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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ONDE NOS LEVA UMA NOITE NO NEVOEIRO / E. Cadell
ONDE NOS LEVA UMA NOITE NO NEVOEIRO / E. Cadell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ONDE NOS LEVA UMA NOITE NO NEVOEIRO

 

A senhora Belchamber conseguira, sem muito esforço, vir sozinha, num compartimento, desde Paris. Os seus habituais artifícios - um olhar antipático, um torcer de nariz como se cheirasse mal na carruagem e, em casos extremos (como o daquele francês corpulento que tentara entrar na estação de Perder), um atirar para trás de cabeça que lembrava a cobra a atacar - garantiram-lhe o "seu desejado isolamento. Isolamento e espaço. As malas levava-as na rede, mas o casaco, a maleta de viagem, os livros e os jornais iam espalhados pelos quatro cantos do compartimento, enquanto o saco do crochet, o termos e a outra mala de viagem, aparentemente luxuosa, ocupavam os bancos do centro. Sentia-se muito confortàvelmente instalada, e se os franceses ao menos soubessem construir comboios menos barulhentos, se as crianças francesas, que seguiam no compartimento do lado, aparecessem menos e se os deploráveis lavabos se pudessem comparar aos ingleses, poderia até afirmar que a viagem corria admiràvelmente.

Olhou o relógio, e viu que eram cinco horas. Decidiu tomar uma chávena de chá na estação seguinte, quando o excessivo movimento ondulatório peculiar dos comboios franceses abrandasse, e fosse obrigada a perder uma gota daquele excelente chá que ela mesmo fizera quando deixara a Suíça. Deitou a ossuda mão, em que brilhavam dois anéis, à saca do crochet, onde trazia alguns biscoitos.

O comboio diminuiu de andamento, depois parou, e ela pegou nas lunetas e encavalitou-as no nariz para ler o nome da estação: Lês Hautiers-sur-Mouelle. Pretensioso, pelo menos, pensou ela com os seus botões, para um local que não passa duma cidade de terceira ordem. Era pena ela não ter podido ir no "directo", pois evitar-se-iam as paragens em todas estas pequenas estações, e não perderia com elas mais tempo do que mereciam. Ia servir se do chá; esperava que o termo que, infelizmente, era de fabrico suíço, tivesse conservado a deliciosa bebida razoavelmente quente. O seu velho termo, produto inglês, que durara mais do que qualquer dos estrangeiros que possuíra, quebrara-se antes de deixar Montreux. Ia justamente a destapar o seu substituto, quando parou, notando com desagrado que um numeroso grupo se havia juntado à porta do compartimento, com a evidente intenção de entrar.

Sentiu isso como se fosse um acto de grande impertinência. Se olhassem, podiam ver claramente que se tratava duma senhora inglesa, idosa, que viajava sozinha e que ia tomar a sua chávena de chá. Incomodá-la, invadirem-lhe o compartimento - sim, tinha todo o aspecto duma invasão - era verdadeiramente intolerável. A senhora Belchamber meteu de novo os biscoitos dentro da saquinha do crochet, e preparou a sua primeira linha de defesa: o olhar espantado.

Não surtiu efeito. Um francês de aspecto corpulento, de rosto saudável e vermelho, sorriu lhe com simpatia e abriu a porta de par em par, deixando penetrar uma réstea daquele agradável Sol de Primavera. Voltando-se para os companheiros que estavam atrás, disse, fazendo grande festa:

- Voilà! Mais voilà! Um compartimento vazio, só com uma senhora inglesa! Vejam: há muitos lugares!

Uma senhora excitada empurrava-o para o lado e fazendo um cumprimento amistoso à senhora Belchamber, exclamou:

- Vejam, há aqui lugar para todos!

Dois outros franceses meteram o nariz no compartimento e disseram:

AONDE NOS LEVA UMA NOITE DE NEVOEIRO

- Reparem, há lugar para todos. Vão aqui muito bem, muito confortàvelmente.

A senhora Belchamber compreendia mal o francês; durante os quarenta anos que passara no Continente, chegara à conclusão de que o inglês lhe bastava, e neste caso, não precisara de ouvir a tremenda verdade, porque os seus próprios olhos viram alguns, senão todos, daqueles estranhos tentarem invadir-lhe o compartimento. Fez um último protesto, agarrando na porta e fechando-a com toda a força, deixando os intrusos do lado de fora, mas dois dos mais fortes tornaram a abri-la e, com grandes e excitados discursos e sorrisos amáveis, empurraram para dentro dois rapazinhos de bonés de marinheiro, uma rapariguinha vestida mais ou menos no mesmo gênero, três malas, um enorme barco, duas caixas, uma de lata e outra de cartão que cheirava muito a queijo e a maçãs, vários casacos e, por fim, uma grande mala. A bagagem da senhora Belchamber foi tratada com todo o cuidado-e os dois homens, a quem se haviam juntado duas mulheres, pediram-lhe que se não incomodasse. Se ela desse licença que isto passasse para aqui - imagine-se - e aquilo para ali, e aquela outra coisa - espantoso! - para outro lado, tudo se arrumaria muito bem. As coisas ficariam acomodadas e tudo correria da melhor maneira.

A senhora Belchamber "continuou sentada no seu canto, rígida e retraída. Viu arrumar com toda a correcção a sua bagagem e reparou que as duas mulheres, fazendo coro com a multidão que ficara do lado de fora, se despediam ruidosamente das três crianças. com grande espanto pareceu-lhe que os dois homens também se despediam e inundou-a uma onda de terror: os três marinheiritos iam viajar sozinhos.

Olhou-os e verificou neles aquele ar inconfundível de quem já tem viajado, uma calma e uma tranqüilidade que provavam serem capazes de andar sozinhos. Estremecendo, a senhora Belchamber pensou que, sem dúvida, uma hora depois, deviam estar a comer o queijo e as maçãs, a brincar com o barco no corredor e

a perturbarem o seu sossego tanto como haviam perturbado a sua intimidade, e que seriam recebidos, na estação seguinte, por um ruidoso bando de amigos e parentes. Agarrariam nas suas coisas, ir-se-iam embora e ela ficaria a recordar o queijo e as maçãs.

As portas das carruagens começaram a fechar-se e as despedidas foram mais intensas; o guarda aproximou-se, e com aquele total desprezo pelos seus deveres, que a senhora Belchamber notara nos funcionários franceses, juntou-se ao grupo para uma breve troca de impressões, de planos, de histórias de família e de cumprimentos mútuos. Finalmente levou a corneta aos lábios, e parecia dar o sinal, quando o grupo se dividiu e um rapaz novo, alto, com uma ligeira e simpática inclinação de cabeça, como despedida para todos os circunstantes, entrou no comboio, fechou a porta firmemente e, sem de modo algum incomodar a senhora Belchamber, colocou as três crianças à janela, na posição que melhor lhes permitisse fazer as suas despedidas finais. Ouviu-se o toque da partida, o comboio pôs-se em movimento, as crianças acenavam e os adeuses do grupo perdiam-se a distância.

Com grande alívio, a senhora Belchamber averiguou que os recém-chegados eram silenciosos. Não ouvira uma palavra sequer da boca das crianças; estas sorriram, os seus olhos brilharam, mas além do murmúrio das despedidas, não haviam dito nada. Examinara as três, quando se sentaram, e pensara que a mãe podia muito bem ter-se poupado ao trabalho de criar três crianças, quando uma só bastaria, pois - não contando com o tamanho e o facto do cabelo da rapariga ser um bocadinho mais comprido que o dos rapazes-não havia neles a mínima diferença. Todos, desde o mais velho, com dez anos, ao mais novo, com nove, e à rapariguinha, com sete, apresentavam os mesmos sinais: eram morenos, de cabelo castanho e olhos da mesma cor. Pareciam tipicamente franceses, e por isso usavam aqueles ridículos chapéus, mas era agradável - para não dizer surpreendente - notar que tais crianças francesas se comportavam com a calma inglesa.

A senhora Belchamber passara a observar o jovem e sentiu uma espécie de choque. A sua estatura era mais elevada do que a da generalidade dos franceses e só agora via porquê: não era francês, mas, sem a mínima dúvida, tão inglês, como as crianças eram francesas. Todo ele o proclamava e a senhora Belchamber verificava-o com orgulho e prazer em todos os seus traços, na sua sólida construção e nos menores indícios de tranqüilidade. Devia ter andado ou em Eton ou em Oxónia, e era um admirável produto duma esplêndida raça. Ninguém, com excepção dos noruegueses, teria a pretensão de produzir um melhor tipo físico. A senhora Belchamber mordiscou um biscoito, sacudiu as migalhas e concluiu resolutamente que essa raça era a primeira no Mundo.

Olhou para o jovem com uma curiosidade que não escondeu e pôs-se a pensar no que faria ele ali com aquelas três crianças. Provavelmente era professor, mas elas eram ainda muito pequenas e, de certo modo, ele não o parecia, muito embora fosse evidente que os petizes estavam a seu cuidado. Era um grupo engraçado: o jovem inglês e os três francesinhos sisudos. Interessava-lhe saber... Mas, evidentemente, não iria perguntar. De maneira nenhuma! Deus a livrasse disso.

- São seus amigos? - perguntou ela ao jovem. Cristóvão Heron ia a tirar os bilhetes do bolso, parou e observou com os olhos cinzentos e frios a intrometida. Adivinhou, mais do que viu, uma senhora velha e rica, impressão que lhe deve ter vindo do distinto fato, das boas malas e do bem-estar geral que respirava. Desconfiou um pouco da maneira como o olhava. Tinha uma expressão desagradável, o nariz comprido e fino, que ele não desejava ver metido na sua vida. Classificou-a como pertencendo àquele grupo que considera a sua boa educação suficiente para cobrir todas as impertinências.

Respondeu-lhe lacònicamente, voltando a interessar-se pelos bilhetes.

- Parentes.

A senhora Belchamber corou de raiva, e as três crianças observaram-na com calmo interesse. Tornou a olhá-las, mas a sua curiosidade era mais forte que a raiva. Se num lado não conseguia obter as informações, podia ir procurá-las a outro. Virou-se para o rapazinho mais velho, apelou para todos os seus conhecimentos de francês e perguntou-lhe:

- Como se chama?

O rapazinho levou algum tempo a responder e a senhora Belchamber pensou, aborrecida, que a criança, nem sequer conhecia a sua própria língua. Por fim, a resposta veio, num inglês compassado mas correcto:

- Chamo-rne Roberto - declarou, com pronúncia inglesa, e continuou com as apresentações. Apontando para as outras crianças, disse, referindo-se ao mais novo e depois à rapariga: - Este é meu irmão Paulo, e esta a minha irmã Josette.

A senhora Belchamber ficou admirada a olhar para ele.

- Fala muito bem inglês - comentou.

O petiz, com uma pequena reverência toda inglesa, respondeu:

- Muito obrigado.

- Eu também falo inglês muito bem - informou Paulo.

- E eu também - disse Josette.

Roberto explicou:

- Falamos bem inglês, porque somos ingleses.

- É verdade, sou inglês - corroborou Paulo.

- E eu também - confirmou Josette.

Fez-se silêncio. Três pares de olhos castanhos fixavam-se na senhora Belchamber, mas ela estava um pouco confundida com a resposta que obtivera. A informação que desejava não era tão fácil de conseguir. Pelo canto do olho viu o inglês agitando-se sem descanso e apressou-se a fazer as perguntas que lhe interessavam, antes que ele distraísse a atenção das crianças.

- Para onde vão? - perguntou. - Para Inglaterra?

- Sim - respondeu Roberto.

- Para Inglaterra -repetiu Paulo. - Eu já lá estive.

- E eu também - disse Josette.

Cristóvão encostou-se para trás e fechou os olhos. Iam para Inglaterra. Pensou com alívio no fim da viagem, muito embora não se tratasse em verdade do fim. Era pena levar aquelas três crianças para um andar de Londres, muito especialmente em Junho, mas como não dispunha nesse momento doutra casa teria que servir, até encontrar alojamento melhor. Talvez fosse preferível, quando soube do incêndio, adiar a viagem, mas os preparativos da transferência das três crianças para Inglaterra haviam-se tornado longos e complicados, e, portanto, achava melhor insistir no seu plano.

Lembrava-se bem de que eles haviam ficado extraordinariamente calmos, quando lhes dera a notícia. Não era fácil adivinhar o que eles sentiam. Possivelmente o seu sangue inglês. Esperara contudo que Roberto, de qualquer modo, se emocionasse ao pensar que a casa de seus antepassados se encontrava em ruínas, enegrecida pelo fumo e destruída. Roberto, porém, fizera a pergunta sacramental:

- O castelo ardeu?

- Sim. As paredes, não, percebes, porque são de pedra e muito espessas. Mas o que lá estava dentro...

- Tudo quanto lá estava?

- Sim. Os quartos... Eu não sei bem do que te lembras. Eras tão pequenino, quando viste o castelo...

- Ah! Mas lembro-me muito bem. Minha mãe, às vezes, mostrava-me fotografias dele... depois, quando voltei para França.

- Sim Talvez ela o fizesse, mas receio não ser possível tornares a viver lá.

- Não poderá ser reconstruído

- Referes-te a reparar os estragos? Não. Deves compreender que seria uma grande despesa, e ainda há outra coisa.

Hesitara. Não era a altura de lhe explicar que um castelo que durante centenas de anos fora considerado como uma nódoa na paisagem, desaparecera, por fim, senão totalmente, pelo menos em parte. Não era altura de se alargar em considerações sobre uma história ignóbil. Preferia não insistir no facto de que, desde a sua construção, em 1059, por Roberto Fitz-Heron e seu irmão Ribaldo, o castelo de Piershurst tivesse espantado todas as pessoas dotadas dum bocadinho de gosto. Guilherme, o Conquistador, ao procurar casas senhoriais saxónicas para confiscar em benefício dos seus apaniguados, parara o cavalo, olhara o castelo e riscara-o da lista das mercês. Depois da anarquia do reinado de Stephen, fora outra vez colocado por Henrique II na lista negra dos castelos por ele mandados destruir, mas os conselheiros do rei manifestaram ser mais justo prolongar a sua existência, como um castigo perpétuo para a região. Resistira a cercos e sobrevivera a assaltos, vira inúmeros Herons nascer e morrer. Paulo Heron, o sexto conde de Piershurst, fora o último a viver nesse castelo; antes de seu filho Roberto, o sétimo conde, vir de França, para nele se instalar, dera-se o desastre. O sétimo conde estava sem lar.

Cristóvão voltou a cabeça e observou o sétimo conde. Um bonito rapazinho. De facto, ele e os irmãos constituíam um bonito trio. Este encontro com eles reforçara-lhe a idéia já preconcebida, de que tudo aquilo os incomodara muito pouco. Ainda não havia chegado à conclusão da vantagem de os levar para Inglaterra. Fora, porém, esse o desejo da mãe e ele estimara-a bastante e confiava o suficiente na sua maneira de pensar, para cumprir com a promessa. Durante toda a sua difícil vida de casada, mostrara grande ponderação e era dotada do instinto de fazer aquilo que devia. Cristóvão esperava que aquilo constituiria também uma medida acertada.

Escutara as respostas delicadas que as crianças deram à senhora idosa sentada em frente e sorrira-se. A senhora conseguiria saber qualquer coisa, mas não muito, porque a história era deveras complicada. Muito complicada mesmo, mas aqueles que mais haviam sido perturbados descansavam agora. A amargura passara, a nova geração lembrava-se pouco da antiga disputa e interessava-se ainda menos por ela. O próprio Cristóvão, o único que poderia sentir certa comoção ao ver as crianças, só manifestou prazer. Lamentava o caso, não por si, mas pelo golpe que sua mãe sofrera.

Fora educado como herdeiro do condado de Piershurst. Até aos catorze anos, vivera no castelo com a mãe viúva e seu tio, um solteirão idoso, pacato, culto, que ali passava os anos quase recluso. Fora para Aix-les-Bains fazer uma cura de águas e com incrédula admiração de toda a gente voltara com uma esposa francesa. Cristóvão, que estava a passar as férias de Verão com a mãe, lembrava-se bem do seu rosto, encolerizado, quando soubera a notícia. Não esperara pelo regresso do conde. Tanto ela como Cristóvão haviam abandonado o castelo e ele só o tornara a ver quando não passava dumas ruínas, negras e desabrigadas.

Por vezes admirava-se da calma com que encarara a possibilidade de a sua tia francesa ter um filho, o que lhe tiraria a esperança de vir a ser o sétimo conde. Encarara tal perspectiva sem grande desgosto, mas para sua mãe fora um duro golpe, de que nunca se restabelecera.

Deixaram os noivos sozinhos, e no fim dum ano as suas esperanças renasceram, pois ainda não havia qualquer herdeiro.

No ano seguinte, nasceu o primeiro filho, e um ano mais tarde o segundo. Depois do nascimento do terceiro - uma rapariga -o conde levara a família para França e instalara-a numa casa nos Pirinéus, próximo do lar de sua mulher. Fora ali que, algum tempo depois, espontaneamente, Cristóvão interrompendo uma viagem de férias resolvera ir visitá-los. Movera-o apenas a curiosidade. Constituíra o centro das disputas de família, mas a tempestade rugira à sua volta sem despertar nele outro sentimento além dum certo embaraço ao pensar em seu tio, calvo e velho, pai de filhos, e numa instintiva repulsa pela mulher que imaginava haver casado com ele por causa do título.

Tinha dezanove anos quando pela primeira vez visitou a tia e os primos. Fora lá passar um dia e com grande desgosto da mãe demorara-se seis semanas. Sempre gostara do tio, e agora gostava muito mais da esposa, sensível e já madura. Começou a amar a atmosfera daquela casa grande e a felicidade que aí reinava. Chegava mesmo a comprazer-se em arreliar os seus primitos robustos, e de olhos castanhos, e escutar a sua tagarelice, meio francesa, meio inglesa.

No ano seguinte, após a morte da mãe, visitara pela última vez o tio. Quando este morrera, Cristóvão trouxera a tia e os primos de visita a Inglaterra; não fora um insucesso, mas ela decidira regressar a França, e nessa altura ele prometera que, se qualquer coisa lhe acontecesse, traria as crianças para Inglaterra e cuidaria delas.

Cumpria agora a promessa. O que, porém, fora um plano simples, posto em prática, tornara-se difícil. O castelo, que era o destino deles, estava em ruínas. Teresa, a velha ama das crianças, devia ir com eles, juntamente com Mónica, sua filha, para tomar conta dos pequenos. Teresa, porém, aparecera-lhe com cara de caso: Mónica estava doente, não era nada de cuidado, lamentava-se Teresa, mas tinha febre, e era necessário esperar que passasse para empreenderem a viagem. Quando Mónica estivesse melhor, iriam.

Era por isso mesmo que ele ia a caminho de Londres com aqueles três pequenitos. Felizmente tudo corria pelo melhor, pensava ele. Noutras circunstâncias não teria feito o que fez. Estas crianças, porém, eram sossegadas. Segundo ele, comunicavam umas às outras o sentimento da tranqüilidade; quando se encontravam juntas, os acontecimentos não as abalavam profundamente. Já o conheciam bem e já tinham estado em Inglaterra antes. Teresa e Mónica voltariam na altura devida; no Inverno, já devia ter encontrado uma casa, e portanto tudo se resolveria

Observava com satisfação as três crianças; era evidente que estavam a gostar da viagem, conversando amistosamente com a senhora inglesa. com as suas perguntas incisivas, Cristóvão ia aprendendo também alguma coisa a respeito dela. Viúva, com toda a aparência de rica, agressivamente inglesa em teoria, mas inclinada para as maneiras continentais. Em solteira fora uma das meninas Melhamptons, de Melhampton, onde possuía uma grande casa que dera, totalmente mobilada, a uma comissão encarregada de conseguir lares para velhos, com a condição, inferiu Cristóvão, de, até ao fim da vida, ficar instalada na melhor ala dessa casa. A comissão, pensava ele, provavelmente imaginava, atendendo à sua idade, que pouco mais poderia durar, e que essa parte da casa seria dentro em pouco destinada a outro fim; quando a vissem, ficariam desiludidos, pois era o tipo de mulher que vive até aos cem anos. Pessoalmente, dar-lhe-ia mais vinte anos e alegrava-se por não ter de os viver na sua companhia. Muito devia ter sofrido, o pobre senhor Belchamber.

Cristóvão olhava aquele rosto magro, desagradável, contemplando depois as faces das crianças, rosadas e finas. Ali iam elas, perfeitamente à vontade, e parecia não as esperar uma vida muito diferente, pois tudo corria como até então. Nada o afligia: o passado era o passado, confiava no futuro. O dia estava quente e o sítio onde se sentara era cômodo e macio...

Quando acordou, verificou que as crianças haviam desaparecido e que a senhora o fitava, com um ar de censura. Embora nada tivesse sentido, suspeitou que ela o acordara, e isso aborreceu-o.

- Então? - perguntou ela.

Ele olhou-a, frio e tranqüilo. Era um rapaz corpulento, nada propenso a pressas ou esforços desnecessários, senão nos campos de desporto. Não gostava de confusão nem de excessos e preferia fazer as coisas à sua maneira e a seu tempo. Aquela senhora, velhota, metediça e desagradável, parecia querer alterar o agradável estado das coisas, e começou a olhá-la dum modo especial.

- Então? Não vai atrás delas?

- Atrás delas - exclamou Cristóvão, erguendo uma sobrancelha.

Ela viu-se obrigada a recordar-lhe com azedume:

- Atrás das crianças! Saíram.

- Assim parece - concordou Cristóvão, divertido. Fez-se silêncio e, por fim, a senhora Belchamber perguntou:

- E não vai procurá-las

- Eu?

- Sim, não vai atrás delas? Estão ao seu cuidado, não estão?

- Sim, estão - respondeu Cristóvão acentuando as palavras com uma ênfase que fez corar de fúria a velha senhora.

- Suponha que caem do comboio. Quem evita isso

- Se visse três crianças em perigo de cair dum comboio - perguntou Cristóvão - impedia-as de o fazer?

- com certeza. Até era capaz de fazer mais do que isso. Mas...

- A qualquer pessoa aconteceria o mesmo. Não tenha receio - disse Cristóvão. - O comboio vai cheio de gente, as janelas também e há-de haver quem as veja e lhes deite a mão.

O rapaz fechou os olhos, mas ainda ouviu ela dizer-lhe com um ar zangado:

- E que faz para evitar que elas macem os outros passageiros

Cristóvão olhou-a, preocupado.

- Maçaram a senhora?

- Não, nada, mas...

Sentiu-se aliviado, mas não disse nada, e a velha inglesa mirava-o com um ar de desprezo nos lábios.

- Importa-se de me dizer - perguntou ela - se não vai sequer tentar saber se elas estão em perigo ou a incomodar alguém

- Em perigo não estão, porque no comboio seguem muitas pessoas amáveis - a senhora, por exemplo que em caso de desastre lhe deitariam a mão. Se for ver se elas estão a maçar alguém, apenas me irei incomodar sem necessidade, pois, no caso de verificar que se encontravam a aborrecer fosse quem fosse, teria de tomar medidas para o evitar. Assim, não o sabendo, não preciso de agir.

- Ah, sim? - E o nariz torceu-se-lhe com ar depreciativo. - Então os outros passageiros têm de se sujeitar ao incômodo, só porque...

- Se elas a tivessem maçado - perguntou Cristóvão - que faria?

- Acabava logo com a conversa. Mas...

- Isso é o que toda a gente... qualquer pessoa sensata como a senhora faz... E note que, se alguém se queixar, cá estou eu

Cristóvão estendeu as pernas para ficar mais confortàvelmente sentado e continuou:

- ... Cá estou para os receber.

Fechou os olhos com a bem fingida aparência duma pessoa que necessita de repouso. O fingimento não era mau, porque ouviu a voz da senhora, ao longe, através duma névoa suave, e dentro de instantes adormecia.

 

Quando Cristóvão acordou, o compartimento estava vazio, e à medida que a memória lhe voltava, ia pensando se a senhora teria ido vigiar as crianças. Vendo um criado de mesa passar no corredor, compreendeu que o jantar estava a ser servido, e então imaginou se também a sua companheira de viagem estaria a jantar e teria as crianças consigo.

Seguiu vagarosamente ao longo do corredor da oscilante carruagem e foi dar com os quatro instalados a uma mesa, comendo todos com igual apetite. Chegado junto deles, Cristóvão parou, mas como não houvesse lugar vago perto e o criado muito delicadamente o empurrasse para diante, encaminhou-se para uma outra que estava vazia, a certa distância. Seguiu o seu caminho em ziguezague, firmou-se numa mesa de dois e quando estava quase a instalar-se em frente do grupo, um homem forte, aparecendo do outro lado, sentou-se, obrigando-o a ficar de costas voltadas para as crianças. Sentiu-se ligeiramente aborrecido, e olhou o seu companheiro de mesa com indiferença, que se acentuou ao notar que o homem era gordo, barbudo, com ar de estrangeiro, e tomava a refeição com grande ritual; já estava a meter o guardanapo no colete e a examinar a ementa com muito interesse. Reparando na grande barriga que ficava debaixo do guardanapo, Cristóvão chegou à conclusão de que o homem já se dedicava, havia muitos anos, ao estudo de ementas com igual seriedade. Pensou que a Humanidade possuía muitos destes exemplares, mas que variavam com as raças. A prova da afirmação tinha-a ali, à sua volta: o inglês espreitava pelas janelas, ou olhava, discretamente, para os seus companheiros de viagem, ou então comia tranqüilamente; os franceses inclinavam-se para as travessas e no fim não deixavam nada no prato. E aquele par francês, tipicamente francês, sentado do outro lado, a quem parecia que no Mundo só importava o limpar o último bocadinho de molho do prato... Um espectáculo desagradável. A mulher parecia...

- Jorge, chama o criado, se fazes favor - pediu ela, com o sotaque do inglês mais puro.

De qualquer modo, pensava Cristóvão, um tanto abalado, este indivíduo aqui na minha frente, não me engana. O francês é uma língua bonita, quando falada correntemente sem se atrapalhar com o conjuntivo. Talvez este camarada, depois de ter dado as suas ordens, permita a mais alguém consultar a ementa.

Nesta altura, Cristóvão, olhando à sua volta para pedir a ementa de outra mesa; notou uma coisa que lhe fez esquecer a comida e os franceses. Era uma loira; a pintura devia ser um pouco mais leve, talvez, mas não se pode ser perfeita em tudo. Dois lábios vermelhos e apetitosos, uns olhos que eram um encanto e um narizito enternecedor. Contemplava-o e ele examinou-a, deliciado. Se ela fizesse a travessia, a Inglaterra tornar-se-ia um lugar muito mais agradável. Embalado por tão sedutores devaneios, Cristóvão permitiu que o criado lhe traduzisse a ementa e lhe colocasse na frente qualquer comida. Sorrindo ligeiramente, tornou a dar atenção ao que se passava na sua mesa e com grande surpresa sua notou que não era o único que se tinha distraído com os mesmos pensamentos, O francês que estava na sua frente, em vez de se inclinar para o prato, ficara erecto na cadeira e tão direito quanto as suas muitas curvas lho permitiam, olhando vagamente um ponto indefinido.

Sim, pensava Cristóvão, uma loira como aquela agrada a todos os paladares. Era interessante verificar que ela despertara tanto interesse no francês, que este mal tocara no que lhe haviam servido. De facto, estava assombrado, como se tivesse visto um fantasma. Os seus pequenos olhos castanhos conservavam um ar velado, a barba tremia e com uma das mãos agarrava fortemente o guardanapo. Cristóvão julgou-o idoso de mais para tais atitudes. Devia ter cerca duns cinqüenta. Ou talvez as duas paixões, assim reunidas, tivessem...

De repente perguntou a si próprio como teria o outro visto a loira. Estava mesmo por detrás dele, encoberta por um outro comensal. Cristóvão podia vê-la à sua vontade, mas o francês teria de se inclinar, torcer o corpo - gesto bem difícil para aquela corpulência - e voltar a cabeça propositadamente para a contemplar. Certamente alguma coisa o impressionara, porque ficou com o garfo suspenso. Notara talvez qualquer pormenor muito extraordinário dentro do seu campo de visão, e ansiosamente Cristóvão voltou-se para observar de que se tratava.

Verificou que as mesas atrás dele se encontravam já completamente vazias. Só permanecia ali a senhora Belchamber com as três crianças, e Cristóvão viu com grande admiração, com uma admiração incrédula, que era sobre a senhora Belchamber que os olhares do francês estavam cravados. Era a visão da senhora Belchamber que tão vivamente o emocionara.

Espantado, Cristóvão até deixou passar a loira sem sequer a olhar, e voltou-se uma vez mais para a velhota, tentando descobrir o que poderia ter impressionado um senhor idoso que, na verdade, parecia francês. A senhora Belchamber, inconsciente do espectáculo que estava a dar, olhava para o criado com ar de comando, erguendo primeiro um e depois três dedos. Uma conta era sua, outra seria paga por aquele senhor ali, aquele...

Voltando-se para indicar Cristóvão, a senhora Belchamber surpreendeu o olhar do francês pregado nela. Durante um instante, não houve o mínimo sinal de o ter reconhecido, e depois Cristóvão viu-a incrédula e com uma terrível e estranha palidez. Levantara-se logo a seguir e, acompanhando as crianças para a carruagem, aproximara-se da porta, cumprimentara o criado com um ligeiro movimento de cabeça e desaparecera.

Como tudo aquilo era interessante! - pensou Cristóvão. Ela conhecia o francês gordo e este ia, sem dúvida, deixar a comida no prato; fizera sinal ao criado, amarrotara o guardanapo, puxara por um maço de notas francesas que pusera em cima da mesa e saíra no encalço da senhora.

Durante um instante, Cristóvão pensou em segui-lo, mas duas considerações impediram-no de o fazer. Uma era a fome. Havia muito tempo que não se alimentava, e se a travessia fosse má, sabia lá quando havia de comer? E não tinha qualquer motivo para se interessar pelos problemas de pessoas que nunca vira e que, afinal, nunca mais tornaria a ver por certo. Segundo julgava, a velhota era uma pessoa forte, que podia muito bem resolver os seus problemas sozinha. Que fosse perseguida num corredor de comboio por um francês corpulento, era a última coisa que poderia ter passado pela cabeça de Cristóvão. Ela contudo desembaraçar-se-ia dele; a situação tinha o seu quê de engraçado e noutra qualquer altura merecia bem a pena segui-la. Agora, porém, já tinha a comida no prato. Acabada a refeição, pagou a conta, mas conservava o interesse suficiente pelos problemas da senhora Belchamber para se demorar com o café. Voltou para o compartimento, acendendo tranqüilamente um cigarro. Quando ergueu a cabeça, viu, a pequena distância, o francês que fora seu companheiro de mesa. Estava de pé, do lado de fora do compartimento de Cristóvão, a cuja porta se encontrava a senhora Belchamber, tranqüila e aprumada. Contrastando com a sua figura fina e alta, o homem baixo e gordo dava o aspecto duma caricatura e a pronunciada curva do seu corpo parecia cair abruptamente sobre as pernas demasiado curtas e pontiagudas. Pela agitação dos ombros, pelo movimento das mãos, Cristóvão adivinhou tratar-se duma discussão e era evidente que a senhora Belchamber não queria as crianças a ouvir. Quando viu Cristóvão a aproximar-se, ergueu a mão em atitude de comando e indicou ao companheiro que a entrevista acabara. Voltando-lhe as costas, avançou, com tanta dignidade, quanto os movimentos do comboio lho permitiam. E virando-se uma vez mais, cortou repentinamente a volubilidade do francês com uma simples frase.

- Não me mace. Não serve para nada - disse friamente. - Não percebo a que se quer referir.

A porta fechou-se com um estalido seco. Cristóvão quis entrar, deitou a mão ao puxador e murmurou uma desculpa para o francês que se encontrava no seu caminho. Ele olhou para Cristóvão, hesitou um momento e, depois, disse angustiado:

- Pardon, monsieur... pardon... Vous connaissez Madame?

Felizmente que não, pensou Cristóvão, aliviado; e sorrindo, disse:

- Desculpe - murmurou quando ia a entrar no compartimento. - Não compreendo. Não falo francês.

Fechou a porta. É claro que o seu francês não era do nível do francês que se ensina na Sorbona, mas havia uma ou duas coisas que na verdade compreendera, e ouvira o suficiente da discussão para alimentar os seus pensamentos, se quisesse. Não queria, porém.

A sua vida estava tão cheia com os seus próprios problemas, que, se um francês gordo andava pelos corredores dum comboio a perseguir uma inglesa magra, isso era com ele. Curioso: um disse que sim, e outro que não. Bem, a senhora é que devia saber. Fosse como fosse, concluiu Cristóvão, finalmente, ele é que não sabia nada do que se tratava.

A única coisa que na verdade compreendia, e com toda a evidência, era que ninguém devia chamar mama à senhora Belchamber, a não ser que tivesse fortes razões para isso.

 

Quando chegaram ao porto, Josette adormecera pesadamente, encostada ao ombro de Cristóvão. A última hora da viagem tinha sido feita através de denso nevoeiro e o comboio chegava com grande atraso. O Sol que lhes iluminara a partida desaparecera havia muito e agora sentia-se um friozinho húmido e agreste. Depois de olhar para a pequenina que se encostava a ele, Cristóvão vestiu-lhe o casaco grosso e pôs-lhe um lenço ao pescoço. Após breve reflexão, desembaraçou-a do chapéu, que meteu dentro duma maleta, e atou-lhe outro lenço à cabeça. Iria deitá-la num camarote do barco e deixá-la-ia dormir durante a travessia.

A senhora Belchamber, observando estes preparativos, disse:

- Repare que não há vento e sem vento não há ondas.

Roberto olhou para ela, desapontado.

- Quer dizer que o mar estará... - e com as mãos fazia um gesto de quem acalma - sossegado como um lago? O barco não oscilará?

- Não. E é muito bom, porque para aborrecimento já bastam a escuridão, o nevoeiro e esta agreste aragem de Junho. Não precisamos de mais. Vamos lá. Seja bom rapaz e ajude-me a levar estas coisas.

Com certa apreensão, Cristóvão reparou que ela se agregava ao grupo. Era impossível escusar-se a ajuda. Ia a tirar a bagagem para o cais e a arranjar lhe um carregador. Feito isto, despediu-se e, ao afastar-se, ouviu-a dizer ao carregador:

- Agora siga aquele senhor... ali. Cet monsieur, Aquele. Aquele, meu santo! Cet. Não sabe o que quer dizer "cet"?

O moço compreendera e Cristóvão ouvia-o arquejar atrás de si. Atrapalhado como ia com as crianças, não conseguia afastar-se e pôr uma distância razoável entre ele e a velhota que o seguia resolutamente. Olhou à sua volta, esperançado em ver o gordo francês, mas este parecia ter desaparecido; desde o incidente do vagão-restaurante, não dera mais sinais da sua presença, e Cristóvão concluiu com mágoa que ele devia ter saído do comboio antes de chegarem ao porto. Não havia nada que desviasse a senhora Belchamber da sua evidente resolução de fazer parte do grupo.

A bordo, mostrou claramente a esperança de que ele cuidaria do seu conforto. Escolheu um local na coberta e ali ficou com as crianças, até Cristóvão resolver o problema dos camarotes, pagar aos moços, arranjar a bagagem e voltar a dizer que tudo estava em ordem. Viu-a ir com Josette para o camarote que ambas deviam partilhar, notando, apreensivamente, a sua atitude orgulhosa de avó e proprietária.

A travessia foi calma, embora lenta. Roberto e Paulo ficaram na coberta com Cristóvão, passeando tranqüilamente dum lado para o outro, com as mãos nos bolsos, imitando-lhe a maneira de andar e de vez em quando deitando a mão aos chapelitos para não os deixarem fugir. Cristóvão reparou nos chapéus e, encostando-se à amurada, tomou uma decisão. Olhando para os dois garotos que esperavam cheios de interesse o que lhes iria dizer, afirmou:

- Sabem que esses chapéus que trazem não são ingleses

- Não - perguntou Paulo cheio de surpresa. - Mas Teresa disse-nos que eram. Ela disse...

- Sim, mas não são. E vocês são ingleses e querem parecê-lo como qualquer outro rapaz inglês, quando lá chegarem, quando chegarem a casa. - Mas que espécie de chapéus usam os rapazes ingleses? - perguntou Roberto.

- Bem, habitualmente nem mesmo usam chapéu. Na escola trazem boné. Vocês, quando forem mais velhos, hão-de usar um chapéu como o meu, mas só quando tiverem aí dezoito anos. Agora não precisam desses que trazem, de modo que o melhor que temos a fazer é...

Calou-se, pronto quase a atirá-los pela borda fora, mas pensou que talvez fosse um bocado violento. Olhou para o mar e esperou.

Roberto deitou a mão à cabeça e agarrou o chapéu. Percebia-se que despertava nele uma idéia. Paulo tirou o dele e olhou-o com evidente afeição.

- Teresa disse que os estimássemos, porque tinham custado muito caro.

- É uma pena estragá-los - disse Roberto.

- Sim - concordou Paulo -, podiam servir para o Henrique e para o Pedro. Gostaram tanto deles, quando os viram! Podíamos dizer-lhes que já não os usamos e que lhos mandamos.

Cristóvão verificou que o fim dos chapéus ainda não chegara.

- Bem, nesse caso vou metê-los na mala e depois podem mandá-los ao Henrique e ao Pedro.

Os jovens obedeceram imediatamente, desceram a escada, e Cristóvão ficou tranqüilo, à espera. Quem sabe se, apesar de tudo, não teria sido muito levianamente que se incumbira desta missão. Nenhuma das três crianças lhe parecia tão bem nem tão alegre como quando haviam iniciado a viagem. Os rapazes tinham olheiras e Josette não lhe agradava a maneira como a via corada. A refeição tomada no comboio não era bem para estômagos infantis e ele oferecera-lhe cacau quente quando chegaram a bordo, mas ela recusara.

Voltou-se e pôs-se a contemplar o nevoeiro. Em menos de uma hora estariam em Inglaterra e o resto da viagem seria caminhar sempre em frente. O carro estava à espera; meter-se-iam todos nele e seguiriam para Londres. O seu criado, Merrow, um homem casado, poria as crianças na cama e arranjá-las-ia de maneira a poderem dormir, e depois, dentro de dias, chegariam Teresa e Mónica, que retomariam o seu serviço. Depois disto, restava apenas escolher escolas e encontrar uma casa - está claro que se não tratava dum castelo, mas duma casa bastante grande, e com terreno suficiente para dar às crianças espaço e liberdade para os seus folguedos infantis. O que interessava era largueza para se movimentarem, árvores, água e colinas - sim, também colinas. Ele talvez se casasse se encontrasse uma rapariga muito a seu gosto, talvez mesmo viesse a ter filhos, embora estas três crianças já lhe dessem bastante que fazer.

Os dois rapazes vieram de novo ter com ele e ficaram a contemplá-lo por entre o nevoeiro espesso. Os outros passageiros passeavam de um lado para o outro, e alguns olhavam, curiosos, para aquele inglês alto e bem parecido com os dois rapazinhos franceses. O rosto de Cristóvão tinha um ar de aborrecimento, pouco habitual nele. Pensava que se o nevoeiro se não levantasse não poderia seguir para Londres.

O barco encaminhou-se para o cais; Roberto e Paulo encostaram-se a um dos lados para ver como os cabos eram lançados e como o barco atracava. Cristóvão desceu para acordar Josette e foi recebido pela senhora Belchamber. Vestira um comprido casaco de fazenda fora de moda e ele reparou que, apesar da longa jornada, os caracolinhos, que trazia debaixo do chapéu preto, estavam tão compostos como quando a vira pela primeira vez. Nem um só cabelo fora do seu lugar. As suas maneiras eram, mais do que nunca, de proprietária.

- Tenho estado a reparar nesta criança - disse ela.

- A pequena constipou-se. Precisa de ser entregue a alguém que perceba destas coisas de crianças.

- Sê-lo-á dentro em pouco - respondeu Cristóvão rudemente.

Entrou no camarote, pegou em Josette com todo o cuidado e observou que a velhota o não deixava.

- Percebeu o que lhe disse? Tem uma linda constipação. As crianças, para se livrarem desta brincadeira, têm de ser entregues em boas mãos, e andaremos com muita sorte se conseguirmos chegar esta noite a Londres, com o nevoeiro que está.

Empurrou-o na sua frente e disse:

- Vá o senhor tratar da bagagem que eu fico com a menina.

Cristóvão fitou- a, desconfiado. Estava cheio da companhia da senhora, incomodavam-no as suas lamentações e os seus comentários amargos. Achava-a desagradável e inteiramente inútil, e começava a verificar que afastá-la não seria tão simples como supusera.

- Julgo que seria melhor a senhora tratar das suas coisas - disse ele friamente. - Eu já tenho muito que fazer com três crianças e a minha bagagem.

- Eu fico com as crianças - respondeu a senhora Belchamber. - Vá-se embora e trate de marcar os lugares no comboio.

- Eu não preciso de lugares no comboio, muito obrigado - disse Cristóvão. - Não vou de comboio.

Por um instante ela pareceu inteiramente desconcertada.

- Não?

- Não. Tenho aqui o meu carro e tenciono seguir nele.

- com este nevoeiro?

Fungou uma risadinha e depois comentou:

- com este nevoeiro não vê um palmo adiante do nariz.

Tinha toda a razão, mas Cristóvão fingiu não ouvir e deu-se à tarefa de embrulhar Josette num abafo quente. A criança sentou-se passivamente na cama e ele reparou com apreensão nos olhos mortiços e no seu ar ausente.

- Vê? Aí está o resultado de se deitar a dormir e deixar andar as crianças a correr pelos corredores dos comboios - observou a velhota. - Talvez isso faça com que o senhor tenha agora um maior sentido das responsabilidades. "

Era melhor, era preferível não ouvir. Cristóvão agarrou em Josette e cuidadosamente pô-la em pé.

- Vamos - disse-lhe com toda a ternura. - Podes ficar com Roberto e Paulo até desembarcarmos.

Deu-lhe a mão e saíram, seguidos pela velha senhora. Cristóvão não reparou nela e no seu espírito desenhava-se já o plano de acção.

Não pensara nem em nevoeiro, nem em demoras. Só imaginara as três crianças bem abafadas no assento de trás do carro, a bagagem toda acomodada como devia e o carro deslizando tranqüilamente em direcção a Londres. Não previra este contratempo, mas agora sentia-se impressionado pelo calor que vinha da mão da pequena. A temperatura das crianças sobe muito com qualquer constipação. Ela devia estar metida na cama.

A boa disposição voltou-lhe, quando entrou na alfândega, porque, para grande alívio seu, ouviu chamar pela senhora Belchamber. Uma mulherzinha magra, de meia idade, com óculos e que vestia um casaco de fazenda, - viera ter com ela

- É a senhora Belchamber? - perguntara, depois de ver os rótulos das malas.

A senhora Belchamber envolveu a recém-chegada no seu ar mais carrancudo. Cristóvão afastou-se para se não associar à discussão que adivinhava iminente.

- Sim, sou a senhora Belchamber.

- Ai, que bom tê-la encontrado! Mandaram-me vir ter com a senhora.

- E quem a mandou - perguntou a senhora Belchamber apertando mais o casaco.

- A Comissão.

O tom de voz era agradável e firme. Não havia nos modos da recém-chegada nada das maneiras da mestra-escola, mas era pessoa que queria cumprir a missão para que fora escolhida, e Cristóvão viu o nariz da senhora Belchamber fungar como se se preparasse para uma batalha.

- A Comissão está-lhe muito grata. Já temos os seus aposentos prontos, e Lorde Harver pediu-me que lhe dissesse que estará de volta dentro de uma semana ou quinze dias, e que nessa altura assinará todos os documentos e fará todas as transferências. Não pode fazer idéia de como todos a consideramos extremamente generosa. Uma casa tão bonita! Já temos tudo em ordem e todos desejam ardentemente vê-la. Já acabou com essa maçada da alfândega?

- Ainda nem sequer comecei. E não pedi a ninguém que mandasse quem quer que fosse esperar-me.

A recém-chegada não perdeu nada da sua decidida amabilidade. Se fazia parte duma comissão que tratava de pessoas idosas, pensou Cristóvão, possivelmente estaria habituada a enfrentar maus humores. Sentiu-se-lhe muito agradecido. Ela resolveria aquilo que ele já considerava como uma idéia fixa. A senhora Belchamber deixá-lo-ia.

- Depois partimos logo que pudermos. Não vamos no comboio de Londres. O nosso é outro.

- O "nosso" é uma maneira de falar - respondeu a senhora Belchamber. - Eu vou à hora que quiser e não há nada que me convença a viajar com este horrível nevoeiro, que cobre todo o Kent e todo o Surrey. Sei muito bem onde é a minha casa, muito agradecida. Não preciso que nenhuma comissão me indique o caminho, especialmente o que não quero seguir. Irei para Londres, como sempre fui, e passarei a noite no hotel onde sempre costumo ficar, e de manhã, o mais confortàvelmente possível, irei para Melhampton. Nunca me servi desse comboio e não o vou fazer agora. Tenho muita pena mas não a quero demorar mais.

Cristóvão sentiu-se aliviado ao ver que o sorriso da outra senhora não desaparecia. Empurrou as malas para cima do balcão da alfândega com dupla satisfação. Estava livre daquela sarna, a qual tinha agora uma outra para a consumir a ela. Acreditava na comissão que parecia ser deveras eficiente e que deveria levar a velha senhora por determinada linha de comboio, que cortaria pelo Kent e pelo Surrey, sem perder tempo algum. Voltou a preocupar-se com os seus próprios problemas. Não podia guiar; a visibilidade, que ali seria dumas vinte jardas, na área de Londres, segundo lhe disseram, era nenhuma. Podia meter as crianças no comboio e telefonar a Merroy, que iria buscá-las e levá-las para casa. Mas depois de olhar para Josette desistiu da ideia. Ficaria ali com as crianças, passando a noite no hotel, ou seguiria para Londres com elas, vindo no dia seguinte buscar o carro ?

A primeira hipótese pareceu-lhe a mais sensata. Resolveria tudo. Passariam uma noite confortável e seguiriam na manhã seguinte. Mas uma noite num hotel, com uma criança cheia de febre...

Cristóvão viu as malas com as marcas regulamentares, a giz, e ouviu o moço perguntar-lhe:

- Para o comboio de Londres, senhor?

De repente desesperou se. Estava fatigado. Deixara a Inglaterra havia dois dias e as últimas quarenta e oito horas pareciam-lhe um pesadelo de comboios, estações, mudanças, formalidades, encontros, uma babel de línguas de despedidas, de promessas. O nevoeiro constituía um obstáculo escusado e desagradável, no fim da sua viagem. Não queria seguir no comboio de Londres, mas parecia-lhe nada mais poder fazer, pois não tinha mais para onde ir. Sentia-se desanimado. Reagiu contra esse sentimento, e voltou-se para responder ao carregador, e, nesse instante, lembrou-se de que havia, na verdade, qualquer lado para onde fosse. Sentiu-se aliviado a esta ideia e experimentou um sentimento de prazer e de alegria. Claro que tinha para onde ir I Riu alto, Uma risada de consolação, de energias restauradas, de domínio de todos os cuidados e ansiedades. Sim, havia para onde ir. A menos de quinze milhas, uma casa estava à sua disposição e nela encontraria abrigo sempre que quisesse. Esta lembrança confortou-o extraordinariamente, enquanto para ali estava no posto da alfândega, no meio daquele nevoeiro. Claro que havia para onde ir! Iria para casa de Scotty.

 

Scotty não era escocês, e nunca o pretendeu ser. O seu apelido era Linden, mas os amigos, se é que alguma vez o souberam, esqueceram-no absolutamente. Para onde quer que fosse - e raras vezes permanecia por muito tempo num lugar - era apresentado, conhecido e recordado simplesmente como Scotty.

Era um dos quatro filhos duma senhora, que por capricho, só por ela explicável, lhes dera os nomes de Violeta, Doroteia, Guilhermina e Maximiliano. Estes complicados nomes haviam sido reduzidos pelos seus contemporâneos, a Vi, Dot, Gui e Max, e o de Scotty datava da noite seguinte a uma festa do colégio, em que houvera uma representação, e ele acordara os companheiros com gritos horríveis, para lhes dizer que Maria, a rainha dos escoceses, estava sentada aos pés da sua cama.

O pai fora um homem com grande êxito nos negócios e, por sua morte, Scotty herdara uma fortuna avultada. Jovem de gostos modestos e hábitos simples, não havia o mínimo receio de a herança desaparecer em virtude de vida desregrada. Além disso, possuía um espírito empreendedor e o seu desejo era investir o seu capital em qualquer trabalho que lhe desse, ao mesmo tempo, lucro e possibilidades de actividade.

Comprara um pomar, no condado de Warwick; esta aventura falhou e por isso depois dedicou-se, sucessivamente, noutras herdades, à criação de galinhas, no condado de Iorque; à criação de carneiros, no Cumberland, e a um rancho de gado no qual seguia segundo Scotty afirmava -os moldes americanos, nos Higlands escoceses. Decidira então fazer experiências numa herdade mista no Kent, e agora, passados já quatro anos, com grande surpresa dos amigos, continuava na mesma.

Apesar de Scotty ser mais velho do que Cristóvão cerca de quatro anos, os dois rapazes tinham sido amigos durante toda a vida, e Cristóvão vira e lamentara todos os projectos, com excepção do da herdade do Kent, que ele nunca visitara. Pensara que o projecto era perfeitamente louco, mas agora sentia-se encantado por Scotty se ter recusado a seguir o seu conselho, vindo viver próximo da velha cidade de Orenton. Um passeio de automóvel, de aproximadamente quinze milhas, e tanto ele como as crianças estariam numa velha mas confortável casa de campo, na companhia de Scotty.

Largou devagarinho a mãozita quente de Josette e deu instruções a Roberto.

- Não saias daqui - disse ele. - Tenho de ver se o carro já chegou e depois telefonar a um amigo. Está bem

- Sim, está bem - respondeu Roberto.

O carro estava lá, na verdade. Cristóvão deu uma gorjeta ao mecânico que o trouxera da garagem e encaminhou-se para o telefone. Procurou na lista a letra L, mas o nome de Scotty não se encontrava ali.

Amaldiçoando a demora que tudo isto trazia, Cristóvão levantou o auscultador e marcou "Informações". A campainha retiniu e continuou a retinir, mas as empregadas de serviço, pensou Cristóvão de mau humor, estavam muito ocupadas com os seus afazeres particulares.

Ia ser uma longa maçada. Não tinha a mínima dúvida de encontrar Scotty porque todos os seus interesses se centralizavam na herdade e ele nunca abandonava os seus domínios. A noite, porém, estava cada vez mais escura e fria. As mãos arrefeciam-lhe dentro das luvas de coiro e decidiu que seria mais sensato instalar as crianças, confortàvelmente, no carro, antes de fazer a ligação telefônica.

Os petizes estavam onde ele os deixara. A multidão que se juntou na alfândega diminuíra e ele viu logo o seu grupinho isolado que, observado de longe, denunciava desolação e abandono; manifestou-se, no entanto, alegremente, mal Cristóvão se aproximou. Dois carregadores, falando um francês horrível, tentavam meter conversa com Roberto e Paulo. Josette ligava pouca importância ao que se passava à sua volta, mas dirigiu a Cristóvão, quando ele apareceu, um tal olhar de alívio e gratidão, que ele teve, pela primeira vez, a consciência da enorme responsabilidade que tão impensadamente tomara sobre si.

Agarrou com firmeza a mão de Josette e pouco depois pegou-lhe ao colo. A pequena instalou-se com um suspiro e encostou a face quente ao ombro de Cristóvão.

- Vamos embora - disse ele. - Vou deixá-los no carro enquanto telefono a um amigo para lhe dizer que seguimos caminho. Estão prontos?

Todos estavam preparados. Aos dois carregadores juntaram-se dois ajudantes, e Roberto e Paulo instalaram-se confortàvelmente nos lugares de trás, enquanto Cristóvão arranjava uma caminha para Josette e a colocava no banco da frente, a seu lado.

- Pronto. Dentro dum minuto estou de volta e depois vamo-nos embora.

- Para onde? - perguntou Roberto delicadamente.

- Para uma herdade, uma bonita herdade, onde vocês vão ver vacas e outros animais. Talvez até porcos.

Ambos os rapazes sorriram, um sorriso franco e atraente, que mal lhes moveu os lábios, mas iluminou os seus olhos grandes e belos.

- Eu gosto de vacas! - exclamou Roberto.

- Eu também - concordou Paulo.

Cristóvão esperou por um murmúrio corroborativo de Josette, mas não veio. Inclinando-se, viu que a pequena estava a dormir. Experimentou outra vez um sentimento de angústia e apreensão, e fechando as portas do carro, ergueu a mão num adeus e foi a correr para o telefone. No caminho passou pela senhora Belchamber e, incapaz de a evitar, fez-lhe um ligeiro cumprimento e seguiu à pressa. Verificou não haver qualquer aumento de cordialidade entre ela e a sua companheira, que parecia muito menos segura de si do que quando chegara. Davam a impressão de se encaminharem para o comboio, donde Cristóvão concluiu que a Comissão conseguira os seus desejos, pois o comboio de Londres já havia partido. A senhora Belchamber, apesar de tudo, iria seguir através de Kent e Surrey.

Qualquer coisa - nunca foi capaz de perceber o que fora - fê-lo parar e voltar-se durante um instante, para a contemplar. Agora que, finalmente, a conseguira afastar da sua vida, podia francamente olhar para ela com sentimentos já adoçados pela distância sempre crescente entre eles. Sorriu-se e ia quase a seguir o seu caminho, quando reparou numa figura que se encontrava de pé, entre dois oficiais: um homem gordo e baixo, que estava outra vez numa discussão furiosa. Cristóvão demorou-se apenas uns segundos, até o seu sentido de defesa o afastar dali. Mas, durante aquele curto espaço de tempo, ele viu com clareza e compreendeu várias coisas: o francês tentava explicar qualquer coisa - talvez a sua imprevista visita àquele país, pensou Cristóvão. Mais, as explicações que dava envolviam a senhora Belchamber, porque os três olhavam para ela, e Cristóvão sabia, pela rigidez sempre crescente da sua atitude, que ela observava a cena. Um súbito e terrível impulso dominou Cristóvão procurar interpor-se entre a velha e o seu perseguidor. Esteve quase a voltar para trás, envolver-se em questões de pessoas inteiramente estranhas. Finalmente encolheu os ombros e dirigiu-se à cabina telefônica. Devia estar louco, reflectiu. Nem sequer gostava da velha, e Deus bem sabia das complicações da sua própria vida...

As telefonistas parecia continuarem tão inactivas como antes. Cristóvão, no entanto, conseguiu obter duma funcionária a informação de que em Lower Grenton havia um senhor chamado Linden.

- Se procurasse, encontrava na lista - disse a telefonista, espevitada.

- Pode estar em todas as listas, excepto nesta - respondeu de mau humor. - Faça favor de me dizer o número,

- Está impresso na lista. Já procurou na letra L?

- Sim, já procurei. Qual é o número, se faz favor?

- É na área de Elwing - continuou a telefonista. - Orenton pertence à região de Elwing. Se quiser saber um número de Elwing, não vale a pena procurar noutra área, pois não?

- Claro - disse Cristóvão. - Agora, se fizesse o favor de me dar o número...

- Que área procura

Cristóvão cerrou os dentes e olhou para a lista.

- A área de Elwing, distrito de...

- Então é mesmo aí. Claro como água. Não se deve ligar para "Informações", quando na verdade não é preciso. Basta procurar na lista. Lind, Linden A, Linden e creio que é tudo.

Cristóvão, incrédulo, agarrou na lista e procurou mais uma vez na letra L. com maior ênfase do que até então, disse:

- Nesta minha lista não há nenhum Linden M. Agora se quisesse fazer o favor de...

- Está a procurar no L?

Cristóvão rangeu os dentes.

- Sim, minha senhora, estou a procurar no L, na área de Elwing, numa lista de Janeiro. Estou a procurar.

- Pois claro, se está a procurar na lista de Janeiro... quando ela caducou em Março, e já saiu outra nova em Abril... que é que esperava? Qrenton não estava na área de Elwing, em Janeiro. Depois foi alterado, compreende?

- Compreendo - tornou-lhe Cristóvão. - Quer agora fazer o favor de me dar o número?

- com certeza; era preferível, todavia, dizer-me que estava a ver numa lista de Janeiro, para não me fazer perder tanto tempo. Já lho podia ter dado. O número de Grenton que pretende é 424. Quer que ligue?

- Se faz favor...

Esperou e ouviu uma série de apitos, gritos, vozes e por fim um rumor que lhe penetrou no ouvido e o fez arrepiar. Finalmente, ouviu-se uma voz de homem, com uma pronúncia claramente campesina.

- O 424 não responde.

Cristóvão agarrou-se ao aparelho num apelo desesperado.

- Faça favor de tentar outra vez. É uma herdade, e eu tenho a certeza de que está lá gente.

- Sei muito bem que é uma herdade. Sei que é a herdade do senhor Linden. Ele não deve estar fora da herdade, não, mas está fora de casa, muito provavelmente.

- A esta hora da noite? - suplicou Cristóvão. - É urgente. Faça-me o favor de tentar outra vez.

O homem tentou de novo. Ninguém respondeu. Uma espécie de pânico começou a dominar Cristóvão.

- Não vive ninguém com ele? Não está ninguém em casa?

- Não. O senhor Linden vive sozinho. Mas eu Vou tentar. Vou telefonar à senhora Garcia.

- Garcia?

- Sim. Trabalha para o senhor Linden e vive com a irmã, no correio, em Lower Grenton. Quando há alguém que tem muita necessidade de falar ao senhor Linden, eu ligo para o correio, dizem à senhora Garcia o que querem e ela toca-lhe.

- Toca-lhe?

- Sim, toca-lhe a corneta. Como não pode andar a correr atrás dele, tem uma corneta, e quando a toca, Linden sabe que o chamam urgentemente ao telefone.

- Ah, então, por amor de Deus, peça-lhe que toque, mas toque de rijo - suplicou Cristóvão.

Esperou, imaginando a senhora Garcia e a sua corneta, e entretanto o funcionário explicava-lhe que a princípio o senhor Linden era chamado por assobios. Contudo, como era também desta maneira que chamavam o cabo da polícia local, este levantou-se por duas vezes, de noite, por causa do falso alarme. Depois disto o senhor Linden comprou uma corneta e ofereceu-a à senhora Garcia.

No meio da sua ansiedade, Cristóvão ia reflectindo que provavelmente Scotty comprara duas cornetas, uma para a senhora Garcia o chamar, e outra para ele chamar as vacas. Scotty devia ter feito isto porque...

- Está? - disse uma voz, e Cristóvão apertou o receptor cheio de entusiasmo.

- Scotty! - exclamou ele. - Onde diabo estavas tu

- Meu Deus, é Chris! - proferiu Scotty, com grande surpresa. - Vai-te embora e telefona-me mais tarde... Tenho uma vaca a parir.

- Estou a chegar, Scotty - disse Cristóvão. Aí está tudo bem?

- A chegar? A chegar aqui? Então, vem. Que é que te impede?

- Cheguei mesmo agora de França e queria ter a certeza de que estavas em casa.

- Mas onde podia eu estar? É aqui que eu vivo e onde trabalho. Não sou arquitecto, como alguns que eu conheço, para andar a passear pelo Continente. Tenho de mungir as minhas vacas duas vezes por dia. Anda e vem dar-me uma ajuda.

- Estou a chegar. Mas... Scotty...

- Que é?

- É que eu não estou sozinho.

- Está bem - disse Scotty com a mesma boa disposição. - Trá-la contigo.

- Olha, não sejas parvo. Tenho comigo três petizes.

Uma surpresa cortou a maneira franca de falar de Scotty.

- Tu tens o quê? Três Mas, meu Deus, da última vez que te vi, nem sequer estavas casado.

- E não estou casado. Eu...

- Não? Ah, percebo, vais-te casar

- Tu queres ouvir-me ou não? Não são meus filhos...

- Está bem. Então de quem são, são dela?

- Não são de ninguém. São meus primos. Tu lembras-te do meu tio?

- Ah, já sei. O pequeno Lorde, com o irmão e a irmã.

- Isso mesmo. É uma longa história, mas eu tenho de arranjar onde eles passem a noite e depressa. Acabamos de desembarcar de França e estão constipados e fatigados, e a pequena está com temperatura.

- Pronto, pronto! - comentou Scotty. - Sempre te tive na conta de pessoa capaz de se livrar de embrulhadas. Trá-los, trá-los! Como é que vocês vêm

- Tenho aqui o meu carro. Podes instalar-nos a todos? Tens quartos?

- Tenho. Só têm camas, mas arranjamo-nos. Para comer só temos queijo, e para beber, leite.

- E que caminho devo seguir?

Scotty disse-lho, e Cristóvão, depois de repetir as instruções, pousou o auscultador do telefone e correu para o carro. Após percorrer seis milhas na estrada de Londres, devia voltar à esquerda, seguir durante três milhas, e, chegando a uma bifurcação, voltar à direita, tendo o cuidado de não meter pela estrada que tinha a indicação de Grenton. Avançaria até uma estalagem coberta de colmo e, a seguir, descrevendo uma curva pronunciada, tomaria o rumo de Lower Grenton, por um caminho estreito com muitas covas. "Não o confundas com uma estrada, meu velho, mas segue-o até ver um edifício de estrutura quadrada, que bloqueia o caminho. É aí" - recomendara Scotty.

Era uma hora a guiar cuidadosamente, através do nevoeiro. Cristóvão bateu com as suas enluvadas mãos uma na outra, para as aquecer, e deu uma corrida para restaurar a circulação. Chegou ao carro e pôs-se a assobiar uma doce melodia enquanto abria a porta de par em par. Lá estava Josette ainda a dormir. Nos bancos de trás, os rapazes dormitavam...

A canção morreu nos lábios de Cristóvão e ficou a olhar de boca aberta. No banco de trás, sentada muito direita, entre os dois rapazinhos, estava a senhora Belchamber.

Houve um silêncio. Depois de duas tentativas, Cristóvão conseguiu falar.

- Não compreendo...

Com rabugice a senhora Belchamber comentou:

- Isto deve parecer-lhe de certa maneira um abuso, mas ficava-lhe muito grata se me desse uma boleia para Londres.

Cristóvão interrompeu-a com vivacidade e brusquidão.

- Não vou para Londres.

A senhora Belchamber olhou para ele de modo carrancudo.

- Meu caro, o senhor disse-me claramente que ia para Londres. Afirmou-me peremptòriamente que...

- Alterei os meus planos e não vi necessidade de a informar.

- De me informar? O senhor enganou-me totalmente. Deu-me a entender que...

- Desculpe, minha senhora - disse Cristóvão -, mas estou cheio de pressa. Um amigo espera-nos, e se a senhora quisesse ter a amabilidade...

- Há vacas - disse Roberto, acordando.

- E porcos também - acrescentou Paulo, sonolento. - É uma herdade.

Cristóvão inclinou-se e abriu a porta de trás, segurando-a delicadamente, à espera de que a senhora Belchamber saísse. Ela, porém, não fez qualquer movimento.

- Não queria ser indelicado na presença das crianças - começou Cristóvão, de mau humor -, mas ficava-Lhe muito agradecido se saísse.

- E que quer que eu faça - perguntou a senhora Belchamber. - O comboio de Londres já partiu, há muito tempo. Agora somente há um quase há meia noite. Hei-de ficar aqui sentada, no meio deste nevoeiro, até essa hora?

- A senhora que a veio esperar... - O chapéu preto da senhora Belchamber oscilou, triunfantemente.

- Ah, essa foi-se embora. Pu-la a andar

- Quem me dera ter a sua técnica! Adeus!

- Faça favor de fechar a porta - disse a senhora Belchamber friamente. - Meteu-me neste sarilho e agora quer ver-me pelas costas. Deixei de ir no comboio de Londres, por causa daquela horrível criatura que tiveram a impertinência de me impingir. Pensou que me convencia a ir no outro. Mas eu decidi vir ter com o senhor e escapei-me. Uma pessoa não chega à minha idade sem saber como se há-de defender. Espero que ela se divirta bem à minha procura no comboio e que seja capaz de inventar uma história plausível para narrar o meu desaparecimento. E agora diga-me: o que vamos fazer?

Cristóvão olhou à sua volta. Ia ser bastante difícil guiar com o tempo que estava. Se ele fosse procurar um sítio qualquer onde deixar aquela senhora, perder-se-ia certamente no meio do nevoeiro, com três crianças cheias de frio e de fome. Elas é que eram a sua carga preciosa. Precisava de lhes encontrar calor e conforto, e o que acontecesse à senhora Belchamber, isso era lá com ela. Entrando para o carro sem ser convidada, iria para onde ele a levasse. No entanto, ainda havia um outro ponto a considerar, Ela não fora inteiramente franca ao referir-se às suas tácticas evasivas. Não aludira ao francês. Cristóvão escolheu uma frase com todo o cuidado e pronunciou-a com muita intenção.

- Vi o seu filho na estação. Não o viu - perguntou de repente.

O seu olhar, habitualmente frio, em vez de tergiversar, tornou-se tão glacial que Cristóvão o sentiu penetrar-lhe até aos ossos. O seu nariz, directamente voltado para ele, parecia prestes a trespassá-lo como uma seta. Os lábios mal se moviam quando disse:

- O meu...

Cristóvão chamou a si toda a coragem.

- O seu filho - repetiu ele.

- Não tenho filhos - retorquiu a senhora Belchamber com absoluta decisão.

Cristóvão desistiu, sem tentar lutar mais. Silencioso, entrou no carro, virou o volante e tomou o rumo do norte.

- Para onde vai? - perguntou a senhora Belchamber, momentos depois.

- Para a herdade dum amigo. Não sei como ela é, nem me interessa particularmente sabê-lo. Apenas estou informado de que haverá quartos para todos. Se não estiver dentro do seu nível de conforto, a culpa não é minha - disse Cristóvão friamente.

Não obteve resposta. Somente deu fé de os três ocupantes do banco de trás se acomodarem melhor. Puxou Josette para si, para que ficasse com a cabeça encostada ao seu ombro, e depois concentrou-se na escura estrada que se estendia na sua frente.

A estalagem... Até ali a estrada tinha sido bastante boa. Agora era a volta. Haviam chegado ao tal caminho. Espreitando, e incapaz de ver mais de meia dúzia de palmos em frente do nariz, Cristóvão avançou lentamente. O carro balouçou e inclinou-se para um lado. Ninguém disse coisa alguma e ele concluiu que os pequenos tinham adormecido. Seguiam, agora, por um estreito caminho vicinal, e de repente, numa curva difícil e apertada, viram as luzes duma casa. Aquela pequena luz que lhes dançava diante dos olhos devia ser uma lanterna. Cristóvão dirigiu-se para lá, através daquele nevoeiro esbranquiçado, e a lanterna brilhou-lhes mesmo em frente. Parou e uma forma gorda mostrou-se por entre o nevoeiro. A porta do carro foi aberta de par em par e uma voz trovejou na noite:

- Ora, ora, ora, até que enfim! Que alegria em ver-te, Chris, meu velho! É só um instante, e eu guio-te.

Scotty bateu a porta, saltou para o estribo e conduziu Cristóvão para dentro dum grande celeiro iluminado por duas lanternas.

- Fica aqui - disse ele apeando-se e abrindo a porta do carro mais uma vez. - Vem cá, meu maroto, e deixa-me ver-te bem.

Cristóvão encontrou os rapazes acordados e a senhora Belchamber olhando à sua volta com um olhar penetrante. Pegou em Josette ao colo e ela levantou um pouco a cabeça, olhando-o com olhos cheios de sono.

- Pronto, minha querida, já cá estamos! - disse-Lhe Cristóvão. - Já vais ter uma boa caminha. Scotty, ainda há mais uma pessoa, a senhora Belchamber, que perdeu o comboio.

- Como está? Todos os amigos de Chris, etc. etc. - disse Scotty. - Vamos, sigam-me. Vocês ajudem-me aqui à bagagem. É pesada! Vamos embora. Mas que músculos, que músculos que têm estes rapazinhos

Scothy tinha posto as maletas em fila. Roberto e Paulo faziam todo o possível para ajudar, mas era-lhes de todo impossível desviarem os olhos daquela grande figura que se agitava entre as malas e que lhes dava as boas-vindas. Àquela luz dúbia, Scotty na verdade parecia uma figura tremenda, e era evidente que a expressão da senhora Belchamber, à medida que notava os pormenores da sua figura, se tornava cada vez mais francamente desaprovadora.

Scotty era um homem alto, bem constituído, com membros que pareciam de enorme comprimento. Vestia umas calças de ganga azul, uma camisa que já fora branca, e calçava botas de borracha, nos canos das quais enfiara as calças. A senhora Belchamber atentava-lhe no rosto, e enquanto examinava os seus olhos sonolentos, a boca grande e de aspecto sensual, Cristóvão percebeu que ela estava a tirar conclusões que não correspondiam à verdade.

Não era a primeira, e ele sabia-o bem, a ser induzida em juízos errados. Scotty encarnava, perfeitamente, o tipo do rufião. Os homens, que se encontravam com ele pela primeira vez, punham-se à frente das mulheres que os acompanhavam e preparavam-se para as proteger das piores formas de assalto. As mulheres esperavam, algumas receosas, outras esperançadas, por uma demonstração de horríveis paixões que estavam escritas, para quantos as quisessem ler, naquela boca sensual e naqueles olhos indolentes e inexplicavelmente azuis. No entanto, não havia disso a menor demonstração. A única injúria que Scotty fazia às mulheres era desprezá-las completamente.

Só ao fim de algum tempo os adultos verificavam que, como nos livros, Scotty não podia ser julgado pela capa. As crianças, como não sabiam ler nada dessas coisas complicadas, travavam imediatamente com ele as melhores relações de amizade. A luz que iluminou os olhos de Roberto e de Paulo mostrou claramente o início duma adoração, mas o olhar da senhora Belchamber era duma desconfiança bastante enraizada. Scotty, atribuindo-o ao embaraço de ter vindo sem ser convidada, esforçava-se por pô-la à vontade.

- Pronto, agora já cá estamos. Vamos levar a bagagem que precisarem, e depois viremos buscar o resto. E agora muita atenção. Marchar! Tenho de aperfeiçoar o meu francês, por causa de vocês, meus francesinhos. Ordinário-marche! Vamos lá embora! Minha senhora, ao seu dispor. Se por acaso lhe der algum encontrão com a mala ou mesmo com as duas, desculpe, que não é por mal. Seria incapaz de ser indelicado para uma amiga dum amigo meu. Em fila! Um-dois, um-dois-três, esquerdo-direito, esquerdo-direito t... Cuidado com a trave! Esquerdo-direito, esquerdo-direito!... Estamos agora no palheiro. Por cima de nós os céus, à nossa volta o nevoeiro branco e as vaquinhas lá em baixo. Cuidado com os pés! Minha senhora, minha senhora, eu avisei-a!... Mas não se aflija, eu mando limpar quando estiver seco.

Após o pátio, direito àquela porta que está aberta. Minha senhora, a cozinha... Um humilde tecto que não é inteiramente à prova de chuva. Mas olhe para aquele valente fogo!

Cristóvão já tinha visto. Empurrara uma poltrona para a frente da lareira e acomodara Josette confortàvelmente. Depois, à vontade olhou para o amigo e disse:

- Quero comer.

Scotty levou-o junto dum armário.

- Queijo, tal como eu já te informei - disse ele, abrindo a porta de par em par. - Queijo e pão... Não há muito pão, mas é mole... Mais ou menos. A senhora Garcia trouxe-o ontem. Já sabes quem é. A senhora Garcia, que toca a corneta. É ela que me trata das coisas. Naquela tigela está manteiga. E há leite em abundância. E queijo, como te disse. Sou eu que o preparo. Há também ovos... E pronto. Devia haver muito mais ovos do que os que há, mas as galinhas não põem onde devem. Os que temos, porém, chegam.

- Óptimo! Pão, queijo, ovos e leite. E quartos?

- Seis. Sem contar com os dois sótãos, onde os ratos se divertem. Se não acreditas, vai lá ver, meu velho.

Cristóvão circunvagou um olhar pela grande cozinha. O fogo crepitava. Sobre a pedra da chaminé havia duas candeias que espalhavam uma luz mortiça pela casa. A mobília constava de algumas cadeiras de madeira, dois grandes armários e uma mesa. A um canto viam-se os lavatórios, mas sem torneiras; ao lado havia dois baldes de água.

Scotty seguiu-lhe o olhar e comentou:

- Não, não há água quente e fria. Temos, no entanto, um poço e uma bomba. Aqueles dois francesinhos hão-de ir para dentro de água, daqui a pouco. Vocês os dois!.

Roberto e Paulo olharam para ele e suspiraram profundamente. Que confortável e que simpática era esta Inglaterra, agora que estavam livres do nevoeiro Na verdade, pouco se enxergava, mas ouvia-se, e os sons eram agradáveis: o mugido das vacas e o ruminar dos bois. Os gansos, que eles tinham perturbado ao passar, protestavam energicamente. Os cães ladravam e de vez em quando, notava-se o bater das patas dos cavalos. Quando aquela cortina branca do nevoeiro se erguesse, quando ao negro da noite sucedesse a luz do Sol, muito haveria para ver!

Enquanto Cristóvão olhava e os rapazes escutavam, o nariz apurado da senhora Belchamber investigava os cheiros. Quinteiro, estrumeira e mais alguma coisa... sim, aquele misterioso capote que estava pendurado num cabide atrás da porta. O leite secara-lhe em cima, azedara e formara crosta. com o nariz levantado e uma expressão de repugnância, a senhora Belchamber pegou no capote, encaminhou-se para a porta e, abrindo-a, pô-lo do lado de fora, voltando a fechá-la.

Olhando Scotty cara a cara, disse-lhe:

- Há cheiros que são saudáveis e há outros que o não são.

Passou-lhe pela frente e saiu da cozinha, evidentemente com o fim de inspeccionar as acomodações. Scotty olhava para ela com admiração.

- Mas que bicho tão extraordinário! Também és protector dela, como das crianças?

- Não. Antes de hoje entrar no comboio, nunca a encontrara na minha vida, e não me posso livrar dela. Vamos dar de comer alguma coisa a estas crianças e depois metê-las na cama. Estão arrasadas.

- A ceia - disse Scotty. - Agora, vocês os dois, enquanto nós preparamos a comida, vão tirar das ( malas as suas coisas e procurar um quarto onde possam pô-las. Tirem duas camisas de dormir, senão acontece-lhes como à velhota que foi para o Amazonas sem pijama. Olhem, eu vou pôr esta frigideira em cima do lume e fazer omeletas. Omeletas, comprenez? E tu, meu velho, vai arranjar a bela adormecida para a meteres na cama.

A senhora Belchamber voltou pouco depois com uma expressão mais azeda do que nunca.

- Quase que não há mobília - disse ela. - Não há gás, não há electricidade, não há água corrente, não há quarto de banho...

- Não há rádio - acrescentou Scotty. - Não há...

- Não há roupas de cama, não há cortinas nas janelas...

- Não há televisão - disse Scotty, imitando-a. Não há jogos, não há...

- E não há retrete - terminou a senhora Belchamber de mau modo.

- Ah, mas eu vou mostrar-lha - disse o contrito Scotty. - Devia ter perguntado Por aqui... cá está a lanterna - continuou ele passando à frente. - Não se incomode com os gansos. Se algum lhe morder nas pernas, marque-o para o Natal. Vai ficar connosco até ao Natal? É esta a porta. Não tem fechadura, lamento muito, mas os gansos avisam sempre.

- Dê-me a lanterna - disse a senhora Belchamber, arrancando-lha da mão. - Está muito bem.

A ceia comeu-se em volta da grande mesa. A senhora Belchamber, com o chapéu preto ainda firmemente empoleirado na cabeça, partia grandes fatias de queijo e punha-lhes manteiga em abundância. Scotty fizera omeletas fofas e douradas e pusera jarros de leite quente em cima da mesa. Roberto e Paulo comeram como desalmados, mas Josette, encostando-se a Cristóvão, mal provou o leite quente e caiu numa sonolência agitada. A senhora Belchamber olhava para ela, apreensiva.

- Esta criança não está bem. Não a deve tirar deste compartimento aquecido para a levar para esses quartos desabrigados. Apanha alguma que a leva.

- Acendem-se os fogões - disse Scotty enquanto os continuava a servir. - Acendem-se os grandes fogões que aquecem a casa toda.

Não levou muito tempo a acendê-los. Eram velhos mas eficientes. Scotty foi buscar lenha e carvão e voltou os colchões para os arejar. Foi buscar, não se sabe onde, cobertores já velhos e trouxe, conjuntamente, casacos, almofadas e tudo quanto pudesse servir para pôr em cima das camas. Os rapazes ficaram no quarto ao lado de Cristóvão. A senhora Belchamber andou de aposento para aposento, a fim de escolher o que lhe fosse mais agradável à vista e ao olfacto. Manifestou desejo de que Josette ficasse com ela. Cristóvão, surpreendido, mas não disposto a discussões, pegou na pequena ao colo, subiu as escadas e meteu-a na cama, que ficou tão perto do lume quanto possível

À luz dos candeeiros e sob a acção do calor dos fogões onde o lume crepitava, a casa foi adquirindo a pouco e pouco uma relativa ordem. Cristóvão ficou sentado junto da cama de Josette, até ela adormecer. Depois, lentamente, afastou a mão, saiu do quarto em bicos de pés e foi ver os rapazes. Estavam deitados debaixo das mais heterogêneas coisas que os podiam conservar quentes e rosados, mas mantinham-se completamente acordados.

- Devem tomar qualquer bebida - disse Scotty que também os fora ver. - vou dar-lha. A senhora quererá alguma coisa antes de se deitar, Chris?

- vou saber - respondeu Cristóvão. Voltou-se, seguiu pelo corredor por onde viera e bateu devagarinho à porta. Mal lhe tocou, a porta cedeu e os olhos de Cristóvão pousaram numa coisa que estava colocada junto à entrada do quarto.

Ficou a olhar um momento e, por fim, compreendeu do que se tratava. Era o chapéu preto da senhora Belchamber, Pregados de cada lado, estavam molhos de caracóis de cabelo branco.

Com o maior cuidado, Cristóvão afastou-se, desceu as escadas em direcção à cozinha, e pouco depois Scotty foi ter com ele. Trazia na mão uma garrafa, que colocou, com todo o cuidado, diante de Cristóvão.

- Que é isso? - perguntou o amigo.

- Aguardente muito velha, muito rara, muito preciosa. Tenho-a no armário e só me sirvo dela nas mais solenes ocasiões. É a única que me resta da garrafeira de meu pai, é um esplêndido sedativo. Uma colherzinha e aqueles rapazinhos vão dormir como dois anjos.

Cristóvão ficou pasmado a olhar para ele.

- Meu Deus, não me digas que a vais dar a Roberto e a Paulo...

- Uma colherzinha de chá, em leite quente. Podemos até nem dar o leite. Deixa ver o teu copo.

 

Quando Cristóvão abriu os olhos, o Sol inundava-Lhe o quarto. Olhou para o relógio e viu que eram sete e meia. Atirou com a roupa da cama, levantou-se e começou a andar duma janela para outra, a observar o panorama e a fazer uma idéia da extensão da herdade. Não era grande. O caminho assemelhava-se mais às curvas dum rio do que a uma estrada. Estreitava, ao chegar à herdade, e o casarão parecia, a quem se aproximasse, posto ali para impedir o avanço para além. No entanto, o caminho limitava-se a rodear a casa e seguia o seu trajecto em direcção a Lower Grenton.

O primeiro portão a que o visitante chegava, quer vindo da cidade de Grenton, quer da estrada de Londres, era grande, encontrava-se habitualmente aberto e dava para o terreiro. Transposto este, e através doutro portão, atingia-se um quinteiro, para onde dava a porta da cozinha e por onde se podia entrar com a maior facilidade. Quem não gostava da proximidade da cozinha, dava-se ao trabalho de seguir um pouco mais além, pelo caminho, até chegar a um pequeno portão de ferro, considerado a entrada principal; se o pudesse abrir, seguiria por uma vereda estreita e bem tratada até à porta principal, que, através dos seus dois grandes vitrais, deixava ver a larga escadaria e um vestíbulo nu. A aldraba da porta era uma peça imponente, em forma de cabeça de carneiro, e parecia segura como uma fortaleza, até se lhe mexer, porque nessa altura caía e rolava pelo chão. A campainha - um grande puxador de porcelana - saía do seu lugar mal lhe tocavam, e os poucos visitantes que a tal se atreviam, ficavam a olhar sem saberem o que fazer, até lerem o aviso informativo de que aquela porta já não era aberta há anos; então, sensatamente, iam dar a volta até ao pátio da entrada e encontravam-se de novo em frente da porta da cozinha.

Para lá do quinteiro, Cristóvão viu o celeiro onde haviam deixado o carro, cujo brilho podia notar a distância, no meio das densas sombras. Os currais, compridos e baixos, eram a seguir aos estábulos, depois os chiqueiros, que estavam vazios, e um cercado com meia dúzia de vitelas, entre as quais se agitavam dois bonèzinhos de marinheiro francês. Cristóvão pôs-se a pensar há quanto tempo já eles andariam por ali. Talvez desde madrugada.

Alongando a vista através dos campos, aí a umas duas milhas, viu uma colina arborizada e as chaminés duma grande casa. Mais além ficava Orenton. O panorama era vasto e calmo, e Cristóvão reconheceu que Scotty se tinha, como sempre, colocado num dos mais bonitos quadros da Natureza. Nessa manhã de Primavera, ainda com uma ténue cortina de nevoeiro a envolver a linha do horizonte, a paisagem era encantadora.

Depois começou a contemplar as edificações da herdade. Tudo aquilo era excelente, limpo e tinha sido recentemente pintado. O prudente lavrador esperava pelos seus lucros e investia-os em fornecimentos e nos edifícios; Scotty cuidava das edificações e esperava que os lucros dessem para tudo. Não era de modo algum uma herdade modelo, mas um leigo podia enganar-se com a sua aparência de prosperidade. A tinta estava fresca, os animais mostravam boa disposição, as galinhas, os patos, os gansos, os gatinhos e os cachorros, tudo se movia tranqüilamente dum lado para o outro; o próprio Scotty, que apareceu por um instante no limiar duma porta, parecia uma pessoa sem cuidados.

Cristóvão abandonou a janela e vestiu-se apressadamente. Impulsionado pelo desejo ardente de saber como Josette passara a noite, abriu a porta, seguindo pelo corredor em direcção ao quarto dela. Nesta altura, a porta abriu-se e a senhora Belchamber saiu.

Apesar de ser ainda muito cedo, já estava completamente vestida e envergava o seu austero chapéu negro. O fato caía impecável em volta do seu corpo ossudo e anguloso, e os caracóis encanecidos estavam tão bem tratados como sempre. Cristóvão cumprimentou-a com poucas palavras e perguntou baixinho:

- Como está Josette

- Está doente - respondeu a senhora Belchamber. - Tossiu durante toda a noite e tem de chamar um médico para a ver. Apanhou uma forte constipação.

Sem responder, Cristóvão entrou no quarto e reparou que Scotty havia posto à entrada da porta um enorme balde de carvão e alguns cavacos de lenha. O lume do fogão ainda estava aceso e ele compreendeu que devia ter sido a senhora Belchamber que o mantivera assim durante toda a noite.

Josette estava deitada com a cabeça virada para o lado do lume e, quando Cristóvão entrou, voltou-se, saudando-o com ligeiro sorriso. Sentou-se na cama ao lado dela, e agarrou-lhe gentilmente na mão.

- Como estás, Josette? - perguntou ele com ternura.

A pequena tossiu, uma tosse rouca que fez com que todos os receios de Cristóvão viessem à superfície.

- Estou bem, muito obrigada - respondeu a criança.

- Como te sentes - perguntou ainda Cristóvão.

- Muito bem - disse a senhora Belchamber, com uma voz aguda por detrás dele -, mas está cansada, o que é natural, depois duma tão longa viagem, e dói-lhe a cabeça. O senhor agora levanta-se daí, vai chamar um bom médico, que lhe dá um remédio eficaz, e a põe boa num instante. Vamos embora.

Cristóvão continuou sentado a estudar a situação. Estava numa herdade, onde os quartos eram desabrigados, sem água corrente, nem os mais elementares recursos sanitários. Tinha à sua conta uma rapariguinha doente, dois rapazinhos e uma velha autoritária. Era forçoso ir-se embora, tãodepressa quanto possível, livrar-se da velha, pôr os rapazes em casa e arranjar uma enfermeira para tratar da pequenita. Sentiu-se angustiado, mas no fundo não era aquela terrível angústia que o dominara na noite anterior. Aborrecia-se de estar em presença duma tal situação, mas julgava-se inteiramente capaz de a resolver. Deu uma palmadinha nas mãos de Josette e encostou-as ao rosto por um instante.

- vou procurar um bom médico para te vir ver, e daqui a pouco estarás boa - prometeu.

- Onde está Paulo - perguntou Josette.

- Paulo anda lá fora com Roberto e daqui a pouco também tu lá estarás, a brincar com a vitelinha, com os pintainhos... com as galinhas... com os gansos. Agora esconde esta mão e deixa-te ficar aí quentinha, até à chegada do médico, que não tarda nada.

Cobriu-a, levantou-se e seguido pela senhora Belchamber saiu do quarto.

- Receio muito que tenha passado uma noite má - disse ele.

- Evidentemente que passei. Mas alguém tem de tomar conta das crianças. Foi bem bom eu ter estado ao pé dela, para não deixar o lume apagar-se e mantê-la quentinha. Suponho que o senhor deve ter dormido como um bem-aventurado.

Com certa relutância, Cristóvão admitiu que na verdade assim tinha acontecido.

- Claro - pronunciou a senhora Belchamber. - E agora a respeito do almoço... Supõe que este seu estranho amigo se tenha dado ao trabalho de o arranjar?

Cristóvão pensou que não seria muito provável. A sua experiência dizia-lhe que Scotty, depois de os receber muito bem e lhes dar comida simples, bom aquecimento, sairia para o seu trabalho, deixando aos hóspedes o cuidado de se governarem. Se lhe quisessem qualquer coisa, sabiam bem onde o deviam procurar.

Descendo as escadas atrás da senhora Belchamber, Cristóvão, quando entrou na cozinha, viu um grande lume que ardia na lareira, mas nem o menor indício de preparativos para o almoço.

- Foi o que eu lhe disse - comentou a senhora Belchamber. - Nada. Há trinta anos que estou habituada a mandar levarem-me de manhã o chá ao meu quarto e a tomá-lo antes de me levantar.

- Devia ter seguido no seu comboio - respondeu Cristóvão com aspereza; mas depois, lembrando-se de que ela tinha cuidado de Josette durante toda a noite, disse com menos secura: - vou procurar Scotty e ver se encontro um médico. Isso é que é importante. O almoço pode esperar.

A senhora Belchamber deu uma risadinha.

- Quando, daqui a uma hora, esses dois rapazinhos voltarem, cheios de fome, capazes de comer a mesa, diga-lhes que o almoço pode esperar.

Olhou para ele com um ar aborrecido e acrescentou:

- Haverá homem mais irresponsável que o senhor, em qualquer parte do mundo... Eu, pelo menos, nunca encontrei em toda a minha vida.

Às sete e meia da manhã não era hora para estar a discutir. Cristóvão abriu a pesada porta da cozinha e saiu. A atmosfera estava fria mas agradável. Os gansos levantaram o pescoço e correram para ele a grasnar, as galinhas picavam no chão e cacarejavam. Ouviu vozes num telheiro e dirigiu-se para lá, tropeçando em três cachorros que encontrou no caminho. Abriu a parte superior da porta que estava fechada, deparando-se-lhe uma cena de pura tranqüilidade. As vacas ruminavam satisfeitas, Scotty mungia uma e Roberto e Paulo observavam o espectáculo.

- ... e aquela é a mãe da vitelinha que eu lhes mostrei lá fora... lembram-se - ia Scotty dizendo. - Chama-se Relva Verde. Como esta herdade se chama Quinta Verde, eu chamo verdes a todas as vacas. Aquela é a Azeitona Verde, é uma boa vaquinha.

A outra Lima Verde, e a que está ao fundo Verde Mar. Um vai buscar o carro e outro a pá, e podem começar a limpar. Olá, Chris, meu velho!

Cristóvão observava os dois rapazes que trabalhavam afanosamente, cambaleando sob pesadas cargas, e por fim empurrando o carro por aquele chão de pedra, até o trazerem para fora da porta.

- Os rapazes são trabalhadores... - comentou Scotty. - E tem uns chapéus elegantíssimos! Como vão as coisas lá por casa

- Não vão lá muito bem, Scotty, tenho de chamar o médico.

Scotty afastou o banco e pegou num balde de leite que acabava de mungir.

- Josette está mal?

- Sim, deve ter apanhado uma constipação ou qualquer coisa parecida; tosse e tem temperatura. Não me agrada tal situação. Quem é o teu médico

Scotty deitou o balde de leite numa grande desnatadeira e encostou-se à parede caiada.

- Um médico - disse ele devagar. - Valha-me Deus! Valha-me Deus!

Cristóvão franziu as sobrancelhas.

- Vamos, Scotty - insistiu. - Estou apoquentado!

com todo o vagar, Scotty disse:

- Aqui nas imediações, o melhor deve ser Curtis. Mas não sei...

- Queres chamá-lo tu ou chamo-o eu?

- Chamá-lo, não, chamá-la - corrigiu Scotty, apreensivo.

- O quê?

- Sim, é uma senhora... doutora Estela Curtis. Mas não sei...

- Bem, telefonas-lhe tu ou telefono-lhe eu?

- Oh, telefona-lhe tu - disse Scotty, decidido. - Tu mesmo. Se fosse eu que lhe telefonasse, era quase certo que não vinha.

- Não vinha? Não sejas parvo. Tinha de vir, porque há uma pessoa doente...

Scotty abriu a porta e fez rolar cá para fora a desnatadeira, antes de falar outra vez. Todos os seus movimentos eram lentos e deliberados, e Cristóvão, observando-o, sentiu o afrouxamento da pressa, da tensão que os seus encontros com Scotty sempre provocavam. Não denotava a mínima precipitação, e as vacas ainda punham uma nota de maior calma em toda a cena. Agora começavam a sair, através do pátio de cimento e do palheiro, em direcção ao maior dos dois pomares. Não era uma procissão ordenada; os animais sabiam para onde iam e Scotty deixava-os gastarem o tempo que quisessem para lá chegar. Lá iam no seu passo lento, inspeccionando tudo pelo caminho; pararam para beber na selha, juntaram-se ao pé de Cristóvão para o cheirarem e baixaram as cabeças ameaçadoramente para os cachorros que lhes embargavam o caminho. Roberto e Paulo, corados, sujos de estérco, vieram ao pátio e davam-lhes palmadas nos flancos para as incitar a andar. Depois dos animais terem transposto a porta do pomar, a paciência de Cristóvão desaparecera. Quando Scotty voltou, estava pronto para continuar a discussão com o amigo.

- Então, acerca do médico...

- Sim, eu gostava que o médico viesse o mais breve possível. Agradeço-te muito a maneira como nos recebeste, e muito embora para mim tudo esteja sempre bem, o certo é que a herdade não se presta para cuidar duma criança doente. Quero ir-me embora com os pequenos, assim que puder.

- Se conseguires arrancar os petizes daqui, fico muito surpreendido. Arranjei dois ajudantes. Para falar com precisão, foram quatro, porque esses dois petizes trabalharam como gente grande durante toda a manhã... Que coisa curiosa... As crianças inglesas, habitualmente, ficam quietas a ver trabalhar. Mas estes dois... há neles alguma coisa de franceses... não gostam de estar parados, andam atrás de mim e trabalham como se o fossem.

- Isso mesmo. O médico... - disse Cristóvão.

- Estás a ver em mim uma certa relutância, não é verdade?

- Tanto quanto posso observar qualquer coisa, antes das oito da manhã, sim - concordou Cristóvão. - O que é que se passa com ela

- Nada. Absolutamente nada. Simplesmente não gosta de mim.

- Está bem, mas eu também não a vou convencer a gostar de ti. Qual é o número do telefone?

- 482. Será melhor explicar-lhe que eu não tenho nada a ver com isso. Ela fica mais tranqüila, compreendes?

- Porquê - perguntou Cristóvão.

- É que ela não compreende, não compreende a minha maneira de ser - explicou Scotty. - Não entende que eu goste mais de animais do que da maior parte das pessoas. Ou se o percebe, não partilha das minhas preferências. A primeira vez que lhe telefonei, houve um desentendido, daqueles que é impossível explicar. Estás a ver. O número do veterinário é um homem que está aflito pode muito bem enganar-se... O que me admira é como os pais que vão ter filhos se não enganam e chamam o veterinário.

- E tu chamaste-a por engano?

- E era Inverno e nevava. Eu ainda não estava dentro disto, perfeitamente à vontade, as instalações não eram boas e tinha a melhor vaca a morrer. Era a Verde Inverno. Até hoje ainda não sei o que lhe disse e ela a mim, mas marquei o número que julgava ser do veterinário e ela veio cá, através de todo o mau tempo, para tratar da senhora Verde Inverno, que estava com as dores de parto. Foi medonho!...

- Devia ter sido - admitiu Cristóvão. - Ela, porém, ainda não teve tempo para esquecer isso?

- Talvez, mas houve outra infeliz coincidência, uma noite, quando dois vagabundos, dois ciganos, vieram para me roubar a espingarda. Eu andara a caçar e eles viram-me a limpar a arma, quando passaram por aqui de manhã, muito cedo. Os cães correram sobre eles e os dois homens fizeram-lhes frente e despedaçaram-me o Clover, o cãozito de que eu gostava mais. Senti o barulho, mas eles não deram fé de eu chegar, e ao ver o que tinham feito ao cão, perdi a cabeça e atirei-me aos dois. Quando caí em mim e vi o que tinha feito, no estado em que eles estavam, pensei que era preferível chamar a doutora Curtis para os tratar. Enquanto lhe telefonava, os dois passarões escapuliram-se. Como o conseguiram fazer é coisa que nunca hei-de perceber. Devem ter calculado que eu estava a chamar a polícia. Corri atrás deles e depois tentei evitar que ela se maçasse, mas já vinha a caminho. Sim, já vinha a caminho... às três da madrugada, de Inverno, e evidentemente a nevar. Se eu pudesse ter-me feito atropelar, para que ela quando chegasse tivesse um doente, garanto-te que o teria feito. A médica chegou, e só tinha para lhe mostrar os nós dos meus dedos. De modo que estás a ver: inscreveu-me na lista negra. Se queres que ela venha cá, tens de lhe dizer, pelo telefone, coisas que a convençam. Tens de ser muito persuasivo.

- Deixa-a estar ainda mais uma hora na cama, se não é muito urgente - aconselhou Scotty. - Ela levantar-se-á mais bem disposta e ficaremos à vontade.

Cristóvão entrou em casa e viu um chapéu preto inclinado sobre o grande e antiquado fogão. Em cima da mesa havia uma toalha passajada e uns garfos e facas velhos. A senhora Belchamber ergueu-se e olhou para Cristóvão, irritada.

- Que estranho este seu amigo! Não tem nada?

- Se não tem nada?

- Se não tem nada além das vacas? - perguntou a senhora Belchamber. - Não possui lençóis nem cobertores, nem pratas nem vidros, nem garfos nem facas apresentáveis. Facas sem cabos, panelas sem tampa, baldes sem fundo. Se eu tivesse de cozinhar num fogão, que até um selvagem consideraria antigo, não sei o que faria. Além disso, era preciso com que cozinhar. A única coisa que consegui encontrar foram dois ovos com todas essas galinhas para aí, a fazerem esse barulho, porque só há dois ovos? E preciso de leite.

Cristóvão agarrou no maior jarro que encontrou e foi enchê-lo a uma das batedeiras da queijaria. Quis obter informações respeitantes aos ovos e Scotty explicou-lhe que havia muitíssimos, mas ninguém sabia onde estavam.

- As galinhas põem - disse, fazendo com a mão um gesto largo -, mas escolhem para aí uns cantos, em cada dia o seu, e para te dizer francamente não sei onde é. Olha, chama o condezinho e o irmão e diz-lhes que vão caçar ovos. Podem muito bem encher com mais duma dúzia aqueles cómicos chapelinhos que trazem.

Tanto Roberto como Paulo acharam que o ir caçar ovos era uma coisa deliciosa. A senhora Belchamber considerou que cozinhá-los era menos divertido. No entanto, deu-lhes um almoço suficientemente sólido para satisfazer o mais exigente dos apetites, mas sempre servido com comentários agrestes.

- Este fogão - disse ela a Scotty - já não é limpo há anos. O senhor não disse que vem uma mulher trabalhar cá a casa?

- A senhora Garcia. O que é que está naquela travessa

- Torradas. Se não quer pode fazer para si qualquer coisa de que goste mais. Que cheiro horrível é este?

O cheiro provinha dos sapatos de Roberto e de Paulo, e a refeição teve de ser interrompida, enquanto os rapazes se descalçavam e punham o calçado do lado de fora da porta.

- E os seus - disse a senhora Belchamber olhando para Scotty.

- Os meus não. Isto não cheira mal. São ovos e tomates. A mulherzinha só vem às nove e sou eu que preparo o meu almoço quando estou sozinho.

Isto é: ela trata da limpeza duma maneira geral, arranja-me qualquer coisa para comer ao meio-dia, e deixa uma ceia fria no armário antes de se ir embora.

- A julgar pelo estado em que tudo isto se encontra - comentou a senhora Belchamber -, fazer limpeza é uma frase demasiado pomposa. A que horas vem o médico?

- Deve chegar dum momento para o outro - informou Cristóvão. - É uma médica.

- Ah! - exclamou a senhora Belchamber com certa descrença.

Cristóvão acabou de almoçar, subiu as escadas e foi sentar-se na cama de Josette, fazendo-lhe carinhosamente festas nas mãos e murmurando de vez em quando palavras reconfortantes. Pouco depois, ouviu passos e a voz de soprano precisa e aguda da senhora Belchamber, misturada com umas notas de contralto. Ergueu-se e a senhora Belchamber entrou no quarto com a médica. Esta pôs a maleta em cima da mesa, sorriu para Josette, encaminhou-se para a cama e Cristóvão reparou que era nova, não devia ter mais de vinte seis ou vinte sete anos, forte, saudável, musculosa, e com uma queixada firme, o que lhe fez imediatamente compreender os perigos de se meterem em brincadeiras com ela.

O exame foi rápido. A médica tornou a aconchegar a roupa de Josette, fechou a mala e sorriu-se para a doente.

- Daqui a pouco está fina. Não tarda a andar para aí a mungir todas as vacas.

Desceu as escadas, com a senhora Belchamber na frente. Cristóvão seguiu atrás, e bem desejava dar a perceber à médica que a velhota era uma intrusa, sem o mínimo direito de estar presente, e que nem sequer as mais distantes relações de parentesco justificavam a sua atitude. A senhora Belchamber entrou com a médica para a cozinha e, virando-se para ela, perguntou

- Então o que é?

- Sarampo - disse a doutora.

Houve um silêncio de surpresa. A senhora Belchamber recompôs-se antes de Cristóvão.

- Eu já lho tinha dito. Bem o sabia. É uma coisa que se vê logo.

Cristóvão tentou em vão formular uma frase que exprimisse os seus sentimentos para com ela, sem magoar a médica, quando ouviu esta perguntar:

- Sabe se ela esteve em contágio com alguém?

- Que eu saiba, não - respondeu Cristóvão, mas à medida que falava, as palavras de Teresa bailaram-lhe no espírito. Mónica, que tinha ficado com as crianças até ao dia da partida... - Sim, talvez - continuou-, penso que talvez estivesse, mas não tenho a certeza.

- Foi o que eu lhe disse desde o princípio - interveio a senhora Belchamber.

Cristóvão lembrou-se dum estratagema de que se servia, na sua infância, quando era obrigado a estar na presença de pessoas de quem não gostava; fingia - e muitas vezes com grande êxito - que elas não se encontravam presentes. Muitos anos tinham passado e ele nunca mais sentira necessidade de se proteger com estas tácticas infantis; à medida que crescera, aprendera métodos mais eficazes de evitar relações desagradáveis, mas esta senhora Belchamber era um caso à parte. Olhou para ela, tentando convencer-se de que a vira pela primeira vez havia apenas vinte e quatro horas. E agora ali estava ela na sua frente, direita e desagradável, com o nariz metido na sua vida e com toda a atitude duma pessoa já muito familiarizada com ele e a sua família.

- Quanto tempo pensa ficar aqui - perguntou a médica.

- Vim só por uma noite - disse Cristóvão. - Desembarcámos ontem à tarde, e com aquele nevoeiro julguei impossível chegar a Londres.

- É aí que vive?

- Sim, ia levar as crianças temporariamente para minha casa, mas agora... Poderei arranjar um quarto numa casa de saúde perto daqui

- Para que precisa dum quarto numa casa de saúde - perguntou a senhora Belchamber. - A criança está aqui muito melhor.

- Aqui!? - Cristóvão olhou para ela, espantado. - Aqui!? Mas como diabo pode ela ficar aqui?

- Porque não - perguntou a médica. - O quarto onde ela está é bem arejado; o sítio é saudável, tem bom leite, ovos e manteiga para quando estiver convalescente.

- com todas as suas conveniências, o lugar não serve - comentou, com certa impertinência, Cristóvão.

- Está claro que não serve - disse a senhora Belchamber. - Agora, porém, não é a altura de se preocupar consigo. Tem aqui uma criança doente, que precisa de cuidados e não pode andar de casa em casa. Precisa de bom lume no quarto, de tranqüilidade, de sossego e de constante vigilância. E pronto. Durante algum tempo, nem sequer reparará que lhe falta algum conforto. - E voltando-se para a médica, pronunciou: - Não é verdade?

- Sim, se tiver quem a trate, fica muito bem aqui - respondeu a médica -, mas concordo que para os outros deve ser bastante desconfortável.

- Eu encarrego-me dela - disse a senhora Belchamber. - Temos de mandar aviar algum remédio?

A médica escreveu uma receita e entregou-lha.

- Mande aviar isso e cumpra com todas as prescrições. Eu volto amanhã. Os outros dois rapazinhos têm sintomas?

- Até agora ainda não dei por ela, mas pode ser que seja uma questão de tempo.

- Talvez não. Eu volto amanhã - disse a médica, pegando na mala.

Cristóvão acompanhou-a ao carro, voltou para casa e encontrou a senhora Belchamber no meio da cozinha, esperando-o. Encararam-se e ela deixou que ele falasse. Cristóvão, com a maior cordialidade possível, disse:

- Foi muito amável da sua parte, mas não tem necessidade alguma de permanecer aqui com tão pouco conforto. Além disso, os seus amigos devem estar ansiosos.

- Deixe-os estar.

- Posso acompanhá-la à estação, quando quiser, e...

- Não vou para a estação. vou ficar aqui a cuidar daquela pobre pequena. Não me interessam, especialmente, nem crianças, nem animais, mas gosto de os ver bem entregues. Gosto de os saber em boas mãos, e não considero que as suas o sejam. Propunha-se deixar aquela criança numa casa de saúde e possivelmente levar os dois rapazinhos para Londres, para uma casa abafada; depois, quando se manifestasse o sarampo, o senhor ia à procura de mais casas de saúde para eles. Não, meu caro senhor, isso não! A única coisa que há de sensato é deixá-los ficar aqui, se tiverem de o ter. Se estivéssemos no Inverno, nem sequer sonhava fazer-lhe uma proposta destas, mas é Verão, e os dois rapazes podem andar para aí com esse seu estranho amigo, a estragarem os fatos. Afastá-los, porém, daqui seria privá-los da saúde e do exercício que é muito melhor do que tê-los num andar pouco arejado em Londres.

- Está muito bem. E a comida? E as limpezas? E cuidar da pequena? - perguntou Cristóvão.

- Eu faço a comida. Pelo aspecto que esta casa tem, nem por sonhos deixaria que a mulher a dias tocasse na minha alimentação ou na das crianças. Quando ela hoje chegar, vou observar-lhe que tem de limpar e conservar isto limpo. O seu estranho amigo pode-nos dar carvão e lenha. E o senhor procure arranjar água fresca, para depois ir fazer compras. Há várias coisas de que preciso.

- Escute - disse Cristóvão quando conseguiu falar -, eu...

Antes de poder prosseguir, houve uma interrupção. A porta da cozinha abriu-se e uma mulher apareceu no limiar.

- Chamo-me Garcia - disse ela, entrando.

As duas mulheres encararam-se, contraindo os lábios à medida que se observavam. A senhora Belchamber viu justamente aquilo que pensava. Uma mulher forte e musculosa, com um vestido que nem por excesso de imaginação se podia chamar limpo e arranjado, e uma expressão atrevida e de desafio. A senhora Garcia, pelo seu lado, viu um tipo que ela reconhecia como autêntico, tipo que há muito afastara do seu convívio, o tipo da mulher a quem tinha de se ensinar que já não havia escravos no mercado inglês, o tipo que a senhora Garcia mais gostava de dominar.

O silêncio prolongou-se e a tensão foi aumentando, até que finalmente explodiu. A senhora Belchamber encolheu os ombros e olhou para Cristóvão.

- Pode-se ir embora - disse com firmeza - e deixar-nos sós.

Cristóvão retirou-se.

 

A senhora Garcia era baixa e forte, de quarenta anos aproximadamente, de olhos castanhos vivos, maçãs do rosto salientes e um ar de estrangeira que impressionava quem a via, sabia o seu nome e sobretudo ouvia a sua maneira de falar, de pronúncia caracteristicamente londrina. Uma vez, de visita a uns parentes que viviam na área das docas de Londres, conhecera e casara com um tal Garcia, que a outros predicados aliava o nome de José. O par mudara-se de casa para casa, e, por fim, fora viver com a irmã da senhora Garcia, que era funcionária do posto de Correios de Lower Grenton. José empregara-se como moço no maior hotel de Grenton e do ordenado que recebia guardava para si a parte de leão; a princípio, a senhora Garcia aumentava a pequena porção que lhe cabia, trabalhando em costura, mas à medida que a família da irmã aumentava, a vida no lar tornava-se cada vez mais complicada; por último, a crescente falta de servidores domésticos abriu-lhe uma esfera de acção onde ela pôde dar largas ao mau gênio que não conseguira fazer sentir sobre o seu irrequieto marido. Dentre os novos patrões que poderia ter, fez uma escolha, fixou seus honorários, ditou as condições, começou a trabalhar e despedia-se sem dizer coisa alguma, logo que reconhecia nas palavras que lhe dirigiam a menor censura. Tal como ela explicava, era uma pessoa excessivamente sensível e tomava as coisas demasiadamente a peito. Se uns não apreciavam o que ela tentava fazer, a muitos outros não passava despercebido.

Na herdade, com Scotty, encontrara o ambiente que totalmente lhe convinha. Era conhecedora de tudo quanto ele fazia, podendo entregar-se à ociosidade enquanto o patrão trabalhava longe. com os pés confortàvelmente em cima do fogão, meditava nos métodos convenientes para forçar o marido a conseguir um trabalho que lhe oferecesse menos oportunidades de realçar os seus encantos pessoais. José tinha um êxito enorme entre as criadas e já mais duma vez esquecera as suas obrigações matrimoniais, de tal modo que se instalara temporariamente na cidade. Destas aventuras voltava para a mulher, que explicava às amigas serem estas fugas unicamente devidas ao facto da sua união nunca ter sido abençoada. A existência dumas mãozinhas de criança, afirmava ela, não o teriam deixado abandonar o lar. As suas floreadas frases tinham-lhe granjeado um profundo respeito no seu meio, onde as tiradas neste estilo eram consideradas dignas de toda a atenção.

Ninguém jamais soube o efeito que esta característica maneira de falar teve sobre a senhora Belchamber, durante aquela primeira entrevista. Scotty, informado do encontro por Cristóvão, esperava unicamente que a senhora Garcia aparecesse a correr que nem um furacão, só parando junto dele, a fim de lhe dizer que se ia embora para sempre. No entanto, a senhora Garcia não apareceu, e quando a viram pouco depois, andava a varrer as escadas - tarefa que nunca fizera, desde a sua entrada para a herdade, excluindo o primeiro dia de serviço, em que quis mostrar o estado em que as encontrara. Depois, viram-na esfregar a cozinha e informar todos os transeuntes que considerava como seu dever de cristã pôr de parte todas as velhas opiniões, e trabalhar como uma negra por causa daquele pequeno ser que estava lá em cima doente, no quarto.

Scotty aceitou a explicação sem o mínimo comentário, da mesma maneira que recebera a notícia de que na sua casa iria haver um ou mais casos de sarampo. Na sua opinião, o que era preciso era espaço, e felizmente havia-o.

- Podem estar inteiramente à vontade, Chris. Não há necessidade alguma de ficarem uns em cima dos outros. Naquele andar têm quatro quartos, no outro dois, e no sótão ainda há mais, com muita luz. Arranjam lá boas salas de estar.

Cristóvão perguntou, irritado:

- Para que diabo são precisas as salas de estar? Não vou menosprezar a tua hospitalidade, Scotty. Conheço-te há muitos anos para saber do que és capaz. Mas, diz-me cá: onde estão as coisas?

- Coisas?

- Sim, as coisas. A mobília, os bibelots, as porcelanas, as roupas, as pratas... Onde está tudo o que teu pai te deixou? Onde estão todos esses objectos que costumavam servir na grande casa onde foste criado? Para onde foi tudo isso?

- Ah, já sei o que queres dizer! As minhas coisas! - exclamou Scotty parando de limpar o estábulo. Esfregou as mãos às calças e ficou a pensar. - Parte delas está para aí guardada em caixotes e malas. Outras...

- Então por que diabo é que não desencaixotas tudo isso e arranjas a casa? De cada vez que estou contigo, desde que começaste esta vida de lavrador, encontro menos conforto. A tua primeira casa era, comparativamente, luxuosa. Depois mudaste-te...

- É isso mesmo... Mudei-me. E não foi a única vez. A primeira mudança da minha velha casa para a primeira herdade foi fácil. Pouco possuía. Só o necessário para viver, e a empresa encarregada da mudança tirou as coisas duma casa e pô-las na outra. Foi um trabalho bem feito. Depois, quando me mudei pela segunda vez, já havia vacas e dois bezerros, e três... não, quatro cavalos, e isto no que se refere a animais. De modo que o respeitante à casa propriamente dita, teve de ser um tanto abandonado. Resolvi conservar as coisas em caixotes e devo dizer-te que dá muito menos trabalho.

Parou e olhou para Cristóvão com um ar divertido e perguntou:

- Tu já alguma vez reparaste no que acontece aos objectos duma casa se não são cuidados? É extraordinário... Inacreditável! Acontecem as coisas mais inesperadas. A prata, por exemplo, fica com manchas pretas por toda a parte. Há coisas que mudam totalmente de cor. Os apetrechos de cozinha cobrem-se de fungos, o que acontece também aos livros, aos abajours e sei cá a que mais. Garanto-te que se meu pai visse algumas daquelas peças Sheflield, de que tanto gostava, até se erguia na cova. Portanto, estás a ver, amigo, é muito mais barato deixar as coisas como estão e limitarmo-nos ao essencial.

- Tu, porém, não tens o essencial.

- Está bem. Mas lembra-te de que o que é essencial para uns, não o é para os outros. Quanto a mim, sinto que é bastante. Estou sozinho, em casa, meia dúzia de horas por dia, e tudo o que me faz falta é um bom lume e comida. Quando se trata de cuidar dum sarampo, bem sei que não tenho grandes comodidades, mas se necessitares de qualquer coisa especial, diz o que é, que eu meto-me no carro e vou num instante à cidade buscá-la.

- Tudo se há-de arranjar. É pelo menos o que a senhora Belchamber diz. Como poderei ver-me livre dela, Scotty?

- Veres-te livre dela? Que idéia é essa? Eu julguei que ela vivesse sempre contigo ou com as crianças. Se vai tratar a pequenita dum sarampo, para que diabo te queres ver livre dela?

- Dá-me vontade de lhe bater. E há nela não sei o quê de agreste.

- Agreste? A velhota? - perguntou Scotty, incrédulo. - Não deves ter razão; ela parece-se com o Banco de Inglaterra, velho e de confiança. Faz-me lembrar a minha tia Mildred, que era um pilar... um pilar de virtudes.

- Eu não disse que houvesse qualquer coisa de definido. Mas escuta e depois de ouvires me dirás. Quando estava a almoçar no comboio, sentou-se na minha frente um francês gordo que, quando viu a senhora Belchamber, ficou a olhar para ela com olhos que nem pires. Era evidente que aquele encontro lhe causava uma grande impressão.

- Isso não tem nada de extraordinário. Há muitos estrangeiros que reagem assim, quando vêem esta espécie de inglesas idosas. Na verdade, elas têm qualquer coisa. Não parecem verdadeiramente humanas, no estrito sentido da palavra, não sei se me compreendes?

- Foi pelo corredor fora atrás dela e chamou-lhe mama.

A reacção de Scotty foi engraçada. Olhou desconfiado para Cristóvão e durante um instante pareceu ter ficado impossibilitado de falar.

- Chamou-lhe o quê? - perguntou por fim.

- Mama. Ela afastou-o e durante toda a viagem não mais o encontrámos. Depois, no desembarque, tornei a vê-lo a discutir com dois funcionários. Tenho a certeza de que ele não queria vir para Inglaterra, pois, como bagagem, trazia somente duas malas pequenas, mas garanto-te que a senhora Belchamber o viu, e dez minutos depois estava escondida no meu carro, tendo fugido ao francês e a uma mulher que a veio esperar. Não a julgarias capaz disso, Scotty, mas é evidente que não está a ser franca.

- Mas - Scotty parecia que estava a chegar a conclusões - não lhe perguntaste porque deixava o filhinho?

- Que não era filho dela, - informou.

- O quê?

- Disse-me que não tinha filhos.

- Ah, sim! E tens a certeza de que ele lhe chamou mama?

- Absoluta.

- Bem. Inclino-me a pensar que possa ser - disse Scotty, pensativo. - O que eu quero dizer é que ninguém lhe chamaria mama se ela o não fosse realmente.

- É o que eu penso também. Ela, portanto, deve estar a ocultar qualquer coisa. Há uma grande reunião em sua casa... E têm lá uma série de papéis para ela assinar, que estão relacionados com a dádiva que vai fazer. A casa está destinada... Quer dizer, está habitada já por nobres arruinados, todos ali instalados na convicção de que será para o resto da vida. Se ela não assina os documentos e não lhes dá posse legal, o que acontecerá?

- Talvez ela fique aqui até à altura da reunião - sugeriu Scotty. - Isso dar-lhe-á tempo para afastar o francês.

Cristóvão, no entanto, parecia não acreditar.

- Espero que tenhas razão... mas não me agrada o aspecto que as coisas estão a tomar. Quando penso no caso, duvido de que ela seja, de facto, uma senhora idosa e que viva sozinha. Parece feita de propósito para assim pensarmos. Supõe que a vêm buscar. Eles não podem ficar eternamente à espera, pois não?

- Encontrá-la-ão, por fim. Farão diligências no porto e partirão de lá as investigações. Mas isso vai levar-lhes certo tempo, e, no entretanto, observa como ela se torna útil. Apesar da sua idade, parece dispor de energia inesgotável. Quantos anos julgas que ela tem: sessenta, setenta, oitenta? Eu gostei daquele gênero de comida continental que ela fez esta manhã. Depois de quatro anos da senhora Garcia...

- É justamente aí que eu queria chegar. A Belchamber propõe-se fazer a comida e dedicar-se à enfermagem. Se isso se verificar, será ela quem logo a seguir cairá doente. Precisamos duma enfermeira, Scotty, e é minha intenção pedir à médica que nos envie uma, se por acaso se arranjar aqui. Que enfermeira, porém, será capaz de trabalhar nestas condições

- As enfermeiras - disse Scotty - são mulheres muito dedicadas.

- Bem sei, bem sei. Mas a Belchamber e a Garcia já chegam. Não me parece que uma profissional se pudesse sujeitar a viver em condições tão primitivas. Não haverá, na região, uma rapariga forte e que estivesse pelos ajustes de passar umas horas por dia com Josette?

Scotty fez um sinal de ignorância.

- Não sei de ninguém - disse devagar. - Se Cress estivesse em casa...

- Cress?

- Cressida - e a voz de Scotty baixou para pronunciar o nome num tom de reverência. - Mas ainda deve estar ausente. Só vem no princípio dos meses e... deixa-me ver... ainda estamos em Junho, não é?

- Estamos no fim de Junho. Quem é Cressida?

Scotty caminhou até à porta do estábulo antes de responder. Cristóvão viu-lhe nos olhos um brilho estranho e sonhador.

- Não é possível descrever Cressida, meu velho - disse ele lentamente - Há coisas que não se podem traduzir por palavras.

- Se ela te impressiona tanto e se é livre, porque lhe não pedes que case contigo e venha para esta casa abrir os caixotes, pondo em ordem tudo o que lá está dentro, e assim tornar esta morada decente? - perguntou Cristóvão.

- Casar comigo, Cressida? Isso, com certeza, nunca lhe passaria pela cabeça.

- Como o podes saber, sem lho perguntares?

- Perguntei! - respondeu Scotty com simplicidade. - Não sei como o consegui... como tive coragem, coragem ilimitada para me atrever a...

- E que te respondeu ela?

Um longo, muito longo suspiro soltou-se do coração de Scotty.

- Não respondeu nada! - pronunciou ele como num sonho. - Pegou-me na mão, sorriu com ternura e abanou a cabeça. E nada mais.

- É enfermeira? - perguntou Cristóvão, voltando ao assunto que o interessava.

- Enfermeira, Cressida Não. É...

- Está bem, como falaste no nome dela como auxiliar... Que outras qualidades tem ela além de tomar o pulso do doente, sorrir com ternura e abanar a cabeça?

- Praticou enfermagem, há muito tempo, quando era mais nova, mas depois não continuou.

- Uma enfermeira gorada. Podemos dispensá-la. Não sugeres mais ninguém?

- Tu não percebes, Chris. Não sabes sequer o que estás a dizer. Se por um instante me passasse pela cabeça que Cress estava em casa... Mas a primeira coisa que ela faz, quando chega, é visitar-me, de modo que não veio. Mas se estivesse e não tivesse de voltar para Londres...

- Oh, por amor de Deus, Scotty! - exclamou Cristóvão, aborrecido. - Está uma criança doente nesta casa e eu preciso de auxílio. Referi-me a uma mulher forte e útil, e sugeres uma que não é enfermeira e que nem sequer aqui vive.

- A casa dela é aqui, mas não quer cá viver por razões com que eu concordo absolutamente. Vem cá todos os meses, pelo menos uma vez. E passa aqui também algum tempo, no Verão. Não te sei dizer exactamente quanto... talvez uns quinze dias.

- De modo que, se por acaso ela cá estivesse, se por acaso fossem os quinze dias das suas férias e se...

- É isso mesmo - disse Scotty. - A vida é cheia de ses. Quero apenas dizer-te que, se conseguisses apanhar Cressida, não tinhas de procurar mais, e tudo

correria pelo melhor; e, mesmo que não corresse, tu nem reparavas. Vai a casa dela, Chris - insistiu Scotty -, e tenta. Olha que merece a pena. Depois é um pequeno passeio. Vai até Greensleeves e...

- Aonde?

- Oreensleeves, é o nome da casa. Olha... - Scotty chamou Cristóvão para um lado, e apontou: - Entre aquelas árvores. O meu terreno pertencia à casa. Comprei-o há quatro anos, ao pai de Cress. Greensleeves, Green Farm. A cidade chamava-se Greentown, nome que se transformou, com o decorrer dos anos, em Grenton. Vai lá... Vai até lá e confessa-lhe que fui eu que te mandei, e se ela lá estiver, diz-lhe que temos sarampo em casa e precisamos de auxílio.

- Parece-me que é perder tempo - comentou Cristóvão.

- Escuta - disse Scotty, a tentar convencê-lo. - Lembras-te daquela ocasião, em que caíste naquele lago gelado e te arranquei de lá a pouco e pouco?

- Salvaste-me a vida, e a verdade é que de todas as vezes que queres uma coisa, consegue-la. Continua, que eu estou a escutar-te.

- Arranquei-te de lá a pouco e pouco... até ao último bocadinho.

Cristóvão acompanhou-o na bem conhecida história, e a saga a duas vozes continuou.

- ... Atei-te a cabeça com pedaços da minha camisa e disse: mais um bocadinho e estamos salvos. Tinha um pressentimento e saiu certo.

- Sim, saiu certo. E tens outro pressentimento?

- Sim, tenho-o, tive-o durante toda a manhã. Que estranho pressentimento!

- Talvez seja resultado do que a Belchamber te disse acerca da tua higiene pessoal. Ela foi um pouco mais violenta do que devia.

- Nada tem a ver com a higiene. É o pressentimento de que Cress se encontra em casa. Vai ver, Chris.

- Pronto, eu vou, eu vou, e fica resolvido isto duma vez para sempre. Greensleeves! Que nome tão idiota para uma casa! Quem lho poria?

- Não-te sei dizer, mas vai lá que não te hás-de arrepender. A casa está vazia, há muitos anos, isto é, só lá está a mobília, uma mulher que toma conta de tudo e o jardineiro. Atravessa esses campos e segue o caminho que vai da estrada para a colina. Ao atravessar o pomar, tem cuidado. Há lá um touro que cone muito.

- Está bem, está bem. Mas Roberto e Paulo estão a apanhar cerejas ao pé dele!...

- O touro sabe o que faz e não gasta a sua energia a correr atrás de rapazinhos que se sabem safar. Tira a desforra quando apanha alguém da tua idade... Já não me pareces tão valente como dantes. Que me dizes a pôr de parte o ofício de arquitecto e...

- Obrigado. Escuta lá, Scotty: não podíamos fazer nada para que aqueles chapèuzinhos se perdessem?

- O quê... aqueles?

Scotty olhava espantado e com a mais franca admiração para os chapéus dos dois rapazinhos.

- Tu não lhos vais tirar, pois não? Eles dão a nota que é justamente precisa neste local. Encantam, são alegres. Olha, esta manhã, no estábulo, consegui tirar mais um galão de leite de cada vaca. Por que diabo os querias fazer desaparecer?

- Bem; assim nem parecem ingleses.

- Tenho a impressão de que Guilherme da Normandia não tinha um aspecto francamente inglês, nem Guilherme de Orange, nem o velho Jorge de Hanover. Mais um par de chapéus de aspecto estrangeiro não deve causar dano à nação. Deixa-os lá.

- Está bem, eu deixo-os em paz. Volto já, com ou sem a mulher.

Ao passar pelo pomar, seguiu sempre junto da beira, para passar bem longe do touro. Os campos estavam húmidos, havia lama, mas a brisa era fresca e seca. Cristóvão viu-se aprumado, respirando fundo e chegou à conclusão, com o espírito bem disposto, de que, apesar deste atraso momentâneo, os problemas que há dois meses o preocupavam, estavam a chegar ao fim. Viera com as crianças para Inglaterra, gostavam dele e ele por sua vez gostava delas. Eram jovens, felizes e adaptáveis; o sarampo seria um simples entrave temporário no caminho que tinha em vista: um lar para si e para as três crianças. Nunca gostara da casa de Londres. Lembrava-se bem de que a alugara apenas para proporcionar um lar conveniente à mãe, quando o visitava. Esta não gostava de hotéis e ele preferira uma casa onde pudesse de vez em quando oferecer-lhe hospitalidade.

À medida que ia avançando, imaginava quais seriam as suas reacções se o pudesse ver agora com as três crianças, especialmente com Roberto, contra quem, em particular, alimentava o que Cristóvão considerara uma insensata antipatia. Mais duma vez sentira-se aborrecido por constatar que sua mãe demonstrara, quanto à sucessão do título, uma atitude bem pouco razoável. Ele sabia que as circunstâncias se tinham combinado para tornar o seu desapontamento mais do que amargo; a morte afastara o marido do título e, se o filho também não tinha esse direito, era por uma razão que ela insistia em considerar nos últimos anos da sua vida como uma traição.

A única pena de Cristóvão, no que dizia respeito a este assunto, era ter sido educado no castelo. Aos onze ou doze anos, sofrera a contrariedade passageira de pensar que estava a viver sob o tecto do tio e a ser educado como seu herdeiro. Qual fora a razão dessa contrariedade, nunca mais o conseguira definir. Falara à mãe na possibilidade de terem casa à parte e ela contara-lhe que se viviam em Piershurt era por expresso desejo do tio. Mais tarde, quando, ardendo de fúria e humilhação, ela se preparava para partir e dar o seu lugar à tão odiada francesa, Cristóvão soube que ela se lembrava do seu pedido e que desejava do fundo da sua alma ter-lhe feito a vontade. com um suspiro, não por ele, mas em recordação dela, Cristóvão acabou de atravessar o campo, seguiu pelo carreiro e começou tranqüilamente a subir a colina. A cada passo que dava sentia-se melhor, com os pulmões cheios dum ar puro, como há muito tempo não respirava; Scotty era um grande camarada e haviam passado muitos bons bocados da vida juntos; os amigos da senhora Belchamber encontrá-la-iam dentro em pouco e levá-la-iam também; o sarampo era uma coisa que quase todas as crianças tinham. Estava-se na Primavera, ele era forte e jovem, dentro de três semanas faria vinte e seis anos, uma boa idade, nem demasiado novo, nem muito maduro.

Chegara ao alto da colina e começou a seguir por um caminho que contornava uma parede alta; a propriedade era evidentemente maior do que parecia vista da herdade. O muro continuava durante algum tempo e depois Cristóvão viu uma pequena porta de madeira. Parou e ficou a olhar um instante. A parede seguia sempre até onde os seus olhos alcançavam, mas se ele entrasse por ali podia chegar à casa por qualquer pequeno carreiro, que atravessasse os terrenos. Valia a pena tentar... se a porta não estivesse fechada.

A porta estava aberta. Cristóvão tornou a encostá-la e encontrou-se num espesso bosque. Seguindo por uma senda apenas visível, chegou a uma alameda que se estendia serpenteando através do parque. Olhou para as faias com respeito. Eram magníficos espécimes, altos, belos e de grande idade. Ficou a pensar como seria a casa. A julgar pelo tamanho dos terrenos, devia ser uma dessas mansões excessivamente grandes para a vida actual; e portanto não seria para admirar muito que os donos vivessem em qualquer outra parte. E também não era nada para estranhar que Cressida, se é que tinha sido educada naquele ambiente, desistisse do seu curso de enfermagem.

A alameda fazia uma curva brusca, e Cristóvão, absorvido com a lindíssima paisagem que tinha diante dos olhos, foi colhido completamente de surpresa pela súbita aparição da casa. Quando chegou junto dela, começou a andar mais devagar e" por fim, parou. Encantado, ficou a olhar com prazer sempre crescente.

Era o tipo perfeito da casa solarenga do século XIV. À medida que Cristóvão a contemplava, a sua curiosidade de amador transformava-se em interesse profissional. Andando devagar, torneou-a, voltou para trás para examinar um ou outro aspecto com maior interesse e cada vez se sentia mais encantado com os pormenores.

Concluiu que, originàriamente, fora rodeada de altas muralhas. Em certos sítios, tinham sido baixadas, noutros completamente demolidas; o fosso fora atulhado. O telhado ganhara uma cor excitante e bela, e, numa parte que fora restaurada e alargada, viu o vermelho desmaiado e triste dos tijolos, por detrás das trepadeiras que os cobriam. Contemplou os muros, as janelas de pedra de delicada traça gótica, e os olhos demoraram-se-lhe nas torres maciças, com as suas paredes de arcos botantes. O seu interesse profissional, agora totalmente acordado, fê-lo recuar uns passos para ver melhor as chaminés, que eram construídas duas a duas; ficou durante algum tempo a admirar as suas belas proporções e a decoração complicada.

Ao centro do edifício ficava o Salão Nobre, que Cristóvão calculava ter outrora toda a altura da habitação. Os primitivos estábulos e as cozinhas haviam sido construídos em redor dum quadrado, e Cristóvão, devagarinho, subiu e desceu, estudando-lhes as linhas, as belas proporções, ausente de tudo o que não fosse a beleza do edifício.

Uma outra coisa também o impressionou: o excelente estado da sua conservação e o aspecto limpo e bem cuidado. Pelo que Scotty lhe dissera, sabia que havia uma pessoa que ali residia, encarregada da casa, assim como um jardineiro. O local tinha, na verdade, um ar agradável e acolhedor, que muitas vezes se não sente em casas há muito desabitadas.

Seguiu por uma avenida de velhos seixos e a pouco e pouco foi-se imbuindo na atmosfera de Greensleeves. Pode dizer-se que aquela casa tinha um encanto particular, e ele sentiu-se inteiramente afastado das precipitações e dos aborrecimentos da vida moderna. Por menos imaginação que tivesse uma pessoa, não podia deixar de sentir aqui grande tranqüilidade e bem-estar. A casa e os terrenos que a rodeavam constituíam longa História de riqueza, de poder e de posição social evidentes. Havia força, segurança e espaço. Valorosos guerreiros aqui tinham convivido com gentis mulheres. Era uma casa construída para dar grande conforto e segura protecção. Respirava nobreza e doce calma.

Cristóvão sentiu um súbito desejo de ver o interior, mas, após um ou dois passeios em volta do edifício, não reconheceu o mínimo sinal de que houvesse jardineiro, nem de alguém encarregado da guarda do solar. Decidiu então esperar, voltando para trás e encaminhando-se para a herdade. Podia voltar... sim, voltaria e talvez alguém lhe mostrasse a habitação. No interior, devia haver pormenores que, examinados, impressionariam agradàvelmente. Informar-se-ia junto de Scotty para, assim, saber alguma coisa da história daquele edifício. Scotty tê-lo enviado ali, sem uma palavra sobre aquela jóia, sem...

Cristóvão parou de repente, lembrando-se, afinal, da razão que ali o trouxera. Parecia um assunto trivial, à luz de quinhentos anos de mutações históricas, mas ele tinha de pensar no sarampo, numa enfermeira e em Clarisse; não. não se chamava Clarisse, mas Cressida. Desta nem o mínimo sinal, mas visto que estava ali, aproximar-se-ia da casa e chamaria uma ou duas vezes. As janelas encontravam-se abertas e ele podia chamar debaixo duma delas, e talvez Cressida aparecesse para escutar o seu pedido. Era, de certo modo, uma ligeira esperança, apenas; se ela estava na sua quinzena de férias, não era muito provável que quisesse passá-la a cuidar dum caso de sarampo. Mas Scotty, embora de aparência não muito atraente, era, no entanto, uma pessoa séria, e se ele dissera que valia a pena tentar, provavelmente falava verdade.

Cristóvão voltou-se e com passos rápidos dirigiu-se de novo para casa. Passando pelo pátio da frente, quedou-se a passear o olhar, com certas dúvidas, das janelas abertas para a pesada porta de carvalho, fechada. Depois achou preferível tocar à campainha.

Dirigiu-se a ela e parou. A porta ia-se abrindo pouco a pouco, e Cristóvão ainda perguntava a si próprio se a pessoa que tomava conta seria um homem ou uma mulher, quando, à entrada, contra o vestíbulo escuro, apareceu uma rapariga.

Muito tempo depois, Cristóvão ainda se lembraria de que a jovem dos seus sonhos fora sempre uma figurinha frágil, com o cabelo da cor das cerejas secas. Devia ter uma pele delicada, uma expressão espirituosa e olhos dum tom muito especial, violáceos, de preferência com longas pestanas pretas. Muitas vezes esboçara os seus principais encantos no projecto duma casa que estava a desenhar, ou no mataborrão ao redigir uma carta. Não duvidava de que um dia encontraria a jovem que idealizava.

A rapariga que estava à entrada da porta era esbelta mas alta, as pestanas eram compridas e negras e os olhos castanhos e com uma expressão de frieza e retraimento que se transformou, enquanto Cristóvão olhava para ela, em ar interrogativo.

Cristóvão tinha de lhe dizer o motivo por que estava ali e fez um esforço para se lembrar. Ela saía. A sombra transformava-se em luz. Agora encontrava-se em frente dele e a cabeça dava-lhe pelo ombro.

O silêncio prolongava-se e no rosto dela notou-se uma ligeira contrariedade. Essa atitude encheu Cristóvão de desespero e lutou para fazer desaparecer aquela sombra de aborrecimento que lhe via nos olhos.

- Bons dias - disse ele.

Ela correspondeu com simples inclinação de cabeça e esperou. Era um cumprimento, mas não uma cooperação. Cristóvão notou que os lábios eram salientes, duma curva bonita e macios. Ao pensar neles tão deliciado se sentiu que o desespero que o invadira se transformou em felicidade. Viu, como num sonho, o esplendor do Sol, a magnificência do dia, o encanto da casa, e...

- É Cressida - perguntou de repente.

- Sou - respondeu a rapariga. E como ele continuasse a olhar para ela sem dizer nada, inquiriu: - Quer alguma coisa?

- Sim - afirmou Cristóvão. - Vim para... - Calou-se. O olhar de Cressida tornou-se mais frio.

- Então - insistiu ela. - Veio para...?

- Para... Sabe - disse Cristóvão num excesso de sinceridade -, não há forma de me lembrar ao que vim.

 

- Eu tinha-te avisado - disse Scotty.

- Não, lá isso não tinhas - respondeu Cristóvão. - Não me disseste o que quer que fosse sobre a rapariga. Fizeste-me um discurso repugnante sobre os teus afectos sentimentais, mas nada disseste que me preparasse. Mandaste-me lá e...

- Eu disse-te que era uma pessoa que não se podia descrever. Diz lá, és capaz de a descrever?

- Evidentemente que sou. É alta e bonita.

- Há centenas de raparigas altas e bonitas. Se eu te tivesse dito isso... Se eu te tivesse dito isso, talvez tivesses feito o caminho um bocadinho mais depressa, mas pensas que seria isso uma boa preparação?

- Talvez não - admitiu Cristóvão. - vou fazer-te uma confidência. Fiquei absolutamente atónito.

- Eu já o adivinhava. Por que razão te mandaria eu lá?

Estavam no celeiro, e Scotty enchia o balde duma mistura para as vacas. Depois atravessou o pátio, dirigiu-se ao estábulo, despejou o recipiente na selha e voltou a buscar mais comida. Cristóvão seguia-o dum lado para o outro, com os olhos postos em Scotty, mas o pensamento em Cressida.

Passado um instante, Scotty perguntou:

- E que é que ela disse?

- Diz que vem. Eu insisti... Talvez tenha pintado as coisas demasiado negras, mas numa situação destas uma pessoa começa a falar e entusiasma-se. Até eu próprio me surpreendi. Um jovem, a braços com três criancinhas órfãs, uma casa que ardeu totalmente, uma pequena doente e uma senhora idosa, desolada, a pedir ajuda... Se atentares bem neste triste quadro, terás de convir que seria capaz de convencer um coração mais duro que o de Cressida.

- Bem, e que ficou combinado?

- vou buscá-la depois do almoço, e passa aqui as tardes, a ajudar naquilo que puder. À tardinha, acompanho-a de novo, após o jantar.

- Acompanhas mas é uma figa! - exclamou Scotty. - Não, não julgues que levas a coisa assim. Eu tenho prioridade. Conheço-a há quatro bons anos!

- Então já é tempo de dares possibilidades a mais alguém. Pensaste já, por acaso, que ela deve viver perto de mim, em Londres? Que durante estes três anos, passeámos pelas mesmas ruas? Que...

- Estás a falar da rapariga que eu amo - interrompeu Scotty.

- Temo-nos movido dentro da mesma órbita. Gostaria bem de ter andado menos de carro e mais de metro. A estação dela é Green Park e eu tenho passado por lá milhares de vezes sem ligar a mínima atenção.

- Devias ter pressentimentos como eu. Eu não te disse esta manhã que tinha um pressentimento?

- Disseste, sim. Eu não lhe perguntei o que é que ela fazia. Em que trabalha, Scotty?

- É modelo.

- Modelo! Queres dizer essa espécie de... que os artistas...

- Não, não é isso. Estás a pensar em Trilby. Cress é um desses modelos de fotógrafo, que vês em todas as revistas femininas.

- Que te levará a pensar que eu leio todas as revistas de mulheres?

- Desculpa-me. O retrato dela também vem noutras publicações. Em programas de teatro, cartazes, anúncios de cigarros e de produtos de beleza. Há uma fotografia de Cressida a segurar um bebé, tendo na mão uma caixa de pó, e por baixo o dístico "Aos dois ou aos vinte e dois". Já a deves ter visto. Anda em todos os autocarros.

- Pronto, está tudo explicado.

- Está explicado o quê

- A impressão que experimentei quando a vi. Disse-te que fiquei completamente confundido, mas estava convencido de que já a vira antes, fosse lá onde fosse. Havia nela qualquer coisa de estranhamente familiar.

- Não tem nada de estranho. O seu retrato aparece por toda a parte. Não tem contrato com nenhuma companhia, nem com nenhuma organização especial. Trabalha para si. Levou-lhe certo tempo a ser conhecida, mas agora as coisas caminham bem.

- Quero ainda perguntar-te mais uma coisa. Parece um pouco estranho mas...

- O que é?

- Não sei qual é o apelido de Cressida.

- O apelido Gray. Escrito com a. O pai, o major Gray, pertencia a um regimento, não sei bem a qual, e reformou-se quando herdou a casa.

- Herdou-a?

- Sim, já antes to afirmara. Foi por isso que eu vim para aqui. Encontrei-o no Norte, quando vendi a outra herdade. Estava a deitar dinheiro fora, não me rendia nada... Ficou-me um pouco caro, Chris. Encontrei então o major, nem sei bem como. Disse-me que acabava de herdar uma casa solarenga no Sul e ofereceu-me a parte da herdade. Foi por isso que a comprei.

- Sem a veres?

- Quando a paguei - declarou Scotty, vagarosamente - nem sequer tinha a certeza de que houvesse uma casa. O major tem uns modos...

Scotty calara-se. Os dois rapazinhos tinham entrado no celeiro e delicadamente esperavam que ele acabasse de falar. Cristóvão voltou-se a ver para onde é que Scotty estava a olhar tão espantado e ficou também sem poder pronunciar palavra, ao reparar pormenorizadamente na aparência dos dois irmãos.

Traziam os chapéus de marinheiro na cabeça, agora já não limpos e asseados, mas todos salpicados de lama e imundície. Os sapatos estavam igualmente irreconhecíveis, e as caritas, rosadas e alegres, brilhavam por debaixo duma camada de pó. Os fatos encontravam-se rasgados e todos sujos.

- Muito bem - disse Scotty acentuando esta última palavra. - Olhem para isso!

Os dentes de Roberto brilharam no seu encantador sorriso.

- Estivemos lá em cima - e com o dedito apontou para o sótão.

- É o que estou a ver. O que os trouxe cá para baixo.

- A campainha - explicou Paulo. - A senhora já tocou a campainha para o almoço.

- E já tocou duas vezes - disse Roberto. - Penso que temos de ir para casa.

- E eu acompanho-os - disse Cristóvão. - A senhora vai dizer coisas bonitas quando os vir entrar na cozinha, em estado tão deplorável. Quanto tempo te demoras, Scotty?

- Estou pronto. vou com vocês. Prefiro ver a senhora por detrás dum biombo protector - disse atirando com o balde para dentro dum carro. - Vamos embora. Há qualquer coisa que me diz que vai ser uma entrevista muito penosa.

Encaminharam-se em procissão para a porta da cozinha, depois de Scotty e os dois rapazes terem limpo os pés da lama que puderam tirar com uma vassoura. Cristóvão levantou o trinco, deixou passar os pequenos e entrou com Scotty. Mostravam-se todos um pouco tímidos, enquanto a senhora Belchamber, de pé, junto da mesa, os olhava de cima abaixo.

Cristóvão viu a cozinha totalmente transformada. O chão fora lavado, o fogão untado, o que nunca acontecera antes. A sujidade do lavatório desaparecera, e as estranhas vestimentas de Scotty já não andavam penduradas por toda a parte. Em cima da mesa, havia uma toalha, passajada, sim, mas limpa e branca. Sobre o fogão estavam pratos e travessas, e dos pratos vinha um cheiro delicioso que fazia crescer água na boca. A senhora Belchamber continuava a usar o seu chapéu preto e os seus caracóis. Por cima do vestido pusera um grande avental branco. Estava séria, hirta e impressionantemente limpa. Dirigiu-se a todos sem especificar ninguém.

- O almoço, enquanto for eu que o fizer, será servido à uma hora. Falta um quarto para as duas. Vocês, rapazinhos, vão ambos lá fora e tirem os sapatos.

Roberto e Paulo saíram.

- O senhor também - disse a senhora Belchamber apontando para Scotty.

Este seguiu os rapazes. Cristóvão ficou sozinho e perguntou:

- Onde está a senhora... Como é que ela se chama?... Garcia?

- A senhora Garcia está lá em cima, sentada ao pé de Josette - respondeu a senhora Belchamber glacialmente. - Ainda se lembra de Josette? É uma pequenita que está ao seu cuidado e tem sarampo. Vai ficar muito surpreendido quando souber que já tomou o remédio e uma bebida fresca. A temperatura baixou e eu deixei o quarto às escuras para lhe proteger os olhos. A senhora Garcia está a tomar conta do lume. Duvido que esteja absolutamente interessado nestes pormenores, mas acho que é do meu dever dar-lhe conhecimento do que se passa com quem, teoricamente, está ao seu cuidado. Não espero agradecimentos, e vocês, rapazinhos - continuou, dirigindo-se a Roberto e a Paulo que entravam - façam o favor de ir lavar as mãos, antes de se sentarem à mesa. Está lá uma toalha lavada, que fui buscar à minha mala. Façam o favor de não pingar o chão. Agora a cara. Limpem-se e deixem ficar a toalha para o caso de alguma vez o senhor Scotty se sentir tentado a lavar-se. Sente-se aqui, Roberto, e você, Paulo, ali. Senhor Scotty, queira ter a bondade de se sentar aqui e de se servir. Vamos comer um prato de frango, que eu mandei comprar pela senhora Garcia. Não posso dar almoço a cinco... seis pessoas, visto que a senhora Garcia também tem de comer, sem haver com quê.

A refeição foi alegre, apesar da presença austera da senhora Belchamber. Roberto e Paulo ficaram, um à direita, e outro à esquerda da velha dama, e fizeram uma descrição pormenorizada das suas actividades durante essa manhã, e ela ouviu-os com uma espécie de cortesia delicada, interrompendo os somente para lhes corrigir os erros de gramática ou ensinar-lhes que os ingleses não limpam os garfos nem as facas a um bocado de pão, e que deixam ficar os talheres no prato. Scotty comeu vorazmente, parando só para cumprimentar a senhora Belchamber pela excelência do cozinhado.

- Como pode consentir que aquela mulher lhe faça a comida?... - perguntou a senhora Belchamber.

- Que tal a achou? - exclamou Scotty cheio de curiosidade. - Ela faz alguma coisa? Eu nunca a vejo entrar nem sair, e não sei o que ela faz, enquanto cá está

- Olhe para a cozinha e verá. Foi a primeira vez que ela se serviu duma escova. É, sem a menor sombra de dúvida, a criatura mais suja que tenho encontrado.

- Sabe... era melhor não lho dizer - lembrou Scotty. - Porque ela despede-se e vai-se embora.

- Já lhe disse o que exactamente penso dela - informou a senhora Belchamber -, e ela não se despediu.

Quando acabou o almoço, cada um foi para seu lado. Scotty montou numa bicicleta, que tinha rodas mas não pneus, e foi a um campo, que ficava a certa distância, para abrir os portões e fazer entrar as vacas para lhes tirar o leite da tarde. Depois dum curto conclave, ficou decidido que Roberto e Paulo estavam autorizados a visitar Josette sempre que o quisessem.

- Habitaram com ela durante todo este tempo e não há a mínima razão para os separar agora - decidiu senhora Belchamber. - Se hão-de ter o sarampo, então que o tenham todos ao mesmo tempo, e acaba-se com isto.

Os rapazes subiram as escadas tranqüilos, mas cheios de alegria, e Cristóvão ficou na presença da senhora Belchamber, sentindo-se obrigado a reconhecer que de certo modo lhe estava grato.

- Tem sido muito amável, mas não quero abusar... Por isso, arranjámos uma... bem, uma espécie de enfermeira, que virá todas as tardes para dar uma ajuda.

- A que é que chama uma espécie de enfermeira? - perguntou a senhora Belchamber.

- Bem, de certo modo, tem prática. É uma amiga de Scotty que está aqui a passar quinze dias. vou buscá-la agora. Talvez... a ache útil.

- Quando a vir direi. Como é que ela se chama?

- Cressida Gray.

- Que idade tem

- Não sei... Ah, sei, sei, vinte e dois.

- Ah!

Com este monossílabo, pronunciado com a maior reserva, ainda a soar-lhe nos ouvidos, Cristóvão dirigiu-se à cancela do pomar e caminhava na mais feliz das abstracções, quando foi chamado à realidade pelo ruído de cascos mesmo atrás de si, o que o obrigou a concluir o restante caminho numa corrida, na direcção do portão, onde chegou só uns cinco segundos antes do touro, que o perseguia.

Continuou o seu caminho mais vagarosamente. Ia ver Cressida e para aumentar ainda mais a sua já grande felicidade, ela prometera mostrar-lhe a casa. O Sol poente, entrando pelas janelas estreitas e altas, havia de lhe pôr um halo em volta dos cabelos, e ele segui-la-ia pelas lindas escadarias e pela galeria dos menestréis. Segundo julgava, não podia haver casa que se adaptasse melhor ao seu gênero de beleza do que aquela, tão graciosa e imponente.

Desta vez, a porta encontrava-se aberta e parecia que lhe dava as boas-vindas. Ouviu barulho lá dentro e estava quase a chamar por Cressida, quando reparou que os passos não podiam ser dela. Não eram ligeiros, antes pesados e medidos. Recuando, Cristóvão esperou. Talvez fosse a pessoa que tomava conta da casa...

Pouco depois apareceu um homem que viu Cristóvão e parou, justamente onde Cressida parara, à entrada da porta, e o jovem verificou que se enquadrava perfeitamente no ambiente.

Desta vez não era a juventude ou o encanto que o homem, de pé na sua frente, dava ao quadro, mas ficava ali tão bem como a rapariga. com o seu espírito crítico, Cristóvão considerava-o como possível senhor daquela residência encantadora, atendendo à sua figura, aspecto e tranqüilidade.

Era alto e elegante, de rosto barbeado e comprido, com cabelo branco. Os seus olhos semicerrados, por causa do Sol, reflectiam uma calma ironia; o fato era bem talhado, muito embora não fosse de cerimônia. Cristóvão sabia que, quando falasse, a sua voz seria agradável e de pessoa culta.

Olharam um para o outro, durante um instante, e Cristóvão começou:

- Receio que...

O homem ergueu a mão para não o deixar continuar e teve um sorriso trocista.

- Já sei, vem procurar a minha filha.

- Sim... Deve ser o major Gray - acrescentou com grande surpresa sua. - O senhor é...

- Sou o pai de Cressida. Ela disse-me que ia ajudar a tratar... um caso de sarampo, na herdade.

- Sim, e espero que se não importe.

À medida que falava, esforçava-se por explicar a presença do major Gray. Scotty dissera-lhe que a casa era simplesmente habitada pela pessoa que tomava conta e pelo jardineiro, mas...

- Cheguei da cidade mais ou menos há uma hora - disse a voz como que a responder aos seus pensamentos. - Olhe, eu não sei aonde é que Cressida foi. Porque não entra e espera por ela?

Com toda a franqueza Cristóvão respondeu-lhe:

- Gostaria imenso. Desde que vi a casa pela primeira vez esta manhã, fiquei logo com vontade de a observar interiormente. É o interesse profissional...

- É arquitecto?

- Sou, da firma Heron & Maves, mas estou com umas semanas de licença para tratar de negócios de família,

- Heron - repetiu o major uma ou duas vezes devagarinho, como se tentasse lembrar-se dalguma coisa. - Heron... Já uma vez encontrei um Heron, mas não me lembro onde. Talvez depois me recorde... Quer sentar-se ou prefere dar uma volta?

Tinham entrado para o vasto vestíbulo e os olhos de Cristóvão iam do grande fogão para a galeria dos menestréis e com delícia admiravam os pormenores do tecto apainelado. com certo embaraço, olhou para o major e disse-lhe:

- Se não o incomodasse, gostava de dar uma volta.

Começaram a percorrer a casa, mostrando-se o major Gray um guia interessante e culto. O interior estava tão bem conservado como o exterior. Todos os quartos se encontravam mobilados, inclusivamente com pratas e bibelots, e aqui e ali grandes vasos de flores. O major Gray seguia devagarinho, de quarto para quarto, mostrando-lhe as coisas de mais interesse.

- Sabe qual a data da construção? - perguntou ele a Cristóvão, com um sorriso.

- Deve ser da época de Eduardo I.

- Sim, mais ou menos. Foi começada em 1300 e acabada na época de Eduardo II. Está claro que não é a única. Já tenho visitado muitas semelhantes a esta, mas julgo que nenhuma delas se encontra em tão bom estado de conservação, e nenhuma tem, também, pormenores tão originais. No mobiliário igualmente temos alguns tesouros, se quiser reparar.

- Estou a ver - disse Cristóvão.

O major Gray parou diante duma cama de colunas ricamente trabalhada e disse:

- Aquela cama, por exemplo. Época Tudor. E os degraus são interessantes. Aquela mesa ali, também tem interesse. É mais velha que a casa. Século XI, assim como o candeeiro. Sabe o que é isto?

Cristóvão pegou no objecto e esteve a mirá-lo cuidadosamente.

- É... um instrumento musical?

- Tem razão. É um instrumento da família do oboé. Autêntico e do século XIV.

Cristóvão, entusiasmado, absorvido, seguiu com o major até ao belo vestíbulo que marcava o fim da visita, e respirou profundamente.

- Muito obrigado. Foi muito gentil da sua parte.

- Absolutamente nada. Foi antes um prazer. Gosto de mostrar a casa. Isto é, gosto, se as pessoas têm a noção das coisas. É uma casa bonita, mas na situação actual não se pode cá viver. Ou talvez deva corrigir e dizer que eu é que não posso viver aqui. Venho, porém, cá muito freqüentemente, no Verão, e às vezes há visitas, e eu mostro-lhes a casa. Na maioria dos casos são estrangeiros. Por isso é que hoje aqui estou. Espero um sueco, que vem com a mulher. Fico sempre admirado com o que eles sabem deste período histórico. Este vem de propósito, para ver aquele arcabuz...

E o major Gray apontou para uma arma que estava pendurada na parede.

- Falei-lhe nele e perguntou-me se podia vir vê-lo. Diz que tem um, de 1530, e que deve ser o par deste. Tire-o para baixo se o quer ver. É uma peça muito interessante.

Cristóvão deu uns passos e pegou na arma com todo o cuidado. O major aproximou-se e ficou a seu lado, passando com ternura a mão pelo cano da arma.

- Vê esta peça em forma de cobra. Era isto que segurava o morrão aceso. Carrega-se no gatilho, assim, a chama descai e incendeia a carga que está no cano. Usava-se na época de Henrique VIII, mas está claro que esta não é desse tempo.

Tirou a espingarda das mãos de Cristóvão e tornou a pô-la no seu lugar.

- E porque é que esta não é desse tempo?

O major Gray olhou para ele com uma expressão que, ao mesmo tempo, era de surpresa e interrogação.

- Porquê? Meu caro amigo, porque não é autêntica. O homem insiste que é, e nada o convence docontrário.

- Mas... não pretendo ser perito - disse Cristóvão, hesitando - porém, sobre armas antigas tenho certos conhecimentos. Foi meu tio... que me ensinou certas coisas... E digo-lhe que se não é autêntica é uma imitação extraordinariamente bem feita.

- Sim, evidentemente. Se eu fosse negociante - disse o major Gray - não me importava de dizer que era autêntica e de pedir por ela muito bom dinheiro. Como não sou negociante... Se esse homem que vem cá hoje a quiser, pode levá-la, mas que não me diga que é autêntica.

- Mas se não for... Quer dizer, se ela não for autêntica - insistiu Cristóvão com certa hesitação - ele comprá-la-á?

- Julgo que sim. Porquê tal pergunta?

- Porque - respondeu Cristóvão tornando a olhar para a espingarda - se ele não a comprar e o senhor a quiser vender, eu gostaria de ficar com ela.

- O senhor! Mas para que a quer? - perguntou o major Oray, surpreendido.

- Porque sou como o sueco. Tenho uma igual e esta fazia o par.

- Uma como esta?

- Igual, igual, não é. A minha é de pederneira. Para lhe falar com franqueza, é autêntica, da época de Carlos I. Foi meu tio que ma deixou. Ficava muito bem na companhia daquela que está ali na parede.

Depois, perplexo, perguntou:

- E quanto, quanto é que ia pedir por ela?

- Não tinha vontade nenhuma de pedir fosse o que fosse - respondeu o major Gray com toda a franqueza. - O senhor é mais novo do que eu e portanto terá mais tempo para a gozar. Se quiser ficar com ela, pode dar-me o mesmo que eu paguei.

Disse qual fora o preço, e durante um instante os dois homens ficaram a olhar um para o outro, sorrindo. Cristóvão começava a simpatizar com o homem que tinha na sua frente.

- Combinado, Agradecido.

- Isto é que foi negócio rápido - comentou o major Gray.

Depois encaminhou-se para a porta e disse apressado:

- Desculpa-me, sim. Julgo... Olhe, Cressida está ali. Quer ir ter com ela?

Cristóvão não precisou que lho dissessem pela segunda vez. Seguindo a direcção do braço do major Gray, viu Cressida e foi, a passo longo, embargar-lhe o caminho. Ela viu o, esperou-o e ficou imóvel, observando-o à medida que ele se aproximava.

- Estive com o seu pai. Aonde foi?

- Fui a Grenton. Havia umas coisas para comprar. Tenho visitas para o chá.

Caminharam ao lado um do outro e seguiram na direcção da herdade. Olhando para ela, de vez em quando, não conseguiu descobrir a mínima parecença com o pai, mas tinha o mesmo à-vontade calmo e um arzinho de dignidade que lhe ficava muito bem.

- Quer crer que, quando a deixei, esta manhã, nem sequer sabia o seu nome? Nada conhecia a seu respeito, a não ser que, quando voltarmos para a cidade, seremos praticamente vizinhos. Vamos combinar jantarmos juntos, no dia em que regressarmos

- Eu talvez siga daqui a quinze dias ou três semanas. Mas o senhor ficará aqui muito mais tempo.

- Muito mais tempo porquê?

- Porque um dos rapazes tem de esperar até ao último dia da quarentena, e depois apanhará o sarampo; o outro tem também de esperar os quarenta dias e no fim terá o mesmo mal; em seguida será a vez de Scotty e depois a sua.

- Está muito bem, mas eu tenciono regressar a casa no fim do mês. Para si deve custar-lhe deixar uma casa como Greensleeves e voltar para Londres - concluiu ele pensativamente.

- Custar, porquê. - perguntou Cressida com a sua voz fresca e tranqüila.

- Porquê? Meu Deus, você não dava anos da sua existência para viver aqui? Evidentemente, com todas as comodidades?

- Não - respondeu Cressida, tranqüilamente. - Nem sequer dava um ano.

- Então gosta assim tanto de Londres? - perguntou Cristóvão com curiosidade.

- Não gosto absolutamente nada de Londres, nem tão-pouco de qualquer cidade, a não ser Paris. Não me sentia encurralada, quando estava em Paris. Gosta desta cidade?

Ele fez de conta que não percebeu o seu desejo evidente de mudar de assunto.

- Porque é que não gosta de Greensleeves - perguntou novamente.

Ela olhou para ele de lado, com um certo enfado, e disse ainda com maior frieza:

- Eu não afirmei que não gostava. Acho-o até muito bonito. Só disse que não gostaria de cá viver, e pronto!

Isto não explicava coisa alguma, mas não insistiu. Estava cheio de curiosidade e percebia qualquer forte sentimento por detrás das suas tranqüilas palavras; era evidente que ela não queria continuar, e por um instante ele permaneceu em silêncio. Até então ela não mostrara qualquer prazer na sua companhia. Os seus modos eram cordiais, mas sem aquele entusiasmo que ele habitualmente encontrava, quando mostrava a sua preferência por qualquer mulher. Procurou um termo que traduzisse o seu desprendimento, a sua falta de interesse, e com grande surpresa a única palavra que descobriu foi: prudência. Era talvez natural, reflectiu, que uma rapariga com uma tão forte influência no sexo oposto, cultivasse a técnica de manter os homens a distância.

- Ainda não lhe falei da senhora Belchatnber.

- Da senhora...

- Belchamber. É uma senhora idosa que, por determinadas razões, também está comigo. É extraordinariamente prestâvel e há motivos para lhe estar infinitamente grato, mas tem uma voz desagradável, uma cara horrível e mete o nariz em tudo. Parece que se lhe meteu na cabeça que a minha vida é andar com as crianças dum lado para o outro. As crianças são simpáticas. Vai gostar delas.

Abriu-lhe os portões para ela entrar, conduziu-a rente à sebe ao passarem pelo touro e encontrou Scotty que já vinha à procura deles.

- Querida Cress, faz-me bem olhar para si - disse Scotty. - Tu, vai andando, Chris, que Cress fica um bocadinho a falar comigo.

- Ah, mas eu vim porque precisam de mim - disse Cressida a sorrir.

- Por amor de Deus - suplicou Scotty. - Há já um mês que a não via e parecia-me que já se tinham passado anos. Gosta de Chris? É um rapaz forte, mas não tanto como eu. Tem melhor cabeça do que eu, mas não é tão boa pessoa. É valente, mas eu sou mais. É... Então, mas aonde é que vai

- Vou-me embora porque sou precisa.

- Ah, então acompanho-a - disse Cristóvão.

- Não, não, eu vou sozinha. Se a senhora...

- Belchamber.

- Se a senhora Belchamber é assim como ma descreveu, o melhor é eu ir sozinha e safar-me pelos meus próprios recursos.

- Sem protecção? - perguntou Scotty.

- Sem protecção. Até logo! - disse ela alegremente, retirando-se.

- Está sempre a fazer destas - disse Scotty com tristeza, - Conta-se com um pouco da sua companhia, e ela foge-nos. Temos a impressão de sermos um ente asqueroso, abandonado... A velhota não gosta de mim, Chris.

Scotty sentia-se magoado. Fora à cozinha buscar qualquer coisa de que se esquecera, e a senhora Belchamber, chamando-o de parte, fizera-lhe um lamentável resumo das conclusões a que chegara acerca da sua pessoa e dos seus bens. Tinha-se servido de expressões que ele nunca antes ouvira, aplicadas por uma senhora a um homem, e ainda lhe ressoavam nos ouvidos os adjectivos com que o qualificara, sendo os mais delicados: sujo, descuidado, porcalhão, desleixado, pouco atencioso e animal. Fora mimoseado com um breve discurso acerca dos objectivos da educação que tinham por única finalidade, soube-o então, ensinar os homens a conservar-se asseados após a saída da escola primária. Soube também que devia ser em Lower Qrenton um chefe e um exemplo por todos respeitado, e que nada disso acontecia.

Tudo isto, vindo duma pessoa que ele não tinha convidado para sua casa, parecia-lhe um pouco deslocado. Concordava que a senhora Belchamber era na verdade um tanto enigmática. Considerava que a sua aparência era, de certo modo, tão lamentável como a dele, se bem que não fosse descuidada. Ele, no entanto, lutara toda a vida para agir de modo a contrariar os efeitos da sua natureza pouco atraente; tentara ser gentil e cortês. A senhora Belchamber, tanto quanto ele podia ver, não tinha feito o mínimo esforço para isso. Os seus modos eram tão desagradáveis como as suas frases, e, apesar disso, ela parecia exigir dos outros, sem grande esforço, muito serviço e cooperação, e da parte das crianças, pelo menos, certa medida de afeição.

- E sabes que mais? - pronunciou Scotty, no fim do seu recital de humilhações. - Mandou preparar banhos quentes para todos. Como se pode conseguir isso num lugar onde não há uma casa de banho? Segunda-feira, tu e os rapazes; terça, ela e depois eu; quarta tu e os rapazes; quinta, ela e eu a seguir; sexta, eu e os rapazes, e sábado... quem é que tu julgas que é? Eu outra vez! Ao domingo não há banhos. Três por semana!

- Como é que te arranjas quando estás sozinho? - perguntou Cristóvão.

- Eu? Bem, cá me arranjo. De vez em quando, levo a banheira de estanho para a cozinha e tomo um banho. Mas é muito complicado, seja de que maneira for. E não posso dizer que essa história dos banhos me interesse muito.

- Foi exactamente o que a Belchamber me disse.

- Ela afirmou-te isso? Como é que ela sabe?

- Não me agrada muito contar-to. Disse que devias ter sido a desgraça de quem te educou.

- O que é que tem a minha educação a ver com isto? Já estou a sentir-me fatigado da maneira como ela se senta a um canto e torce o nariz de todas as vezes que eu entro. Não há nada tão agradável como o bom e saudável cheiro do campo.

- Foi justamente o que ela disse. Mas que o cheiro do campo o prefere no campo.

- Olha, sabes o que te digo? - resumiu Scotty. - Quem me dera já que a encontrem e a levem lá para onde ela deve estar. Não te parece um pouco estranho que não tenha aparecido ainda ninguém à procura dela? Vais ver, Chris, que ela nunca mais te larga. Podes arranjar uma oportunidade para lhe dizer que o meu nome não é Scotty?

- Olha, ela aí vem. Diz-lho tu.

A senhora Belchamber abrira a porta da cozinha e dirigia-se a Cristóvão.

- Gostaríamos que nos ajudasse a mudar uns móveis - disse ela.

- Encantado - respondeu Cristóvão.

- E, senhor Scotty, há um balde de lixo que é preciso despejar - insinuou ela fixando os olhos frios em Scotty.

Scotty olhou-a espantado.

- Um... balde? Mas o que é que aconteceu à senhora Garcia?

- A senhora Garcia foi-se embora, como de costume, às três horas. - E levantando a cabeça perguntou - Quer que vá eu despejá-lo?

- com certeza que não. Mas Meu Deus! - exclamou Scotty. - Quer dizer que eu Eu um descendente dos Lindens, filho de Crusty Linden, neto de Portely Linden Eu, um rebento - e a sua voz ergueu-se mais apaixonada ainda: - um rebento de famosa árvore; membro duma família que pode traçar a sua ancestralidade até Jorge. Quer dizer que eu tenho de descer a isto?

- Sim - respondeu a senhora Belchamber.

- Está muito bem - disse Scotty. - Se diz que tem de ser...

 

Depois da senhora Belchamber ter conversado com Cressida e de mau modo haver concluído que ela podia ser útil, o serviço da casa entrou numa rotina que dia a dia se tornava mais estável. A médica, que vinha todas as manhãs, declarou que o caso de sarampo não era grave, mas que se complicara com uma constipação apanhada durante a viagem. Josette teria de ficar em repouso, durante várias semanas. Em todas as visitas, a doutora Curtis examinava Roberto e Paulo, para ver se mostravam quaisquer sinais da doença. O seu estado, no entanto, era saudável, sendo a única alteração do seu aspecto provocada pela perda dos chapéus, que lhes tinham caído ao treparem a uma árvore. Tendo voado para junto do touro, haviam divertido o animal durante Uma boa meia hora, no fim da qual os chapéus pareciam, pelo menos na opinião de Scotty, menos ingleses do que nunca.

A senhora Belchamber chefiava o serviço doméstico. Ordenara que a mobília fosse mudada duns sítios para outros, investigara a magra reserva de roupas de Scotty, para arranjar cortinas para o quarto da doente; os lençóis esburacados tinham sido remendados, trouxera almofadas do sótão, e os pratos e as travessas que andavam espalhados por todos os cantos foram postos no seu lugar.

A casa era já mais limpa e atraente. A cozinha, que agora só servia para tomarem as refeições durante o dia e os banhos à noite, deixou de ser aquele lugar da casa em que Scotty antes se sentia tão confortável. Os outros aposentos, a que a senhora Belchamber não se dignava dar o nome de sala, nem de casa de estar, eram designados simplesmente pelo grande e pequeno quarto da frente e quarto do lado. Era no pequeno quarto da frente - um compartimento agradável com bonita vista para os campos - que todos se juntavam à noite, e como ficava mesmo por baixo do da doente, Josette podia chamar quando quisesse.

Os rapazes raramente se encontravam em casa. Faziam visitas regulares a Josette e mantinham-na informada da chegada de todas as novas vitelinhas, cãezinhos, gatinhes ou pintos, e o tempo que não passavam na herdade, passavam-no em Greensleeves. A governante e o jardineiro, um velho casal que estivera ao serviço da mãe de Cressida e que viera para Inglaterra com a rapariga quatro anos antes, foram considerados aquilo a que Roberto chamava francês-suíço; estavam encantados por poderem falar a sua língua com os rapazes e dentro em pouco eram excelentes amigos. Indicaram aos pequenos o que podiam e não podiam fazer em Greensleeves, aonde podiam e não podiam ir, e eles descobriram que a velha casa tinha quase tanto interesse, para os seus jogos, como a herdade.

A senhora Belchamber dava ordens e todos lhe obedeciam: as crianças com um ar jovial que provava não terem receio algum dela; Cressida, com uma calma e óptima disposição, e os outros - Cristóvão, Scotty e a senhora Garcia - mais ou menos contrariados. A principal sensação de Cristóvão era de espanto, pela facilidade com que a velha, uma pessoa totalmente estranha, tomara posse dos seus negócios; Scotty sentia-se pouco à vontade, pois receava que, quando a senhora Belchamber terminasse a limpeza da casa, o limpasse também a ele. A senhora Garcia cumpria a sua obrigação como se estivesse hipnotizada. Nunca encontrara mulher como a senhora Belchamber; a maneira expedita como proferia insultos, o instinto que possuía para saber o que as pessoas faziam sem parecer observá-las, e sobretudo a espantosa decisão de ter tudo limpo, esfregado, polido, não só uma vez, mas constantemente, faziam com que a senhora Garcia considerasse excessivo tal trabalho e mantinha-a num estado, como ela própria confessou a Cressida, de constante frenesi.

O quarto da doente encontrava-se na penumbra para proteger os olhos de Josette. Quando esta começou a sentir-se melhor e a soerguer-se um pouco no leito, a senhora Belchamber decidiu ir ler-lhe coisas de vez em quando. As obras escolhidas não eram muitas, porque além de vários números do Lavrador e Criador, a biblioteca de Scotty só tinha três obras: a Ética de Ruskin; um antiquado guia de Paris intitulado A pé pela França, Terceira Parte - A Capital; e um pequeno volume de correspondência comercial com o título de O francês do homem de negócios. Scotty, a quem interrogaram, não conseguiu explicar como qualquer desses volumes lhe tinha ido parar às mãos, e declarara que os seus livros se encontravam encaixotados desde que abandonara a sua primeira aventura de negócios, que fora a Herdade dos Pomares, no condado de Warwick. A senhora Belchamber levou-o na sua frente e ficou a vê-lo martelar as ferrugentas abraçadeiras do caixote. Verificou-se, por fim, que este continha apetrechos tropicais, que Scotty comprara na idéia de partir para uma criação de avestruzes em África.

- Já perdemos meia hora com isto - disse a senhora Belchamber com mau modo, considerando um panamá amachucado e vários fatos de linho. - Era isto que ia vestir quando fosse caçar avestruzes?

- Oh, não Isto era para desembarcar na cidade do Cabo - disse Scotty que se encontrava de joelhos ao lado dela. - As avestruzes vivem lá mais para o interior. Foi tudo por água abaixo.

- Avestruzes - fungou a senhora Belchamber. - Olhe, mais facilmente se encontram os ovos delas do que os das suas galinhas que põem em toda a parte. O que contém aquela grande mala Serão os livros

- Podemos ver - disse Scotty, tentando voltar a mala.

Esta era ainda mais difícil de abrir do que o caixote, mas, por fim, cedeu aos esforços combinados de Scotty, Cristóvão, Roberto e Paulo, e verificou-se que tinha dentro vários selins, uma miscelânea de estribos, bridas e freios.

- Aqui também não há livros - disse Scotty observando o seu conteúdo. - Estes não se podem ler.

- Ah, podem, sim - disse a senhora Belchamber. - Está claro que podem. O senhor pode ver aí escrito: péssima arrumação, descuido, mandriice, sujidade.

- Isso tudo - perguntou Scotty verdadeiramente surpreendido.

- Tudo isso e muito mais. Já não tem necessidade de abrir mais bagagem. Muito obrigada. vou servir-me dos livros que lá tenho.

- Não é exactamente literatura infantil, pois não? - perguntou Cristóvão.

- Eu também não a pretendo - declarou a senhora Belchamber, - Não quero nenhum desses livros ridículos que se escrevem para as crianças. Se lhes ler dessas coisas, o que acontece é ficarem acordadas a ouvir patetices. O que pretendo é qualquer coisa que a" faça dormir, e pronto.

Os três livros que havia em casa, está claro que serviam e muito bem para este fim. Cressida escutou aquela voz dura e desagradável e viu os olhos de Josette fitos na leitura; primeiro olharam fascinados, e depois fixaram-se num ponto vago, para logo as pálpebras se baixarem e a doente cair num profundo sono.

Quando, de regresso a casa, seguia através dos campos, acompanhada de Cristóvão, a rapariga disse:

- É curioso. Ela é, de certo modo, uma pessoa horrível, mas consegue que as coisas se façam. Talvez por nunca dar uma ordem desnecessária. Ordena que todos façam isto ou aquilo, mas sempre coisas essenciais. Tem um olho de lince para tudo o que quer conseguir.

- Não gosta dela, pois não - perguntou-lhe Cristóvão, incrédulo.

- Bem, é extraordinário, mas... julgo que gosto dela. Isto é, não é uma pessoa de quem se possa gostar muito. Mas há certas coisas nela que me agradam. É precisa e nitida na sua maneira de ser e nunca receia dizer aquilo que pensa.

- Porque considera isso uma virtude? É muito mais difícil não dizer o que se pensa e... muito mais agradável para aqueles que nos escutam, não acha?

- Talvez. Mas repare que bom foi haver alguém que dissesse à senhora Garcia todas aquelas verdades. Se a velhota lá não estivesse, andávamos todos ali debaixo da tirania dela.

- E assim andamos debaixo da tirania da senhora Belchamber.

- Olhe, a mim deu-me muitos conselhos, a senhora Belchamber... Preveniu me a respeito de Scotty, pois, segundo ela diz, pode-se ver, ao primeiro relance, que espécie de homem ele é, quando aparece alguma rapariguinha inocente. E preveniu-me também contra si.

- Contra mim - perguntou, admirado, Cristóvão.

- Sim, contra si... Porque ela diz que você não é daqueles que se mostram à primeira vista. Por outras palavras: a vilania de Scotty é óbvia e a sua é insidiosa.

- Talvez tenha razão. Porque julga que ela se encontra aqui - perguntou Cristóvão cheio de curiosidade.

- De momento não tem para onde ir. Deixou a casa que tinha na Suíça e vendeu todas as coisas.

De modo que não pode voltar para lá. Penso que, eventualmente, irá para uma casa que tem em Melhampton, mas julgo que ela quer dar a maçada de a procurarem e lhe pedirem desculpa por aquilo a que chama a recepção a uma menina que voltasse à escola. Disse-me que uma horrível mulher a fora esperar, quando chegou, e que a tratara como um estudante "gazeteiro", É verdade?

- Não, não é inteiramente verdade. Estava na realidade uma mulher à espera dela, que tinha um certo ar dominador, mas há mais que isso. Scotty falou-lhe a respeito do francês?

- Sim, mas eu... pensou que eu exagerara?

- Não, simplesmente pensei que tirara uma conclusão errada. Ela viveu fora da Inglaterra durante muitos anos, de modo que deve conhecer muitos estrangeiros. O francês que fala é medonho, muito embora pense que o fala na perfeição. E pode muito bem ser que o homem fosse um velho conhecimento... até mesmo um credor, muito embora ela me dê a idéia duma pessoa que paga as suas contas. Deve ter ouvido apenas parte da conversa, e se a tivesse escutado toda, com certeza que lhe teria percebido o sentido.

- Mas se nada há de extraordinário, para que está ela aqui. Tenho a certeza de que se afastou da senhora que a foi esperar, quando viu o francês. Mal o avistou, decidiu servir-se do meu carro para fugir.

Cressida ficou pensativa durante uns instantes.

- Se essa mulher andava à procura dela - disse por fim - e o francês também, eles...

- Devem ter-se juntado.

- É justamente o que eu penso. Hão-de conjugar os seus esforços, voltar a Melhampton e mandar gente de lá buscá-la.

- Olhe lá, porque não faz você uma coisa? Sabe a morada... Pode muito bem vê-la nos rótulos das malas. Podia falar-lhe em se pôr em contacto com eles.

- Evidentemente que podia, mas não é essa a vontade dela. Não - na sua voz havia um tom decidido -, vou deixá-la ficar por mais algum tempo. Porque faço isto? Talvez em atenção ao seu espírito organizador que conseguiu pôr certa ordem nesta casa; e receio bem que tudo isto se desmorone, quando ela se ausentar. Nós ir-nos-emos embora e se a polícia chegar a vir...

- Polícia?

- Sim, terão de servir-se da polícia, a não ser que usem cães-polícias. Quando a apanharem, ela possivelmente tentará envolver-me na questão, mas eu defender-me-ei com a minha evidente virtude e inocência.

Cressida deu uma ligeira gargalhada e Cristóvão sorriu-se com simpatia,

- O que achou tão engraçado?

- Oh, nada, a não ser a senhora Belchamber. Como pode uma pessoa olhar para ela e imaginá-la perseguida pela polícia e pelos franceses?

- Os franceses nunca abandonam a perseguição.

Caminharam um bocado em silêncio e de vez em quando Cristóvão voltava a cabeça para ver a rapariga que ia a seu lado. Havia nela sempre qualquer coisa de novo, na maneira como mexia a cabeça, na forma como sorria, no modo como olhava para ele. Era simpática, calma e de certo modo sensível, embora não fosse esse gênero de sensibilidade que ele procurava. Para além dos seus modos calmos e desenvoltos, havia alguma coisa que ele não conseguia perceber... uma certa reserva, uma pontinha de altivez.

- Cristóvão...

Ele olhou, um pouco intranquilo, ao ouvir o seu nome pronunciado pela rapariga.

- Diga.

- Quero-lhe falar a respeito de Scotty.

- Não, agora não - suplicou ele. - Agora não, pois é o único momento que tenho para estar a sós consigo. Podemos falar a respeito de Scotty noutra ocasião.

- Na presença dele, não.

- Porque não? Eu falo sempre dele quando está presente. Há-de estar presente e há-de gostar de ouvir. E estou tão raramente consigo! Vamos antes falar de nós; falar no que faremos quando voltarmos para Londres; falar na maneira como educaremos Josette e os rapazes; falar na espécie de casa que temos de procurar falar em si e, se quiser, em mim. Não lhe interessa saber coisas a meu respeito? Não gostaria, antes de passear à noite pelos campos com um homem contra quem a preveniram, de saber que espécie de homem é ele? Não gostaria de lhe perguntar o que ele pensa, ou de lhe dizer o que você pensa? Temos tão pouco tempo, Cressida! Em cada dia quantos instantes como este me concede? Queria saber tantas coisas a seu respeito, se poderia vir a ter qualquer interesse por mim... pelo homem que sou e pelo homem em que boas mãos poderiam transformar-me. Estejamos juntos e mantenhamo-nos juntos. Quer Cressida?

O nome foi pronunciado como uma carícia, mas a voz dela era fria e sem emoção ao proferir:

- Você é amigo de Scotty. O primeiro dos seus amigos que eu encontrei e de todos o mais íntimo, e eu desejava falar consigo. Estou preocupada com ele.

- Porque está preocupada com ele? Ele não tem a seu cargo três órfãos e um deles doente.

- Em tempos ele teve dinheiro? - perguntou Cressida.

Cristóvão, com certa relutância, cedeu à doce insistência e respondeu:

- Sim, teve. O pai deixou-lhe um bom pecúlio. O que fez dele, verdadeiramente não o posso dizer, mas concebeu a errada idéia de que se pode ser lavrador só por se gostar de andar a mexericar no meio de vacas e de colheitas. Ou talvez não seja bem isto. Não julgo que ele algum dia tentasse ser lavrador. O seu único desejo era viver a sua vida descuidada, ao ar livre, sem outras responsabilidades além de ver as vacas mungidas regularmente, e sem se fatigar muito. Embora se diga que a lavoura é uma vida dura, eu pelo menos nunca encontrei um lavrador sobrecarregado de trabalho. Há horas duras, é verdade, mas há tantas outras tranqüilas, calmas e descuidadas! Já alguma vez viu um lavrador que não pudesse parar e estar horas a fio a conversar consigo ou a mostrar-lhe a sua fazenda, ou que de qualquer modo se parecesse com o vulgar homem de negócios, que no fim do dia luta por um lugar na plataforma dum eléctrico? Todos eles lhe dizem que estão quase arruinados e de repente dão um dinheirão por um animal qualquer que lhes aparece numa feira de gado. Dormem bem, comem bem e vivem numa paz tranqüila e firme. Scotty é uma das pessoas mais calaceiras que tenho encontrado e é daqueles que acha que ser mandrião ainda dá trabalho. Esta vida foi feita para ele. Levanta-se depois das cinco - admitamos que no Inverno é cedo de mais - mas cinco minutos depois está no confortável curral, agarrado a uma vaca quentinha. Depois, pelo dia adiante, faz a sua vida com toda a tranqüilidade e à noite sente os músculos doridos, mas sem qualquer outro indício de fadiga ou de trabalho. Então, porque está tão preocupada com Scotty?

- Ele não perdeu a maior parte do dinheiro que possuía?

- Provavelmente - respondeu Cristóvão. - Ainda não lhe perguntei, mas não me irei embora sem o saber. Se não conseguir equilibrar o orçamento, terá de abandonar este modo de vida e viver dos rendimentos. Tem algum capital em que não pode tocar e certos bens onde não pode mexer. Está a ver que não morre de fome.

- Enquanto está aqui, não seria capaz de cuidar das coisas dele? - perguntou Cressida, - Sempre é o seu melhor amigo.

- Mas isso não me dá o direito de meter o nariz nos seus assuntos particulares, não é verdade?

- Ah, lá isso dá! - foi a opinião de Cressida.

- Está bem, mas eu não quero Os seus negócios devem estar numa embrulhada profunda e tendo, como tenho, o espírito do negócio, podia dizer-lhe provavelmente que ele está a deitar dinheiro à rua, mas não lhe posso impor qualquer método. Não trabalha com método. Mesmo que lho mostrasse, não saberia o que é um método.

- Está muito bem, mas eu ficaria menos preocupada se pensasse que pelo menos lhe falava enquanto aqui está. Eu de certa maneira sinto-me responsável. Sabe que ele comprou... Meu pai vendeu-lhe a herdade, e eu sentia-me melhor... se ela prosperasse mais.

- Nas mãos de Scotty nada prospera. Não tenha insónias a pensar nos negócios dele. Em vez dum contabilista, o que ele precisa é duma mulher. Não uma rapariga como você, pois não lhe servia; mas uma rapariga forte e enérgica, com boa cabeça e bons músculos. É capaz de lhe arranjar uma?

- É difícil conseguir-se uma rapariga assim. Vivo na cidade e em regra bons músculos só se encontram no campo, não é verdade?

- É duma mulher que ele precisa. Temos de lhe encontrar uma.

- Talvez você consiga. Eu tenho uma vida cheia de afazeres. Os modelos não têm a existência simples que a maior parte das pessoas imagina. Ou ignorava que eu era modelo?

- Foi Scotty quem mo disse. Compreendi então de onde me vinha a certeza de já a ter visto. O que é esquisito, é que eu tinha a impressão de que a não vira a si, mas a qualquer coisa muito parecida consigo. Não lhe sei dizer ao certo onde, mas suponho que foi num cartaz.

- Num cartaz talvez não. Nas páginas das revistas de modas ou nas respectivas capas. Agora ando pelas cozinhas, com um avental e um rolo, a fazer reclame a tortas. Habitualmente não é esse o meu trabalho, mas tudo ajuda.

Tinham chegado à última porta. Só faltava o carreiro, a seguir a estrada e depois os campos. Ela agradecer-lhe-ia então, dar-lhe-ia as boas-noites e ir-se-ia embora. Só daí a catorze ou dezasseis horas voltaria a vê-la. Desejava dizer-lhe muita coisa, mas receava fazê-lo. Nunca, até então, encontrara uma rapariga que temesse tanto ver aborrecer-se, nem tão-pouco sentira necessidade de se deter antes de falar, de engolir uma frase capaz de a ofender. A sua convivência com raparigas, com mulheres, variara com a categoria delas, mas sentira-se sempre possuído do sentido normal de tacto, de encanto, de persuasão. Esta rapariga, com uma atitude tão desinteressada, fazia com que ele se sentisse como às apalpadelas no escuro. O terreno era-Lhe familiar, mas a luz da sua auto-segurança havia-se extinguido. Era inútil recorrer à vaidade própria e lembrar-se da resposta pronta de outras mulheres. com uma triste e crescente surpresa, verificava que não havia qualquer sinal de uma atitude semelhante em Cressida. Para já, bastava-lhe aproveitar todos os instantes ao seu alcance. Ficava bem contente quando a tinha ao seu lado, quando os seus ombros se encontravam, e quando a sua mão por acaso tocava a dela... Deixou-a em Qreensleeves e voltou pelo mesmo caminho que palmilhara, sonhando, planeando e revendo cenas em que Cressida, por fim, o olhava com uns olhos que reflectiam sentimentos semelhantes aos seus.

- Aonde diabo foste tu - perguntou Scotty.

- Andámos por toda a parte, à tua procura - disse Cristóvão.

- Não mintas - declarou Scotty, saltando por cima duma cancela e vindo ter com ele, indignado - Esperaste até começar o parto da vitela e foste-te embora. Traidor! Cressida nunca seria capaz de me fazer uma coisa dessas, sem garantires que eu não podia ir.

- Como podias tu deixar a vaca numa hora daquelas? Vitelo ou vitela?

- Vitelo, claro. São sempre vitelos, diabos os levem! Qual o assunto da conversa entre ti e Cressida?

- Falámos a teu respeito.

- És um refinado mentiroso. Nada de palermices a meu respeito e se me fazes outra como hoje, não há ninguém que te salve. Que bom amigo I Que boa recompensa pelo que eu fiz por ti! Salvei-te aos poucos...

- Tu também podias ter vindo connosco.

- Não podia. A vaca portou-se como se fosse a primeira no mundo a ter um vitelo.

Depois suspirou e disse:

- Está bem, não te censuro. No teu lugar teria feito o mesmo. Ela é uma simpatia.

- Ah, sim, eu penso...

- Sei muito bem o que pensas e até posso dar-te o nome de quatro pobres-diabos daqui, das redondezas, que sentem precisamente o mesmo que tu... e que eu. Se um homem tem algum sangue nas veias, basta-lhe olhar uma vez só para Cressida para o sentir girar impetuosamente. Duvidas que terá aceitação em Londres? Lá porque te passou despercebida, não quer dizer que aos outros três milhões acontecesse o mesmo. Podes considerar-te feliz por poderes tê-la agora mais ou menos à tua disposição. Quando, porém, voltares para a cidade, terás de te pôr na bicha. Eis porque me interesso tão-pouco por isto. Se me passasse pela idéia que tu tinhas mais sorte do que qualquer dos outros, cortava-te aos bocadinhos. Confesso-te, no entanto, que, a não casar comigo, não pode cair em melhores mãos do que as tuas.

- Obrigado. Quantas vezes vem o pai dela por aqui, Scotty?

- O elegante major?

Scotty voltou se e começou a andar lentamente ao lado de Cristóvão. Em seguida prosseguiu:

- No Verão, vem muitas vezes. Faz vários convites e permanece em casa, a realçar os seus méritos e encantos.

As palavras escapavam-se-lhe inconscientemente e a certa altura notou, com grande surpresa, que estava a falar rudemente.

- Eu simpatizo com ele - disse Cristóvão. Scotty parou e ficou durante um momento a fitar o amigo sem pronunciar palavra.

- Mas tu nunca o viste!

- Sim, vi-o. Encontrei-o quando fui pela segunda vez a Greensleeves à procura de Cressida. Esta saíra e foi o pai quem me recebeu.

Scotty continuou a andar, e, falando com uma voz que mal se ouvia, perguntou:

- Ah, e depois?

- Andou a mostrar-me a casa. É encantadora e ele só sabe valorizá-la. Tem mesmo coisas muito boas.

- Ah! -disse de novo Scotty. - Ah, achas?

- Sim, andei a vê-las. Comprei-lhe uma espingarda.

Uma vez mais Scotty parou, voltou-se e ficou a olhar para Cristóvão.

- Tu... compraste-lhe uma espingarda? - repetiu. Cristóvão fez uma careta.

- Que mal há nisso? Foi uma decisão repentina, concordo, mas entendemo-nos e fizemos o negócio.

- Fizeste um negócio - repetiu Scotty mal-humorado. - Ele fez um negócio.

Encostou a cabeça para trás de repente e deu uma grande gargalhada.

- Ele... fez... um... negócio! - disse ele, sutocado de riso. - Oh, meu Deus, tu estás a ouvir isto Ele fez um negócio!

Cristóvão começava a enfurecer-se lentamente. Não era costume zangar-se com freqüência e não se lembrava mesmo de se ter zangado com Scotty. As suas gargalhadas e o tom da sua voz, todavia, fizeram-lhe ferver o sangue nas veias.

- Cala te - disse. Scotty calou-se, aproximou-se mais, e naquela meia luz da tarde, contemplou com curiosidade o rosto de Cristóvão. Quando viu a sua expressão dura, dominou-se mais ainda e durante uns instantes ficou calado. Depois perguntou devagar:

- Eu disse alguma coisa?

- Sim. Não, não disseste. Bem... mas para te dizer a verdade não podes calcular quanto gostei de visitar aquela casa. Pessoas há que gostam dumas coisas, outras gostam de outras. Eu gosto de casas. E gosto do major Gray. Julguei que fosse um tipo decente, e se tentas dizer-me que ele me enganou, estás iludido. Ele não tentou vender-me coisa alguma. Eu é que vi uma espingarda e perguntei-lhe se ma queria vender. Se alguma coisa me disse a respeito de negócio, que a espingarda não era verdadeira...

Ficou calado durante um instante e depois prosseguiu:

- Mas se me queres dizer qualquer coisa a seu respeito, diz que eu ouvirei. Não comeces, porém, a rir-te, antes de contares a história toda.

Scotty meteu as mãos nas algibeiras e encolheu os ombros com um gesto bem conhecido de Cristóvão e sòbriamente concordou:

- Excedi-me, esqueci-me de que era o pai de Cress.

- Também eu - disse Cristóvão.

Um pouco incrédulo, Scotty perguntou:

- Tu queres dizer... Queres dizer que gostaste dele, só por causa dele?

- E porque não? É uma pessoa simpática e agradável.

- É simpático, é - concordou Scotty, devagar. - Talvez também seja decente. Suponho que isso depende da maneira como for encarado.

- Da maneira como for encarado?

- Eu esqueci-me - continuou Scotty evitando a pergunta - de que já passaram quatro anos desde que fiz o primeiro negócio com ele. Era uma coisa de que não me devia esquecer, pois produziu em mim justamente o mesmo efeito, quando o vi pela primeira vez.

Aproximou-se, tirou a cigarreira do bolso de Cristóvão, pegou num cigarro e ficou à espera de que o amigo lho acendesse.

- Obrigado.

Deu uns passos até ao tronco cortado duma árvore, sentou-se com os cotovelos sobre os joelhos, e ficou a olhar para Cristóvão.

- Sim, na verdade, esquecera-me - repetiu.

- Porque não gostas dele

- Eu não disse que não gostava.

- Bem, então vamos encarar o problema doutra maneira. O que é que não joga certo no meio disto tudo?

- Eu não te disse que houvesse qualquer coisa que não jogasse certo. Quando me ri, ri-me porque... Daqui a quatro anos, se qualquer pessoa disser que fez um negócio com o major, tu ris-te?

- Está bem, eu rio-me, mas porquê?

- Porque - e agora a voz de Scotty tinha um timbre mais baixo - porque é a negociar que ele vive. Há muitas pessoas que não vivem senão para vender coisas. Montam uma loja, põem-se por detrás do balcão e fazem tudo quanto podem para tirar-nos do bolso mais do que as mercadorias lhes custaram. Quantas mais montras têm, mais caro nos vendem. Chegam mesmo ao ponto de hipnotizar uma pessoa. Se tu entrares num desses buracos, a que chamam agora casas de antigüidades, pagas coiro e cabelo por uma coisinha, pela qual o proprietário deu dez réis de mel coado. Ficas aborrecido e ludibriado, mas entre o lojista e o público, o jogo do salve-se quem puder é sempre o mesmo. Agora este major Gray leva a vida, e uma vida bem confortável, a fazer justamente o que fez outro dia quando te encontrou. Leva-nos a casa. No teu caso tu entraste por tua iniciativa, mas ele estava lá para receber umas visitas com quem tinha combinado um encontro. Ele comporta-se como o senhor rural, que mostra os tesoiros que pertenceram aos seus antepassados. Antes de deixar a casa, convencemo-lo e às vezes leva tempo a convencê-lo - a vender-nos qualquer coisa que a nossa imaginação escolheu, ou qualquer coisa que, com todo o cuidado -ah, sim, com todo o cuidado ele nos fez notar. Não vive aqui, porque deste modo o processo resulta muito melhor. Vive na cidade, no seu clube, e durante a época que lá passa conserva bem abertos os olhos para ver qual a espécie de turistas que lhe convém. Têm de ter certos predicados: cultura, porque só as pessoas cultas poderiam apreciar as belezas de que Greensleeves está cheio; dinheiro, ou então é tempo inteiramente perdido; e de certa maneira têm de ser peritos e coleccionadores. Não os convida. Fala-lhes com certa tristeza em Greensleeves, diz-lhes qual a data em que a casa foi construída, a época, e se eles têm certa imaginação, não podem deixar de o enquadrar naquele ambiente. Completa o quadro, e com perfeição, para quem quer que se interesse pelo cenário inglês. Perguntam-lhe, hesitantes - porque podem ser sensíveis estes senhores rurais - se por acaso poderiam... Pois claro que podem. Até, por sinal, ele no dia seguinte deve ir ver como as coisas correm com a pessoa que está a tomar conta da casa. Se lá quiserem dar um pulo, terá imenso prazer em lhes mostrar a casa, Eles vão e quase que invariavelmente fazem negócio. Se tal não acontece, ele pode dar-se ao luxo de esperar por outra ocasião. Se aqui estivesses em Agosto, encontrá-lo-ias quase todas as tardes, à entrada da porta aberta, elegante, impecável, no seu lugar, no meio daquele cenário caracteristicamente inglês. E aqui está: ele faz o que fazem todos os comerciantes. compra barato e vende caro. Se os seus métodos te impressionam, isso é contigo. Por acaso, e duma maneira muito estranha, eu descobri mais da sua vida do que a maior parte das pessoas e talvez seja por isso que tenho contra ele certos preconceitos.

Calou-se e só muito depois Cristóvão intercedeu:

- Já agora seria melhor que me contasses tudo.

- Não tenho muito a contar. Comprei-lhe esta casa e a propriedade, como te disse, mesmo antes de a ver. Teria comprado, também, Greensleeves se ele tentasse vender-ma, mas julgo que foi justamente nessa altura que decidiu o emprego que lhe havia de dar. Tive certa dificuldade em arranjar o dinheiro, porque ainda não tinha resolvido o problema com a outra propriedade, e decidi-me a falar aos meus procuradores. Ajudaram-me, mas um deles, um sujeito já velhote e com certas manias, pensou que eu fora hipnotizado para comprar uma propriedade que nunca vira, e conseguiu, depois de muito trabalho, obter informações de Gray. Descobriu onde ele faz as suas imitações de antigüidades e quem são as pessoas que arranjam as coisas novas de modo a parecerem mais convincentes que as velhas. Tudo isto, está claro, não deixa de ser interessante, e não se pode considerar criminoso. Uma pessoa não pode ser processada por vender cópias como tais, e no meu caso... e no teu, está claro, aparece sempre Cressida, no meio, para evitar que nos queixemos.

- E o que pensa Cressida de tudo isto

- Cress? Bem, levou-lhe certo tempo a compreendê-lo. Estava na Suíça, quando ele herdou a casa. Foi educada numa escola em Lausana; quando a mãe lhe morreu, tinha oito anos e não se encontrava com muita freqüência com o pai. Quando ouviu falar em Greensleeves, pensou que, finalmente, ia ter um lar, mas apenas a viu, desistiu da idéia. Não havia dinheiro. Somente a casa e o que lá estava dentro. Compreendeu bem depressa que estava a ser utilizada como uma loja de antiquário e resolveu sair daqui e arranjar um emprego. Tentou a enfermagem, como já te disse, mas empenhou-se de mais e teve de desistir. Durante certo tempo, levou uma vida dura e depois ofereceram-lhe uma ou duas oportunidades de fazer de modelo, e desde então nunca mais deixou esse trabalho. Nunca fala do pai, e está claro que eu também não. Muitas vezes penso que gostaria de arranjar um processo de o afastar, apenas porque sei quanto aborrece Cress e não porque eu sinta qualquer adversão contra ele. Essa espingarda que tu compraste é igual a outra, e depois a muitas outras que verás penduradas no mesmo sítio, de todas as vezes que lá fores. Tu vais vê-la. Ele sabe que tu a viste, e portanto sabe que sabes, etc. etc. e não se importa. Considera-se uma pessoa que está a realizar um negócio legítimo. Tu és um dos clientes e o negócio está concluído.

Scotty levantou-se e calcou o cigarro.

- Pois aqui tens quem é o major Gray. Espero Que depois disto não gostes menos da tua espingarda.

Cristóvão não deu qualquer resposta. Claro que não lhe agradaria menos a espingarda, mas a respeito do homem que lha vendera havia uma certa confusão no seu espírito. Revia, em imaginação, a casa e, diante dela, o seu proprietário que tão bem se lhe ajustava. Achou penoso e, com grande surpresa sua, profundamente desagradável ter de se compenetrar dos factos que Scotty lhe relatara; se lhe fossem contados por qualquer outra pessoa, ter-se-ia negado, simplesmente, a acreditá-los. Era bastante experiente para se não ofender pelo facto de se ter deixado levar por aparências, mas sabia que aquela tarde lhe proporcionara um prazer especial e que simpatizara com o major Gray dum modo que agora considerava extraordinário.

- É como se estivéssemos a comer uma daquelas excelentes cerejas - proferiu Scotty, seguindo os seus pensamentos - e lhe encontrássemos dentro um bicho.

- Pensei - disse Cristóvão - que se tratava dum camarada particularmente agradável.

- Quem não havia de pensar o mesmo? Ao fim e ao cabo, o homem é um vigarista; e quem pode ter êxito numa tal profissão se não inspirar confiança? Sinto-me sempre chocado quando as mulheres - e a minha vida é tão solitária que, presentemente, ao dizer mulheres me refiro à senhora Garcia - olham para a fotografia dum criminoso e dizem: "Oh, com uma cara tão simpática!" Qualquer pessoa nas condições de Gray pode vender barato objectos de família aos visitantes e turistas e pôr de lado um bom pecúlio, sem pagar quaisquer impostos, mas para isso precisa de ser um actor que represente como ele. Um dia, vi-o vender a um casal de australianos uma dessas medalhas que ele faz tão bem. Mostrou-te alguma? com certeza que mostrou. Os australianos compraram uma, que se supunha ter sido feita durante a guerra civil, entre 1642 e 1646, pelo famoso Tomás Simon, que era tido, não sei se sabes, como um dos mais famosos medalhistas ingleses de todas as épocas. Está claro que a medalha não era verdadeira. Ele fartou-se de lhes dizer, e ria-se com franqueza por se mostrar tão leal. Pois digo-te que a compraram e aposto que deve ter sido uma das coisas que em toda a sua vida mais felizes os fez. Nunca esquecerão, tal como tu nunca esquecerás, a tarde que passaram naquela casa, passeando, não exactamente onde os santos passearam, mas onde Warwik descansou e comeu, e onde Monmouth e Catarina Howard dormiram, não juntos, está claro, pois ela morreu cem anos antes dele por ali passar. Tenho visto muitas casas históricas, mostradas por pessoas bem distintas, é verdade, mas para abandonar o presente e voltar ao passado, sair da época atómica e entrar num estado de espírito onde a paz domine e se ouça o ruído dos brocados e o som dolente da cítara, para mergulhar num passado delicioso e integrarmo-nos nele com supremo espírito artístico, para isso só o major Gray. É uma loja que ali está. Ele é o caixeiro. De que o podemos censurar?

- Sim, lá nisso tens razão.

- Pois sim, mas tu achas, como eu, que é de mau gosto. E eu não penso que isso seja resultado de gostarmos da filha. Evidentemente que pode haver qualquer relação, visto que o major Gray, a seguir por esta senda, ainda é capaz de ir longe de mais. Estes artistas têm sempre tendência para exagerar. Neste momento, o nosso amigo está a portar-se bem e as coisas todas a correrem com legalidade, mas as pessoas desta espécie tornam-se ousadas e metem-se em aventuras maiores... É nessa altura que a polícia esfrega os olhos, se espreguiça e olha em redor para descobrir donde vem o cheiro, e é disso justamente que eu penso que Cressida tem medo. Ela tem boa cabeça, não tem? Nestes últimos quatro anos, teve muito que aprender e aprendeu depressa.

- Não percebo - disse Cristóvão - porque é que ele não vendeu a casa.

- Porque ninguém lhe dava o preço que pedia, e se encontrasse alguém que lho desse, não conseguiria mais com esse dinheiro do que cerca de três por cento, como todos nós. Isso não era certamente um décimo do que ela rende assim, e, como já te disse, este negócio não paga impostos.

Scotty começou a caminhar em direcção a casa, e Cristóvão seguiu devagar ao lado dele. Durante algum tempo, nem um nem outro falou, mas por fim foi Scotty que disse:

- Arrefeci-te o entusiasmo. Podia muito bem ter-me calado, mas se gostas de Cressida, é melhor sabê-lo já.

Depois, com ar inquisitorial, perguntou:

- Gostas de Cressida?

- Sim, gosto.

Olhou para o amigo com uma expressão em que o afecto, a ansiedade e a piedade se misturavam.

- Gostava de ouvir a tua opinião.

Um instante depois, Scotty disse:

- Não há ninguém que possa deixar de se sentir apaixonado por Cressida. Eu também já estive e não cederia o lugar a nenhum bonifrate que surgisse. Mas quando tu apareceste, achei que estavas bem. Porque é que julgas que eu te mandei lá no primeiro dia? Sabia muito bem que tu...

- Que eu o quê - interrompeu Cristóvão.

- Olha, a ela desejo-lhe tudo o que há de melhor. Tens a minha bênção.

 

Durante os últimos quatro anos, Cressida Qray desejara muitas vezes que a sua educação, apesar de excelente, tivesse sido orientada no sentido de a preparar muito melhor para as necessidades da vida moderna.

Por morte de sua mãe, que se verificara pouco depois de ela fazer oito anos, o pai enviara-a para a velha escola onde a mãe fora educada, em Lausana; aqui, algumas professoras que ainda se lembravam da mãe, receberam-na com toda a amabilidade e deram-lhe a mesma educação, o mesmo carinho e a mesma atenção que à sua progenitora. Os princípios que haviam sido óptimos e eficazes para uma jovem da geração anterior, já não eram tão úteis, nem suficientes, no novo mundo em que Cressida vivia; a experiência adquirida quanto ao comportamento correcto em sociedade, de pouco lhe valia presentemente, visto que a Humanidade se tornara menos delicada; e os rapazes e raparigas que ela encontrara, sempre acompanhada por qualquer das senhoras do colégio, diferiam inteiramente da geração sem inibições, que conhecera pela primeira vez, quando tentara a sorte em Londres.

Esperara, aos dezassete e depois aos dezoito anos, que o pai modificasse a sua vida agitada e errante e se fixasse em qualquer parte, onde pudesse viver na sua companhia e utilizar os seus predicados excepcionais de dona de casa. Ele, porém, andava por longe e Cressida continuou na escola, na Suíça, aceitando por fim um lugar de professora.

Quando o major Gray soube que herdara Qreensleeves, mandou buscar a filha, pedindo-lhe que trouxesse Emílio e Zoute, um casal idoso que trabalhara na velha casa da mãe, perto de Lausana, e com quem Cressida se dera sempre. Quando os três chegaram a Qrenton, Emílio e Zoute assumiram logo as funções de jardineiro e governanta, mas para Cressida seguiu-se um longo e doloroso período de adaptação.

Aquilo não era um lar e em breve reconheceu que as suas esperanças de viver em Greensleeves com o pai não se realizariam. Havia ainda outros motivos de desapontamento, sendo o principal o facto de a pouco e pouco ter chegado à conclusão de que o major não era o guia íntimo e compreensivo, o companheiro que ela esperara encontrar. Era o que sempre fora, durante as suas visitas, no tempo em que ela estivera ausente: alegre, encantador e divertido. Ainda era alegre, mesmo mais encantador, mas achava-o menos divertido. Longe de ser guia ou tutor, encontrou-o inteiramente destituído de qualquer sentimento de obrigação ou de responsabilidade. Limitara-se a pagar as mensalidades do colégio, enquanto ela o freqüentara; mas ela pensara que, como desistira do trabalho a instâncias suas, ele teria quaisquer sugestões a fazer-lhe acerca do seu futuro. Enganara-se, porém; o seu futuro teria de ser decidido única e exclusivamente por si. Ele manteria Greensleeves e já estava a explorar-lhe as possibilidades. Viveria em Londres, no seu clube, e, de vez em quando, viria a Grenton. Traçou os seus planos calmamente e comunicou-lhos, quando já estavam decididos; mas não lhe fez qualquer pergunta acerca dos dela.

Era uma situação que teria perturbado uma rapariga mais experiente do que Cressida. Esta tinha pouco dinheiro, e o pai, com modos encantadores e tristes, deu a entender que não lhe podia dar qualquer pensão. Praticamente, era uma estranha na própria casa, sem treino, sem qualquer conhecimento ou experiência das condições de trabalho, e sem ninguém a quem pedir conselhos.

Os seus primitivos esforços para se instalar foram mal compreendidos e não tiveram êxito, mas durante os meses de luta e de isolamento encontrou um amigo, Scotty Linden. Fora este quem lhe pedira que não aceitasse a profissão de enfermeira e lhe pagara as contas, quando ela se viu sem dinheiro; fora Scotty que, incapaz de dirigir os seus próprios negócios, mostrara uma clareza extraordinária, ao aconselhar os dela, e fora Scotty - só Scotty - que a acarinhara nos difíceis dias em que o seu primeiro amor redundara em desilusão.

Foi um passo infeliz, e Cressida, num olhar retrospectivo, verificava que não agira acertadamente. Não sentia, no entanto, pena da decisão que tomara, e ficara profundamente grata a Scotty, pelo seu apoio numa altura em que todos a censuravam amargamente. Colocara-se entre ela e os críticos mais acerrados, defendera-a da maior parte das censuras e dera-se à pesada tarefa de lhe restituir a coragem, a autoconfiança, e de a ajudar a conseguir trabalho. Fora Scotty, por fim, que se lembrara de alguém, conhecedor doutra pessoa relacionada com uma rapariga que outrora fora modelo, e por este caminho tortuoso, Cressida pudera entrar na sua actual profissão. Dali em diante, prosseguira sozinha, sempre com crescente êxito, ganhara prestígio e confiança, e dominara o sentimento de inferioridade que a avassalava, ao ver raparigas muito mais novas lutarem pela vida, com mais experiência. Sabia agora que desperdiçara muitos anos à espera de arranjar um lugar na sociedade; crescer rodeada de cuidados era muito bom, se estes não viessem a faltar abruptamente. Fora mal preparada, mal equipada. Cheia de esperança, aguardara que a lançassem na vida, em vez de o fazer por sua própria iniciativa; mostrara possuir, dizia para consigo desdenhosamente, todas as qualidades dum parasita, que anda à volta de qualquer coisa a que se agarrar, e merecia muito menos do que a felicidade e o bem-estar que agora usufruía.

Considerava-se muito feliz. Gostava do trabalho, acabara por gostar da Inglaterra e do círculo dos seus amigos, que cada vez se alargava mais. Tinha uma profunda afeição por Scotty e quanto aos sentimentos que nutria por Cristóvão, preferia, por agora, não pensar nisso.

A senhora Belchamber, que a observara sob todos os aspectos, veio a confiar nela o suficiente para a deixar junto de Josette, sempre que se encontrava demasiado ocupada para o fazer; o resto do tempo, passava-o Cressida cumprindo ordens e mantendo o moral da senhora Garcia, a qual declarava que o novo regime já lhe tirara alguns quilos.

- Lá em casa dizem-me que estou a dar cabo de mim! - confidenciava ela a Cressida. - Se Nero voltasse, a menina e eu não estávamos em piores lençóis. Já é a quarta vez que esfrego esta cozinha, e estes soalhos não foram feitos para isso. São próprios para botas grossas entrarem e saírem. Isto é uma casa de aldeia, não uma residência elegante, e eu aprecio-a mais quando parece uma casa de lavoura. E o senhor Linden também. Desde que isto tudo foi limpo ele não se sente tão confortàvelmente cá dentro.

- Deixe lá! Ele habitua-se - interrompeu a senhora Belchamber, que aparecera tão rápida e inesperadamente, que pareceu à senhora Garcia um fantasma materializado. - Deixe lá, que ele habitua-se.

A senhora Garcia não respondeu. Verificava, pela vigésima vez, que a senhora Belcharnber usava sapatos de casa, vulgares, sem solas de borracha, e não, como poderia depreender-se das suas furtivas aparições, chinelos silenciosos. Concluiu, por fim, que devia haver qualquer misterioso abafador de som naquele seu chapèuzinho preto. Levantou-se e olhou para o chão que acabava de esfregar.

- Pode-se comer nele - foi a sua opinião quando saiu a fim de despejar o balde.

- Tenho por vezes desconfiado que é o que o Sr. Scotty faz - comentou, com mau humor, a senhora Belchamber para Cressida. - Se alguma vez pensei ter uma missão a cumprir na vida, é agora: a necessidade de impedir que um homem, outrora um cavalheiro, degenere num camponês.

- Refere-se a Scotty? - perguntou Cressida, admirada.

- com certeza. Já viu alguém da posição dele que se deixasse afundar tão completamente e em tão pouco tempo? Foi educado como um cavalheiro e agora anda vestido como um espantalho, come o que lhe atiram, vê as suas coisas cair em ruínas, leva uma vida de campónio e cheira a estérco, a léguas de distância.

- Oh, não! - protestou Cressida. - Ele...

- A menina não tem olfacto, mas o meu é extremamente sensível. Não, senhora Garcia, o balde está muito bem limpo e ponha-o ali. Muito obrigada. Olhe que esta manhã veio tarde.

- Minha senhora - afirmou ela com dignidade -, foi o meu marido que não voltou.

- Que não voltou? Que não voltou donde?

- Isso não lhe sei dizer - respondeu a senhora Garcia com um ar triste. - Disse-me que ia a Londres em serviço profissional, mas não era necessário levar Nellie Carson com ele, e ficarem lá até perderem o último comboio. Já não é a primeira vez - disse a pobre, com resignação. - E não há-de ser a última. Quando casei com Howsay, todos me diziam que era uma grande asneira.

- Casou com quem?

- Howsay, minha senhora. É o primeiro nome do senhor Garcia, o nome de baptismo, como diz minha irmã. Escreve-se com e não com J. Ele não gosta que lhe chamem Joe, como é conhecido vulgarmente. Prefere que lhe chamem Howsay. É como a menina de cima. Quando a minha irmã afirma que é Josette, eu explico-lhe que em francês não se diz assim, diz-se Schozette.

- Bem, não se vá embora sem cumprir o horário - disse a senhora Belchamber, insistindo na sua ideia. - Veio tarde, tarde vai.

- com certeza, minha senhora - concordou com inexcedível dignidade. - Não posso, porém, deixar de ter as minhas preocupações: um marido que me não dá dinheiro, que gasta tudo quanto tem com sopeiras, é um fardo pesado de mais para mim

- Olhe, sujeite-o com pulso forte - aconselhou a senhora Belchamber, de mau modo. - Uma mulher não precisa de se deitar no chão e deixar um homem calcá-la aos pés.

- Nada há que o prenda à casa - lamentou-se a senhora Garcia. - Não há umas mãozinhas de criança. Se a nossa união fosse abençoada, ele...

- ... Está bem, deixemos isso. Agora vamos tratar daquelas colheres.

- O casamento da senhora foi abençoado? - perguntou a senhora Garcia, começando a tratar das colheres.

- Foi - disse a senhora Belchamber, de mau modo.

- Ah, foi? - E a senhora Garcia olhou para ela. - Quer dizer que teve filhos?

- Não, não tive. Agora era preferível não deitar mais pó e esfregar com mais força. Cressida, preciso que me ajude lá em cima.

Subiu a escada e Cressida seguiu-a com um sorriso nos lábios.

- Primeiro vamos fazer as camas dos rapazes. Aquela mulher trabalha melhor se não tiver oportunidade de conversar.

- Suponho que em casa ela não tem muitas ocasiões para isso - tornou-lhe Cressida. - com quatro sobrinhos e...

- Ela, ou resmunga por a sua união não ter sido abençoada, ou porque a da irmã o foi. As coisas não podem ser sempre como nós queremos, bem o sabe. O que ela devia fazer era apanhar dinheiro ao marido, antes dele ter tempo de o gastar com outras mulheres. Há vários processos de fiscalizar os homens, mas os cordões da bolsa são melhores para os dominar do que as fitas do avental. Esta prefere ser vítima.

- Ela diz que o ama e...

- Amor!

Nada podia exceder a surpresa, o desprezo e a injúria com que a senhora Belchamber pronunciou aquela palavra. Pegou num lençol, sacudiu-o e atirou uma ponta para Cressida.

- A palavra amor é a mais gasta, a mais mal interpretada de toda a linguagem. O impulso a que chamam amor é o que ocupa mais espaço na consciência pública. Não quero dizer que não mereça um lugar de relevo entre todas as emoções, mas pretendo que devia ser apresentado duma maneira mais saudável e menos histérica. Os jovens não têm tempo de pensar em mais nada... Os ouvidos andam cheios desta palavra. Topamo-la nos versos, nas canções, no cinema, no palco e fora do palco. Todas as crianças das escolas, os rapazes que fazem recados, aprendem centenas de canções que não valem um caracol, sempre à roda do mesmo tema: amor, amor, amor! Se uma rapariga chega aos dezassete ou dezoito anos sem se apaixonar, pensa que não é normal. A menina já alguma vez esteve apaixonada?

- Sim.

- É exactamente o que eu estava a dizer. É como uma espécie de doença que todos têm de sofrer, como se fosse um vulgar sarampo. Nunca ouvi ninguém afirmar o contrário. Quanto a mim, posso dizer-lhe que nunca... puxe mais o lençol daquele lado se faz o favor... que nunca estive apaixonada

Cressida ficou a olhar para ela.

- Mas se... quero dizer, se foi...

- Fui casada. Claro que fui, e mais que uma vez.

- Mais que...

- Três vezes. Duas, porque sabia o que estava a fazer, e uma, porque não sabia. Quando era rapariguinha - explicou a senhora Belchamber - como todas, passei o meu tempo em busca dum marido ou à espera de que alguém mo arranjasse. Fui educada por uma tia que tinha fama de arranjar casamentos para as raparigas e foi ela quem me conseguiu o meu primeiro marido. Veio do Luxemburgo e chamava-se Frederico Besnard, e eu não tinha mais ternura por ele do que por um homem que vivesse na Lua. Como, porém, toda a gente asseverava que a rapariga que pudesse olhar para os ombros largos de Frederico e para os seus bonitos bigodes, sem sentir qualquer coisa, devia ser muito estranha, depois de olhar muito para eles e com muita insistência, consegui sentir o suficiente para casar com ele. Hoje em dia, certamente, as raparigas são mais sensatas, mas a lenda ainda persiste. Está claro que são os homens que a conservam viva; vivem e morrem na crença de que as mulheres não podem existir sem eles. Algumas, coitadas, não podem, mas também a verdade é que outras podem e muito bem. A natureza dá a algumas mulheres mais senso que sentimento, e só lhes desejo que se sirvam desse senso, em vez de se deixarem influenciar por meia dúzia de artifícios, inventados expressamente para elas. A si, desejo-Lhe que se saiba servir da cabeça e que se não deixe iludir.

Cressida não respondeu. Sentia que aquela voz lhe acordava uma onda de reminiscências e ansiava saber qualquer coisa sobre os sucessores de Frederico. Alisou o cobertor e esperou cheia de esperança.

- Quando o meu primeiro marido morreu - continuou a senhora Belchamber com um tom de voz apagado - pensei em voltar para Inglaterra, mas Frederico deixara-me muitas propriedades espalhadas por aqui e por ali, e eu tinha de cuidar delas. Enquanto tratava dos meus negócios, encontrei o meu segundo marido... Tanto ele, como o terceiro, eram bem mais velhos do que eu, mas enterrei-os a ambos. Pensei em me instalar em Melhampton, com Belchamber, depois de nos casarmos, e passámos algum tempo em Inglaterra, mas ele não se deu bem com o clima e tivemos de regressar à Suíça. Dizia-se que eles andavam atrás do meu dinheiro, e talvez assim fosse, muito embora eu tivesse bonitos dentes e uma linda cabeleira. Se, na verdade, era o meu dinheiro que eles pretendiam, devem ter ficado muito desapontados, pois não permito a ninguém meter-se nos meus negócios. Tudo isto veio a propósito do que eu estava a dizer. Se minha tia não me tivesse enchido a cabeça com disparates a respeito do amor, ter-me-ia recusado a casar com Frederico, e passaria a minha vida muito mais ütilmente do que a escutar uma série de estrangeiros que se esforçavam por falar inglês. Eu falo excelentemente francês, é claro, mas sempre me expressei melhor na minha própria língua.

Cressida inclinava-se sobre o trabalho, sem querer olhar para o rosto desagradável e enrugado que estava na sua frente, para não o associar a um sentimento que, quanto a ela, só era próprio das pessoas novas e bonitas. Esforçava-se por acreditar que a senhora Belchamber já fora jovem, e tentava, sem resultado, adivinhar as emoções do há muito falecido Frederico. As rugas podiam muito bem não ter existido, mas aqueles olhos turvos e aquele nariz atilado, com certeza já existiam. Apenas conseguia imaginar que os bigodes de Frederico teriam sido tão fartos, que lhe obscureciam a vista. Tudo aquilo ultrapassava a sua compreensão, porque, muito embora as suas idéias sobre a aparência duma mulher, casada três vezes, fossem bastante vagas, a senhora Belchamber não se adaptava a nenhuma delas. Por fim, pô-las de parte e decidiu que os [três, a partir de Frederico, tinham apenas procurado um lar.

Por sua vez, a senhora Belchamber revia as suas impressões sobre a rapariga que tinha na sua frente e acabou por reconhecer que, comparada com as raparigas de agora, Cressida tinha algumas qualidades. Não havia nela as complicações que a senhora Belchamber tanto detestava nas mulheres. Os seus movimentos eram tranqüilos e graciosos, e a voz baixa e melodiosa; a animação notava-se-lhe apenas no olhar e na expressão, e não se manifestava, desnecessariamente, em gestos e palavras empolados. Diziam-lhe que fizesse uma coisa e ela fazia-a. Não necessitava que lhe repetissem ou explicassem uma ordem; ouvia-a e executava-a. Era, sem dúvida nenhuma, uma rapariga bonita, e, no entanto, fazia menos para realçar os dons que a natureza lhe dera do que algumas das meninas excessivamente pintadas que a senhora Belchamber podia citar; e - a maior prova de todas muito embora conhecedora da admiração que por ela tinham o senhor Heron e o odioso senhor Scotty, satisfazia os sentimentos feministas da senhora Belchamber, afastando tanto um como outro.

Cristóvão era o que estava mais próximo. Era preciso ter um coração mais duro que o de Cressida para resistir ao seu encanto e entusiasmo. Era impetuoso, sem ser importuno; e Cressida verificou que ele lhe dedicava um amor ardente e sincero, mas pedia pouco em retribuição. Trouxera para junto dela todo o peso da sua personalidade e do seu encanto e Cressida sentia que estava a ceder terreno.

Não existia qualquer sinal de que se estivessem a realizar investigações para localizar a senhora Belchamber, mas Cristóvão achava improvável que os responsáveis por ela aceitassem o seu desaparecimento sem fazerem quaisquer esforços para a encontrar. Não era impossível descobrirem-na. Havia, tal como Scotty dizia, um tênue fio que a ligava ao mundo donde viera. A senhora Garcia era uma tagarela; a irmã, devido ao casamento, estava relacionada com a polícia da vila e o marido podia repetir as conversas na esfera mais vasta de Grenton. Deste modo, se procedessem ali a investigações, não tardaria a descobrir-se o paradeiro da senhora Belchamber.

- E então - concluía Scotty - os nossos trabalhos acabam-se.

- Os teus - corrigiu Cristóvão.

- Sim, os meus. Hoje à noite, banho. E há uma coisa que me diz que a velhota se põe de ouvido encostado à porta, para ouvir o barulho da água.

- Então, mete-te lá dentro e lava-te bem. Eu hei-de ir verificar isso pessoalmente.

- A pele - disse Scotty - tem a sua gordura natural e estar a lavá-la com freqüência demasiada é um sistema que não resulta. Já alguma vez ouviste falar num lavrador que tomasse banho quente todas as noites?... Até se riam de ti. Porque não dizes a essa mulher que aqui, na região, há um serviço sanitário eficiente e que ela não é precisa como voluntária

- Deixa estar que eu digo-lho - prometeu Cristóvão - quando acabar de te despiolhar, amanhã à noite.

A voz de Scotty ergueu-se, escandalizada:

- Dês... Tu disseste aquilo que me parece ter ouvido

- Sim -respondeu Cristóvão.

- Ah! Mas olha: não é só do nosso corpo que ela está a tomar conta. Também é da nossa alma. Tens de ter o carro pronto amanhã, às sete e meia.

- Para quê?

- Para a levar à igreja, à igreja de São Judas, que fica logo a seguir à Câmara. Tu esperas lá dentro ou cá fora, conforme quiseres, e trá-la para casa outra vez. Depois, às dez e um quarto, levas os rapazes à igreja deles. Ela já lhes perguntou qual a sua religião, e responderam-lhe que eram católicos romanos, de modo -que, tal como ela diz, se a coisa estivesse só a teu cargo, nunca iriam a uma missa e as suas almas seriam eternamente condenadas.

- Mas - protestou Cristóvão - eles estão de quarentena.

- Foi isso mesmo que eu disse. Quando, porém, as mulheres começam a cumprir com os seus preceitos cristãos, não te atravesses no seu caminho, porque nada consegues. Perguntei-lhe: "Vai mandar aqueles dois rapazinhos à igreja, para infectarem de micróbios os eleitos?" E ela respondeu-me que vivera demasiado tempo em países católicos para compreender o que eles sentem acerca da assistência à missa e do fogo do inferno, e que se a igreja deles é o que ela julga, os micróbios não têm grandes possibilidades. Eu acho que a única coisa que há a fazer é untá-la com petróleo. Ah, esquecia-me de te dizer: veio uma carta para ti.

- De quem?

- Sei lá de quem! De França. Hautiers qualquer coisa. Vem assinada por Teresa Desmoulins. Quem é?

- É a criada dos pequenos. Que diz ela?

- Bem, eu não te queria maçar...

- Vamos, diz lá.

- Nem contrariar-te, nem...

- Vamos, vamos, queres levar a noite inteira para MO dizer?

- Nem causar-te qualquer... Olá, fora com as mãos, seu rufia do diabo!

- Mas que diz ela?

- Diz que a filha continua doente e podes muito bem calcular o que é que ela tem.

- Não! - exclamou Cristóvão.

- Sim - disse Scotty. - Sarampo.

 

Sentada junto da janela, no quarto da doente, a senhora Belchamber lia.

- "A galeria consta de dois aposentos. Na sala Chanzy, podem ver-se várias relíquias da Defesa Nacional, dos anos de 1870-1871. "

Calou-se e perguntou, por cima dos óculos:

- Sabes alguma coisa a respeito da Defesa Nacional?

- Não - respondeu Josette.

- Está bem. Eu não te posso esclarecer, mas precisas de aprender a história do teu país. Mete esse braço para dentro, não vás apanhar alguma pneumonia. "Podem ver-se as relíquias do general Bourbaky"... Se este nome é francês, eu devo ser holandesa. "E as do general de La Motte-Rouge"... Bem, este, pelo menos, é francês. "Nas paredes estão a espada de Antoinette LIX"... quem será esta?... É a perna de pau de... meu Deus!... É a perna de pau do general Louis. Bem, se eu alguma vez quisesse procurar uma perna de pau, fosse de quem fosse, não me punha a olhar para as paredes, lá isso é verdade... Estás a dar atenção?

- Sim, muito obrigada - respondeu a pequena, delicadamente.

- É pena nunca teres ido a Paris. Todos devem conhecer a capital da sua pátria. Agora quando lá fores, será como uma turista estrangeira, e não como uma francesinha, o que não é a mesma coisa. Bem, mas onde é que eu ia? Que horrível tipo de letra! - resmungou a senhora Belchamber. - A sala das Medalhas está actualmente a passar por uma transformação. O que é que eles quererão dizer com isto? Se a estão a transformar totalmente, porque é que se referem a ela? "A sala Ney compreende o..."

Josette, deitada na cama, escutava e olhava, e havia muito para onde olhar, porque o chapéu da senhora Belchamber estava dum lado iluminado por uma luz branda que vinha da janela e do outro pelas chamas da chaminé. Os caracóis eram, às vezes, rosados e, outras vezes, pretos, e as lentes dos óculos despediam raios de luz, sempre que ela cessava de ler para fazer um comentário ou uma pergunta.

Além de tudo o mais, havia os óculos. A senhora Belchamber tinha seis pares, e Josette agora conhecia-os a todos: as lunetas sem aro, que punha quando cozinhava ou quando lhe levava qualquer coisa quente, pois eram fáceis de tirar e limpar depressa; os de ver ao longe; os de ver ao perto; os de lentes bifocais, muito interessantes, porque eram de dois andares; um elegante lorgnon, que ela uma vez trouxera para lhe limpar o bonito e precioso cabo; e outros óculos ainda, de aro de tartaruga, que punha quando andava de automóvel, segundo disse.

Quando se fatigava de ler, cosia. As toalhas e guardanapos de Scotty - ou por outra, tudo quanto restava deles - estavam em tiras, mas a senhora Belchamber lamentava menos o estado em que se encontravam do que as desajeitadas tentativas da senhora Garcia para os reparar. Os seus comentários a Cressida, sobre o rápido declínio e queda da maneira de viver de Scotty, eram cada vez mais duros e menos lisonjeiros.

- São conseqüências duma educação muito amimada - disse ela, puxando a agulha com que passava a toalha. - Um meio de gente branda, todas as contrariedades poupadas, nenhuma disciplina... Por exemplo, esse senhor Scott.

E com a cabeça apontava o dono da casa, que passava em baixo, junto ao estábulo. Depois continuou:

- O vaqueiro, se o tivesse, tinha por certo mais orgulho do que ele. Não gosto de mesquinhices, onde quer que as encontre. O que é que está a mostrar a essa criança? Ela não deve cansar os olhos. O que é isso?

- É a sua pregadeira dos alfinetes - explicou Cressida, sentada à cabeceira da cama de Josette que lhe olhava para as mãos. - Estamos a fazer um jogo mágico.

- Estão a quê? - perguntou a senhora Belchamber, libertando-se dos óculos como para ouvir melhor.

- A fazer um jogo mágico.

Cressida e Josette seguravam agora ambas na almofada, e aquela modelava uma nova figura com os alfinetes.

- Que diabo de disparate é esse? - perguntou a senhora Belchamber.

Cressida olhou para ela, durante um segundo, com um sorriso nos olhos e nos lábios.

- Não é disparate, pois não, Josette? Ontem fizemos um jogo de magia para as pintas vermelhas desaparecerem, e... olhe... nos braços algumas já se sumiram.

- É verdade - concordou Josette, decidida. - Eu contei-as ontem e contei-as hoje. São menos.

- Agora estamos a fazer um jogo para ver se ela amanhã come um bom pudim, um pudim grande e bom - murmurou Cressida com a cabeça encostada à de Josette. - Fazemos este desenho, vês, Josette?

- Vejo, vejo.

Josette agarrou na almofadinha e ficou a olhá-la como se a estudasse.

- Onde é que a vamos pôr?

- Torna a pô-la no meu cesto da costura - disse a senhora Belchamber. - O jogo pode continuar estando a pregadeira no seu lugar. Agora vocês, rapazes - continuou dirigindo-se a Roberto e Paulo que tinham subido as escadas e estavam a espreitar à porta -, deixem-me ver os sapatos.

- Estão limpos - declarou Paulo.

- Então é a primeira vez que se lembraram de os limpar - comentou a senhora Belchamber.

- Foi Scotty que nos lembrou - respondeu Paulo. - Ele disse: "Cuidado, não vá a senhora"

De repente parou, corando com quatro pares de olhos fixados ansiosamente em si, e acabou por terminar a medo:

- Foi ele quem nos lembrou.

- Ah - exclamou a senhora Belchamber.

- Fizemos um jogo - disse Josette. - Venham cá ver.

Os dois irmãos precipitaram-se para junto da cama e olharam.

- O que é - perguntou Roberto.

- Um jogo mágico, um feitiço - explicou Josette. - Amanhã como pudim.

- Tiens! - E Paulo agarrou na pregadeira com grande reverência. - Est-ce que... - Calou-se um momento e depois corrigiu: - É um feitiço bom, ou mau?

- bom, claro - disse Cressida.

- Então se é bom, também podia ser mau? - insistiu Paulo.

- É justamente como os rapazes - respondeu a senhora Belchamber. - Umas vezes são bons, outras maus. Olá! Cuidado com esses pèzinhos em cima da cama. Quem é que vem aí? - perguntou olhando para a porta entreaberta. - Ah, é o senhor!

- Sim.

Cristóvão entrava com atitudes mais conciliadoras do que habitualmente se mostra perante o inimigo. Ela tinha as rédeas do governo na mão. Se ele entrasse ali sem cuidado nem circunspecção, punha-o fora do quarto e da presença de Cressida. Sentia-se submisso e hipócrita, mas sofreria até essa humilhação para se sentar e observar Cressida a andar dum lado para o outro no quarto, a inclinar-se sobre a cama, e a tratar, tranqüila e graciosamente, de Josette. Como desculpa, como passaporte, sem o qual não poderia entrar no quarto, exibiu as notícias de Teresa.

- Tive notícias de Teresa.

As crianças ficaram imediatamente entusiasmadas.

- De Teresa? A Mónica também tem pintas vermelhas como eu? - perguntou Josette.

- Sim, muitas, muitíssimas.

- Leia o que ela diz - pediu a senhora Belchatnber.

Cristóvão olhou-a com um ar frio e surpreendido. Era evidente que se estava a portar sem a mais elementar regra de delicadeza, pretendendo ouvir ler uma carta que, com toda a certeza, lhe não dizia respeito...

Ela fitou Cristóvão também com um olhar frio e comentou:

- Talvez que o seu francês não chegue para compreender o que lá vem escrito.

"O seu francês" na verdade não estava à altura do momento. A caligrafia de Teresa era diíicilmente legível, as frases incompreensíveis e a ortografia irreconhecível.

- Eles podem ler - disse, entregando a carta a Roberto.

- Eu vou ler-lha - declarou este com candura.

- Mas é difícil.

- Deixa ver - disse Paulo espreitando sobre o ombro do irmão. - Eu leio.

Com dificuldade os dois decifraram a complicada missiva. Segundo lhes parecia, Teresa estava bem, assim como Henrique, René, Eduardo, Josefina, João e Julião, e também Henrique e...

- Isso já ela disse - interrompeu a senhora Belchamber, irritada. - Não me venha cá com essa conversa outra vez.

- É que há dois Henriques - explicou Paulo. - Um é o rapaz e o outro é um... furão.

- Furão! - disse Cressida.

- Sim, vai buscar coisas aos buracos - começou a explicar Roberto. Mas Paulo fê-lo calar.

- Isso é uma coisa que toda a gente sabe. Continua.

- Nicolau está bem, mas o irmão está mal.

- Ele tem um irmão - perguntou Josette, surpreendida. - Quem é

- Sabes muito bem - respondeu Paulo, num francês rápido. - com certeza que sabes, É o que veio a cavalo.

- Ah... Caí...

Era evidente pela exclamação que Josette não esquecera o cavalo.

- Ah, ou?...

- Falem em inglês, falem em inglês! - corrigiu a senhora Belchamber. - Não se esqueçam de que o vosso primo não viveu no estrangeiro como Cressida e eu. Não é correcto falar uma língua que ele não possa compreender. Podem continuar.

Mónica estivera doente, mesmo muito doente, mas o médico agora tinha a certeza de que a sua convalescença seria rápida. Contudo, só dentro dum mês e não antes - é que poderia ir para Inglaterra com a mãe. Henrique cuidaria de arranjar as passagens.

- Henrique, mas o homem - exclamou Paulo com enorme gáudio do irmão, da irmã e dele próprio. Até Cressida, com grande alegria de Paulo, se riu muito da graça. Quando a ordem foi restabelecida, leram o resto da carta: todos sentiam muito a falta das crianças e o velho Júlio andava a poupar dinheiro, para um dia poder ainda ir visitá-las a Inglaterra. Não seria essa a sua primeira viagem a esse país, pois já lá estivera há cinqüenta e seis anos, quando rapaz. Mandava muitos cumprimentos e as suas respeitosas saudações para Cristóvão, dele, de Mónica, de Henrique, de René, de Eduardo, de Josefina, de Julião e João, de Pedro e Siegfried, e...

- Siegfried O que tem Siegfried a ver com essa gente - perguntou a senhora Belchamber. - Outro furão

- É um cavalo - explicou Roberto - e Siegfried e Gautier.

- Mas isso é toda uma população - disse a senhora Belchamber. - Já acabou?

- Pronto, e agora está aqui a assinatura: Teresa Desmoulins.

- Teresa quê?

- Desmoulins.

- O que é que ela vem cá fazer - perguntou a senhora Belchamber a Cristóvão. - Estes pequenos já não têm idade para ama.

Roberto explicou:

- Teresa cozinha, arranja a nossa roupa, lava, faz as camas e arruma os quartos.

- Muito gostava que a senhora Garcia os pudesse ouvir - comentou a senhora Belchamber. - Para que é que ela quer trazer a criança?

- Que criança - perguntou Paulo, espantado.

- Essa Mónica! Não é filha?

- Filha! Ah, ah, ah!

Paulo deitou a cabeça para trás e deu uma estrondosa gargalhada.

- Filha - repetiu Roberto apertando a barriga, enquanto Josette ria também com prazer, mexendo-se na cama.

- Pronto, pronto! Quando vocês tiverem acabado de achar graça, podemos entender-nos - disse a senhora Belchamber acremente.

- Teresa é... Bem, já não é nova - explicou Cristóvão com delicadeza - e Mónica, para as crianças, não é uma jovem.

- É ela que acende os fogões - disse Paulo encantado -, limpa as janelas e lava a louça.

- Sim, isso é a grande tarefa caseira - afirmou a senhora Belchamber levantando-se e guardando a costura. - Se estivessem aqui, não teria de me levantar para ir lá abaixo tratar do chá. Vocês - disse olhando para Roberto e Paulo com os olhos penetrantes - desçam quando eu os chamar. E o senhor também acrescentou dirigindo-se a Cristóvão. - Cressida, eu mando os rapazes trazerem-lhe o chá e o lanche de Josette.

Dirigiu-se para a porta, e Roberto, levantando-se do lugar que arranjara aos pés da cama, correu, abriu-lha, fazendo-lhe uma correcta vénia quando ela passou. Tornou a fechar a porta, voltou-se a olhar para a cara de Josette, mergulhada em profundo desgosto.

- Não gostas do teu lanche? - perguntou-lhe o rapaz.

O rosto da garota tornou-se mais triste ainda e abanou a cabeça.

- Mas faz-te bem - disse Cressida com ternura.

- Agora vamos nós fazer um feitiço - disse Paulo agarrando na almofada. - Vamos fazer um feitiço mau por causa do lanche da Josette, e depois veremos. Talvez que a senhora não o descubra.

Tornou a arranjar os alfinetes cuidadosamente, observado pelo irmão e pela irmã. Por cima das cabeças dos rapazes, os olhos de Cristóvão procuraram os de Cressida, para logo os desviar para as mãozitas de Paulo, e ficou a observar tranqüilamente o feitiço que estava a ser preparado.

- Pronto! - disse Paulo. - Este feitiço é mau.

- Parece um mapa - declarou Roberto que o examinava. - Um mapa de França, vejam lá.

- É um feitiço - insistiu Paulo -, um feitiço mau.

- Olhem que isto é simplesmente um Jogo - disse Cressida. - Não era muito bonito se vocês fizessem feitiços maus, pois não?

- com certeza - disse Paulo firmemente.

- Porque não? - perguntou Cristóvão. - Há boas fadas e más fadas, boas bruxas e bruxas cruéis, maus gigantes e gigantes que não são assim tão maus- Se há feitiçarias boas também as deve haver más.

A sua voz baixou até adquirir um tom misterioso e olhou para Paulo com um ar confidencial e conspirador.

- Mas deves pôr a magia junto do lume - disse baixinho. - Tens de a aquecer, de contrário não presta.

- Perto do lume? - Paulo, com a almofada cuidadosamente na mão, atravessou a sala e foi pô-la em cima da pedra do fogão e depois perguntou: - Assim?

- Claro - respondeu Cristóvão. - Agora devem dizer: "Adivinha, adivinhão, quem não adivinhar é cão".

- Adivinha, adivinhão, quem não adivinhar é cão! - proferiu Paulo.

Cressida levantou a voz que dominou todas as outras.

- Não, Paulo, não seja pateta. Só o Cristóvão.

Vinda de baixo, ouviu-se a voz dura da senhora Belchamber.

- Venham cá, venham cá, rapazes!

O rosto de Paulo, corado pelo lume, perdeu muito do seu entusiasmo

- Está a chamar-nos - disse numa voz hesitante. - É...

Roberto, calado, abriu a porta e saiu.

- Minha senhora - respondeu.

- Venham cá. É o lanche de Josette. Não posso ficar aqui todo o dia à espera - disse a senhora Belchamber, de mau modo.

Roberto tornou a olhar para dentro do quarto e os seus olhos encontraram os do irmão. Paulo levantou-se devagar, com as mãos ainda a acabarem de pregar uns alfinetes na pregadeira e os olhos abertos e incrédulos, os lábios tremendo ligeiramente.

- Não, não aqueceu - gaguejou. - Não...

- Vamos. Venham cá - chamou a senhora Belchamber, irritada. - Eu não posso...

Ouviram-se os seus passos nos últimos degraus, depois um tropeção, uma exclamação de aborrecimento e um estalo. Roberto voltou-se devagarinho e ficou a olhar espantado por cima do corrimão.

- O que é - perguntou Paulo, cheio de terror.

- Foi o leite - disse Roberto, calmamente, ainda a olhar para baixo. - O copo quebrou-se.

Paulo deu um grito de triunfo, Cressida levantou-se e olhou com ar de censura para Cristóvão.

- Paulo...

Paulo não a escutava. Avançara ao encontro da senhora Belchamber, que subia as escadas a ralhar.

- Pronto! - exclamou ele. - pronto, pronto, pronto! Está pronto o feitiço. Fui eu que o fiz. Fui eu que com o meu feitiço fiz estalar o copo. Era um feitiço, um feitiço mau!

- Escute, Paulo - disse Cressida. - Não foi na verdade...

- Era um feitiço! - gritava Paulo, metendo a pregadeira pelos olhos espantados da senhora Belchamber. - Fui eu que o fiz.

- Não percebo o que estão a dizer - clamou a senhora Belchamber. - Se acabassem de brincar com os meus alfinetes e descessem a escada, podiam apanhar aqueles bocados de vidros partidos. Viessem quando os chamei e nada disto teria acontecido. Não me falem em feitiços. Se aquele último degrau tivesse o tamanho dos outros, eu não teria tropeçado. Agora deixem-se lá de invenções e não se portem como francesinhos. Um inglês não grita na presença das pessoas mais velhas e também não faz feitiços. Esta pregadeira de veludo foi feita pela mãe do senhor Belchamber, quando tratou do enxoval dela. Não era bruxa, muito embora o parecesse, e portanto não há feitiços. Agora vão lá abaixo e tomem o chá. Vamos embora.

A sua maneira de falar, calma e tranqüila, dominou os acontecimentos. Paulo pôs de lado a almofadinha com todo o cuidado, como alguém que depõe uma arma. As três crianças olharam tranqüilamente umas para as outras e depois os dois rapazes desceram a escada. O primeiro feitiço tinha produzido efeito. Outros se haviam de seguir.

A senhora Belchamber seguiu-os, tendo esquecido temporariamente o seu propósito de privar Cristóvão dum tête à-tête.

Na meia escuridão, ele encostou a cabeça ao grande leito, olhando ora para Cressida, sentada aos pés da cama, ora para Josette, que estava deitada e olhava para ele, com um sorriso que se tornava cada vez mais incerto, pois os olhos iam-se fechando pouco a pouco, com o sono. Cristóvão estendeu a mão e agarrou na pregadeira que Paulo deixara em cima da mesa.

- Chiu! - interrompeu Cressida, levando um dedo aos lábios. - Está a dormir.

Cristóvão fez um sinal com a cabeça. Estava muito ocupado a dispor os alfinetes.

- Olhe - disse baixinho, imitando exactamente a voz de Paulo -, estou a fazer um feitiço.

- Não seja pateta, vá lá para baixo - murmurou Cressida.

Cristóvão acabou o seu trabalho em silêncio e estendeu-o em cima da cama. com uma careta de aborrecimento, embora um tanto divertida, Cressida olhou.

- E depois?

- Não se assuste - disse Cristóvão baixinho. - Este dá sorte. É para si.

- Para mim?

- Sim, para arranjar um bom marido.

- Obrigada. O senhor é muito amável, mas isso é uma coisa de que eu me hei-de encarregar. Agora vá ao seu chá.

- Há-de ser alto - continuou Cristóvão - e louro, mas não muito louro, mais ou menos da minha cor. Há-de ser forte, de espírito e de corpo, e elegante. Um pouco como eu. Deve possuir o bastante para a manter confortàvelmente, e uma profissão. Podia, por exemplo, ser arquitecto, para lhe fazer uma casa bonita. Deve ser bondoso para com os órfãos. Olhará para si... uma vez só... esquecerá todas as outras mulheres. Deve ser paciente e humilde e nem sequer lhe pode passar pela cabeça que uma rapariga como você olhe para um tipo como ele. Deve viver cheio de esperança e sentir-se grato se, de vez em quando, o contemplar. Há-de conquistá-la a pouco e pouco e querer-lhe muito, protegê-la, apertá-la nos braços e dizer-lhe que a ama do fundo do coração, e que espera um dia poderem casar-se e serem muito felizes...

Josette mexeu-se. Tirou um braço para fora da roupa e voltou-se inquieta. Num instante, Cressida curvou-se sobre ela, murmurando palavras tranquilizadoras e deitando a Cristóvão um olhar cheio de censura e acusação.

- Olhe, veja o que fez.

 

Não demorou muito que a senhora Belchamber exprimisse o desejo de ir a Greensleeves, baseando-se no facto de ser proprietária duma bonita casa e portanto com o direito de inspeccionar a alheia. Não queria que Cressida se incomodasse a acompanhá-la. Ficaria a tomar conta das crianças, a passear pelo parque, e ela diria à governanta da casa que lha mostrasse.

Cressida explicou que a governanta não tinha autorização para a mostrar fosse a quem fosse. Por ordem do pai, seria sempre ele a servir de guia.

- Mas isso é uma ordem idiota - comentou a senhora Belchamber, aborrecida. - Não gosto de ninguém atrás de mim. Se ele tem medo que o roubem, não devia consentir que as coisas susceptíveis de serem roubadas andassem por ali assim. Quando ele voltar aqui outra vez, sei lá onde já estarei!

Cristóvão ouviu esta última frase com profundo alívio. Era a primeira vez que ela se referia ao seu afastamento. Tão deliciosa era a idéia de se ver livre dos seus comentários azedos que, quando Cressida explicou que o pai devia chegar no dia seguinte à tarde, ele ofereceu-se para acompanhar até lá a anciã.

- Está bem, se não chover - disse ela sem maiores agradecimentos.

Não choveu. Cristóvão caminhou ao lado dela, murmurou meia dúzia de palavras de delicadeza, convenceu-a a não ameaçar o touro com o chapéu de sol, e interiormente maravilhava-se com a diferença que havia entre os deliciosos passeios que fizera ao lado de Cressida e a actual marcha forçada ao lado de... e recordou uma série de epítetos pouco lisonjeiros para aquele corvo negro. O poeta que afirmou que a mulher "eleva o espírito e encanta os ouvidos" certamente não conhecera a senhora Belchamber.

Perguntava a si mesmo se o major Gray, avisado da visita, acharia que valesse a pena perder tempo com ela. Mas o aparecimento da figura alta e elegante, enquadrada na porta, provou-lhe à evidência que o major achava que tudo o que vinha à rede era peixe. O seu cumprimento palaciano, muito embora não tivesse o menor efeito sobre a senhora Belchamber, despertou a admiração de Cristóvão. Fez as apresentações tão curtas quanto possível.

- Dá-me licença que lhe apresente o major Gray? A senhora Belchamber que deseja ver a casa. Quererá ter a amabilidade de...

A senhora Belchamber interrompeu-o:

- Também tenho uma casa no gênero desta, mas não tão antiga. De que época é esta?

- Foi começada em 1300 e acabada no tempo de Eduardo II - informou o major Gray, sem se notar na sua voz aquele tom monocórdico do guia que repete a mesma coisa pela milésima vez. - Não é única, claro. Tenho...

Interrompeu-se para perguntar a Cristóvão:

- Não se vai embora, pois não?

- vou sair, se me der licença. Vim apenas acompanhar a senhora Belchamber...

O major Gray insistiu com uma persuasão insidiosa:

- Bem, mas fique, e acompanhe-a depois, quando ela tiver acabado de ver a casa. Há muitas coisas que pode ver numa segunda visita, a não ser que tenha pressa de voltar...

As palavras "para junto de Cressida" não foram pronunciadas, mas flutuaram no ar.

- Eu fico - disse Cristóvão tranqüilamente.

Acompanhou-os, verificando que o major Oray não achava que merecia a pena alterar uma palavra que fosse das fórmulas de que se servira quando mostrara a casa a Cristóvão. Vinham-lhe à idéia as palavras de Scotty; mas havia sempre Cressida a impedi-lo de observar as coisas com um espírito excessivamente crítico. Enquanto o major falava, e a senhora Belchamber metia o nariz aqui e ali, Cristóvão tentou analisar os seus próprios sentimentos. Estudava o major Gray com a atenção que as circunstâncias lhe permitiam e estava espantado com a amargura que o dominava, ao lembrar-se da sua primeira reacção perante a sua figura tão atraente e a sua voz tão aliciante. Sabia agora que não fora inteiramente devido ao sortilégio que a casa exercera sobre ele; proviera também da personalidade do seu guia. Poucos homens haveria, passada a juventude, capazes de inspirar um tal sentimento de simpatia e confiança, de ser ao mesmo tempo ponderados, estranhamente juvenis, autoritários e divertidos de conseguir dominar, como parecia, um ânimo tão rígido como o da senhora Belchamber. Compreendia agora o motivo da sua primeira capitulação, mas o que não compreendia era o seu profundo e quase amargo desgosto por o que via não ser, apesar de tudo, senão uma máscara. Não estava ali um homem do gênero de que gostara tanto, mas simplesmente um actor.

Era evidente - e a boca de Cristóvão torceu-se num amargo sorriso - era evidente que até então tinha dado aos psicólogos menos crédito do que eles mereciam. Considerara a palavra "complexo" como fazendo parte dum novo calão, e aqui, no Salão Nobre de Qreensleeves. estava decidido a penitenciar-se, porque ele próprio demonstrara ter um complexo; ele próprio poderia servir como exemplo em qualquer livro: o filho póstumo, que inconscientemente procura um pai. O seu segundo nome - reflectiu com certo desdém - devia ser Japhet.

Com certo esforço voltou à realidade. Reparou que a visita estava justamente a acabar; encontravam-se no vestíbulo, olhando para uma mesa sobre a qual se via um candelabro.

- Anglo-normando - explicou o major Oray, erguendo-o com toda a reverência. - É bonito, não é?"

A senhora Belchamber, olhando com muito interesse, concordava.

- Está claro que não é autêntico - continuava o major, como que pesaroso.

O rosto da senhora Belchamber reflectiu surpresa, que logo dominou.

- Penso que não... mas o senhor pode afirmar que sim.

Pousou-o cuidadosamente e ficou a olhar para ele.

- Suponho que não pensará em vendê-lo.

Era espantoso, pensava Cristóvão. Nunca falhava. Perguntava a si próprio quantas vendas teria feito desde que viera para Oreensleeves. Na parede, lá se via a espingarda que comprara; não, não a que Cristóvão comprara, visto que essa o major lha enviara para a herdade e ele remetera o respectivo cheque à sua ordem para o clube de Londres; não, não era a mesma, mas uma imitação que aguardava a oportunidade em que os olhos penetrantes e experimentados do major pudessem descobrir num cliente algum interesse por armas de fogo. Agora lembrava à velhota, com uma gargalhada, que o candelabro não passava de uma cópia bem realizada

Cristóvão ouviu-o dizer:

- Olhe que não é verdadeiro

- Quer vendê-lo? - repetiu a senhora Belchamber. O major deu a sua deliciosa gargalhada.

- Se lhe agrada comprá-lo Se eu fosse negociante, não hesitaria em dizer que era legítimo e pedir-lhe bom dinheiro por ele... Não sou, porém, negociante. Eu simplesmente...

Cristóvão afastara-se. Tinham chegado à altura de discutir preços e ele não queria ser indelicado. Ficou junto duma janela, remoendo os seus próprios pensamentos, circunvagando o olhar por aquele antigo lindo vestíbulo e lamentando, sentindo que havia de lamentar até ao fim da vida, que a casa e o dono não se equivalessem um ao outro.

Foi despertado pela voz da senhora Belchamber, que se lhe dirigia.

- Estou pronta - disse ela abruptamente. Exprimiram os seus agradecimentos, e o major Gray, encantador, veio vê-los partir.

Quando já iam afastados, Cristóvão comentou:

- É uma casa muito bonita.

- É interessante - admitiu a senhora Belchamber. - Mas eu não precisava daquele homem sempre atrás de mim. O que o levaria a pensar que sou tão simplória, como todos os outros seus clientes?

- Simplória?

- Sim, foi o que eu disse. Você ouviu o preço que ele me pediu por aquela imitação do candelabro ânglo-normando?

- Não. Mas eu pensava...

- Não, você não pensava coisa alguma. Não há ninguém que pense, mesmo só um bocadinho, que se deixe levar por aquelas maneiras palacianas. O homem é um negociante e devia ter uma tabuleta cá fora.

- Tabuleta

- Um saca-rolhas. Eu desejava que não repetisse o que lhe estou a dizer. Imagino que me julgava de volta à herdade com o candelabro reverentemente apertado nos braços?

- Pensava...

- Você é incapaz de pensar. Naturalmente ele já lhe vendeu alguma coisa, não?

Cristóvão foi obrigado a admitir, com a maior das relutâncias, que de facto era verdade.

- Já sabia. É fatal - afirmou a senhora Belchamber. - Ainda uma outra coisa a respeito do major: Se ele soubesse quais são os seus deveres de pai, devia afastar a filha daquele seu tão estranho amigo.

- Scotty nunca prejudicou nenhuma mulher na sua vida.

- Não deve ser por não ter tentado, mas porque mal elas reparam nele, vêem logo o que ele quer. Tem um ar de animal.

- É hóspede dele, senhora Belchamber - disse Cristóvão, em tom cortante.

- Ah, descanse que a mim não me faz mal. Conheço muito bem os homens e quanto mais se conhecem menos se gosta deles. Disse isso muitas vezes a meu marido.

Com o seu ar mais frio, Cristóvão perguntou:

- Tem tido notícias dos seus amigos?

- Que amigos?

- Os amigos para casa de quem ia, quando veio para Inglaterra.

- Quem lhe disse que eram meus amigos? Não eram tal. Simplesmente as pessoas a quem dei a minha casa, e nada mais. E aquela detestável criatura que me foi esperar é a governanta.

- Teve notícias dela?

- Claro que não. Como podia eu ter noticias, se ela não tem a mínima idéia do local onde estou

- É justamente um assunto de que eu andava morto por lhe falar.

- Então fale lá - disse a senhora Belchamber.

- Não quero de maneira nenhuma meter o nariz na sua vida, mas sinto que de certo modo estou metido nela... quer dizer...

- Quer dizer que está numa situação extremamente complicada, e eu concordo consigo. Viram-no comigo no comboio, em França e no barco, e agora, em Inglaterra. Depois meteu-me no seu carro e partiu na minha companhia. com franqueza, não percebo qual seja a grande complicação.

- Mas eu não estou nada aborrecido com isso. O que estou a tentar mostrar-lhe é que deixou uma série de pessoas indefesas, na mais triste das situações... A senhora tem papéis a assinar e até lá ir assiná-los...

- ... Os velhotes vivem no melhor conforto possível na minha casa. E quanto aos papéis, meu caro senhor, podem muito bem trazer-mos Não há nada que me obrigue a fazer uma viagem que me aborrece, só para ir assinar uns papéis. Demorar-me-ei aqui durante algum tempo, a cuidar destas pobres crianças, e a comissão de Melhampton, que me procure e me encontre. Seria a maneira de se interessarem por qualquer coisa. Melhampton é um lugar extremamente triste.

A senhora Belchamber emitiu um som estranho e esquisito, que Cristóvão verificou ser uma gargalhada, a primeira que lhe ouvira, e depois continuou:

- Se quiser seguir os meus conselhos, cuide dos seus negócios e deixe os meus. Olhe, cuide de Cressida Cray, por exemplo.

Ela esperou, mas o rapaz não lhe deu resposta. Cristóvão olhava, impaciente, para o touro. Se ao menos ele houvesse tido a lembrança de trazer um trapo vermelho, se não fosse daqueles homens que estavam convencidos da sua obrigação de proteger as mulheres, se...

- Ouviu o que eu disse - perguntou ela, instantes depois.

- Ouvi, sim. Mas se não se importa, eu...

- O senhor tomou a seu cargo estas três crianças, e agora do que precisa é duma rapariga forte, com sentimentos maternais. Esta não me parece que seja forte, mas é uma rapariga capaz.

- Ouvi a senhora dizer-lhe que ela parecia muito forte, quando lhe pediu para mudar a mobília.

- O senhor tem grandes responsabilidades e ainda não as pesou devidamente. Se eu não estivesse aqui para o auxiliar, nesta grande complicação em que se meteu, com um caso de sarampo e mais dois que hão-de vir...

- Não é absolutamente necessário que Roberto e Paulo tenham sarampo.

- Claro que hão-de ter. Estão na idade.

Cristóvão viu com satisfação a figura de Scotty que se aproximava.

- Aí vem o seu estranho amigo - disse a senhora Belchamber.

- Olá, olá, olá! - cumprimentou Scotty. - Deram um bonito passeio?

- Vimos a casa-respondeu a senhora Belchamber, com frieza.

- Ah, muito interessante - comentou Scotty.

- Devia tentar convencer o major a desfazer-se um dia de meia dúzia dos seus tesoiros. Tem coisas muito bonitas.

- Muito obrigada, mas eu tenho tudo de que preciso.

- Nem todos se podem gabar disso - suspirou Scotty. - Quantas pessoas poderão dizer o mesmo? Eu não, e Chris também. Nunca tivemos aquilo que queríamos. Mal Chris pensa numa rapariga, começa logo a interessar-se por outra.

- Abre a porta - ordenou Cristóvão - e deixa-te de patetices.

- Estou a pensar em Robson. Mal te viste livre do compromisso que tinhas com ela...

- Compromisso? - exclamou Cristóvão com os olhos cravados no amigo. - O que é que tu queres...

- A rapariga da cabeleira - lembrou-lhe Scotty.

- Ah, sim Meu Deus, ela estava para casar com nós os quatro, simultaneamente.

- E Elinor Gateson, lembras-te dela? Ambos...

- Abra a porta - disse a senhora Belchamber. Scotty empurrou a cancela. A senhora Belchamber atravessou-a e entrou em casa seguida pelos olhares dos dois homens.

- Gostaste do passeio? - inquiriu Scotty.

- Porque não estás a mungir as vacas? - perguntou Cristóvão.

- Querias que eu estivesse a mungir as vacas com a Cressida sozinha em casa? Querias?

- Queres dizer... que estiveste com Cressida durante todo este tempo?

- Durante todo este tempo - disse Scotty com grande complacência - Tenho uma coisa a dizer-te. Escuta. Agora afastas-te, sim

- Disseste-me - comentou Cristóvão - que nada podia desviar-te do serviço de mungir as vacas.

- E é verdade. Havia de esquecer os pobres dos animais? Quando, todavia, antecipadamente sei que vão todos sair e que Cressida vai ficar sozinha, posso adiantar um bocado o trabalho, não posso? Não reparaste na pressa com que engoli o almoço e tornei a sair?

- Mentiroso. Disseste que tinhas uma vaca doente.

- Eu disse isso? Então menti. - Cristóvão declarou, resignado:

- Eu devia ter pensado nisso. Não é a primeira vez. Quando eu tinha seis anos, pregaste-me a primeira partida, e agora já contas com mais vinte anos de prática.

- Vinte anos! - exclamou Scotty. - O tempo foge, não é verdade? Quer dizer: tu tens vinte e seis e eu estou quase nos trinta. Vais mandar os dois rapazes para o nosso velho colégio?

- vou, muito embora as mensalidades me tenham aterrorizado. Lembras-te de quanto os nossos pais gastaram connosco, durante todo o tempo que estivemos na escola?

- Lembro-me muito bem. Meu pai dizia-mo constantemente e repetia que não se importava nada de gastar o dinheiro que fosse preciso, se conseguissem meter-me alguma coisa na cabeça

- Lá tentar, tentavam, mas era picar em pedra.

- Em osso. Nunca consegui compreender fosse o que fosse. Tudo aquilo me parecia tão pouco relacionado com as minhas necessidades! Lembras-te dos jardins rectangulares, com caminhos com uns tantos metros de largo E dos trabalhadores que nunca acabavam a sua tarefa? Parece-me também que nunca vi um que... Para onde estás a olhar?

- Para aqueles rapazes. Andam cada vez mais sujos, apesar de todos os esforços da senhora Belchamber.

- Achas? Os chapéus fazem-lhe muita falta. Davam-lhe ar de continentais. São muito simpáticos, Chris, mas são franceses, e isso é uma coisa que há-de cheirar a léguas, enquanto viverem. Não consegues fazer deles ingleses.

- Nem preciso. Eles são ingleses

- Ah, no papel, eu sei. No passaporte. Não imagines, porém, que a perda dos chapéus pode ter qualquer influência. São filhos da mãe deles, e muito embora não tenha nada a dizer contra ela, não se parecem nada com teu tio.

- Parecem-se nas orelhas, nas mãos, no arcaboiço, no queixo, na maneira de andar, no...

- Bem, não estou a discutir. Quero simplesmente dizer que nunca conseguirás transformá-los. Podes mandá-los para a nossa velha escola, que era excelente, e dentro de pouco tempo eles serão capazes de falar o melhor calão escolar, mas nunca passarão de francesitos. Espera e verás. Durante toda a sua vida, quando abrirem a boca e falarem um inglês impecável, todos dirão: "Mas que bem que falam o inglês!" Tal como a senhora Garcia que vem, desculpa-me a inexactidão do termo, limpar a casa. Quando ela abre a boca, tu esperas que saiam pérolas do Mediterrâneo, e o que é que sai?

- Calão?

- Saem rãzinhas do Tâmisa, como naquele conto de fadas

- Que conto de fadas

- Não estejas a desviar a conversa. Pretendo apenas explicar-te

- Ai, então não insistas. Não posso ouvir-te. Tenho que fazer.

- O quê?

- Tenho de ir a Londres, ao escritório.

- Tu tens um escritório - perguntou Scotty sarcàsticamente. - Espero que nunca contassem que fosses para lá trabalhar.

- Tenho de ir tratar dumas coisas e levo Cressida comigo. Vamos dar um passeio e assistir a um espectáculo.

- Só passando por cima do meu cadáver!

- Foi o que nós pensámos. Por isso queremos levar-te connosco. Mas vamos a Londres, não sei se compreendeste. Por outras palavras, temos de nos vestir.

- Tu queres que leve vestido comprido com lentejoulas?

- Pois claro.

- Sabes? - disse Scotty pondo de lado a forquilha e ficando a olhar na direcção de Grenton. - Há talvez... oito anos... que não vou a um espectáculo. Ainda há coristas?

- Não em fila como antigamente. Agora espalham-nas pelo palco.

- Deve ser mais difícil ter uma visão de conjunto, não?

- Não. Ver uma é o mesmo que vê-las todas. Às vezes têm trabalhos individuais, umas saltam a um canto, outras torcem-se noutro, outras sentam-se no chão. Uma espécie de bailé.

- Achas que eu gosto? - perguntou Scotty, hesitante. - Antigamente, elas eram adoráveis. Todas alinhadinhas e as pernas como se fossem uma só, enorme e bonita.

Suspirou fundo às suas lembranças do passado e disse:

- Está bem, também vou.

A questão do que ele iria vestir causou certa preocupação, visto que afirmara, a principio, que nunca se tinha vestido com fato de cerimônia. Cristóvão insistia com ele, para que volvesse os olhos ao passado, a certas noites de pândega, quando ambos ajudavam a viver os clubes nocturnos, e ele concordou com certa relutância que nessa época devia ter-se vestido com trajes de cerimônia.

- O que posso fazer - sugeriu ele - é tirar os fatos duma das malas que abri, sob pressão da senhora Belchamber. Tenho lá fatos brancos, e com um charuto posso passar por um plantador brasileiro.

- Havemos de encontrar aquilo de que precisas, nem que tenhamos de abrir todas as malas.

No entanto, mal tinham aberto a terceira, Scotty, cheio de alegria, comunicou que acabara a busca.

- Olhem

Precipitaram-se em tumulto para espreitarem na direcção do que o dedo apontava: Cristóvão, que abrira a arca, Roberto e Paulo segurando as ferramentas, Cressida e a senhora Garcia com as compras para casa, a senhora Belchamber, que assistira, a fim de se convencer, segundo ela, de que o senhor Scott há muito já tivera qualquer coisa para vestir.

- Cá estão eles! - anunciou Scotty.

- Aquilo?

A senhora Belchamber, com grande repugnância, puxou por um casaco que já fora preto e agora era dum verde acinzentado, e por um par de calças cheias de buraquinhos.

- Isto?

- Não estavam assim quando os meti lá dentro - lamentou Scotty. - Quem me disse que estas malas eram perfeitamente impermeáveis?

- Tu não vais vestir isto - disse Cristóvão.

- Porque não? O casaco escova-se. É um bom casaco. Comprei-o em Paris, na Rue de Ia Paix, número não sei quantos. E se me vou sentar num teatro às escuras, a maior parte dos buracos não se vêem.

- Não pode sair com Cressida vestido dessa maneira - disse a senhora Belchamber.

- Bem, eu não digo que sejam muito elegantes, mas...

- Ela não poderá suportar o cheiro. E as outras pessoas também não.

- Se me deixarem, eu levo-os para casa e verei o que posso fazer - ofereceu Cressida.

Pôde fazer muito pouco. Mas com auxílio duma camisa emprestada por Cristóvão, um lenço branco bem arranjado em volta do pescoço, e que pertencera ao defunto senhor Belchamber, uma gabardina das que não são de homem nem de mulher e de que a médica se esquecera, todos concordaram que Scotty estava capaz de se apresentar em público.

O passeio constituiu um autêntico êxito. Os três dirigiram-se a Londres, depois do almoço, e Cristóvão deixou Scotty tomar conta de Cressida durante toda a tarde, enquanto ele tratava dos negócios que ali o tinham chamado. Separaram-se depois do chá, Cristóvão e Scotty para se vestirem em casa do primeiro, Cressida para fazer o mesmo na dela, onde os homens a foram buscar para começar as solenidades da noite. Scotty gostou do jantar, mas teve certas dúvidas acerca da peça que foram ver, tendo dito aos seus companheiros:

- Um coro é sempre um coro. Não pode haver duas opiniões. Não digo que estas raparigas não sabem dançar. Sabem e até bastante bem. Se cada uma, no entanto, começa a representar individualmente, já não há o direito de lhe chamar coro. Antigamente, quando eu era freqüentador destes espectáculos, o termo era apropriado. A estrela cantava a sua canção, e a orquestra, que se não via, acompanhava baixinho. Depois, de repente, tudo mudava. Tambores, trompetes, barulho, fanfarra, e surgiam de seis a dezasseis raparigas, todas elas muito escolhidas, todas em linha, e coladas umas às outras. De doze a trinta e duas lindas pernas, a funcionarem como se fossem uma só. Doze ou trinta e duas pernas, vestidas de seda e lindamente...

- Já basta de descrição - interrompeu Cristóvão.

- Eu gosto como fazem agora - declarou Cressida.

- Porque lhe desagrada?

- Dá-me mais trabalho assim - explicou Scotty. - com uma rapariga aqui, outra ali, mais duas no meio, outras duas num canto, canso os olhos a andar dum lado para o outro. Além disso, aposto que se pegássemos num dicionário veríamos que a palavra coro... Tem um dicionário? - interrompeu para perguntar a um criado, surpreendido.

- Um dicionário, senhor?

- Se faz favor.

- Um dicionário francês

- Francês? Para quê... Ah, muito obrigado, estou a perceber. Não, não; sei o que é o soufflé e o vol-au-vent. Do que eu preciso é dum simples dicionário de inglês.

- Dicionário de inglês, vou ver, senhor.

O dicionário levou certo tempo a aparecer. Pensou-se que o gerente devia ter um, mas muito embora fosse verdade, não o tinha ali. Sabia duma família que morava ao lado... Não, infelizmente, não o puderam encontrar. Um dos criados, porém, tinha uma tia que ocupava um quarto num bloco...

O dicionário da tia do criado não se referia a coristas; no entanto, forneceu a Scotty o esclarecimento desejado. Segundo ele leu, coro era um conjunto de vozes que pronunciavam simultaneamente as mesmas palavras" Lá estava, disse, triunfante, devolvendo o dicionário acompanhado duma gorjeta que, se fosse parar às mãos da tia do criado, lhe daria conforto por algum tempo. Era justamente o que ele dissera. O movimento de trinta e duas encantadoras pernas, um movimento simultâneo e igual.

- Come - disse Cristóvão. - Temos de ir embora.

- Para que é tanta pressa? - perguntou Scotty. - Passei oito anos sem aqui vir e nunca me diverti tanto, desde o dia em que tua mãe nos foi buscar ao colégio para eu ir passar umas férias contigo. Passávamos tempos muito bons com ela.

- Não compreendo - disse Cressida - como podem ter sido amigos na escola, com quatro anos de diferença, numa idade em que esses quatro anos marcam praticamente existências separadas.

- Isso é quando na escola se passa duns anos para os outros. A maior parte das pessoas vão para o colégio e passam do primeiro para o segundo, e assim sucessivamente até chegarem ao sétimo. com Scotty não aconteceu assim.

- Ah, isso é que passei - protestou ele. - Talvez não fosse pelos meios mais ortodoxos, isto é, quando estavam fatigados de mim, num ano, mandavam-me para outro qualquer onde houvesse vaga. Na verdade nunca tive tempo para me aborrecer.

- Chegou a aprender alguma coisa - perguntou Cressida.

Com ar triste, Scotty confessou:

- Pode dizer-se que nada. Ainda fiz tentativas mas achei que pensar era um trabalho fatigante e desisti. Costumavam perguntar-me: "Não tens vergonha, um rapaz do teu tamanho, de estar aqui com este que tem metade da tua idade e da tua altura?" A princípio, eu realmente achava-me pouco à vontade, mas depois comecei a gostar. Não tinha aquela maçada de ir todos os anos para a mesma turma com os mesmos companheiros. Tinha sempre novos colegas, que vinham dos anos anteriores e alguns bem simpáticos, tal como Chris, que aqui vemos presente. As mamãs deles tinham pena de mim, levavam-me a passeio e acarinhavam-me. Todas elas eram muito amáveis, mas eu sempre preferi a mãe de Chris.

- Ela tratava-o melhor do que as outras? - perguntou Cressida.

- Não. Bem sim, tratava, mas não era por causa disso. Era... a graça que ela dava a um passeio. Era bonita e eu gostava imenso da impressão que causávamos sempre que entrávamos num restaurante. Não íamos atrás do gerente, como a maior parte das pessoas, nem nos sentávamos no primeiro lugar que aparecia. Não. Mal a mãe de Chris parava à entrada, todos pousavam a faca e o garfo, tal como fazem quando a Cressida entra. Mas ainda não tem o ar dela. Há-de tê-lo. É uma coisa que vem mais tarde na vida e só para as mulheres encantadoras. O ar de quem espera por qualquer coisa. Talvez pelas homenagens, julgo eu. Qualquer coisa de tranqüilo e majestoso... Eu podia ir até à porta e mostrar-lhes como é que ela costumava entrar.

- Deixe-se estar onde está.

- Está bem, mas ela era encantadora. De facto, Chris descende duma linhagem de mulheres encantadoras. Não sabia isso?

- Soube-o mal olhei para ele.

- A mãe era uma das três famosas manas Lewinter, sabia? O trio mais fotografado da última geração. Foi pena ter desaparecido a moda dos duelos, porque as velhas espadas - refiro-me a espadas humanas - costumavam discutir umas com as outras acerca de qual das ires era a mais bonita.

- Come - ordenou Cristóvão.

- Pronto, pronto!

- Hão-de ser horas de mungír as vacas e o senhor sem chegar a casa - disse Cressida.

- Casa - repetiu Scotty, que estava a sentir-se sentimental. - Casa! Casa era onde eu costumava sentir-me o mais confortável possível, na minha...

- Na tua indescritível cozinha - disse Cristóvão.

- Na minha confortável cozinha, onde tinha tudo à mão. Lar! Nunca mais terei um lar, enquanto não afastarem de junto de mim aquele inspector sanitário amador. Porque não a vêm buscar? Porque não procuram arranjar-lhe um destino qualquer? Porquê?

- O carro está deste lado - disse Cristóvão. - Tu sentas-te atrás.

- E se pensas que vou deixar-me dormir, desilude-te, meu velho. Os meus olhos irão bem abertos e as tuas mãos não largarão o volante. Eu zelarei por isso.

- E eu também - prometeu Cressida.

 

A suspeita que a senhora Belchamber tinha de que dentro em pouco andariam em sua busca, depressa se verificou ser fundada; pouco tempo após a sua conversa com Cristóvão sobre o assunto, o faro da lei seguiu-a até Grenton, e um inspector do posto de polícia desta cidade, partiu para a herdade, a fim de fazer as investigações preliminares. Era um homem novo, que chegou ali num carro do Estado, e a senhora Belchamber, ao vê-lo entrar no pátio, tirou as suas conclusões e preparou-se para a entrevista.

A princípio a coisa foi demorada, porque o inspector, cuja idéia da sua importância era maior do que o seu conhecimento sobre herdades, deu-se à maçada de ir pela estrada, direito ao portão grande. Este, ferrugento e sem uso, era bastante difícil de abrir, mas cedeu por fim a um vigoroso empurrão, e ele foi dar a um caminho coberto de ervas daninhas que conduzia à porta principal. Aí teve de apanhar a aldraba da porta, tornar a colocá-la cuidadosamente no seu lugar e tocar à campainha. Depois de ter posto esta também no seu lugar, dirigiu-se de novo para a estrada, atravessou o pátio e o quinteiro e aproximou-se da porta da cozinha, que se encontrava aberta. Lá dentro, na bonita e limpa cozinha, viu uma senhora alta, magra e idosa, com um avental sobre o fato preto e um chapelinho, também preto, na cabeça. Ficou à porta durante uns instantes, mas vendo-a demasiadamente ocupada para reparar nele, bateu com os nós dos dedos.

- Queira desculpar... - começou por dizer.

A senhora Belchamber olhou, tirou as lunetas e pôs os óculos de ver ao longe.

- Ah, quer falar com o senhor Scott?

- com o senhor Scott, não. Pensei que fosse o senhor Linden...

- Nunca ouvi falar de nenhum senhor Linden - esclareceu a senhora Belchamber. - O senhor Scott é o dono desta herdade. Chama-se a Herdade Verde. Talvez se tenha enganado.

O inspector chamou a si toda a sua autoridade oficial e disse:

- Ah, não, não. É a Herdade Verde que eu procuro. Posso falar ao senhor Scott? Talvez ele me saiba dizer alguma coisa acerca do senhor Linden. Estará aqui na herdade?

A senhora Belchamber, olhando por cima do ombro do inspector, pensou que seria provável. Scotty transportava, justamente nesse momento, dois baldes de água para os cavalos. Ela sabia que tal operação levaria cerca de dez minutos e quando o viu desaparecer na cavalariça, disse:

- Receio bem que não encontre o senhor Scott. Saiu.

- Saiu? Bem, então pode informar-me quando voltará

- Amanhã. Foi levar um animal muito valioso a uma exposição. A que exposição é, não lhe sei dizer, nem ninguém saberá.

E, em voz alta, perguntou depois:

- Posso ser-lhe útil em qualquer coisa?

O inspector hesitou. Tinha quase a certeza de ser aquela estranha pessoa que tinha na sua frente quem ele procurava. Bastaria perguntar-lhe o nome, fazer-lhe meia dúzia de perguntas rotineiras e dar a sua informação.

- Não tenho necessidade nenhuma de maçar o senhor Scott. Eu vinha saber informações duma senhora que...

- Refere-se à senhora Belchamber? - perguntou ela.

- Sim, sim

- Já vem tarde - disse a senhora Belchamber. Foi-se embora.

- Foi-se embora?

- Partiu ontem. O senhor Scott levou-a à estação de Grenton.

O inspector duvidava. Haviam-lhe dito que...

- Quer ter a amabilidade de me dizer o seu nome? - perguntou.

- Sou Madame Desmoulins. Vim da Suíça com o senhor Cristóvão Heron para cuidar dos seus três priminhos. Chamo-me Teresa e tenho estado com eles desde que nasceram. Posso saber porque me faz essas perguntas

- Desculpe. Eu devia ter explicado. Sou do posto da polícia de Grenton, e vim fazer um inquérito sobre a senhora Belchamber. Ela ia a caminho de...

- Melhampton. Foi o que ela nos disse. Deixou duas direcções: a de Melhampton e uma da Suíça. Posso dar-lhas se quiser.

- Não, muito obrigado. Nós também as temos.

- Se soubermos qualquer coisa, participamos-lhe - disse a senhora Belchamber.

- Muito obrigado.

O inspector correspondeu ao cumprimento da senhora Belchamber e voltou para o carro. Atravessando o pomar na sua direcção, viu dois garotos sujos e dirigiu-lhes um olhar de esperança.

- Aqueles dois pequenitos são...

- Duas crianças que o senhor Heron trouxe consigo. É pena que ainda não falem inglês.

- Ah, não?

- Nem uma palavra.

A senhora Belchamber acompanhara-o ao carro; ficou um pouco afastada a vê-lo seguir e a observar Roberto e Paulo, que se aproximavam para delicadamente lhe abrirem a porta.

- Ok... Merci - proferiu o inspector, sorrindo. - Merci beaucoup.

Roberto, surpreendido, respondeu, também em" francês:

- Rien.

O inspector entrou para o carro.

- Il fait - pronunciou, hesitante -, il fait beau temps aujourd'hui.

Roberto e Paulo, encantados, concordaram que sim, que estava um lindo dia.

- Bem au revoir!

- Au revoir, monsieur. Au revoir, monsieur.

O inspector partira. A senhora Belchatnber voltou para a cozinha e Scotty, que saía dos estábulos, perguntou:

- Era um automóvel?

- Sim - respondeu a senhora Belchamber sem parar.

- Quem era?

- Um vendedor de escovas - disse ela. - Andam sempre a vender escovas. E vocês, meninos, por onde têm andado?

- Fomos à casa grande.

E Roberto estendeu a mão na direcção de Greensleeves.

- Vimos o pai de Cressida, o senhor Gray, e ele andou a mostrar-nos a casa.

- Então ele já cá está outra vez. Sim, está cá hoje.

Se o major Gray tirou quaisquer conclusões das freqüentes visitas de Cristóvão a Greensleeves, não deu o menor indício. A maior parte das vezes estava naquela sua atitude tranqüila, à entrada da casa, enquadrado pelo grande portão, e nos dias de sol, uma combinação de luz e de sombra espalhava-se à sua volta, mas nos dias de frio, quando o tempo se punha inclemente, as chamas dum grande fogo lambiam o fogão do vestíbulo que lhe ficava por detrás. Os carros chegavam, esperavam pelos donos e tornavam a partir e Cristóvão notou que a volta pela casa, muito embora parecesse ser feita inteiramente à vontade, era cronometrada com precisão. Mesmo os convidados que ficavam para tomar chá eram empurrados para os carros, a tempo de se afastarem antes da chegada dos seguintes. A época de turismo, a boa época para o major Gray, estava no ponto culminante, e Cristóvão via, com uma admiração nada benevolente, que os cumprimentos entusiásticos da chegada e a visita à casa seguiam sempre o mesmo padrão de cerimonial; como um bom actor, o major Oray, embora representasse o seu papel há muito, dava a todo o público a sensação de o fazer pela primeira vez. Se bem que Cressida nunca aparecesse, Cristóvão às vezes ia a Greensleeves com a esperança de a ver, e verificava que o major seguia sempre a rotina que lhe era familiar. Sem vaidade, Cristóvão sabia que ele mesmo se ajustava ao ambiente o bastante para servir os propósitos do seu hospedeiro. Se ele fosse menos apresentável, estava certo de que seria posto na rua, delicada e impiedosamente.

Falou algumas vezes com Cressida acerca do major, mas, conquanto a jovem se exprimisse sem reservas a respeito da carreira do pai, as suas respostas eram sempre despidas de qualquer expressão sentimental. Sim, a mãe morrera quando ela tinha apenas oito anos, o pai vivia no estrangeiro e decidira mandá-la para a Suiça. Não, ele visitava poucas vezes a Inglaterra. Nessa época, nem sequer havia uma casa para onde pudesse ir, mas sempre que tinha oportunidade, visitara-a e passara algum tempo na vizinhança da escola. Sim, ela sentira-se um pouco isolada, mas não imaginava que se sentisse tão solitária como o pai, porque ele adorava a mulher e desde a sua morte nunca mais fora o mesmo homem. Não, também não esperara herdar Greensleeves, e nem um nem outro se sentiram especialmente contentes, quando souberam a notícia. A casa era bonita, alguma mobília era valiosa, mas, juntamente com a casa, não lhes haviam deixado dinheiro, e com o pequeno rendimento do major não havia a mínima possibilidade de lá viver. Não, ela não desejava voltar para a Suíça, e agora contava mais amigos em Inglaterra do que lá. Tinha um bom emprego e gostaria de o manter. Haviam tentado vender ou alugar Greensleeves, mas não tinham aparecido ofertas razoáveis, Não, nunca vivera em Londres, com o pai. Ele não era pessoa que pudesse seguir, ou se interessasse, sequer, pela rotina dum lar organizado e preferia viver no seu clube. Não, não passava todo o ano em Inglaterra; no fim do Verão ia para o estrangeiro.

Cristóvão não tentou sondar os sentimentos da rapariga, mas sabia bem quais eles eram. A lembrança da primeira impressão que o major Gray produzira nele, ainda estava fresca na sua recordação A desilusão e a curiosa amargura que sentira, também não haviam desaparecido. Facilmente podia conjecturar quanto teria custado a Cressida chegar à mesma conclusão. A sua atitude para com o pai, tal como a deste para com a filha, era calma e polida. Se havia nela uma falta de exuberância, poder-se-ia atribuir ao carácter britânico.

Cristóvão, por agora, sentia-se satisfeito por deixar as coisas tal como estavam. O receio de que a senhora Belchamber exprimisse, com a habitual franqueza, o que pensava acerca do seu casamento, parecia-lhe infundado. Ficara aliviado, mas um tanto surpreendido. Poupar os sentimentos dos outros, mesmo quando se tratasse de Cressida, não fazia parte da maneira de ser da velha dama.

No entanto, a senhora Belchamber também tinha os seus problemas. A maneira como se livrara do inspector, magistral na sua própria opinião, não punha ponto final nas investigações. Muito embora se gabasse de ser inteiramente livre e de fazer o que quisesse, seria necessário, quando a encontrassem, declarar quais eram as suas intenções. Se não tencionava assinar os documentos e ocupar as dependências que insistira em reservar para si, é porque se lhe haviam metido na cabeça outras idéias; a polícia, vindo até ali, iria ainda mais longe. O mais que ela podia fazer, era declarar a sua intenção de ficar com as crianças, até que o sarampo acabasse.

O mesmo pensamento tivera Scotty.

- Quando eles a descobrirem - disse a Cristóvão - ela terá de provar o que fez. Nessa altura, verás que é como se estivesse aqui instalada para toda a vida, não achas?

- Não, quando penso no caso com senso não sou dessa opinião - respondeu Cristóvão. - Ela não gosta nem de mim, nem de ti, nem da senhora Garcia, nem da herdade, nem dos cheiros. A água quente e os confortos caseiros fazem-lhe falta.

- É engraçada a paixão que esta mulher tem pela limpeza. Eu também gosto de limpeza, está claro, mas num local como este não se podern observar todas as regras. Tu não podes tirar as botas todas as vezes que entras e sais, e mesmo não pode deixar de haver aqui e ali um cheiro, embora muito leve, aos utensílios do campo. Esta herdade, comparada com algumas outras, brilha ao longe. Olha para a pintura.

- Mas isso é só no exterior. Porque não gastaste algum dinheiro com os arranjos interiores?

- Porque nunca estou lá dentro. Se eu tivesse adivinhado que a casa iria servir de hospital, naturalmente tinha arranjado salas de operações, etc. Das outras vezes que estiveste comigo - insistiu Scotty não eras tão meticuloso na maneira de viver.

- Durante os últimos oito ou dez anos, tens percorrido rapidamente um plano inclinado, que vai do cavalheiro ao labroste. A senhora Belchamber tem absoluta razão. O teu aspecto é horrível, cheiras horrivelmente, e em qualquer parte te confundiriam com um vaqueiro.

- Eu sou vaqueiro.

- Mas porquê? Começaste como dono duma propriedade agrícola e acabas como moço de estábulo. Isto é progresso

- De certo modo. É inútil, Chris... Nunca consegui resolver bem os meus problemas econômicos.

Faço tudo o que os outros lavradores fazem e mais ainda. Gosto de trabalhar e gosto de aprender.

- Tu nunca aprenderás. Eu conheço uma vaca quando a vejo. E repara no que tens cá em casa. Meu Deus, Scotty. Em vez de comprares vacas de raça e boa compleição, só escolhes as que parece pedirem-te que as compres.

- Mas é justamente o que acontece. Ninguém oferece dinheiro por elas e elas sentem-se ofendidas. Julgas que uma vaca não tem sentimentos?

- Se não te importasses com os sentimentos das vacas e preferisses o teu interesse em manteiga e em leite...

- Quando comecei, foi justamente assim que agi e também não deu resultado. Nada dá resultado. Tinha empregados que eram tidos como conhecedores do ofício, e também não sabiam nada. Em resumo, Chris, trabalhei mais duramente e durante mais tempo com as minhas mãos, e obtive menos resultados do que qualquer das pessoas que tu conheces, não é verdade?

- Tens razão.

- Perdi tudo, praticamente, com que comecei, e agora resta-me o que os meus procuradores têm nas mãos e nunca levantarei, a não ser que esteja a morrer de fome. Mas eu gosto disto, gosto deste sítio, e se conseguir simplesmente equilibrar as coisas, continuo, Gosto do ambiente desta casa. Percebo um bocado de herdades. Colocam-nas sempre nos piores lugares. São tão isoladas, que, olhando em volta, parece sermos os únicos proprietários da pradaria. Algumas são baixas e causam tristeza, outras estão lá nos cimos e tem de haver muito cuidado para fazer descer os animais. Podem ser sujas, desabrigadas e acabrunhantes... Não digo que todas sejam assim, mas as boas são raras. Quanto a esta... tu podes ver.

- Mas tu não viste. Compraste-a às cegas.

- É verdade, mas nunca me arrependi. Mesmo se Gray, quando me viu chegar, tivesse duplicado o preço, eu ainda me sentiria contente. Tem bom ar, boa água, mesmo que não saia de torneiras, e uma vista maravilhosa. Tenho possibilidades de caçar e pertence-me um palmo de rio. Tenho uma boa matilha e, dois bons cavalos. Que mais pode um homem desejar?

- Dinheiro, lucro, percentagem do capital que se emprega, recompensa pelo seu trabalho, sentido de realização, qualquer coisa que se transmite aos filhos.

- Filhos - e Scotty abanou a cabeça, - Não tenho filhos. A única vez na minha vida que pensei em filhos foi quando vi Cress, e como não posso casar com ela...

Cristóvão concordou:

- Não, mas encontrarás ainda um dia qualquer outra rapariga.

- Para essas coisas perdem-se muitos passos e muito tempo, e quando lá chegasse já seria muito velho para apreciar. Não te esqueças de que eu tenho bem mais quatro anos do que tu.

Estas palavras parecera impressionarem Cristóvão, que olhou para o amigo pensativamente.

- Scotty, tive uma idéia.

- Olha que tem de ser uma boa idéia Eu gosto delas magras é...

- Escuta. Eu faço anos dentro de pouco tempo.

- Sim? É uma coisa que eu procuro sempre esquecer. Poupa-nos muita maçada.

- Escuta. Se por essa altura já estivermos livres da Belchamber, mas mesmo que não estejamos, vamos dar uma festa. Que dizes?

- Uma festa para mim é sempre uma boa idéia disse Scotty. - E há ainda outra coisa.

- O que é?

- Os anos de Cressida são dentro em pouco.

- Então temos mesmo de fazer uma festa. E os rapazes vão gostar. Que dizes?

- O que tenho a fazer - perguntou Scotty, cauteloso.

- Nada. Eu trato de tudo.

- Pronto. Nesse caso conta comigo. A casa pertence-te. Há uma pastelaria na cidade, onde fazem bolos com enfeites cor-de-rosa e tudo o que é usual num bolo de aniversário, se tu lho encomendares. Não te esqueças das velas. E dos gelados. Eu gosto de gelados. Podes comprar blocos de gelo e pores isso tudo longe do lume, até chegar a altura de se servir. E se quiseres outros bolos, como eclaires e merengues, encomenda-os. Dos bolos de nata podem mandar só o invólucro, que nós enchemo-los cá com nata da verdadeira. E não achas que também seria bom ter sanduíches e outras coisas? Mas a festa não deve começar muito cedo, porque eu não quero entrar e encontrar só os restos. Quero estar logo de princípio. Tens de fazer as coisas bem, se queres que seja na verdade um acontecimento, aqui na região. Um duplo acontecimento.

- Duplo acontecimento?

- O teu aniversário e o de Cressida, conjuntamente, é um duplo acontecimento, na verdade.

Em tom pensativo e com os olhos fixos num ponto distante, Cristóvão respondeu:

- Sim, está bem.

Talvez pudesse ser um duplo acontecimento, se ele a conseguisse convencer, se conseguisse que ela chegasse à conclusão de que ele não era uma pessoa precipitada. As setas do amor voam com velocidade. Ele tinha vinte e seis anos e Scotty dissera que ela tinha vinte e dois. Conheciam-se um ao outro. Ele, pelo menos, conhecia-se bem e acreditava que durante os últimos tempos ela o aceitava melhor. Tinham, apesar da presença da senhora Belchamber, estado mais tempo juntos do que muitos outros pares que se conhecem já há anos. Ela sabia que ele gostava dela e tudo o que havia a fazer agora era saber se ela gostava dele...

Um duplo acontecimento. Perguntar-lhe-ia, e se ela fosse amável, o seu noivado e o seu aniversário seriam festejados no mesmo dia.

Um duplo acontecimento...

 

"E foi-lhes muito difícil sair - lia a senhora Belchamber-, porque além destas enormes florestas, há grandes montanhas que formam um labirinto e que sobem cada vez mais alto, até se transformarem em gelo nos pontos cimeiros; e os glaciares deslizam, feitos de gelo sete vezes gelado e..."

Depois interrompeu-se para perguntar a Josette:

- Compreendes?

- Não - respondeu a pequena.

- Eu também não. Mas está escrito em muito bom inglês, de modo que não interessa se compreendes ou não. Onde é que eu estava? "... de gelo sete vezes gelado... "

- Porque é que Cressida não vem - perguntou Josette.

- O quê - interrogou a senhora Belchamber, espreitando por cima dos óculos.

- Porque é que Cressida não vem hoje?

- Como queres que eu saiba? Pergunta ao teu primo Cristóvão, que está aí ao pé de ti.

Olhou de lado para Cristóvão, que estava meio sentado, meio deitado na cama de Josette e lhe segurava uma das mãos.

- Pergunta-lho. Foi ele a última pessoa que a viu, quando a acompanhou a casa, ontem à noite.

- Ela está doente? - perguntou Josette, voltando-se.

- Não sei, Josette - respondeu Cristóvão.

- Então pergunta-lhe - insistiu a petiza, com a autoridade duma convalescente amimada. - Pergunta-Lhe porque é que ela não vem.

- Se não me escutas, não estou para estragar os olhos a ler este tipo de letra horrível. Não queres ouvir mais?

- Quero, sim, muito obrigada. Gostava, porém, que Cressida viria.

- Não é assim que se diz: gostava que Cressida viesse. Agora diz lá, devagar.

- Gostava que Cressida viesse.

Os lábios de Cristóvão não se moveram, mas as palavras ecoaram-lhe no coração. Cressida não viera e talvez não voltasse. Ele fora um louco e pior mesmo que um louco. Ultrapassara todas as barreiras e fora posto no seu lugar como merecia. Fora tolo e pior do que tolo, imaginando que, se a sua beleza, a sua doçura calma, o seu ar altivo, o tinham cativado, ele devia procurar uma rápida correspondência à sua paixão. Era um louco, um louco inútil e vão.

Ela, todavia, gostava dele e dissera-lho. Se ele não tivesse a certeza de que só isto o interessava, não teria insistido tão longa e entusiàsticamente. Mas ela gostava dele e dissera-lho...

- Se gosta de mim, Cressida, nada há que se entreponha no nosso caminho, nada, nem família, nem dinheiro, nem projectos de futuro. Gosto de si e Cressida gosta de mim Já o disse. Então porque não casa comigo?

Ela ficara branca, silenciosa, e libertara-se docemente dos seus braços.

- Já lhe disse, Chris, eu gosto de si, mas... É justamente como no passado, também gostava dele.

- Bem, então porque não... porque não casaram? Eram jovens, foi há quatro anos. Nós amamos e deixamos de amar aos dezoito, aos vinte e um, aos vinte e dois. Que idade tinha?... Dezoito? Todas as raparigas bonitas se apaixonam aos dezoito anos. Porque não? É o sangue que começa a acordar, são elas que começam a acordar, é o mundo que começa a acordar. Ama-se com essa idade. Aí esquece-se. É natural, também. É uma maneira de crescer. Agora, porém, já cresceu tudo o que tinha a crescer, e eu também. Gostamos um do outro, estamos prontos a casar-nos e prontos a dar ao mundo filhos saudáveis. Que interessa o que passou e acabou Já lá vai. Você gostava dum rapaz e esqueceu-o, coitado, mas isso foi ontem e isto é agora. Cressida, deixe-me beijá-la, Cressida, Cressida

- Não compreende, Chris. Escute. Por favor, querido, escute-me! Eu não tinha dezoito anos, mas vinte e dois - justamente a idade em que, segundo afirmou, uma pessoa já sabe definitivamente o que quer. Tinha vinte e dois e gostava muito dele, Chris! Era alto, tal como você, jovem, bonito, amável e delicado... como você... E também nada havia que se nos entrepusesse. Os pais gostavam de mim e eu gostava deles. Tudo parecia correr pelo melhor. Depois afastou-se por um ano, só por um ano. Podíamos ter-nos casado antes de ele partir. Falámos nisso, mas resolvemos esperar. Havia tantas coisas a arranjar, tantas coisas a fazer antes de casarmos! Ele foi-se embora e eu tive a sensação de que alguma coisa dentro de mim fora com ele. Pensei que os dias jamais passariam. Procurei-o em todos os sítios onde havíamos estado juntos, parecia-me ouvir a sua voz em toda a parte, precisamente como agora ouço a sua. Ele estava no meu pensamento, a toda a hora do dia, tal como você está agora. Escrevíamo-nos, fazíamos planos, vivíamos só para o dia do seu regresso... E antes dele voltar, percebi claramente que, em mim, o amor morrera. Amor, ou lá o que era. Tentei escrever, mas senti-me... manietada... manietada pelos planos, pelos desejos de amor, pelas esperanças e boa vontade de todos. Rezei para que, quando ele voltasse, quando o tornasse a ver, a situação se normalizasse. Pensava que, ao vê-lo outra vez, ao ouvi-lo, quando os seus braços me cingissem, recuperaria o que porventura se tivesse perdido... E rezei tanto, tanto!...

- Cressida, minha querida/ãnão chore. Por favor, por favor não chore...

- Ele voltou. Amava-me e nada mudara. Gostava tanto de mim como quando partira. Eu, porém, não podia fazer nada, nada. Nada havia que pudesse fazer voltar a magia do nosso amor. Evaporara-se. Ele já não era para mim aquela pessoa íntima, que fora. Gostava dele, admirava-o, mas não o amava. Compreende? Num ano, só num ano, o amor morrera. E agora, agora que gosto de novo de alguém, não posso, não posso deixar de me lembrar. Gosto de si, Chris, mas tem de esperar. Se for paciente, se esperar...

- Um ano

- Sim. Tente compreender, por favor. Se eu tivesse, então, dezoito anos, ou dezanove ou vinte... Mas aos vinte e dois é diferente. Nesta idade temosobrigação de saber aquilo que queremos. E eu tinha tanto a certeza... tanto a certeza Se esperar, Chris, e deixar que eu me convença de que posso confiar nosmeus sentimentos, de que eles suportarão qualquer prova, seja ela qual for, então...

Ela não cederia. Por fim, ele não fora gentil e deixara-a, abalada e a tremer. Voltara à herdade e vagueara sem descanso em volta daqueles negros edifícios, até que, num alpendre afastado, encontrara Scotty, e desabafara com ele.

- Eu tinha te dito, Chris.

- Não, não tinhas. Nunca te referiste a isto.

- Pois pensei que o tivesse feito. Não sei como isto é. Julgo que te disse uma coisa, e tu dizes-me que não. Tu não me ouves, isso é que é a verdade.

- Disseste-me que ela tinha vinte e dois anos.

- Não disse. Se falei em vinte e dois anos, foi quando me referi ao seu emprego; ela começou a trabalhar aos vinte e dois anos. Tu, quanto a mim, andas depressa de mais. Mandei-te lá pela primeira vez, para lhe pedires que viesse ajudar a cuidar de Josette, e tu voltas como se estivesses a navegar no mar do amor. Nem sequer dás a uma rapariga tempo para te conhecer; precipitas-te com propostas e esperas que ela se comporte para contigo com a mesma impetuosidade. As raparigas não querem ser ultrapassadas. Gostam de fazer as coisas tranqüilamente, e sentem-se mais felizes quando nos deixamos orientar por elas. O amor em turbilhão é uma idéia falsa. Elas gostam de penetrar no amor como um banhista nos primeiros banhos, cautelosamente. Só depois de nos conhecerem bem, de perceberem que já estamos pelo beicinho, depois de estarem certas de si e de nós próprios, a ponto de o dizerem aos outros que as perseguem, então e só então, é que nos podemos lançar aos seus pés. Para uma rapariga Como Cressida não é lisonjeiro pedires-lhe que case contigo, antes de saberes as coisas mais elementares a seu respeito: a sua idade, os seus sentimentos, e até mesmo a sua história.

- Está bem. Tudo quanto dizes é verdade. Precipitei me. Mas a atitude dela é... é fantástica. É fantástica, mas é a sério, Scotty. É a sério. Gosta de mim, combina casamento comigo, se eu quiser, mas depois haverá um ano de separação. Um ano! É... é grotesco!

- Vamos, vamos. Eu sei. Um ano é muito tempo nestas circunstâncias. Mas não passa, afinal, duma pequena parcela na vida de todos nós, e...

- Um ano!

- Passa depressa, Chris

- Um ano! Ela julgará que um homem pode...

- Ela não está exactamente a pensar nisso, meu velho. É uma coisa que não pode evitar. É o caso do gato escaldado. Ela contou-te todos os factos, mas não as suas conseqüências. Se não tivesse havido mais nada além do que se passou entre ela e o tal rapaz, lembrar-se-ia do caso simplesmente como dum aviso para não confiar demasiado nos impulsos do coração. Teria dito como a lebre da fábula: "Para a outra vez mais devagar". Mas tu não sabes o que ela passou, quando, na véspera do casamento, devolveu o anel. Ele tentou compreender. Era uma pessoa séria. Conheci-o vagamente quando aqui vim pela primeira vez, e digo-te que gostei dele. Aceitou os factos como era de calcular, atendendo ao que perdia, mas os pais dele tiveram uma série de fases desagradáveis, que se foram tornando cada vez mais antipáticas. Não eram más pessoas, mas devemos ter em conta que se tratava do seu único filho. Cress podia ter suportado melhor o golpe, se tivesse alguém em casa para a ajudar, mas o pai passara-se para o inimigo. Não falou muito. Não é do tipo eloqüente, mas consegue dizer mais quando levanta uma sobrancelha do que muitos outros com discursos.

- Porque é que ele...

- Dinheiro. É a sua paixão dominante, ou tem sido desde que a mulher morreu. Cress diz que ele era diferente, quando a mãe era viva. Mas não acredito muito. Pronto, e aí tens. Cress sofreu uma provação

- é este o termo-, uma provação que a deixou abalada. Agora, ela não pode discutir o assunto racionalmente, porque tudo lhe traz à memória aqueles dois meses em que manteve a sua palavra, muito embora já não gostasse dele. Chamaram-lhe caprichosa, desumana, cruel e pior ainda. Muito pior, mesmo. Uma série de asneiras. Tu não a podes censurar, Chris. Viste apenas a crosta de qualquer coisa que está muito profundamente entranhada. É esta a primeira vez que ama desde que tudo isto aconteceu e, como não podia deixar de ser, isso veio lembrar-lhe muitas coisas que ela julgava ter esquecido. Tem paciência com ela, Chris, é só uma questão de paciência

Cristóvão foi despertado das suas reflexões por Josette, que lhe sacudiu meigamente o braço. Olhou para ela, mas nos seus olhos ainda havia um ar de sonho distante.

- Não estás a ouvir?

- Não, não estava, desculpa - respondeu Cristóvão. - Diz lá outra vez.

- O que ela tentou dizer-lhe é que fez um jogo de magia, mas o senhor estava tão distante nos seus sonhos...

- Oh!

Fazendo um esforço, Cristóvão conseguiu interessar-se pela almofadinha que Josette lhe mostrava.

- Isto para que é

- É para Cressida voltar.

- Está bem, está bem, ela volta - disse a senhora Belchamber. - E não são precisas magias. E se não voltar, também não é necessário fazeres jogos. O teu primo, ou o senhor Scott, um ou outro, ou ambos, irão buscá-la. Observei o caminho desta janela. A princípio era um simples carreirito e agora está tão pisado que parece uma estrada real. Deita-te. Se ela não vier, eles vão buscá-la. Escuta este livro bonito, que diz coisas muito importantes. Não faz mal a nenhum de vocês ouvi-lo; os seus ensinamentos podem aproveitar tanto a um como ao outro.

Tornou a pôr os óculos, segurou no livro como invariavelmente fazia, mantendo-o muito direito na sua frente, e leu:

- "Mas desisti dessa condescendência egoísta da vossa fantasia. Examinai um pouco as enormes desgraças que acontecem a todos os instantes e a pessoas que valem muito mais do que vós."

Espreitou por cima dos óculos para Cristóvão e repetiu as palavras com ênfase:

- "... a pessoas que valem muito mais do que vós. E a vossa própria consciência tornar-se-á compassiva e humilde; e conhecer-vos-eis a vós próprios, de tal modo que chegareis a compreender que nada aconteceu que não tenha acontecido ao mais comum dos homens".

Pousou o livro e tirou os óculos.

- Se vão fazer jogos de magia - disse para Josette -, vejam se fazem um para a senhora Garcia voltar também.

- Ela não está cá? - perguntou Josette.

- Não, não está. É o que geralmente acontece; quando falha um suporte, os outros cedem também.

- Aonde foi ela? - tornou Josette.

- Não sei, porque não se incomodou a mandar um recado.

Cristóvão levantou-se de repente, sorriu para Josette, Contrafeito, e disse:

- vou ver porque é que Cressida não vem.

Desceu a escada e já ia a meio do pátio, quando ouviu chamarem-no; voltou-se e deu de cara com Scotty que corria com uma velocidade invulgar para junto dele, limpando as mãos a um bocado de palha.

- Olha, Chris.

- O que é?

- Vais a Greensleeves?

- Sim. Cressida não veio e eu quero saber porquê.

- Eu julgo que sei.

Scotty atirou com a palha e olhou para Cristóvão com um ar aborrecido.

- Se fosse a ti, Chris, meu velho, esperava um pouco antes de lá ir.

- Porquê? Não há razão nenhuma para ela se afastar, pois não? Eu fui parvo, mas ela calcula, decerto, que nos tornaremos a ver um ao outro, não é assim?

- Não sei porque não vem. Julgo...

Scotty olhou um pouco perturbado para a colina arborizada e continuou:

- Julgo que em Greensleeves deve haver qualquer coisa de aborrecido. Repara que estou simplesmente a fazer conjecturas. Penso que não te deves imiscuir. Podes ir aborrecer Cressida.

- Que queres dizer com isso - perguntou Cristóvão.

- O pai. Está cá e há indícios de que se vai demorar. A governanta veio buscar leite e ovos, e eu dei-lhe manteiga, mas depois soube que estas coisas não eram para Cress. Segundo consegui depreender das suas palavras, o major chegou hoje, de manhã cedo, e trouxe a bagagem. Se é verdade, é a primeira vez que traz as coisas para aqui, de há quatro anos a esta parte. Porque havia de sair de Londres justamente na altura em que há mais turistas? Tenho a impressão de que há complicações.

- Nesse caso há só um processo de descobrir. É ir lá e perguntar. Não podias ter feito uma ou duas perguntas à governanta?

- Bem, se eu lhe falasse inglês, ela não percebia, e, de qualquer modo, tanto ela como o marido acham conveniente fechar os olhos à maior parte das coisas "que ele faz. Não estão lá para o vigiar, como sabes. Estão ali, simplesmente, porque Cressida lhes pediu que viessem. É por isso que Cress aqui vem... para os ver e para lhes pagar.

- Cressida paga-lhes?

- Sim, já to disse. Não supunhas que era o pai que lhes pagava, pois não?

- Porque não? Tu disseste que ele tira um bom rendimento da casa.

- Lá isso tira, mas fazes idéia de quanto custa a vida que faz Os melhores clubes, a melhor sociedade, e ele tem de se manter confortàvelmente, durante o Inverno... Aonde é que vais?

- A Oreensleeves.

- Não seria melhor esperar por Cressida? Se há complicações, ela com certeza não quer que tu saibas.

- Se eu vou casar com ela, o que acontecerá mais cedo ou mais tarde, quanto melhor eu conhecer o pai, melhor é para todos.

Atravessou os campos rapidamente, de cabeça baixa, mergulhado em profundos pensamentos e notando pouco o que se passava à sua volta. A primeira coisa que viu foi o carro preto do major Gray, brilhando, num lugar que não era habitual, na garagem.

A grande porta estava fechada, mas depois dum momento de hesitação, deu uma volta ao trinco. Pensou se não seria melhor bater, mas já não ia a tempo. Empurrou a porta e entrou no vestíbulo.

As duas figuras estavam de pé, diante da lareira apagada. Cressida olhava para ele espantada e na aparência do pai não havia a mínima mudança de urbanidade. Voltaram-se, quando Cristóvão entrou, e o major Gray ergueu uma sobrancelha expressivamente.

- Desculpem não ter batido à porta - disse Cristóvão apressadamente. - Estava preocupado por causa de Cressida

Com o seu tom calmo, o major respondeu:

- Como vê, Cressida está muito bem.

- Preocupei-me, por não ter aparecido - continuou Cristóvão, olhando para o rosto pálido da rapariga.

Ela avançou dois passos e esperou tranqüilamente.

- Ia... ia para lá agora. Meu pai chegou, sem ser esperado, e estávamos a conversar.

- Não temos muitas ocasiões para falar um com o outro... sozinhos - declarou o major em tom afável.

Cristóvão falou no mesmo tom:

- Não sou, talvez, tão intrometido como pareço - afirmou - Quando tivermos esclarecido uns assuntos que não têm importância de maior, Cressida e eu devemos casar-nos.

- Fico encantado por a entregar em tão boas mãos.

Fez-se silêncio. Cristóvão viu o homem que estava na sua frente a observá-lo; compreendeu, pelo brilho divertido a luzir-lhe nos olhos e pelo leve sorriso a bailar-lhe nos lábios, que não teria auxílio em qualquer conversa que tentasse. Seria melhor, pensou Cristóvão, tirar vantagem do momento e esclarecer as coisas. Scotty não sabia nada e Cressida não falaria. Só lhe restava pôr as coisas num pé mais firme, muito embora menos agradável.

- Scotty não queria que eu viesse cá - explicou ele. - Disse-me pensar que o facto de o senhor se encontrar aqui seria devido... a qualquer coisa que o aborrecesse.

- Oh, não tenho nada que me aborreça - disse o major Gray.

- Muito bem, muito me alegro com isso - tornou-Lhe Cristóvão num tom mais firme. - Se chegarmos, no entanto, a ser família, gostaria que Cressida... e o senhor confiassem o suficiente em mim para no caso de alguma coisa acontecer... Talvez fosse melhor ter falado consigo primeiro, acerca do meu casamento com Cressida...

- Não vejo porquê - respondeu o major Gray, depois de parecer ter dado ao assunto certa atenção. - Na verdade não vejo porquê. Hoje em dia são os interessados que resolvem esses problemas e as responsabilidades dos pais parece terem-se limitado a cuidar em que o arranjo das bodas decorra a contento de todos. Espero, Cressida, que vás vestida de branco. Penso que é lamentável as raparigas desprezarem a oportunidade de se mostrarem da maneira que mais as valoriza. Uma noiva vestida de branco... de veludo branco. O veludo é muito mais macio que o brocado.

Ele não iria agora retomar a conversa que Cristóvão começara, e este olhava aquele rosto calmo e agradável, concluindo que não havia vantagem em insistir no assunto. Cressida, aparentemente, também chegara à mesma conclusão e disse devagar:

- Se esperar, vou consigo.

Enquanto esperava, o major Gray falou-lhe de assuntos tão vulgares, tão triviais, que o rapaz percebeu que troçava da impetuosidade da sua visita. Escutou-o com a maior delicadeza que lhe foi possível, e pouco depois saía da casa e acompanhava Cressida até à herdade.

Durante certo tempo, caminharam em silêncio. Cressida, profundamente mergulhada nos seus pensamentos e Cristóvão sem dizer nada que a pudesse perturbar. Por fim, ela disse:

- Chris?

- O que foi

- Estava a pensar na sua chegada de há momentos.

- Foi um pouco impetuosa. Eu não queria ser intrometido, mas quando se está disposto a casar com uma rapariga, uma pessoa gosta de saber, gosta de estar presente, quando se sente que se pode fazer qualquer coisa para a ajudar.

Depois dum instante de hesitação, acrescentou:

- Ou ajudar-lhe o pai.

- Meu pai é uma pessoa muito difícil de ajudar.

- Ninguém é difícil de ajudar. Se alguém precisa de qualquer coisa, e se se descobre aquilo de que exactamente precisa e a forma como a aceitará...

- O meu pai apenas aceitará auxílio - disse Cressida - podendo dar a impressão de que ele é que está a ser generoso.

- Ah, isso não me interessa. A minha intenção não é agradar-lhe a ele, mas a si. Você não é uma rapariga que fale muito, e a maneira de Scotty dar informações é esperar que as obtenhamos por qualquer outra via e depois dizer: "Foi o que eu te disse". Tudo o que eu conheço a respeito de seu pai é que, por razões que ele sabe melhor do que eu, se serve de Greensleeves como meio de exercer os seus talentos histriónicos e conseguir dinheiro. Sei que a Cressida ganha para si. No entanto, outrora devem ter sido uma família abastada.

- É verdade. Meu pai quando se casou tinha fortuna e minha mãe ainda tinha mais. Pouco depois de casarem, repararam que o que possuíam e a maneira como viviam eram duas coisas inteiramente incompatíveis. Minha mãe era boa administradora e com o rendimento de ambos e os honorários do pai conseguiam viver muito confortàvelmente, mas não naquele nível em que meu pai desejava viver.

- Quem lhe contou tudo isso

- Foi ele, e algumas das velhas professoras do colégio, que costumavam visitar a mãe de vez em quando. O pai foi educado, tal como você, com esperanças que nunca se vieram a realizar. Não sabia que havia de entrar na posse de Greensleeves, mas pensava em receber dinheiro. Bem... não recebeu, e esta casa sem dinheiro, como pode imaginar, é um pesado fardo. Não me agrada a maneira como meu pai resolveu o problema, porque, parece-me... não sei explicar bem a minha idéia... mas parece-me que o processo por ele adoptado não é o dum alegre esbanjador, mas... de qualquer coisa menos agradável. Quando deixei o colégio e vim para aqui, pensei que com o auxílio de Emílio e Zoute talvez pudesse tornar habitável um canto de Greensleeves. Julguei que meu pai e eu podíamos viver aqui, e talvez, até, receber visitantes. Meu pai, porém, respondeu-me que isso não resultava. Não era suficiente tornar a casa num museu, para atrair grandes atenções; quando morresse o interesse local, nada mais havia a fazer. Sustentar a casa também seria impossível, sem um bom rendimento, de modo que resolveu encarregar-se da sua manutenção, foi viver para Londres, e começou a trazer pessoas, cada vez mais, como tem visto. A princípio fê-lo duma forma mais... honesta, mas depois pareceu que mudava também. De início, fora bastante triste, depois... como é que hei-de dizer?... humilhante, e, ultimamente, quase assustador. Não sei porque ando tão apreensiva, mas penso que o Chris se não pode misturar com as pessoas com quem ele tem convivido ultimamente, sem arranjar grandes complicações.

Iam caminhando cada vez mais devagar e agora ela parou e voltou-se para Cristóvão, numa atitude alheia e inexpressiva.

- Não é como se... Não sei como lhe hei-de explicar isto, mas talvez compreenda. Ele não é uma pessoa desonesta. Toda a vida tem sido alegre, adorável, amistoso e divertido. É o que se chama uma pessoa inconseqüente, porque olha o mundo sem encarar as responsabilidades que os outros aceitam. Abandonou o exército, porque o exército o aborrecia. Um lar constituído aborrece-o, e qualquer esforço para ganhar normalmente a vida aborrece-o também. Suponho isto uma inconsequência, mas toda a gente que o conhece concorda em dizer que fez minha mãe muito feliz, o que não acontece a todos os homens com um carácter valoroso. E muito embora ele não tenha por mim um décimo da afeição que tinha por ela, nunca me abandonou. Costumava ir visitar-me ao colégio, com certa regularidade, representando lindamente o papel do pai dedicado e procurando, durante as férias, encontrar-se suficientemente longe para eu não as poder passar na sua companhia. Pode ser uma pessoa inconseqüente, sem certos princípios, mas não é na verdade desonesto. Somente... se visse algumas das pessoas com quem ele acompanha ultimamente e se soubesse quanto as suas vendas se têm transformado... então compreenderia porque ando apreensiva.

- Porque veio aqui instalar-se, porque fica agora cá?

- Não mo quis dizer, mas eu sei que anda preocupado. Sei, sei que anda, Chris! Eu sei.

- Bem, esteja tranqüila - disse Cristóvão, gentilmente.

Abraçou-a, sem se preocupar com o chapelinho preto da senhora Belchamber que estava a espreitar duma janela, e manteve Cressida apertada contra si durante algum tempo.

- Não devemos preocupar-nos, Cressida. O assunto interessa tanto a mim como a você; sabe-o muito bem.

Se pusesse de parte todas essas tolas idéias de não casar comigo até descobrir que já não gosta de mim...

Sentiu, mais do que viu, o seu ligeiro abanar de cabeça.

- Dê-me tempo, Chris - suplicou.

- vou dar-lhe algum. Por agora, não falaremos em casamento. Mas eu esperava duma cajadada matar dois coelhos. Festejar-se-ia um duplo acontecimento o nosso noivado e o meu aniversário. Bem, podemos, de qualquer modo, contar com a festa de aniversário. Scotty disse-me que você também fazia anos neste mês. A quantos?

- A vinte sete.

Cristóvão ficou pasmado a olhar para ela, demasiado aturdido para poder falar.

- Mas... meu Deus! - exclamou por fim. - É o dia dos meus anos, também. E se vai fazer vinte e seis anos e eu vou fazer vinte e seis, somos... somos...

Pela primeira vez, durante toda essa tarde, Cressida sorriu.

- Somos gêmeos - concordou.

 

Os preparativos para a festa começaram com grande entusiasmo. Josette foi autorizada a vestir-se, mas por conveniência da doentinha, a festa realizar-se-ia no andar superior; Roberto e Paulo estreariam fatos novos de flanela e a única nuvem no horizonte era a possibilidade de qualquer deles poder apanhar o sarampo antes do grande dia.

- Não apanham, não, que eu faço um jogo de magia - declarou Josette.

A eficácia dos jogos de magia não era para pôr em dúvida. Tinham curado dois cachorrinhos de diarréia e Scotty duma dor de dentes. O facto deste último ter arrancado o dente, apenas servia para lançar um pouco de confusão no caso. Haviam feito com que o tempo se mantivesse seco, demasiado seco, chegava mesmo a pensar Scotty, e tinham conseguido que Cressida voltasse, assim como a senhora Garcia.

- Também podiam ter conseguido que eu voltasse curada. A estas horas devia encontrar-me na cama, em vez de andar aqui a mourejar sem estar completamente restabelecida. Não me sinto bem.

Assim se lamentava a senhora Garcia.

- Então eu vou fazer outro jogo de magia por causa da sua saúde - disse Paulo. E depois, voltando-se para Cressida, perguntou ansiosamente: - Vamos ter dois bolos ou um só?

- Dois - prometeu Cressida.

- E com vinte e seis velas cada um

- com vinte e seis velas cada um.

- Isso vai ser difícil de apagar - comentou a senhora Garcia, ao mesmo tempo que continuava com as suas limpezas; mas, momentos depois, desenhou-se-lhe uma ruga na testa. Os movimentos tornaram-se cada vez mais lentos, até que por fim cessaram, ficando com as mãos mergulhadas na água.

Cressida, observando-a, percebeu que uma idéia se estava a esboçar no cérebro duro da senhora Garcia e esperou o que dali sairia.

- Menina - começou por dizer a senhora Garcia.

- O que é - perguntou Cressida, que limpava uma faca.

- É acerca das velas.

- E então, senhora Garcia?

- Há bocadinho disse que ia pôr vinte e seis velas em cada bolo. Não pode ser. As vinte e seis são para o bolo do senhor Heron.

- E para o meu também, porque também tenho vinte e seis anos.

A senhora Garcia voltou a cabeça e mediu, com os olhos espantados, a rapariga elegante que estava de pé junto dela.

- Vinte e seis anos! A menina tem vinte e seis anos! Nunca, nunca diria! Nunca teria acreditado.

- Acreditado? Que quer dizer acreditado? - perguntou Roberto, ansioso por saber.

- Acreditar... crer. Croire - explicou Cressida.

- Pois nunca teria acreditado - E o vinco da testa voltou de novo. - Mas se tem vinte e seis anos e ele também vinte e seis anos e se os fazem no mesmo dia, então...

- São jumeau, jumelle; jumelle jumeau - cantou Paulo.

- Gêmeos - corrigiu Cressida. - Somos gêmeos.

- Esta agora!

A senhora Garcia tentava prestar atenção ao que estava a fazer, mas não conseguia.

- É espantoso! O que é a vida! Pensar-se que ele nasceu num sítio e a menina noutro, e ao" cabo de vinte e seis anos vieram juntar-se aqui... Gêmeos!

- Não tem nada de extraordinário - declarou Cressida. - O que é estranho é isso não ter acontecido mais cedo.

A senhora Garcia, abandonando a limpeza, dirigiu-se para uma cadeira e deixou se cair pesadamente. Cressida compreendeu que a história ia ser o principal assunto nas futuras reuniões das mulheres de Lower Grenton.

- Gêmeos! - repetiu com espanto. - É o Destino! Alguma coisa vai acontecer.

- Vai, vai! - disse Paulo com satisfação. - Pelo menos dois bolos com vinte e seis velas cada um e coisas boas para comer.

- Muitas coisas boas para comer - insistiu Roberto.

Tão ansioso entusiasmo não era partilhado por todos na herdade. Nesta altura o espírito da senhora Belchamber não se interessava pelos arranjos da festa e Scolty não considerava o acontecimento com a sua primitiva jovialidade. Sabia que Cristóvão quisera um duplo acontecimento e de certo modo admitia que ele o tinha conseguido. No entender de Scotty, o facto de serem da mesma idade e nascidos no mesmo dia devia ser conservado secreto e revelado no momento oportuno para convencer Cressida a abandonar o propósito de retardar o casamento por um ano. Embora nas suas conversas com Cristóvão ele admitisse a existência de complexos, achava que a decisão da rapariga era errada e injusta, e fez todo o possível para que ela mudasse de parecer.

- Teve um azar, mas isso já lá vai. Para que insistir no mesmo? Isso é tolice. Olhe, Cress: naquela altura acabava de chegar a Inglaterra e ainda se não tinha adaptado. Vinha cheia de ideais que se transformaram em nada, e, naturalmente, sentiu-se desamparada, um pouco sem razão, deixe-me que lhe diga, porque não devia esperar que seu pai, depois de viver doze anos sozinho, se habituasse à vida do lar. Depois dedicou-se com demasiado entusiasmo à enfermagem e cansou-se, de modo que quando esse rapaz apareceu você estava pronta para se apaixonar fosse por quem fosse... fosse por quem fosse, compreende? Era qualquer coisa a que se amparava, qualquer coisa bonita e sólida num mundo que não estava de harmonia com a beleza e com a segurança que esperara. Era qualquer coisa... bem qualquer coisa de certo: o amor e o casamento, e uma série de pequerruchos para mais tarde cuidar. Foi por isso que se apaixonou. Nunca me convenci de que tivesse sido por ele.

- Convenci-me eu, Scotty. Se quer dizer que foi "ma mania, então...

- A Cressida não está a perceber. Foi amor, com certeza, mas não foi amor pelo homem. Estava a procurar o que ele representava. Se fosse consultar uma dessas pessoas que lêem no subconsciente e perguntam o que se costuma deitar fora quando se é pequenina e se passeia de carrinho, aposto que lhe teria dito que a sua principal idéia, há quatro anos, quando se quis casar, era libertar-se de seu pai.

- Eu...

- Deixe-se de evasivas, Cressida. Nunca gostei dele e sabe-o bem. Chris é diferente; é um homem às direitas. Eu não. E outra coisa ainda: Chris vê o quadro agora, com Greensleeves armado como um negócio e a Cressida num bom emprego. Não a vê como eu a vi, esperando, desiludida e aflita, que seu pai lhe desse um auxílio...

- Eu não precisava de auxílio. Tinha idade suficiente para cuidar de mim.

- Não, não tinha. Educada como foi, não tinha. Se os rapazes precisam de ganhar a sua vida, é necessário metê-los cedo ao caminho. Olhe para mim, por exemplo. Julga que eu estava a atirar dinheiro pela porta fora, com esta história das vacas, se meu pai tivesse procurado que eu aprendesse qualquer coisa prática? Bem, talvez estivesse, mas seu pai consigo tinha de ter outros cuidados, visto que a educou, e deveria, por isso, orientá-la, e não o fez. Cressida, portanto, agarrou com ambas as mãos a primeira oportunidade que se lhe deparou. A Cress não pode de maneira alguma servir-se agora dessa velha história e fazer Cristóvão infeliz. O outro era um bom rapaz, mas é uma história que morreu e se enterrou. Deixe-a repousar em paz. Você e Chris têm vinte e seis anos. Dentro dum ano, podem ter cinco gêmeos. Pense nisto, Cress. Cinco crianças tiradas ao mundo, porque há uns anos teve um desgosto de amor. Não pode, não pode fazer isso. Porque não se casa já como ele quer?

Uma lágrima rolou pela face de Cressida e Scotty, atrapalhadamente, remexeu nas algibeiras e tirou um lenço. Achando que não servia para o fim em vista, com o dedo, delicadamente, apagou-lhe a lágrima.

- Gostaria muito, Scotty. Era o meu maior desejo. Mas não posso fazer-lhe a vontade. Quando penso em... em tudo quanto aconteceu, sinto-me abalada, justamente como na altura em que essas coisas se passaram. Lembra-se, Scotty - disse ela, pegando-lhe na mão - de quando nos sentámos, naquele dia, a embrulhar os presentes de casamento e a devolvê-los?

- Eu...

- Lembra-se de terem chegado os pais dele... Lembra-se do que disseram?

- Lembro-me, Cressida, mas...

- O que eu não posso esquecer, o que nunca esquecerei é o espectáculo daquele homem aniquilado, quando, por fim, soube que eu não queria casar. Não conhecia os homens... Não sabia que eles podiam quebrar e perder toda a sua força e... e... e serem vis... Oh, Scotty!...

- Está bem, está bem, está bem -acalmava-a Scotty com ternura. - Eu estou a dizer-lhe, minha querida, que tudo isso está morto e enterrado, e não deve embargar o caminho de Chris. Deve-lhe isso. Sinta o que sentir, é consigo, mas na vida de todos nós há coisas tristes, e temos de nos habituar a elas. Não as podemos descarregar para cima dos outros. Chris não tem nada a ver com o que lhe aconteceu. O que deve fazer é sair uma noite sozinha, deitar-se sob o céu estrelado e rever, em pormenor, todo o passado, sem se esquecer da mínima particularidade. Depois de fazer isto algumas vezes, resolverá as dificuldades que haja sobre o assunto. A primeira vez que perdi uma vaca, nem pode imaginar o meu desgosto. Gosto de vacas, e essa, então, era um animal admirável, de modo que durante noites seguidas saí de casa e fui-me pôr a passear nos sítios onde era costume ela pastar, parando junto das árvores nas quais ela gostava de se esfregar. Sabe o que consegui com isto? Uma pneumonia. Mas foi-me útil como contraveneno. Quer experimentar?

- Posso tentar seja o que for.

Depois disto, Scotty ficara contente, e Cristóvão" sabendo que o seu'amigo estava a empenhar-se a fundo no assunto, não pôde deixar de mostrar-se alegre tam bem. No entanto, qualquer coisa no seu espírito o preocupava e levou-lhe alguns dias a decidir-se. Quando o fez, esperou que Cressida estivesse lá em cima com Josette, e a senhora Belchamber segura no sítio onde passava o dia. Depois atravessou o campo rapidamente, passando junto do touro, com um à-vontade já familiar. Chegando a Greensleeves, deu uma volta à casa com certa indecisão e em seguida viu a governanta a escovar umas almofadas. Ela compreendeu a pergunta de Cristóvão, mas a dificuldade com que falava inglês não lhe permitiu uma rápida resposta. Depois, fez-lhe um sinal e apontou: se transpusesse aquela porta, encontraria o senhor.

Cristóvão viu o major Gray no grande vestíbulo. Tinha na mão um livro de notas e um lápis, e era evidente que estava a fazer uma lista dos seus bens. Encontrava-se na sombra, de modo que Cristóvão não pôde perceber se ele ficou surpreendido. Quando o major atravessou o vestíbulo para cumprimentar Cristóvão, já afivelara a máscara de homem adorável.

- Deve ter apanhado muito calor. Aproxima-se uma tempestade.

- Não demora - concordou Cristóvão, e depois, sem mais preâmbulos, disse: - Vim cá para lhe falar. Pode conceder-me alguns minutos?

- com certeza. Vamos lá para fora. para debaixo das árvores, que deve correr uma brisazinha. Ou acha que está mais fresco aqui?

- Aqui estamos melhor.

- Como quiser. Sente-se, por favor.

Cristóvão sentou-se e depois ergueu-se, convencido de que podia exprimir-se com muito mais clareza se estivesse de pé.

- É principalmente a respeito de Cressida - começou. - Ela disse-me que iam casar.

- Sim, vamos. Eu queria casar já, mas ela decidiu que...

- Já sei.

A voz do major manifestava simpatia. Depois tornou:

- Meteu-se-lhe na cabeça a idéia fantástica de que aquele caso de amor de há quatro anos...

- Ela prefere esperar, de modo que - mentiu Cristóvão - estou pelos ajustes.

- Que disparate!

O major Gray meteu a cigarreira no bolso e inclinou-se para o acendedor que Cristóvão lhe estendia.

- Muito obrigado. Mas é disparate, e fico um pouco desapontado por ver que o senhor também é um idealista. Claro que é uma atitude cavalheiresca, mas neste caso talvez não seja a que se deve tomar. Não quero generalizar a respeito de mulheres, mas quando têm uma idéia fixa, não é necessariamente a melhor. Quando Cressida rompeu o outro compromisso, tentei fazê-la compreender que não havia nada de extraordinário em se sentir mais fria para com um homem, depois dum ano de ausência. Se dessem tempo um ao outro...

- Fico bem contente por ela assim ter procedido.

- Naturalmente, mas desde então ela recusou mais de um pretendente, e esperava, quando o vi. Sabe que gostei muito de si, quando o vi pela primeira vez?

Cristóvão ficou calado. Não queria manifestar os seus sentimentos. Um ligeiro brilho de malícia dourou os olhos do major, mas continuou depois de ter feito uma ligeiríssima pausa:

- Interrogando-me a seu respeito, mais tarde, sempre esperei que não daria a Cressida tempo para pensar. O senhor parece-me uma pessoa impetuosa, o que é um bom sinal. bom aspecto, boas maneiras e ar de quem sabe o que quer e como levar a água ao seu moinho. Julguei que ao primeiro sinal de hesitação, depois de Cressida ter confessado que o amava, o senhor assentasse, primeiro, em se casarem, e depois discutirem o problema. Meu caro Cristóvão se eu tivesse esperado que a mãe dela me expusesse todas as suas teorias - a sua educação fundamentava-se em teorias - ainda agora estaríamos sentados a conversar, no cimo duma daquelas lindas colinas arborizadas sobranceiras ao lago de Genebra. As mulheres gostam de falar, mas eu estava tão apaixonado como o senhor, e talvez fosse menos escrupuloso. Não tinha nada para lhe oferecer, e portanto essa parte do problema não levou muito tempo a discutir. Os pais dela mostraram vontade de falar, também. Como era uma dançarina excepcional, aventava-se a possibilidade de mais tarde abraçar esta carreira. Eu, porém, vali-me de todo o entusiasmo da juventude - tinha nessa altura vinte e um anos - e convenci-a a casar... um casamento que foi como um conto de fadas. O único êxito que tive na vida foi o meu casamento. Não digo isto para me gabar, mas simplesmente para lhe mostrar que, se aceitasse as discussões, o casamento acabaria por não se realizar. Todos exporiam a sua opinião sobre o assunto. Talvez os impulsos sejam perigosos, mas sempre me pareceu que, obedecendo-lhes, alguma coisa se consegue. Se o tivesse conhecido um pouco melhor, se previsse que ia consentir que Cressida o persuadisse...

- Espero da melhor vontade - disse Cristóvão.

- Disparate!

- Mas não foi por causa disso que o vim procurar.

- Não. Então?

- Da última vez que aqui estive - começou Cristóvão- o senhor acabara de chegar, não como vem habitualmente, mas duma maneira que me fez sentir que as coisas poderiam...

Tinha estudado as palavras, e falou com toda a clareza:

- ... não lhe estarem a correr bem. Da minha parte seria verdadeiramente imperdoável tentar meter o nariz nos seus negócios, mas julgo que sabe que Cressida anda muito preocupada consigo. Vai para Londres, dentro em pouco, e eu gostava que ela fosse bem disposta, e não o poderá fazer enquanto o senhor aqui estiver neste...

Parou mesmo à beira de dizer um disparate, e continuou com menos prudência e mais firmeza:

- A minha situação é difícil. O senhor não é, se assim me posso exprimir, um pai vulgar. O senhor faz a sua vida e Cressida a dela. No entretanto, há pontos de ligação. E visto que estou para ser seu genro, não me posso alhear totalmente dos seus negócios. Não me interessam nada, a não ser na medida em que preocupam Cressida. Ela não sabe o motivo por que o senhor abandonou a cidade, por que não trouxe aqui mais ninguém, nem como - visto ser esse o seu único rendimento - resolverá a sua situação financeira. Tenho muita pena de lhe dizer isto, mas mais cedo ou mais tarde teríamos de falar a este respeito. Eu vou-me embora, assim que possa levar as crianças, de modo que não nos ficará muita oportunidade para nos encontrarmos e eu não gosto deste sentimento de que qualquer coisa... qualquer coisa fica por dizer. Cressida não é feliz, sente-se contrafeita e, se me permite que lhe diga, a mim sucede o mesmo. Sinto que o senhor - é-me penoso dizer-lhe isto, mas gostaria de o dizer -, sinto que deve estar em dificuldades e, muito embora não me digam particularmente respeito, dizem respeito a Cressida, e se lhe estou a falar das suas preocupações, gostaria de a libertar desta.

Calou-se. Desabafara por fim, e não tinha a mínima idéia se dissera de mais ou de menos. Sabia somente que este homem calmo e cheio de à-vontade, sentado num cadeirão e olhando-o, não estava autorizado a macular a felicidade da filha nem o seu bom nome. Ficou tranqüilo, esperando, mas só ao fim de certo tempo o major Gray falou:

- Complicações - disse por fim - são coisas que não me afectam profundamente, e a minha preocupação é a vulgar... talvez a mais vulgar de todas... e tem-me afligido durante toda a vida: falta de dinheiro, isto é, de dinheiro suficiente. Fui educado para um dia o ter, mas nunca veio. Os hábitos estavam entranhados e eram tão agradáveis que eu não via razão alguma para os alterar. Além disso, exceptuando a carreira militar, não tinha uma profissão. Pedi a minha demissão, porque acreditei que podia levar melhor a vida como uma espécie de aventureiro. Nada que fosse ilegal, nada que não fosse correcto, mesmo nada sórdido. Greensleeves parecia ser a solução. Mas ir buscar dinheiro aos outros, qualquer que seja o processo de o fazer, acaba sempre por ser uma espécie de negócio sórdido. Contudo, desembaraçava-me bem, como talvez notou, ou talvez que o senhor tivesse certos preconceitos. Penso que o seu amigo Scotty me olha com maus olhos, me considera um intruso. Vivia no meu clube, era muito conhecido e embora mal visto, ninguém tinha nada de preciso a censurar-me. Se quisermos dinheiro, temos de nos mover dentro do círculo onde o há e, até um destes dias, eu estava bem no centro dele. Depois... Quer que lhe conte?

- Faça favor.

- Foi puramente pouca sorte e eu penso que vai concordar comigo. Escolho sempre os meus clientes

- as minhas vítimas, se quiser - cuidadosamente. Procuro saber quem são e donde vêm. São invariávelmente estrangeiros, e estrangeiros daqueles que não voltam freqüentemente. Sabia bem em que meios se movimentavam e trabalhava de modo a garantir que um grupo de clientes nunca se encontrasse com outro, ou, se por acaso isso acontecesse, tratava de orientar as coisas de modo a que não comprassem o mesmo artigo. Para isto tornava-se necessário organização, e era esse papel que me agradava. Vir aqui e efectuar as vendas era a parte menos interessante do negócio. Pensava que podia continuar a fazê-lo, durante alguns anos, até surgir uma oportunidade de vender Greensleeves em boas condições e empregar o que apurasse da venda de maneira mais lucrativa do que o poderia fazer agora. Mas o negócio - temos de concordar que apesar de tudo era um negócio - sustou-se subitamente, dramaticamente, e, na verdade, começo, por fim, a sentir me inquieto. vou contar-lhe o que aconteceu. Quer sentar-se?

- Não, muito obrigado.

- Bem. Fui apresentado por uma pessoa muito, muito importante, a um sul-americano. Até aqui tudo está muito bem. O sul-americano já ouvira falar em Oreensleeves e perguntou-me se cá podia vir, e veio, trazendo a sua encantadora esposa, que é inglesa. Foi uma tarde lucrativa Compraram uma lanterna da Saxónia, autêntica, é uma das peças mais bonitas que tenho visto. Adquiri-a na Alemanha, a uma velha inglesa. Segundo esta, a lanterna pertencia à família, havia algumas gerações. Custou-me muito caro, mas vendi-a ezactamente por dez vezes o seu custo. Dez. Estava muito contente e fiquei satisfeito, durante uns dias. Depois, surgiu uma série de coisas desagradáveis. A encantadora inglesa para quem o sul-americano a tinha comprado, desejou ver todos os parentes possíveis, antes de voltar para a América do Sul. A velha inglesa da Alemanha, que parecia demasiadamente frágil para atravessar o seu quarto, atravessou o Canal para ver a sobrinha. Talvez não tenha necessidade de lhe dizer mais nada. Espiolhada, fibra a fibra, a coisa não parece assim tão má, mas acumulando vilania sobre vilania, tal como fizeram, eu não consegui sobreviver, Eu roubara uma velha dama e roubara uma jovem, iludira grosseiramente um jovem, o sul-americano, e humilhara seriamente um velho, a pessoa extremamente importante que nos apresentara. Não se pode fazer isto num círculo dourado que seja na verdade de ouro; não se pode fazê-lo no clube a que pertenço... ou por outra, pertencia. Podia ter resolvido um mau negócio com um cliente ocasional, ou um infeliz encontro dum par de clientes. O que eu não podia suportar era um golpe tão certeiramente dirigido ao meu crédito Era, sobretudo, no meu crédito que me firmava. Enquanto aqueles que podiam arranjar-me boas relações tiveram boa opinião a meu respeito, a coisa bem foi. Agora, iporém, ou tenho de passar a trabalhar num meio diferente, o que me não divertiria, visto passar a maior Parte do meu tempo em Londres, ou sou obrigado a dar aos meus negócios um caracter mais comercial, o que também me não agrada. Vim para aqui esperançado em que a tempestade amainaria, mas agora vejo que não. Tive de deixar o clube e sinto que a sociedade que freqüentava não me receberá mais, e é só no meio dessa sociedade que eu me sinto bem. Como vê, meu caro Cristóvão, não há motivo para que Cressida se aborreça. Ou vou fazer de Greensleeves um local puramente comercial - como, ainda não sei - ou então vendo-o e fixo-me no estrangeiro. A única coisa que tem a recear é que eu um dia lhe mande uma carta a pedir dinheiro. Pode afastar de Cressida o receio de que algum dia venha aqui alguém fazer uma cena violenta e desagradável, ou denunciar-me à polícia, ou insultar-me no meio da rua. As raparigas têm idéias muito exageradas.

- Pensei... - começou Cristóvão.

- Pensou que seria a altura dum empréstimo e foi muito simpático da sua parte, mas ainda não é. Não tenho a mínima dúvida de que hei-de vencer a dificuldade. O senhor tem um ar generoso e bom. Apenas preciso de tempo para pensar e aqui disponho de muito.

Houve um silêncio e, ao cabo de alguns minutos, o major Gray levantou-se. Parecia não terem mais nada a dizer, e Cristóvão compreendeu que era conduzido para a saída. Lá fora, o calor era sufocante e o jovem sentia o pátio escaldar mesmo através dos sapatos. O major veio acompanhá-lo ainda durante um bocado e os dois homens ficaram a olhar para a bela casa.

- Pois é verdade, aqui a temos. A história escrita na pedra. A primeira vez que a vi, reavivou-me um desejo que eu não sentia há vinte anos, desejo que não vai partilhar comigo.

- Que desejo? - perguntou Cristóvão.

- Que Cressida fosse um rapaz.

 

Na madrugada do dia do seu aniversário, Cristóvão foi acordado por duas figurinhas vestidas de pijama, que lhe vinham trazer à cama as suas prendas. Sentou-se, esfregou os olhos, fez um esforço para se mostrar encantado e procurou frases amáveis para agradecer uma moldura de coiro e uma caixa de lenços de linho.

- Podes pôr uma fotografia na moldura - disse Paulo, que era quem lha oferecia. - Põe a de Cressida.

- Agora, ela é tua noiva, não é? - perguntou Roberto.

- Sim.

Era demasiado cedo para estar com conversas, mas os dois garotos haviam-se sentado na cama e preparavam-se para conversar.

- Sim, no entanto, não nos casamos já.

- Ela é católica como nós? - perguntou Roberto,

- Não.

- Vai viver connosco?

- Sim. Quando nos casarmos vamos ver se encontramos uma casa bonita, no campo, para termos dois póneis.

- O que são pónees?

- São cavalos pequenos.

- Oh, então andaremos a cavalo

- Sim, e há-de ser muito engraçado.

- Se houvesse três, seria melhor - sugeriu Roberto, com delicadeza. - Seria um para mim, um para...

- Pois com certeza, com certeza, três. Ai que bonitos presentes! Muito obrigado. Vocês agora vão ter com Scotty

- Não. Hoje é o teu dia de anos - pronunciou Paulo -, de maneira que ficamos aqui a conversar contigo.

- Ah! - e Cristóvão procurou um assunto. - Como está o tempo?

- Está quente, mesmo muito quente, como ontem. Creio que vai haver trovoada, não demora muito. A senhora Garcia já o disse.

Paulo deu uma gargalhadinha de excitação e perguntou

- Queres ver o que comprámos para a Cressida?

- É uma bonita surpresa?

- É um livro - respondeu Roberto.

- Ela vai gostar - afirmou Cristóvão.

- É um livro de cozinha - explicou Roberto, - Ensina a cozinhar todas as coisas com vinho.

- Ah, parece-me muito interessante. O que estará Scotty a fazer?

- Depois vamos ver - respondeu Roberto. - Primeiro tens de vir visitar Josette.

- É muito cedo para a acordar - protestou Cristóvão.

- Já está acordada... à espera de que lá vás, pois tem uma prenda para ti. Anda ver.

Claro que tinha de ir. Dominando uma série de bocejos, Cristóvão calçou umas pantufas e saiu com os dois pequenitos. Josette estava sentada na cama com os olhos a brilharem, e abraçada a um grande embrulho.

- Ah, bonne fête - exclamou ela. - Bonne fête

- Chiu, que acordas a senhora. Dá-lhe o embrulho - proferiu Paulo.

Josette entregou-lhe a prenda e Cristóvão inclinou-se para a beijar.

- Obrigado, Josette. Posso abrir já?

- Pois claro. Não é para outra coisa.

Cristóvão desatou as fitas e abriu uma grande caixa de cartão. Dentro estava um par de chinelos de feltro, dum modelo que ele achara obsoleto. Além disso, eram enormes para ele e dum amarelo que o fez sentir-se ligeiramente doente.

- Meu Deus! -disse com o maior entusiasmo possível. - Meu Deus, que elegantes!

Josette deu uma risada da mais pura alegria.

- Fui eu que os fiz, fui eu que os fiz! - exclamou ela.

- Chiu, cala-te, a senhora ainda está a dormir - avisou Roberto.

- Não fiz tudo - disse Josette em segredo. - Fiz parte deles. Foi a senhora que me ensinou, e me deu as coisas para os fazer, porque não as queria.

Cristóvão compreendeu, então. Se tinham sido feitos de propósito para o falecido senhor Belchamber, esse senhor devia ter um grande pé. Dois grandes pés, - concluiu, pegando nos sapatos com todas as mostras de entusiasmo.

- Hás-de usá-los todos os dias, para nós os vermos - disse Paulo.

- Pois, com certeza.

Ficou a pensar o que é que o seu criado Merrow diria quando os visse. E, para mais, teriam ainda de levar um cordão ou um elástico.

- São muito bonitos! Tudo muito bonito, vou ter um lindo dia de festa.

Pelo menos as crianças estavam preparadas para se divertir. Apesar do calor, os rapazes deram vários passeios até ao cimo do caminho, para ver se viam chegar a carrocita do padeiro que devia trazer os dois bolos de aniversário. Foram muito cedo levar a Cressida o livro de culinária e depois acompanharam-na à herdade. Ofereceram-se para auxiliar nos preparativos da festa, mas atrapalhavam tanto que, por fim, a senhora Belchamber mandou-os levar um bilhete a Scotty, para que ficasse lá com eles.

A senhora Garcia trabalhava ainda com menos energia do que a habitual e logo de manhã, quando estava a pôr ao lume a chaleira para fazer o seu chá, contou que o marido andava a pensar em mudar de ofício.

- Ofereceram-lhe trabalho no hotel Merton - disse, tristemente.

- E ele aceita? - perguntou a senhora Belchamber.

- Ora diz que sim, ora diz que não. Diz que terá menos trabalho, mas que também terá menos gorjetas. Mas, como há muito pessoal, o trabalho será menos.

A senhora Delchamber respondeu de mau modo.

- Muito pessoal quer dizer muitas criadinhas.

- com certeza - concordou a senhora Garcia, com toda a solenidade. - Minha irmã, porém, já me fez ver que, quanto mais criadas houver, melhor. Uma mulher só é que destrói lares, não muitas.

- E é verdade! Mas um homem não fica em casa - respondi-lhe eu - a não ser que tenha mãozinhas que o prendam. Se não fica por causa da mulher, fica em atenção aos filhos.

- Que disparate! - disse a senhora Belchamber. - Se se não sente bem, esse chá tão forte ainda lhe vai fazer pior. E não esteja com o ar de quem vai ficar aí sentada, porque há muito que fazer.

O trabalho prosseguiu, e dentro em pouco a sala de cima começou a ganhar um ar festivo. Ao fim da manhã, pratos cheios de bolos feitos em casa foram levados para cima e colocados na grande mesa redonda, cujo centro ficou vazio aguardando os dois grandes bolos de aniversário. A sala foi fechada durante o almoço. Após este, a senhora Belchamber, receando que Roberto e Paulo rebentassem de excitação, permitiu-lhes lançarem uma olhadela ao aposento. Josette, levada às cavalitas por Cristóvão, viu tudo, soltando exclamações de entusiasmo.

- E agora para a cama outra vez - ordenou ele - para dormir uma boa soneca, ou então não vai à festa. Cubra-se e feche os olhos.

Josette fechou um olho e a senhora Belchamber correu a cortina.

- O telefone está a tocar - anunciou Roberto. - Posso lá ir?

- Vai depressa - disse Scotty. - Se for a doutora, diz-lhe que a festa é às quatro e que não venha tarde.

Se for o padeiro e houver qualquer complicação por causa dos bolos, chama-me porque eu entendo-me com esse monstro. Espero que lhe tenham posto as iniciais. Terão?

- Acho que sim. Eles perguntaram, e nós dissemos que pusessem. Porque é C. P. - perguntou ele a Cristóvão - Também és Paulo como eu?

- Acertaste pela primeira vez. Cristóvão Paulo. Eu estava para ser Cristóvão Armando Roberto Paulo, mas nesta altura entrou o vosso pai e salvou-me.

- Quem está ao telefone? - perguntou Scotty que descia a escada, ofegante.

- Não sei - e Roberto mostrava-se muito pouco à vontade. - Uma senhora perguntou-me: "É da Herdade Verde?" E eu respondi que sim. E ela disse-me: "Sabe-me dizer se a senhora Belchamber está aí?" E eu respondi: "Está, sim. Quer que a chame?"

- Quem era? - perguntou a senhora Belchamber, com os olhos tão abertos que parecia ocuparem-lhe toda a cara

- Não disse - gaguejou Roberto. - Informou que... a virá visitar hoje à tarde. Que vem de comboio e depois toma um táxi...

- Contou-lhe que tínhamos hoje uma festa? - perguntou a senhora Belchamber.

- Eu eu nem tive tempo. Ela desligou logo. Houve um pequeno silêncio e na atmosfera um estranho ar de tensão.

- O que é que ela cá vem fazer?

Fora Josette quem fizera a pergunta. Estava ainda sentada na cama, pálida, com os olhos postos na senhora Belchamber.

- O que é que ela vem cá fazer? Pensa que me leva daqui - respondeu a senhora Belchamber com brusquidão.

As palavras, breves e rápidas, tiveram um extraordinário efeito nas três crianças. Roberto continuou calado, mas empalideceu. Paulo ficou calado também, mas com as faces cada vez mais ruborizadas. Dos olhos de Josette caíram primeiro uma, depois duas lágrimas, que em seguida começaram a correr em fio. Não disse nada. Simplesmente ficou a olhar para a senhora Belchamber com as lágrimas a deslizarem-lhe pela cara. Cressida sentou-se em cima da cama, abraçou-se a ela e ia-Lhe dizendo palavras acariciadoras.

- Não vai, pois não - gaguejou Roberto.

- Não!

Fora Paulo quem dera o grito, tão alto e tão súbito, que o coração de Cressida começou a bater.

- Não!

Ficou a olhar para a senhora Belchamber e avançou tranqüilamente para ela. com os dentes cerrados, disse:

- Sei quem é. Já sei. É aquela que foi à estação, não é verdade?

- Não há necessidade nenhuma de complicações - começou a senhora Belchamber. - Eu posso muito bem...

- É a mesma? - perguntou Paulo com insistência.

- Sim, é essa mesma - admitiu a senhora Belchamber. - Mas...

Paulo proferiu com ferocidade:

- Então ela não vem. Está a ouvir-me? Não vem. Quem é ela para vir onde ninguém a quer? Quem é ela que pensa levá-la, quando a senhora veio para viver aqui? Quem é ela que diz "eu vou lá e trago-a"? Não, não vem. Vai ver que não vem. Eu faço um jogo de magia.

Passou rapidamente os olhos pelo quarto, tirou a pregadeira da mesa que estava ao lado da cama de Josette e pôs-se, apaixonadamente, a arrancar os alfinetes.

- Não vem e não a leva - dizia pregando com ferocidade os alfinetes no veludo. - Veja!

Levantou a almofada com um gesto dramático acima da cabeça e informou num tom de voz forte:

- Fiz um feitiço, um mau feitiço.

- Muito bem - disse Cristóvão.

- Muito obrigada, mas não há necessidade de magias - pronunciou a senhora Delchamber. - Ponha a pregadeira no seu lugar e tente portar-se como um rapazinho inglês, em vez de estar para aí a fazer de Sarah Bernhardt. De qualquer modo, ela hoje não vem, se for uma pessoa de bom senso. Quando a tempestade começar, até os comboios saem da linha. Vamos, vão-se embora.

Fez sair todos, menos Cressida, e puxou uma cadeira para junto da cama.

- vou ler-te em francês e tu tens de dormir - disse, dirigindo-se a Josette. - Onde é que está o tal livro? Ah, está aqui. Agora deita-te tranqüila e escuta, senão vou-me embora. vou ler-te estas cartas comerciais. Suponho que te não interessam muito, mas tens de aprender qualquer coisa sobre comércio. Um dia ainda podes vir a ser secretária, quando cresceres... Escuta. "Monsieur - começou num francês irreconhecível - nous avons apris avec plalsir que vous, vous... Sim, há dois "vous" aqui. Em francês é assim. Eles estão sempre a repetir. "... que vous vous intéressez à notre... Notre représentant Monsieur Gogaelin Um lindo nome, não há dúvida, e fácil de pronunciar... Monsieur, como disse, passera chez vous dans le courant de la semaine, et nous avons en magazin...

Pour sattsfaire vos besoins. Percebes o que estou a ler? Não posso parar para te traduzir. "En sollicitant la continuation de votre... Ah, bem, suponho que é esta a maneira correcta de acabar. Vamos ver outra. "Monsieur le Directeur..."

- Chiu... - fez Cressida, apontando para Josette que dormia, e a senhora Belchamber fechou o livro com um suspiro de alívio.

- Falaremos no senhor director outro dia - disse, empurrando Cressida para fora do quarto e fechando a porta devagarinho. - Viu como aquele garoto ficou excitado? - perguntou ela quando desciam as escadas.

- Paulo?

- Sim, muito exuberantes os franceses. Sempre prontos a exaltar-se. Só reparei nisso quando casei com um inglês. Tranqüilo, nada de gestos. Deus deu a língua às pessoas e é com a língua que se fala. Não são precisos nem gestos com as mãos, nem encolher de ombros, nem erguer as sobrancelhas. É simplesmente um desperdício de energia que podia muito bem empregar-se doutra forma.

- Torna a linguagem mais expressiva, não acha?

- Não, não acho, e toda a minha vida o tenho afirmado. Se quiser falar fale, se quiser agir aja, mas não faça ambas as coisas ao mesmo tempo, a não ser que seja esse o seu modo de vida. Acho que seria melhor pôr a nata naqueles bolos, enquanto eu mexo estes.

A festa começou às quatro horas em ponto e a primeira surpresa foi Josette ter aparecido com um lindo vestidinho branco. Seguiu-se a entrada da senhora Belchamber, com um vestido cinzento cor de pomba e o seu habitual chapéu preto. Assumira o comando das operações, recebendo a médica com uma tentativa de graciosidade, dirigindo um olhar penetrante ao melhor fato de Scotty, proibindo que alguém visse de perto os bolos que esperavam que se lhes acendessem as velas - cerimônia que só se realizaria no fim da festa. O seu olhar acerado incidia também sobre Cristóvão; evidentemente, não iria permitir nenhum divertimento de adultos, que perturbasse o que de certa maneira se tornara uma distracção puramente juvenil

À medida que a tarde avançava, os pequenos dedicavam-se a várias brincadeiras. A excitação de Josette era toda interior, mostrando-a unicamente nos olhos que brilhavam, nos lábios que comprimia e nuns gritos de alegria que dava de vez em quando. Roberto mantinha a sua compostura habitual, mas Paulo tornou-se cada vez mais excitado, até que a certa altura, já à noitinha, Scotty o ameaçou de o levar lá para fora e lhe meter a cabeça na selha da água.

A ameaça, naquela noite escura e abafada, perdeu muito do seu significado, porque o pensamento de imersão em água fria reinava em cada um dos membros daquele grupo. O céu tinha-se posto tão carregado e a luz era tão débil que fora necessário, pouco depois de ter começado a festa, ir buscar candeeiros para alumiar a sala. Trouxeram do quarto de Josette um cobertor que colocaram na janela, e a festa tomou todo o ar duma função nocturna, o que aumentou grandemente oprazer das crianças.

Era difícil jogar e a senhora Belchamber era demasiado hirta para brincar a qualquer coisa que necessitasse de grande mobilidade. As crianças não conheciam jogos ingleses e só Cressida sabia alguns franceses. Uma tentativa feita pela senhora Belchamber para dançarem o Pont de Avignon não teve o mínimo êxito. Por fim, arranjaram um grande lenço, e com a senhora Belchamber a servir de árbitro, todos, com excepção de Josette, jogaram à cabra-cega. O que "ficava" tinha pouca dificuldade em identificar a pessoa que apanhava num grupo em que as havia de tão diversos tamanhos e formas, mas tanto o árbitro como Josette davam sempre certas informações.

- Quem é este lavrador grande e gordo que agarraste

- Está quieto, não puxes os cabelos de Cressida.

- Ah - gritava Josette. - Não é Roberto, é Paulo, quem apanhaste.

De vez em quando, ouvia-se ao longe o trovão e relâmpagos cortavam o ar. mas o grupo estava demasiado contente para notar isso. A chuva caía, cada vez com mais intensidade e pouco depois batia com força nos vidros das janelas; a tempestade viera refrescar o dia abafado que estivera, e todos se sentiam satisfeitos com o fresco que agora enchia a casa. As bátegas de água, foram esquecidas, quando começaram a ir buscar cadeiras e se iniciou a solene refeição.

Depois de servido um bom chá, os restos foram arrumados. Os dois bolos de aniversário ainda continuavam intactos, cobertos de creme cor-de-rosa e enfeitados com rosas. Eram horas de Josette ir para a cama e a senhora Belchamber pediu um compasso de espera. Ela e Cressida iam buscar os gelados, acender as velas, para se dar início à cerimônia de cortar o bolo.

Scotty acompanhou as duas senhoras lá abaixo, não por delicadeza, mas em resposta ao pedido da senhora Belchamber "de ser útil, ao menos uma vez na vida". Cristóvão ficou a fazer de dono da casa e tinha organizado um jogo da pampolinha com um dos sapatos oferecidos por Josette, quando a porta se abriu e surgiu a cabeça de Scotty. Havia um não sei quê na sua expressão, que fez Cristóvão sentir se pouco à vontade. Deixou os outros a brincar e dirigiu-se à porta. Scotly agarrou-o pelo braço, levou-o até ao patamar e, fechando a porta, disse baixinho:

- É melhor vires cá abaixo.

- Para quê - perguntou Cristóvão no mesmo tom de voz.

- Olha, chegou uma pessoa. Não sei quem é, mas passou-me pela idéia que podia ser Lúcia Locket, a filha do carcereiro... sabes?... a que quer levar a velhota, à força, para os aposentos que reservou na casa doada.

- Meu Deus, ela veio com esta tempestade?

- Sim, e vê-se bem que veio. Chegou molhada como um pinto e eu mandei-a para a sala da frente.

- Mas não perguntou por mim - protestou Cristóvão. - É com a senhora Belchamber que ela quer falar.

- Mas neste instante não pode. Primeiro, porque não se encontra em estado de falar seja a quem for, e não podes apresentá-la na festa numa ocasião destas.

Com um tom de voz sério, prosseguiu:

- Olha, Chris, a festa está praticamente acabada. Vai lá abaixo, instala confortàvelmente esta má fada, e diz-lhe que lhe apresentas a Belchamber logo que a médica se vá embora e as crianças se deitem. Ela não pode objectar nada, e explica-lhe que é só o tempo de cortar o bolo de aniversário.

- Mas ela não pode assistir?

- Assistir ? Já te disse - exclamou Scotty, desesperado. - Ela está num estado horrível! Veio a pé, de Grenton. Tanto quanto consigo ver, não há lá carro nenhum fora.

- Se tu a viste, como é que a senhora Belchamber a não viu também

- Eu fui lá abaixo e, quando passava pelo corredor da cozinha, tive a impressão de que vi alguém à porta. Pensei que fosse ilusão minha. Há uma lâmpada no vestíbulo e lá fora está escuro. Mas pareceu-me ouvir bater e fui ver do que se tratava. E lá estava ela tentando entrar. Abri a porta... um caso sério abrir aquela porta... e depois de ver quem era, levei-a para a sala grande e disse-lhe que esperasse.

Cristóvão ficou tranqüilo, pensando no caso. Por fim, concordou que a sugestão de Scotty era sensata. A festa estava quase a acabar e a médica dentro em pouco ia-se embora. As crianças afastar-se-iam, e diriam então à senhora Belchamber que tinha chegado alguém para lhe falar. Cristóvão estava certo de que era a mesma mulher que encontraram ao chegar a Inglaterra. As pesquisas haviam sido demoradas, mas chegavam agora ao seu termo. Tinham encontrado a senhora Belchamber.

- Está bem, eu vou lá abaixo.

Ia a descer a escada, mas Scotty agarrou-lhe no braço.

- Espera um instante. Vem comigo.

Foi ao quarto de Josette e tirou de cima da mesa um pequeno copo. Segurando nele, tornou a agarrar no braço de Cristóvão e levou-o pelo corredor.

- Aonde vamos? - perguntou Cristóvão.

- Já te disse. Tenho sempre uma garrafa do melhor para casos de emergência. Lembras-te da noite em que chegaste?

Scotty tirou uma garrafa de aguardente dum armário e encheu um copo.

- Pronto, leva-lhe isso.

- Tu não estás bom da cabeça - disse Cristóvão. - Esperas que eu vá ao encontro da mulher com uma bebida na mão

- Chris, meu velho, não discutas. A mulher precisa disso.

- Mas, meu Deus, Scotty, se é a mulher que eu vi na estação, provavelmente nunca bebeu na sua vida.

- Então ainda lhe faz melhor - insistiu Scotty, metendo o copo na mão de Cristóvão e empurrando-o pelo corredor. - Se não beber isso, apanha uma pneumonia. Está molhada até aos ossos e os dentes batem-Lhe que nem castanholas. Vai lá abaixo ter com ela. Pede-lhe que espere. Vai. Faz valer os teus encantos e deixa que a aguardente faça o seu efeito. Vai. Há mais outra coisa ainda. Descobri que se chama Cubitt.

Com certa relutância, Cristóvão dirigiu-se para as escadas, passando por Paulo que, cansado de andar à procura do sapato e muito excitado, usava a sua energia, subindo ao último andar e escorregando pelo corrimão largo e polido, com os braços abertos, a uma velocidade horrível. Era um divertimento normalmente proibido, mas as regras naquele dia tinham sido um pouco esquecidas e Cristóvão reconhecia que aquele corrimão era o ideal para o que o rapaz estava a fazer.

- Olha - gritou Paulo que trepara uma vez mais ao corrimão -, olha para mim.

Cristóvão não olhou. Corria quanto podia para galgar os poucos degraus que o separavam do vestíbulo, onde, à entrada da sala grande, estava uma mulher. Era evidente que acabava de chegar ali; numa das mãos segurava ainda a maçaneta da porta, grande e antiquada, e a outra tinha-a enclavinhada no peito. Uma palidez mortal cobria-lhe o rosto, e os seus olhos, desmedidamente abertos, olhavam em frente, incidindo sobre Cristóvão, sem o ver.

Ele alcançara o vestíbulo, mas o olhar permanecia fixo por cima do seu ombro. Os lábios abriram-se e com admirável prontidão Cristóvão colocou o copo de aguardente no chão e, dando um passo em frente, agarrou a senhora Cubitt que lhe desmaiou nos braços.

 

A senhora Cubitt deixara a casa de Melhampton a tempo de apanhar o comboio. O dia estava tão excessivamente quente, que ela vestiu a sua mais fina blusa branca de algodão, e depois, lembrando-se de que voltaria acompanhada, despiu-a e substituiu-a por uma de seda. Perscrutando os céus, chegou à conclusão de que devia munir-se duma capa de borracha, mas preferiu não a levar. Pareceria mais elegante, mais soignée, assim, e o senhor Versoix mais duma vez a cumprimentara pela sua elegância.

Olhou-se pela última vez ao espelho. Se não estava chique, encontrava-se pelo menos apresentável. Agarrando nas luvas e na mala, e indo dar uma volta aos quartos, antes de sair, surpreendeu-se a pensar no senhor Versoix e nas alterações que em tão pouco tempo ele trouxera a Melhampton. Mal sonhara quando o vira pela vez primeira - que bem, que fácil e que prontamente ele se adaptaria à bem ordenada rotina de Melhampton.

Sim, lá bem ordenada fora; os quartos estavam todos ocupados, com excepção dos aposentos que esperavam a senhora Belchamber; o reduzido pessoal instalado, a lista dos trabalhos voluntários cumprida e realizada com entusiasmo e os hóspedes sentindo-se bem e à vontade.

Hesitara, lembrava-se bem, mais do que isso, sentira-se desfalecer à idéia de regressar, naquele dia tão fértil em acontecimentos, sem a senhora Belchamber, sem mesmo poder fazer um relatório coerente do que acontecera à senhora Belchamber, sem outra coisa que justificasse a sua viagem, senão aquele estranho: um francês desconhecido. Fora precisa muita coragem para explicar o caso aos procuradores que tinham esperado, reunidos na sala, ansiosos por dar as boas-vindas à dona da casa e desejosos de completarem as formalidades legais de mudança de proprietário.

Lembrava-se bem de ter principiado hesitante. A expressão daqueles rostos duros e velhos que tinha na sua frente, não a ajudavam nada na sua explicação. Vira a senhora Belchamber? Sim, mas... Conseguira falar-lhe? Apresentara-se-lhe e comprara o bilhete dela? Sim, mas...

Fora o senhor Versoix, com o seu extraordinário tacto e compreensão, que avançara e explicara claramente tudo à comissão. Falara-lhes meio em francês e meio em inglês deficiente, mas com uma franqueza nitida, que limara todas as arestas, fizera desaparecer a suspeita e a desaprovação dos rostos dos seus ouvintes. Contara-lhes o seu encontro, o dilema da senhora Cubitt e o seu próprio. Ela, atrapalhada com o desaparecimento da senhora Belchamber; ele, consternado com o desaparecimento da sua bagagem, do passaporte e dos papéis. Não havia qualquer explicação para esta estranha conduta, mas ele podia afastar-lhes do espírito quaisquer apreensões; com o seu longo conhecimento da senhora Belchamber podia absolutamente tranqüilizá-los. Ela não tencionava de modo algum abandonar a decisão de lhes dar a casa. Isso sabia ele. Haviam falado no caso, no comboio e no barco, tendo ela manifestado sempre a intenção de honrar a sua promessa. Encontrara, porém, uns amigos no comboio e era com eles, sem a mínima dúvida, que desaparecera tão repentinamente. Havia três criancinhas e via-se bem que uma delas estava doente. A senhora Belchamber cuidara da criança, tratara-a. (Os procuradores murmuraram palavras de apreço. Sem dúvida, a velha senhora, que era, e neste caso podia bem compreender-se, conhecida como impulsiva, tomara a súbita resolução de acompanhar a criança ao seu destino.

Não se lembraria decerto da preocupação que causava à senhora Cubitt. Sem dúvida, esquecera que a bagagem dele e a dela tinham sido entregues ao mesmo moço e nem pensara na sua aflição, ficando sem papéis para mostrar às autoridades e sem quaisquer recursos...

O seu corpo pequeno e maciço parecia crescer à medida que falava. Ninguém resistira aos seus encantos. Esqueceram-se de que era um francês forte, de barba preta, figura tirada das ilustrações dos livros de crianças; lembravam-se apenas das alterações que introduzira na casa de Melhampton, tranqüila e gradualmente, mas com tanta firmeza, que era impossível imaginar o que seria da velha senhora Pendennis sem o auxílio do senhor Versoix, no passeio que fazia todas as manhãs até à biblioteca; o que faria o general Oliphant, sem os comentários explicativos das alterações do gabinete francês; como poderia passar a excelente cozinheira, senhora Lightwater, sem as suas visitas diárias à cozinha, sem os seus ensinamentos na confecção de omeletas, de sotifflés e de sopas. Quem podia agora pensar nas tardes de quinta-feira sem o círculo francês? Quem podia imaginar o jantar de sexta-feira, sem o prato de peixe à la Versoix? Quem é que, a princípio, dera cabo das manias da senhora Obberly e da dispepsia do senhor Whiteaway? Quem podia ter adivinhado os recursos que este homem viria a demonstrar ? Nenhum inglês podia ter manifestado o mesmo interesse pelas velhas damas, com tanto tacto e graça. Certamente nenhum inglês que o fizesse, teria sido aceite pelos anciãos como um igual, e assim respeitado e amado. Este homem estava bem em toda a parte e não havia ninguém naquela casa que não pudesse dizer que o senhor Versoix tinha um interesse muito especial por ele ou por ela.

Que gostava de todos e se sentia feliz, não restava a mínima dúvida. A relutância que tivera, as dificuldades que pusera em acompanhar a senhora Cubitt eram actualmente compreendidas e todos simpatizavam com elas. Encontrara-se no meio de amigos, mas quem sabe o que o dia de amanhã nos reserva? Dera a entender que a senhora Belchamber podia fazer certas objecções... ter certos preconceitos contra ele. Sabia, havia uma semana, que a polícia lhe tinha apanhado o rasto e exprimira a sua satisfação por a saber salva; fora justamente o que ele dissera: estava com as crianças. A princípio mostrara-se contrário à ida a Grenton, mas a senhora Cubitt fizera-lhe ver a absoluta necessidade de levar a cabo tal diligência.

Foram juntos para a estação, conversando acerca daquele dia de calor extraordinário. O comboio vinha uns minutos atrasado e haviam decidido esperar na sala de espera, suja mas fresca. Sentaram-se num banco duro, e o senhor Versoix, estranhamente silencioso, Olhava para os grandes cartazes coloridos que cobriam as paredes e o convidavam a viajar até à modernizada Blackpool e a um distante Eastbourne, e lhe ofereciam, à escolha uma excursão de comboio a Londres ou a Bournemouth.

O comboio, surgindo na estação, pôs ponto final aos seus sonhos. Entraram, escolheram uma carruagem, o comboio partiu e uma brisa quente varreu o compartimento. A senhora Cubitt olhou para a paisagem e percebeu que não demoraria muito a rebentar uma tempestade; não trazia qualquer agasalho que a protegesse, mas o fato era de boa fazenda e agüentaria uma chuvada não muito forte. De qualquer forma, não se exporia ao temporal, porque em Grenton tomariam um táxi para a Herdade Verde. O táxi esperaria e tentaria convencer a senhora Belchamber a voltar imediatamente para Melhampton, e as cartas dos procuradores, de que a senhora Cubitt era portadora, fariam com que a velha senhora visse quanto eles lamentavam o seu estranho procedimento e imaginasse a ansiedade que havia causado. Para o caso de surgirem dificuldades, tinham tomado a precaução de mandar os papéis; tão estranho comportamento era prerrogativa duma velha dama, mas uma firme assinatura nos papéis era o direito que tinha cada um dos habitantes da casa Melhampton.

A senhora Cubitt abriu uma revista e tentou ler, mas a carruagem era tão escura, que ler sem uma luz se tornava completamente impossível, e as autoridades que superentendiam no comboio parecia não quererem atender esta necessidade. Fechou a revista, encostou se para trás e ficou a ver a paisagem naquela luz estranha, que não parecia nem real nem familiar. A chuva não vinha distante...

Ficaram contentes, quando o comboio chegou a Grenton. A senhora Cubitt saiu, olhou à sua volta e, chamando um moço, perguntou-lhe onde poderia encontrar um táxi. Que pedisse no posto de informações do lado de fora da estação, e eles mandavam-Lhe um.

O posto era pequeno, mas encontraram-no com facilidade. O senhor Versoix esperou à entrada, a senhora Cubitt entrou e um homem gordo, cheio de calor e a suar, sentado, de mangas arregaçadas, fez-lhe uma reverência, indicando-lhe uma cadeira, e informou-a de que a chamada telefônica não demoraria muito. Passados momentos, disse-lhe:

- Boas-tardes, minha senhora. Desculpe-me tê-la demorado. É um táxi que deseja, não é verdade?

- Se faz favor.

O homem abriu um livro sujo e folheou-o.

- Agora não há nenhum, mas dentro de cinco, dez minutos... Para ir aonde?

- À Herdade Verde.

- À Herdade Verde?

O rosto do homem assumiu uma expressão dúbia e a senhora Cubitt olhou para ele ansiosamente.

- É muito longe?

- Não, não é a distância mas a estrada. É um castigo para arranjar um motorista que queira fazer esse percurso. Dá-lhe cabo dos carros e todos eles se lamentam.

O motorista, que chegou justamente nessa altura, lamentou-se amargamente, tirando por fim o boné e cocando o cabelo branco.

- Levo-a lá, se tiver sorte, mas não prometo. A estrada tem covas com quase um metro de profundidade e a sua largura não é superior a isto. - E abria os braços. - Se vier algum carro em sentido contrário, lá temos de fazer o caminho de novo, em marcha atrás, por aqueles barrancos.

- Tenho muita pena, mas queria que nos levasse lá e que esperasse por mim.

- E esperar quanto tempo?

- Bem, meia hora, o máximo três quartos de hora...

Calou-se, porque ao longe começava a ribombar o trovão.

- Vem aí uma trovoada. Não quer esperar até pelo menos passar o pior?

- Prefiro ir já. Talvez lá cheguemos antes dela estalar.

O motorista, murmurando qualquer coisa como a dizer que duvidava que lá chegassem antes de rebentar a tempestade, acompanhou-a ao carro e abriu a porta. A senhora Cubitt olhou para o senhor Versoix, mas com grande surpresa ele pegou-lhe no braço e puxou-a para o lado.

- É melhor que eu não vá - disse em voz baixa.

- O senhor não... - perguntou a senhora Cubitt olhando para ele, admiradíssima. - Mas tem tantas coisas a dizer à senhora Belchamber como eu. Estava ansioso por...

- Claro que estou - admitiu o senhor Versoix. - Mas o que tem a tratar com ela é o mais importante, compreende?

- Compreendo o seu ponto de vista, mas...

- Então será melhor assim. Primeiro vai lá, ela assina os papéis, não é verdade?

- Espero... que sim.

- E depois - continuou o senhor Versoix - dizLhe: "Venha comigo", e talvez ela venha.

- Espero que virá. Mas se se recusa, então eu...

- Se não vier, volta para o táxi e eu estou aqui à sua espera. Torno a metê-la no comboio para voltar a Melhampton e vou eu à herdade, ver se lhe falo. Mas é melhor... é mais amável para ela, compreende?... que eu a veja sozinho.

- Compreendo perfeitamente.

A senhora Cubitt esteve uns instantes a considerar o assunto e em seguida declarou:

- vou lá, falo à senhora Belchamber e vejo se está resolvida a vir comigo e a assinar os papéis.

- Está bem.

- Se ela voltar comigo, encontramo-nos aqui. Se não voltar, vai à herdade ver se lhe fala.

- Está muito bem. É melhor - disse o senhor Versoir com um ar entendido - não tratarmos do assunto os dois ao mesmo tempo. No fundo, não é o mesmo assunto. É preferível, portanto, fazê-lo separadamente.

A senhora Cubitt percebeu a sensatez que havia nisto. O assunto que ela ia tratar era público, o dele particular. E, qualquer que fosse a urgência dos negócios de Versoix, a obtenção da assinatura da senhora Belchamber naqueles papéis era de primordial importância. Satisfeita com a combinação, deixou o senhor Versoix e meteu-se no táxi. Era um carro grande e antiquado, e ela deixou-se cair nos seus vastos assentos. O motorista pôs o motor em marcha, deu volta no terreiro da estação e, por fim, seguiram com uma velocidade que dizia bem com a idade e dignidade do carro.

De qualquer modo, não escapariam à tempestade. O trovão ribombou sobre as suas cabeças e, como se fosse um sinal, os céus abriram-se em água. A chuva começou a cair em catadupas, cataratas, reduzindo ao mínimo a visibilidade e fazendo com que o carro seguisse ainda mais devagar. Passaram as ruas da cidade, entraram nos subúrbios e depois começaram a rodar pela estrada principal, larga, até ao troço que ia dar à herdade.

Desta altura em diante, a viagem para a senhora Cubitt transformou-se num pesadelo. Ao principio o caminho ainda era tolerável, e ela só tinha que se agarrar com firmeza para se defender dos solavancos do carro. A chuva tocava uma incessante música no tejadilho do automóvel e a senhora Cubitt, ao ouvir esta sinfonia, cerrava os lábios e, olhando para fora, procurava indícios da aproximação da herdade. No entanto, nem dum lado nem de outro via o menor sinal, a não ser uma alta sebe. Achava que o carro oscilava cada vez mais violentamente e ouvia as pragas rogadas pelo motorista. De súbito, houve um solavanco estranho e o carro parou abruptamente, todo inclinado para um lado. A senhora Cubitt espreitou pela janela e viu o motorista a examinar uma das rodas de trás e com um ombro encostado ao carro, a tentar fazê-lo andar para a frente. Achando que era impossível, abriu a porta do carro e limpou a chuva da cara.

- Uma cova - anunciou lacònicamente. - Não podemos sair daqui

Atirou com a porta e ela viu que ele estava a partir ramos da sebe e a amontoá-los atrás da roda. Ao cabo de alguns minutos, os seus nervos não podiam suportar mais o barulho da chuva, e comovida também com o aspecto do homem, pela sua idade e pela fadiga, quis abrir a porta e sair para o ajudar. Lembrando-se, porém, de que não trazia impermeável, deixou-se ficar outra vez sentada.

A chuva encharcava o motorista, enquanto este ia arranjando ramos para calçar a roda, e depois, limpando os olhos à manga do casaco, ele abriu a porta e apontou o caminho.

- Era melhor ir a pé - gritou ele, dominando o rufdo da tempestade. - Já está perto. Se for depressa, não se molhará muito. vou ver se consigo tirar o carro e depois vou ter consigo. Vá antes que o tempo piore. É o primeiro edifício que encontrar.

A senhora Cubitt decidiu seguir o conselho. Saiu apressada e correu pelo caminho enlameado, empurrada pelas rabanadas de vento, mas aliviada por se ver livre da prisão barulhenta do carro.

Não muito longe, por entre árvores, avistou a casa da herdade, mas bastante indefinidamente ainda, por causa da chuva. Recobrou ânimo ao ver quase atingido o seu objectivo e procurou chamar a si todo o equilíbrio e domínio que a distinguiam. Sentia-se abalada e muito diferente do seu habitual. E o seu único desejo, que repetia de si para si, era um fim rápido e satisfatório para a sua missão.

Quando chegou à entrada da herdade, ficou irresoluta, e depois, tal como o inspector da polícia, dirigiu-se à porta principal. Caminhou rapidamente, durante certo tempo, e, quando chegou ao portão, tentou empurrá-lo. Este resistiu-lhe, como já resistira ao inspector; como, porém, a senhora Cubitt não tinha a altura e a força daquele, esteve para ali, durante muito tempo, a lutar em vão. Parando para respirar, fez uma última tentativa; empurrou o portão, e esforçou-se ao mesmo tempo por levantá-lo; descobriu, demasiadamente tarde, que ele nem sequer estava fechado. Agarrando-se aos varões de ferro foi arrastada e bateu violentamente com a cabeça numa das barras. Durante algum tempo tudo girou à volta dela.

Esperou que a vertigem passasse e depois, com pouca firmeza, mas com uma cautela instintiva, percorreu o caminho escorregadio em direcção à porta. Ali ficou tranqüila, ganhando forças, olhando pelos vitrais para o amplo vestíbulo. Alguém vinha a descer a escada. Era a própria senhora Belchamber... uma rapariga, e outra pessoa.

A senhora Cubitt levantou a mão e bateu. Se o fez com força ou não, não sabia, pois tinha a sensação de que a cabeça lhe andava à roda. Esperou e viu alguém abrir a porta. Era um homem, um homem novo. forte... Lembrava-se de ele lhe ter dado a mão e a haver levado para dentro. No vestíbulo, ainda a segurava, apesar dos débeis esforços que fazia para se libertar. Mas ele fechara a porta, e o facto de se ver livre da tempestade, com o seu grande ruido e confusão, dera uma força momentânea aos seus nervos abalados. Desenvencilhou-se do braço que a agarrava e olhou o homem com um esboço de dignidade.

- Vim... vim para...

- Coragem. Agora deixe-me ajudá-la. Venha cá. Entre, e arranjaremos onde se sente. Depois...

A senhora Cubitt fez um grande esforço para falar com mais clareza.

- Gostaria de falar à senhora Belchamber.

- À senhora... Ah, sim, sim - disse Scotty, reparando na palidez e na fadiga da sua interlocutora. - Fala já. Agora entre.

Empurrou-a, delicada mas irresistivelmente, para a grande sala da frente. Não estava iluminada, mas Scotty voltou atrás, pegou no candeeiro do vestíbulo e foi colocá-lo em cima duma mesa.

- Agora... já nos podemos ver um ao outro.

A senhora Cubitt, ansiosa por dar conta do seu recado e ir-se embora, encontrou forças suficientes para falar com autoridade.

- Quer fazer o favor de chamar a senhora Belchamber?

- Muito bem - disse Scotty com toda a simpatia.

- Quem devo anunciar?

- O meu nome é Cubitt. Ela sabe muito bem quem sou.

- Está muito bem. Queira sentar-se - convidou Scotty. - Eu volto já.

A senhora Cubitt ficou de pé, firme. Depois de ter olhado para ela, Scotty saiu e fechou a porta. Ela esperou. A vertigem voltou-lhe de novo e sentiu imenso alívio por se encontrar sozinha. Dirigiu-se ao sofá e durante uns instantes esteve agarrada a ele. Conseguia ouvir uns sons, passos e vozes de criança, mas os minutos passavam e a senhora Belchamber não aparecia. De súbito, lembrou-se de que o homem lhe dissera que a ia procurar, mas ela sabia que a senhora Belchamber se encontrava no andar de baixo... tinha-a visto descer... e o homem fora para cima. Ouvira-lhe os passos, quando ele"subia as escadas.

Com vagos receios, tremendo de comoção e de fadiga, a senhora Cubitt dirigiu-se à porta e abriu-a. O candeeiro por detrás dela dava uma luz branda que projectava sombras esquisitas e grotescas. Agora ouvia Outras vozes, que vinham de cima, risos, vozes de crianças, todas em coro. Enquanto escutava, sentiu que o vestíbulo começava a andar à roda, diante dos seus olhos. O último vestígio de cor abandonou-lhe o rosto e ela agarrou-se a uma porta, sentindo tonturas. Não era possível... Era fantástico... Ia desmaiar. Sabia que alguém vinha a descer as escadas e fez um último desesperado esforço para se dominar. No entanto, os nervos tinham dado a sua última prova. Deixou-se cair devagar e foi Cristóvão quem a recebeu nos braços.

 

Levar a senhora Cubitt para dentro dum quarto e deitá-la no sofá foi obra dum momento. Cristóvão voltou atrás a buscar a aguardente, fechou a porta com todo o cuidado e ajoelhou ao lado dela. Levou-lhe o copo aos lábios e a senhora Cubitt estremeceu, murmurou qualquer coisa e abriu os olhos.

- Oh - disse ela. - Eu... eu...

- Não fale - murmurou Cristóvão de mansinho.

- Beba isto, que ficará bem.

- Não, muito obrigada. Não. Eu...

- Está toda molhada e tem frio... é melhor livrar-se duma grande constipação. Faça favor de beber isto.

Estendeu-lhe o copo e, gole a gole, a senhora Cubitt bebeu todo o seu conteúdo. Ele viu o sangue subir-lhe às faces e, puxando uma cadeira baixa, sentou-se e esperou que ela se reanimasse.

- Eu, eu... Tem de me desculpar - murmurou.

- A senhora é que tem de nos desculpar a nós - corrigiu Cristóvão com toda a delicadeza. - De qualquer modo, dêmos-lhe muita maçada.

- Ai, não, não!

E a senhora Cubitt fechou os olhos, durante um instante, depois abriu-os e fixou-os em Cristóvão com um ar sombrio.

- Não foi isso, não foi isso. Foi a chuva.

- Sabe muito bem que não devia ter vindo com esta tempestade.

- Foi a chuva - repetia ela. - Sim, sim, foi a chuva, e sem guarda-chuva nem capa de borracha. Eu devia-os ter trazido, mas pensei... pensei que não eram elegantes.

Cristóvão olhou para ela cada vez mais alarmado. Num dos lados da testa havia uma mancha negra e parecia-lhe que fora feita recentemente. Antes não tivesse seguido o conselho de Scotty sobre a aguardente Mas, reconsiderando, era evidente que a estava a aquecer, e devia ter evitado uma constipação. Subira-lhe à cabeça. Olhava para ele com um estranho olhar, e Cristóvão teve a impressão de que ela se esquecera do sítio onde estava. Esperava que ela adormecesse. Seria a melhor solução para o problema e, quando ela acordasse, a festa já teria acabado. Falaria então à senhora Belchamber e - Cristóvão encontrou-se a examinar o projecto com menos alívio do que teria julgado possível - ela trataria do seu regresso a Melhampton.

- Precisa de descansar um instante - insistiu.

- Sim, sim - respondeu a senhora Cubitt, que olhava espantada para ele.

Cristóvão fez menção de se levantar e sair, mas, para sua grande aflição, ela agarrou-se-lhe desesperadamente.

- Ah, não se vá embora. Não se vá embora

O jovem pôs a mão na dela e contemplou-a, irresoluto.

Pela primeira vez se lembrou da presença da médica e sentiu um certo alívio. Chamá-la-ia, se a senhora Cubitt desse sinais de desmaiar outra vez. A doente tirou a outra mão para fora, de modo que Cristóvão ficou firmemente preso nas duas.

Não tinha a mínima idéia de quanto tempo estivera sentado, sem se mexer, olhando para os olhos da senhora Cubitt. quando eles perderam o seu ar de terror e começaram a esmorecer com sono e se fecharam. Depois de esperar mais uns minutos, Cristóvão tirou as mãos com infinito cuidado e a pouco e pouco começou a aproximar-se da porta. Abriu-a sem fazer barulho e tornou a olhar para a mulher que dormia no sofá; em seguida fechou-a e subiu as escadas. Depois de demorar um momento fora da sala, entrou, vendo-se assaltado por insistentes pedidos para que ajudasse a partir o bolo. Olhou para Scotty, por cima da cabeça das crianças, e Scotty, notando-o, esperou que os bocados do bolo fossem distribuídos e veio ter com ele para perguntar:

- Demoraste-te muito. Custou-te a convencê-la a esperar

- Não, ela está a dormir.

- A dormir? Foi da bebida que lhe deste. Eu bem te disse que era o que ela precisava. O que há agora a fazer é comunicar à senhora Belchamber que ela está aqui.

- Quem é que está aqui - perguntou a senhora Belchamber por detrás deles.

- Uma visita para si - respondeu Scotty. - Chama-se Cubitt.

- Ah, essa detestável criatura... Disseram-lhe que se fosse embora

- Como é que podíamos fazer isso? - perguntou Scotty. - A senhora tem andado a fazer um bonito jogo de escondidas, e agora, pronto!

- Então digam-lhe que se vá embora.

- Diga-lho a senhora - tornou-lhe Scotty.

- Evidentemente que lho digo. Onde está ela

- Lá em baixo, no quarto grande da frente. Está a dormir.

- A dormir? - e a boca da senhora Belchamber abriu-se de admiração. - A dormir? Estão a brincar?

- Acha-me assim tão atrevido? - perguntou Scotty.

- Ela vinha a escorrer, quando chegou.

- A escorrer? Quer dizer, molhada?

- Sim. Molhada e a escorrer. Vi-a quando ia a descer as escadas e deixei-a entrar.

- Mas, meu caro senhor Scott, Cressida e eu estávamos na cozinha e ninguém, absolutamente ninguém...

- Ela entrou pela porta principal - explicou Scotty.

- Ah, compreendo. E perguntou por mim?

- Sim, perguntou, mas eu preferi dar tempo a que se realizasse a cerimônia de cortar o bolo, e nessa altura contava que já ela estivesse bem.

A senhora Belchamber desistiu de compreender a situação.

- vou lá abaixo. Não percebo uma palavra do que estão para aí a dizer.

- Se fosse a si - disse Cristóvão - levava a médica comigo.

- A médica? - perguntou a senhora Belchamber, surpreendida.

- Sim, penso que deve ter tropeçado, porque tem um galo na cabeça e parece não se sentir bem.

A médica, comendo à pressa os últimos bocados de bolo, disse que estava pronta a acompanhar a senhora Belchamber e a examinar a doente. Despediu-se, cumprimentou Cristóvão e Cressida pelo êxito da festa, agradeceu-lhes, e saiu atrás da senhora Belchamber. Os olhos de Scotty seguiram-na com um olhar estranho e Cristóvão percebeu-o.

- Para quem estás a olhar? - perguntou com curiosidade.

- Para a médica. É a primeira vez que a vejo sem estetoscópio.

- E então - perguntou Cressida.

- É muito feminina, quando se vê na presença dum bolo de aniversário - disse Scotty com os olhos ainda na porta que se fechara. - E é a primeira vez que a vejo com um vestido a que se possa chamar vestido, um traje que lhe faça realçar a figura. Viste como ela era elegante, Chris?

- Não - respondeu Cristóvão.

- Nem olhaste - lamentou Scotty. -Hoje estava completamente diferente. Ontem, ainda seria capaz de lhe ter dito todos os sintomas duma doença, mas hoje corava até à raiz dos cabelos. Como é que explicas isto?

- com toda a facilidade - respondeu Cressida. - Os sintomas são diferentes, e mais nada. Quem era a visita? É aquela que...

- É a tal? - perguntou Paulo, que olhava para Scotty, cheio de angústia. - Eu fiz-lhe uma feitiçaria, uma má feitiçaria.

- Eu se fosse a ti deixava-me de brincar com essas coisas de boas e más magias.

- Mas a doutora foi vê-la - insistiu Paulo - por causa da minha feitiçaria.

- Não, não é nada disso, meu caro. Não foram magias nem bruxedos. Foi a trovoada e a fadiga resultante de chafurdar nas covas do caminho. Aí é que está. As únicas pessoas capazes de fazer magias em Inglaterra

- lá em França não sei, mas falo pelo meu país - são essas velhas muito esquisitas, de nariz comprido e afilado, de queixo arrebitado, uns olhinhos que parecem contas, uns chapéus muito parvos e uma expressão verdadeiramente desagradável.

Calou-se, impressionado pela descrição que estivera a fazer da senhora Belchamber.

- Não se fazem mais magias? - perguntou Paulo.

- Não, não se fazem mais magias - tornou-lhe Cressida. - Já chegam.

Inclinou-se para Josette, que dormitava, pegou-lhe ao colo e disse:

- Cama. Às meninas cansadinhas vão para a cama.

Josette não protestou. Deixou-se levar, e Roberto

e Paulo seguiram armados ainda com os restos dos bolos.

- Pronto, acabou tudo - disse Scotty, olhando para a mesa. - Que coisa tão esquisita isto da senhora Cubitt! - murmurou, pensativo. - Não fiquei nada admirado de a ver.

- Está bem, tu sabias que ela vinha - disse Cristóvão.

- É verdade, mas não era isso que eu queria dizer. Tinha o pressentimento... Ah, a propósito, queres comprar uma casa?

- Uma casa?

- Está à venda uma bonita propriedade no outro lado da cidade. Não é muito grande nem muito pequena. Tem bonitos terrenos. Não sei quanto pedem por ela, mas posso perguntar, se te interessar.

- Não, não, muito obrigado, Scotty. Gostaria muito de ficar ao pé de ti, e Cressida também, mas era meu desejo que houvesse mais de meia dúzia de milhas entre nós e... entre...

- Bem sei, o major. Não te censuro. Vai ser engraçado ficar a casa vazia depois de todos se irem embora.

- Nem dás por isso.

- Ai, dou, pelo menos durante certo tempo. E, queres acreditar que, quando vi pela primeira vez... já sabes a quem me refiro... senti como que um aperto no coração ao pensar que ela se ia embora? Quando me lembra que a senhora Garcia vai voltar outra vez para a sua grande cadeira; quando penso que à noite posso entrar outra vez com as minhas botas calçadas; quando imagino poder passar junto da banheira sem ter de me meter lá dentro, o que sinto é muito estranho, mas não é alívio. Se não parecesse mórbido, diria que me vai fazer muita falta. Eu sei que estás desejoso de te ver livre dela, mas...

- Olha que não te garanto que assim suceda.

- Que suceda o quê?

- Eu estar desejoso.

- De quê?

- Do que disseste.

- Que é que eu disse - perguntou Scotty.

- Não interessa, mas é curioso... vai ser penoso "verificar que ela já não se encontra aqui. vou ficar à "espera de ordens que não hão-de vir e há-de parecer-me ouvir a voz dela a lamentar-se do teu cheiro.

- Já expliquei - disse Scotty com dignidade que o cheiro da lavoura é inteiramente...

- Sim, já sei, mas nunca a convenceste. E muito embora deplore os seus métodos, quem é que seria capaz de conseguir que tu andasses tão asseado, quem é que seria capaz de ter metido a senhora Garcia na ordem É inacreditável, e vai contra tudo quanto tenho dito, mas vou sentir a falta dela.

- E eu também. A natureza humana é muita estranha. E por falar de natureza, Chris, eu não me sinto bem.

Cristóvão olhou para ele com ansiedade.

- Estás a falar a sério?

- Nunca falei tão a sério na minha vida. Parece que estou a cair aos bocados. vou telefonar à médica e dizer-lhe que só uma coisa me pode salvar.

- E o que é?

- A médica.

Fez-se um grande silêncio e depois ergueram-se os dois, quando a senhora Belchamber entrou na sala. com grande surpresa, viram que trazia vestido um casaco comprido de viagem.

- Vai-se embora - perguntou Scotty, admirado.

- vou à estação meter a senhora Cubitt no cornboio e depois volto de táxi. Espero que não fiquem para aí sem fazer nada, enquanto Cressida arruma tudo.

- Eu dou uma ajudazinha - prometeu Scotty. - A médica viu a senhora Cubitt?

- Viu. Não se encontrava a dormir como me tinha dito. Estava sentada no sofá- Oh! E o que é que a médica disse?

- A médica viu-a e disse que tinha os nervos abalados e atribui o seu estado à trovoada e à pancada que ela deu com a cabeça no portão. Não a desiludi. No fundo, ela é que é médica e deve saber...

- Não a desiludiu - perguntou Scotty sem compreender. - Como?

A senhora Belchamber tirou um par de luvas pretas, deu um passo à retaguarda, estendeu o pescoço em diiecção à porta, para ter a certeza de que ninguém a ouvia, e depois disse:

- Quando vi aquela mulher, notei logo que havia qualquer coisa de esquisito nela. Quer dizer, quando a vi pela primeira vez. Não gostei dos seus modos. Havia qualquer coisa que não rimava. Mas agora já sei muito bem o que é.

- E então o que é - perguntou Scotty.

- Bebida.

- Bebida - repetiu Scotty.

- Vê-se logo - respondeu a senhora Belchamber.

- O senhor pode ter-se deixado iludir com as histórias da carochinha e com aquele galo, mas quando entrei no quarto vi logo o que havia. Estava muito digna, disse que se sentia melhor e que esperava não ter dado trabalho. A médica fez-lhe meia dúzia de perguntas, e descobriu que ela se não lembrava de nada, desde o instante em que abrira a porta até se ver deitada no sofá. Eu não disse uma palavra, mas servi-me do meu nariz que nunca me engana. Aquela mulher tinha estado a beber.

- Mas escute... - suplicou Scotty ansiosamente. A senhora Belchamber ergueu a mão.

- Não, não tem nada a recear - disse com um tom desagradável. - Eu não digo nada a ninguém. Meto-a no comboio com o recado de que alterei a minha maneira de pensar, no que diz respeito a viver em Melhampton. A casa já não é minha e não tenho o mínimo desejo de interferir no seu governo. Se quiserem empregar mulheres que não sabem abrir um portão, isso não é comigo. Qualquer dia beberá mais do que bebeu hoje, e uma pessoa com o nariz tão sensível como o meu dá por ela. Tanto quanto sei, todos os membros do conselho passam o seu tempo a beber; não me interessa. Não julgo que esta criatura possa entrar num comboio sem auxílio, e não quero que se saiba que alguém que me veio visitar saiu daqui embriagado. Dentro duma hora estou de volta.

A porta fechou-se. Scotty olhou para Cristóvão e os dois elevaram as sobrancelhas expressivamente. Nenhum dos homens falou, mas encaminharam-se, movidos pela mesma idéia, para a janela que dava para a estrada e viram a figura esgalgada da senhora Belchamber dirigir-se ao táxi. Numa das mãos segurava um grande chapéu de chuva e na outra o cotovelo da senhora Cubitt. Acompanhando-a ao carro, ajudou-a a entrar, deu uma ordem ao motorista e subiu para o lado da senhora Cubitt. O táxi entrou no portão, recuou de novo, deu a volta e seguiu. Scotty soltou um profundo suspiro.

- E então agora? - perguntou ele. - Sempre que mandam alguém à sua procura, ela põe-nos a andar. Primeiro pensámos que íamos ficar livres dela e sentimo-nos tristes, e agora que sabemos o contrário, ainda nos sentimos pior. E não sabemos nada de nada. Porque é que a velhota fugiu? Porque é que o francês andava atrás dela? Porquê tudo isto?

- Devíamos ter explicado a história da aguardente. Não está certo que ela fique com uma idéia tão errada. Devíamos ter explicado.

- Não, não podíamos. Ela vê logo e...

Parou de repente olhando para a estrada enlameada.

- Chris, anda ver!

Cristóvão olhou. Via-se agora um homem baixo, com um sobretudo escuro; parara junto do portão e estava evidentemente à procura da maneira de entrar. Não havia a mínima dúvida. Cristóvão soltou uma exclamação que fez com que os olhos de Scotty se voltassem para o seu rosto.

- É o tal francês de quem falaste?

- Sim. Supões que... Aonde é que vais?

Scotty correu para a porta e abriu-a de par em par.

- Claro que o vou mandar entrar. Mexamo-nos antes que a Belchamber volte, reúna conselho e nos deixe ficar de fora. Vamos apanhá-lo.

Apanharam o senhor Versoix, levaram-no para o quarto grande e fecharam a porta.

 

A aguardente de Scotty encontrara, enfim, um paladar capaz de a apreciar. O senhor Versoiz, dando estalinhos com a língua, olhava para Scotty com olhos que brilhavam de gratidão.

- Mais - perguntou Scotty. E o visitante acenou com a cabeça em sinal de solene aceitação.

Com o copo na mão, olhou para os dois homens que estavam do outro lado do fogão e suspirou profundamente, aliviado.

- Ah - disse com um longo suspiro.

- Eu sei - comentou Scotty. - É muito bom. Depois de beber mais uns golinhos, talvez nos possa responder a umas perguntas. Comprenez?

O senhor Versoix inclinou-se.

- Seria melhor perguntares tu, Chris - disse Scotty.

- No fundo, é a ti que diz respeito. Pergunta-lhe porque é que ele atravessou o canal atrás da senhora Belchamber?

- Duas vezes - rectificou o senhor Versoix.

- Como?

O visitante espetou dois dedos e repetiu:

- Duas vezes. Duas vezes andei atrás dela e de ambas...

Deu um estalinho com os dedos.

- Quando no comboio se dirigiu à senhora Belchamber - disse Cristóvão - era evidente que ela não lhe queria falar. Não a devia ter seguido, quando ela lhe mostrou tão claramente que não o queria ver.

O senhor Versoix inclinou-se e disse em francês, com sinceridade:

- Mais je vous dis, monsieur, que...

- Eh lá, eh lá - interrompeu Scotty. - Esta conversa não pode ser feita noutra língua que não seja o inglês básico. Eu sou dos interessados, ao fim e ao cabo foi à minha casa que a senhora Belchamber veio ter, e foram os meus hábitos que ela... Bem, deixemos isso. Mas vamos começar, se não se importa, pelo princípio. Fala tu, Chris.

- Chamo-me Cristóvão Heron, e nunca vira a senhora Belchamber antes de me meter no comboio em Hautiers.

- E as crianças... são suas - perguntou o senhor Versoix.

- Não. São meus primos, mas foram educados em França. Eu trouxe-os para Inglaterra. Tencionava seguir para Londres, mas uma das crianças estava doente, de modo que mudei de idéias e vim para aqui. Quando entrei no meu carro, a senhora Belchamber já lá estava sentada e recusou-se a sair; tenho, contudo, a certeza de que, se o não tivesse visto, teria seguido para Melhampton com a senhora Cubitt. Mas, se não tenho direito a interferir nos negócios da senhora Belchamber, sinto que de certo modo ela se colocou sob a nossa protecção. De forma que gostaríamos de saber, se não se importa, quais os motivos por que a persegue, desculpe o termo.

Calou-se e Scotty ficou a olhar para ele, cheio de admiração.

- Isto foi um bonito discurso de abertura. Agora vamos às perguntas. Primeiro: quem é o senhor?

- Chamo-me Versoix, Balduíno.

- Balde, quê - perguntou Scotty, admirado.

- Balduíno, Balduíno Versoix. Há quarenta anos" meu pai, que era viúvo, casou com esta senhora que se chama agora Belchamber.

- Aí está Aí está porque lhe chamou mama.

- Claro. Mas então não é mama?

- Se casou com o papá, suponho que é - concedeu Scotty. - Mas bem se vê que ela não se sente muito satisfeita com tal parentesco...

- Como?

- Porque é que a senhora Belchamber não quer, evidentemente, ter quaisquer contactos consigo? - perguntou Cristóvão.

- Por causa de dinheiro - declarou o senhor Versoix com simplicidade.

Fez-se silêncio. O assunto era muito delicado. Por fim, Scotty tentou definir as posições.

- O senhor quer dizer que ela lhe ficou com o seu dinheiro, ou anda o senhor a tentar ficar com o dela - perguntou.

O senhor Versoix inclinou-se uma vez mais, usando o polegar e o indicador um contra o outro para dar mais realce às suas palavras,

- Monseeurs vão ser juizes da questão. Quando meu pai se casou pela segunda vez, a sua segunda esposa já tinha dinheiro bastante. Quer dizer, tinha uma boa fortuna e não precisava de mais. Mas durante muitos anos, enquanto foram casados, ela poupou o dinheiro que lhe pertencia e gastou o de meu pai. Ele também tinha muito, de maneira que está certo. Entretanto, meu pai morreu. Eu tinha um bom negócio. Ele dividira toda a fortuna em dois lotes, declarando que um era para mim e outro para a mulher. Concordámos, e assim se fez, por sua morte. Eu recebo metade e ela... recebe metade.

- Muito bem - disse Scotty.

- Nessa altura estava muito bem. Mas depois veio a guerra, o meu negócio e o meu dinheiro foram ao ar. Procuro a minha madrasta; não sei onde ela se encontra, mas ouço dizer que tinha casado de novo com um homem rico. Disse para comigo: o seu primeiro marido era rico, o segundo também, e o terceiro também. Portanto, ela já era rica antes de se casar com este. Penso que, se lhe pedir algum dinheiro de meu pai, ela mo dará. Escrevo para esta morada, para aquela, mas não consigo obter resposta. Vi-a uma vez, quando ela vinha para Inglaterra, segui-a, mas conseguiu fugir-me. Agora encontro-me aqui para lhe fazer um pedido.

- Onde tem estado, desde que chegou a Inglaterra? - perguntou Cristóvão.

- Quando o senhor partiu e a senhora Belchamber desapareceu, não sabia o que havia de fazer. Seguia-a sem pensar, e agora que a perdera de vista, ali estava eu sem papéis e sem dinheiro. A única coisa que havia a fazer, era procurar a senhora que viera esperar a senhora Belchamber. Vejo-a, falo-lhe, digo-lhe umas coisas... umas coisas que não são verdade...

- Algumas patranhas - concluiu Scotty.

- Eu explico certas coisas, não posso explicar tudo. Era necessário que ela sentisse que eu não estava,

- Que não estava a meter patranhas.

- Talvez. Fui com ela para a casa de Melhampton e contei lá que a senhora Belchamber levara o meu passaporte e os meus papéis. Eu, na verdade, não tinha nada, porque quando me meti no comboio ia numa pequena viagem de negócios... Sou empregado duma fábrica de calçado e ando dum lado para outro, na França e na Suíça.

- É viajante de calçado - resumiu Scotty. - Veio com a senhora Cubitt

- Sim, vim. Mas quando chegámos eu estava nervoso, e como ela trazia papéis para assinar, disse-lhe que primeiro viesse ela, e depois viria eu. Mas ela demorou-se muito. Esperei e pensei que talvez a senhora Belchamber lhe tivesse dito que esperasse por mim. Passou um carro que vinha para perto daqui e trouxe-me, e quando eu palmilhava o caminho enlameado, vi na curva o táxi. Gritei, mas não me viram, e por isso é que vim aqui; já me encontrava muito distante para voltar para trás.

Virou-se para os seus ouvintes com ar suplicante e prosseguiu:

- Senhores, peço-lhes que, quando a senhora Belchamber chegar, façam o favor de me ajudar no meu pedido. Eu não quero o dinheiro dela... Quero o de meu pai. Se o meu pai soubesse que os meus negócios não viriam a correr bem, acham que não diria que mais de metade era de Balduino? É justo. Ela tem muito, não lhe faz falta o que dá. Eu não quero estar a trabalhar para os outros, não quero trabalhar, não tenho saúde. Não preciso de muito, mas se tiver dinheiro farei uma vida tranqüila, calma e sossegada. Falem-lhe, senhores, peço-lhes. Eu...

- Deixem-no falar a ele - disse uma voz da entrada da porta.

Como movidos por uma mola, os três homens puseram-se em pé e encararam-na. A senhora Belchamber desabotoou o casaco, tirou-o e entregou-o a Scotty.

- Não o ponha aí - disse com mau modo. - Não vê que está molhado? Assim, nas costas da cadeira. É preciso cuidar da roupa, para não andar no estado em que o senhor anda.

Levantou o nariz, farejou o ambiente e depois torceu a cara com desagrado.

- Foi só um bocadinho - justificou Scotty. - Ele estava todo encharcado, o pobre Balde... qualquer coisa.

- Quem?

- Até agora ainda não passámos do primeiro nome - explicou Scotty, indo buscar uma cadeira. - Não se quer sentar e assistir a esta sessão

- Não. Este senhor vai-se embora - respondeu a senhora Belchamber.

- Mas escute... - começou Scotty.

- Não poderia? - perguntou Cristóvão.

- Muito obrigada, mas não quero discussões declarou a senhora Belchamber. - O táxi está à espera. Eu podia ter parado, quando fui para lá, porque o vi aos trambolhões pelo caminho, mas tinha coisas a resolver e não queria uma terceira pessoa no carro. Dêem-lhe o casaco - ordenou.

- Mas, mama - começou o senhor Versoix com voz terna.

- Não me chame mama! - protestou a senhora Belchamber - Vista o casaco e deixe essa bebida no sítio onde está. Vá-se embora.

- vou para onde - perguntou o francês, desorientado. - Para onde hei-de ir sem dinheiro, sem papéis, sem nada. Como posso ir? Para onde'?

- Vai para Melhampton - declarou a senhora Belchamber.

O senhor Versoix olhou para ela, sem acreditar.

- Para... para Melhampton? - repetiu. - Como' é que posso ir para lá? Tiveram-me lá durante certo tempo, mas não deixarão...

- Deixam, sim - disse a senhora Belchamber calmamente. - Agora vista o casaco e vá-se embora, antes que eu mude de idéias.

- Mude de idéias a respeito de quê? - perguntou Cristóvão.

- A respeito de me preocupar com o seu futuro - esclareceu a senhora Belchamber. - Que história da carochinha lhes contou ele

- Eu não estive a inventar nada - gritou o senhor Versoix veementemente. - Não estive a inventar nada. Contei-lhes a pura verdade... Casou com meu pai. Metade da fortuna dele coube-lhe a si, e outra metade

a mim. Porque não lhe hei-de pedir o que era dele?

- Porque não o saberia conservar, mesmo se eu lho desse. Iria para onde foi o dinheiro de sua mãe e para onde foi o seu próprio dinheiro e o da herança de seu pai. Ninguém que conheça a sua tendência para negócios impossíveis lhe confiará dinheiro. Não tem cabeça para isso. Nunca teve o mínimo êxito em negócios que envolvessem grandes somas de capital e nunca o terá. Nunca teve êxito com coisa alguma... até ao dia em que chegou a Melhampton, e parece que aí é que caiu no seu verdadeiro meio. A senhora Cubitt está perdida por si e, segundo ela me contou, há lá pelo menos mais doze pessoas da mesma opinião. É difícil de acreditar, mas gostam de si, e parece que está sendo útil, Gostava de lá ficar?

- De lá ficar? Mas com certeza que gostava. Quem é que não gostaria? A casa é bonita, a comida, com a minha ajuda, é bem cozinhada, as pessoas que lá estão são encantadoras. Quem é que não gostaria de lá ficar? Mas como posso eu ficar ali Como?

A senhora Belchamber voltou-se para Cristóvão.

- Há um notário em Grenton... não aquele indivíduo pomposo perto da praça, mas um homem que se chama ou Allen, ou Allard. Vá lá com o senhor Versoix e entregue-lhe o caso. O senhor Versoix receberá uma pensão e disporá, enquanto viver, dos aposentos que me estavam destinados em Melhampton. Não me venha maçar com pormenores, e não deixe o senhor Versoix dizer seja o que for, a não ser que se oponha a este projecto. Não quero que ele se refira a qualquer parentesco, mesmo distante, que possa existir entre nós, e a primeira vez que ele me venha pedir qualquer auxílio financeiro, o nosso contrato caduca e ele pode voltar para o sítio donde veio. Agora vão-se embora e depressa, se fazem favor. Há muito trabalho aqui, hoje, e eu tenho de o suportar sozinha, como é costume. Senhor Scotty, o que está a fazer com esse copo de aguardente?

- A beber à sua saúde - respondeu Scotty. Ergueu o copo, bebeu um golo e estendeu-o ao senhor Versoix.

- À saúde da Madame - gritou.

- À saúde da Madame - repetiu o senhor Versoix, e escorropichou o copo.

 

Na manhã seguinte, Cristóvão levantou-se mais cedo que de costume e foi com os rapazes dar um passeio. Dirigiram-se às colinas, seguidos por uma matilha de cães, e voltaram à hora do almoço. As crianças voltaram coradas, tão cheias de energia como quando tinham saído e com grande apetite.

O almoço foi mais tranqüilo do que habitualmente. Os rapazes comeram como lobos. Cristóvão e Scotty sentaram-se à mesa com uma pergunta a bailar-lhes nos lábios, mas a senhora Belchamber dedicava-se ao que estava a fazer com tal interesse, que era evidente que não lhes responderia.

Quando a refeição acabou, Cristóvão seguiu Scotty ao estábulo e ali encostou-se pensativamente.

- Se ela não vai para lá - disse Scotty pela vigésima vez -, que tenciona ela fazer? Não consegui dormir, Chris, garanto-te que não consegui. Mal pegava no sono, via-a vir ter comigo à cama e dizer: "Senhor Scott, decidi ficar consigo na Herdade Verde, a lavá-lo, a limpá-lo, a cuidar da sua higiene pessoal e a tornar-lhe a vida saudável até que a morte nos separe!"

- Disparate - disse Cristóvão num tom de voz em que não havia a menor convicção. - Ela não podia...

- Não podia, porquê? - perguntou Scotty, aflito.

- Tu não a podias fazer desistir, eu também não. Não espero outra coisa senão ver chegar a bagagem dela, tudo o que foi para Melhampton. Vais ver. Vem para aqui e ela começa a desempacotar as coisas para ficar para sempre.

- Que tolice!

- Bem gostava que dissesses isso com convicção - lamentou-se Scotty -, mas não dizes, porque sabes que ela não me pode abandonar. Não pode viver sem uma missão, e essa missão agora sou eu.

- Dá-lhe tempo - disse Cristóvão. - Afinal, foi só ontem que ela desistiu de Melhampton. Anda a pensar nos seus planos de futuro, é o que é. Há-de decidir viver em qualquer parte, e quando decidir, vai para lá e deixa-se ficar. E aqui tens!

Scotty não respondeu. Foi andando devagar e pensativamente, agarrou em duas pesadas bilhas de leite e meteu-as num carro que entrara no pátio. Cristóvão esperou que a conversa com o motorista acabasse e viu-o voltar tão pensativamente como tinha ido.

- Vamos, então l... Ontem estavas a falar dela com grande afeição.

- Isso foi porque julgava que se ia embora - respondeu Scotty. - A propósito - continuou - o motorista deu-me notícias.

- De quê?

- Acerca de Greensleeves - respondeu Scotty. Cristóvão voltou-se e encarou-o, e Scotty viu que o amigo ficara pálido como a morte.

- Que é que tu disseste?

- Oreensleeves. Está à venda. Foi o homem do carro quem mo disse.

Cristóvão ergueu a cabeça e, por cima de Scotty, ficou a olhar a colina arborizada e as chaminés de Oreensleeves que se viam por entre as árvores. Havia qualquer coisa que o impressionava, qualquer coisa que queria decidir, mas o seu espírito parecia perfeitamente vazio. Talvez ali, em Greensleeves, estivesse a resposta a uma pergunta que ele nunca fizera, uma resposta...

Ouviu-se perguntar:

- Como o soube ele?

- Está entregue à agência - respondeu Scotty. - A primeira coisa que Gray fez esta manhã, foi ir lá, e pensam que é para tentar que a municipalidade aumente a oferta.

- Que oferta?

- A municipalidade fez-lhe uma oferta, como já te tinha dito. Mas ele rejeitou-a há dias, e agora pensam que pode ter mudado de idéias ou baixado o preço. Pensam Chris, oh...

O grito de Scotty não foi ouvido. Cristóvão começara a correr, abrira a cancela, transpusera o obstáculo seguinte e passara junto do touro, tão de perto, que tamanho ultraje manteve o animal imóvel por cinco segundos. Quando partiu em sua perseguição, já Cristóvão ganhara a necessária distância, para alcançar a cancela seguinte, a salvo. Já na estrada, aumentou de velocidade; depois enfiou através dos campos em direcção à casa. Não havia o menor sinal de Cressida, e, pela primeira vez na sua vida, Cristóvão sentia-se contente com isso. Dirigiu-se ao vestíbulo e ficou parado, até recuperar o fôlego; quando o major Gray se aproximou, as suas palpitações eram aceleradas, mas certas.

- É um visitante muito madrugador. Vem à procura de Cressida - E a voz do major tinha todo o seu agrado habitual e calmo.

- Não.

E, sem preâmbulos, Cristóvão entrou no assunto.

- Scotty disse-me que queria vender Oreensleeves.

O major encolheu os ombros, puxou pela cigarreira e estendeu-a a Cristóvão.

- Não, muito obrigado. - E abanou a cabeça com impaciência. - Vai vender a casa?

- vou. A câmara de Orenton fez por fim uma oferta. Não me dão o que quero por ela e assim tento todos os outros possíveis compradores. Para casa é demasiado grande, muito pequena para escola, excessivamente cara para hospital e não é bastante grande para atrair turistas. A Municipalidade dá-me um quarto daquilo que ela vale, mas, se não a vender nestas condições, quem é que ma compra?

- Eu - respondeu Cristóvão.

Ao dizer estas palavras, viu pela primeira vez uma expressão que não tinha sido ensaiada no rosto domajor Oray. Os dois homens ficaram a olhar um para o outro, e depois do major se ter refeito da surpresa, Cristóvão viu que sob a máscara trabalhava a máquina de calcular.

- Porquê o senhor? - perguntou curiosamente.

- Porque não hei-de ser eu? - exclamou Cristóvão.

O major Gray falou devagar.

- A primeira vez que o vi, pensei que me pudesse fazer uma oferta. Sabia que tinha dinheiro e que precisava duma casa. Sabia também que gostava desta" e até mesmo que durante certo tempo lhe sentira o encanto. Podia ter feito pressão, mas as coisas encaminhavam-se bem para mim. de modo que deixei seguir tudo como estava. Depois, quando me decidi a vender, pensei que a sua atitude tinha mudado e que não olhava para mim tão francamente como a princípio.

- Porque se decidiu a vendê-la?

- Pelas razões que lhe expliquei outro dia. Pensei que podia continuar um pouco mais ainda, mas o meu crédito desapareceu e esta espécie de jogo está a aborrecer-me também. E, de facto, era mais fatigante do que eu pensara ao planeá-lo. Não me importo nada de acabar com isto, mas tenho pena de vender a casa. Se as coisas tivessem corrido de maneira diferente, podia ter a possibilidade de ficar com ela de qualquer modo. Se tivesse um filho, havia certa razão para a conservar. Mas Cressida casa e vai-se embora.

Calou-se, deu uns passos, virou-se para a janela e disse:

- No fundo, é o que eu farei também, mas em sentido inverso.

- O quê?

- Ir-me embora e casar.

- Casar?

O major Gray sorriu-se e disse:

- Nem sei porque lhe falo nisto. Nunca falei no caso a Cressida, e o senhor pode guardar segredo ou dizer-lho, conforme quiser. Durante estes últimos anos, tenho-me sentido atraído pelo Ultramar. Pela Cidade do Cabo, para ser exacto. Nunca me importei muito com o futuro, nem me passava pela cabeça a possibilidade de tornar a casar. Encontrei, porém, uma outra Annette - não sei se sabe que a mãe de Cressida se chamava Annette - e de facto comecei a ver que era o que me convinha. Tentei convencê-la a casar comigo e vir para Inglaterra, mas ela é uma mulher de negócios e não vê qualquer futuro para nós em Greensleeves. Tem razão. De modo que, quando vender a casa, vou-me embora, instalo-me junto dela e entrego-lhe o meu capital para que mo administre. A África do Sul agrada-me como residência permanente tão pouco como qualquer outro lugar à superfície da terra. Porém, a nossa maneira de pensar muda. Começo a sentir os pés pesados, e à medida que vamos para velhos, as asas vão perdendo as penas. Suponho que não lê Kipling. A sua geração nunca se interessou muito por ele. Mas eu lembro-me sempre do que escreveu acerca de se desejar no fim um mínimo de aventuras. É justamente o que agora sinto. Desejo uma vida calma e ordenada. É esquisito, não é?

- Não, não acho nada esquisito. Penso que um dia, mais tarde, os meus sentimentos serão ezactamente assim.

O major suspirou.

- Estou bem contente por Cressida casar consigo. E se quiser um conselho, acho que é preferível casarem já, sem se sujeitarem à demora que ela está decidida a impor. Mas se ela não quiser, o melhor será afastar-se um bocado e ver quais são os efeitos da ausência no espírito dela. Cressida não gosta de Londres e, apesar do que diz, não gosta do emprego que tem. Ela gostará de estar junto de si e das crianças, e agora que vai comprar Greensleeves, decidir-se-á muito mais depressa do que o senhor julga.

- Também o espero - respondeu Cristóvão. - agora não seria melhor falarmos em Greensleeves?

- Tem a certeza de que o quer comprar?

- Absoluta.

- Fico bem contente com isso. Mas olhe que eu "quero um preço muito alto.

- Diga quanto quer - respondeu Cristóvão.

Voltara para casa, não a correr como tinha ido, mas calma e pensativamente. Partira com as idéias em grande confusão, com o espírito ausente, e regressava em paz. Greensleeves era seu, e Cressida, um dia, também seria. As crianças cresceriam, num ambiente que os pais teriam aprovado, e os seus próprios filhos cresceriam com eles.

Olhou para a herdade que começava a ver-se. Os dois rapazes andavam a brincar em cima das medas. Por debaixo, Scotty cortava o arame que atava um molho de palha, espalhando-a em pedaços dourados. O Sol batia em pleno nas três figuras; em cima, via-se o céu azul. O mundo era belo e tranqüilo, e mais uma vez reinava a harmonia. Ele...

Ouviu um escarvar no solo, um terrível sopro e sem voltar a cabeça, largou a correr a uma velocidade que nunca alcançara no seu tempo de universidade. Mas, segundo diz o provérbio, correr não é suficiente. Deve-se começar a tempo, e agora não tinha cinco segundos de avanço como na corrida anterior.

O touro apanhou-o mesmo junto à cancela. com o seu auxílio, Cristóvão voou-lhe por cima e aterrou impecàvelmente sobre o molho de palha que acabara de ser aberto e aos pés de Scotty, que ficou a olhar para ele pensativamente.

- O último tipo a quem vi fazer isto, trabalhava no trapézio voador, mas disseram-me que era preciso uma longa prática para o fazer com tamanha perícia.

 

Nessa manhã, a senhora Garcia chegou tarde. Scotty encontrou-a no pátio e, ao dar-lhe alegremente os bons-dias, ficou muito impressionado ao vê-la romper em soluços. Olhou para ela com tristeza e disse:

- Eu só lhe dei os bons-dias. Que julgou que eu tinha dito?

A senhora Garcia entrou em casa desfeita em lágrimas, a dizer:

- Eu antes queria que não tivesse dito nada. Preferia que estivesse calado.

Scotty entrou atrás dela, consternado. Aquilo só podia significar que desta vez Howsay a tinha deixado. Pensou, durante um instante, se, numa situação tal, a devia mandar embora, ou dar-lhe ainda mais horas de trabalho. Não conseguiu decidir imediatamente, encolheu os ombros desorientado e foi à sua vida.

- Eu preferia que não me tivesse dito nada - soluçava a senhora Garcia para Cressida, que não sabia o que fazer. - Garanto-lhe que preferia...

- Que tem ela?

- Está doente - respondeu a senhora Belchamber, que nessa altura entrava.

- Não, não! Sim, sim Ah, sim, sim - respondeu a senhora Garcia entre soluços. - Mas não se preocupe comigo, que eu farei o meu trabalho.

- Mas não pode trabalhar nesse estado - tornou-lhe a senhora Belchamber. - Caiu

- Quem me dera que tivesse sido isso! - lamentou a senhora Garcia.

- O seu marido foi-se embora?

- Não, e agora é demasiado tarde! - foi a sua estranha resposta.

Um raio de luz começou a penetrar no espírito da senhora Belchamber e fez sinal a Cressida para subirem ao primeiro andar. Cressida deu uma palmadinha afectuosa na mão da senhora Garcia e subiu as escadas.

- Vou-lhe dizer o que é que ela tem - disse a senhora Belchamber, encarando-a.

- O marido?

- Pelo menos espero que sim. A sua união foi abençoada.

- A sua...

- Sim. Repare no que eu lhe digo, porque é assim mesmo. As pessoas nunca sabem... senão quando já é demasiado tarde.

- Oh, meu Deus! - E Cressida deu com a língua um estalinho de desânimo. - Pensa que as tais mãozinhas...

- Não sei que efeito terão sobre o marido. Podem fazer com que ele fique mais em casa, e também pode ser o contrário. Ela tem andado tão ocupada, durante todos estes anos, que nem sequer se lembra que o deixar de ser uma árvore sem flor lhe vai custar a ela mais do que a ele, porque a princípio os tais bracinhos são mais para se agarrarem à mãe do que ao pai. Agora é que ela o deve estar a perceber.

- Tem a certeza de que é isso?

- Certeza absoluta. Vê-se logo. Veja se eu não tenho razão. Desça lá abaixo, anime-a, falando-lhe no encanto da vida quando se tem filhos, se é que pode imaginá-la uma coisa deliciosa. Eu vou ver Josette.

Instalou Josette mais confortàvelmente no sofá, onde a haviam sentado, e arrumou os brinquedos acumulados durante a sua convalescença. Josette observava-a com a sua usual tranqüilidade.

- Não me tire daqui a boneca, se faz favor. Estou a falar com ela.

- Ah, está bem, ela aí está. Mas tu não precisas de três ursinhos, e de dois cães de peluche, ao mesmo tempo, pois não? E de todos estes livros? Podem ir para cima desta mesinha, que fica aqui ao pé de ti, e também... Quem partiu esta bonita caixa de tintas?

- Ninguém a partiu - respondeu Josette.

- Ninguém?

- Não. Sem querer, Roberto caiu-lhe em cima, quando estava a lutar.

- A lutar? A lutar com Paulo? Porque é que eles lutaram

- Porque Roberto dizia que Paulo tinha mais pintas e Paulo dizia o contrário.

- Mas eles não têm pintas nenhumas. Ainda esta manhã vi.

- Agora não, mas da outra vez - explicou Josette - quando eles tiveram pintas como eu.

- Eles... - E a senhora Belchamber ficou espantada a olhar para a pequena. - Tu queres dizer que eles... Tu estás a querer explicar-me que eles já tiveram sarampo? Quando estavam em França?

- Sim.

- Porque o não disseram? Porque é que não falaram nisso? E temos nós estado todo este tempo à espera de as ver aparecer.

- Pode-se ter duas vezes. Foi o que a senhora disse. Eles podem ter mais.

- Eles... - A senhora Belchamber deu um grito de desespero. - Na idade deles não é provável que tenham segunda vez. Se mo tivessem dito, eu já sabia.

Com esta verdade óbvia amontoou os brinquedos e desceu as escadas, pronunciando ainda palavras de aborrecimento. Entrando na cozinha, certificou-se de que o seu diagnóstico sobre as lamentações da senhora Garcia fora correcto. A "doente" passou a manhã entre vãs tentativas de trabalhar e tentativas ainda mais vãs para resumir os efeitos que a bênção ia ter na sua vida.

- Tenho de ir procurar casa. Eu e o Howsay temos um quarto, mas quando vier o bebê... minha irmã já tem quatro... a casa passa a ser pequena. Com a idade que tenho, começar a fazer cueiros E a empurrar um carrinho léguas e léguas, todos os dias, como fazem as outras mães I A entrar e a sair das lojas, a subir e a descer calçadas E depois o que há para lavar, a alimentação, tudo E os dentes, e as convulsões! E...

- Bem, não esteja agora a pensar nisso. Era pior se estivesse à espera de quatro.

A senhora Garcia ficou espantada, mas quando Cressida lhe explicou o que a senhora Belchamber quisera dizer, fez-se tão pálida que julgaram conveniente mandarem-na para casa descansar. Atravessou o pátio. Scotty veio ao seu encontro com um sorriso prazenteiro.

- Está um lindo dia, não é verdade?

A senhora Garcia passou por ele, surda e cega.

- Oh, meu Deus - murmurava, desesperada. - Oh, meu Deus!

A notícia foi dada aos dois homens, depois do almoço, pela senhora Belchamber, mas em termos escolhidos, de modo a que as crianças não percebessem.

- Abigail estava mal disposta esta manhã, como decerto repararam.

- Abigail? - perguntou Scotty, sem compreender.

- Estava pálida - informou Cristóvão. - Howsay anda a arranjar sarilhos?

- Não. As suas esperanças vão por fim ser realizadas.

- Não

- Que esperanças e de quem? Abigail o quê? perguntou Scotty.

- E suponho que ela agora, que tem o que quer, parece não desejar o que desejava quando...

- Olha, eu posso meter-me na conversa - pediu Scotty.

- Agora sou eu que tenho novidades a dar disse Cristóvão.

- Já sabia -disse Cressida. - Pareceu-me... diferente.

- Vamos, então diga lá - ordenou a senhora Belchamber.

- Comprei Greensleeves.

- Tu, quê?

Scotty levantou-se da cadeira, inclinou-se sobre a mesa e deu uma tremenda palmada no ombro de Cristóvão.

- Cristóvão, meu velho, diz lá isso outra vez Diz lá! Diz lá!

- Pronto, comprei Greensleeves.

- Oh, Chris!

Os olhos de Cressida estavam pousados nos dele, mas Cristóvão não conseguiu decifrar os seus sentimentos.

- Compraste aquela casa - perguntou Paulo. - Compraste?

- Sim.

- Para nós lá vivermos?

- Sim.

- Vamos todos viver para lá? - perguntou Roberto.

- Sim. Estás contente?

- Estou contente - respondeu Roberto sem hesitação. - E serei feliz! Eu já tinha dito a Josette que era uma boa casa, e ela perguntou porque é que a não comprávamos.

- Bem, agora podem dizer-lhe que a comprámos.

Houve exclamações, explicações, sugestões e um coro geral de cumprimentos. Os olhos de Cressida, a princípio tão inexpressivos, começaram a brilhar, e Cristóvão não teve necessidade de esperar por palavras. Como Roberto, ela também era feliz.

Somente a senhora Belchamber ficou calada, continuando o seu almoço, imperturbável e concentrada, parecendo não se associar ao contentamento geral. Não fez qualquer comentário, e Cristóvão, que esperara por uma das suas habituais observações cáusticas e não a ouvira, sentiu-se dominado por um misto de piedade por a saber sem lar, e de alívio, ao pensar no prazer que sentiria quando a visse pela última vez.

Não podia acreditar que gostasse dela, nem que experimentasse qualquer afeição por aquela criatura de cabelos encaracolados e chapéu preto, de carne branda e rosto duro. Perguntava a si mesmo se ela teria feito alguns planos e quais teriam sido.

A sua dúvida não durou muito tempo. A senhora Belchamber apontou-lhe um dedo magro, quando ele se preparava para acompanhar Scotty, logo a seguir ao almoço, e fez-lhe sinal para que se aproximasse dela.

- É acerca de Greensleeves - começou imediatamente.

- E depois? - perguntou Cristóvão, que começava

a sentir-se mal.

- Alugo-lhe a torre de nascente. Arrendo-a ao ano.

Cristóvão abriu a boca para falar, mas não lhe saíram quaisquer palavras.

- Não tenha receio, que nunca nos havemos de encontrar - continuou a senhora Belchamber. - Não gostaria de ter estas crianças na minha casa. Viverei isolada e espero que fará o mesmo.

- Eu...

- Mas'é muito espaço, espaço demasiado, para si, Cressida e três crianças. E com uma boa renda que eu lhe dou, e que não virá fora de tempo, quando começarem a aparecer as despesas da casa

- Na verdade eu...

- Não quereria voltar para a Suíça, mesmo que pudesse. É muito mais fácil, hoje em dia, sair dum país estrangeiro do que tornar a entrar. Nunca devia ter feito o que fiz, mas agora é tarde para pensar nisso. Gosto de Greensleeves. Tem o que poucas casas têm: estilo.

- Sim, mas... eu...

- Não vou também comprar uma dessas casas

modernas, horríveis, que começam a cair aos bocados, mal uma pessoa se instala lá dentro, depois de ter pago oito vezes aquilo que valem.

- Não, mas...

- E se me meto numa casa velha, terei de fazer despesas com a sua adaptação, a pôr a funcionar todos os fogões pré-históricos, como aquele que ali está, a preparar tudo nas devidas condições.

- Eu gostava de lhe dizer que...

- Acerca do pessoal. Já pensei nisso tudo. Já lá estão dois: Emilio e a mulher. vou dizer à senhora Garcia para ir connosco. Pode viver nos quartos que ficam sobre as cavalariças, onde não ouçamos a criança chorar, e conseguirei que o marido vá também. Não sei quanto é que ele vai ganhar no hotel, mas dou-lhe o dobro, que é a única maneira de hoje em dia se terem criados São assim quatro. Fica com a sua casa de Londres

- Por agora, mas...

- Então o seu criado não lhe serve para nada. Eu vou mandar vir as minhas duas criadas suíças. Fico com uma e dou-lhe a outra. As crianças, possivelmente, vão para o colégio. O senhor vai para a cidade todos os dias, ou fica lá durante a semana, de modo que não haverá muito que fazer, a não ser nas férias.

- Gostaria que me deixasse dizer algumas...

- A única coisa que fica por discutir é o preço. Podemos dar uma volta à casa juntos e decidir o número exacto de salas que me vão pertencer, e depois se verá o que devemos fazer.

- Minha cara senhora...

- Estou encantada por ver tudo resolvido - disse a senhora Belchamber começando a levantar a mesa. - Não percebo porque não tinha já feito uma oferta por Greensleeves. Devia ter reparado que esta era a solução óbvia, mas já tenho notado que o senhor é um pouco lento nas suas reacções. Não se importa de se ir embora, enquanto eu acabo isto? Trabalho melhor sem o senhor para aqui a conversar. Leve o jarro do leite e deixe-o ficar na leitaria. O major Gray disse-lhe quando podia entrar na posse da casa?

- Ele parte para a África do Sul, no mês que vem. Mas isso não me interessa. Não posso sair daqui, enquanto a quarentena de Roberto e de Paulo não acabarem.

- Que quarentena - perguntou a senhora Belchamber.

Cristóvão ficou a olhar para ela.

- Do sarampo. Se eles apanham sarampo?

- Claro que não apanham. Não digo que não se possa tê-lo mais duma vez. Mas quem o teve recentemente, com certeza não o torna a apanhar tão depressa.

- Tiveram-no? Como é que sabe?

- Vê-se logo - disse a senhora Belchamber. Agora vá-se embora.

Cristóvão retirou-se.

O major Gray deixou a Inglaterra, na véspera de Cristóvão começar a mudar-se para Greensleeves. A cerimônia de despedida foi rápida. Cressida foi a Londres assistir à partida do pai, e voltou no dia seguinte para arranjar as coisas, na idéia de retomar o trabalho. Nem os argumentos de Scotty, nem as súplicas de Cristóvão foram capazes de lhe arrancar mais do que a promessa de fazer tudo o que pudesse para se libertar dos seus receios e casar com Cristóvão, assim que ele quisesse. Scotty, tal como o major Gray, achava que a ausência seria melhor arma que argumento. Greensleeves, as crianças e o seu amor por Cristóvão, combinar-se-iam de modo a constituir um íman irresistível que a atrairia.

- Preferia ter arrendado a herdade, em vez de a comprar - lamentou Scotty. - Assim serias tu a fazer todas as reparações e eu não tinha despesas. Vais-me comprar manteiga e ovos, natas e creme, tudo pelos preços mais elevados?

- Talvez - respondeu Cristóvão. - Para que vai servir a casa de banho quando nos formos embora?

- Preciso de outra selha, mas tenho um pressentimento.

- Outro? De que é que se trata?

- Bem - disse Scotty cheio de terror -, tenho o pressentimento de que nas noites de banho, ela há-de cá vir, só para...

- Não, não vem.

O rosto de Scotty encheu-se de alegria.

- Mas vou dizer-te o que é que ela vai fazer - continuou Cristóvão. - Já me esteve a consultar, profissionalmente, claro, sobre a maneira de instalar uma casa de banho, etc, etc.

- ... na minha casa?

- Sim.

- Ela não pode, não pode fazer isso!

- Porque não? Só precisa de dinheiro.

- E do meu consentimento.

- Do que precisa é de dinheiro - tornou a afirmar Cristóvão.

A tristeza que desceu sobre Scotty durou até ao dia seguinte, e ainda o dominava quando Cressida apareceu para se despedir. Beijou-a tristemente e viu-a entrar em casa para dizer adeus à senhora Belchamber. Cristóvão sentou-se na roda do carro. Era ele que a ia levar a Londres e Scotty achou-o menos abatido do que esperava.

Chegando-se junto ao carro, disse-lhe:

- Tu imaginas... assim o creio... que ela não tarda a voltar?

- Isso não sei - tornou-lhe Cristóvão -; sei apenas que tem bom coração e julgo-a incapaz de me deixar sozinho, durante muito tempo, com os meus três órfãos. Aí é que está.

- Talvez tenhas razão, mas o meu desejo é que ela volte depressa para me proteger da Belchamber. Cress é a única pessoa que sempre me defendeu dessa dama ameaçadora. Olha para mim agora. Camisa lavada, calças de ganga, que vão à lavandaria e bata branca de neve para mungir as vacas, que faz os pobres bichos tomarem-me pelo cirurgião que os vai retalhar em pedaços. Até se assustam, os pobrezinhos! Quando Cress voltar, hei-de estar vestido como os pastores das gravuras dos velhos livros de histórias.

Calou-se e depois perguntou pensativo:

- Lembras-te de eu te dizer que só havia uma coisa que me podia salvar?

- A médica?

- A médica - respondeu Scotty. - E não sei como é isto, mas desde que a vi na festa, toda amável e sem aparência profissional, tenho o pressentimento...

- Ah! - exclamou Cristóvão - um pressentimento.

Scotty suspirou.

- Meu velho, o que ambos temos a fazer é rezar.

Depois, apontando para Roberto e Paulo que se aproximavam do carro, disse:

- Ou então estes dois amigos têm de fazer um jogo de magia.

- Um jogo de magia para quê? - perguntou Roberto. - Para que Cressida volte?

- Se ela não volta depressa, ai, isso fazemos - prometeu Paulo. - Podemos ir no carro até à estrada, Cristóvão?

- Sim, se quiserem. Que está Cressida a fazer?

- Esteve a dizer adeus a Josette e agora está a despedir-se da senhora.

A senhora Belchamber parecia um pouco impaciente, quando Cressida desceu as escadas, depois de se despedir de Josette.

- Não percebo porque está a perder tanto tempo nas despedidas. Dentro duma semana ou quinze dias volta para arranjar as coisas para o casamento. Nem sequer mesmo compreendo porque é que se vai embora. Podia ter escrito uma palavra a essas pessoas para quem trabalha, a dizer que se vai casar já.

- Mas é que eu não vou.

- Não vai o quê?

- Não me vou casar já.

- Bem, se quer ser exacta, diga duas, três ou quatro semanas.

- Mas eu só me caso daqui a um ano - explicou Cressida.

Se de repente lhe tivessem nascido duas cabeças, a senhora Belchamber não teria olhado para ela com maior espanto. Quando conseguiu falar, perguntou:

- Não quê?

- Não me caso senão daqui a um ano.

- Um ano

- Sim.

- Mas para que é essa demora? Julguei que ia ser já, por causa do que ouvi ao seu noivo e por outras coisas que consegui depreender. Para que é que ele quer esperar um ano?

- Ele não quer. Eu... eu é que lhe pedi.

- E porquê - perguntou a senhora Belchamber. - Não acredito em longos noivados. Num ano pode acontecer muita coisa.

- Bem sei - concordou Cressida. - Mas eu prefiro esperar.

- E o rapaz concordou?

- Ele... concordou.

A senhora Belchamber deu uma risadinha, que também podia ser uma fungadela, e mostrou um ar de tão profundo desprezo, que Cressida corou.

- Adeus. Espero...

- Um ano - resmungou a senhora Belchamber.

- Doze meses. Nessa altura terá vinte e sete anos"

- Sim.

- A idade em que a maior parte das raparigas mostram senso, se é que algum dia o chegam a ter. Quem vai tomar conta do seu noivo, durante todo este tempo? Já pensou nisso?

- Não precisa que tomem conta dele...

Desta vez foi a senhora Belchamber que corou de raiva.

- Não esteja a fazer observações infantis. Considerei-a uma rapariga com juízo, e desagrada-me verificar que não passa duma cabeça no ar como todas as outras. Vá-se embora e não me irrite com essa história de esperar um ano e de não ser preciso que tomem conta do rapaz. Quando se tem um noivo jovem, apwentável, com situação e dinheiro, não se espera um ano. Nem se espera um dia. Agradeça a Deus o tino que lhe deu e tome cautela! Parece impossível! Daqui a um ano, deixe-me que lhe diga, minha menina, daqui a um ano há-de andar à procura dele com toda a diligência, há-de cansar-se mas não o encontrará. Nunca se encontra um homem que se deixou em liberdade durante um ano. Você não o encontra, mas há-de haver outra que o encontre. Dentro dum mês, duma semana, o seu leal amigo desaparece-lhe. Desaparece, e digo-lhe exactamente porque é que ele desaparece. Vai para a sua Maisie.

- Para a sua...

- Maisie. É a primeira vez que ouve falar de Maisie?

- Não sabia que esteve noivo dela...

- E digo-lhe o nome todo dela, se esperar um instante. Dobson. Hobson. Não Robson. Maisie Robson. Agora saia daqui e fale-lhe de Maisie Robson e repare na cara dele. E suponho que nunca lhe falou na outra.

- Na outra?

- O que é que pensa que ele fez atéaos vinte e seis anos? Não sabe nada a respeito dos homens. Está claro que ele nunca lhe falou em Elinor.

- Elinor?

- Elinor. Qualquer coisa começado por Oate. Oatesby Gateson. Sim, Gateson. Claro que ele não é um homem para perder o seu tempo, quando existem tantas mulheres. Vê-se logo, e garanto-lhe que não o encontra se esperar um ano. Mas se tem muito interesse em experimentar, experimente. Não gosto de interferir na vida dos outros. Agora, adeus. Tenho muita pena de si e se soubesse para onde lhe escrever, avisava-a na primeira vez que ele trouxesse para Greensleeves um dos seus conhecimentos femininos. Mais do que isto não posso fazer.

- Adeus - respondeu Cressida.

A senhora Belchamber ajustou o chapéu que caíra um pouco para o lado, durante o discurso, e dirigiu-se para o quarto grande da frente. Cressida ficou onde ela a deixara, no meio da cozinha, a olhar para a mesa esfregada, que brilhava. Pouco depois, um sorriso leve e divertido começou a desenhar-se-lhe nos lábios. Voltou-se, subiu as escadas devagar, entrou no quarto de Josette, passou-lhe distraidamente a mão pelos cabelos e foi até à janela. Olhou para o pátio e viu o carro, com os dois rapazes de pé junto dele, e Scottj encostado. Este olhou para cima, viu-a e acenou-lhe.

- Eh, Cress

Cristóvão abriu a porta do carro, saiu e olhou para ela.

- Pronta? - perguntou.

Cressida olhou-o e viu a sua figura alta e robusta, de calça de flanela e casaco de tweed, o seu rosto agradável, as mãos grandes e a bonita cabeça. Sorriu-Lhe e viu a expressão dos seus olhos, quando ele ficou tranqüilamente a olhá-la. Ele tinha vinte e seis anos e ela também. O casal Olhou por um instante para Greensleeves, que esperava por eles. Ali estava tudo o que desejava no mundo; e ia deixar tudo, calma e deliberadamente, por uma razão que de súbito lhe pareceu não ser razoável. O homem que ali estava em baixo pertencia-lhe, e um ano... Quem podia saber o que um ano trazia. O presente era certo, a vida esperava por ela...

- Vem? - perguntou Cristóvão.

Viu-o esfumar-se, e em seguida desaparecer. Abanou a cabeça, ou em resposta à pergunta de Cristóvão ou para sacudir as lágrimas que lhe corriam dos olhos.

Foi coisa que nunca soube. Quando pôde tornar à ver, Scotty estava sozinho a olhar para ela, com uma expressão interrogativa.

- Que é, Cress? - perguntou. - Mudaste de idéia?

Ela podia ter respondido, mas um braço rodeou-a

e levou-a para dentro. Scotty, espantado, viu chegar à janela a cara de Cristóvão e a expressão que trazia era tal, que se lhe escapou dos lábios um grito.

- Chris, ela já não vai?

- Não - respondeu Cristóvão.

- Foi ela quem disse?

Não - tornou-lhe Cristóvão. - Mas vê-se logo.

 

                                                                                Elizabeth Cadell  

 

                      

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