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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SILÊNCIO DOS INOCENTES / Thomas Harris
O SILÊNCIO DOS INOCENTES / Thomas Harris

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "VT"

 

 

  

 

Ciência do Comportamento, seção do FBI que trata de assassinatos em série, fica no andar térreo do edifício da Academia em Quântico, meio enterrada no solo. Clarice Starling chegou lá afogueada, depois de um rápido percurso desde o estande de tiro em Hogan’s Alley. Tinha pedaços de capim no cabelo e seu blusão da Academia do FBI estava manchado porque tivera que se atirar ao chão sob fogo num exercício de aprisionamento em condições especiais.

Não havia ninguém na ante-sala, de modo que ela ajeitou os cabelos olhando seu reflexo nas portas de vidro. Sabia que podia exibir uma boa aparência sem muito esforço. Suas mãos cheiravam à fumaça das armas de fogo pois não tivera tempo de lavá-las o chamado do Chefe de Seção Crawford frisava imediatamente.

Encontrou Jack Crawford sozinho no superlotado escritório. Ele estava de pé à mesa de alguém, falando ao telefone e ela teve a chance de observá-lo pela primeira vez após um ano. O que viu perturbou-a.

Normalmente Crawford tinha a aparência de um engenheiro de meia-idade, com bom físico, que poderia ter freqüentado a universidade participando no time de beisebol — jogo em que era um eficiente apanhador, duro de roer quando bloqueava a cancha. Agora estava magro, o colarinho da camisa folgado demais e tinha manchas escuras por baixo dos olhos avermelhados. Todo mundo que lia os jornais sabia que a seção da Ciência do Comportamento vinha sendo muito criticada. Starling esperava que Crawford não tivesse bebido, o que, aliás, parecia muito improvável naquele lugar.

Crawford terminou a conversa telefônica com um curto “não”. Tirou o dossiê dela debaixo do braço e abriu-o.

 

 

 

 

       — Starling, Clarice M., bom dia — disse.

       — Alô. — O sorriso dela era apenas educado.

       — Nada de ruim com você. Espero que minha chamada não a tenha assustado.

       — Não. — Não era inteiramente verdade, pensou Starling.

       — Seus instrutores informam que você vai indo muito bem, no quartel superior da classe.

       — Espero que sim; eles não divulgaram isso — ou divulgaram?

       — Eu os questiono de tempos em tempos.

       Aquilo surpreendeu Starling; ela descartara Crawford como um filho da puta de um sargento recrutador de duas caras.

       Conhecera o Agente Especial Crawford quando ele era conferencista convidado na Universidade de Virginia. A qualidade dos seminários dele em criminologia fora um fator de sua vinda para o Bureau. Ela lhe escrevera um bilhete quando foi aprovada para a Academia, mas nunca recebera resposta, e durante os três meses em que estava em treinamento em Quântico, Crawford a ignorara.

      Starling descendia de gente que não pedia favores nem se esforçava para conseguir amizades, mas ficara intrigada e também ressentida com o comportamento de Crawford. Agora, na presença dele, voltava a achá-lo simpático, o que registrou com pesar.

       Estava claro que algo andava errado com ele. Crawford tinha um talento peculiar, além da inteligência, e Starling observara isso pela primeira vez aprovando seu senso de cores e a escolha dos tecidos de suas roupas, um problema difícil, dentro dos rígidos padrões FBI para a vestimenta estilo robô de um agente. Agora ele continuava decente, mas um tanto desmazelado, como se estivesse mudando de pêlo.

       — Apareceu um serviço e pensei em você — disse ele. — Não é propriamente um serviço, é mais um encargo interessante. Ponha no chão esse material de Berry que está na cadeira e sente-se. Você declarou na sua ficha que pretende vir diretamente para a Ciência do Comportamento quando terminar o curso na Academia.

       — Correto.

       — Você tem bastante prática forense, mas não tem um passado de atividade policial. Nós exigimos em geral seis anos, no mínimo.

       — Meu pai era um agente de polícia. Eu conheço a vida policial.

       Crawford deu um ligeiro sorriso.

       — O que você realmente tem são dois diplomas superiores, em psicologia e criminologia, e quantos períodos de trabalho no verão num centro de sanidade mental... dois?

— Dois.

— Sua licença de advogada está atualizada?

— Ainda é boa para mais dois anos. Eu a tirei antes do seu seminário na Universidade de Virgínia... antes que decidisse dedicar-me a isto.

— Você foi apanhada no congelamento de admissões.

Starling fez que sim com a cabeça.

       — No entanto, tive sorte; descobri-o a tempo de me qualificar para uma bolsa forense. Dessa maneira pude trabalhar no laboratório até que a Academia tivesse uma vaga.

       — Você me escreveu que queria vir para cá, não foi? E eu não creio haver respondido... sei que não o fiz. Deveria ter dado uma resposta.

       — Certamente tinha muito mais que fazer.

       — Você está informada acerca do PAC-VI?

       — Sei que é o Programa de Avaliação de Criminosos Violentos. O Boletim da Polícia diz que vocês estão trabalhando para atender a uma data básica, mas que o programa ainda não pode entrar em operação.

       Crawford concordou com a cabeça.

       — Desenvolvemos um questionário. Aplica-se a todos os assassinos em série conhecidos nos tempos modernos. — Passou-lhe um volumoso bloco de papéis numa encadernação de cartolina. Há uma seção para investigadores e outra para as raras vítimas sobreviventes. O questionário azul é para o assassino responder se quiser, e o rosa consta de uma série de perguntas que um examinador faz ao criminoso, observando suas reações e suas respostas. É uma papelada enorme.

       Papelada. O interesse pessoal de Clarice Starling farejou qualquer coisa viável como um cãozinho esperto. Pressentiu uma futura oferta de emprego — provavelmente o enfadonho trabalho de alimentar um computador com dados insossos. Era tentador ingressar na Ciência do Comportamento em qualquer função, mas ela sabia o que acontece a uma mulher se um dia for rotulada como secretária — o estigma adere até o fim dos tempos. Se havia uma escolha à vista, queria escolher bem.

       Crawford parecia estar numa expectativa — por certo lhe tinha feito uma pergunta. Starling teve que dar tratos à bola para lembrar-se.

       — Que testes você já empregou? Minnesota Multifásico? Rorschach?

       — MMPI, sim; Rorschach nunca — respondeu ela. — Já fiz Percepção Temática e apliquei em crianças o Bender-Gestalt.

       — Você se apavora cora facilidade, Starling?

— Até agora, não.

— Olhe aqui: nós tentamos fazer entrevistas e examinar os trinta e dois assassinos em série que temos em custódia, a fim de construir um banco de dados para obter o perfil psicológico dos casos ainda não solucionados. A maioria deles concordou em cooperar conosco — penso que uma grande parte gosta de se exibir. Vinte e sete estavam dispostos a cooperar. Quatro, que estão no “corredor da morte” dependentes de apelação, negaram-se a falar, o que compreensível. Daquele, porém, que mais nos interessa, ainda não conseguimos a menor colaboração. Quero que você o procure amanhã no manicômio.

       Clarice Starling sentiu um lampejo de alegria no peito, mas também alguma apreensão.

— Quem é o sujeito?

— O Dr. Hannibal Lecter, o psiquiatra — informou Crawford.

       Um breve silêncio segue-se sempre a esse nome, em qualquer reunião civilizada.

Starling fixou o olhar em Crawford, mas ainda parecia muito calma.

       — Hannibal, o canibal — disse ela.

— Sim.

       — O.K., está certo. Fico contente pela oportunidade, mas você deve saber que estou admirada: por que eu?

— Principalmente porque você está disponível — disse Crawford. — Não espero que ele coopere. Já se recusou antes, mas foi diante de um intermediário: o diretor do hospital. Eu preciso estar em condições de dizer que um examinador nosso, qualificado, o procurou e questionou pessoalmente. Existem razões para isso que não são problema seu. Não me resta ninguém nesta seção para fazê-lo.

— Você falou amanhã; está apressado. O assunto tem algo a ver com algum caso corrente?

— Não. Seria melhor se tivesse.

— Você está encrencado: Buffalo Bill e as coisas que acontecem em Nevada

— Acertou. É a velha história: não dispomos de bastantes corpos ainda quentes

— Se ele se esquivar comigo, você ainda vai querer uma avaliação psicológica?

— Não. Estou até as orelhas de avaliações considerando o Dr. Lecter um “paciente inacessível”, e todas elas diferentes.

Crawford apanhou dois comprimidos de vitamina C na palma da mão. Dissolveu um Alka-Seltzer num copo de água gelada e depois os engoliu.

— É ridículo, saiba você; Lecter é um psiquiatra e escreve para jornais de psiquiatria — artigos extraordinários — , mas nunca sobre suas próprias anomalias. Certa vez, ele fingiu concordar com Chilton, o diretor do hospital, em se submeter a alguns testes — sentado, com uma almofada de tirar pressão no pênis e olhando para fotos pornô. E foi Lecter quem publicou depois o que havia descoberto acerca de Chilton, fazendo-o passar por palhaço. Ele responde é de a uma correspondência séria de estudantes de psiquiatria em campos que não têm relação com o seu caso, e isso é tudo o que faz. Se ele não quiser falar com você, limite-se a apenas um simples relatório: qual é a aparência dele, qual o aspecto da sua cela, o que ele está fazendo. A cor local, por assim dizer. Cuidado com a imprensa quando entrar e quando sair. Não a imprensa legítima, a imprensa marrom. Eles adoram Lecter, até mais do que ao Príncipe Andrew.

— Uma dessas revistas sujas não ofereceu a ele 50 mil dólares por algumas receitas? Tenho uma lembrança disso — disse Starling.

Crawford anuiu com a cabeça.

Estou quase certo de que a National Tattler subornou alguém dentro do hospital, e eles poderão saber que você está indo para lá assim que eu marcar o encontro.

— Ora, bem — Crawford inclinou-se para frente até encará-la a uma distância de dois palmos. Ela observou que seus óculos de meias-lentes disfarçavam as bolsas que pendiam debaixo dos olhos. Sentiu que Crawford fizera recentemente gargarejos com Listerine. Agora eu desejo toda sua atenção, Starling. Você está me escutando?

— Sim, senhor. — disse Starling.

— Tenha muito cuidado com Hannibal Lecter. O Dr. Chilton, — chefe do hospital de doentes mentais, irá recapitular com você todo o procedimento físico que deve adotar. Não se desvie dele. Não se desvie um s6 milímetro, seja qual for a razão. Quando Lecter falar com você, lembre-se de que estará tentando descobrir algo sobre você. É a espécie de curiosidade que faz uma serpente fixar os olhos num ninho de pássaro. Ambos sabemos que numa entrevista é preciso ouvir um pouco e falar um pouco, mas não lhe diga nada de específico a seu respeito. Não lhe convém que qualquer dos seus assuntos pessoais entre na cabeça dele. Você sabe o que ele fez com Will Graham.

— Li quando aconteceu.

— Ele atacou com uma faca feita de linóleo quando Will se aproximou demais. Foi um milagre Will não ter morrido. Lembra-se do Dragão Vermelho? Lecter atiçou Francis Dolarhyde contra Will e sua família. O rosto de Will ficou como se houvesse sido pintado pela porra do Picasso, graças a Lecter. Ele trucidou uma enfermeira no asilo. Faça seu trabalho, mas não se esqueça do que ele é.

— E o que é ele? Você sabe?

— Sei que é um monstro. Mais que isso, ninguém pode dizer com certeza. Talvez você descubra, Starling; eu não a escolhi por acaso. Você me fez algumas perguntas interessantes quando estive na UVA. O diretor apreciará seu relatório — se for claro, conciso e organizado. Eu é que decido isso. E o terei nas mãos às 9:00 de domingo. O.K., Starling, quero um desempenho de acordo com o figurino.

Crawford sorriu para ela, mas seus olhos estavam mortos.

 

Dr. Frederick Chilton, 58 anos, administrador do Hospital Estadual de Baltimore para Criminosos Alienados Mentais, tem uma comprida e larga mesa sobre a qual jamais se vêem objetos duros ou pontudos. Alguns dos membros da equipe chamam-na de “fosso”. Outros não sabem o que fosso significa. O Dr. Chilton permaneceu sentado atrás da mesa quando Clarice Starling entrou no seu escritório.

— Já recebemos muitos detetives, mas não me recordo de nenhum tão atraente — disse Chilton, sem se levantar.

Starling sabia instintivamente que o brilho na sua mão estendida era devido à lanolina que ele usava para fixar o cabelo. Soltou a mão do diretor antes que ele o fizesse.

— É a Srta. Sterling, estou certo?

— É Starling, doutor, com a. Obrigada por haver-me recebido.

— Então o FBI está selecionando mulheres, como todo mundo faz, hem? Ha, ha! — Empregou o sorriso de fumante que lhe servia para separar as frases.

— O Bureau está melhorando, Dr. Chilton. Sem dúvida.

— Vai ficar em Baltimore alguns dias? Saiba que pode se divertir tanto aqui como em Nova York ou em Washington, desde que conheça a cidade.

Ela desviou o olhar para esquivar-se ao sorriso dele e percebeu imediatamente que o diretor sentira sua aversão.

— Estou,certa de que é uma grande cidade, mas tenho instruções para ver o Dr. Lecter e apresentar-me de volta esta tarde.

— Há algum número em Washington para onde eu possa lhe telefonar mais tarde, para saber como correram as coisas?

— Naturalmente. É muita bondade sua pensar nisso. O agente especial Jack Crawford é o encarregado deste projeto e o senhor poderá entrar em contato comigo através dele.

— Entendo — disse Chilton. Seu rosto, repleto de manchas rosadas, contrastava com o improvável marrom-avermelhado de sua cabeleira. — Mostre-me sua identidade, por favor. — Deixou-a ficar de pé durante um vagaroso exame no cartão de identidade. Então o devolveu e levantou-se. — Bem, o caso não irá levar muito tempo. Venha comigo.

— Eu supunha que o senhor teria instruções para mim, Dr. Chilton -— disse Starling.

— Posso fazer isso enquanto caminhamos. — Deu a volta em torno de sua mesa e consultou seu relógio: — Tenho um compromisso para o almoço dentro de meia hora.

Maldição! Deveria tê-lo compreendido melhor, mais rapidamente. Talvez ele não fosse um completo cretino. Talvez soubesse algo que lhe seria útil. Nada perderia se tivesse correspondido com um sorriso amável ao avanço dele, embora não fosse boa nisso.

— Dr. Chilton, tenho um encontro marcado com o senhor, agora. Foi marcado de acordo com sua conveniência, quando pudesse dedicar-me algum tempo. Algo pode surgir durante a entrevista... talvez eu precise discutir algumas das respostas dele com o senhor.

— Na verdade, na verdade, eu duvido. Ah! e tenho que dar um telefonema antes de irmos. Encontro-a na sala de espera.

— Gostaria de deixar meu casaco e meu guarda-chuva aqui.

— Lá fora — determinou Chilton. — Entregue-os a Alan na sala de espera. Ele os guardará.

Alan usava a roupa semelhante a um pijama que era fornecida aos internos. Encontrou-o limpando os cinzeiros com a fralda da camisa.

Passou a língua dentro da boca enquanto pegava o casaco de Starling.

— Obrigada — disse ela.

— Não tem de quê. Quantas vezes por dia você caga?

— O que foi que você disse?

— Seu cagalhão é muito comprido?

— Bem, eu mesma vou pendurar minhas coisas.

— Se você não tiver nada que a impeça, pode abaixar-se e observar quando ele sai e ver como muda de cor quando o ar o atinge. Você faz isso? Não fica parecendo que você tem um longo rabo marrom? — Alan não largava o casaco dela.

— O Dr. Chilton precisa de você no escritório agora mesmo.

— Não, não preciso — disse o Dr. Chilton. — Ponha o casaco no armário, Alan, e não o tire enquanto não voltarmos. Faça-o. Eu tinha uma secretária em tempo integral, mas os cortes de despesa a levaram. Agora a pequena que introduziu você bate à máquina três horas por dia, e neste intervalo eu tenho Alan. Onde andam as garotas de escritório, Srta. Starling? — Seus óculos dispararam raios em direção a ela. — Você está armada?

— Não. Não estou armada.

— Posso ver sua bolsa e sua pasta?

— O senhor viu minhas credenciais...

       — E elas dizem que você é uma estudante. Deixe-me ver sua coisas, por favor.

Clarice Starling encolheu-se quando a primeira das pesadas portas metálicas se fechou com um estrondo. Chilton caminhava um pouco à frente ao longo do convencional corredor verde numa atmosfera de lisol e distantes batidas de portas. Starling estava zangada consigo mesma por haver deixado Chilton pôr as mãos na sua bolsa e pasta e, com raiva, pisava forte de forma a poder recuperar-se. Em instantes estava tudo bem. Sentia um controle sólido sob seu pés, como um bom chão de areia numa forte correnteza.

       — Lecter nos dá um tremendo trabalho — disse Chilton sem olhar para trás. — Um guarda leva pelo menos 10 minutos todo dia para remover os grampos das publicações que ele recebe. Tentamos eliminá-las ou reduzir o número de assinaturas, mas ele fez uma reclamação e a corte desautorizou-nos. O volume da sua correspondência pessoal costumava ser enorme. Graças a Deus diminuiu quando ele foi superado por outras criaturas nos noticiários. Durante um bom tempo parecia que todo estudantezinho fazendo tese para doutorado em psicologia desejava incluir nela qualquer coisa, vinda de Lecter. Os jornais de medicina ainda o publicam, mas apenas pelo lado monstruoso das suas opiniões.

       — Ele publicou um bom artigo, creio eu, sobre o vício da cirurgia, no Jornal de Psiquiatria Clínica — disse Starling.

       — Você julgou-o bom, hein? Nós tentamos estudar Lecter. Pensamos: “Aí está a oportunidade de realizar um estudo que fará história” — é tão raro conseguir um exemplar vivo.

       — Um o quê?

       — Um sociopata puro, o que obviamente ele é. Mas o homem é impenetrável, sofisticado em excesso para os testes convencionais. E, por Deus! — ele nos odeia. Pensa que eu sou a Nêmesis dele. Crawford foi muito esperto — não é? — usando-a no caso Lecter.

       — O que quer dizer com isso, Dr. Chilton?

— Uma mulher jovem para “animá-lo”, creio que é assim que se diz. Presumo que Lecter não vê uma mulher há anos — quando muito, pode ter vislumbrado uma das mulheres da limpeza. Em geral não aceitamos mulheres aqui. Elas são um problema nas prisões Ora, vá se foder, Chilton!

— Eu me formei na Universidade de Virginia com louvores, doutor. Não é uma escola de coquetes.

— Então lembre-se das regras: não enfie as mãos pelas barras, nem toque nelas. Não entregue nada a ele exceto papel macio. Nada de caneta ou lápis. Ele tem sua própria caneta com ponta de feltro. Os papéis que você passar a ele devem estar isentos de grampos, clipes ou alfinetes. Qualquer coisa só pode chegar às mãos dele pelo transportador deslizante de comida. E a devolução será feita pelo mesmo transportador. Sem exceções! Não aceite nada que ele tente lhe empurrar através das barras. Está me compreendendo?

— Compreendo.

Haviam transposto mais dois portões e deixado à luz natural para trás. Agora estavam além das alas da prisão onde os prisioneiros podiam encontrar-se, num local onde só havia celas solitárias, sem janelas. As luzes do corredor eram cobertas por grossas grades, como as das salas de máquinas nos navios. O Dr. Chilton parou embaixo de uma. Ao se deterem, Starling ainda pôde ouvir por trás da parede fragmentos de gritos distantes.

— Lecter nunca sai da sua cela sem uma aparelhagem completa para restrição de movimentos e uma mordaça — explicou Chilton. — Vou dizer-lhe por quê. Ele foi um modelo de cooperação durante o primeiro ano de internamento. A segurança em torno dele foi ligeiramente relaxada — isto aconteceu durante a administração anterior, compreenda. Na tarde do dia 8 de julho de 1976, ele queixou-se de dores no peito e foi levado para o ambulatório. A restrição foi suspensa para tornar mais fácil um eletrocardiograma. Quando a enfermeira se inclinou sobre ele, aqui está o que Lecter fez com ela. — Chilton passou a Clarice Starling uma fotografia com os cantos desgastados. — Os médicos conseguiram salvar um de seus olhos. Lecter estava todo o tempo ligado aos monitores, mas assim mesmo quebrou a mandíbula dela para arrancar-lhe a língua. A pulsação dele nunca passou de 85, mesmo quando ele a engoliu.

Starling não sabia o que era pior, a fotografia ou a atenção de Chilton enquanto examinava seu rosto com olhos curiosos. Ela pensou numa galinha sedenta procurando lágrimas no seu rosto.

— Eu o mantenho guardado aqui — disse Chilton, e apertou um botão ao lado de pesadas portas duplas de vidro de segurança. Um guarda grandalhão deixou-os entrar.

Starling tomou uma dura decisão e parou assim que passaram pelas portas.

— Dr. Chilton, nós realmente precisamos dos resultados desses testes. Se o Dr. Lecter sente que o senhor é inimigo dele, e tem uma fixação nisso, exatamente como o senhor disse, talvez tenhamos mais sorte se eu me aproximar sozinha. O que o senhor acha?

O rosto de Chilton teve um tremor.

— Concordo perfeitamente com isso. Você poderia tê-lo sugerido no escritório. Eu mandaria um guarda acompanhá-la e não perderia meu tempo.

— Eu lhe proporia isso se o senhor me houvesse instruído quando ainda estávamos lá.

— Não espero vê-la de novo, Senhorita Starling. — E para o guarda: — Barney, quando ela terminar com Lecter, chame alguém para acompanhá-la na saída.

Chilton afastou-se sem olhar para ela.

Agora havia apenas o grande e impassível guarda, o relógio silencioso por trás dele, seu gabinete gradeado com um porrete e uma camisa-de-força pendurados administrador, uma mordaça e a pistola de gás tranqüilizante na mesa. Num suporte havia um aparelho feito um cano em U para imobilizar os violentos de encontro à parede.

O guarda olhava para ela.

— O Dr. Chilton lhe avisou para não tocar nas barras? — A voz dele era ao mesmo tempo forte e rouca. Fazia-a lembrar-se de Aldo Ray.

— Sim, ele me avisou.

— O.K. Bem, é a última cela, à direita. Ande no centro do corredor e não ligue para nada. Você pode levar a correspondência dele, será um bom começo. — O guarda parecia particularmente divertido. — Mas ponha-a na bandeja e deixe rolar. Se a bandeja estiver no lado de dentro, você pode puxá-la, com a corda, ou Lecter pode mandá-la de volta. Ele não pode alcançar você no lugar onde a bandeja pára no lado de fora. — O guarda entregou-lhe duas revistas com as folhas soltas, três jornais e várias cartas abertas.

O corredor tinha uns 30 metros de comprimento, com celas em ambos os lados. Algumas eram acolchoadas, com uma janela longa e estreita como uma frecheira, no centro da porta. Outras eram celas padronizadas de prisão, com uma grade de barras abrindo-se para o corredor. Clarice Starling pressentia vultos no interior dos cubículos, mas tentava não olhar para eles. Tinha percorrido mais que a metade do caminho quando ouviu uma voz sibilante:

— Posso sentir o cheiro da sua boceta.

Ela não deu sinal que tinha ouvido e continuou andando.

As luzes estavam acesas na última cela. Clarice moveu-se para o lado esquerdo do corredor, tentando enxergar o que havia lá dentro, sabendo que os saltos dos sapatos já a haviam anunciado.

 

A cela do Dr. Lecter ficava bem separada das outras, de frente para um armário embutido, e era especial também sob outros aspectos. A parte da frente era composta por barras, mas por trás das barras, a uma distância maior que o alcance de um braço humano, havia uma segunda barreira, uma forte rede de náilon estendendo-se do chão ao teto e de parede a parede. Por trás da rede, Starling pôde ver uma mesa aparafusada ao chão, em cima dela uma grande pilha de livros em brochura e jornais, e ao lado uma cadeira de espaldar reto, também aparafusada ao chão.

O Dr. Hannibal Lecter estava reclinado na sua cama, folheando uma edição italiana da Vogue. Segurava as páginas soltas com a mão direita e punha-as ao lado, uma a uma, com a esquerda. Na mão esquerda o Dr. Lecter tinha seis dedos.

Clarice Starling parou a uma pequena distância, deixando entre ela e as grades o espaço de um pequeno corredor.

— Dr. Lecter. — Sua voz pareceu adequada aos ouvidos dela.

O psiquiatra levantou os olhos da leitura.

Por um rápido momento teve a impressão de que o olhar dele produzia um zumbido, mas o que ela ouvia era a pulsação do seu próprio sangue.

— Meu nome é Clarice Starling. Posso falar com o senhor? A cortesia estava implícita na distância que ela mantinha e no seu tom de voz.

O Dr. Lecter pareceu pensar, um dedo encostado nos lábios em bico. Depois se levantou devagar e veio para frente da sua jaula tranqüilo, detendo-se antes da rede de náilon sem ligar para ela, como se escolhesse uma distância adequada.

Clarice pôde observar que ele era de estatura baixa e franzina; em suas mãos e braços, a musculatura se destacava como nas dela mesma.

— Bom dia — disse ele, como se tivesse atendido à porta. Sua voz revelava cultura, mas tinha um ligeiro timbre metálico, possivelmente pelo pouco uso.

Os olhos do Dr. Lecter eram castanhos e refletiam a luz em diminutos pontos vermelhos. Às vezes esses pontos luminosos pareciam voar como centelhas para o centro dos olhos. Seu olhar percorreu Starling de cima a baixo.

Ela avançou uma distância bem medida em direção à grade. Os cabelos no seu antebraço se eriçaram e aderiram às mangas da blusa.

— Doutor, temos um sério problema no traçado de um perfil psicológico. Venho pedir-lhe auxilio.

— “Temos” quer dizer a Ciência do Comportamento em Quântico. Você é parte da gente de Jack Crawford, certo?

— Certo.

— Posso ver suas credenciais?

Ela ficou surpresa. Não esperara por aquilo.

— Mostrei-as... no escritório.

— Quer dizer que as mostrou a Frederick Chilton, Ph.D?

— Sim.

— Você viu as credenciais dele?

— Não.

— As acadêmicas não se dedicam a uma leitura muito extensa, asseguro-lhe. Você foi apresentada a Alan? Ele não é encantador? Com qual dos dois você preferiria conversar?

— Para ser sincera, eu diria que com Alan.

— Você pode ser uma repórter que o Chilton deixou entrar por dinheiro. Penso ter o direito de ver suas credenciais.

— Muito bem. — Ela levantou na mão seu cartão de identidade.

— Não posso ler a essa distância; mande-o para cá, por favor.

— Não posso.

— Por que, não sabe se pode fazê-lo?

— Sim.

— Consulte Barney.

O guarda aproximou-se e avaliou a situação.

— Dr. Lecter, vou deixar esse cartão passar. Mas se o senhor não o devolver quando eu pedir, se tivermos que incomodar todo mundo e agarrá-lo para reaver o cartão, vou ficar aborrecido. E se o senhor me aborrecer, ficará numa camisa-de-força até eu me sentir melhor a seu respeito. Suspendo a comida através do tubo, as roupas de baixo mudadas duas vezes por dia — tudo a que o senhor tem direito. E vou reter sua correspondência por uma semana.

— Certamente, Barrey.

O cartão foi para dentro na bandeja e o Dr. Lecter o expôs à luz.

— Uma estagiária? Aqui diz “em treinamento”. Jack Crawford mandou uma estagiária entrevistar-me? — Bateu o cartão de encontro aos pequenos dentes brancos e depois o cheirou.

— Dr. Lecter... — começou Barney.

— Sem dúvida. — Pôs o cartão de volta na bandeja e Barney puxou-o para fora.

— Ainda estou treinando na Academia, é verdade — disse Starling — , mas não estamos discutindo o FBI, estamos falando de psicologia. O senhor pode decidir por si mesmo se eu sou qualificada sobre o assunto de que estamos falando?

— Humrnmm... — rosnou o Dr. Lecter. — Em verdade... isso parece meio astucioso da sua parte. Barney, você acha que a policial Starling pode usar uma cadeira?

— O Dr. Chilton não me falou em cadeira.

— O que lhe diz sua educação, Barney?

— A senhora quer uma cadeira? — perguntou Barney. — Podemos arranjar uma, mas ele nunca. Bem, em geral ninguém necessita permanecer tanto tempo.

— Quero, obrigada.

Barney tirou uma cadeira dobrável do armário embutido fronteiriço à cela, abriu-a e retirou-se.

— Agora — disse Lecter, sentando-se de lado para ficar de frente para ela — , o que foi que Miggs disse a você?

— Quem? — O múltiplo Miggs, na cela ali adiante. Ele sibilou qualquer coisa quando você passou. O que foi que ele lhe disse?

— Disse: “Posso sentir o cheiro da sua boceta”.

— Entendo. Pois eu não posso. Você usa creme para pele Evyaru e às vezes L’Air du Temps, mas não hoje. Hoje você está propositalmente sem perfume. Como você se sentiu com o que Miggs disse?

— Ele me hostilizou por razões que eu não conheço. Como uma perua! Presumi que seja hostil com as pessoas e as pessoas sejam hostis com ele. Um círculo vicioso.

— Você hostil em relação a ele?

— Lamento tê-lo perturbado. Mas ele foi descortês. Como senhor soube sobre meu perfume?

— Um cheirinho da sua bolsa quando você a abriu para tirar o cartão. Tem uma bonita bolsa.

— Obrigada.

— Você trouxe sua melhor bolsa, não foi?

— Acertou. — Era verdade. Ela economizara para comprar uma elegante bolsa de passeio e era a melhor coisa que possuía.

— Tem muito mais classe que seus sapatos.

— Talvez também cheguem um dia a ter mais classe...

— Não duvido.

— Foi o senhor quem fez os desenhos nas paredes, doutor?

— O que acha? Que chamei um decorador?

— Aquele acima da pia é uma cidade da Europa?

— Florença. Ali estão o Palazzo Vecchio e o Duomo, vistos do Belvedere.

— O senhor o fez de memória, com tantos detalhes?

— Memória, policial Starling, é o que tenho em vez de uma vista.

— O outro é uma crucificação? A cruz do meio está vazia.

— É o Gólgota após a descida da cruz. Creiom e pincel mágico sobre papel de açougue. Ali está o que o bom ladrão realmente ganhou quando levaram o cordeiro pascoal.

— O que foi que ele ganhou?

— Duas pernas quebradas, naturalmente, da mesma forma que as do seu companheiro que zombou de Cristo. Você não conhece nada do evangelho de São João? Pois então olhe para Duccio ele pinta crucificações perfeitas. Como vai Will Graham? Qual é o aspecto dele?

— Eu não conheço Will Graham.

— Você sabe quem é. É um protegido de Jack Crawford. Aquele que a antecedeu. Como é o rosto dele?

— Nunca o vi.

— Isto é o que se chama “relembrar velhas manhas”, policial Starling. Você não se incomoda, não é?

Alguns segundos de silêncio e ela mergulhou no assunto.

— Longe de me incomodar, poderíamos evocar algumas velhas manhas suas... Eu trouxe...

— Não. Não, isso é estúpido e errado. Nunca use artimanhas em seqüência. Ouça: entender um dito espirituoso e replicar de imediato faz com que seu interlocutor realize um exame imparcial e rápido da situação que é inimigo da boa vontade. E é numa base de boa vontade que poderemos prosseguir. Você estava indo bem, tinha sido cortês e sensível à cortesia, mostrou-se confiante ao contar-me a embaraçosa verdade sobre Miggs, e agora me vem com uma seqüência grosseira em favor do seu questionário. Assim não dá.

— Dr. Lecter, o senhor, um experiente psiquiatra, acredita que sou tão estúpida para iludir-me acerca de como conquistar sua boa vontade? Dê-me um crédito. Eu lhe peço para responder ao questionário, e o senhor o fará se quiser. Pode fazer-lhe algum mal olhar para ele?

— Policial Starling, você tem lido alguns dos artigos publicados recentemente pela Ciência do Comportamento?

— Sim.

— Pois eu também tenho. O FBI recusa-se estupidamente a enviar-me o Boletim da Polícia, mas eu o obtenho de negociantes de livros usados, assim como recebo o News de John Jay e os jornais de psiquiatria. Eles estão dividindo aqueles que praticam assassinatos em série em dois grupos: o dos organizados e o dos desorganizados. O que você acha disso?

— ...fundamental. Eles evidentemente...

— Simplista é a palavra que você está procurando. De fato, a maior parte da psicologia é pueril, policial Starling, e aquela praticada na Ciência do Comportamento nivela-se com a frenologia. A psicologia, para início de conversa, não recebe material humano muito bom. Vá ao departamento de psicologia de qualquer universidade e observe os estudantes e o corpo docente: são radioamadores entusiasmados e personalidades de mentalidade precária. Dificilmente podem ser consideradas as melhores cabeças no campus. Organizados e desorganizados: realmente, um pensamento de nível muito baixo.

— E como o senhor mudaria a classificação?

— Eu não a mudaria.

— Por falar em publicações, li seus artigos sobre vícios cirúrgicos e expressões da face direita e da face esquerda.

— Sim, foram trabalhos de primeira — assentiu o Dr. Lecter.

— Assim os julguei, da mesma forma que Jack Crawford. Foi ele quem os recomendou para mim. Essa é uma das razões pelas quais Crawford está ansioso que o senhor...

— Crawford, o Estóico, está ansioso? Ele deve andar muito ocupado para agora recrutar auxílio no corpo de estudantes.

— Ele está, e deseja...

— Está ocupado com Buffalo Bill.

— Assim parece.

— Não! Nada de “assim parece”, policial Starling. Você sabe perfeitamente que é Buffalo Bill. Eu pensei que Jack Crawford tivesse mandado você questionar-me acerca disso.

— Não.

— Então você não está fazendo rodeios para chegar a esse ponto?

— Não. Eu vim porque necessitamos da sua...

— O que sabe você sobre Buffalo Bill?

— Ninguém sabe muito a respeito.

— Os jornais têm publicado tudo?

— Penso que sim. Dr. Lecter, eu não vi nenhum material confidencial sobre o assunto; meu serviço é...

— De quantas mulheres Buffalo Bill se serviu?

— A polícia encontrou cinco.

— Todas com a pele arrancada?

— Parcialmente, sim.

       — Os jornais nunca explicaram o nome dele. Por acaso sabe por que o chamam de Buffalo Bill?

       — Sei.

       — Diga-me.

       — Eu digo se o senhor olhar o questionário.

       — Prometo olhar. Agora responda: por quê?

       — Começou como uma piada infeliz na seção de Homicídios de Kansas City.

       — Sim...

       — Chamam-no Buffalo Bill Ias nas quais monta...

       Starling descobriu que havia trocado sentir-se assustada por sentir-se vulgar. Entre uma coisa e outra, preferiria estar assustada.

— Mande esses papéis para cá.

       Starling passou o questionário azul para o outro lado pela bandeja. Ficou sentada, quieta, enquanto Lecter o folheava.

       O psiquiatra remeteu-o de volta no transportador.

       — Ora, policial Starling, você pensa que poderá dissecar-me com essa pequena ferramenta cega?

       — Não, eu penso que o senhor pode fornecer uma visão profunda do problema e adiantar seu estudo.

— E que possível razão teria eu para fazer isso.

— Curiosidade.

— Curiosidade em relação a quê?

       — Em relação ao motivo pelo qual o senhor está aqui. Em relação ao que lhe aconteceu.

— Nada aconteceu comigo, policial Starling. Eu aconteci. Você não pode reduzir-me a um jogo de influências. Vocês trocaram o bem e o mal pelo behaviorismo, policial Starling. Puseram todo mundo vestindo fraldas morais — nada mais é culpa de ninguém. Olhe para mim, policial Starling. Você pode afirmar que eu sou... mal? Por que ele arranca a pele daquelas mulheres? Eu sou o mal, policial Starling?

       — Penso que o senhor foi destrutivo. Para mim é a mesma coisa.

— O mal é, portanto, destrutivo? Então as tempestades são o mal, se tudo é tão simples. E temos o fogo, e temos o granizo. As companhias de seguro listam-nos todos como “Atos da Providência”.

— A deliberação...

       — Eu coleciono desabamentos de igrejas, por distração. Você viu o último, na Sicília? Maravilhoso! A fachada caiu sobre sessenta e cinco avós numa missa especial. Isso foi um mal? Se foi, quem o cometeu? Se Ele esta lá em cima, Ele adora isso, policial Starling. Febre tifóide e cisnes, ambos têm a mesma origem.

— Eu não posso explicar-lhe, doutor, mas conheço alguém que pode.

       Lecter fê-la calar levantando a mão. A mão tinha um belo formato e o dedo médio repetia-se de um modo perfeito. Era a forma mais rara de polidactilia.

       Quando ele voltou a falar, seu tom era suave e agradável.

       — Você gostaria de me analisar, policial Starling. Você é muito ambiciosa, não é? Sabe o que você me parece, com sua bela bolsa e seus sapatos baratos? Parece uma caipira. Uma caipira melhorada, limpa, com um pouco de bom gosto. Seus olhos são como pedras baratas do mês — tudo é brilho superficial quando você consegue uma pequena resposta. E por trás delas você é brilhante, não é? Desespera-se para não ser como sua mãe. Uma boa nutrição deu-lhe ossos mais longos, mas você não está fora das minas há mais de uma geração, policial Starling. Você é dos Starlings de West Virgínia ou de Oklahoma? Houve uma decisão de cara-ou-coroa entre a universidade e o Corpo Feminino do Exército, não houve? Vou lhe dizer algo específico sobre você mesma, estudante Starling. No seu quarto você tem um colar de ouro de contas soltas, e sente um choquezinho desagradável quando vê como agora se tornaram sem graça, não é verdade? Tantos cansativos agradecimentos vida afora, tantas mesuras e hesitações, banalizando cada uma daquelas contas. Cansativo. Cansativo. Te-e-edioso. Ser inteligente estraga uma porção de coisas, não é verdade? E ter bom gosto não é bom. Quando você pensar sobre esta conversa, vai se lembrar do estúpido animal ferido no rosto quando você se livrou dele. — E no mais suave dos tons, o Dr. Lecter acrescentou: — Se o colar de contas se tornou sem graça, o que mais perderá a graça no curso da sua vida? Você cisma com isso, não é, durante a noite?

Starling levantou a cabeça para encará-lo.

       — O senhor enxerga longe, Dr. Lecter. Não nego nada do que acabou de dizer. Mas eis uma pergunta que está me respondendo agora mesmo, quer queira quer não: O senhor tem energia suficiente para voltar essa sua percepção de alta potência em direção a si mesmo? É difícil encarar isso, descobri nos poucos últimos minutos. O que é que o senhor acha? Questione-se e revele a verdade. Que assunto mais adequado ou mais complexo poderia encontrar? Ou será que tem medo de si mesmo?

— Você é uma pessoa dura, não é, policial Starling?

— Razoavelmente, sim.

— E odiaria pensar que é uma criatura comum. Isso não iria feri-la? Por Deus! Bem, você está longe de ser comum, policial Starling. Mas tem medo de sê-lo. De que tamanho são as contas do seu colar, sete milímetros?

— Sete.

       — Deixe-me fazer uma sugestão. Arranje algumas contas olho-de-tigre avulsas e enfie-as alternadamente com as contas de ouro. Você poderá querer colocar duas para três ou uma para duas, conforme lhe parecer melhor. As contas olho-de-tigre vão refletir a cor dos seus olhos e os reflexos de seu cabelo. Alguém já lhe mandou um presente de namorado?

— Claro.

       — Estamos em junho. O Dia dos Namorados está a apenas uma semana. Bem, você está esperando algum presente?

— Nunca se sabe.

— Não. Nunca se sabe... Eu tenho pensado sobre o Dia dos Namorados. Ele me lembra algo engraçado. Agora que estou pensando nisso, ocorre-me que eu poderia torná-la muito feliz no Dia dos Namorados, Clarice Starling.

— Como, Dr. Lecter?

— Mandando-lhe um maravilhoso presente. Terei que pensar nisso. Agora, por favor, dê-me licença. Adeus, policial Starling.

— E o estudo?

— Um recenseador tentou avaliar-me certa ocasião. Comi o fígado dele com favas e um grande vinho. Volte à escola, pequena Starling!

Hannibal Lecter, educado até o último momento, não lhe voltou as costas. Foi recuando da barreira para trás até chegar ao seu leito e, deitando-se, ficou tão alheio a ela como um cruzado de pedra esticado em sua tumba.

Starling sentiu-se subitamente vazia, como se tivesse acabado de doar sangue. Levou mais tempo que o necessário para colocar os papéis de volta em sua pasta porque de imediato não confiava em suas pernas. Sentia-se saturada com o fracasso, que detestava. Dobrou a cadeira e colocou-a de encontro à porta do armário embutido. Teria que passar por Miggs de novo. À distância Barney parecia estar lendo. Pensou em chamá-lo para vir buscá-la. Maldito Miggs! Contudo, não era pior do que passar por operários de construções ou serventes grosseiros, todos os dias, na cidade. Começou a retirar-se pelo corredor.

Bem perto dela, a voz de Miggs soou como um silvo.

— Mordi meu pulso para morrer... vê como está sangrando?

       Ela devia ter chamado Barney, porém, assustada, olhou para a cela; viu Miggs fazer um movimento rápido com os dedos e sentiu algo quente atingi-la no rosto e no ombro antes que pudesse esquivar-se.

Afastou-se dali, verificou que era esperma e não sangue, e só então percebeu que o Dr. Lecter a chamava. A voz do Dr. Lecter atrás dela, o tom áspero mais acentuado.

— Policial Starling!

Estava de pé, chamando-a, enquanto ela se afastava. Meteu a mão em sua bolsa, procurando um lenço de papel.

Ouviu-o chamar de novo:

— Policial Starling!

Retornando aos frios trilhos do seu controle, andava com firmeza em direção à saída.

— Policial Starling! — Havia uma nova inflexão na voz de Lecter.

Ela parou. Por que, em nome de Deus, eu desejo tanto isso? Ao voltar, Miggs disse algo que ela não ouviu.

Deteve-se mais uma vez diante da cela de Lecter e viu o raro espetáculo do doutor agitado. Agora sabia que ele era capaz de sentir o cheiro daquilo no corpo dela. Ele farejava o cheiro de qualquer coisa.

— Eu jamais desejaria que isso acontecesse com você. Considero a descortesia uma coisa intoleravelmente feia.

Era como se cometer assassinatos o houvesse remido de rudezas menores. Ou talvez, pensou Starling, excitava-o vê-la maculada daquela forma invulgar. Sentia-se atarantada. As faíscas nos olhos do Dr. Lecter brilhavam naquela penumbra como vaga-lumes numa caverna.

— O que quer que seja, aproveite! Ela ergueu sua pasta.

— Por favor, faça isso por mim!

— Talvez fosse tarde demais; ele recuperara a calma.

— Não. Mas vou deixá-la feliz por ter vindo. Vou dar-lhe outra coisa. Vou dar-lhe o que você mais aprecia, Clarice Starling.

— E o que é, Dr. Lecter?

— Um adiantamento, é claro. Ajusta-se muito bem e fico contente! O Dia dos Namorados fez-me pensar nisso. — O sorriso sobre seus pequenos dentes brancos poderia ter surgido por qualquer motivo. Sua voz era tão suave que ela mal podia escutar. — Procure no carro de Raspail por seu presente. Entendeu? Procure no carro de Raspail por seus presentes. É melhor partir agora; não creio que Miggs consiga de novo em tão pouco tempo, mesmo louco como ele é, você não acha?

 

Clarice Starling estava excitada, esgotada, apelando para sua força de vontade. Algumas das coisas que Lecter dissera a respeito dela eram verdadeiras, outras apenas se aproximavam da verdade. Por alguns segundos sentira uma consciência estranha solta em sua cabeça, desarrumando as coisas em suas prateleiras como um urso numa barraca de acampamento.

Odiara o que ele havia dito sobre sua mãe, e tinha que livrar-se dessa raiva. Tudo agora era uma questão de negócio.

Ficou sentada no velho carro, no outro lado da rua do hospital e respirou profundamente. Quando as janelas ficaram embaciadas, sentiu um pouco de privacidade em relação à calçada.

Raspail. Ela se lembrava do nome. Raspail fora um dos pacientes de Lecter e uma de suas vitimas. Ficara apenas uma noite com o material sobre Lecter; o registro era enorme, e Raspail uma das muitas vítimas. Agora precisava ler os detalhes.

Queria fazê-lo com toda a pressa, mas sabia que a urgência era inventada por ela mesma. O caso Raspail fora encerrado há anos. Ninguém estava em perigo, portanto dispunha de tempo. Era melhor ficar bem informada e bem resolvida antes de prosseguir.

Crawford poderia afastá-la do caso, dando-o a outra pessoa. Era um risco a correr.

Tentou chamá-lo de um telefone público, mas foi informada de que ele estava encaminhando uma apelação, em nome do Ministério da Justiça, ao Comitê de Orçamentos da Câmara dos Representantes.

Poderia obter detalhes do caso na Divisão de Homicídios do Departamento de Polícia de Baltimore, mas assassinato não era um crime federal, e ela sabia que lhe retirariam o caso imediatamente, sem nada perguntar.

Dirigiu-se novamente para Quântico, retornando à sede da Ciência do Comportamento, com suas cortinas caseiras de quadrados marrons e seus arquivos cinzentos cheios de coisas infernais. Sentou-se ali até o anoitecer, até sair a última secretária, acionando a manivela do microfilme de Lecter. O caprichoso e antigo projetor brilhava como um fogo-fátuo na sala escurecida, as palavras e os negativos das fotografias desfilando a frente do seu rosto cheio de atenção.

Raspail, Benjamin René, branco, sexo masculino, 46 anos, primeiro-flautista da Orquestra Filarmônica de Baltimore, era um dos pacientes da clinica psiquiátrica do Dr. Hannibal Lecter.

No dia 22 de março de 1975 ele deixou de se apresentar para um concerto em Baltimore. No dia 25 de março seu corpo foi descoberto. Estava sentado num banco, numa pequena igreja rural perto de Falls Church, Virgínia, vestindo apenas uma casaca e uma gravata branca. A autópsia revelou que o coração de Raspail fora perfurado e que ao corpo faltavam o timo e o pâncreas.

Clarice Starling, que desde os primeiros anos de sua vida sabia muito mais do que desejaria sobre o processamento da carne, reconhecia os órgãos faltantes como o que nos açougues se denomina moteja.

A Divisão de Homicídios acreditava que esses órgãos apareceram no menu de um jantar que Lecter ofereceu ao presidente e ao maestro da Filarmônica de Baltimore na noite seguinte ao desaparecimento de Raspail.

O Dr. Hannibal Lecter declarou nada saber acerca desse assunto. O presidente e o maestro da Filarmônica de Baltimore não se puderam lembrar de todo o cardápio do jantar do Dr. Lecter, embora este fosse conhecido pela excelência de sua mesa, tendo contribuído com numerosos artigos para revistas especializadas em alimentação.

O presidente da Filarmônica foi mais tarde tratado de anorexia e problemas relacionados com dependência ao álcool num sanatório para pessoas nervosas na Basiléia.

Raspail fora a nona vítima conhecida de Lecter, segundo a polícia de Baltimore.

Raspail morrera sem deixar testamento, e as demandas legais por causa da herança foram seguidas pela imprensa durante vários meses até que o interesse do público esfriou.

Os parentes de Raspail juntaram-se às famílias de outras vítimas da clientela de Lecter numa ação legal bem-sucedida, para que os arquivos e as fitas gravadas do psiquiatra criminoso fossem destruídos. Não era possível saber sobre que embaraçosos segredos ele poderia tagarelar — assim raciocinavam — , e aqueles arquivos constituíam uma documentação indiscreta.

A corte havia designado o advogado de Raspail, Everett Yow, executor testamentário da sua herança.

Starling teria que apelar a esse advogado para chegar ao carro. Talvez o advogado quisesse proteger a memória de Raspail e, se recebesse uma notificação, poderia destruir provas para proteger seu antigo cliente.

Starling preferia agir sem aviso prévio e precisava de conselhos e de autorização. Como se encontrava sozinha na Ciência do Comportamento, podia andar à vontade. Encontrou o número do telefone da casa de Crawford no Rolodex.

Não chegou a ouvir o telefone tocar, e subitamente a voz dele surgiu, muito tranqüila e uniforme.

— Jack Crawford.

— Aqui é Clarice Starling. Espero não ter interrompido seu jantar... — Não houve resposta, e ela continuou, apesar do silêncio no outro lado. — ... Lecter hoje me disse algo sobre o caso Raspail. Fiquei no escritório, pesquisando. Ele informou que existe algo interessante no carro de Raspail. Para chegar até o carro tenho que me comunicar com o advogado, e uma vez que amanhã é sábado, e não tenho aulas, eu queria perguntar-lhe se...

— Starling, você tem alguma lembrança do que eu lhe disse para fazer com as informações sobre Lecter? — A voz de Crawford era terrivelmente calma.

— Dar-lhe um relatório no domingo às 9:00.

— Faça isso, Starling. Faça exatamente isso.

— Sim, senhor.

O ruído do telefone ao ser desligado soou como um estouro em seu ouvido. Uma onda de calor espalhou-se no seu rosto e fez seus olhos queimarem.

— Porra, que merda! — esbravejou. — Seu velho aleijado! Filho de uma puta... Deixe Miggs esporrar em você, e quero ver como se sente depois.

Bem lavada e escovada, usando a camisola de dormir da Academia do FBI, Starling estava trabalhando na segunda minuta do relatório quando chegou sua companheira de dormitório, Ardelia Mapp. Vinha da biblioteca. O rosto largo, bronzeado e muito saudável de Mapp foi uma das visões mais bem-vindas para ela naquele dia.

Ardelia Mapp percebeu o cansaço no rosto da amiga.

— O que fez hoje o dia todo, garota? — Mapp sempre formulava perguntas como se as respostas pouco lhe interessassem.

— Consegui, com agradinhos, que um louco me esporrasse toda.

— Eu gostaria de ter tempo para uma vida social como a sua... Não sei como você consegue isso e ao mesmo tempo freqüentar a escola.

Starling descobriu que estava rindo. Ardelia Mapp ria junto com ela, tanto quanto a piadinha merecia. Starling não parou e ouvia-se rindo a uma grande distância, rindo e rindo... Através das lágrimas em seus olhos, Mapp parecia estranhamente velha e seu sorriso tinha um ar de tristeza.

 

Jack Crawford, 53 anos, lê numa cadeira de braços, sob a luz de um abajur baixo, no seu quarto de dormir. A frente dele estão duas camas duplas, ambas apoiadas sobre calços para atingirem a altura de camas de hospital. Uma é a dele mesmo; na outra está Bella, sua mulher. Crawford pode ouvi-la respirando pela boca. Faz dois dias que ela pela última vez conseguiu mexer-se ou falar com ele.

Sua respiração sofre uma parada. Crawford levanta os olhos da leitura e observa-a por cima de seus óculos de meias-lentes. Descansa o livro. Bella respira de novo, primeiro uma aspiração curta, depois uma expiração completa. Levanta-se e vai palpá-la, testa sua pressão e seu pulso. Durante aqueles meses ele se tornara um perito com o aparelho de medir pressão.

Uma vez que não a deixava sozinha durante a noite, mandou instalar um leito ao lado do dela. E como estende a mão no escuro para avaliar como ela está, seu leito também fica alto, sobre calços.

Exceto pelos leitos elevados e pelas poucas tubulações para o conforto de Bella, Crawford conseguira fazer com que aquele não parecesse um quarto de doente. Vêem-se flores, mas não em demasia. Não há frascos de remédios à vista. Crawford esvaziou um armário de roupas de cama no corredor e encheu-o com remédios e aparelhos antes de a trazerem do hospital para casa. Era a segunda vez que ele a carregava no colo através do limiar da porta e aquele pensamento quase o derrubou.

Uma frente de calor chegara do sul. As janelas estão abertas e o ar da Virgínia é suave e fresco. Rãzinhas piscam uma para as outras no escuro.

O quarto está impecavelmente limpo, mas o tapete começa a mostrar pêlos avulsos; Crawford não passa o barulhento aspirador no quarto, usa um limpador de tapetes manual que não é tão eficiente. Anda com passos silenciosos até o armário no corredor e acende a luz. Duas pranchetas estão penduradas no lado interior da porta. Numa delas, anota a pressão e o pulso da doente. Os números dele e os da enfermeira do dia alternam-se numa coluna que se estende em muitas páginas amarelas, por muitos dias e noites. Na outra prancheta a enfermeira registra a medicação dada a Bella.

Crawford está habilitado a ministrar qualquer medicação de que a mulher necessite durante a noite. Seguindo as instruções da enfermeira, ele treinara dando injeções num limão e depois nas próprias pernas antes de trazer a mulher para casa.

Crawford fica parado diante dela por uns três minutos, observando seu rosto. Um bonito lenço de moiré de seda cobre-lhe os cabelos como um turbante. Ela insistiu naquela faceirice, enquanto podia insistir. Agora é ele quem insiste em lhe cobrir a cabeça. Crawford umedece os lábios dela com glicerina e remove um argueiro do canto de seu olho com o grosso polegar. Ela não se mexe. E ainda não é hora de virá-la na cama.

Olhando-se no espelho, assegura que não está doente, que não vai segui-la para baixo da terra, que está bem. Surpreende-se com esse pensamento, que o envergonha.

De volta à sua cadeira, não pode lembrar-se do que estava lendo. Passa a mão pelos livros a seu lado até descobrir um que ainda está morno.

 

Na segunda-feira de manhã, Clarice Starling achou a mensagem de Crawford na caixa do correio:

 

CS:

Prossiga com o carro de Raspail. Nas suas horas de folga. Meu escritório lhe fornecerá um número de cartão de crédito para chamadas interurbanas. Entre em contato comigo antes de se comunicar com o espólio ou ir a qualquer lugar. Apresente-se quarta-feira às 16:00.

O Diretor recebeu seu relatório sobre Lecter. Você saiu-se muito bem.

JC SAIC/Seção 8

 

Starling sentiu-se muito contente. Ela sabia que Crawford estava lhe fornecendo apenas um camundongo exausto para praticar dando-lhe uns trambolhões. Mas ele queria ensiná-la, e queria que ela se saísse bem. Para Starling, isso era melhor, de qualquer forma, que cortesias.

Havia oito anos que Raspail morrera. Que provas poderiam restar num carro após todo esse tempo?

Ela sabia, por experiência familiar, que, uma vez que os automóveis se depreciam tão rapidamente, uma corte de apelação permitiria que o carro fosse vendido antes da decisão sobre a herança, sendo o dinheiro incorporado ao espólio. Parecia-lhe improvável que mesmo um inventário tão confuso e disputado como o de Raspail fosse manter um carro por todo esse período.

Havia também o problema da sua disponibilidade de tempo. Contando a hora de almoço, Starling tinha 75 minutos livres por dia para usar o telefone durante as horas de expediente. Tinha que reportar-se a Crawford na quarta-feira à tarde. Assim, dispunha de um total de 3 horas e 45 minutos para seguir a pista do carro, dividido durante três dias, se usasse seus períodos de estudo e os compensasse estudando à noite.

Alcançara boas notas em suas aulas de Procedimentos de Investigação e tivera a oportunidade de apresentar perguntas de caráter geral a seus instrutores.

Durante a hora do almoço de segunda-feira, o pessoal do Tribunal de Justiça do condado de Baltimore mandara Starling esperar ao telefone e se esquecera dela por três vezes. No seu período de estudo, conseguiu falar com um amável funcionário do tribunal, que procurou no arquivo os autos do julgamento sobre o espólio de Raspail.

O funcionário confirmou que houvera permissão para vender um carro e deu a Starling a marca e o número de série, bem como o nome do proprietário seguinte, anotado à transferência do titulo.

Na terça-feira ela perdeu a metade da sua hora de almoço tentando descobrir o dono daquele nome. Custou-lhe o resto de seu período de almoço descobrir que o Departamento de Veículos Automotores de Maryland não estava preparado para localizar um veiculo pelo número de série; só podia fazê-lo pelo número de registro ou da placa em uso.

Na terça-feira à tarde uma pesada chuva obrigou os estagiários a abandonarem o estande de tiro. Numa sala de conferências cheia de vapor de roupas molhadas e suor, John Brigham, ex-fuzileiro e instrutor de armas de fogo, decidiu testar a firmeza das mãos de Starling diante da classe, apurando quantas vezes ela podia acionar o gatilho de um Smith & Wesson em 60 segundos.

Conseguiu 78 com a mão esquerda, soprou uma mecha de cabelo que lhe caíra sobre os olhos e começou de novo com a mão direita enquanto um outro estudante contava. Ela estava na posição weaver, com as pernas bem escoradas, o visor da frente da arma bem em foco, o de trás e o alvo improvisado propositadamente fora de foco. No meio do seu minuto ela deixou a mente divagar para aliviar a tensão provocada pela rigidez da postura. O alvo na parede entrou em foco. Era um certificado de reconhecimento da Divisão de Observância da Lei Interestadual dirigido a seu instrutor, John Brigham.

Ela questionou Brigham com o canto da boca enquanto o outro estudante contava os estalidos da arma.

— Como é que você descobre o número de registro de um carro...

— ...65... 66... 67... 68... 69...

— ...dispondo apenas do número da série...

— ...78... 79... 80... 81...

— E da marca? Você não tem o número da chapa.

— ...89... 90. Tempo esgotado.

— O.K., minha gente — disse o instrutor. — Gostaria que vocês tomassem nota disso. A força da mão é um importante fator para a firmeza do tiro de combate. Alguns dos senhores cavalheiros estão preocupados que eu os chame logo a seguir... Essa preocupação é justificada: Starling está muito acima da média com as duas mãos. Isto acontece porque ela é dedicada. Ela pratica apertando coisas elásticas às quais todo mundo tem acesso. A maior parte de vocês não está acostumada a apertar qualquer coisa mais dura do que... — sempre vigilante contra sua terminologia de quartel dos fuzileiros, esforçou-se para encontrar um símile mais polido — ... as espinhas em seus rostos — disse, afinal. — Falando sério, Starling, você também ainda não está bastante boa. Quero ver essa mão esquerda acima de 90 antes da sua formatura. Formem pares e façam as contagens uns para os outros — chop! chop!

Voltou-se para Clarice:

— Menos você, Starling; venha cá. O que mais você tem sobre o carro?

— Apenas o número de série de fabricação e a marca, só isso. E um antigo proprietário, há cinco anos.

— Pois bem, escute aqui. Onde a maior parte das pessoas se fo... se atrapalham é quando tentam pular através dos registros de um proprietário para o seguinte. Você se confunde entre os estados. Quero dizer: até os policiais às vezes fazem isso. E registro e número de placa é tudo o que o computador tem. Estamos todos acostumados a usar os números da placa ou o número do registro, não o número de série do veiculo.

O barulho dos gatilhos dos revólveres com cabo azul de exercício invadia toda a sala e ele tinha que falar próximo ao ouvido dela.

— Há uma maneira, bem fácil. R. L. Polk & Cia., que publica guias de cidades, publica também uma lista do registro corrente de carros por marca e por números de série de fabricação consecutivos. É o único lugar onde você encontra isso. Os negociantes de carros usados orientam seus anúncios por essa lista. Por que você decidiu perguntar a mim?

— Você trabalhou na divisão de carros roubados e imaginei que tinha seguido a pista de muitos veículos. Obrigada.

— Tem que me pagar: treine essa sua esquerda até onde ela pode ir e vamos envergonhar alguns desses caras de mãozinhas delicadas.

De volta à cabine telefônica durante o período de estudo, as mãos dela tremiam, de modo que suas notas eram quase ilegíveis. O carro de Raspail era um Ford. Havia um representante Ford próximo à Universidade de Virgínia que durante anos fizera pacientemente o que podia com seu Ford Pinto. Agora, com a mesma paciência, o vendedor correu os olhos pela lista Polk para ela. Voltou ao telefone com o nome e o endereço da pessoa que pela última vez registrara o carro de Benjamin Raspail.

Clarice está na pista, Clarice está no controle. Deixe de ser tola e telefone para o homem. Vejamos: Número 9 Ditch, Arkansas. Jack Crawford nunca me deixará ir até lá, mas pelo menos poderei confirmar a quem fizer a viagem.

Sem resposta, e de novo sem resposta. A campainha soava estranha e muito afastada, um ruído como se fosse uma linha partilhada por dois assinantes. Tentou à noite e continuou sem resposta.

No período de almoço de quarta-feira, um homem respondeu ao chamado de Starling.

— WPOQ Toca Músicas Antigas.

— Alô, estou telefonando para...

— Não estou interessado em revestimentos laterais de alumínio e não quero viver em nenhum acampamento de reboque na Flórida. O que mais você tem para me oferecer?

Starling percebia muito bem o sotaque das montanhas de Arkansas na voz do homem. Ela podia imitar aquele sotaque quando desejava e não tinha tempo a perder.

— Sim, senhor, se o senhor puder ajudar-me eu lhe agradeço muito. Estou tentando descobrir o Sr. Lomax Bardwell. Meu nome é Clarice Starling.

— É uma pessoa chamada qualquer coisa Starling... — gritou ele para dentro de casa. — O que a senhora deseja com Bardwell?

— Aqui é o escritório regional do Centro-Sul da Divisão de Reparações da Ford. Ele tem direito a um serviço de garantia gratuito em seu LTD.

— Eu sou Bardwell. Pensava que você estivesse tentando me vender qualquer coisa com aquela sua chamada interurbana. Agora é muito tarde para quaisquer reparações, preciso de uma reposição total. Eu e a patroa estávamos em Little Rock, saindo do South land Mall, está ouvindo?

— Sim, senhor.

— E aquela maldita haste do pistão furou o fundo do cárter e o óleo espalhou-se por toda parte e aquele caminhão Orkin que tem uma enorme carroceria, conhece? Derrapou em cima do óleo e atravessou na pista.

— Que barbaridade!...

— Bateu na cabine da Fotomat, arrancou-a da fundação e quebrou-lhe os vidros. O camarada da Fotomat saiu de dentro da cabine meio tonto. Tivemos que impedi-lo de ir para o meio da estrada.

— Que coisa, hein? E o que aconteceu com ele depois?

— O que aconteceu com quem?

— Com o carro.

— Eu disse a Buddy Sipper no ferro-velho que ele podia fica: com o carro por 50 paus se viesse buscá-lo. E acho que ele o desmontou.

— O senhor poderia me dizer qual é o número do telefone dele, Sr. Bardwell?

— O que quer você com o Sipper? Se alguém tivesse que receber alguma compensação, ia ser eu.

— Compreendo, senhor. Eu apenas faço o que eles me mandam até às cinco horas, e eles me disseram para encontrar o carro. O senhor tem o número do telefone, por favor?

— Não sei onde está meu caderno de telefones. Desapareceu há uma porção de tempo. Você sabe como são os netos... A Central deve ser capaz de informá-la: o nome é Sipper Salvage.

— Muito obrigada, Sr. Bardwell.

O ferro-velho confirmou que tinha desmontado o carro para aproveitar peças, e a carcaça fora enviada a uma prensa para reciclagem como sucata. O encarregado deu a Starling o número de série do veiculo que constava de seu arquivo.

“Que grande bosta! — pensou Starling em voz alta, ainda com um pouco do sotaque de Arkansas. Era o fim da picada. Que belo presente!

Starling reclinou a cabeça de encontro à fria caixa do aparelho telefônico dentro da cabine. Ardelia Mapp, segurando os livros contra o quadril, deu uma batida na porta e passou-lhe uma garrafa de Crush.

— Muito obrigada, Ardelia. Tenho que fazer mais uma chama da. Se eu a terminar a tempo, me encontro com você na cafeteria. O.K.

— Eu estava tão esperançosa de que você perdesse esse horroroso sotaque — disse Mapp. — Existem livros que podem ajudá-la. Eu não uso mais o colorido patuá da vizinhança de onde nasci. Continue falando com esse sotaque de matuto do interior e as pessoas vão dizer que você é igual àqueles patetas, pequena... — Mapp fechou a porta da cabine.

Starling sentia que precisava tentar extrair mais informações de Lecter. Se ela já houvesse marcado um encontro, talvez Crawford a deixasse voltar ao manicômio. Discou o número do Dr. Chilton, mas não conseguiu passar da secretária dele.

— O Dr. Chilton está com o médico-legista e com o assistente ao promotor público — disse a mulher. — Ele já conversou com seu supervisor e nada tem para dizer a você. Até logo.

 

— Seu amigo Miggs morreu — disse Crawford. — Você me contou tudo, Starling? — O rosto cansado de Crawford era tão sensível a sinais quanto uma esfinge e totalmente isento de compaixão.

— Como? — perguntou ela, e teve que ouvi-lo.

— Conseguiu engolir sua língua um pouco antes do amanhecer. Lecter foi quem sugeriu isso a ele, presume Chilton. O guarda da noite ouviu-o falando em voz baixa com Miggs. Lecter sabia muita coisa sobre Miggs. Falou com ele durante algum tempo, mas o guarda noturno não conseguiu ouvir o que Lecter disse. Miggs chorou durante algum tempo, depois parou. Você me contou tudo, Starling?

— Entre o relatório e meu memorando expus tudo, quase palavra por palavra.

— Chilton telefonou para queixar-se de você... — Crawford esperou um pouco e pareceu satisfeito quando ela nada comentou. — Eu disse que julguei seu comportamento satisfatório. Chilton está tentando impedir uma investigação sobre direitos civis.

— Vai haver uma?

— Certamente, se a família de Miggs desejar. A Divisão de Direitos Civis vai provavelmente completar oito mil neste ano. Ficarão satisfeitos de incluir Miggs na lista. — Crawford estudou-a com atenção. — Você está bem?

— Não sei como devo me sentir acerca disso.

— Você não tem que se sentir de nenhuma maneira particular sobre isso. Lecter fê-lo para se divertir. Ele sabe que realmente não podem imputá-lo, então... por que não? Chilton priva-o de seus livros e de seu assento no vaso sanitário por algum tempo, e é tudo. Ele talvez não ganhe mais o pudim de gelatina... — Crawford entrelaçou os dedos por cima do estômago e ficou comparando os polegares. — Lecter perguntou-lhe a meu respeito, não foi?

— Perguntou se você estava ocupado. Eu disse que sim.

— Só isso? Você não deixou fora do relatório nada pessoal, que pudesse me desagradar?

— Não. Ele disse que você era um estóico, mas isso eu incluí.

— Sim, você o fez. Mais nada?

— Bem, creio que não deixei nada de fora. Você não está pensando que eu prometi a ele alguma fofoca, e que só por isso ele falou comigo?

— Não.

— Não sei nada de pessoal a seu respeito, e se soubesse, não iria comentar. Se você tem alguma dificuldade em acreditar nisso, vamos pôr tudo em pratos limpos agora mesmo.

— Estou satisfeito. Passemos a outro assunto.

— Você pensou em algo, ou...

— Passe para outro assunto, Starling.

— A dica de Lecter sobre o carro de Raspail é um beco sem saída. O carro foi prensado num cubo há quatro meses no ferro velho. Número 9 Ditch, em Arkansas, e vendido para reciclagem. Talvez, se eu voltar ao manicômio e falar com Lecter, ele me diga mais alguma coisa.

— Você esgotou a pista?

— Sim.

— O que a leva a pensar que o carro que Raspail dirigia era seu único carro?

— Era o único registrado, ele era solteiro, eu saquei a hipótese...

— Ah, ah! Pare por aí. — O dedo de Crawford apontou para algum princípio invisível no ar entre eles. — Você sacou a hipótese... Você sacou a hipótese, Starling. Olhe aqui. — Crawford escreveu hipótese num bloco de anotações legais. Vários dos instrutores de Starling tinham absorvido esse hábito de Crawford e usavam-no, mas Starling não revelou que o havia visto antes.

Crawford começou a sublinhar.

— Se você saca a hipótese quando eu a mando numa missão, Starling, pode fazer tanto você como eu parecermos umas bestas. — Ele recostou-se na cadeira, satisfeito. — Raspail colecionava carros, sabia disso?

— Não, os herdeiros dele ainda os têm?

— Não sei. Você acha que poderia dar um jeito de descobrir isso?

— Sim, posso.

— Você começaria por onde?

— Pelo executor testamentário.

— Um advogado em Baltimore, um chinês, se bem recordo indicou Crawford.

— Everett Yow — disse Starling. — Ele está na lista telefônica de Baltimore.

— Você já pensou na questão de um mandado para inspecionar o carro de Raspail?

Às vezes o tom de Crawford lembrava a Starling a lagarta que sabia tudo no livro de Lewis Carroll. Starling não ousou retrucar com muita ênfase.

— Uma vez que Raspail está morto e não é suspeito de nada, se tivermos permissão do seu executor para examinar o carro, o exame será válido e seus frutos admissíveis em outros assuntos legais — disse ela, como recitando.

— Precisamente — disse Crawford. — Eis o que farei: telefono ao nosso escritório de Baltimore avisando que você vai para lá. Sábado, Starling, no seu tempo de folga. Vá avaliar os frutos, se houver alguns.

Crawford fez um esforço para não acompanhá-la com o olhar quando ela saiu. Da sua cesta de papéis usados tirou com as pontas dos dedos um pequeno maço de papéis de notas cor de malva. Alisou um deles sobre a mesa. Era sobre sua esposa e dizia, numa caligrafia caprichosa:

 

Lamento muito acerca de Bella, Jack.

Hannibal Lecter

 

Everett Yow dirigia um Buick preto com um adesivo da Universidade De Paul no vidro da janela traseira. O peso dele dava ao Buick uma ligeira inclinação para a esquerda quando Clarice Starling o seguia na chuva para fora de Baltimore. Escurecia; o dia de Starling como investigadora estava quase terminado e ela não tinha outro para substituí-lo. Lutava com sua impaciência, batendo no volante na mesma cadência dos limpadores de pára-brisas. O tráfego se arrastava ao longo da Estrada 301.

Yow era inteligente, gordo, e tinha um problema respiratório. Starling avaliou sua idade em uns 60 anos. Até agora ele fora compreensivo. O dia perdido não era culpa dele; voltando muito tarde de uma viagem de negócios a Chicago, o advogado de Baltimore viera diretamente do aeroporto para seu escritório a fim de encontrar Starling.

O Packard clássico de Raspail já estava num depósito muito tempo antes da sua morte, explicou Yow. Nunca tivera licença e nunca fora dirigido. Yow vira-o uma vez, coberto e bem guardado, a fim de confirmar sua existência para o inventário dos bens que fizera logo após o assassinato de seu cliente. Se a investigadora Starling concordasse em “revelar imediata e francamente” qualquer descoberta que pudesse ser prejudicial ao interesse de seu falecido cliente, ele lhe mostraria o automóvel, prometeu. O mandado e o trabalho que isso implicava seriam dispensáveis.

Starling estava desfrutando do uso por um dia de um Plymouth da garagem do FBI, equipado com telefone, e tinha um novo cartão de identidade que lhe fora dado por Crawford. Dizia simples mente INVESTIGADOR FEDERAL e expirava dentro de uma semana ela observou.

O destino deles era a Split City Mini-Storage, que ficava cerca de seis quilômetros fora dos limites da cidade. Dirigindo vagarosamente, por causa do tráfego, Starling usou o telefone para descobrir o que pudesse sobre o depósito Split City. Quando avistou o alto cartaz cor de laranja, SPLIT CITY MINI-STORAGE — VOCÊ FICA COM A CHAVE, já conhecia alguns fatos.

Split City tinha uma licença como transportadora de cargas de Comissão Interestadual do Comércio, em nome de Bernard Gary Um grand jury federal quase havia processado Gary por transporte interestadual de mercadorias roubadas há uns três anos e sua licença estava sendo investigada para renovação.

Yow fez a volta por baixo do cartaz e mostrou suas chaves um jovem sardento uniformizado que estava no portão. O porteiro tomou nota das placas de seus carros, abriu o portão e sinalizou lhes para entrarem, com certa impaciência, como se tivesse coisas mais importantes a fazer.

Split City era um lugar descampado, varrido pelo vento. Como o chamado “vôo do divórcio” dos domingos do La Guardia para Juárez, é uma indústria de serviço para o insensato movimento browniano da nossa população: a maior parte do seu negócio consistia em armazenar os variados bens móveis que sobram de divórcios. Suas unidades estão abarrotadas de jogos de salas de estar, conjuntos de copa, colchões manchados, brinquedos e fotografias de coisas que não deram certo. É crença muito espalhada entre os policiais do xerife do condado de Baltimore que Split City também esconde boa e valiosas mercadorias das cortes de falência.

Parece uma instalação militar: 12 hectares de compridos edifícios divididos por paredes corta-fogo em unidades do tamanho do uma espaçosa garagem para um só carro, cada uma delas com sua porta de enrolar. Os aluguéis são razoáveis e algumas das mercadorias estão ali há anos. A segurança é boa. O lugar é envolvido por uma dupla cerca alta, à prova de tufões, e cães patrulham entre a cercas 24 horas por aia.

Um palmo de folhas murchas, misturadas com copos de papel e lixo miúdo, havia-se acumulado de encontro à parte de baixo da porta da unidade do depósito de Raspail, de número 31. Um grande cadeado trancava cada um dos lados da porta. O ferrolho do lado esquerdo exibia também um selo. Everett Yow curvou-se cor dificuldade sobre o selo. Starling segurava o guarda-chuva e uma lanterna elétrica devido ao início das sombras do cair da noite.

— Não parece ter sido aberto desde que estive aqui há cinco anos — afirmou ele. — Pode ver a impressão do meu selo de tabelião aqui no plástico. Não fazia a menor idéia, na ocasião, de que os parentes iam brigar tanto, arrastando a solução do inventário por tão longos anos.

Yow segurou o guarda-chuva e a lanterna enquanto Starling tirava uma foto do ferrolho e do selo.

— O Sr. Raspail tinha um estúdio-escritório na cidade; eu o fechei para evitar que o espólio tivesse que pagar aluguel — disse ele. — Trouxe os móveis para cá e os depositei junto com o carro de Raspail e outras coisas que já se encontravam aqui. Trouxemos ainda um piano, livros, partituras, e uma cama, creio eu.

Yow experimentou uma chave.

— Os cadeados podem estar enferrujados. Este, pelo menos, está muito duro. — Era difícil, para ele, encurvar-se e respirar ao mesmo tempo. Quando tentou ficar de cócoras, seus joelhos estalaram.

Starling ficou satisfeita de ver que os cadeados eram de padrão americano, grandes e cromados. Pareciam muito seguros, mas ela sabia que podia estourar os cilindros de latão facilmente usando uma chave de fenda e um martelo com unha — seu pai lhe havia mostrado como os arrombadores faziam isso quando ela ainda era criança. O problema imediato seria encontrar o martelo e a chave de fenda; ela não tinha nem o benefício da variedade de ferramentas velhas que guardava no seu carro.

Procurou na bolsa e encontrou o spray lubrificante que usava nas fechaduras das portas do Ford.

— Quer descansar um pouco no seu carro, Sr. Yow? Por que não se aquece uns poucos minutos enquanto faço uma tentativa? Leve o guarda-chuva; o que temos agora é só uma garoa.

Starling encostou o Plymouth do FBI perto da porta a fim de aproveitar a luz de seus faróis. Tirou a vareta de sonda do óleo e deixou cair umas gotas no orifício da chave; depois usou o spray lubrificante para afinar o óleo. Do seu carro, o Sr. Yow sorriu e aprovou com a cabeça. Starling estava satisfeita porque Yow era um homem inteligente; ela podia cumprir sua tarefa sem incomodá-lo.

Acabara de escurecer. Starling sentia-se exposta sob o brilho dos faróis do Plymouth, e a correia do ventilador chiava no seu ouvido com o motor em marcha lenta. Ela trancara o carro com o motor funcionando. O Sr. Yow parecia inofensivo, mas não via razão para arriscar-se a ser esmagada de encontro à porta.

O cadeado pulou como uma rã na sua mão e ali ficou aberto, pesado e cheio de óleo. O outro, depois de oleado, foi mais fácil. A porta não queria subir. Starling fez força, segurando a alça até que começou a ver pontinhos luminosos diante dos olhos. Yow veio auxiliar mas, entre a pequena e adequada alça e a abertura da porta pouca força acrescentou.

— Podemos voltar na semana que vem, com meu filho ou com um ajudante — sugeriu o Sr. Yow. — Eu gostaria muito de ir par casa cedo.

Starling não estava de forma alguma segura de que voltaria àquele lugar; seria muito mais simples para Crawford pegar o telefone e pedir que o escritório de Baltimore cuidasse do caso.

— Sr. Yow, serei rápida. O senhor tem um macaco no se carro?

O macaco escorado debaixo da alça, Starling usou o próprio peso sobre a chave de roda que servia como alavanca para o macaco. A porta rangeu horrivelmente e subiu uns dois centímetros. Parecia estar se dobrando no centro. Subiu outros dois centímetros depois mais dois, até que ela pôde enfiar o pneu sobressalente por baixo, a fim de segurá-la, enquanto transferia o macaco dela e o do Sr. Yow para os lados da porta, colocando-os por baixo da parte inferior, perto dos trilhos onde a porta corria.

Acionando os macacos alternadamente, de um lado e de outro, levantou a porta, pouco a pouco, até um meio metro; ali ela emperrou definitivamente e todo o seu peso sobre as alavancas dos macacos não adiantava mais.

O Sr. Yow veio espiar por baixo da porta. Ele só podia curvar se por pouco tempo de cada vez.

— Sinto um cheiro de rato — disse. — Me garantiram que haviam posto veneno contra ratos aí dentro. Acredito que isso está previsto no contrato. Ratos são quase desconhecidos por aqui, eles me afirmaram. Mas posso até ouvi-los, você não pode?

— Posso — afirmou Starling. Com sua lanterna elétrica ela pôde ver caixas de papelão e um grande pneu com larga faixa branca debaixo de uma coberta de pano. O pneu estava arriado.

Ela recuou o Plymouth até que parte da luz dos faróis iluminou embaixo da porta, e retirou do carro um dos tapetes de borracha.

— Você vai entrar ali, policial Starling?

— Tenho que dar uma olhada, Sr. Yow.

— Posso sugerir — aventou ele, sacando do bolso um lenço — que você amarre as pernas de suas calças bem apertadas em volta dos tornozelos para evitar a invasão de camundongos?

— Obrigada, senhor, eis uma idéia muito boa. Se a porta arriar, ah, ah!, ou acontecer qualquer outra coisa, o senhor poderia fazer o favor de chamar este número? É do nosso escritório regional de Baltimore. Eles sabem que estou com o senhor neste momento e ficarão alarmados se não tiverem notícias minhas dentro de algum tempo. Está entendendo?

— Sim, naturalmente. Eu o farei, sem dúvida alguma. — Entregou a ela a chave do Packard.

Starling pôs o tapete de borracha no chão molhado em frente da porta e deitou-se nele, sua mão segurando um pacote de sacos plásticos de provas sobre as lentes da câmara e as pernas das calças fortemente apertadas com o lenço de Yow e o dela mesma. Um borrifo de chuva caiu no seu rosto e o cheiro de ratos e mofo invadiu com força as suas narinas. Absurdamente, o que ocorreu a Starling foi uma frase em latim.

Escrita no quadro-negro pelo seu instrutor de práticas forenses no seu primeiro dia de treinamento, era o lema dos médicos romanos: Primum non nocere. Em primeiro lugar não causar danos.

Ele não disse isso numa porra de uma garagem cheia de camundongos.

E subitamente, ouviu a voz do pai, falando a ela com a mão pousada no ombro de seu irmão:

— Se você não pode brincar sem chorar, vá para casa, Clarice.

Starling abotoou a gola da sua blusa, levantou os ombros em torno do pescoço e deslizou sob a porta.

Agora estava embaixo da traseira do Packard. O carro fora estacionado no lado esquerdo do depósito, quase encostado na parede. Havia caixas de papelão empilhadas à direita, enchendo o vazio ao lado do carro. Starling arrastou-se de costas até que sua cabeça ficou fora daquele exíguo espaço. Iluminou com sua lanterna a parede vertical formada pelas caixas. Muitas aranhas haviam tecido as teias cruzando o estreito vão. Na maioria eram da espécie que fazem teias redondas para caçar insetos, cujos restos secos apareciam solidamente presos.

Bem, uma aranha caranguejeira é a única espécie com que eu me preocuparia, e elas não fazem teias ao ar livre, pensou Starling consigo mesma. O resto não causa lá muito dano.

Havia espaço para ficar de pé junto ao pára-choque traseiro. Ela continuou se arrastando até sair debaixo do carro, o rosto muito perto do pneu com larga faixa branca. Estava todo pintalgado de bolor e ela pôde ler nele as palavras GOODYEAR DOUBLE EAGLE. Tomando cuidado com a cabeça, pôs-se de pé no reduzido espaço, a mão na frente do rosto para afastar as teias de aranha. Não era assim que a gente se sentia quando usava um véu?

Do lado de fora ouviu a voz do Sr. Yow:

— Tudo bem, Srta. Starling?

— Tudo bem — confirmou. Ao som da sua voz houve ligeiras corridinhas e algo dentro do piano correu sobre algumas notas altas. As luzes do carro do lado de fora lhe iluminavam as pernas até o meio da canela.

— Vejo que encontrou o piano, policial Starling — comentou o Sr. Yow.

— Bem, mas não fui eu...

— Oh!

O carro era grande, alto e comprido. Uma limusine Packarc 1938, de acordo com o inventário de Yow. Estava coberto com um tapete, seu lado peludo para baixo. Starling jogou o feixe de luz da lanterna sobre ele.

— O senhor cobriu o carro com esse tapete, Sr. Yow?

— Assim o encontrei, e nunca o descobri — disse Yow por baixo da porta. — Não posso lidar com um tapete poeirento. Era assim que Raspail o mantinha. Apenas me certifiquei de que o carro estava aí. Os homens que fizeram a mudança colocaram o piano de encontro à parede, empilharam mais caixas ao lado do carro, e foram embora. Eu os estava pagando por hora. A maioria das caixas contém livros e partituras.

O tapete era grosso e pesado, e quando ela o puxou, a poeira apareceu no feixe de luz da sua lanterna. Ela espirrou duas vezes, Ficando na ponta dos pés conseguiu dobrar o tapete ao meio no topo do carro antigo e alto. As cortinas das janelas traseiras estavam abaixadas e a maçaneta da porta coberta de poeira. Ela teve que se debruçar sobre as caixas de papelão para alcançá-la. Tocando apenas na ponta da maçaneta, tentou acioná-la. Estava trancada. Não havia orifício para chave na porta traseira. Teria que deslocar uma porção de caixas para chegar à porta dianteira e não havia quase nenhum espaço para mudá-las de lugar. Ela pôde perceber uma pequena fresta entre a cortina e a coluna da porta traseira.

Starling inclinou-se por cima das caixas, encostou um olho no vidro e iluminou o interior com a lanterna. A única coisa que podia ver era seu reflexo, até cobrir a luz com a mão. Um raio luminoso, difundindo-se pelo vidro empoeirado, deslocou-se sobre o banco. Sobre o banco havia um álbum aberto. O colorido era pobre com a fraca iluminação, mas ela pôde ver cartões do Dia dos Namorados colados em suas páginas. Cartões antigos, rendados, em relevo sobre uma página.

— Muito, muito obrigada, Dr. Lecter. — Quando ela falou, sua respiração agitou a camada de poeira na base da janela e escureceu o vidro. Não se animou a limpá-lo e esperou que a poeira assentasse. A luz movimentou-se sobre um xale de cobrir os joelhos amarrotado no chão do carro e a rápida visão de um par de sapatos de verniz usados com traje a rigor. Sobre os sapatos, meias pretas, e, acima das meias, calças de smoking com pernas dentro delas.

Ninguém entrou por esta porta nos últimos cinco anos — calma, calma, não se afobe, moça...

— Hei, Sr. Yow! Por favor, Sr. Yow!

— Diga, policial Starling!

— Sr. Yow, parece que alguém está sentado neste carro.

— Oh, não! Acho melhor que saia já daí, Srta. Starling.

— Ainda não, Sr. Yow. Apenas espere-me aí, faça o favor.

Agora é quando é importante pensar. Agora é mais importante do que toda a merda que você fica conversando com seu travesseiro para o resto de sua vida. Engula e faça isso direito. Eu não desejo destruir provas. Eu preciso de alguma ajuda. Mas principalmente não quero gritar por socorro. Se eu acionar o escritório de Baltimore e os policiais daqui por algo inexistente, estou liquidada. Estou vendo uma coisa parecida com pernas. O Sr. Yow não meteria trazido aqui se soubesse que havia um “presunto” no carro. Conseguiu sorrir para si mesma. “Presunto” era uma bravata. Ninguém esteve aqui depois da última visita de Yow. Muito bem. Isto significa que todas as caixas foram introduzidas depois do que quer que seja aquilo no carro. E significa ainda que posso movimentar as caixas sem perder nada de importante.

— Tudo certo, Sr. Yow.

— Bem. Afinal, temos que chamar a polícia ou você será o bastante, policial Starling?

— Preciso destrinchar isso. Queira esperar um pouco, por favor.

O problema das caixas era enlouquecedor como a brincadeira dos cubos de Rubik. Ela tentou trabalhar com a lanterna embaixo do braço, deixou-a cair duas vezes e finalmente ajeitou-a em cima do carro. Teve que colocar algumas caixas atrás dela, e as caixas menores, de livros, empurrou para baixo do carro. Sentiu uma espécie de mordida ou picada de farpa na ponta do polegar.

Agora podia ver o assento do chofer, pelo vidro empoeirado da janela fronteira no lado do passageiro. Uma aranha tecera sua rede entre o volante e a alavanca das marchas. A divisão entre o compartimento da frente e o de trás estava fechada.

Gostaria de ter pensado em passar óleo na chave do Packard antes de se infiltrar por baixo da porta, mas quando enfiou a chave na fechadura, esta funcionou.

       O espaço não permitia abrir mais que um terço da porta na apertada passagem. A porta abriu-se de encontro às caixas com barulho que espantou os camundongos e fez soar mais algumas nota no piano. Um cheiro de podridão e produtos químicos vinha do carro; o cheiro levou sua memória para outro local, mas ela não identificou qual era.

Inclinou-se para o lado de dentro, abriu a separação atrás do assento do chofer e iluminou com sua lanterna. Uma camisa de traje a rigor com botões foi a coisa brilhante que a luz encontrou primeiro. Subiu então rapidamente da camisa para o rosto, mas não viu rosto nenhum. Passou de novo a luz sobre os brilhantes botões da camisa e as lapelas de cetim até uma braguilha com zíper aberto Voltou para cima até a perfeita gravata-borboleta e o colarinho, de onde saia o vulto claro do pescoço de um manequim. Acima do pescoço, entretanto, havia alguma coisa que refletia pouca luz, um pano, um capuz preto onde deveria estar à cabeça, grande como se cobrisse uma gaiola de papagaio.

Aveludado, pensou Starling. Estava em cima de uma prateleira que se estendia sobre o pescoço do manequim e se apoiava na parte traseira do carro, atrás dos bancos.

Ela tirou diversas fotos do assento da frente, focando com flash e fechando os olhos ao estouro da lâmpada strobe. A segui esticou-se do lado de fora do carro. De pé no escuro, molhada, coberta de teias de aranha, ficou pensando no que devia fazer.

O que não iria fazer era convocar o agente especial do escritório regional de Baltimore para olhar um manequim com a braguilha aberta e um álbum de presentes.

Tão logo decidiu entrar no banco de trás e tirar o capuz daquela coisa, resolveu que faria isso sem pensar muito no que iria encontrar. Meteu a mão pelo compartimento do chofer, destravou a porta traseira e re-arrumou algumas caixas para poder abri-la. Tudo pareceu-lhe levar muito tempo. O cheiro do compartimento de trás tornou-se mais forte quando ela abriu a porta. Meteu a mão dentro do carro e, levantando cuidadosamente o álbum de presentes segurando-o pelos cantos, colocou-o num saco de provas no topo do carro. Esticou outro saco aberto no assento.

As molas do carro gemeram quando ela entrou e o vulto mexeu se um pouco assim que ela se sentou a seu lado. A mão direita com a luva branca escorregou de cima da coxa e pousou sobre o assento Ela tocou a luva com um dedo. A mão, no lado de dentro, era dura. Com cuidado, puxou a luva para baixo do pulso, que era de algum material sintético branco. Nas calças havia uma protuberância Por um instante, isso lembrou-lhe certos acontecimentos quando cursava o ginásio.

Ruídos de ratos correndo vinham de baixo do banco.

Gentilmente, como se o acariciasse, sua mão tocou no capuz. O pano moveu-se facilmente sobre algo duro e escorregadio por baixo dele. Quando apalpou o grande botão redondo no topo, ela soube o que era. Percebeu um grande boião de espécimes de laboratório e imaginou o que estava dentro dele. Com temor, mas com poucas dúvidas, retirou a cobertura.

A cabeça no interior do boião fora cortada com perícia logo abaixo do maxilar. Estava de frente para ela, os olhos há muito opacos e leitosos pelo álcool que os conservara. A boca estava aberta e a língua pendia ligeiramente para fora, muito cinzenta. Ao longo dos anos o álcool evaporara em parte, até a cabeça descansar no fundo do boião. O alto do crânio projetara-se através da superfície do fluido e começava a apodrecer. Virada num ângulo parecido com o das cabeças de corujas em relação ao corpo, olhava boquiaberta e estúpida para Starling. Mesmo com a projeção da luz sobre seus traços, parecia sem expressão e sem vida.

Naquele momento, Starling fez uma avaliação de si mesma. Estava satisfeita. Sentia-se radiante. Ficou cismando por um instante se esses sentimentos tinham algum valor. Agora, sentada naquele carro, ao lado da cabeça, e de alguns ratinhos, conseguia pensar claramente e por isso se sentia orgulhosa.

— Muito bem, garota — aplaudiu ela — , não estamos mais em Kansas! — Sempre desejara dizer isso no caso de estar estressada; mas agora, fazendo-o, parecia-lhe falso e estava contente que ninguém a tivesse ouvido. Tinha trabalho a fazer.

Encostou-se com cuidado no banco e lançou o olhar em volta.

Aquele ambiente alguém escolhera e criara, a mil anos-luz de distância na imaginação do tráfego que se arrastava ao longo da Estrada 301.

Flores secas pendiam dos vasinhos de cristal lapidado presos às colunas entre as portas. A mesa da limusine estava dobrada e coberta com uma toalha de linho. Sobre ela, um frasco brilhava destacando-se da poeira. Uma aranha construíra sua teia entre o frasco e um pequeno castiçal ao lado.

Tentou imaginar Lecter, ou alguém mais, sentado com seu atual companheiro, tomando um drinque e tentando mostrar-lhe os presentes. E o que mais? Com muito cuidado, mexendo no vulto o mínimo possível, revistou-o à procura de uma identificação. Não havia nenhuma. Num bolso do paletó encontrou as tiras de pano que haviam sobrado do ajuste no comprimento das calças — o traje a rigor era provavelmente novo ao ser colocado no manequim.

Starling apalpou a saliência nas calças. Duro demais, mesmo para uma lembrança de ginásio... Abriu a braguilha e iluminou o interior com a lanterna: era um pênis artificial de madeira trabalhada e polida. E também de bom tamanho... Ficou cismando se seria depravada.

Cuidadosamente fez girar o boião e examinou os lados da cabeça e a nuca à procura de ferimentos. Nenhum que fosse visível. No vidro, em relevo, leu o nome de uma companhia fornecedora de material de laboratório.

Examinando novamente o rosto, admitiu ter aprendido algo que lhe iria ser muito valioso. Olhar atentamente aquele rosto, com a língua mudando de cor ao encostar o vidro, não era tão terrível quanto ver, em seus sonhos, Miggs engolindo a própria língua. Sentia-se capa de olhar qualquer coisa se tivesse algo de positivo a fazer com ela. Starling era jovem...

Nos dez segundos depois que a unidade móvel de notícias da WPIK-TV freou e parou, Jonetta Johnson pôs os brincos, passou pó-de-arroz no belo rosto moreno e avaliou a situação. Ela e sua equipe jornalística, tendo monitorado o rádio da polícia do condado de Baltimore, chegaram a Split City na frente dos carros de patrulha.

       Tudo o que a equipe de notícias viu à luz dos faróis do carro foi Clarice Starling, de pé na frente da garagem, com sua lanterna elétrica e seu pequeno cartão de identidade laminado. Tinha o cabelo escorrido, por causa da garoa que caía.

       Jonetta Johnson podia detectar um calouro toda vez que o via. Ela pulou para baixo do carro levando a equipe da câmara atrás dela e aproximou-se de Starling. As luzes fortes da TV se iluminaram.

O Sr. Yow estava tão afundado no Buick que só seu chapéu era visível sobre a borda da janela.

— Jonetta Johnson, da WPIK Notícias. Você reportou um homicídio?

Starling não tinha a típica aparência de uma autoridade policial, e sabia disso.

— Sou da polícia federal, e este é o cenário de um crime. Tenho de manter tudo intacto até que as autoridades de Baltimore...

O assistente do cameraman já tinha agarrado a base do portão da garagem e estava tentando levantá-la.

— Pare aí! — gritou Starling. — Estou falando com o senhor! Pare aí! Não estou brincando. E peço que colaborem comigo. Sentia muito não dispor de um distintivo, um uniforme, qualquer coisa apropriada.

— O.K., Harry — instruiu a jornalista. — Veja, policial, nós desejamos cooperar no que for possível. Francamente, esta equipe custa dinheiro e só quero saber se devo mantê-la aqui até as outras autoridades chegarem. Afinal, há mesmo um cadáver aí dentro? Nada de câmara, apenas entre nós. Diga-me isso, e esperamos. Nos comportaremos bem, prometo. Que tal?

— Eu esperaria, se fosse você — disse Starling.

      — Obrigada, você não vai se arrepender — prometeu Jonetta Johnson. — Ouça: tenho algumas informações sobre a Mini-Storage de Split City que você possivelmente poderia usar. Quer iluminar a prancheta com sua lanterna? Vamos ver se posso encontrá-las aqui.

— A unidade móvel de WEYE acaba de aparecer no portão, Joney — avisou o homem chamado Harry.

— Vejamos se posso encontrar aqui, policial; ah, aí está. Houve um escândalo há cerca de dois anos quando tentaram provar que neste lugar estavam trazendo de caminhão e armazenando... o que era mesmo? Fogos de artifício? — Jonetta Johnson olhava com insistência por cima do ombro de Starling.

Starling voltou-se e viu o cameraman deitado de costas no chão, a cabeça e os ombros dentro da garagem. Acocorado ao lado dele, o assistente, pronto para passar-lhe a mini-câmara por baixo da porta.

— Hei! — exclamou Starling. Agachou-se de joelhos no chão molhado e puxou-o pela camisa — Você não pode entrar aí! Já lhe disse para não fazer isso!

Durante todo o tempo os homens falavam com ela, repetindo com gentileza:

— Não vamos tocar em coisa alguma. Somos profissionais, você não precisa se preocupar. De qualquer forma, a polícia nos deixará entrar. Não há problema, queridinha!

O tom meloso e insinuante deles perturbou-a.

Correu para um dos macacos no lado da porta e acionou a alavanca. A porta desceu uns cinco centímetros guinchando. Acionou de novo a alavanca. Agora a porta estava encostando-se no peito do homem. Como ele não saía de baixo, puxou a alavanca do encaixe e trouxe-a até o cameraman deitado. Havia agora outros refletores de televisão brilhando, ante a sua luz ela bateu com a alavanca na porta, fazendo cair um chuveiro de poeira e ferrugem em cima do homem.

— Preste atenção ao que vou lhe dizer. — Preveniu ela. — Saia daí agora mesmo. Você está prestes a ser preso por obstrução à justiça.

— Vá com calma — apaziguou o assistente, colocando a mão no ombro dela. Starling virou-se para ele. Ouviam-se exclamações e perguntas por trás das luzes, e em seguida o som de sirenes.

— Tire as mãos de cima de mim e afaste-se, cara! — Pôs o pé sobre o tornozelo do cameraman, mantendo a alavanca suspensa a seu lado. Contudo, não a usou. Foi melhor assim. Mesmo sem violência, tinha uma aparência horrível na tela do vídeo.

 

Os cheiros da galeria dos presos violentos pareciam mais intensos na semi-escuridão. Um aparelho de TV ligado sem som no corredor lançava a sombra de Starling, nas barras da cela do Dr. Lecter.

Ela não podia enxergar no escuro além das barras, mas não pediu ao guarda para ligar, de seu posto, as luzes. Toda a galeria seria iluminada de uma só vez e ela sabia que a polícia de Baltimore exigira as luzes totalmente acesas durante horas a fio enquanto gritavam perguntas a Lecter. Ele se recusara a falar, mas reagi mostrando-lhes uma galinha origami de papel dobrado que dava bicadas quando se manipulava o rabo para cima e para baixo. O policial mais antigo, furioso, amassara o brinquedo japonês no cinzeiro da entrada quando ele fez sinal a Starling para entrar.

— Dr. Lecter? — Ela ouvia sua própria respiração e também outras ao longo do corredor exceto da cela vazia de Miggs, agora enorme na sua vacuidade. Sentia aquele silêncio como uma corrente de ar.

Starling sabia que Lecter a observava da escuridão. Dois minutos se passaram. As pernas e costas lhe doíam após a luta com porta da garagem, e suas roupas estavam úmidas. Sentou-se no chão sobre o casaco, bastante afastada das barras, os pés encolhidos de baixo das nádegas. Levantou o cabelo úmido e embaraçado sobre a gola para livrar o pescoço.

Por trás dela, na tela da TV, um evangelista agitava os braços.

       — Dr. Lecter, ambos sabemos o que ocorre. Eles acham que o senhor falará comigo.Silêncio. No fim do corredor alguém assobiava: Over the Sea to Skye.Depois de uns cinco minutos, ela disse:

— Foi uma coisa estranha entrar ali. Eu gostaria de lhe falar sobre o que vi.

Starling teve um sobressalto quando o transportador de comida rolou vindo da cela de Lecter. Na bandeja havia uma toalha limpa, dobrada. Ela não o havia percebido movimentar-se.

Fitou a bandeja e, com uma sensação de estar cometendo algo errado, agarrou a toalha e com ela secou o cabelo.

— Obrigado — agradeceu.

— Por que você não me questiona sobre Buffalo Bill? — A voz de Lecter soava próxima, no mesmo nível dela. Parecia que também ele estava sentado no chão.

— O senhor sabe algo sobre ele?

— Poderia saber se estudasse o caso.

— Não faço parte daquele caso — disse Starling.

— E também não fará parte deste quando terminarem de usá-la.

— Sei disso.

— Você poderia conseguir o arquivo sobre Buffalo Bill. Os relatórios e as fotografias. Gostaria de ver isso.

— Aposto que gostaria...

— Dr. Lecter, foi o senhor quem começou esta história. Agora, por favor, conte-me acerca da pessoa no Packard.

— Você encontrou uma pessoa inteira? Curioso; vi somente uma cabeça. De onde você supõe que veio o resto?

— Está certo. De quem era aquela cabeça?

— Conte-me, o que você descobriu.

— Bem, eles fizeram apenas exames preliminares. Sexo masculino, branco, uns 27 anos, trabalhos dentários americanos e também europeus. Quem era ele?

— O amante de Raspail. Raspail, o da flauta melosa...

— Em que circunstância... como morreu ele?

— Circunlóquios, policial Starling?

— Não. Perguntarei mais tarde.

— Deixe-me poupar-lhe algum tempo. Não foi obra minha. Raspail gostava de marinheiros. Esse era um escandinavo chamado Klaus Qualquer-coisa. Raspail nunca me informou o sobrenome.

A voz do Dr. Lecter pareceu mover-se para baixo. Talvez se tivesse deitado no chão, pensou Starling.

— Klaus estava embarcado num navio sueco em San Diego. Raspail estava lá ensinando no conservatório durante o verão. Ficou alucinado pelo jovem. O sueco viu vantagem na situação e desertou do navio. Os dois compraram uma espécie de trailer e começaram a vagar nus como sílfides, pelos bosques. Raspail disse que o jovem lhe fora infiel e estrangulou-o.

       — Raspail contou-lhe isso?

— Ora, sim, sob o selo confidencial de sessões de terapia. Penso que era mentira. Raspail sempre embelezava os fatos. Gostava de parecer perigoso e romântico. O sueco provavelmente morreu asfixiado durante uma banal transa erótica. Raspail era demasiado gorducho e fraco para tê-lo estrangulado. Notou quão perto da mandíbula Klaus foi cortado? Provavelmente para remover uma marca alta nos ligamentos, resultado de enforcamento.

— Entendo.

— O sonho de felicidade de Raspail estava arruinado. Ele pôs a cabeça de Klaus num saco de bolas boliche e voltou para o Leste.

       — E o que fez com o resto?

       — Enterrou nas montanhas.

       — Ele mostrou-lhe a cabeça no carro?

— Sim, no curso da terapia achou que podia abrir-se comigo, ele ia lá com Klaus bastante repetidamente, para mostrar-lhe os presentes.

— E então foi o próprio Raspail quem morreu... Por quê?

— Francamente, fiquei enjoado, farto dos seus lamentos. Afinal, foi a melhor coisa para ele. A terapia não levava a parte alguma. Creio que a maioria dos psiquiatras tem um paciente ou dois que gostaria de encaminhar para mim. Nunca discuti isso antes e agora estou ficando cansado de fazê-lo — E quanto ao seu jantar para os dirigentes da orquestra? — Nunca lhe aconteceu receber hóspedes para comer e você não ter tempo de fazer compras? Aí tem que dar um jeito com c que há no congelador, Clarice. Posso chamá-la de Clarice?

— Certo. E acho que vou chamá-lo...

— Dr. Lecter. É o que parece mais próprio para sua idade e posição — atalhou ele.

— Sim.

— Como se sentiu ao entrar na garagem?

— Assustada.

— Por quê?

— Camundongos e insetos.

— Você usa alguma coisa quando quer alertar seus nervos? — perguntou o Dr. Lecter.

— Nada que conheço funciona, exceto desejar aquilo que estou perseguindo.

— Memória ou quadros de coisas passadas lhe ocorrem então. Quer você as provoque ou não?

— Talvez. Nunca pensei sobre isso.

— Coisas da sua vida pregressa.

— Terei que observar para descobrir.

— Como se sentiu quando soube acerca de Miggs, meu faleci do vizinho? Você não me perguntou sobre ele.

— Pretendia fazê-lo.

— Você não ficou contente quando soube?

— Não.

— Ficou triste?

— Não. Foi o senhor quem o levou àquele extremo?

O Dr. Lecter riu-se baixinho.

— Você me pergunta, policial Starling, se instiguei a covardia do suicídio ao Sr. Miggs? Não seja tola. Tem certa conotação agradável, no entanto, o fato de ele engolir aquela sua ofensiva língua, você não concorda?

— Não.

— Policial Starling, isso foi uma mentira. A primeira que você me prega. Uma ocasião triste, diria Truman.

— O presidente Truman?

— Esqueça... Por que acha que a ajudei?

— Não sei.

— Jack Crawford gosta de você, não gosta?

— Ignoro isso.

— O que diz provavelmente não é verdade. Gostaria que ele gostasse de você? Diga-me: você sente necessidade de agradar-lhe e isso a preocupa? Desconfia da sua necessidade de agradar-lhe?

— Todo mundo gosta de ser apreciado, Dr. Lecter.

— Nem todo mundo. Você acha que Jack Crawford a quer sexualmente? Sei que ele agora anda muito frustrado. Você acha que ele imagina... cenários, transas... enfim, foder com você?

— É um assunto que não me desperta curiosidade, Dr. Lecter, é a espécie de coisa que Miggs perguntaria.

— Não pode mais perguntar...

— O senhor sugeriu a ele que engolisse a língua?

— Seu senso interrogativo inclui muitas vezes o próprio subjuntivo. Com esse sotaque, cheira a lâmpada de mineiro... Crawford sem dúvida gosta de você e acha-a competente. Penso que a estranha confluência dos acontecimentos não lhe escapou, Clarice, pois tem tido a ajuda de Crawford e tem tido a minha. Você diz que não sabe por que Crawford a ajuda, sabe por que eu o faço?

— Não. Diga-me.

— Acha que é porque gosto de olhar para você e pensar em comê-la, em qual seria o seu gostinho?

— É por isso?

— Não. Eu quero algo que Crawford me pode dar e desejo negociar com ele. Mas ele não vem me ver. Não pede minha ajuda sobre Buffalo Bill, embora saiba que por isso mais mulheres jovens vão morrer.

— Não posso acreditar, Dr. Lecter.

— Quero algo muito simples e ele pode consegui-lo para min — Lecter girou vagarosamente o reostato da luz de sua cela. Seus livros e desenhos tinham desaparecido. O assento do toalete sumira. Chilton havia desnudado a cela para puni-lo por causa de Miggs — Estou neste lugar há oito anos, Clarice. Sei que eles jamais me deixarão sair vivo daqui. Só o que eu quero é um panorama para olhar. Uma janela por onde eu possa ver uma árvore ou mesmo uma poça d’água.

— Seu advogado já fez uma petição...

— Chilton mandou pôr aquela televisão no corredor, sintonizada num canal religioso. Tão logo você se retirar, o guarda irá novamente aumentar o som e meu advogado não pode impedi-lo, pois a corte não está inclinada a ser benévola a meu respeito. Desejo ir para uma instituição federal, desejo meus livros de volta, desejo umas visitas. Posso dar algo valioso em troca disso. Crawford pode conseguir. Pergunte-lhe.

— Posso relatar a ele o que o senhor me contou.

— Ele vai ignorar tudo isso. E Buffalo Bill irá continuar e continuar. Espere até ele escalpelar mais uma e veja se você vai gostar... Hum... Eu lhe digo uma coisa acerca de Buffalo Bill sem mesmo avaliar o caso. Daqui a alguns anos, quando o apanharem, se o apanharem, você verá que eu estava certo e que poderia ter ajudado. Poderia ter poupado vidas. Clarice?

— Sim?

— Buffalo Bill tem uma casa de dois andares — anunciou o Dr. Lecter, e apagou a luz.

E não quis mais falar de novo.

 

Clarice Starling encostou-se numa mesa de roleta no cassino do FBI e tentou prestar atenção a uma conferência sobre “lavagem” de dinheiro da jogatina. Haviam decorrido 36 horas desde que a polícia do condado de Baltimore tomara o seu depoimento (através de uma datilógrafa de dois dedos que fumava um cigarro atrás do outro: “Você pode abrir aquela janela se o cigarro a incomoda...”) e a dispensara da sua jurisdição não sem antes lembrar-lhe que assassinato não é crime federal.

As redes de notícias no domingo à noite mostraram o entrevero de Starling com os cameraman da televisão, e ela se sentia certa de estar enterrada até às orelhas em impopularidade. Durante todo esse tempo nada ouviu de Crawford nem do escritório regional de Baltimore. Era como se o relatório dela tivesse caído num vazio.

O cassino onde estava agora era pequeno, tinha operado no reboque de um caminhão até que o FBI o apreendera e instalara na escola como um instrumento auxiliar de ensino. O apertado espaço estava apinhado de policiais de muitas jurisdições. Com agradecimentos, Starling recusara aceitar as cadeiras que lhe foram oferecidas por dois guardas-florestais do Texas e um detetive da Scotland Yard.

O resto da sua classe estava no salão do edifício da Academia, procurando cabelos no caríssimo carpete de motel do “Quarto do Crime Passional” e aspergindo pó no “Banco Anônimo” em busca de impressões digitais. Starling tinha passado tantas horas à procura de cabelos e à cata de impressões digitais como estudante de práticas forenses, que preferiram enviá-la àquela conferência, parte de uma série destinada a autoridades policiais visitantes.

Imaginava se haveria alguma outra razão para ser separada de sua classe: talvez costumassem isolar novatos antes de lhes dar o bilhete azul...

Starling descansou os cotovelos na borda da mesa de roleta e tentou concentrar-se no problema de “lavar” dinheiro de jogo. Entretanto, ela se concentrava mais no fato de quanto o FBI detestava ver seus agentes na televisão, fora de conferências oficiais no noticiário.

O Dr. Hannibal Lecter era um doce de coco para a mídia, e a polícia de Baltimore tinha prazerosamente fornecido o nome de Starling aos repórteres. Reiteradamente ela se via no noticiário da rede de domingo à noite. Lá estava “Starling, do FBI”, batendo com força a alavanca do macaco contra a porta da garagem, enquanto o cameraman tentava esgueirar-se por baixo dela. E depois a “Agente Federal Starling” virando-se para o assistente, ainda com a alavanca do macaco na mão.

Na estação rival, a WPIK, à falta de um filme próprio, anunciara-se uma ação legal por danos pessoais contra “Starling, do FBI” e contra o próprio Bureau porque o cameraman recebera poeira e partículas de ferrugem nos olhos quando Starling bateu com força na porta.

Jonetta Johnson, da WPIK, apareceu num programa costa a costa com a revelação de que Starling tinha encontrado os macabros restos na garagem através de um “laço sinistro com um homem que as autoridades tinham estigmatizado como um monstro...!” Ficara claro que a WPIK tinha uma fonte de informações no hospital.

NOIVA DE FRANKENSTEIN! ! ! — Vociferava o Nacional Tattler de suas prateleiras nos supermercados.

Não surgiu nenhum comentário público da parte do FBI, mas houve muitos dentro do Bureau, disso Starling estava certa.

Durante o desjejum, um de seus colegas de classe, um jovem que usava quantidade exagerada de colônia após barba Canoe, referira-se a Starling com o “Melvin Pelvis”, um trocadilho estúpido com o nome de Melvin Purvis, o G-man número um de Hoover na década de 30. O que Ardelia Mapp disse ao garotão fê-lo empalidecer e abandonar o desjejum na mesa sem sequer nele tocar.

Agora Starling encontrava-se num curioso estado no qual já não podia ter surpresas. Durante um dia e uma noite sentira-se envolvida num silêncio semelhante ao que experimentam os mergulhadores. Tencionava defender-se, se lhe dessem a oportunidade.

O conferencista fazia girar a roleta enquanto falava, mas nunca deixava a bolinha cair. Olhando-o, Starling se convencera de que ele nunca na vida deixara a bola cair... Agora percebeu-o dizendo alguma coisa familiar: “Clarice Starling.” Por que estaria dizendo Clarice Starling? Sou eu!

— Presente.

Com o queixo, o conferencista apontou para a porta atrás dela. Lá vinha porrada... O chão pareceu-lhe afundar quando voltou-se para ver. Mas era Brigham, o instrutor de tiro, que se inclinava para dentro da sala e apontava para ela no meio do grupo. Quando Starling o viu, ele abriu-se num sorriso.

Por um segundo pensou que estava sendo expulsa, mas esse não seria um serviço para Brigham.

— Prepare-se para viajar, Starling. Onde está seu material de campanha? — perguntou ele no corredor.

— No meu quarto, na Ala C.

Precisava caminhar depressa para acompanhá-lo.

Ele estava carregando o estojo grande de impressões digitais do quarto de suprimentos, o conjunto bom, não o de dar aulas e um pequeno saco de lona.

— Você vai com Jack Crawford. Leve o que for preciso para passar uma noite fora. Vocês poderão voltar antes, mas é melhor levar.

— Onde?

— Uns caçadores de patos encontraram em West Virgínia um corpo no rio Elk ao romper do dia. Numa situação típica de Buffalo Bill. Policiais estão retirando-o. É um lugar onde o diabo perdeu as botas e Jack não está inclinado a esperar que aqueles caras lhe transmitam os detalhes. — Brigham parou na entrada da porta da Ala C. — Ele precisa de alguém para ajudá-lo, capaz de tirar as impressões de um cadáver que flutuou, entre outras coisas. Você era O.K. no laboratório. Você pode fazer isso, não?

— É fácil. Deixe-me verificar o material.

Brigham manteve o estojo de impressões aberto enquanto Starling levantava as bandejas uma a uma. As agulhas fininhas de injeção estavam lá, bem como os frascos, mas não havia uma máquina fotográfica.

— Preciso da máquina Polaroid 1x1, a CU-5, Sr. Brigham. E filmes e baterias para ela.

— Do almoxarifado? Vou apanhar.

Entregou-lhe o pequeno saco de lona, e quando ela sentiu o peso compreendeu por que tinham mandado Brigham buscá-la.

— Você ainda não tem arma de serviço, não é verdade?

— Não.

— Pois precisa de um conjunto completo. Exatamente o que vem usando no estande de tiro. O revólver que vai levar é o meu. É o Smith modelo K com o qual você está treinada, mas de gatilho mais leve. Acione-o em seco no quarto hoje à noite, quando tive uma chance. Estarei num carro atrás da Ala C dentro de 10 minutos com a câmara. Olhe: no “Blue Canoe” não existe privada. Vá ao banheiro enquanto você tem oportunidade, é o meu conselho. Apresse-se, Starling.

Ela tentou fazer uma pergunta, mas ele já tinha ido embora.

Tem que ser Buffalo Bill, se o próprio Crawford está indo. Que diabo será o “Blue Canoe”? Mas quando você está fazendo a mala, tem que pensar apenas em fazer a mala. Starling a fez depressa e bem.

— Tudo bem — Brigham interrompeu-a quando ela entrou no carro. — A coronha aparece um pouco sob o casaco se alguém procura ver se você está armada, mas por enquanto está tudo bem. Ela usava o revólver de cano curto debaixo do blazer, num coldre tipo panqueca bem encostado nas costelas, bem como um carregador rápido preso ao cinto no outro lado.

Brigham dirigia precisamente no limite de velocidade em direção à pista de aviões de Quântico.

Puxou um pigarro e disse:

— No estande de tiro há uma boa coisa, Starling: por lá não se faz política.

— Não.

— Você andou certa ao impedir a entrada naquela garagem em Baltimore. Está preocupada com a televisão?

— Deveria estar?

— Esta é uma conversa só entre nós, certo?

— Certo.

Brigham respondeu ao cumprimento de um fuzileiro que dirigia o tráfego.

— Levando-a hoje com ele, Jack está demonstrando sua confiança em você de uma forma que ninguém poderá ignorar — frisou ele. — Na hipótese, digamos, de alguém no Escritório de Responsabilidade Profissional agitar seu caso na frente dele, e ele fica em cólicas... Compreende o que quero dizer?

— Hum...

— Crawford é um tipo que agüenta a mão. Ele esclareceu amplamente e até onde interessava que você tinha que fazer o que fez. Afirmou tê-la enviado nua — isto é, despida de todos os símbolo visíveis de autoridade, declarou isso também. E o tempo que os policiais de Baltimore levaram para agir foi muito demorado. Hoje, também Crawford necessita de ajuda e teria que esperar uma hora até Jimmy Price mandar alguém até aqui do laboratório. Então a coisa estava bem talhada para você, Starling. Um cadáver boiando não é nenhuma brincadeira de praia... Também não é nenhuma punição contra você, mas se alguém de fora precisasse interpretar a coisa dessa maneira, poderia. Veja: Crawford é um cara muito sutil, mas não se sente inclinado a explicar as coisas, e é por isso que estou lhe contando... Se você vai trabalhar com Crawford, deve saber como é o negócio com ele, entendeu?

— Na verdade, não entendi.

— Ele tem muitas preocupações além de Buffalo Bill. A mulher dele, Bella, está muito doente. Está numa situação... terminal. Ele a mantém em casa. Não fosse por causa de Buffalo Bill, já teria tirado uma licença por motivo de doença na família.

— Eu não sabia disso.

— É uma coisa que não se discute. Não lhe diga que você sente muito ou qualquer coisa parecida; isso não vai ajudar nada... Eles tiveram uma boa vida.

— Agradeço por ter me contado.

Brigham ficou mais animado quando chegaram ao extremo do campo de pouso.

— Tenho uma porção de preleções importantes a fazer no fim do curso sobre armas de fogo, Starling; tente não perdê-las. — Cortou caminho entre dois hangares.

— Não perderei.

— Veja: o que ensino, você talvez nunca terá que fazer. Espero que não tenha. Contudo, considero muito a sua aptidão, Starling. Se tiver que atirar, você sabe atirar. Continue fazendo seus exercícios.

— Certamente.

— Jamais ponha a arma dentro da bolsa.

— Certo.

— Leve-a ao seu quarto algumas vezes à noite. Coloque numa posição em que possa encontrá-la facilmente.

— Farei isso.

Um venerável bimotor Beechcraft estava na área de taxiar da pista de Quântico com as luzes de navegação girando e a porta aberta. Uma das hélices girava agitando o capim ao lado do asfalto.

— Não me diga que isso aí é o Blue Canoe... 1 — exclamou Starling.

— É ele mesmo.

— É pequeno e velho.

— É velho mesmo... — confirmou Brigham alegremente.

— A Divisão de Repressão às Drogas pegou-o na Flórida há muito tempo, quando ele caiu nos Everglades. No entanto, hoje está mecanicamente em condições. Espero que Gramm e Rudman não descubram que o estamos usando, todos supõem que só andamos de ônibus. — Encostou o carro no avião e tirou a bagagem de Starling do banco traseiro. Com alguma confusão, conseguiu passar-lhe coisas e dar-lhe um aperto de mão.

E então, sem qualquer intenção especial, disse:

— Deus a abençoe, Starling! — Tais palavras pareciam estranhas na boca de um fuzileiro. Ele não sabia de onde haviam vindo e seu rosto se ruborizou.

— Obrigada... muito obrigada, Sr. Brigham.

Crawford estava no assento do co-piloto, em mangas de camisa e com óculos de sol. Virou-se para Starling quando ouviu o piloto bater a porta do avião.

Ela não podia distinguir-lhe os olhos atrás dos óculos escuros e teve a sensação de que não o conhecia. Crawford tinha uma aparência pálida e tensa, como uma raiz que um buld8zer arranca do chão.

— Escolha um assento e leia — foi tudo o que ele disse.

Uma grossa pasta de arquivo estava no assento atrás dele. Na capa, em maiúsculas, estava escrito BUFFALO BILL. Starling agarrou-a com força contra o peito quando o Blue Canoe roncou. Estremeceu e começou a deslocar-se.

 

As margens da pista de decolagem tornaram-se indistintas e desapareceram logo. Do lado leste via-se uma nesga do sol da manhã sobre a baia de Chesapeake quando o pequeno avião fez uma curva para afastar-se do tráfego.

Lá embaixo Clarice Starling podia ver a escola e a base de Quântico do Corpo de Fuzileiros. Na pista de treinamento de assalto, pequenos vultos de fuzileiros deslocavam-se e corriam.

Era assim que parecia visto de cima.

Certa vez, depois de um exercício de tiro noturno, caminhando no escuro ao longo da deserta Hogan’s Alley apenas para espairecer, ouvira aviões roncando por cima e depois, no silêncio que se seguiu, vozes falando no céu negro por cima dela — soldados aerotransportados num salto noturno falando uns aos outros enquanto desciam na escuridão. E ela ficou cismando como alguém deveria sentir-se na porta do avião esperando ordens para saltar, e como se sentiria mergulhando naquela escuridão ameaçadora.

Talvez como se sentia agora.

Abriu a pasta.

Buffalo Bill o havia feito cinco vezes, pelo menos que soubessem. Cinco vezes pelo menos, e provavelmente mais, durante os últimos seis meses ele raptara uma mulher esfolando-a depois de assassinar. (Starling correu os olhos pelos relatórios e autópsia até encontrar os testes de histamina livre confirmando que ele as havia matado antes de arrancar-lhes a pele).

Jogara cada um dos corpos nágua depois de terminar seu lúgubre serviço. Todos foram encontrados em rios diferentes, um curso dágua de um cruzamento de estradas interestaduais, cada um num diferente estado. Todo mundo sabia que Buffalo Bill era um homem que viajava. Era tudo que a polícia conhecia sobre ele, absolutamente tudo, exceto que ele tinha pelo menos uma arma com seis ranhuras, girando para a esquerda — possivelmente um revólver Colt ou uma imitação de Colt. Marcas das estrias em balas recuperadas indicavam que ele preferia usar o calibre 38 nas câmaras mais longas de um 357.

Os rios não deixavam qualquer impressão digital, nem sombra de cabelos ou de fibras que levassem a ele.

Tinha-se quase certeza de que era um homem branco: branco, porque assassinos em série geralmente matam dentro do seu próprio grupo étnico e todas as vitimas eram brancas; homem, porque assassinas em série são quase desconhecidas em nossa época.

Dois colunistas de cidades grandes haviam descoberto um título no pequeno poema sobre a morte, de E.E. Cummings, “Buffalo Bill”: ...como você gosta de seu menino de olhos azuis, Sr. Morte.

Alguém, talvez Crawford, havia colado a citação na capa da pasta.

Não havia uma relação clara entre o lugar onde Bill raptava as jovens mulheres e onde ele as jogava nágua.

Nos casos em que os corpos foram encontrados cedo o bastante para uma determinação exata da hora da morte, a polícia descobriu outra coisa sobre o assassino: Bill as mantinha vivas por um certo tempo. Essas vítimas só morreram entre uma semana e dez dias após o rapto. Isto queria dizer que ele precisava ter um lugar para mantê-las, um lugar onde pudesse agir discretamente. Isto queria dizer ainda que ele não era um vagabundo; era, enfim, um sujeito que tinha sua própria teia de aranha, seu próprio alojamento Em algum lugar.

Esse fato horrorizou o público de maneira chocante — o fato de ele mantê-las presas por uma semana ou mais, sempre sabendo que iria matá-las.

Duas foram enforcadas; três morreram por tiros. Não havia evidência de estupro ou abuso físico antes da morte, e os relatórios da autópsia não registravam qualquer evidência de desfiguração “especificamente genital”, embora os patologistas notassem que seria quase impossível determinar tal coisa nos corpos mais deteriorados.

Todas foram encontradas nuas. Em dois casos, artigos das roupas externas das vítimas foram encontrados ao lado da estrada próxima às suas casas, cortadas nas costas como roupas para defuntos.

Starling conseguiu examinar as fotografias sem problemas. Corpos flutuantes são a pior espécie de mortos para se lidar. Eles são absolutamente patéticos, como muitas vezes também acontece com vitimas de homicídios ao ar livre. As indignidades que a vitima sofre, a exposição aos elementos e aos olhos de estranhos, fazem o investigador ficar com raiva, se seu serviço lhe permite dar-se ao luxo de ter raiva.

Em homicídios dentro de casa, testemunhas das práticas pessoais desagradáveis da vítima, e as vítimas da própria vitima — esposas espancadas, crianças que sofrem abusos — , aproximam-se eventualmente para sussurrar que o morto merecia o que lhe aconteceu, e muitas vezes isso é verdade.

Mas nenhuma das vítimas de Bill merecera o castigo. Elas já não tinham sequer as próprias peles quando apareciam no lixo das barrancas dos rios, entre garrafas de óleo para motor de popa, embrulhos de sanduíches e outras imundícies assim. As vitimas mortas durante a estação fria, em grande parte ainda tinham seus rostos. Starling não ignorou que seus dentes não estavam à mostra para expressar a dor, mas que, ao se alimentarem, tartarugas e peixes haviam criado aquela expressão dos cadáveres. Bill arrancava a pele dos torsos e em geral deixava os membros intocados.

As fotografias não seriam tão horríveis de examinar, pensou Starling, se a cabine deste avião não fosse tão quente e se o maldito avião não desse aquela guinada constante para um lado porque uma das hélices pegava mais vento que a outra, e se a porra daquele sol não varasse as arranhadas janelas de plástico para provocar-lhe uma dor de cabeça.

Pode-se apanhá-lo! Starling agarrou-se ao pensamento para auxiliá-la a manter-se sentada naquela cabine que parecia cada vez menor, com o colo cheio de informações horrorosas. Poderia ajudar a liquidar com ele. Depois recolocaria na gaveta essa pasta ligeiramente pegajosa e nojenta, trancando-a a chave.

Pôs-se a contemplar a nuca de Crawford. Se queria acabar com Buffalo Bill, estava na companhia certa. Crawford havia organizado caçadas bem-sucedidas de três assassinos em série. Mas não sem vitimas entre os caçadores. Will Graham, o cão de fila mais esperto que jamais correra na matilha de Crawford, era uma legenda na Academia; era agora um beberrão na Flórida e tinha um rosto para o qual era difícil olhar, segundo diziam.

Talvez Crawford sentisse que ela o estava fitando por trás, porque levantou-se da cadeira de co-piloto. O piloto ajustou o balanceamento do avião quando ele veio para o banco posterior e sentou-se ao lado dela. No momento em que ele dobrou seus óculos de sol e recolocou os bifocais, ela sentiu que de novo o reconhecia.

Quando observou o rosto de Starling e olhou para o relatório, e a seguir de novo para ela, algo se passou por trás da sua face e rapidamente desapareceu. Um rosto mais expansivo que o de Crawford teria denunciado pena dela.

— Estou com calor, e você? — perguntou ele. — Bobby, está um calor danado aqui — disse para o piloto. Este fez um ajuste qualquer e lufadas de ar fresco penetraram na cabina. Alguns flocos de neve se formaram no ar úmido e pousaram no cabelo de Starling.

Então teve início a caçada de Jack Crawford, seus olhos brilhando como um claro dia de inverno.

Ele abriu a pasta num mapa da região central e leste dos Estados Unidos. Os locais onde os corpos haviam sido encontrados estavam marcados no mapa — uns pontos espalhados, tão mudos e irregulares quanto a constelação de Órion.

Crawford tirou uma caneta do bolso e marcou a localização mais recente, seu objetivo.

— O rio Elk, cerca de 10 quilômetros abaixo da U.S. 79 — disse. — Tivemos sorte com este. O corpo foi fisgado por um espinhei, uma linha de pescar atravessada no rio. Eles não acreditam que a vítima esteja na água há muito tempo. Estão levando-a para Potter, a sede do condado. Pretendo saber logo quem ela é, de forma que se possa pesquisar testemunhas do rapto. Mandaremos as fotos por uma via rápida tão logo as tenhamos. — Crawford abaixou a cabeça para olhar Starling pela parte inferior de seus óculos. — Jimmy Price diz que você sabe tirar as impressões de um cadáver que boiou.

— Na verdade, nunca tive um cadáver flutuante inteiro — observou Starling. — Eu tirava as impressões digitais das mãos que o Sr. Price recebia pelo correio todos os dias. Muitas eram de cadáveres que, de fato, haviam flutuado.

Aqueles que nunca trabalharam sob a supervisão de Jimmy Price acreditam que ele seja um amável grosseirão. Como a maior parte dos grosseirões, ele é realmente um velho comum. Jimmy Price é um especialista em Impressões Latentes no laboratório de Washington. Starling serviu um tempo com ele como estagiária de Prática Forense.

— Aquele Jimmy — lembrou Crawford afetuosamente. — Como é mesmo que chamam àquele serviço...

— A posição é denominada “tirano do laboratório”, ou algumas pessoas preferem Igor... — é o que está impresso no avental de borracha que lhe dão.

— É isso mesmo.

— Eles lhe dizem para você fingir que está dissecando uma rã.

— Entendo...

— Então eles lhe trazem um pacote da UPS. Eles estão todos observando — alguns se apressam de volta do café, todos esperando que você vá vomitar. Posso tirar as impressões de um cadáver flutuando muito bem. De fato...

— Bem. Agora olhe para isto. A primeira vitima dele que conhecemos foi achada no rio Blackwater, no Missouri, nos arredores de Lone Jack, no mês de junho último. A moça, Bimmel, fora dada como desaparecida em Belvedere, Ohio, no dia 15 de abril, dois meses atrás. Não pudemos dizer muito a respeito — levou-nos mais três meses só para estabelecer a identidade. A seguinte ele pegou em Chicago, na terceira semana de abril. Ela foi encontrada no rio Wabash, na parte central de Lafayette, Indiana, apenas 10 dias depois de raptada, de forma que pudemos apurar o que aconteceu com ela. A seguinte foi uma mulher branca, de vinte e poucos anos, jogada no rio Rolling Fork, próximo à estrada I-65, cerca de 60 quilômetros ao sul de Louisville, Kentucky. Nunca foi identificada. E a mulher chamada Varner, agarrada em Evansville, Indiana, e jogada no rio Embarras logo abaixo da interestadual I-70, na parte leste de Illinois.

“Depois ele viajou para o sul e jogou uma no Conasauga, abaixo de Damascus, na Georgia, ao sul da interestadual 75, que foi essa pequena Kittridge de Pittsburgh — aqui está o retrato de formatura dela. A sorte dele é inacreditável -— ninguém jamais o viu atacar uma mulher. Exceto pelo fato de abandonar os cadáveres perto de uma interestadual, não vemos nenhum outro padrão de comportamento.

— Se você seguir de volta as vias de tráfego mais pesado desde o lugar onde ele jogou os corpos, elas convergem de qualquer modo?

— Não.

— Que tal se você... considerar como um postulado... que ele está fazendo um despejo e um novo rapto na mesma viagem? — perguntou Starling evitando cuidadosamente a expressão proibida “fazer a hipótese”. — Ele primeiro se descartaria do corpo — não seria lógico — para o caso de ter dificuldade em apossar-se da próxima vitima? Então, se fosse apanhado raptando alguém, ele poderia escapar alegando um atentado ao pudor, e nada confessar se não tivesse um corpo em seu carro. Portanto, que tal traçar vetores para trás de cada ponto de rapto passando pelo lugar anterior de abandono do corpo? Você já tentou isso, não?

— É uma boa idéia, mas ele também a teve. Se ele está fazendo ambas as coisas numa mesma viagem, fica andando em ziguezague. Já programamos simulações no computador, primeiro com ele movimentando-se para oeste nas interestaduais, depois para leste, depois várias combinações com as melhores datas que podemos atribuir aos abandonos de corpos e aos raptos. Você entra com isso no computador e sai uma fumacinha. Ele vive no leste, diz-nos o computador. Ele não segue um ciclo lunar, informa. Datas de convenções nas cidades em causa não têm qualquer correlação. Nada a não ser coisas sem importância. Não, ele já viu que estamos na sua pista, Starling.

— Você pensa que ele é por demais cuidadoso para ser um suicida — Crawford concordou com a cabeça:

— Definitivamente, cauteloso demais. Ele descobriu como ter uma relação significativa agora e ele deseja repetir muito. Não estou colocando minhas esperanças num suicida.

Crawford passou ao piloto um copo d’água de uma garrafa térmica. Deu uma para Starling e misturou um Alka-Seltzer no seu.

O estômago dela reagiu quando o avião começou a descer.

— Há um par de coisas que quero dizer-lhe, Starling. Espero de você uma prática forense de primeira classe, mas necessito mais que isso. Você não fala muito, e é O.K.; eu também não. Mas não creia nunca que precisa ter um novo fato para me contar antes de trazer qualquer assunto pertinente. Não há nenhuma pergunta tola. Você irá ver coisa que eu não vejo e eu quero saber delas. Talvez você tenha jeito para isso. De repente surge uma chance para revelar se você tem esse jeito.

Escutando-o, o estômago aos pulos e a expressão propriamente atenta, Starling cismava desde quando Crawford teria sabido que iria usá-la naquele caso, como desejara que ela ficasse sequiosa por uma oportunidade. Ele era um líder, tinha a conversa fiada franca e aberta de um líder, ora essa...

— Você pensa nele o tempo todo, você imagina por onde esteve, você cria um sentimento por ele — continuou Crawford. — Você até que não desgosta dele continuamente, difícil como isso seja de acreditar. Então, se tiver sorte, do meio de tudo o que você acumulou, uma parte pula sobre você, tenta capturar sua atenção. Sempre me diga quando algo pular pedindo sua atenção, Starling.

“Ouça-me: um crime já é uma coisa confusa sem uma investigação para complicá-lo. Não deixe que um monte de policiais a confundam. Viva de acordo com seus olhos, escute a você mesma Mantenha o crime separado do que está acontecendo em torno de si. Não tente impor nenhum padrão ou simetria a esse cara. Mantenha-se receptiva e deixe que ele lhe mostre o caminho.

“Outra coisa: uma investigação como esta é como um zoológico. Espalha-se por uma porção de jurisdições e algumas delas são orientadas por tipos fracassados. Temos que tolerá-los, de modo que eles não escondam nada de nós. Vamos para Potter, West Virgínia. Nada sei sobre essas pessoas que vamos encontrar. Podem ser boa ou podem pensar que somos cobradores de impostos.

O piloto tirou o fone dos ouvidos e falou, voltando-se para trás

— Aproximação final, Jack. Você vai ficar ai atrás?

— Sim — disse Crawford. — Acabou a aula, Starling...

 

Eis aqui a Casa de Funerais Potter, a maior casa branca de madeira da Rua Potter, em Potter, West Virgínia, que serve como necrotério para o condado de Rankin. O médico-legista é um clínico chamado Dr. Akin. Se ele decide que uma morte é questionável, o corpo é encaminhado para o Centro Médico Regional de Claxton no condado vizinho, onde eles têm um patologista experiente.

Clarice Starling, viajando do aeroporto para Potter na parte de trás de um carro-patrulha do departamento do xerife, tinha que encostar o rosto na tela que separava o compartimento dos prisioneiros da frente do carro para ouvir o delegado que dirigia o carro explicando tais coisas para Jack Crawford.

Estava para começar um serviço fúnebre na capela mortuária. As pessoas enlutadas, vestidas em suas melhores roupas dominicais, formavam uma fila na calçada entre altos e baixos e acotovelavam-se nos degraus aguardando sua vez de entrar. A casa, pintada de fresco, e os degraus, cada um por seu lado, tinham saído um pouco de prumo.

No estacionamento particular atrás da casa, onde os carros fúnebres esperavam, dois policiais jovens e um mais velho estavam reunidos com dois guardas estaduais debaixo de um olmo desfolhado. O frio não era suficiente para condensar a respiração deles.

Starling observou esses homens quando o carro-patrulha entrou no estacionamento, e imediatamente reconheceu-os. Sabia que provinham de lares que tinham guarda-roupas em vez de closet e sabia muito bem o que havia dentro desses guarda-roupas. Sabia que o policial mais velho crescera com uma bomba d’água na varanda da casa e patinhara pela estrada durante a úmida primavera para apanhar o ônibus escolar com seus sapatos pendurados ao pescoço por cordões, como o pai já fizera. Sabia que haviam levado seus lanches para a escola em sacos de papel com manchas de gordura por serem usados e reusados e que, depois do almoço, eles dobravam os sacos e os enfiavam nos bolsos de trás de seus jeans.

Ela imaginava o quanto Crawford saberia acerca deles.

Não havia maçanetas no lado de dentro das portas traseiras do carro-patrulha, descobriu Starling quando o motorista e Crawford desembarcaram e se dirigiram para os fundos da casa funerária. Ela precisou bater no vidro até que um dos policiais debaixo da árvore a viu e o motorista teve que voltar, encabulado, para deixá-la desembarcar.

Os policiais olharam-na de soslaio quando passava por eles. Um deles cumprimentou-a, dizendo “Madame...”. Ela os premiou com um aceno de cabeça e um sorriso de proporções corretas quando foi juntar-se a Crawford na varanda atrás da casa.

Depois que ela se afastou bastante, um dos policiais jovens, que era recém-casado, coçou o queixo e disse:

— Ela não parece tão gostosa quanto pensa que é...

— Bem, se ela pensa que parece uma gostosona, creio que teria de concordar com ela — respondeu o outro policial jovem. Eu seria capaz de fazer um embrulho dela e levá-la para casa...

— Eu preferiria uma grande melancia, se estivesse bem geladinha... — disse o policial mais velho com seus botões.

Crawford já estava conversando com o sub-xerife, um homem pequeno, empertigado, de óculos com aros de aço e a espécie de botas com os lados de elástico que os catálogos chamam de “Romeus”.

Ambos haviam se deslocado para o sombrio corredor dos fundos da casa funerária, onde uma máquina de vender Coca-Cola zumbia e onde diversos objetos estranhos se acumulavam de encontro à parede: uma máquina de costura com pedal, um triciclo e um rolo de grama artificial, bem como um toldo de lona listrada embrulhado em volta de seus suportes. Na parede havia uma gravura de cor sépia de Santa Cecília ao piano. O cabelo da santa estava arrumado em tranças em volta da cabeça e rosas caiam em cima do teclado, vindo do ar.

— Agradeço-lhe por haver-nos dado conhecimento tão rápido, xerife — disse Crawford.

O sub-xerife não queria conversa.

— Foi alguém do escritório do promotor público quem chamou vocês — informou ele. — Sei que o xerife não os chamou; o xerife Perkins está fazendo presentemente uma excursão pelo Havaí com a Sra. Perkins. Falei com ele pelo telefone esta manhã, as oito, ou seja, às três da manhã, hora do Havaí. Ele vai me telefonar de volta mais tarde ainda hoje, mas me disse que o Serviço Número Um é descobrir se esta é uma moça do lugar. Poderia ser alguém que elementos de fora tivessem despejado em nossa jurisdição. Vamos atender a isso antes de fazer qualquer outra coisa. Já aconteceu trazerem corpos para cá vindos de muito longe, de Phoenix City, Alabama.

— Este é um ponto onde podemos ajudá-lo, xerife. Se...

— Já me comuniquei pelo telefone com o comandante dos serviços de campo da polícia estadual em Charleston. Ele está mandando alguns homens da Seção de Investigações Criminais, conhecida como SIC. Eles nos darão todo o apoio que necessitarmos. — O corredor estava se enchendo, de subdelegados e policiais fardados; o sub-xerife estava oferecendo uma audiência longa demais. — Iremos procurá-los tão logo pudermos e corresponderemos à sua cortesia; trabalharemos em conjunto com vocês de toda forma possível, mas por enquanto...

— Xerife, essa espécie de crime sexual tem alguns aspectos que eu preferiria discutir somente entre nós, homens, compreende o que quero dizer? — insistiu Crawford, indicando a presença de Starling com um pequeno movimento da cabeça. Empurrou o colega baixinho para dentro de um escritório cheio de móveis que dava para o corredor e fechou a porta. Starling ficou sozinha, tendo que disfarçar seu embaraço aos olhares dos policiais. Com os dentes cerrados, ela olhou para Santa Cecília e retribuiu o etéreo sorriso da imagem ao mesmo tempo em que procurava escutar o que se passava atrás da porta. Pôde ouvir vozes exaltadas, depois uns trechos de conversas telefônicas. Em menos de quatro minutos todos estavam de volta ao corredor.

O sub-xerife tinha os lábios cerrados.

— Oscar, vá em frente e chame o Dr. Akin. Ele tem uma certa obrigação de assistir a esses funerais, mas não creio que já começaram. Diga-lhe que temos Claxton ao telefone.

O legista Dr. Akin veio até o pequeno escritório. Pôs o pé em cima de uma cadeira e ficou batendo nos dentes com um leque do Bom Pastor, enquanto entretinha breve conversa com o patologista em Claxton. A seguir pareceu concordar com tudo.

A seguir no quarto de embalsamar forrado com papel de parede decorado com rosas e uma moldura de madeira por baixo do teto alto, numa casa de madeira branca de um estilo que lhe era familiar, Clarice Starling teve seu primeiro contato direto com uma obra de Buffalo Bill.

O lustroso saco verde, bem fechado com um zíper, era a única coisa moderna no aposento. Estava em cima de uma antiga mesa com tampo de porcelana, refletida muitas vezes nos painéis de vidro dos armários que guardavam ferramentas de cirurgia e pacotes de fluidos da marca Rock-Hard para encher cavidades.

Crawford foi até o carro pegar o transmissor de impressões datiloscópicas enquanto Starling desembrulhava seu material na mesa com uma grande pia dupla encostada à parede.

Havia gente demais no quarto. Vários subdelegados, o sub-xerife, todos haviam entrado e não mostravam nenhuma disposição para sair. Estava tudo errado. Por que Crawford não se mexia E se livrava deles?

O papel de parede, que estava meio solto, voltou à sua posição normal quando o doutor acionou o grande, velho e poeirento ventilador, gerando uma corrente de ar.

De pé ao lado da pia, Clarice Starling necessitava agora de um tipo de coragem mais adequado e potente do que num salto de pára quedas dos fuzileiros. Veio-lhe à cabeça uma imagem que a ajudou, mas perturbando-a ao mesmo tempo:

Sua mãe de pé junto a pia, lavando o sangue do capacete do pai; fazia correr água fria por cima dele, dizendo: “Vamos nos arrumar, Clarice. Diga a seus irmãos que se lavem e venham à mesa. Precisamos conversar e depois serviremos o jantar”.

Starling retirou o lenço do pescoço e amarrou-o sobre os cabelos, como uma parteira do interior. Do estojo tirou um par de luvas: cirúrgicas. Quando abriu a boca pela primeira vez em Potter, sua voz tinha mais que um timbre normal, e sua energia levou Crawford até a porta para escutá-la.

— Cavalheiros, cavalheiros! Senhores policiais e cavalheiros. Peço sua atenção, por favor! Agora sou eu quem vai tomar conta dela. — Levantou as duas mãos à frente deles enquanto enfiava as luvas. — Tenho algumas coisas a fazer com ela. Os senhores a trouxeram até aqui, e sei que a família lhes agradeceria por isso. Agora por favor, queiram sair e deixem-me tomar conta dela.

Crawford viu-os subitamente calados, depois falaram respeitosamente entre si, aos sussurros:

— Vamos, Jess. Esperaremos no pátio.

Observou que a atmosfera havia mudado: de onde quer que aquela vítima tivesse vindo, quem quer que fosse, o rio a havia carregado para aquele lugar do interior, e enquanto ela jazia inerte compreenderam que Clarice Starling tinha um relacionamento especial com ela. Crawford viu que naquele lugar Clarice era a herdeira das mulheres idosas, das experientes, das que sabem curar com ervas, das duras velhotas do interior que sempre fazem o que é preciso, velam os defuntos e, quando o velório termina, lavam e vestem os mortos para o enterro.

Logo só restaram Crawford, Starling e o legista, além da vítima. O Dr. Akin e Starling olharam um para o outro com uma espécie de reconhecimento. Ambos estavam estranhamente contentes, ambos estranhamente envergonhados.

Crawford tirou uma latinha de Vick VapoRub do bolso e ofereceu aos outros. Starling ficou observando, e quando Crawford e o doutor esfregaram a pasta nas narinas ela os imitou.

Tirou as câmaras fotográficas de dentro da bolsa de equipamento e as pôs na mesa da pia, de costas para o quarto. Atrás dela, ouviu abrir-se o zíper do saco que continha o corpo.

Starling piscou os olhos para as rosas no papel de parede, inspirou profundamente e esvaziou o peito. Voltou-se e olhou o corpo na mesa.

— Deveriam ter protegido as mãos dela com sacos de papel disse. — Agora farei isso quando terminarmos.

Com todo o cuidado, posicionando a máquina automática para enquadrar as exposições, Starling fotografou o corpo.

A vítima, uma mulher jovem de quadris largos, tinha 1,70m de altura segundo mostrava a fita de Starling. A água havia acinzentado as partes em que a pele fora retirada, mas era claro que não estivera mergulhada por mais de alguns dias. O corpo fora esfolado com perícia desde uma linha precisa logo abaixo dos seios e até os joelhos, mais ou menos a área que seria coberta pelos calções e faixa da cintura de um toureiro.

Os seios eram pequenos e entre eles, por sobre o esterno, via-se a causa aparente da morte, uma ferida profunda, com o feitio de uma estrela, e da largura de um palmo.

A cabeça redonda estava raspada até o osso, desde acima das sobrancelhas e orelhas até a nuca.

— O Dr. Lecter bem disse que ele iria começar a escalpelar — comentou Starling.

Crawford estava de pé, os braços cruzados, enquanto ela tirava as fotografias.

— Fotografe as orelhas dela com a Polaroid — foi só o que disse.

Limitou-se a franzir o cenho enquanto andava em torno do corpo. Starling tirou uma luva para correr o dedo ao longo da panturrilha da vítima. Um pedaço da linha de pesca e os anzóis tipo garatéia que se haviam enrolado, segurando o corpo no rio em movimento, ainda estavam presos em torno da perna.

— Alguma coisa especial, Starling?

— Bem, vê-se que não é mulher destas redondezas, tem as orelhas perfuradas três vezes e usa esmalte de unhas brilhante. Para mim, é gente da cidade. Tem pêlo nas pernas de mais ou menos duas semanas. E vejam como cresceu macio. Provavelmente usava cera para depilar. Também nas axilas. Reparem como limpou a penugem do lábio superior. Era cuidadosa consigo mesma, mas finalmente não foi capaz de cuidar-se...

— O que acha da ferida?

— Não sei — disse Starling. — Diria que a saída de uma bala de arma de fogo, mas também parece parte de um anel de abrasão e vê-se a marca do que seria um cano aqui em cima.

— Bom, Starling. É uma ferida de contato com entrada acima do esterno. Os gases da explosão expandem-se entre o osso e a pele e formam uma estrela em volta do buraco.

Do outro lado da parede ouviu-se um órgão de foles quando o serviço fúnebre começou na casa funerária.

— Morte infeliz! — lamentou o Dr. Akin, balançando a cabeça. — Tenho que ir lá fora pelo menos para uma parte do serviço. A família sempre espera que eu acompanhe a última fase. Lamar virá ajudar vocês tão logo termine a oferenda musical. Confio em que vocês preservarão as provas para o patologista em Claxton, Sr. Crawford.

— Ela tem duas unhas quebradas na mão esquerda — indicou Starling quando o doutor saiu. — Estão quebradas até o sabugo e parece que há sujeiras ou algumas partículas duras acumuladas. Podemos colher amostras?

— Colha amostras do material e umas escamas do esmalte das unhas — pediu Crawford. — Informaremos a eles depois de obter os resultados.

Lamar, o magro assistente da casa funerária com um corado de uísque nas maçãs do rosto, entrou enquanto ela ainda trabalhava

— Você deve ter sido manicure alguma vez na vida — observou ele.

Ficaram contentes ao ver que a jovem vítima não tinha marca: de unhas nas palmas das mãos uma indicação de que, como as outras, morrera antes que qualquer outra coisa fosse feita com ela.

— Você quer tirar-lhe as impressões estando ela em decúbito ventral? — perguntou Crawford.

— Será mais fácil.

— Vamos primeiro tirar-lhe uma foto dos dentes, depois Lamar pode ajudar-nos a pô-la de barriga para baixo.

— Apenas fotos ou um mapeamento? — Starling adaptou o jogo de fotos dentais na frente da câmara de datiloscopia, aliviada ao verificar que todas as peças estavam na bolsa.

— Apenas fotos — preferiu Crawford. — Um mapeamento pode confundir sem os raios X. Com as fotos poderemos eliminar algumas mulheres desaparecidas.

Lamar era muito delicado. Com suas mãos de organista foi abrindo a boca da moça sob a orientação de Starling e arregaçando seus lábios, enquanto a policial colocava a Polaroid 1x1 contra o rosto da mulher para obter os detalhes de seus dentes da frente. Essa parte era fácil, mas ela devia fotografar os molares com um refletor palatal, observando de lado o brilho através da bochecha para ter certeza de que o strobe em volta das lentes estava iluminando o interior da boca. Ela só havia visto fazer aquilo em aulas.

Starling avaliou as primeiras fotos dos molares, ajustou os controles de iluminação e tentou repetir. A foto saiu melhor. Ficou realmente muito boa.

— Ela tem qualquer coisa na garganta — observou Starling.

Crawford olhou para a foto; mostrava um objeto cilíndrico, escuro, logo atrás do véu palatino.

— Dê-me a lanterna elétrica.

— Quando um corpo é retirado da água, muitas vezes aparecem folhas e outras coisas na boca — observou Lamar, olhando ao lado de Crawford.

A policial tirou algumas pinças da sua bolsa. Olhou para Crawford, que estava do outro lado do corpo. Ele assentiu com a cabeça e Starling levou apenas um segundo para retirar o objeto.

— O que é isto, alguma espécie de vagem com sementes? — perguntou Crawford.

— Não, senhor, é o casulo de um inseto — informou Lamar.

Starling colocou-o num frasco.

— Você poderia pedir ao agente do condado para examiná-lo — disse Lamar.

De rosto para baixo, tornava-se mais fácil tirar as impressões digitais. Starling estava preparada para o pior, mas nenhum dos cansativos e delicados métodos de injeção ou aplicação de dedeiras seria necessário. Ela tomou as impressões num cartão fino preso a um aparelho com a forma de uma calçadeira. Obteve também um jogo de impressões das plantas dos pés, para o caso de que aparecessem tais impressões fornecidas para comparação por algum hospital-maternidade.

Dois pedaços triangulares de pele faltavam nos ombros. Starling tirou mais fotografias.

— É bom medir também — aconselhou Crawford. — O bandido cortou a moça de Akron quando lhe rasgou a roupa nas costas, não muito mais que um arranhão, mas conferia com o corte nas costas da blusa quando a encontraram à beira da estrada. Isto, no entanto, é algo novo. Ainda não tinha visto.

— Parece uma queimadura por trás do calcanhar — disse Starling.

— Gente velha é que costuma ter sinais assim... — ponderou Lamar.

— O quê? — berrou Crawford.

— EU DISSE QUE GENTE VELHA TEM SINAIS ASSIM.

— Ouvi muito bem, mas quero que você explique. O que é que acontece com gente velha?

— Velhos perdem a consciência enquanto aquecem os pés com uma almofada elétrica por baixo deles, e se morrem ela os queima mesmo não sendo excessivamente quente. As pessoas sofrem queimaduras por uma almofada de aquecimento quando estão mortas Não existe circulação embaixo dela.

— Vamos pedir ao patologista em Claxton para testá-la e vê se é post-mortem — disse Crawford a Starling.

— Cano de descarga de um carro é mais provável — aventou Lamar.

— O quê?

— O CANO DE... silencioso. Uma vez Billy Petrie foi morto a tiros e fecharam-no na mala do carro. A mulher dele dirigiu o carro dois ou três dias procurando o marido. Quando o trouxeram para cá, estava assim; o silencioso havia esquentado por baixo da mala e queimara-o dessa forma, só que foi na altura dos quadris — contou Lamar. — Eu não posso colocar as compras do mercado na mal do meu carro porque o calor estraga.

— Está aí uma boa observação, Lamar; gostaria que você trabalhasse para mim — aprovou Crawford. — Você conhece os caras que a encontraram no rio?

— Jabbo Franklin e seu irmão, Bubba.

— O que fazem eles?

— Brigam lá no Moose, divertem-se com as pessoas que não estão incomodando. Alguém entra no Moose apenas atrás de um drinque, cansado de olhar para gente de luto todo dia, e eles dizem “Sente-se ali, Lamar, e toque Filipino Baby.” Fazem uma pessoa tocar Filipino Baby várias vezes naquele maldito velho piano. É disso que Jabbo gosta. “Bem, invente alguns versos se você não os sabe” diz ele, “e desta vez faça a coisa rimar.” Ele recebe um cheque mensal dos Veteranos e vai visitar a Veterans Administration durante o Natal. Estou esperando por ele nesta mesa há quinze anos...

— Precisamos de testes de serotonina dos Anzóis — observou Crawford. — Estou mandando um recado ao patologista.

— Aqueles anzóis estão muito próximos um do outro — notou Lamar.

— O que é que você disse?

— Os Franklins estavam usando um espinhel com os anzóis próximos demais, o que é proibido. Esta é provavelmente a razão pela qual só telefonaram esta manhã

— O xerife disse que eram caçadores de patos.

— Acredito que lhe tenham dito isto — concordou Lamar. Eles são também capazes de lhe dizer que uma vez lutaram com Duke Keomuka em Honolulu, ou que jogaram no mesmo time de Satélite Monroe. Você pode acreditar nisso, se quiser.

— O que você acha que aconteceu, Lamar?

— Os Franklins estavam usando esse espinhel — o espinhel deles com esses anzóis ilegais — e o recolhiam para ver se tinham algum peixe.

— Por que você acha isso?

— A moça aí não estava nem perto da condição de boiar.

— Não.

— Portanto, se não estivessem recolhendo a linha, nunca a teriam encontrado. Provavelmente fugiram assustados, mas acabaram telefonando. Espero que você queira ouvir o guarda-caça sobre isso.

— Espero ouvi-lo — disse Crawford.

— Muitas vezes eles levam um telefone de manivela embaixo do assento do carro, e isso já acarreta uma grande multa — se você não acabar indo para a cadeia.

Crawford levantou as sobrancelhas, sem entender.

Isso é conhecido como telefonar para os peixes esclareceu Starling. Tonteia o peixe com a corrente elétrica da bateria quando se metem os fios dentro dágua e se aciona a alavanca. Eles flutuam e então é só recolher com o puçá.

— Confere — aprovou Lamar. — Você é destas bandas?

— Fazem isso em muitos lugares — justificou Starling.

Starling sentiu vontade de dizer alguma coisa antes que fechassem o saco com o zíper, fazer um gesto ou expressar algum comentário. Contudo, apenas sacudiu a, cabeça e ocupou-se em colocar as amostras na bolsa.

Tudo parecia diferente com o corpo e seu problema longe dos olhos. Nesse momento de alívio, sentiu-se oprimida pelo que acabara de fazer. Arrancou as luvas e abriu a torneira na pia. De costas para o aposento, deixou a água correr sobre os pulsos. A água da tubulação não estava muito fresca. Lamar, que a observava, desapareceu no corredor. Voltou da máquina de Coca-Cola com uma lata gelada de refrigerante e a ofereceu.

— Não, obrigada — disse Starling. — Acho que não quero.

— Não é para beber, segure-a embaixo da nuca — ensinou Lamar — encostada naquela pequena saliência atrás da sua cabeça. O frio vai fazer você sentir-se melhor. Sempre me faz bem.

Quando Starling acabou de fechar o memorando para o patologista, colocando-o sobre o zíper do saco, o transmissor de impressões digitais de Crawford já estava funcionando na mesa do escritório.

Encontrar aquela vítima logo após o crime fora um golpe de sorte. Crawford estava determinado a identificá-la rapidamente e começar uma varredura em torno da casa dela á procura de testemunhas do rapto. Seu método dava muito trabalho a todo mundo, mas era rápido.

Crawford carregava com ele um transmissor de impressões digitais Litton Policefax. Ao contrário das máquinas de fac-símile de uso federal, o Policefax é compatível com a maioria dos sistemas dos departamentos policiais das cidades grandes. O cartão de impressões que Starling havia coletado ainda não estava bem seco.

— Carregue-o, Starling, você tem os dedos mais delicados.

Não vá borrá-las — era o que ele queria dizer, e Starling não o fez. Era duro enrolar o cartão composto de impressões colada em torno do pequeno tambor, enquanto seis salas de receptores esperavam no país inteiro.

Crawford estava ao aparelho falando com a central telefônico, do FBI e com a sala de receptores em Washington.

— Dorothy, todo mundo está na linha? O.K., cavalheiros, vamos reduzir a recepção para um ponto vinte a fim de mantê-la boa e bem definida — verifiquem um e vinte; todo mundo. Atlanta, que tal? O.K., dêem-me a linha de imagem... agora.

A seguir o tambor estava rolando a baixa velocidade para maio clareza, enviando as impressões da mulher morta simultaneamente para as salas de recepção do FBI e dos principais departamentos da polícia no leste. Se Chicago, Detroit, Atlanta ou qualquer um do outros aceitassem as impressões, uma busca começaria imediatamente.

A seguir Crawford enviou fotos dos dentes da vítima e do seu rosto, o crânio coberto por Starling com uma toalha para o caso de a imprensa de escândalos verem as fotografias.

Três policiais da Seção de Investigações Criminais da Polícia Estadual da West Virgínia chegaram de Charleston quando eles já iam embora. Crawford deu muitos apertos de mão e distribuiu cartões com o número reservado do Centro Nacional de Informações Criminais. Starling estava interessada em ver quanto tempo ele levaria para criar uma atmosfera de solidariedade masculina. Certamente iriam colaborar da melhor forma, sobre isso não havia a menor dúvida.

— Você pode apostar, e muito obrigado. Talvez não fosse solidariedade masculina; aquela atitude afetava também a ela.

Lamar deu um adeusinho da varanda com as pontas dos dedos quando Crawford e Starling se afastaram no carro com o delegado em direção ao rio Elk. A Coca-Cola ainda estava bem fresquinha. Lamar levou-a para dentro do depósito e preparou uma bebida refrescante com ela.

 

Deixe-me no laboratório, Jeff ordenou Crawford ao motorista — Depois quero que você espera a policial Starling no Smithsonian. Dali ela irá para Quântico.

— Sim, senhor.

Estavam cruzando o rio Potomac em sentido contrário ao tráfego noturno, vindo do Aeroporto Nacional em direção ao centro de Washington.

O jovem que dirigia o carro parecia assustado com Crawford e usava de extrema cautela na direção, pensava Starling. Não o culpava por isso; era artigo de fé na Academia que o último agente que se metera numa encrenca sob o comando de Crawford estava agora investigando roubos em linhas telegráficas nos confins do Círculo Ártico.

Crawford não estava de bom humor. Nove horas haviam passado desde que ele transmitira as impressões digitais e fotos da vítima, que permanecia sem ser identificada. Auxiliados por patrulheiro de West Virgínia, ele e Starling tinham vasculhado os arredores da ponte e as barrancas do rio, sem resultados.

Starling o ouvira falar pelo telefone do avião, requisitando a ida de uma enfermeira para sua casa à noite.

O sedã sem chapa oficial do FBI parecia maravilhosamente sossegado após o Blue Canoe, e era fácil conversar.

— Vou usar a linha reservada e o Latent Descriptor Index quando levar as impressões que você tirou para o Departamento de Identificações — disse Crawford. — Me faça uma minuta de uma entrada para o arquivo. Uma entrada, não um relatório você sabe como fazer.

— Sei.

— Imagine que eu sou o Index, e me diga o que encontrou.

Levou alguns segundos para reunir as palavras. E ficou aliviada porque Crawford parecia interessado nos andaimes do Jefferson Memorial quando passaram por ali.

O Latent Descriptor Index no computador da seção de identificação compara as características de um crime sob investigação com as tendências conhecidas dos criminosos que constam do arquivo. Quando encontra semelhanças acentuadas, revela quais são os suspeitos e fornece suas fichas datiloscópicas. Então um operador humano compara as impressões do arquivo com as encontradas na cena do crime. Ainda não havia impressões digitais de Buffalo Bill, mas Crawford queria estar preparado.

O sistema requer dados breves e concisos. Starling tentou apresentar alguns.

— Mulher branca, idade próxima aos 20 anos para mais ou para menos, morta a tiros, parte inferior do torso e coxas esfoladas...

— Starling, o Index já sabe que ele mata mulheres jovens e que lhes tira a pele do torso — use “arrancar a pele”, incidentalmente, em vez de “esfolar”, pois esse é um termo pouco comum que outro policial nem sempre usa e você não pode ter certeza de que o maldito termo seja interpretado como um sinônimo. Ele já sabe que as vitimas são jogadas num rio. Ele não sabe o que é novo neste caso. O que é novo aqui, Starling?

— Esta é a sexta vitima, a primeira que ele escalpelou, a primeira com pedaços triangulares arrancados dos ombros, a primeira com um casulo na garganta.

— Você esqueceu das unhas quebradas.

— Não, senhor, ela é a segunda com unhas quebradas.

— Certo. Ouça, na entrada para o arquivo observe que o casulo é confidencial. Nós o utilizaremos para eliminar confissões falsas.

— Fico imaginando se ele já o fez antes: colocar um casulo ou um inseto — ponderou Starling. — Seria fácil passar despercebido numa autópsia, especialmente no caso de um cadáver que boiou. Sabe, o médico examinador vê uma causa óbvia para a morte, na sala de autópsias faz calor, e ele quer terminar logo... Será que podemos checar isso?

— Se for necessário. Pode contar que os patologistas dirão que a eles nada escapou, naturalmente. A moça Jane Doe, de Cincinnati ainda está no congelador. Pedirei a eles que dêem uma olhada, mas as outras quatro estão embaixo da terra. Ordens de exumação desagradam muito às pessoas. Tivemos que fazê-lo com quatro pacientes que morreram sob os cuidados do Dr. Lecter, só para termos certeza de que ele mesmo os matou. Deixe-me dizer-lhe: exumar dá um trabalho danado e perturba os parentes. Eu o farei se for necessário, mas vamos ver o que você descobre no Smithsonian antes que eu decida.

— Escalpelar... isso é raro, não?

— Pouco comum — confirmou Crawford.

— Mas o Dr. Lecter disse que Buffalo Bill o faria. Como podia saber disso?

— Ele não sabia.

— Contudo, ele o disse.

— E isso não é muito surpreendente, Starling. Não fiquei surpreso ao saber. Eu considerava raro até o caso Mengel, lembra-se. O que escalpelou a mulher? Houve dois ou três imitadores depois disso. Os jornais, quando estavam se ocupando do caso Buffalo Bill enfatizaram mais de uma vez que esse matador não arrancava couros cabeludos. Não foi surpresa depois disso. Buffalo provavelmente lê os jornais que falam dele. Lecter estava dando um palpite. Ele não disse quando iria acontecer, de forma que nunca poderia estar errado. Se pegássemos Bill e não tivesse havido nenhum escalpelamento, Lecter iria alegar que o pegamos antes de ele o fazer...

— O Dr. Lecter também disse que Buffalo Bill vive numa casa de dois andares. Nunca discutimos isso. Por que diria ele uma coisa dessas?

— Isso não é um palpite. Ele provavelmente está muito certo e poderia ter-lhe dito por quê, mas preferiu brincar com você. É a única fraqueza que já notei nele, ele gosta de parecer esperto, mais esperto que qualquer outra pessoa. Vem fazendo isso há anos.

— Você me disse para perguntar o que não soubesse. Bem, devo pedir-lhe que me explique isso.

— O.K. Duas das suas vítimas foram enforcadas, certo? Marcas altas de ligaduras, deslocamento cervical, enforcamento sem menor dúvida. Como o Dr. Lecter sabe por experiência pessoal, Starling, é muito difícil uma pessoa enforcar a outra contra a vontade dessa outra. Pessoas se enforcam todos os dias em maçanetas de portas. Enforcam-se até sentadas, é fácil. Mas é difícil enforcar outra pessoa; mesmo quando amarradas, elas conseguem sustentar-se se encontrarem qualquer suporte para os pés. Uma escada aberta torna-se ameaçadora. As vítimas não a sobem quando vendadas e certamente não o farão se virem um laço de forca. A maneira de fazê-lo é usar um poço de escadaria. Os degraus de escadarias são familiares. Pode-se dizer às vítimas que estão sendo levadas ao banheiro cobri-las com um capuz, enfiar rapidamente o laço pela cabeça é empurrá-las do último degrau com a corda amarrada no corrimão É a única maneira adequada dentro de uma casa. Um camarada na Califórnia popularizou isso. Se Bill não tivesse um poço de escada, ele as mataria de outra forma. Agora me dê aqueles nomes: o subdelegado de Potter e o cara da polícia estadual, o mais graduado deles.

Starling encontrou os nomes no seu caderninho, lendo-os à luz de uma lanterna elétrica com feitio de caneta presa em seus dentes.

— Bem — concluiu Crawford. — Quando você estiver fazendo uma comunicação por linha reservada, Starling, sempre cite os policiais pelo nome. Ouvindo os próprios nomes, ficam mais predispostos ante a comunicação reservada. O prestigio ajuda-os a lembrar-se de nos telefonar se descobrirem alguma coisa. O que significa para você aquela queimadura na perna?

— Depende de se foi feita antes ou após a morte.

— E se foi feita após?

— Fico sabendo que ele dispõe de um caminhão fechado, um furgão, uma caminhonete, um veículo qualquer comprido.

— Por quê?

— Porque a queimadura é transversal à panturrilha.

Eles estavam no cruzamento da Rua 10 com a Pensilvânia, em frente ao novo quartel-general do FBI, ao qual ninguém jamais se refere como o Edifício J. Edgar Hoover.

— Jeff, se você puder deixar-me aqui... — apelou Crawford. — Aqui mesmo, antes da passagem subterrânea. Fique no carro, Jeff, apenas abra à traseira. Venha mostrar-me, Starling.

Ela saltou fora do carro com Crawford, que retirou seu datafax e a pasta do porta-malas.

— Ele transportou o corpo em algo comprido o bastante para poder deitá-lo ao comprido de costas — observou Starling. — É a única maneira de a panturrilha ficar encostada por cima do cano de descarga. Na mala de um carro como este, ela estaria toda enrodilhada e...

— Sim, entendo o que você diz — concordou Crawford.

Só então ela compreendeu que ele a fizera sair do carro de forma a poder falar-lhe em particular.

— Quando eu disse àquele delegado que ele e eu não devíamos falar diante de uma mulher, você ficou queimada, não foi?

— Por certo.

— Foi apenas uma cortina de fumaça. O que eu queria era vê-lo sozinho.

— Sei disso.

— O.K. Não dê importância. — Crawford bateu a porta traseira e virou-se para ir embora.

Starling não podia deixar aquilo passar.

— Dou importância, sim, Sr. Crawford.

O policial fechou a meia-volta que iniciara, carregando seu fax e a pasta, e Starling sentiu que ele era toda atenção.

— Aqueles policiais sabem quem o senhor é — disse ela. Eles o observam bem, para ver como o senhor age. — A jovem mantinha-se ereta; encolheu os ombros, espalmou as mãos. Era isso, a pura verdade.

Crawford fez um esforço para manter-se frio.

— Devidamente anotado, Starling. Agora vá estudar o inseto.

— Sim, senhor.

Ficou observando enquanto ele se afastava: um homem de meia-idade carregado de volumes, a roupa amassada durante o vôo, a bainhas das calças enlameadas pelo rio, dirigindo-se para o que esperava em casa...

Seria capaz de qualquer coisa por ele. Esse era um dos grandes talentos de Crawford.

 

O Smithsonian’s National Museum of Natural History estava fechado há horas, mas Crawford telefonara antecipadamente e um guarda esperava Clarice Starling no portão da Constitution Avenue.

As luzes estavam reduzidas e não havia ventilação no museu fechado. Apenas a colossal figura de um chefe de tribo dos mares do sul diante da entrada era alta o bastante para que a fraca claridade no teto iluminasse seu rosto.

O guia de Starling era um enorme negro da bela coleção dos guardas do Smithsonian. Considerou-o parecido com o chefe tribal ao levantar os olhos para as luzes do elevador. Houve um momento de alívio em sua vã fantasia, como quando se esfrega a mão para aliviar uma dormência.

O segundo andar, por cima do grande elefante empalhado, um enorme recinto vedado ao público, é compartilhado pelos departamentos de Antropologia e Entomologia. Os antropologistas chamam-no de quarto andar. Os entomologistas insistem em que é o terceiro. Alguns cientistas do Departamento de Agricultura dizem ter provas de que é o sexto. Cada facção tem um escritório no velho edifício com seus acréscimos e subdivisões.

Starling seguiu o guarda até um labirinto escuro de corredores cheios até o teto com caixas de madeira contendo espécimes antropológicos. Pequenas etiquetas revelavam seu conteúdo.

— Milhares de criaturinhas nessas caixas — informou o guarda. — Quarenta mil espécimes.

Ele conferia o número dos escritórios com sua lanterna elétrica passando o feixe de luz sobre as tabuletas à medida que andavam. Mochilas para carregar bebês, caiaques e caveiras cerimoniais cederam lugar para afídios e eles deixaram para trás o homem caminhando para o mundo mais antigo e mais ordenado dos insetos. Agora o corredor tinha paredes formadas por grandes caixas metálicas pintadas de um verde pálido.

— Trinta milhões de insetos, e além disso as aranhas. Não confunda as aranhas com insetos — recomendou o guarda. — O povo das aranhas ficaria indignado. Você vai para ali, o escritório que está iluminado. Não tente retirar-se sozinha. Se eles não se oferecerem para acompanhá-la até embaixo, chame-me por esta extensão telefônica: é do escritório dos guardas. Virei buscá-la. — Entregou um cartão a Starling e deixou-a.

Ela estava agora no coração da Entomologia, numa galeria redonda, muito alta, acima do grande elefante empalhado. Lá estava o escritório com as luzes acesas e a porta aberta.

— Olhe o tempo, Pilch! — Era uma voz de homem estridente de excitação. — Vamos, homem! Olhe o tempo.

Starling parou no limiar da porta. Dois homens, sentados ante uma mesa de laboratório, jogavam xadrez. Ambos tinham cerca de 30 anos; um magro de cabelos pretos, o outro gorducho com cabelos ruivos espetados. Pareciam estar absorvidos no tabuleiro; se viram Starling, não deram o menor sinal disso. Se notaram um enorme besouro-rinoceronte que cruzava vagarosamente o tabuleiro, desviando-se das peças do jogo, também não deram sinal.

Nesse instante o besouro cruzou a borda do tabuleiro.

— Tempo, Roden — avisou o magro na mesma hora.

O gorducho movimentou o bispo e com a outra mão deu meia volta no besouro, que recomeçou a andar vagarosamente na direção contrária.

— E se o besouro cortar o caminho e sair pelo lado, o tempo se esgota? — perguntou Starling.

— É claro que o tempo se esgota — disse em voz alta o gorducho, sem levantar os olhos do tabuleiro. — Naturalmente que o tempo se esgota. Como é que você joga? Você o faz cruzar sempre todo o tabuleiro? E contra quem você joga? Uma preguiça?

— Trago comigo o espécime sobre o qual o agente especial Crawford telefonou.

— Não posso imaginar por que não ouvimos sua sirene — criticou o gorducho. — Estamos aqui a noite inteira esperando para identificar um besouro para o FBI. Besouros são o nosso negócio... Ninguém nos adiantou nada acerca do espécime do agente especial Crawford. Ele deveria mostrar o espécime em particular a seu médico de família.

— Tempo, Pilch!

— Eu gostaria de apreciar a rotina de vocês dois numa outra ocasião — reclamou Starling. — Meu assunto é urgente, portanto vamos tratar dele agora. Tempo, Pilch!

O camarada de cabelos pretos ergueu os olhos para ela, viu-a encostada no umbral da porta com sua pasta. Colocou o besouro rinoceronte numa caixa de madeira podre e cobriu-o com uma folha de alface.

Quando se levantou, viu-se que era bem alto.

— Meu nome é Noble Pilcher — apresentou-se. Este é Albertte Roden. Você precisa identificar um inseto? Teremos muito prazer em ajudá-la. — Pilcher tinha um rosto comprido e simpático, e seus olhos negros eram fascinantes e muito juntos. Um deles tinha um modo de fitar que o fazia refletir a luz independentemente do outro. Não se ofereceu para um aperto de mãos. — Você é? — perguntou.

— Clarice Starling.

— Vejamos o que trouxe aí.

Pilcher levantou o pequeno frasco contra a luz. Roden veio observar.

— Onde encontrou? Você o matou com seu revólver? Acaso viu a mamãe dele?

Starling ficou imaginando como seria inútil para Roden receber um bom soco na ponta do queixo.

— Psiu — fez Pilcher. — Diga-nos onde o encontrou. Estava preso a alguma coisa, um graveto, uma folha, ou estava no chão?

— Pelo que vejo ninguém informou nada a vocês — disse Starling

— O chefe nos pediu para ficar esperando e identificar um inseto para o FBI — esclareceu Pilcher.

— Nos mandou — corrigiu Roden. — Nos mandou ficar até mais tarde.

— Costumamos fazer isso para a Alfândega e para o Ministério da Agricultura — adiantou Pilcher

— Mas não esperando no meio da noite — comentou Roden.

— Preciso dizer-lhes um par de coisas que se relacionam a um crime — disse Starling. — Tenho permissão para falar se vocês mantiverem segredo até o caso estar resolvido. É importante. Trata de algumas vidas e não estou brincando. Dr. Roden, o senhor pode assegurar-me seriamente que respeitará minha confiança?

— Não sou doutor. Além disso, devo assinar alguma coisa?

— Não, se sua palavra tem valor. Terá apenas que me dar recibo do espécime se precisarem ficar com ele, nada mais.

— Dr. Pilcher?

— Naturalmente que a ajudarei. Não sou irresponsável.

— Posso confirmar. Ele não é irresponsável.

— Conto com a sua discrição?

— Não tocarei no assunto.

— Pilch também não é doutor — avançou Roden. — Quanto à educação profissional, estamos em pé de igualdade. Contudo, ele permitiu que você lhe conferisse o título. — Roden apoiou a ponte do indicador contra o queixo, como se destacasse sua judiciosa expressão.

— Dê-nos todos os detalhes. O que pode parecer irrelevante para você talvez seja uma informação vital para o perito.

— Este inseto foi encontrado atrás do véu palatino de uma vítima de assassinato. Não sei como foi parar ali. O corpo da vítima foi encontrado no rio Elk, em West Virgínia, e ela não estava morta há mais do que uns poucos dias.

— É Buffalo Bill, escutei no rádio — disse Roden.

— Você não ouviu sobre o inseto no rádio, ouviu? — indagou Starling.

— Não, mas eles falaram sobre o rio Elk. Você veio de lá, e é por isso que está chegando tão tarde?

— É isso — confirmou Starling.

— Você deve estar cansada, quer um pouco de café? — ofereceu Roden.

— Não, obrigada.

— Água?

— Não.

— Uma Coca?

— Acho que não. O que desejamos saber é onde essa mulher foi mantida cativa e onde foi assassinada. Temos a esperança de que esse inseto tenha algum habitat especial, que viva numa região limitada, entendem? Ou que só durma em alguma espécie de árvore. Queremos saber de onde ele veio. Estou pedindo sua discrição porque se o criminoso introduziu o inseto deliberadamente, então só ele saberia do fato e poderíamos utilizá-lo para eliminar falsas confissões e ganhar tempo. Ele já matou pelo menos seis pessoas. Para nós, o tempo é crítico,

— Você acha que ele mantém cativa outra mulher enquanto ficamos olhando para este inseto? — perguntou Roden inopinadamente. Tinha os olhos arregalados e a boca aberta, e por um momento ela pensou noutra coisa.

— Eu não sei — respondeu meio brusca. — Não sei mesmo — repetiu, tentando atenuar a agressividade da resposta. — Mas o fará de novo tão logo puder.

— Então trataremos disto tão cedo quanto for possível — prometeu Pilcher. — Não se preocupe. Somos peritos nisso. Você não poderia estar em melhores mãos. — Extraiu o objeto marrom do frasco com um delicado par de pinças e colocou-o em cima de uma folha de papel branco sob a luz. Aproximou um vidro de aumento montado num braço flexível para cima do inseto.

Este era comprido e parecia uma múmia. Estava envolto numa cobertura semitransparente que acompanhava suas linhas como um sarcófago. Seus apêndices estavam colados, tão justos contra o corpo que poderiam parecer esculpidos em baixo-relevo. A pequena cabeça parecia viva.

— Em primeiro lugar não é nada que normalmente pudesse infestar um corpo ao ar livre, e não estaria na água a não ser por acidente — disse Pilcher. — Não sei quão familiarizada você está com insetos ou quanto está disposta a escutar.

— Digamos que não sei nadinha. Quero que você me conte tudo.

— O.K. Aqui está uma ninfa, um inseto imaturo, numa crisálida; este é o casulo que o envolve enquanto ele se transforma de larva num adulto — disse Pilcher.

— Uma ninfa obtéctea, Pilch? — perguntou Roden enrugando o nariz para manter os óculos no lugar.

Bem, penso que sim. Quer pegar o livro de Chu sobre insetos imaturos? O.K. É este é o estágio ninfal de um inseto grande. A maioria dos insetos mais avançados tem um estágio ninfal. Grande parte deles passa o inverno desse modo.

— Quer o livro ou prefere examinar, Pilch? — indagou Roden.

— Vou dar uma olhada. — Pilcher transferiu o inseto para a mesa de um microscópio e debruçou-se sobre ela com uma ferramenta de exploração especial. — Vamos lá. Não tem órgãos respiratórios distintos na região dorso cefálica, mas vejo espiráculos no mesotórax e alguns abdominais. Comecemos com isto.

— Hum. Hum... — Fungou Roden, virando as páginas de um pequeno manual. — Mandíbulas funcionais?

— Neca.

— Gálias de maxilas pareadas no mesônio ventral?

— Sim, sim.

— Onde ficam as antenas?

— Adjacentes à margem mesal das asas. Dois pares de asas, o par de dentro totalmente coberto. Apenas os três segmentos abdominais debaixo estão livres. Pequenos cremasteres pontudos. Eu diria que é um lepidóptero.

— É o que diz aqui — confirmou Roden.

— É a família que inclui borboletas e mariposas. Abrange um enorme território... — salientou Pilcher.

— Vai ser difícil se as asas estão encharcadas. Vou buscar as referências — disse Roden. — Penso que não há jeito de impedir que vocês falem sobre mim enquanto eu estiver ausente.

— Penso que não — disse Pilcher. — Roden é boa pessoa acrescentou, tão logo o outro saiu da sala.

— Não duvido que seja.

— Será mesmo? — raciocinou Pilcher, parecendo divertido. Formamo-nos juntos, pleiteando e nos queixando de qualquer espécie de estágio que arranjávamos. Ele conseguiu um no qual tinha de ficar sentado dentro de uma mina de carvão aguardando a decadência de prótons. Ficou no escuro tempo demais. Ele é O.K. Apenas não fale na sua presença sobre a decadência de prótons...

— Procurarei evitar.

— É uma família enorme, a dos lepidópteros — ponderou Pilcher afastando-se da luz brilhante. — Talvez umas 30 mil borboletas e 130 mil mariposas. Gostaria de tirar esta da crisálida... serei obrigado a isso se quisermos identificá-la.

— O.K. Pode fazê-lo sem a dividir?

— Penso que sim. Veja, esta começou a libertar-se por conta própria antes de morrer. Ela iniciou uma fratura irregular na crisálida bem aqui. Acabar de tirá-la levará pouco tempo.

Pilcher alargou a fissura natural no casulo e retirou o inseto. As asas enfeixadas estavam encharcadas. Abri-las foi como trabalhar com um lenço de papel úmido e amassado. Não se percebia nenhum desenho.

Roden chegou de volta com os livros.

— Pronto? — perguntou Pilcher. — O.K. o fêmur protorácico está oculto.

— E quanto a pilíferos?

— Nada de pilíferos — respondeu Pilcher. — Quer apagar as luzes, policial Starling?

Ela esperou junto ao interruptor na parede até que a lanterna elétrica de Pilcher se acendesse. Depois ela afastou-se da mesa e fez a luz incidir sobre o inseto. Seus olhos brilharam no escuro, refletindo o estreito feixe de luz.

— Corujinha — disse Roden.

— Provavelmente, mas qual delas? — indagou Pilcher. Acenda a luz, por favor. É uma noctuídia, policial Starling, uma mariposa noturna. Quantas noctuídias existem, Roden?

— Duas mil e seiscentas e... cerca de duas mil e seiscentas foram descritas.

— Entretanto, não muitas deste tamanho. O.K., vejamos você fazer bonito, camarada.

A cabeça de cabelos ruivos e duros de Roden cobriu o microscópio.

— Agora temos que apelar para a chaetaxia estudar a pele do inseto para descobrir sua espécie — ensinou Pilcher. — Roden é um craque nisso.

Starling teve a sensação de que uma espécie de paz se havia derramado sobre a sala.

Roden respondeu começando uma feroz discussão com Pilcher sobre se as marcas larvais do espécime estavam dispostas em círculos ou não. A discussão continuou agora sobre a disposição dos cabelos no abdome.

— Erebus odora — exclamou finalmente Roden.

— Vamos dar uma olhada — disse Pilcher.

Levaram o espécime com eles, descendo no elevador até o andar logo acima do elefante empalhado. Chegaram a um enorme quadrilátero cheio de caixas pintadas de verde-claro. O que havia sido anteriormente um grande saguão fora convertido em dois níveis, com andares para prover mais espaço de depósito para os insetos do Smithsonian. Eles estavam agora na seção de neotropicais, andando para noctuídios. Pilcher consultou o caderno de notas e parou numa caixa à altura de seu peito na grande pilha da parede.

— A gente tem que tomar cuidado com essas coisas — ponderou ele, abrindo a pesada porta metálica da caixa e depositando-a no chão. — Se deixar que caia uma destas no seu pé, vai andar capengando durante semanas.

Correu os dedos pelas gavetas superpostas da caixa, escolheu uma e puxou-a para fora.

Na bandeja, Starling viu os minúsculos ovos conservados, a lagarta num tubo de álcool, o casulo retirado de um espécime muito semelhante ao dela, e o adulto: uma grande mariposa marrom e preta com envergadura de asas de uns 15 centímetros, o corpo peludo e delicadas antenas.

— Erebus odora — confirmou Pilcher. — A mariposa conhecida como Feiticeira Negra.

Roden já estava virando as páginas de um livro.

— Uma espécie tropical que às vezes chega até o Canadá no outono — leu ele. — As larvas comem acácia, unha-de-gato e plantas semelhantes. Habitam o sul dos Estados Unidos, as índias Ocidentais, e no Havaí são consideradas uma praga.

Que droga!, pensou Starling.

— Droga — repetiu ela em voz alta. — Estão por toda parte!

— Mas não estão por toda parte ao mesmo tempo. — Pilcher mantinha a cabeça abaixada e coçava o queixo. — Elas se reproduzem duas vezes, Roden?

— Quando?

— Espere um momento... Sim, no extremo sul da Flórida e no sul do Texas.

— Em maio e agosto.

— Eu estava justamente pensando — disse Pilcher. — Seu espécime é um pouco mais bem desenvolvido do que o que temos, e é novo. Estava começando a romper o casulo para sair. Nas índias Ocidentais ou no Havaí, eu talvez pudesse entender, mas aqui estamos no inverno. Neste país ele teria que esperar uns três meses para sair. A não ser que acontecesse acidentalmente numa estufa, ou que alguém o criasse.

— Criasse?

— Numa gaiola, num lugar quente, com algumas folhas de acácia para as larvas se alimentarem até que estivessem aptas a sair de seus casulos. Não é difícil fazer isso.

— Será esse um hobby popular? Além de estudantes e profissionais, alguém mais faz isso?

— Não, quem o faz são principalmente entomologistas tentando obter um espécime perfeito, talvez alguns colecionadores. Existe também a indústria da seda, que cria algumas mariposas, mas não desta espécie.

— Entomologistas devem receber publicações periódicas e jornais especializados, e conhecer pessoas que vendem equipamento observou Starling.

— Por certo, e muitas das publicações vêm para cá.

— Vou oferecer-lhe um pacote delas — disse Roden. — Alguns camaradas aqui são assinantes particulares de boletins profissionais menores. Eles os mantêm reservados e cobram 25 centavos para deixar você dar uma olhada naquelas estúpidas coisas. Terei que consegui-los amanhã de manhã.

— Providenciarei para que sejam apanhados. Obrigada, Sr. Roden.

Pilcher tirou fotocópias das referências sobre Erebus odora e as entregou a Starling, junto com o inseto.

— Vou levá-la até lá embaixo — ofereceu-se.

— A maioria das pessoas gosta de borboletas e detesta mariposas — frisou Pilcher enquanto aguardavam o elevador. — Mas as mariposas são mais interessantes, mais misteriosas.

— Elas são destruidoras.

— Algumas sim, uma porção delas, mas veja que vivem toda espécie de vidas. Da mesma forma que nós.

Desceram em silêncio.

— Existe uma mariposa, aliás, mais do que uma, que se alimenta só de lágrimas — explicou. — É só o que comem ou bebem.

— Que espécie de lágrimas? Lágrimas de quem?

— As de grandes mamíferos terrestres, mais ou menos do nosso tamanho. A velha definição das mariposas dizia que eram “qualquer coisa que gradualmente e em silêncio come, consome ou destrói qualquer outra coisa”. Havia um verbo que significava também destruição... É isso o que você faz todo o seu tempo — caçar Buffalo Bill?

— Eu faço tudo o que posso.

Pilcher passou a língua sobre os dentes, movendo-a por trás dos lábios, como fazem os gatos.

— Você alguma vez sai para comer uns cheesburgers com uma cerveja ou tomar um copo de vinho para se distrair?

— Ultimamente não...

— Aceitaria agora comer qualquer coisa comigo? Não é longe...

— Não, mas aceitaria quando o caso terminar... e o Sr. Roden poderá ir também, naturalmente.

— Não há nada de natural em incluí-lo... — Comentou Pilcher. E quando chegaram à porta: — Espero que acabe com isso em breve, policial Starling.

Correu apressada para o carro que a esperava.

Ardelia Mapp deixara a correspondência e a metade de uma barra de chocolate Mounds em cima da cama de Starling. Ardelia dormia.

Starling levou sua máquina de escrever portátil para o quarto da lavanderia no subsolo, colocou-a em cima da mesa de passar e enfiou na máquina duas folhas com carbono. Tinha organizado em sua cabeça as notas sobre Erebus odora durante a viagem de volta para Quântico e redigiu-as rapidamente.

A seguir comeu o chocolate Mounds e escreveu um memorando para Crawford sugerindo que fizessem uma investigação cruzada entre as listas de endereços computadorizados das publicações de entomologia e as listas dos criminosos conhecidos pelo FBI, consultando os arquivos das cidades mais próximas aos raptos, bem como aqueles sobre os criminosos sexuais de Metro Dade, San Antonio e Houston, as áreas onde aquelas mariposas eram mais comuns.

Havia outra coisa que ela tinha de trazer à tona pela segunda vez: Vamos perguntar ao Dr. Lecter por que ele achava que o criminoso iria começar a retirar escalpos.

Entregou os papéis ao funcionário de serviço noturno e caiu no seu leito acolhedor, as vozes do dia ainda sussurrando, mais suavemente do que Mapp a respirar no outro lado do quarto. Na envolvente escuridão pensou ver a cara esperta da mariposa. Aqueles olhos brilhantes tinham visto Buffalo Bill.

Após a cósmica ressaca que o Smithsonian lhe deixara veio-lhe um último pensamento e a coda para o dia: Sobre este estranho mundo, esta metade do mundo agora imersa no escuro, tenho que caçar uma coisa que vive de lágrimas.

 

Em East Memphis, Tennessee, Catherine Baker Martin e seu namorado preferido estavam vendo um filme tarde da noite na televisão no apartamento dele e dando umas tragadas num cachimbo bong carregado com haxixe. Os intervalos comerciais começaram a tornar-se mais longos e freqüentes.

— Estou com vontade de mastigar alguma coisa. Você quer umas pipocas? — perguntou ela.

— Vou buscá-las, dê-me suas chaves.

— Fique quieto aqui. De qualquer modo, preciso ver se mamãe telefonou.

Ela levantou-se do divã. Era uma jovem alta, de ossos grandes e bem carnudos, quase pesadona, com um belo rosto e uma basta cabeleira. Encontrou os sapatos embaixo do divã, calçou-os e saiu.

A noite de fevereiro estava mais úmida do que fria. Uma ligeira cerração vinda do Mississipi pairava à altura do tórax das pessoas sobre a grande área de estacionamento. Bem acima dela, podia ver a lua em quarto minguante, pálida e fina como um anzol feito de osso. Levantar os olhos e a cabeça tonteou-a um pouco. Começou a atravessar o estacionamento, dirigindo-se em linha reta para o lugar onde vivia, a uns 100 metros de distância.

O caminhão marrom de carroceria aberta estava estacionado próximo ao apartamento dela, no meio de algumas casas sobre rodas e barcos sobre carretas. Ela notou-o particularmente porque ele se parecia com os caminhões de entrega de encomendas que muitas vezes traziam presentes de sua mãe.

Ao passar perto do veículo, um abajur apareceu no meio da neblina. Era uma lâmpada de pedestal colocada no chão, com seu abajur em cima, no asfalto por trás do caminhão. Ao lado havia uma grande poltrona estofada, coberta por um tecido de chintz estampado com flores vermelhas e grandes surgindo do meio da névoa. As duas peças pareciam um conjunto de móveis expostos numa mobiliária.

Catherine Baker Martin piscou os olhos várias vezes e continuou andando. Pensou na palavra surrealista e atribuiu a lembrança ao bong. Contudo, não estava delirando. Alguém se mudava para cá ou para fora. Chegando; partindo: alguém estava sempre de mudança na Stonehinge Villas. A cortina do seu apartamento ondulou e ela viu o gato no peitoril da janela, empinando as costas e roçando o corpo de encontro ao vidro.

Tinha a chave pronta na mão e antes de usá-la olhou para trás. Um homem pulara da traseira do caminhão. Podia ver à luz do poste que ele tinha a mão engessada e o braço numa tipóia. Ela entrou na casa e fechou a porta.

Catherine Baker Martin espiou para fora afastando um pouco a cortina e viu que o homem tentava colocar a poltrona pela traseira do caminhão. Agarrou-a com a mão boa e tentou ajudar com o joelho. A poltrona caiu. Ele endireitou-a, lambeu o dedo e esfregou-o num ponto que a sujeira do chão manchara o chintz.

Ela resolveu sair para ajudar.

— Posso ajudá-lo, quer? — Usou um tom adequado, apenas de cooperação.

— Você me ajudaria? Muito obrigado. — Uma voz estranha, tensa. Não era o sotaque da gente do local.

O abajur iluminou-lhe o rosto de baixo para cima, distorcendo suas feições, mas ela pôde ver-lhe claramente o corpo. Ele usava calça cáqui passada a ferro e uma espécie de camisa de camurça, desabotoada e mostrando um peito sardento. O queixo e o rosto eram glabros, lisos como os de uma mulher, e os olhos apenas pontinhos de luz sobre os malares à sombra da lâmpada.

Ele também a contemplou e ela se ressentiu com isso. Os homens muitas vezes ficavam surpresos com seu tamanho quando ela chegava perto deles, e alguns escondiam a reação melhor do que outros.

— Bom — comentou ele.

O homem exalava um cheiro desagradável e ela notou com repugnância que a camisa de camurça tinha pêlos, pêlos crespos nos ombros e embaixo dos braços.

Foi fácil levantar a poltrona até o piso abaixo do caminhão.

— Vamos empurrá-la para frente, você se incomoda? — Ele pulou para dentro e movimentou algo no piso — uma daquelas grandes bandejas chatas que servem para drenar o óleo e um pequeno guincho manual.

Empurraram a poltrona para frente até que ela ficasse logo atrás dos assentos da cabine.

— Você é mais ou menos número 14?

— O quê?

— Pode me passar aquela corda? Está bem a seus pés.

Quando a mulher se abaixou para olhar, ele deixou cair o gesso da mão com força na sua nuca. Ela pensou ter batido com a cabeça numa trave e tentou segurá-la, mas a mão engessada golpeou de novo, batendo com o punho contra seu crânio; e de novo, desta vez atrás da orelha, numa sucessão de golpes muito bem calculados, até ela cair em cima da poltrona. Dai ela escorregou para o piso do caminhão e ficou imóvel, deitada de lado.

O homem observou-a por um momento, depois retirou o gesso e a tipóia do braço. Rapidamente trouxe o abajur para dentro do carro, fechando as portas traseiras.

Puxou a gola da blusa da mulher para trás e, com uma lanterna elétrica, observou o tamanho daquela peça de roupa na etiqueta.

— Bom — resmungou.

Com uma tesoura cortou a blusa nas costas e, tirando-a, com ela amarrou-lhe os pulsos por trás. Esticou uma lona de cobrir mudanças no piso do caminhão e fê-la deitar em cima, de costas.

Ela não usava sutiã. O homem apalpou-lhe os grandes seios com os dedos, sentindo o peso e a resistência.

— Bom — repetiu.

Havia uma marca rosada de um chupão no seio esquerdo. Ele lambeu o dedo para esfregá-lo como fizera com o chintz e balançou a cabeça quando a mancha desapareceu após uma ligeira pressão. Em seguida rolou-a de barriga para baixo e avaliou seu couro cabeludo, separando o cabelo com os dedos. O gesso não havia causado cortes.

Verificou a pulsação dela com dois dedos ao lado de seu pescoço e constatou que estava forte.

— Booom... — disse.

Ele tinha muito caminho pela frente até chegar à sua casa de dois andares e preferia não prepará-la ali.

O gato de Catherine Baker Martin observava da janela quando o caminhão se afastou, as luzes da traseira se tornando cada vez mais juntas.

Por trás do gato o telefone tocava. A secretária eletrônica que ficava no quarto respondeu, sua lâmpada vermelha piscando no escuro.

Quem chamava era a mãe de Catherine, a mais jovem senadora dos Estados Unidos — pelo estado do Tennessee.

Na década de 80, a Idade de Ouro do terrorismo, havia procedimentos em vigor para cuidar de raptos que afetassem membros do Congresso.

Às 2:45 da manhã o agente especial encarregado do escritório do FBI em Memphis comunicou ao quartel-general em Washington que a filha única da senadora Ruth Martin desaparecera.

Às 3:00 dois furgões sem marcas saíram da úmida garagem no subsolo do escritório regional de Washington, em Buzzard’s Point. Um furgão foi para o Edifício de Escritórios do Senado, onde técnicos colocaram aparelhagem de monitoração e gravação nos telefones do escritório da senadora Martin e instalaram uma Escuta Título 3 nos telefones públicos mais próximos ao escritório da senadora. O Ministério da Justiça acordou o membro mais jovem do Comitê de Inteligência Especial do Senado para fazer-lhe a obrigatória notificação da instalação de escuta.

O outro veículo, um “furgão de vigilância” com vidro unidirecional e equipamento próprio para sua função, estacionou na Virgínia Avenue para cobrir a frente de Watergate West, a residência da senadora Martin em Washington. Dois dos homens ocupantes do furgão entraram no edifício para instalar equipamentos de monitoração nos telefones da casa da senadora.

A Bell Atlantic estimava em 70 segundos o tempo médio para traçar um telefonema para qualquer chamada de resgate num sistema telefônico digital doméstico.

A Esquadra de Reação de Buzzard’s Point entrou em turnos dobrados para a eventualidade do pagamento de um resgate na área de

Washington. Seu procedimento por rádio mudou para uma inscrição mandatória a fim de proteger qualquer notificação de resgate contra a intrusão de helicópteros de noticiários — essa espécie de irresponsabilidade por parte das empresas de notícias era rara, mas tinha acontecido.

O Grupo de Resgate de Reféns entrou em estado de alerta, e a apenas um passo de embarque aéreo.

Todo mundo esperava que o desaparecimento de Catherine Baker Martin fosse um rapto profissional para cobrança de resgate; essa hipótese oferecia a melhor chance para sua sobrevivência.

Ninguém mencionou a pior possibilidade.

Então, um pouco antes do romper do dia em Memphis, um patrulheiro da cidade, investigando uma queixa de invasão de domicílio na Winchester Avenue, interpelou um velho que coletava latas de alumínio e restos ao longo do acostamento da estrada Em seu carro o patrulheiro encontrou uma blusa de mulher, ainda abotoada na frente. A blusa estava cortada nas costas, como uma roupa de funeral. A marca da lavanderia citava Catherine Baker Martin.

Jack Crawford dirigia para o sul vindo de sua casa em Arlington às 6:30 quando o telefone do carro chamou pela segunda vez em dois minutos.

— Nove vinte-e-dois, quarenta.

— Quarenta na escuta para Alfa 4.

Crawford descobriu uma área de acostamento, deteve-se ali, parando o carro para prestar maior atenção ao telefone — Alfa 4 era o diretor do FBI.

— Jack, você está ciente de Catherine Martin?

— O oficial de serviço noturno acaba de me telefonar.

— Então você sabe sobre a blusa. Informe qualquer coisa.

— Buzzard’s Point entrou em alerta de rapto — disse Crawford. — Eu preferiria que não se retirassem por enquanto. Quando o fizerem, gostaria de manter vigilância telefônica. Sem a blusa cortada ou não, não temos certeza de que é Bill. Se for um imitador, poderá pedir um resgate. Quem é que está fiscalizando telefones e seguindo pistas em Tennessee, nós ou eles?

— Eles. A polícia estadual. São muito bons. Phil Adler telefonou da Casa Branca para me comunicar o “grande interesse” do presidente. Poderíamos marcar um tento neste caso Jack.

— Isso já me ocorreu. Onde está a senadora?

— A caminho de Memphis. Ligou para minha casa há um minuto. Você pode imaginar...

— Sim. — Crawford conhecia a senadora das audiências sobre orçamento.

Ela vai agir com todo o peso de que dispõe.

— Não a censuro por isso.

— Nem eu — completou o diretor. — Assegurei a ela que vamos empenhar-nos de corpo e alma, como vimos fazendo até agora. Ela está... está ciente da sua situação pessoal e ofereceu-lhe um Lear da companhia dela. Use-o. Venha para casa à noite, se desejar.

— Bom. A senadora é dureza, Tommy. Se ela tentar interferir nós vamos nos digladiar.

— Sei disso. Descarregue qualquer coisa em cima de mim se tiver que fazê-lo. Qual é a melhor perspectiva, Jack? Seis ou sete dias?

— Não sei. Se ele entrar em pânico quando souber, quem ela é, poderá liquidá-la e despejá-la em algum lugar.

— Onde você está?

— A três quilômetros de Quântico.

— A pista de Quântico recebe um Lear Jet?

— Sim.

— Em 20 minutos.

— Sim, senhor. Crawford digitou alguns números no seu telefone e voltou com o carro para o tráfego da estrada.

 

Cansada de uma noite agitada, Clarice Starling estava de roupão (chinelos de banho, a toalha no ombro, esperando para entrar no banheiro que ela e Mapp compartilhavam com as estudantes do quarto ao lado. As notícias de Memphis no rádio interromperam-lhe a respiração.

— Oh, meu Deus! — Suspirou. — Que coisa! MUITO BEM, VOCÊ AÍ DENTRO! ESTE BANHEIRO ESTÁ OCUPADO. SAIA COM AS CALÇAS ENFIADAS. ISTO NÃO É UM EXERCÍCIO! — Pulou para dentro do chuveiro com uma espantada colega do quarto ao lado. — Chega para lá, Gracie, e faça o favor de me passar aquele sabonete.

Com o ouvido pregado no telefone, fez uma maleta para a noite e depositou seu estojo de datiloscopia perto da porta. Certificou se de que a telefonista sabia que ela estava no seu quarto e desistir do desjejum para ficar grudada no telefone. Quando faltavam 11 minutos para o início das aulas, sem receber nenhum recado, correu até a Ciência do Comportamento com seu equipamento.

— O Sr. Crawford viajou para Memphis há 45 minutos — informou a secretária delicadamente. — Burroughs foi com ele e Stafford, do laboratório, partiu para lá, do Aeroporto National.

— Deixei um relatório para ele na noite passada. Ele não deixou nenhuma mensagem para mim? Meu nome é Clarice Starling.

— Sei quem você é. Tenho três números de telefones seus e há mais alguns na mesa dele, acredito. Não, ele não deixou nada para você, Clarice. — A moça olhou para a mala de Clarice. — Gostaria que eu informasse qualquer coisa a ele quando telefonar?

— Ele deixou algum número de telefone em Memphis?

— Não, mas ficou de telefonar. Você tem aulas hoje, Clarice? Você ainda está na escola, não está?

— Sim, sim. Estou.

A entrada de Starling, atrasada, na aula, não foi facilitada por Gracie Pitman, a pequena que ela tinha deslocado no chuveiro. Gracie Pitman sentava-se logo atrás de Starling O caminho até seu lugar pareceu-lhe longo. A língua de Gracie Pitman teve tempo de fazer duas voltas completas na sua bochecha macia antes que Starling pudesse absorver-se na classe.

Sem desjejum, teve que assistir a duas horas de “A Exceção do Mandado de Boa-Fé nas Regras Exclusivas de Pesquisa e Captura”, antes de se dirigir à máquina automática e tomar uma coca-cola.

Verificou sua caixa de correspondência ao meio-dia, não havia nada. Ocorreu-lhe então, como já havia ocorrido em umas poucas outras ocasiões na sua vida, que uma intensa frustração tem o gosto muito parecido com um medicamento chamado Fleet que ela tivera de tomar quando era criança.

Certos dias a gente acorda diferente; este era um deles para Starling. O que ela vira na véspera na Casa Funerária de Potter causara-lhe um pequeno deslocamento tectônico.

Starling estudara psicologia e criminologia numa boa escola. Durante a vida pudera observar algumas das horríveis e precipitadas formas com que o mundo destrói as coisas. Mas realmente não tinha jamais imaginado que às vezes os seres humanos produzem, atrás de um rosto com aparência humana, uma mente cujo prazer era aquilo que jazia na mesa de porcelana em Potter, West Virgínia, na sala forrada de papel decorado com rosas. Seu primeiro encontro com uma mente daquele tipo chocou-a mais do que qualquer coisa que pudesse ver em mesas de autópsia. Tal conhecimento ficaria entranhado na sua pele para sempre, e ela sabia que tinha de criar uma crosta ou aquilo a penetraria.

A rotina da escola não a ajudou. Durante todo o dia, manteve a impressão de que as coisas estavam acontecendo além do horizonte. Parecia-lhe escutar um surdo rumor de eventos, como o som vindo de um estádio distante, sugestões de movimento, grupos passando pelos corredores, a sombra das nuvens correndo no solo, o ronco de um avião — tudo a perturbava.

Depois das aulas Starling deu muitas voltas correndo e a seguir mergulhou na piscina. Nadou até imaginar que o fazia sobre cadáveres flutuantes e então não quis mais sentir a água em volta do seu corpo.

Na sala de recreação, assistiu ao noticiário das sete com Mapp e mais uma dúzia de outras estudantes. O rapto da filha da senadora Martin não era a notícia mais importante, mas foi a primeira após a conferência sobre desarmamento em Genebra.

Apareceu um filme de Memphis, começando com o cartaz dos Stonehinge Villas fotografado à luz giratória de um carro-patrulha. A mídia estava dando importância à história e, com poucas novidades a noticiar, os repórteres entrevistaram uns aos outros nos estacionamentos de Stonehinge. As autoridades de Memphis e do condado de Shelby procuravam evitar a grande quantidade de microfones, com os quais não estavam acostumadas. Naquela confusão, de reflexos das lentes e de sons de áudio, relatavam os dados e expunham suas dúvidas. Fotógrafos movimentavam-se para um lado e outro, esbarrando nas minicâmaras de TV toda vez que os investigadores entravam ou saíam do apartamento de Catherine Baker Martin.

Um breve e irônico aplauso ecoou na sala de recreios da Academia quando o rosto de Crawford apareceu brevemente na janela do apartamento. Starling esboçou um meio sorriso.

Pensou se Buffalo Bill estaria assistindo à TV. Cismava o que ele acharia do rosto de Crawford ou até mesmo se ele sabia quem era Crawford.

Outras pessoas também pareciam pensar que Buffalo Bill estava assistindo.

Uma era a senadora Martin, num programa ao vivo na televisão, com Peter Jennings. Aparecia sozinha no quarto da filha, com uma pequena bandeira da Universidade do Sudoeste e pôsteres promovendo Wile E. Coyote e a Emenda de Direitos Iguais na parede por trás dela. Uma mulher alta, rosto enérgico e franco.

— Estou me dirigindo agora à pessoa que mantém minha filha em seu poder — disse. Aproximou-se mais da câmara, provocando uma desfocalização imprevista e falou como nunca falaria sequer a um terrorista. — Você tem o poder de livrar minha filha sem lhe causar danos. O nome dela é Catherine. Ela é muito gentil e compreensiva. Por favor, solte minha filha, por favor liberte-a sem machucá-la. Você tem o controle da situação. Você tem o poder. Você domina. Eu sei que você pode sentir amor e compaixão. Você é capaz de protegê-la contra qualquer coisa que possa causar-lhe dano. Você agora tem uma maravilhosa oportunidade de mostrar a todo mundo que é capaz de muita bondade, que é suficientemente grande para tratar outra pessoa melhor do que o mundo a tratou. O nome dela é Catherine.

Os olhos da senadora Martin afastaram-se da câmara quando a imagem mudou para uma cena de filme doméstico mostrando uma criança que aprendia a andar agarrando-se aos pêlos do pescoço de um grande collie.

— O filme que você está vendo agora é de Catherine quando ainda era uma criancinha. Liberte Catherine. Liberte-a sem lhe fazer mal em qualquer lugar deste país e você terá minha ajuda e minha amizade — continuou a voz da senadora.

Seguiu-se uma série de fotografias — Catherine Martin aos oito anos segurando o leme de um barco a vela; este estava em seco, sobre calços, e o pai dela pintava o casco. Duas fotos recentes da jovem, uma de corpo inteiro e um close do seu rosto.

Agora a câmara voltou para a senadora em close:

— Prometo-lhe, tendo como testemunha todo este país, que você contará com meu apoio sem restrições sempre que necessitar. Estou em boas condições para ajudá-lo. Sou uma senadora dos Estados Unidos. Sirvo no Comitê das Forças Armadas. Estou envolvida na Iniciativa de Defesa Estratégica, o sistema de armas espaciais que todos chamam de Guerra nas Estrelas. Se você tem inimigos, lutarei contra eles. Se alguém o perseguir, eu impedirei. Pode telefonar-me a qualquer hora, dia ou noite. Catherine é o nome de minha filha. Por favor, mostre-nos sua força — acrescentou a senadora Martin, encerrando seu apelo — , liberte Catherine sem fazer-lhe mal.

— Puxa, uma atitude muito esperta — comentou Starling. Tremia de nervosa, como um cachorrinho. — Puxa, ela foi muito esperta!

— O quê? A Guerra nas Estrelas? — disse Mapp. — Se os alienígenas estão tentando controlar os pensamentos de Buffalo Bill de outro planeta, a senadora Martin pode protegê-lo; é essa a idéia?

Starling balançou a cabeça afirmativamente.

— Uma porção de paranóicos esquizofrênicos tem essa alucinação especial — controle alienígena. Se Bill funciona dessa forma, talvez a promessa possa fazê-lo expor-se. É uma porra duma idéia muito boa, e ela ficou ali de pé e a disparou, não foi? Pelo menos poderá conseguir mais alguns dias para Catherine. Haverá mais tempo para investigar Bill. Ou talvez não; Crawford pensa que o período dele está se tornando mais curto. Mas pode-se tentar isso, pode-se tentar outras coisas.

— Não há nada que eu não tentaria se se tratasse de gente minha. Por que ela ficou repetindo “Catherine”, por que repetir esse nome tantas vezes?

— Ela tenta fazer Buffalo Bill ver Catherine como uma pessoa. Acredita-se que Bill terá que despersonalizá-la, terá que vê-la como um objeto antes de destruí-la. Alguns assassinos em série dão a entender isso em entrevistas na prisão. Dizem que é como trabalhar com uma boneca.

— Você está enxergando Crawford atrás das declarações da senadora?

— Talvez, ou talvez o Dr. Bloom; aí está ele — apontou Starling Na tela apareceu uma entrevista gravada havia várias semanas com o Dr. Alan Bloom, da Universidade de Chicago, sobre assassinatos em série. O Dr. Bloom recusou-se a comparar Buffalo Bill com Francis, Dolarhyde ou Garrett Hobbs ou qualquer um dos outros da sua experiência. Recusou-se a utilizar o nome Buffalo Bill. De fato ele falou pouco, mas era conhecido como um perito, talvez o perito no assunto, e a rede desejava mostrar sua imagem.

Usaram sua última declaração como o ponto alto no fim da entrevista:

— Nada com que possamos ameaçá-lo será mais terrível que o que ele enfrenta a cada dia. Só podemos pedir-lhe que venha a nós. E prometer-lhe um tratamento bondoso e ajuda. Podemos fazer isso de modo absoluto e sincero.

— Nós todos não podemos ajudar um pouco? — indagou Mapp. — Que eu me dane se não posso dar um pouco de ajuda eu mesma. Muita confusão e muita conversa fiada. Adorei! Ele não disse nada de especial na TV, e provavelmente o Bill não deve ter-se emocionado muito.

— Só consigo parar de pensar naquela garota de West Virginia durante algum tempo — disse Starling. — A imagem dela desaparece, digamos, por uma meia hora, e depois me afoga de novo Esmalte brilhante nas unhas... não quero pensar nisso de novo.

Mapp, abordando as muitas coisas que a entusiasmavam, aliviou a tristeza de Starling durante o jantar e fascinou os que a ouviam, comparando os ritmos entre os trabalhos de Stevie Wonde e Emily Dickinson.

Ao voltar para seu quarto, Starling encontrou uma mensagem em sua caixa e leu: Por favor chame Albert Roden — e a seguir um número de telefone.

— Isto prova exatamente minha teoria — disse ela a Mapp quando se estenderam nas camas com seus livros.

— Qual é ela?

— Você conhece dois caras, certo? E o cara errado é o que sempre telefona para você.

— Sim, já notei isso...

O telefone soou.

Mapp tocou com o lápis na ponta do nariz.

— Se for aquele esquentado do Bobby Lowrance, quer dizer lhe que eu estou na biblioteca? — instruiu Mapp. — Diga-lhe que telefono amanhã.

Era Crawford telefonando de um avião, a voz arranhada pelo microfone.

— Starling, faça uma maleta para duas noites e me encontre dentro de uma hora.

Ela pensou que ele tinha saído do ar, porque havia apenas um zumbido no telefone, mas a voz voltou abruptamente:

— ...Não precisa levar seu estojo, apenas roupas.

— Encontro-o onde?

— No Smithsonian. — E Crawford começou a falar com alguém antes de desligar.

— Jack Crawford — revelou Starling, abrindo sua maleta na cama.

A cabeça de Mapp apareceu por cima do seu Código Federal de Procedimento Criminal. Ficou espiando Starling arrumar a mala, as pálpebras caindo sobre os grandes olhos negros.

— Não pretendo pôr minhocas na sua cabeça — disse ela.

— Você pretende, sim — refutou Starling. Ela sabia o que estava por acontecer.

Mapp cursara Revisão de Direito na Universidade de Maryland enquanto trabalhava à noite. Era a segunda aluna na classe, sua atitude com relação aos livros um puro banzai.

— Você deverá fazer seu exame de Código Criminal amanhã e o teste PE dentro de dois dias. Certifique-se de que Sua Majestade Crawford sabe que você terá que repetir o ano se ele não tiver cuidado. Tão logo ele diga: “Bom trabalho, treinanda Starling!” você não deve dizer: “O prazer foi todo meu!” Deve encarar aquele rosto de estátua da Ilha da Páscoa e dizer: “Espero que o senhor mesmo providencie que eu não seja reprovada por faltar às aulas.” Entende o que estou querendo dizer?

— Posso conseguir uma segunda época no Código — garantiu Starling, abrindo um grampo de cabelos com os dentes.

— Ora, se for reprovada por falta de tempo para estudar, você pensa que eles não vão fazê-la repetir? Está brincando comigo? Bobinha! Eles a jogam pelas escadas do fundo como se fosse uma galinha morta. A gratidão tem uma meia-vida curta, Clarice. Faça com que ele prometa: “Nada de reprovação.” Você tem boas notas — faça-o dizer isso. Nunca encontrarei outra companheira de quarto que passe a ferro tão rápido como você quando falta um minuto para a aula...

Starling conduzia seu carro pela estrada de quatro pistas numa marcha firme, uma milha por hora abaixo da velocidade em que o shimmy aparecia. Os cheiros de óleo queimado e mofo, os grilos embaixo do carro, o ronco da transmissão evocavam fracamente as lembranças da caminhonete do pai, suas memórias de andar ao lado dele com seus inquietos irmãos e irmã.

Agora quem dirigia era ela, à noite, os traços brancos no asfalto passando por baixo do carro blip, blip, blip. Tinha tempo para pensar. Seus temores sopravam muito próximo à nuca; outras lembranças mais recentes, agitavam-se a seu lado.

Starling receava muito que o corpo de Catherine Baker Martin já tivesse sido encontrado. Quando Buffalo Bill descobrira quem ela era, teria entrado em pânico. Talvez a tivesse matado, atirando fora o corpo com um inseto na garganta.

Talvez Crawford estivesse trazendo o inseto para ser identificado. Por que outro motivo a quereria no Smithsonian? Contudo, qualquer agente poderia trazer um inseto para o Smithsonian, até mesmo um mensageiro do FBI. E ele lhe dissera que levasse roupa para dois dias.

Podia entender que Crawford nada lhe explicasse através de uma ligação de rádio insegura, mas era de enlouquecer ficar cismando.

Encontrou no rádio uma estação só de notícias e esperou que terminasse o boletim do tempo. Quando vieram, as notícias em nada a ajudaram. A história sobre Memphis foi uma repetição do noticiário das sete. A filha da senadora Martin desaparecera. Sua fina blusa fora encontrada cortada nas costas ao estilo de Buffalo Bill. Nada de testemunhas. A vítima encontrada em West Virginia permanecia não identificada.

West Virginia. Entre as lembranças de Clarice Starling da Casa Funerária de Potter havia algo sólido e valioso. Um elemento durável, brilhando a parte das tenebrosas revelações. Algo para guardar. Ela agora o recordava deliberadamente e via que podia apertá-lo como um talismã. Na Casa Funerária de Potter, de pé ao lado da pia, descobrira energia de uma fonte que a surpreendera e agradara: a memória de sua mãe. Starling sobrevivera a agrados de segunda mão desde seu falecido pai até seus irmãos; e ficou surpresa e comovida pela recompensa que encontrara.

Estacionou o carro diante do quartel-general do FBI na Rua 10 com Pensilvânia. Duas equipes de televisão estavam na calçada, os repórteres parecendo exageradamente elegantes sob as luzes, Realizavam reportagens mostrando o Edifício J. Edgard Hoovei como cenário de fundo. Starling desviou-se das luzes e caminhou dois quarteirões até o National Smithsonian Museum of Natura History.

Podia distinguir no alto do edifício algumas janelas iluminadas. Uma caminhonete da polícia do condado de Baltimore estava na entrada semicircular. Jeff, o chofer de Crawford, aguardava ao volante de uma caminhonete de vigilância nova estacionada atrás da outra. Quando viu Starling chegando, falou qualquer coisa ao microfone de um rádio portátil.

 

O guarda levou Clarice Starling ao segundo andar acima do grande elefante empalhado do Smithsonian. A porta do elevador abriu-se naquele vasto e obscuro patamar e lá estava Crawford esperando, sozinho, as mãos enfiadas no. bolsos de seu impermeável.

— Boa noite, Starling.

— Alô — cumprimentou ela.

Voltando-se para o guarda, sobre o ombro dela, Crawford disse:

— Daqui podemos seguir sozinhos, guarda. Obrigado.

Crawford e Starling caminharam ao longo do corredor cheio de bandejas e caixas empilhadas contendo espécimes antropológicos. Algumas luzes do teto estavam acesas, não muitas. Quando acertou o passo com ele, na atitude discreta e reflexiva de uma caminhada no campus, Starling teve a impressão de que Crawford queria passar o braço por seus ombros, que o teria feito se lhe fosse possível tocá-la.

Esperou que o homem dissesse alguma coisa. Finalmente ele parou, meteu por sua vez as mãos nos bolsos, e ficaram ambos s encarando no corredor, naquele silêncio entre ossadas.

Crawford encostou a cabeça para trás, de encontro as caixa e aspirou fundo.

— Catherine Martin provavelmente ainda está viva — disse afinal.

Starling balançou a cabeça e fitou o chão. Talvez ele achasse mais fácil falar-lhe se ela não o encarasse. Ele estava sério, algo preocupava. Por um segundo Starling ponderou se a mulher de Crawford teria morrido. Ou talvez passar um dia inteiro com a aflita mãe de Catherine fosse à causa.

— Memphis foi uma brincadeira para ele — disse Crawford. — Agarrou-a no estacionamento, parece. Ninguém viu. Ela entrou no apartamento e logo saiu de novo, por alguma razão. Não pretendia ficar fora muito tempo — deixou a porta escancarada e prendeu a tranca de forma que a porta não poderia fechar estando ela fora. Pusera as chaves em cima da televisão. Nada foi mexido do lado de dentro. Não creio que ela permaneceu no apartamento muito tempo. Nem chegou até a secretária eletrônica no seu quarto. A luz acusando mensagem ainda piscava quando o pateta do namorado dela chamou a polícia.

Sem querer, Crawford pousou a mão dentro de uma caixa de ossos e rapidamente a retirou.

— Portanto agora ele a retém, Starling. As redes de notícias concordam em não destacar o assunto no noticiário da noite. O Dr. Bloom teme que isso pode encorajá-lo a tomar uma atitude. Alguns dos tablóides, no entanto, talvez o façam.

Num rapto anterior, a roupa cortada nas costas fora encontrada cedo o bastante para identificar uma vitima de Buffalo Bill enquanto ele ainda a mantinha viva. Starling lembrava-se do noticiário tarjado de preto nas primeiras páginas da imprensa marrom. Começara 18 dias antes que o corpo aparecesse boiando.

— Então Catherine Baker Martin está esperando no quarto verde de Bill, Starling, e talvez tenhamos uma semana pela frente. Isso é o máximo... Bloom acha que os períodos dele estão encurtando.

Crawford considerou que a conversa se alongava muito. O teatral “quarto verde” era uma referência que cheirava a conversa fiada. Starling esperou que ele chegasse ao que interessava, e ele chegou.

— Desta vez, no entanto, Starling, desta vez temos uma pequena chance.

Ela o encarou com a cabeça baixa, fitando-o sob as sobrancelhas, esperançosa e ao mesmo tempo aflita.

— Temos um outro inseto. Seus amigos, Pilcher e... aquele outro...

— Roden.

— ...estão trabalhando nele.

— Onde estava, em Cincinnati? Na gaveta do congelador?

— Não. Venha cá e eu lhe mostro. Vejamos o que você pensa sobre isso.

— A seção de Entomologia fica do outro lado, Sr. Crawford.

— Eu sei — concordou ele.

Dobraram a esquina para chegar à porta da Antropologia. Luz e vozes filtravam-se através do vidro fosco. Ela entrou.

Três homens com jaquetas de laboratório trabalhavam numa mesa no centro da sala, debaixo de uma luz brilhante. Starling não conseguia ver o que estavam fazendo. Jerry Burroughs, da Ciência do Comportamento, olhava por sobre os ombros deles e tomava notas numa prancheta. Havia na sala um cheiro familiar.

Então um dos homens de branco afastou-se para pôr algo na pia e aí ela pôde ver bem.

Numa bandeja de aço inox, sobre a mesa de trabalho, estava “Klaus”, a cabeça que ela encontrara na Split City Mini-Storage.

— “Klaus” tinha o inseto na sua garganta — disse Crawford. Espere um momento, Starling. Jerry, você está entrando em contato com a sala de comunicações?

Burroughs estava lendo de sua prancheta para o telefone. Colocou a mão sobre o microfone.

— Sim, Jack, o retrato “Klaus” de está na secagem.

Crawford pegou o fone da mão dele.

— Bobby, não espere pela Interpol. Arranje um transmissor de telefotos e mande as fotos gráficas agora mesmo, junto com o relatório médico. Países escandinavos, Alemanha Ocidental, Holanda. Não se esqueça de dizer que “Klaus” poderia ser um marujo da marinha mercante que desertou. Mencione que a Saúde Pública pode achar uma pista com base na fratura da mandíbula. Chame-a de arco zigomático. Certifique-se de que seguirão ambas as cartas dentais, a universal e a da Federation Dentaire. Eles vão indicar uma idade, mas enfatize que essa é uma estimativa grosseira — não se pode depender de suturas cranianas para esse fim. — Devolveu o telefone para Burroughs. — Onde está seu equipamento, Starling?

— No escritório dos guardas, lá embaixo.

— A Universidade Johns Hopkins encontrou o inseto — revelou Crawford enquanto esperavam pelo elevador. — Eles estudaram a cabeça para a polícia do condado de Baltimore. O inseto estava na garganta, exatamente como o da pequena em West Virginia.

— Exatamente como em West Virginia.

— Não fique me repetindo. A Johns Hopkins encontrou-o mais ou menos às sete desta noite. O promotor público de Baltimore chamou-me ao telefone do avião. Eles enviaram tudo para cá, “Klaus” e tudo, de forma que pudéssemos vê-lo ‘in situ’. Também queriam uma opinião do Dr. Angel sobre a idade de “Klaus”, e sobre que idade teria quando fraturou o maxilar. Eles consultam o Smithsonian, da mesma forma que nós.

— Dê-me uns segundos para digerir isso. Você está dizendo que Buffalo Bill tenha matado Klaus? Anos atrás?

— Parece muito improvável, uma coincidência exagerada?

— Neste momento, parece.

— Deixe que a idéia assente por um momento.

— O Dr. Lecter indicou-me onde encontrar Klaus — lembrou Starling.

— Sim, foi ele.

— O Dr. Lecter contou-me que seu paciente, Benjamin Raspail, afirmava ter matado Klaus. Mas Lecter opinou que teria sido provavelmente uma asfixia erótica acidental.

— Isso foi o que ele lhe contou.

— Você pensa que o Dr. Lecter talvez saiba exatamente como Klaus morreu, e que não foi Raspail, e que não foi também asfixia erótica?

— Klaus tinha um inseto na garganta, a pequena de West Virginia tinha um inseto na garganta. Nunca li nada assim, nunca ouvi falar em coisa assim. O que pensa você?

— Penso na sua instrução de fazer uma mala para dois dias. Deseja que eu vá perguntar ao Dr. Lecter, certo?

— Você é a pessoa com quem ele fala. — Crawford parecia bem triste ao dizer isso. — Acho que você lhe agrada.

Ela anuiu com a cabeça.

— Falaremos a caminho do hospício — acrescentou Crawford.

 

— Durante anos o Dr. Lecter teve uma grande clientela psiquiátrica antes de o pegarmos pelos assassinatos que cometeu — disse Crawford. — Ele fez muitas avaliações psiquiátricas para as cortes de Maryland e Virginia e para algumas outras ao longo da costa leste, aqui e ali. Examinou uma porção de criminosos insanos. Quem sabe quantos ele liberou, só por desfastio? Está aí uma coisa que ele podia fazer. Ele também conheceu Raspail socialmente e Raspail lhe contou sabe-se lá o quê durante a terapia. Talvez Raspail lhe tenha dito quem matou Klaus.

Crawford e Starling estavam frente a frente em cadeiras giratórias na traseira do furgão de vigilância, que rapidamente se dirigia para o norte, na estrada US 95, em direção a Baltimore, a 60 quilômetros de distância. Jeff, no compartimento do motorista tinha ordem de pisar na tábua.

— Lecter ofereceu-se para ajudar, mas eu recusei. Já tivera a ajuda dele antes, mas nada resultou de útil, e Will Graham recebeu uma facada no rosto da última vez que o usara. Para divertir-se, alegou Lecter.

“Não posso, porém, ignorar um inseto na garganta de Klaus, um inseto na garganta da moça de West Virginia; não posso ignorar isso. Alan Bloom nunca ouviu falar de semelhante coisa antes, e eu tampouco. Você já teve notícia de um caso assim, Starling? Você, que tem lido muito sobre crimes depois de mim.

— Nunca. Inserir objetos, sim, mas nunca um inseto.

— Duas coisas para começar. Primeiro partimos da premissa que o Dr. Lecter sabe realmente algo concreto. Segundo, não vamos esquecer que Lecter gosta de se divertir. É a sua natureza. Ele tem que desejar que Buffalo Bill seja apanhado enquanto Catherine Martin ainda está viva. Toda a sua diversão mais os benefícios têm que ser encaminhados nessa direção. Não temos meios de ameaçá-lo — ele já perdeu o assento do vaso sanitário e os livros.

— Que aconteceria se apenas lhe expuséssemos a situação e lhe oferecêssemos um benefício: uma janela com vista para fora. Foi o que ele pediu quando se ofereceu para ajudar.

— Ele se ofereceu para ajudar, Starling, mas não para denunciar. Uma delação não daria a ele uma boa oportunidade para se mostrar. Você está indecisa e prefere a verdade. Pois ouça: Lecter não tem pressa. Ele está acompanhando tudo como se fosse um jogo de beisebol. Nós lhe pedimos para denunciar, ele preferirá esperar. Não o fará facilmente.

— Nem mesmo por uma recompensa? Algo que não obterá se Catherine morrer?

— Suponha que nós lhe digamos que sabemos que ele possui informações e queremos que ele se abra. Lecter se divertiria muito protelando e agindo, semana após semana, como se estivesse tentando lembrar-se, animando as esperanças da senadora Martin, mas deixando Catherine morrer. Depois faria o mesmo com a próxima mãe e ainda a próxima, reanimando esperanças, sempre quase a lembrar-se — agradaria mais a ele do que uma janela com vista para fora. É dessa espécie de coisa que ele vive; é o seu alimento.

“Não sei se a gente fica mais esperta com a idade, Starling, mas aprende-se a driblar uma certa porção de ruindade. Talvez aqui possamos driblar alguma.

— Então o Dr. Lecter deve pensar que lhe estamos apelando apenas por uma teoria e por um insight — arriscou Starling.

— Correto.

— Por que não me disse? Por que não me mandou interroga-lo dessa maneira?

— Eu me ponho no mesmo nível que você. E você fará o mesmo quando tiver um comando. Nenhuma outra forma de agir dura muito tempo.

— Então não tenho que mencionar o inseto na garganta de Klaus, nenhuma conexão entre Klaus e Buffalo Bill.

— Não. Você estará voltando porque ficou muito impressionada por ele prever que Buffalo Bill começaria a escalpelar. Já deixei claro que não vou me interessar por ele, da mesma forma que Alan Bloom. Mas estou deixando que você fale com ele. Você lhe oferece alguns privilégios — coisas que somente uma pessoa tão poderosa como a senadora Martin poderia obter. Lecter tem que acreditar que deve apressar-se porque a oferta será cancelada se Catherine morrer. A senadora perderá o interesse por ele se isso acontecer. E se ele falhar, será porque não é inteligente e não tem a capacidade para fazer o que disse que podia fazer, e não porque está se esquivando para zombar de nós.

— A senadora perderá mesmo o interesse?

— Se fosse prestar juramento, você diria que nunca soube a resposta para essa questão.

— Entendo.

Concluiu que não haviam contado à senadora Martin, o que demandava muita coragem. Estava claro que Crawford não queria interferência, receoso de que a senadora cometesse o erro de apelar diretamente para o Dr. Lecter.

— Você está entendendo mesmo?

— Sim. Como poderá ele ser suficientemente especifico para levar-nos até Buffalo Bill sem mostrar que sabe de alguma coisa especial? Como poderá fazer isso só com teoria e insight?

— Não sei, Starling. Ele já teve muito tempo para pensar sobre o assunto. Ela esperou o extermínio de seis vítimas.

O telefone no furgão tilintou e piscou com a primeira de uma série de telefonemas que Crawford tinha combinado com o centro do FBI.

Durante os próximos vinte minutos, falou com policiais conhecidos da Polícia de Estado Holandesa e da Royal Marechaussee, com um Overstelojtnant na Polícia Técnica Sueca que estudara em Quântico, um amigo que era assistente do Rigspolitichef da polícia dinamarquesa, e surpreendeu Starling falando em francês com o escritório de comando noturno da Polícia Criminal Belga. Em todos os diálogos enfatizou a necessidade de apressar a identificação de Klaus e seus companheiros. Cada uma dessas jurisdições já tinha o pedido por telex da Interpol, mas, com a rede de conhecimentos íntimos em atividade, o pedido não ficaria na máquina durante horas.

Starling podia ver por que Crawford havia escolhido o furgão para suas comunicações — ele dispunha do novo sistema de Privacidade de Voz — mas a tarefa certamente seria mais fácil de seu escritório. Aqui ele tinha de manusear seu livro de notas numa mesa pequena com luz deficiente, e os passageiros eram sacudidos toda vez que os pneus passavam sobre uma emenda no asfalto. A experiência de campo de Starling era pequena, mas ela sabia não ser comum um chefe de seção usar um furgão numa missão como essa. Crawford poderia tê-la instruído pela radiotelefonia, mas ela gostou que não o tivesse feito.

Starling sentia que a privacidade e a calma no furgão, e o tempo dedicado ordenadamente àquele trabalho, tinham um alto custo. Escutando Crawford ao telefone, confirmou isso.

— Como está a senadora?

— Controlada, mas ferida. É uma mulher esperta e dura, tem um bocado de bom senso, Starling. Você provavelmente gostará dela.

— O pessoal da Johns Hopkins e a Divisão de Homicídios do condado de Baltimore vão manter segredo acerca do inseto na garganta de Klaus? Poderemos manter o assunto fora dos jornais?

— Por uns três dias, sim.

— Deve ter dado muito trabalho conseguir isso.

— Não podemos confiar em Frederick Chilton nem qualquer outra pessoa no hospital — disse Crawford. — Se Chilton souber, o mundo todo saberá. Ele vai saber que você está lá apenas como um favor que faz à Divisão de Homicídios de Baltimore, tentando encerrar o caso Maus — nada a ver com Buffalo Bill.

— E vou fazer isso tarde, esta noite?

— É o único tempo que eu lhe daria. Devo avisá-la que a história sobre o inseto em West Virgínia estará nos jornais amanhã. O escritório do legista em Cincinnati deu com a língua nos dentes, de modo que não é mais segredo. É um detalhe que Lecter pode obter de você; isso realmente não tem importância, desde que ele não saiba que encontramos um também em Maus.

Ele agora falava com o diretor do FBI que estava em casa.

— Não, senhor. Eles insistiram muito nisso?... Por quanto tempo? Não, senhor. Não. Nada de aparelhagem de gravação, Tommy, recomendo e insisto. Não quero que ela leve um gravador escondido. O Dr. Bloom diz a mesma coisa. Ele está retido pela cerração em O’Hare. Virá tão logo ela permita. Certo.

Depois Crawford teve uma misteriosa conversa com a enfermeira da noite em sua casa. Ao terminar, olhou pela janela com vidro espelhado por fora durante talvez um minuto, os óculos descansando sobre o joelho, presos por um dedo. Seu rosto parecia lívido quando as luzes o iluminavam de tempo em tempo. Depois recolocou os óculos e virou-se para Starling.

— Lecter é nosso por três dias. Se não conseguirmos resultado, Baltimore irá fazê-lo suar até que a justiça os faça largá-lo.

— Interrogá-lo exaustivamente não funcionou da última vez. O Dr. Lecter não transpira muito...

— O que foi que ele ofereceu ao pessoal depois da sessão, uma galinha de papel?

— Uma galinha, sim.

A galinha de papel dobrado, amassada, ainda estava na bolsa de Starling. Ela alisou-a na pequena mesa e fê-la dar uma bicada.

— Não culpo os policiais de Baltimore. Ele é um prisioneiro. Se o corpo de Catherine aparecer boiando, deverão estar em condições de dizer à senadora Martin que tentaram tudo.

— O que temos para trocar com ele?

— É no que estou trabalhando — disse Crawford, e voltou para seus telefones.

 

Um grande banheiro forrado de azulejos brancos, com clarabóias e elegantes metais italianos se destacando de encontro a antigos tijolos aparentes. Um enfeitado armário de toucador flanqueado por grandes plantas e carregado de cosméticos, o espelho velado pelo vapor que a água quente fazia. Do chuveiro uma voz cantava num tom alto demais. A canção era Cash for Your Trash (Pago à vista por seu lixo) de Fats Waller, do musical Ain’t Misbehavin. Às vezes a voz escondia as palavras:

“Guarde todos seus velhos JORNAIS, Guarde e empilhe-os como um ARRANHA-CÉU DAH DAHDAHDAH DAH DAH DAHDAHDAH DAH...”

Sempre que ocorriam palavras, uma cachorrinha arranhava a porta do banheiro.

Embaixo do chuveiro estava Jarne Gumb, branco, 34 anos, 1,83m, 95 quilos, cabelos castanhos, olhos azuis, sem marcas características. Pronuncia seu primeiro nome como o James, porém sem o s — Jame. Insiste nisso.

Depois de se enxaguar pela primeira vez, Gumb aplicou Friction des Bains, esfregando-a no peito e nas nádegas e usando uma esponja nas partes que não gostava de tocar. Suas pernas estavam cobertas dê pêlos, mas ele decidiu deixá-las assim mesmo.

Gumb esfregou-se até ficar rosado e aplicou um bom emoliente para amaciar a pele. Seu espelho de corpo inteiro tinha uma cortina para protegê-lo, estendida em uma barra à sua frente.

Gumb usou a esponja para ajeitar o pênis e os testículos entre as pernas. Afastou a cortina para um lado e ficou de pé em frente ao espelho, assumindo uma pose com um quadril mais alto que o outro, a despeito do desconforto que isso causava em suas partes íntimas.

“Faça algo por mim, doçura. Faça algo por mim LOGO.” Usava o registro mais alto de sua voz naturalmente profunda, e acreditava estar melhorando. Os hormônios que tomara — Premarin durante algum tempo e depois dietilestilbestrol, via oral — nada puderam fazer por sua voz, mas tinham tornado esparsos os cabelos em volta de suas marnas ligeiramente cheias. Muita eletrólise lhe removera a barba e dera à linha fronteira do seu cabelo um formato de bico de viúva, mas apesar disso ele não se parecia com uma mulher. Parecia-se com um homem inclinado a lutar com as unhas, mas também com os punhos e os pés.

Se o seu comportamento era uma séria, mas inepta tentativa para parecer homossexual ou apenas uma odiosa imitação, seria difícil dizer após um rápido conhecimento, e rápidos conhecimentos era tudo o que ele fazia.

“O que vai fazer por mim?”

O animal arranhou a porta ao som da voz dele. Gumb vestiu o roupão e deixou-o entrar. Agarrou a pequena poodle cor de champanha e beijou-a no gordo traseiro.

— Sim. Você está esfomeada, Preciosa? Eu também estou.

Passou a cadelinha de um braço para o outro ao abrir a porta do quarto. Ela agitou-se, querendo voltar para o chão.

— Espere um momento, queridinha. — Com a mão livre ele apanhou uma carabina mini-14 ao lado da cama e colocou-a sobre os travesseiros. — Agora. Agora, vamos. Vamos jantar num minuto. — Colocou a cadelinha no chão e vestiu um pijama e o robe. O animal seguiu-o alegremente escadas abaixo em direção à cozinha.

Jame Gumb tirou três refeições TV do seu forno de microondas. Eram duas refeições Homem Esfomeado para ele e uma Cozinha Magra para a cachorrinha.

O animal comeu gulosamente o prato principal e a sobremesa, deixando os vegetais, Jame Gumb deixou apenas os ossos em seus dois pratos.

Fez a cadelinha sair pela porta de trás e, chegando seu robe bem de encontro ao corpo por causa da friagem, observou quando ela se agachava na estreita faixa de luz que passava pela porta.

— Você não fez o número dois... Muito bem. Não vou olhar... — Mas deu uma espiada por entre os dedos da mão em frente ao rosto. — Oh! Que beleza! Sua safadinha, você é uma perfeita senhorita! Vamos, vamos para a cama.

O Sr. Gumb gostava de ir para a cama. Fazia-o várias vezes durante a noite. Gostava também de se levantar e sentar-se em um ou outro de seus muitos quartos sem acender a luz, ou trabalhar um pouco durante a noite quando ficava entusiasmado com algo criativo.

Ia apagar a luz da cozinha mas fez uma pausa, seus lábios formando um bico quando ele olhou para os restos do jantar. Pegou as três bandejas e limpou a mesa.

Um interruptor em cima da escada iluminou o porão. Jame Gumb começou a descer, levando as bandejas. O animal ganiu na cozinha e com o focinho abriu a porta atrás dele.

— Muito bem, sua bobinha. — Agarrou a cadelinha no chão e carregou-a para baixo. Ela agitou-se e meteu o focinho nas bandejas. — Nada disso! Você já comeu bastante. — Depositou-a no chão e ela seguiu-o bem de perto ao longo do piso irregular e de vários níveis do subsolo.

Num quarto do porão, bem embaixo da cozinha, havia um poço seco. Suas bordas de pedra, reforçadas com modernos anéis de cimento, elevavam-se uns 60 centímetros acima do chão arenoso. A tampa de segurança original, de madeira, pesada demais para uma criança levantar, estava em posição. Havia nela uma abertura suficiente para passar um balde. Jame Gumb despejou as bandejas por essa abertura.

Os ossos e os vegetais desapareceram na escuridão absoluta do poço. A cadelinha sentou-se, com um jeito de estar pedindo algo.

— Nada disso, tudo foi-se embora — repreendeu Gumb. Você está gordinha demais.

Subiu as escadas do porão repetindo baixo: “Gorduchinha, gorduchinha” para o cão. Não deu sinal de ter ouvido o grito, bastante forte mas controlado, que ecoou do fundo daquele buraco negro.

— POR FAVOR!

 

Clarice Starling entrou no Baltimore State Hospital for the Criminally Insane pouco depois das 10 horas da noite. Viera sozinha. Esperava que o Dr. Chilton não estivesse lá, mas encontrou-o esperando por ela em seu escritório.

Chilton usava um casaco esporte axadrezado, de corte inglês. As duplas pregas nas costas e as abas soltas davam ao casaco uma aparência de saia curta, pensou Starling. Tinha esperança de que não o houvesse vestido por causa dela...

Diante da mesa, a sala estava vazia exceto por uma cadeira de espaldar reto aparafusada no chão. Starling ficou de pé a seu lado enquanto o cumprimento dela pairava no ar sem resposta. Ela podia sentir o cheiro dos cachimbos frios e fedorentos num suporte ao lado da bolsa de tabaco.

Chilton terminou de examinar sua coleção de locomotivas da Franldin Mint e virou-se para ela.

— Gostaria de uma xícara de café?

— Não, obrigada. Desculpe por perturbá-lo à noite.

— Você ainda está tentando descobrir algo sobre aquela história da cabeça? — perguntou o Dr. Chilton.

— Sim. O escritório do Promotor Público de Baltimore disse-me que havia feito os arranjos com o senhor, doutor.

— Oh, sim. Eu trabalho muito ligado às autoridades daqui, Srta. Starling. Por falar nisso, está escrevendo um artigo ou uma tese?

— Nem uma coisa nem outra.

— Já publicou alguma vez em órgãos profissionais?

— Não, nunca. Esta é apenas uma tarefa que o escritório do Promotor me pediu que realizasse para a Divisão de Homicídios de Baltimore. Nós os deixamos com um caso aberto e os estamos ajudando a acertar as pontas. — Starling descobriu que sua antipatia por Chilton tornava-lhe mais fácil mentir.

— Está ligada, Srta. Starling?

— Estou o quê...?

— Está usando um dispositivo eletrônico para registrar o que o Dr. Lecter diz? O termo policial é “ligada”; estou certo de que já o ouviu.

— Não.

O Dr. Chilton pegou um pequeno Pearlcorder na sua mesa e colocou nele um cassete.

— Então ponha isto na sua bolsa. Depois lhe mandarei uma cópia. Pode usá-lo para ampliar suas notas.

— Não. Não posso fazer isso, Dr. Chilton.

— Por que não? As autoridades de Baltimore me pedem sempre uma análise sobre tudo o que Lecter diz acerca desse caso de Klaus.

Evite Chilton, se puder, dissera-lhe Crawford. Podemos forçá-lo com uma ordem judicial. Ademais, Lecter irá descolar. Ele sabe o que se passa com Chilton como se lesse um livro aberto.

— O Promotor Público pensou que deveríamos tentar primeiro uma aproximação informal. Se eu gravasse o Dr. Lecter sem seu conhecimento, e ele descobrisse, seria... realmente seria o fim da boa atmosfera de trabalho que mantemos. Estou certa que o senhor concorda com isso.

— Como iria ele descobrir?

Ele saberia pelos jornais que você está a par de tudo, seu calhorda! Conteve-se.

— Se isto chegar a algum resultado e ele tiver que depor, o senhor seria o primeiro a ver o material e eu estou certo que seria convidado a servir como testemunha importante. Nós agora estamos apenas tentando obter uma pista dele.

— Sabe por que ele concorda em lhe falar, Srta. Starling?

— Não, Dr. Chilton.

O homem voltou-se de costas e ficou a examinar o sortimento de certificados e diplomas que estavam na parede atrás da mesa, como se estivesse fazendo um levantamento. Em seguida virou-se devagar para Starling.

— A senhorita realmente sabe o que está fazendo?

— Claro que sei. — As pernas de Starling tremiam de tanta raiva. Mas não desejava brigar com Chilton; tinha que sobrar-lhe alguma energia para enfrentar Lecter.

— O que está fazendo é vir ao meu hospital para obter uma entrevista, porém sem compartilhar a informação comigo.

— Estou agindo de acordo com as instruções que recebi, Dr. Chilton. Tenho aqui o número do telefone particular do Promotor Público. E agora, por favor, ou discuta o assunto com ele, ou deixe-me trabalhar.

— Eu não sou o porteiro daqui, Srta. Starling. Não venho para cá à noite apenas para deixar as pessoas entrarem e saírem. Eu tinha um bilhete para o Holiday on Ice.

Ele percebeu que tinha dito um bilhete. Naquele instante Starling avaliou a vida dele, e Chilton o sentiu.

Ela viu o refrigerador maltratado, as migalhas do jantar na bandeja onde ele comia sozinho, as pilhas de coisas que permaneciam fixas no lugar durante meses até que ele as arrumasse — e sentiu pena da sua vida solitária, mas rapidamente concluiu que não devia poupá-lo, que não devia continuar a falar ou a evitar o olhar dele. Encarou-o nos olhos e com uma inclinação mínima da cabeça fitou-o, sobranceira. Fê-lo sentir que percebera quem ele era e como vivia, sabendo que ele já não teria coragem para estender aquela conversa.

Chilton mandou um guarda chamado Alonzo acompanhá-la.

 

Andando com Alonzo em direção às últimas celas, Starling conseguiu não dar ouvidos às batidas de portas e aos gritos, embora os sentisse agitando o ar de encontro à sua pele. Sentia crescer nela uma pressão como se estivesse afundando n’água, cada vez mais baixo.

A proximidade dos loucos, a lembrança de Catherine Baker Martin amarrada e sozinha, um deles estrangulando-a e procurando ferramentas em sua maleta, tudo isso dava coragem a Starling para continuar seu serviço. Mas ela precisava mais do que coragem. Precisava também permanecer calma, não se alterar, ser um instrumento muito afiado. Tinha que ser paciente apesar da terrível necessidade de apressar-se. Se o Dr. Lecter soubesse a resposta, ela teria que desencavá-la no emaranhado dos pensamentos dele.

Starling pensava em Catherine Baker Martin como a criança que vira no filme-noticiário, uma menininha num barco a vela.

Alonzo apertou o botão da campainha da última porta.

Ensina-nos como preocupar-nos e como não preocupar-nos, ensina-nos a permanecer calmos.

— Perdão? — fez Alonzo, e Starling compreendeu que pensara em voz alta.

Ele deixou-a com o guarda corpulento que abrira a porta. Quando Alonzo deu meia-volta para ir embora, notou que ele se persignava.

— Prazer em vê-la de novo — cumprimentou o guarda enquanto passava os ferrolhos na porta atrás dela.

— Alô, Barney.

Barney mantinha preso entre o polegar e o maciço indicador um volume em brochura. Era o Sense and Sensibility, de Jane Austen; Starling estava disposta a registrar tudo.

— Como quer as luzes? — perguntou ele.

O corredor entre as celas estava em meia escuridão. Próximo ao seu extremo ela podia notar uma luz brilhante vindo da última cela, a iluminar o chão do corredor.

— O Dr. Lecter está acordado.

— A noite, sempre, mesmo quando sua luz fica apagada.

— Deixe-as como estão.

— Fique no meio do corredor ao passar para lá, e não toque nas barras, certo?

— Quero aquela TV desligada.

O aparelho de televisão fora mudado de lugar. Estava ao fundo do corredor, de frente para o centro. Alguns prisioneiros podiam vê-lo encostando a cabeça nas barras.

— Elimine o som, mas deixe a imagem, se não se importar. Alguns deles gostam de ficar olhando. A cadeira está lá, se quiser utilizar-se dela.

Starling avançou sozinha pelo corredor na penumbra. Não olhou para as celas de nenhum dos dois lados. Suas pisadas lhe pareciam meio barulhentas. Os únicos outros ruídos eram o ressonar vindo de uma cela, talvez de duas, é um risinho baixo soando em outra.

A cela do falecido Miggs tinha um novo ocupante. Ela podia ver compridas pernas esticadas no solo, a cabeça apoiada nas grades. Um homem permanecia sentado no chão da sua cela no meio de uma porção de papel rasgado. Seu rosto era inexpressivo. A televisão refletia-se em seus olhos e um brilhante fio de baba ligava o canto da sua boca ao ombro.

Ela não quis olhar para a cela do Dr. Lecter até estar segura de que ele a vira. Passou por ela sentindo um arrepio na espinha, foi até a televisão e cortou o som.

O Dr. Lecter usava o branco pijama do asilo em sua branca cela. As únicas coisas coloridas, ali, eram seus cabelos e olhos, e sua boca vermelha, num rosto há tanto tempo longe do sol que se diluía na brancura envolvente; suas feições pareciam flutuar acima da gola da camisa. Estava sentado à mesa, atrás da rede de náilon que o mantinha afastado das barras. Fazia um esboço em papel de embrulho, usando a própria mão como modelo. Enquanto ela observava, virou a mão e, flexionando os dedos para distender a musculatura, desenhou a parte interna do antebraço. Usou o dedo mínimo como esfuminho para modificar uma linha de carvão.

Starling aproximou-se das barras e ele levantou os olhos. Para Starling, todas as sombras da cela se juntaram nos olhos dele e no bico-de-viúva dos seus cabelos.

— Boa noite, Dr. Lecter.

A ponta da língua dele apareceu, vermelha como seus lábios. Tocou o lábio superior exatamente no centro e recolheu-se de novo.

— Clarice.

Ela percebeu o arranhado ligeiramente metálico daquela voz e ficou pensando há quanto tempo ele falara pela última vez.

— Você está atrasada para sua aula noturna — repreendeu ele. — Esta é a minha classe noturna — disse ela, desejando que sua voz fosse mais forte. — Ontem estive em West Virginia...

— Você se machucou?

— Não, eu...

— Está com um Band-Aid novo, Clarice.

Então ela lembrou.

— Arranhei-me hoje na borda da piscina. — O Band-Aid estava na sua perna, escondido, por baixo da calça. Ele devia ter sentido o cheiro.

— Estive em West Virginia ontem. Encontraram lá um corpo, o último de Buffalo Bill.

— Não exatamente o último, Clarice.

— O penúltimo.

— Pois é.

— Ela foi escalpelada. Exatamente como o senhor disse que aconteceria.

— Incomoda-se se eu continuar a desenhar enquanto falamos?

— Não. Continue, por favor.

— Você examinou o corpo?

— Sim.

— Tinha visto serviços anteriores dele?

— Não; apenas fotografias.

— Como se sentiu?

— Apreensiva. Depois atenta.

— Depois? Abalada. Você conseguiu trabalhar direito? — O Dr. Lecter esfregou seu carvão na beira do papel para refazer-lhe a ponta.

— Muito bem. Trabalhei muito bem.

— Para Jack Crawford? Ele ainda lhe telefona para casa?

— Ele estava lá.

— Seja boazinha para mim um momento, Clarice. Deixe sua cabeça pender para a frente, como se estivesse dormindo. Mais um segundo. Obrigado, agora já peguei a pose. Sente-se, se quiser. Você tinha contado a Jack Crawford o que eu disse antes de eles a encontrarem?

— Sim. E ele zombou muito da idéia.

— E depois que ele viu o corpo em West Virgínia?

— Bem, ele falou com a principal autoridade no assunto, na Universidade de...

— Alan Bloom.

— Isso mesmo. O Dr. Bloom disse que Buffalo Bill estava personificando um tipo criado pelos jornais: essa história de Buffalo Bill escalpelar que os tablóides andaram explorando. O Dr. Bloom opinou que qualquer pessoa podia ver que isso iria acontecer.

— O Dr. Bloom viu que isso estava para acontecer?

— Ele afirmou que sim.

— Afirmou, mas guardou a previsão para si mesmo. Entendo. O que acha você, Clarice?

— Não estou certa.

— Você estudou psicologia e prática forense. Onde as duas coisas confluem, você pesca, não é, Clarice? Já fisgou alguma coisa?

— Até agora tudo tem andado muito devagar.

— O que as suas duas disciplinas lhe dizem sobre Buffalo Bill?

— Segundo os livros, ele é um sádico.

— A vida é escorregadia demais para os livros, Clarice; a raiva parece luxúria, o lúpus apresenta-se como uma urticária.

O Dr. Lecter terminou o esboço da sua mão esquerda com a direita; trocou o carvão de mão e começou a desenhar a mão direita com a esquerda, com a mesma facilidade.

— O senhor se refere ao livro do Dr. Bloom?

— Sim. Você me procurou nele, não foi?

— Sim.

— Como foi que ele me descreveu?

— Um sociopata puro.

— Você diria que o Dr. Bloom está sempre certo?

— Continuo esperando pela futilidade do afeto...

O sorriso do Dr. Lecter revelou seus pequenos dentes brancos.

— Temos peritos em todos os assuntos, Clarice. O Dr. Chilton diz que Sammie, ali atrás de você, é um esquizóide hebefrênico e irremediavelmente perdido. Ele pés Sammie na antiga cela de Miggs porque pensa que Sammie já disse adeus. Você sabe como os hebefrênicos geralmente se vão? Não se preocupe; ele não ouvirá.

— São os mais difíceis de tratar — respondeu ela. — Usualmente caem num retiro terminal e se desintegram.

O Dr. Lecter tirou algo dentre suas folhas de papel de embrulho e colocou na bandeja deslizante. Starling puxou-a.

— Ontem mesmo Sammie mandou-me isto com a minha comida — disse ele.

Era um pedaço de papel marrom com a escrita em creiom.

Starling leu:

 

               I WAN TOO GO TO JESA

               I WAN TOO GO WIV CRIEZ

               I CAN GO WIV JESA

               EF I AC RELL NIZE

               SAMMIE

 

Starling olhou para trás, sobre o ombro direito. Sammie estava sentado, o rosto inexpressivo de encontro à parede da cela, a cabeça encostada nas barras.

— Quer ler em voz alta? Ele não pode escutá-la.

Starling começou:

— Eu desejo ir para Jesus. Eu quero ir com Cristo. Eu posso ir com Jesus. Se eu me comportar bem.

— Não, não. Imprima urna qualidade mais agressiva de “pudim de ervilhas quente” nos versos. A métrica varia, mas a intensidade é a mesma. — Lecter batia o compasso suavemente: “Pudim de ervilhas na panela há nove dias.” Com fervor: “I wan to go Jesa, I wan to go wiv Crieiz”.

— Entendo — disse Starling, colocando o papel de volta no carregador.

— Não, você não está entendendo nada — repreendeu o Dr. Lecter, pondo-se de pé; o corpo magro subitamente grotesco, dobrado em dois como um gnomo, ele pulava marcando o compasso, a voz reverberando como um sonar, “I wan to go to Jesa...”.

De repente a voz de Samtnie ecoou atrás dela como a tosse de um leopardo, mais alto do que o grito de um macaco urrador, de pé e batendo com seu rosto nas grades, lívido e fazendo um violento esforço, os tendões do pescoço salientando-se:

“I WAN TOO GO TO JESA I WAN TOO GO WIV CRIEZ I CAN GO WIV JESA EF I AC RELL NIIIZE.”

Silêncio. Starling viu que se pusera de pé e que sua cadeira de dobrar estava virada atrás dela. Os papéis haviam escorregado do seu colo.

— Por favor — pediu o Dr. Lecter, novamente ereto e gracioso como um bailarino, convidando-a a sentar-se. Deixou-se cair em sua cadeira e descansou o queixo na mão. — Você não entende coisa alguma — repetiu. — Sammie é profundamente religioso. Ele simplesmente revela sua decepção porque Jesus está tão atrasado. Posso dizer a Clarice por que você está aqui, Sammie?

Sammie coçou o queixo e ficou estático.

— Por favor? — insistiu o Dr. Lecter.

— Sim... — concedeu Sammie por entre os dedos.

— Sammie pôs a cabeça da mãe dele na bandeja de espórtulas na igreja batista da estrada em Trune. Estavam cantando. Dê o melhor que você tem ao Senhor e era a melhor coisa que ele tinha. Lecter voltou-se para o lado e falou sobre seu ombro. — Obrigado, Sammie. Está tudo muito bem. Olhe a televisão.

O homem alto deixou-se cair no chão, a cabeça contra as barras, como antes, as imagens da televisão se refletiam em suas pupilas, agora três riscos prateados no seu rosto: cuspe e lágrimas.

— Muito bem: veja se você pode aplicar-se ao problema dele e talvez eu me aplique ao seu. — Quid pro quo. Ele não está escutando.

Starling teve que se concentrar.

— Os versos mudam de “ir para Jesus” para “ir com Cristo” — observou ela. — Há uma seqüência racional: ir para, chegar a, ir com.

— Sim. É uma progressão linear. Estou particularmente satisfeito que ele saiba que “Jesa” e “Criei” são o mesmo. Isto é um progresso. A idéia de um simples Deus-padre ser também uma Trindade é difícil de aceitar, especialmente para Sammie, que não está seguro de quantas pessoas ele mesmo é formado. Eldridge Cleaver dá-nos a parábola do Óleo Três-em-Um e nós achamos que é útil.

— Ele vê uma relação casual entre o próprio comportamento e seus objetivos e isso é um raciocínio estrutural — assuntou Starling. — Assim é também a construção de um ritmo. Ele não está obtuso, pois chora. O senhor acredita que é um catatônico esquizóide?

— Sim. Você pode sentir o cheiro do suor dele? Aquele cheiro de bode é ácido trens3-metil2 -hexenóico. Lembre-se: é o cheiro da esquizofrenia.

— E o senhor acredita que ele é tratável?

— Particularmente agora, quando está saindo de uma fase de estupor. Como brilham as faces dele!

— Dr. Lecter, por que o senhor diz que Buffalo Bill não é um sádico?

— Porque os jornais declaram que os corpos tinham marcas de ligaduras nos pulsos, mas não nos tornozelos. Você viu algumas marca nos tornozelos da pessoa em West Virgínia?

— Não.

— Clarice: esfolamentos como recreação são sempre executados com a vitima invertida, de forma que a pressão sangüínea se mantenha normal mais tempo na cabeça e no peito e a vítima permaneça consciente. Você sabia disso?

— Não.

— Quando estiver de novo em Washington, vá até a Galeria Nacional e veja O esfolamento de Marsias, de Ticiano, antes que o mandem de volta para a Tchecoslováquia. Ticiano era maravilhoso nos detalhes; repare no prestativo Pã trazendo o balde de água fria.

— Não estou interessada na sua pior invenção.

— Bem, eu acredito em você. Mas há mais coisas que não sabe, além de como se procede com propriedade a um esfolamento, sobre o comportamento humano. Você não acharia que, para um senador dos Estados Unidos, é uma estranha escolha como mensageiro?

— Eu fui sua escolha, Dr. Lecter. O senhor me escolheu para falar-lhe. Preferiria agora outra pessoa? Ou talvez o senhor não ache que poderá ajudar.

— Isso é ao mesmo tempo imprudente e falso, Clarice. Não creio que Jack Crawford jamais permita que me dêem alguma compensação. Possivelmente eu lhe darei alguma coisa para dizer à senadora, mas opero estritamente na base do toma-lá-dá-cá. Talvez eu troque essa coisa por uma certa informação a seu respeito. Sim ou não?

— Vejamos qual é a questão.

— Sim ou não? Catherine está esperando, não está? Ouvindo o barulho da pedra de afiar? O que pensa você que ela lhe pediria para fazer?

Starling respirou profundamente.

— Apresse-se — urgiu o Dr. Lecter.

— Dr. Lecter, temos aqui algumas circunstâncias extraordinárias e algumas oportunidades incomuns.

— Para quem?

— Para o senhor, se salvarmos essa moça. O senhor viu a senadora Martin na televisão?

— Sim, escutei as notícias.

— O que achou das declarações dela?

— Mal-orientada e inócua. Ela está mal-assessorada.

— A senadora Martin tem muita influência. E é uma pessoa decidida.

— Vejamos o que você tem a dizer.

— Creio que o senhor tem um extraordinário insight, uma perfeita introvisão. A senadora Martin prometeu que se o senhor nos ajudar a trazer Catherine Baker Martin de volta viva e incólume, ela ajudará a transferi-lo para uma instituição federal, e se houver uma janela com vista, o senhor a terá. Além disso, poderá também ser solicitado a rever avaliações psiquiátricas escritas de pacientes admitidos. Em outras palavras, um trabalho. Não haverá relaxamento das restrições de segurança.

— Não acredito nisso, Clarice.

— Pois devia acreditar.

— Quid pro quo.

— Vejamos qual é a questão.

— Qual é a pior lembrança da sua infância?

— A morte de meu pai — disse Starling.

— Conte-me.

— Ele era o delegado da cidade. Uma noite surpreendeu dois gatunos, viciados em drogas, saindo dos fundos da farmácia. Quando ia saindo da caminhonete, sua espingarda de bombear enjambrou e eles atiraram primeiro.

— Enjambrou?

— Ele não acionou o pistão como devia. Era uma velha espingarda de pressão, uma Remington 870, e o cartucho ficou preso no carregador. Quando isso acontece a arma não atira e é preciso desmontá-la para corrigir o defeito.

— Penso que bateu com o pistão na porta quando saía.

— Ele morreu logo?

— Não. Era um homem forte. Durou um mês.

— Você o viu no hospital?

— Sim, Dr. Lecter.

— Diga-me um detalhe que você se lembre do hospital.

Starling fechou os olhos e disse:

— Apareceu uma vizinha, uma mulher idosa, solteirona, que recitou o final de “Thanatopsis”   para ele. Creio que era a única coisa que ela sabia recitar. Foi isso.

— Bem, já cumpri minha parte na troca.

— Sim, cumpriu. Você foi muito franca, Clarice. Reconheço isso. Penso que seria algo muito interessante conhecer você na vida particular.

— Você acha que, quando viva, a pequena de West Virgínia era muito atrativa fisicamente?

— Ela parecia bem-cuidada.

— Não me faça perder tempo com elogios...

— Ela era gorducha.

— Grande?

— Sim.

— Foi atingida no peito pelos tiros.

— Sim.

— Tinha os seios pequenos, suponho.

— Sim, para o tamanho dela.

— Mas era cadeiruda. Confortável?

— Era, sim.

— O que mais?

— Ela teve um inseto deliberadamente inserido na garganta, detalhe que não foi divulgado.

— Uma borboleta?

A respiração de Starling ficou suspensa por um momento. Gostaria que ele não tivesse percebido.

— Uma mariposa — disse finalmente. — Por favor, diga-me como adivinhou isso.

— Clarice: vou dizer-lhe para o que Buffalo Bill quer Catherine Baker Martin e depois será “boa noite”. Esta é minha última palavra por enquanto. Você pode dizer à senadora o que ele deseja de Catherine e ela pode aparecer com uma oferta melhor para mim... ou pode esperar até que Catherine venha à tona e ver que eu estava certo.

— O que é que ele deseja, Dr. Lecter?

— Deseja fazer um colete com seios — afirmou o Dr. Lecter.

 

Catherine Baker Martin estava cinco metros abaixo do porão. As trevas só eram perturbadas por sua respiração e pelas batidas cardíacas. Às vezes o medo lhe oprimia o coração da forma como o caçador mata uma raposa. Às vezes ela conseguia pensar: sabia que fora raptada, mas não sabia por quem. Sabia que não estava sonhando; naquela escuridão e silêncio absolutos podia até ouvir o barulhinho de suas pálpebras quando piscava.

Sentia-se melhor agora do que logo depois de recuperar a consciência. Grande parte da horrível vertigem desaparecera e sabia que tinha ar suficiente. Ela podia distinguir o lado de baixo do lado de cima e tinha uma idéia da posição de seu corpo.

O ombro, o quadril e o joelho doíam por estarem pressionados contra o piso de cimento onde permanecia deitada. Aquele lado era embaixo. Em cima sentia o áspero cobertor com que se cobrira durante o último intervalo de terrível luz brilhante. O latejar na sua cabeça desaparecera, mas doíam-lhe também os dedos da mão esquerda. O anular estava quebrado, ela sabia.

Sua roupa era um abrigo acolchoado e lhe parecia estranha. Estava limpa e cheirava a sachê. O chão também parecia limpo, exceto pelos ossos de galinha e pedaços de verduras que seu raptor despejara pelo buraco no alto. Os únicos outros objetos no local eram o cobertor e um balde sanitário de plástico com uma corda fina amarrada na alça. Parecia um cordão de uso na cozinha e subia pela penumbra até onde ela podia alcançar com a mão.

Catherine Martin tinha liberdade de se movimentar, mas não havia aonde ir. O piso sob os seus pés era oval, com cerca de 2,5 por 3 metros, com um pequeno dreno no centro. Sabia que era o fundo de um poço seco. As lisas paredes de cimento inclinavam-se ligeiramente para dentro à medida que se elevavam.

Estaria ouvindo alguns sons, ou era seu coração batendo? Os sons vinham claramente lá de cima. A masmorra onde estava presa ficava na parte do porão diretamente abaixo da cozinha. Ouvia agora passos no chão da cozinha e o marulhar de água correndo. As patas de um cão arranhavam o linóleo. Nada mais, até que um fraco disco de luz amarela penetrou pelo alçapão aberto; a seguir as luzes do porão se acenderam. Então surgiu de cima uma claridade cegante, e dessa vez ela se situou sentada, com o cobertor em cima das pernas, tentando olhar em volta, tentando ver por entre os dedos enquanto seus olhos se ajustavam à luz. Uma sombra girou em torno dela quando um refletor foi arriado no poço, pendurado e balançando numa corda.

Encolheu-se toda quando o balde que lhe servia de toalete se moveu, oscilando ao subir preso pela cordinha, rodando vagarosamente à medida que se elevava em direção à luz. Tentou respirar fundo para engolir o medo, aspirou ar demais, mas conseguiu falar:

— Minha família lhe pagará — soprou ela. — Em dinheiro vivo. Minha mãe pagará imediatamente, sem fazer perguntas. Vou lhe dar o número de... Oh! — Uma sombra, parecendo um par de asas, caiu sobre ela, mas era apenas uma toalha. — O número do telefone dela é 202...

— Lave-se.

A mesma voz estranha que ela tinha ouvido falando com o cão.

Outro balde descia agora. Sentiu o cheiro de água quente com sabão.

— Tire o balde daí e lave-se, ou terei que lavá-la com a mangueira. — Depois, dirigindo-se ao cachorro, a voz diminuiu de intensidade. — Ora, ela vai experimentar a mangueira, não é queridinha. Sim, ela vai...

Catherine Martin ouviu o raspar das unhas do cão no piso do porão. A dupla visão que ela tivera na primeira vez que as luzes se acenderam tinha sumido. Agora podia ver bem. Qual seria a altura do poço? Estaria o refletor preso numa corda forte? Poderia agarra-la com o abrigo, talvez com a toalha? Fazer alguma coisa, que diabo! As paredes eram tão lisas, um tubo liso e vertical.

A uns 30 centímetros acima de onde ela podia alcançar havia uma depressão no cimento, a única falha que conseguia perceber. Enrolou o cobertor tão apertado quanto podia e prendeu-o com a toalha. Ficou de pé balançando um pouco, esticou-se para alcançar a fresta, enfiou nela as unhas para equilibrar-se e olhou para cima, contra a luz, apertando os olhos para enxergar. Era um refletor com um abajur, pendurado apenas uns 30 centímetros dentro do coço, cerca de três metros acima do seu braço esticado. Podia muito bem ser a lua... Algo estava caindo dentro do poço, o cobertor se soltava, ela procurou um apoio na parede para equilibrar-se, e aquilo caiu, passando como uma sombra rente ao seu rosto.

Era uma mangueira, que a respingou de água gelada. Uma ameaça.

— Lave-se. O corpo todo.

No balde havia um pano para esfregar e, flutuando na água, uma garrafa de plástico com um caro emoliente importado.

Ela fez o que a voz mandara, os braços e pernas arrepiados, os bicos dos seios doloridos pelo ar frio; ficou de cócoras ao lado do balde com água morna, tão perto da parede quanto possível, e lavou-se.

— Agora, enxugue-se e esfregue o corpo com o creme. Esfregue-o por todo o corpo.

O creme estava morno da água do banho. A umidade fez com que o abrigo aderisse à sua pele.

— Agora junte o lixo e lave o chão.

Ela fez isso também, juntando os ossos de galinha e recolhendo as ervilhas. Colocou-os no balde e limpou as pequenas manchas de gordura no cimento. Havia algo mais ali, junto à parede. Os restos de cimento que tinham caído da fresta acima, mais uma unha humana coberta com esmalte brilhante e quebrada junto à raiz.

O balde foi puxado para cima.

— Minha mãe lhe pagará — berrou Catherine Martin. — Sem fazer perguntas. Pagará o bastante para deixá-los todos ricos. Se for por uma causa — o Irã, a Palestina, a Liberação Negra — , ela dará o dinheiro que pedirem. Tudo o que tem a fazer é...

A luz se extinguiu. Súbita e total escuridão.

Ela encolheu-se, com um grito assustado, quando o balde pousou ao lado dela em sua cordinha. Sentou-se sobre o cobertor, a cabeça atordoada. Supunha agora que seu raptor estava sozinho, que era americano e branco. Tentara dar a impressão de que não tinha idéia do que ele era, da sua cor, ou de quantos seriam, que sua lembrança do estacionamento fora apagada pelos golpes na cabeça. Tinha a esperança de que ele acreditasse que podia libertá-la sem se arriscar. A mente dela estava trabalhando, trabalhando e afinal trabalhou bem demais.

A unha! Alguém mais havia estado ali! Uma mulher, por certo, uma moça. Onde estaria agora? O que fora feito com ela?

Não fora o choque e a desorientação, não teria demorado tanto a ocorrer-lhe isso. Nas condições em que se encontrava, o emoliente para a pele a fez lembrar-se. Pelei Acabava de descobrir em poder de quem se encontrava. Aquela consciência abateu-se sobre ela como um terror incomparável e ela começou a gritar, a gritar, tentando subir pelo poço, arranhando as paredes com as unhas, gritando e gritando até sentir algo quente e salgado na boca; levou os dedos ao rosto, o líquido pegajoso secou no dorso de suas mãos e ela ficou estendida, rígida, em cima do cobertor, fazendo um arco com o corpo da cabeça aos pés, as mãos enterradas agora no meio dos cabelos.

 

A moeda de 25 centavos de Clarice Starling tiniu dentro da caixa do telefone na desleixada sala dos guardas. Ela discou o número do furgão de vigilância.

— Crawford — respondeu a voz no aparelho.

— Estou num telefone público na enfermaria de segurança informou Starling. — O Dr. Lecter me perguntou se o inseto de West Virgínia era uma borboleta, mas não me deu qualquer explicação. Disse que Buffalo Bill precisa de Catherine Martin por que — estou citando as palavras de Lecter: “Ele quer ter um colete com seios.” O Dr. Lecter concorda em negociar. Mas pretende uma oferta “mais interessante” da senadora.

— Ele interrompeu a entrevista com você?

— Sim.

— Você acha que ele lhe falará de novo?

— Penso que ele gostaria de fazer isso nos próximos dias, mas eu preferiria atacá-lo de novo agora, se conseguir qualquer oferta urgente por parte da senadora.

— Urgente é a palavra certa. Obtivemos novos dados para a pequena de West Virgínia. As impressões digitais de uma pessoa desaparecida fez soar a campainha na seção de identificação há uma meia hora. Kimberly Jane Emberg, 22 anos, sumiu em Detroit desde o dia 7 de fevereiro. Estamos vasculhando a vizinhança para testemunhas. O médico legista de Charlottesville disse que ela morreu no máximo no dia 11 de fevereiro, possivelmente no dia anterior, 10.

— Só a manteve viva três dias — concluiu Starling.

— O período dele está encurtando. Acho que ninguém se surpreende com isso. — A voz de Crawford era tranqüila. — Ele levou Catherine Martin há arca de 26 horas. Se Lecter pode informar algo, é melhor que o faça em sua próxima entrevista. Estou instalado no escritório regional de Baltimore; o furgão transmitiu-me sua chamada. Tenho um quarto para você no Howard Johnson a dois quarteirões do hospital se quiser tirar uma soneca mais tarde.

— Ele está desconfiado, Sr. Crawford; e não tem confiança em que o senhor o deixará obter qualquer benefício. O que ele disse sobre Buffalo Bill, trocou por uma informação pessoal a meu respeito. Não acho que haja qualquer relação textual entre as perguntas dele e o caso... Quer saber quais foram as perguntas?

— Não.

— Por isso é que não me permitiu levar um aparelho de gravação, certo? Pensou que seria mais fácil para mim. Eu estaria disposta a contar-lhe coisas e agradar-lhe mais se ninguém pudesse escutar jamais nossa conversa.

— Eis outra possibilidade para você, Starling. Que tal se eu confiasse no seu julgamento? Que tal se eu pensasse que você era minha melhor arma e deseje aliviar uma porção de hipóteses das suas costas? Iria fazer você usar um gravador nesse caso?

— Não, senhor. O senhor é famoso pelo modo como manipula os agentes, Sr. Crawford, não é? O que poderemos oferecer ao Dr. Lecter?

— Um par de coisas que estou mandando para lá. Chegarão em cinco minutos, a não ser que você queira antes repousar um pouco.

— Eu preferia faz-lo logo — atalhou Starling. — Diga-lhes para pedirem o Alonzo que me conduza. Diga a Alonzo que eu o encontro no corredor externo da Seção 8.

— Em cinco minutos — prometeu Crawford.

Starling andava para um lado e para outro sobre o linóleo da modesta sala de espera. Ela era a única coisa viva na sala.

Raramente nos preparamos em pradarias ou em caminhos ensaibrados. Fazemo-la quando avisados às pressas em lugares sem janelas, em corredores de hospitais, em salas como esta com seu sofá forrado de plástico rachado, cinzeiros Cinzano de reclame, onde as cortinas cor de café cobrem paredes cegas de cimento. Em cômodos como este, com tão pouco tempo, preparamos nossos gestos e os decoramos para poder repeti-los quando estivermos assustados ao enfrentar o Mal. Starling tinha idade bastante para saber disso; não deixou a sala de espera afetá-la.

Starling andava para lá e para cá. Gesticulava para o ar.

— Agüente a mão, pequena! — animou em voz alta. Dizia-a para Catherine Martin e para si mesma. — Nós somos melhores da que esta sala. Somos melhores do que a porra deste lugar! — prosseguiu em voz alta. — Somos melhores do que qualquer espécie de lugar onde ele a mantém. Ajude-me. Ajude-me. Ajude-me. — Pensou um instante em seus pais mortos. Perguntou-se se teriam vergonha dela agora — apenas essa pergunta, nada sobre sua pertinência, suas qualificações — , do modo como sempre perguntamos. A resposta foi não; não teriam vergonha dela.

Lavou o rosto e saiu para o corredor.

O guarda Alonzo ali estava, com um pacote selado de Crawford. Continha um mapa e instruções. Ela as leu rapidamente à luz do corredor e apertou o botão para Barney deixá-la entrar.

 

O Dr. Lecter estava à sua mesa, examinando a correspondência. Starling achou mais fácil aproximar-se de sua jaula quando não estivesse olhando para ela.

— Doutor!

Ele levantou um dedo pedindo silêncio. Acabou de ler uma carta e ficou sentado, pensando, o polegar da mão que tinha seis dedos em baixo do queixo, o indicador ao lado do nariz.

— O que acha disso? — perguntou, colocando o documento no transportador de comida.

Era uma carta do Escritório de Patentes dos Estados Unidos.

— É sobre o meu relógio com a cruficicação — explicou o Dr. Lecter. — Não me concedem uma patente, mas me aconselham a obter direitos autorais sobre o mostrador. Veja isto. — Colocou um desenho do tamanho de um guardanapo no transportador, que Starling puxou. — Você deve ter notado que na maior parte das crucificações as mãos apontam, digamos, um quarto para as três ou, no mínimo, dez para as duas, enquanto os pés ficam nas seis horas. No mostrador deste relógio Jesus está na cruz, como você vê, e os braços indicam a hora, como os dos populares relógios de Disney. Os pés permanecem nas seis e no topo um pequeno ponteiro dos segundos gira no halo. O que é que você acha?

A qualidade do desenho anatômico era muito boa. A cabeça era a dela.

— Vai perder muito dos detalhes quando reduzido ao tamanho de um relógio — notou Starling.

— Infelizmente é verdade, mas pense nos relógios maiores.

— Você acha que a propriedade está segura sem uma patente?

— Terá que colocar uma máquina a quartzo nos relógios, e isso já está patenteado. Não tenho certeza, mas penso que patente! Só se aplicam a dispositivos mecânicos especiais e copyrights se aplicam a desenhos.

— Mas você não é uma advogada, é? Eles já não exigem isso no FBI.

— Trago uma proposta para o senhor — disse Starling abrindo sua pasta.

Barney aproximava-se. Ela fechou a pasta de novo. Invejava a enorme calma de Barney. Seus olhos não indicavam o uso de tóxicos e por trás deles havia uma considerável inteligência.

— Desculpe-me — disse Barney. — Se a senhora tem uma porção de papéis para manusear, há uma carteira escolar no armário de parede que os psicólogos usam. Quer usá-la?

Aquilo criaria uma imagem de escola. Sim ou não?

— Podemos conversar agora, Dr. Lecter?

O doutor levantou a mão aberta.

— Sim, Barney, obrigado.

Agora sentada, e com Barney a uma distância segura, ela disse — A senadora tem uma oferta notável.

— Eu decidirei sobre isso. Você falou com ela tão depressa?

— Falei. Ela não está escondendo nada. Isto é tudo o que pode oferecer, portanto não é assunto para barganhar. Está tudo aí uma única oferta. — Afastou os olhos da sua pasta.

O Dr. Lecter, assassino de nove pessoas, tinha os dedos agrupados embaixo do nariz e a observava. Atrás de seus olhos havia uma noite infindável.

— Se o senhor nos ajudar a encontrar Buffalo Bill a tempo de salvar Catherine ilesa, obterá o seguinte: transferência para o Hospital da Administração de Veteranos, no Oneida Park, Nova York terá uma cela com vista para os bosques em torno do hospital. Segurança máxima ainda vigorará. Será convidado a ajudar na avaliação de testes psicológicos por escrito de alguns prisioneiros federais, embora não necessariamente daqueles que compartilhem de sua própria instituição. Fará as avaliações às cegas; nada de identificações. Terá razoável acesso a livros. — Ela levantou os olhos.

O silêncio podia ser zombeteiro.

— A coisa melhor, a coisa mais notável: durante uma semana por ano o senhor sairá do hospital e virá para cá. — Colocou o mapa no transportador de comida. O Dr. Lecter não o puxou. — Ilha Plum — continuou ela. — Cada tarde, durante aquela semana, senhor poderá passear na praia ou nadar no mar sem nenhuma vigilância a menos de 75 metros, mas terá segurança da SWAT. É tudo!

— E se eu não aceitar?

— Talvez possa pendurar umas cortinas cor de café nessa parede... Não temos nada com que ameaçá-lo, Dr. Lecter. O que consegui é uma forma de o senhor ver a luz do dia.

Ela não o fitou. Não queria um duelo de olhares agora; não era uma confrontação.

— Catherine Martin virá aqui e falará comigo — apenas sobre o seu raptor — se eu decidir publicar algo? Falar exclusivamente comigo?

— Sim. Pode considerar isso concedido.

— Como é que você sabe? Concedido por quem?

— Eu mesma a trarei aqui.

— Se ela não quiser vir.

— Bem, primeiro temos que perguntar a ela, não é?

Ela puxou o transportador para o seu lado.

— Ilha Plum.

Olhe para o extremo norte de Long Island. Aquele dedo ao norte.

— Plum Island. Aqui diz: Centro de Doenças Animais (Pesquisas Federais da Febre Aftosa). Parece encantador...

— Essa é apenas uma parte da ilha, que tem uma bela praia e bons alojamentos. Ali, as andorinhas-do-mar fazem seus ninhos na primavera.

— Andorinhas-do-mar — suspirou o Dr. Lecter. Inclinou ligeiramente a cabeça e tocou o centro do rubro lábio superior com a ponta da língua. — Se falarmos sobre isso, Clarice, tenho que receber qualquer coisa por conta. Quid pro quo. Eu lhe digo coisas e você me diz coisas.

— Comece — concordou Starling.

Teve que esperar um minuto antes de ele falar.

— Uma lagarta transforma-se em popa dentro de uma crisálida. Então emerge, sai de dentro de seu aposento secreto de mudança como uma bela imago. Você sabe o que é uma imago, Clarice?

— Um inseto adulto, provido de asas.

— E o que mais?

Ela sacudiu a cabeça negativamente.

— É um termo da falecida religião da psicanálise. Imago é uma imagem dos pais enterrada no inconsciente desde a infância e cercada de infantil afeto. A palavra vem das imagens de seus ancestrais feitas de cera que os romanos antigos carregavam em procissões fúnebres... Até o fleumático Crawford deve ver alguma significação na crisálida do inseto.

— Nada para se afundar demais exceto verificar os assinantes de jornais de entomologia versos agressores sexuais criminosos no índice do computador.

— Primeiro, vamos parar com esse nome de Buffalo Bill. É um nome suposto e nada tem a ver com a pessoa que vocês procuram. Por conveniência chamemo-lo Billy. Vou dar-lhe um resumo do que penso. Pronta?

— Pronta.

— O significado da crisálida é mudança: verme em borboleta ou mariposa, Billy pensa que deseja transformar-se. Está fazendo um traje de moça usando moças de verdade. Daí as vítimas terem que ser corpulentas — ele precisa de coisas que caibam nele. O número de vitimas sugere que ele pode ver a coisa como uma série de mudas. E está fazendo isso numa casa de dois andares, você sabe por que dois andares?

— Durante algum tempo ele as enforcava na escada.

— Correto.

— Dr. Lecter, não há correlação que eu tenha observado entre transexualismo e violência — em geral, transexuais são tipos passivos.

— É verdade, Clarice. Às vezes há uma tendência para viciar-se em cirurgia — plasticamente, transexuais são difíceis de satisfazer — , mas a coisa termina por aí. Billy não é realmente um transexual. Você está muito perto, Clarice, do modo pelo qual irá apanhá-lo, sabe disso?

— Não, Dr. Lecter.

— Bom. Então você não vai se incomodar de contar-me o que aconteceu com você depois da morte de seu pai.

Starling baixou os olhos para a superfície arranhada da carteira escolar.

— Não creio que a resposta esteja nos seus papéis, Clarice.

— Minha mãe nos manteve juntas por mais de dois anos.

— Fazendo o quê?

— Trabalhando como arrumadeira de um motel durante o dia e cozinhando num café à noite.

— E depois?

— Fui morar com a prima de minha mãe e o marido dela em Montana.

— Apenas você?

— Eu era a mais velha.

— A cidade nada fez por sua família?

— Um cheque de 500 dólares.

— É curioso não haver seguro. Clarice, você disse que seu pai bateu com a espingarda na porta da caminhonete.

— Sim.

— Ele não dispunha de um carro-patrulha?

— Não.

— Aconteceu à noite?

— Sim.

— Ele não tinha uma pistola?

— Não.

— Clarice, ele estava trabalhando à noite, numa caminhonete, armado apenas com uma espingarda... Diga-me: ele por acaso usava um relógio de ponto na cintura? Uma daquelas coisas em que existem chaves fixadas a postes por toda a cidade, de forma que você tem que se dirigir até eles e dar corda no relógio? Para que os cidadãos da cidade saibam que você não estava dormindo. Diga-me se ele usava isso, Clarice.

— Usava.

— Então ele era um guarda-noturno, não um delegado, certo, Clarice? Eu saberei, se você mentir.

— O registro na carteira dizia “delegado noturno”.

— Que aconteceu a ele?

— Que aconteceu ao quê?

— Ao relógio de ponto. Que aconteceu a ele depois que atiraram em seu pai?

— Não me lembro.

— Caso se lembrar, você me dirá?

— Sim. Espere um momento... o prefeito foi ao hospital e pediu à minha mãe o relógio e o distintivo. — Ela nem lembrava que tinha conhecimento daquilo. O prefeito, com sua roupa esporte e seus sapatos de excedente de Marinha. O filho da puta...

— Quid pro quo, Dr. Lecter.

— Você pensou por um momento pelo menos, que estava inventando aquilo? Não, se o tivesse inventado, não lhe doeria. Estávamos falando sobre transexuais. Você disse que violência e um comportamento destruidor não são dados estatísticos do transexualismo. É verdade. Lembra-se do que dissemos sobre a raiva ser expressada como luxúria e o lúpus pressentido como urticária? Billy não é um transexual, mas pensa que é e tenta ser. Ele já tentou ser uma porção de coisas, acredito.

— O senhor disse que eu estava próxima do modo para apanhá-lo.

— Há três centros principais de cirurgia transexual: a Johns Hopkins, a Universidade de Minnesota e o Columbus Medicai Center. Eu não ficaria surpreso se ele tivesse procurado um destes centros para mudança de sexo e lhe tivessem recusado.

— Em que base o rejeitariam, o que constaria do registro?

— Você é muito arguta, Clarice. A primeira razão seria um antecedente criminal, que desqualifica o requerente, a não ser que o crime fosse de caráter relativamente leve e ligado ao problema da identidade de gênero. Prática de travesti em público, algo dessa natureza. Se ele mentisse repetidamente sobre um registro criminoso sério, os inventários de personalidade o trairiam.

— Como?

— Você tem que saber como, a fim de peneirá-los, não é?

— Correto.

— Por que você não pergunta ao Dr. Bloom?

— Prefiro perguntar ao senhor.

— O que vai ganhar com isso, Clarice, uma promoção e aumento de salário? O que é você, uma G-9? Quanto ganham agora as pequenas G-9?

-— Uma chave da porta da frente, entre outras coisas. Como apareceria ele num diagnóstico?

— Você gostou de Montana, Clarice? Montana é ótima. Você gostou do marido da prima de sua mãe?

— Éramos diferentes.

— Como eram eles?

— Cansados de tanto trabalhar.

— Havia outros filhos?

— Não.

— Onde você vivia?

— Num rancho de criação.

— Criação de carneiros?

— Carneiros e cavalos.

— Quanto tempo viveu lá?

— Sete meses.

— Que idade você tinha?

— Dez anos.

— De lá, para onde foi?

— Para o Lar Luterano em Bozeman.

— Diga-me a verdade.

— Estou dizendo a verdade.

— Você está evitando a verdade.

— Se está cansada, podemos conversar lá pelo fim da semana. Eu estou me aborrecendo. Ou você preferiria conversar agora?

— Agora, Dr. Lecter.

— Muito bem. Uma criança é mandada por sua mãe para um rancho em Montana. Um rancho de criação de carneiros e cavalos.

— Sentindo falta da mãe, excitada pelos animais... — O Dr. Lecter fez um gesto com as mãos convidando Starling a continuar.

— Era formidável. Tinha meu próprio quarto com um tapete índio no assoalho. Deixavam-me montar um cavalo que não podia ver muito bem. Havia algo errado com os cavalos. Ou eram aleijados ou doentes. Alguns deles tinham sido criados com crianças e relinchavam para mim de manhã quando eu ia pegar o ônibus da escola.

— E então?

— Descobri algo estranho no celeiro. Eles tinham ali um pequeno quarto de depósito. Pensei que aquela coisa fosse uma espécie de velho elmo. Quando o coloquei no chão, vi uma gravação: “Aparelho Humanitário para Matar Cavalos W.W. Grasnar.” Era uma espécie de chapéu em forma de sino e tinha um lugar no topo para alojar um cartucho. Parecia de calibre 32.

— Eles forneciam cavalos mortos nesse rancho, Clarice?

— Sim, faziam isso.

— E os matavam no rancho?

— Os que eram usados para cola e para fertilizantes, matavam lá mesmo. Pode-se acomodar seis num caminhão, se estão mortos. Os que eram usados para comida de cães eles levavam vivos.

— E aquele que você costumava montar?

— Fugimos juntos.

— Até onde você chegou?

— Mais ou menos até onde vou quando o senhor me explica os diagnósticos.

— Conhece o procedimento para testar candidatos a cirurgia transexual?

— Não.

— Ajudaria se você me trouxesse uma cópia do regime de qualquer um dos centros, mas, para começar: a bateria de testes usualmente inclui a escala Wechsler de Inteligência em Adultos, House-Tree-Person, Rorschach, Desenho de Autoconceito, Percepção Temática, MMPI, naturalmente, e alguns outros — o Jenkins, penso, desenvolvido pela NYU. Você precisa de algo que possa avaliar rapidamente, não é, Clarice?

— Seria o melhor, algo rápido.

— Vejamos... Nossa hipótese é que estamos procurando alguém do sexo masculino cujo teste diferirá do de um verdadeiro transexual. Muito bem; no teste House-Tree-Person procure alguém que não desenhou primeiro a figura feminina. Transexuais masculinos quase sempre desenham a figura feminina em primeiro lugar, e tipicamente prestam atenção aos adornos nas fêmeas que desenham.

— Suas figuras masculinas são simples estereótipos — há algumas exceções quando desenham Mr. América —, mas não há muita coisa entre os dois casos.

“Procure o desenho de uma casa sem os enfeites de um futuro rosada nenhum carrinho de criança do lado de fora, nada de cortinas, nada de flores no jardim da frente.

“Com os verdadeiros transexuais você tem duas espécies de árvores: grandes chorões e temas de castração. As árvores cortadas pelo canto do desenho ou pela borda do papel — imagens da castração — são cheias de vida nos desenhos dos transexuais. Flores e troncos repletos de frutos. Esta é uma importante distinção. Elas são muito diferentes das árvores assustadas, mortas, mutiladas, que você vê nos desenhos feitos por pessoas com distúrbios mentais. Este é um bom ponto: a árvore de Billy será horrorosa! Estou indo depressa demais?

— Não, Dr. Lecter.

— Num desenho dele mesmo, um transexual quase nunca se mostrará nu. Não se desoriente por certa quantidade de ideação paranóica nas cartas TAT — isso é muito comum entre transexuais que se vestem freqüentemente como travestis; na maior parte das vezes já tiveram dificuldades com as autoridades. Devo fazer um resumo?

— Sim, gostaria de um resumo.

— Você deveria tentar obter uma lista de gente rejeitada em todos os três centros de alterações de gênero. Confira primeiro os rejeitados por antecedentes criminais — e entre estes observe com mais atenção os ladrões arrombadores. Entre os que tentaram esconder antecedentes criminais, procure severos distúrbios na infância associados com violência. Possivelmente internamentos na infância. Então examine os testes. Você está procurando um homem branco, provavelmente com menos de 35 anos, corpulento. Não é um transexual, Clarice. Apenas pensa que é, e está intrigado e zangado porque não querem ajudá-lo. Isso é tudo o que pretendo dizer, penso, até que tenha estudado o caso. Você vai deixá-lo comigo, não?

— Claro.

— E as fotos.

— Estão incluídas na pasta.

— Então é melhor você se apressar com o que tem, Clarice, e veremos o que consegue.

— Preciso saber como o senhor...

— Não. Não seja gulosa ou discutiremos na semana que vem. Venha quando tiver feito algum progresso. Ou não... E... Clarice?

— Estou ouvindo.

— Na próxima vez diga-me duas coisas. O que aconteceu com o cavalo é uma. A outra é... como você controla sua raiva?

Alonzo veio buscá-la. Ela segurava suas notas contra o peito, andando com a cabeça baixa, tentando juntar tudo na memória. Ansiosa pelo ar da rua, nem olhou para o escritório do Dr. Chilton quando saiu às pressas do hospital.

A luz do Dr. Chilton estava acesa. Podia-se vê-la fluindo por baixo da porta.

 

Muito antes da enferrujada madrugada de Baltimore, ouvia-se movimento na enfermaria de alta segurança. Lá embaixo, onde nunca escurece, os atormentados sentem o início do dia como as ostras num barril se abrem quando sua perdida maré sobe. Criaturas de Deus que foram dormir chorando se voltam para chorar de novo e aqueles que esbravejam clareiam suas gargantas.

O Dr. Hannibal Lecter estava de pé, empertigado, no fim do corredor, o rosto a 30 centímetros da parede. Pesadas tiras de lona prendiam-no a um carrinho de mudanças como se ele fosse um relógio de pé. Por baixo das tiras de lona, usava uma camisa-de-força e presilhas nas pernas. Uma máscara de jogador de hóquei sobre seu rosto impedia-o de morder; era tão eficaz como uma mordaça e não tão úmida que impedisse os guardas de a manusearem.

Atrás do Dr. Lecter um guarda baixinho, de ombros redondos, passava um pano molhado na jaula dele. Barney supervisionava essa limpeza três vezes por semana e ao mesmo tempo procurava algum contrabando. Os faxineiros tendiam a apressar-se, considerando as acomodações do Dr. Lecter mal-assombradas. Barney conferia quando eles terminavam. Ele observava tudo e nunca negligenciava coisa alguma.

Apenas Barney conferia o manuseio do Dr. Lecter, porque nunca se esquecia com quem estava lidando. Seus dois assistentes viam teipes de jogos de hóquei na televisão.

O Dr. Lecter se divertia — tinha vastos recursos internos e podia entreter-se por anos a fio. Seus pensamentos não eram mais tolhidos por medo ou por bondade do que os de Milton eram pela física. Em sua mente ele era livre.

Seu mundo interior tem intensas cores e cheiros e não muitos sons. De fato ele devia esfoçar-se para ouvir a voz do falecido Benjamin Raspail. O Dr. Lecter estava meditando como iria entregar Jame Gumb a Clarice Starling, e era útil lembrar-se de Raspail. Cá estava o gordo flautista no último dia de sua vida, deitado no sofá de terapia de Lecter, contando-lhe acerca de Jame Gumb:

“Jame tinha o mais atroz quarto imaginável naquela casa de cômodos em San Francisco. As paredes eram pintadas aqui e ali com uma espécie de cor rosa com manchas de Day-Glo psicodélico de seus tempos de hippie, tudo terrivelmente manchado.

“Jame — você sabe, é de fato grafado assim na sua certidão de nascimento, foi daí que ele o tirou e você tem que pronunciar ‘Jame’ como ‘narre’, ou ele fica pálido de raiva, embora tenha sido um erro no hospital — já então eles estavam contratando auxiliares baratos que nem sabiam escrever um nome direito. Hoje ainda é pior, arrisca-se a vida quando se entra num hospital. De qualquer maneira, lá estava Jame sentado na sua cama, a cabeça entre as mãos, naquele quarto horroroso; fora despedido do emprego na loja de curiosidades e cometera nova barbaridade.

“Eu lhe disse apenas que não podia tolerar seu comportamento, e Klaus acabara de entrar na minha vida, naturalmente. Jame não é de fato uma bicha, você sabe, isso é justamente algo que ele pegou na cadeia. Ele na realidade não é nada, apenas uma completa falta de personalidade que quer preencher, o que o torna tão zangado. Você sempre tinha a sensação de que o quarto ficava um pouco mais vazio quando ele entrava. Quero dizer: ele matou seus avós quando tinha 12 anos, e você pensaria que uma pessoa tão irresponsável devia ter alguma personalidade, não pensaria?

“E aí estava ele mais uma vez sem emprego, e cometera de novo a barbaridade com algum infeliz sem sorte. Eu fui-me embora. Ele tinha ido ao correio, apanhando a correspondência de seu antigo empregador, na expectativa de que nela houvesse algo que pudesse vender. E havia um pacote da Malásia ou de algum lugar por aquelas bandas. Ansioso abriu o pacote e era uma maleta cheia de borboletas mortas, e ninguém sabia por que tinham chegado para ele.

“Seu patrão mandava dinheiro para os funcionários do correio de todas aquelas ilhas, e eles lhe mandavam caixas e caixas de borboletas mortas. Ele as colocava em bandejas de lucile e fazia os mais horríveis ornamentos imagináveis — e tinha a coragem de chamá-los de objetos d’arte. As borboletas eram inúteis para Jame, e ele enfiou a mão dentro delas pensando que pudesse haver jóias por baixo — às vezes recebiam braceletes de Bali — , e só retirou a mão cheia de pó de borboletas. Nada. Ficou sentado na cama com a cabeça nas mãos coloridas de borboletas e encontrava-se no fundo do poço, como todos nós já estivemos, e chorava. Ouviu um pequeno ruído, e era uma borboleta na mala aberta. Lutava para sair de um casulo que fora misturado às borboletas, e conseguiu. Havia poeira no ar das borboletas e poeira no sol que penetrava pela janela você sabe como tudo é terrivelmente vívido quando descritos por alguém que se embriagou. Viu quando ela bateu as asas. Era uma borboleta enorme. Verde. Abriu a janela e ela voou para fora. Sentiu-se tão leve, afirmou ele, e sabia agora o que fazer.

“Jame descobriu a pequena casa de praia que Klaus e eu está vamos usando e quando vim para casa voltando do ensaio lá estava ele, mas não vi Klaus. Klaus não estava lá. Perguntei onde fora, e ele disse que fora nadar. Sabia que era uma mentira; Klaus nunca nadava, o Pacífico era por demais agitado. E quando abri o refrigerador, você sabe o que encontrei: a cabeça de Klaus olhando por trás do suco de laranja. Jame também fizera para ele, como você sabe, um avental da pele de Klaus, e o pusera, perguntando se eu gostava dele agora. Sei que você deve ficar espantado que eu jamais tivesse algo a ver com Jame — ele ainda era mais instável quando você o encontrou, e penso que ficou apenas admirado que você não tivesse medo dele.

E então, as últimas palavras que Raspail jamais pronunciou: — “Eu me admiro por que meus pais não me mataram antes que eu tivesse idade bastante para enganá-los”.

A fina lâmina do estilete tremia quando o coração de Raspail transpassado por ela tentava continuar batendo, e o Dr. Lecter disse: ‘Parece uma palhinha enfiada num buraco de formiga, não parece?’, mas era tarde demais para Raspail responder.

O Dr. Lecter podia lembrar-se de cada palavra, e de muito mais. Pensamentos agradáveis para passar o tempo enquanto eles limpam sua cela.

Clarice Starling era astuta, refletia o doutor. Poderia pegar Jame Gumb com o que ele lhe dissera, mas era uma probabilidade remota. Para apanhá-lo a tempo, precisaria de coisas mais específicas.

O Dr. Lecter sentia-se seguro de que, quando lesse detalhes dos crimes, surgiriam indicações possivelmente ligadas ao treinamento profissional de Gumb na instituição de correção juvenil depois que ele matara seus avós. Entregaria Jame Gumb a ela amanhã, e o faria com clareza, de forma que nem Jack Crawford poderia enganar-se. Amanhã a coisa seria liquidada.

O Dr. Lecter ouviu passos atrás dele, e a televisão foi desligada. Sentiu quando o carrinho foi inclinado para trás. Agora iria começar o longo e cansativo processo de liberá-lo dentro da cela. Era sempre feito da mesma maneira: primeiro Barney e seus assistentes o deitavam cuidadosamente na cama, a cara para baixo; a seguir Barney amarrava com toalhas seus tornozelos à barra que ficava no pé da cama, retirando as tiras que lhe prendiam as pernas e, com a cobertura de seus dois assistentes armados como Maces e cassetetes de motim, soltava os fechos nas costas da camisa-de-força e saía da cela andando de costas, prendendo a rede em posição e trancando a porta de grades, deixando o Dr. Lecter ocupado em libertar-se das demais amarras. A seguir o doutor trocava o equipamento por seu desjejum. Esse modo de proceder estava em uso desde que o Dr. Lecter atacara ferozmente o enfermeiro, e funcionava muito bem para todo mundo.

Naquele dia o processo foi interrompido.

 

O carrinho manual que carregava o Dr. Lecter deu um ligeiro solavanco quando ultrapassou a soleira da porta da jaula. E lá estava o Dr. Chilton, sentado na cama, examinando a correspondência particular do Dr. Lecter. Chilton tirara o casaco e a gravata. O Dr. Lecter podia distinguir uma espécie de medalha pendurada no seu pescoço.

— Fique de pé ao lado do toalete, Barney — disse o Dr. Chilton sem levantar os olhos. — Você e os outros esperem em seus postos.

O Dr. Chilton acabou de ler a mais recente comunicação do Dr. Lecter para os Arquivos Gerais de Psiquiatria. Jogou as cartas em cima da cama e saiu da cela. Houve um lampejo por trás da máscara de hóquei quando o Dr. Lecter o seguiu com os olhos sem que sua cabeça se movesse.

Chilton foi até a carteira escolar no corredor e, curvando-se com dificuldade, removeu um pequeno dispositivo de escuta que estava embaixo do assento.

Agitou-o na frente dos orifícios oculares na máscara do Dr. Lecter e sentou-se de novo na cama.

— Achei que ela poderia estar procurando uma violação dos direitos civis no caso da morte de Miggs e por isso resolvi ficar à escuta — disse Chilton. — Há anos não ouvia sua voz. Suponho que a última vez foi quando você deu aquelas respostas enganadoras em minhas entrevistas e depois me ridicularizou em seus artigos no Journol. É difícil acreditar que a opinião de um prisioneiro pudesse valer alguma coisa no meio da comunidade profissional, não é? Mas eu ainda estou aqui. E você também.

O Dr. Lecter nada disse.

— Anos de silêncio e então Jack Crawford manda sua pequena e você se derrete todo, não é? O que foi que deu em você, Hannibal? Foram aqueles belos, fortes tornozelos? O modo como o cabelo dela brilha? Ela é estupenda, não? Remota e estupenda. Uma pequena que é um entardecer de inverno, essa é a forma como penso nela. Sei que faz muito tempo que você não vê um pôr-do-sol de inverno, mas acredite na minha palavra.

“Você só tem mais um dia com ela. Depois a Divisão de Homicídios de Baltimore assume o interrogatório. Eles estão aparafusando uma cadeira no chão para você na sala de terapia de eletrochoque. A cadeira tem um assento de privada para sua conveniência, e para a conveniência deles quando ligarem os fios. Eu de nada tomarei conhecimento.

“Você já entendeu? Eles sabem Hannibal. Eles sabem que você sabe exatamente quem é Buffalo Bill. Eles pensam que você provavelmente tratou dele. Quando ouvi a Srta. Starling perguntar acerca de Buffalo Bill, fiquei intrigado. Telefonei para um amigo na Divisão de Homicídios de Baltimore. Eles encontraram um inseto na garganta de Klaus, Hannibal. Eles sabem que Buffalo Bill o matou. Crawford está fazendo você pensar que é esperto. Não creio que você saiba quanto Crawford o odeia por ter mutilado seu protegido. Agora ele pegou você. Você ainda se sente esperto?

O Dr. Lecter observou os olhos de Chilton correndo sobre as tiras que mantinham a máscara em posição. Estava claro que Chilton desejava removê-la para poder observar o rosto de Lecter. Lecter ficou imaginando se Chilton o faria da forma segura, por trás. Se o fizesse pela frente,teria que passar o braço diante da cabeça de Lecter, com as veias azuis da parte interna de seus antebraços próximas ao rosto dele. Venha, doutor. Chegue mais perto. Não, ele decidiu-se em contrário.

— Você está pensando que vai para algum lugar com uma janela? Acredita que vai passear na praia, ver as aves? Eu acho que não. Telefonei para a senadora Ruth Martin e ela nunca ouviu falar em nenhum acordo com você. Tive que fazê-la relembrar quem você era. Ela nunca ouviu falar em Clarice Starling. É uma arapuca. Pequenas desonestidades são de esperar numa mulher, mas esta é de arromba, não acha?

“Quando acabarem de ordenhá-lo, Hannibal, Crawford vai acusá-lo de esconder um crime. Você tentará descarregar a culpa em Mc’Naghten, doidamente, mas o juiz não vai gostar. Você já foi julgado por seis mortes. O juiz não irá mostrar nenhum interesse pelo seu bem-estar.

“Nada de janela, Hannibal. Você passará o resto dos seus dias sentado no chão de uma instituição do estado vendo passar na sua frente o carrinho de fraldas. Seus dentes vão cair, assim como a sua força, e ninguém mais terá medo de você, e você ficará inerte dentro da enfermaria em algum lugar como Flendauer. Os mais jovens abusarão de você e o usarão para fazer sexo quando tiverem vontade. Tudo o que você irá ler é o que escrever na parede. Está pensando que a justiça vai ligar para isso? Você já viu os velhos; eles choram quando não gostam do doce de abricó.

“Jack Crawford e sua gostosona. Eles vão se juntar abertamente quando a mulher dele morrer. Ele vai rejuvenescer e os dois adotarão algum esporte que possam fazer juntos. Eles são íntimos desde que Bella Crawford ficou doente, e já não estão enganando ninguém com isso. Ganharão suas promoções e não pensarão em você nem uma vez por ano. Crawford deve vir pessoalmente, no fim, para lhe dizer o que você vai ganhar. Um pau no rabo! Estou certo que ele tem o discurso preparadinho.

“Hannibal: ele não conhece você tão bem quanto eu. Ele pensava que se lhe pedisse a informação, você iria apenas atormentar a mãe da moça por isso.

“Muito certo, isso — refletiu o Dr. Lecter. — Muito esperto da parte de Jack; aquela cara obtusa caledônio-irlandesa é para enganar. O rosto dele é cheio de cicatrizes se você souber olhá-lo. Bem, possivelmente há espaço para algumas mais...

— Sei do que você tem medo. Não é da dor nem da solidão. O que você não pode suportar é a indignidade, Hannibal, a esse respeito você é como um gato. Cuidar de você é uma questão de honra para mim, Hannibal, e eu o faço. Nenhuma consideração pessoal jamais entrou em nosso relacionamento, de minha parte. E agora estou cuidando de você.

“Nunca houve um acordo entre você e a senadora Martin, mas agora há um. Ou poderá haver. Estive ao telefone horas a fio em seu nome e para o bem daquela pequena. Vou dizer-lhe qual é a primeira condição: você só fala por meu intermédio. Eu, somente eu, publico um relato profissional sobre isso, minha bem-sucedida entrevista com você. Você não publica nada. Tenho acesso exclusivo a qualquer material provindo de Catherine Martin, se ela for salva.

“Essa condição é inegociável. Você irá responder-me agora. Aceita essa condição?

O Dr. Lecter sorriu para si mesmo.

— É melhor você me responder agora ou irá responder à Divisão de Homicídios de Baltimore. Eis o que você ganhará: se identificar Buffalo Bill e a pequena for encontrada a tempo, a senadora Martin — e ela confirmará isso por telefone — o mandará para a Prisão Estadual de Brushy Mountain, no Tennessee, fora do alcance das autoridades de Maryland. Você estará sob a jurisdição dela, afastado de Jack Crawford. Ficará numa cela de máxima segurança com vista para os bosques. Terá livros. Quanto a qualquer exercício externo os detalhes serão acertados, mas tudo lhe será favorável. Diga o nome dele e você poderá partir imediatamente. A Polícia Estadual do Tennessee assumirá sua custódia no aeroporto, o governador concordou.

Por fim o Dr. Chilton disse algo interessante e ele nem sabe o que foi... O Dr. Lecter fez um bico com os lábios vermelhos por trás da máscara. A custódia da polícia. Os policiais não são tão espertos como Barney; estão acostumados a lidar com criminosos. Sentem-se inclinados a usar ferros nas pernas e algemas. Ferros nas pernas e algemas abrem-se com uma chave. Como a minha.

— O nome dele é Billy — disse o Dr. Lecter. — Direi o resto à senadora. No Tennessee.

 

Jack Crawford agradeceu o café que o Dr. Danielson lhe ofereceu, mas usou o copo para desfazer um Alka-Seltzer sobre a pia de aço inoxidável por trás do posto de enfermagem. Tudo era de aço inoxidável, o porta-copo, o balcão de lixo, os aros dos óculos do Dr. Danielson. O metal brilhante sugeria o brilho de instrumentos e produzia em Crawford uma ferroada característica na área inguinal.

Ele e o médico estavam sozinhos na pequena copa.

— Não, sem uma ordem judicial você não o fará — repetiu o Dr. Danielson. Dessa vez ele foi brusco, para compensar a hospitalidade que mostrara com o café.

Danielson era o Chefe da Clínica de Identificação de Sexos na Johns Hopkins e havia concordado em se encontrar com Crawford antes da primeira luz da manhã, antes da visita matinal.

— Você terá que me mostrar uma ordem judicial para cada caso especifico e nós vamos discutir cada um deles. O que Columbus e Minnesota lhe disseram? A mesma coisa, estou certo disso.

— O Ministério da Justiça está se dirigindo a eles neste momento. Temos que andar rápido, doutor. Se a moça ainda não está morta, ele a matará em breve, esta noite ou amanhã. Depois agarrará a próxima — disse Crawford.

— O fato de você mencionar Buffalo Bill juntamente com os problemas de que tratamos aqui é uma ignorância injusta e perigosa, Sr. Crawford. Fico com os cabelos em pé ao pensar nisso. Levamos anos, e ainda não acabamos nosso trabalho, para mostrar ao público que transexuais não são loucos, que não são pervertidos, que não são excêntricos — o que quer que isto signifique...

— Concordo com o senhor...

— Espere um pouco! A incidência de violência entre os transexuais é bem menor do que na população em geral. Eles são pessoas decentes com um problema real, um problema tremendamente difícil. Merecem ajuda e nós podemos dispensá-la. Não permitirei uma caça às bruxas. Nunca violamos a confiança de um paciente e nunca o faremos. É melhor que o senhor aja lembrando isso, Sr. Crawford.

Havia meses, na sua vida privada, que Crawford vinha tratando com os médicos e as enfermeiras de sua mulher, tentando com a maior esperteza conseguir pequenas vantagens para ela. Estava farto de médicos. Agora, porém, não se tratava da sua vida particular. Era Baltimore e era serviço. Mantenha-se calmo agora.

— Acho que não me fiz entender bem, doutor. Culpa minha. É madrugada e não sou um bom madrugador. O resumo de tudo é que o homem que procuramos não é seu paciente. Seria alguém que os senhores recusaram depois de reconhecer que ele não era um transexual. Não estamos aqui voando às cegas. Eu lhe mostrarei algumas formas específicas pelas quais ele se desvia dos padrões tipicamente transexuais em seu inventário de personalidades. Aqui está uma curta lista de coisas que sua equipe poderia procurar entre aqueles que foram rejeitados.

O Dr. Danielson esfregava um lado do nariz com o dedo enquanto lia. Devolveu o papel.

— Isso é original, Sr. Crawford; de fato, é extremamente bizarro, uma palavra que não uso muito amiúde. Posso perguntar quem lhe forneceu esse conjunto de... conjeturas?

Não acho que o senhor vá gostar disso, Dr. Danielson...

— A equipe da Ciência do Comportamento — esclareceu Crawford — , depois de consultar o Dr. Alan Bloom, da Universidade de Chicago.

— Alan Bloom endossou isso?

— E nós não dependemos apenas dos testes. Há uma outra maneira pela qual Buffalo Bill possivelmente se destacará em seus registros: provavelmente ele tentou esconder um registro de violência criminal ou falsificou outro material envolvendo seu passado. Mostre-me os casos que o senhor rejeitou, doutor.

Danielson estava o tempo todo sacudindo a cabeça.

— Exames e material de entrevistas são confidenciais.

— Dr. Danielson, como podem fraude e informações falsas ser confidenciais? Como pode o nome real de um criminoso e seu passado real inserir-se numa relação paciente-médico quando ele nunca lhe disse a verdade, o senhor tendo que descobri-la por si mesmo? Sei quão rígida a Johns Hopkins é. O senhor deve ter vários casos como este, estou certo. Viciados em cirurgia apelam a todo lugar em que se pratica cirurgia. Isso não afeta a instituição ou os pacientes legítimos. O senhor pensa que loucos também não procuram o FBI? Nós os temos a toda hora. Um homem com uma cabeleira à Moe Ritz apareceu em St. Louis na semana passada; tinha uma bazuca, dois foguetes e uma barretina militar de pele de urso no seu saco de golfe.

— Os senhores o admitiram no FBI...?

— Ajude-me, Dr. Danielson. O tempo está se esgotando. Enquanto ficamos aqui a discutir, Buffalo Bill pode estar transformando Catherine Martin numa coisa como esta — e Crawford pôs uma fotografia sobre a mesa brilhante.

— Não faça isso — disse o Dr. Danielson. — É uma criancice você forçar a barra comigo. Fui cirurgião de combate, Sr. Crawford. Ponha sua foto de volta no bolso.

— Certamente um cirurgião pode suportar a visão de um corpo mutilado — prosseguiu Crawford, amassando seu copo de papel e pisando no pedal da lata de lixo. — Mas não acho que um médico possa admitir a perda de uma vida. — Deixou cair o copo e a tampa da lata fechou-a com um barulho exagerado. — Aqui está minha melhor oferta: não pedirei informações sobre pacientes, apenas informações sobre pedidos de cirurgias, com base em certas referências. O senhor e sua equipe de revisão psiquiátrica podem manusear os pedidos rejeitados muito mais depressa do que eu. Se encontrarmos Buffalo Bill por informação sua, ocultarei o fato. Para fins de registro, encontrarei outra maneira pela qual poderíamos tê-lo feito.

— A Johns Hopkins poderia ser uma testemunha protegida, Sr. Crawford? Poderíamos ter uma nova identidade? Ficar com o apelido de Colégio Bob Jones, digamos? Duvido muito que o FBI ou qualquer outra agência do governo possa manter tal segredo por muito tempo.

— O senhor ficaria surpreso se soubesse...

— Duvido. Tentar escapar de uma inepta mentira burocrática poderia ser mais danoso do que dizer a verdade. Por favor, jamais nos proteja desta maneira, muito obrigado...

— Muito obrigado ao senhor, Dr. Danielson, por suas observações humorísticas. São muito úteis para mim, como vou mostrar-lhe num minuto. O senhor gosta da verdade — pois ouça esta: o bandido rapta mulheres jovens e arranca-lhes a pele. Veste essas peles e se diverte metido nelas. Não desejamos que ele continue fazendo isso. Se o senhor não me ajudar tão rápido quanto lhe for possível, eis o que farei: Nesta manhã mesmo o Ministério da Justiça expedirá publicamente uma ordem legal, alegando que o senhor se recusou a ajudar. Faremos isso duas vezes por dia, com tempo suficiente para alcançar os jornais da manhã e da tarde. Toda notícia liberada pelo Ministério sobre este caso dirá como estamos nos arranjando com o Dr. Danielson da Johns Hopkins, tentando fazer com que ele colabore. Toda vez que houver notícia sobre o caso Buffalo Bill — quando Catherine aparecer boiando, quando a próxima aparecer boiando, e quando mais uma aparecer boiando — , imediatamente liberaremos uma notícia para os jornais sobre como vamos indo com o Dr. Danielson da Johns Hopkins, inclusive seus comentários humorísticos sobre o Colégio Bob Jones. Mais uma coisa, doutor. O senhor sabe que o Serviço de Saúde Humana fica exatamente aqui em Baltimore. Meus pensamentos estão se dirigindo para o Escritório de Política de Elegibilidade, e espero que os seus pensamentos cheguem lá primeiro, está bem? Que tal se a senadora Martin, algum tempo após o funeral da filha, fizesse aos camaradas da Elegibilidade a seguinte pergunta: As operações de mudança de sexo que os senhores fazem aqui não deveriam ser consideradas cirurgias plásticas? Talvez eles cocem a cabeça e decidam: “Ora, sabem de uma coisa? A senadora Martin está certa. Sim. Consideramos que é cirurgia plástica.” Então o seu programa não se qualificará para uma ajuda federal mais do que uma clínica de cirurgia plástica do nariz.

— Isso é um insulto!

— Não; é apenas a verdade.

— O senhor não me assusta, o senhor não me intimida...

— Muito bem. Eu não desejo fazer nenhuma das duas coisas, doutor. Só desejo fazê-lo saber que estou falando sério. Ajude-me, doutor. Por favor.

— Você afirmou que está trabalhando com o Dr. Alan Bloom. — Sim. Na Universidade de Chicago.

— Conheço Alan Bloom e preferiria discutir o caso num nível profissional. Avise-o que entrarei em contato com ele esta manhã. Eu lhe direi o que decidi antes do meio-dia. Eu me preocupo com a jovem, Sr. Crawford. E com as outras. Mas aqui entra muita coisa em jogo e não acho que deva ser tão importante para o senhor quanto é... Sr. Crawford, o senhor testou sua pressão arterial recentemente?

— Eu mesmo o faço.

— E o senhor também se medica sozinho?

— Isso é contra a lei, Dr. Danielson.

— Portanto o senhor tem um médico.

— Sim.

— Participe-lhe os seus resultados, Sr. Crawford. Que perda para todos nós se de repente o senhor caísse morto. Entrarei em contato com o senhor mais tarde, hoje mesmo.

— Dentro de quanto tempo, doutor? Que tal uma hora?

— Uma hora.

O beeper de Crawford soou quando ele saia do elevador. Jeff, seu motorista, estava acenando para ele enquanto Crawford corria apressado em direção ao furgão. Ela está morta, acharam-na, pensou Crawford quando agarrou o fone. A chamada era do diretor. As notícias não foram tão ruins quanto poderiam ser, mas também não eram boas! Chilton interferira no caso e agora a senadora Martin estava se metendo. O promotor público do Estado de Maryland, mediante instruções do governador, tinha autorizado a transferência para o Tennessee do Dr. Hannibal Lecter. Seria necessário todo o prestigio da Corte Federal do Distrito de Maryland para impedir ou protelar a remoção. O diretor queria uma opinião de Crawford e a queria agora mesmo.

— Espere um pouco — reagiu Crawford. Descansou o fone sobre a perna e olhou pela janela do furgão. Não havia muita cor em fevereiro para a primeira luz do dia. Tudo cinza, tudo frio.

Jeff começou a resmungar e Crawford mandou que se calasse com um gesto da mão.

O monstruoso ego de Lecter. A ambição de Chilton. O terror da senadora Martin por sua filha. A vida de Catherine. Tudo bem!

— Deixe que prossigam — falou ao telefone.

O Dr. Chilton e três soldados da milícia do Tennessee com o uniforme bem passado estavam de pé, bem juntos, na pista de asfalto varrida pelo vento ao raiar do dia. Erguiam suas vozes acima do barulho do pesado tráfego de rádio que vinha da porta aberta do Grumman Gulfstream e de uma ambulância com o motor ligado ao lado do avião.

O capitão encarregado do grupo passou uma caneta ao Dr. Chilton. Os papéis se agitaram na ponta da prancheta e o policial teve que segurá-los.

— Não podemos fazer isso no ar? — perguntou Chilton.

— Senhor, é preciso complementar a documentação no momento da transferência. Estas são as minhas instruções.

O co-piloto acabou de fixar a rampa nos degraus da escada do avião.

— O.K. — aprovou ele.

Os soldados reuniram-se com o Dr. Chilton atrás da ambulância. Quando ele abriu a porta, ficaram tensos como se estivessem esperando que algo estranho fosse saltar de dentro.

Viram o Dr. Lecter de pé, envolto em faixas de lona e usando sua máscara de hóquei. Estava esvaziando a bexiga enquanto Barney segurava o urinol.

Um dos soldados ensaiou um risinho; os outros desviaram os olhos.

— Desculpe — disse Barney ao Dr. Lecter, e fechou a porta por mim.

— Deixe estar, Barney — apaziguou o Dr. Lecter. — Eu já terminei. Obrigado.

Barney arrumou a roupa de Lecter e rolou o carrinho para a traseira da ambulância.

— Barney?

— Diga, Dr. Lecter.

— Você foi decente comigo por muito tempo. Obrigado.

— Não há de quê.

— Da próxima vez que o Sammie estiver calmo, diga-lhe adeus.

— Por certo.

— Adeus, Barney.

O guarda corpulento reabriu as portas e disse aos policiais:

— Peguem por baixo, camaradas. Agarrem dos dois lados. Coloquem-no no chão. Devagar!

Barney empurrou o carrinho com o Dr. Lecter rampa acima e para dentro do avião. Três assentos tinham sido retirados no lado direito do aparelho. O co-piloto prendeu o carrinho às presilhas soltas dos assentos.

— Ele vai voar deitado? — perguntou um dos milicianos. Tem fraldas de borracha?

— Você terá que se agüentar sem urinar até Memphis, camarada — disse o outro soldado.

— Dr. Chilton, eu poderia dar-lhe uma palavrinha? — perguntou Barney.

Estavam fora do avião e o vento levantava pequenos torvelinhos de poeira e lixo em volta deles.

— Esses camaradas não têm a menor prática — comentou Barney.

— Terei alguma ajuda do outro lado. Guardas psiquiátricos experientes. Agora o Dr. Lecter está sob a responsabilidade deles.

— O senhor pensa que vão tratá-lo bem? O senhor sabe como ele é... tem-se que ameaçá-lo com uma solidão absoluta. É só o que ele teme. Bater nele não adianta nada.

— Eu nunca permitiria isso, Barney.

— O senhor vai estar lá quando o interrogarem?

— Sim. — E você não estará... acrescentou Chilton para si mesmo.

— Eu poderia instalá-lo no outro lado, e estaria de volta apenas umas duas horas atrasado para o meu turno — sugeriu Barney.

— Ele não está mais sob a sua responsabilidade, Barney. E eu estarei lá. Explicarei a eles como devem tratá-lo, passo a passo.

— É melhor que fiquem atentos — disse Barney. — Ele ficará...

 

Clarice Starling, sentada na beira de sua cama no motel, ficou olhando para o telefone negro por quase um minuto depois que Crawford desligou. Tinha o cabelo despenteado e enrolara a camisola da Academia em torno do corpo ao agitar-se durante o curto sono. Sentia-se como se tivesse levado um soco no estômago.

Fazia apenas três horas que ela tinha deixado o Dr. Lecter e duas desde que ela e Crawford tinham acabado de trabalhar na folha de características para checar os pedidos de internação no centro médico. Naquele curto intervalo, enquanto ela dormia, o Dr. Frederick Chilton conseguira estragar tudo.

Crawford vinha buscá-la. Precisava aprontar-se, tinha que pensar em preparar-se.

Que porra! Que PORRA! QUE PORRA! O senhor a matou, Dr. Chilton. O senhor a matou, doutor de merda! Lecter sabia mais alguma coisa e eu poderia tê-la arrancado dele. Tudo perdido, tudo perdido!

Quando Catherine boiar, vou fazê-lo dar uma olhada nela, juro que vou! Você a roubou de mim. Agora preciso fazer alguma coisa útil. Agora mesmo. O que posso fazer agora, neste minuto? Preparar-me.

No banheiro, um cestinho com sabonetes, vidros de xampu e loção, um pequeno jogo para costurar, os obséquios que se recebem num bom motel.

Ao entrar debaixo do chuveiro, Starling teve uma rápida visão dela mesma aos oito anos, trazendo toalhas, xampu e sabonete para sua mãe que limpava os quartos do motel. Quando tinha oito anos havia um corvo — um de um bando naquela ventosa e amarga cidade — , e esse corvo gostava de roubar coisas do carro de limpeza de quartos do motel. Ele roubava qualquer coisa brilhante. O corvo esperava uma oportunidade e então remexia entre as muitas coisas que havia no carro. Às vezes, tendo que levantar vôo numa emergência, defecava na roupa de cama limpa. Uma das outras mulheres da limpeza jogou detergente nele. O único efeito foi manchar suas penas com marcas brancas como neve. O corvo branco e preto estava sempre vigiando Clarice, esperando que ela se afastasse do carro para levar coisas à mãe que limpava os banheiros. A mãe estava de pé na porta de um banheiro do motel quando lhe disse que ela devia partir para viver em Montana. A mãe arriou as toalhas que tinha na mão, sentou-se na beirada da cama do motel e abraçou-a. Starling ainda sonhava com o corvo e via-o agora, sem tempo sequer para pensar por quê. Sua mão subiu num movimento de carícia e então, como se necessitasse de uma desculpa para o gesto, elevou-a até a testa e afastou para trás o cabelo úmido.

Vestiu-se rapidamente: slacks, uma blusa, um suéter leve sem mangas, a pistola de cano curto contra as costelas no coldre chato, o carregador rápido debaixo do cinto, no outro lado. Seu blazer precisava de um pouco de atenção. Uma costura do forro em cima do carregador rápido estava se descosturando. Ela se dispôs a ficar ocupada, bem ocupada, até se acalmar. Pegou o pequeno estojo de costura do motel e consertou o forro. Alguns agentes costuravam arruelas nas bordas dos casacos, de maneira que caíssem normalmente; ela teria que fazer isso.

Crawford estava batendo à porta.

 

Na experiência de Crawford a raiva fazia as mulheres parecerem relaxadas. A raiva arrepiava seu cabelo atrás, pintava o diabo com sua cor e fazia-as esquecer de fecharem seus zíperes. Qualquer traço menos atraente era exagerado. Starling parecia exatamente ela mesma quando abriu a porta do quarto do motel, mas estava com uma raiva danada.

Crawford sabia que talvez agora conhecesse uma grande e nova verdade acerca de Starling.

Uma fragrância de perfume e de vapor invadiu-o quando ela apareceu no limiar da porta. As cobertas do leito atrás haviam sido puxadas sobre o travesseiro.

— O que você acha da situação, Starling?

— Eu acho que tudo se danou, Sr. Crawford; e o senhor, o que acha?

Ele assentiu com a cabeça.

— A lanchonete na esquina já está aberta. Vamos tomar um café.

Era uma manhã amena para fevereiro. O sol, ainda baixo a leste, lançava um reflexo vermelho na fachada do asilo quando por ele passaram. Jeff seguia-os vagarosamente no furgão, os rádios fazendo barulho. A certa altura passou o fone pela janela aberta, e Crawford teve uma breve conversa pelo rádio.

— Podemos abrir um processo contra Chilton, por obstrução à justiça?

Starling caminhava um pouco à frente dele, mas Crawford pôde ver que os músculos do seu maxilar se retesaram quando ela fez a pergunta.

— Não, não daria resultado.

— Que tal se ele a desgraçar, se Catherine morrer por causa do Chilton? Eu desejo realmente jogar isso na cara dele... Deixe-me continuar com este caso, Sr. Crawford. Não me mande de volta para a escola.

— Ocorrem duas coisas. Se eu mantiver você, não será para jogar a verdade na cara do Chilton, isso poderá ficar para mais tarde. Segundo: se eu a retiver por muito mais tempo, você terá que repetir parte do curso, o que vai lhe custar alguns meses. A Academia não dá folga a ninguém. Eu posso garantir que você voltará, mas isso é tudo... Haverá um lugar reservado parra você, é só o que posso lhe garantir.

Ela inclinou a cabeça bem para trás e depois abaixou-a de novo enquanto andava.

— Talvez essa não seja uma pergunta delicada para fazer ao chefe, mas o senhor está metido em alguma encrenca? A senadora Martin pode fazer algo contra o senhor?

— Starling, devo me aposentar dentro de dois anos. Se eu descobrir Jimmy Hoffaman e o assassino do Tylenol, ainda assim tenho que pendurar as chuteiras. Não me preocupo com isso.

Crawford, sempre cauteloso em demonstrar qualquer sentimento, sabia quanto precisava ser prudente. Sabia que um homem de meia-idade pode desejar com tal desespero ser prudente que é capaz de inventar alguma coisa, e que isso pode ser fatal para uma jovem que acredita nele. Assim, falou muito cuidadosamente e apenas de coisas que sabia.

O que transmitiu a ela naquela feia Rua de Baltimore, aprendera numa sucessão de madrugadas geladas na Coréia, numa guerra que acontecera antes mesmo de ela nascer. Evitou a parte da Coréia, achando que não necessitava disso para emprestar autoridade ao que dizia.

— Este é o período mais duro, Starling. Aproveite-o bem e ele irá endurecê-la. Agora vem o teste mais difícil: não deixar que a raiva e a frustração a impeçam de pensar. Isso é o essencial para sabe se você pode comandar ou não. O desperdício e a estupidez são os que mais pode afetar você. Chilton é um maldito estúpido e pode ter causado a morte de Catherine Martin. Mas talvez não... Nós somos a chance dela. Starling, qual é a temperatura do nitrogênio líquido no laboratório?

— Hem? Ah, nitrogênio líquido... cerca de 200 graus centígrados negativos; ferve um pouco acima disso.

— Você alguma vez congelou alguma coisa com ele?

— Por certo.

— Chega... está bem? — Ele sorriu, mostrando dentes pequenos como os de uma criança.

Starling riu para ele, apesar de toda sua preocupação. Quando correu para o furgão, deu-lhe um adeus com a mão sem se voltar.

Crawford ficou satisfeito com aquilo.

 

O Grumman Gulfstream que levava o Dr. Hannibal Lecter pousou em Memphis soltando duas nuvenzinhas de fumaça azul dos pneus. Seguindo instruções da torre, ele taxiou em direção aos hangares da Guarda Nacional Aérea, longe dos terminais de passageiros. Uma ambulância do Serviço de Emergência e uma limusine aguardavam dentro do primeiro hangar.

A senadora Ruth Martin observava através do vidro esfumaçado da limusine quando os milicianos estaduais rolaram o carrinho do Dr. Lecter para fora do avião. Teve vontade de correr para a figura amarrada e mascarada e arrancar-lhe a informação, mas era inteligente bastante para conter-se.

O telefone da senadora Martin tocou. Seu assistente, Brian Gossage, apanhou-o do assento extra.

— É o FBI... Jack Crawford — informou Gossage.

A senadora Martin estendeu a mão para o fone sem tirar os olhos do Dr. Lecter.

— Por que não me informou sobre o Dr. Lecter, Sr. Crawford.

— Tive receio que a senhora fizesse exatamente o que está fazendo, senadora.

— Não quero brigar com o senhor, Sr. Crawford. Se o senhor me hostilizar, vai se arrepender.

— Onde está agora o Dr. Lecter?

— Estou olhando para ele.

— Ele pode ouvi-la?

— Não.

— Senadora Martin, escute-me. A senhora deseja dar garantias pessoais ao Lecter... muito bem! muito bem! Mas faça uma coisa por mim: deixe o Dr. Bloom instruí-la antes que a senhora enfrente Lecter. Bloom pode ajudá-la, acredite.

— Eu já tenho um conselheiro profissional.

— Espero que seja melhor do que Chilton.

O Dr. Chilton estava batendo com os dedos na janela da limusine. A senadora Martin mandou Gossage atendê-lo fora do carro.

— Uma luta interna é desperdício de tempo, Sr. Crawford. O senhor mandou uma recruta inexperiente a Lecter com uma oferta falsa. Eu posso agir melhor do que isso. O Dr. Chilton diz que Lecter é capaz de responder a uma oferta legítima e estou lhe apresentando uma, sem burocracia, sem testemunhas, sem questões de credibilidade. Se tivermos Catherine de volta ilesa, todo mundo vai se sentir bem, inclusive o senhor. Se ela... morrer, eu não darei porra de importância nenhuma a desculpas!

— Use-nos, então, senadora Martin.

Ela não notou raiva na voz dele, apenas uma frieza profissional que reconheceu logo. Respondeu-lhe:

— Prossiga.

— Se a senhora conseguir alguma coisa, deixe-nos agir com base no que obtiver. Certifique-se de que nos transmitiu tudo. Certifique-se de que a polícia local coopera. Não os deixe pensar que lhe agradarão se nos excluírem.

— Paul Krendler, do Ministério da Justiça, está vindo para cá. Ele cuidará disso.

— Qual é o seu policial mais graduado aí?

— O major Bachman, do Tennessee Bureau of Investigation.

— Bom. Se já não for muito tarde, tente um blecaute da mídia. Será melhor se ameaçar Chilton a esse respeito. Ele adora chamar atenção. Não queremos que Buffalo Bill saiba qualquer coisa. Quando o encontrarmos, vamos usar o Grupo de Resgate de Reféns. Devemos atingi-lo rapidamente e evitar um impasse. A senhora tenciona questionar Lecter pessoalmente?

— Sim.

— Gostaria de falar com Clarice Starling primeiro? Ela está a caminho.

— Com que finalidade? O Dr. Chilton fez um sumário daquele material para mim. Nós já perdemos muito tempo...

Chilton estava de novo batendo na janela, pronunciando palavras através do vidro. Brian Gossage pegou no seu pulso enquanto sacudia a cabeça.

— Preciso ter acesso ao Dr. Lecter depois que a senhora falar com ele.

— Sr. Crawford: ele prometeu que revelará o nome de Buffalo Bill em troca de privilégios, realmente, comodidades. Se não fizer isso, o senhor pode ficar com ele para sempre.

— Senadora Martin, vou dizer-lhe uma coisa delicada, mas tenho que dizê-la à senhora: o que quer que faça, nunca lhe implore!

— Certo, Sr. Crawford. Mas agora não posso continuar a falar-lhe. — E desligou o telefone. — “Se eu estiver errada, ela não estará mais morta que as últimas seis de que o senhor cuidou...” — disse para si mesma, e mandou Gossage e Chilton entrarem no carro.

O Dr. Chilton tinha pedido um escritório em Memphis para a entrevista da senadora Martin com Hannibal Lecter. Para economizar tempo, uma sala de reuniões da Guarda Nacional Aérea no hangar fora rearrumada rapidamente para o encontro.

A senadora Martin teve que esperar do lado de fora do hangar enquanto Chilton instalava Lecter na sala improvisada. Ela não agüentara ficar dentro do carro. Andava em volta de um pequeno círculo embaixo do alto teto do hangar, olhando lá em cima as altas vigas cruzadas e depois baixando os olhos para as tiras pintadas no piso. Uma vez parou ao lado de um velho Phantom F-4 e descansou a cabeça de encontro àquele corpo frio onde estava escrito em estêncil NÃO PISE. Este aviso deve ser mais velho do que Catherine. Meu bom Jesus, me acuda!

— Senadora Martin — o major Bachman estava a chamá-la.

Chilton, da porta, convidava-a a entrar.

Na sala havia uma mesa para Chilton e cadeiras para a senadora Martin, seu assistente e o major Bachman. Um cameraman estava a postos para registrar o encontro. Chilton informara que era uma das condições de Lecter.

A senadora Martin entrou, parecendo bem-disposta. Seu conjunto azul-marinho recendia a poder. Ela também incutira uma boa aparência em Gossage.

O Dr. Hannibal Lecter estava sentado no meio da sala, numa pesada poltrona de carvalho aparafusada no chão. Um cobertor cobria sua camisa-de-força e as presilhas nas pernas, escondendo o fato de ele estar acorrentado na cadeira. Além disso, ainda usava a máscara de hóquei que o impedia de morder.

“Por quê? — pensou a senadora Martins a idéia inicial fora permitir ao Dr. Lecter alguma dignidade num ambiente de escritório. A senadora Martin deu uma olhada para Chilton e virou-se para Gossage, pedindo os papéis.

Chilton dirigiu-se para trás do Dr. Lecter e, fitando diretamente a câmara, desfez as amarras e retirou a máscara com um floreio.

— Senadora Martin, apresento-lhe o Dr. Hannibal Lecter.

Ver o que o Dr. Chilton fizera a título de exibicionismo assustou a senadora Martin mais do que qualquer coisa desde que sua filha desaparecera. Qualquer confiança que ela tivesse tido no bom senso de Chilton desapareceu ante a fria evidência de que ele era um idiota.

Mas tinha que tocar para a frente.

Uma madeixa do cabelo do Dr. Lecter caiu entre seus olhos castanhos. Ele estava tão pálido quanto a máscara. A senadora Martin e o Dr. Lecter encararam um ao outro — ela extremamente brilhante, ele impossível de avaliar por qualquer meio conhecido pelo homem.

O Dr. Chilton voltou à sua mesa, correu os olhos em volta dos presentes e começou:

— O Dr. Lecter fez-me saber, senadora, que ele deseja contribuir para a investigação com alguns conhecimentos especiais, em troca de certas regalias ligadas às condições da sua prisão.

A senadora Martin segurou na mão um documento:

— Dr. Lecter, este é um compromisso que assinarei agora. Diz que eu o ajudarei. Deseja lê-lo?

Ela pensava que Lecter não ia responder e já se voltava para a mesa a fim de assinar, quando ele disse:

— Não vou fazê-la perder seu tempo e o de Catherine barganhando por privilégios mesquinhos. Gente carreirista já desperdiçou bastante tempo. Deixe que eu a ajude agora e confio em que a senhora me ajudará quando isto terminar.

— Pode contar com isso. — Voltou-se para o assistente: Brian?

Gossage levantou sua prancheta.

— O nome de Buffalo Bill é William Rubin. Conhecido como Billy Rubro. Foi-me apresentado em abril ou maio de 1975 por meu paciente Benjamin Raspail. Disse que vivia em Filadélfia, não posso lembrar-me do endereço, mas estava na ocasião morando com Raspail em Baltimore.

— Onde estão seus registros? — interrompeu o major Bachman.

— Meus registros foram destruídos por ordem da Justiça pouco depois...

— Qual era a aparência dele? — perguntou o major Bachman.

— Me dá licença, major? Senadora Martin, a única...

— Dê-me sua idade e uma descrição física, qualquer outra coisa de que possa se lembrar — insistiu o major Bachman.

O Dr. Lecter simplesmente apagou. Pensou em outra coisa: nos estudos anatômicos de Géricault para A jangada da Medusa, e se ouviu as perguntas que se seguiram não o demonstrou.

Quando a senadora Martin recuperou a atenção dele, estavam sozinhos na sala. Ela tinha nas mãos a prancheta de Gossage.

Os olhos de Lecter focalizaram-se nos dela.

— Aquela bandeira cheira a charutos — disse ele. Você alimentou Catherine ao peito?

— Perdão? Eu fiz o quê?

— Alimentou Catherine ao seio?

— Sim.

— São uns bichinhos sedentos, não?

Quando as pupilas dela sombrearam, o Dr. Lecter provou uma única amostra da dor que ela sentiu e achou-a esquisita. Considerou que era o bastante para aquele dia.

— William Rubin tem um metro e oitenta e três e deve estar hoje com 35 anos. É muito forte, cerca de 86 quilos quando eu conheci e aumentou de peso desde então, creio. Tem o cabelo castanho e olhos azuis, pálidos. Dê isso a eles e então prosseguiremos.

— Sim, eu o farei — disse a senadora Martin. Passou as nota para fora da porta.

— Só o vi uma vez. Ele marcou outra consulta, mas não voltou.

— Por que o senhor pensa que ele é Buffalo Bill?

— Já naquele tempo ele assassinava moças e fazia coisas assim com elas, anatomicamente. Disse que precisava de alguma ajuda para parar, mas na verdade só queria conversar fiado sobre os seus feitos. Apenas prosear-se.

— E o senhor não... ele estava certo de que o senhor não iria denunciá-lo?

— Ele não estava certo, mas gostava de arriscar-se. Eu honro a confiança do seu amigo Raspail.

— Raspail sabia que ele andava fazendo isso?

— Os apetites de Raspail eram os mais estranhos, ele estava coberto de cicatrizes.

“Billy Rubin disse-me que tinha um prontuário criminal, porém sem detalhes. Fiz uma curta ficha médica. Nada tinha de excepcional, exceto por uma coisa: Rubro me disse que certa vez sofreu de um antraz. Isto é tudo do que me lembro, senadora Martin creio que a senhora está ansiosa para sair. Se qualquer outra coisa me ocorrer, eu lhe mandarei um recado.

— Bill Rubin matou a pessoa cuja cabeça estava no carro?

— Acredito que sim.

— O senhor sabe quem é essa pessoa?

— Não. Mas Raspail chamava-o de Klaus.

— As outras coisas que o senhor disse ao FBI eram verdadeiras

— Pelo menos tão verdadeiras quanto as que o FBI me disse, senadora.

— Fiz alguns arranjos temporários para o senhor aqui em Memphis. Conversaremos sobre sua situação e o senhor irá para Brushy Mouniain quando isto... quando tivermos resolvido isto.

— Obrigado. Gostaria de um telefone, se eu lembrar de alguma coisa.

— O senhor o terá.

— E música. Glenn Gould, as Variações Goldberg. Será que é pedir demais?

— Está bem.

— Senadora Martins não confie nenhuma pista exclusivamente ao FBI. Jack Crawford nunca joga limpo com as outras agências. É um jogo complicado o dessa gente... Ele está decidido a realizar a prisão ele mesmo. Um “fominha” é como o chamam.

— Muito obrigada, Dr. Lecter.— Gostei muito do seu conjunto — acrescentou quando ela se dirigia para a porta.

 

Jame Gumb percorre quarto após quarto, o porão, como um labirinto que nos atormenta e aos nossos sonhos. Quando ele ainda era encabulado, séculos e séculos atrás, o Sr. Gumb gostava dos quartos mais afastados, longe das escadas.

Existem quartos nos cantos mais remotos, quartos de outras vidas, que Gumb não abre há anos. Alguns deles ainda estavam ocupados, por assim dizer, embora os sons por trás das portas tenham atingido um auge e descambado para o silêncio há muito tempo.

Os níveis do chão variam de quarto para quarto, as diferença chegando até a 30 centímetros. Há soleiras a subir, topos de porta onde é preciso curvar-se. Cargas são impossíveis de rolar e penosa de arrastar. Fazer marchar qualquer coisa à sua frente — aos tropeções e chorando, implorando, batendo com a cabeça às tontas é difícil, até mesmo perigoso.

Quando ficou mais esperto e confiante, o Sr. Gumb não acha mais que devia satisfazer suas necessidades nas partes ocultas do porão. Ele agora usa um conjunto de quartos em volta da escada quartos espaçosos, providos de água corrente e eletricidade.

O porão permanece em total pretume.

Abaixo do chão arenoso, na masmorra, Catherine Martin permanece quieta.

O Sr. Gumb está aqui no porão, mas não nesta câmara.

O quarto que fica atrás da escada é negro para a vista humana, mas cheio de pequenos sons. Água escorre e pinga, e pequenas borbas zumbem. Com mal audíveis ecos, o quarto parece grande.

O ar é úmido e fresco; tem um cheiro de verdura. Uma batida de asas contra o rosto, uns poucos estalidos no ar. Um baixo som nasal de prazer, um som humano.

O quarto não reflete nenhum dos comprimentos de onda acessíveis ao olho humano, mas o Sr. Gumb está aqui e pode ver muito bem, embora veja tudo em sombras e tons de verde. Ele está usando um excelente par de óculos infravermelho (excedente militar de Israel, menos do que 400 dólares) e dirige o feixe de uma lanterna infravermelha para a gaiola de arame à sua frente. Está sentado na borda de uma cadeira reta, absorvido, observando um inseto que trepa numa planta na gaiola de arame. A jovem imago acaba de sair de uma crisálida rachada na terra úmida do chão da gaiola. Ela trepa cautelosamente num galho de dulcamara, procurando um espaço para desdobrar suas novas asas úmidas, ainda presas às suas costas. Escolhe um galho horizontal.

O Sr. Gumb precisa entortar a cabeça para ver. Pouco a pouco as asas se enchem de sangue e de ar. Elas ainda estão presas umas às outras nas costas do inseto.

Passam-se duas horas. O Sr. Gumb quase não se mexeu. Ele acende e apaga a lâmpada infravermelha para surpreender-se com o progresso que o inseto faz. Para passar o tempo, projeta a luz pelo resto do quarto — sobre os grandes aquários cheios de solução vegetal de taurino. Em cima de pranchas e padiolas, dentro dos tanques, suas recentes aquisições destacam-se como pedaços de estatuária clássica quebrada e verde no fundo do mar. Sua luz movimenta-se sobre a grande mesa de trabalho galvanizada com seu eixo horizontal de metal, anteparas e drenos, e toca no guincho que lhe fica por cima. De encontro à parede, compridas pias industriais. Tudo em imagens verdes de infravermelho filtrado. Bater de asas, riscos de fosforescência cruzam-lhe a visão, pequenas caudas como cometas de mariposas soltas no quarto.

Dirige a lanterna para a gaiola exatamente a tempo. O grande inseto distendeu as asas sobre as costas, escondendo e distorcendo suas marcas. Agora traz as asas para baixo, para vestir seu corpo e o famoso desenho aparece nítido. Uma caveira humana, maravilhosamente executada nas escamas que parecem pêlos, encara-nos das costas da mariposa. Debaixo da sombreada abóbada do crânio vêem-se os negros buracos dos olhos e as proeminentes maçãs do rosto. Por baixo delas uma mancha escura semelha uma mordaça acima do maxilar A caveira descansa numa marca com o topo de um osso pélvico.

Um crânio colocado sobre a pelve, tudo desenhado sobre as asas de uma mariposa por um acidente da natureza.

O Sr. Gumb sente-se bem e leve no seu intimo. Inclina-se para frente e sopra delicadamente sobre a mariposa. Esta levanta a tromba e demonstra com um ruído sua zanga.

Ele caminha em silêncio com sua luz até o quarto da masmorra. Abre a boca para silenciar a respiração. Não quer estragar seu humor com qualquer barulho vindo do poço. As lentes de seus óculos, nos pequenos aros que se projetam ligeiramente, parecem olhos de caranguejos. O Sr. Gumb sabe que os óculos não são nada atraentes, mas ele já se divertiu muito com eles no porão negro, fazenda aqueles jogos de porão.

Inclina-se e lança sua luz invisível dentro do poço.

O material está deitado de lado, dobrado como um camarão, parece estar dormindo. O balde para servir-se está ao lado dele. Ela não rebentou de novo, tolamente, a cordinha, tentando içar-se pelas paredes a pino. Em seu sono ele segura o canto do cobertor contra o rosto e chupa o polegar.

Observando Catherine, passando com o feixe infravermelho para cima e para baixo no seu corpo, o Sr. Gumb se prepara para os problemas muito reais que aparecem à sua frente.

Lidar com a pele humana é monstruosamente difícil se os padrões de qualidade do serviço não são tão altos quanto os do Sr. Gumb. Há decisões estruturais básicas a tomar e a primeira é onde colocar o zíper.

Ele corre o feixe luminoso pelas costas de Catherine. Normalmente faria o fecho nas costas, mas nesse caso como poderia vesti-lo sozinho? Não era a espécie de coisa que pudesse pedir a alguém para ajudá-lo, embora tal perspectiva fosse muito excitante. Ele conhece lugares, círculos, onde seus esforços seriam muito admirado — existem certos iates onde ele poderia exibir-se — , mas isso terá que esperar. Por enquanto deve ter coisas que possa vestir sozinho. Cortar a frente pelo centro seria um sacrilégio — e expulsa isso logo da sua mente.

O Sr. Gumb nada pode dizer sobre a cor de Catherine com luz infravermelha, mas ela parece mais magra. Acredita que talvez estivesse fazendo regime quando ele a agarrou.

A experiência ensinou-lhe a esperar de quatro dias a uma semana antes de recolher a pele. Uma súbita perda de peso faz a pele ficar mais solta e mais fácil de retirar. Além disso, a fome tira muito da força das pessoas e faz com que sejam mais fáceis de manusear. Mais dóceis. Um estupor de resignação acomete algumas delas. Contudo, é necessário prover algumas rações para impedir o desespero e alguma ação destrutiva que possa danificar pele.

Ela definitivamente perdeu peso. É tão especial, tão central para aquilo que ele está fazendo, que já não pode esperar muito, e nem precisa. Amanhã à tarde poderá fazê-lo, ou amanhã à noite. O mais tardar no dia seguinte. Em breve.

 

Clarice Starling reconheceu o painel das Stonehinge Villas das nas notícias na televisão. O complexo habitacional de Memphis Leste, uma mistura de apartamentos e casas residenciais, formava um grande U em volta de uma área de estacionamento.

Starling parou seu Chevrolet Celebrity alugado no grande estacionamento. Trabalhadores de colarinho azul bem pagos e executivos de classe média viviam aqui: os carros Trans-Ams e Camar IROC-Z revelavam isso. Casas rebocadas para fins de semana e lanchas para esqui aquático com pintura brilhante estavam estaciona das na seção própria do parque.

As Stonehinge Villas — o nome ficava atravessado na garganta de Starling cada vez que olhava para ele. Provavelmente os apartamentos seriam cheios de vime branco e nogueira cor de pêssego Fotos debaixo do vidro das mesinhas de café — O Livro de cozinha para dois e Fondue no cardápio. Starling, cuja única residência era um quarto no dormitório da Academia do FBI, era uma severa crítica dessas coisas.

Precisava conhecer Catherine Martin e aquele parecia um lugar estranho para uma filha de senadora viver. Starling lera o breve material biográfico que o FBI reunira, o qual mostrava que Catherine Martin era uma brilhante fracassada. Fora reprovada em Farmington e passara dois anos infelizes em Middlebury. Agora era estudante em Southwestern e praticante de professora.

Starling poderia facilmente tê-la imaginado como uma garota de internato, absorvida em si mesma, tapada, uma dessas pessoa que nunca ouvem. Starling sabia que nisso precisava ser cuidadosa porque tinha seus próprios ressentimentos e preconceitos. Ela mesma passara algum tempo em internatos, vivendo de bolsas de estudos, suas notas muito melhores que suas roupas. Conviver com uma porção de garotas de famílias ricas e cheias de problemas, passando tempo demais em internatos. Pouco ligava para algumas delas, mas ao crescer descobrira que a indiferença pode ser um estratagema para evitar o sofrimento, e que isso, muitas vezes, é interpretado como indiferença e futilidade.

Era melhor pensar em Catherine como uma criança navegando num barco a vela com seu pai, como aparecia na televisão, no filme que mostraram com o apelo da senadora Martin. Imaginou se Catherine tentava agradar o pai quando era pequena; pensou no que Catherine estaria fazendo quando lhe vieram contar que o pai falecera de um ataque cardíaco, aos 42 anos. Starling não tinha dúvidas de que Catherine sentia falta do pai. Sentir falta do pai, uma ferida comum, fazia Starling sentir-se ligada àquela moça.

Também achava essencial gostar de Catherine Martin porque isso a ajudava a esforçar-se mais.

Starling parou ver o apartamento onde Catherine vivia — dois carros da Patrulha de Estradas do Tennessee estavam estacionados na frente do edifício. Havia marcas de pó branco no estacionamento na área mais próxima do prédio. O Tennessee Bureau of Investigation devia ter estado a levantar manchas de óleo com pedra-pomes ou outro pó inerte. Crawford garantira que o FBI era muito bom.

Starling andou até onde estavam os veículos de recreio e os barcos na área especial de estacionamento em frente ao edifício. Fora ali que Buffalo Bill a apanhara. Bastante perto da sua porta, pois ela a deixara destrancada ao sair. Algo a havia tentado, a situação lhe teria parecido aparentemente isenta de perigo.

Starling sabia que a polícia de Memphis fizera exaustivas entrevistas de porta em porta e que ninguém vira nada, portanto talvez tivesse acontecido entre as altas casas rebocadas. Ele deveria tê-la observado dali. Sentado em alguma espécie de veiculo, com certeza. Mas Buffalo Bill sabia que Catherine vivia ali. Teria localizado a moça em algum lugar e a seguira, aguardando uma chance. Pequenas do tamanho de Catherine não são comuns. Ele não devia ter ficado esperando em vários lugares até que uma mulher do tamanho conveniente aparecesse. Poderia esperar dias e nenhuma aparecer.

Todas as suas vitimas eram grandes. Todas. Algumas podiam ser também gordas, mas todas eram grandes. “De forma que ele possa conseguir algo que lhe sirva.” Lembrando-se das palavras do Dr. Lecter, Starling teve um arrepio. Dr. Lecter, o novo habitante de Memphis.

Aspirou profundamente, encheu o peito de ar e deixou-o escapar vagarosamente. Vejamos o que é possível descobrir sobre Catherine.

Um miliciano da polícia do Tennessee, com seu chapéu Smokey the Bear atendeu à porta no apartamento de Catherine Martin. Quando Starling mostrou suas credenciais, deixou-a entrar.

— Policial, preciso dar uma olhada neste local. — ‘Local’ parecia-lhe uma boa palavra a empregar para um homem que andava de chapéu na cabeça dentro de casa.

Ele assentiu com um sinal de cabeça.

— Se o telefone tocar, deixe que eu atendo.

No balcão da cozinha Starling pôde ver um gravador de fite ligado ao telefone. Ao lado dele havia dois novos telefones. Um não tinha disco — era uma linha direta para a Segurança da companhia telefônica encarregada de traçar chamadas no Centro-Sul.

— Alguma coisa que eu possa fazer para ajudá-la? — indago o jovem policial.

— A polícia já terminou por aqui?

— O apartamento foi liberado para a família. Estou aqui apenas por causa do telefone. Você pode tocar nas coisas, se é isso que quer saber.

— Bem, então vou dar uma olhadela.

— O.K. — O jovem policial apanhou o jornal que havia enfiado embaixo do sofá e sentou-se.

Starling queria concentrar-se. Preferiria estar sozinha no apartamento, mas sabia que tivera sorte em não o encontrar cheio de tiras.

Começou pela cozinha. Não estava equipada para uma boa cozinheira. Catherine viera buscar pipocas, o namorado informara polícia. Starling abriu o congelador. Encontrou duas caixas de pipocas para forno de microondas. Da cozinha não se podia avistar o estacionamento.

— De onde você é?

Starling não deu atenção à pergunta da primeira vez.

— De onde você é?

O miliciano estava a observá-la do sofá, por cima do jornal.

— Washington — foi a resposta.

Debaixo da pia — sim, arranhões na junta do cano, eles tinham tirado o sifão para examinar. Parabéns para o FBI. As facas não eram afiadas. O lavador de pratos funcionava, mas não fora esvaziado. O refrigerador continha apenas requeijão e salada de fruta do tipo delicatessen. Catherine Martin abastecia-se de gêneros para refeições rápidas, provavelmente tinha um lugar certo, um drive-in próximo. Talvez alguém andasse circulando pela loja. Valia a pena investigar.

— Trabalha para o Promotor Público?

— Não; para o FBI.

— O Promotor Público está vindo para cá. Ouvi isso na mudança de turno. Há quanto tempo está no FBI?

Havia um repolho de borracha na gaveta de vegetais. Starling abriu-o; dentro encontrou uma caixa de jóias, absolutamente vazia.

— Há quanto tempo está no FBI?

Starling encarou o jovem policial.

— Olhe aqui, policial. Provavelmente precisarei fazer-lhe algumas perguntas depois que terminar de dar uma olhada por aqui. Talvez então você possa me ajudar.

— Está bem. Se eu puder...

— O.K. Vamos esperar e depois conversaremos. Por enquanto tenho que pensar no que estou fazendo.

— Problema nenhum...

O quarto de dormir era claro, tinha uma qualidade ensolarada de que Starling gostava. Era decorado com tecidos melhores e móveis melhores do que a maioria das moças podia ter. Havia um biombo de Coromandel, duas peças em cloisonné nas prateleiras e uma boa secretária de nogueira cheia de nós. Camas gêmeas. Starling levantou as cobertas pelas bordas. As rodinhas estavam travadas na cama da esquerda, mas não na da direita. Catherine deve juntá-las quando lhe convém. Talvez tenha um amante do qual o namorado não sabe. Ou talvez eles fiquem por aqui de vez em quando. Não há um beeper remoto na secretária eletrônica. Ela talvez precise estar aqui quando a mamãe chamar.

A secretária eletrônica era como a dela, uma Phone-Mate básica. Abriu o painel superior: tanto a fita de entrada quanto a de saída tinham sido removidas. No lugar delas havia uma nota: FITAS PROPRIEDADE FBI N° 6.

O quarto estava razoavelmente limpo, mas com a aparência deixada pelos que o haviam revistado com mãos grosseiras, homens que tentam recolocar as coisas no mesmo lugar, mas sempre erram um pouquinho... Starling teria sabido que o lugar fora revistado mesmo sem os vestígios do pó para impressões digitais em todas as superfícies polidas.

Concluiu que nenhuma parte do crime ocorrera no quarto de dormir. Crawford provavelmente estava certo, Catherine fora agarrada no estacionamento. Contudo, Starling queria conhecê-la e aquele era o lugar onde ela vivera. Vive. Starling corrigiu-se. Ela vivia aqui.

No armarinho do criado-mudo havia um catálogo telefônico, lenços Kleenex, uma caixa de artigos de toalete, e, atrás da caixa, uma máquina Polaroid SX-70 com um disparador de cabo e um curto tripa dobrado ao lado dela. Hummm... Atenta como um lagarto, Starling olhou para a câmara. Piscou como um lagarto pisca e não a tocou. O closet interessou-a mais que qualquer outra coisa. Catherine Baker Martin — marca de lavanderia CBM — tinha muita roupa e algumas eram muito boas. Starling reconheceu várias das etiquetas, incluindo Garfinkel, e Britches, de Washington. Presente da mamãe, disse para si mesma. Catherine tinha roupa fina e clássicas em dois tamanhos, próprios para lhe servirem com 65 e 75 quilos avaliou Starling, e havia alguns pares de calças para reduzir peso bem como pulôver da Statuesque Shop. Numa prateleira própria contou 23 pares de sapatos. Sete eram Ferragamos n° 10 e havia alguns Reeboks e mocassins bastante usados. Uma pequena mochila e uma raquete de tênis na prateleira superior.

Os pertences de uma garota privilegiada, estudante e praticante de professora, que vivia melhor que a maioria.

Uma porção de cartas na secretária. Notas ligeiras de antiga companheiras de classe no Leste. Selos, etiquetas de endereçar. Papel para embrulho de presentes na gaveta de baixo, um maço de diversos feitios e cores. Os dedos de Starling correram por eles. Ela pensava em interrogar os empregados do mercado drive-in próxima quando seus dedos encontraram na pilha de papel de presentes uma folha demasiado grossa e dura. Seus dedos deslizaram por ela e voltaram. Starling fora treinada para registrar anomalias e já a retirara pela metade quando olhou para a folha. Era azul, de um material semelhante a mata-borrão, e a figura nele gravada era uma crua imitação do cão Pluto dos desenhos animados. As pequenas fiadas de cães pareciam-se com Pluto, tinham a cor amarela adequada, ma suas proporções não eram exatamente corretas.

— Catherine, Catherine! — resmungou Starling. Apanhou um par de pinças na sua bolsa e usou-as para enfiar a folha de papel colorido num envelope plástico que deixou provisoriamente em cima da cama.

A caixa de jóias sobre a penteadeira era de couro lavrado, do tipo que se vê em todo dormitório de moças. As duas gavetas em frente e a tampa articulada continham jóias de fantasia, nenhum peça de valor. Starling ficou pensando se as coisas melhores teriam estado alguma vez no repolho de borracha do refrigerador e, se assim fosse, quem as levara.

Enfiou um dedo debaixo da tampa e soltou a gaveta secreta na parte de trás da caixa de jóias. A gaveta secreta estava vazia. Ficou pensando se havia alguém para quem essas gavetas fossem mesmo um segredo — certamente não para os ladrões. Estava recolocando a peça na parte traseira da caixa quando seus dedos tocaram num envelope preso com fita adesiva debaixo da gaveta secreta.

Starling enfiou um par de luvas de algodão e virou a caixa de jóias; puxou a gaveta vazia e a inverteu. No fundo, com fita adesiva, estava preso um envelope marrom. A aba do envelope estava apenas enfiada para dentro, não colada. Aproximou o envelope do nariz; não fora tratado com fumaça para detectar impressões digitais. Starling usou uma pinça para abri-lo e retirar o conteúdo. Havia cinco fotografias de Polaroid no envelope e Starling tirou-as uma a uma. As fotos eram de um homem e uma mulher copulando, mas não apareciam os rostos. Duas das fotos tinham sido tiradas pela mulher, duas pelo homem e uma parecia ter sido tirada com o tripé posto em cima da mesinha-de-cabeceira.

Era difícil julgar a escala numa fotografia, mas com aqueles espetaculares 65 quilos num corpo grande, a mulher devia ser Catherine Martin e o homem usava o que parecia ser um anel de marfim trabalhado em seu pênis. A granulação da fotografia não era bastante boa para revelar os detalhes do anel. O homem sofrera uma operação de apendicectomia. Starling colocou cada uma das fotos num envelope de sanduíche e depois as reuniu em seu próprio envelope marrom. Devolveu a gaveta à caixa de jóias.

— As jóias boas estão na minha bolsa — disse uma voz atrás dela. — Penso que nada foi roubado.

Starling viu-a pelo espelho. A senadora Ruth Martin estava na porta do quarto. Parecia esgotada.

Starling virou-se.

— Alô, senadora Martin. Gostara de deitar-se para descansar? Estou quase terminando.

Mesmo exausta, a senadora Martin tinha um bocado de presença. Debaixo da sua aparência bem-cuidada Starling via uma lutadora.

— Quem é você, por favor? Pensei que a polícia tivesse terminado por aqui.

— Sou Clarice Starling, do FBI. A senhora falou com o Dr. Lecter, senadora Martin?

— Ele me deu um nome. — A senadora Martin acendeu um cigarro e examinou Starling dos pés à cabeça. — Vamos ver o que isso vale. E o que foi que a senhora encontrou na caixa de jóias, policial Starling? Tem algum valor?

— Alguns documentos que poderemos verificar dentro de alguns minutos — foi o melhor que Starling pôde responder.

— Na caixa de jóias da minha filha? Deixe-me vê-los.

Starling ouviu vozes no quarto ao lado e teve a esperança de alguma interrupção.

— O Sr. Copley está com a senhora, o agente especial em Memphis do...

— Não, não está, e você não me deu uma resposta. Não se ofenda, policial Starling, mas quero ver o que tirou da caixa de jóias da minha filha. — Virou a cabeça e chamou, sobre o ombro: Paul, Paul, quer vir aqui? Policial Starling, a senhora talvez conheça o Sr. Krendler do Ministério da Justiça. Paul, esta é a moça que Jack Crawford mandou falar com Lecter.

A meia calva de Krendler estava queimada de sol; aos 40 anos, era um tipo elegante.

— Sr. Krendler, sei quem o senhor é. Alô! — saudou Starling.

Divisão Criminal do Ministério da Justiça, ligação com o congresso, quebrador de galhos, pelo menos Assistente do Promotor Geral. Jesus Cristo, tende piedade de mim!

— A policial Starling encontrou qualquer coisa na caixa de jóias de minha filha e a pôs em seu envelope. Penso que é melhor examinarmos do que se trata, não acha?

— Policial... — começou Krendler.

— Posso falar com o senhor, Sr. Krendler?

— Por certo que pode. Mais tarde. — E estendeu a mão.

O rosto de Starling ardia. Ela sabia que a senadora Martin estava descontrolada, mas nunca perdoaria Krendler pela dúvida que viu em seu rosto. Nunca.

— Eis aí o que quer — disse Starling, e entregou-lhe o envelope.

Krendler olhou para a primeira das fotos e já tinha fechado a envelope quando a senadora Martin o tirou de suas mãos.

Foi doloroso vê-la examinar as fotos. Quando acabou, aproximou-se da janela e ficou com o rosto voltado para o céu encoberto, os olhos fechados. Parecia velha à luz do dia e sua mão tremia quando tentou fumar.

— Senadora, eu... — ensaiou Krendler.

— A polícia vasculhou este quarto — disse a senadora Martin. — Estou certa de que encontraram estas fotos e tiveram senso bastante para pô-las de volta e calar a boca.

— Não, eles não as acharam — exclamou Starling. A mulher estava magoada, mas que diabo!

— Senadora Martin, precisamos saber quem é esse homem, entenda isso. Se for o namorado dela, muito bem. Eu posso descobrir em cinco minutos. Ninguém precisa ver essas fotos e Catherine nunca precisará saber que as vimos.

— Eu me encarrego disso. — A senadora Martin pôs o envelope na sua bolsa e Krendler não a impediu.

— Senadora: a senhora tirou as jóias do repolho de borracha na geladeira? — perguntou Starling.

O assistente da senadora Martin, Brian Gossage, enfiou a cabeça na porta.

— Desculpe-me, senadora, eles acabaram de montar o terminal. Nós poderemos vê-los pesquisando o nome de William Rubin no FBI.

— Vá para lá, senadora Martin — aconselhou Krendler. Sigo-a em um segundo.

Ruth Martin saiu do quarto sem responder à pergunta de Starling.

Starling teve a oportunidade de examinar Krendler enquanto ele se ocupava em fechar a porta do quarto. Sua roupa era um triunfo de arte da costura masculina e ele não estava armado. O brilho desaparecera da metade inferior dos saltos dos sapatos de tanto andar sobre tapetes de pêlo alto, e suas bordas eram bicudas.

Ele ficou por um momento com a mão na maçaneta da porta, a cabeça arriada.

— Bela pesquisa, a que você fez — admoestou, fitando-a.

Starling não podia deixar-se amesquinhar dessa forma. Encarou-o nos olhos, firme.

— Treinam o pessoal para buscas minuciosas em Quântico — reforçou Krendler.

— Não preparam ladrões.

— Eu sei disso.

— Custo a acreditar que saiba mesmo.

— Bem, esqueça!

— Vamos prosseguir investigando as fotos e o repolho de borracha, está de acordo? — perguntou ela.

— Sim.

— E que história é essa do nome William Rubin, Sr. Krendler?

— Lecter diz que é o nome de Buffalo Bill. Aqui está nossa transmissão para o departamento de identificação e para o CNIC, (Centro Nacional de Informações sobre Crimes). Dê uma olhada. — Entregou-lhe uma transcrição da entrevista de Lecter com a senadora Martin, cópia meio confusa devido à impressão com uma matriz pontilhada.

— Algum comentário? — perguntou, assim que Starling acabou de ler.

— Não há nada aqui que ele jamais tenha que engolir de volta — comentou Starling. — ele diz que é um homem branco chamado Billy Rubin, que teve um antraz. Ninguém poderia pegá-lo numa mentira, aconteça o que acontecer. Na pior das hipóteses, ele se teria enganado. Espero que seja verdade, mas ele pode estar se divertindo com a senadora, Sr. Krendler. Ele é perfeitamente capaz disso. O senhor alguma vez... o viu?

Krendler sacudiu a cabeça negativamente e deu uma fungada pelo nariz.

— Ao que consta, o Dr. Lecter matou nove pessoas. Não tem nenhuma chance. Ele podaria ressuscitar os mortos e não o poriam em liberdade. Então, tudo o que lhe resta é divertir-se. Por isso é que nós o vínhamos explorando...

— Sei como vocês o estavam trabalhando. Ouvi a fita gravada de Chilton. Não digo que era errado, mas agora acabou. A Ciência do Comportamento pode continuar investigando o que você desencavou — o ângulo transexual — para ver se vale algo. E você voltará para a escola em Quântico amanhã.

— Essa não!

— Eu descobri algo mais.

A folha de papel colorido ficara em cima da cama, despercebida. Apanhou-a e entregou-a a Krendler.

— O que é isto?

— Parece uma folha cheia de Plutos.

Ela o fez ficar ainda mais curioso. Ele agitou os dedos, exigindo a informação.

— Estou bastante segura de que é ácido de mata-borrão. LSD. Talvez da metade da década de 70 ou antes. Agora é uma curiosidade. Valerá a pena descobrir onde ela o conseguiu. Devemos testá-lo para estar seguros.

— Você poderá levá-lo de volta para Washington e entregá-lo ao laboratório. Você vai partir dentro de alguns minutos.

— Se o senhor não quiser esperar poderemos testar agora com um aparelho de campo. Se a polícia tiver o kit padrão de identificação de narcóticos, é o tese J, leva dois segundos, e poderemos...

— De volta para Washington, de volta para a escola — exigiu ele, abrindo a porta.

— O Sr. Crawford instruiu-me...

— Suas instruções agora são o que estou lhe dizendo. Você não está mais sob as ordens de Jack Crawford. Vai ficar sob a mesma supervisão que qualquer estagiário de agora em diante e sua obrigação vai ser cumprida em Quântico, está me entendendo? Há um avião às duas e vinte. Embarcará nele.

— Sr. Krendler, o Dr. Lecter falou comigo depois de haver-se recusado a falar com a polícia de Baltimore. Ele poderá fazer isso de novo. O Sr. Crawford acredita...

Krendler fechou de novo a porta, agora com mais violência do que antes.

— Policial Starling, não tenho que dar-lhe explicações, mas escute-me. A Ciência do Comportamento é um serviço de aconselhamento, sempre foi e voltará a sê-lo. Jack Crawford deveria, de qualquer maneira, estar de licença por doença em pessoa da família. Me surpreende que tenha sido tão eficiente, nessas circunstâncias. Ele assumiu um risco tolo agindo assim, escondendo tudo da senadora Martin e acabou queimando o rabo. Com a folha de serviços que tem, tão perto da aposentadoria, nem ela poderá prejudicá-lo muito. Portanto eu não me preocuparia com a pensão dele, se fosse você.

Starling ficou um pouco perturbada.

— O senhor tem mais alguém que pegou três assassinos em série? O senhor conhece alguém que tenha apanhado um? O senhor não devia deixar a senadora cuidar disso, Sr. Krendler.

— Presumo que seja uma garota brilhante, ou Crawford não se ocuparia com você, de modo que vou dizer-lhe uma coisa: tome cuidado com essa sua língua ou ela acabará colocando-a na turma das datilógrafas... Procure entender: a única razão pela qual você foi mandada para Lecter a princípio foi para conseguir algumas notícias para o seu diretor usar no Congresso. Coisas sem importância sobre crimes, algo de novo sobre o Dr. Lecter, ele manuseia com essas coisas como quem distribui balas para crianças enquanto tenta fazer aprovar o orçamento do seu serviço. Os congressistas engolem isso, jantam uma coisa dessas. Você saiu da sua rota, policial Starling, e agora está fora deste caso. Eu sei que você tem uma identificação suplementar. Devolva-me.

— Eu preciso dessa ID para portar a arma no avião. Ela pertence a Quântico.

— Uma arma! Jesus Cristo! Entregue a ID tão logo estiver de volta.

A senadora Martin, Gossage, um técnico e vários policiais estavam reunidos em volta de um terminal de vídeo com um modem ligado ao telefone. O NCIC mantinha por uma linha reservada um relato contínuo do progresso à medida que as informações do Dr. Lecter eram processadas em Washington. Agora chegavam notícias dos centros nacionais de controle de doenças em Atlanta: o antraz devido a marfim de elefante é contraído quando se aspira o pó do polimento de marfim africano, usualmente para a confecção de cabos de talheres decorativos. Nos Estados Unidos é uma doença dos cuteleiros.

Ao ouvir a palavra “cuteleiros” a senadora Martin fechou os olhos, que estavam vermelhos e secos; ao mesmo tempo apertou o lenço Kleenex em sua mão.

O jovem miliciano que deixara Starling entrar no apartamento vinha trazendo uma xícara de café para a senadora. Ainda mantinha o chapéu na cabeça.

Starling se danava mas não ia sair escondida. Parou diante da senadora Martin e disse:

— Boa sorte, senadora. Espero que Catherine esteja bem.

A senadora Martin inclinou a cabeça sem olhar para ela. Krendler apressou Starling, instando-a a sair.

— Eu não sabia que não lhe era permitido estar aqui — disse o jovem miliciano quando ela saiu do quarto.

Krendler acompanhou-a até o lado de fora.

— Tenho muito respeito por Jack Crawford — despediu-se ele. — Por favor, diga-lhe como todos nos sentimos acerca... do problema de Bella, e tudo mais. Agora, de volta à escola e cuide de você, O.K.?

— Adeus, Sr. Krendler.

E então ela se viu sozinha no estacionamento, com a desesperadora sensação de que nada compreendia deste mundo.

Ficou observando um pombo que andava por baixo das casas rebocadas e dos barcos. O pombo pegou uma casca de amendoim e largou-a de novo. O vento úmido arrepiou-lhe as penas.

Starling desejava poder falar com Crawford. Desperdício e estupidez levam-lhe a melhor — fora o que ele dissera. Enfrente esta situação, isso a enrijecerá. Esse é o teste mais duro — não deixar que a raiva e a frustração impeçam de pensar. Esta é a prova para saber se você pode comandar ou não.

Ela pouco ligava agora para o comando. Descobrira que não valia uma merda, e não ligava porra nenhuma para a questão de ser a agente especial Starling. Não se as coisas funcionavam daquela maneira.

Pensou na pobre da pequena gorda, triste e morta que vira na mesa na Casa Funerária em Potter, West Virgínia. Fazia suas unhas brilharem como essa droga desses barcos vermelhos de esquiar.

Qual era o nome dela? Kimberly.

Que eu me dane se esses merdas vão me ver chorar.

Jesus! Todo mundo se chama Kimberly, na classe dela havia quatro. Três camaradas chamados Sean. Kimberly, com seu nome de novela de rádio, tentava arrumar-se, fizera todos aqueles furos nas orelhas para se enfeitar, tentando ficar bonita. E Buffalo Bill dera uma olhada para seus peitos grandes e chatos, enfiara o cano de uma arma entre eles, deixando uma estrela-do-mar em seu tórax. Kimberly, sua triste e gorda irmã que depilava as pernas com cera. Não era de espantar — julgando por suas pernas e braços, por seu rosto, a pele era seu melhor atributo. Kimberly, você está em algum lugar, zangada? Não há nenhum senador procurando por ela. Não há aviões a jato carregando homens loucos para toda parte. Loucos era uma palavra que ninguém atribuiria a ela. Uma porção de coisas jamais atribuiriam a ela... Homens loucos.

Starling consultou seu relógio. Tinha uma hora e meia para o avião e havia ainda uma coisinha que ela podia fazer. Queria observar a cara do Dr. Lecter quando ele dissesse “Billy Rubin”. Se pudesse encarar aqueles estranhos olhos por tempo bastante, se pudesse olhar para o fundo onde as negras pupilas absorvem os raios, conseguiria ver algo útil.

Graças a Deus ainda tenho minha identificação.

Quando saiu do estacionamento, deixou no chão um risco de borracha com três metros de comprimento.

 

Clarice Starling dirigia depressa no perigoso tráfego de Memphis, levando duas lágrimas de raiva secas em seu rosto. Sentia-se estranhamente aérea e livre agora. Uma claridade que não era natural na sua visão advertia-a de que estava inclinada a lutar, de forma que precisava tomar cuidado consigo mesma.

Havia passado pelo velho foro mais cedo, quando viera do aeroporto, e não teve dificuldades para encontrá-lo de novo.

As autoridades de Tennessee não estavam se arriscando com Hannibal Lecter. Pretendiam mantê-lo seguro sem o sujeitar aos perigos da cadeia da cidade.

A resposta que encontraram foi a antiga corte de justiça e prisão, uma estrutura maciça em estilo gótico, construída com granito na época em que a mão-de-obra era grátis. Era agora um edifício de escritórios estatais no centro, de certa maneira super-restaurado nessa cidade próspera e consciente da sua história.

Hoje ela parecia uma fortificação medieval cercada pela polícia.

Uma mistura de carros de agentes da lei — patrulha rodoviária, departamento de xerife do condado de Shelby. Escritório de Investigações do Tennessee, e Departamento Correcional — atulhavam o estacionamento. Havia um posto de polícia a atravessar antes que Starling pudesse entrar no estacionamento com seu carro alugado.

O Dr. Lecter impunha um problema adicional de segurança externa. Telefonemas ameaçadores continuavam a chegar desde que o noticiário da manhã divulgara sua localização; suas vítimas tinham muitos amigos e parentes que gostariam de vê-lo morto.

Starling torcia para que o agente do FBI não estivesse por ali. Ela não queria envolver Copley em dificuldades.

Viu a nuca de Chilton rodeada por um batalhão de repórteres no gramado diante da escadaria principal. No meio da multidão havia duas minicâmaras de TV. Starling gostaria de ter qualquer coisa para cobrir a cabeça. Virou o rosto para o outro lado quando se aproximou da entrada.

Um miliciano estadual estacionado em frente à porta examinou sua ID antes de deixá-la entrar no vestíbulo, que parecia agora uma casa de guarda. Havia um policial da cidade parado em frente ao único elevador da torre e outro nas escadas. Milicianos estaduais, o pessoal que ia render as unidades de patrulha estacionadas em torno do prédio, liam o Commercial Appeal em poltronas onde o público não podia vê-los.

Um sargento guarnecia a mesa do lado oposto ao elevador. Sua placa dizia: TATE, C.L.

— Nada de imprensa — avisou ele quando viu Starling.

— Não sou da imprensa — respondeu ela.

— Está com o pessoal do Promotor Público? — perguntou o sargento, olhando para o cartão dela.

— Com o assistente do Promotor Público Krendler — respondeu. — Acabo de deixá-lo.

O sargento fez que sim com a cabeça.

— Temos tido toda espécie de tiras do oeste do Tennessee querendo dar uma olhada no Dr. Lecter. Não se vê uma coisa como essa muito comumente, graças a Deus. Você precisa falar com o Dr. Chilton antes de subir.

— Falei com ele ao chegar — assegurou Starling. — Estivemos trabalhando neste caso em Baltimore hoje cedo. É aqui que eu me registro, sargento Tate?

O sargento correu a língua pelos dentes antes de responder.

— Aí mesmo — disse ele. — Regras de detenção, senhorita. Visitantes devem deixar as armas, policiais ou não.

Starling anuiu com a cabeça. Despejou os cartuchos de sua arma, o sargento satisfeito ao ver como ela a manejava. Entregou-a com a empunhadura para a frente e ele a guardou em sua gaveta.

— Vernon, leve-a para cima. — Discou três números e pronunciou o nome dela no fone.

O elevador, que fora adicionado depois da década de 20, gemeu até o andar do topo. Abria-se para um patamar de escadas e um curto corredor.

— Bem em frente do outro lado, madame — instruiu o miliciano.

Pintado no vidro fosco da porta lia-se: SOCIEDADE HISTÓRICA DO CONDADO DE SHELBY.

Quase todo o andar superior da torre consistia em uma sala octogonal pintada de branco, com o piso e as molduras de carvalho polido. Cheirava a cera e cola de biblioteca. Com seus parcos móveis, a sala tinha o aspecto severo de uma igreja congregacional. Possuía agora uma aparência melhor do que quando fora o escritório do bailio.

Dois homens com o uniforme do Departamento Correcional do Tennessee estavam de serviço. O menor levantou-se de sua mesa quando Starling entrou. O mais alto continuou sentado numa cadeira de dobrar no canto mais afastado da sala, de frente para a porta de uma cela. Era o guarda-suicida.

— A senhora está autorizada a falar com o prisioneiro, madame? — perguntou o policial à mesa. Sua placa dizia: PEMBRY, T.W., e na mesa viam-se um telefone, dois bastões de motim e um Mace químico. Uma comprida haste com um laço de corda estava de pé no canto atrás dele.

— Sim, estou — garantiu Starling. — Já o interroguei antes.

— Conhece as regras? Não ultrapasse a barreira.

— Certamente.

A única coisa colorida na sala era uma barreira de tráfego da polícia, um cavalete com faixas brilhantes em laranja e amarelo montado com luzes pisca-pisca amarelas, agora desligadas. O cavalete estava no chão, a um metro e meio da porta da cela. Num cabide próximo estavam as coisas do doutor — a máscara de hóquei e algo que Starling nunca vira antes, um colete de galés de Kansas. Feito de couro pesado, com algemas de dupla fechadura presas no peito e fivelas nas costas, talvez seja o mais infalível dispositivo de segurança do mundo. A máscara e o colete preto suspenso pela gola no cabide de pé formavam uma perturbadora composição de encontro à parede branca.

Starling pôde ver o Dr. Lecter quando se aproximou da cela. Ele estava lendo junto a uma pequena mesa aparafusada no chão, de costas para a porta. Ele tinha um certo número de livros e a cópia da pasta atualizada sobre Buffalo Bill que ela lhe havia entregado em Baltimore. Um pequeno gravador do tipo cassete estava acorrentado ao pé da mesa. Tão estranho vê-lo fora do asilo.

Starling tinha visto celas como essa antes, quando criança. Eram pré-fabricadas por uma companhia de St. Louis por volta do inicio do século e ninguém mais as construíra melhor — uma gaiola modular de aço temperado que transforma qualquer quarto numa cela. O chão era de chapas de aço e as paredes e o teto de barras de aço forjadas a frio cercavam a cela por completo. Não havia janelas, mas o recinto era totalmente branco e bem iluminado. Um leve biombo de papel ficava em frente ao toalete.

Essas barras brancas formavam costelas nas paredes. O Dr. Lecter tinha uma cabeça fina e escura.

Ele é um vison de cemitério. Vive numa gaiola de costelas nas folhas secas de um coração.

Ela afastou aquela idéia da cabeça.

— Bom dia, Clarice — saudou ele sem se voltar. Terminou de ler a página, marcou-a e rodou na cadeira para encará-la, com os antebraços nas costas da cadeira e o queixo apoiado neles. — Dumas conta-nos que juntar um corvo à sopa no outono, quando o corvo está gordo de tanto comer as frutinhas do zimbro, melhora muito a cor e o gosto da beberagem. Você gostaria de um corvo na sua sopa, Clarice?

— Andei pensando que o senhor desejaria seus desenhos, as coisas que estavam na sua cela, até conseguir sua janela com uma vista.

— Como você é atenciosa. O Dr. Chilton está eufórico porque você e Jack Crawford foram afastados do caso. Ou será que eles a mandaram para um último esforço de engambelar-me?

O policial que estava no posto suicida tinha ido falar com o policial Pembry. Starling torcia para que não pudessem ouvi-los.

— Eles não me mandaram. Eu vim por conta própria.

— As pessoas vão dizer que temos um romance. Você não quer perguntar sobre Billy Rubin, Clarice?

— Dr. Lecter, sem... de qualquer forma... pôr em dúvida o que o senhor disse à senadora Martin, o senhor me aconselharia a prosseguir na sua idéia acerca...

— Pôr em dúvida... Adorei. Eu não aconselharia você de forma alguma. Você tentou enganar-me, Clarice. Você pensa que estou brincando com essa gente?

— Acho que o senhor estava me dizendo a verdade.

— É uma pena que vocês tenham tentado me enganar, não é? — A cabeça do Dr. Lecter mergulhou em seus braços até que somente seus olhos eram visíveis. — E é uma pena que Catherine Martin jamais verá de novo a luz do sol. O sol é um colchão de fogo onde o Deus dela morreu, Clarice.

— É uma pena também que o senhor tenha agora que ser um alcoviteiro e lamber algumas lágrimas quando pode... — disse Starling. — É uma pena não termos acabado o que estávamos conversando. Sua idéia de uma imago, de sua estrutura, tinha uma espécie de... elegância da qual é difícil livrar-se. Agora é como uma ruína, a metade de um arco ainda em pé.

— A metade de um arco não fica em pé. E por falarem arcos, eles ainda vão deixar você patrulhar, Clarice? Tiraram seu distintivo?

— Não.

— O que é isso embaixo da sua jaqueta, um relógio de vigia como o do papai?

— Não, é um carregador rápido.

— Quer dizer que anda armada?

— Ando.

— Então você deveria alargar seu casaco. Você costura?

— Sim.

— Foi você quem fez esse costume?

— Não, Dr. Lecter: o senhor descobre tudo. O senhor não pode ter falado intimamente com esse Billy Rubin e sair da entrevista sabendo tão pouco sobre ele.

— Você acha que não?

— Se o senhor o conheceu, então sabe tudo. Mas hoje o senhor pareceu lembrar apenas de um detalhe. Que ele teve um antraz devido a marfim de elefante. O senhor deveria tê-los visto pularem quando Atlanta informou que é uma doença de cuteleiros. Eles engoliram, exatamente como o senhor sabia que iriam fazer. O senhor deveria ter alugado uma suíte no Peabody para esse fim. Dr. Lecter, se o senhor o conheceu, sabe mais a respeito dele. Penso que o senhor não se encontrou com ele, só Raspail contou-lhe a seu respeito. Coisa de segunda mão não venderia tão bem para a senadora Martin, não é?

Starling olhou por sobre o ombro para os milicianos. Um deles mostrava ao outro algo na revista Guns & Ammo.

— O senhor tinha algo mais para contar-me em Baltimore, Dr. Lecter. Acredito que o que me disse era válido. Diga-me o resto.

— Eu li os casos, Clarice; você leu? Tudo o que precisa para encontrá-lo está ali, se você prestar atenção. Até Crawford o Inspetor Emérito deveria tê-lo descoberto. Incidentalmente, você leu o estupidificante discurso de Crawford no ano passado na Academia Nacional de Polícia? Falando pomposamente sobre Marco Aurélio acerca do dever, da honra e da fortaleza? Veremos que espécie de estóico Crawford é quando Bella bater as botas. Ele copia sua filosofia do Bartlett’s Familiar, segundo creio. Se ele tivesse entendido Marco Aurélio, poderia resolver este caso.

— Diga-me como.

— Quando você mostra essa estranha inteligência contextual, eu perdôo sua geração por não saber ler, Clarice. O Imperador aconselha a simplicidade. Princípios primários. Sobre cada coisa particular pergunte: o que ela é em si mesma, em sua própria constituição? Qual é sua natureza casual?

— Isso para mim nada significa.

— O que é que ele faz, o homem que você procura?

— Ele mata...

— Ah!... — fez Lecter vivamente, virando de lado seu rosto por um momento, desgostoso pela cabeça dura dela. — Isso é incidental. Qual é a primeira e a principal coisa que ele faz, a que necessidade ele atende quando mata?

— Ódio, ressentimento social, frustração sexual...

— Não.

— O quê, então?

— Ele cobiça. Ele ambiciona, de fato, ser exatamente o que você é. É da natureza dele cobiçar. Como é que nós começamos a ter ambições, Clarice? Nós procuramos as coisas para cobiçar? Faça um esforço para responder.

— Não. Nós apenas...

— Não. Precisamente isso. Nós começamos ambicionando aquilo que vemos diariamente. Você não sente olhares correndo sobre você todos os dias, Clarice, em encontros casuais? Dificilmente posso crer que você não os sinta. E seus olhos não correm sobre coisas?

— Muito bem. Diga-me como...

— É a sua vez de dizer para mim, Clarice. Você não tem mais férias na praia para me oferecer na Estação de Febre Aftosa. Daqui para diante é estritamente na base do quid pro quo. Tenho que ser cuidadoso tratando de negócios com você, Clarice. Conte-me, Clarice.

— Contar-lhe o quê?

— As duas coisas que você me deve de antes. O que aconteceu com você e o cavalo, e o que você faz com sua raiva.

— Dr. Lecter, quando tivermos tempo eu...

— Nós não calculamos o tempo da mesma forma, Clarice. Isto é todo o tempo que você jamais terá.

— Mais tarde. Escute, eu...

— Eu escutarei agora. Dois anos depois da morte de seu pai, sua mãe mandou-a viver com sua prima e o marido num rancho em Montava. Você tinha dez anos de idade. Você descobriu que eles alimentavam cavalos para vender a carne. Você fugiu com um cavalo que não podia enxergar muito bem. E...?

— Era verão e a gente podia dormir ao relento. Chegamos até Bozeman por uma estrada interior.

— O cavalo tinha um nome?

— Provavelmente, mas eles não... você não liga para essas coisas quando está alimentando cavalos para carneá-los. Eu a chamava de Hannah, parecia-me um bom nome.

— Você ia montada nela ou a puxava?

— Uma coisa e outra. Eu tinha que encostá-la numa cerca para poder montá-la.

— Você cavalgou e andou até Bozeman.

— Havia uma estrebaria, um rancho de cavalos, uma espécie de academia de montaria nos arredores da cidade. Tentei ver se queriam ficar com ela. Custava 20 dólares por semana no curral. Mais ainda se fosse para uma cocheira. Logo descobriram que ela não podia enxergar. Eu disse O.K., eu a conduziria para dar umas voltas e as crianças pequenas podiam montá-la enquanto os pais estavam tomando lições de equitação. Eu poderia ficar por ali e limpar as cocheiras. Um dos dois, o homem, concordou com tudo o que eu dizia enquanto a mulher foi chamar o xerife.

— O xerife era um policial, como seu pai.

— Isso não impediu que eu, a princípio, ficasse com medo dele. Ele tinha o rosto vermelho, grande e redondo. Finalmente pagou 20 dólares para a estada minha e do cavalo enquanto resolvi as coisas. Disse que não valia a pena alugar uma cocheira enquanto o tempo estava quente. Os jornais souberam da história. Houve um falatório. A mulher de meu primo concordou em deixar-me ir embora. Acabei indo para a Casa Luterana em Bozeman.

— É um orfanato?

— Sim.

— E Hannah?

— Ela foi para lá também. Um grande fazendeiro luterano entrava com o feno. Eles já tinham um estábulo no orfanato. Arávamos a horta com ela. No entanto, você tinha que observar para onde ela ia. Atravessava as treliças de ervilha e pisava em qualquer espécie de planta baixa demais para ela senti-la contra suas pernas. E nós também a puxávamos passeando com uma porção de criança num carro.

— Ela morreu, entretanto.

— Bem, sim.

— Conte-me sobre isto.

— Foi no ano passado, segundo me escreveram para a escola Achavam que ela tinha 22 anos. Puxou o carro cheio de criança até o último dia de sua vida e morreu dormindo.

O Dr. Lecter pareceu desapontado.

— Que comovente! — zombou ele. — Seu pai adotivo em Montana fodeu você?

— Não.

— Ele tentou?

— Não.

— O que fez você fugir com o cavalo?

— Eles iam matá-la.

— Você sabia quando?

— Não exatamente. Ficava preocupada com isso todo o tempo. Ela estava engordando muito.

— O que foi então que a fez tomar aquela decisão? O que fez você decidir-se naquele dia em particular?

— Não sei.

— Penso que você sabe.

— Eu me preocupava todo o tempo.

— O que fez você resolver-se, Clarice? Você partiu a que horas?

— Cedo. Ainda estava escuro.

— Então alguma coisa acordou você. O que a acordou? Algum sonho? O que foi?

— Acordei e ouvi as ovelhas balindo. Acordei no escuro e as ovelhas estavam balindo.

— Eles estavam matando as ovelhas novas?

— Sim.

— O que você fez?

— Eu nada podia fazer por elas. Era apenas uma...

— O que você fez com o cavalo?

— Vesti-me sem acender a luz e saí. Hannah estava assustada. Todos os cavalos no curral estavam assustados e indóceis. Soprei no nariz dela e ela sabia que era eu. Finalmente colocou o focinho em minha mão. As luzes estavam acesas no galpão e na coberta junto ao cercado das ovelhas. Lâmpadas nuas projetavam grandes sombras. O caminhão frigorífico viera e o motor roncava, funcionando. Eu levei-a para fora.

— Colocou-lhe uma sela?

— Não; não levei a sela deles. Apenas um cabresto e uma guia.

— E quando você partiu no escuro, podia ouvir as ovelhas onde as luzes estavam acesas?

— Não as ouvi mais. Eram apenas doze.

— Você ainda acorda algumas vezes, não? Acorda no escuro com as ovelhas balindo?

— Às vezes.

— Você pensa que se pegasse Buffalo Bill, se conseguisse salvar Catherine, poderia fazer as ovelhas pararem de balir, você pensa que elas também seriam salvas e você não acordaria de novo no escuro para ouvir seus lamentos, Clarice?

— Sim... Não sei... Talvez...

— Obrigado, Clarice. — O Dr. Lecter parecia estranhamente em paz.

— Diga-me o nome dele, Dr. Lecter — pediu Starling.

— Dr. Chilton — disse subitamente Lecter — ,creio que vocês já se conhecem...

Por um momento Starling não compreendeu que Chilton estava atrás dela. Então ele a segurou pelo cotovelo.

Ela soltou-se da mão dele. O policial Pembry e seu colega grandalhão estavam com Chilton.

— Para o elevador — comandou Chilton. Seu rosto estava cheio de manchas vermelhas.

— Você sabe que o Dr. Chilton não tem diploma de médico? — perguntou o Dr. Lecter. — Guarde isto na sua mente para mais tarde...

— Vamos! — gritou Chilton.

— O senhor não é o encarregado aqui, Dr. Chilton — protestou Starling.

O policial Pembry saiu de trás de Chilton.

— Não, madame, mas eu sou. Ele telefonou ao meu chefe e ao seu também. Desculpe-me, mas tenho ordens para levá-la daqui. Portanto, venha comigo.

— Adeus, Clarice. Você me comunicará se as ovelhas algum dia deixarem de gemer?

— Sim.

Pembry estava pegando o braço dela. Era ir ou lutar.

— Sim — prometeu ela — , eu lhe avisarei.

— É uma promessa?

— Sim.

— Então por que não terminar o arco? Leve sua pasta sobre o caso com você, Clarice. Não preciso mais dela. — Estendeu-lhe a pasta por entre as barras com o braço esticado, o dedo indicador na lombada. Ela esticou-se por cima da barreira e agarrou-a. Por um instante a ponta do seu dedo tocou o do Dr. Lecter. Aquele toque refletiu-se nos olhos dele.

— Obrigado, Clarice.

— Obrigada, Dr. Lecter.

E assim ficou ele na memória de Clarice. Flagrado no instante em que não estava zombando. De pé em sua cela branca, dobrado para a frente como um bailarino, as mãos entrelaçadas à sua frente, a cabeça ligeiramente de lado.

Ela passou por cima de um obstáculo no aeroporto com velocidade bastante para bater com a cabeça de encontro ao teto do carro e teve que correr para alcançar o avião que Krendler a mandara pegar.

 

Os policiais Pembry e Boyle eram homens experientes, trazidos especialmente da Prisão Estadual de Brushy Mountain para serem os guardas do Dr. Lecter.Calmos e corajosos, não achavam que seu serviço precisava ser-lhes explicado pelo Dr. Chilton.

Haviam chegado a Memphis antes de Lecter e examinado a cela minuciosamente. Quando o Dr. Lecter foi trazido para o velho foro, examinaram-no da mesma forma. Ele foi submetido a uma pesquisa do corpo por um enfermeiro enquanto ainda estava imobilizado. Sua roupa foi examinada cuidadosamente e um detector de metal passado sobre as costuras.

Boyle e Pembry chegaram a um acordo com ele, falando em voz baixa e em tom educado junto a seus ouvidos enquanto era examinado.

— Dr. Lecter, poderemos dar-nos muito bem. Nós o trataremos tão bem quanto o senhor nos tratar. Aja como um cavalheiro e o senhor será tratado a pão-de-ló. Mas não pretendemos empregar luvas de pelica. Tente morder e deixaremos sua boca sem um dente. Parece que aqui estão lhe arranjando algo de bom. O senhor não deseja estragar tudo, não é?

O Dr. Lecter piscou os olhos para eles de um modo amável. Se estivesse inclinado a responder, não poderia tê-lo feito impedido por um toco de madeira injetado entre seus molares enquanto o enfermeiro lhe enfiava uma lanterna elétrica na boca e corria um dedo enluvado por suas bochechas.

O detector de metal deu um sinal ao passar por suas bochechas.

— O que é isso? — perguntou o enfermeiro — Obturações — contestou Pembry. — Puxe os lábios dele para trás. O senhor gastou bem os seus dentes de trás, não foi, doutor?

— Tenho a impressão de que ele é um cara muito acabado — confidenciou Boyle a Pembry depois que deixaram o Dr. Lecter seguro em sua cela. — Não irá causar-nos dificuldades se não perder a calma.

A cela, embora segura e resistente, não dispunha de um transportador deslizaste de comida. Na hora do almoço, na desagradável atmosfera que se seguiu à visita de Starling, o Dr. Chilton incomodou todo mundo, obrigando Pembry e Boyle ao longo processo de imobilizarem o Dr. Lecter na camisa-de-força e restrição das pernas. Ele não ofereceu resistência, voltado de costas para as barras, enquanto o Dr. Chilton fazia pose com a Mace antes de abrirem a porta para lhe entregarem a bandeja de comida.

Chilton recusava-se a pronunciar os nomes de Boyle e Pembry, embora eles tivessem etiquetas citando-os, e dirigia-se a eles indiscriminadamente como “você aí!”.

Da parte deles, depois que ouviram dizer que Chilton não era realmente um médico, Boyle observou a Pembry que “ele era um porra duma espécie de mestre-escola”.

Pembry tentou uma vez explicar a Chilton que a visita de Starling fora aprovada não por eles, mas pelo pessoal lá debaixo, mas verificou que, ante a raiva de Chilton, aquele detalhe não tinha importância.

O Dr. Chilton esteve ausente no jantar e, com a bem-humorada cooperação do Dr. Lecter, Boyle e Pembry usaram seu próprio método para introduzir a bandeja dentro da cela. Funcionou muito bem, — Dr. Lecter, o senhor não vai precisar usar seu disser jackei — disse Pembry. — Vou pedir-lhe para sentar-se no chão e arrastar se para trás até que possa passar as mãos por entre as barras com os braços estendidos. Assim mesmo. Chegue-se um pouco mais para trás e endireite os braços mais um pouco, com os cotovelos retos — Pembry colocou as algemas apertadas do lado de fora das barra: com uma barra por entre os braços e uma barra transversal acima deles. — Isso dói um pouquinho, não é? Sei que dói, mas elas não vão ficar aí mais do que um minuto e poupa-nos um bocado de dificuldade.

O Dr. Lecter não podia levantar-se, nem mesmo acocorar-se e, com as pernas esticadas à frente sobre o chão, não podia chutar.

Somente após o Dr. Lecter estar trancado, Pembry veio à mesa a fim de pegar a chave. Pembry enfiou o bastão de motim no cinturão, colocou uma lata de Mace no bolso e voltou para a cela.

— Abri Lecter. — Como sabem, estou tentando facilitar as coisas.

— Todos nós estamos, irmão — confirmou Pembry.

O Dr. Lecter brincou com a comida enquanto escrevia, desenhava e fazia bonecos em sua prancheta com uma caneta de ponta de feltro. Ele enfiou o cassete no toca-fita preso à perna da mesa e fê-lo funcionar. Glenn Gould tocava as Variações Goldberg ao piano. A bonita música, acima dos problemas e da ocasião, enchia a cela iluminada e a sala onde estavam os guardas.

Para o Dr. Lecter, sentado quieto à sua mesa, o tempo passava devagar e alongava-se como acontece quando se está em ação. Para ele as notas da música se separavam em movimentos sem perder a cadência. Mesmo as vibrações prateadas de Bach eram notas discretas reverberando no aço que o rodeava. O Dr. Lecter levantou-se com uma expressão desligada e observou o guardanapo de papel deslizando de sua coxa para o chão. O guardanapo ficou no ar certo tempo, roçou a perna da mesa, abriu-se, planou de lado, deu uma parada e virou antes de finalmente descansar no chão de aço. Ele não fez nenhum esforço para apanhá-lo, mas deu uma caminhada pela cela, passou para trás do biombo de papel e sentou-se na privada, seu único lugar privativo. Escutando a música, encostou-se de lado na pia, com o rosto na mão, os estranhos olhos castanhos meio cerrados. As Variações Goldberg interessavam-no estruturalmente. Aqui voltava de novo a progressão do violoncelo depois da sarabanda repetida e repetida. Acompanhava com a cabeça, sua língua movendo-se pelas pontas dos dentes. Toda a volta por cima, toda a volta por baixo. Foi uma longa e interessante viagem para sua língua, como uma boa caminhada pelos Alpes.

Examinava agora as gengivas, correndo a língua na cavidade entre a bochecha e a gengiva, movendo-a vagarosamente em volta como alguns homens fazem quando estão ruminando. As gengivas eram mais frescas que a língua. Na cavidade inferior era ainda mais fresco. Quando sua língua tocou um pequeno cilindro de metal, ela parou.

Acima dos sons da música ele ouviu quando o elevador gemeu e roncou, começando a subir. Muitas notas musicais mais tarde, a porta do elevador abriu-se e uma voz que ele não conhecia disse:

— Abra a porta enquanto Boyle entrava com a bandeja. Quando a porta estava aferrolhada de novo, Boyle levou a chave de volta para a mesa antes de tirar as algemas do Dr. Lecter. Em nenhum momento ele ficou perto das barras com a chave enquanto o doutor esteve solto na cela.

— Isso agora foi muito fácil, não foi? — perguntou Pembry.

— Muito conveniente, policial, obrigado — agradeceu o Doutor.

— Vim buscar a bandeja.

O Dr. Lecter escutou quando o mais baixo dos guardas veio para perto da cela. Pembry. Ele podia enxergar por uma fresta entre os painéis de sua tela. Pembry estava junto às barras.

— Dr. Lecter, venha sentar-se no chão com as mãos nas costas, como fizemos antes.

— Policial Pembry, incomodar-se-ia se me deixasse termina o que estou fazendo aqui? Receio que a viagem tenha perturba a minha digestão. — Levou muito tempo para dizer isso.

— Muito bem — disse Pembry para alguém na sala. — Nó o chamaremos quando tivermos a bandeja.

— Posso dar uma olhada nele?

— Nós chamaremos você.

Ouviu-se de novo o ruído do elevador e depois somente a música.

O Dr. Lecter tirou o tubinho da boca e enxugou-o num pedaço de papel higiênico. Suas mãos estavam firmes, as palmas perfeitamente secas.

Durante os anos de detenção, com sua inesgotável curiosidade o Dr. Lecter tinha aprendido muitas das artes secretas das prisões. Em todos os anos depois que atacara brutalmente o enfermeiro em asilo de Baltimore, houvera apenas dois lapsos na segurança em volta dele, ambos em dias de folga de Barney. Certa vez um pesquisado psiquiátrico emprestou-lhe uma caneta esferográfica e depois esqueceu-se dela. Antes que o homem houvesse saído da galeria, Dr. Lecter já havia quebrado a capa plástica da caneta, jogando na privada e dando uma descarga. Guardou o tubo metálico para tinta nas costuras espiraladas do seu colchão.

A única ponta afiada em sua cela no asilo era uma aresta na cabeça de um parafuso que segurava seu beliche na parede. Foi bastante. Durante dois meses, esfregando, o Dr. Lecter cortou duas incisões paralelas com 6 milímetros de comprimento ao longo do tubo de seu lado aberto. Então seccionou o tubo de tinta em dois pedaços a uns três centímetros do lado aberto e jogou o lado maior com a ponta no toalete. Barney não notou os cacos em seus dedos resultado de muitas noites a esfregar.

Seis meses mais tarde um guarda deixou um grande clipe de papel em alguns documentos mandados para o Dr. Lecter por seu advogado. Três centímetros do clipe de aço foram enfiados dentro do tubo e o resto jogado fora na privada. O pequeno tubo, liso e curto, era fácil de esconder nas costuras das roupas, entre a bochecha e a gengiva, no reto.

Agora, atrás da sua cortina de papel, o Dr. Lecter bateu com o pequeno tubo na unha do polegar até que o arame saiu de dentro dele. O arame era uma ferramenta, e essa era a parte difícil. O Dr. Lecter meteu o arame até o meio no pequeno tubo e com infinito cuidado usou como uma alavanca para dobrar para baixo a tira de metal entre as duas incisões. Às vezes elas quebram. Cuidadosamente, com suas mãos poderosas ele dobrou o metal à medida que saía. Agora. A frágil tira de metal formava um ângulo reto com o tubo. Agora ele tinha uma chave para abrir algemas.

O Dr. Lecter pés as mãos atrás das costas e passou a chave de uma mão para a outra quinze vezes. Recolocou a chave na boca enquanto lavava as mãos e as secava meticulosamente. A seguir, com a língua, escondeu a chave entre os dedos da mão direita, sabendo que Pembry iria olhar para sua estranha mão esquerda quando ela estivesse atrás de suas costas.

— Estou pronto quando o senhor estiver, policial Pembry — disse o Dr. Lecter. Sentou-se no chão da cela e esticou os braços para trás, passando as mãos e os punhos por entre as barras. — Obrigado por haver-me esperado. — Parecia uma longa frase, mas era temperada pela música.

Agora ouvia Pembry atrás dele. O policial tocou-lhe o pulso para ver se fora ensaboado. Repetiu a operação no outro pulso. Pembry colocou-lhe as algemas bem apertadas. Voltou à mesa para pegar a chave da cela. Sobre os sons do piano, o Dr. Lecter ouviu o ruído metálico do chaveiro quando Pembry o tirou da gaveta. Agora ele voltava, caminhando por entre os acordes musicais, rompendo o ar que vibrava com as notas cristalinas. Desta vez Boyle veio junto com ele. O Dr. Lecter podia escutar os distúrbios que eles faziam nos ecos musicais.

Pembry verificou de novo as algemas. O Dr. Lecter podia sentir o hálito do policial atrás dele. Agora Pembry abriu a fechadura da cela e escancarou a porta. Hoyle entrou. O Dr. Lecter virou a cabeça, a cela movimentando-se por sua visão numa velocidade que parecia vagarosa para ele, mas com detalhes maravilhosamente nítidos — Boyle na mesa apanhando as coisas espalhadas do jantar na bandeja, reunindo-as aborrecido com a desordem. O toca-fita com seus rolos girando, o guardanapo no chão ao lado das pernas aparafusadas da mesa. Através das barras, o Dr. Lecter via, com o canto dos olhos, a curva por trás do joelho de Pembry, a ponta do bastão pendurado em seu cinto quando ele estava do lado de fora segurando a porta.

O Dr. Lecter encontrou o buraco da algema em seu punho esquerdo, inseriu a chave e virou-a. Sentiu quando a mola da algema soltou-se em seu pulso. Passou a chave para a mão esquerda, achou o outro buraco, inseriu a chave e deu uma volta.

Boyle abaixou-se para pegar o guardanapo no chão. Rápido como o bote de uma cobra, a algema fechou-se no pulso de Boyle e quando ele voltou o olhar para Lecter, a outra algema fechou-se em torno da perna fixa da mesa. Agora de pé, o Dr. Lecter atirou se contra a porta enquanto Pembry tentava sair de trás dela e o ombro do Dr. Lecter forçava a porta de ferro em cima dele. Pembry tentava pegar a Mace no cinto, mas seu braço estava prensado no corpo pela porta. Lecter agarrou a ponta do bastão e levantou-a Com essa alavanca torcendo o cinto de Pembry em volta dele, deu um golpe com o cotovelo e cravou os dentes no seu rosto. Pembry tentou agarrar Lecter com as mãos mas tinha o nariz e o lábio superior agarrados pelos dentes que os dilaceravam. Lecter sacudia sua cabeça como faz um cão matando um rato e tirou o cassetete do motim do cinto de Pembry. Dentro da cela Boyle agora berrava sentado no chão, tentando desesperadamente meter a mão no bolso para pegar as chaves da algema, atrapalhando-se, deixando-a caiu encontrando-a de novo. Lecter bateu com o cassetete no estômago e na garganta de Pembry, e este caiu de joelhos. Boyle enfiou a chave numa das algemas, ao mesmo tempo em que berrava vendo Lecter se dirigir para ele. Lecter fez Boyle calar-se com um jato de Mace e, enquanto ele se engasgava, quebrou-lhe o braço estendido com dois golpes do bastão. Boyle tentou enfiar-se embaixo da mesa, mas cego pelo gás Mace, engatinhou em sentido contrário e foi fácil, com cinco golpes bem aplicados, calá-lo para sempre.

Pembry conseguira sentar-se e gritava. O Dr. Lecter olhou para ele com seu sorriso mau e disse:

— Estou pronto se o senhor estiver...

Girando num curto arco, o bastão apanhou Pembry em cheio na nuca e ele caiu espichado como um peixe, liquidado com uma cacetada.

O pulso do Dr. Lecter, com o exercício, tinha subido a mais de 100, mas rapidamente voltou ao normal. Então parou a música e prestou atenção.

Foi até as escadas e prestou atenção de novo. Virou dos avessos os bolsos de Pembry, tirou a chave da mesa e abriu todas as gavetas. Na gaveta de baixo estavam as armas de serviço de Pembry e Boyle, um par de revólveres 38 especiais. Melhor do que isso: no bolso de Boyle encontrou uma faca.

 

O saguão estava cheio de policiais. Eram 6:30 e a polícia nos postos de guarda do lado de fora tinha acabado de ser rendida em seu turno regular de duas horas. Os homens que entravam no saguão vindos da noite fria esquentavam as mãos em vários aquecedores elétricos. Alguns deles tinham apostado dinheiro no jogo de basquete do time da universidade e estavam ansiosos para saber como ia o jogo.

O sargento Tate não permitia ouvir rádio alto no saguão, mas um oficial tinha um walkman ligado ao ouvido. Ele anunciava o resultado da partida a intervalos, mas não o suficiente para contentar os apostadores.

Ao todo havia quinze policiais armados no saguão, mais dois homens da Correcional prontos para render Pembry e Boyle às sete horas. O próprio sargento Tate estava esperando para largar o serviço do turno de 11 às 7.

Todos os postos avisavam que tudo estava calmo. Nenhum dos telefones malucos ameaçando Lecter tinha dado qualquer resultado.

As 6:45 Tate ouviu o elevador começando a subir. Observou quando o ponteiro de bronze por cima da porta começou a rodar pelo mostrador e parou no 5.

Tate deu uma olhada pelo saguão e perguntou:

— Sweeney foi buscar a bandeja?

— Não, estou aqui, sargento. Incomoda-se de telefonar para ver se eles terminaram? Eu preciso ir andando.

O sargento Tate discou três números e escutou.

— O telefone está ocupado — disse. — Suba para ver. — E voltou ao relatório que estava fazendo sobre o turno de 11 as 7. O patrulheiro Sweeney apertou o botão do elevador, mas esse não veio.

— Pediu costeletas de carneiro esta noite, malpassadas — disse Sweeney. — O que você pensa que ele vai pedir para o desjejum alguma porra de um bicho do zoológico? E quem você pensa que terá de procurá-la para ele? Sweeney.

A seta de bronze acima da porta permanecia no 5.

Sweeney esperou mais um minuto.

— Que merda é essa? — exclamou.

Os tiros da 38 estouraram em algum lugar acima deles, os e troados ecoando pelas escadas de pedra abaixo, dois em seqüência rápida e depois um terceiro.

O sargento Tate, já de pé ao terceiro tiro, com o microfone na mão gritou:

— Posto de Comando, foram disparados tiros lá em cima na torre. Postos externos, fiquem alerta. Estamos subindo.

Gritaria e balbúrdia no saguão.

Tate viu então a seta de bronze do elevador começando a se movimentar. Chegou ao 4.

— Parem aí! — gritou Tate acima da confusão. -— Dobrei a guarda nos postos externos, a primeira esquadra fica comigo. Ben e Howard, cubram a porra do elevador se ele descer... — A agulha parou no 3.

— Primeira esquadra, comigo! Não passem por uma porta sei verificá-la antes. Bobby, do lado de fora, pegue uma espingarda os coletes blindados e traga-os para cá.

A cabeça de Tate trabalhava febrilmente no primeiro lance de escadas. A cautela lutava com a terrível necessidade de ajudar os policiais lá em cima. Deus não permita que ele tenha se soltado ninguém está usando coletes blindados. Porras da Correcional...

Supunha-se que os escritórios do segundo, terceiro e quarto andares estivessem vazios e fechados. Podia-se passar da torre para o edifício principal nesses andares, atravessando os escritórios. No quinto andar não era possível.

Tate freqüentara a excelente escola da SWAT do Tennessee sabia fazer as coisas. Seguiu na frente e levou com ele os mais jovens. Rápida e cuidadosamente, galgaram as escadas dando cobertura uns aos outros de patamar em patamar.

— Se vocês derem as costas para uma porta antes de verificá-la, eu lhes meto no rabo!

As portas que davam para o segundo andar estavam escuras e fechadas.

Subiram agora para o terceiro, onde o curto corredor permanecia na penumbra. Um retângulo de luz vinha da porta aberta do elevador. Tate esgueirou-se pela parede oposta à do elevador aberto, mas neste não havia espelhos que o ajudassem. Com duas libras de pressão num gatilho de nove libras, ele olhou para dentro do carro. Vazio.

— Boyle! Pembry! Merda! — gritou para cima das escadas. Deixou um homem de guarda no terceiro andar e subiu.

O quarto andar estava inundado com a música de piano que vinha de cima. A porta para os escritórios abriu-se com um empurrão. Além dos escritórios o feixe de luz da comprida lanterna elétrica refletiu-se numa porta escancarada que dava para o grande edifício escuro do outro lado.

— Boyle! Pembry! — Deixou dois homens no patamar. — Cubram a porta. Os coletes estão chegando. Não mostrem seus rabos naquela porta.

Tate subiu os degraus de pedra em direção à música. Estava agora no topo da torre, o patamar do quinto andar; a luz era baça no estreito corredor. Uma claridade forte aparecia por trás do vidro opaco onde se lia: SOCIEDADE HISTÓRICA DO CONDADO DE SHELBY.

Abaixado, Tate atravessou a porta de vidro até o lado oposto às dobradiças. Fez um sinal com a cabeça para Jacobs, torceu a maçaneta e empurrou com toda força, de forma que a porta abriu-se com força suficiente para estourar o vidro. Tate jogou-se rápido para dentro, atravessando as ombreiras da porta e cobrindo o quarto com a mira do revólver.

Tate já vira muitas coisas. Acidentes sem conta, lutas, assassinatos. Durante seu tempo de serviço contara seis policiais mortos, mas pensou que o que estava a seus pés era a pior coisa que já vira acontecer a um policial. A carne acima do colarinho do uniforme não se parecia mais com um rosto. A frente e o alto da cabeça eram uma só mancha de sangue recoberta de carne estraçalhada e um olho único estava ao lado das narinas, a cavidade cheia de sangue.

Jacobs passou por Tate, escorregando no chão ensangüentado e correu para dentro da cela. Inclinou-se sobre Boyle, ainda algemado à mesa. Boyle, com as tripas em parte à mostra, o rosto cortado em pedaços parecia ter explodido na tela, as paredes e o colcha cobertos de gotas e listas de sangue.

Jacobs passou os dedos em seu pescoço:

— Está morto — disse, colocando a voz mais alta que os sons da música. — Sargento?

Tate, recuperado e com vergonha de um segundo deslize, berrava no rádio:

— Posto de Comando: dois policiais abatidos. Repito: dois policiais abatidos. Prisioneiro desaparecido. Lecter desaparecido. Postos externos, observem as janelas, o criminoso tirou os lençóis do leito, pode estar fazendo uma corda. Confirme se ambulâncias estão a caminho.

— Pembry está morto, sargento? — Jacobs desligara a música.

Tate ajoelhou-se e quando foi tocar no pescoço para auscultar aquela coisa horrível no chão deu um gemido e soprou uma bolha de sangue.

— Pembry está vivo. — Tate não desejava colocar sua boca naquela porcaria ensangüentada. Sabia que teria que fazê-lo se quisesse ajudar Pembry a respirar, sabia que não devia mandar um dos patrulheiros fazer isso. Seria melhor que Pembry morresse, mas ele o ajudaria a respirar. Havia um pulsar no coração, ele descobriu e havia respiração. Era irregular e gorgolejante, mas aquilo estava respirando. Aquela ruína estava respirando por si mesma.

O rádio de Tate deu uns estalidos. Um tenente patrulheiro instalara-se no estacionamento de fora, assumira o comando e desejava notícias. Tate tinha que falar.

— Venha aqui, Murray — disse Tate a um jovem patrulheiro — Fique com Pembry e segure-o para que possa sentir as suas mão nele. Fale com ele.

— Qual é mesmo o nome dele, sargento? — Murray era novato — Pembry. Agora, fale com ele, porra! — Tate voltou a falar no rádio: — Dois policiais atingidos, Boyle está morto e Pembry gravemente ferido. Lecter desapareceu e está armado; ele pegou os revólveres deles. Os cinturões e os coldres estão na mesa.

A voz do tenente não era clara devido às grossas paredes.

— Pode confirmar que as escadarias estão limpas para passar as padiolas?

— Sim, senhor. Chame o quarto andar antes que eles passem. Tenho homens em todos os patamares.

— Roger, sargento. O Posto 8 aqui embaixo pensa que viu algum movimento atrás das janelas do edifício principal no quarta andar. Temos todas as saídas guarnecidas, ele não poderá sair. Mantenham suas posições nos patamares. A SWAT está chegando. Vamos deixar a SWAT expulsá-lo. Confirme.

— Compreendo. A jogada é da SWAT.

— O que é que ele tem?

— Duas armas e uma faca, tenente. Jacobs, veja se há algum munição nos cinturões.

— Virei as cartucheiras — respondeu o patrulheiro. — O de Pembry ainda está cheio, e o de Boyle também. O porra desse merda não levou munição extra.

— Que espécie de munição é? — Trinta e oito plus, JHP .

Tate voltou para o rádio.

— Tenente, parece que ele tem dois 38 de seis tiros. Nós ouvimos três disparos, e as cartucheiras nos cinturões ainda estão cheias, de forma que ele só deve ter nove cartuchos. Avise à SWAT que a munição é 38 plus de camisa com ponta oca. Esse camarada tem predileção pelo rosto.

Munição plus era especial, mas não penetraria a blindagem de corpo da SWAT. Um tiro no rosto seria provavelmente fatal, e num membro aleijaria.

— Os padioleiros estão chegando, Tate.

As ambulâncias chegaram com surpreendente rapidez, mas para Tate não pareceu rápido o bastante, ouvindo os gemidos daquela coisa miserável a seus pés. O jovem Murray estava tentando segurar aquele corpo que gemia e se contorcia, tentando falar para reanimá-lo sem olhar para ele, a dizer:

— Você está bem, Pembry, com boa aparência — repetindo e repetindo as palavras no mesmo tom enjoado.

Tão logo viu os atendentes da ambulância no patamar, Tate gritou, como fizera durante a guerra:

— Padioleiros! Segurou Murray pelos ombros e afastou-o do caminho. Os atendentes da ambulância trabalharam depressa, com perícia, agarrando os punhos sujos de sangue por baixo do cinto, enfiando-lhe na boca uma sonda e desenrolando uma bandagem cirúrgica do tipo que não adere para tentar restabelecer alguma pressão no rosto e na cabeça ensangüentada. Um deles preparou um pacote de plasma endovenoso, mas o outro, tomando a pressão e o pulso do ferido, sacudiu a cabeça e disse:

— Vamos para baixo! Ouviam-se agora ordens pelo rádio.

— Tate, quero que esvazie os escritórios na torre e os feche. Guarneça as portas do edifício principal. Depois evacue os patamares. Estou mandando coletes blindados e espingardas. Nós o pegaremos vivo se ele se entregar, mas não vamos correr riscos maiores para preservar-lhe a vida. Compreendeu?

— Entendi, tenente.

— Eu só quero a SWAT e mais ninguém a não ser a SWAT no edifício principal. Repita isso.

Tate repetiu a ordem.

Tate era um bom sargento e mostrou-o agora quando ele e Jacobs se enfiaram em seus coletes pesadamente blindados e seguiram a maca que os padioleiros carregaram escadas abaixo até a ambulância. Uma segunda equipe seguia com Boyle. Os homens nos patamares ficaram com raiva quando viram passar as macas e Tate dirigiu-lhes uma palavra de prudência:

— Não deixem que a raiva venha a arriscar seu rabo!

Enquanto as sirenes gemiam do lado de fora, Tate, auxiliado pelo veterano Jacobs, evacuou cuidadosamente os escritórios e isolou a torre.

Uma corrente de ar frio varria o saguão no quarto andar. Além da porta, nos vastos e sombrios espaços do edifício principal, os telefones tocavam. Nos escuros escritórios em todo o edifício, as luzes dos telefones piscavam como vaga-lumes e as campainhas não paravam de soar.

Corria a notícia de que o Dr. Lecter estava encurralado numa “barricada” no edifício, os repórteres do rádio e da televisão insistiam, discando rápido com seus modems, tentando obter entrevistas ao vivo com o monstro. Para evitar isso, a SWAT em geral desliga os telefones, exceto um que é usado pelos negociadores. Mas aquele edifício era grande demais, os escritórios em número exagerado.

Tate fechou e trancou as portas das salas cujos telefones retiriam. Seu peito e as costas estavam úmidos e coçavam devido ao colete rígido.

— PC, aqui é Tate — anunciou ele tirando o rádio do cinto — A torre está limpa. Over.

— Roger, Tate. O capitão quer que você vá para o posto de comando.

— Dez-quatro. Saguão da torre: você está aí?

— Estou aqui, sargento.

— Sou eu no elevador. Estou levando-o para baixo.

— Entendi, sargento.

Jacobs e Tate estavam descendo no elevador para o saguão quando uma gota de sangue caiu no ombro de Tate; outra pingos no seu sapato.

Olhou para o teto do elevador, tocou a mão em Jacobs, e com um sinal pediu-lhe silêncio.

O sangue pingava da fresta em volta do alçapão no forro do carro. A viagem até o saguão parecia interminável. Tate e Jacob: saíram do elevador de costas, os revólveres apontados para o forre do elevador. Tate meteu a mão no interior do carro e travou-o.

— Psiu! — fez Tate no saguão. E em voz baixa: — Berry, Howard, ele está no teto do elevador. Mantenham-no sob cobertura.

Tate saiu. O furgão preto da SWAT estava no estacionamento. A SWAT sempre tinha um sortimento de chaves de elevadores.

Foram alertados num momento; dois homens da SWAT com armaduras negras e fones de ouvido subiram as escadas até o terceiro andar. Com Tate no saguão, embaixo, havia mais dois, mantendo os rifles de assalto apontados para o forro do elevador.

Parecem grandes formigas guerreiras, pensou Tate.

O comandante da SWAT falou em seu aparelho:

— O.K., Johnny.

No terceiro andar, acima do elevador, o homem da SWAT virou a chave na fechadura da porta, que deslizou e abriu-se. O poço estava escuro. Deitado de costas no corredor, ele tirou uma granada de imobilizar do colete e depositou-a no chão a seu lado.

— O.K. Vou dar uma olhada agora.

Tirou um espelho com o cabo muito comprido e colocou-o na beirada do poço enquanto seu companheiro ligava uma poderosa lanterna elétrica, apontando a luz para dentro do poço.

— Eu o estou vendo. Está em cima do elevador. Vejo uma arma do lado dele. Mas ele não se move.

Peterson ouviu uma pergunta no seu fone de ouvido:

— Você pode ver as mãos dele?

— Vejo uma das mãos, a outra está debaixo do corpo. Ele tem os lençóis em volta do corpo.

— Fale com ele.

— PONHA SUAS MÃOS SOBRE A CABEÇA E NÃO SE MOVAI — gritou Peterson poço abaixo. — Ele não se moveu, tenente... — E após uma pausa: — Certo.

— SE NÃO PUSER JÁ AS MÃOS NA CABEÇA, JOGAREI UMA GRANADA DE IMOBILIZAÇÃO EM VOCÊ; DOU-LHE TRÊS SEGUNDOS — berrou Peterson. Em seguida tirou do colete um dos calços de borracha que todo homem da SWAT carrega. O.K., CAMARADAS, OBSERVEM DM — LÁ VAI A GRANADA. — Atirou o calço pela borda do poço e viu-o ricochetear no corpo. — Ele não se mexe, tenente.

— O.K., Johnny, vamos levantar o alçapão do elevador com uma vara. Você pode mantê-lo em sua mira?

Peterson rolou até a borda do poço. Sua 45 pronta para disparar, apontada diretamente para a figura imóvel.

— Sob a mira — anunciou ele.

Olhando para baixo ao longo do poço do elevador, Peterson pode ver a réstia de luz aparecer quando os homens no saguão empurraram o alçapão com um croque da SWAT. A figura imóvel estava em parte sobre o alçapão e um dos braços moveu-se quando os homens empurraram de baixo.

O dedo de Peterson aumentou um pouco a pressão na segurança da Colt.

— O braço dele moveu-se, tenente, mas acho que foi o alçapão que o empurrou.

— Roger. Abram todo o alçapão.

O alçapão abriu-se todo para trás e ficou encostado na parede do poço. Peterson tinha dificuldade para enxergar contra a luz.

— Ele não se moveu. A mão dele não está segurando a arma.

A calma voz fez-se ouvir em seu fone:

— O.K., Johnny, agüente ai, vamos entrar no elevador. Observe com o espelho se há qualquer movimento. Qualquer fogo partirá de nós. Positivo?

— Entendido.

No saguão, Tate observou quando eles entraram no carro do elevador. Um atirador armado com um rifle e capaz de perfurar couraça apontou a arma para o forro do elevador. Um segundo homem subiu numa escada. Estava armado com uma grande pistola automática e trazia uma lanterna elétrica presa por baixo dela. O espelho e a pistola com a lanterna passaram pelo alçapão, depois a cabeça do homem e seus ombros. Ele passou para baixo um revólver 38.

— Este está morto — foi só o que disse.

Tate pensou imediatamente se a morte de Lecter significava que Catherine ia morrer também, todas as informações perdidas quando as luzes se apagaram naquela mente monstruosa.

Os homens agora puxavam o corpo, que descia de cabeça para baixo através do alçapão. Foi cuidadosamente arriado sobre muitas mãos, estranho enterro numa caixa iluminada. O saguão logo se encheu de policiais correndo para vê-lo.

Um guarda da Correcional adiantou-se, olhou para o braço estendido do morto, cheio de tatuagens e disse:

— Mas este é Pembry!

 

Na traseira da ambulância com a sirene a toda altura, o jovem acadêmico se escorando contra o balanço, ligou o rádio para falar com seu supervisor na sala de emergências. Falou alto, por causa da sirene.

— Ele está em coma, mas os sinais vitais são bons. A pressão está boa. Cento e trinta por noventa. Sim, noventa. Pulso, oitenta e cinco. Tem diversos cortes faciais com as bordas levantadas, e um dos olhos fora da órbita. Apliquei pressão no rosto e uma cânula está em posição. Possivelmente levou um tiro na cabeça. Não dá para ter certeza.

Atrás dele, na maca, os punhos cerrados e ensangüentados relaxam dentro da bandagem. A mão direita desliza para fora e acha a fivela da tira que o prende na maca em volta do peito.

— Estou com medo de colocar muita pressão na cabeça; ele mostrou alguns movimentos convulsivos antes de o colocarmos na maca. Sim, ele está na posição de Fowler.

Atrás do jovem a mão agarrou a bandagem cirúrgica e limpou os olhos com ela. O acadêmico ouviu um assobio na cânula, virou-se e viu uma cara ensangüentada junto à dele, mas não o revólver que desceu com força e o pegou atrás da orelha.

A ambulância diminuiu a marcha, provocando agitação no tráfego da estrada de seis pistas. Os motoristas que vinham atrás, confusos e buzinando, hesitavam em ultrapassar um veículo de emergência. Ouviram-se dois tiros parecendo descargas de silencioso e a ambulância partia de novo, fazendo curvas nas pistas, endireitando e encaminhando-se para a faixa da direita.

Apareceu a saída para o aeroporto. A ambulância reduziu a marcha, várias luzes de emergência piscando, os limpadores de pára brisas estranhamente funcionando, e logo a sirene diminuiu de volume, aumentou de novo, depois diminuiu até ficar em silêncio; e as luzes que piscavam foram se apagando. A ambulância prosseguiu agora tranqüila, enveredando para a saída do aeroporto internacional de Memphis, com seu belo edifício iluminado na noite de inverno. Tomou a pista curva até os portões automáticos do enorme parqueamento. Uma mão ensangüentada projetou-se do carro para apanhar na máquina o bilhete de entrada e a ambulância desapareceu no túnel que levava ao estacionamento subterrâneo.

 

Normalmente, Clarice Starling teria curiosidade de conhecer a casa de Crawford em Arlington, mas o boletim de notícias no rádio do carro, descrevendo a fuga do Dr. Lecter, tirou-lhe toda a vontade.

Com os lábios meio dormentes e os cabelos arrepiados, ela dirigia quase por instinto e chegou à bonita casa tipo rancho da década de 50 sem olhá-la, apenas cismando se as janelas encortinadas e com luzes acesas à esquerda seriam as do quarto de Bella. A campainha soou-lhe estridente demais.

Crawford abriu a porta quando ela tocou pela segunda vez. Usava um cardigã folgado e estava falando num telefone sem fio.

— Quero falar com Copley, em Memphis — dizia. Fazendo-lhe um sinal para segui-lo, conduziu-a através da casa, falando baixo ao telefone.

Na cozinha, uma enfermeira tirou um pequeno frasco da geladeira e olhou-o contra a luz. Quando Crawford levantou as sobrancelhas para a enfermeira, ela sacudiu a cabeça dando a entender que não precisava dele.

Levou Starling para seu estúdio, descendo três degraus para o que claramente era uma garagem dupla convertida em escritório. Havia muito espaço ali, um sofá e cadeiras, e na mesa atulhada de coisas um terminal de computador brilhava com sua luz verde ao lado de um astrolábio antigo. O carpete dava a impressão de ter sido assentado sobre concreto. Crawford fez-lhe um sinal para sentar-se.

Colocando uma mão sobre o telefone, falou:

— Clarice, sei que a pergunta é tola, mas você passou qualquer coisa para Lecter em Memphis?

— Não.

— Nenhum objeto?

— Nada.

— Você lhe levou os desenhos e outros objetos da antiga cela?

— Não os entreguei; ainda estão na minha bolsa. Ele é que me entregou a pasta. Foi a única coisa que mudou de mãos entre nós dois.

Crawford acomodou o telefone embaixo do queixo.

— Copley, isso é uma deslavada fofoca. Quero que você desmascare aquele filho da puta e faça isso agora mesmo. Vá logo ao chefe, no Bureau de Investigações do Tennessee. Providencie para que a linha direta seja informada do resto. Burroughs está nela. Sim.

Desligou o telefone e meteu-o no bolso do cardigã.

— Quer um café, Starling? Ou uma Coca?

— Que história é essa de passar coisas para o Dr. Lecter?

— Chilton está dizendo que você deve ter dado a Lecter alga que ele usou para destravar o fecho das algemas. Que você não a fez de propósito, diz ele, mas por pura ignorância. — Às vezes os olhos de Crawford pareciam os de uma tartaruga irritada. Ficou observando a reação dela. — Chilton alguma vez passou uma cantada em você, Starling? Será que é isso o que ele tem contra você?

— Talvez. Eu tomo café preto com açúcar, por favor.

Enquanto Crawford ia para a cozinha ela respirou fundo e correu os olhos pelo aposento. Se você vive num dormitório ou num quartel, é confortável sentir-se numa casa. Mesmo com todo o terremoto que a sacudia, a idéia de que os Crawfords viviam naquela casa animou-a.

Crawford vinha voltando, cuidadosamente, ao descer os degraus com suas lentes bifocais. Trazia as xícaras. Calçado de mocassins ele era um pouco mais baixo; quando Starling se ergueu para pegar o café, seus olhos estavam mais ou menos no mesmo nível. Ele cheirava a sabonete e tinha solto o cabelo grisalho.

— Copley me disse que ainda não encontraram a ambulância. Os quartéis de polícia estão de olhos abertos por todo o sul.

Starling sacudiu a cabeça.

— Eu não conheço nenhum detalhe. O boletim do rádio disse apenas: o Dr. Lecter matou dois policiais e desapareceu.

— Dois policiais da Correcional. — Crawford digitou o computador para mostrar o texto da notícia na tela. — Seus nomes eram Boyle e Pembry. Você tratou com eles?

Ela fez que sim com a cabeça.

— Bem... eles que me mandaram sair da torre. Mas foram legais comigo. — Recordava Pembry saindo de trás de Chilton, meio sem jeito mas decidido, demonstrando sua cortesia. “Venha comigo agora”, dissera ele. Tinha umas manchas de fígado ruim nas mãos e na testa. Agora estava morto, pálido sob as suas manchas...

Súbito Starling teve que descansar seu café. Encheu bem os pulmões e levantou a cabeça para o teto por um momento.

— Como ele conseguiu?

— Fugiu numa ambulância, me informou Copley. Mais tarde lhe explico. Como se saiu você como ácido no mata-borrão?

Obedecendo às ordens de Krendler, Starling tinha passado parte da tarde e o início da noite submetendo as folhas com os Plutos ao analisador científico.

— Por enquanto, nada certo. Eles estão tentando os arquivos do DEA para uma comparação, mas o material tem dez anos de idade. A seção de documentos poderá sair-se melhor com a gravura do que o DEA com o tóxico.

— Mas era ácido no mata-borrão.

— Era. Como foi que ele fez para fugir, Sr. Crawford?

— Você quer saber?

Ela acenou afirmativamente com a cabeça.

— Então vou lhe contar. Eles levaram Lecter para uma ambulância por engano. Pensaram que era Pembry,que ficara gravemente ferido.

— Ele vestia o uniforme de Pembry? De fato, eram mais ou menos do mesmo tamanho.

— Ele pôs o uniforme de Pembry e parte do rosto de Pembry em cima do dele. E mais ou menos meio quilo da carne de Boyle também... Embrulhou o corpo de Pembry na coberta impermeável do colchão e nos lençóis da cela para impedir que o sangue pingasse e jogou-o em cima do elevador. Vestiu o uniforme, preparou-se, deitou-se no chão e disparou vários tiros para o teto a fim de provocar um estouro da boiada. Não sei o que fez com o revólver, talvez o escondesse na parte de trás de suas calças. Chegou a ambulância, policiais armados por toda parte. A equipe da ambulância veio rápida e fez o que costumam fazer sob fogo — enfiaram-lhe uma cânula na boca para assegurar a respiração, passaram bandagem pela parte mais afetada do rosto, criando pressão para estancara hemorragia, e levaram-no para fora. Fizeram seu serviço. A ambulância nunca chegou ao hospital. A polícia ainda está procurando. Não vejo nada bom com respeito a esses paramédicos. Copley diz que estão rodando as fitas do despachante das ambulâncias, houve várias chamadas. Eles acham que o próprio Lecter chamou a ambulância antes de disparar os tiros, de modo que não tivesse de ficar ali por muito tempo. O Dr. Lecter gosta de se divertir...

Starling nunca percebera aquele tom de escárnio na voz de Crawford. Como ela associava amargura com fraqueza, aquilo assustou-a.

— Essa fuga não significa que o Dr. Lecter estava mentindo — disse Starling. — Sem dúvida ele mentiu para alguém: para nós ou para a senadora Martin, mas talvez não estivesse mentindo para ambos. Ele apontou para a senadora Martin o nome de Billy Rubin e alegou que isso era tudo o que sabia. A mim, disse que foi alguém com delírios de transexualidade. A última coisa que me disse foi, mais ou menos: “Por que não completar o arco?” Ele falava sobre seguir a teoria da mudança de sexo que...

— Eu sei, vi a sua súmula. Não podemos continuar com isso enquanto as clínicas não nos fornecem os nomes. Alan Bloom está indo pessoalmente aos chefes de departamentos. E eles dizem que estão procurando. Tenho que acreditar.

— Sr. Crawford, o senhor está tendo problemas?

— Estou sendo aconselhado a tirar uma licença para tratar de pessoa da família — respondeu Crawford. — Há um novo grupo de trabalho saído do FBI, DEA e “elementos adicionais” do escritório do Promotor Público, quer dizer, de Krendler.

— Quem é o chefe?

— Oficialmente, o assistente do diretor do FBI, John Golby. Digamos que ele e eu estamos em íntima colaboração. John é um bom sujeito. Que tal falarmos sobre você? Você está tendo problemas?

— Krendler me mandou entregar a ID e o revólver e apresentar-me de volta à escola.

— Isso foi o que ele fez antes da sua visita a Lecter. Esta tarde ele mandou uma bomba ao Escritório de Responsabilidade Profissional. Era um pedido “sem opinião preconcebida” para que a Academia suspenda você e faça uma reavaliação da sua aptidão para o serviço. É uma merda duma retaliação. O instrutor-chefe de tiro, John Brigham, viu o pedido na reunião do corpo docente em Quântico há poucas horas. Ele protestou energicamente e pendurou-se ao telefone para falar comigo.

— Qual é a gravidade disso?

— Você tem o direito de ser ouvida. Tornarei-me fiador da sua aptidão e isso deverá ser o bastante. Contudo, se você passar mais tempo afastada, será definitivamente excluída, seja qual for o resultado da investigação. Você sabe o que acontece quando uma pessoa é excluída?

— Claro. A pessoa é mandada para o escritório regional que a recrutou. Lá ela fica arquivando relatórios e fazendo café até surgir vaga numa classe.

— Posso prometer-lhe uma vaga numa classe mais tarde, mas não posso impedi-los de excluí-la se você continuar faltando.

— Então devo voltar para a escola e parar de trabalhar neste caso, ou...

— É isso.

— O que deseja o senhor que eu faça?

— Sua tarefa era Lecter. Você a cumpriu. Não vou pedir-lhe para ser excluída. Poderia custar-lhe meio ano, talvez mais.

— E quanto a Catherine Martin?

— Bill já está com ela há quase 48 horas, serão 48 horas à meia noite. Se nós não o apanharmos, provavelmente vai fazer o serviço nela amanhã ou depois, se for como no último caso.

— Lecter não é tudo o que tínhamos.

— Eles pegaram seis William Rubin até agora, todos com antecedentes policiais de uma espécie ou outra. Nenhum deles parece ser o procurado. Não há Billy Rubin na lista de assinantes de jornais sobre insetos. O Sindicato dos Cuteleiros tem conhecimento de cinco casos de antraz de marfim nos últimos dez anos. Ainda temos uns dois homens para verificar. O que mais? Klaus ainda não foi identificado... até agora. A Interpol acusa um edital de procura de um marinheiro norueguês fugitivo, um certo “Klaus Bjetland”, ou como quer que se pronuncie... A Noruega está procurando o registro dental dele para enviar. Se obtivermos qualquer coisa das clínicas, e você tiver tempo, você ainda poderá ajudar. Olhe, Starling...

— Sim, Sr. Crawford?

— Volte para a escola.

— Se o senhor não queria que eu o procurasse, não devia ter me levado àquela casa funerária, Sr. Crawford.

— Não — assentiu Crawford — , suponho que não. Mas nesse caso não teríamos encontrado o inseto. Não entregue sua arma de fogo, Starling. Quântico é bem seguro, mas você deve anda armada sempre que sair da sua base e até que Lecter seja preso ou morto.

— E quanto ao senhor? Ele o odeia. Sei, porque ele repete muito isso.

— Muita gente me odeia, Starling, numa porção de cadeias. Mais tarde ele poderá pensar em cuidar do assunto, mas por enquanto está ocupado demais. É doce permanecer em liberdade, e ele não deve estar disposto a desperdiçar seu tempo doutra forma. E este meu lugar é mais seguro do que parece.

O telefone no bolso de Crawford zumbiu. O que ficava na mesa também fez um ruído e uma lâmpada acendeu. Crawford escutou durante alguns minutos, disse “O.K “ e desligou.

— Encontraram a ambulância na garagem subterrânea do aeroporto de Memphis — informou ele, balançando a cabeça. — Nada de bom. A equipe estava na parte de trás: ambos mortos. Crawford tirou os óculos e procurou um lenço nos bolsos para limpá-los. — Starling, o Smithsonian telefonou para Burroughs procurando você. Aquele camarada, Pilcher. Eles estão muito próximos de terminar com o inseto. Quero que você escreva um pequeno 302 sobre o assunto e o assine para o arquivo permanente. Você encontrou esse inseto e seguiu a pista, e eu quero que o arquivo o registre. Está disposta a isso?

Starling estava mais cansada do que nunca.

— Por certo — respondeu.

— Deixe seu carro na garagem. Jeff irá levar você para Quântico quando terminar.

Antes descer os degraus ela voltou o rosto para a janela iluminada e com cortinas onde a enfermeira estava de plantão e depois olhou para Crawford.

— Estou pensando no senhor e na sua mulher, Sr. Crawford.

— Obrigado, Starling — agradeceu ele.

 

— Sim, oficial Starling, o Dr. Pilcher disse que a encontraria no Zoológico de Insetos. Vou levá-la até lá — anunciou o guarda.

Para chegar ao Zoológico de Insetos vindo do lado da Constituition Avenue era preciso pegar o elevador um nível acima do grande elefante empalhado e cruzar um vasto andar dedicado ao estudo do homem.

Primeiro havia filas de caveiras, que aumentavam e se espalhavam, representando a explosão da população humana desde os tempos de Cristo.

Starling e o guarda moviam-se num panorama habitado por figuras ilustrando a origem humana e sua variação. Aqui estavam as exposições de rituais — tatuagens, pés ligados, modificação dos dentes, cirurgia peruana, mumificação.

— A senhora alguma vez viu Wilhelm von Ellenbogen? — indagou o guarda dirigindo a luz de sua lanterna para uma caixa.

— Acredito que não — respondeu Starling sem diminuir o passo.

— A senhora deveria vir aqui quando as luzes estão acesas e dar uma olhada nele. Foi enterrado em Filadélfia no século XVIII e virou sabão quando a água do subsolo o atingiu.

O Zoológico dos Insetos, uma grande sala, estava na penumbra, barulhento com os sons produzidos pelos insetos em sua movimentação. Gaiolas e gaiolas de insetos vivos povoam a sala. Crianças gostam particularmente deste zoológico e freqüentam-no durante todo o dia. À noite, sozinhos, os insetos ficam mais ativos. Algumas das caixas eram iluminadas com luz encarnada e os sinais das saída de incêndio brilhavam com um vermelho forte na sala semi-escurecida.

— Dr. Pilcher? — chamou o guarda da porta.

— Aqui — disse Pilcher, levantando uma caneta-lanterna como se fosse um farol.

— Depois o senhor levará esta senhora para fora?

— Sim, obrigado, guarda.

Starling tirou sua pequena caneta-lanterna da bolsa e descobri que o interruptor estava ligado e as pilhas esgotadas. O acesso de raiva que sentiu fê-la lembrar-se do seu cansaço e que devia se controlar.

— Alô, policial Starling.

— Como vai, Dr. Pilcher?

— Que tal “professor Pilcher”

— O senhor é professor?

— Não, mas também não estou doutor. O que eu estou é contente de vê-la. Quer dar uma olhada em alguns insetos?

— Claro. Onde está o Dr. Roden?

— Ele fez um grande progresso nas últimas duas noites estudando as cerdas do inseto e finalmente teve que descansar. Você viu o bicho antes de começarmos com ele?

— Não.

— Era só uma coisa úmida, nada mais.

— Mas vocês o estudaram e identificaram.

— Sim, ainda há pouco. — Ele parou numa gaiola de tela. Primeiro deixe-me mostrar-lhe uma mariposa como aquela que você trouxe na segunda-feira. Esta não é exatamente a mesma que a sua, mas é da mesma família, uma corujinha. — O feixe da lanterna elétrica descobriu a grande e brilhante mariposa azul pousado num pequeno galho, suas asas dobradas. Pilcher soprou em cima dela e instantaneamente a cara zangada de uma coruja aparece quando a mariposa abriu a parte interna de suas asas para eles, a manchas dos olhos nas asas brilhando como a última coisa que um rato vê. — Esta é Caligo beltrao, bastante comum. Mas com aquele exemplar de Klaus nós entramos no terreno de algumas mariposa grandes. Venha comigo.

No fim da sala havia uma caixa recuada dentro de um nicho com um corrimão à sua frente. A caixa estava fora do alcance da mãos de crianças e coberta com um pano. Um pequeno umidificador zumbia ao lado dela.

— Nós a mantemos atrás de um vidro para proteger os dedo; das pessoas, ela pode atacar. Ela também gosta de umidade e o vidro mantém a umidade interna. — Pilcher levantou a gaiola cuidadosamente por suas alças para trazê-la à frente do nicho. Tirou a coberta e acendeu uma pequena lâmpada por cima da gaiola. — Esta é chamada Mariposa da Caveira — disse ele. — O arbusto onde ela está pousada é uma dulcamara temos esperança de que ela ponha ovos.

A mariposa era maravilhosa e terrível de ver, com suas enormes asas marrom-escuras dobradas como um manto. Nas suas costas cobertas de cerdas via-se a assinatura que instilou medo nos homens desde quando deram com ela, subitamente, em seus felizes jardins. A abóbada de um crânio, um crânio que é ao mesmo tempo um rosto, olhando com olhos profundos, os malares, o arco zigomático caprichosamente traçado ao lado dos olhos.

— Acherontia styx — ensinou Pilcher. — É o nome de dois rios do inferno. Seu homem, ele transporta sempre os cadáveres através do rio, não foi isso que eu li?

— Sim — disse Starling. — Ela é rara?

— Nesta parte do mundo, é. Por aqui não há nenhuma como ela na natureza.

— De onde é que ela vem? — Starling encostou o rosto perto do teto da gaiola. Sua respiração agitou as cerdas nas costas da mariposa. Starling recuou quando ela emitiu um som e bateu furiosamente as asas. Pôde sentir o fraco ventinho que ela produziu.

— Da Malásia. Há também um tipo europeu, chamado atropos, mas esta e aquela que estava na garganta de Maus são da Malásia.

— Então alguém a criou.

Pilcher fez que sim com a cabeça.

— Claro — achou melhor dizer, quando viu que Starling não estava olhando para ele. -Teve que ser enviada da Malásia como um ovo, mais provavelmente como uma pupa. Ninguém jamais conseguiu fazê-las desovar no cativeiro. Elas acasalam, mas não põem ovos. O difícil é achar a lagarta na floresta; encontrada, não é difícil de criar.

— Você disse que elas podem atacar.

— Sua probóscide é rígida e afiada, e ela pode grudar no seu dedo se você facilitar. É uma arma inusitada, e o álcool não afeta os exemplares conservados. Isso nos ajudou a diminuir o campo de pesquisa e permitiu identificá-la rapidamente. — Súbito, Pilcher pareceu ficar embaraçado, como se tivesse dito uma impropriedade. — Elas também são valentes — apressou-se a acrescentar. — Atacam colméias e sugam o mel de Bogart. Certa vez estávamos coletando insetos em Sabah, Bornéu, e elas apareceram atraídas pela luz do alojamento dos jovens. Era apavorante ouvi-las, e nós...

— De onde veio esta?

— De uma troca com o governo da Malásia. Não sei pelo que a trocamos. Foi engraçado: lá estávamos nós no escuro, esperando com aquele balde de cianureto, quando...

— Que espécie de manifesto alfandegário veio com esta? Vocês têm registros dessas coisas? É preciso conseguir uma licença de exportação da Malásia? Quem teria isso?

— Você está muito apressada. Veja: registrei tudo o que temos e os lugares onde colocar anúncios se você deseja fazer essa espécie de importação. Vamos, eu a conduzo para fora.

Cruzaram o vasto espaço em silêncio. A luz do elevador, pôde ver que Pilcher estava tão cansado quanto ela.

— Você ficou acordado trabalhando nisso — observou ela. Foi bom tê-lo feito. Eu não quis ser brusca, apenas...

— Espero que o apanhem. E que você se livre desse encargo em breve — desejou ele. — Eu listei algumas drogas que ele pode estar comprando, se cuida de espécimes moles... Policial Starling, eu gostaria de conhecê-la melhor.

— Talvez eu lhe telefone quando puder.

— Definitivamente deve fazer isso, sem falta. Eu apreciaria assegurou Pilcher.

O elevador fechou-se e Pilcher e Starling desapareceram. O andar dedicado ao homem estava em silêncio e nenhuma figura humana se movia — nem os tatuados, nem as múmias, nem os pés ligados se mexiam.

As luzes de incêndio brilhavam, rubras, no Zoológico de Insetos, refletidos em mil olhos ativos. O umidificador zumbia. Debaixo da sua coberta, na gaiola negra, a Mariposa da Caveira desceu do galho de dulcamara. Cruzou pelo piso da gaiola, as asas arrastando-se como uma pelerine, e descobriu um fragmento de favo de mel no seu prato. Agarrando o favo com as poderosas patas dianteiras, desenrolou sua afiada probóscide e enfiou-a na tampa de cera de uma célula do favo. Ficou quieta, sugando, enquanto à volta dela os cricris e os movimentos dos insetos recomeçaram, e com eles iam surgindo pequenas novas vidas e mortes.

Catherine Baker Martin jaz naquelas trevas horrorosas. As trevas acumulam-se por trás de suas pálpebras; nos agitados momentos de sono, ela sonha que as trevas a penetram. As trevas vêm, insidiosas, invadem seu nariz e seus ouvidos, os dedos úmidos das trevas tocam cada uma das aberturas de seu corpo. Põe a mão em frente à boca e ao nariz, põe a outra em cima da vagina, aperta as nádegas, vira um dos ouvidos contra o colchão e sacrifica o outro para a entrada das trevas. Junto com as trevas vem um som e ela acorda num pulo. O som familiar e ativo de uma máquina de costura. De velocidade variável. Vagarosa, depois rápida.

Lá em cima, no porão, as luzes estavam acesas — ela podia ver um fraco disco de luz amarela onde, muito alto, o pequeno alçapão que dava para o poço estava aberto. A poodle latiu algumas vezes e a voz extraterrena falou com ela, meio abafada.

Costurando. Era uma coisa muito errada costurar naquele lugar. A costura é algo que demanda luz. O ensolarado quarto de costura na casa de Catherine quando criança trazia uma lembrança tão bem-vinda à sua mente... A governanta, a querida Bea Love na máquina... seu gatinho brincando com as cortinas que esvoaçam.

Aquela voz lá em cima, discutindo com o cão, fez toda a memória fugir.

— Queridinha, não pegue nisso. Você se está com um alfinete e então o que vamos fazer? Estou quase terminando. Sim, belezinha. Você ganha um Chew-wy quando nós acabarmos... você ganha um Chew-wy, dudi-dudi-du...

Catherine não sabia há quanto tempo estava cativa. Lembrava que se havia lavado duas vezes — da última vez ela ficara de pé, bem iluminada, desejando que ele visse seu corpo, sem estar certa de que, por trás da luz que a cegava, ele olhava para baixo. Nua, Catherine Baker era um espetáculo, um mulheraço visto de qualquer ângulo, e ela sabia disso. Queria que ele a visse. Queria sair do poço. Perto o bastante para trepar é perto o bastante para lutar — dissera para si mesma repetidas vezes enquanto se lavava. Ela recebia muito pouca coisa para comer e sabia que era melhor lutar enquanto tivesse forças. Sabia que ia lutar com ele; e sabia que era capaz disso. Seria melhor foder com ele primeiro, foder tantas vezes quantas ele pudesse agüentar até esgotá-lo? Sabia que se pudesse enrolar suas pernas em torno do pescoço, o mandaria para o inferno em um segundo e meio. Será que terei forças para fazer isso? Claro que tenho! Não ouvira, porém, nenhum som lá de cima quando acabou de se lavar e vestiu a malha limpa. Não houve resposta ao seu oferecimento quando o balde do banho subiu, balançando em sua frágil Gordinha, e foi substituído pelo balde de toalete.

Agora, horas mais tarde, continuava esperando, ouvindo a máquina de costura. Não o chamou aos gritos. Depois de algum tempo, talvez umas mil respirações, escutou quando ele subiu as escadas a falar com o cão, dizendo qualquer coisa como “... o desjejum, quando eu voltar”. Deixou o porão com a luz acesa. Às vezes ele fazia isso.

Arranhar de unhas e pisadas na cozinha, no andar de cima. O cão choramingando. Imaginou que seu raptor saia da casa. Às vezes ele saía por longo tempo.

Continuou a contar as respirações. A pequena cadela continuava a se mover pela cozinha, ganindo, arrastando algo no chão, batendo com esse algo no soalho, talvez sua tigela de comida. A seguir arranhava e arranhava o chão. E novos latidos, latidos pequenos, curtos e agudos, agora não tão claros como fora quando o animal estava bem acima dela, na cozinha. Porque a poodle já não estava na cozinha, Tinha aberto a porta com o focinho e estava no porão caçando camundongos, como fizera da vez anterior quando o homem saíra.

No escuro, Catherine Martin apalpou embaixo do seu cobertor. Encontrou o pedaço de osso de galinha e cheirou-o. Era duro resistir e não comer os pequenos restos de carne e pele que havia nele. Colocou-o na boca para aquecer. A seguir de pé, um pouco tonta, na escuridão. Além dela, no poço de paredes verticais, não havia mais nada a não ser o cobertor, o macacão que usava, o balde de plástico para toalete e aquela frágil Gordinha que se estendia para o alto em direção à pálida luz amarela.

Pensava nisso durante cada intervalo em que conseguia pensar. Catherine esticou-se quanto pôde e agarrou a Gordinha. Era melhor dar um arranco ou puxar com calma? Pensara nisso milhares de vezes enquanto contava a respiração. Melhor puxar com firmeza.

A corda de algodão esticou mais do que esperava. Segurou-a de novo o mais alto que pôde, movendo o braço de um lado para o outro na esperança de que a cordinha estivesse roçando bem alto, na tampa de madeira do buraco lá em cima. Continuou a sacudi-la até seu braço doer. Puxou: a corda agora não se alongava mais, não tinha mais o que ceder. Por favor, queira partir-se bem alto!... Ouviu um estalido e a cordinha caiu, dando uma porção de voltas em cima do seu rosto.

Acocorada no chão, com a Gordinha sobre a cabeça e os ombros, sem luz bastante da fresta lá em cima para ver quanto da corda havia em cima dela. Não devo embaraçá-la. Com todo cuidado, arrumou a cordinha no chão, medindo-a com o antebraço. Contou quatorze antebraços. A cordinha se rompera na beirada do poço.

Amarrou o osso de galinha e seus restos de carne firmemente com a corda onde esta se prendia à asa do balde.

Agora vinha a parte mais difícil.

Trabalhe cuidadosamente. Ela estava num estado de espírito que chamada de “tempo ruim”. Era como tomar conta de si mesma num pequeno barco durante “tempo ruim”.

Amarrou a outra ponta da cordinha em seu pulso, apertando o nó com os dentes.

Afastou-se da cordinha tanto quanto possível. Segurando o balde pela alça, ela rodou com o braço todo estendido e jogou-o para cima, em direção ao fraco disco de luz. O balde de plástico não acertou no alçapão aberto, bateu no lado inferior da tampa do poço e caiu, acertando-a no rosto e no ombro. A cachorrinha latiu mais alto.

Arrumou novamente a corda com todo o cuidado e jogou o balde de novo, e de novo. No terceiro arremesso, o balde atingiu seu dedo quebrado e ela teve que encostar-se na parede inclinada e respirar fundo até a dor passar. O arremesso número quatro voltou a bater nela, mas no de número cinco o balde não voltou. Ficara preso em algum lugar sobre a tampa de madeira do poço, ao lado do alçapão aberto. A que distância da abertura? Fique firme agora! Puxou devagarinho. Sacudiu a cordinha para ouvir a alça do balde bater contra a madeira lá em cima.

O animal latiu mais alto.

Não devia puxar o balde até a abertura, mas devia puxá-lo até perto. Foi o que fez.

A cadelinha estava num quarto do porão ao lado, solta entre espelhos e manequins. Cheirava os fiapos e as aparas embaixo da máquina de costura. Encostou o nariz no grande armário negro. A seguir olhou para o lado do porão de onde vinham sons. Deu uma corridinha até o lado escuro, latiu e correu de volta para onde estava antes.

Agora ouviu uma voz que ecoava fracamente pelo porão:

— Preciosa!

A cachorrinha latiu e deu uns pulinhos; seu corpo balofo tremia ao latir.

Ouviu-se um som estalado, como de um beijo.

O cão olhou para o piso da cozinha acima, mas não era de lá que viera o som.

A seguir um barulho como se alguém estivesse comendo.

— Venha cá, Preciosa. Venha cá, belezinha!

Nas pontas dos pés, com as orelhas levantadas, o cão invadiu a parte escura.

De novo o ruído de alguém comendo.

— Venha cá, belezinha, venha cá, Preciosa.

A poodle podia sentir o cheiro do osso de galinha amarrada na alça do balde. Arranhou com as unhas ao lado da parede do poço e ganiu.

O barulho de alguém comendo continuava.

O pequeno animal pulou sobre a tampa do poço. O cheiro partia dali, entre o balde e a abertura do alçapão. A cadelinha latiu para o balde e ganiu, indecisa. O osso de galinha moveu-se um pouquinho.

O cão agachou-se com o nariz entre as patas dianteiras, sua cauda no ar se agitando furiosamente. Latiu duas vezes e atirou-se em cima do osso agarrando-o com os dentes. O balde estava parecendo querer afastar aquele resto de alimento. O animal rosnou para o balde e segurou firme o osso, passando sobre a alça, os dentes bem cravados. De repente o balde derrubou a poodle, empurrou-a ela lutou para ficar de pé, tornou a cair, agarrou-se ao balde; uma da patas traseiras e seu quarto posterior caíram no buraco, suas unhas arranharam nervosamente a madeira. O balde escorregou, meteu se no buraco junto com o quarto traseiro da poodle e ela livrou-se enquanto o balde escorregava pela borda e mergulhava na escuridão, levando o osso de galinha. O cão ficou latindo zangado, seus latidos que reverberavam pelo poço abaixo. Logo parou de latir e volto a cabeça para um som que só ele podia ouvir. Pulou de cima do poço e disparou escada acima ganindo de alegria quando ouviu porta se abrir.

As lágrimas de Catherine Baker Martin correram quentes pelo seu rosto e deslizaram pelo seu macacão, molhando-o, seu calor umedecendo-lhe os seios — e então ela acreditou que certamente iria morrer.

 

Crawford estava sozinho no sei estúdio, com as mãos enfiada profundamente nos bolsos. Ficara ali doze horas seguidas, cozinhando uma idéia. Depois mando um telex para o Departamento de Veículos a Motor da Califórnia requisitando uma pista sobre o motor Nome que o Dr. Lecter dissera que Raspail tinha comprado na Califórnia, aquele que usara diante o seu romance com Klaus. Crawford pediu ao DMV pai checar multas de trânsito aplicadas a quaisquer outros motorista donos do carro além de Benjamin Raspail.

A seguir sentou-se no sofá com uma prancheta e elaborou provocante anúncio pessoal para ser publicado nos principais diária

Moça apetitosa, corpo de Vênus, 21 anos de idade, modelo, procura homem que aprecie qualidade e quantidade. Modelo de roupas íntimas e cosméticos, você já me viu em anúncios de revistas, agora eu gostaria de ver você. Mande retratos com a primeira carta.

Crawford pensou por um momento, e tirou “corpo de Vênus substituindo-o por corpo espetacular”.

A cabeça pendeu-lhe e ele deu uma cochilada. A tela verde d terminal do computador fazia pequenos quadrados nas lentes de sei óculos. Agora havia um movimento na tela, as linhas subindo movimentando-se nas lentes de Crawford. Em seu sono ele sacudiu a cabeça como se a imagem lhe fizesse cócegas.

A mensagem era a seguinte:

 

POLÍCIA DE MEMPHIS RECUPEROU DOIS ITENS AO EXAMINAR CELA DE LECTER:

(I) — CHAVE DE ALGEMAS IMPROVISADA FEITA DE TUBO INTERNO DE CANETA ESFEROGRÁFICA; INCISÕES CORTADAS POR ABRASÃO. BALTIMORE SOLICITADA A VERIFICAR CELA DO HOSPITAL PARA TRAÇOS DA MANUFATURA AUTH COPLEY, SAC MEMPHIS.

(2) — FOLHA DE PAPEL DEIXADA FLUTUANDO NA PRIVADA PELO FUGITIVO; ORIGINAL A CAMINHO DO LAB. SEÇÃO DOCUMENTOS WASHINGTON; GRÁFICO DO ESCRITO SEGUE; GRÁFICO MANDADO TAMBÉM PARA LANGLEY, ATTE BENSON — CRIPTOGRAFIA.

 

Quando o gráfico apareceu, subindo como uma corsa que estivesse espiando pela borda de baixo da tela, era o seguinte: C33H3e1 L T Og N4

O suave bipe duplo do terminal do computador não acordou Crawford, mas três minutos depois o telefone o acordou. Era Jerry Burroughs na linha privativa do Centro Nacional de Informações sobre Crimes.

— Já olhou a sua tela, Jack?

— Espere um momento — disse Crawford. — Sim.

— O laboratório descobriu, Jack; o desenho que Lecter deixou na privada. Os números entre as letras do nome de Chilton, são de bioquímica: C,H,N,08 — é a fórmula do pigmento que se encontra na bile humana chamado bilirrubina. O laboratório informa que é o agente principal de coloração das fezes.

— Bolas!

— Você tinha razão sobre Lecter, Jack. Estava apenas se divertindo com eles. Sinto pena da senadora Martin. O laboratório diz que a bilirrubina é quase exatamente da cor do cabelo do Dr. Chilton. Humor de asilo de loucos, dizem eles... Você viu o Dr. Chilton no jornal das seis?

— Não.

Marilyn Sutter viu-o no andar de cima. Chilton estava se proseando acerca de “A Procura de Billy Rubin”. Depois foi jantas com um repórter da televisão. Era o que ele estava fazendo quando Lecter resolveu dar uma voltinha. Que supra-sumo de cretino!

— Lecter disse a Starling: “tenha em mente” que Chilton não é formado em medicina — explicou Crawford.

— Sim, vi isso no sumário dela. Acho que Chilton tentou transar com ela, é o que penso, e ela o mandou cantar noutra freguesia, Ele pode ser burro, mas não é cego... Como é que está a pequena?

— O.K., penso eu. Esgotada.

— Você acha que Lecter também a estava cantando?

— Talvez. Vamos ficar em cima do assunto. Não sei o que os clínicos andam fazendo; fico pensando se não deveria ter requisita do os registros com uma ordem judicial. Odeio ter que depender deles. Amanhã pelo meio da manhã, se não tivermos ouvido nada, vamos recorrer à via judicial.

— Diga-me, Jack... você tem algumas pessoas aqui fora que conhecem Lecter de vista, certo?

— Certo.

— Ele deve estar rindo em algum lugar.

— Talvez não por muito tempo — disse Crawford.

 

Dr. Hannibal Lecter estava no balcão de recepção do elegante Marcus Hotel em St. Louis. Usava um chapéu marrom e uma capa de chuva abotoada até o pescoço. Uma atadura cirúrgica cobria-lhe o nariz e as faces.

Assinou no registro “Lloyd Wyman”, uma assinatura que ele havia praticado no carro de Wyman.

— Como vai pagar, Sr. Wyman?

— American Express. — O Dr. Lecter entregou-lhe o cartão de crédito de Lloyd Wyman.

Música suave de piano vinha do saguão. No bar o Dr. Lecter viu duas pessoas com ataduras a cobrir-lhes o nariz. Um casal de meia-idade cruzou para os elevadores, cantarolando uma melodia de Cole Porter. A mulher trazia uma venda de gaze sobre um olho.

O atendente acabou de fazer a impressão do cartão de crédito.

— O senhor deve saber, Sr. Wyman, que tem o direito de utilizar a garagem do hospital.

— Sim, obrigado — falou o Dr. Lecter. Ele já havia estacionado o carro de Wyman na garagem, com Wyman dentro do porta malas.

O porteiro que carregou as malas de Wyman para a pequena suste recebeu como gratificação uma das notas de cinco dólares de Wyman.

O Dr. Lecter pediu um drinque e um sanduíche e depois relaxou-se com um demorado banho de chuveiro.

Após seu longo confinamento, a suíte lhe parecia enorme. Ele se divertia andando de um lado para o outro, da porta às janelas e vice-versa.

Das janelas, podia ver, no lado oposto da rua, o Pavilhão Myro e Sadie Fleischer do St. Louis City Hospital, que abrigava um dos mais avançados centros mundiais de cirurgias craniofacial.

O rosto do Dr. Lecter era conhecido demais e ele não tinha como usar um daqueles cirurgiões plásticos, mas estava num lugar onde podia andar com uma atadura no rosto sem chamar a menor atenção. Ele já tinha estado ali antes, muitos anos atrás, quando fazia uma pesquisa psiquiátrica na soberba biblioteca cujo nome homenageava a memória de Robert J. Brockman.

Era gostoso ter uma janela, várias delas. Ficou por trás das janelas no escuro, vendo as luzes dos carros cruzando a MacArthu Bridge e saboreando seu drinque. Sentia-se agradavelmente fatiga do depois de dirigir cinco horas de Memphis até ali.

O único problema real da tarde ocorrera na garagem subterrânea do Aeroporto Internacional de Memphis. Limpar-se com álcool, chumaço de algodão e água destilada na traseira da ambulância não fora nada conveniente. Depois de se meter na roupa branca de um dos paramédicos, foi somente uma questão de surpreender um viajante solitário na ala deserta do estacionamento de longo prazo na imensa garagem. Cooperativamente, o homem inclinou-se para dentro da mala de seu carro a fim de apanhar sua maleta de amostra: Ele nem viu o Dr. Lecter chegar por trás.

O Dr. Lecter ficou cismando se a polícia acreditaria que ele era suficientemente estúpido para partir de avião daquele aeroporto. O único problema na viagem para St. Louis foi descobrir os botões das luzes, o botão luz alta, luz baixa, e o dos limpadores de pára-brisas no carro de fabricação estrangeira, pois o Dr. Lecter estava familiarizado com os controles ao lado do volante.

No próximo dia ele iria comprar as coisas de que precisava: tintura para o cabelo, material para barbear-se, uma lâmpada infra-vermelha e itens que lhe serviriam para realizar algumas mudança imediatas na sua aparência. Quando fosse conveniente, ele se movimentaria.

Não havia razão para apressar-se.

 

Ardelia Mapp estava em sua posição habitual: recostada na cama e com um livro. Ouvia uma estação noticiosa de rádio. Desligou o aparelho assim que Clarice Starling entrou. Olhando para aquele rosto abatido, prudentemente nada lhe perguntou além de:

— Quer tomar um chá?

Quando estudava, Mapp tinha uma beberagem que preparava com folhas soltas diversas mandadas por sua avó, à qual dava nome de “chá das pessoas inteligentes”.

Das duas pessoas mais inteligentes que Starling conhecia, uma era também a mais equilibrada e a outra era a mais assustadora. Starling esperava que isso trouxesse um certo equilíbrio entre seus conhecimentos.

— Sorte sua ter faltado a aula hoje — contou Mapp. — Aquele maldito do Kim Won enterrou a gente no chão. Não estou mentindo. Acredito que na Coréia eles devem ter mais gravidade do que nós. Então eles vêm para cá e se sentem leves, sabe? Arranjam trabalho ensinando PE, o que para eles não representa trabalho nenhum... John Brigham apareceu por aqui.

— Quando?

— À noite, ainda há pouco. Queria saber se você já tinha voltado. Tinha o cabelo muito bem penteado. Andou pelo saguão como um calouro. Conversamos um pouco. Disse que se você está atrasada, e nós precisamos estudar em vez de praticar tiro durante os próximos dois dias, ele abrirá o estande de tiro durante o fim de semana e deixará que nos recuperemos. Eu disse que o avisaria. É um bom sujeito.

— Sim, é.

— Você sabia que ele quer que você participe contra o DEA e a Alfândega na próxima competição?

— Não sabia nada disso.

— Não a das mulheres. A mista. Próxima pergunta: você sabe a matéria da Quarta Emenda para sexta-feira?

— Sei uma boa parte dela.

— O.K. O que é Chimel versus Califórnia?

— Investigações nas escolas secundárias.

— E o que quer dizer investigações nas escolas?

— Não sei.

— É o conceito de “alcance imediato”. Quem foi Schneckloth?

— Bolas! Não tenho a menor idéia.

— Schneckloth versus Bustamonte.

— Tem a ver com razoável expectativa de privacidade?

— Bolas para você! Expectativa de privacidade é o princípio de Katz. Schneckloth é consentimento para investigar. Estou vendo que temos de nos concentrar nos livros, minha cara. Eu tenho as notas.

— Não esta noite.

— Não. Mas amanhã você irá acordar com a mente fértil e ignorante e então começaremos a plantar para a colheita de sexta-feira. Starling, Brigham disse — ele não deveria contar isso, de forma que prometi reserva — que você irá sair-se bem no inquérito. Ele pensa que daqui a dois dias aquele pomposo filho da puta do Krendler já não se lembrará mais de você. Suas notas são boas, vamos digerir isso facilmente. — Mapp estudava o rosto cansado de Starling. — Você fez o máximo que qualquer pessoa poderia fazer por aquela pobre alma, Starling. Arriscou seu pescoço por ela e levou um chute no rabo por causa dela, mas manteve a investigação funcionando. Você merece uma oportunidade para si mesma. Por que não vai dormir? Estou me preparando para fazer a mesma coisa.

— Ardelia, obrigada.

E depois que as luzes foram apagadas.

— Starling?

— Sim?

— Quem você acha mais bonito, Brigham ou Hot Bobby Lowrance?

— Isso é difícil de dizer.

— Brigham tem uma tatuagem no ombro, pude vê-la através da sua camisa. O que está escrito nela?

— Não faço a menor idéia.

— Você me dirá assim que descobrir?

— Provavelmente não.

— Eu lhe contei sobre as cuecas de Hot Bobby com a cobra?

— Você apenas as viu pela janela quando ele estava levantando pesos.

— Foi a Gracie que contou isso a você? A boca daquela pequena vai...

Starling já estava dormindo.

 

Um pouco antes das três da manhã, Crawford, que estava cochilando ao lado da mulher, acordou. Houve uma alteração no respirar de Bella, que se mexera em sua cama. Ele sentou-se e segurou-lhe a mão.

— Bella?

Ela inspirou profundamente, depois expeliu o ar dos pulmões. Seus olhos estavam abertos pela primeira vez em dias. Crawford encostou o rosto no dela, mas não acreditava que ela pudesse vê-lo.

— Bella, eu te amo, querida — ele disse, para o caso de ela poder ouvi-lo.

O medo espalhou-se no seu peito, circulando dentro dele como um morcego no interior de uma casa. Logo ele se controlou.

Pensou em dar-lhe alguma coisa, qualquer coisa, mas não que ria que ela sentisse que estava largando sua mão.

Encostou o ouvido no seu peito. Percebeu uma batida leve, um palpitação, depois o coração parou. Nada mais havia para ser sentido, apenas uma curiosa sensação de frio. Por fim não sabia se som que ouvira existia no peito dela ou só nos seus ouvidos.

— Deus te abençoe e te leve para Ele e para a tua gente, — murmurou Crawford, palavras que ele desejava fossem sinceras Ele puxou-a contra si, depois de sentar-se de encontro à cabeceira da cama. Mantinha-a contra o peito enquanto o cérebro dela morria. Com o queixo, empurrou para trás o lenço que cobria o resto de seus cabelos. Ele não chorou: já tinha chorado muito.

Crawford vestiu nela sua melhor camisola, a que ela mais gostava, e sentou-se durante algum tempo ao lado da cama, segurando a mão da mulher contra seu rosto. Era uma mão quadrada e habilidosa, marcada por uma vida inteira a cuidar do jardim, agora marcada pelas picadas de injeções nas veias.

Quando voltava do jardim, as mãos dela cheiravam a tomilho.

“Pense naquilo como clara de ovo em seus dedos”, as pequenas na escola tinham aconselhado Bella acerca de sexo. Ela e Crawford tinham rido disso na cama, há muitos anos, anos depois, no ano passado. Não pense nisso, pense nas coisas boas, nas coisas puras. Aquilo era a coisa pura. Ela usava um chapeuzinho redondo e luvas brancas e subia no elevador na primeira vez que ele assobiou um dramático arranjo de Begin the Beguine. Quando estavam sozinhos no quarto ela mexia com ele dizendo-lhe que tinha os bolsos cheios de coisas de garoto.

Crawford experimentou ir para o outro quarto — dali podia voltar-se quando quisesse e vê-la através da porta aberta, bem composta à luz quente do abajur da mesa-de-cabeceira. Estava esperando o corpo dela se tornar um objeto cerimonial distante dele, apartado da pessoa que ele tivera no leito e separado da companheira de sua vida que agora retinha apenas na mente. Agora podia chamá-los para virem buscá-la.

Suas mãos vazias tinham as palmas voltadas para a frente ao lado do corpo, e ele estava à janela olhando o vazio nascente. Não que estivesse esperando a madrugada; o nascente era apenas o lado para onde a janela abria.

 

— Está pronta, Preciosa?

Jame Gumb estava encostado na cabeceira da cama, muito confortavelmente, a cachorrinha enroscada e quentinha em cima do seu estômago.

O Sr. Gumb acabara de escovar seus cabelos e tinha uma toalha enrolada na cabeça. Procurou entre as cobertas, encontrou o controle remoto do videocassete e apertou o botão de ligar.

Compusera seu programa de duas partes em videoteipe copiadas num só cassete. Assistia-o todos os dias quando estava realizando preparações vitais e sempre o via imediatamente antes de colher uma pele.

O primeiro teipe era de um filme arranhado da Movietone News, um filme natural em preto-e-branco, de 1948. Eram as quartas de final da competição para Miss Sacramento, um episódio preliminar no longo caminho para o concurso de Miss América em Atlantic City.

Essa era a competição em roupa de banho e todas as pequenas portavam flores quando vinham em fila até a escada e subiam no palco.

A poodle do Sr. Gumb já passara por aquilo muitas vezes e fechou os olhos ao ouvir a música, sabendo que iria ser apertada.

As concorrentes tinham uma aparência muito “Segunda Guerra Mundial”. Vestiam maiôs Rose Marie Reid e algumas tinham belos rostos. As pernas de várias delas também eram bem torneadas, mas faltava-lhes tônus muscular e pareciam dobrar-se um pouco nos joelhos.

Gumb apertou a poodle.

— Queridinha, aí vem ela, aí-vem-ela, aí-vem-ela!

E lá vinha ela, aproximando-se da escada na sua roupa de banho branca, com um sorriso radiante para o jovem que as recebia. Depois subiu a escada rapidamente com seus sapatos de salto alto, a câmara seguindo a parte de trás de suas coxas: Mamãe, aquela era Mamãe.

O Sr. Gumb não precisou tocar no controle remoto, ele tinha feito tudo quando copiara o original. De trás para diante, lá vinha ela de costas, tomava de volta seu sorriso ao jovem, andava de costas pelo corredor, agora para a frente de novo, e para trás e para a frente, e para trás e para a frente.

Quando ela sorria para o jovem, Gumb sorria também.

Havia mais uma foto dela num grupo, mas sempre aparecia borrada quando ele imobilizava a imagem. Era melhor deixar correr com velocidade e vê-la num relâmpago. Mamãe com as outras pequenas, congratulando-se com as vencedoras.

A parte seguinte ele havia copiado de uma televisão a cabo num motel em Chicago — tivera que sair às pressas e comprar um gravador de videoteipe, ficando mais uma noite para copiá-lo. Era o tipo de filme que passam em canais baratos de televisão a cabo tarde da noite, como painel de fundo para anúncios de sexo que aparecem impressos na tela. As tiras são feitas de filmes sucatados, imorais e inócuos das décadas de 40 e 50, quando havia voleibol em campos de nudistas, e partes menos explícitas de filmes de sexo da década de 30, em que os atores masculinos usavam narizes postiços e ainda representavam de meias. O som era qualquer música. Agora era The Look of Love, totalmente fora de tempo com ação agitada.

Não havia nada que o Sr. Gumb pudesse fazer com os anúncios que invadiam a tela; tinha que se conformar com eles.

Aqui está ela, uma piscina externa, na Califórnia, a julgar pela folhagem. Boa mobília de piscina, tudo muito estilo 50. Nadando nuas, várias mas pequenas graciosas. Algumas delas poderiam ter aparecido em filmes classe B. Ligeiras e aos pulinhos saíam da piscina e corriam, muito mais rápido do que a música, até a escada de um escorregador, subiam, e lá vinham elas — upa! Os seios subindo quando mergulhavam na água rindo-se, as pernas esticadas e abertas, tchimbum!

Aí vinha Mamãe. Aí vinha ela, trepando na borda da piscina atrás da pequena que tinha o cabelo crespo. Seu rosto está parcialmente coberto por um anúncio da Sinderella, uma butique de artigos de sexo, mas agora via-se quando ia em direção à escada, toda lustrosa e úmida, os seios maravilhosos, muito elegante, e depois com uma cicatriz de cesariana pelo escorregador abaixo. Upa! Tão bonita, e mesmo que o Sr. Gumb não pudesse ver o rosto dela, o Sr. Gumb sabia em seu íntimo que era Mamãe, filmada depois da última vez na sua vida em que ele a viu na realidade. Exceto em sua mente, é claro.

A cena mudava para um anúncio de ajuda marital e abruptamente terminava.

A poodle cerrou os olhos dois segundos antes que o Sr. Gumb a apertasse com força.

— Oh, Preciosa, venha aqui com a Mamãe. A Mamãe vai ficar tão bonita!

Muito a fazer, muito a fazer, muito a fazer para aprontar-me para amanhã.

Ele nunca podia ouvi-la da cozinha mesmo no mais alto tom de voz, graças a Deus, mas podia ouvi-la nas escadas quando se dirigia para o porão. Tivera a esperança de que ela estivesse quieta e dormindo. O cão embaixo do seu braço rosnava para os sons que vinham do poço.

— Você foi mais bem educada do que isso — admoestou ele com a cabeça enterrada no pêlo atrás da cabeça da cachorrinha.

Atingia-se o quarto da masmorra passando por uma porta à esquerda da parte inferior da escada. Ele não deu sequer uma olhada, nem ouviu as palavras que vinham do poço — no que lhe interessava, elas não tinham a mínima semelhança com o inglês.

O Sr. Gumb entrou à direita, na oficina, pôs o animal no chão e acendeu as luzes. Algumas mariposas esvoaçaram, pousando na tela de arame que cobria as lâmpadas do teto.

O Sr. Gumb era meticuloso na oficina. Sempre misturava suas soluções frescas em aço inoxidável, jamais em alumínio.

Aprendera a fazer tudo com muita antecedência. Trabalhando, ele se admoestava:

— Você tem que ser organizado, você tem que ser precioso, você tem que ser expedito, porque os problemas são formidáveis.

A pele humana é pesada — 16 a 18 % do peso corporal — e escorregadia. Uma pele inteira é difícil de manusear e fácil de deixar cair quando ainda está úmida. O tempo também é importante; as peles começam a encolher logo depois de retiradas, mais notavelmente a de jovens adultos, cuja pele, para começar, é a mais compacta.

Junte-se a isso o fato de a pele não ser perfeitamente elástica, mesmo nos jovens. Se for esticada, nunca mais recupera suas proporções originais. Costure alguma coisa perfeitamente lisa, depois puxe-a com força demais sobre um manequim de alfaiate e ela enruga e se torce. Ficar sentado na máquina até ter os olhos vermelhos de tanto tentar não irá endireitá-la. Além disso existem linhas de clivagem, e é melhor você saber onde ficam. A pele não se estica na mesma proporção em todas as direções sem que as massas de colágeno se deformem e as fibras se rasguem; puxe na direção errada e terá uma marca de distensão.

Material fresco é impossível trabalhar. Muitas experiências foram dedicadas a isso, acompanhadas de muitas decepções, até o Sr. Gumb acertar.

Afinal ele descobriu que os métodos antigos eram os melhores. Seu processo era o seguinte: primeiro, encharcava seu material aos aquários, em extratos vegetais desenvolvidos pelos nativos da América — substâncias totalmente naturais que não contêm nenhuma quantidade de sais minerais. A seguir usava o método que produziu a incomparável pele de gamo, do Novo Mundo, macia como manteiga — o clássico curtume com miolos. Os nativos da América ditavam que cada animal possui miolos suficientes para curtir seu próprio couro. O Sr. Gumb sabia que isso não era verdade e há muito tempo deixara de tentá-lo, mesmo com o primata de maior cérebro. Agora tinha um congelador de miolos de boi, de modo que nunca ficava desprevenido.

Os problemas de processar o material, ele dominava; a prática o tornara quase perfeito.

Restavam difíceis problemas estruturais, mas ele estava especialmente bem qualificado para resolvê-los também.

A sala de trabalho abria-se para um corredor do porão que dava para um banheiro fora de uso onde o Sr. Gumb depositava o equipamento de içar e um relógio de pé; dai passava-se ao estúdio e o grande depósito negro que ficava adiante.

Abriu a porta do estúdio, que estava brilhantemente iluminado com refletores e tubos de luz fosforescente, corrigidos para a luz do dia, presos às vigas do teto. Os manequins ficavam de pé num piso elevado de carvalho. Todos estavam parcialmente vestidos, alguns em couro, outros em moldes de musselina para roupas de couro. Os oito manequins duplicavam nas duas paredes espelhadas bons espelhos de vidro plano, não azulejos. Uma mesa de maquilagem com cosméticos, várias fôrmas de perucas, e perucas. Este era o mais brilhante dos estúdios, todo branco e de carvalho louro.

Os manequins expunham trabalhos comerciais em progresso, na maior parte dramáticos blusões Armani em fino couro negro cabretta, todos com franzidos em rolos, os ombros e peitorais pontilhados.

A terceira parede era ocupada por uma grande mesa de trabalho, duas máquinas de costura comerciais, duas fôrmas de costureira e um manequim de alfaiate com o formato do torso do próprio Jame Gumb.

De encontro à quarta parede, dominando esse quarto claro, havia um grande armário negro de laca chinesa que chegava quase até o teto de 2,50 metros de altura. Era uma antigüidade e seus desenhos se haviam apagado; algumas pequenas escamas douradas permaneciam onde houvera um dragão, seu olho branco ainda visível aberto, e ali estava a língua vermelha de outro dragão cujo corpo também se desgastara. A laca por baixo dele ainda era visível, embora estivesse estilhaçada.

O armário, imenso e muito fundo, nada tinha a ver com o trabalho comercial. Ele continha as fôrmas e os cabides das Coisas Especiais e suas portas ficavam fechadas.

A cadelinha lambeu um pouco da água da sua tigela no canto e veio deitar-se entre os pés de um manequim, com os olhos postos no Sr. Gumb.

Ele estivera trabalhando numa jaqueta de couro. Tinha que terminá-la — queria liquidar tudo, mas estava no momento com uma febre criativa e seu modelo de musselina ainda não o satisfazia.

O Sr. Gumb progredira na arte de costureiro muito além do que o Departamento Correcional da Califórnia lhe ensinara na sua juventude, mas ainda encontrava um verdadeiro desafio. Mesmo trabalhar com o delicado couro cabretta não prepara ninguém para um trabalho realmente especializado.

Ele tinha dois modelos de musselina que pareciam coletes brancos, um exatamente do seu tamanho e outro que medira quando Catherine Baker Martin ainda estava inconsciente. Quando pôs o menor no seu manequim de alfaiate os problemas tornaram-se aparentes. Ela era uma moça grande e maravilhosamente proporcionada, mas não tão grande quanto o Sr. Gumb e realmente não tão larga nas espáduas.

O ideal dele era um traje sem costuras, o que não era possível. Estava decidido, no entanto, que a frente do busto fosse absolutamente sem costuras e sem defeitos. Isto significava que todas as correções da figura tinham que ser feitas nas costas. Muito difícil. Ele já descartara um modelo de musselina e começara de novo. Dando judiciosas puxadas, poderia dar um jeito com duas pences embaixo dos braços, não pregas francesas, mas pregas verticais, com as pontas para baixo. Duas pregas na cintura, logo do lado dos rins. Ele estava acostumado a trabalhar com apenas uma pequena folga para a costura.

Suas considerações, além dos aspectos visuais, incluíam os tácteis; não era concebível que uma pessoa atraente não fosse abraçada...

O Sr. Gumb espalhou levemente talco em suas mãos e abraçou o manequim do próprio corpo num abraço natural e confortável.

— Dê-me um beijo — disse, em tom de brincadeira para o vazio onde deveria estar a cabeça. — Não você, sua boba! — ralhou para a cachorrinha quando ela levantou as orelhas.

Gumb acariciou as costas do manequim envolvendo-o com os seus braços. A seguir caminhou para trás dele a fim de verificar as marcas do talco. Ninguém gosta de sentir uma costura. Num abraço, entretanto, as mãos ultrapassam o centro das costas. Estamos acostumados também, raciocinou ele, à linha do centro da espinha. Não é tão incômodo como uma assimetria em nosso corpo. Costuras nos ombros, porém, estavam definitivamente fora de questão. Um apêndice central no topo era a solução, seu ápice um pouco acima do centro das omoplatas. Ele podia, com a mesma costura, prender a forte barbatana inserida no forro para fornecer apoio. Painéis de lycra embaixo das plaquetas em ambos os lados — tinha que se lembrar de comprar lycra — e um fecho de velcro por baixo da plaqueta na direita. Pensava naqueles maravilhosos vestidos de Charles James nos quais as costuras eram deslocadas para ficarem perfeitamente planas.

A pence nas costas seria coberta por seu cabelo, ou melhor, pelo cabelo que ele em breve teria.

O Sr. Gumb tirou o modelo de musselina do manequim e começou a trabalhar.

A máquina de costura era antiga e de bela construção, uma máquina de pé, toda enfeitada, que fora convertida para eletricidade talvez há uns quarenta anos. No braço da máquina estava pintado com tinta de ouro o dístico “Eu Nunca Me Canso, Eu Sirvo”. O pedal continuava em operação e Gumb dava partida na máquina com ele para cada série de pontos. Para uma costura fina, preferia trabalhar com os pés descalços, movendo o pedal delicadamente com o pé gordo, agarrando sua parte frontal com os artelhos de unhas pintadas para evitar excesso de pontos. Por um momento só se ouviam os sons da máquina, o ressonar do cão e os assobios dos canos de vapor no porão quente.

Quando acabou de costurar as pences no modelo de musselina, experimentou-o em frente aos espelhos. A cadelinha observava do seu canto com a cabeça virada.

Precisava folgar um pouco embaixo das axilas. Restavam alguns pequenos problemas de assentamento. Exceto por isso, estava muito bonito. Simples, leve, folgado. Ele podia imaginar-se subindo os degraus da escada de um escorregador tão rápido quanto quisesse.

O Sr. Gumb ajeitou as luzes e suas perucas para obter algum efeitos dramáticos, e experimentou um maravilhoso colar de conchas apertado sobre a linha do pescoço. Seria deslumbrante quando usasse um vestido décolleté ou um pijama de anfitriã por cima do novo tórax.

Era tão tentador começar logo com aquilo, realmente começar a trabalhar, mas seus olhos estavam cansados. Ele queria que sua mãos estivessem absolutamente firmes, também, e não estava preparado para o barulho. Pacientemente, retirou os pontos e esticou as peças sobre a mesa. Um modelo perfeito para fazer o corte da pele.

— Amanhã, Preciosa! — disse à cadelinha quando tirou os miolos do congelador para descongelarem. — Vamos fazê-lo amanhãããã como a primeira coisa. A Mamãe vai ficar tão bonita!

 

Starling dormiu direto durante cinco horas e acordou no meio da noite, assustada e com medo do sonho. Mordeu o canto do lençol e apertou as palmas das mãos contra. Os ouvidos, conferindo se estava realmente acordada e longe daquilo. Silêncio e nada de gemidos das ovelhas. Quando teve certeza de estar acordada, seu coração passou a bater mais devagar, mas seus pés não pareciam quietos por baixo das cobertas. Num momento sua cabeça ia começar a disparar, ela sabia.

Foi um alívio quando um acesso de pura raiva, em vez de medo, se apossou dela.

— Bolas — disse ela, e pés um pé no ar fora das cobertas.

Durante aquele longo dia, quedo fora desacatada por Chilton, insultada pela senadora Martin, desamparada e repreendida por Krendler, escarnecida pelo Dr. Lecter, cuja sangrenta fuga a revoltara, e afastada do serviço por Jack Crawford, uma coisa a ferira mais profundamente: ter sido chamada de ladra.

A senadora Martin sofrera uma provação extrema e estava nauseada de ver policiais remexendo nas coisas de sua filha. Ela não tivera a intenção.

Mesmo assim, a pecha ardia em Starling como uma agulha de fogo.

Quando ainda era criança, Starling fora ensinada que roubar era a mais baixa, a mais desprezível ação, depois de estupro e assassinato por dinheiro. Alguma espécies de assassinatos eram preferíveis ao roubo.

Como adolescente, nas instituições onde havia poucos prêmios e muita fome, aprendera a odiar o ladrão.

Deitada no escuro encarava outra razão pela qual a suspeita da senadora Martin tanto a incomodara.

Starling sabia o que o malicioso Dr. Lecter diria, e seria verdade: receava que a senadora Martin tivesse visto nela algo grosseiro, algo barato, algo que lembrava uma ladra à qual a senadora tivera que reagir. Aquela cadela Vanderbilt...

O Dr. Lecter se divertiria destacando que o ressentimento de classe, a raiva escondida que vem com o leite materno, era também um fator importante. Starling não reconhecia qualquer vantagem em nenhuma Martin quanto a educação, inteligência, disposição e, certamente, aparência física — mas mesmo assim aquela revolta queimava e ela sabia disso Starling era membro isolado de uma tribo aguerrida sem genealogia formal a não ser o quadro de honra e o registro penal. Desalojada da Escócia, expulsa da Irlanda pela fome, uma porção deles se inclinava para profissões perigosas. Muita gente da raça de Starling tinha acabado dessa maneira, jogada no fundo de estreitos buracos ou caída de cima de muros com um tiro no pé, ou partira ainda para a glória com um desafinado toque de silêncio quando todo mundo desejava ir para casa. Poucas poderão ter sido lembradas pelos oficiais à noite, no cassino do regimento com algumas lágrimas, da mesma forma que um homem que tomou alguns drinques se lembra de um bom cão de caça. Nomes desbotados numa Bíblia.

Que Starling lembrasse, ninguém da sua família fora muito inteligente, exceto talvez uma tia-avó que escrevia maravilhosamente em seu diário até que apanhou uma “febre cerebral”.

Entretanto, nenhum deles roubava.

O importante na América era a escola, não é mesmo? — e os Starlings acreditavam nisso. Um dos tios de Starling mandou gravar em sua lápide tumular seu diploma de ginásio.

Starling vivera em escolas, suas armas eram os exames competitivos, durante todos os anos em que não havia nenhum outro lugar para ela.

Sabia que era capaz de se recuperar disso. Poderia ser o que sempre fora, desde que aprendera como as coisas funcionavam: ela podia ficar próximo aos de sua classe, aprovada, incluída, escolhida, jamais dispensada.

Era uma questão de dar duro e ser cuidadosa. Suas notas seriam boas. O coreano não poderia matá-la de exercícios. O nome dela seria gravado na grande placa no saguão no Quadro dos Destaques, por seu extraordinário desempenho no estande de tiro.

Dentro de quatro semanas seria uma agente especial no Escritório Federal de Investigações.

Teria que se cuidar daquele porra do Krendler para o resto da sua vida?

Na presença da senadora, ele desejara lavar suas mãos em relação a ela. Cada vez que Starling pensava nisso ficava queimada. Ele não tinha certeza de que iria encontrar provas no envelope. Isso era chocante. Agora, relembrando Krendler, ela o via calçando sapatos da Marinha, como o prefeito, patrão de seu pai, quando viera apanhar o relógio de vigia.

Pior do que isso: em sua mente Jack Crawford parecia ter diminuído. O homem estava sujeito a uma pressão que ninguém deveria ser obrigado a suportar. Ele a mandara investigar o carro de Raspail sem nenhum apoio ou prova de autoridade. O.K., ela pedira para ir nesses termos — o resultado fora um feliz acaso. Mas Crawford deveria saber que haveria dificuldades quando a senadora Martin a visse em Memphis; teria havido dificuldades mesmo que ela não tivesse encontrado as fotos da trepada de Catherine.

Catherine Baker Martin estava na mesma escuridão que ela.

Starling esquecera-se disso por um momento enquanto pensava nos seus próprios interesses.

Imagens dos últimos dias puniam Starling pelo lapso, apareciam-lhe em cores fortes, cor demais, cor chocante, a cor que salta das trevas quando à noite um raio cai.

Agora, o que a assombrava era Kimberly. A gorda e morta Kimberly, que furava as orelhas tentando ficar mais bonita e economizava para depilar as pernas com cera. Kimberly, cujo cabelo se fora. Kimberly, sua irmã. Starling não achava que Catherine Baker Martin tivesse tempo para pensar em Kimberly. Elas agora eram irmãs por baixo da pele. Kimberly, estirada numa casa funerária cheia de caipiras milicianos estaduais.

Starling não podia mais ver aquilo. Tentou voltar seu rosto para o lado como um nadador se vira para respirar.

Todas as vítimas de Buffalo Bill eram mulheres, sua obsessão eram mulheres, ele vivia para caçar mulheres. Nenhuma mulher o estava caçando em tempo integral. Nenhuma investigadora examinara cada um de seus crimes.

Starling cismava se Crawford teria peito para usá-la como técnica quando ele tivesse que examinar Catherine Martin. Bill iria “cuidar dela” amanhã, era a previsão de Crawford. Cuidar dela, cuidar dela, cuidar dela.

— Que se foda tudo! — gritou Starling em voz alta ao pôr os pés no chão.

— Você está aí corrompendo um débil mental, não está, Starling? — perguntou Ardelia Mapp. — Meteu-o aqui no quarto enquanto eu dormia e agora está lhe dando instruções... Não pense que não a ouvi.

— Desculpe, Ardelia, eu não...

— Você tem que ser muito mais clara com eles do que está sendo, Starling. Não pode dizer apenas o que você disse. Corromper débeis mentais é exatamente como jornalismo, você tem que dizer-lhes O quê, Quando, Onde e Como. Eu penso que o Porquê se torna evidente à medida que você prossegue.

— Você tem alguma roupa para lavar?

— Entendi você perguntar se tenho alguma roupa para lavar?

— Sim, acho que vou lavar uma trouxa. O que é que você tem?

— Apenas dois macacões de ginástica pendurados atrás da porta.

— O.K. Feche os olhos, vou acender a luz apenas por um segundo.

Não foram as notas sobre a Quarta Emenda para seu exame próximo que ela empilhou em cima do cesto de roupa suja e arrastou pelo corredor até a lavanderia.

Levou a pasta de Buffalo Bill, uma pilha de 10 centímetros de inferno e sofrimento numa capa parda impressa com tinta da cor de sangue. Junto com ela estava uma cópia de teleprinter de seu relatório sobre a Mariposa da Caveira.

Teria que devolver a pasta no dia seguinte e se desejava que essa cópia ficasse completa, mais cedo ou mais tarde precisaria incluir seu relatório. No quarto quente da lavanderia, ouvindo o confortante chacoalhar da máquina, tirou as cintas de borracha que mantinham juntas as folhas na pasta. Dispôs os papéis na prateleira de dobrar a roupa e tentou anexar seu relatório sem ver nenhuma das fotos, sem pensar que novas fotos poderiam ser adicionadas em breve. O mapa estava na parte de cima, o que era bom. Mas havia algo escrito à mão no mapa.

A elegante caligrafia do Dr. Lecter atravessava os Grandes Lagos e rezava:

— Clarice, este espalhar de lugares ao azar parece exagerado para você? Ele não parece desesperadamente ao azar? Ao azar além de qualquer conveniência possível? Não sugere a você as elaborações de um mal mentiroso?

Dr. Hannibal Lecter

  1. S. — Não perca seu tempo virando todas as folhas; não há mais nada.

Starling levou 20 minutos virando as páginas para certificar-se de que não havia mais nada.

Depois chamou a linha privada pelo telefone público no corredor e leu a mensagem para Burroughs. Ficou pensando a que horas Burroughs dormia...

— Tenho que dizer-lhe uma coisa, Starling: o mercado das informações de Lecter anda muito por baixo — avisou Burroughs. Jack telefonou a você acerca de Billy Rubin?

— Não.

Encostou-se na parede com os olhos fechados enquanto ele descrevia a brincadeira de Lecter.

— Estou confuso — disse ele afinal. — Jack diz que eles vão prosseguir com as clínicas de mudança de sexo, mas com que pressa? Se você olhar nas informações do computador a forma como as entradas vindas são indexadas, verá que todas as informações sobre Lecter, as suas e as que vieram de Memphis, têm prefixos especiais. O que veio de Baltimore, o que veio de Memphis, ou ambos, tudo pode ser descartado apertando um botão. Penso que o Departamento de Justiça deseja apertar o botão para tudo. Tenho aqui um memorando sugerindo que o inseto na garganta de Klaus era — vejamos... “puro lixo”.

— Apesar de tudo, transmita isso ao Sr. Crawford — pediu Starling.

— Muito bem, vou colocar isto na tela dele, mas nós não o estamos incomodando. Você também não sabe Bella morreu há pouco.

— Oh! — murmurou Starling.

— Escute, tenho algo auspicioso: nossos camaradas em Baltimore deram uma busca na cela de Lecter, no asilo. Aquele atendente, Barney, ajudou. Encontraram aparas de latão da cabeça de um parafuso do beliche de Lecter, que o ajudou a fazer sua chave para as algemas. Fique firme, garota. Você vai sair-se de tudo muito bem, cheirando a rosas.

— Obrigada, Sr. Burroughs. Boa noite.

Cheirando a rosas. Colocando Vick VapoRub debaixo de suas narinas.

A luz do amanhecer chegava ao último dia da vida de Catherine Martin.

— O que quereria dizer o Dr. Lecter?

Não se podia adivinhar o que o Dr. Lecter sabia. Quando ela lhe entregara a pasta, esperava que ele fosse gostar das fotos e que fosse usar a pasta como um auxílio enquanto lhe revelava o que já sabia sobre Buffalo Bill.

Talvez estivesse sempre mentindo, como mentira para a senadora Martin. Talvez não soubesse ou nada compreendesse sobre Buffalo Bill.

Ele vê muito claramente — certamente devassa meus pensamentos. É difícil aceitar que alguém nos possa compreender sem nos querer bem. Na idade de Starling isso não acontecera muito com ela.

“Desesperadamente ao azar — dissera o Dr. Lecter.

Starling e Crawford e todo mundo examinaram o mapa com seus pontinhos marcando os locais dos raptos e onde os corpos foram jogados. Parecera a Starling uma constelação negra com uma data ao lado de cada estrela e ela sabia que a Ciência do Comportamento tentara uma vez acrescentar signos do zodíaco ao mapa sem resultado.

Se o Dr. Lecter estava lendo para divertir-se, por que iria brincar com o mapa? Podia vê-lo folheando o relatório, divertindo-se com o estilo em prosa de alguns de seus colaboradores.

Não havia um sistema entre os raptos e a disposição dos corpos, nenhum relacionamento de conveniência, nenhuma coordenação no tempo com quaisquer convenções conhecidas, qualquer enxurrada de invasões domiciliares, roubos de roupas estendidas nas cordas, ou de outros crimes orientados por fetiches.

Na sala da lavanderia, com a máquina de secar rodando, Starling corria os dedos pelo mapa. Aqui um rapto, ali o abandono de um corpo. Aqui um segundo rapto, ali o abandono de outro corpo. Aqui o terceiro e... Mas essas datas estão invertidas ou, diabo, o segundo corpo foi descoberto primeiro.

O fato foi registrado, sem destaque, em tinta borrada ao lado da locação no mapa. O corpo da segunda mulher raptada foi encontrado primeiro, flutuando no rio Wabash, no centro de Lafayette, Indiana, logo abaixo da Interstate 65.

A primeira jovem mulher de que se deu falta foi raptada de Belvedere, Ohio, próximo a Columbus e encontrada muito mais tarde no rio Blackwater, em Missouri, nos arredores de Lone Jack. O corpo fora afundado com pesos. Nenhum dos outros foi afundado com pesos.

O corpo da primeira vitima foi atirado n’água numa área deserta. O segundo foi jogado num rio a montante de uma cidade, onde sua rápida descoberta seria certa.

Por quê?

O primeiro caso dele ficou bem escondido, o segundo, não.

Por quê?

O que quer dizer “desesperadamente ao azar”?

O primeiro, em primeiro lugar. O que disse o Dr. Lecter sobre “primeiro”? Afinal, o que quer dizer qualquer coisa que o Dr. Lecter disse?

Starling olhou para as notas que ela havia escrito no avião vindo de Memphis.

O Dr. Lecter disse que havia bastante na pasta para localizar o assassino. “Simplicidade” — acrescentara ele. O que quer dizer “primeiro”, onde era primeiro? Aqui: “Primeiros princípios” eram importantes. “Primeiros princípios” soava como um palavreado pomposo quando ele o disse.

O que faz ele, Clarice? Qual é a primeira e principal coisa que ele faz, a que necessidade ele atende matando? Ele ambiciona. Como a gente começa a ambicionar? Começamos ambicionando aquilo que vemos todos os dias.

Era mais fácil pensar sobre as afirmações do Dr. Lecter quando ela não estava sentindo os olhos dele em cima da sua pele. Era mais fácil aqui no núcleo seguro de Quântico.

Se começamos a ambicionar desejando aquilo que vemos diariamente, Buffalo Bill se surpreenderia quando matou a primeira? Teria pegado alguém que vivia por perto dele? Fora por isso que escondera bem o primeiro corpo e relaxara no segundo? Ele raptou a segunda longe de sua casa e jogou-a onde ela seria achada facilmente porque desejava estabelecer desde logo a crença de que os locais dos raptos eram aleatórios?

Quando Starling pensou nas vítimas, Kimberly Emberg veio-lhe primeiro à mente porque ela vira Kimberly morta e, de certa forma, assumira o papel de Kimberly.

Agora ali estava a primeira. Fredrica Bimmel, 22 anos, Belvedere, Ohio. Havia duas fotos. Na foto do seu álbum de formatura ela parecia grande e simples, com uma bonita cabeleira pesada e uma boa cútis. Na segunda foto, tirada na morgue de Kansas City, já nem parecia humana.

Starling chamou Burroughs pela segunda vez. Ele agora parecia um pouco rouco, mas escutou-a.

— Então o que é que você quer dizer, Starling?

— Talvez ele viva em Belvedere, Ohio, onde a primeira vítima vivia. Talvez ele a visse todos os dias, a matou, de certa forma, instintivamente. Talvez só quisesse oferecer-lhe uma garrafa de SevenUp e conversar sobre o coro da igreja. Por isso ele caprichou em esconder o corpo e depois agarrou uma outra, longe de casa. Ele não escondeu esta muito bem, de forma que ela fosse encontrada em primeiro lugar e a atenção se dirigisse para longe dele. Você sabe quanta atenção uma pessoa desaparecida desperta; fala-se muito dela até que o corpo é encontrado.

— Starling, a atenção é maior quando a trilha é fresca, as pessoas se lembram melhor, as testemunhas...

— É isso o que estou dizendo. Ele sabe disso.

— Por exemplo: você não poderá dar um espirro sem atingir um tira na cidade daquela última: Kimberly Emberg, de Detroit. Um bocado de interesse em Kimberly Emberg de repente, desde que a pequena Martin desapareceu. De repente todo mundo está fazendo um esforço danado no caso dela. Você nunca me ouviu dizer isso, não esqueça...

— Quer apresentar essa idéia, acerca da primeira cidade, ao Sr. Crawford?

— Certamente, que diabo, eu a ponho na linha reservada para todo mundo. Não estou dizendo que é uma má idéia, Starling, mas a cidade foi vasculhada de cabo a rabo tão logo a mulher — como é mesmo o nome dela? Bimmel, não é? — foi identificada. O escritório de Columbus ocupou-se de Belvedere e da mesma forma o fizeram uma porção de tiras locais. Você encontrará isso tudo na pasta. Você não irá despertar muito interesse em Belvedere ou em qualquer outra teoria do Dr. Lecter esta manhã.

— Tudo o que ele...

— Starling: estamos mandando um presente para a UNICEF em memória de Bella. Você deveria juntar-se a nós; ponho seu nome no cartão?

— Certamente. Obrigada, Sr. Burroughs.

Starling tirou as roupas da secadora. A quente lavanderia era agradável e tinha um cheirinho gostoso. Ela agarrou a roupa morna de encontro ao colo.

A mãe dela com uma braçada de roupas.

Hoje é o último dia da vida de Catherine.

O corvo preto e branco roubava do carro. Ela não podia estar do lado de fora para enxotá-lo e ao mesmo tempo também no quarto.

Hoje é o último dia da vida de Catherine.

O pai dela usava um sinal de braço em vez das luzes de direção quando fazia a curva com sua caminhonete na entrada da garagem. Brincando no pátio, ela pensava que com seu grande braço ele mostrava à caminhonete onde ela devia virar, mandava que ela virasse.

Quando Starling decidiu o que iria fazer, derramou algumas lágrimas e encostou o rosto na roupa lavada e morna.

 

Crawford saiu da casa funerária e correu os olhos para cima e para baixo na rua à procura de Jeff com o carro. Em vez dele viu Clarice Starling esperando debaixo do toldo, vestida de escuro, parecendo muito real naquela luz.

— Mande-me — disse ela.

Crawford acabara de escolher o caixão de sua mulher e levava num saco de papel um par de seus sapatos que trouxera por engano. Procurou recobrar o domínio sobre si mesmo.

— Perdoe-me — disse Starling. — Eu não teria vindo agora se houvesse outra oportunidade. Mande-me.

Crawford enfiou as mãos com força nos bolsos, entortou o pescoço no colarinho até ouvir um estalido. Os olhos deles brilhavam, talvez pressentindo perigo.

— Mandar você para onde?

— O senhor me mandou procurar uma pista de Catherine Martin, deixe-me procurar outras. Tudo o que nos resta a descobrir é como é que ele caça. Como ele as descobre, como as seleciona. Eu sou tão boa quanto qualquer outra pessoa que o senhor tenha entre os tiras, melhor em algumas coisas. As vítimas são todas mulheres e não há mulheres trabalhando neste caso. Eu posso entrar no quarto de uma mulher e descobrir três vezes mais a respeito dela do que um homem seria capaz, e o senhor sabe que isto é um fato. Mande-me.

— Você está pronta para aceitar uma repetição do curso?

— Estou.

— Seis meses de sua vida, provavelmente.

Ela permaneceu calada.

Crawford bateu com o bico do sapato na grama. Olhou para ela, para a distância insondável de seus olhos. Ela tinha tutano, como Bella.

— Com quem você começaria?

— Com a primeira. Fredrica Bimmel, de Belvedere, Ohio.

— Não com Kimberly Emberg, aquela que você viu?

— Ele não começou com ela. — Deveria mencionar Lecter? Não. Descobriria isso em seu relatório, na linha reservada.

— Emberg seria a escolha emocional, não é verdade, Starling? Sua viagem terá que ser reembolsada. Você tem algum dinheiro? Os bancos não abrirão antes de uma hora.

— Tenho algum saldo em meu cartão Visa.

Crawford procurou nos bolsos; deu-lhe 300 dólares em dinheiro e um cheque pessoal.

— Vá, Starling. Apenas a primeira. Comunique tudo à linha reservada e me telefone.

Starling levantou a mão para ele. Não tocou em seu rosto nem em sua mão, não parecia haver nenhum lugar onde pudesse tocá-lo; então voltou-se e correu para o carro.

Crawford bateu no bolso quando ela partiu. Tinha-lhe dado o último centavo que levava consigo.

— Minha garota precisa de um novo par de sapatos — disse ele. — Minha garota não precisa mais de sapatos... — Chorava em plena calçada, as lágrimas rolando pelo rosto, ele, um chefe de seção do FBI, que ridículo...

Do carro, Jeff viu o rosto do chefe brilhando e recuou para uma ruela onde Crawford não podia vê-lo; saiu do carro, acendeu um cigarro e pô-se a fumá-lo furiosamente. Como um presente para Crawford, ficaria por ali disfarçando até que Crawford secasse as lágrimas, se aliviasse e justificasse o carão que iria lhe passar.

 

Da beirada do poço ele lhe daria vários tiros abaixo da espinha. Quando ela perdesse os sentidos, poderia fazer o resto com clorofórmio.

Era isso. Agora iria lá para cima e tiraria as roupas. Acordaria Preciosa, assistiria a seu vídeo com ela e então iria trabalhar no úmido porão, nu como no dia em que nascera.

Sentiu-se meio eufórico ao subir as escadas. Rapidamente tirou a roupa e enfiou-se no robe. Ligou o videocassete.

— Preciosa, vem cá, Preciosa. Vai ser um dia muito trabalhoso. Vem cá queridinha. — Teria que trancá-la lá em cima no quarto de dormir enquanto se ocupava com a parte mais ruidosa no porão. Ela odiava barulho e ficava tremendamente nervosa. Para mantê-la ocupada trouxera-lhe uma caixa cheia de Cheweez. — Preciosa! — A cachorrinha não veio, e ele a chamou pelo corredor. — Preciosa! — e depois na cozinha, depois no porão. — Preciosa! — Quando chamou já perto da masmorra, ouviu uma resposta.

— Ela está aqui em baixo comigo, seu filho da puta! — disse Catherine Martin.

O Sr. Gumb sentiu um arrepio correr-lhe pelo corpo, temendo por Preciosa. Logo a raiva de novo o dominou e, com os punhos de encontro às têmporas, ele comprimiu a testa contra o umbral da porta e tentou controlar-se. Um som que era metade vômito e metade gemido escapou de seus lábios e a cachorrinha respondeu com um fraco latido.

Ele foi até a oficina e apanhou a pistola.

A cordinha que segurava o balde sanitário estava rompida. Ele ainda não tinha certeza de como ela o teria feito. Na última vez observara a cordinha partida, mas acreditara que ela a havia rompido numa absurda tentativa para sair de dentro do poço. Antes dela, outras haviam tentado escapar, fazendo toda espécie de tolices imagináveis.

Inclinou-se sobre a abertura, a voz cuidadosamente controlada:

— Preciosa, você está bem? Responda!

Catherine deu um beliscão na traseira do animal. A cachorrinha rosnou e pegou-lhe com uma mordida no braço.

— Que tal isso? — disse Catherine.

Parecia bem pouco natural ao Sr. Gumb falar com Catherine dessa forma, mas ele dominou seu desgosto.

— Vou arriar um cesto. Ponha a cachorrinha nele.

— Mande para baixo um telefone ou eu quebro o pescoço dela. Não quero fazer mal a você. Não quero fazer mal a este cãozinho. Mas me dê o telefone.

Gumb levantou a pistola. Catherine viu quando o cano passou pela luz. Agachou-se, segurando o cão em cima dela, equilibrando o entre ela e a arma. Ouviu-o engatilhar a pistola.

— Se você atirar, seu filho da puta sujo, é melhor que me mate na hora ou eu quebro a porra do pescoço dela, juro por Deus!

Ela colocou o cão embaixo do braço, pôs a mão em volta do seu focinho e levantou-lhe a cabeça.

— Saia dai, seu filho da puta! — O cãozinho gemeu. A arma foi recolhida.

Catherine afastou o cabelo da testa molhada com a mão livre — Eu não quero insultá-lo — disse ela. — Mas baixe um telefone aqui para mim. Quero um telefone ligado. Você pode cair fora; não estou ligando a mínima para você, faça de conta que nunca o vi. Cuidarei bem de Preciosa.

— Não.

— Verei que não lhe falte nada. Pense no bem-estar dela, não apenas em seu próprio. Se você der um tiro aqui para baixo ela no mínimo ficará surda. Tudo o que quero é um telefone ligado. Arranje uma extensão longa, arranje cinco ou seis extensões e mande-as. Elas já vêm com conexões nos extremos. Mas desça um telefone aqui. Eu mando o cão para você por via aérea para qualquer lugar. Minha família tem cães, minha mãe adora cães. Você pode fugir não estou ligando para o que você faça.

— Você não vai receber mais água, a que recebeu foi a última.

— O cão também não receberá água e eu não vou dar-lhe nenhuma da que ainda tenho na garrafa. Desculpe-me dizer-lhe, mas penso que ela quebrou a perna.

— Isso era mentira. O cãozinho junto com o balde e a isca tinham caído em cima de Catherine, só ela sofrera uns arranhões no rosto causados pelas unhas do animal. Não podia arriar a cadelinha no chão ou ele veria que não mancava. — Ela está sofrendo, a perna está torta e Preciosa tenta lambê-la. Tenho pena dela. Devo levá-la a um veterinário.

O gemido de raiva e de angústia do Sr. Gumb fez o cão ganir.

— Você acha que ela está sentindo dor? — perguntou o Sr. Gumb. — Você não faz idéia do que é dor. Se você a machuca: mergulho-a em água fervente.

Quando o ouviu subindo as escadas, Catherine Martin sentou se, sacudida por uma grande tremedeira nas pernas e nos braços Ela não podia segurar o cão, não podia segurar a garrafa d’água não podia segurar nada.

Quando a cachorrinha pulou no seu colo, ela a agarrou, grata pelo seu calor.

Por cima da água barrenta e grossa boiavam penas de aves, penas crespas que tinham sido sopradas das gaiolas, carregadas pelas lufadas do vento que fazia arrepiar a superfície do rio.

As casas na Rua Fell, a Rua de Fredrica Bimmel, eram chamada de “à beira do rio” nos cartazes desgastados pelo tempo das imobiliárias porque seus quintais terminavam num braço de rio, uma parte represada do rio Licking, em Belvedere, Ohio, uma cidade de 112.000 habitantes do Cinturão da Ferrugem, a leste de Columbus.

Era uma vizinhança dilapidada de casas grandes e velhas. Algumas haviam sido compradas por preços módicos por jovens casais e renovadas com o melhor esmalte da Sears, fazendo com que as demais casas parecessem ainda piores. A casa dos Bimmels não fora renovada.

Clarice Starling ficou por um momento no quintal de Fredrica, olhando para as penas dentro d’água, com as mãos bem enterradas nos bolsos de seu impermeável. Havia uns restos de neve meio derretida entre os arbustos, azul por baixo do azul do céu nesse suave dia de inverno.

Atrás dela Starling podia ouvir o pai de Fredrica martelando as gaiolas, uma fileira de gaiolas de pombos que partiam da margem da água e chegavam quase até a casa. Ela ainda não vira o Sr. Bimmel. Os vizinhos disseram-lhe, com os rostos amarrados, que ele estava em casa.

Starling estava tendo alguma dificuldade consigo mesma. No momento da noite anterior em que ela decidira deixar a Academia para caçar Buffalo Bill, uma porção de ruídos estranhos haviam cessado. Ela sentia um silêncio novo e puro apaziguando sua mente. Num lugar estranho, agora, ela se achava tola e pretensiosa.

Os pequenos aborrecimentos da manhã não a haviam afetado: nem o odor esquisito no avião para Columbus, nem a confusão e mau atendimento no balcão de aluguel de carros. Ela tinha instado com o funcionário para se apressar, mas não se zangara.

Starling havia pagado um alto preço para ter essa oportunidade e pretendia usá-la da melhor maneira. O prazo dela poderia esgotar-se a qualquer momento se Crawford perdesse sua autoridade e eles lhe retirassem as credenciais.

Devia apressar-se, mas ficar se preocupando com a agonia de Catherine nesse dia crucial seria desperdiçá-lo inteiramente. Pensar nela em tempo real, sendo “processada” nesse momento como Kimberly Emberg e Fredrica Bimmel tinham sido “processadas”, impediria qualquer outro pensamento.

A brisa cessou e a água ficou mortalmente parada. Perto de seus pés uma pena arrepiada girava com a tensão da superfície. Firme, Catherinel Starling prensou a língua entre os dentes. Se ele lhe desse um tiro, esperava que o fizesse com competência.

Ensina-nos a cuidar e a descuidar.

Ensina-nos a permanecer firmes.

Ela voltou-se para a fileira inclinada de gaiolas e seguiu um ca. ninho de tábuas colocadas sobre a lama em direção ao barulho dai marteladas. Havia centenas de pombos, de todos os tamanhos e cores; alguns tinham pernas longas e cobertas de penugem, outros pa. reviam arrogantes com seu peito avultado. Olhos brilhantes, a: cabeças projetando-se quando andavam, as aves abriam suas asa: sob o pálido sol e arrulhavam, agradáveis, quando Starling passava por elas.

Gustav Bimmel, o pai de Fredrica, era um homem alto, espadaúdo e de quadris largos; tinha os olhos de um azul aguado, ma estavam avermelhados. Um boné de malha caia-lhe sobre as sobrancelhas. Ele estava construindo outra gaiola sobre cavaletes, na frente de sua oficina. Starling sentiu cheiro de vodca na sua respiração enquanto ele examinava, com os olhos apertados, sua identidade.

— Não tenho nada para lhe dizer — falou ele. — A polícia voltou aqui anteontem à noite. Recapitularam meu depoimento e o leram para mim. “Isso está certo? Isso está certo?” Eu lhes disse: “Claro que sim, se não estivesse certo eu não o diria dessa maneira, ora essa..., — Eu estou tentando descobrir onde... onde o raptor teria conhecido Fredrica, onde ela poderia ter chamado a atenção dele, Sr. Bimmel, e o que o levara a raptá-la.

— Ela foi de ônibus a Columbus para ver um emprego numa loja de lá. A polícia disse que Fredrica foi entrevistada normalmente, mas ela nunca voltou para casa. Não sabemos onde mais ela foi naquele dia. O FBI tem os canhotos do seu cartão Master Charge, mas naquele dia ela não o usou. Você já sabe disso tudo, não sabe?

— Sobre o cartão de crédito, sim. O senhor guardou as coisas de Fredrica, Sr. Bimmel? Elas estão aqui?

— O quarto dela fica na parte superior da casa.

— Posso vê-lo?

Ele demorou um pouco para se decidir a largar o martelo:

— Muito bem! Venha comigo.

 

O escritório de Jack Crawford no quartel-general do FBI, em Washington, era pintado num cinza triste, mas tinha grandes janelas.

Crawford estava de pé diante de uma dessas janelas com sua prancheta voltada para a luz, examinando uma lista com péssima impressão pontilhada de uma máquina que ele já dissera que deveria ser jogada no lixo.

Viera para ali diretamente da casa funerária e trabalhara toda a manhã, apertando os noruegueses para apressarem seus registros dentais do marinheiro desaparecido chamado Klaus, insistindo com o pessoal de San Diego para investigarem as relações intimas de Benjamin Raspail no conservatório onde ele ensinara, e cobrando da Alfândega o que deveria estar apurando sobre importação de insetos vivos.

Cinco minutos depois da chegada de Crawford, o assistente do diretor do FBI, John Golby, à testa do novo grupo de trabalho cooperativo, enfiou a cabeça no escritório por um momento para dizer:

— Jack, estamos todos pensando em você; todo mundo aprecia o fato de você ter vindo trabalhar. O serviço de funeral já foi acertado?

— O velório é amanhã à noite e o serviço fúnebre às onze horas de sábado.

Golby balançou a cabeça

— Vamos fazer uma doação em memória dela à UNICEF, sob a forma de um fundo. Você deseja que se chame Phyllis ou Bella? Daremos ao fundo o nome que você quiser.

— Bella, John. Será o Fundo Bella.

— Posso fazer mais alguma coisa por você, Jack?

Crawford sacudiu a cabeça negativamente.

— Estou trabalhando e só quero continuar a trabalhar.

— Muito bem — aprovou Golby. Ficou algum tempo em silêncio. Depois: — Frederick Chilton pediu custódia e proteção federal.

— Interessante. John, alguém em Baltimore falou com Everett Yow, o advogado de Raspail? Já o mencionei a você; ele pode ter alguma informação sobre os amigos de Raspail.

— Sim, estão tratando disso esta manhã. Acabei de mandar um memorando sobre o assunto a Burroughs. O diretor está colocando Lecter na lista dos “mais procurados”. Jack, se você precisar de alguma coisa... — Golby ergueu as sobrancelhas, acenou com a mão e recuou para fora da sala.

— Se você precisar de alguma coisa...

Crawford voltou-se de novo para as janelas. Ele tinha um belo panorama para olhar. Em frente ficava o antigo e suntuoso edifício dos Correios, onde fizera parte do seu treinamento. A esquerda ficava o velho quartel-general do FBI. Ao se formar, desfilara diante do escritório de J. Edgard Hoover com os outros. Hoover, de pé numa pequena plataforma, apertou-lhes as mãos um por um. Essa foi a única ocasião em que Crawford encontrara com o homem. E no dia seguinte casou-se com Bella.

Eles se haviam encontrado em Livorno, na Itália. Crawford estava no exército, ela no escritório da OTAN, e então chamava-se Phyllis. Passeavam um dia pelo cais e um barqueiro, do meio da água cintilante, chamou-a “Bella”. Depois disse ela sempre fora Bella. Ele só a chamava de Phyllis quando tinham uma rusga.

Bella está morta, e isso deveria afetar o panorama visto daquelas janelas. Não era justo que a vista permanecesse a mesma. Por que tivera ela que morrer? Jesus Cristo! Eu sabia que ia acontecer, mas dói muito!

O que dizem acerca de aposentadoria forçada aos 55 anos? Você se apaixona pelo FBI, mas ele não se apaixona por você. Ele já constatara isso.

Graças a Deus, Bella o salvara disso. Esperava que ela estivesse agora em algum lugar, e que houvesse finalmente encontrado a paz. Gostaria que ela pudesse ver o que se passava no seu coração.

O fone estava dando o sinal de chamada inter-escritórios.

— Sr. Crawford, é um Dr. Danielson, de...

— Está bem. — Acionou o botão. — Aqui é Jack Crawford, doutor.

— Esta linha é segura, Sr. Crawford?

— Sim. Deste lado, é.

— O senhor não está gravando, está?

— Não, Dr. Danielson. Diga-me o que pretende.

— Quero tornar claro que isto não se relaciona com uma pessoa que tenha sido tratada na Johns Hopkins.

— Entendido.

— Se disso resultar algum problema, desejo que o senhor torne claro para o público que ele não é transexual, que nada tem ver com esta instituição.

— Muito bem. O senhor está certo. Absolutamente. — Vamos seu filho da puta emproado, desembucha! Crawford estava a ponto de explodir.

— Ele derrubou o Dr. Purvis no chão.

— Quem, Dr. Danielson?

— Ele apelou para o programa há três anos sob o nome de John Grant, de Harrisburg, Pensilvânia.

— Descreva-o.

— Caucasiano, 31 anos. Um metro e 83 centímetros, 86 quilos. Veio para ser testado e saiu-se muito bem na escala de inteligência de Wechsler — muito normal — , mas os testes psicológico e as entrevistas foram outra história. De fato, o teste Casa-Árvore Pessoa e seu TAT checaram perfeitamente com a folha que o senhor me deu. O senhor me fez entender que Alan Bloom era o autor daquela teoriazinha, mas o autor verdadeiro foi o Dr. Hannibal Lecter, não foi?

— Continue com Grant, doutor.

— O conselho iria rejeitá-lo de qualquer maneira, mas na hora que nos reunimos para discutir a questão foi encerrada porque as investigações sobre sua vida pregressa o condenaram.

— Condenaram-no como?

— É rotina checarmos a vida do requerente na polícia da sua cidade. A polícia de Harrisburg estava a procurá-lo por dois atentados contra homossexuais. O último quase morreu. Ele nos dera o endereço que verificamos ser de uma pensão na qual se hospeda de vez em quando. A polícia apanhou lá as suas impressões digitais uma nota de cartão de crédito pela compra de gasolina com o número da licença dele. O nome não era John Grant, como ele nos informara. Cerca de uma semana mais tarde, despeitado, ele esperou diante do nosso prédio e atacou o Dr. Purvis, jogando-o no chão.

— Qual é o nome dele, Dr. Danielson?

— É melhor que eu soletre: J-A-M-E G-U-M-B.

 

A casa de Fredrica Bimmel tinha três andares, e era lúgubre e coberta por placas de papelão asfaltado manchadas de ferrugem onde existiam goteiras. Mudas de olmos que haviam crescido nas calhas tinham resistido muito bem ao inverno. As janelas do lado norte estavam cobertas com folhas de plástico.

Numa pequena sala de estar, muito abafada devido a um aquecedor de ambiente, uma mulher de meia-idade, sentada sobre um tapete, brincava com uma criança.

— Minha mulher — apresentou Bimmel quando passaram pela sala. — Nós nos casamos no Natal.

— Alô — fez Starling. A mulher sorriu vagamente para ela.

No corredor voltou a fazer frio e por todo lado viam-se caixas empilhadas até a altura do peito, enchendo os cômodos, com passagens entre elas; caixas de papelão contendo cúpulas de abajures, latas de conservas, cestos de piquenique, números atrasados do Reader’s Digest e do National Geographic, velhas raquetes de tênis, roupa de cama, uma caixa de alvos para arco e flecha, capas de assentos de carro num padrão dos anos 50. No ar, um intenso cheiro de urina de ratos.

— Vamos nos mudar muito em breve — comentou o Sr. Bimmel.

Os objetos perto das janelas estavam desbotados pelo sol, as caixas pareciam empilhadas há anos, estufadas pelo tempo, os tapetes desgastados e sem pêlos.

A luz do sol batia no corrimão quando Starling galgou as escadas atrás do pai de Fredrica. A roupa do homem cheirava a mofo no ar frio. Ela podia ver a luz do sol atravessando uma clarabóia no topo da escadaria. As caixas de papelão amontoadas no patamar estavam cobertas de plástico.

O quarto de Fredrica era pequeno, e ficava debaixo da beirada do telhado no terceiro andar.

— Você ainda precisa de mim?

— Mais tarde eu gostaria de conversar com o senhor, Sr. Bimmel. E a mãe de Fredrica? — A pasta dizia “falecida”, mas não dizia quando.

— O que a senhora quer dizer com isso? Ela morreu quando Fredrica tinha 12 anos.

— Entendi.

— A senhora pensou que a mulher lá embaixo era a mãe de Fredrica? Depois que eu lhe disse que estou casado apenas desde o Natal? Foi isso que a senhora pensou? Acho que a lei está acostumada a lidar com uma classe diferente de pessoas, minha senhora. Minha atual mulher não chegou a conhecer Fredrica.

— Sr. Bimmel, o quarto está mais ou menos como Fredrica o deixou?

A raiva abandonou-o tão rápido como havia se apossado dele.

— Sim — disse ele brandamente. — Nós o conservamos como estava. A roupa dela não servia para ninguém. Ligue o aquecedor, se desejar. Lembre-se de desligá-lo da tomada quando descer.

Ele não quis ver o quarto; deixou-a no patamar da escada.

Starling ficou por um momento com a mão na fria maçaneta de porcelana. Precisava organizar-se um pouco antes de encher a cabeça com as coisas de Fredrica.

O.K. A premissa é que Buffalo Bill matou primeiro Fredrica, pós pesos nas suas pernas e escondeu-a bem, num rio distante da sua casa. Escondeu-a melhor do que às outras — ela foi a única que levou lastro para afundar — porque ele queria que a seguinte fosse encontrada primeiro. Queria que a idéia de uma escolha ao azar, em cidades muito espalhadas, ficasse bem estabelecida antes que Fredrica, de Belvedere, fosse encontrada. Era importante afastar a atenção de Belvedere. Porque ele vive aqui, ou talvez em Columbus.

Ele começou com Fredrica porque ambicionava a pele dela. Nós não começamos a ambicionar coisas imaginadas. A ambição é um pecado muito material. Começamos a ambicionar coisas tangíveis, começamos com o que vemos talos os dias. Ele via Fredrica no curso de sua vida cotidiano. Ele a via no curso da vida diária de Fredrica.

Qual era o curso da vida diária de Fredrica? Ora vejamos...

Starling abriu a porta. Aqui vivia ela, neste quarto vazio cheirando a mofo. Na parede, um calendário do ano anterior para sempre mostrando abril. Fredrica estava morta havia dez meses.

Comida de gato, dura e negra, em um pires num canto.

Starling, que era veterana decoradora e comprava tecidos a metro em liquidações, ficou no centro do quarto e foi olhando vagarosamente em volta. Fredrica tinha feito um bom serviço com o que dispunha. Havia cortinas de chintz florido. A julgar pelas costuras das bordas, ela havia reciclado algumas colchas para fazer cortinas.

Na parede, um quadro de avisos com uma faixa presa. Na faixa estava pintado com tinta brilhante: Banda do Ginásio de Belvede e um pôster da artista Madonna na parte fronteira e outro de Deborah Harry e Blondie. Numa prateleira sobre a escrivaninha, Starling pôde ver um rolo do claro papel auto-adesivo que Fredrica tinha usado para cobrir as paredes do quarto. Não era um serviço perfeito de empapelamento, mas estava melhor do que o primeiro esforço que ela mesma fizera, pensou Starling.

Numa casa comum, o quarto de Fredrica seria alegre; nessa casa sem encantos o quarto parecia um grito, soava nele um eco de desespero.

Fredrica não expusera fotos dela no quarto.

Starling encontrou uma no anuário da escola, no pequeno armário de livros. Clube de Canto Glee, Clube do Lar, Clube de Costura, Clube da Terra — talvez os pombos tivessem servido para sua ligação ao Clube da Terra.

O anuário da escola de Fredrica tinha alguns autógrafos: “A uma grande companheira”, “A uma grande pequena”, “A minha colega de química” e “Lembra-se da venda do bolo?”

Será que Fredrica trazia amigas aqui? Teria uma amiga bastante disposta para subir essas escadas cheias de goteiras? Ao lado da porta havia um guarda-chuva.

Olhe para este retrato de Fredrica: ei-la aqui, na primeira fila da banda. Fredrica é grande e gorda, mas o uniforme dela assenta melhor que os das outras. Ela é grande e tem uma bela pele. Seus traços irregulares se combinam para compor um rosto agradável, mas ela não é atraente pelos padrões convencionais.

Kimberly Emberg também não era o que se poderia chamar de bonita, não pelo julgamento irracional do curso secundário, e também não o eram algumas das outras.

Catherine Martin, entretanto, seria atrativa para qualquer um: uma mulher jovem, grande e bonita, que teria de lutar contra a gordura quando chegasse aos trinta anos.

Lembre-se: ele não olha uma mulher como um homem o faz. A atração convencional não conta para ele. Elas têm apenas que ser mágicas e volumosas.

Starling cismava se ele pensava em mulheres como “peles”, da mesma maneira que alguns cretinos as vêem como “aparelhos para trepar” .

Teve consciência de sua própria mão traçando uma avaliação da foto do anuário, adquiriu a noção de todo o corpo dela, do espaço que ocupava, da sua aparência e suas feições, seu efeito, seu poder, os seios dela sobre o livro, a barriga firme contra ele, as pernas por baixo das dele. Que parte da experiência dela era semelhara à de Fredrica?

Starling olhou-se no espelho de corpo inteiro que ficava na parede lateral e sentiu-se satisfeita por ser diferente de Fredrica. Mas ela sabia que a diferença era uma matriz no seu pensamento. O que poderia impedi-la de enxergar?

Como Fredrica desejava aparecer? Do que tinha fome, onde ela a procurava saciar? O que tentava fazer consigo mesma?

Ali estavam alguns planos de regimes para emagrecer, a Dieta do Suco de Frutas, a Dieta do Arroz, e um plano amalucado segura do o qual você não deve comer e beber na mesma ocasião.

Grupos organizados de regime — será que Buffalo Bill os vigiava para descobrir garotas volumosas? Difícil verificar. Pelo arquivo Starling sabia que duas das vítimas haviam pertencido a grupos de regime e que as listas de sócios tinham sido checadas. Um agente do escritório de Kansas City, o tradicional Bureau dos Gorduchos do FBI, e alguns policiais obesos foram destacados para trabalhar no Sinderella, no Centro de Regime e aderir aos Cuidadosos com o Peso e outros clubes para emagrecer nas cidades das vítimas. Ela não sabia se Catherine pertencia a um grupo de regime. Dinheiro teria sido um problema para Fredrica participar de um programa de regimes, Fredrica tinha vários números de Big Beautiful Girl (Bela garota Grande), uma revista para mulheres avantajadas. Aqui ela recebia o conselho: “Venha para a cidade de Nova York, onde poder: encontrar recém-chegados de partes do mundo onde seu tamanho é considerado digno de prêmio.” Certo. Alternativamente: “Você poderia viajar para a Itália ou Alemanha, onde não ficará sozinha depois do primeiro dia.” Pode apostar... “Eis o que fazer se seus dedos dos pés superam as pontas dos sapatos...” Jesus! Tudo o que Fredrica precisava era encontrar Buffalo Bill, que considerava o tamanho dela “digno de prêmio”.

Como Fredrica se arranjava? Tinha alguma maquilagem, muitas coisas para a pele. Faz muito bem! Use esta vantagem. Starling descobriu-se torcendo por Fredrica, como se isso agora tivesse qual quer importância.

Possuía algumas jóias de fantasia numa caixa de charutos Whiti Owl; ali estava também um broche redondo folheado a ouro que provavelmente pertencera à falecida sua mãe. Tentara cortar os dedos de algumas velhas luvas de renda para usá-las ao estilo Madonna, mas elas se haviam esfiapado.

Tinha um toca-discos simples marca Decca, dos anos 50, com um canivete preso ao braço da agulha com tiras de borracha para fazer peso. Discos de liquidação. Velhos temas de amor por Zamfir, Mestre da Flauta de Pá.

Quando puxou a cordinha da lâmpada para iluminar o closet, Starling ficou surpresa com o guarda-roupa de Fredrica. Ela possuía boas roupas, não muitas, mas o bastante para a escola, o bastante para trabalhar num escritório relativamente formal ou mesmo numa loja elegante. Uma rápida inspeção das roupas e Starling viu por quê: Fredrica fazia suas próprias roupas e fazia-as bem, as costuras tinham um belo acabamento e os apliques eram cuidadosamente adaptados. Pilhas de moldes encontravam-se numa prateleira no fundo do closet; a maior parte deles eram da Simplicity, mas havia alguns da Vogue que pareciam difíceis.

Ela provavelmente vestira o que tinha de melhor para a entrevista do emprego. O que teria usado? Starling deu uma olhada na sua pasta. Lá estava: vista pela última vez usando um conjunto verde. Ora bolas, policial, que diabos é um “conjunto verde”?

Fredrica sofria do calcanhar-de-aquiles de um guarda-roupa econômico — possuía poucos sapatos — e, com seu peso, gastava muito os sapatos que tinha. Os mais folgados já eram ovais. Ela usava um produto para evitar o mau cheiro nas sandálias. Os orifícios dos cordões estavam alargados nos seus sapatos de maior uso.

Talvez Fredrica fizesse um pouco de exercício — tinha algumas malhas de tamanho grande.

Eram feitas por Juno.

Catherine Martin também tinha algumas malhas para as pernas, destinadas a combater a gordura, feitas por Juno.

Starling saiu do closet. Sentou-se ao pé da cama com os braços cruzados e ficou olhando o closet iluminado.

Juno era uma marca comum, vendida em muitos lugares que negociam especialmente tamanhos grandes, mas sempre era uma pista sobre as roupas. Qualquer cidade de tamanho regular tem pelo menos uma loja especializada em roupas para pessoas gordas.

Será que Buffalo Bill vigiava tais lojas, escolhia uma freguesa e a seguia?

Será que ia a essas lojas de roupas grandes, vestido como mulher, para dar uma olhada? Toda loja para pessoas gordas tem travestis como clientes.

A idéia de Buffalo Bill tentando transformar-se sexualmente fora introduzida na investigação muito recentemente, desde que o Dr. Lecter expusera sua teoria a Starling. E quanto às roupas dele?

Todas as suas vítimas deveriam fazer compras em lojas de gente gorda — Catherine Martin vestiria um manequim 12, mas as outras não poderiam, e Catherine deve ter feito compras numa loja dessas para adquirir suas grandes malhas Juno.

Catherine poderia usar manequim 12; ela era a menor das vítimas, Fredrica, a primeira, era a maior. Por que estaria Buffalo Bill se contentando com um tamanho menor ao escolher Catherine Martin? Ela possuía seios bastante volumosos, mas não era tão gorda assim. Teria ele próprio perdido peso? Teria aderido recentemente a um grupo de regime? Kimberly Emberg ficava mais ou menos numa média: grande, mas com uma cintura bem marcada...

Starling evitara especificamente lembrar-se de Kimberly Emberg, mas agora sua memória tomou conta dela por um segundo. Starling via Kimberly na mesa de mármore em Potter. Buffalo Bill não ligara para suas pernas depiladas a cera, suas unhas tão pintadas com esmalte brilhante; olhara para o peito chato de Kimberly, viu que não lhe servia, pegou sua pistola e desenhou nele uma estrelado-mar.

A porta do quarto abriu-se alguns centímetros, Starling sentiu o movimento em seu coração antes de saber o que era. Um gato entrou no quarto, um grande gato cinzento com um olho dourado e o outro azul. Pulou em cima da cama e esfregou-se nela. Procurando Fredrica.

Solidão. Grandes moças solitárias tentando satisfazer alguém.

A polícia eliminara clubes de corações solitários desde cedo. Teria Buffalo Bill outro modo de tirar vantagem da solidão? Só a ambição nos torna mais vulneráveis do que a solidão.

A solidão poderia ter permitido a Buffalo Bill uma abertura com Fredrica, mas não com Catherine. Catherine não era solitária.

Kimberly era solitária. Não comece a pensar nela. Kimberly, obediente e relaxada depois de passado o rigor mortis, sendo rolada na mesa do necrotério para que Starling pudesse tirar-lhe as impressões digitais. Pare com isto. Não posso parar. Kimberly solitária, ansiosa para agradar, teria alguma vez rolado obediente para alguém apenas para sentir o coração dele bater contra suas costas? Ela imaginava se Kimberly tinha sentido uma barba roçando suas omoplatas.

Olhando para o closet iluminado, Starling lembrou-se das gordas espáduas de Kimberly, os pedaços triangulares de pele faltando nos seus ombros.

Olhando para o interior do closet iluminado, Starling viu os moldes, estavam ali provavelmente os de agrado de Fredrica.

Ela viu Kimberly marcados nos riscos azuis de um dele e uma idéia foi se desfazendo, circulou, e voltou perto dessa vez para ela agarrá-la e ela entendeu: SÃO REMENDOS — ELE TIROU A PELE PARA FAZER EMENDAS DE FORMA DA SUA CINTURA. O FILHO DA PUTA DO BUFFALO BILL É BEM TREINADO EM NÃO SE LIMITA A COMPRAR COISAS, A VESTIR! ELE AA CONFECCIONA.

O que disse o Dr. Lecter? “Ele está confeccionando uma roupa feita de moças verdadeiras.” O que me disse ele? “Você costura, Clarice?” Claro que eu costuro!

Starling inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos por um segundo. A solução do problema é uma caçada; é um prazer selvagem e nascemos para caçar.

Ela vira um telefone ao entrar. Começou a descer a escada para usá-lo, mas a Sra. Bimmel, com sua voz de taquara rachada, já a estava chamando para atender ao aparelho.

 

A Sra. Bimmel passou o aparelho a Starling e pegou o bebê que choramingava. Não saiu da sala.

— Clarice Starling.

— Aqui é Jerry Burroughs, Starling...

— Bom. Agora ouça, Jerry, cheguei à conclusão de que Buffalo Bill sabe costurar. Ele cortou os triângulos... um momento... Sra. Bimmel, posso pedir-lhe para levar o bebê à cozinha? Estou precisando falar e ele atrapalha. Obrigada. Jerry, ele sabe costurar. Ele tirou...

— Starling...

— Ele tirou aqueles triângulos de Kimberly Emberg para fazer remendos, remendos de costureira, você sabe o que estou falando? Ele é um perito, não está fazendo apenas costura de homem das cavernas. A seção de identificação pode pesquisar Criminosos Conhecidos para localizar alfaiates, homens que fazem velas, cortinas, estofamentos — dê uma espiada em Marcas Distintivas à procura de “dente de alfaiate” na descrição dos dentes...

— Certo, certo, certo... Estou procurando fazer uma ligação com a ID. Agora escute um pouco: eu talvez tenha que deixar o telefone. Jack queria que eu lhe informasse. Obtivemos um nome e um lugar que não parecem inviáveis. O Grupo de Resgate de Reféns já saiu voando do campo Andrews. Jack está instruindo-os pelo rádio.

— Indo para onde?

— Calumet City, pertinho de Chicago. O nome do sujeito é Jame, pronunciado como “narre”, mas um J, o segundo nome é Gumb. É conhecido também como John Grant, branco, 34 anos, 86 quilos, cabelos castanhos, olhos azuis. Jack recebeu uma dica da Johns Hopkins. A coisa que você descobriu — sua informação de que ele tem um perfil que seria diferente do de um transexual aguçou os ouvidos do pessoal na Johns Hopkins. Esse cara solicitou uma mudança de sexo há três anos. Agrediu um doutor quando o rejeitaram. A Hopkins tinha o falso nome Grant e um endereço fictício em Harrisburg, Pensilvânia. Os tiras encontraram um recibo de gasolina com sua licença e partiram dai. Foi um monstrinho na Califórnia como delinqüente juvenil — matou os avós e ficou internado na prisão psiquiátrica de Tulare por seis anos. O estado o pôs em liberdade há dezesseis anos, quando fecharam o asilo. Ele desapareceu um longo tempo. Gosta de espancar bichas. Teve alguns incidentes em Harrisburg e desapareceu de novo.

— Chicago, você disse. Como chegaram a Chicago?

— Pela alfândega. Eles tinham alguns papéis em nome do suposto John Grant. Há uns dois anos a alfândega interceptou uma mala no aeroporto de Los Angeles que fora embarcada do Suriname com pupas vivas — é assim que se diz? De qualquer maneira, são insetos, mariposas. O destinatário era John Grant, aos cuidados de um negócio em Calumet chamado — ouça isto — “Mr. Hide”. Artigos de couro. Talvez a loja de costura case com isto; estou enviando o detalhe da costura para Chicago e Calumet. Não há ainda nenhum endereço doméstico para Grant ou Gumb. A loja foi fechada, mas estamos chegando perto.

— Têm fotos?

— Apenas as da instituição para delinqüentes juvenis do Departamento de Polícia de Sacramento. Elas não adiantam muito ele tinha doze anos. Parecia-se com Beaver Cleaver. De qualquer maneira, a sala de comunicação está enviando as fotos pelo fax.

— Posso ir até lá?

— Não. Jack disse que você ia pedir isso... Eles já têm dois delegados mulheres de Chicago e uma enfermeira para cuidar de Martin se chegarem a ela. De qualquer forma, você nunca chegaria a tempo, Starling.

— Que tal se ele se entrincheirar? Poderia ser preciso...

— Não vai haver nenhum impasse. A polícia o encontra e cai em cima dele. Crawford autorizou uma entrada explosiva. O problema especial com este cara, Starling, é que ele já esteve num episódio com reféns antes. Em seus homicídios juvenis, foi cercado numa situação de entrincheiramento em Sacramento, com sua avó como refém — ele já havia matado o avô — e a coisa foi horrorosa, deixe-me dizer-lhe. Ele foi com ela para fora, diante dos tiras e havia até um pastor falando com ele. Como era um garoto, ninguém atirou nele. O miserável estava atrás da avó e furou-a nos rins. De nada adiantou a assistência médica, nenhum aviso. Martin provavelmente já está morta, mas digamos que vamos ter sorte. Digamos que ele teve uma porção de preocupações na cabeça, uma coisa ou outra, e que ainda não se ocupou dela. Se nos vê chegar, ele a liquida na nossa cara. Só por despeito. Não lhe custa nada, certo? Portanto, se eles o encontraram... bum! — derruba-se a porta.

A sala estava quente demais e cheirava a urina de bebê.

Burroughs ainda estava falando:

— Estamos procurando ambos os nomes nas listas de assinantes das revistas de entomologia, na União dos Cuteleiros, entre os criminosos conhecidos, em todo lugar... Ninguém descansa enquanto isto não terminar. Você está procurando os conhecidos de Bimmel, não é?

— É isso.

— A justiça diz que é um caso difícil de resolver se não se apanha Gumb com a mão na massa. Nós precisamos dele com Martin, ou com alguma coisa que seja identificável — algo com unhas e dentes... Francamente. Não preciso dizer a você que se ele já se desfez do corpo dela, precisamos de testemunhas para apresentá-lo com uma vitima antes desta. De qualquer maneira, poderemos usar o que você encontrar sobre a Bimmel... Starling, eu pedi a Deus que isto tivesse acontecido ontem e por outras razões além da garota Martin. Eles chutaram você de Quântico?

— Penso que sim. Admitiram alguém que estava esperando a vez por uma exclusão... foi isto o que me disseram.

— Se nós o apanharmos em Chicago, você contribuiu muito para isso. Eles são uns cabeças-duras em Quântico, como era de supor, mas deviam entender isso. Espere um minuto.

Starling podia ouvir Burroughs gritando afastado do telefone. Depois ele voltou.

— Bem... eles podem espalhar-se em Calumet City em 40 a 45 minutos, dependendo do vento lá em cima. A SWAT de Chicago tomará o lugar deles caso o encontrem antes. A Companhia de Força e Luz de Calumet está fornecendo dois ou três endereços possíveis. Starling, procure qualquer coisa que eles possam usar por lá para fechar o cerco. Se você vir algo sobre Calumet ou Chicago, chame logo.

— Sem dúvida.

— Agora escute mais isto, e tenho que ir. Se acontecer, se o pegarmos em Calumet City, você se apresente em Quântico às oito horas da matina, com seu impecável uniforme. Jack vai ao conselho da escola com você. E também vai o instrutor-chefe de tiro, Brigham. Não custa nada pedir...

— Jerry, mais uma coisa: Fredrica Bimmel tinha algumas malhas de ginástica feitas por Juno, que é uma marca de roupa para gente gorda. Catherine também tinha algumas, se isso vale alguma coisa. Ele poderia vigiar lojas de gente gorda para encontrar vítimas grandes. Talvez possamos perguntar a Memphis, Akron e outros lugares.

— Entendi. Mantenha seu sorriso!

Starling saiu para o pátio cheio de detritos de Belvedere, Ohio, a mil quilômetros da ação que se desenrolava em Chicago. O ar frio no seu rasto era agradável. Ela deu um soco no ar, torcendo pelo sucesso do Grupo de Resgate de Reféns. Ao mesmo tempo sentiu um ligeiro tremor no queixo e no rosto. Que diabo era isso? Que diabo poderia fazer se tivesse encontrado alguma coisa? Ah, teria chamado a cavalaria, o escritório de campo do FBI em Cleveland, a SWAT de Columbus, e a polícia de Belvedere também.

Salvar a jovem, salvar a filha da senadora, foda-se Martin e as que poderiam vir depois dela — na verdade, isso era o que interessava. Se conseguissem, todo mundo estava certo.

Se, porém, não chegassem a tempo, se deparassem com qualquer coisa horrorosa, queira Deus que pelo menos encontrem Buffalo... encontrem Jame Gumb ou Senhor Hide ou o que quer que se chame aquela maldita coisa.

No entanto, ter chegado tão perto, ter posto a mão na sua anca, ter tido uma boa idéia com um dia de atraso e acabar longe da captura e desligada da escola, tudo aquilo cheirava a derrota. Starling há muito que suspeitava, e se culpava por isso, que a sorte dos Starlings tinha azedado há uns duzentos anos — que tudo o que os Starlings andavam fazendo era vagar às tontas, zangados e confusos no meio das brumas dos tempos. Se você pudesse encontrar a pista do primeiro Starling ela conduziria a um círculo. Essa era a atitude clássica de um perdedor e ela se danaria se fosse aceitá-la.

Se o agarrassem graças ao perfil que ela arrancara do Dr. Lecter, isso iria ajudá-la no Departamento de Justiça. Starling tinha que pensar um pouco a respeito; as esperanças de uma carreira para ela estavam tortas e evanescentes como as pernas de um fantasma.

O que quer que acontecesse, a idéia que lhe ocorrera do molde de costura fora tão boa quanto a melhor coisa que ela jamais pensara. Havia muito a explorar aqui. Encontrara coragem na lembrança de sua mãe e também na de seu pai. Conquistara e consolidara a confiança de Crawford. Essas eram as coisas que ela tinha que guardar em sua própria caixa de charutos White Owl.

O serviço dela, seu dever era pensar em Fredrica e descobrir como Gumb se teria apossado dela. Um processo criminal contra Gumb necessitaria de todos os fatos.

Pense em Fredrica, enterrada aqui com toda sua mocidade. Onde ela procuraria por uma saída? Os anseios dela sintonizavam com os de Buffalo Bill? Isso os atraía um para o outro? Pensamento horrível, o de que ele pudesse tê-la compreendido com base em sua própria experiência, até simpatizado com ela, e mesmo assim se servido da sua pele.

Starling chegou até a margem da água.

Quase todo lugar tem um momento, um ângulo e uma intensidade de luz em que o dia aparece com seu melhor aspecto. Quando você está enfiado em algum lugar, descobre esse momento e anseia por ele. Aquele momento, no meio da tarde, era provavelmente a hora do rio Liclcing atrás da Fell Street. Será que era essa a hora da jovem Bimmel sonhar? O sol pálido, levantava vapor suficiente da água para disfarçar as velhas geladeiras e fogões atirados nas margens cobertas de mato da água represada. O vento de nordeste, do lado oposto à luz, empurrava nuvens esfarrapadas em direção ao sol.

Um pedaço de cano branco, de PVC, emergia do galpão do Sr. Bimmel em direção ao rio. O cano emitiu um gorgolejo e uma breve descarga de água sanguinolenta saiu do cano, sujando a neve antiga. Bimmel saiu para o sol. Sua calça estava manchada de sangue e ele carregava alguma coisa cinza e cor-de-rosa num saco plástico de comida.

— Filhotes de pombo — disse ele, quando viu que Starling o olhava. — Já os comeu alguma vez?

— Não — respondeu Starling, virando-se de novo para a água. — Já comi pombos, mas caçados.

— Nunca terá que se preocupar com morder um chumbinho com estes.

— Sr. Bimmel, Fredrica conhecia alguém de Caltunet City ou da área de Chicago?

O homem encolheu os ombros e sacudiu a cabeça.

— Ela alguma vez esteve em Chicago, que o senhor saiba?

— O que quer a senhora dizer com esse “que o senhor saiba”? Pensa que uma filha minha iria a Chicago sem que eu soubesse? Ela não ia nem a Columbus sem o meu conhecimento.

— Ela conhecia algum homem que costurasse, alfaiate, ou fabricante de velas?

— Ela costurava para todo mundo. Sabia costurar como a mãe dela. Não sei de homem nenhum. Ela costurava para lojas, para senhoras, não sei para quem.

— Quem era a melhor amiga, dela, Sr. Bimmel? Com quem se enturmava? — Não queria usar esse termo... Bom, ele não se queimou — está muito cansado.

— Ela não se reunia a turmas, como raparigas que não prestam. Sempre tinha algum serviço a fazer. Deus não a fez bonita, mas a fez ativa.

— Quem o senhor diria que era a melhor amiga dela?

— Stacy Hubka, penso eu, desde que eram pequenas. A mãe de Fredrica costumava dizer que Stacy andava com Fredrica apenas para ter alguém que trabalhasse para ela, mas não sei...

— Sabe onde eu poderia entrar em contato com ela?

— Stacy trabalhava na companhia de seguros. Penso que ainda trabalha. A Franklin Insurance.

Starling caminhou até seu carro pelo pátio esburacado, a cabeça baixa, mãos enterradas nos bolsos. O gato de Fredrica observava-a da sua janela lá em cima.

 

As credenciais do FBI provocam uma resposta mais rápida quanto mais para o oeste se vai. A ID de Starling, que poderia ter feito levantar uma aborrecida sobrancelha de um funcionário em Washington, mereceu a atenção total do patrão de Stacy Hubka na agência da Fkanklin Insurance em Belvedere, Ohio. Ele próprio substituiu Stacy no balcão e nos telefones e ofereceu a Starling a privacidade de seu cubículo para a entrevista.

Stacy Hubka tinha um rosto redondo e vivo e 1,56m de altura quando de sapatos com saltos. Usava os cabelos em madeixas e fazia um movimento à Cher Bono para retirá-lo da frente do rosto. Observou Starling dos pés à cabeça num momento em que ela não estava olhando de frente para a jovem.

— Stacy... posso chamá-la de Stacy?

— Por certo.

— Gostaria que me dissesse, Stacy, como é que você pensa que aquilo pode ter acontecido a Fredrica Bimmel, onde é que esse homem pode ter encontrado Fredrica.

— O fato deixou-me assombrada. Ter a pele arrancada, isso não é uma coisa horrível? Você a viu? Dizem que ela parecia um farrapo, como se alguém tivesse esvaziado um balão...

— Stacy, ela alguma vez mencionou uma pessoa de Chicago ou de Calumet City?

Calumet City. O relógio na parede, acima da cabeça de Stacy, preocupava Starling. Se o Grupo de Resgate de Reféns devia chegar lá em quarenta minutos, eles estão a dez minutos de tocar com as rodas no chão. Será que eles têm um endereço certo? Preste atenção ao seu serviço!

— Chicago? Não — assegurou Stacy. — Nós marchamos um dia em Chicago, na parada do Dia de Ação de Graças.

— Quando?

— Quando estávamos no oitavo grau, há uns... nove anos. A banda foi lá e voltou no mesmo ônibus.

— O que você pensou, na última primavera, quando ela desapareceu?

— No início eu nem sabia disso.

— Mas lembra-se de onde você estava quando soube que ela desaparecera? Quando recebeu a notícia? O que você pensou então?

— Na primeira noite em que ela não veio, Skip e eu fomos ao cinema e depois ao bar do Sr. Toad para um drinque com Pam e os outros. Quando Pam Malavesi chegou e disse que Fredrica tinha desaparecido, Skip achou que nem Houdini poderia fazer Fredrica desaparecer...! Então ele teve que explicar a todo mundo quem foi Houdini, ele está sempre querendo mostrar que é um sabichão, e aí nós deixamos o assunto de lado. Eu pensei que ela estaria apenas zangada com o pai. Viu a casa dela? Não é o fim da picada? Quero dizer, onde quer que ela esteja, deve ter ficado embaraçada de você ter visto a casa dela. Você também não fugiria de casa?

— Você pensou que ela talvez houvesse fugido com alguém; alguém veio à sua lembrança, mesmo que fosse um palpite errado?

— Skip disse que ela talvez houvesse encontrado algum camarada perseguidor de gordinhas. Mas não, ela nunca teve ninguém desse tipo. Ela teve um namorado, mas essa é uma velha história. Ele fazia parte da banda no décimo grau. Eu digo “namorado”, mas eles apenas conversavam e davam risadinhas como um par de meninas e faziam juntos as suas tarefas. Ele era um maricão; usava um desses pequenos bonés de pescadores gregos, conhece? Skip pensava que ele era, você sabe... bicha. Mexíamos com ela por sair com uma bicha. Ele e a irmã dele morreram num acidente de automóvel, entretanto, e Fredrica nunca mais teve ninguém.

— O que você pensou quando ela sumiu?

— Pam pensou que alguns membros da seita do Dr. Moon tinham-na pegado; eu não sabia, mas ficava com medo cada vez que pensava no caso. Nunca mais saí à noite sem o Skip. Disse a ele: “Uh, uh, camarada, depois do sol deitar, nós só saímos juntos.”

— Você alguma vez a ouviu mencionar o nome Jame Gumb ou John Grant?

— Hummmm... não.

— Você acha que ela poderia ter um amigo que você não soubesse? Havia espaços de tempo, dias, em que você deixava de vê-la?

— Não. Se ela tivesse um cara, eu saberia, acredite.

— Você pensa que seria possível, digamos, que ela tivesse um amigo e não dissesse nada a respeito dele?

— Por que iria fazer isso?

— Talvez com medo de que vocês zombassem dela.

— Que zombássemos dela? Você está dizendo isso por causa da outra vez? Do garoto efeminado na escola? — Stacy ficou vermelha. — Não. De forma alguma iríamos feri-la. Eu só mencionei isso por acaso. Ela não... Nós, todo o mundo foi, vamos dizer, bom para ela, depois que o garoto morreu.

— Você trabalhava com Fredrica, Stacy?

— Eu e ela e Pam Malavesi e Jaronda Askew, todas nós trabalhávamos no Centro de Barganhas do Verão durante o ginásio. Então Pam e eu fomos à loja Richards para ver se podíamos trabalhar lá; é uma casa de roupas bonitas e eles empregaram a mim e depois a Pam. Então Pam disse a Fredrica: “Apareça lá, eles precisam de outra moça”, e ela apareceu. Mas a Sra. Burdine, a gerente comercial, disse: “Bem, Fredrica, precisamos de alguém que... você sabe... as pessoas possam admirar, as pessoas entrem na loja e pensem ‘Eu quero parecer-me com ela...’, e você pode dar-lhes conselhos como elas ficariam com este ou aquele vestido. Se você puder perder algum peso, quero que venha de novo aqui e me procure” — disse ela. — “Mas agora, se você quiser encarregar-se de algumas de nossas alterações, experimentarei você nesse serviço, darei uma palavra à Sra. Lippman.” — A Sra. Burdine falou com aquela voz doce que tem, mas ela realmente é uma peste; porém, a princípio eu não sabia disso.

— Então Fredrica passou a fazer consertos para a loja Richards, onde você trabalhava?

— Aquilo feriu os sentimentos dela, é claro. A velha Sra. Lippman fazia alterações para todo mundo. Era a dona do negócio e tinha mais trabalho do que podia aceitar, e assim Fredrica trabalhava para ela. Fazia as alterações para a velha Sra. Lippman, que costurava para todo mundo. Depois que a Sra. Lippman se aposentou, a filha não quis continuar no negócio, e Fredrica ficou com toda a freguesia e continuou a costurar para todo mundo. Isto era o que ela fazia. Encontrava-se comigo e com Pam e íamos para a casa de Pam jantar e ver The Young and the Restless (Os jovens e os inquietos); ela trazia alguma coisa para fazer e ficava trabalhando o tempo todo.

— Fredrica alguma vez trabalhou na loja tirando medidas? Ela se encontrava com fregueses ou com os vendedores atacadistas?

— Às vezes, não muito. Eu não trabalhava todos os dias.

— A Sra. Burdine trabalhava todos os dias? Ela saberia?

— Sim; acredito que sim.

— Fredrica alguma vez mencionou ter costurado para uma companhia chamada Mr. Hide em Chicago ou em Calumet City, talvez fazendo forros para roupas de couro?

— Não sei. A Sra. Lippman talvez tenha trabalhado nisso.

— Você alguma vez viu a marca Mr. Hide? A loja Richards, ou uma das butiques, trabalhava com essa marca?

— Não.

— Você sabe onde está a Sra. Lippman? Eu gostaria de falar com ela.

— Ela morreu. Foi para a Flórida quando se aposentou e morreu por lá, segundo contou Fredrica. Nunca cheguei a conhecê-la; eu e Skip às vezes pegávamos Fredrica lá, quando ela tinha um monte de roupas para trazer. Você poderia falar com a família dela. Eu escrevo o nome para você.

Aquilo era extremamente cansativo, quando o que Starling desejava eram as notícias de Calumet City. Os quarenta minutos já se haviam esgotado. O Grupo de Resgate de Reféns já devia estar no chão. Ela mudou de posição para não ter que olhar o relógio e continuou o inquérito.

— Stacy, onde é que Fredrica comprava roupas, onde comprou aquelas malhas Juno, tamanho grande para ginástica?

— Ela fazia quase tudo sozinha. Acho que ela comprou as malhas na Richards, você sabe, quando todo mundo começou a usa-las realmente grandes, porque eram vestidas por cima de roupas mais apertadas. Uma porção de lojas as vendiam. Ela tinha um desconto na Richards porque costurava para a loja.

— Ela alguma vez comprou numa loja especializada em tamanhos grandes?

— Nós íamos a todos os lugares para olhar, você sabe como é, íamos à Personality Plus e ela procurava idéias, você sabe, modelos atraentes para moças de tamanho grande.

— Alguém chegou-se a vocês alguma vez e seguiu-as dentro de uma dessas lojas de tamanho grande, ou Fredrica teria notado que alguém não tirava os olhos de cima dela?

Stacy olhou para o teto por um momento e sacudiu a cabeça.

— Stacy, travestis vinham alguma vez à Richards, ou homens comprando roupas grandes de mulheres? Alguma vez você viu uma coisa assim?

— Não. Eu e Skip uma vez vimos alguns travestis num bar em Columbus.

— Fredrica estava com vocês?

— Não, de forma alguma... Nós tínhamos ido, digamos... passar um fim de semana.

— Você quer escrever os nomes dos lugares que vendiam tamanhos grandes onde você foi com Fredrica? Você acha que pode lembrar-se deles todos?

— Só aqui, ou também em Columbus?

— Aqui e em Columbus. E inclua a loja Richards. Quero conversar com a Sra. Burdine.

— O.K. É um bom emprego ser agente do FBI, não é?

— Eu acho que é.

— Você tem a chance de viajar etc.? Quero dizer, para lugares melhores do que este...

— Às vezes, sim.

— Tem que ter uma boa aparência todos os dias, não?

— Oh, claro. Você tem que tentar parecer uma pessoa de negócios.

— Como é que se entra para isso, ser uma agente do FBI?

— Primeiro você precisa cursar uma universidade, Stacy.

— Sai muito caro, não?

— Sim, sai. Às vezes, no entanto, há bolsas de estudo e contribuições que ajudam. Gostaria que eu lhe mandasse alguns prospectos?

— Sim. Eu estava exatamente pensando: Fredrica ficou tão contente quando eu arranjei este emprego. Ela realmente ficou feliz ela nunca teve um verdadeiro trabalho de escritório — e pensava que esse era um bom começo. Isto — arquivos de fichas e Barry Manilow no alto-falante todo o dia -— ela pensava que era o máximo... O que sabia ela da vida, pobre coitada...! — As lágrimas iam aflorar aos olhos de Stacy Hubka. Ela arregalou-os e jogou a cabeça para trás para não ter que se maquilar novamente.

— Que tal fazer minha lista agora?

— É melhor fazê-la na minha mesa. Lá eu tenho um processador de palavras e preciso do meu livro de endereços telefônicos etc. — Ela saiu com a cabeça inclinada para trás, guiando-se pelo teto.

O telefone atraia Starling. No momento em que Stacy Hubka saiu do cubículo, Starling chamou Washington a cobrar para saber das notícias.

 

Naquele momento, sobre a ponta sul do lago Michigan, um jato comercial de 24 passageiros deixou a aerovia de tráfego intenso e começou a longa curva de aproximação para Calumet City, Illinois.

Os doze homens do Grupo de Resgate de Reféns, na parte dianteira do compartimento de passageiros, sentiram aquele “friozinho” no estômago. Ouviram-se alguns bocejos de aliviar a tensão elaboradamente casuais aqui e ali, ao longo do corredor.

O comandante do grupo, John Randall, retirou o fone de cabeça e passou os olhos por suas notas antes de levantar-se para falar. Acreditava que tinha o time de SWAT mais bem treinado do mundo e talvez estivesse certo. Alguns deles nunca tinham sido alvo de tiros reais, mas, até onde as simulações e os testes podiam provar, eram os melhores entre os melhores.

Randall passara muito tempo em corredores de avião e manteve com facilidade o equilíbrio durante a agitada descida.

— Cavalheiros: nosso transporte em terra é cortesia da Drug Enforcement Administration, também conhecida como DEA. Eles têm um furgão de florista e uma caminhonete de encanador. Portanto, Vernon e Eddie, ponham suas proteções de mangas compridas contra balas e roupa à paisana. Se entrarmos atirando granadas de tontear, lembrem-se de que vocês não têm, nos rostos, proteção contra explosão.

Vernon e Eddie, que deveriam fazer a aproximação inicial, tinham que usar proteção balística por baixo das roupas civis. Os demais podiam ir com blindagem comum, à prova de fogo de rifles.

— Bobby, não se esqueça de pôr um de seus aparelhos manuais em cada furgão para o motorista, de modo que a gente não se atrapalhe para conversar com esses caras do DEA — pediu Randall.

A DEA usava rádios UHF em seus reides, enquanto o FBI usava VHF; isso causara problemas anteriormente.

Eles estavam preparados para a maior parte das eventualidades, dia e noite: para escutar, tinham Wolf’s Ears e um VanSleek Farfoon, para ver dispunham de dispositivos para visão noturna. As armas com visores para a noite pareciam instrumentos de banda de música em seus avantajados estojos.

Aquilo iria ser uma operação cirúrgica precisa e as armas refletiam tal condição.

O grupo enfiou suas mochilas de equipamento quando os flapes do avião abaixaram.

Randall recebia notícias de Calumet em seu fone portátil. Cobriu o microfone e falou de novo para o grupo:

— Camaradas, eles reduziram as possibilidades a dois endereços. Ficamos com o melhor e a SWAT de Chicago atenderá o outro.

O campo de pouso era o Aeroporto Municipal de Lansing, o mais próximo de Calumet no lado sudeste de Chicago. O avião recebeu licença para pousar imediatamente. O piloto levou-o taxiando até parar com um cheiro de borracha queimada ao lado de dois veículos com os motores acionados no extremo do campo mais afastado do terminal.

Houve rápidas saudações ao lado do caminhão de florista. O comandante do DEA entregou a Randall o que parecia ser um amplo arranjo floral. Era uma marreta de arrombar portas de seis quilos, com a cabeça enrolada em papel metálico colorido, como um vaso, e a folhagem presa no cabo.

— Você talvez deseje entregar isto — disse ele. — Bem-vindo a Chicago.

 

O Sr. Gumb prosseguiu em seu plano no meio da tarde.

Com lágrimas perigosamente constantes nos olhos, ele assistiu ao seu vídeo uma, duas, três vezes. Na pequena tela Mamãe trepava no escorregador e tchimbum! Mergulhava na piscina, tchimbum! Mergulhava na piscina. As lágrimas molhavam a visão de Jame Gumb como se ele próprio estivesse na piscina.

Na sua cintura, um saco de água quente gorgolejava, como fazia o estômago da cachorrinha quando se acomodava no colo dele.

Não podia tolerar aquilo por mais tempo — aquela coisa que, no porão, mantinha Preciosa prisioneira, ameaçando-a. Preciosa estava sofrendo, ele sabia. O que não sabia era se conseguiria matar aquela coisa antes de ela fatalmente machucar Preciosa, mas tinha que tentar. Imediatamente.

Tirou as roupas e vestiu o robe, ele sempre finalizava sua colheita nu e sujo de sangue como um recém-nascido.

Do enorme armário de remédios, tirou a pomada que usara em Preciosa quando fora arranhada pelo gato. Pegou alguns Band-Aids pequenos e cotonetes, bem como a coleira de plástico “Elizabethan Collar” que o veterinário lhe dera para evitar que ela ficasse mexendo num lugar machucado com os dentes. Ele tinha pedaços miúdos de madeira no porão que poderia empregar como talas na perna quebrada do animal e um tubo de Sting-Eez para aliviar-lhe as dores se aquela coisa estúpida a machucasse na sua agitação antes de morrer.

Um tiro cuidadoso na cabeça, e sacrificaria apenas o cabelo.

Preciosa valia mais para ele do que aquela cabeleira. Esse sacrifício era uma oferenda para a salvação da cachorrinha.

Desceu então devagar a escada para a cozinha. Tirou os chinelos e meteu-se pelos degraus escuros que desembocavam no porão, sempre junto à parede para evitar que rangessem.

Não acendeu a luz. Embaixo da escada voltou-se em direção à oficina, movimentando-se pelo tato na escuridão familiar, sentindo as irregularidades do chão debaixo de seus pés.

Sua manga roçou por uma das gaiolas e ele ouviu o cricri baixo e zangado de uma mariposa. Ali estava o armário. Encontrou a lanterna infravermelha e acavalou os óculos no nariz. Agora o mundo tinha um tom verde. Parou um momento, escutando o agradável borbulhar dos tanques, o quente chiado do vapor nos canos. Mestre da escuridão, imperador das trevas.

Mariposas livres, no ar, traziam verdes traços de fosforescência à sua visão. Suas asas adejando fracamente afloravam seu rosto no ambiente sombrio.

Verificou a Python. Estava carregada com balas especiais de chumbo 38. Elas penetrariam no crânio e se expandiriam provocando uma morte instantânea. Se a coisa estivesse de pé quando fosse o alvo, e se ele atirasse de cima para baixo no alto da cabeça, a bala tinha menos probabilidade do que uma carga de Magnum de sair pela mandíbula inferior e rasgar o peito.

Devagar, bem devagar, andou com os joelhos dobrados, os dedos dos pés com unhas pintadas tateando as tábuas do chão. Em silêncio, cruzou o assoalho de terra sobre a masmorra. Quieto agora, mas não devagar demais. Não queria que seu cheiro chegasse até a cadelinha no fundo do poço.

A parte superior da masmorra tinha um reflexo verde, as pedras e a argamassa diferentes, o grão da madeira da cobertura claro na sua visão. Segurou a lanterna e inclinou-se sobre a abertura. Lá estavam elas. A coisa permanecia de lado, enrolada como um gigantesco camarão. Talvez dormindo. Preciosa se aconchegara de encontro ao seu corpo, certamente dormindo — oh! Por misericórdia, não morta!

A cabeça da mulher estava exposta. Um tiro no pescoço era tentador — pouparia o cabelo. Mas arriscado demais.

Gumb inclinou-se sobre a abertura, as lentes móveis de seus óculos voltadas para baixo. A Phyton tem uma boa empunhadura, mais pesado no cano, maravilhosamente fácil de apontar. Devo segurá-la pelo feixe infravermelho. Alinhou as miras no lado da cabeça, exatamente onde o cabelo estava úmido de encontro às têmporas.

Ruído ou cheiro — ele nunca soube — , Preciosa levantou-se e ganiu, pulando para o alto na escuridão. Catherine Baker Martin dobrou-se em volta do cãozinho e puxou a manta sobre as duas. Apenas vultos movendo-se debaixo da manta, sem que ele pudesse dizer o que era Catherine e o que era o cão. Olhando para baixo pela luz infravermelha, sua percepção de profundidade ficava prejudicada. Não podia dizer que formas eram de Catherine.

Contudo, tinha visto Preciosa pular. Compreendera que a perna dela estava bem e imediatamente se certificou de outra coisa: Catherine Baker Martin não iria machucar o cão, não mais do que ele o faria. Oh, que doce alívio! Diante dos sentimentos que compartilhavam, ele podia atirar-lhe nas malditas pernas e quando ela se abaixasse para segurá-las, estourar a porra dos seus miolos. Não tinha mais que tomar precaução.

Acendeu as luzes, todas as malditas luzes do porão, e pegou o refletor que guardava no depósito. Sentia-se controlado, estava raciocinando bem. A caminho da oficina lembrou-se de deixar correr um pouco d’água nas pias, de forma que nada viesse a entupir os drenos.

Quando se dirigia apressado em direção à escada, pronto para descer, carregando o refletor, a campainha da porta da frente soou.

O som pareceu-lhe rouco, arrastado, e ele parou para pensar o que seria. Não ouvia há anos, nem mesmo sabia se ela ainda funcionava. Montada nas escadas, de forma que pudesse ser ouvida tanto em cima como embaixo, ela agora soava, como se fosse um sino de metal escuro coberto de poeira. Enquanto olhava para a campainha, ela tocou de novo e continuou a tocar, a poeira se espalhando de cima dela. Alguém estava na frente da casa, apertando o velho botão marcado SUPERINTENDENTE. Acabariam indo embora.

Ligou o refletor na tomada.

Eles não foram embora.

Lá embaixo, no porão, aquela coisa disse algo a que ele não prestou atenção. A campainha continuava soando, naquele seu tinir enrouquecido; alguém estava dependurado no botão.

Era melhor voltar para cima e dar uma olhada. A Phyton de cano comprido não cabia no bolso do seu robe; descansou-a em cima do balcão da oficina.

Estava a meio caminho das escadas quando a campainha emudeceu. Aguardou alguns segundos, parado onde estava. Silêncio. Decidiu que, de qualquer modo, convinha olhar. Quando atravessava a cozinha, uma pancada na porta traseira sobressaltou-o. Na despensa, próximo àquela porta, havia uma espingarda que ele sabia estar carregada.

Com a porta do porão fechada para as escadas, ninguém iria ouvir a coisa por mais que berrasse lá embaixo, por mais que gritasse — disso ele tinha certeza.

Nova batida. Ele abriu uma fresta da porta com a correntinha de segurança presa no lugar.

— Tentei a porta da frente, mas ninguém atendeu — justificou-se Clarice Starling. — Estou procurando a família da Sra. Lippman. O senhor poderia ajudar-me?

— Eles não vivem mais aqui — disse o Sr. Gumb, e imediatamente fechou a porta. Já se dirigia de novo para a escada quando as batidas recomeçaram, desta vez mais altas.

Voltou a abrir a porta, sempre sem soltar a corrente.

A jovem mulher exibiu-lhe um cartão de identidade diante da fresta. O cartão dizia: Federal Bureau of Investigation.

— Desculpe-me, mas devo falar com o senhor. Preciso encontrar a família da Sra. Lippman. Sei que ela vivia aqui. Peço que o senhor me ajude, por favor.

— A Sra. Lippman está morta há anos. E, que eu saiba, não deixou nenhum parente.

— Que tal um advogado, um contador? Alguém que possa ter guardado os registros do negócio dela? O senhor conheceu a Sra. Lippman?

— Apenas ligeiramente. Qual é o problema?

— Estou investigando a morte de Fredrica Bimmel. Quem é o senhor, por favor?

— Jack Gordon.

— O senhor conheceu Fredrica Bimmel quando ela trabalhava para a Sra. Lippman?

— Não. Se era uma pessoa grande, muito gorda, talvez eu a tenha visto, mas não estou certo. Olhe, não quis ser indelicado, mas eu estava dormindo... A Sra. Lippman tinha um advogado; pode ser que eu tenha o cartão dele em algum lugar, vou ver. A senhora gostaria de entrar? Estou gelando e meu gato vai fugir correndo por aqui num instante. Passará como um raio antes que eu possa detê-lo.

Dirigiu-se para uma escrivaninha de tampo de enrolar no canto mais afastado da cozinha, abriu a tampa e procurou nos escaninhos. Starling entrou na casa e sacou seu caderno de notas de dentro da bolsa.

— Que negócio horrível foi aquele! — comentou, revistando a escrivaninha. — Tremo a cada vez que penso nele. Estão próximos a apanhar alguém, que acha a senhora?

— Ainda não, mas estamos trabalhando nisso, Sr. Gordon. O senhor ficou com a casa depois que a Sra. Lippman faleceu?

— Fiquei. — Gumb debruçou-se sobre a mesa, as costas voltadas para Starling. Abriu uma gaveta e examinou-a.

— Ficaram por aqui alguns registros? Registros de negócios?

— Não. Nada. O FBI tem alguma idéia? A polícia daqui parece não saber de nada. Eles têm uma descrição, impressões digitais?

De dentro de uma dobra do robe do Sr. Gumb escapou uma Mariposa Caveira. Agarrou-se ao tecido, nas costas, mais ou menos à altura do coração, e abriu as asas.

Starling deixou cair o caderno de notas dentro da bolsa.

É Gumb! Graças a Deus que meu casaco está aberto. Tenho que sair daqui e chegar a um telefone. Não. Ele sabe que sou do FBI, se o perco de vista ele a mata. Fura-lhe os rins. Se o encontram, caem em cima dele. E um telefone? Não vejo nenhum. Não por aqui. Pergunto-lhe pelo telefone. Faço a ligação. Depois prendo-o. Faço-o deitar-se de barriga para baixo, espero pelos tiras É isca.Vamos. Ele está se voltando.

— Aqui está o número.

Pego-o? Não.

— Obrigada. Sr. Gordon, mas o senhor tem um telefone que eu possa usar?

Quando ele pôs o cartão na mesa, a mariposa voou. Saiu de trás dele, passou sobre a sua cabeça e pousou entre os dois, num armário sobre a pia.

Ele olhou para a mariposa. Ao ver que Starling não afastava os olhos do seu rosto, percebeu tudo.

Seus olhares se encontraram e eles se revelaram mutuamente.

Gumb inclinou a cabeça um pouco para o lado e deu um sorriso, dizendo:

— Tenho um sem-fio na despensa. Vou apanhá-lo.

Não! Aja agora! Ela correu a mão para o revólver, um movimento suave que fizera milhares de vezes, e lá estava onde devia estar, numa boa empunhadura com as duas mãos, o mundo dela concentrado na frente da sua mira e no centro do peito dele.

— Pare!

Ele fez um movimento com os lábios.

— Agora, devagar! Levante as mãos! Leve-o para fora, mantenha a mesa entre vocês. Leve-o para a frente da casa. De cara para o chão no meio da rua, e segure seu distintivo exposto na mão.

— Sr. Gumb... Sr. Gumb, considere-se preso. Saia andando devagar na minha frente, para a rua.

Em vez disso, ele saiu da cozinha. Se tentasse meter a mão no bolso, ou levar a mão para trás, se ela tivesse visto uma arma, poderia ter atirado. Mas ele se limitou a sair.

Ouviu-o descer rapidamente as escadas do porão; Starling contornou a mesa e dirigiu-se para a porta no alto da escada. Ele desaparecera, a escadaria estava brilhantemente iluminada, mas vazia. Armadilha. Tornava-se um alvo fácil naquela escadaria.

No porão ouviu-se um grito estridente e agudo como um apito.

Ela não gostava da escada, nunca gostara de escadas. Clarice Starling, seja rápida no que fizer. Ou você faz alguma coisa rápida ou não faz.

Catherine Martin gritou de novo, ele estava a matando! Starling desceu as escadas agarrada ao corrimão, o braço com o revólver esticado, o chão lá embaixo aparecendo na frente da mira, o braço com a arma ficou girando junto com sua cabeça quando ela tentou cobrir as duas portas, uma em frente à outra, ao pé da escadaria.

As luzes brilhando no porão, ela não podia atravessar uma porta sem dar as costas à outra. Faça-o rápido, vá para a esquerda, na direção do grito. Ela entrou no quarto da masmorra com seu piso de terra, passou correndo pela porta, com os olhos mais arregalados que nunca. O único lugar para se proteger era atrás do poço. Deslizou de lado ao longo da parede, ambas as mãos na arma, os braços esticados, uma pequena pressão no gatilho, deu a volta ao poço e atrás dele não havia ninguém.

Um pequeno grito veio do poço, volátil como fumaça. Ganidos agora, um cachorro. Aproximou-se da abertura, chegou até a borda e espiou. Viu a moça, olhou para baixo mais uma vez, e disse o que estava treinada para dizer, a fim de acalmar a refém:

— Sou do FBI, você está segura.

— Segura uma merda! Ele tem uma arma. TIRE-ME DAQUI! TIRE-ME DAQUI!

— Catherine, você será salva. Cale a boca. Sabe onde ele está agora?

— TIRE-ME DAQUI. NÃO ESTOU LIGANDO UMA MERDA PARA ONDE ELE ESTÁ, TIRE-ME DAQUI!

— Vou tirá-la. Mas cale-se. Ajude-me. Fique quieta, de modo que eu possa escutar. Tente ver se pode calar esse cachorro.

Entrincheirada atrás do poço, cobrindo a porta com a arma o coração dela batia e sua respiração arfante levantava poeira da pedra. Ela não podia deixar Catherine Martin para buscar ajuda sem saber onde estava Gumb. Deslocando-se até a porta, protegeu-se atrás do umbral. Podia enxergar até o pé da escada e parte da oficina mais adiante.

Ou ela encontrava Gumb, ou se certificava de que ele fugira ou levava Catherine com ela — essas eram as escolhas.

Olhou rapidamente para o quarto da masmorra.

— Catherine, há uma escada por aqui?

— Não sei; acordei aqui dentro. Ele arriava o balde com uma corda, para tudo.

Aparafusado numa coluna da parede, viu um guincho manual pequeno. Em seu tambor não havia cabo.

— Catherine, tenho que descobrir alguma coisa para tirar você dai. Você pode andar?

— Sim. Não me deixe!

— Tenho que sair do quarto apenas por um minuto.

— Sua cadela de merda, não me deixe sozinha aqui embaixo, minha mãe vai estourar a porra dos seus miolos...

— Cale a boca, Catherine. Quero que você fique quieta de forma que eu possa ouvir. Para salvar-se, fique quieta, entendeu? Depois, em voz mais alta: — Outros policiais estarão aqui dentro de minutos, portanto cale a boca! Claro que não vamos deixá-la aí embaixo.

Precisava encontrar uma corda. Onde haveria uma? Vá procurá-la.

Starling movimentou-se cruzando o vão da escada e correndo até a porta da oficina. As portas são os piores lugares. Entrou rápido, correu para um lado e outro ao longo da parede mais próxima até ter se situado no quarto. Percebeu formas familiares nadando nos tanques de vidro, por demais alerta para ficar espantada. Cruzou rapidamente o quarto, passando pelos tanques, pelas pias, pela gaiola onde algumas grandes mariposas voavam. Ignorou-as.

Aproximou-se do outro corredor, inundado de luz. A geladeira se ligando atrás dela fê-la virar-se rápida e agachada, o gatilho da Magnum armado. A seguir relaxou sua pressão sobre ele. Prosseguiu até o corredor. Fora ensinada a espiar. Cabeça e revólver ao mesmo tempo, mas numa posição baixa. O corredor estava vazio. Viu o estúdio violentamente iluminado no fim do corredor. Correu ligeira, arriscando-se a passar por uma porta fechada, até a porta do estúdio. Estava todo pintado de branco e guarnecido de carvalho claro. O inferno é passar pela porta. Certifique-se de que todo manequim é um manequim, e todo reflexo no espelho é o reflexo de um manequim. O único movimento nos espelhos deve ser o seu movimento.

O grande armário estava aberto e vazio. A porta mais afastada abria-se para a escuridão — o porão por trás dela. Nenhuma corda, nenhuma escada. Além do estúdio não havia luzes. Fechou a porta que dava para a parte sombria do porão, empurrou uma cadeira para baixo da maçaneta e a escorou com uma máquina de costura. Se pudesse estar segura de que Gumb não estava nessa parte do porão, arriscaria subir por um momento, atrás de um telefone.

Voltou ao corredor, à porta pela qual havia passado antes, colocou-se no lado oposto às dobradiças e abriu-a inteiramente com um só movimento. A porta bateu com força na parede; não havia ninguém lá. Um velho banheiro cheio de cordas, ganchos, laçadas. Resgatar Catherine ou procurar o telefone? No fundo do poço Catherine não seria morta por acidente, mas se Starling fosse morta, Catherine morreria também. Levar Catherine com ela até o telefone.

Starling achou melhor não ficar no banheiro muito tempo. Ele poderia aparecer de repente e fuzilá-la. Olhou para ambos os lados e avançou célere para apanhar a corda. Havia ali uma grande banheira, quase cheia com uma argamassa dura, roxo-avermelhada. Uma mão e um pulso saíam da argamassa, a mão escura e toda enrugada, com unhas pintadas de cor-de-rosa. No pulso, um delicado relógio. Starling observou tudo num só relance: a corda, a banheira, a mão, o relógio de pulso.

O avanço semelhante ao de um inseto do ponteiro dos segundos foi a última coisa que ela viu antes que as luzes se apagassem.

O coração bateu tão forte que sacudiu seu peito e seus braços. A escuridão deixou-a tonta, precisava tocar alguma coisa, a borda da banheira. O banheiro. Sair do banheiro. Se ele encontrar a porta, vai varrer este quarto de balas, e nada existia para servir de escudo. Oh, Jesus Cristo, sair daqui! Sair daqui, agachada, para o corredor. Todas as luzes estão apagadas? Todas elas. Ele deve tê-las desligado na caixa de fusíveis, puxando a alavanca. Onde seria! Onde seria a caixa de fusíveis? Próximo às escadas. Em geral ficam perto das escadas. Se for assim, ele virá daquele lado. Mas ele está entre mim e Catherine.

Catherine Martin está se lamentando de novo.

— Esperar aqui? Esperar para sempre? Talvez ele tenha ido embora. Ele não pode ter certeza de que nenhum reforço está vindo. Sim, ele pode. Mas breve notarão a minha falta. Esta noite. As escadas ficam na direção dos gritos. Resolva o problema agora.

Starling moveu-se devagar, seu ombro apenas tocando na parede, tocando-a levemente demais para fazer qualquer ruído, uma mão esticada para a frente, o revólver próximo à cintura, próximo ao seu corpo no apertado corredor. Estou agora dentro da oficina Sinto o espaço abrir-se. Um quarto aberto. Abaixou-se no quarto aberto, ambas as mãos no revólver. Você sabe exatamente onde c arma está: está abaixo do nível dos olhos. Pare, escute. A cabeça e o corpo e os braços virando em conjunto, como a torre de um tanque. Pare, escute.

Na escuridão total, o chiado dos tubos de vapor, a água pingando.

Em suas narinas, pesado, um cheiro de bode.

O lamento de Catherine.

De encontro à parede estava Gumb com seus óculos acavalados. Não havia perigo de que Starling esbarrasse nele — entre os dois estava a mesa com o equipamento. Ele varreu-a com sua luz infravermelha, para cima e para baixo. Era magra demais, não tinha qualquer utilidade para ele. Lembrou-se, no entanto, do seu cabelo, que observara na cozinha. Era espetacular e levaria apenas um minuto. Podia arrancá-lo com facilidade. Colocá-lo em si mesmo, debruçar-se sobre o poço e dizer àquela coisa:

— Surpresa!

Era divertido vê-la querendo esgueirar-se. Agora estava com o quadril deslizando ao lado das pias, andando em direção aos gritos com o revólver diante do corpo. Seria divertido caçá-la por um longo tempo — jamais caçara antes uma caça armada. Teria apreciado imensamente. Mas não havia tempo para isso. Que pena!

Um tiro no rosto seria um sucesso, a menos de 3 metros de distância. Agora.

Ele engatilhou a Python e a ergueu. De repente a figura ficou borrada e desapareceu da sua visão, que era verde. A arma saltou da sua mão e o solo chocou-se violentamente com suas costas. Sua luz continuava acesa e ele via o teto. Starling estava no chão, cega com os relâmpagos dos disparos, os ouvidos zunindo, ensurdecida pelo espocar das armas. Trabalhava no chão enquanto nenhum dos dois podia ouvir, descarregou os cartuchos vazios, virou a arma, apalpou-a para ver se todos tinham sido expelidos. Apanhou o carregador rápido, sentiu-o na mão, ajeitou-o, inseriu-o, fechou o cilindro do revólver. Deu, quatro tiros: dois e mais dois. Gumb atirara uma vez. Ela encontrou os dois cartuchos perfeitos que deixara cair. Colocá-los onde? Na bolsa do carregador rápido. Permaneceu quieta. Devia mover-se antes que ele pudesse ouvir?

O som de uma arma sendo engatilhada é característico. Ela havia atirado contra o som, nada vendo além da forte luminosidade no cano das armas. Tinha agora a esperança de que ele atirasse na direção errada e lhe oferecesse novo clarão para ela atirar. Sua audição estava voltando, os ouvidos ainda zumbiam, mas já podia ouvir.

Que som era aquele? Um assobio? Como uma chaleira, mas com interrupções. O que seria? Como uma respiração. Serei eu mesma? Não. Sua respiração era quente de encontro ao chão e se refletia em seu rosto. Tome cuidado, não aspire poeira, não espirre.

Ouve-se a respiração. Parece uma ferida no peito aspirando ar. Ele foi ferido no peito. Haviam ensinado a ela como vedar uma ferida dessas, colocando algo em cima dela, uma capa de borracha, um saco plástico, qualquer coisa impermeável ao ar, e depois amarrar com força. Reencher o pulmão. Ela então o havia acertado no peito. O que fazer agora? Esperar. Deixar que ele se esgote e sangre. Esperar.

O rosto de Starling ardia. Não tocou nele. Se estivesse sangrando, não queria que suas mãos ficassem escorregadias.

Os gritos do poço ecoaram de novo. Era Catherine, implorando e chorando. Mas ela não podia responder a Catherine. Não podia dizer nada nem mover-se.

A luz invisível de Gumb batia no teto. Tentou movê-la e não pôde, da mesma forma que não podia mover a cabeça. Uma grande mariposa Luna da Malásia, passando pertinho do teto, recebeu a radiação infravermelha, desceu circulando e pousou sobre a lanterna. As sombras pulsantes das suas asas, enormes no teto, são visíveis apenas para Gumb.

Acima da aspiração crepitando na escura, Starling ouviu a voz sepulcral de Gumb, afogada:

— Como... se... sente... sendo... tão... bonita?

E depois outro som. Um gorgolejo, um estertor e o assobio sumiu.

Starling conhecia também aquele som. Ela o ouvira uma vez antes, no hospital, quando seu pai morrera.

Procurou a beirada da mesa e levantou-se. Tateando para acha seu caminho e seguindo a voz de Catherine, encontrou a escada subiu por ela no escuro.

O tempo pareceu arrastar-se uma enormidade. Encontrou um vela na gaveta da cozinha. Com ela Starling localizou a caixa de fusíveis ao pé da escada e estremeceu quando as luzes voltaram. Para chegar até a caixa de fusíveis e apagar as luzes, ele deve ter saído do porão por outro caminho e voltado para baixo contornando por trás.

Starling precisava estar certa de que ele já não vivia. Espero até seus olhos se adaptarem bem à luz antes de voltar à oficina, mesmo então o fez com muito cuidado. Pôde ver-lhe os pés nus as pernas saindo debaixo da mesa de trabalho. Manteve os olhos fixados na mão próxima à arma até chutá-la para longe. Os olhos dele permaneciam abertos. Contudo, estava morto, com um tiro no lado direito do peito, um sangue grosso escorrendo para baixo de Gumb tinha vestido algumas roupas do armário, mas ela não conseguiu olhar para ele por muito tempo.

Foi até a pia, colocou a Magnus na mesa e fez correr água sobre seus pulsos, lavando o rosto com as mãos. Não havia sangue nelas. Mariposas se lançavam contra as telas em torno das lâmpadas. Ela tem que rodear aquele corpo inerte para pegar a Python.

Quando se aproximou do poço, gritou:

— Ele está morto, Catherine. Não pode mais fazer-lhe mal. Vou até lá em cima e...

— Não! TIRE-ME DAQUI! TIRE-ME DAQUI! TIRE-ME DAQUI!

— Preste atenção, ele está morto. Este é o revólver dele. Lembra-se? Vou chamar a polícia e os bombeiros. Tenho receio de içá-la sozinha, você poderia machucar-se. Tão logo os tenha chamado, volto aqui e fico com você esperando. O.K.? Tente fazer esse cachorro calar-se. O.K.?

As turmas locais de televisão chegaram logo depois do corpo de bombeiros e antes da polícia de Belvedere. O capitão dos bombeiros, zangado com as luzes da TV, expulsou as equipes para cima, para fora do porão, enquanto montava uma estrutura tubular para resgatar Catherine Martin, não confiando no gancho do Sr. Gumb preso à viga do teto. Um bombeiro desceu ao poço e prendeu Catherine numa cadeira de salvamento. Catherine veio para cima agarrando a cachorrinha e continuou com ela na ambulância.

Não permitem a presença de cães no hospital e não deixaram a cachorrinha entrar. Um bombeiro que recebera instruções para largá-la no abrigo de animais, em vez disso levou-a para casa.

Havia cerca de cinqüenta pessoas no Aeroporto Nacional em Washington, aguardando o vôo corujão de Columbus, Ohio. Quase todos esperavam parentes e pareciam sonolentos e mal-humorados, com as fraldas das camisas para fora dos paletós.

Do meio do grupo, Ardelia Mapp teve a oportunidade de observar Starling quando ela saía do avião. Estava abatida, com sombras escuras debaixo dos olhos. Alguns grãos pretos de pólvora tinham aderido ao seu rosto. Starling avistou Mapp e se abraçaram.

— Hei, garotona! — disse Mapp. — Alguma bagagem?

Starling fez que não com a cabeça.

— Jeff está do lado de fora, no furgão. Vamos para casa.

Jack Crawford também estava do lado de fora, seu carro estacionado atrás do furgão no espaço das limusines. Ele tinha ficado com os parentes de Bella a noite inteira.

— Eu... — começou ele. — Você sabe o que fez? Você lavrou um tento, garota! — Tocou no rosto dela. — O que é isso?

— Pólvora das armas. O doutor diz que sairá sozinha em um ou dois dias; é melhor do que ter de retirá-la.

Crawford deu-lhe um abraço e apertou-a de encontro a si por um momento, apenas por um momento, depois afastou-a e beijou a na testa.

— Você tem idéia do que fez? — repetiu. — Vá para casa. Trate de dormir. E durma bem. Falo com você amanhã.

A nova caminhonete de vigilância era confortável, projetada para longas vigílias. Starling e Mapp viajaram em confortáveis cadeiras na parte traseira.

Sem Jack Crawford no furgão, Jeff dirigia um pouco mais depressa. Fizeram uma corrida rápida até Quântico.

Starling viajava com os olhos fechados. Depois de alguns quilômetros, Mapp tocou-lhe o joelho. Mapp tinha aberto duas pequenas garrafas de Coca-Cola. Entregou uma a Starling e tirou de sua bolsa um frasco de um quarto de litro de Jack Daniels.

Cada uma delas tomou um gole de sua Coca e virou na garrafa uma dose do sour mash. Em seguida enfiaram o polegar no gargalo das garrafas e sacudiram-nas e, enfiando a garrafa na boca, beberam a mistura espumante.

— Ah, que bom! — apreciou Starling.

— Não derramem isso por aí — recomendou Jeff.

— Não se preocupe, Jeff — prometeu Mapp. Depois, em tom mais baixo para Starling: — Você devia ter visto nosso amigo esperando por mim na porta da loja de bebidas. Parecia estar cometendo um crime... — Quando viu que o uísque começava a fazer efeito, quando Starling, relaxada, afundou mais na cadeira, Mapp perguntou:

— Como está se sentindo agora, Starling?

— Ardelia, que me dane se sei ...

— Você não tem que voltar para lá, tem?

— Talvez um dia, na semana que vem, mas espero que não seja necessário. O Promotor Público veio de Columbus para conversar com os tiras de Belvedere. Fiz um depoimento que não acabava mais.

— Algumas boas notícias — disse Mapp. — A senadora Martin procurou você pelo telefone toda a noite e lá de Bethesda — você sabia que levaram Catherine para Bethesda? Consta que ela está passando bem. Ele não a machucou fisicamente. Quanto a um trauma emocional, ainda nada sabem, vai ser preciso observá-la. Não se preocupe com a escola. Tanto Crawford quanto Brigham telefonaram. A audiência foi cancelada. Krendler mandou que devolvessem seu memorando. Essa gente tem um coração como um BB lubrificado — você não vai ter problema algum. Não terá que fazer o exame de busca-e-captura amanhã às oito horas, ficou para segunda-feira e logo a seguir fará o teste PE. Recapitularemos a matéria durante o fim de semana.

Acabaram com a pequena garrafa de uísque já perto de Quântico e jogaram a prova do crime numa barrica que estava ao lado da estrada.

— Aquele Pilcher. O doutor Pilcher, do Smithsonian, telefonou três vezes. Fez-me prometer que lhe diria que ele telefonou.

— Ele não é doutor.

— Você pensa que poderá fazer algo por ele?

— Talvez. Ainda não sei.

— Ele parece ser muito divertido. Conclui mais ou menos que ser engraçado é a melhor coisa que existe nos homens. Quero dizer, exceto o dinheiro e a nossa básica governabilidade...

— Sim, e bons modos também, você não pode excluir isso.

— Certo. Dê-me um filho da puta com bons modos e fico com ele.

Starling tomou um chuveiro e foi para a cama como se estivesse drogada.

Mapp deixou sua luz de leitura acesa por algum tempo, até que a respiração de Starling se tornou regular. Starling se agitava dormindo, um músculo de seu rosto se contraía, e uma vez seus olhos se abriram por completo.

Mapp acordou um pouco antes do nascer do sol com a sensação que o quarto estava vazio e acendeu a luz. Não viu Starling em sua cama. Mas não viu também os sacos de roupa suja de ambas e então Mapp soube onde poderia procurá-la.

Encontrou Starling na lavanderia, cochilando ao vagaroso ronronar de uma máquina de lavar roupa, no ar um cheiro de detergente, sabão e amaciante de tecido. Starling era formada em psicologia e Mapp em leis — contudo, era Mapp quem sabia que o ritmo da máquina de lavar roupa semelhava batidas de coração e o marulho da água era o som que um feto ouvia — nossa última memória de paz.

 

Jack Crawford acordou cedo no sofá de seu estúdio e ouviu na casa o ressonar de seus parentes por parte da falecida esposa. Num momento livre, antes que o peso do dia caísse sobre ele, lembrou-se não da morte de Bella, mas da última coisa que ela lhe dissera, seus olhos calmos e claros:

— Como vai tudo aí fora?

Pegou a concha de grãos de Bella e, vestido no seu robe, saiu e alimentou os pássaros, como prometera fazer. Deixando uma nota para os afins que ainda dormiam, escapuliu da casa antes do sol nascer. Crawford sempre se dera razoavelmente bem com os parentes de Bella, e eles o ajudavam mantendo algum movimento na casa, mas sentiu-se contente por ir para Quântico.

Estava examinando o movimento de telex da noite e observando as notícias da manhã na TV em seu escritório quando Starling encostou o nariz no vidro da porta. Ele tirou alguns relatórios de cima de uma cadeira para que ela sentasse e os dois ficaram ouvindo as notícias em completo silêncio. E então apareceu na tela o que esperavam.

Viram a fachada do velho edifício de Jame Gumb em Belvedere com sua fila de lojas vazias e vidraças opacas cobertas por pesadas grades. Starling quase não o reconheceu.

— Masmorra de Horrores — assim chamou-o o redator de notícias.

Fotos confusas e movediças do poço e do porão, máquinas de fotografar exibidas diante das câmaras de televisão, um bombeiro zangado mandando os fotógrafos recuarem. Mariposas tontas devido às luzes da TV, voando de encontro a elas, um exemplar de costas no chão, batendo as asas até um tremor final.

Catherine Martin recusando uma padiola e caminhando para a ambulância com o paletó de um policial a protegê-la, um poodle metendo o focinho por entre as lapelas.

Uma imagem em perfil de Starling caminhando apressada para um carro, a cabeça baixa, as mãos enfiadas nos bolsos do impermeável.

O filme fora cortado para excluir as cenas mais horríveis. Nas partes mais afastadas do porão as câmaras puderam mostrar apenas as soleiras dos quartos pintados de cal nos quais ficavam os quadros de Gumb. O número de corpos que haviam estado naquele porão somava seis.

Por duas vezes Crawford ouviu quando Starling soprou forte pelo nariz. Depois das notícias, um intervalo comercial.

— Bom dia, Starling.

— Alô -— disse ela, como se só agora tivesse acabado de chegar.

— Durante a noite o Promotor Público de Columbus mandou-me pelo fax o seu depoimento. Você terá que assinar algumas cópias para ele... Fiquei sabendo que você foi da casa de Fredrica Bimmel para o emprego de Stacy Hubka e depois procurou a Sra. Burdine na loja para a qual Fredrica costurava, a Richard’s Fashion. E foi a Sra. Burdine quem lhe deu o antigo endereço da Sra. Lippman, aquele edifício que vimos.

Starling anuiu com a cabeça.

— Stacy Hubka fora ao local algumas vezes para apanhar Fredrica, mas quem dirigia era o namorado de Stacy, e sua lembrança do endereço era vaga. A Sra. Burdine é que o tinha.

— A Sra. Burdine não mencionou que havia um homem morando na casa da Sra. Lippman?

— Não.

As notícias da televisão apresentavam um filme do Hospital Naval de Bethesda, o rosto da senadora Ruth Martin enquadrado na janela de uma limusine.

— À noite passada Catherine recuperou seu juízo normal. E dorme, agora que está sedada. Tivemos muita sorte. Como já lhe disse, ela ficou em estado de choque, mas perfeitamente lúcida, Sofreu alguns machucados e tem um dedo quebrado. E também está desidratada. Muito obrigada a vocês. — Bateu nas costas do chofer, mandando-o seguir. — Obrigada. Claro, ela mencionou a poodle à noite passada. Não sei o que vamos fazer com ela, já temos dois cachorros.

A reportagem terminou mencionando um especialista em stress que iria ver Catherine Martin naquele dia para avaliar os possíveis danos emocionais.

Crawford desligou a TV.

— Como é que você está encarando as coisas, Starling?

— Ando meio sonada... O senhor também?

Crawford fez que sim com a cabeça e continuou a falar:

— A senadora Martin esteve ao telefone a noite inteira. Ela quer ver você. Catherine também, tão logo receba alta.

— Bem, estou sempre em casa...

— Krendler também quer vir até aqui. Pediu que devolvêssemos o memorando dele.

— Pensando melhor... não é sempre que estou em casa...

— Vou dar-lhe um conselho grátis. Use a senadora Martin. Deixe-a expressar o quanto está agradecida, deixe que ela o prove. E o mais depressa possível: gratidão é uma coisa com vida curta... Você poderá precisar dela um dia destes.

— Exatamente o que Ardelia disse.

— Sua companheira de quarto, a Mapp? O Superintendente da Academia disse que Mapp está decidida a prepará-la para os exames de recuperação de segunda-feira. Ela acaba de passar um ponto e meio à frente de seu arqui-rival, Stringfellow, disse-me ele.

— Para o discurso de formatura?

— É uma dureza, esse Springfellow, e afirma que Mapp não é páreo para ele.

— É melhor ele se preparar para uma surpresa...

Na confusão das coisas sobre a mesa de Crawford estava a galinha origami que o Dr. Lecter tinha armado. Crawford levou a cauda para cima e para baixo; a galinha ficou mexendo com a cabeça.

— Lecter está sendo premiado: é o líder na lista dos “mais procurados” — comentou Crawford. — Mesmo assim, é capaz de ficar solto um bom tempo. Por falar nisso: você precisa adquirir alguns bons hábitos.

Ela fez que sim com a cabeça.

— Ele agora anda ocupado — prosseguiu Crawford — , mas quando não estiver mais, vai querer divertir-se. Precisamos ser claros num ponto: ele vai querer vingar-se de você, da mesma forma que fará com qualquer outra pessoa, que suponha ter tentado enganá-lo.

— Não creio que ele jamais vá me ameaçar, seria rude e ele não iria ser rude comigo. Mas pode ser que me acerte assim que se aborrecer comigo.

— Repito que você deve adquirir bons hábitos... Quando sair da Academia, mantenha sempre o berrador consigo. Não aceite perguntas sobre seu paradeiro sem uma identificação positiva. Vou por um sistema de acompanhamento e alerta no seu telefone, se você não se incomoda. Ele conservará sua privacidade, exceto quando você apertar um botão.

— Não espero que ele me persiga, Sr. Crawford.

— De qualquer modo, você ouviu o que eu lhe disse.

— Ouvi. Ouvi muito bem.

— Leve este depoimento e examine-o. Acrescente o que desejar. Abonaremos sua assinatura assim que tiver terminado. Starling estou orgulhoso de você. Brigham também está. E o Diretor também. — A declaração soou formal, não como ele gostaria que soasse Acompanhou-a até a porta do escritório. Ela foi se afastando pelo corredor deserto. Apesar da dor que o acabrunhava, consegui fazer-lhe um aceno alegre.

— Starling: seu pai está vendo você.

 

Jame Gumb ficou nos noticiários durante semanas depois de ter encontrado seu repouso final.

Os repórteres reconstruíram sua história, começando com os registros do condado de Sacramento.

Sua mãe estava grávida de um mês quando não conseguiu classificar-se no concurso de Miss Sacramento em 1948. O “Jame” na sua certidão de idade fora aparentemente um erro do funcionário do registro civil, que ninguém se preocupou em corrigir.

Não alcançando sucesso na carreira de atriz, a mãe dele entrou num declive alcoólico; Gumb tinha dois anos quando o condado de Los Angeles o colocou num lar de adoção.

Pelo menos dois jornais especializados explicaram que essa infeliz infância era a razão pela qual ele matava mulheres no seu porão para tirar-lhes as peles. As palavras louco e mau não apareceram em qualquer dos dois artigos.

O filme do concurso de beleza que Jame Gumb via sempre quando adulto era verdadeiramente de sua mãe, mas a mulher no filme da piscina não era ela, conforme revelou uma comparação de medidas.

Os avós de Gumb retiraram-no de um lar adotivo insatisfatório quando tinha dez anos e ele os matou dois anos mais tarde.

A Escola de Reabilitação Vocacional de Tulare ensinou Gumb a ser alfaiate durante seus anos no Hospital Psiquiátrico. Ele demonstrou decidida capacidade para a profissão.

O registro de empregos de Gumb é descontínuo e incompleto. Os repórteres escreveram que ele servira em pelo menos dois restaurantes e que trabalhara esporadicamente na indústria de roupas. Não foi provado que ele matou durante esse período, mas Benjamin Raspail afirmou que sim.

Trabalhava na loja de curiosidades onde eram feitos ornamentos com borboletas quando conheceu Raspail e viveu à custa do músico por algum tempo. Foi nessa ocasião que Gumb ficou obcecado por mariposas e borboletas e por suas metamorfoses.

Depois que o músico o deixou, Gumb matou o novo amante de Raspail, Klaus, decapitou-o e esfolou-o parcialmente. Mais tarde encontrou com Raspail na Costa Leste. Sempre atraído por rapazes maus, Raspail apresentou-o ao Dr. Lecter.

Isto foi provado quando, uma semana depois da morte de Gumb, o FBI requisitou do parente mais próximo de Raspail os teipes das sessões de terapia do músico com o Dr. Lecter.

Anos atrás, quando o Dr. Lecter foi declarado louco, os teipes das sessões de terapia foram entregues às famílias das vítimas para serem destruídos. Contudo, os briguentos parentes de Raspail guardaram os teipes, esperando poder usá-los para anular seu testamento. Haviam perdido o interesse em ouvir as fitas iniciais, que eram apenas cansativas reminiscências escolares de Raspail. Após a cobertura pela imprensa do caso Jame Gumb, a família Raspail ouviu o resto. Quando os parentes telefonaram ao advogado Everett Yow e o ameaçaram de usar os teipes num novo ataque ao testamento de Raspail, Yow telefonou para Clarice Starling.

Os teipes incluíam a sessão final, quando Lecter matou Raspail. Mais importante ainda: revelam tudo quanto Raspail contara a Lecter sobre Jame Gumb.

Raspail disse a Lecter que Gumb era obcecado por mariposas, que tinha esfolado pessoas, que matara Klaus, que tinha um emprego na companhia de roupas de couro Mr. Hide em Calumet City, mas estava extorquindo dinheiro de uma velha senhora em Belvedere, Ohio, que fazia forros para as roupas de Mr. Hide S.A. Um dia Gumb iria roubar tudo o que a velha senhora tinha, prognosticou Raspail.

— Quando Lecter soube que a primeira vítima era de Belvedere e que fora esfolada, ele descobriu logo quem o estava fazendo — disse Crawford a Starling enquanto escutavam juntos o teipe. Ele teria entregue Gumb a você e pareceria um gênio se Chilton não se tivesse metido.

— Lecter deu-me uma pista escrevendo na pasta do arquivo que os locais onde apareciam as vitimas eram “ao azar” demais observou Starling. — E em Memphis ele me perguntou se eu costurava. O que queria ele, afinal?

— Apenas divertir-se — respondeu Crawford. — Ele tem estado a se divertir por muito, muito tempo.

Não apareceu nenhuma fita sobre Jame Gumb, e suas atividades após a morte de Raspail foram estabelecidas pouco a pouco através de correspondência sobre negócios, recibos de gasolina, entrevistas com donos de butiques.

Quando a Sra. Lippman morreu, numa viagem para a Flórida com Gumb, ele herdou tudo: o velho edifício com sua parte habitável, uma fileira de lojas vazias, um vasto porão e boa quantidade de dinheiro. Deixou de trabalhar para Mr. Hide S.A., mas manteve um apartamento em Calumet City por algum tempo; e usava o endereço do negócio para receber pacotes em nome de John Grant. Tinha uns poucos clientes preferenciais e continuava a viajar para butiques por todo o pais, como fazia para Mr. Hide S.A., tomando medidas para roupas que confeccionava em Belvedere. Aproveitava suas viagens para procurar vítimas e para livrar-se delas depois de usá-las. O furgão marrom roncava horas a fio pelas estradas interestaduais com roupas de couro bem acabadas balançando em cabides na parte traseira, por cima de sacos estofados com borracha para corpos que viajavam no chão do veículo.

Tinha ainda a maravilhosa liberdade do porão. Espaço para trabalhar e para divertir-se. A principio eram apenas jogos: perseguindo mulheres jovens através da sombria prisão, criando divertidos quadros em quartos afastados e cerrando-os, abrindo as portas unicamente para jogar um pouco de cal.

Fredrica Bimmel começou a ajudar a Sra. Lippman no último ano da vida da velha costureira. Fredrica fora apanhar trabalho na casa da Sra. Lippman quando conheceu Jame Gumb. Fredrica não foi a primeira jovem mulher que ele matou, mas foi a primeira que matou por causa da pele.

As cartas de Fredrica Bimmel para Gumb foram encontradas entre as coisas dele.

Starling mal conseguiu ler as cartas, por causa da vã esperança nelas contidas, por causa da terrível necessidade que percebia nelas, por causa das palavras carinhosas de Gumb que ficavam implícitas nas respostas dela: “Meu Muito Querido Amigo Secreto do Meu Coração, eu te amo! Nunca pensei que viria a dizer isso, e o melhor de tudo é dizê-lo de novo!”.

Quando teria Gumb se revelado a ela? Teria Fredrica descoberto o porão? Como se alterara sua fisionomia ao vê-lo mudar, por quanto tempo a mantivera viva?

Pior que tudo: Fredrica e Gumb foram realmente amigos até o final; do fundo do poço ela escreveu-lhe uma nota.

Os tablóides trocaram o apelido de Gumb para Mr. Hide, e aborrecidos porque não haviam pensado no nome por si mesmos, virtualmente recomeçaram com toda a história.

Em segurança no interior de Quântico, Starling não tinha que haver-se com a imprensa, mas os tablóides cuidaram dela.

O National Tattler comprou do Dr. Frederick Chilton os teipes da entrevista de Starling com o Dr. Hannibal Lecter. O Tattler utilizou-se de suas conversas para a série Noiva de Drácula, dando a entender que Starling fizera cruas revelações sexuais ao Dr. Lecter em troca das suas informações, e chegou a fazer uma oferta a Starling para Velvet Talks: O Jornal de Sexo pelo Telefone.

A revista People publicou um artigo curto e agradável sobre Starling, usando fotografias do anuário da Universidade de Virginia e do Lar Luterano em Bozeman. A melhor foto era a do cavalo, Hannah, em seus últimos anos, puxando uma carroça cheia de crianças.

Starling cortou a foto de Hannah e a pôs na sua carteira. Foi a única coisa que guardou.

Suas feridas estavam cicatrizando.

      

Ardelia Mapp era uma grande professora — podia detectar uma pergunta para um teste numa conferência mais depressa do que um leopardo pode enxergar sua presa —, mas não era boa corredora. Ela dizia a Starling que ocorria porque ela estava muito sobrecarregada de fatos.

Ficara para trás de Starling na pista de cooper e só a alcançou junto ao velho DC-6 que o FBI usava para simulações de seqüestros. Era domingo de manhã, ambas tinham estado agarradas aos livros por dois dias, e o pálido sol era um prazer.

— Afinal, o que foi que Pilcher disse ao telefone? — perguntou Mapp, encostando no trem de aterrissagem.

— Ele e a irmã têm um lugar na baía de Chesapeake.

— Sim, e daí?

— A irmã está lá com os cachorros e as crianças, e talvez também com o marido dela.

— E daí?

— Eles ocupam uma das alas da casa, é um casarão velho à beira d’água que herdaram da avó.

— Vamos ao assunto.

— Pilcher é dono da outra ala da casa. E nos convida para ir lá no próximo fim de semana. São muitos quartos, ele assegura.

“Tantos quartos quantos se possa necessitar.” Acho que foi isso que ele disse. A irmã ficou de telefonar e confirmar o convite.

— Não brinca... Eu não sabia que as pessoas ainda faziam isso...

— Ele diz que é bom cozinheiro. E a irmã confirma.

— Oh! Então ela já telefonou.

— Sim.

— Que tal lhe pareceu?

— O.K. Parecia que ela estava no outro lado da casa.

— O que você lhe respondeu?

— Respondi: “Sim, muito obrigada, muito obrigada”, foi o que eu respondi.

— Muito bem — disse Mapp. — Creio que será bom. Vamos comer alguns siris. Pegar Pilcher e dar-lhe umas beijocas no rosto, isso divertir-nos!

— Ele descreveu um belo cenário: nada de cerimônias, agasalhe-se bem e vá passear na praia, volte para casa e à sua espera há um belo fogo de lareira, cães pulando por cima de você com as patas cheias de areia.

— Muito poético, ai-ai! Grande patas sujas de areia. Continue.

— É muita bondade da parte dele, considerando que nunca ti vemos nem mesmo um encontro. Ele diz que se dorme melhor com dois ou três cães dos grandes quando faz realmente frio. Diz que há cães suficientes para cada pessoa dispor de uns dois.

— Pilcher está preparando você para o velho golpe do conforto e paz de espírito, você já percebeu isso, não?

 

Ao longo de um espesso tapete no corredor do Marcus Hotel, o garçom de serviço nos quartos empurrava um carrinho.

Diante da suíte 91 ele parou e bateu suavemente na porta com a mão enluvada. Inclinou a cabeça para o lado e bateu de novo com mais força para ser ouvido acima da música que soava no aposento — Bach, Invenções de duas e três partes, Glenn Gould ao piano.

— Entre.

O cavalheiro com a atadura em cima do nariz, vestido com um robe, escrevia em sua mesa.

— Ponha ao lado da janela. Posso olhar o vinho?

O garçom trouxe o vinho. O cavalheiro examinou-o contra a luz da sua lâmpada de mesa e encostou no rosto a parte superior da garrafa.

-— Abra-a, mas deixe-a fora do gelo — disse, e autorizou uma generosa gorjeta embaixo da nota. — Não vou prová-lo agora.

Não queria que o garçom lhe servisse o vinho para provar achava o cheiro da pulseira do relógio do homem desagradável.

O Dr. Lecter estava de excelente humor. Sua semana fora excelente. Sua aparência vinha melhorando e, tão logo algumas pequenas manchas desaparecessem, poderia tirar as ataduras e posar para as fotos de um passaporte.

O trabalho estava sendo feito por ele mesmo: pequenas injeções de silicone no nariz. A gelatina de silicone não era um item que exigisse receita médica, mas a parte injetável e a novocaína eram. Contornou essa dificuldade roubando uma receita numa movimentada farmácia próxima ao hospital. Apagou os garranchos do médico com fluido de correção de datilógrafa e fez cópias fotostáticas da receita em branco. A primeira receita que preencheu, uma cópia da que roubara, foi devolvida à farmácia, de modo que nada ficou faltando.

O efeito do nariz de silicone sobre os seus traços não era agradável, e ele sabia que o silicone se deslocaria se não tomasse cuidado, mas aquele serviço serviria até que ele chegasse ao Rio.

Quando seus hobbies começaram a absorvê-lo — muito antes da sua primeira prisão — o Dr. Lecter fizera provisões para uma época em que poderia tornar-se um fugitivo. Na parede de uma cabana de férias no rio Susquehanna escondera dinheiro e credenciais de outra identidade, incluindo um passaporte e os cosméticos que usara para tirar as fotos para o passaporte. Este, já estava vencido, mas podia ser renovado rapidamente.

Preferindo ser guiado através da alfândega com uma grande placa de turista sobre o peito, já se havia inscrito para um tour que tinha um nome horrível: “Esplendor da América do Sul”, que o levaria até o Rio.

Lembrou-se de que seria melhor assinar um cheque do falecido Lloyd Wyman para pagar a conta do hotel e ganhar uns cinco dias de folga enquanto o cheque era processado no banco, em vez de mandar um débito da American Express direto para o computador.

Nessa noite ele estava pondo em dia a correspondência, a qual teria que enviar através de um serviço de reenvio em Londres.

Primeiro mandou a Barney uma generosa gratificação e uma nota de agradecimento por suas muitas gentilezas no hospital-prisão. A seguir fez um bilhete para o Dr. Chilton, que estava sob custódia federal, sugerindo que iria fazer-lhe uma visita em futuro próximo. Depois dessa visita, escreveu, faria sentido o hospital tatuar na testa do Dr. Chilton instruções para alimentá-lo, a fim de economizar papel...

Por fim, serviu-se de um copo do excelente Batard-Montrachet e endereçou uma carta a Clarice Starling:

 

Bem, Clarice, as ovelhas pararam de balir? Você ainda me deve uma informação, como bem sabe, e isso é o que eu gostaria que você fizesse.

Um anúncio na edição nacional do Times e no International Herald Tribune no primeiro dia de qualquer mês será ótimo. É melhor publicá-lo também no China Mail.

Não ficarei surpreso se a resposta for sim e não. Por enquanto as ovelhas vão ficar quietas. Mas, Clarice, você se julga com toda a piedade das balanças da masmorra em Threave; você terá que aprender de novo e de novo, o abençoado silêncio. Porque ele é o compromisso que guia você, enxergar o compromisso, e o compromisso jamais acabará, jamais.

Não faço planos de procurá-la, Clarice, o mundo fica mais interessante com você dentro dele. Certifique-se de estender-me a mesma cortesia.

O Dr. Lecter encostou a caneta nos lábios, olhou para o céu escuro da noite e sorriu.

Tenho janelas.

Órion agora está acima do horizonte e, próximo a ele, Júpiter, mais brilhante do que jamais será de novo antes do ano 2000. (Não tenho a intenção de dizer-lhe que horas são e qual é a sua altura...) Mas espero que você também possa vê-lo. Algumas de nossas estrelas são as mesmas, Clarice.

Hannibal Lecter

 

Muito para leste, nas costas da baía de Chesapeake, Órion estava alto na noite clara, por cima de uma casa antiga e grande e de um quarto onde o fogo fora abafado para a noite, sua luz bruxuleante soprada pelo vento acima da chaminé. No grande leito existem muitos cobertores e, sobre eles e por baixo deles, vários cães grandes. Volumes adicionais por baixo dos cobertores podem ser ou podem não ser Noble Pilcher, é impossível determinar com a luz ambiente. Mas o rosto sobre o travesseiro, rosado pela luz da lareira, é certamente o de Clarice Starling, e ela dorme profundamente, no silêncio das ovelhas.

Em sua nota de condolências para Jack Crawford, o Dr. Lecter faz uma citação de “The Fever” sem incomodar-se de dar o crédito a John Dorme.

A memória de Clarice Starling altera linhas de T.S. Eliot em “Ash-Wednesday” para sua própria satisfação.

 

                                                                                Thomas Harris  

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

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