Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O VERÃO DO LOBO VERMELHO / Morris West
O VERÃO DO LOBO VERMELHO / Morris West

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

Subitamente, senti-me farto da selvajaria do mundo. Estava farto das guerras e das mortes, da ascensão de novas tiranias, do refinamento das antigas, das mentiras e da política, da cultura da droga e da pornografia árida, do fedor a estrumeira das cidades, do horror suspenso sobre cada manhã. Sentia-me mergulhado num negro desespero. Tinha medo, vergonha e desgosto de ser um homem. Ansiava por um renascimento ou, pelo menos, um baptismo, numa nova irmandade.

Não podia ter nem uma coisa nem outra. O mundo não ia parar por minha causa. Só me restava abandoná-lo por uma dúbia eternidade.

Comecei a sofrer de um pesadelo recorrente. Sonhava com monstros, répteis gigantes, numa paisagem de fetos e licopódios, e pântanos leprosos de estranhas flores. Nos céus negrejavam terrores alados. Nas profundezas marinhas retorciam-se predadores de dentes serrilhados. E eu estava lá, arrancado do tempo, depositado nesse vasto matadouro que era a realidade por detrás do sonho humano do Jardim do Paraíso. Estava só, gritando o meu terror entre os megamorfos irracionais. Encolhia-me perante o espectáculo das suas sangrentas batalhas. Fugia, como louco, através de uma selva primitiva, ensurdecido por tumultos horripilantes. Acordava, a suar, entre os lençóis em desordem, tremendo sob o impacte daquela imensa obscenidade.

Acabei por me sentir estranho a mim mesmo. O meu próprio lar parecia-me um local hostil, como se todos os talismãs que definiam a. minha identidade se tivessem transformado em fetiches hostis. Sentia que me quebrava em fragmentos e cacos. Sabia que, se não conseguisse deter-me, reunir os pedaços e colá-los de novo, poderia enlouquecer, ou desistir de toda a esperança de individualidade através de um acto de absoluta negação.

 

 

 

 

E então ocorreu uma espécie de incidente mágico, que ainda hoje recordo com espanto e respeito.

Era uma manhã do princípio de Agosto. Engolfado no meu negro humor, caminhava, sem propósito definido, ao longo da antiga Via Ápia, onde as pedras revoltas e os fragmentos de mármore e os túmulos espoliados celebram a futilidade dos esforços humanos. Tinha chovido durante a noite, e eu revirava a terra húmida da beira do caminho, na esperança de encontrar uma daquelas moedas ou amuletos que por vezes vêm à superfície da terra lavada e friável. De repente ouvi uma voz chamar o meu nome e saudar-me em inglês, com uma leve pronúncia escocesa.

Ergui o olhar, surpreendido e ressentido por esta intrusão ao meu passatempo infantil. A pessoa que falara era um homem alto e musculoso, com um metro e oitenta e cinco nas suas botas de caminhante, uma madeixa de cabelos brancos de neve, um rosto avermelhado e coberto de sardas e um sorriso que lhe dava o aspecto de um deus-bode saciado. Fitei-o, abrindo a boca à medida que o reconhecia.

- Santo Deus! Alastair Morrison! E eu a pensar que estavas ainda a tratar dos pagãos na Tailândia.

- Desisti há um ano, quando deixei de perceber quais eram os pagãos e quais não eram. Que estás a fazer em Roma?

- Faço-te a mesma pergunta, além de muitas outras. Estava a citar uma frase sua de uma época recordada. Ele riu-se e eu também. Era estranho e triste pensar que havia muito que eu não ria. Levei-o a minha casa e dei-lhe vinho e macarrão, e falámos do tempo em que ele tinha sido médico e missionário em Chiengmai, e eu um escritor, independentes e sem responsabilidades, na Ásia Austral. Contou-me que se tinha retirado para a mansão familiar e adquirido direitos de propriedade e pesca nas terras do clã dos Lews. Eu falei-lhe do que tinha feito e da estranha doença que me tinha assolado nos últimos meses. Escutou-me, fumando o seu velho cachimbo, introduzindo a espaços um comentário lacónico ou uma pergunta difícil.

Quando esgotei o meu assunto, ele serviu-se de mais um copo de vinho e pronunciou o diagnóstico.

- Por vezes uma pessoa adoece com a própria luz do sol. Vê tudo tão claro que cega e deixa de ver. Por vezes adoece de razão, porque a seiva que alimentava os seus sonhos secou. É altura de partir. É altura de enfiar uma concha do chapéu, pegar no bordão de peregrino e meter-se ao caminho.

- Que caminho?

- Para o desconhecimento.

- E onde diabo fica isso?

- É um lugar onde somos estranhos e nos sentimos estranhos e solitários, e, por isso mesmo, talvez receosos.

- Neste momento, chego a ter medo de andar a pé pela cidade, e conheço-a como a palma da minha mão. Tenho medo de olhar para um espelho, porque receio ver o medo nos meus olhos.

- Estás muito atacado, meu rapaz.

- Sim, muito.

Ele ficou em silêncio, por alguns momentos, observando-me por detrás de uma nuvem de fumo. Recordei-me, irrelevantemente, de que até os mosquitos de Chiengmai ficavam intimidados pelo odor terrível daquele cachimbo. Depois, ele fez-me a proposta.

- Vem ter comigo, se te apetecer. Por muito tempo ou pouco tempo, isso não importa. A casa está vazia como um celeiro, e pagas o alojamento e as bebidas, embora possas pescar de graça, entre muitas outras coisas.

- É muita generosidade da tua parte.

- Och (1), nós somos um povo muito generoso. Na maior parte das vezes, quero eu dizer.

- Importas-te que eu pense no caso?

- Não leves muito tempo a pensar, se não a doença volta a atacar-te, e nada farás. Além disso, a brisa é suave agora, e os salmões vão começar a saltar, e, se te recordares da oração certa, o mar talvez se mostre calmo para a travessia.

 

(1) Interjeição irlandesa e escocesa, utilizada para expressar pesar ou surpresa. (N. da T.)

 

- Não precisas. Vou dar-te o meu endereço e ou vais ou não vais. Mas, mesmo que tomes outro caminho, é melhor pores-te a andar, meu rapaz, se não transformas-te numa destas velhas estátuas que eles aqui têm: sem orelhas, sem nariz, sem partes para fazer amor com uma mulher, sem olhos para ver a luz das estrelas ou o sol no cume das colinas.

Levei dez dias a ganhar forças e coragem; depois voltei o rosto para norte e pus-me a caminho das ilhas.

Parti num estado de pânico, um homem sem pele, todo extremidades nervosas e carne viva. O aeroporto de Fiumicino era um horror de turistas exaustos e confusão poliglota. Londres a mesma coisa; e anestesiei-me com álcool enquanto esperava pelo voo para Inverness. Parecíamos sardinhas em lata no Viscount atravancado, elevámo-nos até às nuvens baixas de chuva, e dormi, inquieto, até aterrarmos.

Então invadiu-me um novo terror. Tinha nascido ao sol. Tinha passado toda a minha vida nas terras soalheiras do Pacífico e nas cidades do litoral mediterrânico. Ali havia uma pista negra, brilhante da última chuva, uma orla de restolho castanho, com pastagens verdes para além dela, um outeiro de pinheiros negros, cujos ramos mais altos se encontravam velados por nuvens esfarrapadas. Ali havia um céu baixo e uma luz fria e hostil, e um tolo peregrino que em vão fugia de si próprio.

Tinha requisitado um carro que deveria vir ao meu encontro, para poder deslocar-me à vontade, e fugir mais depressa, se isso fosse preciso; mas o carro não se encontrava lá, e tive de aguardar meia hora, enquanto o minúsculo aeroporto se esvaziava e a antiga melancolia crescia cada vez mais dentro de mim.

O carro chegou finalmente. Uma jovem com faces de maçã apresentou-me as suas desculpas, um contrato, um jogo de chaves e um mapa das estradas das Highlands, e partiu. Recordo-me de que fiquei longo tempo sentado, fingindo estudar o mapa, que me parecia tão incompreensível como a escrita como em estado cataléptico, olhando sem ver, consciente mas incapaz de ordenar a mim mesmo o mínimo movimento. Depois a síncope passou. Pus o motor a funcionar, passei pelos portões e tomei a estrada que seguia para Inverness e para o oeste.

Se me demoro na restrospectiva desta viagem, é porque compreendo agora que cada fase dela foi uma preparação para o que me sucedeu quando cheguei às ilhas exteriores. Não houve acasos. Tudo estava predestinado. Eu era um actor a ser preparado, absolutamente inconsciente, para um drama cujo texto nunca tinha lido, cuja dimensão nunca poderia ter sonhado em toda a sua vida. Eu, o homem da razão, tinha-me esquecido do que era sonhar; eu, outrora crente, tinha perdido a crença no destino, benigno ou maligno; por isso era muito ignorante, muito aberto e muito, muito vulnerável.

A cerca de uma millha do aeroporto havia um desvio e uma tabuleta: “Monumento Nacional, Culloden”. Senti-me tentado a passar por ele. Não estava com vontade de juntar uma tristeza antiga às minhas tristezas actuais. Depois disse o mesmo que aquilo era uma loucura. Eu era um peregrino, e um peregrino tem de demonstrar a sua piedade em todos os santuários do seu caminho, para que os santos não lhe voltem as costas e os demónios não o persigam. Por isso fui onde não queria e abracei uma recordação que não fazia parte da minha herança.

Ou faria? Nem todas as heranças vêm ter à nossa mão por testamento e desígnio. Certa vez, em Roma, tinha vivido no palácio onde morrera Henry Stuart, duque cardeal de York, irmão do bom príncipe Charlie, o último da linhagem real. Os romanos, um povo que não esquece, se não mesmo um povo piedoso, tinham ali colocado uma placa em sua honra; e eu era forçado a lê-la, quando saía ou entrava. Agora encontrava-me no campo onde o Jovem Pretendente (1) tinha travado a última

 

(1) O príncipe Charles Edward Stuart. A batalha de Culloden foi a última batalha da revolução jacobita, em que este príncipe foi derrotado pelo exército inglês comandado pelo duque de Cumberland. Foi uma batalha curta e decisiva: em quarenta minutos, um quinto do exército das Highlands, de 5000 homens, foi destroçado, e a rebelião firmemente apagada, enquanto o duque perdia apenas 50 dos seus 9000 homens.

 

e trágica batalha pela Coroa de Inglaterra. Vi as campas, onde, dizem, nunca cresceu nem crescerá a urze: o túmulo dos ingleses, os túmulos dos clãs, Camerons, Mackintoshes, Frasers e outros, o túmulo dos Campbells de Argyll, que lutaram contra os Highlanders pelo rei alemão. Coloquei um ramo de urze sobre a campa deles, porque, embora não tenha sangue escocês, sou parente dos Campbells por afinidade. Parei junto da pedra de Keppoch, onde Alasdair, o décimo sexto do seu nome, morreu ao chefiar a carga do seu clã. Recordei: “Como consegui recordá-lo e porquê?” o lamento que o seu bardo para ele compôs:

... digno filho de Coll, o das achas-de-armas, A que até os do sul prestaram honras, O falcão, o mais bravo a voar...

Vi o memorial aos irlandeses jacobitas, os Gansos Selvagens, os filhos de Mileadh, que caíram numa acção de retaguarda, antes de Cumberland ter iniciado a chacina dos Highlanders e das suas esperanças tristes e rebeldes. Depois afastei-me, guiando pelas alamedas de pinheiros, recordando aquilo que esquecera havia muito: que também eu descendia dos Gansos Selvagens, que tinham levantado voo nos tempos maus e rumado aos recantos mais distantes do mundo, Austrália, Canadá e América, e todos os portos marítimos da China.

De Inverness pouco recordo, excepto a cortesia das pessoas que me encaminharam, os turistas ingleses e a sua tagarelice no bar, o grito das gaivotas, constante sobre os telhados cinzentos, a primeira cadência desconhecida do Gaélico. Quanto ao mais, era uma cidade, a fervilhar de gente, e eu andava a fugir desse fervilhar, das discussões, dos congressos, do comércio. Eu seguia para oeste, para as Ilhas e para o sombrio oceano. Só o cair da noite ou o cansaço poderiam deter-me.

O cansaço venceu-me em Fort Augustus, o pequeno município desabrigado perto de Loch Ness, de onde Cumberland lançou os seus saqueadores das ravinas. Soprava um vento gélico do oeste, o vento carregava chuva, e as águas do lago estavam escuras e hostis. O hotel estava a aborrotar de ingleses; mas havia um quarto na mansarda, se eu conseguisse apertar-me nele, e poderia jantar se estivesse pronto dentro de vinte minutos, e o porteiro da noite servir-me-ia um trago, sempre que eu o desejasse.

Aceitei o aperto e o jantar, indigesto mas generoso; quanto ao trago, não o pude beber porque o bar estava cheio de ingleses, em pequenos grupos e enclaves, alguns falando em voz baixa, enquanto outros gritavam, porque eram estranhos numa terra que os seus pais tinham tornado desolada, e o hábito tinha-os tornado excessivamente seguros ou inseguros de si próprios. Eu sentia-me inseguro também: “Meu Deus, que homem fraco eu recordo dessa noite!” Por isso meti-me ao vento e à chuva que ele arrastava, em busca de um local onde pudesse beber e alegrar-me um pouco. Emcontrei-o a dois minutos de dali: uma minúscula taberna de pedra, com um único balcão, apinhado até mais não, um fogão de turfa, duas criadas, gémeas da própria Mãe Terra; e um velho tocador de gaita de foles, que se inchava como uma rã, em escocesas e pibroques.

Enfiei-me num canto, pedi uma dose dupla de uísque de malte, castanho como água do pântano, e tentei esquecer quem e o que era. Daí a pouco dei comigo a cantar, não a letra, porque as palavras eram em gaélico e eu não as conhecia; mas as melodias conhecia eu, na maior parte, embora não conseguisse, de forma alguma, lembrar-me de onde as teria ouvido. Por eu cantar, os meus vizinhos começaram a conversar comigo; e um homem alto passou-me um braço em volta dos ombros e mandou vir uma bebida para eu tomar com ele “para molhar as goelas”, disse, “pois nem um tordo consegue gorgear sem uma gota de orvalho na garganta”.

Havia uma alegria selvagem e primitiva naquele local, que animava os espíritos. A gaita de foles soltava os seus sons agudos. As vozes eram altas, a conversa apimentada e obscena, os erres escoceses e a cadência gaélica misturavam-se brotando das mesmas gragantas sequiosas. As raparigas, novilhas saudáveis, alimentadas a trevo, gritavam com os clientes e despejavam cerveja na boca dos seus homens. As criadas azafamavam-se e suavam. Um lavrador idoso interpretou uma movimentada dança, no meio da casa, enquanto a assistência gritava e batia o compasso com os pés, em sinal de aprovação. O ar era um nevoeiro azul de fumo de tabaco e de turfa, roupas húmidas e exalações humanas. Mas havia vida. Era um local de união, de calor e irmandade, para aqueles que cultivavam os seus minúsculos campos nos planaltos, levavam as suas ovelhas a pastar nas escassas ervas da montanha e perguntavam a si mesmos se o dinheiro e as medas de feno chegariam para os alimentar a eles e ao seu gado durante o Inverno.

Para mim, era algo mais: uma estalagem de posta no caminho para o local do desconhecimento. Poderia passar ali um ano, que nunca estaria mais perto que aquele momento. Não tinha raízes na sua vida de clã. O que, para eles, era uma pungente recordação popular, um ontem familiar, para mim era um capítulo da história, encerrado, terminado, esquecido. Eles nunca me fechariam as portas, nem me recusariam cama e comida, se eu precisasse delas; mas conservariam a sua própria privacidade por detrás da sebe da linguagem antiga e da antiga fé separatista, e o seu medo dos intrusos que, vezes sem conta, lhes haviam roubado as suas terras para criar carneiros, e veados para os senhores matarem por desporto.

Por volta das horas estava inundado em uísque e sentimento. O tocador, bêbado como um bardo deveria estar, fez-me sair do bar, com os outros, ao som da gaita de foles. Mas eles foram pra casa, enquanto eu tive de voltar para trás, debaixo de chuva, subir três lanços de escadas até ao meu quarto na mansarda e deixar-me cair sobre a cama, mais bêbado que o próprio gaiteiro. Nessa noite não houve monstros nos meus sonhos; mas a dor de cabeça que sentia pela manhã impediu-me de me sentir grato por esta singular mercê.

Apesar da ressaca, estava decidido a meter-me à estrada de manhã cedo. Um sonolento porteiro da noite serviu-me chá e torradas e indicou-me o percurso.

- Agora vai por Glengarry, o que o levará a Glen Shiel. Se houver névoa nas montanhas... e, como é muito cedo, é natural que haja... guie devagar e com cuidado, porque a estrada é alta e estreita, e muitos infelizes já caíram dela para dentro dos lagos. Quando passar pelas Seis Irmãs... são as colinas para lá de Kintail... chega à Ponte de Shiel e depois à Ponte de Croe, que se situa na nascente do Loch (1) Duich. Depois disso, o loch fica sempre à sua esquerda e não há sítio para onde ir à direita, de modo que há-de chegar a Eilean Donan, que era antigamente a cidadela dos MacRaes. Se tiver meia coroa no bolso, deixam-no ver duas salas da fortaleza, mas não vale a pena, porque com esse dinheiro pode beber um trago no hotel, que fica a um salto do loch. Depois disso chega a Ardeive, onde não há coisa que valha a pena ver. E depois de Ardelve há o Kyle (2) de Lochalsh, e aí, se os turistas ainda não o transformaram em Pântano e a Câmara de Comércio não cancelou a licença, poderá meter-se a si e ao carro no ferry para Skye. Depois disso é terreno dos Macleod, e que S. Donan o proteja de todo o mal!

Após o que, como diziam os antigos cronistas, paguei a conta e voltei-me na direcção de Glengarry. Havia pouco trânsito na estrada, pelo que rodei a umas boas quarenta milhas por hora, porque queria dissipar os fumos do álcool que ainda restavam na minha cabeça e repousar os meus olhos raiados de sangue nas extensões verdes, nos altos pinheiros e bétulas frágeis, na urze que escalava as encostas rochosas e nos fetos que nos davam pelo joelho nas valetas.

Tinha passado havia minutos por Glengarry, ainda na região dos bosques, quando ouvi uma longa buzinadela atrás de mim. Olhei para o retrovisor e vi um carro de desporto vermelho, que se aproximava rapidamente, com uma mulher ao volante. Havia uma curva muito apertada à minha frente, pelo que travei para a deixar passar. A onda de choque embateu-me de lado, quando ela passou. Ela teria de torcer bem o volante, se queria fazer aquela curva. Não o conseguiu. Vinte metros antes do cotovelo, um camião, carregado de toros de pinheiro, descreveu a curva. Ela foi forçada a desviar-se. As rodas do seu carro tocaram na berma de cascalho, e ela mergulhou na encosta, desaparecendo da minha vista. Ouvi o em-

 

(1) Em escocês no original: lago. (N. da T.)

(2) Em escocês no original: estreito. (N. da T.)

 

bate, quando o carro atingiu o bosque de bétulas o ranger do metal quando raspou pelos troncos dos pinheiros. O camião tinha desaparecido, deixando-me ali para enfrentar tudo o que poderia vir a descobrir na encosta.

Descobri menos do que receava. O bosque de bétulas tinha-a impedido de descer mais e amparado o seu impacte contra os pinheiros. O lado esquerdo do carro estava amolgado, mas a condutora estava a sair do carro, aparentemente ilesa. Ficou por um momento de pernas afastadas, a observar os estragos, e depois sentou-se abruptamente na turfa húmida, com a cabeça baixa entre os joelhos. Desci até junto dela.

- Está bem?

- Acho que sim. Deixe-me estar assim um momento, por favor.

Havia um toque de escocês na sua voz, mas a pronúncia era sobretudo inglesa. Não conseguia ver-lhe a cara, mas o cabelo era negro como a asa de um corvo, e tinha umas boas pernas, e usava uma saia com o padrão dos McNeil. Deixei-a repousar. Dirigi-me ao carro, desliguei o motor, abri o porta-bagagens e retirei a bagagem, uma mala, uma pasta de executivo e um pequeno estojo de utilidades. Subi a encosta e fui arrumá-los no meu carro.

Quando voltei, já se tinha endireitado e afastava os cabelos de um rosto pálido e oval. Comunicou-me, desnecessariamente:

- Sou uma idiota.

- Concordo. E agora?

- Por acaso não traz brande consigo?

- Não. Mas ofereço-lhe um em Glengarry. Podemos telefonar de lá a um médico.

- Não preciso de médico. Eu sou médica. Não tenho nada partido e não há sangue. Mas é provável que daqui a pouco desate a tremer. Ajude-me a pôr-me de pé, por favor.

Ajudei-a a subir a colina, meti-a no carro e regressei a Glengarry, onde lhe deram um brande e um chá forte, e de onde ela telefonou para o Automóvel Clube, para tratarem do carro. Começou a tremer e mostrou-se muito concisa e profissional até as tremuras passarem. Depois perguntou-me:

- Para onde ia?

- Para o Kyle de Lochalsh, para começar.

- Pode dar-me uma boleia?

- Naturalmente. Até agradeço a companhia.

- E é um condutor mais seguro que eu. Vamos, então.

Fomos; mas antes de irmos, fizemos, Deus nos valha!, uma dequelas apresentações formais e ofegantes. Ela era Kathleen McNeil, médica doutorada em Edimburgo e Londres; e, de uma maneira simpática e senhoril, estava a pôr um travão a quaisquer pensamentos que eu pudesse alimentar em relação a encontros à beira da estrada e a condutoras desastradas em perigo. Que fosse para o diabo. Abra a boca, diga “A”, respire fundo, agora tussa, outra vez, por favor, e nada de pensar que eu sou uma boa médica porque tenho boas pernas e uma boa figura, e não mais de 32 anos, ou seria 35? Pois bem, minha cara doutora, é boa educação não recusar até no-lo pedirem; além de que, nem que fosse a própria rainha do Sabá, neste momento não sentiria o menor interesse. E, o que é mais, poderá ter a melhor cura do mundo para as pedras na vesícula e para o bócio, mas é uma tremenda ameaça ao volante de um carro!

A névoa ainda pesava sobre Glen Shiel, pelo que subimos lentamente o flanco das colinas, pedindo a Deus que não surgissem do meio do nevoeiro quaisquer Highlanders loucos, certos de que o Deus da Igreja livre estava a amparar o seu volante. Estávamos envoltos num silêncio fantasmagórico, quebrado apenas pelo som da água que descia em cascatas ou pelo balido de uma ovelha, tocante como o choro de uma criança perdida.

Abruptamente, saímos para a luz, uma glória matinal que nunca tinha visto antes, nem esperava ver. O céu era de um azul-claro, limpo de nuvens. As colinas ascendiam para ele, flamejando de urze roxa e do brilho diamantino das nascentes e córregos, do esplendor do granito cinzento. Em baixo, a terra descia, através de leitos de turfa e pântanos brancos de asfódelos, até às águas brilhantes do Loch Cluanie. Parei o carro, com o motor a trabalhar. Saímos e ficámos ali de pé, juntos, os únicos seres humanos numa solidão primitiva. Passeavam ovelhas, de focinho negro e corpos lanudos, sobre os montes de turfa. No céu, um falcão peregrino planava em preguiçosos círculos. Quanto ao resto, havia apenas o céu e a água, e a beleza severa e estranha das colinas.

Recordo-me de que, nesse momento, estive perto das lágrimas. Compreendi, muito nitidamente, o impulso dos anacoretas para fugir à confusão das cidades antigas, às suas injustiças, corrupções e crueldades. Compreendi a atracção dos desertos e das altitudes, onde uma pessoa podia recomeçar a ser. Dei comigo a pensar como iria acabar o meu terror: numa explosiva loucura de frustração, ou numa passiva imbecilidade em que eu simplesmente sobreviveria, sem esperanças, preso na armadilha da desolação do meu próprio pensamento?

- Está a ter pensamentos sombrios - disse a Drª Kathleen McNeil.

- Estou.

- Então devia deixá-los aqui e esquecê-los.

- Vou seguir a sua receita, doutora.

Ela riu-se; o seu rosto tornou-se subitamente jovem e belo, e senti-me feliz por ela ter vindo. Pelo menos poderíamos conversar e estar à vontade durante o resto da viagem.

- Para onde vai? - perguntei-lhe.

- Para Harris. Fica nas ilhas Exteriores. Vou substituir um velho amigo do meu pai. É o único tipo de férias que posso oferecer-me, de momento.

- Eu vou para Lewis. Passo esta noite em Skye. Depois, se houver lugar, tomo o primeiro ferry que parta de Uig de manhã. Se quiser poupar uma longa viagem de camioneta e admirar a paisagem, poderia vir comigo.

- Muito obrigada. Gostaria imenso.

Recordando agora o que se passou, maravilho-me com a simplicidade daquele momento e a violência do drama a que acabou por levar-nos. Éramos estranhos, tínhamo-nos encontrado por acaso num vale das Highlands. Estávamos isolados um do outro. Cada um de nós, por motivo particular, estava decidido a manter-se isolado. Partilhávamos apenas as casuais intimidades dos companheiros de viagem, o roçar das mãos, a admiração e o entusiasmo comuns. Restringimos a nossa curiosidade acerca um do outro. Não demos opiniões Q pudessem tocar o íntimo de cada um. Falámos apenas do que nos era exterior, imediatamente visível, imediatamente empírico. Ontem era um livro fechado, porque amanhã seria um novo dia e voltaríamos a ser estranhos. Nenhum de nós poderia adivinhar que Muirgen, a feiticeira celta nascida dos mares , estava a tecer os nossos mútuos destinos.

O tecido que ela teceu nesse dia, para nós, foi simples e belo. Se nele existiam alguns encantamentos, eram todos benéficos para mim. Havia a música dos nomes estranhos: Morvich e Auchertyre, Balmacara e Luib, Sligachan e Kensaleyre. Havia o barco negro encalhado numa praia de seixos, sem homem, mulher ou criança num círculo de cinco milhas dele e havia o velho, muito velho, metido até aos joelhos numa reserva de trutas, lançando a linha com uma graça ritual, como se estivesse a executar um rito sagrado; havia os Cuillins, altos e mágicos, vulcões apagados de uma era de cataclismos; havia a bodelha dourada, estendida como um tapete sobre as rochas negras abaixo da linha da maré, e os círculos das gaivotas brancas sobre as casinhas brancas à beira da água. Havia a mulher que voltava a erva ceifada e a empilhava em medas; havia o pastor com o seu cão pastor Shetland, conduzindo o rebanho de focinhos negros, enquanto nós parávamos para lhe dar prioridade de passagem, como lhe era devido. E, por toda a parte, havia a urze e o musgo verde, e, por vezes, um bosque de pinheiros plantados pela gente do Fomento, e, por vezes, um imenso desmoronar de pedras de um antigo glaciar.

Quando chegámos a Uig, no longo e lento crepúsculo” soprava o vento quente da corrente do Golfo com cheiro a maresia, e a promessa de bom tempo de manhã.

No pequeno hotel havia jantar para ambos, mas apenas um quarto com duas camas, que poderíamos ter partilhado se fôssemos marido e mulher ou parecêssemos; mas não éramos nem parecíamos. Por isso arranjei um quarto em casa de um lavrador, onde me prometeram bacon com ovos pela manhã - com flocos de aveia se os desejasse - e me garantiram Que me acordariam a tempo para o ferry. Quanto à Drª Kathleen McNeil, Edimburgo e Londres, desejei-lhe boa noite, fiz votos de que dormisse bem, e, falando francamente, fiquei-me nas tintas para isso. Iria buscá-la às 8 horas da manhã, levá-la-ia até às docas e, depois, boa sorte e até mais ver.

Nessa noite fiquei muito tempo acordado, a escutar o vago marulhar da maré e a ver a lua elevar-se sobre Beinn Edra. Havia vinte anos que não me sentia tão solitário, nem tão satisfeito com a minha solidão. Tive uma súbita visão divertida de Atlas, exausto de carregar o mundo sobre os ombros, decidindo, um dia, encolhê-los e deixá-lo seguir o seu louco caminho. Naquele momento estava a flectir os músculos doridos e a perguntar a si mesmo por que motivo tinha carregado aquele ingrato fardo durante tanto tempo. O que ele iria fazer com a sua liberdade, isso já era outra história, que ficaria para outro dia.

Às 8 horas e 15 minutos estávamos estacionados na primeira fila de carros, à espera do ferry para Tarbert, o porto sul para as ilhas de Harris e Lewis. O barco estava atrasado nessa manhã, disseram-nos, por causa de problemas com os guindastes; por isso, tínhamos uma hora de espera. A Drª Kathleen MacNeil precisava de mais uma chávena de café porque tinha tomado o pequeno-almoço à pressa. Foi dar uma volta e descobriu um pequeno café revestido de madeira, no extremo do molhe. Eu desci até à praia, para admirar o barco à vela ancorado na lagoa interior. Era um belo barco, com cerca de 15 metros, resistente e largo, para os mares do Norte, mas tendo, mesmo assim, uma linha de casco que prometia um manejo fácil e boa velocidade. A placa do painel da popa dizia The Mactire, Stornoway. Tinha um pequeno barco a remos enganchado à popa, e, nessa altura, vi um homem, com um braço ao peito, sair da cabina e começar a descer o barco. Meteu-se nele desajeitadamente, pegou num remo e começou a remar para a praia, com o remo sobre a popa.

Era um homem grande, meia cabeça mais alto que eu, com brilhantes cabelos ruivos e uma barba ruiva de Viking, e um peito da largura de um barril de arenques. Ofereci-me para o ajudar a arrastar o barco para cima dos seixos, mas recusou, com um sorriso.

- Ainda tenho uma mão boa. Mas, por acaso, não terá um carro? Escorreguei no convés esta manhã, uma coisa estúpida, e desconfio que parti o pulso. Acho melhor procurar um médico para me pôr umas talas.

Disse-lhe que tinha tanto o carro como uma médica à mão, e ele atirou a cabeça para trás e desatou a rir.

- Chama-se a isso providência. Agora só me falta descobrir um marinheiro que me ajude a levar o Mactire de regresso a Stornoway.

Foi aí que fui meter-me na teia que a deusa do mar tinha estado a tecer para mim. Num impulso inesperado, disse-lhe:

- Eu talvez conheça um.

- Um rapaz da terra?

- Não, eu próprio.

- E que é que sabe fazer?

- Sei manter o rumo e guiar-me pela bússula.

- Onde é que nevegou?

- Sydney e nas águas do sul. No Mar Tirreno e nas ilhas gregas.

- E a sua mulher?

- Ela não é minha mulher. Mas se eu conseguir que ela meta o carro no ferry e o retire em Tarbert, arranjou um ajudante.

Lançou-me um longo olhar de avaliação. Os seus olhos eram azuis e frios como o mar. Vi nele um homem capaz de matar quem lidasse erradamente com ele, e, no entanto, capaz de mover montanhas para cumprir uma promessa feita. Depois sorriu e estendeu-me a mão boa.

- Nesse caso, está contratado. E obrigado. E agora vamos lá falar com essa sua médica.

E assim se fez tudo, fácil e casualmente, à maneira das Ilhas. E assim, embora não pudéssemos sabê-lo, se completou o quadrado mágico - Alastair Morrison do Morrison, a Drª Kathleen MacNeil de Edimburgo e Londres, o grande barba ruiva, cujo nome era Rurri Matheson, e eu, um estranho na terra do Gael. Pergunto ainda a mim mesmo por que fui escolhido para nos reunir a todos. Ainda não consegui determinar até que ponto sou responsável pela loucura insensata e pelo terror épico que, no final, veio a invadir-nos a todos.

- Primeiro vamos pendurar uma flâmula - disse Ruarri Matheson - só para lhes mostrarmos quem somos, e depois içamos a vela e fazemos sair o barco.

Estava de pé, junto do leme, observando criticamente o meu trabalho, enquanto eu içava o barco e remos para bordo e o atava à escotilha. A flâmula era estranha, representando o focinho de um lobo a rosnar, vermelho sobre fundo branco. Perguntei-lhe o que significava. Ele riu-se.

- Pode dizer-se que é a bandeira da minha casa. É o nome do barco. Mactire é uma antiga palavra gaélica para lobo. É também o nome com que me baptizaram na ilha: Ruarri Ruivo o Mactire. Não sei bem se será um elogio, mas, de qualquer forma, deram-me esse nome.

- Julguei que fosse um natural das ilhas.

- E sou. Embora tivesse estado fora durante dez anos e só tivesse regressado há três.

- Que é que andou a fazer?

- Um pouco de tudo.

- Que faz agora?

- Sou lavrador. Tenho interesses na pesca marítima. Navego neste barco sempre que posso.

Icei a vela grande, bandeei a bujarra e a mazena, calçando-as, para que o barco descesse suavemente, e depois corri à proa para içar a âncora. Quando regressei à cabina, Ruarri já o tinha feito ultrapassar o molhe e entrar no canal. Tivemos de nos esforçar, porque o vento soprava de oeste, e tínhamos que o manter no vento para nos livrarmos dos recifes na entrada do loch, e afastarmo-nos da costa a sotavento, antes de iniciarmos o longo curso para norte através do Minch.

Depois de eu ter esticado as escotas, Ruarri Ruivo dirigiu-me um sorriso e uma lacónica palavra de aprovação.

- Bom trabalho, seannachie!

- Que diabo é seannachie?

- Och, a ignorância dos Sassenach (1). Um sennachie é um contador de histórias, como tu, embora não exactamente, porque ele guarda tudo na sua cabeça: as histórias passadas dos clãs, e os contos fantásticos dos tempos antes dos clãs, e as histórias ligadas aos lugares. Por vezes é um bardo, também, e pode cantar-nos as canções antigas ou fazer novos poemas para um casamento ou um funeral. Ainda restam alguns nas ilhas, e talvez quanto fores a um ceilidh (2) ouças algum, embora precises de saber gaélico para o entender.

- Se ficar muito tempo, vou ter de o aprender.

- E vais ficar muito tempo?

- Não sei.

- Onde é que vais ficar?

- Com Alastair Morrison, perto de Laxay. Conhece-lo?

- Conheço-o. Gosto dele. Embora não tenha a certeza de que ele goste muito de mim, ou daquilo que eu faço. Agarra agora no leme, que eu vou preparar um grogue para afastar o frio. Mantém-no no vento, se não começamos a afastar-nos para o promontório de Vaternish.

Estava a fazer-me um elogio, e, embora pequeno, senti-me absurdamente orgulhoso. Não existe um prazer mais puro ou mais saudável para um homem que timonear um barco com um bom vento de feição, e sentir a arremetida do mar, e ver o ventre branco e esticado de uma vela bem montada. Depois de um tão longo aprisionamento dentro de mim mesmo e de uma sociedade em que já não conseguia acreditar, senti-me subitamente libertado, sublime, livre como a gaivota que planava, sem mover as asas, mesmo por cima do mastro grande.

Por uma questão de honestidade, confesso desde já que não sou mestre na arte de navegar. Faltam-me os músculos e os nervos, e o faro para o vento e as condições atmosféricas, assim

 

(1) Saxão, inglês (em escocês e irlandês). (N. da T.)

(2) Reunião informal para cantar, dançar e contar histórias (escocês, irlandês).

 

como a aritmética extra-sensorial que faz um bom navegador. Amo o mar, mas também o receio. Receio a sua solidão e o seu mistério, a loucura das suas rebeldias, a sinistra ameaça das sua calmarias. E no entanto sei, no meu sangue, nas minhas entranhas, nos meus ossos, que se os tiranos voltassem, com os seus espiões e perseguidores e burocratas e manipuladores, preferia içar a vela, subir a âncora e meter-me ao vento e às águas rebeldes com improvável terra à vista, a arriscar-me à invasão do meu eu por um mercenário.

Dei comigo a cantar: uma velha canção recordada da infância perdida.

Ruarri regressou ao convés com duas canecas na mão: café forte bem baptizado com uísque de malte. Entregou-me uma, confirmou a nossa posição e depois fitou-me com um olhar astuto e interrogativo.

- Afinal sabes gaélico, seannachie!

- Não. Porquê?

- Essa canção. É a ária a que chamam Morag of Dunvegan, e estavas a cantá-la em gaélico.

- E não entendo uma palavra. Aprendi-a mecanicamente, como muitas outras coisas. Fui ensinado por um velho monge irlandês que tocava harpa e que afirmava conhecer todas as árias irlandesas e escocesas, e que queria transformar-nos a todos em missionários ou fenianos juvenis.

Pareceu aliviado, como se tivesse suspeitado de que eu tinha mentido, e sentiu-se forçado a desculpar-se.

- És um bom timoneiro.

- Já tive um barco meu. Costumava entrar em corridas, mas nunca fui um verdadeiro competidor. Falta-me o instinto assassino.

- Essa é uma expressão curiosa.

- Apenas uma frase.

Era um homem cauteloso, aquele, silencioso no andar, nervoso como um animal selvagem, com todos os sentidos sempre alerta. Era demasiado jovem para ter estado na guerra, mas tinha a atitude vigilante, oblíqua do comando, o olhar astuto, a reacção rápida e o sorriso para ocultar a tensão interior, até na sua fala havia algo de camaleónico. Durante a maior parte do tempo, falava com a cadência suave e cantarolada das ilhas; dava a volta às frases como os celtas. Mas havia momentos em que a pronúncia desaparecia e surgiam sugestões de tonalidades estrangeiras. Nunca se fixava num assunto, como fazem os homens das montanhas, sempre à volta do mesmo, voltando-o para baixo e para cima, e para os lados, e regressando ao mesmo ponto uma vez e outra, tecendo a conversa como uma peça de pano. A conversa dele era formada por uma série de investidas, ora a um assunto, ora a outro, de modo que nunca se sabia exactamente onde pretendia chegar.

- Diz-me lá, seannachie, que há entre ti e a tua doutora?

- Nada. Ela deu cabo do carro por guiar como uma doida. Ofereci-me para a levar a Uig.

- Não estás interessado?

- Não especialmente.

- Ela é bem bonita.

- Há montes de mulheres bonitas.

- E ainda por cima é capaz de estar disposta.

- Não lhe perguntei.

- Talvez eu lhe pergunte, um dia destes.

- Estamos num país livre.

- Podes crer que não, meu rapaz!-Esvaziou o copo de um trago e pousou a caneca ruidosamente. - Já voltei há três anos e digo-te que estamos castrados com regulamentos, inchados como eunucos com essa maldita doença a que chamam socialismo britânico. Mesmo aqui, na Ilha Maior, onde os mares fervilham de peixe e as lagostas pululam, o que poderia ser uma fortuna na Europa, que é que aconteceu? Continuamos com a agricultura manual, a tecelagem subsidiada pelo governo e as frotas de arenques reduzidas, porque não se consegue gente suficiente para manobrar os barcos, nem mesmo com uma percentagem da pesca. É uma região de turismo, dizem-nos eles! A melhor pesca de salmão do mundo, mas não se consegue arranjar um quarto com banho desde Berneray até à Butt of Lewis. O dinheiro vai para os hotéis, é verdade, o dinheiro dos tecelões e o dinheiro dos camponeses e o dinheiro da junta de Fomento das Highlands cai todo lá. Mas regressa todo ao continente, para cima dos balcões e no bolso dos fabricantes de cerveja. Por isso as mulheres continuam a trabalhar como bestas de carga, e os homens bebem como esponjas ao sábado, e depois acorrem como um rebanho à igreja livre, em busca de enxofre e melaço, ao domingo! Excepto em Eriksay e Barra, porque lá são católicos romanos e jacobitas, e um pouco mais tolerantes quanto aos prazeres da carne, embora seja difícil encontrar grandes prazeres por lá, porque as raparigas vão trabalhar para a Inglaterra e daí para Londres, onde se servem das novas leis do aborto!

- Então por que ficaste?

- Essa, seannachie, é a grande questão. Uma destas noites, se conseguires embebedar-me, hei-de tentar responder-te. Entretanto, temos a Baía de Score a estibordo, e esse cabo é o Rubha Hunish. Vamos manter este curso até uma hora depois de o perdermos de vista, e depois dirigimo-nos às Shiants, onde espero encontrar-me com um cliente meu de Trondheim, na Noruega.

Não lhe perguntei quem era aquele cliente, nem que tipo de negócio precisava de ser transaccionado a meio do Minch. Sentia-me feliz por manobrar o barco a ver os recifes desaparecerem lentamente sob a névoa de Verão.

Mas o Rurri tinha vontade de falar e não ia calar-se.

- Agora tu. Que é que te traz às ilhas?

- Tenho estado doente. Sofri uma indigestão de cidades e de polémicas. Morrison sugeriu-me que viesse. Tão simples como isso.

- Mas tu não és uma pessoa simples, seannachie. Já viveste muito, isso pode ler-se na tua cara. E não acreditas nas ilhas Abençoadas e em toda essa névoa e luar medievais.

- Talvez eles tivessem qualquer coisa que nós perdemos. Talvez o que eles tinham ainda perdure.

- Nas Ilhas? - Inclinou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada. Depois parou de rir e franziu a testa, diante de um novo pensamento. - Bom, talvez tenhas razão. Quando eu estava... não interessa onde estava, era um sítio selvagem, mas o dinheiro chovia enquanto durou, costumava sonhar com os velhos homens do Norte. Eram um bando de patifes temerários e sanguinários. Mas, sabes, também eram uns sonhadores. Olha para o mapa e vê até onde levaram os seus longos navios: até às Faroés e às Orkneys, e a Shetland, à Islândia e à Gronelândia, e à costa da América, e ao longo dos rios até Kiev. Há palavras rúnicas no chão de Santa Sofia em Istambul, sabias disso, por acaso?, e governaram as Hébridas até meados dos século XIII, e metade das nossas praias têm nomes escandinavos, Tolsta e Seilebost e Taransay e Grjomaval. Ainda temos cabelos louros e barbas ruivas desses antepassados, e uma memória excessivamente misturada com o Gael para nosso bem. Perguntaste-me porque voltei. Há um motivo. Estava farto do sol e do suor que arrasta todo o sal do sangue de um homem. Queria águas negras e ventos fortes, e veados nas encostas altas, e a terra que tinha de ser conquistada de novo, mas podia Ser conquistada se um homem pusesse os músculos e os miolos ao seu serviço.

- Então agora tens o que querias.

- Nem tudo, seannachie. Mas há-de vir. Entretanto, vagueio um pouco, e falo as minhas patifarias, e se queres ficar de bem com a gente temente a Deus das Lews será melhor que não passes muito tempo na minha companhia.

- Eu é que hei-de decidir isso. A que horas esperas chegar a Stornoway?

- Se o vento se mantiver, levamos umas oito horas à vela. O que quer dizer que chegamos antes de os bares fecharem. Ofereço-te uma bebida, arranjo-te uma cama e apresento-te a uma miúda loura que te vai aquecer enquanto te apetecer. E de manhã levo-te a Tarbert, para ires buscar o teu carro. Entretanto, fazes-me um favor de não falares a ninguém deste pequeno encontro que vamos ter ao largo das Shiants.

- Isso é contigo. Não há motivo algum para eu falar do assunto.

Descontraiu-se de novo. Empoleirou-se na braçola da cabina e começou a ler-me, com grande espírito de camaradagem, a cartilha dos mares do norte. Apesar do seu jeito brusco, tinha uma veia poética, e havia algo de hipnótico nos seus relatos, que acompanhava o ritmo das vagas e o sopro quente do vento de oeste.

Contou-me histórias de velhos pescadores de baleias, das guerras entre pescadores e caçadores de focas, de naufrágios nas grandes tempestades atlânticas. E lendas do gigante Cochull Glas e dos pequenos pigmeus escuros de Ness, e dos homens antigos e esquecidos que tinham posto as pedras de pé. Ensinou-me as aves marinhas, mergulhão e gaivota a fulmar, arau de asa branca e toda-mergulhadora e andorinha do Árctico. E havia também as patranhas de pescadores, da baleia assassina capaz de nadar a trinta nós e do tubarão gigante capaz de arrastar um barco por muitas milhas, com um arpão espetado nos músculos dorsais, da foca cinzenta com o seu nariz romano e as suas maneiras tímidas e reservadas, e dos cardumes de cavala que produziam uma música semelhante ao estalar de um chicote quando passavam no mar calmo do Verão.

Eram raras e estranhas, e maravilhosas, uma tapeçaria antiga estendida entre mim e o mundo que deixara para trás. Ao fim de algum tempo comecei a sentir-me atordoado de espanto; por isso, quando já tínhamos voltado para ocidente e avançávamos para norte, subindo o Minch, o Rurri Ruivo apoderou-se da roda de leme e mandou-me para baixo, a fim de cozinhar uma refeição para ambos.

A cabina estava limpa e brilhante como uma moeda nova. Havia dois beliches, cobertos com vinilo impermeável, cada um deles com uma lâmpada de cabeceira e uma estante ao alcance do braço de uma pessoa deitada. Havia uma mesa das cartas marítimas, com um rádio navio-terra em cima. Havia uma cozinha grande com um lava-louças e um fogão suspenso, e um banco preso por argolas, para cozinhar com mau tempo. Todas as peças móveis estavam presas com braçadeiras, ganchos e suportes, de modo a não se deslocarem nem mesmo na pior das tempestades. Não havia uma desordem de solteirão nem um trabalho descuidado. Todos os parafusos estavam bem apertados, todas as fechaduras estavam oleadas e bem fixadas. Os tachos brilhavam, os talheres estavam bem limpos, até mesmo os panos de cozinha estavam lavados e brancos, e a pia cheirava a desinfectante. Rurri Ruivo o Mactire podia ser um homem rude e selvagem, e um vagabundo, mas era um homem muito metódico. E comia bem, também, e o seu armário de bebidas encontrava-se bem provido contra as frias noites de vigília.

Enquanto a comida aquecia, fui dar uma olhadela aos seus livros. Outra surpresa. Nada de refugo treslindo que geralmente se encontra na estante do marinheiro. Aqueles eram os livros de um leitor atento e de um especialista, até. Havia as traduções de Lang de As Sagas de Olaf e As Sagas dos Reis Nórdicos, a versão de Dasent de A História de Burnt Njal, e tuna das primeiras edições de A Saga dos Homens de Laxdale. Havia uma obra de Frank O'Connor sobre literatura irlandesa, e um volume dos diários de MacDonald sobre o folclore das Lews, e um exemplar de Antigos Emigrantes, de Brogger. Havia duas gramáticas, uma norueguesa e outra dinamarquesa. Fosse o que fosse que sentia ser - o regresso ao Gael ou o retrocesso aos homens do Norte -, Ruarri Matheson estava a procurar as suas origens na leitura; ou estaria a introduzi-las em si mesmo para preencher o vácuo de dez anos de exílio? Era uma especulação interessante, mas não tive tempo de a perseguir, porque o guizado começava a ferver e um marinheiro esfomeado bradava pelo seu jantar e uma caneca de cerveja.

Segurei a roda do leme enquanto Ruarri comia, só com uma mão, praguejando contra a sua falta de jeito. Depois comi eu e fui para baixo limpar a cozinha. Estava a meio da minha tarefa quando Ruarri berrou de novo. As Shiants aproximavam-se e o seu cliente vinha ao nosso encontro: uma traineira antiquada, feita de madeira e vomitando fumo castanho dos diesels muito sujos. Tive de me apressar. Ruarri queria que baixasse as velas e descesse as defesas. Depois apoderou-se da roda de leme, enquanto eu controlava a válvula e colocava o Mactire ao lado da traineira.

Conservei-o nessa posição, com o motor a trabalhar, enquanto Ruarri ia a bordo da traineira. Foi saudado por um homem corpulento que calculei ser o capitão. Depois desapareceram ambos por baixo do convés. Dez minutos depois, Ruarri estava de volta com um pequeno saco de couro debaixo do braço e uma garrafa de Schnapps na mão. Partimos em seguida. Quando eu já tinha içado as velas e retomávamos o nosso curso para norte, ele serviu-me uma dose de Schnapss e expressou o seu único comentário sobre a transacção.

- Bom sujeito, Bollison. Duas vezes mais honesto que a maioria. E um grande trabalhador. Anda com a traineira no Verão, caça focas no Inverno. Aquela barcaça velha não tem muito bom aspecto. Já tem vinte anos, mas ele leva-a até ao Árctico como se fosse um quebra-gelos. Comprei metade dela há dezoito meses e já estou a ter lucros.

- Para onde vai ele agora?

- Para oeste das Ilhas. Há bons bancos de arenques entre Barra Head e a Irlanda. E também há bacalhau e linguado, se houver sorte.

Voltávamos às histórias de pesca e resolvi pô-lo à prova.

- Então agora és um magnata da pesca. Dirigiu-me um olhar hostil e depois aquele sorriso fácil.

- Estás a brincar, Seannachie, mas não acertaste no alvo. No mundo actual, é preciso ter um pé em terra e outro no mar. A terra é para se comer e ganhar dinheiro, e ter identidade nacional e essas coisas, e é um lugar para onde a gente se retira quando a seiva seca. Mas o mar é ainda um lugar livre, onde os legisladores não nos podem tocar, e os tipos dos impostos não podem ler o nosso diário de bordo, e o nosso navio é um reino, onde ninguém tem o direito de entrar sem que o capitão o convide. Desde que saibamos comportar-nos nos portos, levamos a melhor a todas as leis e nenhuma prejudica. É o mar que alimenta as refinarias de petróleo e as siderurgias e as fábricas de fiação, e é o mar que há-de alimentar o mundo esfomeado quando metade da terra estiver transformada num deserto.

- Então em que pretendes transformar-te, Ruarri? No Onassis das Hébridas? Ou num senhor das Ilhas à moda antiga?

Ele reagiu a isto, rápido como a truta atrás de uma mosca.

- Talvez um pouco de cada coisa, talvez algo mais seguro que ambas. Achas que sou doido?

- Não. Só queria saber como te vês, no fim, quando a doença chegar, ou a seiva secar, como tu dizes.

- É isso que tu não entendes, Seannachie! É isso que ninguém entende. É o fazer que me interessa, não ser. É o processo que importa, não a coisa feita. Já viste alguma vez uma tempestade no Atlântico?

- Nunca.

- Então vou dizer-te como ela vem, como poderia vir hoje, embora não venha porque o termómetro vai-se manter alto durante algum tempo. Mas primeiro surge a frente, céu frio, cirro-cúmulos, a formar-se e a amontoar-se, até que o vento investe e o mar se levanta e os salpicos começam a molhar o convés. E temos o barco, a tripulação e o mar, e estamos só para dominar tudo isso. Se não conseguirmos dominá-los, morremos. Mas se conseguirmos, há dinheiro no banco, para mais um acre de doce terra, ou para o depósito de outro barco, o que nos dá duas hipóteses da próxima vez, ou uma carga que podemos comprar em Estocolmo e vender com lucro noutro local. Foi isso que os velhos homens do Norte fizeram. Eram bárbaros na guerra, mas também eram comerciantes. E tiraram a Inglaterra aos saxões e Dublin aos irlandeses, e os dinamarqueses ainda hoje negociam teca da Tailândia, e tu comes o meu bacalhau em Roma. Isto faz sentido ou não?

Tive de confessar que fazia. Tive de confessar que os actos de Ruarri Ruivo o Mactire eram infinitamente mais enaltecedores para o espírito que a meditativa e vil tristeza em que eu tinha mergulhado durante tempo de mais. Mas havia outra pergunta que tinha de lhe fazer.

- Parece-me, Ruarri, que estás a tomar o lugar de outra pessoa. Leverhulme tentou fazer exactamente o que estás a tentar fazer, e era dono da Ilha! Ia organizar a pesca e a caça à baleia, e a fiação e a agricultura, e tinha um mercado pronto para escoar todos os produtos, mas não conseguiu nada, apesar de todos os seus milhões.

Isto não constituía, obviamente, um argumento novo para Ruarri, porque já tinha a resposta na ponta da língua.

- E sabes porquê? Porque era dono da ilha, mas não fazia parte dela. E tentou fazer as coisas à maneira antiga, o rico senhor que se digna conferir favores aos seus vassalos. Eles não queriam isso, e não os censuro. As minhas maneiras são diferentes. Eu sou um deles. Eu sou filho de Anne Matheson, nascido em Gisla, mas não sei quem foi o meu pai e desisti de me interessar por isso. Sou rebelde, é certo, e os rapazes que trabalham comigo também são, mas somos gente da ilha. E, embora atraiamos invejas, e os ministros e os missionários não gostem de nós, nós representamos uma esperança, também, porque ficámos e estamos a progredir, e temos uma data de massa no banco. Um belo dia, quando estiveres farto de pescar com Alastair Morrison, levo-te para te mostrar o que estamos a fazer com a terra de turfa que está ácida há séculos. Vens comigo numa traineira e eu mostro-te o que estamos a fazer ali. Dá-me mais uns anos e hei-de ter uma frota como as dos russos, com um navio principal para orientar os barcos pequenos e tratar do peixe. Senhor das Ilhas? Talvez seja isso que eu quero ser, mas à maneira antiga. Irmão de todos e superior a todos. E quando me casar, se me casar, não será como Ruarri Matheson, filho de Anne Matheson, mas como Ruarri Mactire, com o nome mudado por um documento oficial, e os meus filhos serão os filhos do Lobo Vermelho. Então, que pensas agora de mim, seannachie?

Foi um momento difícil, e a culpa tinha sido minha. Tinha-o levado a dizer mais do que tencionava e mais do que eu queria ouvir.

Por isso, tentei fazê-lo parar com um elogio.

- Acho-te um homem de força, Ruarri, e acho que provavelmente conseguirás o que pretendes, pelo menos na sua maior parte.

- Mas perguntas a ti mesmo o que é essa força, não é verdade? Perguntas a ti mesmo se não haverá um pouco de loucura algures.

- Um pouco de visionário, talvez. Mas isso não é mau, pois não?

- Por vezes é uma coisa que nos persegue.

- Isso é verdade.

- E uma coisa solitária, também. E a solidão das recordações que outros homens não têm, de sonhos que outros homens desprezariam se lhos contássemos. E isso leva-nos a ser mais como eles do que eles próprios, a beber mais, a perseguir mais mulheres, e correr maiores riscos, só para que eles venham a acreditar no sonho. Já não estás a seguir o meu raciocínio?

- Estou. Só não sei quanto tempo poderás viver na pele dos outros homens e na tua também.

- Enquanto for preciso, seannachie! Todo o tempo que for preciso para fazer deles crentes, seguidores e construtores, e não escravos com um número de Segurança Social em vez de um nome.

- Se achas que vais conseguir, desejo-te boa sorte. Mas não esperes flores a cada regresso nem uma taça de amor a cada jantar.

Levou algum tempo a digerir isto. Podia ver a ira crescer dentro dele e percebi por que lhe tinham dado aquele nome. Depois o sorriso brilhante e fácil regressou.

- És esperto de mais, seannachie. Estou satisfeito por sermos amigos, se não íamos tornar a vida difícil um ao outro. Lá está o Cabo de Kebock a estibordo. Chama-me quando estiver de través, e eu venho indicar-te o curso para terra.

Desceu e eu senti-me satisfeito por ficar só. Ele era excessivamente combativo para ser uma boa companhia, e eu gostava de me manter afastado das guerras dos outros. Contudo, havia nele algo terrivelmente atraente, uma dimensão heróica que o afastava dos cinzentos homens da cidade e dos ruidosos intelectuais que se pavoneavam com tanta segurança no crepúsculo de um cidadão desacreditado. Havia nele um desafio, também: um desafio para partir à aventura, romper as fronteiras fechadas e as conformidades paralisantes, medir a nossa dimensão de homens contra os elementos primitivos e as tiranias de uma época desconjuntada.

Dei comigo a pensar no tipo de mulher com quem ele se casaria, para criar os lobinhos que desejava, e como reagiria a Drª Kathleen McNeil se pusesse nela os seus olhos de conquistador. Perguntei a mim mesmo como enfrentaria ele um rival nos negócios, ou no amor, e até que ponto a sua ambição o tinha colocado ou viria a colocar fora da lei. Tinha sugerido violência no seu passado, e a flâmula do lobo revelava que sentia um certo orgulho nela. Depois o vento começou a refrescar, soprando em rajadas dos fiordes ocidentais de Lewis. Tive de me ocupar das velas e da roda do leme e das amuradas, até chegarmos a Stornoway.

Eram cerca de 7 horas da tarde quando entrámos na doca. Ainda havia luz: uma luz transparente e fria, estranha e hostil para um homem de Mediterrâneo. A água estava cinzenta como estanho antigo, os penhascos eram negros, os montes verdes, dourados e roxos estranhamente melancólicos com o desvanecer do dia. A pequena cidade, com os seus telhados negros e as suas paredes de estuque, brancas e amarelas, parecia acolher-se sob a protecção das muralhas de um castelo muito vitoriano. Toda a área estava envolta num silêncio da hora do jantar, quebrado apenas pelos lamentos das últimas gaivotas. A doca dos ferries estava deserta, e as traineiras, cheias de cicatrizes do mar, ancoradas em volta da bacia, encontravam-se vazias. As poucas pessoas nas ruas tinham um ar fechado, desinteressado, como se tivessem voltado as costas ao mar e nada mais quisessem dele, por algum tempo.

- Estás a pensar que é um sítio triste - disse Ruarri o Mactire.

- Mais ou menos.

- Pois bem, é mesmo. Olha-se para o mar, e recordam-se as vidas que levou e as vidas que deixou. Além está o salva-vidas, a recordar que amanhã outras vidas serão roubadas. Olha para os montes e verás que estão solitários, tanto de gente perdida como de gente que se foi.

- As Ilhas Felizes?

- Sim, apesar de tudo. Agora vamos amainar as velas todas, se não te importas. Vamos dobrá-las e guardá-las em sacos, para as podermos secar em terra. Depois mostro-te onde se pode encontrar uma parte da tal felicidade.

Eu estava exausto e começava a sentir frio, mas, pelo menos, o trabalho era uma folga para as minhas ruminações. Enquanto me ocupava apressadamente das últimas tarefas, ouvi Ruarri praguejar explosivamente. Ergui o olhar e vi um cúter da Alfândega a sair da doca, na nossa direcção. Perguntei-lhe o que havia. Não respondeu, conservando-se apoiado às cordas, furioso e hostil, até o cúter nos abordar. Eu continuei a dobrar as velas, com os ouvidos alerta para captar o diálogo.

- Gostava de ir a bordo, Ruarri.

- Porquê?

- Inspecção de rotina.

- Rotina, uma gaita, Duggie! É perseguição e discriminação, e sabes bem que é assim. Tenho estado em águas territoriais desde que saí daqui ontem.

- Mesmo assim gostava de ir a bordo. Não te faças difícil, Ruarri.

- Continuo a querer saber porquê.

- Inspecção de rotina. E não desembarcas sem eu a ter feito. Que sucedeu ao teu braço?

- Parti-o.

- Quem é aquele que vem contigo?

- Um tipo que recolhi em Uig. Um turista. Trouxe-me até aqui.

- Gostava de falar com ele também.

Achei que era altura de intervir, por isso meti as últimas velas no saco e desci à cabina. O homem da Alfândega, um tipo moreno, de rosto afilado, com olhos experientes, dirigiu-me um sorriso profissional e uma continência desleixada.

- Peço desculpa por o incomodar. Posso ver os seus documentos?

- Estão no meu saco, lá em baixo, no beliche. Vou buscá-los.

Quando desci, a discussão recomeçou, desta vez em tom mais baixo, mas ainda veemente.

Sou um viajante e aprendi a carregar pouca bagagem. Ando apenas com uma mala, que nunca fecho à chave, porque perco com igual facilidade chaves, isqueiros e canetas. Pousei a mala sobre o beliche e abri-a. O saco de cabedal que Ruarri tinha trazido da traineira encontrava-se em cima das minhas roupas dobradas. Fiquei surpreendido e depois furioso. Corri o fecho e constatei que estava cheio de notas, libras inglesas e dólares americanos. Dilema imediato; deveria atirá-lo para cima do beliche e deixar Ruarri explicar-se, ou declarar que me pertencia e comprometer-me com uma mentira, se o homem da Alfândega quisesse inspeccionar a minha bagagem?

Decidi fazer um bluff que talvez salvasse ambos. Peguei na carteira com os meus documentos, meti-a no saco e subi ao convés. Fiz uma pequena cena, fingindo procurar dentro do saco e apresentei os documentos ao homem da alfândega: passaporte, bilhete de avião, contrato de aluguer do meu carro, um recibo do hotel de Fort Augustus. Como boa medida, dei-lhe o nome do meu anfitrião em Laxay. Ele permitiu-se um sorriso, perante um dossier tão completo, e depois devolveu-me os papéis.

- Tudo em ordem. Desejo-lhe uma boa estada nas ilhas. - A Ruarri apenas uma ordem concisa. -Agora, meu rapaz, vamos a isto.

Subiu a bordo e desceu imediatamente aos camarotes. Ruarri desceu atrás dele a resmungar e a praguejar, enquanto eu ficava sentado na cabina, a tremer de frio e mal humorado, com o saco sobre os joelhos. Deve ter sido uma inspecção muito completa, porque levaram vinte minutos a regressar ao convés, e o homem da alfândega anunciou então, sem rancor, que podíamos desembarcar, e partiu.

Ruarri, estupidamente orgulhoso, não me pediu desculpa.

Apenas um sorriso e umas palavras casuais de agradecimento.

- Avaliei-te bem, sennachie. Essa foi inteligente.

- Vai para o inferno, Matheson! És um bastardo em qualquer língua.

- Não gosto desse nome.

- Não me interessa que gostes ou deixes de gostar.

- Podia dar cabo de ti!

- Só com uma mão, não, Ruarri. Vamos baixar o barco que eu remo.

- Não te interessa uma explicação?

- Não.

- Então uma bebida, para acabarmos um bom dia?

- Não, obrigado.

Remámos para terra em silêncio. Separámo-nos sem um aperto de mão, na doca deserta. Percorri a cidade durante meia hora até encontrar um quarto impessoal e uma refeição indigesta.

Deixei-me cair na cama, desejando mal a Ruarri o Mactire, e pensando que provavelmente acabaria por enlouquecer nas Ilhas Felizes.

Acordei tarde numa manhã brilhante. Repousado, lavado e alimentado, saí para dar uma olhadela mais imparcial àquele lugar do meu desconhecimento.

O vento tinha cessado de soprar durante a noite e o mar estava calmo como um espelho. As primeiras traineiras saíam do porto, um cargueiro enferrujado descarregava carvão e havia vida nas ruas e em redor das docas: as primeiras donas de casa com os seus cestos de compras, um grupo de maledicentes à porta do gabinete do director do porto, camiões a carregar fardos de lã para as fiações e os tecelãos caseiros, um movimento em volta da doca quando outro grupo de barcos de pesca se preparou para sair para o mar. Um rapazito pescava num barco imóvel. Uma foca espreitou da água, projectando um focinho curioso. Um velho, sentado num poste de amarração, consertava uma rede. Dois homens robustos poliam os cromados do salva-vidas.

Lentamente, comecei a encontrar um padrão para tudo aquilo, um padrão frio, austero, discreto, que exigia respeito, embora não provocasse a onda de afecto imediata que surge nos locais mais soalheiros. Os prédios eram quadrados e pardacentos, mas eram sólidos, contra as tempestades e a espuma do mar. As pessoas eram pardacentas, também, à primeira vista, com os seus tweeds e tecidos de fiação caseira, as mulheres robustas, com faces cor de maçã, os homens curtidos pelo mar e lentos na fala. Mas quando pedi uma informação sorriram e gastaram tempo e atenções para me ajudar. Eram muito reservados e surpreendentemente indiferentes às coisas dos estranhos. Todavia, talvez isso não fosse de surpreender, porque os homens das Lews tinham emigrado para toda a parte, e, na sua maior parte, tinham pertencido à marinha mercante, e aquele pequeno porto tinha servido de refúgio, em tempo de guerra, a marinheiros de todo o mundo.

Mas o medo do mar também estava presente, alimentado pela recordação de antigos desastres e novos riscos. A quinhentos metros do porto espreitavam as Bestas de Holm, onde duzentos soldados e marinheiros, de regresso a casa, se tinham

afogado à vista da costa. Outrora, a frota do arenque tinha contado mil velas; agora estava reduzida a cinquenta, e nunca se passava uma estação sem uma vintena de chamadas do salva-vidas, para um navio em perigo ao largo das Flannans, ou um barco de pesca arrastado, sem salvação, para o Cabo Wrath. Não era de espantar que as alegrias daquela gente fossem alegrias sóbrias e o seu humor sombrio; não era de espantar que sentissem um saudável desprezo por aqueles que viviam as suas vidas segundo as regras e a cartilha dos homens da cidade.

Nas terras superpovoadas, nas cidades formigueiros do nosso tempo, os homens são feitos e desfeitos pelos homens. São brunidos e desgastados, polidos e moldados, ou deformados, pelo contacto entre uns e outros, como as pedras de um rio turbulento. O passado não os domina, porque são arrastados pela corrente do agora. A terra não os domina porque está enterrada sob o asfalto e o cimento, e os pés dos homens nunca lhe tocam. O mar não os governa porque nunca sentem o seu cheiro nem o ouvem, quando percorrem os seus corredores de tijolos e argamassa, como ratos num labirinto.

Mas nos locais primitivos, nas ilhas e terras altas, o homem tem de adaptar-se aos elementos, à terra e à água e ao ar mutável, se não morre. O passado está sempre presente, para ele, porque a seiva do conhecimento e da resistência tem de ser extraída dele todos os dias. A sua vida de comunidade é menos desgastante, porque é mais dilatada. É mais fraternal, tribal, porque está mais próxima da terra mãe; e unificada, pelo sentido do perigo comum. Até os nomes dos locais contam a mesma história. Não celebram tiranos antigos, nem políticos ocos, nem ídolos insignificantes; celebram a terra e o mar, e os seus frutos: Ilhas dos Carneiros, o Salto do Salmão, e Praia da Foca e Encontro dos Rebanhos.

À medida que o padrão se ia tornando claro, vi Ruarri o Mactire como parte dele, um homem em perigo como os outros. A sua pequena e insolente desonestidade tomou outro sentido: o vagabundo a roubar um robalo aos donos de uma casa, o pirata que iça a bandeira inglesa diante dos mercadores que regressam à pátria. Lamentei ter recusado a sua explicação e a sua oferta de uma bebida, para terminar um bom dia. Era um bom momento perdido. Havia-os de mais, numa vida tão transitória.

Já se estava a meio da manhã. Era altura de procurar um táxi que me levasse para sul, ao encontro do meu carro; era altura de telefonar a Alastair Morrison, para lhe dizer que me esperasse em Laxay. Quando regressei ao hotel para pagar a minha conta e recolher a minha mala, encontrei Ruarri à minha espera. Entregou-me umas chaves e um pequeno embrulho.

- Mandei vir o teu carro de Talbert. Está estacionado atrás àopub. Paguei a conta do hotel, porque eras meu convidado. E este embrulho é uma espécie de pedido de desculpa. Espero que o aceites.

Que se poderia fazer com um homem assim? Ora se atirava à nossa garganta, ora se mostrava cortês como um príncipe. As minhas palavras soaram-me ressentidas e comedidas.

- Não havia necessidade disto. Perdi o sentido de humor, na noite passada.

- Então sempre vamos tomar a tal bebida, hein?

- Não me importo.

- E talvez venhas a um ceilidh em minha casa, quando estiveres instalado.

- Quando quiseres.

- Então diverte-te agora.

Apertámos as mãos e fiquei a vê-lo afastar-se, lépido e arrogante, como se fosse dono da cidade e de todo o peixe do mar. Sentei-me no carro e desembrulhei o seu presente. Era uma peça de xadrês, com 10 centímetros de altura, talhada em marfim de morsa, à semelhança de um guerreiro viking. Acompanhava-a uma nota, escrita numa letra larga mas não inexperiente:

“Encontrei isto nas minhas terras. Disseram-me que tem cerca de mil anos. Se achares que podemos ser amigos, guarda-o. Se não devolve-mo. As coisas antigas, como os bastardos, precisam de ser tratadas com cuidado. Ruarri.”

Ainda o tenho. Encontra-se sobre a minha mesa, enquanto escrevo estas palavras, um homenzinho minúsculo, amarelecido pelo tempo, relíquia de uma época heróica, que me recorda uma breve violência, um louco amor e uma longa saudade.

 

A mansão de Alastair Morrison, dos Morrison, ergue-se numa língua de terra que se projecta nas águas do Loch Erisort, que, por sua vez, é um longo fiorde que se abre para o Minch do Norte.

Para lá chegar, toma-se a estrada a sul de Stornoway, uma pista única de betume batido pelo tempo, serpenteando através de turfeiras e raras jeiras cultivadas. Nessa estrada é preciso guiar com atenção, porque não há espaço para passagem, de modo que, se se deparar com outro carro, ou com um daqueles grandes armazéns sobre rodas da cooperativa das Ilhas, um dos dois tem de parar na berma, para deixar o outro passar. Como a estrada parece uma montanha russa, é preciso contar com um avanço lento. Se o nevoeiro estiver baixo, então não se pode mesmo percorrê-la, excepto aos sábados à noite, em que Deus lança um olhar bondoso sobre os homens das Ilhas Exteriores, e os conserva sãos e salvos para uma confissão na igreja, no domingo seguinte. Quando se chega a Laxay, que é a ilhota do Salmão, volta-se para leste, seguindo por uma pista acidentada com água escura de um dos lados e colinas baixas, cobertas de urze, do outro. São os carneiros que nos mantêm na estrada, rebanhos lanudos e magros, com os cornos e os lombos pintados de vermelho, verde ou amarelo, para que cada camponês reconheça os seus animais quando da recolha. Finalmente vê-se uma pequena lomba com duas chaminés a espreitar por cima dela, como se houvesse uma casa enterrada. Do outro lado da lomba, voltada para o sol nascente, depara-se com a mansão, transformada em estalagem.

À primeira vista é um local solitário, feito de pedra cinzenta, com empenas agudas e estreitas janelas nas águas furtadas, e um muro de pedras erguido contra os ventos do mar. Em frente há uma praia de seixos escuros, onde se espalham destroços marítimos, e, para além da praia, fica a água cinzenta e os cabos nus da costa meridional. Mas, quando se ultrapassa o muro, tudo se transforma. Deparamos com um jardim como os que se podem encontrar em Kent ou Surrey, com rododendros e azáleas e tulipas holandesas e dálias, e uma horta para serviço da cozinha. Hannah vem acolher-nos à porta, pequena, viva e sem idade, com um sorriso invernil e um brilho veranil nos seus olhos negros de cigana. Uma rapariga rechonchuda pega-nos na mala e leva-nos até ao quarto no andar de cima, quente como uma torrada acabada de fazer, cheirando a cera e a flores frescas. Há uma Bíblia sobre a secretária e uma prateleira cheia de outros livros para os leigos. Depois de nos livrarmos da poeira da estrada, levam-nos para uma grande sala apainelada de carvalho, revestida de livros e gravuras antigas, para aí sermos recebidos pelo senhor do domínio, envergando o seu Kilt (1). Ele dirige-nos a saudação das Ilhas: “Ceud Mile Failte”, as cem mil boas-vindas. Ele põe na nossa mão um copo de uísque de malte, faz-nos sentar junto da lareira de turfa e depois debita-nos aquilo a que chama “a hierarquia da casa”.

- Primeiro estou eu. Eu recebo o dinheiro, todas as sextas-feiras de todas as semanas, eu escuto as queixas, embora nunca faça coisa alguma a esse respeito. Sou uma mina de história local, pouco exacta, na sua maior parte. Se não estiver a pescar, ou a dormir, ou a escrever as minhas memórias, que ninguém publicará, estou disponível para dar conselhos, espirituais e temporais. Se houver alguém que desejes conhecer, tentarei consegui-lo. Se houver alguém que desejes evitar, farei tudo menos mentir por ti, embora possa fazer uma ligeira interpretação da verdade em favor de um hóspede pagante. Depois temos a Hannah, que jura ter dez anos menos que os indicados na certidão de nascimento, na qual se lê que tem 69 anos. A Hannah dirige a mansão e a cozinha, com duas raparigas, que não têm qualquer espécie de interesse para ti. Serve o pequeno-almoço às oito, o almoço ao meio dia e meia e o jan-

 

(1) Saiote plissado escocês. (N. da T.)

 

tar às sete, e se não estiveres lá a essa hora, não comes, embora eu já a tenha visto pôr uma sanduíche e uma garrafa de cerveja no quarto de um hóspede preferido. Além disso, possui uma segunda visão, mas não gosta de falar disso. Mas se falar do assunto, será prudente escutares. Quanto à pesca, há o Fergus, o meu guarda, e os seus rapazes. Ele compra-te o equipamento e prepara as tuas moscas e dar-te-á, de graça, mais conselhos do que precisas. Uma garrafa de uísque, de vez em quando, reduzirá os conselhos a metade e duplicará a pesca. Se adoeceres, ou partires uma perna, eu trato-te de graça. Desde que estejas de saúde, tratas tu de me oferecer um uísque todas as noites antes do jantar. E, se houver alguma coisa que não te satisfaça, diz-mo agora, porque amanhã já será tarde de mais.

- Quanto tempo posso ficar?

- Enquanto te apetecer.

- Posso receber pessoas?

- Se eu gostar delas, podes. Se eu não gostar, leva-las para Stornoway ou Tarbert. A vida é curta de mais para nos aborrecermos.

- Eu também posso ser um aborrecimento.

- Se fores, eu digo-te. E, a propósito, vem cá jantar amanhã uma certa Drª Kathleen McNeil, uma beleza como a sua mãe, com quem outrora pretendi casar. Já a conheces, penso eu.

- Já nos encontrámos. Como o mundo é pequeno, não é?

- Mais pequeno do que pensas, nas Lews, meu rapaz. Também fui interrogado a teu respeito por um certo Duggie Donald, da alfândega e impostos de Sua Majestade.

- Essa é de mais!

- Não te preocupes. Dei-lhe umas referências de carácter que pertenciam a um homem muito melhor que tu, de modo que estás em segurança, desde que tenhas cuidado com as companhias.

- Estás a referir-te ao Ruarri Matheson?

- Estou a referir-me a que és um estranho com muita coisa para aprender. Só isso.

- Portanto...

- Portanto vê onde pões os pés e fala baixo, e diz sempre um pouco menos que aquilo que sabes.

- E que devo eu saber acerca do Ruarri Ruivo?

- Nada que não possa esperar até chegar o queijo e o café. Vem comigo, agora, senão o almoço arrefece e Hannah prega-nos uma boa descompostura.

O almoço foi um autêntico banquete, servido com atarefada reverencia pela própria Hannah. Havia caldo de cevada e salmão do lago, costeletas de carneiro com um bom Borgonha a acompanhar, uma tarte de framboesa com creme e uma travessa de queijo, para cortar os últimos protestos da fome. E havia tempo para o apreciar e saborear a conversa de um homem feliz consigo próprio e com a sua herança.

“... A mansão pertencia ao meu pai, que era médico como eu, só que ele nunca viajou tanto, passou a sua vida nas Lews. Trabalhou no hospital de Stornoway e lá morreu, uma manhã, durante as suas rondas, o que é uma boa maneira para uma pessoa morrer. A terra é pobre, como podes ver, só serve para os carneiros e para extracção de turfa, mas a pesca é uma das melhores da Ilha. Toda a terra boa fica para oeste, onde as areias se empilharam durante séculos e a erva da planície é doce. Lá pode-se criar gado e cultivar feno, trevo e legumes. Apanha-se uma boa pancada no Inverno, mas com o tempo bom a chuva é suave e o ar aquecido pela corrente do golfo... As pessoas? Difíceis de conhecer, a princípio, porque se escondem por detrás do Gaélico, e ávida do clã é mais fechada do que se pode imaginar. Nunca é preciso fechar um carro ou uma casa nas Ilhas, mas é preciso ter cuidado com as maneiras aos domingos, porque são todos sabatistas, e é de mau tom ser visto a pescar ou a guiar um carro, quando as pessoas honestas se encaminham para a igreja com as suas roupas de ver a Deus... Religiosos são eles, e místicos até, embora um funeral te possa chocar, porque são muito terra-a-terra em questões de morte; e antes da pílula, e mesmo depois, as raparigas chegavam, por vezes, grávidas ao casamento. O nível de cultura é elevado, porque sentem respeito por ela, e é a única maneira de conseguir um emprego no continente, quando alguém o pretende. Violência? Nenhuma. É um sítio seguro para se ser jovem, um bom lugar para se ser velho... Não obstante, há uma certa tristeza aqui, porque estamos a assistir à morte lenta de toda a cultura céltica. A morte principiou em Cullo-den e alastrou através dos decretos, mas agora há outros executores: a televisão e a rádio e o turismo, e a brutal economia do século XX. As línguas das minorias têm de morrer um dia. As minorias têm de ser absorvidas ou encolher-se cada vez mais, até estarem reduzidas a um enclave estéril. Não é uma coisa má, no final, penso eu. O homem tem de adaptar-se ou extinguir-se como os dinossauros. Mas é uma tristeza, na mesma, porque não existe uma pessoa suficientemente grande para reunir os Celtas e voltar a dar-lhes uma identidade, e, de qualquer forma, o tempo para isso já passou.

O que nos levou de volta a Ruarri Ruivo e aos seus ferozes sonhos privados. Contei a Morrison o dia que tinha passado a velejar com ele e o seu final infeliz, e falei-lhe do presente que ele me tinha dado nessa manhã. Morrison era um bom ouvinte, com um ouvido atento e um olho perspicaz, pronto ao diagnóstico. Deixou-me esgotar o assunto e depois deu-me a sua versão da história.

- Eu disse-te que o mundo era pequeno nas Lews, meu rapaz. Vou mostrar-te como realmente assim é. Ruarri Mathe-son nasceu nesta casa, exactamente no quarto onde tu estás. Era Janeiro, época das tempestades, e caiu neve como não caía havia dez anos nas Ilhas. Anne Matheson trabalhava aqui, porque o meu pai a tinha acolhido quando os pais a expulsaram de Gisla, depois de descobrirem que estava grávida, sem um homem para casar com ela. Já morreu, pobre mulher, mas nos seus tempos era a beleza local. Por isso havia suficiente malícia para tornar as coisas difíceis para ela, e para o rapaz, mais tarde. Além disso, a igreja era muito severa nesses tempos, como ainda é, embora tenha abrandado um pouco, e uma criança sem pai é uma coisa difícil de enfrentar numa terra pequena.

- Quem era o pai?

- Ela nunca disse.

- Valente mulher.

- Sim, era uma mulher de ferro e Ruarri herdou isso dela.

Cresceu rebelde, como tinha de ser, para sobreviver à sua bastardia. Quando os velhos morreram, o terreno de Gisla ficou para a mãe dele, e ajudou-a a cultivá-lo até ela morrer. Depois vendeu-o e foi-se embora. Sobre os dez anos que se seguiram, ninguém sabe coisa alguma, excepto aquilo que ele quer dizer, e que não é muito, e ele sabe ser um bom mentiroso quando quer. Há três anos regressou, com dinheiro no banco. Comprou terras em Carloway, a oeste. Pediu um empréstimo para uma traineira e pagou-o num ano. E reuniu uma pequena tripulação de rapazes que bebem bem e jogam duro, a quem chamam os buannas do Ruarri Ruivo, que é o antigo nome dos guarda-costas do senhor das Ilhas. Fá-los trabalhar muito e paga-lhes bem, e, entretanto, diverte-se pela ilha com eles.

- E porquê o interesse da alfândega e impostos de Sua Majestade?

- A isso não sei responder, e Duggie Donald não é homem para dar explicações. Mas Ruarri Matheson não é homem para perder um lucro rápido, dentro ou fora da lei.

- Convidou-me para ir a sua casa.

- Eu iria. Convida-o para cá vir, quando quiseres. É uma pessoa interessante, desde que não o deixes meter-te em sarilhos. Se te apetece um pequeno passeio, agora, apresento-te a Fergus William McCue, para pescares.

Portanto, de momento, o assunto estava encerrado; todavia, fiquei com a impressão de que Alastair Morrison me estava a dizer menos do que sabia, e que, se eu quisesse saber mais, teria de ser eu próprio a descobri-lo.

Foram dez minutos em passo estugado até à casa de Fergus William McCue, guarda de pesca e factótum da estalagem Morrison. Ouvimo-lo antes de o ver: uma voz de velho, aguda, nasalada, cantando tremulantemente a área a que se chama Thoir O'Nall em Botul, a canção da garrafa. Durante todo o tempo que passei nas Ilhas, nunca o ouvi cantar outra, e estou convencido de que era a única canção que ele conhecia. Era um verdadeiro celta moreno, de pequena estutura, como um jockey, combativo e vigoroso como um galo de combate, com uns dentes postiços que batiam uns nos outros de cada vez que ele falava. Sabe Deus que idade tinha, ou tem, porque só um raio poderia matá-lo.

Estava sentado num banco de madeira no exterior da casa, com um boné enterrado na cabeça e a gola do casaco de tweed levantada, a tapar-lhe as orelhas, enquanto preparava iscos para salmão.

Quando Alastair me apresentou, olhou-me de alto a baixo, avaliou-me e rejeitou-me com desprezo.

- Ai! O truaghan! O pobre homem! Qualquer pessoa pode ver que não serve para isto. Não tem mãos. Não tem olho. Vou fazer o trabalho todo por uma pequena parte da pescaria.

- Mas vais tentar ensiná-lo, Fergus?

- Sim, assim Deus me ajude, vou tentar. Mas por que é que mos traz, Morrison, porquê?

- Porque precisas de dinheiro, Fergus, e eu também.

- Precisamos. Pois precisamos. -Fitou-me com uns olhos inflamados e maldosos e espalhou os iscos sobre o banco. - Vamos lá a ver que aprendem na Europa. Diga-me os nomes dos iscos.

- Não destingo uns dos outros.

- Então como, que todos os santos do Céu se interponham entre nós e a tempestade!, como é que espera pescar? Estes três aqui são para trutas: Aranha Negra e Pavão, Assasino Dourado e Borboleta da Urze. A este chamamos Maria Peluda, e aquele é um Trovão e Relâmpago, ambos de tamanho dez para o salmão. Estes aqui são todos para trutas, Fantasia de Watson, Pluma Negra e Peter Ross. Fixou tudo?

- Não.

- Ele é lento a aprender, Mr. Morrison. Muito lento. Sabe lançar a linha?

- Não.

- Que é que sabe fazer, então?

- Nada. Por isso vim procurar Fergus William McCue para me ensinar.

- E quanto tempo pensa que eu vou durar? Sou um velho. Ainda morro antes que consiga pescar a sua primeira truta de meia libra.

- Se morrer, eu enterro-o... com uma garrafa de Glenlivet para afastar o frio.

- Conte com duas, uma para a cabeça e outra para os pés, e eu aceito-o.

- Ganhou um aluno. Diga as horas.

- De manhã e à tarde, quando o sol estiver fora da água. Traga o veículo que eu levo o equipamento. O crédito dele é bom, Mr. Morrison?

- Durante uma semana pelo menos, Fergus.

- Ele gosta de beber?

- Receio bem que sim.

- Deus seja louvado por estas pequenas mercês. De manhã, então, rapaz. Nove horas. E não se esqueça de trazer qualquer coisinha para afastar o frio. Bom dia para os dois.

Ainda não tínhamos dado dez passos, já ele estava outra vez entretido com os seus anzóis, a cantar a canção da garrafa às gaivotas que voavam em círculos.

- A mulher morreu-lhe antes de ele ter 30 anos - disse-me Morrison. - Criou sozinho dois filhos robustos. São três vezes maiores que ele, mas nenhum ousa erguer a voz para o velho. Deve ter mais de 70 anos, mas ainda percorre a pé dez a doze milhas por dia, e tem o coração e as artérias melhores que os teus ou os meus. Se conseguires aguentar a conversa dele, que nunca pára, ensina-te tudo o que precisares saber para pescar, e muitas coisas mais...

Estava certo de que assim seria; mas perguntava a mim mesmo como se aguentaria com a conversa dele, naquele lugar vazio e silencioso, onde os interesses de cada homem diziam respeito apenas a si próprio, onde cada pequeno conhecimento era refinado, anotado e comentado até ao mais ínfimo pormenor. Eu era inquieto por natureza. Tinha vivido até àquela altura uma vida de considerável diversidade, em contacto constante com gente de todas as raças, línguas e matérias. Agora, estava ancorado na monotonia, isolado numa cultura tão simples que me fazia sentir nu e receoso. Invejava um homem que fosse capaz de passar os seus dias a tentar os salmões com os seus iscos, e as suas noites a relatar, alegremente, as suas pescarias; sabia que não poderia sentir-me satisfeito Com uma tão divina simplicidade. Subimos de novo até ao caminho e seguimos o seu movimento serpenteante em volta das elevadas espaldas do promontório, descendo até minúsculas baías escuras e subindo de novo até à terra de turfa, com os seus córregos de água manchada e os seus pequenos lagos, escuros e ácidos, com junca e flores dos pântanos. Subindo aos pontos altos, com o kilt agitado pelo vento, os cabelos a esvoaçar, Alastair Morrison era a verdadeira imagem do velho homem do clã, um elemento condizente com o lugar e a sua história. Todavia, a concordância parecia-me excessivamente perfeita e levava-me a pensar no teor da sua vida interior. Não o teria tomado por um monge, embora tivesse, obviamente, vivido como se o fosse, durante longo tempo. Tinha-o conhecido num país onde um homem se podia dedicar à maior parte dos gostos sexuais sem censura, mas a sua reputação sempre fora de rectidão e sobriedade. Sentia curiosidade em saber onde tinha gasto toda a sua paixão e através de que batalhas adquirira o seu actual contentamento. Perguntei-lhe:

- Depois da vida que levaste, nunca te sentes solitário aqui?

- Por vezes, meu rapaz. Por vezes. Mas, no conjunto, acho que foi sensato voltar para as Ilhas.

- Que é que te decidiu?

- Nada de dramático. Compreendi, penso eu, que há uma altura em que já é tarde de mais para se voltar para casa.

- Nunca te casaste?

- Nunca. Estive apaixonado, uma vez, há muito tempo. Estraguei tudo. Depois disso, não tive coragem para amar mais. Gostava do trabalho que fazia. Era uma compensação, embora nunca preenchesse todas as minhas necessidades. No entanto, vendo bem, tive uma vida feliz, especialmente nos últimos anos.

- Sentes saudades do Oriente?

- Sinto. Mais do que esperava. Sonho muitas vezes com ele: com os Wats, com o sol nas suas torres, e os demónios com os seus peitorais de vidro e porcelana, a brilhar depois dos aguaceiros, com as barcaças da fruta nos Klongs e as lamparinas dos espíritos a flutuar rio abaixo na Festa das Luzes; com a flor de lótus nas lagoas da floresta e as papoilas vermelhas nas encostas. Acordo, por vezes, a pensar que estou a ouvir os tambores do templo e os cânticos do monges, e aquelas mulheres pequenas e bonitas a tagarelar como aves no mercado.

- Estão muito longe das Lews.

- Não tão longe como pensas, meu rapaz. O seu rosto iluminou-se com o sorriso de fauno que o fazia parecer vinte anos mais novo.

- Poucas pessoas gostam de se lembrar disso, mas esta ilha foi comprada em 1844 aos MacKenzies por cento e noventa mil libras esterlinas, dinheiro de ópio, todo ele, feito por Sir James Matheson nas costas da China. Foi o mesmo Matheson que construiu o Castelo de Stornoway, sobre barro amarelo da Ásia. Que te diz tudo isto?

- Que o tempo faz santos dos vilões. E que nunca se deve acreditar na conversa da junta de Turismo, nem em quem aluga quartos, sequer!

- Tens razão, rapaz. Sou o primeiro a concordar. Claro, existe o outro lado da vida nas Ilhas. Somos um grupo fechado e levemente incestuoso. Há guerras de famílias que duram há vinte anos. Existe superstição e embriagues e tirania doméstica e algumas devassidões muito curiosas.

- E agora temos um novo Matheson em ascensão.

- Ruarri?

- Ele mesmo. Onde pensas que ele vai acabar?

- Rico ou na cadeia. As hipóteses são iguais para ambos os lados. Gostas dele, não gostas?

- Gosto. Embora imagine que acabaria por me pegar com ele, se passássemos muito tempo juntos.

- Então talvez lhe possas prestar um serviço. És um homem viajado. Fizeste coisas que ele respeita. Ele fez um gesto que afirma que deseja a tua amizade.

- Em que tipo de serviço estás a pensar?

- Convencê-lo a voltar para o caminho da lei. Ele esteve fora muito tempo, e o gosto pela irregularidade é doce e perigoso para ele.

- Isso é pedir muito a um estranho.

- Pedi-lo-ia ao próprio Diabo, se achasse que servia de alguma coisa.

- Não posso aceitar, Alastair. Arriscaria muito, e sei muito pouco dele para avaliar quais as palavras certas.

- Então eu conto-te o resto, rapaz. E vou exigir o teu sigilo, como uma promessa entre amigos.

- Preferia que não me dissesses. Vim para aqui para estar livre. Não posso suportar novos fardos.

- Então suplico-te, rapaz. Suplico-te em nome do Deus em que acreditas, de qualquer caridade de que necessitas. Ruarri Matheson é meu filho, e mais ninguém no mundo o sabe excepto eu e tu.

Nesse momento, creio, sinceramente, que odiei Alastair Morrison. Tinha-me seduzido a percorrer duzentas milhas, com uma promessa de repouso e de cura. E agora estava a arrastar-me para uma tragédia doméstica, em que eu não queria tomar parte. Tinha confiado tanto nele, na sua calma olímpica e no seu velhaco bom humor, que aquela súbita humilhação me parecia uma traição cobarde. E a minha ira era maior porque sentia vergonha de mim mesmo e da franqueza que me tinha forçado a depender dele. Tinha vergonha da perigosa facilidade do meu relacionamento social, que passa por delicadeza, mas por vezes é uma entrega à curiosidade pessoal e profissional. Sou um ouvinte atento, o que faz de mim, com frequência, um muro de lamentações para os desesperados ou excêntricos. E agora, especialmente agora, não queria lágrimas de homens ou de mulheres. Estava farto dos lamentos do mundo e dos meus próprios. Queria aprender a rir de novo, e a amar, e a gritar que o ontem e o amanhã fossem para o inferno. Todavia, não conseguia encontrar palavras para dizer. Pude apenas articular uma pergunta cheia de ressentimento:

- Pelo amor de Deus, homem! Porquê agora, porquê eu? Ele não quis, ou não conseguiu, enfrentar-me. Ficou de pé, com o rosto voltado, um gigante derrubado num penhasco alto, olhando para o lago.

- Não sei porquê agora, rapaz. Por que é que um dique rebenta subitamente, quanto aguentou durante um século? Por que é que uma árvore tomba ou uma ave cai do céu? Porquê tu?

Isso já é mais fácil. Porque tu aceitaste a oferta de Ruarri, e isso quis dizer que estavas pronto para uma amizade. Porque tu correspondeste a algo que encontraste nele, como eu nunca pude corresponder, por causa de todos os anos de silêncio que se passaram. Pareceu-me uma oportunidade; aproveitei-a. Se foi um erro, peço desculpa.

- Foi um erro. E estaria mentir se te dissesse que não. Não te faço promessas, excepto a de manter o segredo. Não vou armar-me em missionário, mas, se surgir uma oportunidade de dizer a palavra certa, tentarei dizê-la. Não posso fazer isso sequer, se continuares a atirar-me com surpresas. Lembra-te, eu sou um estranho. Sou novo nesta maneira céltica de viver.

- Se não queres surpresas, então será melhor ouvires o resto. Depois disso, encerramos a questão para sempre.

- Conta lá, então.

Enquanto atravessámos as terras de turfa, tendo por companhia apenas os carneiros pintados e os corvos de crista, foi-me contando. Era uma história pungente, estranhamente datada dos primeiros anos da década de 30, quando a sombra da grande depressão pendia sobre a terra, quando o fosso entre as classes era um abismo que só os mais corajosos ou mais loucos conseguiam transpor. A gente do clachan, a gente da aldeia e os camponeses, constituía um mundo. A gente da mansão, do presbitério e do castelo constituía outro. Alastair Morrison era um estudante de Medicina, tinha vindo de Edimburgo passar as férias a casa, pensando, mais tarde, em Londres e numa carreira tradicional. Percorria a ilha, como qualquer jovem, para pescar a caçar veados, e mais tarde beber e dançar. Fora do seu mundo, Anne Matheson era sua companheira. Estava ele de regresso a Edimburgo havia um mês, quando ela lhe escreveu a dizer que estava grávida. O casamento estava fora de questão. O aborto era um crime com que nem se sonhava na Lews. Por isso, o assunto foi resolvido à maneira da época. O dinheiro mudou de mãos, fizeram-se acordos, prometeu-se silêncio, Alastair Morrison ficou livre para prosseguir a sua carreira e enfrentar as suas culpas da melhor maneira. O silêncio, uma vez imposto, transformou-se num modo de vida, e o custo da quebra desse silêncio seria muito pesado para todos os interessados.

- ... Mas não se pode enterrar uma estaca no coração da verdade, meu rapaz. Ela permanece ali, enterrada, à espera de um dia, do julgamento particular, e penso que o meu chegou agora. O Ruarri está perdido para mim. Gostaria de pensar que poderia ser salvo para si próprio. Coloquei-te um fardo sobre as costas, eu sei, mas sinto-me melhor por te dizer. Espero que me perdoes.

Senti-me humilde, então, porque havia mais serviços prestados na vida dele que na minha, e maior reforma por menores delitos. Quando chegámos à mansão, já éramos amigos de novo, embora eu sentisse, no meu íntimo, que nunca mais voltaria a ser livre como no dia em que passei por Glen Shiel e vi, pela primeira vez, a maravilha das montanhas sem homens.

Até mesmo a estalagem tinha mudado para mim. Mal entrei no jardim, os muros pareceram envolver-me, como os braços de uma amante não desejada, exigindo rendições e posse. A velha Hannah parecia olhar-me com uns olhos diferentes. Cacarejava à minha volta como uma mãe galinha. As almofadas tinham de ser afofadas antes de eu me sentar. A lareira tinha de ser espevitada, para que eu não me constipasse. Os scones (1) eram acabados de fazer, a manteiga acabada de bater, só para mim, e esperava que o chá estivesse a meu gosto. Não nos deixou sem uma palmada no meu ombro e umas palavras a Morrison em gaélico. Quando lhe perguntei o que queriam dizer, ele hesitou, e depois deu-me uma resposta seca, encolhendo os ombros:

- Coisa de velha. É um provérbio local “Na'mb'e andiugh an de...” Quem dera que fosse ontem, e houvesse filhos em casa!

No dia seguinte fui pescar. Ninguém pense que isto é uma declaração para ser tomada com ligeireza. Pelo contrário, é tão

 

(1) Bolos leves de farinha de trigo ou aveia cozidos em chapa de ferro. (N. da T.)

 

prenhe e inspiradora de receio e respeito como tudo no Génesis: “Fiat lux” ou “No sétimo dia Deus repousou”. Efectivamente, existe uma seita na Ilha, constituída por homens que se afirmam cristãos só porque existe a imagem de um peixe nas antigas tradições, mas que ajoelhariam da mesma maneira perante Dogon, o deus-peixe dos babilónicos, ou Orfeu, por ele ser um pescador, além de músico.

São todos fanáticos, embora de uma maneira mansa, mono-maníaca, que torna possível conviver com eles. Alguns deles atingiram um elevado grau de misticismo, de tal modo que podem aguentar muitos dias e semanas sem mulheres e com muito pouco alimento ou bebida. Fazem sempre a sua adoração em locais solitários: junto de lagoas escuras e regatos da montanha, e braços de mar ocultos. São zelosos desses santuários privados e mostram-se hostis aos intrusos. Medem a salvação pela libra de peso, e o mérito de um homem pela sua capacidade de luta com o peixe. Reconhecem-se pelos seus rostos avermelhados e pacientes, os seus olhos distantes e os iscos coloridos que espetam nos chapéus. Têm uma disciplina de silêncio e segredo, e treinam os seus neófitos com constantes admoestações e frequentes humilhações. Preferiam sujeitar-se ao martírio do que usar uma rede, e alguns deles ainda choram pelos velhos tempos em que um pescador furtivo podia ser morto com uma espingarda ou exilado para as colónias por apanhar uma truta nas águas de outra pessoa.

Fergus William McCue era membro dessa seita e iniciado do seu grau mais elevado. Era um génio com a cana de pesca e um tirano para os seu noviços, dos quais eu era, segundo me disse várias vezes, o mais lerdo e o menos dotado. Se eu conseguisse apanhar uma truta minúscula durante toda a estação” ] seria um milagre, pelo qual deveria cair de joelhos e agradecer ao bom Deus.

Fez-me percorrer cinco milhas com ele no carro, depois obrigou-me a caminhar mais uma milha sobre turfa, até um lochan privado, onde ninguém poderia testemunhar as tolices que eu ia cometer. Bebeu um longo trago de uísque para molhar a goela e se preparar para aquela provação, e depois fez-me uma prelecção de meia hora sobre a cana e o carreto e as suas peças respectivas. Falou de linhas, preparadas e não preparadas, niveladas e enceradas e duplamente enceradas. Discursou sobre iscos molhados e secos, sobre o modo de laçar e arremessar, e de “pescar quando o peixe vinha à surperfície” e de “procurar na água”. Depois, quando achou que eu estava suficientemente confundido, meteu-me uma cana nas mãos e ordenou-me que fizesse o meu primeiro lançamento.

Desastre imediato! A linha flutuou como uma teia de aranha e emaranhou-se na junca. Fergus William McCue abanou a cabeça tristemente, bebeu outra dose de uísque para se acalmar e depois começou a insultar-me furiosamente. Eu tinha um pulso, não tinha? Não era um daqueles malditos robots, que se movem aos esticões e sacudidelas por causa do mecanismo que têm dentro, pois não? Não seria melhor tentar outra vez e mostrar um pouco de respeito pelos peixes, que eram criaturas inteligentes e respeitavam um pescador inteligente? Tentei uma vez mais, e outra, e outra ainda, sempre com Fergus a resmungar e a lamentar-se nas minhas costas, até conseguir fazer um lançamento mais ou menos respeitável; mas nunca subia um peixe e o nível do uísque, pelo contrário, descia cada vez mais. Finalmente, o mestre pegou na cana e, num quarto de hora, apanhou um par de belos peixes escuros, nenhum deles com menos de uma libra. Assim humilhado, eu estava pronto para outra prelecção.

- É uma arte de paciência, meu rapaz, como viu. É como pintar um quadro ou esculpir um anjo num bocado de mármore. É uma arte das mãos, mas também do cérebro, porque temos de saber o que o peixe está a fazer enquanto estamos a dar tratos à cabeça para o apanhar. E mesmo depois de o ter fisgado, é preciso saber quando ele pode fugir e quando se deve começar a enrolar o carreto. Uma força de quatro libras é tudo o que temos na linha, e não é muito, contra um peixe grande com um anzol na boca, a fugir pelo lago fora. Não há tempo para filosofar ou escrever poemas mentalmente, nem para sonhar com as raparigas que não chegou a beijar. Quer experimentar outra vez, antes que o sol esteja em cima da água?

Eu queria e experimentei, e aconteceu o primeiro pequeno milagre. Apanhei um e fiquei tão excitado que me esqueci de travar o carreto, de modo que a linha saltou mal ele dasatou a fugir, e perdi o peixe, o isco e a linha, tudo ao mesmo tempo. Fergus William McCue abandonou-se a um desespero bíblico. Se o tweed das Ilhas se pudesse rasgar, ele teria rasgado as suas roupas. Se tivéssemos uma fogueira, teria derramado cinzas sobre a sua cabeça e a minha. Nada o conseguiu acalmar, a não ser um grande trago de uísque e um relutante gole para mim, para firmar a mão e aclarar as brumas de meu cérebro confuso de Sassenach. Se foi por causa do uísque ou de uma temeridade nascida do desespero, não sei, mas na vez seguinte tive sorte. Fisguei, dei largas e finalmente trouxe para terra uma modesta truta de meia libra. Parecia pequena e insignificante, ao lado dos peixes de Fergus, mas senti-me tão orgulhoso dela como se fosse uma baleia branca. Até mesmo o relutante elogio soou como música aos meus ouvidos:

- Não está mal de todo. Para um principiante, claro. No entanto, se fosse maior, não tinha conseguido segurá-la. Tem uma mão de lavrador. Falta-lhe delicadeza. Mas, com tempo e paciência da minha parte, há uma pequena esperança.

- É um homem duro, Fergus.

- Sim, Sou mesmo. Caso contrário, como é que conseguia aguentar todos os idiotas que vêm ter comigo? O senhor já é bastante mau, mas Deus me livre dos piores de todos. No ano passado, pode-se lá acreditar?, foi uma mulher, que o próprio Mr. Morrison me veio trazer. Era uma criatura grande e forte, com uma garupa que lembrava um Clydesdale e um riso capaz de assustar as gralhas do bosque. Ansiava por pescar um salmão, disse-me ela; mas era por um homem que ela ansiava, e pelo Alastair Morrison, se conseguisse fisgá-lo. Ao fim de uma semana devolvi-a ao Morrison e disse-lhe que podia casar-se com ela ou matá-la, mas nunca na vida dela conseguiria ser pescadora. Coitado, perdeu uma hóspede, mas teria perdido um guarda se ela tivesse ficado. Por aí já pode ver o que eu tenho sofrido.

O uísque estava a torná-lo tagarela, mas gostei de o deixar falar. Estava tão cheio de argumentações, tão farto de controvérsias e opiniões em tropel, que a sua simplicidade e a sua malícia inocente se tornavam refrescantes. Estava a reaprender, também, uma das primitivas artes da sobrevivência e sentia-se dignificado pela experiência. Era bom ser aluno de novo, era bom ser ignorante, era bom sentir-me ansioso pela mais pequena realização. Era como beber água da fonte depois de um excesso de vinho, como comer uma maçã acabada de arrancar da árvore. Senti uma súbita e pungente saudade de toda a inocência que tinha perdido durante a vida. Todavia, não tinha perdido o formigueiro da curiosidade ou o hábito da investigação sinuosa; por isso, enquanto sondava a água em busca de outro peixe, sondei também o velho Fergus, buscando indicações e chaves da vida secreta da ilha.

- Quanto aos Morrison, Fergus. São um nome antigo nestas partes?

- São, sim, rapaz. Antigo e respeitado, embora nem sempre tão respeitáveis como agora são. Durante muito tempo, os Morrison foram “brieves” de Lewis. E se não sabe o que é um “brieve”, eu digo-lhe. Era um juiz da vida ou da morte no seu território. Os filhos sucediam aos pais, e cada um deles jurava ser tão igual para todos como as espinhas do arenque dos dois lados. Nem sempre cumpriam a jura. Porque houve o Hu-cheon Morrison, que fez um filho à mulher do MacLeod de Lewis, e os irmãos Allan e Neill, cujas cabeças foram levadas num saco para Edimburgo. E houve John o Depositário, que foi um bardo, e Roderick, que foi harpista, e um filho bastardo que foi chamado o lança-fogo por causa do seu hábito de deitar fogo às medas de feno das outras pessoas. Houve uma linha completa de pastores no clã, e alguns foram bons médicos, como Hugh, que foi o pai deste. Mas, ao que parece, os médicos vão acabar por aqui, a menos que o Alastair faça um começo tardio, o que eu duvido muito.

- Eu pensava que ele tinha montes de mulheres à volta dele.

- Teve, pois. E ainda gosta de olhar para uma rapariguinha. Pelo menos gostava, antes de se tornar religioso e ir servir os pagãos. Mas ainda não foi fisgado. E da maneira como está a pegar na cana, também não vai conseguir fisgar nada! Experimente atirar outra vez, mesmo no limite da sombra... agora o senhor, é casado?

- Actualmente não. Já fui.

- Anda outra vez à procura?

- Nesta viagem, não, Fergus.

- Mas não se importava nada se aparecesse uma rapariguinha jeitosa, pois não?

- Tem alguém em vista?

- Para si não, rapaz. Tenho dois filhos meus, e andam a fazer cabriolas com demasiada liberdade pelos pastos locais. Mas deve ir ter com a velha Hannah, se quiser uma lista das possibilidades. Ela conhece-as a todas, sabe se são férteis, se sabem cozinhar e tomar conta da casa, e quanto dinheiro podem receber de dote. Tenha uma conversinha com ela, antes de começar à procura.

- Disseram-me que ela tinha uma segunda visão. Usa-a também para fazer casamentos?

- E tem. Olhe que tem. Soube da morte da minha mulher um ano antes de acontecer. Previu o regresso de Alastair Morrison antes de ele próprio saber que vinha. Quanto ao seu papel de casamenteira, ela faz-lhe um aviso se gostar de si, e se não gostar...

Não ouvi o resto, porque nesse momento senti um peixe picar e fisguei-o. Fergus pôs-se imediatamente de pé, dançando à minha volta, gritando-me instruções em escocês e gaélico. Se eu perdesse aquele, ele nunca me perdoaria. E eu também nunca me perdoaria. Para o diabo a segunda visão e toda a charlatanice céltica. Tinha um peixe no anzol e sentia-o lutar e o diabo me levasse se eu ia perdê-lo. Quase o fiz por duas vezes, porque enrolei o carreto em excessiva ansiedade e avaliei mal a corrida dele, mas de ambas as vezes a linha aguentou, e finalmente recolhi-o na rede e pousei-o em terra, uma libra e meia de graça salvadora, de que qualquer homem se orgulharia. Comecei a gritar e a rir e executei uma dança selvagem à beira do lago. Fergus, um professor sensato, decidiu que tínhamos ganho o direito a uma bebida. Tomámos uma e depois outra. Fizemos um brinde à nossa nobre pescaria. Bebemos ainda um copo para o caminho, e depois começámos a atravessar a terra de turfa, cantando Thoira'N all am Botull num dueto discordante.

Quando regressei à estalagem, sentia-me excitado como um garoto de escola. Alastair Morrison estava fechado no seu escritório, pelo que fui direito à cozinha, mostrar a minha pescaria a Hannah, que, enfarinhada até aos cotovelos, amassava uma grande tarte para a refeição da noite. Louvou-me com entusiasmo, como se eu tivesse apanhado o próprio rei dos Peixes. Depois admoestou-me, com aquele seu somso invernal:

- Se é meia garrafa de cada vez que sair com aquele pati-fe do McCrue, vai estar num estado desgraçado quando se for embora. Precisa de um duche de água fria e de passear pelo jardim, se não ainda fica a dormir por cima do almoço.

- Hannah, não ralhe comigo. Hoje sou um homem iehz. Sou um pescador e não sabia que o era.

- Mas está longe de estar sóbrio e devia ter vergonha.

- Olhe para os meus olhos, Hannah, e diga-me se nao vê um homem feliz.

- Já olhei. Vá tratar de si.

- Mas ainda não me disse o que viu.

Era uma brincadeira gratuita, e fui suficientemente tolo em persistir nela. Subitamente, ela deixou de sorrir. Os seus olhos escuros enevoaram-se, como se uma membrana tivesse descido sobre a íris. O seu corpo tornou-se rígido e estendeu uma mão para tocar no bolso do meu casaco. Quando falou, a sua voz tinha uma qualidade baça, monótona, como se estivesse a recitar uma rima dificilmente aprendida de cor.

- Há luz na vida e escuridão na partida. Há vida desejada e vida recusada. Há sono e morte e um acordar depois.

Então, tão abruptamente como tinha começado, a catalepsia terminou. A sua mão caiu ao lado do corpo, ela abanou a cabeça como uma pessoa sonâmbula que adquire de súbito consciência total. Dirigiu-me um olhar surpreendido e depois despachou-me sumariamente.

- E agora fora da minha cozinha. Falta meia hora Para o almoço e não tenho tempo para conversas. , ,

O mais estranho de tudo isto é que eu não fiquei perturbado. Aceitei aquele breve fenómeno como se fosse a coisa mais normal do mundo. Porquê? Verdadeiramente, não sei.

Tinha a a bebida dentro de mim, como dizem os celtas. Mas não estava, de forma alguma, bêbado. Já tinha ouvido falar das pessoas que fazem previsões, pelos meus antepassados, conhecia o antigo conselho de que quem tinha esse dom não devia casar-se, para não o transmitir, e com ele a tristeza que o acompanhava. Mas testemunhar a previsão e ficar indiferente, não ser crente nem descrente, nem sequer me sentir curioso - isso não consigo ainda hoje compreender.

Só uma coisa posso afirmar com segurança: a partir daquele precioso momento, a realidade tornou-se desfocada para mim, e comecei a viver precária mas apaixonadamente numa divisão de sonho. Talvez o tivesse feito de qualquer modo, mas o momento foi crítico, catalítico. Eu era um homem em fuga: do passado, de um futuro ameaçador, de um eu que tinha achado, súbita e desastrosamente, incompleto e desequilibrado. Procurava uma renovação impossível. Se não conseguisse encontrá-la, tornar-me-ia mitómano e criá-la-ia eu próprio. Abrir-me-ia a todas as impressões, a todas as experiências. Apoderar-me-ia de todos os símbolos que aparecessem no caminho e adoptá-los-ia a uma cosmognonia de ilusões privadas - não compreendia como estava doente, como era vulnerável na minha convalescença imaginada, como era ainda perigoso para todos os que contactassem comigo. Ainda hoje me sinto culpado por isso, tanto mais que, à minha chegada àquele pequeno e estranho local, me entreguei imediatamente à ilusão da inocência. Tinha mudado de roupa; julguei que eu próprio tinha mudado. No final do jantar de Alastair Morrison, a ilusão era completa.

 

A meio da tarde o tempo tinha mudado, e tinha começado a cair uma morrinha suave e contínua que vinha do oceano a ocidente. As nuvens rolavam baixas sobre as colinas, criando uma obscuridade triste, no meio da qual os carneiros pintados se deslocavam, perdidos e queixosos, enquanto as gaivotas se recolhiam entre os sulcos das turfeiras nuas. O fumo pairava pesadamente em volta das chaminés, e os únicos sons eram o lento marulhar do mar, a queda da água que escorria dos beirais e um ou outro balido ocasional dos rebanhos tresmalhados.

Morrison estava ansioso em relação a Kathleen McNeil que estava a viver na casa do médico na extremidade sul de Harris. Teria de percorrer, de carro, quarenta milhas de estradas montanhosas e depois regressar já tarde. Por isso ficou combinado que eu iria buscá-la. Ela passaria a noite na estalagem, e, de manhã, eu iria levá-la. A central passaria todas as suas chamadas à enfermeira local, que telefonaria para a estalagem, em caso de emergência. Eu tinha de partir às quatro para estar de volta às sete, porque as estradas eram tortuosas e cheias de surpresas: lombas e buracos e bermas xistosas, e estreitos espaços para peões, e carneiros que atravessavam, e névoa nos desfiladeiros do terreno montanhoso.

Recordo-me da viagem tão nitidamente como se fosse ontem: a monotonia da chuva fina, as colinas escuras e a água ainda mais escura, o zumbido dos limpa-vidros sobre o pára-brisas embaciado, os salpicos dos pneus sobre poças e panelas, os farrapos de nuvens pendentes do cume dos montes as raras luzes amareladas nas casas. Recordo-me de que cantei para espantar a melancolia e tentei fazer rimas com os nomes dos locais: Aglmachan, Ardhasig, e Borvemore e Obbe. Recordo-me da sensação de alívio e de leve triunfo quando avistei a antiga igreja de Saint Clement em Rodei, e cheguei, alguns minutos depois, a casa de Kathleen McNeil.

Tinha chegado cedo, disse-me ela. Tinha-se demorado por causa de um caso difícil. Ainda vestia roupas de trabalho. Importar-me-ia de tomar uma bebida enquanto ela tomava um banho e mudava de roupa? Não foi uma recepção muito calorosa, e, estupidamente, senti-me irritado. Só então notei que ela tinha estado a chorar. Quando serviu as bebidas, a sua mão tremia tanto que a garrafa bateu no copo e parte da bebida se derramou sobre a bandeja de prata. Perguntei-lhe o que tinha sucedido.

Ficou rígida, e tentou cortar a conversa com um resumo breve, profissional.

- Perdi uma criança hoje. Nasceu de nádegas, com o cordão em volta do pescoço. Não consegui reanimá-la.

- Sinto muito.

- Acontece. Mas foi o primeiro parto na família e eu sou uma estranha.

- Não pode culpar-se por isso.

- Eu não. Mas eles culpam-me. E vai ser difícil viver com essa culpa.

- Eles hão-de fazer outro filho e esquecem-se deste.

- Talvez. Mas há tanta promessa num nascimento, aqui. Tanta esperança contra o mar e a solidão dos montes.

Tirei-lhe o copo da mão e pousei-o sobre a mesa. Pousei-lhe as mãos nos ombros e abracei-a, enquanto ela se acalmava.

- As montanhas ainda cá estarão e as crianças também, quando se tiver ido embora. Se quiser chorar, chore agora. Depois suba e mude de roupa e arranje-se, como uma menina bonita que vai a um jantar.

- Não quero compaixão.

- Então não a vai ter. Mas a viagem até à estalagem é longa e eu gostava de ter uma companhia alegre. De acordo?

- De acordo.

Dirigiu-me um sorriso inseguro e depois foi-se embora. Sentei-me junto do fogo de turfa, a beberricar o meu uísque, e pensei na tristeza da vida nas Ilhas Felizes. Ali tudo era imediato, exposto e pujante. Não havia multidões para amortecer o impacte dos acontecimentos, nem espectáculos ambulantes para distrair o espírito sofredor ou timorato. O nascimento, a doença e a morte ocorriam no mesmo leito. A comida vinha da horta para a mesa. Homem e animal eram fustigados pela mesma tempestade, reunidos pelo mesmo sol escasso. O enlutado e o folgazão percorriam a mesma estrada acidentada em direcção ao ponto de encontro comum entre as montanhas e o mar.

Mas também havia que reconhecer uma alegria. Ali se reencenava todos os dias o mistério da irmandade e da dependência. Ninguém sofria fome sem uma mão que o alimentasse. Ninguém era velho de mais para ser lembrado. A criança alguma faltava uma família que a acarinhasse. Nenhum homem morria sem que fosse derramada uma lágrima pelo seu passamento. A turfa do Inverno era recolhida por todos em comum e empilhada por mãos amigas para os idosos e os doentes. O salva-vidas estava ao serviço de cada marinheiro, e não havia uma casa tão pobre que a um estranho não pudesse oferecer um strupach: comida e bebida e uma boa palavra para o caminho.

No mundo de onde eu tinha fugido, pregava-se a violência como tratamento cirúrgico para as doenças da sociedade. As crianças matavam-se com heroína. Os amantes juvenis transmitiam uns aos outros gonorreia. Os diplomatas negociavam armas. Os revolucionários faziam reféns dos inocentes. Os cidadãos mandavam a polícia armada contra os estudantes. Os estudantes queimavam bibliotecas como os tiranos da Inquisição. Os negros lutavam conta os brancos. Os massacres eram planeados por computador, e as cidades-formigueiros devoravam os doces campos. Apesar de toda a solidão deste lugar, apesar de todas as ameaças da terra e dos elementos, sentia-me feliz por ali estar. Senti então que poderia sentir-me feliz por ficar. Quando Kathleen McNeil desceu as escadas, tive a certeza disso.

Mesmo agora, um século mais velho, com todas as minhas loucuras por recordação, não sinto vergonha pela confusão. Apaixonei-me por ela a partir desse momento. Desejava-a de todas as maneiras por que um homem pode desejar uma mulher, apaixonadamente, urgentemente, com o corpo e com o espírito. Riam-se, se quiserem. Foi uma coisa tão súbita, que não posso censurá-los. Chamem-lhe o que quiserem -ocoup de foudre, loucura de uma noite de Verão-aconteceu. Surgiu. Não posso explicá-lo agora melhor do que então. Fora de moda? Inadequado? Juvenil? Ridículo? Tudo isso. Mas ainda estou a vê-la, com os cabelos escuros presos no alto da cabeça, as faces brilhantes, rendas no decote e nos punhos. E vejo-me a olhá-la, sabendo, com absoluta convicção, que aquela era a minha mulher, aquela era a mulher por quem eu poderia mover montanhas e enfrentar todos os adversários.

Todavia, primeiro teria de a conquistar, e soube, desde logo, que o jogo não iria ser fácil. Não se tratava de uma virgem inocente, nem tão pouco de uma matrona leviana. E ela conhecia o jogo, e sabia jogá-lo destramente e com encanto. Sentir-se-ia ofendida perante um admirador desajeitado ou incompetente. Chegado o momento da confissão, seria rápida - a aceitar ou a recusar categoricamente. Todavia, planear o momento certo era minha obrigação, e eu, que tinha conhecido mais de uma mulher em toda a minha vida, senti, subitamente, que duvidava das minhas capacidades. Tive uma visão de mim mesmo, o pescador ridículo, a emaranhar a linha nas juncas enquanto todas as trutas do lago se riam dele.

- Alguma coisa divertida?-perguntou Kathleen McNeil.

- Sim. Retiro-a de um carro amolgado em Glengarry. Mantivemo-nos tão distantes como a terra da lua enquanto atravessávamos toda a Ilha de Skye. E agora vamos jantar juntos.

- Não lhe agrada a ideia?

- Pelo contrário. Estou a tentar adivinhar o que vai dizer quando eu lhe pedir que saia de novo comigo.

- Por que não pergunta logo, para saber?

- Minha senhora, gostaria de, num belo dia soalheiro e sorridente, quando todos os seus doentes estiverem a melhorar, vir passear comigo de caro por estas Ilhas?

- Muito obrigada, meu caro senhor. Ficaria encantada.

- Fez de mim um homem feliz. E agora toca a andar daqui para fora, se não chegamos tarde para o jantar.

Ainda estava a chover e o crepúsculo era sombrio, quando começámos a percorrer a estreita pista entre as montanhas e os penhascos da costa oriental. Uma derrapagem, um movimento incauto do cotovelo poderia fazer-nos cair de uma altura de sessenta metros, para dentro da água negra. Era uma estrada solitária, assombrada pelas memórias de guerras entre os clãs e antigos actos de pirataria dos amargos tempos das Cercas. Ambos sentíamos a presença dos fantasmas e o perigo dos altos penhascos, e Kathleen McNeil chegou-se para mim, de tal modo que podia aspirar o seu perfume e sentir o calor do seu corpo contra o meu em cada curva. Houve um mau momento em que uma ovelha tresmalhada saltou para o caminho, à nossa frente. Travei com tanta força que resvalámos perigosamente para a beira do caminho. Por momentos pensei que estávamos perdidos, mas um pedregulho saliente empurrou-nos de novo para o caminho, e salvámo-nos. O meu coração batia violentamente e sentia as palmas das mãos húmidas.

Kathleen McNeil ficou rígida, olhando através do pára-brisas por onde a água escorria. Quando falou, foi como se falasse consigo própria.

- É sempre assim.

- O quê?

- O momento de luz quando estamos a um segundo da escuridão total.

- Pelo amor de Deus! Que pensamento tão alegre!

- De uma estranha maneira, assim é. Não há medo, nem pena. Apenas uma espécie de espanto.

- Peço desculpa, Kathleen McNeil, mas eu estava morto de medo. E ainda temos mais dez milhas do raio desta estrada!

Ela riu-se, então, e pousou uma mão fresca na minha face.

- Então por que não encosta na próxima reentrância e espera até a sua pulsação voltar à normalidade?

- Por outro lado, poderia ser muito mais acima. E talvez não continuássemos o nosso caminho.

- Isso é um aviso?

- Chame-lhe uma confissão, se prefere.

- Por favor - disse Kathleen McNeil em voz baixa -, por favor, ainda não... pelo menos durante bastante tempo.

- Só quero que saiba.

- Eu sei, mas não posso entrar em brincadeiras de crianças de novo.

- Nem eu. Portanto, sejamos amigos, Kathleen oge, e veremos onde isso nos leva, hein?

Quando chegámos à estalagem, os outros convidados já tinham chegado. Eram os Macphails, marido e mulher, ele o novo pastor da Igreja Livre, ela uma noiva com olhos de corça, ansiosa por agradar e cheia de pequenos embaraços. Havia Andrew Ferguson, da guarda costeira, um homem corpulento, semelhante a um barril, com uma barba grisalha em forma de pá e sobrancelhas hirsutas, e que todo ele respirava Marinha. Com ele tinha vindo Barbara Stewart, professora primária de Dumfries, uma ruiva atrevida, de linguagem apimentada, com um sentido de humor ligeiramente escandaloso.

Alastair Morrison apresentou-nos, com uma vénia, como “um bardo e uma endireita, não casados, não comprometidos, ambos espíritos livres, uma escocesa o outro um Sassenach, mas bastante simpático, apesar disso”. Depois meteu-nos uísque nas mãos e baralhou-nos a todos como um cozinheiro a mexer um pudim de ameixas. Durante os primeiros minutos encontrei-me amarrado ao pastor Macphail. Era alto, avermelhado e seguro de si, mas tão jovem que tive de perguntar-lhe o que o tinha levado para a Igreja Livre, esse último baluarte de dissenção na Escócia.

Eram um minúsculo grupo de cristãos. A sua teologia era primitiva, o seu ritual austero, a sua moral rígida. Não tinham outros hinos que não os salmos. Não era permitida música de órgão nas suas assembleias. Aos domingos não podiam cozinhar nem consumir álcool. Os estores eram baixados, para afastar as visitas, e havia quem discordasse da cópula-tanto dos homens como dos animais de lavoura - considerando-a uma quebra do repouso do Sabbath. Todavia, a sua implantação nas Ilhas do Norte era forte e determinada.

Macphail explicou-me com fervor evangélico:

- ... Nós somos crentes, meu amigo, nós não duvidamos. Preocupa-nos viver o Evangelho, não debatê-lo. Apresentamo-nos, simples, diante de Deus, irmãos livres de uma assembleia livre. Consagramos os Sabbath, porque é isso que mandam as Escrituras. O nosso trabalho é duro, as nossas vidas simples. Precisamos de uma fé simples que nos sustenha.

- Bum! Bum! Bum!-interrompeu Barbara Stewart, troçando. - Isso é apenas metade da história, Jamie Macphail, e sabe-o bem. Não passam de um bando de fundamentalistas retrógrados. E tiranos, também, quando têm oportunidade de o ser.

- Isso não é justo, Barbara. Severos, podemos ser, mas não tiranos.

- Não? Se eu quiser guiar o meu carro num domingo, correm comigo da estrada. Se eu quiser tomar uma bebida... que tomo mesmo... sou uma mulher perdida. Mandamentos das Escrituras? Escolhem e usam aqueles que lhes convém. Suponhamos que eu queria ser como o rei David e dançar nua diante da Arca? Deixavam-me fazê-lo?

- Se perdesse algum peso, talvez deixassem. - Com uma gargalhada de Andrew Ferguson- - Mesmo assim, o clima não é muito apropriado para isso- Olha quem fala de peso, Andy! Olha para ti. Estás conservado em rum e uísque de malte da Marinha e passas oito horas por dia sentado em cima do traseiro numa torre de vigia.

- Sou o espírito guardião dos marinheiros, Babs! Velo noite e dia pelos mares agitados, na esperança de arrancar homens à morte. Tenho um recorte de jornal que prova isso. E escrito por uma mulher, por acaso.

- E quanto lhe pagaste por essas linhas de prosa?

- Paguei-lhe com atenções. Mais do que consigo de ti, minha filha.

O pastor Macphail voltou-se para mim com um sorriso.

- Já pode ver para que precisam da igreja nestas paragens, com tirania e tudo. Sem ela, devoravam-se uns aos outros numa semana. Um dos meus professores costumava dizer que o Reino do Gael era o manicómio privado de Deus, pelo que tinha de conceder um amor especial aos internados.

- Amor entre os Gaélicos! - A Stewart não era mulher para desistir. - Aqui temos um tema para o nosso bardo! Cena um. O rapaz bebe até ficar impotente, numpub, num sábado à noite, enquanto a rapariga fica em casa a fazer a comida para o domingo. Cena Dois. As onze horas ele bate à porta, bêbado como Cloé, com uma garrafa de uísque na algibeira. Afastam-se noite fora para dançar num celeiro. Cena Três. Seis da manhã. Estão cada um na sua cama, a curtir uma ressaca, para poderem ir à igreja às onze. Cena Quatro. A rapariga fica grávida no banco de trás de um carro. Casam-se e vivem felizes para sempre numa casinha de pedra no meio de nenhures. Amen.

Era uma actriz nata e fez uma tal comédia desta descrição que até mesmo a jovem noiva de olhos de corça desatou a rir. Alastair Morrison abraçou-a e disse que a estimava acima de todas as mulheres do mundo.

- E mais que isso, ela é a melhor cantora de áreas gaélicas deste lado de Inverness. E isso, só por si, é uma loucura preciosa. Sejam simpáticos para ela, se querem que cante para nós depois do jantar. E agora venham todos, se não ainda tenho de ouvir de Hannah!

Devo dizer-lhes agora que foi nesta noite que fiquei a conhecer o significado do termo ceilidh. Se o procurarmos num dicionário de gaélico - que é um livro difícil de encontrar neste mundo complicado - descobriremos que significa visita ou estada. E a estada que lhe dá a verdadeira cor. O viajante chega, vindo da terra sombria onde não há abrigo para homem ou animal. É recebido com honras porque, num lugar onde os homens são escassos, cada ser humano é precioso. Nos tempos antigos das Ilhas, o bispo Knox teve de promulgar uma lei contra os “sorners”: indivíduos preguiçosos que se deslocavam de casa em casa, engordando com a hospitalidade dos pobres. O viajante é imediatamente instalado na segurança do candeeiro e da lareira e fragrâncias culinárias, e respeito pela pessoa que se presume que seja. Esta é a dádiva da casa para ele. Mas também deverá fazer a sua dádiva, por mais insignificante que seja. Se tiver novidades, deverá contá-las. Se tiver música ou uma história ou qualquer conhecimento especial, deverá transmiti-los. Se nada mais tiver além de opiniões, deverá manifestá-las para discussão, porque a pessoa que permanece em silêncio é uma praga na árvore da humanidade. Se são dois viajantes e necessitam de privacidade, um ceilidh não é lugar para a encontrar, porque o seu namoro e o seu leito ficarão sujeitos a comentários e conselhos, e até à receita de ervas e encantamentos, se deles precisarem. Se levar consigo a tristeza, deverá deixá-la à porta. Se estiver bêbado, deverá mostrar-se alegre e não beligerante. Se vir outra pessoa bêbada, deverá encaminhá-la para a segurança, para que não morra gelada numa estrada solitária. O escândalo deverá ser exposto, mas poderá apanhá-lo noutra casa. Se houver um gaiteiro ou um rabequista, poderá dançar, e deverá mesmo fa-zê-lo, porque dançar é outra forma de dádiva que alegra o olhar e adoça o sangue.

O ceilidh de Alastair Morrison foi exactamente assim. Os seus convidados pareciam, à primeira vista, um estranho conjunto; contudo, no final da sopa, já conversávamos animadamente de uma grande variedade de assuntos: moral e medicina, a presença russa no Atlântico, a base de mísseis na Uist do Sul, a ortografia gaélica, as loucuras do Fundo de Turismo, os problemas no Ulster e a última história da diáspora das ilhas - um sujeito de Harris que estava a tentar recrutar mercenários para a guerra do Cambodja.

Alastair Morrison dirigia a encenação com um opulento bom humor. Era o mandante e desempenhava o seu papel com elegância e encanto. Era generoso com o vinho e consigo próprio. Fazia extravagantemente a corte às mulheres e mostrava um respeito irónico pelos homens. As pessoas podiam ser iguais em Londres ou em Nova Iorque: mas ali, nas Ilhas, o sangue ainda contava, e Morrison o Magistrado, com poder de vida ou de morte, estava apenas a duas páginas de história. O seu desempenho fazia vir ao de cima o que os convidados tinham de melhor. Havia muito tempo que eu não ouvia contar histórias de maneira tão viva, nem debates tão animados e tão cheios de senso comum. Na Irlanda, as pessoas sabiam ser eloquentes sobre coisas de nada. Em Inglaterra, podiam permanecer calados sobre o fim do mundo. A mesa de Morrison, cada convidado tinha de dizer o que pensava, só para mostrar que pensava.

Apesar de todo o fascínio e brilhantismo, eu não conseguia afastar os olhos de Kathleen McNeil. Estava voltado do avesso e caído por ela, mas apercebia-me, com uma ponta de ciúme, que quase nada sabia a seu respeito. Era escocesa; era médica; era uma péssima motorista; era capaz de chorar pela morte de uma criança; tinha momentos predestinados em que a fímbria da vida tocava a bainha da morte. E era tudo. Teria sido casada? Supunha que não, mas era apenas uma suposição. Teria um amante, agora ou então? Não mo tinha dito. Que faria reagir o seu coração, excitar o seu corpo? Não o sabia. Por isso observei-a, suspenso de cada palavra e de cada gesto dela, cobri-a de perguntas, exibi-me como um pavão para atrair o seu interesse. Todas as suas respostas me encantaram. Era uma conversadora inteligente e uma boa ouvinte. Ria-se facilmente e os seus julgamentos eram tolerantes e generosos. Havia também sugestões de uma mulher misteriosa; uma surpresa polidamente velada, uma tristeza rapidamente reprimida, uma impaciência disfarçada com uma gargalhada. Planeei, na minha fantasia, o momento privado em que ela deixaria cair todas as suas defesas e diria: “Estou farta. Contigo não fingirei mais. Eis quem e o que sou. Compreende-me e sê terno.”

Aproximámo-nos do momento em que, depois do jantar, Alastair Morrison desembrulhou um belo violino, que os anos haviam tornado lustroso, e começou a acompanhar as canções de Barbara Stewart. Apesar da sua língua afiada, ela possuía uma voz alta e pura que se erguia sem esforço, como o voo de uma ave. As baladas que cantou, não as ouvia desde a infância: Galeria de Kishmul, a Balada de Amor de Erksay e a de Mingulay, que é ainda mais doce, o Lamento de Flora Macdo-nald, e os cânticos das leiteiras nos abrigos de Verão. Elevaram-nos aos tempos sonhados do passado, de modo que parecíamos crianças a escutar o mesmo conto de fadas, comovidos por antigos desgostos, felizes com as pequenas alegrias de uma vida passada. Por momentos não sentimos vergonha das nossas emoções, reconhecendo-as perante os outros, com acenos da cabeça e sorrisos, batendo palmas em acompanhamento de um ritmo conhecido. A musica era um fio dourado que nos ligava a todos, uma pequena tribo num lugar solitário, com a chuva a cair lá fora e o mar a separar-nos do comércio de um mundo violento. Depois cantámos juntos, cada um de nós relembrando uma área, até ficarmos todos afogueados e sem fôlego, e serem horas de um copo para o caminho de regresso.

Feitas as últimas despedidas, sentámo-nos os três junto da lareira e descontraímo-nos no rescaldo do ceilidh.

Kathleen McNeil expressou os meus próprios pensamentos.

- Esquecemo-nos do que era divertirmo-nos desta maneira. É tudo tão simples. Mas nós esquecemo-nos. Gostaria de saber porquê.

- Talvez - disse Alastair Morrison - talvez porque há sempre tanta maldita coisa para nos lembrarmos, como impostos e lucros e bens, e guerras e revoluções, e todos os vendedores do planeta a grasnar aos nossos ouvidos a todas as horas do dia. O mundo está agrilhoado a nós com uma corrente e uma bola. Nunca conseguimos livrar-nos dele durante tempo suficiente para erguermos a cabeça ou o coração.

- Mas não podemos continuar assim. Metade dos pacientes que vêm ao meu consultório estão doentes porque estão fartos do mundo e de tudo o que ele exige da sua fragilidade.

- E que lhes receita, Kathleen oge ?-Utilizei a palavra carinhosa inconscientemente, e Morrison dirigiu-me um súbito olhar surpreendido.

Kathleen McNeil não deu sinais de ter reparado. Respondeu com um encolher de ombros e meio sorriso.

- Um pouco de amor, para reduzir o fardo. Evidentemente, isso não se pode comprar na farmácia, e, de qualquer forma, não existe em quantidade suficiente; por isso, utilizamos sedativos e tranquilizantes.

- Contudo, esta noite houve amor aqui. As pessoas deram algo de si próprias.

- É diferente - disse Alastair Morrison. - Nas Ilhas, somos forçados a depender uns dos outros. Nas cidades, temos de competir. A qualidade de vida está alterada. A qualidade das pessoas também. Mas chega de ontem para mim. Estou aqui, e estou feliz e estou pronto para ir dormir. Por isso, desejo a ambos muito boa noite. Durmam bem.

Nós não estávamos com vontade de dormir. Por isso ficámos ali sentados, descuidados, junto à lareira que começava a apagar-se, e conversámos.

Kathleen McNeil parecia surprendida com o nosso anfitrião.

- Ele pode realmente retirar-se desta maneira? Pode fechar a porta ao dia de ontem e esquecê-lo?

- Esquecê-lo? Não. Penso que se reconciliou com ele.

- Mas quem estabeleceu os termos para ele?

- Boa pergunta, jovem Kathleen. Quem é o medianeiro entre o homem que eu gostaria de ser e o homem que sei que sou?

- Sabe responder?

- Não. A Kathleen é que é a curandeira. Sabe?

- Quem me dera saber, mo gradh... - O emprego das palavras gaélicas foi tão inesperado, e o meu ouvido estava tão pouco preparado, que quase me escaparem. Mo gradh... meu querido, meu amado... meu amante, também, se o coração estivesse predisposto para tal. O meu coração deu um salto, mas não ousei arriscar demasiado numa simples expressão carinhosa. Por isso deixei-a continuar a falar, pois cada pequena coisa que aprendia a seu respeito era-me preciosa.

- ... Houve tempos em que eu desprezava todas as religiões, considerando-as uma tirania sobre os ignorantes. Um homem como o pastor Macphail, com as suas serenas certezas, tê-lo-ia rejeitado imediatamente. As pessoas precisam de certezas. Mesmo a certeza da morte já é uma ajuda para muitos. A doença da mente é uma doença de desconhecimento e incerteza.

- E a cura?

- Penso que é preciso que alguém nos ame bastante, para nos podermos amar um pouco a nós próprios. Não me estou a explicar muito bem. Mas escute... - subitamente mostrou-se ansiosa como uma criança de escola. - Dois doentes com a mesma constituição, a mesma doença. Um salva-se, o outro morre. Porquê? Num deles, a vontade de viver, o amor pela vida é forte; no outro, é fraco. É como se... como se a vida fosse uma dádiva aos que a amam. E se se rir disto, mando-o passear.

- Não estou a rir-me. Eu próprio tenho estado no fundo do vale escuro. Consegui trepar para fora dele e chegar aqui... com um ou dois incitamentos de Alastair Morrison.

- Então já somos dois.

- Que sucedeu consigo?

- Apaixonei-me e deixei de amar, e, entre ambos, perdi-me no caminho.

- Quer falar sobre isso?

- Esta noite, não.

- Haverá outras oportunidades.

- Eu sei. E estou satisfeita por isso.

Beijámo-nos, então, como novos amigos, ainda conscientes dos riscos da amizade.

- Boa noite, Kathleen McNeil. Sonhos cor-de-rosa.

- Boa noite, mo gradh. Uma palavrinha para a sua almofada.

- Venha essa palavrinha.

Citou-ma então. Era um antigo provérbio em gaélico e as palavras soaram como música para terminar um dia tranquilo: “Is maith am buachaill an oidche... A noite é uma boa pastora. Leva ao redil todos os homens e animais.”

A minha noite, no entanto, foi inquieta. Dormi a espaços, perseguido por pesadelos eróticos, e acordei uma dúzia de vezes, na escuridão, ardendo de desejo pela mulher que dormia a poucos passos de mim, embora estivéssemos tão distantes como duas galáxias. Havia tempo de mais que dormia sozinho. Era um sintoma do meu mal-estar sentir-me relutante e incapaz de iniciar um novo compromisso. Não tinha nada para dispensar, além da minha semente-nem ternura, nem interesse, nem um eu capaz de partilhar, nem sequer curiosidade por um encontro casual. Depois, num certo sentido, tudo tinha mudado. Estava apaixonado, ansioso pela posse, impaciente por ser possuído. Estava rígido de desejo, ardendo na necessidade daquela pequena e doce morte. Se não me encontrasse na casa de Alastair Morrison, poderia ter mandado as precauções ao diabo e ido ao encontro de Kathleen McNeil no seu próprio leito. Ter-me-ia acolhido? Tive um breve momento de loucura em que acreditei que sim. Depois a sanidade voltou e acendi a luz e pus-me a ler até o Sol nascer. Quando ouvi as criadas começarem a mover-se pela casa, saí da cama, rapei a barba das minhas faces cinzentas e murchas, tomei banho e desci para pedir um café na cozinha.

A velha Hannah fez-me o café e depois ficou, de mãos nas ancas, a troçar de mim enquanto o bebia.

- Com que então tinha cardos na cama, não foi? E um passarinho empoleirou-se na sua almofada, a cantar canções de amor durante toda a noite?

- Nota-se muito?

- Se se nota? Deus nos livre dos ventos de tempestade! Na noite passada fartou-se de fazer olhinhos doces e de arrastar a asa, e ainda me pergunta se se nota! É a morena, não é?

- É a morena.

- Ai!

- Que quer dizer com esse ai?

- Quero dizer que me pagam para tratar da casa do Morrison. E o que os seus hóspedes fazem das suas noites ou dos seus dias não me diz respeito. A menos que o façam dentro da casa, isto é, que escandalizem as minhas pequenas.

- Não gosta da Dr.e McNeil?

- Mais café?

- Sim, se faz favor. Mas não respondeu à minha pergunta.

- Penso que ela é uma boa mulher que traz nela as marcas do homem errado. Acho que a vai conseguir, se se esforçar bastante.

- Hannah, adoro-a!

- Sim, todos nós gostamos do pregador que tem o céu na mão e nem uma palavra sobre o outro lugar.

- Faço-lhe uma promessa, Hannah. Há-de dançar no meu casamento.

- E eu faço-lhe outra. Não compro os sapatos antes de ler os banhos! E agora vá tratar da sua vida. Vá dar uma volta e pôr um pouco de cor nessa cara antes do pequeno-almoço. Parece um afogado arrastado para a praia.

Saí a rir e comecei a caminhar, assobiando, na manhã alegre. A chuva tinha desaparecido. O sol estava sobre a água e a urze nas colinas era dourada e roxa. Todos os presságios eram favoráveis. A descompostura de uma mulher muito velha era uma comédia de cozinha que não se podia levar a peito. Além disso, era preciso estudar uma estratégia. A doutora tinha de ir ver os doentes ao hospital. Eu oferecer-me-ia para a levar a Stornoway e ver um pouco da região pelo caminho. Acabaríamos por almoçar no hotel em Tarbert. De tarde, ela faria as visitas ao domicílio, eu iria pescar com Fergus. À noite... Um ponto interessante. Se não éramos amantes, nem estávamos prestes a sê-lo, haveria muito pouco para fazer à noite, excepto ir beber a um bar, ou sentar-me em casa a ler um bom livro, ou endoidecer lentamente com a televisão escocesa. Afinal, eu não passava de um general excessivamente ansioso. A estratégia estava sobrecarregada e, de qualquer forma, não havia batalha alguma a travar. A enfermeira da área tinha comunicado uma noite tranquila, sem emergências. A doutora ficou feliz por eu a acompanhar nas suas rondas. E ficou satisfeita por almoçar comigo. Depois disso, só podia esperar que ela não tivesse melhores planos que os meus.

Às nove e um quarto estávamos a caminho do Hospital de Stornoway. Às dez e meia estavam terminadas as visitas às enfermarias e seguíamos, pela charneca, em direcção à costa oeste, onde as vagas atravessam o Atlântico e vêm quebrar-se em areias brancas, com dunas por detrás, onde começa a suave erva verde da planície. Num dia límpido, quando o mar está plano-e se se possuir o dom da fé, que é raro nos nossos tempos - dizem que se pode olhar para o sol poente e ver a lendária Hy Brasil, a ilha abençoada, livre de tempestades, onde todos os homens são bons e todas as mulheres puras, e para onde Deus se retira para fazer férias de todos nós. Devo dizer, a bem da verdade, que não a vimos, porque a química sexual começava a actuar entre nós, lentamente, a princípio, mas com força, através dos toques das mãos e da proximidade dos corpos, e da partilha de pequenas maravilhas: uma rocha esculpida que se projectava sobre um mar de vidro, um pescador de ostras procurando conchas na areia, o trinado de um maçarico à procura de comida sobre os leitos de algas, uma abecoínha que levantou subitamente voo de um prado.

De todos os dias do nosso amor, penso que este foi o mais simples, o mais alegre. Não éramos crianças. Nenhum de nós era inocente. Cada um de nós tinha já mordido a maçã do conhecimento e tinha-a achado amarga. O momento viria - e ambos o sabíamos -em que cada um de nós teria de explorar o outro; o sabor dos corpos, os labirintos do espírito secreto. A primeira declaração de necessidade ou de amor poderia abrir uma caixa de Pandora de medos e culpas e amargas antipatias. Por outro lado, também poderia abrir os portões de um Paraíso perdido, cheio de frutos brilhantes e aves a cantar. Por isso, por tácito acordo, diferimos o risco e rendemo-nos aos plácidos prazeres da manhã.

Caminhámos por uma praia deserta. Visitámos as “casas negras”, antigas habitações dos ilhéus, feitas de pedra grosseira, encaibradas com madeiras vindas à deriva e colmadas com erva. Trepámos por uma encosta para chegarmos a uma torre de vigia em ruínas, construída pelos homens pintados contra os atacantes que vinham do mar. Tomámos chá na vivenda de um tecelão, e vimos como se fazia o tweed. Encostámo-nos a um muro de pedra e observámos um pastor que treinava um cão para reunir as ovelhas. Depois, quando seguíamos de carro pela estrada que segue para Breasclete e Callanish, deparámos com uma actividade rara neste local isolado.

Havia uma grande encosta de turfa, quatro ou cinco acres dela, descendo até um pequeno lago acastanhado. Um homem, num bulldozer, estava a arrancar a turfa em longas e profundas faixas, e a empilhá-la em montes, de ambos os lados da encosta. Um camião basculante despejava areia da praia nas escavações, e três homens musculosos espalhavam-na com ancinhos e pás. Duas faixas já se encontravam cheias e sobre estas estava a ser espalhada uma cobrtura de plantas marinhas secas que cheiravam a mar e a iodo. Quando o tractor se aproximou de nós, constatei que o condutor era Ruarri Ruivo o Mactire. Tinha o tronco nu, o braço ainda engessado e guiava o enorme tractor só com uma mão. Quando viu o meu aceno, acelerou e aproximou-se, em perigosas guinadas, subido o sulco, empurrando à sua frente uma grande quantidade de detritos acamados. Depois desligou o motor, saltou do tractor e soltou um grito de boas-vindas:

- Deus deu-me um dia feliz! É o seannachie... e a doutora que vem cobrar a conta! Fiquem onde estão, se não enterram" -se até aos joelhos! Ia jurar que tu vinhas, seannachie. Mas a doutora é um bónus por que não esperava!

Fervilhava de prazer e de orgulho por podermos ver o seu trabalho em progresso. Apertou-nos fortemente as mãos e, passando-me um braço pelo ombro, começou a explicar-me, falando muito rapidamente, o que andava a fazer, como e Porquê.

- ... É para isto que vai o dinheiro e o trabalho. A turfa começou a crescer aqui há oito mil anos, quando o clima mudou de quente e seco para frio e húmido, e o musgo comeu as florestas de bétulas e aveleiras que então cobriam a terra. Forma um tapete espesso, como podes ver, e a água fica por baixo. Há pouco oxigénio, de modo que as bactérias que provocam a decomposição não podem actuar. A água lava o calcário e a terra fica ácida e inútil. Por isso, estamos a escrever a história de diante para trás. Estamos a arrancar o musgo e a deixar entrar o ar. Estamos a meter areia da praia e seixos, que estão cheios de calcário. Estamos a meter algas para adubar, e, daqui a alguns anos, teremos um bom prado... e um subsolo que se regenera em cada ano. Estás a ver o desafio que isto representa, não estás?... Mas estou a maçar-te com tanto Palavriado. Leva-me no carro até à próxima curva e mostro-te onde vivo...

Foi uma nova surpresa. Ele tinha tomado uma das casas negras, longa e baixa e em ruínas, que apenas servia para anões. Tinha reconstruído as paredes, elevando-as mais um metro e meio. Tinha comprado madeira de carvalho para as traves do telhado e tinha-as transportado na sua própria traineira. Tinha colocado armações de vime por cima das traves e trazido colmo de Inglaterra para o telhado, bem fixado contra as ventosas tempestades. Tinha construído uma cerca de pedra, e acarretado terra negra e areia e plantado uma horta para a sua alimentação.

No interior, tinha conseguido fazer, com mais arte que aquela de que o julgava capaz, uma adaptação moderna de uma antiga casa Viking. Num dos extremos ficavam os seus aposentos, no outro uma cozinha, suficientemente grande para alimentar um exército de cavalaria, e suficientemente moderna para encantar qualquer dona de casa. No meio ficava uma ampla câmara, sala de jantar e de reunião num espaço só, com uma lareira de pedra ao meio, encimada por uma cobertura em forma de chaminé de cobre martelado. Havia tapetes de pele de corça pelo chão; as cadeiras e os bancos estavam estofados com tweed das Ilhas. Havia estantes e um suporte para armas, e um bar bem provido, e uma mesa de refeitório onde se podia sentar uma dúzia de pessoas ou mesmo mais. Nas paredes estavam pendurados os despojos de um viajante: cabeças do Benin e uma máscara de feiticeiro, um par de “claymores” (1) e um escudo, o fragmento de uma pedra rúnica pregada à parede com cravos, uma viola espanhola, uma série de pontas de lança enferrujadas, uma peça de madeira trabalhada que fora outrora a cana do leme de um barco Viking, uma prateleira com fragmentos de cerâmica e contas de turquesa, e um medalhão dourado com o esqueleto de uma cobra minúscula.

- ... É minha e condiz comigo.-Ruarri parecia tão envaidecido como um garoto de escola que acaba de ganhar um prémio. - E é confortável para se viver. A canalização funciona e, embora não a possam ver, há uma instalação que aquece os mosaicos do chão da maneira como os romanos costumavam fazê-lo. Dormiu aqui uma dúzia de corpos, depois de uma noite de bebedeira, e nenhum se queixou do frio.

- Onde arranjou isto? - Kathleen McNeil tinha na mão o medalhão dourado com a cobra.

- Descobri-o na loja de um antigo comerciante das Orkneys.

 

(1) Antigas espadas escocesas de dois gumes.

 

Penso que é uma peça Viking. Um tipo dinamarquês disse-me que a cobra era um feitiço para proteger a virilidade do dono. - Dirigiu-lhe aquele seu sorriso de bandido atrevido, e acrescentou: - Desde que voltei das guerras, ainda não tive necessidade de o usar.

Era o velho truque dos espertalhões: experimenta-se uma mulher com um pouco de atrevimento, para ver se ela gosta. Se gostar, pode-se avançar.

Kathleen McNeil não sorriu; fitou-o com interesse profissional.

- Isso preocupa-o, Mr. Matheson... a ideia de perder a sua virilidade?

Ruarri - não se negue ao diabo o que lhe é devido! - foi suficientemente inteligente para se esquivar ao remoque.

- Agora não. Mas em África era aquilo que mais me assustava. Os rapazes não eram nada simpáticos quando faziam prisioneiros.

- Esteve a combater em África?

- Fui mercenário. Primeiro no Congo, depois, durante algum tempo, na Nigéria. Nós estávamos muito por fora da Convenção de Genebra.

- Nunca compreendi o que leva um homem a ser mercenário.

- O dinheiro, minha cara senhora. Há sempre mercado de carne para canhão. Alto risco. Altos lucros. Pergunte aqui ao seannachie. Ele diz-lhe como é. Há uma colónia de mercenários escoceses a viver na Itália há uns dois séculos, e a marca dos Leslie pode encontrar-se na Rússia desde os tempos da imperatriz Catarina. Posso oferecer-lhes uma bebida para o caminho?

Fiquei satisfeito por Kathleen McNeil ter aceite por ambos. Ela tinha sentido de humor suficiente para dizer o que pretendia e graça bastante para não insistir numa vitória total. Mas deu a Ruarri tempo para se recuperar. Enquanto ele servia as bebidas, começou a percorrer a casa, admirando as peças dele, observando os livros que estavam nas estantes.

Ruarri piscou-me o olho, como um conspirador, e sussurrou-me:

- É uma potra cheia de genica, seannachie. Achas que te aguentas com ela?

- Acho que sim.

- Vai valer-te o que investires nela. E, a propósito, eu também gostava.

- Tu brincas no teu quintal, Irmão Lobo.

- Estava só a brincar. Esquece. - Em voz alta, disse: - Então, gostaste da peça de xadrês?

- Gostei. Quero ficar com ela.

- Óptimo. E há coisas que deveríamos fazer juntos, enquanto cá estás. Uma boa pescaria, talvez. E estou de olho num local na encosta da montanha onde há veados vermelhos que ninguém caça. Um destes dias podíamos ir apanhar um veado, tu, eu e uns rapazes dos meus. Na semana que vem ou assim vou até à Noruega em negócios e regresso de traineira. Gostava que viesses comigo, se te apetecer.

- Obrigado, gostava de experimentar tudo isso.

- Vou ver-te à estalagem e combinamos tudo. - Depois, como Kathleen McNeil regressasse, acrescentou: - E quando voltarmos da Noruega, fazemos um ceilidh aqui. Vão estar cá os meus rapazes e as raparigas deles e haverá música para dançar. Vai ser uma noitada, mas vais sentir o verdadeiro gosto das Ilhas. Também está convidada, Doutora.

- Aceito. Se puder deixar a doutora em casa e ser apenas Kathleen McNeil.

- Deus abençoe a mulher! Afinal de contas, é humana. - Sorriu-nos, por cima do copo. - Slainte (1)... e boa sorte para ambos!

Malditos olhos sorridentes! Tinha toda a energia e todo o estilo de um artista de circo. Sabia fazer tudo: caminhar no arame a grande altura, balançar-se vertiginosamente no trapézio voador, voar como o homem-bala que desafia a morte ao ser projectado do canhão. Mas não lhe bastava a destreza; tinha de fazer também o papel de charlatão: fazer a apresentação, pôr os pacóvios de boca aberta diante dos coelhos brancos

 

(1) Expressão irlandesa e escocesa usada como brinde. (N. da T.)

 

e das fitas, e do vinho do porto que lhe corria do cotovelo. E o pior de tudo é que ainda recebia aplausos quando se afastava com o dinheiro no bolso. Kathleen McNeil não era uma rapariguinha, mas, antes de esvaziar o seu copo, já estava hipnotizada por ele. Eu sabia quem e o que ele era, mais até do que ele próprio sabia. Tinha como missão mantê-lo fora da cadeia, se conseguisse. Irritava-me a sua charlatanice; mas tinha de rir-me com ele e de tirar relutantemente o chapéu ao seu talento.

Vejo agora claramente o que então vi obscuramente: aquela manhã, na casa dele, foi um início de uma batalha entre nós. Devo confessar - tinha ciúmes dele. Já por duas vezes se tinha revelado como um possível rival perante Kathleen McNeil, mas a minha vaidade masculina não me permitia aceitá-lo nesse papel. Havia razões mais profundas. Ele tinha nascido sem uma identidade. Tinha-a formado ele próprio. A minha tinha-me sido entregue numa bandeja, mas eu corria o perigo iminente de a perder. Tinha trabalhado tanto como ele, tinha viajado tanto como ele, e adquirido mais dinheiro e fama; mas o simples impacte da sua presença física, a magnitude e a força da sua ambição faziam com que me sentisse inadaptado, ultrapassado em todos os aspectos, um palhaço pintado junto do ídolo do grande circo.

- ... Gosto dele - disse Kathleen McNeil. - Não sei até que ponto confiaria nele, mas gosto dele. Penso que estejam bem um para um outro. Ele respeita-o a si e ao que fez. Está ansioso por que o respeite a ele.

- E respeito-o bastante. É um criador e um sonhador, também. Admiro uma pessoa assim.

Tínhamo-nos despedido de Ruarri e seguíamos pela estrada sinuosa até Callanish, para visitar o lugar das Pedras Erectas. A bebida e a conversa tinham descontraído Kathleen McNeil. Tinha sido contagiada pelo entusiasmo de Ruarri e mostrava-se mais livre e mais comunicativa que em qualquer outra altura das nossas relações. Eu estava entusiasmado, também, porque tinha de acompanhar a sua disposição e mostrar-me não menos garboso que o nosso turbulento anfitrião. Se ele tinha histórias para contar, eu podia contar histórias ainda melhores - e fi-lo, despudoramente. Mas era difícil escapar a Ruarri o Lobo Vermelho; ele corria ao nosso lado pela estrada, uma presença nos pensamentos e na conversa dela.

- ... Há nele uma criança, além de um homem. Uma criança marota, mas muito cativante.

- Cativante, sim. Mas criança, nunca. É um mimo. É capaz de tomar todas as atitudes que lhe convêm, conforme o momento.

- Julguei que gostava dele.

- E gosto. Não existe outra pessoa com quem mais goste de beber, de jogar, de navegar. Mas se eu tivesse qualquer coisa que ele quisesse, seria capaz de ma tirar e de se afastar sorridente.

- É um duro julgamento.

- Já constatei que é real, embora não possa dizer-lhe como.

- Ele matou realmente por dinheiro?

- Ele diz que sim. Provavelmente é verdade. Ganhou muito dinheiro em qualquer parte, e isso adapta-se à maneira como ele se vê... como o Viking aventureiro do século XX.

- Prefiro não acreditar nisso.

- Tem alguma importância que acredite ou não?

- É claro que não.

A resposta fora um pouco rápida de mais e depois dela fez-se um silêncio excessivamente longo. Foi então que percebi que não poderia fazer as coisas de uma maneira simples e afastar-se com a minha mulher pelo braço e o meu orgulho intacto. Muirgen, a deusa do mar, tinha tecido os últimos fios da sua rede. Estava preso na armadilha. Não conseguiria escapar sem ter travado batalha com o Lobo Vermelho.

Já passava do meio-dia quando chegámos ao lugar das Pedras Erectas, uma elevação coberta de erva que desce para sul em direcção a Loch Roag, com os seus farrapos de ilhotas e os penhascos negros de Bernera elevando-se como velas desfraldadas. Mesmo agora continua a ser um local assombrado, desolado e sempre silencioso, exceptuando os gritos das gaivotas

e o sussurro do vento por entre as ervas exuberantes. Não há árvores. A colina ergue-se nua para o céu e os grandes megalitos elevam-se dela, duas ou três vezes mais altos de um homem. Saem deles quatro avenidas, para norte e para sul, para leste e para oeste, e, na convergência dessas avenidas, uma sepultura circular e uma pedra, maior que as outras, voltada para o Sol nascente. Dos homens que ergueram as pedras pouco se sabe, excepto que estiveram ali antes dos Celtas-há três mil anos-e que esta colina e as áreas que a cercam eram um local de reunião, onde eles adoravam o sol como fonte da vida e organizavam a sua vida ritual segundo os seus movimentos. Não deixaram nem língua nem história. Até mesmo o local de sepultamento foi saqueado antes que a história começasse a ser escrita. Mas ainda estão presentes, fantasmas frágeis e ténues. Nós sentimo-los, Kathleen McNeil e eu, quando nos colocámos, de mãos dadas, sob a pedra do sacrifício, vendo a águia dourada subir cada vez mais alto até a perdermos de vista.

Ela estremeceu, como se a morte tivesse passado por ela. Puxei-a para mim e beijei-lhe os cabelos escuros. Depois, porque a necessidade estava dentro de mim e a obsessão dentro de ambos, disse-lhe:

- Não me importa que seja cedo de mais ou tarde de mais. Já não sou uma criança e não tenho idade para fingimentos. Amo-te, Kathleen McNeil. Quero casar-me contigo.

Ainda se recorda das tolices felizes do primeiro amor? Se não, é melhor parar de ler aqui. Deite o resto pela janela fora. Peça aos rapazes e às raparigas que lhe contem a história - quatro letras a formar uma palavra, todas as palavras monocromáticas, nada mais que o que se pode ver em qualquer terreiro, entre a primeira luz e a primeira sombra. Qualquer tolo pode traçar duas linhas numa parede e chamar-lhe amor. Qualquer bêbado pode chorar e cada idiota meio sóbrio pode rir das suas lágrimas. Apenas um poeta lhe pode mostrar - e não totalmente - a doce agonia de um homem e uma mulher, suspensos entre o céu e o inferno, tendo apenas a paixão do momento para os sustentar. Eu não sou um poeta, apenas um seannachie: um contador de histórias, miserável e ultrapassado como o cego Raftery, com a sua harpa, ou o velho que grava a giz os seus sonhos no passeio que a chuva vem lavar à meia-noite. Por isso só posso contar-lhe o que veio depois, quando os fantasmas nos abandonaram e ficámos sentados num muro de pedra, olhando para as plácidas ovelhas, enquanto Kathleen McNeil me dava a sua resposta:

- Mo gradh... meu querido, meu querido, fico feliz por o teres dito. Queria que o dissesses. Conheço-te, porque o que tu dizes e o que tu fazes são o que tu és. Mas tu não me conheces... Não! Por favor, escuta-me! Eu gosto de ti, quero-te. Pede-me que vá contigo para a cama, que eu vou... sem perguntas antes, sem acusações depois. Mas amor? Não sei. Realmente, não sei.

- O amor é muito simples, Kathleen oge.

- É mesmo? Foi simples para ti? Para mim, não foi. Não tenho a certeza de querer arriscar-me de novo.

- Que sucedeu?

- Que sucedeu? Meu Deus! Não foi há muito tempo que eu pensava que cada homem que passava por mim podia lê-lo na minha cara e cada mulher rir-se de mim. No dia a seguir à minha licenciatura... há sete, não há oito anos, casei-me... Não sabias? Estavas longe. Ele era o melhor partido do mundo. Um cavaleiro, nada menos! Cinema e teatro e uma árvore genealógica belamente documentada em Debrett. Fomos felizes. Mesmo agora não posso negá-lo. Felizes como porquinhos num prado de trevo. Ele precisava muito da ternura de uma mãe... que actor não precisa? Eu gostava de ser a mãe dele. Penso que foi por isso que me fiz médica, afinal. Gostava de sentir que as pessoas precisavam de mim. Não sabia que eu precisava duas vezes mais dele. Depois, há quatro anos, fiquei grávida. Subitamente, a minha vida estava completa. Nada mais podia desejar. Quando contei ao meu marido, ele ficou horrorizado. A criança, que ainda nem sentia, era um rival dentro de casa. Não podia tolerar essa ideia. Foi-me convencendo, dia e noite, com lágrimas, amuos e birras, até que eu concordei em livrar-me da criança. Sou médica, foi fácil. Quando tudo terminou, comecei a odiá-lo. Odiei-o durante dois longos anos, até que ele me deu motivo para o divórcio.

Desde então, tenho-me odiado a mim mesma. E esta, mo gradh, é a mulher a quem pediste que se casasse contigo... Que dizes agora?

- Que queres que te diga, Kathleen oge?

- Não sei.

- Supõe que te digo que também sou um homem ciumento, mas não de uma criança, porque uma criança é o fruto do amor que os amantes devem acarinhar.

- Sinto-me mais segura, mas ainda não tenho certezas.

- Por que não?

- Porque já não sei quem sou. Sou aquela que ama e a que odeia. A que cura e a que mata.

- E Ruarri Ruivo também é um assassino?

- Isso é brutal.

- Mas é verdade?

- Por um lado, é. Mas por outro, não, não, não!

- Então temos uma hipótese.

- Só se tu dizes que a temos.

- Temos de o dizer ambos. Temos ambos que acreditar nela. Escuta, minha querida e sombria amiga, todos temos crimes nas nossas mãos, grandes ou pequenos, sonhados ou executados. Antes que os outros nos possam perdoar, temos de pedir perdão a nós mesmos.

- Conseguiste fazê-lo?

- Não completamente. Mas tu própria o disseste. É preciso que alguém nos ame bastante, para que possamos amar-nos um pouco a nós mesmos. Então, Kathleen?

- Dás-me algum tempo?

- Importas-te de abrir o teu coração e me deixar entrar? Faz frio cá fora.

- Entra, por favor, seannachie. Entra e conta-me mais histórias de fadas.

Se isto fosse uma história banal de gente inventada, contar-lhes-ia como acasalámos nessa noite e o que fizemos com estas e aquelas partes de cada um de nós, quais os praseres selvagens que sentimos, e o que houve de novo e de maravilhoso.

A verdade é que nada disso fizemos. Beijámo-nos e abraçámo-nos como os amantes que quase éramos; separámo-nos junto do marco que havíamos alcançado; ela dormiu na sua cama e eu na minha e, sensata ou estupidamente, aguardámos o dia em que a águia dourada mergulharia sobre nós com a dádiva do deus-sol nas suas garras triunfantes.

 

Três dias depois-e foram dias bons, em que apanhei o meu primeiro salmão marinho e tive o primeiro elogio real de Fergus William McCue, e aluguei um barco e levei Kathleen McNeil a nadar junto à praia de Borvemore - Ruarri Ruivo telefonou-me para a estalagem. Apetecia-lhe ir pescar à noite; eu gostaria de o acompanhar? Podia levar a minha rapariga, também, se ela gostasse desse género de coisas. Levaríamos uma garrafa de uísque e talvez uma sanduíche, e deveríamos ir bem agasalhados, porque no loch, à meia-noite, faz frio. Disse-lhe que gostaríamos muito de ir e combinei ir buscá-lo a casa dele, às dez horas da noite seguinte. Quando contei a Alastair Morrison, ele não aprovou.

- Se a pescaria nocturna do Ruarri significar o que eu penso que significa, vais fazer um piquenique de pesca furtiva. Ruarri não possui direitos de pesca alguns, que eu saiba. Não se pode usar nem uma cana nem iscos, à noite. É preciso usar uma rede, e esse é outro delito da pesca furtiva. Há guardas por toda a parte, e estão bem organizados. Estão sempre em contacto uns com os outros pela rádio, e também com a polícia. Se fores apanhado com um peixe, ou mesmo com os apetrechos, apanhas uma multa pesada e estragas a tua reputação e a minha. E também não seria bom para a Drª McNeil ser levada a tribunal, pois não?

Tudo isto fazia-me ver o convite de Mestre Ruarri sob nova luz. Se eu fosse, tornar-me-ia cúmplice da patifaria dele e dos seus buannas. Se não fosse, era um moralista hipócrita, sem estômago para uma surtida contra as forças do privilégio. Não era vergonha pescar, apenas ser apanhado. Os direitos de pesca e de caça eram uma chaga antiga nas Highlands, e, independentemente do que a lei determinava, homem algum tinha direitos divinos sobre os peixes do mar e os animais selvagens das montanhas. Além disso-até podia ver aquele sorriso retorcido e aqueles olhos azuis trocistas - um homem que tivesse medo de um guarda de caça, dificilmente poderia conservar a sua mulher contra a arrogância de Ruarri o Mactire. Por outro lado, eu estava hospedado na estalagem de Morrison. Ele tinha-me oferecido amizade e apoio quando eu mais necessitava delas. Se eu ia entrar em jogos com a lei, ele tinha o direito de ser avisado.

Por isso contei-lhe o que se passava entre mim e Kathleen McNeil, e entre mim e Ruarri. Ele tinha-me confiado o seu segredo, eu tinha o direito de lhe confiar o meu.

Escutou-me pacientemente, caminhando ao meu lado pelo jardim, e, quando eu acabei, riu-se.

- Estás em águas fundas, hein, meu rapaz? Quando a maré subir, vais ter de nadar.

- Achas que tenho culpa?

- Não. É provavelmente a cura de que precisas: uma boa luta por uma mulher ou uma causa... mesmo que percas. E bem podes perder, sabes? Tanto quanto sei, Ruarri joga sujo.

- Eu sei disso. Por enquanto, ainda só estamos nos treinos e nas escaramuças.

- A batalha final poderá ser sangrenta.

- Talvez nunca lá cheguemos.

- Quase aposto que chegam.

- Então tenho de ir pescar, não é?

- Sou um velho, meu rapaz. Não oiço muito bem e sofro de cegueira nocturna. Posso lá saber o que tu fazes nas tuas horas livres! Mas vou dar-te um palpite. Ruarri atirou-te o isco. Não sabe que tu já viste o anzol por baixo das penas. Eu não teria pressa de lho dizer.

E deixámos as coisas neste pé. Telefonei a Kathleen McNeil e convidei-a a juntar-se à nossa inocente expedição. Depois passei uma hora muito instrutiva com Farran, informando-me sobre as leis da Escócia, e descobri que os direitos dos salmões se chamavam regalia minora, e que podiam ser alienados, mas que deviam ser considerados invioláveis por bandidos como eu, sob pena de multas e possível prisão. Regalia minora pareceu-me uma boa frase para ter à mão quando os guardas nos perseguissem pelos pântanos. Todavia, para o caso de ela não chegar a todas as necessidades, meti um pequeno frasco de uísque no bolso e dirigi-me a casa de Fergus William McCue para o partilhar com ele.

  1. W. McCue estava para as regalia minora como o Kama Sutra está para o sexo. Podia falar do assunto de baixo para cima, de dentro para fora, da esquerda para a direita, de trás para a frente, com mel e manteiga, com beijinhos e uma anedota para ilustrar cada modo de vitória ou violação. Do ponto de vista legal, tinha as suas falhas - parte das suas leis não tinha sido revista desde os tempos de Morrison o Magistrado - mas, como táctico, punha Farran num canto. Se não tivesse sido um guarda de pesca, teria sido o mais nobre pescador furtivo do país. Na verdade, não tenho bem a certeza de que não o tivesse sido, e não pudesse sê-lo ainda, se a tal se decidisse. Demorou o seu resumo até o frasco estar quase vazio, mas os conselhos valeram bem os honorários.

- Se tivesse em vistas infringir a lei... sei bem que não, mas vamos supor que sim... seria esta a maneira de o fazer. Em primeiro lugar, evite as propriedades particulares, porque, se não for apanhado por pesca furtiva, pode ser apanhado por violação. Além disso, as pessoas têm o direito de ter um cão na sua propriedade, e muitas têm mesmo; e alguns deles são umas bestas selvagens capazes de lhe arrancar um bocado do traseiro mal olhem para si. Além disso, as pessoas têm direito a ter uma espingarda; e para lhe dizer a verdade, não há truta neste mundo que valha uma carga de chumbos nas partes sensíveis da nossa anatomia. Por isso, o truque é pescar em água aberta, porque não há perigo nem de cães nem de caçadeiras, e pode-se sempre afirmar que se estava fora das águas de um homem e dentro das de outro. Se for o homem errado a apresentar queixa, fica-se livre, podendo até apresentar queixa por nos terem manchado a reputação. Isto desde que, evidentemente, não o apanhem com peixe ou apetrechos de pesca em seu poder. Outra coisa boa da pesca nas águas abertas: se se estiver num barco, é difícil um polícia ou um guarda identificarem-no e mais difícil ainda chegarem ao pé de si. A linha da costa é tão longa e as estradas são tão más, que o melhor que ele pode fazer é sentar-se à sua espera no sítio em que pensa que vai desembarcar, e isso pode ser uma longa e fria vigia, enquanto já está a contar os seus peixes a uma milha de distância. É claro que, se tiver um carro, e ele o descobrir num sítio suspeito, poderá fazer-lhe perguntas embaraçosas, mas pouco pode fazer, a menos que encontre o peixe. Fui suficientemente claro?

- Não podia ser mais claro, Fergus.

- Então talvez não se importe de que eu lhe faça uma pergunta. Com quem vai, e onde?

- Isso são duas perguntas. E se eu respondesse a uma delas, ou às duas, nunca mais confiava em mim.

- Então faço-lhe outra. Para quê arriscar-se a uma multa quando tem toda a água do Morrison e me tem a mim para guiar os seus passos hesitantes?

- Porque um tipo me desafiou, e há uma mulher no meio, e não havia de querer que o seu aluno fugisse de uma coisa dessas, pois não, Fergus?

- Nunca, meu rapaz! E vou fazer um brinde ao seu êxito. Da próxima vez, traga uma garrafa. Estas metades não passam de amostras de caixeiro viajante!...

A noite caiu, fria, clara, estrelada: uma dádiva para os apaixonados, mas má coisa para um pescador furtivo, porque à meia-noite a lua ia estar cheia sobre a água e qualquer guarda mesmo zarolho seria capaz de nos detectar a meia milha de distância. Todavia, eu ia armado com os conselhos de Fergus, e sentia-me relativamente seguro; além disso, eu era o inocente que se presumia conhecer apenas as suas orações, por isso não fiz comentários. Quando chegámos a casa de Ruarri, encontrámo-lo sozinho. Também não fiz comentários a esse respeito, mas considerei que se tratava de uma boa encenação, destinada a mostrá-lo em toda a sua capacidade de assaltante, deixando-me a mim, mudo e atrapalhado, em segundo plano. Sugeriu que fôssemos até ao lago no seu carro. Esquivei-me a isso. Queria sentir as minhas rodas debaixo de mim, sem um ruivo louco em correrias pelas estradas da região. Encolheu os ombros e concordou, serviu-nos uma bebida e foi guardar os apetrechos na mala do carro. Quando voltou, perguntei-lhe ingenuamente que iscos ia usar para a pesca nocturna.

Ele riu-se.

- Nada de iscos, seannachie. Apenas uma rede de guelras à moda antiga e uma rede de arrasto. Esta noite vamos pescar para comer e para ganhar dinheiro, não por desporto. Vamos fixar uma rede e arrastar outra, e tudo o que vier à rede é lucro... salmão, truta ou pescada-polaca.

- Julgava que as redes de guelras eram ilegais - disse

Kathleen McNeil.

- Só se formos apanhados com elas, minha senhora.

- E tem direitos de pesca? - Deus abençoe o raio da mulher! Não a tinha ensinado e ela dava a deixa certa.

- Bom, Kathleen, há que distinguir. Eu afirmo que tenho o direito natural de pescar nas águas da minha ilha. A lei diz que não tenho. O assunto está em disputa. Esta noite, vou dar a mim mesmo o benefício da dúvida.

- Então vamos fazer pesca furtiva?-Desta vez era minha a pergunta.

- Tens objecções, seannachie? - disse ele, com um sorriso mas os seus olhos não sorriam.

- Nenhuma. Mas convém que todos saibamos qual é o jogo. Além disso, não queremos meter a senhora nisto, se formos apanhados.

- Não vamos ser apanhados. Se fôssemos, os meus rapazes nunca mais trabalhavam para mim. Vamos pôr-nos a caminho, sim?

Percorremos talvez cinco milhas pela estrada principal e depois metemos por uma pista estreita e bem marcada que levava ao lago. A cerca de duzentos metros da costa, parámos. Ruarri descarregou um grande saco com os apetrechos e, antes de nos pormos a caminho, expressou um aviso.

- Não molhem os pés. Podem ter de andar a pé. E falem baixo. O som transmite-se até longe sobre a água.

Dentro em breve estávamos num barco e Ruarri remava contornando as margens rochosas da baía. Reparei que se conservava perto da costa, e os seus movimentos eram lentos e cautelosos, para não se ouvir o bater dos remos na água nem o seu roçar pelas toleteiras. E notei algo mais: um leve aumento da tensão que havia nele, uma nova prudência nos seus olhos, um sorriso de autocontemplação, como se estivesse a avaliar as suas capacidades e as achasse adequadas para a tarefa que se lhes deparava. Já tinha visto aquela expressão: nos rostos de homens prestes a desencadear um ataque nocturno na Nova Guiné; num batedor do deserto no Vale do Jordão, procurando na areia e no xisto os vestígios dos Fedayin. Era o sinal do caçador, do profissional, que se move prudentemente mas com confiança num terreno hostil.

Cinco minutos a remar levaram-nos a um local onde um longo braço de água penetrava profundamente entre dois penhascos. De ambos os lados do canal havia uma estaca de ferro, cravada nas rochas, mesmo abaixo da marca da maré alta. Ruarri apontou-as com uma divertida vaidade.

- Fui eu que as preguei no ano passado. Ainda ninguém deu por elas. É aqui que prendemos a rede de guelras para apanhar os peixinhos quando entram e saem com a maré. Dá-me aqui uma ajuda, seannachie, e tem cuidado para não caíres do barco, se não passas a noite cheio de frio.

Uma rede de guelras é exactamente o que o seu nome implica - uma rede forte e grossa em que um peixe, ao passar, fica preso pelas guelras. Para o pescador honesto, é um anátema, mas, para um desgraçado cheio de fome que precisa de comida no prato e de prata no bolso, é uma invenção genial. A nossa foi esticada em questão de minutos. íamos deixá-la e voltar lá no regresso. Depois disso, estávamos prontos para a rede de arrasto: uma rede grande em forma de peúga, com abas abertas na entrada e presa a uma corda à ré. Esta tinha de ser usada ao largo, onde não havia recifes nem troncos submersos, mas onde ficaríamos perfeitamente visíveis, quando a lua subisse.

Depois de termos cunhado a rede, ofereci-me para remar, a fim de poupar o pulso de Ruarri. Ele não quis. O gesso estava bem firme, os músculos moviam-se livremente e, além disso, pesava mais que eu. Por isso, instalei-me, com um braço em volta dos ombros de Kathleen McNeil e deixei-o fazer todo o esforço que quisesse. Meia milha mais adiante, içámos a rede Continha meia dúzia de pescadas-polacas e um salmão pequeno. Despejámo-los no saco e deitámos de novo a rede à água. Mais uma vez me ofereci para remar por ele. Mais uma vez recusou.

A lua subia no céu, um globo de prata manchada, e as colinas recortavam-se, negras, na parte inferior do círculo. A sua luz parecia o foco de um farol, em refracção sobre a água parada. Estávamos mesmo no meio, com a linha da rede de arrasto a abrir um rego prateado atrás de nós. Mais meia milha e poderíamos içá-la de novo. Quando me pus de pé à popa, a içar a rede, vi as luzes uma, duas, três, quatro, a amplos intervalos, movendo-se ao longo dos cumes das colinas a norte. Apontei-as a Ruarri.

Ele acenou afirmativamente com a cabeça.

- São os guardas, sem dúvida. E pelo menos um deles têm óculos infravermelhos.

- Então que fazemos agora?

- Vamos içar a rede e ver o que apanhámos.

Desta vez havia um salmão grande, com uns cinco quilos, pelo menos, e alguns peixes brancos pequenos. Esvaziámos a rede e deixámo-la a bordo. Ruarri sentou-se e começou a remar silenciosamente, contra maré.

- Vai observando as luzes, seannachie. Vai-me dizendo em que sentido avançam.

Ao fim de cinco minutos, mais ou menos, o movimento era óbvio. Desciam a encosta em semicírculo, fechando gradualmente a circunferência em volta do local onde tínhamos deixado o carro.

Ruarri praguejou em voz baixa.

- Malditos sejam, raios os partam! Não precisam de mais. Descobrem o carro, chamam a polícia para fazer dois bloqueios na estrada principal e ficamos encurralados. A menos que queiramos andar dez milhas a corta-mato. Mas mesmo assim localizam o condutor do carro. Santo Cristo! Há meses que não os vejo. Porquê esta noite, entre tantas noites?

Foi o luar que o traiu: um reflexo projectado pelo remo atingiu o seu rosto barbudo. O patife estava a sorrir. A sua voz lamentava-nos a ambos, mas, por dentro, estava a rir-se, como um maldito duende em cima de um cogumelo. Esperava que nós mostrássemos pânico e aflição. Nós faríamos um grande acto de fé nas suas capacidades e suplicar-lhe-íamos que nos salvasse da multa e da desgraça e da vergonha de um dia no tribunal. Ele acalmar-nos-ia com a sua coragem e levar-nos-ia no seu barco até uma gruta tranquila, até o perigo passar. Mas não poderia salvar-nos a todos, só Kathleen McNeil e ele próprio. O carro tinha sido alugado por mim. Eu poderia escapar aos guardas e à polícia naquela noite. No dia seguinte estariam a bater-me à porta com palavrinhas doces e uma série de perguntas a que não poderia responder sem mentir. E Ruarri ficaria a rir-se do meu contratempo. Tinha valido a pena para contar a piada nos bares de Stornoway.

Já estava a abrir a boca para lhe dizer que aquela já era velha, quando me recordei do aviso de Alastair Morrison. Eu não deveria ver o anzol por baixo das penas do isco. E, mesmo que o visse, não deveria dizê-lo ao pescador. Fechei a boca e continuei calmamente sentado, observando as luzes que se aproximavam cada vez mais do local onde o carro estava estacionado. Depois, como a um sinal, apagaram-se todas.

A lua estava mais alta, agora, e a linha da costa via-se bem, com uma série de pequenas e escuras grutas, com cabos entre elas. Marquei o local onde tínhamos lançado o barco à água. Voltei-me para Ruarri e apontei para a baía seguinte.

- Leva-nos para ali, Ruarri.

- Que diabo...! A polícia está mesmo ali à esquina.

- Não há problema. Vamos livrar-nos todos, com peixe para o pequeno-almoço. Leva-nos lá.

- Estás louco, seannachie!

- Se estiver, pago as multas de todos.

- Pelo menos, diz-nos o que tens em vista.

- É fácil. Diz Farran sobre posse da terra e regalia minora complementares: só a posse de apetrechos ou de peixe, ou dos meios de transporte dos mesmos, isto é, um barco em águas proibidas, constituem prova de violação ou pesca furtiva. Por isso, vais deixar-nos em terra. Somos amantes, caso não o soubesses. Tivemos um interlúdio privado na praia.

Nesta noite decidimos ficar noivos -não oficialmente, é claro. Enquanto explicamos tudo isso à lei, tu voltas atrás e retiras a rede de guelras. Levamos a chave da tua casa e bebemos o teu uísque, e eu volto para te apanhar na estrada principal uma hora depois da meia-noite.

Ficou a olhar para mim durante um longo momento, depois desatou a rir, tossindo e cuspindo ao tentar reprimir as gargalhadas.

- Filho da mãe! Meu Sassenach sabido! Eu aqui a suar as estopinhas para te safar do carrasco, e tu já vais seis passos mais à frente. És suficientemente bom actor para os convencer?

- Se a minha actriz principal me acompanhar.

- Como queres que represente a cena, meu querido? - A actriz principal mostrava-se entusiasmada. - Levemente bêbada e a cantarolar? Ou terna e com os olhos a transbordar de lágrimas de felicidade?

- Faz como o coração te ditar, Kathleen.

- Passa-me a garrafa - disse Ruarri. - Estou a precisar de uma boa dose.

Quando chegámos à praia, tivemos de caminhar ao longo de uma caverna rochosa e trepar pelos rochedos cobertos de algas, até um promontório, para chegarmos ao carro. A lei aguardava-nos: dois polícias simpáticos e um guarda de rosto azedo com um grande collie pela trela. Os guardas mostraram-se delicados, embora cépticos. Aquele carro era meu? Era, sim. Importava-me de lhes dizer o que estava a fazer naquele local àquelas horas da noite? Não me importava nada; mas estaria por acaso a transgredir alguma lei sem o saber? De maneira nenhuma. Mas era um local isolado e eles estavam apenas a cumprir um dever, fazendo inspecções rotineiras. Disse-lhes:

- A Dr.s McNeil e eu somos amigos, velhos e queridos amigos. Viemos dar um passeio de carro. Tínhamos parado ali para estarmos num local privado e para ver a lua sobre o mar. - Quanto tempo tínhamos estado na praia? Difícil de dizer. Os apaixonados perdem facilmente a noção do tempo. Por acaso não teríamos estado a pescar? Tínhamos ar disso? Teríamos visto alguém a pescar? Tínhamos visto um barco no lago.

Tínhamo-lo achado muito belo ao luar. Por acaso não sabíamos quem ia nele? Isso era praticamente impossível. Éramos ambos recém-chegados à ilha. A Drª McNeil estava a fazer uma substituição em Harris. Eu era hóspede de Morrison em Laxay. Ele teria muito gosto em identificar-nos, se fosse necessário. Não ia ser preciso. Pediam desculpa por nos terem incomodado. Uma última pergunta? Para onde nos dirigíamos agora? De regresso a Carloway, para a estalagem. Mais alguma coisa? Nada mais. Podíamos partir. Deus fique convosco, meus amigos. Espero bem que Ruarri já esteja fora de visão, neste momento; e desejo, mais fervorosamente ainda, que não haja um carro-patrulha na estrada quando eu voltar atrás para o vir buscar...

Dez minutos depois estávamos muito confortáveis junto à lareira de Ruarri, bebendo o seu uísque e rindo-nos daquela comédia.

- Regalia minora, pelo amor de Deus! Como é que te lembraste de um palavrão desses?

- Não me lembrei por acaso, meu amor. Procurei-o esta tarde, para estar preparado.

- Queres dizer que o Ruarri planeou o que aconteceu esta noite?

- Tenho a certeza de que não. Mas sabia que isto podia acontecer. É uma criança travessa e gosta de humilhar as pessoas. Queria estar pronto para ele.

- Por que não me avisaste?

- Porque, se nada tivesse sucedido, faria papel de parvo. E não quero que me aches parvo, Kathleen oge.

- Mas achas que Ruarri havia de gostar?

- Sei que ele ia gostar muito.

- Não me sinto muito lisonjeada com tudo isto. - Pôs-se de pé, dirigiu-se à lareira e ficou de costas para mim, a aquecer as mãos.

- Estás zangada comigo?

- Estou, sim.

- Porquê?

Voltou-se para me fitar, com o rosto afogueado, os olhos brilhantes e hostis.

- Porque eu não sou um objecto! Não sou um prémio que seja motivo de disputa e jogado aos dados. Eu sou eu, Kathleen McNeil. Gosto de quem gosto. Entrego-me quando e onde quero. Já fui suficientemente enxovalhada, muito obrigada. Nunca mais.

Senti-me irritado, então. Fria e amargamente irritado. Pus-me de pé, tirei as chaves do carro do bolso e estendi-lhas.

- Se achas que foste enxovalhada porque te disse uma simples verdade, está bem! Aqui tens as chaves, o carro é teu. Eu vou buscar o Ruarri no carro dele. Mas antes de te ires embora, escuta-me. Não sou grande coisa. Estou a recompor-me depois de uma crise, em que pensei que não podia voltar a acreditar, a trabalhar, ou a interessar-me por alguém ou amar de novo. Não te pedi que me protegesses, como o teu maldito actor. Não te pedi que fosses para a cama comigo para me sentir melhor. Pedi-te que casasses comigo, porque, apesar de tudo o que sou, amo-te. Tive uma vida agitada, sabe-o Deus! Mas nunca comprei nem vendi nem partilhei uma mulher, em toda a minha vida. Também nunca revelei coisas secretas sobre qualquer mulher que tivesse conhecido. Esta noite? O Ruarri está interessado em ti. Tu sabes disso. Eu sei disso. Estava a tentar enxotá-lo porque me pareceu que havia uma esperança para nós, e que tu estavas pronta para pensar o mesmo. Se isso é um insulto, peço desculpa, Se não sou eu o homem que te interessa, diz-mo agora, e fiquemos amigos, pelo menos, respeitando-nos um ao outro.

A minha veemência chocou-a. Na verdade, até eu fique chocado. Os meus dispositivos de controlo estavam mais desgastados do que pensava, ela estava muito perto das lágrimas, mas era demasiadamente orgulhosa para lhes ceder. Por um longo momento defrontámo-nos, com as chaves suspensas entre nós, a chocalhar na minha mão insegura.

Finalmente ela disse:

- Detesto discussões.

- Também eu.

- E preferia não ir para casa sozinha.

- Podes escolher o condutor.

- Prefiro o homem que me trouxe.

E então unimo-nos de novo, corpo contra corpo, lábios contra lábios; e, por momentos, aquela deixou de ser a casa de Ruarri, passou a ser a nossa casa, com o mundo fechado lá fora e a lareira partilhada, e a esperança um pouco mais forte, embora ainda não completamente segura.

Quando chegou a hora de ir buscar Ruarri, deixei-a a dormitar com um livro. Senti-me satisfeito por ficar só e creio que ela também ficou satisfeita por se ver livre de mim por algum tempo. Uma discussão não é má, quando se consegue deitar para fora todas as coisas más e, ao chegar o momento em que as palavras se acabam, ficamos só tu e eu a transformarmo-nos em nós, e nós a cair no sono, sabendo que o dia seguinte vai ser um dia melhor. Mas, até chegar esse tipo de sono, convém que nos separemos um pouco, para comparar a necessidade com a mágoa, e voltarmos frescos para os braços um do outro.

A lua estava alta, agora, limpa de qualquer sombra da terra. A terra mostrava-se prateada e suave sob a sua luz. Os lagos brilhavam. As casas pareciam habitações de bonecas adormecidas, brancas e pacíficas nos seus buracos. Até os carneiros repousavam, amontoados cinzentos junto das medas de feno e dos afloramentos rochosos. O vento tinha morrido. Não se ouviam os gritos das gaivotas ou dos maçaricos, apenas o ténue sussurro do mar, em volta das rochas negras e das algas amarelas. Era um local para se estar tranquilo, uma hora para se estar só, mas não solitário.

Avistei Ruarri a uns cem metros de distância, uma figura curvada contra a linha das estrelas, a ponta de um cigarro a brilhar nas sombras. Quando cheguei junto dele, vi que estava empoleirado num saco cheio de peixe, com as redes empilhadas ao seu lado. Estava fatigado, e notava-se. Estava levemente bêbado, e isso também se notava, mas, mesmo assim, tinha de fazer a sua grande cena.

- Cinquenta libras de peixe, ou eu não me chame Ruarri, seannachie! Seis grandes salmões, três trutas, e pescada-polaca que chegue para alimentar um asilo inteiro. Foste muito pontual. É uma virtude que eu respeito. Houve problemas?

- Nenhuns. Vamos guardar as coisas e pôr-nos a caminho.

- Onde está Kathleen?

- A dormir na tua sala.

- Ai, pobrezinha! Por que não passam lá a noite? Podem ficar com o meu quarto. Eu ajeito-me junto da lareira. São quarenta milhas até Rodei e depois tens de fazer o dobro da distância até à estalagem.

- É uma ideia simpática. Deixemos isso à decisão dela. Percorremos em silêncio a primeira milha, e depois ele voltou-se para mim, com um sorriso de bêbado:

- Seannachie.

- Diz.

- És um sacana.

- Tu também.

- Mas gosto de ti.

- Também não desgosto de ti.

- Esta noite desafiaste-me.

- Estavas a pedir isso mesmo.

- É verdade. E há-de voltar a suceder, porque eu sou assim. Hei-de desafiar-te para um jogo de cartas, por uma mulher ou um negócio. E se fugires ao desafio, não sentirei nenhum respeito por ti.

- Obrigado por mo dizeres. Ajuda-me para a próxima.

- Não me desafies agora, seannachie. Não lutes comigo. Deixa-me dizer-te isto e acredita que o que estou a dizer-te é a verdade, mesmo que nunca mais acredites em mim. Sou um patife, um bastardo. E isso é legal, de facto, tenho uma certidão de nascimento que o prova. Sou bastardo por natureza, e não é preciso um documento para o provar. Por isso sou solitário, como o lobo vermelho da minha flâmula. Sabes por que vou pescar furtivamente... eu, que tenho uma traineira e um porão cheio de arenques em cada viagem? Vou dizer-te porquê. Porque nasci pobre e vivi pobre, e tenho medo de voltar a ser pobre. Amanhã, um dos meus rapazes virá amanhar todo o peixe que apanhei esta noite. Os salmões vão ser fumados, e os peixes restantes irão para o congelador, para o Inverno. E saberei que posso sempre comer, sem ter de ir pedir ao pastor, ou à assistência social ou aos amigos.

- Estás a exagerar, Ruarri.

- Sempre foi duro e sempre será. Ainda sinto a dureza. Mas sabes de que sinto falta? De um irmão... Um irmão mais velho para me ralhar e me bater, mas capaz de me meter na cama quando chego a casa bêbado com um maxilar partido. Foste tu, seannachie. Foste tu a conduzir o Mactire pelo Minch, a ajudar-me junto do Duggie Donald em Stornoway. Foi por isso que te mandei a peça de xadrês, na esperança de que tu compreendesses.

- Jesus Cristo!

- Esse já morreu, seannachie.

- E eu estava quase morto quando cheguei às Ilhas.

- Mas agora estás vivo, não estás? A seiva corre com força. Tens uma mulher de quem gostas. E estás pronto para uma luta... comigo ou com qualquer um.

- Podemos tê-la, um dia destes.

- Não me importava.

- Vai correr sangue, Ruarri.

- Pois que corra. Eu nem sei donde me vem o meu. Nem sei em que veias corre, sequer. Derramei a minha semente numa centena de camas, de Pireu a Port of Spain, e nunca me ralei com isso. Agora começo a preocupar-me... um pouco, pelo menos.

- Então deixa a minha rapariga em paz.

- Vou tentar, mas não posso prometer. Oxalá pudesse.

- Então que é que queres?

- Que sejamos irmãos enquanto pudermos.

- E quando não pudermos?

- Respeita-me, seannachie. Só quero respeito.

- E tem-no. Por isso, porta-te bem, hein?

- Como quiseres, irmão. Como tu quiseres. - Recostou-se no banco, fechou os olhos e dormiu durante as últimas milhas sinuosas até à sua casa.

O meu avô, que era um homem muito mais prudente que eu, costumava dizer que, se se pretendia a verdade sobre um homem, ela seria encontrada no último gole da garrafa de uísque. Há algo certo nesta afirmação, evidentemente - há sempre algo, entre os Celtas, e quanto mais depressa se aceitar o facto, melhor! A verdade está realmente na garrafa, mas não se pode saber ao certo se é a verdade que o bêbado pensa que conhece ou a verdade como realmente se apresenta. E existe um mundo de diferença entre ambas.

Ruarri, o rapazinho pobre, não era a verdade. Não tão desgraçadamente pobre como ele dizia, não pobre de pedir, não um pobre de porta de igreja. O legado dos Morrison era uma garantia contra isso, e o terreno da mãe era outra. De condição humilde, isso sim. Humilhado pelo estigma social, isso sim, também. E não acreditei na história do peixe no congelador, porque eu tinha visto a cozinha dele, e não havia espaço para cinquenta libras fosse do que fosse, juntamente com o resto dos seus víveres. Se a minha suposição estivesse certa, ele guardaria apenas o salmão e dividiria o resto da pescaria pelos seus homens, para se mostrar generoso e ousado. A sua necessidade de um irmão mais velho? Lendo pai no lugar de irmão, talvez o texto ficasse mais autêntico. A verdade real estava mesmo no fundo da garrafa. Respeito - era isso que ele queria. A tragédia residia no facto de ele o ganhar dez vezes e dez vezes o deitar a perder com alguma patifaria tola, sem saber que o tinha merecido. Qual o remédio? No seu estado de inconsciência e aturdimento, pensava que eu o possuía. Talvez sim; mas não tinha permissão para o utilizar, e, de qualquer forma, poderia envenená-lo na mesma.

Passámos o resto da noite em casa de Ruarri, porque ele insistiu em que ficássemos, e Kathleen McNeil estava morta de cansaço, e uma viagem de oitenta milhas às duas da manhã não fazia sentido em língua alguma. Ficou na cama de Ruarri. Ruarri e eu dormimos em tarimbas na sala. Eu não conseguia suportar a ideia de a saber enroscada entre os lençóis de outro homem, que me sorria na escuridão, pelo que estava inquieto, dormindo a espaços, entrando e saindo nos abismos do sono, como um barco a oscilar nas ondas do mar alto.

Uma hora ou duas antes do amanhecer, dei comigo acordado e a tremer. A casa estava escura como um túmulo, mas enchia-a um som que gelava o sangue: um lamento fantasmagórico, como o choro de um homem torturado até aos limites da sua capacidade. Continuava incessantemente, um longo ulular de intolerável agonia. Saltei da cama, nu e a tremer, e acendi as luzes da sala. Ruarri estava enredado nos cobertores, agitando-se e contorcendo-se e gritando como que tomado pelo delírio. Tinha o cabelo e a barba molhados e emaranhados. Os lábios encontravam-se afastados dos dentes num ricto de terror. As suas mãos cravavam-se nas cobertas como as garras de uma ave apanhada numa armadilha.

Corri para ele e sacudi-o, chamando-o. Deteve-se imediatamente, com os olhos muito abertos, e lançou-me as mãos à garganta, para me estrangular. Era forte como um babuíno, e quase perdi os sentidos. No último momento, dei-lhe um murro no estômago com toda a minha força. As suas mãos largaram-me. Dobrou-se pelo meio, arquejante, e começou a vomitar, acordando finalmente.

Conservei-me bem longe dele enquanto se recuperava. Por momentos fitou-me, sem compreender; depois abanou a cabeça, para aclarar o nevoeiro.

- Que sucedeu?

- Estavas a ter um pesadelo, a gritar enquanto dormias. Tentei acordar-te. Por pouco não me estrangulavas.

- Desculpa. - O seu peito subia e descia. O suor escorria-lhe pelo rosto. - Desculpa, seannachie. Mas nunca me acordes assim. Põe-te atrás da minha cabeça, onde eu não te possa alcançar, e comprime-me a cabeça por baixo dos ouvidos. Podia ter-te matado. Dá-me uma bebida.

Deitei uísque simples num copo e entreguei-lho. Primeiro engasgou-se, mas depois conseguiu bebê-lo.

Limpou o suor do rosto com o cobertor e riu-se, um pouco trémulo.

- É o sonho antigo - um sonho terrível. Estou amarrado a estacas numa clareira e as mulheres vêm com facas para me castrar e deixar-me entregue às formigas. Eu não estava a brincar, quanto ao medalhão da cobra. Oh, meu irmão, não estava mesmo a brincar! Quando acampávamos, à noite, dormia com uma pistola debaixo da almofada, e uma faca presa à canela, sempre com um olho aberto e outro fechado.

- Consegues dormir, agora?

- Dá-me mais um copo e fico bem.

Dei-lho.

Bebeu lentamente, desta vez, levando o copo aos lábios com as duas mãos, e observando-me por cima do rebordo.

- Não estou doido, seannachie, acredita.

- Eu sei. Também já tive pesadelos.

- Talvez seja por isso que, por vezes, te sentes meu irmão.

- Talvez.

- Acordei a rapariga?

- Não.

- Graças a Deus! Volta para a cama. Agora fico bem.

Enfiei-me de novo entre as cobertas e fiquei a vê-lo fazer de novo a cama desmanchada. Era meticuloso como uma enfermeira, alisando os lençóis, metendo para dentro os cantos dos cobertores, como se esperasse uma inspecção. Depois fez-me uma continência irónica, apagou as luzes e meteu-se de novo na cama. Dez minutos depois estava a dormir e ressonava. Permaneci acordado até uma madrugada pardacenta deslizar sobre o campo, livre dos seus fantasmas. Compreendia agora, com uma sensação de choque, o que me tinha sucedido. Dois homens e uma mulher tinham-me revelado os segredos íntimos das suas vidas, e eu era a última pessoa neste mundo habilitada para esse fardo.

Enquanto conduzia Kathleen McNeil para casa, contei-lhe a minha conversa com Ruarri e o pesadelo de madrugada. Não pretendia desacreditá-lo. Não tentei fazê-lo. Queria que ela soubesse, e achei que tinha o direito de lhe dizer que tipo de homem ele era e quais as explosivas possibilidades de qualquer relacionamento com ele. Ela mostrou-se muito profissional - excessivamente profissional para o meu gosto, porque eu estava desgastado e susceptível, depois de uma noite sem dormir.

- ... O pesadelo é normal, um bom sinal. Durante o sono os controlos são libertados, a válvula de escape abre-se. A violência com que sonhamos é a violência que já não praticamos. Isto é simplificar de mais, mas tu percebes o que eu quero dizer. O terror que está por detrás disso tudo, isso é que é triste! Sinto imensa pena dele. É novo de mais para uma tal carga de recordações. A necessidade de um irmão, isso também é um grito do coração. Não o podes rejeitar, tal como eu não posso ignorar o telefonema de um paciente que tomou uma dose excessiva de comprimidos para dormir. Até mesmo a advertência de que terá de enfrentar-te é uma súplica de perdão pelo que sabe que é. Quer que te preocupes com ele. Visa tão alta e sobe tão depressa que receia que as escoras por baixo dele cedam e caia do poleiro como o Humpty-Dumpty.

- Mas porquê escolher-me a mim para irmão?

- Porquê outra pessoa? Porque vieste para cá quando Alastair Morrison te ofereceu um refúgio? Chega o momento em que temos de nos apoiar em alguém, seja quem for, para não enlouquecermos.

- Se se escolher a pessoa errada, pode ser uma tragédia, para ambos.

- É um risco inerente à vida, não é?

- Não vejo o que possa fazer pelo Ruarri.

- O que ele pede. Não o rejeites. Mostra-te pronto a perdoar-lhe.

- Tudo?

- O número de vezes que a Bíblia indica é de setenta vezes sete.

Recordei-me de que ela não tinha sido tão compreensiva quanto ao seu próprio erro. Nem tão pronta a perdoar ao idiota com quem se tinha casado.

- A sua cirurgia é dura, doutora.

- Penso que és suficientemente forte para lhe sobreviver.

- Obrigado pelo cumprimento.

- Outra vez zangado?

- Não. Estou a admirar a tua capacidade de diagnóstico. Tenho mais uma pergunta para te fazer.

- Qual é?

- Que efeito faria em Ruarri saber quem é o pai?

- Como é possível saber? O pai está vivo ou morto? O pai quereria que ele o soubesse? Ele irá descobrir ou alguém lho dirá? Por que motivo? Reconciliação? Herança? Para ajudar o pai, ou Ruarri, ou ambos? Penso que ninguém poderia responder a todas estas perguntas.

- O problema é esse. Eu conheço algumas das respostas.

- Oh, meu querido! - As palavras saíram num ímpeto de ternura penitente. - E eu estava a ser tão má para ti. Pensei que estavas a fazer outra cena de ciúmes. Meu Deus, que trapalhada!

- E tu és a única luz que brilha no meio dela. Quanto tempo vais ficar em Harris?

- Até ao fim do Verão. Porquê?

- Enquanto estiveres cá e enquanto te sentires feliz, eu fico.

- Mas livre, sempre livre. Por favor! Nada de compromissos, por enquanto.

- Sem compromissos, jovem Kathleen. Só pelo prazer. Era fácil prometer. Era um novo dia. O Verão estava no auge. As tendas dos campistas pareciam flores berrantes nas dunas e as crianças já soltavam os seus gritos nas areias brancas e quentes. Pusemos de parte as recordações da noite anterior e seguimos, a cantar, ao longo da orla de um oceano amistoso.

Depois de deixar Kathleen em casa, tomei a estrada dos penhascos para Tarbert. Tinha todo o tempo que desejasse, por isso desci ao pequeno porto para observar a chegada do ferry de Inglaterra com a sua carga de turistas, madeiras, automóveis, fardos de lã para os tecelões, jornais, víveres, carne congelada, ferragens diversas e ilhéus que regressavam. Era uma cena movimentada e agradável, embora lhe faltasse a alegria e a confusão de um desembarque mediterrânico - os gritos, os acenos, o martelar dos cascos e os apitos agudos da polícia,; transformando tudo num divertido inferno. Os ingleses eram sóbrios nos seus prazeres, e os escoceses apresentavam um rosto azedo ao dizer as piadas mais picantes, e as cortesias num local pequeno e fechado têm de ser ciosamente reservadas. Enquanto caminhava entre a multidão, sempre alerta para tipos característicos e frases curiosas-um hábito de escritor que nunca perdi - deparei com Duggie Donald, o homem da alfândega de Stornoway.

Cumprimentámo-nos e começámos a conversar: sobre o, tempo e o negócio do turismo e se eu estava a gostar da minha estada nas Ilhas, e todas essas coisas triviais. Quando a multidão começou a rarear, convidei-o a tomar um café comigo. Ele aceitou e subimos a colina até ao hotel, onde nos sentámos na varanda a observar o êxodo matinal de pescadores e famílias atormentadas que se dirigiam para as praias a ocidente. Era um sujeito amistoso com um sentido de humor perspicaz e um bom olho para os talentos dos visitantes. E gostava de fazer surpresas. Disse-me:

- Ouvi dizer que foi apertado pela polícia local na noite passada... juntamente com uma senhora.

- Como diabo soube disso?

Riu-se, satisfeito.

- Não se preocupe com isso. Aqui basta alguém espirrar, e toda a ilha sabe. Há pouco que fazer.

- Vou começando a perceber. Morrison disse-me que o foi visitar para saber de mim.

- É verdade. Faz parte do meu trabalho. Ele definiu-o como um bom carácter.

- Então talvez possa dizer-me de que se tratava... aquela história com o Ruarri Matheson.

- Essa agora! Como hei-de explicar-lhe? Não posso em particular. Posso em geral. O nosso Ruarri é um tipo rebelde, o que não é difamá-lo. É capaz de fazer loucuras só por gozo, e algumas coisas que não deveria fazer, só pelo lucro. Estou de olho nele, e quero que ele saiba disso.

- Que tipo de... coisas?

- Por que está tão interessado?

- Tornámo-nos amigos. Ele convidou-me para ir com ele na próxima viagem de traineira.

- Ai sim?

- Eu gostava de ir. Sou escritor. Gosto de saber como as pessoas vivem. Mas gostava de saber no que me vou meter... se houver alguma coisa.

- Por que não pergunta ao Ruarri?

- Porque ele foi amável para mim. Terei de aceitar o convite pelo que parece ser.

- Então é mais seguro não saber de nada, nem por mim nem pelo Ruarri.

- Bom conselho. Vou segui-lo.

- Mas tem um senão. Se, por acaso, se visse envolvido em qualquer actividade ilegal, poderia ter de o revelar nos inquéritos da polícia e testemunhar em tribunal. Se recusasse, poderia ser acusado de cumplicidade.

- Foi bastante claro. Estou-lhe muito grato.

- Não tem de quê. Obrigado pelo café. Quando voltar a Stornoway, apareça. Pago-lhe uma bebida.

Foi-se então embora. Pedi mais café e deixei-o arrefecer enquanto deixava vaguear os meus pensamentos. Os ingleses eram os sedutores mais experientes do mundo- Primeiro violavam a rapariga, ensinavam-na a amar a criança que não queria, e depois voltavam para casa para escrever uma bíblia sobre o assunto: os laços do Império, a unidade da Common-wealth, a longa tradição de liberdade ao abrigo da lei, vender armas à África do Sul, boicotar a Rodésia, libertar os malteses, desprezar os americanos, construir elefantes brancos junto dos franceses, deixar vir os jamaicanos, não deixar entrar os paquistaneses, lutar contra os espanhóis por causa de Gibraltar, apupar os portugueses por serem antigos colonialistas, dominar os celtas e transformá-los em simpáticos e competentes servidores públicos com a promessa de florestas por toda a Highland e novas indústrias para Gales quando o carvão se esgotar e o último mineiro morrer com os pulmões enegrecidos.

Não desgostava de Duggie Donald. Era um homem inteligente e simpático, que fazia o seu trabalho para ganhar o salário de funcionário público.

Não gostava tanto de Ruarri Matheson. Era um mentiroso monumental, mais do que meio pirata, e não lhe confiava nem o meu livro de cheques nem a minha irmã. Mas num mundo cinzento, com ordem nas ruas e um polícia a cada esquina, e uma carimbadela antes de se poder fazer chichi ou ir para a cama com uma mulher - Deus nos livre! - seria a favor do homem com o lobo vermelho hasteado no mastro e os bolsos cheios de moeda livre. Mas, sendo este um pensamento sedicioso, achei que eram horas de voltar à estalagem, antes que o expressasse num bar e começassem a falar mal de mim naquela pequena ilha.

Na cozinha, Hannah deu-me um copo de cerveja e assediou-me com perguntas.

- Passou a noite fora?

- Passei, sim.

- E foi pescar ilegalmente com o Ruarri o Mactire?

- Mas quem é que lhe contou uma história dessas, Hannah?

- Pode jurar que não foi?

- Nem pensar. A Bíblia diz que não devemos jurar, e não há livro melhor!

- Onde dormiu?

- Não dormi, Hannah. A minha consciência não me deixou dormir.

- Não me admira nada. Deitou-se sozinho?

- Se o fiz ou não, não tem o direito de o saber. Mas por acaso deitei-me sozinho. E não gostei nada.

- Se o fizesse há tanto tempo como eu, havia de ver se gostava! Apanhou algum peixe?

- Disseram-me que foram apanhados alguns peixes, Hannah. Mas eu não deitei a linha à água.

- Que pena! Convinha-me um bom salmão para o almoço. Onde está a doutora?

- A tratar dos doentes, que é uma obra de misericórdia.

- Gostava que ela estivesse aqui agora, para dar uma olhadela ao Morrison.

- Ele não está bem?

- Ai! Está são como um pêro, diz ele. Mas eu sei que não. Desde ontem que anda com as guelras acinzentadas e os lábios azulados. Observei-o a subir as escadas. Não consegue chegar a meio sem fazer uma pausa. Tem no bolso um frasquinho de comprimidos que mandou o Fergus comprar, e, todas as manhãs, quando está a ler, tem um copo de água e a garrafa de brande ao lado.

- Já chamou o médico dele?

- Cortava-me a cabeça, se eu fizesse isso. Ele também é médico, diz ele, para que havia de pagar um guinéu a outro idiota para lhe medir a pulsação?

- Onde está ele agora?

- A repousar no quarto. Mas não fica nada satisfeito se o for incomodar. Não vai contar-lhe que lhe disse isto, pois não?

- Prometo.

- Não podia pedir à sua amiga que passasse por cá, como se fosse por acaso?

- Posso, mas um médico não pode andar a meter o nariz onde não é chamado, como um pescador furtivo.

- O patrão está ralado com qualquer coisa, e isso é mau para ele.

- Sabe o que é?

- Sei e não sei. Não pode compreender isto, porque não tem poderes. Mas, sendo assim, não consigo encontrar as palavras quando preciso delas.

- Será alguma coisa que eu também sei?

Por momentos pareceu retrair-se para dentro de si mesma, mas depois voltou para junto de mim.

- É, sim. Pelo menos penso que sim.

- Deixe isso, então. Vou fazer o que puder. Também gosto dele.

- Se não gostasse, não o deixava aproximar-se dele!

Falava seriamente. Quando fitei aqueles velhos olhos escuros, percebi que ela seria capaz de me enfiar uma faca entre as costelas e enterrar-me na horta, antes que eu conseguisse fazer o mínimo mal a Alastair Morrison. No entanto, tinha-me entregue um problema, e eu não sabia como lidar com ele. Eu era um hóspede naquela casa, não tinha o direito de passar uma receita ao meu anfitrião. Mesmo como seu amigo, não tinha uma posição nas suas discussões privadas com a vida e a morte. Todavia, tinha uma posição na causa entre ele e Ruar-ri. Podia revogá-la na base de desinteresse ou incapacidade- mas poderia mesmo? Kathleen McNeil tinha-me trazido a desconfortável recordação de uma coisa que preferia ter esquecido. Durante toda a minha vida, embora muitas vezes erradamente, eu tinha lutado para defender o princípio de que os homens eram irmãos, que a injustiça feita a um era uma ofensa para todos, que a doença de um membro era a doença de todo o organismo. Tinha lutado até ao desespero por essa causa. E agora queria deter-me, cancelar o pacto de sangue, deixar o resto do mundo ir para o inferno sozinho. Era esse o significado da minha fuga para as Ilhas; mas a batalha também se travava ali, e eu voltava a estar envolvido nela. Nunca haveria um fim, um repouso e uma plácida contemplação das loucuras a que conseguira sobreviver?

Quando Alastair Morrison desceu para almoçar, pareceu-me melhor do que eu esperava; um pouco pálido, talvez, com pouco apetite, um pouco menos animado que habitualmente. No entanto, animou-se quando lhe contei a nossa aventura da noite anterior, e soltou ruidosas gargalhadas quando lhe descrevi o nosso encontro com a polícia. Não lhe contei directamente o resto da história, mas tentei aproximar-me, lateralmente, como um caranguejo, com a pergunta que Kathleen McNeil me tinha feito.

- Estive a pensar no que me pediste que fizesse pelo Ruarri. Há uma coisa que gostava de saber. Se não for da minha conta, diz. Quando morreres, o Ruarri recebe uma parte da tua propriedade?

- Recebe-a toda, através de uma custódia. Esta contempla os filhos dele, se os tiver.

- Então, nesse ponto, ele fica a saber, não fica?

- Calcula, talvez. Da maneira por que a custódia está estruturada, nunca saberá ao certo. Em que é que estás a pensar?

- Um desperdício, talvez. Um desperdício do que poderiam ser uns bons anos para ti e para ele.

- Também podiam ser maus anos, meu rapaz.

- Eu sei.

- Para quê pôr essa questão, então?

Disse-lho. Tentei não fazer um drama, mas simplesmente mostrar-lhe a necessidade que Ruarri me tinha expressado, e as minhas próprias reservas em relação a ela, e as opções que se poderiam abrir a ambos. Escutou-me em silêncio. A certa altura retirou do bolso uma pequena caixa, meteu um comprimido na boca e engoliu-o com um pouco de vinho. Depois de eu terminar, ficou durante longo tempo com os cotovelos apoiados na mesa, e o queixo sobre as mãos, fitando o espaço. Depois, lenta e pausadamente, começou a falar, como se estivesse a experimentar cada frase antes de a pronunciar:

- Acredito na Providência. Sempre acreditei. O problema é que nunca vemos como ela funciona até o trabalho estar feito. Quando já se aprendeu bastante, tenta-se cooperar, mas, nessa altura, revela-se a ironia da criação. Nunca se alcança o resultado que se planeou. Na noite passada, enquanto estavas fora, tive um aviso. Nada de grave, apenas uma pancada na porta para me dizer que a vigilante negra andava a fazer as suas rondas, e talvez viesse visitar-me um pouco mais cedo do que eu esperava. Pensei em Ruarri, nessa altura. Pensei que era nestas alturas que uma pessoa se sente feliz por ter um filho em quem se apoiar quando as escadas parecem excessivamente íngremes para as subir sozinha. Mas não se chama um filho que nunca se reconheceu, só para fazer dele uma muleta. Por outro lado, Ruarri tem direitos independentes dos meus. Esses direitos foram-lhe negados durante tempo de mais. É vítima de uma conspiração de ocultação. Eu perpetuei essa ocultação e chamei-lhe protecção. Agora tu apareces e eu comprometo-te de uma maneira que não tinha o direito de fazer... Somando tudo isto, conclui-se que sou um homem muito egoísta. Não é grande conforto, com o crepúsculo já dentro de mim e a noite silenciosa a seguir-se-lhe, inevitavelmente...

O meu coração sangrava por ele, mas não podia ajudá-lo. Certa vez, muitos anos antes, tinha aprendido uma triste lição que nunca tinha esquecido. Um amigo meu tinha sido atingido por uma doença incurável. Fui visitá-lo. Senti-me embaraçado pela falta de palavras para o consolar. Disse um lugar comum bem intencionado. Ele amaldiçoou-me, numa fria fúria: “Maldito sejas! A certidão de óbito já foi passada e entregue. Deixa-me caminhar para o cadafalso com dignidade.” Não ousei negar a mesma dignidade, agora, a Alastair Morrison. Aguardei, beberricando o brande e fumando um cigarro, até que ele prosseguiu.

- Evidentemente, também nos podemos entregar à culpa. Queremos que alguém nos diga que estamos perdoados. Mas não estamos, pelo menos sem uma reparação, sem que a pessoa ofendida cancele a dívida que não podemos pagar.

- Ele não pode cancelá-la sem conhecer o nome do devedor. Além disso, estás a falar em termos muito limitados, não estás?

- Que queres dizer?

- Só te ouvi falar de débito e crédito, de culpa e perdão. E então o amor?

A palavra sobressaltou-o. Foi quase como se eu tivesse pronunciado uma obscenidade.

- Valha-nos Deus! Pensas que isso é possível, agora? -Penso. O teu filho tem estatura, Alastair... e uma veia de rufião, também, mas uma estatura e um espírito e uma necessidade premente que o fazem tentar alcançar as estrelas. Por que não trazê-lo aqui para o avaliares por ti próprio? Estou a dever-lhe uma refeição. Vou convidá-lo.

Não respondeu imediatamente. Começou a dar voltas à sugestão, como se procurasse uma falha que lhe permitisse rejeitá-la. Depois, com um encolher de ombros e um pálido sorriso, rendeu-se.

- Assim seja, então. Convida-o. Diz-lhe que traga uma amiga, se quiser. E tu convida a Kathleen McNeil. Para quem aprecia a ironia, vai ser uma noite muito interessante.

- Talvez fiques agradavelmente surpreendido.

- Deus me dê boas palavras nessa noite, meu rapaz! E agora podes pôr-te daqui para fora, antes que eu faça figura de idiota.

Meti no carro uma cana e um par de botas impermeáveis e fui-me a caminho de Stornoway. Tinha compras a fazer e, no caminho de regresso, experimentaria lançar uma ou duas vezes a linha num dos pequenos lagos perto de Leurbost, onde ouviria cotovias e melros a cantar para mim enquanto pescava. )e de qualquer forma, sentia-me bem por estar só. Começava a sentir-me impertinente, de novo, desgastado pelo contacto demasiado íntimo com um pequeno grupo de pessoas intensas e inteligentes. Depois da primeira excitação do espaço e da novidade, estava a sofrer o efeito reverso da síndroma das ilhas: uma sensação de reclusão, de monotonia paisagística, de exclusão e alienação. Para um espírito em desordem, não existia um Paraíso permanente, apenas sugestões e fragmentos, ilusórias harmonias.

A minha primeira visita foi a uma livraria. Precisava de uma gramática e um dicionário de gaélico. A rapariga sardenta por detrás do balcão olhou-me como se eu estivesse a pedir-lhe uma remessa de pedras lunares. Ela própria falava o gaélico, evidentemente, mas nunca tinha visto um único livro em gaélico. Talvez eu devesse escrever para o Ministério da Educação ou ir até à Sociedade Gaélica, cujo escritório talvez estivesse aberto. Música gaélica? Isso deviam ter na loja das televisões na esquina seguinte. Ela não a apreciava muito. Tocavam-na na altura dos jogos dos Highlands e por vezes num concerto, mas não nos bailes. Lá tinham tudo o que havia de novo, os Beatles e os Stones e a música soul, coisas desse género, percebe? O facto de eu perceber, deu-lhe um pouco mais de esperança em relação à minha sanidade mental.

Também não encontrei a música; mas passei uma instrutiva meia hora com um antiquário idoso, que me vendeu uma prenda para Kathleen McNeil - um medalhão georgiano numa fina corrente de ouro trabalhado. O negócio não andava muito bom, disse-me ele. A maior parte das coisas boas ia para a Ilha, para Edimburgo e Londres, e nas Lews não havia nem dinheiro nem gosto para as belas coisas antigas. Viviam do tweed e da pesca; mas metade do dinheiro voltava para a Ilha, em barris de cerveja vazios, e a televisão estava a fazer com que os jovens se sentissem descontentes com a sua vida. Leverhulme tinha tido a ideia certa, mas estava meio século adiantado em relação ao seu tempo. Havia aquele jovem, o Ruarri Matheson, que tinha grandes ideias e gostava de falar de alto, mas o seu passado estava contra ele, e, embora ele gastasse dinheiro como se tivesse os bolsos rotos, nunca chegaria onde queria. A gente das Lews era teimosa e obstinada - ele era de Barra e casara na ilha - e ressentiam-se de alguém que queria fazê-los acreditar que era importante. Se eu não me importasse de pagar um pouco mais, arranjava-me uma caixinha jeitosa para o medalhão. As mulheres notam logo estas pequenas coisas, não é verdade? Paguei-lhe o que me pediu - e não foi pouco, apesar da falta de procura nas Lews -, segui pela rua estreita e voltei para o porto.

Aí havia uma certa excitação. Tinha estacionado uma ambulância no cais de pedra da bacia e reunira-se uma pequena multidão à sua volta. Um cargueiro alemão tinha sofrido uma explosão numa das caldeiras e dois maquinistas tinham ficado muito queimados na sala das máquinas. O salva-vidas tinha sido chamado para levar os feridos. Era uma coisa de rotina, disseram-me. Uma missão vulgar. Havia sempre acidentes no mar. Recordavam-se dos tempos da guerra, muito piores, quando havia submarinos por ali e nunca se passava uma semana sem recolherem uns pobres diabos com os pulmões cheios de gasolina ou membros arrancados ou com a pele arrancada da cabeça aos pés. O livro de registos de admissão do hospital continha nomes de homens de todas as nações debaixo do sol, e alguns deles tinham morrido e estavam enterrados na ilha, lada a lado, amigos e inimigos, de que o mar cruel tinha feito irmãos.

Foi grande a agitação, com todos a falar ao mesmo tempo, quando o salva-vidas acostou ao cais, e depois fez-se silêncio enquanto os homens eram retirados do barco e amarrados às macas, com a cara e as mãos cobertos com gaze branca. O médico, um sujeito corpulento, incongruente num fato de tweed e botas de pesca amarelas até à cintura, subiu para a ambulância atrás deles, e o drama daquele dia terminou. Enquanto a multidão dispersava, ouvi uma mulher dizer a outra:

- Pelo menos o meu Jamie fez os seus estudos. É um que o mar não há-de apanhar.

Quase parecia uma invocação. O mar era um inferno que todas as mulheres odiavam. Lutavam contra ele como os missionários lutavam contra os antigos demónios com preces e exorcismos. Por vezes ganhavam, e a vitória parecia-lhes estéril quando viam os seus homens amargurados Pelas esperanças perdidas e pelos dias sem trabalho do inverno. Outras vezes perdiam, porque a atracção do mar era forte de mais: o chamado exterior de homens enclausurados tempo de mais numa terra demasiado estéril, a promessa de fortuna e aventura, a sedução da experiência exótica, longe dos olhares dos mais velhos e da igreja. Mas, vencedoras ou vencidas, viúvas ou expectantes, eram todas irmãs no seu ódio e no seu medo. Até mesmo as jovens e levianas nos diriam que não recebiam de bom grado os marinheiros visitantes. Queriam os seus homens em casa e em segurança nas suas casas durante a noite - com ou sem a bênção da igreja.

Ouvi um grito:

- Ei, seannachie! - e vi Ruarri, com a cabeça a sair da janela de uma casa do leme, a fazer-me sinais. O seu barco estava atracado em terceira fila, pelo que tive de passar por dois outros convezes para chegar junto dele.

Estendeu-me uma mão suja de óleo para me puxar para bordo, e depois entregou-me um pouco de desperdícios para limpar a minha mão.

- Hoje sou mecânico. A chumaceira principal estava solta. Mas os rapazes já quase acabaram o trabalho. Esta é Helen I... assim chamada por ser a primeira de mil traineiras, segundo espero! O Iain, que está mergulhado em óleo até as virilhas, lá em baixo, é o mestre desta. Eu comando a Helen II. É aquela além, com a tinta nova! Onde está a Kathleen?

- A trabalhar. Eu vim fazer umas compras e pescar um pouco a caminho de casa.

- Manda a pesca passear! Fica aqui e toma um copo comigo e com os rapazes.

- Está bem! Também tenho um convite para ti. Gostava que fosses jantar comigo na estalagem. Diz quando te convém. Leva uma rapariga, se quiseres. Eu levo a Kathleen.

- Na estalagem! - Emitiu um longo assobio. - Och aye! O Mactire começa finalmente a frequentar a sociedade! Sabes que nunca comi uma refeição na estalagem, em toda a minha vida? De quem foi a ideia?

- Minha. A festa é minha. Eu é que pago as despesas. Morrison também será meu convidado. Quando estás livre?

- Vamos ver! Saímos amanhã de madrugada e vamos estar dois dias fora. Digamos na sexta-feira.

- Pois seja sexta-feira. Sete e meia para umas bebidas. Jantar às oito. Levas alguém?

- Levo. - Sorriu, um pouco embaraçado. - Mas quem, isso precisa de ser cuidadosamente ponderado. Depois digo-te. Agora vem cá abaixo que eu mostro-te o que é uma verdadeira traineira. Nada de barcos velhos para Ruarri o Mactire!

Não estava simplesmente a gabar-se. Naquele barco tinham sido empregues amor e dinheiro. O dinheiro tinha ido para os grandes diesels e para o painel de instrumentos eléctricos: radar, sonar, radiogoniómetro, piloto automático e outras coisas mais. O amor via-se nos convezes esfregados e nos porões limpos, na pintura brilhante e no óleo recentemente aplicado nos guinchos, e no compartimento para o peixe sem mau cheiro nem lixo, e em todas as engrenagens e ferramentas bem arrumadas, como se estivéssemos num navio almirante e não num barco de pesca de arenques, pequeno e prático. E havia força num mestre capaz de fazer com que uma tripulação cansada lavasse o barco e arrancasse a ferrugem e a crosta de sal depois de dias inteiros a vomitar as tripas na ondulação do Atlântico. Podia parecer um trapaceiro e um patife para a sóbria gente da cidade, mas na estreita irmandade do mar era medido pelo que valia: um mestre seguro, um comandante cujos motores estavam limpos, e cuja tripulação era capaz de odefenderelutarporele em qualquer bar de TrutoeTrondheim.

Não se importavam com as suas bravatas, com a sua arrogância insolente e violenta. A idade e as pancadas do mar em breve o acalmariam. Com duas traineiras e um iate e o seu terreno, podia comprar e vender a maior parte deles; mas continuava a ser um marinheiro no activo, o que o mantinha dentro da irmandade. Não era um daqueles comerciantes ou banqueiros importantes, que pensavam que o dinheiro podia comprar as pessoas, corpo, alma e virilidade, e que não se importavam de mandar os outros para a falência se as coisas corressem mal. Era um homem duro e perigoso; mas era incapaz de deixar um homem sem dinheiro no bolso para uma bebida, ou uma família em dificuldades, só porque um pescador estava doente ou aleijado.

Registo estas coisas porque ouvi algumas e pressenti as outras, enquanto passávamos pelos convezes de outros barcos para visitar o Helen II. Tinha, e continuo a ter, poucos motivos para gostar de Ruarri o Mactire. Continuo a ter boas razões para o odiar. Mas respeito por ele, tinha-o e tenho, e presto-lhe o meu tributo como os outros.

Ele tinha aquilo que falta a muita gente no nosso mundo monótono, o sentido do estilo e o talento para o ritual. O estilo era algo camaleónico, sempre a mudar conforme a companhia. O ritual era um instrumento de poder e ele servia-se dele com a arte de um conhecedor. Ir “beber com os rapazes” era um exemplo. Quando os hotéis abriam, verificava-se uma migração geral das docas para os bares-não uma corrida em pânico, mas um movimento firme, determinado, como o dos animais da selva para a lagoa. Ruarri, pelo contrário, retinha-se. Não se submetia à indignidade da primeira corrida para o bar, do primeiro clamor pelas bebidas. Reteve-me na sua cabina, ansioso por uma bebida, até a confusão ter amainado. Depois levou-me, em passo lento, pela doca deserta até àquilo a que chamava “o meu pub”, uma modesta taberna de pedra, sob o letreiro “O Óculo do Almirante”.

Penetrámos numa atmosfera sofucante de cortar à faca e deparámos com uma multidão que fazia três filas em volta do balcão; mas a multidão abriu-se para o deixar passar, e dez tipos robustos no extremo oposto gritaram a dar-lhe as boas-vindas e apertaram-se, com as suas raparigas, nos bancos, para nos arranjar lugar, e tínhamos as bebidas na mão ainda antes de conseguirmos sentar-nos. Ruarri apresentou-me ao grupo como “um amigo meu, um seannachie, muito conhecido noutras paragens, e que também não é mau marinheiro”. E depois, enquanto eles quase me arrancavam a mão, deu uma ordem:

- Por isso vamos falar em inglês, porque não há segredos entre nós e ele ainda não teve tempo de aprender a língua. - Fiquei-lhe grato por esta amabilidade. Não há nada mais desconcertante que o hábito celta, mau aqui, mas pior em Gales, de pôr de parte os estrangeiros precisamente quando a conversa começa a tornar-se interessante.

Havia uma rapariga para Ruarri, reparei nisso: uma loura de grandes seios, e um penteado tipo colmeia, uma boca a pedir beijos e um olhar muito possessivo. Perguntei a mim mesmo se seria aquela a sua convidada para ir à estalagem, embora não tivesse dúvidas de que tivesse sido convidada dele mais de uma vez na quinta. Estava sentado com um braço em volta da cintura dela e beijava-a sempre que lhe apetecia, e bebia do seu copo quando ela lho oferecia. As bebidas desapareciam com uma velocidade assombrosa. Cada homem tinha de pagar uma rodada, e um copo vazio durante muito tempo valia uma reprimenda ao atrasado. A conversa estava recheada de expressões obscenas, que não pareciam incomodar fosse quem fosse. Isto também fazia parte do ritual - conversa de homens num local para homens, e as mulheres que aguentassem. Ao que parecia, todas elas aguentavam, e aguentariam muito mais na cama, como diziam abertamente.

Ruarri comportava-se como um actor consumado, no papel que tinha criado para si próprio. Acompanhava-os, bebida a bebida, piada a piada, e a audiência adorava-o. Os rapazes riam a bandeiras despregadas com as histórias dele, e não havia uma rapariga no grupo que não tirasse a roupa a um estalo dos dedos dele. Todavia, apesar do barulho, conseguia transmitir ordens quanto ao trabalho a fazer: víveres a encomendar, papelada a recolher da administração do porto, um telegrama a enviar, um telefonema a fazer a um membro ausente da tripulação. Ruarri tinha-os treinado bem. Reparei que cada homem que recebia uma ordem a anotava numa agenda e que as agendas eram todas iguais. Um tipo descuidado, que se tinha esquecido da sua, foi censurado abertamente e mandado a casa para a ir buscar. Conversaram sobre o trabalho feito na quinta e da pesca do dia seguinte. Depois alguém falou da viagem à Noruega. Apurei o ouvido, mas Ruarri afastou o assunto com um franzir do sobrolho e uma breve frase em gaélico. Todavia, nesse momento havia muito barulho e um dos rapazes não ouviu o aviso. Soltou uma gargalhada e berrou:

- Que é que dizes, Ruarri? Vai ser uma boa porrada para os tipos do Ulster...

O que sucedeu então só pode ser descrito em movimento lento, sem a verdadeira noção da rapidez com que ocorreu. Ruarri saltou do lugar como um gato. Agarrou o rapaz pelo nariz com os dedos, torcendo osso e cartilagem, de modo que o arrancou do banco e o fez ajoelhar. No mesmo instante, o grupo pôs-se de pé, ocultando-o da vista. Depois Ruarri deu um pontapé, com a ponta da bota, no plexo solar do rapaz, tirando-lhe o fôlego. Antes que ele caísse no chão, dois dos seus amigos já lhe metiam os braços por baixo dos ombros, içando-o e arrastando-o para fora do bar, como se estivesse perdido de bêbado. Depois, toda a gente voltou a sentar-se e Ruarri recomeçou a rir e a gritar para as criadas:

- Os outros continuam sóbrios, meninas! Mais umarodada e um duplo para o nosso amigo seannachie! Está atrasado em relação a nós.

O exercício tinha sido perfeito, como uma táctica de comandos. Pancada primeiro, risos em seguida; e, mesmo tendo visto, era difícil de acreditar. Os rapazes estavam a rir-se e as raparigas a chilrear um segundo depois, e as pessoas que bebiam no bar nem tinham pestanejado. Eu sabia que Ruarri estava à espera de um comentário ou de uma reacção da minha parte; mas que o diabo me levasse se eu ia dar-lhe essa satisfação.

Recebi a bebida e brindei aos presentes e depois paguei uma rodada para retribuir a cortesia e poder ir-me embora.

Ruarri acompanhou-me à porta e ficámos por um momento na rua deserta.

- Jantar na sexta-feira, então, seannachie. A menos que tenhas mudado de opinião.

- Conto contigo, Ruarri.

- E eu vou portar-me bem.

- Nunca duvidei disso.

Ele sorriu, então, já sem arrogância, mas pesaroso e na defensiva.

- Foste tu que me deste esse nome: Senhor das Ilhas. Agora viste o que pode custar usá-lo.

Enquanto seguia, no carro, para Laxay, no longo crepúsculo perfumado pela urze, dei comigo a braços com uma consciência perturbada. O acto de violência no bar tinha-me revoltado. Mas o que me revoltou ainda mais foi a tácita aprovação que eu tinha manifestado.

Detesto os opressores. Fui muitas vezes intimidado, em criança. Odeio a brutalidade. Vi que bastasse, na guerra, por parte de camaradas e inimigos. A tortura repugna-me. Ainda tenho pesadelos quando leio notícias a esse respeito, com excessiva frequência, nestes tempos selvagens. Recordo-me do meu horror nocturno durante a guerra do Pacífico: o de poder ser capturado durante uma patrulha e tratado como o meu amigo, a quem um cirurgião japonês arrancou o coração em vida, para o fazer dizer onde se escondiam os observadores costeiros. Se, no final de uma vida não demasiado nobre, tiver algum direito a clemência, será por isto: por me ter arriscado na luta contra a tirania em todas as suas formas, pública e particular; por ter defendido a liberdade de cada homem expressar a sua opinião em público e ser defendido mesmo por aqueles que não concordam com ele; e nunca vendi a minha pena por dinheiro, nem o meu voto por vantagens pessoais.

Todavia, todavia... Ali estava eu, cedendo a uma secreta e perversa admiração por um calculado acto de crueldade.” Porquê? Embora me sentisse confuso, sabia que a questão era radical para mim. Faltar-me-ia a pura coragem animal para arriscar um tal acto? A isso tinha de responder que sim. Não possuo as qualidades de um herói. Já tive de conduzir homens, mas a minha capacidade de chefia provinha de manipulação, por vezes de conhecimentos superiores, mas nunca da qualidade ou mesmo da postura da bravura. Estaria implícita a disciplina? A decisão instantânea de proteger o grupo, a família, contra um membro aberrante? Aceitar a chefia é aceitar uma responsabilidade, e não tolerar falha alguma da nossa parte ou da parte de outrem. Sim, igualmente sim; mas ainda não bastava. Tinha de haver um outro motivo; mas eu continuava a evitá-la, como um cavalo que empanca, com medo do salto sobre a água.

Finalmente tive de o enfrentar, porque não tinha confidentes a quem pudesse contar a história e deixar que as suas opiniões me absolvessem. Alastair Morrison estava doente e eu tinha tomado o encargo de efectuar uma reconciliação entre ele e o filho, para o caso de a morte o atingir inesperadamente. Não podia contar a Kathleen McNeil, para não me degradar de novo pelos ciúmes de que ela me acusara.

Ciúme - era essa a resposta radical. Ciúme e a soma de todas as inseguranças pessoais que o provocavam. Admirava Ruarri e odiava-o. Aquilo que eu não era, era-o ele. Até mesmo os seus vícios eram superiores às minhas pequenas virtudes. Para recuperar a minha dignidade, para proteger Kathleen McNeil da sua nítida atracção, tinha de me opor a ele. Para me opor a ele, tinha de usar todas as tácticas, por muito baixas que fossem. Para as usar, tinha de as justificar, de provar que eram boas só porque eram necessárias.

Esse momento de conhecimento, na estrada de Stornoway para Laxay, foi o momento da minha auto-exposição. A proposição tornou-se-me tão clara como a qualquer causídico. Considerava-a falsa, vil e imoral. Todavia resolvi-me por ela. E, uma vez decidido, senti-me calmo: calmo como um atirador no alto de uma árvore, sabendo que, no momento seguinte, irá destruir a imagem de si próprio.

 

ORuarri que veio jantar na sexta-feira à noite era um homem que eu nunca tinha visto. Envergava o trajo completo das Highlands, e usava-o com o panache do próprio Senhor das Ilhas. Desde os sapatos de fivela até ao kilt Matheson, e ao jabot de finas rendas preso com um alfinete de ouro, apresentava-se tão vistoso e elegante como qualquer escocês de um anúncio de bom uísque. Até as suas maneiras se tinham transformado e, quem nunca o tivesse conhecido, não notaria a mudança. Falou com suavidade e respeito com Morrison, com Kathleen e comigo, descontraído e cortês. Um pouco mais e seria excessivo; mas ele tocava a nota exacta: em atenção à casa onde entrava pela primeira vez.

A mulher que o acompanhava foi uma surpresa, também. Não era uma rapariga do campo, mas uma autêntica beleza irlandesa - cabelos ruivos, olhos verdes, pele de pêssegos com natas, um suave sotaque de Dublin e maneiras a condizer. O seu nome, segundo a nota de consignação de Ruarri, era Maeve O'Donnell. Criava cavalos de raça no Eire para ganhar corridas na Inglaterra e na França. O que estava a fazer na Lews e como diabo Ruarri tinha conseguido conhecê-la foram questões que ficaram cortesmente no ar.

Alastair Morrison ficou impressionado. Eu próprio fiquei impressionado. Kathleen McNeil mostrou-se calorosa mas prudente, o que não achei mau para os meus próprios interesses. Compensava sempre haver outra mulher bonita em cena. Até mesmo a velha Hannah ficou tão surpreendida que não resistiu a ser indiscreta.

Ao entrar, apressada, com uma bandeja de canapés, deteve-se subitamente, olhou ambos de alto a baixo e emitiu uma explosão exultante de louvores.

- Que Deus nos ajude e proteja! Mas é o próprio Bonnie Charlie, que regressa das águas! O teu gosto melhorou, Ruarri Matheson. Espero que tenhas juízo suficiente para não deixares fugir essa beldade!

Isto tirou-nos um peso de cima. Já podíamos rir e começar a divertir-nos. Servi as bebidas para que Morrison pudesse iniciar a conversa à sua maneira. Parecia melhor, naquela noite. Tinha descansado durante a tarde; estava com boas cores; e, independentemente da sua tensão interior, conseguia mostrar uma calma e cortês atenção para com os seus convidados. Eu não tinha falado a Kathleen McNeil da sua doença. Tinha justificado o jantar apenas como a retribuição da amabilidade de Ruarri Mathson, depois da noite que tínhamos passado em sua casa. Não duvidava da discrição dela, mas a situação já era bastante crítica sem que houvesse mais uma corrente subjacente de mal-estar.

Ao registar agora o que se passou, até me custa a crer na minha própria temeridade, ao arriscar formar aquele grupo: pai e filho, um sabendo que o eram, o outro ignorando o relacionamento; o filho e eu, rivais pela mesma mulher; ela, ainda não comprometida com qualquer de nós, e eu, nutrindo um conhecimento secreto como arma para a conquistar; Maeve O'Donnell, importação de um território da vida de Ruarri que nenhum de nós conhecia. A intenção inicial era boa - continuo a dar-me esse crédito - mas a mistura era explosiva, e era de espantar que não nos tivesse explodido nas mãos durante os dez minutos iniciais.

As primeiras tentativas de conversa foram um pouco hesitantes, mas, depois de nos instalarmos com as bebidas nas mãos e a lareira a aquecer-nos, conseguimos começar a conversar com facilidade - pelo menos com a facilidade possível entre pessoas que estavam a actuar sob fricção com a esperança de alcançar a verdade no final. A recordação do que dissemos é vaga, neste momento, mas os rostos continuam vivos, bem como as atitudes e as tonalidades. Morrison, recostado na sua cadeira, com os cabelos brancos afofados em volta das orelhas, a interrogar Ruarri sobre os seus planos e projectos; Ruarri, sóbrio e deferente, a explicar-lhos com factos e números e um sólido bom senso; as duas mulheres, esgrimindo tranquilamente com modas e viagens, e a inevitável surpresa de terem conhecimentos em comum; eu, retraído, escutando apenas em parte, segurando o medalhão dentro do bolso e tentando encontrar palavras para o oferecer. O jantar seria uma longa refeição. A comida de Hannah e o vinho de Morrison deveriam fazer-nos perder o ar formal. Maeve O'Donnell poderia ajudar também. Se estava a avaliá-la bem, era uma mulher demasiado animada para permanecer durante toda a noite na sombra de outra mulher. Sabia mais do que parecia, e lia algo mais que o Turf Register e os suplementos dominicais.

Houve um pequeno problema quanto aos lugares. Eu tinha convidado, e Morrison argumentou que eu devia ficar na cabeceira da mesa.

Disse-lhe que eu tinha o direito de decidir do protocolo, e fi-lo sentar na sua própria cadeira, com as duas mulheres à sua direita e à sua esquerda. Eu sentei-me ao lado de Maeve O'Donnell, com Ruarri à minha frente, do outro lado da mesa. Morrison deu graças e vi a O'Donnell benzer-se, o que me disse qual era a sua igreja mas não me deu uma informação firme sobre a sua virtude.

Ruarri, para minha surpresa, conseguiu fazer um cumprimento cortês.

- Gosto disso. É a primeira refeição que vejo abençoar em muitos anos.

Morrison ficou satisfeito, e eu fiquei satisfeito por ele; mas Hannah, de pé junto da mesa para servir o caldo, teve de fazer um comentário.

- Tanto pior, meu rapaz!

Morrison franziu o sobrolho, mas Ruarri riu-se.

- Venha cozinhar para mim Hannah, que eu abençoo-te três vezes por dia.

Ela não respondeu, mas vi um brilho de aprovação nos seus olhos escuros e astutos.

Ruarri, todavia, acrescentou um comentário inesperado.

- Talvez lhes pareça estranho, mas há alturas em que não me importava de ancorar numa igreja qualquer. Na Livre, nem pensar. Na grega, talvez, ou na romana. Parece-me que têm mais experiência de tipos como eu.

Seria uma manobra ou um apelo? Era tão escorregadio, que se tornava difícil saber.

Foi Maeve O'Donnell que pegou no assunto.

- Davas-te bem na Irlanda, Ruarri. És bom a beber e lento a casar. Quem sabe, talvez acabassem por te fazer padre.

- E eu contratava-te como minha governanta!

- Era o que faltava. Mais valia vender-me no Phoenix Park!

- Pelo menos sempre valias mais que aquela pileca que andas a tentar vender-me.

- Aquela pileca, Ruarri Matheson, vai ganhar em Curragh em Junho próximo, e tu vais fartar-te de chorar!

Agora estávamos em terreno aberto, seguros e comecei a sentir-me mais descontraído. Recordei a Morrison aquele jockey club real em Banguecoque, onde todas as corridas eram viciadas e se podia ganhar uma fortuna se se conhecesse o príncipe certo no dia certo, ou a amante do mercador chinês que fosse o primeiro a ser indicado na lista. De Banguecoque foi um salto até Chiengmai; e, quando o salmão foi servido, Morrison estava entregue a uma torrente de reminiscências dos seus anos nos planaltos. Eu queria que ele falasse. Queria que Ruarri soubesse que género de homem era e quanta bondade e interesse tinha despendido durante os seus solitários anos de penitência.

As minhas boas intenções só serviram para mais uma pedra ao inferno particular de Alastair. Ruarri tinha estado na Tailândia também. Tinha passado seis meses a transportar ópio para o Laos com um piloto francês meio louco.

Quando o seu patrono tailandês tinha sido suplantado por outro mais rico, com um serviço de transporte mais barato, ele tinha tido de pagar subornos para conseguir safar-se e tinha partido para Hong-Kong.

Não contou a história para se vangloriar, mas com uma espécie de humor amargo: uma das muitas loucuras do catálogo de um jovem desembaraçado, que descobriu que o mundo está cheio de patifes piores que ele. A ironia residia no facto de Chiengmai ser um posto de comércio dos mercadores de ópio, e pai e filho deverem ter estado muitas vezes a meia milha um do outro.

Não ousei olhar para Morrison. Tentei conduzir a conversa para caminhos mais seguros, falando dos problemas que tinha tido ao tentar escrever um livro no Vietname.

Desta vez, pelo menos, fui bem sucedido, graças a Maeve O'Donnell, que me exigiu uma boa razão para não ter escrito um livro sobre a Irlanda. Nesse aspecto, estava à altura de lhe responder. Todos os irlandeses que tenho conhecido me ofereceram vinte enredos e uma missão para contar a verdade sobre a terra dos meus pais - embora tivesse sido a minha mãe e não o meu pai quem estabeleceu a ligação.

- Vou dizer-lhe por que não, Maeve. A Irlanda é um país encantador. E se todas as mulheres fossem tão bonitas como a Maeve, seria a entrada para o paraíso. Mas desde que eu dava pelo joelho a um burro de funileiro... uma frase que o meu avô usava tantas vezes que fiquei farto dela... que me atiram com o país à cara: os seus santos, os seus sábios, as suas virgens e mártires, Brian Boru, Oliver Cromwell, a Fome, os Fenianos, Parnell, Daniel O'Connell, Clarence Mangan, Tommy Moore, Maud Gonne, a Revolta da Páscoa, os Negros e os Castanhos e o IRA. Quem precisa de mim, quando têm tudo isso, além de Bernard Shaw e Jimmy Joyce em boa medida?

Maeve O'Donnell não se deixava vencer facilmente. O meu humor tinha caído em saco roto. Havia um brilho de luta nos seus olhos verdes e um timbre de aço na sua doce voz de Dublim.

- Isso é tudo passado! Estou a falar de agora. Voltámos à guerra civil. Não lê os jornais?

Foi Ruarri que me resgatou, salvando também a sua dama: -A verdade, Maeve, é que ele não consegue ler uma linha, nem mesmo para salvar a sua alma. É um seannachie à moda antiga. Faz tudo graças a uma memória prodigiosa e aos serviços de belas raparigas que escrevem por ele. Depois aproveita para as seduzir a todas, segundo me disseram.

Aquele era o velho Ruarri, e um olhar de Alastair Morrison disse-me que gostava mais dele que do sujeito bem falante do anúncio de uísque.

Maeve O'Donnell abrandou o andamento - com foices nas rodas da quadriga!

- Essa agora! Nunca teria imaginado. Parece tão culto. Não está a pensar em casar com ele, pois não, Kathleen?

- Ele já me pediu - disse ela, com uma voz branda e doce como mel. - Mas já lhe disse que não podia aceitá-lo até aprender a escrever para poder passar cheques!

Fomos todos salvos pelo assado e pela velha Hannah que o servia, com os ouvidos alerta para os escândalos.

Enquanto trinchava a montanha de carne, Alastair Morrison decidiu-se por outra linha de conversa.

- É um investidor, Ruarri. Sabe que o governo está a fazer empréstimos para desenvolver o turismo. Que faria com um lugar como este, se fosse eu?

- Com o terreno que tem? E os direitos de pesca que lhe pertencem?

- Naturalmente.

- Primeiro pensaria na estação alta, que é curta e insegura. Por isso teria de fazer dinheiro em três meses, como fazem no Mediterrâneo. Durante o resto do ano fecha-se, para cortar as despesas. Esta casa? Alterava-a por dentro. Arranjava um apartamento para o gerente e transformava o resto numa verdadeira estalagem: sala de jantar, bar, sala de televisão e uma salinha sossegada para os mais velhos lerem e escreverem postais. Depois ia ter com os suecos... não, melhor ainda, com os alemães orientais ou os polacos. Dava-lhes um modelo de casas que conviesse ao terreno e ao clima. Comprá-las-ia prefabricadas e montá-las-ia em volta da costa. Comprava barcos à mesma gente, um barco para cada casa, cada um deles com um motor fora de borda. Pedia rendas caras e preços elevados pelas bebidas e pela comida, e faria um contrato de três anos com uma agência de viagens para noventa por cento de ocupação. Tudo o que viesse a mais seriam sopas no mel.

- Desculpe-me a pergunta, meu rapaz... - Morrison fez uma pausa, com a faca de trinchar no ar - tirou tudo isso da manga, ou já tinha pensado antes no assunto?

- Pensei nisso todas as vezes que por aqui passei.

- Gostaria de comprar isto?

- Se tivesse dinheiro, passava-lhe já um cheque. Mas não tenho. Estou sem disponibilidade durante os próximos doze meses, pelo menos. Mas se fala a sério gostaria que me desse a opção para a primeira oferta.

- Falo a sério, meu rapaz. Não agora, mas possivelmente em breve. Gostaria de falar consigo a esse respeito.

- Venho falar consigo quando quiser, é só indicar a hora.

- Detestaria ver esta bela casa estragada. - A minha Kathleen era muito directa. Fiquei satisfeito por o remoque ser para Ruarri e não para mim.

- Estragada! - Voltou-se para ela, impacientemente. - Ora essa, rapariga! Se o edifício for bom e se adaptar à paisagem, onde está o estrago? As Ilhas estão a morrer. Dentro de meia geração estarão completamente mortas, a menos que consigamos trazer gente para cá. O turismo é a única coisa que a pode fazer voltar... homens da construção, jardineiros, cozinheiros, criados e criadas, e carniceiros e padeiros e outros que tal. Não consigo vender uma lagosta em Londres se pesar mais de vinte e seis onças. Eu estou a retirá-las dos viveiros com três ou quatro libras cada uma, e não há quem as coma. Dêem-me um bom cozinheiro e uma boa sala de jantar, e os hóspedes hão-de gritar por lagosta Newburg a preços de Nova Iorque!

- Isso é um argumento sediço. Primeiro há que pensar na qualidade de vida, e em todas as coisas que se perdem quando as alteramos sem pensar no futuro. Esse é o horror máximo da ética puritana. O trabalho é sagrado. O dinheiro é a chave da nova terra e do novo céu!

- E praticamente é! O dinheiro é a variedade e o impulso que nos faz viver. O dinheiro compra a liberdade. O dinheiro fez de si médica. O dinheiro transformou desertos em terra arável. O dinheiro levou homens à Lua. O dinheiro é o que nos impede de nos transformarmos em pequenos vermes cinzentos a enterrarem-se na terra para ficarem seguros.

- Há quem nunca consiga tê-lo, e são esses a maioria no nosso planeta. -Falava num tom severo. -Há quem pretenda apenas o suficiente para ter comida, um abrigo e dignidade. Onde se encaixa?

A reprovação implícita feriu profundamente Ruarri. A sua resposta foi abrupta.

- Não posso saber. Não nasci rico. Não me ensinaram a ser rico em coisa alguma.

- Bolas! - disse Maeve O'Donnell. - Nunca passaste fome na tua vida, Ruarri Matheson, de que é que estás a queixar-te? Simplesmente adoras o dinheiro. E eu também. Mas não precisas de escrever um evangelho sobre o assunto.

Por momentos, pensei que ele ia estrangulá-la; mas, de súbito, começou a rir, como se ela tivesse dito a maior piada desde Rabelais.

- Ela tem razão! Que Deus me perdoe... e as minhas desculpas também para si, Mr. Morrison!, ela conhece-me melhor do que eu me conheço. Só por isso, nunca me casaria com ela. Sabem o que faz esta mulher... este doce e elegante pedaço de mulher? Cria cavalos. Vende-os a príncipes e a potentados. Angaria votos na altura das eleições. Fomenta a guerra civil entre...

- Se eu fosse vinte anos mais novo, quem se casava com ela era eu - disse Alastair Morrison.

- Experimente, Mr. Morrison - disse Maeve CDonnell. - Estou mesmo no ponto.

Tinham-se dito diversas coisas ousadas, e eu achei que bem podia vender o meu peixe e tentar a minha sorte. Por isso chamei-os à ordem e fiz um pequeno discurso.

- Por falar em casamento, minhas senhoras e meus senhores, Kathleen McNeil anunciou, sem aviso prévio, que eu lhe tinha pedido que casasse comigo. Ruarri Matheson já tornou bem claro que eu não sei ler nem escrever. Por isso vou repetir o pedido e fazer um pequeno depósito de boa fé e com a presença de testemunhas.

Dito isto, dei a volta à mesa e depositei o medalhão, na sua caixa aberta, diante de Kathleen. Sabem como fazemos augúrios connosco próprios. Fiz um, nesse momento: se ela pusesse o medalhão, estava garantido; se ela voltasse a colocá-lo no estojo, estava perdido. Ela segurou-o nas mãos durante longo tempo, dando-lhe diversas voltas, apalpando as superfícies desgastadas, e a corrente, flexível como seda. Eu estava de pé por detrás dela, pelo que não pude ver o seu rosto. Depois estendeu-me o medalhão. - Posso pô-lo já?

Depois de eu lho ter colocado em volta do pescoço, ela puxou-me e beijou-me nos lábios: um beijo de amor, cheio de ternura e demorado.

- Obrigada, mo gradh... pelo presente e pelo carinho. Alastair Morrison aprovava, radiante, e ergueu o copo.

- Devíamos beber a isso.

- É um momento belo e raro.-Maeve O'Donnell suspirou como uma Deirdre das Tristezas (1) num ensaio.

- Eu faço o brinde - disse Ruarri o Mactire - ao dia em que o seannachie assinar a certidão de casamento.

Ri-me e disse “Amen”, desejando que ele fosse para o inferno.

É claro que não foi e, segundo todos os sintomas, não iria tão cedo.

No entanto, as coisas não estavam a correr mal. O verniz começava a estalar em todos nós. Havia centelhas suficientes e sorrisos bastantes para manter o grupo bem vivo e Morrison divertido.

E então - malditos olhos verdes! - Maeve O'Donnell deixou cair um fósforo no barril da pólvora. Ainda eu nem tinha regressado à minha cadeira quando ela se inclinou para Kathleen e afirmou:

- Que coisa mais estranha! Só agora reparei nisso.

- Que foi?

- Ruarri e o Dr. Morrison. São extraordinariamente parecidos.

Nesse momento agradeci a Deus por não ter contado a Kathleen, porque ela reagiu tão normalmente como alguém a quem se pede que reconheça uma semelhança em que não reparou à primeira vista. Olhou para um e para o outro e disse, duvidosa:

- Bom, suponho que há uma semelhança. Nos olhos talvez, nos ossos do rosto. Mas nunca teria reparado nisso.

 

(1) Heroína do conto The Sons of Usnah (Os Filhos de Usnah), uma das Three Sorrowful Stories of Erin (Três Histórias de Erin). (N. da T.)

 

- É do cabelo ruivo e daquele grande nariz de Ruarri.

Maeve voltou-se para mim. - Está ver, não está? Tirando a barba...

Mas nessa altura já eu tinha tido tempo para me recuperar. Fiz uma pantomima como se estivesse a observá-los, admirando-me, enquanto a fazia, de que Morrison continuasse sentado, calmo e sorridente, mesmo à beira da catástrofe. Depois resolvi brincar com a ideia.

- Deve estar apaixonada por ele, Maeve, ou então precisa de ir ao oculista. Aquela carantonha feia dele só num cartaz de “Procurado”.

- Não consinto que insultem os nossos convidados. -Morrison brincou também, virilmente. - Sucede que eu sou um perito em genealogia. Entre os Morrison, as mulheres tinham a beleza e os homens a inteligência. Com os Matheson sucedia ao contrário... com algumas notáveis excepções em ambos os clãs.

Fossem quais fossem os pensamentos de Ruarri, estavam ocultos por detrás do seu sorriso fácil. Ele representaria a comédia que fosse precisa. Voltou-se para Kathleen e deitou a cabeça no ombro dela: o palhaço triste que pedia carinho contra a maldade do mundo.

- Onde acha que eu fico, Kathleen oge?

- Mesmo no meio! Moderadamente inteligente, moderadamente bonito e excessivamente opiniático para o seu próprio bem.

- Beije-me, mulher! Tem a sabedoria do próprio Salomão e a beleza da Rainha de Sabá, ambas desperdiçadas naquele patife que ali está!

Olhei para Morrison. Dirigiu-me um leve sorriso de gratidão e serviu-se de mais um copo de vinho. A sua mão estava firme, mas era evidente que começava a fatigar-se. Quase não tinha tocado na comida e o tom acinzentado recomeçava a invadi-lo. Enquanto se servia a sobremesa, pediu que o desculpássemos por uns momentos e saiu da sala.

Hannah fez-me um sinal de aviso. Perguntei a Kathleen:

- Trazes a tua maleta contigo?

- Trago. Está no carro. Porquê?

- Morrison não está bem. Não tem passado bem há dias. Falou de um aviso. Calculo que seja do coração. Importas-te de ir lá acima e observá-lo. Ele não vai gostar, mas quero que insistas.

- Não te preocupes. Eu vou insistir.

Enquanto ela corria para fora da sala, Ruarri perguntou:

- Gostarias que nos fôssemos embora?

- Não. E ele também não. Está encantado por estarem aqui.

- Ainda bem. Gostaria de o conhecer melhor. É um exemplar raro neste mundo cão.

- O apreço é mútuo. Por que não vens visitá-lo, como ele te pediu?

- Hei-de vir.

Maeve O'Donnell pousou uma mão fresca sobre a minha, e o gesto disse mais que as palavras.

- Descontraia-se, agora. Somos todos suficientemente crescidos para tomar conta de nós mesmos.

- Ele é um homem de consciência. - Ruarri voltara ao seu antigo jogo. -É isso que o tem arruinado. Que tal o nosso dia nos montes? A segunda-feira convém-te?

- Estou livre, a menos que Morrison piore.

- Fica combinado, então.

- É uma pena que eu já me tenha ido embora - disse Maeve O'Donnell. - Teria gostado de passar um dia com ambos.

Tinha na ponta da língua a pergunta sobre o que a tinha trazido ali, mas achei melhor não a fazer. Aquela dama era muito esperta e eu já tinha problemas que chegassem.

Ficámos sós durante dois minutos na sala, enquanto Ruarri foi à casa de banho e Hannah foi fazer café. Quando lhe estendi o brande, dirigiu-me um grande sorriso irlandês e provocou-me um choque desagradável.

- O meu negócio é o das corridas de cavalos, por isso nunca divulgo segredos. Mas eu tinha razão quanto-ao Ruarri e o Morrison, não tinha?

- Não posso saber, minha querida.

- E não diria se soubesse. Aqui vai um conselho da Irmã Maeve. Leve a sua rapariga para a cama ou para o altar ou para onde quiser, e ponha-se a mexer daqui. Nunca se consegue bater o cavalo local numa corrida campestre.

- Uma sugestão vinda do estábulo?

- São as melhores.

- Quando é a corrida?

- Os cavalos já estão na barreira.

- Qual é o favorito?

- O Mactire. O cavalo com menos hipóteses chama-se Seannachie.

- Eu apostava nele.

- Eu aposto. Mas as hipóteses são contra ele. Por isso estou a avisar.

- Tem algum interesse pessoal?

- Pessoal e comercial.

- Obrigado por mo ter dito.

- Não tem de quê. Desejo-lhe sorte, mas não conte com ela.

Nessa altura Ruarri regressou e, minutos depois, Kathleen McNeil juntou-se a nós para o café. Estava preocupada e pouco faladora.

- A ambulância chega daqui a poucos minutos. Se não te importas, Ruarri, agradecia que se fossem ambos embora logo que acabem as bebidas.

Ruarri pôs-se imediatamente em pé.

- Nem pensar. Vai buscar o teu casaco, Maeve, vamo-nos embora. O caso é grave?

- Ele não está muito bem, mas por esta noite não há problema. Começamos a fazer testes amanhã de manhã.

- Depois informas-me dos resultados? E, seannachie, se houver alguma coisa, por pequena que seja, que eu possa fazer, avisa-me. Venho logo a correr. Boa noite a ambos e os nossos respeitos a Morrison.

- Obrigada pelo jantar - disse Maeve O'Donnell.

Dois minutos depois tinham partido e nós estávamos sentados junto da lareira, com Hannah perto de nós, chorosa mas decidida.

- Pode dizer-me agora a verdade, minha menina? Não vai ter de o operar ou coisa parecida, gàrante-me?

-Garanto, Hannah. É exactamente como eu disse. O coração dele não está bom. Precisa de tempo e de repouso para se curar, e de médicos e enfermeiras a velar por ele até estar bem outra vez.

- Bem como? Diga-me sinceramente!

- Nunca ficará perfeito. Mas ainda pode durar muitos anos.

- Deus a abençoe por essas palavras. Posso ir com ele para o hospital?

- Não. Ele vai na ambulância. Nós seguimo-lo no carro. Quando ele estiver instalado e confortável, voltamos para aqui. Pode instalar-me cá esta noite?

- Se posso instalá-la! Esta casa é sua da cave até ao telhado. Que quer que eu meta na mala do pobre homem?

- Nada, Hannah. Já tratei de tudo.

- Mas avisa-me antes de ele partir.

- Aviso.

- Então vou levantando a mesa. É melhor que ficar parada a pensar.

Saiu rapidamente, embalando a sua dor particular à velha maneira austera, engolindo as lágrimas e emitindo um lamento semelhante ao grito das gaivotas. Dei comigo a sofrer com ela, pela presunçosa loucura que tinha cometido, por ter feito sofrer desnecessária e gratuitamente aquele homem que jazia lá em cima, com a vigilante negra à porta do quarto. Queria ir ter com ele, mas Kathleen deteve-me.

- Ele está a descansar, meu amor. Deixa-o estar. Preciso que ele esteja sossegado.

- Ele disse alguma coisa?

- Que te agradecesse o jantar. E há uma coisa na secretária dele, que quer que tu trates.

- Mais nada?

- Mais nada. Acho que já adivinhei o resto.

- Não foi difícil. Depois daquela estúpida comédia ao jantar. Quem diabo é a Maeve O'Donnel, afinal?

- Ia fazer-te a mesma pergunta.

- Só sei o que foi dito. E o resto não me interessa. Meu Deus! Que noite estúpida!

- Nem toda. Recebi o meu medalhão, lembras-te?

- Fiquei satisfeito por o pores.

Era a frase convencional para dizer, o tipo de coisa simpática, educada, atenciosa, do género de um-cavalheiro-nunca-trata-mal-os-outros, que eu tinha passado a noite toda a dizer. Tinha estado a cuidar de Alastair Morrison, que, de qualquer forma, tinha tido uma boa vida. Tinha planeado um regresso do filho pródigo para Ruarri Matheson, que se tinha prostituído pelo mundo inteiro e se tinha vendido como assassino em leilão. Tinha representado um bonito jogo de amor Edwardiano com Kathleen, que tinha sugado de dentro de si uma criança para agradar a um actor meio adulto, e agora não sabia ao certo se conseguia ou não voltar a apaixonar-se... Que fosse tudo para o diabo! Todos eles e tudo aquilo! Que Kathleen fosse também para o inferno, se tinha o fruto à sua espera na árvore e não conseguia decidir-se entre maçãs e framboesas. Sentia-me exausto, enganado, desorientado e enfastiado de morte com as extravagâncias daquele grupo acomodado, a viver à beira de nenhures.

Mas, quando a ambulância chegou e trouxeram Alastair Morrison para baixo, e ele me apertou a mão e murmurou o seu secreto agradecimento, senti-me apanhado de novo na armadilha, despojado da minha raiva que era a minha única armadura. Mas não de toda, de toda não.

Regressámos do hospital sob um céu límpido e uma lua gelada. Quando chegámos a casa, Hannah ainda estava acordada, com a lareira esperta e o chá pronto, à espera de notícias. Quando as ouviu, murmurou uma prece de graças e, numa rara exibição de emoção, pousou as mãos sobre as nossas cabeças, numa espécie de bênção.

Agora iria dormir descansada, sabendo que Morrison estava em boas mãos. Rezaria por nós dois antes de adormecer. Poderíamos dormir até mais tarde, que as raparigas não nos incomodariam.

Acabámos de beber o nosso chá e eram duas da madrugada. Kathleen levou a bandeja para a cozinha. Quando regressou, tomei-a nos braços e disse-lhe que a queria - agora, esta noite - e que não queria esperar por outro dia.

A sua resposta foi rápida e simples.

- Também te quero, mo gradh. Estou pronta.

Nada tenho a contar sobre a nossa noite, excepto que foi rica, selvagem e maravilhosa, com uma longa e doce calma depois do amor. A certa altura, nas horas frias da madrugada, acordei e ouvi-a murmurar e agitar-se enquanto dormia. Havia nomes nos seus murmúrios e um deles era o de Ruarri. Senti uma súbita punhalada de ressentimento, mas, quando a puxei para mim, ela soltou um pequeno suspiro de prazer e acordou lentamente para ser amada de novo. Depois disso, sentia-se excessivamente triunfante para me preocupar. O sono era o terreno dos mortos e não havia ameaças para mim na confusa fantasia dos sonhos.

 

Se já lá esteve, sabe como é. Se não esteve, nenhum poeta do mundo lhe pode ensinar a geografia do país do amor: a terra sempre verde, flores por toda a parte, frutos maduros sempre prontos a serem colhidos, todas as pessoas belas, recolhidas em si mesmas, mas sociáveis, o sol quente e a madrugada dourada e as noites secretas e seguras, e uma linguagem nova e suave, fácil de aprender e própria para as horas do dia e para as horas da escuridão. Aí se podem fazer as coisas mais loucas - fazer o pino, andar sobre as mãos, gritar, rir, chorar, rolar sobre as flores sem ficar cheio de arranhões-e tudo faz maravilhosamente sentido. E pode-se usar o país como a capa da invisibilidade. Podemos transportá-lo connosco, como um espelho de bolso, e ver todas as suas cores num rápido relance. E os outros podem vê-lo em nós, em nós e à nossa volta, e perguntam, maravilhados, como conseguimos descobrir o caminho que conduz a ele.

De manhã, Kathleen e eu estávamos lá. A velha Hannah, que tinha muita experiência, além dos seus dons psíquicos, não precisou que lho dissessem. Começou a cacarejar à nossa volta como uma mãe galinha e não fez segredo da sua aprovação.

- Se aconteceu assim, era assim que estava planeado, é o que eu sempre digo. Existe bem no que é mau e mau no que é bom, e os dois parecem ter agarrado o melhor. Como e quando, não é da minha conta, nem pergunto. Costumo dormir profundamente, graças a Deus, mesmo nas alturas piores; mas esta manhã havia rosas novas no jardim e isso é sempre sinal de um dia feliz. O Morrison também vai ficar satisfeito. Embora, se calhar, não queiram dizer o que há, antes de um compromisso, de uma legalização. Mas ele precisa de ser animado e gosta muito de ambos. Digam-lhe que lhe desejo as melhoras e quero que volte depressa, mas nem um só dia antes de estar em condições...

Recordei-me então de que Morrison tinha deixado uma mensagem para mim na sua secretária. Antes de partirmos para o hospital, fui ver de que se tratava. Havia um sobrescrito lacrado dirigido a Ruarri Matheson e uma mensagem para mim, obviamente escrita na tarde anterior. Li-a, com Kathleen a ler por cima do meu ombro.

“... Não sei como vai correr o jantar, mas estou satisfeito e grato por me teres dado coragem para o tentar. Ultimamente tenho tido tão pouca coragem, tão pouca força para enfrentar situações novas. Mesmo depois de te ter convidado em Roma, lamentei tê-lo feito. Não queria um estranho na minha casa. Agora deixaste de ser um estranho e sinto-me feliz por teres vindo.

Depois da nossa conversa desta tarde, tomei uma decisão. Quero que Ruarri saiba quem eu sou e quem ele é. Esteve privado durante demasiado tempo do direito fundamental da identidade. Peço-te que acredites que não sinto medo de lho dizer eu próprio; mas quero que ele se sinta livre de rejeitar a identidade, e de me rejeitar, se o desejar, sem o embaraço de uma confrontação pessoal. Receio por mim, compreendes? O mal de que sofro é de molde a fazer que qualquer emoção súbita possa provocar um ataque cardíaco, e não quero que isso aconteça, para que ele não me aceite por piedade e me deteste por ter de o fazer. Se as coisas se compuserem, seráporque ele o quer. Expliquei isso na minha carta, omitindo qualquer referência à minha doença.

Quero que entregues essa carta nas mãos dele. Não te atribuo outra responsabilidade para além dessa, e sei que já é de mais; mas não tenho mais ninguém para quem possa voltar-me. Livro-te de todo o segredo, pelo que podes responder a qualquer pergunta que Ruarri te faça-se ele quiser fazer alguma. Espero que me absolvas, com um espírito de caridade, das culpas desta imposição. Vieste para aqui para te curares. E eu limitei-me a infligir-te uma nova ferida. Um triste comentário sobre a minha própria fragilidade. De qualquer forma, os meus agradecimentos, as minhas desculpas e o meu afecto.

Alastair Morrison”

Era uma carta que fazia lamentar, mas uma carta nobre. Na véspera, tê-la-ia lido com indiferença, como um encargo intolerável para qualquer homem. Mas agora aceitava-o de boa vontade, até mesmo, penso, com alegria. Tinha enriquecido da noite para o dia. Sentia-me transbordante, iluminado, a transvasar de felicidade. Poderia ser o maior perdulário do mundo, sem deixar de estar rico no dia seguinte.

O que é um dos problemas de se viver no país do amor. Esquecemo-nos de que é um lugar de ilusões e, mal saímos dele, tornamo-nos mais vulneráveis que anteriormente. Esquecemo-nos das armadilhas e das emboscadas, dos abismos que se abrem a cada passo sob os nossos pés incautos. A linguagem que aprendemos é um pairar sem sentido. O manto da invisibilidade não nos torna invisíveis. Não passamos de idiotas a saracotearem-se, nus, com todas as partes sacudidas pela brisa. O espelho só nos devolve o nosso próprio rosto, que é a máscara de um palhaço suja de tarte de creme. Mas como havia eu de saber tudo isso, quando a luz ainda me envolvia, e Kathleen se debruçava sobre mim, com as mãos no interior da minha camisa, dizendo-me que eu era o homem mais adorável, mais meigo, mais inteligente e mais generoso do mundo?

Por isso a decisão foi rapidamente tomada. Este homem sensato e meigo e generoso iria descobrir uma altura propícia para visitar Ruarri e entregar-lhe a carta, e ficar ao seu lado como um irmão, para o ajudar a suportar o choque e a adaptar-se sem problemas àquele conhecimento novo e salvador. Depois disso, tínhamos o nosso próprio problema a resolver: uma pequena questão de geografia. Kathleen trabalhava como médica, era paga para manter a boa gente de Harris de saúde, enquanto o médico deles estava de férias. Tinha alguns doentes no Hospital de Stornoway, mas a sua clientela encontrava-se no outro extremo da ilha, a quarenta, cinquenta milhas de distância, conforme a estrada que tomássemos, e nenhuma delas era grande coisa. Ela vivia na casa do médico, tendo por companhia uma governanta idosa. Eu não ousava passar lá uma noite, porque, no dia seguinte, o escândalo já teria invadido toda a aldeia. Na estalagem estávamos seguros, enquanto Morrison estivesse no hospital, mas haveria noites e dias em que ficaríamos separados ou a percorrer os campos desolados e abraçando-nos no banco de trás do carro. Falámos de tudo isto enquanto seguíamos para Stornoway para ver Morrison, e não encontrámos solução para o problema, apenas decidimos que havíamos de nos encontrar sempre que pudéssemos e reconfortar-nos onde fosse possível.

Afinal, não cheguei a ver Morrison. Estava sob o efeito de sedativos e não convinha incomodá-lo. Todavia, o relatório de Kathleen não foi muito desanimador. Se ele conseguisse sobreviver aos dias seguintes, recuperar-se-ia suficientemente para poder fazer uma vida tranquila; mas teria sempre uma espada suspensa sobre a cabeça. O que tornava ainda mais imperioso que lhe retirasse dos ombros o peso das preocupações e que a questão de Ruarri fosse favoravelmente resolvida. Kathleen levou-me de volta a Laxay e em seguida, após uma despedida excessivamente curta, seguiu para Harris e para o seu aglomerado de doentes. Eu fui ter com Fergus McCue para pescar algumas horas antes do almoço.

Foi um erro. Fergus William estava de péssimo humor. A doença de Morrison tinha-o abalado muito. Não apanhei peixe, mas apanhei duas horas do tema e variações sobre a Ceifeira Negra e as ervas do campo. Durante esse tempo-um longo tempo, quão longo, meu Deus!-fiquei a conhecer todos os estalos dos ossos de Fergus, todas as falhas da sua canalização. Revivi as últimas horas da sua mulher, “sempre tão paciente, pobre rapariga, a gastar cada minuto e cada hora com aquela coisa horrível que estava dentro dela”. Ouvi contar a trágica história de Malcolm Moray, um gigante, com um metro e noventa sem sapatos, com um peito que parecia um tonel, capaz de arremessar o mastro melhor que ninguém nas Ilhas, que tinha gerado cinco filhos e quatro filhas, e tinha sido, com menos de quarenta anos, varado a meio da noite sem aviso.

Quando o enterraram, tinham sido precisos oito homens para transportar o caixão e, embora apenas dois deles estivessem bêbados, deixaram-no cair duas vezes a caminho do cemitério. E depois, por espantosa ironia, lá estava a Alison Macaulay, já com 90 anos, que tinha perdido três filhas, todas com menos de 30 anos, uma com uma tosse maligna, outra atropelada por um automóvel, e a terceira-bom, era uma história triste, de que não se falava muito, embora corresse o boato de que ela tinha morrido de parto na Ilha, o que podia ter sido verdade, mas nunca tinha havido registo do seu casamento. Antes que terminasse a litania de lamentações, eu já estava quase pronto a retirar Job do seu monte de excrementos e a sentar-me eu lá, para lamentar a minha própria morte iminente.

Foi uma experiência impressionante, mas, pelo menos, decidiu-me. Bem podia ter todos os meus desgostos no mesmo dia. Por isso regressei à estalagem e telefonei para casa de Ruarri, disse-lhe como Morrison estava e perguntei-lhe se podia passar por casa dele depois do almoço. Pediu-me que fosse às seis; caso contrário, perderia meio dia de aluguer do tractor. Além disso, assim poderia oferecer-me uma bebida e preparar-me uma refeição, se eu quisesse. Isso deixou-me com uma tarde para preencher. Passei-a a ler e a dormitar junto da lareira. Afinal tinha tido uma noite bastante exaustiva e não queria ir-me abaixo com dias tão prometedores à minha frente.

Quando cheguei a casa de Ruarri, tinha todas as jogadas ensaiadas. Primeiro movimento, os cumprimentos e as piadas; depois a primeira bebida; depois eu entregava-lhe o sobrescrito e dizia:

- Morrison pediu-me que te desse isto. Conheço uma parte do seu conteúdo. Por isso, dá-me outra bebida e eu espero lá fora enquanto tu lês. Quando estiveres pronto, chama-me ou manda-me embora. Por mim, está tudo bem.

Depois pegaria na minha bebida e sairia para o crepúsculo quente e suave e pensaria nas palavras fraternas de que ele iria necessitar. Ele chamar-me-ia; beberíamos um pouco mais para afastar as mágoas; ele faria a refeição; faríamos dela uma comunhão fraterna; ele estaria cheio de um espírito de compreensão, perdão e amor; suplicar-me-ia que o levasse à cabeceira de Morrison e o deixasse lá ficar, silencioso e humilde, para ser acolhido nos braços do seu pai.

Na realidade, as coisas correram de uma forma ligeiramente diferente.

Pouco depois das seis, dirigi-me à casa dele e encontrei-o, ainda sujo do trabalho, sentado atrás do bar, com um copo de uísque na mão. Saudou-me com um grito de boas-vindas, e depois olhou-me de alto a baixo e riu-se.

- Cheiras a isso, seannachie! Estás todo lambuzado de leite. Se quiseres enroscar-te e ronronar junto da lareira, não te censuro! Tenho razão ou não?

- E tu cheiras mal! Vai tomar um duche. Mas primeiro dá-me uma bebida.

- Onde está a Kathleen?

- A trabalhar. Infelizmente.

- O Morrison?

- Telefonei para o hospital antes de sair da estalagem. Está a repousar. Esperam que ele se safe. Onde está a Maeve?

- Em Londres, nesta altura, penso eu. Depois Paris.

- Compraste o cavalo?

- Ainda não. Que tal a achaste?

- Uma grande mulher. Estás interessado?

- Estava. Já não estou. É inteligente de mais para se poder viver com ela. Mas continuamos a ter negócios. Slainte!

- Slainte.

- Foi um bom jantar. I -Ainda bem que gostaste. A propósito, tenho uma carta de Morrison para ti.

- Vou lê-la no banho. Vai-te servindo. Lê um bom livro. Liga a televisão, se estiveres interessado.

Não estava. Servi-me de um pouco mais de uísque de malte - com quinze anos de idade, suficientemente velho para embalsamar um imperador - e saí para o jardim. O ar estava quente, mas eu sentia um frio de morte. Apanhei um feijão verde do feijoeiro e mordisquei-o, como os italianos fazem, mas o seu gosto era amargo e cuspi-o. Um pastor que voltava a casa saudou-me; retribuí mecanicamente a saudação,

invejando-lhe o tranquilo regresso. À distância, ouvi ladrar um cão e os gritos de uma criança a chamar por ele. Depois, o silêncio. Passeei pelo caminho de cascalho, para cima e para baixo, para cima e para baixo, como um monge a rezar um infindável rosário de dores humanas. Simplesmente eu não era um monge, nem Ruarri tão pouco, e Morrison tinha-o sido um pouco tarde de mais. Ao fim de longo tempo terminei o uísque e fui servir-me de outro.

Ruarri, já lavado e com roupas limpas, esperava-me, com a carta aberta sobre o bar, à sua frente. O seu rosto era uma máscara de madeira. Pousei o copo. Ele encheu-o e empurrou-o de novo para mim. Bateu na carta com o indicador e disse:

- Tu sabias disto, seannachie.

- Sabia. Mas não pedi que me contassem.

- Quero acreditar em ti.

Tirei do bolso a carta que Morrison me dirigira e entreguei-lha.

Leu-a lentamente, digerindo cada palavra. Depois dobrou-a e devolveu-ma.

- Agora acredito em ti. Conta-me o resto.

Contei-lhe o quê, o como e o quando. O porquê só podia dizer-lho da maneira hesitante como Morrison mo dissera: que uma ave pode cair do ramo de uma árvore por motivo algum que possa ser explicado por palavras. Aceitou isso, também, com relutância. Depois começou o contra-interrogatório.

- Mas foste tu que sugeriste o jantar?

- Fui.

- Portanto, emitiste uma opinião.

- Foi-me pedido que a emitisse.

- Apenas pelo Morrison.

- É verdade.

- Não me consultaste.

- Não podia. Estava preso por um segredo.

- Eras meu amigo. Guardaste a peça de xadrês.

- Não podia ser amigo verdadeiro de um e falso amigo do outro. Certo ou errado, estava a tentar fazer o melhor possível por ambos.

- Quem mais sabe disto?

- Mais ninguém. Só Morrison e eu.

- Juras?

- Juro.

Estava a jurar falso; mas se não pudesse confiar em Kathleen, mais valia cortar o pescoço.

- Odeio-te, seannachie.

- Lamento muito.

- Mas sabes porquê?

- Não.

- Então eu digo-te. Porque tu sabias quando eu não sabia. E fizeste um julgamento quando eu não podia julgar. E podes continuar a julgar... certo e errado, preto e branco... quando eu continuo a debater-me numa confusão que nunca compreenderás.

- Não tens o direito de dizer isso.

- Não tenho, mas continuo a dizê-lo. Amar e odiar vêm das entranhas e dos tomates, não vêm da cabeça. Estou a dizer-te a verdade, seannachie. Acredita-me, pelo amor de Deus.

- Acredito. E agora?

- É essa a grande questão, não é? E agora...? Tens algumas respostas?

- Queria mais uma bebida.

- Também eu.

Serviu-as, uma a uma, em doses para cavalos, e empurrou o meu copo para mim. Ficámos sentados, um em frente do outro, com o balcão entre nós, como dois personagens de um filme antigo. Finalmente tive de rir-me e Ruarri, rápido como sempre, riu-se também.

- Tem muita piada, muita piada. O papá encontrou o seu filhinho. O filhinho já tem um papá. Vão ambos viver felizes para todo o sempre. Cantai, cantai, anjos no céu. Não é assim, seannachie? Não é assim que tu escreverias?

- Não vou escrever nada. Sou apenas o moço de recados.

- Pois és. Esqueci-me disso. Então escrevo eu, e, se não gostares do enredo, não te esqueças de que eu sou um pobre rapaz ignorante da Lews, sem qualquer cultura. Começa assim. Há um pai, Morrison, que nos alegres anos da sua juventude teve um filho que a família, por mil e uma boas razões, não o deixou reconhecer. Mais tarde... mas não muito mais tarde, nota bem... faz-se religioso e vai cuidar dos filhos dos pagãos, deixando o seu próprio rebento ainda por reconhecer. Agora está velho e cansado e sente-se culpado, e gostaria de limpar a consciência e de ter o filho de volta e amá-lo e morrer em paz. Estou a ser justo ou não?

- É tudo verdade, mas...

- Não! Esquece os mas! Vamos voltar ao rapaz. Ele não é filho de Morrison. É Ruarri o Bastardo, filho de Anne Mathe-son de Gisla. Foi assim registado. Vi isto escrito vinte vezes nas paredes da casa de banho, gravado no tampo de uma carteira: Ruarri o Bastardo. Não é uma coisa agradável, mas é o nome que ele usa. Não é fácil, mas ele vai endurecendo. Em breve terá a sua primeira rapariga e a sua primeira briga num beco, e a sua primeira dose de blenorragia. Depois disso, cresce depressa, ainda sem papá, mas a necessidade de o ter começa a desaparecer. Depois disso... Bem! Tu preenches o resto, seannachie... são todos aqueles lugares comuns que já leste ou escreveste. E agora Ruarri o Bastardo voltou com dinheiro, e barcos e um terreno, e projectos ainda maiores. Precisará do papá? Uma gaita! Quererá o papá, para preencher os profundos buracos negros da sua mente? Uma gaita, também! O papá não passa do raio de um albatroz atado ao seu pescoço. O papá é um cavalheiro, o que Ruarri o Bastardo não é nem quer ser, porque vivemos num mundo duro e brutal, e ele já o viu todo e sabe que há-de vir a ser ainda mais brutal, e será nessa altura que os bastardos se hão-de sentir à vontade. Sabes o que eu penso do papá? Penso que é um cavalheiro escocês bom, encantador e antiquado, e lamento muito que ele sofra do coração, mas todos temos de sofrer de qualquer coisa, e odeio o raio do velho daqui até à eternidade. Amen.

- Vais dizer-lhe tudo isso, evidentemente.

- Eu não tenho que lhe dizer nem que não lhe dizer. Ele vai perceber. E depois que aguente, como eu aguentei.

- Vou dizer-te uma coisa, Matheson. É isso mesmo que vai suceder. Ele vai aguentar. É nunca dirá uma palavra mais sobre o assunto, precisamente porque é o cavalheiro escocês antiquado que tu pensas que ele é. E fá-lo-á com muito mais dignidade do que tu hás-de ter em toda a tua vida. Ele errou. Mas foi preciso um grande homem para escrever aquela carta... muito maior do que tu és, rapaz. Muito maior.

Pensei que ele fosse atacar-me; e, se o fizesse, apanharia com o uísque nos olhos e uma garrafa partida na cara, porque se eu o deixasse aproximar-se ele podia matar-me. Mas não se moveu. Ficou ali parado, por detrás do balcão, olhando-me como se não pudesse acreditar no que tinha ouvido. Depois, diabos o levassem, começou a sorrir, depois a rir e finalmente desatou a dar gargalhadas, como se tivesse ouvido a maior piada deste mundo desde que Adão tinha perdido uma costela e recebido uma mulher em troca.

- Tu também és dos duros, não és, seannachie? Não pareces. Tens toda essa conversa intelectual, e bonitas maneiras, sim senhor, não senhor, tudo perfeitamente correcto, senhor; mas, por Cristo, lutas de maneira tão suja quanto eu! Tinhas uma mão no copo e a outra pronta a agarrar na garrafa para a partires no balcão. Tu sabes umas coisas, rapaz. A única diferença entre nós é que conheces mais palavras que eu, e pensas como uma cobra, de maneira sinuosa e matreira. Mas esta noite estás a ser estúpido. Estás apenas a ouvir as palavras. Não fazes a mínima ideia do que elas significam. - Então diz-me tu, Ruarri. Eu sou um sassenach estúpido. Diz-me tu!

Ele disse-me. Disse-mo em voz baixa e amarga, debruçado sobre o balcão do bar, sacudindo a barba ruiva perto de mim, enquanto os seus olhos me perfuravam como brasas sobre madeira.

- Estou a sangrar, seannachie. Estou a sofrer como se alguém me tivesse espetado uma faca na barriga e me revolvesse as tripas como se fossem spaghetti. Estou a chorar, seannachie, mas todas as minhas lágrimas secaram há vinte anos e o desgosto não consegue fazer sair mais. E sinto ódio, também, porque o ódio foi a única coisa que me manteve vivo; e perdi o jeito de amar, sem ter quem me ensinasse. Sabes o que me apetecia agora? Uma mulher! Gostava que ela viesse e me tomasse nos braços e me deixasse chorar sobre o seu peito e me acalentasse para dormir, e me acordasse quando eu tivesse esquecido toda a porcaria do raio deste mundo. Mas, se ela viesse, derrubá-la-ia como uma prostituta, pagar-lhe-ia e mandá-la-ia embora sem uma palavra de agradecimento. Por isso não fiques aí sentado, meu rapaz, com ares de superioridade, todo seguro da tua mesquinha filosofia. Não julgues se eu sou pequeno ou grande, comparando-me com Morrison ou com qualquer outro. Não tens esse direito. Não me conheces suficientemente bem. Embora eu pense que te interessas por mim, se não tinha saltado o balcão e tinha-me atirado à tua garganta, há um momento. E ainda o podia fazer se pensasse, por um segundo sequer, que estava enganado a teu respeito.

Eu devia ter ficado por ali, porque ele tinha-me dito toda a verdade que conhecia a seu respeito e eu não queria nem podia contar-lhe a minha. Ele estava à espera disso, sabia-o bem. Estava à espera de uma boa palavra que quebrasse o gelo que lhe envolvia o coração e deixasse a fonte brotar e as lágrimas correrem. Possuía todas as palavras do dicionário, mas essa não. A melhor coisa que consegui encontrar para dizer foi uma banalidade.

- Não posso discutir contigo, Ruarri. Não vivi dentro da tua pele. Concordo em que não tenho o direito de te julgar. Peço desculpa pelas palavras duras. Obrigado pela bebida. Agora vou andando.

- Convidei-te parajantar, seannachie. Sou bom cozinheiro, talvez não acredites.

- Nesse caso não quero que percas a honestidade. Posso ajudar-te?

- Claro. Podes descascar batatas e pôr a mesa. O cozinhado necessita de um toque mais subtil que tu não tens. Arranja mais uma bebida para cada um, enquanto eu começo a trabalhar.

Na altura em que a refeição ficou pronta, já estávamos envoltos num clarão bom e confortável, como um pôr do Sol após uma grande tempestade. Estávamos eloquentes, inconsequentes, divertidos, anedóticos, obscenos e mais sensatos do que Sócrates em todas as nossas conclusões. Éramos irmãos de armas, violentos e ruidosos, talvez, mas, por Deus, sempre irmãos. A refeição foi uma obra-prima: truta e bife à Black Angus e morangos do jardim e um Borgonha de um bom ano, que não pagara um tostão de direitos-o que o tornava duplamente bom. Depois, para que o clarão não desaparecesse e voltássemos a encontrar-nos na nossa perturbada escuridão, veio um copo de brande e um café acabado de moer, para que não perdesse a essência ou o aroma. Durante todo este tempo nem uma palavra sobre Morrison ou sobre qualquer assunto que estivesse relacionado com o âmago dos nossos problemas.

Levantámos a mesa e empilhámos os pratos no lava-louças, porque éramos ambos sujeitos arrumados que não conseguiam sentir-se bem num barco em desordem. Ateámos a lareira enquanto bebíamos brande, empilhámos discos no gira-discos -En Saga e o Sibelius Quarto, que quase me pôs sóbrio de surpresa - e instalámo-nos, para ficarmos sossegados. Esta parte da noite foi como o nosso dia a bordo do barco: livre e fácil, com o vento e o mar soando através da música, a conversa espontânea e o silêncio agradável. Ruarri era um grande conversador, quando lhe apetecia, mas também possuía o dom do silêncio, quando não tinha à sua volta gente que pretendesse impressionar. Ao observá-lo, então, meio adormecido ao clarão da lareira, compreendi que havia um ritmo no silêncio e na fala. Ele era capaz de se retrair para dentro de si próprio com uma passividade quase animal. Depois, algo se agitava dentro dele, um meio pensamento, uma recordação, e quase podíamos vê-lo desdobrar-se, crescer, encher-se, até ter de explodir numa rápida e agitada torrente de palavras. Depois as palavras acabavam-se, ele ficava exausto, e a renovação cíclica recomeçava. Mas, mesmo nas suas alturas passivas, no momento do mais profundo retraimento, ele estava alerta a cada estímulo exterior, a cada som, a cada mudança de luz, a cada tom de voz e atitude. Nunca estava ausente das coisas. As coisas estavam sempre próximas dele, sempre ameaçadoras, como se a energia encerrada dentro dele pudesse explodir a qualquer momento, se não estivesse preparado.

Era esta sensação de perigo constante que o tornava perigoso, para si próprio e para os outros. Sentia-se tão constantemente sitiado que não podia correr o mínimo risco. Tinha de se prevenir contra qualquer traição possível, antecipar qualquer golpe. Se estivesse errado, tanto pior, mas pelo menos, continuava vivo. Mesmo os riscos que corria eeram muitos e grandes - eram antecipações contra riscos ainda maiores que ele via ou imaginava. Não quero fazer-lhes acreditar que vi tudo isto através do clarão róseo do uísque e do vinho e do brande e de Sibelius. Vi o fenómeno; não me apercebi do seu significado. Quando os meus olhos finalmente se abriram, já era tarde de mais para todos nós.

Era tarde e eu comecei a pensar, com relutância, na viagem para casa, quando Ruarri saiu de um dos seus silêncios e disse abruptamente:

- Temos de combinar uma coisa, seannachie.

- O quê?

- Morrison. Tu vais visitá-lo, com certeza. Que é que vais dizer-lhe?

- Bom, posso dizer-lhe de três maneiras. Deixei-te a carta e ainda não tive notícias tuas. É uma mentira, mas estou pronto a dizê-la por ti. Entreguei-te a carta, ficaste abalado e confuso e pediste um tempo para pensar. Isto está mais perto da verdade e ficamos ambos livres. Ou então posso dizer-lhe que tu compreendes o motivo por que ele a escreveu, que respeitas as suas intenções mas preferias não entabular esse relacionamento porque é tarde de mais e muito difícil para ambas as partes. O que é mais ou menos o resumo do que foi dito antes do jantar. A última hipótese é limpa, se tens a certeza de que é isso que queres. As outras deixam pontas soltas. Terão de ser atadas mais tarde ou mais cedo. É o melhor que posso fazer acho eu.

- Morrison não voltaria à carga?

- Tenho a certeza de que não. Punha as mãos no fogo por isso.

- O que é mais do que farias por mim, hein?

- Eu não disse isso. E não estragues um bom jantar.

- Desculpa. Foi sem intenção. Achas que Morrison também não voltaria à carga de outra maneira?

- Não estou a perceber-te.

- Estás bêbado, seannachie. Vou explicar-te. Morrison

está velho e está doente, e tentou fazer uma coisa decente. Tarde de mais, mas pelo menos tentou. Já tenho sangue que chegue nas mãos. Não quero mais. Estás a ouvir-me?

- Estou a ouvir-te.

- Por isso vou dar-te outra mensagem para Morrison. Recebi a carta dele. Agradeço muito. Um dia, quando ele estiver bem e eu estiver menos confuso do que estou agora, vou até lá conversar com ele. Aproveito para o saudar e me despedir. Mas fá-lo-ei como um cavalheiro, porque ele é um cavalheiro, e ficaremos quites. Achas que ele deixaria ficar as coisas assim, sem se aferrar, sem truques, sem reclamações e sem julgar o que eu fiz?

- Sem reclamações, com certeza. O julgamento é uma questão particular.

- És um jesuíta tramado!

- Estou a ver se entendo bem a mensagem, no caso de a quereres enviar.

- Cala-te e deixa-me pensar!

Dirigiu-se ao bar e serviu-se de mais um brande; depois caiu no silêncio, longo e profundo desta vez, enquanto eu fechava os olhos e deixava a música rolar sobre mim como água pura e profunda, livre do lixo do mundo inteiro. Acordei quando Ruarri começou a sacudir-me. Estava de pé junto de mim com um papel na mão e um sorriso fatigado no rosto.

- De pé, seannachie! São horas de voltar para casa.

- Qual é a mensagem?

- A que te dei. Vou ver o Morrison quando estiver bom. É tudo. Mas dá-lhe isto a ler. Talvez sorria um pouco.

Meteu-me o papel por debaixo do nariz e, por momentos, pensei que ainda estava bêbado, porque as palavras eram ininteligíveis: “... ma's olc dhomb cha n-fhearr dhaibh”.

- Que raio é isto?

- Isso, seannachie, é o meu resumo de toda esta estúpida embrulhada. Quando o grande Conan desceu ao inferno e sentiu as costas a fritar na grande frigideira, olhou em volta para os restantes condenados e disse estas nobres palavras: “Se é mau para mim, não é melhor para eles.” E agora zarpa daqui para fora, porque vem uma rapariga a caminho e não preciso dos teus conselhos sobre o que hei-de fazer com ela.

 

Guiei o carro para casa, a cantar, sob um céu cheio de estrelas nubladas. As canções não soavam nos meus lábios, mas na minha cabeça, melodiosas e puras: Ena Dilino, a canção dos irmãos em guerra, matando-se um ao outro por uma ideia, já morta e refutada; Os Ilios, o sol que vê a malcheirosa estrumeira que é a terra dos homens e se transforma em gelo; Kaymos, o lamento de cada homem que sente secar a sua seiva, o ventre encolher, sem ter ainda provado metade do vinho da vida.

Eram canções tristes. Mas eu não me sentia triste; pelo menos achava que o não estava. Tinha conservado uma amizade. Tinha restaurado - pelo menos até certo ponto - o elo entre um homem e o seu filho. Aquele dia, aquele novo dia, era o Sab-bath, em que ninguém, sob dispensa da Igreja Livre, podia adoecer, e eu podia passar todo o dia, calmo, belo, privado, com Kathleen McNeil. Doxa a Theo... louvado seja o Senhor em todas as Suas obras e Seus dias!

O Senhor, apesar de todas as minhas manchas negras, deve ter bondosamente olhado por mim naquela noite, porque cheguei são e salvo à estalagem, sem ossos partidos e sem um arranhão no carro. No meu quarto, encontrei uma garrafa de cerveja e uma sanduíche de queijo e uma nota rabiscada por Hannah: “O Morrison está melhor. A senhora telefonou. Vem cá tomar o pequeno-almoço. Se estiver acordado às nove, dou-lhe de comer. Se não, haverá café no fogão e pode preparar o seu pequeno-almoço.” Bebi a cerveja, engoli a sanduíche, abençoei-os a todos e meti-me na cama.

O acordar foi mais doce que o adormecer: um beijo nos lábios, Kathleen sentada na minha cama e a casa vazia, porque Hannah e as suas raparigas tinham ido à igreja. Estava uma manhã cheia de luz, mas nós corremos os estores para fazer uma noite para nós; e, quando a noite terminou, contei-lhe a história do meu encontro com Ruarri, e voltei a ser o homem mais meigo e mais sensato do mundo. Depois tomámos banho juntos e vestimo-nos juntos e preparámos um pequeno-almoço tardio e um almoço de piquenique e partimos para dar as boas notícias a Alastair Morrison.

Ele já as conhecia. Na verdade, tinha até mais notícias que eu. Na bandeja do pequeno-almoço, nessa manhã, tinha recebido uma carta e um embrulho, da parte de Ruarri. O embrulho continha o medalhão da cobra que eu tinha visto em sua casa. A carta estava escrita de um jacto, com a sua letra ousada, sem emendas nem alterações:

“Caro Morrison,

O seu mensageiro veio na noite passada. Trocámos algumas palavras duras; depois embebedámo-nos juntos. Depois disso fui para a cama com uma mulher, o que me ajudou mais a enfrentar uma situação bastante confusa. Dei ao seu mensageiro uma mensagem para lhe ser entregue. Incluía as palavras de Conan na sua estada no inferno. Na noite passada pareceram-me muito adequadas, porque o inferno é um local que eu conheço bem.

Todavia, quando acordei, esta manhã, achei que um Matheson não devia ficar atrás em cortesia perante um Morrison. Por isso lhe envio esta nota. Acho que estou satisfeito por saber quem sou e quem o senhor é. Penso que não precisamos, neste momento, de fazer seja o que for a esse respeito. Nem sei se quero fazer alguma coisa, alguma vez. O senhor tem de se pôr bom e eu tenho muito trabalho a fazer e nenhum de nós precisa de fazer um grande drama.

O que foi feito de mal ou de bem, acho que devemos esquecê-lo. Tenho uma lista de coisas que fiz mal do tamanho do seu braço e muitas delas foram feitas contra mim próprio. Perdoar? É uma palavra cristã que não conheço bem. Não sou cristão, e o mundo onde vivo também não o é. Nele, é olho por olho e sangue por sangue. Mas não quero fazer correr o seu sangue, visto que partilhamos o mesmo.

Quanto ao resto, se e quando nos encontrarmos, podemos fazê-lo com respeito. Se alguma vez quiser vender-me a estalagem, compro-lha, se tiver dinheiro que chegue, por um preço razoável; mas não quero testamentos, nem doações, nem nada desse género. O que eu tenho, foi ganho por mim;não estou em dívida para com ninguém. Deu-me a vida. É uma dádiva com um ferrão, mas vivo-a.

A minha dádiva é uma peça Viking. Diz-se que protege quem a usa da morte ou de acidente nas partes sexuais. Talvez a ache adequada em ambos os aspectos. Por agora chega. Quero que receba isto antes que o seu mensageiro chegue junto de si. Gosto muito dele, mas quero baixar-lhe a crista. É um bastardo, também, e pode dizer-lhe isso da minha parte.

Por agora, deixe as coisas correrem. As suas melhoras.

Ruarri Matheson”

Dobrei a carta e devolvi-a a Morrison. A sua mão estava firme, e, quer fosse dos medicamentos que lhe estavam a dar, ou dos seus próprios sentimentos reais, parecia tranquilo e satisfeito.

- É melhor do que eu ousava esperar. Muito melhor.

- E o medalhão diz ainda mais que a carta. É um objecto precioso para ele. Eu faria o que ele pede. Deixava ficar as coisas por agora.

- Vou deixar. Vou deixar. Deves ter passado um mau bocado, na noite passada.

- Quisemos ver quem berrava mais alto, mas passou depressa. Uma ligeira ressaca. Mas também já passou. Kathleen vai comigo até à praia. Ela dorme na estalagem esta noite.

- A casa é vossa. E falo a sério. Divirtam-se.

- Podes ter a certeza.

Ele sorriu e tomou a minha mão nas suas.

- É assim que as coisas estão?

- É assim que as coisas estão. Importas-te? -Meu rapaz, acabo de escapar à morte. Já não tenho medo da travessia. Aprendi uma coisa. A única coisa que torna a vida suportável deste lado é o amor que encontramos pelo caminho. Se tu e Kathleen o encontraram, boa sorte para ambos. Se puderem deixar um pouco na minha casa, aceito-o de bom grado.

- Obrigado.

- Eu é que agradeço.

- Amanhã não venho ver-te. Vou para as montanhas com Ruarri.

- Óptimo. Fico satisfeito por continuarem a ser amigos. Cuida bem da tua pequena.

- Ela está à espera para te ver. Depois vamo-nos embora.

- Deus te abençoe, meu rapaz.

Trouxe-lhe Kathleen e deixei-os juntos. Dez minutos depois éramos um escândalo público, seguindo de carro para as praias orientais, enquanto a boa gente das Lews seguia para a igreja com as suas melhores roupas. O escândalo passou depressa, no entanto, porque as quintas foram ficando para trás à medida que nos afastávamos da cidade, e os turistas encontravam-se todos no sul e no ocidente, desconhecendo, felizmente, o pequeno recanto do paraíso para onde nos dirigíamos: uma caverna estreita e abrigada, com relva que descia até à praia branca, e uma grande muralha de rocha que nos protegia do vento e conservava o calor do sol.

A água estava fria, mas mergulhámos nela, aos gritos, e nadámos até longe, até o fundo arenoso desaparecer e sentirmos a corrente oceânica a puxar-nos. Depois voltámos para a praia e despimos as roupas molhadas e enxugámo-nos um ao outro com as toalhas, e estendemo-nos, nus, na areia quente e macia.

Gostaria de saber celebrar para quem lê - mas mais ainda para mim - a tranquila glória dessa tarde. Não consigo. A cunhagem das palavras do amor tem sido tão degradada que o que foi doçura para mim poderá ser para outros motivo de tristeza ou de riso. Somos uns animais ridículos, em suma, mas não todos nem sempre. Quando a ocasião é perfeita, e as mãos ternas e os lábios estão famintos, o corpo é um milagre glorioso, um êxtase pulsante, um lento e doce declínio, repetido até à exaustão e sempre novo. Se pretender uma lista de prazeres, consulte um chulo. Se pretender uma anatomia, vá ter com um cirurgião. Não venha ter comigo. Mas sobre o amor - sim, eu conheço o amor: a sua loucura, as suas delícias e por vezes o seu terror.

Nessa tarde, quando estávamos quentes e plácidos e Kathleen apoiava a cabeça sonolenta no meu braço, perguntei-lhe:

- Achas que poderias ficar grávida agora?

- Eu sei que não estou, querido. Porquê? Estás preocupado?

- Não. Pensei que seria bom. Nesse caso, teríamos de nos casar.

- Tens pressa?

- Sou ganancioso. Quero-te toda para mim.

- Não poderás ter-me mais do que tens, meu amor. Não há mais para dar.

Eu estava a pensar nisso, embora não ousasse pô-lo em palavras. O dicionário do amor é muito curto. As palavras tendem a repetir-se. Outrora, ela tinha-se entregado a outro homem, e agora entregara-se-me. Eu tinha-me entregue a outra mulher, não menos generosamente, ao princípio. Por esse primeiro homem, ela tinha feito o máximo: tinha morto, tinha violado o que tinha de mais íntimo. Eu nunca poderia pedir-lhe uma prova tão brutal, mas podia e fazia a mim mesmo a pergunta: o modo como ela se me entregava seria tão completo como se entregara a ele? A minha entrega era absoluta, incondicional. Pelo menos eu acreditava que o era. Não via, por ser cego como um rato, que a questão implicava uma condição e uma exigência tão brutal como a morte.

Ela sentou-se, nua, ao meu lado, agarrou uma mão cheia de areia e deixou-a escorrer lentamente sobre o meu peito. Disse:

- Não quero casar-me já.

- Medo?

- Não.

- Porquê, então?

- Porque... porque estamos aqui, e nos sentimos felizes...

- Não nos sentiríamos igualmente felizes, depois?

- Provavelmente. Mas não compreendes que, nessa altura, teríamos de estar felizes? Seríamos forçados a estar, porque um casamento estragado é um inferno, e ambos sabemos disso, e teríamos sempre isso suspenso sobre as nossas cabeças. Assim, somos livres, por isso estamos a dar-nos livremente. ! Tu poderias estar com outra mulher. Eu poderia estar com outro homem. Mas estamos aqui, juntos. Gosto da sensação. É uma experiência nova. Compreendes?

- Compreendo, Kathleen oge. Compreendo...

Compreendia e não compreendia. Mas não poderia dizer-lhe que aquele homem sensato era um tolo que não conseguia aceitar que uma flor é uma flor e ficar satisfeito, mas que tinha de a desmanchar, pétala a pétala, para ter a certeza de que não era uma excelente falsificação de plástico. Não podia dizer-lhe que aquele homem meigo tinha descoberto dentro de si uma criança, ciumenta e possessiva e insegura como qualquer criança de 5 anos de idade; que aquele cruzado dos direitos do homem estava a falhar diante do mais fundamental de todos os direitos: o da privacidade íntima de cada pessoa, para além da violação das palavras ou das perguntas. Não podia dizer-lhe que o seu ousado amante se sentia tão pouco seguro de si mesmo que necessitava de um documento que provasse que tinha voltado a conquistar uma mulher; que sentia tão pouca fé no seu talento que necessitava de uma mão que guiasse a sua pena relutante de novo ao trabalho, e que lhe alisasse os cabelos revoltos enquanto escrevia tolices.

Por isso rendi-me e ela ficou feliz e louvou a minha paciente compreensão. Ajeitou-se de novo e ficámos juntos, acariciando-nos sobre a areia. A maçã do Paraíso era nossa. Não precisávamos de apressar-nos a comê-la. Eu via o minúsculo bicho da maçã, mas fechei-o e pintei o fruto por cima e disse a mim mesmo que o bicho morreria depressa e a maçã ainda estaria sã no dia seguinte. Ao cair da tarde voltámos para a estalagem e encontrámos Hannah a cantar na cozinha:

Escutai isto, vós todos, escutai

Todos os que este mundo habitam,

Os grandes e os pequenos, os ricos e os pobres,

Pois ireis ouvir palavras de sabedoria.

Foi necessária uma certa exegese para reconhecer o Salmo Quadragésimo Nono, na versão escocesa; e seria necessário um ouvido mais paciente que o meu para discernir uma melodia na versão aguda e nasalada de Hannah.

Mas ela estava feliz e havia scones para o chá e um bolo de frutas e biscoitos amanteigados e mel e geleia de morango. O culto tinha sido maravilhoso. O pastor Macphail tinha pregado uma maravilhosa homilia sobre os deveres dos esposos entre si, e, quando chegara à parte da oratória relacionada com a profanação do leito conjugal, havia um ou dois rostos corados e algumas fungadelas de certas pessoas que ela poderia nomear mas não queria. Os scones eram da jovem Mrs. Sinclair, que já os fazia melhor, depois de se ter aconselhado com Hannah sobre a maneira de peneirar a farinha e deixar penetrar ar na massa. O bolo de fruta vinha de Madame Johnson e era uma das poucas coisas que ela sabia cozinhar, pelo que não estaria melhor nem pior que habitualmente. Os biscoitos amanteigados eram de pacote, mas o Morrison gostava de os mordiscar de vez em quando. O pobre homem estava melhor? Deus fosse louvado. Havia de arranjar tempo para o ir ver no dia seguinte. Um dos rapazes do Fergus levá-la-ia até lá. Oh, e havia uma chamada para mim, daquele Ruarri Matheson, para eu me encontrar com ele na quinta às nove horas em ponto, nem um minuto depois, vestido para as montanhas. E a doutora poderia telefonar para a enfermeira do distrito, em Harris? Nada urgente, era só um conselho, dissera ela. O número estava no bloco no escritório do Morrison.

Enquanto Kathleen foi telefonar, Hannah dirigiu-me uma piscadela de olhos cúmplice e fez-me sinal para ir à cozinha. Aí agarrou-me nas mãos e levou-as aos lábios, conservando-as assim enquanto falava. Não falava asperamente nem me ralhava. Era apenas uma velha senhora, cheia de ternura e amor.

- Rezei por vós, esta manhã, por ambos, porque deram amor ao Morrison quando ele precisou dele. O Senhor falou comigo. Deu-me palavras para lhe transmitir. Recebeu a luz à chegada. Se se for agora, poderá levá-la consigo. Se ficar, perde-a. E há perigo para si no escuro. Esta é a palavra do Senhor, meu rapaz, não a minha. Nem sequer sei o que quer dizer, mas já sou velha de mais para Ele me mentir.

- Vou-me embora em breve, Hannah. Quando a Dr.s McNeil terminar o seu serviço, vamo-nos embora os dois.

- Espero que vão a tempo.

- Havemos de ir. Não se preocupe.

Depois beijei-a no rosto e a sua pele estava velha e seca, como um pergaminho, onde fora escrita toda uma vida. Por um momento breve agarrou-se a mim e depois, sempre com vergonha da ternura, empurrou-me para fora da cozinha e voltou à sua canção, enquanto a chaleira fervia. Mais uma vez se repetia aquela estranha experiência. Ouvia as palavras, mas não conseguia entendê-las. Era um actor que tomava parte de um incidente. Mal este terminava, era como se tudo tivesse acontecido com outra pessoa. Voltei para a sala, deitei uísque num copo, agarrei num livro é fiquei a ler até Kathleen aparecer para tomar chá. Não podia passar ali a noite, disse-me. Um paciente idoso estava a apresentar sintomas de pneumonia. Era melhor ir vê-lo e ficar de vigia durante a noite. Foi um desapontamento, mas não dos piores. O nosso dia tinha sido quase perfeito. Separados ou juntos, a nossa noite iria ser tranquila.

Quando Kathleen partiu, procurei nas estantes de Morrison livros sobre o Ceruus elaphus - que, no caso de o leitor ser tão ignorante como eu, é o cervo vermelho das Highlands e das Ilhas. Eu era um noviço naquele tipo de caça e não queria fazer uma figura triste. Além disso, Ruarri, com os seus rapazes a reboque, vigiar-me-ia tão bem como ao veado. Como os tipos da Máfia, podia não ficar furioso, mas, tão certo como dois e dois serem quatro, tinha de se vingar, a sério ou a brincar. Por isso tinha de estar pelo menos preparado para ele.

Caçar veados, segundo concluí, era um desporto para cavalheiros, mas tinha atrás de si uma história muito pouco cavalheiresca. Nos velhos, velhos tempos, os veados eram propriedade do rei, do barão, do senhor, e os pobres esfomeados que matassem um eram caçados e destruídos de forma mais selvagem que o próprio animal. Este último era primeiro perseguido pelos cães, friamente lançados em matilhas sobre os cervos que pastavam. Era atingido com arcos e bestas ou, mais tarde, com os chumbos dos mosquetes. Por vezes os animais eram reunidos num vale pelos batedores, para serem chacinados em massa por cães e homens em conjunto.

Nos tempos mais civilizados da rainha Vitória, a antiga nobreza e a nova classe média-produtores de cerveja, armadores, negociantes de porcelanas, donos de minas e fundidores de ferro - construíram castelos, schlosses, châteaux, mansões, fantasias arquitectónicas das mais bizarras, nos sítios mais estranhos, a partir dos quais podiam perseguir e matar o pobre Cervus elaphus. Comiam a sua carne, áspera mas exótica, e portanto cara; mas, o que era mais importante, exibiam a sua cabeça, com as armações, nas suas paredes, como prova das suas proezas viris-embora muitos homens com uma centena de cabeças de veado nas suas paredes usasse, em particular, um pequeno par de cornos, depois da sessão de caça.

Todavia, porque eram homens civilizados, nessa altura, e apenas se serviam das crianças para trabalhar nas minas de carvão e limpar os canos das chaminés, desistiram dos cães de caça ao veado e collies de raça, aquelas belas e inteligentes criaturas que encaminhavam o veado mas nunca o matavam, deixando essa elegante tarefa para os seus donos. A melhor peça era o veado que tivesse as maiores armações - uma curiosa noção fálica, dado que o tamanho das armações, segundo uma eminente autoridade, dependia da quantidade de hormonas masculinas do animal. Os cavalheiros ricos pagavam preços elevados por uma boa presa, pelo que se tornou um bom negócio limpar os campos de carneiros e abrir espaço para os altos sacerdotes da moda e suas vítimas sacrificiais. Era um bom negócio dar-lhes de comer no Inverno, para que fossem mais e maiores quando chegasse o Verão.

Depois da morte de Vitória, e de Edward e George, e de muitos milhões de servos, vilões, mercadores, cavaleiros e nobres, maiores e menores, numa porção de guerras, o Cervus elaphus continuou a ser morto, mas o ritual tornou-se mais requintado. Agora a época de caça estava mais rigidamente definida, e justificada por um raciocínio mais lógico. Era preciso reduzir as manadas para que não devorassem terreno de mais. Era preciso controlar os caçadores, para que não destruíssem os melhores espécimes, deixando apenas os piores para a reprodução. O preço de uma espingarda acompanhava os aumentos dos impostos e do custo da mão-de-obra. Nas pequenas ilhas da Grã-Bretanha - reduzida, mas ainda grande-a população de veados, como a população humana, teria de se conservar estável, e algumas mortes judiciosas eram a melhor maneira de o conseguir.

O que me levou, perto da meia-noite, às considerações sobre a minha saída com Ruarri. Tratava-se, na essência, de um exercício destinado a perseguir e matar uma criatura viva. Era um exercício em que, havia muito tempo, eu tinha tido razoável experiência. Tinha sido treinado para matar. Tinha avançado em carga contra um saco, de baioneta calada, saltado sobre um homem com uma faca, rastejado para estrangular com um arame uma sentinela adormecida. Já tinha morto, efectivamente, e tinha jurado que nunca mais voltaria a matar, homem ou animal, embora continuasse a comer carne - um triste comentário sobre o valor da lógica humana.

A perseguição ao veado? Sim, isso podia fazer. A perseguição era um exercício sem penalidades: o cérebro humano contra os sentidos do animal, o raciocínio contra o instinto, sem ameaças de violência. Haveria mesmo uma certa magnanimidade divina na vitória: saber que se tinha ganho sem nada exigir do vencido; saber que se podia matar e, no entanto, não matar. Uma afirmação nobre, por certo. Um pequeno desafio neste mundo de cães de que eu não queria fazer parte.

É evidente que o leitor poderá rir-se dos meus tristes e fracos argumentos. Podia pescar um peixe, mas não caçar um veado. Podia comer carne, desde que outro tivesse morto o animal. Peço-lhe, por favor, que não se ria - pelo menos não abertamente, e não com desprezo. Estou a tentar relatar-lhe, o mais honestamente que posso - mas quem consegue ser totalmente honesto? - o meu papel nesta história de um Verão nas ilhas. Não me sinto orgulhoso dele, embora seja orgulhoso por natureza. Porquê relatá-lo, então? Suponho que cada homem tem de chegar um dia à sua própria Canossa (1), com um baraço ao pescoço, a pedir perdão pelo homem que poderia ter sido...

Por isso, tomaria parte na perseguição, mas não mataria. Ou iria fazê-lo? Ou teria de o fazer? Acabaríamos, com sorte ou perícia, por emboscar um veado; Ruarri e eu, meio irmãos, meio inimigos, com o bando de Ruarri por testemunha. Eu era o convidado. Ruarri oferecer-me-ia, como ditava a cortesia, o primeiro tiro - e o último, também, porque, se eu falhasse, o veado e a manada desapareceriam, num salve-se quem puder. Eu podia pegar na espingarda e disparar para o ar; mas ele perceberia, mesmo que os outros não entendessem, e ficaria envergonhado e iria odiar-me ainda mais. Poderia dizer-lhe, antes de partirmos, que não queria matar, só perseguir e observar. Ele aceitaria isso; mas ficaria a rir-se por dentro, como o leitor se está a rir, e desprezar-me-ia, porque nem a minha lógica nem eu tínhamos valor aos seus olhos.

O que decidi, então? Nada. Fechei os livros e arrumei-os cuidadosamente nas estantes. Procurei um bom e anestésico policial, cheio de sangue e entranhas e mortes súbitas, deitei uma boa dose de uísque no copo e levei ambos para a cama.

O que me leva a focar um outro ponto. Se achar que nesta narrativa muito pessoal se fala demasiadamente de álcool, acredite que não se trata de um artifício ou expediente literário. Estava realmente a beber, nessa época, de mais e com demasiada frequência. Os dias eram longos. O meu tempo com Kathleen McNeil era curto e eu tinha que esquecer muita coisa entretanto. Evidentemente, não era um bêbado. Estava a passar férias nas Ilhas da Urze, que foram colonizadas por grandes e devassos guerreiros que bebiam até alcançar o Va-lhalla. Ainda estava muito longe de os apanhar, ou até mesmo os seus descendentes do século XX; mas estava a esforçar-me. O Senhor seja louvado, meus irmãos e minhas irmãs, eu estava a esforçar-me...!

 

(1) Cidade do distrito de Modena, onde o imperador Henrique IV se submeteu à penitência que lhe foi imposta pelo papa Gregório VII. (AT. da T.)

 

Na manhã seguinte foi preciso andar.

Sentia os pés em sangue e as pernas entorpecidas, ao fim de mil e quinhentos pés de uma encosta de turfa e cascalho e gnaisse escorregadio, nos montes de Harris. Esses mil e quinhentos pés eram apenas a primeiro encosta. Por detrás dela havia uma lomba e depois outro pico, que tínhamos de atravessar, antes de chegarmos à área circular onde poderíamos encontrar os veados. Esperava sinceramente que os veados e Ruarri estivessem de acordo quanto a essa localização, porque, se não estivessem, era capaz de me estender no chão e morrer ali mesmo, deixando que os rapazes cobrissem o meu corpo com um monte de pedras, à laia de monumento.

Gostaria de falar-lhe destes montes de Harris. O leitor sabia - mas é evidente que não, de tal forma a sabedoria tem vindo a declinar-que a Arca de Noé se deteve nestes mesmos montes, na garganta entre Clisham e Uisgna Vai More? Se isso sucedeu antes ou depois de pousar em Ararat, é coisa que ninguém sabe ao certo. Mas não há dúvidas de que parou aqui. Toda a gente sabe disso. Noé mandou uma pega fazer um levantamento do terreno, e a pega não gostou do que viu, motivo por que a pega, nestes montes, é considerada de mau presságio - especialmente quando se vêem quatro juntas. Sabia também que aquelas grandes pedras redondas contra as quais tinha andado a bater com as canelas toda a manhã tinham sido, outrora, o castelo de um gigante que roubava donzelas e só se deixava comprar com pérolas do mar? Bom, isso também é um facto. E é um facto, também, que subir uma encosta de turfa é um purgatório, caminhar sobre seixos glaciais é um passatempo para tolos, e que trepar a picos rochosos e afloramentos de granito, escorregadios de musgo e líquenes, só para ver um veado a jantar, é uma pura e diabólica loucura.

O ritmo de Ruarri era punitivo. Pensei que sabia quem estava a sofrer a punição, especialmente quando os dois rapazes protestaram que ainda ficávamos todos com os tornozelos partidos, se ele não abrandasse o passo. Por isso descansámos na primeira lomba, onde às minhas outras agonias se veio juntar uma praga de mosquitos. Era isso mesmo, explicou Ruarri com sardónica paciência, tínhamos de subir mais. Os veados eram mais espertos que nós; quando o tempo estava quente e húmido, iam para um terreno alto, para se livrarem dos insectos.

Explicou-nos também que, com o ar húmido, os cheiros chegavam mais longe e os animais apercebiam-se melhor deles. Por isso, a partir dali, tínhamos de nos manter contra o vento em relação ao alto vale pára onde nos dirigíamos. A favor ou contra, tanto se me dava, desde que me restasse fôlego suficiente para subir, e bastante controlo dos meus músculos, para não fazer uma triste figura quando avistássemos a caça e começasse realmente a aproximação.

Continuámos a avançar, trepando à crista que nos conduziria ao último cume, abaixo do qual ficava a floresta dos veados, que não era uma floresta, mas apenas uma alta bacia nos montes, coberta de musgo e ervas e sem uma única árvore. Eu seguia agora ao lado de Ruarri, caminhando mais livremente, respirando mais livremente, nem que fosse só para enfrentar o desafio. Falávamos pouco e em voz baixa porque o som se transmitiria através dos penhascos e poderia assustar os batedores da manada: os machos, a mordiscar as ervas longe das fêmeas, e as matriarcas que alertariam todo o grupo à mínima sugestão de perigo. A época do acasalamento ainda estava a um mês de distância, pelo que as fêmeas e os machos pastavam separados e as fêmeas mais velhas ainda eram as chefes dos grupos. Quando parámos pela última vez, ao abrigo de um grande pico rochoso, Ruarri explicou o método:

- Quando virmos a manada, os animais estarão a pastar e tranquilos. A arte está em nos aproximarmos tanto quanto possível sem os alertar. Estamos contra o vento, e a brisa está segura, pelo que não sentirão o nosso cheiro. Mas eles têm uma vista aguçada e as suas orelhas captam qualquer novo som, mesmo o roçar de um sapato ou o destravar de uma arma. Por isso descobrimos quais são os chefes e observamo-los-se tudo estiver bem, eles estão bem. Se um deles soltar um bramido, sabemos que fomos notados e paramos imediatamente. Os animais também ficam imóveis - as patas da frente unidas, as cabeças no ar, à espera. Se eles recomeçarem a pastar, ninguém se mexe até as cabeças estarem todas em baixo, porque os chefes ainda estarão alerta. Pode haver um mais ousado que avance para nós, para observar melhor ou tentar apanhar um cheiro... Se nos conseguirmos aproximar suficientemente, eu escolho o macho. Podes abatê-lo. Percebeste tudo?

- Penso que sim. Espero não fazer asneira.

- Fica perto de mim, para veres os meus sinais. Os rapazes sabem tomar conta de si próprios.

- Parece que estou outra vez no exército. Lançou-me um rápido olhar desconfiado.

- Isso incomoda- te?

- Não, que diabo!

- Que tal é a tua pontaria?

- Não mexo numa arma desde que devolvi a minha ao governo. Por isso, podes perder o teu veado.

- Se quiseres mesmo apanhá-lo, acertas. Agora de pé e silêncio a partir daqui.

Se eu quisesse mesmo apanhá-lo... Esperto, aquele Ruarri! Mesmo muito, muito esperto. Com todos os sentidos alerta e cada sinapse daquele cérebro e emitir a resposta certa em cada ocasião! Eu queria-o mesmo, não pela sua carne, pela sua pele ou pela sua cabeça, mas por Ruarri, para lhe provar que era tão bom como ele, um atirador tão calmo como ele, um esgrimista tão viril como ele, e que estava tão pronto como ele a derramar um pouco de sangue para conseguir o que queria e reter o que possuía. E o juramento que tinha feito a mim mesmo? Coisa sem valor. Já me tinha libertado de todos os juramentos naquela noite em que viera de Stornoway para Laxay e aceitara a noção de que não fazia mal dar um pontapé no ventre de alguém para chegar primeiro. Todavia, havia uma hipótese de o último acto ser evitado. A aproximação ainda não tinha começado. Só começaria depois de termos ultrapassado a última elevação e visto se os veados lá estavam.

Estavam lá. Tinham de estar. A sua presença estava escrita desde a minha nascença na palma da minha mão, mas eu não tinha sabido lê-la. Eram talvez umas cinquenta fêmeas, algumas com crias junto delas, pequenos veados e corças, pastando em quatro grupos. Os grupos encontravam-se dispersos por toda a bacia, e, afastados deles, encontravam-se dois grandes machos, com armações abertas como árvores sobre as suas cabeças. Picámos a observá-los de uma fenda nos rochedos, encolhidos atrás de Ruarri, que esquadrinhava o vale com o binóculo. Apontou-nos as matriarcas, falando num sussurro e apenas com os gestos mais restritos. Depois de as termos fixado, estudou os machos e escolheu o que estava mais afastado como aquele que iríamos abater. Depois fez-nos começar a rastejar para sair da fenda, para marcar o terreno: onde ficava o xisto e as rochas que nos esconderiam, e onde ficava o musgo que abafaria os nossos passos.

O veado tinha todas as vantagens, ao que parecia. O vento estava a nosso favor, isso era verdade, mas nós estávamos em terreno elevado e tínhamos que descer para ir ao encontro deles, sobre um terreno acidentado e coberto de seixos, até atingirmos os primeiros amontoados de musgo e de urze. Um toque da mão de Ruarri mandou os dois rapazes seguirem lentamente pelo lado direito do vale. Depois, lenta e cautelosamente, entregou-me uma espingarda, apontando para o travão de segurança e dizendo-me que já estava preparada com uma bala no cano. Eu seguiria atrás dele, e teria de transportar a espingarda, rastejando sobre os cotovelos e a barriga à velha maneira dos comandos. Ele cobrir-me-ia. Eu mataria o animal.

De vez em quando quase o perdemos. Da primeira vez, um dos rapazes raspou com uma tacha de metal da bota numa pedra. Uma das matriarcas levantou imediatamente a cabeça e bramiu, e toda a manada ficou suspensa, como os corredores na linha de partida. Ficámos todos inclinados para a frente, quase sem ousar respirar, até que, muito tempo depois, ouvimos um segundo bramido e ainda um terceiro. Depois, com uma agonizante lentidão, recomeçaram a pastar e nós avançámos mais vinte metros até aos montículos de urze. Da segunda vez, um rebento de erva entrou numa das minhas narinas e o minúsculo som que fiz para a desalojar pôs as fêmeas alerta de novo. Quando recomeçaram a pastar, tinha os músculos tolhidos e o peso da espingarda tornaram-se quase insuportável.

Finalmente alcançámos o nosso esconderijo, um pequeno rochedo com líquenes encrustados, que se elevava do chão. Ruarri mostrou-me os dedos da mão, para indicar a sua estimativa da distância: quinhentos metros, aproximadamente.; As fêmeas estavam tranquilas, agora, e o grande macho pastava com um desdém de grande senhor na encosta mais afastada. Centímetro a centímetro, coloquei-me em posição de disparo, ajustei a mira e fiz deslizar o fecho de segurança. Depois apanhei-o na objectiva e fixei-o, com a minúscula cruz sobre o local onde devia ficar o seu coração. Quando disparei, caiu logo, dobrando os joelhos, tendo apenas um pequeno estremecimento.

Foi um belo tiro. Até Ruarri disse que se sentia orgulhoso dele. Só me recordo de um outro tão bom como aquele: quando abati uma sentinela japonesa que estava sobre um rochedo, a seiscentos metros, precisamente na altura em que acendia um cigarro. Tive exactamente a mesma reacção. Vontade de vomitar.

 

Fui um herói durante meia hora, que é tempo suficiente para qualquer homem normal.

Fomos inspeccionar o animal. Admirámos a limpeza do tiro; sem sofrimento para o bicho, pouco sangue, apenas um ligeiro estrago na pele. Era um belíssimo animal, com uma enorme armação, mesmo pronto para morrer porque no ano seguinte já entraria em declínio quanto à reprodução. Tudo isto era uma perfeita absolvição para quem o tinha abatido no primor da vida. Os rapazes ataram-lhe as patas unidas, penduraram a carcaça na espingarda, transportaram-no pela encosta acima e deixaram-no num local suficientemente afastado para não estragar o nosso almoço: sanduíches de carne suficientemente grandes para fazer engasgar um gigante, engolidas com a ajuda de uísque puro e um golo de cerveja. Sentíamo-nos todos grandes, com três metros de altura, e eu ultrapassava os restantes em alguns centímetros. Depois, porque uma caçada é como uma cópula, encolhemos e sentimo-nos fatigados, estendemo-nos à sombra das rochas e trocámos histórias que nada tinham a ver com o pobre macho morto a uns cem metros de distância, com a minha bala no coração e as moscas a zumbir em volta do buraco aberto no seu flanco.

A princípio fiquei surpreendido com as histórias que foram contadas. Falavam todas de fadas e de magia. Mas depois compreendi que a caçada é um acto mágico e exige um ritual: o sacerdote com os seus cânticos, e o carrasco, todos de negro e com os rostos cobertos, e a procissão atrás deles, com as virgens desgrenhadas e as velhas rasgando os seios estéreis, os homens solenes e cambaleantes como num êxtase de embriaguês.

Um dos rapazes contou a história dos dois jovens de Rodei que tinham construído um barco tão belo que o mar sentiu inveja dele e não quis deixá-los regressar a terra. Citou o velho ditado: “O mar gosta de companhia, mas cobiça aquilo de que gosta.” O que levou a outra fábula - ou não seria fábula, de tal modo se encontrava enraizada na memória do povo?-que um marinheiro devia ser sempre enterrado na praia, pois, caso contrário, o mar ciumento viria de noite inundar a terra para o recuperar. Só os que estavam enterrados na sagrada ilha de lona chegariam secos ao julgamento final, pois, na última e grande inundação, lona flutuaria sobre as ondas, para que Deus pudesse reconhecer os seus santos.

Depois veio a perdida Atlântida, uma lenda tão bela numa boca tão rude. Ainda havia velhos vivos que tinham visto, ou a quem tinha sido mostrado, não longe da costa, ruas e templos e homens vivos e gado a pastar entre as ervas do mar. E se não existisse a Atlântida, por que é que a galinhola a tentava alcançar todos os anos, voando tanto quanto podia para ocidente e depois regressando, exausta, às Ilhas? Por que seria que a erva azul cresce apenas em dois lugares do mundo: nas Bermudas e na Irlanda? O Atlântico era largo de mais para uma ave o poder sobrevoar com uma semente no bico. Em ? tempos muito antigos devia ter havido uma terra entre ambas.

Eu era o herói do dia, por isso impressionei-os com o meu bestiário da Nova Guiné: o feiticeiro que conseguia transformar-se num casuar e estar em dois lugares ao mesmo tempo, como ave num e como homem noutro, e o homem falava como uma ave, e a ave como um homem; o deus-porco que exigia o sacrifício do primogénito, pelo que as mulheres matavam o seu filho e amamentavam um leitão em vez dele.

Depois disso Ruarri contou a sua história de fadas - maldito seja pela poesia que contradizia toda a violência que havia nele - mas não consegui determinar quanto da história era realidade e quanto um fabuloso absurdo. Falou do lugar das Pedras, onde Kathleen e eu tínhamos principiado a conhecer-nos. Independentemente do que os peritos pudessem afirmar, disse Ruarri, a verdade era bem diferente. As grandes pedras não tinham sido talhadas nas Lews. Tinham vindo de um lugar distante, trazidas por sacerdotes de túnicas enfeitadas com penas, servidos por criados negros e por carriças, um bando enorme que esvoaçava em volta das suas cabeças. Na região

ocidental da Inglaterra e no País de Gales, a carriça era chamada a ave dos druidas, e era costume matá-las no dia de St. Stephen, para celebrar a morte da antiga religião.

Mas a antiga religião não tinha morrido ainda. Nem por sombras. Se se perguntasse à gente antiga das Lews, eles dir-nos-iam, num sussurro, que ainda havia famílias que “pertenciam às Pedras”. Se voltássemos a perguntar-lhes, com boas maneiras e jeito de quem acredita, eles dir-nos-iam que o Esplendoroso ainda vinha na manhã de 24 de Junho e se detinha junto da grande pedra, e, se lá estivéssemos, quando o cuco cantasse, poderíamos vê-lo, com toda a nitidez. Se prometêssemos casamento entre as Pedras, o casamento realizar-se-ia. Se fizéssemos amor pela primeira vez ali, no meio da névoa húmida, o casamento seria feliz e completo para todo o sempre. Tinha ele visto o Esplendoroso? Bom, julgava que sim, mas não tinha bem a certeza. Da maneira por que ele o contou, até eu fiquei um pouco na dúvida, e eu sou um contador de histórias, que conhece os segredos do ofício. Verdadeira ou falsa, a magia actuou, de modo que, quando nos afastámos, transportando o veado, a dois e dois, revezando-nos de meia em meia milha, este já não passava de uma carcaça, pronta a ser pendurada e eviscerada, esfolada e fumada, para ser comida.

No caminho de regresso, quando caminhávamos ambos sem o nosso fardo, Ruarri perguntou-me:

- Que efeito te fez, seannachie?

- O quê?

- Matar o veado.

- Nenhum.

- És um mentiroso.

- Então não me faças perguntas estúpidas.

- Sentiste-te excitado?

- Senti.

- E depois?

- Oh, pelo amor de Deus!

- Eu sinto sempre vontade de ter uma mulher. Ali mesmo. Sem ter de esperar.

- Eu sinto vontade de vomitar.

- Por que será esta diferença?

- Quem sabe? Não falemos mais disso.

Estávamos ambos demasiado cansados para discutir, pelo que nos calámos, amistosamente. Não obstante, o mal estava feito. Recordei-me de Kathleen McNeil e daquele estranho momento em que ficámos suspensos, a um passo da morte, na estrada da falésia. Recordei-me do que ela tinha dito: “Não há medo, nem pena. Apenas uma espécie de espanto.” Retorcendo um pouco as palavras, dando à frase um género masculino, chegava-se exactamente ao pensamento de Ruarri. Retorcendo a faca um pouco mais, seria possível fazer-me sentir ciúmes suficientes para matar Ruarri com maior prazer que matar o veado... e ir depois tomar a minha mulher.

Fiel a si próprio, Ruarri apoiou-se no cabo e deu mais uma pequena torção à faca. Não o fez imediatamente; era demasiado astuto para isso. Mas mais tarde, na quinta, enquanto os rapazes preparavam a carne no barracão e nós tomávamos uma bebida, começou a interrogar-me.

- Aquela viagem que vamos fazer, seannachie. Podemos estar fora dez dias ou mais.

- Parece interessante.

- Não te importas?

- Claro que não! Por que havia de importar-me?

- Estava a pensar numa coisa.

- Em quê?

- Tu e a Kathleen. Já lhe disseste?

- Já falei do assunto.

- Ela não se importa?

- Não disse que se importava.

- Perigoso, meu rapaz! Perigoso!

- Porquê?

- Bom, enfrentemos as coisas, irmão mais velho. Tu e eu estamos livres para nos servirmos por fora sempre que nos apetecer. Em Trondheim, por exemplo, há a mulherzinha mais amorosa que possas imaginar, viúva há pouco tempo, ansiosa por ser reconfortada, e tem uma casa sua, limpa, privada, e nunca há lágrimas no final. Por outro lado... e isto é conversa de irmão, nota bem... uma mulher que acaba de se apaixonar, e que está a ter aquilo que eu sei que tu tens para lhe dar, tem o direito de se queixar se lhe tiram o seu conforto. Como vai acontecer. Já pensaste nisso?

Já tinha pensado nisso, mas as minhas conclusões não eram da conta dele. Tinha pensado que alguns dias no mar iriam constituir a purga de que eu necessitava, uma purga do fígado e das luzes e da caixa dos miolos, de modo a poder gozar as coisas boas que tinha sem aquela perpétua ânsia de as analisar e sem aquela perseguição da melancolia que por vezes me apanhava desprevenido. Tinha pensado que a minha ausência talvez fizesse com que Kathleen precisasse mais de mim e estivesse mais pronta a partir comigo no final do Verão e a casar-se comigo. Além disso - e isso, pensei eu, era um sinal de cura - procurava qualquer coisa nova e simples sobre a qual pudesse escrever, para preparar a mão e regressar ao trabalho. A resposta que dei a Ruarri foi um pouco diferente.

- A Kathleen não se vai queixar. Passa a maior parte dos dias e mais de metade das noites da semana a trabalhar. Além disso, vamo-nos ambos embora depois do Verão.

- Vão casar-se?

- É essa a ideia.

- Óptimo, seannachie. Ainda bem. Já lhe deste uma aliança?

- Ainda não.

- Tudo livre, hein?

- Livre não. Sem problemas.

- Que é que ela pensa disso?

- Gosta assim.

E depois, porque a ferida estava a ficar profunda de mais e começava a doer, decidi fazer também eu uma sondagem por minha conta. Por isso falei-lhe do meu encontro com Duggie Donald em Tarbert, e dei-lhe uma versão cuidadosamente revista da nossa conversa. Ficou de sobrolho franzido durante algum tempo, e depois levantou-se para servir mais bebidas. Quando se instalou de novo, disse:

- Eles estão a apertar-me, seannachie. Isso não me agrada. Aquela maldita burocracia inglesa é extremamente irritante.

- Que é que eles têm contra ti?

- Nada, por enquanto. Só boatos e conversa fiada.

- Como a que ouvi em Stornoway na outra noite? Dirigiu-me um sorriso cauteloso e acenou afirmativamente com a cabeça.

- Coisas desse género, sim. “

- Têm alguma substância?

- Alguma. Mas nada que possam levar a tribunal. !

- Há uma coisa que eu quero saber, Ruarri.

- Fala.

- Não me interessam os teus negócios, mas vou sair contigo. Se me fizerem perguntas, quero ter respostas prontas..!, verdadeiras, mesmo que não sejam completas. Não quero ser apanhado em falso, como sucedeu naquele primeiro dia. Nem sempre consigo pensar com aquela rapidez. Além disso, se houver problema, não quero que se pense nem se sugira que veio da minha parte. Fui claro?

- Claro como água, meu irmão. Deixa-me pensar na melhor maneira de te explicar.

Pensou durante longo tempo, e eu senti um prazer secreto em observá-lo. Quanto mais preocupações ele tivesse, menos probabilidades haveria de meter aquela barba ruiva na minha sopa. Finalmente, com uma grande exibição de franqueza, expôs-me os seus pensamentos.

- Eu sou um pescador, seannachie. As duas Helens estão registadas como traineiras. Não estão registadas, nem seguras... e as minhas tripulações também não estão seguras... para transporte de frete ou de passageiros. Regulamentos da Junta do Comércio, e isso tudo. Certo?

- Certo.

- Mas não se consegue fazer lucros com uma traineira, tal como não se pode fazer com um táxi, por causa das milhas mortas. Por milhas mortas quero dizer as milhas que faço sem peixe no porão, sem nada para vender quando se aporta. Acontece. E acontece cada vez mais, com os russos, os dinamarqueses, os noruegueses, os alemães e os portugueses, e os rapazes de Hull e Grimsby, todos a tentar viver à custa do mesmo mar. Por isso, de uma maneira ou de outra, temos de fazer negócio. O Bollison, por exemplo, que encontrámos no Minch, vai a Stornoway comprar o peixe que não consegue apanhar, porque tem de abastecer as fábricas de conservas com as quais trabalha. Todos nós fazemos isso, e é legal. Por vezes recebo uma mensagem pela rádio a dizer que há abundância de savelha nas Orkney, quando aqui não há. Vou até lá e compro, só para pagar os salários com o lucro. Estou a ficar muito bom nesta história das comunicações... Mas continua a haver milhas mortas. Demasiadas. E numa época má posso ficar falido, coisa que não tenho a mínima intenção de fazer só para dar alegria à Junta de Comércio. Por isso, de vez em quando, faço o que faz qualquer capitão vagabundo, transporto carga: carga especial para clientes especiais, de portos onde sou conhecido para portos onde eles são conhecidos, ou vice-versa.

- Que tipo de carga?

- Varia, e não precisas de saber isso. O porão fede a peixe e tu não suportas o cheiro, de modo que nunca foste ver o que continha. E não estás presente nas cargas ou descargas, porque nessa altura estarás num bar a beber com uma rapariga. Sabes onde fomos, mas o motivo por que lá fomos é da conta do capitão, e está escrito no diário de bordo para toda a gente ver, incluindo o Duggie Donald. Não tens papéis de marinheiro; tens um passaporte. És um passageiro, não pagante, que veio só pela viagem, porque gostas do mar e estás a escrever um livro a esse respeito. Simples? Completo?

- Só uma pergunta. Transportas drogas?

- Boa pergunta, seannachie. E a resposta é nunca. Satisfeito?

- Satisfeito.

- É evidente que, se não estiveres, ou se tiveres medo de te comprometer, podes desistir. Eu não te levo a mal.

- Não estou preocupado e estou ansioso por partir. Quando vamos?

- Durante esta semana. Aviso-te com meio dia de antecedência. Convém-te?

- Óptimo. Espero poder ser útil.

- Podes dividir comigo os quartos ao leme. Não há muita coisa a fazer no convés até se recolher a rede. Podes dar uma ajuda quando te apetecer.

E ficámos por ali, com muitas perguntas ainda por responder, mas nenhuma delas suficientemente urgente para nos incomodar por enquanto. Agradeci-lhe o magnífico dia, despedi-me e dirigi-me para sul para ver Kathleen.

Ela estava cansada e com tendência para se mostrar irritável. Tinha sido chamada duas vezes durante a noite e o dia tinha trazido uma quantidade superior à normal de bexigas idosas e articulações reumáticas e artérias obstruídas. A casa parecia fechar-se sobre ela. A governanta estava de mau humor e a gente da aldeia mostrava-se distante, mas incrivelmente exigente mal tinha uma dor de barriga ou um pouco de tosse. Ela estava a precisar de carinho e eu dei-lho. Depois apeteceu-lhe sair; mas, como eu ainda estava com as minhas roupas de caça e, portanto, não podia misturar-me com os elegantes turistas de Tarbert, decidimos ir dar uma volta até Rodei, tomar uma bebida com a gente da terra no pub e jantar aí mesmo, um pouco mais tarde.

Rodei é uma pequena localidade estranha, quase misteriosa no sossego de uma tarde de Verão, com a sua doca arruinada, a velha igreja de St. Clement empoleirada no alto da colina, a baía por detrás, onde, com a maré baixa, se podia ver outro círculo de pedras como o de Callanish, afundado nas águas profundas. Se isto é verdade ou lenda, ainda não o sei. Todavia, com Kathleen pelo braço e as cabeças a voltarem-se e as faces a encostarem-se às vidraças das janelas para ver a doutora e o seu namorado, facto e ficção eram a mesma coisa para mim: perfeitamente agradáveis e perfeitamente críveis.

Faltava uma hora para o pôr do Sol e as casinhas brancas estavam banhadas por uma luz quente e suave. Ainda havia movimento na estrada: um grupo de rapariguinhas que saltava à corda e cantava repetidas vezes uma canção em gaélico; um garoto que corria atrás de um cão pela berma; um camponês que regressava a casa, com o boné posto num jeito atrevido e uma enxada ao ombro, com o casaco pendurado no cabo como uma bandeira; uma velha curvada, com o seu xaile, transportando um cesto de compras.

A paz do local era uma bênção para os espíritos perturbados.

Quando chegámos a Rodei tínhamos regressado ao país do amor, de mãos dadas e a cantar de pura alegria.

Os monges que fundaram a igreja de St. Clement já morreram há séculos. A Igreja Livre não quer fazer parte da sua imagem antiga, pelo que o Ministério das Obras Públicas resolveu considerá-la património nacional, e, se alguém a quiser ver por dentro, terá de ir pedir a chave ao hotel. É claro que isto merece um comentário, se tivermos coragem para o fazer. Nós não tivemos, porque estávamos envoltos no nosso milagre; e quando empurrámos o portão que gemia e entrámos no cemitério, onde abundavam as urtigas e as ervas altas, sentimo-nos fora do tempo. Quando nos beijámos, até os fantasmas mal-amados gostaram de nos ver: os MacLeoads de MacLeod; os MacCrimmons, que eram gaiteiros dos MacLeod; os Mac-Vurrich, que eram os seus bardos, geração após geração, e os portadores da Bandeira das Fadas, cujos ossos jazem, lado a lado, esquecidos no cemitério.

Mas há ali fantasmas mais antigos que os dos MacLeod. No alto da torre, que os marinheiros outrora utilizavam como ponto de referência para os guiar de regresso, há pedras onde foram gravados estranhos símbolos que vieram do círculo afundado na baía; e, por vezes, à noite, os duendes visitam a colina que era o local onde viviam, antes de serem empurrados para o subsolo pelos Santos de lona. Dessa casa monástica saiu o Grande Clérigo de Rodei, que viajou pela França e foi bem acolhido por Carlos Magno e deu aos francos a sua primeira escola. Evidentemente, os franceses disputam isso. Disputam tudo, com toda a gente. Mas o melhor licor vem sempre das garrafas mais pequenas, e já havia cultura nas Ilhas muito antes de os franceses saberem que ela existia. Talvez isto não seja história, mas, quando se está junto da torre quadrada de St. Clement, uma hora antes do pôr do Sol, envolvendo nos braços uma bela mulher que se deseja consolar, aceita-se perfeitamente esta verdade.

Com o consolo dado e recebido, e deixando os fantasmas em paz, fomos até aopub e arranjámos um lugar entre a multidão de camponeses e pescadores, junto ao balcão antiquado. Éramos estranhos e deixaram-nos sós, até que um deles reconheceu em Kathleen a nova médica e a apresentou à companhia. Os homens de Harris eram diferentes dos da Lews, menos barulhentos, mais tímidos e oblíquos, mais lentos a iniciar uma conversa. Até mesmo o músico era um sujeito tão frágil que qualquer brisa o podia levar; mas arrancava melodias delicadas e doces de um velho acordeão de marinheiro, e ainda se ouvia quando nos sentámos para jantar numa sala com cortinas de renda e cortinados de veludo suspensos.

A comida era simples, mas o serviço foi prestado com um sorriso e nós sentíamo-nos felizes na companhia um do outro. O desânimo de Kathleen tinha desaparecido e o meu estava fechado, longe da vista, num escaninho distante do meu cérebro. Por isso a nossa conversa foi leve, fácil e variada, como uma névoa que paira sobre águas paradas e escuras.

- És bom para mim, mo gradh.

- E tu para mim, jovem Kathleen.

- Não sou assim tão jovem.

- Então eu sou mais velho que Deus.

- Acho que estás mais jovem desde que nos conhecemos. -Ar puro e exercício, uísque de malte e o amor de Kathleen

McNeil... uma receita para o elixir da juventude.

- Hoje senti a tua falta. Apeteceu-me faltar ao trabalho e ir contigo aos montes.

- Agradece às tuas estrelas por não teres ido. Amanhã vou ter os músculos cheios de nós.

- Mas mataste o teu primeiro veado.

- E o último também.

- Não te sentes orgulhoso?

- O veado era belo e perfeito. O homem foi um animal menos nobre.

- Estás a ser duro contigo mesmo, mas posso entender-te.

- Ainda bem que me entendes.

- É um problema, noentanto. Respeitamos a vida. Amamo-la. Mas não podemos proteger tudo e todos. Todas as ecologias dependem da morte. O mundo é tão pequeno. Tão cheio.

- Aqui não, graças a Deus.

- Mesmo aqui, querido. Quando a terra não pode ser cultivada, as pessoas morrem... Como estava o Ruarri?

- Óptimo. É a melhor companhia do mundo, quando está disposto a isso. Quase me matou a subir, ao princípio, para ver se eu aguentava. Depois disso, não houve problemas. Ele é bom em tudo o que faz, até a contar aldrabices.

- Descobriste alguma coisa mais acerca da Maeve O'Donnell?

- Não muito. Excepto que tiveram uma espécie de romance que morreu de morte natural. Ruarri diz que ela é inteligente de mais para o gosto dele. O que quer dizer, provavalmente, que é uma mulher que não esteve para o aturar.

- Eu diria que ela ainda está apaixonada por ele.

- É possível.

- Como será um romance com o Ruarri?

- Tempestuoso, penso eu. Conforme aquilo que a mulher pretenda dele.

- Ele é terrivelmente atraente.

- Para ti?

- Para a maior parte das mulheres, penso eu.

- Gostarias de o ter? E de o manejar?

- Poderia deixar-me tentar. Se não te tivesse a ti.

- Ele fala de ti todas as vezes que nos encontramos.

- Etu?

- Eu não falo de ti. Há um grande cartaz, em letras vermelhas, que diz “Não é para venda”, de cada vez que o teu nome é mencionado. Mas estou sempre a pensar em ti. Não há um momento do dia ou da noite em que estejas longe do meu espírito.

- Vais pensar em mim, quando andares no mar com o Ruarri?

- Demasiado, provavelmente.

- Detesto que vás.

- Então fico. Não há problema.

- Não! - Havia gratidão no seu sorriso e a sua mão acariciou a minha. - Precisas de ir. Os dias são longos para ti, quando eu não estou livre. Tenho-te observado, meu querido, não só como apaixonada, mas como médica também. Estás exausto, a rapar os teus recursos para viver dia após dia. Já estás melhor, mas a recuperação ainda não é completa. Precisas de coisas físicas, enquanto a mente fica desocupada. Volta para mim sorridente e renovado.

- Quando estivermos casados, havemos de arranjar um barco e passar a lua de mel nas Cidades.

- Se essa altura chegar, tenho outras ideias.

- Se...?

- Quando. - Kathleen oge, acho que cometi um grande erro.

- Qual foi?

- Não devíamos ter feito amor pela primeira vez na cama. Devíamos ter ido para o lugar das Pedras. Assim estaria seguro a teu respeito.

- Hoje estou segura de ti.

- Porquê hoje e não ontem?

- Tenta adivinhar.

- Não faço ideia. Diz-me.

- Não.

- Posso subornar-te?

- Não. Tens de adivinhar. E agora podes levar-me a casa e dizer-me quanto gostas de mim.

- E depois?

- Depois tomamos uma bebida e vais-te embora antes que o limão azedo volte do seu ceilidh.

- Não fazemos amor enquanto esperamos?

- Estou com o período, mo gradh. Por isso, esta noite é só um beijo e a bênção.

- Também é bom.

Foi bom e não foi. Eu estava demasiado velho e impaciente para namoros à luz do candeeiro, por isso saí cedo e tomei o longo caminho para casa: pelo lado das praias ocidentais, onde havia mais fantasmas, mas não existia o perigo de cair de um penhasco. Além disso, aquela era a terra dos velhos contadores de histórias, onde se sabia que até as rãs eram filhos de chefes, encantados no tempo dos sonhos, havia muito; onde as areias se transformavam em ouro uma vez por ano, e onde, por vezes, se podiam ver as pegadas dos cães encantados, que passavam de noite pela praia, quando a maré estava baixa.

Não vi cães mágicos. Mas ouvi o rouco coaxar das rãs e senti pena dos pobres diabos. Perguntei a mim mesmo que encantamento seria necessário para quebrar o feitiço e transformá-las de novo em homens. Talvez fosse um beijo de uma princesa compassiva. Talvez fosse apenas uma palavra: a resposta a um enigma, apresentado há dez mil anos, que nunca mais seria recordado, porque até mesmo a feiticeira o havia esquecido.

Kathleen McNeil tinha-me proposto um enigma; mas, porque estava meio morto de fadiga e cheio de vinho e de beijos, não tentei responder-lhe. Em vez disso, fiz um jogo, tentando transformar o enigma nuns versos, à maneira gaélica. Levei vinte milhas a compô-los, mas ainda me recordo deles:

O homem que eu era, o homem que eu sou, Ela ama-os a ambos, mas está mais segura Do que sou, do que do que era. Eu sou quem sou, eu sou quem era. Gostava que ela revelasse a diferença.

Era - como o pastor disse à actriz ao pequeno-almoço - um conceito agradável, mas de nada me servia. O enigma era divertido. A resposta, se na verdade houvesse uma resposta, não tinha a mínima graça.

A única diferença entre o que eu era hoje e o que fora ontem era o facto de ter feito uma morte. O que me punha ao nível de Ruarri Matheson e da Drª Kathleen McNeil. Se era a mulher que eu queria, ela era minha; mas, mesmo assim, eu teria de ser uns centímetros mais alto, uns quilos mais pesado e uns golpes mais implacável que o Mactire.

Uma loucura? Sem dúvida! Mas Já lhes falei do dia, um milhão de anos atrás, em que saí da realidade e penetrei na dimensão dos sonhos.

Bastante cedo na manhã seguinte, quando ainda esfregava os olhos para deles expulsar o sono, Ruarri telefonou-me. As coisas tinham mudado. Queria partir para a Noruega à uma hora. Eu podia despachar-me a tempo? Maldisse-o até ao último círculo dos infernos; mas, sim, podia arranjar-me a tempo. Roupas? Ele emprestava-me o seu impermeável e as botas. Quanto ao resto, podia levar coisas quentes para o trabalho e qualquer coisa decente para quando fôssemos a terra. Dinheiro, podia emprestar-me, mas eu não precisava dele. Se eu precisasse de uma hora com a minha garota - que eu gostaria de ter mas não podia gozar - havia tempo; mas queria-me a bordo, com as malas desmanchadas e pronto para navegar às 12 horas e 45 minutos. Maldisse-o de novo e desliguei.

Telefonei a Kathleen. Estava apenas meio acordada e irritável, o que me deixou satisfeito por partir. Depois, num rápido sobressalto, tornou-se meiga e solícita, o que me deu vontade de ficar. Disse-lhe que lhe telefonaria do continente. Ela respondeu-me que não me desse a esse trabalho. As linhas eram más e ela poderia estar a visitar um doente. Não devia pensar nela e tentar divertir-me. Quando eu voltasse à Ilha -ou ela teria dito a casa?-divertir-nos-íamos juntos. Deus te abençoe, meu amor. Deus te abençoe, Kathleen oge. É bom ter uma mulher para deixar em terra, porque isso quer dizer que haverá uma mulher à nossa espera quando voltarmos. Tomei banho, barbeei-me, fiz a mala e desci para tomar o pequeno-almoço.

Hannah disse que eu devia estar louco. Por que é que um homem que tem uma cama quente, uma casa confortável e uma mulher bonita que o ama, decide fazer-se ao mar bravo, tão bravo, era coisa que ela nunca poderia compreender. E com aquele patife do Ruarri? Que Deus nos proteja a todos do pecado e da desgraça! Eu sabia no que ia meter-me? Quando o mar se enraivecesse, podia partir um braço ou uma perna ou até mesmo a espinha, e nunca mais servir para uma mulher. Ou podia cair borda fora, ou sofrer um tal enjoo que havia de estar a gritar pela minha mãezinha antes que a noite caísse. Bom...! Se eu tinha que ir, que fosse, mas merecia todas as coisas horríveis que pudessem acontecer-me. Tinha roupas quentes? E os utensílios para a barba? E dinheiro? E roupa interior limpa? Nada de brincadeiras, não se esqueça! Nada de fornicar nos portos estrangeiros. Muitos desgraçados já voltaram para casa com aquilo que não levaram, e era coisa difícil de explicar à mulher ou à namorada. Ia passar pelo Morrison para o avisar? Óptimo! Ainda me restava um pouco de decência. Ela tinha ido visitá-lo e parecia um pouco mais animado, mas ainda não voltara a ser o mesmo. Eu tinha de comer um bom pequeno-almoço. Quando mais houvesse no estômago, mais fácil era conservá-lo lá dentro, como o pai dela costumava dizer, antes que o mar o levasse numa noite de Inverno.

Morrison, por seu lado, adorou a ideia e mostrou-me bem a sua aprovação.

- Não podias fazer coisa melhor, meu rapaz! Se o tempo se mantiver bom, vais fazer um cruzeiro que não poderias pagar. Se não se mantiver, vai ser uma expriência capaz de extrair as últimas teias de aranha dessa tua cabeça. Fico satisfeito por Ruarri continuar a querer-te ao seu lado. Foram feitos para ser camaradas. Quem me dera poder ir convosco, mas estou amarrado a esta maldita cama e tenho uma mulher com serpentes no cabelo a velar por mim...

Portanto, tendo-me desempenhado dos meus deveres em terra, comecei a pensar nos que devia ao mar. Precisava de um presente para Ruarri, para lhe agradecer as amabilidades anteriores e a hospitalidade a bordo do Helen. O meu antiquário tinha exactamente o que eu queria: um sextante de latão dos tempos dos veleiros, montado numa caixa de teca, e tendo gravadas as iniciais de um capitão morto havia tempo. Como eu lhe parecia um bom cliente, fez-me um pequeno desconto e deu-me um saco de papel para transportar a oferta. Para a tripulação, decidi-me por bebidas fortes e fui a um pub comprá-las. Ainda tinha uma hora livre, por isso pedi uma cerveja e sentei-me num compartimento junto da janela, para beber confortavelmente e ver passar as pessoas na rua cinzenta e escura.

Estava ali havia uns cinco minutos, quando o bar começou a encher-se com os clientes do meio-dia. Um deles era Duggie Donald, o homem da Alfândega. Pediu uma imperial e empoleirou-se num banco que ficava de costas para mim. Não sentia vontade de entabular conversas com ele ou com qualquer outra pessoa, naquela altura, por isso voltei-me e concentrei-me na visão da rua. Tinha terminado a minha cerveja, quando um outro homem se veio juntar a Duggie, e começaram a falar baixo, animadamente. O recém-chegado era o tripulante a que Ruarri tinha batido no “Óculo do Almirante”. Estavam ambos, portanto, a dez minutos de distância dos seus locais de trabalho. Nada tinha a recear de qualquer deles, mas experimentei uma estranha sensação de desconforto. Reuni as minhas coisas e saí. Segui até à doca no carro, guardei-o por uma semana numa garagem próxima e transportei a bagagem para bordo do Helen II.

Ainda era cedo, e havia apenas um homem a bordo: um tipo alto e taciturno que se apresentou, com relutância, como sendo Athol Cameron. Eu iria partilhar o camarote do capitão, disse-me ele. O beliche de bombordo era meu; podia descer. Entreguei-lhe o uísque e pedi-lhe que o distribuísse pela tripulação, com os meus cumprimentos. Envolveu-o amorosamente nos braços e decidiu que, afinal, bem podia ir mostrar-me as minhas instalações. Quando já tinha tudo arrumado e tinha escrevinhado uma nota para acompanhar o meu presente, ouvi chegar o resto da tripulação. Subi ao encontro deles, para esperar por Ruarri.

Tinha um pequeno dilema entre mãos. Deveria ou não informá-lo do encontro que tinha acabado de testemunhar? Se isso significasse problemas para ele, eu tinha o dever de o avisar. Se pelo contrário, o encontro fosse inocente, o rapaz poderia ficar desnecessariamente metido em sarilhos. Estava ainda a mastigar a questão, quando o rapaz chegou a bordo.

Era um homem grande, e trazia um saco de marinheiro pendurado no ombro. As saudações que fez e recebeu pareceram-me bem humoradas, de modo que me senti inclinado a esquecer aquele facto banal. Nada sabia sobre as relações particulares dos ajudantes de Ruarri, e um breve aflorar de violência ou uma dura maneira de disciplinar não eram coisa rara entre os marinheiros. Pelo menos não havia motivo para ajudar um homem de judas. O facto de ele tomar parte na missão que Ruarri tinha em vista parecia-me garantia suficiente de que a irmandade estava intacta. Por isso, decidi calar-me.

Nessa altura Ruarri chegou a bordo e levou-me para a casa do leme, para combinar o curso comigo: uma longa rota para norte, saindo do Minch, passando pelas Orkney e Shetland, depois para nordeste até Trondheim, na corrente da Noruega. O tempo? Calmo por algumas horas, com vento de leste e chuva prevista. Depois disso? Bom, havia uma frente em desenvolvimento, vinda da Islândia. Poderia atingir-nos a sul das Feroés, mas, com um pouco de sorte, talvez não a apanhássemos. Duração da viagem? Quarenta e oito horas, mais ou menos. Propósito da viagem? Não sabia, não perguntei, e estava-me nas tintas para ele. Sentia-me tão livre como uma gaivota que paira nas alturas e estava preparado para erguer a minha voz e compor baladas a esse respeito.

O nosso Ruarri era um homem pontual. À uma hora tinha os motores a funcionar, o barco desatracado e a sair da baía, passando pela doca do ferry em direcção à foz do porto. À uma e meia Chicken Head começava a ficar para trás e seguíamos um curso nor-noroeste, Minch acima, com as gaivotas a gritar e a agitar as asas por cima de nós e o céu a ficar lentamente mais encoberto, enquanto o crescente vento de leste empurrava as nuvens. Ainda não havia chuva, porque os altos cumes de Sutherland já tinham atraído as nuvens; mas depois do Cabo Wrath teríamos aguaceiros, e um vento muito mais forte, afunilado através do estuário de Pentland e sobre o tecto da Escócia.

Ruarri entregou o leme ao rapaz a quem tinha dado um pontapé no ventre-e que o tratava como se fosse o seu Senhor e Salvador - e depois levou-me para baixo, para comer com o resto da tripulação. A tripulação normal da Helen era de cinco homens e o capitão. Ruarri exigia que cada homem fosse capaz de executar todas as tarefas do barco: manter os motores a funcionar perfeitamente, tomar conta do leme, cozinhar uma refeição com temporal ou bom tempo, manejar as redes e os guinchos, raspar a pintura, limpar e embalar o peixe, fazer costuras nos cabos e lavar o convés. Ele próprio prestava uma ajuda a cada coisa, pelo que não tolerava gente ociosa no seu barco. Cada um deles podia dar a sua opinião, mas quem mandava era Ruarri e disso ninguém tinha dúvidas.

Já tinha conhecido todos os rapazes, quando bebiam e gritavam no bar. Ali, no ritual familiar de um pequeno barco, eram homens completamente diferentes. Comiam avidamente, preparando-se para o dia frio: uma sopa tão espessa que se podia pôr uma colher de pé, carne guisada com uma montanha de puré de batata, pêssegos enlatados e chá mais escuro que água de pez. Falavam tranquilamente, experientemente, do tempo que nos aguardava, das áreas já esgotadas e de outras que pareciam prometedoras. A conversa oscilava entre o gaélico e o inglês, e algumas vezes era traduzido, outras não; mas aceitei isso como um cumprimento, pois eu fazia parte da família e sabia que era um amigo capaz de beber o seu copo e manter a boca fechada numa situação constrangedora.

Reparei que já não se riam tanto. A sua conversa era menos obscena. As suas piadas eram as pequenas graças constantes e críticas que passavam de homem para homem, como os desenhos formais de uma trama. Estavam sempre alerta ao ritmo das coisas, ao ruído dos motores, ao som do vento, à elevação e queda do casco, aos gemidos e rangidos e murmúrios no interior do corpo do barco. Mesmo nos momentos de ócio, continuavam a vigiar o mar traiçoeiro, sempre um inimigo, mesmo quando sorria, feliz por ser visitado, mas sempre cobiçando mais homens para os casar com as frias donzelas das profundidades.

Ruarri também parecia vigiar, mas mais os homens que o próprio barco. Os homens conheciam o mar tão bem como ele, melhor talvez, porque nele tinham passado as suas vidas, enquanto as suas viagens o tinham levado para longe e o tinham trazido de volta mais tarde. Ele era o capitão. Mas o capitão tem que dormir e que descansar, por isso tem de haver olhos que vejam por ele e ouvidos que oiçam por ele, e narizes para cheirar a tempestade antes que ela atinja o barco. Naquela noite e no dia seguinte estaríamos em águas turbulentas, onde as correntes se separam e as ondas se quebram de todos os lados, e os ventos se rasgam em volta dos arquipélagos das Orkney, Shetland e Feroés.

Julgo que era a única pessoa à mesa - porque me encontrava absolutamente dependente de todos eles. Por isso comecei a defini-los, um a um, como não tinha conseguido fazer no meio do fumo e do tumulto da nossa primeira reunião. Comecei a reter os seus nomes e a fixar as suas peculiaridades de fala e de atitude.

Athol Cameron, taciturno e desengonçado, era o contramestre. Parecia um brinquedo articulado, cujas mãos e pés não condiziam com o resto do corpo. A sua conversa normal era constituída por uma série de grunhidos, entre os quais, com um pouco de prática, se distinguem os negativos e os afirmativos. As suas ordens eram dadas em monossílabos e nunca repetidas. Quando Ruarri falava, escutava-o, chupando o cachimbo mais fétido que já pude cheirar. Concordava com um “Sim”. Discordava com um “Raios, não!”, que saía numa explosão seca como o ladrido de uma foca.

Calum MacMillan, o cozinheiro, era um pequeno galo brigão, com uma marca cor de morango numa das faces e uma mulher nua tatuada no peito. Era peludo como um bode e igualmente potente. Tinha sido lubrificador num cargueiro e tinha estado preso por qualquer acto de delinquência em Port o'London. Mas quem o visse manejar as panelas, a chaleira e as frigideiras no mar alto, pensaria que era malabarista profissional.

Jock Burns era o homem dos diesels. Era ruivo como Ruarri, quase tão grande como ele, com um amontoado de sardas desde os malares até ao queixo. Mas tinha um ouvido como o de Toscanini para a afinação e uma língua como um chicote para o desgraçado que levasse uma ferramenta e se esquecesse de a voltar a pendurar no lugar certo. No entanto, apanhando-o sozinho, com o mar calmo e o motor a funcionar perfeitamente, era capaz de nos contar histórias de encantar sobre as carreiras da China. Era o mais velho de todos, com cerca de 45 anos, e era o Papá Burns para todos os que se mantivessem na linha. Se saíssem da linha, era Mr. Burns e um bom punho, cheio de cicatrizes e bem endurecido pelas chaves de fendas.

Depois vinha o Donan McEachern, um rapaz grande e musculoso, de Barra, que tinha tentado ir para a Força Aérea, mas não tinha conseguido por causa da vista. Era capaz de levantar um barril de arenques tão facilmente como eu ou o leitor levantamos uma chávena de chá. Quando falava inglês, gaguejava aflitivamente, mas o gaélico da sua ilha natal saía da sua boca fluente como música.

Com excepção de Jock Burns e Ruarri, tinham todos menos de 30 anos de idade, e o rapaz que estava ao leme, Lachie McMutrie, era o mais novo de todos - um extrovertido falador e entroncado, com 23 anos de idade e um número superior em mulheres, em entalhes no cinto... se quiséssemos acreditar nele.

Seriam um grupo robusto e perigoso de enfrentar numa briga, e tomei nota, mentalmente, para me afastar de todos os bares onde eles pudessem ir beber em Trondheim. Mas ali, a conversar tranquilamente na cozinha apinhada, eram todos da mesma raça, visitantes do mar cobiçoso, amando-o, odiando-o, apoiando-se uns aos outros contra ele, como os antigos aventureiros nos seus longos barcos a remos.

Ruarri deixou-os depois do almoço e foi para o seu camarote. Eu fiquei na cozinha com Calum, para o ajudar a levantar a mesa. Não tinha intenções de ficar ocioso, com toda a gente a passar-me por cima dos pés. Depois vesti um impermeável e fui fazer um turno no convés.

O vento soprava forte, agora, em rajadas que vinham das Highlands, trazendo chuva, e a espuma da crista das ondas fortes salpicava o convés. A maior parte das gaivotas tinha desaparecido, mas ainda havia algumas mais obstinadas que se agarravam aos vaus reais e à antena de radar, levantando voo de vez em quando, e depois pousando, com as asas fechadas para se protegerem dos golpes do vento. Coloquei-me ao abrigo da casa do leme e fiquei a ver o último recorte da Lews desaparecer sob o aguaceiro, pensando no que Kathleen McNeil estaria a fazer naquele precioso momento.

Sentia-me grato pela liberdade que ela tinha insistido em conceder a ambos. Compreendi os seus motivos, senti a necessidade dela e senti-me decidido a gozar todos os bons momentos e a voltar sorridente para tomar posse dela. Se o vento, a chuva e o mar não arrastassem consigo os últimos vapores, já não haveria salvação possível para mim. Nessa altura, Jock Burns bateu-me no ombro e disse-me que Ruarri gostaria que eu fosse ao camarote - e, a propósito, os rapazes estavam muito agradecidos pelas bebidas; era uma oferta sempre bem-vinda e muito atenciosa.

A reacção de Ruarri à sua prenda foi curiosamente comovente. Segurava-a nas mãos, com um rosto sério, quando disse:

- Já recebi presentes de mulheres, sennanchie, por serviços prestados ou solicitados. Este foi o primeiro que recebi de um homem. Fiquei emocionado. Li o pensamento que está por detrás dele. É como... como uma festa de aniversário, que ninguém me ofereceu. Não sei que mais dizer.

- Não digas nada. -Usa-o algumas vezes, se a calibração estiver exacta.

- Tem de estar. É uma bela peça de latão.-Fechou a caixa e pousou-a cuidadosamente na prateleira por cima da sua mesa de trabalho. Depois voltou-se para mim.-Queria falar contigo acerca da viagem, seannachie. Há qualquer coisa errada, terrivelmente errada. Não sei o que é, mas pressinto qualquer coisa. Estive na cidade, na noite passada. Ouvi murmúrios que não devia ouvir. Sugestões, cujo tom me desagradou.

- Que tipo de sugestões?

- Alguém andou a falar dos meus assuntos pelos bares.

- Isso é importante?

- Meu Deus! Se é importante! Basta um telegrama para Trondheim e estamos todos metidos em sarilhos até ao pescoço: eu, o Bollison, a Maeve O'Donnel e mais uma data de gente que tu não conhecerias, mesmo que te dissesse os seus nomes.

- Que tipo de sarilhos?

- Sarilhos com a polícia, sarilhos com a Interpol, repercussões políticas, de tudo um pouco.

- Nesse caso, talvez seja melhor contar-te uma coisa. Pode querer dizer alguma coisa, ou não querer dizer nada. Pouco antes de vir para bordo, vi o teu Lachie McMutrie a conversar com o Duggie Donald na “Coroa e Âncora”.

A modificação que se operou nele foi surpreendente. O seu rosto perdeu subitamente toda a cor. Todos os seus músculos de retesaram. Parecia um animal encurralado e pronto a atacar. Depois, muito lentamente, descontraiu-se, deixando sair o ar dos pulmões numa longa exalação, meio assobio, meio suspiro.

- É melhor que me contes tudo, rapaz.

- Isto é tudo. Vi-os. Estavam a conversar. Não me viram. Fui-me embora.

- E foi na “Coroa e Âncora”. Estás certo do local?

- Certíssimo. Reparei na tabuleta, que é uma das mais coloridas.

- A que horas?

- Cheguei lá quando faltava um quarto de hora para o meio-dia. Saí quando faltavam cinco. Eles ainda lá ficaram.

- Então o nosso Lachie terá de dar-me uma boa explicação. Se não der, arranco-lhe o couro e dou-o a comer aos tubarões.

- Não enquanto eu estiver a bordo, Ruarri. Pôs-se bruscamente de pé, selvagem e ameaçador.

- Mete-te na tua vida, seannachie! Este barco é meu. Os homens são meus! Se meteres o nariz onde não deves, acabas por ficar com ele partido.

- Senta-te e vê se te acalmas.

Atirou-se a mim e eu não me afastei com suficiente rapidez, de modo que o seu punho apanhou-me em cheio no malar e abriu um golpe. A pancada atirou-me contra a parede. Afastei-me dela e enfrentei-o. Tinha os braços caídos. Agarrava-se ao rebordo da mesa e abanava a cabeça como um cão que tivesse acabado de sair da água. Queria que eu lhe batesse;mas, embora eu ardesse de cólera, não consegui dar-lhe um murro. Estava a transbordar de bílis e de amargura e extra-vazei-as sobre ele!

- Fica para outra altura, Ruarri? Só tu e eu sem compartimentos fechados. O barco é teu. Governa-o, como um capitão adulto! Mas, se houver acidentes, podes contar com uma testemunha de acusação no inquérito. O Mactire, pelo amor de Deus!... O grande lobo ousado com...

- Cala-te, seannachie!-Parecia arrancar as palavras de dentro de si. - Por favor... cala-te!

Sentou-se pesadamente no beliche e enterrou a cabeça nas mãos. Fui até ao chuveiro e, com a esponja, limpei o sangue da cara e encontrei um penso com que cobri o golpe.

Quando voltei, Ruarri estava calmo de novo, sorrindo, com uma desculpa na ponta da língua:

- Desculpa, irmão. Perdi a cabeça. Terás a desforra quando quiseres. Agora é melhor que fiques a saber o que se passa.

- Não quero saber. Estou-me nas tintas.

- Mas é melhor que me oiças. Porque agora estás metido nisto, como uma massa na sopa.

- Já estás avisado, Ruarri. Se for chamado, sou testemunha de acusação.

- Ámen. E agora escuta-me. Eu trafico armas, seannachie. Excedentes do exército sueco, comprados legalmente em Estocolmo por Maeve O'Donnell e outros amigos meus, que seguem por terra para a Noruega, não tão legalmente, e são carregados por Bollison num fjord tranquilo onde não há alfândega. Eu aporto em Trondheim, para meter combustível e água e para uma revisão final das disposições. Depois encontramo-nos com o Bollison, transbordamos os caixotes e partimos para a Irlanda, que é o meu actual mercado, porque há problemas no Ulster e o IRA paga em dinheiro pelos caixotes com mercadoria limpa, ainda embalada com o óleo do fabricante. No caminho de regresso pescamos, e a pesca traz-me de volta a Stornoway limpo... desde que o nosso Lachie não se tenha armado em Judas e não nos tenha vendido aos ingleses. Que pensas disto?

- É um negócio de sangue. Acho-o nojento. E tu também me metes nojo.

- Tens direito a ter a tua opinião. Eu tenho a minha, que não faria sentido para um tipo sublime e moralista como tu. Mas estás a ver o que sucede se alguém deu com a língua nos dentes?

- Estou.

- Por isso tenho de ter a certeza, não achas? E tenho de saber depressa, não te parece?

- O que tens de fazer é contigo. Eu digo-te o que eu tenho que fazer. Se acontecer alguma coisa a Lachie McMutrie enquanto eu estiver a bordo, ou se vier a saber de alguma coisa depois, quem dá com a língua nos dentes sou eu. No primeiro porto em que tocarmos, deixo-te e volto de avião para Stornoway. Pelo que ouvi, por agora estás seguro, e tu sabes disso. Caso contrário, não virias contar-me. Há apenas boatos, portanto inadmissíveis, portanto inúteis num caso contra ti. Mas o que eu vir, testemunho, se for chamado, e se o rapaz ficar ferido apresento queixa. Avisei-te porque te devia isso, e também ao Morrison. Só espero que tenhas percebido bem o que estou a dizer-te.

- Perfeitamente. Só queria saber se somos amigos ou inimigos.

- Descobre isso por ti próprio.

- Uma bebida, então, para tirar o mau sabor.

- Não, obrigado. Vou apanhar ar fresco.

- Seannachie.

- Que é?

- Deves-me um murro nos dentes.

- Põe na conta.

Era tão surpreendente como um diamante a cintilar por todos os lados, e tornava-se ralmente difícil acreditar que houvesse nele alguma falha. Por vezes era tão limpidamente honesto, mostrava-se tão prontamente arrependido, mas tão obscura e subitamente perigoso, que apanhava sempre os outros desprevenidos. Não duvidava de que ele fosse um assassino. Não duvidava de que fosse um rapaz perdido com um grande buraco negro no meio da sua vida. Até compreendia a necessidade que ele tinha demim. E via claramente que, no momento em que eu me curvasse às suas necessidades, ele me daria um pontapé no traseiro.

Depois, quando cheguei ao convés e o vento me atingiu, arrastando a chuva fina, compreendi algo mais. Eu tinha deixado de ser um homem livre. Estava prisioneiro num barco de pesca ao arenque que o mar sacudia, e onde a única lei era a lei de Ruarri o Mactire.

Como prisioneiro, era impotente. Mais valia descontrair-me e apreciar a experiência. Mas havia pouco prazer a encontrar num convés oscilante, com um vento cortante como uma faca e a espuma a salpicar-me a face ferida. Nada havia para ver além de nuvens esfarrapadas e as borrascosas rajadas de vento e as cristas brancas das ondas numa dança alucinada. Era orgulhoso de mais para descer, mas o meu orgulho aquecia-me pouco contra o frio que começava a enregelar-me até aos ossos. Não podia ir para a casa do leme e enfrentar o pobre tagarela, que não sabia o que se estava a preparar contra ele na cozinha. E também não me agradava a ideia de enfrentar cinco tipos musculosos sem uma rua aberta por detrás de mim.

Nessa altura, o Papá Burns chegou ao convés e fez-me sinal.

- Cumprimentos do Matheson. Ele acha que, uma vez que vai tomar conta do leme, talvez gostasse que eu fosse consigo.

- Boa ideia. - E melhor ainda, poderia sair do frio e fazer qualquer coisa construtiva.

Por isso fomos para a casa do leme, tirámo-lo das mãos de Lachie e ele foi mandado para baixo. Devo tê-los feito passar uns maus minutos até apanhar o jeito, porque o movimento de uma pesada traineira é muito diferente do de um iate, com velas por cima e uma longa quilha por baixo para estabilizar. Depois comecei a compreender o ritmo: o lento rolar da onda, a firme transposição da proa, o arrasto da popa, e a guinada que tinha de ser corrigida nem muito cedo nem tarde de mais. Ao fim de algum tempo consegui descontrair-me e escutar o Papá Burns que contava uma história de um tufão no Mar do Japão, e de um cargueiro ferrujento com um motor avariado e o outro a funcionar apenas o suficiente para o manter com a proa acima das ondas. Só quando consultei o relógio me apercebi de que tínhamos passado o Cabo Wrath e eu conduzia o meu primeiro barco pelo Atlântico Norte.

Nessa altura chegou Ruarri e o Papá Burns deixou-nos; continuei a manejar o leme e Ruarri, com um bloco de mensagens à sua frente, começou a mexer no transmissor.

Estava sombrio, mas conseguiu mostrar um pouco de humor.

- Podes ficar tranquilo, seannachie. O nosso amigo Lachie é um autêntico cobarde. Não houve sangue. Está menos marcado que tu. Vai deixar o barco no Eire, que é o que queremos que ele faça, e terá incentivos bastantes para não voltar às Ilhas durante muito, muito tempo. Uma parte em dinheiro. O resto é a noção de que acabará num pântano de trufa se mostrar o focinho dentro de menos de dois anos. Quanto ao resto, mantém o rumo e fica calado enquanto eu decifro estes códigos.

- Sim, meu capitão!

- Força na verga, Mr. Christian! (1)

- Igualmente, Mr. Matheson!

Súbita e miraculosamente, desatámos a rir, como se toda aquela explosiva situação não passasse de uma partida escolar. E talvez fosse - embora, no final, viesse a haver mortos.

Então Ruarri explicou-se:

- É uma baralhada. Mas as coisas não estão tão mal como eu receava. O Lachie é um pobre diabo que não seria capaz de explicar as coisas como elas são, nem que lhe pagassem, o que o Duggie Donald prometeu fazer. Por isso, com um pouco de sorte e boa orientação, safamo-nos todos. Vamos dirigir-nos às Feroés, onde ninguém sonha procurar-nos. Bollison pode ir ao nosso encontro. Estará longe de Trondheim antes que os ingleses e os noruegueses consigam decifrar a trapalhada que lhe impingiram. É uma pena que não fiques connosco.

- É preferível não ficar.

- Dás saudades minhas à Maeve, no regresso?

 

(1) O imediato de Revolta na Bounty. (N. da T.)

 

- Onde está ela?

Neste momento, em Estocolmo. Depois vai esperar alguns dias em Copenhaga. Como já pagou e garantiu a entrega, vai passar uns maus momentos.

- Onde diabo se encaixa ela?

- Isso, seannachie, é uma boa pergunta. É uma patriota irlandesa, diz ela. E talvez seja verdade, porque a família dela esteve metida no Movimento, em tempos. A minha versão é que ela é uma mulher rebelde que nunca encontrou um homem que a dominasse, de modo que agora reorganizou as suas prioridades: dinheiro, cavalos, homens, e o Ulster que se lixe, por esta ordem.

- Eu pensei que fossem feitos um para o outro.

- Ela ainda pensa.

- E tu?

- De mulheres, gosto. De dinheiro, gosto. Cavalos, posso apreciar ou não, como as ostras. Quanto aos irlandeses e as suas escaramuças, estou-me nas tintas. Se amanhã se matarem uns aos outros com as armas que eu levo, não perco um minuto de sono por causa disso.

- Vá-se lixar, Mr. Mathesoh!

- O senhor também, Mr. Christian. E agora deixas-me fazer o meu trabalho? E espero que estejas a contar com a declinação, se não, de manhã, estamos a meio caminho da Nova Escócia!

Estou a seguir o curso que tu fixaste, pelo amor de Deus!

- Queres terminar o teu quarto?

- Só se me arrancares daqui.

- Não. Apita a pedir um grogue para cada um.

- Sim, meu capitão!

O leitor poderá dizer o que quiser, que eu não me zango. Éramos irmãos, duas ervilhas de mesma vagem, ambos velhacos, amando-nos, odiando-nos, ambos incapazes de chegar ao acto final da aceitação ou da rejeição. E, no entanto, teríamos que lá chegar. Penso que ambos sabíamos disso e ambos o temíamos e tentávamos adiar o momento tanto quanto possível. É o mistério da irmandade que ainda me escapa, esse mistério que corre como um fio ininterrupto pela urdidura da história e da lenda: Caim e Abel, o Doppelgãnger, O homem que perdeu a sua sombra. Absalão, suspenso pelos cabelos, trespassado pelas lanças dos comandantes de David. Estivemos muito próximos, nessa tarde, abrindo caminho, cegamente, através da borrasca, buscando um porto distante e incerto, sorvendo o uísque quente e doce, enquanto o olho vermelho do transmissor nos fitava sem pestanejar.

Quando terminou as suas transmissões, Ruarri fez uma radiolocalização da nossa posição, deu-me um novo curso, fez anotações no diário do bordo e ficou algum tempo a escutar um programa sinfónico de Reykjavik, que recebíamos nítida e perfeitamente acima do ruído do vento e do mar. Perguntou-me então:

- Já estiveste na Islândia, seannachie?

- Nunca.

- Devíamos ir lá os dois, um dia. É um país estranho e feroz, com fogo nas entranhas e vapor e lama quente a jorrar do solo em borbotões. O mar é um monstro, ali: baixios e correntes loucas, e rochedos que nem se imaginavam a espreitar entre as névoas, e a bússola desvairada, de modo que nunca se sabe se vamos ou vimos. Falavam a antiga língua dos Vikings, e ainda fazem literatura com ela. São um povo grande e belo, e vinte anos depois ainda se sonha com as mulheres da Islândia. Foi lá que o Parlamento começou, seannachie, com cada homem a dizer o que pensava no lugar do Althing... e já nos esquecemos de muito do que eles sabem sobre a democracia. A democracia...! Oh, meu irmão! Somos todos escravos agora, presos com cadeias de papel e clips! Tu és livre, seannachie? Sentes-te livre?...

- Não tanto como gostaria.

- Mas algumas vezes?

- Sim. Algumas vezes.

- Diz-me quando.

- Geralmente quando me sinto mais restringido. Como nesta noite. Sem ofensa, mas a verdade é essa. Não posso andar sobre a água. Não posso ir para parte alguma, excepto para o local para onde tu decidas levar-me. Poderias atirar-me pela borda fora, que ninguém to impediria. Algo sucede quando eu sei que consigo sempre escapar-me para o passado que alguém criou para mim, ou para um presente que posso invocar do nada, mas conservar, nota bem, fixar em palavras e conservar e até transmitir-to... A verdadeira liberdade reside no facto de ninguém poder invadir esse reino privado, ninguém poder roubar-me o passaporte para ele. A única maneira de poder ser destruído é destruindo-me. E, mesmo assim, nunca poderás ter a certeza, porque outra pessoa poderá ter o meu manuscrito ou decorado as visões que eu recitei. Os sonhos são dentes de dragão. Por vezes nascem deles flores. Por vezes, homens armados... Isto faz sentido para ti?

- Demasiado! - A sua resposta foi abrupta e quase furiosa. - É isso que eu invejo em ti, seannachie. É por isso que às vezes me apetece estrangular-te. Tens algo de que eu preciso como da própria vida e que não consigo alcançar. Para mim não há reinos privados, nunca haverá, porque, para onde quer que me volte, lá está um maldito funcionário com uma folha de papel e um carimbo ou um mandato, ou um maldito regulamento que diz que não posso andar para a frente sem ter cumprido as suas condições. A única maneira que tenho de passar por ele e pelos da sua espécie é a tiro. Mas por quanto tempo poderei disparar?... Eu também sonho, seannachie, sonhos loucos e maravilhosos. Por que é que para mim os sonhos são uma prisão e para ti a liberdade?

- Talvez porque tu queres realizá-los a todos.

Na verdade não sei porque disse isto. Não raciocinei sobre a resposta. Não estava a tentar mostrar-me esperto ou fazer uma frase bonita. Nem pensei que Ruarri o acreditasse. Mas ele disse-o. Disse-o com uma estranha e acossada amargura que era mais assustadora que as suas fúrias:

- És um filho da mãe muito esperto, não és, seannachie? Esperto de mais para minha tranquilidade.

Depois foi-se embora e senti-me solitário na minha minúscula cabina iluminada, no meio do mar sombrio. Tive então a certeza de que a irmandade não poderia perdurar. Perguntei a mim mesmo qual de nós a quebraria finalmente, e como e quando isso iria suceder.

 

Quando terminou o meu quarto, sentia-me gelado, cheio de fome e de dores em todos os ossos. Precisava de uma boa bebida, uma ceia tranquila e um sono muito, muito longo. Tive a bebida e a ceia. Cacau quente e um prato de sanduíches de queijo. E tive também uma surpresa. Ruarri, Lachie McMutrie, Papá Burns, Athol Cameron e Calum, o cozinheiro, estavam sentados a jogar póquer, barulhentos e alegres, como se nada se tivesse passado entre eles.

Ora, quem joga póquer sabe perfeitamente que basta observar algumas jogadas para se saber de que género de jogo se trata, se está a ser jogado por prazer, por dinheiro, ou por desforra. Posso jurar agora, como já tive de jurar no meu depoimento, que se tratava de um jogo amigável, com pouco dinheiro, entrecortado por piadas e risos, sem a mínima tensão. Sentei-me a jogar. Joguei uma dúzia de partidas e saí a ganhar dez pence, e a perguntar a mim mesmo se não teria enlouquecido tranquilamente na casa do leme. Apenas o golpe que tinha na face me dizia que não.

E, no entanto, ali estava Lachie, o Judas do grupo, que tinha posto toda a gente em perigo, a gritar e a rir e a recolher os seus lucros, sem um sinal de medo ou uma palavra de ressentimento dos seus camaradas. Cada um deles tinha uma bebida ao seu lado, por isso as línguas estavam bastante soltas. Não eram todos actores. Ruarri, sim. Mas não os outros - não Athol Cameron, nem o papá Burns, nem Calum, que era um homem simples, brigão como um galo ao nascer do Sol. Não fazia sentido algum, e, ao fim de algum tempo, senti-me satisfeito por não fazer. Desde que me desembarcassem a seco nas Feroés, podiam continuar a piratear pelo resto das suas vidas -e tanto se me dava que negociasse com armas, mulheres, camarões ou arenques salgados!

Pouco antes das dez e meia, larguei as cartas e fui deitar-me. Tentei ler um pouco, mas o esforço para focar a vista fez-me sentir enjoado; por isso apaguei a luz e fiquei estendido, acordado, às escuras, escutando as pancadas do mar e o gemido das madeiras e as vozes abafadas que vinham da cozinha. Pensei em Kathleen McNeil, sozinha na sua cama em Harris, e desejei estar lá com ela; mas confortava-me pouco esse desejo e ainda menos o facto de saber que teria de percorrer duas mil milhas para voltar para junto dela.

Depois comecei a ficar obcecado pela desolada geografia dos mares do norte e todos os seus lendários terrores de borrascas e nevoeiros e blocos de gelo à deriva, e rochedos negros a irromper de águas em redemoinho. Lembrei-me do tributo em barcos e homens exigido todos os anos pelo negro fazedor de viúvas, sobre a colheita de peixes. Vi os longos barcos a remos a zarpar da Noruega: e das costas de Jutlândia, com as velas quadradas ensufladas, os escudos a brilhar à luz do sol, os remos a bater na água ao ritmo da cantilena do timoneiro. Vi-os espalhados, a lutar contra o mar, cobertos de espuma gelada, as velas rasgadas, os mastros quebrados, os remadores cobertos de peles como animais, empolados de queimaduras do gelo, perscrutando um porto por entre as trevas. Vi-os lutar contra a força das marés das Feroés, procurando, desesperados, uma praia onde pudessem desembarcar os seus animais e as suas mulheres e recomeçar a procriar para substituir as vidas ceifadas pelo mar. Vi Ruarri entre eles, sempre sobrevivente, o lobo vermelho, reduzido a pele o osso, mas ainda vigoroso e selvagem, uivando num desafio aos ventos. Depois, porque estava profundamente mergulhado nos meus sonhos, vi-o transformar-se: num homem-foca com pêlo no dorso, filho de um marinheiro e de um monstro marinho, que, no final, teria de regressar às profundezas...

Acordei no escuro, de olhos nublados e fatigado. O ritmo do meu mundo tinha mudado. O vento tinha cessado. Os motores funcionavam lentamente e navegávamos numa ondulação lenta e viscosa. Depois ouvi o longo e rouco berro da sirene de nevoeiro, repetido de meio em meio minuto. Acendi a luz e, depois de ter esfregado os olhos para os aclarar, constatei que eram seis e meia da manhã. O beliche de Ruarri estava vazio e desmanchado. Lavei-me sumariamente, enverguei, rangendo, as minhas roupas de navegar, e dirigi-me à cozinha. Estava vazia, mas havia café ainda quente no fogão. Bebi duas chávenas e senti-me melhor. Depois subi ao convés e detive-me subitamente.

O nevoeiro, tão espesso que não conseguia ver as pontas dos dedos, estendia-se diante de mim. Fazia espirais e torvelinhos como lã flutuante, asfixiante, cegante, tão sólido que se podia mastigar. Até o som da sirene era abafado por ele e, quando gritei, foi como se tivesse pêlos na garganta e uma manta comprimida contra a boca. Depois ouvi o grito de aviso do Papá Burns:

- Não ande cá por fora. Vá para a casa do leme!

Fui avançando, às apalpadelas, centímetro a centímetro, até à escada do tombadilho e subi para a estreita cabina iluminada onde Ruarri se encontrava, com uma mão no leme e a outra sobre o botão do cláxon. Parecia pálido e tenso e tinha os olhos raiados de sangue. Saudou-me com um breve aceno da cabeça e comunicou-me:

- Estamos nisto há mais de quatro horas. E perdemos o Lachie:

- Perderam-no como? - Olha lá para fora. Foi assim. Eu estava no quarto da meia-noite. Ele devia ir substituir-me às quatro. Não apareceu. Parei os motores e fui lá abaixo acordá-lo. O beliche dele estava vazio. Deve ter vindo para o convés antes do quarto e saiu pela borda fora. Já aconteceu noutros barcos. Temos todos os homens no convés e andamos em círculos desde essa altura, na esperança de o encontrar. Avisei todos os barcos e postos da guarda costeira.

- Ele sabe nadar?

- Não sei. Mas, mesmo que saiba, a água está terrivelmente fria. Não podia aguentar-se muito tempo.

- Santo Deus! Posso ajudar?

- Fica com o leme. Faz uma volta lenta, um círculo completo a estibordo. Observa o radar. Toca a sirene a intervalos de trinta segundos. Quero ir dar uma volta ao convés.

- Tem cuidado!

- Eu tenho.

Deixou-me, nessa altura, e fiquei a ouvir os seus chamamentos e as vozes que lhe respondiam do nevoeiro:

- Athol!

- Aqui.

- Calum!

- Aqui!

- Donan!

- Aqui, Ruarri!

Depois fez-se silêncio com excepção do lento e poderoso ritmo dos motores e do grito da sirene através do mar invisível. Felizmente o ecrã do radar mostrava-se limpo; por isso, de momento, não corríamos perigo de colidir com rochedos ou navios de passagem. Quando tinha completado um longo e lento círculo, Ruarri estava de regresso à casa do leme.

- Nada. Nem um som. E não se vê a trinta centímetros de distância.

- E agora?

- Uma pesquisa completa a bombordo, duas milhas para cada lado.

Deixou-me ao leme e debruçou-se sobre a carta, marcando as áreas de busca com o compasso e a régua, fazendo anotações em cada uma delas para que estivessem em conformidade com o seu diário de bordo. Depois começou a preencher o próprio diário, escrevendo lenta e meticulosamente o relato que seria apresentado à comissão de inquérito. Terminado o registo, ligou o transmissor e chamou de novo, na frequência de socorro, todos os navios e postos da guarda costeira, de Tórshavn e Stornoway. Deu a sua última posição e fez um breve relato da desaparição de Lachie McMutrie, terminando com estas sinistras palavras:

- A busca continua com visibilidade zero. Se nada tiver sido encontrado até às 10 horas, seguiremos para Tórshavn, nas Feroés, para meter combustível e apresentar o relatório do acidente. Favor confirmar...

Depois desligou o receptor e anotou as recepções: das Shetlands, de Tórshavn, de um navio mercante dinamarquês, da guarda costeira de Streymoy, e finalmente da própria Stornoway. Depois disso, ficou sentado durante longo tempo, com os auscultadores nos ouvidos, e o queixo enterrado nas mãos, a olhar para o nevoeiro. Finalmente retirou os auscultadores e pôs-se de pé.

- Vou servir um grogue aos homens do convés. Queres um?

- Obrigado.

- Estás a par do processo?

- Que processo?

- Quando chegarmos a Tórshavn, preencho o relatório do acidente, acompanhado de extractos do meu diário de bordo das anotações na carta. O relatório é também assinado por Athol Cameron, com ou sem comentários. A tripulação terá de prestar declarações. Poderás ser também chamado. Quando chegarmos a Stornoway haverá uma comissão de inquérito. Não tenho a obrigação de mostrar o diário de bordo a ninguém, excepto ao imediato. Por uma questão de cortesia, vou mostrá-lo aos outros também. Por isso, se quiseres, podes lê-lo.

- É muito amável da tua parte, mas não é preciso.

- Ainda pensas deixar-nos em Tórshavn?

- Acho que é melhor, não te parece?

- Provavelmente.

- Tens alguma esperança?

- Muito pouca. Mas já sucederam coisas mais estranhas. Talvez o encontremos.

- Eu sirvo o grogue, se quiseres.

- Não. Eles precisam de ver o capitão, numa altura destas. Força no leme, hein?

Força no leme, duas lentas milhas de um lado, depois bombordo de novo, e mais duas milhas do outro, sempre a observar o ecrã, sempre a fazer soar a sirene, pesquisadores cegos num mundo de névoa, à escuta de um grito vindo de nenhures, esperando, contra toda a esperança, pescar algures um feixe de carne e roupas ensopadas, e encontrá-lo ainda vivo.

Seria essa também a esperança de Ruarri? Eu queria acreditar que sim. Tinha-o visto com muitas disposições diferentes, amargo, trocista, lentamente furioso; mas nunca o tinha visto tão destroçado como naquelas horas espectrais. Quando, muito tempo depois, regressou à casa do leme com um grogue para cada um de nós, as suas mãos tremiam e um nervo palpitava ao canto da sua boca, erguendo-lhe os lábios num sorriso forçado e despido de humor. Até mesmo a sua voz se tinha tornado rouca, fatigada, monótona, como se tivesse a garganta obstruída pelo nevoeiro.

- Sabes o que isto significa, não sabes, seannachie?

- Calculo.

- Nunca vão acreditar que foi um acidente.

- Podem provar o contrário?

- Nem por sombras.

- Então?

- Então, como bons escoceses, vão emitir uma conclusão que fica em aberto: morte por acidente, circunstâncias desconhecidas.

- O que te deixa ilibado.

- Mas nunca limpo, seannachie. Nunca mais volto a ficar limpo.

- E isso interessa-te?

- Podes crer que sim. É-me devido tanto respeito como aos outros.

- E tê-lo-ás, daqueles que conhecem a verdade.

- Mas quem a conhece? Os meus rapazes? Tu...?

- Eu só sei o que tu me disseste.

- E isso deixa muito espaço para dúvidas, não é assim?

- Algum.

- E tu sabes que eu sou um bom mentiroso, quando quero.

- Por amor de Deus, homem! Deixa-te disso!

- Tu disseste-me, seannachie, que, se alguma coisa acontecesse ao Lachie, serias uma testemunha de acusação. Agora sucedeu. Qual é a tua posição?

- Eu acho que a minha posição é muito clara. Eu estive a fazer o quarto desde as quatro da tarde até às oito. Quando desci, Lachie estava vivo e feliz. Joguei póquer com ele e com os outros até às dez e meia. o jogo foi amistoso. Estive a dormir desde as dez e meia até às seis e meia desta manhã. Fim do depoimento.

- E o resto?

- O resto foram palavras trocadas entre nós os dois sem testemunhas. Num depoimento, seriam inúteis. Não vejo motivo para as apresentar.

- É a tua opinião pessoal?

- Não tenho nenhuma. Aceito como verdadeiro o que me disseste.

- Porque tens de o fazer?

- Porque quero.

- Bom...! - A palavra saiu com um longo suspiro de alívio. - Graças a Deus. Desde que aquilo aconteceu, sentia as tuas mãos na garganta a estrangular-me. Fico-te grato.

- Esquece isso.

- Sabes cozinhar, seannachie?

- Porquê?

- Fazias-me um favor se preparasses um pequeno-almoço para os rapazes. Estão quase gelados lá fora. Chama-os para baixo a dois e dois. Manda o meu cá acima.

- Sim, Mr. Matheson.

- Obrigado, Mr. Christian.

A piada era mais fraca que água de cevada, mas fez-me sair da casa do leme e ir até à cozinha e pôs fim a um diálogo difícil. Agora tinha tempo e solidão para pensar nos acontecimentos daquela noite.

A primeira vista, a história de um homem que caminha pelo convés de uma traineira e cai ao mar parecia-me incrivelmente absurda. Todavia, não havia marinheiro que não tivesse um saco cheio de histórias desse género e algumas eram verdadeiras. Havia o estranho caso do farol de Flannan, encontrado deserto em 1900, com a luz acesa, o barco intacto, uma refeição na mesa - e três homens que tinham desaparecido por completo. Num nevoeiro como aquele, numa traineira como a Helen II, em que o convés descia em rampa sobre o gio, um homem, bêbado, sonâmbulo ou incauto, poderia cair no mar, e, mesmo que gritasse, a sua voz perder-se-ia no rasto da popa e no ruído dos motores ou no som do cláxon. Por outro lado, podia ser facilmente tomado por um assaltante e derrubado, borda fora, sem que alguém desse por isso.

Acidente ou assassinato? Não havia provas de qualquer das hipóteses. Simplesmente, existia um movimento, e bastante forte, para que a morte de Lachie McMutrie fosse desejada. Eu conhecia-o. Ruarri conhecia-o. Se a minha interpretação do jogo de póquer estivesse correcta, mais ninguém a bordo o conhecia. O que significava que Ruarri me tinha mentido sobre a confrontação com Lachie - ou não teria? Ele tinha sugerido, dado a entender, criado a impressão de que tinha havido uma confrontação; mas nunca o tinha dito, por palavras.

Por que é que eu não lhe tinha pedido que resolvesse o assunto ali mesmo? Porque era mais seguro e mais fácil para mim tomar as coisas pelo seu valor aparente e absolver-me das responsabilidades.

Afinal, era isso que Duggie Donald me tinha recomendado, e Duggie Donald era o representante da Coroa. Se ele não conseguia acusar Matheson em nome da Regina, por que havia eu de fazer o seu trabalho sujo? Eu não podia provar que Ruarri era culpado. Podia apenas sugerir que o fosse. Para quê sugerir, se sabia que era impossível provar? O que era, evidentemente, um ponto de vista absolutamente correcto. Uma pessoa é inocente até se provar que é culpada, e o fardo de provar pertence exclusivamente à Coroa.

Algures, no meio da névoa cinzenta, Lachie McMutrie flutuava, morto e indiferente, com os pulmões cheios de água. Eu estava seguro e quente na cozinha, a cozinhar ovos com bacon e a armar-me em grande amigo dos seus camaradas. Pouca sorte a do Lachie. Sorte minha. Só me faltava uma bacia com água e a uma toalha para poder ser o Pilatos mais limpo dos sete mares.

E Ruarri? Uma vez mais ficaria livre, com lucros no banco, porque era esperto como uma prostituta, com todo aquele seu talento nato. Começava a ver o padrão que ele seguira: primeiro a raiva, depois a penitência, em seguida o encanto enganador, tudo passos no sentido de alcançar aquilo que pretendia no momento. Era como uma criança, mas uma criança de comprovado egoísmo, fria, cruel, infinitamente sedutora, com uma perpétua promessa de inocência, desde que conseguisse o que pretendia. Bom, naquele dia, o mais tardar no dia seguinte, ficaria livre dele. O Irmão Lobo que estabelecesse os seus próprios limites; eu não o queria ver de novo nas minhas pastagens.

Todavia, quando lhe levei o pequeno-almoço à casa do leme e o vi, pálido e solitário, a fazer o seu quarto, o meu coração condoeu-se; e, quando me revelou os seus pensamentos, senti-me tão inquieto como ele.

- Ele nunca vai ser sepultado, seannachie. As aves marinhas debicar-lhe-ão os olhos e os tubarões comerão o que restar dele. Era um tolo e um tagarela, mas não merecia isto. Havemos de o ouvir durante muito tempo, sempre que as gaivotas piarem, porque o seu fantasma não terá descanso. Acreditas em fantasmas, seannachie?

- Não.

- Nem eu. Mas, mesmo assim, tenho medo deles. No oeste, onde eu vivo, dizem que um homem tem de ser enterrado na praia, para poder sacudir o sal do corpo com a maré baixa. Se não puder, irá cair no convés de qualquer barco, para se secar um pouco... Quem me dera que este maldito nevoeiro levantasse.

- Por que não vais para baixo e descansas um pouco?

- Não posso. Até terminar a busca. Depois disso, se o tempo clarear, vamos deitar as redes.

- Não!

- Por que não, seannachie? É uma coisa que fará com que deixemos de pensar em Lachie. Além disso, somos pescadores, e, se não pescarmos, não comemos. É por isso que o mar se ri de nós. Temos sempre que voltar... Obrigado pelo pequeno-almoço. Deste de comer aos outros, hein?

Áthol Cameron e Donan, o rapaz de Barra, foram os primeiros a descer.

Comeram avidamente, em silêncio; e eu comi com eles, aguardando a sua reacção à tragédia.

Chegou na forma de um conciso epitáfio, da parte de Athol Cameron:

- Não há dúvida de que está morto. Deus lhe dê um sono tranquilo.

O rapaz de Barra benzeu-se e murmurou qualquer coisa em gaélico. Perguntei a Cameron o que queria dizer.

- É uma oração que eles têm: “São Brendan, leva o nevoeiro. Deus o levante por intercedência de São Brenban.”

- Que pensa que sucedeu, Athol?

- Homem, eu não sou adivinho.

- Ele estaria bêbado?

- Quando foi para a cama, não. Mas ele gostava de beber uma pinga no beliche, e às vezes fazia isso, por debaixo do cobertor.

- Seria sonâmbulo?

- Talvez. Mas nunca dei por isso.

- Se ele estivesse sóbrio, poderia ter caído pela borda fora?

- Com nevoeiro como este, tudo pode acontecer.

- Parece uma parede. - Donan exprimiu os seus pensamentos em rápidas palavras atabalhoadas. - Pensa-se que é sólida. A gente encosta-se e cai... O meu tio caiu assim de um petroleiro perto do Hatteras, há uns anos. A minha avó teve uma visão nessa mesma noite. Tinha poderes. Disse que ouvia vozes a cantar para ele, a chamá-lo...

- Pára com isso, rapaz! - disse bruscamente Athol Cameron. - Vamos para o convés. Há mais quem queira comer. Obrigado pelo pequeno-almoço.

Do papá Burns e Calum MacMillan, obtive a mesma história por outras palavras. No mar, acontecia sempre o improvável. Havia homens que tinham sido atirados ao ar em petroleiros e que tinham sobrevivido para contar a sua história. Havia navios encontrados à deriva, sem uma alma viva a bordo. Havia aviadores que voavam de cabeça para baixo nas nuvens sem darem por isso. E havia marinheiros que entravam numa loucura redemoinhante, quando perdiam o sentido da orientação. As histórias saíam interminavelmente, sem uma única sugestão de malícia ou violência. Havia sempre pena do homem perdido, e alguma pelo capitão feliz cuja sorte tinha mudado de um dia para o outro. Trabalhar? Era evidente que tinham de trabalhar. O mar tomava conta dos seus mortos. Os vivos tinham de tomar conta de si próprios.

Por isso, às dez horas da manhã, ainda com nevoeiro, Ruarri interrompeu a busca e rumou para norte, em direcção a Tórshavn. Depois entregou o leme a Athol Cameron e foi descansar. Uma hora depois estávamos livres do nevoeiro, respirando um ar puro e límpido, com a rede de arrasto na água e a guarda avançada da frente fria a encapelar o mar de novo. A meio da tarde, tínhamos apanhado uma tonelada de peixe - principalmente bacalhau, para o qual havia um bom mercado nas Feroés - e Ruarri estava no convés,"um homem novo, brusco, eficiente, confiante, a vigiar o acondicionamento do peixe, a mandar lavar os convezes, arrumar as redes, de modo a chegarmos em perfeitas condições e cheios de dignidade a Tórshavn. Quando as primeiras ilhas surgiram de través, fez-me um pequeno discurso:

- Esta é a terra do Kanska, seannachie, e Kanska quer dizer talvez. Talvez o sol brilhe, talvez o mar esteja calmo, talvez haja peixe... mas ninguém sabe ao certo. Esta é a terra em que os homens fugiram da opressão para a privação, mas sentem-se felizes mesmo assim. Têm a sua própria moeda e a sua própria bandeira, e, por uma questão de cortesia, permitem aos dinamarqueses que se ocupem da sua defesa e das relações com o estrangeiro. E têm lei seca, porque ninguém pode beber sem ter pago os seus impostos. Por isso, quando fores a terra, é melhor levares uma garrafa contigo, para espantar o frio. Só existe um aeroporto, em Vagar, e vais ter de fazer uma viagem medonha por mar e por terra, para lá chegares. Há um avião por dia para Copenhaga, o que lembrou que tenho de dar-te uma mensagem para a Maeve O'Donnell, e cultivam ruibarbo e batatas e comem carne de carneiro seca que sabe a sebo. Por vezes há uma matança de baleias, e as baías vermelhas de sangue, e depois disso dançam e bebem durante toda a noite, de modo que há uma abundância de bebés que nascem nove meses depois... Há uma cantiga que eles cantam e que data do tempo dos Vikings: Nós somos homens fortes, gostamos de matar baleias... E quem me dera que não fosses embora, seannachie, gostava que acabasses a viagem comigo.

- Não posso.

- Eu sei que não podes. Que mal há em desejá-lo? Sinto-me mais seguro quando estás a bordo.

- Mas não estás.

- Eu também sei disso. Mas escuta-me.

- Estou a escutar-te.

- Não me feches a porta, irmão.

- Não estou a fechá-la.

- Ainda não. Mas pretendes fazê-lo, e não consegues porque eu ainda tenho um pé na soleira. Preciso de ti, seannachie. Contigo, não necessito de fingir.

- Mas não deixes de o fazer.

- É um hábito, e tenho orgulho nele.

- Escuta, Ruarri. Eu sou mais velho que tu. Estou cansado. Quero uma vida tranquila, com impostos pagos, tudo nas calmas, sem problemas, com as palavras a quererem dizer exactamente o que significam, a cama quente e um acordar feliz. Já tenho os meus fantasmas. Não preciso dos teus.

- Então, nada de fantasmas. Só por hoje. E amanhã talvez uma carta ou duas a saudar-me e a dizer-me que há um lugar à mesa para mim, se eu aparecer.

- Gostava de poder confiar em ti, Ruarri.

- E eu gostava de poder confiar em mim mesmo, pelo amor de Deus. Mas não posso. Não vês que é esse o cerne da questão?

- Dá-me uma resposta sincera.

- Qual é a pergunta?

- Mataste o Lachie?

- Não sei, seannachie. Jurar-te-ia se tivesse alguma coisa por que jurar. Francamente não sei.

E ali estava a questão, atada com um laço cor-de-rosa e depositada nas minhas mãos que tremiam.

Era como um funeral ou um casamento, e nada mais havia a fazer, além de um brinde aos entes queridos desaparecidos e esperar que tudo corresse pelo melhor - o que, geralmente, não sucedia. Eu não tinha uma bebida, de modo que não podia fazer um brinde; e, além disso, não tinha palavras para o formular. Apoiei-me no tabique e fitei-o, pasmado.

Um dos cantos da boca dele ergueu-se, naquele sorriso assimétrico, despido de alegria.

- É a verdade, irmão mais velho.

- Acredito.

- Então, que é que eu devo fazer agora?

- Precisas de ajuda.

- É isso que estou a pedir, a ti.

- Eu não sou médico.

- Não precisas de ser. Eu não estou doente, seannachie. Sou um homem que vive vinte vidas, todas elas violentas. Elas colidem umas com as outras e não sei distingui-las. Que é o sonho? Que é a realidade? Como é que um médico me pode dizer isso?

- Como é que eu posso?

- Tu podes. Porque tu és um seannachie. Tu vives em dois mundos ao mesmo tempo. E sabes como mantê-los separados.

- Nem sempre.

- Mas pelo menos compreendes a confusão, quando ela surge.

- A minha compreendo... não a dos outros.

- Mas tu escreves acerca de outros homens, não de ti próprio.

- Que pretendes de mim, pelo amor de Deus?

- Nada. Só saber que estás aí, que posso estender a mão e tocar-te e dizer: “Isto pelo menos-é real, é sólido, é um ponto de referência que não muda.”

- É pedir de mais.

- Mas eu peço-te.

- Diz-me uma coisa.

- O quê?

- Se soubesses, neste momento, de certeza, que tinhas morto Lachie, que fazias?

- Vem comigo.

Deixámos o abrigo da casa do leme e avançámos até à proa, com o vento de frente e a espuma a bater-nos na cara a cada arfagem e a cada guinada. Depois, enquanto os rochedos negros de Sandoy se perfilavam diante de nós, disse-me:

- Se soubesse, seannachie, se eu soubesse mesmo, sem sombra de dúvida, acabaria primeiro o que estivesse a fazer. Escreveria o meu diário de bordo, fazia as minhas contas, pagava as minhas dívidas, deixava tudo em ordem, chamava a polícia e o cangalheiro e estoirava os meus miolos avariados.

- Porquê fazê-lo por isso e não pelas outras coisas?

- Não me dás tréguas, pois não?

- Já não.

- Então eu vou dizer-te, e odeio-te por me obrigares a dizê-lo, porque julgava que sabias o suficiente para o perceber. Quando voltei para casa... era a minha casa, e continua a sê-lo, apesar de tudo... disse a mim mesmo: “Isto é um novo dia, uma nova terra. O passado está morto e enterrado. Só existe o amanhã!” Mas não foi assim. Cada homem que eu conhecia, e cada mulher, punha-me um rótulo desde o primeiro momento. Eu próprio pus alguns a mim mesmo! Estou a dizer isto, para que tu não o digas por mim. Mas queria ter a folha limpa...

- Por isso vendes armas ao Ulster! Deixa-te dessas!

- Que são algumas armas, pelo amor de Deus?

- Mete-se uma bala na cultura. Prime-se o gatilho. A bala sai pelo outro lado e mata um homem. Quem é o assassino, a arma, o homem que prime o gatilho, ou aquele que lhe vendeu a arma?

- Não te pedi um sermão. Pedi ajuda.

- Não pediste. Tu queres ser Ruarri o Mactire de manhã, à tarde e à noite, mas não te agrada o preço que tens de pagar por isso.

- Queres dizer que eu matei Lachie?

- Quero dizer que podias tê-lo feito e fá-lo-ias se te conviesse. E, quer o tenhas feito, quer não, não tenho sangue suficiente para sangrar por ti.

- Então vais entregar-me?

- Não há ninguém para entregar. Nem ninguém para ajudar, até me dizeres quem és.

- Estou a tentar dizer-to.

- Estás a mentir, Irmão Lobo.

- Então vê se entendes o que está por detrás da mentira.

- Mas para quê dizê-la?

- Porque é a única moeda que eu conheço, seannachie. É a moeda que me deram no meu aniversário: a mentira de Morrison e todas as outras que foram geradas a partir dela. Ao fim de algum tempo, a mentira torna-se verdade, e é assim que se escreve a história... e livros como os teus, seannachie. Concedes-me isso, pelo menos?

- Sim. Concedo-te isso.

- Então agora vou responder à tua pergunta. A diferença entre Lachie e os outros? Lachie era um amigo, um empregado. Talvez eu tivesse ido longe de mais e ele transformou-se num traidor, mas continuava a ser um dos meus homens, dos meus! Os outros eram apenas sombras na mira de uma espingarda, sombras contra a lua que subia nos céus, não eram homens.

- Então por que duvidas de que o mataste?

- Vou dizer-to, irmão mais velho. Tu tens razão, sabes? Por vezes não sou ninguém. Sou a sombra. Sou uma forma na mira de outra pessoa. Quando isso acontece, não me lembro. Como poderia? Alguém que não é ninguém, não é ninguém... Por isso faço coisas loucas e digo coisas loucas, para voltar a ser eu de novo. Compreendes isto?

- Em parte, talvez.

- Então como ficam as coisas entre nós: adeus ou até à vista?

- Eu volto para as Ilhas.

- E teremos o nosso ceilidh?

- Depois se verá. Quanto tempo falta para chegar a Tórshavn?

- Uma hora. Não vai ser difícil. A gente das Feroés é simpática. E compreende as coisas do mar.

Não poderia ter sido mais simpática. O homem da alfândega fez-nos uma inspecção superficial e deu-nos liberdade para aportar. O corretor do peixe ofereceu um preço razoável pela pesca, apenas um pouco abaixo do mercado, para deixar os pescadores locais satisfeitos. O piloto do porto arranjou-me uma cama em casa da sua irmã. O cônsul britânico, que não era britânico mas natural das Feroés, veio a bordo e partilhou uma garrafa de uísque na cozinha enquanto recolhia os nossos depoimentos. Mostrou-se simpático, cheio de tacto e obviamente impressionado pelas cuidadosas anotações de Ruarri sobre o incidente. Comprometeu-se a enviar cópias dos documentos para Stornoway, a informar os parentes mais próximos de Lachie, a fazer tudo o resto que a lei e a decência exigiam após uma morte no mar. Depois foi para casa jantar.

Ruarri recebeu um cheque pelo seu peixe, passou outro pelo combustível e anunciou que estava pronto para se fazer de novo ao mar. Eram ainda apenas oito horas. Tinha de percorrer a longa noite sub-árctica e queria estar longe das ilhas antes que a frente fria descesse. Não fez a mínima referência ao seu encontro com Bollison. Deu-me um bilhete para entregar a Maeve O'Donnel no Hotel d'Angleterre em Copenhaga. Desejámos boa sorte um ao outro. Fiquei na doca a ver a Helen II sair, balouçando, do porto encapelado, e entrar no mar alto. Senti-me satisfeito por estar livre dela. Havia um fantasma a bordo e eu não queria estar lá quando o cadáver afogado aparecesse no convés, a sacudir a água salgada, à meia-noite.

 

Passei uma noite inquieta, agitando-me e revolvendo-me sob o edredão de penas que estava sempre a cair da cama, enquanto eu lutava contra um pesadelo exótico. Procurava em vão Kathleen numa charneca espectral, enquanto Ruarri me perseguia como um caçador e monstros inomináveis tentavam agarrar-me, saindo das lagoas negras. No final perdi Kathleen e encontrei Lachie McMutrie, com peixes nas mãos a escorrer e algas no lugar dos olhos, sentado, como um juiz, num rochedo negro. Ruarri estava atrás de mim, as mãos agarravam os meus ombros, forçando-me a ajoelhar em penitência e confessar que era um assassino. Depois Lachie desapareceu e Ruarri e Kathleen estavam estendidos, nus, nas rochas, a fazer amor, enquanto eu me esforçava por abrir caminho por entre um emaranhado de destroços, para chegar junto deles. Depois eles desapareceram e eu fiquei sozinho, com as gaivotas a redopiar sobre a minha cabeça, mergulhando para me picar e gritando “Lachie, Lachie, Lachie...” Acordei, encharcado em suor, e ouvi a chuva bater na vidraça da janela e o vento frio a uivar nos beirais.

Ao pequeno-almoço, os meus anfitriões disseram-me que havia um avião para Copenhaga que partia todos os dias de Vagar às três horas: kanska! Talvez viesse. Talvez, com o mau tempo, não viesse. De qualquer forma, eu deveria partir algumas horas antes do meio-dia, porque Vagar ficava a quarenta e cinco milhas de distância e eu levaria pelo menos quatro horas a chegar lá. Um pouco confuso, pensei ter-me enganado nas contas. Descobri, infelizmente, que eles tinham razão neste último aspecto.

Comecei por tomar um táxi e percorri quarenta e cinco milhas através da ilha de Streymoy: uma viagem horrenda numa montanha russa, sob chuva forte, por estradas de montanha que nunca tinham um resguardo entre nós e os penhascos, e sem tempo para apreciar as minúsculas aldeias de casas pintadas nem as quedas de água, nem as nuvens acumuladas sobre os picos. Depois foi a viagem de ferry até Vagar, uma passagem agitada, de vomitar as tripas, sobre uma extensão de água encapelada pela maré; depois outro percurso de táxi até ao aeroporto, que não passava de uma pista negra, com alguns hangares e um escritório para os passageiros, tudo empoleirado num planalto varrido pela chuva. O avião vinha a caminho. Chegaria com meia hora de atraso, mas viria. Desta vez não havia kanska; tinha de descer porque não havia outro sítio onde pousar excepto a Islândia.

Mandei um telegrama a Kathleen para a informar da minha mudança de planos e instalei-me com o pequeno grupo de passageiros, para revestir de paciência o que restava da minha alma. Já não era muito e duvidava que valesse a pena salvá-la, de qualquer forma. Tinha pouco de que me orgulhar, muito menos do que Ruarri que, pelo menos, tinha a coragem de ousar todas as indecências da vida e lutar, mesmo que fizesse correr sangue, pela sua posição no planeta. Eu era ainda um homem em fuga, preocupado com as pequenas consequências, agarrando-me desesperadamente a uma dose decrescente de certeza. Era um fraco inimigo, capaz de fazer bluff, mas nunca de lutar: Era um amigo avaro, que me distribuía como um óbulo aos necessitados. Era um filósofo de vistas curtas, que tropeçava nas flores, na sua busca desajeitada de meias-verdades. Era um moralista improvisado despido de caridade. A recordação do pesadelo estava ainda muito viva dentro de mim e, embora não conheça a linguagem dos sonhos, a sua mensagem era desconfortavelmente clara. Além disso, tinha uma dor de cabeça terrível e um gosto péssimo na boca. Desejava fervorosamente que o avião chegasse e me levasse daquele buraco esquecido por Deus.

Chegou finalmente, com quarenta e cinco minutos de atraso: um Fokker Friendship pousando como um mergulhão na pista, absurdamente pequeno naquela imensidão de montanhas e mar escuro. Quando descolámos pareceu-me ainda mais pequeno e mais frágil, enquanto se elevava precariamente pela longa garganta entre os penhascos, para o céu cinzento. Olhei a linha da costa com os seus rochedos hostis e as suas baías estreitas e turbulentas e pensei onde estaria Ruarri e se ele teria encontrado Bollison e feito o transbordo das armas, e onde iria apontar, e que tipo de regresso iria enfrentar.

Dormitei durante a maior parte da viagem até Copenhaga e isso foi bom, porque o choque da chegada foi superior ao que eu esperava.

O aeroporto de Kastrup estava apinhado de turistas: dinamarqueses que migravam em direcção ao sol, alemães, franceses, holandeses e ingleses que vinham em busca dos divertimentos daquela cidade alegre e descuidada. Senti-me imediatamente invadido pelo pânico. Não havia espaço para me mover ou respirar. O ruído era uma cacofonia intolerável. Eu suava por todos os poros, sentia-me invadido pelas náuseas. Estive tentado a deixar a bagagem para trás e sair a correr para o ar livre. O meu pânico aumentou quando me apercebi de que não tinha reserva de hotel nem sítio onde ficar. Fiquei ali, numa impaciência febril, à espera da minha bagagem; passei aos tropeções, cegamente, pela alfândega e encaminhei-me para o balcão do turismo. A rapariga por detrás do balcão sorriu-me e mostrou-se prestável, sem se importar com as minhas maneiras rudes. Tive sorte. Todos os hotéis estavam cheios, mas tinham acabado de receber uma anulação do hotel d'Angleterre. Convinha-me? Arranquei o papel da mão dela e corri para fora, atravessando a multidão até à bicha para o táxi. Estava a meio caminho da cidade antes que o pânico diminuísse e eu conseguisse voltar a respirar livremente.

Então invadiu-me um novo medo: ainda não estava curado. Era ainda um homem em pedaços, tacteando o ar para recolher os seus pequenos fragmentos. Durante quanto tempo poderia continuar assim?

Teria de vaguear sempre em lugares solitários, desertos e ilhas e minúsculas províncias, porque não estava em condições para viver na companhia dos meus semelhantes? Se nunca sentiu terror, agradeça-o a Deus, porque é uma autêntica loucura, e dura longo tempo, sem que haja cura.

Quando chegámos ao hotel D'Angleterre, descobri que não tinha dinheiro dinamarquês para pagar o táxi; por isso tive de o comprar. Registei-me. O paquete levou-me ao andar de cima, a um quarto do tamanho de uma caixa de sapatos, mesmo ao lado do elevador. Pediu desculpa pelo quarto, recebeu a minha gorgeta e deixou-me a retirar as coisas da mala, a tomar banho e a retomar uma aparência humana. Fiz tudo muito lentamente, testando cada passo como se caminhasse à beira de areias movediças, o que era verdade. Quando finalmente pude olhar para o espelho sem medo ou vergonha, desci ao bar e sentei-me durante longo tempo em frente de uma bebida generosa, alimentando a minha coragem para o encontro com Maeve O'Donnell.

A saudação dela foi como uma lufada de ar fresco, varrendo a melancolia.

- Seannachie! Deus te abençoe! Onde estás?

- Aqui em baixo no bar.

- Então sobe. Estou nua, mas já estarei decente quando chegares.

- Acabo a minha bebida e subo já.

- Manda abebida para o Inferno! Aqui há bebidas melhores, e não precisas de pagar. Vem já.

Fui. Subi no elevador, a assobiar Os ancinhos de Mallow, uma música que o meu avô me tinha ensinado e que tinha um ritmo muito vivo. Bati à porta; abriu-se antes que o meu punho tocasse na madeira. Maeve arrastou-me para dentro do quarto e desatámos a rir e a beijar-nos como se nos tivéssemos conhecido durante toda a vida. Quando ela me empurrou para um sofá, já tinha umabebida nas mãos antes que pudesse limpar o baton dos lábios.

O quarto era suficientemente grande para um exército e para a amante do general ainda por cima; mas Maeve enroscou-se no sofá ao meu lado, envolveu as pernas com o roupão e ordenou-me:

- Agora conta-me, seannachie! Conta-me tudo.

Meti a mão no bolso e extraí o bilhete de Ruarri. Ela fitou-o durante longo tempo, de testa franzida, e depois perguntou-me:

- Sabes o que diz aí?

- Não. - Li-o e fiquei pasmado:

Querida Maeve,

A tua remessa será entregue a tempo. Espero que o pagamento seja imediato, porque há certos problemas e posso precisar de dinheiro para me livrar deles. Um dos meus tripulantes falou de mais, de modo que a lei anda a cheirar à minha porta. O homem morreu, o que cria outro problema; mas penso que posso resolvê-lo. Pede detalhes ao seannachie. Podes acreditar no que ele diz, porque ele é um triste, com a paixão da verdade - Deus nos ajude!

É por ele que tenho medo, porque, embora goste dele e pense que ele gosta de mim, duvido que seja suficientemente esperto para se livrar da chuva - e o tempo vai estar instável durante algum tempo. Vê se consegues, em conversa ou na cama, incutir-lhe bom senso. És boa em ambos os campos.

Com amor Ruarri.

Dobrei a carta e devolvi-lha.

- Acho que deves queimar isto.

- Vou fazê-lo já.

Dei-lhe o isqueiro e ela queimou o bilhete num cinzeiro e transformou as cinzas em pó. Depois voltou-se para mim e pediu em voz baixa: - Podes contar-me, seannachie?

- Tudo o que quiseres saber.

- Por que o fazes?

- Fizeste-me um favor. Gostaria de o pagar. E Ruarri está metido num buraco mais fundo do que pensa.

- És amigo dele?

- Não sei, Maeve.

- Inimigo?

- Isso não. Algo entre as duas coisas, talvez. Vou contar-te os factos. Poderás julgar por ti própria.

- Antes de me contares...

- Diz.

- Não vou convencer-te de nada, com conversa ou na cama.

- Esquece isso.

- Quem me dera. Agora fala...

Contei-lhe tudo, como lho contei a si, leitor, hora por hora, desde a noite do jantar em casa de Morrison até à noite da nossa separação na doca de Tórshavn. Tentei, como um relator honesto, separar os factos das opiniões, os sentimentos das coisas observadas. Expus-lhe os meus rancores, as minhas dúvidas e os meus ciúmes, e as minhas fraquezas, também, e os dilemas que elas me tinham criado. Foi uma confissão mais honesta que qualquer outra que tivesse feito fosse a quem fosse - homem ou mulher - durante longo tempo. Foi uma fraqueza e aceito-o. Mas se Ruarri necessitava de indulgência, e Morrison e Kathleen McNeil, eu também precisava, e admiti-o também, e senti-me um pouco melhor por isso-embora não mais cavalheiresco nem nobre.

o comentário de Maeve foi absolutamente adequado.

- Ugh! Estão todos loucos ao anoitecer! Acho que és um pouco louco, seannachie.

- Tenho a certeza disso.

- Tens dinheiro?

- Mais do que necessito. Porquê?

- Porque vais pagar-me o melhor jantar da cidade. Depois vamos passear pelos jardins do Tivoli e vais comprar-me tudo o que eu desejar. Em seguida vamos beber com os marinheiros em Nyhavn, e, se ainda conseguirmos manter-nos de pé, vamos dizer boa noite à Sereia. Que dizes, seannachie?

- Estou à tua disposição, minha querida.

- Então serve-te de mais uma bebida, enquanto eu enfio um vestido... São Miguel nos valha, que vermes! E Ruarri é o mais nojento de todos!

Ela era precisamente aquilo de que eu precisava naquela noite, inconsequente e divertida, com as palavras mais loucas a borbulhar naquele sotaque tão doce de Dublin. Estava magoada e estava furiosa-e talvez, no fundo, também assustada -, mas diabos a levassem se ia deixar que isso estragasse o seu apetite de comida, das bebidas e do ar suave da noite de Verão. E aqui começa a saga de um Jack e da sua Jill irlandesa, que mal se conheciam, mas que tinham em comum um amigo inconveniente e pretendiam esquecê-lo com. uma noite passada naquela cidade do amor.

Saímos do hotel de braço dado, porque, como disse a-dama, era assim que iríamos voltar, de modo que o pessoal já estaria habituado ao espectáculo. Dirigimo-nos para Stroget, que é um conjunto de cinco ruas de lojas maravilhosas, Onde não é permitido o trânsito, excepto o de pessoas, e elas são as pessoas mais belas do mundo - e das mais estranhas também. Ali se pode comprar tudo desde um machado de pedra a uma capa de arminho, e todas as compras vêm embrulhadas num sorriso. Comprámos de tudo, mas decidimos não o levar, deixá-lo para que os outros o apreciassem - porcelanas e jóias de ouro e prata, e trajos loucos e fantasias em vidro, e mobílias de teca e couro trabalhado. Oh, levámos uma coisa, um livro de poemas de um génio descalço com barba à Rasputin, que imprimia os seus livros numa prensa manual e os vendia num carrinho de bebé. Maeve achou que ele merecia ter sucesso, e, como não sabíamos dinamarquês, nunca ficaríamos desapontados com a sua poesia.

Sentámo-nos numa pequena praça, no centro das coisas, com flores a desabrochar à nossa volta e observámos as idas e vindas dos burgueses de Copenhaga e dos invasores que eram docemente conquistados mal chegavam: raparigas de longas pernas e gigantes louros, matronas com pele de pêssego e crianças tão belas que pareciam ter saído de um conto de fadas, um profeta menor de caftan, a pregar o amor, não a guerra, uma cigana que estava a precisar de um banho mas que cantava belas canções rebeldes acompanhando-se à viola, um jovem de olhos tristes, com contas à volta do pescoço, dos pulsos e dos tornozelos e o cheiro do haxixe agarrado aos cabelos, um trio de marinheiros, descendo a rua de braço dado, e gritando piropos às raparigas em português. Maeve disse que éramos loucos em não passar ali as nossas vidas, porque até os polícias eram cavalheiros e vestiam-se à paisana para não estragar a vista.

Disse-lhe que lhe compraria uma casa nessa mesma noite, mas só depois do jantar, para não ficarmos muito ansiosos e escolhermos mal.

Jantámos sob o signo do “Galaroz de Ouro”, que engana muito porque parece uma simples taberna; mas tem um homem que faz milagres na cozinha, e os seus pratos são-nos entregues com uma vénia e sentimo-nos abençoados quando os comemos.

Foi na tranquilidade desse santuário que Maeve me perguntou por Kathleen.

- Como vão as coisas entre ambos, seannachie?

- Bem, muito bem.

- Dormem juntos?

- Sim.

- Óptimo. Então já estás na recta final.

- Mas ainda não cheguei à meta. É isso que queres dizer?

- É isso mesmo. Sabes muito de mulheres, seannachie?

- Cada vez menos, à medida que vou ficando mais velho.

- Então estás a ficar sensato. Mas escuta, meu querido, há um momento, em todas as corridas, em que é preciso fazer um sprint para se ganhar. Penso que estás a chegar a esse momento.

- Porquê?

- A carta de Ruarri. Tudo o que me contaste. Tens de compreendê-lo, seannachie. Tens de perceber como funciona a cabeça dele. São ambos muito parecidos, e isso é um perigo para ti, porque também és muito diferente. Chega sempre o momento em que aquele rapagão faz uma tangente, se atravessa na tua frente e te atira para a relva. A tua fraqueza está no facto de esperares que ele esteja a fazer a mesma corrida que tu. Não está. Está a tentar fazer vinte outras ao mesmo tempo. A única maneira que ele tem de chegar a ti... e há-de chegar porque gosta de ti... é através da Kathleen. Há-de tentá-lo. Não te esqueças do que estou a dizer-te.

- Ela é adulta. Sabe o que quer.

- Mas não sabe. Pelo menos com ele, e contigo também não. Ela foi suficientemente honesta para to dizer. Por isso tu é que vais ter de decidir por ela, no final.

- Como?

- Isso é contigo. Mas Ruarri vai entrar no jogo.

- Diz-me uma coisa, Maeve.

- O quê?

- Ele acredita realmente que eu sou tão parvo como ele pensa?

- É evidente. Pensa isso de toda a gente. Tem de pensar.

- Nesse caso, está doente.

- A que ponto?

- Se estás a pensar no Lachie, não conheço a resposta. -Eu acho que foi ele, e conheço-o bastante melhor que tu.

- Foram amantes?

- Tempo de mais.

- Mas continuas a servir-te dele.

- Como mercenário que é. Pago-lhe, e gosto disso.

- Se ele matou o Lachie, tu também o mataste, Maeve minha.

- É certo. Mas há uma diferença.

- Qual?

- Há duas Maeves, meu valente bardo, e eu sei exactamente quem é cada uma delas. Há a Irmã Maeve, com quem estás esta noite. Cria cavalos e gosta de roupas caras e de se divertir, e de sair com homens atraentes... o que tu és, seannachie, especialmente quando sorris... e é capaz de mover montanhas pelos seus amigos e beber pela condenação aos infernos dos seus inimigos. E depois há a Maeve O'Donnell, filha de Patrick O'Donnell e neta de Michael, que foi morto pelos ingleses depois do Levantamento da Páscoa. Essa é uma patriota, seannachie, o que é um termo antiquado, mas muito bom, e odeia os ingleses e derramará o seu sangue até à última gota para os fazer tirar as patas nojentas da sua terra. Essa é a Maeve que não devias convidar para jantar e, se alguma vez ela tentasse seduzir-te para a sua causa, devias cuspir-lhe na cara e mandá-la passear... Agora serve-me uma bebida e diz-me que sou linda.

- És linda, Maeve O'Donnell.

- E estou terrivelmente assustada, também, neste momento. Os ingleses, e o governo irlandês igualmente, estão a dar tudo por tudo para acabar com a entrada de armas no país. Este caso do Ruarri pode dar cabo de toda a nossa organização.

- Espero bem que sim.

- Podias ser tu a fazê-lo, então. Com o meu nome e o do Ruarri e tudo o que sabes a nosso respeito, podes pôr-nos fora de combate.

- És um estupor, Maeve O'Donnell.

- E tu, seannachie do meu coração, não és suficientemente pulha. O que é mau para ti e uma bênção para nós. E agora mudemos de assunto, sim?

Devia ter-me sentido insultado, mas não senti. Ela estava a ser muito mais honesta do que muita gente que eu conhecia; e estava a dar muito de si sem pedir mais que uma companhia alegre numa cidade alegre, para esquecer o resto do mundo cão em que vivíamos. Quando saímos do “Galaroz de Ouro”, estávamos amadurecidos como o velho brande que tomámos com o café. Dirigimo-nos a pé para os Jardins do Tivoli e passeámos, de mãos dadas, sob os festões de luz, a olhar para as pessoas, a escutar a banda, a comprar tolas bugigangas nas bancas, a cheirar as flores, a rir como crianças do circo das pulgas. Dançámos ao som de valsas antiquadas e defox-trots dos anos 20, e de música jazz e de música soul, e sabe Deus de que mais. Comemos algodão doce. Atirámos arcos e bonecas Kewpie. Disparámos sobre coelhos aos saltos, numa barraca de tiro. Andámos na montanha russa e bebemos café e bolos à meia-noite. E, apesar de toda aquela gente e de todo o ruído e de todos os lugares estreitos em que penetrávamos, eu sentia-me feliz como um potro num prado cheio de ranúnculos e dentes-de-leão. Até Maeve notou a diferença; e, quando nos sentámos, lânguidos mas satisfeitos, a beber café, disse.

- Pareces outro homem, seannachie. De onde saíste?

- Acho que andei perdido durante algum tempo.

- Como?

- É uma longa história. Não quero contá-la.

- Nem sequer numa versão condensada?

- Está bem. Condensada e pouco doce. Há mulheres que desejam castrar o homem que amam e depois acariciá-lo como um cavalo castrado fechado numa cerca. Eu casei-me com uma mulher assim que amava também, de modo que levei bastante tempo a perceber o que ela pretendia. Não a culpo, agora. Sinto pena dela. Fugi-lhe e tive um esgotamento... confiança perdida, talento esgotado, ou quase, exausto e desnorteado depois de uma batalha perdida. Boh... Finita La commedia!

- Obrigada por me contares.

- De nada.

- Agora leva-me para Nyhavn.

- Porquê Nyhavn?

- Isso é outra história. E eu sou uma irlandesa sentimental e idiota.

- Isso é que tu não és, Maeve O'Donnell! De pé.

Por isso, já muito depois da meia-noite, chegámos a Nyhavn, o longo canal negro com os barcos de pesca ancorados, e as casas antigas alinhadas ao longo da margem, lojas de fabricantes de velas e de tatuagem, restaurantes chineses, e bares coloridos, onde se podiam encontrar marinheiros do mundo inteiro e anafadas raparigas da província e as mais antigas prostitutas da Dinamarca. Havia sempre polícia por lá, passeando a dois e dois, prontos a apanhar os bêbados que rolam das portas, e a entrar em acção se as brigas se tornam excessivamente ruidosas ou violentas, o que sucede de vez em quando. E, no entanto, é um lugar alegre, desordeiro, turbulento, e mais saudável que os clubes tristes do outro lado da cidade, onde belas mulheres e homens elegantes copulam sobre um colchão para os convidados pagantes, e lésbicas fazem amor em público e depois se ocupam dos homens, e até podem copular com opoodle, se nos apetecer ver e se lhes pagarmos. O que constitui o outro lado da cidade do amor, e não o melhor.

Deixei Maeve escolher o bar que queria: uma fachada inexpressiva, com as montras pintadas e as vidraças abauladas pela música roufenha no interior. Não tinha nome, apenas um número suspenso sobre a porta, com uma luz amarela para orientar os clientes. Depois de saírem, teriam de estar suficientemente sóbrios para darem com o seu barco, se não acabariam no fundo do canal ou na carrinha da polícia.

Dentro do bar havia uma nuvem de fumo de tabaco e o cheiro de corpos suados e cerveja entornada. Abrimos caminho para uma mesa a um canto, e eu lutei depois para chegar ao bar e comprar as nossas bebidas, sobre fileiras de cabeças em movimento. Tentei encontrar um caminho de regresso mais fácil, atravessando a pista de dança, mas quase fui atropelado por um gigante empertigado com uma rapariga gorda pendurada ao pescoço. Quando cheguei junto de Maeve, encontrei-a a esquivar-se às investidas de um jovem português. O rapaz afastou-se, com uma vénia e um pedido de desculpa ao ver-me chegar; e fiquei satisfeito por não ser um norueguês, que teria sido capaz de me comer como um pequeno-almoço adiantado.

Maeve estava corada e exuberante.

- Adoro isto, seannachie! Adoro o barulho e o mau cheiro e a forte masculinidade de tudo isto.

- É divertido, mas, se alguém atirar uma garrafa, vira a mesa e abriga-te.

- Já aqui tinhas estado?

- Aqui não, mas noutros locais semelhantes.

- Foi aqui que conheci o Ruarri.

- Valha-nos Deus!

- Andei pela cidade, tal como fiz esta noite contigo. Só que estava com uma piela maior e um pouco mais louca. O homem com quem eu estava não interessa... já não interessava nessa altura. Tinha-lhe vendido alguns cavalos, de que me pareceu gostar mais que de mulheres. Eu estava em pulgas, a fazer olhinhos para qualquer homem que estivesse interessado, e a maior parte estava. Ruarri estava sentado além, com os seus rapazes e algumas raparigas. Veio ter comigo e convidou-me para dançar. Pensei que ele era apenas um tipo atraente, com um sorriso vivaço e um grande conceito de si próprio. Por isso gozei com ele. Acenei-lhe com tudo o que tinha, como as bandeiras de Brian Boru (1). Depois, subitamente, deixou de ser gozo. Entusiasmámo-nos ambos. Ele fez-me dançar sobre uma mesa, com as saias a rodar e a blusa pelo umbigo, e toda a gente a gritar e a bater palmas. Nessa altura, já o meu acompanhante tinha desaparecido. Por isso, quando tudo acabou, fui para o barco de Ruarri e passei lá a noite, e desde então ele tem sido dono do meu coração.

- E depois?

- Depois, seannachie, tal como tu, descobri Ruarri o Mactire. Não foi rápido, nem foi fácil, porque ele é um lobo, suave a rondar a presa, num momento, e em seguida a rosnar e a morder, solitário numa noite, e, na seguinte, a correr com a matilha atrás. E sempre traiçoeiro, seannachie, a fingir que é um bom cãozinho, de patas para o ar até estendermos a mão para o acariciar... e depois arranca-nos a mão com uma dentada. Aguentei-o durante longo tempo, porque ele é maravi-

 

(1) Rei da Irlanda (1002-14). Derrotou os dinamarqueses em Clontarf, e foi assassinado na sua tenda no fim da batalha, por inimigos em fuga. (N- da T.)

 

lhoso na cama, meigo e experiente, e depois duro e implacável como um êmbolo... estou a chocar-te, seannachie?

- Não. Continua.

- Batia-me, de vez em quando. Não com muita força, só o suficiente para me assustar e fazer com que desejasse vê-lo meigo de novo. Não me importava muito. Eu também tenho garras e sei como usá-las. Mas chegou uma altura em que já não podia aguentar mais. Vi o que ele estava a fazer: a desmantelar-me, tijolo a tijolo, para se escorar. Ele é um cobarde, seannachie. Fica assustado como uma criança no escuro, mas não deixa transparecer. Experimenta pegar nele e levá-lo para a cama, que ele arranca-te os olhos... Por isso, um dia, no ano passado... foi mesmo antes do Curragh (1), lembro-me bem... pu-lo fora.

- Fizeste isso?

- Eu mesma, seannachie! A pequena Maeve O'Donnell! Disse-lhe o que pensava dele, fria e calmamente, em palavras muito simples. Sabes o que ele fez? Começou a chorar! Chorava que nem uma criança desmamada. Amava-me, disse ele, e estava convencido disso. Eu disse-lhe que o amava, mas nenhum amor valia o sofrimento que eu tinha pago. Perguntou-me se podíamos ser amigos. Disse-lhe que sim. E assim tem sido desde essa altura, da maneira que tu viste. Quando souber que a remessa foi entregue, vou ter com ele por um ou dois dias e seguro-lhe na mão. Depois volto para casa e choro por ele de noite, pedindo a Deus que ele nunca me oiça...

- Ele ama-te, Maeve?

- Ele não sabe amar, seannachie. É isso que é lamentável. Ele bem quer, mas não sabe como. É o que se passa contigo. Quer-te por irmão, sem dúvida! Mas não sabe o que é um irmão. É como um cego que ouve falar das cores, mas nunca as viu.

- Meu Deus! Que tristeza!

- Claro! Mas é triste para ti, também... e para mim.

- Qual será o remédio?

 

(1) A revolta de Curragh ocorreu em Março de 1914, quando o comandante e 56 soldados da 3ª Brigada de Cavalaria estacionados em Curragh, perto de Dublin, decidiram retirar para não “coagir” os Protestantes do Ulster a aceitar o governo irlandês. (N. da T.)

 

- Penso que não há. Se houver, tu estás mais perto dele que eu. Eu dormi com ele, compreendes, já sou conhecida, usada. Ele não tem de me respeitar, embora, por Deus, devesse fazê-lo! A ti, respeita-te, mas nunca o confessará completa e honestamente até lhe teres esfregado o nariz no chão e o teres levantado de novo. É o pai que ele quer, seannachie. É o pai que ele nunca teve. Uma mulher não o pode ser. Pode ser mãe, amante, esposa, prostituta, tudo numa só, mas nunca um pai... Por favor, é a verdade!

- Eu sei que é.

- Sou um estupor, mas não aqui, não agora.

- Também sei disso.

- Então levas-me para casa agora? Levas-me para casa, devagarinho, e dizes-me coisas doces durante o caminho?

- Vem, Irmã Maeve.

- Mas, seannachie...

- Diz.

- Não cedas. Promete-me que nunca mais vais ceder ao Ruarri. Se o fizeres, serás um assassino como nós.

- Prometo. Vamo-nos embora.

Ela não estava embriagada nem sóbria. Estava a transbordar de lágrimas, mas nunca as derramaria. Por isso levei-a a pé pela rua do Rei, até ao mar, e depois levei-a para o hotel. Disse-lhe coisas doces que ela queria ouvir e disse-as a sério, embora ela não fosse a minha mulher, nem nunca pudesse sê-lo, por causa do passado que carregava e carregaria toda a vida, como um venerável gigante, sobre as costas.

Quando chegámos junto da porta do seu quarto, ela disse-me, muito baixo:

- Seannachie, não me deixes só esta noite.

- Não deixo. Espera por mim.

Não houve segredo nem culpa. Nunca houve necessidade de qualquer deles. Passei com ela essa noite e as duas noites seguintes, até chegar a mensagem de Ruarri. Estávamos numa terra estranha e solitários, e ninguém queria saber quem ou o que éramos. Não foi o país do amor, mas sentimo-nos felizes por algum tempo. Se, quando a deixei, eu estava curado, ou quase curado, foi graças à imposição das suas mãos. Se ela estava mais calma, e penso que o estava, foi graças à ternura que recebeu de mim.

 

Enviei telegramas para Kathleen, para Hainnah e para Morrison, para o hospital, a anunciar a minha chegada. Tomei um avião de Copenhaga para Glasgow, passei uma noite naquela triste cidade e parti na manhã seguinte para Stornoway. Quando aterrámos, sob chuva fina, deparei com um comité de recepção: Duggie Donald, um polícia local, e um homem alto, de cabelos grisalhos, que me foi apresentado como o inspector-chefe Rawlings, da Brigada Especial. Rawlings lamentava muito incomodar-me, mas estava a fazer certas investigações e esperava que eu estivesse disposto a ajudá-lo. Foi tão delicado que eu nem podia pensar em recusar-me. Na verdade, embora não lho dissesse, tinha vindo todo o caminho a preparar-me para ele, ou para alguém como ele. Ele pensava que talvez a esquadra fosse o sítio mais conveniente para conversarmos, se eu não me importasse - e, evidentemente, eu não me importei. Ele teria muito prazer em levar-me no seu carro, com Mr. Donald. O guarda trataria da minha bagagem. Assim, dez minutos depois, estava eu sentado numa sala quase nua com Duggie e Rawlings e uma jovem mulher-polícia, que estava sentada ao fundo a tomar notas em estenografia.

Descobri que Rawlings era um homem muito pachorrento, que gostava de pormenores coloridos. Também se mostrava muito solícito quanto ao meubem-estar. Eu quereria um café? Sim, queria. Trouxeram-me o café. Tinha feito uma viagem agradável? Bom, apenas a última parte. Copenhaga era uma cidade muito agradável, não era? Muito. Ele ia até lá de vez em quando. Onde tinha eu ficado? No Hotel d'Angleterre. Um hotel magnífico, embora um pouco fora das possibilidades de um polícia. Eu tinha voltado por Glasgow? Tinha. Quanto tempo lá tinha ficado? Apenas uma noite. Ele concordou em que era

mais que suficiente. Era de Londres, embora o seu trabalho o levasse frequentemente ao estrangeiro, ao Continente, ao Eire, aos Seis Condados, mas raramente às Hébridas. Supunha que eu estivesse a perguntar a mim mesmo de que se tratava, afinal.

Eu imaginava que teria alguma coisa a ver com a morte de Lachie McMutrie. Isso, e certos assuntos relacionados, sim. Eu presumia que ele tivesse recebido o depoimento que eu tinha feito em Tórshavn. Oh, sim. E era muito conciso. Apreciava muito isso. Detestava ter de incomodar-me, mas talvez eu pudesse ampliá-lo um pouco em certos pontos. Eu tinha muito gosto em dar-lhe todas as informações de que dispunha, que não eram muitas. Poderia ver o meu passaporte? Evidentemente. Folheou-o cuidadosamente e colocou-o, aberto, sobre a secretária, em cima dos seus dossiers. Depois começou a interrogar-me a sério.

- Vejo que é escritor.

- Sou, sim.

- É essa a sua profissão normal?

- É.

- O seu passaporte foi emitido em Roma. Reside normalmente lá?

- Sim.

- Pode dar-me o seu endereço e o seu número de telefone, por favor?

Dei-lhos. Pediu-me que os soletrasse, por causa da estenógrafa.

- E agora posso perguntar-lhe o que o trouxe às Ilhas?

- Vim passar umas férias, a convite de Alastair Morrison, de Laxay. Encontra-se presentemente no hospital.

- Eu sei disso. Muito obrigado. Foi a sua primeira visita?

- Foi.

- Não tinha outros amigos nas Ilhas?

- Antes de chegar, não. Agora tenho.

- Entre eles Ruarri Matheson?

- Sim.

- Como o conheceu?

Contei-lhe a história, em grande pormenor.

Escutou-me atentamente, recostado na cadeira, com as mãos sobre o diafragma. Depois disse:

- Então esse encontro em Skye e essa viagem de barco nesse primeiro dia foram a única base da vossa amizade.

- Eu diria que foram o princípio da amizade e não a base dela. Gostei de Matheson desde o primeiro momento. É um personagem colorido, culto, viajado, hospitaleiro. Foi o meu primeiro contacto nas Ilhas. Fiquei muito satisfeito por conviver com ele. Os nossos contactos posteriores foram amistosos e interessantes.

- Por exemplo, foram pescar ilegalmente juntos?

- Uma correcção, Inspector. Fomos pescar e caçar veados, ambas distracções legais, a menos que seja provado o contrário.

- Perdoe-me. Também foi a casa de Matheson?

- Diversas vezes.

- Uma ou duas, em companhia da Drª Kathleen McNeil, médica substituta de Harris?

- Sim.

- E Matheson foi seu convidado para um jantar na estalagem de Morrison?

- Foi.

- Portanto, estabeleceu de facto um relacionamento bastante íntimo com ele?

- A palavra íntimo é excessivamente colorida, Inspector. Por vezes implica conotações desagradáveis, especialmente no tribunal. Eu diria um relacionamento amistoso.

Acredite o leitor que eu não estava a tentar mostrar-me muito esperto. Não estava a tentar demonstrar que poderia ser um advogado astuto. Poderia ser forçado, se ele me pressionasse muito, a fazer certas distinções verbais muito subtis. Por isso queria levá-lo a pensar que eu era uma pessoa académica, para quem todas as palavras tinham ângulos agudos. Além disso, tinha de ser honesto, pelo menos enquanto pudesse. Por isso perguntei-lhe, um pouco mal-humorado:

- Importa-se que eu faça um comentário, Inspector?

- De maneira nenhuma.

- Então, Inspector, sejamos francos um com o outro. Eu compreendo o significado das palavras. Eu compreendo o alcance das perguntas. Quero ajudá-lo de todas as maneiras possíveis, seja qual for o inquérito que está a fazer. Mas posso fazê-lo melhor se for direito ao ponto e parar de me testar sobre informações que já possui. Não tenho a intenção de lhe mentir, nem razões para o fazer, sequer. Espero que me tenha sabido explicar.

- Admiravelmente. Se o ofendi, peço-lhe que me desculpe. No nosso ofício, temos de cultivar um método e uma rotina de investigação. Por vezes, confesso, agarramo-nos a eles com excessiva rigidez, especialmente perante uma testemunha cooperativa. Ora, onde íamos nós? Ah, sim! Estabelecemos a sua amizade com Ruarri Matheson. Ora, Mr. Donald contou-me uma conversa que tiveram no hotel de Harris. Dessa conversa depreende-se que sabia que Ruarri Matheson se ocupava de uma qualquer actividade ilegal, na esfera de acção da alfândega e impostos.

- Nova correcção, Inspector. Era Mr. Donald quem suspeitava dessa actividade ilegal. Eu soube das suas suspeitas porque ele foi a bordo do barco de Ruarri, quando aportámos a Stornoway, e porque ele achou conveniente telefonar ao meu anfitrião para confirmar a minha identidade e a minha história pessoal. Interroguei-o a esse respeito. Perguntei-lhe também se ele me poderia dar qualquer informação que pudesse pôr-me a salvo de qualquer actividade ilegal, se ela estivesse a verificar-se. Parece-lhe um resumo justo, Duggie?

- É exacto, Inspector. E, se bem se recorda, foi assim que eu lhe contei.

- Evidentemente. Evidentemente. Mas, apesar das suspeitas de Mr. Donald, decidiu fazer esta viagem na traineira de Mr. Matheson.

- Isso foi ilegal, Inspector?

- Não.

- Então por que usou as palavras apesar de? Mr. Donald não pôde sugerir-me, nem me sugeriu, um curso de acção diferente. Gostaria que o registo da estenógrafa indicasse que eu objecto decididamente a perguntas que forçam certas respostas.

- A senhora anotou isso? Óptimo. Então vou fazer-lhe

uma pergunta directa. Alguma vez, durante a sua viagem pelo mar, notou qualquer sinal de qualquer actividade ilegal, fosse ela qual fosse?

- Não. Não notei.

- Referiu, no seu elogio a Ruarri Matheson, que ele era via-jado. Que sabe sobre as viagens dele?

- Apenas coisas que vinham a propósito da conversa. Parece ter estado em diversos pontos do mundo.

- E feito muitas coisas estranhas?

- Talvez.

- Poderia dar-me exemplos?

- Só me recordo de dois. Disse que tinha passado ópio na Tailândia e sido um mercenário em África. O resto, receio bem, não passou de generalidades.

- Então temos um contrabandista e um atirador contratado.

- Não sei o que temos, Inspector. Eu apenas vi um lavrador e um pescador. O resto é conversa. Não tenho provas.

- O senhor é uma testemunha admirável. Gostaria que todos os meus subordinados fossem assim tão claros. Diga-me, conhece uma senhora chamada Maeve O'Donnell?

- Sabe bem que a conheço, Inspector. Era a acompanhante de Matheson no jantar que eu ofereci. Foi a primeira vez que a vi. A segunda foi em Copenhaga há alguns dias. Estava no mesmo hotel que eu. Passei com ela uma noite muito agradável e demos algumas voltas pelo campo, também.

- Então também criou amizade com ela?

- Sim.

- Na verdade, foi a Copenhaga para a visitar?

- Não. Visitei-a em Copenhaga. Não fui lá especificamente para esse fim.

- Mas sabia que ela estava lá?

- Evidentemente. Matheson disse-mo. Pediu-me que a procurasse.

- Então por que foi a Copenhaga?

- Porque, Inspector, deixei a traineira nas Feroés, e o único caminho para voltar aqui era por Copenhaga. É uma cidade agradável, como ambos concordámos. Decidi ficar lá e apreciá-la.

- Por que ficou nas Feroés? Por que não terminou a viagem como aparentemente tencionava fazer, ao princípio?

- Por diversas razões, Inspector. A viagem foi mais agitada do que eu imaginava. Achei o barco apinhado, senti-me ligeiramente posto de parte por um grupo muito unido cuja língua principal é o gaélico, e, finalmente, a razão mais importante, a morte de Lachie McMutrie tornou a viagem muito triste. Talvez lhe pareça cruel, mas eu vim fazer umas férias depois de ter estado doente. Não me apetecia assistir a um longo requiem.

- Não sentiu que devia prestar apoio ou mesmo assistência a bordo ao seu bom amigo Matheson?

- Achei que ele estaria melhor sem mim.

- Ou o senhor mais seguro sem ele?

- Acho que não compreendo essa pergunta, Inspector.

- Vou formulá-la de outra maneira, então. Poder-se-ia afirmar, sem descrédito, que se achou numa companhia um tanto desagradável e decidiu livrar-se dela o mais depressa possível.

- Mas isso iria contradizer a minha declaração anterior.

- Qual delas?

- A de que não notei qualquer actividade ilegal a bordo da traineira.

- Pois iria. Pois iria. Mas eu continuo preocupado com a natureza das relações entre o senhor e o Matheson. Tudo demonstra que são bons amigos, amigos chegados e alegres, e, no entanto, o senhor abandonou-o num momento crucial. Como explica isso?

- Posso ser uma pessoa muito egoísta.

- Isso também não parece demonstrado. Pelo contrário. Comprou bebidas para a tripulação, o que, com os impostos ingleses, fica muito caro. Comprou também um presente bastante caro para o Matheson, um sextante antigo. Não são gestos de um homem egoísta. Por que deixou o barco em Tórshavn?

- Pelos motivos que já lhe dei e mais um que ainda não lhe dei.

- Qual é?

- Pouco antes da tragédia, as relações entre mim e o Matheson tinham-se tornado um pouco tensas... mais da minha parte que da dele.

- Porquê?

- Uma questão particular. Não me sinto com liberdade para falar dela.

- Nesse caso, terei de o precaver em termos bastante severos. Estamos a investigar não apenas uma questão alfandegária, mas um possível assassinato.

- Assassinato!

Esperava que a minha surpresa parecesse genuína. Tinha-a ensaiado bastante.

- Sim, senhor. Assassinato. Por isso, se tentar reter informações relevantes, poderá ver-se metido em grandes sarilhos.

Tinha acabado o recreio. Eu não podia dar-me ao luxo de dizer uma mentira ou esconder qualquer verdade que pudesse vir a ser conhecida. Por outro lado, não podia deixá-lo pensar que me tinha assustado, senão atirar-se-ia (a mim como um furacão. Por isso deixei-lhe uma surpresa, para o manter sossegado durante algum tempo.

- Compreendo o aviso, Inspector. Mas encontro-me numa situação um pouco difícil. Uma determinada informação, que nada tem a ver com os acontecimentos, foi-me comunicada em confidência. Foi-me pedido um certo serviço pessoal. Satisfi-lo. Por causa disso, um elemento de, digamos, atrito, introduziu-se nas minhas relações com Matheson. Éramos e ainda somos bons amigos, mas surgiu um certo embaraço e, no momento de crise, achei que ele estaria melhor sem mim.

- Essa informação e esse serviço, o que eram? Tem de mo dizer. Não é advogado nem médico. Não tem direito e privilégios nesse campo.

- Posso então pedir que seja observada a decência e que essa informação seja mantida secreta se se concluir que é irrelevante em relação ao inquérito?

- Pode pedir, evidentemente. O melhor que posso dizer-lhe é que tentaremos manter a decência. De maneira geral, fazêmo-lo, compreende.

- E o senhor, Duggie?

- Se puder, com certeza.

- Inspector, o senhor fez um grande aparato da minha estreita amizade com Ruarri. Receio bem que as conclusões que pretende tirar disso não sejam válidas, porque desconhece a verdadeira natureza desse relacionamento. O meu primeiro e maior amigo na ilha é Alastair Morrison. Conhecemo-nos, há muitos anos, na Tailândia. Ele está doente há algum tempo. Um dia, sob grande tensão emocional, contou-me que Ruarri era seu filho natural. Quando foi levado para o hospital, encarregou-me de transmitir essa informação a Ruarri e tentar estabelecer um relacionamento razoável entre ambos. Pediu-me também que mantivesse a minha amizade com o seu filho e o moderasse um pouco. Fiz tudo o que ele pediu. Não foi fácil. Ruarri ficou chocado e ainda não se adaptou à ideia ou às suas consequências. Por isso o nosso relacionamento tem sido ligeiramente instável desde essa altura. E é tudo, Inspector. Alastair Morrison poderá confirmá-lo, mas preferia que não lho perguntasse.

- Coitado do homem! - disse Duggie Donald, fervorosamente. - E pobre Ruarri, também. É difícil vir a saber ao fim de tantos anos.

- Obrigado por nos contar - disse o inspector Rawlings. - Naturalmente, faremos todo o possível para poupar a Mr. Morrison qualquer sofrimento ou embaraço.

- Obrigado. E agora poderia poupar-me algum também, Inspector?

- Se puder, com certeza.

- Então, uma vez que estamos a falar de um amigo meu e do filho de outro amigo meu, vamos alinhar as acusações ou as suspeitas. Assassínio é uma delas. Qual é a outra?

- Venda de armas ao Ulster.

- Oh...!

- É uma coisa em grande. E perigosa, também. Não queremos outra guerra civil, pois não? É irlandês, a propósito?

- Apenas por parte da minha mãe, uma geração atrás. Mas se quer saber para onde vão as minhas simpatias, digo-lhe que vão para outro lado. Acho que estamos todos fartos de violência, hoje em dia. Anseio, como a maior parte das pessoas, por que ela acabe.

- Falando de violência, diria que Matheson é um homem violento?

- Diria que existe nele essa capacidade, sim.

- Já teve provas disso?

- Já, mas, para ser justo, devo dizer que, em ambas as ocasiões, vi provas contrárias de grande domínio.

- Quais foram essas ocasiões?

- Uma vez, quando lhe entreguei a carta de Morrison a informá-lo de que era seu pai. Ficou muito chocado, muito amargo. Quase andámos à pancada, mas não chegámos a andar. A outra ocasião foi no “Óculo do Almirante”, quando o vi usar de certa violência para com Lachie McMutrie.

- Deu-lhe um pontapé no ventre, segundo me disseram - disse Rawlings suavemente.

- Exactamente. Mas também se controlou imediatamente.

- Recorda-se do motivo para esse ataque?

- Nunca percebi bem, Inspector. Havia muita conversa, muito barulho, muito gaélico de um lado para o outro... se esta noite for a um pub, perceberá o que quero dizer. Aparentemente Lachie disse qualquer coisa menos própria e Ruarri castigou-o.

- Alguma vez falou do acidente com ele?

- Não.

- Por que não?

- Por causa da natureza do nosso relacionamento. Ruarri sempre tentou impressionar-me com a sua habilidade, as suas realizações, o modo como conseguiu ultrapassar as desvantagens do seu nascimento. As proezas físicas foram sempre uma das suas gabarolices. Se lhe parecesse que eu me mostrasse indignado, teria uma oportunidade para gozar comigo. Além disso, e isso é pouco importante mas acho que faz sentido, também viajei muito. Estive em sítios duros. Aprendi a calar a boca e a manter-me nos meus assuntos.

- Então agora temos um homem violento. E calculista, também... falou-me do seu rápido controlo. Temos um ataque a um dos tripulantes por causa de uma palavra indiscreta.

Temos esse tripulante a cair pela borda fora em circunstâncias misteriosas. Está a ver o que está a desenhar-se?

- Vejo muitas lacunas, Inspector. De onde vêm as armas?

- Através de Miss Maeve O'Donnell, que é uma conhecida agente do IRA com uma longa história revolucionária na família.

- Julguei que ela criava cavalos.

- Cria. E dos bons. Ganhei uma boa maquia com um deles, no ano passado, em Ascot. Mas também faz outra coisa.

- Tem a certeza absoluta de que Matheson passa armas?

- Temos. Com o Lachie morto, não podemos prová-lo.

- Receio não compreender.

- Matheson escolheu e treinou bem os seus homens. São todos homens temperados, com a boca fechada como ostras. Ruarri teve de confiar neles, pelo menos em parte. Tinha de ser, mas Lachie era o elo fraco. Não conseguiu manter a boca calada. E ficou muito ressentido por ter levado pancada diante dos camaradas, no “Óculo do Almirante”. Veio ter com Mr. Do-nald e disse-lhe o que sabia: que Matheson ia à Noruega buscar as armas e as entregaria na Irlanda. Tínhamos tudo preparado para o apanhar em Trondheim. Depois Lachie foi assassinado, ou cremos que tenha sido, e Matheson decidiu seguir para as Feroés.

- E depois disso?

- Pescou durante três dias entre as Feroés e as Flanans e voltou para casa.

- Então não foi buscar nem entregar armas?

- Nem uma.

- Como pode ter a certeza, se me permite a pergunta?

- Porque estávamos a segui-lo. Tínhamos uma corveta da

Marinha e um avião de localização a informar-nos dos seus movimentos, e sabemos que nunca se aproximou da Irlanda.

- São muito eficientes, Inspector.

- E Matheson também. É esse o nosso problema.

- Gostaria de dizer uma coisa, Inspector.

- Diga.

- Sou amigo de Ruarri. Gosto dele. Vou ficar perto dele até esta coisa estar resolvida. Mas se ele for um criminoso, não o defenderia, apesar das minhas relações com Morrison... Mas eu estava a bordo da Helen II. Falei com a tripulação depois de Lachie desaparecer. Sou um sujeito lógico, é preciso sê-lo, para se construir a história mais simples. Sinceramente não acredito que consigam porvar que houve crime, nunca. Se pudessem provar a venda de armas, estariam mais perto, mas mesmo assim apenas teriam o motivo. Não há corpo, nem testemunhas, nem a mínima prova para construir um caso.

- Oh, nós temos algumas provas. Gostaria de falar delas consigo, agora. Ouviu alguma vez Matheson falar de um homem chamado Bollison?

- Bollison... Bollison? Sim, ouvi. Quando atravessámos o Minche naquele primeiro dia, encontrámo-nos com uma traineira norueguesa. Parámos lado a lado. Ruarri foi a bordo por uns minutos. Disse-me que possuía metade do barco e o nome do capitão era Bollison.

- Não chegou a conhecer o capitão?

- Não. Vi-o no convés. Só isso.

- Desde essa altura nunca mais o viu?

- Nunca.

- Ouviu falar dele?

- Sim. Matheson disse-me que o encontraríamos em Trondheim. Falou de tomarmos um copo com ele.

- E nas Feroés?

- Não o vi nem ouvi falar dele.

- Muito obrigado. E agora vamos ao tempo que passou a bordo. Estou interessado na orientação dos quartos ao leme.

- Faça favor.

- Quanto tempo duravam os quartos?

- Quatro horas.

- Quando saiu de Stornoway, quem estava ao leme?

- Matheson. É normal ser o comandante a sair com o barco e a fazê-lo entrar num porto. Quando já estávamos afastados da ilha, entregou o leme a Lachie McMutrie.

- Que horas eram?

- Duas, mais ou menos. Almoçámos tarde.

- Normalmente, então, Lachie teria ficado ao leme durante quatro horas, digamos, até às seis?

- Bom, eu não sei o que é normal numa traineira. Tudo é ralativamente informal. Mas eu diria que o normal seria o Lachie ficar até às quatro, fazendo um quarto menor, para que as horas fossem contadas às quatro, às oito, à meia noite e assim por diante.

- A que horas foi o Lachie substituído?

- Por volta das quatro.

- Quem tomou o leme então?

- Eu. Passei talvez uma hora com Jock Burns ao meu lado, a mostrar-me como se governava o barco.

- Então essa foi a primeira coisa anormal?

- Dadas as circunstâncias, eu diria que foi perfeitamente normal. Ruarri sabe que eu adoro barcos. Estava a fazer-me um cumprimento. Fiquei encantado.

- Terminou o seu quarto às oito?

- Terminei.

- Quem foi substituí-lo?

- Donan McEachern. É o rapaz que gagueja.

- Ele esteve ao leme até à meia-noite?

- Disseram-me que sim. Eu fui para a cama às dez e meia.

- E depois?

- Também pelo que ouvi dizer, Ruarri.

- E depois dele...?

- Ruarri disse-me que iria ser substituído por Lachie McMutrie às quatro da manhã.

- Exactamente... Lachie McMutrie pela segunda vez em vinte e quatro horas, e havia mais dois homens, três, se contar com o cozinheiro, que não tinham feito quarto. Como explica isso?

- Não sei. Acho curioso, agora que fala nisso, mas não faço ideia por que foi assim. É assunto do capitão, e eu não fazia parte da tripulação. Por isso não tinha motivos para perguntar.

- Mas está a ver o meu ponto de vista! Há um homem destacado para fazer um quarto fora da ordem normal. Durante esse quarto desaparece pela borda fora. Que é que isso quer dizer?

- Que é que quer dizer, Inspector?

- Assassinato, por conluio!

- Não, sinto muito. É complicado de mais. E absolutamente desnecessário. Cinco matulões contra um homem só, no meio do Atlântico Norte. Podiam atirá-lo pela borda fora à vontade.

- Então corta-se conluio e temos uma cuidadosa premeditação do capitão apenas... Tendo-o a si como o homem extra, conveniente para mudar a ordem.

- Isso faz mais sentido. Mas, a menos que consiga preencher a lacuna entre a meia noite e o quarto de Lachie às quatro, não tem um caso.

- Estamos a construir mais alguns em volta deste. O diário de bordo de Matheson, por exemplo, leu-o?

- Não. Ele ofereceu-se para mo mostrar, mas eu declinei a oferta.

- Ouviu-o, suponho, enviar diversas mensagens em código pela rádio?

- Ouvi?

- Tinha de ouvir, se as horas que nos deu para o seu quarto estão certas. Uma foi para Bollison, em Trondheim, uma para Miss Maeve O'Donnell em Estocolmo, e outra para um homem chamado Fermor, em Oslo. Localizámos o destino dessas mensagens. Foram transmitidas para terra antes de saírem do Minch... por outras palavras, enquanto o senhor fazia o seu quarto.

- Sim, recordo-me agora. Foram enviadas mensagens.

- E, mais tarde, durante a busca de Lachie, foram enviadas outras mensagens?

- Sim. Ouvi uma delas.

- Aqui temos uma coisa curiosa. Essas últimas mensagens foram registadas. As primeiras não. Que é que isso lhe sugere?

- Nada, Inspector.

- Por favor.

- Eu explico-lhe. Foi alegado assassínio contra pessoa ou pessoas desconhecidas. Eu sou obrigado a transmitir-lhe todos os factos em meu poder. Nada poderia ser mais perigoso ou injusto do que eu me permitir hipóteses ou interpretações. Não farei isso. E estou a falar seriamente.

- É um amigo muito leal.

- Sou também um amigo da lei, e o senhor, Inspector, é um seu servidor. E agora, se não deseja mais nada, gostaria de me ir embora.

- Não, não desejo mais nada. A transcrição estará dactilografada amanhã de manhã. Se quiser, passe por aqui e assine-a. Temos o seu endereço na estalagem. Muito obrigado.

- Um dia destes paga-me a tal bebida, Duggie!

- Não seja muito severo com o inspector, meu rapaz. Ele teve uma travessia difícil.

- Todos nós temos. Onde está o Ruarri, neste momento?

- Na casa dele, tanto quanto sei.

- Talvez passe por lá para o ver. Tem objecções a isso, Inspector?

- Nenhumas, meu amigo. É uma gentileza, até. Esprememo-lo ontem. É um rapaz e tanto! Gosto dele.

- Bom dia, Inspector!

Apesar de me mostrar irritado, não estava muito descontente com o interrogatório. Não tinha mentido. Tinha estabelecido uma posição como uma pessoa meticulosa, embora um pouco irritável. Tinha deixado bem claro que não estava disposto a entrar em especulações ou boatos; que era amigo do suspeito e o seria até algo mais estar provado. Evidentemente, Rawlings não se tinha deixado convencer completamente pela comédia, era uma raposa demasiado batida para isso. Mas, desde que nos baseássemos no registo e nos processos devidos, eu não seria muito incomodado.

Ruarri...! Ele não precisava de mim. Não precisava de pessoa alguma. Aquele patife era um génio de pleno direito. Era capaz de mentir como um Múnchausen e dar a cada palavra o brilho da verdade. Era capaz de enganar as suas mulheres e deixá-las a chorar por ele uma vida inteira. Era capaz de ter a corda no pescoço e, no momento seguinte, fazê-la passar para o pescoço de outra pessoa, como por magia. Iria safar-se do crime, e, quando fosse velho, se conseguisse viver até tarde - canonizá-lo-iam como um grande industrial. Toda a gente tinha tentado apanhá-lo, a Alfândega e Impostos, o Serviço Especial, a Interpol, a Marinha e a Força Aérea, e ele estava em casa, livre como um pássaro, a rir-se de todos eles. Bollison tinha entregue as armas por ele. Bollison tinha enviado o telegrama final a Maeve, e Bollison seria bem pago para manter a boca fechada, na hipótese improvável de alguma coisa correr mal. Vi então a ironia de tudo aquilo: eu era a única pessoa do mundo que poderia realmente deitá-lo abaixo, se quisesse. Por que não o tinha feito cinco minutos antes? Por que não o tinha entregue e não o fazia ainda? A verdade, quando surgiu diante de mim, fascinou-me pela sua fealdade. Queria tê-lo exactamente onde o tinha, naquele momento, na palma da minha mão, impotente como eu tinha estado, para que nunca pudesse voltar a erguer-se e a desafiar-me em terreiro. Eu era o gigante, agora, e ele o anão. Podia dominá-lo sempre que quisesse, bastava que fechasse a mão. Se iria ou não conseguir viver comigo próprio depois disso, já era outra questão. Não precisava de responder já.

Telefonei a Kathleen. Estava fora; deixei uma mensagem, dizendo que voltaria a telefonar logo que voltasse à estalagem. Depois fui ao hospital visitar Alastair Morrison. Tinha decidido contar-lhe a maior parte do que sucedera, deixando apenas de parte os aspectos mais obscuros da questão. Ele devia ter ouvido contar a maior parte, de qualquer forma, numa ou noutra versão. As notícias da morte de Lachie deviam ter invadido toda a ilha, e a investigação policial deveria estar a fazer nascer boatos por toda a parte.

Não tive de lhe dizer coisa alguma. Também não tive que o acalmar, encorajar, proteger ou fortalecer. Estava a pé e a par. Parecia dez anos mais novo. Em breve voltaria a pescar... Ruarri tinha ido visitá-lo! Tinha mesmo?

- Digo-te uma coisa, meu rapaz, quando ele entrou por aquela porta, foi como se entrasse a própria vida, embora, assim Deus me ajude, este meu velho coração tivesse dado um salto duplo, e eu pensasse que as fibrilhações iam recomeçar. No entanto, ele ali estava com um braçado de livros e uma garrafa de brande velho, e um sorriso divertido e juvenil por debaixo daquela barba. Falámos durante longo tempo, dando voltas e mais voltas, a apalpar o terreno, compreendes? Como os cegos avançam às apalpadelas, tocar e avançar e procurar de novo no escuro. Então, subitamente, ele parou com aquilo.

Fitou-me bem nos olhos. Agarrou as minhas mãos com as patorras dele e disse:

- Morrison, vamos acabar com isto. Tem um filho que não queria. Eu tenho um pai de que pensava não precisar. Preciso dele agora porque fui apanhado por muitas coisas, e estou farto de estar só como um rochedo no meio do pântano. Mas também precisa de saber aquilo que leva... e eu não sou grande negócio. Tenho uma má consciência e uma má reputação, e mereci grande parte dela, mas não toda. Neste momento até se fala de assassínio a meu respeito, porque perdi um homem no mar... Digo-te, meu rapaz, que chorei ao ouvi-lo; foi tão directo e sincero a seu respeito, tão fácil na sua absolvição à minha pessoa. Gostaria que eu o reconhecesse, disse-me. E essa foi a palavra mais feliz que ouvi em toda a minha vida. Logo que saia daqui, vou tratar dos papéis de adopção, o que acho que posso fazer, e ele vai juntar o nome Morrison ao seu, o que é umaideia feliz e um símbolo notável de algo de bom nas nossasVidas. Que é que pensas de tudo isto, meu rapaz? Que é que pensas disto, hein? Não ousei dizer-lhe o que pensava. Teria soado como uma blasfémia e vê-lo-ia morrer diante dos meus olhos. Em vez disso, menti-lhe. Menti eloquente e emocionalmente, jurando-lhe que achava as notícias maravilhosas, que nem sabia como expressar a minha felicidade por ambos, que Ruarri estava a libertar-se do seu passado espalhafatoso e a marchar para um futuro dignificante, que Deus era bom e tudo acabava pelo melhor se tivéssemos fé e fôssemos suficientemente cegos para acreditar. Por debaixo de tudo aquilo, sentia-me cheio de raiva e de desprezo pela duplicidade de Ruarri e pela sua egoísta manipulação de um homem velho e doente. Ele não queria um pai. Ele queria um protector. Queria um nome decente para limpar do seu a nódoa das patifarias e do crime. Não lhe bastava estar a salvo, se efectivamente o estava; queria também ser respeitado, indo buscar o respeito de outro homem.

As palavras que disse tinham um gosto a serradura na minha boca, mas, pelo menos, fizeram Morrison feliz... O que, vendo bem, era o que Ruarri tinha feito, embora o diabo me levasse se eu lhe concedesse algum crédito por isso.

 

O meu regresso à estalagem foi estranho, mas acho difícil explicar por que motivo.

Subitamente, tudo parecia pequeno: as casas assemelhavam-se a casinhas de brincar, os campos pareciam lenços de bolso, os montes pareciam estar agachados, as lagoas, poças lamacentas, a estrada um caminho, e as ovelhas animais de presépio. Eu não me sentia grande, deve-se entender. Era apenas um homem de tamanho normal, a ver por um óculo uma paisagem liliputeana, montada por um lojista para o seu negócio de Verão. Não me sentia superior-é preciso que o leitor o entenda, apenas separado, diferente, vagamente ressentido, como uma criança que não consegue voar pela janela com Peter Pan.

Até a velha Hannah tinha mudado. Já não havia nela qualquer mistério, perdera aquele ar de cigana peregrina, a névoa do amanhã e do ontem. Foi apenas uma velhota pequena, enrugada como uma ameixa, que se agarrou a mim, possessiva e loquaz, porque eu era um homem que regressava a uma casa onde havia muito tempo não havia homem algum.

- Voltou! Deus seja louvado por todos os seus milagres! Já o via engolido pelo mar negro. Mas não foi o senhor, foi aquele pobre Lachie, Deus salve a sua alma! Agora vai tomar um banho, vou preparar-lho já. E vai separar todas as suas roupas sujas para a lavandaria e vai pôr-se janota para aquela mulherzinha que espera a sua visita. Ai! Há em si um cheiro de pecado! É melhor livrar-se dele antes de a ir ver. Não que eu lhe pergunte quem foi, mas ela é capaz disso, e espero que tenha as suas mentiras na ponta da língua. E que foi essa coisa da polícia a percorrer a ilha toda e a fazer perguntas como se nós fôssemos criminosos? Não me diga! Não quero ouvir, só depois de estar limpo e repousado e podermos ter uma conversa.

E não me conte aquilo que não quiser que se saiba, porque eu sou uma velha tagarela capaz de deixar cair os dentes postiços na sopa se tivesse uma boa história para contar... E agora toca a despir-se e a meter-se no banho. E se está preocupado por eu estar a ver, digo-lhe que já vi tudo e o gozei muito antes de o senhor saber o que isso era. O chá vai estar pronto quando voltar para baixo, e tenho scones prontos à espera de ir para o forno!

Era bom voltar a casa. Só que aquela não era a minha casa. Era uma estalagem bastante agradável na ilha de Lewis, em Ross-shire, onde eu estava a repousar por algum tempo o meu cérebro fatigado. Estendi-me na banheira com água quente, como um semideus no Olimpo, olhando para baixo, para a comédia provinciana e perguntando a mim mesmo como e porquê me tinha visto envolvido em tudo aquilo. Eu poderia partir no dia seguinte, e eles continuariam às voltas, sem pensarem em mim. Poderia voltar dentro de dez anos, e tudo estaria na mesma: a urze a florir, os peixes a saltar, o fumo da turfa a subir, e mais algumas lages no cemitério, para marcar o ciclo dos anos...

Mas quando desci para o salão e encontrei o chá preparado, e Hannah sentada com as mãos cruzadas sobre o avental, à minha espera, tudo recuperou a sua dimensão e voltei a diminuir de tamanho.

Ela fitou-me com os seus brilhantes olhos negros e declarou categoricamente:

- Já sabe do Morrison e do Matheson?

- Sei, Hannah.

- Há trinta anos ou mais que eu sei, mas nunca uma palavra me saiu dos lábios, pelo que espero ser um dia recompensada por Deus.

- Vi o Morrison, no caminho para cá. Está muito feliz.

- Espero que se mantenha assim.

- Também eu, Hannah.

- Aquele Ruarri! Há atribulações em todos os ventos que sopram em volta dele. Agora fala-se de morte, e de contrabando de armas, em vez de uísque e sedas, como nos velhos tempos.

- Como sabe disso?

-Toda a gente sabe. Ou pensa que sabe. Vai ser terrível se esses boatos atingirem o Morrison.

- Ele não se importa, Hannah. Agora já tem o seu filho.

- E será filho dele? Tenho perguntado isso a mim mesma, como perguntei no dia em que ele nasceu. Ainda há filhos das fadas, sabe... e eu conheço alguns! Foram trocados no berço, pelos Duendes, e são fomentadores de discórdia até ao dia em que morrem.

- Hannah, se o Morrison ouvisse esse tipo de conversa...!

- Como, se eu nunca digo uma palavra fora desta casa? Mas vamos antes falar de si. Devia ter-se ido embora quando o avisei.

- Mas não fui, e ponto final no assunto.

- Ponto final, não, meu rapaz.

- Então qual é o final, Hannah?

- Quem me dera poder dizer-lho, mas não posso. Sei que já não mete o mar, porque o mar está satisfeito por algum tempo. Sei que há fogo, mas não sei onde. E sei que há três pessoas nesta casa e Matheson não é uma delas.

- Como é que sabe isso, Hannah? Gostava de saber. Eu não digo a ninguém.

- E como poderia dizer se eu própria não o sei? Vem, simplesmente. Só isso. Por vezes quando estou deitada na cama, por vezes quando estou a fazer as minhas orações, por vezes quando estou no jardim ou na cozinha.

- Isso assusta-a?

- Ter o dom, sim, mas ver as coisas, não. É como saber um pouco do que Deus sabe... E ele não está assustado, pois não?

- Devia ficar, de vez em quando, Hannah.

- Bom, se fica, não diz a ninguém. E há nisso mais virtude do que nós temos.

- Eu não estou a rir-me de si, Hannah.

- Eu sei que não está. Não tem muito de que se rir, aliás.

- Que é que isso quer dizer?

- Meu rapaz, seja o que for que eu vi, está metido nisso: no mar e no fogo.

- Havia alguém comigo, no final?

- Isso não me foi mostrado, rapaz. É isso que irrita. O bom Deus dá-nos apenas metade do presente e guarda o resto até o merecermos. O que eu ainda não consegui... E agora diga-me, vai cá estar esta noite?

- Vou estar cá. Teremos a companhia da Drª McNeill.

- Eu sei. Já mandei preparar a refeição e mandei arranjar o quarto dela, embora pouco vá ser usado, bem sei.

- Hannah, tem um espírito maldoso.

- Maldoso? Olha quem fala! Com todos os sete pecados mortais bem escritos por toda a sua cara. Vá telefonar à sua mulher e diga-lhe que a ama. Espero que ela seja mais fácil de convencer do que eu.

Não consegui convencê-la porque não a encontrei. A governanta disse-me, com prazer, que a doutora estava invulgarmente ocupada, e era difícil saber quando estaria em casa. Sim, falaria à doutora do jantar, mas não podia prometer nada. Eu percebia isso, não percebia? Eu percebia. Deus tenha pena de si, minha senhora, e lhe envie conforto e melhor disposição antes de morrer!... Ainda eram só três e meia, pelo que decidi ir ver Ruarri à sua quinta. Com todas as mentiras que tinha dito, e as pequenas surpresas que tinha tirado da cartola, devia-me uma explicação, embora só por estupidez pudesse acreditar nela, quando a ouvisse.

Quando cheguei à quinta, encontrei Ruarri e três dos seus homens a plantar à mão a terra recém-formada. Inclinei-me sobre o muro de pedra e fiquei a vê-los dedicados àquela tarefa simples e bíblica e perguntei a mim mesmo como é que eles ou eu poderíamos ter sido apanhados por toda aquela loucura. Ruarri viu-me e acenou-me, mas continuou a trabalhar até esvaziar o saco que trazia ao ombro. Depois veio ter comigo, andando de maneira pesada e desajeitada sobre a terra mole. Não sei porquê, mas esperava que houvesse uma notável mudança no seu aspecto e nas suas maneiras. Não havia. Era o mesmo Ruarri antigo, arrogante e fanfarrão, com aquele mesmo sorriso espalhado pelo rosto e a mesma saudação alegre.

- Bem-vindo a casa, seannachie! Pareces dez anos mais novo.

- Vida limpa e mulheres limpas. E, além disso, deixei de me preocupar contigo!

- E quando foi isso?

- Esta manhã em Stornoway. Tive uma longuíssima conversa com o inspector chefe Rawlings.

- E que é que lhe disseste?

- Nada que ele não soubesse já.

- Como, por exemplo?

- Por exemplo, que és meu amigo, assim como a Maeve, e que eu ouvi falar de Bollison, mas nunca lhe fui apresentado, e a ordem dos quartos a bordo, e que houve um incidente entre ti e o Lachie no “Óculo do Almirante”, e que foram enviadas mensagens durante o meu quarto a bordo da Helen II.

- E que é que tu não lhe disseste, seannachie?

- O que se tinha passado entre nós em diversas ocasiões particulares.

- Em que ponto martelou ele mais?

- Quis saber por que tinha saído do barco em Tórshavn. Porque não tinha ficado, como um amigo, para te apoiar numa hora difícil.

- Que é que respondeste a isso?

- Disse-lhe que tu e eu andávamos de candeias às avessas.

- Porquê?

- Por tu seres filho do Morrison e eu ter-to dito, e tu não estares muito satisfeito comigo por causa disso.

- Fosto esperto, seannachie. Por que te lembraste disso?

- Porque estava decidido a não dizer uma única mentira. Se ele tivesse insistido sobre o nosso relacionamento e as nossas conversas, eu teria tido que inventar, e tu já inventaste coisas suficientes para ambos.

- Pensas que ele vai voltar a interrogar-te?

- Muito provavelmente. Amanhã tenho de ir assinar o meu depoimento. Tenho a certeza de que o Rawlings vai estar lá para mais uma pequena conversa.

- Que é que te parece que ele pensa, seannachie?

- Que tu mataste o Lachie.

- Vai ser difícil provar isso... Ele não tem matéria que chegue para apresentar uma queixa, quanto mais para a manter em tribunal.

- Mas tenho eu, Ruarri.

- E que é que isso quer dizer?

- Vamos até à tua casa, serve-me uma bebida e eu digo-te.

Caminhámos em silêncio até à casa e sentámo-nos junto do bar. Enquanto Ruarri servia as bebidas, acendi um cigarro e puxei um cinzeiro limpo para mim, uma grande tigela achatada de cerâmica africana. Quando deixei cair nele o fósforo apagado, vi, no fundo do recipiente, o medalhão e a corrente que tinha oferecido a Kathleen. Ruarri estava de costas para mim, a colocar de novo a garrafa na prateleira. Peguei no medalhão e meti-o no bolso do meu casaco.

Ruarri voltou-se, empoleirou-se no banco e fez-me um brinde.

- Slainte!

- Igualmente.

- Que é que tens em vista, seannachie?

- Muita coisa, de modo que vamos por partes. A bordo da Helen II disseste-me que não tinhas a certeza de ter morto Lachie ou não. Não te recordavas. Já te recordaste?

- Já. Não o matei.

- Que é que te convenceu?

- Falta de provas. Estou na mesma posição que o Rawlings, compreendes?

- Também a bordo da Helen II eu disse-te que acreditava que estivesses inocente.

- E agora?

- Ainda acredito. Por uma razão negativa, como a tua. No momento em que eu deixar de acreditar nela, acabou-se o jogo. Eu não posso ocultar um crime. Tenho de dizer tudo o que sei.

- Ou seja?

- Que pronunciaste na minha presença uma ameaça à vida de Lachie; que, quando eu protestei, me atacaste e me ameaçaste, também, com violência; que me mentiste sobre a tua confrontação com Lachie, que nunca se verificou... E como é que eu sei disso? Porque estive a jogar uma amigável partida de póquer e porque tu nunca tiveste a intenção de ir à Irlanda. Bollison já ia a caminho e tu andavas a pescar inocentemente entre as Feroés e a Flannans. Estás a ver o plano, não estás? Neste momento, Rawlings não te pode tocar porque só tem o motivo e a oportunidade. Se eu falar, fica com um motivo, uma intenção expressa, uma manifestação de violência, o início de uma conspiração para matar. Penso que, com isso, te apanharia. Mesmo que não ganhasse o caso, poderia manter-te detido durante bastante tempo e deixar-te desacreditado para sempre...

- Estou a tremer de medo, seannachie.

- Ainda não terminei. Maeve entregou-me a carta que tu lhe enviaste.

Não lhe disse que ela a tinha queimado. Queria ver até onde ele aguentava sem ceder. Até ali tinha ido muito bem. Estava calmo, com um meio sorriso, pesando cada palavra que pronunciava, avaliando as consequências, paciente como um gato com o pássaro a saltitar à sua frente. Mas a carta atingiu-o. A carta era um documento. Se eu a tivesse, o laço estava realmente em volta do seu pescoço. Mas ainda tentou fazer bluff. Disse despreocupadamente.

- Não acredito numa palavra do que dizes, seannachie. -Então eu cito: “Vê se consegues, em conversa ou na cama, incutir-lhe bom senso. És boa em ambos os campos.” Ela adorou isto. E eu também. Grande moção de confiança de Ruarri o Mactire aos seus amigos.

- Onde está essa carta?

- Segura em Copenhaga.

- Então temos chantagem, não é? Quanto queres, seannachie? E quantas vezes?

- Uma só prestação, Ruarri. Não faças sofrer o Morrison.

Desta vez ele não me acreditou mesmo. Ficou a olhar para mim como se eu fosse uma coisa estranha, que tinha descoberto ao voltar uma pedra.

Sacudiu a cabeça. Pestanejou, e depois começou a rir, num riso estranho, espasmódico.

- Estás a falar a sério... Não é possível...! Como irias controlar um acordo desses?

- Não estás a entender-me. Não preciso de o controlar. Porque eu sou um homem do mundo que pode provar que tu não vales nada, de A a Z, em toda a extensão. E tu vais ter de te esforçar para provar que eu estou errado. Porque tu és assim mesmo, meu irmão.

- Também poderia sentir-me tentado a matar-te, numa noite escura.

- Também não farás isso. Não há necessidade. Maeve queimou a carta, depois de eu a ler.

- E és suficientemente tolo para mo dizeres?

- Sou suficientemente tolo para acreditar que vale a pena salvar o teu pescoço e que tu e o Morrison ainda poderão ser felizes juntos.

- Então por que diabo deste tanta volta para mo dizeres?

- Tu pretendes respeito. Clamas por ele. Também terás que o dar. Até agora só respeitas quem tiver a vara na mão. Só queria que soubesses que eu a tenho na mão e a poderia ter usado esta manhã e não a usei. Qual é a sensação, Irmão Lobo?

- Puseste mesmo o dedo na ferida, seannachie. Mas não pelo motivo que julgas. És um patife cheio de condescendência, estás tão cheio de sensatez e virtude que nem tens espaço para a seiva e para o sangue. Não me retribuirias o murro que me deves. Não, irmão! Tu vieste ao meu encontro com um es-tilete na mão e enfiaste-mo entre as costelas. Não me dás o mínimo valor, pois não? Nem pelos rapazes que estão lá fora a trabalhar e que, sem mim, não teriam trabalho. Nem pelas terras que vão servir de modelo para outras terras pelas Ilhas fora. Nem pela promessa que fiz de ir visitar o Morrison e que cumpri, nem pela concessão que fiz para o fazer sentir que precisava dele e que ele teria realmente algo a oferecer-me. Não...! Sou uma trampa, para ti, de A a Z. Ámen! Ámen! Ámen! Acho que preferia que me entregasses ao Rawlings. Pelo menos não ficava a dever-te coisa alguma.

- A questão é essa, Ruarri, meu rapaz. Tu deves-me qualquer coisa. E quero que o saibas, que o recordes e que o pagues... não a mim, mas ao Morrison.

- Oh, seannachie, seannachie! Tens de arranjar uma melhor que essa!

- Tens sugestões?

- Sim... Pergunta a Kathleen pelo medalhão que há pouco meteste no teu bolso.

Desta vez apanhou com a bebida em cheio na cara. O mais espantoso é que não se moveu. Ficou ali parado, durante um longo momento, sólido como uma rocha, com o líquido a escorrer pelas faces, para a barba, piscando os olhos porque o álcool os fazia arder. Pegou num guardanapo de papel e enxugou os olhos. Depois, sem sorrir, disse:

- Penso que agora estamos quites, seannachie. E espero que peças desculpa à rapariga, quando chegares a casa. Veio aqui jantar comigo porque eu a convidei, e voltou para casa à meia-noite, sem que eu lhe pedisse ou conseguisse outra coisa além da sua companhia. E agora toma outra bebida, e vamos a criar um pouco de fraternidade entre nós, hein?

Para salvar o que restava da minha dignidade, tive de ficar. Tive de pedir-lhe desculpa e tomar uma bebida com ele e dar-lhe a última palavra, porque estava na sua casa. Levou tempo a pronunciá-la, e eu tive que, dar-lhe tempo, embora cada minuto parecesse um purgatório.

- Seannachie, estamos muito próximos, mas não resulta. Porquê?

- Só Deus sabe.

- Não deixes isso com Ele, seannachie. Não anda tanto por aí. Eu minto-te e tu rosnas-me. Porquê?

- Diz-mo tu, para variar.

- Assim farei. Aqui vai a pura verdade, saída directamente da boca do cavalo, ou da outra extremidade dele, se preferires. Quando tu queres fazer uma declaração a teu respeito, um acto de fé, uma afirmação de amor ou de ódio, ou um grito contra a injustiça, podes fazê-la. Escreve-la em belos períodos perfeitos. Imprime-la, a preto no branco, e fica registada. Os outros poderão amar-te ou odiar-te ou cobrir-te com tinta, mas estás ali. E eu?... Eu não posso fazer isso. Tenho duas línguas, seannachie, mas não sou culto em nenhuma delas. Tenho um mau nome e um passado escuro, de modo que qualquer pessoa que queira desacreditar-me poderá fazê-lo com uma piscadela de olhos ou um aceno da cabeça, sem que eu seja ouvido. É uma coisa terrível, seannachie, uma coisa cruel. Não existe um julgamento absoluto, embora devesse existir. Tudo é relativo a coisas relacionadas. Resultado? Não posso falar e ser ouvido. Estou preso como uma panela de pressão. Por isso deito vapor pelas fendas. Fervilho e espumo e, de vez em quando, faço saltar a tampa. Se posso dizer uma mentira que será mais acreditada que a verdade, por que não hei-de dizê-la? De qualquer forma só pretendem enforcar-me. E tu, meu irmão, tens andado a linchar-me na tua mente nestes últimos dias, não tens?

- Isso é apenas metade da verdade, Ruarri. Porque tu nunca dás a ti próprio mais que meia probabilidade de falar com franqueza. Tens de esperar algum tempo até o teu crédito ser completo. Mas não queres esperar. Queres que te ponham uma coroa de louros de cada vez que recitas “Não está uma bela noite de luar...”

- Tu também não és excessivamente paciente, irmão... como ficou demonstrado há um minuto atrás.

- De acordo.

- Então se eu, só por esta vez, te pedisse que fizesses qualquer coisa comigo, que me ajudasses, sem me julgar até ao fim, serias capaz de o fazer?

- Em que é que estás a pensar?

- Vem ao meu ceilidh, daqui a duas noites. Traz a Kathleen.

- Pelo amor de Deus, homem! Não podes fazer um ceilidh agora. É uma indecência.

- Já me julgaste... erradamente!

- Peço desculpa.

- Nas Ilhas, seannachie, choramos pelos moribundos, mas bebemos pelos mortos, que foram enterrados. Lachie nunca será enterrado, mas há que honrá-lo e é preciso fazer qualquer coisa pela sua família. Por isso, todas as pessoas que vierem trarão um presente em dinheiro... tu também. E, por cada moeda que trouxerem, eu porei duas. Assim haverá um fundo para a mãe de Lachie e para os irmãos mais novos. Vou convidar todos os meus rapazes e as raparigas deles. Maeve vem e o Duggie Donald também, e até o inspector Rawlings, se quiser vir.

- Já estás a passar das medidas.

- Não, não estou. Porque essa é a minha declaração, seannachie. Tal como seria se ele fosse enterrado como um cristão no cemitério. Eu lá estaria, em tamanho natural e feio como sempre, para afirmar que estava limpo e nada tinha a temer de Deus ou dos homens. O que as pessoas pensarem depois disso, é-me indiferente. Estás a perceber agora onde quero chegar?

- Estou.

- Virão? Ambos?

- Viremos.

E, porque não conseguia resistir a dizer a última palavra, ele acrescentou.

- Serás como Deus, seannachie, com um segredo no teu peito que mais ninguém conhece. É caso para um homem se embebedar com uma coisa dessas...

Era ainda cedo quando o deixei, a chuva tinha desaparecido e não me apetecia voltar para a estalagem e para o afecto rabugento de Hannah; por isso meti-me no carro e fui até ao lugar das Pedras e sentei-me, voltado para o oriente, com a Grande Pedra por detrás de mim e o lugar vazio para sepultamento sob os meus pés. Não vi carriças sagradas, nem ouvi o cuco. Gostaria de poder dizer-lhe que vi o Esplendoroso, mas não o vi. Tive outras visões, no entanto: a de Kathleen sentada à luz das velas a jantar com Ruarri, de mim próprio com Maeve em Nyhavn, e ela a dizer-me “Ele é sempre traiçoeiro, seannachie, a fazer de bom cãozinho com as patas no ar até estendermos a mão para o acariciar - e nessa altura arranca-nos a mão com uma dentada!” Nenhum de nós estava à altura dele - sim, até mesmo Kathleen - e cada um de nós era vítima de uma ou outra das suas estonteantes potencialidades. Tínhamos apenas uma defesa contra ele: fazer as malas e partir; sair do círculo mágico que ele tinha conjurado à nossa volta; encontrá-lo apenas, se absolutamente necessário, como um amigo errante, em terreno distante e neutro, entre uma multidão. Perguntei a mim mesmo que feitiço ele teria lançado sobre Kathleen e como ela iria agir e o que iria dizer quando eu lhe devolvesse o medalhão. Uma coisa tinha decidido: não iria fazer uma cena de ciúmes. Ela tinha pedido para ficar livre. Tinha-me deixado livre. Eu tinha utilizado a minha liberdade. Ela também; de que maneira, eu não tinha o direito de inquirir. Mas, naquele momento, para mim, o tempo de espera tinha terminado. Era seguir para a frente, o mais depressa possível. Se ela quisesse partir comigo, óptimo! Fecharíamos os portões do passado e deitaríamos fora a chave. Se ela quisesse ficar, eu não ficaria - as Ilhas eram pequenas de mais para mim e para o Mactire juntos.

Quando voltei à estalagem, Kathleen estava à minha espera, e caiu nos meus braços antes de eu ter tempo de fechar a porta atrás de mim com o pé. Não me pergunte o que ela disse naqueles primeiros dez minutos, porque foi tudo na língua do país do amor, e não faria sentido algum impresso numa fria linguagem linear. Mais tarde, quando estávamos mais calmos, sentados junto da lareira, contei-lhe tudo o que tinha acontecido a bordo da Helen II e parte do que tinha ocorrido em Copenhaga e da minha conversa com Rawlings e do meu encontro dessa tarde com Ruarri. Depois voltei a colocar o medalhão em volta do seu pescoço e sentei-me na carpete, aos pés dela, enquanto me relatava o outro lado da história:

- ... A notícia da morte de Lachie tinha-se espalhado por toda a ilha num único dia. Até mesmo em Harris, onde não se interessam muito pelo que se passa com a gente da Lewis, não se falava de outra coisa em cada casa. Falava-se de uma briga por causa de uma rapariga, de uma rixa de bêbados a bordo, de uma luta contra os russos ou os noruegueses por causa dos direitos de pesca... Falava-se mal de Ruarri e das suas maneiras violentas e até mesmo de ti, meu querido, porque diziam que tu tinhas fugido para não teres de responder à polícia. Quando ouvi essa pela primeira vez, perdi a cabeça... e alguns doentes ao mesmo tempo. Por isso, quando soube que o Ruarri tinha voltado, telefonei-lhe. Foi muito cauteloso ao telefone, aqui não são privados, como sabes, e convidou-me para jantar com ele, para me poder contar toda a história. Perguntou-me se eu poderia ir a sua casa porque não queria dar origem a falatórios, aparecendo em público comigo... Eu não te mentiria, mo gradh. Não haveria motivo. Fiquei satisfeita por ele ter feito aquela sugestão. Queria estar sozinha com ele. Queria saber como ele era, e estava ressentida por teres ido para Copenhaga e por saber que a Maeve O'Donnell também lá estava... Oh, sim, ele disse-me isso, muito fraternalmente e com um ar de homem experiente. Por isso, na altura em que lá cheguei estava um pouco alegre e suficientimente afoita para me divertir. E diverti-me. Ele preparou cocktails e cozinhámos juntos o jantar e namoriscámos um pouco enquanto o fazíamos... e apreciei cada minuto, porque sabia que era uma pessoa adulta e poderia enfrentar qualquer situação... Durante o jantar ele contou-me tudo o que tu me contaste, querido. Fiquei surpreendida por ele dizer tanto, mas ele disse-me que te conhecia e que sabia que nós éramos amantes e não havia segredos entre nós. Ou haveria? Perguntou-me quando tencionávamos casar-nos. Disse-lhe a verdade. Disse-lhe que ainda não tínhamos decidido se o faríamos ou não. Então ele riu-se e disse-me que o seannachie era uma raposa velha e sabia como arranjar-se... Ele é assim mesmo, não é? Cheio de pequenas alfinetadas, nunca bastante fundas para fazer sangue, apenas para sentirmos que estamos vivos e fazer-nos desejar justificarmo-nos perante ele. Depois do jantar dançámos, e eu sabia que estávamos a dançar em cima de um alçapão, mas não me importei. Conseguiu excitar-me e fez-me desejá-lo... Foste tu quem ateou o fogo, querido, mas tu estavas longe, e ele estava ali, a soprar as brasas. Depois pediu-me que fosse para a cama com ele... e, tenho vergonha de dizer isto, mas estava pronta a ir... Depois riu-se, e apertou-me contra ele e disse: “Quanto vale o seannachie neste momento, princesa? É pena ele não estar aqui para nos ver.” Fiquei gelada e apeteceu-me fugir dali e vomitar. Libertei-me dele e, quando tentou agarrar-me de novo, não pude suportar que me tocasse. Depois... depois ele dirigiu-se ao bar, encheu um copo de brande e ergueu-o numa espécie de brinde, com um sorriso frio e brutal e disse: “À tua saúde, Drª McNeil. Sei que vão ser muito felizes. Tu e o seannachie foram feitos um para o outro...” E foi tudo. Depois disso, fui para casa. Tinha de te contar isto, mo gradh, e não podia suportar a ideia de ouvires esta história da boca de Ruarri, um dia, e ficares a odiar-me para sempre... E agora se quiseres que eu me vá embora, diz.

- Que é que vais fazer se fores para casa?

- Meter-me na cama. Ficar acordada, a olhar para o tecto... e a desprezar-me a mim mesma como faço há muito. Há-de chegar o dia em que me habitue à ideia e faça as pazes comigo mesma.

- É um desperdício, não te parece?

- Tens sugestões melhores?

Pus-me de pé e levantei-a, segurando-a ao comprimento dos meus braços.

- Só uma, Kathleen oge. A primeira e a última. Estás a ver onde te encontras neste momento?

- Estou...

- Quando o Morrison regressar do hospital, estaremos de novo neste local e o pastor Macphail estará a fazer o serviço matrimonial, e eu vou receber esta mulher como minha esposa e ela vai receber-me a mim... Com uma condição: que ela mo diga agora, porque há banhos a preparar e licenças a obter e um assunto por acabar que eu tenho de resolver antes do dia do casamento. É sim ou não, Kathleen oge. E se for não, voltas para casa para aquela cama e para aquele tecto branco, e voltas a ser uma mulher que nunca mais se há-de perdoar a si mesma até morrer.

- E se for sim?

- É amar e respeitar e acarinhar e fechar a porta às recordações até chegar o crepúsculo para ambos.

- Sim... sim, por favor, meu amor.

... E se pensa que foi tudo simples de mais para ser verdade, deixe que lhe diga que é desta maneira que a maior parte das coisas importantes ocorre na nossa vida. Percorremos raciocínios, fantasias, medos, frustrações, vastos e desertos acres de tempo sem nada fazer. Depois, num belo dia, vem o médico e diz-nos que estamos a morrer, ouvem uma rapariga e diz-nos que está grávida, ou as acções baixam e ficamos mais pobres que ratos de sacristia, ou um avião cai e morremos, e vermo-nos perante o julgamento sem os nossos livros de apontamentos. Ficámos noivos.

Tivemos toda a hora do jantar para falar disso, e toda a hora do café, e todo o tempo depois de fazermos amor. E depois de toda essa agradável conversa, quando Kathleen estava a dormir ao meu lado, ainda tive tempo para pensar em Ruarri o Mactire.

Tinha de o apanhar agora. Tinha de lhe esfregar o focinho na sua própria sujidade, e levantá-lo de novo, seipudesse; e, se não pudesse, ele que fosse para o inferno. Mas como? A menos que soubesse que ele era culpado, não poderia, nem quereria, ser um informador da polícia. Não podia nem queria enfrentá-lo em particular, porque seria apanhado de novo naquele ululante apocalipse de autojustificações, e depois ninguém saberia coisa alguma, excepto as mentiras que Ruarri dizia com tanta convicção. Como, então? E onde? E a que propósito, para que ele não fizesse uma cabriola como um acrobata e subisse para o arame, onde não poderia segui-lo?

Não conseguia vislumbrar outra altura ou lugar que não fosse o ceilidh - na sua própria casa, na sua própria festa. Kathleen não queria ir. Já o tinha dito, mas eu tinha insistido, porque teríamos de falar com ele lá e enfrentá-lo e cuspir-lhe entre os olhos azuis e sorridentes e fazer-lhe saber que não nos tinha prejudicado. Não conseguia prever o que iria suceder. Só sabia que ele se sentiria orgulhoso pela companhia, e estaria bêbado e muito falador - e que chegaria o momento em que eu abriria caminho e o enfrentaria abertamente.

 

Agora que chegou a altura de o contar, sinto-me hesitante e estou atento às pequenas verdades.

Não se deverá considerar isto como um relato épico, cheio de nuvens tempestuosas e embates furiosos e portentos escrevinhados por toda a parte como cupões de uma lavandaria chinesa. A Ilha de Harris e Lewis é um local pequeno. Se se reunir toda a sua população, não se consegue encher um campo de futebol. As habitações são dispersas. As casas, mesmo as maiores, são modestas. As estradas não passam de caminhos. Por isso, um ceilidh para trinta ou quarenta pessoas é, em termos locais, uma coisa importante. Os únicos aspectos épicos são as comidas e as bebidas, e os relatos que depois são espalhados, loucos e maravilhosos, com milagres e moralidades em todas as páginas. O que, segundo suponho, é a maneira como a história funciona; os povos mais pequenos têm os deuses mais poderosos e as maiores cidades têm homens tão minúsculos que mal se podem distinguir uns dos outros.

O ceilidh de Ruarri o Mactire estava marcado para as oito horas da noite, para que as raparigas tivessem tempo de se pôr bonitas depois do trabalho e os rapazes pudessem olear-se no pub antes de começarem os festejos. Kathleen e eu decidimos chegar tarde, para que houvesse menos perigo de situações embaraçosas com Ruarri. Kathleen decidiu vestir-se à maneira das Highlands, que é um trajo que fica bem às mulheres - o corpete de veludo, a saia pregueada fechada na cintura, a pregadeira celta usada como uma ordem de cavalaria. O meu guarda-roupa era tristemente pequeno, de modo que tive de me decidir por um fato escuro, com um corte excessivamente italiano para o clima e para a moda local. No entanto, não estávamos descontentes com o nosso aspecto e, se Ruarri, ou fosse quem fosse, decidisse meter-se comigo, eu estaria às suas ordens.

Havia carros estacionados ao longo de vinte jardas de ambos os lados da casa de Ruarri e havia um gaiteiro à porta que fazia soar a sua gaita de foles por cada convidado que chegava. Estava ali para o baile, disse-nos, e mais tarde viria um rabequista e um homem com um acordeão. Estava à espera deles; mas porquê desperdiçar a música, que era a melhor parte de cem mil boas-vindas!

Ruarri, vestindo o trajo escocês dos Matheson, veio ao nosso encontro com um sorriso alegre e um caloroso aperto de mão, e nem um piscar de olhos ou um rubor diria que não éramos os melhores amigos do mundo. Depois apresentou-nos, com um gesto largo, a todos ao mesmo tempo e conduziu-nos ao bar, representando como um comediante.

- Já estava prestes a mandar grupos de busca. Por momentos, cheguei a pensar que não vinham. Conheces muita desta gente, seannachie. E os que não conheces, vais ficar a conhecer. Vai apresentando a Kathleen a todos. Mais tarde conversaremos, quando as coisas acalmarem. Maeve vem a caminho, e... eu disse-to, mas tu não quiseste acreditar!.. .tens o Rawlings ali ao canto e o Duggie Donald, com a rapariga morena, do outro lado. Maeve acabou de me telefonar de Stornoway. Deve estar a chegar. E agora divirtam-se!

Empoleirámo-nos nos bancos do bar e observámos os presentes. Estavam lá os rapazes das duas traineiras, os rapazes da quinta e uma rapariga para cada um deles, incluindo, desta vez, a loura dos beijos dopub de Stornoway. Também ela envergava o trajo das Highlands - o que a aproximava o mais possível de uma senhora. Estava lá o Duggie Donald; e o Rawlings; e Fergus William McCue e os seus dois filhos, e um dos polícias que nos tinha interrogado, a Kathleen e a mim, quando da nossa sortida de pesca ilegal. Havia três casais jovens que eu nunca tinha visto antes e que imaginei serem vizinhos das quintas em volta de Carloway. Trinta, trinta e cinco pessoas, em número suficiente para encher a ampla sala e produzir uma contínua algazarra de conversas e risos.

O fogo da lareira estava rodeado por torrões de turfa. O balcão da cozinha estava atulhado de comida. A mesa tinha sido puxada para o lado, de modo a abrir passagem para os bebedores e mais tarde para o baile. Reparei que algumas das coisas mais preciosas de Ruarri tinham sido retiradas das paredes e das prateleiras, para evitar que algum bêbado decidisse brincar com elas por volta da meia-noite.

Apresentei Kathleen às pessoas que conhecia: Athol Cameron e Jock Burns, e os restantes. Depois, por inevitável progressão, tivemos de cumprimentar o inspector chefe Rawlings. Estava de excelente humor; e, quando viu Kathleen com o seu belo trajo, ficou ainda mais animado.

- Meu Deus! Começo sentir-me feliz por ter vindo. Apesar de todos os problemas que estou a enfrentar.

- Está com problemas, Inspector? - Kathleen era a própria inocência, de olhos muito abertos.

- Digamos, Doutora, que tenho o nariz encostado à parede com tal força que começa a doer, e estou a pensar em voltar para casa. Agora, depois de ter falado consigo, começo a mudar de ideias.

- Estou noiva, Inspector. Estou prometida a um dos seus suspeitos.

- Aeste tipo! Valha-me Deus! Bom, vou ter de me concentrar em Miss O'Donnell, embora receie não gozar de grande popularidade junto dela.

- Porquê? - Foi a minha vez de perguntar. - Já a viu?

- Não me limitei a vê-la, meu caro amigo. Quase a fiz voltar para trás no aeroporto, como uma estrangeira indesejável. Depois pensei melhor, porque ainda não tinha tido oportunidade para conversar com ela, e pensei que talvez ela pudesse dar-me uma ou duas sugestões para apostar nos cavalos. Só consegui ficar com a pulga atrás da orelha e ouvir algumas palavras que nunca imaginei que pudessem sair daqueles lábios de rubi. Espero que esteja mais branda quando chegar... A festa parece boa.

O rabequista, o gaiteiro e o homem do acordeão entraram, fizeram uma vénia, pousaram os instrumentos e pediram que os conduzissem até às bebidas, por causa do frio que fazia lá fora e do calor que era necessário para se tocar música decente. Depois Maeve O'Donnell entrou, com um ar de virgem mártir, beijou Ruarri, fez um aceno para os restantes e presenteou o inspector com um embrulho selado.

- É um presente da Irlanda, Inspector, e desafio-o a abri-lo sem um balde de água à mão.

Ele era um pássaro vivido e conhecia à légua quando se tratava de uma piada. Abriu o embrulho, procurou entre camadas de serradura e extraiu uma pequena garrafa cheia de um líquido transparente. Abriu-a, cheirou-a, provou-a e abanou a cabeça.

- Que é?

- Agua benta, Inspector. Usamo-la para baptizar os pagãos, para purificação das mães depois do parto e para exorcizar o mal. Pensei que lhe pudesse ser útil.

Isto valeu-lhe uma gargalhada, e o inspector recebeu um beijo por a ter deixado entrar no país, o que era um duvidoso privilégio, mas apreciado desta vez.

Depois, com uma habilidade que me deixou sem fôlego, separou-me de Kathleen, colocou o inspector no meu lugar e levou-me para longe dos ouvidos de ambos.

- E agora diz-me, seannachie. Que diabo vem a ser isto? Ruarri perdeu o juízo?

- Começo a pensar que sim, meu amor.

- Que é que ele está a tentar provar!

- Chama a isto a sua declaração. Está a dizer que não é culpado perante Deus ou os homens.

- Não é culpado, uma gaita.

- Achas que eu ia brincar, Maeve, meu amor? Com o inspector e o Duggie Donald e todo o seu bando? Quem sabe o que se dirá quando todos estiverem com os copos?

- E tu, seannachie? Como vão as tuas coisas?

- Vamos casar-nos logo que o Morrison saia do hospital.

- A que se deve isso?

- Depois conto-te. Mas se Ruarri apanhar com uma empada na cara esta noite, já sabes quem a atirou.

- Estás realmente assim tão furioso? A sério, seannachie?

- Tenho sede de sangue, Maeve O'Donnell.

- Sangue de quem? - perguntou Ruarri, atrás de nós.

- Do teu, Irmão Lobo.

- Vou engarrafar algum e dar-to, seannachie. - Afastou a ideia com um encolher de ombros e um sorriso. - Serve-te de comida.

Maeve ficou a vê-lo afastar-se no seu passo arrogante e emitiu um longo assobio.

- Valha-nos S. Patrick! Acho que estavam ambos a falar a sério, desta vez. Se chegarem a vias de facto, seannachie, toma cuidado! Ele é desleal a lutar... Vamos comer. Estou a morrer de fome.

Na multidão em volta da comida fomos separados e, quando consegui ter um prato na mão, encontrei-me de novo ombro a ombro com Rawlings. Kathleen estava no outro extremo, a conversar com o Papá Burns, que a manteria ocupada por algum tempo.

Rawlings disse:

- Por que não vamos sentar-nos no bar? Detesto comer de pé, a tentar equilibrar a comida. Faz-me sentir como uma foca treinada.

- Está a divertir-se, Inspector?

- Mais do que esperava. E estou a aprender qualquer coisa também.

- O quê?

- Toda a gente sabe o que eu quero. Ninguém vai dizer-me uma palavra para me animar. Vale mais fazer as malas e voltar para casa.

- Aqui enfrenta as tribos, Inspector.

- Não oficialmente, gosto disso.

- Também não oficialmente, Inspector, que pensa do nosso anfitrião?

- Gosto dele, muito mesmo. Imagino que seria um excelente companheiro.

- Fugiu à pergunta que eu lhe fiz, Inspector.

- É verdade. É um mau hábito. Este trabalho torna-nos realmente impróprios para uma convivência social. Que é que eu penso dele... É um homem que anda a perseguir qualquer coisa que na verdade não quer. Quando a conseguir, vai destruí-la.

- Porquê?

- Não o conheço suficientemente bem para responder a isso. Mas sei que tenho razão. A festa desta noite...

- Ceilidh, Inspector. Está no reino do Gael!

- Chamem-lhe o que quiserem, é tudo a mesma coisa: um acto de desprezo. Matheson sabe que está a salvo. Eu sei. O senhor também o sabe. Não existe no mundo uma maneira de podermos preencher a última hora na Helen II. Não há maneira de o conseguirmos ligar às armas, mas um dia ele há-de escorregar por esse lado. Mas o assassínio... estou convencido de que foi um assassínio, e só estou a dizer-lhe isto porque não há ninguém por perto que possa dizer que é difamação... ele está a acenar-nos a todos com ele, como a bandeira da revolução. Não concorda?

Era uma discussão tentadora e eu sabia que ele estava a tentar-me a tomar parte nela. Recusei, com pena.

- Desculpe, Inspector. Não entro. Construa as suas próprias teorias.

- Tenho uma que talvez lhe interesse.

- Sim?

- Penso que está a ocultar qualquer coisa porque lançaria mais suspeitas sobre o Matheson, mas não chegaria para o condenar.

- E por que faria eu isso?

- Porque o odeia... e, no entanto, é demasiado meticuloso ou demasiado escrupuloso para o apanhar através da lei.

- É muito astuto, Inspector.

- Não é verdade que sou? O problema é que tenho sempre as minhas melhores ideias quando não estou de serviço... Desculpe-me. Acho que vou experimentar um pouco daquela carne assada...

Eu já tinha bastante para digerir, por isso engoli outra bebida e corri a salvar Kathleen do Papá Burns. Antes de conseguir chegar junto dela, fui apanhado por Fergus William McCue, que cravou em mim os seus olhos ramelosos mas triunfantes e começou a falar-me do salmão de doze libras que tinha apanhado na minha ausência. Fergus sóbrio já era suficientemente eloquente, mas Fergus bêbado - e não estou a dizer alegre; estou a dizer a cair de bêbado, bêbado que nem um cacho - Fergus bêbado seria capaz de silenciar as trombetas do fim do mundo e chamar ele próprio os mortos das suas sepulturas. Finalmente os filhos vieram salvar-me, usando o expediente simples de levantar Fergus pelos cotovelos e levá-lo para o jardim para refrescar. Quando cheguei junto de Kathleen ela oscilava sob a força de mais um dos tufões de Papá Burns, pelo que fomos procurar um lugar mais tranquilo perto da porta, enquanto o rabequista afinava o seu instrumento e o gaiteiro e o homem do acordeão eram içados para cima da mesa e entronizados acima da multidão, como os bardos deveriam ser. Depois Ruarri dirigiu-se ao espaço aberto, bateu as palmas a pedir silêncio, indicou às pessoas lugares para se sentarem e começou a fazer um discurso em gaélico.

O efeito foi curiosamente comovente: um homem grande, de barba ruiva, vestindo o trajo das Highlands, de pé, no meio da sala, rodeado pela sua pequena tribo, a imagem de um chefe ou de um profeta na sua primeira acepção. Falou, bastante baixo a princípio, com muitos gestos e uma espécie de desafio lírico às emoções dos presentes. Depois animou-se e fê-los sorrir, primeiro, e depois rir. Em seguida, voltou-se para mim e para Rawlings e Maeve, todos em pontos diferentes da sala, e fez uma tradução sucinta:

- Para aqueles que não têm a sorte de conhecer o gaélico, eis o que eu disse. Este ceilidh foi feito em memória e em honra de Lachie McMutrie, companheiro de muitos dos que aqui se encontram, um tripulante meu, que se perdeu no mar. Estamos aqui para angariar dinheiro para a sua família, e está à porta um grande recipiente de vidro onde o deixarão quando saírem, se ainda vos restar algum depois dos jogos de prendas, em que espero que todos tomem parte. Seja qual for a quantia, eu duplico-a do meu bolso, pois homem algum que navegue com o Mactire terá de recear pela sua família... E agora vamos à música e a um pouco de dança, para desenferrujar.

Quando o rabequista, o gaiteiro e o homem do acordeão se lançaram numa alegre desarmonia, Ruarri foi buscar Maeve e deu início ao baile. Eu dancei com Kathleen e Rawlings foi buscar a outra mulher de kilt, o que fez seis pessoas na pista, cada uma delas com um crime na ideia, pois, se alguma vez uma mulher sentiu ciúmes de Ruarri, a loira estava a morrer deles... Os outros seguiram-nos, um pouco timidamente a princípio; mas dentro em breve tudo se tornou animado, e perigoso, também, porque alguns dos rapazes empinavam-se e davam coices como os garanhões no meio do trevo.

Dançámos aos pares; dançámos em quadrados; dançámos com os homens e as mulheres em círculos concêntricos, tentando agarrar parceiros cada vez que a música parava. E, quando Ruarri achou que já estávamos exaustos, houve uma pausa para as bebidas, enquanto o gaiteiro tocava umpibroch, só para provar que tinha no seu repertório temas de maior classe que a música de dança. Depois jogámos ao jogo das prendas, que, para o caso de o leitor já ter esquecido a sua infância neste mundo em rápida mudança, se joga assim:

Colocam-se os nomes dentro de um chapéu e as tarefas a desempenhar dentro de outro, e a prenda a pagar dentro de um terceiro. Tira-se um nome ao acaso. Tira-se uma tarefa ao acaso: cantar uma canção ou recitar um poema, ou contar uma história, ou fazer o pino, ou dançar uma jiga. Se não se quiser fazer isso, ou não se souber, paga-se a prenda que estiver indicada no cartão retirado do terceiro chapéu. É um jogo com infinitas variações e que pode ser facilmente desvirtuado, se a pessoa se decidir a isso e tiver um sentido de malícia ou de humor. Ruarri tinha ambos, além de uma considerável imaginação; mas, ao princípio, pelo menos, jogou apenas para se divertir. As prendas tinham todas de ser pagas em dinheiro à família de Lachie, e havia uma multa cómica adicional, só para fazer rir.

Donan, o rapaz de Barra, teve de apanhar uma maçã dentro de uma bacia com água, com as mãos atrás das costas, e transferi-la, sem lhe tocar com as mãos, para a boca da sua namorada, que tinha uns seios que faziam lembrar uma rola-papo-de-vento. Athol, o taciturno, teve de cantar dois versos de Scots wha hae, com o cachimbo na boca, o que quase lhe provocou uma apoplexia e o fez perder algum dinheiro. Calum teve de falar durante três minutos sobre um assunto à sua escolha sem falar de mulheres e sem dizer um palavrão. Perdeu logo nos primeiros quarenta segundos. Maeve teve de dançar uma jiga com o Papá Burns a tocar rabeca: e fizeram-no sob grandes aplausos, porque o Papá tocou num tom belo e doce, melhor do que o rabequista tinha tocado... Foi um divertimento simples e bom, com muitas bebidas para ajudar, e Ruarri, o mestre de cerimónias da aldeia, a encorajar os risos e a bater palmas e a decidir das multas como um banqueiro feliz.

Devíamos estar perto da meia-noite, e estávamos a chegar aos últimos nomes do chapéu, quando Ruarri fez o seu primeiro truque. Foi preparado para mim. Tinha de ser porque mais ninguém entre os presentes conhecia todas as conotações. Ruarri dirigiu-se à parede onde estavam penduradas as claymores, com o seu cinturão. Retirou as duas espadas e colocou-as, cruzadas, no meio da pista de dança. Depois ergueu as mãos a pedir silêncio e anunciou:

- Esta deve render bom dinheiro. Duas raparigas vão dançar a dança das espadas, em competição. A vencedora será escolhida por voto popular. Cada rapariga terá o seu homem para a apoiar. O da que perder paga dez libras para o fundo de Lachie. Agora vou fechar os olhos e meter a mão no chapéu e tirar um nome... Miss Flora Jamieson! Venha cá para a vermos...

Era a loura de Stornoway, com “amo-te-Ruarri” escrito na cara. E sem se importar de que todos o percebessem.

- Esta menina é uma minha amiga muito especial, e vale muito mais que a aposta que vamos fazer. Por isso, dança para mim, Flora querida. Dança o melhor que souberes.

Meteu de novo a mão no chapéu.

- E a sua adversária, minhas senhoras e meus senhores, é uma bela visitante destas Ilhas Abençoadas. A Drª Kathleen McNeil. E claro que, se ela não quiser dançar, está desculpada. Quer? É uma mulher corajosa, Doutora. Suponho que apoias esta senhora, seannachie? Se apoias, põe cinco na mesa e que ganhe a melhor.

Não houve tempo para dizermos coisa alguma, mas o toque da mão dela bastou para me dizer que ia levar aquilo até ao fim. Conduzi-a ao meio da sala, coloquei-a diante da sua adversária e fui ter com Ruarri à mesa. Havia dez anos de dife- rença entre ambas. Uma delas era uma égua de raça, esbelta e frágil; a outra era uma forte rapariga do campo, que aos quarenta seria gorda como um tonel, mas tinha boas pernas e um bom corpo, e, se Ruarri a tinha escolhido, por certo sabia que ela era capaz de ganhar. Quanto a Kathleen, não sabia, excepto que ela tinha de a enfrentar, e que eu estava a apoiá-la e que, antes que a noite terminasse, eu haveria de fazer Ruarri engolir aquele requintado insulto.

Ele estava a acabar o seu número.

- Haverá duas danças a solo para cada rapariga, e a terceiro será um dueto. Não quero intervalos na música, gaiteiro, nem aplausos antes de terminar a dança. Agora vamos atirar uma moeda ao ar. Quem perder, começa. Escolha, Drª McNeil.

Ela pediu caras e ganhou e eu soltei um suspiro de alívio. A mais jovem das duas poderia aquecer o gaiteiro e fazê-lo ganhar ritmo. A um sinal de Ruarri, o homem inchou as bochechas e principiou.

Se já conhece as danças das Highlands, nada mais posso dizer-lhe. Se não conhece, pouco posso dizer-lhe, porque descrever os passos nada significa; mas a sensação que se tem, o entusiasmo, as loucas visões que temos acordados enquanto o arco roça as cordas e o gaiteiro sopra, e elas se movem, sobre o calcanhar e a ponta do pé, em volta das lâminas das espadas - ah! isso já é outra coisa. Não há um só gaiteiro a tocar, mas centenas de outros, que escutamos, ao longe, nas charnecas; e são raparigas que estão a dançar, mas vemos homens de kilt e boina, com os cinturões e as espadas, avançando pelos caminhos de cabras para a reunião dos clãs e para uma última batalha perdida pela sua causa solitária.

Flora Jamieson parecia uma pega, e tudo levava a crer que o fosse; mas dançava como um anjo, sem uma falha. O seu grande corpo parecia leve como a lanugem dos cardos, os seus pés saltitavam como os de uma bailarina e tinha as costas direitas como uma vara sobre o arco do braço. O meu coração elevou-se com ela e depois desalentou-se por Kathleen, que teria de repetir a dança depois dela e dançar com ela no número final. Quando Flora terminou houve um aplauso espontâneo, e Kathleen avançou, para penetrar no ritmo da gaita de foles e da rabeca.

Surpreendeu-me a mudança que nela se operara. Tinha-a visto com diversas disposições, mas nunca com aquela. Subitamente mostrava-se orgulhosa e desdenhosa como Lucifer. Tinha a cabeça bem erguida, os olhos cheios de fogo e de desprezo. E sabia dançar... Deus fosse louvado! Ela seria capaz de dançar em qualquer terreiro das Highland, desde Inverness a Oban, e nunca deixaríamos de sentir orgulho nela-e cada rotação do seu tartan era um vai-te-lixar para o Sr. Ruarri, que não conseguia desprender os olhos dela. Quando as duas mulheres dançaram juntas a parte final, estavam ambas no máximo da sua forma e ninguém, no seu juízo perfeito, teria querido escolher entre elas. Fizemo-las sair da pista à força de palmas e de gritos e batimentos dos pés, e todos foram unânimes em declarar um empate.

Ruarri levantou as espadas e fê-las bater por cima da cabeça, a pedir silêncio.

- Então que é que se faz agora? Compete aos homens decidir o resultado. Nós somos os apoiantes e há dinheiro sobre a mesa. Que é que nós fazemos, seannachie? Dançamos? Competimos com cuspidelas? Deitamos uma moeda ao ar? Jogamos uma mão de póquer? Talvez saibas manejar a espada...

Atirou-me uma das claymores e eu apanhei-a, tal como os rapazes tinham apanhado a piada suja e começaram a rir-se.

- Aguentem aí! - Ruarri ria-se com eles. - Não foi isso que eu quis dizer. Sei que ele é um escritor e tudo o mais, mas, quanto ao resto, como é que eu podia saber? Que tal, seannachie, sabes manejar a tua espada?

Fez um passe simulado na minha direcção e eu esquivei-me, com uma estocada, instintivamente.

Ele recuou e ficou parado, a sorrir, triunfantemente.

- Och aye! Então é assim? Topas o jogo? Olha que elas não são de folha nem têm botões.

- Topo, Irmão Lobo. Diz qual é a parada.

- Cem libras para o fundo. Estás de acordo?

- Óptimo. Precisamos de um juiz.

- Posso ser eu - disse o inspector Rawlings, no meio do silêncio. - Detestaria que algum dos dois galos de combate ficasse ferido. Regras Olímpicas para sabre, e eu conheço-as, por isso fazem o que lhes disser. Certo?

- Certo, Inspector-disse Ruarri, e depois dirigiu-se à assistência. -Vamos a abrir espaço, está bem? Vou espevitar a lareira. Vão buscar uma bebida e instalem-se...

Nessa altura Maeve O'Donnell avançou e deu a todos uma oportunidade para se rirem.

- Eu anoto as apostas. Se alguém estiver interessado. Se me derem um lápis e um papel, ofereço dois para um contra o Mactire.

Na confusão que se seguiu, o inspector Rawlings fez-me uma pergunta em tom ameno:

- Que é isto, julgamento por combate?

- Oficialmente, Inspector, é um combate para obter dinheiro para fins de caridade.

- Espero que saiba esgrimir.

- Espero que o Matheson não saiba, senão estou tramado.

- Se houver um acidente, eu também estou - disse Rawlings com um sorriso. - Quando eu perder o emprego, acho melhor que façam um combate em meu benefício. Pelo menos temos uma médica na assistência.

A médica estava mais preocupada que ele, porque sabia um pouco mais que ele sobre tendões cortados e rachas no crânio e o que sucede quando uma lâmina de aço atravessa um feixe de músculos. Sendo mulher, estava satisfeita por eu ter desafiado Ruarri, mas irritada com a minha estupidez. Preferia ver-me humilhado e inteiro do que trinchado como um peru e coberto de sangue e honra. Tinha razão, evidentemente, e, enquanto esperava, ao lado dela, que abrissem espaço e Maeve registasse todas as apostas, compreendi que era mais que estúpido; era doido varrido.

Sei esgrimir. Aprendi quando tentava ser actor, para o que descobri não ter o mínimo talento. Todavia gostava de esgrimir e era bom nesse desporto, pelo que continuei durante longo tempo a praticá-lo com um notável húngaro das minhas relações, que tinha mais golpes no peito e mais mulheres para dormir sobre eles do que se imaginaria possível na sua idade. Mas devo dizer-lhe, desde já, que não se pode esgrimir com uma claymore. A palavra em si significa espada grande, e, nos velhos tempos, era isso que ela era, um enorme pedaço de mau aço, de lâmina dupla, para empunhar com as duas mãos, mais útil para abater árvores que homens. Nos tempos de Culloden foi um pouco aperfeiçoada, passando a ter um só fio-embora por vezes tivesse dois-e um grande punho em forma de cesto, que impedia todo o trabalho com os pulsos, se, efectivamente, os nossos pulsos tivessem força suficiente, porque continuava a ser uma arma para golpear que se manejava mais como uma machete que como um sabre de esgrima. Mas, evidentemente, se nos fizesse um corte ou nos perfurasse, ou nos acertasse numa omoplata, podia dar cabo da nossa beleza.

Que é que podia fazer, portanto? Tudo dependia de Ruarri saber ou não esgrimir. Se soubesse, podia ter vantagem sobre mim. Era mais novo, mais leve e estava em muito melhor forma que eu. Se tivéssemos os mesmos conhecimentos, ele teria de ganhar. Se ele não soubesse esgrimir, eu tinha hipótese, porque, mesmo com uma espada desajeitada, quem conhece os movimentos está em vantagem - embora esteja sempre vulnerável a um golpe de sorte que o possa incapacitar. Além disso, como Maeve tinha dito e eu bem sabia, Ruarri era um lutador desleal, e há mais truques que os da esgrima para quem tem uma lâmina de aço na mão. O inspector Rawlings poderia arbitrar segundo as regras Olímpicas, mas Ruarri lutaria segundo as suas...

Ele não sabia esgrimir. Avançou desajeitadamente no en garde, apresentando-me toda a parte da frente do corpo descoberta. Parece ridículo, mas aquilo assustou-me. Ele não conhecia as regras e não se preocupava com isso. Queria sangue. Não lhe importava qual a veia de que o fizesse correr. Eu teria de atacar porque as minhas defesas baseavam-se todas nas posições altas e baixas do livro de regras. Para Ruarri era indiferente atingir-me na jugular ou no tendão de Aquiles, desde que me derrubasse. Quando Rawlings deu o sinal para começarmos, avancei rapidamente, atacando por cima, em pronação, em direcção à sua face direita, para o assustar. Não aparou os golpes. Esquivou-se como um pugilista e depois saltou para o lado, afastando-se da minha linha de ataque e avançou, desferindo golpes, pela minha esquerda. Por momentos, pareceu-me mais que estávamos a lutar com varapaus ou kendo que a jogar à espada, até que consegui metê-lo na linha e atacar de novo, sempre para cima, porque não há coisa mais desconcertante que uma lâmina de aço a passar junto da nossa face nua.

Era como tentar cortar uma bola aos saltos. Já estava longe de novo, saltando e voltando-se, como um boneco numa caixa de surpresas, e depois aproximando-se e desferindo golpes como se tivesse um podão nas mãos. Então percebi o que ele estava a tentar fazer. Estava a trabalhar-me, como um pugi-lista, tentando cansar-me com a sua técnica de vale-tudo, até eu não conseguir voltar-me com rapidez suficiente e ele conseguir apanhar-me com um golpe final. Como toda a ortodoxia, a esgrima é limitada pelos seus dogmas e os seus rituais. É uma bela arte, mas não é a guerra, e Ruarri estava a fazer guerra, não a fazer amor.

Eu precisava de mais que as seis guardas e paradas da escola de sabre para salvar a minha pele. Mudei de táctica. Comecei a atacar em linha baixa, entre o ventre e o esterno, tentando-o a atingir-me a cabeça. Não se deixou tentar. Saltou para trás diante da minha estocada e ficou fora do meu alcance; depois, quando me endireitei, fez o velho truque do atirador de facas: deixou-se cair sobre um joelho e dirigiu a arma às minhas costelas. Falhou por pouco; mas falhou apenas por uma fracção, e, porque esteve imobilizado durante tempo suficiente, avancei numa arriscada flèche e fiz-lhe um golpe de dois centímetros na face, com a lâmina da espada. Rawlings interpôs-se logo entre ambos e a luta, se se pode chamar-lhe luta, terminou. Apertámos as mãos e fizemos uma cerimónia convencional de cumprimentos um ao outro, mas os aplausos foram escassos e constrangidos. Rawlings tirou-nos as espadas das mãos e atirou-as para cima da mesa. Kathleen aproximou-se de Ruarri e examinou o golpe da sua face, e levou-o para a casa de banho para lavar e pensar a ferida, até ser cosida no dia seguinte. Maeve veio ter comigo, meteu-me uma bebida na mão e disse:

- Está com ar de quem precisa disto. - Depois afastou-se, sem um sorriso e sem um cumprimento. Eu avisei, não avisei? Não se tratou de um recontro épico. Nada mais que dois adultos armados em parvos, empunhando armas letais; e, bêbados ou sóbrios, os homens de Lewis tinham senso suficiente para se aperceber disso.

Mas a noite ainda não tinha terminado. Ruarri voltou, com um sorriso um pouco unilateral, a acenar com um livro de cheques. Os lucros tinham de ser contados e a sua contribuição adicionada, e todo o total deveria ser entregue à mãe de Lachie pelas mãos de Athol Cameron. Maeve teria de pagar as apostas. Houve tempo para mais uma bebida e um pouco de música alegre, para nos mandar para casa a dançar. Enquanto se faziam as contas, Kathleen chamou-me à parte e disse-me que Ruarri queria que eu ficasse para conversar com ele, depois de todos se terem ido embora. Não via motivo para isso. Ele já me tinha feito passar por bastante, e a Kathleen também. Não me apeteciam diálogos de bêbados pela madrugada fora; queria ir para casa e meter-me na cama. O Mactire já estava fora do meu sistema, naquele momento. Quanto mais depressa saísse da minha vida, melhor. Fiquei surpreendido e irritado quando Kathleen insistiu:

- Quero que fiques, querido. Quero que o faças por mim, se não o fizeres pelo Ruarri. Ele sabe que fez uma triste figura. Sente-se profundamente humilhado. Pediu-me desculpa pelo que sucedeu depois do jantar comigo. Penso que quer pedir-te desculpa. Podes dar-te ao luxo de ser magnânimo. Se estás preocupado por minha causa, a Maeve ou o inspector poderão levar-me de carro até à estalagem. Fico lá à tua espera.

Ainda argumentei; mas, evidentemente, ela convenceu-me. Se ela não o tivesse conseguido, teria havido qualquer outra coisa para me reter, porque isso também estava escrito na pele da minha mão, e um homem, como um lobo, tem de viver e morrer na sua própria pele.

 

Sentámo-nos, como tantas vezes tínhamos feito antes, junto do bar, com os escombros do ceilidh espalhados à nossa volta. Tínhamos bebidas entre nós, mas permaneciam intactas, porque o tempo para beber, como o tempo para brincar, tinha passado, e agora era, quase, tempo para partir. Ruarri mostrou-se calmo e directo. A única vez que sorriu foi no princípio.

- Finalmente desafiaste-me, seannachie.

- Foste tu que o quiseste.

- É verdade. Andava a pedi-lo desde que nos conhecemos. Esta noite quero dizer-te porquê.

- Escuta, é tarde e...

- Seannachie. Faz-me este favor, peço-te. É o último, porque tu vais-te embora e eu também. Não digas uma palavra. Ouve-me só, até ao fim. Pode ser?

- Como quiseres.

- Obrigado.

Então começou a falar, hesitante, a princípio, depois num fluxo contínuo de palavras simples.

- Conhecemo-nos num estranho dia, seannachie. Tu vinhas a fugir do que havia no teu passado. Eu atravessava o Minch, só com uma mão, tentando encontrar um sentido naquilo que estava a fazer da minha vida. Oh, eu sei! Mostrei-me sempre muito seguro junto de ti. Via todas as recompensas penduradas como enfeites numa árvore de Natal. Bastava-me estender a mão e apanhá-las. Mas, por baixo, e durante longo tempo e em relação a uma porção de coisas, não me sentia nada seguro.

“Ora, quem vive uma vida como a minha, e todas as outras vidas que antes vivi, tem de estar seguro. Se não se estiver seguro, morre-se ou apodrece-se numa prisão miserável de um país perdido onde não existe habeas corpus e o cônsul inglês tem a memória curta e não dispõe de fundos para gastar com patifes. É preciso estar-se seguro, porque só se dispõe de meio segundo para puxar um gatilho ou desviar-se de um golpe de judo, ou decidir se se deve dizer uma mentira ou arriscar a verdade, com um filho da mãe que, de qualquer forma, não vai acreditar.

“Naquele dia, seannachie, eu tinha perdido a segurança. Tinha dinheiro bastante... e, mesmo de uma forma legal, iria ter mais ainda. Tinha bastante conforto e bastantes amigos, e, embora sejam pessoas simples, são bons amigos, como viste esta noite. Tinha bastantes mulheres, também, embora, desde o dia em que Maeve correu comigo, ficasse sempre na dúvida de ter ou não os miolos ou a educação para reter o tipo de mulher de que gostava. Tinha umas coisas em marcha, à margem da lei, como as armas, e medicamentos por grosso, que podem comprar-se por baixo preço e vender por atacado, com bom lucro, se se conhecer o mercado. Isso não me preocupava muito. Gostava da excitação e gostava ainda mais do lucro. Mas começava a perguntar a mim mesmo quanto tempo mais quereria andar a brincar com a lei... não por uma questão de moral, mas por uma questão de conforto, de poder dormir de noite e entrar num bar sem os Duggie Donalds deste mundo me virem bater no ombro, para terem uma conversinha comigo.

“Então apareceste tu... Não quero que leves a mal, seannachie, mas gostaria de falar um pouco a teu respeito. Tu não falas muito a teu respeito, excepto nos teus livros, e já li alguns deles, embora nunca to tenho dito. Mas tu tens alguns talentos perigosos. Por exemplo, estás sempre cheio de curiosidade e a fazer perguntas, de modo que as pessoas se sentem lisonjeadas por falar contigo. Pensam... e não gostamos todos de pensar isso?... que tu estás interessado nelas. E estás, em parte. Mas, no resto do tempo, estás interessado no que elas têm para te dizer, porque é farinha para o moinho da escrita e, por vezes, é uma coisa clínica, como um químico a olhar para um tubo de ensaio. Não estou a censurar-te. Estou só a dizer-te o que vi e senti. Tu tens boas maneiras, seannachie, que em parte são um dom, e em parte provêm da prática. Mas quando estás a servir-te da prática e não do coração, nota-se, e isso magoa.

“Além disso, seannachie, és culto e dispões de uma mente prática, zás-zás-zás, como a de um advogado, mas isso é difícil de aceitar pelas pessoas vulgares, que vivem em parte pela sua cabeça e em parte pelo que sentem com a ponta dos dedos. Queres usar da razão com toda a gente, e a única excepção que fazes é com as pessoas de quem estás muito próximo, essas, ama-las e protege-las, mesmo que sejam a pior escumalha deste mundo. Por isso és uma pessoa com quem é difícil viver, meu rapaz, de quem é fácil sentir inveja, e uma tremenda obstrução para o horizonte de uma pessoa como eu, porque tens luz própria e não nos deixas chegar à nossa. Uma outra coisa, estás sempre vivo e a mexer, por isso, tudo o que tu sentes se transmite: receios, dúvidas, iras, amores, e ódios também. Não queres, ou não podes, deixar que te ignorem. Ninguém pode flutuar à superfície contigo, porque também não te sentes bem aí...

“Por isso, lá estávamos tu e eu, naquela manhã em Uig, cada um de nós com histórias diferentes a incomodar-nos, muito semelhantes e, no entanto, muito dissemelhantes, e navegámos juntos até Stornoway. Não sei se alguma vez compreendeste o verdadeiro significado daquele dia... o significado para mim. Estavas a entrar em terreno alheio. Ninguém deveria ter tudo o que tu tens e saber governar um barco daquela maneira. Ninguém deveria ter uma mente transparente, e enganar a lei, como tu estavas disposto a fazer por mim.

“Depois, quando vieste à quinta, vi que, à tua maneira, tu também sentias inveja de mim. Viste-me conduzir o tractor e sentiste vergonha das tuas mãos macias e do facto de seres um vagabundo, sem terra debaixo dos pés. Vi-te quando olhaste para a minha casa, a maneira como apalpaste as vigas, e soubeste como as pedras eram dispostas e o trabalho de marcenaria feito, embora nunca o tivesses feito tu próprio... ou talvez tivesses, mas deixaste de o fazer há muito tempo. Tinhas lutado, também... nunca me esquecerei daquela noite em que estavas preparado para me atingir com uma garrafa partida. Mas, a certa altura, ao longo do caminho, tinhas desistido de o fazer. E perguntei a mim mesmo porquê. E pensei também em ti e em Kathleen, porque, quando a trouxeste a minha casa, eu não sabia o que querias dela, embora soubesse que tinhas tomates, seannachie, e pensei que sabias bem para que serviam...

“Por isso, comecei a fazer um jogo contigo. Pelo menos, disse a mim mesmo que era um jogo, mas não era. Procurava-me a mim mesmo e julguei que poderia encontrar-me através de ti. Tu estragaste o jogo, seannachie, quando me trouxeste as novas de Morrison. Nessa altura tive de te levar a sério. Tinhas deixado de estar fora da minha vida. Eras como uma carraça por debaixo da minha pele. Não podia arrancar-te nem rir-me de ti para te afastar. Estavas ali, a beber o meu sangue e a fazer-me comichão, noite e dia.

“Mas eu tinha de prosseguir o jogo. Eu era o patife, tu eras o cavalheiro simpático e culto, com um nome bem conhecido e boas maneiras à mesa, e uma mente de advogado. Não podias ser tão bom como parecias, nem eu tão mau como era pintado. Levei-te a pescar ilegalmente. Mostraste que eras um patife mais esperto que eu. Fomos caçar veados, e tu mataste um na perfeição.

“Fiz-me à Kathleen e tu já te tinhas metido na cama com ela. A bordo da Helen, falaste-me do Lachie, o que significava que eras tão capaz de pensar fora da lei como dentro dela. Quanto mais te observava, mais te achava parecido comigo.

“Por isso te desafiei esta noite. Não podias ver-te a ti próprio, seannachie. Pensaste que eu estava a jogar duro... mas foste tu que fizeste sangue e que tinhas a morte nos olhos. Sei que somos iguais, e penso que também o sabes.

“E, no entanto, há uma grande diferença. De uma forma curiosa, acho que te curei do que te atormentava. Mas tu não me curaste, seannachie. Deixaste-me mais fraco e mais desnorteado que antes. Não estou a culpar-te. Não penses isso. Estou simplesmente a constatar um facto. O ceilidh foi a minha declaração pública. Esta é a minha declaração particular, perante ti.

“Fizeste-me pôr em questão tudo o que fazia, dizia ou acreditava. Isso não é mau, mas é preciso preparar o sujeito para a experiência, e tu não fizeste isso. É tão difícil ver-te como és, como deve ser ver Deus pela primeira vez, quando nunca se acreditou que Ele existe. Tu nunca compreendeste isso. Nunca me deixaste ter segredos meus; mas tu tens de os ter,de vez em quando, senão não suportas viver contigo próprio. Pensei que estava a fazer uma boa coisa, quando fui visitar o Morrison. Tu viste essa visita, e disseste-mo, como uma prova de egoísmo total. Bom, em parte foi, mas não a melhor parte.

“Achaste que eu era um pulha porque te menti acerca do meu jantar com Kathleen. A mentira era para a proteger, porque eu poderia tê-la tido, seannachie, e não a tive. E o insulto que lhe fiz foi a única maneira de a mandar para casa com o seu orgulho intacto.

“Quando me falaste de Lachie, a bordo da Helen, fiquei furioso. Disse coisas irreflectidas, mas só tu viste nelas assassínio, seannachie. Eu sei que ele jazia no fundo da minha mente. Mas tu puxaste por ele e mostraste-mo... fizeste-me olhar para ele, fizeste-me pesar as hipóteses e as consequências em que eu não tinha pensado antes; talvez nem tivesse pensado nisso, se me tivesses deixado acalmar.

“Mas assim, matei-o, de facto... Dei-lhe uma cacetada quando ele estava ao leme, pouco depois de começar o seu quarto. Retirei-o da casa do leme, levei-o para o nevoeiro e atirei-o pela borda fora...

“Não te mostres tão chocado, seannachie. Sempre soubeste que isso tinha acontecido. E nada podes fazer a esse respeito, porque todas as disposições estão tomadas... Não, não vou entregar-me, porque acabaria por enlouquecer, ao fim de uma semana na prisão. Vou-me embora, como já te disse. Como, dir-te-ei daqui a pouco. Gostava que compreendesses porquê, antes de mais... A morte de Lachie foi por causa de armas. Ora, os meus rapazes estão metidos nisso e Maeve O'Donnell também. Os rapazes seguiram-me. Tenho de os proteger. E o meu acordo com Maeve era que a manteria segura, a ela e à sua organização. Quero honrar ambas as amizades.

“Depois, há o Morrison. Ele é meu pai, podes achar estranho, mas comecei a pensar nele como pai. Está velho e doente, e sei que muita gente lhe fala de mim, e não quero que ele sinta vergonha. Quando eu partir, terás de lho dizer, e sei que lho dirás da melhor forma, e apenas lhe dirás as coisas piores que ele possa a vir a saber de qualquer forma.

“Eu sei o que estás a pensar, seannachie. Não consegues compreender por que motivo, sendo eu o canalha que conheces, não fico e me safo de tudo, porque posso fazê-lo. Mesmo aquilo que estou a dizer-te agora, posso negá-lo em seguida.

“Voltamos a ti e a mim, e à diferença entre nós. Sei agora qual é a diferença. Tu és um homem reversível, eu não. Tu estás aberto à mudança. Estás aberto a crer, a descrer, a perdoar, a recomeçar. És um daqueles que pode ser... como lhe chamam?... convertido. Podes acreditar num amanhã melhor, até em ti próprio melhor. Eu não. Não posso. E digo-te uma coisa, seannachie, tu e os que são como tu devem acautelar-se, porque há um imenso mundo negro cheio de pessoas como eu, e ainda nem viram metade dele.

“Estou programado, seannachie, como uma daquelas grandes máquinas ronronantes que em breve serão utilizadas para governar o mundo, quando os homens desistirem. O meu pequeno banco de memória, seannachie, está carregado com tudo o que fiz na minha vida. E não posso continuar a viver comigo mesmo, porque sei que um dia outra pessoa como tu vai chegar, ingénua e respeitável, e carregar no botão de arranque que me fará vomitar outra reacção mais sangrenta da minha fita.

“Lembras-te de eu te dizer ao jantar que gostaria de me converter à religião romana, ou à grega, ou a qualquer outra religião antiga e tolerante? Nunca te disse porquê. Porque elas ainda erguem uma mão e nos abençoam e nos limpam em nome de Deus e nos deixam rastejar para um deserto ou um mosteiro, até renascermos e estarmos de novo aptos às relações humanas. Evidentemente, perdi o autocarro, porque fui orgulhoso e estúpido de mais para levantar a mão e gritar para que ele parasse. Foi aí que eu e tu falhámos juntos. Não podíamos perdoar um ao outro sermos o que somos. É uma vergonha mas é assim mesmo.

“E agora falemos da minha saída, seannachie. Vai ser limpa. Toda a papelada está em ordem. O testamento está feito.

Os legados são tão justos quanto me foi possível fazê-los. Não há confissão, porque ela iria implicar os meus amigos. A lei terá de se contentar com o que leva... um caso encerrado e nada mais. Quando saíres daqui, vou deitar fogo a este lugar. E depois vou tomar a cápsula com que sempre andei durante todos estes anos... o que matará em quatro segundos, no máximo.

“Não faças esse ar chocado, seannachie. Já ouviste isto, talvez já o tenhas descrito. Vou exercer a última liberdade de um homem, seannachie, a de arrancar o seu próprio tampão, antes que o computador se apodere dele. O incêndio? Sempre esteve no meu espírito, seannachie. Era desse modo que os antigos Vikings procediam, e é limpo e definitivo. E nenhum cirurgião da polícia virá investigar as minhas entranhas, para saber de que morri... uma obscenidade que sempre me revoltou. Quando fores a caminho da casa, olha para trás, apenas uma vez, e verás um clarão no céu. Serei eu... a caminho do Valhalla, onde quer que ele fique!

“É curioso; nunca me preocupei muito com o que viria depois. Vi tantos tormentos e tanto terror deste lado do tempo, que nunca pensei na necessidade de um inferno do outro. Viver já é castigo suficiente para aquilo que se faz. Mas sei qual o tipo de céu de que gostaria. Apenas ver tudo simples, apenas uma vez, calma e completamente, e poder dizer que era bom. Porque há algo bom, seannachie, mas é preciso ter o dom de o saber apreciar. Maeve tem esse dom, seannachie, embora seja uma louca que se dedicou a fazer recuar os ponteiros do relógio. A tua Kathleen está a consegui-lo... talvez seja o que o amor faz pelas pessoas. Penso que também estás a tê-lo, ou talvez o tivesses perdido e o estejas a recuperar.

“Eu? Falta-me esse dom. Ou talvez o tenha deitado fora nos tempos em que era jovem e amargo. Houve momentos, contigo, em que pensei que o tinha recuperado, mas era apenas ouro das fadas, que desaparece quando o agarramos... O teu sextante era real, no entanto. Houve amor e gentileza nele. E tu és o último aqui, a despedir-se de mim. Também não estás a discutir comigo. Não que servisse de alguma coisa, mas demonstra-me que compreendeste.

“É melhor ires-te embora, agora. Tenho coisas a fazer, e preciso de estar só para fazer a última. Nada de lágrimas, seannachie. Não seria justo. Já não tenho lágrimas para partilhar contigo. Apenas um favor... quando te fores embora, não me apertes a mão. Não digas nada. Faz apenas o que vi fazer nas terras soalheiras, e que me fez rir a princípio, mas depois invejei. Abraça-me. Abraça-me por um momento e encosta a tua cara à minha. Depois põe-te a mexer daqui para fora! É uma coisa estúpida a que te peço, mas nunca tive um pai que me desse um beijo de boas noites.

Quando o deixei, ele fechou a porta e deu a volta à chave. O céu já estava limpo de nuvens e a lua ia alta e fria, entre as estrelas pálidas e distantes. A estrada encontrava-se deserta. Os montes estavam negros, e Rawlings dormitava, no assento da frente do meu carro. Exibiu aquele seu sorrisinho inexpressivo e disse-me:

- Pensei que gostaria de ter companhia, no caminho para casa. Teve uma noite dura.

- Não vou ainda para casa.

- Está à espera de alguma coisa?

- Não. Há uma visita que quero fazer. Se quiser, pode vir.

- Acho que está a falar a sério.

- Isso mesmo.

- Já são amigos de novo?

- Tanto quanto sempre seremos.

- Onde vai levar-me?

- Muito perto e muito longe, Inspector... Confie em mim.

Levei-o até ao lugar das Pedras e caminhei ao lado dele sobre a turfa húmida, descendo entre as colunas até ao lugar de sepultamento. Contei-lhe a história do local e as lendas do Esplendoroso, com as carriças a voar em volta da sua cabeça e o cuco que anunciava a sua chegada. Disse-lhe como era bom fazer amor e prometer casamento naquele sítio, e como ainda havia famílias na ilha que pertenciam às Pedras, de uma maneira que não queriam explicar. Foi muito paciente comigo e muito educado, o que não é um pequeno elogio, porque eu estava muito verboso e com tendência para dissertar. Deixou-me falar até já não ter mais que dizer, e depois perguntou:

- Por que me diz tudo isso? E porquê aqui?

- Porque é um sítio a que não pertencemos. É um grande monumento numa ilha minúscula. Toda a sua história começa a partir daqui, e todas as pessoas, quer o saibam quer não, são tocadas pela história. Não podem escapar-lhe. Continuam a viver as consequências da Idade do Gelo, quando apareceram os pântanos de turfa... São tão poucos agora, que tudo o que lhes sucede é grande e discutido e pleno de consequências. Cada morte é uma perda maior do que nós possamos imaginar. Cada espoliação é uma tragédia e cada partida é um par de mãos perdido e um coração a menos para amar este lugar inóspito... Quer fazer-me mais algumas perguntas, porque é esse o seu ofício. Aqui, neste local, tenho todas as respostas. Amanhã, por causa da magia e do ar da noite, posso tê-las esquecido todas. Quero fazer um acordo consigo, Inspector. .. Quero fazê-lo, não por mim, mas para poupar desgostos àqueles que já têm bastantes e amanhã terão mais.

- Nunca faço acordos, meu amigo. Não sou livre de os fazer. Por vezes, no entanto, tomo decisões de minha própria responsabilidade, pois para isso me pagam. Além disso, tenho uma consciência, e ficar-lhe-ia grato se acreditasse nisso.

Por isso, porque chega uma altura em que é preciso acreditar para não enlouquecer no meio de horrores inacreditáveis, fi-lo voltar-se, não para oriente, de onde viria o Esplendoroso, se alguma vez viesse, mas para ocidente, onde poderia ver, sobre o monte, as chamas que lambiam a pira funerária de Ruarri.

Ficou parado, a olhar, durante longo tempo, em silêncio. Depois disse:

- Evidentemente, ele estava vivo quando o deixou.

- Estava.

- Encontrava-se bem e com boa disposição?

- Sim. Estava fatigado, no entanto. Disse-me que estava pronto para um longo repouso.

- Suponho que o lugar ainda estava numa grande desarrumação, cheio de copos, pontas de cigarros e tudo isso.

- Estava uma desgraça. Foi uma festa muito animada, de uma maneira ou de outra.

- Um gesto generoso, no entanto. E rendeu bastante dinheiro para uma boa causa... Ele não lhe deu cartas, disposições, nada desse género?

- Não.

- Mensagens a entregar?

- Nenhuma. Tenho, é claro, que dar a notícia ao pai... e tenho que falar com Maeve O'Donnell. Ela gostava muito dele.

- Ela está na estalagem, neste momento, com a Drª McNeil. Poderia dar-lhe uma mensagem da minha parte?

- Com certeza.

- Diga-lhe que amanhã estarei ocupado e gostaria que ela tomasse o primeiro avião... e deixasse o Reino Unido no mesmo dia.

- O senhor é um cavalheiro, Inspector.

- Sou um polícia. Tenho um caso encerrado... E, como disse, amanhã haverá bastante desgosto. Pode manter-se nesta estrada para Stornoway?

- Podemos. Temos que dar uma grande volta, simplesmente.

- Não gosto de incêndios. Fazem-me medo. Parece que há além um muito grande. Peço a Deus que não tenha de o ir ver.

Nunca tinha ouvido um polícia fazer uma prece. O que demonstra que um homem de letras pode ser muito ignorante e quão pouco se pode confiar nele, na sua ignorância.

Eram quatro horas da madrugada quando regressei à estalagem e fui encontrar Maeve e Kathleen ainda acordadas, junto da lareira. Tiveram de escutar a história e eu tive de a contar toda - porque o seu peso e o peso dos remorsos que Ruarri havia colocado sobre mim se tornaram, subitamente, impossíveis de suportar. Havia um horror opressivo na ideia de eu ter desencadeado um homem programado para actos de assassínio e autodestruição. E, todavia, não conseguia contestar a verdade do que Ruarri me tinha dito. Maeve conseguiu e fê-lo.

- ... Para o diabo o "de mortuis", e toda essa conversa! Ele era um homem com uma falha qualquer. Ele sabia disso, detestava-o, mas não queria fazer nada a esse respeito. Convinha-lhe. Tinha sempre uma desculpa para tudo o que decidisse fazer. Sinto muito, seannachie, estás cansado e tiveste uma noite terrível, mas tens de pensar correctamente. A saída de Ruarri não foi limpa. A falha continuou a existir. Tu venceste-o em todos os jogos. Ele tinha de convencer-te de que tinha ganho o último de todos. Ele ficaria com a glória e tu com as culpas, e nunca te esquecerias dele por causa disso... o que não é propriamente o tipo de imortalidade que um herói de meia-tigela desejaria. Mas fez uma coisa boa, no entanto. Curou-me... Desejo-lhe sorte para onde quer que ele tenha ido, e, valha-nos Deus, bem precisa dela! Mas finalmente saiu da minha vida. Obrigada pelo resto, seannachie. De manhã, parto. Boa noite, meus filhos. Portem-se bem.

Era um esforço corajoso e tirei-lhe o chapéu por isso; mas ainda não era a verdade completa, e eu sabia-o, e Kathleen também. Durante o que restou da noite - e já não era muito, porque eu teria de enfrentar Morrison ao amanhecer - Kathleen mostrou-se firme e terna, e não me deixou descutir.

- Ruarri amava-te como a um irmão. E tu também gostavas dele. E a prova é o que estás a fazer neste momento, a limpar a porcaria que ele deixou. É por essa bondade que serás recordado no final. Quanto ao resto? Terás de te perdoar a ti próprio, como me ensinaste a fazer por uma coisa muito pior...

- E que é que eu faço quanto ao Morrison?

- Diz-lhe a verdade.

- Ele vai aguentar?

- Há uma coisa que aprendi contigo, mo gradh, e agora sou eu que ta ensino. Só as mentiras nos matam, e apenas a verdade nos mantém vivos. Vem, meu querido, fecha os olhos e repousa sobre o meu peito, e eu acordo-te quando chegar a hora...

Houve uma altura, e já falei disso, em que condenei Morrison pela sua fraqueza, e me irritei por causa do fardo que ele havia colocado sobre os meus ombros. É por esse motivo que agora, antes de terminar esta crónica, o devo mostrar com respeito. Estava ainda na cama quando fui ter com ele, e não precisou de ser vidente para ler as más notícias no meu rosto. Pediu-me que lhe entregasse a Bíblia e, enquanto eu falava, ficou recostado, com os olhos fechados, segurando-a entre as mãos. Ignoro qual a força que dela extraiu. Só sei que não chorou nem soltou exclamações, escutando-me em silêncio, até eu terminar o meu longo e triste relato. Assim, imaginava eu, um nobre patriota ou um mártir teria escutado a sua sentença de morte da boca de um mensageiro contratado. Quando finalmente falou, as suas palavras foram para mim:

- Não te culpo por coisa alguma, meu rapaz. Agradeço-te pelas coisas melhores, eu estou vivo e Ruarri está morto, e essa é a ironia de Deus de que falámos, o tipo de sombria disposição que temos de aceitar para não cair no desespero. Talvez seja essa a maneira por que sou chamado a pagar para que Ruarri seja julgado com indulgência. Amanhã tenho alta, e haverá um serviço por ele na igreja. Mas é preciso dizer agora uma oração por ele. Gostaria que ma lesses.

A sua mão era firme quando abriu a Bíblia e a sua voz firme ao recitar o salmo comigo.

“Tende misericórdia de mim, Senhor, segundo a vossa grande misericórdia.

E segundo a multidão das vossas ternas misericórdias, apagai a minha iniquidade.

Lavai-me ainda mais da minha iniquidade e purificai-me do meu pecado...

Não me afasteis da vossa face: e não afasteis de mim o espírito santo.

Restituí-me a alegria da vossa salvação: e fortalecei-me com um espírito perfeito...”

Quando terminei, pousou a mão sobre a minha cabeça e disse suavemente:

- Agora vai para casa, para junto da tua mulher. Ganhaste algum amor para ti próprio.

Mas ela não estava lá; estava a tratar dos doentes. Por isso conduzi o carro até tão longe quanto possível, até à praia mais solitária do oeste, e nadei até me sentir exausto. A água estava muito fria, mas estava limpa; e a areia, quando regressei, tão vazia como eu.

 

                                 EPÍLOGO

O vazio é uma espécie de morte. Pude reconhecê-lo porque, muitos anos antes, tinha estado num hospital, gravemente doente, à espera de que o médico me dissesse qual era o resultado dos seus últimos testes. Se o resultado fosse positivo, eu era um homem morto. Esperei tanto tempo, e tão dolorosamente, que parte da minha morte já estava a ocorrer. Não sentia tristeza, apenas um alívio por o tempo de espera estar prestes a terminar. Não sentia medo, apenas desgosto por ter partilhado tão inadequadamente a experiência da vida. Vieram visitar-me pessoas que eu amava. Ficava satisfeito por as ver, mas não me sentia infeliz quando partiam, porque o esforço para as suportar era grande de mais, e elas tinham de ir tratar de assuntos que já não me diziam respeito. A minha perspectiva era diferente da delas. Tudo estava nitidamente focado, mas recuava para um ponto do inifinito que eu via tão nitidamente como o copo de vidro sobre a mesa ou as tulipas vermelhas no meu canteiro. Até o meu próprio corpo era um objecto separado de mim, que eu podia contemplar em toda a sua anatomia de ossos e músculos e vitalidade decrescente. Por mais que tentasse, não conseguia voltar para dentro dele, e finalmente desisti de tentar. Mesmo quando o médico chegou sorridente, e me disse que eu iria sobreviver, fiquei durante longo tempo indiferente e desinteressado, porque aquilo apenas queria dizer que teria de passar pela mesma experiência noutra ocasião, e, naquela altura, já estava familiarizado com ela e teria preferido que ela se completasse.

Durante alguns dias após a morte de Ruarri, sofri esse estado de síncope. Fiz os depoimentos que a lei me exigia. Levei Morrison para casa e fiz-lhe companhia sempre que ele sentiu necessidade dela. Pedi as licenças de casamento. Fui pescar com Fergus William, e umas vezes apanhei peixes grandes, outras peixes pequenos, e escutei a sua tagarelice, ri-me com ela, até, algumas vezes, sempre a observar-me de fora e a perguntar a mim mesmo por que motivo me submetia a todo aquele ritual inútil. Acompanhei Kathleen e Morrison ao serviço que o pastor Macphail fez pelo descanso da alma de Ruarri; mas tudo me deixava frio e nada me comovia, como se se tratasse de um culto estranho, de que eu era espectador apenas, e não participante. Sempre que podia, Kathleen vinha passar a noite na estalagem, e eu dormia com ela e fazia amor desesperadamente, esperando que à pequena morte se seguisse uma ressurreição, e eu pudesse recomeçar a viver.

Ela foi muito paciente comigo, e não me deixava sentir vergonha nem pedir desculpa pelo corpo estranho que recebia tão generosamente dentro de si. Repetia-me vezes sem conta a mesma advertência:

- Eu já estive onde tu estás neste momento. Conheço a sensação. E a vida que eu perdi estava dentro de mim, fazia parte de mim. Fui muito mais culpada que tu. Tens de ser paciente... Todas as reparações levam tempo. Não estás a roubar-me. Sinto-me rica e feliz agora...

Mas ela não podia estar sempre presente, e os dias eram longos sem ela e as noites um enorme e triste terreno baldio. A velha Hannah mostrava-se sempre brusca comigo, mas solícita, também, cheia de pequenos cuidados e confortos para mim e para o Morrison. Ele parecia ter envelhecido, estava mais curvado e enrugado, e a sua fala era mais lenta. Nos dias melhores, ia passear pelo jardim, de um lado para o outro, com as mãos atrás das costas, como um monge em meditação.

Depois, um dia, recebi um telefonema de um advogado de Stornoway. Pediu-me que o fosse visitar quando pudesse; tinha algo para me comunicar “de carácter testamentário”. Era um homenzinho meticuloso, seco como um pau, cheio de detalhes legais. Estava encarregue, segundo me disse, de executar as disposições do testamento do falecido Mr. Matheson. Eu era um dos beneficiários. Haveria, naturalmente, a habitual demora na homologação, mas o falecido Mr. Matheson tinha deixado os seus negócios em razoavelmente boa ordem e havia fundos líquidos para o imposto sucessório, pelo que o meu legado me passaria provavelmente para as mãos sem onerações. Poderia ler-me todo o testamento, se eu o desejasse, mas se me bastasse a cláusula relevante...? Bastava-me. Leu-ma, então:

“... Ao meu amigo... que é conhecido como seannachie, deixo o meu barco à vela, registado em Stornoway com o nome The Mactire, bem como todo o equipamento e velas que se encontram a bordo e lhe pertencem. Gostaria de pedir-lhe, embora sem obrigação, porque já lhe pedi demasiado, que conserve o nome do barco, enquanto estiver em seu poder; e talvez, um dia, ele escreva um epitáfio para mim. Teve sempre dificuldade em pensar bem de mim; e não o censuro por isso, porque também não penso muito bem de mim, mas gostaria de ser recordado, de vez em quando, e com ternura...”

O advogado não sabia como ser exacto. O pedido não constituía uma condição do legado. Não se exigia qualquer compromisso da minha parte. Os sentimentos dos testantes eram uma coisa, as suas intenções em relação às suas propriedades eram outra, e assim por diante, até que me apeteceu dar-lhe um berro e dizer-lhe que se fosse atirar à água. Finalmente fiquei livre dele e saí para o sol, até à baía, onde se apinhavam as traineiras junto da muralha, e onde o Mactire se encontrava ancorado, plácido no seu ancoradouro.

Subitamente a morte desapareceu e regressei à minha própria pele, olhando através dos meus olhos para as coisas simples e bem conhecidas: as gaivotas em círculos, os bisbilho-teiros em volta dos postes de amarração, as casas cinzentas, as donas de casa apressadas, as focas tolas que espetavam os focinhos para fora da água, os fardos de lã prontos para os tecelões, e os dois homens que remendavam as suas redes, estendidas sobre os joelhos, como xailes de renda castanha. Eram muito velhos e deviam ter visto muitas partidas e muitas mortes, e todos os desgostos causados pelo mar ao longo dos anos; mas continuavam ali, a desempenhar as mesmas tarefas simples, felizes por apanhar sol enquanto ele durava, e felizes com o bar quente e enfumarado quando ele se acabava. Para eles, a vida era a sua própria absolvição, e o tempo trazia a sua própria cura, mais tarde ou mais cedo. Eu não era melhor que eles, e por certo não mais sábio; por que havia de pedir mais, então? Era altura de me erguer e caminhar, e que o dia de ontem fosse para o inferno...

Uma semana depois, Kathleen e eu casámo-nos no salão da estalagem do Morrison. Foi uma cerimónia muito simples, porque a sua função consistia em selar o que já estava consumado entre nós. O pastor Macphail leu o serviço, Hannah e Fergus William McCue serviram de testemunhas, e Morrison entregou-me a noiva. O que também tinha pouco significado, porque ela já me tinha sido dada, de uma maneira que significava mais que posse.

No entanto, isto deu a Hannah a oportunidade de dizer a última palavra. Era o que ela tinha visto, disse-me: nós os três juntos, Morrison, Kathleen e eu - sem Ruarri Matheson entre nós. Não é indispensável que o leitor acredite nisto. Eu também não estou seguro de acreditar. Mas ela tinha visto o fogo, e o amor dado e o amor recusado, e todas as outras coisas misteriosas que, no final, correspondiam à verdade. Tinha algo mais para me dizer, comunicou-me, mas isso teria de esperar até ao último momento, antes de partirmos para o aeroporto.

Mas nessa altura já estava meio embriagada de excitação e champanhe e da alegria de ver Morrison mais parecido com o que fora. Chamou-me à cozinha. Puxou-me para baixo e beijou-me segurando o meu rosto entre as suas mãos velhas e secas. Depois disse:

- Tem sorte, meu rapaz. E, se alguma vez fizer mal àquela doce rapariguinha, hei-de erguer-me do meu túmulo e persegui-lo nos seus sonhos. Por isso, vou dar-lhe uma coisa que não deverá esquecer e que vai repetir comigo: “Cha robh bàs firgun ghràs fir... Nunca um homem morreu, sem que outro se sentisse grato”.

Era uma frase dura de ouvir num dia de casamento, mas, mais tarde, compreendi-a melhor, assim como todos os significados que ela poderia ter.

Vivemos agora felizes, numa terra muito, muito antiga, onde brotam malmequeres das bocas de homens há muito mortos, e rosas do ventre de santas virgens que nunca pariram. 

 

                                                                  Morris West

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades