Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OFFICE BOY EM APUROS / Bosco Brasil
OFFICE BOY EM APUROS / Bosco Brasil

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OFFICE BOY EM APUROS

 

                   Os apuros da imaginação

Você sabe onde fica o Trópico de Capricórnio? Aproximada­mente a 23° 27'ao sul do Equador. E passa por Sorocaba, São Pau­lo! Pelo menos é o que me diziam lá, onde eu nasci. Era 27 de mar­ço de 1960, um domingo de Ramos.

Por muito tempo infernizei meus pais e irmãos para que me le­vassem até onde passava exatamente o Trópico. Achava que podia ver uma extensa faixa desenhada pelo chão, serpenteando sobre as casas e ruas, vindo de longe e sumindo no horizonte. Foi difícil para os adultos me convencerem que o tal de Trópico de Capricór­nio era apenas uma abstração, uma linha imaginária.

Meio desconfiado, contentei-me em visualizá-lo passando so­bre minha barriga, enquanto esperava o sono. Deve ter sido daí que começou minha mania de imaginar histórias.

Quando me mudei para a capital do Estado com minha família, trouxe na minha bagagem algumas roupas e brinquedos, e, na mi­nha cabeça, uma vasta imaginação, arada e semeada. Fui estudar no Colégio de São Bento, no "centro velho" da cidade de São Pau­lo. O "centrão" é cheio de ruas tortuosas e lojas que a gente nun­ca sabe ao certo o que se propõem a vender.

Aí, conheci pessoas, todo tipo de gente. Alguns quase loucos, outros quase santos. Dos mais bizarros aos mais patéticos. Inacredi­tavelmente reais. Tão reais que, quando eu descrevia um deles aos meus irmãos, eles diziam: "mentir é feio na sua idade".

Mas continuei fazendo os relatos de minhas incursões no cen­tro da cidade. Certo dia, porém, sem nada para relatar, contei uma história que tinha imaginado. Ocorreu um curioso fenômeno. Todos prestaram atenção. A maior atenção. Se acreditavam ou não, era um outro problema. Pelo menos, me ouviam até o final.

O fato é que, a partir daí, contar histórias foi virando a minha profissão. Passei a ganhar a vida colocando-as no papel. Trabalhei em teatro — como ator e diretor —, escrevi radionovelas e roteiros para a TV. Antes disso, tinha sido offíce-boy. E, movido pela minha precária adaptação ao mundo dos adultos, acabei escrevendo meu primeiro livro para a juventude (mesmo porque tenho oito sobrinhos).

0 que é o meu livro, Office-boy em apuros? Uma espécie de jogo (da melhor espécie, porque não tem aqueles dadinhos infernais e possibilita dar boas risadas!). E, no final, acredito que você e eu, os dois jogadores, sairemos ganhando. Aceita jogar? Então dê o pri­meiro lance.

 

 

                   ED ONDA

Sexta-feira.

— Como é? Ainda não ficou pronta minha papelada? Cinco horas da tarde.

Qual é o número da sua ficha? — perguntou a senhora atrás do balcão.

256 — respondeu um homem de terno puído.

Vai ter de esperar. Ainda estamos no 254.

Não dá para andar mais rápido?!

Isto aqui é um cartório, não uma pista de Fórmula 1. Quando chegar sua vez eu chamo seu número pelo alto-falante.

A senhora atrás do balcão encostou-se na cadeira e olhou as unhas: o esmalte já estava descascando, sinal de que o dia estava acabando.

E a sala ainda estava lotada. Cheia de office-boys e senhores de ternos puídos. Impacientes.

De repente, uma sineta soou. Todos olharam para o alto: pela mureta do mezanino um rapaz descia uma cesta cheia de papéis por uma cordinha.

— Estas firmas já estão reconhecidas — gritaram lá de cima. A senhora atrás do balcão retirou os documentos e a cesta subiu

de novo. Ligou o microfone que estava à sua frente. Um zumbido ensurdecedor tomou conta do lugar. Pelo alto-falante, ouviu-se:

— Ficha de número 255. 2-5-5.

Como uma onda, as dúvidas começaram:

O que foi que ela disse?

265!

265 o quê! Foi 6-7-8.

Ela não chamou ninguém. Estava só testando: 1-2-3!

— A senhora tem mesmo de usar esse microfone? — perguntou o senhor de terno puído junto ao balcão. — Ninguém está entendendo nada!

O senhor é o 2-5-5?

Não. Meu número é 2-5-6.

Ainda estamos no 2-5-5. O senhor tem de esperar.

E já ia ligar de novo o microfone quando ouviu um lamento:

— Eu sabia...

A senhora atrás do balcão olhou para o outro lado. Um menino remexia desesperado nos bolsos da calça, na sua pastinha, dentro da meia.

— Eu sou o 2-5-5 — disse o garoto. — Mas eu não sei onde foi parar a ficha.

Ela tinha visto aquele office-boy antes. Aparecia sempre por lá e chamava muito a atenção: as roupas extravagantes vestidas uma sobre a outra, sempre maiores que seu tamanho; um cabelo enorme, alto, armado como uma onda sobre a cabeça; e uma eterna expressão de desapontamento e incredulidade.

Tinha certeza que estava aqui — dizia o garoto. Depois olhou pelo chão. Procurou em volta. Nada.

Sem a ficha eu não posso entregar o documento.

Por favor!

Parecia sincero, pensou a mulher atrás do balcão. Era apenas um garoto, com idade pra ser seu filho. Quase entregou os papéis.

— Como é que eu vou saber se você é mesmo o 2-5-5?!

Minha senhora — interrompeu bruscamente o senhor de terno puído —, isso não é hora de bater papo!

Qual é o número do senhor?

256!!! Quantas vezes quer que eu diga?!?!

Estamos no 255. Quando chegar sua vez, eu chamo pelo alto-falante.

Os outros office-boys abafaram o riso. Nenhum deles queria mesmo voltar cedo para o escritório e aquilo estava ficando divertido.

Neste momento — completou a senhora atrás do bal­cão —, estamos diligenciando para resolver de quem são estes documentos.

São meus! Quer dizer, do meu patrão — respondeu o garoto de roupas extravagantes.

E se você estiver enganado sobre o seu número?

Tenho meus próprios métodos para guardar um número. Primeiro eu pensei na minha idade. Fiz a conta: dois mais cinco: sete; sete mais cinco: doze!

Muito bem!

Só que eu tenho quatorze anos... Aí eu lembrei: tive de ir a 25 lugares diferentes hoje para pagar contas, receber, levar apólices. Uau! Cinco dias como este na semana eu não agüento. Vinte e cinco e cinco: 2-5-5.

Os outros boys caíram na gargalhada. A senhora atrás do balcão ligou o microfone. Todos tiveram de proteger os tímpanos.

 

Eu sabia... – lamentava-se o boy, remexendo sua pastinha

À procura da ficha. – Tinha certeza que esteja aqui.

— Ordem, por favor — disse ela, como se estivesse num tribunal. — Como é seu nome, menino?

— Edmundo.

— É o Ed Onda, dona! — alguém gritou lá do fundão. Antes que a gargalhada recomeçasse, a senhora atrás do

balcão ligou o microfone. O ruído insuportável serviu para abafar o vozerio.

— Ainda não estou convencida, Edmundo.

— Eu também não. Do meu jeito, a gente corre o perigo de acabar multiplicando 25 por dois, que dá cinqüenta. O que não significa nada pra mim, além do fato de eu já ter sido assaltado cinco vezes; e mesmo assim eu ia ter de tirar o zero.

Dessa vez, a platéia riu antes que o chiado do alto-falante soasse. E não adiantou nada pedir silêncio. Aquilo tinha virado uma farra.

Era sexta-feira, afinal. O fim de semana estava começando. A senhora atrás do balcão achou melhor entregar os documentos ao boy, de uma vez.

— Obrigado, dona — agradeceu Edmundo.

Ela observava o menino sair correndo, quando percebeu o homem de terno puído sorrindo para ela. Retribuiu o sorriso friamente. Sem desviar os olhos, ligou o microfone e...

— Ficha de número 256. 2-5-6.

 

                   FÍGADO COM GOIABADA

Edmundo estava de volta ao escritório. O expediente já acabando. Quase todo mundo tinha ido embora. Finalmente podia saborear em paz o que deveria ter sido seu almoço.

Abriu a marmita e aspirou o perfume: picadinho de fíga­do com goiabada, salpicado com queijo ralado! Para sexta-fei­ra ele costumava deixar aquilo que achava o melhor cardápio da semana.

— Meu, isso é o máximo! — pensou em voz alta. Preparou uma boa garfada, mas parou. Quinze para as seis.

Já podia ir embora. Chegando em casa ia ter de fazer o jantar para o pai.

Mas acabou concluindo que nunca era demais fazer uma boquinha. Preparou-se para degustar uma boa garfada, quando alguém exclamou:

— Que bom que você ainda não foi para casa, Edmundo! Era Plínio, o sobrinho do patrão. Tinha o cargo de supervisor

dos boys. Só que Edmundo era o único boy da firma.

Titio, quer dizer, o doutor Ignacio precisa destes contratos. Ainda hoje, sem falta.

Quer que eu leve isso até a sala dele?

Titio já foi embora. Teve de ir mais cedo pra casa. É aniversário do Eugênio.

E tem festa?

Tem.

E você vai! Do jeito que está vestido... Bela beca, Plínio!

Gostou?

Finíssima — insistiu Edmundo, alisando de leve a lapela do supervisor.

Plínio deu uma olhada de rabeira para o seu reflexo no vidro da janela. Acertou o punho da camisa, abotoou o paletó. Quase ajeitou o cabelo, mas se conteve a tempo.

Tio Ignacio faz questão que eu esteja lá. Sabe quem foi convidado?

Além de você?...

Mister Fairfax.

Massa!

Titio quer que eu fique ao lado dele, toda a festa. Eu domino o inglês, você sabe.

Vai ser mesmo um festão — comentou Edmundo e, depois de um silêncio: — Estava pensando... A festa não é na casa do doutor Ignacio? E você não está indo mesmo pra lá?

E você acha que eu vou chegar a uma festa com uma Pastinha debaixo do braço?!

Pensando bem, Edmundo não via problema algum. Talvez a pastinha desse um toque diferente à mesmice com que Plínio se vestia. Mas achou melhor ficar quieto.

— Ou você está dizendo que não quer ir? — insistiu Plínio. Edmundo encarou Plínio. Além de vaidoso, o sobrinho do patrão costumava guardar rancor. Podia criar uma porção de problemas depois. Melhor sacrificar a sexta-feira, pensou.

São só esses contratos?

Só. Depois você pode ir para sua casa.

Me dá o passe para o ônibus?

Pega você mesmo na gaveta. Agora eu preciso ligar para minha namorada.

Plínio discou um número ao telefone.

—Alô? Maria Isabel? Sou eu, o Plínio... Eram quase seis horas da tarde.

Enquanto picotava o passe, Edmundo pensou que bom era ter, sexta-feira à noite, namorada. E não precisar levar uma pastinha debaixo do braço.

 

                   AS GÊMEAS MINGAU

Na casa da namorada de Plínio, as coisas andavam meio agitadas.

Preciso desligar agora, amorzão.

Eu quero falar com o Plínio! — estrilou Maria Isabel.

Estou esperando, sim. Beijinho.

Maria Paula desligou e caiu na gargalhada. Tinha se passado por Maria Isabel, sem que Plínio desse pela confusão.

— Não gostei nada — sentenciou Maria Isabel. — Pode ficar sabendo.

Maria Paula e Maria Isabel eram irmãs. Gêmeas. Elas se pareciam fisicamente em tudo. Descrever uma era descrever ambas: voz límpida, cabelo encaracolado, corpo desenvolvido para a idade. Mas o temperamento...

Você não era assim, Maria Isabel. Antes você também se divertia confundindo as pessoas.

Isso é coisa de criança — respondeu a irmã. — Nós já temos quinze anos! Quinze!

Era justamente esse o problema, pensou Maria Paula. Desde que as duas fizeram aniversário, ela ia ficando mais diferente da irmã. E a irmã, mais parecida com todo mundo.

Foi só uma brincadeira — disse Maria Paula, tentando encerrar a discussão.

Mas foi com o meu namorado! O meu namorado!!

E por que você não engole o seu namorado?! Tomara que tenha uma bela indigestão!

Foi quando se ouviu uma voz rouca vinda de cima:

— O que está acontecendo aí, meninas?

Era dona Lígia. A mãe das gêmeas. Veio descendo. Tinha quarenta anos, mas resmungava como se tivesse oitenta quando precisava usar a escada.

— Detesto sobrados! — ruminou dona Lígia. — Só mesmo o imprestável do George (que Deus o tenha!) pra inventar de comprar um sobrado para nós. Eu disse: escadas acabam com as pernas da gente! Mas ele ouviu? Olha só...

Estava apontando para a batata da perna.

— Fiquei batatuda deste jeito por causa dessa escada. Dona Lígia tinha uma voz rouca, mas volumosa. Um constante

pigarro tomava sua garganta. Tossiu e disse:

Não vai botar uma roupinha, Maria Paula?

Eu já estou pronta!

Vai à festa com sua irmã vestida desse jeito?!

Com que roupa quer que eu vá?

Não comprei um vestido de festa para você?

Mas é igual ao da Maria Isabel!

Justamente. Vocês ficam tão engraçadinhas vestidas iguais. Tinha sido assim desde que as duas nasceram: gêmeas idênticas; vestidos idênticos.

Todo mundo fica olhando! — argumentou Maria Paula.

Ora, minha filha; é essa a idéia. É exatamente essa a idéia. A mãe foi até o aparelho de TV, ligou e sentou na sua poltrona preferida.

—Não agüento aquele vestido! — reclamou Maria Paula. Dona Lígia nem ouviu. Quando ela assistia comerciais, o mundo podia vir abaixo.

Vendo a mãe sentada à frente da TV, a irmã preocupada em não amassar o vestido, Maria Paula decidiu escrever suas memórias. Já tinha o título: Memórias idênticas.

— Aquele vestido coça — insistiu Maria Paula.

— Sssssss — fez dona Lígia, pedindo silêncio. — Está começando a do óleo de soja!

A propaganda do óleo de soja era a preferida da mãe. Tinha um tipo calvo que fazia trocadilhos. Dona Lígia ria e tossia. Ria e tossia. Ria e tossia.

Se é para ir vestida daquele jeito, prefiro ficar em casa — resmungou Maria Paula.

E perder a chance de aparecer com sua irmã numa festa como essa?!

— Ah, mamãe...

Os comerciais acabaram; a novela começou de novo. Dona Lígia pegou o controle remoto e tirou o som do aparelho. Ela nunca assistia os programas. Só gostava da propaganda.

Deu uma tragada no cigarro e reclamou:

— Não sei por que não estão passando mais o filme com vocês duas. Para mim é o melhor. O do óleo de soja, também. O do óleo de soja e o de vocês... Os melhores!

As gêmeas trocaram um olhar. Era um sofrimento que dividiam. Desde que tinham aparecido num comercial de mingau de aveia, quase não podiam mais sair na rua sem que fossem reconhecidas. As pessoas apontavam para elas. Sentiam-se no zoológico. Eram conhecidas como as "gêmeas mingau".

Mais assunto para as Memórias idênticas.

Num certo sentido, isso coroava um esforço de anos de dona Lígia. As gêmeas já nem se lembravam mais da primeira vez que tinham sido levadas pela mãe a um estúdio de fotografia para propaganda.

— Escutem aqui — falou dona Lígia. — Nada de refrigerantes, entendido? Quero ver as duas dentro da linha!

As garotas se entreolharam. Sabiam que dona Lígia estava tentando arrumar outro comercial para as filhas estrelarem. Por um certo tempo, tinham alimentado a vã esperança de que sua mãe se desse por satisfeita com o sucesso do comercial do mingau de aveia.

Era hora do intervalo. Os comerciais tinham começado outra vez. Dona Lígia pegou o controle remoto e aumentou o som da televisão. Maria Paula suspirou e baixou o olhar. Era preciso dedicar um capítulo nas Memórias idênticas para as discussões com sua mãe, pensou.

— Como é que esse menino pode fazer tanto sucesso?

perguntou-se dona Lígia, apontando para a tela da televisão.

O que o pessoal vê nesse tipinho?

Ela se referia a um concorrente das "gêmeas mingau". O garoto prodígio do comercial de amortecedores.

 

                     ONDE É QUE ESTÁ 0 CISNE?

Edmundo já fora antes à casa do patrão. Mas nunca tinha entrado. Uma moça vestindo avental de rendas disse para ele espe­rar ali.

O boy olhou em volta. A sala era espaçosa. No fundo, uma escadaria subia até um balcão. Tinham retirado quase todos os móveis por causa da festa. Na parede havia quadros de caça à raposa.

Aproximou-se de um daqueles quadros. Reparou na roupa das figuras, cheia de babados. Estava pensando onde conseguir uma daquelas casacas, quando alguém perguntou:

—        Onde é que eu deixo isto, garotão? Era um sujeito carregando um saco enorme de gelo. Estava

parado na entrada. O gelo que derretia ia pingando e criando uma poça d'água no tapete. Edmundo só levantou os ombros. Não tinha a menor idéia.

Pouco depois, a moça vestindo avental de rendas voltou. Disse ao boy:

O doutor Ignacio vem atender você, já, já. Pode esperar aí mesmo.

Moça! — chamou o sujeito que carregava gelo. — Onde é que eu deixo isto?

— Eu é que sei? Esta casa está uma loucura hoje! E saiu. O sujeito ficou lá, plantado. Tremendo de frio sobre

a poça d'água no tapete.

Uma porta no fundo da sala se abriu. Um homem de paletó verde-garrafa, gravatinha e ar de atarefado foi logo perguntando:

E o cisne?

Cisne?

Onde é que está o cisne?

Que cisne?!

— Você não trouxe o cisne?!?! Se não trouxe o cisne eu não recebo nada! Onde está seu chefe?

— Lá fora. Na caminhonete.

— Eu vou falar com ele. Você espera aqui, entendeu? Aqui! Sem cisne não tem negócio.

Sem dar maiores explicações, saiu. A poça d'água aumen­tava nos pés do carregador. E a tremedeira ficava cada vez mais forte.

— Com licença — disse um baixinho que tinha chegado sem que fosse notado. — Onde eu deixo as cadeiras?

Edmundo levantou os ombros, de novo. O baixinho se vol­tou para o carregador. Que só tremia.

— Bem... Vamos deixar na sala por enquanto. Pessoal! — chamou o baixinho.

Trazendo uma cadeira nas mãos, entrou na sala. Seguido pelo seu pessoal. Um atrás do outro, mais dois baixinhos e um pirulão. Cada um carregava uma cadeira. Andavam no mesmo ritmo. Em fila indiana.

Os carregadores de cadeiras repetiram o mesmo cerimonial mais duas vezes, antes que Edmundo ouvisse a voz do patrão.

Ainda bem que você trouxe esses contratos! — disse dou­tor Ignácio, descendo apressado os degraus da escadaria. — Não sei por que o Plínio mesmo não trouxe isso...

Ele estava muito ocupado — respondeu santamente Edmundo.

Doutor Ignácio atravessou a sala desviando-se das cadeiras e foi tirando a caneta do bolso. Era um tipo alto, magro, agitado. Pegou os papéis para conferir se estava tudo em ordem.

— Vamos resolver isso de uma vez.

Só então percebeu que alguém mais o observava: tremendo sem parar, o carregador tinha um ar suplicante.

— Você é o homem do cisne?

— C-com li-licença — suplicou o carregador de gelo, gague­jando de frio. — S-só queria s-saber onde d-deixar isto.


— Espere um pouco. Tem uma pessoa contratada para resol­ver tudo.

Estava tão absorto com os documentos que nem percebeu os três baixinhos e o pirulão entrando com as cadeiras. Uma, duas, três vezes. A sala já ia sendo tomada.

Por que você não pega uma cadeira e senta? — sugeriu doutor Ignácio sem tirar os olhos dos papéis.

Qualquer uma, doutor Ignácio? — perguntou Edmundo, cândido.

Claro! Qualq...

Doutor Ignacio se virou e interrompeu o que dizia. Levou ainda uns segundos para entender o que estava acontecendo. O baixinho entrou, seguido pelos seus companheiros. Trazendo mais cadeiras.

Você tem certeza que é para deixar essas cadeiras aqui? — perguntou doutor Ignácio.

O senhor sabe o lugar certo?

Doutor Ignacio coçou a cabeça com a caneta. E só conse­guiu repetir, meio desanimado:

— Tem uma pessoa contratada para resolver isso.

— Vamos resolver isso de uma vez – anunciou doutor Inácio.

Diante dos contratos que Edmundo lhe entregava.

— Bem... Vamos deixar na sala por enquanto. Pessoal! Em fila indiana, os três baixinhos e o pirulão saíram. Para buscar mais cadeiras. Com os pés na água gelada, o carregador acompanhava tudo. Tremendo de frio.

Neste momento, voltou o homem de paletó verde-garrafa.

— Ainda bem que o senhor está aqui! — disse, quase deses­perado. — O pessoal do gelo diz que não sabe do cisne! Sem o cisne eu não respondo pelo meu trabalho!

E saiu.

Doutor Ignácio olhou para o chão. Respirou fundo. Parecia que ia explodir. Pegou a papelada, pensando em voz alta:

— E eu estou pagando esse sujeito para resolver tudo...

Lá se foi doutor Ignácio, porta afora, feito um rojão. O boy colocou sua pastinha sob o braço. Estava contente por ter acabado o serviço. Acenou para o homem do gelo. Com os pés dentro de uma imensa poça d'água, o carregador de gelo disse:

— T-t-t-t-tchau.

Mas, antes de ir embora, Edmundo resolveu dar mais uma olhada no quadro de caça à raposa. Queria guardar bem o modelo da casaca do tocador de trompa.

Estava entretido nessa tarefa, quando percebeu uma presença no alto da escadaria. Vagarosamente se voltou. Lá estava Eugê­nio, o filho do doutor Ignácio: o "patrãozinho". Vestia roupão e calçava apenas meias.

Feliz aniversário — murmurou o boy. Eugênio demorou a responder:

Estou precisando de você.

Eu sabia... — resmungou Edmundo.

 

                   0 PATRÃOZINHO

0 boy sentia a sexta-feira escapar pelos seus dedos sujos de graxa. Sete e meia da noite e ele ainda na casa do doutor Igna­cio. Lustrando os sapatos do "patrãozinho".

Olhou para Eugênio. O garoto estava distraído. Agitava uma régua no ar feito um espadachim cercado por inimigos. A cada golpe emitia sons guturais, imitando a torcida vibrar.

— Taí, olha só que chinfra! — disse Edmundo, mostrando o sapato brilhante.

E a camisa?

Que tem ela?

Quem vai passar?

Você tem alguma idéia?

Tenho. -Eu?

Foi você quem disse.

Mas eu preciso ir pra casa!

Hoje é meu aniversário, Edmundo.

Os dois garotos tinham a mesma idade. Mas Eugênio não sabia descascar uma banana sozinho. Doutor Ignacio tinha até proibido Edmundo de fazer serviços para seu filho. Quanta briga o boy via entre Eugênio e seu pai por causa disso.

Mas o "patrãozinho" insistia. Ligava para o escritório e cha­mava Edmundo para tudo: datilografar trabalho de escola, levar hambúrguer no meio da tarde, comprar cola de aeromodelo...

— Posso usar esta mesa para passar a camisa?

Eugênio não respondeu. Estava distraído de novo. Pé ante pé, aproximava-se do par de sapatos como se fosse enfrentar um monstro marinho.

Edmundo começou a limpar a mesa. Estava atulhada: livros, vidros de cola, vidros de tinta, um aeromodelo inacabado, e uma foto do doutor Ignácio, ainda bem moço, posando na frente de um avião.

— Você acha mesmo que estes sapatos combinam? — per­guntou de repente Eugênio, com o "monstro marinho" na mão.

— Que roupa você vai vestir?

Meu pai disse pra eu vestir o terno azul-marinho que ele me deu.

Normal — disse Edmundo ligando o ferro de passar na tomada. — Doutor Ignácio quer ver você na estica. É seu aniversário!

Nada disso. Papai convidou um cara importante; quer fechar um negócio. Vou me vestir feito um pingüim pra agradar o tipo.

— Meu, se liga! A festa é pra você.

— Você acha que papai ia lá se preocupar com meu aniversá­rio?! Ele qu...

Eugênio nem terminou a frase. Tapou depressa a boca. Depois de soluçar, disse:

O pior é que, nessas horas, sempre me ataca a aerofagia.

Ataca o quê ?!

Antes que Eugênio começasse a explicar, a porta do quarto se abriu. Era o doutor Ignacio. Foi entrando e reclamando:

— Já está pronto, Eugênio? Não vai se atrasar você também! Me basta esse maldito cisne!

Deu de cara com Edmundo. O boy estava com o ferro de passar na mão. Paralisado. Doutor Ignácio fuzilou Eugênio com o olhar.

— Você ainda não se arrumou, Eugênio? — perguntou dou­tor Ignácio, tentando se controlar.

— Estou pass... o Edmundo está passando a camisa.

Doutor Ignácio respirava fundo, mas acelerado. Voltou-se para Edmundo. O homem ia virar um lança-chamas!, pensou o boy.

— Presente de aniversário — justificou Edmundo. E tentou sorrir.

— Você não consegue mesmo fazer nada sozinho, Eugênio — sentenciou o pai, com voz trêmula. — Já agradeceu?

— Não, senhor. Ainda não...

— Então, pode agradecer. Que o Edmundo está indo embo­ra. Já.

Pai e filho se encaravam. Sem dizer palavra. Como dois pesos-pesados antes da luta.

Imediatamente, Edmundo deixou o ferro de passar de lado. Pegou a pastinha e foi saindo. Quase desejou "feliz aniversário" outra vez, mas se conteve.

Já era hora de o gongo soar.

Edmundo correu pelo corredor e desceu a escadaria. Final­mente ia embora. Que sexta-feira comprida!

Cadeiras atravancavam a passagem. O boy foi passando entre elas, como se andasse por uma trilha no meio da mata.

Foi então que percebeu o silêncio.

O que tinha acontecido? Preparavam uma festa e não se ouvia barulho nenhum na casa? Diminuiu o passo. Foi se aproxi­mando da porta de saída com cuidado.

Afinal, o silêncio não era total. Um murmúrio, um vozerio vinha se aproximando. Chegando mais perto. Mais perto. Mais perto... Edmundo se encostou na parede, quando uma multidão de garçons e copeiras entrou na sala.

— Por aqui, por aqui — berrava nervoso o homem de paletó verde-garrafa, que vinha à frente.

Chegava pela porta, carregado por quatro homens de aven­tal: um imenso cisne de gelo! O vozerio cessou. Todos pararam para admirar a peça.

Quebrando o silêncio, uma voz chegou do fundo:

Vamos lá, pessoal. Isso não pode ficar aí a noite toda... Era dona Clara. Mãe de Eugênio.

O que vocês estão esperando? — insistiu sem rispidez. O vozerio recomeçou.

Dona Clara trabalhava como médica. Acabara de chegar do trabalho e ainda estava vestida de branco. Tratava-se de uma pessoa sempre sorridente. Apesar da grande disposição, seus gestos eram leves.

Tirou os sapatos, subiu em uma cadeira e começou a dar orientações.

— Levem o cisne para o jardim. Os convidados estão che­gando e ainda precisamos dar um jeito nestas cadeiras!

O cisne passou aos pés de dona Clara, sumindo pela porta dos fundos. As copeiras voltaram a arrumar a sala.

— Você não é o Edmundo? — perguntou dona Clara, do alto da cadeira.

Sim, senhora.

Você está um pouco... diferente... O que você fez no cabelo?

Mudei a onda de lado.

Fez bem. Fica melhor do lado esquerdo mesmo.

Toda semana eu tento um lado diferente.

O que você está fazendo aqui? Eugênio convidou?!

— Não, senhora. Vim trazer uns papéis para o doutor Igna­cio assinar.

— Mas fica para a festa, não fica?

Não posso. Tenho de ir para casa preparar a janta para meu pai. Ele trabalha de vigia noturno. Já estou atrasado.

Que pena! Você ia ser o único convidado com a mesma idade do Eugênio.

Nesse momento, ouviu-se vindo do andar de cima uma grita­ria. Era doutor Ignacio discutindo com Eugênio.

— É uma pena mesmo... — murmurou, olhando na direção do quarto do filho.

Depois, dona Clara se perdeu em pensamentos. O boy achou melhor ir embora sem se despedir.

Quando finalmente Edmundo botou o pé na rua, viu uma lua do tamanho de uma pizza gigante no céu.

 

 

 

                   VOCÊ JÁ CONTOU ESSA HISTÓRIA

— Cuidado!

Plínio desviou o carro do ônibus parado no ponto e seguiu na mesma velocidade.

Será que não dá pra ir mais devagar?! — reclamou Maria Paula, do banco de trás.

Eu dirijo desde os dez anos! — defendeu-se Plínio. — Aprendi num trator, sabe? Na fazenda de papai. Um dia ele chegou e disse...

"... sobe e dirige, homem."

Plínio viu pelo espelho retrovisor. Maria Paula tinha dito aquilo. Como se não bastasse, a garota completou:

— Você já contou essa história.

O rapaz se voltou para o banco ao seu lado, onde estava Maria Isabel. Sua namorada não dizia nada.

Ele olhou de novo pelo espelho retrovisor. Vestidas com a mesma roupa, ficava difícil dizer quem era sua namorada, quem era a irmã da sua namorada. Será que Maria Paula estava pre­gando uma peça?

— Olha pra frente!

A roda acertou em cheio um buraco. O carro jogou para os lados. Plínio dominou a direção com dificuldade. Depois, seguiu em frente. Na mesma velocidade.

Meu carro agüenta qualquer tranco! — tentou gracejar Plínio.

Seu carro?

É como se fosse meu. Titio não se importa que eu saia com carro da firma.

Claro que não. Não sabe.

Maria Isabel quase riu com a resposta da irmã. Mas se con­trolou.

Até você, Maria Isabel?! — resmungou Plínio.

Desculpe — disse a namorada do rapaz. — Mas não custa tomar mais cuidado. E se passa um guarda?

O que é que tem?

Do banco de trás, Maria Paula disparou:

Você tem só dezessete anos.

E minha carta de motorista internacional?! Tirei na Cali­fórnia. Quando eu fui visitar papai. Sabe...

"... papai mora num veleiro, nos Estados Unidos." Era Maria Paula, outra vez. E completou:

Você já contou essa história, também.

Plínio emburrou. Ficou quieto. Para ele o pior foi Maria Isa­bel não ter aberto a boca. "Para que serve uma namorada se não defende a gente", pensou. Tudo estava sempre bem para Maria Isabel.

Olhou ainda mais uma vez pelo retrovisor e para o banco do lado. Idênticas. Será que as gêmeas não estavam mesmo pre­gando uma peça nele?

 

                   EU SABIA...

Quando Edmundo chegou em casa naquela noite, Cosme ainda estava dormindo.

— Cosme.

Cosme dormia no sofá.

— Está na hora.

Cosme estava deitado de lado, com a cara enfiada no traves­seiro. De costas para a sala. Toda vez que Edmundo voltava para casa, encontrava seu pai assim. E chamava:

— Cosme.

Cosme acordou. Não disse nada. Deixou a cara enfiada no travesseiro.

Cosme! — insistiu Edmundo.

Estou levantando, filho.

Edmundo tinha-se acostumado a chamar o pai pelo primeiro nome. Quando era pequeno gostava do som: Cosme. Ficou. Alguns minutos depois, o garoto avisou:

— A janta está quase pronta. Cosme não respondeu.

O pai de Edmundo era um tipo grandalhão. Maior que o sofá. Sempre demorava para se levantar. De onde Edmundo estava podia ver a cabeça de Cosme: a calvície começava a surgir. E, no entanto, ele não tinha mais de trinta e cinco anos.

Trabalhava de vigia noturno. Dormia de dia. Quando conse­guia.

Edmundo foi até a janela. Abriu as cortinas. Para ajudar Cosme a se levantar... Gozado fazer isso, pensou. Era noite. Que luz entraria na sala? Olhou para baixo. As lanternas dos carros na avenida ficavam meio borradas, vistas do 28? andar.

— Vou trazer seu prato — disse Edmundo. E foi até a cozinha. Cosme permaneceu ainda um certo tempo imóvel. Depois,

começou a levantar o corpo. Devagar: aos poucos surgiram os olhos inchados, o nariz achatado, o queixo quadrado; um rosto cheio de marcas. Sentou-se no sofá e ficou olhando para o chão. As mãos enormes pendidas sobre os joelhos.

Edmundo voltou com o prato do pai. Subia uma fumacinha da comida: lingüiça ao molho de sardinha em lata e uvas.

Desde a última vez que Glória se fora, o filho cuidava do pai. Cozinhava, passava a roupa. Fazia tudo sem reclamar. Na verdade não sobrava muito tempo para isso.

Seu pai não disse nada. Pegou o prato e começou a comer. Comia na sala mesmo. O apartamento era muito pequeno. Só dava para ficar de pé na cozinha e o único quarto — o quarto de Edmundo — estava atulhado com as coisas que Glória abando­nara.

Depois de algum tempo, Cosme perguntou:

Tudo bem?

O quê?

Chegou tarde.

Normal.

Pai e filho ficaram em silêncio. Estavam acostumados a tro­car poucas palavras. Havia sempre mais o que lembrar. Cosme deu mais umas garfadas. E disse:

Está bom. Melhor do que a bóia que ela preparava.

Aquela mulher não sabia o que era cozinhar, Cosme. -É.

Pai e filho ficaram em silêncio, de novo. Como toda noite, Edmundo sabia que Cosme ia acabar falando dela: aquela mulher era Glória — sua mãe.

Uma criança começou a chorar no apartamento ao lado.

Meu, como essa criança chora!

Chorou o dia inteiro.

Essa parede deve ser de papelão.

É.

Trinta andares. Com tanta gente morando naqueles aparta­mentos minúsculos, o edifício era conhecido na vizinhança por Treme-treme.

— Este prédio só tem tamanho — disse Edmundo. Cosme não respondeu.

Estava com o garfo na mão. Tinha parado de comer, mas continuava olhando para o prato. Na certa, pensando em Glória, intuiu Edmundo.

Não está atrasado? — quis saber o filho.

O vigia da tarde segura a minha. Cosme dizia isso todo dia.

— Vou pegar seu uniforme — disse Edmundo. — Passei a ferro hoje de manhã, antes de ir pro trabalho.

Cosme deixou o prato de lado. Estava sem fome. Lembrou-se de Glória: "Come, Cosme", ela dizia.

Edmundo voltou com o uniforme de vigia do pai, pendu­rado num cabide.

—Beleza — disse Cosme, olhando o uniforme. Depois vol­tou a ficar em silêncio. Sem se mexer. Largado.

Seu pai não era assim, pelo que podia se lembrar Edmundo. Cosme era campeão de levantamento de peso. Ganhara muito dinheiro no passado se apresentando em programas de TV. Cor­tava listas telefônicas com as próprias mãos, levantava caminho­netes. Era alegre, vaidoso.

Mas as brigas e separações com Glória foram se repetindo, e Cosme foi mudando. Começou a faltar a apresentações contra­tadas. Parou de se exercitar com halteres. Perdeu o ânimo.

E Edmundo culpava sua mãe por isso.

Cosme — chamou Edmundo. — Está ficando tarde. O pai olhou para ele. E disse:

Filho. A gente está muito melhor sem ela. -Só.

— Eu nem estou sentindo falta. Você cozinha. Você passa. Melhor do que ela.

Ela não tinha as manhas de fazer essas coisas.

É.

Pai e filho ficaram em silêncio.

O choro da criança do apartamento ao lado continuava. Dava também para ouvir alguém rezando um terço.

Cosme se levantou e começou a vestir seu uniforme de vigia. Edmundo voltou para perto da janela.

Quanto tempo fazia que sua mãe tinha ido embora? Um ano? Quase. Edmundo não tinha certeza.

Cosme terminou de se vestir. Foi para o lado de Edmundo. Pai e filho ficaram um bom tempo olhando a cidade lá embaixo. Perguntavam-se: o que será que ela estava fazendo àquela hora?

 

Cosme deu mais umas garfadas e comentou: — Está bom. Melhor do que a bóia que ela preparava.

Cosme saiu para o trabalho, e Edmundo ficou sozinho. Olhando pela janela. Quanta coisa não estaria acontecendo lá embaixo? Queria aproveitar a sexta-feira, dar uma volta. Mas estava tão cansado! "Tudo bem", pensou. Tinha uma porção de coisas para fazer em casa.

Foi para o seu quarto. Entrou e olhou em volta. Sua cama ficava num cantinho. O resto do quarto estava tomado: caixas de shampoo e laque; escovas e bobs (por toda parte, como bara­tas!); secador profissional de cabelo (aquilo parecia mais um capa­cete de astronauta!); e uma penteadeira de fórmica púrpura, com espelho.

Um ano antes, o pai de Edmundo gastara todo o dinheiro da poupança, montando um salão de cabeleireiro para Glória. Bem que ela tentou, mas não tinha jeito para aquilo. Dois meses depois, largou tudo e foi embora. Primeiro eles pensaram em ven­der a tralha toda. O tempo passou, e as coisas foram ficando.

— Como aquela mulher era enrolada — deixou escapar Edmundo. Sentou-se na cama e começou a organizar as tesouras e os pentes. Gostava de fazer isso. Passava noites inteiras nessa ocupação.

Mas naquela sexta-feira ele não estava conseguindo se con­centrar. Espichou-se na cama. Edmundo se sentia esquisito. Que­ria fazer alguma coisa, mas não sabia o quê; queria encontrar uma pessoa, mas não sabia quem.

Levantou-se bruscamente. Tinha de fazer qualquer coisa! Apanhou sua pastinha de trabalho. Fazia tempo, Edmundo preci­sava dar um jeito naquela bagunça.

A primeira coisa que encontrou foi uma ficha com o número 255. Era a ficha para retirar a papelada no cartório. Estava ali o tempo todo! Lembrou-se da senhora atrás do balcão, falando: 2-5-5. Era fácil de memorizar. E começou: Cosme e Glória, seu pai e sua mãe, que são dois, separaram-se cinco vezes; Glória vol­tou quatro; se ela voltasse mais uma...

Edmundo interrompeu seu raciocínio. Não funcionava. Ela não ia voltar mais, concluiu.

Continuou remexendo sua pastinha: pente, guia da cidade, cadarço de tênis e um contrato.

Contrato?!

Um dos tais contratos que doutor Ignacio tanto precisava para a noite! Na confusão, tinha ficado na pastinha. — Eu sabia... — murmurou.

 

                   0 CONVITE, POR FAVOR  

Os convidados chegavam à festa na casa do doutor Ignacio. Deixavam seus casacos e bolsas com um homem de uniforme e eram recebidos por dona Clara e seu filho no salão iluminado.

Apesar de toda a agitação, Eugênio estava distraído. Seu pensamento ia longe. Imaginava-se um aventureiro desiludido: Eugène Flammarion, um mestre na arte do disfarce e da dissimu­lação — a última esperança do serviço secreto das forças aliadas.

— Eugênio! — chamou dona Clara.

O menino estremeceu e voltou de seu devaneio. Suas faces coraram.

— Você se lembra de dona Maurília e do doutor Pedrosa?

Como você cresceu, Eugênio — disse protocolarmente dona Maurília.

Parabéns, meu menino — completou doutor Pedrosa. Quantos anos está fazendo?

Eugênio não respondeu. Outra vez estava distraído. Imagi­nava-se de volta à sua perigosa missão de espionagem atrás das linhas inimigas. Eugène Flammarion estava frente a frente com o terrível "Z", chefe da contra-espionagem.

Eugênio! — chamou dona Clara, tirando o garoto nova­mente do seu devaneio. — O doutor Pedrosa está fazendo uma pergunta.

Pode deixar, Clara — intercedeu dona Maurília. — Os jovens vivem sonhando.

— E Mister Fairfax? — perguntou Pedrosa, bruscamente.

Ele se referia ao convidado com quem doutor Ignacio preten­dia fechar o "grande negócio".

— Ainda não chegou — respondeu dona Clara, um tanto contrariada com a lembrança.

— Estou ansioso para conversar com ele — insistiu Pedrosa. Eugênio baixou o olhar. Melancólico. Dona Clara achou

melhor encerrar a conversa:

— Vocês não querem ir para o jardim? Os aperitivos estão sendo servidos lá.

O casal saiu na direção do jardim, sorrindo e falando baixo. Dona Clara percebeu que Eugênio estava perdido em deva­neios, mais uma vez.

— Meu filho.

O garoto teve um sobressalto, voltando à realidade.

— Desculpe, mamãe. Estava distraído.

Tratando-se do seu filho, isto era comum, pensou dona Clara. Quantas vezes ela o surpreendera em seu quarto com um livro abandonado sobre o colo, o olhar perdido. Imaginando.

A mãe sorriu. Passou a mão pela cabeça do filho. Eugênio parecia mesmo mais alto. Pensou: "Quinze anos, já!"

— Vamos lá, Eugênio. Vamos até o jardim. Você precisa conversar com os seus convidados.

Eugênio deu o braço para sua mãe. Aliás, a Baronesa de Weisswurst, líder da resistência local — uma antiga companheira de Eugène Flammarion em suas mais perigosas missões.

Lá fora, um pequeno congestionamento se formava na frente da casa de doutor Ignácio. Automóveis paravam e as pessoas entregavam as chaves a um sujeito que cuidava de estacioná-los.

Plínio também chegava. E já ia entrando, sem dizer nada.

— Onde está o convite, mocinho?

Era um grandalhão de terno, gravata e bigode aparado. O segurança. Ficava na porta, controlando a entrada.

Eu sou o Plínio.

O convite, por favor.

— Você não entendeu, meu amigo — disse Plínio. — Sou o sobrinho do doutor Ignacio.

— O convite — insistiu o patola.

— Não é melhor mostrar o convite, Plínio? — disse delicada­mente Maria Isabel.

Mas eu sou da casa!

O mocinho não pode ficar aí, obstruindo a passagem. Outro segurança se aproximou. Um pouco mais baixo, mas

também usava terno, gravata e bigode aparado.

— Mostra o convite, Plínio — pediu Maria Isabel.

Plínio estava suando frio. Devagar, enfiou a mão no bolso e foi tirando o convite. Só conseguiu murmurar:

— Não é justo...

O sobrinho do dono da festa entregou o convite ao segurança. O grandalhão puxou uma lanterna. Iluminou o convite, examinando-o bem. Depois jogou a luz na cara do rapaz, perguntando:

— E as duas moças? Estão acompanhando?

A lanterna iluminou o rosto de Maria Isabel. Foi para o rosto de Maria Paula. Voltou para Maria Isabel. E, de novo, para Maria Paula.

Fez-se um breve silêncio.

— As gêmeas mingau! — disseram quase em uníssono os seguranças.

Os convidados que esperavam para entrar começaram a mur­murar, apontando para as duas.

— Por aqui, por favor! — disse o chefe. — Olha aí, Januário: dei­xa o rapaz entrar também, que ele está acompanhando as gêmeas mingau!

— Eu sou o Plínio! — estrilou o sobrinho do dono da festa. Maria Isabel puxou o namorado pelo braço. Antes de entrar

no salão, Maria Paula chamou a irmã de lado e disse:

Começou.

Não vão parar enquanto estivermos juntas.

Maria Paula saiu para um lado. Maria Isabel foi para a dire­ção oposta, com seu namorado. Já estavam acostumadas. Separa­das não seriam reconhecidas.

De longe, uma irmã olhou bem para a outra. Pensaram ao mesmo tempo: como eram diferentes!

 

                   UM BOY QUE CAI DO CÉU

Edmundo levava o documento esquecido em sua pastinha à casa do doutor Ignácio. Tinha tentado ligar antes, mas o telefone do patrão estava sempre ocupado. Quando atendiam, demo­ravam para entender o recado e a ligação acabava caindo.

Dobrou a esquina, avistou o homem de terno, gravata e bigode aparado controlando a entrada. E estacou. Havia apenas um, naquele momento. Mas sinistro.

Ficou parado muito tempo no mesmo lugar e acabou cha­mando a atenção. Edmundo percebeu, tentou disfarçar. Não con­seguiu. O segurança não tirava mais os olhos dele.

— Calma — disse o boy para si mesmo, baixinho. Precisava agir com naturalidade. Não estava fazendo nada de errado. Voltou a andar. Devagar. Foi pensando: os seguranças bateriam o olho e não o deixariam entrar. Já podia até ver a cara medonha do sujeito.

Foi-se aproximando, foi-se aproximando... e passou reto. Parou só na outra esquina. Edmundo coçou por baixo da onda em seu cabelo. Tinha outro jeito? Não entregar o contrato seria muito pior, pensou. Voltou.

Mas e se na hora em que fosse tirar o papel da pastinha achassem que era uma arma? Ou uma bomba? Essas perguntas giravam na cabeça do garoto. Pôde até ver a cena: o segurança descarregando a munição da sua pistola. Antecipou a manchete:

 

         SEXTA-FEIRA DE SANGUE

         NA FESTA DOS GRÃ-FINOS!

 

Quando deu por si, já estava na entrada da casa. O segu­rança olhando fixamente para ele. Em silêncio.

— É claro que o senhor não vai me deixar entrar — dispa­rou Edmundo. — Um tipo como eu, de calça vinho com bolinhas amarelas e este cabelo esquisito? Eu entendo. Eu entendo!

Não houve tempo para reação. O segurança ficou boquia­berto. Edmundo emendou:

— É claro que, se eu disser que tenho um documento muito importante para o doutor Ignacio assinar, o senhor não vai nem acreditar. Aparece cada tipo, não é mesmo?

Edmundo disse isso e foi entrando, sob o olhar atônito do grandalhão. Já ia entrando sem nenhuma resistência, quando ouviu:

— Mais problema aí, Januário? Que noite!

Era o chefe que chegava de dentro da casa. Jogou a luz da sua lanterninha na cara de Edmundo e perguntou:

— O garotão tem convite?

Edmundo teve a impressão de que os seguranças de terno, gravata e bigodes aparados tinham enfiado a mão sob os paletós. Provavelmente para sacar suas pistolas a qualquer movimento sus­peito do meliante.

— Eu sabia... — murmurou o penetra.

Enquanto Edmundo ia saindo, pé ante pé, ainda pôde ouvir o rumor de vozes, copos tilintando e música que vinha lá de dentro.

Realmente, a festa continuava animada.

No centro do jardim, deixaram o cisne de gelo. Coberto por um toldo, estava cercado por quatro tochas flamejantes. As cha­mas tremiam com a brisa. Os convidados se aproximavam e se serviam na poncheira depositada entre as asas do cisne.

Havia também uma enorme mesa ornamentada com frutas tropicais. Um trio de violão, atabaque e chocalho cuidava da música. Eram três senhoras de brincos enormes, vestidas de panta-lonas brancas e camisas floridas. Cantavam suavemente, em unís­sono: "Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça..."

Eugênio passeava sozinho entre as pessoas. Tentava imagi­nar o que Flammarion — o aventureiro desiludido — faria numa situação daquelas, mas não chegou a qualquer conclusão. Talvez o famoso espião jamais viesse à sua festa de aniversário, concluiu.

Caminhou um pouco pelo jardim. Curvado, profundo, as mãos cruzadas às costas. O aniversariante já partia para bem longe em sua imaginação, quando chamaram:

— Primo!

Era Plínio que se aproximava. Vinha acompanhado por uma moça. A chama das tochas pouco iluminava os dois.

— Você não quer conhecer minha namorada?

A garota chegou mais perto e Eugênio pôde ver o rosto. Um cacho do cabelo balançava sobre a testa com a brisa. Maria Isabel puxou a mecha para trás da orelha e estendeu a mão para Eugênio.

Ele não respondeu. Estava paralisado. Maria Isabel ficou com a mão estendida. Eugênio nunca tinha visto mão mais bonita que aquela. Nem mesmo nas aventuras de Flammarion.

— Não ligue pro Eugênio — disse Plínio puxando a namo­rada pelo braço. — É um esquisitão.

O casal foi se distanciando. A garota ainda olhou para trás, um instante — o cacho balançando sobre a testa. Depois entraram no salão.

Eugênio não movia um músculo. Respirava fundo. Sentia ter mais espaço em seu pulmão. Não entendia o que se passava com ele. Teve uma vontade imensa de ir atrás da garota. Mas como? Nem conseguia sair do lugar, pensou. E se conseguisse? O que iria dizer?

Eugênio começou a sentir coisas estranhas. O coração bateu mais rápido, a face corou, uma pastinha caiu em sua cabeça... Ficou zonzo e caiu sentado.

Uma pastinha?! Procurou em volta e viu: era mesmo uma pastinha de couro que tinha caído na sua cabeça. E ouviu um res­mungo vindo do alto:

— Eu sabia...

Olhou para cima. Alguém estava no topo do muro, medindo a distância até o chão. Depois pulou. Era Edmundo.

Machucou? — perguntou Edmundo. Eugênio se levantou e disse:

Edmundo, você me caiu do céu.

 

                   UM CURATIVO BEM

A cozinha era o centro nervoso da festa na casa do doutor Ignacio. As frigideiras chiavam. Cozinheiros cortavam pães com facas enormes e preparavam os patês. Os garçons entravam e saíam, sem ver quem vinha do outro lado.

No meio de toda essa agitação, Edmundo saboreava um avan­tajado sanduíche de presunto cru e ovas de peixe. Eugênio espe­rou que o boy desse mais uma mordida. Sabia que o caminho para a colaboração passava pelo estômago. Depois, perguntou:

Como é? Me ajuda?

Por que você mesmo não vai falar com a garota?

Eu não consigo!

E a papelada do seu pai?

— Deixa que eu misturo esse tal contrato com os outros quando meu pai não estiver por perto.

Edmundo não disse nada. Mastigou bem devagar mais um pedaço do seu sanduíche. Engoliu e disse:

— Diz a verdade. Só está aprontando essa porque é a mina do Plínio.

Eu não mostrei?! Você viu: ela é linda!

Bonitinha.

— Quem decide sou eu. Só quero que dê um jeito dela vir conversar comigo.

Você não disse que nem conseguia falar perto da garota?!

Fico quieto, então.

Só olhando?

Pra mim serve.

O que você viu nela, que eu não vi?

As mãos.

Edmundo percebeu que não tinha como escapar daquela situa­ção. O "patrãozinho" estava obcecado. Além disso, outro motivo atiçava: nunca era demais chatear o Plínio.

— Vou ver o que posso fazer — disse o boy entregando a pastinha, depois de fazer um pequeno suspense. — Mas antes vou terminar o meu sanduíche. Preciso de energia!

Eugênio abriu um sorriso. Mas, como ele sempre se esquecia de agradecer, não foi diferente dessa vez. Apenas informou:

— Vou esperar no jardim.

E foi saindo. Antes, porém, fez uma careta e levou a mão ao estômago, dizendo:

— Preciso me acalmar. Os gases já estão se fomiando. Abriu a porta e desapareceu.

O boy abriu a boca para dar outra mordida no sanduíche. Só então percebeu que estava sendo observado pelo cozinheiro. Uma pessoa simpática. Sorria e tirava caca do nariz. Cortava o pão e tirava caca do nariz. Descaroçava a azeitona e tirava caca do nariz.

Edmundo decidiu partir imediatamente em sua missão. Abriu a porta da cozinha e ouviu do outro lado:

— Uuuuuiiiiiii!

Seguido do ruído seco de alguém caindo sentado no chão.

— Presta atenção, ô... — gritaram do lado de lá.

Cuidadosamente, Edmundo foi esticando o pescoço. Viu um par de pernas estiradas no chão. Era a paixão de Eugênio. No chão.

— Eu ajudo — disse ele, estendendo a mão.

A garota olhou bem para o rapaz. Fez uma pausa antes de retribuir o gesto. Na hora de se levantar, deixou o pé sobre o pé de Edmundo. Largando todo o peso.

— Obrigada.

Ele nem ouviu direito o agradecimento. Estava tentando não gritar. A dor era tão forte que seus olhos se encheram de água. Sua visão ficou turva. Quando as lágrimas correram, enxergou o rosto de Maria Paula. Cristalino.

Para Edmundo, aquela era a mesma menina para quem Eugê­nio tinha apontado no salão: a namorada de Plínio! Só que alguma coisa havia mudado, pensou.

Parecia a mesma. Mas era outra.

— Vai crescer um galo na minha cabeça! — resmungou a garota.

— Vou preparar uma compressa! — disse Edmundo.

O garoto ajudou a garota a sentar num banquinho na cozi­nha. Disse:

 

Edmundo abriu a porta e ouviu do outro lado:

- Presta atenção, Ô... – Era a paixão de Eugênio no chão.

— É um remédio caseiro. Receita exclusiva da família.

O boy arrumou um trapo e despejou vinagre. Pelo que se lembrava, era só isso. Mas resolveu caprichar. Adicionou um pouco de molho de pimenta, sal, um pouco de salsa, tomilho, louro em pó, noz-moscada, azeite de olivas virgens, e, finalmente, mais pimenta.

— A compressa está pronta.

— O que você botou nisso?! — perguntou Maria Paula, recuando a cabeça, ao sentir o aroma.

— Fique quieta! Eu preciso me concentrar.

Depositou a compressa na testa da garota, como um expe­riente cirurgião. O vinagre escorreu pelo rosto.

Estou me sentindo uma salada.

Bem, o seu caso é realmente complicado.

Complicado?!

— É preciso tomar cuidado com os efeitos colaterais — disse Edmundo, vendo uma gota do molho de pimenta escorrendo na direção dos olhos. — Podem começar já, já...

Uiiii...

Não falei? Espere um pouco.

Edmundo pegou um lenço e passou no olho esquerdo de Maria Paula.

— Abra bem. Assim... — disse, soprando.

O garoto aproximou o rosto. Maria Paula olhou bem para ele. Notou que tinha olhos atentos, silenciosos; os cílios enormes batiam devagar.

Edmundo foi chegando mais perto. Mais perto. E deu um beijo na paciente.

Que idéia! — reclamou Maria Paula.

Faz bem. Vai ver.

Maria Paula não sabia se era impressão, mas sentia um certo alívio. Talvez funcionasse mesmo, pensou. Tinha de admitir: o garoto estava se esforçando.

Agora precisa ficar em observação.

Vou procurar um médico na segunda.

Pra quê? A gente pode se encontrar amanhã.

Estava demorando...

Domingo? Segunda?

Depois de largar o trabalho, estou livre...

Terça-feira?!

... mas isso não quer dizer que eu vou me encontrar com você.

G boy fez uma pausa repentina.

— Eu sei. Você tem compromisso.

Edmundo balançou a cabeça.. Tinha se lembrado de Plínio. O namorado. Ficou quieto e começou a arrumar os temperos sobre a mesa.

Maria Paula não esperava que ele desistisse tão cedo. Olhou pelo canto dos olhos. O garoto estava mancando de dor no pé. Resultado do pisão.

— Não é melhor você cuidar do seu pé? — perguntou Maria Paula, puxando conversa.

Onde é que eu vou arrumar remédio?

Por que não prepara uma compressa também?

Isso não serve pra nada...

E você botou esta porcaria na minha testa?!

— Serviu pra ficar parada um pouco. _ Tome aqui sua compressa, doutor!

Maria Paula atirou o pano embebido em Edmundo. Saiu batendo o pé. Antes que a porta fechasse de uma vez, a garota reapareceu. Dizendo:

— Quer saber de uma coisa? Eu trabalho na Doceria Rebolo. E não tenho nenhum encontro na terça-feira que vem!

Edmundo nem teve tempo de reagir. Ela logo completou:

— Largo às sete, entendeu? Às sete!

Dessa vez, o boy não perdeu tempo. Foi atrás, gritando:

Mas eu não sei nem o seu nome!

Maria Paul...

O homem de paletó verde-garrafa passou entre os dois aos berros.

— Maria o quê?!...

A garota sumiu no salão, entre os convidados.

Edmundo deu um salto de alegria. Fechou os olhos e teve a sensação de ficar muito tempo no ar. Viu números girando em seu próprio eixo: 4 (dias!); 96 (horas!!); 5760 (minutos!!!); 345 000 (segundos!!!!). Quando seus pés pousaram no chão, dei­xou escapar:

— Terça-feira!

Logo uma preocupação começou a rondar sua cabeça, no entanto. Faltava alguma coisa. Só não sabia o quê. Refez as con­tas. Subtraiu 14400 segundos devido à hora. Mas não era isso.

— Eugênio! — exclamou o boy, abrindo os olhos.

Tinha se esquecido de falar em Eugênio para a garota. Sen­tiu que estava encrencado. Que desculpa daria ao "patrãozinho"?

 

                   AS BOLHAS ASSASSINAS

No jardim, a ansiedade de Eugênio aumentava. Os gases se acumulavam em seu estômago. A temida aerofagia estava à espreita. De repente, um certo murmúrio chegou de dentro. O homem de terno verde-garrafa entrou esbaforido, dizendo para as cantoras:

— Mister Fairfax chegou! Mister Fairfax chegou!

— O trio passou a tocar "God Save the Queen". Em ritmo de bossa nova. Fairfax era magro como um alfinete. Trajava um conjunto safári bege e passava o tempo todo um lenço pela nuca, enxugando o suor. Entrou no salão, acompanhado de grande comi­tiva.

Eugênio pensava no que fazer a respeito do contrato, quando viu a namorada de Plínio se aproximar. Em sua direção. Sem lugar melhor, jogou a pastinha por baixo da mesa do cisne de gelo.

Plínio ficou tão alvoroçado com a chegada do inglês, que eu achei melhor vir dar uma volta aqui fora — disse Maria Isa­bel, puxando conversa. — Parece que ele é o convidado especial!

Parece.

Fizeram essa festa toda só pra ele?

Não.

Por quê, então?

Aniversário.

Quem faz anos? -Eu.

O Plínio não me disse nada!... Parabéns!

Disse isso e chamou um garçom. Pegou os copos e entregou um a Eugênio.

—        Você se importa de brindar com água mineral? É que eu não bebo refrigerante — revelou Maria Isabel.

Eugênio olhou, apavorado, a água em seu copo. Era água mineral. Com gás.

— Agora... Feliz aniversário!

Levantaram os copos para a saudação e beberam tudo. Em seguida, Maria Isabel se aproximou e deu um beijo no rosto do aniversariante. Eugênio sentiu os gases querendo subir.

— Agora você me dá licença — disse Maria Isabel. — Vou ver se Plínio está mais tranqüilo.

E se foi. Eugênio não pôde acompanhá-la nem com os olhos. Travava uma luta inglória contra seus gases. Só depois de alguns minutos conseguiu murmurar, baixinho:

— Você é tão bonita... Mas ela já estava bem longe.

No salão, as coisas não andavam nada bem para o lado do doutor Ignácio. Não encontrava um dos tais contratos — o mais importante. Tinha remexido todas as suas coisas: nada.

Seu sobrinho era um fracasso como intérprete; dizia yes ou no para tudo. Mister Fairfax começava a dar mostras de irritação. Gesticulava nervosamente. Doutor Ignacio não sabia mais o que fazer.

Foi aí que avistou Eugênio. O menino chegava do jardim. Andava muito devagar — passo a passo — e tinha uma expressão concentradíssima.

— Filho!

Eugênio estancou. Voltou os olhos na direção do pai, deva­garinho. Doutor Ignacio acenava para que se aproximasse. O garoto obedeceu.

— Não pode andar mais rápido?

Eugênio não conseguiu responder. Os gases estavam em revo­lução dentro dele. Seu pai gesticulou para o inglês, indicando seu rebento.

— Cumprimente o nosso convidado.

O garoto estava mudo. Sentia-se quase hipnotizado com as bolhinhas que rebentavam na taça de champanhe de Mister Fairfax.

—        Como é, filho? Não diz nada?

O inglês estava sério. O garoto tentou dizer "boa noite": abriu a boca e o que se ouviu foi uma espécie de rugido selvagem ecoando das profundezas; começou baixinho, quase imperceptí­vel; depois veio crescendo, crescendo...

— Rrrrrrrrrrrrr ooooaaaaaarrrrrrrgh!

Estava feito. Eugênio tinha arrotado. "A aerofagia venceu a batalha final", pensou.

Um silêncio tumular caiu sobre a sala. Todos os convidados fixaram os olhos no filho do doutor Ignacio. Uma longa pausa se fez. Ouvia-se apenas, vindo do jardim: "Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça..."

De repente, um cheiro de queimado penetrou no salão. Alguns convidados chegaram a perguntar: "Minha nossa, que foi que esse moleque andou comendo?" O homem de paletó verde-garrafa entrou, gritando:

— Fogo! Fogo no jardim!

Houve um alvoroço. Todos correram na direção do jardim. Só Fairfax ficou. Bebeu o resto do champanhe em sua taça. Levan­tou-se. E saiu, calmamente, pela porta da rua.


Eugênio chegou a tempo de ver o fogaréu. Uma fagulha das tochas tinha caído dentro do ponche. A labareda atingira o toldo. Os garçons tentavam inutilmente controlar o incêndio.

O cisne de gelo ia se dissolvendo entre as chamas: o longo pescoço foi encolhendo.

Meu cisne... — choramingava o homem de paletó verde-garrafa de um lado.

O ...rrrroooaarrgh... contrato... — murmurava o Eugê­nio do outro lado, arrotando mais uma vez.

O fogo consumia tudo. Inclusive a pastinha de Edmundo onde estava o contrato que doutor Ignácio tanto procurava. Eugê­nio percebeu que arranjara uma grande encrenca com seu pai.

 

                   EUGÊNIO VAI CAIR NAS MINHAS MÃOS

0 tapete no quarto de Eugênio estava polvilhado com o talco que ele usava após o banho. O garoto tinha acabado de tomar uma ducha e se preparava para dormir.

 

Eugênio tentou dizer “boa noite”: abriu a boca

E o que se ouviu foi uma espécie de rugido selvagem...

— Vai dormir com este pijama? — perguntou a mãe.

Era um pijama estampado com minúsculos elefantes. Já estava ficando curto para Eugênio.

— A senhora quer que eu troque?

Dona Clara amparou a cabeça do filho entre as mãos e o beijou na testa. Foi cuidar do terno azul-marinho jogado sobre a cama. Ainda estava arrumada para a festa: vestido longo, jóias. Mas a festa tinha acabado.

Apenas os passos do doutor Ignacio no corredor quebravam o silêncio da casa. Parou na entrada do quarto do filho e chamou:

— Clara. Por favor.

Dona Clara saiu para o corredor. Os dois ficaram conver­sando em voz baixa.

As sombras dos aviõezinhos pendurados no teto se projeta­vam pelo quarto. A mais assustadora era a do Fokker Dr1, pilo­tado pelo implacável Barão von Richthofen.

O garoto sentou-se à escrivaninha. Examinou o aeromodelo inacabado sobre a mesa: um Nieuport 17C-1. Faltava pintar a camu­flagem contra os balões observadores.

— Seu pai quer ter uma conversa com você, Eugênio — disse dona Clara, voltando ao quarto junto com o marido.

Não disse mais nada. Começou a preparar a cama para o filho dormir. Estendeu o cobertor sobre o colchão, afofou o tra­vesseiro, dobrou a borda da colcha.

Falei com Edmundo — começou o pai.

Ele não teve culpa.

Eu sei.

Vou dar uma pastinha nova para ele.

Pode ser uma boa idéia.

Doutor Ignacio procurava falar da maneira mais calma pos­sível. A pedido de dona Clara. Tinha perdido um grande negócio. Sua cabeça fervilhava.

— Você tem consciência do que fez esta noite?

Eugênio estava com um frasco de cola para aeromodelo na mão. Verificava se tinha acabado.

Largue isso e preste atenção! — o pai levantou a voz. — Você precisa assumir suas responsabilidades. Já não é mais uma criança!

Por favor, Ignacio — intercedeu dona Clara, acenando para que o marido baixasse o tom de voz.

Mas esse menino precisa entender!

Ele vai entender...

— Vai — disse o pai, tentando se controlar. — Claro que vai. Doutor Ignacio encarou o filho. Respirava fundo, sem ritmo.

— Vou transferir sua matrícula para o curso noturno — reto­mou o pai.

— Por quê?! — assustou-se Eugênio.

— Segunda-feira você começa a trabalhar na firma. Vai aju­dar o Edmundo. A firma está precisando de mais um boy.

O pai deixou o quarto, batendo a porta. Nem olhou para trás. Eugênio ficou um tempo em silêncio. Perguntou para a mãe:

— A senhora não vai desembaraçar meu cabelo, hoje? Sem dizer nada, a mãe começou a escovar com cuidado o cabelo do menino. Ele ficou olhando o colar no pescoço de dona Clara. As pedras cintilavam.

Mãe.

O quê?

— A senhora vai me levar para o trabalho?

Dona Clara parou de escovar. Olhou para o aniversariante c disse:

— Não, meu filho. Você vai ter de ir sozinho. Voltou a escovar. Pensando no futuro do filho.

Bem longe dali, em uma grande avenida da cidade, outra pessoa também pensava em Eugênio. Era Plínio. Mas de modo diferente.

Depois de deixar Maria Isabel e Maria Paula em casa, foi se encontrar com os amigos: Odacir, Tilão, Nilo e Fraguinha. Gostava de passear até altas horas com o carro da firma do tio. Seguiam para um lugar que permanecia aberto a noite toda. Ven­dia de tudo: batatas fritas, refrigerantes em lata, revistas.

Entraram e cumprimentaram o caixa, que chamavam de Boli­nha. Fosse gordo ou fosse magro, para eles era sempre o mesmo. Fraguinha já foi pegando um pacote de batatas e abrindo. Era o mais velho da turma: 27 anos. Tossia muito, tinha os olhos incha­dos e o cabelo oleoso. Nunca trabalhara na vida.

Tilão e Nilo adoravam remexer as revistas. Os dois eram tipos comuns. Muito parecidos. Mas Tilão preferia as revistas de lutas marciais e Nilo se dedicava a adivinhar mulheres nuas sob as tarjas negras nas capas.

Plínio se sentia bem no lugar: ar condicionado, luz fluores­cente, barras de chocolate importado. Lembrava a Califórnia, dizia o tempo todo. Era sempre ele quem pagava as contas. Sem reclamar.

Naquela noite ele estava mais alegre que o normal. Todos repararam. Ria à toa. Odacir se aproximou. Era um rapaz alto, forte, apático, de olhar distante. Tinha uma mancha no branco do olho esquerdo. Só tomava café. Sempre. Perguntou:

Por que a alegria?

Hoje é sexta.

Três e meia da manhã. Já estamos no sábado.

Melhor! Melhor...

O que tem de mais este sábado?

Depois de amanhã é segunda.

E daí?

— Segunda meu primo vai cair nas minhas mãos — anun­ciou Plínio.

Abriu uma lata de refrigerante e gargalhou quando o líquido espirrou sobre o rapaz da caixa registradora.

— Tchau, Bolinha! — disse, saindo com seus amigos.

 

                   0 BATISMO DE EUGÉNIO

Segunda-feira.

Edmundo aproveitou o fim de semana e fez um penteado novo, com onda dupla. Sempre caprichava às segundas: um colete xadrez sobre uma camisa de bolinhas; calça listada e meias de losangos; o tênis tingido de magenta.

Entrou no escritório quase vazio e foi direto para a copa. Guardou a marmita na geladeira. Era dia de frango ao molho de melancia apimentada. Gostava de começar bem a semana.

Oito horas em ponto: a porta se abriu. Plínio entrou com uma pilha de faturas e carnes nas mãos. O boy nunca tinha visto seu "chefe" chegar tão cedo. Estranhou.

— Edmundo... — disse Plínio, sorrindo. — Tenho uma sur­presa pra você.

Edmundo não compreendeu logo do que se tratava. Na entrada, Eugênio olhava assustado. Nos braços, uma pastinha de couro. Vestia uma camisa de manga curta abotoada no pes­coço, por dentro da calça surrada. E tênis. Aproximou-se, esten­deu a pasta para Edmundo e disse:

— É sua.

Edmundo lembrou-se imediatamente da desastrosa noite de sábado.

— O Eugênio vai trabalhar com você — continuou Plínio, com grande prazer. — E é melhor correrem, que têm muitas coi­sas pra fazer.

As horas que se seguiram passaram como um congestiona­mento de caminhões de carga para Eugênio. O boy mais expe­riente fazia tudo. O aprendiz só ficava observando. Várias vezes Edmundo teve de voltar porque tinha perdido o "patrãozinho".

 


Edmundo, o Eugênio vai trabalhar com você

- anunciou Plínio com grande prazer.

Com todos os atrasos chegaram só às onze ao banco. As filas para pagamento de contas já tomavam a calçada.

Eu sabia — resmungou Edmundo.

A gente vai ter de pegar uma dessas filas? — perguntou Eugênio de olhos arregalados.

É...

Por que não deixamos pra amanhã?

Edmundo achou que era hora de fazer o batismo de Eugênio. Seria a primeira aula do curso básico. Apontou a fila mais longa e disse:

— Pegue aquela. Volto já. E sumiu.

Eugênio não teve nem tempo de abrir a boca. Obedeceu. Olhou em volta. Uma porção de senhores de terno puído e garo­tos de tênis e boné. Todos com a cabeça baixa: segunda-feira.

Passaram-se cinco minutos; dez minutos; quinze minutos; meia hora. Nada de Edmundo voltar. Quase ninguém conversava. O ruído das máquinas autenticando os recibos não parava. Gran­des ventiladores viravam de um lado, para outro; de um lado, para outro.

Uma hora; uma hora e quinze minutos; uma hora e meia: nem sinal de Edmundo. O aprendiz já estava mais perto do caixa. Os clientes chegavam sem dizer nada. Depositavam sobre o bal­cão uma pilha enorme de faturas e carnes. O funcionário ia pegando os documentos sem levantar o rosto.

Toda vez que o ventilador virava, uma folhinha de papel voava e caía no chão. O funcionário terminava calmamente o que estava fazendo e se agachava para pegar a folhinha de papel. Isso se repetiu várias vezes. Sempre do mesmo jeito.

A hélice do ventilador lembrou a Eugênio um biplano se pre­parando para decolar: o Albatroz D-Va, com o qual "Z" sempre acabava fugindo de Eugène Flammarion. Mas dessa vez era tar­de, imaginou Eugênio, o aventureiro desiludido tinha chegado a tempo. Restava apenas uma bala no seu revólver, não podia errar. Flammarion apontou para a hélice e...

— O próximo, por favor!

Era o caixa do banco, irritado por ter de repetir o chamado. Tinha chegado a vez de Eugênio. O funcionário o encarava com olhos de peixe. As pessoas na fila bufavam e resmungavam.

— Como é?

O aprendiz de boy deu o primeiro passo. Parou. Olhou para trás. Edmundo não aparecia. Deu o segundo. E entregou a pape­lada. O caixa baixou o rosto de novo, começando a examinar as contas.

Alguns minutos mais se passaram. Até ali tudo bem, pensou aliviado Eugênio. De repente o caixa perguntou:

— Onde está a segunda via desta fatura? Eugênio empalideceu.

— Não trouxe? — insistiu o caixa. — Sem a segunda via não posso fazer o pagamento.

O aprendiz de boy sentiu a aerofagia começando. Travou a boca. Sob o olhar implacável do funcionário, Eugênio sentiu os gases se formando no estômago. Foi quando ouviu:

— Olha aí a segunda via. Edmundo tinha voltado.

— Onde é que você estava? — perguntou Eugênio, depois que os gases se acalmaram.

— Procurando a segunda via.

Tudo pago, os dois boys deixaram o banco. Na calçada da frente, Eugênio ficou um instante olhando para a fachada da agên­cia. Sentia como se tivesse passado um ano lá dentro.

— Vai ficar parado aí? O dia ainda não terminou.

 

                   0 SENHOR NÃO GOSTOU DO BOLO?

A segunda-feira continuava também para outras pessoas.

Do outro lado da cidade ficava a Doceria Rebolo. Sua grande atração eram as garçonetes, Maria Paula e Maria Isabel — as gêmeas mingau.

O uniforme que usavam imitava um guarda de trânsito, com direito a apito e cassetete. Os pedidos eram anotados num bloco de multa. Na porta havia um semáforo, controlando a entrada dos clientes. Verde, sempre, claro.

Maria Isabel não ligava para trabalhar daquele jeito. Maria Paula abominava. Sentia-se ridícula. Detestava tudo naquela doce­ria. Principalmente na segunda, quando ocorria um estranho fenô­meno: os clientes mais impertinentes da cidade sentiam vontade de comer bolo.

Mocinha, por favor — chamou um senhor.

Sim, senhor — atendeu Maria Paula.

— Já pedi para você trocar este pedaço de bolo, há mais de dez minutos!

Sinto muito. O senhor deve ter falado com minha irmã.

Está querendo bancar a engraçadinha?

Quase todo mundo ria quando descobria que estava fazendo confusão entre as gêmeas. E acabava pedindo outro pedaço de bolo. Pelo menos era essa a tese do patrão.

— O senhor não gostou do bolo? — perguntou Maria Paula para desconversar.

— Gostei... Mas eu prefiro sem isto aqui.

E começou a puxar um fio de cabelo de dentro do recheio. Era muito, muito longo. Saía borrado de creme. Os clientes em volta viravam o rosto para não ver.

— Trago já outra fatia para o senhor — apressou-se Maria Paula, interrompendo a tortura.

A garçonete entrou na cozinha e jogou o pratinho com a fatia "suspeita" de bolo sobre a mesa. Conferiu as horas. Ainda faltava muito para o expediente encerrar. Lembrou-se daquele garoto engraçado na festa. Será que ele apareceria mesmo na terça-feira?

Maria Isabel entrou de repente, apanhando a irmã com o pensamento longe.

O que foi, Maria Paula?

Segunda-feira.

— É melhor economizar a raiva. Quinta vamos ter o teste para aquele comercial.

A gente não precisa ir.

Está louca? O que você acha que mamãe faz com a gente?

Não faz nada se ficarmos juntas.

O cachê é bom.

Vai ser um dia infernal!

— Você nunca vai amadurecer! Melhor eu cuidar do meu trabalho. Tem um senhor que pediu um "especial de creme" faz quinze minutos!

E apanhou o pratinho com uma fatia de bolo de creme sobre a mesa. Justamente a fatia que tinha sido devolvida, a "suspei­ta". Maria Paula teve tempo de avisar a irmã. Mas se conteve. Afinal, pensou, não queria mesmo amadurecer. Não do jeito de Maria Isabel.

 

                   QUEM VIGIA EDMUNDO?

Chegou a hora do lanche. Edmundo levou Eugênio ao Rei das Iguarias, um boteco que ficava no calçadão do centro da cidade, perto da Basílica. Era um lugar apertado. Os boys comiam em pé. Tinha uma vitrine onde ficavam expostos salgadinhos, queijos e frios.

Eugênio deglutia seu sanduíche em pequenos bocados. Mas­tigava bem devagar. Sobrava fome, faltava dinheiro. De repente, sua fisionomia mudou: parecia ter se lembrado de alguma coisa. Virou-se para Edmundo e perguntou, de boca cheia:

O que Maria Isabel disse de mim?

Quem?!

Maria Isabel. A namorada do Plínio.

— Maria Isabel? — repetiu, buscando ganhar tempo, Edmundo. — Não gostei.

De quê?

Este nome não combina com ela.

O que foi que ela disse?

Nada — respondeu Edmundo, depois de pensar um pouco.

Não falou com ela?

Falei.

Então?

Não deu pra conversar muito.

Mas sobre o que vocês conversaram, afinal?!

Remédios caseiros...

Que idéia!

O carrilhão da Basílica soou. Já eram quatro da tarde.

— Engole de uma vez esse sanduíche — disse Edmundo, querendo mudar de assunto. — O serviço está atrasado.

Nem bem Eugênio engoliu o último pedaço, Edmundo o puxou pelo braço. Partiram pelo calçadão cheio de transeuntes.

Pra que a pressa? — perguntou Eugênio, ofegante.

Viu que horas são?

Preciso fazer a digestão!

— Eu não vou esperar ninguém — disse Edmundo, deixando o aprendiz para trás.

Quando começou a subir a ladeira da Bolsa de Valores, Edmundo sentiu que alguém o seguia. Talvez fosse Eugênio, pen­sou. Mas logo verificou que o aprendiz vinha ao seu lado. Quem seria, então?

Edmundo se virou bruscamente. Ainda pôde ver uma mulher entrando apressada numa loja. Como quem quisesse se esconder. Por um momento pensou ter reconhecido Glória.

O que foi? — perguntou Eugênio.

Fique de olho. Acho que tem alguém atrás da gente.

Assalto?!

Pode ser. Vamos indo.

Os boys seguiram a caminhada. Edmundo sabia que não era assalto. Tinha sido roubado tantas vezes que conhecia bem o assunto. Mas não resistiu à tentação de assustar Eugênio.

— Quando eu disser "já", você vira — sussurrou Edmundo, para criar clima.

-Eu?! -Já.

Por que eu?

Já! Não ouviu?

Eugênio deu meia-volta e estancou. Um homem enorme vinha no sentido oposto, carregando uma caixa. Deu um encontrão no garoto. A caixa foi ao chão, espalhando pela calçada uma porção de canetas esferográficas.

O que é que você fez, moleque?! — reclamou o homem.

D-desculpe...

Isso é lugar de parar?

A vontade daquele homem era dar um sopapo nos garotos. Mas teve de sair correndo para recuperar sua mercadoria. As cane­tas rolavam rua abaixo. Edmundo riu. No entanto, uma certeza incomodava: não era aquele homem quem o perseguia.

Já havia algum tempo, o boy nutria a sensação de que alguém o vigiava. Uma vontade difusa tomou o garoto. Como explicar esse sentimento? Não queria mais saber de sua mãe. E no fundo torcia para que fosse ela quem o seguia pelas ruas.

 

                   PRECISO TOMAR BANHO!

Eugênio estava deitado na cama com roupa e tudo. Abriu com dificuldade o olho. Identificou apenas um vulto: sua mãe inclinada sobre ele. Estava em casa e era noite.

Não quer vestir o pijama?

Sim, senhora.

O garoto se levantou com muita dificuldade. Seu corpo estava mole, dolorido, obedecia com atraso. Nunca tinha sentido tanto cansaço em sua curta vida. Logo que ficou de pé, perguntou:

Que horas são?

Onze e meia. -Já?

— Voltei mais tarde, hoje. Muito trabalho no consultório. Que horas você chegou?

Umas oito; oito e meia.

Jantou?

Não. Cheguei e fui direto pra cama.

Vou esquentar a comida.

Não estou com fome; estou com sono.

Precisa se alimentar. Qual foi o seu almoço?

Esfiha fechada no pão francês.

Dona Clara não conseguiu disfarçar o sorriso.

— É. Acho que você já se alimentou para o resto da vida. Mesmo assim vou trazer um copo de leite.

Eugênio tentava entender por onde enfiar o braço na camisa do pijama. Parecia bêbado. Fazia pontaria. E errava. Fazia ponta­ria. E errava.

— Preciso tomar banho? — perguntou o garoto depois de cismar um instante.

— Ainda não tomou?

— Não, senhora.

A mãe olhou para Eugênio. Estava no meio do quarto, balan­çando, tentando se manter em pé. Tinha enfiado a camisa do pijama ao contrário: os botões ficaram nas costas.

— Hoje vamos fazer um feriado — brincou a mãe.

— Feriado... — resmungou o garoto. — Quero só ver quando minhas aulas começarem à noite.

Essa era a principal preocupação de dona Clara. Doutor Igna­cio ainda não conseguira vaga para Eugênio no colégio noturno. Mas isso não demorava. Será que o garoto ia agüentar tanta res­ponsabilidade ao mesmo tempo?

Dona Clara deixou o filho se ajeitando e foi buscar o copo de leite. Logo que ele conseguiu terminar de vestir o pijama, apa­nhou sua máscara de dormir. Servia para tapar os olhos, vedando a luz. Mas ele a usava porque lembrava óculos de aviador.

Eugênio se enfiou por baixo das cobertas. Costumava gastar horas, elaborando as aventuras de Eugène Flammarion — o aven­tureiro desiludido. Naquela noite, no entanto, caiu num sono pro­fundo logo que se deitou.

Quando dona Clara encontrou o filho dormindo, não quis acordá-lo. Apenas ficou olhando para o garoto.

E sentiu um orgulho enorme dele.

 

                   UM PROBLEMA DE PORTUGUÊS

0 quarto de Maria Paula e Maria Isabel não era muito espa­çoso. Tinha um guarda-roupa, um gaveteiro, uma escrivaninha e uma cama beliche.

A escrivaninha era o lugar preferido de Maria Paula. Maria Isabel, por seu lado, escolhera a cama. O tempo que passava no quarto, passava deitada.

Apesar de tarde, Maria Paula ainda escrevia suas Memórias idênticas. Sentada à escrivaninha, podia ouvir sua mãe assistindo televisão na sala. No alto do beliche, sua irmã ressonava.

O trecho era o seguinte: "Agora devo confessar os defeitos. Detesto Ciências. Simplesmente não consigo entender Física, Quí­mica, Biologia!

Ocorre que minha irmã gêmea, a já citada anteriormente Maria Isabel, domina perfeitamente os números e os gráficos. Mas abomina Português. Ela não consegue entender a óbvia dife­rença entre um adjunto de modo e um adjunto de instrumento, por exemplo!

O que fez mamãe? Solidária a nossa situação e aproveitando-se da nossa extrema semelhança, matriculou as duas no mesmo colégio. Mas em horários diferentes. Maria Isabel estuda à noite, e eu estudo pela manhã (à tarde trabalhamos, como o leitor bem se lembra).

O que isso facilitou nossa carreira escolar? Muito. Nunca fiz uma prova de Física na vida! Fica a cargo de Maria Isabel; pro­vas de Português, em compensação, faço as minhas e as de minha irmã.

Por isso, caro leitor, não acredite ao ler em qualquer uma de minhas biografias não-autorizadas (que porventura forem escri­tas) que fui a primeira aluna da minha turma. Fui meia-primeira aluna. Maria Isabel foi a outra metade.

Se alguma vez esse esquema falhou? Sim, uma vez.

Vou contar. Se é verdade que existem rebeldes sem causa, também é verdade que existem implicantes sem motivo. O profes­sor de Física é um deles. Chama-se Pacífico. O leitor interessado pode perguntar a qualquer aluno da escola: é o mais temido de todos os docentes.

Certa manhã entrou na sala, trancou a porta e disse sinistra­mente:

— Hoje vamos ter uma prova surpresa.

Professor Pacífico escreveu o problema na lousa com letra de fôrma caprichada. Depois se voltou para a classe e determinou:

— Faltam trinta minutos para eu recolher a prova.

O leitor pode imaginar meu desespero? Nem se faltassem trinta anos eu resolveria aquele problema.

Para piorar a situação, o professor Pacífico tinha a sádica mania de passear pelas carteiras. De vez em quando parava atrás de um aluno, dava uma olhada nos cálculos rabiscados na folha de prova e saía fazendo caretas indefiníveis.

— Faltam quatorze minutos.

O que o leitor faria no meu lugar? O desastre parecia mais próximo a cada minuto que passava. Foi então que reli o problema. Começava assim: (tratava-se de um problema de cinemática) Um elefante de peso desprezível passeia com velocidade média de 0,37 metros por segundo. À medida em que se aproxima de outro... Isso me doeu no ouvido. Levantei a mão e disse:

— Professor Pacífico! Há uma inconsistência em seu pro­blema. Não existe em português a locução à medida em que. O correto é à medida que Do jeito que o senhor escreve, um ele­fante nunca vai encontrar o outro.

O professor Pacífico ficou vermelho, roxo, multicor enfim. Suspendeu a prova e saiu direto para a sala da diretoria, pedindo minha suspensão. A discussão só terminou na hora do almoço. Ouvindo o conselho do orientador pedagógico, a diretora deu razão à aluna. Eu mesma, como bem se lembra o atento leitor.

E essa é a história de como a narradora escapou de um ine­vitável e redondo zero.

Espero que o leitor receba essa confissão com compaixão..."

Maria Paula parou de ler. "Com compaixão" não soava bem, pensou. Fez um rabisco na folha. E continuou lendo: "Es­pero que o leitor receba essa confissão com condescendência..." Parou de ler, outra vez. "Com condescendência" também não soava bem. Quebrou a cabeça, mas não conseguiu encontrar outra palavra. Desistiu. Já estava ficando tarde.

Trancou as folhas na sua gaveta e foi se deitar. Maria Paula começou a piscar. Mas ainda teve tempo de se lembrar daquele garoto da festa de sexta-feira. Suas roupas extravagantes, seus olhos grandes. O beijo...

Maria Paula adormeceu com um sorriso nos lábios.

 

                   TARDE DE VENTO E DE ESPANTO

No seu segundo dia de trabalho, Eugênio sentiu que as horas passaram depressa. Já era mais de meio-dia. Ele e Edmundo esta­vam com fome. Chegando ao Rei das Iguarias, encontraram uma multidão na entrada.

Edmundo e Eugênio esticavam a cabeça para ver o que se passava lá dentro, quando alguém chamou:

Ed Onda!

Calixto! — exclamou Edmundo.

No calçadão, um rapagão de cabelo escovinha manobrava

seu skate.

— E aí, Ed mundo-velho-de-guerra?

Calixto era radical do asfalto e boy. Tinha sido campeão de skate de rua três temporadas consecutivas.

Você sumiu! — disse Edmundo, dando um tapa na mão estendida do amigo.

Serviço militar — respondeu Calixto, dando uma olhada em Eugênio. Estranhou o jeito do garoto e perguntou:

Seu amigo?

É novo na firma. Está fazendo estágio comigo.

Nesse momento, as pessoas amontoadas na entrada do Rei das Iguarias gritaram:

— Doze!

— O que está acontecendo lá dentro? — perguntou Eugênio, intrigado.

— É o Arnaldão.

— Hoje tem "Maratona dos Cozidos"?! Vem cá, Eugênio, isso você não pode perder — foi dizendo Edmundo enquanto ia entrando no boteco.

Eugênio se esgueirou atrás de Edmundo. Ouvia-se uma músi­ca. Era um menino soprando uma folha de celofane sobre um pente de cabelo. O som era idêntico ao de trumpete.

Quem está tocando? — quis saber Eugênio.

Aquele é o João Jó.

Jó acenou para Edmundo, sem parar de tocar. Era um garoto magro e comprido. Andava o tempo todo com um terninho surrado, meio curto nas mangas.

— Sente só o outro artista — disse Edmundo, cutucando o aprendiz.

Encostado ao balcão, outro garoto comia ovos cozidos. Mas­tigava no ritmo da música. Todos em volta prestavam extrema atenção. Só se ouvia um certo murmúrio quando ele terminava outro ovo.

O próximo, por favor.

Em qual está? — perguntou Edmundo ao sujeito que estava próximo.

Décimo sexto.

Hoje o Arnaldão Vinte e Duas bate o seu recorde — comen­tou um outro garoto.

Arnaldão Vinte e Duas carregava essa alcunha porque certa noite comera vinte e duas cumbucas de caldo de mocotó em seguida. Mais quadrado que gordo, tinha apenas treze anos. Nin­guém lhe dava essa idade, no entanto.

— Já chega — sentenciou Vinte e Duas. Jó parou de tocar o pente.

Arnaldão pegou sua pastinha e foi saindo. Sua expressão era fleumática, grave. Seguido pelos outros boys, dirigiu-se a uma agência bancária em frente.

— O que é que está acontecendo? — perguntou Eugênio.

— Uma aula — respondeu Edmundo, com um sorriso inde­cifrável no rosto.

A platéia ficou do lado de fora. Esperando. O garoto tomou a fila mais longa.

Aos poucos, as pessoas na fila começaram a olhar em volta, a se mexer... a farejar. A fila foi se dispersando. Uns, mais afoi­tos; outros, disfarçadamente. Mas todos tapando o nariz.

— Isso é estilo — declarou Calixto, chorando de tanto rir. Calmamente, Arnaldão Vinte e Duas se aproximou do caixa.

E começou a pagar as contas. Do outro lado da rua, os boys aplau­diam.

Edmundo se virou para Eugênio:

— Você acaba de conhecer um profissional.

—Alô — atenderam do outro lado da linha.

A Maria Isabel está?

Ela mesma quem está falando.

Oi! Aqui é o Eugênio.

Quem?!

O primo do Plínio.

Ah! Aquele do arroto. -É...

Algum recado do Plínio?

Não. Liguei só pra conversar.

Você me pegou no meio do trabalho.

Eu sei.

A doceria está cheia de gente. Não posso conversar agora.

Eu também não. Por que a gente não se encontra depois? Você tem compromisso hoje? .

Tenho. Vou me encontrar com o Plínio.

Que horas?

Pra que você quer saber?

Ele vai passar aí pra pegar você?

Não. Vai me pegar na escola.

Eu podia levar você, então?

Houve um silêncio do outro lado da linha.

Você é mesmo primo do Plínio?

Sou.

Filho do doutor Ignacio?

Sou...

Mais um instante de silêncio.

— Está bem. Largo às sete. Mas não se atrase que eu não posso esperar. Preciso desligar. Tchau.

O sinal de ocupado ficou zunindo. Eugênio ainda estava com o telefone na mão. Suando. Não conseguia parar de tremer. O que tinha feito? Fora ele mesmo? Ou outro? Estava acordado?

De repente, ouviu passos no corredor. Pousou o telefone no gancho e fechou a agenda que estava à sua frente. Plínio entrou, resmungando:

— Não consigo encontrar meu caderninho de telefones. Você viu?

Eugênio apenas balançou a cabeça negativamente. Não podia nem piscar. Plínio bateu o olho sobre a mesa, avistando o que procurava. Olhou desconfiado para Eugênio. Perguntou:

— Você mexeu?

Eugênio encarou o primo. Sem pestanejar:

— O que é que eu ia querer com seu caderninho de telefones?

Plínio pensou um momento. Sem muita convicção, saiu. Logo que o primo fechou a porta, Eugênio soltou:

— Rrrooooarrrgh!

E desmontou na cadeira, feliz da vida. Eugène Flammarion se sentiria orgulhoso da sua reação diante do perigo, pensou.

Mas olhou o relógio e começou a tremedeira. Faltava menos de uma hora para o encontro. Sua imaginação trabalhou rapida­mente, e ele se viu na frente da garota. Mudo. Perguntando-se: "O que foi que eu vim fazer aqui?"

Nesse instante, entrou Edmundo. Tinha tomado banho na firma mesmo. De lá, ia a um encontro. Vestia-se com roupa nova: jaquetão vermelho que batia na metade da coxa; com quatro botões de cada lado; e uma gola avantajada. Adornando o pes­coço, um babado de renda. Em tudo lembrava um cavalheiro inglês do século XVII. Menos o cabelo: espivetado para o alto, feito uma chama.

— Comeu alguma coisa estragada? — perguntou o boy, ao perceber Eugênio tremendo.

Não...

Foi o churrasco grego.

Nada disso!

Quer uma força?

Acho que não.

Mas o que foi?!

Fiz bobagem.

Da feia?

É...

Fala — insistiu Edmundo.

Marquei um encontro com uma garota. - E aí?

Estou morrendo de medo.

— Eugênio. Vou fazer uma pergunta séria: você está com vontade de arrotar?

Não...

E os gases?

Nem sinal.

Então? Qual é o problema?

A garota é namorada do Plínio.

-Quem?!?!

— Maria Isabel.

Edmundo não sabia o que pensar. Tinha sido esquecido. Trocado pelo "patrãozinho". Perguntou:

Que horas?

Sete.

Ela não disse que tinha encontro?

Com o Plínio. Mais tarde.

Um cansaço repentino tomou Edmundo. Seus ombros caíram, curvou-se um pouco. Era uma sensação estranha: tinha esperado tanto por aquela terça-feira; e a única coisa que desejava então era se enfiar na cama, esquecer o mundo.

— Melhor andar depressa — disse o boy, tirando o jaquetão e jogando-o sobre uma cadeira. — Vai acabar chegando atrasado.

Não vou mais.

Não vai?!

De que adianta?

Se liga, Eugênio!

Eu sei que vou ficar mudo na frente dela.

Edmundo pensou um instante. De uma hora para outra, as faces do boy ficaram coradas. Maquinou que maquinou, e disse:

— E se eu for com você? Só pra dar uma força...

— Era o que queria pedir! — confessou Eugênio, vibrando. — Mas estava sem coragem. Você vem comigo?!

Claro que eu vou.

Vai ser o máximo!

— Vai — respondeu Edmundo, sem prestar muita atenção no que dizia. Seu pensamento já ia longe: queria só ver a cara dela quando chegassem os dois juntos. E ruminou: "Aquela embrulhona..."

 

                   COISAS QUE A GENTE NÃO SABE

A Doceria Rebolo ficava numa alameda arborizada, cheia de lojas. O movimento era grande. Eram mais de sete horas e quem saía do trabalho aproveitava para ver as vitrines.

O expediente de Maria Isabel e Maria Paula também tinha terminado. Vestindo ainda seus uniformes, permaneciam na frente da doceria.

Você não vai pra aula? — perguntou Maria Paula.

Já, já... — dissimulou Maria Isabel. — E você?

Só dando um tempo — disfarçou a irmã.

De repente, uma voz conhecida feriu o ouvido de Maria Isabel:

— Surpresa!

Era Plínio que chegava no carro da firma, antes da hora com­binada e fora do local combinado! Enquanto descia do automó­vel, ele tentava decidir qual das duas era Maria Paula. De unifor­me, era impossível diferenciá-las. Escolheu a que lhe pareceu menos surpresa com sua chegada para dar um beijo.

Qual é, Plínio?! — reclamou a escolhida. — A Maria Isa­bel é ela.

Eu sei, Maria Paula... — disfarçou Plínio. — Só estava cumprimentando a cunhadinha.

— Da próxima vez, não abuse.

Plínio se voltou para sua namorada. Ela estava distraída, preocupada com quem dobrava a esquina.

— Maria Isabel!

A garota não respondeu.

— Maria Isabel!! — insistiu Plínio.

Maria Isabel estava paralisada. Tinha acabado de avistar Eugênio chegando do outro lado da rua. Afastando Plínio de sua frente, a garota puxou a irmã pelo braço.

— Maria Paula, que maquiagem horrível! Toda borrada! Deixa eu dar um jeito nisso.

Maria Paula arregalou os olhos e disse:

— Não estou usando maquiagem!...

Maria Isabel apertou até machucar o braço da irmã, dizendo entre os dentes:

Você vai ver se está usando ou não.

Uiiii!

Plínio achou o comportamento da namorada muito esquisito. Mas precisava manter a pose.

Maria Isabel sussurrou para a irmã:

— Estou precisando da sua ajuda.

— Por isso saiu com essa de maquiagem borrada? Que coisa mais antiga.

- Qual é Plínio?! – reclamou a garota

Ao receber o beijo. – A Maria Isabel é ela.

Pode ficar quieta um minuto?! Está vendo aquele garoto do outro lado da rua?

Tem uma porção de gente do outro lado da rua.

Não posso me virar e apontar! Não quero que me veja.

De que adianta você ficar de costas se eu estou de frente? Somos gêmeas, esqueceu?

Então se esconda!

Aponte logo!

Maria Paula virou de leve seu rosto.

Aquele ali. Do outro lado da rua.

Qual é o problema?

Marquei um encontro com ele.

Você?! Minha irmã madura, crescida?!

Vai me ajudar ou não?

Se é pra passar a perna no seu namorado...

Ele é só um amigo!

Sei.

O garoto é primo do Plínio.

Agindo em família, hein?

Maria Isabel fuzilou a irmã com os olhos. Maria Paula não deu a mínima. Perguntou:

Qual é o nome?

Eugênio.

Deixa comigo.

Maria Paula saiu na direção de Eugênio. De passagem por Plínio, deu um tapinha no rosto do namorado da irmã. Sorrindo misteriosamente. O rapaz ficou encafifado.

Maria Isabel chamou a atenção de Plínio:

— Olhe ali! Não é seu primo? Na outra calçada. Eugênio perguntava para um vendedor de bilhetes onde

ficava a Doceria Rebolo, quando ouviu:

— Eugênio, amorzão!

Ele se virou e deu de cara com Maria Paula. A garota não perdeu tempo: tascou um beijo no primo do Plínio. Só para pro­vocar a irmã. Nesse momento percebeu que alguém a observava, à distância: Edmundo.

O que se seguiu foi uma correria. Eugênio saiu atrás de Maria Paula, que saiu atrás de Edmundo, que saiu sem dizer nada. Somente algumas quadras adiante, um sinal vermelho para pedestres fez com que os três se reagrupassem.

Espere um pouco! — pediu Maria Paula, ofegante. — Quero conversar com você.

Mas eu não quero — respondeu Edmundo, olhando para o sinal à espera que abrisse.

Que loucura é essa? — quis saber Eugênio, que chegara pouco depois. — Pra que essa correria?

Espere um pouco, Eugênio — disse Maria Paula. — Depois eu explico.

Explica agora, ué! — intercedeu Edmundo, voltando-se para trás com os olhos vermelhos. — Não foi você quem apron­tou essa?!

— Não aprontei nada!

— Como não?! Você não combinou de se encontrar comigo hoje à noite? — acusou o garoto.

Isso é verdade? — perguntou Eugênio, espantado.

É, mas... Tem uma coisa que vocês ainda não entenderam.

Eu entendi — interrompeu novamente Eugênio. — Entendi

tudo.

— Do que é que está reclamando, "patrãozinho"? — provo­cou Edmundo.

Não me chame de "patrãozinho"!

Por que não? Você tem tudo que quer, mesmo.

Será que vocês não podem calar a boca um minuto pra me ouvir?! — berrou Maria Paula.

Não precisa falar mais nada, não — resumiu Edmundo. O melhor negócio é ficar com ele.

Você acha que eu estou fazendo um negócio?

É dos bons.

É isso que você pensa de mim?

— É — respondeu Edmundo, virando as costas e atraves­sando por entre os carros que passavam.

Maria Paula não foi atrás do garoto dessa vez. Sabia que ele não a ouviria. Além disso, ela também se sentia magoada. Pela primeira vez na vida, não tinha se divertido passando-se pela irmã. Maria Isabel tinha razão, pensou: isso era mesmo uma brin­cadeira idiota.

— Você tinha mesmo marcado encontro com Edmundo? — quis saber Eugênio.

É esse o nome dele?

Não sabia?!

Tem uma porção de coisas que a gente não sabe.

Disse isso e foi indo embora entre os transeuntes carregados de compras, sob o olhar atônito de Eugênio.

 

                   VOU FAZER TUDO ISSO SOZINHO?

No dia seguinte ao encontro frustrado, Eugênio saiu um pouco atrasado de casa. Chegou ao escritório e automaticamente se dirigiu à copa, onde sempre encontrava Edmundo. Já era quarta-feira. Sem perceber o garoto ia se habituando à rotina.

Logo que entrou no corredor, no entanto, ouviu uma voz conhecida. Doutor Ignacio saía por uma porta. Só percebeu que Eugênio vinha no sentido oposto quando estava bem próximo. Ficou um instante sem saber o que fazer até que disse:

Bom dia.

Bom dia, papai.

Eugênio viu o pai seguindo até o fim do corredor. Sem olhar para trás.

Um minuto se passou até ouvir a voz de Plínio:

O que está fazendo aí, parado? Tem de sair já.

E o Edmundo?

Já foi.

Não me esperou?!

— Não. Disse que você já sabia se virar sozinho. Vamos ver... Entregue este envelope no endereço escrito aí; é urgente. Depois, pague estes carnes. Vencem hoje.

Vou fazer tudo isso sozinho?

Claro que vai. É a sua obrigação!

E o dinheiro do lanche?

— Pra quê? Não vai sobrar tempo pra você comer. O que está esperando? Anda, moleque!

E lá se foi o aprendiz de boy.

Eugênio estava tão bravo que quase passou direto pelo lugar onde devia entregar o documento. Era um edifício antigo. No umbral se lia: 1936. Empurrou a porta e entrou.

O saguão estava escuro, silencioso. O piso imitava um tabu­leiro de xadrez. Pendurado na parede, um enorme quadro pin­tado a óleo mostrava um sujeito com asinhas nos calcanhares.

Pegou o elevador e chegou ao quarto andar. Desceu. Confe­riu o endereço no envelope. A porta estava fechada. Tocavam vio­lino lá dentro. O aprendiz de boy apertou a campainha. A música parou.

— O que você quer? — alguém perguntou através de um interfone.

— Vim trazer um documento. Do escritório do doutor Ignacio. A porta foi destravada automaticamente. Eugênio entrou

numa apertada cabine blindada. Logo que passou, a porta tran­cou sozinha. O aprendiz de boy começou a suar frio.

— Onde está Edmundo? — perguntou a voz, por outro inter­fone.

Eugênio notou uma câmera de vídeo no teto. Olhou na dire­ção da lente e levantou os ombros. Não sabia o que dizer.

— É sempre ele que vem da parte do doutor Ignacio — con­tinuou a voz. E depois de um silêncio: — Sabia que esta cabine pode se encher de água ao meu comando?

N-não, s-s-senhor...

Mas o pior vem depois, com a descarga elétrica!

S-sim, s-s-senhor...

Como posso saber se você fala a verdade?

E se eu... e se eu jurar?

Uma gargalhada debochada tronitoou pela cabine. Em segui­da, abriu-se uma janela na placa blindada. Através do vidro à prova de balas, Eugênio pôde ver seu interlocutor.

Tratava-se de um sujeito gordo, sentado a uma cadeira de rodas. Sobre a mesa ficavam umas caixas de metal com cadeado, um violino e um revólver calibre 38.

Como o garoto estava branco como a lua, o homem parou de rir. Disse:

— Não ficou bravo com a brincadeira, ficou?

Não, senhor — respondeu Eugênio, tentando controlar a taquicardia.

Ignácio não me avisou que vinha outro boy. Você é novo na firma?

Estou trabalhando com papai desde segunda.

Você é filho do Ignacio?!

Sim, senhor.

Por que não disse antes?... Que belo rapagão o Ignácio tem. Como é seu nome?

Eugênio.

Seu pai foi o melhor piloto que eu já vi voando. Servi­mos juntos na Força Aérea. Um grande companheiro! Fiel, gene­roso. Compreensivo.

O gordo se calou. Tinha o olhar perdido. Logo veio um sobressalto; voltou.

— Bem, passe para cá esse envelope — disse o gordo abrindo uma portinhola. — Vamos conferir.

Logo que Eugênio deixou o escritório, ouviu de novo o som do violino.

Enquanto esperava o elevador, pensou: aquele homem na cadeira de rodas falara de seu pai. Mas parecia ter descrito outra pessoa. Para Eugênio, doutor Ignacio era um homem amargo e ranzinza. Aquele ás da aviação, generoso e compreensivo, também ele gostaria de ter conhecido.

 

                   QUARTA – FEIRA NEGRA

O carrilhão da Basílica badalou doze vezes: meio-dia. Eugê­nio vinha pelo calçadão. Morrendo de fome.

Fazia e refazia as contas na cabeça. Tinha apenas uns troca­dos. Não dava nem para o pãozinho sem a esfiha. Pensava nisso, quando avistou Edmundo conversando com Arnaldão, Calixto e Jó.

— Olha aí, Ed — chamou Calixto ao avistar Eugênio. — Não é o seu estagiário?

Está boa a conversa? — perguntou Eugênio, ironicamente.

Está. Mas não é com você — respondeu Edmundo.

Foi pra isso que jogou todo o serviço na minha mão?

Escuta aqui, "patrãozinho": faço o que quiser, estou na minha hora de almoço.

Pois eu, não. O Plínio não me deu dinheiro.

Isso é mau... — condoeu-se Calixto, mesmo contra a von­tade.

Principalmente porque hoje tem feijoada completa no Atílio — completou Arnaldão.

Acho que podia comer duas inteiras — resmungou Eugênio.

Hummmm — desdenhou Arnaldão. — Você?! Duas? Do Atílio?

Com a fome que estou!

Não é uma questão de fome, meu filho.

Apesar de ser o mais novo de todos, Arnaldão tratava os companheiros por "filho". Especialmente quando queria desafiar alguém. A turma sabia disso. E esperou.

Questão do quê? — enfrentou Eugênio, movido a vácuo no estômago.

Você não tem a manha...

Mas tenho boca.

Isso é o que eu quero ver. Vamos fazer uma aposta: quem comer menos paga a conta!

Se liga, Arnaldão — intercedeu Calixto. —- O moleque está sem dinheiro.

Então vamos fazer o seguinte: pago a conta de qualquer jeito. Mas quem perder vai ter de subir no elevador da Bolsa de Valores. Logo depois do almoço.

O elevador da Bolsa é maldade — reclamou Jó.

Então? — insistiu Arnaldão. — Fechado?

Fechado — respondeu Eugênio, selando sua sorte.

E lá se foram todos, na direção do Buraco do Atílio. Por onde passavam, os outros boys perguntavam o que estava aconte­cendo e seguiam juntos. Ninguém perdia as performances do Arnaldão Vinte e Duas.

O Buraco do Atílio ocupava o subsolo de um edifício de escritórios. Era um lugar apertado, com poucas mesas de fórmi-ca, azulejos até a metade da parede e colunas ladrilhadas. Por causa do horário, o boteco estava cheio. Mas Edmundo explicou a situação e o próprio Atílio arrumou logo uma mesa.

Eugênio e Arnaldão sentaram-se. Frente a frente. Edmundo foi escolhido como juiz da contenda. Curiosos se acotovelavam para acompanhar o embate.

Chegaram as duas primeiras feijoadas. Completas. Até demais: feijão rosetado e caldo denso; carne-seca, paio, rabo, entre outros pertences; costeleta, lingüiça, couve na manteiga e o sinistro torresrninho. Além de meia laranja.

O aprendiz controlou seu espanto. Arnaldão manteve sua tradicional expressão fleumática e grave. Em poucos minutos as duas primeiras feijoadas foram dizimadas. Serviram só de aqueci­mento. A sorte das duas seguintes não foi melhor.

Pediram a terceira rodada. Os contendores já não comiam tão vorazmente. Eugênio se perguntava como tinha ido parar naquela situação. Pensou em desistir. Mas não queria passar ver­gonha na frente dos boys. Decidiu continuar.

O desafiante estava surpreso com seu adversário. Tinha cer­teza de que o moleque não passaria da primeira rodada. Nunca ninguém tinha enfrentado Arnaldão Vinte e Duas daquele jeito. A platéia vibrava.

Calixto reparou que Eugênio estava ficando pálido. Aconse­lhou:

— É melhor subir o elevador da Bolsa depois de três fei­joadas.

Eugênio nem respondeu. Reservava todas as suas forças para mastigar. E engolir. Mastigar. E engolir.

Quando chegou a quarta rodada, Arnaldão achou por bem propor uma alteração nas regras:

— Em caso de empate, os dois ficam dispensados do eleva­dor da Bolsa. Concorda?

Eugênio entendeu que o adversário estava fraquejando. Sen­tiu que precisava aproveitar a chance se quisesse vencer. Com muito esforço, respondeu:

— Se houver empate, os dois ficam obrigados a subir no tal elevador.

A platéia murmurou, espantada.

Arnaldão olhou bem para Eugênio. Admitia que o adversá­rio era valente. Mas precisava de uma lição: chamou mais duas feijoadas completas. Eugênio acabou se arrependendo da sua presunção. Olhava para as carnes e elas pareciam acenar para ele com minúsculas mãozinhas. Bem que ele tentou, mas não conse­guiu passar do primeiro torresmo. Oficializou sua desistência com um arroto.

Usando suas últimas forças e enzimas, Arnaldão começou a sua feijoada. As garfadas foram ficando mais lentas, mais len­tas. Até que finalmente restou apenas uma meia laranja.

— Só vence se comer tudo — reclamou Eugênio.

O desafiante olhou para a laranja. E vacilou. Houve um ins­tante de suspense no Buraco do Atílio. Finalmente, Arnaldão engo­liu de uma vez só a fruta.

A torcida aplaudiu.

Eugênio tinha perdido a disputa.

— Onde fica o tal elevador? — perguntou o derrotado aprendiz.

— Esquece! — declarou Arnaldão, esparramado na cadeira. — Comeu com garra: pra mim você também é vencedor.

Os aplausos explodiram outra vez, com o gesto magnânimo do campeão. Mas Edmundo interrompeu, dizendo:

— Nada disso. Perdeu tem de pagar.

— Que é isso, Edmundo? — reclamaram Jó e Calixto, estra­nhando a intransigência do amigo.

— O juiz sou eu.

Por mim... — ia dizendo Arnaldão, mas foi interrompido pelo perdedor:

Onde fica o tal elevador? Faço questão de acertar minha dívida.

 

É melhor subir o elevador da Bolsa depois de só três

Feijoadas – aconselhou Calixto, mas Eugênio nem respondeu.

Quando entrou no elevador da Bolsa, poucos minutos depois, a palidez de Eugênio chegou mesmo a chamar a atenção do ascen­sorista. Mas ele nada comentou. Esperou pelo último passageiro e fechou a porta.

O elevador começou a subir. Estava lotado. Na frente do garoto, um senhor de terno elegante lia o jornal de finanças. Cheio de números. Muitos números. A vista do aprendiz foi emba­ralhando.

De repente, o elevador parou. Mas a "feijoada" continuou subindo. Feijões e rabos mal digeridos espalharam-se sobre os números do jornal de finanças, causando uma reação em cadeia dos outros passageiros. Tampouco outros senhores de terno resis­tiram à cena, logo que se abriram as portas do elevador.

Esse dia ficou conhecido na Bolsa de Valores como a Quarta-feira Negra.

 

                   CÍLIOS BATEND0 FEITO LEQUE

Em uma das últimas passagens das Memórias idênticas, Maria Paula escreveu:

"Ao impaciente leitor darei uma breve explicação do que passava por meu coração e mente, em relação ao desafortunado Edmundo: não consegui parar de pensar nele. O tempo todo me vinha à memória seu jeito de olhar tristemente sob as sobrancelhas, os cílios longuíssimos batendo feito um leque.

Preciso confessar, mais uma vez nestas repetitivas páginas memoriais, que não podia imaginar que houvesse tantos sentimentos dentro de mim. Multidões. Todos alvoroçados e incontroláveis. Isso por causa duns olhos, duns cílios.

Eu, que sempre amei incondicionalmente as palavras, devo admitir que as coisas também têm seu poder de sedução. Noto isso quando percebo que minha aprimorada, ainda que prematura, arte de descrição é pífia no que tange às sensações do — devo ser metafórica? — coração.

Atento e dedicado leitor, acompanhe meu raciocínio: o que podia ser Edmundo para mim além de um vocábulo de extensas possibilidades? Só posso dizer que, agora, aquele garoto me afastou irremediavelmente do substantivo em questão. Calma, confuso leitor. Já me explico: Edmundo para mim, neste momento, são menos letras que olhos e cílios longos... Nunca mais terei dessa palavra apenas o som, a caligrafia fria e distante.

Mas a vida tem seus lenitivos inesperados e involuntários. Imagine o emocionado leitor que minha irmã e eu fomos apanhadas em flagrante delito. Não. Não pense o(a) senhor(a) que está frente à memória de um infrator contumaz ou delituoso qualquer. Antes que o chocado leitor feche este livro e o retire do alcance das crianças, devo avisar que se trata de um mal que veio para o bem: depois do fatídico incidente em que corrigi o professor Pacífico — lembra? —, uma sindicância levantou a necessidade de um rigoroso controle de todas as gêmeas da escola, quanto à, digamos, autenticidade de comparecimento. Em outras palavras: descobriram que uma irmã fazia a prova pela outra.

Só me restou iniciar-me tardiamente no inefável mundo das ciências.

Não pense o(a) senhor(a) que estou triste. Esta nova situação me obriga a desviar o pensamento das coisas do coração e da solidão''.

Maria Paula escrevia esse trecho, quando Maria Isabel entrou no quarto. Tinha voltado mais cedo para casa. Como sempre, logo que entrava no quarto, jogava seus livros num canto, arrancava os sapatos de qualquer jeito e subia para sua cama no beliche. Depois, suspirava profundamente.

— Como é que você pode gostar de análise sintática?— perguntou Maria Isabel.

— Matéria nova, hoje?

— Acho que sim. Como é que vou ter certeza? Nunca estudei essa coisa antes!

Vai acabar gostando.

Não acredito. Onde é que a gente vai usar isso na vida?! —disse isso e se virou, avistando a escrivaninha onde Maria Paula trabalhava: as folhas das Memórias estavam espalhadas sobre um livro de Física. — E você? Não devia estar estudando?

Devia.

Não sei como você pode ficar enrolando desse jeito.

Não consigo estudar.

Pensando naquele garoto?

É.

— Melhor esquecer. Semana que vem tem prova. Não quer passar de ano? Quando pego uma coisa pra estudar, quero terminar logo.

Nunca pensa no Plínio?

Pra que pensar? Encontro com ele e pronto.

Mas vocês se encontram tão pouco.

— Paulinha, sair com namorado é matéria decorativa... Você acha que eu preciso perder mais tempo com o Plínio?

— E o primo dele, o Eugênio?

— Que tem?... — respondeu Maria Isabel, depois de um breve silêncio.

Vai me enganar que não pensa nele.

Como investimento futuro. O menino está em baixa, agora.

Não precisa vir com essa pra cima da sua irmã, Isabel!

Sério. Por que não acredita? — disse Maria Isabel, sentando-se na cama. — Você precisa crescer... Aí vai saber do que estou falando.

A memorialista ficou observando sua irmã por um instante. Estava lá, na parte de cima do beliche, as pernas balançando. Tranqüila. Sem emoção. Um medo enorme de crescer tomou conta de Maria Paula.

 

                   JUSTA CAUSA

Edmundo voltava do trabalho para casa a pé. Para chegar ao Treme-treme, precisava atravessar um túnel.

Automóveis passavam buzinando. O eco do lugar aumentava o alarido. O túnel tinha duas pistas para os carros, mas a passarela dos pedestres era estreita e suja. Edmundo ia olhando para o teto de azulejos. Contava as lâmpadas de gás de sódio, usadas na iluminação.

A barulheira cessou repentinamente. Quando o semáforo fechava na avenida lá fora, os automóveis deixavam de passar por um minuto. Edmundo ouvia os próprios passos. A passarela estava vazia. Eram oito horas: as pessoas tinham medo de andar pelo túnel à noite.

De repente um ruído reverberou. Alguém estava atrás dele, pensou. E se voltou. Um carro veio pela pista, buzinando alto. O sinal na avenida estava aberto outra vez. A luz forte dos faróis impedia que se visse quem vinha pela passarela.

Edmundo apurou a vista. Teve a impressão de ver uma mulher deixando o túnel. Mas não podia ter certeza. Isso ocorrera várias vezes nas últimas semanas: sentia que alguém o seguia, virava-se e apenas via uma mulher se escondendo. Estava quase convencido de que era sua mãe quem o perseguia. Chegou a ensaiar alguns passos na direção em que vira o vulto, mas desistiu. Podia ser mesmo assalto. Melhor não arriscar.

Edmundo pegou o elevador e desceu no 28? andar. Os corredores no Treme-treme eram longos. Até chegar ao seu apartamento, o boy ouviu choro de criança; som de televisão; panela de pressão chiando; tosse; pratos batendo na pia; palavrões e risos.-

Logo que entrou, deu de cara com seu pai. Estranhou. Cosme estava de pé no meio da sala. Vestia o uniforme de vigia.

— Tudo bem?

Cosme evitou olhar o filho. Disse apenas:

Tudo.

Vou cuidar da janta.

Não precisa.

Sem fome? -É.

Cosme continuava olhando para o chão.

— Vou bater um rango — disse Edmundo. — Se der vontade, me diz.

Edmundo largou a pastinha no sofá e já ia entrando na cozinha quando Cosme:

— Preciso falar.

O filho parou. Alguma coisa tinha acontecido.

Fala, Cosme. Cosme silenciou.

O que aconteceu? Cosme não respondia.

Fala.

Cosme levantou os olhos. Encarou o filho e:

— Fui despedido.

Edmundo não teve nenhuma reação. Depois coçou de leve a cabeça, por baixo da onda em seu cabelo. E voltou a ficar imóvel.

— Justa causa — completou o pai. — Sem indenização. Estava chegando tarde todo dia.

Edmundo olhava para o pai sem dizer nada. Cosme baixou os olhos. Ficou um tempo em silêncio. Depois:

— Procurei trabalho o dia inteiro. Nada.

O silêncio continuou entre pai e filho por um tempo. Cosme foi até o sofá e se sentou. Balbuciando:

— O vigia da tarde não segurou a minha.

Disse isso e se deitou. De costas para o filho.

O garoto quase mandou o pai tirar o uniforme; podia amassar. Mas se conteve. Foi para o quarto. Sem dizer nada. Agachou-se ao lado das caixas de laque abandonadas por sua mãe.

E escondeu o rosto entre as mãos.

 

                   TEM VAGA?

Mais tarde, Edmundo foi procurar seus amigos. Isso era comum. Encontravam-se e gastavam horas jogando conversa fora.

A dona era louca, Calixto. Falando sério!

Larga mão de ser mentiroso, Arnaldão.

Quero ficar sem comer três dias se estou inventando.

O ponto de encontro era sempre uma passagem subterrânea de pedestres sob a avenida. Era uma galeria repleta de mapas envelhecidos da cidade e fotos com obras da Prefeitura. Pouca gente passava por ah. Um guardinha de bigodinho branco vigiava o lugar. Mas não se importava com os garotos. Faziam-lhe companhia.

— A dona tinha pavão, tinha jabuti, tinha arara — enumerou Arnaldão, continuando a contar seu caso. — Por que não ia ter uma jaguatirica?

E a jaguatirica não comeu os outros bichos?

Estava acorrentada, meu filho!

Calixto fazia manobras em seu skate, enquanto falava. João Jó tocava uma melodia triste no seu pente. Arnaldão mantinha-se fleumático e grave, mesmo quando mentia.

Edmundo estava encostado na parede. De cabeça baixa, braços cruzados. Sem dizer nada. Raramente ele era visto assim. Por isso seus amigos estranharam. Sem interromper o que estavam fazendo, um acenou para o outro com a cabeça, buscando descobrir se alguém sabia o que estava se passando. Ninguém tinha idéia.

A dona me fez entrar — retomou Arnaldão, depois de um certo tempo. — Disse que eu tinha chegado em boa hora; que o almoço tinha acabado de sair. Perguntou: "Está servido?" Claro que eu estava... A comida era demais! Repeti cinco vezes!

Estava sem fome? — perguntou Calixto fazendo uma curva radical sobre o skate.

— Tinha forrado o estômago no Rei das Iguarias.

Comeu o que no meio dessa bicharada? Anta assada?

Não. Macaco. Quer dizer, cérebro de macaco.

Sei... — respondeu Calixto com ar incrédulo.

A mesa tinha um buraco no meio. A dona enfiava a cabeça do macaco por baixo. Aí cortava a tampa do crânio do bicho. Depois...

Vai pra casa, Arnaldão! — disse Calixto, encerrando a conversa. .

Arnaldão percebeu que não estava agradando. Antes de ficar quieto de uma vez, murmurou baixinho:

— Vou levar vocês lá. Tem uma porção de chimpanzé empalhado na entrada!

Os boys ficaram em silêncio. Olhando para Edmundo. Apreensivos. O que se passava com o companheiro? Apro­ximaram-se. Calixto foi o primeiro:

Aí, Ed... A fim de trocar um lero?

Deixa quieto — respondeu Edmundo, evitando contar o que estava acontecendo.

A gente não pode ajudar? — quis saber Jó.

Não esquenta.

Foi aquele babaca do filho do seu patrão, não foi? — intuiu Arnaldão.

Nada...

Meu! — imprecou Calixto. — Vou colar o brinco desse pandeiro!

Eugênio tá fora dessa.

Quem foi, então?

Meu pai — disse Edmundo e se sentou num degrau, apoiando o queixo sobre os joelhos.

Novamente a turma toda ficou em silêncio. Entreolharam-se. Ficaram sem saber o que fazer por algum tempo. Depois:

— Conta — pediu Calixto.

 

                   FIZ BOBAGEM?!

Edmundo falou, com a cabeça baixa: — O Cosme. Não quer ajudar.O boy estava olhando para frente agora, sem encarar nin­guém. Era hora de desabafar. Afinal, estava entre amigos. Con­tou tudo o que acontecia em casa. Parecia, às vezes, que o garoto falava para ele mesmo.

A turma acompanhou toda a história com a maior atenção. Quando Edmundo finalmente falou da dispensa de Cosme, Jó murmurou:

"Com a minha voz clamei ao Senhor: levantei a minha voz a Deus, e Ele me atendeu".

Que é isso, meu filho?! — perguntou Arnaldão, sem enten­der nada.

Sapienciais, Livro dos Salmos, salmo 76 — João Jó lem­brava-se de seus estudos bíblicos na igreja; havia citado o Velho Testamento.

— Sei — concluiu Calixto, um pouco impaciente. — E aí?

— Hoje, quando estava saindo do escritório, vi um sujeito botar uma placa procurando um vigia pra noite — explicou João Jó.

— Tem vaga?! — animou-se Edmundo.

— Só que seu pai tem de chegar cedo! Sei que eles só aten­dem depois do meio-dia, mas pode acreditar: vai ter gente desde as oito.

Edmundo não perdeu tempo. Sabia que o amigo dispensava o agradecimento. Foi correndo para casa.

Cosme ouviu a novidade deitado. Fazia muita força para manter os olhos abertos. Edmundo acabou arrancando o pai do sofá e o obrigou a tirar seu uniforme. Disse que precisava passá-lo.

Enquanto o filho estava esperando o ferro elétrico se aque­cer, Cosme disse várias vezes:

— Pode deixar, filho. Eu vou acordar. Antes de cair dormindo.

Na manhã seguinte, Cosme se levantou com Edmundo. Ves­tiu o uniforme bem passado. Sentiu-se sonolento. Decidiu fazer um café. Edmundo não podia esperar pelo pai. Já estava atrasado.

— Não se preocupe, filho. Tomo o café e vou embora. Mas, por via das dúvidas, o garoto pediu a um vizinho que

tocasse a campainha de sua casa meia hora depois.

A manhã foi de muito trabalho. Nem teve tempo de almo­çar, quanto mais de pensar no pai. Para seu alívio, não precisava mais andar com Eugênio para cima e para baixo. Até evitava con­versar com ele quando se cruzavam na firma ou na rua.

No meio da tarde, ligaram para o boy. Era o vizinho que se comprometera a acordar Cosme. Estava tocando desde cedo a campainha do apartamento, mas Cosme não atendia.

Justo naquele dia Edmundo não podia deixar o trabalho mais cedo, O escritório estava especialmente agitado. Tentavam entrar numa concorrência de obra pública. Um serviço grande, com uma verba alta envolvida.

Quando Plínio entrou apressado na copa, para distribuir as últimas tarefas da tarde para os boys, o garoto viu sua chance.

— Você, Edmundo, pega o atestado de idoneidade financeira da firma no banco — explicou Plínio. — Telefonei para o gerente e ele disse que já está pronto. Termina hoje o prazo da concorrên­cia. Eu preciso desse documento até o fim da tarde sem falta, entendeu?

— Hum-hum — respondeu Edmundo.

O boy estava distraído, ansioso. Conferia as horas no reló­gio o tempo todo. Até Eugênio percebeu.

Edmundo saiu voando. Ainda eram quinze para as quatro da tarde. Decidiu passar em casa, antes de ir ao banco. Queria saber o que estava acontecendo com Cosme.

Já eram quatro e dez quando Edmundo chegou ao Treme-treme. Entrou no apartamento. As cortinas fechadas, penumbra. E:

— Cosme!

O homem estava deitado de uniforme no sofá. Todo amassado.

Cosme!!

O que foi, filho?

Esqueceu do lance do emprego?

Cosme levantou um pouco o rosto. Tentava colocar as idéias no lugar.

Que horas são? Edmundo nem respondeu.

Perdi a hora — murmurou o pai, sentando-se.

Não ouviu a campainha? Cosme olhava para o chão.

— Eu perguntei se você não ouviu a campainha? — repetiu Edmundo, quase gritando.

Pai e filho ficaram um tempo em silêncio.

— Desculpa, filho.

0 garoto não disse nada. Abraçou sua pastinha nova e encos­tou na parede. Desanimado. Cosme continuou olhando para o chão. Murmurou:

— Glória soprava no meu ouvido, quando precisava me acor­dar. Que mania!

De repente, Edmundo foi até a janela e abriu as cortinas. A luz do sol feriu a vista de Cosme. Voltou-se e:

— Pai...

Mas desistiu de falar. Na verdade, não sabia o que pretendia dizer. Nem sabia ao certo o que estava sentindo. Bateu a porta e foi embora. Eram quase quatro e meia da tarde.

No elevador, lembrou-se de uma coisa estranha. Aquela fora a primeira vez que chamara Cosme de "pai"...

Só quando chegou ao térreo Edmundo tomou consciência de que o banco já devia estar fechando. Saiu correndo. Como o pai, também tinha perdido a hora. E talvez o emprego.

As portas da agência bancária já estavam fechadas. O guarda não estava deixando entrar mais ninguém. Não adiantava insistir. Sem saber o que fazer, Edmundo sentou na calçada. Para pensar.

Nesse instante, viu Eugênio saindo do banco. Com um papel na mão: o atestado.

Onde é que você andou?! — perguntou Eugênio.

Tive... tive uns problemas.

— Quando vi que não chegava, vim correndo para cá. Edmundo fez uma expressão tão incrédula que Eugênio per­guntou:

— Fiz bobagem?!

— Vamos embora. O Plínio já deve estar querendo saber onde a gente se meteu!

Os dois boys saíram correndo juntos. Como um time de bas­quete subindo ao ataque.


 

                   PAI E FILHO

O expediente tinha terminado no escritório do doutor Ignácio. Depois de toda a correria da tarde, Edmundo queria voltar logo para casa. Estava embrulhando sua marmita na copa, quando Eugênio chegou.

— Só vim pegar minha pastinha — disse Eugênio.

Sem desviar o olhar do que estava fazendo, Edmundo disse, depois de um tempo:

Olha aí: foi legal.

0 quê?

— O que você fez hoje à tarde. Livrou minha cara. Fico devendo. Uma mão lava a outra.

— Deixa pra lá.

— Nada disso — respondeu Edmundo, um pouco ríspido. Quando precisar dar uma saída, avisa. Quebro a sua. Não gosto de ficar no vermelho com ninguém.

— Por mim a gente já acertou.

A gente não acertou nada — disse Edmundo, levantando os olhos e encarando Eugênio.

Falando de Maria Isabel? A menina não ficou com nenhum de nós!

Deixa quieto. Não tou a fim de levar esse lero, agora. Minha cabeça vai a mil. Botaram o meu pai na rua, e eu devia era estar agitando um trampo pra ele em vez de gastar meu tempo com você.

E saiu, batendo a porta.

Eugênio ainda ficou um tempo sozinho na copa. Depois apa­nhou sua pastinha e foi embora também.

O caminho que o ônibus fazia até sua casa era cheio de edi­fícios altos e sombrios. Naquela noite, distraiu-se olhando as jane­las mal iluminadas. Ficou imaginando as vidas dos moradores. Criou em sua cabeça várias histórias. Todas parecidas com a his­tória de Edmundo e seu pai desempregado.

Era a primeira vez que seus devaneios não envolviam aventu­reiros e espiões.

Depois de jantar com a mãe, subiu ao seu quarto. Tinha resolvido fazer uma arrumação. Começando pelos aviõezinhos inacabados. Relacionou todos e fez um inventário do que faltava. Decidiu que começaria pelo modelo sobre sua escrivaninha: o Nieu-port 17C-1. Estava manipulando a miniatura, quando doutor Ignácio abriu a porta do quarto:

— Sua mãe disse que você queria conversar comigo.

O filho se virou. Encarou o pai. Ficou um tempo em silên­cio. Fazia quase uma semana que não trocavam nada além de "bom dia" e "boa tarde". Sempre no escritório. Respondeu:

— Quero.

Doutor Ignacio ficou surpreso com a resposta direta de Eugê­nio. Esperava um "sim, senhor". A segurança e a repentina matu­ridade do filho o balançou. Procurou não deixar transparecer. Deu uns passos, olhou em volta. O quarto continuava desarrumado.

Parou no centro do quarto e disse:

— Pode falar.

— O pai do Edmundo foi despedido. Acho que o senhor podia ajudar.

A surpresa de doutor Ignacio cresceu. A situação se tornava quase insólita. Estava esperando que o filho pedisse para deixar o trabalho. Tinha se preparado para fazer um discurso sobre as obrigações de um pai.

— De que jeito? — perguntou doutor Ignacio, tentando man­ter a pose.

— Arrumando trabalho pra ele.

O pai começou a examinar os aviõezinhos pendurados no teto. Enfrentava uma situação inesperada; procurava ganhar tempo. Seu filho estava sendo objetivo e lúcido como tantas vezes exigira. E, no entanto, doutor Ignácio não conseguia se adaptar à nova situação.

As coisas andam difíceis — retomou doutor Ignácio.

Eu sei.

Todo mundo está procurando emprego.

O senhor conhece muita gente.

Ele tinha razão, pensou doutor Ignácio. Passava o dia no telefone, ouvindo piadas antigas. Mas, quando quis desabafar sobre o filho com alguém, não encontrou ninguém. Continuou escutando as mesmas anedotas.

Isso provavelmente Eugênio não sabia.

Eugênio olhava para ele. O pai teve vontade de passar a mão pelo cabelo do filho. Mas se conteve. Tinha se preparado para fazer um discurso sobre as obrigações de um pai, lembrou­-se de novo. Por um instante teve uma vontade incompreensível de sair sem dizer nada.

O que sabe fazer o pai de Edmundo? — perguntou, desis­tindo de entender seus sentimentos.

Trabalhava de vigia noturno. Mas pode fazer qualquer coisa.

A firma já tem uma pessoa à noite.

O que o senhor conseguir está bem.

O pai olhou para o filho. Como era possível o garoto ter mudado em tão pouco tempo? Estava mais seguro, pensou. Mais maduro. Será que tinha ficado tempo demais sem conversar com Eugênio?

—        Diz para o Edmundo mandar o pai falar com o Departa­mento de Pessoal — disse doutor Ignacio, finalmente. — É bom mesmo ter um vigia também de dia.

Tentando se esquivar do olhar sereno do filho, o pai pousou os olhos no porta-retratos sobre a escrivaninha. Era uma foto dos tempos da aeronáutica. Estava de uniforme e capacete. Ele e seus companheiros. Vaidosos.

Por que você guarda isso? — perguntou doutor Ignacio, apontando para o porta-retratos.

Eu gosto.

Não saiu boa. O tempo estava nublado. Mas havia teto para decolar.

Obrigado, pai — disse o garoto, com voz firme.

Já saindo do quarto, doutor Ignacio apontou para o modelo sobre a escrivaninha:

É um Nieuport 17C-1, não é?

Isso mesmo.

Está ficando bom.

Foi num desses que Flammarion fugiu.

Quem?!

Eugène Flammarion. O senhor sempre contava as aventu­ras do aventureiro Flammarion. Esqueceu?

Tinha mesmo esquecido. O pai inventara a personagem para embalar seu filho. Contava longas histórias do aventureiro desilu­dido. Multiplicava as peripécias só para ver o menino adormecer em seus braços. Eugênio era ainda pequenino.

 

                   ESSE NEGÓCIO ARDE MESMO!

Edmundo ficou tão feliz depois de receber a boa notícia de Eugênio que nem sentiu as horas passarem. Terminou rapida­mente seu serviço e foi correndo avisar Cosme.

— Pode confiar em mim, filho — disse o vigia. — Dessa vez eu não decepciono.

E parecia sincero. Almoçaram juntos para comemorar. Na hora de Edmundo voltar para a firma, Cosme se virou e disse:

— Nunca mais quero ver Glória na vida.

Essa frase ficou voltando na cabeça do boy o resto do dia. Quanto tempo tinha esperado ouvir isso do pai? Por que então aquela decisão o incomodava tanto?

Mas o dia continuou. Como sempre o trabalho era muito e urgente.

Doutor Ignacio pediu para ele levar uma encomenda até o consultório de dona Clara. Teve de pegar condução. Trânsito con­gestionado, tarde abafada: Edmundo acabou cochilando. Quando acordou, já estava quase perdendo o ponto. Levantou-se e deu o sinal.

Enquanto esperava para descer do ônibus, foi tomado de novo por aquela estranha sensação de estar sendo vigiado. Mais do que sensação. Tinha certeza: só podia ser Glória. Mas não se voltou. Esperou o momento certo. Queria surpreendê-la.

Na hora de descer, bateu o olho no espelho retrovisor. Teve a impressão de ver o rosto de sua mãe, de relance. Quase tremia com a expectativa. Virou o rosto bruscamente para trás. Tratava-se, na verdade, de uma mulher que nunca tinha visto na vida. E nem muito parecida com Glória. Por conta disso distraiu-se e escorregou, arranhando a mão no asfalto.

O ônibus seguiu em frente.

Já no consultório, a mão de Edmundo ainda sangrava. Quando dona Clara viu o machucado, insistiu em fazer um curativo.

Não foi nada — disse o boy.

Mas não custa tratar.

Edmundo ficou olhando para a parede enquanto dona Clara limpava o ferimento. Seu consultório estava cheio de fotos de crianças.

Quem são esses bebês? — perguntou Edmundo.

Meus pacientes. Fiz o parto de todos eles.

Dona Clara pegava delicadamente a mão de Edmundo.

Não são bonitinhos? — perguntou a doutora, gracejando.

Parecem assustados.

É. Um pouco.

Edmundo também tinha a mesma expressão, nessa idade. Lembrou-se de uma foto com ele, sua mãe e seu pai. Na frente de um gigantesco tanque de petróleo. Cosme achou que era um lugar bonito. Glória piscou na hora de bater a chapa; saiu de olhos fechados.

— Agora, vai arder um pouquinho — avisou dona Clara, encostando um algodãozinho iodado.

— Uuuuii!

Dona Clara soprou o machucado.

— Parou de arder?

Continuou a fazer o curativo. Eugênio não conseguia parar de olhar as caras dos bebês. Pareciam mesmo assustados, pensou. Com o quê?

— Pronto — disse dona Clara. — Mas é bom trocar o cura­tivo amanhã. Pede pra sua mãe assoprar.

Eu não tenho mãe.

Não?!

Quer dizer, tenho! Todo mundo tem mãe.

Edmundo conteve um soluço. Ficou um tempo em silêncio, depois disse:

Glória não quer voltar pra casa. Conteve outro soluço. E completou:

Também não quero que ela volte.

Vou trazer um copo d'água...

— Não precisa. Obrigado pelo curativo. Puxa! Esse negó­cio arde mesmo — disse o boy para disfarçar, enquanto apa­nhava apressado sua pastinha. Foi saindo com os olhos cheios de lágrimas.

Edmundo não pegou o ônibus para voltar à firma. Foi a pé. Passos duros, nervosos. Sua cabeça fervilhava. Lembrou-se de que já era sexta-feira novamente. E se sentia só.

Logo que chegou ao escritório, dirigiu-se à copa para apa­nhar sua marmita. Encontrou Eugênio como no dia anterior. E, como no dia anterior, também não queria conversar com ele.

Tudo bem? — perguntou Eugênio, notando os olhos ver­melhos de Edmundo.

Pra que quer saber?

Só queria conversar.

Sem chance.

A gente bem que precisava.

Esse lance do meu pai... — disse Edmundo, coçando por baixo da onda em seu cabelo. — Acho que tenho de dizer obrigado.

Nada disso.

Então não tem mais nada.

Tem. Maria Isabel.

O que tem? Cobrando?

Larga a mão! Só quero acertar as coisas.

A menina tinha marcado encontro comigo. Você é que atravessou.

Sem essa. A história toda começou na festa da sexta pas­sada. Devia ter falado de mim; e nada!

Acha que é assim? Acha que a Maria Isabel é um daque­les hambúrgueres que você me pedia pra levar em casa? A menina gostou foi de mim.

E por que ela topou me encontrar na outra noite?

Porque você é o "patrãozinho"! Ficaram em silêncio um longo tempo.

Eu não acredito nisso — murmurou Eugênio. Edmundo quase sentiu remorsos pelo que disse. Eugênio

tinha-se mostrado um bom companheiro nos últimos dias. O garoto estava mesmo trabalhando duro como ele. Além disso, estava sinceramente agradecido pela sua ajuda no caso do emprego para Cosme.

— O negócio é acabar logo com esse embaço — disse Edmundo, depois de um certo tempo. — Liga pra Maria Isabel.

Vamos agitar um encontro. Os três. Ela decide: eu, você ou nenhum dos dois...

Quando o telefone soou na Doceria Rebolo, Maria Paula é quem estava por perto.

Doceria Rebolo, boa tarde — declamou Maria Paula, aten­dendo.

A Maria Isabel? — perguntou Eugênio do outro lado da linha, pensando ter reconhecido a voz da garota.

Maria Paula ia chamar a irmã. Mas interrompeu o gesto. Não resistiu e respondeu:

Pode falar.

Aqui é o Eugênio.

Eugênio? Aquele do Edmundo?! -É...

Como é que ele está? — perguntou, ansiosa.

— Você vai saber. Será que a gente podia se encontrar? Eu, você e o Edmundo.

Grande! Onde?

Conhece uma passagem subterrânea na avenida Central?

Conheço. É lá?

Tudo bem?

— Só tem uma coisa. Eu queria que você passasse aqui pra me pegar. Quero que conheça minha irmã.

Marcaram horário e desligaram.

Eugênio contou então a Edmundo o que tinham combinado. Inclusive que ia passar para pegá-la.

O boy pensou um instante. Lembrou-se de que aquela era apenas mais uma ilusão que perdia e murmurou:

— Deixa quieto o encontro. Ela gosta é de você.

 

                   SITUAÇÃO DIFÍCIL DE EXPLICAR E DE ENTENDER

Eugênio vinha pela alameda arborizada onde ficava a Doce­ria Rebolo. Engraçado como já se locomovia com mais desenvol­tura pelas ruas da cidade, pensou. Só agora tinha se dado conta disso.

Muita coisa se passara na última semana. Agora, era essa história com a namorada de Plínio e Edmundo. Por um instante lhe passou pela cabeça a idéia de que tudo isso estava acontecendo porque quisera chatear o primo.

Ia assim pensando quando avistou a entrada da doceria. Tinha chegado um pouco adiantado. Aproximou-se devagar. Pen­sava no que dizer à Maria Isabel, quando a viu sair para a rua. Seguida por ela mesma!

Eugênio apurou a vista. Não estava com visão dupla. Havia mesmo uma dupla de Marias à sua frente. Se não sabia o que dizer a uma garota, pensou, quanto mais a duas!

— O que está esperando aí? — perguntou Maria Paula, ao avistar o boquiaberto e estático Eugênio. — Pode chegar mais perto! Tem umas coisas que você precisa saber, se ainda não percebeu.

Difícil dizer o que era mais complicado naquela situação: explicá-la ou entendê-la. De qualquer modo, o embrulho todo foi esclarecido. O esforço logo se concentrou em fazer Maria Isabel — já perfeitamente identificada — colaborar na solução final.

Mas precisa ser agora?! — resmungou Maria Isabel. — Eu tenho encontro com Plínio. Ele já devia ter chegado.

Não custa nada — implorou Maria Paula. — É só mos­trar sua cara e o Edmundo vai entender toda a bagunça. Vai ser rápido.

Foi você quem meteu sua irmã nesta confusão — argu­mentou Eugênio, ainda um pouco zonzo com as revelações.

Eu? — respondeu indignada Maria Isabel. — Quem ligou querendo me encontrar?

— E quem aceitou?

Nesse instante, Plínio e sua turma dobram a esquina, de auto­móvel. Ao ver o primo entre as gêmeas, sua primeira reação foi diminuir a marcha. Não queria que Eugênio flagrasse o carro da firma nas suas mãos. Encostou o carro num ponto escuro da rua e passou a observar os três discutindo e gesticulando, ao longe.

— Como conversam, hein? — provocou Fraguinha.

O rapaz não tirava os olhos de sua namorada. Queria saber o que se passava.

— Amigos íntimos os três... — apimentou Odacir.

Os amigos não paravam de provocar. Debochavam do namo­rado enciumado. Sorrindo ironicamente, trocando olhares.

— Vou acabar com essa conversa — disse Plínio, nervoso.

Exatamente nesse momento, Maria Isabel saiu com a irmã e Eugênio na direção da avenida principal. Nem perceberam que estavam sendo seguidos por Plínio.

— Será que ele já foi embora? — atormentava-se Maria Pau­la, aflita por encontrar Edmundo.

Eugênio e as gêmeas desceram até a passagem subterrânea sob a avenida, onde sempre se reuniam Calixto, Jó e Arnaldão. Haviam inaugurado uma nova exposição de fotos e os três boys se entretinham com as imagens.

— Viram o Edmundo? — foi logo perguntando Eugênio. Calixto se virou para dizer alguma coisa, mas parou no meio

ao ver as irmãs. Cutucou Jó e Arnaldão. Que se viraram. E fica­ram olhando. Pasmos.

Nunca viram? — resmungou Maria Paula.

O que está acontecendo?! — quis saber Calixto. Eugênio usou todo seu poder de concisão, mas só conseguiu

explicar parte do problema. A história realmente era muito con­fusa. Desanimou. Na certa, Edmundo nem vinha mais. Foi quando Maria Paula gritou:

— Olha lá! É ele!

Edmundo descia a escada, cabisbaixo. Quando viu Maria Paula vindo na sua direção, deu meia-volta e subiu.

A garota foi atrás. Encontrou Edmundo um pouco mais abaixo na avenida, sentado no pára-choque de um carro. A ilumi­nação pública dava um tom melancólico ao lugar.

— Não precisa explicar — disse o boy, sem tirar os olhos do chão.

Tem certeza? — perguntou Maria Paula.

Numa boa. Sei como são essas coisas.

Ah, é? E como são?

No fundo, Eugênio é legal. Escolheu bem.

Do que é que você tá falando?

— Se liga, Maria — falou Edmundo, levantando o rosto. — Olha aí! O Eugênio tá chegando com... você...

Edmundo arregalou os olhos. Surgindo da passagem subter­rânea, subiam Eugênio e Maria Isabel.

— Vocês formam um belo casal — conseguiu murmurar.

Num salto, o boy se levantou. Olhou para uma gêmea. Olhou para outra. Sem saber o que dizer, deixou escapar:

— Eu sabia...

O pobre do Eugênio teve de explicar tudo de novo. Pior: cada vez que contava, ele mesmo começava a entender menos a história. E demorava mais nas descrições.

— Muito bem! — berrou Plínio, que tinha se aproximado sem ser percebido. — Em qual das duas eu tenho de dar a bronca?!

As gêmeas se entreolharam. A prepotência do rapaz amorte­ceu o susto. Quase em uníssono, responderam:

— Em nenhuma das duas!

Plínio ficou sem ação. Logo atrás, seus amigos apenas obser­vavam. Os mesmos sorrisos irônicos nos lábios.

— Então vai sobrar pra esse pirralho! — disse Plínio, avan­çando sobre o primo.

Edmundo esticou a perna, e o chefe dos boys caiu de queixo no chão.

- Se liga, Maria – falou Edmundo.

- Olha aí! O Eugênio tá chegando com...você...

— Meu dente!

Antes mesmo que o próprio Plínio pudesse reagir, seus ami­gos fizeram um cerco.

— Menino mau... —- debochou Odacir.

Tilão e Nilo agarraram Edmundo por trás. Fraguinha empur­rou Eugênio para o chão, sentando-se sobre ele.

— Sai de cima de mim!

Maria Paula e Maria Isabel começaram a distribuir tapas e caneladas.

— Faz alguma coisa, Plínio. Segura essas peruas!

— Perua é sua mãe — respondeu Maria Paula, sempre a mais estourada.

À custa de uns arranhões no rosto, Plínio conseguiu segurar as gêmeas. Odacir se aproximou de Edmundo. Cerrou o punho e mostrou para o garoto, dizendo:

— Está vendo isto aqui, boy? Já ia dar o soco, quando ouviu uma musiquinha. Parecia uma corneta anunciando a carga da cavalaria. Era Jó, tocando pente. Como um raio, Calixto passou em seu skate. De passagem enfiou um tapa na cara de Odacir. Tilão e Nilo largaram Edmundo para socorrer o companheiro.

— Quem foi? Quem foi? — perguntava Odacir, tonto. Calixto voltou e acertou Fraguinha. No ouvido. Atordoado,

acabou deixando Eugênio escapar. O garoto avançou sobre Plínio para soltar as gêmeas, que saíram correndo atrás de um guarda que pudesse ajudá-las.

As duas turmas se encararam: eram cinco contra quatro.

Só quatro?

Hum-hum — pigarreou alguém. Odacir se voltou. Era Arnaldão.

Que foi, gorducho?

Só estou apreciando a briga, meu filho!

Então fica queitinho aí.

Pode deixar.

Odacir reparou que a outra turma começou a se afastar muito. A arma secreta de Arnaldão Vinte e Duas começou a sur­tir efeito...

— Que fedor!

Tentando escapar do mau cheiro, os agressores se dispersa­ram. Os outros aproveitaram para escapar.

— E agora? — perguntou Fraguinha, meio zonzo.

— Vamos pegar o carro — decidiu Odacir. — Me dá a chave, Plínio.

— Não! — reclamou Plínio. — O carro da firma, não.

Odacir fez que nem ouviu. Arrancou a chave da mão de Plí­nio. Chamou os outros e correram para o carro que estava na outra esquina.

— Por favor! O carro do titio, não! — choramingava Plínio. Fraguinha, Tilão e Nilo entraram no automóvel. Odacir sen­tou-se ao volante. Plínio ficou na janela, implorando:

— Me devolve a chave.

— Presta atenção — disse Odacir. — Agora você vai ver o que é um piloto.

Engatou a primeira. Acelerou. Soltou a embreagem. O carro deu a arrancada. E bateu no poste logo em frente...

Plínio sentou no chão, abaixando a cabeça.

A turma dos boys veio voltando devagar. Não podiam acre­ditar no que estavam vendo. A parte da frente do carro da firma de doutor Ignacio estava totalmente destruída.

Não aconteceu nada com Odacir e os outros ocupantes. Mas ficaram paralisados de susto por um bom tempo. Olhando para frente de olhos esbugalhados.

Até que Fraguinha murmurou:

— Sujou.

 

                   A ÚLTIMA AVENTURA DE EUGÈNE FLAMMARION

Tudo estava sendo resolvido. A polícia tinha chegado. Cer­caram o local do acidente e chamaram o verdadeiro proprietário do veículo.

Muitos curiosos se reuniram ao longo do cordão de isola­mento. Os policiais conversavam com doutor Ignacio e dona Clara. Eugênio e Edmundo ajudavam na elucidação dos acontecimentos. O oficial ria muito.

Sentado na mesma posição desde a batida, Plínio olhava para o chão. A imagem cortava o coração de Maria Isabel. Olhou para sua irmã e perguntou:

O que você acha?

Plínio? -Vou?

Se ainda tem o que falar!

Maria Isabel aproximou-se do rapaz, sem dizer nada. Ficou parada na sua frente.

Consegui — disse Plínio, sem levantar os olhos.

O quê?

Olha o tamanho da besteira que eu fiz.

Acontece.

É. Mas eu fiz força.

Um pouquinho...

Ainda estamos namorando?

Maria Isabel tomou um fôlego antes de responder:

Não, Plínio.

Amigos?

Melhor a gente não se ver por um tempo.

Por causa do Eugênio?

Não.

Por causa do que eu fiz hoje?

Ajudou.

O quê, então?

Pra mim, namorar um rapaz mais velho, que tinha carro... Eu achava que estava crescendo. Me enganei. Acho que você não teve muita culpa.

Os dois ficaram em silêncio. Plínio tirou uma fotografia do bolso e estendeu para Maria Isabel, dizendo:

— Dá uma olhada.

Era a foto de um homem de uniforme branco, na proa de um veleiro.     

Quem é?

Meu pai.

Califórnia?

San Diego.

Ele mora neste veleiro?

Trabalha nele. Aquela história de fazenda... Meu pai cuida de veleiros num porto de veraneio.

Maria Isabel devolveu a foto, sem dizer nada.

— Ele disse que ia me chamar pra morar com ele — conti­nuou Plínio. — Isso faz mais de um ano.

O rapaz ficou pensando. Depois levantou a cabeça e disse:

— As estradas têm oito pistas na Califórnia. E sorriu com um dente a menos na boca.

O policial acabou de fazer a ocorrência e foi até a viatura chamar o guincho.

Doutor Ignacio e dona Clara conversavam com o filho na rua. Eugênio contava toda a história em detalhes. O pai tentava manter um ar de severidade.

— Acho que você agiu certo — disse finalmente o pai ao filho. Eugênio abriu um sorriso. Doutor Ignacio se esforçou por permanecer sisudo. E determinou:

Vamos pra casa.

É muito cedo, pai!

Cedo?!

— Quero aproveitar a sexta-feira — olhando para Maria Isa­bel, que passava por perto. — Trabalhei a semana inteira.

Doutor Ignácio pensou um pouco, antes de responder:

Está bem. Mas telefone se for chegar mais tarde.

Pode deixar. É melhor dar um jeito no Plínio.

Eugênio foi saindo na direção da garota. Dona Clara ia esten­der o braço para detê-lo, mas conteve o gesto. Sua intenção era fazer um carinho no filho. Mas não ficava bem na frente de uma garota.

Apenas murmurou, baixinho: 

— Deus te abençoe, meu filho.

Doutor Ignácio e dona Clara ficaram olhando Eugênio con­versando com Maria Isabel. Em silêncio. De repente, dona Clara deixou escapar:

Será que aquela garota não é mais velha que ele?

O quê?!

Bobagem minha.

Doutor Ignacio fez força para não rir. Algum tempo depois, ao perceber que a mãe não tirava os olhos do filho, perguntou:

Você sabe por que Eugène Flammarion manca da perna esquerda?

Quem?

Eugène Flammarion! Eu vou contar para você: logo depois de terminada a Grande Guerra, ele...

E doutor Ignácio contou a mais romântica aventura de Eugène Flammarion. À luz das lâmpadas de gás de sódio.

 

                   SERÁ QUE 0 ENDERECO ESTÁ CERTO?

Da janela de seu quarto, Edmundo podia ver cair a chuva lá fora. Fraca, mas ininterrupta.

E, no entanto, ele se sentia feliz. Estava com Maria Paula. Tinham passado a manhã de sábado juntos. Foram a brechós para comprar roupas. Ela estava linda. Trajava uma calça xadrez e um casacão azul-da-prússia de golas altíssimas e engomadas com dois botões enormes.

— Assim? — perguntou Maria Paula, puxando seu cabelo para cima.

Edmundo parou de arrumar as tesouras e os pentes para olhar.

— Quer ver? — perguntou, pegando no cabelo da namora­da. — A gente pode subir deste lado, feito uma parede. O outro fica desgrenhado, como se tivesse acabado de acordar.

— Grande! Dá pra botar uma mancha magenta também?

O novo corte ia ficar lindo, pensou Maria Paula. A garota divertia-se, imaginando como dona Lígia ia reagir.

Edmundo conferiu todos os seus apetrechos. Estava tudo nas caixas empilhadas no canto do quarto. Foi tentando encon­trar onde tinha guardado o fixador para cabelo até que acabou deixando cair uma caixa. Uma porção de envelopes se espalhou pelo chão.

Eu ajudo — disse Maria Paula.

Pode deixar.

Quem mandou essas cartas?

Glória.

Quem é?

Minha mãe.

Sua mãe?! Onde ela está?

Por aí.

Você não sabe?

Não.

Maria Paula se agachou e começou a recolher os envelopes. Notou que continuavam todos fechados.

Você nunca leu nenhuma?

Não.

Maria Paula não perguntou por quê. Sentiu que não devia; que não precisava: podia entender, mesmo sem explicações. Come­çou a empilhar os envelopes. Lá fora a chuva continuava.

— Ela parou de escrever — disse Edmundo, de repente. Escreveu toda semana, durante seis meses.

Edmundo olhou para os envelopes na mão da namorada. Disse:

— Acho que ela desistiu.

Levantou-se e passou a ver a vista da janela. A cidade estava toda molhada com a chuva que não parava. Já devia ter jogado aquelas cartas fora, pensou Edmundo. Se não pensava em respon­der, para que guardá-las? Mas, toda vez que se preparava para se desfazer delas, algo dentro do garoto o fazia adiar a decisão. Não sabia o quê.

Maria Paula percebeu o sofrimento do namorado estampado no rosto. Conferiu o remetente em uma das cartas. Estava com­pleto: bairro, rua, número. E a deixou sobre a penteadeira. Com o verso para cima.

— Não vai mais fazer meu cabelo? — perguntou a garota. Edmundo pegou a tesoura e os pentes. Sem muito ânimo.

Quando chegou perto da penteadeira, viu o envelope. Parou. Dava pra ler o remetente. Pensou um instante, antes de perguntar:

Será que o endereço está certo?

Por que não vai lá pra saber?

O garoto não respondeu. Ficou testando o fio da tesoura. Um calor inexplicável subiu às faces; um calor frio de lâmpada fluorescente. Sabia que precisava resolver essa situação. Não podia mais adiar. Deu uma boa olhada no envelope sobre a pentea­deira. A caligrafia de sua mãe era trabalhada, espalhafatosa. As letras estavam um pouco borradas.

— Que número é este? 851 ou 854? -851.

Maria Paula esperou um pouco. E perguntou:

Quer que eu vá com você?

Não. Preciso ir sozinho.

 

                   GLORIA NAS ALTURAS

Edmundo leu no luminoso em néon: Boate Alexandria. O "i" tinha um defeito e piscava sem parar. Um homem de quepe e capote engalanado abria a porta aos poucos clientes que chega­vam debaixo de garoa.

O garoto conferiu o endereço. Era lá mesmo.

Atravessou a rua e perguntou ao leão-de-chácara:

A Glória está?

O que é que você quer com a Glória?

Sou filho dela.

O leão-de-chácara olhou bem para o garoto. Edmundo ves­tia sua melhor roupa: o jaquetão de cavalheiro inglês.

— Vem comigo — disse o homem da entrada.

Entraram em uma viela escura que passava ao lado da boate. O lugar era mal iluminado. No chão, folhas de papel se dissol­viam com a água da chuva que caíra durante todo o dia. Anda­ram até uma porta de ferro.

Espere aqui — disse o leão-de-chácara, entrando. O garoto sentiu frio. Fechou seu casaco. Esperou. Não demorou muito, a porta se abriu.

Sua mãe disse pra você entrar.

Edmundo seguiu o leão-de-chácara por um corredor de tijo­los nus.

— Pode ficar aqui, se quiser ver.

Era uma passagem, fechada apenas por uma cortina.

— Glória tem apresentação. Depois fala com você. O leão-de-chácara foi embora.

Afastando um pouco a cortina, Edmundo viu um salão. Eram mais ou menos doze mesas, com um pequeno abajur sobre cada uma delas. Havia pouca gente. Conversavam baixo, quase sussurrando.

No fundo, um pequeno palco estava às escuras. Uma melo­dia lenta começou a ser tocada. A luz da ribalta se acendeu e três sujeitos apareceram. Um tocava caixa e prato com escovinha; outro dedilhava um acordeom; e o terceiro fazia sons graves soprando em garrafas.

De repente, um foco de luz iluminou a cantora. Estava ves­tida de malha prateada e tinha nas costas asas de anjo. Cantava suspensa no ar por um arame muito fino.

Era Glória.

Edmundo assistiu toda a apresentação, estático. Não reagiu nem quando o fio de arame quase se rompeu, no final da canção. A música terminou. O garoto ficou olhando para o palco escuro.

— Filho.

Edmundo se voltou. Da porta do camarim, sua mãe estava chamando.

A música recomeçou no palco.

O garoto percorreu devagar o corredor até parar na frente de Glória. Ela estava usando muita maquiagem. Principalmente em volta dos olhos: lápis preto para aumentar os cílios, base para esconder as rugas. Ainda tinha as asas às costas.

Glória virou de costas e pediu ao filho:

— Me ajuda com as asas?


— Não quer entrar?

Edmundo entrou no camarim. Era pouco maior que um armá­rio. Havia pouca luz. Nem todas as lâmpadas que iluminavam a penteadeira funcionavam. As roupas e os sapatos estavam joga­dos sobre uma pilha de malas velhas.

Pela janela aberta entrava um vento frio; as fotos presas à moldura do espelho tremulavam.

Quer um café? — ofereceu Glória, com uma garrafa tér­mica na mão.

Não.

Glória se serviu, dizendo:

— Tenho mais três entradas esta noite. Espero que aquele arame agüente até o fim.

Edmundo olhava para uma foto em que aparecia. Estavam ele e sua mãe em frente daquele imenso tanque de petróleo. Exata­mente como o garoto se lembrava. Inclusive os olhos assustados.

Com a xícara na mão, Glória virou de costas e pediu:

— Me ajuda com as asas?

Edmundo começou a desamarrar o colete de couro que pren­dia as asas.

Como vão as coisas em casa? — perguntou Glória, ainda de costas.

Normal.

Seu pai?

Do mesmo jeito.

Edmundo ficou com as asas na mão. Glória deixou a xícara sobre a penteadeira. Sem se voltar, disse:

Não vou voltar mais, filho. Você sabe.

Eu sei.

Eu gosto daqui.

Tudo bem.

A música que chegava do palco terminou.

— Preciso retocar a maquiagem — disse a mãe, sentando em frente ao espelho. — Daqui a pouco é minha vez, de novo.

Edmundo baixou a cabeça. E disse:

Vim só pra fazer uma pergunta.

Faz.

Você andou me seguindo?

O quê?!

Atrás de mim, na rua.

Não sei do que está falando.

Nada — murmurou Edmundo, decepcionado. — Bestei­ra. Achei que talvez... você... estivesse me vigiando.

Não tenho tempo pra isso, filho.

Glória parou de retocar a maquiagem e olhou para o garoto pelo espelho um instante. Disse:

Você não respondeu minhas cartas.

Esquece. Eu estava chateado.

Agora a gente vai voltar a se ver. Não é, filho?

Se você quiser — respondeu Edmundo, levantando os olhos.

Quero.

Mãe e filho se olharam pelo espelho.

Já está na hora do meu número de novo. Outro dia a gente conversa mais.

Feito.

— Me ajuda de novo com as asas? Edmundo ajudou.

Glória se levantou. Parecia muito alta. Eram os saltos.

Me dá um beijo, Edmundo?

Dou.

O garoto tentou abraçar a mãe, mas não conseguiu por causa das asas de anjo. Foi a mãe que puxou e enlaçou o filho. Ficaram abraçados por alguns minutos, sem dizer nada, até avisarem que estava na hora da apresentação. E ela se foi.

Edmundo percorreu de volta o mesmo corredor pelo qual tinha entrado. Não via, nem ouvia nada à sua volta.

Quando saiu para a rua, a chuva tinha apertado um pouco.

Estava pensando o que fazer, quando avistou no fim da viela uma garota de guarda-chuva aberto. Esperando. Edmundo foi até ela e disse:

— Mas é teimosa mesmo!

— Vai ficar aí se molhando? — perguntou Maria Paula, ofe­recendo um lugar sob o guarda-chuva.

O casalzinho atravessou a rua até o ponto de ônibus em frente à Boate Alexandria.

— Não sei... — ruminou Edmundo.

O quê?

Não consigo entender como é que umas coisas acontecem.

Andei estudando isso. Esta semana eu tive prova de Física,

sabe?

Maria Paula e Edmundo se aproximaram. A garota conti­nuou a explicação:

— É assim: quatro são as forças fundamentais do universo; a primeira é a força atômica fraca; a segunda, a força atômica forte; a terceira, a força da gravidade; e a quarta, a força elétrica.

Os namorados tinham então os lábios bem próximos. E se beijaram.

Com as asas às costas, esgueirando-se nas sombras da viela, Glória vigiava o filho. A maquiagem escorria com a chuva, bor­rando seu rosto.

 

                   NAO VEM COM A GENTE?

Edmundo usava a tesoura com muita habilidade. Cosme estava sentado no quarto do filho, com um lençol sobre os ombros. Fios de cabelo cortados iam caindo.

O garoto teve vontade de aparar o redemoinho no cocuruto do pai, em forma de um planeta: Saturno e seus anéis; ou ainda de uma baleia esguichando água; ou de um olho. Tinha os apetre­chos para isso. Mas desistiu. Sabia que o pai não gostaria. Tinha de ser um corte apenas clássico.

Cosme olhava fixo para o espelho. Vigiando as mãos do filho.

— Pronto.

Edmundo retirou o lençol do pescoço de Cosme. O pai estava muito alinhado. Edmundo mesmo tinha lavado e passado seu único terno. Mas, como não tinha mais gravata, teve de improvi­sar um lenço estampado no pescoço.

Não estou atrasado? — quis saber o pai.

Calma.

Cosme tinha decidido assistir à apresentação de Glória na Boate Alexandria.

Com uma escovinha, Edmundo tirou os últimos fios de cabelo do paletó. Deixaram o apartamento e desceram pelo eleva­dor, conversando sobre qual seria o melhor trajeto até a boate. O boy explicou detalhadamente, rua a rua.

Na saída do edifício, o pai parou para ver o céu. A chuva tinha passado e a noite começava. Clara.

Não estou adiantado?

Calma.

Na calçada, os amigos esperavam por Edmundo. Ele acenou de longe, pedindo para que esperassem um pouco.

Cosme foi andando pela rua, sob o olhar do filho. Alguns passos depois, virou-se e perguntou:

Deixa eu ver se não esqueci: atravesso o túnel...

Atravessa — emendou Edmundo.

Pego a avenida Central...

Isso.

E reviram todo o itinerário.

Cosme seguiu. O filho o acompanhou com o olhar até o pai desaparecer dentro do túnel.

Ficou parado um tempo. Pensando.

Os companheiros se aproximaram. Jó acenou com a cabeça para o outro lado da avenida. Lá estava Eugênio. Observando. Era domingo. A noite estava fresca e o ar era bom de respirar. As pessoas passeavam com calma pela calçada.

Os boys começaram a andar, sem dizer nada. Depois de alguns passos, Edmundo se voltou para Eugênio:

— Como é? Não vem com a gente? — e seguiu seu caminho com os outros, calmamente.

Eugênio hesitou um instante. Mas acabou seguindo a turma. De longe.

Subiram até o calçadão, desceram até a Basílica, subiram a ladeira da Bolsa de Valores. E Eugênio já não estava tão longe. Passaram pelo museu, dobraram a esquina do Teatro Municipal, cortaram caminho pela Grande Galeria. E Eugênio já vinha logo atrás. Pegaram a passagem subterrânea, desceram até o monu­mento, cortaram a praça da banca de flores. E Eugênio vinha ao lado dos outros boys.

Refizeram o mesmo percurso em seguida. Em silêncio, Edmundo, Eugênio, Calixto, João Jó e Arnal­dão Vinte e Duas andaram pela cidade. Por horas.

 

                   EPÍLOGO

Maria Paula colocou um ponto final. Era o fim das Memó­rias idênticas. Fez alguns exercícios com os dedos e com o pulso: escrevia desde as duas da tarde em seu quarto. Tinha tirado o domingo para isso.

A casa estava calma. Dona Lígia tinha saído. Maria Isabel estudava para as provas de Português e História.

A memorialista resolveu pegar a última página e começar a fazer a revisão. Leu:

"Espero que o caro leitor não tenha encontrado nesta lei­tura um pífio prazer. Como o tema aqui é confissão, devo confes­sar (pela penúltima vez) que eu mesma não estou convencida da qualidade do trabalho. Mas ainda tenho algumas notícias a dar, e peço sua paciência por mais algumas linhas.

Quero anunciar que estou abandonando minha carreira de modelo definitivamente. Decisão minha, favorecida, digamos, pelo meu novo corte de cabelo. Segundo palavras da minha várias vezes citada irmã, Maria Isabel, o penteado lembra um galo cao­lho, manchado de magenta. Evidente exagero, quiçá despeito dis­farçado.

Aqui devo desculpas ao ansioso leitor. Depois de várias ten­tativas, compreendi ser incapaz tecnicamente de descrever a rea­ção da minha mãe quando me viu assim. Darei apenas pincela­das: uma palidez cadavérica tomou conta do seu rosto, enquanto buscava qualquer coisa para dizer — o que não conseguiu. Subiu para o quarto e se trancou por horas.

Depois de um certo tempo, minha irmã e eu ficamos tão preo­cupadas que resolvemos olhar pelo buraco da fechadura para con­firmar se nossa mãe ainda vivia. Espero que o leitor mais rígido nos perdoe essa malcriação, mas foi absolutamente necessária.

Se ela ainda vivia? Sim. Estava sentada, folheando um velho álbum de fotografia das gêmeas mingau. Do tempo em que eram idênticas.

O vivido leitor bem sabe que a solução dos nossos proble­mas chega de mula manca, mas chega. Não é que uma produtora de comerciais ligou? Não, não se preocupe o leitor. Nada de mal adveio. Tinha apenas se lembrado de mamãe — que tantas vezes vira chegando com as fotos das filhas sob o braço — para estre­lar um comercial ambientado nos anos sessenta. Vão lançar um novo lustra-móveis.

O memorioso leitor ainda se recorda de Plínio, o raramente citado ex-namorado de Maria Isabel? Recebeu uma carta do pai — o tal que mora na Califórnia. Pois bem, o referido pai perdeu o emprego e está voltando para o Brasil. Já avisou que nos pri­meiros meses vai precisar de uma ajuda de doutor Ignacio.

E falando no pai, lembrei-me do filho, Eugênio. Eu sei que a curiosidade é muita, mas a paciência é um grande exercício para uma alma saudável. Devo anunciar que ele pediu finalmente Maria Isabel em namoro. Ela ainda não se convenceu a aceitar. Trata-se de um rapaz confiante demais, diz.

Em tempo: descobri que Eugênio vai estudar no mesmo colé­gio que Maria Isabel, no curso noturno. Foi o único lugar que aceitou a matrícula do rapaz a esta altura do ano letivo. É sabido que bom entendimento intelectual vale por dois. Ou três.

Colocando de lado a imparcialidade literária, deixei a minha situação por último, porque é fácil de ser descrita. Vamos a ela, então: estou apaixonada. Meu namoro com Edmundo vai de vento em popa. Sinto-me mais feliz e mais bonita; e eu diria ainda, sob a pena de dar a mão à palmatória, que, num certo sentido, tam­bém estou amadurecendo — como tanto insistia minha pela última vez citada irmã Maria Isabel. Mas à minha moda.

Finalmente, devo confessar (pela última vez) que estou um pouco decepcionada com a extensão das minhas memórias. Ape­nas doze páginas. Certamente não encontrarei editora que se inte­resse. Mas minha professora de português já me pediu para fazer uma leitura dos originais. Assim se começa.

E assim, termino".

 

                                                                                Bosco Brasil  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"