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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SOLAR DA FALÉSIA / Theresa Charles
O SOLAR DA FALÉSIA / Theresa Charles

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

O SOLAR DA FALÉSIA

 

A casa tinha sido construída sobre um enorme rochedo, que se erguia na enseada. Assim, tínhamos uma praia priva­tiva. Quando a maré enchia, a varanda do meu quarto lem­brava o convés de um navio. Daí admirava as vagas quebran­do-se de encontro às rochas escarpadas, que formavam de­graus, polidos pelo vento e pela água.

Uma escada de ferro dava acesso a essa escadaria cavada nas rochas, que eu subia e descia centenas de vezes, quase todos os dias, desde que tive idade de o poder fazer. Conhe­cia todas as curvas, todos os degraus, todos os pontos lisos ou escabrosos, todas as anfractuosidades em que as marés altas depositavam água e limos. Subia-os sempre a passo fir­me, como um cabritinho, sem pensar que pudessem ser trai­çoeiras. Só dessa vez, a única em que a pressa era de vital importância, escorreguei e cai... segundo me disseram.

Não me recordo de ter caído e era o que me desnorteava. Por certo devia lembrar-me desse momento horrível, ao sen­tir que escorregava... ao ver-me resvalar e ir de encontro aos implacáveis rochedos, onde me foram encontrar.

Por que razão não me recordava disso? Não era por ter perdido a memória, pois que, aqui deitada, com os olhos completamente fechados, podia visionar todos os pormenores da casa e da praia; podia sentir o doce contacto da areia dourada, ainda húmida, debaixo dos meus pés; podia ver a branca espuma do mar e as enormes vagas rolarem umas após outras e quebrarem-se na areia. Em imaginação, mergulhava nelas, saboreava o rico travo do sal e a carícia gelada da água. Podia ver o pai, distante, para além da rebentação das ondas, acenar-me alegremente e limpar os negros cabelos, todos molhados.

Podia voltar mais atrás, aos dias em que ele ainda me levava ao colo para o meio da rebentação das vagas; podia

recordar as minhas primeiras lições de natação, as minhas primeiras tentativas para atravessar as ondas, agarrada, de­sesperadamente, a uma velha prancha gasta pelo tempo. Po­dia recordar hora a hora, quando íamos nadar com o mar calmo ou encapelado, em dias de sol e em dias pardos ou ventosos. Podia recordar a primeira vez que o David praticou a caça submarina... mas não podia lembrar-me dessa tarde fatal.

Nesse ponto, a minha memória falhava. Era como um borrão, como uma fotografia desfocada. Tinha uma vaga ideia de nuvens brancas correndo sobre o mar (um mar azul de Maio) e da sensação do frio da água, quando, encharcada, fiquei na praia a olhar para o pai. Além disso, nada mais podia ver. Apenas podia sentir, sentir umas mãos geladas que agarravam com força os meus ombros, e o coração a bater, parecendo estalar. Depois... nada mais, só o terror... a impressão de que um monstro marinho nos agarrava e arre­messava, a seguir, para o negro abismo insondável.

Os meus pesadelos terminavam ali. Despertei, respi­rando com dificuldade e soluçando, mas sem nada descobrir. Quando voltei à realidade, as enfermeiras não sabiam como me haviam de tocar. Senti uma mão carinhosa que queria mover-me e lutava pela minha vida, mas não podia, nin­guém podia compreender essa reacção violenta. Nem eu tão-pouco, porque não tinha sido nenhum monstro marinho que nos prendeu e destruiu.

Voltei-me para o lado, para procurar afastar a ideia desse mar cruel, que o pai amava com paixão. Visionei a frente da casa; a areia derramada no estreito vale; vi o sol a brilhar, reflectindo-se nas vidraças; os renques de túlipas multicolo­res ondulando com a brisa...

O nosso vale era abrigado. Estava sempre quente, períti­mado e colorido, com a serena beleza impressa nas capas das ilustrações e nos catálogos de jardinagem.

Como uma criança, fiquei maravilhada. Acreditei que es­tava protegida pelo encanto mágico do vento e da tempesta­de, fora do mundo.

A avó começou a cultivar as flores, depois de ter herdado a Vila da Falísia, o abrigado vale e um limitado rendimento. Fez tudo quanto foi possível para educar o meu pai e conser­var um certo conforto. Mais tarde, o pai acrescentou as estu­fas. O mar foi o seu primeiro amor mas, depois de ter aban­donado a Marinha, dedicou-se a aumentar o jardim. Come­çou por experiência e, com a ajuda de um hábil químico, desenvolveu a indústria de adubos e produtos químicos, que lhe proporcionou uma pequena fortuna.

Em imaginação, embrenhei-me no caminho poeirento das estufas. Senti o trinco da porta sob os dedos, mas não a pude abrir. Tive medo. Voltei-me de costas e abri os olhos. Contemplei as brancas paredes nuas daqucle quarto estranho, mas já familiar. Vi as jarras com flores, a rima de livros e revistas, cheirando ainda ás tintas da tipografia; as minhas escovas, verdes e prateadas, colocadas com elegância em cima da cómoda; o roupão verde pendurado atrás da porta, e o aparelho de rádio numa mesa pequena, destinada a esse fim. A janela estava aberta e o sol cobria o sobrado encerado.

Tudo era natural e agradável, num quarto particular de convalescente, não para um fantasma perseguido por pesade­los. Era um quarto belo e aprazível, o melhor que se pode dar aos doentes que pagam bem. Nada fazia lembrar a horrí­vel tragédia. As novelas, que me traziam para ler, tinham sempre desfechos felizes. Sobre todas as portas deviam ter escrito esta legenda: «Todós os dias, em qualquer lado, co­meçamos a melhorar.» Não podia convencer-me que um doente morria ali. Era uma ingratidão para o hospital.

Algumas vezes, preferi ter ficado na enfermaria geral, para conhecer outras dores e esquecer a minha. Gostava de saber quem tinha escolhido aquele refúgio, mas nunca per­guntei. Depois de me levarem para lá, estive dias e noites sem saber onde estava. Tinha-me perdido num negro abismo de horroroso sofrimento, e nem estava certa se realmente vivia ou não, depois das operações a que ffii subme­tida.

A pouco e pouco, comecei a conhecer vozes e mãos, mas estava apática. Por fim, quando me tiraram os pensos e as ligaduras, vi a minha gaiola branca e aceitei-a com simpatia. Era o local apropriado para a filha de um homem rico, uma jovem coberta de equimoses. Para repousar, afastei qualquer necessidade de pensar ou agir só por mim.

Ouvi vozes e o som de passos no corredor. Sempre tive o ouvido apurado, mas ainda se tornou mais durante as sema­nas em que tive os olhos vendados. Voltei-me para o lado, fechei os olhos e fingi dormir. Tinha reconhecido a voz do Dr. Tayne. Vendo-me assim, talvez julgasse que tinha ador­mecido e se retirasse sem me incomodar. Recentemente, mostrava uma louca persistência em me levar para o mundo de que estava isolada.

Não pensava na visita do médico que me tinha operado. Era taciturno, de meia-idade e com evidente desinteresse profissional por mim. Ao contrário, o Dr. Tayne, um novo no oficio, viu-me como uma pessoa que lhe despertou curio­sidade.

A porta abriu-se e uma voz jovem exclamou:

-Miss Phelim, está aqui o senhor doutor Tayne, para a ver.

Não me movi; não disse chus nem bus. Ouvi o som leve da bata da enfermeira, ao voltar-se para o médico, enquanto murmurava:

- Não creio que esteja a dormir. Está assim quase sem­pre. Não quer ler, nem ouvir rádio, nem ver ninguém.

- Ainda continua assim? É tempo de sair daqui -disse o médico.   Pode levá-la a dar um passeio ao jardim.

- Já tenho tentado, senhor doutor.

Mostrava-se pesarosa, ao comentar o fracasso da tentati­va. Não foi por querer acolhê-la mal, pois era uma das enfer­meiras com que mais simpatizava. Parecia muito nova e, com o rosto redondo e corado, cabelos castanho-claros e olhos castanhos, lembrava uma garota. Tinha procurado in­teressar-me por outros doentes e, quando recusava respon­der-lhe, olhava para mim, como uma criança desanimada.

Aproximou-se da cama e puxou uma cadeira para o me­dico. Ele sentou-se e tomou-me o pulso. Ao sentir o firme contacto dos seus dedos, vi-me obrigada a abrir os olhos.

-      Então? Que tal vamos hoje? - perguntou com afabi­lidade.

-      Não posso calcular como o senhor doutor se encontra, nem me interessa - respondi bruscamente. - Eu estou como estava ontem e como hei-de estar amanhã.

Ele sorriu. Era um rapaz simpático, de cabelos bronzea­dos, bigodinho e olhos vivos, cor de avelã. Tinha bonitas maneiras; era simples e calmo. Em ar de censura, disse:

-      Não esperava encontrá-la ainda de cama. Deve levan­tar-se e ir ao jardim, gozar este belo sol.

-      Não me quero levantar nem sair.

-      Porquê? Bem sabe que não pode ficar aqui indefinida­mente. Nada mais lhe podemos fazer. Está já em convales­cença e deve ir para casa.

-      Para casa? Ai, não! Não posso! - respondi allita. -Não posso ficar em casa sem o David.

-      O David?

-      Sim, o meu pai. Sempre o tratei por David. Era muito jovem para ser pai. Casou com vinte anos; tinha vinte e dois quando eu nasci e a minha mãe morreu. Era para mim como um irmão mais velho. Parecia muito novo e era-o pelo temperamento.

-      Naturalmente, a sua morte foi um rude golpe para si...

-      Devia ter morrido também. Não sei por que não morri.

-      Um desgosto não é motivo para fazer parar a vida. Tem que se levantar e sair. Precisa coragem, e, quem sabe o que a espera na próxima curva do caminho!?...

-      Seja o que for, não pode ser o David. - Fiz uma careta. - Não posso ter alegria. O senhor doutor não pode avaliar o horror das frases convencionais.

-      Horror? - repetiu em eco. - Pesar, abalo e sur­presa, sim, mas horror, porquê?

- Não sei - desviei o olhar.

- Precisamos saber e havemos de descobrir. Você é uma rapariga inteligente, portanto deve compreender que tem de existir uma razão para esses pesadelos, e para a relutância que sente em encarar, de novo, a vida. Não pode prolongar a permanência aqui, nem evitar a saida.

Calámo-nos. O quarto ficou em silêncio, apenas se ou­vindo uma borboleta, que esvoaçava nas vidraças. Como se fosse um dever, durante alguns segundos, não tirei os olhos dela, para admirar o seu fútil bater de asas. A enfermeira Schaster, que andava de um lado para outro, aproximou-se da janela. Com jeito, colocou as mãos em concha, apanhou o insecto e deitou-o para o jardim. Um pouco irresoluta, àprocura do sol, a borboleta voou, cambaleante, como se ti­vesse magoado as asas contra os vidros da janela.

A enfermeira, baixa e roliça, de bata leve, avental e touca branca, parecia uma garota, a brincar aos hospitais. Contudo, eu sabia que era uma das mais competentes. Olhou de relance para o médico que disse, como por acaso:

- E se tomássemos uma chávena de chá? O chá calha muito bem com a conversa.

A rapariga corou, como se já estivesse prevenida e se tivesse esquecido, ficando atrapalhada sem saber o que havia de fazer.

- Muito bem, senhor doutor - respondeu, ao retirar-

-se imediatamente.

Ele voltou-se para mim.

- Vamos esquecer que somos médico e doente. Não pode ver em mim um amigo, em quem pode confiar? Não acha que somos bons amigos, Adele?

- Somos? Não sei... Para que me aborrece com pergun­tas? - repliquei enfadada.

- Creio que tenho sido muito paciente, mas já não há muito tempo para esperar. Soube pela enfermeira-chefe, que a sua madrasta vem cá amanhã, à tarde, convencê-la a ir para casa. Antes da sua partida, precisamos saber um certo nú­mero de coisas.

- A minha madrasta? A Deidre aqui? Não quero vê-la! Não posso ir para casa. Não estou capaz de regressar a casa!

- exclamei num crescente desespero. - Ainda tenho pesa­delos e dores de cabeça. Sinto-me desnorteada. Há qualquer coisa que não percebo, mas sei que está obscura.

- Esses pesadelos e as dores de cabeça são, simplesmen­te, sintomas nervosos. Se for boa pequena e usar os óculos, daqui a seis meses tem a vista perfeitamente normal.

Pegou nos óculos escuros, que estavam em cima da me­sa, e deu-mos. Pu-los, com relutância mas, instantaneamen­te, foi como se estivesse a ver por um binóculo. Distingui no médico, uma figura jovem, com um belo sorriso. Vi o seu olhar, em que transparecia a gentileza, e os seus lábios em que li afeição e zombaria.

- Sempre vi bem ao longe, mas ao perto, não. Na esco­la, usava óculos, mas depois deixei-me disso. O pai não gos­tava. Dizia que estragava a beleza e me prejudicava a expres­são. Tinha esta teoria, que eu respeitava.

- Era um contra-senso!

- Era a sua maneira de pensar. Também não me dei­xava cortar o cabelo, nem pintar as unhas. Tinha uma ideia definida sobre o modo que lhe agradava ver-me.

- Era um pouco egoísta e senhor absoluto.

- Senhor absoluto, sim, mas egoísta, não. O David nunca foi egoísta! - repliquei indignada. - Era o melhor pai que uma rapariga podia ambicionar. Fazia tudo por mim... e eu... entao... deixei-o afogar!

- Também se ia afogando - lembrou-me. - Fale! Deve ter, na sua ideia, alguma coisa que a perturba. Não pode confiar-ma?

Era difícil resistir àquele tom e àquele modo de investi­gar. Porque não havia de lhe confiar o que pensava, e ver qual era a sua reacção? Precisava convencê-lo de que não es­tava em estado de ir para casa, e comecei a falar.

- Eu trazia o pai a reboque e não sei explicar o que aconteceu. Julguei que ele tinha cãibras, e estava quase a che­gar à praia, quando alguém me puxou e mo fez largar. Esse alguém empurrou-me e bati com a cara na rocha. - Falei com precipitação, sem olhar para o meu interlocutor.

-      Não pude subir os degraus e escorreguei. Houve alguém que me empurrou e me quis matar.

Tinha despejado o saco; soltei um fúndo suspiro e come­cei a chorar. Não pude avaliar a sua reacção. Estava de novo perdida nesse horizonte frio e escuro. Ouviu-o repetir, num tom estranho:

-      Adele!... Adele...

A enfermeira voltava com o chá. Ouvi o tinir das cháve­nas. Colocou o tabuleiro sobre a mesa, que puxou para o

lado da cama. Curvou-se para me arranjar as almofadas e

ajudar a enfiar os braços num casaquinho de flylofl.

-      Obrigada, Sue - disse ele, pensativo.

Está tudo bem? - perguntou, tornando a corar.

-      Está, sim, obrigado!

A enfermeira retirou-se e vi-me obrigada a olhar para o médico.

-      Agora, diga-me, senhor doutor, se tudo o que sofro são ilusões; se preciso ser vista por um psiquiatra. O que lhe parece?

-      Não creio. O doutor Fritz-Jones tratou-a muito bem. Não lhe encontrou nada no cérebro - respondeu calmo e com naturalidade.

-      Se eu tivesse chegado a subir os degraus, podiam dizer que tinha escorregado, mas sei muito bem que não os subi - acrescentei em voz sumida.

-      Veja se pode explicar-me mais claramente! Lembre-se que não vi o local onde se deu a tragédia. Conte-me a histó­ria desde o começo! Talvez me ajude...

-      Não ajuda nada. Estou farta de pensar, de cismar... e nada se explica.

-      Tente! Estava a nadar com o seu pai, quando perce­beu que ele não se sentia bem?

-      Não. A tarde estava fria e não fúi tomar banho. O pai estava ansioso por experimentar um novo equipamento de caça submarina. Foi o que me disse, enquanto se preparava.

Desci os degraus cavados na rocha e fiquei no areal, um ou dois minutos, a olhar para ele. Já ia para além da rehentação das ondas, fora de pé, quando o vi bater com as mãos e flutuar. Percebi que havia qualquer anormalidade. Deitei-me à água e nadei na sua direcção. Encontrei-o sem sentidos, puxei por ele, e era como se rebocasse um cepo.

-      É boa nadadora?

-      Sou. Tenho passado a vida dentro de água. O pai sabia que eu o podia agarrar, sobretudo por a maré estar a subir e ajudar. Junto ás rochas, a água tinha uma grande profúndidade e a espuma envolveu-me. Não vi nada...

vi    ninguém. Senti que me puxavam com força...

-      Não seriam algas, que a envolviam?

-      Tambem me lembrei disso. Lembrei-me que alguma enorme vaga me tinha levantado e projectado para longe, mas nada explica que me encontrassem nos degraus. Só se tivesse perdido a razão, por completo, senão ia a casa, pedir auxílio. Trepava a correr pelo atalho e chamava o BIair e os jardineiros. Contudo, primeiro arrastava o pai para a praia.

-      Onde foi encontrado?

-      Desamparado, a flutuar à superfície. Deve ter havido avaria na torneira do compensador. Não percebo... porque o pai costumava sempre verificar. O que recordo... é sentir umas mãos a puxarem-me e a empurrarem-me em seguida. Tudo isto é tão obscuro!... Estarei louca?

-      Não. Deve haver uma explicação qualquer.

-      Qual? Porque haviam de me querer matar?

Houve um breve silêncio, em que ele se encarregou de me servir o chá. As chávenas da China, as sanduíches e os bolos, frescos e apetitosos, eram mais adequados para um hotel de luxo do que para um hospital. Naturalmente, só um quarto particular, o melhor e mais caro podia servir para a filha querida de David Phelim... Para que estou agora com estes pormenores? O pai tinha para mim todas as atenções e carinhos. Eu aceitava os seus esbanjamentos, só para lhe dar prazer, não por lhes ligar importancia.

O    Dr. Tayne ofereceu-me uma chávena de chá.

Quando deitava açúcar na dele, veio-lhe à ideia a única coisa que ainda me não tinha ocorrido, a única coisa que podia dar um pálido sentido à minha alucinação.

-      O que a leva a dizer que tentaram matá-la? Porque diz isso, se não tem fúndamento para tão horrível suposição? Não teriam designado o seu pai para vítima?

-      O pai? O David? - Foi como se me esbofeteas­sem. - Ninguém lhe devia querer mal. Todos o estimavam.

-      Porém, acho essa hipótese mais provável. Ele morreu e você não. Se não alcançou a praia a nado, alguém a tirou da água. Não será disso que se lembra? De a agarrarem e traze­rem para a praia?

-      Não diz com as equimoses que tinha na cabeça.

-      Podia ter-se ferido, antes de a salvarem.

O coração batia desordenadamente; tinha a garganta se­ca. Teria sido assim? Era possível salvarem-me e deixarem morrer o pai? Quem seria? Quem? Podia jurar que ele não tinha inimigos...

-      Descanse e tome o chá!

Engoli o chá, automaticamente. Achei-o muito doce, doce em excesso. Não costumo deitar açúcar no chá nem no café, e ele usa com certeza. Notei no seu olhar um vislumbre de afeição, que fez estremecer os meus lábios. Devia querer que lhe contasse tudo, para me distrair, mas sem acreditar nos factos. Quem poderia acreditar?...

Com ar abstracto, comeu uma ou duas sanduíches. Pouco depois, disse:

-      Sente-se culpada de não ter salvo o seu pai, e é o que a atormenta.

-      Então, inventei um monstro desses, para me apo­quentar? E o que o senhor doutor pensa? Enlouqueci?

-      Eu não disse nada disso. Devo estar na posição de juiz, por não a conhecer antes do desastre. Como era? Obsti­nada? Resoluta? Estragada?

-      Não, nada disso, era a menina Phelim, a filha do David, a marca de fábrica.

Peguei numa ilustração e folheei-a até chegar ao anúncio.

Era uma página a cores, com esta legenda: «Bela como uma rosa.» Mostrava-me junto a um espelho, de cabelos caídos pelos ombros, a aplicar um creme de beleza. O artigo, que acompanhava a fotografia, dizia: «A encantadora Adele Phe­um sabe que os cosméticos podem aumentar e realçar a sua beleza juvenil.»

Outra fotografia colorida, esta de um canteiro de rosas, com os seguintes dizeres: «Milhares de jardineiros afirmam que o tratamento das plantas faz aumentar a beleza das suas flores.»

Mal pude olhar para aquela jovem, serena e sorridente, de cabelos sedosos e brilhantes, de tez bronzeada e olhos verdes e ternos, livre de preocupações. Numa outra imagem, envergava um roupão cor-de-rosa, propositadamente um pouco aberto em baixo, para deixar ver umas pernas bem modeladas. Uma jarra de rosas estava em cima da mesa, ao lado de frascos de cosméticos. Ao mesmo tempo que aspirava o aroma das flores, com os dedos compunha o roupão.

-      Aqui tem a menina Phelim - disse, ao entregar-lhe a revista.

Havia séries completas neste estilo: «Deliciosa, adorável, a bela Adele Phelim... é a mais popular a anunciar consecu­tivamente os produtos do pai.»

-      Está encantadora! Gosta disto?

-      De servir de modelo? Não sei; Sentia-me feliz por ajudar o pai.

-      A sua vida concentrava-se nele?

-      Era natural.

-      Natural, não. Era natural gas, colegas e admiradores.

-      Sim... contudo, ninguém Adorava-o!

-      Bem vejo.

-      Não o conheceu e parece não aprovar...

-      Gostava de saber o que tenciona fazer agora. Para onde vai?

-      Não tinha pensado, mas já resolvi. Vou para casa.

nunca pensei nisso.

viver para as suas... ami­

se comparava ao meu pai.

O    senhor doutor fez-me ver... Sentia horror e confúsão, mas deitei tudo para detrás das costas. Quero descobrir. Hei-de saber. Se alguém quis deixar morrer o David, há-de ser obri­gado a prová-lo e há-de pagar!

Deixe isso! Agora já não tem remédio.

Não penso assim. Julga que vou passar o resto da vida, atormentada por ter deixado cair o meu pai? - Aper­tei as mãos. - Não está satisfeito? Obrigou-me a contar porque tenho alucinações; incitou-me a confessar...

-      E fez-me partilhar desses pesadelos. Já não sei se gosto que vá para casa só. Prometa pôr-se em contacto comigo, sim?

-      Talvez. Não sei.

 

Na manhã seguinte, o Dr. Tayne veio ver-me. Não que­ria vê-lo metido nos meus assuntos.

-      Fiquei a pensar na nossa conversa de ontem - disse hesitante. - Embora tudo me pareça fantástico, não quero vê-la correr perigo algum.

-      O que receia? Se o senhor doutor tiver um inimigo, tudo fará para o encontrar e confúndir.

-      E muito arriscado.

-      Porquê?

-      Se for para casa, deve levar alguém consigo.

-      Mas... quem? O senhor doutor? Não creio que a me­nina Phelim tenha tenção de ter o médico em casa - res­pondi com ironia.

Ele corou.

-      Deve ter uma enfermeira. E aconselhável sob todos os aspectos. Já falei nisso à chefe, que lhe dispensa uma, por uma ou duas semanas.

-      Sim? Não é má ideia, concordo. Ainda me sinto um pouco fraca, e não quero cair nas mãos da minha madrasta. Era estúpido e humilhante.

-      A Adele é boa rapariga - disse prazenteiro. - Tem alguma preferência? A chefe lembrou-se da Baines

-      Oh, não! Essa é muito doutora. Quero sentir-me ape­nas com uma pessoa que vele por mim.

-      Bem! Pode combinar com a chefe.

-      Gostava da Sue Schaster, se quiser...

-      Estou certo que sim. E uma rapariga gentil.

Tinha curiosidade em saber se ele era tão pouco perspicaz como parecia. Apesar de absorvida pelas minhas tenebrosas preocupações, não me escapou que a Sue era grande adtnira­dota do Dr. Tayne. Não estava à vontade, na sua presença; Procurava não o ver, mas não resistia a olhar para ele, quando estava ocupado comigo. Quando a tratava por Sue, em vez de enfermeira, ela corava como uma criança tímida.

Já a conheço há anos - acrescentou. - Pode ter confiança nela.

-      Tem sido muito carinhosa.

Nessa manhã, ajudou-me a vestir, satisfeita por me ver resolvida a levantar. Procurava encontrar um vestido que não parecesse ficar-me pendurado no corpo, como num cabide. Agora, já não podia estar sedutora em roupão. Emagreci muito, enquanto estive doente, contudo não me preocupava com isso. Foi um prazer para a Susan, ataviar-me. Escolheu um vestido largo, de nylon, com mangas compridas, para esconder a magreza dos braços.

Parecia-me impossível ver-me vestida e sentada numa poltrona. Na cama, tinha mais possibilidade de recusar visi­tas, mas agora tinha que encarar a Deidre, sem pensar no que podíamos dizer uma à outra.

Como se adivinhasse o meu pensamento, o médico disse:

-      Mal aludiu à sua madrasta.

-      Nunca me convenci do lugar que ela ocupava.

-      Porquê? Quando a encontrei, pareceu-me encantadora e simpática. Estava preocupada consigo e admirava-se por não a querer receber.

-      Sim? Ainda bem.

-      Desgostou-se com o casamento do seu pai?

-      Ainda mais perguntas? Devia ter-se dedicado à advo­cacia, senhor doutor!

-      Estou interessado, mas não por mera curiosidade -respondeu aborrecido. - Era tão amiga do seu pai, que énatural ter sentido relutância em vê-lo partilhar a afeição que lhe dedicava.

-      Não, não fazia grande diferença. Claro que não foi agradável... Era melhor quando a avó vivia connosco... Só depois do fertilizador, o pai precisou de secretária. Foi um problema para encontrar uma conveniente, uma pessoa que não se importasse de viver no nosso vale isolado. Várias vezes lançámos a rede, antes de apanhar a Deidre. Foi ela a pri­meira a morder o isco e a cair no anzol.

-      Ah! Ela era secretária do seu pai?

Inclinei a cabeça. Foi como sempre a vi, uma rapariga alta, pálida, discreta. Tornámo-nos amigas, mas abriu-se uma barreira entre nós, pois nada nos podia aproximar. Quando chegou, disse ter vinte e nove anos, apesar de pare­cer muito mais velha. Eu tinha dezoito. Quis trabalhar no escritório, mas o pai não se convenceu. Precisava duma se­ctetária e eu era o seu ai-jesus, o símbolo da sua prosperida­de, a sua camarada favorita.

-      Apaixonaram~se?

-      Ao vê-lo todos os dias, julgo que ela se apaixo­nou. Que rapariga poderia resistir?... Ele nunca gostou muito dela.

-      Então, porque casou?

-      Foi depois da morte da avó. Pensou que eu precisava mudar de ambiente e convenceu-me a ir aos desportos de Inverno à Suíça, com umas colegas da escola. Eu não queria deixar o pai, mas o Blair, o sócio, apoiou a ideia da minha viagem que, segundo a sua opinião, me devia ser benéfica. Não me esqueço do aborrecimento que me causou a interfe­rência do Blair. Quando regressei, o David estava já casado.

-      Não sentiu ciúmes ou ressentimento?

-      Não. Se o visse apaixonado, é possível que sentisse, mas assim, não. Ele explicou-me que tinha saído com ela, várias vezes, e todos começaram a murmurar... ou ela imagi­nou que murmuravam. Foi a forma de ficar secretária perma­nente. E esperta, tomou interesse nos negócios, e o pai achou-a insubstituível.

-      Foi o que ele lhe disse? Não acha pouco lisonjeiro pata ela?

-      Porquê? O pai não pretendia ser protagonista de um romance, que fosse falado em toda a parte. Não me preocu­pei, mas... o ~ue podia fazer?

-      E ela? E interessante e simpática. Contentou-se com um casamento de conveniência?

-      Creio que devia ser isso, pois não precisava de ter casado. Não viviam sós. Tínhamos uma governanta e o BIair também vivia na nossa casa. Penso que a Deidre deve ter convencido o meu pai, servindo-se do receio do falatório. Ele foi sempre bom e generoso para toda a gente, e tinha pena dela, por não ter lar, nem nada de seu.

-      Um homem nunca deve casar por dó.

-      Oh! O pai era amigo dela, tenho a certeza. Confiava na Deidre, por ser dedicada. Foi um casamento feliz; não foi propriamente um casamento de conveniência. Davam-se bem, e nunca se zangavam.

-      E extraordinário o seu modo de ver, Adele! Há uma coisa... como dizer? O que você chama desfocada, talvez. O que pensa do sócio do seu pai? Qual é a sua opinião a respeito dele, no meio disto tudo?

-      Segundo me pareceu, não aprovou o casamento. Saiu lá de casa, e foi habitar uma vivenda, no cimo do vale, mas entre ele e o David não havia diferença alguma. Eram ami­gos íntimos, apesar de feitios opostos. A atracção das oposi­ções... O pai era alegre e cheio de vida; estava sempre bem disposto. O Blair é um pouco teimoso, um velho urso. Quando eu era pequena, era bom para mim. Eu gostava de o ajudar na escolha e na embalagem das flores. Depois, inven­tou os adubos químicos. O dinheiro começou a chover e ele começou a pensar que eu era um jovem ídolo turbulento. Não liga importância à beleza.

-      Foi ele o inventor do adubo?

-      Foi. O pai deu o capital e o Blair fez todo o trabalho, todas as pesquisas, sendo o pai responsável pela compra ou venda no mercado, e pela publicidade. O Blair nunca apro­vou que eu figurasse como marca da fábrica. - Movi-me impaciente. - Que mais pretende saber a nosso respeito?

-      Não tenho interesse particular em todos os doentes

-      respondeu com um ar significativo. - Você é uma doente especial.

Não sabia como havia de aceitar essa explicação. Fiquei perturbada e pouco à vontade. Passado um momento, o Ta­yne continuou:

-      Embora com o risco de perder o meu lugar aqui, devo tornar clara a minha posição: desde que a trouxeram para cá, fiquei fascinado. Teve o dom de me encantar mal a vi, não pelo aspecto fisico. Um médico vê inúmeras rapari­gas bonitas. Foi um sentimento íntimo, muito mais forte.

-      Por favor, cale-se! Não diga mais nada! Estou-lhe grata pela forma como me tem tratado; não vá estragar tudo!

-      Por que razão? - ficou pensativo, a olhar para mim, como uma criança, mas com um brilho de persistência nos olhos. - Não tenho sorte? Há outro homem de permeio?

-      Não sei, nem quero pensar. Estou desorientada e não posso dizer nada a tal respeito. Por favor! Por favor, esqueça todas essas ideias!

-      Não me peça para a esquecer, é impossível! Confesso-

-lhe, Adele, que nunca senti por outra rapariga, o que sinto por si!

-      Oh, querido! - exclamei irreflectidamente. - Não pense mais nesta conversa!

-      Não digo já. Ainda está sob a influência do choque, e desgostosa pela morte do seu pai, mas... só quero saber se me considera um amigo.

-      Isso, sim - respondi imediatamente. - Por favor, deixe ficar as coisas no pé em que estão!

-      Não indefinidamente - acrescentou. - Se quiser que vá vê-la a casa, telefone!

Hesitou. Moveu-se, enervado, e receei que viesse beijar-

-me. Pela expressão do seu olhar, percebi que era esse o seu desejo, mas, pela minha atitude, a sua dignidade profissional impedia que tal fizesse. Ouviu-o murmurar que devia fligir, e afastou-se precipitadamente.

Depois da difícil escapada, notei que estava a tremer. Era uma inesperada e desconcertante variação do velho tema: a atracção que as doentes e as enfermeiras exercem nos médi­cos. Nunca ouvi dizer o contrário.

Agora, reconheço que ele foi amável e atencioso em excesso. Se eu fosse menos indiferente ao que se passa à minha volta, tinha-o afastado da Sue. Assim, as visitas regulares e prolongadas faziam parte do seu serviço.

Não tinha dado pela chama que atraiçoou o seu olhar, senão depois de pôr os óculos. Continuo a usá-los, agora que

o     David não está presente para fazer objecção. Estive em riscos de ficar com a vista estragada, por causa das feridas que tinha na cabeça. Felizmente, as operações a que me sub­meteram deram resultado; contudo, não devia esforçar os olhos, que ficaram doridos e se cansavam com facilidade.

Veio-me à ideia que as enfermeiras pensavam que eu não queria usar óculos, por estúpida vaidade. Não podiam adivi­nhar que era por um sentimento de lealdade para com o pai. Estava satisfeita por ter explicado ao médico. Não gostava que me julgasse preocupada com a aparência, o que não era verdade, nunca tinha sido. O meu pai tinha orgulho nos meus olhos. Mais tarde, o Gastão professava as mesmas ideias, mas esse não me preocupava. Foi ele o causador da única discussão que tive com o David, e não podia ouvir o seu nome sem remorsos. O pai raras vezes se zangava, e nunca tinha ralhado comigo. Só nessa ocasião, quando lhe disse que namorava o Gastão Loire. O aborrecimento do pai, o choque que sofreu ao saber, e as suas censuras, deitaram-me abaixo. Foi como se me tivessem chicoteado. Saí magoada, desorien­tada e ressentida. Nessa noite, quando me fúi deitar, chorei.

Na manhã seguinte, o pai apareceu como se essa cena dolorosa não se tivesse dado. Á tarde, estava morto.

Agora estava tudo acabado com o Gastão. Enervava-me pensar que tinha advogado a sua causa. Se fosse possível o pai viver, não o faria mais, mas ele tinha morrido e não podia apelar para a sua opinião.

Se a Deidre lhe falou alguma vez no Gastão, nunca ouvi. É possível que falasse, por ele ser seu primo. Foi ela que o apresentou lá em casa, e o indicou para os serviços de publi­cidade. Todas as fotografias da encantadora Adele Phelim eram tiradas pelo Gastão. Era um artista. As suas fotografias coloridas ficavam uma maravilha.

Tornou-se visita da casa, a mais atraente e bem recebida. Integrou-se no nosso círculo familiar, o que me não fez com­preender a oposição do David a um romance de amor entre nós dois. A sua reacção aborreceu-me, e tencionava indagar qual era o motivo. Actualmente, prefiro não saber. Fechei a porta a tudo. A alegria e o desgosto desse primeiro amor foram empurrados para longe.

A enfermeira veio com a bandeja do almoço: filetes de linguado com cogumelos, batatas fritas à francesa e salada. Ela parecia vir radiante.

-      Miss Phelim, é verdade? O Rodney... o doutor Ta­yne disse que leva uma de nós, e deseja que seja eu.

-      Se quiser ir comigo...

-      Se quero? Estou a tremer de contente.

-      Porquê? - perguntei, francamente surpreendida. -A minha casa não é de encantar. É muito sossegada e reti­rada. É mesmo uma cova «A Cova dos Phelim», num vale abrigado, perto do Lizard. Vai-se por um caminho privativo, por isso nem temos turistas na praia.

-      Deve ser um paraíso, que muito gente ambiciona­ria. - Corou como uma criança. - Não pode fazer ideia do interesse que todos, aqui no hospital, têm por si, Miss Phe­um. Temos cá tido várias pessoas de nome, mas, a maior parte, de meia-idade ou muito idosas. Nunca aqui esteve nenhuma assim.

-      Mas... eu nao sou pessoa importante - disse a rir.

-      E, sim, todos sabem pelas notícias dos jornais. Reco­nhecemo-la logo, e tivemos receio que ficasse com cicatrizes. Tudo parece um romance e a menina Adele é a personifica­çao do verdadeiro encanto.

-      Deus do céu! Conheciam-me pelas fotografias? -perguntei embaraçada.

-      Conhecíamos. A que prefiro, é a que está de vestido de baile azul, uma em que está ao Pé de um espelho, com a legenda: «Beleza no lar.» Parece uma princesa.

Estremeci ao recordar como essa fotografia tinha ficado bem. Era a preferida do Blair. Houve certos aborrecimentos

com ele e o Gastão... O BIair vinha com um braçado de íris, para a casa do jardim, que servia de estúdio ao Gastão, mas parou a espreitar. Eu estava encantada com o vestido, um modelo de Paris e o melhor que tinha. O Gastão indicava-

-me a pose, puxando o vestido, e abrindo-o, para realçar mais o decote. De repente, o Blair rosnou:

-      Não faça isso! Deixe o vestido como estava!

-      Assim, fica mais atraente - retorquiu o outro.

-      Fica a dar mais na vista, o que é diferente.

O    Gastão arreliado, riu e replicou:

-      O senhor não tem que se meter no assunto. Não énada consigo! Ela deve fazer realçar a beleza do busto.

-      Para deleite do público? É repugnante! Não consinto! Essa pose é humilhante, Adele! Não fiques assim. Se esse homem quer fotografias de mulheres nuas, contrate modelos profissionais - disse o Blair gritando fúrioso.

Interpus-me, afiita.

-      O que é isso? Não façam tanto barulho!

Corei, ao ver o Blair a olhar para mim. Então, ele deu meia volta e afastou-se, com ar de urso mal-humorado.

-      Para gritar!... - exclamou o Gastão. - Se esse ve­lho rústico pensa que manda, pode tirar isso da ideia!

-      Deixa-o, não o conheces bem - murmurei envergo­nhada; puxei o vestido, abotoei-o e ele deixou-me ficar assim.

O    Blair raras vezes intervinha em casos que não eram directamente ligados ao seu cargo, embora o David lhe desse poderes. Eu e o Gastão achávamos graça e ríamos do pobre Urso pardo, contudo, o Gastão não estava em condições de o poder suplantar.

-      Essas fotografias encantadoras não a fa~iam tremer de contentamento, Miss Phelim? - perguntou a enfermeira.

-      Algumas vezes...

Não confessei que esse estremecimento não era causado pelos retratos, mas pelo fotógrafo. Ainda agora não posso ver sem uma ponta de orgulho e sem sentir o coração pulsar com mais força, esta, com a seguinte legenda: «Adubos Phelim, para melhores plantas. Fotografia de Gastão Loire.»

-      Ser bela deve ser uma felicidade! - exclamou a Su­san, com amargura.

Olhei para ela e fez-me pena. Uma rapariga rechonchu­da, com cara de bebé, cabelos e pele de cor indecisa, nunca pode ser fotogénica. Concluiu o curso de enfermagem, com brilhantismo; era de primeira ordem no trabalho e melhor não podia haver. Porque ambicionava a beleza, que é um produto de flores artificiais? E assim a natureza humana: 50 ambiciona o que não pode alcançar.

Teria a Deidre suspirado por um amor que o David lhe não podia dar? Ter-se-ia sentido ludibriada por uma mode­rada afeição? Os comentários do Dr. Tayne fizeram-me pen­sar: teria eu sido injusta para ela, sem motivo? Talvez tivesse sido injusta ao não a receber, quando veio visitar-me. Teria ela percebido que, já que não podia falar no pai, afastava todos que o tinham conhecido, perdida na minha própria amargura?

Mais tarde, quando a Sue a introduziu no meu quarto, parecia-me uma estranha. Vinha toda de preto, com um cha­péu grande e véu de viúva. O casaco era de moiré, igual ao vestido. Estava pálida e, o preto, cor que nunca usava, mais realçava essa palidez. Trazia sapatos e mala de pele de lagar­to, o que não lhe tirava o aspecto sombrio. Parou, à entrada da porta, e cruzou as mãos no peito. Depois, aproximou-as da cama e estendeu-me os braços.

-      Como estás, querida? Meteste-nos um susto!... Já es­tás melhorzinha?

As palavras saíam-lhe em tropel. Parecia que as trazia estudadas e as despejava de um saco. Parou para me dar um beijo e agarrou-me as mãos. As dela estavam frias, apesar de ~a tarde estar quente.

-      Olá! Sente-se!

Havia duas cadeiras estofadas, com um tecido estampa­do, que ficavam quase juntas, por a cama ocupar o espaço quase todo. Nunca tinha dado por a Deidre ser tão alta, conquanto fosse alta em excesso, para mulher. O que lhe valia era ser bem proporcionada, mas, nestes três meses de ausência, ainda a achava mais pesada.

Tirou o chapéu, porque a incomodava, e pô-lo em cima da cama. Nunca se sentiu bem de chapéu, por ter uma cabe­leira farta. Era loura e usava o cabelo comprido, preso atrás com um laço. Puxou uma almofada para apoiar a cabeça e ficou a olhar para mim, durante alguns momentos.

-      Pobre pequena! O que fizeste? Foram-se os teus lin­dos cabelos?

-      E natural. O operador não me podia tratar o cranio aberto e pôr os pontos, com os cabelos a caírem na ferida. Tiveram que mos rapar, mas tornam a crescer.

-      Estás diferente, arrapazada, o que não te calha nada. Além disso, faz frio e é desconfortável.

Os meus cabelos, que eram finos e sedosos, morreram. Agora, unem-se à cabeça, como um capacete, ou uma franja de penugem toda em volta.

-      Afinal, não tens nenhuma cicatriz - comentou, de­sapontada.

Gostava de poder saber se ela tinha inveja dos meus olhos e do orgulho que o pai tinha no meu fisico. Até agora, nunca me tinha ocorrido semelhante ideia. Éramos tão dife­rentes, em todos os aspectos, que nunca pensei que pudesse haver comparação.

- As cicatrizes existem, mas, por sorte, não estão àvista. Quer vê-las?

-      Não. É horrível! - riu contrafeita. - Já estás bem, e é o que interessa. Ainda pálida e triste, porém, a enfer­meira-chefe diz que podes ir já para casa. Na verdade, foi um milagre!

-      Sim, foi...

Seria motivo de regozijo ou não? É possível que, no seu íntimo, se sentisse magoada por o David ter morrido primei­ro. Era natural, era o seu marido... e eu... apenas a enteada. Devia ter ciúmes por o pai gostar tanto de mim. Afinal, também era natural, mas não antes de ter casado com ele.

Nunca devia pensar que, depois de ser sua mulher, ele faria qualquer diferença para mim.

-      Quando vais para casa?

-      Não sei. - Procurei ler no seu rosto, mas era muito dificil. O seu aspecto era impenetrável. - Quer que eu vá para casa?

-      Se quero? Valha-me Deus! O que julgas que tem sido aquilo para mim?

-      Tem sido horrível?

-      Intolerável! O vácuo... a solidão... o silêncio... Um silêncio apenas cortado pelo marulhar das vagas. Nunca ti­nha olhado para aquele celeiro, empoleirado nas rochas, como uma casa alegre. Sem o David... - calou-se e olhou para as mãos. - Ah! Não podes compreender! Nunca foste casada e ficaste viuva...

- O pai fora toda a minha vida, durante vinte e dois anos - repliquei impaciente.

- Não é o mesmo. Ainda tens na frente os melhores anos da tua vida. Hás-de casar...

Era melhor não continuar a conversa. Se ela não sabia a afeição que eu tinha ao pai, não estava disposta a mostrar­

-lha. Era estúpido e absurdo, comparar as nossa mágoas, e discutir sobre qual era a mais intensa. Com imparcialidade, disse:

-      Lastimo-a, Deidre! Sei que amava o David e deve sentir muito a sua falta.

Ela virava os anéis que tinha no dedo médio: a aliança de platina e o solitário, que o pai lhe tinha oferecido. Tinha as mãos brancas, com dedos compridos e unhas quadradas, gé­nero de mãos de homem. Enervada, logo me ocorreu que essas mãos tinham tido o poder de me afastar do pai e me atirar para as rochas. Por um segundo, olhei para elas com horror.

Apertei as minhas. Fosse qual fosse a antipatia que ti­vesse por mim, nem ela, nem ninguém, devia deixar o Da­vid abandonado, sem sentidos, dentro de água. Tinha sido seu marido e estimava-a. Que fosse minha inimiga, vá! Mas dele...

- Sim, é verdade - disse, revirando os olhos para mim. - Amava o David. Era tudo para mim, e ele amava-

-me mais do que pensavas. Disfarçava na tua frente, por não querer que sentisses ciúmes, porém, quando estávamos sós, era o amante ideal. - Sorriu, mas notei-lhe um certo em­baraço.

Todavia, feliz ou não na intimidade, essa ventura tinha terminado. Olhei para ela, com ar incrédulo. Os novos ócu­los tornavam-me a visao mais aguda. Seria deles, ou nunca a tinha examinado cuidadosamente? Como podia ter deixado de notar a curva sensual da sua boca e a languidez do seu olhar? Julgava-a reservada, fria, até mesmo sem coração. Descobria-lhe, agora, uma nova faceta. Teria o pai notado isso? Ter-lhe-ia correspondido? Teria imaginado que eu me sentia magoada, com esse afecto? Essa ideia chocava-me. O pai devia conhecer-me melhor e saber que eu só desejava a sua felicidade.

- Por vezes, ele era egoísta e exigente, mas nunca me viu aborrecida. Fazia-lhe todas as vontades, suportava, de boa cara, todos os seus caprichos. - Continuou: - Ago­ra...? Nem sei onde estou. Metida no Inferno. Tu é que te livraste disso e me deixaste só. Não leste nenhuma carta, nem viste ninguém. Deves ter pensado que estava paga para aguentar todos os trabalhos e problemas, da casa e da quinta.

-      E injusta, Deidre! Tenho estado no hospital, fiz três operações e não me achava em condições de me poder ocu­par, fosse com o que fosse. A maior parte do tempo, estive quase inconsciente, com os olhos ligados, durante seis sema­nas. Não tenho andado a divertir-me, desde que me trouxe­ram para aqui!

-      Bem sei! - exclamou em tom diferente. - Tiveste um período terrível, mas não precisavas recusar ver-me, nem ao Blair. Há um mês que esse belo médico me disse que podias receber visitas.

-      Não podia ver ninguém; não queria falar no David. Desculpe!

-      E o que a Adele Phelim quer, é o que interessa!

-      Já pedi desculpa. Não podemos esquecer isso? Fui egoísta, mas pode crer que o meu sofrimento ainda era maior.

-      Não ganhamos nada com recriminaçoes. Devemos vi­ver juntas, como o pai desejava - acrescentou precipitada-mente.

A porta abriu-se, e a enfermeira Baines entrou com o tabuleiro do chá, as habituais sanduíches e bolos. Quando se retirou, a minha madrasta disse, com ar pesaroso:

-      A enfermeira-chefe informou-me que uma delas vai contigo. É necessário? Não me agrada ver uma carranca de dragão, lá em casa.

-      A que vai comigo é nova e não é carrancuda - afir­mei. - A Bronwen tem-se feito dragão?

E uma mulher impossível, que não faz caso das mi­nhas ordens. Ignora-as.

-      Não é novidade. Ela sempre esperou por nós, para lhe dizermos o que tinha a fazer. Lembre-se que é uma institui­çlo da família.

-      E não sou da família? É isso que julgas?

Olhei para ela, admirada. Achava-a fria, capaz de só cui­dar de si, e via-a uma tagarela. A nossa velha governanta podia ser experimental, mas a Deidre falava nela com arro­gáncia.

-      Creio que foi criada do David e minha. Há cinquenta anos que está ao serviço dos Phelim. A avó entendia-se bem com ela e tinha paciência para a levar. Mas que tem isso, se ela dirige bem a casa?

-      Comigo, é insolente. Tornou impossível a permanên­cia do Gastão lá em casa. Quis metê-la na ordem, mas ape­lou para o BIair, que foi a seu favor, e o meu primo saiu.

Estive para perguntar onde estava o Gastão, mas não me foi possível pronunciar o seu nome. Com pesar, o seu retrato atravessou o meu espírito. Era alto, magro, de olhos azuis e cabelos ondulados, elegante, risonho, eloquente. Um perfil de camafeu. Vi as suas mãos airosas, de dedos delgados, e senti-as suaves, acariciando-me a pele. Senti o contacto dos seus lábios, que me beijavam com prazer, para me incitar e afligir.

Ela prosseguiu, sempre com rancor:

-      O Biair foi odioso. Nunca gostou de mim, nem do Gastão, mas, enquanto o David foi vivo, tinha de se coibir. Agora, está procedendo como se a casa fosse dele, a casa e a firma... Terminou o contrato do Gastão, sem uma explica­ção plausível, nem uma compensação.

-      Podia fazer isso?

-      Sei lá!... Recusa-se a discutir os negócios comigo, excepto...

-      Sim?

Pegou num bolo de creme, e comeu-o como se estivesse a morrer de fome. Mentalmente, devia estar trincando o Blair.

-      Não gostava de te dizer, mas tens de vir a saber. Ele Insinua que fizeram alguma trapaça... creio que é assim que dizem.

Com quê?

-      Nunca te interessaste pela firma, a não ser na publici­dade. Devias saber que, actualmente, não fabricamos adu­bos.

-      Já sabia.

-      O Blair diz que a fórmula foi alterada... adulterada, para diminuir o custo da produção e dar larga margem de lucro.

-      E verdade?

-      Não sei, não sou química, não posso analisar o con­teúdo das embalagens. O David tinha aperfeiçoado a fórmu­la, para aliviar a despesa. E cruel, ser acusado de desonesto, por um amigo, quando já se não pode defender.

-      Desonesto? - repeti. - O pai nunca fez nada que o pudesse envergonhar. Era incapaz de o fazer!

-      Foi exactamente o que eu disse ao Blair, e ele respon­deu que eu também estava metida no caso.

-      O Blair ousou dizer uma coisa dessas? Espere, que eu lhe direi! Hei-de ensiná-lo! - repliquei, ffiriosa.

-      Pensava nisso, quando te disse que devemos viver juntas, para defender a reputação do David.

Apesar da cólera, senti uma sensação de choque e ruína. Ainda argumentei:

-      Mas... o Blair... era amigo e sócio do David. Devia-

-lhe tudo. Estava sem dinheiro, nem emprego, quando o pai

o trouxe para a fábrica.

-      Tu não vês por baixo da superfície, julgas tudo garan­tido. O David e o Blair estiveram em desacordo, alguns me­ses antes da tragédia. O Blair tornou-se muito importante, um ditador. O David queria despedi-lo. Falou-me nisso, por estar ansioso por desabafar. O outro nunca disse nada.

-      O pai nunca me disse uma palavra a esse respeito.

-      Não quis. Eras a sua menina... o seu brinquedo. Eu éque arcava com os seus problemas... as suas preocupações...

- disse, com ar triunfante. - Tu, só agora, tens que os encarar. Metade das acções da firma ficou para ti, e metade para mim. Não sabias?

Abanei a cabeça. Parecia-me muito... imenso...

-      O David estava procurando aumentar bastante, para desfazer a sociedade. A escritura mencionava que cada sócio podia dissolver a sociedade, se comprasse, ao outro, as ac­ções, pelo seu devido valor. O que te digo é que foi uma sorte, para o Blair, a morte do David!

-      Não diga isso!

-      Porquê? E a verdade. Foram amigos, concordo, mas, desde a Páscoa, tinham violentas discussões. Por mais de uma vez, tive receio que chegassem a vias de facto.

-      Oh, não! Não é possível!

As paredes brancas fechavam-se em cima de mim. O eco da minha conversa com o médico chegava aos meus ouvidos. «Porque diz que a queriam matar? Porque não pensa que o seu pai era a vítima escolhida?» Foi o que ele me perguntou. Talvez fosse isso, pois ele morreu e eu não. Nunca julguei que o pai tivesse inimigos. Se acreditasse na Deidre, estava enganada.

O    Blair...? Pensei, com horror, nessa possibilidade.

O    Blair deixar morrer o David? Podia lá ser!... Com o seu ar rude e maneiras severas, sempre me protegeu. Não se ofen­deu por eu servir de modelo ás desonestas fotografias do Gas­tão?

-      Não? - a Deidre franziu a testa. - Não percebias que o Blair era um selvagem sem coração? Basta olhar para o seu passado.

-      O seu passado?

-      O David nunca te contou a história que encerra o pior acto da sua vida? Ele matou um homem e foi julgado por homicídio involuntário.

-      Não sabia. Como foi?

-      E uma história sórdida, imunda, uma contenda Por causa de uma mulher. O Blair tinha ficado preso pelo bei­..... Foi depois da guerra, e a defesa custou-lhe tudo o que tinha. Foi por isso que aceitou o oferecimento do David e se ocultou na Phelim, até tudo estar esquecido.

-      Que horror!

Preferia que ela não me tivesse dito nada. O mundo vira­va-se do avesso. O nosso querido e encantador vale era um paraíso de paz e a serpente veio ali ocultar-se. Não podia ser! Durante catorze ou quinze anos, o BIair e a Bronwen tinham feito parte da minha vida. Embora ás vezes me aborrecesse a sua protecção, encarava-o como um homem benevolente. Era mais novo que o David, mas parecia mais velho. Era um pobre homem feio, barbudo e com as mãos cheias de pêlos, como um urso. Quando era pequena, chamava-lhe o «Urso Pardo». Arreliava-o, provocava-o, mas não se zangava, nem eu tinha medo dele. Via-o leal, firme, digno de confiança, como a velha Bronwen. Era lá possível voltar-se contra o seu melhor amigo e benfeitor? Como podia ter retribuído os fa­vores, com acusações malévolas? Como podia ter-se tornado inimigo do meu pai?...

A minha madrasta encheu de novo a chávena. Eu dese­java saber se tinha vindo fazer intrigas, deliberadamente. Porque havia de mentir, quando eu podia, com facilidade, provar que eram falsas as suas alegações?

-      Sempre o achei um homem perigoso -~ continuou, sem rodeios.   Receava que o David o provocasse, mas ele, às vezes, tinha falta de tacto. Era imprudente zombar do Blair, ou falar-lhe na velha história.

-      E o pai falava?

-      Quando se exaltava... O outro calava-se, mas eu não gostava do seu olhar. Deitava maus olhos ao David e agora a mim.

Não sabia o que havia de dizer. Ela continuava a comer, mas eu esmigalhei o meu bolo no prato. Por fim, fiz a per­gunta que há semanas gostava de fazer.

-      O Deidre, quem me encontrou?

Ela olhou para mim, admirada.

-      O BIair, com certeza...

-      Oh! Ao fundo da escadaria?

-      Sim. Não sabias?

-      Está tudo tão confuso na minha memória...

-      Salvou-te. Viu que nada podia fazer pelo David, e dedicou-se a ti. Tentou estancar a hemorragia, embrulhou-te em cobertores e levou-te ao hospital.

-      E deixou o pai no mar?

-      Claro que não. Chamou os jardineiros e trouxeram-no para casa. Telefonei para o médico, que veio imediatamente, mas nada havia a fazer.

-      Tem a certeza? O Blair aplicou-lhe a respiração arti ficial?

Olhou para mim, de soslaio e respondeu:

-      Isso, não sei... mas de nada já servia. Ele morreu sufocado e não afogado. Na autópsia viram que não havia água nos pulmões. A máscara não resvalou.

Segundo o que ela disse, estava desfocada a minha foto­grafia da tragédia. Ninguém deixou o pai dentro de água, e, quando o reboquei para a praia, já devia estar morto. Seria

por acidente? Mas, como explicar aquelas mãos que me agar­raram e me obrigaram a largá-lo~... Estremeci.

-      Não te apoquentes, que não ganhas nada - conti­nuou ela. - Fizeste o que pudeste. Foi uma destas tragédias imprevistas, como se dão todos os dias.

-      O que me preocupa, é não saber a verdade.

Ela encolheu os ombros.

-      Porque estaria o tubo obstruído? Nunca se sabe... Já aconteceu o mesmo a outros caçadores submarinos, e há-de continuar a acontecer. Não pensemos nisso e dêmos gracas por estares salva.

Tive tentação de lhe contar as horríveis alucinações que tinha, mas calei-me. Ela não devia acreditar e, se assim não fosse, só podia ir-lhe aumentar a mágoa. A morte por aci­dente era menos dolorosa de aceitar (ninguém a podia prever) do que a ideia de ter sido deliberadamente planeada.

 

A Deidre foi compor-se ao espelho e pintou os lábios com háton cor de coral. Ao vê-la só me ocorreu isto: «Que dentes tão grandes, avó! - São para te comer melhor, que­rida.»

Nessa tarde, tinha-me dado algumas dentadas; desejei que as sentisse ainda mais do que eu. Pelas suas palavras:

«Agora que o David morreu...» vejo o que posso esperar. No tempo do pai, nunca virou os dentes para mim, nem ele o consentia. Ao olhar para esse tempo passado, admiro a submissão dela e, ao mesmo tempo, vejo quanto o procedi­mento do pai a devia humilhar.

Ainda não vai longe a época em que o pai, adorado e indulgente, me protegia do menor sopro de crítica.

Olhei para a cama feita, com vontade de meter a cabeça entre a roupa, mas já era tarde. Tinha posto os óculos e deixado o mundo para trás.

Parou a cheirar as rosas, que estavam em cima da cómo­da, e perguntou com curiosidade:

-      São lá de casa?

-      São. O Blair tem-me mandado flores, duas vezes por semana. Cheiram sempre tão bem que, mesmo quando não as podia ver, dava pelo seu aroma.

Estas belas flores têm sido estímulo e tormento. Nas se­manas de fraqueza e cegueira, quando ainda sofria mais, os aromas conhecidos davam-me a ideia de que ainda existia, e havia alguém que se lembrava de mim. Ao mesmo tempo, faziam mais atroz a minha nostalgia.

Nunca as agradeci. Nos dias piores, preferia que o Blair não as mandasse e me deixasse só com a minha desdita. Por outro lado, era um cabo de vaivém, que eu sentia a puxar­

-me para vida. Nessa impenetrável cegueira, por vezes, julguei ouvir a sua voz cava e terna, a voz que ouvia em crian­ça, quando caía ou sofria.

Quando vinha da operação débil e cheia de dores, lem­bro-me de gritar: «Urso Pardo, deixa-me só! Deixa-me mor­rer!» Tive a certeza de o ouvir responder: «Hás-de viver para mim. Agora, pertences-me. Não te deixo fugir!»

Que louca fantasia! Se a Deidre falou verdade, o BIair, de verdadeiro amigo, transformou-se num perigoso inimigo. As mãos que imaginei agarrar, ao transpor a porta do hospital, deviam ser as mesmas que me afastaram do pai.

O    Blair!... Se tinha sido ele, não podia adivinhar que o pai já estava morto. Não era culpado da sua morte, mas era-o mentalmente. Como podia eu esquecer tudo isto? Quando o BIair me encontrou, o pai já tinha morrido. Não era suficiente essa prova?... Ele queria-o afastar do seu cami­nho. A Deidre via as coisas como eram.

Enquanto se arranjava ao espelho e punha o chapéu, esteve estudando o sorriso. E singular, mas nunca tinha re­parado que ela era interessante. Ia retirar-se, quando o mé­dico chegou. Ela sorriu-lhe e eu fiquei entretida a admirar a forma por que aquele lhe correspondia. Nunca julguei que a minha madrasta fosse tão boa actriz. Tinha o chapéu posto com graça e, quando se aproximou de mim, mostrou genti­leza, afeição e solicitude.

Ouvi-a planear, com o médico, a minha partida, mas não me meti no assunto. Porém, ao ouvir dizer que, no fim da semana, o Blair me vinha buscar no carro do David, vol­tei-me aborrecida. Era um arrojo! Não podia conformar-me a ver o Urso Pardo no carro do pai. Enervava-me só ao pensar que era forçada a aguentar a viagem, indo ele ao volante daquele carro, que o pai adorava.

Ao ver a minha atitude, o Dr. Tayne perguntou:

-      Como estou de folga no domingo, posso levar a Adele a casa, minha senhora? Acho aconselhável dar duas palavri­nhas ao médico assistente e, sobretudo, gosto de estar àmão, se ela não se sentir bem, durante a viagem.

E uma grande amabilidade, senhor doutor! - res­pondeu a Deidre. - A Adele ainda está muito abalada, e estimo que a acompanhe. Estes óculos fazem-lhe o rosto tão magro! Não precisa usá-los sempre, pois não?

-      Só durante uns meses - respondeu para a animar.

-      Tem que começar a encontrar as coisas com facilidade. Realmente, o caso está bem afigurado, e espero que se liabi­tue, rapidamente, em estando em casa.

-      Também temos essa esperança - murmurou. - Olha-rei por ela, com o máximo cuidado. Estimo-a a dobrar, por ser tal qual o pai.

Não me pude conter, e exclamei impetuosamente:

-      Não acredite, senhor doutor! Como pode uma en­teada, jovem e gentil, ser preciosa para uma madrasta ciu­menta?

Contudo, o médico parecia acreditar. A Deidre devia sa­ber, melhor do que eu, como cativar os médicos, para engo­lirem com rapidez as suas aldrabices.

Deu-me um beijo à despedida, e saiu seguida pelo Ta­yne. Naturalmente, ia acompanhá-la ao carro, e é possível que me tomasse por menina ciumenta. Mal se retiraram, a enfermeira Baines veio buscar o tabuleiro de chá. Não havia uma sanduíche, nem um só bolo.

-      Queira Deus que não fossem poucos, Miss Phelim, mas, se quisesse mais, podia pedir. Era só tocar...

-      Não se preocupe! Fiquei satisfeita - sentia-me en­vergonhada por a Deidre ter comido tudo. - O caminho abriu o apetite à minha madrasta. Deve ter achado deliciosos estes bolos.

Com ar entendido, a enfermeira explicou:

-      Já tenho comido bolos iguais, mas falta-lhes açúcar. Sa~o muito leves e não fazem mal. Não lhes fazem muito peso, por isso elas os apreciam.

-      Elas? A quem se refere?

-      Às futuras mamãs.

-      O quê?

-      A sua madrasta não espera um bebé?

-      Valha-me Deus! Tem a certeza, senhora enfermeira? Ainda não me disse nada.

-      Talvez seja engano meu... - respondeu num tom que me convenceu não estar enganada. - Já trabalhei numa maternidade e, se não me enganar, pelo seu aspecto, deve ter uns quatro meses.

Fiquei pasmada. Nunca tinha previsto tal possibilidade. Na minha fraca inteligência, pensei que o casamento do pai era só de conveniência, mais nada. Nunca me veio à ideia que houvesse qualquer manifestação de amor, mas não era razão para não terem intimidade de casados. Tinham quartos separados, mas as casas de banho tinham comunicação. Po­diam ficar juntos, sem eu saber.

Ocorreu-me então, que talvez fosse a isso que a Deidre se referia, ao observar: «O David era um amante ideal. » Na­quele momento, julguei que ela falava assim só para me ma­goar, e não acreditei. Começava agora a descobrir que me queria dar essa notícia. Porque o não fez? Temeria a minha reacção? Teria decidido ser mais prudente levar-me para ca­sa, antes de me dizer?

Sinceramente, além do choque, não sabia qual seria a

minha reacção, porém, inveja ou ciúme nunca sentiria. N~

sou egoísta a esse ponto. E possível, até, ter ficado contente.

Um filho era um elo que nos prendia. O mais triste, era o

David não o poder conhecer. Teria chegado a saber que a

criança estava gerada?

Nunca mostrou lastimar não ter um filho, como tantos homens desejam, nem tão-pouco se interessava por crianças. Apesar de eu sempre o adorar, em pequena, só a avó e a Bronwen, e depois o Blair me dedicavam grande afeição. Quando fiz onze anos e comecei a desenvolver-me e a tornar-

-me bonita, é que o pai começou a dar-me atenção. O orgu­lho paterno aumentou com o tempo, e a nossa intimidade era a ideal entre pai e filha.

Se acreditasse na Deidre, não era tanto assim. Ele não confiava em mim; não partilhava os seus problemas comigo. Desconfiava do meu modo de ver e da minha fraca inteligên­cia. Tratou-me como se fosse uma gatinha, apenas para de­coração e graça. A minha madrasta tornou-se a favorita, num sentido muito superior, muito mais superior do que eu ima­ginava. Era a esposa, e aliada contra o Blair.

Não podia negar que me sentia ferida, pois gostava de ser alguém, para o pai. Parecia-me ter perdido um bem pre­cioso, uma coisa que desejava e não podia possuir. Tinha dó do pai, por adorar aquela mulher mesquinha e pouco genero­sa. Se até agora eu não a tinha visto bem, ele também estava em falta para comigo. Era triste! Naturalmente, a Deidre julgava-me egoísta, ciumenta, só pensando em mim e não me falou no filho, por temer o meu ressentimento. Como podia pensar que eu não gostava de um filho do David?

A enfermeira acertou no diagnóstico, não havia dúvida. Porque não notei que ela tinha engrossado? Esperava vê-la magra e abatida, como em geral acontece a todas as mulheres na sua situação, e admirei-me de não notar essa magreza, mas era tão meticulosa em cuidar de si... que o pai até se aborrecia.

Fiquei contente por não regressar a casa antes de domin­go, e estávamos ainda distantes. Era quinta-feira, portanto, tinha tempo de meditar no caso, e na ajuda que a Deidre pretendia de mim na luta contra o Blair. Precisava ajudá-la, no interesse do bebé e na defesa do David.

Passada a primeira impressão, inclinei-me a duvidar da versão que ouvi sobre a atitude do Blair para com o seu melhor amigo. Comecei a desconfiar que, de propósito, a minha madrasta tinha exagerado. Nunca existiu simpatia en­tre ela e o sócio do pai. Se houve estratagema na fabricação dos adubos, podia ter livrado o marido de dificuldades. Ele depositava inteira confiança nela. Convencia-o a indagar se essas alterações eram justificadas. Se as não aprovasse, por as considerar desonestas, o Blair acabava por reconhecer o erro.

Os meus argumentos flutuavam, como um barco no meio do mar encapelado. Perdi a confiança no meu próprio raciocínio, embora aceitasse o da Deidre com relutáncia. Ora estava a favor do Blair, ora estava contra.

Como habitualmente, na sexta-feira, vieram as flores. Desta vez acompanhadas de uma caixa de chocolates, cara e de marca pouco vulgar, que eu adorava. Eram pequenas gar­rafinhas, cheias de licor, primorosamente embaladas, envol­vidas em papel estanho de diversas cores. Pensei que fosse um presente de boas-vindas, mas, no cartão que as acompa­nhava, não aludia à minha saída do hospital. Era idêntico ao que costumava vir com as flores, duas vezes por semana. Apenas trazia estes dizeres: «Cumprimentos. Blair».

Com vago desgosto, olhei para a linda caixa, com fitas de cetim, e pensei que o Urso me queria seduzir com presen­tes. Não estaria tentando isso?...

A enfermeira Baines foi arranjar as belas rosas, de pés enormes, a seu modo: hirtas e sem arte. Quando acabou, apanhou os papéis dos embrulhos, deitou-os para o cesto e olhou para a fita cortada, em ar de reprovação. Era destas mulheres que acumulavam papéis e cordéis, sem pensar em cortar um fio, para servir outra vez.

-      Que linda caixa de chocolates! - exclamou, abrindo a boca. - Embora pareçam excelentes, não coma muitos de cada vez!

-      Parecem e são - respondi. A tampa da caixa era transparente. Comecei a mexer nas garrafinhas. - Gosta de licores, enfermeira?

-      Poucas vezes tomo licor - respondeu a custo. -E uma despesa fora do meu orçamento. Não digo que não a um cálice de anis ou hortelã-pimenta, se me oferecem, mas nunca compro bebidas, nem chocolates. Tenho mais em que gastar o dinheiro...

Pelo seu rosto, tive curiosidade em saber se se ressentia, secretamente, com a prodigalidade dos doentes, num local daqueles. Nunca tinha vivido na opulência, nem esperava viver.

Num impulso, ofereci-lhe a caixa.

-      Aceite, enfermeira. Prove!

-      Muito obrigada! Não pense que fazia insinuações, Miss Phelim - disse, austera.

- Bem sei, mas gostava que aceitasse. Na verdade éuma coisa cara em excesso, e eu...

- Se não aprecia, é diferente. E pena deitá-los fora.

Agarrou a caixa, encostou-a ao magro seio e retirou-se. Até à noite, não pensei noutra coisa. Com surpresa, uma nova enfermeira, que mal conhecia, trouxe-me o jantar. A Baines e a Susan Schaster estavam encarregadas deste andar, sob as ordens da exigente Sister.

A Susan tinha estado de serviço, de manhã; esperava que a Baines estivesse à noite. Não fiz comentários, até a nova enfermeira pedir desculpa, por ter esquecido o sumo de fruta.

-      Temos muito movimento, por terem entrado mais duas doentes, e a Baines adoeceu - explicou.

-      Adoeceu? Estava bem, esta tarde...

-      À hora do chá, não se sentiu bem. Tinha vómitos sucessivos e tivemos que chamar o doutor Tayne. É de opi­nião que ela comeu alguma coisa que lhe fez mal. Não se compreende, pois nenhuma outra adoeceu. O senhor doutor viu-a a comer chocolates...

-      Chocolates?!

-      Tem graça! Ela está sempre a dizer-nos que não seja­mos gulosas, mas, coitada!, ainda fez pior. Dói-lhe o estô­mago... O senhor doutor convence-se que os chocolates esta­vam envenenados. Da maneira que ela está!...

-      Coitadinha! - ocorreu-me uma ideia. - O doutor Tayne ainda cá está?

-      Está, sim, menina. Quer ver a doente, mais logo, nao tenha que ser submetida a uma intervenção cilúrgica. Receia um caso de apendicite... Não imagina o barulho que ela faz! Diz que lhe arrancaram parte do estômago... Todas as raparigas desataram a rir. Desculpe, menina, esta tagareli­ce. A Sister costuma dizer que a minha língua corre tanto como eu, e que acabo por enlouquecer. Quando estive no estágio, vi casos bem feios, e os doentes não tocavam a cam­painha de cinco em cinco minutos.

-      Não? Acho que, quando uma pessoa está realmente doente quer ver-se boa o mais depressa possível.

-      Eu nunca fiz serviço aqui, mas a Sister diz que a menina não dá trabalho. Precisa de alguma coisa, em que lhe possa ser útil?

-      Não, obrigada. Gostava de falar com o doutor Tayne.

-      Vou já dizer-lhe.

Saiu e encostei-me à janela aberta, aborrecida e descon­fiada. Escurecia. O jardim estava deserto e a enfermaria era um grito de luz, no edificio, em forma de L. De um dos lados, a sala de operações e raios x; do outro, a maternida­de, igualmente com quartos particulares, ainda muito mais caros. O Tayne e o pai eram especialistas em obstetrícia e estavam encarregados das duas secções. Moravam numa pe­quena casa na cerca, para estarem sempre à mão. Creio que tinham interesses financeiros avultados, e viviam bem.

Eram dez horas quando ele apareceu4 e eu ainda estava ao pé da janela.

-      Desculpe não ter vindo há mais tempo. O que há? Sente-se mal? Porque não se deitou?

-      Não podia deitar-me, sem falar com o senhor doutor.

-      Enlouqueceu! Aqui sentada, com um vestido tão le­..... Quer apanhar um resfriamento?

-      Só sinto frio por dentro - respondi, puxando a gola do vestido. - Estou apavorada!

-      Porquê?

-      Aqueles chocolates... os chocolates que fizeram mal àBaines... foram-me oferecidos. Não os quis, e, como ela olhava para eles com cobiça, dei-lhos.

-      E então?

-      Estarão envenenados? Não creio que chocolates caros possam fazer dores de estômago.

Ele mordeu os lábios, em silêncio.

-      Não me ocorreu tal ideia, nem perguntei a sua prove­niência. Ela comeu metade da primeira camada, portanto, concluí que os licores a queimaram. E possível que lhe irri­tassem a bexiga.

-      Como está ela agora?

-      Melhor, mas ainda há-de sofrer um bocado. Franca­mente, a dor assustou-me. Amanhã, vou radiografá-la.

-      Podem conter algum veneno?

-      Podem, mas... numa casa destas, ninguém pensa que os doentes vão tomar arsénico. Não deixe essa imaginação voar outra vez!

-      Outra vez? Pensa que fantasiei estas coisas?

-      Não é o que parece? Lembre-se que já teve uma cruel experiência, minha amiga, e ficou muito doente. O choque manifesta-se de formas extraordinárias.

Mordi o lábio inferior, com força. Ele tinha-me acredita-do, tenho a certeza... quando da primeira vez lhe comuni­quei as minhas apreensões. Porque mudou de opinião? Enca­rei-o com ar provocante.

-      A sua madrasta disse que você é muito fantasista.

-      Ah! Já percebo: ela virou-o contra mim.

-      Falámos a seu respeito, como era natural. Nem cal­cula como está preocupada!

-      E convenceu-o que eu era histérica e neurótica?

-      Não, que ideia! - sorriu. - Há muitos filhos úni­cos que têm a imaginação muito desenvolvida.

-      Obrigada... por nada. Julguei que podia contar com o senhor doutor...

-      Minha querida amiga, pode contar comigo mas não me peça que encoraje a mania da perseguição. Primeiro, ten­taram assassiná-la e ao pai; agora, recebe chocolates envene­nados. O que será para a próxima vez?

-      Também gostava de saber. Pois bem! Pense o que lhe aprouver, mas não deixe os chocolates à mão.

Sentia-me terrivelmente desamparada. Contava com ele...

-      É prudente, não é?

-      Sou, e o senhor doutor também é. Portanto, deve seguir os meus conselhos. O que aconteceu à enfermeira não tem graça nenhuma. Não desejo que me suceda o mesmo.

O    que pode ter sido isto? Garanto-lhe que, amanhã, vou analisar o resto dos chocolates.

-      Já é alguma coisa...

-      Se continham algum produto de natureza irritante, ou veneno, a dose era pequena.

-      Talvez só para me assustar ou me fazer adoecer, e adiar o regresso a casa. Ele deve saber como escapei.

-      Quem?

-      O Blair, o químico. No laboratório deve ter venenos, para os insecticidas e fungicidas, não lhe parece? Experimen­ta-os nas ervas daninhas, como faz com os adubos. Mas... porquê? O que pode ter contra mim?

-      Tem a certeza que os chocolates foram enviados por ele?

-      Tenho. Mandou um cartão com a caixa.

Ficou pensativo.

-      Se assim é, esse homem é mau. Você esteve grave­mente doente e, se os chocolates lhe fizessem mal, eram-lhe devolvidos.

-      Não pensei nisso.

-      Está divagando. Minha querida amiga, vá-se deitar! Não se preocupe! Tenho quase a certeza de que tudo isto éfruto da sua imaginação. A doença da Baines preocupa-a tan­to, como os chocolates. Ela pode ter qualquer coisa na vesí­cula biliar, sem ser provocada por arsénico.

-      Mas... Analisa-os?

-      Sim. Agora, seja boa pequena e não pense nisso. Vou chamar a Sue, para lhe trazer uma bebida quente e sedativa.

Concordei. Não era costume discutir-se com os médicos. Ficou convencido que tinha razão. Como disse, os doentes dos quartos particulares não recebiam presentes envenenados, nem tão-pouco queriam ser vítimas de uma brincadeira tão desagradável.

Fiquei inquieta e aborrecida. O que podia resolver a be­bida quente e sedativa? Queria terminar com os meus receios e não iludi-los. Abri a janela do quarto e fui passear para o corredor. Ao fundo, ficava a sala para os doentes, com televi­são e as mais recentes revistas ilustradas. A Sue já me tinha lá levado, uma ou duas vezes, mas nunca me tinha demora­do. Tenho um feitio pouco sociável.

A sala estava deserta. Os doentes recolhiam cedo e não acendi a luz. Sabia que o telefone estava em cima de uma mesa pequena, perto da porta. Depressa dei com ele, meti a moeda e marquei o número do BIair.

Tremia e as palmas das mãos suavam. Nada me dava alento. Mesmo que adormecesse com um narcótico, era ine­vitável cair de novo nos pesadelos que me afligiam.

Senti um choque curioso, ao ouvir a voz, tão conhecida, perguntar:

-      Está? Aqui fala Blair Kerrard.

-      É a Adele.

-      A Adele? Até que enfim! - respondeu, não ocul­tando o prazer que teve ao ouvir a minha voz. - Como estás?

-      Bem... mas não te agradeço.

-      O que sucedeu? Bem sabes que, se me mandasses chamar, ia imediatamente.

Ouviam-se vozes de permeio, mas só fixei a dele, que ouvia distintamente, pausada e grave. Fiquei arreliada, pois me dava a impressão de estar ao pé de mim.

-      Se te chamasse, vinhas? Vinhas ver-me ao hospital?

Nem sei porque fiz esta pergunta. Saiu-me espontánea, involuntária.

-      Fui lá... Não te lembras?

-      Não. Tudo é tão confuso! Não vieste cá!

-      Fui, duas vezes, mas disseram que não querias rece­ber ninguém. O que tens? Estás a tremer?

-      Como... como soubeste?

-      Ouvi-te dizer. Reconheci a tua voz.

Cambaleei.

-      Porque fizeste isso, Urso Pardo? Para me assustar?

-      Porque fiz o quê?

-      Mandaste-me chocolates, com qualquer coisa horrí­vel... para me envenenar?

-      Estás a sonhar? Eu não te mandei chocolates.

-      Não? Mandaste, sim, chocolates com licor, como os que o David me costumava comprar. Recebi-os esta manhã com o teu bilhete.

-      Não é possível! Flores, sim! Mas, chocolates...? - a resposta foi tão pronta, que fiquei parva. Insisti.

-      Mandaste. Vi o teu cartão. Dei os chocolates a uma das enfermeiras, e adoeceu. Qual era a tua ideia?

-      De quem foi a ideia? É o que deves dizer. Minha, não. O que continham?

-      Não sei.

-      E melhor procurar saber, analisá-los.

-      Já pedi ao médico - desejava estar defronte dele, para ver a reacção. - Como veio um cartão teu, escrito por ti, dentro do embrulho, se não o puseste lá?

-      Tira isso da ideia, Adele! - teve o modo autoritário, que costumava empregar, quando eu fazia algum disparate.

-      Não penses em semelhante coisa! Já te disse que não mandei chocolates.

-      Alguém os mandou. Quem?

A minha voz desfalecia e mergulhava na penumbra. A cólera que me impeliu para o telefone, desapareceu ao ouvi-lo falar. Se não era o responsável, quem era? Porquê?

-      Não estejas assustada! Felizmente, não te fizeram mal... - disse, como fazia tantas vezes, há anos, ao ver-me chorar, pelas desgraças de criança. - Havemos de esclarecer o caso. Vai-te deitar e dormir!

-      Tenho medo... - murmurei.

-      Não tenhas medo. Disseram-me que vens para casa, no domingo. Velarei por ti, para que ninguém te faça mal.

Queria acreditar nele, e, por um lado, acreditava. O ins­tinto é mais forte que a razão, mostrava-me que ele nunca levantaria um dedo contra mim. Mas... quem seria? A Dei­dre? Não, porque contava comigo para a defender do Blair.

O    Gastão? O Gastão, que gostava de mim e me queria para esposa?... Na velha Bronwen, que foi a minha segunda mãe, não podia pensar. Quem podia saber que o pai me comprava daqueles chocolates?

-      Adeus!

-      Adeus, não, Adele! Hei-de ir ver-te.

 

Apesar do calmante, passei uma noite horrorosa. O pesa­delo, desta vez, foi diferente. O David era vivo, estava no meio do mar, a rir e a dizer-me adeus. Entrei na água e fui ter com ele. Imediatamente, umas mãos fortes agarraram-me e atiraram-me para trás. Estava encharcada, cega pela espu­ma, e não pude ver quem estava atrás de mim e me prendia os ombros. Só via umas mãos, pesadas, quentes e peludas, cujo contacto com a minha pele, nunca poderei esquecer. Comecei a soluçar e a gritar: «Urso Pardo, deixa-me viver!» As vagas tumultuosas cobriam-me os olhos, e não consegui soltar-me. Ao mesmo tempo, ouvia a voz do Blair, dizendo com ternura: «Adeus, não, Adele! Nunca!»

Acordei com a cabeça pesada, sem ânimo para suportar a vivacidade da enfermeira. Andava entusiasmada, como uma criança, a fazer planos para a partida, do dia seguinte. Per­guntava que vestidos devia levar, além do uniforme. Enten­dia dever levar um fato de praia e o fato de banho.

-      Preciso mudar para o jantar, ou prefere que vá com o uniforme?

-      Quando o David... o meu pai... era vivo, fazíamos sempre toilette para o jantar. Agora, não sei - respondi desanimada.

-      A sua madrasta...? - começou hesitante.

-      Não faço ideia se a casa lhe pertence ou a mim. Ela nunca foi dona de casa. Depois de morrer a avó, não tornou a haver dona de casa. Só dono - tentei explicar. - A Bro­nwen, a antiga governanta, fazia o que o David queria.

-      fem graça! - Os olhos da Sue brilharam. - A sua madrasta não quis governar a casa?

-      Creio que nunca pensou nisso. Aliás, não tinha muito tempo para dar atenção aos trabalhos domésticos. Era secre­tária do meu pai e dedicava-se aos negócios.

-      E agora?

-      Não sei. E natural, que o sócio da firma seja ouvido em tudo.

- O seu pai não deixou testamento?   perguntou admirada.

- Deixou, mas ainda não vi a cópia, nem quis pensar nisso. Há bastante dinheiro para mim e para a minha ma­drasta.

- Talvez seja melhor meter na mala um vestido de noi­te. Nunca estive em casas particulares, a não ser com urna senhora idosa, quase sempre de cama. Tem que me dizer o que quer que eu faça, Miss Phelim.

Estava corada e radiante. Fez-me pena, por recear que ficasse desapontada. A vida não devia ser alegre, só eu e a Deidre... Nunca apreciámos grande convivência, e tínhamos poucas visitas. O pai convidava, algumas vezes, vários cole­gas. Era um encantador anfitrião. Sem ele, uma reunião não tinha interesse; morria-se de tédio. Deu algumas festas en­graçadas. De espírito jovem, gostava da juventude. Conven­ceu-me a convidar as colegas da escola, para piqueniques e bailes improvisados.

Uma ou duas vezes por ano íamos a Londres, alugávamos um apartamento num hotel moderno, e passávamos o tempo em negócios e jantares íntimos. Antes de casar, fazia eu as honras da casa, depois, era eu e a Deidre. Agora tudo aca­1< bou. O Blair não quer tratar de negócios com jantares dis­pendiosos. E o homem menos sociável que conheço. Não tem jeito para reuniões e nunca nos acompanhava a Londres.

Se é verdade o que a minha madrasta disse, só se ocupa da publicidade. O povo nunca esquece os casos notórios. «E uma história sórdida», disse ela. Gostava de poder saber mais. Os factos projectam uma nova luz no severo Blair, de feitio um tanto complicado.

«Um duelo por causa de uma mulher», foi o que disse a Deidre. Mas que espécie de mulher? O que seria feito dela? Também teria caído no silêncio? Como desejava poder saber!

Custava-me ver o Blair como ardente apaixonado. Parece-me tão velho, rude e grave! Será diferente no seu íntimo? É triste saber que uma pessoa matou outra. Não se preo­cupará com isso? Na crença popular, quem assassina uma vez, não hesita em repetir a façanha noutra ocasião, mas não posso afirmar que seja verdade. O pai morreu, sem se saber como, e eu também estive prestes a morrer. Estas coisas não me saem da ideia. Quando voltar para casa, posso estar em perigo. Não é da minha imaginação, como pensa o Dr. Tayne; é um cheiro estranho que penetra nas fossas nasais, que não posso explicar nem esquecer.

-      Estou ansiosa por ir para a sua casa - balbuciou a Sue, feliz.

Assaltou-me um vago mal-estar. Iria metê-la em desgos­tos?... Ninguém tinha motivos para a melindrar.

-      Porque não quer sair enquanto está sol, Miss Phelim? Fazia-lhe bem. E tão agradável estar no jardim!

Pela janela, via grupos de convalescentes passeando ao sol, ou deitados em cadeiras debaixo das árvores, mas sentia uma absurda relutância em me misturar com eles. Eventual-mente, condescendi com a ideia da Sue, mas evitei o sítio em que todos estavam reunidos. Andei a passear pelo lado da maternidade e da casa do médico.

A maternidade tinha um vasto terraço, onde mamãs se aqueciam ao sol. Gostava que a Deidre viesse aqui ter o filho. Estava a vê-la no papel de mãe. Estaria animada ou receosa, com essa perspectiva? Era já um pouco velha, pela sua aparência, para ter o primeiro filho. Não acreditava que só tivesse trinta anos; dava-lhe perto de quarenta. Parecia muito mais velha que o Gastão, que tinha trinta e oito. Muitas mulheres têm filhos aos quarenta, sem complicações. Ela era forte e bem proporcionada, por isso não devia ter receio.

Quando ia a passar em frente da porta principal, o mé­dico saiu e viu-me. Parei e veio ter comigo, com aspecto cansado.

-      Espere! Vou assistir a uma cesariana, mas queria falar consigo.

-      Sim?

-      Sobre os chocolates. A camada inferior estava intacta. No resto da primeira, dois, só dois, tinham sido recheados com o mesmo licor.

-      Xerez?

-      Sim. Como pôde adivinhar?

-      Porque eu era doida por Xerez e tudo que levasse ginjas. O pai, por brincadeira, chamava-me a Ginja Madura. Até me tirou um retrato com ginjas nas orelhas e uma entre os dentes.

-      Então?...

-      Quem mandou a caixa, tinha a certeza de que eu comia os chocolates. O que tinham eles?

-      E fantástico! Um, arsénico, e outro, nicotina. Até custa a crer! - exclamou com o rosto alterado.

-      Para confundir o resultado ou os sintomas?

Tudo é condenável. Quem teria planeado um ardil tão perigoso?

-      Não havia dose mortal em cada garrafa?

-      Não, mas quem sabe quantos estavam envenenados? Se comesse todos, podia adoecer gravemente, não como a Baines, e ela passou um mau bocado. O mais singular é que alguns sintomas pareciam ser de ácido oxálico.

-      E porque não? O envenenador tinha recursos.

-      Em geral, não se têm venenos à mão.

-      Na Phelim têm. Estou certa que podia lá encontrar arsénico, nicotina, ácido oxálico, zarcão e piretro. Nos nos­505 laboratórios, há de tudo.

-      Sem estarem fechados à chave?

-      Nem sempre. Como era possível? O BIair e os aju­dantes trabalham com eles, e os jardineiros também os em­pregam. Actualmente, não vão muitos para o mercado, por a maior parte do trabalho ser experimental. Há filas de colhei­tas tratadas com um adubo e outras com outro. O mesmo se dá com os fungicidas e pragas mortíferas.

-      Isso não me agrada. E muito confuso...

-      Completamente - respondi com ironia.

-      Se o químico da casa foi responsável, deve ser notifi­cado.

-      Telefonei-lhe ontem, e negou ter mandado chocola­te.

-      Acredita?

-      Acho que sim.

-      Em que se baseia?

-      Não o acho capaz de me matar. Poderia matar al­guém, mas nunca infligir dores desnecessárias. Deve ter sido algum indiferente rancoroso, que envenenou os chocolates, da mesma forma que arranca as asas ás borboletas.

-      Quem?

-      Não faço ideia.

-      Amanhã, vou falar com o químico. Agora, tenho de me ir embora.

Ele não lucra nada em falar com o Blair, reflecti. Era a última pessoa a que me chegava. O seu interesse está concen­trado no trabalho. Como sócio, tira bons lucros, mas talvez não siga os moldes do David.

Entristecia-me pensar na Phelim sem o pai. Embora fosse a minha casa, casa que sempre conheci. No dia seguin­te, sentada ao lado do médico, ia enervada com a lentidão e as precauções com que conduzia. Por entre os charcos e ao longo da estrada principal, onde o pai dava o máximo ao Bentley, ele seguia a quarenta e cinco.

-      Não sou inválida, que não possa sentir solavancos -disse, sem pensar -, e o senhor doutor não guia uma ambu­lancia.

-      Desculpe, mas acelerar nunca foi para mim - res­pondeu, aumentando para cinquenta. - Gosta de grandes velocidades?

-      Gosto. O pai não deixava ninguém guiar o seu carro. O meu é pequeno, um carrinho de senhora. Fiquei desapon­tada, quando o pai escolheu aquilo para mim. Queria um carro de corridas. A Deidre também tem um, mas não da mais que o meu. Gostava de um Aston-Martin, como o do Gastão. Ainda falei nisso ao pai, mas não fui bem sucedida.

Nessa altura, quando fiz vinte e um anos, o Blair deve ter sido contrário a que o pai me desse um carro de sport. Con­siderava-me uma automobilista descuidada. Nunca tive um desastre grave, apenas mossas, mas não por falta de cuidado; por não calcular bem. É provável, por não ver bem ao perto. Agora, gostava de saber porque não admitia essa ideia, e Insistia em não usar óculos, de que tanto precisava. Neste aspecto, a opinião do pai era disparatada. Hoje, poucas pes­soas acham que os óculos desfiguram. Belezas célebres os usarn, e nenhum pai afectuoso prefere causar dores de cabeça ou cansar a vista.

Na verdade, o pai era egoísta nas suas exigências, só pensando em satisfazer os seus caprichos. Se uma coisa estava usada ou rota, punha-a para o canto. E natural que a Deidre faça o mesmo, como faziam os empregados. Lembro-me que o pai despediu uma boa empregada de limpeza, por andar desmazelada, e outra por ter a cara suja.

Foi a primeira vez que critiquei o David, e admirava-me por ninguém o contrariar. Não tinha sido bom para ele, nem para nós, ser tratado como um deus, a quem não se pergunta nada.

A acreditar na Deidre, o Blair queria armar em ditador. Eu não tolerava, com certeza. Podia bem lutar com ele.

O    caminho não tinha fim. O movimento de domingo fazia-nos parar repetidas vezes. Almoçamos num restaurante e o Tayne resolveu que fôssemos tomar chá ao Truro. Recu­sei, calculando que a Deidre estava à nossa espera, e desejava chegar a casa, quanto antes.

Eram cinco horas, quando saímos da estrada principal e voltámos para a vasta planície, coberta de seixos.

Isto é quase um deserto   comentou ele.

- Estes terrenos não têm utilidade nenhuma. São ro­chosos, não servem para cultura, nem para pastagens - ex­pliquei. - Em redor da vila, há poucas quintas, e o terreno mais fértil é o nosso. Está muito abrigado e tem um regato pelo meio. E como um oásis. Vai ficar admirado!

A vila não era mais que um postal ilustrado. As vivendas distantes, com telhados de ardósia e pedra cinzenta, para resistir ao tempo, eram feias e mal situadas. Poucas tinham jardins, ou sinais de serem cultivadas. As portas da frente abriam para a estreita e ventosa congosta. Muitas eram habi­tadas por lavradores ou pessoal da Phelim. Havia uma esta­ção dos correios e armazéns, de aspecto sujo e abandonado. Mesmo na época de Verão, os turistas raras vezes paravam na vila, e as cervejarias e tabernas eram frequentadas só por gente da terra.

Para além da vila, a estrada bifurcava-se para o Lizard e para o vale da Phelim. Na estrada transversal, o nosso vale curvava-se sobre o forte gradeamento, que marcava o começo da nossa propriedade.

- Chegámos!

A Sue saiu para abrir o portão, mas quando o carro pa­rou, saíram dois homens da montanha, e o mais velho abriu o portão, de par em par.

- E o chefe dos jardineiros, o Silas McTaggle - expli­quei, acenando-lhe com a mão, ao passar.

Ele tirou o boné, em sinal de respeito. O outro, alto, jovem, de cabelo preto, que o acompanhava, parou. Era o filho mais velho, o CoIm, o seu braço direito, um fanfarrão de quebrar corações, segundo o Blair. Sorri-lhe, mas não me correspondeu. Ficou estático, de mãos nas algibeiras, pas­mado para nós sem eu saber por quê.

Lembrei-me, então, que era domingo, e nenhum dos mais novos gostava de trabalhar no fim de semana. O David, frequentes vezes, se queixava dessa atitude. Eram pagos a tempo e horas, mas pensavam que deviam ter os fins de semana livres. Havia trabalhos nas estufas que não podiam estar parados do meio-dia de sábado a segunda de manhã.

Os portões rangeram atrás de nós, e ouvi-os com prazer. Na nossa frente, o mar brilhava, com cristas de espuma que se quebravam na praia, correndo a cintilar, como a convidar-

-nos a ir ter com elas. À direita, no cimo da rocha mais saliente, a casa orgulhosa era como uma fortaleza, que guar­dava o vale encantador.

-      Oh! - exclamou a Sue. - Isto não é só encantador, é fantástico!

-      Um sítio ideal - disse o médico, ao voltar em direc­ção à escadaria. - Como podemos chegar a casa?

-      Vai ver que chegamos num segundo. Vire para a di­reita! Esta rua de areia vai dar ás estufas, e aquele alpendre éda casa do Blair. Vamos direitinhos a casa.

-      Tiveram que escavar bastante - observou, ao olhar para o carro aos baldões, na subida para o planalto. - Não têm vizinhos?

-      Só há casas na vila. Era o que o pai apreciava. Costu­mava dizer: «Sou um rei de toda a paisagem, com todo o prazer.»

-      Também tem desvantagens - fez ver o Tayne.

-      Poucas. Temos telefone, electricidade, e estamos muito bem instalados - repliquei imediatamente, um tanto desapontada pela sua falta de entusiasmo.

-      Sem nenhum homem em casa... - articulou a medo.

-      A casa do Blair fica do outro lado das estufas, e temos homens a trabalhar até à noite, a maior parte dos dias

-      observei, na defesa.

Sorri ao ver a sua expressão de espanto. Não insistia que os meus receios eram filhos da imaginação? Em que podia a situação da casa fazê-lo recear?

A Sue não se preocupava com o isolamento. Mostrava-se impressionada com a extensão e o colorido das flores no vale.

A Deidre deve ter ouvido o carro. Estava na escada, ànossa espera. Trazia um vestido de seda cinzento e branco, mas parecia ter frio e sinais de cansaço. Curvou-se para me dar um beijo e, graciosamente, estendeu a mão ao médico e agradeceu ter-me levado a casa, sã e salva. Apresentei-lhe a enfermeira e achei graça ao modo aborrecido e condescenden­te, com que respondeu.

Parecia uma castelã, ao entrar no salão, voltado para o mar. Olhei em redor, e parecia-me impossível encontrar tudo na mesma. A única diferença consistia nas flores, que estavam nas jarras de prata e nos vasos de alabastro. Agora, eram rosas e crisântemos, em vez de tulipas e íris.

Esperava que a minha madrasta mudasse tudo, nem sei por quê, mas de modo algum me podia queixar das altera­ções. Imaginava que ela comprasse móveis novos e outros cortinados, mas o aspecto familiar tornava intolerável e dolo­rosa a falta do David.

Chegaram tarde para o chá - disse como hábil dona de casa - mas preferem subir primeiro? O Blair queria que te pusesse no quarto voltado ao oeste, mas calculei que prefe­rias o teu.

- Com certeza. Por que razão havia de querer mudar?

- Talvez ele julgue que não gostas de olhar para as rochas, depois daquela grande queda, mas respondi que não hás-de tornar a descer aqueles degraus escorregadios. Prepa­rei aquele para a enfermeira.

- Ah! Podia ficar no quarto contíguo ao meu...

Aquele era ao fim do corredor, geralmente guardado para os hóspedes.

- E muito acanhado. Além disso, de noite, não precisas quem olhe por ti, não concordas?

- Devia ser mais agradável para a Susan, ter alguém perto, do que ficar desterrada ao fim do corredor.

- Se a enfermeira é medrosa, pode-se mudar - repli­cou, impaciente. - As enfermeiras, em regra, não são.

- Eu também não sou, minha senhora - apressou-se a Sue a responder.

Vagamente intrigada, deixei passar. Para que escolheu a Deidre aquele quarto grande, destinado aos hóspedes, com casa de banho privativa e quarto de vestir, em lugar de pôr a Sue no quarto ao lado do meu, onde podia ouvir se eu cha­masse?

Não me tinha ocorrido que podia dormir noutro quarto, e não no meu, com varanda para o mar, mas achei acertada a ideia do Blair. Podia ficar no quarto voltado ao oeste, sem ouvir o marulhar das ondas, com a Susan no quarto de vestir, que dava para o grande. Não tinha pensado nisso, mas se voltassem os pesadelos?

Estava resolvida a não ter complexos, a não me preocu­par com o mar, que o pai me tinha ensinado a amar com fervor. Ao mesmo tempo, planeei ir com a Sue, tomar banho no dia seguinte, muito cedo. Devia ir por causa dela, mas sentia que o faria com sacrifício. Não queria pensar em des­cer a escadaria cavada nas rochas, e ver-me a nadar para longe, onde o David encontrou a morte. Tremia, cada vez que olhava para aqueles rochedos escarpados, para onde íui atirada.

Não. Se ela quisesse tomar banho, íamos dar um passeio pela praia, e tomávamos no espaço que fica em frente das estufas, onde não há rebentação. A magia das poças ocultas nas rochas, e das lagoas formadas pelas marés, debaixo das minhas janelas, tinha desaparecido para sempre. Só ao pensar nas rochas, sentia latejar as cicatrizes, escondidas pelos meus cabelos ainda curtos.

Subi com a Sue, enquanto a Deidre preparava o chá. O sol estava a pôr-se, mas o seu reflexo iluminava o quarto. Ela, corn prazer infantil, andava de um lado para outro.

- E um belo quarto, mas muito luxuoso para mim. Apetece andar descalça em cima da carpeta - acrescentou com ingenuidade.

Sorri. Mais uma vez cismei, porque a minha madrasta, tão senhoril para a enfermeira, lhe dava o quarto reservado para os amigos e clientes mais importantes do pai. Aborreci-da, voltei para o meu, por cima da sala de visitas. Pareceu-

-me frio e triste. O sol tinha já desaparecido, e vi uma jarra com rosas, em cima da cómoda, e uma botija eléctrica na cama. Devia parecer confortável, mas o barulho das ondas aterrorizou-me. Não se ouvia outro som. De um lado, ficava a casa de banho privativa; do outro, um quarto desocupado.

O pai e a Deidre dormiam numa ala virada ao oeste. O dele, era de gaveto, com janela para o mar; o dela e as duas casas de banho davam para o vale. Com ela do lado esquerdo e a enfermeira a oeste, eu ficava muito isolada, ao meio do longo corredor. Não tinha importância, nunca me tinha sentido só, embora agora talvez notasse. Estava em contraste com a Sue, porque desse lado, como todos estavam ocupados, havia o constante movimento de abrir e fechar portas, no patamar.

Deve ter sido por essa razão que o Blair sugeriu que levassem as minhas coisas, ou teria adivinhado que eu ainda não estava completamente bem, para suportar o constante ruído do mar? Evidentemente, teve uma ideia que faltou àDeidre.

O meu quarto era lindo. O pai tinha-o decorado quando sai do colégio. Não me consultou, nem eu sonhei em contra­riar os seus gostos. Ao vê-lo, após uma ausência de três me­ses, perguntava a mim própria se realmente gostava da cor e das ideias do pai. As paredes eram de papel sarabulhento, branco. A carpeta, os cortinados e a colcha, num tom entre acinzentado e verde-mar. Os móveis, de madeira brilhante e clara, tinham ferragens prateadas. Quando os cortinados es­tavam puxados para o lado, dava o efeito de uma gruta, debaixo de água. Em tudo se viam motivos marítimos: con­chas e ondas. Duas aguarelas representavam o mar em dias de temporal, com gaivotas a voar. Com a luz frouxa, a car­peta dava o efeito de um leito de algas.

Sentia-me orgulhosa com a beleza do meu quarto inde­pendente. Hoje, acho-o frio e pouco feminino. Ambicionava cortinados alegres e papel com flores, o contrário do que o David apreciava. No meu intimo, nunca devo ter tido grande paixão pelo mar, é natural que até sentisse um certo receio, e preferisse o nosso quente, florido e perfumado vale.

Num dos característicos impulsos de generosidade, o pai quis construir um b~ngalow para o Blair, no penhasco em frente das garagens. Mas ele recusou, alegando que não lhe interessava permanecer acordado pelos gritos das aves mari­nhas, e pelo incessante ruido do vento e das ondas. Preferiu uma das vivendas no cimo do vale, onde o pai possuia duas. Então, cedeu-lhe uma. O Blair gostava do vale, do solo rico e quente, do pequeno regato que corria pelo meio e da luxu­riante vegetação. Não se importava de apanhar um pontapé da aguerrida e recta natureza, mas não tinha interesse em entabular relações com o oceano. Fez uma escolha de enten­dido. Eu não podia tornar a gostar do mar e, embora me parecesse um acto de deslealdade para o pai, desejava mudar os cortinados e a carpeta. Portanto, quando a Sue se fosse embora, podia ficar com aquele quarto, de quentes cores ou­tonais, de ouro, bronze e vermelho-escuro.

Retoquei a maquilhagem, defronte do meu espelho, isto é, dos três espelhos. Desconheci a cabeça vista por detrás. Faltava-lhe aquele capacete de cabelos negros e compridos, que o David me tinha proibido cortar. Ouvi uma pancada na porta e, supondo ser a enfermeira, disse:

-      Entre!

Fiquei descontrolada, ao ver a Deidre.

-      Tenho andado a mostrar a casa ao doutor Tayne -explicou. - Este é um dos melhores quartos para a Adele receber o ar do mar, de que tanto precisa, para ter cor nas faces.

-      Sim... - respondeu absorto, parado entre a porta.

-      Venha ver, senhor doutor! - Abriu as janelas e saiu para a varanda. - O meu marido costumava dizer que estar aqui, era fazer uma viagem por mar.

Embaraçado, o médico olhou para mim e seguiu-a. Ela encostou-se ao estreito parapeito pintado de branco, e a brisa colou-lhe o vestido ao corpo. Notei o bojo abaixo da linha da cintura, e o aumento do volume dos firmes e túmidos seios. Era fora de dúvida que a Baines tinha acertado, a respeito do bebé.

-      Que altura! - exclamou ele, olhando para a água.

-      Não é tão alto como parece. Há degraus na rocha, que vão dar à lagoa, e ao areal - respondeu a Deidre entran­do. Como se de repente lhe ocorresse, continuou: - Oxalá a Adele não vá passear, quando tiver pesadelos.

-      Não! - sorriu. - Aliás, os pesadelos já são menos frequentes.

-      Ainda bem! Descer as escadas a dormir, podia ser perigoso. Deves ficar com as janelas fechadas, durante a noi­te, Adele! Não queiras dar outro trambolhão! - acrescentou solícita.

-      Claro que não quero!

-      Deixe-as trancadas! - aconselhou o médico.

-      Vou mostrar o quarto que reservei para a enfermeira e, depois, vamos tomar chá. Estás pronta, Adele? - per­guntou.

-      Estou.

Ela não tinha fechado as janelas. O vento fazia ondular os cortinados, e fui correr o fecho. Nas noites de temporal, trancava-as, por causa do barulho. Agora vi que a chave ti­nha desaparecido. Supus que tivesse caído e procurei-a no chão e na varanda. Nada...

Por razões que não posso explicar, estremeci, o que me levou a pensar em perguntar à Bronwen, se tinha conheci­mento do caso. Que me lembre, nunca fui sonânibula, mas podia ser pela primeira vez. Essa ideia fez-me estremecer. Tive uma fantástica e enervante visão do meu passeio noctur­no, atraida por um imã, para as rochas imersas na escuridão da noite. Preferia que a Deidre não me viesse meter coisas na cabeça.

A Sue veio ter comigo e descemos a escada.

-      Que grande casa! Perco-me aqui...

-      Parece maior agora, do que dantes; mais triste, sem o meu pai. Quando ele estava em casa, dava-se logo pela sua presença.

Ela mostrou-se admirada. O pai da Sue era totalmente diferente: calmo, grave, de meia-idade... O meu era alegre, cheio de vida, enchia a casa. Corríamos atrás dele, para ouvir os seus planos, sempre a rir, com ideias extravagantes. Agora tudo estava em silêncio; eram umas férias tristes, num ambiente morto. Um impulso de simpatia levava-me para a Deidre, ao avaliar a atmosfera pesada pela solidão que teve de aguentar.

Gostava de voltar para a sala, mas o chá já estava pronto.

Quando o Tayne falou em se retirar, tive vontade de lhe dizer para ficar ali, contudo não manifestei o meu desejo.

-      Apetece-lhe andar? Então, vou mostrar-lhe a lagoa e os jardins.

- Com o movimento das estradas, não consigo chegar a casa antes da meia-noite.

-      Volte outro dia, para ver a sua doente, senhor doutor

-      disse-lhe a Deidre, com modo gracioso. - Venha cá passar um fim de semana - olhou para mim.

-      Venha, senhor doutor - respondi irreflectidamente. Obrigado! Creio que vou gostar imenso. Posso telefo­nar-lhe?

Despediu-se da minha madrasta, apertou-me a mão, re­tendo-a por algum tempo, e notei nos seus olhos aquela chama de amor, que me fez pensar que a presença da Deidre e a Sue o impediram de me beijar. Se eu lhe desse ocasião, épossível que tudo corresse de outra forma. Vimo-lo ir para o carro, contentando-se com um aperto de mão prolongado e recomendando:

-      Minha querida amiga, tome muito cuidado!

-      Olharei por ela - respondeu-lhe a Sue, em tom con­fidencial. - Quer que vá abrir o portão?

-      Não te incomodes!

-      Vou da melhor vontade - replicou, e sentou-se a seu lado.

Ao vê-los juntos, a Deidre comentou:

- É um pouco ingénua.

-      Quem? - perguntei.

A tua enfermeira. Aquilo não são modos de apanhar um homem.

-      Ela não o quer apanhar; são velhos amigos.

-      Mas ela pretende mais. Que astúcia! - acrescentou com desdém. - Ele está doido por ti. Gostas dele?

-      Gosto. Tem sido muito amável.

-      Ganha bem para isso. Pagávamos vinte cinco guinéus por semana. Não sabias?

-      Não.

-      Nunca perguntaste? Já vês que tinhas direito a tudo o que fosse melhor.

-      Quem teve a ideia de me levar para lá? Eu não fui consultada...

-      A ideia foi do Blair, já se vê. Fez todo o possível para que lá ficasses internada - falou com ressentimento.

-      E conseguiu. Onde está ele? Julguei encontrá-lo cá...

Para te mostrar plantas e oferecer flores?

-      Sabia que eu vinha para casa. Deve ter falado com o Dr. Tayne...

-      Mas não veio. Foi para uma das suas misteriosas pas­seatas.

-      Misteriosas?... - repeti em eco.

-      Por acaso não são? E bom que saibas que desaparece ao sábado à noite, e só volta na segunda de manhã. O David desconfiava que ele ia ter com aquela mulher.

-      Que mulher?

-      A protagonista do caso que te contei; a viúva do ho­mem que ele matou.

-      Mas, há muitos anos, não há?

-      É um homem com sorte. O David julgou que ele tinha casado, depois de o caso estar esquecido, mas talvez ela não o quisesse. Casou? Não casou? E tudo escuro como breu.

Recebi um choque violento. Tinha procurado esquecer o que a Deidre me tinha contado, acerca do desastroso facto. Tinha sido antes de vir trabalhar para cá, e, a ideia que ainda se preocupava com essa mulher, enojava-me.

-      Agora que o David já se não podia opor, queria trazê­

-la para cá, pois o teu pai nunca consentiu. A nossa casa não

era para ladrões do lar

-      Oh! Não posso admitir que o Urso fosse um ladrão do lar. E um papel de destruidor que não lhe está adequado.

-      Bem entendido que a mulher não era boa, senão não lhe tinha dado atenção. Mas ele devia ter mais juízo, e não roubar a mulher a outro! - continuou com azedume.

-      Afinal, era o que o David dizia. Nunca ouvi a versão do Blair, nem me dei ao incómodo de lhe perguntar nada. Vale

mais nunca dares a perceber que sabes. Um homem daqueles é perigoso!

-      Não tenciono falar-lhe no assunto.

Mais uma vez preferi que não tornasse a falar no caso, a não ser que contasse a história completa. Essa gostava de conhecer. Estremeci.

-      Não fiques para aí, a apanhar um resfriamento. Já tivemos bastantes preocupações contigo! - observou com mau modo.

-      Desculpem!

Não via sombras da Sue, que devia estar a receber instru­ções do médico. Voltei para casa, e mais uma vez tive a consciência do silêncio que reinava na grande e bela sala de entrada. Encostei-me à porta que dava para a cozinha. A Bronwen devia estar contente com o meu regresso. Fui dar com ela sentada na velha cadeira de braços, a ler um dos mais tristes jornais de domingo, com o gato ao colo. Dei-lhe um beijo na testa.

-      Bronwen, já cá estou! - exclamei como uma garota.

-      Já era tempo - respondeu.

Levantou-se, pôs o gato no chão, e ainda me pareceu mais alta, com o vestido preto. Tinha o rosto comprido em excesso, e os cabelos grisalhos presos no alto da cabeça. Em­bota pareça absurdo, lembrou-me uma figura das histórias de fadas.

-      O meu querido amor! O que te fizeram? O que foi feito dos teus lindos cabelos? Ai! Se o pobre senhor David fosse vivo, não se consolava. Tão magrinha! Tão pálida!

-      Estive muito doente - lembrei-lhe.

Pôs os braços em volta do meu pescoço e beijou-me.

-      Levaram-te e não me deixaram ver-te. Todas estas semanas sem te ver, sem uma palavra... Não eram maneiras de tratar a tua velha Bronwen!

-      Desculpa, mas não podia escrever. Era tudo tão con­fuso!...

-      E nós, aqui? Com a morte do David e sem notícias

- Não devias estar ausente tanto tempo, querida, dei­xando-me aqui sozinha!

O    que podia responder a isto? Ela falava em tom de censura. Nunca gostou da Deidre, nunca se conformou com o casamento do pai. Era dedicada à avó, estimava a minha mãe, mas nunca viu a Deidre com bons olhos. Viu-a sempre como uma intrusa. Eu conhecia as suas dedicações, as suas lealdades e os seus preconceitos. Era uma velha teimosa, impetuosa e maldizente. Nunca foi humilde senão para o David.

-      Senta-te aqui e toma uma chávena de chá - disse, enquanto puxava uma cadeira. - Vou pô-lo a aquecer.

Era raro não encontrar o velho bule de metal, em cima da chaminé. A Bronwen tinha particular estima pelo serviço da China, que o David apreciava. O chá abriu até ficar es­curo e deu-mo com muito açúcar e leite, numa chávena azul e branca. Tomei a mistura a pequenos golos, quase com vó­mitos, mas sem coragem de lhe dizer. Encheu uma chávena para ela, que mexeu com força.

-      O que se tem passado aqui! - exclamou. - Tive que deitar as unhas de fora... Sou da casa, quase da família, digam o que disserem! O senhor David casou com ela, é a sua viúva. Portanto, tem de respeitar a sua memória!

-      Com certeza. E não o tem feito?

-      Não. Três semanas após o funeral, o senhor Loire voltou, e ela deu-lhe o quarto do senhor. Não esperava que fizesse isso. Disse o que entendi e o senhor BIair concordou comigo.

-      Minha querida Bronwen! Ela estava cá, e o Loire éprimo...

-      Isso diz ela, mas será?... Não como irmão, como eles dizem. Não gosto de falar da viúva do senhor, mas, desde que veio para esta casa, só tem feito o que tem querido!

Os olhos negros da velha governanta faiscavam. Percebi que se ela se mantivesse hostil à Deidre, nunca mais podia haver sossego em casa. Custava-me vê-la tão mal-humorada.

Talvez a chegada do bebe abrandasse a sua atitude, mas cal­culei que de nada tinha conhecimento. Devia falar-lhe nis­so?... Achei melhor não tocar em tal, antes de saber pela própria Deidre. Por lealdade ao pai, não me podia pôr do lado da Bronwen, contra a sua viúva e mãe do seu filho. Apenas argumentei, com placidez:

-      Não devemos esquecer que a morte do pai foi um grande desgosto para ela.

A Bronwen fungou disparatadamente.

-      Assim devia ser. Se tens confiança em mim, meu amor, sai desta casa!

-      Era o meu desejo, mas não posso realizá-lo. A casa também é minha, embora talvez lhe pertença a maior parte, se o pai lha legou.

-      Combinaram ser dela, enquanto fosse viva, ou não tornasse a casar. Depois, é para ti. Era o que dizia o testa­mento que ele fez depois de casar.

-      Ainda não o vi.

-      O notário disse que o senhor me deixou quinhentas libras, e o resto para dividir entre vocês duas. Pensava assim, quando casou, mas deve ter mudado de ideia, segundo diz o Suas McTaggle.

-      Como sabe? - perguntei.

-      Ele não é falador, fala a conta-gotas. É um velho pateta! - referiu-se com o aborrecimento que mostrava por todos os empregados. - O senhor David tinha muita con­fiança nele, mas, quando bebe jm copo ou dois, solta a língua.

-      Porquê?

-      Não quis dizer o que sabia, sem a menina vir para casa, mas sabe!... Ou foi testemunha, ou calcula, mas deve ter visto certos documentos. E ignorante, quando lhe con­vém.

-      Se o pai fez novo testamento, o notário deve tê-lo.

-      Julgas que é assim?

Acabei de tomar o chá, pus a chávena de lado e, ao mesmo tempo, a porta abriu-se de par em par. Ouvi o batu­car dos saltos da Deidre, que apareceu entre portas.

-      Ah! Estás aqui?... A enfermeira está farta de te pro­curar.

-      Vou já...

Levantei-me, mas não sem ter notado a maldade do seu olhar. Retirou-se, sorri para a Bronwen, e fui atrás dela.

 

-      Estás exausta! Espero que durmas bem - disse a Deidre, com solicitude. - O doutor Tayne deixou-te uns comprimidos para dormires, não deixou, enfermeira?

-      Estão aqui, minha senhora. - A Sue tirou dois com­primidos de um tubo, e pô-los ao pé de mim.

-      Tens aqui o leite com malte, para tomares com os comprimidos - aconselhou a Deidre. - Assim deves ador­mecer depressa, e dormir bem.

Admirei-me de não ser só a Bronwen que se interessava por mim, como fazia o pai. Insistia, todas as noites, para que tomasse um copo de leite com malte. Tomava-o só para lhe dar prazer.

A Deidre pôs o copo na salva de prata, na mesa-de-cabe­ceira. Mostrava-se amável e não pude recusar. Agradeci, pro­vei, e ela, depois de se curvar para me dar um beijo, prepa­rou-se para se retirar.

-      Boa noite, querida! Ainda parece um sonho, ver-te outra vez em casa. Boa noite, enfermeira!

O    malte não estava bem misturado no leite e deixou uma altura no fundo do copo, que pus de lado, mal ela fechou a porta.

-      Não deixe arrefecer! Tome os comprimidos - acon­selhou a Sue, como verdadeira profissional.

-      Não quero. Fazem-me pesadelos.

-      Está cansada? Precisa fazer um bom sono.

Insistia para que me deitasse mais cedo, mas não concor­dei. A enfermeira não devia ter uma boa refeição com a Dai­dre, pois talvez, por ter vindo para cá como secretária, per­sistia em adoptar modos superiores para com as empegadas. Outra mais velha sabia pôr-se no seu lugar, porém, a Sue era muito nova e não queria molestá-la.

-      Espero não precisar dos comprimidos, contudo, dei­xe-mos aqui. Se não conseguir adormecer, tomo-os então.

Tudo me doía. Sentia a cabeça andar à roda. Tinha tido um longo dia de preocupações, que não me largavam, com os problemas que me apareciam sucessivamente.

-      Como quiser - respondeu a Sue, ao dirigir-se para as janelas. Procurou a tranca e voltou-se, hesitante. - O Rod­ney... o doutor Tayne recomendou-me que trancasse as jane­las, mas a chave não está cá.

-      Já sei. Tencionava perguntar à Bronwen o que foi feito dela, mas esqueci-me. Não tem importância. Garanto-

-lhe que não tenciono ir passear lá para fora.

-      Ele fez ponto nisso, pelo que a sua madrasta alvitrou. Importa-se que ponha a cómoda atrás das janelas? - inqui­riu. - E o mesmo...

-      Que bela ideia! Assim fica mais tranquila - respondi solícita, ao perceber o aborrecimento que lhe causara o desa­parecimento da chave. - E muito pesada!

-      Eu posso levá-la.

Puxou-a e deixou-a de encontro aos cortinados. Era uma pessoa conscienciosa, e as ordens do médico eram sagradas.

-      Obrigada!

Pus o copo ao lado dos comprimidos e encostei-me ás almofadas. Doía-me a cabeça e ainda pensei em lhe pedir uma aspirina, mas, como qualquer sedativo me provocava pesadelos, calculei que me passasse em dormindo. Sentia-me muito cansada.

A enfermeira apagou a luz.

-      Deixo a porta aberta. Se precisar, chame. Acordo com facilidade.

Deitei-me para baixo e fiz a diligência por não pensar.

Não costumava lamentar-me. Nada me podia trazer o pai.

Tinha que viver sem ele... mas desejava não ouvir o mar.

A maré estava cheia e as ondas, como habitualmente, batiam

com força nas rochas. Uma sonolência apoderou-se de mim,

e senti-me arrastada para o mar, pela ressaca.

Exausta, acabei por adormecer. Não tenho ideia de quanto tempo passou, mas acordei sobressaltada, ao ouvir um estalido. Despertei imediatamente, abri bem os olhos e procurei ver através da fraca claridade que entrava pelas jane­las. Alguém as abria. O cortinado abanou e senti corrente de ar. Não tive tempo de pensar nem de gritar, antes de ouvir a jarra cair e partir-se. O intruso parou, de encontro à có­moda.

-      Quem está aí? - gritei. - Quem é você? O que pretende? - deitei a mão ao interruptor, mas... nada. O quarto permaneceu às escuras e em silêncio, um silêncio ainda mais terrível que a escuridão. Percebia uma presença estranha, inaudível e invisível. O que faria o intruso? Teria vencido o obstáculo e estaria na carpeta, ao pé de mim? Vi uma figura mover-se, mas sem óculos tudo era um véu im­penetrável, a não ser no espaço entre a cómoda e os cortina­dos.

Tacteei, mas não encontrei os óculos. Os dedos tremiam ao tocar no copo de leite, que se entornou. Fez barulho... o bastante para mostrar ao intruso onde eu me encontrava. O terror apoderou-se de mim. Não podia esconder-me; fi­quei paralisada como um coelho ao perceber a aproximação de uma cobra. Acabei por sair da cama e chegar à porta. Accionei o interruptor... Também não acendeu. Os nervos estalavam. Abri a porta e corri para o corredor. Ai, a luz estava fraca e desapareceu por completo.

Aflita comecei a gritar:

-      Sue! Enfermeira! Está aí?

Ouvia sons atrás de mim... As cegas, segui pelo corredor e vi luz, na minha frente.

-      Menina! Aqui estou. Não se sente bem? - pergun­tou a Sue assustada. - Não tenho luz no quarto.

Esbarrei com a parede e ela já estava ao meu lado, inda­gando com ternura:

-      O que foi? Teve algum pesadelo?

-      Não. Está alguém no meu quarto, entrou pela va­randa. Não há luz...

-      Estamos em porto de salvação - tornou a acender uma lanterna. - As enfermeiras estão sempre munidas de uma lanterna. Vamos lá ver! Só se o vento abriu as janelas...

Era uma rapariga calma, que me animava. Julgou que eu tivesse acordado com pesadelos, mas fomos juntas ao quarto, a fim de desvendar o mistério.

-      Veja! O vento não podia abrir as janelas - expli­quei. - Ouvi um estalido na fechadura.

-      E estranho!

Entrou no quarto, à minha frente, apontou a lanterna ás janelas e não se viu ninguém. Os cortinados mexiam com a corrente de ar. A jarra estava feita em estilhas e as rosas espalhadas pelo chão.

-      A janela não se abria por si. Repare! As flores...

A janela oscilava. A Sue incidiu o foco para a varanda.

-      Aqui não está ninguém, menina!

Apanhei os óculos que estavam atrás do candeeiro da mesa-de-cabeceira. Pu-los e vi o leite entornado na carpeta. Comecei a tremer convulsivamente.

-      Se não tem barricado as janelas e eu tivesse tomado os comprimidos...

Ela voltou-se para mim e disse, sem hesitação:

-      Tinha sido horrível!

-      Horrível? Pensava que, a dormir, tinha ido para as rochas e me encontravam caída?

-      Não! Não pense mais nessas coisas lúgubres! - ex­clamou horrorizada. - Ninguém é sonámbula, por tomar um soporífero.

-      Ninguém podia provar, e era a explicação mais ló-gica.

Apanhou o meu roupão e pôs-mo pelos ombros.

-      Sofreu um grande abalo. Venha para o meu quarto! Vou fazer-lhe chá... Tenho sempre comigo um fogareiro de álcool.

Ela não viu o que eu vi, e se lho descrevesse podia jul­gar-me atacada de alienação mental. Era horrível! Eu não era alta, nem pesada, por isso, qualquer homem ou mulher forte podia arrastar-me para a varanda e atirar-me para as rochas, sem que eu opusesse resistência. Se não tivesse acordado, não tinha a sorte de ver o meu inimigo.

Talvez fosse melhor, ....... pensei atordoada. A vítima escolhida era eu e não o pai, mas ele morreu e eu não. Nessa

1<   primeira ocasião, alguém me tinha salvo. O Blair? Teria en­trado em cena, antes de o assassino acabar a obra que tinha começado? Ou teria sido o próprio Blair que resolveu salvar-me?

A Sue pôs-me a mão no ombro e levou-me pelo corredor, até ao quarto. Deitou-me na cama grande e acendeu o foga­reiro.

-      Trouxe tudo - disse com satisfação. - É da Baines, mas ela emprestou-me. Numa casa particular, uma enfer­meira precisa muitas vezes fazer chá, sem ter de ir à cozinha. Comprei este bule pequeno, duas chávenas e uma lata de leite condensado. Foi boa ideia, não acha? Uma bebida quente faz sempre bem.

-      Sim... - articulei maquinalmente.

Estava engraçada, em pijama, a fazer o chá. Deitei-me e fiz a diligência de acalmar. Mas o mistério persistia. Porquê? Quem? Quem queria livrar-se de mim? Quem? Era o que me atormentava.

Recordei o gesto da Deidre ao trazer-me o leite, e a in­sistência para que tomasse os comprimidos. O leite devia conter alguma dose de narcótico, pelo sedimento que ficou no fundo do copo. A Deidre deve ter tirado a chave das trancas, e era bastante forte para me arrastar para a varanda. Deve ter desligado o quadro da electricidade... Tinha urgên­cia em me ver em casa.

Realmente, não a conhecia para saber de que era capaz, desde que se oferecesse ocasião. A minha imaginação traba­lhava. Via-me tirada da cama, empurrada para a escada de ferro e atirada para as rochas. Era possível tal violência numa mulher?... Já me teria querido envenenar? Custava-me a acreditar que no seu estado, à espera de um filho, tivesse tanta força fisica. Porque me quereria matar? Não contava comigo, como única aliada contra o Blair?

Várias vezes pensei no Blair, sempre discreto. O instinto ia contra a razão; persistia em me convencer que ele não me queria mal.

Agora - disse a Sue, aproximando-se da cama -, isto vai reanimá-la.

-      Obrigada, Sue!

-      Teve um grande susto, mas não se preocupe mais.

-      Não?

-      Deve haver uma explicação.

-      Parece-lhe?

-      Algum gatuno que esperava encontrar o quarto desa­bitado. Na verdade, aquela escada da varanda para as rochas, convida os ladrões.

-      Na cidade, é possível; aqui não há ladrões. Pobres caçadores furtivos! Não há ladrões por profissão.

-      Não se pode afiançar. E uma casa grande e rica.

Tomei o chá em silêncio, durante um ou dois minutos. Depois perguntei:

-      O que lhe disse o doutor Tayne a meu respeito? Dis­se-lhe que eu tinha alucinações?

Ela hesitou.

-      Propriamente isso, não. Referiu-se ao choque que 50­freu e ao desgosto pela morte do seu pai.

-      Falou-lhe na suspeita de me quererem matar?

-      O meu Deus! Não. Que ideia! Não pense nessas coi­sas! - estremeceu e entornou o chá.

-      Também não acredita?

- Eu...? Porque haviam de...? Não tem senso.

-      E essa a parte que me aflige. Se eu soubesse o mo­tivo, logo descobria. Assim, estou totalmente ás escuras. Não tenho provas, mas sei muito bem que alguém se meteu entre mim e o meu pai... alguém que me obrigou a largá-lo. Também sei que alguém tentou entrar no meu quarto.

-      Sim, mas como obter provas? Convenço-me que abri­ram a janela, mas não vejo razão para pensar que foi por sua causa. O quarto estava desabitado há semanas, não estava? Como podiam saber que esta noite dormia lá? - perguntou

- Do que se passou na praia, pode não se lembrar claramente. Estava gravemente ferida, portanto, é natural que ficasse atordoada.

-      A primeira vista, é isso. O doutor Tayne contou-lhe dos chocolates? Não pode negar que fizeram mal à Baines.

-      Ele disse que lhe fizeram uma partida, mas não era coisa perigosa, pois não?

- Talvez não, mas era desagradável. Condiz com o resto.

- Pode ser... Alguém pretende assustá-la?

-      Não sei. Fiz mal em vir já para casa. É natural que me tornem a assustar.

Aquela frase não me saía da ideia: «Alguém me queria assustar.» Era convincente e alarmante. «Alguém queria ma­tar-me», era inevitável e, ao mesmo tempo, parecia-me uma infantilidade. Uma infantilidade que se confessa a urna mãe dedicada, quando nos senta no colo ou nos leva para a sua cama, para nos acalmar. «Quiseram assustar-me, mãezinha!» E ela respondia: «Não penses nisso, querida! Vou acender-te a luz!»

Mas eu nunca tive mãe para acalmar os meus receios. Tinha que ficar acordada, toda a noite, ás escuras, e se tinha pesadelos, era obrigada a guardá-los para mim. Tinha vergo­nha de ir ter com o pai, à cama, para me consolar e defen­der. Apesar da minha pouca idade, pensava que ele se abor­recia.

Agora era o mesmo: não podia refugiar-me nos braços de ninguém que me desculpasse. Não podia... e tinha esse al­guém. Se, antes de me deitar, telefonasse ao Blair? Ficaria aborrecido? É possível... mas, no seu rude modo de Urso, compreendia a necessidade urgente que eu tinha de amparo. Sabia qual era a sua resposta: «Velarei para que ninguém te pregue partidas», e eu confiava nele.

E se as partidas viessem dele? Tinha oportunidade e os meios necessários. Mas... sem um motivo? Não. Se corresse para ele, era o mesmo que cair nos braços de um urso pardo. Mas... porquê? A não ser o Blair, não tinha ninguém. Se fosse um inimigo, a casa não estava construída no sólido rochedo. Ruia e sepultava-me nos escombros.

-      Agora, veja se dorme! - aconselhou a Sue, ansio­sa. - Fico ali enroscada no sofá, e, de manhã, tudo estará na mesma.

-      Esta cama é tão larga, que dá para as duas. Deite-se aqui!

Ela concordou, deitou-se e adormeceu primeiro. Tinha uma respiração calma. Era como se tivesse uma boneca deitada ao meu lado. O contacto do seu corpo era quente. Estendi-me e os membros começaram a enfraquecer.

Ainda estávamos ambas a dormir, quando soou uma leve pancada na porta. Sentei-me imediatamente. O sol entrava pelas frinchas das janelas. Na véspera, a Sue tinha puxado os cortinados para trás. Comecei à procura dos óculos. A pan­cada repetiu-se e a voz de Deidre ouviu-se aflita:

-      Enfermeira, está aí?

-      Sim, minha senhora. Pode entrar! - respondeu, sal­tando da cama, num pulo. Abriu a porta e, pelo espelho vi a minha madrasta, sem que ela me visse, por a cama ficar atrás da porta. Trazia um roupão encarnado-escuro. Vinha pálida e agitada.

-      Viu a menina? A criada levou-lhe o chá, mas não a encontrou no quarto. A jarra das flores está feita em estilhas. Teria saído para a varanda, a dormir? - exclamou num tom a dizer com o aspecto. - E esse o meu receio. Espero que nada tenha acontecido.

-      Não, minha senhora - titubeou.

Pelo espelho, vi a sua reacção. Estremeceu e um pálido reflexo cruzou o seu olhar.

-      Não se preocupe, Deidre! - atalhei.

Depressa se recompôs e parou com ar de profundo alivio.

-      Ah! Estás aqui? Não é razoável meter-nos sustos. Já estava arrepiada, imaginando coisas horríveis.

-      Desculpe, se a incomodei. Resolvi ficar aqui.

-      Devias ter prevenido! Nem sabia o que havia de pensar...

Veio ao pé da cama e olhou para mim. O seu rosto pá­lido tinha retomado a cor normal, mas notei-lhe um ricto nos cantos da boca.

-      Alguém entrou no meu quarto, esta noite, por isso a jarra está partida.

-      E impossível! Deve ser ilusão tua! Quem podia lá entrar?

-      Era o que gostava de saber.

-      Quem? Para quê? Pensavam em te raptar?

-      As escuras? - murmurei. - Cortaram a luz.

-      Sério? Agora há luz. Teria faltado?

-      O que pensa de tudo isto?

-      Eu? Não tenho a mínima ideia. Para mim, é novi­dade ter faltado a luz. Adormeci imediatamente, e só acordei quando a Elsie veio com o chá. Talvez a tua lâmpada se tenha fundido.

-      Não. Só havia luz na rua - apoiou a Susan.

-      Que aborrecimento! Tenho que perguntar ao filho do Silas, que é o responsável pelos acumuladores. Não é lá muito simpático. Namorava a Elsie, coitada!, e deixou-a. Até tem andado desnorteada há umas semanas. O mal édela. Vou dizer-lhe para te trazer novo chá.

-      Obrigada!

-      Se te sentes abatida, não te levantes, querida! A Bronwen arranja o teu almoço num tabuleiro - acrescen­tou amável. - Ainda não estás cá nem lá.

-      Prefiro ir almoçar lá em baixo. Obrigada!

-      Faz o que quiseres, ou o que a enfermeira te aconse­lhar!

Sorriu-nos, graciosamente, e retirou-se. Quando a porta se fechou, a Sue olhou para mim e eu para ela. Podia afirmar que ela estava desnorteada, mas não queria ser a primeira a falar. Eu estava convencida que a Deidre tinha representado como boa actriz, mas não tinha provas.

-      Parece que meteu um susto à sua madrasta - come­çou a Sue. - Como chegou ela logo à conclusão de que tinha saído a dormir? Em pequena, era sonâmbula?

-      Não, nunca fui.

Não acrescentei mais nada. Deixei-a desvendar o caso. Ela não era parva, mas tinha pouca imaginação, contudo observou e reconheceu certos indícios, que a obrigavam a reunir com cuidado.

Poucos minutos tinham decorrido, quando a Elsie voltou com o chá. Já estava ao nosso serviço há dois anos. Era uma bonita rapariga, de cabelos e olhos escuros, com ar muito juvenil. A Bronwen chamava-lhe a sua borboleta. Eu gostava dela e dos seus modos afáveis e naturais.

-      Parabéns, menina, por estar de saúde! Nem sei o que senti, quando não a vi no quarto. O senhor Kerrard está ao telefone. Queria falar com a menina, mas como eu disse que ainda não tinha descido, pediu para lhe dar um recado.

-      Sim?

-      Precisa falar com a menina, e pergunta se quer que ele cá venha ou se prefere ir ao escritório.

-      Diz que vou ao escritório.

Não me inclinei a pedir que viesse cá. Queria estar só com ele, fugir desta casa. A Sue não concordou que fosse só, e insistiu em me acompanhar. Era o seu dever, afirmava.

Quando descemos à praia, depois do almoço, o sol estava quente o o ar impregnado do cheiro das algas e do aroma das flores. A paisagem encantava a Sue, quer olhasse para o mar ou para o vale.

-      Posso tomar banho aqui? O Rodney diz que se a menina quiser, pode tomar banho; não lhe faz mal.

-      Talvez logo - respondi, sem entusiasmo. - Se não é grande nadadora, é melhor não tomar banho na próxima mare.

-      Oh! Só sei dar algumas braçadas. Vivi sempre longe da praia.

-      Então, deve tomar cuidado. Este mar não é para brin­cadeiras.

Nos viveiros havia rosas, crisântemos e ervilhasde­

-cheiro, bastante precoces. As raparigas, empregadas na casa, colhiam tomates e metiam-nos em cestos. De relance, vi o Silas McTaggle que, noutró lado, atava crisântemos. Tirou o boné para nos cumprimentar, mas não quis interromper-

-nos.

Quando chegámos perto dos antigos celeiros, que o pai transformou em barracões de embalagem, laboratório e escri­tório, afastei-me da Sue.

-      Não me devo demorar, mas há pontos que preciso discutir com o sócio do meu pai. Quer ir dar um passeio?

-      Com certeza, mas não me afasto. Quando quiser, chame!

 

Pus a mão no coração, ao entrar no gabinete do BIair. Ele estava a escrever e a secretária tinha montanhas de papéis empilhados. Tudo me era familiar, desde o homem aos mó­veis. Não sei explicar por que razão o coração batia com tanta força, ao transpor aquela porta.

O    Blair era o homem mais feio e menos atraente que tenho visto. Não era alto, mas largo de ombros e de braços compridos. Quando se barbeava e cortava o cabelo, este fi­cava eriçado. As sobrancelhas eram escuras, da cor dos olhos; a testa alta e o nariz achatado. Era feio, mas não caricato. Julgava-se forte e temível.

Seria temível, mas não para mim. Nunca tive medo de­..... até àquele momento. Hesitei à porta e parei. Ele vol­tou-se para trás.

- Até que enfim, Adele! - disse a sorrir.

Era um sorriso conhecido, nem rude nem terno, mas a curva dos lábios e os cantos dos olhos transpareciam sorri­dentes de prazer e alívio.

- Viva, Urso Pardo!

-      Como te sentes? - levantou-se, apertou-me as mãos nas suas, mas não me beijou. Desde que sai do colégio, não me dava um beijo. - Já estás bem?

- Afinal, salvei-me, apesar dos chocolates e do intruso da noite passada - respondi sem rodeios.

- O que foi?

As suas mãos apertaram as minhas. Eram como sempre as vi, grandes, quadradas e quentes, com dedos curtos e as unhas enegrecidas pelos produtos químicos.

- Dois dos chocolates foram analisados. Um tinha arsé­nico e outro nicotina, embora em dose fraca.

- Guardaste o cartão que os acompanhava?

- Não. Era igual aos outros.

-      Escrito por mim?

-      É fora de dúvida.

-      Eu escolhia as flores e escrevia os bilhetes, mas não fazia os ramos, nem os enviava. Era simples guardarem um cartao.

-      Foi o que eu pensei.

-      Parece-me a melhor explicação, não concordas?

O    seu olhar risonho e confiante não me deu coragem de dizer o contrário. Aliviada, sentei-me na antiga cadeira de cabedal.

-      Achei impossível que quisesses prejudicar-me - disse reconhecida.

-      Prejudicar-te? Nunca! - Sentou-se defronte de mim, com a testa enrugada. - Ao mesmo tempo, não posso ocul­tar que foi um engano muito pouco amável. Já não és uma criança e há coisas que devemos encarar.

-      Essas palavras assustam-me.

-      Desagradam - emendou. - Primeiro, fala-me no tal intruso. Quem era?

-      Alguém que entrou no meu quarto, pela varanda.

-      Disse à Deidre para te pôr no quarto voltado ao oeste.

-      Mas não pôs.

-      Não trancaste as janelas?

-      A chave tinha desaparecido.

Contei o que se tinha passado, omitindo a insistência da Deidre para que tomasse os comprimidos. Não queria deixar transparecer suspeitas, pelo menos, antes de saber o que se tinha passado entre eles.

Fiquei satisfeita por o Blair não atribuir a sonambulis­mo, nem tentar persuadir-me que eram fantasias da minha imaginação.

-      Tantas preocupações! Não deves tornar a dormir nesse quarto!

-      Decerto. Fiquei tão assustada!

-      Porquê? - De novo franziu a testa.

-      Porquê? - Olhei para ele aparvalhada. - Qualquer outra não faria o mesmo?

-      Nunca tinha pensado, mas, desde tempos remotos, as varandas convidam os apaixonados.

-      Valha-me Deus! Nem pensei nisso.

-      Acho que é a melhor resposta.

-      Achas? Mas... quem? Não tenho admiradores.

Se assim é, fico descansado. Não gostava de armar em pai tirano - acrescentou, sarcástico.

-      Pensaste no Gastão? Julgaste que eu ainda gostava dele?

E não gostas?

-      Não. Afinal pensei que o pai não queria. Ficou fil­rioso e ordenou que deitasse fora esse amor. Não sei o que disse ao Gastão. Nunca mais o vi, nem ouvi falar nele.

-      E para admirar!

-      Garanto-te. O pai zangou-se com ele e comigo. Não há nada entre nós. Era um namoro recente... O pai fez-me ver que o Gastão nunca paderia ser um bom marido. Não sei se foi ríspido com ele, mas pediu-lhe para não me procurar mais. Senti-me tão abatida... como se me humilhasse a pe­dir-lhe para me dar noticias.

-      Mas não te humilhaste, nem o padias fazer, Adele!

-      Tudo acabou.

-      E o Gastão aceitou bem essa solução?

-      Creio que sim. Nunca me escreveu, nem procurou ver-me.

Era a primeira vez que falava nesse pobre conto de fadas. Procurei ocultar a ferida do meu coração. Era curioso como podia pôr o Blair ao facto de tudo, sem me magoar! Pensei que este assunto lhe agradava.

-      Sinto-me aliviado! Não tenho autoridade para te dar conselhos sobre essas despesas fantásticas, com a publicidade. Devem ter captado o orgulho do David e a tua vaidade, mas é um grande prejuízo para a firma.

-      Mas... chamavam a atenção. No hospital, todos me conheciam através dos anúncios.

-      Pois sim, minha querida! Atraiam a atenção sobre ti e não sobre os produtos. Apareciam em grandes revistas, mas nao em jornais de jardinagem. Algum dos reus admira-dores foi ao mercado comprar os adubos?

-      Não me parece.

-      O trabalho do Gastão era para dar na vista e render-

-lhe bons honorários. Aliás, aquelas meias páginas coloridas saíam por um preço exorbitante. Para nós, não era um bom negócio.

-      Nunca gostaste daquela publicidade, pois não?

-      Fazia ver que não podiam servir-se de ti como de um modelo profissional. E tu, gostavas?

-      Nunca pensei senão em ajudar o pai. As enfermeiras conheciam-me por uma celebridade.

-      As fotografias eram bonitas. O David deitava o di­nheiro pela janela fora, mas nós não podemos fazer o mesmo. Não é um prejuízo pessoal, mas afecta o orçamento. Com­preendes?

-      Perfeitamente.

Houve um breve silêncio, durante o qual recordei os di­tos da Deidre e os argumentos que tinha apresentado para não tolerar o Blair. Mas... eu não podia falar. Precisava ou­vir as duas partes.

O    Blair estava recostado na cadeira, admirando-me. De repente, exclamou:

-      Gosto de te ver com os óculos. Tornam-te menos boneca e mais feminina.

-      Ah!... Obrigada! - A surpresa fez-me soltar aquela exclamação. - Não posso cansar a vista. O pai não queria que usasse óculos, mas agora que infelizmente não pode fazer objecções...

-      E inacreditável! - Os seus lábios tremeram. -O David era incapaz de considerar os sentimentos dos ou­tros. Só encarava os seus.

-      Isso não, Urso! Como podes falar assim? O pai era o homem mais amável, terno e generoso, que pode haver. Isso ofende-me! Não repitas!

-      Em que era amável e generoso? Nunca te deixou ter opinião... Dominava-te.

Havia um viso de verdade, naquelas palavras, que me fez corar.

-      Escusamos de falar nesse assunto. Já não serve de nada... Es inteligente, Adele, e gosto de ter uma pessoa inteligente na firma. Es uma accionista, bem sabes...

-      Sou?

-      O procurador do David quer entrar em contacto con­tigo. Convenci-o a esperar até estares boa de todo. Tenho aqui uma cópia do testamento do teu pai, que é melhor leres.

-      Leio já. - Não queria olhar para o documento que estava desdobrado. Era superior ás minhas forças. - Diz-me o que contém! - pedi.

-      Este testamento foi feito pouco depois de casar com a Deidre. Divide tudo entre as duas. A casa é dela, enquanto viver, com a condição de a habitar. Por sua morte, fica para ti. O mesmo se dá com a firma. Os lucros estão orçados em cinquenta por cento. Cada uma fica com vinte cinco por cento e, por morte dela, tudo fica para ti.

-      E se eu morrer primeiro?

-      Vai tudo para ela.

-      Se eu tivesse morrido com o pai, ela ficava com tudo?

-      Ficava.

Fiquei preocupada. Ela devia preferir que eu morresse... e afinal não tinha motivo especial para gostar de mim.

-      Há muito dinheiro? - perguntei. - Deve ser sufi-ciente para as duas?

-      Sim, mas... - novamente franziu os olhos - e a mínima parte, Adele! É um bom testamento, mas não quero iludir-te: a nossa reputação começou a oscilar, uma vez que deu motivo a censuras. Como sabes, a produção, a publici­dade e o mercado estavam a cargo do teu pai. A minha missão era criar fórmulas e fazer experiências.

-      Já sabia.

-      Nunca entreguei uma fórmula, sem estar plenamente satisfeito com o resultado. Quando dava o trabalho, ficava ansioso pelo bom acolhimento feito aos nossos produtos. Co­mecei a ouvir queixas...

-      Oh!

-      Naturalmente, investiguei a razão dessas queixas. Vi­sitei os fabricantes e, evidentemente, cortei o mal pela raiz. As minhas fórmulas tinham sido adulteradas. Os clientes es­peravam encontrar o que tinham pago, mas o produto era inferior.

-      A Deidre já me falou nisso, e disse que acusavas o David... de desonesto. Não é verdade! Não pode ser!

O    seu olhar denotava compaixão.

-      Como tu, também me custou a acreditar. Desgraça-damente, os factos falam e demonstram a alteração.

-      Talvez os operários tenham alterado a fórmula.

-      Também tive essa ideia, mas não foram eles. Mostra­ram-me a correspondência trocada com o teu pai. Ele quis diminuir o custo da produção, para ter mais lucros. Os jar­dineiros não são tolos e, os cultivadores, em especial, nunca o podem ser. As vendas diminuiram em poucos meses.

Apesar de a Deidre já me ter preparado, senti uma dor aguda. Queria defender o pai, zangar-me com o Blair, por insistir em o tornar responsável pela fraude. Desesperada, exclamei:

-      O meu pai não era químico. Não podia avaliar que as fórmulas modificadas não davam tão bom resultado.

-      Devia consultar-me e colocou-me mal. Tinha uma boa reputação, adquirida com o meu esforço e o meu traba­lho. Ele não me consultou, por saber que não anula.

-      A Deidre disse que o pai queria dissolver a sociedade, e comprar a tua parte.

-      Comprar? Com quê?

Fiquei amachucada. Vi-o encolher os ombros.

-      O David - continuou - era incapaz de guardar o dinheiro. Mal o recebia, deitava-o pela janela fora, punha-

-o a voar. Era evidente que precisava sempre mais e mais, mas com o que fez, pôs em risco a integridade da firma.

-      Se o fez, foi a conselho da mulher.

-      E natural! Ela sempre foi insaciável.

-      Insaciável? - achei uma expressão moderna e procu­rei admitir que era adequada. - Sim, era insaciável nos seus desejos: conforto, trapos, mesa e até na posição de dona de casa, a que o pai não dava atenção.

-      Como todas as do seu género, aflindou-se. Queria mais e persuadiu o marido a seguir a sua táctica, mas perdeu mais do que ganhou. As finanças já não estavam fortes, mas ela, com a sua obstinação, nada queria ver. Conto contigo, para chegarmos a um acordo. Posso contar?

-      A Deidre também quer que a ajude a lutar contigo. Como posso ser árbitro numa contenda desta ordem?

-      Deves ver os prós e os contras, e pender para um lado.

-      Vou ficar numa posição muito ingrata.

-      Não me leves a mal. E um caso de emergência, que nunca se tornou conhecido. Agora, tenho que fazer tudo o que me for possível para salvar a Phelim.

-      O que pensas fazer?

-      Para começar, suspender a produção das fórmulas fal­sificadas. Pedir, com instância, aos clientes, que as releguem para o caixote do lixo. E um prejuízo considerável, mas não encontro outra alternativa honesta. Pôr no mercado novos adubos, de embalagem diferente, anunciando: «Os novos adubos da Phelim». Já combinei com um periódico agrícola o envio de amostras grátis. Vai-nos sair caro, mas talvez a maré volte a nosso favor. E uma das formas mais eficazes de atrair a clientela. Deve começar a olhar com desdém para os nossos produtos mas, sendo grátis, tenta-se a experimentá­

-los.

-      Tens razão. Poderemos beneficiar com essa tentativa?

-      Temos que tratar disto rapidamente. Estamos quase na abertura da estação, e é durante a Primavera e o Verão que os adubos são mais empregados. Para os crisântemos são muito vantajosos. Já fiz a experiência aqui... Não sai barato, ja se vê, e é essa a dificuldade.

-      Julgas que nos dá margem para oferecer amostras?

-      Com a continuação, dá, porque haverá mais flores e com muito mais duração. Precisamos fazer a oferta durante a quinzena.

-      Então... não esperas que eu aprove o plano?

-      Não posso esperar, não há tempo. Confio no teu bom senso - sorriu-me. - Se não me engano a teu respeito, a reputação da firma aumentará mais depressa que a queda dos lucros.

-      Com certeza. Após tantos anos de traballio teu e do pai, não posso ver ir tudo por água abaixo.

-      E o que eu penso. Não podemos aspirar ao lucro das

grandes empresas, mas, simplesmente, não perdemos o

nosso negócio. Os nossos produtos são de primeira ordem e

merecem que lutemos por eles.

-      A Deidre não vê isso?

-      Não avalia a inteligência do público. Pensa que se não importam de comprar uma porcaria, só porque tem uma bela embalagem e muita publicidade. Podem comprar uma vez, não nego, mas não repetem.

Concordei. Tudo o que ele disse era razoável. Percebia do assunto, por ser um grande químico, e, se a Phelim pro­grediu, foi graças à sua experiência.

A Deidre havia de alegar que eu era desleal para o Da-vid, concordando com o Blair. Porém, para mim, a maior deslealdade era deixar soçobrar a firma. Tínhamos que lhe restituir a boa reputação. Era um dever, não só financeiro, mas moral. Todos três vivíamos dali e o filho dela também de lá vinha a depender.

-      Então? Concordas?

-      Acho que tens razão, querido Urso!

-      Es uma boa rapariga! - exclamou com aquele terno sorriso. - Vamos sair de um aperto, mas não é fácil, nem agradável. E preciso cortar certas despesas. Pelo menos du­rante os próximos doze meses, o dinheiro tem de ser muito esticado.

Corei de vergonha, por não saber nada a respeito das despesas da casa. Não tinha conta no banco, nem nunca tive uma pensão regular. O David pagava tudo. Quando ia co­migo às compras, punha tudo na conta dele.

Ouvimos uma pancada na porta do gabinete e o BIair gritou:

-      Entre!

Uma rapariga interessante, vestida com elegância, entrou com um tabuleiro com café e chávenas. Era a Christine Pen-delly, ajudante e dactilógrafa do David. Recordo-me de ter sido contratada pela Deidre. Vivia em Helston e vinha todos os dias num pequeno carro. Nunca tive grande contacto com ela, embora o pai a convidasse, mais de uma vez, para cock­tajis e piqueniques.

-      Bom dia, Miss Phelim! Já está melhorzinha? - per­guntou em tom de indiferença.

-      Estou melhor, obrigada!

-      Senhor Kerrard, aqui tem o seu café!

Pôs o tabuleiro em cima da secretária, como se estivesse fazendo um serviço inferior à sua dignidade. Retirou-se a bater com os saltos e num provocante movimento de ancas, apertadas numa saia muito justa e curta.

Quando fechou a porta, o Blair disse com arrogância:

-      Aqui está uma despesa que vou eliminar. Esta rapa­riga ganha doze libras por semana, sabe Deus para quê!... Além de não ser uma empregada antiga, serve-me de obstá­culo. Atende instruções da Deidre, e já tenho percebido que se entendem muito bem.

-      Já a despediste?

-      Dei-lhe um mês. É a última semana que cá trabalha, felizmente.

-      Nunca gostei dela. Estou a vê-la nas festas, procu­rando convencer todos de que era da família, com grande intimidade com o meu pai.

-      Deve cortar-me na pele. Quis convencer-me que o David lhe comprou o carro e o pagava por meio de letras. Dizia que ele tinha um interesse especial nela, e propagava àboca cheia, até eu lhe pôr um travão.

-      Que coragem! O que dizes?

-      Que nunca imaginei que o meu sócio fosse tão doido, mas eu não era responsável pela sua vida particular.

-      Ela não podia comparar-se com a Deidre. Que ideia! Como se o pai perdesse cinco minutos com ela!

-      É fácil falar de uma pessoa que se não pode defender. Naturalmente, ela é que lhe fazia olhinhos bonitos. O David era muito simpático e todas as raparigas se encantavam com ele.

-      Calculo. As minhas colegas da escola, deliravam e desfaziam-se em amabilidades.

O    Blair não disse nada. Estava a tomar o café. Contem­plei O seu feio rosto. Conhecia-o tão bem!... Gostava de po­der saber se tinha sido um amigo leal, ou se invejava o en­canto do meu pai. Devia conhecer a falta de atractivos e por isso nunca se juntava às nossas reunioes.

Ofereceu-me uma chávena de café, com um aroma deli­cioso, e cigarros. Ao aceitá-los, reparei nas suas feias mãos e pareceú-me sentir esse contacto nos meus ombros, quando estava dentro de água. Apoderou-se de mim um intenso mal-estar. De repente, fiz-lhe esta pergunta:

-      O que me dizes a respeito de me teres encontrado ao íundo da escadaria?

-      O quê?

-      Sim. Achas que comecei a subir e caí? Reparaste se havia sangue nos degraus?

-      Não. Só pensei em te levar para o hospital. Já tinhas perdido muito sangue.

-      Onde encontraste o pai?

-      Flutuando à superficie.

-      Tiraste-o de dentro de água? Tiraste-lhe a máscara?

-      Não; foi o McTaggle.

-      O McTaggle? Onde estava ele?

-      Ele é que deu o alarme. Não sabias?

-      Não. Tenho curiosidade em saber como conseguiste chegar à lagoa.

-      Saí do escritório para falar ao Silas e vi o CoIm, com a sachola, a caminho da praia. Observei-lhe que não esquecesse o trabalho e respondeu que ia em serviço. - Parece que estão todos assustados - disse. - A menina ia a nadar para

o     senhor.» O rapaz tinha o olhar esgaseado. Eu não podia acudir aos dois, e tu já estavas na rochas. Nesse caso, acon­selhei o CoIm a ir depressa.

-      E iria?

-      Respondeu que não podia molhar os pés. Tinha tido uma desinteligência com o David... Então, chamei o Silas, para trazer o cinto de salvação; corri para a lagoa com os McTaggles atrás. Entretanto, já tinhas dado a volta ao ro­chedo e o cinto não era necessário. Estavas ao fim dos de­graus e o David no mar, flutuando.

Os McTaggles foram contigo?

-      Correram atrás de mim. Porquê?

-      Então, não podias ser tu! - exclamei aliviada.

-      O quê? - perguntou, impaciente.

-      Eu nunca subi os degraus, sei muito bem, Urso! A maré estava cheia e as ondas batiam nos rochedos. Fui em­purrada e obrigada a largar o meu pai. É a última coisa de que me recordo. Só depois me devo ter ferido.

-      É possível que uma vaga te atirasse contra os penhas­cos, mas não onde te encontrei. Estavas muito distante do mar.

-      E deixava o pai? Pensava bem, Urso!

Olhou para mim, espantado.

-      Que outra explicação pode haver? Estavas muito feri­da. Só por milagre escapaste. É natural que não te lembres bem como tudo se passou.

-      É o que todos me dizem, mas não é verdade. Lem­bro-me perfeitamente de ver umas mãos nos meus ombros, puxando-me para largar o meu pai.

-      É impossível! Que mãos, se não estava lá ninguém?

-      Já tinha estado.

-      Quem?

-      E o que me atormenta. Alguém tentou matar-me... ou ao pai. Ignoro qual dos dois devia ser a vítima.

Querida filha! A matutar nisto durante tantas sema­nas! - disse com compaixão.

-      Sempre que tenho pesadelos, tudo isso volta.

-      E um pesadelo, não pode ser outra coisa. Foi como te disse. Pergunta aos McTaggles. O CoIm viu tudo. Estúpido! Devia ter dado logo o alarme.

Queria acreditá-lo, mas não podia.

-      Ele não nos podia ver, quando estávamos perto da lagoa. A rocha grande ocultava-nos. O que aconteceu, foi quando já estava a chegar ao areal. Havia bastante tempo de me atirarem para as rochas, antes de tu chegares.

-      Mas... quem podia ser? Se estavas fora da água, com que fim fizeram isso?

-      Por não estar morta.

-      É horrível!

-      Isso sei eu...

Calámo-nos. Ele tinha a testa franzida. Por fim, disse:

-      Quem podia querer-te mal?

-      Não sei. Talvez alguém que queria certificar-se se eu não tinha salvo o pai.

-      Não havia possibilidade de saber. Ele estava morto.

-      Mas essa pessoa não sabia.

Novo silêncio, durante o qual eu procurava ler no seu rosto, se tinha acreditado no que eu disse, ou nao.

-      Nada tem sentido, mas deu-se - continuei triste-mente. - Não descanso, enquanto não souber quem foi.

-      Há coisas que é melhor não saber. Nada pode ressus­citar o David... e ninguém foi responsável pela sua morte. Isto é que é!

-      Porque morreu sufocado? Não sábias?

-      Naturalmente, faltou-lhe o gás.

-      Como? Experimentaste o tubo? E o compensador?

-      Foi o McTaggle que lhe tirou a máscara, e logo viu o que se tinha dado.

-      O que fizeram ao compensador?

-      Não faço a menor ideia.

-      Devia ter sido experimentado. Não acredito que o pai não verificasse se o tubo estava entupido.

-      Talvez isso se desse já long( da praia, quando não tinha pé. Uma coisa de ocasião... Têm-se dado casos idênti-cos. O médico que o autopsiou, referiu-se a isso, no inquéri­to. - Moveu-se impaciente. - Não comeces a magicar, Adele! Um desastre, por mais trágico que seja, não passa de um desastre.

-      Não posso deixar isto assim! - repliquei exalta-da. - Não me sai da ideia. Julgas que a botija não tinha gás? Deves saber melhor que eu. Es químico.

-      Deus me valha! Estás a magicar que eu fiz misturas na botija? Que a enchi com hélio? Que lhe juntei cianogé­nio? E isso que pensas?

-      Nem sei o que penso. A Deidre diz que a mote de David te favorecia, e tu não procuraste reanimá-lo. Os cho­colates vieram com um cartão teu, e podes ter sido o intruso desta noite.

-      Já percebo... Queria-os fora do meu caminho, não era?

-      Não digo que querias... mas que podias querer.

-      Pensa bem, Adele!

-      O Urso, tenho pensado e repensado, até chegar a convencer-me que enlouqueço.

-      Estás louca, se imaginas que eu queria prejudicar-te. Os vilões nem sempre procedem como vilões.

Alguma coisa no seu olhar me deu a entender que tinha sido cruel com aquelas acusações. Não o tinha querido me­lindrar, apenas ver a sua reacção. Ele foi prudente, não se exaltou, embora se ofendesse com a minha desconfiança, mas não foi insolente.

-      Como posso eu saber? Às vezes, pergunto a mim própria se te conheço bem, se conheço alguém, ou se estou enganada com todos! - exclamei no auge do desespero.

-      Não me conheces, ou na realidade não conhecias o teu pai? - perguntou, com orgulho.

Era um contra-ataque astucioso. Começava a pensar que havia facetas no carácter do pai, que nunca tinha descoberto. Ansiosa, perguntei:

-      Trabalhaste com ele muitos anos. O que pensas dele? Eram amigos ou inimigos?

-      Era meu amigo, quando precisava de um amigo. Fora disso, era um carrasco. Eu podia ter deixado isto, mas havia um incentivo que me retinha aqui e me proporcionava arran­jar-lhe dinheiro.

-      Para ele? Não era para ti?

-      Só muito mais tarde. Durante anos, só tinha um quarto nos lucros. Fiquei com o outro quarto, quando ele casou e precisou de capital extraordinário. Nunca fui seu ini­migo, nem podia ser. Ele era teu pai...

Falou de tal forma que me convenceu. Mostrou o que era. Então, como um lampejo, veio-me à ideia que eu era um factor importante na sua vida. Sempre me tinha tra­tado como uma sobrinha querida. Sentiria por mim outro sentimento mais terno? Fiquei perturbada, mas não me desa­gradou essa ideia. Senti as veias dos pulsos incharem. Con­templei-o com prazer. Parecia mais velho que o David, mas talvez não fosse. Nos seus cabelos castanhos, não se via um só grisalho. Os vincos da testa e dos cantos da boca, sempre lhos conheci.

Sim, mas não o conhecia a ele, disso tinha a certeza. Na minha fraca inteligência, sempre o achei sincero, como a Bronwen, mas incapaz de emoções e paixões. Se me fiasse na Deidre, via-o envolvido num crime passional, ainda ado­rando a mulher a quem matou o marido, ou indo visitá-la por obrigação. Nunca suspeitei inspirar-lhe um sentimento profundo.

Estava perturbada e sentia-me feliz. Larguei o cigarro no cinzeiro, que estava na secretária, sem saber o que havia de dizer.

Ele inclinou-se para tornar a encher as chávenas, e disse:

-      O David era encantador, mas um ser complexo. Tanto podia ser generoso em excesso, como excessivamente cruel. Era extravagante e dominador. Pedia afeição e arran­java complicações. Só se preocupava consigo e queria ser o senhor. Não via os outros, senão como satélites ou servos. Era uma atitude perigosa, mas não avaliava esse perigo. Eis o retrato que posso fazer do teu pai.

-      Nunca era cruel - protestei.

-      Era a seu modo, como uma criança maldosa. Quantas vezes foi cruel para a Deidre, instigando-te contra ela, elo­giando a beleza e a delicadeza da tua mãe! Era cruel quando lhe falava como a uma empregada subalterna. Casou com ela, mas nunca lhe entregou o governo da casa. Era cruel para ti, quando te tratava como um belo passarinho.

-      Mas gostava muito de mim.

-      Há modos de gostar que se tornam cruéis, quando dominam. Era generoso, à espera de compensação. Por isso há quem se revolte contra O seu despotismo. Era inexorável. Não creio que ninguém planeasse a sua morte, mas há muita gente que não tem pena dele.

-      Quem, por exemplo?

Apertou a cabeça.

-      Não me compete dizer. Acusar, suspeitar e recrimi­nar, nao é da minha conta. Não podes justificar o David indo indagar o passado. Só podes destruir a paz do teu espí­rito.

A gravidade do tom preocupou-me. Era como se sou­besse coisas que me desgostavam. Mas... o que seria? Não acreditava que no passado do David, houvesse alguma coisa que eu não pudesse saber. Quem sabe se o Biair se referia ao seu próprio passado, sem pensar que o pai tivesse contado àDeidre, e ela me contasse depois. Mais uma vez me sujeitava ao escrutínio. Mergulhei os olhos nos seus e acabei o café, arreliada. Ele não devia adiantar mais, nem ajudar-me nas investigações. Unicamente se preocupava com o futuro.

Sorri e disse:

-      Obrigada, Urso! Tenho de ir para casa.

-      Não tens medo de mim?

-      Não.

-      Leio no teu íntimo.

-      É o que pretendo.

-      E triste não poder achar uma explicação acerca dos chocolates. E evidente que pretendiam fazer-te desconfiar de mim.

-      Já percebi.

Levantei-me e ele abriu a porta. Senti uma deliciosa per­turbação ao passar ao seu lado; uma perturbação que gostava que ele notasse.

-      Aonde vais agora?

-      Dar uma volta pelos jardins, e talvez falar com os McTaggles.

-      E melhor não falares com o filho. Está suspenso... e não ficou contente.

-      Porquê?

-      E um mandrião e precisamos de quem trabalhe.

-      De acordo. Não quero ser inútil. Posso ajudar no escritório, quando sair a Cristina? N~ escrevo à máquina nada mal.

-      Boa ideia!

-      Deixa-me experimentar. Não sou nenhuma inútil.

-      Nunca te julguei assim - respondeu sincero -, o que precisas é prática. Toma cuidado contigo e, se quise­res, telefona.

 

Quando saí do escritório, a tarde estava linda. Vagueei por entre os canteiros e viveiros e fiz sinal à Sue para reparar no dos crisântemos. Falei ao velho McTaggle e hesitei. Que­ria interrogá-lo, mas não na presença da Sue. Ele foi sempre taciturno e, diante de uma estranha, não se manifestava.

A porta da casa onde guardavam tomates abriu-se e o Coim saiu, empurrando um carro, carregado de cestos cheios. Iam para a embalagem. Impulsivamente, segui-o, apesar dos conselhos do Blair. Estava resolvida a falar ao CoIm. Era a testemunha mais próxima, que podia encontrar.

A casa da embalagem era fria e húmida, com aquele cheiro habitual, que me recordou a infância. Pus-me ao lado da mesa grande. Ele puxou o carro para dentro, acendeu um cigarro e parou. Era um rapaz forte, de expressão enfadada. Não mudou, ao ver-me encostada ao banco.

-      Bom dia, CoIm! - disse a sorrir.

-      Viva!

Começou a despejar os cestos grandes, a arrumar e a atar outros, sem dizer nada. Pensativa, olhava para ele. Era um rapaz jeitoso. Não me admirava que a Elsie gostasse dele. Era alto, de cabelos escuros e, quando sorria, deixava ver uma fiada de dentes muito brancos, mas não naquele mo­mento.

Esperei até que, animado pelo meu silêncio, perguntou:

-      Posso ser-lhe útil, menina?

-      Queria que me falasses sobre a morte do meu pai. Viste o que se passou...

Desviou o olhar.

-      No inquérito, disse tudo o que sabia.

-      Não assisti, nem li os jornais. Gostava que me con­tasses, em primeira mao.

-      Para quê? - Notei certo ressentimento nos seus mo­dos. - Não costumo acusar-me, mas não podia ir buscar o senhor, mesmo que tivesse ocasião.

-      Ninguém te censura. Quero saber o que viste. Quando deste pelo senhor Phelim?

-      Quando andava em frente das rochas, naquele recife, onde há um pequeno rego, deixado pela maré.

-      Bem sei...

Quando o pai não ia de barco, seguia sempre até ao fim do recife que, por um lado formava a lagoa pequena, a pou­cos metros do mar.

-      Levava a máscara e uma espécie de cárnara fotográfica, às costas. Ao chegar ao fim do recife, pôs a máscara e, como as ondas batiam nas rochas, embora não o pudesse ver bem, percebi que mergulhou.

-      E... depois? O que aconteceu?

-      Não posso saber. Fui para o meu trabalho - respon­deu aborrecido. - Aquilo era uma brincadeira: submergir, voltar à superficie... Quando levantei os olhos, vi-o bater com as mãos. Pensei que algum caranguejo o tivesse ma­goado e não que estivesse aflito. Só percebi que estava em perigo, quando vi a menina atirar-se à água e ir ter com ele.

-      Viste-me? Não viste mais ninguém?

-      Não estava ali mais ninguém. Vi a menina agarrar o senhor pelos ombros e rebocá-lo para a praia, sem pedir au­xílio.

-      Não tenho ideia de ter pedido socorro. Mas... o que se passou depois?

-      O velho Kerrard apareceu e perguntou-me o que es­tava a fazer. Queixou-se de me pagar para trabalhar e não para admirar o mar. Nunca ninguém me falou assim. «O patrão está aflito. Veja!» respondi. Ele deu-me um empur­rão, e acusou-me por não ir acudir.

-      Porque não foste acudir-nos? Sabias que havia um cinto de salvação, na praia.

O    rubor subiu-lhe às faces tisnadas pelo sol e pelo mar.

-      Foi o que eu disse ao Kerrard. Porque não dava um passo para acudir ao patrão? Tinha-me ajudado muito?...

Sim, desviou-me a rapariga e meteu-Jhe ideias na cabeça!

-      O que pretendes dizer, CoIm?

Com ar de desafio, puxou uma fumaça e largou o ci-garro.

-      A menina não conhecia o seu pai. Andava sempre atrás das raparigas.

-      Como podes dizer uma coisa dessas?

-      Todos sabem que é verdade. Pergunte à Elsie e àvelha bruxa da Bronwen. Quando o levámos para casa, todos choramingavam, mas ninguém lamentava a sua morte. A Elsie garante que ele nunca lhe tocou. Não a comprava com os presentes que lhe dava. Eu já tinha percebido...

-      Não é possível! - exclamei desesperada.

Ele olhou para mim, com pena.

-      E verdade, menina! Não queria fazê-la sofrer, por isso, nunca dei uma palavra a tal respeito, durante o inquéri­to. Não compreendo a razão por que me acusa, por não ter ido buscar o cinto de salvação.

-      Não te prejudicavas se o fosses buscar. O senhor Ker­rard foi direito à lagoa?

-      Não podia ir mais depressa. Chamou o meu pai e corremos atrás dele. A menina não se via, coberta pela espu­ma.

-      E quando chegaram à praia?

-      O patrão estava no areal e o Kerrard ajoelhado ao pé de si. Não se poupou a esforços; insuflava-lhe ar na boca... Ai! Se não ouvisse, não acreditava. «Querida! Responde!», dizia aflito.

Na minha frente, passou um facho de luz que, por mo­mentos, me impediu de falar. O CoIm fazia caretas.

-      Eles dizem que o Kerrard não é um velho tonto, e a Elsie sempre percebeu que ele era doido pela menina. Mas o patrão não devia querer... Vi com os meus próprios olhos:

rasgou a camisa para lhe amarrar a cabeça, e ficou todo sujo de sangue; pegou-lhe ao colo, como se fosse uma criança, e correu para o carro.

-      E o meu pai? É o que pretendo saber.

-      O meu pai tirou-lhe a máscara e viu que estava morto.

-      Não podia ter a certeza.

-      O Kerrard também disse. Tinha uma cor de cadáver; o meu pai ainda pôs o ouvido no peito do patrão e nem um sinal de vida. Voltou-o, insuflou-lhe ar na boca, mas estava pronto.

-      O que fizeram?

-      O Kerrard tinha dito ao meu pai para o levar para casa e telefonar ao médico. Não podia esperar. Tinha que levar a menina para o hospital. Se não fosse ele, garanto-lhe que tambem morria. Eu não tencionava dizer nada, menina Adele; estava com um pé cá e outro lá e não queria tocar no assunto, para me livrar.

Atordoada, estremeci.

-      A menina não deve preocupar-se. O que é facto é que nunca pensámos que se salvasse.

Apertei as mãos, com força.

-      Tens a certeza que não estava mais ninguém na praia?

Ficou perplexo e passou as mãos pela cabeça.

-      Se estivesse, havíamos de ver... Não lhe parece, me-nina?

-      Não sei. Senti que estava outra pessoa dentro de água.

-      Que eu visse, não.

-      O que fizeram ao equipamento do pai?

-      O médico da autópsia pediu-o. A maré arrojou-o àpraia e nós deixámo-lo no areal. Quando o meu pai o foi buscar, na manhã seguinte, tinha desaparecido. A senhora disse que não tinha importância, e que nunca mais podia olhar para ele.

-      Não me parece... Devia ter sido examinado.

-      Foi o que disse o médico, mas nós não pensámos...

-      Compreendo perfeitamente.

-      Se a menina julgava que eu o tinha trazido, enganou-

-se. Não gosto da água, nem sei mergulhar. O mar é um traidor! Quantas vezes me afligia, ao ver a menina no meio daqueles vagalhões! Não pense mal de mim, menina Adele! Não sou ladrão

-      Ninguém te chamou ladrão! - mostrou-se admira­do. - Que cara é essa? Fizeram-te mal?

-      Não é nada com a menina. Já trabalhei bastante aqui. Agora, arranjei coisa melhor, e não trabalho ao domingo.

-      Antes assim. Boa tarde, CoIm. Não torno a vir inco­modar- te!

O    meu pai classificava o CoIm de «fedelho indesejável». Na verdade, os seus modos deixam muito a desejar. Ora fiLia com placidez, ora perturbado. Teria guardado o equipa­mento para o vender?... Era inadmissível.

Vim apanhar sol e deixei-o no trabalho de atar os cestos.

A entrevista tinha sido acidentada. Já estava arrependida de o       ter feito falar. A insolência com que se referia ao meu pai, fazia-me ferver o sangue. Como ousou fazer tais acusações?

O    pai, com o seu encanto, a sua dignidade o popularidade, andaria atrás das criadas e das empregadas? Custava-me a crer.

Mas o CoIm acreditava, tenho a certeza. Talvez a Elsie simpatizasse com o meu pai, como as minhas colegas da escola, mas era um contra-senso pensar que ele lhes dava atenção e as cativava com presentes. E natural que desse al­gum à Elisie, por ser generoso e a apreciar pelo desembaraço e condescendência. Lembro-me de o ver felicitar a Bronwen, por ter arranjado uma criada, que não era parva e era agra­dável à vista.

Era perigosamente atraente, dizia o Blair. A explicação devia ser essa. As raparigas enlouqueciam ao vê-lo e conven­ciam-se que ele lhes retribuia. Com a Cristina sucedia o mes­mo. Julgava que o pai estava apaixonado por ela. Se a ajudou a comprar o carro, foi para facilitar as coisas, visto haver poucos autocarros para a vila, fora dos meses de Verão.

Talvez o pai tivesse feito mal em a convidar para as fes­tas, mas era tão sociável para todos!... Só era mau para o pessoal, por o obrigar a trabalhar mais, para tirar mais pro­veito. Via um significado que não existia.

Se o pai andasse com as empregadas, como diziam, a Deidre havia de se mortificar. Ela estava convencida que o CoIm tinha deixado a Elsie. Quem sabe se lhe quis fazer ciúmes e o feitiço se virou contra ela?!...

A Sue veio ter comigo, ansiosa.

-      Está tão pálida! Não se sente bem?   perguntou.

-      Estas coisas são sempre desagradáveis.

-      Que coisas?

-      Discussões de negócios...

-      Ah! Não é lá muito agradável, não, mas tratei de tudo.

-      O velhote quer falar consigo, quando puder. Talvez agora...

-      Agora, não. Mesmo que ele queira, não quero eu. Não posso ficar com mais coisas na ideia - respondi aborre­cida - mas não estou doente.

-      Ainda não está muito forte.

-      Quem me dera estar mais forte do que pareço! Bem preciso...

-      Tem um grande peso às costas...

-      Acontecia-lhe o mesmo, se estivesse no meu lugar. Não saber... Não poder explicar o que penso!...

-      E por não ter mãe. Eu dou-me muito bem com o meu pai, mas sou mais cosida com a minha mãe. A menina nunca soube o que isso era... A minha mãe é um anjo.

-      Se a minha mãe fosse viva, tudo era diferente, mas morreu quando eu nasci. O pai substituiu-a como pôde, mas não é o mesmo.

Seguimos para o lado dos viveiros dos crisântemos. Vi o Silas e felicitei-o pelas plantas, que pareciam reproduzir-se e fiorir de novo.

-      E resultado do novo adubo, que o senho Kerrard apli­cou. Já pusemos por duas vezes, e tem graça! Estão nova­mente cheios de botões.

-      E óptimo!

-      Folgo por a tornar a ver, menina, mas ainda tem cara de doente. - Admirou-me como a uma planta que pouco se desenvolvia. - Não deve ter vontade de se meter já em negócios.

-      Já estou bem. O que há, senhor McTaggle?

-      Não nego que preciso falar com alguém, especial­mente com a menina. Vale mais prevenir que remediar. Não acredite em metade do que diz a velha. É uma boa pega!

-      Refere-se à Bronwen? - perguntei a rir.

-      Sim. Ela diz que os advogados dividem o dinheiro do patrão entre a menina e a viúva. Eu não sou advogado, mas sei que não era essa a vontade do senhor.

-      Como sabe?

-      Disse-me o patrão.

-      Quando?

-      No dia em que faleceu. A sua vontade deve ser res­peitada.

-      Que coisa tão estranha!

Ele sorriu e continuou:

-      Estranho era que ele não confiasse em mim. Não tra­balho aqui, desde que o patrão era pequeno? Ele sabia que me podia dizer o que pensava, e foi o que fez, nessa manhã. Mostrou-me os papéis que tirou da algibeira.

-      Que papéis?

-      O testamento. Disse-me assim: «Deixo-lhe um terço a ela, porque é de lei. O resto é para a minha garota. Ela não vê mais nada. Apontou aqui e ali, e eu vi lá os nomes.»

-      Tem a certeza que o testamento estava assinado pelo pai?

-      Foi o que ele disse. Assinou, dobrou o papel e meteu­

-o na algibeira. Estava contente do seu triunfo. «Ninguém me faz o ninho atrás da orelha, Silas, nem homem, nem mulher. Não te posso mencionar, por seres testemunha, mas não ficas a perder. Recebes já quinhentas libras, mal as le­vante do banco. Agora ninguém vai desejar a minha mor­te!», exclamou.

Senti os joelhos vergarem. O pai teria dito aquilo? Seria por brincadeira, ou supunha que o queriam matar? Quem? A Deidre?... Sendo verdade o que o McTaggle dizia, o novo testamento não a favorecia. Mas... podia não ser verdade. O pai arreliou-se, na véspera de falecer, mas foi comigo, por namorar o Gastão.

O    Silas devia estar confundido. As pessoas a quem o pai se referia, devia ser a mim e ao Gastão. «Nem homem, nem mulher», foi o que disse. E possível que, na arrelia de saber do namoro, me cortasse o quinhão. Não pensava que o Gas-tão queria o meu dinheiro? Que queria uma herdeira, por ser um aventureiro?

O    aroma suave dos crisântemos pairava no ar e entrou-

-me pelas narinas. Apesar do calor, as palmas das mãos esta­vam frias e sentia arrepios na espinha. Ter-me-ia o pai casti­gado por eu namorar o Gastão? Não me tinha já castigado bastante com palavras? Não tinha saído vitorioso? Impus al­guma condição? Não precisava fazer outro testamento, para me castigar ou proteger.

-      E isto, menina! Achei que devia dizer-lhe.

-      E apanhou as quinhentas libras? - perguntei.

-      Como?... O patrão morreu antes de anoitecer...

Seria só ao Silas que o pai prometeu quinhentas libras? Podia ser, mas também podia ser um expediente, em virtude de estar contra a velha Bronwen, que no primeiro testa­mento era contemplada com essa importância. Teria ele pen­sado nisso, se não soubesse qual era o legado à Bronwen? Tinha o Silas por bom homem, mas não o conhecia bem, para afirmar de que seria capaz. A custo, disse:

-      Como não apareceu outro testamento, talvez o pai tivesse rasgado esse, que lhe mostrou.

Desejava que assim fosse, pois custava-me pensar que o pai morreu zangado comigo.

-      Deve aparecer em qualquer lado. A menina já viu os papéis do paizinho?

-      Não, não tenho cá estado... mas o notário deve ter investigado.

-      Se fosse à menina, ia ver com os seus próprios olhos.

-      Hei-de tentar.

Afastei-me e a Sue deu-me o braço. Tinha ficado afastada no jardim, para não ouvir a nossa conversa. Voltou-se para mim, com ansiedade.

-      Que velho horrível! Não devia apoquentá-la já, com testamentos e legados - proferiu indignada. - Acredita no que ele disse?

-      Não sei... Se assim é, seguiu um caminho diferente. O pai estava furioso comigo e não com minha madrasta.

-      Consigo? - perguntou admirada. - Porquê?

-      E uma longa história, que já não interessa, mas ele não devia ter feito o que fez. Devia saber que nunca fui contra os seus desejos.

A enfermeira apertou-me o braço, com simpatia.

-      O seu pai devia saber e ver que o adorava.

Baixei a cabeça. Talvez tenha agido num momento de cólera e se tenha arrependido. Nessa tarde, ao persuadir-me a tomar banho com ele, tinha o aspecto prazenteiro do costu­me. Se fez novo testamento, debaixo de má disposição, ras­gou-o. Era mesmo assim. Se existir, há-de sair à luz. A Dei-dre, o Blair ou o notário devem ter mexido nos papéis. A Deidre, certamente, tinha um testamento que a beneficiava.

 

Depois do almoço, a Sue insistiu comigo para tomar um calmante e me deitar no quarto dela. Sem mesmo consultar a Deidre, levou as coisas que lhe pertenciam para o quarto de vestir.

-      Depois do chá, vou buscar tudo o que é seu, para aqui. Precisa descansar. Vou correr os cortinados e talvez consiga dormir um pouco.

Sentia-me cansada e abatida, mas não tinha sono. O meu cérebro trabalhava activamente.

Se for à praia, tome cuidado! - recomendei-lhe.

-      Com certeza! Talvez me apeteça chapinhar um pouco, e tomar um banho de sol.

Apesar do calmante e da penumbra em que o quarto estava mergulhado, tinha dificuldade em repousar. O que tinha ouvido nessa manhã, fazia-me andar a cabeça à roda. Devo ter acabado por passar pelo sono, porque não ouvi abrir a porta. Só dei pela Deidre, ao pé de mim, a perguntar:

-      Estás a dormir?

Estremunhada, respondi:

-      O quê? Ah! E a Deidre...

-      Desculpa ter vindo importunar-te, mas ainda não ti­vemos ocasião para conversar. A enfermeira não te larga!

-      Conversar? Creio que não temos feito outra coisa, desde que cheguei. Que espécie de conversa é essa?

Ela sentou-se aos pés da cama.

-      Temos que pôr as coisas em pratos limpos! Tudo a claro!

-      Não é possível. Tudo é obscuro desde que o pai mor-

-      Está tudo bem claro - respondeu com impaciên­cia. - O inquérito dizia: «Morte por acidente. » Refiro-me ao futuro.

-      Que futuro?

-      O nosso, está bem de ver. O que é isso? Ainda estás a dormir?

-      Não. O que há para discutir?

-      Náo metas os pés pelas mãos. Acho desleal da tua parte, ires ao escritório, falar com o Blair, sem eu saber.

-      Pediu-me que lá fosse.

-      Se queria uma conferência, estava pronta a conceder­

-lha, na tua presença. Percebo mais de negócios, que tu. Mau sinal!

-      A Deidre já disse ao Biair o que tinha a dizer, e ele queria apresentar-me os factos.

-      Falar-te neles; vale mais dizer assim. Revoltaste-te?

-      Acho que ele tem razão. O seu ponto de vista é o único aceitável.

Agarrou as mãos, com desespero.

-      Já esperava. Es uma parva! Todos te levam.

-      E isso que pretende, também?

Não pude ver a expressão do seu rosto, pela fraca clari­dade que havia no quarto, mas ouvia a sua respiração ofe­gante.

-      Tenho procurado meter-te o juízo na cabeça... Não fazes ideia da economia. A sugestão do Blair vai dar-nos grande prejuízo. Não te disse? Só se preocupa, à toa, com a reputação da fábrica.

-      Explicou-me, fez-me ver minuciosamente tudo, e compreendi que os seus planos acabam por nos fazer ganhar.

-      Bolas! Amostras grátis, para puxar para si e para a nova fórmula. Vá arranjar dinheiro para outro lado! Não podemos consentir! Temos que concordar em mandar para o lixo essa moda dos adubos. O David aprovou as fórmulas alteradas. Não tens confiança no critério do teu pai? Como podes ser tão desleal para a sua memória?

-      O pai não era químico, e o Biair é. As fórmulas eram do Blair - respondi em atitude defensiva. - Para que teve a ideia de as alterar? Ou foi ideia do David?

-      A ideia foi dele, com certeza, e eu apoiei. Se continuarmos com o Blair, a margem do lucro é muito menor. Aquele homem é que não quer ver. E um químico, não éum comerciante.

E honesto. Acha que deve dar os produtos com ga­rantia.

-      E o teu pai era desonesto? Oh, Adele!

-      Qualquer pessoa se pode enganar. O pai não era deso­nesto, deliberadamente. Não avaliava...

-      Ora!... Não me venhas cá com o BIair. Hipnotizou-

-te. Sempre tiveste um fraco por ele. Qualquer rapariga nor­mal o acha repelente, mas há em ti um fundo de maldade que te atrai para aquele monstro.

Aquilo chocou-me. Fez-me estoirar.

-      Que insensatez! Sempre vi no BIair, um tio. Confiava nele como na Bronwen. Não gosto de ouvir uma coisa des­tas!

-      Um tio! Que tio!... Não é o que ele pensa, e deves saber. O David soube e ficou furioso. Mais de uma vez me disse que ambicionava coisa melhor para ti, do que um ho­mem com um passado sujo e que olhava como uma fera no Jardim Zoológico.

-      O David nunca me falou em nada. Essas palavras são fantásticas, por pretender indispor-me com um homem que sempre me tratou como se eu fosse uma criança!

-      Por o David não lhe permitir mais. Bem sabia que ainda andava com a tal mulher.

Não dei resposta. Tudo aquilo era absurdo. Afinal, devia estar convencida disso, há vinte e quatro horas. Agora, re­cordava o que o CoIm me contou. Era certo que me amava? Tudo me fazia confusão. Se me amava e o David morreu com essa ideia, mais uma razão para o BIair não se preocupar que ele vivesse ou morresse.

Se a Deidre seguisse o curso dos meus pensamentos, ha­via de dizer. «O Blair detesta o David, não há dúvida. Sabia que não tinha sorte, enquanto ele fosse vivo, porque nao tinhas coragem de lhe desobedecer.»

Tudo isso, também teria visto na véspera. Diria que era inconcebível contrariar a vontade do pai, fosse no que fosse. Dominava-me por completo. Se alguém me convencesse a desobedecer-lhe, só podia ser o Blair. Havia nele um atrac­tivo que me podia dar essa coragem. Evidentemente, a ques­tão não estava levantada. Nunca me ocorreu poder amar o velho Urso, nem que ele tivesse uma secreta inclinação por mim.

-      Temos que discutir a respeito do Blair? - perguntei com desespero.

-      Contava contigo, a meu favor. Se estás contra, a mi­nha posição, aqui, é intolerável - respondeu com amargura.

Gostava de ver bem o seu rosto. As mãos arrepelavam a colcha, e notava-lhe uma tensão fora do vulgar. Resolvi per­guntar:

-      Está à espera de um bebé?

-      Como sabes? Quem te disse? - respondeu amável, após um curto silêncio.

-      Uma das enfermeiras, no hospital.

-      Ah! Logo vi... Nunca disse a ninguém.

-      E verdade? O David sabia?

-      Não. Ainda era cedo e não tinha a certeza.

-      É pena! Devia ficar tão contente!...

-      Duvido. Não queria grande família. Uma vez que julguei estar nesse estado e lhe disse, ficou aborrecido.

-      Não gostava?

-      Não. - Atirou com as mãos, como se não lhe per­tencessem. - Achava que eu não tinha sido feita para mãe, que não podia ser boa mãe, que já era velha e o tornava ridículo.

Falou com tristeza e fez-me pena.

-      O David disse-lhe isso?

-      Disse. Disse que tinha casado comigo por lhe ser útil nos negócios, e não para arranjar filhos. Que eu não era boa para ter descendência.

Achei uma ofensa; tive dó dela.

-      Mas... foi cruel.

-      Podia ser cruel - respondeu pesarosa - mas se pen­106

sava assim, eu queria um filho. Era humana. Talvez pensasse que isso me afastava dele, e não queria perder o seu domínio. Deves ter percebido...

Sim... - disse com tristeza.

-      Claro que eras a privilegiada. Nunca me fez esquecer que eu era a secretária. E tu, também! Não me consideravas como uma pessoa - comentou sem acusar, mas fazendo ver o facto. - Sabes o que fez, quando desconfiou que eu espe­rava um bebé?

-      Não. - Não queria ouvir, mas ela sentia alívio em lalar.

-      Levou-me no barco, por saber que eu tinha medo do mar. Sempre se arreliou com isso. Quando estávamos longe da praia, pegou-me ao colo, e, naturalmente, não pude resis­tir. Beijou-me nos lábios, pensando quebrar a falta de ama­bilidade. Pois em vez de me pôr de novo no barco e seguir comigo, atirou-me à água e afastou-se. Tive de nadar até àpraia.

-      Oh, Deidre!

-      Sofri um grande susto. Estava horrorizada. Nunca tinha nadado de tão longe, fora de pé. Quando me vi no areal, até chorei. Dois dias depois, soube que o bebé não nascia e ele ficou contente como um palhaço. Agora, dizia que um susto era o grande remédio.

-      Que barbarismo! - murmurei. O Blair disse-me que o pai podia ser cruel, irreflectidamente, mas, naquele dia, foi de propósito. Enervei-me. - Não ficou furiosa?

-      De que servia? Alguém podia levar a melhor com o David? E... eu amava-o. Nada podia fazer, senão instigá-lo a pôr-me fora. Tu também só fazias o que ele queria.

-      Não era meu marido. Não suportava estar sob o do­mínio de um marido despótico.

-      Não sabes. Ainda não experimentaste. Quando ama­res, ficas sem vontade própria.

O    Blair tinha dito que eu nunca me devia humilhar e espero que assim seja. Humilhei-me quando o David se zan­gou comigo. Não censurava a Deidre pelo seu malogro.

O    pai criou-lhe um complexo de inferioridade e aproveitava-se disso. Já devia ter percebido e nunca ria quando a afligia diante de mim. Naquela aparente ironia amável, descobria um aguilhão.

-      Finalmente, vou ter um filho. O que pensas? - per­guntou.

-      Acho graça. Se é o seu desejo, fico satisfeita.

-      Obrigada, Adele - suspirou. - É um alívio. Na­quela tarde, no hospital, pensei em te dizer, mas tive receio.

-      Não sei porquê.

-      Não gostas muito de mim... Era natural que ficasses aborrecida.

-      Não creio. Com respeito a não gostar de si, não me conhece bem. É possível que eu não tentasse, mas nunca me ajudou. Pôs-me sempre à distância.

-      Tinha ciúmes e o David divertia-se com isso. Incita­va-me, falando na tua mãe, que era muito angélica para este mundo.

-      É espantoso!

-      Era para me estimular e pôr-me a seu jeito. Os ho­mens são assim. Agrada à sua vaidade - falou, como se tivesse experiência. - Foi por isso que entusiasmou aquele joão-ninguém, lá no escritório. Para me arreliar.

-      A Christine? O BIair despediu-a.

-      Já não era sem tempo. Estava farta de a ver, sempre atrás do David, por tudo e por nada. O BIair, sem valor nenhum, pô-la logo no seu lugar. Faço-lhe essa justiça. Com esse, não conseguiu ela nada

-      E tentou?

-      É de calcular. Um dia, perguntou-me em que o BIair gastava o dinheiro. Desconfiava que devia ter bom pecúlio. Então, eu disse-lhe: porque não tentas ajudá-lo a gastar, em lugar de importunares o meu marido? - Ela foi a chorar, queixar-se ao David que eu era ciumenta e injusta.

-      Oh, querida!

-      Estou a ferir a tua susceptibilidade. Cenas da vida de casados. Se queres ter paz, não cases com um homem que atraia as mulheres. Voltam-lhe o juízo. Se descobre que não lhes é indiferente, são beijos e presentes, a nunca mais aca­bar. E custa muito a suportar!

-      E natural... Nunca pensei.

-      Acreditas? Estou pasmada! Esperava que te revoltas­ses, que insistisses que o David era uma perfeição - acen­tuou com ironia. - Procedias como se assim pensasses.

-      Talvez crescesse e espertasse, durante este tempo.

-      Isto mortifica-te?

-      E natural.

-      Precisava dizer-te. Para que hão-de as mulheres arra­nhar-se como os gatos? Devo valer mais que muitas outras. Cumpri sempre o meu dever.

Excepto com respeito ao Gastão, pensei, mas não quis falar nisso. Talvez por ser o primeiro ...... Perto de um ano, foi o factor mais importante da minha vida. Nunca poderei esquecer aquela cena. Ainda me custa pensar nele, e desejo não o tornar a ver.

-      Ainda ficas? - levantou-se e parou.

Nunca tinha estado tão em contacto com a minha ma­drasta, mas ainda me incomodavam certas dúvidas. Via a sua figura no espelho e lembrava-me da expressão que lá tinha visto de manhã.

-      Diga-me uma coisa, Deidre!

-      O que é?

-      Porque estava tão aflita esta manhã? Julgava que eu tinha caído nas rochas?

Apanhada de surpresa, não pôde evitar uma ligeira hesi­taçao.

-      Por a consciência me acusar. O Blair fez ponto nisso, e não concordei. Não via por que razão me dava ordens. Tudo quanto aquele homem faz ou diz, faz-me seguir por mau caminho.

-      Foi ele que receou os meus passeios a dormir?

-      Foi isso, ou coisa parecida. E o teu belo médico tam­bém parecia preocupado. Quando a Elsie não te encontrou esta manhã, tive remorsos.

A explicação era sensata, não podia contestar, mas uma dúvida persistia. Perguntei:

-      Quem tirou a chave das trancas?

-      Que chave? Não está lá? Não sabia.

-      Alguém tirou a chave e tentou entrar no quarto, esta noite.

-      Oh! Quem podia ser? Deves ter sonhado. Depois do sucedido, não admira que tenhas os nervos abalados. Des­cansa e não penses mais nessas coisas!

Saiu e eu continuei a meditar. A Sue acreditou, não digo logo, mas depois de ver a jarra partida. Por que não acredita a Deidre? O Blair aceitou a versão, embora lhe desse outro sentido. A Deidre não discutiu. Porquê? Por pensar que eu era sonâmbula, ou por conhecer a verdade?

 

Durante uns dias, a nossa vida foi um sossego. Dava passeios com a Sue, tomava banhos de sol nas dunas, com ela, e via-a chapinhar e brincar na água, sem ter coragem de a seguir e me meter no mar. Vagueava por aqui e por ali, tomava interesse nos vários aspectos do tratamento das plan­tas e das novidades que iam para o mercado. Examinava e apreciava as novas embalagens dos adubos, tinha breves con­versas com o Blair, sempre sobre assuntos da firma, e, em­bora soubesse que o tempo corria, não queria precipitar os acontecimentos.

A Sue lembrava-me constantemente as revelações do McTaggle, mas custava-me abordar o assunto com a Deidre. Receava que o desejo de ver os papéis do David, viesse alte­rar a actual situaçâo, bastante amigável.

Por mais tacto que empregasse, podia tomar por tacita acusação. Inevitavelmente, ia perguntar se desconfiava dela, e pensava que tinha escondido o novo testamento. Se eu ti­vesse a certeza que era a seu favor, era muito mais simples. A Sue tinha a convicção que o Silas sabia o que estava a dizer, quando se referiu a ser eu a beneficiada. Desenvolveu-me a tendência para o romantismo, contrária aos conselhos do Gastão.

Via-me uma jovem e bela herdeira, à mercê de uma ma­drasta e de um homem avarento. Esperava que um galante e bravo cavaleiro me viesse buscar, e ficou penalizada por eu tirar o Tayne da lista.

Por uma curiosa tendência de sofrimento, em certas ra­parigas, ela persuadiu-se que eu queria casar com o seu he­rói. Estava pronta a entregar-mo, a sacrificar o seu sonho, só para dar um desfecho feliz ao conto de fadas.

Era mais velha do que eu, apenas oito meses, mas, assim como era prática e sensível na sua capacidade profissional, na vida íntima, era uma jovem romântica, como qualquer cole­gial. Ainda não tinha descoberto que eu já tinha uma triste experiência, e que as pessoas não são o que aparentam.

Para a Sue, tudo era simples. A Deidre, como madrasta da encantadora herdeira, devia ser intriguista. O Blair, cla­ro, estava no rol dos demónios, desde que o viu. Um ho­mem horrendo, com barba, com cabelos cor de cereja, e bra­ços e ombros de gorila, não podia prestar para nada. A Bro­nwen era a tradicional amiga sabichona, a mulher sensata; o Silas, o dedicado velho servo. Ela, a leal irmã da historia.

 

Só faltava o Príncipe Encantado, e o Rodney Tayne, com vontade ou sem ela, era obrigado a tomar esse lugar. Cega pela afeição que lhe tinha, a Sue achava-o digno de ser o herói. Para mim, a sugestão era ridícula. O Rodney era um belo rapaz, um hábil médico que daria um bom marido para qualquer rapariga. Para o Príncipe que havia de matar o dragão, para me salvar, era muito inferior.

Conforme pude, tentei convencer a Sue que, nem em mil anos me podia fazer bater o coração, ou emocionar. Achava-o simpático, mas apenas superficialmente. Ele en­cantou-se com a verdadeira Adele Phelim, ao auxiliar ás três operações; esta sensibilizou-se, mas voltou à realidade e es­queceu esses voos de imaginação. Ele não podia compreender que a imaginação, o orgulho e a paixão faziam parte dela, intrinsecamente.

 

Na quinta-feira, à noite, o Rodney telefonou, satisfeitís­símo por ter conseguido um fim-de-semana livre. No caso de persistir o nosso convite, devia chegar no sábado à tarde e ficar até segunda de manhã. Procurei mostrar-me prazenteira com essa perspectiva. Fiquei contente pela Sue, mas não por mim. Planeei arranjar as coisas, de modo a deixá-los sós, alguns momentos, esperando um resultado favorável. Devia meter o Blair na conjura, mas receava não ter possibilidade de o fazer.

A Sue ficou encantada e elogiou tanto o Rodney, que já não a podia ouvir. Era como um vendedor que não nos larga a porta, elogiando a mercadoria. Contudo, por mais louvores que ouvisse, não conseguia convencer-me.

Obrigava-me a descansar todas as tardes, mas na sexta-

-feira ainda se mostrou mais exigente, alegando em tom sig­nificativo:

-      Amanhã, com a chegada do Rodney, não há-de que­rer repousar. Deve querer acompanhá-lo, o mais possível.

-      Não pense nisso. Não sabe que uma rapariga só apre­cia a companhia do homem que ama? Nunca reparou numa rapariga que se encontra com o namorado? A sua alegria transparece, como se trouxesse um farol no coração.

-      Como sabe? Já lhe sucedeu o mesmo?

-      Já me sucedeu uma vez.

Apesar da sua tagarelice, não quis adiantar a conversa. Quando estava só, fui procurar o original da minha fotogra­fia, com o vestido de baile. Fui admirá-la ao pé da janela e notei esse foco amoroso, que saía do meu coração e me fazia corar. Notava-se nos meus olhos e no meu sorriso. Era o retrato de uma jovem enamorada, que se sabia amada pelo objecto dos seus sonhos. A altivez da cabeça e a graça com que unia as mãos davam a entender que escondia um tesouro.

«A Bela Adele Phelim...» Sim, essa rapariga foi bela como nunca tinha sido, nem tornará a ser.

Enquanto admirava a fotografia, a última cena apresen­tou-se perante os meus olhos. Senti o contacto dos dedos do Gastão a acariciar-me a pele, ao mesmo tempo que puxava o decote. Ouvi a ríspida intervenção do Biair e vi-me a puxar para cima o tafetá do vestido. Eu não queria uma alusão provocante. O Blair bem viu como fiquei na fotografia.

O    Gastão ficou furioso. E eu? Não... nem pensei em tal coisa, apenas vi, inconscientemente, que o Blair velava por mim. Porquê?... Talvez por saber que só dois homens me abriam os braços com carinho e amor. Mais ninguém... Aquela beleza efémera deve ter encantado o Biair e o Gastão.

Essa ideia preocupou-me. Não era fácil penetrar no cora­ção do Blair. A beleza, a juventude e a saúde atraem muitos homens, mas ele não era desse numero. Viu-me nos momen­tos de felicidade e alegria, mas também em lágrimas, em acessos de mau humor e nos meus desgostos de criança. Se écerto que há um homem que adore o espírito peregrino, esse homem é o Blair.

Afastei a fotografia e pu-la em cima da cama. Queria afastar o passado, mas não era fácil. Recordava os longos apertos de mão e os beijos do Gastão. Na sua galanteria sobressaía o artista, que, com hábeis pinceladas, retocava os cabelos e as pregas do vestido. Beijava-me com cuidado, não estragasse a pintura.

Se o Blair me beijasse, devia ser diferente. Não se preo­cupava com os cabelos, nem com a maquilhagem. Devia agarrar-me com aquelas mãos de urso e esmagar-me os lá­bios, asfixiar-me com beijos. Não podia ser uma cena ro­mântica ou artística. A barba devia picar-me e eu punha-me a rir. Não me devia largar, sem eu pedir tréguas, tenho a certeza.

Sorri, ao fantasiar esse quadro ridículo, de conto de fa­das. A Sue, com as suas histórias, dizia logo: «O Blair é um monstro, que podia ilustrar a história de «A Bela e a Fera. »Não devia ser agradável, todavia, porque me sentia entusias­mada?

Recordei as palavras trocistas da Deidre. O que me en­cantava, seria repugnante para as outras raparigas? Nunca tinha pensado nisso. Se alguma coisa me atraía para o Blair, era derivada à emoção que sentia pela sua força, comparada com a minha. Fui dominada pelo pai. Agora, livre desse domínio, iria procurar outro?

Há raparigas que querem dominar, e outras que, em se­gredo, desejam ser dominadas.

Tive um repouso muito agitado. Preferia ter ido para a praia com a Sue. A tarde estava abafada e, pela primeira vez, apeteceu-me tomar banho, nadar, nadar até me sentir exte­nuada, para não pensar. Era estúpido, ficar metida num quarto às escuras, como uma inválida ou uma velhinha.

Decidi levantar-me e tomar um banho tépido. Despi-me, vesti o fato de banho e senti-me envergonhada ao ver o meu guarda-roupa, cheio de enfeites caros. Para que tinha comprado tanta coisa? Sem dar por isso, tinha sido extrava­gante. A Deidre também era, mas tinha certa desculpa, por­que só gostava de usar fatos feitos especialmente para ela.

Não me surpreendia que o pai escolhesse outros meios para aumentar o rendimento.

Vesti um vestido de praia, de nylon cinzento-claro, com um cinto de cabedal branco, meias e sandálias brancas. Em vez dos cosméticos caros, resolvi pôr só pó-de-arroz e bâton. Para que havia o David de me comprar tudo? Tudo tão caro, como se fosse filha de um milionário?!... Dava razão ao Blair, por dizer que o pai era cruel sob certos aspectos. Nunca pensei em despesas, e consenti que me tratassem como um boneca.

Escovei os cabelos e arranjei-os de modo a taparem as cicatrizes. Estava a contemplar o efeito, quando a Sue entrou de rompante, muito excitada.

-      Está acordada? Já se levantou? Ainda bem! Ele che­gou.

-      Já? Não devia vir amanhã?

-      Não, não é o Rodney, é o seu namorado, o seu apai­xonado, tenho a certeza.

-      Quem?

-      O rapaz que lhe tirou os retratos. Veio à praia procu­rá-la e viu-me a mim. Não teve graça nenhuma.

-      O Gastão? Não é possível.

-      O Gastão Loire, um nome romântico, mesmo bom para ele. Nunca vi um rapaz tão elegante e tão simpático. Não calcula como foi amável!

-      Calculo, calculo...

-      Está na sala com a sua madrasta. O Adele, não está comovida? Teve sorte...

Sorte? Eu pedia a Deus para não o tornar a ver. As per­nas tremiam, sem eu querer. Para que voltou? Naqueles lon­gos meses de martírio, não ouvi uma palavra a seu respeito. Devia saber que nada existia entre nos.

-      Vá! Ele quer vê-la - insistia a Sue

Se o vir, morro, pensei. Não posso. Não posso offiar para ele! Depois do que o pai disse...

O    eco da sua voz martelava-me nos ouvidos. Aqueles insultos deitaram-me abaixo. A humilhação era uma dor físi­ca, agora sem lágrimas. Não podia esquecer que o pai proi­biu aquele namoro. Agora, não podia esperar auxílio de nin­guém, tinha que decidir sozinha. A Deidre era prima dele e muito amiga. Na sua dor, deve tê-lo procurado e, agora, énatural que ele viesse por causa dela. Tinha cá ficado até a Bronwen o mandar embora, por o achar incorrecto.

Partiu, aparentemente, mas deve ter ficado em contacto com a prima. Para que voltou agora? Por saber que eu tinha vindo para casa? Teria vindo ver a Deidre, contando com a minha presença, para anular o que a Bronwen tinha feito? Teria vindo por minha causa?

-      Não está contente? - perguntou a Sue. - Ele falou tanto em si...

-      Não quero vê-lo!

-      Ah! Não faça isso! Fosse qual fosse o desacordo, ele não mostra pensar no caso. Discutiram? Acabou o namoro com ele?

-      Nem lhe disse adeus. O meu pai zangou-se com ele.

O    pai pô-lo fora, mas ele deve ter voltado mais tarde, quando eu estava no quarto a chorar.

-      O chá está pronto. Estão só à sua espera - cochichou a Sue. - Sempre que se sente feliz empalidece? Ponha um bocadinho de rouge.

-      Não, não ponho - senti-me corar; ardia, mas apesar desse calor, sentia frio interior, derivado à comoção que me invadia.

Vi-me obrigada a transpor a porta. Os pés arrastavam­

-me. Estaria a dormir? Apertei as mãos, até fincar as unhas na carne. Sentia o sangue ferver. Devia apresentar-me com naturalidade, mas... como podia estar natural, nestas cir­cunstâncias? Podia copiar os modos da Deidre, como se fosse uma estranha? Ele conhecia cada ângulo do meu rosto e do meu coração, e cada nervo e cada pulsação tinham correspon­dido âs suas carícias.

Fui para baixo, com a Sue atrás, como um cáozinho. Quando atravessei o hali, fugiu-me o sangue, ao ouvir rir o Gastão, aquelas sonoras gargalhadas, que me soavam como um toque festivo de sinos. Como podia aparecer nesta casa e rir daquele modo, como se nada se tivesse passado? Como podia? Era um insulto à memória do David. Imaginava que o passado estava esquecido?...

Quando parei à porta da sala, tive a sensação que o tempo também tinha parado. Ele estava à janela, a rir para a prima, sentada ao pé do bule de prata. Os raios do sol, que entravam, tornavam o seu cabelo avermelhado, como as fo­lhas secas do Outono. Na sombra, desenhava-se o seu perfil de grego.

Era exactamente o mesmo, alto e elegante, com um fato de flanela, que era meu conhecido. Trazia-o numa bela tarde de Verão e, se não fosse a ausência do pai, dir-se-ia que estávamos no estúdio, numa daquelas habituais sessões.

Deve ter dado pela minha entrada, porque se voltou e veio cumprimentar-me, com modos graciosos.

-      Olá, querida!

-      Que surpresa!

-      Surpresa? Devias saber que eu vinha hoje.

-      Só se a Deidre sabia, eu não.

A Deidre inclinou a cabeça sobre o tabuleiro do chá, e pegou no bule com as duas mãos. Ao ouvir a minha respos­ta, entornou o açucareiro, e, sem olhar, disse:

-      O Gastão sabe que sempre tenho prazer em o ver. Não tinha aspecto de contente e, quando me ofereceu

o     chá, notei-lhe um modo frio. Não gostaria da visita, ou

não gostaria de o ver comigo? Nunca influiu nem desanimou

o     nosso idílio; era uma simples espectadora, conquanto

achasse que o Gastão era propriedade dela.

Não se pareciam. Ele era vivo, como uma chama dançan­do. Ela era lánguida.

-      O cabelo curto não te fica mal, mas está curto em excesso. Os óculos é que estragam a pintura. Tira-os e deixa-

-me ver esses queridos olhos!

Julguei ouvir o pai. Senti uma punhalada no coração. Respondi num tom desabrido, que não me era habitual:

-      Não estragam a pintura, fazem-na realçar.

- Não pareces tu; pareces uma mestra de aldeia ou uma secretária particular. Há raparigas que podem usar óculos; tu, não!

Com frieza, notei que era pouco amável. Não era meu pai, não queria que seguisse a táctica do David. Olhamos um para o outro. Os seus olhos azuis forçavam-me a obede­cer. Havia neles, como nos do David, um não-sei-quê, que pedia obediência e renúncia, que exercia a autoridade do ho­mem sobre a mulher.

Nunca tinha notado, possivelmente, por ter sido edu­cada pelo David. Agora, espicaçava-me. Sentei-me ao lado da Deidre, no outro extremo do sofá.

-      Quando se esteve em perigo, com o crânio aberto, com perda de massa encefálica e de vista, não se liga impor­tância a que os óculos desfeiem.

-      Pobre criança! Passaste um mau bocado? - sorriu.

- Como estás altiva! Não és tu. Não digas que a operação alterou a tua personalidade.

No seu tom e no sorriso não existiam compaixão. Tive a certeza de que não avaliou o que foram essas semanas de dor, no hospital. O que percebia de doenças e operações? De do­res, pesadelos e bruma impenetrável?

Como artista, devia ter compreendido que o receio de cegar é o pior que pode haver, mas limitava-se a sorrir. Com tristeza e humilhação, pensei que o pai tinha razão no que disse. O Gastão nunca me teve amor, senão compreendia.

-      Talvez... ou antigamente eu não tinha persona­lidade - respondi, calma.

-      Eras uma pessoa encantadora. Não devias mudar -replicou. - Quando voltas a ser o que eras? Fica como dantes, não mudes em nada!

A sua voz de tenor subiu um ou dois tons. Recordei-me de ter dançado com ele, a falar naquele tom, e as suas pala­vras chegavam-me aos ouvidos. Fez-me vaidosa. Sentia-me a dançar no ar, num sonho paradisíaco. Era muito nova. Hoje, já não acreditava em sonhos, pois os meus transformaram-se em pesadelos

-      Não a arrelies, Gastão! - interrompeu a Deidre, o que me surpreendeu. - A Adele esteve gravemente doente, e ainda não está muito forte.

-      Tens que a fazer engordar. Perdeu aquelas curvas har­moniosas - disse, admirando-me como a um modelo.

-      Os braços parecem de criança. Nas próximas sessões, tens de usar mangas compridas.

Estremeci. O Blair não lhe disse que isso era dispen­dioso? Foi com essa ideia que veio? Queria ganhar um grande honorário, que a fábrica não podia aguentar.

-      Não vai haver mais sessões. Esses anúncios acabaram.

-      Quem diz? O velho monstro do laboratório? Não vais consentir que ele mande em ti!

-      Já ninguém manda em mim. Nunca mais!

-      Está bonito! Pois tinha grandes ideias. Pensei que podíamos aproveitar o fim-de-semana.

-      As ilustrações saem muito caras.

-      Isso já é velho! Tenho um esquema muito melhor, que apresento todos os dias na Televisão. Temos que fazer séries contigo, entre rosas, com uma homenagem à Phelim. Trouxe a máquina de filmar. Nunca viste as minhas séries, na Televisão? E das coisas mais rendosas.

-      Não tenho visto Televisão. Custa este mundo e o outro, não?

-      Valoriza. Dá o dobro. Na Televisão, é ganho certo.

-      É bom para os indiferentes. Duvido que entusiasme a clientela para os produtos da Phelim.

-      Não fales sem ver! Esta noite faço uma demonstração. Trouxe alguns filmes.

Falava enaltecendo o seu trabalho, descrevendo, detalha­damente, os êxitos obtidos. A Sue estava fascinada e a Dei­dre também se mostrava entusiasmada. Fiquei aborrecida, convencida que a Deidre aprovava o projecto, e o BIair se opunha. Se ele não concordasse, eu via-me metida entre a espada e a parede.

O    Gastão era eloquente, convincente, como sempre foi. Mais uma vez pensei que era como o David. Ambos tinham um poder de entusiasmo, que transmitiam aos outros. O Gastão expunha as ideias e, ao ouvi-lo, eu visionava-as. Podiam entusiasmar, chamar comentários diferentes, mas ganhariam adeptos? Justificariam a despesa? O meu pai aprovava-as, com certeza; aceitava sempre novas ideias.

O    Blair era mais cauteloso, mais conservador.

O    Gastão bem sabia, não duvidava. O David não olhava ao custo das coisas. Se não fosse o sÓCio, as finanças ainda deviam estar mais afectadas, mas ele nem pensava nos que­bra-cabeças que lhe apresentava.

Gostava de ver os anúncios coloridos, que lisonjeavam a sua vaidade e a minha, e eu nunca me preocupei com isso. Meses atrás, os filmes do Gastão podiam tentar-me. Agora, mesmo depois de ver a demonstração dos filmes, que ele trouxe, fiquei hesitante. A Deidre apoiava e eu convencia-me que, se o pai os tivesse visto, também gostava.

Nessa mesma noite, enquanto tomavam café, na sala, fui telefonar para casa do Biair. Não sabia o que ia dizer, mas conhecia que precisava falar com ele, antes de ser dominada pelo encanto do Gastão, esse encanto impregnado de um aroma exótico, penetrante, que pairava no ar. N~ podia ser tão imprudente, que me deixasse dominar mais uma vez.

Quando o Blair me atendeu, disse, sem preâmbulos:

-      O Gastão está cá.

-      Pretendes ver-te livre dele? - respondeu com tu-deza.

-      Era esse o meu desejo, mas como é primo da Deidre e deve ser seu convidado, não é fácil.

-      Então, o que queres que faça?

-      Queria falar contigo.

-      Fala, que eu oiço!

O    tom cavo da sua voz parecia estar ao meu lado. Ao ouvi-lo falar, sentia-me apoiada no seu ombro. Impensada-mente, perguntei:

-      Achas que o Gastão é como o meu pai?

Nem sabia para que tinha feito essa pergunta. Talvez para me aliviar... O Biair não deve ter achado estranho, por­que respondeu pausadamente:

Referes-te à vaidade?

Não tinha pensado nisso, mas reconheci que assim era. Hesitei...

-      Nisso e noutros pontos...

-      Apenas superficialmente. A parte certas falhas, o teu pai era amorável, impulsivo e generoso. O Gastão sempre me deu o aspecto de ser frio, calculista, demoníaco.

-      Oh! Oh!

-      Desculpa se me excedi, mas perguntaste...

-      Perguntei e quero saber.

-      Já te disse que não gosto dele!

-      Não gostas que o Gastão me arranje as poses... que me toque...

-      Não é isso. Nenhum homem merece censura por ser carinhoso para ti - disse aborrecido. - O que me irrita évê-lo apalpar-te, como se fosses uma boneca e não uma cria­tura humana.

Pisquei os olhos, involuntariamente, compelida a respei­tar a sua opinião.

-      Queres dizer que não me encarava como mulher? Precisamente.

-      Era a menina Phelim. Afinal, para que serve ser foto­génica?!..

-      E ser filha do David Phelim.

Não acrescentou: «e herdeira rica», mas eu podia acre~ centar. Foi com que o David lhe atirou, e devia ter razão. Era essa, precisamente, a verdade. Não quis aumentar o àbor­recimento, e calei-me. Nenhuma rapariga admite, de bom grado, que o primeiro namoro seja um aventureiro sem cora­ção, que a ilude, fingindo que a adora.

-      Bem, acabou-se!

-      Também concordas?

Era singular, como o seu amor penetrava naquelas breves palavras, com a mesma intensidade que o encanto do Gastão se espalhava pela sala. Senti um calor súbito.

-      Concordo. O encanto ainda é evidente, mas não me perturba. Os meses que passei no hospital, devem-me ter tornado alérgica aos perfumes exóticos. Quando me enviavas flores, escolhias sempre as de aromas suaves. Eu não aguen­tava o perfume dos lilases, dos jacintos ou dos narcisos.

-      Era o que eu calculava.

Recordei como o aroma das violetas, das rosas, das ervi lhas-de-cheiro e da madressilva me davam conforto, naqueles dias em que estava mergulhada nas trevas. Já se vê que tinha sido essa a intenção do Blair. Como teve tanta imaginação e percepção, e nunca dei por isso!

-      O Gastão veio para negociar connosco - tentei falar com calma. - Quer vender-nos filmes publicitários para a Televisão. E o último projecto. Qual é a tua opinião? Pode­mos experimentar?

-      Experimenta-se uma vez.

A sua maneira de falar tirou-me um peso de cima, em­bora me desagradasse, por outro lado. Ia fazê-lo enfrentar outra batalha?

-      Fiz-lhe ver que duvidava que os nossos clientes vis­sem Televisão, ou se entusiasmassem com esse género de publicidade.

-      Bravo! Estás a perceber do assunto.

Embora me parecesse absurdo, agradou-me a sua aprova-çáo.

-      Quero aprender. Quero saber. Não te esqueças que vou começar a trabalhar na segunda-feira. Lembrei-me que posso ajudar a desenhar os anuncios.

-      Tinha graça!

-      Achas?

-      Com certeza. Tens imaginação e podes guiar-te pelas ideias do teu pai.

-      Tenho imaginação, de que nunca me servi.

Ele riu.

-      Proporciona-se agora ocasião. Alguma vez temos de começar e, na tua idade, não se pode dizer que a imaginação já criou bolor.

-      É uma consolação. O doutor Tayne vem amanhã, para passar o fim-de-semana. Dás-me o prazer de vir cá jantar?

-      Agradeço-te, mas não aceito. Não vou aumentar a alegria das nações.

-      Que disparate! Urso querido, não espero que sejas o rei da festa, mas preciso do teu amparo moral.

-      Não me peças isso, Adele!

-      Porquê?

Minha querida, não aprecio ternuras sem sentido.

Fiquei colhida de improviso, durante uns minutos. De­pois, comecei a rir.

-      Só as toleras quando as julgas verdadeiras? Quem te diz que nao vejo em ti um urso muito querido?

-      Cala-te, Adele! Não sou um urso que faz habilidades e anda preso com um cordel; um urso a quem dão torrões de açúcar.

-      Nunca fiz essa ideia de ti. Por favor, vem! Cinco éum número muito estúpido. Além disso, o Tayne está an­sioso por falar contigo, acerca dos chocolates.

-      Deve antes falar ao Gastão.

-      Ao Gastão? - Admirada, respondi: - Isso, não!

-      Também percebe de química e esse despeito efemi­nado calha-lhe ás mil maravilhas.

-      Mas... porquê?

-      Para te voltares contra mim, está bem de ver!

-      Não conseguiu. Sabia que não os tinhas mandado.

-      Minha querida amiga! Viste esse homem dar, algum dia, mostras de inteligente?

-      Não. Qual é a outra afeição sem sentido?

-      Cala-te com isso! Já que estamos a falar no assunto, pergunta ao Gastão onde esteve no domingo à noite.

-      Não esteve ....

-      Vim tarde para casa e, na estrada do Truro, passou por mim um carro de corridas, a toda a velocidade. Um Aston Martin.

-      O do Gastão?

-      Não pude ver bem quem ia ao volante. Não afirmo que era ele; digo, simplesmente, que podia ser. O carro era igual.

-      Ah! -- senti um balde de água fria na espinha. -Pensas que foi ele o intruso que entrou no meu quarto?

-      E possível. Não podia prever que tinhas renegado o papel de Julieta.

-      Não via que quebrava um interlúdio romântico?

-      Desconheces o seu ponto de vista. Podia encontrar meio de te ter segura. Era a forma de ficares presa para sem­pre - prosseguiu, secamente.

-      Não é possível! Que horror!

-      Não esperava que esse processo te desagradasse.

-      Estás sendo horrível!

-      Não julgues que vou para esse lado. Estava a dar-te a entender o que penso.

-      Não acho nada romântico. Devia esperar que o man­dasse chamar e, nessa altura, responder. Podia esperar, que, dessa forma, não me tornava a ver. Fosse lá quem fosse, sei que me atiraram para as rochas.

-      Mau! Deves valer mais viva do que morta... ou pelo menos, ele está disso convencido.

-      Nao sei... - embrenhei-me no receio e na confusão.

-      Não sei, Urso! Por favor, não me deixes só, amanhã ànoite! E sempre mau, mas sinto-me melhor, mais protegida, se estiveres ca.

-      Então, conta comigo! - respondeu sem hesitar.

Um leve rumor atraiu a minha atenção. Quando vim telefonar, fechei a porta, podia jurar. Voltei-me e vi-a en­treaberta.

-      Obrigada! Preciso falar contigo! - desliguei.

 

Depois de largar o auscultador, esperei um ou dois se­gundos. Tirei um cigarro da caixa de prata que estava ao lado do telefone. Peguei no acendedor do pai (uma sereia de prata). Aproveitava tudo que tinha analogia com o mar! O acendedor não funcionava. Alguém se serviu dele, ou da secretária, depois do seu falecimento. Quando, pela segunda vez, tentava acender o cigarro, a porta abriu-se de par em par e o Gastão entrou, a passos largos.

Eu não podia provar, mas sabia que ele tinha estado a escutar à porta. Gostava de poder saber o que pensava.

Aproximou-se de mim e tocou-me, com o cigarro apaga­do, nos dedos.

- Não precisas disso, meu amor! - pôs a mão no cora­ção num gesto típico, que o meu pai costumava ter.

-      Disto é que precisas, querida!

Pôs um braço em volta do meu pescoço e, ao de leve, roçou os lábios pela minha testa. Não podia soltar-me dele, senão ainda era pior. Os balidos do cordeiro excitam o tigre, pensei. Devia mostrar-me fria e prudente, pois precisava des­cobrir os seus planos.

-      Tira isso! Não posso beijar uma rapariga com óculos! Nunca pude! - disse em tom jocoso.

Tirou-me os óculos e julguei que ia atirar com eles, como fez ao cigarro. Talvez lhe bulissem com os nervos! Pô­

-los, com força, em cima da secretária, sem se preocupar se as lentes se partiam.

-      Assim estás melhor. Pareces outra vez a minha que­rida beldade!   Inclinou a cabeça e beijou-me.

O    seu rosto era apenas uma mancha. Só distinguia o brilho dos cabelos, e sentia a fria pressão dos seus lábios. Não conseguia distinguir-lhe as feições. Tê-lo-ia visto sem­pre através da neblina da ilusão?

Passava-me a mão pela nuca, num ritmo hipnótico. Sa­bia como excitar uma rapariga inexperiente. As suas carícias faziam-me estremecer e agradavam-me. Esse passatempo di­vertia-me. Não dava oportunidade a que voltasse a cabeça. Se me tomava por boneca, eu também não o tomava por um homem, a não ser como o Romeu, com que tantas raparigas sonham. O Gastão não podia adivinhar que eu nunca repre­sentaria o papel de Julieta, e estimava que assim fosse. Es­tava aborrecida com ele. Parecia ausente. De repente, aper­tou os lábios na minha pele, como se me quisesse morder, antes de me devorar.

-      Querida!... Querida!... - murmurou. - Como am­bicionava este momento! Tinhas-me esquecido? Sonhavas co­migo, como eu contigo?

Ocorreu-me a observação do Blair acerca das carícias sem sentido. O Gastão era terno, mas muito esperto. Um ho­mem com naturalidade, não era tão fluente. Teria dito, como o Blair: «Adele, até que enfim!» e ficava por ali.

O    Gastão levou-me para o sofá, ao lado do fogão apaga­do. Sentou-me ao seu lado, com a minha cabeça no seu om­bro. Depois, num ímpeto, virou-me para ele e pôs as minhas mãos na sua cabeça. Era sempre assim...

O    seu perfume entrava-me pelo nariz; o aroma da loção e do seu encanto pessoal espalhavam-se na sala, mas o cheiro do perigo ainda era mais violento. O eco das palavras do Blair chegava-me aos ouvidos: «Frio, sem coração, calculista demoníaco.» Verdade ou mentira? A memória insistia em me convencer que estava sendo injusta para o Gastão; que os insultos do David eram humilhantes; fazia-me ver que não era uma vítima iludida.

-      Minha adorada! - exclamou com terno ar de censu­ra. - Porque te mostras tão distante? Não mudaste, pois não?

-      Não sei. - Tinha de me pôr no meu lugar e não lhe dar a perceber o íntimo desassossego que me atormentava, nem a falta de habilidade para me livrar daquele encanto.

-      Não esperava tornar a ver-te. Depois do que David disse...

-      O David? - franziu os olhos, como se eu lhe tivesse dado um empurrão. - Criança! Tomaste a sério a sua atitu­de? Era uma reacção natural, num pai despótico e ciumen­.0... defendendo a filha... furioso por saber que não era ele o único homem de quem ela gostava.

-      Proibiu-me de te tornar a ver.

-      Pobre querida! Isso era do tempo da rainha Vitória, não é dos nossos dias. Tinha que se convencer.

-      Se estás convencido disso, eu não.

-      Julgas que consentia que nos separasse?

-      Havias de desaparecer.

-      Dava-lhe tempo para ferver o fogo lento, mas não ficava longe durante muitos meses, podes crer! Submetia-te àminha vontade, por saber que eras a única rapariga que me agradava.

Apertou-me nos braços e os seus olhos tinham um brilho magnético. Sentia a minha resistência diminuir; estava quase a acreditar no que ele dizia. Porque não havia de acreditar? Se soubesse, se pudesse ter a certeza que me amava, todas as dores e humilhações desapareciam para sempre. Ao mesmo tempo, via a violenta reacção do pai, desaprovando as visitas do Gastão. Devia persuadir-me que tinha sido uma tempes­tade de Verão.

-      Meu doce amor, bem sabes que te adoro, e tudo farei por ti!

O    tom em que pronunciou aquelas palavras ainda era mais hipnótico que as suas carícias. Sentia-me uma gatinha, a que batessem até começar a miar, com sensual deleite. Encostei-me e fechei os olhos, à espera de sentir aumentar as pulsações e ter tremores na espinha. Com essa sensação, devo ter perdido a capacidade de miar.

Palavras... palavras... palavras e mais palavras!, pensei indiferente, ao ouvi-las. Todas as palavras que as jovens apai­xonadas devoram, como as gatas lambem o leite... deixa­ram-me fria.

Não havia nada que não fizesse por mim. O que tinha feito até agora?... Levar-me para uma celebridade menor, muito menor?... As suas magníficas fotografias eram bem pagas. Animou-me, acariciou-me, despertou no meu ser to­das as alegrias e angústias do amor. Depois, abandonou-me.

Deixou-me só, no meio da dor e das trevas. Não esco­lheu flores de aroma suave, para me enviar duas vezes por semana, durante esses três lúgubres meses. Não procurou ver-me; não se sentou ao meu lado, a apertar-me a mão, quando estava quase moribunda. Não procurou ver-me viva, após a operação; não me deu a sua força para me amparar, quando a minha energia estava esgotada.

Esperou que estivesse boa, que as ligaduras tivessem de­saparecido e as cicatrizes estivessem ocultas. Não se preocu­pou em ver como eu estive, quando caí inerte, exangue, num leito de hospital. Abalava a sua sensibilidade artística, que não podia aceitar a desfiguração causada pelos óculos, na sua Beldade querida. Esperava convencer-me do seu imortal amor. Por certo, julgava-me pouco inteligente.

Não me via já como uma boneca, via-me como uma ga­tinha. Todos podem enxotar um gato para a rua, para a noite escura e fria, e fechar o coração aos seus lamentosos miaus, se forem da sua qualidade. Na manhã seguinte, o pobre bicho responde rosnando, ao ocasional pires de leite. Tinha esquecido e perdoado o receio e o desconforto da noi­te... Mas eu não era uma gata.

Podia perdoar ao Gastão, se acatasse a ordem do David, e não tentasse pôr-se em contacto comigo. O que ainda achava menos desculpável, era a sua alegria, depois do longo silêncio, na esperança de me ver a correr para os seus braços.

- Diz-me, querida! Quando casamos? Arranja tudo para breve.

- Porquê?

- Porquê?... Não achas que já esperámos bastante?

- Tu, talvez. A ausência nem sempre faz aumentar o amor.

- Que disparate! Ainda te amo mais do que amava. E tu precisas de um homem - continuou em tom significativo - que olhe pelos teus interesses. Tu e a Deidre são duas crianças perdidas num bosque.

-      Não a vejo assim. Sabe-se governar.

-      Está convencida que sabe, mas o camarada Kerrard há-

-de enrolá-las, há-de levá-las para a direita e para a esquerda.

-      Não conheces o Biair. É o homem mais digno e ho­nesto que existe sobre a terra.

-      Minha querida, não enlouqueças com os seus modos estúpidos e rudes. Sinceramente, quem se orgulha deles, não pode ser honesto. A maior parte das vezes, não passa de um fanfarrão.

-      Não nestes casos.

-      Meu amor, o homem tem um génio indesejável. Quando estava na penúria, o David deu-lhe a mão, e vê lá se se mostra grato! Anda a preparar-se para tomar a direcção da fábrica.

-      Não é verdade!

-      Não pensas que se não atira pedras aos telhados alheios, é porque os dele são de vidro? A mulher em questão mentiu para lhe salvar a cabeça. Por isso, ele lhe dá uma pensão.

Eu estava sobre um vulcão. Um ou dois minutos antes ainda podia controlar a voz, para não me trair.

-      Disse-te a Deidre? - perguntei.

-      Deu-me uns zunzuns. Agi por conta própria. Há anos, que paga á mulher, cinquenta libras por mês.

-      Gomo sabes?

-      Vi os talões, no livro de cheques. É assim mesmo!

Mordi os lábios.

-      Quando é que o Blair te mostrou o livro de cheques?

O    Gastão não se envergonhou. Riu.

-      Deu-mo a Christine. Outra que tal! Apanhou-lhe um par de talões, do livro velho. Ele não tinha tomado a precau­ção elementar de mencionar «pago ao portador». Pôs o nome da mulher: Leila Marv Cornwoode. Acha preferível pagar chantagem, do que pôr de novo a vida em perigo, visto andar ainda atrás dela. Mas... isto explica por que ele preasa de dinheiro, e não se preocupa com a forma de o arranjar.

Não tinha acreditado na Deidre, quando insinuou que o Blair se encontrava com a mulher em questão. Agora, não podia duvidar. O Gastão, seguro dos factos, apregoava, triunfante, o célebre caso.

Chantagem? Não me soava bem. Pus de lado. Não podia acreditar em ninguém? Nem no Blair? Não era possível que fosse um criminoso, submetido a chantagem. Não! O meu instinto revoltava-se a essa ideia. Não condizia com o ho­mem que conhecia há tantos anos!

A explicação devia ser outra. Devia dar a pensão à mu­lher, por ser obrigado. Cinquenta libras mensais não era uma quantia fabulosa; não representava mais de metade ou três quartos do que ele ganhava.

-      Vês? Não te podes fiar num homem desta força. Pre­cisas ter-me a teu lado.

-      Para te meteres na sua vida particular?

Pôs-se a rir.

-      Porque não? Procuro indagar, já que não podemos perguntar nada. Consta-me que vai despedir a Christine. Não consintas! Ela está do nosso lado.

-      Sai amanhã, e, na segunda-feira, vou para o lugar dela.

-      Tu? Que asneira é essa, meu amor? Tu... num escri­tório?

-      O que tem? Tenho interesses na firma.

-      Julgas que podes desmascarar o Kerrard? Outra crian­cice! Além disso, és precisa nos anúncios. És a menina Phe­lim. Espera até te veres na Televisão.

Imaginava, talvez, que, apelando para a minha vaidade, eu consentia em anúncios dispendiosos, que a firma não pode aguentar?

-      Pensa-se nisso mais tarde. Agora, vou-me deitar.

-      Deitar a esta hora?

-      Para mim, já é tarde. O médico aconselhou-me a ir para a cama, às dez horas. - Despedi-me dele e levantei-

-me. - A enfermeira está cá para ver se as suas ordens são cumpridas. Já deve estar à minha espera.

-      Não podes mandar-me embora já. Ainda não resol­veste nada - prosseguiu em ar de censura. - Ainda não te mostrei o anel que tenho para te oferecer. Está no meu quar­to. Vou buscá-lo!

-      Agora, não, obrigada!

Nem agora nem nunca, pensei, ao pôr os óculos, que tirei de cima da mesa. Está doido! Tem tanta certeza de me apanhar, que até comprou o anel. E uma linda coleira para a gatinha...

-      Agora não? - perguntou, franzindo os olhos, que até mudaram de cor. - Não queres vê-lo? Não te entusias­mas? Na realidade, é lindo. Um diamante muito fino.

-      Não digo que não.

-      O que tens?

-      Um diamante diz com os teus olhos. Para os meus, devia ser uma água-marinha.

-      Os diamantes merecem o emprego do capital. As águas-marinhas valem menos.

Um empr~go de capital... pensei com desdém. Eu tam­bém sou um bom emprego de capital, um capital pago em dividendos, em troca de lindas frases e algumas carícias. Oh, Gastes tão, para que voltaste? Devias ter-me deixado com os

tos do meu orgulho. Podia ficar com a esperança de que o pai estava enganado.

-      O que se passa? - perguntou, barrando-me a saída.

-      Estou cansada e quero-me deitar. O doutor Tayne vem amanhã, para passar aqui o fim-de-semana.

-      Ah! É isso? A Deidre já me comunicou que ele anda do ido por ti - riu. - Vais meter-nos cara a cara? Querido amor! Esse homem nada pode esperar. Es minha!

1Não se desconcertou. A sua vaidade estava superdesen­volvida, como disse o BIair. Não podia convencer-se que outro homem o suplantava. Tive um súbito desejo, um ca­pricho de arreliar aquele enganoso sorriso. Gostava de rasgar aqueles lábios sensuais e afastar aqueles dentes brancos. Nunca pensei que tanta selvajaria me caísse em cima, até a gata ser posta fora, por lhe pesar a cauda.

-      Espera e vê! Boa noite, Gastão!

Deve ter reconhecido que a gata não se sujeitava aos maus tratos. Afastou-se e deixou-me passar.

Subi a escada a correr, e encontrei a Sue, no quarto, àminha espera.

-      São quase onze horas - murmurou, repreendendo-

-me brandamente. - Amanhã, pode estar cansada e o Rod­ney ralha por eu não olhar por si. Não a censuro. Ele é um encanto, não é?

-      E... Tem estudado arte, até ser perito. Vou tomar banho.

-      Agora? Já é tão tarde!

-      Não posso dormir sem ter lavado todo aquele encan­to. Parece que ffii borrifada com melaço.

A Sue olhou espantada.

-Melaço? Que ideia! Ele está apaixonado - protes­tou. - E tudo amor.

-      Peganhento como o melaço. Antes de serem inventa­dos os insecticidas, a Bronwen apanhava as moscas num pi­res com melaço. Eu, como criança, tinha pena dos pobres insectos. Agora, percebo o que os atraía.

Admirada, ela olhou como se não tivesse a certeza do que ouvia. Estava a brincar, ou a falar sério? Era inexperiente e romântica, e deixava-se levar pelos modos encantadores do Gastão.

Ajudou-me a deitar e, mal se retirou, ouvi bater à porta.

-      Não, não posso mais esta noite! - gemi, baixinho.

Estava decidida a não responder, a fingir que já tinha adormecido, quando ouvi bater de novo. Resignei-me, con­vencida que era o Gastão, e fiz ideia de pedir à Sue para me acompanhar e desviar o assunto.

-      Entre! - respondi.

Qual não foi o meu espanto, ao ver a Deidre entrar.

-      Incomodo-te? - perguntou.

-      Estou um pouco cansada. O assunto é importante? -tornei a acender a luz.

-      Não me demoro - fechou a porta e sentou-se aos pes da cama. - Vinha saber se já combinaram tudo.

1

-      Tudo o quê? - fiz a pergunta com prudência.

-      O Gastão disse-me que já comprou o anel e, como calculo que deve ser lindo... - olhou para os meus dedos, àespera de ver o diamante. - Saiu sem me dar as boas-noi­tes. Deve ter ficado zangado comigo, por lhe ter dado um quarto pequeno, mas a Bronwen disparatou quando ele ficou no quarto do David.

-      Deus me valha! O quarto pequeno é que está ade­1

quado - repliquei aborrecida.

-      Também achei. Preparei o da varanda para o Tayne,

 

-      Oh, Deidre! Não se preocupe com essas ninharias. O Gastão está aqui acidentalmente, por sua causa! Com que direito esperava o melhor quarto?

-      Por minha causa? Ele veio para falar contigo e pedir-

-te em casamento. Não te disse?

-      Sim... julgava que eu dava um pulo de alegria e lhe caía nos braços - respondi irónica.

-      E não o fizeste? Porquê?

-      Depois do que se passou? Depois do que disse o meu pai?

-      O David era ciumento em excesso. Não deves pensar nas suas objecções! Quando descobrisse que estavas apaixona­da, havia de mudar de opinião.

Parecia despejar um discurso estudado, por certo o que o primo lhe tinha cochichado. Não olhava para mim, só con­templava as mãos. Mostrava-se inquieta, segundo me pare­ceu, mas nao posso garantir.

-      Não advogue a causa do Gastão, Deidre! A eloquên­cia dele é suficiente para encher um balão.

-      Segue as suas próprias ideias. Todos os homens são assim. Não o faças esperar. Não o obrigues a zangar-se comi­go. Convence-te de que não me meto no assunto! Ele julga que sou eu que me oponho a esse casamento.

-      E não é verdade? - perguntei por curiosidade.

-      Não tenho nada com isso. Nunca te dei conselhos. Nunca discutimos o caso. Devemos dizer isso ao Gastão, para ele acreditar.

-      Não acredita em si?

Ela corou.

-      Está convencido que tenho ciúmes. Fomos criados juntos e, há anos, namorámo-nos.

-Ah!...

-      Eu era ainda muito nova e inocente. O Gastão nunca pensou em casar comigo. Era mais velha e não .......

-      punha o caso abruptamente, perdendo a coragem.

-      E não tinha dinheiro?

-      Nem eu nem ele, pois estava no começo da sua car­reira e eu não podia ajudá-lo. - Procurava convencer-se do que dizia, ou ele a tinha convencido disso, após longos argu­mentos. - Tinha ambições e eu não podia servir-lhe de obstáculo.

Mais uma vez, tive a consciência do seu complexo de inferioridade, talvez incutido pelo próprio Gastão. Ele nunca se alargava em pormenores. Imaginei como a tinha enfeiti­çado e mandava nela, até ter casado com o meu pai. Nessa altura, devia pensar que, mais uma vez, a prima lhe podia ser útil.

Teria acabado o discurso? Não teria falado com ele? Não me pareceu. Há raparigas que anseiam pelas preocupações. Esta deve ter feito um negócio ao casar com o meu pai, comecei a perceber. Foi instigada a isso e era incapaz de se revoltar com o primo.

Fiquei irritada. O Gastão não precisava da Deidre para advogada, nem ela o podia suplantar.

Não dei a perceber a minha irritação, para não a humi­lhar. Por fim, perguntei:

-      O Gastão pensa que, se casar comigo, essa união pode ser lucrativa para a sua vida artística?

-      Estou certa disso. Bem vês... Es nova e simpática; és o seu modelo favorito e ele conta voltar para a firma

-      comunicou, em estilo de confidência.

Não tem sorte. Não posso consentir em despesas fa­bulosas.

São as palavras do Blair, mas o Gastão tem a certeza que os lucros são compensadores.

Então, ele que pague!

Como sua mulher, podes adiantar o dinheiro.

A custa da fábrica, não. Em caso algum. Não ten­ciono casar com ele. Arranje outra que o ajude, pois eu, francamente, não posso preocupar-me com isso. O meu de­sejo é que a Phelim volte o ser o que foi.

Não casas com o Gastão? - custava-lhe a acredi­tar. - Mas... eras louca por ele.

-      Fui, noutros tempos.

Deu-me a impressão que suspirou de alívio.

-      Então, nada posso fazer para mudares de ideia?

-      Nada. Escusam de ter a menor esperança. O David empregou um extintor muito eficaz.

-      Oh! - mostrou-se desanimada. - É possível que tenhas razão. O doutor Tayne é muito simpático e amável.

Não a descoroçoei, por não querer prolongar a discussão. Era uma cobardia, mas preferia que ela pensasse que o Rod­ney me queria separar do Gastão. Estava livre, pois não con­fiava na Deidre. Mostrava estar do meu lado, mas era mais natural estar do lado do primo. Procurei indagar, e fingi interessar-me pelo médico.

-      O Rodney tem sido muito gentil.

-      Quase sempre as doentes acabam por se apaixonar pelos médicos. Não me admiro. Disse várias vezes ao Gastão que fazia mal ein não se pôr em contacto contigo, mas ele nao tinha coragem de ir ao hospital. Como artista, não pode ver nada feio nem triste.

-      Infelizmente, a vida é horrenda, por vezes. Não me preocupava nada que o meu marido fosse feio.

Levantou-se, deu-me um beijo na testa e, sem mais uma palavra, retirou-se. Apaguei a luz e fiz a diligência por dor­mir. Tive vontade de pedir um comprimido à Sue. Sentia - me extenuada, mas sem sono. Contudo, não gostava de 50­poríferos, porque me causavam pesadelos.

Num impulso, levantei-me e fechei a porta. Tornei-me a deitar, mas, em breve, um nome dançava diante dos meus olhos: Leila Mary Cornwoode. «Pague a Leila Mary Cornwo­ode, a quantia de cinquenta libras.»

Para que me disse o Gastão o nome dela? Pela «mulher do caso», podia imaginar uma figura ambígua, e não procu­rava saber como era. Agora, conhecendo-lhe o nome, tinha curiosidade em saber. Não devia ser jovem, pois há quinze anos já era casada, possivelmente da idade do Blair. Era alta? Baixa? Loura? Morena? Magra? Gorda? Bonita? Não podia fazer ideia.

Podia ser uma aventureira ou uma vítima das circunstân­cias. Teria amado o Blair? Tentaria salvá-lo? Ainda pensaria nele? Tê-lo-ia sob custodia? E ele? Ainda pensava nela ou já a tinha esquecido?

Não sabia a verdade, nem me animava a perguntar-lhe. Comecei a juntar os factos, conforme podia, sem adivinhar como o caso tinha sido falado. «O caso Kerrard?» «O caso Cornwoode?» Onde se tinha passado? Tê-lo-iam prendido, até ser julgado?

Tinha sido antes de vir trabalhar para a fábrica. Eu não podia ter ciúmes dessa mulher. Era ainda uma criança, quando isso se deu. Era ridículo sentir-me ferida ou corar. Esta é que era a lógica, mas que rapariga se satisfaz com a lógica? É mais fácil a curiosidade feminina ser espicaçada, que ficar indiferente. Se o Blair a visitava e lhe enviava uma pensão, aquilo continuava.

A consciência aconselhava-me a não pensar no assunto. «Deixa isso! Se não lhe perguntares, não sabes por ninguém. Vai dormir!»

Estava quase a adormecer, exausta, quando um som, o som de abrir uma porta, muito devagar, me fez estremecer. Senti o coração pulsar desordenadamente. Escutei, mas não ouvi mais nada.

 

Se o Gastão tinha ficado aborrecido, naquela noite, no dia seguinte, ao pequeno-almoço, nada deu a conhecer. Mos­trava-se encantador comigo e com a Sue. Ralou-nos, a pro­pósito da visita do Rodney, e riu, quando viu a Sue corar. Não ligava importância á Deidre, pálida e com olheiras, como se tivesse passado mal a noite, ou não se sentisse bem.

Apenas tomou uma chávena de café, sem leite, e uma torrada. Acendeu um cigarro, mas pô-lo de lado.

Para nós três, o pequeno-almoço consistia em cereais com nata fresca, cavala grelhada, pão torrado e marmelada. O Gastão, como apreciador de bons petiscos, tinha duas do­ses de cavala. Habitualmente, a Deidre tambem apreciava petiscos, mas tinha mudado.

Quando terminámos a refeição, pediu-me para ir com ela ao escritório, combinar os pratos do dia. Nunca me tinha consultado, o que me causou admiração. Julguei que era al­apontamentos.

-      Não sei o que há-de ser o jantar. A Bronwen sugeriu uma sopa gelatinosa, maionese de salmão e faisão assado com batatas em palitos e favas cortadas aos bocadinhos. Tem um pudim gelado com uvas. Acho bem, mas sopa gelatinosa e pudim gelado? Fez um licor de ginja, mas uma porção tão pequena, que não deve dar mais de duas taças.

-      E um jantar maravilhoso!

-      Talvez outra coisa mais saborosa, não achas?

-      Acho que já chega.

-      Sim? Os homens apreciam uma boa mesa.

-      Se não gostar, vale mais ir para o Ritz.

O    salmão e o faisão já não eram para o nosso orçamento, mas não quis dizer nada. Se a Bronwen é que tinha determi­nado, não podia culpar a Deidre. Mais tarde ou mais cedo tínhamos que acabar com esses luxos.

-      Temos que o deixar ficar bem impressionado, de

forma a não pensar que ignoramos como se fazem as coisas.

Era a opinião do David, quando dava jantares ou reunioes.

A Bronwen consultava-o, mas comigo não se importa.

O    que pensas a respeito de vinhos?

-      Não sei... Talvez Xerez, como aperitivo, antes de jantar.

-      Claro! E brande, se os homens preferirem. Mas, para acompanhar estes pratos...

-      Oh, querida Deidre! - disse como o pai dizia. -Não se preocupe! Deixe a cargo da Bronwen. Não estamos -em hotel de cinco estrelas:

-      Para o almoço, ela tinha planeado fazer sopa de creme de tomate, frango frio, presunto e salada. Para sobremesa, salada de frutas frescas. Não seria melhor o gelado de uvas para o almoço de amanhã, e a salada de frutas para o jantar?

-      Sinceramente, deixava isso a cargo dela.

-      Está bem... Quando a contrariam, não se pode atu­rar. E um demónio. E os lugares, à mesa? Tu numa das cabeceiras e o Gastão na outra?

-      Não. A Deidre deve ficar à cabeceira. A rapariga sol­teira cede o lugar à senhora casada - retorqui. - O Rod­ney à sua direita e o Gastão à esquerda. A Sue ao lado do Gastão, e eu ao lado do Rodney. O Blair pode sentar-se do outro lado.

O    Blair? Quem o convidou?

-      Eu

-      Oh, Adele! Para quê? Ele não se adapta. Vai criar uma atmosfera pesada. O que há-de pensar o Rodney?

-      Não creio que o Blair vá comer as favas com a faca, e parta o frango com a mão e chupe. Vem fazer número

- respondi arreliada. - Além disso, quer falar com o Rod­ney, ou por outra, o Rodney quer falar com ele.

-      Quer? O Blair não é teu guardião. Já tens vinte e dois anos e não precisas da autorização dele para casar.

-      Não é nada disso! O Rodney quer falar acerca dos chocolates.

-      Chocolates? Que chocolates?

-      Os que iam envenenados.

-      Chocolates envenenados... - pronunciou a custo. -Como sabes?

Estava agitada, perturbada.

-      O Blair não lhe contou? Recebi uma caixa dos choco­lates meus predilectos, com licor, tendo à mistura arsénico ou nicotina. Ofereci a caixa a uma das enfermeiras, e adoe­ceu.

-      Deus do Céu! Ninguém me disse... Que partida!

-      Felizmente, a dose não era mortal. Foi a sorte da Baines.

-      Mas... para que aceitaste uma caixa de chocolates, sem saber quem ta mandava?

-      Vinha com um cartão do Blair.

-      Então, ele mandou-te chocolates com veneno? - ar­ticulou a custo.

-      Não foi o Blair. Alguém lhe apanhou um dos cartões que costumavam vir com as flores. Deve ter sido alguém do escritório.

A cor fugiu-lhe do rosto. Parecia desenterrada. Agarrou-

-se, com força, aos braços da cadeira, e julguei que des­maiava.

-      O que tem, querida? Ponha a cabeça baixa...

-      Desculpa! E... por estar em fraqueza. Já não é a pri­meira vez que sinto este mal-estar.

-      Pouca sorte!

-      Suponho que é natural do estado em que estou.

-      Será? - perguntei indecisa. - Julguei que essas per­turbações se davam só nos primeiros três meses.

Voltou a cabeça e sorriu.

-      E espantoso! Fui sempre forte como um hércules. Não esperava ter perturbações com o bebé. Talvez seja pela idade, embora ainda não tenha quarenta.

-      O que diz o médico?

Não tenho ido ao nosso médico. Não posso ir...

-      Quem a impede?

-      Sinto-me envergonhada. Receio que comecem a falar. Em Junho, para ter a certeza, íui a um médico em Londres. Até lá, não tinha ido à consulta.

-      Mas deve ir. Quando uma mulher julga estar à espera dum filho, deve ir à consulta uma vez por mês, para ter a certeza que tudo está normal. E o que tenho ouvido dizer. Não deixe de ser vigiada.

-      Acho que tudo está bem. - Os lábios treme­ram. - Não olhes assim para mim, Adele! N~ estou doente.

-      Não parece lá muito bem - disse com sinceri­dade. - Pode estar fraca. Quando nasce o bebé?

-      Completa o tempo em Janeiro.

-      Vá ao médico com regularidade, para não correr perigo.

-      Nem posso pensar em perder este filho! É a única oportunidade, embora seja mau para mim, por o David ter morrido. Na minha idade... Se as más-línguas começam a espalhar...

-      Não vejo razão. Era casada legalmente...

-      Pois era. Imaginavas que não?

-      Que ideia! Como mulher ou viúva do David, pode ter um filho. Não percebo que receio é esse.

Durante alguns minutos permaneceu calada. Por fim, perguntou:

-      Se eu for para a maternidade, vais comigo?

-      Se quiser... Chame o médico! Somos clientes particu­lares, não somos?

-      Todos aqui ficam a saber.

-      Se não sabem, podem desconfiar.

-      A Bronwen sempre me detestou, sempre me quis mal.

-      E injusta. Devia estimar um filho do David. Devia ser uma mãe para si.

-      Está contra mim, por julgar que não é filho do David. Não calculas como ela é má para mim! Já tem feito constar... - interrompeu-se desanimada.

Nunca me tinha ocorrido semelhante coisa. Como podia ela desconfiar? Calei-me, uns momentos. Precipitadamente, levou o lenço aos lábios, apertou-o e eu perguntei, desespe­rada:

-      Mas... mas... não é verdade?

-      Não - murmurou, quase em segredo. - Não! Des­culpa, mas vou desmaiar outra vez.

Saiu do quarto com a dignidade habitual. Hesitei, e se­gui-a. Estava encostada ao lavatório da casa de banho, cheia de dores.

-      Deve consultar o Rodney, enquanto cá estiver. Tem muita prática, e arranja-lhe para ter a criança na materni­dade.

-      A vinte cinco guinéus por semana?

-      Se pudemos para uma, podemos para a outra - res­pondi, sem hesitar.

-      O Blair não há-de concordar. Acabou de liquidar as contas com o hospital.

-      Hei-de reembolsá-lo.

O    hospital deve ter custado muito mais do que as cin­quenta e cinco libras, que manda para a tal mulher. Não podia entregar-lhe menos de duzentas libras - pensei.

A Deidre pegou no lenço e limpou a testa, húmida de suor.

-      Foi um falso alarme. Costumo sentir-me assim, sem­pre que me apoquento.

-      Fi-la ralar? Desculpe!

-      Não, não foi isso...

Contemplei-a, atentamente. Seria por causa dos chocola­tes, ou do cartão, que tinha empalidecido?

Tive tentações de lhe perguntar se tinha guardado algum cartão do Blair, mas não tive coragem. Se o tirou, negava; de contrário, ofendia-se.

-      Como se chama aquel~ caso?

-      Que caso?

-      Do Blair. Contou ao Gastão?

-      Não foi por vontade, mas era necessário que soubesse. Não podia adivinhar como ele se serviria do facto, mas sei que é bastante hábil para não tentar nada contra o Biair. E perigoso!

-      Calculo... E o que pensa o Gastão?

-      Ele pretende renovar o contrato.

-      Não pense nisso! O Blair quer despedi-lo. Afinal, como se chama o tal caso? O caso Kerrard?

-      Não. «O caso aspidistra.»

-      Porquê?

-      Porque o homem foi morto com um vaso de aspi­distras.

-      Tem graça!...

-      Estavam a jogar à pancada e o vaso caiu ou o Blair lho atirou à cabeça. Fosse como fosse, fracturou o crânio. O Blaír beneficiou da dúvida, e a mulher jurou que ele não tocou no vaso. De facto, não encontraram as impressões di­gitais do Blair. Só se desapareceram nos fragmentos.

-      Isso, não! Ele não ia atirar com o vaso ao outro. Deve ter sido desastre.

-      Sabe-se lá! - encolheu os ombros com indiferen­ça. - Só duas pessoas sabem a verdade, e não a dizem.

Tenho a certeza que, se eu lhe perguntasse, me dizia, mas há perguntas tão dificeis de fazer!... Essa era desse nú­mero.

A Deidre encaminhou-se para a porta e olhou para mim, de relance.

-      Correste com o Gastão? Não podes ver os seus pla­nos? - implorou.

-      Pois sim. Ainda não lhe disse claramente.

-      Deixa andar! Se ainda não estás comprometida com

o     Tayne...

-      Não, não estou.

-      O Gastão precisa ter férias. Tem trabalhado em ex­cesso. Não sabes se fica cá uma ou duas semanas?

Não sabia, mas pô-lo fora não resolvia o problema.

-      Não sei.

-      Obrigada, Adele!

Parecia recear que eu mudasse de opinião. Retirou-se. Quando passei no hail o Gastão chamou-me do estúdio.

-      Chega aqui, meu amor! Estou a afinar tudo.

Desde que estava em casa, ainda lá não tinha ido. Não tinha coragem de encarar com aquelas coisas que me traziam dolorosas recordações. Estava tudo em ordem, por a Bron­wen ser cuidadosa e não se esquecer de limpar, fosse o que fosse, mas era frio e sem conforto. As cadeiras estavam a um canto e, pelo espelho, via as jarras de prata. Uma vez arran­jei as flores, mas a Deidre não gostou.

Olhei para as máquinas, minhas conhecidas, enquanto ele corria os cortinados das janelas. Evidentemente, conven­cia-se que eu ia posar. Queria envaidecer-me. Passou por mim, sorrindo, e explicou:

-      Mandei a Sue buscar crisântemos. As rosas não ficam bem com esses cabelos curtos. Só os crísântemos amarelos e bronzeados.

-      Ela já foi? Coitada! Anda a correr, por tua causa.

-      Sou um homem fatal - riu. - Não me larga...

-      Toma cuidado! E fraca e inexperiente.

-      Isto faz-lhe bem, para não pensar no médico. Um começo de idílio não tem perigo algum para uma rapariga. É engraçada, mas não fotogénica. Tem o rosto muito carnudo.

Sorri aborrecida.

-      E muito delicada.

-      E um simples e frágil brinquedo de criança.

-      Toma cuidado com as brincadeiras!

-      Ciúmes? Óptimo! - exclamou, franzindo a testa.

Deixei passar. Ele moveu-se e começou a preparar a má­quina. Como se fosse casualmente, perguntou:

-      O que é isso de um novo testamento?

-      Quem te disse?

-      A tua linda enfermeira. Descreveu-me a narração do McTaggle.

-      Não creio que haja outro testamento.

Não? Não investigaste?

-      Como? Se houver há-de sair à luz.

-      O David pode tê-lo escrito e escondido. Se não querià beneficiar a Deidre.

-      Não concordo. No dia em que faleceu, estava zan­gado comigo e não com ela.

-      Não condíz com a história do McTaggle.

-      Por que razão havia de se virar contra a Deidre? Não fez nada que o colocasse mal...

-      Censurava-a por me trazer para cá.

-      Censurava-a?

Andou de um lado para o outro e perguntou abrupta-mente:

-      Não procuras encontrar o novo testamento?

-      Aquele estava bem feito. Se fez outro, num acesso de mau humor, vale mais não pensarmos nele.

-      Deixava-lhe só um terço. A lei não permite que o marido deserde a mulher. Podia deixar-te o resto; eras a pre­ferida.

-      Não digas essas coisas! Vale mais perguntar ao procu­rador, do que revolver a casa toda.

-      Que ideia quixotesca! O que tens com a Deidre?

-      Consideração, por ser mulher do meu pai - e esperar um filho, pensei.

Ele voltou-se para mim, com os olhos brilhantes.

-      Pobre pequena! As mulheres enganam-se sempre. Em dez, encontra-se uma que o não faça. O que ela tem é uma úlcera.

-      Que horror!

-      Aqueles desmaios... - franziu o nariz. - Não me parece que, naquela idade, seja um filho. Embora não diga, tem já trinta e oito anos.

-      Muitas mulheres têm filhos aos quarenta.

-      Ela não é dessas, nem o David queria aumentar a família.

-      Não temos nada com a sua vida particular.

-      Ela é que nos obriga a fazê-lo.

-      Cala-te! Estás a ser pouco amável, e desleal.

-      Minha querida, estou ao teu lado! Não sou desleal para a minha prima, mas tu ficas em primeiro lugar.

-      Não se trata de ser deste ou daquele lado. Não estou zangada com a Deidre.

-      Abre os olhos, amor! Se ela tiver a sorte de ser mãe, não creias que o pai fosse o David.

-      Es um veneno! Ela gostava do David.

-      Como se as mulheres sejam irrepreensíveis! Ela gos­tava dos homens, e eles caiam-lhe aos pés.

Se ele continuasse, tinha-me vindo embora. Deve ter percebido, porque sorriu e mudou de semblante.

Não te preocupes! Amo-te assim, cândida, doce, ino­cente... Onde está a pequena? Quero endoidecê-la!

-      Eu não vou posar.

-      Não me tires os meus ingénuos prazeres. Tens um vestido cor de âmbar? Esse verde, que trazes, não diz bem com a folhagem dos crisântemos.

-      Tenho um de linho, completamente liso.

-      Vai vesti-lo depressa, antes que me fuja a inspiração.

Fiquei radiante por me poder escapar. Não queria deixar a Sue só com ele, durante muito tempo, mas tinha os vesti­dos no primeiro andar. O fatal poder de sedução do Gastão, era muito forte para uma rapariga inexperiente. Já me sentia culpada, perante a Sue. Não lhe distraia a atenção do Rod­ney? Era um desastre se o trocava pelo Gastão. Este era competente para a atrair e, em se fartando, abandoná-la. Uma pobre enfermeira não servia para um calculista demo­niaco.

Ao falar no novo testamento do David, tinha dado a entender que eu devia valer mais do que a Deidre. Se fosse o contrário, virava-se para ela. Era intolerável! Não me confor­mava em vê-lo dono desta casa, mandando em tudo e gover­nando a fábrica.

A Deidre tinha estudado a lição, ou estava de novo apai­xonada pelo primo? Não achava natural, mas era possível. Nenhuma mulher deve esquecer por completo o primeiro amor. Ela não gostava muito do Gastão, mas podia ter habi­lidade para excitar a sua sensualidade.

Quando voltei, a Sue sorria e ajudava-o a arranjar os cri­sântemos.

-      Bonito! Devastou os canteiros, prepare-se para ouvir o McTaggle! - exclamei, aborrecida.

-      Primeiro, não se mostrou nada satisfeito, mas como disse que eram para si... acalmou. Voltou a falar-me no tal testamento.

Não me pude zangar, por ver a sua ingenuidade. Devia ter-lhe pedido para não falar no assunto, mas, agora, o mal estava feito. O Gastão desenterrava-o, se pudesse.

-      Então, vamos a isto? - perguntou ele.

Entregue ao seu trabalho, estava de tal forma absorvido no assunto, que não pensou em idílios românticos. Fiquei aliviada, por a Sue ficar a ver, pois, francamente, detestava estar só com ele.

Ria-me da Deidre por ter medo da Bronwen, mas o primo era mais para temer. Quando me arranjava a pose, o contacto dos seus dedos e o brilho dos seus olhos hipnotiza­vam. Recordei os tempos passados, horas exaustivas e deli­ciosas decorridas naquele estúdio. Tinha havido uma simpa­tia que nos aproximava, e era doloroso pensar que tinha sido vítima de uma hábil maquinação. Ter-me-ia chegado a amar?

Nunca me senti menos disposta para tirar retratos. A manhã estava quente e o sol, sem ter óculos, fazia-me arder os olhos. Queria despachar-me o mais depressa possi­vel, mas não conseguia que as provas lhe agradassem.

-      Falta-te expressão! - queixava-se.   Não podes olhar de outro modo? Dá a impressão que acabaste de tirar um dente. Onde está aquele brilho encantador... que au­mentava constantemente?

Nada me entusiasma, esta manhã - respondi fria­mente. - Receio que o antigo entusiasmo fosse levado com o vento, ou desaparecesse quando ffii atirada para os ro­chedos.

Tinha guardado as fotografias que ele me tinha tirado nesse dia fatal.

Quando acabámos a sessão, ele retirou-se para a câmara escura, para revelar o filme. Depois do almoço, entregou-me as provas, com cáusticas observações. Era uma nova Adele Phelim.

Eu estava muito magra, é certo, mas não era essa a única causa que me transformava o rosto. Nas fotografias anteri~ res, a menina Phelim encarnava com naturalidade um mo­delo profissional. Era uma rapariga bonita; agora, o contorno do rosto tinha um aspecto frio e duro. Os lábios tinham perdido a flacidez, com que aguardavam o beijo. O olhar era triste, como de um ente sem coragem.

-      Pareces a sobrevivente de um naufrágio - disse ele, com indiferença.

-      Afinal, é o que sou. Por intervenção da varinha da fada, a minha cabeça ensanguentada cicatrizou, mas fiquei sob o seu domínio. O olhar mudou de expressão? - pergun­tei, indiferente.

-      Não é a adorável Adele Phelim. Não deve entusias­mar os clientes.

-      Afinal, estou o que sou, e não uma boneca cara.

Arreliado, atirou com as provas.

-      Não és ninguém. Apenas 05505 e olhos - criti­cou. - O que te fez mudar? E inacreditável! É certo que passaste um mau bocado, mas foste bem tratada, num hospi­tal caríssimo, segundo disse a Deidre. Não é razão para teres a expressão de uma abandonada.

-      E não sou?

-      Criança! - abraçou-me. - Não estás só. Eu estou aqui. Não sabes que te adoro?

-      Não sei nada. Estou flutuando entre ondas alterosas.

-      Parvoices! - pôs a mão nos meus cabelos e sor­riu. - Não são as palavras do teu pai, que ainda te podem mortificar. Não deves pensar que é o teu dinheiro que me atrai. Não és a única herdeira que tenho encontrado. Nãometes na cabeça que te amo? Gosto de ti, desde que te co­nheço. Quero-te desde a primeira vez que te vi.

-      Gostas muito de mim? Por quanto tempo? Querer não é amar, Gastão! Finalmente, já descobri. Há muito quem queira coisas valiosas.

-      E goste delas. O teu pai não era desse número?

-      Creio que sim, mas não estou disposta a aceitar que me queiram.

-      Não sabes o que dizes, meu amor! Prometo fazer-te feliz, para não te arrependeres de ser minha. Hás-de sentir-te orgulhosa por eu ser o teu senhor.

O    tom da sua voz, a magia do seu encanto, tudo me era conhecido, com amargura, e fez-me estremecer. Porém, quando os seus lábios tocaram nos meus, a reacção foi aquele es­tado de sedução, que a borboleta sente pelo beijo da luz.

Eram beijos sem amor.

 

Quem é aquele grego dourado? - perguntou o Rod­ney, com curiosidade.

O    Gastão e a Sue tinham ido para a praia, e eu fiquei àespera do Rodney. Ele concordou com a minha ideia, de tomarmos banho, antes do chá, e levei-o pela escadaria das rochas. Tinha que as enfrentar um dia, e era mais fácil indo com ele, para quem não tinham história.

Insistiu em ir à frente, para me amparar, se escorregasse. Segui atrás, admirando os seus cabelos bronzeados, que não me deixavam ver as rochas. Gostava de saber porque usava o cabelo tão curto. Apesar de não aparentar mais de trinta anos, o cabelo rente à cabeça não o favorecia. Quando che­gasse aos sessenta, devia estar calvo, como o seu insigne pai. Evoquei os cabelos do David, finos como os meus. Em pe­quena, sentia prazer em lhe passar as mãos pela cabeça, o que ás vezes também fazia ao Blair. Como esse tempo estava distante! Agora, não lhes tocava.

-      Quem é aquele? - perguntou o Rodney. - Parece o ApoIo...

Aventurei-me a entrar na água. O Gastão tinha-se afas­tado com a Sue, e ensinava-a.

-      E o Gastão Loire, primo da minha madrasta.

-      O nome soa bem.

-      E um grande fotógrafo. Era o responsável pela publi­cidade artística da Phelim.

-      Ah, sim!... Vi esse nome nos anúncios, mas nunca me disse que o conhecia.

-      Não?

-      Nunca falou nele. E assim tão insignificante? - per­guntou a rir.

-      Não.

-      Conhece-o bem? Ele fica cá?

-      Fica.

Parou a admirar os dois.

-      Queira Deus, não leve a Sue para muito longe. Ela mal sabe nadar...

Gostei de o ouvir interessar-se pela enfermeira.

-      Conhece-a há muito tempo?

-      Mais ou menos, toda a vida. O meu pai assistiu ao seu nascimento. Como se tem dado com ela?

-      Era a única que me agradava para me acompanhar. Velou por mim com muita ternura. Sou muito sua amiga.

-      E uma jóia! - parou junto a um monte de limos, escorregou, mas equilibrou-se. - Estes degraus escorregam. Não me admira que tenha caído.

-      Estou habituada a eles. Só são escorregadios nesta baixa, por estarem molhados, desde que a maré encheu.

-      Foi aqui que caiu?

-      Se fosse aqui, era mais provável ir parar à areia. Não tinha partido a cabeça - respondi rapidamente. - Vê aqueles rochedos dentados, junto ao mar? Eu nadava de­pressa, muito mais além.

-      Ainda pensa nisso?

-      Penso.

-      Este local é perigoso. A lagoa vista daqui...

-      Pode ser... A Sue costuma tomar banho na praia que fica do lado do vale. Aqui, a água tem muita altura. É por isso que o David a preferia, e o Gastão também.

-      Ele convence-se que está com um modelo fotográ­fico - comentou com desdém. - E um menino de ouro!

O    Gastão tinha a pele fina como a Deidre, uma pele que amarelecia, mas não se queimava, com o sol. Era um dos pontos em que residia a sua atracção. Veio ter connosco, a nadar, ora levantando-se com as ondas, ora baloiçando. A Sua vinha atrás, desaparecendo de vez em quando, no meio da espuma. O Gastão ria e ajudava-a a erguer-se. Che­gou à praia, a pingar e extenuada.

-      Olá, Rodney! Isto tem graça. Vem experimentar!

-      Parece-me perigoso. Julguei que ias levada na ressaca.

-      A maré trazia-me sã e salva. Bravo! Este é que é o meu rival? - perguntou o Gastão.

O    Rodney olhou embaraçado. Fiz as apresentações, e no­tei que a intenção do Gastão era amesquinhar o outro. Nunca ficava na defensiva; atacava sempre primeiro. Beijava as pessoas para as ferir, ao mesmo tempo. Aquela habitual leviandade era fatal. Provocava, incitava e deixava as vítimas abandonadas.

-      Diga, meu caro doutor, veio ver a doente ou a enfer­meira? - perguntou.

-      As duas - respondeu sem hesitar.

-      Oh! Isso não é correcto. Não pode monopolizar duas lindas raparigas, simultaneamente - sorriu.

Desconfio que anda atrás da Adele. Sue, dê cá a mão! Eles não precisam de nós!

A Sue sorriu, corou e foi a correr para a água. O Rodney arou a contemplá-los. Depois, perguntou:

~~te - Há alguma coisa entre você e aquele palerma? Devia r-me prevenido.

-      Não esperava tornar a vê-lo.

-      Então?...

-      Namorei-o, mas o meu pai opôs-se. Julguei que ele aceitava essa decisão.

-      E você?

-      Com certeza.

-      O que vem aqui fazer esse com certeza?

-      Não podia contrariar o meu pai.

-      Mas... agora pode fazer a sua vontade. E isso que quer dizer?

-      Não. Para que está sempre a dar-me lições?

-      Não acha natural que queira saber em que posição me encontro? Fez-me ver que era livre... Se não é, diga! Não costumo caçar em terreno vedado.

-      Não namoro o Gastão.

-      Mas... namoraram-se, e estão prontos a recomeçar?

-      Não. Ninguém compreende aquele homem. Queria fazê-lo arreliar.

-      Com que ideia?

Olhei para o Rodney, desanimada. No hospital era calmo, confiante e paciente. Agora era um estúpido, que por uma ninharia se punha fora de si. Era um contraste com o Gastão. Desajeitado, sem graça, vulgar, baixo e aparentando ter uma mágoa oculta.

O    outro era esbelto, elegante, de olhos vivos, irradiando uma centelha de encanto que o tornava superior à maior parte dos homens. Só o David se comparava com ele, pos­suindo ainda maior encanto. Há quem possa resistir ao en­canto, mas não deixa de dar por ele. E uma qualidade pode­rosa. A Sue estava desamparada, entre o Gastão e as ondas. Eu já estava habituada àquilo, mas sentia-me envergonhada, não com o Gastão, mas com o Rodney. Achava-o incapaz 'de rivalizar com o outro, e, no meu íntimo, gostava que este o pusesse no seu lugar, que as suas belas qualidades fizessem sair à luz o demoníaco atractivo do Gastão. Compreendia que as nobres qualidades tinham muito mais valor que uns lindos olhos e um irresistível poder de atracção.

Só um carácter rude e forte podia resistir àquele homem.

O    David tinha prazer na sua companhia, enquanto nao soube que nos namorávamos. Sentiu-se ofendido, lesado no seu do­mínio paterno e, segundo creio, foi uma das razões que o fez revoltar. Como o Gastão insistiu, cortou o mal pela raiz.

Apenas o Blair ficou insensível àquele encanto. Não se entusiasmava com belezas; era como um rochedo com as on­das. Via o Gastão como um Apolo, calculista e demoníaco. Essa frase dava-me certo conforto. Era uma linha de con­duta. Todas as vezes que sentia poder sucumbir ao contacto do Gastão, agarrava-a com as duas mãos.

-      O que tem, Adele? Parece aborrecida. Aquele cama­rada empestou-a? - perguntou o Rodney, abruptamente.

-      Quer casar comigo.

-      E não se namoram?

-      Não, não posso - respondi desesperada. - Procura tentar-me, mas não cedo.

-      Tem alguma razão particular?

-      Estou convencida que posso apaixonar-me por um homem violento, mas não cruel. De uma crueldade delibe­rada, a sangue-frio, de uma natureza sádica. Notei que o Gastão quer suplantar todos, exercer o seu poder sobre os outros.

-      Deve ter fascinado a Sue - disse o Rodney, mal-

-humorado.

Estou bastante aborrecida. Sei que ele só se quer di­vertir, mas ela perceberá? Aquele demónio tem uma habili­dade para cativar!...

O    Rodney deitou-se na praia ao meu lado.

-      Tenho que falar com a Sue, mesmo que não goste. Sempre me responsabilizei por ela e, se seguiu a vida de enfermeira, foi para me ser agradável. E sentimental e no trabalho nas enfermarias encontra toda a espécie de emoções. Por isso é que a reservámos para os quartos particulares.

-      Fale à Sue e à minha madrasta. Não quero responsa­bilidades.

Contei-lhe o que se passava e acrescentei que devia ser vigiada regularmente. Prometeu-me tentar captar a sua con­fiança. Entretanto, o Gastão veio ter connosco. Parecia um garoto que tinha procedido mal, e vinha pedir desculpa.

-      Não vais nadar, Adele? O senhor proibiu-a? - pei guntou, dirigindo-se ao Rodney. - Parece ter a fobia da agua, o que é raro, visto ser uma boa nadadora. Se lhe der a mão, talvez ela se anime!

Vá! Em entrando na água, tudo vai bem - acrescen­tou a Sue, para me convencer.

Todos três me persuadiram a tomar banho. Desabotoei o vestido de praia; fiquei com o fato de banho preto. O Rod­ney foi-se despir detrás das rochas. Esperei, e quando voltou, corremos de mãos dadas para o mar.

O    frio da espuma enervou-me, um momento. Depois respirei e nadei para fora de pé. Não queria lembrar-me da última vez que ali tinha nadado. Essa simples evocação esti­mulou-me a tensão nervosa e fez-me voltar em direcção aos rochedos.

Tudo correu bem, até o Gastão me persuadir a voltar para trás. Dei duas braçadas, mas à terceira deixei-me envol­ver pelo remoinho das águas, e fui abaixo. O Rodney agar­rou-me pelos ombros e levou-me. Estava envergonhada, mas salva, sem saber o que fazia.

-      Desculpe, se a magoei - disse ele, lacónico.

Não pude responder. Saí da água, quase desmaiada, a tremer convulsivamente. Era uma reacção igual à que sentia, quando as enfermeiras me acordavam dos pesadelos. Senti o antigo terror.

-      O que tens, querida? - perguntou o Gastão, ajoe­lhando-se ao meu lado. - Tiveste cãibras?

Abanei a cabeça. Não podia explicar-lhe; não me acredi­tava. Ninguém me acreditava. Só eu tinha a certeza de não ter perdido a razão. O meu subconsciente mostrava-me uma mão oculta. As mãos que via nos pesadelos apertavam-me como garras de ferro.

-      Não é costume - disse o Gastão, deitando-se ao meu lado.

-      Não. - Nunca tinha precisado de ajuda, nem quando fui buscar o David. Se me assustava, não emitia um som. - Foi nervoso. Já estou bem.

Mas... não podia voltar para dentro de água. Fui-me vestir.

O    Rodney também já estava farto e resolvemos vir para casa. Depois do chá, disse à Sue para lhe mostrar os jardins. Ela queria que eu fosse, mas teimei que tinha as flores a arranjar para a mesa, e fiquei. Mesmo que o Gastão se por­tasse bem, o jantar devia ser um grande fardo. É possível que estivesse em erro, ao convidar o Blair. Não gostava de se misturar com eles; era pouco falador. Aceitou por lhe ter pedido que viesse?

Vesti-me depressa, de encarnado, para dizer com os cri­sântemos. Estava a preparar as bebidas, quando o Blair che­gou. Costumava vê-lo com um casaco de algodão azul, ou um de belbutina. Nessa noite, trazia um fato completo cas­tanho, camisa creme e gravata no tom do fato. Tinha os cabelos escovados e a barba feita. Fiquei envergonhada, sem saber porquê.

-      Ainda bem que vieste! - disse, aparvalhada. Ele franziu a testa.

-      Era uma ordem, não era? Deus queira que não te arrependas!

-      Vais gostar do Rodney. É simpático e conseguiu le­var-me para o mar, esta tarde. - Falava depressa e a mão tremia, ao deitar nos copos o Xerez para os dois.

-      Não te fez impressão? - perguntou.

-      Como sabes?

Entornei o Xerez na salva de prata. Ele pegou na garrafa e pô-la no seu lugar.

-      Gostei de saber, por isso pergunto. Não porque saiba.

Contei-lhe o que se tinha passado, mas não se manifes­tou. Não sei se preferia o contrário.

-      Sentis-te o mesmo contacto?

-      Não. Era diferente.

-      Ainda reconhecias o outro?

-      Não... - murmurei. - Sim, tenho a certeza que reconhecia.

Não disse nada. Tirou o lenço do bolso, molhou-o no Xerez, que tinha no copo e deu-mo. Olhei para ele, nem sei como...

-      Achas que devo comparar? Ficava doida, se sentisse o mesmo - respondi em voz baixa. - Não posso... e preciso saber!

-      Não te preocupes! Hás-de saber na devida oportuni­dade.

-      Afinal, acreditas no que eu digo?

-      E possível. Andei a pesquisar nas rochas. As que fi­cam junto à escada estão tão puídas, pelo constante bater da água, que não podiam ter causado as equimoses que tinhas na cabeça. Fui um estúpido, em não ter descoberto isto há mais tempo.

Eu não podia falar. Estava aterrorizada.

-      Toma este cálice de Xerez, e não penses mais no caso. Hei-de apanhá-lo... a ele ou a ela.

Não consegui ficar animada. O caso do marido da Leila não me saía da ideia. Não, isso não! O Rodney e a Sue vieram interromper os meus pensamentos. Traziam ar abor­recido, como se tivessem altercado.

A Sue, em especial, parecia desconfiada ou com receio de ser repreendida. Apresentei os dois homens. O Rodney es­tava frio, mas o Blair mostrava grande naturalidade. Agrade­ceu a forma como o médico me tinha tratado, e este voltou-

-se para mim, como a pedir explicação daquela atitude.

A chegada da Deidre foi um alívio. Vinha com ar de saúde, elegante, com um vestido de gaze cor de rubi, que ia bem com a palidez do rosto e a cor dos cabelos. Falava com modos graciosos e o Rodney respondia-lhe imediatamente.

O    Gastão foi o último a aparecer, de fato cinzento e camisa da cor dos olhos. Como sempre, julgava-se o herói da festa, mas o seu encanto era cadenciado. Não gostei da ma­neira como tomou ares de dono de casa, e encheu os copos, mas deixei passar. O que desejava era que a noite decorresse sem atritos. Aparentemente, era uma reunião íntima.

O    jantar ao gosto da Bronwen, não podia ser melhor. A conversa não estava animada, limitando-se apenas a luga­res-comuns. O Rodney, em especial, interessava-se pela Dei­dre; o Gastão fazia a corte à Sue e eu falava com o Blair, a respeito da fábrica e da nossa participação na próxima exposi­ção. Ao chegarmos aos doces, inadvertidamente, referi-me ao desbaste nos canteiros dos crisântemos.

-      Desde que deixem o canteiro dos novos intacto, o Silas não bate o pé, mas não consente que tirem os botões, destinados à exposição - afirmou o Blair - ou então, zan­ga-se.

-      Tem razão. Ninguém vai lá tocar.

-      Deves ajudá-lo a arranjar o que for para a exposição. Tens muito jeito para lidar com flores. Ficas responsável por esta obra, a mais atractiva - acrescentou o BIair com agrado.

O    Gastão estava arreliado pela minha conversa com o Blair, que roubava a atenção ao que ele dizia. Voltou-se para nós, com arrogância.

-      Efectivamente, minha querida, aspidistras não eram mais adequadas?

Tremi de raiva. Após um pequeno silêncio, o Rodney exclamou:

-      Aspidistras? Nesta época não se vêem. Não sei o que fazerri ás que costumam guarnecer as entradas.

-      Também ignoro. Apenas sei para onde foi uma.

-      Para onde foi? - perguntou o Rodney.

-      O Gastão quer tornar-se engraçado - disse eu, olhando para ele fixamente, com ar ameaçador. - Em vez de adubo, empregaram insecticida, e a pobre planta morreu.

O    Rodney sorriu delicadamente, e o Gastão deu uma gargalhada.

-      Não podia explicar-lhe a diferença, não sou quí­mico - replicou em tom significativo.

-      O Blair inventou um novo adubo, maravilhoso para os crisântemos - expliquei, dirigindo-me ao Rodney. -O nosso velho jardineiro pensa que nos vai dar uma fortuna.

-      Se fizerem boa publicidade... O novo médium é a Televisão. Tenho que lhes mostrar alguns anúncios que apre­sentei.

-      Admirei o colorido das suas fotografias - respondeu o Rodney.

O    momento atroz estava passado. Fiquei tão abalada, que nem podia olhar para o Blair. Não podia dar uma pala­vra. Estava furiosa comigo mesma, por aquele contratempo, e ainda mais furiosa com o Gastão. Parecia um gato a deitar as unhas de fora, quando menos se esperava. A Deidre levan­tou-se, dizendo ao abrir caminho:

-      Vamos tomar o café na sala. Podes passar lá os filmes, Gastão! O estúdio é uma geleira, depois do pôr do Sol.

-      Magnífico! Vou buscar a máquina e o écran. Sue, venha ajudar-me!

Sairam ambos, e o Rodney seguiu a Deidre. Quando eu ia ao pé da porta, o Blair agarrou-me o braço, e perguntou, inquieto:

-      Também... sabias?

Voltei-me instintivamente, emocionada e triste.

-      Também... - respondi.

-      O David prometeu-me não te contar. Sabes há muito tempo?

-      Apenas há uma ou duas semanas. O pai nunca me disse nada.

-      Desta vez cumpriu o prometido. Tenho essa satisfa­ção.

Gostava de saber se tinha prometido outras coisas e fal­tara ao cumprimento da promessa, mas não perguntei nada. Sentia a garganta seca. Fazia grande esforço em falar.

Então? Não perguntas nada?

Tinha algumas dez perguntas na ideia, mas não me saíam dos lábios.

-      Deves ter sofrido muito!...

-      Mas tenho vivido...

Sentia-me comovida, não encontrava palavras, apenas olhava para ele, desamparada, como se tivesse tomado parte no crime.

Não deve ter compreendido o meu silêncio. O seu sem­blante rude endureceu; pôs-me a mão no braço e, num tom áspero, que nunca lhe tinha ouvido, disse:

-      Provavelmente suspeitaste que tivesse morto o teu pai!

-      Oh, não! Nunca pensei nisso, Urso!

-      Pensaste... e talvez ainda penses! - redarguiu, ine­xorável.

-      Apenas tive essa ideia, durante um ou dois minutos, quando... quando suspeitava de toda a gente. Depois, não! Acredita, Urso! - implorei num crescente desespero.

-      Era simples... Eu podia ter trocado as botijas do gás.

-      Pois sim, mas não foste tu! Se não te posso convencer a acreditares na minha sinceridade, como hei-de convencer os outros?

-      Talvez seja melhor assim. Confia em ti - disse som­brio - e em mais ninguém.

Abria-se um abismo entre nós. Não podia prendê-lo; não podia fazê-lo falar no caso. Desviava-se completamente de mim. Passei a porta a tremer. Estupidamente, ainda lhe pedi:

-      Não olhes assim para mim... como se eu fosse uma estranha. Pensei que... era mais alguma coisa, para ti...

Tive vontade de lhe dizer: «Pensei que me amavas», mas não tive coragem. O seu olhar apavorava-me.

-      Não sabes? - perguntou com altivez.

A Sue atravessou o hali, chamou-me e perdi a oportuni­dade, a única oportunidade de construir uma ponte sobre o abismo.

 

Nunca soube como passei o resto do fim-de-semana.

Suponho que me devo ter portado normalmente, porque

o     Rodney mostrou-se satisfeito. No domingo, de manhã,

fomos à igreja paroquial, como fazíamos no tempo do Da­vid. O Blair sentou-se como sempre quase ao fim da igreja,

e desapareceu, mal acabou o culto, sem esperar por nos.

Evidentemente, não era dia de visitar a célebre senhora. Devia passar a tarde em casa. Se eu tivesse coragem, podia lá ir, mas não tinha. Pensava, com desespero, que não devia meter-me à cara, e nada tínhamos a dizer um ao outro.

Depois do almoço, fomos dar uma volta até ao fim da praia, que o Rodney nunca tinha visto. A Deidre lembrou que o Gastão nos podia levar, no carro do David. Noutra ocasião, não me era possível vê-lo ao volante, no lugar do meu pai, mas, nessa tarde, estava muito apoquentada, para me prender com isso. O Gastão guiava com o habitual des­prezo por quem ia na estrada, mas eu nem dava atenção. A Sue ia ao lado dele, ria como uma criança, sem ter mo­tivo, e gritava ao ouvir as nossas exclamações. O Rodney protestava e a Deidre, envaidecida, incitava-o.

-      Incitem-no também! É muito melhor volante do que julgam! Não pretende matar-nos, nunca teve um desastre.

-      Oportunidades não lhe faltam - observou o Rodney, criticando.

-      Mas livra-se sempre delas - respondeu a Deidre, calmamente.

O    mar estava revolto e a brisa um tanto agreste. Ainda não podia olhar para os penhascos nem para as rochas denta­das, e preferi ficar afastada. A Deidre também concordou ficar no carro, no parque, enquanto os outros desciam para a praia, e passeavam junto ao mar. Havia grande núrnero de turistas, e nós entretínhamo-nos a admirá-los. Tinha curiosi­160

dade em saber quantos estavam despreocupados, como mos­travam.

Os modos da Deidre eram letárgicos e a conversa esmo­receu. De repente, perguntou:

-      O que tens, Adele? Correram-te mal as coisas?

-      Mal?

-      Parecias ser o centro da conversa, e a tua enfermeira achava graça. Não te zangaste com o Rodney?

-      Não, que ideia! Porque havia de me zangar?

Ficou carrancuda.

-      Não é a mim que deves perguntar. Ele não parecia estar muito satisfeito. O Gastão estragou tudo?

-      E o seu costume - respondi enfadada - pregar alfi­netes nas borboletas ou arrancar as asas ás moscas.

-      Não pensa que fere os outros, mas não sabe como reagem. E esse o meu receio.

-      Desejo que deixe a Sue, senão acaba por cair na tigela do melaço. Não pode fazer-lhe ver que anda mal?

- Ria-se de mim e perguntava se tinha ciúmes.

-      Foi o que me disse. E um verdadeiro louco.

-      Sempre foi irresistível. Se queres o Rodney, deves ir ter com ele, senão afasta-se.

-      Também andou atrás do meu pai?

-      Naturalmente. Não julgues que o David pensava em casar. Todos os homens são iguais. Têm umas horas alegres, quando perdem o pé. Tive que me oferecer...

             - Não avalia o seu encanto, Deidre! O Rodney acha-a       muito interessante.

             - E muito amável. Esteve a falar comigo, como um pai. Aconselha-me a medir a tensão, que talvez seja a causa destes desmaios. Vai telefonar ao nosso médico assistente.

             -Bem!

             Novo silêncio. Quando voltaram os outros, a Sue vinha no meio dos dois.

             - Quanto tempo fica cá a enfermeira? - perguntou a Deidre ao vê-los.

             - Eu pedi-lhe para ficar quinze dias, e não volto atrás.

Aliás, é um conforto ter uma enfermeira em casa. Por um ponto de vista pessoal, estimo que tenha agradado ao Gas­tão, mas desejo que não venha a sofrer com isso.

-      Aquela bola de borracha não sofre como nós - disse em ar doutoral. - Não está apaixonada pelo Gastão; está simplesmente fascinada. Ele quer-se divertir. Conheço-lhe a táctica... O perigo é se excita ciúmes ao Rodney, e este não gosta.

Não me atrevi a contar que as reacções do Rodney me eram indiferentes. Se o Gastão excitava o sentimento protec­tor daquele para com a Sue, tanto melhor. Eu só pensava no Blair e não no Rodney.

Na última noite, tinha magoado o Blair. A culpa não foi minha, segundo me parecia, mas o Blair procedeu como se eu tivesse deliberadamente pesquisado o seu passado e o prendesse a ele. Tinha de o convencer que estava em erro, que eu nunca faria uma coisa dessas.

Devia ir ter com ele, no dia seguinte. No escritório, não pode escapar-me, pensei.

Resolvi estar lá ás nove horas, mas o Rodney demorou-

-se, com pena de partir. Quando tinha já o carro à porta, hesitou.

-      Custa-me deixá-la, Adele - disse, ao apertar-me a mao. - Está ainda combalida, o que não admira. Não gosto de fazer conjecturas, mas, a não ser a Sue, não tem aqui ninguém em quem possa confiar. Mas a Sue perdeu a cabeça com esse Loire. Procurei falar-lhe como um irmão mais velho, e respondeu que me metesse no que me diz respeito.

-      Está aborrecido com ela, ou comigo?

-      Com as duas. Concordo que esse tal Gastão é encan­tador, mas não é homem de confiança.

-      Isso sei eu!

-      Ela não sabe. Está entusiasmada como uma jovem de quinze ou dezasseis anos. Tenho esperança que lhe passe...

A Sue e a Deidre apareceram e não pudemos continuar o assunto.

O    Rodney agradeceu à Deidre a boa hospedagem, deu-

-me um beijo na testa e inclinou-se levemente perante a Sue. Desta vez, ela não se ofereceu para ir abrir os portões. Estava aérea e desconfiada.

Quando ele saiu, disse indignada:

Realmente, parecia que era meu avo.

O    Rodney é muito seu amigo   respondi.

Parece... Antes de conhecer outro homem, achava-o superior a tudo. Hoje, acho-o vulgar.

E amável e sério.

Ora!... Se não precisa de mim, vou ajudar o Gastão, na câmara escura.

Pode ir! Eu vou ao escritório, e encontramo-nos de-pois.

Desci o atalho, e eram dez horas quando cheguei ao ga­binete. Sentia-me enervada, ao entrar, mas o Blair estava ocupado com uma montanha de correspondência, que tinha na frente, e apenas murmurou:

-      Bom dia, Adele! É melhor ires para o lugar da Chris­tine.

       - Pois sim...

-      Procura um bloco, para te ditar algumas cartas. Po­

       des dactilografá-las, enquanto eu estiver no laboratório.

          Fui à sala onde a Chnstine~costumava trabalhar e tirei o bloco e um lápis, da secretária. Não sabia se devia ficar ale­gre ou triste, pelo modo lacónico do Blair.

ça      Como era natural, ditava com rapidez, mas perguntou, uma ou duas vezes, se ia muito depressa. Tratava-me como a uma nova empregada. Quando terminou, disse com indife­rença:

-      Se à uma hora eu não estiver cá, deixa as cartas em cima da minha secretária!

-      Está bem. E de tarde?

- Das nove à uma é o suficiente, por enquanto. N~ te

deves fatigar.

- Podes crer que estou bem.

-      Não teimes! - replicou, autoritário. - Das nove à uma, já chega. As cartas a dois espaços, em papel timbrado, e escritas com cuidado. E importante!

Saiu, e nesse dia não o tornei a ver. Sabia que era impos­sível. Fechou as portas e nada mais pude fazer. Sentei-me àmáquina, resolvida a mostrar-lhe que não estava a brincar às secretárias. Após um ou dois começos errados, por pôr o químico do lado oposto, consegui. Escrevia devagar, mas com esmerada correcção. Estava satisfeita com o resultado, contudo, na manhã seguinte, ele não falou em nada.

Gradualmente, entrei na linha de conduta que tracei: as manhãs no escritório; a seguir ao almoço, banhos ou passeios com a Sue e o Gastão. Ela, que não podia guardar um segredo, contou-me que o Gastão andava à procura do novo testamento, e ela ajudava-o.

Fiquei aborrecida, mas mostrei não ligar importância, convencida que, mais dia menos dia, havia de sair à luz. Reflecti que o Gastão queria ter a certeza de que eu não ficava lesada, antes de me pedir em casamento. Se me cou­besse apenas a terça, não valia a pena apanhar-me.

Até sexta-feira, tudo correu da mesma forma. Nessa manhã, tive um excepcional aumento de correspondência, incluindo numerosas queixas sobre a ineficácia do adubo para as roseiras. A resposta do Blair explicava que um infeliz en­gano na fórmula ocasionara esse fracasso, portanto enviava uma amostra grátis, do novo adubo.

Detestava essas cartas, que reflectiam a falta de senso do David, e tenho a certeza de que o Blair era da mesma opi­niao.

Ás onze horas, estava a trabalhar, quando ele perguntou inesperadamente:

- O que dizes a uma chávena de café? Não te apetece?

- Óptimo! Vou já fazê-lo - respondi entusiasmada.

Quando voltei com o tabuleiro, sorriu, o que raras vezes fazia.

- Esta semana tens trabalhado a valer! Para a que vem, vamos tratar de finanças, e, então, verei o que te posso pa­gar.

-      Não quero ordenado. Trabalho por gosto e, além disso, também tenho interesses na firma.

-      Devemos pôr as coisas nos seus devidos lugares. A Deidre tornou a sacar dinheiro.

-      Sim? Oh, querido! A casa leva muito, não leva? Já pedi à Bronwen para ser menos esbanjadora, mas não acatou o meu pedido. Está furiosa por o médico ter posto a Deidre a dieta. Não pode comer sal e a Bronwen teima que não pode cozinhar sem sal.

Posso ter uma conversa com ela?

-      Até é um favor. Não podemos esbanjar. Não precisa­mos de criada de fora, criada de mesa e cozinheira.

Também acho, mas tu é que deves saber.

-      Não sei. Aí é que está o mal. Não percebo nada de governo de casa e a Deidre não me ajuda. Nem ela nem a Bronwen se querem afastar do que o pai fazia. Quem paga as despesas da casa?

-      A Deidre tem pago por meio de cheques. Porém, o último, de duzentas libras, já não teve cobertura. O director do banco escreveu-lhe, e ela mandou-me a carta. Tenho es­tado a depositar duzentas e cinquenta libras de quatro em quatro meses, mas, mesmo assim, já não cobrem as despe­sas.

-      Oh! É impossível! Essa conta tem de ser dividida entre mim e a Deidre. Quanto te devemos? Precisamos reembolsar-te.

-      Não é fácil, quando o rendimento depende dos lu­cros. No ano passado, os lucros líquidos foram de sete mil libras. Este a no, se apurarmos metade, já estamos com sorte.

-      Temos de nos convencer que não podemos gastar mais do que ganhamos. O custo dessas amostras grátis deve ser elevado...

-      Isso é comigo.

-      Mas... como podes?

-      Merecia que me censurassem por não pôr cobro às coisas.

-      Essa parte pertencia ao pai, e confiavas nele...

Foi o meu erro e devemos pagar os nossos erros -respondeu aborrecido.

-      Não! Tu, não, eu! Era meu pai e marido da Deidre. Nós é que temos o dever de aguentar o prejuízo.

-      Não posso obrigar a Deidre a pagar, e ela não con­corda.

-      Não podes, mas posso eu. Deixa isso ao meu cuidado.

-      Na segunda-feira, tratamos do assunto. Receio que vás sofrer um grande choque. O David não tinha capital, além do que está incluído na firma. Tive que financiar as amostras e assim por diante. Consegui salvar algum dinheiro.

-      Temos que te reembolsar.

-      Discutimos isso, quando estiveres ao facto.

Pôs de lado a chávena cheia e voltou ás cartas. Senti-me humilhada, ao pegar no bloco. Estava decidido a prender-me os braços, e eu não sabia como me livrar.

Quando acabei, ele disse:

-      Por hoje, já está. Amanhã, podes descansar, que não estou cá.

O    meu coração deu um pulo. Ia ver a mulher?

-      Aonde vais?

-      Tratar da exposição, com o McTaggle.

-      Deixas-me ir?

-      Não. - Talvez notasse no meu semblante qualquer mudança, porque acrescentou: - E muito longe. E um dia inteiro.

-      Gostava tanto de ir!

-      Vais para a outra vez, não sejas teimosa!

Voltou-se para a porta, e fiquei desesperada.

-      Urso! Porque me castigas? Não sejas mau!

-      Castigar-te? - voltou-se com a testa franzida.

-      Estás a castigar-me, mas não tive culpa. Não pergun­tei nada à Deidre, e ela julgava que eu sabia. Que diferença faz agora? Isso deu-se há tantos anos!... Ainda era tão pe­quena!...

--    A diferença é para mim.

-      Não sei porquê. Tudo passou...

-      Não. Se passasse, tinha-te contado a história toda. Devo contar-ta um dia destes, se não for já tarde.

-      Porque há-de ser tarde? Urso, não me martirizes tanto! Não tenho mais ninguém...

-      Sempre me tens a mim.

-      Então, porque me afastas tanto?

-      Deves adivinhar, facilmente - disse a rir. - No pé em que as coisas estão, não tenho outra alternativa.

Voltou-se de novo para a porta.

-      E não me levas à exposição? - perguntei, como uma criança desapontada, sem prever qual seria a resposta.

-      Não. Na segunda-feira, estou contigo. Toma cautela e afasta-te das rochas!

Fechou a porta... fiquei só... mas não tão só como me tinha sentido durante toda a semana. Fiquei sabendo que não estava zangado comigo.

 

No sábado, de manhã, fui falar com a Bronwen e fiz-lhe ver que precisava cooperar, cortando despesas.

-      Não era o que o senhor queria - disse, com altivez.

-      Dizia sempre: «Tudo o melhor, para a minha filha!»

-      Não podemos aguentar, Bronwen! Gastamos mais do que ganhamos. Vê se compreendes!

-      De quem é o dinheiro? Do senhor Kerrard? Ele não deve chorar o que lhe dá, menina!

-      Não é isso. Não precisamos de refeições tão dispen­diosas, e duas criadas a mais.

-      Oh! A Elsie está cá há muito tempo. Namora outra vez O filho do McTaggle. A Harriet tem vinte anos de casa. Não pode despedi-la.

A Harrier era a criada de mesa, uma mulher a quem não havia nada a dizer. Era uma sombra que se movia lenta e silenciosa de um lado para outro.

- Se a Elsie vai casar, é magnífico! - exclamei ali-viada.

Secretamente, preferia a Elsie à silenciosa Harriet.

-      Não se preocupe, menina! Se o senhor Gastão fica dono disto, não é por uma apara de queijo, não!

-      Dono disto? Estás a sonhar, Bronwen!

Ela deu uma gargalhada.

-      Talvez eu ande depressa de mais. Parece que a me­nina fica para o canto e não a viúva do senhor. A menina lá deve ter as suas razões... O senhor Gastão anda atrás de nós todas, a perguntar pelo outro testamento.

-      O quê?

-      Se nós soubessemos, dizíamos, mas nunca lhe puse­mos a vista. Naturalmente, ela encontrou-o e queimou~.

-      Não... não creio que haja outro, e fico satisfeita com o primeiro.

Saí da cozinha, pensando se tinha ou não conseguido al­guma coisa. A mudança de semblante da Bronwen vexou-

-me. O Gastão teria acabado por a demover? Na sua idade, não se submetia ao seu encanto, mas ele pode ter sido hábil, e convencê-la que me era muito dedicado e pugnava pelos

e     meus interesses. Era provável. Até agora, tambem eu acredi­tava nele. Era sedutor, mas a opinião do Blair não se me tirava da ideia.

Ainda há pouco, fiquei surpreendida, por o Gastão não me criticar ao saber que estava no lugar da Christine. íamos tomar banho e depois, enquanto estávamos deitados ao sol, descobri o motivo.

Já tiveste sorte? - perguntou.

-      Em quê? - perguntei admirada.

-      Minha querida! Não és dactilógrafa por prazer, pois não? Quiseste meter-te no escritório, para vigiar as activida­des do velho monstro. Já examinaste o livro Razão?

Ele pensava que eu tinha ido trabalhar, para espiar. Res­1pondi, fingindo não ligar importância:

-      Ainda não. Na segunda-feira é que vamos tratar de finanças.

-      Tens de ser hábil. Não te fies nele! Procura desenter­rar os seus arquivos particulares - aconselhou o Gastão.

- O Blair deve ter dois livros... um para dar ao manifesto e todos verem, e outro para seu proveito.

-      J31lgas que ele faz isso?

-      E evidente. E o que faz a maior parte das firmas -particulares. O livro que apresentar, acusa prejuízo ou ganho insignificante. Nos seus arquivos é que tem anotado quanto passa para ele, e é isso que precisas saber.

Fiz o possível para não dar a conhecer a indignação que senti. Deixei-o falar.

-      Aposto que o David nunca apanhou o seu quinhão intacto. Aquele velho demónio era áspero para ele - afir­mou com convicção. - Muito hei-de rir se tu o apanhas! Esse monstro deve pôr-se em guarda. Tens que te acautelar!

- Nunca acreditas na natureza humana!

-      Quem se fiar, espere ralações - retorquiu a rir. -Neste velho mundo, cada um tem de olhar por si.

Se o Gastão não tivesse atacado o Blair, talvez eu tivesse aceitado o seu convite, para ir nessa tarde, com ele e a Sue a Falmouth. A Deidre queria coisas da farmácia e a Sue não conhecia Falmouth. O Gastão propôs levar-nos e estive quase a aceitar, mas fiquei farta dele.

Gostava de ter ido à exposição, com o Blair; podia ir a Falmouth e acabei por ficar no jardim. Estava a arranjar flo­res, quando a Harrier veio ter comigo. Como num momento o nosso destino muda completamente!

-      Está cá uma senhora que quer falar à menina. Diz que não a conhece, mas é importante o que a traz aqui.

-      Vem vender qualquer coisa? - perguntei.

Se fosse a Elsie, fazia a descrição da visitante, como ven­dedora, ou encarregada de algum peditório. A Harriet ape­nas respondeu:

-      Não sei, menina! Diz que vem de muito longe, para lhe falar.

-      Manda-a para a saleta e diz-lhe que vou já!

Pensei que fosse alguma das enfermeiras do hospital, mas devia conhecer-lhe o nome. De muito longe... podia não ser. Lavei as mãos e penteei-me. Estava intrigada e apreensi­va. O pai contribuía largamente para todas as obras de cari­dade. Não queria parecer mesquinha, mas não podia ser ge­nerosa como ele.

A visita estava na saleta, a admirar um passarinho no tronco de uma árvore. Logo vi que não a conhecia. Era bai­xa, modestamente vestida, de saia e casaco de terilene, blusa branca, chapéu branco com um ramo de miosótis, muito elegante em comparação com o fato. Imaginei que era o me­lhor chapéu que tinha. Trazia uma bonita mala, mas já não era nova.

Encarou-me com uma expressão singular, nem confiante, nem embaraçada. Tinha os olhos da cor das flores do chapéu e cabelos castanhos, num rolo apertado. Devia ter sido boni­ta. Ainda era interessante, mas o seu rosto estava vincado pela idade. Não podia ter mais de quarenta anos.

-      Boa tarde! - comecei. - Deseja falar comigo?

-      E a menina Adele Phelim?

-      Sou.

-      Não me conhece, e vai ficar admirada, mas eu tinha que cá vir. E a única oportunidade. Penso nisto há muitos dias: vou ou não vou? Se não viesse, sempre havia de lasti­mar, embora venha quebrar uma promessa. Mas... se eu não viesse, nunca podia saber... e é doloroso para uma mulher, nunca ter a certeza. Ele é o único a saber, e não lhe dizia.

-      Ele?

-      E a Adele do Blair Kerrard, não é? Ele não lhe dizia nada a meu respeito... e eu nem sei como começar.

-      Ah! E a senhora...?

-      Sou. Ele disse-lhe?

-      Não. Não me falou em nada. Alguém me disse... Ainda bem que veio. Sente-se! Gostava tanto de a conhecer!

A visitante sorriu, um sorriso terno, que lhe tirou anos de cima.

-      Eu sabia... As coisas constam, por mais cuidado que haja. Vezes sem conta, pensava na menina, sobretudo desde que esteve doente, e vi que o Kerry a amava. Pensei que, se casassem, isto sempre ficava no meio dos dois. Se a pequena não sabe, quando ele se zangar (ele tem génio, como deve ter notado>, pode haver ocasiões que sinta receio. Não! Precisa saber. Então, resolvi vir.

-      Obrigada! Claro que gostava de saber. Diga-me tudo, se for possível!

-      Sem meias medidas! - sentou-se na cadeira de bra­ços em frente da minha. - Vou contar-lhe a história com­pleta, conforme posso. Não sei por onde hei-de começar... Pelo Jim, talvez...

-      Jim?

-      Sim, o meu marido. Eu estava no Corpo Feminino da Força Aérea, e ele era piloto. Era um rapaz alegre, e todas as raparigas gostavam dele. Teve imensas, mas veio a cair em mim. Creio que nesse tempo não era feia, mas não me envai­decia. O meu pai era notário e eu fui educada severamente. Nunca pensei senão em casar, quando me apaixonei pelo J im. Não podemos fugir ao Destino. E sabe o que foi a guerra... - mordeu os lábios. - Não pode saber; ainda não tinha nascido...

-      Os meus pais casaram em mil novecentos e trinta e oito. O pai era cadete da Marinha e a mãe tinha apenas dezassete anos. Os meus avós queriam que esperassem, mas depois de Munique, tudo parecia muito incerto. O meu pai convenceu-os e casou com dezanove anos. Foi como nós. Era­mos muito novos, mas ninguém queria esperar, e o Jim era piloto. Eu receava que o matassem. Casámos antes de ser mandado para França. Soube que ia ter um filho e saí da Força Aérea. Vim para casa e nasceu um rapaz, belo como o pai. Quando o Jim veio de licença, éramos felizes. Mas... não podia durar... essa felicidade.

-      Porquê?

Ela estremeceu.

-      Esta parte custa a contar, mas é preciso que compre­enda. A culpa não foi do Jim. Era bom rapaz e passou maus bocados, na Aviação. Foi bombardeado duas vezes. Uma, a primeira, teve a sorte de escapar, mas da outra, o aviao caiu. Foi quando começou a beber. A princípio não era mau, mas fazia coisas em casa, que o meu pai não admitia.

-      Calculo - disse com simpatia.

-      Fomos para outro lado. O meu pai foi morto num bombardeamento aéreo, quando estava de serviço. Ficou a minha mãe, eu e o bebé. Eu trabalhava na cantina e olhava pelo pequenito. Depois de o Jim vir de licença, fiquei grávi­da, outra vez, e foi quando a nossa casa se desbaratou. Uma noite, sete meses depois, ele bebeu e bateu-me. Não quis magoar-me, mas a criança nasceu antes de tempo, quase morta. Era fraca e precisava muitos cuidados, mas o pai não queria ver, e embirrava com o filho.

-      Deve ter sofrido muito!

-      Para saber o que passei, veja que estive doente e o médico aconselhou mudança de ares. Deixei as crianças com a minha mãe e fui para casa de uma tia, que dirigia um pequeno hotel na costa sul. Foi aí que conheci o Kerrv.

-      O Kerry?

-      Era como todos o tratavam. Estava no depósito de armamento. Era atencioso para mim, mas eu sabia que não o podia amar. Tirei a aliança e nunca lhe falei no Jim. Queria esquecer tudo. Tinha vinte e dois anos, marido e dois filhos, mas um marido bêbado. Segundo todos diziam, a guerra estava prestes a terminar, e eu não via futuro para nós. Não pensei o que se ia dar, dentro de pouco tempo. Quando percebi que o Kerry gostava de mim, não tive coragem de lhe dizer que era casada, não queria magoá-lo.

-      Ele não adivinhou?

-      Não, e eu não quis que a minha tia lhe dissesse. A minha mãe adoeceu; recebi um telegrama para regressar. Achei que a melhor maneira de terminar aquele idílio, era partir sem me despedir dele. Fiz a tia prometer que não lhe dava a minha morada.

Pensei que tinha sido cruel, e devia ter confessado ao Blair. Como se lesse no meu pensamento, a visitante disse, amargurada:

-      Fui cobarde, talvez por amar o Kerry. Era calmo, forte, e ninguém dizia que era valente. Eu estava larta do Jim, e gostava do Kerrv, por ser diferente.

-      Compreendo...

-      Não o esqueci, mas tinha tanto em que me ocupar, que não me sobrava tempo para devanejos. O Jim foi desmo­bilizado e começámos a fazer projectos, porém, cada vez be­bia mais, a ponto de ralhar com a minha pobre mãe e bater nas crianças. Uma noite, o Kerry apareceu.

-      Ah!

-      Apanhou a morada à minha tia, mas ignorava que eu era casada e tinha dois filhos. Era horrível. Vinha muito calmo; nunca me censurou. Foi o pior. Estava sentado a to­mar chá e a ajudar o Roy (o mais velho) a fazer construções. Eu devia tê-lo mandado sair, antes da chegada do Jim, mas a sua presença confortava-me, e tinha a certeza que nada dizia, nem à minha mãe, nem ao Jim.

-      Continue, por favor!

-      O Jim chegou com modos bruscos. Viu o Kerrv com maus olhos, mas não o mandou embora, e o pequeno afas­tou-se. A minha mãe foi deitar os miúdos; o meu marido começou logo a implicar comigo. Disse que eu ensinava os filhos a desprezarem o pai, por se embriagar. Perdeu a cabe­ça. Agarrou-me um braço e torceu-o, até me obrigar a gri­tar. Deu-me uma bofetada e o Kerrv, que gostava de mim, não pôde ficar indiferente. Levantou-se e disse ao meu ma­rido que lhe batesse, mas não me magoasse.

-      Sim?

As lágrimas corriam-lhe pelas faces, ao recordar a triste cena.

-      Eu estava louca. Parei. O Jim atirou-se ao Kerrv, dizendo que não precisava que o ensinasse a tratar a mulher e que o demónio era ele. Sairam da sala, lutando, e eu a cho­rar, implorava que parassem. O meu marido era mais alto e mais novo, e jogava o boxe. Vi o sangue escorrer da boca e do nariz do Kerry, mas não me mexi. Estavam junto à cons­trução do Roy e pedi que tomassem atenção à casinha do pequeno. O Jim olhou para baixo e, por mau, atirou com tudo. Foi o fim... Não sei o que fiz... Agarrei no vaso da aspidistra e atirei-lhe com ele.

-      A senhora? A senhora?

Ela sorriu.

-      Era o que lhe queria dizer: Não foi o Kerry, fui eu. Matei o Jim. Não podia falar... O abalo era tão forte, que fiz o que nunca tinha pensado fazer.

Após uma pausa, prosseguiu:

-      O Jim estava caído entre os fragmentos do vaso, que lhe tinha batido na cabeça. O Kerry inclinou-se sobre ele. Eu estava aterrada, com os nervos descontrolados. Comecei a gritar, e pedi ao Kerry que não me denunciasse, pois o meu marido estava morto. Mas eu não o quis matar!

-      Com certeza...

-      O Kerry fõi estupendo. Jurou nunca dizer e eu pro­meti o mesmo. Podíamos dizer que eles lutaram, e o Jim bateu no vaso, que lhe caiu em cima. O Kerrv foi telefonar para o médico - murmurou. - Nunca pensei que viesse a Polícia, nem que prendessem o Kerrv. Estava convencida que tomavam o caso por um acidente vulgar. Julguei não poder resistir, quando o Kerry foi levado para a prisão, a fim de aguardar julgamento.

-      Esteve preso?

-      Não teve quem o afiançasse. Os pais tinham morrido num bombardeamento aéreo, e não tinha quem ficasse por ele. Era muito, muito pior do que eu tinha imaginado. Co­meçaram a dizer que ele era meu amante e o meu marido teve ciúmes.

-      E era? - perguntei, por tudo querer saber.

-      Não, nunca foi! Não gostava dessa situação... nem eu. A minha tia foi chamada a depor e a minha pobre mãe também. Ambas juraram que, entre nós, apenas existia ami­zade. A mãe contou que o Jim estava embriagado e me quis bater. O médico foi notificado e explicou como se deu o nascimento do segundo bebé, e o estado em que me encon­trou. Acabaram por acreditar. Foi um longo pesadelo. A Polícia apanhou os cacos do vaso, e só descobriram as minhas impressões digitais e as da minha mãe. Portanto, o Kerry não lhe tinha tocado. Foi um rude golpe para a minha mãe. Estava envergonhada e, quando a interrogaram, acabou por cair no chão. Sofria do coração... Uma semana mais tarde, faleceu.

-      Tantos desgostos!

-      Um verdadeiro inferno, pior ainda para o Kerry -confessou, em voz sumida. - Arruinei-lhe a vida e nunca tive coragem de o resgatar. Quis casar comigo, mas não pude encarar tal decisão.

-      Porquê?

-      Por ser cobarde... Se ele fosse um homem vulgar, talvez eu tivesse anuído, mas sabia que haviam de o reconhe­cer e o povo começava a falar. E os meus filhos valiam mais para mim - disse francamente. - Pensei neles, ao irem para a escola, a crescerem, e ouvirem dizer que o padrasto lhes tinha morto o pai. Não podia... não podia consentir!

O Kerry era um homem que se podia governar, e eles... eram pequenos, não podia desampará-los.

-      Compreendo...

-      Acha que andei mal? Talvez a menina tivesse mais

coragem do que eu. Não é a mãe, não sabe que diferença faz

o     amor dos filhos. Quando tudo estava esquecido, mudei o

nome para Cornwoode, o apelido da minha tia. Ela vendeu

o     hotel e foi viver para o Pais de Gales, onde ninguém nos

conhecia. Pôs um negócio, uma hospedaria, e eu ajudava-a.

-      E o Blair?

-      Ficou sem dinheiro e sem emprego, até o seu pai o levar para a fábrica e lhe dar percentagem nos lucros.

Calou-se e limpou os olhos, com um lencinho bordado. Tremia, mesmo sem querer. Devia ser doloroso contar, a uma estranha, uma história tão patética. Tive dó dela. Como devia ser horrível viver atormentada por aquelas cenas lanci­nantes!

-      Vou mandar vir chá - disse eu.

-      Vai mandar vir chá? - sorriu, ao notar a diferença das nossas vidas. - E muito amável! Não comi nada no comboio. Estava tão nervosa!

-      Veio hoje?

-      Não. Já vim há seis dias, mas para que não reparas­sem e começassem a falar, fui a Londres. A tia adoeceu, com a tensão muito alta, e seguimos para Brístol. Ela não devia poder trabalhar mais, mas arranjei emprego num armazém e ela ficava sossegada em casa.

Quando a Harriet entrou com o chá, ela calou-se. Só depois de ela se retirar, continuou:

-      É tão diferente das fotografias! Não é tão alta, nem tão forte, como eu julgava. O cabelo curto também a deve modificar... O Kerry dizia que tinha um cabelo lindo, mas que lho cortaram, quando esteve doente.

-      Vê-o muitas vezes?

Corou, antes de responder.

-      Sim... algumas vezes, mas não consinto que vá lá a casa. Encontramo-nos, em qualquer lado, onde ninguém nos conheça. Só foi lá a casa, quando a menina estava no hospi­tal, porque os meus filhos estavam fora. Nesse dia é que descobri que a amava...

-      Só nesse dia?

-      Das outras vezes, quando nos encontrávamos, embora ele sempre falasse em si, e me mostrasse fotografias suas, o nosso assunto era, mais ou menos, a respeito dos pequenos. Não tinha pensado que o Kerry lhe dedicasse tanto amor!

-Estava eu no hospital?

-      Estava. Não me posso esquecer do dia da sua pri­meira operação. Ele passou toda a noite ao pé da menina; só saiu quando o mandaram embora. Foi lá a casa, desanimado, julgando que ficava cega, se não morresse. Estava apavorado! Muito mais afiito do que tinha estado no tribunal. Estou a ouvi-lo: «Ela não pode escapar, por não querer viver. Chama por mim, a pedir que a deixe.» Num caso desses, a minha resposta foi esta: «Talvez prefira morrer a ficar cega. Eu tam­bém preferia.» Então...

-      O que disse ele?

--    Que seria o seu guia...

-      Continue, por favor!

-      A resposta que me deu, foi: «Nunca digas isso, Mary! Eu velaria por ela. Sou mais velho quinze anos, tenho cara de demónio, e um passado com mancha, mas podia ser a luz dos seus olhos, uma voz nas trevas e uma mão para a guiar e proteger. A Adele havia de sentir que o meu amor a amparava, que a rodeava de carinhos e não a deixava ficar só.» Nesse momento, vi que a menina era o seu mundo.

-      Nunca me deu a entender - respondi, com os olhos marejados de lágrimas. - Nunca me disse nada. Nunca!

-      Era o que eu calculava, e não me saía do pensamento.

Então, comecei a encarar a situação. Ele vai envelhecendo e

se não aproveita agora, já não tem possibilidades de encon­trar outra linda jovem. Há anos e anos, que gosta desta, se a perde, não se conforma, nem amará outra. Não lhe pede para ser sua mulher, sem lhe falar em mim, mas não lhe vai contar como as coisas se passaram. Ela, se ouvir um breve resumo, é capaz de duvidar, e até de nem o poder encarar. Irei fazê-lo naufragar pela segunda vez?... Não devo. Foi o que me fez vir procurá-la.

-      Pode crer que lhe ficarei eternamente grata!

-      Acha que fiz bem?

-      Decerto. Como a senhora deve compreender, uma ra­pariga não pode evitar e... eu tinha ciúmes da senhora.

-      Ciúmes? - começou a rir. - Se o Kerry não fosse tão bom, nem podia olhar para mim. Coloquei-o mal... Apesar disso, sempre me tem enviado uma pensão. Sente-se culpado da morte do meu marido e entende que tem de reparar essa falta, conforme pode. Graças a essa mensalidade, os pequenos puderam estudar. O Roy está empregado numa companhia de aviação, e está bem. Deve casar para a semana, com uma bela rapariga. O mais novo, o Jim, é professor na Universidade de Brístol. Tudo devem ao Kerry, que nunca os tornou a ver.

-      Possivelmente, por recear que a senhora não goste.

-      Compreende, sabe melhor que ninguém como sou cobarde. Se me soubesse amada, talvez não fosse, mas ele nunca me teve amor verdadeiro; sobretudo desde que recusei casar, tudo morreu. Podia esquecer a decepção que lhe cau­sei, mas não podia amar uma mulher que se envergonhava que a vissem com ele.

Ela era honesta. Não podia zangar-me pelo seu procedi­mento e, no meu íntimo, lastimava o Blair. Apesar de ter sofrido por causa daquela mulher, ela nunca procurou ilibá­-lo dum crime que não cometeu, e considerava-o criminoso. Enquanto os filhos estavam ao abrigo das línguas do mundo,

o Blair passava a vida em perigo; se fosse reconhecido era apontado por assassino. Podia pagar inocentemente, por o David ter revelado o seu passado.

-      Sei que me deve desprezar, mas não sabe o que é ser alvo da maledicência pública. Todos os nossos amigos e vizi­178

nhos acreditaram que eu tinha relações com o Kerry, porque nunca me viam andar com os miúdos, e aplaudiam essa mi­nha atitude. Sabiam como os meus pais tinham sido ínte­gros, e acusavam-me de ter morto a minha pobre mãe.

-      Deve ter sido muito doloroso, mas o Biair ainda deve ter sofrido mais, sem qualquer compensaçao.

-      Nunca o amei assim, nunca amei ninguém, como o Kerry ama a menina. Disse-lhe a verdade, o que ninguém mais sabe. Quando sair com ele, evite que o reconheçam. O povo nunca esquece casos como o dele.

Porque disse o de/e e não o nosso? Mordi o lábio inferior, para ocultar a indignação. Aquela mulher devia ter sido uma linda rapariga, engraçada, meiga, mas não para o Blair se sacrificar por ela, de tal forma.

-      Hei-de evitar o mais possível - disse por dizer. -Gostei de saber como as coisas se tinham passado mas, mesmo que não soubesse, não me fazia diferença.

-      Não? - sorriu e estremeceu. - Deve ser por isso que o Blair gosta tanto de si. Casa com ele?

-      Ainda não me pediu...

-      Há-de pedir, quando se vir livre de mim. Ainda Ignora...

-      O quê?

-      Quis dizer-lhe na semana passada, mas faltou-me a coragem. Não fazia ideia de vir aqui hoje, mas constou-me que ele tinha ido tratar da exposição e pus-me a caminho. Quando tudo estiver concluído, hei-de escrever-lhe.

-Ah!...

-      Tenciono casar no mesmo dia que o meu filho. Veja a menina como as coisas acontecem! Durante o período do Na-tal, estive empregada num armazém, na secção de artigos para homem. Um belo dia, um cavalheiro que andava a fazer compras, aproxima-se do balcão, olha para mim, pára e ex-clama: «Não és a Mary?» Reconheci-o imediatamente. Nos nossos tempos de juventude, morávamos ao lado um do ou­tro. «Olá, BilI!» foi a minha resposta espontãnea.

-      Tem graça!

-      A família dele foi para a Austrália, antes de rebentar a guerra. Agora, o BilI é sócio de uma firma comercial e veio a Brístol em viagem de negócios. Está muito bem. Começá­mos a conversar, palavra puxa palavra, vim a saber que tinha casado e enviuvado, e vive sozinho. Ouviu falar na morte do meu marido, mas acha que já é tempo de esquecer e recome­çar a vida. Pela Páscoa, deu-me este anel. Espero que seja­mos felizes. Depois de morarmos em Brístol, a minha tia faleceu; portanto já nada me prende aqui.

-      Em casando, vai para a Austrália?

-      Contamos embarcar no dia seguinte ao casamento.

É o que está determinado. Devia dizer ao Kerry, mas não

posso - confessou - nem antes, nem talvez depois tenha

coragem para o fazêr. Sou cobarde, por me saber amada.

O    BilI acha que preciso casar, para ter quem olhe por mim.

-      Desejo-lhe as maiores felicidades! Na minha opinião, a senhora tinha como dever comunicar ao Blair a sua in­tenção.

O    céu escureceu. De repente, a chuva começou a tambo­rilar nos vidros das janelas. A minha visitante tremia. Fui ligar o calorífero eléctrico. Naquela saleta há sempre frio, mas não quis levá-la para a sala, onde a Deidre, inevitavel­mente, ia ter connosco.

-      O Blair não deve ter voltado da exposição, mas não pode tardar. Vá lá a casa, e ele ou eu levamo-la à estação, se quiser partir esta noite.

-      Quero. Preciso apanhar o comboio da noite. O BilI vai lá almoçar, amarihã. Alugo um tíixi ao pé da estação e ele vai esperar-me à vila. Devo ir já. Não pode dizer ao Blair?

-      Não. A senhora é que deve dizer-lhe.

-      Diga Mary, por favor!

-      O Blair não tratava por Leila?

-      Não. A minha mãe preferia Leila, mas o meu pai dizia que era um nome pagão, e puseram-me Marv. Depois do julgamento, adoptei Leila, excepto em documentos ofi­ciais. Mary é um nome muito vulgar, não acha? O apelido do BilI é Smith. Mary Smith não calha mal. Eu também      quis que o Kerry mudasse de nome, mas não o convenci.

-      Estimo ver que encara assim o caso - sorriu. -Nunca esperei...

          Pouco depois, tornou a dizer que precisava retirar-se.

       Percebi que estava ansiosa por se escapar do Blair. Receava

       que ele se zangasse por ter cá vindo. A compaixão sobrepôs­

       -se à minha irritação. Ele deve ter passado a vida a temer as pessoas e os ditos desagradáveis. Sofria pela sua própria fra­queza. Se tivesse tido coragem de dizer ao Blair que era casa­ da, ele nunca tinha ido lá a casa procurá-la. Levei-a ao primeiro andar, para se compor antes de sair.

Ficou encantada com o meu quarto. A casa excedia todas as suas expectativas.

Como ainda continuava a chover, ofereci-me para a levar no carro, até à vila, mas não consentiu.

-      Vai ficar toda molhada, e estraga o seu lindo chapéu! teimei, para a convencer. - E vem em corpo...

-      Não tem importância.

-      Arrisca-se a apanhar uma constipação, ou um resfria­mento. Vou-lhe emprestar o meu impermeável de nylon. Somos quase da mesma altura; deve estar-lhe bom.

Fui buscá-lo ao guarda-vestidos. Era muito vistoso.

O    Gastão dizia que parecia um lírio. Ficava bem à Mary e tinha capuz para lhe proteger o chapéu.

-      - É lindo! - exclamava, enquanto apertava o cinto.

Nunca me atrevi a usar cores vistosas, por darem mais na vista. Passado um ano ou dois, as pessoas são logo conhe­cidas.

Mais uma vez notei como o seu meio de vida era dife­rente do meu. Envergonhei-me da minha forma de sentir. Nunca me preocupei com o que os outros pudessem pensar. Impulsivamente, ofereci-lho.

-      Aceite-o como recordação minha!

-      Muito obrigada! Fico satisfeita, por ver que não me guarda rancor.

-      Mas... como era possível?

Vesti um impermeável e acompanhei-a à estrada. Aí, ela voltou-se e deu-me um beijo.

-      Boa tarde, e muito obrigada! Desejo que tudo lhe corra como merece!

-      Igualmente!

Começou a subir depressa, ansiosa por se escapar. Parei a vê-la. Ã esquina, voltou-se e disse-me adeus. Ouvi a buzina dum carro, que se aproximava. Por ela, desejei que não fosse o Blair, e logo vi que era o Gastão.

Como sempre, vinha a grande velocidade. De repente, perdeu a mão; ainda tocou numa fraca figura, de impermeá­vel vistoso. Não pude gritar, mas a Sue deu um grito.

Por instantes, vi a Mary projectada, mas o grito da Sue foi a tempo de evitar a catástrofe. Obrigou-o a guinar para o banco de areia. O carro andava ás voltas, como se tivessem falhado os travões.

Fiquei apavorada. Como por milagre, a Mary estava caí­da, mas sem o mais pequeno ferimento. Levantou-se, sem ajuda, e seguiu. Respirei aliviada, mas numa espécie de souço. Eu não tinha provas... mas ainda agora posso afir­mar...

Fiquei parada, como louca. O Gastão seguia para o areal, voltava o carro e eu estava junto à curva. Voei para os de­graus, quando seguia atrás de mim. Deu um balanço para cima e fugi para o lado. Ele estava pálido e os olhos tinham um brilho como a água, quando reflecte o sol.

-      Valha-te Deus! - gritou como se eu fosse um fantas­ma. - Não te aconteceu nada? Julguei que te tinha morto, e afinal não eras tu.

-      Não era eu, mas era o meu impermeável.

-      Aquele espectro meteu-me um susto! O que fazia aquela parvalhona, no meio da estrada?

Ela não estava no meio da estrada, mas não o contra­disse. A Susan estava assustadíssima.

-      Minha querida! A ver que o Gastão a esmagava, e sem poder parar!...

Aparentando indiferença, perguntei:

-      Afinal, o que foi?

-      Os travões não obedeceram, justamente quando ia fazer a mudança. Por pouco que não te matei... ou à tua amiga.

-      Como não querias matar-me - proferi a frase, sem conhecer a minha voz; parecia sair de outra pessoa mais forte e mais velha - não sobrevivias, para explicar o facto, na ocasião do inquérito.

-      O que estás para aí a dizer?

-      Estava a pensar que o Biair te fazia em estilhas

e atirava os despojos para as rochas, para as aves marinhas os

devorarem! - Falei com uma aspereza de que não me jul­gava capaz. - Mais um misterioso desastre, para coniundir

a Justiça.

Ele fechou os olhos.

-      Pensas que ligavam alguma importância?

Os nossos olhares encontraram-se, como duas espadas afiadas. Aquele ambiente não se podia prolongar. A Sue pôs-

-me um braço em volta do pescoço, dizendo com os seus modos profissionais:

-      Estão desnorteados, mas, felizmente, não há desastres a lamentar. Foi só o susto.

-      Felizmente! - repetiu o Gastão e sorriu-me. - Po­bre criança! Tem os nervos arrasados. Realmente, concordo que não deixes a Sue ir-se embora, por enquanto. Julguei que ias ter um colapso.

Estava tão desesperada, que não podia falar. Era um ho­mem manhoso e não tinha coração. Não havia possibilidade de competir com ele. Ia jurar que guinou o carro, de propó­sito, em direcção ao impermeável lilás... mas não posso pro­var. Até a Sue se convenceu que os travões não tinham obe­decido.

O    seu abr~o reconfortou-me.

-      Quer que fique mais uma semana? A enfermeira-chefe concorda, se lhe pedir. Na verdade, ainda não está completa­mente bem. Nisso, o Gastão tem razão. Está muito pálida e trémula.

-      Foi um grande susto.

-      Pois foi... Vamos para casa, e arranjo-lhe um cal­mante. Quer que telefone à enfermeira-chefe?

-      Se quiser... também acho melhor.

Levou-me para a casa de jantar e arranjou uma mistura de soda com brande. Eu sorria, por a minha enfermeira não poder pôr na ideia o que se tinha passado. Lembrava-me da pobre Mary, tão satisfeita com o meu presente, por ver que eu não ficava mal impressionada com ela. Se morresse, sem­pre havia de me considerar culpada da sua morte.

A história teria um fim fantástico e trágico. A Leila, com a mania da perseguição, não avaliava como ficava prote­gida com o nome de Mary Smith, protecção que há tantos anos ambicionava. E eu roubava-lhe essa paz tão desejada! Roubava-lhe uma nova vida, noutra região! Depois da sua vinda aqui - o melhor acto da sua vida - era uma cruel ironia do Destino.

 

Da janela do quarto, a Deidre deu pela saída da Mary. Quando desci para jantar, estava na sala com o primo, fa­lando a propósito da sua loucura ao volante.

-      Algum dia partes a cabeça ou fazes partir aos outros

dizia ela. - Pelo impermeável julguei que era a Adele. Até fiquei doente.

-      Calculo - respondeu com rancor. - Doente com o desapontamento!

-      Gastão! É de mais! A Adele é filha do David. Não deves esquecer!

-      Agora és amiga dela? Experimenta outra vez! - tro­çava. - Sempre tiveste ciúmes dela!

-      Quando o David era vivo, sim. Agora, é diferente. É a única pessoa que pode gostar do menino. Se me aconte­cer alguma coisa, ela há-de estimá-lo, em memória do David.

-      Achas?

-      Desejo que não vás arranjar algum mal-entendido en­tre nós. Tomara que te vás embora! - exclamou num tom estranho. - Os meus nervos não aguentam mais.

-      Precisas tomar uma bebida alcoólica. Não vás agora perder a cabeça!

-      Não tenho esse costume. Não podes compreender isso? O David não existe, mas o Blair está cá. Pensas que te deixa apanha a Adele?

-      Não me pode impedir - respondeu com frieza.

Não fiz ideia de escutar, mas fiquei petrificada. A Dei­dre ergueu a cabeça e vi-lhe o desespero estampado no rosto. Deu por mim, e sorriu.

-      Sentes-te melhor, querida? A Susan disse que estavas transtornada. Também eu. Realmente, o Gastão guia num excesso de velocidade que é uma ameaça pública.

-      Decerto. Entende que pode esmagar todos, até que a Nemésis lhe deite a mão.

- Não contes com isso! Nasci sob uma boa estrela -disse ele, oferecendo-me um calice de licor - e tu também.

-      E possível.

-      Quem era a visitante? A Harriet não a conhecia. Como a mandaste entrar para a saleta, calculei que vinha fazer algum peditório e não quis interrompê-las - observou a Deidre, aborrecida. - Demorou-se tanto!

-      Ninguém a conhecia aqui - respondi um tanto eva-siva.

A chegada da Susan foi providencial. Fiquei encantada com a ideia de a ter comigo mais uma semana. Felizmente ela estava natural, livre de qualquer influência oculta, em­bora fosse atraida pelo poder de encanto do Gastão. Fiquei satisfeita, na esperança que a vida entrasse na normalidade.

A noite passou-se sem mais aborrecimentos. Voltou o domingo... um domingo que hei-de recordar toda a minha vida.

Como habitualmente, eu, a Sue e a Deidre fomos à igreja paroquial, no carrinho pequeno. Enquanto cantavam o pri­meiro hino, olhei para o lugar do BIair e vi um estranho, em vez dele. Olhei fixamente e o seu habitual sorriso respondeu-

-me, o que me fez respirar com dificuldade. A barba felpuda tinha desaparecido. Por momentos, não o tinha conhecido, sem aquela crina hirsuta. Parecia diferente e muito mais jo­vem.

Era dificil resistir à tentação de voltar a cabeça e olhar para tras. Com a barba, o queixo era comprido e dava-lhe um aspecto de gnomo. Assim, o rosto era mais quadrado e a testa alta sobressaía. Conhecia-se a linha dos lábios, firmes, nem muito grossos, nem muito finos.

Quando me cruzei com ele, à porta, depois do culto, assaltou-me uma absurda timidez. Apenas gaguejei:

 

A deusa da Vingança e da Justiça, entre os Gregos. (N. T.)

 

-      Cortaste a barba. Porquê? Sempre te conheci, com ela...

Pôs a mão no meu braço e guiou-me para a estreita vereda.

-      O tempo das charadas e dos contos infantis acabou -disse.

-      O que quer isto dizer?

-      Na realidade, o David foi sempre um garoto. Gostava de viver num mundo fantástico. Tu eras uma boneca cara, bela, que falava. A Bronwen, a cabrinha, e eu, o velho urso. A Deidre, por vezes, era um coelhinho, que afagava e punha ao colo. Ele era o eterno Príncipe Encantado, à volta de quem todos giravam. - Parou. - Como em geral era afec­tuoso, brincávamos com ele. Tudo acabou. Tu usas óculos e eu cortei a barba. Achas bem?

-      Acho... mas... fiquei admirada. Pareces muito mais novo.

-      Não sou tão velho como isso   replicou enfada-do. - Tenho trinta e oito.

-      Afinal, julgava-te mais velho que o David, e não és.

-      Não... que mais?

Recordava as palavras da Mary, ao dizer que ele tinha mais quinze anos do que eu. Ainda não era de meia-idade, poucos anos tinha a mais que o Rodney.

-      Não é nada...

É natural que um dia, mais tarde, lhe conte a visita da Mary, ou ela lhe escreva, nesse sentido. Preferia não ter de revelar as suas confidências. Ela é que devia dizer-lhe. Toda-via, tudo ficava encerrado no meu coração. Seria o meu único segredo, para o Blair.

-      Quiseste pregar-nos uma partida - acusei-o a rir.

-      Não podia fazer de outro modo. Qualquer dia, expli­co-te.

Agora estava livre, embora ainda não soubesse, pensava eu, cheia de alegria. Estava livre desse cativeiro voluntário (que muita gente devia considerar desnecessário) por ter um carácter nobre. Mais dia, menos dia, viria a saber que a Mary casava e partia para a Austrália. Talvez escrevesse, antes da partida, a despedir-se, já que não teve coragem de o fazer pessoalmente.

A Deidre e a Sue apareceram e fomos para o carro. A Deidre, maliciosa, comentou:

-      O Blair progride, sob todos os pontos de vista. Tirou a barba e o bigode... Fazia pena esconder o queixo, que o torna mais atraente!

-      Muito obrigado! - respondeu ao acaso.

-      Vais passear? Se não vais para longe, entra! - ofere­ci, espontânea, e ele sentou-se ao meu lado.

-      Vá e entre, para bebermos e festejar a queda da barba! - disse a Deidre, por graça. - Porque não fica para almoçar? Varia das conservas...

Admirei-me, mas insisti para que aceitasse. Começava a descobrir que a Deidre, por razões que só ela conhecia, es­tava a construir uma barreira entre mim e o Gastão. Aconse­lhava-me a namorar o Rodney. Não deu uma palavra ao ver o primo cortejar a Sue, e agora puxava pelo Blair.

Ligava com o que tinha ouvido na noite anterior. Ela temia o primo; temia o que ele pudesse fazer-me ou fazer-

-lhe. Enquanto não o visse pelas costas, não descansava.

Percebia (quantas mulheres adivinham essas coisas!) que eu já não cedia às palavrinhas doces do Gastão, e receava a sua atitude. Tinha dito a verdade, quando afirmou contar comigo. Tinha mudado, desde que conversámos a respeito do nascimento do filho.

O    convite foi espontâneo, mas esse gesto de aparente insignificância, veio a tornar-se importante. Quando subia a escada, vi o CoIm parado a conversar ou a discutir com o Gastão. Aquele estava vermelho e os olhos deste faiscavam.

Quando passei, o CoIm desceu, com aspecto feroz.

-      Menina! Encontrei aquilo. Pode ficar certa que não o tinha guardado.

-      O quê, CoIm? - perguntei, desorientada.

-      O equipamento do patrão, a garrafa e tudo. Fui bus­car uma corda à fábrica, mas...

-      Onde está?

-      E como digo à menina. A maré deve tê-lo levado e voltou para as rochas, no sítio mais íundo. Há-de lá estar escondido há meses, mas esta semana começaram as marés da Primavera... - explicou. - Tentei pescá-lo, mas está muito preso.

-      Como podemos apanhá-lo?

-      Com o bote, não é dificil. Deitam-lhe uma espia e conseguem trazê-lo à superficie. Não acha, senhor Kerrard?

-      Acho - respondeu o Blair, cautelosamente. - Em que sítio está?

-      Quase ao fim do recife, onde as rochas formam uma caverna. A maré deve tê-lo trazido, esta tarde. O senhor pode observar facilmente. O senhor Loire não queria que dis­sesse ao senhor, mas ninguém pode dizer que eu fico com o que não me pertence.

-      Acredito, CoIm, e agradeço-te   íilei maquinalmente.

-      Que o Senhor lhe pague, menina!

Afastou-se a passos largos, com os cabelos negros a bri­lhar ao sol. O Blair pôs a mão no meu ombro, com firmeza, e perguntou:

-      Queres guardar rudo, Adele?

-      Quero e devo. Devo saber...

-      Para quê? Deixa ficar onde está. Não serve para na­da... Nem quero olhar para isso - exclamou a Deidre, com voz esquisita. - Que coisa horrível!

-      Hei-de saber. O compensador e a botija hão-de ser examinados.

-      Para quê? - perguntou o Gastão. - Está tudo es­tragado. É um disparate, pescar esses destroços. Deita-os ao mar!

-      Não. Não foi o mar que matou o meu pai. Alguém mexeu nas torneiras - disse lentamente.

O    Gastão sorriu para mim e olhou de revés para o BIair.

- Veja se o seu sombrio passado consegue descobrir.

Não pode persuadir a Adele a desistir?

- Acho uma ideia sensata e estou pronto a colaborar, se a Adele quiser - respondeu em tom glacial.

- Isso só da sua cabeça! - olhou fixamente para o Blair. - Os fungos já foram enviados? Que tal, essa grande ideia? Foram solicitados?

- E possível   replicou, no mesmo tom.

Entrámos na sala, tomámos aperitivos e fomos almoçar.

O    almoço era magnífico, mas só a Sue mostrou apreciá-lo.

Eu sentia um nó na garganta; estava abatida e com frio,

devido a tantas apreensões. A Deidre, pálida, pouco falava.

O    Blair estava calmo. Só o Gastão se mostrava espirituoso. Depois do almoço, ele e eu vestimos os fatos de banho.

O    Blair foi a casa, vestir o dele, e depois buscar o barco. Todos queriam convencer-me a ficar na praia, mas eu tinha resolvido ir. O barco era a motor e não levava mais de três pessoas. A Sue teve de ficar com a Deidre, ho areal.

Antes de deitar o barco ao mar, o Blair ainda teimou para eu ficar.

- Não! - exclamei obstinadamente. - Posso tomar conta do barco, enquanto vocês tratam de içar o equipamen­to. Vamos! Não se pode perder tempo. A maré não tarda a encher!

Não é muito fácil lançar um barco à água, no nosso mar, por isso o David, a maior parte das vezes atirava-se das ro­chas e mergulhava. Servia-se do barco para pescar, e eu sabia lidar com ele. Por sorte, com a maré baixa, as ondas eram menos alterosas. O Blair dirigia o barco. De repente, o Cas­tão voltou-se para mim.

Que ridículo! De fato de banho e óculos! Vale mais tirá-los, antes que os deixes cair à água!

- Não. Quero ver o que faço. Não me apetece ir parar acima das rochas. Estendem-se para além do fim do recife.

Contornámos o promontório e, cautelosamente, ladeei o recife. Após uma ou duas tentativas, descobrimos o local descrito pelo CoIm. A água estava límpida. Espreitámos para o fundo, visível pelo lento movimento da maré. Puxei o barco para trás. A água tinha bastante altura, mais do que primeiro parecia. O Blair mergulhou e esperei, com o cora­ção a bater com mais força que o motor.

Voltou à superfície, a deitar água pela boca.

-      Está tudo preso. O Coim tem razão. Só prendendo-

-lhe uma espia e içando.

-      Prende-se na fateixa e, com o cabo com que se puxa o barco, pode-se içar. Experimente!

O    Blair mergulhou de novo e o Gastão ordenou:

-      Aguenta o barco, pequena!

Olhei de relance para ele, quando puxava o cabo. Repa­rei no brilho estranho dos seus olhos. Não era o cabo que ele segurava. Era o grampo, que o pai usava para a pesca. Ati­rei-me a ele, agarrei-lhe o braço direito, e senti o grampo espetar-se na minha perna. Lutei desesperadamente, en­quanto o barco, sem governo, fazia bordos.

-      O Blair, não! - gritei. - Não hás-de matar tam­bém o Blair! Es um demónio, um homem sem coração, um criminoso!

Era sinistro o ruído do barco a bater nos rochedos, quando a voz do Blair, rude e imperiosa, se ouviu:

-      Deixa, Adele! Salta para as rochas!

Nunca soube o que fiz, mas, num ápice, vi-me dentro de água, a álundar-me. Ouvia o roncar do motor... e tive a im­pressão de que o Gastão vinha com o barco para cima de nós.

Nesse instante, senti as mãos do Blair, que me agarra­vam, mas não aquelas mãos que da outra vez me atiraram para as rochas. Eram as mãos fortes do Blair, cujo contacto conhecia desde criança. Trouxe-me à superfície e, cautelosa­mente, largou-me nas rochas à flor da água.

Eu piscava os olhos, cheios de água salgada, mas conse­gui ver o barco aos balanços até ao fim do recife, e o Gastão com aspecto furioso, agarrado ao leme.

Fechei os olhos e perdi os sentidos, embora não por com­pleto, porque como num sonho, vi o Blair ajoelhado ao meu lado; em seguida levou-me nos braços. Pela primeira vez na minha vida, apreciei aquele estado de semi-inconsciencia.

Depois, ouvi-o naquele tom rouco, murmurar:

-      Adele! Meu amor!... Minha querida! Sentes-te bem?

-      Sim, agora sinto - respondi, erguendo a cabeça. -Depois do que disseste, não me podes deixar!

-      A tua perna... - disse com interesse e pesar.

-      Não são carinhos sem sentido, pois não?

-      Estás ainda desorientada. Agarra-te a mim!

-      Sim, para sempre. Caso contigo, quando quiseres!

Apoiei-me ao seu ombro; pegou-me ao colo, como se levasse uma criança por cima das rochas.

-      Não percebi o que disseste. Há muita coisa que ignoras.

-      Sei o que importa saber. Não te preocupes, Urso que­rido! Não penses que ligo importância ás más-línguas, ou que receio que me vejam contigo. Não tenho medo de nada. Acabaram-se os pesadelos, meus e teus.

Senti os seus lábios no meu pescoço e, imediatamente, vi a Susan, que se dirigia para nós.

-      O que se passou? O que aconteceu? - perguntou ansiosa. - Ah! O que tem na perna?

-      Arranje alguma coisa em que a embrulhe! Há um casaco, na casa onde se guarda o barco, e o necessário para os primeiros socorros - disse o Blair.

Mais uma vez estava estendida na areia, junto aos de­graus das rochas, e o Blair a tratar-me a ferida. O golpe era profundo, mas eu via a maneira como me tratava e descobria o seu interesse por mim. Sentia-me abatida, coxeava um pouco, mas estava consciente, embora não pudesse dizer como tinha começado a tragédia, pois teve princípio e fim àsombra dos rochedos.

Vesti o casaco do pai e olhei para a Deidre que, de mãos nos olhos, fixava o mar. Vi-a estremecer, caminhar atordoa-da, e vir ter connosco.

- Que ferimento horrível! Precisa levar pontos... Vou telefonar para o médico.

Subiu a escada, sem olhar para trás.

- Vá com a Deidre, Susan! Eu levo a Adele.

 

Naquela noite, reinava o silêncio no Solar da Falésia. Não uma fatal quietação, mas um ambiente tranquilo. A Deidre estava pálida e tinha olhos de choro, mas o seu olhar era ansioso.

Depois de o médico sair, a Susan chorou como uma criança. Ainda tinha os olhos vermelhos. Estava encolhida numa das cadeiras de braços, com aspecto de ter despertado de um mau sonho. Eu não chorava, já não tinha lágrimas. Tinha-me sentado no sofá, ao lado do Blair que, embora não me tocasse, estava atento ao meu menor movimento.

A Deidre foi servir-nos o café.

-      O Gastão não volta mais. Não rem coragem! - ex-clamou subitamente.

-      Não. Matou o David e sabe que não ignoramos -respondi calma e deliberadamente. Ninguém tinha tocado no assunto, mas era preciso falar nele.

mos É daqueles casos que nos faz cobardes, por não poder-apresentar provas. A botija estava cheia de água e os

tubos tinham desaparecido - acrescentou o Blair arre­liado. - Ele deve ter perdido a cabeça.

-      Também te queria matar - observei.

-      Eu estava sempre à espera disso, eis porque não que­ria que nos acompanhasses. Depois do David, o alvo era eu evidentemente. Procurou afastar-te de mim, com aquela par­tida dos chocolates. Viu frustrada a sua entrada de Romeu, pois negaste-te a cair-lhe nos braços. Não ligaste impor­tância, quando ele andava atrás da Susan, para te fazer ciú­mes. Adivinhava que o verdadeiro obstáculo aos seus planos, era eu.

-      Não creio... não posso acreditar - murmurava a Sue, penalizada. - O senhor está enganado nas suas conclusões. O Gastão estava apaixonado por mim. Sei muito bem, e não posso ouvir falar assim.

Agora não era a enfermeira profissional e competente. Era uma rapariga que amava, que amava e estava iludida. Levantou-se e foi para o quarto. Encolheu-se na cama, e cho­rou mais uma vez, como eu tinha chorado alguns meses atrás. Tive dó dela. Era romântica, boa e sensível, contudo, havia de acabar por ver o erro. Felizmente, o seu trabalho prestava-se para a ajudar a esquecer, e tinha o Rodney para a consolar.

A Deidre moveu-se e olhou fixamente para mim.

- O Gastão não admitia que o contrariassem. Quando o censurava, tinha tanto medo dele!...

- Bem sei - respondi imediatamente. - Se ficasse livre de mim, voltava-se para si.

A Deidre estremeceu.

- Ele queria esta casa e a fábrica. Desde o início, teve inveja do David, uma coisa insensata. O que esperava era ser rei e senhor de tudo. Era um pensamento que o obcecava. Quando o David se zangou e o mandou embora, nunca pen­sei que se conformasse. Eu não devia ter consentido que ele voltasse, depois da morte do meu marido. Foi o meu erro.

- Ninguém é responsável pelos actos dos outros - disse o Blair, amável. - Não podia prever os seus intentos malé­volos.

-      Tinha medo daquele demónio. Tinha-o namorado, há uns anos, e subjugava-me. Ameaçava contar ao David, e eu não queria que ele soubesse. Podia pensar que o iludia, para casar comigo, e eu gostava dele apaixonadamente.

-      Não pense nisso! O David foi feliz consigo - afir­mel.

Puxou os cabelos para trás, distraidamente.

-      Não sabes nada. Quando o David pôs o Gastão na rua, este ficou furioso, pronto a vingar-se. Disse ao David que o filho não era dele, mas sim o seu próprio filho.

-      Oh! - gritei aflita. - Não!

-      Era falso. Depois que casei, não olhei para mais nenhum homem, nem mesmo para o Gastão. Talvez, se tivesse tido tempo, conseguisse convencer o David da verdade. Não me perdoou e mandou-me sair com o meu amante!

-      Oh, Deidre! Que horror!

-      Suponho que o Gastão ficou aterrado. Não queria viver comigo, mas... matou o David... Ninguém podia adi­vinhar o que se tinha passado, nem eu podia prever... Jul­guei que o David não tivesse tido cuidado. Como se tinha zangado contigo e comigo, podia estar excitado... Nunca suspeitei, senão depois de voltares para casa. Na primeira noite... como disse o Biair, tentou entrar pela varanda, como um Romeu apaixonado, mas não pensei que te queria fazer mal.

Deve ter receado que eu o reconhecesse, ao ver a som­bra reflectida na água, quando me separou do meu pai. Teve a sorte de o mar levar o pai para longe e não previa que eu o fosse buscar. Atirou-me para as rochas, calculando que para ali morria. Se não morri, foi pela chegada do Blair.

Esquece essas coisas! Lembra-te que acabaram os pe­sadelos. Esquece tudo o que passou... e a Deidre também

aconselhou o Blair.

Obrigada!   disse ela calmamente.   Parece-me ,que me vou deitar. Estou fatigada...

Vá e não se atormente, querida Deidre! O David deve ter acreditado no que lhe disse. Ninguém pode saber...

Levantou-se devagar, e veio dar-me um beijo. Com pe­sar, disse:

Obrigada! Obrigada por teres feito o que nunca fiz.

Vi-lhe lágrimas nos olhos, quando se voltou. Devia cho­rar, ao recordar o David, mas quando acordasse, pensava no filho; era uma consolação e um conforto moral.

Quantas lágrimas pelo David... e pelo Gastão! Era irri­sório pensar que, pelo Biair, poucas tinha derramado. Era um homem diferente. Os outros obrigavam-nos a chorar; este afastava-nos as lágrimas.

Mais tarde, quando seguíamos juntos para cima, tive vontade de lhe dizer isso mesmo. A Deidre pediu-lhe para ficar cá de noite, e levei-o para o meu antigo quarto. Abri as janelas e fui à varanda. A noite estava clara e estrelada.

O    Blair veio para o meu lado e colocou um braço nos meus ombros, para me proteger. Sentia-se uma leve brisa e as on­das batiam nas rochas.

-      Não é preciso trancar as janelas, esta noite, pois não?

-      Aquele doido deve andar com o barco por cima das rochas. Já deve estar esburacado.

- É a Nemésis que chega - disse indiferente.

Os destroços do barco foram parar ao Lizatd, alguns dias depois, mas ninguém mais viu o Gastão, nem ouviu falar nele. A fada voltou-se contra ele.

-      Não penses nisso! - repetiu o Biair.

-      Mas gostava que soubesses uma coisa. Lembras-te da­quela fotografia que ele me tirou, com o vestido azul-pavão?

-      Se me lembro! Tenho uma cópia ao lado da cama.

-      O que talvez não saibas, é o que me fazia sorrir. Não era para o Gastão, que eu sorria, era para ti. Quando apare­ceste e censuraste a pose, descobri que te amava. Por isso sorria, a sonhar. Foi quando soube...

-      Posso acreditar?

-      Podes. Eu adorava o meu pai, julguei adorar o Gas­tão, mas, sempre, cada vez mais, me sentia atraida para ti. Já em pequena, quando tinha um desgosto ou sofria, não corria para o pai, corria para ti. Sabia que quando me cingias nos braços, nada tinha a temer.

-      Adele! - puxou-me para si. - Há coisas que não sabes.

-      Não pretendo saber senão que amo e sou amada. Deixa o resto na sombra, a que pertence. Só temos uma coisa a fazer.

-      Qual é?

Afastei-me dele. Tirei uma folha de papel, que tinha encontrado na algibeira do casaco do pai. Tinha-a lido, sem saber o que havia de fazer. Sabia agora.

A Susan e o Gastão procuravam um documento, que não passava de uma simples folha de papel, embora legalizada e assinada com testemunhas. Era cruel para a Deidre e para o filho.

                  Faço o que o David faria, se fosse vivo. E a última coisa que posso fazer por ele   respondi.

                 Rasguei o papel em mii pedaços, iui à varanda e deitei­-os fora. O vento levou-os para longe, muito para além das rochas alcantiladas. Perderam-se no mar.

                - Adeus, David!   murmurei. Vim para dentro e en­contrei paz e conforto nos braços do Blair.

 

                                                                                Theresa Charles  

 

                      

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