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O VISITANTE INESPERADO / Agatha Christie
O VISITANTE INESPERADO / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O VISITANTE INESPERADO

 

       Desde a morte de Agatha Christie, em 1976, seus milhões de admiradores em todo o mundo tiveram que se contentar com a releitura de seus livros. Mas o jejum aparentemente irreversível de novos romances da grande dama da ficção policial chega ao fim com o lançamento de O visitante inesperado.

       Em uma noite enevoada no interior da Inglaterra, sem conseguir ver a estrada, Michael Starkwedder fica preso com seu carro em uma vala. À procura de ajuda, vai até uma casa próxima e encontra um cadáver em uma cadeira de rodas. Ao lado do corpo, uma bela mulher, com a arma do crime nas mãos. Seduzido pela beleza da assassina, Starkwedder articula com ela um plano mirabolante para inocentá-la. Mas, à medida que novos fatos vão sendo revelados, ele começa a duvidar se tomou ou não a decisão certa. Chega, então, a polícia, que, ao começar a investigação, descobre pistas que levam a um resultado surpreendente.

       O Visitante inesperado foi escrito originalmente em 1958 como uma peça de teatro. Charles Osborne, biógrafo de Agatha Christie, encarregou-se da tarefa de transformar o texto em romance. Foi extremamente bem-sucedido. O resultado é um livro com o melhor de Agatha Christie.

 

Era pouco antes de meia-noite numa fria noite de novembro. Remoinhos de neblina obscureciam partes da escura estrada rural, estreita e margeada de árvores, no sul de Gales, não muito longe do Canal de Bristol, de onde uma sirene de nevoeiro ecoava seu som melancólico a cada instante. Podia-se ouvir ocasionalmente o latido distante de um cão, assim como o chamado tristonho de um pássaro noturno. As escassas mansões ao longo da estrada, um pouco melhor que uma vereda, ficavam a quase um quilômetro uma da outra. Num de seus trechos mais escuros, a trilha fazia uma curva, passando por uma bela casa de três andares que se erguia bem recuada em seus jardins espaçosos, e era neste ponto que se encontrava um carro, suas rodas da frente presas na vala à margem da estrada. Após duas ou três tentativas de acelerar para sair da vala, o motorista do automóvel deve ter concluído que era inútil insistir, e o motor caiu em silêncio.

       Um ou dois minutos se passaram antes que o motorista saísse do veículo, batendo a porta atrás de si. Era um homem um tanto atarracado, de cabelos cor de areia, com cerca de trinta e cinco anos, um ar de quem vive ao ar livre, vestido num terno rústico de tweed e sobretudo preto, ostentando um chapéu. Usando uma lanterna para iluminar seus passos, começou a andar com cautela pelo gramado em direção à casa, parando na metade do caminho para examinar a elegante fachada estilo século dezoito da construção. A casa parecia imersa em total escuridão quando se aproximou das portas envidraçadas daquele lado em que se achava. Depois de se voltar a fim de olhar para trás, na direção do gramado que acabara de atravessar, e da estrada atrás dele, caminhou direto até as portas, passou as mãos sobre o vidro e espiou para dentro. Incapaz de discernir qualquer movimento, bateu no caixilho. Não houve resposta alguma. Após uma pausa, o homem bateu de novo, muito mais alto. Quando se deu conta de que suas batidas não produziriam nenhum efeito, tentou a maçaneta. Imediatamente, a porta se abriu e ele tropeçou para dentro de uma sala que se encontrava às escuras.

       Dentro da sala, deteve-se de novo, como que tentando discernir qualquer som ou movimento. Em seguida, chamou com um “olá”.

       — Tem alguém aqui?

       Movimentou a lanterna em torno da sala, que se revelou um gabinete de leitura bem mobiliado, com as paredes forradas de livros. Viu no centro do cômodo um elegante homem de meia-idade, sentado numa cadeira de rodas de frente para as portas envidraçadas, com uma manta sobre os joelhos. O homem parecia ter adormecido em sua cadeira.

       — Oh, olá — disse o intruso. — Não tive intenção de assustá-lo. Lamento muito. É esta maldita neblina. Acabo de sair da estrada com meu carro, caí numa vala e não tenho a menor idéia de onde estou. Oh, e deixei a porta aberta. Desculpe. — Continuando a manifestar suas desculpas enquanto se movia pela sala, voltou às portas envidraçadas, fechou-as e cerrou as cortinas. — Devo ter perdido a estrada principal em algum lugar — explicou. — Estou rodando por estas trilhas confusas há uma hora ou mais.

       Não houve resposta.

      

       — Está dormindo? — perguntou o intruso, enquanto encarava o homem na cadeira de rodas outra vez. Ainda sem receber nenhuma resposta, dirigiu a lanterna para o rosto do ocupante da cadeira e parou bruscamente. O homem não abriu os olhos nem se moveu. Quando o intruso se inclinou sobre ele, tocando seu ombro como que para acordá-lo, o corpo do homem tombou de repente, numa posição curvada na cadeira. — Meu Deus! — exclamou, segurando a lanterna. Deteve-se por um momento, indeciso quanto ao que fazer em seguida. Então, lançando o facho de luz por toda a sala, encontrou um interruptor junto a uma porta, e atravessou o aposento para ligá-lo.

       A lâmpada se acendeu sobre uma escrivaninha. O intruso pousou a lanterna sobre a mesa e, olhando atentamente para o homem na cadeira de rodas, girou em torno dele. Percebendo uma outra porta com um interruptor junto a ela, foi até lá e, com um estalo, ligou a chave, desta forma acendendo os abajures sobre duas mesas de apoio estrategicamente colocadas nos dois extremos da sala. Em seguida, dando um passo em direção ao homem na cadeira, teve um sobressalto quando subitamente notou, pela primeira vez, uma atraente mulher loura, por volta dos trinta anos, usando um vestido de festa e sobrecapa combinando, de pé junto a um nicho alinhado com livros no lado oposto da sala. Com os braços pendendo frouxamente, ela não se moveu nem falou. Parecia que nem respirando estava. Houve um momento de silêncio enquanto fitavam um ao outro. Então o homem falou.

       — Ele... ele está morto! — exclamou.

       Completamente sem expressão, a mulher respondeu:

       — Está.

       — Você já sabia? — indagou o homem.

       — Sabia.

       Aproximando-se cautelosamente do corpo na cadeira de rodas, o homem disse:

       — Ele levou um tiro. Na cabeça. Quem...?

       Fez uma pausa enquanto a mulher trazia devagar a mão direita de onde ela estivera escondida pelas dobras do vestido. Em sua mão havia um revólver. O homem prendeu o fôlego bruscamente. Quando ficou claro que ela não o estava ameaçando, aproximou-se da mulher e suavemente tirou o revólver de sua mão.

       — Você atirou nele? — perguntou.

       — Atirei — replicou a mulher após uma pausa.

       O homem se afastou dela e pôs a arma sobre uma mesa junto à cadeira de rodas. Por um momento, ficou de pé olhando para o corpo do morto e depois fitou com incerteza o resto da sala.

       — O telefone fica ali — disse a mulher, com um gesto da cabeça em direção à escrivaninha.

       — Telefone? — repetiu o homem. Parecia surpreso.

       — Se quiser ligar para a polícia — continuou a mulher, ainda falando da mesma maneira distante, sem expressão.

       O estranho olhou fixo para ela, sentia-se incapaz de decifrá-la. E então disse:

       — Alguns minutos a mais ou a menos não vão fazer diferença. Eles vão ter um bocado de trabalho para chegar até aqui com toda esta neblina, de qualquer jeito. Gostaria de saber um pouco mais... — Interrompeu o que estava dizendo e olhou para o cadáver. — Quem é ele?

       — Meu marido — replicou a mulher. Fez uma pausa e, em seguida, continuou: — Seu nome é Richard Warwick. Sou Laura Warwick.

       O homem continuou a fitá-la.

       — Entendo — murmurou afinal. — Não acha melhor... se sentar?

       Laura Warwick encaminhou-se lentamente e um tanto vacilante para um sofá. Olhando em torno da sala, o homem perguntou:

       — Posso lhe preparar uma... bebida... ou alguma coisa? Deve ter sido um choque.

       — Atirar em meu marido? — Seu tom demonstrava uma seca ironia.

       Aparentando recobrar a postura, o homem tentou igualar a expressão dela.

       — Acho que sim. Ou foi apenas uma brincadeira divertida?

       — Foi uma brincadeira divertida — repetiu Laura Warwick, inescrutável, enquanto permanecia sentada no sofá. O homem franziu o cenho, parecendo intrigado. — Mas eu gostaria... daquela bebida — continuou ela.

       O homem tirou o chapéu e atirou-o numa poltrona; em seguida, serviu conhaque de uma garrafa de cristal na mesa junto à cadeira de rodas e entregou o copo a ela. A mulher bebeu e, após uma pausa, o homem pediu:

       — Agora, digamos que me conte alguma coisa a respeito disso.

       Laura Warwick ergueu os olhos para ele.

       — Não seria melhor você ligar para a polícia? — perguntou.

       — Tudo a seu tempo. Não há nada de mais em ter uma conversinha reconfortante antes, há? — Tirou as luvas, enfiou-as no bolso do sobretudo e passou a desabotoar o casaco.

       A pose de Laura Warwick começou a desabar.

       — Eu não... — foi dizendo. Fez uma pausa e então prosseguiu. — Quem é você? Como veio parar aqui esta noite? — Sem lhe dar tempo para responder, continuou, a voz agora quase num grito. — Pelo amor de Deus, diga-me quem é você!

 

—Perfeitamente — replicou o homem. Correu uma das mãos pelos cabelos, olhou em torno da sala por um momento como que imaginando onde ou como começar. Então continuou: — Meu nome é Michael Starkwedder. Sei que é um nome fora do comum. — Soletrou-o para ela. — Sou engenheiro. Trabalho para a Anglo-Iraniana e acabo de voltar ao país depois de um período no Golfo Pérsico.

       Fez uma pausa, dando a impressão de estar recordando brevemente o Oriente Médio, ou talvez tentando decidir em que nível de detalhes entrar, e encolheu os ombros.

       — Estou aqui no País de Gales por uns dois dias, visitando antigos pontos de referência. A família de minha mãe veio desta parte do mundo e pensei que poderia comprar uma casinha por aqui.

       Sacudiu a cabeça, sorrindo.

       — As últimas duas horas... está mais para três, eu diria... passei irremediavelmente perdido. Dirigindo em círculos por todas as trilhas sinuosas do sul de Gales, para acabar numa vala! Neblina densa por toda parte. Achei um portão, tateei o caminho até esta casa, esperando conseguir um telefone ou, talvez, se tivesse sorte, uma acomodação para passar a noite. Experimentei a maçaneta daquela porta envidraçada ali, descobri que não estava trancada e entrei. Depois do que encontrei... — Fez um gesto em direção à cadeira de rodas, indicando o corpo inclinado que havia nela.

       Laura Warwick levantou a cabeça e fitou-o, os olhos sem expressão.

       — Você bateu na janela primeiro... várias vezes — murmurou.

       — É, bati. Ninguém respondeu.

       Laura prendeu o fôlego.

       — Não, eu não respondi. — Sua voz agora era quase um sussurro.

       Starkwedder olhou para ela, tentando decifrá-la. Deu um passo em direção ao corpo na cadeira de rodas, depois voltou à mulher no sofá. Para incentivá-la a falar, repetiu:

       — Como eu disse, experimentei a maçaneta, a porta não estava trancada e eu entrei.

       Laura ficou olhando fixo para seu copo de conhaque. Falava como se estivesse citando alguém.

       — “A porta se abre e eis que entra o visitante inesperado.” — Estremeceu ligeiramente. — Esse ditado sempre me apavorou quando eu era criança. “O visitante inesperado.” — Jogando a cabeça para trás, ela ergueu os olhos para sua visita inesperada e exclamou com repentina intensidade: — Oh, por que não telefona para a polícia e acaba com isso?

       Starkwedder caminhou em direção ao corpo na cadeira.

       — Ainda não — disse. — Dentro de instantes, talvez. Pode me dizer por que atirou nele?

       A nota de ironia retornou à voz de Laura quando respondeu.

       — Posso lhe dar alguns excelentes motivos. Para começar, ele bebia. Bebia demais. Em segundo lugar, era cruel. Insuportavelmente cruel. Eu o odiei durante anos. — Percebendo o olhar astucioso que Starkwedder lhe lançou, ela prosseguiu com raiva: — O que espera que eu diga?

       — Você o odiou durante anos? — murmurou Starkwedder como se estivesse falando consigo mesmo. Olhou pensativo para o corpo. — Mas alguma coisa... algo especial... aconteceu esta noite, não foi? — perguntou.

       — Têm toda razão — replicou Laura, enfática. — Alguma coisa especial de fato aconteceu esta noite. E assim... eu tirei a arma da mesa onde estava, ao lado dele, e... e atirei nele. Foi simples.

       Lançou um olhar impaciente para Starkwedder enquanto continuava:

       — De que adianta ficar falando sobre isso? No final, você só vai ter mesmo que ligar para a polícia. Não há nenhuma saída. — Sua voz baixou enquanto repetia: — Nenhuma saída!

       Starkwedder olhou para ela do outro lado da sala.

       — Não é tão simples quanto você pensa — observou.

       — Por que não é simples? — perguntou Laura. Sua voz soava exausta.

       Aproximando-se dela, Starkwedder falou lenta e decididamente.

       — Não é tão fácil fazer o que está insistindo comigo para fazer — disse ele. — Você é uma mulher. Uma mulher muito atraente.

       Laura ergueu os olhos para ele de repente.

       — Isso faz alguma diferença? — perguntou.

       A voz de Starkwedder soava quase animada quando replicou:

       — Teoricamente, é certo que não. Mas em termos práticos, faz. — Levou seu sobretudo até o nicho, colocou-o sobre a poltrona e retornou para se pôr de pé diante do corpo de Richard Warwick.

       — Oh, você está falando de cavalheirismo — observou Laura com apatia.

       — Bem, chame de curiosidade, se preferir — retrucou Starkwedder. — Gostaria de saber mais sobre o que tudo isto quer dizer.

       Laura fez uma pausa antes de replicar.

       — Já lhe contei — foi tudo o que disse.

       Starkwedder caminhou devagar em torno da cadeira de rodas que continha o corpo do marido de Laura, como que fascinado por ele.

       — Você me contou os fatos nus e crus — admitiu. — Mas nada mais do que os fatos.

       — E lhe dei um excelente motivo — retrucou Laura. — Não há mais nada a contar. Em todo caso, por que você deveria acreditar no que estou lhe contando? Eu poderia inventar qualquer história que quisesse. Você tem apenas a minha palavra para garantir que Richard era um animal cruel, que bebia e que tornava a vida para mim uma desgraça... e que eu o odiava.

       — Posso aceitar a última declaração sem questioná-la — disse Starkwedder. — Afinal, há uma certa quantidade de evidências para sustentá-la. — Aproximando-se do sofá outra vez, baixou os olhos para Laura. — Ao mesmo tempo, é um pouco drástica, não acha? Você diz que o odiou durante anos. Por que não o deixou? Certamente isso teria sido muito mais simples.

       A voz de Laura mostrava-se hesitante quando replicou:

       — Eu não tenho... não tenho dinheiro algum que me pertença.

       — Minha querida mocinha — disse Starkwedder —, se você pudesse ter comprovado a crueldade, a embriaguez habitual e todo o resto, teria conseguido um divórcio... ou a separação... e aí você receberia uma pensão alimentícia, ou seja lá como chamam isso. — Fez uma pausa, esperando por uma resposta.

       Encontrando dificuldade para responder, Laura se levantou e, mantendo-se de costas para ele, foi até a mesa para pousar seu copo.

       — Você tem filhos? — perguntou Starkwedder.

       — Não... não, graças a Deus — replicou Laura.

       — Bem, então por que não o abandonou?

       Confusa, Laura voltou o rosto para seu inquisidor.

       — Bem... — disse ela, afinal — bem, veja, agora eu vou herdar todo o dinheiro dele.

       — Ah, não vai, não — informou Starkwedder. — A lei não irá permitir que você se beneficie do resultado de um crime. — Dando um passo em direção a Laura, perguntou: — Ou você achava que iria...? — Hesitou, para em seguida continuar — O que você achava?

       — Não sei o que está querendo dizer — respondeu Laura.

       — Você não é uma mulher burra — explicou Starkwedder, olhando para ela. — Mesmo que herdasse esse dinheiro, não iria lhe servir para muita coisa se ficasse presa a vida inteira. — Acomodando-se confortavelmente na poltrona, acrescentou: — Supondo que eu não tivesse vindo bater na porta de vidro bem agora, o que você iria fazer?

       — Isso importa?

       — Talvez não... mas estou interessado. Qual iria ser a sua história se eu não tivesse entrado sem pedir licença e apanhado você com a mão na massa? Iria dizer que foi um acidente? Ou suicídio?

       — Eu não sei! — exclamou Laura. Estava arrasada. Indo até o sofá, sentou-se olhando na direção oposta à de Starkwedder. — Não tenho idéia — acrescentou. — Estou lhe dizendo, eu... eu não tive tempo para pensar.

       — Não — concordou ele. — Não, talvez não... não creio que tenha sido um caso premeditado. Acho que foi um impulso. Na verdade, acho que provavelmente foi alguma coisa que seu marido disse. Foi isso?

       — Não importa, estou lhe dizendo — replicou Laura.

       — O que foi que ele disse? — insistiu Starkwedder. — O que foi?

       Laura lançou os olhos para ele com firmeza.

       — Esta é uma coisa que eu jamais contarei a ninguém! — exclamou.

       Starkwedder caminhou até o sofá e ficou de pé atrás dela.

       — Você será inquirida no tribunal — informou.

       Sua expressão era sombria quando ela replicou:

       — Eu não vou responder. Eles não podem me fazer responder.

       — Mas seu advogado terá de saber — afirmou Starkwedder. Inclinando-se sobre o sofá e olhando para ela com seriedade, continuou: — Isso pode fazer toda a diferença.

       Laura voltou-se para encará-lo.

       — Oh, será que não percebe?— exclamou. — Não compreende? Eu não tenho nenhuma esperança. Estou preparada para o pior.

       — O quê? Só porque eu entrei por aquela porta? Se eu não tivesse...

       — Mas você entrou! — Laura o interrompeu.

       — Sim, entrei — concordou ele. — E conseqüentemente você ficou sem saída. É isso o que você acha?

       Laura não replicou.

       — Tome — disse ele enquanto lhe entregava um cigarro e pegava outro para si próprio. — Agora, vamos voltar um pouco. Você odiou seu marido por um longo tempo e hoje à noite ele disse alguma coisa que simplesmente a tirou do sério. Você agarrou a arma que estava ao lado... — Parou de repente, fitando o revólver sobre a mesa. — Por que ele estava sentado aqui com uma arma a seu lado, afinal? Não se pode dizer que isso seja uma coisa comum.

       — Ah, isso — respondeu Laura. — Ele costumava atirar em gatos.

       Starkwedder olhou para ela, surpreso.

       — Gatos? — perguntou.

       — Oh, acho que terei de dar algumas explicações — disse Laura com resignação.

 

Starkwedder olhou para ela com uma expressão um tanto perplexa.

— E então? — instigou.

       Laura deu um suspiro profundo. Depois, olhando fixamente à sua frente, começou a falar:

       — Richard foi um caçador do que se chama caça grande — explicou. — Foi onde nos conhecemos... no Quênia. Ele era um tipo de pessoa diferente nessa época. Ou talvez suas boas qualidades aparecessem mais, não as ruins. Ele tinha, de fato, boas qualidades, sabe? Generosidade e coragem. Uma coragem superior. Era um homem muito atraente para as mulheres.

       Ergueu os olhos de repente, parecendo tomar consciência da presença de Starkwedder pela primeira vez. Olhando de volta para ela, ele acendeu o cigarro dela com seu isqueiro, e depois o dele.

       — Prossiga — instou com a mulher.

       — Nós nos casamos pouco depois de nos conhecermos — continuou Laura. — Então, dois anos mais tarde, ele sofreu um terrível acidente... foi massacrado por um leão. Teve sorte de escapar com vida, mas se tornou um semi-aleijado desde então, sem conseguir andar direito. — Recostou-se, aparentemente mais relaxada, e Starkwedder transferiu-se para um escabelo, de frente para ela.

       Laura deu uma baforada no cigarro e exalou a fumaça.

       — Dizem que o infortúnio aperfeiçoa o caráter — comentou. — Não melhorou o dele. Em vez disso, desenvolveu todos os seus pontos negativos. Retaliação, traços de sadismo, beber demais. Ele tornou a vida praticamente impossível para todos nesta casa, e nós suportávamos porque... ah, você sabe o que se diz: “Que tristeza para o pobre Richard ser um inválido.” Nós não devíamos ter tolerado, é claro. Vejo isso agora. Aquilo simplesmente o incentivava a sentir que era diferente das outras pessoas e que podia fazer o que quisesse sem ter de prestar contas por isso.

       Levantou-se e foi até à mesa junto à poltrona para bater a cinza no cinzeiro.

       — Por toda a sua vida — continuou —, atirar foi a coisa que Richard mais gostou de fazer. Assim, quando viemos morar nesta casa, toda noite, depois que as outras pessoas tinham ido para a cama, ele ficava sentado aqui — fez um gesto em direção à cadeira de rodas — e Angell, seu... bem, criado pessoal e factótum geral, acho que é como poderia ser chamado... Angell trazia o conhaque e uma das armas de Richard e os colocava a seu lado. Em seguida, Richard mandava escancarar as portas envidraçadas e ficava aqui dentro, olhando para fora, vigiando, à espreita do lampejo dos olhos de um gato, ou de um coelho extraviado, ou de um cão, se fosse o caso. Claro, não têm aparecido muitos coelhos ultimamente. Esta doença... como é que se chama?... miximatose ou seja lá o que for... os está matando. Mas ele atirou num bocado de gatos. — Tirou uma tragada do cigarro. — Atirava neles de dia também. E em pássaros.

       — Os vizinhos nunca se queixaram? — Starkwedder quis saber.

       — Ah, claro que sim — replicou Laura quando voltou a se sentar no sofá. — Nós só moramos aqui há uns dois anos, sabe. Antes disso, vivíamos na costa leste, em Norfolk. Lá, um ou dois animais de estimação foram vítimas de Richard, e tivemos uma porção de queixas. Foi por isso, na verdade, que viemos morar aqui. É muito isolada, esta casa. Só temos um vizinho em quilômetros à nossa volta. Mas há boa quantidade de esquilos, pássaros e gatos vadios.

       Fez uma pausa e em seguida continuou:

       — O principal problema em Norfolk foi na verdade uma mulher que veio até à minha casa um dia, recolhendo assinaturas para a festa da aldeia. Richard disparou tiros à direita e à esquerda da mulher quando ela estava indo embora, descendo a nossa entrada. Ela pulava como uma lebre, contou ele. Rugia às gargalhadas quando nos relatou o que tinha acontecido. Lembro de ouvi-lo dizer que seu traseiro gordo tremelicava como gelatina. Ela foi à polícia e houve uma terrível confusão.

       — Posso imaginar — foi o comentário seco de Starkwedder.

       — Mas Richard conseguiu se safar bem — contou Laura. — Ele tinha porte para todas as suas armas de fogo, é claro, e garantiu à polícia que só as utilizava para atirar era coelhos. Invalidou as declarações da pobre senhorita Butterfield alegando que ela era apenas uma velha solteirona nervosa que imaginou os tiros contra ela, coisa que ele jamais teria feito. Richard sempre foi bem-falante. Não teve dificuldade para fazer a polícia acreditar nele.

       Starkwedder levantou de seu banquinho e foi até o corpo de Richard Warwick.

       — Seu marido parece ter tido um senso de humor bastante perverso — observou em tom ácido. Baixou os olhos para a mesa junto à cadeira de rodas. — Entendo o que quer dizer — continuou ele. — Uma arma a seu lado era a rotina de todas as noites. Mas com certeza ele não poderia esperar atirar em coisa alguma esta noite. Não com esta neblina.

       — Ah, ele sempre mandava pôr uma arma ali — replicou Laura. — Toda noite. Era como um brinquedo de criança. Algumas vezes ele atirava na parede, fazendo desenhos. Ali, se quiser ver. — Indicou as portas de vidro. — Embaixo, à esquerda, atrás da cortina.

       Starkwedder atravessou a sala e levantou a cortina do lado esquerdo, revelando um desenho de buracos de bala no painel.

       — Céus, ele gravou suas iniciais na parede. “R.W.”, com buracos de bala. Notável. — Recolocou a cortina e voltou até Laura. — Devo admitir que isso é um belo exemplo de tiro. Huum, é. Deve ter sido bem assustador viver com ele.

       — Ele era assustador, sim — replicou Laura, enfática. Com veemência quase histérica, ergueu-se do sofá e se aproximou do visitante que não tinha sido convidado. — Precisamos continuar falando sem parar sobre isso? — perguntou exasperada. — Só faz adiar o que tem de acontecer no final. Não se dá conta de que você precisa ligar para a polícia? Não tem nenhuma opção. Não vê que seria muito mais bondoso fazer isso agora, já? Ou quer que eu faça? É isso? Tudo bem, eu ligo.

       Encaminhou-se depressa para o telefone, mas Starkwedder foi até Laura quando estava erguendo o fone e pôs a mão sobre a dela.

       — Precisamos conversar primeiro — disse-lhe.

       — Estamos conversando — retrucou Laura. — E, de qualquer modo, não há nada para conversar.

       — Sim, há — insistiu ele. — Sou um tolo, atrevo-me a dizer. Mas temos de encontrar uma saída.

       — Uma saída? Para mim? — perguntou Laura. Ela soava incrédula.

       — É. Para você. — Deu alguns passos para afastar-se dela e depois voltou-se para encará-la. — Quanta coragem você tem? — perguntou. — Pode mentir, se necessário... e mentir de maneira convincente?

       Laura olhou fixamente para ele.

       — Você é louco — foi tudo o que disse.

       — Provavelmente — concordou Starkwedder.

       Ela sacudiu a cabeça perplexa.

       — Você não sabe o que está fazendo — explicou.

       — Sei muito bem o que estou fazendo — respondeu ele. — Estou me transformando em cúmplice, culpado de favorecimento pessoal.

       — Mas por quê? — perguntou Laura. — Por quê?

       Starkwedder olhou para ela por um momento antes de responder.

       — É, por quê? — repetiu. Falando de forma lenta e determinada, disse: — Pela simples razão, eu acho, de que você é uma mulher muito atraente, e eu não gosto de pensar em você trancada na prisão pelos melhores anos de sua vida. Isso é tão horrível quanto ser pendurada pelo pescoço até morrer, no meu ponto de vista. E a situação parece longe de ser promissora para você. Seu marido era inválido e aleijado. Qualquer prova de que tenha havido provocação repousaria inteiramente na sua palavra, uma palavra que você aparenta estar extremamente indisposta a dar. Portanto, parece altamente improvável que um júri vá absolvê-la.

       Laura fitou-o com firmeza.

       — Você não me conhece — disse ela. — Tudo o que lhe contei pode ser mentira.

       — Pode — concordou Starkwedder, animado. — E talvez eu seja um ingênuo. Mas estou acreditando em você.

       Laura desviou o olhar e depois desabou no banquinho, de costas para ele. Por alguns momentos nada foi dito. Depois, virando-se para encará-lo, seus olhos acesos de esperança, fitou-o com ar indagador e em seguida assentiu de maneira quase imperceptível.

       — Posso — respondeu afinal —, posso mentir, se precisar.

       — Ótimo! — exclamou Starkwedder com determinação. — Agora, vá falando, e fale rápido. — Caminhou até à mesa ao lado da cadeira de rodas, batendo a cinza no cinzeiro. — Em primeiro lugar, quem exatamente está aqui nesta casa? Quem mora aqui?

       Após um momento de hesitação, Laura começou a falar, quase de forma mecânica.

       — Tem a mãe de Richard — contou ela. — E tem Benny... a senhorita Bennet, mas nós a chamamos de Benny... ela é uma espécie de governanta e secretária numa pessoa só. Uma ex-enfermeira de hospital. Está aqui há séculos e é dedicada a Richard. E há também Angell. Já o mencionei, creio. É um enfermeiro-assistente e... bem, criado pessoal, suponho. Cuida de Richard de maneira geral.

       — Há também criados que vivem na casa?

       — Não, não há criados que durmam aqui, somente diaristas. Fez uma pausa. — Oh... eu quase esqueci — continuou. — Há Jan, é claro.

       — Jan? — perguntou Starkwedder em tom brusco. — Quem é Jan?

       Laura devolveu-lhe um olhar constrangido antes de responder. Em seguida, com ar de relutância, disse:

       — É o meio-irmão mais novo de Richard. Ele... ele mora conosco.

       Starkwedder caminhou até o banquinho onde ela ainda se achava sentada.

       — Agora vamos jogar limpo — insistiu. — O que há a respeito de Jan que você não quer me contar?

       Depois de um momento de hesitação, Laura falou, embora ainda soasse reservada.

       — Jan é um amor — disse. — Muito afetuoso e doce. Mas... mas ele não é bem igual às outras pessoas. Quero dizer que ele... ele é o que chamam de retardado.

       — Entendo — murmurou Starkwedder com simpatia. — Mas você gosta dele, não gosta?

       — É — admitiu Laura. — Gosto... gosto muito dele. Foi... por isso que, na verdade, não pude ir embora e deixar Richard. Por causa de Jan. Veja bem, pela vontade de Richard, ele teria mandado Jan para uma instituição. Um lugar para doentes mentais.

       Starkwedder circulou lentamente em torno da cadeira de rodas, baixando os olhos para o corpo de Richard e ponderando. Em seguida, murmurou:

       — Entendo. Essa é a ameaça que ele mantinha sobre você? De que, se você o deixasse, ele mandaria o rapaz para uma instituição?

       — É — replicou Laura. — Se... se eu acreditasse que poderia ganhar o bastante para sustentar Jan e a mim mesma... mas não sei se conseguiria. E, de qualquer modo, Richard era o tutor legal do menino, claro.

       — Richard era bondoso com ele? — perguntou Starkwedder.

       — Às vezes — replicou ela.

       — E nas outras vezes?

       — Ele... ele falava com bastante frequência em mandar Jan embora — contou Laura. — Ele dizia a Jan: “Eles vão ser bons para você, garoto. Você será bem cuidado. E Laura, tenho certeza, irá visitá-lo uma ou duas vezes por ano.” Deixava Jan todo agitado, aterrorizado, suplicando, implorando, gaguejando. E aí Richard se recostava em sua cadeira e rugia às gargalhadas. Jogava a cabeça para trás e ria, ria, ria.

       — Entendo — disse Starkwedder, observando-a cuidadosamente. Depois de uma pausa, repetiu, pensativo: — Entendo.

       Laura se levantou num rompante e foi até à mesa junto à cadeira de rodas a fim de apagar seu cigarro.

       — Você não precisa acreditar em mim! — exclamou. — Não precisa acreditar em uma palavra do que eu digo. Por tudo o que sabe, eu bem poderia estar inventando essa coisa toda.

       — Eu lhe disse que vou arriscar — replicou Starkwedder. — Agora, então — continuou ele —, e quanto a essa, qual é mesmo o nome, Bennet... Benny, como ela é? Esperta? Inteligente?

       — Ela é muito eficiente e capaz — assegurou-lhe Laura.

       Starkwedder estalou os dedos.

       — Uma coisa acaba de me ocorrer — disse. — Como foi que ninguém nesta casa ouviu o tiro hoje à noite?

       — Bem, a mãe de Richard é bastante idosa e está bem surda — retrucou Laura. — O quarto de Benny é no andar de cima do outro lado da casa, e os aposentos de Angell ficam bem separados, isolados por uma porta forrada. Há o menino Jan, é claro. Ele dorme no cômodo acima deste aqui. Mas vai para a cama cedo e tem o sono muito pesado.

       — Tudo isso parece extremamente convincente — observou Starkwedder.

       Laura pareceu intrigada.

       — Mas o que você está sugerindo? — perguntou ela. — Que poderíamos fazer parecer suicídio?

       Ele se voltou a fim de olhar para o corpo de novo.

       — Não — respondeu, sacudindo a cabeça. — Não há nenhuma esperança de simular suicídio, receio. — Andou até a cadeira de rodas e ficou olhando para o cadáver de Richard Warwick por um momento, antes de indagar: — Ele era destro, imagino?

       — Era — replicou Laura.

       — É, era o que eu temia. Nesse caso, ele não teria possibilidade de atirar em si mesmo deste ângulo — declarou, apontando para a têmpora esquerda de Warwick. — Além disso, não há nenhuma marca de chamuscado. — Considerou a idéia por alguns segundos e depois acrescentou:— Não, o revólver deve ter sido disparado de uma certa distância. O suicídio com certeza está fora de questão. — Fez uma nova pausa antes de continuar. — Mas há o acidente, é claro. Afinal, poderia ter sido um acidente.

       Após uma longa pausa, começou a representar o que tinha em mente.

       — Agora, digamos por exemplo que eu entrei aqui esta noite. Exatamente como fiz, de fato. Irrompendo por esta porta. — Foi até a porta envidraçada e fez a mímica de tropeçar para dentro da sala. — Richard achou que eu fosse um ladrão e atirou em mim a esmo. Bem, isso é bastante provável, por tudo o que você esteve me contando a respeito de suas proezas. Bom, aí eu vim até ele — e Starkwedder correu até o corpo na cadeira de rodas — tirei a arma dele...

       Laura interrompeu ansiosa.

       — E ela disparou na luta... é isso?

       — É — concordou Starkwedder, mas imediatamente se corrigiu. — Não, isso não vai servir. Como eu digo, a polícia reconheceria de imediato que a arma não foi disparada de tão perto. — Levou mais alguns minutos para reconsiderar e depois continuou. — Bem, agora, digamos que eu levei o revólver bem para longe dele. — Sacudiu a cabeça e abanou os braços num gesto de frustração. — Não, isso não está bom. Tendo feito isso, por que diabos eu atiraria nele? Não, receio que tudo seja muito complicado. — Suspirou: — Tudo bem — concluiu —, vamos deixar como assassinato. Assassinato puro e simples. Mas assassinato por alguém de fora. Assassinato por uma pessoa ou pessoas desconhecidas. — Atravessou a sala até as portas de vidro, afastou uma cortina e espiou para fora como que buscando inspiração.

       — Um ladrão de verdade, talvez? — sugeriu Laura, tentando ajudar.

       Starkwedder pensou por um momento e depois disse:

       — Bem, suponho que poderia ser um ladrão, mas isso parece um pouco falso. — Fez uma pausa e, em seguida, acrescentou: — E quanto a um inimigo? Parece melodramático, talvez, mas pelo que você me contou sobre seu marido, ele parece ter sido o tipo de pessoa que devia ter inimigos. Estou certo?

       — Bem, está — replicou Laura, falando de maneira lenta e insegura. — Suponho que Richard tivesse inimigos, porém...

       — Não dê importância aos poréns por enquanto — interrompeu-a Starkwedder, apagando o cigarro na mesa junto à cadeira de rodas e adiantando-se para apoiá-la enquanto ela se sentava no sofá. — Conte-me tudo o que puder sobre os inimigos de Richard. Número Um, suponho, seria a senhorita... você sabe, a senhorita do traseiro tremelicante... a mulher em quem ele atirou a esmo. Mas não presumo que ela seja uma assassina provável. De qualquer modo, imagino que ainda viva em Norfolk, e seria um pouco forçado pensar nela tirando um dia de folga em Gales só para vir acabar com ele. Quem mais? — instigou. — Quem mais poderia guardar algum rancor contra ele?

       Laura pareceu em dúvida. Ergueu-se, perambulou pela sala e começou a desabotoar sua capa.

       — Bem — começou, com cautela — teve um jardineiro, há coisa de um ano. Richard o despediu e negou-se a lhe dar uma referência. O homem foi muito agressivo por causa disso e fez uma porção de ameaças.

       — Quem era ele? — perguntou Starkwedder. — Um sujeito do lugar?

       — Era — respondeu Laura. — Ele veio de Llanfechan, a cerca de seis quilômetros. — Tirou o casaco e o estendeu sobre um dos braços do sofá.

       Starkwedder franziu o cenho.

       — Não espero grande coisa do seu jardineiro — disse-lhe. — Pode apostar que ele tem um ótimo álibi provando que ficou em casa. E se não tiver um álibi, ou se for um álibi que somente sua esposa possa confirmar ou sustentar, podemos acabar conseguindo condenar o pobre sujeito por algo que ele não fez. Não, isso não é bom. O que queremos é algum inimigo do passado, cuja pista não seja tão fácil de recuperar.

       Laura caminhou lentamente pela sala, tentando pensar, enquanto Starkwedder continuava:

       — Que tal alguém dos tempos em que Richard atirava em tigres e leões? Alguém no Quênia, na África do Sul, ou Índia? Algum lugar em que a polícia não possa verificar a pessoa com facilidade.

       — Se pelo menos eu pudesse pensar... — disse Laura, desesperando-se. — Se eu conseguisse lembrar. Se eu pudesse recordar algumas das histórias sobre aquele tempo que Richard nos contava de vez em quando.

       — Pena que a gente não tem nem um bom material de contra-regra à mão — resmungou Starkwedder. — Sabe como é, um turbante Sikh negligentemente caído sobre a garrafa, ou uma faca Mau Mau, ou uma flecha envenenada. — Apertou as mãos contra a testa num gesto de concentração. — Que diabo — prosseguiu —, o que queremos é alguém com um ressentimento, alguém que tenha sido maltratado por Richard. — Aproximando-se de Laura, instigou-a: — Pense mulher. Pense. Pensei

       — Eu... eu não consigo pensar — replicou Laura, a voz quase falhando de tanta frustração.

       — Você me falou sobre o tipo de pessoa que seu marido era. Deve ter havido incidentes, pessoas. Céus, deve ter havido alguma coisa! — exclamou ele.

       Laura andava de um lado para o outro da sala, tentando desesperadamente se lembrar.

       — Alguém que tenha feito ameaças. Ameaças justificáveis, talvez — incentivou-a Starkwedder.

       Laura interrompeu seus passos e voltou-se para encará-lo.

       — Houve... acabo de me lembrar — disse ela. Falava devagar. — Houve um homem cujo filho Richard atropelou.

 

Starkwedder olhou fixo para Laura.

— Richard atropelou uma criança? — perguntou, agitado. — Quando foi isso?

       — Há cerca de dois anos — contou Laura. — Quando estávamos morando em Norfolk. O pai da criança com certeza fez ameaças na época.

       Starkwedder sentou-se no banquinho.

       — Agora, sim, soa como uma possibilidade — disse. — De qualquer modo, conte-me tudo o que conseguir lembrar sobre ele.

       Laura pensou por um momento e depois começou a falar:

       — Richard vinha dirigindo na volta de Cromer — disse. — Tinha bebido demais, o que não era, de modo algum, inusitado. Atravessou um pequeno vilarejo a mais de noventa quilômetros por hora, aparentemente ziguezagueando um pouco. A criança, um menininho, correu para a estrada vindo da estalagem... Richard o derrubou e ele morreu na hora.

       — Você quer dizer — indagou Starkwedder — que seu marido conseguia dirigir um carro, apesar de sua deficiência?

       — Sim, ele podia. O carro tinha de ser construído especialmente, com controles especiais que ele pudesse manejar, mas, sim, ele conseguia dirigir.

       — Entendo — disse Starkwedder. — O que aconteceu à criança? Certamente a polícia poderia ter prendido Richard por homicídio culposo?

       — Houve um inquérito, é claro — explicou Laura. Uma nota amarga se insinuou em sua voz quando acrescentou: — Richard foi completamente inocentado.

       — Houve alguma testemunha? — quis saber Starkwedder.

       — Bem — replicou Laura. — Havia o pai da criança. Ele viu tudo acontecer. Mas havia também uma enfermeira... enfermeira Warburton... que estava no carro com Richard. Ela testemunhou, é claro. E segundo ela, o carro estava a menos de cinquenta quilômetros por hora, e Richard havia tomado apenas um copo de xerez. Disse que o acidente tinha sido praticamente inevitável... o garotinho simplesmente saiu correndo, de repente, direto para a frente do carro. Eles acreditaram nela, e não no pai da criança, que disse ter visto o carro sendo dirigido de maneira errática e a uma velocidade muito alta. Compreendo que o pobre homem se mostrasse... mais do que violento ao expressar seus sentimentos. — Laura foi até a poltrona, acrescentando: — Você vê, qualquer um acreditaria na enfermeira Warburton. Ela parecia a própria essência da honestidade, confiabilidade, exatidão, cuidadosa em suas declarações e tudo o mais.

       — Você mesma não estava no carro? — perguntou Starkwedder.

       — Não, não estava — replicou Laura. — Eu estava em casa.

       — Então como sabe que a enfermeira sei-lá-o-nome-dela não podia estar dizendo a verdade?

       — Ah, a coisa toda foi discutida muito abertamente por Richard — respondeu ela, em tom amargo. — Depois que voltaram do inquérito, lembro-me de tudo com muita clareza. Ele disse “Bravo, Warby, foi um espetáculo esplêndido. Você provavelmente me safou de uma sentença de prisão bastante dura.” E ela respondeu: “O senhor não merece ter escapado, sr. Warwick. Sabe que estava dirigindo depressa demais. Sinto muita pena por aquela pobre criança.” E aí Richard exclamou: “Ora, esqueça isso! Fiz com que valesse a pena para você. De qualquer maneira, o que é um pirralho a mais ou a menos neste mundo superpovoado? Ele está muito bem fora daqui. Isso não vai estragar o meu sono, eu lhe garanto.”

       Starkwedder se levantou do banquinho e, olhando por cima do ombro para o corpo de Richard Warwick, disse em tom cruel:

       — Quanto mais fico sabendo a respeito de seu marido, mais disposto me sinto a acreditar que o que aconteceu esta noite foi um homicídio justificável, e não um assassinato. — Aproximando-se de Laura, continuou:— E então... Este homem cujo filho foi atropelado. O pai do menino. Como é o nome dele?

       — Um nome escocês, eu acho — replicou Laura. — Mac... Mac alguma coisa... MacLeod? MacCrae?... Não consigo me lembrar.

       — Mas você tem de tentar lembrar — insistiu Starkwedder. — Vamos, você precisa. Ele ainda está morando em Norfolk?

       — Não, não — respondeu Laura. — Ele só estava lá de visita. A uns parentes de sua mulher, creio. Parece que me lembro de ele ter vindo do Canadá.

       — Canadá... é um bocado longe — observou Starkwedder. — Levaria tempo para caçá-lo. Sim — continuou ele, passando para trás do sofá —, sim, acho que há possibilidades aqui. Mas, pelo amor de Deus, tente lembrar o nome do homem. — Foi até seu casaco na poltrona instalada no recanto, tirou as luvas de um bolso e as calçou. Em seguida, olhando em volta da sala com ar de quem procura algo, perguntou: — Tem algum jornal por aí?

       — Jornal? — perguntou Laura, surpresa

       — Não de hoje — explicou ele. — O de ontem, ou de anteontem, serviria melhor.

       Erguendo-se do sofá, Laura foi até um guarda-louça atrás da poltrona.

       — Tem alguns jornais velhos aqui. Nós os guardamos para acender o fogo — explicou.

       Starkwedder juntou-se a ela, abriu a porta do armário e tirou um jornal. Depois de verificar a data, anunciou:

       — Este está Ótimo. Exatamente o que queremos. — Fechou a porta do armário, levou o jornal para a mesa, e de um escaninho na escrivaninha extraiu um par de tesouras.

       — O que vai fazer? — quis saber Laura.

       — Vamos fabricar algumas provas. — Fez um ruído com as tesouras, demonstrando.

       Laura o fitou, perplexa.

       — Mas suponha que a polícia consiga encontrar este homem — disse. — O que vai acontecer?

       Starkwedder sorriu exultante para ela.

       — Se ele ainda vive no Canadá, vai dar um pouco de trabalho — anunciou com ar presunçoso. — E quando o acharem, ele sem dúvida terá um álibi para hoje à noite. Estar a alguns milhares de quilômetros daqui deve ser suficientemente satisfatório. E por essa época já vai ser um pouco tarde para eles investigarem as coisas por aqui. De qualquer jeito, é o melhor que podemos fazer. Isso nos dará tempo para respirar durante os acontecimentos.

       Laura parecia preocupada.

       — Não gosto disso — reclamou.

       Starkwedder devolveu-lhe um olhar algo exasperado.

       — Minha querida moça — repreendeu-a —, você não pode se dar ao luxo de ser seletiva. Mas deve tentar lembrar o nome do homem.

       — Eu não consigo, estou lhe dizendo, não consigo — insistiu Laura

       — Era MacDougall, talvez? Ou Mackintosh? — sugeriu ele, tentando ajudar.

       Laura deu alguns passos para longe dele, pondo as mãos sobre os ouvidos.

       — Pare — gritou. — Você só está fazendo piorar. Agora não tenho nem certeza de que fosse Mac alguma coisa.

       — Bom, se você não consegue se lembrar, não consegue e pronto — cedeu Starkwedder. — Vamos ter de nos arrumar sem ele. Você não se lembra da data, por acaso, ou de alguma coisa útil desse tipo?

       — Ah, posso lhe dizer a data, com certeza — respondeu Laura. — Foi dia 15 de maio.

       Surpreso, Starkwedder quis saber:

       — Como foi que você conseguiu se lembrar disso?

       Havia amargura na voz de Laura quando ela replicou:

       — Porque aconteceu no meu aniversário.

       — Ah, entendo... sim... bem, isso soluciona um pequeno problema — observou Starkwedder. — E nós tivemos também um pouquinho de sorte. Este jornal é datado do dia 15. — Recortou cuidadosamente a data do jornal.

       Reunindo-se a ele na escrivaninha e olhando por cima de seu ombro, Laura destacou que a data no jornal era 15 de novembro, não de maio.

       — Sim — admitiu ele —, mas os números são mais difíceis de conseguir. Agora, maio. Maio é uma palavra curta... ah, sim, aqui está um M. Agora, um A, um I e um O.

       — O que, em nome de Deus, você está fazendo? — perguntou Laura.

       A única resposta de Starkwedder, enquanto se sentava na cadeira da escrivaninha, foi:

       — Tem cola aí?

       Laura estava prestes a pegar um pote de cola num escaninho, mas ele a deteve.

       — Não, não toque — instruiu. — Não queremos suas impressões digitais nele. — Pegou o vidro de cola com as mãos enluvadas e retirou a tampa. — Como ser um criminoso numa só aula — continuou. — E, sim, aqui está um bloco de papel branco... do tipo vendido por todas as Ilhas Britânicas. — Tirando um bloco do escaninho, passou a colar palavras e letras numa folha de papel de carta. — Agora, observe isto, uma... duas... três... um pouco complicado com luvas. Mas cá estamos. “Quinze de maio. Pago na íntegra.” Ora, o “na” caiu. — Colou a palavra de novo. — Agora, assim. O que você acha?

       Arrancou a folha do bloco e mostrou-a a ela; em seguida, foi até o corpo de Richard Warwick em sua cadeira de rodas.

       — Vamos enfiá-la com todo capricho no bolso do seu paletó, desse jeito. — Quando fez isso, deslocou um isqueiro de bolso, que caiu no chão. — Oi, o que é isso?

       Laura soltou uma exclamação aguda e tentou agarrar o isqueiro, mas Starkwedder já tinha feito isso, e o estava examinando.

       — Dê essa coisa para mim — gritou Laura sem fôlego. — Dê para mim!

       Parecendo levemente surpreso, Starkwedder lhe entregou o isqueiro.

       — É... ele é meu — explicou ela, sem necessidade.

       — Tudo bem, então é o seu isqueiro — concordou ele. — Isso não é motivo para ficar perturbada. — Olhou para ela com curiosidade. — Você não está perdendo a coragem, está?

       Ela se afastou dele e caminhou até o sofá. Quando fez isso, esfregou o isqueiro na saia como que para remover possíveis impressões digitais, tomando o cuidado de certificar-se de que Starkwedder não percebera o gesto.

       — Não, é claro que não estou perdendo a coragem — garantiu.

       Tendo se certificado de que a mensagem colada com letras do jornal no bolso da frente de Richard Warwick estava presa com segurança sob a lapela, Starkwedder andou até a escrivaninha, repôs a tampa no vidro de cola, tirou as luvas, pegou um lenço e olhou para Laura.

       — E aqui estamos nós!— anunciou. — Prontos para o próximo passo. Onde está aquele copo em que você estava bebendo agora mesmo?

       Laura apanhou o copo na mesa onde o havia depositado. Deixando o isqueiro na mesa, retornou com o copo até Starkwedder. Ele o tirou dela, e estava prestes a limpar suas digitais, mas se deteve.

       — Não — murmurou. — Não, isso seria burrice.

       — Por quê? — indagou Laura.

       — Bem, deveria haver digitais — explicou ele —, tanto no copo como na garrafa. Desse sujeito, o criado pessoal, para começar, e provavelmente do seu marido também. Nenhuma impressão digital em lugar algum pareceria muito suspeito para a polícia. — Deu um gole no copo que, estava segurando. — Agora preciso pensar num jeito de explicar as minhas — acrescentou. — O crime não é fácil, viu?

       Com súbito arrebatamento, Laura exclamou:

       — Oh, não! Não se envolva nisso. Eles poderiam suspeitar de você.

       Com ar divertido, Starkwedder replicou:

       — Ora, eu sou um camarada muito respeitável... acima de qualquer suspeita. Mas, em certo sentido, eu já estou envolvido. Afinal de contas, meu carro está lá fora, metido na vala. Mas não se preocupe, apenas um pingo de perjúrio de um pequeno trabalho de acerto no elemento tempo... isso é o pior que eles terão para levantar contra mim. E não levantarão, se você fizer o seu papel direitinho.

       Assustada, Laura sentou-se no banquinho, com as costas para ele. Ele deu a volta para encará-la.

       — E então — perguntou —, está pronta?

       — Pronta... para o quê? — indagou Laura.

       — Vamos, você precisa se recompor — instou Starkwedder.

       Parecendo atordoada, ela murmurou:

       — Sinto-me... idiota... eu... eu não consigo pensar.

       — Você não tem de pensar — disse-lhe Starkwedder. — Tem apenas de obedecer ordens. Então, aqui está o plano. Primeiro, você tem uma fornalha de qualquer tipo na casa?

       — Uma fornalha? — pensou Laura, para em seguida replicar: — Bem, há a caldeira de água.

       — Está bom. — Foi até à escrivaninha, pegou o jornal e embrulhou as sobras de papel nele. Voltando a Laura, entregou-lhe o pacote. — Agora — instruiu —, a primeira coisa que você tem de fazer é ir à cozinha e pôr isto aqui na caldeira. Depois suba, tire suas roupas e meta-se numa camisola... ou num négligé, ou no que tiver. — Fez uma pausa. — Tem uma aspirina?

       Intrigada, Laura respondeu:

       — Sim.

       Como que pensando e planejando enquanto falava, Starkwedder continuou:

       — Bem, esvazie a garrafa na privada. Depois vá até... sua sogra, ou a senhorita... como é mesmo... Bennet?... e diga que está com dor de cabeça e precisa de uma aspirina. Depois, enquanto você está com seja lá quem for... deixe a porta aberta, a propósito... vocês vão ouvir o tiro.

       — Que tiro? — perguntou Laura, olhando fixo para ele.

       Sem responder, Starkwedder atravessou até a mesa junto à cadeira de rodas e pegou a arma.

       — Sim, sim — murmurou com ar ausente —, vou me encarregar disso. — Examinou o revólver. — Huum. Me parece estrangeiro... foi um suvenir, não é?

       Laura se levantou do banquinho.

       — Não sei — disse. — Richard tinha vários tipos de pistolas estrangeiras.

       — Gostaria de saber se está registrada — comentou Starkwedder, quase consigo mesmo, ainda segurando a arma.

       Laura sentou no sofá.

       — Richard tinha uma licença... se é assim que vocês chamam a isso... uma autorização para a sua coleção — explicou ela.

       — Sim, suponho que tivesse. Mas isso não significa que todas elas estariam registradas em seu nome. Na prática, as pessoas com frequência são bastante descuidadas quanto a esse tipo de coisa. Existe alguém que provavelmente saiba de maneira definitiva?

       — Angell poderia saber — respondeu Laura. — Isso faz diferença?

       Starkwedder andou pela sala enquanto respondia.

       — Bem, do jeito que estamos construindo isso, o velho MacQualquerCoisa... o pai da criança que Richard atropelou... mais provavelmente irromperia aqui, bufando sangue, brados de censura e vingança, com sua própria arma pronta. Mas se poderia, afinal, imaginar uma argumentação bastante plausível, ao contrário. Este homem... seja lá quem for... irrompe aqui. Richard, apenas semi-acordado, agarra sua arma. O outro sujeito a arranca dele e dispara. Admito que soa um pouco forçado, mas é o que nos serve. Temos que correr alguns riscos, não há como evitar.

       Pôs a arma sobre a mesa junto à cadeira de rodas e se aproximou dela.

       — Agora — continuou — vamos ver, nós pensamos em tudo? Espero que sim. O fato de ele ter sido baleado vinte e cinco ou vinte minutos antes não estará evidente na hora em que a polícia chegar aqui. Dirigir por estas estradas nessa neblina não vai ser nada fácil para eles. — Foi até a cortina da porta envidraçada, ergueu-a e olhou para os buracos de bala na parede. — “R.W”. Muito bom. Vou tentar acrescentar um ponto final depois do “W”.

       Soltando a cortina, voltou.

       — Quando ouvir o tiro — instruiu Laura —, o que você terá de fazer é registrar uma expressão de alarme... e trazer a senhorita Bennett... ou seja lá quem consiga chamar... até aqui. Sua história é que você não sabe de nada. Foi para a cama, acordou com uma violenta dor de cabeça, tentou conseguir uma aspirina... e isso é tudo o que você sabei Entendeu?

       Laura assentiu.

       — Ótimo — disse Starkwedder. — Todo o resto você deixa comigo. Está se sentindo bem agora?

       — Sim, acho — sussurrou Laura.

       — Então vá em frente e faça a sua parte — ordenou ele.

       Laura hesitou.

       — Você... você não devia fazer isso — instou com ele mais uma vez. — Não devia. Você não devia se envolver.

       — Agora, chega dessa história — insistiu Starkwedder. — Todo mundo tem sua própria forma de... como foi que você se referiu agora há pouco?... se divertir. Você teve a sua atirando em seu marido. Eu estou tendo a minha agora. Digamos somente que sempre tive um anseio secreto de ver como eu me sairia com uma história de detetive na vida real. — Lançou-lhe um sorriso rápido, tranquilizador. — Agora, pode fazer o que eu lhe disse?

       Laura assentiu:

       — Posso.

       — Certo. Ora, vejo que você está com um relógio. Ótimo. Que horas são aí?

       Laura mostrou-lhe o relógio de pulso, e ele acertou o seu pelo dela.

       — Pouco menos de dez minutos para a meia-noite — observou. — Vou lhe conceder três... não, quatro... minutos para ir até a cozinha, jogar esse jornal na caldeira, subir as escadas, tirar sua roupa, meter-se numa camisola e ir até a senhorita Bennett, ou quem for. Acha que pode fazer isso, Laura? — Sorriu para ela com ar de confiança.

       Laura assentiu:

       — Então, agora — continuou —, exatamente às cinco para a meia-noite, você vai ouvir o tiro. Vai!

       Encaminhando-se para a porta, ela se voltou e olhou para ele, insegura de si. Starkwedder cruzou a sala a fim de abrir a porta para ela.

       — Você não vai me decepcionar, vai? — perguntou ele.

       — Não — replicou Laura debilmente.

       — Ótimo.

       Laura estava prestes a sair da sala quando Starkwedder percebeu sua capa pousada sobre o braço do sofá. Chamando-a de volta, entregou-lhe a capa, sorrindo. Laura saiu e ele fechou a porta atrás dela.

 

Após fechar a porta atrás de Laura, Starkwedder deteve-se, exercitando em sua mente o que precisava ser feito. Depois de um momento, olhou para o relógio e em seguida tirou um cigarro. Adiantou-se até a mesa junto à poltrona e estava prestes a pegar o isqueiro quando se apercebeu de uma fotografia de Laura em uma das prateleiras. Ergueu-a, olhou para ela, sorriu, recolocou-a no lugar e acendeu o cigarro, deixando o isqueiro sobre a mesa. Tirando um lenço do bolso, apagou quaisquer impressões digitais que pudessem restar nos braços da poltrona e na fotografia, e em seguida empurrou a cadeira de volta à sua posição original. Pegou o cigarro de Laura no cinzeiro, depois foi até a mesa ao lado da cadeira de rodas e retirou sua própria guimba do cinzeiro. Cruzando até a escrivaninha, passou a esfregar as impressões digitais que pudesse haver na mesa, repôs as tesouras e o bloco e ajeitou o mata-borrão. Olhou à sua volta, no chão, em busca de algum recorte de papel que pudesse ter se perdido, encontrou um junto à mesa, amarrotou-o bem apertado e o pôs no bolso da calça. Esfregou as marcas de digitais do interruptor de luz ao lado da porta e na cadeira da escrivaninha, pegou sua lanterna na mesa, foi até as portas envidraçadas, puxou ligeiramente a cortina e acendeu o facho, através da janela, sobre a trilha lá fora.

       — Dura demais para pegadas — murmurou consigo mesmo. Pôs a lanterna sobre a mesa junto à cadeira de rodas e pegou a arma. Certificando-se de que estava devidamente carregada, poliu-a das possíveis digitais; em seguida, foi até o escabelo e pousou a arma sobre ele. Depois de olhar mais uma vez para o relógio, andou até a poltrona no recanto e colocou seu chapéu, cachecol e luvas. Com o sobretudo no braço, cruzou a sala até a porta. Estava prestes a apagar as luzes quando se lembrou de remover as impressões digitais da placa na porta e das maçanetas. Em seguida, apagou as luzes e voltou ao banquinho, vestindo o sobretudo. Pegou a arma, e quase ia disparando na parede quando se deu conta de que as iniciais estavam escondidas pela cortina.

       — Droga! — resmungou. Pegando depressa a cadeira da escrivaninha, usou-a para manter a cortina afastada. Retornou à sua posição junto ao banquinho, disparou a pistola e depois voltou depressa à parede a fim de examinar o resultado. — Nada mau! — congratulou-se.

       Quando estava repondo a cadeira da escrivaninha em sua posição adequada, Starkwedder ouviu vozes no corredor. Saiu correndo pelas portas envidraçadas, levando consigo a arma. Um momento depois reapareceu, acendeu o facho e sumiu de novo.

       De várias partes da casa, quatro pessoas acorreram em direção ao gabinete de leitura. A mãe de Richard Warwick, uma dama alta e dominadora, estava de camisola. Parecia pálida e caminhava com o auxílio de uma bengala.

       — O que foi isso, Jan? — perguntou ao adolescente de pijama, com o estranho rosto inocente parecido com o de um fauno, que se achava logo atrás dela no patamar. — Por que está todo mundo perambulando por aí no meio da noite? — exclamou, enquanto a eles se reunia uma mulher de meia-idade, grisalha, usando uma discreta camisola de flanela. — Benny — ordenou a senhora à mulher —, diga-me o que está acontecendo.

       Laura achava-se logo atrás, e a senhora Warwick continuou:

       — Vocês todos perderam o senso? Laura, o que aconteceu? Jan... Jan... alguém pode me dizer o que está se passando nesta casa?

       — Aposto que é o Richard — disse o rapaz, que aparentava uns dezenove anos, embora sua voz e modos fossem de uma criança mais nova. — Ele está atirando na neblina de novo. — Havia uma nota de petulância em sua voz quando acrescentou: — Diga a ele que não deve atirar e nos acordar a todos do nosso sono de beleza. Eu estava dormindo profundamente, e Benny também. Não estava Benny? Tenha cuidado, Laura, Richard é perigoso. Ele é perigoso, tenha cuidado, Benny.

       — Há uma neblina densa lá fora — disse Laura, olhando através da janela do patamar. — Mal se consegue divisar o caminho. Não consigo imaginar em que ele esteja atirando com esta névoa. É absurdo. Além disso, achei ter ouvido um grito.

       A senhorita Bennett — Benny —, uma mulher esperta, enérgica, que se parecia com a ex-enfermeira de hospital que de fato era, falou num tom algo intrometido:

       — Realmente não consigo ver por que você está tão perturbada, Laura. É apenas Richard se divertindo como de costume. Mas eu não ouvi tiro nenhum. Tenho certeza de que não há nada de errado. Acho que está imaginando coisas. Mas Richard com certeza é muito egoísta e vou dizer isso a ele. Richard — chamou ao entrar no gabinete —, francamente, isso não tem cabimento a esta hora da noite. Você nos assustou... Richard!

       Laura, vestindo camisola, acompanhou a senhorita Bennett para dentro da sala. Enquanto acendia as luzes e se encaminhava para o sofá, o menino Jan a seguia. Ele olhou para a senhorita Bennett, que se achava de pé, fitando Richard Warwick em sua cadeira de rodas.

       — O que é isso, Benny? — perguntou Jan. — O que aconteceu?

       — É Richard — respondeu a senhorita Bennett, com a voz estranhamente calma. — Ele se matou.

       — Olha — gritou o jovem Jan, agitado, apontando para mesa. — O revólver de Richard sumiu!

       Uma voz vinda de fora, no jardim, chamou:

       — O que está havendo aí dentro? Tem alguma coisa errada? Olhando pela pequena janela do recanto, Jan exclamou bem alto:

       — Ouçam! Tem alguém lá fora!

       — Lá fora? — indagou a senhorita Bennett. — Quem? — Voltou-se para as portas envidraçadas e estava prestes a afastar a cortina quando Starkwedder apareceu de repente. A senhorita Bennett recuou alarmada, enquanto Starkwedder se adiantava, indagando em tom de urgência:

       — O que aconteceu aqui? Qual é o problema? — Seu olhar caiu sobre Richard Warwick na cadeira de rodas. — Esse homem está morto! — exclamou. — A tiros. — Olhou em torno da sala com ar de suspeita, analisando cada um dos presentes.

       — Quem é você? — perguntou a senhorita Bennett. — De onde vem?

       — Acabo de cair com meu carro numa vala — replicou Starkwedder. — Estou perdido há horas. Encontrei uns portões e subi até à casa a fim de tentar conseguir algum auxílio e telefonar. Ouvi um tiro, alguém passou correndo pela porta e esbarrou em mim. — Estendendo a arma, Starkwedder acrescentou: — Ele deixou cair isto.

       — Para onde foi esse homem? — perguntou-lhe a senhorita Bennett.

       — Como é que eu poderia saber com esta neblina? — retrucou Starkwedder.

       Jan postou-se em frente ao corpo de Richard, fitando-o com expressão agitada.

       — Alguém atirou em Richard — gritou.

       — Parece que foi isso — concordou Starkwedder. — E melhor vocês entrarem em contato com a polícia. — Pôs o revólver sobre a mesa ao lado da cadeira de rodas, pegou a garrafa e se serviu de conhaque num copo. — Quem é ele?

       — Meu marido — disse Laura sem expressão, enquanto ia se sentar no sofá.

       Starkwedder disse a ela, com preocupação ligeiramente forçada:

       — Aqui... beba isto. — Laura ergueu os olhos para ele. — Você teve um choque — acrescentou o homem com ênfase. Quando ela pegou o copo, Starkwedder, com as costas voltadas para os demais, deu-lhe um malicioso sorriso de conspiração, a fim de chamar a atenção dela para sua solução do problema das impressões digitais. Virando-se, jogou o chapéu sobre a poltrona e então, percebendo de repente que a senhorita Bennett estava prestes a se debruçar sobre o corpo de Richard Warwick, deu um giro rápido: — Não toque em nada, madame — implorou. — Isto parece assassinato e, se for, nada deve ser tocado.

       Aprumando-se, a senhorita Bennett afastou-se do corpo na cadeira, parecendo estarrecida.

       — Assassinato? — perguntou. — Não pode ser assassinato!

       A senhora Warwick, mãe do morto, tinha dado apenas um passo para dentro do gabinete, permanecendo junto à porta. Agora ela se adiantava, perguntando:

       — O que aconteceu?

       — Richard foi baleado! Richard foi baleado! — contou Jan a ela. Parecia mais excitado do que preocupado.

       — Fique quieto, Jan — ordenou a senhorita Bennett.

       — O que foi que eu ouvi o senhor dizer? — perguntou a senhora Warwick calmamente.

       — Ele disse... assassinato — explicou Benny, indicando Starkwedder.

       — Richard... — sussurrou a senhora Warwick, enquanto Jan se inclinava sobre o corpo, chamando:

       — Olhem... olhem... tem alguma coisa no peito dele... um papel... com umas palavras escritas. — Sua mão se estendeu para o papel, mas o rapaz foi detido pelo comando de Starkwedder:

       — Não toque... seja lá o que for, não toque. — Em seguida, leu alto, devagar: — “Maio... dia quinze... pago na íntegra”.

       — Meu bom Deus! MacGregor — exclamou a senhorita Bennett, dirigindo-se para trás do sofá.

       Laura se levantou. A senhora Warwick franziu o cenho.

       — Está querendo dizer — indagou ela —... aquele homem... o pai... da criança que foi atropelada...?

       — É claro, MacGregor — murmurou Laura consigo mesma, enquanto se sentava na poltrona.

       Jan foi até o corpo.

       — Olhem... é tudo recorte... de jornal — comentou, animado.

       Starkwedder mais uma vez o conteve.

       — Não, não toque nisso — ordenou. — Tem de ser deixado para a polícia. — Encaminhou-se para o telefone. — Posso...?

       — Não — respondeu a senhora Warwick com firmeza. — Eu faço isso. — Encarregando-se da situação, e reunindo toda a sua coragem, foi até a escrivaninha e começou a discar. Jan dirigiu-se excitado para o banquinho e ajoelhou-se sobre ele.

       — O homem que fugiu... — perguntou à senhorita Bennett. — Acha que ele... ?

       — Psiu, Jan — disse a senhorita Bennett com firmeza, enquanto a senhora Warwick falava calmamente, mas com uma voz clara e autoritária, ao telefone. — É da delegacia de polícia? Aqui é da Casa Llangelert. A casa do senhor Richard Warwick. O senhor Warwick acaba de ser encontrado... morto a tiros.

       Continuou falando ao telefone. Sua voz permanecia baixa, mas os outros na sala ouviam atentamente.

       — Não, ele foi encontrado por um estranho — ouviram-na dizer. — Um homem cujo carro quebrou perto da casa, creio... Sim, vou dizer a ele. Ligarei para a hospedaria. Será que um de seus carros poderia levá-lo até lá quando tiverem acabado por aqui?... Muito bem.

       Voltando-se para encarar o grupo, a senhora Warwick anunciou:

       — A polícia estará aqui assim que puder, por causa desta neblina. Eles têm dois carros, um dos quais retornará imediatamente para levar este cavalheiro — fez um gesto na direção de Starkwedder — à hospedaria no vilarejo. Querem que ele passe a noite aqui e esteja disponível para falar com a polícia amanhã.

       — Bem, como não posso mesmo ir embora com meu carro ainda na vala, por mim está tudo bem — concordou Starkwedder.

       Enquanto falava, a porta do corredor se abriu, e um homem de cabelos escuros, estatura mediana, por volta dos quarenta e poucos anos entrou na sala, amarrando a faixa de seu robe. De repente, deteve-se abruptamente ao lado da porta.

       — Algum problema, madame? — indagou, dirigindo-se à senhora Warwick. Então, olhando por trás dela, viu o corpo de Richard Warwick. — Oh, meu Deus! — exclamou.

       — Receio que tenha ocorrido uma tragédia terrível, Angell — replicou a senhora Warwick. — O senhor Richard foi baleado e a polícia está a caminho. — Voltando-se para Starkwedder, disse: — Este é Angell. Ele... ele era o criado pessoal de Richard.

       O criado reconheceu a presença de Starkwedder com uma curvatura ligeira, distraída.

       — Oh, meu Deus — repetiu, enquanto continuava a fitar o corpo do falecido patrão.

 

Às onze da manhã, o gabinete de Richard Warwick parecia um tanto mais acolhedor que na nebulosa noite anterior. Para começar, o sol estava brilhando num dia frio, claro e luminoso, e as portas envidraçadas achavam-se abertas de par em par. O corpo tinha sido removido durante a noite, e a cadeira de rodas fora empurrada para o recanto, seu antigo lugar central na sala agora ocupado pela poltrona. A mesinha havia sido liberada de tudo, a não ser da garrafa e do cinzeiro. Um homem jovem, de boa aparência, por volta dos vinte anos, com cabelo curto e preto, vestido num paletó esporte de tweed e calças azul-marinho, estava sentado na cadeira de rodas, lendo um livro de poemas. Após alguns momentos, se levantou.

       — Lindo — disse consigo mesmo. — Apropriado e lindo. — Sua voz era macia e musical, com um pronunciado sotaque galês.

       O jovem fechou o livro que estava lendo e recolocou-o na estante. Em seguida, após observar o aposento por um ou dois minutos, caminhou até a porta de vidro aberta e saiu para a varanda. Quase de imediato, um homem de meia-idade, atarracado e com expressão impenetrável, carregando uma valise, entrou na sala pelo corredor. Indo até a poltrona que ficava de frente para a varanda, depositou a valise sobre ela e olhou pela janela.

       — Sargento Cadwallader! — chamou em tom estridente. O homem mais jovem voltou para dentro da sala.

       — Bom dia, inspetor Thomas — disse. Em seguida, continuou, com uma cadência alegre na voz: — “Estação de neblinas e sumarentas frutescências, íntima amiga do peito do sol que faz amadurecer.”

       O inspetor, que começara a desabotoar o sobretudo, parou e olhou atentamente para o jovem sargento.

       — Como disse? — perguntou, com nítida nota de sarcasmo na voz.

       — É de Keats — informou o sargento, bastante satisfeito consigo mesmo.

       O inspetor respondeu com um olhar maléfico, depois deu de ombros, tirou o casaco, botou-o sobre a cadeira de rodas no recanto e voltou para pegar sua valise.

       — Mal dá para acreditar neste dia tão bonito — prosseguiu o sargento Cadwallader. — Quando a gente pensa na dificuldade terrível que tivemos para chegar aqui ontem à noite. A pior neblina que vi em muitos anos. “A neblina amarela que se apega às vidraças das janelas.” É de T.S. Elliot. — Esperou por uma reação do inspetor à sua citação, mas não recebeu nada, e assim continuou: — Não é de admirar que os acidentes tenham ocorrido aos montes da maneira como foi na estrada de Cardiff.

       — Podia ter sido pior — foi o comentário desinteressado do inspetor.

       — Não sei, não — disse o sargento, animando-se com o assunto. — Em Porthcawl, houve um desastre bem feio. Um morto e duas crianças gravemente feridas. E a mãe se acabando de chorar no meio da estrada. “A linda infeliz deixada chorando”...

       O inspetor o interrompeu:

       — Os rapazes das digitais ainda não acabaram o serviço? — perguntou.

       Subitamente dando-se conta de que era melhor voltar ao trabalho, o sargento Cadwallader replicou:

       — Sim, senhor. Estou com tudo pronto aqui para o senhor. — Pegou uma pasta na escrivaninha e abriu-a. O inspetor sentou-se na cadeira da mesa de trabalho e começou a examinar a primeira folha de impressões digitais arquivada na pasta.

       — Nenhum problema com o pessoal da casa quanto a tirar suas digitais? — perguntou ao sargento em tom informal.

       — Nenhum problema, em absoluto — contou o sargento. — Muito prestativos, eles estavam... ansiosos por ajudar, como se poderia dizer. E isso era mesmo de se esperar.

       — Não sei por quê — observou o inspetor. — Em geral encontro a maior parte das pessoas armando um barulho sem fim. Parecem pensar que suas digitais irão parar no arquivo da Galeria dos Marginais. — Tomou fôlego, esticando os braços, e continuou a analisar as impressões. — Agora, vamos ver. O senhor Warwick... este é o falecido. A senhora Laura Warwick, sua esposa. A senhora Warwick mais velha, sua mãe. O jovem Jan Warwick, a senhorita Bennett e... quem é esse? Angie? Ah, Angell. Ora, sim, é o enfermeiro-assistente, não é? E dois outros grupos de digitais. Vejamos agora... Huum. Do lado de fora da porta, na garrafa, no copo de conhaque, há impressões sobrepostas às de Richard Warwick, Angell e da senhora Laura Warwick, no isqueiro... e no revólver. Essas são daquele camarada, Michael Starkwedder. Ele deu conhaque à senhora Warwick e, claro, foi ele quem trouxe a arma do jardim.

       O sargento Cadwallader assentiu lentamente:

       — Senhor Starkwedder — rosnou, com a voz carregada de suspeita.

       O inspetor, parecendo se divertir, indagou:

       — Você não gosta dele?

       — O que ele está fazendo aqui? É isso que eu gostaria de saber — replicou o sargento. — Deixando o carro cair numa vala e indo até a casa onde foi cometido um assassinato?

       O inspetor voltou-se em sua cadeira a fim de encarar o jovem colega.

       — Você quase caiu com o nosso carro na vala ontem à noite, indo para uma casa onde um assassinato tinha sido cometido. E quanto ao que ele está fazendo aqui, ele andou por aí... nestes arredores... durante toda a última semana, procurando por uma casinha ou um chalé para comprar.

       O sargento não pareceu convencido e o inspetor voltou à escrivaninha, acrescentando em tom de desagrado:

       — Parece que ele teve uma avó galesa e costumava vir para cá nas férias quando era garoto.

       Apaziguado, o sargento cedeu:

       — Ah, agora tudo bem, se ele tinha uma avó galesa, a questão fica diferente, não é? — Ergueu o braço direito e declamou: — “Uma estrada leva a Londres, uma estrada leva a Gales. Minha estrada me leva na direção do mar, para as brancas velas enfunadas.” Ele era um Ótimo poeta, John Masefield. Muito subestimado.

       O inspetor abriu a boca para reclamar, mas pensou melhor e, em vez disso, fez uma careta.

       — Devemos receber a qualquer momento o relatório de Abadan sobre Starkwedder — disse ao jovem sargento. — Você pegou as digitais dele para comparar?

       — Mandei Jones dar uma passada na hospedaria onde ele ficou ontem à noite — informou Cadwallader —, mas ele tinha ido até à garagem para ver se conseguia resgatar seu carro. Jones ligou para a garagem e falou com ele enquanto estava lá. Ele recebeu orientação para se apresentar na delegacia assim que fosse possível.

       — Certo. Há um segundo grupo de digitais não identificadas. A marca uniforme de uma mão de homem na mesa junto ao cadáver, e impressões borradas tanto fora como dentro das portas de vidro.

       — Aposto que são de MacGregor — exclamou o sargento, estalando os dedos.

       — Si-im. Pode ser — admitiu o inspetor com relutância. — Mas elas não estavam no revólver. E seria de imaginar que qualquer homem usando um revólver para matar alguém teria o razoável bom senso de calçar luvas, com certeza.

       — Não sei — observou o sargento. — Um sujeito desequilibrado como este MacGregor, mentalmente perturbado depois da morte do filho, não pensaria nisso.

       — Bem, nós devemos conseguir logo uma descrição de MacGregor através de Norwich — disse o inspetor.

       O sargento se acomodou no banquinho.

       — É uma história triste, de qualquer ângulo que se olhe — sugeriu. — Um homem, sua mulher falecida recentemente, e o único filho morto por uma direção furiosa.

       — Se tivesse havido o que você chama de direção furiosa — corrigiu-o o inspetor com impaciência —, Richard Warwick teria recebido uma sentença de homicídio culposo ou, de qualquer modo, uma pena pelo delito de tráfego. Para falar a verdade, sua carteira de motorista não foi sequer anotada. — Estendeu a mão para pegar uma valise e tirou de lá a arma do crime.

       — Há algumas mentiras assustadoras que se perpetuam às vezes — resmungou o sargento Cadwallader em tom sombrio. — “Senhor, Senhor, como este mundo é dado à mentira.” E de Shakespeare.

       O inspetor meramente se levantou da escrivaninha e olhou para ele. Depois de um momento, o sargento recuperou a seriedade e pôs-se de pé.

       — A mão de um homem espalmada sobre a mesa — murmurou o inspetor enquanto atravessava até a mesa, levando a arma com ele e baixando os olhos para o tampo. — Estranho...

       — Talvez tenha havido um visitante na casa — sugeriu o sargento Cadwallader para ajudar.

       — Talvez — concordou o inspetor. — Mas pelo que entendi do que disse a senhora Warwick, nenhuma visita esteve na casa ontem. Aquele criado... Angell... pode ser capaz de nos contar mais alguma coisa. Vá buscá-lo, sim?

       — Sim, senhor — respondeu Cadwallader, saindo. Deixado a sós, o inspetor espalmou sua própria mão esquerda sobre a mesa e se inclinou para a cadeira como se estivesse olhando para um ocupante invisível. Em seguida, foi até a porta e deu um passo para fora, observando à esquerda e à direita. Examinou a tranca das portas de vidro e estava voltando para dentro da sala quando o sargento retornou, trazendo com ele o criado pessoal de Richard Warwick, Angell, que vestia um paletó de alpaca cinza, camisa branca, gravata preta e calças de listras.

       — Você é Henry Angell? — perguntou-lhe o inspetor.

       — Sim, senhor — respondeu Angell.

       — Sente-se aqui, sim? — pediu o inspetor.

       Angell foi sentar-se no sofá. O inspetor continuou:

       — Você era o enfermeiro-assistente e criado pessoal do senhor Richard Warwick... há quanto tempo?

       — Há três anos e meio, senhor — replicou Angell. Seus modos eram corretos, mas havia uma expressão evasiva em seus olhos.

       — Gostava do emprego?

       — Eu o achava bastante satisfatório, senhor.

       — Como era trabalhar para o senhor Warwick?.

       — Bem, ele era difícil.

       — Mas havia vantagens, não é?

       — Sim, senhor — admitiu Angell. — Eu era extremamente bem pago.

       — E isso compensava as outras desvantagens, não é mesmo? — persistiu o inspetor.

       — Sim, senhor. Estou tentando guardar algum dinheiro.

       O inspetor se sentou na poltrona, colocando a arma na mesa a seu lado.

       — O que fazia antes de vir para esse emprego? — perguntou a Angell.

       — O mesmo tipo de trabalho, senhor. Posso lhe mostrar minhas referências — replicou o criado. — Sempre trabalhei bem em meus empregos, espero. Tive alguns patrões... ou pacientes, na verdade... bastante difíceis. Sir James Walliston, por exemplo. Ele agora é paciente voluntário numa instituição para doentes mentais. Uma pessoa muito difícil, senhor. — Baixou ligeiramente a voz antes de acrescentar: — Drogas!

       — Decerto — disse o inspetor. — Não havia nada dessa questão de drogas com o senhor Warwick, suponho?

       — Não, senhor. Conhaque era ao que o senhor Warwick gostava de recorrer.

       — Bebia um bocado, não é? — indagou o inspetor.

       — Sim, senhor — replicou Angell. — Ele bebia pesado, mas não era um alcoólatra, se é que me entende. Nunca demonstrou nenhum efeito inconveniente.

       O inspetor fez uma pausa antes de perguntar:

       — Agora, do que se trata toda essa história envolvendo armas, revólveres e... atirar em animais?

       — Bem, isso era seu hobby, senhor — contou Angell. — O que chamamos em nossa profissão de uma compensação. Ele tinha sido um caçador de grande envergadura em seus bons tempos, pelo que soube. Um belo arsenalzinho ele tem lá em seu quarto. — Indicou com a cabeça, por cima do ombro, um quarto em algum outro lugar da casa. — Rifles, espingardas de caça, de ar comprimido, pistolas e revólveres.

       — Entendo — disse o inspetor. — Bem, agora dê só uma olhada nesta arma aqui.

       Angell se levantou e caminhou até a mesa; depois, hesitou.

       — Tudo bem — tranquilizou-o o inspetor —, não precisa se dar ao trabalho de manejá-la.

       Angell pegou a arma, com cautela.

       — Você a reconhece? — perguntou o inspetor.

       — É difícil dizer, senhor — replicou o criado. — Parece ser uma das que pertenciam ao senhor Warwick, mas eu realmente não conheço grande coisa sobre armas de fogo. Não posso dizer ao certo qual arma ele tinha na mesa a seu lado ontem à noite.

       — Ele ficava com a mesma arma todas as noites? — perguntou o inspetor.

       — Ah, não, ele tinha suas manias, senhor — contou Angell. — Vivia usando uma diferente a cada dia. — O criado devolveu a arma ao inspetor, que a pegou.

       — De que adiantava ele ter uma arma ontem à noite, com toda aquela neblina? — inquiriu o inspetor.

       — Era apenas um hábito, senhor — replicou Angell. — Estava acostumado com isso, pode-se dizer.

       — Tudo bem. Sente-se de novo, sim?

       Angell sentou-se outra vez numa ponta do sofá. O inspetor examinou o cano da arma antes de perguntar:

       — Quando viu o senhor Warwick pela última vez?

       — Cerca de quinze para as dez ontem à noite, senhor — contou-lhe Angell. — Ele tinha uma garrafa de conhaque e um copo a seu lado, e a pistola que havia escolhido. Arrumei a manta para ele e desejei-lhe boa-noite.

       — Ele nunca ia para a cama? — quis saber o inspetor.

       — Não, senhor — replicou o criado. — Pelo menos, não no sentido habitual do termo. Sempre dormia em sua cadeira. Às seis da manhã eu lhe trazia chá, depois o empurrava até o quarto, que tinha banheiro próprio, onde ele se banhava, barbeava, e assim por diante, e então ele em geral dormia até a hora do almoço. Entendo que ele sofria de insônia à noite e, assim, preferia permanecer em sua cadeira nessas horas. Era um cavalheiro bastante excêntrico.

       — E as portas estavam fechadas quando o deixou?

       — Sim, senhor — respondeu Angell. — Havia um bocado de neblina por aí ontem à noite, e eu não a queria se infiltrando pela casa.

       — Tudo bem. A porta estava fechada. Foi trancada?

       — Não, senhor. Aquela porta nunca fica trancada.

       — Então ele podia abrir se quisesse?

       — Ah, sim, senhor. Ele tinha sua cadeira de rodas, entenda. Podia ir com ela até a porta e abri-la se a noite clareasse.

       — Entendo. — O inspetor pensou por um momento e então perguntou: — Você não ouviu um tiro ontem à noite?

       — Não, senhor — replicou Angell.

       O inspetor atravessou a sala até o sofá e baixou os olhos para Angell.

       — Isso não é um tanto extraordinário? — perguntou.

       — Não. Na verdade, não, senhor — foi a resposta. — Veja o senhor, meu quarto fica a uma certa distância. Numa galeria e depois de uma porta forrada do outro lado da casa.

       — Não era um tanto esquisito, no caso de seu patrão querer chamá-lo?

       — Ah, não, senhor — explicou Angell. — Ele tinha uma campainha que soava no meu quarto.

       — Mas ele não tocou a campainha ontem à noite, em momento algum?

       — Oh, não, senhor — repetiu Angell. — Se o tivesse feito, eu acordaria na mesma hora. E, se posso dizê-lo, uma campainha muito alta, senhor.

       O inspetor Thomas inclinou-se para a frente no braço do sofá a fim de abordar Angell de outra maneira.

       — Você... — começou ele numa voz de impaciência controlada, apenas para ser interrompido pelo tilintar estridente do telefone. Esperou que o sargento Cadwallader atendesse, mas o subordinado parecia estar sonhando de olhos abertos, com seus lábios se movendo sem emitir nenhum som, talvez imerso em alguma reflexão poética. Após um momento, deu-se conta de que o inspetor estava olhando fixo para ele e de que o telefone tocava sem parar.

       — Desculpe, senhor, mas um poema se encontra a caminho — explicou, enquanto se encaminhava para a escrivaninha a fim de atender ao telefone. — Sargento Cadwallader falando — disse. Houve uma pausa e em seguida acrescentou — Ah, sim, de fato. — Depois de mais uma pausa, voltou-se para o inspetor. — É a polícia de Norwich, senhor.

       O inspetor Thomas tomou o telefone de Cadwallader e sentou-se junto à escrivaninha.

       — É você, Edmundson? — perguntou. — Aqui é o Thomas... Entendo, certo... Sim... Calgary, sim... Sim... Sim, a tia, quando ela morreu?... Ah, dois meses atrás... Sim, entendo... Número 18, rua 34, Calgary. — Olhou com impaciência para Cadwallader e fez um gesto para que ele anotasse o endereço. — Sim... Oh, foi isso, então?... Sim, devagar, por favor. — Mais uma vez, olhou significativamente para o sargento. — Altura média — repetiu. — Olhos azuis, cabelos pretos e barba... Sim, como você diz, você se lembra do caso... Ah, ele fez isso, é?... Tipo do sujeito violento?... Sim... Você está enviando junto?... Sim... Bem, obrigado, Edmundson. Diga-me, o que você acha, pessoalmente?... Sim, sim, sei o que foi encontrado, mas o que você acha?... Ah, ele tinha, é?... Uma ou duas vezes antes... Sim, é claro, você fez algumas concessões... Tudo bem. Obrigado.

       Repôs o fone no gancho e disse para o sargento:

       — Bem, já temos alguma informação sobre MacGregor. Parece que, quando sua esposa morreu, ele viajou do Canadá de volta à Inglaterra para deixar a criança com uma tia de sua mulher que morava em North Walsham, porque acabava de conseguir um emprego no Alasca e não podia levar o menino com ele. Ao que parece, ficou dilacerado diante da morte da criança e saiu por aí jurando vingança contra Warwick. Isso não é raro depois de um acidente assim. De qualquer modo, ele partiu de volta para o Canadá. Eles têm seu endereço e vão mandar um telegrama para Calgary. A tia com quem ia deixar a criança morreu há cerca de dois meses. — Voltou-se subitamente para Angell. — Você estava lá na época, suponho, não é, Angell? Acidente de carro em North Walsham, atropelando um garoto.

       — Oh, sim, senhor — replicou Angell. — Lembro-me disso bastante bem.

       O inspetor se levantou da escrivaninha e foi até o criado. Vendo a cadeira da mesa de trabalho vazia, o sargento Caldwallader prontamente aproveitou a oportunidade para se sentar.

       — O que aconteceu? — perguntou o inspetor a Angell. — Fale-me a respeito do acidente.

       — O senhor Warwick estava dirigindo pela rua principal e um garotinho da vila saiu correndo de uma casa — contou Angell. — Ou pode ter sido da estalagem. Acho que foi. Não havia possibilidade de frear. O senhor Warwick o atropelou antes que pudesse fazer qualquer coisa.

       — Ele estava correndo, não é? — perguntou o inspetor.

       — Oh, não, senhor. Isso foi levantado com muita clareza no inquérito. O senhor Warwick se achava bem dentro do limite de velocidade.

       — Sei que foi isso o que ele disse — comentou o inspetor.

       — Era verdade, senhor — insistiu Angell. — A enfermeira Warburton... uma enfermeira que o senhor Warwick empregava na época... ela também estava no carro e concordou.

       O inspetor caminhou até uma ponta do sofá.

       — Por acaso ela olhou para o velocímetro na hora? — inquiriu.

       — Acredito que a enfermeira Warburton de fato tenha conseguido ver o velocímetro — replicou Angell em tom afável. — Ela avaliou que estivessem indo entre quarenta e cinquenta quilômetros por hora. O senhor Warwick foi completamente inocentado.

       — Mas o pai do menino não concordou? — indagou o inspetor.

       — Talvez isso seja apenas natural, senhor — foi o comentário de Angell.

       — O senhor Warwick estivera bebendo?

       A resposta de Angell foi evasiva.

       — Acredito que ele havia tomado um copo de xerez, senhor. Ele e o inspetor Thomas trocaram olhares. Em seguida, o inspetor cruzou a sala até as portas envidraçadas, tirando um lenço e assoando o nariz.

       — Bem, acho que isso basta por agora — disse ao criado.

       Angell se levantou e encaminhou-se para a porta. Após um momento de hesitação, voltou para dentro da sala.

       — Desculpe-me, senhor — disse ele. — Mas o senhor Warwick foi baleado com sua própria arma?

       O inspetor virou-se para ele.

       — Isso ainda precisa ser verificado — observou. — Quem quer que o tenha baleado, esbarrou com o senhor Starkwedder, que estava subindo até a casa a fim de tentar conseguir auxílio para seu veículo encalhado. No encontrão, o homem deixou cair uma arma. O senhor Starkwedder a pegou... esta arma. — Apontou para a arma sobre a mesa.

       — Entendo, senhor. Obrigado, senhor — disse Angell, enquanto se voltava outra vez para a porta.

       — A propósito — acrescentou o inspetor —, algum visitante esteve nesta casa ontem? Na noite de ontem, em particular.

       Angell deteve-se apenas por um instante e depois olhou o inspetor com ar evasivo:

       — Não que eu me lembre, senhor... no momento — retrucou. Saiu da sala, fechando a porta atrás de si.

       O inspetor Thomas voltou à escrivaninha.

       — Se você me perguntar — disse calmamente para o sargento —, esse sujeito é asqueroso. Nada em que a gente possa pôr a mão, mas não gosto dele.

       — Sou da mesma opinião que o senhor, no que diz respeito a isso — replicou Cadwallader. — Não é um homem em que eu fosse confiar, e tem mais, eu diria que houve alguma coisa de suspeita naquele acidente.

       Subitamente se dando conta de que o inspetor achava-se de pé diante dele, levantou-se depressa da cadeira. O inspetor pegou as anotações que Cadwallader estivera fazendo e começou a lê-las com atenção.

       — Agora eu fico imaginando se Angell sabe alguma coisa que não nos contou sobre ontem à noite — começou a dizer, então se interrompeu. — Ei, o que é isto? “É nebuloso em novembro, mas raramente em dezembro.” Isso não é Keats, acredito?

       — Não — disse o sargento Cadwallader com orgulho. — É Cadwallader.

 

O inspetor empurrou bruscamente o caderno de Cadwallader de volta, quando a porta se abriu e a senhorita Bennett entrou, fechando-a com cuidado atrás de si.

       — Inspetor — disse ela —, a senhora Warwick parece muito ansiosa para vê-lo. Ela está um pouco aborrecida. — Acrescentou depressa: — Estou falando da senhora Warwick mais velha, mãe de Richard. Ela não confessa, mas não creio que se ache no melhor de sua saúde; assim, por favor, seja gentil com ela. O senhor vai vê-la agora?

       — Oh, com certeza — replicou o inspetor. — Peça-lhe que entre.

       A senhorita Bennett abriu a porta, fez um gesto e a senhora Warwick entrou.

       — Está tudo bem, senhora Warwick — tranqüilizou-a, a governanta saindo da sala e fechando a porta.

       — Bom dia, madame — disse o inspetor.

       A senhora Warwick não devolveu o cumprimento e foi diretamente ao ponto:

       — Diga-me, inspetor — ordenou —, que progressos o senhor já fez?

       — É bastante cedo para dizer, madame — replicou ele —, mas a senhora pode ficar tranquila de que estamos fazendo tudo o que é possível.

       A senhora Warwick sentou-se, encostando a bengala contra o braço do sofá.

       — Este homem, MacGregor — disse ela. — Ele foi visto andando por aqui? Alguém reparou nele?

       — Foram feitas indagações a esse respeito — informou o inspetor. — Mas até agora não houve nenhum registro de um estranho sendo visto na localidade.

       — Aquele pobre menininho — continuou a senhora Warwick. — O que Richard atropelou, quero dizer. Suponho que tenha desarranjado a mente do pai. Sei, pelo que me contaram, que foi muito violento e agressivo na época. Talvez isso fosse apenas natural. Mas depois de dois anos! Parece incrível.

       — Sim — concordou o inspetor —, parece muito tempo para esperar.

       — Mas ele era um escocês, é claro — recordou a senhora Warwick. — Um MacGregor. Uma gente paciente, obstinada, os escoceses.

       — Eles de fato são!l — exclamou o sargento Cadwallader, esquecendo-se de si e pensando alto. — “Existem poucas visões mais impressionantes no mundo do que um escocês trabalhando em seu proveito” — continuou ele, mas o inspetor lançou-lhe de imediato um olhar penetrante de desaprovação, que o silenciou.

       — Seu filho não teve nenhum aviso preliminar? — perguntou o inspetor Thomas à senhora Warwick. — Nenhuma carta de ameaça? Alguma coisa desse tipo?

       — Não, estou certa de que não teve — retrucou ela com bastante firmeza. — Richard teria contado. Ele teria rido disso.

       — Não teria levado a sério de jeito nenhum? — sugeriu o inspetor.

       — Richard sempre ria do perigo — disse a senhora Warwick. Parecia orgulhosa do filho.

       — Depois do acidente — continuou o inspetor — seu filho ofereceu alguma compensação ao pai da criança?

       — Naturalmente — replicou a senhora Warwick. — Richard não era um homem mesquinho. Mas a compensação foi recusada. De forma indignada, eu diria.

       — Certamente — murmurou o inspetor.

       — Pelo que entendi, a esposa do senhor MacGregor tinha morrido — recordou a senhora Warwick. — O menino era tudo o que ele tinha no mundo. Foi uma tragédia, realmente.

       — Mas, em sua opinião, não foi culpa de seu filho?

       Ela permaneceu em silêncio por um instante mais longo antes de replicar:

       — Eu o ouvi.

       — Talvez não concorde? — persistiu o inspetor.

       A senhora Warwick virou para o outro lado no sofá, embaraçada, mexendo com os dedos numa almofada.

       — Richard bebia demais — disse, afinal. — E é claro que tinha bebido naquele dia.

       — Um cálice de xerez? — instigou o inspetor.

       — Um cálice de xerez! — Repetiu a senhora Warwick com um riso amargo. — Ele tinha bebido muito. Ele de fato bebia... muito. Aquela garrafa de cristal ali... — Indicou a garrafa na mesa próxima à poltrona junto às portas de vidro. — Aquela garrafa era cheia todas as noites e encontrada praticamente vazia de manhã.

       Sentado no banquinho e de frente para a senhora Warwick, o inspetor lhe disse, calmamente:

       — Então a senhora acha que seu filho foi culpado pelo acidente?

       — É claro que ele foi culpado — replicou ela. — Nunca tive a menor dúvida.

       — Mas ele foi inocentado — lembrou o inspetor.

       A senhora Warwick riu.

       — Aquela enfermeira que estava no carro com ele? Aquela tal de Warburton? — sorriu com desdém. — Era uma boba, e dedicada a Richard. Imagino que ele lhe tenha pago muito generosamente pelo depoimento, também.

       — A senhora efetivamente sabe disso? — perguntou o inspetor, com astúcia.

       O tom da senhora Warwick foi igualmente perspicaz quando ela replicou:

       — Não sei de coisa alguma, mas chego às minhas próprias conclusões.

       O inspetor pegou as anotações do sargento Caldwallader enquanto a senhora Warwick continuava.

       — Estou lhe contando tudo isto agora — disse ela — porque o que o senhor quer é a verdade, não é? O senhor quer ter certeza de que há motivação suficiente para um assassinato por parte do pai daquele garotinho. Bem, em minha opinião, havia. Só que não acho que depois de todo esse tempo... — Sua voz se arrastou em direção ao silêncio.

       O inspetor ergueu os olhos das anotações que estivera consultando.

       — A senhora não ouviu coisa alguma ontem à noite? — perguntou.

       — Sou um pouco surda, o senhor sabe — replicou a senhora Warwick depressa. — Só soube que havia alguma coisa errada quando ouvi as pessoas falando e passando pela minha porta. Desci e o jovem Jan disse: “Richard foi baleado. Richard foi baleado.” Pensei a princípio... — Passou a mão sobre os olhos. — Pensei que fosse alguma piada.

       — Jan é seu filho mais novo? — perguntou o inspetor.

       — Ele não é meu filho — replicou a senhora Warwick. O inspetor olhou para ela rapidamente, enquanto a velha dama continuava: — Eu me divorciei de meu marido muitos anos atrás. Ele se casou de novo. Jan é o filho do segundo casamento. — Fez uma pausa e depois prosseguiu. — Parece mais complicado do que é, na verdade. Quando seus dois pais morreram, o menino veio para cá. Richard e Laura tinham acabado de se casar na época. Laura sempre foi muito bondosa com o meio-irmão de Richard. Ela foi como uma irmã mais velha para ele, realmente.

       Deteve-se e o inspetor aproveitou a oportunidade para levá-la a voltar a falar de Richard Warwick.

       — Sim, entendo — disse ele —, mas agora, quanto a seu filho Richard...

       — Eu amava meu filho, inspetor — disse a senhora Warwick —, mas não era cega para seus defeitos, e eles se deviam, em grande medida, ao acidente que o deixou numa cadeira de rodas. Ele fora um homem orgulhoso, um homem que vivia ao ar livre, e ter de levar a vida de um inválido e semi-aleijado era muito tormentoso para ele Isso não melhorou em nada, digamos, o seu caráter.

       — Sim, entendo — observou o inspetor. — A senhora diria que sua vida de casado era feliz?

       — Não tenho a menor idéia. — A senhora Warwick claramente não tinha mais a intenção de dizer coisa alguma sobre o assunto. — Há mais alguma coisa que deseje saber, inspetor? — perguntou ela.

       — Não, obrigado, senhora Warwick — replicou o inspetor Thomas. — Mas eu gostaria de falar agora com a senhorita Bennett, se puder.

       A senhora Warwick se levantou, e o sargento Cadwallader foi abrir a porta da frente para ela.

       — Sim, é claro — respondeu a senhora. — Senhorita Bennett. Benny, é como a chamamos. Ela é a pessoa que mais pode ajudá-lo. É tão prática e eficiente...

       — Está com os senhores há muito tempo?— indagou o inspetor.

       — Ah, sim, há anos e anos. Ela cuidou de Jan quando ele era pequeno, e antes disso ajudou com Richard também. Oh, sim, ela tomou conta de todos nós. Uma pessoa muito leal, a Benny. — Reconhecendo a presença do sargento junto à porta com um aceno de cabeça, ela deixou a sala.

 

O sargento Cadwallader fechou a porta e descansou as costas contra ela, olhando para o inspetor.

— Então Richard Warwick era um homem dado ao álcool, hein? — comentou. — Sabe, já tinha ouvido isso a respeito dele antes. E todas aquelas pistolas, espingardas de ar comprimido e rifles. Um pouco esquisito da cabeça, se o senhor quer saber.

       — Pode ser — replicou o inspetor Thomas, lacônico.

       O telefone tocou. Esperando que o sargento o atendesse, o inspetor olhou significativamente para ele, mas Cadwallader tinha ficado imerso em suas anotações, enquanto caminhava devagar até a poltrona e se sentava, completamente distraído do telefone. Após um instante, dando-se conta de que a mente do sargento estava em outro lugar, sem dúvida no processo de compor um poema, o inspetor suspirou, atravessou a sala até a escrivaninha e pegou o fone.

       — Alô — disse. — Sim, sou eu... Starkwedder, ele chegou? Deu-lhe suas impressões digitais?... Bom... sim.... bem, peça a ele para esperar... sim, estarei de volta dentro de meia hora, mais ou menos... sim, quero fazer mais algumas perguntas a ele... Sim, até logo.

       Durante o final da conversa ao telefone, a senhorita Bennett havia entrado na sala e estava de pé junto à porta. Apercebendo-se da governanta, o sargento Cadwallader levantou-se de sua poltrona e assumiu uma posição atrás dela.

       — Sim? — disse a senhorita Bennett com uma inflexão interrogativa. Dirigiu-se ao inspetor. — O senhor quer me fazer algumas perguntas? Tenho muita coisa para fazer esta manhã.

       — Sim, senhorita Bennett — replicou o inspetor. — Quero ouvir o seu relato do acidente de carro com a criança em Norfolk.

       — O menino MacGregor?

       — É, o menino MacGregor. A senhora se lembrou do nome dela bem depressa ontem à noite, pelo que eu soube.

       A senhorita Bennett voltou-se para fechar a porta atrás de si.

       — É — concordou. — Tenho uma memória muito boa para nomes.

       — E sem dúvida — continuou o inspetor — a ocorrência deixou alguma impressão sobre a senhora. Mas a senhora mesmo não estava no carro, estava?

       A senhorita Bennett sentou-se no sofá.

       — Não, não, eu não estava no carro — explicou. — Era a enfermeira que o senhor Warwick tinha na época. Uma certa enfermeira Warburton.

       — A senhora compareceu ao inquérito? — perguntou o inspetor.

       — Não — replicou ela. — Mas Richard nos contou tudo a respeito dele quando voltou. Disse que o pai do menino o havia ameaçado, afirmara que iria acertar as contas com ele. Não levamos isso a sério, é claro.

       O inspetor Thomas chegou mais perto dela.

       — A senhora já havia formado alguma opinião particular quanto ao acidente? — indagou.

       — Não sei o que está querendo dizer.

       O inspetor fitou a senhorita Bennett por um momento e em seguida acrescentou:

       — Estou querendo dizer, a senhora acha que aquilo aconteceu porque o senhor Warwick tinha bebido?

       Ela fez um gesto de quem estava afastando isso da mente.

       — Ah, suponho que a mãe dele tenha lhe contado isso — sorriu com desdém. — Bem, o senhor não deve se guiar por tudo o que ela diz. Ela tem preconceito contra bebida. Seu marido... o pai de Richard... bebia.

       — A senhora acha, então — sugeriu o inspetor —, que o relato de Richard Warwick era verdadeiro, que ele estava dirigindo bem dentro do limite de velocidade e que o acidente não poderia ter sido evitado?

       — Não vejo por que isso não deveria ser verdade — insistiu a senhorita Bennett. — A enfermeira Warburton corroborou o depoimento dele.

       — E a palavra dela era de confiança?

       Nitidamente desaprovando o que parecia considerar um insulto à sua profissão, a senhorita Bennett disse com aspereza:

       — Eu esperaria que sim. Afinal, as pessoas não saem por aí contando mentiras... não a respeito daquele tipo de coisa. Ou saem?

       O sargento Cadwallader, que estava acompanhando o interrogatório, os interrompeu neste momento.

       — Ah, não saem mesmo, com certeza! — exclamou. — Da maneira como falam algumas vezes, a gente pensa que não apenas elas estavam dentro do limite de velocidade, como conseguiram até andar de marcha à ré ao mesmo tempo!

       Aborrecido com esta nova interrupção, o inspetor voltou-se lentamente e olhou para o sargento. A senhorita Bennett também fitou o jovem com alguma surpresa. Constrangido, o sargento Cadwallader baixou os olhos para suas anotações, e o inspetor virou-se outra vez para a senhorita Bennett.

       — Ao que estou querendo chegar é o seguinte — explicou-lhe. — Na tristeza e tensão do momento, um homem poderia com facilidade ameaçar vingança por um acidente que matou seu filho. Mas refletindo, se as coisas foram como o que está declarado, ele certamente teria se dado conta de que o acidente não tinha acontecido por culpa de Richard Warwick.

       — Ah — comentou a senhorita Bennett. — Sim, entendo o que quer dizer.

       O inspetor caminhou devagar, de um lado para o outro da sala, enquanto continuava:

       — Se, por outro lado, o carro estivesse sendo dirigido de maneira errática e em excesso de velocidade... se o carro estivesse, digamos, fora de controle...

       — Laura lhe contou isso?— interrompeu-o a senhorita Bennett.

       O inspetor voltou-se a fim de olhar para ela, surpreso diante da menção à esposa do homem assassinado.

       — O que a faz pensar que ela me contou? — perguntou ele.

       — Não sei — replicou a senhorita Bennett. — Estava apenas imaginando. — Parecendo confusa, ela olhou de relance para o relógio de pulso. — Isso é tudo? — perguntou. — Estou muito ocupada esta manhã.

       Caminhou até a porta, abriu-a e estava prestes a sair quando o inspetor disse:

       — Gostaria de ter uma palavrinha com o jovem Jan em seguida, se possível.

       A senhorita Bennett voltou-se no umbral.

       — Ora, ele está bastante agitado esta manhã — respondeu ela, um tanto truculenta. — Eu ficaria realmente muito grata se o senhor não falasse com ele... revolvendo essa coisa toda. Acabo de conseguir acalmá-lo.

       — Lamento, mas receio que devamos fazer algumas perguntas a ele — insistiu o inspetor.

       A senhorita Bennett fechou a porta com firmeza e voltou para dentro da sala.

       — Por que os senhores não podem primeiro encontrar este homem, MacGregor, e interrogá-lo? — sugeriu. — Ele não pode ter ido muito longe.

       — Nós vamos encontrá-lo. Não se preocupe — garantiu o inspetor.

       — Espero que encontrem — retorquiu a senhorita Bennett. — Vingança, francamente! Ora, isso não é cristão.

       — É claro — concordou o inspetor, acrescentando com ar significativo — em especial quando o acidente não foi culpa do senhor Warwick e não poderia ter sido evitado.

       A senhorita Bennett devolveu-lhe um olhar penetrante. Houve uma pausa e em seguida o inspetor repetiu:

       — Eu gostaria de falar com Jan, por favor.

       — Não sei se conseguirei localizá-lo — disse a senhorita Bennett. — Ele pode ter saído. — Deixou a sala apressada.

       O inspetor olhou para o sargento Cadwallader, fazendo um gesto com a cabeça na direção da porta, e o sargento foi atrás dela. No corredor, a senhorita Bennett admoestou Cadwallader.

       — Vocês não devem importuná-lo — disse. Voltou para dentro do gabinete. — O senhor não pode afligir o menino — ordenou ao inspetor. — Ele é muito facilmente... perturbável. Fica agitado, temperamental.

       O inspetor fitou-a silenciosamente por um momento e em seguida perguntou:

       — Ele chega a ser violento?

       — Não, é claro que não. É um menino muito doce, muito gentil. Dócil, realmente. Eu queria dizer simplesmente que o senhor pode perturbá-lo. Isso não é bom para crianças, coisas como essa, assassinato. E isso é o que ele é, na verdade. Uma criança.

       O inspetor sentou-se na cadeira da escrivaninha.

       — Não há com o que se preocupar, senhorita Bennett, posso lhe garantir — disse a ela. — Nós entendemos bem a situação.

 

Neste exato momento, o sargento Cadwallader fez entrar Jan, que correu até o inspetor.

— O senhor quer a mim?— gritou com excitação. — Já o pegou? Tinha sangue nas roupas dele?

       — Agora, Jan — advertiu-o a senhorita Bennett —, você deve se comportar. Basta responder a qualquer pergunta que o cavalheiro lhe fizer.

       Jan voltou-se com ar alegre para a senhorita Bennett e depois olhou de volta para o inspetor.

       — Ah, claro, vou responder — prometeu. — Mas não posso fazer pergunta nenhuma?

       — É claro que você pode fazer perguntas — assegurou-lhe o inspetor com bondade.

       A senhorita Bennett sentou-se no sofá.

       — Vou aguardar enquanto o senhor conversa com ele — afirmou.

       O inspetor levantou-se depressa, foi até a porta e abriu-a num gesto convidativo.

       — Não, obrigado, senhorita Bennett — solicitou com firmeza. — Não vamos precisar da senhorita. E não disse que estava muito ocupada esta manhã?

       — Eu prefiro ficar — insistiu ela.

       — Lamento — a voz do inspetor era cáustica. — Sempre gostamos de falar com uma pessoa de cada vez.

       A senhorita Bennett olhou para o inspetor e depois para o sargento Cadwallader. Percebendo que tinha sido derrotada, deu um sorriso malicioso de aborrecimento e deixou a sala num movimento arrebatado, o inspetor fechando a porta atrás dela. O sargento se encaminhou para o recanto, preparando-se para fazer mais anotações, enquanto o inspetor Thomas sentava-se no sofá.

       — Imagino — disse em tom amistoso para Jan — que nunca tenha estado antes em contato próximo com um assassinato, não é?

       — Não, não estive — replicou Jan, ansioso. — É muito excitante, não é? — Ajoelhou-se no banquinho. — O senhor tem alguma pista... impressões digitais ou manchas de sangue, coisas assim?

       — Você parece muito interessado em sangue — observou o inspetor com um sorriso amigável.

       — Ah, eu sou sim — replicou Jan, calma e seriamente. — Gosto de sangue. É uma bela cor, não é? Aquele lindo vermelho brilhante. — Sentou-se também no sofá, rindo com ar nervoso. — Richard atirava numas coisas, sabe, e aí elas sangravam. É mesmo muito engraçado, não é? Quero dizer, é engraçado que Richard, que estava sempre atirando nas coisas, tenha ele mesmo levado um tiro. O senhor não acha que isso é engraçado?

       A voz do inspetor estava calma, sua inflexão bastante seca, quando replicou:

       — Suponho que isso tenha seu lado de humor. — Fez uma pausa. — Está muito contrariado pelo fato de seu irmão... seu meio-irmão, quero dizer... ter sido morto?

       — Contrariado? — Jan pareceu surpreso. — Por Richard estar morto? Não, por que deveria estar?

       — Bem, achei que talvez fosse... muito afeiçoado a ele — sugeriu o inspetor.

       — Afeiçoado a ele! — exclamou Jan, com genuína admiração. — Afeiçoado a Richard? Ah, não, ninguém poderia ser afeiçoado a Richard.

       — Suponho que sua esposa gostasse dele, no entanto — instigou o inspetor.

       Um olhar de surpresa passou pelo rosto de Jan.

       — Laura? — exclamou ele. — Não, acho que não. Ela sempre ficava do meu lado.

       — Do seu lado? — perguntou o inspetor. — O que isso significa, exatamente?

       Jan de repente pareceu assustado.

       — É. É — quase gritou, apressadamente. — Quando Richard queria me mandar embora.

       — Mandar embora? — incitou o inspetor em tom brando.

       — Para um daqueles lugares — explicou o jovem. — O senhor sabe, para onde mandam a gente, e a gente fica trancado, e não pode sair. Ele disse que Laura iria me visitar, quem sabe, às vezes. — Jan tremeu um pouco, depois se levantou, afastou-se do inspetor e olhou para o outro lado, na direção do sargento Cadwallader. — Eu não gostaria de ficar trancado — continuou, a voz agora trêmula. — Eu odiaria ser trancafiado.

       Ficou de pé diante das portas envidraçadas, olhando para a varanda lá fora.

       — Gosto das coisas abertas, sempre — exclamou na direção deles. — Gosto da minha janela aberta, e da minha porta, para que eu tenha a certeza de que posso sair. — Voltou para dentro da sala. — Mas agora ninguém mais pode me trancar, pode?

       — Não, meu rapaz — tranquilizou o inspetor. — Eu diria que não.

       — Agora não, porque Richard está morto — acrescentou Jan. Por um momento, soou quase presunçoso.

       O inspetor se levantou e deu a volta no sofá.

       — Então Richard queria você trancado? — perguntou.

       — Laura dizia que ele só falava isso para me provocar — contou Jan. — Ela me garantia que era só isso e dizia que estava tudo bem, que enquanto ela estivesse aqui iria garantir que eu nunca fosse trancafiado. — Foi se empoleirar em um dos braços da poltrona. — Eu adoro a Laura — continuou, falando numa excitação nervosa. — Adoro a Laura demais. Nós nos divertimos muito juntos, sabe. Procuramos por borboletas e ninhos de passarinhos e fazemos brincadeiras e jogamos. Besigue. Conhece esse jogo? É esperto. E empreste-ao-vizinho. Ah, é muito divertido fazer as coisas com a Laura.

       O inspetor andou até ele a fim de se recostar no outro braço da cadeira. Sua voz tinha um tom bondoso quando perguntou:

       — Suponho que não se lembre de nada a respeito deste acidente que aconteceu quando vocês estavam morando em Norfolk, não é? Quando um garotinho foi atropelado.

       — Ah, sim, eu me lembro disso — replicou Jan em tom quase alegre. — Richard foi ao julgamento.

       — Sim, é isso mesmo. Do que mais você se lembra? — incentivou-o o inspetor.

       — Nós tivemos salmão no almoço daquele dia — respondeu Jan de imediato. — Richard e Warby voltaram juntos. Warby estava um pouco alvoroçada, mas Richard só ficava rindo.

       — Warby? — inquiriu o inspetor. — E a enfermeira Warburton?

       — Sim, Warby. Eu não gostava muito dela. Mas Richard estava tão contente com ela naquele dia que ficava dizendo: “Foi um belo espetáculo, Warby.”

       A porta se abriu de repente e Laura Warwick apareceu. O sargento Cadwallader foi até ela e Jan chamou alto:

       — Oi, Laura.

       — Estou interrompendo? — perguntou Laura ao inspetor.

       — Não, é claro que não, senhora Warwick — replicou ele. — Sente-se, por obséquio, sim?

       Laura se adiantou para dentro da sala e o sargento fechou a porta atrás dela.

       — Jan... Jan está...? — começou Laura. Fez uma pausa.

       — Estou só perguntando a ele — explicou o inspetor — se recorda alguma coisa sobre aquele acidente com o menino em Norfolk. O garoto MacGregor.

       Laura sentou-se na ponta do sofá.

       — Você se lembra, Jan?

       — É claro que lembro — retrucou o rapazola, com ansiedade. — Lembro de tudo. — Voltou-se para o inspetor. — Eu lhe contei, não foi? — indagou.

       O inspetor não respondeu diretamente a ele. Em vez disso, caminhou devagar até o sofá e, dirigindo-se a Laura Warwick, perguntou:

       — O que sabe sobre o acidente, senhora Warwick? Ele foi discutido durante o almoço naquele dia, quando seu marido voltou do inquérito?

       — Não me lembro — replicou Laura de imediato.

       Jan se levantou depressa e caminhou na direção dela.

       — Ah, se lembra, sim, Laura — procurou refrescar-lhe a memória. — Não se lembra de Richard dizendo que um pirralho a mais ou a menos no mundo não fazia diferença nenhuma?

       — Por favor... — implorou ela ao inspetor.

       — Está tudo bem, senhora Warwick — garantiu-lhe o inspetor Thomas com suavidade. — É importante, sabe, que cheguemos à verdade sobre aquele acidente. Afinal, presume-se que seja o motivo para o que aconteceu aqui ontem à noite.

       — Oh, sim — suspirou ela. — Eu sei, eu sei.

       — Segundo sua sogra — continuou o inspetor —, seu marido tinha bebido naquele dia.

       — Acredito que sim — admitiu Laura. — Isso... isso não me surpreenderia.

       O inspetor sentou-se na outra ponta do sofá.

       — A senhora efetivamente viu ou conheceu este homem, MacGregor? — perguntou a ela.

       — Não — disse Laura. — Não, eu não compareci ao julgamento.

       — Ele parece ter se mostrado muito vingativo — comentou o inspetor.

       Laura deu um sorriso triste.

       — Aquilo deve ter afetado seu cérebro, acho — concordou ela.

       Jan, que estava ficando cada vez mais agitado, veio até eles.

       — Se eu tivesse um inimigo — exclamou com agressividade —, é isso o que eu faria. Esperaria um bocado de tempo, e depois viria, me esgueirando no escuro com minha arma. Então... — Atirou na poltrona com uma arma imaginária. — Pou, pou, pou.

       — Fique quieto, Jan — ordenou Laura, com aspereza.

       Jan de repente pareceu aborrecido.

       — Está zangada comigo, Laura? — perguntou a ela em tom infantil.

       — Não, querido — tranquilizou-o Laura —, não estou zangada. Mas tente não ficar muito agitado.

       — Eu não estou agitado — insistiu Jan.

 

Ao atravessar o saguão da frente, a senhorita Bennett se deteve para deixar entrar Starkwedder e um oficial de polícia que pareciam ter chegado juntos ao vestíbulo.

       — Bom dia, senhorita Bennett — cumprimentou Starkwedder. — Estou aqui para ver o inspetor Thomas.

       A senhorita Bennett assentiu.

       — Bom dia... ah, bom dia, oficial. Eles estão no gabinete, os dois... não sei o que está acontecendo.

       — Bom dia, madame — respondeu o oficial de polícia. — Trouxe isto aqui para o inspetor. Talvez o sargento Cadwallader possa pegá-las.

       — O que é isso? — perguntou Laura, por cima do ruído das vozes lá fora.

       O inspetor se levantou e encaminhou-se para a porta.

       — Parece que o senhor Starkwedder está de volta.

       Quando Starkwedder entrou na sala, o sargento Cadwallader saiu para o saguão a fim de se entender com o oficial. Enquanto isso, o jovem Jan afundava na poltrona e observava avidamente os procedimentos.

       — Olhem aqui! — exclamou Starkwedder quando entrou na sala. — Não posso passar o dia inteiro de pernas para cima na delegacia. Já dei a vocês minhas impressões digitais e depois insisti para que me trouxessem até aqui. Tenho coisas a fazer. Marquei dois compromissos com um corretor de imóveis hoje. — De repente percebeu a presença de Laura. — Oh... bom dia, senhora Warwick — cumprimentou-a. — Lamento muito pelo que aconteceu.

       — Bom dia — replicou Laura, com ar distante.

       O inspetor foi até a mesa junto à poltrona.

       — Ontem à noite, senhor Starkwedder, por algum motivo pousou sua mão sobre esta mesa e, subsequentemente, empurrou a janela para abri-la?

       Starkwedder reuniu-se a ele junto à mesa.

       — Não sei — confessou. — Posso ter feito isso. É importante? Não consigo me lembrar.

       O sargento Cadwallader entrou de volta na sala, carregando uma pasta de arquivo. Após fechar a porta atrás de si, dirigiu-se ao inspetor.

       — Aqui estão as digitais do sr. Starkwedder, senhor — relatou. — O policial as trouxe. E o relatório da balística.

       — Ah, vamos ver — disse o inspetor. — A bala que matou Richard Warwick definitivamente veio desta arma. Quanto às digitais, bem, logo veremos. — Foi até a cadeira junto à escrivaninha, sentou-se e começou a analisar os documentos, enquanto o sargento se encaminhava para o recanto.

       Após uma pausa, Jan, que estivera olhando atentamente para Starkwedder, perguntou a ele:

       — O senhor acaba de chegar de Abadan, não é? Como é Abadan?

       — É quente — foi a única resposta que recebeu de Starkwedder, que se voltou em seguida para Laura. — Como está hoje, senhora Warwick? — perguntou. — Sente-se melhor?

       — Ah, sim, obrigada — replicou Laura. — Agora já superei o choque.

       — Que bom — disse Starkwedder.

       O inspetor tinha se levantado e neste momento se aproximava de Starkwedder no sofá.

       — Suas digitais — anunciou —, estão na porta, na garrafa e no isqueiro. As impressões na mesa não são suas. Formam um conjunto de impressões absolutamente sem identificação. — Olhou em volta da sala. — Isso, então, acerta tudo — continuou. — Como não houve nenhuma visita aqui... — fez uma pausa e olhou para Laura — ontem à noite...?

       — Não — confirmou Laura.

       — Então elas devem ser de MacGregor — continuou o inspetor.

       — De MacGregor? — perguntou Starkwedder, olhando para Laura.

       — O senhor parece surpreso — disse o inspetor.

       — Sim... estou, bastante — admitiu Starkwedder. — Quero dizer, eu pensava que ele tinha usado luvas.

       O inspetor assentiu.

       — O senhor tem razão — concordou. — Ele manejou o revólver com luvas.

       — Houve alguma briga? — indagou Starkwedder, dirigindo sua pergunta a Laura Warwick. — Ou nada se ouviu além do tiro?

       Foi com um certo esforço que Laura replicou:

       — Eu... nós... Benny e eu, isto é... nós ouvimos apenas o tiro. Mas, também, nós não teríamos ouvido nada lá de cima.

       O sargento Cadwallader estivera olhando intensamente para o jardim lá fora através de uma janelinha de vidro no recanto. Agora, vendo que alguém se aproximava atravessando o gramado, caminhou até um dos lados das portas envidraçadas. Por entre elas passou um homem elegante, em meados dos trinta anos, com estatura próxima da média, cabelos louros, olhos azuis e um aspecto um tanto militar. Deteve-se na entrada, parecendo muito preocupado. Jan, o primeiro dos demais na sala a notá-lo, berrou, num guincho de agitação:

       — Julian! Julian!

       O recém-chegado olhou para Jan e em seguida voltou-se para Laura Warwick.

       — Laura! — exclamou. — Acabo de saber. Sinto... sinto muito, mesmo.

       — Bom dia, major Farrar — cumprimentou-o o inspetor Thomas.

       Julian Farrar virou-se para o inspetor.

       — Isso é uma coisa extraordinária — comentou. — Pobre Richard.

       — Ele estava caído aqui, em sua cadeira de rodas — contou Jan a Farrar, excitado. — Estava todo encolhido. E tinha um pedaço de papel no peito dele. Sabe o que dizia? Dizia: “Pago na íntegra.”

       — Sim. Calma, calma, Jan — murmurou Julian Farrar, dando tapinhas no ombro do rapaz.

       — Isso é excitante, não é? — continuou Jan, olhando ansiosamente para ele.

       Farrar passou por ele.

       — Sim. Sim, claro, é excitante — garantiu a Jan, olhando com ar indagador na direção de Starkwedder enquanto falava.

       O inspetor apresentou os dois homens um ao outro.

       — Este é o senhor Starkwedder... Major Farrar, que pode ser nosso próximo Membro do Parlamento. Ele está disputando a eleição suplementar.

       Starkwedder e Julian Farrar apertaram as mãos, murmurando com polidez:

       — Como vai?

       O inspetor se afastou, fazendo um gesto para o sargento a fim de que este se reunisse a ele. Confabularam, enquanto Starkwedder explicava ao major Farrar:

       Caí com meu carro numa vala e estava subindo até a casa para ver se podia telefonar e conseguir algum auxílio. Um homem saiu disparado da casa, quase me derrubando.

       — Mas para que lado foi esse homem? — perguntou Farrar.

       — Não tenho idéia — replicou Starkwedder. — Ele desapareceu em meio à névoa como num truque de mágica. — Virou-se, enquanto Jan, ajoelhando-se na poltrona e olhando com expressão de expectativa para Farrar, argumentava:

       — Você disse a Richard que alguém ia atirar nele um dia, não foi, Julian?

       Houve uma pausa. Todos na sala olharam para Julian Farrar.

       Farrar pensou por um momento. Em seguida:

       — Eu disse? Não me lembro — respondeu bruscamente.

       — Ah, sim, que você disse — insistiu Jan. — No jantar, certa noite. Sabe, você e Richard estavam tendo uma espécie de discussão, e você disse: “Um dia desses, Richard, alguém vai meter uma bala na sua cabeça.”

       — Uma profecia notável — comentou o inspetor.

       Julian Farrar encaminhou-se para sentar numa ponta do escabelo.

       — Oh, bem — disse ele —, Richard e suas armas eram, com toda franqueza, uma séria inconveniência, sabe. As pessoas não gostavam disso. Ora, houve aquele sujeito... lembra-se, Laura? Seu jardineiro, Griffiths. Você sabe... aquele que Richard demitiu. Griffiths com certeza afirmou para mim... e em mais de uma ocasião: “Um dia desses, olhe só, eu venho com minha arma e dou um tiro no senhor Warwick.”

       — Oh, Griffiths não faria uma coisa dessas — exclamou Laura depressa.

       Farrar pareceu arrependido.

       — Não, não, é claro que não — admitiu. — Eu não quis dizer isso. Queria dizer que este era o tipo de coisa que... eer... as pessoas diziam a respeito de Richard.

       A fim de encobrir seu constrangimento, sacou de uma cigarreira e tirou de lá um cigarro.

       O inspetor sentou-se na poltrona da escrivaninha, parecendo pensativo. Starkwedder acomodou-se num canto próximo ao nicho, junto de Jan, que o fitava com interesse.

       — Quem dera que eu tivesse vindo aqui ontem à noite — anunciou Julian Farrar, sem se dirigir a ninguém em particular. — Eu pretendia.

       — Mas com aquela neblina terrível — retrucou Laura calmamente. — Não se podia sair com aquele tempo.

       — Não — replicou Farrar. — Recebi os membros do meu comitê para jantar. Quando eles descobriram a neblina baixando, foram para casa bem cedo. Pensei então em vir até aqui para ver vocês, mas decidi não fazê-lo. — Procurando nos bolsos, perguntou: — Alguém tem um fósforo? Acho que perdi meu isqueiro. Olhou à sua volta e de repente se apercebeu do isqueiro na mesa onde Laura o tinha deixado na noite anterior. Levantando-se, foi pegá-lo, observado por Starkwedder. — Oh, aqui está ele — disse Farrar. — Não conseguia imaginar onde o havia deixado.

       — Julian... — começou Laura.

       — Sim? — Farrar ofereceu-lhe um cigarro e ela o pegou. — Lamento muitíssimo por tudo isso, Laura — disse ele. — Se houver alguma coisa que eu possa fazer... — Sua voz se arrastou num tom indeciso.

       — Sim. Sim, eu sei — replicou Laura, enquanto Farrar acendia os cigarros dos dois.

       Jan falou de repente, dirigindo-se a Starkwedder.

       — O senhor sabe atirar, sr. Starkwedder? — perguntou. — Eu sei, sabia? Richard costumava me deixar experimentar, às vezes. Claro, eu não era tão bom quanto ele.

       — Ele deixava, é? — disse Starkwedder, voltando-se para Jan. — Que tipo de arma ele deixava você usar?

       Enquanto Jan prendia a atenção de Starkwedder, Laura aproveitou a oportunidade para falar rapidamente com Julian Farrar.

       — Julian, preciso falar com você. Preciso — murmurou baixinho.

       A voz de Farrar foi igualmente baixa.

       — Cuidado — advertiu-a.

       — Era uma .22 — Jan estava contando a Starkwedder. — Sou bastante bom em tiro, não sou, Julian? — Foi até Julian Farrar. — Lembra aquela vez em que me levou à feira? Eu derrubei duas das garrafas, não foi?

       — Derrubou mesmo, meu garoto — assegurou-lhe Farrar. — Você tem um bom olho, e isso é o que conta. Bom olho para a bola de críquete, também. Foi sensacional, aquela partida que jogamos no verão passado — acrescentou.

       Jan sorriu para ele alegremente e depois sentou-se no banquinho, olhando de frente para o inspetor, que agora estava examinando documentos sobre a escrivaninha. Houve uma pausa. Então Starkwedder, enquanto puxava de um cigarro, perguntou a Laura:

       — Importa-se se eu fumar?

       — É claro que não — replicou Laura.

       Starkwedder voltou-se para Julian Farrar.

       — Posso pedir seu isqueiro emprestado?

       — Claro — respondeu Farrar. — Está aqui.

       — Ah, que belo isqueiro, este — comentou Starkwedder, acendendo o cigarro.

       Laura fez um movimento súbito e depois se conteve.

       — Sim — retrucou Farrar em tom displicente. — Funciona melhor que a maioria.

       — Bastante... distinto — observou Starkwedder. Lançou um rápido olhar a Laura, e em seguida devolveu o isqueiro a Julian Farrar com uma palavra de agradecimento apenas murmurada.

       Jan saiu de seu banquinho e postou-se de pé atrás da cadeira do inspetor.

       — Richard tem muitas armas — confidenciou. — Espingardas de ar comprimido também. E tem uma arma que ele costumava usar na África para abater elefantes. O senhor gostaria de vê-las? — Apontou numa direção não específica.

       — Tudo bem — concordou o inspetor, erguendo-se. — Você vai mostrá-las para nós. — Sorriu para Jan, acrescentando, de bom humor: — Sabe, você tem sido muito útil para nós. Está nos ajudando bastante. Devíamos trazer você para a equipe da polícia.

       Pondo uma das mãos sobre o ombro do rapaz, guiou-o em direção à porta, que o sargento abriu para os dois passarem.

       — Não precisamos mantê-lo aqui, senhor Starkwedder — avisou o inspetor da porta. — Pode ir cuidar dos seus negócios agora. Basta se manter em contato conosco, e isso é tudo.

       — Tudo bem — replicou Starkwedder, enquanto Jan, o inspetor e o sargento saíam da sala, este último fechando a porta atrás deles.

 

Houve uma pausa constrangida depois que as autoridades policiais saíram da sala com Jan. Em seguida, Starkwedder observou:

       — Bem, suponho que seja melhor eu ver se eles já conseguiram tirar meu carro da vala. Não me pareceu ter passado por ele a caminho daqui.

       — Não — explicou Laura. — A passagem para carros sobe a partir da outra estrada.

       — Entendo — respondeu Starkwedder, enquanto se encaminhava na direção das portas envidraçadas. Voltou-se. — Como as coisas parecem diferentes à luz do dia — observou, enquanto saía para a varanda.

       Assim que ele saiu, Laura e Julian Farrar voltaram-se um para o outro.

       — Julian! — exclamou Laura. — Aquele isqueiro! Eu disse que era meu.

       — Você disse que era seu? Ao inspetor? — perguntou Farrar.

       — Não. Para ele.

       — Para... para este sujeito... — começou Farrar e então se deteve quando ambos perceberam Starkwedder caminhando ao longo da varanda, junto às janelas. — Laura... — recomeçou ele.

       — Tenha cuidado — disse Laura, indo até a janelinha no recanto e olhando para fora. — Ele pode estar nos ouvindo.

       — Quem é ele? — indagou Farrar. — Você o conhece?

       Laura voltou ao centro da sala.

       — Não. Não, eu não o conheço — respondeu a Farrar. — Ele... ele teve um acidente com seu carro e veio até aqui ontem à noite. Logo depois do...

       Julian Farrar tocou a mão dela, que repousava sobre o encosto do sofá.

       — Está tudo bem, Laura. Você sabe que vou fazer tudo o que puder.

       — Julian... impressões digitais — lembrou Laura, com a voz entrecortada.

       — Quais impressões digitais?

       — Naquela mesa. Naquela mesa ali, e no quadrado de vidro da porta. Elas são... suas?

       Farrar tirou sua mão de sobre a dela, indicando que Starkwedder estava de novo caminhando ao longo da varanda lá fora. Sem se voltar para a janela, Laura afastou-se dele, dizendo bem alto:

       — É muito gentil de sua parte, Julian, e estou certa de que haverá uma porção de coisas administrativas com as quais poderá nos ajudar.

       Starkwedder estava andando de um lado para o outro, lá fora na varanda. Quando saiu de vista, Laura virou-se para encarar Julian Farrar outra vez.

       — Aquelas impressões são suas, Julian? Pense.

       Farrar considerou por um momento. Em seguida:

       — Sobre a mesa... sim... podiam ser.

       — Ai, meu Deus! — gritou Laura. — O que vamos fazer?

       Starkwedder podia agora ser mais uma vez percebido de relance, andando de uma ponta a outra da varanda bem junto às janelas. Laura deu uma tragada no cigarro.

       — A polícia acha que foi um homem chamado MacGregor... — contou a Julian. Lançou-lhe um olhar desesperado, detendo-se para permitir a ele uma oportunidade de fazer algum comentário.

       — Bem, está tudo certo, então — replicou Farrar. — Eles provavelmente vão continuar pensando assim.

       — Mas suponha... — começou Laura.

       Farrar a interrompeu.

       — Preciso ir — disse. — Tenho um compromisso. — Levantou-se. — Está tudo bem, Laura — reafirmou ele, batendo em seu ombro num gesto de conforto. — Não se preocupe. Vou providenciar para que você fique bem.

       A expressão no rosto de Laura era de incompreensão, à beira do desespero. Aparentemente indiferente a isso, Farrar dirigiu-se para as portas de vidro. Quando abriu uma das folhas, Starkwedder estava se aproximando com a intenção óbvia de entrar na sala. Farrar afastou-se de lado num gesto cortês, para evitar esbarrar nele.

       — Ora, está de saída agora? — perguntou Starkwedder.

       — Sim — respondeu Farrar. — As coisas andam bastante movimentadas estes dias. As eleições estão chegando, sabe, dentro de uma semana.

       — Oh, entendo — replicou Starkwedder. — Perdoe minha ignorância, mas de que partido é? Dos Tory, os conservadores?

       — Sou um liberal — retrucou Farrar. Parecia ligeiramente indignado.

       — Oh, eles ainda estão nisso? — perguntou Starkwedder, em tom alegre.

       Julian Farrar respirou fundo e saiu da sala sem mais nenhuma palavra. Quando partiu, sem exatamente bater a porta atrás de si, Starkwedder olhou para Laura com ar quase feroz. Então, começou:

       — Entendo — disse ele, sua raiva subindo. — Ou pelo menos estou começando a entender.

       — O que quer dizer? — perguntou-lhe Laura.

       — Esse é o namorado, não é? — Chegou mais perto dela. — Ora, vamos, é ou não é?

       — Já que você está perguntando — replicou Laura em tom de desafio —, é sim!

       Starkwedder ficou por um momento olhando para ela sem falar. Em seguida:

       — Há algumas coisinhas que você não me contou ontem à noite, não é? — perguntou com raiva. — Foi por isso que você arrancou o isqueiro dele com toda aquela pressa e disse que era seu. — Afastou-se alguns passos e depois voltou-se para encará-la de novo. — E há quanto tempo isto vem acontecendo entre você e ele?

       — Já faz algum tempo — respondeu Laura calmamente.

       — Mas você nunca se decidiu por deixar Warwick para irem embora juntos?

       — Não — replicou Laura. — Há a carreira de Julian, para começar. Isso poderia arruiná-lo politicamente.

       Starkwedder sentou-se mal-humorado numa ponta do sofá.

       — Ah, certamente não, hoje em dia — disparou ele. — Todos eles não têm o adultério em suas trajetórias?

       — Essas teriam sido circunstâncias especiais — tentou explicar Laura. — Ele era amigo de Richard, e Richard sendo aleijado...

       — Ah, entendo. Com certeza isso não daria uma publicidade lá muito boa! — retorquiu Starkwedder.

       Laura veio até o sofá e ficou de pé diante dele, fitando-o.

       — Suponho que você ache que eu devia ter lhe contado isto ontem à noite? — observou, em tom gélido.

       Starkwedder desviou o olhar dela.

       — Você não tinha obrigação nenhuma — resmungou.

       Laura pareceu abrandar.

       — Não pensei que fosse importante... — começou. — Quero dizer... tudo em que conseguia pensar era no fato de ter atirado em Richard.

       Starkwedder também deu a impressão de ter ficado mais generoso em relação a ela quando murmurou:

       — Sim, sim, eu entendo. — Após uma pausa, acrescentou: — Eu também não conseguia pensar em mais nada. — Fez mais uma pausa e, em seguida, ergueu os olhos para ela. — Quer tentar uma pequena experiência? — perguntou. — Onde estava quando atirou em Richard?

       — Onde eu estava? — Laura fez eco. Parecia perplexa.

       — Foi o que eu disse.

       Depois de pensar um momento, Laura replicou:

       — Oh... daquele lado. — Acenou vagamente na direção das portas envidraçadas.

       — Vá até lá e fique de pé no lugar onde estava — instruiu Starkwedder.

       Laura se levantou e começou a andar nervosamente pela sala.

       — Eu... eu não consigo lembrar — disse-lhe. — Não me peça para lembrar. — Estava amedrontada agora. — Eu... eu estava perturbada. Eu...

       Starkwedder a interrompeu.

       — Seu marido lhe disse alguma coisa — relembrou ele. — Alguma coisa que a fez agarrar o revólver.

       Erguendo-se do sofá, ele foi até a mesa ao lado da poltrona e apagou o cigarro.

       — Bem, vamos lá, vamos tentar representar — continuou. — Aqui está a mesa, aqui está a arma. — Tirou o cigarro de Laura das mãos dela e o pôs no cinzeiro. — Então, agora, vocês estavam discutindo. Você pegou a arma... pegou...

       — Eu não quero! — gritou Laura.

       — Não se faça de bobinha — rosnou Starkwedder. — Não está carregada. Venha, pegue-a. Pegue-a.

       Laura pegou a arma, hesitante.

       — Você a agarrou — relembrou ele de novo. — Não a pegou cheia de cautela desse jeito. Você a arrancou daí e tirou nele. Mostre-me como fez isso.

       Segurando a arma de maneira desajeitada, Laura afastou-se dele.

       — Eu... eu... — começou.

       — Prossiga. Mostre-me — gritou Starkwedder com ela.

       Laura tentou apontar o revólver.

       — Vá em frente, atire! — repetiu ele, ainda gritando. — Não está carregada.

       Quando Laura ainda hesitava, ele tomou a arma dela em triunfo.

       — Foi o que pensei — exclamou. — Você nunca disparou um revólver na vida. Não sabe como fazer. — Olhando para a arma, continuou: — Você não sabe sequer como fazer para soltar a trava de segurança.

       Deixou a arma cair sobre o banquinho, em seguida se encaminhou para trás do sofá e voltou-se para encará-la. Após uma pausa, disse calmamente:

       — Você não atirou em seu marido.

       — Atirei — insistiu Laura.

       — Ah, não, não atirou — repetiu Starkwedder com convicção.

       Aterrorizada, Laura perguntou:

       — Então por que eu diria que fiz isso?

       Starkwedder respirou fundo e depois exalou o ar com um ruído. Dando a volta no sofá, jogou-se nele pesadamente.

       — A resposta me parece bastante óbvia. Porque foi Julian Farrar quem atirou nele — retorquiu.

       — Não! — exclamou Laura, quase gritando.

       — Sim!

       — Não — repetiu ela.

       — Eu digo que sim — insistiu ele.

       — Se foi Julian — perguntou Laura —, por que motivo no mundo eu diria que fui eu quem fiz isso?

       Starkwedder olhou para ela de igual para igual.

       — Porque — disse ele — pensou... e pensou de forma bem acertada... que eu daria cobertura a você. Ah, sim, você com certeza tinha toda razão quanto a isto. — Reclinou-se no sofá antes de continuar. — Sim, você brincou comigo bem direitinho. Mas para mim acabou, está ouvindo? Estou fora. Nem se ficasse doido eu ia contar um monte de mentiras para salvar a pele do major Julian Farrar.

       Houve uma pausa. Por alguns momentos, Laura não disse nada. Depois sorriu e caminhou calmamente até a mesa junto à poltrona a fim de pegar um cigarro. Encarando Starkwedder, disse:

       — Ah, sim, você vai! Você terá de fazer isso! Não pode recuar agora! Você contou sua história para a polícia. Não pode mudá-la.

       — O quê? — Starkwedder quase engasgou, apanhado de surpresa.

       Laura sentou-se na poltrona.

       — Seja lá o que sabe, ou pensa que sabe — ela apontou o dedo para ele — terá de se ater à sua história. Você é o chamado partícipe postfactum... você mesmo disse isso. — Deu uma baforada no cigarro.

       Starkwedder levantou-se e encarou-a. Apalermado, exclamou:

       — Bem, estou frito! Sua cadelazinha! — Olhou para ela por alguns instantes sem dizer mais nada e, em seguida, girou nos calcanhares, foi rapidamente até as portas de vidro e saiu. Laura observou-o afastando-se a passos largos pelo jardim. Fez um movimento de segui-lo e chamá-lo de volta, mas, em seguida, pareceu pensar melhor. Com uma expressão inquieta no rosto, afastou-se lentamente das janelas.

 

Mais tarde naquele dia, por volta do fim da tarde, Julian Farrar andava nervosamente de um lado para o outro do gabinete. As portas envidraçadas da varanda achavam-se abertas e o sol estava prestes a se pôr, lançando uma luz dourada sobre o gramado. Farrar tinha sido convocado por Laura Warwick, que precisava vê-lo com urgência. Consultava o relógio de pulso a todo momento enquanto a esperava.

       Farrar parecia muito aborrecido e agitado. Foi olhar lá fora, na varanda, voltou para dentro da sala outra vez e verificou as horas em seu relógio. Então, notando um jornal sobre a mesa junto à poltrona, pegou-o. Era um jornal local, The Western Echo, com uma reportagem de primeira página relatando a morte de Richard Warwick. “PROEMINENTE MORADOR LOCAL ASSASSINADO POR AGRESSOR MISTERIOSO”, anunciava a manchete. Farrar sentou-se na poltrona e começou a ler o texto, com ar nervoso. Após um momento, atirou o jornal para o lado e encaminhou-se a passos largos para as portas de vidro. Com um último olhar para dentro da sala, partiu pelo gramado afora. Estava a meio caminho, no jardim, quando ouviu um som atrás de si. Voltando-se, chamou:

       — Laura, desculpe por eu... — e em seguida se deteve, desapontado, quando viu que a pessoa vindo em sua direção não era Laura, mas sim Angell, o criado pessoal e assistente do falecido Richard Warwick.

       — A senhora Warwick pediu-me para lhe dizer que descerá num instante, senhor — foi avisando Angell, enquanto se aproximava de Farrar. — Mas fiquei pensando se eu poderia ter uma breve palavrinha com o senhor?

       — Claro, claro. O que é?

       Angell veio até Julian Farrar, afastando-se mais um ou dois passos da casa, como que ansioso para que sua conversa não fosse ouvida.

       — Bem? — disse Farrar, acompanhando-o.

       — Estou muito preocupado, senhor — começou Angell — quanto à minha situação na casa e achei que gostaria de consultá-lo sobre o assunto.

       Com a cabeça cheia de seus próprios assuntos, Julian Farrar não se mostrou verdadeiramente interessado.

       — Bem, qual é o problema? — perguntou.

       Angell pensou por um momento antes de replicar. E começou:

       — A morte do senhor Warwick, sir — disse —, ela me deixa sem emprego.

       — Sim. Sim, suponho que deixe — respondeu Farrar. — Mas imagino que vá conseguir outro com facilidade, não vai?

       — Espero que sim, senhor — replicou Angell.

       — Você é um homem qualificado, não é? — Farrar perguntou-lhe.

       — Ah, sim, senhor, sou qualificado — replicou Angell — e sempre se consegue trabalho disponível no hospital ou particular. Sei disso.

       — Então o que é que o está perturbando?

       — Bem, senhor — disse-lhe Angell —, as circunstâncias nas quais este emprego chegou ao fim são muito desgostosas para mim.

       — Em bom inglês — observou Farrar —, você não gosta de se ver envolvido com assassinato. E isso?

       — A coisa poderia ser expressa desta maneira, senhor — confirmou o criado.

       — Bem — disse Farrar —, receio que não haja nada que alguém possa fazer a esse respeito. Presumivelmente, você receberá uma referência satisfatória da senhora Warwick. — Tirou a cigarreira e abriu-a.

       — Não creio que vá haver nenhuma dificuldade quanto a isso, senhor — respondeu Angell. — A senhora Warwick é uma dama muito bondosa... uma dama por demais encantadora, se me permite dizê-lo. — Havia uma tênue insinuação em seu tom de voz.

       Julian Farrar, tendo decidido esperar por Laura afinal, estava prestes a voltar para dentro da casa. Entretanto, voltou-se, intrigado com alguma coisa nos modos do criado.

       — O que quer dizer? — perguntou, calmamente.

       — Eu não gostaria de importunar a senhora Warwick de maneira alguma — replicou Angell, em tom melífluo.

       Antes de falar, Farrar tirou um cigarro do estojo e em seguida devolveu a cigarreira ao bolso.

       — Quer dizer — começou —, você está... se detendo por aqui um pouco para agradá-la?

       — Isso é verdade, senhor — afirmou Angell. — Estou ajudando na casa. Mas não era exatamente isso que eu queria dizer. — Fez uma pausa e em seguida continuou: — É uma questão, realmente... da minha consciência, senhor.

       — Que diabos está querendo dizer... sua consciência? — indagou Farrar com aspereza.

       Angell pareceu desconfortável, mas sua voz se mostrava bastante confiante quando continuou:

       — Não creio que aprecie de fato minhas dificuldades, senhor. Isto é, na questão de dar meu depoimento à polícia. É meu dever como cidadão assistir à polícia de toda maneira possível. Ao mesmo tempo, desejo permanecer leal a meus patrões.

       Julian Farrar virou-se para acender o cigarro.

       — Você fala como se houvesse um conflito — disse em tom calmo.

       — Se pensar no assunto, senhor — observou Angell —, vai se dar conta de que está destinado a haver um conflito... um conflito de lealdades, se posso colocar desta maneira.

       Farrar olhou diretamente para o criado.

       — Aonde exatamente está pretendendo chegar, Angell? — perguntou.

       — A polícia, senhor, não se encontra em situação de apreciar os antecedentes — replicou Angell. — Os antecedentes poderiam... eu disse apenas que poderiam... ser muito importantes num caso como este. E, também, ultimamente venho sofrendo de uma insônia bastante grave.

       — Suas aflições precisam mesmo vir ao caso? — indagou Farrar com rispidez.

       — Infelizmente precisam, senhor — foi a resposta afável do criado. — Eu me recolhi cedo ontem à noite, senhor, mas não consegui dormir.

       — Sinto muito quanto a isso — condoeu-se Farrar falsamente, em tom seco —, mas na verdade...

       — Veja, senhor — continuou Angell, ignorando a interrupção —, devido à posição do meu quarto nesta casa, tomei conhecimento de certas questões sobre as quais a polícia talvez não esteja completamente informada.

       — O que, exatamente, está tentando dizer? — perguntou Farrar com frieza.

       — O falecido sr. Warwick, senhor — replicou Angell —, era um homem doente e aleijado. É apenas de se esperar que, sob tais circunstâncias tão tristes, uma dama atraente como a senhora Warwick fosse... como devo dizer... estabelecer uma ligação em outro lugar.

       — Então é isso, não é? — disse Farrar. — Não creio que esteja gostando do seu tom, Angell.

       — Não, senhor — murmurou Angell. — Mas, por favor, não se precipite demais em seu julgamento. Basta que pense nisso, senhor. Talvez vá compreender minha dificuldade. Aqui estou eu, de posse de uma informação que, até agora, não comuniquei à polícia... mas uma informação que, talvez, seja meu dever comunicar a eles.

       Julian Farrar fitou Angell friamente.

       — Eu acho — disse ele — que essa história de ir à polícia com sua informação é puro alarde. O que você está realmente fazendo é sugerir que se encontra em situação de levantar muita sujeira, a menos... — fez uma pausa, para depois completar a frase: — ...a menos que o quê?

       Angell encolheu os ombros.

       — Eu sou, claro, como o senhor acaba de salientar — observou ele —, um enfermeiro-assistente plenamente qualificado. Mas há ocasiões, major Farrar, em que sinto que gostaria de me estabelecer por conta própria. Um pequeno estabelecimento... não uma clínica de repouso, exatamente... mas um lugar onde eu pudesse receber talvez cinco ou seis pacientes. Com um assistente, é claro. Os pacientes provavelmente incluiriam cavalheiros que são difíceis de tratar em casa, do ponto de vista do álcool. Esse tipo de coisa. Infelizmente, embora eu tenha acumulado uma certa quantia em economias, elas não são o bastante. Fiquei pensando... — Sua voz foi sumindo, sugestivamente.

       Julian Farrar completou o pensamento para ele.

       — Você ficou pensando... — disse — se eu... ou eu e a senhora Warwick juntos... não poderíamos vir em seu auxílio neste projeto, sem dúvida.

       — Eu só pensei, senhor — replicou Angell docilmente. — Seria uma grande bondade de sua parte.

       — É, seria, não é mesmo? — observou Farrar com sarcasmo.

       — O senhor sugeriu de forma um tanto áspera — prosseguiu Angell — que eu estou ameaçando remexer nesta sujeira. Referindo-se, pelo que entendi, a escândalo. Mas não é isso, de jeito nenhum, senhor. Eu nem sonharia em fazer uma coisa dessas.

       — O que está insinuando, exatamente, Angell? — Farrar falava como se estivesse começando a perder a paciência. — Você com certeza está insinuando alguma coisa.

       Angell deu um sorriso de auto-reprovação antes de responder. Depois, falou calmamente, mas com ênfase.

       — Como eu digo, senhor, ontem à noite não consegui dormir muito bem. Estava deitado, acordado, ouvindo o ecoar da sirene. Um som extremamente deprimente, sempre o achei, senhor. Depois me pareceu ter ouvido uma veneziana batendo. Um ruído muito irritante, quando você está tentando dormir. Levantei-me e me debrucei na janela. Parecia ser a persiana da janela da copa, quase direto abaixo de mim.

       — Bem? — indagou Farrar bruscamente.

       — Decidi, senhor, descer e cuidar da veneziana — continuou Angell. — Quando estava a caminho lá para baixo, ouvi um tiro. — Fez uma pausa breve. — Não achei que fosse nada na hora. — “Lá está o senhor Warwick de novo”, pensei. “Mas certamente ele não pode enxergar no que está atirando nesta névoa.” Fui para a despensa, senhor, e travei a janela. Mas, enquanto estava ali, sentindo-me um tanto inquieto por algum motivo, ouvi passos vindo da trilha do lado de fora da janela...

       — Você quer dizer — interrompeu Farrar —, da trilha que... — Seus olhos se dirigiram para ela.

       — Sim, senhor — concordou Angell. — A trilha que leva da varanda, contornando o canto da casa, naquela direção... depois das acomodações dos criados. Uma trilha que não é muito usada, exceto, é claro, pelo senhor, quando vem até aqui, considerando que se trata de um atalho da sua casa até esta.

       Parou de falar e olhou intensamente para Julian Farrar, que disse apenas, em tom glacial:

       — Prossiga.

       — Eu estava me sentindo, como disse, um tanto inquieto — continuou Angell —, pensando que poderia haver algum vagabundo por aí. Não posso lhe dizer o quanto fiquei aliviado, senhor, ao vê-lo passar pela janela da copa, andando depressa... correndo de volta para casa.

       Após uma pausa, Farrar disse:

       — Não vejo realmente nenhuma razão de estar me contando isto. Deveria haver algum motivo?

       Com uma tossezinha de desculpas, Angell lhe respondeu:

       — Fiquei apenas imaginando, senhor, se teria mencionado para a polícia que esteve aqui ontem à noite para ver o senhor Warwick. No caso de não tê-lo feito, e supondo que eles ainda me interrogassem mais uma vez quanto aos acontecimentos de ontem à noite...

       Farrar o interrompeu.

       — Você se dá conta, não é — indagou em termos concisos —, de que a pena para chantagem é severa?

       — Chantagem, senhor? — respondeu Angell, parecendo chocado. — Não sei do que está falando. É só uma questão, como eu disse, de decidir onde se encontra o meu dever. A polícia...

       — A polícia — interrompeu-o Farrar com aspereza — está perfeitamente satisfeita quanto a quem matou o senhor Warwick. O sujeito praticamente assinou seu nome no crime. Não é provável que venham lhe fazer mais nenhuma pergunta.

       — Eu lhe garanto, senhor — aparteou Angell, com alarme na voz. — Eu só queria dizer...

       — Você sabe perfeitamente bem — interrompeu Farrar de novo — que não poderia ter reconhecido ninguém naquela neblina densa de ontem à noite. Simplesmente inventou essa história a fim de... — cortou a frase, quando viu Laura Warwick surgindo da casa em direção ao jardim.

 

—Desculpe por tê-lo deixado esperando, Julian — disse Laura quando se aproximou deles. Parecia surpresa por ver Angell e Julian Farrar engajados numa conversa.

       — Talvez eu possa lhe falar mais tarde, senhor, sobre este probleminha — murmurou o criado para Farrar. Afastou-se, fazendo uma espécie de meia reverência para Laura, depois subiu depressa pelo jardim, contornando um canto da casa.

       Laura observou-o ir embora e em seguida falou em tom urgente.

       — Julian — disse ela —, eu preciso...

       Farrar a interrompeu.

       — Por que mandou me chamar, Laura — perguntou ele, parecendo aborrecido.

       — Fiquei esperando por você o dia inteiro — replicou Laura, surpresa.

       — Bem, eu estive atolado até os ouvidos desde hoje de manhã — exclamou Farrar. — Comitês, e mais reuniões esta tarde. Não posso simplesmente largar qualquer destas coisas sem mais nem menos tão em cima das eleições. E, em todo caso, Laura, não seria muito melhor que não nos encontrássemos no momento?

       — Mas há coisas que precisamos discutir — justificou Laura.

       Pegando-a brevemente pelo braço, Farrar conduziu-a para ainda mais longe da casa.

       — Você sabe que Angell está se armando para me chantagear? — perguntou-lhe.

       — Angell? — Laura quase gritou, em tom de incredulidade. — Angell o está...?

       — Sim. Ele obviamente sabe a nosso respeito... e sabe também, ou de qualquer maneira finge saber, que eu estive aqui ontem à noite.

       Laura engasgou-se.

       — Está dizendo que ele o viu?

       — Ele diz que me viu — retorquiu Farrar.

       — Mas ele não poderia tê-lo visto naquela neblina — insistiu Laura.

       — Ele tem uma história — contou-lhe Farrar —, de que desceu até a despensa para fazer não sei o que com a persiana da janela e me viu passando a caminho de casa. Diz também que ouviu um tiro, não muito antes disso, mas achou que não fosse nada.

       — Oh, meu Deus! — exclamou Laura com um a voz presa. — Que coisa terrível! O que vamos fazer?

       Farrar iniciou um gesto involuntário, como se estivesse prestes a confortar Laura com um abraço, mas, então, olhando de relance para a casa, pensou melhor e desistiu. Fitou-a com firmeza no olhar.

       — Ainda não sei o que vamos fazer — disse ele. — Temos de pensar.

       — Você não vai pagar a ele, com certeza?

       — Não, não — garantiu-lhe Farrar. — Se a pessoa começa a fazer isso, é o princípio do fim. Mas por outro lado, o que se pode fazer? — Passou uma das mãos sobre o cenho. — Não pensei que alguém soubesse que vim até aqui no início da noite de ontem — continuou. — Tenho certeza de que minha empregada não viu. A questão é: Angell realmente me viu, ou está apenas fingindo?

       — E se ele for à polícia? — perguntou Laura, trêmula.

       — Eu sei — murmurou Farrar. Mais uma vez, correu uma das mãos pela testa. — É preciso pensar... pensar com cuidado. — Começou a andar de um lado para o outro. — Há a idéia de pagar para ver... dizer que ele está mentindo, que em momento algum eu saí de casa na noite de ontem...

       — Mas tem as impressões digitais — lembrou Laura.

       — Que impressões digitais? — perguntou Farrar, perplexo.

       — Você esqueceu — relembrou-lhe Laura. — As impressões sobre a mesa. A polícia anda pensando que são de MacGregor, mas se Angell for a eles com esta história, aí eles vão pedir para tomar as suas digitais, e então...

       Interrompeu-se de repente. Julian Farrar agora parecia preocupado.

       — Sim, sim, entendo — murmurou. — Tudo bem, então. Terei de confessar que vim até aqui e... contar alguma história. Vim para ver Richard a respeito de alguma coisa e nós conversamos...

       — Você pode dizer que ele estava perfeitamente bem quando o deixou — sugeriu Laura, falando depressa.

       Havia poucos vestígios de afeto nos olhos de Farrar quando a fitou.

       — Como você faz parecer fácil! — retorquiu, acalorado. — Posso mesmo dizer isso? — acrescentou com sarcasmo.

       — Alguém tem de dizer alguma coisa! — disse ela, na defensiva.

       — Sim, eu devo ter posto a mão ali quando me inclinei para ver... — engoliu seco, enquanto a cena voltava à sua memória.

       — Contanto que eles acreditem que as impressões são de MacGregor — manifestou-se Laura com ansiedade.

       — MacGregor! MacGregor! — exclamou Farrar, furioso. Estava quase gritando agora. — Que motivo no mundo fez você maquinar aquela mensagem do jornal e colocá-la no corpo de Richard? Não viu que estava correndo um risco horrível?

       — Sim... não... não sei — gritou Laura, confusa.

       Farrar olhou para ela com aversão silenciosa.

       — Uma maldita coisa tão a sangue-frio — resmungou.

       — Nós tínhamos de pensar em alguma coisa — Laura suspirou. — Eu... eu simplesmente não conseguia pensar. Foi na verdade idéia de Michael.

       — Michael?

       — Michael Starkwedder — explicou Laura.

       — Está dizendo que ele a ajudou? — indagou Farrar. Parecia incrédulo.

       — Sim, sim, sim!—gritou Laura com impaciência. — Era por isso que eu queria ver você... para lhe explicar...

       Farrar chegou para perto dela. Seu tom era de um ciúme glacial quando perguntou, com firmeza:

       — O que está Michael — ele enfatizou o primeiro nome de Starkwedder com uma raiva fria — o que está Michael Starkwedder fazendo no meio de tudo isso?

       — Ele entrou e... e me encontrou ali — contou Laura. — Eu estava... estava com a arma na mão e...

       — Meu bom Deus! — exclamou Farrar com desgosto, afastando-se dela. — E de algum modo você o convenceu...

       — Acho que foi ele quem me convenceu. — Aproximou-se dele. — Oh, Julian... — começou.

       Os braços dela estavam quase lhe circundando o pescoço, mas ele a afastou ligeiramente.

       — Já lhe disse, vou fazer tudo o que puder. Não pense que não vou... mas...

       Laura olhou para ele com expressão firme.

       — Você mudou — disse com toda calma.

       — Desculpe, mas não posso me sentir da mesma maneira que antes — admitiu Farrar em tom desesperado. — Depois do que aconteceu... eu simplesmente não posso mais me sentir o mesmo.

       — Eu posso — garantiu-lhe Laura. — Pelo menos, acho que posso. Não importaria o que você tivesse feito, Julian, eu sempre sentiria o mesmo.

       — Não se preocupe com nossos sentimentos no momento — disse Farrar. — Precisamos cair na realidade dos fatos.

       Laura olhou para ele.

       — Eu sei — disse ela. — Eu disse a Starkwedder que eu tinha... você sabe, que eu tinha feito aquilo.

       Farrar olhou para ela com ar incrédulo.

       — Você disse isso a Starkwedder?

       — Disse.

       — E ele concordou em ajudar você? Ele... um estranho? O homem deve ser louco!

       Magoada, Laura retorquiu:

       — Acho que talvez ele seja um pouco louco. Mas foi muito confortador.

       — Então é isso! Nenhum homem pode resistir a você — exclamou Farrar com raiva. — É isso? — Deu um passo para se afastar dela e depois voltou-se para encará-la de novo. — Mesmo assim, Laura, assassinato... — Sua voz foi sumindo enquanto sacudia a cabeça.

       — Eu tenho de tentar nunca pensar nisso — respondeu Laura. — E não foi premeditado, Julian. Foi apenas um impulso. — Falava quase implorando.

       — Não há necessidade de repassar tudo de novo — disse lhe Farrar. — Temos de pensar agora no que vamos fazer.

       — Eu sei — replicou ela. — Há as impressões digitais e o seu isqueiro.

       — Sim — recordou ele. — Devo tê-lo deixado cair quando me inclinei sobre o corpo de Richard.

       — Starkwedder sabe que é seu — contou-lhe Laura. — Mas não pode fazer nada a esse respeito. Ele se comprometeu. Não pode mudar sua história agora.

       Julian Farrar olhou para ela por um momento. Quando falou, sua voz tinha um tom ligeiramente heróico.

       — Se chegar a este ponto, Laura, eu assumirei a culpa — tranquilizou-a.

       — Não, não quero que faça isso — gritou Laura. Agarrou o braço dele fincando-lhe as unhas e em seguida soltou-o depressa, com um olhar nervoso na direção da casa. — Não quero que faça isso! — repetiu em tom urgente.

       — Você não deve imaginar que eu não compreendo... como aconteceu — disse Farrar, falando com esforço. — Você pegou a arma, atirou nele sem saber de fato o que estava fazendo e...

       Laura engasgou-se com a surpresa.

       — O quê? Está tentando me dizer que eu o matei? — gritou ela.

       — De jeito nenhum — respondeu Farrar. Parecia embaraçado. — Já lhe disse que estou perfeitamente preparado para assumir a culpa se as coisas chegarem a esse ponto.

       Laura sacudiu a cabeça demonstrando confusão.

       — Mas... você disse... — começou ela. — Você disse que sabia como aconteceu.

       Ele olhou para Laura com ar resoluto.

       — Ouça, Laura — disse Julian. — Não acho que você o tenha feito deliberadamente. Não creio que tenha sido premeditado. Sei que não foi. Sei muito bem que você só atirou nele porque...

       Laura o interrompeu sem perda de tempo.

       — Eu atirei nele? — perguntou com a voz entrecortada. — Está realmente fingindo acreditar que eu atirei nele?

       Dando as costas para ela, Farrar exclamou com raiva:

       — Pelo amor de Deus, isso vai ser impossível se não formos honestos um com o outro!

       Laura parecia desesperada quando, tentando não gritar, anunciou clara e enfaticamente:

       — Eu não atirei nele e você sabe disso!

       Houve uma pausa. Julian Farrar virou-se lentamente para encará-la.

       — Então quem foi? — perguntou. Entendendo tudo de repente, acrescentou: — Laura! Você está tentando dizer que eu atirei nele?

       Ficaram de pé um em frente ao outro, e nenhum dos dois falou por um momento. Então Laura disse:

       — Eu ouvi o tiro, Julian. — Respirou fundo antes de continuar. — Ouvi o tiro e seus passos na trilha, afastando-se daqui. Desci e lá estava ele... morto.

       Após uma pausa, Farrar retrucou calmamente:

       — Laura, eu não atirei nele. — Ergueu os olhos para o céu como que buscando auxílio ou inspiração e depois fitou-a com toda intensidade. — Vim até aqui para ver Richard — explicou —, para dizer a ele que, depois das eleições, precisaríamos chegar a um acordo quanto ao divórcio. Ouvi um tiro pouco antes de chegar aqui. Achei apenas que fosse Richard com suas brincadeiras, como sempre. Entrei aqui e lá estava ele. Morto. Ainda estava quente.

       Laura achava-se agora absolutamente perplexa.

       — Quente? — repetiu num eco.

       — Não tinha morrido há mais de um ou dois minutos — afirmou Farrar. — É claro que acreditei que você havia atirado nele. Quem mais poderia ter feito isso?

       — Não estou entendendo — murmurou Laura.

       — Suponho... suponho que possa ter sido suicídio — começou Farrar, mas Laura o interrompeu.

       — Não, não poderia, porque...

       Interrompeu-se de repente, quando ambos ouviram a voz de Jan dentro da casa, gritando na maior agitação.

 

Julian Farrar e Laura correram em direção à casa, quase colidindo com Jan, quando este surgiu, saindo pelas portas envidraçadas.

       — Laura — gritou Jan enquanto ela o empurrava suavemente, mas com firmeza, de volta ao gabinete de leitura. — Laura, agora que Richard está morto, todas as suas pistolas e armas e outras coisas pertencem a mim, não pertencem? Quero dizer, sou o irmão dele, sou o segundo homem na família.

       Julian Farrar acompanhou-os à sala e vagou distraidamente até a poltrona, sentando-se num dos braços dela enquanto Laura tentava acalmar Jan, que agora se queixava com petulância:

       — Benny não quer deixar eu ficar com as armas dele. Ela trancou tudo naquele armário ali. — Apontou vagamente na direção da porta. — Mas elas são minhas. Tenho direito a essas coisas. Faça com que ela me dê a chave.

       — Agora, ouça, Jan, querido — começou Laura, mas Jan não estava disposto a ser interrompido. Foi depressa até a porta e em seguida virou-se para ela, exclamando: — Ela me trata como criança. Mas eu não sou criança, sou um homem. Estou com dezenove anos. Já sou quase maior de idade. — Estendeu o braço sobre a porta como que para proteger suas armas. — Todas as coisas de caça do Richard pertencem a mim. Eu vou fazer o que Richard fazia. Vou atirar em esquilos, passarinhos e gatos. — Riu histericamente. — Eu poderia atirar em gente também, se não gostar de alguém.

       — Você não deve se agitar demais, Jan — advertiu-o Laura.

       — Não estou agitado — gritou Jan em tom arrogante. — Mas não vou ser... como é que se chama?... não vou ser vitimizado — Voltou para o centro da sala e encarou Laura bem de frente. — Sou o senhor de tudo isto aqui, agora. O dono desta casa. Todo mundo tem de fazer o que eu disser. Fez uma pausa; em seguida, voltou-se e se dirigiu a Julian Farrar. — Eu poderia ser um juiz de paz, se eu quisesse, agora, não é, Julian?

       — Acho que ainda é um pouco jovem para isso — disse-lhe Farrar.

       Jan deu de ombros e virou-se de novo para Laura.

       — Vocês todos me tratam como criança — queixou-se de novo. — Mas não podem mais fazer isso... não agora que Richard morreu. — Jogou-se no sofá, com as pernas esparramadas. — Acho que estou rico, não estou? — acrescentou. — Esta casa me pertence. Ninguém pode mais me mandar de lá para cá. Eu posso mandar nas pessoas. Não vou mais receber ordens ditadas por essa velha boba da Benny. Se Benny tentar me dar ordens, eu vou... — Deteve-se e depois acrescentou com ar infantil: — Eu sei muito bem o que vou fazer!

       Laura se aproximou dele.

       — Ouça, Jan, querido — murmurou gentilmente. — Este é um momento de muita preocupação para todos nós, e as coisas de Richard não pertencem a ninguém até que os advogados venham, leiam seu testamento e façam o que eles chamam de inventário dos bens. Isso é o que acontece quando alguém morre. Até então, todos nós temos de esperar. Entendeu?

       O tom de Laura teve um efeito calmante e tranqüilizador sobre Jan. O rapaz ergueu os olhos para a cunhada e depois passou o braço em volta de sua cintura, aninhando-se a ela.

       — Eu entendo o que você me diz, Laura — disse ele. — Eu gosto de você, Laura. Gosto muito.

       — Claro, querido — murmurou Laura docemente. — Eu também gosto de você.

       — Você está contente porque Richard morreu, não está? — perguntou-lhe Jan de repente.

       Ligeiramente surpresa, Laura replicou depressa:

       — Não, é claro que não estou contente.

       — Ah, está, sim — disse Jan em tom matreiro. — Agora você pode se casar com Julian.

       Laura olhou rapidamente para Julian Farrar, que se levantou da poltrona enquanto Jan continuava:

       — Você quer se casar com Julian há uma porção de tempo, não quer? Eu sei. Eles acham que eu não noto ou sei das coisas. Mas eu percebo. E, assim, está tudo bem para vocês dois agora. Ficou tudo bem para vocês, e os dois estão contentes. Vocês estão contentes porque...

       Interrompeu o que estava dizendo porque ouviu a senhorita Bennett no corredor chamando:

       — Jan!

       Ele riu:

       — Velha boba, Benny! — gritou de volta, subindo e descendo do sofá.

       — Agora, seja bonzinho com Benny — admoestou Laura, enquanto o puxava para ficar de pé, aquietando-o. — Ela tem tido um bocado de problemas e preocupações com tudo isso. — Levando Jan para a porta, Laura continuou suavemente: — Você precisa ajudar a Benny, Jan, porque é o homem da família agora.

       Jan abriu a porta e depois olhou de Laura para Julian.

       — Tildo bem, tudo bem — prometeu, com um sorriso. — Vou ajudar. — Deixou a sala, fechando a porta atrás de si e chamando — Benny! — enquanto saía.

       Laura voltou-se para Julian Farrar, que havia se levantado da poltrona e caminhado até ela.

       — Não tenho idéia do que ele sabe a nosso respeito — exclamou ela.

       — Esse é o problema com as pessoas como Jan — comentou Farrar. — Você nunca sabe o quanto eles sabem. Ele é muito... bem, ele sai do controle com bastante facilidade, não sai?

       — Sim, ele de fato fica agitado muito facilmente — admitiu Laura. — Mas agora que Richard não está aqui para provocá-lo, ele vai se acalmar. Vai conseguir ficar mais normal. Tenho certeza de que vai.

       Julian Farrar pareceu em dúvida.

       — Bem, não sei de nada quanto a isto — começou, mas deteve-se quando Starkwedder de repente apareceu nas portas envidraçadas.

       — Olá... boa-noite — chamou Starkwedder, bastante alegre.

       — Oh, er... boa-noite — replicou Farrar, hesitante.

       — Como vai tudo? Alegre e feliz? — inquiriu Starkwedder, olhando de um para o outro. De repente deu um sorriso malicioso. — Entendo — observou. — Dois é bom, três é demais. — Entrou na sala. — Não devia ter vindo pela porta da varanda desse jeito. Um cavalheiro teria chegado pela porta da frente e tocado a campainha. É isso? Mas, também, vejam vocês, eu não sou nenhum cavalheiro.

       — Oh, por favor... — começou Laura, mas Starkwedder a interrompeu.

       — Para falar a verdade — explicou — eu vim por duas razões. Primeiro, para dizer adeus. Meu caráter foi investigado e tudo ficou esclarecido. Dois telegramas de alto nível vindos de Abadan afirmaram que eu sou um sujeito Ótimo e honrado. Assim, estou livre para partir.

       — Lamento que esteja indo embora... tão cedo — disse-lhe Laura, com um sentimento genuíno na voz.

       — Isso é gentil de sua parte — respondeu Starkwedder com um toque de amargura — considerando a maneira como me intrometi neste seu crime de família. — Olhou para ela por um momento e depois caminhou até a cadeira da escrivaninha. — Mas vim pelo terraço por uma outra razão — prosseguiu. — A polícia me trouxe até aqui em seu carro. E, embora tenham ficado de bico calado o tempo todo, eu acredito que alguma coisa está acontecendo!

       Desolada, Laura balbuciou:

       — A polícia voltou?

       — Sim — afirmou Starkwedder com ar decidido.

       — Mas eu achei que eles haviam encerrado o trabalho esta manhã — disse Laura.

       Starkwedder devolveu-lhe um olhar astuto.

       — É por isso que eu digo... algo está acontecendo! — exclamou.

       Ouviram-se vozes do lado de fora do corredor. Laura e Julian Farrar se aproximaram um do outro quando a porta se abriu e a mãe de Richard Warwick entrou, parecendo muito ereta e controlada, embora ainda caminhasse com o auxílio de uma bengala.

       — Benny! — chamou a senhora Warwick por cima do ombro e depois se dirigiu a Laura. — Ah, você está aí, Laura. Andei lhe procurando.

       Julian Farrar foi até a senhora Warwick e ajudou-a a se sentar na poltrona.

       — Que gentileza sua vir até aqui de novo, Julian — exclamou a velha dama — quando nós todos sabemos o quanto está ocupado.

       — Eu teria vindo antes, senhora Warwick — disse-lhe Farrar, enquanto a acomodava na cadeira —, mas este foi um dia particularmente caótico. Qualquer coisa que eu possa fazer para ajudar... — Parou de falar quando a senhorita Bennett entrou, acompanhada pelo inspetor Thomas. Carregando uma valise, o inspetor adiantou-se para ocupar uma posição central. Starkwedder foi se sentar na cadeira da escrivaninha e acendeu um cigarro, enquanto o sargento Cadwallader chegava com Angell, que fechou a porta e manteve-se encostado nela.

       — Não consigo encontrar o jovem senhor Warwick, senhor — relatou o sargento, atravessando a sala até as janelas envidraçadas.

       — Ele está lá fora em algum lugar. Saiu para um passeio — anunciou a senhorita Bennett.

       — Não tem importância — disse o inspetor. Houve uma pausa momentânea enquanto ele fazia um levantamento dos ocupantes da sala. Seu comportamento havia mudado, porque agora apresentava um ar inflexível que não havia antes.

       Após aguardar um instante para que ele falasse, a senhora Warwick perguntou com frieza:

       — Pelo que entendi, o senhor tem mais outras perguntas a nos fazer, inspetor Thomas?

       — Sim, senhora Warwick — replicou ele —, receio que tenha razão.

       A voz da senhora Warwick soou exaurida quando ela perguntou:

       — O senhor ainda não tem nenhuma notícia deste homem, MacGregor?

       — Ao contrário.

       — Já o encontraram? — perguntou ansiosa a senhora Warwick.

       — Já — foi a resposta concisa do inspetor.

       Houve uma completa agitação do grupo ali reunido. Laura e Julian Farrar pareciam incrédulos, e Starkwedder girou em sua cadeira a fim de encarar o inspetor.

       A voz da senhorita Bennett de repente repicou num tom agudo.

       — O senhor o prendeu, então?

       O inspetor olhou para ela por um momento antes de responder. Então, retrucou:

       — Isso, receio eu, seria impossível, senhorita Bennett — informou a ela.

       — Impossível? — interpôs a senhora Warwick. — Mas por quê?

       — Porque ele está morto — replicou o inspetor, com toda calma.

 

Choque e silêncio saudaram o anúncio do inspetor Thomas. Em seguida, em tom hesitante e, ao que pareceu, temeroso, Laura sussurrou:

       — O que... que foi que o senhor disse?

       — Eu disse que este homem, MacGregor, está morto — afirmou o inspetor.

       Houve palavras balbuciadas por todos na sala, e o inspetor se estendeu sobre sua breve comunicação.

       — John MacGregor — contou a eles — morreu no Alasca há mais de dois anos... não muito tempo depois de ter retornado ao Canadá, vindo da Inglaterra.

       — Morto! — exclamou Laura, incrédula.

       Desapercebido por qualquer pessoa na sala, o jovem Jan passou depressa pelo terraço, em frente às portas envidraçadas, e desapareceu de vista.

       — Isso faz alguma diferença, não é? — continuou o inspetor. — Não foi John MacGregor quem pôs aquele bilhete de vingança no cadáver do senhor Warwick. Mas está claro, não está, que o papel foi posto ali por alguém que sabia tudo sobre MacGregor e o acidente em Norfolk. O que restringe a coisa, de forma muito definitiva, a alguém de dentro desta casa.

       — Não — exclamou a senhorita Bennett em tom estridente. — Não, poderia ter sido... certamente poderia ter sido... — Deteve-se.

       — Sim, senhorita Bennett? — instou-a a falar o inspetor. Esperou por um momento, mas a senhorita Bennett não conseguia continuar. De repente, parecendo completamente arrasada, afastou-se na direção das portas de vidro.

       O inspetor voltou sua atenção para a mãe de Richard Warwick.

       — A senhora compreende, madame — disse ele, tentando incluir uma nota de simpatia em sua voz —, que isso altera as coisas.

       — Sim, posso perceber isso — replicou a senhora Warwick. Ergueu-se: — Ainda vai precisar de mim, inspetor? — perguntou.

       — Não por enquanto, senhora Warwick — respondeu o inspetor.

       — Obrigada — murmurou a senhora Warwick enquanto se dirigia para a porta, que Angell se apressou em abrir. Julian Farrar ajudou a velha senhora. Quando ela saiu, Farrar retornou e pôs-se de pé atrás da poltrona, pensativo. Enquanto isso, o inspetor Thomas abriu sua valise e agora tirava dela uma arma.

       Angell achava-se prestes a acompanhar a senhora Warwick, saindo da sala, quando o inspetor chamou em tom peremptório:

       — Angell!

       O criado pessoal teve um sobressalto e voltou para dentro da sala, fechando a porta.

       — Sim, senhor? — respondeu calmamente.

       O inspetor se aproximou dele, carregando o que era nitidamente a arma do crime.

       — Quanto a esta arma — perguntou ao criado. — Você se mostrou indeciso esta manhã. Pode ou não pode dizer definitivamente que ela pertencia ao senhor Warwick?

       — Eu não gostaria de ser definitivo, inspetor — replicou Angell. — Ele tinha tantas, entenda.

       — Esta aqui veio do continente — informou-lhe o inspetor, segurando o revólver diante de seus olhos. — É uma espécie de suvenir de guerra de algum tipo, eu diria.

       Quando estava falando, mais uma vez e aparentemente desapercebido por todos na sala, Jan passou ao longo do terraço lá fora, indo na direção oposta, e carregando uma arma que dava a impressão de estar tentando esconder.

       Angell olhou para a arma.

       — O senhor Warwick de fato tinha algumas armas estrangeiras, senhor — declarou. — Mas ele cuidava pessoalmente de todo o seu equipamento de tiro. Não me deixava nem tocar nelas.

       O inspetor foi até Julian Farrar.

       — Major Farrar — disse —, o senhor provavelmente tem suvenires de guerra. Esta arma significa alguma coisa para o senhor?

       Farrar relanceou os olhos pela arma com ar displicente.

       — Nada, receio — respondeu ele.

       Dando-lhe as costas e afastando-se dele, o inspetor repôs a arma na valise.

       — O sargento Cadwallader e eu — anunciou, voltando-se para encarar todo o grupo ali reunido — vamos querer verificar toda a coleção de armas do senhor Warwick detalhadamente. Ele tinha licenças para a maioria delas, pelo que entendi.

       — Ah, sim, senhor — garantiu Angell. — As licenças encontram-se em uma das gavetas do seu quarto. E todas as pistolas, revólveres e outras armas estão no armário reservado especialmente para elas.

       O sargento Cadwallader encaminhou-se até a porta, mas foi impedido pela senhorita Bennett antes que pudesse sair da sala.

       — Espere um minuto — chamou-o ela. — O senhor vai querer a chave do armário de armas. — Tirou uma chave do bolso.

       — A senhorita o trancou? — inquiriu o inspetor, voltando-se bruscamente para ela. — Por que isso?

       A réplica da senhorita Bennett foi igualmente ríspida.

       — Dificilmente eu pensaria que o senhor teria necessidade de perguntar — disparou. — Todas aquelas armas, e munições também. Altamente perigosas. Todo mundo sabe disso.

       Disfarçando um sorriso de malícia, o sargento pegou a chave que ela lhe ofereceu e foi até a porta, detendo-se no umbral para ver se o inspetor desejava acompanhá-lo. Nitidamente aborrecido com o comentário impertinente da senhorita Bennett, o inspetor Thomas observou:

       — Vou precisar falar com você de novo, Angell — enquanto pegava a valise e saía da sala. O sargento o acompanhou, deixando a porta aberta para Angell.

       Entretanto, o criado não saiu da sala imediatamente. Em vez disso, após um olhar nervoso para Laura, que agora sentava-se fitando o chão, chegou perto de Julian Farrar e murmurou:

       — Sobre aquele probleminha, senhor. Estou ansioso por ver alguma coisa acertada em breve. Se pudesse dar um jeito, senhor....

       Falando com dificuldade, Farrar respondeu:

       — Acho que... alguma coisa... pode ser arranjada.

       — Obrigado, senhor — respondeu Angell com um tênue sorriso no rosto. — Muito obrigado, senhor. — Foi até a porta e estava prestes a sair da sala quando Farrar o deteve com um peremptório:

       — Não! Espere um momento, Angell.

       Quando o criado se voltou para encará-lo, Farrar chamou alto:

       — Inspetor Thomas!

       Houve uma pausa tensa. Então, após um ou dois instantes, o inspetor apareceu no umbral, com o sargento atrás dele.

       — Sim, major Farrar? — indagou o inspetor, calmamente.

       Retomando um comportamento agradável, natural, Julian Farrar andou a passos largos até a poltrona.

       — Antes que se ocupe com a rotina, inspetor — observou ele —, há uma coisa que eu devia ter-lhe dito. Realmente, suponho, eu devia ter mencionado isso esta manhã. Mas estávamos todos tão perturbados. A senhora Warwick acabava de me informar que havia algumas impressões digitais as quais o senhor estava ansioso por identificar. — Fez uma pausa e então acrescentou, com naturalidade. — Com toda probabilidade, inspetor, estas são as minhas impressões digitais.

       Houve uma pausa. O inspetor se aproximou lentamente de Farrar e depois perguntou calmamente, mas com uma nota acusadora na voz:

       — O senhor esteve aqui ontem à noite, major Farrar?

       — Sim — replicou Farrar. — Vim até aqui, como faço com frequência após o jantar, para ter uma conversa com Richard.

       — E o senhor o encontrou...? — provocou o inspetor.

       — Encontrei-o muito melancólico e deprimido. Então, não fiquei por muito tempo.

       — A que horas foi isso, mais ou menos, major Farrar?

       Farrar pensou por um momento e em seguida replicou:

       — Não consigo me lembrar de fato. Talvez dez da noite, ou dez e meia. Por aí.

       O inspetor olhou-o com firmeza.

       — Pode ser um pouco mais preciso do que isso? — indagou.

       — Lamento. Receio que não possa — foi a resposta imediata de Farrar.

       Após uma pausa um tanto tensa, o inspetor perguntou, tentando parecer natural:

       — Imagino que não tenha havido nenhuma discussão... ou alguma troca de palavras desagradáveis de qualquer tipo?

       — Não, certamente não — retorquiu Farrar indignado, consultando seu relógio de pulso. — Estou atrasado — observou. — Preciso assumir a presidência da mesa na reunião da Prefeitura. Não posso deixá-los esperando. — Voltou-se e caminhou em direção às portas envidraçadas. — Assim, se não se importa... — Parou na varanda.

       — Não se deve deixar o Conselho da Prefeitura esperando — concordou o inspetor, acompanhando-o. — Mas estou certo de que compreende, major Farrar, que eu gostaria de uma declaração completa quanto aos seus movimentos ontem à noite. Talvez possamos fazer isso amanhã de manhã. — Fez uma pausa e, em seguida, continuou: — O senhor se dá conta, claro, de que não está obrigado a fazer tal declaração, de que é um ato puramente voluntário... e de que o senhor conta com todo o direito de ter um advogado presente, se assim o desejar.

       A senhora Warwick havia entrado de novo na sala. Ficou parada no umbral, deixando a porta aberta, ouvindo as últimas palavras do inspetor. Julian Farrar tomou fôlego ao captar o significado daquilo que o inspetor acabava de dizer.

       — Eu compreendo... perfeitamente — respondeu. — Digamos, dez horas, amanhã de manhã? E meu advogado estará presente.

       Farrar saiu pelo terraço, e o inspetor voltou-se para Laura Warwick.

       — A senhora viu o major Farrar quando ele esteve aqui ontem à noite? — perguntou a ela.

       — Eu... eu... — começou Laura, insegura, mas foi interrompida por Starkwedder, que de repente deu um pulo de sua cadeira indo até eles, interpondo-se entre o inspetor e Laura.

       — Não creio que a senhora Warwick se sinta disposta a responder a qualquer pergunta agora — afirmou ele.

 

Starkwedder e o inspetor Thomas se encararam em silêncio por um instante. Depois, o inspetor falou.

— O que foi que disse, senhor Starkwedder? — perguntou, com toda a calma.

       — Eu disse — replicou Starkwedder — que não acho que a senhora Warwick se sinta disposta a ouvir mais perguntas neste exato momento.

       — É mesmo? — grunhiu o inspetor. — E por que isso seria da sua conta, posso saber?

       A senhora Warwick, mãe de Richard, aderiu ao confronto.

       — O senhor Starkwedder tem toda a razão — anunciou.

       O inspetor voltou-se para Laura com ar indagador. Após uma pausa, ela murmurou:

       — Não, eu não quero responder mais pergunta nenhuma agora.

       De forma bastante presunçosa, Starkwedder sorriu para o inspetor, que virou para o outro lado com raiva e, num movimento veloz, deixou a sala com o sargento. Angell os acompanhou, fechando a porta atrás de si. Laura explodiu:

       — Mas eu devia falar. Eu preciso... preciso contar a eles...

       — O senhor Starkwedder está certo, Laura — contrapôs a senhora Warwick em tom convincente. — Quanto menos você disser agora, melhor. — Deu alguns passos pela sala, apoiando-se pesadamente em sua bengala, e depois continuou: — Precisamos entrar em contato com o senhor Adams imediatamente. — Voltando-se para Starkwedder, explicou: — O senhor Adams é nosso advogado. — Relanceou os olhos na direção da senhorita Bennett. — ligue para ele agora, Benny.

       A senhorita Bennett assentiu indo até o telefone, mas a senhora Warwick a deteve.

       — Não, use a extensão lá em cima — instruiu, acrescentando: — Laura, vá com ela.

       Laura se levantou e hesitou, olhando com expressão confusa para a sogra, que meramente acrescentou:

       — Quero conversar com o senhor Starkwedder.

       — Mas... — começou Laura, apenas para ser imediatamente interrompida pela senhora Warwick.

       — Agora, não se preocupe, minha querida — tranquilizou-a a velha dama. — Apenas faça o que eu digo.

       Laura hesitou por um momento e depois saiu para o vestíbulo, seguida pela senhorita Bennett, que fechou a porta. A senhora Warwick falou imediatamente com Starkwedder.

       — Não sei de quanto tempo dispomos — disse ela, falando rápido e olhando na direção da porta. — Quero que o senhor me ajude.

       Starkwedder pareceu surpreso.

       — Como? — perguntou ele.

       Após uma pausa, a senhora Warwick falou de novo.

       — O senhor é um homem inteligente... e é um estranho. Entrou em nossas vidas vindo de fora. Não sabemos nada a seu respeito. O senhor não tem nada a ver com qualquer um de nós.

       Starkwedder assentiu.

       — O visitante inesperado, hein? — murmurou. Empoleirou-se num dos braços do sofá. — Isso já me foi dito — observou ele.

       — Porque o senhor é um estranho — continuou a senhora Warwick — existe algo que vou lhe pedir para fazer por mim. — Atravessou as portas envidraçadas e saiu para o terraço, vasculhando-o com os olhos em ambas as direções.

       Depois de algum tempo, Starkwedder falou.

       — Sim, senhora Warwick?

       Voltando à sala, a senhora Warwick começou a falar com certa urgência.

       — Até esta tarde — disse ela — havia uma explicação razoável para esta tragédia. Um homem a quem meu filho havia magoado... matando acidentalmente o filho dele... veio buscar vingança. Soa melodramático, mas, afinal, a gente lê a respeito desse tipo de coisa acontecendo.

       — É como a senhora diz — observou, Starkwedder imaginando aonde aquela conversa estaria levando.

       — Mas agora, receio que esta explicação tenha desaparecido — continuou a senhora Warwick. — E isso traz o assassinato de meu filho de volta para dentro da família. — Deu alguns passos em direção à poltrona. — Agora, existem duas pessoas que definitivamente não poderiam ter atirado em meu filho. E elas são a mulher dele e a senhorita Bennett. As duas estavam efetivamente juntas quando o tiro foi disparado.

       Starkwedder lançou um rápido olhar para ela, mas tudo o que disse foi:

       — Certamente.

       — Entretanto — continuou a senhora Warwick —, embora Laura não pudesse ter atirado no marido, ela poderia saber quem o fez.

       — Isso a tornaria uma partícipe antes do fato, talvez cúmplice intelectual — observou Starkwedder. — Ela e este Julian Farrar estariam juntos na história? É isso o que quer dizer?

       Uma expressão de aborrecimento cruzou o rosto da senhora Warwick.

       — Não foi isto o que eu quis dizer — retrucou ela. Lançou mais um rápido olhar para a porta, em seguida continuou. — Julian Farrar não atirou no meu filho.

       Starkwedder ergueu-se do braço do sofá.

       — Como é possível que tenha certeza disso? — perguntou.

       — Eu sei e pronto — foi a réplica da senhora Warwick. Ela olhou com firmeza para o homem à sua frente. — Vou contar ao senhor, um estranho, algo que ninguém em minha família sabe. — Falou com toda a calma. — É o seguinte: sou uma mulher que não tem muito tempo de vida.

       — Lamento muito... — começou Starkwedder, mas a senhora Warwick ergueu a mão para detê-lo.

       — Não estou lhe contando isso em busca de comiseração — observou. — Estou lhe contando a fim de desvendar o que, de outra maneira, poderia ser de difícil explicação. Há momentos em que você decide por um rumo de ação pelo qual não optaria se tivesse muito anos de vida à sua frente.

       — Tais como? — perguntou Starkwedder em tom tranquilo.

       A senhora Warwick o olhou com firmeza.

       — Primeiro, devo lhe contar uma outra coisa, senhor Starkwedder — disse ela. — Devo lhe contar algo a respeito de meu filho. — Foi até o sofá e se sentou. — Eu amava meu filho com todo carinho. Quando criança, e quando jovem, ele tinha várias qualidades excelentes. Era bem-sucedido, engenhoso, corajoso, de temperamento risonho, uma companhia adorável. — Fez uma pausa e pareceu estar relembrando. Em seguida, continuou. — Havia, devo admitir, sempre os defeitos correspondentes a estas qualidades. Era impaciente com relação a controles, a restrições. Tinha um traço de crueldade no caráter e ostentava uma espécie de arrogância fatal. Enquanto tinha sucesso, estava tudo bem. Mas ele não contava com o tipo de natureza que podia lidar com a adversidade, e já há algum tempo eu vinha observando sua lenta decadência.

       Starkwedder sentou-se em silêncio no banquinho, de frente para ela.

       — Se eu disser que ele se tornou um monstro — continuou a mãe de Richard Warwick —, isso soaria exagerado. E, ainda assim, em certos aspectos ele era um monstro... Porque ele próprio tinha se ferido, sentia um desejo enorme de ferir os outros. — Uma nota severa se insinuou em sua voz. — Assim, outros começaram a sofrer por causa dele. O senhor me entende?

       — Creio que sim... sim — murmurou Starkwedder em tom suave.

       A voz da senhora Warwick tornou-se outra vez branda quando ela prosseguiu.

       — Agora, eu gosto muito da minha nora. Ela tem fibra, bom coração, e uma capacidade de resistência muito grande. Richard a envolveu de todas as maneiras, mas não sei se algum dia ela foi realmente apaixonada por ele. Entretanto, vou lhe dizer isso... ela fez tudo o que uma esposa poderia fazer para tornar a doença e a inatividade de Richard suportáveis.

       Pensou por um momento, e sua voz estava triste quando continuou:

       — Mas ele não aceitava a ajuda dela. Rejeitava tudo. Penso às vezes que ele a odiava, e talvez isso seja mais natural do que se poderia imaginar. Assim, quando lhe digo que o inevitável aconteceu, creio que o senhor irá entender do que estou falando. Laura se apaixonou por outro homem, e ele por ela.

       Starkwedder olhou para a senhora Warwick com ar pensativo.

       — Por que está me contando tudo isso? — indagou.

       — Porque o senhor é um estranho — replicou ela, com firmeza. — Estes amores, ódios e tribulações não significam nada para o senhor, de modo que pode ouvi-los sem se deixar atingir.

       — É possível.

       Como se não o tivesse ouvido, a senhora Warwick continuou falando.

       — Então chegou o momento — prosseguiu ela — em que pareceu que somente uma coisa solucionaria todas as dificuldades. A morte de Richard.

       Starkwedder continuou a analisar seu rosto.

       — E assim — murmurou ele —, convenientemente, Richard morreu?

       — Sim — respondeu a senhora Warwick.

       Houve uma pausa. Em seguida, Starkwedder se levantou, contornou o banquinho, indo até a mesa para apagar o cigarro.

       — Desculpe-me por expor a coisa de maneira tão rude, senhora Warwick — disse ele —, mas a senhora está confessando um assassinato?

 

A senhora Warwick ficou em silêncio por alguns instantes. Então, disse bruscamente:

— Vou lhe fazer uma pergunta, senhor Starkwedder. O senhor pode entender que alguém que tenha dado a vida possa também se sentir com o direito de tirar essa vida?

       Starkwedder andou de um lado para o outro da sala enquanto pensava a respeito disso. Finalmente, disse:

       — Tem-se ouvido falar de mães que matam seus filhos, sim — admitiu. — Mas em geral é por algum motivo sórdido... seguro devida... ou talvez porque já têm dois ou três filhos e não querem ser incomodadas por mais um. — Voltando-se subitamente para encará-la, perguntou depressa: — A morte de Richard a beneficia financeiramente?

       — Não, não beneficia — replicou a senhora Warwick com firmeza.

       Starkwedder fez um gesto de desaprovação.

       — A senhora terá de perdoar a minha franqueza... — começou ele, apenas para ser interrompido pela senhora Warwick, que perguntou com mais do que um toque de aspereza na voz:

       — O senhor entende o que estou tentando lhe dizer?

       — Sim, acho que entendo — replicou ele. — A senhora está me dizendo que é possível uma mãe matar um filho. — Caminhou até o sofá e se jogou sobre ele enquanto continuava. — E está me dizendo também... especificamente... que é possível que a senhora tenha matado o seu filho. — Fez uma pausa e fitou-a com firmeza. — Isso é uma teoria — indagou — ou devo entendê-la como um fato?

       — Eu não estou confessando coisa alguma — respondeu a senhora Warwick. — Estou simplesmente expondo para o senhor vim certo ponto de vista. Uma emergência poderia surgir num momento em que eu não estivesse mais aqui para lidar com ela. E na eventualidade de uma tal coisa acontecer, quero que tenha isto consigo e faça uso dele. — Tirou um envelope do bolso e entregou-o ao homem.

       Starkwedder pegou o envelope, mas observou:

       — Está tudo muito bem. Entretanto, eu não deverei me encontrar por aqui. Estou voltando para Abadan, para continuar o meu trabalho.

       A senhora Warwick fez um gesto de impaciência, nitidamente considerando a objeção como algo insignificante.

       — O senhor não estará isolado do contato com a civilização — ela o fez lembrar. — Existem jornais, rádios, e assim por diante em Abadan, presumivelmente.

       — Ah, sim — concordou ele. — Temos todas as bênçãos da civilização.

       — Então, por favor, guarde este envelope. Está vendo a quem ele é endereçado?

       Starkwedder relanceou os olhos pelo envelope.

       — Ao Chefe de Polícia. Sim. Mas não está de modo algum claro para mim o que realmente se passa em sua cabeça — disse ele à senhora Warwick. — Para uma mulher, a senhora é de fato notavelmente capaz de guardar um segredo. Ou a senhora mesma cometeu este crime, ou sabe quem o cometeu. Isso está certo, não está?

       Ela desviou o olhar enquanto respondia:

       — Não quero discutir esta questão.

       Starkwedder sentou-se na poltrona:

       — Eu gostaria muito de saber o que se passa em sua cabeça. — insistiu.

       — Nesse caso, receio que não vá lhe contar — retorquiu a senhora Warwick. — Como o senhor diz, sou uma mulher que sabe guardar bem os segredos.

       Decidido a tentar uma trilha diferente, Starkwedder disse:

       — Este sujeito, o criado pessoal... o cara que tomava conta de seu filho... — Fez uma pausa, como se tentasse lembrar o nome do criado.

       — Está se referindo a Angell — a senhora Warwick o fez lembrar. — Bem, o que há com Angell?

       — A senhora gosta dele? — perguntou Starkwedder.

       — Não, não gosto, acontece que não me dou com ele — replicou ela. — Mas ele se mostrava eficiente no serviço, e Richard com certeza não era uma pessoa fácil de lidar.

       — Imagino que não — observou Starkwedder. — Mas Angell sabia lidar com essas dificuldades, não é?

       — Fazia com que isso tivesse o seu valor reconhecido — foi a estranha resposta da senhora Warwick.

       Starkwedder mais uma vez começou a andar de um lado para o outro da sala. Em seguida, virou-se para encarar a senhora Warwick e, tentando extrair alguma coisa dela, perguntou:

       — Richard tinha alguma coisa contra ele?

       A velha senhora pareceu intrigada por um momento.

       — Contra ele? — repetiu. — O que quer dizer? Ah, entendo. Está querendo dizer, Richard sabia de alguma coisa que comprometesse Angell?

       — Sim, é isso que eu quero dizer — Starkwedder afirmou. — Ele tinha algum domínio sobre Angell?

       A senhora Warwick pensou por um momento antes de replicar. Em seguida, concluiu:

       — Não, acho que não — disse ela.

       — Eu estava só pensando... — começou Starkwedder.

       — O senhor quer dizer — interpôs a senhora Warwick com impaciência — que foi Angell quem atirou em meu filho? Duvido. Duvido muito.

       — Entendo. Essa a senhora não compra — observou Starkwedder. — Uma pena, mas aí está.

       A senhora Warwick se levantou de repente.

       — Obrigada, senhor Starkwedder — disse ela. — O senhor foi muito gentil.

       Estendeu-lhe a mão. Divertido com o jeito brusco da senhora, ele apertou-lhe a mão, e foi até a porta a fim de abri-la para ela. Após um momento, ela saiu da sala. Starkwedder fechou a porta atrás da senhora Warwick, sorrindo.

       — Bem, que droga! — exclamou consigo mesmo, enquanto olhava de novo para o envelope. — Que mulher!

       Com um gesto apressado, pôs o envelope no bolso, enquanto a senhorita Bennett entrava na sala parecendo aborrecida e preocupada.

       — O que ela andou dizendo ao senhor? — quis saber a governanta.

       Apanhado de surpresa, Starkwedder tentou ganhar tempo.

       — Hein? O que é isso? — respondeu.

       — A senhora Warwick... o que ela andou dizendo? — perguntou a senhorita Bennett de novo.

       Evitando uma resposta direta, Starkwedder observou meramente:

       — A senhorita parece perturbada.

       — É claro que estou perturbada — replicou ela. — Eu sei do que ela é capaz.

       Starkwedder olhou para a governanta com firmeza antes de perguntar:

       — Do que a senhora Warwick é capaz? Assassinato?

       A senhorita Bennett deu um passo em direção a ele.

       — Foi nisso que ela esteve tentando fazer o senhor acreditar? — indagou ela. — Isso não é verdade, o senhor sabe. O senhor precisa entender. Isso não é verdade.

       — Bem, não se pode ter certeza. Afinal, poderia ser — observou ele em tom judicioso.

       — Mas eu lhe digo que não é — insistiu ela.

       — Como é possível que a senhorita saiba disso? — perguntou Starkwedder.

       — Eu sei — replicou a senhorita Bennett com forte entonação. — O senhor acha que existe alguma coisa que eu não saiba sobre as pessoas nesta casa? Estou com eles há anos. Anos, repito. — Sentou-se na poltrona. — Tenho muito afeto por eles... todos eles.

       — Inclusive pelo falecido Richard Warwick? — perguntou Starkwedder.

       A senhorita Bennett pareceu perdida em pensamentos por um instante. E depois, divagou:

       — Eu gostava dele... antes — replicou.

       Houve uma pausa. Starkwedder sentou-se no banquinho e fitou-a antes de murmurar:

       — Prossiga.

       — Ele mudou — disse a senhorita Bennett. — Transformou-se numa... aberração. Toda a sua personalidade se tornou bastante diferente. Às vezes ele podia ser um verdadeiro demônio.

       — É, todo mundo parece estar de acordo quanto a isso — observou Starkwedder.

       — Mas se o senhor o tivesse conhecido como ele era... — começou ela.

       Starkwedder a interrompeu.

       — Não acredito nisso, sabe. Não acho que as pessoas mudem.

       — Richard mudou — insistiu a senhorita Bennett.

       — Oh, não, não mudou — contradisse Starkwedder, retomando a perambulação pela sala. — Aposto que a senhorita vê as coisas exatamente pelo lado contrário. Eu diria que, no fundo, ele sempre foi um demônio. Diria que ele foi uma daquelas pessoas que têm de ser felizes e bem-sucedidas... senão! Elas escondem seu verdadeiro eu pelo tempo que isso é necessário para obter o que querem. Mas, por baixo disso, o traço ruim está sempre lá. — Voltou-se para encarar a senhorita Bennett. — Sua crueldade, aposto, sempre esteve lá. Provavelmente, foi um valentão na escola. Era atraente para as mulheres, claro. As mulheres sempre se sentem atraídas pelos valentões. E ele satisfazia um bocado de seu sadismo nestas caçadas de grande porte, atrevo-me a dizer. — Indicou os troféus de caça nas paredes. — Richard Warwick deve ter sido um monstro de egoísmo — continuou ele. — É como ele me parece pela maneira como todos vocês falam dele. Ele gostava de construir sua imagem como a de um bom sujeito, generoso, bem-sucedido, amável, e todo o resto. — Starkwedder ainda estava andando de um lado para o outro numa atitude inquieta. — Mas o traço mesquinho estava lá, com certeza. E quando veio o acidente, aconteceu apenas que a máscara foi arrancada, e todos vocês o viram como ele realmente era.

       A senhorita Bennett se levantou.

       — Não sei o que senhor tem a ver com isso para estar falando assim — exclamou, indignada. — O senhor é um estranho e não sabe de nada a respeito disso.

       — Talvez não, mas já ouvi um bocado de coisas sobre o assunto — retorquiu Starkwedder. — Todo mundo parece falar comigo por algum motivo.

       — Sim, suponho que falem. É, eu mesma estou falando com o senhor agora, não estou? — admitiu ela, enquanto se sentava de novo.

       — Isso é porque nenhum de nós aqui se atreve a falar um com o outro. — Ergueu os olhos para ele numa expressão de apelo. — Eu queria que o senhor não estivesse indo embora — disse-lhe.

       Starkwedder sacudiu a cabeça.

       — Não fiz nada para ajudar de jeito nenhum, na verdade — comentou. — Tudo o que fiz foi tropeçar aqui dentro e encontrar um cadáver para vocês.

       — Mas fomos Laura e eu quem descobrimos o corpo de Richard — contrapôs a senhorita Bennett. Fez uma pausa e de repente acrescentou — Ou foi Laura... o senhor...? — Sua voz foi sumindo num silêncio.

 

Starkwedder olhou para a senhorita Bennett e sorriu.

— A senhorita é bastante perspicaz, não é? — observou ele.

       A senhorita Bennett olhou fixamente para ele.

       — O senhor a ajudou, não foi? — indagou ela, fazendo a pergunta soar como uma acusação.

       Ele se afastou dela.

       — Agora, a senhorita está imaginando coisas — disse-lhe.

       — Ah, não estou, não — retorquiu a senhorita Bennett. — Quero que Laura seja feliz. Ah, eu quero tanto que ela seja feliz!

       Starkwedder voltou-se para ela, exclamando com paixão:

       — Droga, eu também quero!

       A senhorita Bennett olhou para ele, surpresa. Em seguida, começou a falar.

       — Nesse caso eu... eu tenho de... — começou ela, mas foi interrompida.

       Fazendo um gesto para que ficasse em silêncio, Starkwedder sussurrou:

       — Só um minuto. — Correu até as portas envidraçadas, abriu uma das folhas e gritou — O que é que você está fazendo?

       A senhorita Bennett avistou Jan no gramado, brandindo um revólver. Levantando-se depressa, também ela cruzou as portas de vidro e gritou em tom urgente:

       — Jan! Jan! Dê-me essa arma.

       Jan, entretanto, foi rápido demais para ela. Fugiu às pressas, rindo e gritando:

       — Venha pegar! — repetia enquanto corria desabalado.

       A senhorita Bennett o seguiu, gritando desesperadamente:

       — Jan! Jan!

       Starkwedder olhou para o jardim, tentando ver o que estava acontecendo. Em seguida, voltou-se e se achava prestes a ir até a porta quando Laura entrou na sala.

       — Onde está o inspetor? — perguntou a ele.

       Starkwedder fez um gesto sem qualquer efeito. Laura fechou a porta atrás de si e veio até ele.

       — Michael, você precisa me ouvir — implorou-lhe. — Julian não matou Richard.

       — É mesmo? — replicou Starkwedder friamente. — Ele lhe disse isso, foi?

       — Você não me acredita, mas é verdade. — Laura estava desesperada.

       — Você quer dizer que acredita que isso é verdade — salientou Starkwedder para ela.

       — Não, eu sei que é verdade — replicou Laura. — Veja você, ele pensava que eu tinha matado Richard.

       Starkwedder entrou de novo na sala, afastando-se das portas envidraçadas.

       — Isso não é exatamente uma surpresa — disse ele com um sorriso ácido. — Eu também pensei, não foi?

       A voz de Laura soou ainda mais desesperada quando insistiu:

       — Ele pensou que eu havia atirado em Richard. Mas não conseguiu lidar com isso. Fazia com que se sentisse... — Deteve-se, constrangida, e depois continuou: — Isso fazia com que se sentisse diferente em relação a mim.

       Starkwedder olhou para ela com frieza.

       — Ao passo que — destacou ele — quando você pensou que de tinha matado Richard, assumiu a culpa sem nem um piscar de olhos! — Subitamente abrandando um pouco, sorriu. — As mulheres são maravilhosas! — murmurou. Empoleirou-se no braço do sofá. — O que fez Farrar se sair com o fato prejudicial de que ele esteve aqui ontem à noite? Não me diga que foi uma pura e simples consideração pela verdade.

       — Foi Angell — replicou Laura. — Angell viu... ou diz que viu... Julian aqui.

       — Sim — observou Starkwedder com um riso um tanto amargo. — Pensei ter sentido um bafo de chantagem. Não é exatamente um bom sujeito, esse tal de Angell.

       — Ele diz que viu Julian logo depois de... depois de o tiro ter sido disparado — contou-lhe Laura. — Oh, eu estou assustada. Está tudo se fechando sobre nós. Estou com tanto medo.

       Starkwedder pegou-a pelos ombros.

       — Não precisa ter medo — afirmou em tom tranquilizador — Vai ficar tudo bem.

       Laura sacudiu a cabeça.

       — Não pode ser! — gritou ela.

       — Vai ficar tudo bem, estou lhe dizendo — insistiu ele, sacudindo-a com delicadeza.

       Laura olhou para ele com expressão indagadora.

       — Será que um dia saberemos quem atirou em Richard? — perguntou.

       Starkwedder olhou para ela por um momento sem responder; em seguida, foi até às portas envidraçadas e lançou o olhar para o jardim.

       — A sua senhorita Bennett — disse ele — parece estai certa de que sabe todas as respostas.

       — Ela é sempre positiva — replicou Laura. — Mas algumas vezes está enganada.

       Aparentemente entrevendo alguma coisa lá fora, Starkwedder de repente acenou para Laura a fim de que a moça se juntasse a ele. Correndo até o outro lado da sala, ela pegou sua mão estendida.

       — Sim, Laura — exclamou Starkwedder, agitado, ainda olhando para o jardim. — Foi o que eu pensei!

       — O que é? — perguntou ela.

       — Psiu! — acautelou ele. Quase no mesmo momento, a senhorita Bennett entrou na sala, vindo do saguão.

       — Senhor Starkwedder? — chamou ela em tom apressado. — Vá para a sala ao lado... o inspetor já está lá. Depressa!

       Starkwedder e Laura atravessaram o gabinete a toda pressa e rumaram para o corredor, fechando a porta atrás de si. Assim que saíram, a senhorita Bennett olhou para o jardim, onde a luz do dia começava a cair.

       — Agora entre, Jan — chamou. — Não me provoque mais. Venha, entre em casa.

 

A Senhorita Bennett fez um gesto para Jan e, em seguida, recuou para dentro da sala, postando-se de um dos lados da porta envidraçada. Jan de repente surgiu, vindo do terraço, com uma aparência meio rebelada e meio corada de triunfo. Estava carregando uma arma.

       — Agora, Jan, me diga, como você conseguiu se apoderar dessa arma? — perguntou-lhe a senhorita Bennett.

       Jan entrou na sala.

       — Você achou que era tão esperta, não foi, Benny? — indagou ele em tom francamente beligerante. — Muito esperta, trancando todas as armas do Richard lá dentro. — Fez um gesto com a cabeça na direção do corredor. — Mas eu achei uma chave que abria o armário das armas. Agora eu tenho uma arma, igualzinho ao Richard. Eu vou ter um monte de revólveres e pistolas. Vou atirar nas coisas. — Subitamente, ergueu a arma e apontou-a para a senhorita Bennett, que se encolheu. — Tenha cuidado, Benny — prosseguiu ele com uma risada —, eu posso dar um tiro em você.

       A senhorita Bennett tentou não parecer alarmada demais quando disse, no tom mais tranquilizador que conseguiu evocar:

       — Ora, você não faria uma coisa dessas, Jan, tenho certeza de que não faria.

       Jan continuou a apontar o revólver para a senhorita Bennett, mas após alguns momentos o baixou.

       A senhorita Bennett relaxou ligeiramente, e, após uma pausa, Jan exclamou, num tom doce e um tanto ansioso:

       — Não, eu não faria isso. É claro que não faria.

       — Afinal, não é como se você fosse um rapaz inconsequente — disse-lhe a senhorita Bennett em tom tranquilizador. — Você agora é um homem, não é?

       Jan ficou radiante. Caminhou até a escrivaninha e sentou-se na cadeira.

       — Sim, sou um homem — concordou. — Agora que Richard morreu, eu sou o único homem desta casa.

       — É por isso que eu sei que você não iria atirar em mim — disse a senhorita Bennett. — Você só atiraria num inimigo.

       — Tem razão! — exclamou Jan com deleite.

       Como se estivesse escolhendo as palavras com todo cuidado, a senhorita Bennett disse:

       — Durante a guerra, se você estava na Resistência, quando matava um inimigo, você marcava um entalhe em sua arma.

       — É verdade isso? — respondeu Jan, examinando o revólver. — Eles faziam isso mesmo? — Olhou ansiosamente para a senhorita Bennett. — Algumas pessoas tinham uma porção de marcas?

       — Tinham — replicou ela —, algumas pessoas tinham uma bela quantidade de marcas.

       Jan gargalhou de alegria.

       — Que divertido! — exclamou.

       — É claro — continuou a senhorita Bennett — que algumas pessoas não gostam de matar... mas outras pessoas gostam.

       — Richard gostava — lembrou a ela Jan.

       — Sim, Richard gostava de matar coisas — admitiu a senhorita Bennett. Virou-se de costas para ele com naturalidade, enquanto acrescentava: — Você gosta de matar coisas também, não gosta Jan?

       Sem ser visto por ela, Jan tirou um canivete do bolso e começou a fazer uma marca na coronha da arma.

       — É excitante matar coisas — observou com ligeira petulância.

       A senhorita Bennett voltou-se para encará-lo.

       — Você não queria que Richard o mandasse embora, queria, Jan?

       — Ele disse que ia mandar — retorquiu Jan, magoado. — Ele era um animal!

       A senhorita Bennett caminhou em volta da cadeira da escrivaninha na qual Jan ainda estava sentado.

       — Você disse a Richard uma vez — ela o fez lembrar — que o mataria se ele o mandasse embora.

       — Eu disse? — respondeu Jan. Soava indiferente, como que falando sem pensar.

       — Mas você não o matou? — perguntou a senhorita Bennett, sua entonação transformando as palavras apenas numa meia pergunta.

       — Oh, não, eu não o matei. — Mais uma vez Jan soava despreocupado.

       — Isso foi uma grande fraqueza de sua parte — observou a senhorita Bennett.

       Havia uma expressão matreira nos olhos de Jan quando ele retrucou:

       — Foi?

       — Sim, eu acho. Dizer que ia matá-lo, e depois não fazer isso. — A senhorita Bennett andava em torno da escrivaninha, mas olhava na direção da porta. — Se alguém estivesse tentando me trancar num hospital, eu ia querer matá-lo, e faria isso mesmo.

       — Quem disse que foi alguma outra pessoa que fez isso? — retorquiu Jan depressa. — Talvez tenha sido eu.

       — Ah, não, não poderia ser você — disse a senhorita Bennett em tom de rejeição. — Você é apenas um menino. Você não se atreveria.

       Jan deu um pulo e afastou-se dela.

       — Você acha que eu não teria coragem? — Sua voz era quase um ganido. — É isso que você acha?

       — Claro que é isso que eu acho. — Ela agora parecia estar deliberadamente escarnecendo dele. — Claro que você não se atreveria a matar Richard. Teria de ser muito corajoso e adulto para fazer isso.

       Jan deu-lhe as costas e afastou-se.

       — Você não sabe de nada, Benny — disse ele, magoado. — Ah, não, velha Benny. Você não sabe de nada.

       — Há alguma coisa que eu não saiba? — perguntou a senhorita Bennett. — Você está rindo de mim, Jan? — Aproveitando a oportunidade, ela abriu uma fresta da porta. Jan achava-se de pé junto às portas envidraçadas, de onde um facho de luz do sol poente brilhava cruzando a sala.

       — Sim, sim, estou rindo — gritou Jan de repente para ela. — Estou rindo porque sou muito mais esperto que você.

       Voltou para dentro da sala. A senhorita Bennett teve um sobressalto involuntário e agarrou a moldura da porta. Jan deu um passo em direção a ela.

       — Eu sei coisas que você não sabe — acrescentou Jan, falando em tom mais sóbrio.

       — O que você sabe que eu não sei? — perguntou a senhorita Bennett. Tentou não parecer ansiosa demais.

       Jan não deu nenhuma resposta, mas simplesmente sorriu com ar misterioso. A senhorita Bennett se aproximou dele.

       — Não vai me contar? — perguntou ela, usando de persuasão. — Não vai me confiar seu segredo?

       Jan afastou-se dela.

       — Eu não confio em ninguém — respondeu ele com amargura.

       A senhorita Bennett mudou seu tom para uma expressão de perplexidade.

       — Agora eu fico pensando — murmurou ela. — Imaginando que talvez você tenha sido muito esperto.

       Jan deu umas risadinhas.

       — Você está começando a ver o quanto eu posso ser esperto — disse-lhe.

       A governanta o observou, parecendo analisá-lo.

       — Talvez haja uma porção de coisas que eu não sei — concordou.

       — Ah, montes e montes — garantiu-lhe Jan. — E eu sei um monte de coisas sobre todas as outras pessoas, mas nem sempre conto. Eu me levanto às vezes durante a noite e me esgueiro pela casa. Vejo uma porção de coisas e descubro uma porção de coisas, mas não conto.

       Adotando um ar conspiratório, a senhorita Bennett perguntou:

       — Você tem algum grande segredo agora?

       Jan passou uma perna por cima do banquinho, sentando-se nele como se estivesse numa sela.

       — Grande segredo! Grande segredo! — guinchou ele, deliciado. — Você ficaria apavorada se soubesse — acrescentou, rindo de maneira quase histérica.

       A senhorita Bennett chegou mais perto dele.

       — Ficaria? Eu ficaria apavorada? — perguntou ela. — Eu ficaria com medo de você, Jan? — Postando-se bem diante de Jan, olhou intensamente para ele.

       Jan ergueu os olhos para ela. A expressão de satisfação deixou o seu rosto, e sua voz estava bem séria quando ele replicou:

       — Sim, você ficaria com muito medo de mim.

       Ela continuou a fitá-lo bem de perto.

       — Nunca soube como você realmente era — admitiu ela. — Estou apenas começando a compreender como você é, Jan.

       As alterações de humor de Jan estavam ficando mais pronunciadas. Soando cada vez mais rebelde, ele exclamou:

       — Ninguém sabe realmente nada sobre mim, ou sobre as coisas que eu posso fazer. — Girou no banquinho e sentou-se de costas para ela. — Aquele bobão do Richard, sentado ali e atirando naqueles pássaros idiotas. — Voltou-se para a senhorita Bennett, acrescentando em tom intenso: — Ele não achava que alguém fosse atirar nele, achava?

       — Não — replicou ela. — Não, e esse foi o seu erro.

       Jan se levantou.

       — Sim, esse foi o seu erro — concordou. — Ele achou que podia me mandar embora, não é? Eu mostrei a ele.

       Jan olhou para ela com ar manhoso. Fez uma pausa e finalmente disse:

       — Não vou lhe contar.

       — Oh, por favor, me conte, Jan — implorou ela.

       — Não — retorquiu, afastando-se dela. Foi até a poltrona e subiu nela, aninhando a arma contra o rosto. — Não, eu não vou contar a ninguém.

       A senhorita Bennett foi até ele.

       — Talvez você tenha razão — disse-lhe. — Talvez eu possa adivinhar o que você fez, mas não vou dizer. Será apenas o seu segredo, não é?

       — Sim, é o meu segredo — replicou Jan. Ele começou a se movimentar irrequieto pela sala. — Ninguém sabe como eu sou — exclamou com excitação. — Eu sou perigoso. E melhor eles tomarem cuidado. Todo mundo tem de tomar cuidado. Eu sou perigoso.

       A senhorita Bennett olhou para ele com tristeza.

       — Richard não sabia o quanto você era perigoso — disse ela. — Deve ter ficado surpreso.

       Jan voltou à poltrona e olhou para o assento.

       — Ele ficou. Ficou surpreso — concordou. — Sua cara ficou boba. E então... e então sua cabeça caiu quando a coisa estava feita, e havia sangue, e ele não se mexeu mais. Eu mostrei a ele. Mostrei a ele! Richard não vai me mandar embora agora!

       Empoleirou-se no sofá, acenando com a arma para a senhorita Bennett, que estava tentando conter as lágrimas.

       — Olhe — ordenou-lhe Jan. — Está vendo? Eu marquei um dente na minha arma! — Tocou o revólver com seu canivete.

       — Então você marcou! — exclamou a senhorita Bennett, aproximando-se dele. — Isso não é excitante? — A governanta tentou agarrar a arma, mas o rapaz foi rápido demais para ela.

       — Ah, não, você não vai me pegar — gritava ele, enquanto se esquivava dela numa espécie de dança. — Ninguém vai tirar minha arma de mim. Se a polícia vier e tentar me prender, eu atiro neles.

       — Não é preciso fazer isso — garantiu-lhe a senhorita Bennett. — Nenhuma necessidade, de jeito algum. Você é esperto. Tão esperto que eles nunca iriam suspeitar de você.

       — Polícia boba! Polícia boba! — clamou Jan em júbilo. — E Richard bobo! — Brandiu o revólver para um Richard imaginário, e depois avistou a porta se abrindo. Com um grito de alarme, fugiu depressa para o jardim. A senhorita Bennett desabou em lágrimas no sofá, enquanto o inspetor Thomas entrava correndo na sala, seguido pelo sargento Cadwallader.

 

—Atrás dele! Depressa! — gritou o inspetor para Cadwallader enquanto entravam correndo na sala. O sargento disparou para o terraço através das portas envidraçadas, no momento em que Starkwedder chegava à sala, apressado, vindo do corredor. Foi seguido por Laura, que correu até as portas de vidro e olhou para fora. Angell foi o próximo a aparecer. Também ele saiu pelas portas da varanda. A senhora Warwick manteve-se de pé, uma figura ereta, no umbral.

       O inspetor Thomas voltou-se para a senhorita Bennett.

       — Calma, calma, minha cara — confortou-a. — Não deve encarar as coisas assim. A senhorita fez muito bem.

       Numa voz entrecortada, a senhorita Bennett replicou.

       — Eu sabia o tempo todo — contou ao inspetor. — Veja o senhor, eu conheço o modo de ser do Jan melhor do que qualquer outra pessoa. Sabia que Richard o estava pressionando demais, e sabia... já vinha sabendo há algum tempo... que Jan estava ficando perigoso.

       — Jan! — exclamou Laura. Com um suspiro de profunda tristeza, ela murmurou: — Oh, não, Jan não, não. — Afundou na cadeira da escrivaninha. — Não consigo acreditar — prosseguiu, ofegante.

       A senhora Warwick fuzilou com os olhos a senhorita Bennett.

       — Como pôde fazer isso, Benny? — perguntou ela em tom acusador. — Como pôde? Eu achava que pelo menos você seria leal.

       A resposta da senhorita Bennett foi desafiadora.

       — Há ocasiões — replicou ela para a velha dama — em que a verdade é mais importante do que a lealdade. Vocês não viram... nenhum de vocês... que Jan estava se tornando perigoso. Ele é um menino adorável... um doce rapaz... mas... — Vencida pelo pesar, ela não conseguiu continuar.

       A senhora Warwick se encaminhou lenta e tristemente para a poltrona e sentou-se, fitando o espaço.

       Falando com calma, o inspetor completou o pensamento da senhorita Bennett.

       — Mas quando eles passam de uma certa idade, ficam perigosos, porque não compreendem mais o que estão fazendo — observou. — Não têm o juízo ou o controle de um homem. — Foi até a senhora Warwick. — A senhora não deve se afligir, madame. Acho que posso assumir a responsabilidade pessoal de dizer que ele será tratado com toda humanidade e consideração. Há uma clara argumentação para a defesa, acredito, no sentido de que ele não é responsável por seus atos. Isso significará a detenção num ambiente confortável. E isso, a senhora sabe, é o que viria a acontecer em breve, de qualquer maneira. — Voltou-se e atravessou a sala, fechando a porta do vestíbulo quando passou.

       — Sim, sim, eu sei que você tem razão — admitiu a senhora Warwick. Voltando-se para a senhorita Bennett, disse: — Desculpe, Benny. Você disse que ninguém mais sabia que ele era perigoso. Isso não é verdade. Eu sabia... mas não consegui me forçar a fazer nada a esse respeito.

       — Alguém tinha de fazer alguma coisa! — replicou Benny com firmeza. A sala caiu em silêncio, mas a tensão subia enquanto todos aguardavam pelo retorno do sargento Cadwallader com Jan preso.

       Junto à estrada, a várias centenas de metros da casa, com uma neblina começando a se fechar, o sargento mantinha Jan acuado contra um muro alto. Jan brandia a arma, berrando.

       — Não chegue mais perto. Ninguém vai me trancar em lugar nenhum. Eu atiro em você. Estou falando sério. Não tenho medo de ninguém!

       O sargento parou a uns bons cinqüenta metros.

       — Agora, vamos, garoto — chamou, tentando persuadi-lo.  — Ninguém vai machucar você. Mas armas são coisas perigosas. Basta que me dê isso e volte para a casa comigo. Você pode conversar com sua família, e eles vão ajudá-lo.

       Avançou alguns passos em direção a Jan, mas deteve-se quando o rapaz gritou, histérico:

       — Estou falando sério. Vou atirar em você. Não dou a mínima para policiais. Não tenho medo de vocês.

       — É claro que não — replicou o sargento. — Você não tem motivo para sentir medo de mim. Eu não machucaria você. Mas volte para casa comigo. Vamos, agora. — Deu um passo à frente outra vez, mas Jan fez um movimento brusco com a arma e disparou dois tiros em rápida sucessão. O primeiro errou o alvo, mas o segundo atingiu Cadwallader na mão esquerda. Ele deu um grito de dor, mas correu até Jan, derrubando-o no chão para tentar tirar o revólver do rapaz. Enquanto lutavam, a arma subitamente disparou mais uma » vez. Jan emitiu um rápido engasgo e caiu em silêncio.

       Horrorizado, o sargento ajoelhou-se sobre ele, fitando-o com incredulidade.

       — Não, oh, não — murmurou. — Pobre menino tolo. Não! Você não pode estar morto. Oh, por favor, meu Deus... — Verificou o pulso de Jan, e depois sacudiu a cabeça lentamente. Erguendo-se, recuou devagar por alguns passos, e só então percebeu que sua mão sangrava em profusão. Enrolando um lenço em torno dela, correu de volta à casa, segurando o braço esquerdo no ar e arfando de dor.

       Quando chegou às janelas envidraçadas, estava cambaleando.

       — Senhor! — chamou, enquanto o inspetor e os demais corriam para a varanda.

       — Que diabos aconteceu? — perguntou o inspetor.

       Com o fôlego vindo com dificuldade, o sargento replicou:

       — É terrível o que eu tenho para lhes contar.

       Starkwedder ajudou-o a entrar na sala, e o sargento cambaleou até o banquinho, desabando sobre ele.

       O inspetor foi depressa para o seu lado.

       — Sua mão! — exclamou.

       — Vou cuidar disso — murmurou Starkwedder. Erguendo o braço do sargento Cadwallader, jogou fora o pedaço de pano agora totalmente encharcado de sangue, tirou um lenço de seu próprio bolso e começou a amarrá-lo em volta da mão do sargento.

       — A neblina está se aproximando, veja — começou Cadwallader a explicar. — Ficou difícil enxergar com clareza. Ele atirou em mim. Lá adiante, junto à estrada, perto da beira daquele pequeno bosque.

       Com uma expressão de horror no rosto, Laura se levantou e foi até a porta de vidro.

       — Ele atirou em mim duas vezes — o sargento estava dizendo — e na segunda conseguiu acertar minha mão.

       A senhorita Bennett se levantou de repente, levando a mão à boca.

       — Tentei tirar a arma dele — continuou o sargento —, mas a minha mão me atrapalhou, o senhor está vendo...

       — Sim. O que aconteceu? — apressou-o o inspetor.

       — Seu dedo estava no gatilho — respondeu o sargento ofegante — e ele disparou. O tiro atravessou o coração. Ele está morto.

 

A comunicação do sargento Cadwallader foi recebida com um silêncio estupefato. Laura pôs a mão sobre a boca a fim de sufocar um grito, em seguida moveu-se lentamente de volta à cadeira da escrivaninha, onde se sentou, fitando o chão. A senhora Warwick baixou a cabeça e se apoiou na bengala. Starkwedder ficou andando de um lado para o outro da sala, parecendo distraído.

       — Tem certeza de que ele está morto? — perguntou o inspetor.

       — Tenho, de fato — replicou o sargento. — Pobre jovem, gritando desafios contra mim, disparando aquele seu revólver como se adorasse o som dos tiros.

       O inspetor atravessou as portas envidraçadas.

       — Onde está ele?

       — Irei com o senhor e lhe mostrarei — respondeu o sargento, esforçando-se para se levantar.

       — Não, é melhor que fique aqui.

       — Estou bem agora — insistiu o sargento. — Vai ficar tudo certo até que voltemos à delegacia. — Caminhou até o terraço, oscilando ligeiramente. Olhando de volta para os demais, o rosto coberto de tristeza, murmurou com ar distraído — “Não se deveria, com certeza, temer quem está morto.” É de Pope. Alexander Pope. — Meneou a cabeça e se afastou, devagar.

       O inspetor virou-se para encarar a senhora Warwick e os demais.

       — Sinto muito, mais do que sou capaz de expressar, mas talvez esta tenha sido a melhor saída — disse ele, acompanhando em seguida o sargento em direção ao jardim.

       A senhora Warwick observou-o ir embora.

       — A melhor saída! — exclamou, meio zangada, meio desesperada.

       — Sim, sim — suspirou a senhorita Bennett. — Foi o melhor. Ele está fora disso agora, pobre rapaz. — Encaminhou-se para ajudar a senhora Warwick a se levantar. — Venha, minha querida, venha, isso tudo foi demais para a senhora.

       A velha dama olhou para ela com expressão vaga.

       — Eu... eu vou me deitar — murmurou, enquanto a senhorita Bennett a conduzia até a porta. Starkwedder abriu-a para elas, em seguida tirou um envelope do bolso, estendendo-o à senhora Warwick. — Acho que é melhor ficar com isso de volta — sugeriu.

       Ela se virou no umbral e pegou o envelope da mão dele.

       — É — replicou. — Não há nenhuma necessidade disso agora.

       A senhora Warwick e a senhorita Bennett saíram da sala. Starkwedder achava-se prestes a fechar a porta atrás delas quando se deu conta de que Angell estava se dirigindo até Laura, a qual ainda se encontrava sentada à escrivaninha. Ela não se moveu com a aproximação do criado.

       — Permita que lhe diga, madame — abordou-a Angell —, o quanto lamento. Se houver alguma coisa que eu possa fazer, basta que a senhora...

       Sem erguer os olhos, Laura o interrompeu:

       — Não iremos mais precisar dos seus serviços, Angell — disse-lhe ela com frieza. — Você receberá um cheque por seus vencimentos, e eu gostaria que estivesse fora desta casa hoje mesmo.

       — Sim, madame. Obrigado, madame — replicou Angell, aparentemente sem ressentimentos; em seguida, voltou-se e saiu da sala. Starkwedder fechou a porta atrás dele. A sala agora estava ficando escura, os últimos raios de sol lançando sombras sobre as paredes.

       Starkwedder olhou para Laura do outro lado do gabinete.

       — Você não vai processá-lo por chantagem? — perguntou.

       — Não — replicou Laura, em tom apático.

       — Uma pena. — Caminhou até ela. — Bem, suponho que seja melhor eu ir andando. Vou dizer adeus. — Fez uma pausa. Laura ainda não tinha olhado para ele. — Não fique tão aflita — acrescentou.

       — Eu estou aflita — respondeu Laura cheia de sentimento.

       — Porque você amava o menino? — perguntou Starkwedder.

       Laura voltou-se para ele.

       — Sim. E porque é minha culpa. Entenda, Richard estava certo. O pobre Jan deveria ter sido mandado para algum lugar. Ele deveria ter sido isolado onde não pudesse causar nenhum mal. Fui eu quem não admitiu isso. Então, na verdade, é por minha culpa que Richard hoje está morto.

       — Ora, vamos, Laura, não seja sentimental — retorquiu Starkwedder com aspereza. Chegou mais perto dela. — Richard foi morto porque estava pedindo por isso. Ele podia ter demonstrado uma certa bondade para com o rapaz, não podia? Não se lamente. O que você tem de fazer agora é ser feliz. Feliz para sempre, como dizem nas histórias.

       — Feliz? Com Julian? — respondeu Laura com amargura na voz. — Imagine! — Franziu o cenho. — Entenda, não é mais a mesma coisa agora.

       — Está querendo dizer, entre Farrar e você? — perguntou ele.

       — É. Veja você, quando eu pensei que Julian havia matado Richard, isso não fez nenhuma diferença para mim. Continuei a amá-lo do mesmo modo. — Laura fez uma pausa e prosseguiu: — Estava até disposta a dizer que eu mesma tinha feito aquilo.

       — Eu sei que você estava — disse Starkwedder. — Mais boba ainda. Como as mulheres gostam de se fazer de mártires!

       — Mas quando Julian pensou que eu tinha feito aquilo — prosseguiu Laura em tom apaixonado —, ele mudou. Mudou completamente em relação a mim. Ah, ele estava disposto a ter a decência de não me incriminar. Mas só isso. — Apoiou o queixo na mão, desanimada. — Ele não sentia mais a mesma coisa.

       Starkwedder sacudiu a cabeça.

       — Olhe aqui, Laura — ele exclamou —, homens e mulheres não reagem da mesma maneira. O que se resume ao seguinte: os homens são o sexo realmente sensível. As mulheres são resistentes. Os homens não conseguem lidar com o crime em suas vidas. As mulheres, aparentemente, sim. O fato é que, se um homem comete um crime por uma mulher, isso provavelmente acentua o seu valor aos olhos dela. Um homem se sente de maneira diferente.

       Ela ergueu os olhos para ele.

       — Você não se sentiu dessa maneira — observou ela. — Quando achou que eu tinha atirado em Richard, você me ajudou.

       — Isso foi diferente — retrucou Starkwedder, depressa. Parecia ligeiramente surpreso. — Eu tinha de ajudá-la.

       — Por que você tinha de me ajudar? — quis saber Laura.

       Starkwedder não respondeu de maneira direta. Então, depois de uma pausa, disse calmamente:

       — Eu ainda quero ajudar você.

       — Não está vendo — disse Laura, virando as costas para ele — que estamos de volta ao lugar onde começamos? De certa maneira, fui eu quem matou Richard porque... porque estava sendo tão teimosa com relação a Jan.

       Starkwedder puxou o banquinho e sentou-se ao lado dela.

       — Isso na verdade é o que a está consumindo, não é? — declarou ele. — Descobrir que foi Jan quem atirou em Richard. Mas isso não precisa ser verdade, sabia? Não precisa pensar desta forma, a menos que queira.

       Laura fitou-o intensamente.

       — Como pode dizer uma coisa dessas? — perguntou ela. — Eu ouvi... nós todos ouvimos... ele confessou... ele se gabou disso.

       — Oh, sim — admitiu Starkwedder. — Sim, eu sei disso. Mas o quanto nós sabemos sobre o poder da sugestão? A senhorita Bennett conduziu Jan com muito jeito, deixou-o todo enredado. E o garoto com certeza era sugestionável. Gostava da idéia, como acontece com muitos adolescentes, de ver as pessoas achando que ele tinha poder, que... sim, que era capaz de ser um assassino, se preferir pôr nestes termos. A Benny balançou a isca na frente dele, e o garoto a pegou. Ele tinha atirado em Richard, fez uma marca em sua arma, e era um herói! — Deteve-se. — Mas você não sabe... nenhum de nós realmente sabe... se o que ele disse era verdade.

       — Mas, pelo amor de Deus, ele atirou no sargento! — protestou Laura.

       — Ah, sim, ele era, com certeza, um assassino potencial! — acedeu Starkwedder. — É bem provável que ele tenha atirado em Richard. Mas você não pode dizer com certeza que ele o fez. Pode ter sido... — Ele hesitou. — Poderia ter sido uma outra pessoa.

       Laura olhou para ele com expressão descrente.

       — Mas quem? — perguntou, incrédula.

       Starkwedder pensou por um momento. E então se decidiu:

       — A senhorita Bennett, talvez — sugeriu. — Afinal de contas, ela gosta muito de todos vocês, e pode ter achado que isso era para o melhor. Ou, do mesmo modo, a senhora Warwick. Ou até seu namorado Julian... depois fingindo achar que tinha sido você. Uma jogada esperta que envolveu você completamente.

       Laura desviou o olhar.

       — Você não acredita no que está dizendo — acusou-o. — Está apenas tentando me consolar.

       Starkwedder pareceu completamente exasperado.

       — Minha querida — argumentou —, qualquer um poderia ter atirado em Richard. Até MacGregor.

       — MacGregor? — perguntou ela, olhando fixo para ele. — Mas MacGregor está morto.

       — É claro que ele está morto — replicou Starkwedder. — Tinha de estar. — Levantou-se e foi até o sofá. — Olhe aqui — continuou —, eu posso montar uma excelente argumentação demonstrando que MacGregor foi o assassino. Dizer que ele decidiu matar Richard como vingança pelo acidente no qual seu garotinho foi morto. — Sentou-se no braço do sofá. — O que é que ele faz? Bem, a primeira coisa é que ele tem de se livrar de sua própria personalidade. Não seria difícil arranjar para que fosse dado como morto em algum lugar remoto do Alasca. Custaria algum dinheiro e um ou outro falso testemunho, mas estas coisas podem ser conseguidas. Depois ele muda de nome e começa a construir uma nova personalidade para si mesmo em algum outro país, num outro emprego.

       Laura fitou-o por um momento e depois saiu da escrivaninha para se sentar na poltrona. Fechando os olhos, respirou fundo. Em seguida abriu-os, olhando para ele de novo.

       Starkwedder continuou com sua narrativa de especulação.

       — Ele não perde de vista o que anda acontecendo por aqui, e quando fica sabendo que vocês saíram de Norfolk e vieram para esta parte do mundo, faz seus planos. Raspa a barba, tinge o cabelo, todo esse tipo de coisa, é claro. Então, numa noite de neblina, vem até aqui. Agora, digamos que tenha se passado assim. — Foi até as portas de vidro e ficou de pé junto a elas. — Digamos que MacGregor provoque Richard: “Eu tenho uma arma e você também. Eu conto até três e nós dois atiramos. Vim para pegar você pela morte do meu menino.”

       Laura olhou para ele estarrecida.

       — Você sabe — prosseguiu Starkwedder —, não acho que seu marido fosse aquele excelente esportista que você pensava. Faço idéia de que ele poderia não ter esperado a contagem até três. Você afirma que ele era um exímio atirador, danado de bom, mas desta vez ele errou, e a bala se desviou por aqui — fez um gesto enquanto saía para o terraço —, indo parar no jardim, onde existem muitas outras balas. Mas MacGregor não erra. Ele atira e mata. — Starkwedder voltou para dentro da sala. — Ele deixa cair o revólver junto ao corpo, pega a arma de Richard, sai pela porta de vidro, e dentro em pouco retorna.

       — Retorna? — indagou Laura. — Por que ele retorna?

       Starkwedder olhou para ela por alguns segundos sem falar. Depois, tomando fôlego, perguntou.

       — Não consegue adivinhar?

       Laura fitou-o com ar admirado. Sacudiu a cabeça:

       — Não, não tenho nenhuma idéia — replicou ela.

       Ele continuou a olhá-la com firmeza. Após uma pausa, falou devagar e com um certo esforço.

       — Bem — disse ele —, suponha que MacGregor tenha um acidente com seu carro e não consiga sair daqui. O que mais ele pode fazer? Apenas uma coisa... vir até a casa e descobrir o corpo!

       — Você fala... — disse Laura com voz entrecortada — você fala como se soubesse exatamente o que aconteceu.

       Starkwedder não conseguiu mais se conter.

       — É claro que eu sei — deixou escapar em tom arrebatado. — Será que não entende? Eu sou MacGregor! — Recostou-se contra as cortinas, sacudindo a cabeça desesperadamente.

       Laura se levantou, uma expressão incrédula no rosto. Deu alguns passos em direção a ele, meio que erguendo o braço, incapaz de apreender o pleno sentido das palavras daquele homem.

       — Você... — murmurou ela... — Você...

       Starkwedder caminhou lentamente em direção a Laura.

       — Nunca pretendi que isto acontecesse — disse-lhe, a voz rouca de emoção. — Quero dizer... encontrar você, e descobrir que eu me interessava por você, e que... Oh, Deus, não há esperança. É irrealizável. — Enquanto ela o olhava fixamente, aturdida, Starkwedder pegou sua mão e beijou-lhe a palma. — Adeus, Laura — disse ele, ainda rouco.

       Saiu depressa pelas portas envidraçadas e desapareceu na neblina. Laura correu para o terraço e chamou por ele:

       — Espere... espere. Volte!

       A névoa redemoinhou e a sirene de neblina de Bristol começou a soar.

       — Volte, Michael, volte! — gritou Laura. Não houve resposta. — Por favor, volte! Eu também gosto de você.

       Ficou ouvindo com toda atenção, mas escutou apenas o som de um carro dando partida no motor e se afastando. A sirene de neblina continuava a tocar enquanto ela ia escorregando contra a porta de vidro e irrompia num incontrolável acesso de soluços.

 

                                                                    Agatha Christie e Charles Osborne  

 

                      

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