o que fez, ou a coragem que não teve. Acho que até hoje não consigo deixar de amá-lo.

Guillemot soluçava baixinho. Toda a pressão que tinha pesado sobre seus ombros durante longos dias saía ao mesmo tempo que as lágrimas.

— Calma, calma, meu querido — a mãe tranqüilizou-o, ninando-o. — Tenho a impressão de estar com meu lindo bebê outra vez nos braços!

— Seu... lindo... bebê? — perguntou Guillemot, ainda sacudido pelos soluços, enxugando os olhos.

— Meu bebê tão lindo! Tão lindo que uma enfermei­ra do hospital de Dashtikazar, onde você nasceu, chegou a tentar raptar você! Lembro-me dela como se fosse ontem. Era muito bonita, com os cabelos compridos cla­ros e os olhos verdes...

Guillemot de novo achou que seu coração ia parar de bater. Uma mulher de olhos verdes, como nos sonhos de Âmbar! Uma mulher que tinha tentado raptá-lo...

— Fique tranqüilo, meu querido — Alicia acrescentou logo, diante do ar surpreso do filho. — Ela não foi muito longe, tanto que você está aqui comigo! Acharam a enfermeira logo em seguida, vagando pelos corredores. Não colocou dificuldades e devolveu o bebê. Depois, foi mandada embora. Não sei o que foi feito dela.

— E... você tem certeza de que era mesmo eu? — Guillemot entrou em pânico. — Quero dizer, o bebê, que essa mulher lhe devolveu?

— Claro, meu querido! — espantou-se Alicia. — Você estava com a sua pulseirinha, com o seu nome! E mes­mo que os bebês se pareçam, eu teria reconhecido você entre mil. Quem mais você queria ser?

— Não sei de nada, e esse é o problema — murmurou Guillemot, baixinho demais para que a mãe ouvisse.

Treze anos de certezas acabavam de se desmoronar como um castelo de cartas.

 

Apesar do cansaço, Guillemot não conseguia conci­liar o sono. Seus pensamentos batiam de encontro uns com outros dentro da cabeça, provocando dor.

Quando Alicia veio beijá-lo, com uma ternura infi­nita, fingiu que estava dormindo. Ela murmurou pala­vras de paz e amor e acariciou por muito tempo os seus cabelos. Guillemot gostaria que aquele instante durasse toda a eternidade. Queria esquecer tudo, fugir daqueles pensamentos horríveis. Mas, durante a noite, a dúvida não cessava de o assaltar. Seu coração pôs-se a bater mais depressa, os punhos tornaram a se cerrar convulsivamente e ele permaneceu de olhos abertos no escuro do quarto.

Ao cabo de um momento, acabou levantando-se. Uma vez de pé, sentiu-se melhor. Vestindo o pijama azul-claro, dirigiu-se à janela e puxou as cortinas. Lá fora, no céu, as estrelas cintilavam, apesar do halo luminoso da lua. Guillemot abriu a janela e encheu os pulmões com o ar fresco da noite. Estremeceu. Seus olhos buscaram as constelações. Não sabia se devia amar ou odiar aque­las estrelas, que tinham tumultuado sua existência e o arrastavam por caminhos terríveis. Sentiu-se pequeno e sozinho como nunca, sob a imensidão do céu.

Como se para conjurar essa sensação, o rosto sorri­dente de Qadehar impôs-se ao seu espírito. Um grande alívio logo o invadiu, junto com um irrefreável senti­mento de afeição por aquele que tinha tomado um lugar capital em sua vida. Talvez fosse idiota, mas estava inti­mamente convencido de que nada de grave poderia lhe acontecer enquanto Mestre Qadehar estivesse cuidando dele!

Ficou ainda um momento na intimidade das estrelas antes de voltar para a cama e, vencido pelo esgotamen­to, cair no sono.

Uma fogueira de galhos secos estalava e iluminava com luz vacilante o pedaço de parede meio arruinado que abrigava Uriano, Valentim e Qadehar do vento que soprava em rajadas. Os três homens tinham feito seu abrigo natural em um canto do mato, em algum lugar entre Virdu e o Mar das Queimaduras. A investigação que faziam já há vários dias no Mundo Incerto, e que os levava de vilarejo em vilarejo, em busca de informações precisas sobre a emboscada de Djaghataël, até o instan­te, revelava-se decepcionante. Mas era cedo demais para se desencorajarem. Em silêncio, alimentaram-se de pão, carne de cabra seca e queijo de ovelha. Depois, prepararam-se para a noite.

Uriano, enrolado numa grossa pele de urso já dor­mia. Seus roncos fizeram sorrir Valentim, que confiou a Qadehar:

— Fazia muito tempo que eu não tinha de suportar essa barulheira!

— Vamos, Valentim, pare de reclamar. Tenho certeza de que sentia falta disso.

— Tem razão. Meu Deus! Sinto-me revivendo! O cheiro de uma boa fogueira é tão inebriante! E você, Feiticeiro, o que é que lhe faz falta?

Qadehar não respondeu logo. Deixou seu olhar perder-se entre as estrelas, tão diferentes e tão parecidas com as do céu de Ys.

— Curiosamente, Valentim — acabou respondendo —, não é uma coisa, mas uma pessoa que me faz falta. Um homenzinho que deve estar se sentindo um bocado sozi­nho em seu destino, lá, no País de Ys.

— Está falando de Guillemot? — Sim.

— Você se afeiçoou a esse menino, não é?

— Para dizer-lhe a verdade, hoje só tenho um temor: perdê-lo.

— E mesmo assim deixou-o sozinho...

— Com os amigos e sob a proteção de um jovem Fei­ticeiro... Mas, sobretudo, tenho confiança nele. Guille­mot é um Aprendiz cheio de recursos.

Valentim hesitou, depois desistiu de continuar a con­versa. Logo sentiu o cansaço vencê-lo. Bocejou, enfiou-se na coberta de lã e deixou-se embalar pelo crepitar das chamas.

Qadehar, por sua vez, ficou sentado um longo tem­po, os olhos mergulhados na extensão do firmamento.

 

 

                                                                                                   Erik L’Homme

 

 

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