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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O TEMPO DOS DUENDES / Clifford D. Simak
O TEMPO DOS DUENDES / Clifford D. Simak

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O TEMPO DOS DUENDES

 

Inspector Dayton estava sentado, solidamente colocado atrás da secretária, a aguardar. Era um homem ossudo, com um rosto que parecia ter sido talhado por um machado sem gume num pedaço de madeira nodosa. Os seus olhos eram pontas de pederneira e por vezes pareciam refulgir, como se ele estivesse furioso e perturbado. Mas um homem daqueles, como Peter Maxwell bem sabia, nunca seria capaz de ceder perante qualquer espécie de cólera. Havia, atrás dessa fúria, uma qualidade de buldogue que continuaria a cismar, sem ser perturbada.

E essa era exactamente a situação que Maxwell desejara que não surgisse. No entanto, como era evidente, as suas esperanças haviam sido excessivas. Sabia, sem dúvida, que o facto de não ter podido chegar ao seu devido destino, cerca de seis semanas antes, devia ter criado alguma consternação na Terra; o pensamento de que talvez pudesse voltar a casa sem ser notado não fora realista. E agora ali estava ele, olhando o homem que se encontrava atrás da secretária. Tinha de suportar Isso com calma.

Disse ao homem:

- Creio que não compreendo muito bem a razão por que o meu regresso à Terra interessa à Segurança. Chamo-me Peter Maxwell e sou membro do Colégio de Fenómenos Sobrenaturais, na Universidade de Wiskonsin. Viu os meus documentos...

- Sei muito bem quem é - respondeu Drayton. Surpreendido, talvez, mas Inteiramente satisfeito. O que me preocupa é outra coisa. Professor Maxwell, pode dizer-me exactamente onde esteve ?

- Não posso dizer-lhe muita coisa -respondeu Peter Maxwell. -Estive num planeta, mas não sei o seu nome nem as suas coordenadas. Tanto pode estar mais perto do que um ano-luz, como mais longe que a Periferia.

- Em qualquer caso - observou Drayton -, não chegou ao destino indicado no seu bilhete de viagem.

Não.

Pode explicar o que aconteceu?

Só posso formular hipóteses. Pensei que talvez a minha configuração de ondas tivesse sido desviada, ou ainda interceptada e desviada. A princípio pensei que talvez se tratasse de um erro do transmissor, mas isso parece impossível. Os transmissores estão em uso há centenas de anos. Hoje já não devem ter defeitos.

- Quer dizer que foi raptado?

- Se assim o quiser...

- E mesmo assim não me diz nada?

- Já expliquei que não tenho muito a contar.

- Teria esse planeta alguma coisa a ver com os Rodadores?

Maxwell abanou a cabeça.

- Não tenho a certeza, mas não creio que haja qualquer ligação. Sei apenas que não havia nenhum deles por lá. Nenhuma indicação de que eles tivessem alguma coisa a ver com aquilo.

- Professor Maxwell, viu alguma vez um Rodador?

- Uma vez. Há alguns anos. Um deles passou um mês ou dois no Tempo. Um dia vi-o de relance.

- Portanto, se visse um Rodador saberia Identificá-lo.

- Sim, sem dúvida.

- Sei que partiu com destino a um dos planetas do sistema Coonskin.

- Havia rumores sobre um dragão -respondeu Maxwell. - Sem confirmação. Na verdade, as provas eram muito vagas. Mas concluí que talvez valesse a pena investigar...

Drayton ergueu uma sobrancelha e perguntou:

- Um dragão?

-Suponho que deverá ser difícil para alguém fora do meu campo ter uma Ideia da Importância de um dragão. Mas o que importa é que não há a mais pequena prova de que uma criatura dessas tenha existido em qualquer época. Isso apesar do facto de a lenda do dragão estar solidamente embebida no folclore da Terra e de alguns outros planetas. Fadas, duendes, génios e agoireiros - temo-los a todos, em carne e osso, mas nem o menor vestígio de um dragão. A coisa curiosa é que a lenda aqui na Terra não é no fundo uma lenda humana. A Gente Pequenina também tem a lenda do dragão. Por vezes penso que foram eles que a transmitiram a nós. Mas somente a lenda. Não há provas...

Parou, sentindo que o seu procedimento era um pouco disparatado. Que importância teria para aquele polícia impassível a lenda do dragão?

- Perdoe-me, inspector - disse ele. -Deixei-me arrastar pelo meu entusiasmo por um assunto favorito.

- Ouvi dizer que a lenda do dragão pode ter surgido das memórias ancestrais do dinossauro.

- Também ouvi - disse Maxwell. - Mas parece-me impossível. Os dinossauros extinguiram-se muito antes de a Humanidade ter surgido ...

- Mas a Gente Pequenina ...

‑ É possível, mas parece improvável. Conheço a Gente Pequenina e tenho falado com ela sobre isso. São antigos, por certo muito mais antigos do que os humanos, mas não há quaisquer Indicações de que o sejam a tal ponto. Ou, se o são, não têm qualquer memória disso. E creio que as lendas e contos tradicionais deles devem ter alguns milhões de anos. Têm uma vida muito longa; não são propriamente imortais, mas andam perto disso, e numa situação como essa a tradição oral deve ser muito persistente.

Drayton fez um gesto, como que afastando os dragões e a Gente Pequenina.

‑ Você partiu para o Coonskin e não chegou lá.

‑ Pois foi. Fui parar a outro planeta. Um planeta com tecto. Um planeta de cristal.

‑ Cristal?

‑Qualquer espécie de pedra. Talvez quartzo. Ainda que não tenha a certeza. Talvez fosse metal. Havia lá algum metal.

Drayton perguntou suavemente:

‑ Quando partiu não sabia que Iria ter a esse planeta ?

‑ Se pensa que houve qualquer conluio ‑disse Maxwell ‑, está muito longe da verdade. Fiquei muito surpreendido. Mas parece que consigo não aconteceu o mesmo. Estava à minha espera.

‑ Não muito surpreendido ‑ respondeu Drayton. Isso já aconteceu duas vezes.

‑Então é provável que saiba alguma coisa sobre o planeta.

‑ Nada. Sei qualquer parte, apenas que há um planeta lá fora, em que está a trabalhar com um transmissor não registado e a comunicar por um sinal que não consta das listas. Quando o operador, aqui na estação de Wisconsin, captou o sinal de transmitir, comunicou‑lhes que esperassem, que os receptores tinham muito que fazer. Depois entraram em contacto comigo.

‑ Os outros dois?

‑ Ambos.

‑ Mas se voltaram...

‑ Isso é que é o principal. Não voltaram. Sim, de certo modo pode dizer que voltaram, mas não pudemos falar com eles. A configuração das ondas falhou. Foram reconstituídos de uma maneira errada. Estavam todos trocados. Não eram terrestres, mas surgiram‑nos tão misturados que demorámos longo tempo a compreender quem poderiam ter sido. Ainda não temos a certeza.

‑ Mortos ?

‑ Mortos? Com certeza. Um negócio mais do que terrível. Você teve muita sorte.

Maxwell reprimiu um arrepio, com alguma dificuldade.

‑ Sim, creio que sim.

‑ Quem se Intromete na transmissão da matéria devia ter a certeza do que está a fazer. Não é possível saber quantos eles terão captado em condições erradas no seu receptor.

‑ Mas devia sabê‑lo ‑ observou Maxwell. ‑ Devia saber da existência de quaisquer perdas. As estações deviam possuir meios de informar imediatamente se um viajante não chegava no momento previsto.

‑ É isso que eu considero curioso. Não há noticia de perdas. Temos a certeza de que os dois não‑terrenos que chegaram aqui já mortos vieram para onde queriam, porque não soubemos de quaisquer desaparecimentos.

‑ Mas eu parti daqui para Coonskin. Por certo que eles deviam...

Ele deteve‑se quando o pensamento o atingiu entre os olhos, como um soco. Drayton moveu a cabeça afirmativamente, com lentidão.

‑ Pensei que acabaria por compreender. Peter Maxwell foi para o sistema de Coonskin e voltou à Terra há perto de um mês.

‑ Deve haver qualquer engano ‑protestou Maxwell, numa voz fraca.

Porque era impensável que houvesse dois dele, que outro Peter Maxwell, idêntico em todos os pormenores, existisse na Terra.

‑ Não há engano. Pelo menos da maneira que tínhamos pensado. Esse outro planeta não desvia a configuração das ondas. Copia‑a.

‑ Então há outra pessoa Igual a mim. Somos dois. Poderá ser...

‑ Não. Já não há ‑ respondeu Drayton. ‑ Você é o único. Cerca de uma semana depois de ele voltar, houve um acidente. Peter Maxwell morreu.

 

Do outro lado da pequena sala onde se encontrara com Drayton, Maxwell descobriu uma fila de cadeiras vagas e sentou‑se numa delas, com algum cui­dado, colocando a sua única mala no chão ao lado dele.

Era inacreditável que tivessem havido dois Peter Maxwell e que agora um deles estivesse morto. Que o planeta de cristal pudesse dispor de equipamento capaz de alcançar e copiar uma configuração de ondas que se deslocava mais depressa do que a velocidade da luz ‑muito mais rapidamente até, porque em nenhum ponto da galáxia até então ligado pelos transmissores de matéria se notara qualquer demora apreciável entre o momento da transmissão e o da chegada. Desvio ‑ sim, talvez pudessem apoderar‑se da configuração, mas o trabalho de a reproduzirem seria uma coisa completamente diferente.

Duas coisas inacreditáveis. Duas coisas que não deviam ter acontecido. Ainda que se uma delas acontecesse, a outra por certo se seguiria. Se a configuração tivesse sido copiada, devia sem dúvida ter havido outro homem igual a ele, o que fora ao sistema de Coonskin enquanto ele fora ao planeta de cristal. Mas se esse outro Peter Maxwell fora de facto a Coonskin, ainda devia lá estar ou só naquele momento viria de regresso.

Ele pensara em ficar lá seis semanas, pelo menos, ou mais se tal fosse necessário para tratar da questão do dragão.

Verificou que as mãos dele tremiam e, envergonhado disso, bateu‑as com força e colocou‑as sobre as coxas.

Não perderia o domínio de si próprio. Acontecesse o que acontecesse, teria de ver através de tudo. E não havia provas, sólidas ou não. Tudo quanto sabia fora o que um membro da Segurança lhe dissera e não podia confiar nisso. Talvez se tratasse apenas de um estratagema grosseiro da Polícia, destinado a fazê‑lo falar. Ainda que pudesse ter acontecido. Sim, podia ter acontecido!

Mas mesmo que assim tivesse sido, ele tinha de procurar compreender o que acontecera. Porque tinha uma missão a cumprir e não podia errar.

Agora essa missão poderia tornar‑se, mais difícil, se tivesse alguém a vigiá‑lo, mas não tinha a certeza de que assim fosse. O mais difícil era conseguir uma entrevista com Andrew Arnold. O presidente de uma universidade planetária não devia ser um homem fácil de ver. Deveria ter muito mais preocupações do que ouvir o que um professor agregado tinha a dizer. Em particular quando esse professor não podia dar antecipadamente uma ideia daquilo de que desejava falar.

As suas mãos tinham parado de tremer, mas ele continuava a tê‑las bem agarradas uma à outra. Não tardaria muito que ele saísse dali e descesse até à estrada, onde procuraria um lugar numa das correias transportadoras interiores, mais rápidas. Dentro de uma hora ou pouco mais estaria de volta ao velho apartamento, na universidade, e depois não tardaria a saber se o que lhe dissera Drayton era verdade. Voltaria para junto dos seus amigos Alley Oop e o Fantasma, Harlow Sharp e Allen Preston e todos os outros. Haveria barulhentas sessões de bebida no Porco e Apito e longos e lentos passeios a pé através das áleas ensombradas e voltas em canoa, no lago. Haveria discussões e questões e ouvir‑se‑iam velhas lendas. Seria mais uma vez a calma rotina académica, que dava tempo para viver.

Deu consigo a pensar na viagem, porque a estrada corria através das colinas da Reserva dos Duendes. Não que houvesse ali apenas duendes; havia muito, mais Gente Pequenina e eram todos amigos dele ou pelo menos a maior parte deles eram amigos. Os génios por vezes podiam ser exasperantes e era difícil conseguir uma verdadeira e duradoura amizade com uma criatura como um agoireiro.

Naquela época do ano, pensou ele, as colinas deviam ser belas. Quando se dirigira para o sistema de Coonskin estava‑se no fim do Verão e as colinas ainda ostentavam o seu manto verde‑escuro, mas agora, no meio de Outubro, deviam ter explodido todas as cores da sua veste outonal. Devia haver a cor de vinho dos carvalhos e o vermelho e amarelo vivos do bordo e aqui e ali o escarlate das trepadeiras que corriam como fios através de todas as outras coisas. E o ar devia cheirar a cidra, esse odor estranho e Intoxicante que surgia dos bosques somente quando as folhas morriam.

Deixou‑se ficar sentado, a pensar no tempo, apenas dois verões atrás, em que ele e Mr. O'Toole haviam dado um passeio de canoa através do rio, no norte bravio, na esperança de que em qualquer parte do caminho pudessem estabelecer algum contacto com os espíritos de que falavam as velhas lendas Ojibway. Tinham flutuado nas águas claras como cristal e feito as suas fogueiras à noite junto aos negros pinhais; tinham apanhado o peixe para o jantar e colhido as flores selvagens escondidas nos prados da floresta. Haviam espiado muitos animais terrestres e aves. Umas férias maravilhosas.

Mas não tinham visto espíritos, o que de resto não era surpreendente. Tinham sido estabelecidos muito poucos contactos com a Gente Pequenina da América do Norte, porque era constituída por verdadeiras criaturas selva­gens, em vez dos espectros semicivilizados, habituados ao homem, da Europa.

A cadeira em que ele estava sentado olhava para oeste e através das altas paredes de vidro podia ver do outro lado do rio as escarpas que se erguiam ao longo da fronteira do antigo estado de Iowa ‑ grandes e negras massas de púrpura cercadas por um céu azul­‑pálido, outonal. Sobre uma das escarpas podia distinguir o vulto mais claro do Colégio de Taumaturgia, cujo corpo docente era constituído em grande parte pelas criaturas octopóides do Centauro. Olhando para os indistintos con­tornos dos edifícios, recordou‑se de que multas vezes prometera assistir a um dos seus seminários de Verão, mas nunca conseguira faze-lo.

Estendeu os braços e mudou a mala para outro sítio, preparando‑se para se levantar, mas deixou‑se ficar sen­tado. Estava ainda um pouco abalado, as pernas pareciam-lhe fracas. O que Drayton lhe dissera atingira‑o mais duramente do que ele pensara e ainda estava a esmagá‑lo, numa série de reacções retardadas. Tinha de se acalmar ‑ disse ele a si próprio. Não podia deixar que aquilo o vencesse. Talvez não fosse verdade; provavelmente não o era. Não fazia sentido preocupar‑se muito com aquilo enquanto não tivesse uma oportuni­dade de averiguar tudo.

Pós‑se de pé, lentamente, e Inclinou‑se para agarrar na mala, mas hesitou um momento antes de mergulhar na confusão apressada da sala de espera. Gente‑não­‑terrena e humana corria sem hesitar ou aglomera­va‑se em pequenos e grandes grupos. Um velho de barba branca, vestido majestosamente de preto um professor pelo que parecia estava rodeado por um grupo de alu­nos que se viera despedir dele. Uma família de répteis estendia‑se sobre alguns divãs, ali colocados para gente como eles, que não se podia sentar. Os dois adultos permaneciam quase imóveis, olhando de frente um para o outro e falando baixinho, com muitos dos assobios e sopros que caracterizavam a fala dos répteis, enquanto os filhos trepavam pelos sofás e se escondiam debaixo deles e se esparramavam no chão, a brincar. Num canto de uma pequena alcova, uma criatura que parecia um barril de cerveja, deitada de lado, rolava devagar para a frente e para trás, tal e qual, e talvez com o mesmo fim, que um homem podia passear de um lado para o outro numa sala. Duas criaturas semelhantes a aranhas, os corpos mais como grotescas construções de paus de fósforo do que de carne e osso, estavam acocoradas, em frente uma da outra. Tinham marcado no chão, com um pedaço de giz, uma espécie de tabuleiro de jogo e haviam colocado sobre ele um certo número de peças de forma estranha que moviam rapidamente, guinchando de exci­tação à medida que o jogo decorria.

Rodadores? ‑perguntara Drayton. Haveria alguma ligação entre o planeta de cristal e os Rodadores?

Falava‑se sempre dos Rodadores. Era uma obsessão. E talvez com algum motivo, ainda que ninguém pudesse ter a certeza disso. Porque pouco se sabia deles. Tinham surgido como uma negra ameaça, de muito longe, outro grande grupo cultural que se lançava através da galáxia, empurrando tudo à sua frente, até entrar num contacto irregular numa extensa e longínqua linha fronteiriça com a cultura humana, também em pleno ímpeto.

Recordou‑se da primeira e única vez em que vira um Rodador ‑ um estudante que viera do Colégio de Ana­tomia Comparativa, no Rio de Janeiro, para um seminário de duas semanas no Colégio do Tempo. Os mem­bros da Universidade de Wisconsin tinham andado de cabeça perdida, falando muito daquilo, mas, segundo pare­cera, haviam tido poucas possibilidades de ver a lendária criatura porque ela se mantinha bem dentro dos confins do seminário. Ele encontrara‑a, a rodar por um corredor, quando atravessara o relvado para almoçar com Harlow Sharp. Lembrava‑se bem do choque que sofrera.

Tinham sido as rodas. Nenhuma outra criatura na galáxia conhecida possuía rodas. Era uma espécie de ser redondo, suspenso como um sempre‑em‑pé de duas rodas, os cubos das quais sobressaíam do seu corpo cerca do meio. As rodas estavam cobertas de pele e a periferia era feita de calos semelhantes a cascos. A parte inferior do corpo pendia por baixo do eixo como um saco cheio. Mas o pior ‑ que ele só viu quando se aproximou ‑ era o facto de essa parte do corpo ser transparente e cheia com uma massa de coisas que se contorciam e que recor­dava um cabaz cheio de minhocas garridamente colo­ridas.

E, como Maxwell sabia, essas coisas que se contor­ciam naquele ventre obsceno e obeso não eram vermes, nem ao menos qualquer espécie de insecto ou forma de vida que pudesse assemelhar‑se à que na Terra os homens conheciam como sendo de Insectos. Porque os Rodadores eram um mecanismo de formigueiro, uma cultura feita de muitos desses mecanismos de formi­gueiro, uma população de colónias de Insectos ou pelo menos do equivalente a insectos.

E com uma população dessa espécie, as histórias de terror que vinham dessa longínqua e irregular fronteira sobre os Rodadores não eram difíceis de compreender. E se essas histórias de horror eram verdadeiras, então o homem encontrara, pela primeira vez desde que se lançara no espaço, esse hipotético inimigo que sempre pensara encontrar alguma vez ali.

Através da galáxia haviam sido outras criaturas estranhas e, por vezes, temíveis. Mas nenhuma podia inspirar tão Pouco temor como uma cria­tura que parecia ser uma colmeia com rodas. Havia em tudo aquilo qualquer coisa que dava vontade de rir.

Naquele dia as criaturas vindas de, outros mundos afluíam à Terra aos milhares, para frequentar os muitos colégios, para tomarem os seus lugares como professo­res nas faculdades dessa grande universidade galáctica que se apossara da Terra. E em tempo talvez os Roda­dores pudessem ser acrescentados àquela população galáctica que enchia os colégios da Terra desde que houvesse um contacto e um entendimento. Mas até então não houvera.

Porque seria que a própria ideia da existência dos Rodadores parecia contrária à natureza, quando o homem e todas as outras criaturas da galáxia com que ele havia entrado em contacto tinham aprendido a viver uns com os outros?

Ali, na sala de, espera, podiam ver‑se quase todos eles - os saltadores, os rastejadores, os que se arrasta­vam, os que se contorciam e os que rolavam, vindos de tantos planetas e de tantas estrelas. A Terra era o cadi­nho da galáxia, um lugar onde seres de cem mil estrelas se encontravam e misturavam os seus sentimentos e culturas.

‑ Número cinco‑seis‑nove‑dois ‑ guinchou o altifalante. ‑ Passageiro número cinco ‑ seis‑nove‑dois, partirá dentro de cinco minutos. Cubículo trinta e sete. Passa­geiro cinco‑seis ‑nove ‑dois, por favor apresente‑se ime­diatamente no cubículo trinta e sete.

Para onde iria o N., 5692 ? Para as selvas de Dor‑de‑Cabeça N., 2, para as lúgubres e ventosas cidades gla­ciais de Miséria IV, para os planetas desertos dos Sóis do Massacre ou para quaisquer outros planetas entre tan­tos milhares, todos a menos de um batimento de coração daquele ponto onde ele estava, agora ligados pelo sistema transmissor mas representando longos anos de descoberta no passado, quando as naves exploradoras batiam todos os cantos negros do espaço eterno. Tal como ainda os batiam, vagarosa e cuidadosamente expandindo o perí­metro do Universo conhecido pelo Homem.

O som da sala de espera ressoava e besourava com a busca frenética de passageiros atrasados ou desapare­cidos, com o oco zumbido de cem línguas diferentes fala­das por cem mil gargantas diferentes, com o arrastar ou o bater ou o craquejar de pés através do chão.

Estendeu o braço, pegou na mala e dirigiu‑se para a saída.

Depois de ter dado três passos, teve de dar Passagem a um camião que transportava um tanque cheio com um líquido sujo. Através do escuro do líquido viu a sugestão de uma forma ultrajante que se movia dentro do tanque ‑alguma criatura de um planeta líquido, em que o liquido não era água. Talvez, como era mais do que provável, um professor visitante, para um dos colégios de Filosofia, ou para os institutos de Ciência.

O camião e o seu tanque afastaram‑se e ele desceu e dirigiu‑se para a saída. Encontrou‑se na bela e florida esplanada, no fundo da qual se encontravam os tapetes rolantes da estrada. Sentiu‑se satisfeito por não haver filas de espera, como tantas vezes acontecia.

Encheu os pulmões de ar puro e limpo com o travo bem‑vindo depois das semanas de ar morto e húmido, no planeta de cristal.

Desceu os degraus e quando os descia viu a tabuleta, logo atrás do portão que conduzia aos tapetes rolantes da estrada. A tabuleta era grande e as letras em Inglês Antigo, gritando com sólida dignidade:

“O Ex. Sr. WILLIAM SHAKESPEARE de Stratford‑on‑Avon, Inglaterra, falará sobre «Como aconteceu não, ter escrito as minhas obras»

Sob o patrocínio do Colégio do Tempo, 22 de Outubro às 22 horas - Auditório do Museu do Tempo - Bilhetes à venda nas agências”

‑ Maxwell! ‑ gritou alguém e ele deu meia volta.

Um homem vinha a correr da entrada, em direcção a ele. Maxwell colocou a bagagem no chão, ergueu a mão num cumprimento, que era também um sinal de reconhe­cimento, e de repente deixou‑a cair, porque compreendeu que afinal não conhecia o homem.

O homem deixou de correr e passou apenas a um passo rápido.

‑ É o Professor Maxwell, não é         ? - perguntou ele. ‑ Tenho a certeza de que não me enganei.

Maxwell moveu a cabeça afirmativamente, mas a contragosto, um pouco embaraçado.

‑Monty Churchill ‑ disse o homem, estendendo‑lhe a mão. ‑ Encontrámo‑nos há cerca de um ano. Numa das festas de Nancy Clayton.

‑ Como está, Churchill ? ‑perguntou Maxwell, num tom um pouco gelado.

Agora já se recordava do homem, pelo menos do nome, que não do rosto. Um advogado, segundo lhe pare­cia, ainda que não tivesse a certeza. Trabalhava, se bem se recordava, em relações públicas ‑ era um topa‑tudo. Um da tribo que tratava de tudo para os clientes, para quem pudesse pagar a conta.

‑ Ora... Estou magnífico ‑ disse Churchill, muito feliz. ‑ Acabo de voltar de um passeio. Um passeio curto. Mas é bom estar de volta. Não há nada como o nosso lar. Foi por isso que gritei quando o vi. O primeiro rosto familiar que vi desde algumas semanas.

‑ Sinto‑me satisfeito por Isso.

‑ Vai para a Universidade?

‑Sim, ia direito à estrada.

‑ Não é necessário ‑ disse Churchill. ‑ Tenho ali o meu aerocarro, estacionado no parque lá atrás. Rã es­paço para os dois. Chegaremos lá mais depressa.

Maxwell hesitou. Não gostava do homem, mas o que Churchill disse era verdadeiro; tinham de chegar lá o mais depressa possível. E ele estava ansioso por voltar, porque havia coisas que necessitava de comprovar.

‑ É muita bondade sua ‑ respondeu. ‑ Se tem a cer­teza de ter espaço para mim.

 

O motor engasgou‑se e calou‑se. Os jactos zumbiram durante um segundo e ficaram silenciosos. o ar suspirou e uivou contra a chapa de metal.

Maxwell olhou rapidamente, para o homem que estava ao lado dele. Churchill mantinha‑se hirto, talvez de medo, talvez apenas de surpresa. Porque até Maxwell compreendera que uma coisa daquelas era impensável ­nunca devia ter acontecido. Os aerocarros como aquele eram considerados à prova de qualquer avaria.

Por baixo estavam as rochas angulosas das colinas alcantiladas, os ramos erguidos como lanças da floresta que cobria as colinas, agarrada às rochas. A esquerda corria o rio, uma fita de prata que passava através dos bosques do fundo.

O tempo pareceu arrastar‑se, como se por alguma estranha mágica cada segundo se tornasse num minuto. E com a dilatação do tempo veio uma consciência calma do que estava prestes a acontecer, como se se tratasse de alguém que não eles. E Maxwell sabia também, num canto longínquo e escuro do seu espírito, que o pânico viria depois e que então o tempo tomaria o seu curso normal quando o veículo corresse ao encontro da floresta e da rocha.

Inclinando‑se para a frente, explorou o terreno que se estendia em frente, e então viu uma pequena abertura na floresta, uma fenda nas filas escuras das árvores, com um indício de verde por baixo.

Tocou em Churchill e apontou. Churchill olhou, moveu afirmativamente a cabeça e fez girar o volante, lentamente, com cuidado, como se procurasse sentir alguma resposta do aparelho.

O aerocarro inclinou‑se ligeiramente, girou e virou, sempre a cair com lentidão, mas procurando estabilizar‑se. Durante um momento pareceu recusar‑se a obedecer, mas depois deslizou de lado, perdendo altitude mais depressa, descendo em direcção à fenda entre as árvores.

E as árvores correram para cima ao encontro deles. Quando chegaram próximo, Maxwell pôde ver "as suas cores de Outono ‑já não o tom escuro, mas sim uma massa de vermelho, ouro e castanho. Longas e esbeltas lanças vermelhas acercaram‑se para os trespassar, mãos de ouro lançaram‑se para os agarrar.

O aerocarro passou a raspar pelos ramos mais altos de um carvalho, pareceu hesitar, quase parar no meio do ar, e depois continuou a descer, em direcção a um pequeno prado dentro da floresta.

Um prado das fadas, disse Maxwell a si próprio um lugar onde as fadas dançavam e que agora era campo de aterragem.

Virou a cabeça por um momento e viu Churchill agarrado aos comandos. Depois voltou‑se de novo para a frente e viu o prado correr ao seu encontro.

Seria uma descida suave, disse ele de si para si. Não haveria saltos nem covas nem outeiros, porque quando aquele prado fora criado deviam ter cuidado de que ele fosse plano.

O veículo bateu no chão e ressaltou. Durante um momento terrível pareceu ficar sem governo, no ar.

Depois voltou a descer e correu suavemente através da relva. As árvores do lado oposto correram para eles de uma maneira demasiado rápida.

‑ Aguente‑se! ‑ gritou Churchill. E, no mesmo momento em que gritou, o aparelho girou e rodopiou, resvalando. Parou a menos de quatro metros do bosque que rodeava o prado.

Permaneceram silenciosos ‑ um silêncio que parecia abater‑se sobre eles, vindo da floresta colorida e das escarpas rochosas.

Churchill falou, quebrando o silêncio:

‑ Foi por pouco.

Levantou os braços, fez recuar a cobertura e saiu. Maxwell seguiu‑o.

‑ Não compreendi o que aconteceu ‑ disse Churchill. ‑Este aparelho tem mais circuitos de segurança Integrados nele do que é possível imaginar. Se tivéssemos sido atingidos por um raio, ou se batêssemos contra uma montanha, ou ainda se fôssemos apanhados numa turbulência e nos sentíssemos sacudidos de um lado para outro, tudo isso seria compreensível, mas o motor nunca pararia. A única maneira de o fazer parar é desligá-lo.

Levantou o braço e limpou o suor da testa com a manga da camisa.

‑ Conhece este sítio ? ‑ perguntou ele.

Maxwell abanou a cabeça.

‑ Este, propriamente, não. Sei que há lugares destes. Quando a reserva foi criada e cuidou da sua paisagem, os planos incluíram prados. Lugares onde as fadas pudessem dançar. Na verdade, não estava à procura de uma coisa dessas, mas quando vi a abertura nas árvores calculei de que se tratava.

‑ Quando mo indicou ‑ disse Churchill ‑ limitei‑me a fazer preces para que soubesse o que estava a fazer.

Parecia não haver qualquer outro lugar para onde Ir, portanto arrisquei‑me...

Maxwell ergueu a mão, como que para o fazer calar.

‑ Que é isto?

‑ Parece um cavalo ‑ respondeu Churchill. ‑ Quem poderia andar a cavalo por estes sítios? Parece que vem para aqui.

O som dos cascos a baterem no chão aproximava‑se.

Deram a volta ao aparelho e viram um caminho que conduzia a uma crista estreita e íngreme, com a massa imponente de um castelo arruinado no alto.

O cavalo descia o caminho num galope incerto. Em cima, agarrada às rédeas, via‑se uma figura pequena e gorda que saltitava de uma maneira extremamente curiosa com cada movimento da montada. Estava longe de ser um gracioso cavaleiro, com os cotovelos afastados cada um para seu lado, agitando‑se como um par de asas.

O cavalo desceu a encosta e entrou no prado, pesadamente. Não era mais belo do que o cavaleiro ‑ era um animal nada elegante, de lavoura, com enormes cascos que batiam como martelos, arrancando torrões de terra relvada e lançando‑os para trás. Veio direito ao aerocarro, quase como se quisesse passar por cima dele, mas no último momento girou desajeitadamente e parou como um raio. Os flancos arquejavam como um fole e as narinas roncavam.

O cavaleiro deslizou da sela de uma maneira estranha e quando caiu no chão explodiu de fúria.

‑Foram aqueles patifes que não servem Para nada! ‑gritou ele. ‑ Foram os malditos dos génios! Tenho‑lhes dito e tornado a dizer que deixem os cabos de vassoura em paz. Mas não, não me querem ouvir. Fazem sempre esta partida. Enfeitiçam‑nos!

‑ Mr. O'Toole! ‑ gritou Maxwell. ‑ Recorda‑se de mim?

O duende deu meia volta e olhou‑o de lado, com olhos míopes e avermelhados.           

‑ O professor! ‑ gritou ele. ‑ O bom amigo de todos nós! Oh, que vergonha terrível! Digo‑lhe, Professor, que pregarei as peles dos génios na minha porta e as orelhas nessas árvores.

‑ Enfeitiçado? ‑ perguntou Churchill. ‑ Falou em feitiço ?

‑ Que mais poderia ser? ‑ exclamou Mr. O'Toole, furioso . ‑ Que mais poderia fazer descer do céu um cabo de vassoura?

Aproximou‑se de Maxwell com o seu andar cambaleante e olhou para ele ansiosamente, com os olhos semicerrados.

‑ Será possível? ‑ perguntou ele, com alguma solicitude - É mesmo o Professor? Em carne e osso? Disseram‑nos que tinha morrido. Enviámos uma coroa de agarico e de azevinho para expressar a nossa mais profunda dor.

‑ Sou eu, sem dúvida ‑ disse Maxwell, passando sem dificuldade a falar o idioma da Gente Pequenina. ‑ O que ouviu foi apenas um boato.

‑ Então, por alegria pura ‑ gritou Mr. O'Toole despejaremos três grandes pichéis de cerveja preta de Outubro. É nova e está pronta para ser bebida. Convido‑vos, cavalheiros, muito cordialmente, a compartilhar os primeiros copos comigo.

Outros duendes, meia dúzia deles, corriam pela vereda abaixo e Mr. O'Toole acenou‑lhes freneticamente para que se apressassem ainda mais.

‑ Sempre tarde ‑ lamentou‑se. ‑ Nunca chegam a horas. Aparecem sempre, mas um pouco tarde. Bons rapazes, todos eles, com os corações no seu lugar, mas sem a vivacidade que é característica dos verdadeiros duendes como eu.

Os duendes aproximaram‑se aos saltos, através do prado, até se postarem em fila, arquejantes, em frente de Mr. O'Toole.

‑ Tenho trabalho para vocês ‑ disse ele. ‑ Primeiro vão lá abaixo à ponte e digam aos génios que não devem fazer mais feitiços. Têm de cessar com eles e desistir deles inteiramente. Digam‑lhes que é a sua última opor­tunidade. Se eles voltarem a fazer isso desmontaremos a ponte, pedra a pedra coberta de musgo, e essas pedras as espalharemos por tão longe e tanto espaço que nunca terão possibilidade de a reconstruírem. E terão de reti­rar o feitiço deste cabo de vassoura caído, para que ele voe tão bem como se fosse novo.

«E alguns outros entre vós deverão ir ao encontro das fadas para lhes explicarem os estragos do seu prado, sem deixar de notar que toda a culpa pertence a esses sujos génios e prometendo que a relva será arranjada e ficará adorável para a sua próxima dança, quando a Lua estiver cheia.

«E ainda outro de vós tomará conta de Dobbin, cui­dando de que ele, com a sua falta de jeito, não faça mais estragos no prado, mas deixando‑o comer, ocasio­nalmente, uma ou duas vezes a erva mais alta que encontrarem. O pobre animal não tem muitas vezes a opor­tunidade de se regalar com pastos como este.»

Voltou‑se de novo para Maxwell e Churchill e limpou as mãos, simbolizando um trabalho bem feito.

‑ E agora, cavalheiros ‑ disse ele ‑, por favor su­bam a colina comigo e verificaremos o que pode ser feito com a doce cerveja preta de Outubro. Peço‑vos, no en­tanto, para caminharem devagar, por grande piedade de mim, uma vez que este meu ventre parece ter aumentado de tamanho ultimamente e eu sofro em demasia de grande falta de fôlego.

‑ Siga à frente, velho amigo ‑ disse Maxwell. ‑ Se­guiremos os seus passos da melhor vontade. Há muito que não provamos cerveja preta de Outubro.

‑ Sim, sem dúvida ‑ concordou Churchill, ainda que com pouco entusiasmo.

Começaram a subir o carreiro. Perante eles, erguen­do‑se altaneiro na crista, o castelo arruinado destacava‑se na palidez do céu.

‑ Antes do mais devo pedir desculpa da condição do castelo ‑ disse Mr. O'Toole. ‑ É um lugar muito cheio de correntes de ar, conduzindo a constipações e sinusites e outras variadas misérias. Os ventos sopram através dele com malícia e ele cheira a humidade e bolor. Não compreendo em absoluto a razão por que vocês, huma­nos, quando construíram os castelos para nós, não os fizeram defendidos do tempo e confortáveis. Lá porque nós, antes destes tempos, vivíamos em ruínas, isso não significava necessariamente que tivéssemos esquecido todo o conforto e todas as conveniências. Vivíamos neles, na verdade, porque era o melhor que a pobre Europa tinha para nos oferecer.

Parou para respirar e depois prosseguiu:

‑ Se bem me lembro, há dois mil anos ou mais vivía­mos em castelos novos, muito pobres, de resto, porque os rudes humanos de então não podiam construi-los melhor, com a sua falta de jeito, de ferramentas e de máquinas. E nós éramos obrigados a esconder‑nos nos cantos e recantos dos castelos porque os benditos huma­nos desses tempos temiam-nos e detestavam‑nos em toda a sua ignorância e procuravam, também em sua igno­rância, lançar grandes maldições contra nós.

«Ainda que ‑ disse ele com alguma satisfação – os simples humanos não fossem muito proficientes com as suas maldições. Nós, sem sequer suarmos, podíamos enfrentar as suas armas de braços caídos!»

‑ Dois mil anos ? ‑ perguntou Churchill. ‑ Não quer dizer que...

Maxwell fez um movimento rápido com a cabeça, para que ele se calasse.

Mr. O'Toole parou no meio do carreiro e olhou para Churchill de uma maneira cortante.

‑ Recordo‑me ‑ disse ele ‑ de quando os bárbaros vieram pela primeira vez, muito rudemente, dessa flo­resta pantanosa a que agora chamam a Europa Central, bater com os punhos das suas grosseiras espadas de ferro contra as portas de Roma. Ouvimos falar disso nas profundezas da floresta onde tínhamos feito os nossos lares e onde havia outros, que já morreram, que tinham ouvido as notícias da batalha das Termopilas, semanas depois de ela se ter dado.

‑ Peço que me perdoe ‑ disse Maxwell. ‑ Nem todos conhecem bem a Gente Pequenina...

‑ Por favor... ‑ respondeu Mr. O'Toole. ‑ Então faça com que ele a conheça.

- É a verdade ‑ disse Maxwell a Churchill ‑, ou, pelo menos, pode ser. Não são imortais, pois que mais tarde ou mais cedo morrem. Mas têm uma vida mais longa do que qualquer coisa nossa conhecida. Os nascimentos são no entanto poucos ‑ mesmo muito poucos, pois que senão não haveria espaço para eles na Terra. Mas vivem até uma idade extremamente avançada.

‑ É porque mergulhamos até ao coração da natu­reza e não gastamos a preciosa vitalidade do espírito com essas mesquinhas preocupações que destroçam as vidas e esperanças dos humanos ‑observou Mr. O'Toole.

«Mas estes ‑ prosseguiu ele ‑ são tópicos dolorosos em que não devemos desperdiçar uma tarde tão gloriosa de Outono. Portanto, concentremos antes os nossos pen­samentos sobre a cerveja preta espumante que nos espera no alto do monte»

Calou‑se e voltou a subir o carreiro mais depressa do que o fizera antes.

A correr pelo caminho abaixo surgiu então um pe­queno duende, a sua camisa multicolorida e demasiado grande a flutuar no vento.

‑ A cerveja! ‑ gritava ele. ‑ A cerveja!

Quis parar e escorregou na frente dos três que ocupavam toda a largura do caminho.

‑ Que há quanto à cerveja? ‑arquejou Mr. O'Toole. Quer confessar‑me que tem estado a prová‑la?

‑ Azedou! ‑ gemeu o pequeno duende. ‑Toda aquela maldita coisa está azeda.

‑ Mas a cerveja não azeda ‑ protestou Maxwell, tentando fazer uma ideia sensata do que acontecera.

Mr. O'Toole pulou com uma fúria devastadora. O seu rosto passou de castanho a vermelho e púrpura. O seu fôlego desapareceu à medida que bufava.

‑ Malditos sejam! ‑ berrou ele. ‑ Pode azedar, por artes de feitiço!

Voltou‑se e começou a correr pelo caminho abaixo, seguido pelo pequeno duende.

‑ Deixem‑me com esses malditos génios! ‑ gritava Mr. O'Toole. ‑Deixem que eu lhes aperte os gasganetes com as minhas patas. Hei‑de trazê‑los cá para fora com estas duas mãos e pendurá‑los ao sol, a secarem. Esfo­lá‑los‑ei de alto a baixo. Dar‑lhes‑ei lições que nunca esquecerão...

Os seus rugidos tornaram‑se com a distância num rumor ininteligível à medida que corria rapidamente em direcção à ponte atrás da qual os génios se escondiam

Os dois humanos continuavam a observar, cheios de admiração e surpresa perante aquela cólera majestosa e altaneira.

‑ Bem ‑ disse Churchill ‑, lá se foi a nossa opor­tunidade de provar a doce cerveja preta de Outubro.

 

O relógio da Sala de Música começou a bater as seis horas quando Maxwell chegou às proximidades da Universidade, vindo do aeroporto, num dos tapetes rolantes exteriores, mais lentos. Churchill tomara por outra estrada e Maxwell ficara contente com isso. Não só porque ele sentira que o homem lhe desagradava um tanto, mas também porque queria estar só. Queria andar devagar, com o pára‑brisas abaixado, em silêncio, sem necessidade de conversar, para se encharcar da vista e do sabor daqueles quilómetros quadrados de edifícios e relvados ‑ voltar a casa, voltar ao lugar que adorava.

A penumbra cobriu os terrenos da universidade como uma névoa de bendição, suavizando os contornos dos edifícios, tornando os relvados em áreas que podiam ter sido gravuras românticas de livros de histórias.

Grupos de estudantes viam‑se nos relvados, falando calmamente, com as pastas ou os livros debaixo dos braços. Um homem de cabelos brancos estava sentado num banco, olhando um par de esquilos que brincava sobre a relva. Um estudante humano caminhava com elegância pelo passeio, assobiando ‑ e o assobio ecoava nos calmos recantos dos edifícios. Quando passou pelos répteis ergueu um braço numa grave saudação. E em toda a parte as árvores, grandes e velhos ulmeiros que ali estavam desde tempos esquecidos, maciças sentinelas de muitas gerações.

Depois o grande relógio começou a tocar as horas, o clamor do bronze a correr pela terra até muito longe, e então pareceu a Maxwell que, através do relógio a universidade lhe estava a dar as boas-vindas. O relógio era um amigo - não só dele, mas para todos quantos o ouviam. Deitado na cama, antes de dormir, ouvira-o tocar, noite após noite, contando as horas. Mais do que isso talvez. Como um guarda-nocturno, gritando que tudo ia bem.

Na sua frente estava o enorme complexo do Colégio do Tempo, erguendo-se na penumbra - sobrepondo-se à estrada e aos relvados, com os seus grandes quarteirões de plástico e de vidro, as luzes ardendo em multas das suas janelas. Agachado junto da base do complexo estava o museu e sobre a sua frontaria Maxwell viu a brancura agitada pelo vento de um dístico pintado sobre pano. Na penumbra e àquela distância pode apenas distinguir uma palavra: SHAKESPEARE.

Sorriu-se para si mesmo, ao pensar naquilo. A Literatura Inglesa devia estar fora de si. O velho Chenery e os outros nunca tinham perdoado ao Tempo o facto de ter determinado, dois ou três anos antes, que fora o Conde de Oxford, e não Shakespeare, o autor das obras. E aquela presença pessoal do homem de Stratford-on-Avon iria pôr sal nas feridas que ainda não tinham sarado.

Muito ao longe, sobre a colina do lado oeste, Maxwell podia distinguir a massa enorme da secção de administração, gravada em escuro sobre os últimos clarões vermelhos do céu ocidental.

O tapete continuou a mover-se, para além do Colégio do Tempo e do seu museu agachado com o dístico que flutuava ao vento. O relógio acabou de dizer as horas e as últimas notas dos seus sinos perderam-se na distância.

Seis da tarde. Dentro de poucos minutos sairia do tapete e iria para Winston Arms, que fora a sua casa durante os últimos quatro - não, os últimos cinco anos. Pôs a mão no bolso da direita do casaco e os dedos agarraram a pequena argola de chaves que se encontrava dentro dele.

Agora, pela primeira vez desde que deixara a estação de Wisconsin, a história do outro Peter Maxwell conseguia ocupar a parte frontal dos seus pensamentos. Podia ser verdade - ainda que não fosse muito provável. Podia ser o género de estratagema adoptado pela Segurança para fazer com que um homem abrisse a boca. Mas se não fora verdade, qual seria o motivo por que de Coonskin não haviam informado que ele não chegara? Ainda que essa informação também lhe tivesse sido dada pelo inspector Drayton, assim como a de que a mesma coisa acontecera duas vezes antes. Se podia ter dúvidas de Drayton quanto a uma informação, também podia ter de duas. Se tivessem havido outros seres apanhados pelo planeta de cristal, por certo que não lhe teriam dito nada sobre eles que ali estavam desde tempos esquecidos, maciças sentinelas de multas gerações.

Depois o grande relógio começou a tocar as horas, o clamor do bronze a correr pela terra até muito longe, e então pareceu a Maxwell que através do relógio a universidade lhe estava a dar as boas‑vindas. O relógio era um amigo ‑ não só dele, mas para todos quantos o ouviam. Deitado na cama, antes de dormir, ouvira-o tocar, noite após noite, contando as horas. Mais do que isso talvez. Como um guarda‑nocturno, gritando que tudo ia bem.

Na sua frente estava o enorme complexo do Colégio do Tempo, erguendo‑se na penumbra – sobrepondo-se à estrada e aos relvados, com os seus grandes quarteirões de plástico e de vidro, as luzes ardendo em multas das suas janelas. Agachado junto da base do complexo estava o museu e sobre a sua frontaria Maxwell viu a brancura agitada pelo vento de um dístico pintado sobre pano. Na penumbra e àquela distância pôde apenas distinguir uma palavra: SHAKESPEARE.

Sorriu‑se para si mesmo, ao pensar naquilo. A Lite­ratura Inglesa devia estar fora de si. O velho Chenery e os outros nunca tinham perdoado ao Tempo o facto de ter determinado, dois ou três anos antes, que fora o Conde de Oxford, e não Shakespeare, o autor das obras. E aquela presença pessoal do homem de Stratford‑on­‑Avon iria pôr sal nas feridas que ainda não tinham sarado.

Muito ao longe, sobre a colina do lado oeste, Maxwell podia distinguir a massa enorme da secção de administração, gravada em escuro sobre os últimos clarões ver­melhos do céu ocidental.

O tapete continuou a mover‑se, para além do Colégio do Tempo e do seu museu agachado com o dístico que flutuava ao vento. O relógio acabou de dizer as horas e as últimas notas dos seus sinos perderam-se na distância.

Seis da tarde. Dentro de poucos minutos sairia tapete e iria para Winston Arms, que fora a sua casa durante os últimos quatro ‑ não, os últimos cinco anos. Pôs a mão no bolso da direita do casaco e os dedos agarraram a pequena argola de chaves que se encontrava dentro dele.

Agora, pela primeira vez desde que deixara a estação de Wisconsin, a história do outro Peter Maxwell conseguia ocupar a parte frontal dos seus pensamentos. Podia ser verdade ‑ ainda que não fosse muito provável.

Podia ser o género de estratagema adoptado pela Segurança para fazer com que um homem abrisse a boca. Mas se não fora verdade, qual seria o motivo por que de Coonskin não haviam informado que ele não chegara? Ainda que essa informação também lhe tivesse sido dada pelo inspector Drayton, assim como a de que a mesma coisa acontecera duas vezes antes. Se podia ter dúvidas de Drayton quanto a uma informação, também podia de duas. Se tivessem havido outros planeta de cristal, por certo que não lhe teriam nada sobre eles quando estivera ali. Quanto a isso ‑ notou Maxwell ‑ também não havia provas dignas de confiança. Sem dúvida que as criaturas do planeta de cristal lhe tinham dito apenas aquelas coisas que queriam que ele soubesse.

A coisa que mais o que Drayton dissera, mas o que Mr. O'Toole lhe contara: Enviámos uma coroa de agarico e azevinho para expressar a nossa mais profunda dor. Se o curso dos acontecimentos tivesse sido outro, ele teria falado sobre isso com o seu amigo duende mas não tivera possibilidade de falar fosse do que fosse.

Tudo isso podia esperar. Dai a pouco, logo que chegasse a casa, agarraria no telefone, faria uma chamada ‑ para qualquer pessoa entre muitas ‑ e então saberia a verdade. A quem deveria telefonar? A Harlow Sharp, no Tempo, ou a Dallas Gregg, chefe do seu departa­mento, ou talvez a Xigmu Maon Tyre, o velho Erida­neano que tinha o pêlo branco de neve e meditabundos olhos violeta e que passara uma longa parte da sua vida no pequeno cubículo em que trabalhava na análise da estrutura dos mitos. Ou ainda a Allen Preston, amigo e advogado. Talvez fosse melhor telefonar a ele porque, se o que Drayton dissera fosse verdade, a situação pode­ria dar origem a alguns problemas legais muito aborre­cidos.

Repreendeu‑se a si mesmo, impaciente. Estava já a acreditar naquilo ‑ ou a principiar a acreditar. Se per­sistisse, acabaria por tentar convencer‑se de que podia ser verdade.

O Winston Arms estava já à vista, no fundo da rua e ele saltou do lugar, agarrou na mala e passou para o tapete exterior, que mal se movia. Esperou ali, de pé, e quando passou pela frente do edifício saltou.

Ninguém estava à vista quando subiu os largos de­graus de pedra e entrou no átrio. Remexeu no bolso e encontrou a chave que abria a porta interior. Um ele­vador estava à espera; entrou nele e carregou no botão para o sétimo andar.

A chave entrou suavemente na fechadura do seu apartamento e quando ele a fez girar a porta abriu‑se. Entrou na sala às escuras. Atrás dele a porta fechou‑se automaticamente, com um estalido da fechadura, e ele estendeu a mão para o painel, a fim de abrir a luz.

Mas deteve‑se subitamente. Havia ali qualquer coisa que não estava certa. Um pressentimento, uma sensação de qualquer coisa, talvez um certo cheiro. Era isso - ­um cheiro. Um odor estranho, leve e delicado.

Apoiou a mão contra o painel e as luzes acenderam‑se.

A sala não era a mesma. Os móveis eram diferentes e as pinturas gritantes na parede... Nunca tivera nem nunca viria a ter pinturas daquelas!

Atrás dele a fechadura deu novamente um estalido e ele deu meia volta, num movimento rápido. A porta abriu‑se e um tigre de dentes de sabre entrou num salto.

Ao ver Maxwell, o grande gato agachou‑se e rosnou, expondo dentes de quinze centímetros de comprimento, afiados como punhais.

A cambalear, Maxwell recuou. O «gato» aproximou‑se, sempre a rosnar. Maxwell recuou novamente, sentiu uma súbita pancada acima do tornozelo, quis desviar‑se mas não o conseguiu e logo soube que ia cair. Vira o banco almofadado, devia ter‑se lembrado dele ‑ mas não se lembrara. Tentou obrigar o corpo a descontrair‑se antes de bater no chão ‑ mas não bateu. As suas costas assen­taram sobre qualquer coisa macia e ele soube que caíra sobre o divã que se encontrava atrás do banco.

O tigre saltara através do ar, de uma maneira graciosa, as orelhas repuxadas para trás, a boca meio aberta, as patas enormes abertas para baterem com toda a força. Maxwell ergueu os braços num rápido gesto defensivo, mas eles foram atirados para o lado como se não existissem e as patas assentaram‑lhe sobre o peito, esmagando‑o contra o divã. A grande cabeça do tigre com as suas presas rebrilhantes, estava suspensa sobre o rosto dele. A pouco e pouco, quase suavemente, o animal baixou a cabeça e com uma língua comprida e rosada, começou a lamber o rosto de Maxwell

O tigre pôs‑se a ronronar.

‑ Silvestre! ‑ gritou uma voz vinda da porta ‑ Silvestre, pára com isso!

O animal lambeu mais uma vez o rosto de Maxwell

com a sua língua húmida e rugosa, depois sentou‑se sobre os quadris, com um semi‑sorriso no focinho e as orelhas apontadas para a frente, olhando‑o, com um inte­resse amigável e entusiástico.

Maxwell procurou erguer‑se e ficou meio sentado, com as costas apoiadas no divã.

‑ E você ? Quem é? ‑ perguntou a rapariga que sur­gira na porta.

‑ Eu...

‑ Perdeu a coragem?

Silvestre ronronou mais alto.

‑ Perdoe‑me ‑ disse Maxwell. ‑ Mas eu vivo aqui. Ou pelo menos vivia. Não é o 721?

‑ É ‑ respondeu a rapariga. ‑ Aluguei‑o exacta­mente há uma semana.

Maxwell abanou a cabeça.

‑ Devia ter compreendido isso. A mobília não era a minha.

‑ Disse ao senhorio para deitar tudo fora ‑ respon­deu ela. ‑ Era simplesmente atroz.

‑ Vejamos. Uma velha poltrona verde...

‑ E um bar de nogueira, uma paisagem marítima monstruosa...

‑ Basta. Foram as minhas coisas que mandou deitar fora.

‑ Não compreendo. O senhorio disse que o inquilino anterior tinha morrido. Creio que foi um acidente.

Maxwell pôs-se de pé lentamente. O tigre ergueu‑se, aproximou‑se e esfregou‑se afectuosamente contra as pernas dele.

‑ Pára com isso, Silvestre ‑ disse a rapariga.

Mas o tigre continuou a esfregar‑se.

‑ Não lhe dê importância. Não passa de uma criança grande.

‑ Um biornec?

A rapariga moveu a cabeça afirmativamente.

‑ A coisa mais engraçada que existe. Vai a toda a parte comigo. Poucas vezes é maçador. Não sei o que lhe aconteceu. Deve gostar de si. Quer beber qualquer coisa?

‑ Creio que sim ‑ respondeu ele. ‑ Chamo‑me Peter Maxwell e sou professor ...

‑ Um momento. Disse Maxwell? Peter Maxwell. Re­cordo‑me agora. do nome,...

‑ Bem sei. Do homem que morreu.

Maxwell sentou‑se com cuidado no divã.

‑ Vou preparar a bebida ‑ disse a rapariga.

Silvestre aproximou‑se e apoiou a enorme cabeça no colo de Maxwell.

‑ Tudo isto está a tornar‑se muito complicado.

‑ Devo dizer que está a enfrentar muito bem a situa­ção. Talvez esteja um pouco abalado, mas de modo algum abatido.

‑Bem, a questão é esta: creio que ainda não acre­dito que tenha acontecido tal coisa.

Olhou para ela e foi a primeira vez que de facto a viu ‑ elegante e bem arranjada, com o cabelo louro e encaracolado, pestanas compridas, as maçãs do rosto salientes e olhos que sorriam para ele.

‑ Como se chama? ‑perguntou Maxwell.

‑ Carol Hampton. Historiadora, no Tempo.

‑ Miss Hampton, peço muita desculpa desta situa­ção. Tenho estado fora... do planeta. Acabo de voltar. Tinha uma chave que servia na porta e esta era a minha casa...

‑ Não é preciso explicar.

A rapariga trouxe a bebida e sentou‑se ao lado dele.

‑ Não compreendo ‑ disse ela. ‑ Se você é o homem que...

‑ Bem, vou beber. Depois levantar‑me‑ei e sairei. A menos que...

‑ A menos que?

‑ A menos que queira jantar comigo. Chamemos‑lhe uma maneira de recompensar a sua compreensão. Podia ter fugido aos gritos.

‑Se se tratar de uma armadilha! Se você...

‑ Não poderia ser ‑ respondeu ele. ‑ Sou muito es­túpido para pensar numa coisa dessas. E, além disso, como teria eu a chave ?

Ela olhou‑o por um momento e depois disse:

‑ O disparate foi meu. Mas o Silvestre terá de vir connosco. Não pode ficar só.

‑ Por que não? Nunca pensaria em o deixar. Ele e eu somos amigos.

‑ Vou buscar‑lhe um bife do lombo ‑ avisou ela. ‑ Está sempre com fome e só come bons bifes. Grandes... e crus.

 

O Porco e Apito estava escuro, cheio de barulho e fumo. As mesas arrimadas umas às outras, com pequenas passagens entre elas. Velas ardiam com chamas trémulas. O murmúrio abafado de muitas vozes, que pareciam falar todas simultaneamente, enchia a sala de tecto baixo.

Maxwell parou e espreitou, tentando descobrir uma mesa vaga. Talvez, pensou ele, os seus amigos tivessem ido para outro lugar qualquer, mas queria comer ali, porque a casa, que servia de covil aos estudantes e alguns professores, lhe lembrava a universidade.

‑Talvez fosse melhor irmos a qualquer outro lado ‑disse ele a Carol Hampton.

‑ Não tardará que nos arranjem uma mesa ‑ disse ela. ‑ Toda a gente parece muito apressada. Silvestre, está quieto!

Dirigiu‑se, num tom lamentoso, às pessoas que esta­vam na mesa junto da qual haviam parado:

‑ Desculpem, por favor. Ele não tem quaisquer ma­neiras. Atira‑se a tudo quanto vê.

Silvestre lambeu as costeletas, satisfeito.

‑ Não pense nisso, miss ‑ disse um homem com uma barba emaranhada. ‑ Na realidade, não me apetecia. É um hábito meu, encomendar costeletas do lombo.

Alguém gritou através da sala:

- Pete! Pete Maxwell!

Numa mesa afastada, metida num canto, alguém se erguera e agitava os braços. Maxwell conseguiu por fim distinguir quem era: Alley Oop. E ao lado estava a figura do Fantasma, envolta num manto branco.

- Seus amigos? -perguntou Carol.

- Sim. Parece que querem que nos juntemos a eles. Importa-se ?

- O homem de Neanderthal?

- Conhece-o ?

- Não, Mas tenho-o visto por aí. Gostaria de o conhecer. E aquele é o Fantasma?

- São inseparáveis.

- Bem, então vamos lá.

- Podemos cumprimentá-los e depois ir a outro lugar.

- Nem pensar nisso - disse ela. - Este lugar parece interessante.

- Nunca esteve aqui?

- Nunca me atrevi.

- Então hoje será a primeira vez.

Maxwell abriu caminho devagar através das mesas, seguido pela rapariga e pelo tigre.

Alley Oop deu um salto ao encontro dele, abraçou-o, apertou-o, agarrou-o pelos ombros e atirou-o a um braço de comprimento para lhe ver bem o rosto.

- És o Velho Pete ? - perguntou ele. - Não estás a enganar-nos ?

- Sou o Pete - respondeu Maxwell. - Quem pensas que sou ?

-Bem, então quero saber quem foi que enterrámos há três semanas - faz na próxima quinta-feira. Tanto eu como o Fantasma estivemos lá. E deves-nos vinte dólares de indemnização pelas flores que te mandámos. Foi o que elas nos custaram.

- Sentemo-nos - disse Maxwell.

- Tens medo de que façamos uma cena? - perguntou Oop. - Este sítio foi feito para cenas. Há murro a todas as horas e há sempre alguém que salta para uma mesa para fazer um discurso.

- Oop - observou Maxwell. - Está aqui uma senhora e quero que te domines e, te tornes civilizado. Miss Carol Hampton... Este grande imbecil é Alley Oop.

- Encantado por a conhecer, Miss Hampton - disse Alley Oop. -E que tem ai consigo? Vivinho e a respirar... um dentes-de-sabre! Tenho de lhe contar uma coisa sobre uma ocasião em que, durante uma tempestade de neve, procurei abrigo numa caverna e encontrei nela um grande gato como este. Não tinha nada comigo senão uma faca de pedra, sem fio. Tinha perdido o meu cacete quando encontrei o urso...

- Fica para outra vez - interrompeu Maxwell. Pelo menos deixa que rios sentemos. Ternos fome. Não queremos ser postos na rua.

- Pete - insistiu Alley Oop - , é uma distinção ser posto fora desta casa. Não temos categoria social digna desse nome enquanto não tivermos sido postos Da rua. No entanto, a resmungar, voltou à mesa e ofereceu uma cadeira a Carol. Silvestre colocou-se entre Maxwell e Carol, apoiou o queixo na mesa e olhou tristemente para Oop.

- Este gato não gosta de mim - declarou Oop. Provavelmente sabe dos seus antepassados que matei durante a Velha Idade da Pedra.

- É apenas um biomec - disse Carol. - Não é possível.

- Não acredito -Insistiu Oop. - Este patife não é um biomec. Nos olhos dele há a suja maldade de todos os dentes-de-sabre.

- Por favor, Oop - interrompeu Maxwell. - Só Um momento. Miss Hampton, este cavalheiro é o Fantasma. Um velho amigo meu.

- Tenho muito prazer em o conhecer, Mr. Fantasma.

- Não. «Mister» não - disse o Fantasma. -Apenas o Fantasma. É tudo quanto sou. E o que é terrível é que não sei de quem sou o fantasma. Tenho o maior prazer em a conhecer. É tão agradável sermos quatro à mesa... Há qualquer coisa de belo e equilibrado no número quatro.

- Bem - disse Oop - , agora que nos conhecemos todos, vamos ao trabalho. Bebamos qualquer coisa. É muito triste um homem ter de beber sozinho. Gosto do Fantasma, evidentemente, por causa das suas muitas e maravilhosas qualidades, mas odeio um homem que não bebe.

- Sabes que eu não posso beber - observou o Fantasma. - Nem comer. Ou fumar. Um fantasma não pode fazer muita coisa. Mas não gosto que apontes isso a toda a gente que encontramos.

Oop disse a Carol:

- Parece estar surpreendida pelo facto de o bárbaro de Neanderthal poder dominar a linguagem com a segurança que eu tenho.

- Não estou surpreendida - respondeu a rapariga. - Estou estupefacta.

- Oop absorveu mais educação nos últimos doze anos do que a maior parte dos homens comuns - disse Maxwell. - Começou praticamente no jardim-de-infância e agora está a doutorar-se. E o mais interessante é que quer continuar. Pode-se dizer que é um dos nossos mais notáveis estudantes profissionais.

Oop ergueu o braço e agitou-o, berrando para um empregado:

- Aqui! Há gente que quer ser servida. Estão todos a morrer de sede!

O empregado aproximou-se de Oop.

- Você outra vez - disse ele. - Devia ter adivinhado quando me gritou. É mal-educado, Oop.

- Temos aqui um homem que voltou do meio dos mortos - disse-lhe Oop, ignorando o insulto - Creio que está certo que comemoremos a sua ressurreição com uma boa paródia.

- Se quer alguma bebida encomende-a.

- Porque é que não traz uma boa garrafa, um balde com gelo e quatro - não, três copos. Como sabe, o Fantasma não bebe.

- Bem sei.

- Isto se Miss Hampton não preferir uma dessas bebidas engraçadas - disse Oop.

- Quem sou eu para estragar a festa? - perguntou a rapariga. - Que vão beber?

- «Bourbon» - respondeu Oop. - Pete e eu temos gostos estranhos.

- Pois então seja «bourbon» - disse Carol.

- Parto do princípio de que quando trouxer a garrafa terão dinheiro para me pagar - advertiu o empregado. - Ainda me recordo...

- Se eu não o tiver terá o Velho Pete - respondeu Oop.

- Pete ? - O empregado olhou para Maxwell e exclamou: - Professor! - Ouvi dizer que...

- Era o que estávamos a tentar dizer-lhe - insistiu Oop. - É o que estamos a celebrar. Ele regressou de entre os mortos.

- Mas eu não compreendo.

- Nem é preciso. Traga a «Pinga» depressa.

O empregado afastou-se a correr.

- E agora - pediu o Fantasma a Maxwell - diga-nos por favor quem é. Aparentemente não é um fantasma, ou, se é, houve muitos aperfeiçoamentos desde que o homem que eu represento abandonou O seu invólucro mortal. -

- Parece que sou uma personalidade dividida - respondeu Maxwell. - Pelo que vejo, um de mim morreu num acidente.

- Mas é impossível - interrompeu Carol. - A personalidade dividida no sentido mental -está certo, é compreensível. Mas fisicamente...

- Não há nada no céu e na terra que seja impossível -disse o Fantasma.

- É uma má citação e está errada -comentou Oop.

- Voltemos a essa personalidade dividida - disse a rapariga. - Pode dizer-nos na verdade o que aconteceu?

- Parti para um dos planetas de Coonskin - respondeu Maxwell -, e em qualquer parte do caminho a minha onda foi duplicada. Apareci em dois sítios.

- Quer dizer que houve dois Pete Maxwells?

- É isso.                     

- No teu lugar, eu intentava-lhes um processo – disse Oop. - Esse pessoal dos Transportes é constituído por criminosos. Podes dar-lhes uma boa sacudidela. Eu e o Fantasma seremos tuas testemunhas. Fomos ao teu funeral. E, pensando bem, também nós os podemos levar a tribunal. Por angústia mental. O nosso melhor amigo frio e rígido no caixão e nós ali prostrados de dor.

- E é verdade - disse o Fantasma.

- Não tenho qualquer dúvida disso - observou Maxwell.    

- Nunca vi um grupo tão curioso -comentou Carol.

- Creio que vou gostar de vocês.

- Também gosto disto - disse Oop. - Digam o que disserem, esta vossa civilização é um grande melhoramento em relação aos meus tempos. E o dia mais feliz da minha vida foi aquele em que uma equipa do Tempo me apanhou mesmo no momento em que os meus adorados irmãos de tribo iam refastelar-se à minha custa. Não os critico em particular. Fora um Inverno longo e duro, a neve era espessa e a caça muito rara. Havia também certos membros da tribo que tinham umas contas a ajustar comigo. Estava prestes a apanhar uma cacetada na cabeça e – digamos - ser metido na panela.

- Canibalismo! - gritou Carol, horrorizada.

- Ora... É muito natural. Naqueles dias rudes era muito aceitável. Creio que nunca soube verdadeiramente o que é ter fome. Fome nas entranhas. Sentir-se mirrar de fome...

Interrompeu-se e olhou em volta.

- A coisa mais confortante quanto a esta cultura prosseguiu ele - é a abundância de comida. Nos nossos tempos tínhamos altos e baixos. Uma vez matámos um mastodonte e comemos até vomitar...

- Duvido de que esse seja o melhor tema para uma conversa durante o jantar - avisou o Fantasma.

Oop olhou para Carol.

- Também digo o mesmo. Mas sou honesto. Quando falo de vómitos, digo-o sem rodeios.

O empregado trouxe a bebida, batendo com ela e o balde de gelo sobre a mesa.

- Querem dar agora as vossas ordens?

- Ainda não decidimos o que vamos comer nesta espelunca - disse Oop. -Que bebamos está bem, mas...

- Então aqui tem - respondeu o empregado, apresentando a conta.

Oop remexeu as algibeiras e tirou delas o dinheiro. Maxwell começou a preparar as bebidas.

- Vamos comer aqui, não vamos ? - perguntou Carol.

-Se o Silvestre não apanhar o bife do lombo que lhe prometi, não sei o que acontecerá. Tem sido tão paciente e tão bom, com todo este cheiro a comida...

- Já comeu um bife - observou Maxwell.

- Um bife cozinhado - protestou Carol. - Ele gosta dos bifes crus. Além disso, era pequeno.

- Oop - disse  Maxwell chama esse empregado. Tens boa voz para isso.

Oop levantou um braço peludo e berrou. Esperou um momento e depois berrou outra vez, sem resultado.

- Ele não me dá atenção - resmungou Oop .- Talvez não seja o nosso. Nunca serei capaz de distinguir estes macacos. Parecem-me todos iguais.

- Não gosto do ambiente hoje - disse o Fantasma. - Tenho estado a observar.

- Qual é o problema?

- Há ai uma porção de patifes da Literatura Inglesa. Isto não é o buraco deles. Normalmente, só vem aqui o pessoal do Tempo e dos Sobrenaturais.

- Fala dessa questão do Shakespeare?

-Talvez - respondeu o Fantasma.

Maxwell serviu a Carol uma bebida e lançou outra pela mesa fora em direcção a Oop.

Da frente da casa veio o ruído de uma discussão. Carol e Maxwell viraram-se nas cadeiras para olhar na direcção dela, mas não havia muito que ver.

Um homem saltou de repente para cima de uma mesa e começou a cantar:

- Hurrah pelo velho Bill Shakespeare;

Que nunca escreveu aquelas peças;

Ficou em casa, a caçar raparigas

E a cantar p'ra elas vão pediu meças...

Ouviram-se aplausos e assobios através da sala e alguém atirou qualquer coisa que passou pelo cantor sem lhe tocar. Parte dos assistentes começou também a cantar:

- Hurrah pelo velho, Bill Shakespeare; Que nunca escreveu ...

Alguém, com uma voz de estentor, berrou:

- O velho Bill Shakespeare que vá para o Inferno! A sala explodiu em acção. Cadeiras surgiram no ar. Outras pessoas apareceram em cima das mesas. Ecoaram gritos e havia gente a empurrar e a puxar. Os socos começaram a voar. E várias coisas passaram a andar pelo ar.

Maxwell pôs-se de pé de um salto, estendeu um braço e voltou-o para trás, colocando bruscamente Carol atrás dele. Oop saltou para cima da mesa, com um grito louco de guerra. O pé dele tropeçou no balde e os cubos de gelo voaram.

- Vou deitá-los abaixo! - gritou ele a Maxwell. Empilha-os aí a um canto!

Maxwell viu um punho aparecer de repente diante dele e desviou-se para o lado. Deu um soco para cima, numa direcção mal-intencionada, mas não bateu em coisa nenhuma. Sobre o ombro dele passou o braço cabeludo de Oop, com um enorme punho na frente. Bateu num rosto com o som de qualquer coisa que se quebra e atrás da mesa alguém caiu no chão.

Uma coisa pesada e que se movia depressa apanhou Maxwell atrás da orelha e ele caiu. A sua volta nasceram pés por toda a parte. Alguém pisou-lhe uma das mãos. E alguém caiu em cima dele. Lá no alto, aparentemente muito longe, ouvia-se o louco grito de guerra de Oop.

Torcendo-se e contorcendo-se, conseguiu desembaraçar-se do corpo que caíra em cima dele e pôs-se de pé, a cambalear.

Uma mão agarrou-o pelo cotovelo e fê-lo dar meia volta.

- Saiamos daqui - disse Oop. - Senão ainda alguém se aleija.

Carol estava encostada à mesa e curvada, com as mãos agarradas à pele do pescoço de Silvestre. O tigre estava sentado sobre os quartos traseiros e rasgava o ar com as patas da frente. Na sua garganta ouviam-se rosnidos e os seus longos dentes brilhavam.

Se não sairmos daqui - disse Oop -, esse gato ainda come o seu bife.

Abaixou-se rapidamente e enrolou um braço em volta do tigre, levantou-o pelo meio e apertou-o contra o peito.

- Toma conta da rapariga - disse ele a Maxwell. Há uma porta nas traseiras. E não te esqueças da garrafa. Necessitaremos dela mais tarde.

Maxwell agarrou na garrafa.

O Fantasma desaparecera.

 

Sou um cobarde - confessou o Fantasma. - Pareço uma galinha, ao primeiro sinal de violência.

- E afinal - disse Oop - é o único tipo do mundo em quem ninguém pode pôr uma mão em cima.

Sentaram-se junto da rude e oscilante mesa que Oop, num momento de inspiração doméstica, construíra com tábuas por aplainar, Carol afastou o prato.

- Tinha fome - disse ela -, mas agora já não tenho

- Não é só consigo que isso acontece - disse Oop - Olhe para o seu gato.

Silvestre estava enrolado em frente da lareira, a cauda cuidadosamente enrolada, as patas peludas a cobrirem o nariz, Os bigodes agitavam-se suavemente quando respirava.

Oop agarrou na garrafa e abanou-a. Estava vazia. Pôs-se de pé com dificuldade, atravessou a sala, ajoelhou-se, abriu um pequeno alçapão e tirou dele um pequeno frasco de compota que pôs para o lado. Tirou outro que colocou junto do primeiro. Por fim surgiu triunfante com uma garrafa.

Voltou a colocar os frascos de compota no esconderijo e fechou o alçapão. Quando chegou à mesa arrancou a rolha da garrafa e começou a encher os copos.

- Vocês não precisam de gelo - disse ele. - Dilui a bebida. E, além disso, não tenho nenhum.

O Fantasma olhava para a fogueira. Lá fora, um vento cada vez mais forte fazia oscilar a cabana.

- Nunca comi tão bem - confessou Carol. - Foi a primeira vez que cozinhei o meu próprio bife, espetado num ramo por cima de uma fogueira.

Oop arrotou, satisfeito.

- Era assim que fazíamos na velha Idade da Pedra. Ou então comíamo-los crus, como o dentes-de-sabre. Não tínhamos fogões nem fornos nem coisinhas dessas.

- Tenho a impressão de que era melhor não perguntar - disse Maxwell -, mas onde arranjaste esse monte de costeletas? Supunha que os talhos estavam fechados.

- Bem, estavam - confessou Oop. - Mas este tinha um cadeado muito pobrezinho na porta das traseiras...

- Qualquer dia temos sarilho - disse o Fantasma.

Oop abanou a cabeça.

- Não creio. E, de resto, amanhã vou lá e explico que se tratava de uma questão de absoluta necessidade. Já agora - disse ele a Maxwell -, tens algum dinheiro?

- Estou cheio dele - respondeu Maxwell. - Levei comigo dinheiro para as despesas que tinha a fazer em Coonskin e não gastei sequer um tostão.

- Foi considerado como um hóspede no outro planeta ? - perguntou Carol.

- Suponho que sim - respondeu Maxwell. - Nunca compreendi exactamente qual era a minha posição.

- Era boa gente?

- Sim, eram bons - mas não sei se eram gente.

Voltou-se para Oop.

- Quanto é que precisas?

- Creio que cem bastarão. Há a carne, a porta arrombada, e não falo dos sentimentos do nosso amigo -o dono do talho.

Maxwell tirou a carteira do bolso, contou algumas notas e deu-as a Oop.

O Fantasma perguntou:

- Está aqui de visita, Miss Hampton?

- Não - respondeu Carol, surpreendida. - Trabalho aqui. De onde lhe veio essa ideia?

- Do tigre. Disse que era um biomec. Pensei naturalmente que trabalhasse na Biomecânica.

- Compreendo. Viena ou Nova Iorque.

- Se bem me recordo - disse o Fantasma - , há também um centro na Ásia. Em Ulan Bator.

- O que ele quer dizer - explicou Oop - é que, a menos que você pertença à Biomecânica, deve custar muito dinheiro ter um bicho como este.

- Agora já compreendo - disse Carol. - De facto custa muito dinheiro. E isso é que eu não tenho. Mas o meu pai, antes de se reformar, esteve na Biomecânica, em Nova lorque. O Silvestre foi o projecto colectivo de um seminário que ele dirigiu. Os estudantes ofereceram-lho.

- Continuo a não acreditar - insistiu Oop. - Esse gatarrão não pode ser um biornec. Tem nos olhos o brilho maldoso dos dentes-de-sabre.

- Na verdade - observou a rapariga - é muito mais «bio» do que «mec», e o mesmo acontece com todos eles hoje. O nome surgiu quando se juntava um cérebro electrónico muito aperfeiçoado e um sistema nervoso a determinados protoplasmas. Mas hoje a única coisa mecânica que há neles são os órgãos que poderiam envelhecer se fossem feitos de tecidos - o coração, os rins, os pulmões e coisas como essas. O que está hoje a ser feito na Biomecânica é a autêntica criação de formas específicas de vida - mas vocês sabem bem disso, evidentemente.

- Há histórias estranhas - observou Maxwell. – Um grupo de super-homens, fechado à chave. Já ouviu falar nisso ?

-Sim. Há sempre boatos.

- O melhor que ouvi nos últimos dias é formidável -disse Oop - Contaram-me que os Sobrenaturais estabeleceram contacto com o Diabo. Que tal esta, Maxwell?

- Não sei. Suponho que alguém tenha tentado. Estou quase certo de que isso aconteceu. Era uma coisa óbvia.

- Quer dizer que de facto o Diabo existe? - perguntou Carol.

- Há duzentos anos – disse Maxwell - as pessoas perguntavam, exactamente nesse tom de voz, se na verdade existiam génios e duendes.

- E fantasmas - acrescentou o Fantasma.

- Está a falar a sério? - gritou Carol.

- Não - respondeu Maxwell. - Acontece apenas que nem o Demónio posso rejeitar.

- Isto é uma idade maravilhosa - afirmou Oop. Vocês acabaram com as superstições e com as histórias das velhinhas. Investigam-nas em busca da verdade. Mas a minha gente sabia que havia génios e duendes e todas essas coisas. As histórias que se contavam, como sabem, eram sempre baseadas em factos. Mas o homem, quando perdeu a sua simplicidade selvagem, negou os factos. E quando a população humana começou a aumentar, essas criaturas esconderam-se o melhor que puderam.

O Fantasma perguntou:

- E o Diabo?

- Não tenho a certeza - respondeu Oop. - Talvez. Mas não sei. Há todas essas coisas que vocês voltaram a descobrir e puseram a viver em reservas. Mas há muitas mais. Algumas delas medonhas e todas perturbadoras.

- Parece que não gosta muito delas - observou

- É, verdade - confessou OOP.

- Parece-me - disse o Fantasma - que isso seria um terreno fértil para qualquer investigação do Tempo. Aparentemente houve muitas espécies diferentes de... Como é que lhe chamam? ... Primatas ?

- Creio que é isso -disse Maxwell.

- Primatas de uma estirpe diferente dos macacos e dos homens.            

-De uma estirpe muito diferente - disse Oop - Malditos patifes.

-Tenho a certeza de que qualquer dia...-disse Carol. - O Tempo deve consegui-lo. Eles

sabem disso, não é verdade ?

- Sabem - respondeu Oop. - Tenho-lo dito muitas vezes, com a conveniente descrição.

- O Tempo tem muito que fazer - recordou Maxwell. - Multa coisa com que se preocupar. O Passado inteiro.

- E falta-lhe dinheiro para isso - observou Carol.

- Eis uma leal funcionária do Tempo - comentou Maxwell.

- É a verdade - protestou a rapariga. - Todas as outras ciências podem aprender muito através da investigação do Tempo. Não se pode confiar na história escrita. Mas os outros departamentos fornecem alguns fundos para a investigação do Tempo? Não! Só alguns. A Faculdade de Direito tem cooperado de uma maneira esplêndida, mas os outros não. Têm medo. Olhe esta questão de Shakespeare, por exemplo. Seria de esperar que a Literatura Inglesa ficasse agradecida por saber mie fora Oxford quem escrevera as obras. No fim de tudo, era uma questão sobre a qual haviam discutido durante muitos anos - quem escrevera as obras? Mas ficaram ressentidos quando o Tempo descobriu quem de facto as escrevera.

- E agora - observou Maxwell - o Tempo vai trazer Shakespeare para fazer uma conferência sobre o assunto. Não será provocá-los demasiado?

- O principal não é isso - explicou a rapariga. - O que importa é que o Tempo é obrigado a fazer estes espectáculos para arranjar algum dinheiro. Estamos a arranjar uma reputação de palhaços. Não creio que o reitor Sharp goste...

- Conheço Harlow Sharp - disse Maxwell. - Creia-me que ele até gosta muito.

- Estão a brincar comigo - protestou Carol. - Mas o dia virá em que o Tempo terá os fundos necessários para tudo quanto necessitar. Para todos os seus projectos favoritos e para dar bicadas nas outras faculdades. Quando fizer o negócio...

A rapariga parou de repente. Ficou hirta. Podia sentir-se que ela queria tapar a boca com a mão e só o evitava através de uma vontade de ferro.

- Que negócio? - perguntou Maxwell.

- Creio que sei - respondeu Oop. - Ouvi um rumor e não lhe dei atenção. Ainda que os rumores como esse -pequeninos -sejam aqueles que em geral correspondem à verdade...

- Oop, não faças discursos - disse o Fantasma. Diz apenas o que ouviste.

-É incrível - respondeu Oop. - Vocês nunca me acreditariam.

- Pare com isso! - exclamou Carol.

Todos olharam para ela.

- Deixei escapar uma coisa que não devia dizer confessou a rapariga. Posso pedir-lhes para esquecerem isso? Nem sequer tenho a certeza...

- Certamente - respondeu Maxwell. - Você tem passado tanto, esta noite...

- Não - respondeu Carol. - Não tenho o direito de vos pedir isso. Vou contar-lhes tudo e confiar na vossa discrição. E tenho a certeza de que é verdade. O Tempo recebeu uma oferta em relação ao Artefacto.

O silêncio ecoou na sala e os outros três ficaram imóveis, quase sem respirarem. A rapariga olhou para todos, um por um, sem compreender bem o que se passava.

Por fim o Fantasma moveu-se um pouco e houve qualquer coisa que se alterou no silêncio da sala, como se a sua mortalha branca fosse de facto uma mortalha que fizesse ruído quando ele se movesse.

- Você não compreende quanto queremos ao Artefacto - disse ele.

- Deitou-nos abaixo - murmurou Oop.

- O Artefacto... - disse Maxwell em voz baixa. - O maior mistério, a única coisa no mundo que ninguém sabe explicar...

- Uma pedra curiosa - disse Oop.

- Não é uma pedra - disse o Fantasma.

- Então talvez sejam capazes de me dizer o que é - concluiu a rapariga.

Isso era uma coisa que nem o Fantasma nem mais ninguém poderia fazer - pensou Maxwell. Descoberto havia dez anos ou mais pelos investigadores do Tempo no cimo de uma montanha no Período Jurássico, fora trazido para o presente com muita despesa e muito engenho. O seu peso exigira tanta energia que havia sido necessário projectar para trás no tempo um gerador nuclear portátil, transportado em muitas peças e montado no lugar. E depois houve que trazer de novo o gerador, visto que nada dessa espécie, por uma simples questão de ética, podia ser abandonado no passado - mesmo no longínquo Jurãssico.

- Não posso dizer-lhe - confessou o Fantasma. - Não há ninguém que o possa dizer.

O Fantasma tinha razão. Ninguém conseguira compreender o que aquilo era. Um bloco maciço de qualquer material que agora se sabia não ser pedra nem metal, ainda que em tempos se pensasse ser pedra e mais tarde metal, e que desafiara todas as investigações. Um metro e oitenta de comprimento, um metro e vinte em cada lado, uma massa negra que não absorvia nem emitia energia, que reflectia toda a luz e todas as radiações da sua superfície, que não podia ser cortada ou amachucada, detendo um feixe de laser como se esse feixe não existisse. Não havia nada que o pudesse sequer arranhar, nada que o pudesse sondar - não era possível obter qualquer informação acerca dele. Mantinha-se no seu pedestal no átrio do Museu do Tempo, como a única coisa do mundo sobre a qual ninguém podia fazer sequer uma hipótese válida.

- Então, qual é o motivo de tanta consternação? Perguntou Carol.

- Porque Pete tem a impressão de que ele pode ter sido o deus da Gente Pequenina - disse Oop. Isto se esses patifes têm a capacidade necessária para reconhecer um deus.

- Lamento muito - disse Carol. - Não sabia. Talvez se o Tempo soubesse...

- Não há elementos suficientes para falar sequer nisso - disse Maxwell. - É um palpite e nada mais. Por causa de certas coisas que ouvi à Gente Pequenina. Mas nem eles sabem. Foi há tanto tempo...

Há tanto tempo - pensou ele. Havia quase duzentos milhões de anos!

 

Este Oop... - disse Carol. - Não posso esquecê-lo.

- E Esta casa tão curiosa que ele, tem é mesmo incrível.

- Ele ficaria ofendido se ouvisse chamar-lhe uma casa. É uma barraca e ele tem muito orgulho nisso. O salto de uma caverna para uma casa teria sido demasiado para ele. Sentir-se-ia pouco à vontade.

Uma caverna? Ele viveu de facto numa caverna? -Deixe que lhe diga umas coisas sobre o nosso velho amigo Oop. 'Ê um grande mentiroso. Você não pode acreditar em todas as histórias que ele conte. Mas quanto ao geral, é suficientemente digno de confiança. Só quando começa a falar das suas aventuras é que importa duvidar dele.

As estrelas límpidas do Outono brilhavam como gelo no céu escuro. A estrada, quase vazia, continuava ao longo da crista. Em baixo estavam as luzes sem fim da universidade. O vento, soprando pela crista, trazia consigo o cheiro longínquo de folhas queimadas.

-A fogueira foi bonita - disse Carol. - Porque é que não fazemos fogueiras, Peter? Seria tão simples. Não devia custar muito a construir uma lareira.

- Houve tempos, há alguns séculos, que todas as casas ou quase todas tinham uma lareira. As vezes algumas. Essa coisa era, evidentemente, um atavismo. Uma recordação dos dias em que o fogo era uma protecção e uma fonte de calor. Mas por fim deixámos isso para trás.

- Não creio - disse a rapariga. - Limitámo-nos a voltar as costas para essa parte do nosso passado. Ainda temos necessidade do fogo. Talvez uma necessidade psicológica. Descobri isso esta noite.

- Oop não poderia viver sem uma fogueira. A falta da fogueira era a coisa que mais o preocupava quando o Tempo o trouxe para cá. Teve de ser mantido prisioneiro durante um certo período, evidentemente. Mas quando se tornou senhor do seu destino arranjou um pedaço de terra e construiu a barraca. Tosca, como ele a queria. E, evidentemente, com uma lareira. E um jardim.

- Esteve prisioneiro? E agora? Qual é a sua ligação com o Tempo ?

- Está à guarda da Faculdade. De resto, ninguém o pode afastar. É um partidário mais leal do Tempo do que você.

- E o Fantasma? Vive aqui nos Sobrenaturais? Está sob a guarda deles ?

- De modo algum. O Fantasma é um gato vadio. Tem amigos no planeta inteiro. Tanto quanto saiba, é muito considerado no Colégio de Comparação, de Religiões, na Faculdade do Himalaia. Mas consegue aparecer aqui com muita regularidade. Ele e Oop tornaram-se amigos desde que os Sobrenaturais entraram pela primeira vez em contacto com o Fantasma.

- Pete, vocês chamam-lhe Fantasma. Que é ele, na verdade?

- Um fantasma.

- Mas que é um fantasma?

- Não sei. E creio que ninguém sabe.

- Mas você pertence aos Sobrenaturais.

- Oh, por certo, mas tenho trabalhado sempre com a Gente Pequenina e principalmente com os duendes, ainda que me interesse por todos eles. Até os agoireiros, e não há nada pior nem mais falho de razão do que um agoireiro.

- Deve também haver especialistas em fantasmas. Que dizem eles ?

- Creio que pouco. Há toneladas de biografia sobre o assunto, mas nunca tive tempo de a estudar. Sei que nos velhos tempos toda a gente acreditava que quando morria se tornava num fantasma, mas agora, pelo que sei, já ninguém acredita nisso. Há circunstâncias especiais que dão origem aos fantasmas, mas não sabem quais sejam.

- O rosto dele... - disse Carol. - Um pouco fantasmagórico, mas de certo modo fascinante. Tive de me esforçar para não o fitar continuamente. Uma espécie de névoa escura embrulhada numa mortalha que suponho não o ser. E por vezes um indício de olhos. Pequenas luzes que podem ser olhos. Ou estaria eu a imaginar?

- Não. Eu também os imaginei.

- Não se importa de agarrar nesse gato maluco e obrigá-lo a pôr-se de pé? Está a escorregar para o tapete mais rápido. Não tem juízo nenhum. Qualquer lugar lhe serve para dormir.

Maxwell puxou Silvestre para a sua anterior posição. O tigre rosnou e protestou sem acordar.

Maxwell endireitou-se e recostou-se na cadeira. Olhou para o céu.

- Olhe para as estrelas. Não há nada como os céus da Terra. Sinto-me feliz por ter voltado.

- E agora que vai fazer?

- Depois de a acompanhar a casa e retirar de lá a minha bagagem, voltarei para junto de Oop. Ele abrirá um dos seus «boiões de compota», beberemos um pouco e conversaremos até de manhã. Depois deitar-me-ei na cama que ele tem para as visitas e ele, enrolar-se-á no seu monte de folhas...

- Não perguntei o que vai fazer esta noite, mas sim o que fará? Não se lembra de que está morto?

- Explicarei isso. E continuarei a explicar. Em toda a parte para onde for haverá quem queira saber o que aconteceu. Deve haver qualquer espécie de investigação. Espero sinceramente que não, mas suponho que haverá.

- Desculpe-me - disse a rapariga - , mas sinto-me contente. Ainda bem que havia dois de si.

- Se os Transportes puderem descobrir como foi, talvez arranjem com isso um bom negócio. Todos nós poderíamos ter um duplo de reserva para qualquer emergência.

- Mas isso não daria resultado - observou Carol. Pessoalmente, não. Esse outro Peter Maxwell era uma segunda pessoa e... não sei bem como fazer-me entender. É tarde para discutir isso, mas tenho a certeza de que não daria resultado.

- Não - respondeu Maxwell. - Creio que não. Foi uma má ideia.

- Mas foi uma bela noite. Obrigada por tudo. Diverti-me muito,

- E o Silvestre teve muitos bifes.

- Teve. Não se esquecerá de si. Gosta das pessoas que lhe dão bifes. Não passa de um glutão.

- Há apenas uma coisa. Uma coisa que não nos disse. Quem foi que fez essa oferta pelo Artefacto?

- Não sei. Sei apenas que houve uma oferta. Suficientemente boa para o Tempo a considerar. Ouvi apenas por alto um pedaço de conversação que não devia ter ouvido. Isso teria alguma importância?

- Pode ter.

- Lembro-me agora. Havia outro nome. Não o do comprador - pelo menos não me pareceu isso. Apenas alguém que estava envolvido no negócio. Já não me recordava disso. Alguém chamado Churchill. Isso significa alguma coisa para si?

 

Oop estava sentado em frente da lareira, aparando as unhas com uma grande navalha, quando Maxwell voltou com a mala.

Oop apontou com a faca para a cama.

- Deita isso para aí e senta-te para falares comigo. Acabei de pôr mais um tronco na fogueira e tenho um boião meio cheio e mais um par escondido.

- Onde está o Fantasma? - perguntou Maxwell.

- Oh, ele desapareceu! Não sei para onde foi; nunca me diz. Mas voltará. Nunca desaparece por muito tempo.

Maxwell pôs a mala na cama, dirigiu-se para a lareira e sentou-se, recostando-se contra a pedra de talhe grosseiro.

- Hoje brincaste aos palhaços - disse ele. - Qual foi a ideia?

- Os olhos dela - respondeu Oop, com um largo sorriso. - Tão grandes. Desculpa, Pete. Mas não pude fazer outra coisa.

- E as tuas conversas... Que tristeza!

- Bem. Creio que me deixei ir um pouco longe de mais. Mas é o comportamento que as pessoas esperam de um primitivo homem de Neanderthal.

- A rapariga não é parva - respondeu Maxwell. Inventou aquela história do Artefacto tão bem que até parecia verdade.

- Inventou-a?

- Por certo. Não pensas que ela deixou escapar aqui o da maneira mais conveniente?

- Não tinha pensado nisso. Talvez assim fosse. Mas se o fez, porque o teria feito ?

- Creio que ela não quer que o Artefacto seja vendido. Falando no caso a um linguareiro como tu, antes

do meio-dia de amanhã toda a gente saberia do assunto. E ela pensou que, desde que se falasse muito no negócio,

este não se faria.

- Mas, Pete, sabes que não sou linguareiro.

- Sei. Mas deste ideia disso, esta noite.

Oop fechou a navalha e meteu-a no bolso, agarrou no boião meio-vazio e, entregou-o a Maxwell, que o levou

à boca e bebeu. O liquido ardente rasgou-lhe a garganta e sufocou-o. Ficou a arquejar, trémulo.

- É forte, não é? - perguntou Oop. - A melhor aguardente que consegui fazer até agora.

Estendeu a mão, agarrou no boião, inclinou-o e bebeu até que o nível do líquido baixou de dois centímetros ou mais. Soprou com tal força que as chamas da fogueira dançaram. Acarinhou a garrafa com a mão livre e comentou:

- Material de primeira classe.

Limpou a boca com as costas da mão e ficou a olhar

para o fogo.

- Por certo que ela não te podia considerar como

um linguareiro - disse ele por fim. - Dei conta de que, pela tua parte, dançaste muito bem esta noite. Sempre em torno da verdade.

- Talvez porque não conheço inteiramente a verdade - disse Maxwell. - Ou o que fazer quanto a ela. Tenho de te contar tudo. És o único a quem me atreveria a fazê-lo. O peso é demasiado para mim. Oop ofereceu-lhe de novo o boião.

- Bebe mais um gole e depois começa quando quiseres. Só não posso compreender como os Transportes fizeram essa asneira. Não creio que tenha acontecido. Apostaria em como foram outros.

- E tens razão - respondeu Maxwell. - Há um planeta em qualquer parte. Razoavelmente perto daqui, segundo creio. Um planeta livre, não ligado a nenhum sol, ainda que eu tenha conseguido saber que se pode inserir num sistema solar em qualquer momento que deseje.

- Isso seria difícil. Perturbaria as órbitas de todos os outros planetas.

- Nem sempre. Não necessitaria de entrar numa órbita no mesmo plano dos outros planetas.

- Então esse planeta copiou a configuração das tuas ondas e ficaram dois de ti.

- Como sabes isso?

- Dedução. É a maneira mais lógica de explicar o que aconteceu. Sabia que havia dois de vocês. Falei com esse outro que voltou antes de ti e ele eras tu - era tanto o Pete Maxwell como tu és, aqui sentado. Disse que não, havia dragões, que a pista de Coonskin fora um beco sem saída e que por isso voltara antes da data marcada.

- Então foi isso. Tinha perguntado a mim próprio qual seria a razão por que ele voltara mais cedo.

- É difícil saber se devo estar triste ou alegre. Talvez um pouco de ambas as coisas, deixando algum espaço para a admiração, perante a estranha mecânica do destino humano. Esse outro homem eras tu e agora está morto e eu perdi um amigo - porque ele era um ser humano e uma pessoa, e a humanidade e a personalidade acabam com a morte. Mas agora estás aqui e, se eu perdi um amigo, ganhei de novo esse amigo que perdi, porque tu és tão verdadeiramente o Peter Maxwell como o outro era.

- Disseram-me que foi um acidente.

- Não tenho a certeza. Tenho pensado muito nisso. Agora que voltaste, não tenho qualquer espécie de certeza. Ele ia a sair de uma estrada, tropeçou e caiu, bateu com a cabeça...

- Não se tropeça ao sair de uma estrada. A menos

que se esteja bêbado ou se seja aleijado ou desajeitado. O tapete exterior mal se move.

- Bem sei. Foi também o que a Polícia pensou. Mas não há outra explicação e a Polícia, como sabes, quer encontrá-la, para encerrar o processo. Foi num lugar solitário. A meio caminho da Reserva dos Duendes. Não houve testemunhas. Deve ter acontecido quando ninguém passava. Talvez de noite. Foi encontrado cerca das dez da manhã. Devia haver gente a passar desde as seis, mas provavelmente encontravam-se nos tapetes interiores, mais rápidos. Não tinham grandes possibilidades de ver o que se passava nos exteriores. O corpo podia estar ali há muito tempo, antes de ser encontrado.

- Pensas que não foi um acidente? Que pode ter

sido um crime?

- Não sei. Ocorreu-me esse pensamento. Há uma coisa curiosa -uma coisa que nunca foi explicada. Havia um cheiro estranho no corpo e em volta dele. Um odor estranho, diferente de qualquer outro que até então alguém houvesse conhecido. Talvez houvesse quem tivesse descoberto que havia dois de ti. E, por qualquer razão, talvez não quisesse que existissem dois.

- Mas quem poderia saber que havia dois de mim?

- As pessoas nesse outro planeta. Se havia lá gente...

- Havia gente. Era um lugar muito curioso...

Recordou-se de tudo, quase como se estivesse de novo lá. Um lugar de cristal - ou fora o que parecera, quando ele o vira pela primeira vez. Uma extensa planície de cristal que se prolongava sem fim e um céu de cristal com pilares de cristal que se erguiam da planície, aparentemente até ao céu, ainda que os seus topos se perdessem na brancura de leite do céu - pilares que se elevavam até suportarem o céu. Um lugar vazio, como

um salão de dança de dimensões infinitas, todo limpo e polido para um baile, aguardando a música e os dançarinos que nunca tinham vindo e que nunca viriam, deixando o salão de baile vazio para toda a eternidade, com todo o seu brilho polido e a sua inaproveitada graciosidade.

Um salão de baile, mas um salão sem paredes, estendendo-se sem fim, não até ao horizonte porque parecia não haver horizonte, mas até um ponto em que, o céu -esse estranho céu de vidro e de leite - descia até se encontrar com o chão de cristal.

Ficara estupefacto perante a vasta imensidade, não de um céu sem limites, porque o céu estava longe de não os ter, nem de grandes distâncias, porque as distâncias estavam longe de serem grandes, mas de uma imensidade medida como a de uma sala devia ser, como se estivesse; na casa de um gigante, e se perdesse e estivesse em busca de uma porta, sem qualquer indício de onde a porta poderia estar. Um lugar sem quaisquer características definidas, com cada pilar igual ao seguinte, sem uma nuvem no céu (se aquilo era o céu), com cada centímetro e cada quilómetro como todos os outros centímetros e quilómetros, horizontal e pavimentado com um chão de cristal que se estendia em todas as direcções.

Quisera gritar, perguntar se mais alguém estava ali, mas tivera medo de gritar - medo, de que um único som pudesse transformar aquele frio e brilhante esplendor numa nuvem de poeira gelada. Porque aquele lugar era silencioso, sem o menor murmúrio. Silencioso, frio e solitário, todo o seu esplendor e brancura perdidos na sua beleza.

Lentamente, cuidadosamente, temendo que o arrastar dos seus pés pudesse tornar todo aquele mundo em poeira, rodou sobre os calcanhares e viu pelo canto dos olhos não um movimento, mas sim a impressão súbita de um movimento, como se qualquer coisa ali houvesse estado mas se tivesse movido tão depressa que os seus olhos não a pudessem ter visto. Parou, com os pêlos da nuca eriçados, dominado pela sensação de estranheza absoluta mais do que pela de verdadeiro perigo, apreensivo de uma estranheza tão distorcida e tão, deformada em relação ao contexto humano que um homem que a contemplasse podia enlouquecer antes de poder afastar os seus olhos.

Nada aconteceu e ele moveu-se de novo, rodando sobre os calcanhares centímetro por centímetro, até que viu que estivera com as costas voltadas para o que parecia ser uma montagem qualquer - um motor? um instrumento? uma máquina?

E então soube imediatamente do que se tratava. Era o estranho dispositivo que o trouxera ali, o equivalente do receptor e transmissor de matéria, naquele louco mundo de cristal.

Mas aquilo, como ele também compreendeu imediatamente, não era o sistema de Coonskin. Não era um lugar de que ele tivesse ouvido falar. Em nenhuma parte, no Universo conhecido, havia um lugar como aquele. Qualquer coisa correra mal e ele fora lançado, não para o planeta de Coonskin que fora o seu destino, mas para algum longínquo e esquecido canto do Universo, para alguma região, talvez, em que o Homem não penetraria nem daí a outro milhão de anos, tão longe da Terra que as distâncias se tornavam inimagináveis.

Agora havia de novo movimentos rápidos como relâmpagos, como se sombras vivas se movessem contra o fundo de cristal. Enquanto ele olhava, os relâmpagos transformaram-se em formas que se alteravam e que ele podia ver que eram feitas de muitas outras, também móveis, estranhas e separadas entidades que pareciam possuir, com o seu relampejar, personalidades individuais. Como se, pensou ele com horror, fossem coisas que uma vez tivessem sido gente - como se fossem fantasmas não - terrenos.

- E aceitei-os - disse ele a Oop. - Aceitei-os... por fé, talvez. Tinha de fazer isso ou de os rejeitar e ficar ali, sozinho sobre aquela planície de cristal. Um homem de há cem anos, não os aceitaria, talvez. Ter-se-ia sentido inclinado a afastá-los do, espírito, como pura imaginação. Mas eu passara tantas horas com o Fantasma que me habituara por completo a pensar em fantasmas. Tinha trabalhado durante um tempo demasiado longo com fenómenos sobrenaturais para hesitar perante a ideia de criaturas e circunstâncias para além da natureza humana.

«E, o que é mais estranho, o que é mais confortante, é que eles sentiram que eu os aceitava.»

- Então foi isso ? - perguntou Oop. - Um planeta cheio de fantasmas.

Maxwell moveu a cabeça num gesto de concordância.

- Talvez essa fosse uma maneira de os descrever. Mas pergunto-te: o que é na verdade um fantasma?

- Um espectro - disse Oop. - Um espírito.

- Mas como defines um espectro? E um espírito?

- Sim - confessou Oop, pesaroso. - Estava a brincar um pouco e não posso ser desculpado por isso. Não sabemos o que seja um fantasma. Nem mesmo o Fantasma sabe o que ele é. Sabe apenas que existe. Tem pensado nisso profundamente. Tem comunicado com outros fantasmas e não encontrou qualquer explicação. Portanto, voltamos ao sobrenatural...

- Que nada explica.

- Talvez qualquer espécie de mutação -sugeriu Oop.

- Collins assim o pensava. Mas só ele. Eu não concordava com ele, mas isso foi antes de estar no planeta de cristal. Agora não estou tão certo disso. Que acontece quando uma espécie chega ao fim, quando uma espécie, depois de ter passado pela infância e pela meia-idade, chega à velhice? Uma espécie que morre como um homem, de velhice. Pode morrer, evidentemente. P, o que se espera. Mas suponhamos que há uma razão, pela qual ela não pode morrer, suponhamos que ela tem-se de manter viva por qualquer razão superior, que não a deixe morrer?

- Se os fantasmas são de facto o resultado de uma mutação - disse Oop - , se eles soubessem que eram mutantes, se fossem tão avançados que pudessem dominar as mutações...

Interrompeu-se e olhou para Maxwell.

- Pensas que isso podia ter acontecido?

- Creio que sim. Começo a pensar que isso era muito Possível.

Oop olhou por sobre o boião para Maxwell.

- Disseste que podiam ter alguma razão para viver.

razão para que não pudessem morrer - que os obrigasse a continuarem a existir, fosse como fosse.

- É isso - respondeu Maxwell. - Informação. Conhecimento. Um planeta repleto de conhecimento. Um armazém de conhecimento - e duvido que a décima parte dele igual e o nosso. O resto é novo, desconhecido. Parte dele referente a materiais de que nunca havíamos sonhado. Conhecimento de que não suspeitaríamos num milhão de anos, se alguma vez o suspeitássemos. Está armazenado, creio que ele electronicamente - no arranjo dos átomos de modo que cada átomo transporte consigo um pouco de informação. Armazenado em grandes folhas de metal, como as páginas de um livro, em grandes pilhas, e cada camada de átomos - sim, estão dispostos em camadas transporta informações separadas. Mais uma vez, como num livro, cada camada de átomos forma uma página. Cada folha de metal - não me perguntes, que nem sequer faço uma ideia de quantas camadas de, átomos há em cada folha de metal. Centenas de milhares, talvez.

Oop levantou o boião num gesto brusco, bebeu um gole tremendo, deixando cair um pouco da aguardente sobre o peito cabeludo. Arrotou com prazer.

- Eles não podem abandonar esse conhecimento disse Maxwell. - Têm de o passar a alguém que possa fazer uso dele. Têm de permanecer vivos, seja como for, até que o passem a alguém. E, por amor de Deus, foi por isso que me chamaram. Encarregaram-me de o vender, em nome deles.

- Vendê-lo em nome deles! Uma porção de fantasmas, pendurados pelas unhas! Que querem eles? Qual é o preço que pedem?

Maxwell limpou a testa que se inundara subitamente de suor:

- Não sei.

- Não sabes? Como podes vender uma coisa se não sabes o que vale e não sabes que preço deves pedir por ela?

- Eles disseram que depois me diriam. Disseram-me para procurar alguém que estivesse interessado e que depois me informariam de qual seria o preço.

- Que demónio de maneira de fazer um negócio.

- Sim, bem sei.

- Tens ao menos uma Ideia do preço?

- Nem a mais pequena. Tentei explicar-lhes Isso e eles não foram capazes de o compreender, ou talvez se tenham recusado a entendê-lo. E desde então tenho pensado e repensado nisso, mas não há possibilidade, de o saber. No fim, resume-se naquilo que eles quiserem. E posso jurar pela minha vida que não faço uma ideia de qualquer coisa de que eles necessitem.

- Bem - disse Oop - , eles procuraram o melhor lugar para oferecer a sua mercadoria. Quais são as tuas ideias quanto ao negócio?

- Vou falar com Arnold.

- Que bela escolha.

- Tenho de falar com Arnold e com mais ninguém. Isto não pode seguir pelas vias hierárquicas. Nem uma só palavra sobre o assunto pode transpirar. Superficialmente, parece demasiado audacioso. Se os meios de informação ou os amantes de mexericos souberem do caso, a Universidade não se atreverá a tomar conta dele. Se fosse conhecido e eles não o quisessem considerar e o negócio falhasse - estando eu a trabalhar às escuras como estou, o negócio pode muito bem falhar - haveria apenas uma gargalhada enorme, daqui até à Periferia. Ou será o pescoço de Arnold ou o meu...

- Pete, Arnold não passa de um boneco de palha. Sabes isso tão bem como eu. É um administrador. Trata apenas dos negócios da Universidade. Não Importa se ele tem ou não o, título de presidente, é apenas o gerente da casa. Não se interessa pelo aspecto académico. Não apostaria o seu pescoço por três planetas cheios de conhecimento.

- O presidente da Universidade tem de ser um administrador ...

- Se isso tivesse surgido noutra ocasião, talvez tivesse uma possibilidade - lamentou Oop. - Mas, agora, Arnold anda sobre um caixote cheio de ovos. A transferência da administração de Nova Iorque para aqui...

- Mas Arnold é o homem com que tenho de falar. Gostaria que fosse outra pessoa. Não simpatizo com o homem, mas é com ele que tenho de trabalhar.

- Podias não ter aceite.

- A missão de negociador? Não, não podia, Oop. Nenhum homem o podia fazer. Teriam de procurar qualquer outra pessoa e poderiam encontrar alguém que atrapalhasse tudo. Não estou certo de que não farei trapalhada alguma, mas pelo menos evitá-lo-ei. E isso não só por nós mas também por eles.

- Gostaste dessa gente?

- Não tenho a certeza disso. Admirei-os, talvez. Ou tive pena deles. Estavam a fazer aquilo que podiam. Tinham procurado durante tanto tempo alguém a quem pudessem passar o conhecimento...

- Passá-lo? Disseste que era para vender...

- Somente porque há qualquer coisa que eles querem ou necessitam. Gostaria de ter uma ideia do que se trata. Seria mais fácil para todos.

- Uma simples pergunta. Falaste com eles? Como conseguiste isso ?

- As tábuas - respondeu Maxwell. - Falei-te das tábuas. As folhas de metal que continham informação. Falaram-me por meio das tábuas e falei com eles da mesma maneira.

- Mas como podias ler... ?

- Deram-me uma maquineta, parecida com uns óculos, ou melhor: uns binóculos, mas maiores. Era uma coisa volumosa. Suponho que continha uma porção, de mecanismos. Punha-se e então podia-se ler as tábuas. Não se tratava de escrita, mas de simples riscos no metal. É difícil explicar. Mas olhava-se para os riscos através da maquineta e sabia-se o que eles queriam dizer. Verifiquei depois que era ajustável, de modo, a podermos ler as diferentes camadas atómicas. Mas, para começar, eles escreveram-me apenas mensagens, se «escrever» era a palavra adequada. Como garotos que escrevessem um ao outro em ardósias. Eu respondia-lhes escrevendo os meus pensamentos por meio de outra maquineta ligada aos óculos que usava.

- Uma máquina tradutora - comentou Oop.

- Suponho que sim. Um tradutor de duas vias.

- Tentámos construir uma - disse Oop. - Quando digo «tentámos», refiro-me à combinação do engenho não só da Terra mas daquilo a que ridiculamente chamamos a galáxia conhecida.

- Sim, bem sei.

- E essa gente tem uma. Esses teus fantasmas.

- Têm muito mais coisas. Não sei o que têm. Apreciei apenas alguns exemplos. Ao acaso. O suficiente para me convencer de que eles tinham aquilo, que diziam ter.

- Uma coisa ainda me intriga. Falaste num planeta. E a estrela?

- O planeta está inteiramente coberto. Há uma estrela, segundo creio, mas não pode ser vista da superfície. O que importa, porém, é que não necessita de ser uma estrela. Creio que conheces a teoria do universo oscilante.

- O universo do iô-iô. Aquele que explode e depois se contrai para voltar a explodir.

- É isso. E agora podemos deixar de perguntar a nós próprios se a teoria é verdadeira. O planeta de cristal veio do universo que existia antes de o presente universo ter sido formado. Tinham previsto Isso. Sabiam que o tempo viria em que toda a energia desapareceria e toda a matéria morta começaria a mover-se lentamente para trás para formar outro ovo cósmico, até que esse ovo pudesse explodir de novo e dar vida a um novo universo. Sabiam que se aproximava a morte do universo e, a menos que alguma coisa fosse feita, seria também a morte para eles. Portanto, iniciaram o seu projecto.

Um projecto planetário. Absorveram energia e armazenaram-na - não, me perguntem como e de onde a extraíram e onde a armazenaram, Em qualquer parte, no próprio material do planeta, de modo que quando, o resto do universo se tornou negro e morto, eles ainda dispunham de energia. Puseram um tecto sobre o planeta, fizeram uma casa dele. Descobriram mecanismos de propulsão de modo a poderem mover o seu planeta, como um corpo independente capaz de se deslocar de uma forma também independente através do espaço. E, antes que começasse a contracção da matéria morta do universo, deixaram a sua estrela, uma esfera de cinzas mortas e negras, e vogaram pelo espaço entregues a si próprios. É assim que desde então têm vivido, como sobreviventes numa nave espacial planetária. Viram o velho universo morrer antes deste. Ficaram sós no espaço, num espaço em que não havia vestígio de vida, nenhum sinal de luz, nenhum estremecimento de energia. Talvez tenham visto a formação do novo ovo cósmico. Podem ter estado muito longe e visto isso. Se o viram, viram a explosão que assinalou o início do universo em que vivemos, o relâmpago ofuscante, muito ao longe, que enviou a energia a rasgar o espaço. Viram as primeiras estrelas brilharem vermelhas, viram as galáxias tomarem forma. E quando as galáxias se formaram juntaram-se a esse novo universo. Podiam ir a qualquer galáxia que, desejassem, instalarem-se numa órbita em volta de qualquer estrela que desejassem. Eram ciganos universais. Mas o fim, agora, está próximo. O planeta, segundo creio, continua e continuará a fornecer energia, porque as máquinas ainda trabalham. Imagino que deve haver um limite para o planeta, mas nem sequer estão perto dele. Mas a espécie está a morrer e eles armazenaram nos seus registos os conhecimentos de dois universos.

- Cinquenta mil milhões de anos - disse Oop. - Cinquenta mil milhões de anos de saber.

- Pelo, menos isso. E pode ser muito mais.

Calaram-se e pensaram naqueles cinquenta mil milhões de anos. O fogo murmurava na lareira. Ao longe ouviram-se as badaladas do relógio da Casa da Música, contando o tempo.

 

Maxwell acordou.

Oop estava a sacudi-lo.

- Está ali alguém que te quer falar.

Maxwell atirou o cobertor e o lençol para o lado, arrastou os pés para o chão e procurou às cegas as calças. Oop deu-lhas.

- Quem é?

- Diz que se chama Longfellow. Um cavalheiro embirrante, narigudo. Está lá fora à tua espera. Não se quer arriscar a entrar na barraca, com receio de ficar contaminado.

- Então que vá para o diabo! - respondeu Maxwell, voltando para a cama.

- Não, não. Não me importo. Estou acima de todos os insultos.

Maxwell vestiu as calças com dificuldade, enfiou os pés nos sapatos e sacudiu-os para os despertar.

- Tens qualquer ideia de quem seja o fulano?

- Nenhuma.

Atravessou o quarto a cambalear até ao banco encostado à parede, despejou água do balde que ali estava para uma bacia, debruçou-se e molhou a cara.

- Que horas são? - perguntou ele.

- Pouco passa das sete.

- Mr. Longfellow deve estar com multa pressa de me ver.

- Está lá fora a andar de um lado para outro. Impaciente.

E estava. Quando Maxwell apareceu à porta, correu para e estendeu-lhe a mão.

- Professor Maxwell, estou satisfeito por o ter encontrado. Que dificuldade! Alguém disse-me que podia estar aqui e, portanto, arrisquei-me. - Olhou para a barraca e torceu o longo nariz.

- Oop é um velho e valioso amigo.

- Talvez pudéssemos dar um passeio. Está uma manhã invulgarmente bela. Não tomou o pequeno almoço? Não, creio que não.

- Talvez fosse melhor que me dissesse quem é observou Maxwell.

- Pertenço à Administração. Chamo-me Steplien Longfellow. Secretário do Presidente.

- Então é justamente o homem que eu quero ver. Preciso que o Presidente, me receba.

Longfellow abanou a cabeça.

- Devo dizer desde já que isso é absolutamente impossível.

- Impossível? Parece-me que diz isso como se não houvesse outra solução. Como se já tivesse pensado nisso e chegado a essa decisão.

- Se quer comunicar com o Dr. Arnold, terá de o fazer através das vias competentes. Deve compreender que o Presidente é um homem muito atarefado e...

- Compreendo tudo isso e sei também o que são as «vias competentes». Inúmeras demoras, um pedido passado de mão em mão e o conhecimento de uma comunicação pessoal espalhado por tanta gente...

- Professor Maxwell, não vale a pena insistir. O senhor é uma pessoa persistente e, pelo que me parece, um pouco teimosa, e a uma pessoa dessa têmpera é melhor metê-la na linha. O Presidente não o receberá. Não tem tempo para isso,

- Por parecer haverem dois de mim? Porque um de mim está morto?

- A imprensa deve estar cheia dessa coisa esta manhã. Todos os títulos a gritarem que um homem voltou do meio dos mortos. Já ouviu a rádio ou viu a televisão ?

- Não.

- Bem, fique sabendo que está transformado numa atracção de circo. Não hesito em dizer-lhe que isso é muito aborrecido.

- Entende que é um escândalo?

- Suponho que pode dar-lhe esse nome. E a Administração não está disposta a identificar-se com uma situação como a sua. Problemas não lho faltam. Essa questão do Shakespeare, por exemplo. Não podemos ignorá-los, mas podemos Ignorar a si.

- Mas por certo que a Administração não pode estar tão preocupada com Shakespeare e comigo como com todos os outros problemas que enfrenta. Há a discussão sobre o reaparecimento dos duelos em Heidelberga e a disputa sobre a ética da inclusão de certos estudantes não-terrestres nas equipas de futebol...

- Não compreende que, o que acontece nesta secção da Universidade é que importa?

- Por causa da Administração ter sido transferida para aqui? Quando Oxford, Califórnia e Harvard, e meia dúzia de outras...

- Se quer saber a minha opinião - respondeu Longfellow, muito empertigado -, foi uma má ideia por parte da junta de regentes. Tornou tudo muito difícil para a Administração.

- Que acontecerá se eu subir ao alto da colina, entrar na Administração e começar aos socos às secretárias ?

- Sabe bem o que acontecerá. Será posto na rua.

- E se eu levar comigo um exército de rapazes dos jornais e da televisão?

- Então suponho que não será posto na rua. Poderá até talvez falar com o Presidente. Mas asseguro-lhe que, nessas circunstâncias, não obterá o que pretende.

- Portanto, seja como for, terei de ficar a perder.

- Na verdade - respondeu Longfellow -, vim aqui esta manhã com uma missão muito diferente. Vim trazer-lhe boas notícias.

- Faço uma ideia delas. Que espécie de poção mágica quer atirar sobre mim, para ver se eu desapareço ?

- Não é nenhuma poção - respondeu Longfellow, muito ofendido. - Disseram-me para lhe oferecer o lugar de reitor na Faculdade Experimental da Universidade que estamos a criar em Gothie IV.

- Fala do planeta em que todos são bruxos e bruxas?

- Deve ser uma excelente oportunidade para um especialista como o senhor. Um planeta onde a feitiçaria se desenvolveu sem a intervenção de outras inteligências, como é o caso da Terra.

- A cento e cinquenta anos-luz de distância. Um pouco remoto e penso que lúgubre. Mas suponho que o salário será bom.

- Muito bom, até.

- Não, obrigado. Estou satisfeito com o meu emprego aqui.

- Emprego?

- Sim. Talvez se tenha esquecido de que trabalho na Faculdade.

Longfellow abanou a cabeça.

- Já não trabalha. Ter-se-á esquecido de que morreu há três semanas? Não podemos deixar as vagas por preencher.

- Quer dizer que fui substituído?

- Certamente - disse-lhe Longfellow com maldade. - Neste momento está desempregado.

 

O criado trouxe os ovos mexidos e «bacon», serviu o café e depois afastou-se, deixando Maxwell à mesa. Através da grande janela o lago Mendota prolongava-se até se perder de vista, uma lâmina de vidro azul com um indício delicado das colinas purpúreas na outra margem. Um esquilo correu pelo tronco contorcido de um carvalho que ficava junto da janela e parou, com a cabeça para baixo, a fitar com os olhos negros como contas o homem que estava à mesa. Uma folha de carvalho, castanha e vermelha, palrou e desceu suavemente, do ramo para o chão, oscilando nas correntes térmicas. Na praia rochosa um rapaz e uma rapariga caminhavam vagarosamente, de mãos dadas, através da névoa matinal do lago.

Teria sido civilizado e agradável ter aceite o convite de Longfellow para almoçar com ele, pensou Maxwell, mas obtivera do homem tudo quanto pretendia e naquele momento necessitava estar só, ganhar algum tempo para estudar a situação e pensar um pouco.

Oop tivera razão; era evidente que não seria fácil conseguir um encontro com o Presidente, não só por causa das muitas ocupações dele e da obsessão do pessoal, quanto às «vias competentes», mas também porque, por qualquer razão que ele não compreendia inteiramente, aquela questão dos dois Peter Maxwell assumira as proporções de um escândalo do qual Arnold tinha o ardente desejo de se ver bem afastado. Maxwell perguntou a si próprio, ao mesmo tempo que olhava para o esquilo, se aquela atitude da Administração não dataria da sua entrevista com Drayton. Teria a Segurança concentrado a sua acção sobre Arnold? Não parecia muito provável, mas era uma possibilidade. Fosse como fosse, a atitude de Arnold fora bem definida pela apressada oferta daquele posto em Gothie IV. Não só a Administração não queria nada com aquele segundo Peter Maxwell, mas pretendia também que ele se afastasse da Terra e se ocultasse num planeta em que em pouco tempo seria esquecido.

Compreendia-se que o seu lugar nos Sobrenaturais houvesse sido preenchido depois da morte do outro Peter Maxwell. No fim de tudo, as aulas tinham de continuar. Não podia haver vagas em aberto na Universidade. Mas mesmo assim havia outros cargos que podiam ter-lhe sido oferecidos. O facto de isso não, ter sido feito e de que o lugar de Gothic IV lhe ter sido proposto tão rapidamente, provava que ele não, era desejado na Terra.

No entanto, era tudo muito estranho. A Administração não podia ter sabido antes da véspera que existiam dois Peter Maxwell. Não podia ter havido um problema, não havia razão para qualquer problema, enquanto não soubesse disso. O que significava que alguém informara imediatamente a Administração -alguém que se queria ver livre dele, que tinha receio de que ele interferisse em alguma coisa. Mas em quê? E a resposta a essa pergunta pareceu tão fácil e evidente que ele se convenceu, instintivamente, de que devia estar enganado. Mas, por multo que rebuscasse, só encontrava essa resposta - que alguém soubera do tesouro de conhecimentos no planeta de cristal o trabalhava para se ver livre dele.

Havia um nome a investigar. Carol falara em Churchill - dissera que de algum modo ele estava envolvido na oferta que fora feita ao Tempo, para a compra do Artefacto. Seria possível que o Artefacto fosse o preço dos conhecimentos do planeta de cristal? Ninguém podia afirmar isso, porque ninguém sabia o que podia ser o Artefacto.

Que Churchill estivesse a trabalhar no negócio nada tinha de surpreendente. Não para ele, evidentemente, mas para alguém. Para alguém que não podia permitir que a sua identidade fosse conhecida. Era nesses negócios que Churchill podia mostrar-se útil. O homem era perito em artimanhas e sabia o que fazia. Tinha contactos e, através dos longos anos de trabalho, sem dúvida que estabelecera boas fontes de informação em muitos lugares estranhos e poderosos.

E se era assim, a missão de Maxwell tornar-se-ia muito mais difícil. Não só devia evitar os boatos que por certo corriam entre os funcionários da Administração, mas também tinha de se certificar de que a informação que possuía não caía noutras mãos que a pudessem usar contra ele.

Ouviu atrás de si o arrastar de pés com botas grossas e quando se voltou na cadeira viu o dono dos pés avançar rapidamente para ele. Parecia um grande camarão, com as suas pernas multiarticuladas, o corpo estranhamente curvado e as longas e incríveis antenas - aparentemente órgãos sensoriais - que sobressaíam da sua pequena cabeça. Tinha uma cor branca, como a de um morto, e os seus três olhos negros, globulares, oscilavam no extremo das antenas.

Parou junto da mesa e as três antenas apontaram os três olhos para Maxwell.

Disse numa voz alta e aflautada, enquanto a pele da garganta arfava rapidamente sob a cabeça algo inadequada:

- Informado estou de ser Professor Maxwell.

- A informação é verdadeira. Sou Peter Maxwell.

- Eu ser criatura fora do mundo que chama Spearhead Vinte-sete. Nome meu não interessa si. Perante si estou meu patrão ordem. Talvez conhecer ele designação Miss Nancy Clayton.

- Sem dúvida - respondeu Maxwell, pensando que estava muito de acordo com a maneira de ser de Nancy Clayton ter por empregado uma criatura tão estranha.

-Procuro eu educação fazendo quanto encontro - explicou o Camarão.

- É de louvar.

- Matemáticas do tempo estudo - prosseguiu o Camarão. - Em linhas-mundo concentrar.

- Porquê esse interesse? Alguma coisa relacionada com a sua herança cultural?

- Oh, muito mesmo. Ideia completamente nova. No meu mundo não haver pensamento do tempo, não haver apreciação de uma coisa como tempo. Muito surpreendido conhecer ele. E excitado também. Mas distrair-me. Vim aqui com recado. Miss Clayton, deseja saber se pode comparecer festa noite deste dia. Casa sua, oito certas.

- Creio que sim. Diga-lhe que não falto nunca às festas dela.

- Mais do que satisfeitos. Ela muito o deseja lá. Muito falado é.

- Compreendo.

- Ser muito difícil de encontrar. Corri muito e depressa. Perguntei muitos lugares. Finalmente vitorioso.

- Desculpe-me o trabalho que dei - disse Maxwell. Tirou uma nota do bolso. A criatura estendeu uma das patas dianteiras, apanhou a nota com as pinças, dobrou-a, e voltou-a a dobrar e meteu-a, numa pequena bolsa que tirou do peito.

- Bondoso para além da expectativa. Mais uma informação. Motivo da reunião apresentar pintura recentemente adquirida. Quadro perdido por muito tempo. De Albert Lambert. Grande triunfo para Miss Clayton.

- Tenho a certeza disso. Miss Clayton é especialista em triunfos.

- Como patroa ser graciosa.

- Também estou certo disso.

A criatura voltou-se de repente e desapareceu da sala a galope. Maxwell ouviu-a descer as escadas e sair para a rua. Depois levantou-se e saiu também. Se tinha de assistir à apresentação da pintura, o melhor era procurar saber alguma coisa do artista. Por certo que toda agente convidada para a festa de Nancy estaria a fazer a mesmo antes de o dia chegar ao fim, pensou ele e sorriu-se.

Lambert? O nome recordava-lhe qualquer coisa. Lera alguma coisa sobre ele, havia muito tempo. Talvez um Artigo numa revista, numa hora de lazer.

 

Maxwell abriu o livro.

«Albert Lambert», dizia a primeira página do texto, «nasceu em Chicago, Ilinóis, em 11 de Janeiro de 1973. Criou fama como retratista de grotesco simbolismo, mas os seus primeiros anos não mostraram qualquer promessa de grandes cometimentos. O seu trabalho inicial, ainda que ele fosse competente e mostrasse uma técnica magnífica e uma Visão inspirada dos assuntos focados, não era particularmente extraordinário. O seu período grotesco veio depois dos seus cinquenta anos e, em vez de se desenvolver, explodiu quase de um dia para o outro, como se o artista o tivesse desenvolvido em segredo e não mostrasse as suas telas desse período enquanto não se sentiu satisfeito com a nova fase do seu trabalho. No entanto, não há provas de que na verdade isso tenha acontecido; pelo contrário, parece haver algumas provas que não foi ... »

Maxwell passou as páginas de texto para alcançar as gravuras e depois folheou rapidamente os exemplos do trabalho primitivo do artista. E de repente, de uma página para outra, as pinturas mudaram a concepção artística, a cor, até, segundo pareceu a Maxwell, a própria técnica. Como se o trabalho houvesse sido de dois artistas diferentes, o primeiro ligado intelectualmente qualquer necessidade Interior de expressão ordenada, o segundo absorvido, obcecado, dominado por qualquer experiência que lhe abalara a alma e de que ele tentara purificar-se, espalhando-a pelas telas.

Uma beleza nua, negra e terrível saltava da página e no silêncio soturno da biblioteca pareceu a Maxwell que podia ouvir o murmúrio coriáceo, das asas negras. Criaturas ultrajantes divertiam-se na paisagem ultrajante e, no entanto, a paisagem e as criaturas não eram mera fantasia, não eram o produto caprichoso de um voluntário desequilíbrio mental, mas antes pareciam ser solidamente assentes em qualquer outra geometria assente numa lógica e numa estranha maneira de ver tudo quanto ele vira. A forma, a cor, a disposição e a atitude não eram simples valores humanos deformados; tinha-se a sensação de que podiam ser em vez disso a prosaica representação de uma situação numa área inteiramente fora de qualquer valor humano. Simbolismo grotesco, dissera o texto e talvez fosse. Mas um simbolismo ao qual só se podia ter chegado tortuosamente, depois de cuidadoso estudo.

Voltou a página e encontrou de novo aquela completa divergência de tudo quanto, era humano - uma cena diferente com criaturas diferentes numa paisagem também diferente, mas tendo em si, como, a primeira gravura, a expressão chocante de verdade, de que não se tratava de um produto da imaginação do artista mas da representação de uma cena que ele uma vez vira e procurara expurgar do espírito e da memória. Como um homem podia lavar as mãos esfregando-as fortemente com sabão, voltando a esfregar e a esfregar, numa tentativa desesperada de retirar por meios físicos uma nódoa psíquica que o atingira. Uma cena que ele vira, talvez, não através de olhos humanos, mas sim da óptica não-terrena de uma espécie perdida e insuspeitada.

Maxwell manteve-se fascinado, a fitar a página, a querer afastar os olhos mas sem o poder fazer, apanhado na armadilha daquela estranha e dominadora beleza, por qualquer razão terrível, oculta, que ele não podia compreender. O Camarão dissera-lhe que o tempo era uma coisa na qual a sua espécie nunca pensara, um factor universal que não influenciara a sua cultura, e ali, naquelas gravuras coloridas, havia qualquer coisa em que o Homem nunca pensara, nem sequer sonhara.

Quis fechar o livro, mas hesitou, como se houvesse alguma razão pela qual ele não o devesse fechar, que o obrigasse a continuar a fitá-la.

E nessa hesitação tornou-se, consciente de uma certa estranheza que o levava a continuar a fitar a gravura -um factor confuso que não reconhecera conscientemente, mas que o continuava a perturbar.

Afastou as mãos, contemplou a gravura e depois virou lentamente a página e olhou para a terceira imagem. Aquilo que havia nela de estranho saltou sobre ele - uma espécie de relampejar, uma técnica que mostrava como que a luz a dançar, como se qualquer coisa com substância estivesse ali a cintilar, vista num momento e já não vista no seguinte.

Ficou de boca aberta a ver aquele tremular - uma ilusão de óptica, por certo, encorajada pela maestrina do artista sobre a tinta e o pincel. Mas, ilusão de óptica ou não, era fácil de reconhecer por quem tivesse visto a espécie fantasmagórica do planeta de cristal.

E, através do silêncio abafado da sala soturna, uma pergunta começou a martelá-lo: Como poderia Albert Lambert ter sabido da existência da gente do planeta de cristal?

 

- Ouvi falar de ti e pareceu-me incrível, evidentemente - disse Allan Preston. - Mas a minha fonte de informação, era digna de toda a confiança e fiz um esforço para entrar em comunicação contigo. Estou um pouco preocupado por causa desta situação, Pete. Como advogado, devo dizer que estás em dificuldades.

Maxwell estava sentado na cadeira em frente da secretária de Preston.

- Suponho que sim - respondeu ele. - Pelo menos por uma coisa: perdi o meu emprego. Há qualquer coisa semelhante a uma indemnização, no meu caso?

- Num caso como o teu? Afinal qual é , situação? Parece que ninguém sabe. Toda a gente fala nisso, mas parece que ninguém sabe. Eu próprio...

Maxwell sorriu-se amargamente.

- Certamente. Sentes-te perturbado e não muito seguro de estar no teu juízo perfeito, não é ? Estás a perguntar a ti próprio se de facto eu sou Peter Maxwell.

- Bem, é?

- Estou certo de que sou. Havia dois de nós. Aconteceu qualquer coisa à configuração de ondas. Um de nós foi ao sistema de Coonskin, o outro a qualquer outra parte. O que foi a Coonskin voltou para a Terra e morreu. Eu voltei ontem.

- E verificaste que tinhas morrido.

Maxwell moveu a cabeça afirmativamente.

- O meu apartamento fora alugado a outra pessoa, tudo quanto me pertencia tinha desaparecido. A Universidade diz que o meu lugar foi preenchido e estou sem trabalho. Foi por isso que perguntei se não teria direito a uma indemnização.

Preston reclinou-se na cadeira e fitou Maxwell com os olhos semicerrados.

- Legalmente penso que a Universidade está em terreno sólido. Morreste. Não tens direito a qualquer indemnização. Pelo menos até seres reconduzido no lugar.

- Através de um longo processo legal?

- Sim, assim creio. Não te posso dar uma resposta honesta. Não há precedente. Sim, por certo que há precedentes no caso de identidade errada - alguém que morreu e que foi erradamente identificado como alguém que ainda estava vivo. Mas contigo não há erro algum. Um homem que inegavelmente era Peter Maxwell está inegavelmente morto e não há precedente para o restabelecimento da identidade em tais condições. Teremos de criar o nosso próprio precedente, através de um laboriosíssimo rebatimento de argumentos legais. Não sei sequer por onde ou como começar. Sim pode ser levado a cabo, pode ser feito, mas exigiria muito trabalho e multas dores de cabeça. Primeiro, evidentemente, teríamos de determinar, legalmente, quem és tu.

- Quem sou eu? Por amor de Deus, Al, sabemos quem eu sou.

- Mas a lei não sabe. A lei não te reconhece hoje como tal. Não tens qualquer situação legal. Absolutamente nenhuma. Todos os teus cartões de identificação foram devolvidos aos Registos e estão arquivados...

- Mas eu tenho esses cartões - disse Maxwell, calmamente. - Aqui no meu bolso. Preston fitou-o.

- Sim é isso. Oh, meu Deus, que grande sarilho!

Levantou-se e atravessou a sala, a abanar a cabeça. Quando chegou à parede voltou para trás e sentou-se.

- Deixa-me pensar um pouco. Tenho de descobrir qualquer coisa. Há muito que fazer. Por exemplo: a questão do teu testamento...

- O meu testamento? Tinha-me esquecido. Nunca mais pensei nele... Deixei tudo a meu Irmão, que está no Serviço Exploratório. Posso entrar em comunicação com ele, ainda que isso possa ser muito difícil. Normalmente está lá fora, na Armada. Mas devo dizer que por esse lado não há problema. Assim que ele saiba do que aconteceu...

- Com ele, não. Mas com o tribunal é diferente. Pode resolver-se, mas levará tempo. Até que tudo fique esclarecido, não terás direito algum àquilo que possuías. Não terás nada, além dos fatos que vestires e do que tiveres nos bolsos.

- A Universidade ofereceu-me um lugar em Gothic IV. Reitor de uma unidade de investigação. Mas de momento não estou disposto a aceitar.

- Tens dinheiro?

- De momento, tenho. Oop ofereceu-me a casa e tenho algum dinheiro. Se o tiver de fazer, arranjarei qualquer espécie de trabalho. Harlow Sharp ajudar-me-á se necessitar de qualquer coisa. Participar nos seus trabalhos de campo, por exemplo. Creio que gostaria disso.

- Mas não tens de possuir qualquer espécie de graduação do Tempo?

- Não, se for como membro activo da expedição. Se ocupasse qualquer lugar de dirigente teria de o possuir, segundo creio.

- Antes de actuar tenho de conhecer os pormenores. Tudo o que aconteceu.

- Escreverei uma declaração, reconhecida notarialmente. Tudo quanto quiseres.

- Parece que podes começar por intentar uma acção contra os Transportes. Eles puseram-te em dificuldades.

Maxwell retraiu-se.

- Agora não. Pensaremos nisso depois.

- Arranja essa declaração. Entretanto pensarei um pouco e estudarei algumas leis. Depois poderemos começar. Leste os jornais ou viste a televisão?

- Não tive tempo.

- Eles estão como doidos. Pergunto a mim próprio porque ainda não te apanharam. Devem andar à tua procura. Só dispõem de conjecturas. Foste visto a noite passada no Porco e Apito. Ao que parece, houve muitas pessoas que te viram ou pensaram ver-te. Diz-se que voltaste do meio dos mortos. No teu lugar, eu afastava-me deles. Se te apanharem, não digas absolutamente nada.

- Não tenho a intenção de o fazer.

Ficaram a olhar um para o outro, em silêncio, no calmo gabinete.

- Que montanha de problemas! - disse por fim Preston. - Que adorável confusão! Creio que até dá vontade de rir.

- Já agora - disse Maxwell -, acontece que Nancy Clayton me convidou para uma festa, esta noite. Tenho estado a perguntar a mim próprio se haverá alguma ligação - ainda que não seja absolutamente necessário que haja. Nancy convidava-me muitas vezes.

Preston sorriu-se.

- Ora, és uma celebridade. É do que Nancy gosta.

- Não estou muito certo disso. Ela deve ter ouvido falar do meu aparecimento. E, evidentemente, deve sentir alguma curiosidade.

- Sim - respondeu Preston, deve ter muita curiosidade.

 

Maxwell esperava encontrar os jornalistas à porta da barraca de Oop, mas não estava lá ninguém. Aparentemente ainda não sabiam que ele se encontrava ali.

Abriu a porta e espreitou. Não havia lá ninguém. Oop andava por qualquer outra parte e não se via sinal do Fantasma. Uma fogueira quase extinta avermelhava a lareira. Maxwell fechou a porta e sentou-se no banco que estava em frente da barraca.

Pensou nas paisagens que Lambert pintara havia tantos anos, e que persistiam no seu espírito. Como poderia o artista ter sabido que os fantasmagóricos habitantes do planeta de cristal cintilavam? Não se podia tratar de um acaso. A razão dizia que Lambert devia ter conhecido aquele povo de fantasmas, mas dizia também que isso era absolutamente impossível.

E aquelas outras criaturas, todas aquelas grotescas monstruosidades que Lambert espalhara com um pincel Insano e vicioso sobre as telas? Onde pertenceriam elas? De onde teriam vindo? Ou seriam simples produtos da imaginação, arrancados vivos e a sangrar de um espírito estranhamente torturado? Seriam as pessoas do planeta de cristal as únicas criaturas autênticas que Lambert representara? Não parecia muito provável. Fosse como fosse, Lambert devia também ter visto aqueles seres. E seria a paisagem pura imaginação, pintada para manter o ambiente criado, pelas criaturas, ou seria a paisagem do, planeta de cristal em qualquer outra época, antes de ter sido fixa para sempre no pavimento e no tecto que o isolavam contra o Universo? Mas isso era impossível, porque o planeta fora encerrado antes de o presente Universo ter nascido. Dez mil milhões de anos, pelo menos, talvez cinquenta mil milhões.

Maxwell agitou-se, inquieto. Aquilo não fazia sentido algum. Nada daquilo fazia qualquer espécie de, sentido. Já tinha bastantes problemas, para além das suas preocupações com os quadros de, Lambert. Perdera o emprego, tudo quanto possuía fora arrolado, pelo tribunal e não tinha sequer uma posição legal, como qualquer ser humano.

Mas isso pouco importava naquele momento. O que interessava era o tesouro de conhecimento guardado no planeta de cristal. Era o conhecimento que a Universidade devia possuir - maior que a soma de todo o conhecimento da galáxia conhecida. Algumas coisas não seriam propriamente novidade, mas estava certo de que haveriam muitas outras, áreas enormes do saber, que nem sequer haviam sido suspeitadas. O pouco que ele tivera tempo de ver dera-lhe essa certeza.

Viu-se mais uma vez perante a mesa baixa em que assentavam as folhas de metal que retirara das estantes, e com o dispositivo que era um leitor, um intérprete, o que lhe quisessem chamar, preso à cabeça.

E a folha de metal falava-lhe ao espírito, não em termos metafísicos ou psicológicos, mas como um mecanismo, empregando termos e conceitos que ele não podia compreender. Lutara com a terminologia porque era um tratado sobre uma área de conhecimento em que ninguém ainda tocara, mas ao fim de um certo tempo teve de o pôr de parte, porque era demasiado para ele. Havia a outra folha de metal, o outro livro, que parecia ser um texto elementar sobre a aplicação de certos princípios matemáticos às ciências sociais, ainda que algumas das ciências sociais mencionadas representassem para ela conceitos semelhantes aos que um cego poderia ter, ao tentar caçar borboletas. Histórias não de um universo, mas de dois; história natural que falava de formas de vida tão fantásticas nos seus princípios essenciais e nas suas funções que pareciam inacreditáveis, e uma folha de metal muito fina, tão fina que se torcia como uma folha de papel, e que estivera tão para além da sua compreensão que ele nem sequer tinha a certeza do que nela se dizia. E outra folha muito mais espessa, em que ele lera os pensamentos e filosofias de criaturas e culturas desde há muito transformadas em poeira, que o tinham feito retrair, assustado, desgostado, ultrajado e desanimado, mas ainda cheio de uma admiração temerosa, perante a absoluta inumanidade nelas expressa.

Isso tudo e mais, muito mais, um bilião de vezes mais, estava a aguardá-los no planeta de cristal.

Era importante que cumprisse a missão que lhe fora dada. Era vital que a biblioteca do planeta de cristal fosse alcançada, e provavelmente, ainda que nenhum limite de tempo lhe tivesse sido imposto,, que isso fosse feito bem depressa. Porque se ele falhasse haveria por certo uma grande possibilidade, de o planeta ir a qualquer outra parte procurar outro mercado, oferecer o que tinha, ou a outro sector da galáxia, ou ainda para fora da galáxia.

Talvez o preço fosse o Artefacto, ainda que ele não tivesse a certeza absoluta disso. O facto de ter sido feita uma oferta e de Churchill ter sido de algum modo envolvido nela tornava isso compreensível. Mas de momento não podia ter a certeza. O Artefacto podia ser desejado por alguém para qualquer outro fim, talvez por alguém que pudesse finalmente ter compreendido o que na verdade ele era. Tentou imaginar exactamente o que podiam ter descoberto, mas não tinha elementos em que se basear

e foi obrigado a desistir.

Maxwell ergueu-se e espreguiçou-se. A paz e a calma daquela tarde dourada penetraram o seu corpo. Gostaria de dormir um pouco. Oop acordá-lo-ia quando voltasse e comeriam qualquer coisa e falariam um pouco antes de ele ir à festa de Nancy.

Abriu a porta e entrou na barraca. Atravessou o quarto e sentou-se sobre a cama. Talvez fosse conveniente ver se ainda tinha uma camisa e um par de peúgas, para vestir antes da festa. Tirou a mala do chão e colocou-a em cima da cama.

Abriu-a e tirou dela um par de calças para alcançar as camisas que estavam arrumadas em baixo. As camisas estavam lá, mas sobre elas encontrava-se outra coisa: um dispositivo com um aro e duas oculares dobradas sobre ele.

Ficou a olhar para aquilo, profundamente surpreendido. Era o tradutor que usara no planeta de cristal para ler as placas de metal. Ergueu-o e deixou-o balouçar na mão. Lá estava o aro para colocar na cabeça, com a fonte de energia atrás e as duas oculares que se colocavam em posição quando o dispositivo era preso à cabeça.

Devia ter guardado aquilo por engano, ainda que pudesse jurar pela sua vida que não o fizera. Mas estava ali e isso talvez não houvesse prejudicado ninguém. Podia até servir-lhe no futuro de prova em como havia estado no planeta. Ainda que na verdade não fosse boa prova. Era apenas uma engenhoca que tinha um aspecto ordinário, muito embora deixasse de ter esse aspecto se alguém tentasse conhecer o seu mecanismo.

Ouviu-se bater levemente e Maxwell, surpreendido por um ruído tão pequeno, tornou-se rígido e escutou O bater parou e depois voltou de uma forma inconstante, que parecia um código. Três pancadas rápidas e depois uma Pausa, seguida por duas Pancadas rápidas e Outra pausa, repetindo-se então a série.

Era alguém que batia à porta, Maxwell levantou-se e sentiu-se indeciso. As pancadas, que tinham Parado Por um momento, voltaram. Maxwell lançou-se para a porta e abriu-a. bruscamente. Lá fora estava o Camarão, de um branco brilhante e fantasmagórico à luz do Sol. Sob um dos seus membros, que agora servia mais de braço que de perna, trazia um embrulho muito agarrado ao corpo.

- Por amor de Deus, entre - disse Maxwell secamente. - Antes que alguém o veja aqui...

O Camarão entrou e Maxwell fechou a porta, perguntando a si mesmo o que o teria levado a proceder assim.

- Não necessita de apreensão quanto aos colhedores de notícias - disse o Camarão, - Fui cuidadoso e procurei. Ninguém seguiu a mim. Criatura de meu aspecto .nunca ser acompanhada por ninguém. Ninguém dá a mim qualquer objectivo.

- É uma coisa afortunada. Creio que lhe podemos dar o nome de coloração protectora.

- Apareço de novo por mandado de Miss Nancy Clayton - disse o Camarão. - Ela sabe que levou coisas poucas em sua viagem, não houve oportunidade para comprar e mandar lavar. Ela não pretende embaraço - ordenou-me que dissesse isto com muita amizade - mas deseja enviar-lhe roupa para vestir.

Tirou o embrulho debaixo do braço e entregou-o a Maxwell.

- Isso é multa amabilidade da parte de Nancy.

- É uma pessoa pensativa. Ordenou-me dizer mais.

- Diga.

- Haverá veículo de rodas para o levar à casa.

- Não é necessário. A estrada passa mesmo pela porta dela.

- Uma vez mais desculpa, mas ela pensa ser melhor -disse o Camarão com firmeza. - Haver muito puxar e muito empurrar por pessoas que querem saber onde está.

- Pode dizer-me como foi que Miss Clayton soube onde eu estava?

O Camarão respondeu:

- Não sei na verdade.

- Muito bem. Quer agradecer a Miss Clayton em meu nome?

- Com alegria - disse o Camarão.

 

Vou levá-lo para as traseiras -disse o condutor. Há um enxame de jornalistas na frente. Miss Clayton disse-lhes que o senhor não queria vê-los.

-Obrigado pela atenção - respondeu Maxwell.

Era o hábito de Nancy. Ordenar a vida dos outros.

A casa dela estava sobre a colina baixa que dominava a margem ocidental do lago. O carro saiu da estrada e subiu vagarosamente, ao longo de um estreito caminho ladeado por enormes carvalhos. Um par de cães surgiu a correr raivosamente. O condutor riu baixinho.

- Se o senhor viesse a pé, devorá-lo-iam.

- Mas porquê? - Porque é que Nancy precisa de cães de guarda?

- Não se trata de Miss Clayton, mas sim de outra pessoa.

O condutor descreveu uma curva, entrou por um grande portão e parou.

- Não necessita bater - disse ele. - A porta está aberta. Siga em frente até à escada de caracol. A festa é em frente.

Maxwell abriu a porta do carro, mas depois hesitou.

- Não se importe com os cães - disse-lhe o condutor. - Eles conhecem o carro. Quem quer que saia dele está aprovado por eles.

Não havia de facto sinal dos cães e Maxwell subiu rapidamente os três degraus da escadaria, abriu a porta e entrou.

O átrio estava às escuras. Ficou um momento sem se mover e, enquanto os seus olhos se habituavam às trevas, viu que o átrio se estendia para além do centro da casa, para além da escada de caracol. Devia haver ali uma porta ou talvez uma volta abrupta que o levasse à sala onde se realizava a festa.

Era estranho. Se Nancy dera ordem ao motorista para o fazer entrar pelas traseiras, devia pelo menos ter ali alguém para o receber ou pelo menos uma luz acesa, para que ele pudesse procurar o caminho.

Atravessou cautelosamente o átrio, com receio de tropeçar em qualquer cadeira ou mesa. Passou pelas escadas, mas para além delas o átrio estava tão negro como antes.

Uma voz perguntou:

- Professor Maxwell? É o professor?

Maxwell parou a meio de um passo e ficou equilibrado sobre um único pé. Depois pousou com cuidado o outro pé no chão e ficou estático, enquanto a sua pele se arrepiava.

- Professor Maxwell - disse a voz. - Sei que está aí.

Na verdade não era uma voz, ou não parecia ser. Não houvera som algum, no entanto ele ouvira as palavras, talvez não tanto nos ouvidos como no cérebro.

Sentiu que o terror o dominava, mas não se afastou. Manteve-se nas trevas, pronto a correr.

Tentou falar mas não conseguiu. A voz disse:

- Esperei aqui por si, professor. Quero comunicar consigo. É tanto do seu interesse como do meu.

- Onde está? - perguntou Maxwell.

- Entre pela porta à sua esquerda.

- Não vejo porta alguma.

Não havia de facto sinal dos cães e Maxwell subiu rapidamente os três degraus da escadaria, abriu a porta e entrou.

O átrio estava às escuras. Ficou um momento sem se mover e, enquanto os seus olhos se habituavam às trevas, viu que o átrio se estendia para além do centro da casa, para além da escada de caracol. Devia haver ali uma porta ou talvez uma volta abrupta que o levasse à sala onde se realizava a festa.

Era estranho. Se Nancy dera ordem ao motorista para o fazer entrar pelas traseiras, devia pelo menos ter ali alguém para o receber ou pelo menos uma luz acesa, para que ele pudesse procurar o caminho.

Atravessou cautelosamente o átrio, com receio de tropeçar em qualquer cadeira ou mesa. Passou pelas escadas, mas para além delas o átrio estava tão negro como antes.

Uma voz perguntou:

- Professor Maxwell? É o professor?

Maxwell parou a meio de um passo e ficou equilibrado sobre um único pé. Depois pousou com cuidado o outro pé no chão e ficou estático, enquanto a sua pele se arrepiava.

- Professor Maxwell - disse a voz. - Sei que está aí.

Na verdade não era uma voz, ou não parecia ser. Não houvera som algum, no entanto ele ouvira as palavras, talvez não tanto nos ouvidos como no cérebro.

Sentiu que o terror o dominava, mas não se afastou. Manteve-se nas trevas, pronto a correr.

Tentou falar mas não conseguiu. A voz disse:

- Esperei aqui por si, professor. Quero comunicar consigo. É tanto do seu interesse como do meu.

- Onde está? - perguntou Maxwell.

- Entre pela porta à sua esquerda.

- Não vejo porta alguma.

Do corpo a brilhar e a torcer-se como um alguidar cheio de minhocas.

- É, convidado de Nancy ? -perguntou ele.

- Sim - respondeu Mr. Marmaduke. - Certamente que sou. O convidado de honra, pelo que me parece.

- Então porque não está junto dos outros convidados?

- Disse que estava fatigado. Uma pequena prevaricação, uma vez que nunca me canso. Mas assim vim repousar um pouco...

- E esperar por mim?

- Precisamente. Há um assunto sobre o qual podemos falar com algum proveito para ambos, segundo creio. Está à procura de um comprador para uma coisa importante. Talvez eu tenha um interesse passageiro por essa coisa.

Maxwell recuou e tentou encontrar uma resposta. Mas não a encontrou.

- Não me respondeu - Insistiu Mr. Marmaduke. Não posso ter-me enganado. Não é você o agente de venda?

- Sim - respondeu Maxwell. - Sou o agente.

Seria o Rodador que tinha feito uma oferta pelo Artefacto ?

- Bem - disse Mr. Marmaduke. - Tratemos imediatamente do negócio e de uma discussão dos termos. Não esquecendo, entretanto, uma menção à comissão que terá.

-Receio que seja impossível tratar imediatamente do negócio. Não sei quais são as condições. Compreende, é a primeira vez que encontro um comprador potencial e...

- Não há qualquer problema porque tenho o conhecimento que lhe falta. Sei quais são as condições.

- E pagará o preço ?

- Sem discutir - disse o Rodador. - Demorará apenas um pouco. Há certas negociações que devem ser terminadas. Uma vez que estejam concluídas, podemos fechar o negócio sem qualquer problema ou inconveniente. a única coisa a estabelecer, quanto a mim, é a comissão de que será tão merecedor.

- Imagino que deve ser uma excelente comissão.

- Pensámos em nomeá-lo - como hei-de dizer... Bibliotecário? - daquilo que queremos comprar. Haverá muito trabalho a fazer, principalmente na organização. Para esse trabalho precisamos de uma criatura como você e imagino que ele lhe agradará muito. E o salário - professor Maxwell, humildemente lhe pedimos que diga o que pretende e quais as condições do seu emprego.

- Pensarei nisso.

- Como quiser. Numa questão dessas, é bom pensar um pouco. Encontrar-nos-á muito dispostos a sermos generosos.

- Não era isso o que eu queria dizer. Gostaria de pensar sobre o negócio. Se estarei disposto a tratar da venda consigo.

-Duvida talvez da nossa capacidade, para a compra do que sabe?

- Talvez.

- Professor Maxwell, seria muito aconselhável para si pôr de parte as dúvidas. Será melhor que não alimente qualquer dúvida a nosso respeito. Porque estamos mais do que dispostos a obter aquilo que tem para nos oferecer. Portanto, por tudo deste mundo, deve negociar connosco.

-Quer queira, quer não?

- Não poria o caso de uma maneira tão brutal. Mas o que diz é muito correcto.

- Não está na melhor posição para falar dessa maneira - disse Maxwell.

- Não tem consciência da posição em que estamos - respondeu o Rodador. - O vosso conhecimento estende-se apenas até um certo ponto no espaço. Não conhece o que fica para além disso.

Havia qualquer coisa nas palavras e em particular na maneira como eram ditas que provocou um arrepio em Maxwell, como se de qualquer canto desconhecido do Universo tivesse surgido um sopro gelado.

Mr. Marmaduke dissera que o conhecimento humano se estendia apenas até um ponto do espaço. E que havia para além desse ponto? Ninguém sabia, excepto que em certas áreas, para além da fronteira tenebrosa que o Homem sondava, os Rodadores haviam estabelecido um império. E através dessa fronteira infiltravam-se histórias de horror.

Tinham sido poucos os contactos com os Rodadores e não se sabia quase nada deles - o que só por si era mau. Não havia apertos de mão, nem gestos de boa vontade, dos Rodadores ou dos humanos e dos seus amigos e aliados. A fronteira estava ali, num grande sector do espaço, uma linha silenciosa, que nem uns nem outros se atreviam a cruzar.

- Seria mais fácil tomar uma decisão se o nosso conhecimento fosse mais extenso, se soubesse mais coisas a vosso respeito.

- Sabe que não passamos de bichos - respondeu Mr. Marmaduke e as suas palavras estavam profundamente mergulhadas em desprezo. - Vocês são intolerantes ...

- Não somos intolerantes e não pensamos em vocês como bichos. Sabemos que são aquilo a que nós damos o nome de «mecanismos de colmeia». Sabemos que cada um de vós são uma colónia de criaturas semelhantes às formas de vida a que aqui na Terra chamamos insectos, e isso coloca-nos à parte de vocês, é certo, mas não mais distantes do que muitas outras criaturas de muitas outras estrelas. Não gosto da palavra «intolerante», Mr. Marmaduke, porque implica que há possibilidades de tolerância e isso é uma coisa que não existe -nem para si, nem para mim, nem para outra criatura no Universo.

- Você discute muito bem e amigavelmente -disse Mr. Marmaduke - e talvez não seja intolerante...

- Mesmo se a intolerância existisse, não compreenderia a sua aversão a ela. Seria um reflexo mais sobre aquele que a exibisse do que sobre aquele contra quem fosse dirigida. Não só um reflexo sobre as boas maneiras, mas também sobre os conhecimentos básicos. Não poderia haver estupidez maior que a intolerância.

- Se não há intolerância - disse o Rodador - , qual é o motivo porque hesita?

- Necessito de saber o uso que pretende dar àquilo que pretende. Quais são os seus propósitos?

- Para poder julgar?

- Não sei - respondeu Maxwell, com amargura. Como se pode julgar uma situação como esta?

- Falamos demasiado. E a nossa troca de palavras não tem significado. Verifico que não tem qualquer intenção de negociar connosco.

- De momento devo dizer que tem razão.

- Então temos de procurar outra maneira. Isso resultará para nós em grande perda de tempo e muitos incómodos, e seremos muito ingratos para si.

- Tenho a impressão de poder suportar a vossa ingratidão.

- Há uma certa vantagem em estar do lado dos vencedores - avisou Mr. Marmaduke.

Qualquer coisa rápida e grande passou por Maxwell e pelo canto do olho ele viu o súbito relâmpago dos dentes rebrilhantes e as listas do corpo dourado.

- Não, Silvestre! - gritou ele. - Não lhe toques, Silvestre!

Mr. Marmaduke moveu-se com agilidade. As suas rodas giraram tão rapidamente que não se viam. Rodopiou sobre si próprio, desviando-se do ataque de Silvestre, e dirigiu-se para a porta. As garras do tigre guincharam quando ele deu meia volta sobre si próprio. Maxwell, ao ver o Rodador correr na sua direcção, afastou-se, mas uma roda roçou-lhe pelo ombro e atirou-o para o lado. Mr. Marmaduke continuou em direcção à porta, enquanto Silvestre corria atrás dele, longo e elegante, como que se escoando através do ar.

- Não, Silvestre! - gritou Maxwell, lançando-se também através da porta e correndo pelo átrio. A sua frente o Rodador corria, com Silvestre perto dele. Maxwell continuou a gritar, até perder o fôlego, mas não parou.

No extremo do átrio, Mr. Marmaduke girou com toda a facilidade para a esquerda e Silvestre, que estava quase a apanhá-lo, perdeu um tempo precioso quando quis fazer o mesmo e não conseguiu. Maxwell deu também a volta e viu um corredor iluminado que conduzia a uma curta escada de mármore, atrás da qual se encontrava uma multidão, aglomerada em pequenos nós, com copos nas mãos.

Mr. Marmaduke correu para a escada, com grande rapidez. Silvestre estava um salto à frente de Maxwell e talvez três atrás do Rodador.

Maxwell tentou soltar um grito de aviso, mas faltou-lhe o ar nos pulmões e em qualquer caso passou tudo demasiado depressa.

O Rodador atingiu o degrau superior da escada e Maxwell lançou-se através do ar, de braços estendidos. Caiu em cima do tigre de dentes-de-sabre e agarrou-se ao pescoço dele. Os dois caíram e, pelo canto do olho, enquanto ele e Silvestre rebolavam pelo corredor fora, Maxwell viu o Rodador saltar no segundo degrau e começar a tombar.

E então, de súbito, ouviram-se gritos de mulheres assustadas e de homens surpreendidos e o ruído de copos partidos. Uma vez por todas, pensou Maxwell, Nancy tinha na sua festa um momento maior do que todos quantos havia preparado.

Chocou contra uma parede, no fundo da escada, e deu com Silvestre em cima dele, a lamber-lhe a cara.

- Desta vez conseguiste -disse ele ao tigre. - Arranjaste-nos um bonito sarilho.

Mr. Marmaduke estava de lado, no chão, com as rodas a girarem loucamente e o atrito da que estava por baixo a fazê-lo rodar sobre a cabeça.

Carol apareceu, com os punhos nas ancas, e olhou para baixo, para Maxwell e para o tigre.

- Vocês! - gritou ela, sufocada pela cólera.

- Temos muita pena - respondeu Maxwell.

- O convidado de honra - gritou ela, quase a chorar. - O convidado de honra e vocês a caçá-lo como se fosse um rato!

- Aparentemente não o magoámos muito. Parece que está intacto. Não ficaria muito surpreendido se a barriga dele tivesse estoirado e tivéssemos aí bicharocos por todos os lados.

- Que pensará Nancy?

- Imagino que ficará deliciada, Não havia um barulho tão grande nas suas festas desde que o anfíbio lança-chamas do sistema de Nettle largou fogo às árvores de Natal.

- O que você diz. Não acredito em tal coisa.

- Juro-lhe por tudo. Estava aqui e vi. Ajudei a apagar o fogo.

Alguns convidados estavam a ajudar Mr. Marmaduke a pôr-se direito sobre as rodas. Pequenos autómatos corriam, recolhendo os pedaços de vidro dos copos partidos e limpando o chão.

Maxwell pôs-se de pé e Silvestre aproximou-se dele, esfregando-se contra as pernas e ronronando.

Nancy surgira vinda de qualquer parte e estava a falar com Mr. Marmaduke. Um grande círculo de convidados rodeava-os e ouvia a conversa.

- Se fosse a si fugia daqui tão depressa pudesse - sugeriu Carol.

- Pelo contrário. Sou sempre bem-vindo aqui.

Nancy voltou-se e viu-o, deixou o círculo e atravessou a sala na direcção dele.

- Pete! - gritou ela. - Então sempre é verdade. Voltaste!

- Evidentemente - respondeu Maxwell.

- Vi isso nos jornais, mas não acreditei. Pensei que era qualquer artimanha...

- Mas convidaste-me.

- Convidei-te ?

Ela não estava a brincar.

- Não mandaste o Camarão?...

- O camarão?

- Uma coisa que parecia um camarão. Disse que trazia um recado teu. Que me convidaras para a festa e que um carro me traria aqui. Até me levou roupas porque...

- Pete - respondeu Nancy -, crê em mim, por favor. Não te convidei, mas estou satisfeita por estares aqui.

Ela aproximou-se e colocou-lhe uma mão no braço. O rosto dela enrugou-se num sorriso.

- E gostaria de saber o que aconteceu entre ti e Mr. Marmaduke.

- Isso lamento eu muito.

Não é necessário. É meu convidado e há que ter consideração pelos convidados, mas na verdade é uma criatura terrível. Pete, ele não é só um maçador, é também um presumido...

Mr. Marmaduke desembaraçara-se do círculo de convidados e rodava através da sala na direcção deles. Nancy voltou-se para ele.

- Sente-se bem ? - perguntou ela. - Sente-se de facto bem?

- Muito bem - respondeu o Rodador.

Aproximou-se de Maxwell e do cimo do seu corpo bojudo saiu um braço - flexível como uma corda, mais tentáculo do que braço, com três dedos semelhantes a garras no extremo. Enrolou-o em volta dos ombros de Maxwell. Ao sentir a pressão dele, Maxwell teve instintivamente vontade de se afastar, mas obrigou-se a permanecer imóvel.

- Obrigado, senhor - disse Mr. Marmaduke. - Estou-lhe extremamente grato. Talvez tenha salvo a minha vida. No mesmo momento em que caí, vi que tinha saltado sobre a fera. Foi muito heróico.

- Ele não podia magoá-lo - protestou Carol. - É tão gentil como um gatinho. Se não tivesse fugido dele, ele não o perseguiria. Pensou que estava a brincar com ele. Silvestre gosta muito de brincar.

- Dessas brincadeiras não gosto eu - respondeu Mr. Marmaduke.

- Quando o vi cair - disse Maxwell -, tive medo. Pensei por um momento que o seu corpo poderia rebentar.

- Oh, não havia necessidade de medo - respondeu Mr. Marmaduke. -Sou muito resistente. O corpo é feito de excelente material. É forte e elástico.

Retirou o braço do ombro de Maxwell e ele, como uma corda oleosa, retorcendo-se no ar, foi desaparecer no seu corpo, sem deixar qualquer marca visível.

- Desculpe-me, por favor - disse o Rodador. - Tenho de falar com uma pessoa. - Afastou-se rapidamente, a rodar.

Nancy encolheu os ombros.

- Faz-me arrepios - disse ela. - Apesar de tudo, é uma grande atracção. Nem toda a gente pode ter em casa um Rodador. Não me importo de te confessar, Pete, que tive de puxar por uma porção de cordelinhos para o trazer aqui a casa e agora preferia não o ter feito. Há nele algo de repugnante.

- Sabes qual o motivo por que ele se encontra aqui - na Terra?

- Não, não sei. Tenho a impressão de que não passa de um simples turista. Ainda que não possa pensar que uma criatura destas seja um simples turista.

- Creio que tens razão.

- Pete, conta-me qualquer coisa a teu respeito. Os jornais dizem...

- Bem sei. Dizem que voltei do meio dos mortos.

- Mas não voltaste, pois não? Sei que isso não é possível. Quem foi que enterrámos? Toda a gente foi ao teu enterro. Mas não podia ser o teu. O que quer que fosse ...

- Nancy, voltei ontem. Soube que tinha morrido e que o meu apartamento fora alugado, que tinha perdido o meu emprego, e que...

- Parece impossível. Essas coisas não acontecem. Não compreendo...

- Nem eu. Talvez descubra alguma coisa mais tarde.

- Não é necessário que te preocupes com os jornalistas. Não há nenhum aqui.

- Sei que tens um quadro...

- Então sabes do quadro. Vamos vê-lo. É a coisa de que mais me orgulho. Imagina, um Lambert! E um que tinha desaparecido inteiramente da vista. Dir-te-ei mais tarde como foi descoberto, mas não quanto me custou. Isso não direi a ninguém. É uma vergonha.

- Muito ou pouco?

- Muito. E há que ter cuidado. É tão fácil sermos vigarizados. Nem quis falar em compra antes de o quadro ter sido examinado por um perito. Ou antes, dois.

- Mas há qualquer dúvida de que seja um Lambert?

- Nenhuma. Nunca houve quem pintasse como Lambert. Mas pode ser copiado e tinha de ter a certeza... Tenho dois outros quadros dele, mas este é muito especial porque esteve perdido. Bem, não sei se perdido é a palavra mais correcta. Melhor será dizer que não havia notícia dele. P, um dos chamados grotescos. Um dos primeiros.

Atravessaram a sala, evitando os pequenos grupos de convidados.

- Aqui está ele - disse Nancy.

Era algo diferente das gravuras que ele vira na biblioteca, naquela manhã. Porque o tamanho do quadro, o brilho e a qualidade da cor, tinham-se perdido nas reproduções coloridas. E isso não era tudo. A paisagem era diferente e as criaturas também. Uma paisagem mais semelhante à Terra - o cinzento das colinas e o castanho dos arbustos que cobriam a terra, as árvores baixinhas, como fetos. Uma fila de criaturas que podiam ser gnomos ia a caminho de uma colina distante; uma criatura que lembrava um duende estava sentada na base de uma árvore, encostada ao tronco, aparentemente adormecida, com uma espécie de chapéu enfiado até aos olhos. E outras criaturas temíveis, atrevidas, com corpos obscenos e rostos que esfriavam o sangue.

Num planalto distante, junto de cuja base havia uma multidão de criaturas de muitas espécies, um pequeno ponto negro sobressaía do cinzento do céu.

Maxwell ficou de boca aberta. Aproximou-se mais e depois parou e ficou hirto, temeroso de se denunciar.

Parecia impossível que ninguém mais tivesse dado conta daquilo. Não havia dúvida. O pequeno ponto negro sobre o planalto distante era o Artefacto!

 

Alguém tivera o trabalho de, através de métodos complicados e estranhos, assegurar-se de que o Roda dor teria uma oportunidade de falar com Maxwell. Era tudo tão melodramático que se tornava ridículo. Exceptuando o facto de ele não poder pensar naquilo como uma coisa ridícula.

Estava fatigado, mais do que alguma vez estivera. Não tardaria a levantar-se e a despedir-se de Nancy, para regressar à barraca de Oop.

- Silvestre, olha o que encontrámos aqui.

Voltou-se e viu Carol, com o tigre junto dela.

- Tentei falar consigo, mas nunca tive uma oportunidade - disse a rapariga. - Gostaria de saber que brincadeira foi aquela de si e de Silvestre, a correrem atrás do Rodador.

- Não sei se posso. Foi tudo tão confuso.

- Não sei se já encontrei alguma vez um homem assim - protestou Carol. - Não creio que esteja a ser sincero.

- Já agora, viu o quadro, não viu?

- Evidentemente que vi. Foi por isso que fizeram a festa. O quadro e o Rodador.

- Notou alguma coisa?

- Invulgar ?

- Sim, no quadro.

- Não creio.

- Sobre a colina estava um pequeno cubo. Negro. Parecia o Artefacto.

- Não dei por ele. Não vi o quadro muito de perto.

- Creio que viu os gnomos.

- Sim, dei conta deles. Ou pelo menos pareciam-no ser.

- E as outras criaturas. Também pareciam diferentes.

- Diferentes de quê?

- Das criaturas que Lambert normalmente pintava.

- Não será que um pintor tem o direito de pintar o que desejar?

- Por certo que tem. Isso não se discute. Mas esta pintura era da Terra. Ou pelo menos, se era o Artefacto, e creio que era, então era da Terra. Não desta nem da que conhecemos. Talvez do Jurássico.

- E não pensa que as outras pinturas sejam da Terra? Tinham de ser dela. No tempo em que Lambert viveu não havia nenhum outro lugar para pintar - não existiam viagens no espaço, além das que eram feitas à Lua e a Marte.

- Havia as viagens da imaginação. Nenhum pintor se sentiu hoje limitado pelo espírito. E, de resto, isso era o que toda a gente devia ter pensado - que Lambert pintava no domínio da imaginação. Mas a partir desta noite pergunto a mim próprio se ele não terá pintado cenas reais e criaturas também reais - lugares onde teria estado.

- Pode ter razão - disse Carol. - Mas como podia ele ter lá chegado? Este assunto do Artefacto é excitante, sem dúvida, mas...

- Trata-se de uma coisa de que Oop está sempre a falar. Ele lembra-se dos duendes, dos génios e do resto da Gente Pequenina, desde os tempos de Neanderthal. Mas há outros. Outros piores. Mais maliciosos e endiabrados e a gente de Neanderthal tinha-lhes medo de morte.

- E pensa que algumas das criaturas do quadro podem ser aquelas de que Oop se recorda?

- Estava a pensar nisso - confessou ele. - Gostaria que Nancy me deixasse trazer Oop aqui amanhã para ele ver o quadro.

- Não creio que ela consinta nisso, mas na verdade não é necessário - respondeu a rapariga. - Tirei fotografias do quadro.

- Mas...

- Bem sei que isso não foi correcto. Mas pedi a Nancy e ela não se importou. Que podia ela dizer. Tirei as fotografias apenas para minha satisfação pessoal. Se quiser que Oop as veja... O melhor será irmo-nos embora. A festa está a morrer. Continua a não querer dizer-me o que se passou com o Rodador?

- Mais tarde. Agora não. Talvez depois.

Maxwell. levantou-se. Atravessaram a sala em direcção à porta, abrindo caminho entre os grupos agora menos densos de convidados.

- Devíamos procurar Nancy e despedirmo-nos dela -sugeriu Carol.

- Noutra ocasião. Podemos escrever-lhe ou telefonar-lhe, dizendo que não a conseguimos encontrar e que gostámos muito da festa, do quadro, etc.

- Professor Maxwell! - gritou alguém.

Maxwell voltou-se. Churchill vinha a descer as escadas.

- Só um momento, Maxwell, por favor - disse ele.

- Sim, que é?

- Uma palavra. Entre nós, se a senhora não se importa.

- Esperarei por si na estrada - disse Carol a Maxwell.

- Não se preocupe - disse Maxwell. - Vou despachá-lo bem depressa.

- Não - respondeu Carol. - Então ficarei. Não quero sarilhos.

Maxwell esperou enquanto Churchill descia as escadas a correr. O homem arquejava um pouco e agarrou-se ao braço de Maxwell.

- Procurei uma oportunidade de falar consigo durante toda a noite, mas estava sempre no meio de uma multidão.

- Que quer? - perguntou Maxwell, secamente.

- O Rodador. Deve dar-lhe atenção. Ele não conhece os nossos hábitos. Não faço ideia do que ele pretende fazer. Na verdade disse-nos que...

- Quer dizer que sabe o que, o Rodador pode estar a preparar contra mim?

- Eu disse-lhe para não fazer nada - protestou Churchill. - Disse-lhe para o deixar em paz. Lamento muito, professor Maxwell. Creia-me que fiz tudo quanto me foi possível.

Maxwell agarrou Churchill pelo peitilho da camisa, torceu a roupa e puxou o homem para ele.

- Portanto você é o homem do Rodador! - gritou ele. - Você é o representante dele. Foi você que fez a oferta pelo Artefacto e fê-la em nome dele.

- O que fiz é comigo - afirmou Churchill, furioso. Ganho a vida a representar pessoas.

- O Rodador não é uma pessoa. Só Deus sabe o que é um Rodador. Uma colmeia cheia de insectos, pelo menos. Não sabemos o que mais seja.

- Tem os seus direitos. Tem o direito de negociar.

- E você tem o direito de o ajudar. O direito de ganhar o dinheiro que ele lhe pagar. Mas tome cuidado quanto à maneira como o ganha. E não se meta no meu caminho.

Atirou Churchill para longe dele. O homem cambaleou, perdeu o equilíbrio, caiu e ficou estendido no chão, sem tentar levantar-se.

- Tinha o direito de o atirar pelas escadas abaixo e quebrar esse seu pescoço sujo -disse Maxwell.

Voltou-se sobre os calcanhares e começou a descer as escadas.

No fundo, Carol agarrava desesperadamente o tigre.

- Pensei que ele me fugia e ia lá acima fazer o homem em pedaços - disse ela, arquejante.

Olhou para Maxwell, com o desgosto escrito no rosto.

- Haverá alguém com quem você não arranje problemas?

 

Maxwell saiu da estrada no ponto em que ela atravessava a boca do Hound Dog Hollow e ficou por um momento a olhar para as escarpas rochosas. A curta distancia estava a face de rocha negra de Cat Den Point e, sobre ela, alto e junto ao céu, devia encontrar-se o castelo dos duendes, com um residente chamado O'Toole. E em qualquer parte naquela vegetação bravia encontrava-se a ponte coberta de musgo que servia de covil aos génios.

Subiu lentamente, poupando o fôlego, parando muitas vezes para olhar em volta. Por fim chegou ao prado das fadas em que o aerocarro de Churchill, tendo-o por passageiro, caíra sob a mágica dos génios.

Parou um momento no prado, a descansar, e depois voltou a subir. Dobbin ou outro cavalo muito semelhante mordiscava a relva escassa que crescia num ou noutro ponto, num pasto protegido por uma vedação de estacas. Algumas pombas voavam sobre as torres do castelo, mas não havia outro sinal de vida.

De repente, gritos despedaçaram a paz da manhã e da porta aberta do castelo saiu um grupo de génios, movendo-se rapidamente e numa formação curiosa. Iam em três linhas e cada uma delas levava como que uma corda sobre os ombros, exactamente como o velho quadro que Maxwell vira e que mostrava os barqueiros do Volga. As cordas estavam presas a um bloco de pedra talhada, que saltava atrás deles, e que fez um ruído oco, trovejante, quando chegou à ponte levadiça.

O velho Dobbin parecia doido, escouceando e galopando como doido dentro da cerca.

Os génios, com as presas a brilharem contra os rostos castanhos, empergaminhados e maldosos, o seu cabelo ruivo ainda mais eriçado do que era usual, continuaram a descer pela vereda, com a enorme pedra a saltitar atrás deles, levantando nuvens de poeira quando se arrastava na terra.

Do portão, atrás deles, surgiu uma nuvem fervilhante de duendes, armador de cacetes, enxadas, forquilhas tudo quanto tinham podido apanhar a jeito.

Maxwell saltou do caminho quando os génios se aproximaram. Corriam silenciosamente e com grande decisão, o seu peso apoiado nas cordas, enquanto a horda dos duendes os perseguia com loucos gritos de guerra e uivos. A frente do bando dos duendes vinha Mr. O'Toole, a correr pesadamente, com o rosto e o pescoço violetas de fúria, um barrote na mão.

No ponto em que Maxwell saltara o caminho mergulhava de repente, escorregando por uma rampa rochosa até ao prado das fadas. O bloco de pedra saltou por ele quando a sua face anterior bateu numa laje. Começou a correr pela colina, com as cordas a voarem atrás dele.

Um dos génios olhou para trás e gritou. Os outros largaram as cordas e fugiram. O bloco continuou a rodar pela encosta, ganhando velocidade a cada volta. Entrou pelo prado das fadas e abriu nele um grande rasgão. Bateu contra um grande carvalho esbranquiçado, no lado oposto, e por fim parou.

Os duendes desceram a colina em perseguição dos génios e espalharam-se pelas árvores para caçar os ladrões da pedra. Berros de medo e uivos de cólera flutuavam pela colina acima, misturados com o som de muitos corpos abrindo caminho através do mato.

Maxwell atravessou o caminho e saltou sobre a paliçada. O velho Dobbin acalmara-se e tinha o maxilar inferior apoiado sobre uma das estacas mais altas, como se necessitasse do seu amparo para se manter de pé.

- Espero que eles não te obriguem a arrastar a pedra pela encosta acima - disse Maxwell. - É uma subida longa e muito íngreme.

Dobbin agitou uma orelha, preguiçosamente.

- Se bem conheço O'Toole - acrescentou Maxwell não é de crer que tenhas de o fazer. Se conseguir apanhar os génios, serão eles que o farão.

O barulho no fundo da colina acalmara-se e não tardou que Mr. O'Toole surgisse a subir a vereda, com o barrote ao ombro. O rosto ainda estava roxo, mas aparentemente mais de cansaço que de cólera.

- As minhas maiores desculpas - disse Mr. O'Toole, tão majestosamente quanto podia, com a sua voz arquejante. - Vi-o de relance e fiquei feliz pela sua presença, mas estava empenhado numa tarefa ardorosa e muito urgente. Creio que testemunhou o acontecimento.

Maxwell moveu a cabeça num gesto de confirmação.

- Levaram a minha pedra de montar, com a maliciosa intenção de me obrigar a andar a pé.

- A pé?

- Vejo que mal compreende. A minha pedra de montar, à qual devo subir para montar o Velho Dobbin. Sem uma pedra de montar não há passeios a cavalo e terei de vagabundear a pé, sem felicidade, com muito custo e muito cansaço.

- Sim. Como disse, não tinha compreendido.

- Esses malditos génios não respeitam nada. Depois da pedra de montar teria sido o castelo, pedaço por

pedaço, pedra por pedra, até que não houvesse nada além da rocha nua sobre a qual ele se elevara. Em tais circunstâncias, é necessário fazer a poda tão cedo quanto possível.

- Como acabou isso? - perguntou Maxwell.

- Corremos com eles - respondeu o duende, com grande satisfação. - Fugiram como gansos espantados. Encontrámos alguns sob as rochas e escondidos em moitas e depois atrelámo-los, como se fossem mulas - e eles parecem-se tanto com elas -, para arrastarem a pedra de montar, com grande trabalho segundo creio, até onde a encontraram.

- Estão a vingar-se de lhes ter desmontado a ponte.

Mr. O'Toole dançou, exasperado.

- Está enganado! - gritou ele. - Por causa da nossa grande e mal aplicada compaixão, não tivemos ânimo de a destruir. Tirámos-lhe apenas duas pequenas pedras. Duas pequenas pedras e muito barulho eficientemente dirigido contra eles. E eles retiraram os feitiços do pau-de-vassoura e da doce cerveja preta de Outubro e, como almas simples que somos, muito dadas à bondade, deixámo-los em paz.

- Tiraram o feitiço da cerveja? Pensava que isso fosse impossível, depois de terem sido realizadas certas alterações químicas ...

Mr. O'Toole fitou Maxwell com uma expressão de desdém.

- Está a tagarelar em calão científico, o que representa apenas um disparate - disse ele. - Não consigo compreender o seu interesse pela ciência quando poderia usar a magia que quisesse, se quisesse ter a paciência de nos perguntar e a vontade de aprender. Ainda que eu deva confessar que a quebra do feitiço da cerveja deixou alguma coisa a desejar. Ficou com um ligeiro travo a bafio.

«Apesar de tudo, sempre é um grau ou dois melhor que não ter cerveja alguma. Se quiser fazer-me companhia, poderemos prová-la.»

- Não houve nada durante todo o dia que me soasse tão bem - respondeu Maxwell.

No grande salão do castelo, Mr. O'Toole encheu as grandes canecas no pipo de um barril assente sobre dois cavaletes e colocou-os sobre a mesa de madeira grosseiramente aparelhada, em frente da grande lareira do pedra, na qual ardia um fogo quase extinto e relutante, com grande fumarada.

- Foi uma blasfémia - disse Mr. O'Toole ao levantar a sua caneca. - Um ultraje horrível, este roubo da pedra de montar. Porque foi cometido numa ocasião em que nós, duendes, estamos de vigília.

- Peço que me desculpe - disse Maxwell. - Uma vigília? Não sabia...

- Não se trata de nenhum de nós. É o Agoireiro.

- Mas o Agoireiro não morreu.

- Não morreu mas está a morrer. E que pena é! O último de uma grande e nobre raça que existe nesta reserva, e aqueles que ainda restam no mundo podem ser contados por menos dedos que os de uma mão.

Levou de novo a caneca à boca e esvaziou-a em grandes goles luxuriosos. Bateu com ela na mesa e olhou para a de Maxwell, ainda cheia.

- Beba - insistiu ele. - Beba e eu enchê-la-ei de novo para molhar o apito.

Maxwell ergueu a caneca e bebeu. Havia de facto na cerveja um certo travo a bafio - ou a folhas queimadas.

- Que tal? - perguntou o duende.

- Tem um gosto estranho, mas bebe-se.

- Qualquer dia destruirei essa ponte dos génios disse Mr. O'Toole num súbito ataque de fúria. - Pedra por pedra, com o musgo cuidadosamente raspado para que as pedras fiquem sem magia. Quebrá-las-ei com um martelo, levarei os pedaços para qualquer encosta bem alta e ali as lançarei para tão longe e espalharei de tal modo que nem em toda a eternidade conseguirão recolhê-las. Ainda que se esses malditos génios forem queixar-se às autoridades, vocês, humanos, obrigar-me-ão a explicar os meus actos e isso não deve ser assim. Não há dignidade nem alegria em viver segundo as regras e foi um dia maldito aquele em que a espécie humana nasceu.

- Meu amigo - disse Maxwell, abalado -, nunca me tinha falado assim.

-Nem a qualquer outro humano, e, de todos aqueles que há no mundo, só a si eu poderia revelar tais sentimentos. É quase um dos nossos.

- Sinto-me honrado - respondeu Maxwell.

- Somos antigos. Mais antigos, segundo creio, do que o espírito humano pode imaginar. Anos tão longos que se passaram. Tão longos e depois surge um primata, pequenino e sujo, e estraga-nos tudo.

-Anos longos? Tão longos como os da Era Jurássico?

- Não compreendo o termo. Você fala por enigmas. Mas éramos tantos e de tantas espécies diferentes e hoje somos poucos e não de todas as espécies. Morremos muito lentamente, mas de uma maneira inexorável. Nascerá um dia que não verá nenhum de nós. Depois vocês, humanos ficarão com tudo.

- Você está fatigado. Sabe bem que não é o que queremos. Temos feito todos os esforços...

- Para gostarem de nós ? - perguntou o duende.

- Sim. Direi que gostamos mesmo muito de vocês.

Lágrimas correram pelas faces do duende.

- Não deve dar atenção às minhas palavras - disse ele a Maxwell. - Estou estoirado. Por causa do Agoireiro.

- O Agoireiro é seu amigo? - perguntou Maxwell com certa surpresa.

- Não meu. Eu estou de um lado da cerca e ele do outro. Um velho inimigo, mas de qualquer maneira um dos nossos. Um dos bem antigos. Aguentou-se melhor que os outros. Teimou mais a morrer. Os outros morreram todos. E nos dias como estes, as velhas dissidências esquecem depressa. Não podemos passar a vigília junto dele, como seria de consciência, mas mesmo assim prestamos-lhe essa pequena honra. E esses malditos génios...

- Quer dizer que ninguém, nenhum dos da reserva, pode acompanhar o Agoireiro enquanto ele espera pela morte ?

- Nenhum. É contrário à lei. Não posso explicar-lhe -ele está do outro lado.

- Mas ele está só.

- Num espinheiro, perto da cabana que era seu domicílio.

- Um espinheiro?

- Nos espinhos - disse o duende - reside a magia, como na própria árvore...

Maxwell tirou do bolso do casaco a fotografia do quadro perdido de Lambert.

- Mr. O'Toole, tenho aqui uma coisa que quero mostrar-lhe.

O duende colocou a caneca sobre a mesa.

- Mostre-me - disse ele. - Aqui a falarmos de espinhos, quando afinal tinha ai uma coisa.

Olhou para a fotografia e debruçou-se sobre ela,

- Os génios, evidentemente. Mas estes outro, não conheço. Há histórias, velhas, muito velhas...

- Oop viu essa fotografia. Conhece Oop, por certo,

- O grande bárbaro que diz ser seu amigo.

- É meu amigo. E Oop lembra-se destas coisas. São coisas velhas dos velhos dias.

- Mas por que artes de magia obtiveram uma fotografia delas?

- Isso é que eu não sei. É a fotografia de um quadro, pintado por um homem há muitos anos.

- Mas como...

- Não sei. Creio que ele esteve lá.

- Também não sei - respondeu Mr. O'Toole. - Havia outros dos nossos, muito diferentes, que já não existem. Somos apenas os restos de uma nobre população. Talvez o Agoireiro... Os anos dele são incontáveis.

- Mas o Agoireiro está a morrer.

- Pois está - disse Mr. O'Toole - E como este dia deve ser terrível e amargo para ele, sem ninguém a acompanhá-lo!

Ergueu a caneca e acrescentou:

- Beba. Desde que se beba bastante, já o mundo não parece tão mau.

 

Maxwell virou a esquina da cabana e viu o espinheiro a um lado dela. Havia qualquer coisa estranha na árvore. Parecia que uma nuvem de trevas assentara sobre o seu eixo vertical, dando-lhe a aparência de um tronco maciço, do qual emergiam os troncos curtos e esguios, armados de espinhos. E se era verdade o que O'Toole dissera, aquela nuvem negra enrolada sobre a árvore seria o Agoireiro moribundo.

- É, o Agoireiro ? - perguntou Maxwell à árvore.

- Se quer falar comigo, veio muito tarde - disse o Agoireiro.

- Não vim para falar. Vim para lhe fazer companhia.

- Então sente-se. Não demorarei muito tempo.

Maxwell sentou-se no chão e encostou os joelhos ao queixo. Pós as mãos ao lado dele, as palmas assentes contra a relva seca e castanha.

- Os outros não vieram - disse o Agoireiro. - Pensei a princípio que eles viriam. Durante um momento pensei que poderiam perdoar-me e vir. Agora não é necessário haver distinções entre nós. Somos um só povo, esmagado a um mesmo nível. Mas as velhas convenções ainda não foram quebradas. Os costumes dos velhos tempos permanecem.

- Falei com os duendes. Estão de vigília em sua intenção. O'Toole, está triste e bebe para esquecer a tristeza.

- Você não é do meu povo. No entanto, disse que me vinha acompanhar. Qual o motivo?

- Tenho trabalhado com o vosso povo e preocupo-me muito com ele.

- É o Maxwell. Ouvi falar de si.

- Como se sente? Posso fazer alguma coisa por si? Precisa de alguma coisa?

- Não. Estou para além de todas as necessidades. Não sinto quase nada. É esse o problema, que eu não sinta quase nada. A minha morte é diferente da vossa. É pouco física. A energia esvaí-se de mim e finalmente nada resta. Como uma luz que tremula até se apagar.

- Lamento muito. Se falar apressa...

- Talvez apresse um pouco, mas já não me importo. E não me lamento. Não tenho razões para isso. Sou quase o último dos nossos. Só restamos três, se contar comigo, e eu não valho isso, De milhares só ficam dois.

- Mas há ainda os duendes, os génios e as fadas...

- Não compreende... Nunca lhe disseram. E nunca pensou em perguntar. Aqueles de que falou são os que vieram mais tarde, os que vieram depois de nós, quando o planeta já não era jovem. Éramos colonos, como por certo sabe.

- Tinha pensado nisso - disse Maxwell. - Mas apenas nas últimas horas.

- Devia ter compreendido - disse o Agoireiro. - Esteve no velho planeta.

Maxwell ficou de boca aberta.

- Como soube isso?

- Como é que respira? Como é que vê? Para mim, comunicar com o velho planeta é tão natural como para si é respirar e ver. Ninguém mo disse; soube.

Então fora isso. O Agoireiro fora a fonte dos conhecimentos do Rodador e devia ter sido Churchill que informara Mr. Marmaduke de que o Agoireiro sabia coisas de que ninguém suspeitava...

- E os outros - os génios e...

- Não. Os Agoireiros são os únicos que têm o caminho aberto. É a nossa missão, a nossa única finalidade. Somos os elos que ligam este planeta com o antigo. Somos comunicadores. Quando o antigo planeta estabeleceu colónias, foi necessário que se estabelecessem alguns meios de comunicação. Éramos todos especialistas, ainda que isso tenha agora pouco significado e que quase todos tenhamos desaparecido. Os primeiros foram os especialistas. Aqueles que vieram depois eram simples colonos.

- Fala dos génios e dos duendes ?

- Esses e os outros. Tinham capacidades próprias, mas não eram especializados. Nós éramos os engenheiros, os trabalhadores. Havia um abismo entre nós e eles. Foi por isso que eles não me vieram acompanhar. O velho abismo ainda existe.

- Fatiga-se muito. Devia conservar a sua energia.

- Não importa. A energia esvai-se de mim e, quando desaparecer, a vida desaparecerá também. Esta minha morte não tem nada que ver com a matéria ou o meu corpo. É tudo uma questão de energia. Não importa. Porque o velho planeta também morre; viu o meu planeta e sabe-o bem.

- Sim, sei.

- Teria sido tudo muito diferente se não houvesse humanos. Quando aqui chegámos, mal havia mamíferos, quanto mais primatas. Podíamos ter evitado isso - o aparecimento dos primatas. Podíamos tê-los feito desaparecer, ainda em botão. Houve alguma discussão sobre isso, porque este planeta se mostrara prometedor e nós tínhamos pouca vontade de o ceder. Mas a velha regra estava sempre presente. A inteligência é uma coisa que se encontra muito poucas vezes. É uma coisa preciosa - mesmo quando nos temos de pôr de parte para que ela se desenvolva não podemos deixar de concluir que se trata de uma coisa preciosa.

- Mas vocês mantiveram-se. Podiam ter-se afastado, mas permaneceram.

- Era demasiado tarde. Não tínhamos para onde ir. O velho planeta já estava a morrer. Nada ganhávamos em voltar. E este planeta, por estranho que parecesse, tornara-se no nosso lar.

- Deve-nos odiar.

- Assim aconteceu, em tempos. Suponho que o ódio ainda existe. Mas é uma coisa que o tempo faz desaparecer. Ainda que não por completo. Ainda que, apesar do nosso ódio, talvez nos sintamos orgulhosos de vós. De outro modo, como poderia o velho planeta ter oferecido o seu conhecimento?

- Mas também o ofereceu ao Rodador?

- O Rodador?... Oh, sim, sei o que quer dizer. Mas, na verdade, não lhe oferecemos nada. O Rodador tinha ouvido falar do velho planeta, através de qualquer rumor que fora até muito longe, no espaço. E que esse planeta tinha qualquer coisa que gostaria de vender. Veio ter comigo e fez-me apenas uma pergunta: qual era o preço dessa coisa. Não sei se ele sabia o que estava à venda. Falou apenas em «coisa».

- Disse-lhe que o preço era o Artefacto.

- Evidentemente que lhe disse. Porque nessa época não havia ainda recebido notícia de si. Só depois soube que, ao fim de um tempo conveniente, devia comunicar-lhe esse preço.

- E estava prestes a fazê-lo?

- Sim. E agora que o fiz, a questão está encerrada.

- Pode dizer-me mais uma coisa: que é o Artefacto?

- Isso não posso.

- Não pode ou não quer?

- Não quero.

A espécie humana fora traída por aquela coisa moribunda que, apesar do que dissera, nunca estivera disposta a comunicar-lhe qual era o preço. Aquela coisa alimentara durante longos milénios um ódio frio contra a espécie humana. E agora ela estava para além de tudo e ria-se dele, ao mesmo tempo que lhe dizia que os humanos tinham sido traídos, e que lhe contava como isso acontecera - agora que já era tarde.

- E também falou de mim ao Rodador - disse Maxwell. - Foi por isso que Churchill se encontrava perto da estação, à minha espera, quando voltei à Terra. Ele disse que andava a passear, mas não era verdade.

«E quanto ao outro de mim que morreu?»

Lançou-se sobre a árvore, mas a árvore estava vazia. A nuvem negra que a envolvia desaparecera.

Sim, pensou Maxwell. Não morrera, desaparecera. Vivo, o Agoireiro fora uma coisa difícil de entender. Morto, não era mais fácil. Durante um curto momento sentiu compaixão por ele, como um homem pode sentir por qualquer coisa que morre. Mas a compaixão, bem o sabia, fora desperdiçada, porque o Agoireiro devia ter morrido a rir-se silenciosamente da espécie humana.

Havia apenas uma esperança: persuadir o Tempo a demorar a venda do Artefacto, de modo que ele tivesse tempo para entrar em contacto com Arnold e contar-lhe a história. Uma história que, bem o sabia, era agora ainda mais fantástica do que o fora.

 

Maxwell estava a meio caminho da Universidade de Wisconsin quando o Fantasma se materializou no lugar ao lado do seu.

Tenho uma mensagem de Oop - disse ele, sem se preocupar com quaisquer preliminares. - Você não deve voltar à barraca. os jornalistas descobriram-no. Quando surgiram, a fazer perguntas, Oop entrou em acção sem pensar muito bem no que fazia, segundo creio.

Correu-os bem, mas creio que eles ainda andam por lá escondidos, à sua espera.

- Obrigado por me ter avisado, ainda que, na verdade, não pense que isso agora tenha muita importância.

- As coisas não correm bem? - perguntou o Fantasma.

- Nem correm. - Maxwell hesitou antes de acrescentar: - Suponho que Oop lhe contou o que aconteceu.

- Oop e eu somos como um só. Sim, ele contou-me, mas pode estar descansado...

- Não é isso. Receava apenas ter de lhe contar tudo. É, que, quando fui à reserva averiguar o que se passava com o quadro de Lambert...

- Sim - disse o Fantasma. - Aquele que pertence a Nancy Clayton.

-Tinha um pressentimento de que talvez tivesse encontrado mais do que esperava. E descobri uma coisa que não me ajuda nada. Foi que o Agoireiro informou O Rodador do preço que o planeta de cristal pretendia. O Agoireiro devia-mo ter dito, mas foi dizê-lo ao Rodador. Afirmou que o fez antes de ter sabido da minha existência, mas duvido disso. Estava a morrer quando me contou isso, mas não significa que me tenha contado a verdade, Foi sempre pouco digno, de confiança.

- O Agoireiro moribundo?

- Agora está morto. Estive junto dele até à sua morte. Não lhe mostrei a fotografia do quadro. Não tive coragem de o perturbar.

-Mas, apesar disso, ele contou-lhe o que acontecera com o Rodador.

- Somente para que eu soubesse que ele odiava a espécie humana desde o começo da sua evolução. E para que eu não tivesse dúvidas de que se sentia vingado.

- Então parece que não podemos ter esperança alguma - observou o Fantasma. - Meu bom amigo, lamento isso muito.

- Assim parece, mas há algumas coisas que ainda posso fazer: falar com Harold Sharp, no Tempo, e tentar convencê-lo a demorar o negócio, e depois arrombar uma porta ou duas na Administração e encurralar Arnold. Se o conseguir convencer a fazer ao Tempo uma proposta igual à do Rodador, através da concessão de fundos para os projectos do Tempo, estou certo de que Harlow não aceitará a oferta de Mr. Marmaduke.

- Você deve fazer um nobre esforço, estou certo disso, mas receio os resultados. Não por parte de Harold Sharp, porque ele é seu amigo, mas do presidente Arnold, porque ele não é amigo de ninguém. E não gostará de que arrombe quaisquer portas.

- Sabe o que eu penso? - perguntou Maxwell. Penso que tem razão. Mas não terei a certeza enquanto não tentar. Pode ser que Arnold tenha um acesso de fibra moral e possa, por um momento, pôr de parte os preconceitos.

- Devo avisá-lo de que Harlow Sharp deve ter pouco tempo para o atender - a si ou a qualquer outra pessoa. Tem muitas preocupações. Shakespeare chegou esta manhã.

- Shakespeare! - gritou Maxwell. - Por amor de Deus, tinha-me esquecido da vinda dele. Mas recordo-me de que ele deve falar amanhã à noite. Com mil demónios! Tinha de ser num momento destes...

- Parece que William Shakespeare não é um homem fácil de manejar. Quis vir imediatamente, admirar esta idade nova da qual tanto lhe haviam falado. O Tempo teve muita dificuldade a convencê-lo a substituir as suas vestes isabelinas por um trajo actual. E agora estão preocupados com a possibilidade de lhe acontecer alguma coisa. Venderam os bilhetes todos e os lugares de pé, e não se podem arriscar a que ele falte.

- Bem, a oportunidade não é boa, mas não posso fazer outra coisa. Escasseia-me o tempo.

- Parece incrível - disse tristemente o Fantasma - que uma tão má combinação de circunstâncias tenha surgido para o deter. É, impossível que por simples estupidez a Universidade e a Terra possam perder a sabedoria de dois universos.

- Foi o Rodador. A oferta dele estabeleceu-nos um limite! de tempo. Se tivesse mais tempo resolveria tudo, Poderia falar a Harlow, poderia obter uma audiência por parte de Arnold. Talvez convencesse até Harlow a fazer um negócio - em vez da Universidade, seria o Tempo a comprar a biblioteca do planeta. Mas temos de andar depressa. Que sabe quanto aos Rodadores? Alguma coisa que nós não conheçamos?

- Duvido disso. Apenas que eles podem ser esse hipotético inimigo que sempre esperámos encontrar no espaço. As suas acções indicam que, pelo menos potencialmente, são esse inimigo. E os seus motivos, as suas normas, as suas éticas, toda a sua atitude perante a vida, devem ser diferentes dos nossos. Provavelmente temos menos coisas em comum com eles do que com as aranhas ou as vespas. No entanto são hábeis - e isso é o pior de tudo. Absorveram suficientemente os nossos pontos de vista e as nossas maneiras para se poderem misturar connosco, - para poder negociar connosco - e mostraram-no, ao tentarem comprar o Artefacto. Meu amigo, é essa habilidade, essa flexibilidade deles que eu temo acima de tudo. Duvido que, se as posições se invertessem, o Homem pudesse actuar tão bem.

- É por isso que não podemos consentir que eles se apoderem daquilo que o planeta de cristal tem para oferecer - respondeu Maxwell. - Só Deus sabe o que se encontrará naquela biblioteca. Vastas áreas de conhecimento novo de que não temos a mais pequena ideia. Esse conhecimento poderá ser exactamente a margem entre nós e os Rodadores. Se entrarmos em colisão com eles, a sabedoria do planeta de cristal poderá representar a diferença entre a nossa vitória e a derrota. E pode acontecer também que os Rodadores, sabendo que temos essa sabedoria, procurem que essa colisão nunca se dê. Pode significar a diferença entre a paz e a guerra.

- Falou com o Agoireiro - disse o Fantasma. Exactamente antes de ele morrer. Ele falou do Artefacto. Deu-lhe alguma Ideia do que na verdade é? Se soubéssemos o que é o Artefacto...

-Não. Mas tive a impressão de que me deu um indício. Não nesse momento, mas depois. Penso que o Artefacto é qualquer coisa desse outro universo, aquele que existiu antes deste, aquele em que foi formado o planeta de cristal. Uma coisa preciosa, talvez, preservada através

de todos estes milhões de milhões de anos. E mais alguma coisa - que o Agoireiro e os outros Antigos de que Oop se recordava, também eram nativos desse outro universo e estavam relacionados com as criaturas do planeta de cristal. Vieram para aqui como colonos, numa tentativa de estabelecer uma nova civilização. Mas aconteceu qualquer coisa. Todas essas tentativas de colonização falharam. Talvez por qualquer lei natural que não compreendemos. Qualquer princípio em que nunca tenhamos pensado por sermos ainda jovens. Talvez haja um processo, natural que abra caminho à evolução, de modo que nenhuma espécie possa viver eternamente e impedir aquela.

- Todas as colónias devem ter desaparecido. Se houvesse alguma, seria provável que o planeta de cristal lhe transmitisse a sua sabedoria, em vez de a oferecer a nós ou aos Rodadores, ou a qualquer outra espécie inteligente.

- O que me preocupa é a razão por que o povo do planeta de cristal, tão perto da morte que já não são mais do que sombras, ainda quer o Artefacto. Que bem lhes poderá trazer ele? Que uso lhe poderão dar?

- Está certa de que não tem ideia alguma? Nada do que viu e ouviu?

- Não. Nem a mínima ideia.

 

Harlow Sharp parecia apressado.

- Desculpa por teres esperado tanto tempo - disse ele a Maxwell. É um dia terrível.

- De qualquer maneira, estou contente. Esse cão de guarda que tens junto à secretária não queria deixar-me entrar.

- Estava à tua espera. Calculei que mais tarde ou mais cedo aparecerias. Ouvi umas histórias estranhas,

- E a maior parte delas verdadeiras. Mas não foi por isso que vim aqui. É, apenas uma questão de negócios. Não te roubarei multo tempo.

- Muito bem. O que há?

- Vais vender o Artefacto.

- Lamento muito. Sei que tu e alguns outros tinham muito interesse por ele. Mas está no museu há anos e, excepto como curiosidade apreciado por visitantes e turistas, não nos tem servido de nada. E o Tempo necessita de dinheiro. Por certo que sabes disso. Os cordões da bolsa estão nas mãos da Universidade e ainda que as outras faculdades nos dêem umas migalhas...

- Harlow, sei disso tudo. Suponho que tens o direito de proceder à venda. Lembro-me que a Universidade não participou nas despesas do transporte do Artefacto para a nossa era...

- Temos de andar sempre a apanhar migalhas, a esmolar. Pensas que gosto de certas coisas que fazemos para ganhar dinheiro. Como este caso de Shakespeare, por exemplo. E de repente aparece-nos esta possibilidade de vender o Artefacto. Por mais dinheiro que esta miserável Universidade nos deu em cem anos. Sem dúvida que sei o que são os Rodadores. Quando Churchill aqui apareceu, a sondar-nos, disse-lhe sem rodeios que não trataria de nada sem saber quem era que ele estava a representar. E quando ele mo disse fiquei um pouco aflito, mas recordei-me de que era a única possibilidade de obter fundos decentes. Até teria dado a alma ao Diabo para obter esse dinheiro.

- Harlow, tudo quanto te queria pedir era que aguentasses o negócio, para me dares tempo...

- Tempo? Tempo para quê?

- Preciso do Artefacto.

- Precisas do Artefacto? Para quê?

- Posso trocá-lo por um planeta - por um planeta recheado, de conhecimentos, com o registo dos conhecimentos não só de um universo mas de dois, a sabedoria acumulada durante cinquenta mil milhões de anos.

Sharp inclinou-se para a frente e depois deixou-se cair para trás, sobre a cadeira.

- Estás a falar verdade, Pete? Não estás a brincar comigo? Ouvi algumas histórias curiosas a teu respeito. Que havia dois de ti e um fora assassinado. E que andavas a fugir aos jornalistas e talvez também à Policia. Sem falar em qualquer espécie de problema com a administração.

- Harlow, podia contar-te tudo, mas de nada serviria. Não acreditarias em mim. Mas o que eu disse é verdade. Posso comprar um planeta...

- Tu? Para ti?

- Não. Para mim, não. Para a Universidade. É por Isso que necessito de tempo. Para falar com Arnold...

- E convencê-lo? Pete, não tens qualquer possibilidade. Tiveste uma discussão qualquer com Longfellow e, na verdade, quem manda é ele. Mesmo se tivesses uma proposta legítima...

- É legítima. Digo-te que é legítima. Falei com o povo do planeta, vi alguns dos registos...

Sharp abanou a cabeça.

Somos amigos há muito tempo. Sou capaz de fazer tudo por ti. Mas isto não. Não posso perder esta oportunidade. Além disso, receio que tenhas chegado muito tarde.

«O Rodador pagou esta tarde a quantia que lhe tinha sido pedida. Entrará de posse do Artefacto amanhã de manhã. Quis levá-lo imediatamente, mas surgiram dificuldades com o transporte.»

Maxwell ficou mudo, estupefacto perante o que ouvira.

- É isto - concluiu Sharp. - Que posso eu fazer?

- Harlow, se eu conseguisse falar com Arnold esta noite? Se o convencesse a pagar o mesmo?...

- Não sejas ridículo. Ele até perderia os sentidos, se lhe dissesses o preço...

- É assim tão alto?

- É.

Maxwell ergueu-se devagar.

- Uma coisa te digo, no entanto. Posse como fosse, pregaste, um susto ao Rodador. Churchill apareceu aqui esta manhã, nervoso como um gato, para fechar imediatamente o negócio. Gostaria que tivesses falado comigo antes. Talvez tivéssemos podido arranjar alguma coisa, ainda que não faça qualquer ideia do que pudesse ser.

Maxwell hesitou antes de sair. Voltou-se de novo para Sharp.

- Mais uma coisa. Sobre as viagens no Tempo. Nancy Clayton tem um quadro de Lambert...

- Ouvi falar nisso.

- No fundo vê-se uma colina - e uma pedra sobre ela. Posso jurar que essa pedra é o Artefacto. Oop diz que as criaturas do quadro são aquelas de que ele se lembra, dos seus dias na era de Neanderthal. E tu encontraste o Artefacto no alto de uma colina do Jurássico. Como poderia Lambert ter sabido da existência dessa coisa, no alto da colina? O Artefacto só foi encontrado séculos depois da morte dele. Creio que Lambert viu o Artefacto e as criaturas que pintou. Creio que viajou até ao Mesozóico. Há uma discussão sobre um homem chamado Simonson, não há ?

- Estou a ver aonde queres chegar. É possível, mas improvável. Simonson fez algumas investigações temporais no vigésimo primeiro século e afirmou ter conseguido alguns sucessos, mas confessou que tinha problemas a resolver. Há uma lenda segundo a qual ele perdeu um homem ou dois no Tempo - enviou-os e não os pôde fazer voltar. Mas houve sempre dúvidas sobre se ele de facto conseguiu ou não algum sucesso. Os seus apontamentos, aqueles que conhecemos, não são muito reveladores, e ele nunca publicou nada sobre esse assunto. Fez o seu trabalho em segredo porque parecia ter a ideia de que as viagens no tempo podiam ser uma mina de ouro.

-Mas isso significa que talvez tivesse sido possível - insistiu Lambert. - A época está certa. Simonson e, Lambert foram contemporâneos e houve uma mudança brusca no estilo de Lambert como se tivesse acontecido alguma coisa.

- É possível - disse Sharp. - Mas não apostaria nisso.

 

Quando Maxwell saiu do edifício do Tempo, as estrelas estavam a aparecer e a brisa nocturna era fria. Sentiu um arrepio e puxou a gola do casaco para cima, protegendo com ela a garganta.

Deu conta de que tinha fome. Não comera desde manhã cedo. E não era só a fome, era também o facto de não ter um tecto sob o qual se abrigar, porque, se queria evitar os jornalistas, não devia voltar à barraca de Oop.

Tentou em vão recordar-se de onde poderia encontrar um café ou um restaurante não frequentado por qualquer membro da Faculdade. Não estava disposto a suportar as perguntas que por certo não deixaria de lhe fazer.

Ouviu qualquer coisa mover-se atrás dele. Voltou-se de repente e viu o Fantasma.

- Estava à sua espera - disse ele. - Esteve muito tempo lá dentro.

- Tive de esperar. E depois tivemos de conversar.

- Obteve algum resultado?

- Nenhum. O Artefacto foi vendido e está pago. O Rodador leva-o amanhã. Receio que seja o fim de tudo. Poderia tentar falar com Arnold esta noite, mas não vale a pena.

- Oop está a guardar uma mesa para nós. Creio que tem vontade de comer.

- Estou a morrer de fome.

- Então venha dai.

Durante um tempo que pareceu invulgarmente longo, o Fantasma conduziu Maxwell através de uma série de ruas e becos escusos.

-Encontrámos um lugar onde ninguém nos verá disse o Fantasma. - Mas a comida é aceitável e o uísque barato. Oop insistiu nisso.

Chegaram finalmente à casa procurada e desceram uma escadaria de ferro até à cave. Maxwell empurrou a porta. O interior estava mal Iluminado.

- Aqui! - gritou Oop. - Temos connosco alguém que te quer conhecer.

Seguido pelo Fantasma, Maxwell atravessou a sala em direcção à mesa. Não havia mais de meia dúzia de pessoas na casa.

Carol olhou para ele. E um homem, de rosto barbado, envolto, nas sombras - o rosto de alguém que Maxwell teve a impressão de conhecer.

- O nosso convidado desta noite disse Oop. - Mestre William Shakespeare.

Shakespeare ergueu-se e estendeu a mão a Maxwell. - Que afortunado sou em ter caldo no meio de amigos tão simples e tão alegres.

- O Bardo está a pensar em ficar para sempre entre nós - disse Oop.

- Não, o Bardo não - disse Shakespeare. - Não me chame isso. Não sou mais do que tiro modesto carniceiro o negociante de lãs.

- Um simples engano - desculpou-se Oop. - Estamos tão habituados...

- Sim, sim, bem sei. Os enganos caminham depressa sobre as pegadas de quem eles seguem.

Maxwell sentou-se junto de Shakespeare e o Fantasma colocou-se do outro lado. Oop agarrou numa garrafa e ofereceu-lha, dizendo:

- Não se preocupe com o copo. Não nos importamos com formalidades dessas, aqui.

Maxwell levou a garrafa à boca e começou a esvaziá-la. Shakespeare olhou-o com admiração e comentou:

- Não posso senão admirar a sua coragem. Tentei beber um gole e senti-me arrepiado.

- Não tardará a habituar-se - disse Maxwell.

- Mas esta cerveja... Tão suave no paladar e agradável ao estômago...

Silvestre abriu caminho e colocou a cabeça sobre as pernas de Maxwell.

- Esse gatarrão está a aborrecê-lo mais uma vez? - perguntou Carol.

- Silvestre e eu somos velhos camaradas. Andámos juntos na guerra. Assaltámos o Rodador ontem à noite - lembra-se ? - e vencemo-lo.

- Parece muito alegre - disse Shakespeare a Maxwell. - Deduzo que o negócio de que andava a tratar, e que o demorou até agora, decorreu favoravelmente.

- O negócio não se fez. Se estou alegre é por estar em tão boa companhia.

- Queres dizer que Harlow te voltou as costas! explodiu Oop. - Nem sequer te deu um dia ou dois ?

- Não pode fazer nada. Já recebeu o dinheiro e o Rodador leva amanhã o Artefacto.

- Temos meios de o levar a mudar de ideias - disse Oop num tom lúgubre.

- Agora é impossível. Não pode desistir. O negócio já foi feito.

- A vossa hospitalidade está acima de qualquer crítica - disse Shakespeare. - Mas creio que os venho perturbar num momento grave.

- É grave, sim - disse o Fantasma. - Mas não nos veio perturbar. Sentimo-nos satisfeitos por o termos aqui.

- Que disse Oop sobre a possibilidade de, ficar cá? - perguntou Maxwell. Sobre o seu desejo de ficar entre nós.

- Os meus dentes são maus - explicou Shakespeare. - Dançam nas gengivas e por vezes doem terrivelmente. Sei que aqui há mecânicos maravilhosos que os podem extrair sem dor e fabricar um conjunto capaz de substituir aqueles que tenho.

- Pode-se fazer isso, de facto - disse o Fantasma.

- Deixei em casa uma mulher com uma língua mordaz e amaldiçoaria o momento em que voltasse para junto dela - disse Shakespeare. - Do mesmo modo, a cerveja que bebo é maravilhosamente superior a todas quantas bebi e ouvi dizer que estão, em boas relações com os duendes e as fadas, o que é uma coisa maravilhosa. E estar sentado a comer com um fantasma é coisa que ultrapassa o entendimento, ainda que se tenha o pressentimento de que ele deve andar perto das raízes da verdade.

O empregado chegou com um tabuleiro carregado de comida. Começou a pô-la sobre a mesa.

- Silvestre! - gritou Carol.

O tigre saltara de súbito, pusera as duas patas na mesa e roubara duas belas costeletas do lombo.

- O gatinho está esfomeado - disse Shakespeare - agarra o que pode.

- Em matéria de comida não sabe o que é ter maneiras - protestou Carol.

Debaixo da mesa ouviu-se o som dos ossos mastigados por Silvestre.

- Mestre Shakespeare - disse o Fantasma - veio de Inglaterra. De uma cidade sobre o Avon.

- Um bom país para a vista, mas cheio de escumalha - observou Shakespeare. - Há lá caçadores furtivos, ladrões, assassinos...

- Mas recordo-me dos cisnes no rio e dos salgueiros nas margens...

- Do quê? - berrou Oop. - Como é que te recordas disso ?

O Fantasma ergueu-se e todos os olhares se fixaram nele. A sua voz, quando se fez ouvir, pareceu nascer de muito longe, de um lugar vazio.

- Mas recordo-me. Apesar de tantos anos se terem passado, recordo-me...

- Mestre Fantasma - disse Shakespeare -, está a actuar de uma maneira muito estranha. Que fantástico distúrbio, se apoderou de si?

- Sei agora quem sou - disse o Fantasma, triunfante. - Sei de quem sou o fantasma.

- Bem, graças a Deus por isso - comentou Oop. Isso porá fim a esse teu vagabundear constante.

- E de quem é você o fantasma? - perguntou Shakespeare.

- De si! - lamentou-se o Fantasma. - Sei agora que, sou o fantasma de William Shakespeare!

Durante um instante ficaram todos silenciosos, de pasmo, até que da garganta de Shakespeare veio um soluço de medo. Levantou-se de repente da cadeira, saltou por cima da mesa e fugiu para a porta. A mesa voltou-se com grande estrondo. A cadeira de Maxwell tombou e ele caiu de costas no chão. O canto da mesa apanhou-o e entalou-o contra o chão, enquanto uma tigela de molho escorregava e lhe ia cair em cima da cara.

Tentou tirar o molho dos olhos. E lá no alto ouviu os berros de Oop.

Por fim conseguiu ver alguma coisa, ainda que o rosto e os cabelos continuassem cheios de molho. Desembaraçou-se da mesa e pôs-se de pé com dificuldade.

Carol estava também no chão, entre os restos da comida. As garrafas de cerveja rolavam por todos os lados. Silvestre comia a carne, rasgando e engolindo grandes pedaços antes que alguém o pudesse deter.

Oop apareceu a coxear, vindo da porta.

- Não há sinal deles - disse ele. - Nenhum sinal.

Estendeu a mão a Carol para a ajudar a levantar.

- Esse maldito Fantasma - disse ele com amargura. - Porque não se deixou ficar quieto? Mesmo se tivesse a certeza...

- Mas ele não tinha - disse Carol. - Foi precisa esta confrontação para que ele se recordasse disso. Talvez alguma coisa que Shakespeare dissesse...

- Isso vai destrui-lo - afirmou Oop. Shakespeare nunca parará de correr. Ninguém será capaz de o encontrar.

- Talvez seja isso que o Fantasma está agora a fazer - disse Maxwell. - Foi por isso que ele, saiu. Para seguir Maxwell, fazê-lo parar e trazê-lo de novo para junto de nós.

- Fazê-lo parar, agora? -perguntou Oop. -Se Shakespeare o vê atrás dele correrá como nunca ninguém correu.

 

Sentaram-se, tristes, sobre a mesa de Oop, enquanto Silvestre se deitava junto da lareira, de patas para o ar. Parecia muito satisfeito.

Maxwell perguntou a Carol:

- Você trabalhava com o Artefacto?

- Não - respondeu a rapariga. - Não trabalhava com ele. Mas um dia, quando passava através do pátio interior do Museu, parei e olhei para ele, porque era um objecto interessante e misterioso. Parei... e vi qualquer coisa, ou pensei ver. Não sei o que foi. Não tenho, a certeza. Ainda que então soubesse que vira naquilo qualquer coisa que ninguém até então notara... Não. Já não tenho a certeza.

- Continue a falar - disse Oop. - Conte-nos o que aconteceu. O melhor que puder.

- Foi só um instante. Tão rápido, tão breve, e no entanto nesse momento não tive dúvidas do que vira. O Sol brilhava através das janelas e os seus raios incidiam sobre o Artefacto. Talvez ninguém o tivesse observado precisamente sob aquele ângulo de incidência da luz. Não sei. Talvez essa seja a explicação. Mas pareceu-me ver qualquer coisa dentro do Artefacto. Bem, talvez não propriamente no Interior. Mais como se o Artefacto fosse qualquer coisa comprimida ou obrigada a tornar a forma de um bloco oblongo. Pareceu-me ver um olho e por um instante, quando vi esse olho, soube que estava vivo e me vigiava...

- Mas não pode ser! - gritou Oop. - O Artefacto é como uma pedra. Como um pedaço de metal.

- Um curioso pedaço de metal - observou Maxwell. -Uma coisa onde não se pode meter o nariz...

- Por isso digo que agora não me sinto tão certa - insistiu Carol. - Talvez tenha sido apenas a minha imaginação.

- Nunca o saberemos -disse Maxwell. - O Rodador levá-lo-á amanhã.

- E comprará com ele o planeta de cristal - disse - disse Oop. - Creio que, devíamos fazer mais alguma coisa do que estarmos aqui sentados. Se tivéssemos mantido Shakespeare junto de nós...

- Não serviria de nada - observou Maxwell -, se pensavam em mantê-lo como refém.

- Não o raptámos. Veio ter connosco por sua vontade. Há muito que estava desejoso de se livrar da escolta que o Tempo lhe oferecera. A verdade é que a Ideia foi dele. Só ajudámos um pouco.

- Bem, de qualquer maneira era uma ideia de malucos. Havia muito dinheiro envolvido. Podiam raptar uma dúzia de Shakespeares que, nunca conseguiriam convencer Harlow Sharp a desistir do negócio do Artefacto.

- Mesmo assim poderíamos fazer qualquer coisa disse Carol. - Acordar Arnold, por exemplo.

- A única coisa que Arnold poderia fazer seria dar ao Tempo uma quantia Igual à que o Rodador pagou observou Maxwell. - E não acredito nisso.

- Nem eu - concordou Oop. - O melhor será apanharmos uma bebedeira. Os jornalistas estarão ai de manhã e eu tenho de arranjar disposição para correr com eles para longe.

- Um segundo - disse Maxwell. - Tive uma ideia. O tradutor! Aquele que usei para ler os registos do planeta de cristal. Encontrei-o na minha mala.

- E depois ? - perguntou Oop.

- Se o Artefacto fosse outro registo...

- Mas Carol disse...

- Sei o que Carol disse. Mas ela não tem a certeza do que viu.

- É isso - disse Carol. - Não tenho a certeza absoluta. E o que Pete diz tem um certo sentido. Se ele tem razão, seria um registo enorme. Muito importante. Talvez um mundo inteiro de conhecimentos novos. Talvez o planeta de cristal o tivesse deixado ficar na Terra pensando que ninguém o encontraria aqui. Uma espécie de arquivo oculto.

- Mesmo que fosse esse o caso, nada poderíamos fazer - disse Oop. - O Museu está fechado e Harlow Sharp não nos irá abrir a porta.

- Posso conseguir isso - disse Carol. - Posso telefonar ao guarda e dizer que tenho de ir lá fazer qualquer trabalho. Ou que me esqueci de qualquer coisa lá dentro. - E perderá o seu emprego.

- Há mais empregos. E se nós procedermos com cuidado...

- Mas as probabilidades são tão poucas - protestou Maxwell. - Talvez uma num milhão. Talvez menos do que isso. Não nego que gostaria de tentar, mas...

- E se você descobrisse alguma coisa verdadeiramente importante ? - perguntou Carol. - Então poderia falar com Sharp e explicar-lhe tudo. Talvez...

- Não sei. Duvido de que pudéssemos encontrar alguma coisa tão importante que levasse Harlow a anular o negócio.

- Bem - disse Oop -, não percamos tempo aqui sentados, a falar nisso. Mãos à obra.

Maxwell olhou para Carol.

- Penso o mesmo, Pete - disse ela. - Creio que vale a pena.

 

O passado rodeava-os. O passado metido em vitrinas e estantes, sobre pedestais; o perdido, o esquecido e o desconhecido, arrancado, ao tempo pelas expedições que tinham sondado os recantos ocultos da História da Humanidade. Objectos de arte e folclore que nem sequer haviam sido sonhados pelos homens que tinham recuado no tempo; cerâmica nova da qual só haviam sido conhecidos fragmentos; garrafas do antigo Egipto ainda com as essências e unguentos, bem frescos, dentro delas; velhas armas de ferro acabadas de sair da forja; os manuscritos da biblioteca de Alexandria que deviam ter ardido, mas não tinham, porque homens haviam recuado no tempo para os salvarem das chamas; a famosa tapeçaria de Ely que desaparecera da vista do Homem num era remota; tudo isso e muito mais, um tesouro feito de coisas que muitas elas não eram tesouros, trazidas dos confins do tempo.

Diante do pedestal em que estava assente o Artefacto, Maxwell escutava os passos do guarda que se afastava, continuando a sua ronda.

Carol conseguira. Telefonara ao guarda e dissera que ela e dois amigos gostariam de ver o Artefacto pela última vez, antes de ser retirado do Museu.

- Não demore muito tempo - fora tudo quanto o guarda dissera, ainda que acrescentando: - Tenho a certeza de que não devia deixá-la. fazer isto.

Projectores montados no tecto iluminavam o bloco negro que era o Artefacto.

Maxwell passou sob o cordão de veludo que rodeava o pedestal e subiu até ao Artefacto. Ajoelhou-se junto dele e procurou no bolso o aparelho tradutor.

Era um palpite disparatado. Ou melhor: apenas uma Ideia nascida do desespero e que o obrigava a perder o seu tempo, tornando-o ainda um pouco ridículo. E mesmo que aquela louca tentativa provasse alguma coisa, era muito tarde para que pudesse alterar o curso dos acontecimentos. No dia seguinte o Rodador tomaria posse do Artefacto e a sabedoria de dois universos seria perdida para sempre em favor de um enigmático bloco cultural que poderia, por sua vez, ser inimigo potencial cósmico que a Terra sempre havia temido encontrar no espaço.

Colocou o tradutor na cabeça, com dificuldade, porque havia alguma coisa que parecia não se ajustar bem.

Olhou para baixo e viu Silvestre, sentado no chão ao lado do pedestal, a rosnar para Oop.

Olhou para o Artefacto.

Havia de facto qualquer coisa naquele bloco negro. Linhas, formas, uma coisa estranha. Deixara de ser um bloco de uma negridão Inimaginável que rejeitava toda a influência externa, nada tolerando e nada dando, como se se bastasse a si mesma dentro do universo.

Torceu a cabeça para tentar encontrar um ângulo do qual pudesse compreender melhor o que via. Certamente que não eram linhas de escrita - era qualquer coisa diferente. Levou a mão ao aro e fez girar o botão que aumentava a potência. Regulou o sensor.

- Que é isto? - perguntou Carol.

- Não se!... - Mas de repente soube. E viu. Aprisionado num canto do bloco estava uma garra, com carne, couro ou escamas irisadas e unhas brilhantes que pareciam talhadas em diamante. Uma garra que se movia e lutava por se libertar.

Maxwell afastou-se, para ficar fora do alcance, da garra, e perdeu o equilíbrio. Embaraçou-se no cordão de veludo e caiu pesadamente sobre um ombro. Bateu com a palma da mão na testa, atirando o tradutor para o lado, para o afastar dos olhos.

Por cima dele o Artefacto estava a mudar de forma. Saía dele qualquer coisa - libertando-se daquela negridão oblonga. Qualquer coisa viva, tremente de vitalidade e resplandecente de beleza.

Uma cabeça delicada, elegante, com um focinho alongado e uma crista serrilhada que corria da parte da frente da cabeça ao longo do pescoço. Um peito e um corpo que pareciam um barril, com um par de asas meio dobradas e patas anteriores bem formadas, armadas com as garras de diamante. Refulgia de uma maneira ofuscante sob os projectores que iluminavam o Artefacto, ou melhor, o local onde ele estivera, cada escama brilhante como um ponto de dura luz branca pondo em relevo o bronze e o ouro, o amarelo e o, azul.

Um dragão! Um dragão que surgia da negridão do Artefacto! Um dragão que surgira finalmente, depois de aprisionado durante séculos de séculos naquele bloco negro.

Havia tantos anos que ele procurava um -tantos anos de interrogações - e ali estava finalmente um dragão. Mas não como o imaginara - não uma coisa prosaica de carne e escamas, mas uma coisa de glorioso simbolismo. Um símbolo dos dias grandes do planeta de cristal, talvez do universo que morrera para que aquele universo actual pudesse nascer - uma coisa antiga e fabulosa, companheira daquelas estranhas tribos de seres dos quais os génios e os duendes, as fadas e os agoireiros eram perturbados e lamentáveis sobreviventes. Uma coisa cujo nome fora transmitido durante gerações cujo número podia ser contado por milhares, mas que nunca fora vista por qualquer membro da Humanidade até àquele momento.

Maxwell sentiu uma mão sobre o ombro e voltou-se.

- Um dragão? - perguntou Carol.

A voz dela era estranha, como se tivesse medo de perguntar aquilo, como se tivesse obrigado as palavras a saírem-lhe da garganta. A rapariga não olhava para ele, mas sim para cima, para o dragão, que agora parecia estar completo.

O dragão agitou a cauda, que era longa e graciosa. Oop desviou-se dela. E Silvestre rugiu de fúria e avançou um passo.

- Pára, Silvestre! - ordenou Maxwell.

Oop agarrou uma das patas do tigre.

- Diga-lhe qualquer coisa! - gritou Maxwell a Carol.

Se esse gato maluco o apanha vai ser o diabo!

- Ele não se atirará a Oop.

- Não se trata de Oop. É o dragão. Se ele se lançar...

Das trevas ouviu-se um berro de raiva e o barulho de pés em corrida.

- Que aconteceu aqui ? - gritou o guarda, surgindo das sombras.

O dragão deu meia volta sobre o pedestal e olhou para o homem.

- Atenção! - gritou Oop, ainda agarrado à perna de Silvestre.

O dragão avançou com cuidado, quase passo a passo, a cabeça inclinada, numa interrogação. Fez um molinete com a cauda e varreu uma mesa de exposição, atirando ao ar meia dúzia de vasos e garrafas, que caíram com estrondo no chão e se fizeram em pedaços.

- Eh! Parem com isso! - gritou o guarda, e então, segundo parecia, viu pela primeira vez o dragão. O grito tornou-se num berro de pavor. O homem voltou-se e fugiu. O dragão correu atrás dele, não com muita pressa mas com muito interesse, acompanhado por estrondos e ruídos de coisas que se quebravam.

- Se não o deixarmos sair daqui - disse Maxwell nada ficará inteiro. Destruirá tudo. E Oop, por amor de Deus, aguenta esse tigre. Não podemos ter aqui uma luta de primeira classe.

Pós-se de pé, tirou o tradutor da cabeça e enfiou-o no bolso.

- Posso abrir as portas e depois espantamo-lo para fora - disse Carol. - As portas grandes. Creio que sei como o fazer.

- Oop - perguntou Maxwell - sabes pastorear dragões?

O dragão tinha acabado de atingir as traseiras do edifício e estava de volta.

- Oop - disse Carol - ajude-me a abrir as portas. Preciso de, um homem com músculos.

- E o tigre?

- Deixa-o comigo - disse Maxwell. - Talvez me tenha respeito.

Uma longa cadela de estrondos mareava o avanço do dragão. Ao ouvi-los, Maxwell gemeu. Sharp cortar-lhe-ia a cabeça por aquilo. Amigo ou não, ficaria furioso. O Museu completamente destruído e o, Artefacto transformado em toneladas de carne enlouquecida.

Deu alguns passos, a medo, na direcção dos estrondos. Silvestre chegou-se aos seus calcanhares. Na penumbra pôde distinguir os contornos vagos do dragão.

- Dragãozinho - disse ele. - Acalma-te, dragãozinho.

Era um disparate. Mas quem sabia, no mundo inteiro, como se devia falar a um dragão?

Silvestre soltou um tremendo rugido.

- Não te metas nisto! - gritou Maxwell. - As coisas já estão muito más, mesmo sem ti.

Perguntou a si mesmo o que tinha acontecido ao guarda. Provavelmente estava a telefonar à Polícia. A tempestade aproximava-se...

Ouviu o rangido das portas, a abrirem-se atrás dele. Quando o dragão passasse por elas que aconteceria? Maxwell estremeceu, ao pensar no enorme animal, correndo pelas ruas e pelos relvados. No fim de tudo talvez fosse melhor deixá-lo ali encerrado. O Museu estava mais ou menos destruído e mais valeria deixá-lo ser destruído por completo do que deixar aquela criatura à solta.

O dragão lançou-se a galope na direcção dos portões.

Maxwell deu meia volta e gritou:

- Fechem essas portas! - Mas teve de se afastar para o lado quando o dragão passou por ele, a correr.

As portas ainda estavam meio abertas. Oop e Carol fugiram também, cada qual para seu lado. Silvestre rugiu e lançou-se em perseguição da criatura.

A cauda sinuosa do dragão agitava-se nervosamente, destruindo tudo enquanto ele corria. Vitrinas e mesas, estátuas quebradas - um rastro de destruição assinalava a sua corrida para a liberdade.

Maxwell correu atrás de Silvestre e do dragão, sem saber porquê. O dragão chegou à porta e passou através dela num salto. E quando saltou, muito alto, as suas asas abriram-se e levaram-no pelo ar, batendo como tambores.

Maxwell escorregou até parar. Nos degraus junto à entrada, Silvestre fez o mesmo, e ficou a rugir para o ar. O dragão voava. Era uma visão capaz de deixar uma pessoa sem fala. O luar batia nas suas asas, reflectindo-se nas escamas vermelhas, douradas e azuis, fazendo como um arco-íris que faiscava e estremecia no céu.

Oop? e Carol apareceram a correr e pararam para olhar para o céu.

- Que belo! - disse Carol.

- É, não é ? - disse Maxwell.

E então, pela primeira vez, compreendeu em toda a sua extensão o que acontecera. Já não havia nenhum Artefacto e o negócio do Rodador falhara. Assim como qualquer outro negócio que ele pudesse fazer em benefício do planeta de cristal.

O dragão estava agora mais alto, rodopiando no céu. Já não era mais do que um relampejar de cores do arco-íris.

- Isto é o fim - disse Oop. - Que faremos agora?

- A culpa foi minha - afirmou Carol.

- Ninguém teve a culpa - recordou Oop. - Foi uma coisa que aconteceu.

- De qualquer modo, estragámos o negócio de Harlow - disse Maxwell.

- Sem dúvida que o conseguiram - disse uma voz atrás deles. - Alguém será capaz de me explicar o que está a acontecer?

Olharam para trás.

Harlow Sharp estava junto da porta. Alguém acendera todas as luzes do Museu.

- O Museu está destruído e o Artefacto desapareceu - disse ele. - Vocês estão aqui e eu devia ter previsto tudo. Miss Hampton, estou surpreendido. Pensei que tinha o juízo suficiente para não acompanhar com gente desta. Ainda que este seu tigre maluco...

- Não fale no Silvestre - disse ela. - Ele não teve nada que ver com isto.

- E tu, Pete ?

Maxwell abanou a cabeça.

- É um pouco difícil de explicar.

- Também creio - concordou Sharp - Já tinhas isto na ideia quando falaste comigo esta tarde?

- Não. Foi uma espécie de acidente.

- Um dispendioso acidente. Talvez te interesse saber que fizeste atrasar o trabalho do Tempo um século ou mais. A menos que alguém tenha retirado o Artefacto do seu lugar e o haja escondido em qualquer parte. Nesse caso, meu amigo, dou-te cinco segundos e nada mais para o colocares de novo no seu lugar.

Maxwell engoliu em seco.

- Não toquei nele, Harlow. Não compreendo o que aconteceu. Transformou-se num dragão.

- Transformou-se em quê?

- Num dragão. É verdade, Harlow...

- Lembro-me agora. Andavas sempre a falar em dragões. Foste para Coonskin em busca de um dragão. E agora parece que encontraste um. Espero que seja realmente bom.

- É lindo - disse Carol. - Dourado e resplandecente.

- Oh, que bonito! - respondeu Sharp. - Podemos provavelmente fazer uma fortuna, exibindo-o. Levá-lo-emos para um circo e faremos dele a estrela da companhia. Já vejo em letras bem grandes:

 

         O ÚNICO DRAGÃO QUE EXISTE

 

- Mas ele não está aqui - observou Carol. Voou e desapareceu.

- Oop - disse Sharp - não disseste uma palavra. Que aconteceu? Ordinariamente falas até de mais. Que aconteceu ?

- Sinto-me mortificado - respondeu Oop.

Sharp voltou-se para Maxwell.

- Pete, creio que compreendes o que fizeste. O guarda telefonou-me e quis chamar a Polícia. Disse-lhe para não fazer isso e vim a correr para aqui. Não fazia Ideia que as coisas fossem assim tão más. O Artefacto desapareceu e não posso entregá-lo. Isso significa que terei de devolver o dinheiro, E muitos dos objectos expostos foram transformados em cacos...

- Foi o dragão, antes de o deixarmos fugir - disse Maxwell.

- Então deixaram-no fugir? Não foi ele que se escapou. Poste tu que lhe abriste a porta.

- Bem, ele estava a partir tudo. Nem pensámos...

- Diz-me a verdade, Pete. Houve de facto um dragão?

- Sim, houve. Estava imobilizado no interior do Artefacto. Talvez fosse o próprio Artefacto. Não me pergunto como isso foi possível. Feitiço, talvez.

- Feitiço?

- Sim. São coisas que de facto acontecem. Não sei como. Passei anos a do que sabia quando comecei.

- Parece-me que falta nisso, qualquer coisa. Quando o Diabo anda à solta, é por causa de alguma coisa. Oop, podes dizer-me aonde anda o Fantasma, esse teu grande amigo?

Oop abanou a cabeça.

- É difícil sabê-lo. Anda sempre a escapar-nos.

- E não é tudo - Insistiu Sharp. - Há ainda mais alguém que desapareceu. Shakespeare. Pergunto a mim próprio se algum de vós não poderia fazer alguma luz sobre isso.

- Esteve connosco algum, tempo - esclareceu Oop. - Íamos comer quando ele se sentiu espavorido e fugiu, Aconteceu que o Fantasma se recordou de que era fantasma de Shakespeare. Como sabe, ele andou todos estes anos a perguntar a si próprio a quem pertencia...

Muito devagar, Sharp sentou-se no primeiro degrau e olhou para todos, um por um.

- Não se esqueceram de nada - disse ele. – Não esqueceram nada do que era necessário para arruinar Harlow Sharp. Fizeram um bom trabalho.

- Não pretendemos arruiná-lo. Não tínhamos nada contra si. Aconteceu apenas que as coisas, depois de começarem a sair erradas, nunca pararam.

- Tenho o direito de vos levar a tribunal e de vos exigir até ao último cêntimo que tiverem. Levá-los-ei a julgamento - e, não se iludam, hei-de consegui-lo - e não poderão trabalhar para o Tempo durante o resto das vossas vidas. Ainda que os três, juntos, não possam pagar sequer durante toda a vida o que custou ao Tempo esta noite. E a Polícia não deve tardar aí. Não vejo como a poderemos manter fora disto. Receio que vocês tenham de responder a muitas perguntas.

- Se alguém quiser ouvir-me, explicarei tudo - respondeu Maxwell. - É, isso que tenho estado a tentar fazer desde que voltei - encontrar alguém que me queira escutar. Tentei falar contigo esta tarde...

- Então supõe que começas agora a explicá-lo a mim. Tenho uma certa curiosidade. Atravessemos a rua até ao meu gabinete e depois conversaremos. Ou Isso prejudicar-vos-á? Há ainda talvez uma coisa ou duas que vocês podem fazer para acabar de conduzir o Tempo à falência,

- Não, creio que não - disse Oop. - Posso dizer, confidencialmente, que fizemos tudo quanto podíamos.

 

O inspector Drayton ergueu-se com dificuldade da cadeira em que se sentara, na antecâmara do gabinete de Sharp.

- Até que enfim chegou, Dr. Sharp - disse ele. Aconteceu alguma coisa...

O inspector interrompeu-se quando viu Maxwe11. Então era você - disse ele. - Estou muito satisfeito por vê-lo. Obrigou-me a uma caça longa e dura.

Maxwell não se mostrou muito contente.

- Não estou certo, inspector, de que possa corresponder à sua satisfação.

- E quem é você ? - perguntou Sharp, secamente. Que pretende?

Sou o inspector Drayton, da Segurança. Falei outro dia durante uns momentos com o Professor Maxwe11, quando ele voltou à Terra, mas receio que ainda haja umas perguntas...

- Nesse caso, por favor, tome o seu lugar na fila. Tenho de trabalhar com o Dr. Maxwell e receio que isso tenha precedência sobre as suas pretensões.

- Não compreende - disse Drayton. - Não vim aqui para prender o seu amigo. O facto de ele ter aparecido consigo foi um pedaço de boa sorte que eu não esperava. Há outro assunto em que eu pensava que podia ser útil, um assunto que surgiu de uma maneira bastante inesperada. Compreende, ouvi dizer que o Professor Maxwell esteve como convidado numa festa recente de Miss Clayton e portanto fui vê-la...

- Fale de maneira que se compreenda, homem. - Disse Sharp - Que tem de ver Nancy Clayton com isto tudo ?

- Não sei, llarlow - disse Nancy Clayton, aparecendo à porta do gabinete. -Tentei apenas divertir os meus amigos e não compreendo o que há de mal nisso,

- Nancy, por favor - implorou Sharp. - Primeiro conta-me o que aconteceu. Qual a razão por que tu e o inspector Drayton estão aqui e...

- Trata-se de Lambert - respondeu Nancy.

-O homem que pintou o teu quadro?

- Os meus três quadros - corrigiu Nancy, com orgulho.

- Mas Lanibert morreu há mais de quinhentos anos.

- Isso era também o que eu pensava, mas ele apareceu esta noite. Disse que se tinha perdido.

Um homem surgiu da sala interior e afastou Nancy para o lado - um homem alto e duro, com o cabelo cor de areia e rugas profundas no rosto.

- Parece, senhores, que discutem sobre mim - disse ele - Importam-se se eu falar?

- É Albert Lambert? -perguntou Maxwell.

- Sem dúvida, e espero que a minha presença não vos perturbe, mas tenho um problema.

-Só você? - perguntou Sharp.

-Suponho que há muitas pessoas que se encontram perante problemas. No entanto, quando se tem um problema o que importa é saber onde se deve ir para o resolver.

- Estou na mesma posição e procuro respostas da mesma maneira que você - insistiu Sharp.

- Mas não compreendes que Lambert tem razão disse Maxwell a Sharp. -Veio ao lugar onde o seu problema podia ser resolvido.

- Se fosse a si não estaria tão certo disso - disse Drayton. - Você outro dia estava muito arredio, mas agora tenho-o nas mãos. Há uma porção de coisas...

-Inspector, por favor mantenha-se à margem disto -interrompeu Sharp. - As coisas já são muito más para que as compliquemos. O Artefacto desapareceu, o Museu foi destruido e Shakespeare anda não se sabe por onde.

- Mas tudo quanto eu quero - disse Lambert - é voltar para casa. Para o ano 2023.

- Um momento - ordenou Sharp. - Aguarde a sua vez. Eu não...

- Harlow - disse Maxwell -, expliquei-te já tudo. Esta tarde. E falei-te em Sinionson.

-Sim, lenibro-me agora. - Sharp olhou para Lambert. -Foi você que pintou o quadro que mostra o Artefacto ?

- O Artefacto?

- Um grande bloco de pedra negra no alto de uma colina.

Lambert abanou a cabeça.

- Não, não pintei. Ainda que suponha que o virei a fazer, porque Miss Clayton mo mostrou e é indubitàvelmente qualquer coisa que eu devo ter feito.

- Então é verdade que viu o Artefacto nos dias do Jurãssico ?

- Jurássico ?

- Há duzentos milhões de anos.

Lambert pareceu surpreendido.

- Sabia que era há muito tempo, mas não tanto. Havia dinossauros.

-Mas você devia saber isso. Estava a viajar no tempo.

- O problema está em que a unidade do tempo se avariou. Nunca fui capaz de ir à época que desejava.

- Onde está a sua máquina ? - perguntou Sharp. Onde a deixou?

- Não a deixei em parte alguma. Está dentro da minha cabeça.

- Dentro da sua cabeça! - gritou Sharp. - Uma unidade do tempo na sua cabeça! Isso é impossível.

Maxwell sorriu-se para Sharp.

- Quando falámos esta tarde, disseste-me que Simonson revelara muito poucas coisas sobre a sua máquina do tempo ...

- Eu disse isso - concordou Sharp -, mas quem poderia, em seu perfeito juizo, pensar que uma unidade do tempo poderia ser instalada no cérebro de uma pessoa? Deve ser um novo princípio. - Perguntou a Lambert: -Tem qualquer ideia de como isso trabalha?

- Nenhuma. A única coisa que sei é que foi posta na minha cabeça, numa complicada operação cirúrgica. Posso afírmar-vos que fiquei com a capacidade de viajar no tempo. Tenho apenas de pensar para onde quero ir, usando certas coordenadas simples, e lá estou... Mas houve qualquer coisa que se avariou. Pense o que pensar, ando para a frente e para trás, como um ió-iô, de uma época para outra, nenhuma delas a que eu procurava.

- Tem vantagens - disse Sharp, falando mais para si do que para os outros. - Deve ser mais pequena, muito mais pequena que o mecanismo que usamos. Não sabe muita coisa a esse respeito, pois não, Lambert?

- Já lho disse. Não sei nada. Não me interessava a maneira como isto trabalhava. Aconteceu apenas que era amigo de Simonson.. .

- Mas como veio parar a este lugar e a esta época?

- Por acidente. Quando cá cheguei isto pareceu-me muito mais civilizado do que muitos lugares onde eu tinha estado e comecei a fazer perguntas. Soube que havia uma Faculdade do Tempo. Ouvi que Miss Clayton tinha um quadro meu e pensei que, nesse caso, ela estaria disposta a ouvir-me. Por isso procurei-a. Espero encontrar maneira de usar dos vossos bons ofícios para voltar para casa. E já estava aqui quando o inspector Drayton chegou.

- Mr. Lambert - disse Nancy -, qual foi o motivo por que quando esteve no Jurássíco, ou lá onde foi, pintou aquele quadro?

- Ainda não o pintei. Tirei apenas alguns apontamentos e espero...

- Bem, então quando o pintar, porque não representará neles quaisquer dinossauros? Não há nenhuns no quadro e você disse que sabia que fora há muito tempo porque ainda existiam.

- Deve compreender que só pinto o que vejo. Nunca retiro nem acrescento nada. Não há dinossauros porque as criaturas representadas no quadro os afastaram. Portanto, não pus dinossauros nem nenhuns dos outros.

- Dos outros? -perguntou Maxwell. - De que está a falar? Quem eram esses outros?

- Quem? - disse, Lambert. - Os outros com rodas!

Calou-se, quando viu a expressão de estupefacção dos outros.

- Disse alguma coisa que não devia dizer?

- De maneira nenhuma - respondeu Carol com doçura. - Continue, Mr. Lambert, e conte-nos coisas sobre os outros com rodas.

- Talvez não mo acreditem, iras não sei dizer bem o que eram. Os escravos, talvez, os cavalos de trabalho.

As bestas de carga. Os servos. Aparentemente eram formas de vida-mas moviam-se sobre rodas em vez de pés e não eram uma coisa só. Cada um deles era como uma colmeia - ou como um formigueiro. Insectos sociais, pelo que parecia. Compreendem, não espero que acreditem numa palavra do que vos disse, mas juro-vos...

De qualquer lado veio um rumor, o rumor surdo de rodas avançando rãpidamente. De repente o rumor fez-se ouvir junto à porta e um Rodador entrou por ela.

- Aí está um deles! - gritou Lambert. - Que veio ele fazer aqui?

- Mr. Marmaduke - disse Maxwell -, tenho muito prazer em vê-lo de novo.

- Não - disse o Rodador. - Não é Mr. Marmaduke. O chamado Mr. Marmaduke não voltará a ser visto por si. Cometeu um grande erro.

Silvestre avançou, mas Oop agarrou-o pela pele do pescoço.

- Há um contrato feito por um humanóide que dá pelo nome de Harlow Sharp - disse o Rodador. - Qual de vós é Harlow Sharp?

- Eu.

- Então devo perguntar-lhe o que pretende fazer quanto ao cumprimento do contrato.

- Nada posso fazer. O Artefacto desapareceu e não pode ser entregue. O dinheiro que pagaram, evidentemente, será devolvido sem demora.

- Isso não será suficiente, Mr. Sharp. Levá-lo-emos perante os tribunais. Faremos tudo quanto pudermos para o reduzir à miséria e…

- Miserável carro do lixo! - gritou Sharp. - Não há lei para si. A lei galáctica não se aplica às criaturas como você. Se pensa que vem aqui fazer-me ameaças... O Fantasma apareceu de repente junto da porta.

- Já era tempo! - gritou Oop, furioso. - Onde estiveste toda a noite ? Que fizeste com Shakespeare ?

- O Bardo, está em segurança, mas há outras noticias mais importantes. - O manto ergueu-se e apontou para o Rodador. - Outros como este estão a atacar a Reserva dos Duendes, tentando apoderar-se do dragão.

Maxwell perguntou a si próprio se os Rodadores teriam sabido desde o início que havia um dragão. E a resposta não podia deixar de ser afirmativa, porque haviam sido eles ou os seus longínquos antepassados que tinham feito todo o trabalho nos dias do Jurássico.

Nos dias do Jurássico, na Terra, e em quantas outras épocas e outros planetas ? Os servos, os cavalos, as bestas de carga, como dissera Lambert. Eram, ou tinham sido, membros inferiores dessa antiga tribo de seres ou símples animais domésticos, preparados por engenharia genética para os trabalhos que lhes eram designados ?

E agora esses antigos escravos, tendo eles próprios criado um império, procuravam aquilo que julgavam ser a sua herança. Porque haviam sido eles que tinham realizado o projecto. Não teria o Agoireiro moribundo, carregado de velhos remorsos, procurado corrigir o erro quando enganara o planeta de cristal e tentara ajudar os antigos escravos? Ou pensara ele que seria melhor entregar a herança a uma espécie que participara, ainda que de maneira humilde, no grande projecto?

- Com que então - disse Sharp ao Rodador -, no mesmo momento em que está aqui a ameaçar-me, os seus bandidos estão lá fora...

- O dragão foi para o único abrigo que conhecia neste planeta - disse o Fantasma. - Para onde vive a Gente Pequenina. Mas então os Rodadores atacaram-no no ar, tentando obrigã-lo a descer, para o poderem capturar. O dragão respondeu lutando de uma maneira magnificente ...

- Os Rodadores não voam - protestou Sharp. - E você viu muitos. Ou deu a entender que estavam lá muitos. Não pode ser. Mr. Marmaduke era o único...

- Talvez se suponha que eles não voam - disse o Fantasma -, mas na verdade voam. E quanto ao número deles, estou surpreendido. Talvez tenham estado sempre aqui, escondidos. Ou talvez estejam a surgir através das estações de transporte.

- Podemos parar com isso - disse Maxwell. - Basta que comuniquemos ao Centro de Transportes...

Sharp abanou a cabeça.

- Não podemos fazer isso. Os Transportes são intergalácticos, não pertencem sómente à Terra. Não podemos interferir.

- Mr. Marmaduke ou lá quem seja - interrompeu o inspector Drayton. - Creio que, será melhor acompanhar-me.

- Deixem-se de conversas - disse o Fantasma. - A Gente Pequenina necessita de auxílio.

Maxwell pegou numa cadeira e exclamou:

- É tempo de pormos termo a esta situação. - Ergueu a cadeira e disse ao Rodador: - É tempo de começ&r a falar, meu amigo. E se não o fizer, desfaço-o.

Um círculo de agulhetas sobressaiu de repente do peito do Rodador e ouviu-se como que um assobio. Um cheiro horrível atingiu-os no rosto, um terrível fedor que lhes bateu como um punho selvagem, fazendo com que os seus estõmagos se enrolassem e a garganta se contraísse,

Maxwell caiu no chão e rolou. As suas mãos agarraram-se-lhe à garganta, como se a quisessem rasgar para que o ar entrasse., ainda que parecesse não haver ar, mas sõmente o odor horrível do Rodador.

Por cima dele ouviu-se um grito de pavor e, quando pôde girar sobre si próprio e ver o que, se passava, deparou com Silvestre abraçado ao Rodador, as patas da frente presas à parte superior do corpo dele e as patas traseiras a escoucearem e a rasgarem o ventre inchado e transparente em que se agitava a repugnante massa de insectos. As rodas giravam loucamente, mas alguma coisa havia acontecido a elas. Uma girava numa direcção e outra noutra, de modo que o Rodador rodopiava sobre si próprio, com Silvestre agarrado a ele, as patas traseiras como êmbolos, a martelarem-lhe o ventre. Parecia que os dois dançavam uma valsa rápida e desajeitada.

Uma mão invisível agarrou Maxwell por um braço e arrastou-o sem cerimónia pelo chão até à porta. Ali respirava-se um pouco de ar. Maxwell pôs-se de pé, com dificuldade. Sharp estava encostado à parede, sufocado, a esfregar os olhos. Carol ainda estava no chão. Oop puxava Nancy para fora da sala.

Maxwell avançou, a cambalear, agarrou em Carol e colocou-a sobre o ombro, como se fosse um saco. Deu meia volta e afastou-se ao longo do corredor.

Tinha percorrido uns dez metros quando se voltou e viu o Rodador sair pela porta a correr, finalmente livre de Silvestre, as rodas a girarem no mesmo sentido. Correu como um louco em direcção ao átrio - ziguezagueando de uma maneira cega, como só uma coisa com rodas podia cambalear, batendo numa parede e ricocheteando para ir bater noutra. De um grande rasgão no seu ventre caíam pequenos objectos esbranquiçados. que se espalhavam pelo chão.

A três metros do local onde Maxwell se encontrava, o Rodador caiu por fim, quando uma roda bateu numa parede e se foi abaixo. Lentamente, com o que parecia ser uma estranha espécie de dignidade, o Rodador tombou e do seu ventre despedaçado saíam arrobas de insectos que se empilharam no chão.

Silvestre estava agora, de pescoço esticado, a cheirar Rodador, Não havia sinal de vida nele. Satisfeito, o tigre afastou-se e, sentando-se sobre os quadris, começou

a lavar o focinho. No chão, ao lado do Rodador, o monte de bicharocos fervilhava; alguns deles começaram a afastar-se na direcção do átrio.

Sharp passou a correr pelo Rodador e disse:

- Vamos embora. Temos de sair daqui. - O fedor horrível começava a encher o corredor.

- Mas que foi isto? - gemeu Nancy. - Que fez Mr. Marmaduke?

- Pode imaginar uma coisa destas? - perguntou-lhe Oop. - Uma espécie galáctica de bicharocos malcheirosos! E queriam assustar-nos!

O inspector Drayton avançou, muito importante.

- Receio que seja necessário que todos me acompanhem. Necessito dos vossos depoimentos.

- Depoimentos! - exclamou Sharp. - Você está doido!

Depoimentos num momento destes, com um dragão à solta…

- Mas foi morto um não-terreno - protestou Drayton. -E não se trata de um não-terreno vulgar. Um membro de uma espécie que pode ser nossa inimiga. Isto pode ter repercussões…

- Escreva: «Morto, por uma besta selvagem» - disse Oop.

- Oop, você não devia dizer uma coisa dessas - interrompeu Carol. - Silvestre não é um selvagem. :É manso como um gatinho. E não é uma besta.

Maxwell olhou em volta:

- Onde está o Fantasma?

- Fugiu - disse Oop. - Faz sempre isso quando começam os problemas. É um cobarde.

-Mas ele disse...

- Disse. E nós estamos a perder tempo. O'Toole precisa de ajuda.

 

Mr. O’Toole estava à espera deles quando saíram da estrada.

- Sabia que viriam - disse ele. - O Fantasma garantiu-me isso. Necessitávamos muito de alguém que falasse com sensatez aos génios, que se escondem na sua ponte e não escutam a voz da razão.

- Que têm os génios a ver com isto? -disse Maxwell. - Ao menos uma vez na sua vida, pode deixar os génios em paz?

- Os génios, repugnantes como são, podem vir a nossa salvação. São os únicos que, por falta de qualquer espécie de civilização, ainda se mantêm eficientes nos feitiços dos velhos tempos e estão especializados nos piores de todos.

- Pode contar-nos exactamente o que aconteceu? O Fantasma não chegou a explicar-nos...

- O dragão veio ter connosco. Era o único lugar na Terra para onde ele poderia ir, onde ele voltaria a encontrar os seus, e os Rodadores, que noutros tempos tinham outro nome, atacaram-no como cabos-de-vassoura voando em formação. Queriam-no obrigar a descer, porque uma vez no chão tê-lo-iam agarrado e levado para longe. Ele lutou nobremente, mas começou a cansar-se e temos de actuar rapidamente para lhe darmos auxílio.

- Está a contar com os génios, para que eles façam cair os Rodadores como fizeram cair o aerocarro.

- Compreende as coisas com facilidade, meu caro amigo. Mas esses malditos querem transformar isso num negócio,

- Não sabia que os Rodadores podiam voar - disse Sharp.

- Habilidades conhecem eles muitas - respondeu O'Toole. - Dos seus corpos podem nascer dispositivos sem-número e muito para além da imaginação. Agulhetas para espalhar o seu terrível gás, canos para disparar projécteis mortais, jactos que os tornam em paus-de-vassoura capazes de se moverem com extraordinária velocidade. E nunca fazem nada de bom. Cheios de raiva e ressentimento através de todas as eras, perdidos no fundo da galáxia, com o rancor a devorar os seus espíritos pútridos, como um cancro, à espera de uma oportunidade que nunca surge - porque nunca foram mais do que servos e nunca serão.

- Mas que importam os génios ? - perguntou Drayton. - Posso mandar vir aviões e armas...

- Não faça mais disparates do que já fez - interrompeu Sharp. - Não podemos tocar neles. Não podemos criar um incidente. Os humanos não podem tomar parte nisto. É uma coisa entre a Gente Pequenina e os seus antigos escravos.

- Mas o tigre matou...

- O tigre. Não um ser humano. Não podemos...

Maxwell pensou que se haviam passado apenas dois dias desde que tinha voltado à Terra e encontra o inspector Drayton à sua espera. Acontecera tanta coisa que parecia que isso acontecera há muito mais tempo. Houvera o outro Peter Maxwell e por certo que ele fora assassinado pelos Rodadores, porque quando ele fora encontrado havia à sua volta um odor curioso e repelente, e agora, desde aquele momento no gabinete de Sharp, Maxwell sabia que odor era. Fora assassinado porque os Rodadores supunham que o primeiro Maxwell voltara do planeta de cristal e o crime fora uma maneira de evitar que ele interferisse no negócio do Artefacto. Mas quando o segundo Maxwell aparecera, os Rodadores deviam ter tido receio de despertar suspeitas. Fora por isso que Mr. Marmaduke o tentara comprar.

E havia ainda a questão de um certo Monty Churchill. Quando aquilo acabasse, fosse como fosse, caçaria Churchill e ajustaria contas com ele.

Chegaram à ponte dos génios, passaram por baixo dela e esperaram.

- Muito bem, seus génios do lixo - gritou Mr. O'Toole . - Está aqui um grupo nosso para conversar convosco.

Por fim uma voz aguda fez-se ouvir da área que ficava debaixo da ponte, do lado oposto.

- Quem está aí? Se vêm para nos perseguir, perseguidos não seremos. Esse maldito O'Toole tem-nos perseguido todos estes anos e não queremos nada com ele.

- Chamo-me Maxwell - respondeu Pete. - Não vim aqui para vos perseguir, mas sim para vos pedir ajuda.

- Maxwell? O grande amigo de O'Toole?

- O grande amigo de todos vós. De cada um de vós. Acompanhei o Agoireiro quando ele estava à espera da morte, tomando o lugar daqueles que não foram assisti-lo, nos seus últimos momentos.

- Mas bebe com O'Toole. Fala com ele. E dá crédito às mentiras dele.

O'Toole avançou, furioso, e gritou:

- Hei-de fazer com que engulam isso! Assim que ponha as minhas patas sobre esses pescoços sujos...

Calou-se de súbito quando Sharp o agarrou pelo fundo das calças e o deixou suspenso no ar, sufocado de raiva. Silvestre aproximou-se e começou a cheirar o duende.

O'Toole tentou afastar o tigre, remexendo freneticamente os braços.

- Ele pensa que você é um rato - disse Oop. - Está a ver se vale a pena comê-lo.

- Calem-se! - gritou Maxwell. - O dragão está lá em cima a lutar e vocês aqui, com essas coisas.

Calaram-se todos. Maxwell aguardou um momento e depois disse aos génios:

- Não sei o que aconteceu antes. Não faço ideia alguma dos vossos problemas. Mas necessitamos da vossa ajuda e queremos obtê-la. Prometo-vos um acordo justo, mas também prometo que, se não forem sensatos, trataremos de ver o que um par de cartuchos de alto explosivo poderá fazer a esta vossa ponte.

Uma voz fraca, mais parecida com um guincho, fez-se ouvir da ponte:

- Mas tudo quanto queríamos, tudo quanto pedimos sempre, foi que esse falador do O'Toole nos arranjasse um casco da doce cerveja preta de Outubro.

Maxwell voltou-se e perguntou:

- É verdade ?

Sharp colocou O'Toole no chão, para que ele pudesse responder.

- Isso representaria a quebra de um precedente berrou O'Toole. - Desde tempos imemoriais que nós, duendes, somos os únicos que fazemos a maravilhosa cerveja. E bebemo-la. Não podemos produzir mais do que aquela que bebemos. E fazê-la para os génios... depois as fadas Podem querê-la também...

- Sabe muito bem que as fadas nunca beberão cerveja - disse Oop. - Bebem leite, e os gnomos também.

- Que sede passaríamos! - gritou o duende. - Que duro é o trabalho que temos para a fazer só para nós, e quanto tempo, pensamento e esforço isso nos custa!

- Se é uma simples questão de produção - disse Sharp -, nos ajudá-los-emos.

- E os insectos? - gritou Mr. O'Toole. - Para fazer a cerveja de Outubro é necessário que caiam nela insectos e outras matérias pouco limpas - ou então não terá sabor.

- Arranjaremos os insectos - disse Oop. - Arranja remos um balde cheio de insectos e deitá-los-emos nela.

O'Toole estava de cabeça perdida, o seu rosto tão vermelho como uma chama.

- Não compreendem. Os insectos não são deitados para ela aos baldes. Caem com uma maravilhosa selectividade ...

As suas palavras foram substituídas por um uivo, de pavor e Carol gritou:

- Silvestre, está quieto!

O'Toole, estava pendurado da boca do tigre, a gemer e a agitar os braços. O tigre levantara a cabeça, de modo que o duende não podia pôr os pés no chão.

Oop rebolava-se pelo chão às gargalhadas e gritava:

- Ele pensa que O'Toole é um rato! Olhem para esse gato! Apanhou um rato!

- Faremos para eles um casco de cerveja! - gritou O'Toole, aflito. - Faremos até dois!

- Três - disse a voz aguda, vinda da ponte.

- Muito bem, três - concordou o duende.

- Não faltarão depois à vossa promessa? - perguntou Maxwell.

- Nós, duendes, nunca faltamos a uma promessa disse O'Toole.

- Silvestre, larga-o! - ordenou Sharp.

O tigre largou O'Toole e afastou-se.

Os génios começaram a surgir da ponte e correram pela colina, gritando excitados. Os humanos acompanharam-nos, aos saltos pela encosta acima. Quando chegaram ao cimo ouviram aclamações loucas, e à direita um grande globo negro, com as suas rodas a girarem vertiginosamente, surgiu do céu e esmagou-se no bosque. Parou, olhou para cima e viu através das árvores dois globos a cortarem o céu em rumos de colisão. Não se desviaram nem diminuíram de velocidade. Chocaram um contra o outro e explodiram. Os seus pedaços caíram sobre as árvores poucos segundos depois.

As aclamações ainda ecoavam no cimo da encosta quando ele ouviu, mas não viu, qualquer coisa mergulhar em direcção ao solo.

Nada mais havia à vista quando ele voltou a subir.

Tudo acabara. Os génios tinham feito o seu trabalho e agora o dragão podia descer. Sorriu-se. Durante anos perseguira o dragão e agora ali estava ele - mas tratava-se de mais alguma coisa do que havia imaginado. Que seria o dragão e porque teria ele sido encerrado no Artefacto, ou transformado nele?

Era curioso que o Artefacto houvesse resistido a tudo até ao momento em que ele colocara na cabeça o mecanismo tradutor, para o examinar. Era evidente que o dispositivo tivera um papel importante na libertação do dragão, mas como fora que isso acontecera? Teria o tradutor surgido na sua bagagem não por acidente mas sim por propósito? Seria de facto um tradutor ou outro dispositivo com o mesmo aspecto?

Lembrou-se de quando perguntara a si próprio se o Artefacto não servira em tempos de deus à Gente Pequenina ou àquelas estranhas criaturas que no princípio da História da Terra estavam juntas a ela. Seria o dragão um deus de uma época ainda mais antiga?

Voltou a subir, mas mais devagar, porque não tinha necessidade de andar depressa. Fora a primeira vez que, desde que voltara do planeta de cristal, não sentira qualquer urgência.

Estava a cerca de meio caminho quando ouviu a música, ao princípio muito ao longe, tão indistinta que não teve a certeza de a ter ouvido.

Parou para escutar e teve a certeza de que era música. Era como o som de água prateada correndo sobre pedras felizes. Música que não era daquele mundo. Música de fadas. Era isso. No prado verde à esquerda tocava uma orquestra de fadas.

Uma orquestra de fadas e as fadas a dançar no prado! Uma coisa que ele nunca vira. Aproximou-se do prado até dele ficar separado apenas por um penedo. E a música continuou a tocar.

Rodeou o penedo, avançando centímetro a centímetro, sem fazer o mínimo som.

E então viu:

A orquestra estava sentada num tronco no extremo do prado e tocava, com a luz matinal a relampejar sobre as asas irisadas e os instrumentos resplandecentes.

Não havia fadas a dançar no prado. Havia apenas duas simples almas que dançavam segundo a música das fadas.

Em frente um do outro, a dançarem, estavam o Fantasma e William Shakespeare.

 

O dragão estava empoleirado sobre a muralha do castelo, com o corpo multicolorido a rebrilhar ao sol.

No fundo do vale, o rio Wisconsin, azul como um esquecido céu estival, corria entre as margens de florestas flamejantes. Do pátio do castelo vinham sons alegres, dos duendes e dos génios, que, posta de parte, momentaneamente, a sua animosidade, bebiam grandes canecas de cerveja de Outubro, cantando velhas canções -talvez mais velhas que o Homem.

Maxwell estava sentado num penedo, profundamente enterrado. Já não havia o Artefacto, para trocar pela sabedoria do planeta de cristal, ainda que houvesse o dragão e, no fim de tudo, fosse isso o que a gente desse planeta desejava. Mas mesmo que isso não fosse verdade, os Rodadores tinham perdido, e isso, a longo prazo, podia vir a ser mais importante que a aquisição do conhecimento.

Qualquer coisa roçou por ele e ele voltou-se para ver o que era. Silvestre começou a lamber-lhe a cara com uma língua comprida e irritante.

- Pára com isso - disse Maxwell. - Essa tua língua arranca-me a pele.

Silvestre ronronou, satisfeito, e deitou-se ao lado dele. Ficaram os dois a contemplar o vale.

O pé esmagou algumas pedras. E uma voz disse:

- Você roubou o meu gato. Posso sentar-me também ao pé dele?

- Sem dúvida - disse Maxwell.

Uma nuvem negra envolveu um cedro, perto deles.

Carol ficou de boca aberta e encostou-se ao peito de Maxwell. Ele passou um braço sobre ela e aconchegou-a com firmeza.

- Não tenha receio - disse. - É apenas um agoireiro.

- Mas não tem corpo. Nem rosto. É apenas uma nuvem.

- Isso nada tem de extraordinário - disse o Agoireiro. - É o que somos, os dois de nós que ainda restam. Grandes panos da louça, muito sujos. E não necessita de ter medo, pois que esse humano que aí está é nosso amigo.

- Não fui amigo do terceiro - disse Maxwell. - Nem a espécie humana. Ele vendeu-nos aos Rodadores.

- E no entanto acompanhou-o na morte, quando mais ninguém o fez.

- Sim, fiz isso. Até mesmo o nosso pior inimigo pode pedir que o façamos.

- Então creio que deve compreender um pouco. Os Rodadores, no fim de tudo, ainda eram dos nossos. E os velhos hábitos custam a morrer.

- Creio que compreendo. Em que posso ser-lhe útil?

- Vim aqui para lhe dizer que o lugar a que dá o nome de planeta de cristal já foi notificado.

- E eles querem o dragão? - perguntou Maxwell. Tem de nos dar as coordenadas.

- As coordenadas serão dadas ao Centro de Transportes. Irá lá, como muitos outros, para transferir os dados. Mas o dragão ficará na Terra, aqui, na Reserva dos Duendes.

- Não compreendo... Eles queriam...

-O Artefacto, - para libertar o dragão. Estava na sua jaula havia demasiado tempo. Vocês retiraram-no antes que o pudéssemos libertar e pensámos que o tínhamos perdido. O Artefacto servia apenas para o preservar e esconder até que a colónia que tínhamos estabelecido na Terra pudesse protegê-lo.

- Protegê-lo? Porque era que ele necessitava de protecção?

- Porque é o último da sua espécie e portanto é muito precioso. É o último dos... não sei como dizer... Vocês não têm cães e gatos ?

- Sim - respondeu Carol. - Temos até um aqui.

- Animais domésticos - recordou o Agoireiro. - E no entanto muito mais do que isso. Criaturas que nos tinham acompanhado na Terra desde os primeiros dias. O dragão era um animal doméstico, - o último - da gente do planeta de cristal. Envelheceram e não tardarão a desaparecer. Não podiam deixar um animal de estimação sem ser cuidado; tinham-no de entregar a quem o tratasse bem.

- Os duendes tornarão conta dele - disse Carol. E também os génios e as fadas e todos os outros. Terão orgulho dele. Torná-lo-ão, podre de carinho.

- E os humanos, também?

-E os humanos também - disse a rapariga.

Não o viram desaparecer. Mas ele já lá não estava. A árvore ficara sozinha.

Um animal de estimação, pensou Maxwell. Não era um deus, mas sim um animal de estimação. Ainda que, no entanto, isso não fosse tão simples quanto parecia. Quando os homens tinham feito os primeiros biomecs, que haviam eles criado? Não outros homens, nem gado, nem animais estranhos, preparados para tarefas específicas. Tinham criado animais de estimação.

Carol agitou-se debaixo do braço dele.

- Em que pensa, Pete?

- No jantar. Sim, estava a pensar em jantar consigo. Já o tentámos uma vez, mas não resultou bem. Quer experimentar de novo?

- No Porco e Apito?

- Se é isso que quer...

- Sem Oop e o Fantasma. Sem qualquer fazedor de problemas.

- Mas com Silvestre.

- Não - disse ela. - Só nós os dois. Silvestre ficará em casa. É tempo de aprender.

Levantaram-se do penedo e voltaram em direcção ao castelo.

Silvestre olhou para cima, para o dragão empoleirado da muralha, e rosnou.

O dragão abaixou a cabeça, no extremo do seu pescoço sinuoso, e olhou-o de frente. Deitou-lhe a língua de fora, uma língua comprida e bifurcada.

 

                                                                                Clifford D. Simak  

 

                      

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