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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O VÉU PINTADO / William Somerset Maugham
O VÉU PINTADO / William Somerset Maugham

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O VÉU PINTADO

 

Esta história me foi sugerida pela seguinte estrofe de Dante:

”Deh, quando tu sarai tornato ai mondo, E riposato delia lunga via, Seguito il terzo spirito ai secando, Ricordati di me, che son Ia Pia: Siena mi fé; disfecemi Maremma: Salsi colui, che, innanellata pria, Disposando m’avea con Ia sua gemma”.

”Ao segundo espírito sucedeu a falar um terceiro: ’Ah, quando ao mundo retornares, já da longa jornada repousado, lembra-te de mim, a que chamavam Pia; Siena me fez, Maremma me desfez: bem o sabe quem me havia ornado com seu anel nupcial, preciosa gema.”

 

Em umas férias da Páscoa, quando estudante de medicina, tive seis semanas à minha disposição. com a roupa na maleta e vinte libras no bolso, pusme a caminho. Contava vinte anos. Fui a Génova, Pisa e, finalmente, Florença. Tomei um quarto na Via Laura, e de minha janela podia ver a formosa cúpula da catedral: achava-me instalado no apartamento de uma senhora viúva, mãe de uma jovem, que me ofereceu hospedagem (depois de muito regatear) a quatro liras por dia. Creio que ela não fazia bom negócio, pois meu apetite era enorme e eu podia devorar sem cerimónia uma montanha de macarrão. Tal senhora possuía um vinhedo nas colinas da Toscana, e tenho lembrança que de lá recebia o melhor chianti que bebi na Itália. A filha dava-me todos os dias uma lição de italiano. Parecia-me, então, que era madura, mas não creio que contasse mais de vinte e seis anos. Tivera dissabores. O noivo, oficial do exército, morrera na Abissínia, e ela fizera voto de castidade. Era coisa resolvida que, morrendo a mie (aquela senhora grisalha, jovial e bem-nutrida, que não pensava em morrer nem um dia antes que Nosso Senhor assim o desejasse), Ercilia iria para um convento. E era com alegre disposição que ela esperava o momento de vestir o hábito. Muito nos divertíamos durante o almoço e o jantar, embora ela levasse as lições a sério e me batesse nos dedos com uma régua preta quando eu não lhe prestava atenção ou não a compreendia. Eu deveria indignar-me por ser tratado como uma criança, mas aquilo me lembrava os professores à antiga, que eu conhecera pelos livros, e me fazia rir.

 

Eram dias de bastante trabalho. Começava-os traduzindo algumas páginas de uma peça de Ibsen, a fim de adquirir domínio da técnica e fluência no diálogo; depois, de Ruskin em punho, examinava as belezas de Florença. Admirava, de acordo com as instruções, a Torre de Giotto e as portas de bronze de Ghiberti. Entusiasmava-me corretamente com os Botticelli nos Uffizi e, com o desdém próprio dos verdes anos, voltava as costas para o que o mestre desaprovava. Findo o almoço, tomava minha lição de italiano e saía mais uma vez a visitar igrejas e a devanear ao longo do Arno. Após o jantar, saía à cata de aventuras, mas tal era minha inocência, ou, pelo menos, a minha timidez, que sempre me recolhia tão virtuoso quanto saíra. A signora, apesar de me haver dado uma chave, suspirava, aliviada, ao ouvirme entrar e fechar a porta, pois receava que eu me esquecesse disso; e eu voltava à leitura dos guelfos e gibelinos. Sabia, com amargura, que os escritores do período romântico não procediam com semelhante método, mas duvidava que algum deles pudesse viver seis semanas na Itália com vinte libras, e muito me alegrava com minha vida sóbria e diligente.

 

Já lera o Inferno (auxiliado por uma tradução, mas procurando no dicionário, conscienciosamente, as palavras que não conhecia), e com a ajuda de Ercilia encetei a leitura do Purgatório. Ao chegarmos à estrofe acima citada, contou-me ela que Pia fora uma fidalga de Siena cujo marido, suspeitando-a de adúltera e não podendo matá-la por temerlhe a família, levara-a para seu castelo de Maremma, onde, segundo confiava, os vapores insalubres acabariam com ela; mas Pia tanto demorava em morrer, que ele se impacientou e atirou-a pela janela. Não sei onde Ercilia aprendera tudo isso; no meu Dante os comentários eram menos pormenorizados; mas a história, por uma razão qualquer, me prendeu a imaginação. Revolvi-a na mente, e por muitos anos, de tempos a tempos, meditava nela durante dois ou três dias. Costumava repetir o verso: ”Siena mi fé; disfecemi Maremma”. Este, porém, era um entre os muitos assuntos que me ocupavam a fantasia, e por longos períodos eu o esquecia. Naturalmente eu o via como uma história moderna, mas no mundo contemporâneo não me ocorria um ambiente em que tais sucessos fossem plausíveis. E somente vim a encontrá-lo quando fiz uma demorada viagem pela China.

 

Creio que este é meu único romance cujo início foi uma história e não uma personagem. É difícil explicar a relação entre personagem e enredo.

 

Não se pode conceber uma personagem no ar; no instante em que ela nos surge, imaginamo-la em alguma situação, fazendo alguma coisa, de sorte que essa personagem e as suas ações mais típicas parecem resultar de um ato simultâneo da imaginação. Neste caso, porém, as personagens foram escolhidas para a história que eu ia aos poucos formando, e construídas a partir de pessoas conhecidas em épocas e circunstâncias diversas.

 

Tive com este livro algumas das dificuldades que comumente se deparam a um autor. De início dei ao herói e à heroína o sobrenome Lane, bastante comum, mas surgiram pessoas com esse nome em Hong Kong. Essas pessoas moveram-me uma ação, que os editores da revista onde meu romance era publicado em série liquidaram por duzentos e cinquenta libras - e eu mudei o nome para Fane. Depois, o assistente do secretário do governo colonial, julgando-se difamado, ameaçou-me com um processo. Isto me surpreendeu, porque na Inglaterra podíamos levar ao palco ou transformar em personagem de romance um primeiro-ministro, o arcebispo de Canterbury ou o lorde chanceler, sem que os titulares desses altos postos se considerassem atingidos. Pareceu-me estranho que o detentor provisório de cargo tão insignificante pudesse julgar-se visado, mas para evitar complicações troquei Hong Kong pela colónia imaginária de Tching-Yen. A edição original, publicada antes do incidente, foi retirada das livrarias. Certo número de críticos astutos, sob vários pretextos, não devolveram os exemplares recebidos. Estes adquiriram com o tempo algum valor bibliográfico: creio haver ao todo uns sessenta, que agora os colecionadores compram a preços elevados.

 

Assustada, ela gritou.

 

-- Que foi? - perguntou ele.

 

Não obstante a escuridão do quarto, de persianas fechadas, ele viu-lhe o rosto subitamente perturbado pelo terror.

 

- Alguém quis abrir a porta.

 

- Quem sabe não foi a sua criada ou um dos empregados?

 

- Nunca vêm a esta hora. Sabem que costumo dormir depois do almoço.

 

- Quem mais poderia ser?

 

- Walter - murmurou ela, com os lábios trémulos.

 

Apontou-lhe os sapatos. Ele tentou calçá-los, mas, já nervoso com o susto dela, atrapalhou-se, e além disso os sapatos eram um tanto apertados. com um ligeiro suspiro de impaciência, ela lhe deu uma calçadeira. Enfiou-se num quimono e, descalça, dirigiu-se para o toucador. Compôs o desalinho dos seus cabelos curtos antes que ele tivesse amarrado o segundo sapato. Alcançou-lhe o paletó.

 

- Como é que vou sair?

 

- Espere um pouquinho. vou ver se não há ninguém.

 

- Não pode ser Walter. Ele não sai do laboratório antes das cinco.

 

- Mas quem é, então?

 

Falavam agora aos cochichos. Ela tremia. Vendo-a naquele estado, ocorreu-lhe que ela não poderia enfrentar uma emergência sem perder a cabeça; e, de súbito, teve raiva dela. Se não era seguro, por que diabo lhe havia dito que era? Ela suspendeu a respiração e segurou-lhe o braço. Ele seguiu-lhe o olhar. Achavam-se diante das janelas que davam para a varanda. As janelas estavam fechadas, e os ferrolhos, corridos. Viram que a maçaneta branca girava lentamente. Não tinham ouvido passos na varanda. Era aterrador ver aquele movimento silencioso. Por um instante não houve o menor ruído. Depois, lívidos como fantasmas, viram que a maçaneta de porcelana da outra porta girava da mesma maneira furtiva, silenciosa e horripilante. Aquilo era tão apavorante que Kitty, já não podendo dominar os nervos, abriu a boca para gritar; vendo, porém, o que ela ia fazer, ele rapidamente tapou-lhe a boca, e o grito foi sufocado.

 

Silêncio. Ela apoiou-se nele, com os joelhos tremendo, e ele receou que ela fosse desmaiar. Franzindo o cenho, de mandíbulas cerradas, ele levou-a até a cama e fê-la sentar-se. Kitty estava branca como õ lençol, e o rosto dele, apesar de bronzeado pelo sol, também estava pálido. Em pé, ao lado dela, ele olhava fascinado para a maçaneta. Ambos não diziam palavra. Então ele viu que ela chorava.

 

- Por amor de Deus, não faça isso! - murmurou, irritado. - O que tiver de acontecer que aconteça. Agora é enfrentar o que vier.

 

Vendo que ela procurava o lenço, alcançou-lhe a bolsa.

 

- Onde está seu chapéu?

 

- Deixei-o lá embaixo.

 

- Deus do céu!

 

- Escute aqui, você precisa dominar-se. Não pode ser Walter. Há só uma probabilidade contra cem. Por que diabo voltaria ele e a esta hora? Ele nunca vem para casa depois do almoço, não é?

 

- Não, não vem.

 

- Aposto o que quiser que foi sua criada. Ela esboçou um sorriso. A voz dele, cheia e envolvente, tranqüilizou-a; ela tomou-lhe a mão e apertou-a carinhosamente. Ele concedeu-lhe um momento para que se refizesse. Depois, disse-lhe:

 

- Olhe aqui, não podemos ficar toda a vida neste quarto. Você é capaz de ir à varanda dar uma espiada?

 

- Acho que não posso ficar em pé.

 

- Não há conhaque por aqui?

 

Ela abanou a cabeça. O rosto dele anuviou-se por um instante; começava a perder a paciência, não sabia o que fazer. De súbito, ela apertou-lhe a mão com mais força.

 

- E se ele estiver esperando aí fora?

 

Ele forçou um sorriso, conservando na voz o tom suave e persuasivo de cujo efeito ele tinha total certeza.

 

- Isso não é muito provável. Um pouco de coragem, Kitty! Se ele tivesse chegado, visto um chapéu estranho no vestíbulo, subido até aqui e encontrado o seu quarto fechado, com toda a certeza teria armado barulho. Deve ter sido um dos criados. Só um chinês torceria a maçaneta daquele modo.

 

Ela já se sentia mais segura.

 

- Isso não é lá muito agradável, mesmo que tenha sido a criada.

 

- Essa pode ser controlada, e, se for necessário, saberei como assustá-la. Não há grande vantagem em ser funcionário do governo, mas, quando a gente quer, sempre é possível fazer alguma coisa.

 

Ele devia ter razão. Kitty levantou-se e, voltando-se, abriu-lhe os braços; ele abraçou-a e beijou-a na boca. O arrebatamento era tal que chegava a doer. Ela o adorava. Depois que ele a soltou, ela foi até a janela. Correu o ferrolho, entreabriu a persiana e olhou para o corredor. Não havia vivalma. Esgueirou-se para a varanda, olhou para o quarto do marido e para a sua sala de estar. Tudo vazio. Voltou ao quarto e acenou para o amante.

 

- Ninguém.

 

- Acho que tudo não passou de uma ilusão de óptica.

 

- Não ria. Fiquei aterrorizada. Vá para a minha sala de estar e sente-se lá. Enquanto isso porei as meias e os sapatos.

 

Ele obedeceu, e em cinco minutos Kitty veio encontrá-lo. Ele fumava um cigarro.

 

- Será que você me arranjaria um conhaque com soda?

 

- Pois não, tocarei a campainha.

 

- Depois de tudo, um conhaque também não lhe faria mal.

 

Em silêncio, esperaram o criado. Ela pediu-lhe a bebida.

 

- Telefone para o laboratório e pergunte se Walter está - disse ela depois que o criado se retirou. - Não conhecerão a sua voz.

 

Ele pegou o fone e pediu a ligação. Perguntou se o dr. Fane estava. Repôs o fone no lugar.

 

- Saiu para almoçar e não voltou. Pergunte ao criado se ele esteve aqui.

 

- Não me atrevo. Se esteve, parecerá muito estranho que eu não o tenha visto.

 

O criado trouxe as bebidas e Townsend serviu-se. Ofereceu-lhe o copo, mas ela recusou.

 

- Que faremos, se foi Walter?

 

- Talvez ele não se incomode.

 

- Walter?

 

Seu tom de voz era de incredulidade.

 

- Sempre me pareceu um tanto tímido. Há homens que não suportam cenas. E ele tem bastante bom senso para saber que não se ganha nada com escândalos. Não acredito nem um pouco que tenha sido Walter, mas, ainda que fosse, acho que ele não fará nada. Creio que procederá como se ignorasse tudo.

 

Kitty refletiu um instante.

 

- Ele é louco por mim.

 

- Bem, isso é uma vantagem. Você saberá controlá-lo.

 

E sorriu-lhe do modo encantador que ela sempre achara irresistível. Era um sorriso demorado, que começava nos olhos claros e azuis e, pouco a pouco, ia chegando à boca, de lábios bem-desenhados e dentes miúdos, brancos e parelhos. Era um sorriso sensual que lhe enternecia o coração.

 

- Isso não me preocupa muito - disse ela com momentânea alegria. - Valeu a pena.

 

- A culpa foi minha.

 

- Por que você veio? Quando o vi, fiquei espantada.

 

- Não pude resistir.

 

- Você é um amor.

 

Ela achegou-se a ele: seus olhos negros, brilhantes, demoraram-se apaixonadamente nos dele, e a boca entreabriu-se-lhe de desejo; Townsend enlaçou-a nos braços. Suspirando, em êxtase, ela abandonou-se ao abrigo que ele lhe oferecia.

 

- Você sabe que sempre pode contar comigo.

 

- Sou tão feliz com você, querido! Eu desejava que fosse tão feliz comigo como o sou com você.

 

- O susto já passou, não é?

 

- Odeio Walter - respondeu ela.

 

Não sabendo o que dizer, ele a beijou. O rosto dela, junto ao seu, era macio e agradável. Mas ele, segurando-lhe o pulso, olhou a hora no pequeno relógio de ouro.

 

- E agora, sabe o que tenho de fazer?

 

- Correr à secretaria? - disse ela com um sorriso.

 

Ele concordou com um movimento de cabeça. Por um instante Kitty apegou-se mais ao amante, mas sentiu-lhe o desejo de ir-se e libertou-o.

 

- Você negligencia o trabalho de uma maneira vergonhosa. Vá andando.

 

Townsend nunca resistia à tentação de mostrarse galante.

 

- Você parece ter pressa em ver-se livre de mim - disse ele sem convicção.

 

- Você sabe que odeio ter de deixá-lo partir. Ela pronunciou estas palavras em voz baixa,

 

num tom grave e profundo. Ele riu, lisonjeado.

 

- Essa linda cabecinha não deve preocupar-se com o nosso misterioso visitante. Tenho certeza que foi a criada. E se houver qualquer problema, afirmolhe que saberei livrá-la dele.

 

- Sua experiência é muito grande, não? Ele sorriu, satisfeito e complacente.

 

- Não, mas orgulho-me de ter a cabeça no lugar.

 

Ela o acompanhou até a varanda e observou-o afastar-se. Townsend voltou-se e acenou-lhe. Ao vê-lo, ela sentiu um ligeiro estremecimento de emoção: ele tinha quarenta e um anos, mas possuía o porte esbelto e o passo elástico de um rapaz.

 

Havia sombra na varanda, e ali ela se demorou, preguiçosamente, gozando o bem-estar do amor satisfeito. A casa ficava no Pleasant Valley, na encosta da colina, pois o casal não podia morar no Mount, onde se vivia melhor mas era mais caro. Entretanto, seu olhar distraído pouco se detinha no mar azul e no porto apinhado de navios. Kitty só tinha pensamentos para o amante.

 

Sem dúvida fora tolo o seu procedimento daquela tarde, mas, se ele a desejava, como poderia ela ser prudente? Já tinha vindo duas ou três vezes depois do almoço, quando o calor não deixava ninguém sair à rua, e nem os criados o tinham visto chegar ou sair. Mas em Tching-Yen isso era muito difícil. Ela detestava aquela cidade chinesa; e ir à casinha imunda da Victoria Road, onde costumavam encontrar-se, era coisa que lhe bulia com os nervos. Nessa loja de bricabraque, os chineses, que ali se detinham a conversar, olhavam-na de um modo desagradável. Detestava o sorriso aliciante do velho que a acompanhava aos fundos da loja e, depois, a um escuro lance de escadas. O quarto era imundo, e a larga cama de madeira, encostada à parede, causava-lhe repulsa.

 

- Isto é bastante sórdido, não é? - disse ela a Charlie quando ali se encontraram pela primeira vez.

 

- Era, antes de você entrar, meu bem.

 

E no momento em que ele a tomou nos braços, ela esqueceu-se de tudo.

 

Oh, como era odioso não ser livre, não serem ambos livres! Não gostava da mulher de Charlie. Os pensamentos errantes de Kitty demoravam-se agora um instante em Dorothy Townsend. Que infelicidade a gente chamar-se Dorothy! Um nome que mostrava a idade. Dorothy devia ter no mínimo trinta e oito anos. Mas Charlie jamais falava nela. Bem se via que a mulher pouco lhe importava; aborrecia-o mortalmente. Ele, porém, era um cavalheiro. Kitty sorriu irónica mas afetuosamente: isso era tão próprio dele, o tolinho! Podia ser-lhe infiel, mas nunca permitiria que lhe escapasse dos lábios uma palavra de desprezo. Dorothy era uma mulher um tanto alta, mais do que Kitty, nem gorda nem magra, com um abundante cabelo castanho-claro. De modo algum poderia ter sido bela, exceto no fulgor da juventude; embora não fossem notáveis, suas feições eram harmoniosas, e havia frieza nos seus olhos azuis. Tinha uma pele que não atraía a atenção, e em suas faces não havia cor. Finalmente, vestia-se como. . . bem, como quem era, a mulher do assistente do secretário colonial de Tching-Yen. Kitty sorriu e soergueu ligeiramente os ombros.

 

Sem dúvida, ninguém negaria a Dorothy Townsend uma voz agradável. Era uma excelente mãe, segundo o próprio Charlie, e era também uma pessoa que a mãe de Kitty classificaria de uma dama. Mas Kitty não gostava dela. Não gostava do seu ar distante; e a polidez com que tratava as pessoas nos seus chás ou jantares era exasperante, porque a ninguém escapava o pouco interesse que ela demonstrava às visitas. Enfim, supunha Kitty, nada lhe importava senão os filhos: tinha dois meninos que estavam sendo educados na Inglaterra, e um outro, de seis anos, que para lá seria enviado no ano seguinte. Seu rosto era uma máscara. Sorria e, de maneira agradável e bem-educada, dizia o que se esperava dela; no entanto, malgrado toda a sua cordialidade, mantinha as pessoas à distância. Tinha poucas amigas íntimas na colónia, e estas admiravam-na grandemente. Kitty gostaria de saber se a sra. Townsend não a julgava um tanto vulgar. O sangue subiulhe ao rosto. Afinal de contas não havia nenhuma razão para que ela se desse tais ares. Era verdade que seu pai tinha sido governador da colónia, naturalmente fora esplêndido enquanto havia durado (todos se levantavam quando a gente entrava numa sala e os homens nos tiravam o chapéu ao passarmos em nosso automóvel), mas haveria algo mais insignificante do que um governador aposentado? O pai de Dorothy Townsend vivia em uma pensão, numa pequena casa em EarPs Court. A mãe de Kitty certamente acharia muito enfadonho ter de convidá-lo para uma visita. O pai de Kitty, Bernard Garstin, pertencia ao Conselho Real, e não havia nenhuma razão’ para que um destes dias não fosse nomeado juiz da Suprema Corte. De qualquer maneira, moravam em South Kensington.

 

Ao chegar a Tching-Yen, logo depois de casada, Kitty achara difícil conformar-se com o fato de que a sua posição social fosse determinada pelo cargo do marido. É verdade que todos tinham sido muito gentis, e que, durante dois ou três meses, o casal fora convidado para reuniões quase todas as | noites. Quando jantavam no palácio do governo, o governador tratava-a como a uma recém-casada; mas ela depressa compreendera que a mulher do bacteriologista do governo era uma figura sem importância. E isso a irritava.

 

- Mas é um absurdo - disse ela ao marido. - Quase não se encontra aqui uma pessoa com a qual, em nossa casa, gastássemos cinco minutos. Mamãe nem sonharia em convidar alguém daqui para jantar.

 

- Não se preocupe - respondeu-lhe o marido. - Você sabe que isso não tem importância.

 

- É claro que não tem importância, serve apenas para mostrar o quanto são idiotas, mas, quando penso em todas as nossas relações na Inglaterra,

 

não deixa de ser engraçado que aqui nos tratem como gentinha.

 

- Do ponto de vista social um homem de ciência não existe - observou ele com um sorriso.

 

Isto ela sabia agora, mas ignorava-o ao casar-se com ele.

 

- Não posso dizer que goste muito de ser convidada a jantar pelo agente da companhia de navegação - disse ela, rindo, a fim de que suas palavras não parecessem pedantes.

 

Talvez ele tivesse percebido uma certa censura sob aquele tom despreocupado, pois tomou-lhe a mão e apertou-a timidamente.

 

- Sinto muito, minha querida, mas não deixe que essas coisas a aflijam.

 

- Oh, não, de maneira nenhuma!

 

Não, não podia ter sido Walter. Devia ter sido um dos criados e, afinal de contas, ninguém se importa com criados. De qualquer maneira, os chineses sabiam de tudo. Mas não davam com a língua nos dentes.

 

O coração batia-lhe um pouco mais apressado à lembrança de como alguém havia girado a maçaneta. Não deviam arriscar-se novamente. Seria melhor voltar à casa da Victoria Road, Ninguém estranharia vê-la entrar, e lá eles estavam absolutamente seguros. O dono da loja sabia quem era Charlie, e não era tão tolo que fosse incorrer no desagrado do assistente do secretário colonial. Que mais lhe importava a não ser o amor de Charlie?

 

Deixando a varanda, Kitty voltou para a sua sala de estar. Atirou-se no sofá e estendeu a mão para apanhar um cigarro. Ao fazê-lo, notou que alguém deixara um bilhete sobre um livro. Abriu-o. Estava escrito a lápis:

 

”Kitty:

 

Aqui vai o livro que você me pediu. Estava para mandá-lo, quando encontrei o dr. Fane, que se prontificou a levá-lo, uma vez que passaria em casa.

 

  1. H.”

 

Kitty tocou a campainha e, quando o criado atendeu, perguntou-lhe quem havia trazido o livro e a que horas.

 

- Foi o patrão, depois do almoço - respondeu o chinês.

 

Então fora Walter. Telefonou imediatamente para o gabinete do secretário colonial e pediu que chamassem Charlie. Contou-lhe o que acabara de saber. Antes que ele respondesse, houve uma pausa.

 

- Que é que eu faço? - perguntou ela.

 

- Estou tratando de um assunto importante. Não posso falar agora. Acho que deve ficar firme.

 

Ela compreendeu que ele não estava sozinho e impacientou-se com as ocupações do amante.

 

Sentou-se diante da escrivaninha, e, apoiando o rosto nas mãos, procurou refletir sobre a situação. Walter bem poderia ter pensado que ela estivesse dormindo, e não havia nenhuma razão para que ela não trancasse a porta. Não lembrava se naquele momento estavam conversando. com certeza, não haviam falado em voz alta. Mas e o chapéu? Era para endoidecer que Charlie o tivesse deixado no vestíbulo. Mas de nada adiantava reprovar-lhe uma coisa tão natural; além disso, nada indicava que Walter o tivesse notado. Talvez estivesse apressado, tratando de algum assunto relacionado com o seu trabalho, e apenas tivesse entrado para deixar o livro e o bilhete. O que era estranho é que ele tivesse tentado abrir a porta e, a seguir, as duas janelas. Se ele pensava que ela dormia, seria de esperar que não lhe perturbasse o sono. Como fora tola!

 

Mas, ao pensar em Charlie, voltou a sentir aquele langor agradável, quase um estremecimento. Valera a pena. Ele afirmara que ficaria a seu lado, e se qualquer coisa lhe acontecesse, bem. . . Walter podia fazer o que entendesse. Tinha Charlie; que mais lhe importava? Talvez fosse melhor que ele soubesse de tudo. Walter nunca significara coisa alguma para ela, e, desde que amava Charlie Townsend, era-lhe penoso submeter-se às carícias do marido. Desejava não ter mais nada com ele. Não lhe parecia que ele pudesse provar coisa alguma. Se ele a acusasse, negaria tudo; e se não lhe fosse possível negar, então haveria de atirar-lhe a verdade ao rosto e ele que fizesse como bem entendesse.

 

Depois de três meses de casamento, Kitty compreendera que havia cometido um erro; mas a culpa fora mais da mãe do que dela própria.

 

Na sala havia uma fotografia sua, e. os olhos fatigados de Kitty deram com ela. Não sabia por que a mantinha ali,’pois não gostava muito da mãe; também possuía um retrato do pai, mas esse ficava sobre o piano, no andar térreo. Fora tirado quando de sua investidura no Conselho Real e mostrava-o de toga e peruca. Ainda assim, não conseguira fazer-se imponente; era um homenzinho murcho, de olhos cansados, boca pequena e um comprido lábio superior; um fotógrafo brincalhão dissera-lhe que parecesse atraente, mas ele só pudera parecer severo. Por este motivo, porque os cantos da boca voltados para baixo e a melancolia dos olhos davam-lhe um ar deprimido, é que a sra. Garstin, julgando que isso lhe dava um ar jurídico, escolhera-a entre as demais fotos. Mas a sua fotografia, essa mostrava-a com o traje que ela usara na corte quando o marido fora feito conselheiro. Estava majestosa em seu vestido de veludo, com a longa cauda disposta de maneira a causar efeito; tinha penas no cabelo e um buque de flores na mão. Mantinha-se empertigada. Era uma mulher de cinquenta anos, magra, de busto chato, malares salientes, nariz comprido e bem-proporcionado. Tinha abundantes cabelos pretos e lisos, e Kitty suspeitava que, se não eram tingidos, ao menos deviam ser retocados. O que nela mais chamava a atenção eram os olhos, negros e belos, que jamais sossegavam; quando ela falava com alguém, era desconcertante ver aqueles olhos inquietos num rosto liso, amarelo e impassível. Moviam-se de uma parte para outra, percorriam o interlocutor, passavam para as demais pessoas da sala e a ele voltavam; sentia-se que ela o criticava, catalogava-o, sem nada perder do que ocorria em torno, e que suas palavras não tinham ligação com os seus pensamentos.

 

A sra. Garstin era uma mulher empedernida, cruel, ambiciosa, autoritária, avara e tacanha. Era uma das cinco filhas de um advogado de Liverpool, e Bernard Garstin conhecera-a quando trabalhava na circunscrição do norte. Nessa ocasião, parecia um jovem de futuro, e o pai dela afirmava que ele iria longe. Não foi. Era consciencioso, trabalhador e capaz, mas faltava-lhe vontade de subir. A sra. Garstin desprezava-o. Mas reconhecia, embora acerbamente, que só poderia triunfar por intermédio dele, e dispôsse a metê-lo no caminho que ela desejava trilhar. Azucrinava-o sem piedade. E descobriu que, quando desejava dele alguma coisa contrária à sua sensibilidade, bastava-lhe importuná-lo até que, exausto, ele acabava por ceder. De seu lado, ela dedicava-se a cultivar as pessoas que lhe pudessem ser úteis. Lisonjeava os advogados que podiam solicitar pareceres ao marido e fazia-se íntima de suas mulheres. Mostrava-se obsequiosa para com os juizes e suas consortes. Tinha grande consideração com os políticos de futuro.

 

Durante vinte e cinco anos a sra. Garstin jamais convidara uma pessoa a jantar em sua casa porque gostasse dela. Dava, de quando em quando, grandes jantares. Mas nela a mesquinhez era tão grande quanto a ambição. Odiava as despesas. Jactava-se de aparentar tanto como qualquer outro pela metade do preço. Seus jantares eram demorados e ostentosos, mas económicos, e ela não podia convencer-se de que as pessoas, mesmo enquanto comiam e conversavam, pudessem saber o que bebiam. Envolvia num guardanapo o moselle espumante e julgava que seus convidados o tomavam por champanha.

 

Bernard Garstin tinha uma boa clientela, embora não fosse grande. Colegas nomeados depois dele de muito já o haviam ultrapassado. A sra. Garstin obrigou-o a candidatar-se ao Parlamento. As despesas de eleição correram por conta do partido, mas também nisto a avareza lhe frustrou as ambições, pois ela não pôde se conformar com os gastos exigidos pela candidatura. As subscrições de Bernard Garstin às inúmeras listas de beneficência a que um candidato deve contribuir sempre ficavam um pouco abaixo do que seria apropriado. Não foi eleito. Malgrado o prazer que teria experimentado como mulher de um membro do Parlamento, a sra. Garstin aceitou corajosamente a decepção. O fato de que o marido tivesse figurado entre os candidatos pusera-a em contato com inúmeras pessoas eminentes, e ela soube apreciar esse acréscimo à sua posição social. Sabia de antemão que Bernard não sobressairia entre os seus pares. Quisera vê-lo eleito somente para que ele fizesse jus à gratidão de seu partido, e que sem dúvida ganharia disputando a posse de duas ou três cadeiras perdidas.

 

Entretanto ele ainda era inferior em categoria, e muitos advogados mais moços já pertenciam ao conselho. Era necessário que ele também pertencesse, e isso não apenas porque de outra forma não chegaria a juiz, mas também em consideração a ela, que se modificava comparecendo a jantares oferecidos por mulheres dez anos mais moças. Contudo, a sra. Garstin encontrou no marido uma obstinação que não lhe vira em muitos anos. Ele temia que, na qualidade de conselheiro, não mais conseguisse trabalho. Mais vale um pássaro na mão do que dois voando, observara-lhe ele, ao que ela respondeu que os provérbios eram o último refúgio dos pobres de espírito. Ele insinuou a possibilidade de que sua renda ficasse reduzida à metade, sabendo não haver para ela um argumento mais sólido do que este. A sra. Garstin não quis ouvi-lo. Chamou-o de pusilânime, e não lhe deu trégua até que, por fim e como sempre, ele anuiu. Requereu um lugar no conselho e prontamente o obteve.

 

Seus receios foram justificados. Não abriu caminho em sua nova posição e escassearam-lhe os pareceres. Escondeu, porém, qualquer desgosto que pudesse sentir, e, se censurava a mulher, fazia-o apenas intimamente. Tornou-se, talvez, um pouco mais silencioso, mas sempre fora calado em casa, de sorte que ninguém da família lhe notou qualquer mudança. As filhas nunca o haviam considerado senão como uma fonte de renda; sempre parecera perfeitamente natural que ele levasse uma vida de cachorro a fim de lhes dar casa e comida, roupas, diversões e dinheiro para bugigangas; e agora, tendo percebido que por culpa dele o dinheiro era menos abundante, a indiferença que sempre lhe votavam acrescia-se de um irritado desprezo. Nunca lhes ocorreu perguntarem a si mesmas quais eram os sentimentos do submisso homenzinho que saía de manhã cedo e voltava à noite unicamente a tempo de vestir-se para o jantar. Consideravam-no um estranho, mas, como era seu pai, ficava subentendido que ele as devia amar e sustentar.

 

Havia contudo na sra. Garstin uma certa coragem admirável, pois não deixava que ninguém do seu círculo de relações, que para ela era o mundo, visse o quanto a mortificava o malogro de suas esperanças. Não alterou em nada a sua maneira de viver. Graças a uma cuidadosa provisão, podia oferecer os mesmos jantares ostentosos de sempre, recebia as amigas com a mesma alegria esfuziante que havia tanto tempo cultivava. Possuía aquele repertório de assuntos fáceis e comezinhos que, na sociedade por ela frequentada, era tido como palestra. Era uma pessoa útil entre convivas sem aptidões para encetar uma conversação banal, pois sempre sabia atacar um novo assunto e romper um silêncio constrangedor com uma observação oportuna.

 

Já não era provável que Bernard Garstin chegasse algum dia a juiz da Suprema Corte, mas ainda podia esperar um juizado provincial ou, na pior hipótese, uma nomeação para as colónias. Entrementes, a sra. Garstin teve a satisfação de vê-lo nomeado juiz municipal de uma cidade galesa. Todavia, era nas filhas que ela depositava as suas esperanças.

 

Conseguindo-lhes bons casamentos, esperava compensar todas as decepções de sua carreira. Tinha duas filhas, Kitty e Doris. Doris não prometia uma boa aparência, com seu nariz muito comprido e o corpo rechonchudo, de sorte que a sra. Garstin não podia esperar para ela mais do que um casamento com um rapaz em boa situação financeira e com uma profissão decente.

 

Mas Kitty era uma beldade. E desde menina prometia sê-lo, com seus olhos negros e grandes, vivos e brilhantes, o cabelo crespo e ligeiramente avermelhado, os dentes bonitos e uma pele adorável. As feições nunca seriam muito harmoniosas, porque o queixo era um tanto quadrado e o nariz, embora não tão comprido quanto o de Doris, demasiado grande. Sua beleza decorria principalmente da juventude, e a sra. Garstin não ignorava que devia casá-la em plena mocidade. Quando se fez mulher, Kitty tornou-se deslumbrante: sua maior beleza ainda estava na pele, mas os olhos de longas pestanas eram tão brilhantes e, ainda assim, tão ternos, que comoviam a quem os olhasse. Tinha uma alegria encantadora e o desejo de agradar. A sra. Garstin prodigalizava-lhe toda a sua afeição, uma afeição calculista, medida e severa, e entretinha sonhos ambiciosos. Pretendia para a filha um casamento não apenas bom, mas brilhante.

 

Kitty fora educada na certeza de que seria uma mulher bonita e tinha fundadas suspeitas quanto à ambição materna, que coincidia com seus próprios desejos. Foi apresentada à sociedade, e a sra. Garstin realizou prodígios para conseguir convites a bailes onde a filha pudesse encontrar pretendentes aceitáveis. Kitty foi um verdadeiro sucesso. Era tão bela quanto encantadora, e, em breve, possuía uma dúzia de apaixonados. Mas nenhum era conveniente, e Kitty, esplêndida e amável com todos, tratava de não comprometer-se com nenhum. Às tardes de domingo, a sala de South Kensington enchia-se de pretendentes, mas a sra. Garstin observava, com um rígido sorriso de aprovação, que não havia mister de seus esforços para mante-los afastados de Kitty. A filha condescendia em namoricar e enciumá-los, mas quando lhe propunham casamento, o que nenhum deixou de fazer, recusava-os habilidosa e decididamente.

 

Sua primeira temporada social decorreu sem que se apresentasse o perfeito pretendente, e a segunda igualmente; mas Kitty era moça e podia esperar. A sra. Garstin dizia à amigas que era uma pena ver uma moça casada antes dos vinte e um anos. Contudo, passou-se um terceiro ano, e um quarto. Dois ou três dos seus antigos admiradores tornaram a pedir-lhe a mão, mas continuavam sem vintém; um ou dois rapazes mais moços do que ela pediram-na em casamento, assim como um funcionário aposentado da índia, comendador da Ordem Imperial Indiana, que já contava cinquenta e três anos. Kitty ainda frequentava muitos bailes, ia a Wimbledon, ao Lord’s, a Ascot e Henley; divertia-se imensamente, mas ainda ninguém cuja posição e recursos fossem satisfatórios lhe havia proposto casamento. A sra. Garstin começou a inquietar-se. Observou que o interesse por Kitty já partia dos quarentões. Lembrou à filha que, dentro de um ou dois anos, ela não seria tão bonita, e que todos os dias surgiam na sociedade moças mais novas. Em família, a sra. Garstin não mediu as palavras e advertiu acremente a filha de que acabaria perdendo a sua oportunidade.

 

Kitty deu de ombros. Julgava-se tão formosa como antes, talvez ainda mais, pois nos últimos quatro anos aprendera a vestir-se, e dispunha de muito tempo. Se quisesse casar apenas por casar-se, bastava-lhe um aceno aos seus inúmeros pretendentes. Cedo ou tarde, mas com toda a certeza, o marido ideal haveria de chegar. Entretanto, a sra. Garstin julgava a situação com mais perspicácia: encolerizada no íntimo com a bela filha pelas oportunidades perdidas, reduziu um tanto as suas pretensões. Voltou-se para a classe profissional, inicialmente desprezada pelo seu orgulho, e pôs-se a procurar um jovem advogado ou um comerciante cujo futuro lhe inspirasse confiança.

 

Kitty chegou aos vinte e cinco anos ainda solteira. A sra. Garstin, exasperada, não hesitou em dizer à filha as coisas desagradáveis que pensava. Perguntou-lhe por quanto tempo ainda esperava que o pai a sustentasse. Ele mal pudera arcar com as despesas feitas para lhe dar uma oportunidade, e ela não soubera aproveitá-la. Jamais ocorreu à sra. Garstin que, talvez, a sua própria e agressiva afabilidade tivesse afugentado os candidatos, filhos de pais ricos ou herdeiros de títulos, cujas visitas ela havia estimulado com excessiva cordialidade. Atribuía o insucesso de Kitty à simples inépcia. Então, chegou a vez de Doris. Ainda tinha um nariz muito grande, um rosto inexpressivo, e dançava mal. Ao ser apresentada à sociedade, contratou casamento com Geoffrey Dennison, filho único de um próspero médico agraciado durante a guerra com um baronato. Geoffrey herdaria um título - ser um barão médico não é coisa tão magnífica, mas um título, graças a Deus, ainda é um título - e uma fortuna assaz considerável.

 

Kitty, em pânico, casou-se com Walter Fane.

 

Conhecera-o ligeiramente e quase não o notara. Não tinha ideia de quando nem onde haviam travado relações, até que, depois de noivos, ele lhe disse ter sido em um baile aonde alguns amigos o haviam levado. Sem dúvida, ela não lhe prestara atenção e, se dançara com ele, fizera-o apenas por gentileza e porque tinha prazer em dançar com quem quer que a convidasse. Absolutamente não sabia de quem se tratava quando, um ou dois dias depois, em outro baile, Fane aproximou-se dela para conversar. Depois disso, ela notou que o encontrava em todos os bailes.

 

- Agora que já dancei com você uma dúzia de vezes, bem pode dizer-me o seu nome - observou-lhe ela, por fim, no seu modo sorridente.

 

Ele ficou evidentemente surpreso.

 

- Mas. . . quer dizer que não o sabe? Eu já fui apresentado a você.

 

- Ora, nas apresentações a gente mal pronuncia o nome. Não me admiraria se você também não tivesse a menor ideia do meu.

 

Ele sorriu-lhe. Sua expressão, ainda que simpática, parecia um tanto grave; mas seu sorriso era bondoso.

 

- Sei perfeitamente o seu nome. - Depois de um instante de silêncio, perguntou-lhe: - E você, não tem curiosidade?

 

- Como todas as mulheres, tenho.

 

- Não se lembrou de perguntar o meu nome a alguém?

 

A pergunta a divertiu, pois não havia o menor motivo para que ele a julgasse interessada nele. Gostava porém de agradar, e fitou-o com um sorriso ofuscante, enquanto os olhos - lagos de orvalho sob ramagens de floresta - derramavam uma sedutora bondade.

 

- Então, como se chama?

 

- Walter Fane.

 

Kitty não sabia por que ele frequentava os bailes, de vez que não dançava muito bem e parecia conhecer pouca gente. Chegou a pensar que ele estivesse enamorado dela, mas afastou semelhante ideia com um dar de ombros: conhecera moças que tinham como apaixonados todos os homens que conheciam, e sempre as achara absurdas. Mas concedeu a Walter Fane um pouquinho mais de atenção. Ele de modo algum procedia como qualquer dos outros rapazes que haviam gostado dela. Estes, na sua maior parte, iam dizendo o que sentiam e procuravam beijá-la, o que muitos fizeram. Walter Fane, porém, jamais falava dela e muito pouco de si mesmo. Era um tanto calado, coisa que não a preocupava, já que ela mesma sempre tivera muito o que dizer e porque lhe agradava o seu riso quando ela fazia uma observação engraçada; mas quando ele falava, não dizia tolices. Bem se via que era tímido. Parecia que vivia no Oriente e estava na Inglaterra em licença.

 

Certo domingo, à tarde, ele apareceu em South Kensington. Havia lá uma dúzia de pessoas, e ele ficou sentado por algum tempo, não muito à vontade, retirando-se pouco depois. Mais tarde, a mãe perguntou a Kitty quem era ele.

 

- Não tenho ideia. Foi a senhora que o convidou?

 

- Fui. Conheci-o em casa dos Baddeleys. Disse-me que já a havia encontrado em vários bailes. Informei-o que recebíamos aos domingos.

 

- Chama-se Fane e parece que tem um cargo no Oriente.

 

- Tem, sim. É médico. Ele gosta de você?

 

- Palavra que não sei.

 

- Julguei que na sua idade uma moça soubesse quando alguém gosta dela.

 

- Mesmo que gostasse, não me casaria com ele.

 

A sra. Garstin não respondeu. Um silêncio pesado exprimiu-lhe a irritação. O sangue subiu ao rosto de Kitty: sabia que a mãe já não se importava se ela casasse com este ou aquele, contanto que, de qualquer maneira, deixasse de ser-lhe um fardo.

 

Na semana seguinte, encontrou-o em três bailes, e ele, talvez tendo perdido um pouco de sua timidez, mostrou-se algo mais comunicativo. Era médico, sim, mas não clinicava; especializara-se em bacteriologia (Kitty apenas tinha uma vaga ideia do que isto significava) e trabalhava em Tching-Yen, para onde voltaria no outono. Falou muito a respeito da China. Ela costumava fingir-se interessada em qualquer assunto que lhe falassem, mas a vida em Tching-Yen parecia bastante divertida; havia clubes, pólo, golfe, ténis e corridas de cavalos.*

 

- Dançam por lá?

 

- Bastante, creio eu.

 

Kitty ficou pensando se ele teria algum motivo para lhe dizer tais coisas. Ele parecia gostar da sua companhia, mas nunca uma pressão mais forte ao apertar-lhe a mão, um olhar ou uma palavra lhe dera a menor indicação de que ele não a considerava apenas uma moça com quem gostava de conversar e dançar. No domingo seguinte, ele voltou a South Kensington. O pai, que estava casualmente em casa, pois chovia e não lhe fora possível jogar a sua partida de golfe, teve uma longa palestra com Walter Fane. Depois, ela perguntou ao pai de que haviam falado.

 

- Parece-me que ele tem um posto em TchingYen. Tenho lá um velho amigo, que foi meu colega, e é presidente do tribunal. O rapaz me parece de uma inteligência pouco comum.

 

Kitty sabia que o pai, via de regra, aborrecia-se enormemente com os moços com quem fora obrigado a tratar durante anos, primeiro em atenção a ela, depois à irmã.

 

- Não é todos os dias que o senhor gosta de meus amigos, papai - disse ela.

 

O pai fitou-a com os seus olhos cansados e bondosos.

 

- Você pensa em casar-se com ele?

 

- De modo nenhum.

 

- Gosta de você?

 

- Não demonstra.

 

- E você, gosta dele?

 

- Não muito. Ele me irrita um pouco.

 

Fane não era bem o seu tipo. Baixo, embora não atarracado, e mais esbelto que magro; tez morena, barba raspada, feições definidas e muito regulares. Os olhos, pequenos e quase negros, não eram muito vivos e demoravam-se nos objetos com singular persistência; o olhar, embora curioso, não era agradável. com o nariz reto e delicado, as sobrancelhas bonitas e a boca regular, devia ser bem-parecido. Mas - o que muito a admirava - não o era. Quando veio a prestar-lhe atenção, Kitty observou com surpresa que, não obstante tão boas feições, quando olhadas uma a uma, Fane andava longe de ter boa figura. Havia certa frieza em seu rosto, cuja expressão era ligeiramente sarcástica. Agora, conhecendo-o melhor, Kitty verificava que não se sentia perfeitamente à vontade com ele. Não era uma pessoa alegre.

 

Ao aproximar-se o fim da temporada social, já se haviam encontrado muitas vezes, mas ele permanecia distante e impenetrável como sempre. Ao lado dela, não se mostrava exatamente tímido, mas embaraçado; e sua palestra continuava estranhamente impessoal. Kitty chegou à conclusão de que ele de modo algum a amava. Tinha-lhe simpatia, gostava de conversar com ela, mas, em novembro, ao regressar para Tching-Yen, não tornaria a pensar nela. E Kitty não julgava impossível que, ao voltar à Inglaterra, ele já viesse noivo de alguma enfermeira de hospital de Tching-Yen, filha de algum pastor, insípida, vulgar, inflexível e enérgica; esse era exatamente o tipo de mulher que lhe serviria.

 

Contudo, pouco depois, foi anunciado o noivado de Doris com Geoffrey Dennison. Doris, aos dezoito anos, fazia um ótimo casamento, e ela, aos vinte e cinco, continuava solteira. E se não chegasse a se casar? A única pessoa a propor-lhe casamento naquele ano fora um rapaz de vinte anos que ainda estava em Oxford: não lhe era possível casar-se com um rapaz cinco anos mais moço. Fizera uma embrulhada de tudo. Ainda no ano anterior, recusara um viúvo com três filhos, cavaleiro da Ordem do Banho. Quase desejava não o ter feito. A mãe não lhe perdoaria, e Doris, que sempre fora sacrificada porque ela, Kitty, era quem devia fazer um casamento brilhante, não deixaria de cantar-lhe vitória. Kitty sentiu-se deprimida.

 

Uma tarde, porém, quando voltava da Harrod’s para casa, encontrou-se por acaso com Walter Fane na Brompton Road. Ele se deteve para falar-lhe. Depois, como se aquilo lhe ocorresse no momento, perguntou-lhe se não queria acompanhá-lo num passeio pelo parque. Kitty não tinha nenhuma vontade de ir para casa, que por aquele tempo não era um lugar agradável. Perambularam pelo parque, conversando como sempre o tinham feito, sobre coisas várias, e ele perguntou-lhe onde passaria o verão.

 

- Ora, nós sempre nos enterramos no campo. Papai fica exausto depois que se encerram os trabalhos forenses, e nós simplesmente vamos ao lugar mais sossegado que possamos encontrar.

 

Kitty dizia-o por dizer, pois bem sabia que o pai não tinha trabalho suficiente para cansá-lo e, ainda que o tivesse, jamais seria consultado quanto ao local de veraneio. Mas um lugar sossegado era um lugar barato.

 

- Não lhe parece que aquelas cadeiras são um tanto convidativas? - disse Walter de repente.

 

Ela seguiu-lhe o olhar e viu sobre a relva, debaixo de uma árvore, duas cadeiras verdes e solitárias.

 

- Vamos nos sentar ali - disse ela.

 

Depois que se sentaram, ele lhe pareceu estranhamente distraído. Era uma criatura esquisita. Todavia, ela continuou a conversar assaz alegremente, perguntando a si mesma por que motivo ele a teria convidado para o passeio. Talvez pretendesse lhe confiar sua paixão pela enfermeira inflexível de Tching-Yen. De súbito, ele se voltou e interrompeu-a no meio de uma frase, deixando ver claramente que não a estivera ouvindo; seu rosto estava branco como papel.

 

- Quero lhe dizer uma coisa.

 

Ela fitou-o rapidamente e viu-lhe nos olhos uma dolorosa ansiedade. Sua voz era forçada, baixa e não muito segura. Mas antes que ela pensasse no motivo de semelhante agitação, ele tornou a falar:

 

- Desejava perguntar-lhe se quer se casar comigo.

 

- Você me deixa estupefata - respondeu ela, tão surpresa que o olhou, atónita.

 

- Mas então não sabia que eu gostava imensamente de você?

 

- Nunca me deu a entender isso.

 

- Eu sou muito desajeitado! Sempre achei difícil dizer as coisas que realmente penso, mais do que as que não penso.

 

Kitty sentiu que o coração lhe batia com mais força. Já havia recebido muitas propostas, mas como tinham sido feitas num tom alegre ou sentimental, respondera a elas do mesmo modo. Até então ninguém a pedira em casamento daquela maneira tão abrupta e, ainda assim, estranhamente dramática.

 

- Você é muito gentil - disse ela, duvidosa.

 

- Gostei de você a primeira vez que a vi. Queria dizer-lhe antes, mas nunca tive coragem.

 

- Não me parece que essa seja a melhor maneira de dizê-lo - observou ela, rindo.

 

Semelhante oportunidade de rir causava-lhe satisfação, pois, naquele belo dia de sol, a atmosfera que os envolvia pareceu-lhe subitamente carregada de presságios. O rosto dele enuviou-se.

 

- Você sabe por que eu não lhe falava. Não queria perder a esperança. Mas agora você vai veranear, e no outono terei de voltar para a China.

 

- Nunca pensei em você nesse sentido - disse ela com insegurança.

 

Ele permaneceu calado. Olhava taciturno para a relva. Era mesmo uma criatura muito estranha. Agora, porém, que se havia declarado, Kitty sentia de um modo inexplicável que seu amor era algo que ela ainda não encontrara. Estava um tanto amedrontada, mas sentia-se exultante. Ele mantinha uma impassibilidade de certo modo comovente.

 

- Dê-me tempo para refletir.

 

Mas ele continuou calado. E imóvel. Acaso pretendia retê-la no parque até que ela tomasse uma decisão? Era absurdo. Precisava discutir o assunto com a mãe. Devia ter-se levantado ao falar, mas esperara que ele respondesse, e agora, sem saber por quê, achava difícil fazê-lo. Sem olhar para ele, via-o perfeitamente; nunca se imaginara como mulher de um homem que por pouco não era mais baixo do que ela. Sentando-se a seu lado, via-se o quanto eram harmoniosas as suas feições, e quão álgido o seu rosto. Isto era bastante curioso, pois não se podia ignorar a paixão devoradora que lhe ia no peito.

 

- Mas afinal eu não o conheço - disse ela com a voz insegura.

 

Ele olhou-a, e ela não pôde evitar-lhe os olhos.

 

- Eu acho que melhoro à medida que vou sendo mais conhecido - disse ele.

 

- Vejo que você não é muito desembaraçado. Era com efeito a proposta mais estranha que

 

já recebera. E até naquele momento parecia-lhe que diziam um ao outro as coisas mais inesperadas. Ela não o amava. E não sabia por que hesitava em recusálo naquele mesmo instante.

 

- Sou um grande tolo - tornou ele. - Quero lhe dizer que a amo acima de tudo neste mundo, mas acho tão difícil. . .

 

O estranho era que aquilo inexplicavelmente a comovia; sem dúvida, não havia nele frieza, sua maneira de ser é que era desastrosa; e naquele momento ela gostou mais dele do que nunca antes. O casamento de Doris estava marcado para novembro. A esse tempo ele estaria a caminho da China, e, se se casasse com ele, iria em sua companhia. Não seria muito agradável o papel de dama de honra no casamento de Doris. De bom grado fugiria a isso. E depois, Doris casada e ela ainda solteira! Todos sabiam o quanto Doris era mais moça, e isso a faria parecer mais velha, pondo-a no rol das tias. Não seria um partido muito bom, mas era um casamento, e o fato de ter de viver na China atenuaria a situação. Receava a língua mordaz da mãe. Além do mais, todas as moças da sua idade havia muito estavam casadas, e quase todas tinham filhos; aborrecia-a ter de ir vê-las e fazer festas às crianças. Walter Fane oferecia-lhe uma nova vida. Voltou-se, pois, para ele com um sorriso cujo efeito bem conhecia.

 

- Se eu fosse tão precipitada e aceitasse logo a sua proposta, quando é que você desejaria se casar?

 

Ao ouvi-la, Walter abafou uma exclamação de prazer e a cor subiu-lhe ao rosto.

 

- Agora. Imediatamente. O mais breve possível. Passaremos a lua-de-mel na Itália. Agosto e setembro.

 

Isso a livraria de passar o verão na província, com o pai e a mãe, numa casa paroquial alugada a cinco guinéus por semana. Instantaneamente, viu no Morning Post a notícia de que, devendo o noivo regressar para o Oriente, o casamento teria lugar dentro de poucos dias. Conhecendo a mãe perfeitamente, podia esperar que ela fizesse um estardalhaço, de sorte que Doris, ao menos naqueles dias, ficaria em segundo plano, e quando a irmã se casasse, em cerimónia muito mais imponente, ela já estaria longe.

 

- Acho que o estimo bastante. Dê-me tempo para eu me acostumar com você - disse ela, estendendo-lhe a mão. - E. . .

 

- Então é sim? - interrompeu ele.

 

- Parece-me.

 

Por aquele tempo, conhecia-o muito pouco, e agora, conquanto estivessem casados havia quase dois anos, apenas um pouco mais. A princípio, ficara enternecida com sua bondade, e depois, embora surpresa, lisonjeada por sua paixão. Walter dispensava-lhe extrema consideração e muita solicitude: jamais manifestava o menor desejo sem que ele se apressasse a satisfazê-lo. Dava-lhe constantemente pequenos presentes. Quando ela adoecia, ninguém poderia ser mais bondoso ou mais desvelado. Sempre que tinha a oportunidade de fazer por ela alguma coisa difícil ou fastidiosa, ele parecia tomá-la como um favor. Além disso, era excessivamente delicado. Levantava-se quando ela entrava, dava-lhe a mão quando ela descia de um automóvel, descobria-se ao encontrá-la na rua, abria-lhe solicitamente a porta ao sair ela de uma sala, e nunca entrava sem bater em seu quarto de dormir ou de vestir. Tratava-a não como Kitty vira a maioria dos homens tratarem as mulheres, mas como se ela estivesse em uma casa de campo onde ele também se achasse hospedado. Aquilo não deixava de ser agradável, mas era um tanto cómico. Se ele fosse mais natural, haveria mais intimidade. Tampouco as relações conjugais a aproximavam mais dele, que nelas se mostrava apaixonado, impetuoso, sentimental e, coisa estranha, um tanto histérico.

 

Desconcertava-a o fato de que ele realmente fosse muito emotivo. Ignorava se o domínio de si mesmo lhe vinha da timidez ou de um longo exercício.[Parecia-lhe vagamente desprezível que, ao tê-la nos oraços, depois de apaziguado o desejo, ele, que tanto receava dizer coisas absurdas, que temia tanto o ridículo, falasse em linguagem infantiLJCerta vez ofendera-o profundamente, rindo dele e dizendo-lhe que tais expressões eram ridiculamente piegas. Ele afrouxara os braços que a envolviam, permanecera silencioso por um instante, e depois, sem uma palavra, soltara-a e fora para o seu quarto. Ela não quisera magoá-lo, e um ou dois dias depois, achara ensejo para dizer-lhe:

 

- Não seja tolo, meu bem. Você pode dizer o que quiser que eu não me importo.

 

Ele rira, meio envergonhado. Cedo, Kitty descobriu nele uma triste incapacidade para desembaraçar-se. Era um homem acanhado. Numa festa, quando todos começavam a cantar, não lhe era possível fazer o mesmo. Continuava sentado, sorrindo para mostrar que aquilo o divertia e alegrava, mas o sorriso era forçado e mais parecia um trejeito sarcástico, e assim não se podia fugir à impressão de que ele considerava um bando de idiotas todos os que ali estavam, divertindo-se. Era incapaz de participar dos divertimentos de salão, tão gratos ao espírito alegre de Kitty. Durante a viagem para a China, ele terminantemente se recusara a fantasiar-se, embora todos os outros passageiros estivessem mascarados. Desmanchava-lhe o prazer o fato de que ele, de modo tão evidente, achasse tudo aquilo um maçada.

 

Kitty era de temperamento vivaz, sempre disposta a tagarelar o dia inteiro, e ria muito facilmente. O silêncio do marido desconcertava-a. Exasperava-a, além disso, o seu hábito de não responder quando ela fazia uma ou outra observação sobre assuntos triviais. Sem dúvida, não havia o que responder, mas ainda assim qualquer comentário seria agradável. Se estava chovendo e ela dizia: ”Chove a cântaros”, gostaria que ele dissesse: ”É mesmo”. Mas Walter continuava calado. Às vezes, dava-lhe vontade de sacudi-lo. <---_

 

- Eu disse que está chovendo a cântaros repetia ela.

 

- Já ouvi - respondia ele com seu afetuoso sorriso.

 

Esse gesto mostrava que ele não desejara ofendê-la. Não respondera porque não havia o que dizer. Mas se ninguém falasse senão quando tivesse algo a dizer, refletia Kitty com um sorriso, a raça humana em pouco tempo perderia o uso da palavra.

 

O fato era que ele, decididamente, não possuía encanto algum. Por isso é que não fazia muitas relações e, chegando a Tching-Yen, Kitty não precisou de muito tempo para verificá-lo. Ela não sabia ao certo qual era o seu trabalho, mas sabia o suficiente para compreender, e compreendia-o nitidamente, que o posto de bacteriologista de uma repartição pública não era grande coisa. Ele parecia não querer discutir com ela esse lado de sua vida. Disposta a tomar interesse em tudo, Kitty fizera-lhe perguntas a esse respeito, mas ele mudava de assunto com um gracejo.

 

- É tudo muito enfadonho e técnico - dissera certa ocasião. - E muito mal remunerado.

 

Era uma pessoa bastante reservada. Tudo quanto ela sabia dos seus antecedentes, nascimento, educação, e da vida que levava antes de conhecê-la soubera-o por perguntas diretas. Por estranho que fosse, a única coisa que parecia aborrecê-lo eram perguntas; e quando, devido à sua natural curiosidade, Kitty desfiava um rosário delas, a cada uma as respostas iam sendo mais abruptas. Kítty soube compreender que ele assim procedia não porque tivesse alguma coisa a esconder-lhe, mas simplesmente devido a uma natural discrição. Falar a respeito de si mesmo era coisa que o aborrecia e acanhava, causando-lhe mal-estar. Não sabia confiar-se a ninguém. Gostava de ler, mas lia livros que a Kitty pareciam muito insípidos. Quando não se embrenhava em um tratado científico, lia livros sobre a China ou obras históricas. Nunca se entregava ao lazer, coisa de que a mulher o julgava incapaz. Gostava de jogos, e jogava ténis e bridge.

 

Kitty não sabia dizer por que ele se enamorara dela, nem podia imaginar alguém que menos conviesse àquele homem frio, calmo e retraído do que ela própria. E no entanto era certo que ele a amava apaixonadamente. Seria capaz de tudo para agradarlhe. Nas suas mãos, ele era como cera. Quando pensava em certa face de sua vida, face que só ela conhecia, ela votava-lhe uma ponta de desprezo. Sua maneira sarcástica, aquela tolerância desdenhosa com que recebia tantas coisas e pessoas por ela estimadas, não seria apenas a fachada que ocultava uma profunda fraqueza? Supunha-o inteligente, e todos pareciam pensar o mesmo, mas exceto por algumas raras ocasiões, em que o vira disposto e na companhia de duas ou três pessoas de quem gostava, nunca lhe ouvira uma conversa interessante. Ele não a aborrecia, apenas deixava-a indiferente.

 

Embora tivesse encontrado sua mulher em vários chás, foi depois de algumas semanas em TchingYen que Kitty fez relações com Charles Townsend. Veio a conhecê-lo num jantar em sua casa, a que compareceu em companhia do marido. Lá chegando, pôs-se na defensiva. Charles Townsend era assistente do secretário colonial, e ela não se dispunha a permitir-lhe o tratamento condescendente que, malgrado as boas maneiras, via na sra. Townsend. A sala onde foram recebidos era espaçosa e, como todas as outras que conhecera em Tching-Yen, estava mobiliada de maneira simples e confortável. Havia muita gente. Ela e o marido foram os últimos a chegar, e, ao entrarem, criados chineses uniformizados serviam coquetéis e azeitonas. A sra. Townsend recebeu-os com a sua maneira algo distante e, consultando uma lista, disse a Walter qual a senhora que ele devia conduzir à mesa.

 

Kitty viu um homem alto e muito simpático inclinar-se diante deles.

 

- Meu marido.

 

- Deram-me o privilégio de sentar-me a seu lado - disse ele.

 

Kitty sentiu-se imediatamente à vontade, e perdeu a impressão de que o ambiente era hostil. Embora os olhos do sr. Townsend indicassem um sorriso, Kitty percebeu neles um rápido olhar de surpresa e muito simpático

 

Compreendeu-o perfeitamente: aquilo a predispunha ao riso.

 

- Se bem conheço Dorothy, o jantar deve estar delicioso. . . - disse ele - mas vejo que não terei grande apetite.

 

- Por quê?

 

- Ora, alguém me devia ter dito. Sim, era indispensável que me tivessem prevenido.

 

- De quê?

 

- Mas ninguém me disse uma só palavra. Assim, como saberia que, entre os convidados, ia encontrar uma beldade?

 

- E agora, que me cabe dizer?

 

- Nada. Serei só eu a falar. E a repetir muitas vezes o que já disse.

 

Kitty, imperturbável, conjeturava o que lhe teria dito a mulher a seu respeito. Ele, sem dúvida, indagara-lhe alguma coisa. E Townsend, fitando-a com os seus olhos risonhos, lembrava-se perfeitamente de suas palavras:

 

- Como é ela? - perguntara ele quando a mulher lhe dissera ter conhecido a esposa do dr. Fane.

 

- Oh, muito bonitinha. Uma boa atriz.

 

- Trabalhou no teatro?

 

- Não, não é isso. O pai é médico, advogado ou qualquer coisa parecida. Acho que temos de convidá-los para jantar.

 

- Mas não há pressa, não é?

 

Quando já estavam à mesa, lado a lado, ele observou que conhecia Walter Fane desde que chegara à colónia.

 

- Jogamos bridge juntos. Ele é de longe o melhor jogador do clube.

 

Ao voltarem para casa, Kitty contou-o ao marido.

 

- Isso não é dizer muito.

 

- E ele, como joga?

 

- Não é mau. Quando tem boas cartas, joga muito bem, mas se as cartas não ajudam sabe o que fazer.

 

- Ele joga tão bem quanto você?

 

- Não tenho ilusões sobre o meu jogo. Serei um excelente jogador de segunda categoria. Townsend acha que é de primeira. Não é.

 

- Você não gosta dele?

 

- Não gosto nem desgosto. Acho que não desempenha mal suas funções, e todos dizem tratar-se de um bom esportista. Ele não me interessa muito.

 

Não fora a primeira vez que a moderação de Walter a tinha exasperado. Indagava a si mesma qual a necessidade de tamanha prudência: ou se gostava das pessoas ou não se gostava. Quanto a ela, gostara bastante de Charles Townsend. E sem esperá-lo. Provavelmente, era ele o homem mais popular na colónia. Acreditava-se que o secretário colonial seria em breve aposentado e esperava-se que Townsend o sucedesse. Jogava ténis, pólo e golfe. Tinha cavalos de corrida. Sempre estava pronto a auxiliar quem quer que fosse. Não se deixava levar pela burocracia, nem se dava ares de importância. Sem saber por quê, Kitty experimentara um certo ressentimento ao ouvir todas as boas referências que dele lhe faziam, e só pudera concluir que ele era bastante presunçoso: tinha sido muitíssimo tola, pois era essa a última coisa de que se podia acusá-lo.

 

A noite lhe fora agradável. Falaram dos teatros de Londres, de Ascot e Cowes, e de tudo o que ela conhecia, de sorte que era como se o tivesse encontrado em alguma elegante residência da Lennox Gardens. Mais tarde, após o jantar, quando os homens foram para o salão, ele, depois de perambular pela sala, veio novamente sentar-se a seu lado. Embora nada tivesse dito de muito engraçado, fizera-a rir, talvez pelo modo como o dizia: em sua voz cheia, grave, havia um timbre acariciante; em seus olhos azuis, límpidos e bondosos, uma deliciosa expressão convidava à intimidade. Era, sem dúvida, um homem encantador, uma companhia muito agradável.

 

Alto, com mais de um metro e oitenta, pensava Kitty, e com um belo rosto; estava em boa forma e não mostrava nenhum excesso de gordura. Vestia-se bem, melhor que todos os outros, e sabia usar suas roupas. Kitty gostava de homens elegantes. Volveu os olhos para Walter: bem podia apresentar-se um pouco melhor. Observou as abotoaduras e os botões do colete de Townsend; vira iguais no Cartier. Era evidente que os Townsends possuíam recursos particulares. O rosto de Charles, bastante queimado pelo sol, nem por isto perdera as cores sadias. Kitty apreciou aquele bigode pequeno, crespo e bem-aparado que não lhe escondia os lábios cheios e rubros. Tinha cabelos pretos, curtos e alisados à escova. Mas seus olhos, sombreados pelas grossas sobrancelhas, eram sem dúvida o que nele havia de melhor: de um azul intenso, possuíam uma tenura risonha, onde a sua bondade se revelava persuasivamente. Nenhum homem que tivesse aqueles olhos azuis seria capaz de magoar quem quer que fosse.

 

Ela não deixou de perceber que lhe causara certa impressão. Se ele não houvesse dito palavras cativantes, tê-lo-iam traído os olhos, cheios de tépida admiração. Deliciosamente desembaraçado, Charles não conhecia a timidez. Kitty sentia-se à vontade e admirava sua maneira de insinuar a cada momento uma frase bonita e lisonjeira entre as pilhérias que eram o centro da palestra. Quando lhe estendeu a mão, ao retirar-se, ele apertou-a de um modo para ela inconfundível.

 

- Esperamos tornar a vê-la em breve - disse ele com muita naturalidade, mas seus olhos davam às suas palavras um sentido que ela não podia ignorar.

 

- Tching-Yen é uma cidade muito pequena, não é verdade? - disse ela.

 

Quem teria imaginado então quais seriam as suas relações dentro de três meses? Charles dissera-lhe, depois, que desde a noite do jantar ficara doido por ela - a coisa mais linda que ele jamais vira. Lembrava-se de seu vestido (Kitty usara-o no casamento), e dissera que ela parecia um lírio-do-vale. Kitty sentiuse amada antes que ele o declarasse, e, um tanto assustada, manteve-o à distância, o que não foi fácil, sendo ele impetuoso. Receava permitir-lhe um beijo, pois só ao imaginar-se em seus braços o coração batia-lhe apressado. Até então nunca se enamorara de ninguém. Era maravilhoso. E agora que sabia o que era o amor, experimentava uma inesperada simpatia pelo amor que Waiter lhe votava. Provocava-o, por brincadeira, e via que isso lhe causava prazer. Talvez ela a princípio tivesse um certo medo dele, mas agora estava mais confiante. Zombava dele e observava, divertida, o tardio sorriso com que, a princípio, ele reagia a seus gracejos. O marido se mostrava surpreso e satisfeito. Em breve, pensava ela, ele se tornaria inteiramente humano. Agora que aprendera algo sobre a paixão, Kitty divertia-se a dedilhar levemente a escala de seus afetos como uma harpista que corre os dedos pelas cordas do seu instrumento.

 

Quando se tornou amante de Charlie, a situação entre ela e Walter lhe pareceu muito absurda. Vendo-o tão grave e senhor de si, mal podia fitá-lo sem rir. Sentia-se demasiado feliz para dedicar-lhe maus sentimentos. Afinal, não fosse ele, jamais teria conhecido Charlie. Hesitara algum tempo antes de dar o passo final, não porque se recusasse a ceder à paixão de Charlie, tão grande quanto a sua, mas porque sua educação e as demais convenções sociais a intimidavam. Admirava-se depois (e o ato final foi puro acidente: nenhum deles vira a oportunidade senão quando a tiveram face a face), ao verificar que continuava a mesma de antes. Esperava uma fantástica transformação em si própria, algo que mal podia imaginar e que a faria sentir-se outra pessoa; e quando teve uma oportunidade de olhar-se no espelho, surpreendeu-se que sua imagem fosse exatamente a mesma do dia anterior.

 

- Você está Zangada comigo? - perguntou ele.

 

- Adoro-o - sussurrou ela.

 

- Não acha que foi tolice sua perder todo esse tempo comigo?

 

- Pura tolice.

 

A felicidade, quase demasiada às vezes, renovava-lhe a beleza. Quando começara a perder o frescor juvenil, puro antes do casamento, seu rosto parecera cansado e abatido. Os impiedosos diziam que ela estava fenecendo. Mas há uma grande diferença entre uma moça solteira de vinte e cinco anos e uma mulher casada da mesma idade. Tinha sido como um botão que vai amarelecendo no contorno das pétalas, e agora, de súbito, era uma rosa plenamente desabrochada. Seus olhos rútilos tornaram-se mais expressivos; sua pele (que sempre fora seu maior orgulho e motivo de seus melhores cuidados) estava maravilhosa: não se podia compará-la a um pêssego ou a uma flor, estes é que deviam ser comparados a ela. Parecia ter voltado aos dezoito anos. Atingia o auge de sua esplendente beleza. Era impossível deixar de notar essa transformação, e suas amigas perguntavam-lhe, em afetuosas conversas particulares, se esperava um bebé. As pessoas que a tinham considerado apenas uma mulher bonita de nariz comprido confessavam ter-se enganado. Kitty era o que Charlie dissera ao vê-la pela primeira vez: uma beldade.

 

Ambos conduziam sua ligação com habilidade. Ele, segundo o dissera, tinha as costas largas (”Não lhe permito gabar-se de seu porte atlético”, interrompera-o ela, gracejando), assim, nada lhe importava, mas por causa dela é que não convinha correrem o menor risco. Não podiam encontrar-se a sós frequentemente, nem a metade das vezes que ele desejava, pois devia pensar nela em primeiro lugar. Seus encontros se realizavam ora na loja chinesa, ora em casa dela, depois do almoço, quando não havia ninguém, mas Kitty o via muitas vezes aqui e ali. Nessas ocasiões, divertia-se com a maneira formal com que ele lhe falava, jovial sem dúvida, pois era esse o seu feitio, mas idêntica à que tinha para com todos. Quem imaginaria, ao ouvi-lo zombar dela com aquele seu jeito gracioso, que ele, havia pouco, a estreitara apaixonadamente nos braços?

 

Ela o adorava. Achava-o soberbo em suas elegantes botas de montar, em seu culote branco, quando jogava pólo. Em roupas de ténis parecia apenas um rapaz. Naturalmente, ele se orgulhava de seu físico: era o mais perfeito que ela conhecia. Charles não poupava cuidados para mantê-lo. Não comia batatas, nem pão, nem manteiga. Fazia muito exercício. Kitty gostava do modo como ele tratava as mãos, fazendo as unhas uma vez por semana. Era um atleta admirável e, no ano anterior, fora o campeão local de ténis. Era, sem dúvida, o melhor par com quem ela já dançara: era um sonho dançar com ele. Ninguém julgaria que tinha quarenta anos. Ela mesma lhe disse não acreditar nisso.

 

- Acho que isso é mentira e que você não tem mais de vinte e cinco.

 

Ele riu, deliciado.

 

- Mas eu tenho um filho de quinze, meu bem. Já estou alcançando a idade provecta. Dentro de dois ou três anos, serei apenas um velhote gordo.

 

- Você será adorável mesmo com cem anos.

 

Ela gostava de suas sobrancelhas pretas e grossas. Não seriam elas que davam aos seus olhos azuis aquela expressão perturbadora?

 

Tinha muitos predicados. Tocava piano muito bem - ragtime, naturalmente - e cantava uma canção humorística com boa voz e espírito alegre. Kitty não acreditava haver alguma coisa que ele não pudesse fazer. Ademais, era muito competente em seu trabalho, e ela compartilhou o seu prazer quando ele lhe contou que o governador o felicitara pela solução que dera a um assunto difícil.

 

- Apesar de ser eu quem o diga - comentou ele, rindo, lançando-lhe o olhar mais fascinante por vê-la enternecer-se de amor -, não há ninguém na administração da colónia que o tivesse feito melhor.

 

Ah, como ela desejava ser a sua mulher, e não a de Walter!

 

Sim, não era certo que Walter soubesse a verdade, e, se a ignorava, talvez fosse melhor deixar as coisas como estavam; mas se ele estivesse a par de tudo, pois bem, no fim de contas seria o melhor para todos. A princípio estivera, se não satisfeita, ao menos resignada a avistar-se com Charles somente às escondidas; mas o tempo aumentara-lhe a paixão, e ultimamente era cada vez maior a sua impaciência com os obstáculos que os impediam de estar sempre juntos. Muitas vezes ele dissera amaldiçoar a situação que o obrigava a ser tão discreto e os laços que o prendiam e a manietavam; como não seria maravilhoso, dizia ele, se ambos fossem livres! compreendia-o perfeitamente: ninguém desejava um escândalo, e sem dúvida era preciso pensar muito antes de mudar o rumo da existência; porém, se a liberdade lhes fosse dada, ah, como tudo seria simples!

 

O mais provável era que ninguém sofresse muito com isso. Ela sabia precisamente quais as relações dele com a mulher. Dorothy era uma criatura fria, e desde muitos anos não havia amor entre ambos. Mantinham-se unidos pelo hábito, pelas conveniências e, como era natural, pelos filhos. Um rompimento seria mais fácil para Charlie do que para ela: Walter amava-a; contudo, estava sempre absorvido no trabalho. Um homem sempre tem o seu clube e acaba por restabelecer-se após o primeiro choque. Nada o impediria de encontrar outra mulher. Charlie dizia-lhe não compreender por que motivo ela consentira em casar-se com Walter Fane.

 

Agora, meio a sorrir, Kítty indagava de si mesma por que, havia pouco, ficara aterrorizada com a ideia de que Walter os tivesse surpreendido. Por certo aquela maçaneta a girar vagarosamente lhe causara um sobressalto. Mas, afinal, ambos sabiam o que Walter poderia fazer de pior, e estavam preparados para isso. Para Charlie, como para ela própria, seria um grande alívio receber, assim inesperadamente, aquilo que mais desejavam no mundo.

 

Walter era um cavalheiro - isso ela lhe faria a justiça de reconhecer - e amava-a; portar-se-ia corretamente e conceder-lhe-ia o divórcio. Haviam cometido um engano e tinham a sorte de reconhecê-lo antes que fosse demasiado tarde. Ela já resolvera exatamente o que iria dizer-lhe e como iria tratá-lo. Mostrar-se-ia bondosa, sorridente e firme. Era desnecessário altercarem. Mais tarde, sempre teria prazer em vê-lo. Esperava sinceramente que os dois anos de vida em comum fossem para ele uma recordação inestimável.

 

”Não creio que Dorothy Townsend queira opor-se ao divórcio”, pensava ela. ”Agora que o filho mais moço vai voltar à Inglaterra, nada melhor do que regressar com ele e ficar a seu lado. Ela não tem absolutamente nada que fazer em Tching-Yen. Na Inglaterra, poderá passar as férias com os filhos. E além disso, lá estão os seus pais.”

 

Tudo era muito simples e podia ser acomodado sem escândalo ou ressentimento. Depois, ela e Charlie se casariam. Kitty suspirou. Ambos seriam muito felizes. Para consegui-lo, valia a pena passar por certos aborrecimentos. Numa série de quadros rápidos e imprecisos, pensava na vida que levariam juntos, nos divertimentos, nas pequenas viagens que fariam, na casa onde haveriam de morar, nas posições por ele conquistadas e no quanto ela o ajudaria. Charlie se orgulharia dela e ela. . . como o adoraria!

 

Mas no fundo de todos estes sonhos havia uma ponta de apreensão. Era como se as cordas e madeiras de uma orquestra executassem melodias bucólicas, e nos graves, os tambores, distantes mas pressagos, tocassem um sinistro toque de recolher. A qualquer momento Walter regressaria, e o coração batia-lhe apressado à ideia de avistar-se com ele. Era estranho que naquela tarde ele tivesse saído sem lhe dizer uma palavra. Medo não lhe tinha, certamente. Afinal, que poderia ele fazer? repetia consigo mesma, sem afastar de todo o desassossego. Mais uma vez ensaiava o que lhe havia de dizer. De que adiantava fazer uma cena? Sentia-o muito, e só Deus sabia o quanto ela desejava não magoá-lo, mas que culpa lhe cabia se não o amava? Fingir era inútil, e dizer a verdade sempre seria melhor. Esperava que ele não ficasse abalado, mas tinham cometido um engano, e a única coisa sensata a fazer era reconhecê-lo. Sempre haveria de pensar nele com ternura.

 

Contudo, no próprio instante em que dizia a si mesma estas coisas, uma súbita onda de medo lhe umedecia de suor as palmas das mãos. E, porque estava assustada, teve raiva do marido. Se ele quisesse provocar uma cena, haveria de tê-la; e que não se surpreendesse ao ouvir mais do que esperava. Dir-lhe-ia claramente que jamais dera um vintém por ele, e que desde que se casara não passava um dia sem que se lamentasse por isso. Ele era um homem enfadonho. Oh, como a aborrecia, como a entediava! Julgava-se melhor que todos, era ridículo; incapaz de compreender um chiste; ela odiava os seus ares de superioridade, a sua frieza, o infalível domínio que tinha sobre si mesmo. Era fácil um homem dominarse quando ninguém e nada mais o interessava a não ser ele próprio. Causava-lhe repulsa. Era odioso deixar-se beijar por ele. Que motivos tinha para ser tão presunçoso? Dançava pessimamente. Nas festas era um desmancha-prazeres. Não sabia tocar ou cantar, não jogava pólo, e como tenista não era melhor do que ninguém. Bridge? Quem é que se importava com bridge?

 

Kitty entregava-se a uma fúria crescente. Ele que se atrevesse a censurá-la! Era o único culpado de tudo quanto acontecera. Felizmente ele já sabia de tudo. Ela o odiava e nunca mais queria tornar a vê-lo. Sim, daria graças se tudo já tivesse terminado. Então, não podia deixá-la em paz? Tanto ele a aborrecera que ela consentira em casar-se com ele. Agora estava farta.

 

- Farta - repetiu em voz alta, tremendo de raiva. - Farta! farta!

 

Ouviu o automóvel no portão do jardim. Walter tinha chegado.

 

Por sorte ela estava sentada no sofá quando ele entrou na sala, pois suas mãos tremiam e o coração batia-lhe descompassado. Segurava um livro aberto como se estivesse lendo. Ele se deteve um instante à porta, e os olhos de ambos se encontraram. Kitty perdeu a coragem; um arrepio súbito passou-lhe pelo corpo e ela estremeceu. Tinha essa sensação que dizem ter os mortos quando alguém lhes pisa na sepultura. O rosto dele estava mortalmente pálido; ela o vira assim uma vez, no parque, quando a pedira em casamento. Seus olhos escuros, imóveis e inescrutáveis, pareciam extraordinariamente grandes. Ele sabia de tudo.

 

- Você voltou cedo.

 

Os lábios tremiam-lhe tanto que ela mal pôde articular as palavras. Estava aterrorizada. Receava desmaiar.

 

- A hora de sempre, creio eu.

 

Sua voz parecia-lhe estranha. A última palavra fora dita em tom mais alto, para mostrar naturalidade, mas aquilo era forçado. Estaria vendo que ela tremia? A custo ela não deixou escapar um grito. Ele baixou os olhos.

 

- vou trocar de roupa - disse ele, saindo da sala.

 

Kitty ficou esmagada. Durante dois ou três minutos, não pôde fazer um só movimento, mas por fim, erguendo-se do sofá com dificuldade, como se convalescesse de uma longa doença, pôs-se de pé. Talvez as pernas não a sustentassem. Apoiando-se nas mesas e cadeiras, chegou à varanda, e ali, com uma mão na parede, foi andando até seu quarto. Enfiou um vestido de noite e, quando voltou ao seu boudoir (somente ocupavam a sala de estar quando tinham convidados), ele estava em pé junto à mesa, folheando uma Sketch. Ela teve de fazer um esforço para entrar.

 

- Vamos descer? O jantar está servido.

 

- Fiz você esperar?

 

Era terrível que ela não pudesse dominar o tremor dos lábios.

 

Ele falaria agora?

 

Sentaram-se, e por alguns momentos houve um silêncio entre ambos. Depois, ele fez um comentário que por ser tão comum pareceu sinistro:

 

- O Empress não chegou hoje. Decerto apanhou alguma tempestade e atrasou-se.

 

- Devia chegar hoje?

 

- Devia.

 

Kitty ergueu os olhos e viu que ele não afastava o olhar do prato. Walter fez outra observação, igualmente trivial, sobre um torneio de ténis a ser disputado.

 

Falava devagar. Sua voz costumava ser agradável, variando de tons, mas agora tinha sempre o mesmo timbre. Aquilo era estranhamente fora do natural. Para Kitty, a impressão era de que ele falava de muito longe. E durante todo o tempo seus olhos não se afastavam do prato, da mesa, ou de um quadro da parede. Nunca se voltavam para ela. Kitty percebeu que ele não podia encará-la.

 

- Vamos subir? - disse ele quando o jantar terminou.

 

- Se você quiser.

 

Ela levantou-se e ele abriu-lhe a porta. Tinha os olhos no chão quando ela passou. Ao chegarem à sala, ele tornou a apanhar uma revista.

 

- Essa Sketch é nova? Acho que ainda não a vi.

 

- Não sei. Não notei.

 

Havia uma quinzena que a revista estava sobre a mesa, e ela não ignorava que o marido já a lera muitas vezes. Walter abriu a revista e sentou-se. Ela voltou ao sofá e apanhou o seu livro. Geralmente, à noite, quando estavam sós, jogavam cunca ou paciência. Inclinado numa poltrona, em atitude confortável, ele parecia absorvido numa ilustração. Não virava a página. Ela tentava ler, mas não conseguia fixar os olhos. As letras dançavam. A cabeça começou a doer-lhe violentamente.

 

Quando falaria ele?

 

Permaneceram em silêncio durante uma hora. Ela desistiu de fingir que lia e, deixando o livro cair-lhe no regaço, ficou olhando para o vazio. Receava fazer o menor gesto ou o menor ruído. Calado, sem um só movimento, e ainda na mesma atitude cómoda, ele não tirava daquela ilustração seus olhos grandes e impassíveis. Tamanha imobilidade era ameaçadora. Kitty parecia ver uma fera prestes a desferir o bote.

 

Dentro em pouco, ouviu passos pesados que faziam a escada ranger. Townsend entrou e fechou a porta. Havia em seu rosto uma expressão de mau humor, mas assim que a viu, abriu-lhe o seu encantador sorriso. Tomou-a nos braços e beijou-a na boca.

 

- Então, houve alguma coisa?

 

- Só de vê-lo já me sinto melhor - sorriu ela.

 

Ele sentou-se na cama e acendeu um cigarro.

 

- Você parece um tanto cansada esta manhã.

 

- Não admira, se não fechei os olhos durante toda a noite.

 

Ele fitou-a. Ainda sorria, mas o sorriso era um tanto forçado e artificial. Kitty julgou ver-lhe nos olhos uma sombra de ansiedade.

 

- Ele sabe - disse ela.

 

Houve uma pausa antes que Charlie respondesse.

 

- Sabe o quê?

 

- Não me disse.

 

- Como! - Townsend olhou vivamente para ela. - Então, por que você acha que ele sabe?

 

- Por tudo. Pelo olhar dele. Pelo modo como falou comigo durante o jantar.

 

- Mostrou-se agressivo?

 

- Não, ao contrário, foi escrupulosamente cortês. Pela primeira vez desde que nos casamos, não me beijou ao dar-me boa-noite.

 

Kitty baixou os olhos. Não estava certa de que Charlie compreendesse. Habitualmente, Walter tomava-a nos braços, colava os lábios nos dela e não os deixava. E ao beijá-la, todo o seu corpo enlanguescia, apaixonado.

 

- Você não pode imaginar por que motivo ele não disse nada?

 

- Não.

 

Fez-se silêncio. Sentada no baú de sândalo, muito quieta, Kitty olhava com ansiosa atenção para Townsend. De cenho franzido, ele mais uma vez mostrava enfado. Os cantos de sua boca estavam ligeiramente caídos. Mas, de repente, ele se compôs, seus olhos brilharam, divertidos e maliciosos.

 

- Será que ele vai dizer alguma coisa?

 

Ela não respondeu. Ignorava o que Charlie tinha em mente.

 

- Enfim, ele não será o primeiro marido a fechar os olhos num caso desses. Que poderia ganhar com um escândalo? Se ele quisesse um escândalo, teria insistido em entrar no quarto. - Seus olhos cintilavam, e seus lábios abriam-se num amplo sorriso. - Devíamos formar um belo par de tolos, lá no quarto.

 

- Eu queria que você tivesse visto o rosto dele ontem à noite.

 

- Calculo que estivesse abalado. Naturalmente, foi um choque. É uma situação muitíssimo humilhante para qualquer homem. Mas ele sempre me pareceu um tolo. Não me dá a impressão de um sujeito disposto a lavar a roupa suja em público.

 

- Não, não faria tal coisa - respondeu ela, pensativa. - Descobri que ele é muito sensível.

 

- Pois isso é o que nos serve, Olhe, um plano muito bom é colocar-se no lugar de outro e imaginar o que se faria na sua situação. Existe uma única maneira pela qual um homem pode salvar as aparências quando se encontra em tal circunstância: fingir que ignora tudo. Aposto o que você quiser como isso é exatamente o que ele vai fazer.

 

À medida que falava, Townsend ia ficando mais vivaz. Seus olhos azuis luziam, e ele recuperava seu ar alegre e jovial. Irradiava uma animadora confiança.

 

- Não pretendo dizer nada de desagradável a respeito dele, mas, quando se trata de coisa séria, um bacteriologista não é lá grande coisa. Tudo indica que serei secretário colonial quando Simmons regressar à Inglaterra, e Walter tem todo o interesse de estar bem comigo. Ele tem de pensar no estômago, como todos nós; e você acha que o Ministério das Colónias fará muito por um camarada que provoca escândalo? Pode crer que ele tem tudo a ganhar ficando calado e tudo a perder se criar um caso.

 

Kitty movia-se, inquieta. Sabia o quanto Walter era tímido e não duvidava de que o medo de um escândalo e o temor de chamar a atenção pública pudessem influenciá-lo; mas não podia acreditar que levasse em consideração qualquer vantagem material. Talvez ela não o conhecesse muito bem, mas Charlie desconhecia-o inteiramente.

 

- Você já pensou que ele está loucamente apaixonado por mim?

 

Townsend não lhe respondeu; apenas sorriulhe com um olhar gaiato. Ela conhecia e adorava aquela sua expressão encantadora.

 

- Que é? Diga logo. Eu sei que você vai dizer alguma maldade.

 

- Pois é, minha querida, as mulheres quase sempre pensam que os homens estão mais apaixonados por elas do que de fato estão.

 

Pela primeira vez ela riu. Aquela confiança a contagiava.

 

- Isso é coisa que se diga?

 

- Desconfio que ultimamente você não tenha dado muita atenção a seu marido. Talvez ele já não esteja tão apaixonado.

 

- De   qualquer   modo,   nunca   me   iludirei pensando que você é louco por mim - redarguiu

 

ela.

 

- Aí é que você se engana.

 

Ah, como fazia bem ouvi-lo falar daquele modo! Sim, ela acreditava no seu amor, e essa confiança lhe enternecia o coração. Levantando-se da cama enquanto falava, ele viera sentar-se a seu lado no baú de sândalo. Passou-lhe o braço pela cintura, dizendo:

 

- Não fatigue mais essa cabecinha de vento. Garanto-lhe que não há nada a temer. Tenho absoluta certeza de que ele fingirá ignorar tudo. Depois, estas coisas são muito difíceis de provar. Você diz que ele a ama, e bem pode ser que não queira perdêla de todo. Se você fosse minha esposa, juro que aceitaria fosse o que fosse para não perdê-la.

 

Kitty achegou-se a ele. Enlanguescia, abandonava-se. O amor que sentia por ele era quase uma tortura. Suas últimas palavras a tinham comovido. Talvez Walter a quisesse tão apaixonadamente a ponto de aceitar qualquer humilhação se, de vez em quando, ela lhe permitisse amá-la. Agora, bem podia compreender tal coisa, pois era isso o que sentia por Charlie. Um ímpeto de orgulho percorreu-a, e ao mesmo tempo uma ligeira sensação de desprezo por esse homem que podia amá-la de modo tão servil.

 

Amorosamente, ela passou o braço pelo pescoço de Charlie.

 

- Você é simplesmente maravilhoso. Eu estava tremendo como uma vara verde quando cheguei aqui, e você soube tranqüilizar-me.

 

Ele segurou-lhe o rosto e beijou-a na boca.

 

- Querida.

 

- Que bem você me faz! - suspirou ela.

 

- Não é preciso ficar nervosa. Você sabe que pode contar comigo. Nunca lhe faltarei.

 

Já não sentia medo, mas por um instante, e sem motivo algum, lamentou que seus planos para o futuro estivessem destruídos. Agora, passado o perigo, quase desejava que Walter insistisse em divorciar-se.

 

- Eu sabia que podia contar com você disse ela.

 

- Pois não havia de ser assim?

 

- Já não está na hora do seu almoço?

 

- Oh, o almoço que vá para o diabo! Puxou-a para si, apertando-a nos braços. Seus

 

lábios buscaram os dela.

 

- Oh, Charlie, deixe-me ir.

 

- Nunca.

 

Ela riu, um riso breve de amor satisfeito e de triunfo; ele tinha os olhos amortecidos de desejo. Erguendo-a e apertando-a contra o peito, para impedir que ela se fosse, ele fechou a porta.

 

Durante toda a tarde Kitty pensou no que Charlie dissera a respeito de Walter. Naquela noite jantariam fora, e quando o marido voltou do clube, ela estava se vestindo. Walter bateu à porta.

 

- Entre.

 

Ele não entrou, dizendo lá de fora:

 

- Já vou vestir-me. Demora muito a aprontar-se?

 

- Dez minutos.

 

Walter não disse mais nada e dirigiu-se para o seu quarto. Havia na sua voz o mesmo tom forçado da noite anterior. Kitty sentia-se agora inteiramente segura de si. Acabou de vestir-se e, quando ele desceu, ela já estava sentada no automóvel.

 

- Lamento tê-la feito esperar.

 

- Eu sobreviverei a isso - respondeu ela, conseguindo sorrir.

 

Fez uma ou duas observações enquanto desciam a colina, mas ele respondeu concisamente. Kitty deu de ombros; já sentia uma certa impaciência: se ele queria amuar-se, isso era com ele, a ela pouco importava. Continuaram calados até chegarem. Era um jantar de muitos convidados. Havia demasiada gente e demasiados pratos. Tagarelando alegremente com seus vizinhos, Kitty observava o marido. Estava mortalmente pálido e tinha o rosto angustiado.

 

- Seu esposo parece muito abatido. Pensei que ele suportasse bem o calor. Anda trabalhando muito?

 

- Sempre trabalha demais.

 

- Partirão em breve?

 

- Oh, sim, creio que irei ao Japão, como no ano passado. O médico diz que devo sair deste calor se não quiser arruinar a saúde.

 

Walter, ao contrário do que costumava fazer quando jantavam fora, não lhe atirou, de quando em quando, um olhar sorridente. Não a olhou sequer uma vez. Ela notara que, ao entrar no carro, ele desviara o olhar, fazendo o mesmo quando, com a delicadeza habitual, lhe dera a mão para descer. Agora, conversando com as senhoras que estavam a seu lado, tampouco sorria, olhando-as seriamente sem pestanejar: seus olhos pareciam enormes e negros como carvão, em contraste com a palidez do rosto.

 

”Ele deve ser uma companhia agradável”, pensou Kitty ironicamente.

 

A ideia daquelas infelizes senhoras tentando iniciar uma conversa fútil com semelhante máscara soturna divertia-a.

 

Estava claro que ele sabia; não havia dúvida a esse respeito. E estava furioso com ela. Por que não lhe dissera nada? Seria mesmo porque, apesar de indignado e ofendido, amava-a tanto que temia ser abandonado por ela? Isto fazia com que o desprezasse, ainda que sem malquerença: afinal de contas, era seu marido e sustentava-a; desde que ele não interferisse em sua vida e lhe permitisse fazer o que bem entendesse, seria bastante gentil com ele. Por outro lado, o silêncio dele talvez fosse apenas consequência de uma timidez doentia. Charlie tinha razão ao dizer que ninguém detestaria um escândalo mais do que Walter. Ele jamais falava em público, se pudesse evitá-lo. Certa vez lhe dissera que, ao ser chamado a depor num caso, como perito, quase não dormira durante a semana precedente. Sua timidez era uma doença.

 

E havia outra coisa: os homens são muito vaidosos, e enquanto ninguém soubesse do caso, Walter possivelmente se contentaria em ignorá-lo. Além disso, talvez Charlie tivesse razão ao dizer que Walter precisava pensar no estômago. Charlie era o homem mais popular da colónia, e em breve chegaria a secretário. Poderia ser muito útil a Walter; e também muito desagradável se Walter quisesse criar um caso. Sentiu o coração exultar ao pensar na energia e na resolução do amante; sentia-se tão indefesa em seus braços viris! Os homens eram estranhos: nunca lhe teria ocorrido que Walter fosse capaz de tal baixeza, e contudo nunca se podia afirmar nada; talvez sua seriedade fosse apenas o disfarce de um caráter mesquinho e embusteiro. Quanto mais considerava tal coisa, mais lhe parecia provável que Charlie tivesse razão. Tornou a relancear os olhos para o marido: neles não havia indulgência.

 

Justamente naquele instante, as senhoras que estavam a seu lado conversavam com os vizinhos, e ele ficara só. Olhava fixamente para a frente, esquecido do jantar, e seus olhos estavam cheios de uma tristeza mortal. Kitty sobressaltou-se.

 

No dia seguinte, quando ela estava deitada depois do almoço, cochilando, foi despertada por uma batida à porta.

 

- Quem é? - exclamou, irritada. Ninguém a perturbava àquela hora.

 

- Eu.

 

Reconheceu a voz do marido e sentou-se rapidamente.

 

- Entre.

 

- Acordei-a?

 

- Sim, eu estava dormindo - respondeu ela no tom natural que durante os dois últimos dias havia adotado para com ele.

 

- Quer chegar até a salinha? Preciso conversar um pouco com você.

 

O coração pulsou-lhe fortemente.

 

- vou vestir qualquer coisa.

 

Walter retirou-se. Ela calçou umas chinelas e envolveu-se num quimono. Olhou-se no espelho: estava muito pálida. Pôs um pouco de ruge. Deteve-se um instante à porta, reunindo forças, e depois saiu resolutamente.

 

- Como é que você pôde sair do laboratório a esta hora? Raramente o vejo durante a sesta.

 

- Quer sentar-se?

 

Ele disse isto num tom grave e sem olhá-la. Kitty apressou-se em obedecê-lo; seus joelhos começavam a tremer, e ela silenciou, incapaz de manter aquele tom jocoso. Ele também se sentou e acendeu um cigarro. Seus olhos percorriam inquietamente a sala. Dava a impressão de ter dificuldade em iniciar o assunto.

 

Subitamente, voltou-se para ela, olhando-a de frente; e, como até então ele tivesse desviado os olhos, esse olhar direto assustou-a de tal modo que Kitty abafou um grito.

 

- Já ouviu falar de Mei-tan-fu? - perguntou ele. - Há dias que os jornais não tratam de outra coisa.

 

Ela mirou-o, atónita. Hesitou um pouco.

 

- Não é o lugar onde há uma epidemia de cólera? Ontem à noite o sr. Arbuthnot falava a esse respeito.

 

- É uma epidemia, sim. Acho que a pior em muitos anos. Havia lá um missionário médico. Morreu de cólera há três dias. Há também um convento francês e o pessoal da alfândega. Todos os demais partiram.

 

Ainda tinha os olhos fixos nela, e Kitty não podia baixar os seus. Procurou ler-lhes a expressão, mas estava nervosa e só podia perceber uma estranha atenção. Como podia olhá-la tão fixamente?

 

-- As freiras francesas estão fazendo o que podem. Transformaram o orfanato em hospital. Mas morre gente como mosca. Ofereci-me para tomar conta do hospital.

 

- Você?

 

Kitty estremeceu. Seu primeiro pensamento foi de que, se ele partisse, ela ficaria livre para encontrar-se com Charlie sem quaisquer dificuldades. Mas esse pensamento a chocou. Sentiu que ruborizava. Por que ele a olhava daquela maneira? Embaraçada, ela desviou o olhar.

 

- Isso é necessário? - gaguejou ela.

 

- No lugar não há um só médico estrangeiro.

 

- Mas você não é médico, é bacteriologista.

 

- Sou formado em medicina, como você sabe; antes de especializar-me em bacteriologia trabalhei muito tempo num hospital. O fato de que eu seja em primeiro lugar um bacteriologista vem a calhar. Será uma ótima oportunidade para um trabalho de pesquisa.

 

Walter falava quase levianamente, e quando ela tornou a fitá-lo percebeu, com surpresa, que seus olhos tinham uma expressão de zombaria. Não podia compreendê-lo.

 

- Mas isso não será muitíssimo perigoso?

 

- Muitíssimo.

 

Ele sorriu. Era uma máscara irónica. Kitty inclinou a cabeça e pôs a mão na testa. Suicídio. Nada menos do que isso. Terrível! Não tinha pensado que ele levasse a coisa tão a sério. Era cruel. Seria culpada por não amá-lo? Não podia suportar a ideia de que ele se matasse por sua causa. As lágrimas começaram a correr-lhe mansamente pelas faces.

 

- Por que está chorando?

 

’       Havia certa frialdade na voz dele.

 

- Você não é obrigado a ir, é?

 

- Não, vou por minha livre e espontânea vontade.

 

- Por favor, Walter, não vá. Seria terrível se lhe acontecesse alguma coisa. E se você morresse?

 

Malgrado o rosto impassível, a sombra de um sorriso passou-lhe pelos olhos. Ele não respondeu.

 

- Onde fica esse lugar? - perguntou ela, depois de uma pausa.

 

- Mei-tan-fu? À margem de um dos tributários do rio Western. Nós subiremos o rio e depois iremos em cadeirinha.

 

- Nós, quem?

 

- Você e eu.

 

Ela ergueu rapidamente os olhos. Julgou ter ouvido mal. Mas o sorriso que o olhar dele insinuava já estava em seus lábios. E os seus olhos escuros fitavam-na intensamente.

 

- Espera que eu também vá?

 

- Achei que você gostaria de ir. Kitty começou a ofegar.

 

- Mas absolutamente não é lugar para uma mulher. Já faz algumas semanas que o missionário mandou a esposa e os filhos para cá. O coletor e a mulher também vieram. Encontrei-a num chá. Lembro-me agora de tê-la ouvido dizer que tinham vindo por causa da cólera.

 

- Lá estão cinco freiras francesas. O pânico apoderou-se dela.

 

- Não sei o que você quer dizer. Seria uma loucura se eu fosse. Você sabe o quanto sou delicada. O dr. Hayward disse que preciso sair de Tching-Yen por causa do calor. Eu não resistiria ao calor desse lugar. Nem à cólera. Enlouqueceria de medo. Isso é querer procurar dificuldades. Não há razão para eu ir. Eu morreria.

 

Ele não respondeu. Ela olhou-o com desespero e mal pôde conter um grito. O rosto de Walter tinha uma espécie de palidez sombria que de repente a aterrorizou. Via nele um olhar de ódio. Era possível que ele lhe desejasse a morte? Ela mesma respondeu a essa ideia:

 

- É absurdo. Se você pensa que deve ir, isso é com você. Mas não pode esperar que eu também vá. Detesto doenças. Uma epidemia de cólera! Não pretendo ser corajosa, e não me importo de dizer que não tenho ânimo para tal coisa. Ficarei aqui até o momento de ir para o Japão.

 

- Pois pensei que você desejaria acompanharme quando eu partisse para uma expedição perigosa.

 

Agora ele zombava dela abertamente. Kitty estava confusa. Não sabia ao certo se ele falava a sério ou apenas tentava amedrontá-la.

 

- Acho que ninguém me reprovaria por não querer ir a um lugar perigoso, onde não tenho nada o que fazer e não seria de nenhuma utilidade.

 

- Você teria a maior utilidade. Poderia animar-me e confortar-me.

 

Ela empalideceu ainda mais.

 

- Não entendo o que você diz.

 

- Para isso não é necessário uma grande inteligência.

 

- Não vou, Walter. Pedir-me isso é uma coisa monstruosa.

 

- Então eu também não irei. vou imediatamente arquivar o meu requerimento.

 

Ela fitou-o sem expressão. O que ele acabava de dizer era tão inesperado que no primeiro momento o sentido de suas palavras quase lhe escapara.

 

- Mas de que diabo está você falando? gaguejou.

 

Até para ela essa pergunta soava falso, e no rosto grave de Walter a resposta foi um olhar de desprezo.

 

- Quer me parecer que você me julgou um tolo maior do que sou.

 

Ela não sabia ao certo o que dizer. Hesitava entre uma indignada manifestação de inocência e uma furiosa torrente de censuras. Ele pareceu ler-lhe os pensamentos.

 

- Tenho todas as provas necessárias.

 

Kitty começou a chorar. As lágrimas lhe caíam sem angústia, e ela não as enxugava; o choro lhe dava certo tempo para recompor-se. Mas nenhuma ideia lhe ocorria. Ele a observava sem interesse, e sua calma assustava-a. Walter impacientou-se.

 

- Não é chorando que você remediará a situação.

 

O tom áspero e frio com que ele disse estas palavras despertou nela certa indignação. Kitty começou a recuperar o domínio de si mesma.

 

- Pouco me importa. Acho que você não se oporá ao divórcio. Para um homem isso não significa coisa alguma.

 

- Permita-me perguntar-lhe por que motivo eu me daria o menor incómodo por sua causa?

 

- Isso não lhe fará nenhuma diferença. Não é muito pedir que você proceda como um cavalheiro.

 

- Tenho   demasiada consideração pelo   seu bem-estar.

 

Ela aprumou-se na cadeira e enxugou os olhos.

 

- Que quer dizer com isso?

 

- Townsend somente se casaria com você se houvesse um processo e o caso fosse tão vergonhoso que a mulher dele se visse forçada ao divórcio.

 

- Você não sabe de que está falando - exclamou ela.

 

- Sua tola!

 

Havia tal desprezo na voz dele que Kitty ficou vermelha de raiva. E essa raiva talvez fosse maior porque ela nunca lhe ouvira senão palavras doces, agradáveis e lisonjeiras. Estava habituada a vê-lo submisso diante de todos os seus caprichos.

 

- Se você quer saber a verdade, pode saber. Ele está ansioso por casar-se comigo. Dorothy Townsend está perfeitamente disposta a conceder o divórcio, e nós nos casaremos assim que estivermos livres.

 

- Ele lhe disse tal coisa com essas mesmas palavras ou é você que tem essa impressão?

 

Os olhos de Walter brilhavam com acerba zombaria. E faziam-na sentir-se um tanto inquieta. Ela não estava muito certa de que Charlie tivesse dito aquilo com tantas palavras.

 

- Disse e redisse.

 

- Isso é mentira, e você sabe que é mentira.

 

- Ele me ama de corpo e alma. Ama-me tão apaixonadamente quanto eu o amo. Já que você descobriu tudo, não vou negar coisa alguma. Por que haveria de negar? Somos amantes há um ano, e orgulho-me disso. Ele representa tudo o que há no mundo para mim, e muito me apraz que você não ignore mais nada. Estamos fartos de esconder-nos, de transigir e de tudo o mais. Casar com você foi um grande erro. Eu nunca deveria ter feito tal coisa. Fui uma tola. Nunca me interessei por você. Nós jamais tivemos coisa alguma em comum. Não gosto das pessoas de que você gosta, e as coisas que lhe agradam me aborrecem mortalmente. Dou graças a Deus que tudo tenha acabado.

 

Ele a olhava sem fazer um gesto e com o rosto imóvel. Ouvia-a atentamente, e nenhuma mudança de expressão indicava que as palavras dela o atingiam.

 

- Sabe por que me casei com você?

 

- Porque queria casar-se antes de sua irmã Doris.

 

Era verdade, mas verificar que ele o sabia causou-lhe certo choque. Por estranho que fosse, até naquele momento de medo e cólera se sentia compadecida. Ele esboçou um sorriso.

 

- Eu não tinha ilusões a seu respeito. Sabia que era tola, frívola e tinha a cabeça vazia. Mas eu a amava. Sabia que seus ideais e objetivos eram vulgares. Mas eu a amava. Sabia que era uma pessoa de segunda classe. Mas eu a amava. É cómico lembrar do quanto me esforcei para divertir-me com as coisas que a divertiam, e do quanto eu procurava esconder que não era ignorante, vulgar, maledicente e estúpido. Eu sabia o quanto a inteligência lhe fazia medo e tentei tudo para lhe dar a impressão de que era um tolo tão grande quanto os homens que você conhecia. Sabia que você somente se casaria comigo por conveniência. Eu a amava tanto que isso não me fazia diferença. Muitas pessoas, até onde pude observar, sentem uma espécie de ressentimento quando amam alguém e esse amor não é correspondido. Tornam-se furiosas e amargas. Não foi assim comigo. Nunca esperei que você me amasse nem encontrei um motivo que a pudesse levar a amar-me, pois nunca me julguei capaz de inspirar amor. Eu era grato a você por me permitir amá-la e sentia-me enlevado quando, às vezes, você ficava satisfeita comigo, ou quando eu via nos seus olhos um lampejo de afeição bemhumorada. Procurei não aborrecê-la com meu amor. Eu sabia que não tinha esse direito e sempre estava à espreita de um primeiro sinal de sua impaciência diante do meu afeto. O que a maioria dós maridos espera como um direito eu estava pronto a receber como um favor.

 

Acostumada às lisonjas durante toda a vida, Kitty nunca tinha ouvido tais coisas. Uma raiva cega, nascida do medo, assenhoreou-se dela e parecia sufocá-la, fazendo que ela sentisse o sangue pulsar nas têmporas. A vaidade ferida pode tornar uma mulher mais vingativa do que uma leoa à qual roubaram os filhotes. O maxilar de Kitty, já um tanto quadrado, adquiriu uma saliência simiesca, e seus belos olhos apertaram-se de maldade. Mas ela conseguiu dominar-se.

 

- Se um homem não tem o necessário para que uma mulher o ame, a culpa é dele e não dela.

 

- Evidentemente.

 

O tom de mofa aumentou-lhe a irritação. Contudo, sentiu que, mantendo-se calma, podia feri-lo mais.

 

- Não sou muito instruída nem muito inteligente. Sou apenas uma moça como as outras. Gosto das coisas que a gente com quem vivi toda a minha vida aprecia. Gosto de dançar, de jogar ténis, de ir ao teatro, e admiro os homens que sabem jogar. É absolutamente certo que sempre me aborreci em sua companhia e com as coisas que você aprecia. Elas não me dizem nada, nem eu as quero. Você me arrastou por aquelas intermináveis galerias de Veneza quando eu   teria   muito   maior prazer jogando golfe   em Sandwich.

 

- Sei disso.

 

- Lamento não ter sido tudo o que você esperava que eu fosse. É pena, mas eu sempre o achei fisicamente desagradável. Você não poderá censurarme por isso.

 

- Não, não posso.

 

Kitty enfrentaria mais facilmente a situação se ele tivesse perdido a calma e ficado furioso. Oporia violência à violência. Mas seu autocontrole era inumano. Kitty odiou-o como nunca o havia odiado.

 

- Acho que você, afinal de contas, não é um homem. Por que não invadiu o quarto, sabendo que eu estava lá com Charlie? Você ao menos podia tentar surrá-lo. Ou teve medo?

 

Mas ao terminar a frase, corou, sentindo-se envergonhada. Ele não contestou, mas em seus olhos ela percebeu um gélido desprezo. A sombra de um sorriso brincava em seus lábios.

 

- Bem pode ser que, como uma personagem histórica, eu seja demasiado orgulhoso para brigar.

 

Incapaz de achar o que dizer, Kitty encolheu os ombros. Por um instante, enfrentou o olhar fixo do marido.

 

- Creio que já disse tudo o que tinha a dizer. Se você não quer ir a Mei-tan-fu, requererei que meu pedido seja cancelado.

 

- Por que você não me concede o divórcio?

 

Desviando finalmente o olhar, Walter sentouse e acendeu um cigarro. Fumou-o até o fim sem dizer palavra. Depois, jogando fora a ponta, sorriu e voltou a fixá-la.

 

- Se a sra. Townsend me garantir que se divorciará do marido, e se ele me prometer por escrito que casará com você uma semana após a sentença dissolutória, eu lhe concederei o divórcio.

 

Havia em sua maneira de falar qualquer coisa que a desconcertava. Mas o amor-próprio obrigava-a a aceitar cerimoniosamente a oferta.

 

- É muita generosidade sua, Walter.

 

Para espanto dela, ele teve subitamente um acesso de riso. Kitty carregou o cenho.

 

- De que está rindo? Não vejo nenhum motivo para riso.

 

- Perdão, minha cara, mas meu senso de humor é um tanto peculiar.

 

Ela gostaria de dizer alguma coisa amarga e contundente, mas nada lhe ocorria. Ele consultou o relógio.

 

- É melhor ir andando se quiser encontrar Townsend na repartição. Se você resolver partir comigo para Mei-tan-fu, precisamos embarcar depois de amanhã.

 

- Quer que eu fale hoje mesmo com ele?

 

- Dizem que o melhor momento é o presente.

 

O coração de Kitty começou a pulsar mais rápido. Não se sentia inquieta, sentia-se. . . não sabia como. Desejaria dispor de mais algum tempo, a fim de preparar Charlie. Tinha, contudo, a maior confiança nele, que a amava tanto quanto ela o amava; o simples pensamento de que ele pudesse não aceitar de bom grado a situação que lhes era imposta constituía uma deslealdade. Voltou-se, pois, gravemente para Walter.

 

- Acho que você não sabe o que é o amor. Não pode imaginar o quanto Charlie e eu nos amamos. Só isso é o que importa, e qualquer sacrifício exigido pelo nosso amor será leve como uma pluma.

 

Ele fez uma ligeira curvatura, mas permaneceu calado e acompanhou-a com o olhar enquanto ela se retirava da sala em passos medidos.

 

Kitty mandou entregar a Charlie um bilhete no qual escrevera: ”Preciso vê-lo. É urgente”. Um contínuo chinês pediu-lhe que esperasse e pouco depois veio informá-la de que o sr. Townsend a receberia dentro de cinco minutos. Estava nervosíssima. Quando foi por fim introduzida no gabinete, Charlie levantou-se para apertar-lhe a mão, mas, assim que o contínuo fechou a porta, deixando-os a sós, ele abandonou o ar de atenciosa formalidade.

 

- Ora, querida, você não devia vir aqui durante as horas de trabalho. Tenho muitíssimo que fazer, e não devemos dar motivo a falatórios.

 

Ela fitou-o demoradamente com seus belos olhos e quis sorrir, mas tinha os lábios rígidos e não pôde fazê-lo.

 

- Eu não teria vindo se não fosse necessário. Townsend sorriu e segurou-lhe o braço.

 

- Bem, já que está aqui, sente-se.

 

Era uma sala comprida, nua, estreita e de teto muito alto; as paredes eram pintadas em dois tons de terracota. A única mobília consistia em uma mesa grande, uma cadeira giratória, ocupada por Townsend, e uma poltrona de couro para os visitantes, na qual Kitty se sentiu um tanto inibida. Charlie sentouse à mesa. Ela ainda não o tinha visto de óculos e ignorava que ele os usasse. Quando ele notou que era observado, tirou-os.

 

- Uso-os somente para ler.

 

As lágrimas lhe brotaram fáceis, /ela, mal sabendo por quê, começou a chorar. Não tinha uma intenção premeditada, apenas um instintivo desejo de despertar-lhe a simpatia. Ele olhou-a sem compreendê-la.

 

- Há alguma coisa? Por favor, não chore, minha querida.

 

Ela tirou o lenço e procurou sufocar os soluços. Townsend apertou a campainha e dirigiu-se ao contínuo que assomou à porta:

 

- Se alguém me procurar, diga que não estou.

 

- Sim, senhor.

 

O chinês fechou a porta. Charlie sentou-se num braço da poltrona e enlaçou os ombros de Kitty.

 

- Vamos, minha pequena, conte-me tudo.

 

- Walter quer o divórcio.

 

Kitty sentiu que a pressão do braço dele em seu ombro diminuiu. Charlie ergueu o corpo. Após um momento de silêncio, levantou-se da poltrona e foi sentar-se em sua cadeira.

 

- Explique-me isso claramente.

 

Devido ao seu tom de voz, ela ergueu rapidamente os olhos, e viu que o rosto dele estava avermelhado.

 

- Tive uma conversa com ele. Saí de casa para vir aqui. Ele diz que tem todas as provas de que necessita.

 

- Você não se comprometeu, não é? Não admitiu coisa alguma, não?

 

Kitty sentiu que o chão afundava.

 

- Não - respondeu ela.

 

- Está bem certa disso? - perguntou Townsend, olhando-a com severidade.

 

- Estou - mentiu ela novamente.

 

Ele recostou-se na cadeira e ficou olhando distraidamente para uma mapa da China que havia na parede à sua frente. Ela observava-o com ansiedade. Estava um tanto desconcertada pelo modo com que ele recebera a notícia. Tinha esperado que ele a tomasse nos braços e lhe dissesse o quanto agradecia aquilo, uma vez que poderiam ficar juntos para sempre. Sim, não havia dúvida de que os homens eram estranhos. Chorava agora suavemente, não mais para despertar simpatia, mas porque chorar lhe parecia um gesto natural.

 

- Em boa nos metemos - disse ele por fim. - Mas não devemos perder a cabeça. Chorar não nos adiantará coisa alguma.

 

Ela notou irritação na voz dele e enxugou os olhos.

 

- Não tenho culpa, Charlie. Não criei esta situação por gosto.

 

- Está claro que não. Foi puro azar. Tenho tanta culpa quanto você. Agora o que temos a fazer é descobrir um jeito de safar-nos. Creio que, tanto quanto eu, você não deseja divorciar-se.

 

Kitty abafou uma exclamação. E depois de olhá-lo atentamente, convenceu-se de que ele não estava pensando nela.

 

- Quais serão as provas que ele tem? Não vejo como ele possa provar que estávamos juntos naquele quarto. Tomamos todas as precauções que qualquer pessoa tomaria. Tenho certeza de que o velhote da loja não nos denunciaria. Mesmo que ele nos tenha visto entrar lá, não há motivos para que não possamos ir juntos à procura de quinquilharias chinesas.

 

Falava mais consigo próprio do que com ela.

 

- É muito fácil fazer acusações, mas prová-las é coisa diferente. Qualquer advogado lhe dirá isso. O que temos a fazer é negar tudo, e se ele nos ameaçar com um processo, nós lhe diremos que vá para o diabo e nos defenderemos.

 

- Eu não poderia ir ao tribunal, Ch -Sie.

 

- Mas por que não? Você precisa ter paciência; isso é necessário. Deus sabe o quanto eu não desejo um escândalo, mas não podemos ficar sem fazer nada.

 

- Por que precisamos defender-nos?

 

- Ora, que pergunta! Afinal de contas, não se trata só de você, mas também de mim. De um jeito ou de outro haveremos de acomodar seu marido. Só o que me preocupa é escolher a melhor maneira de fazê-lo.

 

Uma ideia pareceu ocorrer-lhe, porque ele se voltou para Kitty com seu sorriso encantador e, num tom de voz que já não era ríspido e impessoal como havia pouco, mas insinuante, disse:

 

- Você ficou muito nervosa, querida. Isso é uma maldade com você - disse ele, tomando-lhe a mão. - Estamos num aperto, mas haveremos de livrar-nos dele. Não é. . .

 

Charlie interrompeu-se, e ela suspeitou que a frase seria: ”Não é a primeira vez que me vejo em tais apuros”.

 

- O importante - dizia ele - é manter a cabeça no lugar. Você sabe que pode contar comigo.

 

- Não estou assustada. O que Walter possa fazer não me importa.

 

Ele ainda sorria, mas era um sorriso um tanto forçado.

 

- Se a coisa for de mal a pior, terei que falar ao governador. Ele me dirá poucas e boas, mas é um bom sujeito e um homem do mundo. Acabará dando um jeito. Escândalo é coisa que também não lhe convém.

 

- Que é que ele pode fazer? - perguntou Kitty.

 

- Pode exercer pressão sobre Walter. Se não conseguir dominá-lo pela ambição, apelará para o seu dever de funcionário.

 

Kitty ia desanimando. Não parecia capaz de fazer Charlie compreender o quanto a situação era grave. Aquela quase despreocupação impacientava-a. Fizera mal em procurá-lo na repartição. O ambiente intimidava-a. Teria sido muito mais fácil dizer as coisas que desejava dizer se estivesse nos braços dele e pudesse enlaçar-lhe o pescoço.

 

- Você não conhece Walter - disse ela.

 

- Sei que todos os homens têm o seu preço. Ela amava Charlie de todo o coração, mas esta resposta desconcertou-a: um homem tão inteligente não podia dizer semelhante estupidez.

 

- Parece-me que você não faz uma ideia da cólera de Walter. É porque não viu o olhar dele.

 

Townsend demorou um pouco a responder, olhando-a com um leve sorriso. Kitty sabia o que ele estava pensando. Walter era o bacteriologista e ocupava uma posição subordinada: muito dificilmente teria o atrevimento de incomodar as autoridades superiores da colónia.

 

- De nada vale enganar-se, Charlie - observou ela com seriedade. - Se Walter resolveu iniciar um processo de divórcio, nada do que você ou qualquer outra pessoa possa fazer terá a menor influência.

 

O rosto dele tornou a ensombrecer-se.

 

- Ele pensa colocar-me na posição de co-réu?

 

- A princípio. Depois, consegui que ele me deixasse requerer o divórcio.

 

- Ah! mas então a coisa não é tão feia. - A fisionomia de Charlie desanuviou-se, e Kitty viu-lhe nos olhos uma expressão de alívio. - Essa me parece uma saída muito boa. Afinal de contas, é o mínimo que um homem pode fazer, e, aliás, a única coisa decente.

 

- Mas ele estabelece uma cond,;âão. Charlie pareceu refletir, lançancy-lhe um olhar inquiridor.

 

Kitty permaneceu calada. O amante estava dizendo coisas que ela jamais pensara ouvir de seus lábios. E estas coisas dificultavam o que ela tinha a dizer. Imaginara despejar tudo de um fôlego, presa nos seus braços adorados, com o rosto em chamas escondido em seu peito.

 

- Ele concordará com o divórcio se sua mulher lhe garantir que se divorciará de você.

 

- Nada mais?

 

Kitty mal pôde encontrar a voz.

 

- E... é difícil dizer, Charlie. . . parece horrível. . .   e se você prometer casar-se comigo uma semana após a efetivação do divórcio.

 

Ele ficou um instante em silêncio. Depois, tomou-lhe a mão e apertou-a suavemente.

 

- Você sabe, querida. . . Aconteça o que acontecer, temos de manter Dorothy fora disto.

 

Ela olhou-o inexpressivamente.

 

- Mas não compreendo. Como poderíamos?

 

- Não podemos pensar só em nós. Não preciso dizer-lhe que, se as circunstâncias fossem outras, a coisa que eu mais desejaria era casar-me com você. Mas isso está completamente fora de questão. Conheço Dorothy:   nada   a induziria   a divorciar-se de mim.

 

Kitty ia ficando terrivelmente assustada. Recomeçou a chorar. Ele levantou-se e veio sentar-se a seu lado, passando-lhe o braço pela cintura.

 

- Procure não ficar nervosa, querida. Precisamos manter a cabeça no lugar.

 

- Eu pensei que você me amasse. . .

 

- Está claro que a amo - disse ele ternamente. - Agora é que de modo nenhum você pode duvidar disso.

 

- Se ela não quiser divorciar-se, Walter citará você como co-réu.

 

Decorreu um tempo apreciável antes que ele respondesse. Por fim, disse secamente:

 

:- Isso por certo arruinaria minha carreira, mas acho que não lhe traria nenhuma vantagem. Se a situação se agravar, falarei sem rodeios com Dorothy. Ela ficará muito ofendida e sofrerá bastante, mas me perdoará. - Ocorreu-lhe uma ideia. Talvez seja melhor enfrentar diretamente a situação. Se ela fosse falar com o seu marido, tenho confiança em que haveria de persuadi-lo a calar-se.

 

- Então você não quer o divórcio?

 

- Bem, tenho de pensar em meus filhos, não é verdade? E naturalmente não quero a infelicidade de Dorothy. Sempre nos entendemos muito bem. Ela tem sido para mim uma esposa muito boa, como você sabe.

 

- E por que me disse que ela não significava coisa alguma para você?

 

- Eu nunca disse tal coisa. Disse que não estava 83

apaixonado por ela. Há muitos anos que só dormimos juntos em certas ocasiões, no dia de Natal, por exemplo, ou na véspera de ela partir para a Inglaterra, ou no dia em que regressa. Ela não é mulher que se interesse muito por essas coisas. Mas temos sido excelentes amigos. Não me custa dizer-lhe que dependo mais dela do que se possa pensar.

 

- Sendo assim, não acha que teria sido melhor deixar-me em paz? t

 

Ela própria achou estranho que, dom; 7ada pelo terror, como estava, pudesse falar tão calmamente.

 

- Você foi a coisa mais linda que encontrei em muitos anos. Fiquei doidamente apaixonado. Não foi minha culpa.

 

- Afinal, você disse que nunca me desampararia.

 

- Mas, Deus do céu, não vou desampará-la. Estamos em apuros, e farei tudo o que for humanamente possível para defendê-la.

 

- Exceto a coisa mais natural a fazer.

 

Ele pôs-se em pé e voltou para a sua cadeira.

 

- Minha cara, você deve ser razoável. É melhor enfrentarmos a situação francamente. Não quero magoá-la, mas tenho de dizer-lhe a verdade. Prezo muito a minha carreira. Não vejo razão por que eu não venha a ser governador qualquer dia, e o cargo de governador da colónia é excelente. A menos que consigamos abafar este assunto, não terei a menor oportunidade. Talvez eu não seja obrigado a abandonar meu cargo, mas ficarei marcado para sempre. Se tiver de deixar meu emprego, irei para a China, onde tenho relações. Em qualquer caso, preciso que Dorothy esteja a meu lado.

 

- Então havia necessidade de dizer-me que eu era a única coisa no mundo que você desejava?

 

Charlie fez um muxoxo de impaciência.

 

- Ora, querida, não se deve tomar ao pé da letra o que um homem diz quando está amando alguém.

 

- Mas você não era sincero? -- Quando disse, era.

 

- E o que será de mim se Walter exigir o divórcio?

 

- Se de fato não tivermos onde agarrar-nos, está claro que não tentaremos contestar as acusações. Não haverá nenhuma publicidade: além disso, hoje em dia as pessoas são mais tolerantes.

 

Pela primeira vez Kitty pensou em sua mãe. Estremeceu. Tornou a olhar para Townsend. Já havia certo ressentimento na dor que se apoderava dela.

 

- Estou certa de que você não terá nenhuma dificuldade de suportar qualquer inconveniência que venha a sofrer - disse ela.

 

- Dizendo coisas desagradáveis um ao outro não chegaremos a parte alguma - respondeu ele.

 

Kitty deixou escapar uma exclamação de desespero. Era horrível amá-lo tão dedicadamente e, ao mesmo tempo, guardar-lhe rancor. Não era possível que Charlie avaliasse tudo o que ele representava para ela.

 

- Oh! Charlie, você não sabe quanto eu o amo?

 

- Mas, minha cara, eu também a amo. Acontece apenas que não vivemos numa ilha deserta e precisamos tirar o melhor partido da situação em que nos meteram. Francamente, você deve ser razoável.

 

- Como posso ser razoável?   Para mim, o nosso amor era tudo, e você era toda a minha vida. Não é muito agradável perceber que para você esse amor era apenas um episódio.

 

- Não era um episódio, não. Mas quando você me pede que eu obrigue minha mulher, a quem sou tão ligado, a divorciar-se de mim, e que arruine minha carreira casando-me com você, sabe que está pedindo muito.

 

- Não é mais do que estou pronta a dar.

 

- As circunstâncias são um tanto diferentes.

 

- A única diferença é que você não me ama.

 

- Pode-se amar muito a uma mulher sem desejar passar com ela o resto da vida.

 

Kitty lançou-lhe um olhar rápido, sentindo-se desesperada. Grossas lágrimas rolaram-lhe pelas faces.

 

- Oh, como é cruel! Como é que você pode ser tão sem coração?

 

Começou a soluçar nervosamente. Ele atirou um olhar ansioso para a porta.

 

- Procure dominar-se, minha querida.

 

- Você não sabe quanto eu o amo - soluçou ela. - Não posso viver sem você. Não tem pena de mim?

 

Não podia falar mais. Desatou em pranto.

 

- Não quero ser desumano, Deus do céu! Não quero magoá-la, mas tenho de dizer-lhe a verdade.

 

- É o fim de toda a minha vida. Por que você não me deixou em paz? Que mal lhe fiz eu?

 

- Se você encontra alguma satisfação pondo toda a culpa em mim, pode pôr.

 

Kitty deixou-se arrebatar pela cólera.

 

- É isso mesmo, fui eu que me atirei em seus braços. Fui eu que não o deixei em paz até que você cedeu.

 

- Não estou dizendo tal coisa. Mas eu certamente nunca teria pensado em fazer-lhe a corte se você não me tivesse mostrado com toda a clareza que estava disposta a ser cortejada.

 

Oh, como era vergonhoso! Sabia perfeitamente que ele estava com a razão. Tinha uma expressão de enfado e movia inquietamente as mãos. De quando em quando, deitava-lhe um olhar exasperado.

 

- Seu marido não a perdoará? - perguntou ele momentos depois.

 

- Nunca lhe pedi perdão.

 

Townsend cerrou instintivamente os punhos. Kitty percebeu que ele reprimia uma expressão de desagrado que lhe vinha aos lábios.

 

- Por que não o procura e confia seu destino a ele? Se ele a ama tanto como você diz, haverá de perdoá-la.

 

- Você realmente não o conhece!

 

Enxugando os olhos, ela tentou recompor-se.

 

- Charlie, eu morrerei se você me abandonar. Era levada a apelar para a sua compaixão. Devia

 

ter-lhe dito logo a verdade. Conhecendo a horrível alternativa que lhe fora imposta, sua generosidade, seu sentimento de justiça, sua hombridade despertariam com tal veemência que ele não pensaria em outra coisa senão no perigo que ela corria. Oh! quão apaixonadamente desejava sentir-se enlaçada pelos seus braços protetores e queridos!

 

- Walter quer que eu vá para Mei-tan-fu.

 

- Oh! mas nesse lugar há uma epidemia de cólera, a pior dos últimos cinquenta anos. Não é lugar para uma mulher. Você absolutamente não pode ir.

 

- Se você me abandonar, terei de ir. :       - Que quer dizer? Não entendo.

 

     - Walter vai substituir o médico missionário que morreu. E exige que eu vá com ele.

 

- Quando?

 

- Agora. Imediatamente.

 

Townsend empurrou a cadeira para trás e lançou-lhe um olhar intrigado.

 

- Eu talvez seja um idiota, mas não posso entender coisa alguma do que você está dizendo. Se ele quer que você também vá para essa cidade, em que fica o assunto do divórcio?

 

- Ele me deu a escolher. Ou vou Sara Meitan-fu ou ele inicia a ação de divórcio.    

 

- Ah! sim. - Townsend mudou ligeiramente de torn. - Acho que isso é muito correto da parte dele, não lhe parece?

 

- Correto?

 

- Sim, para ir a essa cidade é necessário um verdadeiro espírito de sacrifício. É coisa de que eu nem me lembraria. Sem dúvida será condecorado ao voltar.

 

- Mas e eu, Charlie? - exclamou ela com a voz angustiada.

 

- Bem, dadas as circunstâncias e uma vez que ele deseja a sua companhia, não vejo como você possa recusar-se a ir.

 

- Isso significa a morte. Morte absolutamente certa.

 

- Ora, deixe de exageros. Ele não a levaria se assim fosse. O perigo não é maior para você do que para ele. Aliás, não há grande perigo se forem tomadas as devidas precauções. Eu estava aqui quando houve uma epidemia de cólera e não sofri coisa alguma. O importante é não comer nada cru, frutas, saladas ou qualquer outra coisa semelhante, e só beber água fervida. - Ele ia recuperando a confiança à medida que prosseguia, e falava fluentemente; tornava-se menos enfadado e mais alerta; quase jovial. - Afinal, é a profissão dele, não é? Ele se interessa por micróbios. De certo modo, é uma oportunidade que ele encontra.

 

- Mas e eu, Charlie? - repetiu ela, não com angústia mas consternada.

 

- Pois a melhor maneira de compreender um homem é pôr-se no seu lugar. Do ponto de vista dele, você se comportou muito mal, e ele deseja tirá-la de um ambiente prejudicial. Sempre pensei que ele nunca pretendeu divorciar-se; não tenho a impressão de que seja esse tipo de homem. O que ele fez foi o que pensou ser uma proposta generosa, e a sua recusa o irritou. Não a estou acusando, mas creio que, por todos os motivos, você devia ter pensado um pouco mais antes de ter-se recusado a ir.

 

- Mas você não vê que isso me matará? Não compreende que ele me leva porque sabe que morrerei?

 

- Oh! minha cara, não fale desse modo. Estamos numa situação muitíssimo embaraçosa e não há tempo para melodramas.

 

- Você resolveu não compreender. - Oh! a dor que ela sentia no coração, e o medo! Tinha vontade de gritar. - Você não pode enviar-me para a morte certa. Se não sente amor nem piedade por mim, devia ter ao menos um simples sentimento de humanidade.

 

- Acho que é um pouco injusto colocar-me nessa situação. Até onde posso ver, seu marido porta-se muito generosamente. Está disposto a perdoá-la se você aceitar-lhe o perdão. Ele deseja afastá-la daqui, e agora se apresenta uma oportunidade de ir para um lugar onde você ficará alguns meses longe de um ambiente prejudicial. Não quero dizer que Mei-tan-fu seja um lugar saudável, pois não conheço uma cidade chinesa que o seja, mas não há razão para você apavorar-se. Acredito que durante uma epidemia morre tanta gente de medo quanto de contágio.

 

- Mas eu já estou aterrorizada. Quando Walter falou nisso eu quase desmaiei.

 

- Não duvido que no primeiro momento tenha sido um choque, mas, se considerar calmamente a situação, recuperará a tranquilidade.   Será uma dessas aventuras que nem todos podem ter.

 

- Eu pensei... eu pensei. . .

 

Agoniada, Kitty sacudia a cabeça. Ele emudecera, e mais uma vez tinha no rosto aquela expressão de enfado que até então ela não havia visto. Ela já não chorava. Calma, tinha os olhos secos, e sua voz, apesar de baixa, era firme.

 

- Você quer que eu vá?

 

- Não há outra alternativa, não é?

 

- Não há?

 

- Desejo ser leal dizendo que, se seu marido intentar uma ação de divórcio e ganhá-la, não poderei casar-me com você.

 

Para Townsend, o tempo que ela tardou em responder devia ter sido enorme. Kitty levantou-se vagarosamente.

 

- Acho que meu marido nunca pensou em ir ao tribunal.

 

- Então por que diabo você me meteu tamanho medo?

 

Ela olhou-o friamente.

 

- Ele tinha certeza de que você me abandonaria.

 

Depois disto, ela ficou silenciosa. Vagamente, como quem estuda uma língua estrangeira e a princípio nada entende da página lida até que uma palavra ou uma frase lhe dá urna referência, e uma espécie de suspeita quanto ao sentido percorre o espírito perturbado, vagamente ela foi tendo uma noção do que Walter tinha em mente. Era como uma paisagem escura e pressaga vista sob um relâmpago e logo após mergulhada nas trevas da noite.

 

- Ele nos ameaçou com o processo simplesmente porque sabia de antemão que você se aniquilaria, Charlie. É estranho que ele o tenha julgado com tanta exatidão. É coisa bem própria dele expor-me a tamanha desilusão.

 

Charlie baixou os olhos para a folha de mataborrão que estava à sua frente. Tinha o cenho carregado e a boca contraída. Mas nada replicou.

 

- Ele sabia que você era vaidoso, covarde e egoísta. Ele queria que eu visse isso com meus próprios olhos. Ele sabia que você fugiria como uma lebre diante do perigo. Ele sabia o quanto eu estava errada ao pensar que você me amava, porque sabia que você era incapaz de amar outra pessoa além de si próprio. Ele sabia que para salvar a sua pele você me sacrificaria sem o menor remorso.

 

- Se você sente prazer em dizer-me coisas desse quilate, creio que não tenho direito de queixar-me. As mulheres sempre são injustas e, geralmente, conseguem deixar um homem em má situação. Mas há alguma coisa a dizer da outra parte.

 

Ela desconsiderou a interrupção.

 

- E agora sei tudo o que ele sabia. Sei que você é insensível e impiedoso. Sei que você é egoísta, egoísta até mais não poder, que é tão corajoso como um coelho, que é mentiroso e charlatão, sei que você é inteiramente desprezível. E o trágico é que o sofrimento estampou-se vivamente em seu rosto apesar disso eu o amo de todo o coração.

 

- Kitty.

 

Ela riu com amargura. Ele dissera o seu nome naquela voz cheia e envolvente que lhe vinha tão naturalmente e que era tão pouco sincera.

 

- Tolo.

 

Ele recuou rapidamente, envergonhado e ofendido: não podia compreendê-la. Kitty dirigiu-lhe um olhar quase divertido.

 

- Você começa a aborrecer-se de mim, não é? Pois bem, pode aborrecer-se. Agora isso não me faz diferença.

 

Começou a calçar as luvas.

 

- Que é que você vai fazer? - perguntou ele.

 

- Oh! não tenha medo, você não será prejudicado. Estará perfeitamente seguro.

 

- Por amor de Deus, não fale assim, Kitty! - exclamou ele com ansiedade na;jsua voz cheia e sonora. - Saiba que tudo quantóxhe diz respeito também me atinge. Ficarei muitíssimo ansioso por saber o rumo que tomam as coisas. Que é que você vai dizer a seu marido?

 

- vou lhe dizer que estou pronta para acompanhá-lo a Mei-tan-fu.

 

- Talvez, vendo que você consente, ele não insista em ir.

 

Townsend não podia atinar o motivo por que, ao ouvir suas palavras, ela o olhou de modo tão estranho.

 

- Você está mesmo assustada?

 

- Não - respondeu ela. - Você me deu coragem. Meter-me no meio de uma epidemia de cólera será uma aventura única, e se eu morrer. . . bem, morro.

 

Tornou a encará-lo. E novamente lhe vieram as lágrimas: seu coração transbordava. Era quase irresistível o impulso de atirar-se aos seus braços e esmagar os lábios nos dele. Inútil.

 

- Se lhe interessa saber - disse ela, procurando manter a voz firme -, vou cheia de medo e com a morte no coração. Não sei o que Walter esconde no seu espírito sombrio e intricado, mas tremo de pavor. Acho que a morte talvez seja um verdadeiro alívio.

 

Sentiu que não poderia dominar-se por mais um único instante. Caminhou rapidamente para a porta e saiu antes que ele tivesse tempo de levantarse da cadeira. Townsend soltou um longo suspiro de alívio. Precisava urgentemente de um conhaque com soda.

 

Walter estava em casa quando ela voltou. Gostaria de subir diretamente para o seu quarto, mas ele estava no saguão, dando instruções a um dos criados. Sentia-se tão deprimida que aceitava prazerosamente a humilhação a que devia expor-se. Deteve-se e enfrentou-o.

 

- Irei com você àquele lugar.

 

- Muito bem.

 

- Quando devo estar pronta?

 

- Amanhã à noite.

 

Sem saber como, sentiu-se tentada a bravatear. A indiferença dele era como uma aguilhoada. E ela própria surpreendeu-se com o que dizia:

 

- Acho que não preciso mais do que algumas roupas de verão e uma mortalha, não é?

 

Como lhe observava a fisionomia, ela viu que semelhante petulância o irritou.

 

- Já informei sua criada de tudo o que você precisa levar.

 

Ela fez um movimento de cabeça e subiu para o quarto. Estava muito pálida.

 

Finalmente, estavam prestes a chegar a seu destino. Tinham sido conduzidos em cadeirinhas, dia após dia, por uma trilha estreita que atravessava arrozais intermináveis. Saíam pela manhã e viajavam até que o calor os forçava a abrigar-se numa estalagem de beira de estrada; retomavam a caminhada até a cidade onde haviam combinado passar a noite. A cadeirinha de Kitty encabeçava a procissão e Walter vinha a seguir; depois, numa linha quebrada, marchavam os cules que carregavam colchões, roupa de cama, cortinas e demais aprestos. Kitty passava pela região sem nada ver. Horas a fio, no silêncio apenas quebrado por uma ou outra observação dos carregadores ou por um trecho de alguma rude cantiga, ela revolvia no espírito torturado os pormenores daquela cena cruciante no gabinete de Charlie. Recordando o que ele lhe dissera e o que lhe havia dito, consternava-se ao ver o quanto aquela conversação fora árida e comercial. Não dissera o que desejara dizer, nem havia falado no tom que pretendia. Se ela tivesse sido capaz de fazer-lhe ver o seu amor infinito, a paixão que tinha no peito, o desamparo em que se encontrava, ele jamais teria tido a desumanidade de entregá-la ao seu destino. Ela fora colhida de surpresa. Mal pudera acreditar no que ouvia quando ele lhe disse, mais claramente do que com palavras, que não tinha o menor interesse nela. Por isso é que não chorara muito, tão perplexa havia ficado. Mas chorava desde então, chorava miseravelmente.

 

À noite, nas hospedarias, ocupando o melhor quarto com o marido e certa de que Walter, deitado em sua cama de campanha, a poucos passos dela, estava acordado, ela mordia o travesseiro para afogar os soluços. Mas durante o dia, protegida pelas cortinas da cadeirinha, não precisava conter-se. Tamanho era o seu sofrimento que ela seria capaz de gritar a plenos pulmões; nunca imaginara que alguém pudesse sofrer tanto; desesperada, perguntava a si mesma o que teria feito para merecer tal castigo. Não podia saber por que Charlie não a amava; a culpa era dela, supunha, mas tudo fizera para que ele a amasse. Sempre se haviam dado tão bem, riam durante todo o tempo em que estavam juntos; não eram apenas amantes, mas bons amigos. Não podia compreender; estava alquebrada. Repetia consigo que lhe tinha ódio e desprezo, mas não saberia viver sem ele. Se era por castigo que Walter a levava para Mei-tan-fu, estava sendo tolo, pois que lhe importava o seu destino? Não lhe restava um só motivo para viver. E era assaz rude ver a vida acabar-se aos vinte e sete anos.

 

No vapor que os levou rio acima, Walter lia incessantemente, mas às refeições esforçava-se por manter uma palestra qualquer. Falava-lhe como se ela fosse uma pessoa estranha com quem se viaja por acaso, tratando de coisas indiferentes por simples cortesia, segundo pensava Kitty, ou porque assim podia acentuar ainda mais a distância que os separava.

 

Num momento de intuição, ela dissera a Charlie que, quando Walter a mandara com a ameaça de divórcio como única alternativa à obrigação de acompanhá-lo

 

95 à cidade empestada, fizera-o para que ela visse por si mesma o quanto ele era covarde, indiferente e egoísta. Era verdade. Aquilo fora um estratagema muito ao gosto do seu humor sardónico. Ele sabia exatamente o que sucederia, tanto que dera antecipadamente à criada as instruções necessárias. Ela percebera em seus olhos um desprezo que também parecia incluir o amante. Walter talvez dissesse consigo que, no lugar de Town^tòd, nada o impediria de fazer qualquer sacrifíci /para satisfazer ao seu menor capricho. Sabia que isso também era verdade. Mas, depois que lhe abrira os olhos, como podia ele obrigá-la a fazer uma coisa tão perigosa e que, devia sabê-lo, tanto a horrorizava? Pensara a princípio que ele realmente não tivesse aquela intenção, e até iniciarem viagem, e mesmo muito depois, quando desembarcaram do vapor e tomaram as cadeirinhas para atravessar a região, julgava que o marido lhe diria, com seu risinho costumeiro, que ela não precisava acompanhá-lo. Não podia imaginar o que ele tinha em mente. Não era possível que lhe desejasse a morte, pois a amara desesperadamente. Ela agora sabia o que era o amor, e lembrava-se de mil sinais de sua adoração. Na verdade, ela era tudo para ele. Era impossível que não a amasse mais. Deixamos de amar alguém quando esse alguém nos trata cruelmente? Não o fizera sofrer como Charlie a ela, Ci contudo, a um gesto de Charlie, apesar do sucedido e do quanto o conhecia agora, abandonaria todas as coisas deste mundo para lançar-se em seus braços? Embora ele a tivesse sacrificado e nada desse por ela, embora fosse rude e cruel, ela o amava.

 

Tudo o que tinha a fazer, julgara ela a princípio, era esperar, porque mais cedo ou mais tarde Walter a perdoaria. Confiara demasiado no domínio que exercia sobre ele, de sorte que lhe era difícil convencer-se de que não o tinha mais. O amor não se extingue tão depressa. Amá-la era sua fraqueza, e ela acreditava que ele ainda a amava. Mas já não estava tão certa disso. À noite, na hospedaria, quando ele se sentava para ler junto a um lampião que lhe iluminava o rosto, ela podia observá-lo à vontade. Deitada na cama-de-vento, onde mais tarde lhe poriam as suas cobertas, Kitty ficava na sombra. As feições retas e regulares de Walter davam-lhe uma expressão muito severa. Mal se podia crer que fosse possível que, em certas ocasiões, surgisse naquele rosto um sorriso tão amável! Era capaz de ler tão tranquilamente como se ela estivesse a muitas léguas de distância; via-o virar as páginas e seus olhos moviam-se regularmente, acompanhando as linhas. Quando serviam o jantar, ele deixava o livro e dirigia-lhe um olhar (ignorando o quanto a luz punha em evidência a sua expressão): ela sobressaltava-se ao ver-lhe nos olhos uma expressão de repulsa física. Sim, um sobressalto. Era possível que o seu amor não existisse mais? Era possível que ele realmente lhe preparasse a morte? Absurdo. Seria um gesto de louco. Tremia ao pensar que Walter talvez não estivesse no seu juízo perfeito.

 

De súbito, os condutores, havia muito silenciosos, começaram a falar, e um deles, voltando-se, procurou chamar-lhe a atenção com palavras, fazendo um gesto que ela não entendia. Ela olhou na direção que o homem apontava e viu um arco no alto de uma colina; sabia agora que era um monumento erguido em honra de algum sábio afortunado ou de alguma virtuosa viúva, pois havia passado por muitos deles desde que deixara o rio; mas aquele, silhuetado contra o sol poente, era mais fantástico e belo do que todos os outros. Havia nele qualquer coisa que a inquietava; ela podia sentir seu significado, embora não o pudesse traduzir em palavras. Aquilo que ela discernia vagamente era ameaça ou escárnio? Passava naquele momento por um estranho bosque de bambus que se curvavam para a estrada como se quisessem detê-la; sem que houvesse a menor brisa na noite de verão, um tremor agitava suas compridas folhas verdes. Tinha a impressão de que alguém a vigiava escondido no bambual. Chegaram ao sopé da colina, onde findavam os arrozais. Os condutores começaram a subi-la num passo balanceado. A colina estava cheia de montículos verdes, muito próximos uns dos outros, de sorte que o terreno era ondulado como uma praia de areia quando vaza a maré; ela sabia também o que era aquilo, pois vira lugares semelhantes sempre que se tinham avizinhado de uma cidade populosa. Era um cemitério. Sabia agora por que os condutores lhe haviam chamado a atenção para o arco que ficava no topo da colina: chegavam ao fim da viagem.

 

Passaram sob o monumento, e os homens que conduziam as cadeirinhas fizeram uma pausa para mudar de ombro os varais. Um deles enxugou o suor do rosto com um trapo sujo. A trilha descia tortuosa por entre casas salpicadas de lama. Caía a noite. Em dado momento os condutores começaram a falar excitadamente e, com um salto que a sacudiu, achegaram-se à parede o quanto puderam. Pouco depois Kitty via o motivo de tal sobressalto, porque enquanto os homens se detinham, trocando comentários, passaram quatro camponeses, rápidos e silenciosos, levando ao ombro um caixão sem pintura, cuja madeira nova brilhava na escuridão. Kitty sentiu-se apavorada. O caixão passou, mas os carregadores continuaram imóveis, como se não tivessem energia para recomeçar. Mas alguém gritou uma ordem e eles retomaram a marcha em silêncio.

 

Andaram mais alguns minutos e, fazendo uma volta súbita, entraram por uma cancela. A cadeirinha foi deposta no chão. Kitty havia chegado.

 

Era um bangalô, e ela entrou para a sala de estar. Sentou-se enquanto os cules, andando de um lado para outro, iam depondo as suas cargas. No pátio, Walter indicava onde isto ou aquilo devia ser posto. Ela estava muito cansada. Sobressaltou-se ao ouvir uma voz desconhecida.

 

- Posso entrar?

 

Kitty sentiu o sangue subir-lhe ao rosto e empalideceu. Estava extenuada, e ter de receber uma pessoa estranha era coisa que lhe mexia com os nervos. Um homem surgiu do escuro (a sala baixa e comprida era iluminada somente por uma lâmpada de abajur) e estendeu-lhe a mão.

 

- Meu nome é Waddington. Sou o inspetor.

 

- Ah, sim, da alfândega. Ouvi dizer que o senhor tinha ficado aqui.

 

À meia-luz da sala, Kitty apenas podia ver que se tratava de um homenzinho magro, não muito mais alto do que ela, calvo, de rosto miúdo e liso.

 

- Moro no sopé da colina, mas, como vieram por outro caminho, não podiam ter visto a minha casa. Achei que deviam estar muito cansados para ir jantar comigo, de maneira que mandei cozinhar aqui e convidei-me para o jantar.

 

- Ótima ideia.

 

- A senhora verá que o cozinheiro não é mau. Fiz os criados de Watson ficarem.

 

- Watson era o missionário que morava aqui?

 

- Era. Muito bom sujeito. Amanhã, se quiser, eu lhe mostro a sepultura dele.

 

- O senhor é muito gentil - -wlisse Kitty com um sorriso.

 

Nesse momento entrou Walter. Waddington, que já se havia apresentado a ele antes de entrar para ver Kitty, tomou a palavra.

 

- Eu estava dizendo à sua esposa que ficarei para jantar. Desde que Watson morreu não tenho tido com quem conversar, a não ser as freiras, mas meu francês não é grande coisa. Além disso, a gente não tem muito assunto com elas.

 

- Já pedi que trouxessem bebidas - disse Walter.

 

O criado trouxe uísque, e Kitty observou que Waddington serviu-se generosamente. Sua maneira de falar e seu riso fácil já lhe haviam sugerido que ele não estava muito sóbrio.

 

- À boa sorte - disse ele. Depois, voltando-se para Walter: - Seu trabalho aqui já não será muito grande. Estão morrendo como moscas. O magistrado perdeu a tramontana, e o coronel Yu, que comanda a guarnição, está tendo um trabalho dos diabos para impedir que os soldados saqueiem a cidade. Se não tomarem rapidamente alguma providência, seremos todos assassinados durante o sono. Tentei convencer as freiras a irem embora, mas está claro que elas não querem saber disso. Desejam ser mártires, as danadas.

 

Waddington falava levianamente, e em sua voz havia um certo risinho indefinido, de sorte que não se podia ouvi-lo sem sorrir.

 

- Por que ficou aqui? - perguntou Walter.

 

- Ora, perdi a metade dos meus funcionários, e a outra metade está pronta para deitar-se e esticar a canela a qualquer momento. Alguém tem de ficar para tomar conta do trabalho.

 

- Já foi vacinado?

 

- Já. Watson me vacinou. Mas ele também se vacinou e isso não lhe adiantou muita coisa, coitado. - Voltou-se para Kitty com seu rostinho engraçado cheio de rugas gaiatas. - Não acho que haja grande perigo se tomarmos as precauções indicadas. Ferver o leite e a água e não comer frutas ao natural nem verduras cruas. Trouxeram alguns discos?

 

- Não, acho que não - disse Kitty.

 

- É pena. Eu esperava que trouxessem alguns. Faz muito que não recebo nenhum, e estou enjoado de ouvir os velhos.

 

O criado entrou para perguntar se queriam jantar.

 

- Não vão trocar de roupa para o jantar, não é? - perguntou Waddington. - Meu criado morreu na semana passada, e o que eu tenho agora é um idiota, de maneira que tenho jantado com a roupa de todo dia.

 

- Vou tirar o chapéu - disse Kitty.

 

Seu quarto ficava ao lado da sala onde estavam. A mobília era escassa. Ajoelhada no chão, junto a uma lâmpada, uma criada desfazia as malas.

 

A sala de jantar era pequena e quase toda ocupada por uma mesa enorme. Nas paredes havia gravuras de cenas bíblicas e versículos ilustrados.

 

- Os missionários sempre têm mesas grandes - explicou Waddington. - Eles recebem um aumento de ordenado a cada filho que arranjam, e quando se casam já compram nWas que possam acomodar os rebentos.

 

À luz da comprida lâmpada de parafina que pendia do teto, Kitty podia ver melhor que espécie de homem era Waddington. Julgara-o muito velho devido à calvície, mas via agora que estava abaixo dos quarenta. O rosto pequeno, sob a testa alta e redonda, era liso e tinha a pele firme; feio como um macaco, mas de uma fealdade não sem encanto; um rosto que fazia graça ver. A boca e o nariz eram pouco maiores que os de uma criança, e os olhos, pequenos e muito azuis. As sobrancelhas, ruivas e escassas. Dava a impressão de um menino engraçado com cara de velho. Enchia constantemente o copo e, à medida que o jantar prosseguia, percebia-se que ele não estava nada sóbrio. Mas, se se embebedava, fazia-o sem afronta, alegremente, como um sátiro que tivesse furtado um odre de vinho de algum pastor adormecido.

 

Falou sobre Tching-Yen; tinha lá muitos amigos e queria notícias. Fora às corridas, no ano anterior, e discorreu sobre cavalos e seus proprietários.

 

- A propósito, que me dizem de Townsend

 

- perguntou ele sem transição. - Chega ou não chega a secretário colonial?

 

Kitty sentiu que corava, mas o marido não a fitou.

 

- Acho que sim - respondeu Walter.

 

- É um desses tipos que vão para a frente.

 

- Conhece-o?

 

- Muito. Uma ocasião viajamos juntos da Inglaterra para cá.

 

Ouviam-se na outra margem do rio a pancada dos gongos e o estrale]ar de foguetes. Ali, a tão pouca distância de onde estavam, a grande cidade continuava presa do terror; e a morte, rápida e cruel, corria pelas suas ruas tortuosas. Mas Waddington começou a falar de Londres. Falou sobre os teatros. Sabia tudo o que representavam naquele momento e contou-lhes as peças que vira quando lá estivera em licença. Ria-se ao recordar as facécias de certo comediante de segunda classe e suspirava quando discorria sobre a beleza de tal ou qual atriz de opereta. Tinha satisfação em alardear que um primo seu havia se casado com uma das mais famosas. Almoçara com ela certa vez, e ela lhe dera um retrato autografado. Mostrá-lo-ia quando fossem jantar com ele na alfândega.

 

Walter considerava o seu convidado com um olhar frio e irónico, mas era evidente que não lhe achava nenhuma graça. Esforçava-se por mostrar um interesse cortês em assuntos que, sabia-o Kitty muito bem, ignorava inteiramente. Um ligeiro sorriso brincava-lhe nos lábios. Mas Kitty, sem saber por quê, estava cheia de medo. Na casa do missionário morto, junto à cidade empestada, pareciam estar longe do mundo. Três criaturas solitárias e desconhecidas umas das outras.

 

O jantar terminou e Kitty levantou-se da mesa.

 

- Permite-me que eu me recolha? Estou cansada e preciso dormir.

 

- Já vou andando, porque parece que o doutor também deseja deitar-se - respondeu Waddington. - Amanhã precisam levantar-se cedo.

 

Cumprimentou Kitty, apertando-lhe a mão. Estava bastante firme nas pernas, mas seus olhos brilhavam mais do que nunca.

 

- Virei buscá-lo amanhã - disse ele a Walter. - vou apresentá-lo ao magistrado e ao coronel Yu, e depois iremos ao convento. Seu trabalho já não será muito grande, é o que lhe posso dizer.

 

Kitty passou a noite torturada por sonhos estranhos. Parecia-lhe que era conduzida na cadeirinha e sentia o balanço causado pelo passo largo e irregular dos condutores. Entrava em cidades, enormes e obscurecidas, onde a multidão aglomerava-se à sua volta com olhos indiscretos. As ruas eram estreitas e sinuosas, e nas lojas ao ar livre, com as suas curiosas mercadorias, todo o comércio cessava à sua passagem, enquanto os que compravam e os que vendiam paravam suas atividades para olhá-la. Chegava depois ao arco da estrada, e seu contorno fantástico parecia adquirir de súbito uma vida monstruosa: as linhas caprichosas eram como os braços ondeantes de uma divindade hindu, e ela ouvia, ao passar, o eco de um riso zombeteiro. Então Charlie Townsend vinha em sua direção e a tomava nos braços, tirando-a da cadeirinha e dizendo-lhe que tudo fora um engano, que ele jamais quisera ameaçá-la, porque a amava e não podia viver sem ela. Sentia na boca os seus beijos e chorava de alegria, perguntando-lhe por que fora tão cruel, embora soubesse que aquilo não tinha importância. Abruptamente, ouvia um grito rouco e eles separavam-se, dando passagem a cules rápidos e silenciosos, envoltos em farrapos azuis, que levavam um caixão.

 

Acordou sobressaltada.

 

O bangalô ficava a meio caminho do alto da colina, e de sua janela Kitty via lá embaixo o rio estreito e, mais adiante, a cidade. A madrugada acabava de romper, e do rio subia um nevoeiro branco que amortalhava os juncos apinhados no porto. Havia centenas deles, mergulhados em silêncio, misteriosos sob aquela luz fantasmal, dando a impressão de que suas tripulações eram vítimas de um sortilégio, pois não parecia que dormissem, mas que estavam mudas, imóveis, dominadas por uma força estranha e terrível.

 

A manhã avançava e o sol ia tocando a névoa, cuja alvura brilhante era um fantasma de neve pairando num mundo morto. Embora a luz, sobre o rio, deixasse ver os juncos amontoados com a sua densa floresta de mastros, à frente havia uma muralha cintilante que os olhos não podiam vencer. Mas de repente, emergindo da nuvem branca, surgiu um alto bastião, imponente e sombrio. Não parecia revelar-se à luz do sol, que tudo descobria, mas antes erguer-se do nada ao toque de uma vara mágica, aprumando-se altaneiramente sobre o rio, como fortaleza de uma raça bárbara e cruel. Mas o mágico que a construía trabalhava rápido, e em seguida um fragmento colorido de muralha coroava o bastião; no momento seguinte, surgindo cintilante do nevoeiro e pintado aqui e ali por um raio dourado de sol, tornou-se visível um grupo de telhados verdes e amarelos. Pareciam enormes e de linhas confusas; a ordem, se ordem havia, escapava ao observador: tudo era extravagante e caprichoso, mas de uma riqueza inimaginável. Não era uma fortaleza nem um templo, senão o palácio mágico de um imperador dos deuses, onde nenhum homem podia entrar. Era demasiado aéreo, fantástico e insubstancial para ser obra humana: era o lavor de um sonho.

 

As lágrimas corriam pelo rosto de Kitty, e ela fitava sem ver, com as mãos apertadas contra o peito e a boca entreaberta, ofegante. Nunca sentira leveza e tranquilidade tamanhas, como se seu corpo fosse um despojo que lhe jazesse aos pés, e ela, puro espírito. Ali estava a Beleza. Aceitava-a como o crente recebe na boca a hóstia que é Deus.

 

Walter saía de manhã cedo, vinha para um rápido almoço de meia hora e só voltava quando o jantar estava pronto, de sorte que Kitty passava sozinha a maior parte do tempo. Durante alguns dias, não arredou pé do bangalô. Fazia muito calor, e ela deixava-se ficar numa espreguiçadeira, diante da janela aberta, tentando ler. A luz crua do dia despojava o palácio mágico do seu mistério, e ele agora não era mais do que um templo junto aos muros da cidade, espalhafatoso e decadente; mas, por tê-lo visto num êxtase, ela nunca o achava inteiramente vulgar, e muitas vezes, ao nascer e ao pôr-do-sol, ou à noite, era-lhe possível recuperar um pouco daquela beleza. O que lhe parecera um bastião poderoso era apenas o muro da cidade, sólido e sombrio, e nele ela repousava continuamente os olhos. Além de suas ameias jazia a cidade, sob as garras espantosas da peste.

 

Ela sabia vagamente que ali aconteciam coisas terríveis, não por meio de Walter, que respondia às suas perguntas (pois ele raramente lhe dirigia a palavra) com uma indiferença chistosa que lhe causava arrepios; mas por meio de Waddington e de sua criada. Morria uma centena de pessoas por dia, e quase nenhuma das que caíam doentes escapava; os deuses tinham sido retirados dos templos abandonados e postos nas ruas; diante deles se faziam sacrifícios e se depunham oferendas, mas a praga continuava. As vítimas morriam tão rapidamente que mal se podia enterrá-las. Em algumas casas, toda a família era ceifada, e não havia quem realizasse as cerimónias fúnebres. O comandante da guarnição militar era um homem autoritário, e se a cidade não estava entregue ao saque e ao incêndio, isso se devia ao seu ânimo resoluto. Obrigava os soldados a enterrarem os mortos, pois não havia quem fizesse esse serviço, e ele próprio executara um oficial que hesitara em entrar em uma casa empestada.

 

Kitty ficava, às vezes, tão assustada que todo o seu corpo tremia. De nada lhe valia a afirmação de que o perigo não era grande se fossem tomadas precauções razoáveis: o pânico dominava-a. Fazia e desfazia, mentalmente, planos doidos para fugir. Escapar, simplesmente escapar; para isso estava disposta a sair com a roupa do corpo e a viajar sozinha, para algum lugar seguro. Pensou em confiar-se à mercê de Waddington, contando-lhe tudo e suplicando-lhe que a ajudasse a voltar a Tching-Yen. Se ela caísse de joelhos diante do marido e confessasse que estava assustada, aterrorizada, por muito que ele agora a odiasse, seria suficientemente humano para apiedar-se dela.

 

Tudo era inútil. Se partisse, aonde iria? Não para junto da mãe, porque a mãe lhe diria muito claramente que, tendo-a casado, considerava-se livre dela; além disso, não desejava voltar para a companhia da mãe. Queria voltar para Charlie, mas ele não a queria. Sabia quais seriam suas palavras se aparecesse subitamente diante dele. Via a expressão de enfado em seu rosto e a dureza astuta no fundo de seus olhos encantadores. Seria difícil para ele encontrar palavras que não soassem mal. Kitty torcia as mãos. Daria tudo no mundo para humilhá-lo como ele a humilhara. Às vezes, era tomada de tal frenesi que desejava ter deixado que Walter tivesse se divorciado dela, porque, com sua ruína, ela o teria levado à ruína também. Certas coisas que ele lhe dissera faziam-na corar de vergonha quando ^ recordava.

 

Na primeira vez que se encontrou a sós com Waddington, dirigiu a conversa para Charlie. Waddington tinha falado nele na noite em que haviam chegado. Kitty deu a entender que ele não era mais do que uma relação do marido.

 

- Nunca me interessei muito por ele - disse Waddington. - É um sujeito cacete.

 

- Então deve ser muito difícil contentá-lo replicou Kitty, no tom de alegre zombaria que tão facilmente conseguia assumir. - Suponho que ele seja, sem dúvida alguma, o homem mais popular de Tching-Yen.

 

- Já sei. Esse é o negócio dele. Fez da popularidade uma verdadeira ciência. Tem o talento de dar a quem fala com ele a impressão de ser exatamente a pessoa que ele desejaria ser. Sempre está disposto a prestar um favor, desde que isso não represente para ele o menor incómodo e mesmo que não faça aquilo que a gente deseja, consegue persuadir-nos de que só não o faz porque a coisa é humanamente impossível.

 

- Mas isso tem o seu atrativo.

 

- Pois é, mas encanto e nada mais do que encanto acaba sendo um tanto cansativo, acho eu. Então é um alívio tratar com um homem que não seja tão encantador mas um pouco mais sincero. Conheço Charlie Townsend há muitos anos, e uma ou duas vezes apanhei-o sem a máscara - a senhora compreende que, como simples funcionário da alfândega, eu não tinha nenhuma importância -, e sei que no fundo ele não se interessa por ninguém a não ser por ele próprio.

 

Kitty, estirada na cadeira, observava-o com um sorriso nos olhos, rodando a aliança no dedo.

 

- Não há dúvida de que ele irá em frente dizia Waddington. - Ele sabe mexer os pauzinhos. Eu ainda não morro sem ter de tratá-lo por Sua Excelência e de levantar-me quando ele entrar.

 

- Muitos acham que ele merece fazer carreira. Acreditam que tenha uma grande capacidade.

 

- Capacidade? Que bobagem! É uma toupeira. Dá a impressão de que toca o trabalho para diante e consegue magníficos resultados por ser muito brilhante. Nada disso. Ele tem tanta iniciativa quanto um funcionário mestiço.

 

- E como conseguiu essa reputação de ser tão inteligente?

 

- Há muitas pessoas tolas neste mundo, e quando um homem de posição mais ou menos elevada banca o acessível, dá-lhes tapinhas nas costas e diz que lhes fará tudo o que for possível, é bem provável que o achem inteligente. Além disso, há a esposa. É uma mulher muito capaz. Tem uma cabeça sólida, e seus conselhos lhe são sempre valiosos. Enquanto puder contar com ela, Charlie Townsend estará livre de fazer alguma tolice, coisa indispensável para que alguém suba na carreira oficial. O pessoal do governo não quer homens inteligentes; homens inteligentes têm ideias, e ideias causam complicações; querem homens que tenham tato e simpatia e que não façam tolices. Oh, sim, Charlie Townsend haverá de chegar ao topo.

 

- Por que será que o senhor não gosta dele?

 

- Não tenho por que não gostar dele.

 

- Mas gosta mais da esposa, não é? - perguntou Kitty, sorrindo.

 

- Sou um homenzinho antigo, e gosto de uma mulher bem-educada. ’

 

- Eu só desejava que ela se vestisse tão bem quanto é bem-educada.

 

- Ela não se veste bem? Nunca o notei.

 

- Sempre ouvi dizer que eles são muito dedicados um ao outro - disse Kitty, observando-o de olhos entrecerrados.

 

- Ele gosta muito dela: essa justiça eu lhe faço. É o que tem de melhor.

 

- Fraco elogio.

 

- Ele tem os seus flertes, mas não é coisa séria. É suficientemente esperto para não deixar que esses assuntos se desenvolvam e se tornem inconvenientes. E, além disso, ele não é um homem de paixão; é apenas vaidoso. Gosta de ser admirado. Agora está gordo e quarentão, mas quando veio para a colónia era um belo homem. Muitas vezes ouvi a esposa gracejar com ele sobre suas conquistas.

 

- Ela não leva esses flertes muito a sério, não?

 

- Oh, não, ela sabe que não vão muito longe. Diz que gostaria de ser amiga das coitadinhas que se embeiçam por Charlie, mas que elas sempre são muito vulgares. Costuma dizer que não é muito desvanecedor para ela o fato de que as apaixonadas do marido sejam tão tipicamente de segunda classe.

 

Quando Waddington se retirou, Kitty refletiu sobre o que ele dissera de modo tão despreocupado. Aquilo não fora muito agradável de ouvir, e ela tivera de fazer um certo esforço para não mostrar o quanto a atingia. Como era amargo reconhecer que ele dissera apenas a verdade! Sabia que Charlie era tolo e vaidoso, que tinha fome de elogios, e lembrava-se da complacência com que ele lhe contava pequenas histórias para demonstrar a sua esperteza. Ele se orgulhava de uma astúcia vulgar. Devia ser muito indigna para ter dado tão apaixonadamente o coração a semelhante homem apenas porque. . . porque ele tinha lindos olhos e um belo porte! Queria desprezá-lo, pois enquanto o odiasse sabia estar muito perto de amá-lo. O modo como ele a tratara devia-lhe ter aberto os olhos. Walter sempre o desprezara. Oh, se ela pudesse afastá-lo de todo do pensamento! E a esposa teria gracejado com ele sobre a evidente paixão que despertara nela, Kitty? Dorothy teria gostado de fazer amizade com ela, se não a considerasse uma pessoa de segunda classe. Kitty entressorriu: como a mãe ficaria indignada ao saber que faziam tal juízo da filha!

 

Contudo, à noite, voltou a sonhar com ele. Sentiu que ele a apertava nos braços e que a escaldante paixão de seus beijos lhe queimava os lábios. Que lhe importava que ele fosse gordo e quarentão? Riu com ternura, porque isso o preocupava tanto; amava-o ainda mais pela sua vaidade infantil, tinha-lhe pena, e era capaz de confortá-lo. Quando acordou, tinha lágrimas nos olhos.

 

Por que era tão trágico chorar durante o sono?

 

Todos os dias avistava-se com Waddington quando este, findo o seu trabalho, subia ao bangalô dos Fanes; assim, dentro de uma semana tinham chegado a uma intimidade que em outras circunstâncias teria levado um ano. Kitty lhe dysse certa vez não saber o que faria ali sem ele, e V Mdington respondeu, rindo:

 

- Ora, somos aqui as únicas pessoas que pisam tranquila e pacificamente na terra. As freiras caminham no céu, e seu marido. . . no escuro.

 

Embora risse, descuidada, Kitty ficou imaginando qual o sentido exato de suas palavras. Sentia que aqueles olhinhos vivos e azuis lhe perscrutavam a fisionomia com uma atenção ao mesmo tempo amável e desconcertante. Descobrira que ele era astuto, e tinha a impressão de que as relações entre ela e Walter despertavam sua curiosidade cínica. Encontrava certo prazer em confundi-lo. Gostava dele, e sabia que Waddington lhe dispensava alguma simpatia. Ele não era espirituoso nem brilhante, mas tinha uma maneira seca e incisiva de expor as coisas que o tornava interessante, e seu rosto engraçado de menino calvo, sempre amarfanhado de riso, tornava suas observações imensamente jocosas. Vivera muitos anos em lugares isolados, onde às vezes não encontrava um branco com quem conversar, e sua personalidade se desenvolvera numa liberdade excêntrica. Era cheio de manias e esquisitices. Tinha uma franqueza animadora. Parecia encarar a vida com um espírito irónico, e ridicularizava Tching-Yen acremente; mas também ria dos funcionários chineses de Mei-tan-fu e da epidemia que dizimava a cidade. Não podia contar uma história trágica ou heroica sem lhe dar um toque ligeiramente absurdo. Tinha muitas anedotas sobre suas aventuras em vinte anos de China, e delas se concluía que o mundo era um lugar muito ridículo, bizarro e grotesco.

 

Não admitia que o considerassem um erudito em assuntos chineses (jurava que os sinólogos tinham um parafuso a menos), mas falava correntemente a língua do país. Lia pouco, e o que sabia aprendera em conversas. Contudo, muitas vezes narrava a Kitty histórias de romances chineses e episódios da história da China, que, embora contados no tom de brincadeira que lhe era natural, mostravam certa afeição e mesmo ternura. Parecia a Kitty que, talvez inconscientemente, ele havia adotado a opinião chinesa de que os europeus eram bárbaros e sua vida, uma loucura: somente na China a vida era vivida de tal modo que um homem sensato podia discernir nela uma certa realidade. Ali havia sobre o que refletir: Kitty nunca ouvira falar dos chineses senão como decadentes, sujos e abjetos. Era como se alguém levantasse um pouco a cortina e ela entrevisse um mundo rico de significações e matizes com que jamais sonhara.

 

Ali estava ele conversando, rindo e bebendo.

 

- Não acha que bebe demais? - perguntoulhe Kitty sem rodeios.

 

- É o meu grande prazer na vida - respondeu ele. - Além disso, ajuda a afugentar a epidemia.

 

Geralmente retirava-se bêbedo, mas sabia conduzir-se muito bem. A bebida tornava-o hilariante, mas não desagradável.

 

Uma noite Walter, tendo voltado mais cedo do que era seu costume, convidou-o para o jantar. Houve um incidente curioso. Depois da sopa e do peixe, o criado serviu galinha e passou a Kitty um prato de salada de alface.

 

- Deus do céu, a senhora não vai comer alface.

 

- exclamou Waddington, ao ver que ela se servia.

 

- vou, sim. Sempre comemos alface ao jantar.

 

- Minha mulher gosta de salada - disse Walter.

 

O prato foi passado a Waddington, que sacudiu a cabeça.

 

- Muito obrigado, mas eu ainda não quero suicidar-me.

 

Walter sorriu gravemente, e serviu-se. Waddington não disse mais nada; tornou-se, aliás, estranhamente taciturno e retirou-se logo após o jantar.

 

Era verdade que comiam alface todas as noites. Dois dias depois de terem chegado, o cozinheiro, com a indiferença dos chineses, mandou um prato à mesa, e Kitty, sem pensar, serviu-se. Walter inclinou-se rápido para ela, dizendo:

 

- Você não deve comer isso. É uma loucura do criado servir tal coisa.

 

- Por que não? - perguntou Kitty, olhando-o em cheio no rosto.

 

- Sempre é perigoso, e agora, então, é uma verdadeira loucura. Você se matará.

 

- Pensei que a intenção fosse essa - disse Kitty.

 

Começou a comer serenamente. Um inexplicável espírito de desafio apoderava-se dela. Observava o marido com um olhar de mofa. Teve a impressão de que ele estava mais pálido, mas, quando lhe passaram a salada, ele serviu-se. O cozinheiro, vendo que o prato não era recusado, mandava-o todos os dias, e todos os dias, cortejando a morte, eles o comiam. Era grotesco arriscar-se a semelhante perigo. Kitty comia com a sensação de que assim não apenas vingava-se maldosamente de Walter, mas escarnecia do próprio medo que a desesperava.

 

Na tarde do dia seguinte Waddington veio ao bangalô e, depois de sentar-se um pouco, perguntou a Kitty se ela não queria dar um pequeno passeio com ele. Ela não saíra de casa desde que chegara e aceitou o convite com prazer.

 

- Não há muito por onde andar - disse ele. - Mas podemos ir até o alto da colina.

 

- Ótimo. É onde está aquele arco. Tenho-o visto muitas vezes do terraço.

 

Um dos criados abriu-lhes uma pesada porta e eles saíram para a viela poeirenta. Tinham andado apenas alguns metros, quando Kitty, agarrando-se, amedrontada, ao braço de Waddington, deu um grito assustado.

 

- Olhe!

 

- Que é?

 

Junto ao muro que cercava o pátio, um homem jazia de costas, com as pernas abertas e os braços atirados sobre a cabeça. Estava coberto com os farrapos azuis e tinha o topete desgrenhado dos mendigos chineses.

 

- Parece morto - sussurrou Kitty.

 

- E está mesmo. Venha vindo. Olhe para o outro lado. Quando voltarmos mandarei tirá-lo daí.

 

Kitty tremia de tal modo que não podia dar um passo.

 

- É a primeira vez que vejo um morto.

 

- Vamos, venha depressa; o melhor é habituar-se a eles, porque ainda verá um bom número antes de sair deste lugar delicioso.

 

Tomou-lhe a mão e enfiou-a em seu braço. Andaram um pouco, em silêncio.

 

- Ele morreu de cólera? - perguntou ela por fim.

 

- Acho que sim.

 

Subiram a colina até chegarem ao arco. Era um monumento ricamente esculpido. Fantástico, irónico, erguia-se como um marco sobre a região vizinha. Sentaram-se no pedestal e ficaram olhando a vasta planície. A colina estava semeada dos montículos verdes dos mortos, não em linhas regulares, mas desordenadamente, dando a impressão de que eles se acotovelavam embaixo da terra. A vereda estreita serpeava entre os verdes arrozais, l ’íl menininho montado no pescoço de um búfalo dirigia-o vagarosamente para casa, e três campônios de enormes chapéus de palha avançavam, lerdos, com o corpo vergado sob os seus fardos. Depois das horas de calor, era agradável sentir ali a brisa ligeira do entardecer; e a vastidão da planície trazia uma certa melancolia repousante que torturava o coração. Mas Kitty não conseguia esquecer o mendigo morto.

 

- Como é que o senhor pode conversar, rir e beber uísque, quando há gente morrendo em todos os lados? - perguntou ela de repente.

 

Waddington não respondeu. Voltou-se, olhou-a e pôs-lhe a mão no braço.

 

- Como sabe, aqui não é lugar para uma mulher - disse ele gravemente. - Por que não vai embora?

 

Ela olhou-o de soslaio por entre seus longos cílios, quase sorrindo.

 

- Creio que em tais circunstâncias o lugar da mulher é ao lado do marido.

 

- Quando me telegrafaram avisando que a senhora vinha com Fane, fiquei atónito. Contudo, pensei que talvez tivesse sido enfermeira e que tudo isto aqui fosse para a senhora uma espécie de rotina. Pensei que fosse uma dessas mulheres de cara sombria que nos fazem passar o diabo quando estamos num leito de hospital. Tive uma enorme surpresa quando entrei no bangalô e a vi sentada, repousando. A senhora parecia muito abatida, pálida e extenuada.

 

- Não podia esperar que eu lhe causasse boa impressão depois de nove dias de estrada.

 

- Mas também agora me parece abatida, pálida e extenuada, e, se me permite dizer, profundamente infeliz.

 

Kitty corou a contragosto, mas conseguiu rir num tom suficientemente alegre.

 

- Lamento que não tenha gostado da minha expressão. A única coisa que me faz parecer triste é ter descoberto, aos doze anos, que tenho o nariz um pouquinho comprido. Mas alimentar uma dor secreta é um recurso muito eficaz: o senhor não pode calcular quantos rapazes gentis se ofereceram para consolar-me.

 

Os olhos azuis e cintilantes de Waddington a fitaram, e ela sentiu que ele não acreditava numa palavra daquilo, ainda que fingisse o contrário.

 

- Eu sabia que estava casada havia pouco tempo e cheguei à conclusão de que a senhora e seu marido amavam-se apaixonadamente. Assim, não podia acreditar que ele quisesse trazê-la para cá, a não ser que a senhora absolutamente se tivesse recusado a ficar em Tching-Yen.

 

- É uma explicação muito razoável - disse ela suavemente.

 

- Sim, mas não é certa.

 

Kitty esperou que ele prosseguisse, temerosa do que fosse dizer, porque avaliava perfeitamente a sua argúcia e tinha certeza de que ele nunca hesitava em dizer o que pensava; contudo, não podia resistir ao desejo de ouvi-lo falar a seu respeito.

 

- Não acho que a senhora ame seu marido. Penso que não gosta dele, e não me surpreenderia saber que o odeia. Mas estou seguro de que tem medo dele.

 

Kitty desviou o olhar por um instante. Não pretendia deixar que Waddington visse até onde suas palavras a atingiam.

 

- Desconfio de que o senhor não gosta muito de meu marido - disse ela, fria e ironicamente.

 

- Respeito-o. Tem miolo e caráter, coisas que - posso afirmar-lhe - raramente andam juntas. Acho que a senhora ignora o que ele está fazendo aqui, porque, segundo penso, ele não expande muito em sua presença. Se for possível jd um homem, lutando sozinho, pôr um fim a esta terrível epidemia, ele acabará com ela. Está cuidando dos doentes, limpando a cidade e procurando purificar a água potável. Aonde vai e o que faz são coisas que ele não leva em consideração. Está arriscando a vida vinte vezes por dia. Meteu o coronel Yu no bolso e induziu-o a colocar os seus soldados à disposição dele. Conseguiu até uma certa influência junto ao magistrado, e o velho está realmente tentando fazer alguma coisa. E as freiras do convento... é Deus no céu e ele na terra. Consideram-no um herói.

 

- O senhor, não?

 

- Afinal de contas, não é essa a profissão dele? Trata-se de um bacteriologista, não é? Ninguém o mandou para cá. Ele não me dá a impressão de se compadecer desses chineses moribundos. Watson era diferente. Ele amava a humanidade. Embora fosse missionário, não lhe fazia nenhuma diferença se eram cristãos, budistas ou adeptos de Confúcio: eram simplesmente seres humanos. Seu marido não está aqui porque a morte de cem mil chineses tenha alguma importância para ele. Também não está aqui no interesse da ciência. Por que é que ele está aqui?

 

- Pergunte a ele.

 

- Interessa-me vê-los juntos. Às vezes procuro adivinhar qual seja a sua conduta quando está sozinha.

 

Na minha frente, a senhora representa, ambos representam, e, com mil demónios, muito mal! Se isso é o melhor que podem fazer, nenhum dos dois conseguiria trinta xelins por semana numa companhia mambembe.

 

- Não sei o que quer dizer - disse sorrindo Kitty, procurando fingir uma frivolidade que, sabia, não o enganaria.

 

- A senhora é uma mulher muito bonita. É curioso que seu marido nunca lhe ponha os olhos. Quando lhe fala, dá a impressão de que sua voz pertence a outra pessoa.

 

- Acha que ele não me ama? - perguntou Kitty em voz baixa, quase rouca, abandonando subitamente sua atitude despreocupada.

 

- Não sei. Não sei se a senhora lhe causa tal repulsa que ele sente engulhos na sua presença, ou se ele arde de amor e por qualquer motivo não deseja mostrá-lo. Cheguei a perguntar-me se ambos não estariam aqui para se suicidarem.

 

Kitty notara o olhar surpreso e a expressão penetrante de Waddington quando teve lugar o incidente da salada.

 

- Acho que o senhor está emprestando demasiada importância a algumas folhas de alface - disse ela petulantemente, e levantou-se. - Vamos voltar para casa? Tenho certeza de que deseja um uísque com soda.

 

- A senhora, de qualquer maneira, não é uma heroína. Está morrendo de medo. Tem certeza de que não quer ir embora?

 

- E que tem com isso?

 

- Eu poderia ajudá-la.

 

- Também o senhor vai cair pela minha dor secreta? Olhe para o meu perfil e diga-me se não tenho o nariz um tantinho comprido.

 

Waddington fitou-a, pensativo, com uma expressão irónica, maliciosa e penetrante, na qual havia contudo uma sombra, como o reflexo de uma árvore à beira de um rio, e uma indefinível sugestão de bondade. Kitty sentiu os olhos cheios de lágrimas.

 

- Tem mesmo de ficar aqui?

 

- Tenho, sim.

 

Passaram sob o arco flamejante e desceram a colina. Quando chegaram ao muro do pátio, lá estava o cadáver do mendigo. Waddington tomou-lhe o braço, mas ela desvencilhou-se ele. Deteve-se.

 

- É horrível, não é?

 

- O quê? A morte?

 

- Sim, Tudo parece ficar tão horrivelmente trivial. Ele não dá a impressão de um ser humano. Olhando-o, a gente mal pode persuadir-se de que já teve vida. É difícil crer que, não há muitos anos, ele era apenas um meninozinho que corria por esta colina a empinar um papagaio.

 

Não pôde conter o soluço que a sufocava.

 

Alguns dias mais tarde Waddington, sentado diante de Kitty e bebendo o seu uísque, começou a falar-lhe sobre o convento.

 

- A madre superiora é uma mulher notável. As irmãs me contaram que pertence a uma das maiores famílias da França, mas não disseram qual. Afirmam que a madre superiora não quer que se fale nesse assunto.

 

- Se está interessado, por que não lhe pergunta? - disse Kitty, sorrindo.

 

- Se a conhecesse, saberia que é impossível fazer-lhe uma pergunta indiscreta.

 

- Deve ser mesmo muito notável, se consegue intimidá-lo.

 

- Trago-lhe um recado dela. Pediu-me para dizer-lhe que acha muito natural que a senhora talvez não queira aventurar-se ao foco da epidemia, no centro da cidade, mas que terá grande prazer em recebê-la e mostrar-lhe o convento.

 

- É muita bondade. Pensei que ela ignorasse a minha existência.

 

- Falei-lhe a seu respeito. vou lá duas ou três vezes por semana, agora, para ver se posso prestar algum serviço. E sou capaz de dizer que seu marido já lhe falou sobre a senhora. Prepare-se para encontrar nas freiras uma admiração ilimitada por ele.

 

- O senhor é católico?

 

Waddington piscou os olhos maliciosos e seu rostinho engraçado enrugou-se de riso.

 

- Por que está rindo de mim? - perguntou Kitty.

 

- Quem é que já viu um galileu fazer alguma coisa de born? Não, não sou católico. Costumo classificar-me como membro da Igreja Anglicana, o que, segundo me parece, é uma maneira inofensiva de dizer que não se acredita em nada. . . Quando a madre superiora chegou aqui, há coisa de dez anos, trouxe consigo sete freiras, das quais só três estão vivas. Mei-tan-fu, mesmo nas melhores condições, não é nenhuma estação de cura. As freiras vivem no centro da cidade, no bairro mais pobre, trabalham muito e nunca têm férias.

 

- Mas agora são só três e a madre superiora?

 

- Não, vieram outras. Atualmente são seis. Quando uma delas morreu de cólera, logo que começou a epidemia, vieram mais duas de Cantão.

 

Kitty estremeceu.

 

- Está com frio?

 

- Não, foi a morte que passou perto de mim.

 

- Quando saem da França é para sempre. Não são como os missionários protestantes, que de tempos em tempos têm um ano de licença. Sempre achei que isso deve ser o pior de tudo. Nós, ingleses, não somos muito apegados ao torrão natal, e em qualquer parte do mundo nos aboletamos em casa, mas os franceses, acho eu, têm um apego ao seu país que é quase um laço físico. Nunca se sentem perfeitamente à vontade fora da França. Sempre me pareceu muito comovente o fato de que essas mulheres façam tal sacrifício. Acho que, se eu fosse católico, isso me pareceria muito natural.

 

Kitty fitou-o perscrutadoramente. Não podia compreender a emoção com que o homenzinho falava. Seria pose? Tinha bebido uma boa dose de uísque e talvez não estivesse muito sóbrio.

 

- Venha ver por si mesma - disse ele, com o seu sorriso zombeteiro, lendo-lhe rapidamente os pensamentos. - Não é tão arriscado como comer um tomate.

 

- Se o senhor não tem medo, não há motivo para que eu o tenha.

 

- Acho que o ambiente vai diverti-la um pouco. Aquilo é como um pedacinho da França.

 

Atravessaram o rio numa sampana. Uma cadeirinha esperava Kitty no desembarcadouro e levou-a colina acima até a porta que dava para o rio. Por ali é que os cules desciam a buscar água e subiam de canga ao ombro, carregando enormes baldes, encharcando de tal modo o caminho que parecia ter caído um aguaceiro. Os condutores da cadeirinha de Kitty davam breves gritos agudos, reclamando passagem aos aguadeiros.

 

- O comércio está paralisado - disse Waddington, que caminhava ao seu lado. - Em tempos normais, seria preciso abrir caminho à força por entre os cules que levam e trazem as cargas dos juncos.

 

A rua estreita e tortuosa desorientou Kitty, que já não sabia o rumo do convento. Muitas lojas estavam fechadas. Durante a viagem, Kitty habituara-se à imundície das cidades chinesas, mas ali havia um lixo de muitas semanas; o cheiro era tão forte que ela precisava levar o lenço ao nariz. Ao passar pelas cidades chinesas, sempre era incomodada pela multidão curiosa, que não tirava os olhos dela; agora, porém, só lhe dirigiam de quando em quando um olhar indiferente. Os transeuntes, mais raros e sem formar a costumeira multidão, pareciam concentrados em seus próprios assuntos. Iam acovardados e desatentos. Às vezes, ela passava por uma casa onde soavam pancadas de gongo e o lamento agudo e prolongado de instrumentos que lhe eram desconhecidos : sinal de que atrás daquelas paredes alguém estava morrendo.

 

- Chegamos - disse finalmente Waddington. A cadeirinha foi deposta diante de uma portinha encimada por uma cruz, numa comprida parede branca, e Kitty desceu, tocando a sineta.

 

- Não deve esperar nada de imponente. Elas são miseravelmente pobres.

 

Uma moça chinesa veio abrir a porta, e, depois de uma ou duas palavras de Waddington, fê-los entrar para uma salinha contígua ao corredor. Havia uma mesa coberta por um oleado de quadradinhos e, junto às paredes, um jogo de cadeiras retas com assentos de madeira. Numa das extremidades da sala, via-se uma imagem, em gesso, da Virgem Santíssima. Dentro em pouco entrava uma freira, baixa e gordota, de cara simpática, bochechas rosadas e olhos alegres. Waddington, ao apresentar-lhe Kitty, chamou-a de irmã São José.

 

- C’e st Ia dame du docteur? - perguntou ela, radiante, ajuntando que a madre s.lperiora viria imediatamente.

 

A irmã São José não falava inglês, e o francês de Kitty era hesitante; mas Waddington, fluente, volúvel e impreciso, mantinha uma torrente de comentários facetos que faziam a bonachona freira torcer-se de riso. Sua risada franca e alegre causou não pouca admiração em Kitty, que fazia ideia de que as religiosas eram criaturas sempre graves. Aquela alegria sã e infantil a comovia.

 

A porta abriu-se, e não muito naturalmente, segundo a impressão de Kitty, mas como se girasse por si mesma sobre os gonzos, e a madre superiora entrou na salinha. De teve-se um momento no limiar, e um grave sorriso pairou-lhe nos lábios ao ver a freira sorridente e a cara engraçada que Waddington fazia. Depois, aproximou-se e estendeu a mão a Kitty.

 

- Sra. Fane? - Falou em inglês, com muito sotaque, mas com a pronúncia correia, e fez uma curvatura imperceptível. - É para mim um grande prazer conhecer a esposa do nosso bom e bravo doutor.

 

Kitty notou que os olhos da superiora examinavam-na detida e desenvoltamente. Era um olhar tão franco que não chegava a ser indelicado; sentia-se que ali estava uma mulher cujo ofício era formar uma opinião sobre os outros e a quem jamais ocorria a necessidade de subterfúgios. com nobre afabilidade, ela fez um gesto aos visitantes para que se sentassem, e sentou-se também. A irmã São José, ainda sorrindo, mas silenciosa, ocupou um lugar ao lado, mas um pouquinho atrás, da superiora.

 

- Sei que, como ingleses, gostam de chá disse a madre superiora -, e mandei que o servissem. Devo desculpar-me se o fizerem à maneira chinesa. Reconheço que o sr. Waddington preferiria uísque, mas é coisa que receio não lhe poder oferecer.

 

Sorriu, e em seu olhar grave havia uma pontinha de malícia.

 

- Ora, ma mère, a senhora fala como se eu fosse um ébrio contumaz.

 

- Minha vontade era ouvi-lo dizer que não bebia nunca, sr. Waddington.

 

- Ao menos posso dizer que nunca bebo a não ser em excesso.

 

A madre superiora riu e traduziu o gracejo para a irmã São José. Depois, envolveu-o num olhar amigo.

 

- Temos de fazer concessões ao sr. Waddington, porque em duas ou três ocasiões, quando não tínhamos dinheiro algum e não sabíamos como alimentar nossas órfãs, o sr. Waddington nos socorreu.

 

A convertida que lhes tinha aberto a porta entrou trazendo uma bandeja com xícaras chinesas, um bule e um prato de bolinhos chamados madeleines.

 

- Têm de comer as madeleines - disse a madre superiora -, porque a irmã São José as fez hoje de manhã especialmente para esta ocasião.

 

Conversaram sobre coisas triviais. A madre superiora perguntou a Kitty se estava na China havia muito tempo e se a viagem desde Tching-Yen não tinha sido muito extenuante. Perguntou-lhe se conhecia a França e se não achava o clima de TchingYen muito penoso. Era uma conversa banal mas amiga, e, dadas as circunstâncias adquiria um sabor especial. O parlatório era tão silencioso que mal se podia crer estar-se no centro de uma cidade populosa. A paz se instalara naquele lugar. Contudo, em derredor a epidemia chegava ao auge, e o povo, apavorado e inquieto, era contido tão-somente pela vontade enérgica de um soldado a quem pouco faltava para ser um bandido. Dentro dos muros do convento, a enfermaria estava cheia de doentes e soldados moribundos, e a quarta parte das órfãs a cargo das freiras já tinha morrido.

 

Kitty, impressionada sem saber ao certo por quê, observava a grave senhora que lhe fazia aquelas amáveis perguntas. Vestida de branco, a única nota colorida em seu hábito era o coração vermelho que lhe ardia sobre o peito. Era uma mulher de meia-idade, talvez quarenta ou quem sabe cinquenta anos: impossível dizê-lo à vista das poucas rugas de seu rosto pálido e liso; a impressão de que ela estava longe de ser moça vinha principalmente da dignidade de seu porte, de sua segurança e da magreza de suas mãos fortes e belas. Seu rosto era alongado, de boca larga e dentes graúdos e parelhos; o nariz, embora não fosse pequeno, era delicado e bem-feifo; mas os olhos, sombreados por espessas sobrancelhas, é que davam ao rosto o seu aspecto tenso e trágico. Muito grandes e pretos, não sendo precisamente frios, eram de uma serenidade e firmeza que causavam estranho constrangimento. À primeira vista, notava-se que ela deveria ter sido uma bela moça, mas logo percebia-se que ali estava uma mulher cuja beleza, vinda do caráter, aumentava com os anos. Tinha a voz profunda, baixa e reservada, e, quer falasse inglês ou francês, falava lentamente. Mas o que nela mais impressionava era um ar de autoridade atenuado pela caridade cristã; sentia-se que estava habituada a mandar. Ser obedecida era-lhe uma coisa natural, mas aceitava a obediência com humildade. Era evidente que ela possuía plena consciência de estar apoiada pela autoridade da Igreja. Kitty, porém, suspeitava que, não obstante a sua conduta austera, ela dispensava à fragilidade humana uma tolerância compassiva, e era impossível observar o grave sorriso com que ela ouvia Waddington dizer tolices livremente sem concluir que ela possuía uma perfeita noção do cómico.

 

Ainda havia nela uma outra qualidade, que Kitty vagamente pressentia. Era qualquer coisa que, não obstante sua cordialidade e suas maneiras gentis, fazia Kitty sentir-se como uma tímida colegial e acentuava a distância entre elas.

 

- Monsieur ne mange rien - disse a irmã São José.

 

- O gosto de monsieur está prejudicado pelas comidas manchus. - A irmã São José deixou de sorrir e assumiu uma expressão de amuo. Waddington, com um olhar gaiato, serviu-se de outro bolinho. Kitty não compreendeu o incidente.

 

- Para provar-lhe o quanto é injusta, ma mère, estragarei o excelente jantar que me espera.

 

- Se a sra. Fane quiser ver o convento, terei o prazer de mostrar-lho - disse a madre superiora, voltando-se para Kitty. Depois, com um sorriso de escusa: - Sinto que o veja na desordem em que está agora. Temos tido muito trabalho, e poucas irmãs para atender. O coronel Yu insistiu conosco para que puséssemos nossa enfermaria à disposição dos soldados doentes, e tivemos de transformar o refeitório em enfermaria para nossas órfãs.

 

Deteve-se à porta para dar passagem a Kitty, e ambas, seguidas pela irmã São José e Waddington, andaram ao longo de corredores brancos e frios. Entraram primeiro em uma sala grande e nua, onde algumas meninas chinesas trabalhavam em bordados complicados. As meninas levantaram-se à entrada dos visitantes, e a madre superiora mostrou a Kitty diversos bordados.

 

- Continuamos com os trabalhos   manuais apesar da epidemia, porque servem para afastar-lhes o espírito do perigo.

 

Entraram numa segunda sala, onde as órfãs de menos idade faziam costuras simples, bainhas e pespontos, e depois numa terceira, destinada somente às criancinhas e sob os cuidados de uma chinesa convertida. As crianças brincavam ruidosamente, e quando a madre superiora entrou, correram a cercá-la, pequerruchas de dois e três anos, chinesinhas de olhos e cabelos negros que se agarravam às suas mãos e escondiam-se na sua ampla saia. Um sorriso encantador iluminou-lhe o rosto grave, e ela pôs-se a mimá-las, dizendo-lhes palavrinhas gentis que Kitty, embora ignorasse o chinês, sabia serem como carícias. Mas ela quase recuou instintivamente, porque as crianças enfezadas, lívidas, metidas numa roupa igual, a custo lhe pareciam humanas. Eram repulsivas. Entre elas, porém, a madre superiora parecia a própria Caridade. Quando ela se dirigiu para a porta as pequeninas não queriam deixá-la sair, apegando-se às suas roupas, e foi-lhe necessário libertar-se à força, mas suavemente e com ralhos sorridentes. De qualquer modo, elas nada achavam de intimidante naquela grande senhora.

 

- A senhora sem dúvida já sabe - disse ela, enquanto percorriam outro corredor - que são órfãs apenas porque os pais quiseram livrar-se delas. Damos-lhes algum dinheiro pelas filhas que nos trazem, pois de outra maneira não teriam esse trabalho e simplesmente as fariam desaparecer. - Voltou-se para a irmã, perguntando: - Veio alguma hoje?

 

- Quatro.

 

- Agora, com a epidemia, estão, mais do que nunca, ansiosos por livrar-se do fardo de meninas inúteis.

 

Ela mostrou a Kitty os dormitórios, e depois passaram diante de uma porta onde se lia a palavra ”Infermaria”. Kitty ouviu gritos e gemidos que pareciam indicar o sofrimento de seres não humanos.

 

- Não lhe mostrarei a enfermaria - disse a madre superiora no seu tom plácido. - Não é coisa que se deseje ver. - Uma lembrança ocorreu-lhe. - O dr. Fane não estará aí?

 

Olhou interrogativamente para a irmã, que, sorrindo alegremente, abriu a porta e entrou. Kitty recuou, porque a porta aberta lhe permitira ouvir distintamente o horrível tumulto que havia lá dentro. A irmã São José voltou.

 

- Não, ele já esteve aqui e só voltará mais tarde.

 

- Como vai o número 6?

 

- Pauvre garçon, está morto.

 

A madre superiora fez o sinal-da-cruz, e seus lábios moveram-se numa prece curta e silenciosa.

 

Atravessaram um pátio, e Kitty deu com os olhos em duas formas alongadas que jaziam no chão lado a lado, cobertas com um pano azul de algodão. A superiora voltou-se para Waddington.

 

- Estamos com tanta falta de camas que temos de pôr dois doentes numa só, e assim que um deles morre precisa ser retirado imediatamente para dar lugar a outro. - Sorriu, contudo, para Kitty. Agora vamos mostrar-lhe a nossa capela. É o nosso orgulho. Um de nossos amigos mandou-nos há pouco da França uma estátua de Maria Santíssima em tamanho natural.

 

A capela não era mais do que uma sala comprida e baixa de paredes caiadas, com filas de bancos de pinho; ao fundo ficava o altar onde estava a imagem: era de gesso e pintada em cores cruas - muito flamante e vistosa. Mais atrás havia um quadro a óleo da crucificação e duas Marias ao pé da cruz, em extravagantes atitudes de sofrimento. O desenho era mau, e as tintas escuras tinham sido distribuídas sem a menor noção de colorido. Em torno das paredes viam-se os quadros da via-sacra pintados pela mesma mão infeliz. A capela era feia e vulgar.

 

Assim que entraram, as duas freiras ajoelharam-se para dizer uma prece, e, depois, levantando-se, a madre superiora voltou a conversar com Kitty.

 

- Tudo o que é frágil costuma chegar aqui quebrado, mas a estátua presenteada pelo nosso benfeitor veio de Paris sem o menor arranhão. Não há dúvida de que foi um milagre.

 

Um lampejo de malícia brilhou nos olhos de Waddington, mas ele nada disse.

 

- O altar e os passos foram pintados por uma de nossas irmãs, soeur Santo Anselmo. - A madre superiora persignou-se. - Era uma verdadeira artista. Infelizmente, foi uma das vítimas da epidemia. São muito belos, não acha?

 

Kitty vacilou em concordar com ela. Viam-se flores de papel sobre o altar, e os castiçais eram exageradamente ornamentados.

 

- Temos o privilégio de conservar aqui o Santíssimo Sacramento.

 

- Ah - fez Kitty, sem compreender.

 

- Tem sido um grande conforto para nós nesta época tão angustiante.

 

Deixando a capela, voltaram pelo mesmo caminho para a salinha onde tinham sido recebidos ao entrar.

 

- Antes de ir, gostaria de ver as pequeninas que chegaram esta manhã?

 

- Muito - respondeu Kitty.

 

A madre superiora levou-os a um quartinho que ficava do outro lado do corredor. Embaixo de um pano estendido sobre uma mesa viam-se movimentos dos mais singulares. A irmã ergueu-o e descobriu quatro crianças nuas e miudinhas. Estavam muito vermelhas e agitavam os braços e pernas; suas esquisitas carinhas chinesas se contraíam em caretas. Mal parecendo humanas, eram antes curiosos animaizinhos de uma espécie desconhecida; contudo, havia nelas qualquer coisa de muito comovente. A madre superiora olhava-as com um sorriso deliciado.

 

- Parecem muito espertas. Às vezes são trazidas apenas para morrer aqui. Naturalmente, nós as batizamos assim que chegam.

 

- Seu marido gostará muito delas - disse a irmã São José. - Acho que ele seria capaz de brincar horas e horas com elas. Quando choram, ele as põe no colo e começa a niná-las até que elas riem, satisfeitas.

 

Pouco depois Kitty e Waddington achavam-se à porta. Kitty agradeceu, compenetrada, o trabalho a que a madre superiora se dera. A freira inclinou a cabeça com uma condescendência a um tempo digna e amável.

 

- Foi um grande prazer. A senhora não imagina o quanto seu marido tem sido bondoso conosco e o quanto nos tem ajudado. Foi um presente do céu. Quando ele chega a casa, deve ser para ele um grande consolo encontrar o seu amor e a sua. . . a sua carinha bonita. A senhora deve cuidar dele e não deixar que trabalhe demais. Deve cuidar dele por todos os motivos.

 

Kitty enrubesceu. Não sabia o que dizer. A madre superiora estendeu-lhe a mão, e, enquanto a estreitava, Kitty não podia esquecer aqueles olhos calmos e pensativos que repousavam nela quase indiferentes, mas nos quais havia, tinha de haver, uma profunda compreensão.

 

A irmã São José fechou a porta e Kitty subiu para a cadeirinha. Voltaram pelas ruas estreitas e coleantes. Waddington fez uma observação qualquer; Kitty não lhe respondeu. Ele voltou-se para olhá-la, mas as cortinas laterais da cadeirinha estavam fechadas. Continuaram a andar em silêncio. Quando chegaram ao rio, Kitty desceu, e, surpreso, ele viu que seus olhos estavam cheios de lágrimas.

 

- Que é? - perguntou ele, consternado.

 

- Nada. Tolice minha - respondeu ela, tentando sorrir.

 

Novamente sozinha na sala de estar do missionário falecido, estendida numa espreguiçadeira voltada para a janela, com o olhar perdido no templo na outra margem do rio (agora, com a aproximação do anoitecer, novamente etéreo e belo), Kitty procurava pôr em ordem os sentimentos que lhe iam no coração. Nunca teria acreditado que aquela visita ao convento pudesse comovê-la de tal modo. Fora lá por curiosidade. Sem nada o que fazer, e depois de tantos dias a olhar para a cidade murada que ficava além do rio, dispusera-se a dar uma olhadela às suas ruas misteriosas.

 

No entanto, uma vez dentro do convento, pareceu-lhe ter sido transportada para um outro mundo, estranhamente situado fora do tempo e do espaço. Aquelas salas nuas e os corredores brancos, simples e austeros, pareciam encerrar o espírito de algo místico e remoto. A capelinha, tão feia e vulgar, era patética em sua crueza; mas possuía qualquer coisa que faltava a uma catedral, com seus vitrais e suas pinturas: a fé que a adornava, o carinho com que era cuidada, o que lhe dava uma alma bela e delicada. A rotina em que o trabalho do convento prosseguia em meio à epidemia mostrava uma serenidade diante do perigo e um impressionante senso prático quase irónico de tão prosaico. Nos ouvidos de Kitty ainda ressoavam os lamentos que ouvira por um instante quando a irmã São José abrira a porta da enfermaria.

 

O modo como haviam falado de Walter a surpreendera. Primeiro a irmã e depois a própria madre superiora, e o seu tom de voz fora tão meigo quando o elogiara! Era estranho, mas ela se sentira orgulhosa ao saber que o tinham em tamanha conta. Waddington também lhe dissera qualquer coisa sobre o trabalho que Walter estava fazendo. Contudo, não era só a sua competência que as freiras gabavam (em Tching-Yen ela já sabia que o consideravam brilhante), pois também falavam de sua solicitude e ternura. Por certo ele era capaz de muita ternura. Desvelava-se quando alguém estava doente; era demasiado compreensivo para exasperar-se,sua maneira de tratar era agradável, calma e tranqüilizante. Como por mágica, sua simples presença bastava para aliviar o sofrimento. Kitty sabia que nunca mais veria nos seus olhos aquela expressão afetuosa que em outro tempo vira tantas vezes a ponto de achá-la simplesmente exasperante. Sabia agora o quanto era grande a sua capacidade de amar; de uma maneira ou de outra, ele a empregava naqueles doentes desgraçados que só contavam com ele. Não sentia ciúmes, mas uma sensação de vazio; era como se, de súbito, lhe houvessem retirado um apoio ao qual ela se habituara de tal modo que já não o notava. Sentia-se insegura, oscilando.

 

Desprezava-se agora por ter desprezado Walter. Ele devia saber então o que ela pensava a seu respeito, e aceitara seu juízo sem amargura. Não ignorava que ela era uma tola, e isto não lhe fazia diferença porque a amava. Kitty não o odiava agora nem lhe guardava ressentimento, tinha-lhe porém medo e estava perplexa. Não podia deixar de admitir que ele possuía qualidades notáveis, e, às vezes, chegava a reconhecer-lhe uma grandeza estranha e sem atrativos; era curioso que. ela não pudesse amá-lo e que ainda amasse um homem cuja falta de valor ela via agora tão claramente. Depois de pensar, de pensar muito, durante todos aqueles longos dias, tinha uma noção precisa do caráter de Charles Townsend; era um homem comum e de qualidades inferiores. Se ao menos pudesse arrancar do coração o amor que ainda lhe dedicava! Procurava não pensar nele.

 

Waddington também tinha Walter em grande conta. Somente ela não vira os seus méritos. Por quê? Porque ele a amava, e ela não o amava. Haveria no coração humano algo capaz de nos fazer desprezar um homem porque ele nos ama? Waddington, no entanto, confessara que não gostava de Walter. Os homens não gostavam dele. Era fácil observar que aquelas duas freiras tinham por ele um sentimento muito semelhante ao afeto. Ele era diferente com as mulheres; apesar de sua timidez, sentia-se nele uma delicada bondade.

 

Entretanto, as freiras é que a haviam comovido mais profundamente. A irmã São José, com a sua cara alegre, de bochechas vermelhas como maçãs, que viera no pequeno grupo chegado à China com a madre superiora, havia dez anos, e tinha visto uma após outra as suas companheiras morrerem de doença, privações e nostalgia, e contudo continuava alegre e feliz. O que é que lhe dava aquela disposição ingénua e encantadora? E à madre superiora? Kitty imaginava-se novamente em sua presença e tornava a sentir-se humilde e envergonhada. Embora fosse simples e despretensiosa, a madre tinha uma dignidade natural que inspirava medo, e não se podia conceber que alguém pudesse tratá-la sem respeito. A irmã São José, pela sua postura, nos seus menores gestos e na inflexão de suas respostas, mostrara a profunda submissão em que se mantinha; e Waddington, frívolo e impertinente, deixara ver que não estava perfeitamente à vontade. Ele não precisava ter dito, pensava Kitty, que a madre superiora pertencia a uma das grandes famílias da França: seu porte e suas maneiras indicavam uma raça apurada, e ela possuía a autoridade de quem jamais pensou em ser desobedecido. Tinha o ar condescendente de uma grande senhora e a humildade de uma santa. Trazia no rosto belo, enérgico e envelhecido uma Austeridade cheia de paixão, e ao mesmo tempo mostrava tal solicitude e doçura que atraía, para junto de si aquele bando de menininhas bulhentas e desenvoltas, seguras da afeição que recebiam. Ao olhar para as quatro recém-nascidas, tivera um sorriso meigo mas profundo, como um raio de sol numa charneca desolada. O que a irmã São José dissera de modo tão espontâneo a respeito de Walter comovera Kitty estranhamente; sabia que ele desejava com desespero que ela tivesse um filho, mas nunca suspeitara que, reservado como era, fosse capaz de ter para com crianças aquela ternura amável e brincalhona. Comumente os homens eram tolos e desajeitados com os bebés. Como ele era estranho! Mas em toda aquela comovedora visita houvera uma sombra (como uma nuvem negra num céu limpo), persistente e nítida, que a desconcertava. Na moderada alegria da irmã São José, e mais ainda na esplêndida cortesia da madre superiora, Kitty tinha sentido uma distância que a oprimia. Mostravam-se amistosas e até cordiais, mas ao mesmo tempo escondiam qualquer coisa. Kitty não sabia o quê, embora tivesse percebido que devido a isso ela não era mais do que uma estranha de passagem. Havia uma barreira entre ela e as freiras. Falavam uma linguagem diferente não apenas nas palavras, mas nos sentimentos. E quando a porta se fechou, Kitty sentiu que elas a haviam esquecido completamente, voltando sem demora às suas tarefas; que era como se ela nunca tivesse existido. Sentia-se segregada não apenas daquele pobre e pequeno convento, mas de um certo jardim misterioso do espírito a que sua alma tanto aspirava. E, de repente, sentira-se só como nunca se havia sentido. Por isso é que chorara.

 

Naquela noite Walter voltou ao bangalô um pouco mais cedo do que era seu costume. Kitty repousava na espreguiçadeira, diante da janela aberta. Estava quase escuro.

 

- Não quer uma lâmpada? - perguntou ele.

 

- Quando o jantar estiver pronto, trarão uma luz.

 

Walter sempre lhe falava num tom perfeitamente natural, sobre coisas triviais, como se fossem dois simples conhecidos; e, pelos seus modos, nunca havia revelado malquerença. Jamais a fitava nos olhos, nem sorria. Era escrupulosamente cortês.

 

- Waíter, que é que você pretende fazer se escaparmos desta epidemia?

 

Ele tardou um pouco a responder-lhe. Kitty não podia ver-lhe o rosto.

 

- Não pensei nisso.

 

Antes ela dizia descuidadamente tudo o que lhe vinha à cabeça, e jamais lhe ocorria pesar suas palavras, mas agora tinha medo dele, a voz lhe tremia, o coração batia descompassado.

 

- Estive hoje no convento.

 

- Assim me disseram.

 

Kitty, mal podendo articular as palavras, fez um esforço para falar.

 

- Você desejava mesmo que eu morresse quando me trouxe para cá?

 

- Se eu fosse você não tocaria nesse assunto, Kitty. Não vejo nenhuma vantagem em falar no que se deve esquecer.

 

- Mas você não esquece; nem eu tampouco. Estive pensando muito desde que cheguei aqui. Não quer ouvir o que tenho a lhe dizer?

 

- Com certeza.

 

- Eu o tratei muito mal. Fui infiel. Walter dava a impressão de estar paralisado. Sua imobilidade era assustadora.

 

- Não sei se você entenderá o que estou querendo dizer. Depois de terminadas, essas coisas não têm muita importância para uma mulher. Acho que as mulheres não podem compreender a atitude dos homens. - Falava abruptamente, numa voz que a custo reconhecia como sua. - Você sabia quem era Charlie e não ignorava qual seria o seu procedimento. Pois bem, tinha razão. Ele é uma criatura desprezível. Suponho que eu não me sentiria atraída por ele se não fosse igualmente desprezível. Não lhe peço que me perdoe. Não lhe peço que me ame como você me amava. Mas não poderíamos ser amigos? com toda essa gente morrendo aos milhares em torno de nós, essas freiras no convento. . .

 

- Que têm elas com este assunto?

 

- Não posso explicar bem. Hoje, quando fui lá, tive uma impressão tão profunda! Tudo parece ter tanta importância! Esta horrível situação, o admirável sacrifício que elas fazem. Se você entende o que eu quero dizer, verá que é absurdo afligir-se por uma mulher tola que o enganou. Sou demasiado desprezível e insignificante para que você pense em mim uma só vez.

 

Ele não respondeu, mas ficou onde estava. Parecia esperar que ela continuasse.

 

- O sr. Waddington e as freiras disseram-me coisas desvanecedoras a seu respeito. Orgulho-me de você, Walter.

 

- Não era isso o que sentia antes. Você costumava ter desprezo por mim. Ainda tem?

 

- Não está vendo que tenho medo de você? Walter silenciou novamente.

 

- Não a compreendo - disse ele por fim. Não sei o que você quer.

 

- Não quero nada para mim. Só desejo que você seja um pouco menos infeliz.

 

Walter retesou-se, e, quando respondeu, foi com voz glacial.

 

- Está enganada se pensa que me sinto infeliz. Tenho tanto que fazer que não me sobra tempo para pensar em você.

 

- Não sei se as freiras me deixariam trabalhar no convento. Elas são tão poucas que, se eu pudesse ajudá-las, ficaria muito agradecida.

 

- Não é um trabalho fácil nem agradável. Duvido que você o ache interessante durante muito tempo.

 

- Você me despreza inteiramente, Walter?

 

- Não. - Ele hesitou, e sua voz soou estranha. - Desprezo a mim mesmo.

 

Era depois do jantar. Como sempre, Walter lia junto a uma lâmpada. Costumava ler todas as noites até que Kitty se recolhesse; depois, ia para o laboratório que havia instalado numa das peças vazias do bangalô. Trabalhava ali até altas horas da noite. Dormia pouco. Ocupava-se com experimentos que ela ignorava. Nada dizia do seu trabalho, se bem que antes também fosse reticente a tal respeito, pois não era de natureza expansiva. Kitty meditava profundamente sobre o que lhe havia dito: a conversação não levara a parte alguma. Conhecia-o tão pouco que não podia dizer ao certo se ele dissera ou não a verdade. Seria possível que ela tivesse deixado absolutamente de existir para ele, agora q ^ ele existia para ela de modo tão pressago? Quand /a amava, ele mostrava interesse em sua palestra, mas agora, que não a amava mais, devia julgá-la simplesmente enfadonha. Isso a mortificava.

 

Kitty ergueu os olhos para o marido. A luz da lâmpada dava-lhe um perfil nítido de camafeu. As feições regulares e bem-marcadas denotavam distinção, mas eram mais que severas, eram soturnas; e aquela sua imobilidade, acentuada pelo volver dos olhos a cada linha, era vagamente aterrorizadora. Quem teria julgado que a paixão pudesse dar àquele rosto austero tamanha ternura de expressão? Ao evocar essa ternura, vinha-lhe uma certa repugnância. Era estranho que, sendo ele tão bem-apessoado quanto honesto, digno de confiança e talentoso, ela jamais tivesse podido amá-lo. Que alívio não ter nunca mais de submeter-se às suas carícias!

 

Ele não quisera responder quando ela lhe perguntara se, trazendo-a para ali, realmente desejava matá-la. Este mistério a mantinha fascinada e horrorizada. Ele era tão extraordinariamente bondoso que não se podia atribuir-lhe essa diabólica intenção. Talvez ele tivesse deixado entrever tal possibilidade apenas para assustá-la e para vingar-se de Charlie (coisa própria do seu humor sardónico), vendo-se depois obrigado a trazê-la consigo por obstinação ou medo de parecer tolo. Sim, ele dissera desprezar a si mesmo. Que sentido tinham suas palavras? Kitty olhou outra vez para o seu rosto calmo e indiferente. Walter estava tão longe dela que bem poderia achar-se fora da sala.

 

- Por que é que você se despreza? - perguntou ela, quase sem perceber que falava e como se a palestra anterior não tivesse sido interrompida.

 

Ele deixou o livro e fitou-a pensativamente. Dava a impressão de que ordenava ideias remotas.

 

- Por ter amado você.

 

Ela ficou vermelha e desviou os olhos. Não podia supor aquele olhar firme, frio e perscrutador. Tinha-o compreendido. Depois de uma pequena pausa, ela voltou:

 

- Acho que você me faz uma injustiça. Não é justo culpar-me por ter sido tola, frívola e vulgar. Fui educada desse modo. Todas as moças que conheço são assim. Seria o mesmo censurar alguém que não tem ouvido para a música por aborrecer-se num concerto sinfónico. É justo censurar-me por não ter qualidades que você me atribuiu? Nunca procurei enganá-lo fingindo ser o que não era. Eu era apenas bonita e alegre. Não se pede um colar de pérolas ou casaco de pele numa barraca de feira; pede-se uma corneta de papel e um balão de borracha.

 

- Eu não a censuro.

 

Sua voz mostrava tédio. Kitty começava a impacientar-se. Por que ele não era capaz de perceber, como de repente ela própria percebera, que, ao lado de todo o terror da morte sob cuja sombra eles viviam, e ao lado da beleza trágica por ela entrevista naquele dia, seus assuntos eram irrelevantes? Porventura importava alguma coisa que uma mulher tola houvesse cometido adultério? E por que o marido, face a face com o sublime, haveria de sequer pensar nisso? Era estranho que Walter, apesar de toda a sua inteligência, tivesse tão pouco senso de medida. Por ter vestido uma boneca em finas roupagens e por tê-la colocado num altar para adorá-la, descobrindo depois que a boneca estava cheia de serragem, não podia perdoar a si mesmo nem a ela/ Walter_vivera numa atmosfera de ilusão, e quando a realidade a destruíra, ele julgou que a própria realidade fora destruída. Sim, era bem verdade que ele não podia perdoá-la porque não podia perdoar a si próprio.

 

Julgou ouvi-lo suspirar e olhou-o rapidamente. Uma ideia’ súbita cortou-lhe a respirrtòo. A custo pôde conter um grito.

 

Teria ele o que costumavam chamar de coração profundamente magoado?

 

Durante todo o dia seguinte Kitty pensou no convento, e na manhã do outro dia, cedo, logo depois de Walter ter saído, ela atravessou o rio, levando a criada consigo para arranjar cadeirinhas. Apenas amanhecia, e os chineses que se apinhavam na balsa, alguns vestindo o algodão azul dos camponeses, outros a cabaia negra das pessoas respeitáveis, tinham um estranho aspecto de mortos levados sobre as águas para a terra das sombras. E quando pisaram em terra demoraram-se um instante no desembarcadouro, hesitantes, como se não soubessem ao certo para onde iam, até que, em grupos de dois e três, começaram de súbito a galgar a colina.

 

Àquela hora não havia quase ninguém nas ruas da cidade, o que lhe dava, mais do que nunca, uma aparência de cidade dos mortos. Os transeuntes tinham um ar vago que quase a levava a tomá-los por fantasmas. O céu estava límpido e o sol da manhã derramava sobre a cena uma suavidade celeste; era difícil imaginar, naquela manhã alegre, fresca e sorridente, que a cidade se debatia nas garras negras da peste como um homem estrangulado pelas mãos de um louco. ^Era incrível que a natureza (o azul do céu era puro como o coração de uma criança) continuasse tão indiferente enquanto os homens se contorciam em agonia e, apavorados, esperavam a morte.^. Quando as cadeirinhas foram depostas diante do convento, um mendigo levantou-se do chão e pediu uma esmola a Kitty. O homem vestia farrapos informes e sem cor que pareciam ter sido arrebatados a um monte de esterco, e os rasgões deixavam ver a sua pele grossa, encardida e crestada como um couro de cabra; as pernas nuas estavam descarnadas, e a cabeça, com a grenha suja e cinzenta (faces encovadas e olhar desvairado), era a cabeça de um louco. Kitty recuou, aterrorizada, e os condutores da cadeirinha enxotaram o mendigo em tom grosseiro, mas o homem era importuno, e, para livrar-se dele, Kitty deu-lhe, tremendo, algumas moedas.

 

Vieram abrir a porta, e a criada explicou que Kitty desejava ver a madre superiora. Mais uma vez ela foi introduzida no severo parlatório, onde parecia que nunca uma janela fora aberta, e ali ficou, sentada, por tanto tempo que começou a pensar que o seu recado não fora dado. Finalmente, a madre superiora entrou.

 

- Devo-lhe desculpas pela demora - disse ela. - Eu não a esperava e estava ocupada.

 

- Perdoe-me ter vindo incomodá-la. Acho que escolhi um momento inoportuno.

 

A madre superiora dispensou-lhe um sorriso, austero mas amável, e pediu-lhe que se sentasse. Kitty notou que seus olhos estavam inchados. Ela estivera chorando. Isto a surpreendeu, pois a madre superiora lhe dera a impressão de ser uma mulher a quem os males terrenos não causavam grande comoção.

 

- Parece-me que aconteceu alguma coisa disse Kitty, meio hesitante. - Deseja que eu me retire? Posso voltar em outra ocasião.

 

- Não, não. Diga-me em que posso servi-la. É que. . . foi uma de nossas irmãs que faleceu esta noite - ajuntou ela, com a voz insegura, ao passo que seus olhos enchiam-se de lágrimas. - %i que lamentá-la é impiedade de minha parte, r :^rque sua alma simples e boa voou direto para o céu. Era uma santa. Mas é sempre difícil dominar nossa fraqueza. Receio que eu nem sempre seja muito razoável.

 

- Sinto muito - disse Kitty. - Sinto muitíssimo.

 

A pronta simpatia trouxe-lhe um soluço à voz.

 

- Era uma das irmãs que vieram comigo da França há dez anos. Agora somos apenas três. Lembro-me de que formávamos um pequeno grupo na ponta do navio (não é proa que se chama?), e, ao sairmos do porto de Marselha, quando vimos a imagem de ouro de Nossa Senhora da Graça, dissemos juntas uma prece. Desde que eu tinha tomado o hábito, meu maior desejo era vir para a China, mas quando vi a terra afastar-se não pude conter o pranto. Eu era a superiora e não estava dando bom exemplo para minhas filhas. E então a irmã São Francisco Xavier - era esse o nome da irmã que faleceu esta noite tomou-me a mão e pediu-me que não chorasse, porque onde quer que estivéssemos, disse ela, ali estaria a França e ali estaria o Senhor.

 

Aquele rosto belo e severo estava contraído pela dor que a natureza humana lhe provocava e pelos seus esforços para conter as lágrimas que sua razão e sua fé recusavam. Kitty afastou o olhar, sentindo que era impróprio estar espreitando aquele conflito.

 

- Estive escrevendo para o pai dela. Como eu, ela era filha única. Os pais são pescadores na Bretanha. Será um rude golpe para eles. Oh, quando acabará esta horrível epidemia? Duas das nossas meninas caíram doentes esta manhã, e nada, a não ser um milagre, poderá salvá-las. Esses chineses não têm resistência. A perda da irmã São Francisco é muito séria. Há tanto que fazer, e agora já somos tão poucas. .. Nos outros conventos que temos na China há irmãs que muito desejam vir. Toda a nossa ordem, creio eu, daria o que quer que fosse para vir, embora nada tenha; mas a morte é quase certa, e enquanto pudermos continuar o trabalho com as irmãs que temos, não estou disposta a permitir que outras sejam sacrificadas.

 

- Isso me anima bastante, ma mère - disse Kitty. - Eu estava pensando que tinha vindo aqui num momento muito impróprio. A senhora disse-me no outro dia que havia mais trabalho do que irmãs para atendê-lo, e eu me lembrei de que poderia ajudar caso me permitisse. Desde que eu possa ser útil, farei qualquer coisa. Ficaria agradecida mesmo que a senhora me mandasse limpar o soalho.

 

A madre superiora deu-lhe um sorriso complacente, e Kitty surpreendeu-se com o seu temperamento mutável, que tão facilmente passava de uma para outra disposição de espírito.

 

- Não é preciso esfregar o soalho. Isso é feito pelas órfãs, embora o façam à moda delas.

 

A superiora fez uma pausa e olhou bondosamente para Kitty.

 

- Minha filha, não acha que já fez o suficiente vindo para cá com seu marido? Isso é mais do que muitas esposas teriam a coragem de fazer. E haverá outra ocupação melhor do que dar-lhe paz e conforto quando ele chega a casa depois de um dia de trabalho?

 

Creia-me que nessa hora ele precisa de todo o seu amor e consideração.

 

Kitty recebia com dificuldade o olhar que a fitava e no qual havia uma inquisição desapaixonada e uma bondade irónica.

 

- Não tenho absolutamente nada que fazer da manhã à noite - disse ela. - Sinto que há tanto trabalho aqui, que não posso suportar a ideia de estar ociosa. Não quero tornar-me inoportuna, pois sei que não tenho direito à sua bondade ao seu tempo, mas falo sinceramente, e a senhora faria um ato de caridade se permitisse que eu a ajudasse.

 

- A senhora não parece muito forte. Anteontem, quando nos deu o prazer de sua visita, achei-a muito pálida. A irmã São José pensou que talvez fosse ter um bebé.

 

- Não, não - exclamou Kitty, corando até a raiz dos cabelos.

 

A madre superiora riu o seu riso cristalino.

 

- Não há nada de que envergonhar-se, minha filha, e tampouco é uma suposição improvável. Há quanto tempo está casada?

 

- Estou pálida porque sou assim por natureza, mas sou muito forte, e afirmo-lhe que o trabalho não me assusta.

 

A superiora já estava senhora de si. Assumiu inconscientemente o ar de autoridade que lhe era habitual e demorou-se a observar Kitty, que começou a sentir-se inquieta e nervosa.

 

- Sabe falar o chinês?

 

- Não - respondeu Kitty.

 

- Ah, é uma pena. Eu podia confiar-lhe as órfãs mais velhas. Exatamente agora é uma tarefa muito difícil, e receio que elas fiquem. . . como direi na sua língua? Fora de controle? - concluiu ela com uma pronúncia hesitante.

 

- Eu não poderia ajudar as irmãs na enfermaria? Não tenho medo nenhum da cólera. Eu poderia atender as meninas ou os soldados.

 

A madre superiora, agora séria e com um olhar pensativo, sacudiu a cabeça.

 

- A senhora não sabe o que é a cólera. É uma coisa terrível de se ver. O trabalho na enfermaria é feito por soldados, e só precisamos de uma irmã para dirigi-los. E quanto às meninas. . . não, não, tenho certeza de que seu marido não permitiria. É um espetáculo terrível e amedrontador.

 

- Eu me habituaria.

 

- Não, nem se fala nisso. Fazer tal coisa é nossa obrigação e nosso privilégio, mas para a senhora não há essa necessidade.

 

- A senhora faz que eu me sinta muito inútil e muito desamparada. Parece incrível não haver uma coisa que eu possa fazer.

 

- Já falou com seu marido a esse respeito?

 

- Já

 

A madre superiora olhou-a como se estivesse sondando os mistérios de seu coração, mas, quando viu o olhar ansioso e súplice de Kitty, esboçou um sorriso.

 

- Por certo é protestante, não? - perguntou ela.

 

- Sou, sim.

 

- Não importa. O dr. Watson, o missionário que faleceu, era protestante, e isso não fez nenhuma diferença. Foi encantador conosco. Temos para com ele uma grande dívida de gratidão.

 

Kitty esteve a ponto de sorrir, mas não disse coisa alguma. A madre superiora parecia meditar. Por fim, levantou-se.

 

- É muita bondade sua. Creio que posso encontrar-lhe um trabalho aqui. De qualquer modo, agora que a irmã São Francisco nos foi levada, não podemos dar conta do trabalho. Quando deseja começar?

 

- Agora mesmo.

 

- À Ia bonne heure! Essa disposição me alegra.

 

- Prometo-lhe fazer tudo o que estiver ao meu alcance. E agradeço-lhe muitíssimo esta oportunidade que a senhora me dá.

 

A madre superiora abriu a porta do parlatório, mas, quando ia transpô-la, hesitou, mais uma vez lançou a Kitty um olhar demorado, perscrutador e sagaz. Depois, tomou-lhe carinhosamente o braço.

 

- Você sabe, minha filha, que não se pode encontrar paz no trabalho ou no prazer, no mundo ou num convento, mas somente na própria alma.

 

Kitty sentiu um ligeiro sobressalto, mas a madre superiora já entrara no corredor.

 

Kitty encontrava no trabalho um refrigério para o espírito. Ia ao convento todas as manhãs, pouco depois do clarear do dia, e não voltava ao bangalô antes de o sol poente dourar o rio apinhado de juncos. A madre superiora encarregou-a das crianças pequenas. A mãe de Kitty, ao sair de Liverpool para Londres, levara consigo o senso prático das donas-de-casa de sua terra, e Kitty, apesar de sua aparência frívola, sempre tivera certas aptidões a que somente se referia em tom de mofa. Cozinhava muito bem e costurava esplendidamente. Quando revelou este talento, foi-lhe confiada a direção dos trabalhos de agulha das meninas. Elas conheciam um pouco de francês, e todos os dias Kitty aprendia algumas palavras de chinês, e, assim, não lhe era difícil fazer-se entender. Às vezes também tinha de impedir que as pequeninas fizessem travessuras; tinha de vestilas e despi-las, e fazer que descansassem quando o repouso era necessário. Havia um bom número de pequerruchas cuidadas por amas, mas Kitty estava encarregada de vigiá-las de perto. Nenhum destes trabalhos era muito importante, e ela gostaria de fazer algo mais árduo, mas a madre superiora não dava atenção aos seus pedidos, e Kitty temia-a o suficiente para não importuná-la.

 

Durante os primeiros dias, foi-lhe necessário um certo esforço para dominar a ligeira repugnância que sentia pelas meninas pequenas metidas em seus uniformes desgraciosos, com o cabelo duro e preto, a cara redonda e amarela, os olhos fixos e escuros como ameixas. Lembrando-se, porém, do suave olhar que transfigurara o semblante da madre superiora quando, em sua primeira visita ao convento, vira-a cercada por aqueles bichinhos feios, ela conseguiu vencer o seu instinto. E dentro em pouco, ao tomar nos braços uma ou outra daquelas pequeninas criaturas, que chorava por ter levado uma queda ou porque lhe doía um dente, ao perceber que algumas palavras carinhosas, embora numa língua que a criança não podia entender, que a pressão dos seus braços e a maciez de sua face contra o rosto choroso serviam-lhes de consolo, Kitty começou a perder toda a sensação de estranheza. As pequerruchas, sem nenhum medo dela, vinham-lhe com suas queixas infantis, e ela sentia uma rara felicidade ao perceber a confiança que inspirava nelas. O mesmo sucedia com as meninas mais velhas, que aprendiam com ela a costurar; sentia-se comovida com o prazer que elas mostravam, em sorrisos claros e inteligentes, ao ouvir uma palavra elogiosa. Tinha certeza que gostavam dela e, por sua vez, lisonjeada e orgulhosa, devolvia-lhes a estima.

 

Mas havia uma criança a quem ela não podia habituar-se. Era uma menininha de seis anos, uma idiota com uma enorme cabeça hidrocéfala que barnboleava sobre um corpo muito pequeno e rechonchudo, de olhos vagos, arregalados e boca babosa; balbuciava em voz rouca algumas palavras; era medonha e repulsiva, e por uma razão qualqer começou a mostrar um apego idiota por Kit }, seguindo-a por todo lado dentro da enorme sala. Agarrava-se à sua saia e esfregava o rostinho em seus joelhos. Procurava acariciar-lhe as mãos. Kitty tremia de repulsa. Sabia que a infeliz ansiava por carinhos e não podia sequer tocá-la.

 

Certa vez, falando sobre a menina com a irmã São José, disse ser uma pena que ela vivesse. A irmã São José sorriu e estendeu a mão para a criaturinha disforme. Ela aproximou-se e veio esfregar em seus dedos a testa de melão.

 

- Coitadinha - disse a freira. - Chegou aqui a bem dizer morta. Por obra da Providência eu estava na porta no momento em que ela chegou. Julguei que não havia um instante a perder e batizei-a imediatamente. A senhora não imagina o trabalho que tivemos para mantê-la conosco. Três ou quatro vezes chegamos a pensar que sua alminha ia fugir para o céu.

 

Kitty guardou silêncio. A irmã São José, loquaz como sempre, pôs-se a tagarelar de outras coisas. E no dia seguinte, quando a criança idiota aproximou-se dela e tocou-lhe a mão, Kitty animou-se a fazer uma carícia naquela cabeçorra calva. Forçou um sorriso. Mas de repente a criança, com uma perversidade idiota, afastou-se; parecia ter perdido o interesse em Kitty, e durante aquele dia e nos dias seguintes, não lhe deu atenção. Sem atinar com o que pudesse ter feito, Kitty procurava atraí-la com gestos e sorrisos, mas a criatura voltava-lhe as costas e fingia não vê-la.

 

Como as freiras se ocupavam da manhã à noite com uma centena de obrigações, Kitty pouco as via, a não ser nos ofícios na humilde capelinha. No primeiro dia a madre superiora, avistando-a sentada num dos últimos bancos, atrás das meninas, que se sentavam por ordem de idade, deteve-se e falou-lhe:

 

- A senhora não deve pensar que é necessário vir à capela conosco. A senhora é protestante e tem as suas próprias convicções.

 

- Mas eu gosto de vir, madre. Encontro repouso aqui.

 

A superiora relanceou-lhe um olhar e inclinou ligeiramente a sua grave cabeça.

 

- Sem dúvida, deverá fazer somente o que deseja. Eu apenas quis dizer-lhe que a senhora não é obrigada a vir à capela.

 

No entanto, Kitty em pouco tempo estreitava suas relações com a irmã São José, relações que, se não eram íntimas, eram de familiaridade. A freira encarregava-se da economia do convento, e o cuidado pelo bem-estar material daquela grande família levava-a de cá para lá o dia todo. Costumava dizer que o seu único momento de descanso era quando rezava. Mas a uma certa hora da tarde gostava de entrar na sala onde Kitty dirigia o trabalho das meninas e, jurando que estava cansada e não tivera um momento de repouso, sentava-se um instante

 

É para tagarelar. Quando não estava na presença da madre superiora, era uma criatura alegre e loquaz,amiga de um gracejo, e que não desgostava de uma pontinha de maledicência. Kitty não se intimidava com ela, pois o hábito não impedia a irmã São José de ser uma mulher franca e extrovertida, e com ela conversava alegremente. Nessas conversas Kitty não se importava de mostrar quão mau era o seu francês, e ambas riam-se dos seus erros. A irmã emsinava-lhe todos os dias algumas palavras úteis em chinês. Era filha de camponeses, e, no fundo, ainda uma campônia.

 

- Eu cuidava das vacas quando era pequena - dizia ela -, como Santa Joana d’Arc. Mas eu era muito perversa para ter visões. Para minha sorte, acho eu, porque se eu as tivesse meu pai com toda a certeza me daria uma surra. Ele me surrava muitas vezes, o bom do velhinho, porque eu era uma meninazinha muito malvada. Às vezes me envergonho quando penso nas travessuras que eu fazia.

 

A ideia de que aquela freira corpulenta e madura pudesse ter sido uma criança travessa fazia Kitty rir, e contudo havia nela alguma coisa de infantil que despertava simpatia; era como se tivesse o perfume do campo no outono, quando as macieiras : vergam de frutos e a messe, já segada, encontra-se segura nos silos. Ela não tinha a austera e trágica santidade da madre superiora, mas uma jovialidade simples e feliz. - A senhora nunca sente vontade de voltar para a sua casa, ma soeur?

 

- Oh, não. Seria muito difícil voltar. Eu gosto daqui, e nunca fui tão feliz como no meio das órfãs. São tão boas, tão agradecidas! A gente pode ser freira (on a beau être religieuse), mas também tem mãe, e não pode esquecer que mamou no seu peito. Minha mãe está velha, e é triste não tornar a vê-la; mas mamãe gosta bastante da nora, e meu irmão é muito bondoso com ela. O filho dele já é quase um rapaz, e eles ficarão muito contentes em ter na granja mais um par de braços fortes. Ele era muito pequeno quando saí da França, mas prometia ter um punho capaz de derrubar um boi.

 

Na sala tranquila, ouvindo-se o que dizia a freira, era quase impossível pensar que atrás daquelas quatro paredes a cólera ceifava vidas. A irmã São José tinha um desprendimento que se comunicava a Kitty.

 

Mostrava uma curiosidade ingénua para com o mundo e seus habitantes. Fazia a Kitty toda espécie de perguntas sobre Londres e a Inglaterra, um país tão nevoento, pensava ela, que ao meio-dia uma pessoa não podia enxergar suas mãos, e queria saber se Kitty ia a bailes e se morava numa casa senhorial, e quantos irmãos e irmãs tinha. Falava frequentemente de Walter. A madre superiora dizia que era um homem admirável e todos os dias rezava por ele. Como Kitty era feliz em ter um marido tão bom, tão corajoso e tão inteligente!

 

Mas a irmã São José sempre acabava por voltar ao assunto da madre superiora. Kitty percebera desde o início que a personalidade daquela mulher dominava o convento. Todos os que viviam ali por certo a olhavam com admiração e amor, mas também com certo medo, para não dizer espanto. Malgrado a sua bondade, na presença dela Kitty sentia-se como uma colegial. Nunca estava inteiramente à vontade com ela, pois experimentava um sentimento tão estranho que a embaraçava: reverência. A irmã São José, com um ingénuo desejo de causar impressão mencionou a posição elevada da família a que pertencia a madre superiora; havia entre seus antepassados personagens de importância histórica, e ela era un peu cousine1 da metade dos reis da Europa: Afonso da Espanha caçara nos bosques de seu pai, e a família possuía castelos em toda a França. devia ter sido difícil abandonar tamanha grandeza,

 

- Du reste, basta olhar para ela - dizia a irmã - para ver que, comme famille, c’est lê dessus du panier2.

 

- Ela tem as mãos mais bonitas que eu já vi - disse Kitty.

 

- Ah, mas se soubesse como ela as tem usado. Ela não tem medo do trabalho, notre bonne mère.

 

Quando chegaram àquela cidade não havia nada. Tinham construído o convento. A madre superiora fizera os planos e dirigira o trabalho. Logo que chegaram, começaram a salvar as pobres meninas indesejadas das mãos cruéis da parteira e da torre dos recém-nascidos. A princípio não tinham camas para dormir, e nem havia vidros nas janelas para impedir a entrada do ar da noite (”e não há nada mais prejudicial do que isso”, dizia a irmã São José). Muitas vezes ficavam sem um real, não apenas para pagar os construtores, mas até para comprar os seus simples alimentos. Viviam como camponeses. Mas que dizia ela? - os camponeses da França, tenez, os homens que trabalhavam para o seu pai, teriam jogado aos porcos a comida que elas comiam. Então a madre superiora reunia em volta de si as suas filhas e rezavam, ajoelhadas; a Santa Virgem, ouvindo a pré

 

1 ”Meio prima.” Em francês no original. (N. do E.)

2 ”Como família, é o que há de melhor.” Em francês no original. (N. do E.)

 

cê, mandava-lhes dinheiro. Às vezes eram mil francos que chegavam pelo correio no dia seguinte, outras vezes, era um deconhecido, um inglês (”protestante, veja só!”) ou até um chinês, que batia à porta quando elas ainda estavam de joelhos e trazia-lhes um donativo. Em certa ocasião, encontravam-se em semelhantes dificuldades e todas tinham feito à Santa Virgem a promessa de rezarem uma neuvaine em seu louvor se ela as socorresse. Pois (”é capaz de acreditar?”) no dia seguinte aquele engraçado sr. Waddington viera visitá-las e, dizendo que tinham cara de quem precisa de um bom prato de rosbife, deralhes cem dólares.

 

Que homenzinho engraçado era ele, com a sua cabeça calva, os seus olhinhos maliciosos (”sés petits yeux malins”) e suas histórias! Mon Dieu, como ele assassinava a língua francesa! E ainda assim não se podia deixar de rir do que dizia. Sempre estava de bom humor. Durante toda aquela horrível epidemia, portava-se como se estivesse gozando férias. Seus sentimentos eram bem os de um francês, e tinha tal espírito que mal se podia crer que fosse inglês. A não ser pelo sotaque. Contudo, às vezes a irmã São José pensava que ele falava mal de propósito, só para fazê-las rir. com certeza a sua moral não era o que se podia desejar; mas isso era lá com ele, e - a irmã suspirou, encolheu os ombros e sacudiu a cabeça - ele era moço e solteiro.

 

- Há alguma coisa contra a conduta dele, ma soeur? - perguntou Kitty, sorrindo.

 

- Então é possível que a senhora não saiba? É pecado dizer-lhe. Não tenho nada que falar nessas coisas. Ele vive com uma chinesa, isto é, não é chinesa, é manchu. Parece que ela é uma princesa, e ama-o com loucura.

 

- Mas isso é quase impossível! - exclamou Kitty.

 

- Não, não, afirmo-lhe que é a pura verdade. É um grande pecado da parte dele. Essas coisas não se fazem. A senhora não lembra que, na sua primeira visita ao convento, ele não queria as madeleines que eu tinha feito especialmente e a notre bonne mère disse que ele tinha estômago estragado pela comida manchu? Pois era a isso que ela se referia, e a senhora deve ter visto a cara que ele fez. É uma história muito curiosa. Parece que r^nosso bom Waddington estava de serviço em /lan-kou durante a revolução, quando andavam massacrando os manchus, e salvou uma das grandes famílias. Eles são aparentados com a família imperial. A moça apaixonou-se doidamente por ele. . . bem, o resto a senhora pode imaginar. E depois, quando ele saiu de Han-kou, ela fugiu e seguiu-o. Agora, acompanha-o por toda parte, e ele teve de resignarse a mantê-la consigo, o coitado. Acho que gosta muita dela. Às vezes essas manchus são mulheres encantadoras. Mas que é que eu estou pensando? Tenho mil coisas a fazer e fico sentada aqui. Sou uma freira muito má. Tenho vergonha de mim.

 

Kitty tinha a estranha sensação de que renascia. As constantes ocupações distraíam-lhe o espírito, e os vislumbres que tivera de outras vidas e de outras perspectivas despertavam-lhe a imaginação. Começava a recuperar a vivacidade; sentia-se melhor e mais forte. Parecera-lhe que não poderia fazer outra coisa senão chorar, mas para surpresa sua, e até para a sua perplexidade, apanhava-se rindo disto ou daquilo. A pouco e pouco ia-lhe parecendo perfeitamente natural viver no meio de uma terrível epidemia. Sabia que junto dela havia gente morrendo, mas já não pensava muito em tal coisa. A madre superiora proibira-a de entrar nas enfermarias, e as portas fechadas despertavam-lhe a curiosidade. Gostaria de dar uma espiadela, mas não poderia fazê-lo sem ser vista, e ignorava o castigo que lhe daria a madre superiora. Seria terrível que a mandasse embora. Já se afeiçoara às crianças, e elas sentiriam a sua falta; aliás, não sabia o que fariam sem ela.

 

Um dia lhe ocorreu que não havia pensado em Charlie Townsend nem sonhado com ele. O coração pulou-lhe no peito: estava curada. Agora podia pensar nele com indiferença. Não o amava mais. Que alívio, que sensação de liberdade! Era estranho voltar os olhos para trás e lembrar-se da paixão com que ela o queria; tinha pensado que ia morrer quando ele a desamparara; julgara que a vida dali por diante nada mais lhe ofereceria senão sofrimento. E agora já podia rir. Indigna criatura! Como fora tola! Agora, examinando-o calmamente, não podia saber o que tinha visto nele. Por sorte Waddington de nada sabia, pois ela jamais teria suportado o seu olhar malicioso e suas insinuações irónicas. Estava livre, livre finalmente, livre! Quase não podia conter a vontade de rir alto.

 

As crianças brincavam ruidosamente, e ela costumava vigiá-las com um sorriso indulgente, contendo-as quando o barulho era demasiado e cuidando para que nenhuma se machucasse naquele rebuliço. As meninazinhas encantavam-se com ela. Perseguiamna por toda a sala, gritando o mais que podiam nas suas vozes agudas, numa alegria fantástica e quase bárbara. Tanto era o seu entusiasmo que saltavam no ar de puro contentamento. A algazarra era terrível.

 

De repente, abriu-se a porta e apareceu a madre superiora. Kitty, desconcertada, desvencilhou-se das garras de uma dúzia de garotas que se haviam apoderado dela gritando como selvagens.

 

- É assim que a senhora faz estas meninas ficarem quietas? - perguntou a madre superiora com um sorriso nos lábios.

 

- Era uma brincadeira, madre. Elas se entusiasmaram. A culpa foi minha.

 

A superiora aproximou-se e, como sempre, as crianças correram para ela, que lhes pôs as mãos nos ombros estreitos e puxou-lhes de brincadeira as oreIhinhas amarelas. Fixou em Kitty um olhar suave e demorado. Kitty, que tinha corado, ofegava um pouco. Seus olhos líquidos brilhavam, e o belo cabelo, desarranjado pelos movimentos bruscos e pelo riso, estava numa adorável confusão.

 

-• Que vous êtes belle, ma chère enfant! disse a madre superiora. - Faz bem ao coração olhar para você. Não admira que essas crianças a adorem.

 

Kitty ruborizou-se profundamente, e de súbito, sem saber por quê, seus olhos ficaram marejados de lágrimas. Cobriu o rosto com as mãos.

 

- Oh, madre, a senhora me faz corar.

 

- Ora, não seja tola. A beleza também é um dom de Deus, um dos mais raros e preciosos, e devemos ser-lhe gratos se temos a sorte de possuí-lo, e, se não a temos, gratos de que outros o possuam para nosso prazer.

 

Tornou a sorrir e, como se Kitty também fosse uma criança, bateu-lhe de leve no rosto macio.

 

Desde que trabalhava no convento, Kitty não se avistava muito com Waddington. Ele descera duas ou três vezes à margem do rio para encontrá-la, e tinham subido a colina juntos. Entrava para beber um uísque, mas raramente ficava para o jantar. Um domingo, porém, sugeriu que levassem consigo o almoço e fossem em cadeirinhas a um mosteiro budista que ficava situado a dezesseis quilómetros da cidade e tinha certa fama como lugar de peregrinação. A madre superiora, insistindo em que Kitty devia ter um dia de descanso, não a deixava trabalhar aos domingos, e Walter nesses dias estava tão ocupado como sempre.

 

Saíram cedo para chegar antes que aumentasse o calor, e foram conduzidos por um estreito caminho entre os arrozais. De quando em quando, passavam diante de confortáveis casas rústicas, aninhadas na intimidade amiga de um bambual. Kitty ia desfrutando a ociosidade; depois de ter estado encerrada na cidade, era agradável alongar a vista pelos campos. Chegaram ao mosteiro, formado de edifícios baixos, esparsos pela margem do rio, sombreados de árvores, e foram conduzidos por monges sorridentes através de pátios nus, duma nudez solene, e levados aos templos onde se viam deuses com o rosto contorcido em esgares. No santuário acocorava-se o Buda, triste e remoto, pensativo, abstrato e meio sorridente. Havia em toda parte uma impressão de desalento; a magnificência era falsa e decadente. Os deuses estavam empoeirados, e a fé que os criara, moribunda. Os monges pareciam continuar ali por tolerância, como se esperassem uma ordem para retirar-se; e no sorriso do abade, com a sua bela polidez, havia a ironia da resignação. Qualquer dia os monges abandonariam o bosque umbroso e aprazível, e os edifícios em ruínas, abandonados, seriam batidos pelas tempestades e ocupados pela vegetação. As trepadeiras se entrelaçariam por entre as imagens tombadas, e cresceriam árvores naqueles pátios nus. Então, os deuses não mais residiriam ali, senão os maus espíritos das trevas.

 

Sentaram-se nos degraus de um pequeno pavilhão (quatro colunas envernizadas e um telhado sob o qual havia um grande sino de bronze) e ficaram olhando as águas preguiçosas do rio que serpenteava em direção à cidade empestada. Podiam avistar os seus muros ameados. O calor pairava sobre a cidade como uma mortalha. Mas o rio, embora deslizasse” tão vagarosamente, ainda era algo que andava e trazia um sentimento melancólico sobre a transitoriedade das coisas; tudo passava, e que vestígio era deixado? Kitty pensava que todos, toda a raça humana, eram como as gotas d’água naquele rio, e ali fluíam, tão juntos um do outro e contudo tão distantes, fluíam para o mar num caudal sem nome. Se todas as coisas duravam tão pouco e nada era de grande relevância, parecia lamentável que os homens, dando uma importância absurda a coisas triviais, fizessem infelizes uns aos outros.

 

- Conhece Harrington Gardens? - perguntou ela a Waddington com um sorriso nos belos olhos.

 

- Não. Por quê?

 

- Por nada. É que fica tão longe daqui! Nesse bairro é que mora a minha gente.

 

- Está pensando em voltar para a Inglaterra?

 

- Não.

 

- Acho que dentro de um ou dois meses já não estarão mais aqui. A epidemia vai cedendo, e os primeiros frios acabarão com ela.

 

- A ideia de ir embora quase me entristece.

 

Por um momento Kitty pensou no futuro. Ignorava os planos que Walter pudesse ter em mente. Ele nada lhe dissera. Mostrava-se cortês, indiferente, calado e inescrutável. Eram duas pequeninas gotas naquele rio que corria silenciosamente para o desconhecido; duas gotas que para si próprias possuíam tanta individualidade, mas para quem os olhasse, eram apenas uma parte indistinta da água.

 

- Tome cuidado, senão as irmãs começam a convertê-la - disse Waddington com seu sorrisinho velhaco.

 

- Elas têm mais que fazer. E tampouco se importam com isso. São admiráveis e muito bondosas; contudo - mal sei explicá-lo - há uma barreira entre mim e elas. Não sei o que possa ser. É como se possuíssem um segredo que representa toda a vida delas e do qual eu não seja digna de participar. Não se trata de fé; é algo mais profundo e mais. . . mais importante. Elas vivem num mundo diferente do nosso, e sempre nos considerarão estranhos. Todos os dias, quando a porta do convento se fecha atrás de mim, sinto que para elas deixei de existir.

 

- E isso é qualquer coisa que fere a sua vaidade - observou Waddington zombeteiramente.

 

- Minha vaidade. . .

 

Kitty encolheu os ombros. Depois, sorrindo mais uma vez, voltou-se indolentemente para ele e perguntou:

 

- Por que você nunca me disse que vivia com uma princesa manchu?

 

- Que foi que aquelas velhas mexeriqueiras andaram lhe dizendo? Tenho certeza de que é um pecado para as freiras discutirem esses assuntos particulares.

 

- Por que tanta suscetibilidade? Waddington olhou obliquamente para o chão, de um modo que lhe dava certo ar de timidez. Encolheu de leve os ombros.

 

- Não é coisa que se deva andar apregoando. Acho que isso não aumentaria muito as minhas probabilidades de promoção.

 

- Gosta muito dela?

 

Ele ergueu os olhos, e sua carinha feia tinha agora a expressão de um colegial travesso.

 

- Ela abandonou tudo por mim, a pátria, a família, a segurança e o amor-próprio. Há um bom par de anos que mandou tudo às favas para ficar comigo. Já a mandei embora duas ou três vezes, mas ela sempre volta. Eu próprio já fugi, mas ela sempre me seguiu. Agora estou para o que der e vier. Tenho que contar com ela para o resto da vida.

 

- Ela deve amá-lo com paixão,

 

- É uma sensação bastante curiosa - continuou ele, franzindo a testa como se estivesse confuso. - Não tenho a menor dúvida de que se eu a deixasse definitivamente ela se mataria. E faria isso sem nenhum rancor para comigo, mas com toda a naturalidade, porque ela não está disposta a viver sem mim. Essa certeza me causa um sentimento esquisito. É coisa que de qualquer modo tem certa significação para a gente.

 

- Mas o importante não é ser amado, é amar. Nem ao menos somos gratos às pessoas que nos amam; quando não as queremos, elas só nos aborrecem.

 

- Minha experiência não é no plural - replicou ele. - É somente no singular.

 

- Ela é mesmo uma princesa imperial?

 

- Não, isso é um exagero romântico das freiras. Ela pertence a uma das maiores famílias manchus, mas está claro que todos ficaram arruinados com a revolução. De qualquer maneira, é uma grande dama.

 

Disse isto com certa inflexão de orgulho que provocou um sorriso nos olhos de Kitty.

 

- Então pretende ficar aqui para o resto da vida?

 

- Na China? Sim. Que faria ela em outra parte? Quando eu me aposentar, comprarei uma casinha chinesa em Pequim e ali passarei o resto de meus dias.

 

- Tem filhos?

 

- Não.

 

Kitty olhava-o com curiosidade. Era estranho que aquele homenzinho careca e com cara de macaco tivesse inspirado tamanha paixão a uma mulher estrangeira. Havia qualquer coisa na maneira como ele falava nela, apesar de seu tom fortuito e das frases petulantes, que dava uma forte impressão do intenso e único devotamento daquela mulher. Kitty sentia-se perturbada.

 

- Aqui parece bem longe de Harrington Gardens - disse ela sorrindo.

 

- Por que diz isso?

 

- Não compreendo coisa alguma. A vida é tão estranha! Sinto-me como uma pessoa que viveu toda a sua vida junto a uma lagoa e a quem de repente mostram o mar. Isso me deixa um tanto sem fôlego, mas ao mesmo tempo me enche de energia. Não quero morrer, quero viver. Começo a sentir uma coragem nova.   Sinto-me como um daqueles   antigos marinheiros que velejavam para mares ignorados.

 

Waddington olhou-a pensativamente. Ela fitava distraída as águas serenas do rio. Duas pequenas gotas correndo silenciosamente para o mar eterno e obscuro.

 

- Posso fazer uma visita à senhora manchu? - perguntou Kitty, erguendo a cabeça de repente.

 

- Ela não fala uma palavra de inglês.

 

- Você tem sido muito bondoso comigo, já fez muito por mim. . . Quem sabe eu não poderia mostrar, pela minha atitude, os sentimentos de amizade que tenho por ela?

 

Waddington deu um sorrisinho zombeteiro, mas respondeu com bom humor.

 

- Um dia destes virei buscá-la, e ela lhe dará uma xícara de chá aromatizado com jasmim.

 

Kitty não lhe disse que desde o primeiro instante aquela história de amor com uma estrangeira intrigara estranhamente a sua imaginação, e que a princesa manchu tornara-se para ela o símbolo de qualquer coisa que a intrigava de modo vago e insistente. Ela apontava, enigmática, para uma terra mística do espírito.

 

Um ou dois dias mais tarde, porém, Kitty veio a saber de algo que não tinha previsto.

 

Tendo ido ao convento como sempre, começou o seu trabalho fazendo lavar e vestir as crianças. Uma vez que as freiras sustentavam firmemente que o ar da noite era prejudicial, a atmosfera do dormitório estava sufocante e malcheirosa. Depois do frescor da manhã, aquele ambiente lhe causava certo malestar, e Kitty apressava-se em abrir quantas janelas podia. Mas então sentiu-se mal subitamente e parou, estonteada, junto a uma janela, procurando reanimarse. A náusea foi aumentando, e ela vomitou. Deu um grito. As crianças assustaram-se. A menina mais velha que a ajudava correu para ela e, vendo-a pálida e a tremer, interrompeu a carreira e soltou uma exclamação. Cólera! O pensamento penetrou-lhe como um relâmpago o espírito e provocou-lhe uma sensação mortal; tomada de pânico, ela lutou um momento contra a noite que parecia correr, angustiante, pelas suas veias, mas sentiu-se horrivelmente doente e, pouco depois, tudo mergulhava na escuridão.

 

Quando abriu os olhos, não sabia a princípio onde se achava. Parecia estar deitada no soalho, e, ao fazer um leve movimento com a cabeça, julgou sentir um travesseiro. Não podia lembrar-se de nada. A madre superiora estava ajoelhada a seu lado e lhe dava sais a cheirar, e a irmã São José olhava para ela. Então a ideia voltou. Cólera! Via a consternação no rosto das freiras. A irmã São José parecia enorme, e as suas feições estavam enevoadas. Mais uma vez o terror assenhoreou-se dela.

 

- Oh, madre, madre! - soluçou. - Eu vou morrer? Eu não quero morrer.

 

- Não, minha filha, você não vai morrer disse a madre superiora, que estava tranquila e até com certa expressão zombeteira no olhar.

 

- Mas é cólera que eu tenho. Onde está Walter? Já mandaram chamá-lo? Oh, madre, madre!

 

Kitty debulhou-se em lágrimas. A superiora deu-lhe a mão, que ela segurou como se fosse a vida que temia perder.

 

- Vamos, minha filha, não seja tola. Não é cólera nem coisa parecida.

 

- Onde está Walter?

 

- Seu marido está muito ocupado e não devemos incomodá-lo. Dentro de cinco minutos você estará perfeitamente bem.

 

Kitty fitou-a com os olhos dilatados e sem ânimo. Por que motivo a freira aceitava a situação com tamanha calma? Como era cruel!

 

- Repouse mais um instante. Não há por que assustar-se.

 

Kitty sentia o coração bater desordenadamente. Acostumara-se de tal modo àquela enfernidade que vir a contraí-la já não lhe parecia possível. Oh, como fora tola! Tinha certeza que ia morrer. Estava aterrorizada. As meninas trouxeram uma espreguiçadeira de junco e colocaram-na junto à janela.

 

- Vamos levantá-la - disse a madre superiora. - Ficará mais bem acomodada na chaise-longue. Acha que pode andar?

 

A superiora segurou-a por debaixo dos braços, e a irmã São José ajudou-a a pôr-se de pé. Exausta, Kitty afundou-se na cadeira.

 

- É melhor fechar a janela - disse a irmã São José. - Este ar da manhã não pode ser bom para ela.

 

- Não, não - disse Kitty. - Por favor, não a fechem.

 

A vista do céu azul inspirava-lhe confiança. Estava abalada, mas evidentemente começava a sentir-se melhor. As duas freiras olharam-na em silêncio por um instante, e depois a irmã São José disse à madre superiora qualquer coisa que Kitty não pôde ouvir. A madre veio sentar-se ao seu lado e tornoulhe a mão.

 

- Ouça, ma chère enfant. . .   - e fez-lhe uma ou duas perguntas que Kitty respondeu sem saber o que significavam. Seus lábios tremiam tanto que ela mal podia articular as palavras.

 

- Então não há dúvida - disse a irmã São José. - É um assunto em que não me engano.

 

A freira casquinou um risinho no qual Kitty pareceu perceber certo alvoroço e não pouca afeição. A madre superiora, ainda a segurar-lhe a mão, sorriulhe com suave ternura.

 

- A irmã São José tem mais experiência dessas coisas do que eu, minha filha, e ela disse logo o que era. Vê-se agora que tinha razão.

 

- Mas de que se trata? - perguntou Kitty ansiosamente.

 

- Está bem claro. Nunca lhe ocorreu a possibilidade de tal coisa? Você está grávida, minha cara.

 

Um tremor abalou o corpo de Kitty, e ela apoiou os pés no chão como se fosse erguer-se de um salto.

 

- Deite-se, fique sossegada - disse a madre superiora.

 

Kitty sentiu que enrubescia violentamente e levou as mãos ao seio.

 

- Não pode ser. Isso não é verdade.

 

-- Qu’est-ce qu’elle dit? ’ - perguntou a irmã São José.

 

A madre superiora traduziu. O carão simples da irmã São José, com suas bochechas vermelhas, estava radiante.

 

- Não pode haver engano. Dou-lhe a minha palavra de honra.

 

- Há quanto tempo está casada, minha filha? - perguntou a madre superiora. - Olhe que mais ou menos com o mesmo tempo de casada minha cunhada já tinha dois nenés.

 

Kitty tornou a afundar-se na cadeira. Tinha a morte no coração.

 

- Estou tão envergonhada! - balbuciou ela.

 

”O que diz ela?” Em francês no original. (N. do E.)

 

- Porque vai ter um filho? Ora, então pode haver coisa mais natural do que isso?

 

- Quelle joie pour lê docteur!1 - disse a irmã São José.

 

- Sim, pense na satisfação que dará ao seu marido. Ele transbordará de alegria. Basta vê-lo com as crianças, e observar-lhe o rosto quando brinca com elas, para avaliar o quanto ficará encantado em ter um filho seu.

 

Kitty permaneceu um instante silenciosa. As duas freiras olhavam-na com um interesse terno, e a madre superiora afagava-lhe a mão.

 

- Foi tolice minha ainda não ter suspeitado disso - disse Kitty. - Afinal de contas, estou satisfeita por não ser a cólera. Sinto-me muito melhor. Já posso voltar ao meu trabalho.

 

- Não, minha filha; hoje, não. Você sofreu um abalo, e o melhor é ir para casa e repousar.

 

- Não, não, prefiro ficar trabalhando aqui.

 

- Insisto. Que diria o nosso bom doutor se eu a deixasse cometer essa imprudência? Venha amanhã, se tiver vontade, ou depois de amanhã, mas hoje deve ficar sossegada. Mandarei chamar uma cadeirinha. Não quer que uma de nossas meninas a acompanhe?

 

- Oh, não, estarei muito bem sozinha.

 

Kitty estava deitada no seu quarto, de postigos fechados. Era depois do almoço e os criados dor-

 

1 ”Que alegria para o doutor!” Em francês no original. (N. do E.)

 

miam. O que soubera naquela manhã (e agora estava certa de que era verdade) enchia-a de consternação. Desde que chegara a casa vinha tentando pensar, mas tinha o cérebro vazio e não podia ordenar as ideias. De súbito, ouviu passos que não podiam ser dos criados, porque se distinguia o ruído dos sapatos. Apreensiva, concluiu que só poderia ser o marido. Pouco depois ele a chamava da sala de estar. Kitty não respondeu. Houve um momento de silêncio e, depois, uma batida na porta do quarto.

 

- Quem é?

 

- Posso entrar?

 

Kitty levantou-se da cama e vestiu um quimono.

 

- Pode.

 

Walter entrou. Felizmente os postigos estavam fechados, pensou ela.

 

- Espero que não a tenha acordado. Bati muito de leve.

 

- Eu não estava dormindo.

 

Ele foi até uma das janelas e abriu os postigos. Uma onda de luz invadiu o quarto.

 

- Que há? Por que voltou tão cedo?

 

- As irmãs me disseram que você não estava bem. Achei bom dar um pulo até aqui para ver o que era.

 

Ela teve um ímpeto de raiva.

 

- Que é que você diria se fosse cólera?

 

- Se fosse, você positivamente não teria podido voltar para casa esta manhã.

 

Kitty dirigiu-se à penteadeira e tratou de arranjar os cabelos. Queria ganhar tempo. Depois, sentando-se, acendeu um cigarro.

 

- Eu não estava muito boa esta manhã e a madre superiora achou melhor que eu viesse para casa. Mas agora já estou perfeitamente bem. Amanhã irei ao convento como sempre.

 

- Que foi que houve?

 

- Elas não lhe disseram?

 

- Não. A madre superiora disse que você mesma me contaria.

 

Walter fez o que raramente fazia: olhou-a diretamente no rosto. Seu instinto profissional era mais forte do que seus instintos pessoais. Kitty hesitava. Depois, com esforço, olhou-o de frente.

 

- Estou grávida - disse ela.

 

Estava afeita ao seu hábito detteceber em silêncio uma notícia que naturalmente /devia provocar uma exclamação, mas tal atitude nunca pareceu tão desoladora como naquele momento. Ele não disse uma palavra, não fez nenhum gesto, e nenhum movimento no rosto ou mudança de expressão nos olhos escuros indicou que a tivesse ouvido. Ela sentiu vontade de chorar. Se um homem amasse sua mulher e sua mulher o amasse, ambos ficariam unidos por uma funda emoção em tal instante. O silêncio era insuportável, e ela o rompeu.

 

- Não sei por que nunca pensei nisso. Foi estupidez minha, mas. . . com uma coisa e outra. . .

 

- Há quanto tempo. . . para quando espera o parto?

 

As palavras pareciam sair-lhe dos lábios com dificuldade. Ele devia ter a garganta tão seca quanto a dela. Era desagradável que os lábios lhe tremessem quando ela falava; se ele não fosse de pedra, deveria causar-lhe pena.

 

- Acho que estou grávida há uns dois ou três meses.

 

- Sou eu o pai?

 

Ela teve um sobressalto. Na voz dele havia uma levíssima sugestão de insegurança; era terrível aquele frio domínio de si mesmo, que dava um cará ter lancinante ao menor sinal de emoção. Sem saber por quê, lembrou-se repentinamente de um instrumento que lhe fora mostrado em Tching-Yen e no qual uma agulha oscilava de leve, o que, segundo lhe disseram, indicava um terremoto a uns mil e quinhentos quilómetros de distância, onde talvez milhares de pessoas haviam perdido a vida. Olhou para o marido. Estava mortalmente pálido. Já o vira assim uma, duas vezes. Tinha os olhos baixos, desviados para um lado.

 

- Então?

 

Ela torceu as mãos. Sabia que, se pudesse dizer sim, isso seria tudo para ele. Haveria de acreditar nela, por certo haveria de acreditar, pois assim o queria; e então a perdoaria. Sabia quão grande era a sua ternura e quanto, malgrado a sua timidez, estava pronto a empregá-la. Sabia que ele não era vingativo; haveria de perdoá-la se ela ao menos lhe desse um pretexto, um pretexto que lhe tocasse o coração, e haveria de perdoá-la inteiramente. Podia contar que ele nunca lhe lançaria o passado em rosto. Seria cruel, frio e mórbido, mas não era baixo nem mesquinho. Tudo seria diferente se ela dissesse sim.

 

E ela precisava tanto de afeição! A inesperada certeza de que estava grávida enchera-a de estranhas esperanças e de desejos imprevistos. Sentia-se fraca, um tanto assustada, sozinha e muito longe de quaisquer amigos. Naquela manhã, embora a mãe pouco lhe importasse, desejara súbita e ardentemente a sua companhia. Necessitava de consolo e amparo. Não amava o marido, sabia que nunca poderia amá-lo, mas naquele momento ansiava de todo o coração que ele a tomasse nos braços e ela pudesse repousar a cabeça no seu peito; junto a ele, desabafaria, feliz, em prantos; desejava que ele a beijasse e queria enlaçar-lhe o pescoço.

 

Começou a chorar. Já havia mentido tanto, e ainda podia mentir facilmente. Que importância teria uma mentira a mais diante do bem que podia fazer? Tão fácil dizer sim! Via o olhar de Walter suavizarse e os seus braços estenderem-se para ela. Mas não podia mentir: ignorava por quê, mas simplesmente não o podia. Tudo por quanto passara durante aquelas semanas amargas, Charlie e o seu desamor, a epidemia e toda aquela gente morrendo, as freiras, e, por curioso que fosse, aquele homenzinho bêbedo e engraçado que era Waddington, tudo parecia tê-la mudado tanto que ela própria não se reconhecia; embora estivesse profundamente emocionada, uma outra pessoa na sua alma parecia obsecá-la com terror e surpresa. Precisava dizer a verdade. Mentir não parecia valer a pena. Seus pensamentos erravam estranhamente: viu de súbito o mendigo morto junto ao muro do quintal. Por que se lembrava dele? Não soluçava; tinha os olhos muito abertos, e as lágrimas rolavam-lhe pela face, livremente. Por fim, respondeu à pergunta. Walter perguntara se ele era o pai da criança.

 

- Não sei - disse ela.

 

Quase imperceptivelmente, ele riu por entre dentes, fazendo Kitty estremecer.

 

- Meio embaraçoso, não é?

 

Sua resposta foi característica dele, e era exatamente a que ela esperava ouvir, mas encheu-lhe o coração de desespero. Não teria percebido o quanto lhe custara dizer a verdade? Não lhe daria crédito por isso? (Mas no mesmo instante em que ela fazia a si própria essas perguntas, reconhecia que nada lhe custara falar a verdade, que fora inevitável dizê-la.) Suas palavras, não sei, não sei, martelavam-lhe o cérebro. Agora era impossível desdizer-se. Tirou o lenço da bolsa e enxugou os olhos. Ambos ficaram em silêncio. Havia uma garrafa de sifão na mesinha-decabeceira e ele serviu-lhe um copo d’água. Aproximou-o dos lábios dela, segurando-o enquanto ela bebia. Kitty notou o quanto a sua mão estava magra; era uma bela mão, delgada, de dedos compridos, mas, agora, só pele e osso; tremia um pouco: ele podia dominar o rosto, mas a mão o traía.

 

- Não se importe com o meu choro - disse ela. - Não é nada. É que eu não posso impedir que saia água de meus olhos.

 

Ela bebeu a água, e ele repôs o copo na mesinha. Ele sentou-se numa cadeira e acendeu um cigarro. Depois, suspirou levemente. Uma ou duas vezes antes ela já o vira suspirar daquele modo, que sempre lhe causava um sobressalto. Olhando-o agora, enquanto ele deitava um olhar abstrato pela janela, surpreendia-se por não ter notado antes o quanto ele emagrecera naquelas últimas semanas. Suas têmporas estavam afundadas, e os ossos do rosto, salientes sob a pele. Na tez queimada de sol percebia-se uma palidez esverdeada. Parecia esgotado. Estava trabalhando demais, dormia pouco e não comia nada. Na sua angústia e perturbação, ela ainda achou lugar para condoer-se dele.

 

Ele pôs a mão na testa, como se lhe doesse a cabeça, e ela teve um pressentimento de que aquelas palavras também martelavam doidamente o seu cérebro: não sei, não sei. Era estranho que aquele homem taciturno, frio e tímido tivesse tamanha afeição natural por criancinhas; a maioria dos homens não se importava muito sequer com as suas, mas as freiras, sensibilizadas e achando certa graça, tinham falado sobre aquilo mais de uma vez. Se ele mostrava tais sentimentos para com aqueles esquisitos bebezinhos chineses, que não teria sentido por um filho seu? Kitty mordeu os lábios para não chorar novamente.

 

Walter consultou o relógio.

 

- Preciso voltar para a cidade. Ainda tenho muita coisa a fazer hoje. . . Você ficará bem?

 

- Perfeitamente; não se incomode comigo.

 

- É melhor você não me esperar esta noite.

 

Posso chegar muito tarde, e arranjarei qualquer coisa para comer com o coronel Yu.

 

- Está bem. Ele levantou-se.

 

- Se eu fosse você, não procuraria fazer nada hoje. É melhor repousar. Precisa de alguma coisa agora?

 

- Não, muito obrigada. Estarei muito bem. Ele se deteve um instante, come que indeciso, e depois, bruscamente e sem olhar para ela, apanhou o chapéu e retirou-se. Kitty ouviu-lhe os passos no quintal. Sentia-se terrivelmente sozinha, e já não sendo necessário conter-se, entregou-se a uma fúria de lágrimas.

 

A noite estava sufocante. Kitty, sentada junto à janela, olhava para os telhados fantásticos do templo chinês, que se recortava, sombrio, contra o céu estrelado, quando Walter voltou. Tinha os olhos inchados de chorar, mas estava tranquila. Apesar de tudo quanto a angustiava, e talvez por simples cansaço, sentia-se estranhamente em paz.

 

- Pensei que já estivesse na cama - disse Walter ao entrar.

 

- Eu não tinha sono. Aqui está mais fresco. Você comeu alguma coisa?

 

- O suficiente.

 

Ele pôs-se a andar de cá para lá em todo o comprimento da sala, e ela compreendeu que tinha alguma coisa a lhe dizer. Sabia que ele estava embaraçado.

 

Desinteressadamente, esperou que ele se resolvesse. De repente, ele começou a falar.

 

- Estive pensando sobre o que você me disse esta tarde. Segundo me parece, seria melhor que você saísse daqui. Já falei com o coronel Yu, ele lhe dará uma escolta. Pode levar a criada consigo. Terá toda a segurança.

 

- Mas para onde irei?

 

- Para a casa de sua mãe.

 

- Acha que ela terá prazer em receber-me? Ele fez uma breve pausa, hesitando, como se refletisse.

 

- Então pode ir para Tching-Yen.

 

- Fazer o quê?

 

- Você precisará de muito cuidado e atenção. Acho que não é justo pedir-lhe que fique aqui.

 

Ela não pôde impedir um sorriso, não apenas de amargura, mas de quem francamente acha graça. Olhou-o e esteve a ponto de rir.

 

- Não sei por que tanto interesse na minha saúde.

 

Ele chegou à janela e ficou olhando a noite. Nunca houvera tantas estrelas naquele céu límpido.

 

- Isto aqui não é lugar para uma mulher no seu estado.

 

Kitty observou-lhe o vulto branco delineado contra a escuridão; havia qualquer coisa de sinistro no seu perfil delgado, mas, curiosamente, nesse momento aquilo não lhe causava medo.

 

- Quando você insistiu que eu viesse para cá, queria matar-me? - perguntou ela de chofre.

 

Ele demorou tanto a responder que parecia ter-se recusado a ouvir.

 

- A princípio.

 

Kitty estremeceu, pois era a primeira vez que ele reconhecia a sua intenção. Mas não lhe quis mal por isso. Seus sentimentos surpreendiam-na; havia nele uma certa admiração e uma leve zombaria. Sem

 

que soubesse o motivo, lembrou-se de Charlie Townsend, que lhe pareceu um idiota desprezível.

 

- Era um risco terrível o que você estava correndo - redarguiu ela - com a sua consciência escrupulosa, não sei se você jamais se perdoaria caso eu tivesse morrido.

 

- Mas não morreu; você está aí.

 

- Nunca me senti melhor na minha vida.

 

Num  impulso   instintivo,   tinha vontade   de entregar-se ao capricho dele. Depois de tudo o que haviam passado, e vivendo agora entre aquelas cenas de horror e desolação, parecia absurdo dar importância a um ridículo ato de fornicação. com a morte tão perto, levando vidas como um hortelão desenterrando batatas, era tolice preocupar-se com quaisquer sujeiras que esta ou aquela pessoa fizesse com o seu corpo. Se ela pudesse fazê-lo perceber quão pouco

 

8 Charlie significava para ela, que quase já não conseguia recordar suas feições, e quão inteiramente o amor que lhe tinha havia desaparecido do seu coração Nada mais sentindo por Townsend, os vários fatos que cometera com ele tinham perdido a significação. Ela recuperara o seu coração, e o que lhe dera do seu corpo parecia não ter a mínima importância.

 

Tinha vontade de dizer a Walter: ”Escute, você não acha que já chega de tolice?

Temos procedido como crianças amuadas. Por que não podemos beijar-nos e fazer as pazes? Não há razão para não sermos amigos só porque não nos amamos”.

 

Ele continuava imóvel, e o clarão da lâmpada dava à sua palidez um quê de assustador. Kitty não confiava nele; se dissesse o que não devia, ele replicaria com uma gélida austeridade. Conhecia-lhe agora a extrema sensibilidade contra a qual sua amarga ironia era uma proteção, e sabia que ele imediatamente fechava o coração quando magoado. Por um instante, irritou-se com semelhante estupidez. O que mais o perturbava era sem dúvida a vaidade ferida, e ela compreendia vagamente que isso era o mais difícil de curar. Os homens, curiosamente, ligavam demasiada importância à fidelidade das esposas; quando ela se entregara a Charlie, esperara sentir-se muito diferente, uma outra mulher; mas lhe parecera que continuava exatamente a mesma, experimentando apenas bem-estar e maior vitalidade. Desejava agora poder dizer a Walter que a criança era dele; a mentira quase nada significaria para ela, e a certeza que daria a ele seria um grande conforto. E, afinal de contas, podia não ser mentira; era esquisito haver no seu coração qualquer coisa que a impedira de aproveitar o benefício da dúvida. Como eram tolos os homens! O papel deles na procriação era tão sem importância; a mulher é que trazia a criança dentro de si durante longos meses de mal-estar e dava à luz entre dores, e ainda assim o homem, por causa de um contato momentâneo, tinha pretensões tão despropositadas! Que importância teria isso nos sentimentos dele para com a criança? Depois seus pensamentos passaram para a criança que ia ter; pensava nela não com emoção ou com um sentimento de maternidade, mas com simples curiosidade.

 

- Acho que você gostaria de pensar um pouco - disse Walter, rompendo o longo silêncio.

 

- Pensar em quê?

 

Ele voltou-se, como se estivesse surpreendido.

 

- Em quando deseja ir.

 

- Mas não quero ir.

 

- Por quê?

 

- Gosto do meu trabalho no convento, acho que estou sendo útil, e prefiro ficar enquanto você estiver aqui.

 

- Devo dizer-lhe que no seu estado há maior probabilidade de contrair qualquer infecção.

 

- Gosto da maneira discreta como você o diz - observou ela, sorrindo ironicamente.

 

- Você não vai ficar por minha causa?

 

Ela hesitou. Walter não sabia que agora a emoção mais forte que ele lhe causava, e também a mais inesperada, era a comiseração.

 

- Não. Você não me ama. Muitas vezes penso que lhe sou enfadonha.

 

- Nunca pensei que você fizesse uma pessoa capaz de abandonar sua comodidade pé por causa de umas freiras mofentas e de um grupinho de fedelhos chineses.

 

Kitty esboçou um sorriso.

 

- Acho que é um tanto injusto desprezar-me tanto porque você se enganou a meu respeito. Não tenho culpa de que fosse tão estúpido.

 

- Se está resolvida a ficar, é claro que tem liberdade para isso.

 

- Lamento que não possa lhe dar uma oportunidade de ser magnânimo. - Era-lhe muito difícil levá-lo inteiramente a sério. - Aliás, você tem toda a razão, não é apenas por causa das órfãs que vou ficar. Acontece que eu me encontro na situação de quem não tem para onde ir. Não conheço nenhuma pessoa que não me julgue um estorvo. Não conheço ninguém que dê dois alfinetes para saber se estou viva ou morta.

 

Ele franziu o cenho, sem contudo parecer irritado, e observou:

 

- Fizemos uma trapalhada dos diabos, não é?

 

- Ainda quer divorciar-se de mim? Agora já não me faz diferença.

 

- Você deve saber que, trazendo-a para cá, anulei o motivo.

 

- Não sabia, não. Nunca estudei os aspectos legais da infidelidade. Que vamos fazer quando sairmos daqui? Vamos viver juntos?

 

- Oh, você não acha que o futuro pode tomar conta de si mesmo?

 

Havia um cansaço de morte na voz dele.

 

Dois ou três dias mais tarde, Waddington foi buscar Kitty no convento (pois sua inquietação fizera-a voltar imediatamente ao trabalho) e levou-a para tomar a prometida xícara de chá com a amante. Em mais de uma ocasião Kitty havia jantado na casa de Waddington. Era uma construção quadrangular, branca e pretensiosa, como as que a alfândega edifica para os seus funcionários em toda a China; e a sala de jantar onde comiam, a sala de estar onde conversavam, eram mobiliadas com peças sólidas e rebuscadas. Tais casas eram metade repartição pública e metade hotel; nelas não havia nenhum conchego de lar, e era claro que serviam apenas a uma estada casual de seus sucessivos ocupantes. A ninguém ocorreria que no sobrado de uma delas o mistério e, talvez, a aventura romântica vivessem encapuzados. Subiram um lance de escadas e Waddington abriu uma porta. Kitty entrou numa sala comprida e nua, com paredes caiadas, das quais pendiam rolos de papel em várias caligrafias. Sentada numa poltrona de espaldar reto, diante de uma mesa quadrada, achava-se a manchu. Levantou-se quando Kitty e Waddington entraram, mas ficou onde estava.

 

- Ei-la - disse Waddington, e ajuntou qualquer coisa em chinês.

 

Kitty apertou-lhe a mão. Era uma mulher delgada e um pouco mais alta do que Kitty esperava, habituada como estava à gente do sul. Vestia uma comprida bata bordada e uma jaqueta de seda verde clara, de mangas justas que vinham até os punhos; sobre o cabelo negro, cuidadosamente penteado, trazia o toucado das mulheres manchus. Tinha o rosto muito empoado, e as faces, dos olhos à boca, muito pintadas com ruge; as sobrancelhas depiladas eram um delgado risco negro, e a boca, vermelha. Nesta máscara, seus grandes olhos negros, ligeiramente oblíquos, ardiam como lagos de azeviche líquido. Parecia mais um ídolo do que uma mulher. Seus gestos eram lentos e seguros. Kitty teve a impressão de que ela era um pouco tímida, mas muito curiosa. Inclinou a cabeça duas ou três vezes, olhando para Kitty, enquanto Waddington falava dela. Kitty observou-lhe as mãos: eram extraordinariamente compridas, muito esguias, da cor do marfim, e as unhas, primorosas, estavam pintadas. Kitty pensou nunca ter visto nada tão suave como aquelas mãos lânguidas e elegantes. Indicavam uma linhagem de séculos incontáveis. Ela falou umas palavras, numa voz alta como o chilrear de pássaros num pomar, e Waddington, traduzindo, disse a Kitty que ela tinha satisfação em vê-la. Qual a sua idade e quantos filhos tivera? Sentaram-se nas cadeiras de encosto reto, diante da mesinha quadrada, e um criado trouxe bules de chá, claro, perfumado com jasmim. A senhora manchu ofereceu cigarros ingleses a Kitty. Afora a mesa e as cadeiras, a sala quase não tinha mobília, vendo-se apenas uma cama baixa e larga sobre a qual havia um almofadão bordado, e duas arcas de sândalo.

 

- Que faz ela durante todo o dia? - perguntou Kitty.

 

- Pinta um pouco, e às vezes escreve um poema. Mas, na maior parte do tempo, fica sentada.

 

Fuma ópio, mas muito moderadamente, o que é uma sorte, já que uma das minhas obrigações é impedir o tráfico do ópio.

 

- E você fuma? - perguntou Kitty.

 

- Raramente. Para lhe dizer a verdade, prefiro o uísque.

 

Havia na sala um odor ligeiramente acre; não era desagradável, mas peculiar e exótico.

 

- Diga-lhe que lamento não poder falar com ela. Estou certa de que teríamos muita coisa a dizer-nos.

 

Quando isto lhe foi traduzido, a manchu lançou a Kitty um olhar rápido no qual se insinuava um sorriso. Sentada como estava, sem nenhum embaraço, e nas suas belas roupas, era uma mulher impressionante; em seu rosto pintado, os olhos mantinham uma expressão cautelosa, firme e insondável. Era irreal, como um quadro, e tinha contudo uma elegância que fazia Kitty sentir-se desajeitada. Kitty nunca tivera outra coisa senão uma passageira atenção, algo desdenhosa, para com a China na qual o destino a havia atirado. Em seu meio, não se fazia mais do que isso. E agora, de repente, parecia-lhe ter uma intuição de qualquer coisa remota e misteriosa. Ali estava o Oriente, imemorial, obscuro e inescrutável. As crenças e ideais do Ocidente eram rudes ao lado dos ideais e crenças que ela parecia entrever fugitivamente naquela delicada criatura. Ali estava uma vida diferente, vivida num plano diferente. Sentia de modo estranho que o espetáculo daquele ídolo, com o seu rosto pintado e os cautelosos olhos oblíquos, tornava ligeiramente absurdas as dores e lutas do mundo cotidiano que ela conhecia. Aquela máscara colorida parecia esconder o segredo de uma experiência abundante, profunda e cheia de significações: aquelas mãos longas e delicadas, de dedos afusados, seguravam a chave de enigmas insuspeitados.

 

- Em que pensa ela durante o dia todo? perguntou Kitty.

 

- Em nada - sorriu Waddington.

 

- Ela é admirável. Diga-lhe que nunca vi tão lindas mãos. Que será que ela vê em você?

 

Waddington, sorrindo, traduziu a pergunta.

 

- Ela diz que eu sou bom.

 

- Como se uma mulher gostasse de um homem pela sua virtude! - mo-tojou Kitty.

 

A manchu riu apenas i jna vez. Foi quando Kitty, para dizer alguma coisa, expressou admiração por uma pulseira de jade que ela usava. Ela tirou-a, e Kitty, tentando colocá-la no pulso, verificou, embora as suas mãos fossem bastante pequenas, que a pulseira não passava das falanges. A manchu rompeu num riso infantil. Disse qualquer coisa para Waddington e chamou uma criada. Deu-lhe uma ordem, e a criada em pouco voltava trazendo um par de belíssimos sapatos manchus.

 

- Ela quer dá-los a você, se puder calçá-los - disse Waddington. - Você verá que pode usá-los como ótimas pantufas.

 

- Servem-me perfeitamente - disse Kitty, não sem satisfação.

 

Mas observou um sorriso maroto no rosto de Waddington.

 

- São muito grandes para ela? - perguntou Kitty rapidamente.

 

- Verdadeiras canoas.

 

Kitty riu, e quando Waddington traduziu a frase, a manchu e a criada também riram.

 

Quando Kitty e Waddington, pouco depois, subiam juntos a colina, ela voltou-se para ele com um sorriso amigo.

 

- Você não me disse que tinha uma grande afeição por ela.

 

- Por que diz isso?

 

- Vi nos seus olhos. É estranho. Deve ser o mesmo que amar um fantasma ou um sonho. Os homens são imprevisíveis. Pensei que você fosse como todos os demais, e agora sinto que ignoro tudo a seu respeito.

 

Quando chegaram ao bangalô, ele perguntoulhe abruptamente:

 

- Por que você quis vê-la?

 

- Estou procurando uma coisa, que não sei bem o que é. Sei contudo que é muito importante para mim e que, se eu a descobrir, será de grande importância para a minha vida. Talvez as freiras saibam o que seja; quando estou entre elas, sinto que escondem um segredo que não querem partilhar comigo. Não sei por que me ocorreu que, se eu visse essa mulher manchu, teria uma intuição daquilo que procuro. Talvez ela me dissesse, se o pudesse.

 

- Por que razão você pensa que ela conhece tal coisa?

 

Kitty olhou-o de soslaio, mas não respondeu. Fez-lhe porém uma pergunta:

 

- Você conhece?

 

Ele sorriu e encolheu os ombros.

 

- Tão. Alguns de nós procuram o Caminho no ópio, outros, em Deus; alguns no uísque e outros no amor. Tudo é o mesmo Caminho e não leva a parte alguma.

 

Kitty tornou a cair na confortável rotina do seu trabalho, e embora, durante as primeiras horas da manhã, estivesse longe de sentir-se bem, tinha ânimo suficiente para não entregar-se à indisposição. Estava pasmada com o interesse que as freiras demonstravam por ela; irmãs que, quando ela as via no corredor, não faziam mais do que desejar-lhe bom dia, agora sob o menor pretexto entravam na sala onde ela trabalhava e olhavam-na, tagarelando um pouco, com um alvoroço carinhoso e infantil. A irmã São José contava-lhe, com uma repetição as vezes enfadonha, como estivera dizendo a si mesm nos últimos dias: ”Parece-me”, ou ”Eu não me surpreenderia”; e depois, quando Kitty havia desmaiado: ”Não pode haver dúvida, isso salta aos olhos”. Contava-lhe compridas histórias sobre os partos de sua cunhada, as quais teriam sido bastante assustadoras não fosse o bom humor com que Kitty as recebia. A irmã São José combinava de maneira agradável a perspectiva realista de sua criação (um rio serpeava através dos prados da fazenda de seu pai e os choupos das margens tremiam à brisa mais leve) com uma encantadora intimidade com as coisas religiosas. Um dia, firmemente convencida de que uma herética não podia saber nada de tais assuntos, contou-lhe a Anunciação.

 

- Não posso ler essas linhas da Sagrada Escritura sem chorar - disse ela. - Não sei por quê, mas sinto uma coisa esquisita.

 

Depois, falando em francês, com palavras que não eram comuns para Kitty, e um tanto frias na sua precisão, citou:

 

- ”E, entrando o anjo onde ela estava, disse: Salve, agraciada; o Senhor é contigo: bendita sejas tu entre as mulheres”.

 

O mistério do nascimento soprava pelo convento como uma aragem caprichosa entre os lírios de um jardim. O fato de Kitty estar grávida perturbava e alvoroçava aquelas mulheres estéreis. Ela as   amedrontava um pouco e as fascinava. As freiras consideravam o lado físico do seu estado com um sólido bom senso, pois eram filhas de camponeses e pescadores, mas em seus corações infantis havia medo. Inquietavam-se com o seu fardo, mas estavam felizes e estranhamente exaltadas. A irmã São José contou-lhe que todas rezavam por ela, e que a irmã São Martinho dissera ser uma pena que ela não fosse católica, mas a madre superiora a tinha reprovado, afirmando que era possível ser uma boa mulher - une brave femme, segundo a sua expressão - mesmo sendo protestante, e que lê bon Dieu, de uma maneira ou doutra, cuidaria disso.

 

Kitty comovia-se e ao mesmo tempo divertia-se com o interesse que despertava, mas ficara mais do que surpresa ao ver que até a madre superiora, tão austera em sua santidade, tratava-a com uma nova complacência. Ela sempre fora bondosa com Kitty, mas de uma maneira distante; agora, dispensava-lhe uma ternura em que havia algo de maternal. Sua voz tinha um tom mais brando, e havia em seus olhos uma inesperada jovialidade, como se Kitty fosse uma criança que tivesse feito algo inteligente e delicioso. Era singularmente comovedor. A alma daquela religiosa era como um mar calmo e cinzento a rolar majestosamente, amedrontador na sua grandeza sombria, e que de repente um raio de sol torna acolhedor, vivo e alegre. À tardinha, vinha muitas vezes sentar-se ao lado de Kitty.

 

- Preciso cuidar para que não se canse, mon enjant - dizia ela, dando uma desculpa para si mesma. - Senão, o dr. Fane nunca me perdoará. Oh! essa fleuma britânica! Ele está encantado a mais não poder, mas quando se fala no assunto, empalidece.

 

Depois, tomando a mão de Kitty, afagou-a carinhosamente.

 

- O dr. Fane disse-me que desejava que você fosse embora, mas você não quis porque não podia deixar-nos. Isso foi muito amável de sua parte, minha filha, e desejo que saiba que apreciamos o auxílio que nos tem dado. Mas acho que você também não quis deixá-lo, e isso é melhor ainda, porque seu lugar é ao lado dele, e ele precisa de você. Ah, não sei o que teríamos feito sem esse homem admirável.

 

- Sinto-me feliz por ele ter podido fazer alguma coisa pelas senhoras - disse Kitt.

 

- Você deve amá-lo de todo o coração minha cara. Ele é um santo.

 

Kitty sorriu, com tristeza no coração. Agora só havia uma coisa que ela podia fazer por Walter, e não sabia como. Queria que ele a perdoasse, não por ela, mas por ele próprio, pois sentia que somente isso lhe daria paz de espírito. Era inútil pedir-lhe perdão, e se ele suspeitasse que ela o desejava mais pelo seu próprio bem do que pelo dela, a vaidade obstinada o levaria a recusá-lo a todo o custo (era curioso que agora essa vaidade não a irritasse, que lhe parecesse natural e apenas aumentasse a pena que sentia dele); e a única oportunidade seria algum fato inesperado que o colhesse desprevenido. Tinha a ideia de que ele receberia de bom grado um ímpeto de emoção que o libertasse daquele pesadelo de ressentimento, mas em sua patética loucura ele haveria de lutar contra esse impulso com todas as suas forças.

 

Não era lamentável que os homens, ocupando tão pequeno espaço num mundo onde havia tanto sofrimento, assim se torturassem?

 

Embora a madre superiora não tivesse conversado com Kitty mais do que três ou quatro vezes, e apenas uma ou duas durante dez minutos, a impressão que causava em Kitty era profunda. Seu caráter era como um país que à primeira vista parece grande mas inóspito, e no qual dentro em pouco se descobrem alegres aldeolas cercadas de pomares, ao sopé de montanhas majestosas, e mansos ribeiros a preguiçar através de viçosas planuras. Mas estas cenas aprazíveis, conquanto nos surpreendam e até tranquilizem, não bastam para que aceitemos os alcantis pardos daquela terra e suas regiões fustigadas pelo vento. Teria sido impossível entrar em intimidade com a madre superiora; havia nela qualquer coisa de impessoal que Kitty sentia que afetava também as outras freiras, mesmo a tagarela e bonachona irmã São José, mas no que lhe dizia respeito era uma barreira quase palpável. Causava uma sensação curiosa, desalentadora, mas que inspirava medo, o fato de que a madre pudesse andar na mesma terra em que estamos, tratar de assuntos mundanos e contudo viver tão evidentemente num plano inatingível para os outros. Disse ela uma vez a Kitty:

 

- Não basta que uma religiosa esteja continuamente em prece com Jesus; ela própria deve ser uma prece.

 

Embora sua palestra estivesse entremeada de religião, Kitty sentia que isto lhe era natural e que ela de modo algum tentava influenciar a herege. Parecia-lhe estranho que a madre superiora, com o seu profundo sentimento de caridade, se contentasse em deixar Kitty numa condição que ela deveria achar de pecaminosa ignorância.

 

Certa vez, ao anoitecer, as duas estavam sentadas, juntas. Os dias iam ficando mais curtos, e a luz suave do crepúsculo era agradável e um tanto melancólica. A madre superiora parecia muito cansada. Seu rosto trágico estava branco e emagrecido; seus belos olhos negros tinham perdido o fulgor. A fadiga talvez lhe trouxesse uma rara disposição para confidências.

 

- Este é um dia memorável para mim, minha filha - disse ela, saindo de um lo^o devaneio -, pois foi nesta data que resolvi   finalmente tomar o hábito. Durante dois anos eu vinha pensando nisso, mas sofrendo como se temesse esta vocação, porque eu receava que o espírito do mundo viesse a reapoderar-se de mim. Então naquela manhã, quando eu comungava, fiz a promessa solene de que antes da noite eu anunciaria essa resolução a minha mãe. Depois de ter recebido a sagrada comunhão, pedi a Nosso Senhor que me desse paz de espírito: ”Só a terás”, pareceu-me ser a resposta, ”quando tiveres deixado de desejá-la”.

 

A madre superiora parecia perder-se em recordações.

 

- Nesse dia, uma de nossas amigas, Mme de Viernot, havia partido para o Carmelo sem nada dizer aos seus parentes. Ela sabia que eles se opunham a esse passo, mas era viúva e achava que como tal tinha o direito de proceder conforme desejasse. Uma de minhas primas fora dizer adeus à querida fugitiva e só voltou à tardinha. Veio muito comovida. Eu ainda não tinha falado à minha mãe e tremia à ideia de comunicar-lhe o que havia resolvido, mas queria manter a promessa feita na sagrada comunhão. Fiz a minha prima toda espécie de perguntas. Minha mãe, que parecia entretida na sua tapeçaria, não perdeu uma palavra. Enquanto eu conversava, dizia comigo: ”Se eu quiser falar hoje, não tenho um minuto a perder”.

 

”É estranho como eu me lembro nitidamente da cena. Estávamos sentadas em volta da mesa, uma mesa redonda coberta com uma toalha vermelha, e trabalhávamos à luz de uma lâmpada que tinha um velador verde. Minhas duas primas estavam passando uns tempos conosco, e todas trabalhávamos em tapeçarias para forrar as cadeiras do salão. Imagine que não tinham sido forradas desde os dias de Luís XIV, quando foram compradas, e estavam tão feias e desbotadas que minha mãe dizia ser uma desgraça.

 

”Eu procurava formar as palavras, mas meus lábios não se moviam; e então, de repente, após alguns minutos de silêncio, minha mãe disse-me: ’Eu absolutamente não posso compreender a conduta de sua amiga. Não gosto de que tenha saído assim, sem nenhuma palavra para os que a estimam. O gesto é teatral e me fere o bom gosto. Uma mulher bemcriada não faz nada que dê motivo a falatórios. Espero que se você algum dia nos der o grande pesar de deixar-nos não fuja como se estivesse cometendo um crime’.

 

”Era o momento de falar, mas tal era a minha fraqueza que só pude dizer: ’Oh, tranquilize-se, maman, eu não teria essa coragem’,

 

”Minha mãe não respondeu, e eu arrependi-me de não ter ousado explicar-me. Parecia-me ouvir as palavras de Nosso Senhor a São Pedro: ’Pedro, amas-Me?’ Oh, que fraqueza, que ingratidão a minha! Eu amava a minha comodidade, o meu modo de vida, minha família e meus divertimentos. Estava perdida nestas amargas reflexões quando um pouco mais tarde, como se a conversação tivesse continuado, minha mãe me disse: ’Contudo, minha Odette, acho que você não morrerá sem fazer alguma coisa duradoura’.

 

”Eu ainda estava perdida em meus pensamentos e em minha ansiedade, enquanto as primas, sem suspeitar da minha angústia, trabalhavam serenamente, quando de súbito minha mãe, pondo de lado o seu trabalho e olhando-me atentamente, disse: ’Ah, minha querida filha, estou bem certa de que você acabará por fazer-se freira’.

 

A senhora está falando sério, minha boa mãe, respondi eu. A senhora está desnudando o meu pensamento e o desejo mais íntimo do meu coração.

 

” Mais que! Exclamaram minhas primas sem me dar tempo dê concluir. ’Há dois anos que Odette não pensa noutra coisa, mas a senhora não lhe dará a sua permissão, ma tante, a senhora não deve lhe dar a sua permissão.’

 

” ’com que direito, minhas queridas meninas, iremos recusar-lhe isso’, disse minha mãe, ’se for a vontade de Deus?’

 

”Minhas primas então, desejando transformar a conversação em brincadeira, perguntaram-me o que eu pretendia fazer com as minhas quinquilharias e começaram a disputar alegremente quem ficaria com isto e com aquilo. Mas esses primeiros momentos de alegria duraram muito pouco, e começamos a chorar. Depois ouvi que meu pai descia as escadas.”

 

A madre superiora fez uma breve pausa e suspirou.

 

- Foi um golpe para meu pai. Eu era sua única filha, e os homens muitas vezes têm um sentimento mais profundo pelas filhas do que jamais têm pelos filhos.

 

- É uma grande infelicidade a gente ter coração - disse Kitty com um sorriso.

 

- É uma grande felicidade consagrar esse coração ao amor de Jesus Cristo.

 

Nesse instante, uma meninazinha aproximou-se da madre superiora e, crente no seu interesse, mostrou-lhe um brinquedo fantástico que ela havia arranjado.

 

A madre superiora pousou sua delicada mão no ombro da menina, que se aconchegou a ela. Causava estranheza a Kitty observar como era suave o seu sorriso e, ainda assim, o quanto era impessoal.

 

- É admirável ver a adoração que todas as órfãs têm pela senhora, madre - disse ela. - Acho que eu ficaria muito orgulhosa se pudesse despertar uma devoção tão grande.

 

A madre superiora sorriu mais uma vez na sua maneira distante e contudo encantadora^

 

- Há só um modo de conquistar os corações, ’’que é fazer-se a gente igual àqueles por quem desejaria ser amada.

 

Naquela noite Walter não veio jantar. Kitty esperou-o um pouco, pois quando ele se detinha na cidade sempre conseguia mandar-lhe um recado, mas finalmente sentou-se à mesa. Apenas fingiu comer os muitos pratos que o cozinheiro chinês, com o seu respeito pelas conveniências, não obstante a peste e a dificuldade de abastecimento, servia-lhe invariavelmente. Depois, atirando-se na espreguiçadeira de rotim, diante da janela aberta, entregou-se à beleza da noite estrelada. O silêncio repousava-a.

 

Não tentou ler. Os pensamentos flutuavam-lhe no espírito como pequenas nuvens brancas refletidas num lago sereno. Achava-se demasiado cansada para deter-se num deles, acompanhá-lo e absorver-se no seu encadeamento. Procurava saber, vagamente, o que a tocava mais de perto nas várias impressões que suas palestras com as freiras lhe tinham deixado. Era singular que, embora aquele modo de vida a comovesse profundamente, a fé que o proporcionava nada lhe dissesse. De modo algum contaria com a possibilidade de que o ardor da crença pudesse assenhorear-se dela. Kitty suspirou: talvez tudo ficasse mais fácil se essa grande e pura luz lhe iluminasse a alma. Uma ou duas vezes, desejou contar à madre superiora a sua infelicidade e o que a causava, mas não se atreveu: não podia suportar que aquela mulher austera pensasse mal dela. O que ela havia feito naturalmente lhe pareceria um grave pecado. O curioso é que ela própria não podia considerá-lo tão imoral quanto estúpido e repugnante.

 

Talvez fosse estupidez considerar sua ligação com Townsend como lamentável e até chocante, quando era algo que merecia mais o esquecimento do que o remorso. Era o mesmo que cometer uma gafe numa festa; mortificava, mas não se podia fazer nada, e atribuir-lhe muita importância somente mostrava falta de bom senso. Estremecia ao pensar em Charlie, em seu porte amplo e demasiado cheio, o queixo indefinido, e sua maneira de encher o peito para esconder o abdómen. Seu temperamento sanguíneo mostrava-se nas pequeninas veias vermelhas que em breve formariam uma rede nas faces rosadas. Ela gostara de suas sobrancelhas grossas: agora lhe davam a impressão de ter algo de animal e repulsivo.

 

E o futuro? Era curioso como isso a deixava indiferente: impossível imaginá-lo. Talvez morresse ao dar à luz. Sua irmã Doris sempre fora muito mais forte do que ela e quase morrera. (Tinha cumprido o seu dever dando um herdeiro à flamante baronia; Kitty sorriu ao pensar na satisfação de sua mãe.) Se o futuro era tão vago, talvez ela estivesse destinada a não vê-lo. Walter provavelmente pediria à mãe dela que cuidasse da criança... se a criança sobrevivesse; e ela o conhecia muito bem para saber que, embora sua paternidade fosse incerta, ele trataria a criança com bondade. Podia-se confiar na admirável conduta de Walter em quaisquer circunstâncias. Pena que, apesar de suas grandes qualidades, de seu altruísmo e de sua honradez, de sua inteligência e sensibilidade, fosse tão difícil amá-lo. Agora, não lhe tinha o menor medo, mas apenas compaixão, ao mesmo tempo que não podia deixar de julgá-lo um tanto absurdo. A profundeza de suas emoções tornava-o vulnerável, e ela sentia que, em alguma ocasião e fosse como fosse, poderia agir sobre esses sentimentos a ponto de induzi-lo a perdoá-la. Perseguia-a a ideia de que, devolvendo-lhe assim a paz de espírito, ela o indenizaria pela angústia que lhe causara. Era uma pena que ele tivesse tão pouco senso de humor: ela era capaz de imaginar os dois, um dia, a rirem juntos da maneira por que se haviam atormentado.

 

Estava cansada. Levou a lâmpada para o quarto e despiu-se. Deitou-se e em breve adormeceu.

 

Mas foi acordada por fortes pancadas. A princípio, como estivessem entremeadas ao sonho do qual era despertada, ela não pôde dizer se o som era real. As batidas continuaram, e ela teve consciência de que deviam ser no portão do quintal. Estava muito escuro. Tinha consigo um relógio de ponteiros luminosos, e viu que eram duas e meia. Devia ser Walter de volta - como vinha tarde! -, que não conseguia acordar o criado. As pancadas prosseguiam, cada vez mais alto, e no silêncio da noite aquilo era deveras alarmante. O ruído cessou, e ela ouviu que corriam o pesado ferrolho. Walter nunca voltava tão tarde. Coitado, devia estar cansadíssimo! Esperava que ele tivesse o juízo de ir logo para a cama ao invés de trabalhar como sempre naquele seu laboratório.

 

Ouviu-se o ruído de vozes e um movimento de pessoas no quintal. Tal coisa era estranha, porque Walter, quando voltava tarde, procurava fazer o menor ruído possível a fim de não pertubá-la. Duas ou três pessoas subiram correndo as escadas de madeira e entraram no quarto contíguo. Kitty estava um pouco assustada. De um modo vago, sempre temera um motim contra os estrangeiros. Teria acontecido alguma coisa? Seu coração começou a bater aceleradamente. Mas antes que ela tivesse tempo de dar uma forma à sua vaga apreensão, alguém aproximou-se do quarto e bateu na porta.

 

- Sra. Fane.

 

Kitty reconheceu a voz de Waddington.

 

- Que é que há?

 

- Queira levantar-se. Tenho algo a dizer-lhe. Ela levantou-se, vestiu um quimono e foi abrir a porta. Viu de relance Waddington, num par de calças chinesas e de casaco de seda, o criado com o lampião na mão, e, um pouco mais atrás, três soldados chineses em uniforme caqui. Teve um sobressalto ao ver o rosto consternado de Waddington; seus cabelos estavam desalinhados como se ele tivesse acabado de saltar da cama.

 

- Aconteceu alguma coisa? - perguntou ela precipitadamente.

 

- Tenha calma. Não há um momento a perder. Vista-se logo e venha comigo.

 

- Mas o que há? Houve alguma coisa na cidade?

 

A presença dos soldados sugeria-lhe que tinha havido uma arruaça e eles estavam ali para protegê-la.

 

- Seu marido adoeceu. Queremos que a senhora venha imediatamente.

 

- Walter? - exclamou ela.

 

- Não fique nervosa. Ainda não sei exatamente de que se trata. O coronel Yu mandou este oficial falar comigo e pedir-me que a levasse imediatamente ao iamém.

 

Kitty fitou-o um momento sem expressão; subitamente, sentiu que o coração se lhe gelava e respondeu:

 

- Estarei pronta num instante.

 

- Vim como estava - disse ele. - Eu estava dormindo, e somente enfiei os sapatos e vesti um casaco.

 

Ela não ouviu o que ele dizia. Vestiu-se sem acender a luz, apanhando as primeiras coisas que encontrou; seus dedos tinham ficado tão desajeitados de um momento para outro, que lhe pareceu um século o tempo que perdeu para encontrar os colchetes que fechavam o vestido. Pôs sobre os ombros o xale cantonês que usara naquela tarde.

 

- Não levo chapéu. Será preciso?

 

- Não.

 

O criado saiu à frente com um lampião, e eles desceram apressados, encaminhando-se para o portão.

 

- Tenha cuidado - disse Waddington. - É melhor apoiar-se no meu braço.

 

Os soldados vinham logo após eles.

 

- O coronel Yu mandou duas cadeirinhas. Estão à nossa espera na outra margem do rio.

 

Desciam rapidamente a colina. Kitty não encontrava forças para pronunciar a pergunta que lhe tremia horrivelmente nos lábios. Temia mortalmente a resposta. Chegaram ao embarcadouro, e lá estava uma sampana à espera, com uma réstia de luz à popa.

 

- É cólera? - perguntou ela.

 

- Temo que sim.

 

Kitty deixou escapar um pequeno grito e estacou.

 

- Acho que a senhora deve vir o mais depressa possível.

 

Waddington deu-lhe a mão e ajudou-a a embarcar. A travessia era curta, e o rio parecia quase estagnado. Ficaram num pequeno^grupo à popa, enquanto uma mulher, com uma liança amarrada sobre a anca, impelia a sampana com o remo.

 

- Ele adoeceu esta tarde, isto é, na tarde de ontem - disse Waddington.

 

- Por que não me mandaram chamar imediatamente?

 

Embora não houvesse razão para tal, falavam aos cochichos. Na escuridão, Kitty apenas podia sentir quão grande era a ansiedade do seu companheiro.

 

- O coronel Yu queria chamá-la, mas ele não deixou. O coronel Yu não se afastou do lado dele.

 

- Mas assim mesmo, devia ter-me mandado chamar. Isso é uma crueldade.

 

- Seu marido sabia que a senhora nunca tinha visto um doente de cólera. É um espetáculo horrível e repugnante. Ele não queria que o visse.

 

- Mas afinal é meu marido - disse ela numa voz sufocada.

 

Waddington nada respondeu.

 

- Por que me deixam ir agora? Waddington pôs-lhe a mão no braço.

 

- Precisa ter coragem, minha cara. Deve estar preparada para o pior.

 

Ela deu um grito de angústia e voltou-se um pouco, vendo que os três soldados chineses a olhavam. Distinguiu-lhes, súbita e estranhamente, o branco dos olhos.

 

- Ele está morrendo?

 

- Só sei o que o coronel Yu mandou dizer-me por este oficial. Tanto quanto posso julgar, já sobreveio o colapso.

 

- Não há nenhuma esperança?

 

- Sinto muitíssimo, mas acho que, se não nos apressarmos, não o encontraremos com vida.

 

Ela estremeceu. As lágrimas começaram a rolar-lhe pela face.

 

- Ele esteve trabalhando demais, e sua capacidade de resistência está muito abalada.

 

Kitty desvencilhou-se do braço de Waddington com um gesto de irritação. Exasperava-a o seu modo de falar, em voz baixa e angustiada.

 

Chegaram ao desembarcadouro, e dois homens, cules chineses, ali postados, ajudaram-na a descer. As cadeirinhas estavam à espera. Quando ela entrou na sua, Waddington lhe disse:

 

- Procure dominar os nervos. Precisará de todo o seu autocontrole.

 

- Diga aos condutores que se apressem.

 

- Eles já têm ordem de ir o mais rapidamente possível.

 

O oficial, que já tomara a sua cadeirinha, ao passar junto deles, gritou para os condutores de Kitty. Estes ergueram a cadeirinha habilmente, ajeitaram os varais nos ombros e puseram-se rapidamente a caminho. Waddington seguia logo atrás. Subiram a colina numa carreira; à frente de cada cadeirinha ia um homem com um lampião. Ao chegarem à porta que dava para o rio, lá estava o guarda com um archote. O oficial gritou-lhe de longe uma ordem, e ele abriu uma folha da porta, deixando-os entrar. Ao passarem, o homem lançou uma espécie de interjeição, e os condutores retrucaram-lhe. Àquela hora morta da noite, esses sons guturais numa língua estranha eram misteriosos e alarmantes. Os cules subiram pelo calçamento molhado e escorregadio do beco, e um dos condutores da cadeirinha do oficial tropeçou. Kitty ouviu a voz encolerizada do oficial, a réplica estridente do condutor, e depois a cadeirinha da frente retomou a marcha apressada. As ruas eram tortas e estreitas. Ali na cidade, a noite era profunda. Era uma cidade dos mortos. Em marcha acelerada, os cules enfiaram-se por uma viela, dobraram uma esquina e subiram uma escadaria quase correndo; começaram a respirar com ruído; Dançavam em silêncio a passo largo e rápido; um eles tirou um lenço esfarrapado e, sem parar, limpou o suor que lhe caía nos olhos; iam ora neste ora naquele rumo, como se desfilassem por um labirinto; na soleira das lojas fechadas, às vezes parecia haver alguém deitado, mas não se sabia se era um homem adormecido que despertaria de madrugada ou um homem que adormecera para não mais despertar; as ruelas silenciosas e vazias estavam espectrais, e quando, de súbito, um cão ladrou, muito alto, um estremeção de terror percorreu os nervos torturados de Kitty. Ela não sabia aonde iam. O caminho parecia interminável. Não poderiam andar mais depressa? Mais depressa. Mais depressa. O tempo escoava, e a qualquer momento poderia ser demasiado tarde.

 

Caminhando ao longo de um comprido muro liso, chegaram de chofre a um portão ladeado por duas guaritas. Os condutores depuseram as cadeirinhas. Waddington aproximou-se rapidamente de Kitty. Ela já havia descido. O oficial bateu fortemente no portão e gritou. Abriu-se uma poterna, e eles passaram para um pátio grande e retangular. Amontoados contra os muros, sob as abas do telhado, viam-se soldados envoltos em suas mantas, estendidos em grupos cerrados. Detiveram-se um instante enquanto o oficial falava a um homem que talvez fosse o sargento da guarda. Voltando-se, o militar disse qualquer coisa a Waddington.

 

- Ainda está vivo - disse Waddington a meia voz. - Cuidado com o caminho.

 

Sempre guiados por homens com lampiões, atravessaram o pátio, subiram os poucos degraus de uma escada, entraram por uma porta ampla e tornaram a descer para outro grande pátio. A um lado deste último havia um comprido quarto iluminado; as luzes, atravessando o papel de arroz, formavam um complicado desenho de renda. Os homens dos lampiões indicaram o caminho para o quarto, e, assim que chegaram à porta, o oficial bateu. Abriram-na imediatamente, e o oficial, relanceando os olhos para Kitty, recuou.

 

- Queira entrar - disse Waddington.

 

Era um quarto comprido e baixo, e a fraca luz das lâmpadas fumarentas tornava-o pressago. Três ou quatro ordenanças ali estavam postados. Numa pequena cama, encostada à parede do fundo, jazia um homem embuçado num cobertor. Aos pés da cama aprumava-se, imóvel, um oficial.

 

Kitty estugou o passo e inclinou-se sobre a cama. Walter jazia, de olhos fechados, e, sob a luz escassa, seu rosto tinha a cor terrosa da morte. Estava horrivelmente imóvel.

 

- Walter, Walter! - exclamou ela, numa voz baixa e aterrorizada.

 

Houve um ligeiro movimento do corpo, ou a impressão de um movimento, tão leve que parecia uma aragem imperceptível enrugando por momentos a superfície lisa da água.

 

- Walter, Walter, fale comigo.

 

Walter abriu os olhos lentamente, como se lhe custasse um esforço infinito erguer aquelas pálpebras pesadas, mas ele não volveu o olhar, fitando apenas a parede que estava a poucos centímetros de seu rosto. Por fim, falou. Sua voz, baixa e débil, sugeria um sorriso distante.

 

- Que bela enrascada! -ele disse.

 

Kitty não ousava respirar, ^e não tentou dizer mais nada, não esboçou um geiJo, mas seus olhos, aqueles olhos negros e frios (que mistérios viam eles agora?), fitavam a parede caiada. Kitty pôs-se de pé. com um olhar macilento, voltou-se para o homem que se achava aos pés da cama.

 

- Mas com certeza se pode fazer alguma coisa. O senhor vai ficar aí sem fazer nada?

 

Ela mantinha as mãos crispadas. Waddington falou:

 

- Acho que já fizeram tudo o que era possível. O médico do regimento tem tratado dele. Seu marido ensinou-o, e ele fez tudo o que seu marido poderia fazer.

 

- Esse é o médico?

 

- Não, é o coronel Yu. Nunca se arredou de junto de seu marido.

 

Alheada, Kitty relanceou os olhos para ele. Era um homem um tanto alto, mas de compleição sólida e não parecia à vontade no seu uniforme caqui. Olhava para Walter, e viam-se lágrimas em seus olhos. Kitty sentiu um choque. Por que motivo aquele homem de cara lisa e amarela tinha lágrimas nos olhos? Aquilo a exasperava.

 

- É horrível não poder fazer nada.

 

- Pelo menos ele não sofre mais - disse Waddington.

 

Kitty inclinou-se mais uma vez sobre o marido. Aqueles seus olhos espectrais ainda fitavam o vácuo.

 

Ainda via com eles? Ela tampouco sabia se ele ouvira o que ela havia dito. Aproximou os lábios de seus ouvidos.

 

- Walter, há alguma coisa que a gente possa fazer?

 

Devia haver alguma droga que lhe pudessem dar e que sustasse o terrível fluxo da doença. Agora que seus olhos estavam mais habituados à obscuridade, ela via com horror que o rosto de Walter estava transfigurado. Mal o teria reconhecido. Era incrível que em poucas e breves horas ele parecesse um outro homem; e mesmo quase não parecia um homem, mas uma figuração da morte.

 

Julgando que ele fazia um esforço para falar, Kitty acercou o ouvido de seus lábios.

 

- Sossegue. Passei um mau bocado, mas agora estou bem.

 

Kitty esperou mais um instante, mas ele continuou calado. Semelhante imobilidade enchia-lhe o coração de angústia; era espantoso que ele ficasse tão quieto! Já parecia preparado para a imobilidade do túmulo. Alguém, o médico ou o enfermeiro, aproximou-se e afastou-a com um gesto, depois, inclinando-se sobre o moribundo, umedeceu-lhe os lábios com um trapo sujo. Kitty ergueu-se mais uma vez e voltou-se, desesperada, para Waddington.

 

- Não há nenhuma esperança? - sussurrou ela.

 

Ele abanou a cabeça.

 

- Quanto tempo ainda poderá viver?

 

- Não se sabe. Uma hora talvez.

 

Kitty circunvagou os olhos pelo quarto despido e deteve o olhar na sólida figura do coronel Yu.

 

- Eu não poderia ficar a sós com ele? Só um instante.

 

- Certamente, se assim quiser. Waddington aproximou-se do coronel e falou-lhe. O coronel fez uma ligeira curvatura e deu uma ordem em voz baixa.

 

- Esperaremos na escada - disse Waddington, saindo com os outros. - Quando quiser, pode chamar-nos.

 

Agora que o incrível se havia apoderado de sua consciência, como uma droga a circular-lhe nas veias, e ela compreendia que Walter ia morrer, tinha um só pensamento: arrancar de sua alma o rancor que a envenenava, a fim de que ele tivesse um fim menos penoso. Parecia-lhe que, se ele pudesse morrer em paz com ela, morreria em paz consigo mesmo. Ela agora não pensava em si, mas nele somente.

 

- Walter, peço-lhe que me perdoe - disse ela, inclinada sobre o marido. Temendo que ele não pudesse suportar a pressão, evitava tocar-lhe. Estou imensamente arrependida do mal que lhe fiz. Deploro-o tanto, tanto!

 

Ele não disse nada. Parecia que não a ouvia. Kitty viu-se obrigada a repetir o que havia dito. Tinha a estranha impressão de que a alma de Walter era uma mariposa agitada cujas asas estavam pesadas de ódio.

 

- Querido!

 

Uma sombra perpassou o seu rosto sumido e terroso. Foi menos do que um movimento, e ainda assim surtiu o efeito de uma terrível convulsão. Ela nunca lhe havia dito tal palavra. Talvez seu cérebro moribundo evocasse a ideia, confusa e mal percebida, de que só ouvira-a dirigir essa palavra, um lugar-comum no seu vocabulário, aos cães, crianças e automóveis. Sucedeu então algo de horrível. Ela crispou as mãos, procurando dominar-se, porque viu duas lágrimas rolarem lentamente pelas faces encovadas de Walter.

 

- Oh! meu bem, meu querido, se você algum dia me quis - eu sei que você me amava e que fui odiosa -, suplico-lhe que me perdoe. Não tenho mais oportunidade de mostrar o meu arrependimento. Tenha piedade de mim. Imploro o seu perdão. Deteve-se e olhou para ele, esperando fervorosamente uma resposta. Viu que ele tentava falar. Seu coração pulsou desordenadamente. Acreditava poder lhe dar uma espécie de reparação pelo mal que lhe causara, se, nos seus últimos momentos, pudesse livrá-lo de tamanha carga de amargura. Os lábios dele moveram-se. Walter não olhava para ela. Tinha os olhos vagos cravados na parede branca. Ela inclinouse para poder ouvi-lo. Mas ele falou muito nitidamente.

 

- Foi o cão que morreu.

 

Kitty permaneceu imóvel, como se estivesse petrificada. Não podia compreender, e esgazeava os olhos para ele, numa perplexidade aterrorizada. Aquilo não tinha sentido. Delírio. Ele não entendera uma palavra do que ela havia dito.

 

Era impossível estar de tal modo imóvel e ainda achar-se vivo. Kitty continuava a fitá-lo. Os olhos dele estavam abertos. Não podia dizer se ele respirava. Começou a amedrontar-se.

 

- Walter! - murmurou ela. - Walter!

 

Por fim, ergueu-se de repente. Um medo súbito apoderou-se dela. Voltou-se e caminhou até a porta.

 

- Podem entrar, por favor. Ele não parece. . . Entraram todos. O médico chinês dirigiu-se para a cama. Trazia uma lanterna elétrica na mão e, acendendo-a, observou os olhos de Walter. Depois, fechou-os. Waddington passou o braço em volta de Kitty.

 

- Faleceu.

 

Kitty suspirou profundamente. Umas poucas lágrimas rolaram-lhe dos olhos. Sentia-se mais aturdida do que abalada. Os chineses ficaram em torno da cama, desamparados, como se não soubessem ao certo o que fazer a seguir. Waddington guardava silêncio. Pouco depois, os chineses começaram a falar em voz baixa entre si.

 

- Deixe-me levá-la de volta ao bangalô -- disse Waddington. - Ele será conduzido para lá.

 

Kitty passou a mão pela testa num gesto de cansaço. Dirigiu-se até a cama e, mais uma vez, inclinou-se. Beijou Walter nos lábioí^levemente. Já não chorava.

 

- Sinto causar-lhe tantos incómodos.

 

Os oficiais fizeram-lhe continência quando ela passou, e Kitty curvou-se gravemente. Tornaram a atravessar o pátio e tomaram suas cadeirinhas. Kitty viu Waddington acender um cigarro. Um pouco de fumo perdido no ar, isso era a vida de um homem.

 

Amanhecia, um chinês abria a sua loja. Ao fundo da sala sombria, uma mulher lavava as mãos e o rosto à luz de uma vela. Numa casa de chá, a um canto, um grupo de homens fazia a sua primeira refeição. A luz fria e cinzenta da madrugada esgueirava-se pelas vielas como um ladrão. Um lençol de névoa cobria o rio, e os mastros da frota de juncos pareciam lanças de um exército fantasmal. Fazia frio na barca em que atravessavam o rio, e Kitty envolveu-se no seu xale alegre e colorido. Subiram, depois, o outeiro, ficando acima da névoa. O sol brilhava num céu sem nuvens. Brilhava como se fosse um dia igual a qualquer outro e nada houvesse acontecido para distingui-lo dos demais.

 

- Não gostaria de deitar-se um pouco? - disse Waddington quando entraram no bangalô.

 

- Não. vou sentar-me junto à janela.

 

Kitty havia se sentado ali tantas vezes naquelas últimas semanas que os seus olhos já estavam habituados ao templo misterioso, fantástico, belo e magnífico, ao grande bastião que lhe repousava o espírito. A vista era tão irreal, mesmo à crua luz do meiodia, que a afastava da realidade da vida.

 

- Pedirei ao criado que lhe faça um chá. Acho que o enterro terá de ser esta manhã. Tratarei de tudo.

 

- Muito obrigada.

 

Enterraram-no três horas depois. Para Kitty, foi horrível que o tivessem posto num esquife chinês. Parecia-lhe que em leito tão estranho ele repousaria mal, mas não havia outra coisa a fazer. As freiras, sabendo da morte de Walter, como sabiam de tudo o que acontecia na cidade, mandaram por um mensageiro uma cruz de dálias, rígida e formal, mas que parecia ter sido feita pelas mãos hábeis de uma florista; e a cruz, sozinha sobre o caixão chinês, parecia grotesca e fora de lugar. Quando todos estavam prontos, foi preciso esperar pelo coronel Yu, que mandara comunicar a Waddington o seu desejo de assistir ao funeral. Veio acompanhado por um ajudante de-ordens. Galgaram a colina atrás da meia dúzia de cules que conduziam o caixão, chegando a um terreno onde estava enterrado o missionário que Walter havia substituído. Waddington encontrara entre os objetos do missionário um livro de. orações, e, numa voz baixa, com um acanhamento que não lhe era natural, leu o ofício fúnebre. Talvez, ao recitar aquelas palavras solenes mas terríveis, lhe ocorresse que, morrendo ele vítima da peste, não haveria ninguém que as dissesse sobre o seu túmulo. O caixão foi baixado à sepultura, e os coveiros começaram a enchê-la de terra.

 

O coronel Yu, que, de cabeç ^descoberta, permanecera ao lado do túmulo, cur jprimentou Kitty gravemente, disse uma ou duas palavras a Waddington e, acompanhado de seu ajudante-de-ordens, retirou-se. Os cules, que tinham ficado aqui e ali, em grupinhos, deixando as cangas arrastarem no chão, curiosos por ver um enterro cristão, acabaram debandando. Kitty e Waddington esperaram até que cobrissem a cova e, depois, sobre o montículo que cheirava a terra revolvida, colocaram as cerimoniosas dálias das freiras. Ela não tinha chorado, mas quando a primeira pá de terra bateu sobre o caixão, sentiu o coração pular dentro do peito.

 

Viu que Waddington estava à espera dela para irem embora.

 

- Tem pressa? - perguntou Kitty. - Eu não quero voltar agora para o bangalô.

 

- Não tenho nada que fazer. Estou inteiramente à sua disposição.

 

Foram andando pela estrada até que chegaram ao cimo da colina onde estava aquele arco, o monumento a uma viúva virtuosa, que figurava entre as maiores impressões de Kitty ao chegar de Mei-tan-fu. Aquilo era um símbolo, mal ela sabia de quê; tampouco podia dizer por que motivo havia ali uma nota de ironia.

 

- Vamos nos sentar um pouco? Faz séculos que não nos sentamos aqui. - A planície estendia-se largamente diante dela: estava tranquila e serena à luz da manhã. - Faz apenas algumas semanas estive aqui e parece-me uma existência.

 

Ele não respondeu, e por uns instantes Kitty deixou os pensamentos vaguearem. Suspirou.

 

- Acha que a alma é imortal?

 

Ele não pareceu surpreso com a pergunta.

 

- Como posso saber?

 

- Ainda agora, quando lavavam o corpo de Walter, antes de pô-lo no caixão, olhei para ele. Parecia muito moço. Demasiado moço para morrer. Lembra-se daquele mendigo que vimos quando saímos a passeio pela primeira vez? Fiquei assustada não porque ele estivesse morto, mas porque parecia nunca ter sido um ser humano. Era apenas um animal morto. E há pouco, com Walter, senti a mesma coisa: seu corpo pareceu-me uma máquina imprestável. Isso é o que me assusta tanto. E, se for apenas uma máquina, como são fúteis todo esse sofrimento, essas mágoas, essa miséria!

 

Ele não respondeu, percorrendo com os olhos a paisagem que tinham aos pés. O vasto horizonte, naquela alegre manhã de sol, enchia o peito de exaltação. Os pequenos e cuidados campos de arroz estendiam-se a perder de vista, e, em muitos deles, camponeses vestidos de azul mourejavam com seus búfalos. Era uma paisagem tranquila e alegre. Kitty rompeu o silêncio.

 

- Não lhe posso dizer o quanto já me comoveu tudo o que tenho visto no convento. São maravilhosas essas freiras! Diante delas, sinto-me completamente sem valia. Abandonaram tudo, pátria, família, amor, filhos, liberdade; e também todas as pequeninas coisas que às vezes me parece difícil deixar, como as flores, os campos verdes, um passeio num dia de outono, livros, música, comodidade; tudo elas abandonaram. E fizeram isso para dedicar-se a uma vida de sacrifícios, de obediência, de trabalho esfalfante e de orações. Para todas é este mundo é realmente, verdadeiramente, uma terra de exílio. A vida é uma cruz que devem carregar de bom grado, mas nos seus corações há sempre o desejo. . . oh! é mais forte do que um desejo, é um anseio sôfrego, um anelo ardente pela morte que as levará à vida eterna.

 

Torcendo as mãos, angustiada, Kitty olhou para o companheiro.

 

- Então?

 

- E se não houver vida eterna? E se a morte for realmente o fim de todas as coisas? Terão abandonado tudo por nada. Terão sido enganadas.

 

Waddington refletiu um instante.

 

- Não sei. Não sei se importa que seja ou não uma ilusão aquilo a que elas aspiram. Suas vidas são belas em si mesmas. Às vezes penso que a única coisa que torna possível viver sem repugnância neste mundo é a beleza que de quando em quando os homens criam do caos. Os quadros que pintam, as músicas que compõem, os livros que escrevem, e a vida que levam. E, de tudo isto, o que encerra maior beleza é uma vida bela. Essa é que é a perfeita obra de arte.

 

Kitty suspirou. O que ele dizia parecia-lhe injusto. Ela desejava mais.

 

- Já esteve num concerto sinfónico? - continuou ele.

 

- Sim - respondeu ela com um sorriso. Não entendo nada de música, mas gosto muito.

 

- Cada membro da orquestra toca o seu pequeno instrumento, e que sabe ele das complicadas harmonias que se desenrolam no ar indiferente? A ele só interessa a sua pequenina parte. No entanto, ele sabe que a sinfonia é bela, e mesmo que não haja ninguém para ouvi-la, ainda é bela, e ele se sente contente em tocar a sua parte.

 

- No outro dia você falou no Tão - disse Kitty depois de uma pausa. - Diga-me o que é.

 

Waddington relanceou-lhe os olhos, hesitou um instante, e depois respondeu com um breve sorriso irónico.

 

- É o Caminho e o Caminhante. É a estrada eterna por onde todos os seres caminham, e que contudo não foi construída por nenhum ser, porque ela própria é o ser. É tudo e nada. Todas as coisas surgem desse caminho, a ele se adaptam, e a ele voltam finalmente. É um quadrado sem ângulos, um som que os ouvidos humanos não percebem, uma imagem sem forma. É uma rede imensa, e embora suas malhas sejam tão grandes como o mar, nada deixam passar. É o santuário onde todas as coisas encontram refúgio. Não está em parte alguma, mas podemos vê-lo sem olhar pela janela. Deseje não desejar, ensina ele, e deixe todas as coisas seguirem o seu curso. Aquele que se humilha será preservado na sua inteireza. Aquele que se curva será endireitado. A derrota é a base do triunfo, e o triunfo é a tocaia da derrota; mas quem poderá dizer quando é chegado o momento decisivo? Aquele que se empenha em buscar a ternura pode tornar-se igual a uma criancinha. A brandura traz a vitória àquele que ataca e segurança àquele que se defende. Poderoso é quem vence a si

 

- Isso significa alguma coisa?

 

- Às vezes, depois de meia dúzia de uísques e de olhar para as estrelas, penso que sim.

 

Novamente fez-se silêncio entre ambos, e novamente foi Kitty quem o rompeu.

 

- Escute. ”Foi o cão que morreu” é uma citação?

 

Os lábios de Waddington esboçaram um sorriso, e ele tinha a resposta pronta. Mas talvez naquele momento sua sensibilidade estresse extraordinariamente aguçada. Kitty não o olha a, mas havia em sua expressão qualquer coisa que o fez mudar de ideia.

 

- Se é, não sei - respondeu ele prudentemente. - Por quê?

 

- Por nada. Passou-me pela memória. Parecia uma coisa conhecida.

 

Houve novo silêncio.

 

- Quando você estava sozinha com seu marido - disse Waddington pouco depois -, tive uma conversa com o médico do regimento. Julguei que precisávamos de alguns pormenores.

 

- E então?

 

- O homem estava com os nervos em petição de miséria. Não pude entender bem o que ele queria dizer. Segundo o que deduzi, seu marido infetou-se no decurso das experiências que estava fazendo.

 

- Ele sempre estava fazendo experiências. Era bacteriologista e não médico. Por isso é que tanto desejou vir para cá.

 

- Das coisas que diz o médico, não se pode saber se ele infetou-se acidentalmente ou se fazia experiências em si mesmo.

 

Kitty empalideceu. Estremecia àquela ideia. Waddington tomou-lhe a mão.

 

- Perdoe-me por tornar a falar nisso - disse ele com doçura -, mas achei que talvez lhe fosse um consolo. . . Sei que nestas ocasiões é dificílimo dizer alguma coisa que console. Assim, pensei que talvez fosse bom para você saber que Walter morreu como um mártir da ciência e do dever.

 

Kitty encolheu os ombros num gesto quase impaciente.

 

- Walter morreu de desgosto. Waddington não disse nada. Kitty voltou-se e olhou-o. Tinha o rosto pálido e imóvel.

 

- Que é que ele quis dizer com ”Foi o cão que morreu”? Que é isso?

 

- É a última linha da Elegia de Goldsmith.

 

Na manhã seguinte, Kitty foi ao convento. A menina que lhe abriu a porta pareceu surpresa em vê-la, e, pouco depois de Kitty ter iniciado o seu trabalho, a madre superiora entrou na sala. Dirigiu-se a Kitty e tomou-lhe a mão.

 

- Estou satisfeita por vê-la, minha filha. Você mostra uma bela coragem vindo aqui tão poucas horas depois do seu grande pesar; e sabedoria, também, pois estou certa de que um pouco de trabalho lhe fará bem.

 

Kitty baixou os olhos, ruborizando-se um pouco; não desejava que a madre superiora penetrasse o seu coração.

 

- Não preciso dizer-lhe o quanto nós todas nos solidarizamos com você.

 

- É muita bondade sua.

 

- Todas rezamos por você constantemente, e pela alma daquele que você perdeu.

 

Kitty não respondeu. A madre superiora soltou-lhe a mão e, no seu tom frio e autoritário, incumbiu-a de várias tarefas. Afagou a cabeça de duas ou três crianças, deu-lhes o seu sorriso distante, mas encantador e foi cuidar dos afazeres mais urgentes.

 

Passou-se uma semana. Kitty costurava. A madre superiora entrou na sala e sentou-se a seu lado. Observou com um olhar entendido o trabalho de Kitty.

 

- Você cose muito bem, minha cara. É uma prenda muito rara nas moças de hoje.

 

- Devo-a a minha mãe.

 

- Estou certa de que sua mãe gostará muito de tornar a vê-la.

 

Kitty ergueu os olhos. Devido àquele certo quê nas maneiras da madre superiora, era impossível tomar essa observação como simples gentileza. A freira continuou:

 

- Deixei que você viesse aqui depois da morte de seu marido por achar que uma ocupação lhe distrairia o espírito. Também me pareceu que não estava em condições de fazer sozinha a longa viagem para Tching-Yen, e, além disso, eu não queria que você ficasse só em casa sem outra coisa que fazer senão lembrar a sua perda. Mas agora já se passaram oito dias. É tempo de ir.

 

- Eu não quero ir, madre. Quero ficar aqui.

 

- Não há nenhum motivo para ficar aqui. Você veio para estar junto de seu marido. Seu marido está morto. No estado em que você se encontra, dentro em pouco precisará de cuidados e atenções impossíveis de obter aqui. É meu dever, minha querida filha, fazer tudo o que puder para o bemestar do ser que Deus lhe confiou.

 

Kitty manteve-se um momento de olhos baixos, em silêncio.

 

- Eu tinha a impressão de que era de alguma utilidade aqui. Foi um grande prazer poder pensar assim. Esperava que me permitisse continuar meu trabalho até o fim da epidemia.

 

- Todas estamos muito agradecidas pelo que fez por nós - respondeu a madre superiora com um breve sorriso. - Mas agora que a epidemia vai declinando, o perigo de estar aqui não é tão grande, e estou esperando duas irmãs de Cantão. Elas virão dentro de muito pouco, e, quando chegarem, creio que não necessitarei mais dos seus serviços.

 

Kitty sentiu uma decepção. O tom da madre superiora não admitia réplica; conhecia-a o bastante para saber que ela seria insensível a quaisquer rogos. O fato de ela ter achado necessário argumentar com Kitty dera-lhe à voz uma nota, se não de irritação, pelo menos de uma peremptoriedade capaz de chegar a isso.

 

- O sr. Waddington teve a bondade de pedir os meus conselhos.

 

- Seria melhor que ele cuidasse dos seus assuntos - interrompeu-a Kitty.

 

- Mesmo que ele não os pedisse, eu me sentiria obrigada a dá-los - disse a madre superiora com doçura. - Neste momento seu lugar não é aqui, mas junto de sua mãe. O sr. Waddington conseguiu uma escolta com o coronel Yu, a fim de que você faça a viagem com toda a segurança, e também arranjou cules e carregadores. A criada irá consigo, e tudo estará arranjado nas cidades por onde você tiver de passar. Com efeito, todo o necessário para a sua comodidade já foi acertado.

 

Kitty apertou os lábios. Bem poderiam tê-la consultado sobre um assunto que somente a ela dizia respeito. Foi-lhe preciso um certo esforço para não responder com aspereza.

 

- E quando devo partir?

 

A placidez da madre superiora continuou inalterada.

 

- Quanto mais cedo estiver de volta a TchingYen para tomar o vapor, melhor, minha filha. Pensamos que você gostaria de partir depois de amanhã, de madrugada.

 

- Tão cedo?

 

Kitty sentia vontade de chorar. Mas era bem verdade: não tinha nada que fazer ali.

 

- Todos parecem ansiosos por se verem livres de mim - disse ela tristemente.

 

Kitty percebeu um certo abrandamento na atitude da madre. Vendo que Kitty estava disposta a ceder, ela inconscientemente assumia um tom mais gentil. Kitty, que tinha um senso de humor muito acurado, refletiu que até as santas gostavam de ter a última palavra.

 

- Não pense que não sei apreciar a bondade de seu coração, minha filha, e a admirável caridade que a faz relutar em abandonar os deveres que a si mesma impôs.

 

Kitty olhava para a frente sem nada ver. Imperceptivelmente, dava de ombros. Sabia não poder atribuir-se virtudes tão exaltadas. Queria ficar porque não tinha para onde jrJCuTiosa sensação essa de”* rter ”certeza que a ninguém no mundo importava se ela estivesse viva ou morta.

 

- Não posso compreender por que mostra relutância em voltar para a sua terra - prosseguiu amavelmente a madre superiora. - Quanto não dariam muitos estrangeiros aqui para ter semelhante oportunidade!

 

- Mas não a senhora, madre?

 

- Oh! conosco é diferente, minha filha. Quando viemos para cá, sabíamos que deixávamos nossa terra para sempre.

 

Da suscetibilidade ferida nascia no espírito de Kitty o desejo, talvez maldoso, de encontrar o ponto fraco na armadura de fé que tornava as freiras tão serenamente imunes aos sentimentos naturais. Ela desejava saber se ainda restava na superiora alguma coisa da fraqueza humana.

 

- Às vezes deve ser insuportável não tornar a ver aqueles que nos são caros.

 

A madre superiora hesitou um instante, mas Kitty, que a observava, não pôde ver nenhuma alteração na serenidade de seu rosto belo e austero.

 

- Isso é muito duro para minha mãe, pois sou sua única filha, e ela muito desejaria ver-me uma vez mais antes de morrer. Quisera poder dar-lhe esse prazer. Mas isso não pode ser, e temos de esperar até nos encontrarmos.

 

De qualquer maneira, quando pensamos naqueles a quem tanto estimamos, deve ser difícil não perguntarmos a nós mesmas se temos o direito de afastar-nos deles.

 

- Está me perguntando se lamento o passo que dei na vida? - De súbito o rosto da madre superiora ficou radiante. - Nunca, jamais. Troquei uma vida trivial e indigna por uma vida de sacrifício e oração.

 

Houve um breve silêncio, passado o qual a madre superiora, assumindo um tom menos sério, sorriu.

 

- vou pedir-lhe que leve um pequeno embrulho e o ponha no correio quando chegar a Marselha. Não quero confiá-lo ao correio chinês. Vou buscá-lo.

 

- Deixe-o para amanhã - disse Kitty.

 

- Amanhã você estará muito ocupada para vir aqui, minha filha. Será mais conveniente que se despeça de nós esta noite.

 

A madre levantou-se e saiu da sala com a desenvolta dignidade que seu amplo hábito mal podia esconder. Quase a seguir, entrou na sala a irmã São José. Tinha vindo para despedir-s . Esperava que Kitty fizesse uma boa viagem; estava certa de que tudo correria bem, porque o coronel Yu mandaria com ela uma forte escolta; e as irmãs seguidamente atravessavam a região sozinhas e nenhum mal lhes acontecia. Gostava do mar? Mon Dieu, como enjoara durante uma tempestade no Índico! Sua mãe ficaria muito contente em vê-la; e Kitty devia cuidar-se muito, pois agora tinha outra alminha a seu cargo, e todas rezariam por ela; quanto a ela, rezaria constantemente por Kitty, pelo querido bebezinho e pela alma do coitado do doutor, tão corajoso! A freira mostrou-se tagarela, bondosa e terna; contudo, Kitty tinha a noção perfeita de que para a irmã São José (cujo olhar só via a eternidade) ela era apenas um fantasma sem corpo nem substância. Teve um violento impulso de segurar pelos ombros aquela freira gorducha e bonachona e gritar-lhe: ”Você não vê que eu sou um ser humano, sozinho e infeliz e que preciso de consolo, de ânimo e de simpatia? é possível afastar-se um instante de Deus” e darme um pouco de compaixão, não a compaixão cristã que vocês têm por tudo o que sofre, mas somente uma compaixão humana por mim?” Semelhante ideia trouxe um sorriso aos lábios de Kitty; qual não seria a surpresa da irmã São José! com toda a certeza ficaria convencida de algo de que agora apenas suspeitava, que todos os ingleses eram doidos.

 

- Felizmente sou uma excelente marinheira

- disse Kitty. - Não enjoo nunca.

 

A madre superiora voltou com um embrulho pequeno e bem-arranjado.

 

- São lenços que fiz para o aniversário de minha mãe - disse ela. - As iniciais foram bordadas por nossas meninas.

 

A irmã São José sugeriu que Kitty gostaria de ver o quanto o trabalho era primoroso, e a madre superiora, com um sorriso indulgente e modesto, abriu o embrulho. Os lenços eram de fina cambraia, e as iniciais, bordadas num monograma complicado, eram encimadas por uma coroa de folhas de morangueiro. Depois de Kitty ter admirado convenientemente o trabalho, os lenços foram embrulhados de novo. A irmã São José, com um ”Eh bien, madame, je vous quitte”’, Q renovando seus cumprimentos polidos e impessoais, retirou-se. Kitty viu que era chegado o momento de despedir-se da superiora. Agradeceu-lhe a bondade que tivera para consigo. Saíram andando juntas pelos compridos corredores brancos e nus.

 

- Seria   muito pedir-lhe que   registrasse o embrulho no   correio   de Marselha?   - disse   a superiora.

 

- De maneira nenhuma. Terei muito prazer nisso - respondeu Kitty.

 

Relanceou os olhos pelo sobrescrito. O nome parecia pomposo, e o lugar mencionado chamou-lhe a atenção.

 

- Mas esse é um dos châteaux que visitei. Fiz uma excursão de automóvel pela França com uns amigos.

 

- É muito possível - disse a madre

 

”Bem, senhora, vou deixá-la.” Em francês no original. (N. do E.)

 

superiora. - É aberto à visitação pública dois dias por semana.

 

- Se eu morasse num lugar tão lindo, acho que não teria coragem de deixá-lo.

 

- Como viu, é um monumento histórico. Não oferece grande intimidade. Se eu lamentasse alguma coisa, não seria isso, mas o pequeno château onde morávamos quando eu era criança. Fica nos Pireneus. Nasci ouvindo o barulho do mar. Não nego que às vezes gostaria de escutar o rugido das ondas batendo contra os rochedos.

 

Kitty desconfiava de que a madre superiora, adivinhando o motivo de suas observações, zombava dela dissimuladamente. Entretanto, chegaram à pequena e despretensiosa porta do convento. Para surpresa de Kitty, a madre superiora abraçou-a e beijou-a. A pressão de seus lábios pálidos nas faces de Kitty (ela beijou primeiro uma e depois a outra) foi tão inesperada que a fez corar e deu-lhe vontade de chorar.

 

- Adeus, Deus a abençoe, minha querida filha. - A madre reteve-a um pouco nos braços. Lembre-se de que cumprir o seu dever não é nada, pois isso lhe é exigido, e não é mais meritório do que lavar as mãos quando sujas; a única coisa que importa é o amor ao dever; quando o amor e o dever se confundem, a graça lhe é dada, e você gozará uma felicidade que ultrapassa toda compreensão.

 

A porta do convento fechou-se atrás dela pela última vez.

 

Waddington subiu a colina acompanhando Kitty; por um momento, afastaram-se da trilha para ver o túmulo de Walter. Despediram-se junto ao arco, e Kitty, olhando o monumento pela última vez, sentiu que poderia contestar-lhe a ironia enigmática com igual ironia. Em seguida, subiu na sua cadeirinha.

 

Os dias seguiam-se. As paisagens que desfilavam à beira da estrada serviam de pano de fundo para os seus pensamentos. Kitty via-as como se fossem duplas, e olhadas por um estereoscópio, e encontrava nelas mais sentido, porque a tudo o que via se juntava a recordação do que tinha visto poucas semanas antes, quando fizera a mesma viagem na direção oposta. Os cules, com os seus fardos, marchavam sem ordem, ora em grupos de dois ou três, ora sozinhos, mantendo uma distância de cem metros entre um e outro; os soldados da escolta, também fora de forma, iam num passo desajeitado que cobria quarenta quilómetros por dia; a criada era conduzida por dois carregadores, e Kitty, não porque fosse mais pesada, mas para guardar as aparências, por quatro. De quando em quando, encontravam uma fila de cules carregados, avançando num trote vagaroso e irregular; ou então a cadeirinha de um funcionário chinês, que olhava inquisidoramente para a mulher branca; ora passavam por camponeses de enormes chapéus, vestidos de azul desbotado, que iam para o mercado; ora viam uma mulher, moça ou velha, cambaleando estrada afora, com os pés envoltos em trapos. Subiam e desciam pequenas colinas entremeadas de arrozais bem-cuidados e de casas de campo aconchegantemente instaladas em bosques de bambus; atravessavam aldeias miseráveis e cidades populosas, muradas como as cidades de um missal. O sol dos princípios de outono era agradável, e se ao romper do dia, quando a luz indecisa da aurora emprestava aos campos primorosos o encanto de uma história de fadas, o dia era frio, mais tarde aquecia aprazivelmente. Kitty sentia-se invadida por uma sensação de beatitude a que ela não fazia esforço algum para resistir.

 

O cenário brilhante, com suas pelas cores, suas mudanças inesperadas e sua estranheza era como uma tapeçaria diante da qual, nas suas formas sombrias e misteriosas, bailavam os fantasmas da imaginação de Kitty. Tudo parecia completamente irreal. Mei-tan-fu, com os seus muros ameados, era como o telão pintado que no teatro antigo era usado para representar uma cidade. As freiras, Waddington e a mulher manchu que o amava eram personagens fantásticas de uma pantomima; e os demais, a gente que se esgueirava pelas ruas tortuosas e os que morriam, eram figurantes anónimos. Sem dúvida aquilo possuía, tudo possuía, uma significação, mas qual? Era como se bailassem uma dança ritual, antiga e complicada, e nós, certos de que aqueles passos difíceis tinham um significado muito importante, não pudéssemos contudo decifrá-los.

 

A Kitty parecia incrível (uma velha passava pela estrada, vestida de azul, e o azul ao sol era como lápis-lazúli; seu rosto, com suas mil pequenas rugas, era uma máscara de marfim velho; e ela ia curvada sobre um bastão preto, arrastando os pés pequeninos) que ela e Walter tivessem tomado parte daquela dança estranha e irreal. Tinham, além disso, desempenhado papéis importantes. Ela facilmente poderia ter perdido a vida; ele a perdera. Seria aquilo um gracejo? Talvez não passasse de um sonho do qual acordaria de repente com um suspiro de alívio. Tivera-o talvez, havia muito tempo, num lugar muito remoto. Era singular que as personagens daquela peça se tomassem sombras indefinidas quando vistas ao sol da vida real. E então tudo parecia uma história que ela estivesse lendo naquele instante; e era um tanto surpreendente que aquela história tivesse tão pouco a ver com ela. Verificava que já lhe era difícil lembrar com nitidez o rosto de Waddington, tão conhecido havia pouco.

 

Chegariam aquela tarde à cidade às margens do rio Western, onde ela deveria tomar o vapor. Dali a Tching-Yen era apenas uma noite de viagem.

 

A princípio, Kitty sentira vergonha por não ter chorado a morte de Walter. Isto lhe parecia uma terrível insensibilidade. Por que os olhos daquele oficial chinês, o coronel Yu, estavam cheios de lágrimas? A morte do marido deixara-a confusa. Era difícil compreender que ele não voltaria mais ao bangalô, e que à hora em que ele costumava levantar-se não o ouviria tomar o seu banho na banheira de Suchou. E agora ele estava morto. As freiras admiraram-se de sua resignação cristã e de como ela recebera a sua perda. Mas Waddington era arguto; apesar de toda a sua grave simpatia, Kitty tinha a impressão - como dizê-la? - de que ele tinha um ar irónico. Sem dúvida a morte de Walter abalara-a. Não desejava que ele morresse. Mas, afinal de contas, não o amava, nunca o tinha amado; devia portar-se com decência, mostrando um pesar apropriado; mau e vulgar seria deixar que alguém sequer penetrasse no seu coração; mas passara por demasiadas coisas para fingir a si mesma. Parecia-lhe ter aprendido naquelas últimas semanas que, se às vezes é necessário mentir para os outros, sempre é desprezível mentir para si mesmo. Sentia que Walter tivesse morrido daquela maneira trágica, mas sentia simples e humanamente, com a mesma compaixão que teria experimentado pela morte de uma pessoa de suas relações. Reconhecia em Walter qualidades admiráveis, mas simplesmente n p gostava dele, que só fazia aborrecê-la. Não admitia que sua morte lhe fosse um alívio, pois honestamente podia dizer que, se uma palavra bastasse para trazê-lo de novo à vida, ela a diria; não podia contudo resistir à sensação de que a morte dele tornara o seu caminho de certo modo um pouco mais fácil. Jamais teriam sido felizes juntos, e, não obstante, uma separação haveria de ser muitíssimo difícil. Estava surpresa consigo própria por sentir-se como se sentia; talvez a achassem cruel e empedernida, caso o soubessem. Pois bem, não saberiam. Todos deviam ter, no íntimo, segredos vergonhosos a esconder de olhares curiosos. Kitty olhava muito pouco para o futuro e não fazia plano algum. Tudo quanto sabia era que desejava ficar em Tching-Yen o menor tempo possível. Pensava com horror em sua chegada ali. Parecia-lhe que gostaria de errar para sempre através daquela região amiga e sorridente na sua cadeirinha de rotim, e, sempre como espectadora indiferente da fantasmagoria da vida, passar cada noite sob um teto diverso. Mas era óbvio que o futuro imediato devia ser considerado: iria para o hotel quando chegasse a Tching-Yen, trataria de livrar-se da casa e vender a mobília; não haveria necesidade de ver Townsend. Ele teria a gentileza de manter-se longe do seu caminho. De qualquer modo, gostaria de vê-lo uma vez mais, a fim de dizer-lhe o quanto o julgava uma criatura desprezível.

 

Mas que importava Charles Townsend?

 

Tal uma rica melodia de harpa que percorre em arpejos exultantes as complicadas harmonias de uma peça sinfónica, um pensamento lhe fazia pulsar insistentemente o coração. Era esse pensamento que dava aos campos de arroz a sua beleza exótica, que lhe trazia um breve sorriso aos lábios pálidos quando um rapaz de rosto liso passava por ela a caminho do mercado com um porte triunfante e um olhar audacioso, e que emprestava a mágica de uma vida tumultuosa às cidades por onde ela passava. A cidade da peste era uma prisão de onde ela havia escapado, e ela nunca antes percebera como o azul do céu era intenso e quanta alegria havia nas alamedas de bambus que com uma graça adorável se inclinavam por sobre a estrada. Liberdade! Esse era o pensamento que cantava em seu coração, fazendo o futuro, embora tão sombrio, iridescente como o nevoeiro sobre o rio onde caía o sol da manhã. Liberdade! Não apenas liberdade de um laço que lhe era penoso, e de uma companhia que a desanimava; liberdade, não apenas da morte que a ameaçara, mas liberdade do amor que a tinha degradado; liberdade de todos os liames espirituais; a liberdade de um espírito desencarnado; e com a liberdade, a coragem e uma valorosa indiferença pelo que quer que pudesse lhe acontecer.

 

Quando o vapor atracou em Tching-Yen, Kitty, que estava no convés para olhar o tráfego alegre, vivo e colorido do rio, desceu ao camarote para ver se a criada não esquecera alguma coisa. Olhou-se no espelho. Vestia-se de preto,.sois as freiras lhe haviam tingido um vestido, mas n b de luto; e ocorreu-lhe a ideia de que essa era a primeira coisa a tratar. Os trajes de luto não deixariam de ser um bom disfarce para os seus sentimentos inesperados. Bateram à porta do camarote. A criada foi abrir.

 

- Sra. Fane.

 

Kitty voltou-se e viu um rosto que no primeiro instante não reconheceu. Depois perturbou-se e corou. Era Dorothy Townsend. Kitty esperava tão pouco vê-la que não sabia o que fazer nem o que dizer. Mas a sra. Townsend já havia entrado no camarote e, com um gesto impulsivo, abraçou Kitty.

 

- Oh! minha querida, minha querida! Sinto muitíssimo o que lhe aconteceu.

 

Kitty deixou-se beijar. Surpreendia-a semelhante efusão numa mulher que sempre julgara fria e distante.

 

- É muita bondade sua - murmurou Kitty.

 

- Venha para o convés. A criada cuidará de suas coisas, e os meus criados também estão aí.

 

Tomou-a pela mão, e Kitty deixando-se conduzir, observou que seu rosto bondoso, trabalhado pelo tempo, tinha uma expressão de verdadeiro interesse.

 

- Seu vapor atracou muito cedo. Quase não cheguei a tempo - disse a sra. Townsend. - Nunca me perdoaria se não a encontrasse.

 

- Mas a senhora veio para receber-me? exclamou Kitty.

 

- Por certo que vim.

 

- Mas como sabia da minha chegada?

 

- O sr. Waddington telegrafou-me.

 

Kitty desviou o rosto. Tinha um nó na garganta. Era engraçado que um pouco de bondade inesperada a comovesse tanto. Não queria chorar; desejava que Dorothy Townsend fosse embora. Mas ela tomou-lhe a mão inerte e apertou-a. Kitty sentia-se embaraçada com as demonstrações daquela mulher retraída.

 

- Desejo que me faça um grande favor. Charlie e eu queremos que você fique conosco enquanto estiver em Tching-Yen.

 

Kitty retirou bruscamente a mão.

 

- É   demasiada bondade.   Eu não   poderia aceitar.

 

- Mas tem de aceitar. Você não pode ficar sozinha em sua casa. A solidão ser-lhe-ia muito penosa. Já preparei tudo. Terá em nossa casa uma sala de estar inteiramente sua, onde poderá fazer as suas refeições, se não quiser ir à nossa mesa. Nós dois desejamos que você venha.

 

- Eu não estava pensando em ir para minha casa. Ia pedir um quarto no Tching-Yen Hotel. Não devo causar-lhe tamanho incómodo.

 

O convite colhera-a de surpresa. Estava confusa e um tanto irritada. Se Charlie tivesse alguma noção de decência, jamais permitiria que a mulher lhe fizesse tal oferecimento. Ela não queria dever obrigações a nenhum dos dois.

 

- Oh! mas eu não me conformaria em vê-la num hotel. E nesta época você detestaria o TchingYen Hotel. com toda aquela gente e a orquestra sempre tocando jazz! Por favor, diga que fica conosco. Prometo-lhe que Charlie e eu não a aborreceremos.

 

- Mas não vejo por que tamanha bondade comigo.

 

- Kitty quase já não encontrava desculpas, e não queria forçar-se a dizer um rude e positivo não. - Acho que não serei uma boa companhia entre pessoas estranhas.

 

- Mas é necessário que sejamos estranhos? Oh! como eu desejaria não sê-lo. Desejo muitíssimo que você me permita ser sua amiga. - Dorothy torcia as mãos, e a sua voz, de ordinário fria, nítida e decidida, tremia de emoção. - D^ejo ardentemente que você venha. Além disso, p Tciso penitenciar-me com você.

 

Kitty não compreendeu. Não sabia que desculpas a mulher de Charlie podia dever-lhe.

 

- Confesso que a princípio eu não gostava muito de você. Achava-a um tanto frívola. Você compreende, eu não sou muito moderna, e acho-me intolerante.

 

Kitty relanceou-lhe os olhos. Ela queria dizer que a princípio achara Kitty vulgar. Sem nada deixar transparecer na fisionomia, Kitty riu-se interiormente. O que lhe importava o que agora pensassem dela?

 

- E quando soube que você tinha ido com seu marido para as garras da morte sem hesitar um só momento, julguei-me muito grosseira. Você foi tão admirável, tão corajosa, que todos nós ficamos parecendo sem valor, sentindo-nos pessoas muito ordinárias. - As lágrimas já lhe corriam pelo rosto simples e bondoso. - Não posso dizer-lhe o quanto a admiro e respeito. Sei que nada posso fazer para remediar a sua terrível perda, mas desejo que saiba como é sincero e profundo o meu sentimento. E, se permitir que eu faça algo por você, será para mim um privilégio.   Não me   queira mal porque não soube julgá-la. Você é uma mulher heróica, e eu sou apenas uma tola.

 

Kitty baixou os olhos para o convés. Empalidecera muito. Desejava que Dorothy pudesse refrear tais manifestações de sentimento. Estava comovida, era verdade, mas não podia evitar uma ligeira sensação de impaciência diante daquela criatura simples que acreditava em tamanhas mentiras.

 

- Se isso lhe dá prazer, terei muita satisfação em ir - suspirou ela.

 

Os Townsends moravam no Mount, numa casa com uma ampla vista para o mar, e Charlie geralmente almoçava fora; mas no dia da chegada de Kitty, Dorothy (elas agora se tratavam sem cerimónias) disse-lhe que, se ela quisesse vê-lo, o marido gostaria de ir dar-lhe as boas-vindas. Kitty refletiu que, se era inevitável, melhor seria vê-lo imediatamente; e previa com triste satisfação o embaraço que deveria causar-lhe. Via muito bem que o convite fora ideia de Dorothy, è que ele, não obstante o que pudesse sentir, tinha-a aprovado imediatamente. Kitty sabia que o maior desejo dele era fazer o que fosse próprio e conveniente, e oferecer-lhe uma gentil hospitalidade era evidentemente um gesto apropriado e conveniente. Mas era difícil que ele pudesse lembrar sem mortificação a última entrevista que haviam tido; para um homem com a vaidade de Townsend, aquilo devia afligir como uma úlcera incurável. Contava tê-lo magoado tanto quanto ele a magoara. Devia odiá-la agora. De sua parte, estava satisfeita em saber que não lhe tinha ódio mas apenas desprezo. Experimentava um prazer irónico ao pensar que, fossem quais fossem os seus sentimentos, ele seria obrigado a tratá-la com grande consideração. Naquela tarde em que ela saíra do seu escritório, ele de todo o coração deveria ter desejado nunca mais tornar a vê-la.

 

E agora, sentada ao lado de Dorothy, esperava que ele entrasse na sala. O luxo sóbrio da sala de estar causava-lhe uma satisfação consciente. Estava sentada numa poltrona, havia aqui e ali belas flores, e nas paredes viam-se quadros agradais; a sala era fresca, sombria, e tinha um aconchegante lar. Estremecia ao lembrar-se da sala nua e vazia do bangalô do missionário, das cadeiras de rotim, da mesa da cozinha, com sua toalha de algodão azul, das prateleiras sujas, com todas aquelas edições baratas de romances, e das cortinas vermelhas de aspecto poeirento. Oh! como conhecera o desconforto! Supunha que Dorothy nunca tinha pensado nisso.

 

Ouviram um automóvel, e pouco depois Charlie entrava na sala.

 

- Estou atrasado? Espero que não as tenha feito esperar. Precisei falar com o governador e simplesmente não podia retirar-me.

 

Aproximou-se de Kitty e tomou-lhe ambas as mãos.

 

- Sinto muita, muitíssima satisfação de hospedá-la em minha casa. Sei que Dorothy já lhe disse que desejamos tê-la aqui por todo o tempo que quiser, e que considere nossa casa como o seu lar. Mas eu mesmo também quero dizer-lhe isso. Se houver alguma coisa que eu possa fazer, seja o que for, terei o maior prazer em servi-la. - Seus olhos tinham uma encantadora expressão de sinceridade; Kitty interrogava-se se ele não via a ironia nos dela. - Não tenho jeito para dizer certas coisas, e não quero parecer um tolo desastrado, mas desejo que saiba o quanto senti a morte de seu marido. Era um sujeito formidável, e aqui todos sentirão a falta dele.

 

- Charlie, por favor... - disse Dorothy. Estou certa de que ela compreende. . . Aí estão os coquetéis.

 

Segundo o luxuoso costume dos estrangeiros na China, dois criados uniformizados entraram na sala trazendo salgadinhos e bebidas. Kitty não aceitou a bebida.

 

- Mas a senhora precisa tomar um drinque

 

- insistiu Townsend no seu modo cordial e alegre.

 

- Isso lhe fará bem, e estou certo de que não pôde conseguir um coquetel desde que deixou TchingYen. A menos que eu esteja muito enganado, não há gelo em Mei-tan-fu.

 

- Não está enganado - disse Kitty.

 

Por um instante, veio-lhe à mente a imagem daquele mendigo de cabeça desgrenhada, vestido de farrapos azuis, por entre os quais se viam seus membros descarnados, que jazia morto contra o muro do quintal.

 

Sentaram-se à mesa para almoçar. Charlie, ocupando a cabeceira, encarregou-se desembaraçadamente da conversação. Depois daquelas primeiras palavras de condolência, tratava Kitty não como se ela acabasse de passar por uma rude provação, mas como se tivesse chegado de Xangai após uma operação de apendicite. Ela precisava animar-se, e ele estava disposto a animá-la. A melhor maneira de fazê-la sentir-se em casa era tratá-la como se ela fosse da família. Ele era um homem de tato. Pôs-se a falar das corridas de outono, dos jogos de polo.

Francamente, teria de abandonar o pólo se não conseguisse diminuir o peso - e de uma palestra que tivera aquela manhã com o governador. Falou de uma festa, no navio do almirante, a que haviam comparecido, da situação de Cantão e dos campos de golfe de Lushan. Em poucos minutos, Kitty tinha a impressão de que sua ausência não tinha durado mais que um fim de semana. Era incrível que naquela região montanhosa, apenas novecentos quilómetros (a distância de Londres Edimburgo, não era?), homens, mulheres e crianças estivessem morrendo como moscas. Dentro de mais alguns instantes ela dava consigo a perguntar por alguém que quebrara a clavícula jogando pólo e se uma tal senhora tinha voltado para a Inglaterra, ou se outra estava participando do torneio de ténis. Charlie disse os seus pequenos gracejos, e ela sorriu convenientemente. Dorothy, com um leve ar de superioridade (que agora incluía Kitty e portanto já não era uma ofensa, mas um laço de união), mostrou-se suavemente irónica a respeito de diversas pessoas da colónia. Kitty começou a sentir-se mais estimulada.

 

- Veja como ela já está com melhor aspecto - disse Charlie à sua mulher. - Antes do almoço estava tão pálida que eu até me sobressaltei. Agora já lhe veio uma certa cor.

 

Mas enquanto desempenhava a sua parte na conversação - se não com jovialidade (pois sentia que nem Dorothy nem Charlie, com sua admirável noção de decoro, aprovariam tal coisa), ao menos com vivacidade -, Kitty observava seu anfitrião. Durante todas aquelas semanas em que sua imaginação se ocupara dele vingativamente, tinha formado no espírito uma impressão muito vívida a seu respeito. O cabelo crespo e empastado era um pouco comprido demais, penteado com excessivo cuidado, e havia demasiado óleo para esconder o fato de que estava ficando grisalho; o rosto era muito vermelho, com sua rede de veias cor de malva, e as bochechas, demasiado carnudas; quando ele não erguia a cabeça para escondê-la, via-se que tinha papada; e havia qualquer coisa de simiesco em suas sobrancelhas grossas e cinzentas que vagamente lhe repugnava. Tinha os movimentos pesados, e todo o cuidado que tomava com dieta e exercícios não o impedia de ser gordo; os ossos eram demasiado cobertos de carne, e as articulações tinham a rigidez da meia idade. As roupas, elegantes, ficavam-lhe um tanto justas e eram assaz juvenis para ele.

 

Mas quando ele entrou na sala de estar, antes do almoço, Kitty teve um choque (talvez por isso sua palidez fora tão notada), pois viu que sua imaginação a tinha enganado: Charlie não se parecia sequer de leve com o retrato que ela fizera dele. Kitty mal podia resistir à vontade de rir de si mesma. O cabelo não era grisalho; havia, sim, uns poucos fios brancos nas têmporas, mas isto lhe assentava bem; e o rosto não era vermelho, mas queimado de sol; a cabeça era muito bem plantada nos ombros; e ele não era gordo nem velho, aliás, era quase magro; seu porte era admirável - teria ele culpa de envaidecer-se um tantinho com isso? -, e bem poderia passar por um rapaz. E era evidente que sabia vestir-se; seria absurdo negá-lo; ele parecia limpo, esmerado e elegante. Que a teria levado a pensar isto e mais aquilo? Era um homem muito atraente. Por sorte ela sabia o quanto era indigno. Sem dúvida sempre lhe reconhecera na voz um certo tom sedutor, e a voz era exatamente como ela a lembrava: fazia ainda mais exasperante a falsidade de cada palavra que ele pronunciava; o tom cheio e quente ecoava agora em seus ouvidos, insincero, e ela perguntava a si mesma como podia ter confiado nele. Os olhos eram belos, e neles residia o seu encanto: tinham tal brilho azulado e macio que sua expressão, mesmo quando ele dizia um disparate, era adorável; impossível não se comover com eles.

 

Por fim serviram o café, e Charlie acendeu um charuto. Olhou o relógio e levantou-se da mesa.

 

- Bem,   devo   deixá-las   entregues   às   suas ocupações, jovens. Está na minha hora de voltar ao trabalho. - Fez uma pausa e, com os olhos amigos e atraentes pousados em Kitty, ajuntou - Não vou incomodá-la por um ou dois dias até tenha descansado, mas depois precisamos ter ama pequena conversa sobre negócios.

 

- Comigo?

 

- Precisamos tratar da situação de sua casa; há a mobília e tudo o mais.

 

- Oh! mas posso ir a um advogado. Não preciso incomodá-lo por isso.

 

- Nem pense que vou deixá-la gastar o seu dinheiro com assuntos legais. vou tratar de tudo. Como sabe, a senhora tem direito a uma pensão. Falarei a esse respeito com o governador e verei se, dirigindo-nos à pessoa certa, não será possível conseguir-lhe algo mais. Ponha-se nas minhas mãos. Mas por enquanto não se importune com coisa alguma. Tudo o que desejamos agora é que se restabeleça e fique bem-disposta; não é verdade, Dorothy?

 

- Naturalmente.

 

Fez uma pequena curvatura a Kitty e depois, passando pela cadeira da esposa, tomou-lhe a mão e beijou-a. Geralmente os ingleses parecem um tanto ridículos quando beijam a mão de uma senhora, mas ele o fazia com graça e naturalidade.

 

Só depois de perfeitamente aboletada na casa dos Townsends é que Kitty descobriu que estava cansada. O conforto e a amenidade a que já se havia desabituado romperam a tensão em que estivera vivendo. Tinha esquecido o quanto era agradável estar descansada, como fazia bem achar-se rodeada de belas coisas, e que prazer havia em receber atenções. Entregava-se com um suspiro de alívio à existência fácil e luxuosa do Oriente. Não era mau sentir que de um modo discreto e bem-educado ela era objeto de um simpático interesse. Sua viuvez era tão recente que não seria possível que recepções lhe fossem oferecidas, mas senhoras de alta posição na colónia (a esposa do governador, as esposas do almirante e do presidente do tribunal) vinham beber com ela uma tranquila xícara de chá. A mulher do governador dissera que Sua Excelência desejava muito vê-la e que teria grande prazer em recebê-la para um almoço informal no palácio do governo (”somente nós e o ajudante-de-ordens com a esposa”). Essas senhoras tratavam Kitty como se ela fosse uma peça de porcelana frágil e preciosa. Era impossível não ver que a consideravam uma pequena heroína, e Kitty possuía talento suficiente para desempenhar o seu papel com modéstia e discrição. Às vezes desejava que Waddington estivesse ali; com sua argúcia maliciosa, teria visto o cómico da situação, e quando a sós poderiam rir-se de tudo. Dorothy recebera uma carta dele, na qual dizia toda sorte de coisas sobre o seu devotado trabalho no convento, sobre a sua coragem e energia. Era evidente que habitualmente caçoava deles, o peralta.

 

Kitty não sabia se era por acaso ou intencionalmente que ela nunca ficava um único instante a sós com Charlie. Ele mostrava um tato irrepreensível. Fazia-se bondoso, simpático, atencioso e amável. Ninguém adivinharia que tinha havido entre eles mais que uma simples amizade. Mas uma tarde em que ela estava deitada num sofá,  do seu quarto, lendo, ele passou pela varanda e deteve-se.

 

- Que está lendo? - perguntou.

 

- Um livro.

 

Kitty olhou-o ironicamente. Ele sorriu.

 

- Dorothy foi a uma recepção no palácio.

 

- Já sei. Por que não foi também?

 

- Não me senti com disposição, e lembrei-me de voltar para fazer-lhe companhia. O carro está aí fora. Não gostaria de dar uma volta pela ilha?

 

- Não, muito obrigada.

 

Charlie sentou-se na extremidade do sofá.

 

- Desde que você voltou, não tivemos oportunidade de conversar a sós.

 

Ela olhou-o diretamente nos olhos com franca insolência.

 

- Acha que temos alguma coisa a dizer-nos?

 

- Milhares.

 

Ela mudou um pouco a posição dos pés para não tocar nele.

 

- Ainda está zangada comigo? - perguntou ele, quase sorrindo e com olhos ternos.

 

- Nem um pouco - respondeu ela rindo.

 

- Acho que, se não estivesse, não riria assim.

 

- Está enganado. Desprezo-o demasiado para zangar-me com você.

 

Ele não perdeu a serenidade.

 

- Acho-a um tanto injusta comigo. Reconsiderando tudo com calma, não reconhece honestamente que eu tinha razão?

 

- Do seu ponto de vista.

 

- Agora que conhece Dorothy, não concorda que ela é uma bela pessoa?

 

- Certamente. Sempre lhe serei grata pela grande bondade que me tem dedicado.

 

- Pessoas como ela não se encontram facilmente. Eu jamais teria um momento de paz se houvéssemos rompido. Seria uma sujeira muito grande com ela. E além do mais eu tinha de pensar nos meus filhos; a separação seria um terrível obstáculo à vida deles.

 

Durante um momento ela o considerou com um olhar meditativo. Sentia-se completamente senhora da situação.

 

- Tenho-o   observado   muito   bem   durante toda esta semana que estou aqui. Cheguei à conclusão de que você realmente gosta de Dorothy. Eu nunca deveria ter pensado que você fosse capaz de abandoná-la.

 

- Eu lhe disse que gostava dela. E jamais faria qualquer coisa que a prejudicasse. Ela é a melhor esposa que um homem possa ter.

 

- Nunca pensou que você lhe devia uma certa lealdade?

 

- O que os olhos não vêem o coração não sente - disse ele, sorrindo.

 

Ela deu de ombros.

 

- Você é desprezível.

 

- Sou humano. Não vejo motivo para considerar-me tão vil somente porque me apaixonei doidamente por você. Isso não era bem o que eu queria.

 

Ouvi-lo dizer tal coisa confrangia-lhe o coração.

 

- Eu joguei limpo - disse ela com amargura.

 

- Naturalmente, eu não podia prever que nós nos meteríamos numa complicação dos diabos.

 

- E, de qualquer maneira, sua linda ideia era de que, se alguém tivesse de sofrer, não seria você.

 

- Isso é um tanto injusto. Afinal de contas, agora que tudo passou, você deve reconhecer que procedi conforme era melhor para ambos. Você perdeu a cabeça, e devia ter ficado muito satisfeita porque mantive a minha no lugar. Achaque tudo daria certo se eu tivesse feito o que você ”bueria? Nossa situação não era nada boa, mas, depois, teria sido muito pior. E você não foi prejudicada. Por que não fazemos as pazes com um beijo?

 

Ela esteve a ponto de rir.

 

- Acha-me por acaso capaz de esquecer que você me mandou para a morte quase certa sem o menor remorso?

 

- Ora, que tolice! Eu lhe disse que não haveria nenhum perigo se você tomasse as devidas precauções. Julga que eu teria deixado você ir se não tivesse plena certeza disso?

 

- Você tinha certeza porque queria ter. Você é um desses covardes que só acreditam no que lhes convém.

 

- Afinal de contas, a experiência provou que eu tinha razão. Você voltou, e se não se importa que eu lhe diga algo tão censurável, direi que voltou mais bonita do que nunca.

 

- E Walter?

 

Ele não pôde resistir à resposta chistosa que lhe ocorreu e sorriu.

 

- Nada lhe vai tão bem como o preto.

 

Ela olhou-o por um instante. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Seu belo rosto estava deformado pela dor. Não procurava esconder o pranto, deitada de costas, com as mãos pendidas ao lado do corpo.

 

- Por amor de Deus, não chore assim! Eu não quis dizer nada que a magoasse. Foi apenas um gracejo. Bem sabe quanto sinto a perda que você sofreu.

 

- Oh, pare de dizer tanta estupidez!

 

- Eu daria tudo para que ele estivesse vivo.

 

- Walter morreu por nossa causa.

 

Ele tomou-lhe a mão, mas Kitty retirou-a bruscamente.

 

- Vá embora, por favor - soluçou ela. Isso é a única coisa que você pode fazer por mim agora. Odeio-o, desprezo-o. Walter valia dez vezes mais do que você. Fui demasiado tola para compreendê-lo. Vá embora. Vá embora.

 

Vendo que ele ia falar novamente, ela levantou-se e foi para o seu quarto. Ele seguiu-a e, ao entrar, com instintiva prudência, fechou o postigo, de maneira que ficaram quase às escuras.

 

- Não posso deixá-la assim - disse ele, tomando-a nos braços. - Você sabe que eu não quis magoá-la.

 

Ela procurou desvencilhar-se, mas ele não a deixava. Kitty soluçava num choro nervoso.

 

- Querida, então você não sabe que sempre gostei de você? - disse ele, na sua voz envolvente e encantadora. - Amo-a mais do que nunca.

 

- Como é que você pode mentir tanto! Solte-me. Solte-me e vá para o diabo.

 

- Não faça assim comigo, Kitty. Sei que não me portei bem com você, mas perdoe-me.

 

Ela soluçava convulsivamente, lutando para livrar-se dele, mas aqueles braços eram inesperadamente confortadores. Tanto havia desejado sentir-se enlaçada por eles mais uma vez, só uma vez. . . que todo o seu corpo tremia. Sentia uma terrível lassidão. Tinha a impressão de que desfalecia, e a pena que ela sentia de Walter transformou-se em compaixão por si mesma.

 

- Oh, como é que você pôde fazer isso comigo? - soluçou ela. - Então não sabia que eu o amava de todo o coração? Nunca ninguém o amou como eu.

 

- Querida.

 

Ele começou a beijá-la.

 

- Não, não - fez ela.

 

Ele procurou o seu rosto, mas ela desviou-o; buscou-lhe então os lábios, e ela já sabia o que Charlie estava dizendo, palavras de í por, ardentes e entrecortadas; e seus braços seguravam-na tão firmemente que ela se sentia como uma criança que depois de andar perdida está segura em sua casa. Gemeu languidamente. Tinha os olhos fechados e o rosto molhado de lágrimas. Por fim, ele encontrou-lhe a boca, e a pressão dos seus lábios vibrou por todo o seu corpo como uma chama divina. Era um êxtase que a consumia inteira, e ela se inflamava como se estivesse transfigurada. Só em sonhos, nos seus sonhos, ela conhecera semelhante transporte. Que fazia Charlie com ela agora? Não sabia. Ela não era uma mulher (sua personalidade se dissolvera), era apenas desejo. Erguendo-a, ele a foi conduzindo, e ela, muito leve nos seus braços, agarrava-se a ele, desesperada, fremindo de paixão; ela afundou a nuca no travesseiro e seus lábios uniram-se ainda mais.

 

Sentada à beira da cama, ela escondia o rosto nas mãos.

 

- Não quer um pouco d’água?

 

Ela sacudiu a cabeça. Ele foi até o lavatório, encheu o copo da escova de dentes e trouxe-lhe água.

 

- Vamos, beba um pouquinho que se sentirá melhor.

 

Levou-lhe o copo aos lábios, e ela bebericou. Depois, com os olhos horrorizados, pôs-se a fitá-lo. Ele estava de pé junto a ela, baixando o olhar para vê-la, e havia em seus olhos um brilho de satisfação consigo próprio.

 

- Então, ainda acha que sou tão mau assim? - perguntou ele.

 

Ela baixou os olhos.

 

- Acho que sou tão ruim como você. Que vergonha, meu Deus!

 

- Pois acho que você é muito ingrata.

 

- Quer retirar-se agora?

 

- Para falar a verdade, acho que já é tempo vou arranjar-me um pouco antes que Dorothy volte.

 

Saiu do quarto num passo airoso.

 

Kitty deixou-se ficar à beira da cama, de ombros caídos como uma idiota. Tinha o cérebro vazio. De súbito, estremeceu. Levantou-se, meio cambaleante, e, chegando ao toucador, atirou-se na cadeira. Olhou-se no espelho. Seus olhos estavam inchados de chorar; tinha o rosto manchado de lágrimas e numa das faces, onde ele repousara a dele, havia uma mancha vermelha. Ela olhava-se, horrorizada. Era o mesmo rosto. Decepcionava-se de”não encontrar nele um sinal de degradação.

 

- Porca! - exclamou ela para a sua imagem.

 

- Porca!

 

Depois, escondendo o rosto nos braços, chorou amargamente. Vergonha, vergonha! Não sabia o que lhe sucedera. Era horrível! Odiava-o e odiava-se. Tinha sido um êxtase. Oh, como era odioso! Jamais poderia olhá-lo de frente. Ele tinha tido razão em não querer casar-se com ela, porque ela era indigna; não valia mais do que uma prostituta. Oh, pior ainda, porque essas pobres mulheres se davam para ganhar a vida. E além do mais, ali, naquela casa para onde Dorothy a trouxera quando ela sofria e estava cruelmente desolada! Os soluços faziam-lhe tremer os ombros. Tudo estava perdido agora. Julgara-se mudada, julgara-se forte, julgara ter voltado para Tchíng-Yen como uma mulher dona de si mesma; novas ideias lhe volteavam no espírito como pequenas borboletas ao sol, e ela esperara ser melhor no futuro; a liberdade, como um espírito luminoso, lhe havia acenado, e o mundo era uma vasta planície onde ela podia caminhar com os pés leves e a cabeça erguida. Julgara-se livre das paixões vis e da concupiscência, livre para a vida limpa e sadia do espírito; comparara-se às garças brancas que voam serenamente sobre os campos de arroz ao entardecer, como pensamentos que se elevam de um espírito em paz consigo próprio. E era uma escrava. Fraca, pusilânime! Não havia esperanças, não valia a pena tentar, ela era uma suja.

 

Não querendo comparecer ao jantar, mandou o criado dizer a Dorothy que estava com dor de cabeça e preferia ficar em seu quarto. Dorothy foi vê-la e, notando-lhe os olhos inchados e vermelhos, conversou, no seu modo gentil e compassivo, sobre assuntos triviais. Kitty sabia que Dorothy pensava que ela havia chorado por Walter e, condoendo-se como a esposa boa e dedicada que era, respeitava aquele sentimento natural.

 

- Eu sei que é muito doloroso minha cara - disse ela ao retirar-se. - Mas você precisa ter coragem. Estou certa de que seu bom marido não desejaria que você chorasse assim por ele.

 

Mas na manhã seguinte Kitty levantou-se cedo e, deixando um bilhete a Dorothy, no qual lhe dizia que tinha saído a negócios, tomou um bonde para a cidade. Ali, andando pelas ruas apinhadas de automóveis, jinriquixás e cadeirinhas, por entre a colorida multidão de chineses e europeus, dirigiu-se aos escritórios da Companhia de Navegação P. & O. Um navio partiria dentro de dois dias, o primeiro a sair do porto, e ela tinha resolvido embarcar nele a todo o custo. Quando o empregado lhe disse que todos os beliches estavam ocupados, ela pediu para falar com o agente. Mandou-lhe dizer seu nome, e o agente, a quem certa vez já tinha sido apresentada, conduziu-a ao seu escritório. Ele estava a par da situação em que ela se encontrava, e, quando Kitty lhe disse o que desejava, mandou trazer a lista de passageiros. Ao examiná-la, pareceu contrariado.

 

- Suplico-lhe que faça o que puder por mim - instou ela.

 

- Acho que não há ninguém na colônia que não queira fazer tudo para servi-la, sra. Fane.

 

Chamou o empregado e pediu algumas informações. Depois fez um gesto afirmativo com a cabeça.

 

- vou mudar uma ou duas pessoas. Sei que a senhora deseja voltar para junto de sua família, e creio que é nossa obrigação atendê-la. Posso dar-lhe um pequeno camarote, onde ficará sozinha. Acho que a senhora preferirá assim.

 

Ela agradeceu e retirou-se com o coração aliviado. Fugir: era esse o seu único pensamento. Fugir! Passou um telegrama ao pai, anunciando o seu regresso imediato; já lhe havia telegrafado informando-o da morte de Walter. Voltou, em seguida, para a casa dos Townsends, a fim de comunicar a Dorothy a sua decisão.

 

- Sentiremos muito que você nos deixe disse a boa criatura -, mas compreendo muito bem que deseje estar com seu pai e sua mãe.

 

Desde que voltara a Tching-Yen, Kitty ia adiando a volta a casa. Temia encontrar-se frente a frente com as recordações que a povoavam. Mas agora não havia alternativa. Townsen4 fizera arranjos para a venda da mobília e tinha cor ”jeguido transferir o contrato de aluguel, mas lá estavam todas as suas roupas e as de Walter, pois não tinham levado quase nada para Mei-tan-fu, e havia os livros, as fotografias e mais isto e mais aquilo. Embora indiferente a tudo e ansiando romper inteiramente com o passado, Kitty imaginava que seria uma ofensa para as suscetibilidades da colónia se ela permitisse que tais coisas fossem, com tudo o mais, para uma sala de leilão. Aquilo precisava ser encaixotado e remetido para a Inglaterra. Uma vez resolvida, depois do almoço vestiu-se para ir à sua casa. Dorothy, desejando ajudar, ofereceu-se para acompanhá-la, mas Kitty rogou-lhe que a deixasse ir sozinha. Concordou em levar dois criados de Dorothy para que a ajudassem a fazer as malas. A casa ficara entregue ao criado mais velho, que veio abrir-lhe a porta. Era curioso entrar na sua própria casa como se fosse uma estranha. Tudo estava limpo e bem-arranjado. Cada coisa em seu lugar, mas, embora o dia estivesse quente e ensolarado, havia nos quartos silenciosos um ar frio e desolado. Os móveis estavam rigorosamente arrumados, exatamente onde deviam estar, e os vasos sem flores permaneciam como antes; o livro que Kitty deixara de costas para cima, não se lembrava quando, ainda estava assim. Era como se a casa tivesse sido deixada havia apenas um minuto e, no entanto, esse minuto estava de tal modo mergulhado na eternidade que não se podia imaginar novamente naquela casa o eco de uma conversa ou de uma risada. No piano, a partitura de um foxtrote parecia esperar que a tocassem, mas a impressão era de que se alguém batesse nas teclas não se ouviria som algum. O quarto de Walter estava tão bem-arranjado como se ele ainda o ocupasse. Sobre a cómoda viam-se duas grandes fotografias de Kitty, uma de sua apresentação à sociedade e outra de seu casamento.

 

Mas os criados trouxeram as malas do depósito e ela começou a dirigir o trabalho. Eles sabiam emalar bem e rapidamente. Kitty refletiu que nos dois dias de que dispunha seria fácil aprontar tudo. Não devia pensar em nada, e felizmente não tinha tempo para isso. De repente ouviu passos e, voltando-se, viu Charlie Townsend. Sentiu um frio no coração.

 

- Que é que você deseja? - disse ela.

 

- Quer vir à sala de estar? Tenho uma coisa a lhe dizer.

 

- Estou muito ocupada.

 

- Só lhe tomarei cinco minutos.

 

Ela não disse mais nada, mas, com um sinal aos criados para que continuassem com o que estavam fazendo, seguiu Charlie até a sala contígua. Não sentou-se, a fim de mostrar-lhe que não queria ser interrompida por muito tempo. Sabia que estava muito pálida, e o coração lhe batia descompassado, mas enfrentava-o friamente com um olhar hostil.

 

- Que é que você quer?

 

- Dorothy acaba de dizer-me que você parte depois de amanhã. Disse-me que você tinha vindo aqui fazer as malas e pediu-me que eu lhe telefonasse para saber se podia prestar-lhe algum serviço.

 

- Fico-lhe agradecida, mas posso arranjar-me muito bem sozinha.

 

- Foi o que pensei. Mas não vim aqui para isso. Vim perguntar-lhe se sua partida súbita foi por causa do que aconteceu ontem.

 

- Você e Dorothy têm sido muito bons comigo. Não quero que vocês pensem que eu estava me aproveitando dessa bondade.

 

- Essa não é uma resposta franca.

 

- E que lhe importa isso?

 

- Importa muitíssimo. Eu não gostaria de pensar que algum gesto meu tivesse afastado você de nossa casa.

 

Kitty estava em pé junto à mesa. Baixou os olhos e deu com a revista Sketch. Era um número muito atrasado, o mesmo que Walter tinha folheado durante toda aquela terrível noite, quando... e agora Walter estava. . . Ergueu os olhos.

 

- Sinto-me absolutamente degradada. Não é possível que você possa desprezar-me tanto quanto eu me desprezo.

 

- Mas eu não a desprezo. Tudo o que lhe . disse ontem foi sincero. Para que fugir dessa maneira? Não vejo motivo para não sermos bons amigos. Não quero de modo algum que você pense que eu a tratei como um canalha.

 

- Você não pode deixar-me em paz?

 

- Ora, bolas. . . eu não sou de pau nem de pedra. Essa sua maneira de considerar as coisas é tão desarrazoada, tão mórbida! Pensei que depois de ontem você seria um pouco mais gentil comigo. Afinal de contas, sou apenas humano.

 

- Eu não me sinto humana. Sinto-me como um animal. Uma porca ou uma cadela. Oh, não o culpo de coisa alguma. Também fui do mesmo estofo. Entreguei-me a você porque o desejava. Mas não fui eu quem se entregou, não foi o meu verdadeiro eu. Não sou essa mulher odiosa, lasciva e bestial. Repudio-a. Não fui eu quem se estirou naquela cama a retorcer-se por você quando meu marido mal esfriara no túmulo e sua esposa se mostrava tão boa comigo, tão imensamente boa! Foi apenas a parte animal que há em mim, negra e medonha como um espírito mau, e que eu repudio, e odeio e desprezo. E desde esse momento, quando penso nisso, meu estômago se revolta e eu sinto vontade de vomitar. Ele franziu o cenho e riu, meio desajeitado.

 

- Não tenho muitos preconceitos, mas às vezes você diz coisas que positivamente me chocam.

 

- Talvez eu tivesse de lamentá-lo. E agora pode ir. Você é um homenzinho insignificante, e eu sou uma tola em falar-lhe seriamente.

 

Por um instante, ele não respondeu, e Kitty viu em seus olhos azuis, agora sombrios, que estava furioso com ela. Haveria de dar um suspiro de alívio quando, cortês e cheio de tato como sempre, finalmente a visse partir. Era divertido pensar na delicadeza com que, ao apertar-lhe a mão e ouvir os seus votos de uma boa viagem, ela agradeceria a sua hospitalidade. Mas observou que sua expressão mudava.

 

- Dorothy me contou que você está grávida - disse ele.

 

Ela sentiu-se enrubescer, mas não permitiu que nenhum gesto lhe escapasse.

 

- Estou.

 

- Não serei o pai?

 

- Não, não. É de Walter.

 

Falou com uma ênfase que não pôde evitar, mas no próprio momento em que falava sabia que seu tom de voz não mostrava convicção.

 

- Está bem certa? - Dizia isto com um sorriso velhaco. - Afinal de contas, você esteve casada com Walter um par de anos e nada aconteceu. As datas parecem combinar muito bem. Acho muito mais provável que a criança seja minha do que de Walter.

 

- Eu preferiria matar-me a ter um filho seu.

 

- Ora, vamos, deixe de tolice. Eu devia estar muito satisfeito e orgulhoso. Olhe, gostaria que fosse uma menina. Eu só tenho meninos com Dorothy. Você não poderá ficar muito tempo em dúvida: meus três garotos são a imagem viva do pai.

 

Ele tinha readquirido o bom humor, e ela sabia por quê. Se a criança fosse dele, mesmo que nunca mais o visse, ela jamais poderia escapar-lhe de todo. Seu poder sobre ela aumentaria, ^ ele, obscura mas definitivamente, teria influência sobre todos os dias de sua vida.

 

- Você é o sujeito mais vaidoso que eu tive a má sorte de encontrar - disse ela.

 

Quando o navio entrava em Marselha, Kitty, olhando para o belo perfil da costa montanhosa, avistou de repente a estátua dourada da Virgem Santíssima que se ergue sobre a Igreja de Sainte-Marie de-la-Grâce como um símbolo de segurança para os homens do mar. Lembrou-se das irmãs do convento de Mei-tan-fu, que, deixando a sua terra para sempre e buscando mitigar na prece a dor da separação, ajoelharam-se voltadas para a imagem, que foi sumindo na distância até não ser mais do que uma pequena chama de ouro no céu azul.

 

Durante a longa e tranquila viagem, Kitty pensara incessantemente na horrível coisa que lhe acontecera. Não podia compreender .a si mesma. Aquilo fora tão inesperado! Que se havia apoderado dela para que, desprezando-o, desprezando-o de todo o coração, ela cedesse apaixonadamente ao abraço imundo de Charlie? Enchia-se de raiva, obcecada pela repugnância por si mesma. Sentia que jamais poderia esquecer sua humilhação, e chorava. Mas à medida que aumentava a distância de Tching-Yen, verificava que seu ressentimento ia insensivelmente esmorecendo.

 

O que tinha acontecido parecia ter acontecido num outro mundo. Ela era como uma pessoa que, depois de um súbito ataque de loucura, vai recuperando a razão e ficando abatida e envergonhada pelas coisas grotescas que vagamente se lembra de ter feito quando estava fora de si. Sabendo, porém, que não estava em si, sente que ao menos aos seus próprios olhos merece indulgência. Kitty pensava que um coração generoso talvez a lamentasse ao invés de condená-la. Mas suspirava ao pensar quão desgraçadamente fora destruída a confiança que tinha em si mesma. O caminho parecia estender-se diante dela reto e ameno, e agora via que era tortuoso e cheio de emboscadas. A vasta extensão e os trágicos e belos crepúsculos do oceano Índico tinham-na repousado. Parecia-lhe que rumava para um país onde pudesse entrar livremente na posse de sua alma. Se só pudesse reconquistar o respeito que devia a si mesma à custa de um conflito mais amargo, era necessário encontrar a coragem de enfrentá-lo.

 

O futuro era difícil e solitário. Em Porto Said, recebeu uma carta da mãe em resposta ao seu telegrama. Era uma longa carta, escrita na letra graúda e caprichosa que ensinavam às moças no tempo de sua mãe. Os ornatos eram tão perfeitos que davam uma impressão de insinceridade. A sra. Garstin expressava o seu pesar pela morte de Walter e condoía-se convenientemente do sofrimento da filha. Receava que ela tivesse ficado viúva sem recursos apropriados, mas naturalmente o Ministério das Colónias lhe daria uma pensão. Tinha satisfação em saber que Kitty estava de volta à Inglaterra, e por certo devia ir para casa de seu pai e sua mãe até que nascesse a criança. Seguiam-se certas instruções que Kitty não devia esquecer, e vários pormenores sobre o parto de sua irmã Doris. O menino pesava tantos quilos e tantos gramas, e o avô paterno dizia nunca ter visto uma criança mais linda. Doris estava novamente esperando bebé, e eles queriam que fosse outro menino, para que a sucessão ao título de baronete ficasse garantida.

 

Kitty compreendia que o fim da carta era estabelecer uma duração definida para sua permanência em casa. A sra. Garstin não pretendia ficar sobrecarregada com uma filha viúva em situação modesta. Refletindo no quanto sua mãe a tinha idolatrado, achava singular que agora, decepcionada com ela, a considerasse apenas um estorvo. Como era estranha a relação entre pais e filhos! Quando eram pequenos, os pais apaixonavam-se por eles, passavam por angustiosas apreensões a cada doença da infância, e os filhos apegavam-se aos pais com amor e adoração; passados alguns anos, os filhos cresciam, e pessoas estranhas eram mais importantes para a sua felicidade do que o pai ou a mãe. A indiferença ocupava o lugar do amor cego e instintivo do passado. O convívio com eles era motivo de aborrecimentos e irritações. Antes aflitos com a ideia de um mês de separação, depois não se abalavam com uma ausência de anos. Sua mãe não precisava preocupar-se: assim que pudesse, montaria sua casa. Mas antes precisava de algum tempo; de momento, tudo era vago e ela não podia formar uma imagem do futuro: talvez morresse no parto, o que seria uma solução para muitas dificuldades.

 

Mas ao chegar a Marselha duas cartas lhe foram entregues. Surpreendeu-se ao reconhecer a letra do pai: não se lembrava de que ele lhe houvesse escrito alguma vez. Sem se mostrar muito efusivo e começando com um ”estimada Kitty”, dizia-lhe que o motivo daquela era comunicar-lhe que a sua mãe não estava muito bem de saúde e se encontrava num hospital a fim de ser operada. Kitty não devia assustar-se e podia continuar a viagem por mar conforme era sua intenção; vir por terra seria muito mais dispendioso, e, estando a mãe no hospital, Kitty não ficaria bem na casa de Harrington Gardens. A outra carta era de Doris e começava com um ”querida Kitty”, não porque Doris lhe tivesse uma afeição especial, mas porque era desse modo que se dirigia a todas as suas relações.

 

Querida Kitty:

Espero que papai já lhe tenha escrito. Mamãe tem de fazer uma operação. Parece que ela andou muito encrencada no ano passado, mas você sabe como ela detesta médicos e costuma tomar tudo o que é remédio. Não sei bem o que ela tem, porque ela insiste em guardar segredo e fica furiosa quando se fala no assunto. Ela não parece nada bem, e se eu fosse você desceria em Marselha e tomaria o primeiro trem. Mas não diga que eu a aconselhei a apressar a viagem, porque ela teima que está muito bem e não quer que você esteja aqui antes que ela volte para casa. Ela fez o médico prometer que dentro de uma semana deixará o hospital. Muitos carinhos da

Doris.

P.S. Sinto muito a morte de Walter. Você deve ter passado por um verdadeiro inferno, minha querida. Estou louca por vê-la. Que engraçado que estejamos esperando bebé para a mesma época, não é? Assim poderemos dar-nos as mãos.”

 

Perdida em reflexões, Kitty deixou-se ficar um momento no convés. Não podia imaginar a mãe doente. Nunca a vira senão ativa e resoluta; costumava irritar-se com as doenças alheias. Dali a momentos, um estafeta lhe entregava um telegrama.

 

”Lamento profundamente informar sua mãe faleceu esta manhã. - Bernard.”

 

Kitty tocou a campainha na casa de Harrington Gardens. Receberam-na dizendo que o pai estava no escritório, é ela, dirigindo-se à porta, abriu-a de mansinho: ele estava sentado junto à lareira, lendo a última edição do jornal da tarde. Ergueu os olhos quando ela entrou, soltou o jornal, e levantou-se, um tanto nervoso.

 

- Oh! Kitty, eu só a esperava pelo último trem.

 

- Eu não queria que o senhor se incomodasse indo receber-me, e por isso não lhe telegrafei informando-o da hora da minha chegada.

 

Ele deu-lhe o rosto a beijar da maneira que ela tão bem lembrava.

 

- Eu estava olhando o jornal - disse ele. Faz dois dias que não leio uma notícia.

 

Ela percebeu que o pai achava necessário justificar o fato de ocupar-se com os assuntos ordinários da vida.

 

- Pois é - disse ela. - O senhor deve estar cansado. Acho que a morte de mamãe foi um grande golpe para o senhor.

 

Ele estava mais magro e envelhecido. Era um homenzinho seco, enrugado e de modos precisos.

 

- O médico disse que nunca houvera nenhuma esperança. Havia mais de um ano que ela não era a mesma, mas recusava-se a consultar o médico. Disse-me também que ela devia sofrer dores constantes e que era um milagre que ela tivesse podido resistir a elas.

 

- Ela nunca se queixava?

 

- Dizia que não estava muito bem.   Mas nunca se queixava de dores. - Fez uma pausa e olhou para Kitty. - Está muito cansada da viagem?

 

- Não muito.

 

- Não quer ir vê-la?

 

- Ela está aqui?

 

- Sim, trouxeram-na do hospital - vou imediatamente.

 

- Não quer que eu vá com você?

 

Havia na voz do pai algo que a fez olhar vivamente para ele. Ele desviou o rosto; não desejava que ela lhe visse o olhar. Kitty adquirira ultimamente uma singular proficiência em ler o pensamento dos outros. Pois não empregara toda a sua sensibilidade, dia após dia, para adivinhar, por uma palavra qualquer ou por um gesto desprevenido, os pensamentos ocultos do marido? Percebeu imediatamente o que o pai tentava esconder-lhe. Era alívio o que ele sentia, um infinito alívio, e estava espantado consigo mesmo. Muito lhe custara ser durante trinta anos um marido bom e fiel sem nunca ter pronunciado uma única palavra contra a mulher, para que agora a lamentasse. Sempre fizera tudo o que desejavam dele. Seria desconcertante para ele que um leve movimento nas pálpebras ou o menor gesto revelasse que ele não sentia o que naquelas circunstâncias um marido enlutado devia sentir.

 

- Não, prefiro ir só - disse Kitty.

 

Subiu as escadas e entrou no quarto amplo, frio e pretensioso onde a mãe tinha dormido durante tantos

 

251anos. Lembrava-se muito bem daqueles pesados móveis de mogno e das águas-fortes de Marcus Stone que adornavam as paredes. Os objetos do toucador estavam arranjados com a rigorosa precisão com que a sra. Garstin insistira em dispô-los durante toda a existência. As flores pareciam fora de lugar; a sra. Garstin julgaria tolo, afetado e anti-higiênico ter flores no quarto. Mas o perfume que exalavam não escondia o cheiro acre e frio, de rou %-branca recém lavada, que Kitty lembrava como característico do quarto da mãe.

 

A sra. Garstin jazia na cama, de mãos cruzadas sobre o peito, com uma brandura que em vida a teria impacientado. As feições marcadas e enérgicas, as faces encovadas pelo sofrimento e as têmporas fundas, faziam-na bela e até imponente. A morte lhe despojara a face da mesquinhez, deixando nela apenas uma impressão de caráter. Poderia ter sido uma imperatriz romana. Era estranho para Kitty que, das pessoas mortas que vira, somente naquela a morte houvesse respeitado uma expressão de argila que servia de morada ao espírito. Pesar ela não podia sentir, pois entre ela e a mãe houvera muita amargura para que lhe restasse no coração um sentimento profundo e afetuoso; e, lembrando a moça que tinha sido, sabia que fora a mãe quem a fizera daquele modo. Mas ao olhar para a mulher ambiciosa, áspera e dominadora que jazia tão quieta e silenciosa, com todas as suas mesquinhas aspirações frustradas pela morte, encontrava algo de vagamente patético. Ela fizera planos e enredos durante toda a vida e nunca tinha desejado senão o que era baixo e indigno. Talvez, pensava Kitty, em alguma outra esfera, ela olhasse agora, consternada, para as coisas terrenas.

 

Doris entrou.

 

- Julguei que você tivesse vindo no trem que chegou agora. Quis olhá-la mais uma vez. Não é horrível? Coitada da nossa querida!

 

Rompendo em lágrimas, atirou-se nos braços de Kitty. Kitty beijou-a. Sabia o quanto a mãe havia abandonado Doris por sua causa, e como fora áspera com a irmã por ser feia e insípida. Sentiria realmente a dor extravagante que demonstrava? Afinal, Doris sempre fora emotiva. Desejava poder chorar: Doris a julgaria tão insensível! Depois de ter passado por tudo o que passara, Kitty não podia fingir um pesar que não sentia.

 

- Vamos ter com papai? - perguntou ela quando o acesso de choro diminuiu um tanto.

 

Doris enxugou os olhos. Kitty observou que a gravidez da irmã tinha-a enfeado; em seu vestido preto, parecia gorducha e desalinhada.

 

- Não, não vou. Tenho certeza de que vou chorar outra vez. Coitado, está sendo tão corajoso!

 

Kitty acompanhou a irmã até a porta da rua e voltou para junto do pai. Ele estava em pé diante da lareira, e o jornal achava-se cuidadosamente dobrado. Queria que ela visse que ele não voltara a ler.

 

- Não troquei de roupa para o jantar - disse ele. - Achei que não era necessário.

 

Jantaram. O sr. Garstin deu a Kitty os pormenores da doença e morte da mulher, e falou-lhe da bondade dos amigos que tinham escrito (havia montes de cartas consoladoras na sua mesa, e ele suspirava ao pensar no trabalho de responder a elas) e das medidas que tomara para o enterro. Depois voltou ao gabinete. Era a única sala da casa que tinha uma lareira. Maquinalmente, ele apanhou o cachimbo que estava sobre o consolo da lareira e começou a enchêlo, mas lançou um olhar hesitante para a filha e deixou-o no lugar.

 

- O senhor não vai fumar? - perguntou ela.

 

- Sua mãe não gostava muito do cheiro do cachimbo depois do jantar, e desde a guerra deixei de fumar charutos.

 

Esta resposta causou-lhe dó. Parecia doloroso que um homem de sessenta anos hesitasse em fumar em seu próprio gabinete.

 

- Eu gosto do cheiro do cachimbo - disse ela sorrindo.

 

Uma leve expressão de alívio passou-lhe pelo rosto e, apanhando outra vez o cachimbo, ele o acendeu. Sentaram-se um diante do outro ao lado da lareira. Ele achou que devia falar nos dissabores de Kitty.

 

- Você deve ter recebido a carta que sua mãe lhe escreveu para Porto Said. Ambos ficamos muito abalados com a notícia da morte de Walter. Sempre o julguei um sujeito muito decente.

 

Kitty não soube o que dizer.

 

- Sua mãe me disse que você vai ter um filho.

 

- vou, sim.

 

- Para quando espera?

 

- Para daqui a uns quatro meses.

 

- Será um grande consolo para você. Precisa ver o menino de Doris. É um lindo garotinho.

 

Conversavam, sentindo-se mais distantes do que desconhecidos recém-apresentados, pois se assim fosse ele estaria mais interessado nela exatamente por isso, e mais curioso, mas o passado comum entre eles erguia um muro de indiferença. Kitty sabia muito bem nada ter feito para despertar a afeição do pai; ele nunca tivera importância em casa, e ninguém pensava nele a não ser como alguém que não fazia mais do que sua obrigação de ganhar o pão para todos; sempre fora um tanto desprezado por não ser capaz de dar mais luxo à família; contudo, Kitty sempre supusera que ele a amava somente por ser seu pai, e foi uma surpresa descobrir que ele não lhe dedicava nenhuma afeição. Sabia que ele aborrecia a todos, mas nunca lhe ocorrera que todos igualmente o aborreciam. Ele se mostrava tão bondoso e submisso como sempre, mas a triste perspicácia que ela aprendera no sofrimento indicava-lhe que, embora ele provavelmente nunca o tivesse reconhecido nem viesse a reconhecer, no fundo não gostava dela.

 

O cachimbo não acendia bem, e ele levantou-se para arranjar alguma coisa com que apertar o fumo. Talvez isto fosse uma desculpa para esconder o seu nervosismo.

 

- Sua mãe queria que você ficasse aqui até nascer a criança, e estava tratando de arranjar seu antigo quarto.

 

- Ela me escreveu. Prometo-lhe que não lhe causarei muito incómodo.

 

- Oh! não é isso. Naquelas circunstâncias, era evidente que o único lugar seria a casa de seu pai. Mas acontece que acabam de oferecer-me o cargo de presidente do Supremo Tribunal das Bahamas, e eu aceitei.

 

- Oh, papai, fico tão contente! Felicito-o de todo o coração.

 

- O convite chegou demasiado tarde para que eu o comunicasse à sua pobre mãe. Isso lhe teria dado uma grande satisfação.

 

Amarga ironia do destino! Depois de todos os seus esforços, tramas e humilhações, a sra. Garstin tinha morrido sem saber que a sua ambição, embora modificada por decepções passadas, fora por fim conseguida.

 

- Embarco no mês que vem. Naturalmente, esta casa será entregue a um corretor, e minha intenção era vender a mobília. Sinto que você não possa ficar aqui, mas se você quiser quaisquer móveis para mobiliar um apartamento, terei o maior prazer em cedê-los a você.

 

Kitty olhava para o fogo. O coração batia-lhe apressadamente; era curioso qu j ela de repente estivesse tão nervosa. Por fim, fez um esforço para falar. A voz tremia-lhe um pouco.

 

- Eu não poderia ir com o senhor, pai?

 

- Você? Ora, minha querida Kitty. - Sua fisionomia transtornou-se. Ela já ouvira muitas vezes essa expressão, mas julgara-a apenas uma frase, e agora pela primeira vez em sua vida via o estado de ânimo que ela exprimia. Era uma coisa tão evidente que a sobressaltava. - Mas todas as suas amizades estão aqui, e Doris também. Pensei que você se sentisse muito mais feliz num apartamento em Londres. Não sei exatamente qual é a sua situação, mas terei muito prazer em pagar-lhe o aluguel.

 

- Tenho dinheiro suficiente para viver.

 

- vou para um lugar estranho. Não sei em que condições.

 

- Estou habituada a lugares estranhos. Londres não significa mais nada para mim. Eu não poderia respirar aqui.

 

Ele fechou os olhos por um instante, e Kitty pensou que ele fosse chorar. Havia em seu rosto uma expressão de profunda desolação. Aquilo lhe confrangia o coração. Não-se enganara: a morte da mulher fora para ele um grande alívio. E agora aquela oportunidade de romper inteiramente com o passado lhe oferecera a liberdade. Ele tinha imaginado uma nova vida diante de si, e, finalmente, após todos aqueles anos, o descanso e a miragem da felicidade. Ela entrevia todo o sofrimento que lhe corroera o coração durante trinta anos. Por fim, ele abriu os olhos. Malgrado o seu esforço, escapou-lhe um suspiro.

 

- Naturalmente, se você quiser vir comigo, ficarei muito satisfeito.

 

Era doloroso. A luta fora breve, e ele tinha sucumbido à sua noção de dever. com aquelas poucas palavras, abandonava todas as suas esperanças. Ela levantou-se da cadeira e, indo para ele, ajoelhou-se e tomou-lhe as mãos.

 

- Não, pai, não irei a menos que o senhor me queira. Já se sacrificou demasiado. Se quer ir sozinho, vá. Não pense em mim nem um instante.

 

Ele retirou uma das mãos e começou a afagar-lhe os lindos cabelos.

 

- Mas eu quero você comigo, minha querida. Afinal de contas, eu sou seu pai, e você está viúva e sozinha. Se quiser vir comigo, seria muito injusto de minha parte não levá-la.

 

- Mas é justamente isso; eu não pretendo ter nenhum direito sobre o senhor por ser sua filha, o senhor não me deve nada.

 

- Oh, minha querida filha!

 

- Nada - repetiu ela com veemência. Meu coração se confrange quando penso como vivemos à sua custa durante toda a vida sem nunca lhe dar nada em troca. Nem ao menos um pouco de afeição. Parece-me que o senhor não teve uma vida muito feliz. Por que não me dá uma oportunidade de tentar reparar um passado em que nada fiz pelo senhor?

 

Ele franziu ligeiramente o cenho. A emoção embaraçava-o.

 

- Não sei o que você quer dizer. Nunca tive nenhuma queixa de você.

 

- Oh, papai, tenho sido tão infeliz! Passei por tantas coisas! Não sou a Kitty que era quando fui embora. Sou terrivelmente fraca, mas acho que não sou mais aquela criatura desprezível. Não quer experimentar-me? Agora não tenho ninguém no mundo senão o senhor. Quero fazer com que me ame. Deixeme tentá-lo. Oh, papai, estou tão só, sou tão infeliz! Preciso imensamente do seu amor.

 

Escondeu o rosto nos joelhos do pai e chorou como se o coração se lhe desmanchasse

 

- Oh, minha Kitty, minha pequena Kitty murmurou ele.

 

Ela ergueu os olhos e passou-lhe os braços em torno do pescoço.

 

- Oh, papai, seja bom comigo. Sejamos bons um com o outro.

 

Ele beijou-a nos lábios, como o faria um amante, e suas faces estavam molhadas de lágrimas.

 

- Está claro que você irá comigo.

 

- O senhor quer que eu vá? Quer mesmo?

 

- Quero, sim.

 

- Fico-lhe tão grata!

 

- Oh, minha querida, não me diga essas coisas. Isso me deixa embaraçado.

 

Tirou o lenço e enxugou-lhe os olhos. Sorriu de um modo que ela nunca o vira sorrir. Mais uma vez, lançou-lhe os braços no pescoço.

 

- Será uma farra, paizinho. O senhor nem sabe como nos divertiremos juntos.

 

- Você não esqueceu que vai ter um filho?

 

- Alegro-me de que ela vá nascer lá longe, junto ao mar e sob um vasto céu azul.

 

- Você já resolveu qual o sexo da criança?

- murmurou ele com seu sorriso breve e seco.

 

- Desejo uma menina, porque quero educá-la para que não cometa os erros que eu cometi. Quando me lembro da moça que fui, odeio-me. Mas eu nunca tive uma oportunidade. vou criar minha filha para que ela seja livre e ande com os próprios pés. Não vou pôr uma criatura no mundo, e amá-la, e educá-la, somente para que um homem, tendo muito desejo de dormir com ela, esteja disposto a dar-lhe casa e comida para o resto da vida.

 

Ela sentiu o pai empertigar-se. Ele nunca falara de tais coisas e chocava-se ao ouvir aquelas palavras na boca da filha.

 

- Deixe-me ser franca só esta vez, papai. Tenho sido tola, má e detestável. Fui terrivelmente castigada. Estou resolvida a livrar minha filha de tudo isso. Quero que ela seja franca e corajosa. Quero que ela seja uma pessoa independente, dona de si mesma, e que aceite a vida como um homem livre e tire dela melhor proveito do que eu.

 

- Ora, meu amor, você fala como se tivesse cinquenta anos. Você tem toda a vida à sua frente. Não deve desanimar.

 

Kitty abanou a cabeça e sorriu suavemente.

 

- Não desanimo. Tenho esperança e coragem. O passado está acabado; os mortos que enterrem seus mortos. Tudo é incerto, a vida e o que quer que me aconteça, mas seguirei em frente com o coração leve e animado. Tudo está confuso, mas eu distingo vagamente um rumo, e vejo diante de mim uma riqueza inexaurível, o mistério e o prodígio de tudo, a compaixão e a caridade, o Caminho e o Caminhante, e talvez no fim. . . Deus.

 

                                                                                William Somerset Maugham  

 

                      

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