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ORGULHO E PRECONCEITO / Jane Austen
ORGULHO E PRECONCEITO / Jane Austen

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ORGULHO E PRECONCEITO

 

É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro na posse de uma bela fortuna necessita de uma esposa.

Por muito pouco que se conheçam os sentimentos ou modo de pensar de tal homem ao entrar pela primeira vez numa vizinhança, esta verdade encontra-se de tal modo enraizada nos espíritos das famílias circundantes que ele é considerado como propriedade legítima desta ou daquela de suas filhas.

- Meu caro Sr. Bennet - disse-lhe sua mulher um dia -, sabe que Netherfield Park foi finalmente alugado?

O Sr. Bennet respondeu-lhe que não sabia.

- É como lhe digo - tornou ela -; pois a Sr.a Long ainda há pouco aqui esteve e contou-me tudo.

O Sr. Bennet não deu qualquer resposta.

- Não lhe interessa saber quem o alugou? - exclamou a mulher, impaciente.

- A senhora pretende participar-mo, e eu não me oponho a ouvi-la.

Como convite, era mais que suficiente.

- Pois saiba, meu caro, que, pelo que a Sr.a Long me disse, Netherfield foi alugado por um jovem de grande fortuna do Norte de Inglaterra. Chegou na segunda-feira, numa carruagem puxada por quatro cavalos, para visitar o local, e ficou tão encantado que desde logo aceitou as condições do Sr. Morris. Vem ocupar a casa ainda antes do dia de S. Miguel e alguns dos seus criados deverão chegar já no fim da próxima semana.

- Como se chama ele?

- Bingley.

- É casado ou solteiro?

- Oh! Solteiro, naturalmente, meu caro! Um homem solteiro e de grande fortuna, com rendimentos no valor de quatro ou cinco mil libras anuais. Que maravilhoso acontecimento para as nossas filhas!

- Como assim? Que têm elas a ver com isso?

- Meu caro Sr. Bennet - retorquiu sua mulher -, que maçador que o senhor é! Sabe perfeitamente que encaro a possibilidade de ele vir a casar com uma delas.

- É essa a intenção dele ao vir instalar-se para aqui?

- Intenção! Que disparate é esse que está a dizer! Porém, é muito natural que ele se apaixone por uma delas, e exactamente por isso o senhor deve ir visitá-lo logo que ele chegue.

- Não vejo razão para isso. Podem perfeitamente ir a senhora e as pequenas, ou envia-las a elas sozinhas, o que talvez fosse preferível, pois, uma vez que a senhora é tão bonita como qualquer delas, o Sr. Bingley poderia escolhe-la a si como a flor do grupo.

- Meu caro, o senhor lisonjeia-me. Fui, de facto, bonita nos meus tempos, mas não pretendo ser hoje em dia nada de extra ordinário. Quando uma mulher se vê mãe de cinco filhas crescidas, ela tem, necessariamente, de deixar de pensar na sua própria beleza.

- Em tais casos, é raro uma mulher ter alguma beleza em que pensar.

- Não obstante, meu caro, o senhor tem de ir visitar o Sr. Bingley mal este chegue ao bairro.

- É coisa que não lhe garanto, desde já a previno.

- Considere ao menos a sorte de suas filhas. Pense só que bela colocação não seria para uma delas. Sir William e Lady Lucas estão resolvidos a ir dar-lhes as boas-vindas, e unicamente por esta razão, pois, como sabe, não é seu costume visitarem quaisquer recém-chegados. O senhor não pode deixar de ir, pois ser-nos-á impossível a nós visitá-lo sem a sua ida prévia.

- Sem dúvida que exagera nos seus escrúpulos. Estou persuadido de que o Sr. Bingley terá todo o prazer em recebe-la; e vou aproveitar o ensejo para lhe enviar, por seu intermédio, um bilhetinho em que o asseguro do meu pleno consentimento quanto ao seu casamento com aquela das minhas filhas que mais lhe agradar; não posso, no entanto, deixar de incluir uma palavrinha em favor da minha pequena Lizzy.

- Espero bem que não faça tal coisa. Lizzy não é melhor que as outras. Não é nem mais bonita que Jane, nem tão alegre como Lydia, apesar de o senhor lhe dar sempre a preferência.

- Nenhuma delas é especialmente dotada - replicou ele. - São todas umas tontas e ignorantes, como a maioria das raparigas, de resto; Lizzy, no entanto, tem uma vivacidade que as irmãs não têm.

- Sr. Bennet, como pode insultar assim as suas filhas? O senhor tem prazer em irritar-me. Não tem qualquer compaixão pelos meus pobres nervos.

- Está redondamente enganada, minha querida. Tenho o maior respeito pelos seus nervos. São meus velhos amigos. É com consideração que a ouço mencioná-los de há vinte anos a esta parte, pelo menos.

- Ah! O senhor não sabe o que eu sofro.

- Mas espero que se restabeleça e viva o suficiente para ver chegarem muitos jovens de quatro mil libras anuais aqui à vizinhança.

- De nada nos serviria nem a chegada de vinte deles, uma vez que o senhor se recusa a visitá-los.

- Pode ter a certeza, minha querida, que, quando eles forem em número de vinte, os visitarei a todos.

O Sr. Bennet era um misto tão extraordinário de petulância, sarcasmo, reserva e capricho que a experiência de vinte e três anos não bastara ainda para a mulher compreender o seu carácter. Por seu lado, a mentalidade dela era bem menos difícil de revelar. Tratava-se de uma mulher de inteligência medíocre, cultura rudimentar e temperamento incerto. Quando irritada, procurava refúgio nos nervos. A principal ocupação da sua vida era casar as filhas e o seu passatempo as visitas e os mexericos.

 

O Sr. Bennet contava-se entre os primeiros que foram visitar o Sr. Bingley. Sempre tencionou visitá-lo, embora até ao fim tivesse feito crer à mulher que não iria; e até à noite do próprio dia da visita ela não teve qualquer conhecimento do facto, que só então foi revelado da seguinte maneira. Estando o Sr. Bennet a observar a sua filha segunda a enfeitar um chapéu, inesperadamente disse-lhe:

- Espero que o Sr. Bingley goste, Lizzy.

- Não temos qualquer possibilidade de saber o que agrada ou não ao Sr. Bingley - disse a mãe dela amuada -, uma vez que o não podemos visitar.

- Mas a mãe esquece-se - disse Elizabeth - de que nós o encontraremos em reuniões e que a Sr.a Long prometeu apresentar-no-lo.

- Não tenho nada a certeza de que a Sr.a Long faça tal coisa. Ela própria tem duas sobrinhas. É uma mulher egoísta, hipócrita e não a tenho em grande estima.

- Nem eu - disse o Sr. Bennet -; e alegra-me saber que a senhora prescinde dos seus serviços.

A Sr.a Bennet não se dignou a dar-lhe qualquer resposta; mas incapaz de se conter, começou a repreender uma das filhas.

- Acaba-me com essa tosse, Kitty, por amor de Deus! Tem um pouco de compaixão pelos meus nervos. Pões-me fora de mim.

- Kitty não sabe tossir com discrição - disse seu pai -; não tem controlo na tosse.

- Não é por divertimento que eu tusso - replicou Kitty, impertinente.

- Quando é o teu próximo baile, Lizzy? (R. W. Chapman é de opinião que esta pergunta, que no texto se atribui a Kitty, é feita, de facto, pelo Sr. Bennet.)

- De amanhã a quinze dias.

- Ora, pois é - exclamou sua mãe -, e a Sr.a Long que só regressa na véspera. Assim ser-lhe-á impossível apresentar-no-lo, pois nem ela própria o conhece ainda.

- Nesse caso, minha querida, a vantagem será sua e poderá apresentar o Sr. Bingley à sua amiga.

- Impossível, Sr. Bennet, impossível, pois eu própria não tenho qualquer familiaridade com ele. Que arreliador que o senhor é!

- Aceite o meu louvor por tal circunspecção. Um conhecimento de quinze dias é, na verdade, insuficiente. Nada de concreto se pode saber sobre um homem ao fim desses quinze dias. Mas, se «nós» não arriscarmos, outros arriscarão, e nessa altura a Sr.a Long e as sobrinhas não terão mais que aguardar a sua oportunidade. Porém, como tal gesto seria por ela considerado um acto de bondade, caso a senhora decline prestar-lhe esse serviço, eu próprio me encarregarei dele.

As raparigas olharam, espantadas, para o pai. A Sr.a Bennet apenas disse: «Que disparate!»

- Qual o significado de exclamação tão enfática? - disse ele exaltado. - Considera um disparate as práticas de apresentação e a importância que se lhes dá? Nisso não estou nada de acordo com a senhora. Qual a tua opinião, Mary?

Tu, que és jovem sensata e profunda, que lês bons livros e deles extrais ensinamentos.

Mary quis dizer algo de relevante, mas não sabia como.

- Enquanto Mary põe em ordem as suas ideias - continuou ele -, voltemos ao Sr. Bingley.

- Estou farta do Sr. Bingley - exclamou a mulher.

- É consternado que a ouço dizer tal coisa. Mas porque não me preveniu antes? Se soubesse disso esta manhã, não teria de certeza ido visitá-lo. Já é pouca sorte! Mas, uma vez que a visita está feita, não nos podemos agora esquivar a uma certa familiaridade.

O espanto provocado nas senhoras foi exactamente aquele que ele pretendeu, ultrapassando de longe o da Sr.a Bennet o das filhas, apesar de, passada a primeira efusão de alegria, ela declarar que dele não esperava outra coisa senão aquilo.

- Que bonito gesto o seu, Sr. Bennet. Mas eu sabia que acabaria por o convencer. Tinha a certeza de que o seu amor pelas pequenas não o deixaria indiferente perante tal oportunidade. Oh!, que contente que eu estou!, e que bela partida nos pregou, ter ido lá esta manhã, e guardar segredo até este momento.

- Agora, Kitty, tosse à tua vontade - disse o Sr. Bennet; e, dito isto, abandonou a sala, cansado dos arrebatamentos de sua mulher.

- Que excelente pai o vosso, minhas filhas - disse ela, quando a porta se fechou. - Não vejo como podereis alguma vez retribuir-lhe a sua bondade, e neste caso a minha também. Na nossa idade, garanto-vos, já não é tão agradável encetar relações todos os dias, mas por vós faríamos tudo. Lydia, meu amor, apesar de seres a mais nova, julgo que será contigo que o Sr. Bingley irá dançar no próximo baile.

- Oh! - disse Lydia resolutamente -, não tenho receio, pois, apesar de ser a mais nova, sou a mais alta.

O resto do serão passou-se em conjecturas sobre quando retribuiria ele a visita do Sr. Bennet e para quando deveriam elas convidá-lo a jantar.

 

Contudo, nada do que a Sr.a Bennet, assistida pelas suas cinco filhas, tivesse perguntado sobre o assunto foi suficiente para obter de seu marido uma descrição satisfatória sobre a pessoa do Sr. Bingley. Servindo-se das tácticas mais variadas, assaltaram-no com perguntas descaradas, hábeis suposições e conjecturas remetas, mas ele iludiu-as sempre, acabando elas por não ter outro remédio senão cingir-se às informações em segunda mão, fornecidas pela sua vizinha, Lady Lucas. A descrição colhida por esta era altamente favorável. Sir William viera encantado com o recém-chegado. Que ele era bastante jovem, muito bem parecido e extremamente simpático, e, para cúmulo, que tencionava aparecer no próximo baile, acompanhado de um numeroso grupo de amigos. Que coisa maravilhosa! Gostar de dançar era meio caminho andado para se apaixonar, e logo a Sr.a Bennet sentiu mais vivas as esperanças no seu íntimo.

- Se me vejo com uma das minhas filhas instalada e feliz em Netherfield - disse a Sr.a Bennet para o marido - e todas as outras igualmente bem casadas, nada mais terei a desejar na vida.

Passados poucos dias, o Sr. Bingley retribuiu a visita que lhe fora feita pelo Sr. Bennet e com ele conversou durante cerca de dez minutos no seu escritório. O jovem alimentara a esperança de ver as raparigas, sobre cuja beleza tanto ouvira falar, mas apenas se avistou com o pai. Elas, porém, tiveram um pouco mais de sorte, pois do alto de uma janela puderam verificar que ele envergava um fato azul e montava um cavalo preto.

Imediatamente lhe foi enviado um convite para jantar, e a Sr.a Bennet já tinha planeados os pratos que dariam crédito aos seus dotes de boa dona de casa, quando veio uma resposta que tudo transtornou. O Sr. Bingley via-se obrigado a estar na capital no dia seguinte, sendo-lhe consequentemente impossível aceitar a honra de tão amável convite. A Sr.a Bennet ficou bastante perturbada. Não conseguia imaginar que espécie de negócios teria ele a tratar na capital após a sua chegada tão recente a Hertfordshire, e começou a recear que ele andasse num vaivém constante e não se instalasse definitivamente em Netherfield, como, de facto, devia. Lady Lucas aliviou-a um pouco dos seus receios, levando-a a supor que talvez ele tivesse ido a Londres unicamente para convocar o tal grupo numeroso para o baile, e em breve se espalhou a notícia de que o Sr. Bingley traria consigo doze senhoras e sete cavalheiros. As raparigas afligiram-se com a quantidade de senhoras, mas logo sossegaram quando, na véspera do baile, souberam que, em vez de doze, ele apenas trouxera de Londres seis pessoas, as suas cinco irmãs e um primo. E, quando o grupo fez a sua entrada no salão, constituíam cinco ao todo: o Sr. Bingley, as suas duas irmãs, o marido da mais velha e um outro jovem.

O Sr. Bingley era um homem belo e distinto. De semblante agradável, os seus modos eram delicados e simples. As irmãs eram igualmente bonitas, afectando um ar decididamente elegante. O cunhado, o Sr. Hurst, não passava de um homem vulgar, mas o Sr. Darcy, o amigo, logo chamou sobre si as atenções do salão pela sua alta e elegante estatura, os traços formosos e o porte desenvolto, correndo célere, cinco minutos após a sua entrada, o rumor de que ele possuía rendimentos no valor de dez mil libras anuais. Os cavalheiros classificaram-no como um belo tipo de homem, as senhoras declararam ser ele bem mais formoso que o Sr. Bingley, e ele foi longamente admirado, até os seus modos deixarem transparecer um enfado que muito afectou a sua popularidade. A partir desse momento consideraram-no um orgulhoso e pedante, longe de se mostrar divertido, e nem as suas extensas propriedades no Derbyshire o impediram de ter uma expressão sinistra e desagradável e ser indigno de comparação com o amigo.

O Sr. Bingley em breve tinha feito conversa a todas as principais pessoas na sala. Alegre e animado, dançou todas as danças, lamentou o baile terminar tão cedo e falou em ele próprio realizar um em Netherfield. Tais qualidades, só por si, falavam. E que contraste entre ele e o seu amigo! O Sr. Darcy dançou apenas uma vez com a Sr.a Hurst e outra com a Menina Bingley, recusou ser apresentado a qualquer outra jovem e passou o resto da noite passeando pelo salão, conversando ocasionalmente com um ou outro do seu grupo.

O seu caracter estava definido. Era o homem mais orgulhoso e desagradável do mundo, e todos esperavam que ele não mais voltasse ao seu convívio. Entre as pessoas mais inflamadas contra ele contava-se a Sr.a Bennet, cuja antipatia pelo seu comportamento geral se avivara num ressentimento particular por ele ter desdenhado uma das suas filhas.

Elizabeth Bennet, que a escassez de cavalheiros obrigara a permanecer sentada duas danças, teve a oportunidade, numa altura em que o Sr. Darcy se encontrava perto de si, de ouvir a conversa que se seguiu entre ele e o Sr. Bingley, que por momentos abandonara a dança para o vir incitar a juntar-se-lhe:

- Vem daí, Darcy - disse-lhe -, quero que venhas dançar. Detesto ver-te por aí sozinho. Fazias melhor se viesses dançar.

- Não contes comigo. Sabes perfeitamente quanto isso me custa, desde que não conheça intimamente o meu par. Aliás, com gente como esta isso ser-me-ia insuportável. As tuas irmãs tem cada uma o seu par e não há outra mulher na sala cuja companhia não se tornasse num suplício para mim.

- Se fosse a ti, deixava-me de esquisitices - exclamou Bingley. - Por Deus! Palavra de honra que nunca na minha vida encontrei um grupo de raparigas tão agradável como o que aqui temos esta noite, e, como podes ver, algumas delas são invulgarmente bonitas.

- Tu estás precisamente a dançar com a única rapariga bonita da sala - disse o Sr. Darcy, olhando para a mais velha das irmãs Bennet.

- Oh!, ela é a criatura mais bela que eu jamais vi! Mas, sentada mesmo atrás de ti, está precisamente uma das suas irmãs, que, além de muito bonita, me parece ser bastante simpática. Deixa que o meu par te a apresente.

- Qual dizes? - e, voltando-se, olhou demoradamente para Elizabeth, até que esta, devolvendo-lhe o olhar, o fez desviar o seu, e friamente declarou: - é razoável, mas não suficientemente bonita para me tentar. Aliás, de momento não me sinto na disposição de consolar as jovens que outros desdenharam. Vai tu para junto do teu par e desfruta-lhe os sorrisos, que comigo perdes o teu tempo.

O Sr. Bingley seguiu o conselho do amigo, e o Sr. Darcy afastou-se, deixando uma impressão pouco favorável a seu respeito no íntimo de Elizabeth. Esta, contudo, ao contar a história às amigas, fê-lo com um certo humor, pois, de feitio alegre e brincalhão, tirava partido das situações mais ridículas.

De um modo geral, a noite decorreu agradavelmente para toda a família. A Sr.a Bennet vira com satisfação a sua filha mais velha ser muito apreciada pelo grupo de Netherfield. O Sr. Bingley por duas vezes dançara com ela e as duas senhoras tinham-na rodeado de atenções. Jane sentia-se com isso tão maravilhada como sua mãe, se bem que de um modo mais discreto. Elizabeth partilhava do prazer de Jane. Mary ouvira-se elogiada na presença da Menina Bingley como a rapariga mais completa da vizinhança; e Catherine e Lydia congratulavam-se por não lhes ter faltado par a noite inteira, o que era, aliás, tudo o que até à altura tinham aprendido sobre o essencial num baile. Foi, portanto, em óptima disposição de espírito que tomaram o caminho de regresso a Longbourn, a vila em que viviam e da qual eram os principais habitantes. Foram encontrar o Sr. Bennet ainda a pé. Quando mergulhado na leitura de um livro, perdia a noção do tempo; e naquela ocasião específica ansiava pelo relato de uma noite que tão esplêndidas expectativas suscitara. Esperava, contudo, que os planos arquitectados por sua mulher à volta daquele desconhecido caíssem pela base, mas em breve descobriu que a história a ouvir seria bem diferente.

- Oh!, meu caro Sr. Bennet - disse a mulher, mal entrou na sala -, passamos uma noite encantadora e o baile foi magnífico. Adorava que o senhor lá tivesse estado. Jane foi tão admirada que nem calcula. Todos falavam nela e o próprio Sr. Bingley a achou muito atraente e dançou com ela duas vezes! Imagine-me só, meu caro; por duas vezes dançou com a nossa Jane! E foi ela a única rapariga na sala a quem ele pediu segunda vez para dançar. Primeiro, convidou a Menina Lucas, o que bastante me contrariou, mas não pareceu muito entusiasmado, como é compreensível, pois ela não entusiasma ninguém. Em contrapartida, ficou logo impressionado com Jane, que na altura também dançava, tratou imediatamente de saber quem ela era, foi-lhe apresentado e pedia-lhe para dançar. A seguir dançou com a Menina King e depois com Maria Lucas, a quinta dança foi de novo para Jane e a sexta para Lizzy, e a Boulanger...

- Se ele tivesse algum dó por mim - exclamou o marido, impaciente -, não teria dançado nem metade do que dançou! Por amor de Deus; acabe-me de uma vez com a inumeração dos pares dele. Oh!, oxalá ele tivesse torcido um pé logo na primeira dança!

- Oh!, meu querido - continuava a Sr.a Bennet -, estou positivamente encantada com ele. É tão belo rapaz! E as irmãs são umas pessoas encantadoras. Os seus vestidos eram de uma elegância como eu nunca vi igual. Quer-me parecer que o galão do vestido da Sr.a Hurst...

E, aqui, foi de novo interrompida, pois o Sr. Bennet recusava-se terminantemente a ouvir qualquer descrição sobre os trajos. Viu-se ela, deste modo, obrigada a procurar, no mesmo assunto, outro tema de conversa, e passou a relatar, com uma forte doze de azedume e algum exagero, a chocante insolência do Sr. Darcy.

- Mas também lhe asseguro - acrescentou - que Lizzy nada perde por não lhe encher o olho, pois ele é uma criatura extremamente desagradável e horrível, com quem não vale a pena gastar o seu latim. Que arrogância e presunção a sua! Não fez mais do que passear-se de um lado para o outro na sala, dando-se ares de grande importância! Que ela não era suficientemente bonita para ele se tentar! Como eu desejei a sua presença ali, meu caro, para lhe dizer uma ou duas das suas. Chego a detestar tal homem.

 

Quando Jane e Elizabeth se viram a sós, aquela, que até então guardara uma certa reserva na sua apreciação do Sr. Bingley, abriu-se com a irmã e confessou-lhe quanto o admirava.

- Ele é exactamente como um rapaz deve ser - disse ela -, sensato, bem disposto e animado. E que modos os seus! Tão simples e revelando uma boa educação a toda a prova.

- E é bonito - replicou Elizabeth -, o que também é importante para qualquer rapaz que se preza. E assim se completa a sua personalidade.

- Senti-me muito lisonjeada quando pela segunda vez me veio pedir para dançar. Não esperava tal elogio.

- Não esperavas? Esperei eu por ti. Mas é essa uma das diferenças entre nós. Os elogios apanham-te sempre de surpresa, enquanto a mim nunca. Que querias de mais natural, senão exactamente o que ele fez? Ele não é cego, e com certeza viu que tu eras cinco vezes mais bonita que qualquer outra na sala. Não é as suas boas maneiras que o deves. Bom, ele é, de facto, simpático, e dou-te licença para gostares dele. Não seria, aliás, a primeira pessoa estúpida de quem gostasses.

- Querida Lizzy!

- Oh! Sabes? O que tu tens é uma capacidade ampla de mais para gostares das pessoas em geral. Nunca vês mal em ninguém. Todo o mundo é bom e agradável aos teus olhares. Nunca na minha vida te ouvi criticar um ser humano.

- É que procuro sempre não me precipitar no juízo que faço das outras pessoas; mas digo sempre o que penso.

- Isso sei eu, e é isso que me pasma. Que tu, com o teu bom senso, possas ser tão cega perante os defeitos e asneiras dos outros! Fingir candura é vulgaríssimo e encontra-se a cada passo na vida. Mas ser cândida sem qualquer espécie de ostentação ou fim em vista - aproveitar o que há de bom numa pessoa e torná-lo ainda melhor, sem nada dizer sobre o mal -, só tu és capaz. E, sendo assim, também te agradaram as irmãs dele, não? Na maneira de ser parecem-se pouco com ele.

- Tens razão; mas só a princípio. Uma vez faladas, tornaram-se bastante agradáveis. A Menina Bingley vem viver com o irmão e governar-lhe a casa, e, ou eu me engano muito, ou vamos ter nela uma vizinha encantadora.

Elizabeth ouviu-a em silêncio, mas não ficou convencida. A atitude delas no baile não correspondia exactamente àquela que seria de esperar de alguém que desejasse agradar. Dotada de um sentido de observação mais vivo e de um temperamento menos dócil do que a irmã, além de um espírito crítico impessoal de mais para se deixar arrastar por simpatias, ela sentia-se pouco disposta a acolhê-las de braços abertos. Eram, de facto, umas senhoras muito delicadas, capazes quer de uma certa vivacidade quando divertidas, quer de se mostrarem agradáveis quando bem o entendiam, mas, no fundo, não passavam de umas orgulhosas e presumidas. Indiscutivelmente bonitas, educadas num dos principais colégios particulares da capital, na posse de uma fortuna de vinte mil libras e no hábito de gastar mais do que o necessário e de se darem com a melhor sociedade, não admirava que se sentissem inclinadas a pensar o melhor de si mesmas, em detrimento dos outros. O facto de pertencerem a uma respeitável família do Norte de Inglaterra ocorria-lhes mais frequentemente à memória do que o de a fortuna de seu irmão e sua própria terem sido adquiridas pelo comércio.

O Sr. Bingley herdara bens no valor de cem mil libras, de seu pai, que tencionara transformar parte em terras, mas não vivera o suficiente para o realizar. O filho comungava da mesma ideia, e por várias vezes escolhera a região, mas, encontrando-se de momento provido de uma boa casa e gozando da liberdade de fazer o que melhor lhe aprouvesse, havia quem, entre os mais familiarizados com a brandura do seu caracter, não duvidasse de que ele acabaria o resto dos seus dias em Netherdield, deixando a aquisição das terras ao cuidado da geração seguinte.

Suas irmãs ansiavam por o ver senhor de propriedades imensas; contudo, embora presentemente ele não passasse de um simples locatário, nem a Menina Bingley se fazia rogada em presidir à sua mesa, nem a Sr.a Hurst, que casara com um homem de sociedade mas sem fortuna, estava menos disposta a, sempre que isso lhe conviesse, considerar como sua a casa do irmão. O Sr. Bingley atingira a maioridade ainda não havia dois anos, quando, por recomendação acidental, se sentiu tentado a visitar a casa de Netherfield. Uma vez aí, mirou-lhe a fachada, percorreu os interiores, agradaram-lhe a situação e as salas principais, satisfizeram-no as vantagens apontadas pelo proprietário, e imediatamente a tomou.

Entre ele e Darcy existia uma sólida amizade, apesar dos feitios diametralmente opostos. Bingley cativava Darcy pela brandura, franqueza e docilidade do seu caracter, se bem que nenhum houvesse que maior contraste oferecesse com o seu e se bem que com o seu nunca ele visse razão para queixa. Na estima de Darcy tinha Bingley uma confiança inabalável e do seu juízo a mais elevada opinião. Em inteligência, Darcy superava-o. Bingley não era de modo algum deficiente, mas Darcy era esperto. Era simultaneamente arrogante, retraído e difícil de contentar, e os seus modos, apesar de delicados, não atraíam. Neste capítulo, o amigo levava-lhe a palma. Bingley, onde quer que aparecesse, tinha a certeza de agradar, enquanto Darcy estava continuamente ofendendo.

O modo como falaram da festa no clube de Meryton era suficientemente característico de cada um. Bingley nunca na vida encontrara pessoas tão agradáveis nem raparigas mais bonitas; todos tinham sido de uma bondade e atenção extremas para com ele, não houvera qualquer espécie de formalidades e depressa se sentira familiarizado com toda a sala; e, quanto à Menina Bennet, não concebia anjo mais belo. Darcy, pelo contrário, apenas vira um grupo de gente em que a beleza era pouca e a elegância nula, em que por nenhum sentira o mais pequeno interesse e de nenhum recebera quer atenção ou prazer. Quanto à Menina Bennet, reconhecia-lhe a beleza, embora achasse que ela sorria de mais.

A Sr.a Hurst e a irmã, nesse ponto, concordaram com ele, não deixando, no entanto, de a admirar e simpatizar com ela, declarando-a um amor de rapariga e com a qual não se importariam de se dar mais intimamente. Perante tal elogio, o irmão sentiu-se autorizado, no futuro, a pensar nela como bem entendesse.

 

A poucos passos de Longbourn vivia uma família da qual os Bennets eram particularmente íntimos. Sir William Lucas fora outrora comerciante em Meryton, onde fizera uma fortuna razoável e se tornara titular graças a um discurso ao rei, feito durante o seu mandato como presidente do município. A distinção impressionara-o, talvez, de mais. Com ela perdera o gosto pelo negócio e pela sua residência na pequena vila de passagem; e, abandonando ambos, transferiu-se com a família para uma casa a uma milha de distância de Meryton, onde poderia entregar-se ao pleno gozo da sua importância, e, liberto dos negócios, ocupar-se unicamente em ser delicado para com as pessoas. Se bem que maravilhado pela sua nova dignidade, não se tornara de modo algum altivo, mas, pelo contrário, desfazia-se em atenções para com todo o mundo. Inofensivo, amistoso e obsequiador por natureza, a sua apresentação em St. James tornara-o cortês.

Lady Lucas, sendo uma boa mulher, não era suficientemente esperta para se tornar numa vizinha preciosa para a Sr.a Bennet. Tinham vários filhos. A mais velha, uma rapariga sensata e inteligente de vinte e sete anos de idade, era a amiga íntima de Elizabeth.

Que as Meninas Lucas e as Meninas Bennet se reunissem para falar sobre o baile, era absolutamente indispensável; e, logo na manhã seguinte, as primeiras apareceram em Longbourn para ouvir e contar.

- Começaste bem a noite, Charlotte - disse a Sr.a Bennet, para a Menina Lucas, com um autodomínio de pessoa educada. - Foste a primeira que o Sr. Bingley escolheu.

- Sim, mas tudo indica que lhe agradou mais a segunda.

- Oh!, estás a falar em Jane, suponho eu, por ele ter dançado duas vezes com ela. De facto, seria esse o sinal de que ela lhe agradava - tenho quase a certeza de que ela lhe agradou, contaram-me algo a esse respeito -, mas não me recordo bem - algo que ver com o Sr. Robinson.

- A senhora refere-se talvez à conversa que eu própria ouvi entre ele e o Sr. Robinson, não lhe contei já? Que o Sr. Robinson lhe perguntara qual a opinião dele sobre as nossas festas em Meryton, se não achava que havia grande número de raparigas bonitas na sala e qual delas ele considerava a mais bonita? E que a esta última pergunta ele imediatamente respondera: «- Oh!, a mais velha das Meninas Bennet, sem sombra de dúvidas. Não existem duas opiniões sobre tal assunto.»

- Palavra de honra!... Bom, foi bastante categórico, na verdade... quase como se... mas, contudo, pode não levar a nada, sabe-se lá.

- As «minhas» revelações vieram mais a propósito que as «tuas», Eliza - disse Charlotte. - Ouvir o Sr. Darcy não é tão agradável como ao amigo, não achas? Pobre Eliza!, não passar de «razoável»!

- Agradecia-te que não metesses na cabeça de Lizzy de se sentir vexada por tal falta de tacto, pois ele é uma pessoa tão desagradável que seria uma infelicidade cair-lhe nas boas graças. A Sr.a Long contou-me que ele ontem à noite esteve sentado ao lado dela bem uma meia hora sem nunca despregar os lábios.

- Tem a certeza, mãe? Não haverá aí um pequeno engano? - disse Jane. - Ia jurar que vi o Sr. Darcy falar para ela.

- Sim, mas porque ela acabou por lhe perguntar se gostava de Netherfield, e ele não pôde fugir a responder-lhe; contudo, a ela pareceu-lhe que ele ficara maçado por se lhe dirigirem.

- A Menina Bingley contou-me - disse Jane - que ele não é de muitas falas, a não ser que se encontre no meio de gente muito íntima. Nessas ocasiões ele torna-se extremamente agradável.

- Não acredito em nada disso, minha querida. Se ele fosse uma pessoa de facto simpática, teria feito conversa com a Sr.a Long. Mas eu adivinho qual a razão da sua atitude. Todos dizem ser ele um poço de orgulho e quase juraria em como ele soube que a Sr.a Long não tem carruagem própria e fora para o baile numa de aluguer.

- Pouco me importa que ele fizesse conversa ou não com a Sr.a Long - disse a Menina Lucas -, mas gostava que ele tivesse dançado com a Eliza.

- Na próxima vez, Lizzy - disse-lhe a mãe - se fosse a ti não dançava com ele.

- Pode ter a certeza, mãe, que nunca dançarei com ele.

- O seu orgulho - disse a Menina Lucas - não «me» indigna tanto como qualquer outro o faria, pois ele é, de certo modo, desculpável. Não admira que homem tão belo, de óptimas famílias, rico e com tudo a seu favor tenha um elevado conceito de si próprio. Se é que me posso exprimir assim, ele tem o «direito» de se sentir orgulhoso.

- Tens toda a razão no que dizes - replicou Elizabeth -, e eu seria a primeira a fechar os olhos ao «seu» orgulho, se ele não tive ,se ferido o «meu».

- O orgulho - observou Mary, que se vangloriava da solidez das suas reflexões - é um defeito muito vulgar, creio eu. Depois de tudo o que li, estou deveras convencida da sua vulgaridade, que a natureza humana lhe é particularmente atreita e que são raros aqueles entre nós que não nutrem um sentimento de condescendência própria baseado numa ou outra qualidade, real ou imaginária. Vaidade e orgulho são coisas diferentes, embora as palavras sejam frequentemente usadas como sinónimos. Pode-se sentir orgulho sem ser vaidoso. O orgulho diz respeito mais à opinião que temos de nós próprios, enquanto a vaidade ao que pretendemos que os outros pensem de nós.

- Se eu fosse tão rico como o Sr. Darcy - exclamou o jovem Lucas, que acompanhara as irmãs -, não me importava com o meu orgulho. Havia de ter uma matilha de cães de caça e beber uma garrafa de vinho todos os dias.

- Nessa altura beberias mais do que devias - disse a Sr.a Bennet -, e, se te visse nesses preparos, arrancava-te a garrafa das mãos.

O rapaz garantiu-lhe que ela não se atreveria; ela continuou, declarando que o faria, e a discussão só acabou com a visita.

 

As senhoras de Longbourn em breve visitaram as de Netherfield, que, na devida forma, lhes retribuíram a visita. A afabilidade da Menina Bennet continuava cativando tanto a Sr.a Hurst como a Menina Bingley, que, embora rotulassem a mãe de insuportável e as irmãs mais novas como indignas de menção, exprimiram, em atenção pelas duas mais velhas, o seu desejo de um conhecimento mais íntimo entre «elas». Jane, naturalmente, ficou extremamente sensibilizada, mas Elizabeth, que as via tratando tudo e todos com a mesma altivez, sua irmã até, decididamente não simpatizava com elas; aliás, a consideração que elas manifestavam por Jane, se de consideração se tratava, só valia enquanto resultante da influencia inspirada pela admiração do irmão. Este, na verdade, não escondia quanto a admirava, como a todos era dado ver, sempre que se encontravam; mas Elizabeth via, igualmente, como a irmã cedia à preferência que no seu espírito alimentara desde o primeiro dia em que o vira, caminhando a passos largos para o amor; contudo, era com prazer que considerava a impossibilidade de tal facto se tornar do domínio público, uma vez que Jane, aliando a uma poderosa força de sentimentos uma serenidade de temperamento e um controlo perfeito nos modos, nunca permitiria qualquer suspeita impertinente. E isto disse-o à Menina Lucas.

- Talvez seja agradável para uma pessoa - replicou Charlotte - ser capaz de, em tais casos, iludir a opinião pública; contudo, essa mesma reserva pode, por vezes, tornar-se numa desvantagem. Se uma mulher é igualmente hábil em esconder a sua afeição do objecto que a motiva, ela arrisca-se a perder a oportunidade de o cativar, e, nessa altura, de pouco consolo lhe servirá saber os outros na mesma ignorância. Na maioria dos afectos, a gratidão ou a vaidade ocupam um lugar tão eminente que se torna perigoso ignorá-los. Todos podemos «começar» espontaneamente - uma preferência é coisa naturalíssima -, mas poucos são aqueles que enveredam pelo amor sem qualquer espécie de encorajamento. Em nove de cada dez casos, seria preferível uma mulher mostrar «mais» afeição do que aquela que ela realmente sente. Bingley sem dúvida que gosta da tua irmã, mas pode perfeitamente não ir mais além, se ela não lhe der uma ajuda.

- Mas ela ajuda-o, tanto quanto a sua natureza lho permite. Se eu própria vislumbro os sentimentos que ela nutre por ele, ele é um pateta em não o descobrir também.

- Lembra-te, Eliza, que ele não conhece tão bem como tu a natureza de Jane.

- Mas, se uma mulher gosta de um homem e não faz nada para o esconder, ele tem de acabar por o descobrir.

- Talvez isso acabe por acontecer, se ele estiver junto dela o suficiente. Ora, embora Bingley e Jane se encontrem com frequência, nunca é durante muito tempo; e como, quando se vêem, é sempre no meio de muita gente, torna-se-lhes impossível aproveitar todos os momentos para conversarem um com o outro. Jane deveria, assim, aproveitar ao máximo a escassa meia hora em que ela detém a atenção dele. Quando, finalmente, estiver segura do amor dele, terá todo o vagar para, por sua vez, se apaixonar como ela bem o entender.

- Tudo isso está muito certo - replicou Elizabeth - para aqueles casos em que o que prevalece é o desejo de bem casar; e, se um dia me resolver a apanhar um marido rico, ou simplesmente um marido, creio bem que adoptarei o teu sistema. Mas não é este o caso de Jane; ela não persegue um objectivo. No ponto em que as coisas estão, ela não pode sequer estar certa da natureza dos seus próprios sentimentos, quanto mais da sua sensatez. Conheceu-o apenas há quinze dias. Dançou duas vezes com ele em Meryton, viu-o uma manhã em casa dele, e desde aí jantou quatro vezes na sua companhia. Como podes ver, não é o suficiente para ela se familiarizar com a maneira de ser dele.

- Claro que não, do modo como tu apresentes as coisas. Se ela se tivesse limitado a «jantar« com ele, talvez nada tivesse adiantado sobre ele para além do seu apetite; mas não te podes esquecer que passaram quatro serões juntos - e quatro serões ajudam muito.

- Sim, esses quatro serões deram-lhes a possibilidade de se certificarem que ambos gostavam mais do ving-un que do jogo do comércio; mas com respeito a qualquer outra característica essencial, não acredito que lhes tenha servido de muito.

- Bom - disse Charlotte -, é com todo o coração que desejo um bom êxito a Jane; e, se ela se casasse com ele amanhã, eu diria que as probabilidades de ser feliz seriam tantas quantas aquelas que se lhe ofereceriam após ela ter passado dose meses a estudar o carácter dele. A felicidade no casamento é uma questão de sorte. Por mais profundo que seja o conhecimento mútuo ou identidade entre as partes interessadas antes do enlace, em nada contribui para a felicidade. Há sempre, depois, uma disparidade de feitios suficiente para lhes assegurar a cada um a sua dose de mortificação; e, sendo assim, quanto menos se conhecerem os defeitos daquele com quem se vai passar o resto da vida, tanto melhor será.

- Tu divertes-me, Charlotte, mas nada disso lógico. Tu própria reconheces á sua impraticabilidade e que no teu caso nunca agirias assim.

Ocupada em observar as atenções do Sr. Bingley para com sua irmã, Elizabeth estava longe de suspeitar que ela própria se tornara num objecto de certo interesse aos olhos do amigo. O Sr. Darcy, a princípio, fora quase com relutância que lhe admitira uma certa beleza; no baile olhara para ela sem admiração e na vez seguinte olhou-a apenas para a criticar. Porém, ainda mal ele se certificara a si e aos amigos da quase inexistência de um traço bonito naquela cara, quando começou a achá-la invulgarmente inteligente pela bonita expressão dos seus olhos pretos. A esta descoberta sucederam-se outras igualmente desconcertantes. Embora de um olho crítico tivesse detectado mais de uma falha de simetria perfeita na forma do seu corpo, era forçado a reconhecer-lhe uma figura airosa e agradável; e, apesar de considerar os seus modos muito aquém dos do mundo elegante, cativaram-no pela sus graciosidade simples. De nada disto ela se apercebia; para ela, ele não passava de um homem antipático, um homem que não a achara suficientemente atraente para dançar.

Ele começou a sentir em si o desejo de a conhecer melhor, e, como primeiro passo para conversar com ela, passou a assistir ás conversas dela com os outros. Tal atitude chamou a atenção de Elizabeth, encontravam-se eles, então, em casa de Sir William Lucas, onde se reunia um numeroso grupo de pessoas.

- Que pretenderá o Sr. Darcy - disse ela a Charlotte - ao escutar a minha conversa com o coronel Forster?

- É essa uma pergunta a que só o Sr. Darcy poderá responder.

- Mas, se ele o torna a fazer, garanto-te que lhe direi na cara que sei bem o que pretende. Ele tem uma maneira de olhar bastante irónica, e, se não começo eu por lhe mostrar a minha insolência, em breve ficarei aterrorizada por ele.

Como nesse preciso momento ele se dirigia para elas, embora sem mostrar qualquer intenção de abrir a boca, a Menina Lucas incitou a amiga a falar-lhe no assunto, com o que Elizabeth, sentindo a provocação, se voltou para ele e disse-lhe:

- Não é sua opinião, Sr. Darcy, que me exprimi invulgarmente bem, quando, há pouco, atormentava o coronel Forster para nos dar um baile em Meryton.

- Com grande energia; mas é esse um assunto que torna qualquer senhora enérgica.

- O senhor é severo para connosco.

- Em breve será a vez «dela» de ser atormentada - disse a Menina Lucas -; vou abrir o piano, Eliza, e sabes perfeitamente o que se segue.

- És uma estranha criatura para ser amiga de alguém! Sempre a fazer-me tocar e cantar em frente de todos e de qualquer! Se a minha vaidade fosse voltada para a música, serias inestimável, mas, como não é o caso, preferia não me evidenciar perante aqueles que devem estar habituados a executantes da mais alta craveira. - Contudo, como a menina Lucas insistisse, ela acrescentou: - Muito bem; se assim tem de ser, que o seja. - E, olhando com um ar sério para o Sr. Darcy: - Há um velho ditado que todos nós conhecemos e que diz: «Guarda o teu fôlego para resfriares o caldo», e eu guardarei o meu para entoar a minha canção.

A actuação de Elizabeth foi agradável, embora de modo algum excelente. Depois de uma canção ou duas, e antes que pudesse responder à insistência das várias pessoas para ela cantar de novo, o lugar ao piano foi avidamente ocupado pela sua irmã Mary, que, em consequência da sua fealdade, se aplicara na árdua aquisição de conhecimentos e dotes, vivendo na ânsia constante de os exibir.

Mary não tinha nem talento nem gosto; e, embora a vaidade lhe tivesse dado aplicação, emprestara-lhe também um tal ar de superioridade e afectação nos modos que por si só prejudicariam um grau de perfeição mais elevado que o que ela atingira; Elizabeth, que não tocava tanto como a irmã, prendera muito mais a atenção. Mary, após um longo concerto, e como paga de todo o elogio e gratidão, atacou alegremente árias escocesas e irlandesas, a pedido das irmãs mais novas, que, com algumas das Meninas Lucas e assistidas por dois ou três oficiais, formaram um pequeno grupo de dança numa das extremidades do salão.

Perto deles encontrava-se o Sr. Darcy, criticando-os intimamente por tal modo de passar a noite, em detrimento de toda e qualquer espécie de conversa; e tão embrenhado estava nos seus pensamentos que não deu pela presença junto de si de Sir William Lucas senão quando este lhe disse:

- Que encantador divertimento este para os jovens, Sr. Darcy! Não há nada como a dança, no fundo; considero-a até um dos principais requintes das sociedades cultas.

- Perfeitamente de acordo, meu senhor; e tem também a vantagem de estar em voga entre as sociedades menos cultas do mundo. Qualquer selvagem sabe dançar.

Sir William apenas sorriu:

- O seu amigo dança maravilhosamente - continuou ele após uma pausa, ao ver Bingley juntar-se ao grupo -; e não duvido de que até o senhor seja um adepto de tal arte, Sr. Darcy.

- Viu-me dançar em Meryton, creio eu.

- Sim, de facto, e não foi sem um certo prazer que o fiz. Dança com frequência em St. James?

- Nunca, meu senhor.

- Não acha que seria um acto lisonjeador para com tal local?

- É esse um lisonjeio que, sempre que posso, evito fazer a um local, seja ele qual for.

- Tem uma casa na capital, segundo deduzi?

O Sr. Darcy curvou-se em sinal de assentimento.

- Tive em tempos a intenção de me fixar na capital, também, pois tenho uma predilecção pela alta sociedade; mas não tinha a certeza que Lady Lucas se desse bem com os ares de Londres.

Fez uma pausa, na esperança de uma resposta, mas o seu companheiro não estava disposto a dar-lha; e, como nesse momento Elizabeth passava por eles, ocorreu-lhe de súbito a ideia de um gesto deveras galanteador, e chamou-a.

- Querida Menina Eliza, porque não dança? Sr. Darcy, permita-me que lhe apresente esta jovem senhora como um par desejável. Não se recusará a dançar, creio eu, perante tanta beleza. - E, pegando na mão dela, deu-a ao Sr. Darcy, que, apesar de extremamente surpreendido, fez menção de lhe pegar, quando Elizabeth de pronto a retirou e, numa certa agitação, disse para Sir William:

- Por Deus, meu caro senhor, não tenho qualquer intenção de dançar. Peço-lhe que não pense que passei por aqui apenas em busca de um par.

O Sr. Darcy, compenetrado e correcto, pediu-lhe que lhe desse a honra de dançar, mas em vão. Elizabeth estava decidida, e nem Sir William a conseguiu persuadir do contrário.

- Tem uma maneira tão bonita de dançar, Menina Eliza, que é cruel da sua parte negar-me a felicidade de a apreciar; e, embora este cavalheiro, de um modo geral, despreze tal divertimento, tenho a certeza de que não se oporá a entreter-nos durante uma escassa meia hora.

- O Sr. Darcy é de uma delicadeza sem limites - disse Elizabeth, sorrindo.

- É-o, de facto, mas, tendo em vista o incentivo, querida Menina Eliza, não nos podemos admirar da sua condescendência; pois que teria ele a dizer sobre tal par?

Elizabeth deitou um olhar malicioso e afastou-se. A sua resistência não feriu o cavalheiro; estavas ele precisamente a pensar nela, quando foi abordado pela Menina Bingley.

- Penso adivinhar qual o assunto de meditação tão profunda.

- Creio bem que não.

- Estava a pensar que insuportável não seria ter de passar mais de uma noite assim... com tal gente; e, na verdade, estou plenamente de acordo consigo. Nunca me senti tão aborrecida! A insipidez, e não obstante a algazarra: a nulidade, e não obstante a presunção de toda esta gente! O que eu não daria para o ouvir a si censurá-los.

- Está redondamente enganada, asseguro-lho. Pensava em coisas bem mais agradáveis. Meditava, por exemplo, no imenso prazer que um par de lindos olhos na cara de uma mulher bonita podem conceder.

A Menina Bingley, imediatamente fixando os olhos na cara dele, desejou saber a que senhora se devia a honra de lhe inspirar tais reflexões. O Sr, Darcy, intrépido, replicou:

- A Menina Elizabeth Bennet, - A Menina Elizabeth Bennet! - repetiu a Menina Bingley.

- Estou deveras espantada. Desde quando ocupa ela o lugar de favorita? E, diga-me, quando o devo felicitar?

- Era exactamente a pergunta que esperava que me fizesse. A imaginação de uma senhora é de uma rapidez fantástica; é um instante enquanto salta de admiração para amor, e de amor para matrimónio. Sabia que faria a gracinha de me felicitar.

- Bom, se é com tal seriedade que encara o assunto, considerá-lo-ei definitivamente arrumado, Terá, na verdade, uma sogra encantadora, e, naturalmente, ela passará a vida em Pemberley.

Ele escutou-a numa indiferença total e durante tanto tempo quanto ela lhe aprouve alongar-se sobre o assunto; e, como essa sua tranquilidade a convencesse de que nada estava perdido, a Menina Bingley deu livre curso à sua ironia.

 

A fortuna do Sr. Bennet consistia quase exclusivamente de uma propriedade que lhe rendia duas mil libras anuais, e que, infelizmente para suas filhas, na falta de herdeiro varão, se vinculava num parente distante.

A de sua mulher, por seu lado, embora suficiente para a sua situação na vida, nunca substituiria convenientemente a falta da do marido, O pai da Sr.a Bennet, que desempenhara as funções de delegado de procuração em Meryton, deixara-lhe quatro mil libras. Ela tinha uma irmã casada com um tal Sr. Philips, antigo secretário de seu pai, e que lhe sucedera nas funções, e um irmão estabelecido em Londres num respeitável ramo de actividade comercial.

A localidade de Longbourn distava apenas uma milha de Meryton, uma distância perfeitamente adequada para as raparigas, que geralmente se tentavam a transpô-la três ou quatro vezes por semana, quer em atenção para com sua tia, como para visitar a loja de chapéus, precisamente do outro lado da rua. As duas mais jovens, Catherine e Lydia, eram as mais dadas a este género de atenções. Mais fúteis que suas irmãs, quando nada tinham em que se ocupar, uma ida a Meryton preenchia-lhes a manhã e fornecia-lhes conversa para o serão, e, por muito pouco fértil que a região fosse em novidades, elas sempre arranjavam maneira de saber alguma através da tia. Presentemente encontravam-se, aliás, bem fornecidas, tanto de novidades, como de uma alegria esfuziante, graças à chegada recente de um regimento da milícia. O regimento deveria permanecer em Meryton todo o Inverno, e aí estabelecera o seu quartel-general.

As visitas à Sr.a Philips redundavam agora numa superabundância de informações das mais interessantes. Cada dia trazia algo de novo para o seu conhecimento dos nomes dos oficiais e suas relações. Os seus alojamentos já não constituíam segredo, acabando por travar conhecimento com os próprios oficiais. O Sr. Philips visitara-os a todos, e deste modo abriu às suas sobrinhas o caminho para uma felicidade desconhecida até então. Não falavam de outra coisa senão nos oficiais; e a fortuna do Sr. Bingley, que a simples alusão animava sua mãe, nada era aos olhos de Catherine e Lydia quando comparada àqueles belos uniformes.

Uma manhã, após ter escutado as efusões das filhas sobre o assunto, o Sr. Bennet, friamente, observou:

- Pelo que concluo da vossa conversa, vocês devem ser as duas raparigas mais tolas do pais. De algum tempo para cá que já o suspeitava, mas estou agora plenamente convencido.

Catherine ficou embaraçada e não respondeu; mas Lydia, com perfeita indiferença, continuou exprimindo a sua admiração pelo capitão Carter e a esperança de ainda se avistar com ele nesse dia, pois na manhã seguinte ele partiria para Londres.

- Estou deveras surpreendida, meu caro - disse a Sr.a Bennet -, pela prontidão com que o senhor classifica de tolas as nossas filhas. Se eu desejasse criticar os filhos de alguém, não escolheria decerto os meus.

- Se as minhas filhas são tolas, espero poder dar sempre por isso.

- Sim, mas acontece que elas até são todas muito espertas.

- É esse o único ponto de que me gabo de discordar de si. Sempre diligenciei por uma paridade de opiniões entre os dois, mas devo diferir de si o bastante para considerar as nossas duas filhas mais novas como invulgarmente imbecis.

- Meu caro Sr. Bennet, o senhor não pode esperar que raparigas como elas tenham o bom senso dos seus pais. Quando atingirem a nossa idade, creio bem que pensarão tanto em oficiais como nós hoje em dia o fazemos. Recordo-me perfeitamente do tempo em que também eu estremecia perante um belo uniforme... e, na verdade, ainda hoje os admiro; e, se um jovem e brilhante coronel, com rendimentos superiores a cinco ou seis mil libras, se interessasse por alguma das minhas filhas, não lhe diria que não; aliás, rio outro dia, em casa de Sir William, achei o coronel Forster muito elegante no seu uniforme.

- Mãezinha - exclamou Lydia -, a tia contou-nos que o coronel Forster e o capitão Carter já não visitam com tanta frequência A Menina Watson como a princípio o faziam; ultimamente têm-nos visto na biblioteca Clark.

A Sr.a Bennet foi impedida de responder pela entrada de um criado com um bilhetinho para a Menina Bennet, provinha de Netherfield e o criado aguardava uma resposta. Os olhos da Sr.a Bennet brilharam de prazer, e, ansiosa, implorava, enquanto a filha lia:

- Então, Jane, de quem é? De que trata? Que diz ele? Então, Jane, despacha-te e conta-nos lá; despacha-te meu amor.

- É da Menina Bingley - disse Jane, e passou a lê-lo em voz alta:

 

         Minha querida amiga,

Se a sua compaixão não a trouxer a jantar comigo e com Louisa, correremos o risco de nos detestarmos o resto de nossas vidas, pois um tête-à-tête de um dia inteiro entre duas mulheres nunca acaba sem uma discussão. Venha logo que puder. O meu irmão e os outros senhores jantam com os oficiais. Sua dedicada,

                             Caroline Bingley

 

- Com os oficiais! - exclamou Lydia. - Espanta-me que a tia nada nos tenha dito.

- Jantam fora - Disse a Sr.a Bennet -, que pouca sorte.

- Posso levar a carruagem? - disse Jane.

- Não, minha querida, é melhor ires a cavalo, pois parece-me bem que vai chover; e nessa altura terás de passar lá a noite.

- Seria esse um bom ardil - disse Elizabeth -, se a mãe tivesse a certeza de que elas não se oferecem para a mandar pôr a casa.

- Oh!, mas acontece que os cavalheiros precisam da carruagem do Sr. Bingley para irem a Meryton e os Hurst não têm cavalos próprios.

- Eu preferiria ir de carruagem.

- Mas, minha querida, estou certa de que o teu pai não poderá dispensar os cavalos. Eles são precisos na fazenda, não é verdade, Sr. Bennet?

- São mais as vezes que preciso deles do que as vezes que os tenho ao meu dispor.

- Mas, se exactamente hoje dispuser deles - disse Elizabeth -, o pai irá ao encontro dos desejos da mãe.

E assim ela acabou por conseguir do pai a confirmação de que os cavalos não estavam livres. Jane viu-se deste modo obrigada a ir a cavalo, e sua mãe acompanhou-a à porta com muitos e animados prognósticos de um mau tempo. As suas esperanças foram realizadas, e ainda não havia muito que Jane os deixara, quando desabou uma chuva torrencial. As irmãs ficaram um tanto preocupadas, mas a mãe regozijava. A chuva continuou pela noite dentro, sem parar; decerto que Jane não poderia regressar.

- Foi uma óptima ideia, a que eu tive, não?! - disse a Sr.a Bennet mais de uma vez, como se o facto de chover só a ela se devesse. Só na manhã seguinte, contudo, ela se inteirou do êxito completo do seu estratagema. Terminavam o seu pequeno-almoço quando um criado de Netherfield chegou com o seguinte bilhetinho para Elizabeth:

 

         Minha querida Lizzy,

Não me sinto nada bem esta manhã, o que, suponho eu, se deve atribuir à molha que ontem apanhei. As minhas bondosas amigas não querem ouvir-me falar em regressar a casa senão quando me sentir completamente restabelecida. Insistem também para que o Sr. Jones me examine - por isso, não se assustem se ouvirem dizer que ele foi chamado por minha causa -, e, à parte da garganta inflamada e uma dor de cabeça, nada mais há que ofereça motivos de preocupação.

                             A tua, etc.

 

- Então, minha querida - disse o Sr. Bennet, quando Elizabeth terminou a leitura do bilhete -; Se a sua filha tombasse gravemente doente, ou morresse até, serviria de consolação saber que tudo fora em perseguição do Sr. Bingley, e sob as suas ordens.

- Oh! Não tenho qualquer receio de que ela morra. Não se morre de pequeninas e insignificantes constipações. Além disso, dispensar-lhe-ão todos os cuidados. Desde que ela por lá fique, está tudo muito bem. Gostaria de ir visitá-la, caso possa dispor da carruagem.

Elizabeth, contudo, que se sentia deveras aflita com o estado da irmã, estava ansiosa por ir para junto dela, mesmo na falta da carruagem; e, como não montava, ir a pé era a única alternativa que se lhe oferecia, participando desde logo a sua resolução.

- Que ideia a tua - exclamou a mãe -; com toda esta lama! Não se poderá olhar para ti, quando lá chegares.

- Não é para me verem que eu lá vou. Jane é o meu único propósito.

- Tratar-se-á de um subterfúgio, Lizzi - disse-lhe o pai -; para que eu peça os cavalos?

- De maneira nenhuma. Não tenciono fugir à caminhada. A distância de nada vale quando se tem um motivo, e, aliás, não passam de três milhas. Estarei de regresso para jantar.

- Admiro a energia da tua benevolência - observou Mary -, mas todo o impulso afectivo deve ser guiado pela razão; e, na minha opinião, o esforço deveria estar sempre em proporção com o que é requerido.

- Nós acompanhamos-te até Meryton - disseram Catheryne e Lydia. Elizabeth concordou, e as três raparigas partiram juntas.

- Se nos apressarmos - disse Lydia enquanto caminhavam -, talvez ainda possamos ver o capitão Carter antes de ele partir.

Em Meryton separaram-se: as duas mais novas tomaram a direcção dos alojamentos de uma das mulheres dos oficiais e Elizabeth continuou sozinha, através dos campos e num passo apressado, transpondo vedações e saltando charcos com uma energia impaciente. Finalmente, achou-se à vista da casa. Tinha os pés dormentes, as meias enlameadas e um rosto afogueado pelo exercício.

Introduziram-na na saleta do pequeno-almoço, onde todos, com a excepção de Jane, se encontravam reunidos, e onde a sua aparição suscitou grande surpresa. Que ela se tivesse aventurado a percorrer sozinha três milhas, a uma hora tão matinal e por um tempo tão feio, era coisa quase inacreditável para a Sr.a Hurst e para a Menina Bingley; e Elizabeth convenceu-se de que elas a desprezavam por isso. Receberam-na contudo, com toda a delicadeza; e na atitude do irmão havia mais do que simples delicadeza, havia bondade e boa disposição. O Sr. Darcy pouco disse e o Sr. Hurst não abriu a boca. Aquele dividia-se entre a admiração pelo esplendor que o exercício imprimira na tez dela e uma certa dúvida quanto à ocasião justificando a sua vinda até tão longe. Quanto ao outro, apenas pensava no pequeno-almoço interrompido.

As respostas por ela obtidas às perguntas sobre a irmã estavam longe de a satisfazer. A Menina Bennet passara mal a noite, e, embora a pé, tinha bastante febre e não se atrevera a deixar o quarto. Elizabeth agradeceu que a levassem imediatamente para junto dela; e Jane, que, receando causar alarme ou transtorno, se coibira de, no seu bilhetinho, exprimir quanto desejava tal visita, ficou encantada ao vê-la entrar. Não se sentia, contudo, na disposição para grandes conversas, e, quando a Menina Bingley as deixou sós, pouco mais tentou para além de exprimir a sua gratidão pela extraordinária bondade com que estava sendo tratada. Elizabeth, silenciosa, rodeava-a de cuidados.

Terminado o pequeno-almoço, as irmãs juntaram-se-lhes, e Elizabeth sentiu despertar em si uma certa simpatia por elas, por ver com que afeição e solicitude tratavam Jane. O boticário chegou, e, tendo examinado a sua paciente, declarou, como já se supunha, que ela apanhara um forte resfriamento, devendo proceder-se de modo a atalhá-lo sem demora; aconselhou-a a recolher de novo ao leito e receitou-lhe alguns medicamentos. O seu conselho foi prontamente acatado, pois os sintomas de febre aumentavam e a dor de cabeça tornara-se quase insuportável. Elizabeth não abandonou o quarto da irmã e as outras duas senhoras também pouco se ausentaram, o que era, aliás, compreensível, pois, uma vez os cavalheiros fora de casa, elas nada tinham que fazer.

Quando o relógio bateu as três, Elizabeth sentiu que devia partir, e, muito contra vontade, participou a sua intenção. A Menina Bingley ofereceu-lhe a carruagem e ela apenas esperava um pouco mais de insistência para a aceitar, quando Jane testemunhou tal inquietação por se separarem que a Menina Bingley se viu forçada a converter o oferecimento da carruagem num convite para ficar em Netherfield o tempo que fosse preciso. Elizabeth agradeceu, reconhecida, e imediatamente um criado foi enviado a Longbourn para levar à família o conhecimento da sua estada, e, de regresso, trazer alguma roupa.

 

Por volta das cinco horas, as duas senhoras retiraram-se, para se vestir, e às seis e meia Elizabeth foi chamada para jantar. às perguntas que, ditadas pelas boas maneiras, sobre ela choveram, e entre as quais teve o prazer de distinguir a sincera solicitude do Sr. Bingley, não pôde, contudo, dar uma resposta favorável. Jane não se encontrava de modo algum melhor. As irmãs, ao ouvirem-na repetiram por três ou quatro vezes quanto isso as entristecia, que terrível era uma constipação, e como elas próprias detestavam adoecer; porém, passado esse momento, não mais voltaram a tocar no assunto, e a sua indiferença por Jane quando não na presença dela restituiu a Elizabeth toda a sua antipatia original.

O irmão era, de facto, o único que ela encarava com alguma complacência. A sua ansiedade por Jane era evidente e as atenções que ele lhe dispensava a ela própria bastante agradáveis, pois que a impediam de se sentir uma intrusa, como ela acreditava ser considerada por todos os outros. Só ele parecia dar pela sua presença. A Menina Bingley estava absorvida no Sr. Darcy e a irmã pouco menos que isso; quanto ao Sr. Hurst, ao lado de quem Elizabeth se sentava, não passava de um indolente, que vivia apenas para comer, beber e jogar às cartas, e que, descobrindo que ela preferia um prato simples a um bom guisado, nada mais encontrou para lhe dizer.

Terminado o jantar, Elizabeth voltou imediatamente para junto de Jane, e, mal ela saiu da sala, a Menina Bingley começou a criticá-la. Classificou as suas maneiras de rudes, um misto de orgulho e impertinência; e que ela não tinha nem conversa, nem estilo, nem gosto, nem beleza sequer. A Sr.a Hurst era da mesma opinião e acrescentou:

- Ela não tem, em resumo, nada que a recomende, excepto ser uma óptima caminhante. Nunca esquecerei como ela nos apareceu esta manhã. Quase parecia uma rústica.

- Tens razão, Louisa. Eu mal me podia conter. Que disparate vir assim! Qual a necessidade de alvorar por esses campos fora, apenas porque a irmã se constipou? E o cabelo dela, que emaranhado ele vinha.

- Sim, e o saiote, reparaste nele? Sujo de lama até uma altura de, pelo menos, seis polegadas. Ela bem o tentava esconder com o vestido, mas sem grande êxito.

- O retrato que nos ofereces pode ser muito exacto, Louisa - disse Bingley -, mas a mim pouco me diz. Achei a Menina Elizabeth Bennet deveras encantadora, quando ela nos apareceu na saleta, esta manhã. Quanto ao saiote enlameado, nem sequer dei por ele.

- Mas estou certa de que o Sr. Darcy reparou nele, não reparo? - disse a Menina Bingley -, e quer-me parecer que o senhor não gostaria de ver «sua irmã» fazer tal exibição.

- Claro que não.

- Percorrer três, quatro ou cinco milhas, ou lá o que é, com lama pelos tornozelos e completamente sozinha! Que quereria ela com isso? A mim, parece-me tal atitude revelar uma independência abominável e presunçosa, além de uma total indiferença provinciana pelo decoro.

- Revela um afecto por sua irmã digno de menção - disse o Sr. Bingley.

- Receio bem, Sr. Darcy - observou a Menina Bingley num sussurro -, que esta aventura tenha de certo modo afectado a sua admiração pelos seus lindos olhos.

- De maneira nenhuma - replicou ele -, estavam, graças ao exercício, mais brilhantes do que nunca.

Seguiu-se uma pequena pausa, e a Sr.a Hurst tornou de novo:

- Tenho a maior consideração por Jane Bennet, pois ela é, de facto, uma rapariga amorosa, e é do coração que a desejo bem instalada na vida. Contudo, com uns pais como os dela, e de relações tão insignificantes, receio bem que não o venha a conseguir.

- Creio ter-te ouvido dizer que o tio delas é delegado de procuração em Meryton.

- Sim; e têm ainda um outro, que vive algures perto de Cheapside.

- É admirável - acrescentou a irmã, e ambas riram com gosto.

- Mesmo que ela tivessem tios em quantidade que enche se todo o Cheapside - exclamou Bingley -, não seria isso que as tornaria menos encantadoras.

- Mas deve diminuir lhes consideravelmente as probabilidades de se casarem com algum homem de destaque - replicou Darcy.

Bingley não deu qualquer resposta, mas as irmãs concordaram vivamente, gracejando durante algum tempo à custa das relações plebeias da sua querida amiga.

Foi, no entanto, com renovada ternura que se dirigiram ao quarto dela, e aí permaneceram até serem chamadas para o chá. O estado de Jane inspirava ainda sérios cuidados e Elizabeth não deixou a sua cabeceira senão muito tarde, quando, vendo-a a dormir, resolveu, mais por dever que por outra coisa, descer até à sala. Quando entrou, encontrou-os a todos na mesa de jogo e imediatamente foi convidada a juntar-se-lhes, mas, receando que jogassem caro, declinou o convite e, desculpando-se com a irmã e o pouco tempo disponível, disse preferir entreter-se com um livro. O Sr. Hurst não escondeu o seu espanto.

- Diz preferir ler a jogar? - disse ele. - Que coisa estranha.

- A Menina Elizabeth Bennet - disse a Menina Bingley - tem desprezo pelas cartas. Ela é uma grande leitora, e, para além disso, nada lhe dá prazer.

- Não mereço nem tal louvor, nem tal censura - exclamou Elizabeth -; «não» sou uma grande leitora, e são muitas as coisas que me dão prazer.

- Que é com prazer que cuida de sua irmã, tenho eu a certeza - disse o Sr. Bingley -; e espero que em breve o sinta duplicar por a ver completamente restabelecida.

Elizabeth agradeceu-lhe, profundamente reconhecida, e em seguida dirigiu-se a uma mesa, em cima da qual se encontravam vários livros. O Sr. Bingley imediatamente se ofereceu para lhe ir buscar outros - todos os que a sua biblioteca pudesse dispor.

- E desejaria que a colecção fosse maior, tanto para benefício da menina como para crédito meu; mas sou um preguiçoso, e, embora não tenha muitos, tenho mais do que aqueles que alguma vez chegarei a ler.

Elizabeth assegurou-lhe que se contentaria perfeitamente com os que tinha na sala.

- Espanta-me - disse a Menina Bingley - que o meu pai tenha deixado uma colecção de livros tão pequena. Que maravilhosa biblioteca a sua de Pemberley, Sr. Darcy!

- Não podia deixar de ser boa - replicou ele -, pois ela representa o trabalho de muitas gerações.

- E, além disso, o senhor tem-na aumentado bastante pois está sempre a comprar livros.

- Numa época como a nossa, não compreendo que se descure uma biblioteca de família.

- Descurar! Tenho a certeza de que o senhor não descura nada que possa aumentar as belezas de local tão notável. Charles, quando construíres a «tua» casa, gostava que fosse aproximadamente tão bonita como Pemberley.

- Quem me dera.

- Por isso te aconselho a fazer a tua aquisição naqueles arredores e tomar Pemberley como uma espécie de modelo. Não há em Inglaterra província mais bela que o Derbyshire.

- Mas com certeza; até comprava Pemberley, se Darcy o vendesse.

- Estou só a falar de possibilidades, Charles.

- Palavra de honra, Caroline, que acho mais possível comprar Pemberley que adquirir um por imitação.

Elizabeth tinha a sua atenção tão presa no que se passava que se esqueceu do livro no regaço; pondo-o em breve definitivamente de lado, aproximou-se da mesa e, colocando-se entre o Sr. Bingley e a irmã mais velha, pôs-se a observar o jogo.

- A Menina Darcy cresceu muito desde a Primavera? - perguntou a Menina Bingley -; será que ela já está mais alta do que eu?

- Penso bem que sim. Será aproximadamente da altura da Menina Elizabeth Bennet, ou talvez mais alta ainda.

- Anseio tanto por tornar a vê-la! Nunca encontrei ninguém que me encantasse tanto. Que porte o seu, e que maneiras!... e já tão prendada para a sua idade!... toca piano divinalmente.

- Espanta-me - disse o Sr. Bingley - que as raparigas tenham paciência para se tornarem tão prendadas como todas elas o são.

- Todas elas prendadas! Meu caro Charles, que queres tu dizer?

- Sim, todas elas, creio eu. Todas elas pintam mesas, forram biombos e tecem bolsinhas. Não conheço nenhuma que não faça tudo isto, e tenho a certeza de nunca ter ouvido falar pela primeira vez de uma rapariga sem ser informado de que ela era muito prendada.

- A tua lista de dotes de alcance vulgar - disse Darcy - tem muito de verdade. A palavra é aplicada a mais de uma mulher que não a merece para além de tecer uma bolsinha ou forrar um biombo. Mas estou longe de concordar contigo na tua apreciação das mulheres em geral. De todas as que conheço, não me posso gabar de conhecer mais de meia dúzia verdadeiramente dotadas.

- Nem eu, posso afirmá-lo - disse a Menina Bingley.

- Nesse caso - observou Elizabeth -, exige bastante de uma mulher para a considerar verdadeiramente prendada.

- Assim é, de facto - disse o Sr. Darcy.

- Oh!, mas com certeza! - exclamou a sua fiel acólita. - Nenhuma se poderá considerar realmente prendada se não ultrapassar de longe a média. Uma mulher, para merecer tal qualificação, deve ter um conhecimento profundo sobre música, canto, desenho, dança e línguas modernas; e, além de tudo isto, deve possuir ainda o seu quê na maneira de se mover e estar, no tom da voz, trato e expressões, ou só merecerá a qualificação em parte.

- Tudo isto ela deve possuir - acrescentou Darcy - e a tudo isto ela deve juntar ainda algo de mais substancial, que é a prática assídua da leitura para o desenvolvimento do seu espírito.

- Por isso não admira que o senhor conheça apenas seis mulheres prendadas. Chego mesmo a duvidar que conheça alguma.

- Menospreza assim tanto o seu sexo que duvide da possibilidade de tudo isto?

- Nunca encontrei tal mulher. Nunca encontrei tanta capacidade, gosto, aplicação e elegância juntas, tal como o senhor o descreve.

A Sr.a Hurst e a Menina Bingley protestaram veementes contra a injustiça da dúvida implícita, e ambas afirmavam conhecer mais de uma mulher que correspondia à descrição, quando o Sr. Hurst as chamou à ordem, repreendendo-as severamente pela falta de atenção ao jogo que tinham na frente. Como a conversa encontrara assim o seu termo, Elizabeth pouco depois abandonou a sala.

- Eliza Bennet - disse a Menina Bingley mal a porta se fechou - é o género de rapariga que procura evidenciar-se aos olhos do sexo oposto menosprezando o seu; e creio que com a maioria dos homens ela atinge o seu fim. Contudo, na minha opinião, não passa esse de um ignóbil estratagema, um truque verdadeiramente mesquinho.

- Sem dúvida - replicou Darcy, a quem sobretudo se dirigia a observação - que existe mesquinhez em «todos» os truques empregues pela mulher para cativar. Tudo o que se assemelha a astúcia é desprezível.

À Menina Bingley não satisfez totalmente a resposta, de modo a prosseguir no mesmo assunto.

Elizabeth juntou-se-lhes de novo, apenas para lhes participar que a irmã se sentia pior e que ela não a poderia abandonar.

Bingley falou em chamar de urgência o Sr. Jones, enquanto as irmãs, certas da sua incompetência provinciana, recomendaram que se requeresse a presença de um dos médicos mais eminentes da capital. Elizabeth nada disto quis ouvir, mas não deixou, contudo, de considerar a proposta do irmão, ficando combinado que logo pela manhã se convocaria o Sr. Jones, caso no estado da Menina Bennet não se registasse uma melhoria considerável. Bingley ficou deveras preocupado e as irmãs arvoraram o seu ar mais infeliz. Elas, porém, aliviaram a sua miséria com duetos após a ceia, enquanto ele procurou o conforto nas recomendações feitas à governanta para que nada faltasse a senhora doente e à irmã.

 

Elizabeth passou grande parte da noite à cabeceira da irmã e de manhã teve a consolação de poder mandar uma resposta favorável as perguntas que, através da governanta, desde muito cedo recebeu do Sr. Bingley e àquelas feitas um pouco mais tarde pelas duas elegantes senhoras que serviam as irmãs. Apesar das melhoras, contudo, pediu que um bilhetinho seu fosse enviado a Longbourn, no qual requeria a presença de sua mãe junto de Jane, para que ela própria desse o seu parecer sobre o estado da filha. O bilhete foi imediatamente expedido e o seu conteúdo realizado sem demora. A Sr.a Bennet, acompanhada pelas duas filhas mais novas, chegou a Netherfield logo após o pequeno-almoço dos senhores da casa.

Se acaso fosse encontrar Jane de algum modo em perigo, a Sr.a Bennet sentir-se-ia realmente aflita; mas, uma vez tranquilizada por ver que o seu estado não era alarmante, ela não nutria qualquer desejo pelo seu restabelecimento imediato, pois nessa altura a sua filha teria de deixar Netherfield. Não atendeu, por esta razão, ao pedido insistente da filha para que a levassem para casa, o que, aliás, o próprio boticário, que entretanto também chegara, terminantemente desaconselhou. Após algum tempo na companhia de Jane, com a aparecimento da Menina Bingley e a convite desta, a mãe e as três filhas seguiram-na até à salinha junto da entrada. Bingley avançou ao seu encontro, exprimindo o desejo de que a Sr.a Bennet não tivesse encontrado a Menina Bennet pior do que ela esperava.

- De facto, assim foi, meu caro senhor - respondeu a Sr.a Bennet. - Ela encontra-se muito doente para alguma vez ser levada daqui. O Sr. Jones é de opinião de que ela não pode ainda sair de casa. Teremos de abusar um pouco mais da sua bondade.

- Levá-la daqui! - exclamou o Sr. Bingley. - Nem pensar nisso. Estou certo de que a minha irmã não quererá ouvir falar em tal coisa.

- Esteja descansada, minha senhora - disse a Menina Bingley com uma delicada frieza -, que a Menina Bennet receberá todos os cuidados possíveis enquanto aqui permanecer connosco.

A Sr.a Bennet exprimiu com profusão todo o seu reconhecimento.

- E não sei o que seria dela - acrescentou - se não fosse serem tão bons amigos, pois ela está, de facto, bastante doente. Sofre muito, pobre pequena, embora com uma paciência de santa, que, aliás, não lhe é estranha, pois ela tem o temperamento mais doce que jamais me foi dado encontrar. É com frequência que digo às minhas outras filhas que elas nada se parecem com Jane. Que bonita sala a que o senhor aqui tem, Sr. Bingley, e com uma linda vista para o jardim. Não conheço nada nos arredores de idêntico a Netherfield. Não pensará deixá-lo de um instante para o outro, espero eu, embora o tenha alugado por pouco tempo.

- Tudo o que faço, é-o de um instante para o outro - replicou ele - e, se acaso resolvesse deixar Netherfield, passados cinco minutos teria provavelmente partido. De momento, contudo, considero-me praticamente instalado aqui.

- É exactamente o que eu supunha do senhor - disse Elizabeth.

- Começa a compreender-me, não é? - exclamou ele, voltando-se para ela.

- Oh!, sim!, compreendo-o perfeitamente.

- Gostaria de poder tomá-lo como um elogio, mas receio bem que essa minha transparência só seja de lamentar.

- É como é. Não se segue, necessariamente, que um caracter profundo e intricado seja mais ou menos digno de estima do que um como o do senhor.

- Lizzy - exclamou a mãe -, lembra-te de onde estás e modera a impetuosidade que te é permitida em casa.

- Não tinha ainda dado - prosseguiu Bingley imediatamente - por que se dedicasse ao estudo dos caracteres. Deve ser bastante interessante.

- Sim, mas os caracteres intricados são os que mais divertem. Têm, pelo menos, essa vantagem.

- A província - interveio Darcy - poucos assuntos fornecerá de interesse para tal estudo. Numa comunidade provinciana uma pessoa move-se num meio restrito e invariável.

- Mas as próprias pessoas modificam-se tanto que há sempre algo de novo nelas que as torna interessante e o resto de suas vidas.

- Naturalmente! - exclamou a Sr.a Bennet, ofendida pelo modo como ele falara de uma comunidade provinciana. - Asseguro-lhe que a vida social na província é quase tão intensa como na capital.

Todos se entreolharam, surpreendidos, e Darcy, após fitá-la durante algum tempo, afastou-se em silêncio. A Sr.a Bennet, que imaginava ter alcançado sobre ele uma vitória redundante, continuou em ar de triunfo.

- Por mim, não percebo que vantagem Londres possa ter sobre a província, além das lojas e os locais públicos. A província é de longe mais agradável, não acha, Sr. Bingley?

- Quando estou na província - replicou ele -, custa-me deixá-la; e quando na capital, acontece-me exactamente o mesmo. Têm cada uma as suas vantagens, e eu sinto-me igualmente feliz em qualquer uma delas.

- De acordo... e porque o senhor tem bom feitio. Mas aquele cavalheiro - olhando para Darcy - parecia não dar qualquer valor à província.

- Por Deus, mãe, está enganada - interveio Elizabeth, corando por sua mãe. - Não percebeu o que o Sr. Darcy disse. Ele apenas quis dizer que a variedade de pessoas na província é menor do que na capital, o que terá de reconhecer como um facto.

- Com certeza, minha querida, ninguém diz o contrário; mas, quanto a não haver pessoas em número nesta vizinhança, não é verdade, pois se até nos damos com vinte e quatro famílias, pelo menos.

Nada, a não ser o respeito por Elizabeth, permitia a Bingley guardar a sua serenidade. A irmã, menos delicada, olhou para o Sr. Darcy num sorriso bem expressivo. Elizabeth, procurando dizer algo que desviasse as atenções de sua mãe, perguntou-lhe se acaso Charlotte Lucas visitara Longbourn durante a sua ausência.

- Sim, apareceu ontem com o pai. Que simpático homem é Sir William, não acha, Sr. Bingley? E que bom que ele é, tão delicado e tão simples!... tem sempre uma palavra amável para todos. É a isto que eu chamo ser bem educado; e, quanto àqueles que se julgam muito importantes e nunca abrem a boca, não passam de uma fraude.

- A Charlotte jantou convosco?

- Não, pois precisavam dela em casa. Penso que por causa dos pastéis folhados. Em minha casa, Sr. Bingley, disponho sempre de criados competentes; as «minhas» filhas são educadas de modo diferente. Mas cada um é juiz de si próprio, e as Meninas Lucas são muito boas raparigas, posso-lhe garantir. E pena não serem bonitas! Não é que eu ache a Charlotte «muito» feia... e, além disso, ela é íntima.

- Pareceu-me ser uma rapariga bastante simpática.

- Oh!, claro; mas admita que é muito feia. A própria Lady Lucas o diz com frequência e inveja-me a beleza de Jane. Não gosto de gabar as minhas filhas, mas, quanto a Jane... não é todos os dias que se vêem raparigas como ela. É o que, pelo menos, toda a gente diz. Não quero confiar na minha parcialidade. Quando ela tinha apenas quinze anos de idade e a levámos a casa de meu irmão Gardiner, na capital, um senhor apaixonou-se de tal modo por ela que a minha cunhada se chegou a convencer de que ele pediria a mão dela antes de regressarmos. Contudo, ele não o fez. Talvez a tenha achado jovem de mais. Escreveu-lhe ainda uns versos, bem bonitos, por sinal.

- E assim terminou o seu amor - disse Elizabeth, impaciente. - Segundo creio, mais de um foram abafados assim. Gostava de saber quem terá descoberto a eficácia da poesia para espantar o amor!

- Fui habituado a considerar a poesia como o «alimento» do amor - opinou Darcy.

- De um amor puro, vigoroso e saudável, é possível. Tudo serve de alimento ao que já vingou. Mas, se se trata de uma inclinação ligeira e efémera, estou convencida de que um bom soneto a varre de uma vez.

Darcy limitou-se a sorrir; e na pausa que se seguiu Elizabeth tremeu com o receio de que sua mãe se expusesse de novo ao ridículo. Queria falar, mas não sabia o que dizer; e, após um curto silêncio, a Sr.a Bennet tornou a agradecer ao Sr. Bingley a bondade para com Jane, pedindo desculpa também do incómodo que Lizzy pudesse causar. O Sr. Bingley respondeu com uma delicadeza simples e obrigou a irmã a ser igualmente delicada e a dizer o que a ocasião requeria. Esta desempenhou, de facto, o seu papel sem muita convicção, mas a Sr.a Bennet deu-se por satisfeita e pouco depois pediu a carruagem. A este sinal, uma das suas filhas mais novas adiantou-se. As duas raparigas tinham passado o tempo da visita a segredarem uma à outra, e, como resultado, a mais nova teria de lembrar ao Sr. Bingley a promessa que ele fizera à chegada, de que daria um bile em Netherfield.

Lydia era uma possante e bem desenvolvida moçoila para os seus quinze anos de idade, tinha uma pele bonita e a expressão risonha; favorita de sua mãe, desde muito cedo fora apresentada na sociedade. De temperamento essencialmente primário, tinha uma espécie de auto-importância natural, que as atenções dos oficiais, angariadas tanto à custa dos esplêndidos jantares em casa do tio como pelas maneiras fáceis da rapariga, transformaram numa confiança ilimitada em si própria. Não era, portanto, de estranhar que ela se dirigisse ao Sr. Bingley a propósito do baile e, abruptamente, lhe lembrasse a promessa feita, acrescentando que seria vergonhoso se ele não a cumprisse. A resposta a este repentino ataque soou deliciosamente aos ouvidos da mãe das raparigas.

- Esteja tranquila, que não esqueci a promessa feita; e, logo que a sua irmã se restabeleça, peço-lhe o favor de indicar o próprio dia do baile. Penso que não quererá divertir-se enquanto sua irmã está de cama?

Lydia mostrou-se satisfeita.

- Oh! Claro!, será muito melhor esperar por que Jane esteja boa, e é natural que nessa altura o capitão Carter já tenha regressado a Meryton. E quando o senhor tiver dado o «seu» baile - acrescentou ela - insistirei para que eles dêem um também. Direi ao coronel Forster que é uma vergonha, se ele não o dá.

A Sr.a Bennet e as filhas partiram finalmente e Elizabeth voltou para junto de Jane, abandonando o seu comportamento e o de sua família aos comentários das duas senhoras e do Sr. Darcy. Este último, contudo, evitou censurá-la, apesar dos dichotes da Menina Bingley a propósito de «olhos bonitos».

 

O dia passou-se de modo idêntico ao anterior. A Sr.a Hurst e a Menina Bingley passaram parte da manhã junto da doente, que, embora lentamente, continuava melhorando; e, à noite, Elizabeth juntou-se-lhes na sala de estar. Desta vez, porém, apenas o Sr. Hurst e o Sr. Bingley se encontravam jogando às cartas. O Sr. Darcy escrevia e a Menina Bingley, sentada junto dele, observava os progressos da sua carta, desviando-lhe repetidamente a atenção com mensagens para a irmã. Quanto à Sr.a Hurst, assistia ao jogo dos outros dois cavalheiros.

Elizabeth pegou num pequeno trabalho de costura e entreteve-se a ouvir o que se passava entre Darcy e a sua companheira. Os constantes elogios tecidos por esta, tanto à volta da letra, como da uniformidade das linhas e comprimento da carta, e a indiferença total com que esses mesmos elogios eram recebidos, formavam um curioso diálogo, que correspondia exactamente à opinião que tinha de cada um.

- Que alegria a da Menina Darcy ao receber tal carta!

Ele nada respondeu.

- O senhor escreve invulgarmente depressa.

- Está enganada. Escrevo até bastante devagar.

- Quantas cartas não terá de escrever durante o ano! Cartas de negócio, também! Que tarefa odiosa não seria para mim!

- Considere-se, então, muito feliz por tal tarefa me dizer exclusivamente respeito.

- Por favor, diga à sua irmã como anseio tornar a vê-la.

- Já aqui o escrevi, e a seu pedido, também.

- Parece-me não estar inteiramente satisfeito com a sua pena. Deixe que eu a afie. Afio-as muito bem, sabe?

- Agradeço-lhe, mas prefiro eu fazê-lo.

- Como consegue escrever tão regularmente?

Ele guardou silêncio.

- Diga à sua irmã que fiquei encantada por saber do seu progresso na harpa; e, por favor, diga-lhe também que me extasiei perante o pequeno esboço que ela fez para uma mesa; que o acho lindo e infinitamente superior ao da Menina Grantley.

- Dá-me licença que eu guarde o seu êxtase para uma outra altura, quando tornar a escrever-lhe? De momento não tenho mais espaço para ele.

- Oh! Não tem importância. Em Janeiro estarei com ela. Mas escreve-lhe sempre cartas tão compridas e encantadoras, Sr. Darcy?

- Geralmente são compridas, mas, se são sempre encantadoras ou não, não me cabe a mim dizê-lo.

- Na minha opinião, uma pessoa que escreve uma carta comprida e com facilidade não pode escrever coisas desagradáveis.

- Tal elogio não se adapta a Darcy, Caroline - exclamou o irmão -, pois ele «não» escreve com facilidade. É com aturo que ele procura palavras de quatro sílabas. Não é verdade, Darcy?

- A minha maneira de escrever é bastante diferente da tua.

- Oh! - exclamou a Menina Bingley -, o Charles é um descuidado a escrever. Omite metade das palavras e risca o resto.

- As minhas ideias afluem com tal rapidez que não me dão tempo para as exprimir, pelo que as minhas cartas por vezes não transmitem quaisquer ideias aos meus correspondentes.

- A sua humildade, Sr. Bingley - interveio Elizabeth -, desarma a censura.

- Nada há de mais enganador - disse Darcy - que a aparência de humildade. Não passa, por vezes, de uma simples preguiça mental, ou então de uma gabarolice indirecta.

- E qual das duas me atribuis?

- A gabarolice indirecta; pois confessa que tens orgulho na tua escrita defeituosa. Considera-la como resultante de uma rapidez de pensamento e de um desleixo na execução, que tu achas, se não dignos de estima, pelo menos altamente interessantes. A faculdade de fazer qualquer coisa com rapidez é sempre muito apreciada pelo possuidor, e frequentemente sem atentar na imperfeição da execução.

Quando esta manhã disseste à Sr.a Bennet que, se alguma vez resolvesses deixar Netherfield, em cinco minutos o terias feito, estavas, de facto, tecendo uma espécie de panegírico, um elogio a ti próprio - contudo, que encontras tu de louvável numa precipitação, que necessariamente deixará assuntos importantes a tratar, e sem que represente uma vantagem real para ti ou para qualquer outro?

- Isso não - exclamou Bingley -, não relembremos senão os disparates ditos durante a manhã. Mas juro pela minha honra que acreditei ser verdade aquilo que disse sobre mim, assim como acredito neste momento. Pelo menos, não assumi o caracter de precipitação desnecessária apenas para me exibir perante as senhoras.

- Acredito na tua sinceridade; contudo, não estou de modo algum convencido de que partirias com tal celeridade. O teu comportamento na altura dependeria tanto do acaso como o de outro homem qualquer; e se, já em cima do cavalo, um amigo te dissesse: «Bingley, fazias melhor em ficar cá até à semana seguinte», tu provavelmente concordarias - provavelmente não irias - e, a outra fala, talvez ficasses um mês.

- Com isso o senhor apenas veio provar - exclamou Elizabeth - que o Sr. Bingley não fez inteira justiça ao seu temperamento. Deu-lhe agora um relevo, que ele nunca pensou em dar.

- Estou-lhe imensamente reconhecido - disse Bingley - por converter o que o meu amigo acabou de dizer num elogio à brandura do meu temperamento. Não obstante, receio bem que o esteja a encarar sob um aspecto que não é de modo algum aquele que aquele cavalheiro deseja frisar, pois ele só me aprovaria se, na dita ocasião, eu apresentasse uma recusa formal e me afastasse a toda a brida.

- Mas, nesse caso, considerará o Sr. Darcy a precipitação da sua intenção original de algum modo mitigada pela sua obstinação em aderir a ela?

- Francamente, não sei; Darcy explicar-lho-à melhor do que eu.

- A menina deseja que eu lhe apresente uma explicação para opiniões que me atribui, mas que eu não reconheço como tal. Admitindo que assim fosse, contudo, e de acordo com a sua ideia, a Menina Bennet deverá ter presente que o amigo que interpela o Sr. Bingley para este ficar e adiar os seus planos de partida apenas exprime um mero desejo, e fá-lo sem apresentar um argumento seque da sua conveniência.

- Ceder pronta e facilmente à «persuasão» de um amigo não é, por conseguinte, nenhum mérito, segundo o senhor.

- Ceder sem convicção também não abona em favor do entendimento dos dois.

- Quer-me parecer, Sr. Darcy, que o senhor não reconhece a influência da amizade e afeição. Uma certa estima pelo solicitador pode, com frequência, levar alguém a aceder prontamente à solicitação que lhe é feita, sem que para isso precise de argumentos que o convençam. Note-se que não me refiro particularmente ao exemplo que o senhor deu a respeito do Sr. Bingley. Neste caso específico, penso que o mais aconselhável seria esperar pela ocasião, e nessa altura discutir o comportamento do cavalheiro em causa. Mas, na generalidade, de amigo para amigo, em que um deles é solicitado pelo outro a modificar uma resolução de pouca importância, levaria o senhor tal pessoa a mal por aceder prontamente a esse desejo?

- Não seria aconselhável, antes de prosseguirmos no mesmo assunto, precisar tanto o grau de importância que se queira atribuir à dita solicitação, como o grau de intimidade existente entre os dois amigos?

- Mas com certeza - exclamou Bingley -, vamos a isso!... e sem esquecer o peso e a altura de cada um, pois na argumentação pesará mais do que julga, Menina Bennet. Garanto-lhe que, se o Sr: Darcy não fosse, em comparação comigo, tão alto como ele é, não o teria em tão grande estima como realmente o tenho. Confesso não conhecer pessoa mais enfadonha que Darcy em certas ocasiões e determinados lugares; particularmente na sua própria casa, e a um domingo de manhã, em que nada tem para fazer.

O Sr. Darcy sorriu, mas Elizabeth, adivinhando nele uma certa ofensa, reprimiu o riso. A Menina Bingley, por seu lado, manifestou calorosamente o seu ressentimento da afronta por ele recebida numa repreensão ao irmão pelos disparates acabados de dizer.

- Percebo qual o teu intento, Bingley - disse o amigo. - Não te agradam argumentos e pretendes agora calar este.

- Talvez tenhas razão. O argumento anda de mãos dadas com a discussão. Agradecia-lhes, por isso, que aguardassem até eu sair da sala, podendo dizer então tudo o que lhes aprouver a meu respeito.

- O que o senhor pede - disse Elizabeth - não representa qualquer sacrifício para mim; quanto ao Sr. Darcy, tem a carta por acabar.

O Sr. Darcy seguiu-lhe o conselho e acabou a carta.

Uma vez tal tarefa terminada, pediu à Menina Bingley e a Elizabeth que lhe dessem o prazer de ouvir um pouco de música. A Menina Bingley dirigiu-se com vivacidade para junto do piano; e, após delicadamente oferecer a vez a Elizabeth, que esta tão delicada mas mais sinceramente recusou, sentou-se ela própria ao instrumento.

A Sr.a Hurst veio cantar com a irmã, e, enquanto elas estavam assim ocupadas e Elizabeth folheava alguns livros de música espalhados sobre o piano, esta não pôde deixar de notar a insistência com que os olhos do Sr. Darcy a procuravam.

Custava-lhe admitir que ela pudesse constituir um objecto de admiração para tão grande homem; por outro lado, que ele olhasse para ela porque ela lhe desagradava, ainda lhe parecia mais estranho. Concluiu, finalmente, que talvez ela lhe chamasse a atenção por, de acordo com as noções dele de decoro, nele encontrar algo de mais errado e repreensível que em qualquer outra pessoa presente. Tal suposição estava, porém, longe de a ferir Não simpatizava com ele o suficiente para se preocupar com a opinião que ele pudesse formar a seu respeito.

Após ter tocado algumas canções italianas, a Menina Bingley mudou o ritmo para uma alegre ária escocesa; e imediatamente o Sr. Darcy se aproximou de Elizabeth e lhe disse:

- Não se sente seriamente tentada, Menina Bennet, a aproveitar tal oportunidade para dançar um reel*

 

*(Dança escocesa. (N. do T.)?

 

Ela sorriu, mas não respondeu. Ele repetiu a pergunta, um pouco surpreendido com o seu silêncio.

- Oh! - disse ela -, já o tinha ouvido antes, mas não me decidia sobre o que havia de lhe dizer em resposta. O senhor desejaria que eu lhe respondesse afirmativamente, de modo a ter o prazer de desprezar o meu gosto; mas deleito-me sempre em sabotar tais planos de um desdém premeditado. Resolvi, por isso, dizer-lhe que não me apetece de todo dançar um reel... e agora despreze-me, se é que o ousa.

- De facto, não o ouso.

Elizabeth, que esperara ofendê-lo, ficou espantada com a sua delicadeza. Transparecia na rapariga um misto de doçura e malícia que a impossibilitava de ofender alguém; além disso,

Darcy nunca antes se sentira tão fascinado por uma mulher. Chegava mesmo a acreditar que, não fora a inferioridade dos parentescos dela, ele estaria no perigo iminente de se apaixonar.

A Menina Bingley viu, ou suspeitou, o suficiente para sentir um certo ciúme; e a sua enorme ansiedade pelo restabelecimento da sua querida amiga Jane era de certo modo reforçada pelo desejo de se ver livre de Elizabeth.

Tentava frequentemente suscitar em Darcy o desagrado pela sua hóspede, falando-lhe do suposto casamento entre os dois e ideando a felicidade que ele iria encontrar em tal aliança.

- Espero - dizia-lhe ela quando, no dia seguinte, os dois passeavam pelo bosque - que não deixe de dar a entender à sua sogra, mal acontecimento tão desejável se realize, qual a vantagem de se manter calada; e, se é que terá poder para tanto, não se esqueça de tirar às suas cunhadas mais novas aquela mania de andarem atrás dos oficiais. E, se me permite mencionar assunto tão delicado, faça o possível por refrear o seu quê de conceito ou impertinência que a eleita do seu coração possui.

- Tem mais alguma coisa a propor para a minha felicidade doméstica?

- Oh!, claro que sim! Reserve um lugar para os retratos dos seus tios Philips na galeria de Pemberley. Coloque-os logo a seguir ao seu tio-avô, que foi juiz. A profissão é a mesma, só que a níveis diferentes. Quanto a um retrato da sua Elizabeth, aconselho-o a não o mandar pintar, pois que pintor retrataria com justiça olhos tão bonitos?

- Não seria fácil, de facto, apanhar-lhe a expressão, mas a sua cor e forma, e as pestanas tão invulgarmente delicadas e perfeitas, poderiam ser copiadas.

Neste momento encontraram-se com a Sr.a Hurst e a própria Elizabeth, provenientes de um outro caminho.

- Não sabia que também tencionavam passear - disse a Menina Bingley, numa certa confusão, receando que elas tivessem escutado a conversa.

- Trataste-nos muito mal - respondeu a Sr.a Hurst - fugindo de nós e sem nos dizer que vinhas passear.

E, tomando o braço que o Sr. Darcy tinha livre, deixou Elizabeth sozinha. O caminho dava apenas para três pessoas.

O Sr. Darcy, sentindo a falta de delicadeza das irmãs, imediatamente disse:

- Este caminho não é suficientemente largo para todos nós. Aconselho, por isso, a tomarmos a alameda.

Elizabeth, porém, que não se sentia tentada a continuar em tal companhia, respondeu sorridente:

- Não, não; deixem-se estar. Compõem um grupo tão encantador e pitoresco, que a admissão de uma quarta pessoa apenas o iria estragar. Até logo.

E partiu alegremente, acalentando em si a esperança de dentro de um ou dois dias se encontrar de novo em sua casa. Jane melhorara tanto que nessa mesma noite tencionava deixar o quarto durante algumas horas e juntar-se-lhes ao serão.

 

Quando as senhoras se separaram após o jantar, Elizabeth subiu até junto da irmã e, certificando-se de que esta se encontrava bem agasalhada, acompanhou-a até ao salão, onde ela foi acolhida pelas duas amigas no meio de manifestações de grande prazer; Elizabeth nunca as vira, de facto, tão amáveis como naquela hora que antecedeu a entrada dos cavalheiros. Sabiam realmente como conversar. Faziam a descrição de uma festa com exactidão, contavam uma anedota com humor e traçavam com espírito das pessoas das suas relações.

Porém, mal os cavalheiros entraram, Jane deixou de ser o alvo das atenções; os olhos da Menina Bingley imediatamente se fixaram em Darcy, e ainda ele não dera muitos passos quando ela encontrou algo para lhe dizer. Ele, porém, dirigiu-se directamente à Menina Bennet e congratulou-a, cortês, o Sr. Hurst fez-lhe também uma pequena vénia e pronunciou algo como estar «muito contente»; mas a prolixidade e o calor estavam reservados para a saudação do Sr. Bingley. Este transbordava de alegria e atenções. A primeira meia hora foi passada a alimentar a lareira, não fosse Jane ressentir-se da diferença de temperatura; e, a seu pedido, ela foi instalar-se no outro lado da lareira, de modo a estar mais longe da porta. Em seguida ele sentou-se junto dela e não falou quase para mais ninguém. Elizabeth, que costurava no canto oposto, assistia, deleitada, á tudo isto.

Terminado o chá, o Sr. Hurst chamou a atenção da cunhada para a mesa de jogo - mas em vão. O Sr. Darcy inteirara-a confidencialmente de que não se encontrava com disposição para jogar, e o Sr. Hurst em breve viu até o seu pedido mais franco ser rejeitado sem qualquer cerimónia. Ela garantiu-lhe que a ninguém apetecia jogar e o silêncio de todos confirmava-o. O Sr. Hurst nada tinha, assim, em que se ocupar, e, instalando-se comodamente num sofá, preparou-se para dormir. Darcy pegou num livro e a Menina Bingley imitou-o; quanto à Sr.a Hurst, principalmente ocupada em brincar com as suas pulseiras e anéis, uma vez por outra interferia na conversa do irmão com a Menina Bennet.

A atenção da Menina Bingley estava quase tão ocupada em observar o progresso da leitura do Sr. Darcy como em ler o seu próprio livro; e constantemente lhe fazia perguntas ou olhava para a página dele. Não conseguia, no entanto, atraí-lo para uma conversa, pois ele, respondendo sucintamente às perguntas, de novo mergulhava na leitura. Por fim, praticamente exausta pelo esforço despendido em tirar algum divertimento do seu próprio livro, que ela escolhera apenas por ser o segundo volume do dele, bocejou demoradamente e disse:

- Que agradável modo de passar a noite! No fundo, não há prazer que se compare ao da leitura! Basta ver a facilidade com que uma pessoa se farta de tudo o que não seja um livro!

Quando tiver a minha casa, sentir-me-ei perdida se não dispuser de uma boa biblioteca.

Ninguém lhe respondeu. Ela bocejou, então, de novo, pôs o livro de parte e espraiou os olhos pela sala em busca de algo que a entretivesse. Ouvindo o irmão mencionar um baile à Menina Bennet, voltou-se repentinamente para ele e disse-lhe:

- A propósito, Charles, estás seriamente pensando em dar um baile em Netherfield? Aconselho-te, antes de o decidires, a auscultar os desejos das pessoas presentes, pois, ou eu me engano muito, ou para alguns de nós um baile representará mais um suplício que um prazer.

- Se te referes a Darcy - exclamou o irmão -, ele poderá retirar-se quando bem o entender; quanto ao baile, é coisa assente, e logo que Nicholls tenha arranjado as bebidas, começarei a enviar os convites.

- Apreciaria infinitamente mais os bailes - replicou ela - se eles se realizassem de outro modo e evitassem o processo habitual, que é tão enfadonho. Considero, por exemplo, que seria um acontecimento muito mais racional se em vez da dança se instaurasse a conversa por excelência.

- Seria, sem dúvida, muito mais racional, minha querida Caroline, mas nessa altura pouco se pareceria com um baile.

A Menina Bingley não respondeu, e, levantando-se, iniciou um pequeno passeio pela sala. Tinha uma figura elegante e sabia como pisar; mas Darcy, a quem esta manobra era destinada, continuava impassivelmente mergulhado na sua leitura. A rapariga, no desespero dos seus sentimentos, fez uma tentativa derradeira, e, voltando-se para Elizabeth disse:

- Menina Eliza Bennet, permita-me que a convide a seguir o meu exemplo e dar uma volta pela sala. Acredite que é deveras reconfortante, após se estar sentada durante tanto tempo na mesma posição.

Elizabeth ficou surpreendida, mas aceitou com prontidão. Quanto à Menina Bingley, o sucesso obtido no verdadeiro objectivo da sua delicadeza não foi menor; o Sr. Darcy imediatamente levantou os olhos. O seu espanto por tão desusada atenção igualava o de Elizabeth, e, inconscientemente, fechou o livro. Desde logo foi convidado a juntar-se-lhes, mas recusou-se, declarando ver apenas dois motivos para elas quererem passear pela sala e que, em qualquer dos casos, a sua presença era escusada. «Que quereria ele dizer com aquilo? Estava morta por descobrir qual a sua ideia» - e perguntou a Elizabeth se ela o entendera.

- De modo nenhum - respondeu-lhe ela -, mas pode estar certa de que ele nos reprova, e a melhor maneira de o desapontar é não tocar no assunto.

A Menina Bingley, contudo, era incapaz de desapontar o Sr. Darcy no que quer que fosse e insistiu em pedir-lhe uma explicação para os dois motivos por ele apontados.

- Não vejo qualquer inconveniente em explicar-lhos - proferiu ele, mal ela lhe deu a oportunidade de falar. - As meninas escolheram tal modo de passar a noite ou porque são confidentes uma da outra e têm assuntos particulares a discutir, ou porque têm a consciência de que passeando valorizam as vossas figuras; no primeiro caso, a minha adesão ao vosso convite interferiria cabalmente nos vossos planos; no segundo, admirá-las-ei muito melhor permanecendo sentado junto da lareira.

- Oh!, é espantoso! - exclamou a Menina Bingley. - Nunca ouvi nada de tão detestável. Que castigo haveremos de lhe dar por ousar dizer tais coisas?

- Nada de mais fácil, desde que se sinta inclinada a isso - disse Elizabeth. - Todos nós nos podemos atormentar e castigar uns aos outros. Arrelie-o, troce dele. íntima como é, deverá saber como proceder.

- Mas palavra de honra que «não« sei. Asseguro-lhe que a minha intimidade ainda não me ensinou «tal coisa». Como se se pudesse arreliar alguém temperamentalmente tão calmo e cuja presença de espírito não desarma! Não, não, sinto que por aí não lhe levaremos a melhor. Quanto a fazer troça, peço-lhe que não nos arrisquemos a troçar sem ter de quê. Disso pode o Sr. Darcy congratular-se.

- O Sr. Darcy não serve como motivo de troça! - exclamou Elizabeth. - É uma vantagem invulgar, e invulgar espero que continue, pois seria para mim uma perda inestimável contar entre as minhas relações mais de uma pessoa assim. Adoro uma boa piada.

- A Menina Bingley - interveio ele - exagerou um pouco. O mais sensato e melhor dos homens, ou, antes, a mais sensata e a melhor das suas acções, pode ser ridicularizado pela pessoa cujo principal objectivo na vida é uma boa piada.

- Não há dúvida - replicou Elizabeth - que existem tais pessoas, mas espero não ser uma «delas». Nunca ridicularizo o que é sensato e bom. A loucura, o disparate, o capricho e a incoerência, confesso que me divertem, e sempre que posso troço deles. Mas suponho que são precisamente esses os defeitos que o senhor não tem.

- Pelo contrário, ninguém está livre deles. Contudo, toda a minha vida me esforcei por evitar aquelas fraquezas que muitas vezes expõem ao ridículo uma inteligência superior.

- Como, por exemplo, e vaidade e o orgulho.

- Sim, a vaidade é uma fraqueza, de facto. Mas o orgulho, onde quer que haja uma verdadeira superioridade intelectual, o orgulho estará sempre sob uma boa orientação.

Elizabeth escondeu um sorriso.

- O seu exame ao Sr. Darcy terminou, suponho eu - interveio a Menina Bingley -; e qual o resultado a que chegou?

- Estou perfeitamente convencida de que o Sr. Darcy não tem qualquer defeito. Ele próprio o admite sem rodeios.

- Não - disse Darcy -, nunca tive tal pretensão. São bastantes os meus defeitos, mas nenhum de inteligência, espero. Quanto ao meu temperamento, não respondo por ele. É, segundo creio, pouco inteligente de mais... para a conveniência das pessoas. Não esqueço com facilidade tanto os disparates e vícios dos outros como as ofensas praticadas contra mim. Os meus sentimentos não se manifestam por dá cá aquela palha. O meu temperamento poderia talvez ser classificado de vingativo. A minha opinião, uma vez perdida, fica perdida para sempre.

- Esse é um grande defeito, na verdade! - exclamou Elizabeth. - O ressentimento implacável é uma mancha num carácter. Mas o senhor escolheu bem o seu defeito. Não consigo realmente rir-me dele. Nada tem que temer de mim.

- Creio haver em cada temperamento uma tendência particularmente má, um defeito natural, que nem a melhor educação consegue ultrapassar.

- E o seu defeito é uma propensão para odiar todas as pessoas.

- E o seu - replicou ele com um sorriso - é enganar-se, constante e propositadamente, no juízo que faz dessas pessoas.

- Vamos tocar um pouco - exclamou a Menina Bingley, cansada de uma conversa em que ela não participava. - Louisa, não te importas que acorde o Sr. Hurst?

A irmã não opôs qualquer objecção, e o piano foi aberto. Darcy, após alguns minutos de meditação, não o lastimou. Começava a sentir o perigo de prestar uma atenção demasiada a Elizabeth.

 

Na manhã seguinte, Elizabeth, com o acordo da irmã, escreveu à mãe pedindo-lhe que lhes mandasse a carruagem nesse mesmo dia. A Sr.a Bennet, porém, que contava que as filhas permanecessem em Netherfield até quinta-feira seguinte, altura em que precisamente terminaria a semana de Jane, não antevia com prazer a sua chegada prematura. A resposta não foi, por conseguinte, favorável, pelo menos aos desejos de Elizabeth, que estava impaciente por ir para casa. Mandava-lhes a Sr.a Bennet dizer que, possivelmente, não teriam carruagem antes de quinta-feira; e, em post-scriptum, acrescentava que, caso o Sr. Bingley e a irmã insistissem para permanecerem mais tempo, ela passava muito bem sem elas. Elizabeth, contudo, estava resolvida a não permanecer nem mais um dia, assim como também não esperava que lho oferecessem; e, receando, pelo contrário, que as considerassem umas abusadoras por permanecerem mais do que o tempo necessário, instou para que Jane pedisse sem demora a carruagem emprestada ao Sr. Bingley, ficando, finalmente, assente entre elas que a sua intenção de deixar Netherfield aquela manhã seria participada e o pedido feito.

A comunicação suscitou calorosos protestos, e com veemência lhes pediram que, em atenção pela doença recente de Jane, permanecessem, ao menos, mais um dia, ficando, após consentimento, a partida adiada para a manhã seguinte. A Menina Bingley, porém, rapidamente se arrependeu do oferecimento feito, pois o ciúme e a antipatia que sentia por uma das irmãs excedia muito a afeição pela outra.

Foi consternado que o dono da casa as ouviu anunciar a partida, e por várias vezes tentou persuadir a Menina Bennet da imprudência, visto ela não estar completamente restabelecida. Jane, porém, mostrava-se obstinada quando sabia ter a razão.

Quanto ao Sr. Darcy, a notícia encheu-o de alívio. Elizabeth permanecera já o tempo suficiente em Netherfield. Ela atraia-o mais do que ele desejava e a Menina Bingley, além de indelicada para com ela, massacrava-o a ele mais do que o costume. Muito sensatamente decidira tomar um cuidado especial em não deixar transparecer qualquer sinal de admiração pela rapariga, nada que a pudesse animar da esperança de, algum modo, contribuir para a felicidade dele; cônscio, portanto, de que, se tal ideia tivesse sido sugerida, da atitude dele durante o último dia dependeria a sua confirmação ou destruição. Firme no seu propósito, quase não lhe dirigiu a palavra durante todo o dia de sábado, e, se bem que uma das vezes tenham permanecido sós durante meia hora, ele, muito conscienciosamente, pegou num livro e nem sequer olhou para ela.

No domingo, após o serviço matinal, teve lugar a separação, tão desejável para a maioria. A delicadeza da Menina Bingley para com Elizabeth aumentou, então, muito consideravelmente, assim como a sua afeição por Jane; e, quando se despediram, após assegurar a última do prazer que sempre lhe daria avistar-se com ela, quer em Longbourn quer em Netherfield, e a beijar muito ternamente, ela chegou mesmo a apertar a mão à primeira. Elizabeth de todos se despediu numa boa disposição sem limites.

Uma vez em casa, não foram muito bem acolhidas por sua mãe. A Sr.a Bennet ficara muito admirada com a sua chegada, e, repreendendo-as pelo incómodo dado, fez-lhes ver o risco que Jane correra em constipar-se de novo. O seu pai, porém, embora muito lacónico nas suas manifestações de prazer, estava deveras contente por as tornar a ver; ele sentira a importância delas no círculo da família. A conversa ao serão, quando todos se reuniam, perdera muita animação e quase todo o sentido com a ausência de Jane e Elizabeth.

Encontraram Mary, como de costume, mergulhada no estudo da natureza humana, e que não perdeu tempo em enunciar lhes uma série de extractos e observações de uma moralidade cediça. Catherine e Lydia tinham novidades de espécie bem diferente a dar-lhos. Muito fora feito e muito se dissera no regimento desde a quarta-feira passada; vários oficiais tinham jantado ultimamente com o tio, um soldado fora castigado e espalhara-se a notícia do casamento próximo do coronel Forster.

 

- Espero, minha querida - disse o Sr. Bennet a sua mulher quando, na manhã seguinte, tomavam o pequeno-almoço -, que tenha destinado um bom jantar para hoje, pois parece-me bem que vamos ter um convidado.

- Que diz, meu caro? Não sei quem possa ser, ou tratar-se-á de Charlotte Lucas que nos vem visitar? Se é o caso, estou em crer que os meus jantares são sobejamente bons para ela, e como ela raramente encontra em sua casa.

- A pessoa a que me refiro é um cavalheiro.

Os olhos da Sr.a Bennet brilharam.

- Um cavalheiro! De certeza que se trata do Sr. Bingley. E tu, Jane, sem nos dizeres nada, minha tímida! Bom, terei o maior dos prazeres em ter o Sr. Bingley connosco. Mas... meu Deus! Que infelicidade! Hoje já não conseguirei arranjar peixe. Lydia, meu amor, toca a campainha. Preciso de falar imediatamente com Hill.

- Não se trata do Sr. Bingley - disse-lhe o marido -; mas de uma pessoa que nunca vi na vida.

Tal afirmação provocou o espanto geral, e ele viu-se rodeado pela esposa e cinco filhas, que ansiosamente o questionavam.

Após se ter, durante algum tempo, divertido com a sua curiosidade, deu-lhes a seguinte explicação:

- Há coisa de um mês atrás recebi esta carta que aqui tenho e há cerca de quinze dias tratei de lhe responder, pois considerei o seu assunto um pouco delicado, e, como tal, requerendo uma atenção pronta. O seu remetente é o meu primo, o Sr. Collins, aquele que, quando eu desaparecer, as poderá a todo o momento expulsar desta casa.

- Oh!, meu caro Sr. Bennet - exclamou a sua mulher -, não suporto ouvir falar em tal coisa! Por amor de Deus, não mencione tal homem. Considero tremendamente injusto que os seus bens estejam vinculados noutra pessoa, que não nas suas filhas; e pode ter a certeza de que, se isso se passasse comigo, há muito que eu teria feito alio para impedir tão repugnante medida.

Jane e Elizabeth tentaram explicar-lhe qual a razão de ser de um morgadio. Já anteriormente, e por várias vezes, o haviam feito, mas era esse um assunto que ultrapassava o entendimento da Sr.a Bennet. Esta continuava queixando-se amargamente da crueldade de um legado feito em favor de um homem com quem nada tinham que ver, quando tinham consigo cinco filhas por dotar.

- É, de facto, injusto - disse o Sr. Bennet -, mas nada impedirá o Sr. Collins de vir a herdar Longbourn. Queira, contudo, ouvir a leitura da sua carta, pois talvez a enterneça a maneira como ele se exprime.

- Não, decerto que não me enternecerei; e considero uma impertinência, uma hipocrisia até, que ele ouse escrever-lhe. Odeio a falsa amizade. Porque procura ele a reconciliação, que o seu pai antes de si abominou?

- Porque parece, de facto, ter nesse sentido alguns escrúpulos filiais, como verá.

 

Hunsford, próximo de Westerham, Kent

15 de Outubro

 

         Caro Senhor,

A incompatibilidade existente entre o senhor e o meu falecido e venerável pai sempre me inquietou bastante e desde que tive a infelicidade de o perder que acalento em mim o desejo de preencher tal abismo; contudo, detiveram-me durante algum tempo as minhas dúvidas, receando poder parecer aos olhos do mundo desrespeitar a sua memória ao reatar as relações com quem a ele sempre lhe aprouvera discordar. (- Aqui tem, Sr.a Bennet.) Estou agora, porém, decidido nesse sentido, pois, tendo sido ordenado em Easter, tive a felicidade de ser distinguido pelo patronato da Baronesa Lady Catherine de Bourgh, viúva de Sir Lewis de Bourg, cuja bondade e beneficência me elegeram para reitor desta paróquia, onde farei todo o possível por me portar à altura do respeito e reconhecimento que devo a tão ilustre senhora e executar a rigor todos os ritos e cerimónias instituídas pela Igreja Anglicana. Além de tudo o mais, como clérigo que sou, sinto como meu dever promover e espalhar a bênção da paz por todas as famílias ao alcance da minha influência; e, por esta razão, considero as minhas presentes propostas de boa vontade altamente recomendáveis, esperando que o facto de eu ser o presumível herdeiro de Longbourn seja caridosamente ignorado pelo senhor e não o leve a rejeitar o ramo de oliveira que lhe é oferecido. Não posso deixar de sentir certo pesar por, involuntariamente, vir a prejudicar as suas amáveis filhas, pelo que desde já me desculpo e lhe garanto prontificar-me a compensá-las na medida do possível - mas o futuro o dirá. Caso não oponha objecção em receber-me em sua casa, reservo-me o prazer de o visitar, a si e à sua família, na segunda-feira, 18 de Novembro, pelas quatro horas, e provavelmente abusarei da vossa hospitalidade permanecendo convosco até sábado da semana seguinte, o que para mim não terá qualquer inconveniente, visto Lady Catherine não opor obstáculo à minha ausência ocasional no domingo, desde o momento em que um outro pastor me substitua no serviço dominical. Com os meus respeitosos cumprimentos para a sua esposa e filhas, como amigo dedicado me subscrevo,

                             William Collins.

 

- Por volta das quatro horas, portanto, deveremos ter connosco este mensageiro da paz - disse o Sr. Bennet, dobrando a carta. - Tudo indica tratar-se, na verdade, de um jovem muito consciencioso e bem educado; e não tenho dúvidas de que se revelará um conhecimento valioso, sobretudo se a tal Lady Catherine for tão indulgente que o autorize a voltar outra vez.

- É de notar, contudo, um certo senso naquilo que ele diz a respeito das pequenas; e, se ele está disposto a compensá-las, não serei eu a desencorajá-lo.

- Embora não adivinhe - disse Jane - o que ele possa tencionar fazer como reparação que nos acha devida, o desejo por si só abona em seu favor.

A Elizabeth impressionara sobretudo a invulgar deferência dele por Lady Catherine e o seu propósito generoso em doutrinar, casar e acompanhar à sepultura os seus paroquianos, sempre que a ocasião o requeresse.

- Ele deve ser um excêntrico, creio eu - disse ela. - Não o entendo. É muito pomposo na maneira de escrever. E que pretenderá ele ao desculpar-se de ser o presumível herdeiro? Não nos é dado supor que ele o recusaria, se o pudesse. Será ele um homem justo e sensato, na verdadeira acepção da palavra, pai?

- Não, minha querida; não estou convencido disso. Tenho grandes esperanças de vir a achá-lo exactamente o contrário. A sua carta denuncia um misto de subserviência e auto-importância, que promete muito. Estou impaciente por o conhecer.

- Sob o ponto de vista da composição - Mary opinou -, a sua carta não me parece defeituosa. A ideia do ramo de oliveira talvez não seja inteiramente nova, porém considero-a expressa com acerto.

Para Catherine e Lydia, tanto a carta como aquele que a escrevera não ofereciam qualquer interesse. Era praticamente impossível que o primo lhes aparecesse de uniforme, e já algumas semanas tinham passado desde o tempo em que sentiam prazer na companhia de um homem que não tivesse esse atavio. Quanto à sua mãe, a carta do Sr. Collins tivera o condão de dissipar grande parte da sua antipatia por ele e preparava-se agora para o receber com uma serenidade que causava pasmo ao seu marido e filhas.

O Sr. Collins chegou na hora exacta por ele indicada e foi recebido amavelmente por toda a família. O Sr. Bennet, em verdade, pouco disse; mas, enquanto as senhoras estavam dispostas a fazer toda a conversa, o Sr. Collins, por seu lado, parecia não precisar de encorajamento, nem tencionar permanecer calado. De estatura elevada e pesadona, era homem dos seus vinte e cinco anos de idade. Arvorava um ar grave e solene e os seus modos eram muito formais. Mal se sentara, começou logo por elogiar a Sr.a Bennet pelo lindo rancho de filhas; disse ter, de facto ouvido falar muito da beleza das raparigas, mas que, no caso presente, a fama ficara muito aquém da verdade; e acrescentou não duvidar dos anseios dela em vê-las a todas, na devida altura, bem casadas. O seu galanteio não agradou especialmente a algumas das suas ouvintes, mas a Sr.a Bennet, que não regateava elogios, imediatamente respondeu:

- É muito amável, meu caro senhor; e do fundo do coração espero que assim seja, pois, de contrário, pouco terão para lhes valer. Tomam-se disposições tão estranhas.

- Refere-se, talvez, ao morgadio.

- Ah!, meu caro senhor, assim é, de facto. Terá de admitir que é um rude golpe para as minhas filhas. Não é que eu o considere a «si» o culpado, pois sei que tais coisas são fruto do acaso. É impossível traçar o destino dos bens, uma vez que estes estão constituídos em morgadio.

- Tenho a perfeita consciência, minha senhora, da privação que representará para as minhas encantadoras primas, e poderia adiantar mais sobre o assunto, mas não quero passar por atrevido ou precipitado. Posso, contudo, assegurar às jovens senhoras de que vim preparado para as admirar. De momento nada mais direi; mas, quem sabe, quando nos tivermos conhecido um pouco melhor...

Foi interrompido pelo criado chamando para jantar, e as raparigas sorriram entre si. Não eram elas os únicos objectos da admiração do Sr. Collins. A sala de entrada, a casa de jantar e toda a sua mobília foram cuidadosamente examinadas e elogiadas; e todo esse seu elogio teria agradavelmente impressionado a Sr.a Bennet, não fora a mortificante suposição de que ele olhava à sua volta como o futuro proprietário. Também o jantar, por sua vez, foi muito gabado, e ele pediu que lhe dissessem a qual das suas encantadoras primas se devia a excelência de tal cozinhado. Aqui, porém, foi rectificado pela Sr.a Bennet, que, com uma certa aspereza, o assegurou de que dispunham dos meios suficientes para garantirem um bom cozinheiro e que as suas filhas nada tinham que ver com a cozinha. Ele imediatamente lhe pediu perdão por ter incorrido no seu desagrado. Num tom de voz mais suave, ela declarou não estar de todo ofendida; mas ele continuou desculpando-se durante mais de um quarto de hora.

 

Durante o jantar, o Sr. Bennet pouco ou nada disse. Porém, quando os criados se retiraram, ele decidiu chegada a altura de conversar um pouco com o seu hóspede e abordou um assunto que ele considerava do inteiro agrado do outro, fazendo-lhe observar a sorte que ele parecia ter tido com a sua patrona. A consideração de Lady Catherine de Bourgh pelos seus desejos e o cuidado com o seu conforto pareciam, de facto, notáveis. O Sr. Bennet não poderia ter escolhido melhor. O Sr. Collins era eloquente nos seus elogios a tal senhora. O assunto revestiu-o de uma solenidade ainda maior, e, com o seu ar mais importante, assegurou que «nunca na sua vida testemunhara tal comportamento numa pessoa da alta sociedade, tal afabilidade e deferência como ele encontrava em Lady Catherine. Que ela tinha tido o amável prazer de aprovar ambas as prédicas que a ele lhe fora dada a honra de realizar na sua presença. Que já por duas vezes ela o convidara para jantar em Rosings e que ainda no sábado anterior o mandara chamar para completar o número de parceiros na sua mesa de jogo. Que Lady Catherine era considerada por muitos como senhora muito orgulhosa, mas que «ele» nela nada encontrara senão afabilidade. Que ela sempre lhe dirigira a palavra como a um outro cavalheiro qualquer, não opondo qualquer objecção a que ele se desse mais intimamente com as outras famílias da vizinhança, nem que ele ocasionalmente se ausentasse da paróquia por uma semana ou duas, de visita a parentes seus. Que ela condescendera, até, em aconselhá-lo a casar logo que a oportunidade surgisse, desde o momento em que ele escolhesse com discrição; e que uma das vezes fora visitá-lo ao seu humilde presbitério, onde aprovou todas as alterações por ele introduzidas e se dignou sugerir-lhe algumas, ela própria, umas prateleiras nos gabinetes ao cimo das escadas».

- Tudo o que nos conta é de uma correcção e delicadeza sem par - disse a Sr.a Bennet -, e estou certa de que se trata de uma mulher encantadora. É pena hoje em dia já não se encontrarem senhoras da alta tão boas pessoas como ela. Ela vive próximo do senhor?

- O jardim em que se situa a minha humilde habitação tem apenas uma azinhaga a separá-lo de Rosings Park, onde Sua Excelência reside.

- Pareceu-me ouvi-lo dizer que ela era viúva? Tem filhos?

- Apenas uma filha, a herdeira de Rosings e de uma fabulosa fortuna.

- Ah! - exclamou a Sr.a Bennet, abanando a cabeça -, trata-se, então, de uma privilegiada. E que género de rapariga é ela? É bonita?

- É uma jovem de um encanto extremo. A própria Lady Catherine diz que, sob o ponto de vista da verdadeira beleza, a Menina de Bourgh é de longe superior à mais bela do seu sexo, pois existem nela aquelas feições que distinguem a jovem de nobre ascendência. É, infelizmente, de constituição débil, o que lhe tem impedido de alcançar nos vários campos aquele grau de perfeição que de outro modo teria atingido sem dificuldade de maior, segundo me informou a senhora que superintendeu na educação dela, e que com elas continua residindo. Não deixa, porém, de ser muito amável, e com frequência se digna passar à minha humilde porta no seu pequeno faetonte puxado por garranos.

- Já foi apresentada à Corte? Não me recordo de ter ouvido o seu nome.

- O seu estado de saúde precário impede-a, infelizmente, de permanecer na capital; e, por esta razão, como textualmente o disse um dia a Lady Catherine, a Corte Britânica se viu privada do seu mais belo adorno. Sua Excelência pareceu encantada com a ideia; e, como pode calcular, é uma felicidade para mim oferecer em qualquer ocasião estes pequenos e delicados galanteios, que encontram sempre eco nas senhoras. Por mais de uma vez tenho dito a Lady Catherine que a sua encantadora filha nasceu para duquesa e que o título mais elevado, em vez de lhe conferir alguma importância, seria por ela sublimado. São estas pequenas coisas que agradam a Sua Excelência e o género de atenção a que eu me reservo o direito de lhe prestar.

- Tem toda a razão - disse o Sr. Bennet - e bendiga a sua sorte por possuir o dom de lisonjear com delicadeza. Diga-me, essas tão amáveis atenções procedem do impulso do momento, ou são o resultado de um estudo prévio?

- Elas são-me principalmente inspiradas pelo que se passa na altura, e, embora por vezes me divirta a sugerir e arquitectar elegantes elogios susceptíveis de se adaptarem a ocasiões vulgares, procedo sempre de modo a conferir-lhes um cariz tão natural quanto possível.

As expectativas do Sr. Bennet foram plenamente satisfeitas. O seu primo mostrava-se tão absurdo quanto ele o esperava e era num gozo profundo que ele o escutava, guardando simultaneamente uma expressão séria e compenetrada e, com a excepção de um olhar ou outro na direcção de Elizabeth, não partilhando do seu prazer com ninguém.

Chegada a hora do chá, contudo, a dose já fora mais do que suficiente, e o Sr. Bennet teve a satisfação de conduzir o seu hóspede de novo para a sala, e, terminado o chá, a satisfação de o convidar a ler um pouco para as senhoras. O Sr. Collins aceitou com prontidão, e um livro foi-lhe apresentado; porém, mal olhou para ele (pois tudo indicava pertencer a uma biblioteca itinerante), recuou e, desculpando-se, disse não estar no seu hábito ler novelas. Kitty olhou-o espantada e Lydia soltou uma exclamação. Outros livros lhe foram apresentados e após uma certa ponderação, escolheu os Sermões de Fordyce. Ao vê-lo abrir o livro, Lydia bocejou, e ainda ele não tinha, numa solenidade monótona, lido três páginas, quando ela o interrompeu, dizendo:

- A mãe sabe que o tio Philips tenciona despedir o Richard e que, se ele o fizer, o coronel Forster tomá-lo-á ao seu serviço? Contou-me a tia no sábado. Tenciono ir amanhã a Meryton para saber mais pormenores e perguntar se o Sr. Denny já voltou da capital.

Lydia foi mandada calar pelas suas duas irmãs mais velhas, mas o Sr. Collins, muito ofendido, pôs o livro de parte e disse:

- É com frequência que tenho notado o pouco interesse despertado nas jovens por livros de uma certa seriedade, embora escritos exclusivamente para o seu benefício. Isso espanta-me, confesso-o; pois, decerto, nada lhes oferecerá maiores vantagens do que a instrução. Mas não quero, com isso, continuar incomodando a minha jovem prima.

Em seguida, voltando-se para o Sr. Bennet, ofereceu-se como seu adversário para uma partida de gamão. O Sr. Bennet aceitou o desafio, fazendo-lhe notar que ele agira sensatamente ao deixar as raparigas entregues à sua frivolidade. A Sr.a Bennet e as filhas pediram amavelmente desculpa pela interrupção de Lydia e prometeram-lhe não tornar a verificar-se tal incorrecção, caso ele voltasse ao livro; mas o Sr. Collins, após assegurá-las de que não guardaria rancor para com a prima e que nunca consideraria o seu comportamento como uma afronta, sentou-se a outra mesa com o Sr. Bennet e preparou-se para o gamão.

 

O Sr. Collins não era exactamente o que se poderá chamar um homem sensato, e essa deficiência da natureza pouco ou nada fora auxiliada quer pela educação como pela convivência social. Grande parte da sua vida passara-a sob a orientação de um pai letrado e avarento e, embora tivesse frequentado uma universidade, conservara apenas os laços puramente necessários, sem que tivesse sabido cultivar qualquer conhecimento útil. A submissão em que seu pai o educou conferira-lhe originalmente grande humildade no trato, humildade essa que era agora poderosamente contrabalançada pela vaidade própria de um espírito fraco que vive isolado e pelos sentimentos resultantes de uma prosperidade prematura e inesperada. Um feliz acaso recomendara-o a Lady Catherine de Bourgh aquando daquela vaga em Hunsford; e o respeito que ele sentia pela elevada posição social da senhora, assim como a sua veneração por ela como sua patrona, juntamente com uma muito boa opinião de si próprio, da sua autoridade como clérigo e dos seus direitos como reitor, faziam dele uma mistura complexa de orgulho e subserviência, presunção e humildade.

Presentemente na posse de uma bela casa e de um rendimento mais que suficiente, ele decidira casar; e, ao procurar a reconciliação com a família de Longbourn, tinha em vista uma esposa, pois tencionava fazer a escolha entre as jovens primas, caso elas se mostrassem tão bonitas e simpáticas como delas corria a fama. Era este o seu plano, quando falava em dever-lhes uma reparação por lhes herdar os bens do pai; e um plano que ele considerava excelente, perfeitamente elegível e adaptável, além de mostrar da sua parte um desinteresse e uma generosidade sem limites.

Ora, o seu plano não sofreu modificação ao vê-las. A bonita cara da Menina Bennet corroborou desde logo os seus intentos, além de vir ao encontro das suas noções mais estritas sobre os direitos de prioridade; e logo na primeira noite ela foi a eleita. A manhã seguinte, contudo, trouxe uma alteração, pois no quarto de hora de tête-á-tête que com a Sr.a Bennet teve antes do pequeno-almoço, após iniciar uma conversa sobre o seu presbitério, e, naturalmente, conduzi-la à revelação das suas aspirações, de encontrar para ele uma anfitriã em Longbourn, a mãe das raparigas, entre afáveis sorrisos e encorajamentos vagos, pô-lo de sobreaviso quanto àquela mesma Jane em que ele se fixara. Que, quanto às suas filhas «mais novas», ela não poderia tomar sobre si a responsabilidade de afirmá-lo - não poderia oferecer-lhe uma resposta segura -, embora até à data não soubesse de nenhuma predisposição nesse sentido; mas que, quanto à filha mais velha, ela via-se forçada a mencioná-lo, sentia mesmo como seu dever dar-lho a entender, e o facto é que essa estava já praticamente comprometida com outrem.

O Sr. Collins tinha apenas de mudar de Jane para Elizabeth - e depressa o fez; fê-lo enquanto a Sr.a Bennet dava um jeito na lareira. Elizabeth, a seguir a Jane tanto pela idade com em beleza, sucedia-lhe naturalmente.

A Sr.a Bennet guardou a insinuação como um tesouro e, encantada, confiava que em breve teria duas filhas casadas. Quanto ao homem de quem na véspera não podia ouvir falar, tinha-o agora em grande estima e consideração.

A intenção de Lydia em visitar Meryton não fora esquecida, e as irmãs, com a excepção de Mary, concordaram em ir também. O Sr. Collins, a pedido do Sr. Bennet, servir-lhes-ia de companhia, pois este estava ansioso por se ver livre dele e ter a biblioteca à sua inteira disposição, o que não conseguira desde o pequeno-almoço, uma vez que o primo para ai o seguira e ai se preparava para ficar, teoricamente ocupado com um dos maiores volumes da colecção, mas, na prática, interpelando-o vezes sem conta a propósito da sua casa e jardim em Hunsford. Tal procedimento punha o Sr. Bennet fora de si. Na sua biblioteca tinha ele sempre garantidos o sossego e a tranquilidade; e, embora preparado, como o confiou a Elizabeth, a enfrentar o disparate e a presunção em todas es outras divisões da casa, habituara-se a encontrar ali o seu refúgio. Daí a sua pronta delicadeza em convidar o Sr. Collins a juntar-se às filhas no seu passeio. Quanto ao Sr. Collins, que em boa verdade se adequava mais a uma caminhada que a grandes leituras, mostrou enorme satisfação em fechar o seu volumoso livro e partir.

Mantendo ele, no estilo pomposo que lhe era peculiar, uma conversa destituída de todo o interesse, na qual as suas primas por mera delicadeza colaboravam, chegaram finalmente a Meryton. Uma vez ai, as mais novas deixaram de lhe prestar qualquer atenção. Os olhos delas imediatamente se puseram a percorrer a rua em busca de oficiais, e nada os faria desviar, a não ser um chapéu verdadeiramente bonito ou uma musselina que constituísse novidade nalguma montra.

Porém, a atenção de todas elas em breve se prendeu num jovem de estupendo aspecto, e que elas nunca antes tinham visto, caminhando com um oficial no outro lado da rua. O oficial era o próprio Sr. Denny, sobre cujo regresso de Londres Lydia viera informar-se, e que lhes fez uma vénia ao vê-las passar. Agradavelmente impressionadas com o aspecto do desconhecido, deitaram-se a adivinhar de quem se trataria; e Kitty e Lydia, decididas, se possível, a descobri-lo, fingindo dirigir-se à loja em frente, atravessaram a rua e alcançaram o passeio oposto, exactamente na altura em que os dois cavalheiros, que tinham voltado para trás, chegavam ao mesmo local. O Sr. Denny imediatamente meteu conversa e pediu-lhes licença para lhes apresentar o seu amigo, o Sr. Wickham, que com ele regressara na véspera da capital e sobre o qual tinha a alegria de participar que aceitara um cargo no seu regimento. Era o cúmulo, pois ao jovem só lhe faltava o uniforme para se tornar verdadeiramente irresistível. A sua aparência era toda em seu favor; de inegável beleza, os traços eram delicados, a figura garbosa e as maneiras extremamente agradáveis. Após ter sido apresentado, iniciou uma conversa pronta e fácil, que, além de perfeitamente correcta, era natural; e ainda se encontravam todos conversando agradavelmente quando o barulho de cavalos lhes chamou a atenção para Bingley e Darcy, que, nas suas montadas, desciam a rua. Ao reconhecerem as senhoras do grupo, os dois cavaleiros imediatamente se dirigiram para elas e cumprimentaram-nas, segundo as formas usuais. Bingley era quem principalmente falava e a Menina Bennet o seu principal objecto. Iam precisamente, dizia-lhe ele, a caminho de Longbourn, para indagarem sobre ela. O Sr. Darcy corroborou a frase do amigo com uma vénia, e estava tentando não fixar os olhos em Elizabeth quando aqueles subitamente se detiveram no desconhecido; e Elizabeth, surpreendendo as expressões de ambos ao encararem um com o outro, ficou pasmada com o efeito de tal encontro. Ambos mudaram de cor, um empalideceu e o outro corou. O Sr. Wickham, passados alguns instantes, levou a mão ao chapéu, cumprimento esse a que o Sr. Darcy mal se dignou retribuir. Que quereria dizer aquilo? Era impossível adivinhá-lo, mas impossível também não desejar sabê-lo.

Pouco depois, o Sr. Bingley, sem parecer, contudo, ter notado o que se passara, fez as despedidas e afastou-se com o amigo.

O Sr. Denny e o Sr. Wickham acompanharam o grupo até à porta do Sr. Philips, e aí fizeram as suas vénias, apesar da insistência de Lydia para que entrassem e apesar de a própria Sr.a Philips, assomando em grande alarido a uma das janelas da sala, secundar o convite.

A Sr.a Philips tinha sempre grande alegria em ver as sobrinhas. às duas mais velhas, porém, graças à sua ausência recente, recebeu-as com um calor especial, e estava exactamente exprimindo-lhes a sua enorme surpresa pelo seu súbito regresso a casa, do qual, visto não ter sido a carruagem do pai que as fora buscar, ela nada teria sabido, se acaso não tivesse encontrado o moço de fretes do Sr. Jones, que lhe disse não terem de enviar mais medicamentos para Netherfield, visto as Meninas Bennet já lá não se encontrarem, quando a sua atenção e delicadeza foram reclamadas pela pessoa do Sr. Collins, que Jane lhe apresentava. Ela acolheu-o no seu melhor bom-tom, que ele retribuiu mais exagerado ainda, desculpando-se pela intrusão, sem que nenhum conhecimento prévio se tivesse verificado entre eles, mas que ele esperava poder justificar pelo seu parentesco com as jovens senhoras que ele acompanhava. A Sr.a Philips ficou extasiada perante tal excesso de boa educação; mas a sua contemplação daquele desconhecido em breve foi interrompida pelas exclamações e perguntas acerca do outro, sobre o qual, contudo, ela nada contou que as sobrinhas já não soubessem, apenas que o Sr. Denny o trouxera de Londres e que ele iria desempenhar o cargo de tenente no destacamento. Disse ainda tê-lo estado a observar aquela última hora, enquanto ele por ali passeava, ocupação essa que Kitty e Lydia teriam de bom grado continuado, caso o Sr. Wickham de novo surgi-se, mas, infelizmente, ninguém mais passou àquelas janelas para além de alguns oficiais, que, comparados com o recém-chegado, não passavam agora de «indivíduos desagradáveis e sensaborões». Alguns deles jantariam com os Philips no dia seguinte e a tia prometeu-lhes convencer o marido a visitar o Sr. Wickham e convidá-lo também, caso a família de Longbourn acedesse a reunir-se-lhes logo após. Todos concordaram, e a Sr.a Philips salientou que teriam, entre outros, o sempre divertido e barulhento jogo da lotaria, seguido de uma ceia leve e reconfortante. A perspectiva de tais prazeres encheu o grupo de regozijo, que se separou numa boa disposição mútua. O Sr. Collins, ao abandonar a sala, mais uma vez se desfez em desculpas, e com infatigável delicadeza foi asseverado da sua desnecessidade absoluta.

No caminho para casa, Elizabeth contou a Jane o que ela surpreendera entre os dois cavalheiros; e, embora a reacção mais natural de Jane fosse defender um ou outro, ou ambos, caso algum deles parecesse em falta, também não encontrou explicação para tal comportamento.

Uma vez regressados, o Sr. Collins fez as delícias da Sr.a Bennet ao exprimir-lhe a sua admiração pela delicadeza e maneiras da Sr.a Philips. Afirmava ele, terminante, que, com a excepção de Lady Catherine e de sua filha, nunca lhe fora dado deparar com mulher mais elegante, pois ela não só o recebera com a maior cortesia, como também o incluíra formalmente no seu convite para o dia seguinte, se bem que nunca ela o tivesse visto antes. Era, por conseguinte, levado a supor que tal atitude se pudesse, em parte, atribuir ao seu parentesco com a família, mas que, apesar disso, nunca em toda a sua vida recebera tais provas de atenção.

 

Como nenhuma objecção veio contrariar o compromisso das jovens com a tia e todos os escrúpulos do Sr. Collins em deixar o Sr. e a Sr.a Bennet por uma única noite durante a sua visita foram firmemente repelidos, à hora adequada a carruagem conduziu-o a ele e às suas cinco primas a Meryton. Mal entraram, as raparigas foram prontamente informadas de que o Sr. Wickham aceitara o convite do tio e já ali se encontrava.

Após a informação ter sido dada e todos se terem instalado, o Sr. Collins aproveitou o ensejo para olhar à sua volta e admirar, mostrando-se de tal modo impressionado com as dimensões e a própria mobília do apartamento que declarou poder quase imaginar-se na pequena saleta de Rosings, onde, durante o Verão, a família costuma tomar o seu pequeno-almoço. Esta comparação não pareceu, a princípio, motivo para grande reconhecimento; mas, quando a Sr.a Philips foi por ele elucidada sobre o que era Rosings e quem era a sua proprietária, após ouvir a descrição de apenas uma das salas de visita de Lady Catherine e saber que só a cornija da lareira custara oitocentas libras, ela sentiu toda a força do elogio, e, nessa altura, nem a comparação com o quarto da governanta a teria ofendido.

Na descrição da grandeza de Lady Catherine e da sua luxuosa mansão, com digressões ocasionais em louvor da sua humilde habitação e dos melhoramentos que lhe estavam sendo feitos, passou ele agradavelmente o tempo, até os outros cavalheiros se lhes juntarem; e na Sr.a Philips encontrou ele uma ouvinte atenta, cuja opinião a seu respeito aumentava com o que ouvia, e a qual antegozava as delícias de uma narrativa detalhada por entre as vizinhas, mal tivesse ocasião para isso. Quanto às raparigas, que não escutavam a conversa do primo e nada tinham em que se ocupar senão desejar ardentemente os acordes de um instrumento e contemplar as figurinhas em porcelana, cópias banais delas mesmas, dispostas na cornija da lareira, aquele compasso de espera parecia-lhes bem longo. Contudo, finalmente acabou. Os cavalheiros aproximaram-se, e, quando o Sr. Wickham, por sua vez, entrou na sala, Elizabeth sentiu que não era de modo algum injustificada a sua admiração por ele, quer quando o avistara pela primeira vez, quer nas vezes em que desde então a imagem dele lhe acorreu ao pensamento. Os oficiais do destacamento formavam, em geral, um grupo bastante prestigioso e de maneias distintas, e a fina flor do grupo estava presente, mas de todos o Sr. Wickham se distinguia pela sua figura, aspecto e porte, tanto quanto eles próprios se distanciavam do tio Philips, que, de faces rubicundas e assopradas e de hálito avinhado, os introduzia na sala.

O Sr. Wickham foi o felizardo para quem quase todos os olhares femininos se voltaram e Elizabeth a felizarda junto de quem ele finalmente se veio sentar; e a facilidade e o modo agradável como ele iniciou a conversa, embora limitada à intempérie daquela noite e às probabilidades de uma estação chuvosa, fê-la reflectir quão interessante o tópico mais vulgar, insípido e cediço se podia tornar, graças à habilidade do interlocutor.

Com rivais de tal monta na disputa das atenções do belo sexo como o Sr. Wickham e os oficiais, o Sr. Collins parecia destinado a mergulhar na insignificância; das raparigas ele nada poderia esperar, mas, uma vez por outra, encontrava ainda na Sr.a Philips uma ouvinte caridosa, e, graças à sua vigilância, era por ela abundantemente fornecido de café e bolo.

Quando surgiram as mesas de jogo, ele viu chegada a ocasião de lhe retribuir as atenções, acedendo prontamente a participar no jogo do whist.

- Não estou bem a par do jogo, presentemente - disse ele -, mas terei todo o prazer em aperfeiçoá-lo, pois, na minha situação... - a Sr.a Philips mostrou-se muito reconhecida pela sua amabilidade, mas não pôde esperar por mais explicações.

O Sr. Wickham não jogava o whist, e com espontânea alegria foi acolhido na outra mesa, entre Elizabeth e Lydia. Parecia, a princípio, haver o perigo de Lydia o absorver completamente, pois ela era uma faladora inveterada, mas, como acontecia também ser uma apaixonada do jogo da lotaria, depressa se deixou envolver pelo interesse do jogo, ansiosa de mais em fazer as suas apostas e lançar os palpites, para dedicar qualquer espécie de atenção a alguém em particular. Consideradas as exigências normais do jogo, o Sr. Wickham encontrou assim a disponibilidade suficiente para dirigir a palavra a Elizabeth, que se mostrou encantada em o ouvir, apesar de não ousar esperar que lhe contassem o que mais desejava ouvir, ou seja, a história das relações entre ele e o Sr. Darcy. Não se atrevia sequer a mencionar tal cavalheiro. A sua curiosidade, porém, foi inesperadamente satisfeita. O próprio Sr. Wickham abordou o assunto. Quis saber a que distancia Netherfield se encontrava de Meryton, e, após a resposta dela, perguntou, um pouco hesitante, desde quando o Sr. Darcy ali se encontrava.

- Há cerca de um mês - disse Elizabeth; e, perante tal oportunidade, acrescentou: - Ele é o dono de extensas terras no Derbyshire, creio eu.

- Sim - replicou Wickham -; as suas propriedades são o que há de melhor. Dão-lhe um rendimento líquido de dez mil libras anuais. Não poderia ter encontrado pessoa mais apta do que eu para a informar sobre o assunto, pois estive, desde a minha infância, intimamente ligado à família dele.

Elizabeth não pôde esconder a sua surpresa.

- É muito natural que tal asserção não deixe de a surpreender, Menina Bennet, sobretudo após assistir, como provavelmente terá acontecido, à frieza que presidiu ao nosso encontro de ontem. Tem algum conhecimento íntimo do Sr. Darcy?

- Tanto quanto alguma vez o desejaria Ter - exclamou Elizabeth com ardor. - Passei quatro dias na mesma casa com ele e acho uma pessoa bastante desagradável.

- Não lhe posso dar a «minha» opinião - disse Wickham - quanto a ele ser desagradável ou não. Não estou qualificado para formá-la. Conheço-o há muito tempo e bem de mais para pretender julgá-lo com honestidade. É-me impossível ser imparcial. Porém, estou em crer que a opinião da menina sobre ele causaria o espanto geral e talvez não a ousasse exprimir tão vigorosamente em qualquer outro lugar. Aqui sempre está em família.

- Palavra de honra que não digo aqui mais do que diria em qualquer outra casa da vizinhança, excepto em Netherfield. Ele está longe de ser apreciado em Hertfordshire. O seu orgulho caiu mal entre nós. Não ouvirá dizer bem dele em parte nenhuma.

- Não posso fingir pena - disse Wickham, após uma pequena pausa - por ele ou qualquer outro não serem mais estimados do que aquilo que eles realmente merecem; mas, com ele creio bem que isso não acontece com frequência. O mundo, cego perante a sua fortuna e importância, ou assustado com o seu ar superior e imponente, vê-o apenas como ele pretende que o vejam.

- Por minha parte, apesar do conhecimento relativo que tenho dele, considero-o um homem de maus fígados.

Wickham apenas acenou com a cabeça.

- Gostava de saber - disse ele, numa outra oportunidade que teve para falar - se ele ainda se demorará muito tempo por estas paragens.

- Não faço a menor ideia; mas nada «ouvi» sobre a sua partida quando estive em Netherfield. Espero que os seus planos quanto ao destacamento não sejam afectados pela permanência dele na vizinhança.

- Oh!, não, não serei eu que me afastarei por causa do Sr. Darcy. Se ele deseja evitar-me, ele que se afaste. As nossas relações são bastante tensas e custa-me sempre um pouco encontrar-me com ele, mas não tenho outra razão especial para o evitar que não possa proclamar ao mundo inteiro, ou seja, o ressentimento de uma injustiça tremenda e uma tristeza infinda por ele ser tal como é. O seu pai, Menina Bennet, o falecido Sr. Darcy, foi um dos melhores homens que jamais existiu e o meu amigo mais sincero; e não há uma vez que eu me encontre com o actual Sr. Darcy que não sinta a dor pungente de milhares de recordações ternas. O comportamento dele para comigo foi verdadeiramente escandaloso; mas, no meu intimo, acredito poder perdoar-lhe tudo, excepto o facto de ele ter contrariado as esperanças e desgraçado a memória de seu pai.

Elizabeth viu aumentar o interesse do assunto e nele pôs todo o seu coração; contudo, a própria delicadeza nele inerente a impedia de continuar a fazer perguntas.

O Sr. Wickham abordou, então, tópicos mais gerais, como Meryton, os seus arredores e a sua sociedade, mostrando-se extremamente satisfeito com tudo o que até então lhe fora dado deparar e frisando especialmente o último com uma galanteria sóbria, mas suficientemente declarada.

- Foi a perspectiva de relações sociais constantes e de uma boa sociedade - acrescentou ele - o que constituiu o meu principal móbil ao entrar para o destacamento. Sabia de antemão que se tratava de uma unidade militar com bastante prestígio e de ambiente agradável, quando o meu amigo Denny me veio tentar ainda mais com a descrição do presente aquartelamento e das simpáticas atenções e conhecimentos excelentes que Meryton lhes proporcionara. A convivência social, confesso, é-me absolutamente indispensável. A vida tem-me desiludido e o meu estado de espírito não suporta a solidão. Necessito imperiosamente com que me ocupar e de conviver com as pessoas. A vida militar não era a que me estava destinada, mas as circunstâncias levaram-me a optar por ela. A minha vocação era o sacerdócio... para ele fui educado, e estaria agora numa situação esplêndida, não fora a má vontade do cavalheiro de quem há pouco falávamos.

- Sim?!

- É como lhe digo... o falecido Sr. Darcy havia-me legado a sucessão na paróquia mais abastada sob o seu patronato. Além de ser o meu padrinho, tinha-me na sua grande estima. Não lhe posso descrever tamanha bondade. Era desejo seu providenciar-me uma vida desafogada, e pensava tê-lo feito; porém, quando o lugar vagou, um outro o foi ocupar.

- Meu Deus! - exclamou Elizabeth -; mas como é isso possível? Em que se basearam para não acatar o seu testamento? E por que razão o senhor não procurou uma reparação legal?

- A informalidade dos termos que redigiam o legado tirou-me qualquer esperança que pudesse advir de um processo legal. Um homem de honra nunca duvidaria da intenção implícita, mas o Sr. Darcy preferiu duvidar ou considerar o texto como uma mera recomendação condicional e sustentar que eu perdera o direito a ela por extravagância, impudência, e, em suma, ou tudo ou nada. O que é certo é que o lugar vagou há dois anos a esta parte, precisamente na altura em que eu atingi a idade adequada, e que ele foi confiado a outrem; assim como também é certo que eu me não posso acusar de ter feito algo para merecer perdê-lo. Sou temperamentalmente ardente e irreflectido, e poderei, por vezes, ter talvez expresso a minha opinião «dele», e a «ele», um pouco livremente de mais. Não me recordo de nada de mais grave. Mas o facto é que somos muito diferentes um do outro, e ele odeia-me.

- Mas isso é revoltante! Ele merece ser desmascarado publicamente.

- Lá há-de chegar a altura, mas não serei eu a fazê-lo.

Enquanto conservar em mim a memória de seu pai, não ousarei desafiá-lo ou expô-lo sequer à opinião pública.

Elizabeth felicitou-o por tais sentimentos e considerou-o mais belo do que nunca ao ouvi-lo proferi-los.

- Mas quais terão sido os motivos de tal cavalheiro? - tornou ela, após uma pausa. - O que poderá tê-lo levado a agir tão cruelmente?

- Uma perfeita e decidida antipatia por mim, uma antipatia que não posso senão atribuir, em parte, ao ciúme. Tivesse o falecido Sr. Darcy gostado menos de mim, e talvez o seu filho me suportasse melhor; mas creio que o invulgar afecto de seu pai por mim sempre o irritou desde muito cedo. Ele não era homem para suportar o género de competição existente entre nós, o género de preferência que frequentemente me era dada.

- Não pensei que o Sr. Darcy se deixasse levar a tal extremo e, embora logo de princípio não tivesse simpatizado com ele, nunca o considerei sob tão tenebroso aspecto; tinha-o como desprezando o próximo, em geral, mas nunca o supus capaz de descer a vingança tão reles, a tal injustiça e a tal inumanidade como a de que deu provas!

Após alguns minutos de reflexão, contudo, ela continuou:

- Com efeito, lembro-me de o ter ouvido, um dia, em Netherfield, gabar-se da implacabilidade dos seus ressentimentos, de ter um temperamento que dificilmente perdoa. É, sem dúvida, uma criatura detestável.

- Não se fie em mim - replicou Wickham -, pois estou numa posição difícil para o julgar.

Elizabeth mergulhou de novo nos seus pensamentos, e, após alguns instantes, exclamou:

- Tratar de tal modo o afilhado, o favorito de seu pai! - E poderia ter acrescentado: «E, para mais, um jovem como o senhor, cujo aspecto diz bem da sua amabilidade», mas contentou-se com: - E, para mais, uma pessoa que provavelmente terá sido, desde a infância, o seu companheiro de folguedos, havendo a uni-los, como creio tê-lo anteriormente ouvido dizer, laços bastante íntimos?

- Naturais da mesma freguesia, passamos juntos grande parte da nossa juventude; vivíamos na mesma casa, partilhávamos as mesmas brincadeiras e éramos objecto do mesmo amor paternal. Meu pai começou por exercer na vida a profissão que o seu tio, o Sr. Philips, parece tanto honrar, mas acabou por tudo abandonar e pôr-se ao serviço do falecido Sr. Darcy, devotando todo o seu tempo à administração da Casa de Pemberley. Ocupava lugar de destaque na consideração e estima do Sr. Darcy, direi mesmo, o de seu amigo intimo e confidente. O Sr. Darcy frequentemente lhe deu a entender todo o seu reconhecimento pelos elevados serviços de meu pai, e, quando, pouco antes da morte de meu pai, o Sr. Darcy voluntariamente lhe prometeu olhar pelo meu futuro, estou convencido de que ele o fez tanto por se sentir em divida para com o meu pai, como pela sua afeição por mim.

- Que estranho! - exclamou Elizabeth. - É abominável! Pergunto-me a mim mesma se não foi o próprio orgulho do actual Sr. Darcy que o impediu de ser justo para consigo! Na falta de motivo melhor, que todo o seu orgulho não o levasse à desonestidade, pois considero tal procedimento nada menos que desonesto.

- É admirável - replicou Wickham -, pois do orgulho parecem provir a maioria das suas acções; e o orgulho tem sido, bastas vezes, o seu melhor amigo. Tem-no aproximado mais da virtude que qualquer outro sentimento. Mas nós somos incompatíveis, e no seu comportamento para comigo houve impulsos mais fortes que o próprio orgulho.

- Poderá orgulho tão horrendo como o dele tê-lo, alguma vez, levado a praticar o bem?

- Sim. Tem-no, com frequência, levado a ser liberal e generoso, a dar livremente do seu dinheiro, a manifestar um grande sentido de hospitalidade, a subsidiar os seus rendeiros e a socorrer os necessitados. Tudo isto se deve atribuir a um orgulho de família, a um orgulho «filial», pois ele orgulha-se bastante da figura que foi seu pai. A razão mais poderosa, contudo, vê-a ele em não parecer alguma vez desgraçar a família, degenerar das qualidades por todos nele estimadas, ou perder a influência da Casa de Pemberley. Cultiva também o orgulho «fraternal», que, juntamente com «alguma» afeição fraterna, o torna num estimável e escrupuloso protector de sua irmã; e tanto assim é que, mais de uma vez, terá a oportunidade de o ver apontado como o mais atencioso e o melhor dos irmãos.

- Que género de rapariga é a Menina Darcy?

Ele abanou a cabeça.

- Gostaria de poder incluí-la na categoria das pessoas amáveis. Desgosta-me profundamente dizer mal de um Darcy. Mas ela assemelha-se de mais ao irmão... é muito, muito orgulhosa. Em criança era encantadora de simpatia e meiguice, e ao seu entretenimento devotei eu horas sem fim. Hoje em dia, porém, ela não me é nada. Com os seus quinze ou dezasseis anos de idade, ela é, indubitavelmente, bonita e creio que superiormente dotada. Desde a morte do pai que ela vive em Londres, na companhia de uma senhora que superintende na sua educação.

Após numerosas pausas e tentativas várias para enveredar por outros assuntos, Elizabeth não pôde evitar voltar ao primeiro, dizendo:

- Causa-me um certo pasmo a sua intimidade com o Sr. Bingley! Como pode o Sr. Bingley, que é a boa disposição em pessoa e de uma simpatia sem limites, manter relações de amizade com tal homem? Como é possível adaptarem-se um ao outro? Conhece o Sr. Bingley?

- Não, nunca antes ouvira falar dele.

- É um homem encantador, de temperamento afável e meigo. Ele não deve, decerto, conhecer a verdadeira natureza do Sr. Darcy.

- Talvez não; se bem que o Sr. Darcy saiba agradar quando ele bem o entende. Habilidade não lhe falta. É muito capaz de orientar uma conversação agradável, se a acha frutífera. Entre as pessoas da sua igualha ele é totalmente diferente daquilo que aparenta aos menos prósperos. O orgulho nunca o abandona, mas, com os ricos, ele mostra-se liberal, justo, sincero, racional, digno de honra, e talvez até agradável... conforme a fortuna e importância do seu interlocutor.

Tendo, entretanto, terminado o jogo do whist, os seus participantes reuniram-se em volta da outra mesa, e o Sr. Collins veio postar-se entre a sua prima Elizabeth e a Sr.a Philips. A esta última coube proceder às habituais perguntas sobre os seus resultados no jogo. Não tinham sido brilhantes; perdera todos os pontos; mas, quando a Sr.a Philips pretendeu exprimir todo o seu pesar, ele, com uma expressão séria e grave, declarou não ter o assunto qualquer importância, que para ele o dinheiro pouco valia, e rogou-lhe por tudo para que ela não se sentisse de modo algum incomodada com isso.

- Sei perfeitamente, minha senhora - disse ele -, que, quando uma pessoa se senta a uma mesa de jogo, habilita-se a que lhe aconteçam tais coisas, e, felizmente, na situação em que me encontro, cinco xelins nunca causariam grande transtorno. Nem todos, é verdade, poderão dizer o mesmo, mas, graças a Lady Catherine de Bourgh, posso dar-me ao luxo de não ter de considerar tais ninharias.

Algo despertou a atenção do Sr. Wickham, que, após observar o Sr. Collins durante alguns momentos, em voz baixa perguntou a Elizabeth se o seu parente tinha algum conhecimento íntimo da família de Bourgh.

- Lady Catherine de Bourgh - respondeu ela - instituiu-lhe ultimamente uma pensão. Não faço ideia de como o Sr. Collins lhe foi sugerido, mas do que eu estou certa é que ele tem dela um conhecimento recente.

- Sabe com certeza que Lady Catherine de Bourgh e Lady Anne Darcy eram irmãs; e que, por conseguinte, ela é tia do actual Sr. Darcy?

- Não, de facto não sabia. Não estou a par dos parentescos de Lady Catherine. Aliás, só anteontem soube da sua existência.

- A filha dessa senhora, a Menina de Bourgh, herdará um dia uma fortuna fabulosa, e todos são unanimes em acreditar que ela e o seu primo unirão as suas riquezas.

Elizabeth sorriu, pois lembrou-se da pobre Menina Bingley. Na verdade, vãs seriam todas as suas atenções, vã e inútil a sua afeição pela irmã dele, assim como os elogios de que ela o rodeava, uma vez que ele estava já destinado a outra.

- O Sr. Collins - disse ela - tem uma elevada opinião tanto de Lady Catherine como da filha; mas, por alguns pormenores daquilo que ele sobre Sua Excelência conta, receio bem que a sua gratidão não o iluda, e que ela, a despeito da sua qualidade de patrona, não passe de uma mulher arrogante e presunçosa.

- Creio que é ambas as coisas, e a um elevado grau - replicou Wickham -; há muitos anos que não a vejo, mas recordo-me de nunca ter simpatizado com ela e de os seus modos serem autoritários e insolentes. Tem a reputação de tratar-se de uma pessoa invulgarmente sensata e esperta; mas prefiro acreditar que essas suas aptidões derivam, em parte, da sua fortuna e posição social e, parte, do seu feitio autoritário, e o resto do orgulho do seu sobrinho, que entende que todo aquele que com ele se relaciona tem necessariamente que possuir um entendimento de primeira categoria.

Elizabeth salientou a justeza da descrição que ele acabara de lhe oferecer, e os dois continuaram conversando numa satisfação mútua, até que a ceia veio pôr termo ao jogo, permitindo às outras senhoras partilharem também das atenções do Sr. Wickham. Tornara-se impossível conversar durante a barulhenta ceia da Sr.a Philips, mas só os modos dele bastaram para causar a boa impressão em todos. O que quer que ele dissesse, era bem dito; e tudo o que ele fazia, feito com graciosidade. Elizabeth, quando abandonou a festa, estava perfeitamente inebriada por ele. No caminho para casa, não pensava noutra pessoa senão no Sr. Wickham e em tudo aquilo que ele lhe contara; mas não pôde, na carruagem, sequer mencionar o seu nome, pois nem Lydia nem o Sr. Collins se calaram um só instante. Lydia não parava de falar nas peripécias do jogo da lotaria, das partidas que ganhara e das partidas que perdera; e o Sr. Collins, com a descrição da amabilidade dos Srs. Philips, os protestos de que em nada o preocupavam as suas perdas no whist, a enumeração de todas as iguarias de que se compunha a ceia e o receio, vezes sem conta repetido, de que estivesse a incomodar algumas das primas, tinha mais para dizer que aquilo que alguma vez conseguiria antes que a carruagem houvesse parado em frente da Casa de Longbourn.

 

No dia seguinte, Elizabeth contou a Jane a sua conversa com o Sr. Wickham. Jane escutou-a, entre espantada e pesarosa; não podia admitir que o Sr. Darcy fosse a tal ponto indigno da estima do Sr. Bingley; e, contudo, não era da sua natureza duvidar da veracidade de pessoa tão encantadora como Wickham. Só a possibilidade de este ter alguma vez sofrido tamanha injustiça bastava para lhe despertar os mais ternos sentimentos; e não via, por conseguinte, outra atitude a tomar senão conservar a boa opinião que tinha dos dois, defender o comportamento tanto de um como do outro e atribuir a um incidente ou erro de interpretação tudo o que de outro modo não pudesse ser explicado.

- Estou persuadida - disse ela - de que não passa de um mal-entendido entre eles, e do qual nada poderemos saber. Quem sabe se não foram interesseiros que os indispuseram um contra o outro. Não nos podemos, em resumo, deitar a adivinhar sobre quais as causas ou circunstâncias que os afastaram, sem o conhecimento de uma culpa formada de parte a parte.

- Tens toda a razão; e agora, minha querida Jane, que te oferece dizer-me em defesa dos interesseiros que porventura entraram no negócio? Iliba-os também, se és capaz, ou sentir-nos-emos obrigadas a colocar as culpas em alguém.

- Faz a troça que quiseres, mas eu continuarei na minha. Minha querida Lizzy, pensa só na perspectiva odiosa em que isso não colocaria o Sr. Darcy, tratar de tal modo o favorito de seu pai, alguém a quem seu pai prometeu ajudar. Bem vês que é impossível. Nenhum homem dotado de um mínimo de sentimentos e prezando um pouco o seu carácter seria capaz de tal coisa. Dar-se-á o caso de os seus amigos mais íntimos estarem iludidos a seu respeito? Oh!, não!

- Sou mais facilmente levada a acreditar no Sr. Bingley como vitima de um logro do que na possibilidade de tudo o que o Sr. Wickham ontem à noite me contou não passar de invenção sua; nomes, factos, tudo ele me mencionou sem hesitação de espécie alguma. Se não passa de uma mentira pegada, o Sr. Darcy que o venha provar. De resto, ele parecia sincero naquilo que dizia.

- É difícil, de facto, e aflitivo. Uma pessoa não sabe o que pensar.

- Desculpa; uma pessoa sabe exactamente o que pensar.

Mas de uma coisa, pelo menos, Jane estava certa, e era a de que, se acaso o Sr. Bingley estava sendo enganado, muito iria ele sofrer quando tudo aquilo viesse a lume.

As duas raparigas foram, entretanto, chamadas do jardim, onde esta conversa decorria, pois tinham precisamente acabado de chegar algumas das pessoas sobre quem falavam; o Sr. Bingley e as irmãs vinham pessoalmente convidá-las para o baile em Netherfield, desde há muito esperado, e que se realizaria na terça-feira seguinte. As duas senhoras mostraram-se encantadas por se encontrarem de novo com a sua querida amiga, falaram-lhe na eternidade da sua separação e repetidas vezes lhe perguntaram em que se ocupara desde então. Ao resto da família pouco ligaram; evitando tanto quanto possível a Sr.a Bennet, a Elizabeth pouco disseram e para as outras nem sequer olharam. Em breve se prepararam para partir, levantando-se tão decididamente dos lugares que apanharam o irmão de surpresa e apressando-se para a saída, como que ansiosas por escaparem às amabilidades da Sr.a Bennet.

A perspectiva do baile em Netherfield era extremamente agradável a todas as mulheres da família. A Sr.a Bennet entendeu considerá-lo como dado em honra da sua filha mais velha, e ficara particularmente lisonjeada por ter recebido o convite do próprio Sr. Bingley, em lugar do cerimonioso cartão da praxe. Jane antevia uma noite maravilhosa na companhia das duas amigas e rodeada das atenções do irmão, enquanto Elizabeth sonhava com o prazer de dançar com o Sr. Wickham e em ver confirmado na pessoa e atitudes do Sr. Darcy tudo o que aquele lhe contara. A felicidade antecipada de Catherine e Lydia não dependia tanto de um simples acontecimento ou de uma pessoa em particular, pois, embora cada uma delas, tal como Elizabeth, tencionasse dançar metade da noite com o Sr. Wickham, ele não era de modo algum o par único que as pudesse satisfazer, e um baile sempre era um baile. A própria Mary garantiu à família não sentir qualquer aversão por tal divertimento.

- Desde o momento em que possa dispor das minhas manhãs - proferiu ela -, dou-me por satisfeita. Não considero um sacrifício participar ocasionalmente na festa nocturna. Todos nós temos deveres sociais a cumprir; e partilho, aliás, da ideia de que um intervalo de recreação e divertimento só vem em benefício de uma pessoa.

Elizabeth sentia-se tão animada e bem disposta que, embora não dirigisse frequentemente a palavra ao Sr. Collins senão quando estritamente necessário, não pôde deixar de lhe perguntar se acaso ele tencionava aceitar o convite do Sr. Bingley, e se, sendo assim, ele achava próprio da sua condição participar no divertimento da noite. A resposta dele surpreendeu-a sobremaneira, pois, além de não alimentar sob esse aspecto quaisquer escrúpulos, ele estava longe de recear uma censura que fosse, quer da parte do arcebispo como da própria Lady Catherine de Bourgh, por se aventurar até a dançar.

- Não considero de modo algum, creia-me - disse ele -, que um baile deste género, oferecido por um jovem de carácter a gente respeitável, possa encobrir qualquer tendência perniciosa; e estou tão longe de me guardar de tal prazer que espero ter a honra de dançar com cada uma das minhas encantadoras primas no decorrer da noite, aproveitando desde já o ensejo para lhe solicitar, Menina Elizabeth, as duas primeiras danças, em especial, preferência esta que eu espero que a minha prima Jane atribua à justa causa, e não a qualquer desconsideração por ela.

Elizabeth ficou consternada, pois eram exactamente aquelas as danças que reservara para o Sr. Wickham: - e logo o Sr. Collins! Nunca a sua animação fora posta tão à prova. Não podia, porem, evitá-lo. A felicidade de Wickham, e a sua própria, foi, por força das circunstâncias, adiada para um pouco mais tarde, e a proposta do Sr. Collins aceite com tanta gentileza quanto a que se lhe tornou possível exprimir. Não se sentia sequer lisonjeada pela galanteria dele, pois via nela uma sugestão mais remota. Ocorria-lhe agora, pela primeira vez, a ideia de que era «ela» a eleita entre as suas irmãs para se tornar na senhora do presbitério de Hunsford e completar a mesa de jogo em Rosings, sempre que parceiros mais qualificados não se apresentassem; ideia essa que em breve atingiu a convicção, quando o viu multiplicar as suas delicadezas para com ela e com frequência tentar elogiá-la pelo seu espírito e vivacidade; e, embora mais espantada do que reconhecida por aquele efeito dos seus encantos, não decorreu muito tempo sem que sua mãe lhe desse a entender quanto lhe agradava a perspectiva de uma união entre eles. Elizabeth, contudo, preferiu não se dar por achada, pois pressentia a discussão tempestuosa que uma réplica sua provocaria. Além disso, o Sr. Collins podia nunca chegar a fazer o pedido, e, até lá, era inútil bulharem-se por causa dele.

Não fosse o baile em Netherfield, o qual exigia uma certa preparação e proporcionava um assunto de conversa inesgotável, e as mais novas das Meninas Bennet estariam nessa altura num estado lastimoso, pois, desde o dia em que receberam ó convite até ao próprio dia do baile, choveu tão profusa e ininterruptamente que se lhes tornou impossível irem a Meryton uma só vez. A tia, os oficiais e os mexericos, tudo lhes estava vedado. A própria Elizabeth se ressentiu na sua paciência para com o estado do tempo, que suspendeu por completo a evolução do seu conhecimento com o Sr. Wickham; e nada, a não ser o baile de terça-feira, poderia ter tornado sexta, sábado, domingo e segunda-feira suportáveis a Kitty e Lydia.

 

Até ao momento em que Elizabeth entrou no salão de Netherfield e, em vão, procurou pelo Sr. Wickham por entre os grupos de casacas encarnadas que já ali se encontravam reunidos, nunca lhe ocorrera duvidar da sua presença no baile. A certeza de o encontrar não fora ensombrada por nenhuma daquelas recordações que poderiam, não sem razão, ter-lhe causado um certo alarme. Vestira-se com um esmero invulgar e, fremente de alegria incontida, preparara-se para a conquista de tudo o que por subjugar ainda existia no coração do jovem, confiante de que não seria mais do que aquilo que poderia ser conquistado no decorrer daquela noite. Porém, no mesmo instante foi assaltada pela terrível suspeita de que ele tivesse sido propositadamente omitido, por inspiração do Sr. Darcy, no convite de Bingley dirigido aos oficiais. Contudo, embora não fosse este exactamente o caso, a confirmação absoluta da sua ausência obteve-a da boca do seu amigo, o Sr. Denny, junto de quem Lydia ansiosamente se foi informar, e o qual lhes contou que Wickham se vira, na véspera, forçado a tomar o caminho da capital para tratar de assuntos pendentes e que ainda não regressara, acrescentando, com um sorriso assaz significativo:

- Não vejo quais possam ser esses assuntos importantes que o afastam numa altura destas, não fosse ele querer evitar um certo cavalheiro que aqui se encontra também.

Esta última frase, se bem que tivesse escapado a Lydia, foi compreendida por Elizabeth, e como ela a assegurava de que Darcy não era menos responsável pela ausência de Wickham do que se a sua primeira suposição tivesse saído certa, toda a antipatia nutrida pelo primeiro era de tal modo acirrada pelo desapontamento sofrido que foi a muito custo que conseguiu um mínimo de delicadeza na resposta às amáveis inquirições que ele lhe dirigiu, após ter ido ao seu encontro. Qualquer atitude denunciando atenção ou indulgência para com Darcy era um ultraje contra Wickham. Decidida a não lhe dar réplica, afastou-se com um mau humor que ela dificilmente superou, mesmo na troca de palavras com o Sr. Bingley, cuja cega afeição a provocava.

Mas Elizabeth não era dada a acabrunhamentos, e, embora todas as suas expectativas para essa noite se tivessem esfumado, tratou de provocar o lenitivo algures. Desabafando o seu desgosto com Charlotte Lucas, que há uma semana não via, em breve foi capaz de uma transição voluntária para as singularidades do seu primo, e sobre ele chamou a atenção da amiga. As duas primeiras danças, contudo, vieram reavivar a sua mágoa; foram danças de mortificação. O Sr. Collins, desajeitado e solene, desfazendo-se em desculpas em lugar de prestar atenção, e frequentemente dando o passo errado sem que desse por isso, fê-la passar pela maior vergonha e miséria que um tal par pode causar ao longo de duas danças. O momento da libertação foi de êxtase para ela.

Seguidamente dançou com um oficial, e teve a consolação de conversar sobre Wickham e de ouvir como ele era estimado por todos. Terminadas estas danças, voltou para junto de Charlotte Lucas, e com ela conversava quando se viu interpelada pelo próprio Sr. Darcy, que a apanhou de tal modo de surpresa no seu pedido para dançar que ela o aceitou sem saber o que estava fazendo. Ele tornou a afastar-se imediatamente, e ela ficou só, censurando-se pela sua falta de presença de espírito; Charlotte tentou consolá-la:

- Verás como ele é agradável.

- Deus me livre! Seria catastrófico! Sentir prazer na companhia de um homem que se está decidida a odiar. Não me desejes tal coisa.

Contudo, quando a dança recomeçou e Darcy se aproximou para renovar o seu convite, Charlotte não se absteve de murmurar ao ouvido da amiga que não se portasse como uma tola e permitisse que a sua inclinação por Wickham a tornasse desagradável aos olhos de um homem dez vezes mais influente. Elizabeth não lhe respondeu e foi tomar o seu lugar na dança, um pouco embaraçada pela honra de ser conduzida pela mão do Sr. Darcy e lendo igual espanto estampado nos rostos dos circundantes ao aperceberem-se do facto. Durante algum tempo mantiveram-se sem pronunciar uma palavra, e ela convenceu-se de que o silêncio entre eles duraria até ao fim das duas danças, resolvida que estava a não quebrá-lo. Em dada altura, porém, lembrando-se de que seria um castigo, sem dúvida maior, obrigar o seu par a falar, ela fez-lhe uma pequena observação sobre a dança. Ele respondeu-lhe, e de novo guardou silêncio. Após uma pequena pausa, ela dirigiu-se-lhe segunda vez e disse:

- É a sua vez de se pronunciar, Sr. Darcy. Como eu já falei sobre a dança, o senhor deve agora referir-se ao comprimento da sala ou ao número de pares que aqui se encontram.

Ele sorriu e garantiu-lhe que diria o que quer que ela quisesse.

- Muito bem. Por agora, essa resposta serve. Talvez, de passagem, eu devesse observar que os bailes particulares são muito mais agradáveis que os bailes públicos. Mas chegou a altura de permanecermos calados.

- Quer dizer que é para si uma regra falar enquanto dança?

- Por vezes, sim. Penso que se deva falar sempre, por pouco que seja. Seria absurdo permanecermos calados durante a meia hora que permanecemos juntos, e, todavia, no interesse de alguns, a conversa deveria ser de tal modo convencionada que lhes permitisse dizerem o mínimo possível.

- No caso presente ausculta os seus sentimentos, ou, pelo contrário, supõe responder aos meus?

Ambas as coisas - replicou Elizabeth com malícia -, pais desde o princípio que noto uma similaridade na nossa maneira de pensar. De carácter insociável e taciturno, nem sempre estamos dispostos a conversar, excepto se contamos emitir uma opinião capaz de impressionar o salão em peso e de ser transmitida à posteridade com todo o éclat de um provérbio.

- Não se pode dizer que salte à vista a semelhança do seu carácter com esse que acabou de me descrever - disse ele. - Até que ponto ele se parece com o meu, não me é dado dizê-lo. Considera-o um retrato fiel, sem dúvida.

- Não me devo pronunciar sobre a minha própria obra.

Ele não respondeu, e de novo mergulharam no silêncio, até que, numa altura propícia da dança, ele lhe perguntou se ela e as irmãs iam com frequência em passeio a Meryton. Ela respondeu-lhe afirmativamente, e, incapaz de resistir à tentação, acrescentou:

- Quando no outro dia ali nos encontrou, tínhamos acabado de fazer um novo conhecimento.

O efeito foi imediato. Uma sombra de altivez profunda espalhou-se sobre as suas feições, mas ele não disse uma palavra, e Elizabeth, embora censurando-se pela sua fraqueza, não ousou continuar. For fim, Darcy falou, e, um pouco contrafeito disse:

- O Sr. Wickham é dotado de uma afabilidade que lhe permite «fazer» amigos em qualquer parte; porém, o mesmo não direi da sua capacidade em «conservá-los».

- Teve, com efeito, a infelicidade de perder as «suas» boas graças - replicou Elizabeth com ênfase -, e a um ponto tal que se ressentirá toda a sua vida.

Darcy não respondeu, e parecia ansioso por mudar de assunto. Nessa altura, junto deles surgiu Sir William Lucas, que, fazendo menção de atravessar por entre os pares para o outro lado da sala, e ao deparar com o Sr. Darcy, estacou e curvou-se numa vénia profunda e de extrema cortesia, felicitando-o pelo seu estilo de dança e pelo seu par.

- Na verdade, tenho-me vindo a deleitar perante tal espectáculo, meu caro senhor. Não é com frequência que se vê dançar tão bem. É evidente que o senhor pertence às mais altas esferas. Permita-me, contudo, dizer-lhe que o seu encantador par em nada o desvaloriza e que espero ver por muitas vezes repetido este meu prazer, sobretudo quando determinado acontecimento tão desejável, querida Menina Eliza (olhando de soslaio para a irmã e para Bingley), tiver lugar. Que felicitações não afluirão então! O Sr. Darcy que o diga... mas não quero interrompê-lo mais. Sei que não me agradecerá os preciosos minutos roubados à conversa fascinante desta jovem, cujos lindos olhos me estão já fulminando.

Esta última frase Darcy mal a ouviu. A alusão de Sir William a respeito do seu amigo parecia tê-lo impressionado sobremaneira, e foi com uma expressão séria que ele fitou Bingley e Jane, que se encontravam dançando um com o outro.

Contudo, em breve recuperou uma serenidade aparente, e, voltando-se para o seu par, disse:

- Com a interrupção de Sir William, esqueci-me sobre o que estávamos falando.

- Não me parece que estivéssemos sequer a conversar. Sir William não poderia ter interrompido outro par na sala que tivesse menos que dizer um ao outro. Tentámos já dois ou três assuntos sem qualquer êxito e não faço a menor ideia sobre qual possa ser o nosso tema de conversa seguinte.

- Qual a sua opinião sobre livros? - disse-lhe ele, sorrindo.

- Livros... Oh! Não. Estou certa de que não lemos os mesmos, ou, então, nunca com a mesma disposição de espírito.

- Lastimo que pense assim; mas, nesse caso, não haverá, pelo menos, o perigo de faltar o assunto entre nós. Poderemos comparar as nossas diferentes opiniões.

- Não, não conseguirei pensar em livros numa sala de baile; o meu espirito está sempre absorto noutras coisas.

- O «presente» mantém-na sempre ocupada em tais cenários; é isso? - disse ele, lançando-lhe um olhar de dúvida.

- Sim, sempre - replicou ela, sem saber bem o que estava dizendo, pois os seus pensamentos navegavam noutras águas, como claramente o deu a entender a exclamação súbita que se seguiu: - Lembro-me de o ter ouvido afirmar, Sr. Darcy, que dificilmente perdoa, e que, uma vez suscitado, o seu ressentimento era implacável. Suponho que seja escrupuloso quanto às circunstâncias que originam esse mesmo ressentimento?

- E sou - disse ele, com voz firme.

- E nunca consinta que um preconceito o cegue?

- Assim o espero.

- Para. aqueles cuja opinião não muda, é da sua particular incumbência a certeza de acertarem nos seus juízos logo à primeira.

- Posso saber qual o fim de todas estas perguntas?

- Apenas para uma mera ilustração do seu carácter - disse ela, procurando disfarçar o tom grave com que até então falara. - Estou tentando decifrá-lo.

- E quais os resultados a que chegou?

Ela abanou a cabeça.

- Pouco adiantei. São tão diversas as opiniões a seu respeito que me sinto baralhada de todo.

- De boa mente acredito - respondeu ele gravemente - que as versões a meu respeito possam variar assim tanto. Contudo, Menina Bennet, desejaria que neste momento não se debruçasse no estudo do meu carácter, pois é caso para recear que tal actividade não abone em favor de nenhum.

- Mas, se não o deslindo agora, nunca mais terei outra oportunidade.

- Não pretendo de modo algum constituir entrave ao seu prazer - replicou ele friamente. Ela nada acrescentou, e, após alguns minutos mais de dança, separaram-se em silêncio, cada um para seu lado e descontentes, embora a um grau diferente, pois no peito de Darcy existia por ela uma ternura de certo modo poderosa, que em breve lhe granjeou o perdão e dirigiu todo o seu rancor para outro.

Não havia muito que se tinham separado, quando a Menina Bingley se aproximou de Elizabeth e, com uma expressão de altivo desdém, a abordou nos seguintes termos:

- Com que então, Menina Eliza, encontra-se sob o encanto de George Wickham! A sua irmã esteve, há momentos, a falar-me sobre ele e fez-me centenas de perguntas; mas vejo que, entre as suas outras confidências, ele se esqueceu de mencionar que era o filho do velho Wickham, o feitor do falecido Sr. Darcy. Contudo, permita-me que, como sua amiga, a aconselhe a não confiar cegamente em todas as suas asserções, pois, quanto a o Sr. Darcy ter agido injustamente para com ele, não passa de uma tremenda mentira; pelo contrário, ele tem sido de uma bondade notável para com esse cavalheiro, se bem que George Wickham se tenha portado de modo infame para com o Sr. Darcy. Não estou a par dos pormenores, mas sei que a culpa não reside de modo algum no Sr. Darcy, que ele não suporta ouvir sequer mencionar George Wickham, e que, embora o meu irmão achasse não poder evitar inclui-lo no convite aos oficiais, ele ficou deveras contente ao verificar que o outro tivera o bom senso de não aparecer. Por si só, a sua vinda para esta região denota uma insolência atroz, e espanta-me que ele se tenha atrevido a tanto. Tenho dó de si, Menina Eliza, por descobrir deste modo a culpabilidade do seu favorito; mas, no fundo, dada a descendência dele, não se poderia esperar muito melhor.

- A culpabilidade e a descendência dele parecem, pelo que acabou de me dizer, ser uma e a mesma coisa - respondeu Elizabeth, irritada -; pois não a ouvi acusá-lo de nada de mais grave que não fosse o facto de ele ser o filho do feitor do Sr. Darcy, e sobre «isso» pode estar certa de que ele próprio me informou.

- Perdoe-me então - replicou a Menina Bingley, afastando-se com um sorriso de desdém. - Desculpe a minha intromissão. Foi por bem que o fiz.

- Insolente criatura! - desabafou Elizabeth para consigo.

- Estás muito enganada se pensas influenciar-me por meio de ataque tão torpe como este. Nele não vejo outra coisa senão a tua obstinada ignorância e a malícia do Sr. Darcy.

Procurou, então, a sua irmã mais velha, que se encarregara de, sobre o mesmo assunto, obter informações junto do Sr. Bingley. Jane recebeu-a com um sorriso de tão doce complacência e uma expressão de tão radiosa felicidade que indicava bem quão satisfeita ela se sentia com as ocorrências da noite. Elizabeth imediatamente se apercebeu do estado de espirito da irmã, e, no mesmo instante, tanto a sua solicitude para com Wickham como o seu ressentimento contra os inimigos dele, e tudo o resto, cedeu perante a esperança de Jane se encontrar no caminho da verdadeira felicidade.

- Vinha saber - disse ela, tão sorridente como a irmã - quais os resultados das tuas inquirições sobre Wickham. Mas receio bem que estivesses demasiado ocupada com coisas bem mais agradáveis para pensares numa terceira personagem, pelo que te perdoo de todo o meu coração.

- Não - replicou Jane -, não o esqueci; mas nada tenho de satisfatório para te contar. O Sr. Bingley não sabe de toda a história e desconhece por completo quais as circunstâncias que particularmente ofenderam o Sr. Darcy; contudo, ele responde pela conduta irrepreensível, probidade e honra do seu amigo e está perfeitamente convencido de que o Sr. Wickham merecia muito menos atenções que aquelas que recebeu do Sr. Darcy. Custa-me dizer-to, mas tanto pelo relato do Sr. Bingley como pelo da sua irmã, o Sr. Wickham não é de modo algum um jovem respeitável. Receio que ele tenha sido muito imprudente, e, com isso, tenha merecido perder a consideração do Sr. Darcy.

- O Sr. Bingle não conhece o Sr. Wickham, pois não?

- Não, nunca antes o tinha visto até àquela manhã em Meryton.

- Então, tudo o que ele sabe foi-lhe contado pelo Sr. Darcy. Nesse ponto, dou-me por satisfeita. Mas que te disse ele sobre a pensão?

- Ele não se recorda exactamente das circunstâncias, embora mais de uma vez as tenha ouvido da boca do Sr. Darcy; contudo, ele crê que ela lhe foi legada «condicionalmente» apenas.

- Não duvido nem um instante da sinceridade do Sr. Bingley - disse Elizabeth com veemência -, mas espero que compreendas que afirmações apenas não bastem para me convencer. A apologia do Sr. Bingley sobre o amigo é, sem dúvida, digna de consideração; mas, uma vez que ele desconhece parte da história e o resto lhe foi contado pelo próprio amigo, não vejo outra alternativa senão conservar a opinião que já antes tinha sobre estes dois cavalheiros.

Posto isto, mudou o rumo da conversa para um assunto mais querido de ambas, e no qual não podia haver diferenças de opinião.

Elizabeth escutou, encantada, as sorridentes mas comedidas esperanças que Jane alimentava a respeito de Bingley, e disse tudo o que estava em seu poder para aumentar a confiança da irmã nelas. Como, entretanto, o próprio Sr. Bingley se lhes reunira, Elizabeth retirou-se para junto da Menina Lucas, e ainda mal tivera tempo para lhe responder às perguntas sobre o seu último par quando o Sr. Collins se aproximou e, em grande alvoroço, lhe participou que, para sua grande felicidade, acabara de fazer importantíssima descoberta.

- Descobri - disse ele -, graças a uma coincidência deveras extraordinária, que se encontra aqui na sala um parente próximo da minha patroa. Foi por acaso que ouvi esse cavalheiro mencionar à jovem senhora que faz as honras da casa os nomes da sua prima, a Menina de Bourgh, e da mãe dela, Lady Catherine. É maravilhoso como tais coisas podem ocorrer! Estava bem longe de poder imaginar o meu encontro nesta festa com - talvez - um sobrinho da própria Lady Catherine de Bourgh! Dou graças por esta descoberta ter sido feita a tempo e horas de eu lhe poder apresentar os meus cumprimentos, o que eu desde já me apresso a fazer, na esperança de que ele me perdoe não o ter feito mais cedo. O meu desconhecimento total do parentesco advogará a minha causa.

- Não se vai apresentar a si próprio ao Sr. Darcy, pois não?

- É evidente que vou. E, naturalmente, pedir-lhe-ei perdão por não o ter feito antes. Estou certo de que ele é «sobrinho» de Lady Catherine, e, nesse caso, estará em meu poder assegurá-lo de que Sua Excelência se encontrava de perfeita saúde quando a deixei, fez ontem precisamente oito dias.

Elizabeth tudo tentou para dissuadi-lo de tal projecto, assegurando-o de que o Sr. Darcy apenas veria impertinência na atitude dele em se lhe dirigir sem apresentação prévia, e não uma atenção para com a sua tia; que não era de modo algum necessário darem-se a conhecer, e, que se acaso o fosse, caberia ao Sr. Darcy, o mais influente dos dois, dar o primeiro passo. O Sr. Collins escutou-a com o ar decidido de quem vai seguir a sua própria inclinação, e, quando ela terminou, respondeu-lhe do seguinte modo:

- Cara Menina Elizabeth, tenho a mais elevada opinião do primoroso bom senso que a orienta em todos os assuntos ao alcance do seu entendimento, porém, deixe-me lembrar-lhe que existe uma grande diferença entre as formalidades de protocolo estabelecidas entre os leigos e aquelas que regulam o clero; pois, permitir-me-ei observar que considero a profissão clerical equiparada em dignidade à mais elevada categoria social do reino, desde o momento em que, simultaneamente, se preserve uma atitude de adequada humildade. Por tudo isto lhe rogo que me permita seguir os ditames da minha consciência numa ocasião como esta, que me leva à realização daquilo que eu considero como um dever da minha parte. Perdoe-me a ousadia de não acatar o seu conselho, que em qualquer outra altura será o meu guia constante, embora no caso presente eu me considere, tanto pela educação como pela experiência, mais capacitado a decidir sobre o que é correcto fazer do que uma jovem como a menina. - E, com uma vénia profunda, afastou-se dela e tomou a direcção do Sr. Darcy, cuja recepção ao seu ataque ela perscrutou ansiosamente, e cujo espanto ao ser assim abordado se tornava bem evidente. O primo prefaciou o seu discurso com uma vénia solene, e, se bem que ela não pudesse ouvir uma palavra do que ele dizia, era como se o estivesse ouvindo, e pelo movimento dos lábios percebeu as palavras «perdão», «Hunsford» e «Lady Catherine de Bourgh». Vexava-a vê-lo expondo-se a tal homem. O Sr. Darcy, com efeito, olhava-o com uma surpresa ilimitada e, quando, por fim, o Sr. Collins o deixou falar, respondeu-lhe com um ar de fria delicadeza. O Sr. Collins, contudo, não se desencorajou a dirigir-lhe de novo a palavra, pelo que o desdém do Sr. Darcy pareceu aumentar profusamente com a duração do segundo discurso, e, uma vez terminado este, limitou-se a uma ligeira vénia e afastou-se noutra direcção. O Sr. Collins voltou, então, para junto de Elizabeth.

- Não tenho razões de queixa, acredite-me - disse ele -, do modo como fui recebido. O Sr. Darcy pareceu-me encantado com o gesto. Respondeu-me com toda a delicadeza e até se dignou elogiar-me, dizendo-me que a sua consideração pelo elevado discernimento de Lady Catherine o assegurava de que ela nunca concederia um favor imerecidamente. Foi, de facto, um bonito pensamento. No conjunto, estou assaz satisfeito com ele.

Elizabeth em breve se desinteressou do assunto, dirigindo toda a sua atenção para a irmã e para o Sr. Bingley; e a série de pensamentos agradáveis que a sua observação despertou tornou-a talvez quase tão feliz como a própria Jane. Imaginou-a instalada naquela mesma casa e numa felicidade tal como a que um casamento por verdadeiro amor pode conceder; e, nessa altura, sentia-se capaz até de um esforço para simpatizar com as duas irmãs de Bingley. Percebeu que a sua mãe estava pensando o mesmo e decidiu não se aventurar para próximo dela, não fosse ela ouvir de mais. Por este motivo, quando se sentaram para cear, ela considerou desastroso o acaso que as colocou perto uma da outra; e foi profundamente vexada que ouviu sua mãe falando para aquela pessoa (Lady Lucas) livre e abertamente, e sobre nada menos que as suas expectativas de, em breve, ver Jane casada com o Sr. Bingley. Tratava-se de um assunto prolífico, e a Sr.a Bennet parecia incapaz de qualquer fadiga na enumeração das vantagens de tal união. O facto de se tratar de um jovem tão simpático, tão rico e vivendo apenas a três milhas de distância deles apresentava aos seus olhos os predicados de maior monta; e, depois, era um conforto saber da grande simpatia que as duas irmãs nutriam por Jane e estar certa de que elas desejariam tanto a ligação como ela própria. Era, além disso, um acontecimento prometedor para as suas filhas mais novas, pois o facto de Jane realizar casamento tão notável poderia lançá-las no caminho de outros jovens abastados; e, por último, era tão agradável chegar à sua idade e poder confiar as suas filhas solteiras ao cuidado da irmã e desse modo não se sentir obrigada a comparecer em sociedade senão quando bem lhe aprouvesse. Era necessário tornar tal circunstância num motivo de prazer, pois em tais ocasiões faz parte da etiqueta; mas a Sr.a Bennet seria a última pessoa a sentir algum conforto em ficar em casa em qualquer período da sua vida. E, à guisa de conclusão, exprimiu os seus mais sinceros desejos de que Lady Lucas em breve se visse em situação idêntica, embora, evidentemente, acreditasse, triunfante, que assim não sucederia.

Em vão Elizabeth tentou refrear a celeridade das palavras de sua mãe, ou persuadi-la a descrever a sua felicidade num sussurro menos audível, pois, com indizível aflição, percebera que o Sr. Darcy, que se encontrava mesmo defronte, estava ouvindo tudo. A sua mãe apenas a admoestou por se mostrar tão absurda.

- Que me interessa o Sr. Darcy, diz-me, para que eu tenha receio dele? Não me parece que lhe deva alguma delicadeza especial que me impeça de dizer algo que «ele» possa não gostar de ouvir.

- Por amor de Deus, senhora, fale mais baixo. Que vantagem vê em ofender o Sr. Darcy? Não é assim que conseguirá que ele a recomende ao amigo.

Contudo, nada do que ela pudesse dizer tinha qualquer influência. A sua mãe persistiria em falar das suas expectativas no mesmo tom inteligível. Elizabeth corava e tornava a corar, de vergonha e vexame. Porém, não pôde deixar de, repetidas vezes, olhar de relance para o Sr. Darcy, embora cada olhar lhe desse cada vez mais a convicção do que ela temia; pois, apesar de ele não estar sempre fitando sua mãe, ela tinha a certeza de que a sua atenção estava invariavelmente fixa nela. A expressão do seu rosto mudara gradualmente de indignado desprezo para uma seriedade calma e serena.

Finalmente, porém, a Sr.a Bennet não encontrou mais para dizer; e Lady Lacas, que já há muito bocejava com a repetição dos prazeres que ela não via possibilidade de partilhar, entregou-se ao conforto do presunto e apetitoso frango. A partir de então, Elizabeth recomeçou a viver. Mas pouco durou o intervalo de tranquilidade, pois, uma vez terminada a ceia, houve quem falasse em cantar, e ela teve a mortificação de ver Mary, que, após pouco entusiástica solicitação, se preparava para obsequiar a assembleia. Ainda tentou, com significativos olhares e pedidos silenciosos, tal prova de complacência, mas em vão; Mary não havia meio de os entender; tal oportunidade de se exibir encantava-a de sobremaneira, e deu início à sua canção. Elizabeth fixou os olhos na irmã e, debatendo-se em dolorosas sensações, acompanhou o seu progresso através das diversas estrofes numa impaciência que foi muito mal recompensada no final, pois Mary, ao receber entre os aplausos da mesa a velada alusão a uma esperança de que ela pudesse ser persuadida a obsequiá-los de novo, após uma pausa de meio minuto, deu inicio a outra. As faculdades de Mary não se adequaram de modo algum a tal exibição, a voz era fraca e os modos afectados. Elizabeth sentia-se aniquilada. Olhou na direcção de Jane, para ver como ela suportava tal provação; mas Jane encontrava-se serenamente conversando com Bingley. Olhou para as suas duas outras irmãs, e viu-as fazendo sinais de troça entre si, e para Darcy, que continuava impenetravelmente grave. Em seguida olhou, implorante, para seu pai, para que ele impedisse Mary de cantar a noite inteira. Ele compreendeu-a, e, quando Mary terminou a segunda canção, disse em voz alta:

- Por ora chega, minha filha. Já nos deleitaste o tempo suficiente. Deixa às outras jovens também a oportunidade de se exibirem.

Mary, ainda que fingindo não ter ouvido, ficara um pouco embaraçada; e Elizabeth, com pena dela e lastimando a frase do pai, receou que a sua ansiedade não tivesse dado bom resultado. Entretanto, outras jovens foram solicitadas.

- Se acaso eu - proferiu o Sr. Collins em dada altura - tivesse a felicidade de ser capaz de cantar, estou certo de que teria o maior prazer em obsequiá-los com uma ária, pois considero a música uma diversão inocente e perfeitamente compatível com a profissão de um clérigo. Não quero, contudo, com isto afirmar que nós possamos ser justificados ao devotarmos demasiado do nosso tempo à música, pois certamente que temos outros a tratar. O reitor de uma paróquia não tem mãos a medir. Em primeiro lugar, ele deve proceder a um acordo sobre as dizimas, de modo que ele possa beneficiar, sem ofensa para o seu patrono. Tem, além disso, que escrever os seus próprios sermões, e o resto do seu tempo nunca será de mais para os deveres da paróquia e para o cuidado e melhoramento da sua habitação, que ninguém poderá levar-lhe a mal torná-la tão confortável quanto possível. E não considero de somenos importância que ele procure cultivar uma atitude atenciosa e conciliadora para com todos, sobretudo para com aqueles a quem ele deve a sua promoção. Não posso dispensá-lo de tal obrigação, e repudiaria todo aquele que olvidasse uma ocasião de testemunhar o seu respeito para com algum membro da família. - E, com uma vénia dirigida ao Sr. Darcy, ele deu por concluído o seu discurso, que fora pronunciado numa tal sonoridade que quase toda a sala o ouviu. Muitos foram os que o fitaram. E muitos os que sorriram; mas ninguém parecia mais divertido que o próprio Sr. Bennet, enquanto sua mulher, muito compenetradamente, teria um louvor ao Sr. Collins por ter falado tão acertadamente, e, a meia voz, observava a Lady Lucas que se tratava de um jovem de inteligência notável e excelentes qualidades.

A Elizabeth afigurava-se-lhe que, se acaso a sua família tivesse combinado expor-se tanto quanto possível durante aquela noite, ter-lhes-ia sido impossível desempenhar os seus papéis com maior entusiasmo ou sucesso mais redundante; e considerou uma felicidade para Bingley e para sua irmã o facto de parte da exibição ter escapado à atenção dele e de os seus sentimentos não serem do género de se impressionarem com as tolices que ele pudesse ter presenciado. Contudo, já muito lhe custava que tanto às irmãs dele como ao Sr. Darcy lhes tivesse sido dada a oportunidade de ridicularizar a sua família, não sabendo o que lhe era mais difícil de suportar, se o silêncio desdenhoso do cavalheiro, se os insolentes sorrisos das senhoras.

O resto da noite passou-se sem grande divertimento para ela. Estava constantemente sendo importunada pelo Sr. Collins, que, perseverante, se mantinha ao seu lado, e o qual, embora não conseguisse arrastá-la de novo para a dança, a incapacitava de dançar com outros. Em vão ela tentou atrair-lhe a atenção para qualquer outra pessoa na sala, chegando até a oferecer-se para o apresentar a outra rapariga. Porém, ele assegurou-a de que não tinha qualquer interesse em dançar, que o seu principal objectivo era fazer dela o alvo das suas mais delicadas atenções e que por isso mesmo fazia questão em se manter junto dela toda a noite. Contra isto não havia argumentos. Os momentos de maior alívio deveu-os Elizabeth à sua amiga, a Menina Lucas, que se lhes juntava com frequência e de boa vontade atraía para si a conversa do Sr. Collins.

Considerava-se, pelo menos, livre da ofensa de mais reparos da parte do Sr. Darcy, e, se bem que muitas vezes ele se encontrasse a curta distancia dela, e quase sempre sozinho, nunca ele se aproximou o bastante para lhe dirigir a palavra. Viu nessa sua atitude a consequência provável das alusões dela acerca do Sr. Wickham, e alegrou-se por isso.

O grupo de Longbourn foi o último a fazer as suas despedidas, e, graças a uma manobra astuciosa da Sr.a Bennet, tiveram de esperar pela carruagem mais de um quarto de hora depois de todos os outros terem partido, o que lhes deu a oportunidade de verificar até que ponto algumas das pessoas da casa estavam desejosas de os ver pelas costas. A Sr.a Hurst e a irmã apenas abriam a boca para se queixar de cansaço e não escondiam evidentes sinais de impaciência por terem finalmente a casa à sua inteira disposição. Repeliam todas as tentativas de conversa da parte da Sr.a Bennet, e, ao fazê-lo, lançaram todo o grupo num abatimento tal que os longos discursos do Sr. Collins, felicitando o Sr. Bingley e as irmãs pela graça do seu acolhimento e pela hospitalidade e delicadeza que assinalavam o seu comportamento de anfitriões, não faziam senão aumentar. Darcy nada dizia. O Sr. Bennet, igualmente silencioso, apreciava a cena. O Sr. Bingley e Jane permaneciam juntos, um pouco afastados do resto do grupo e falando apenas um para o outro. Elizabeth guardava um silêncio tão renitente quanto o da Sr.a Hurst e da Menina Bingley; e até Lydia se encontrava quebrada de mais para pronunciar algo além da exclamação ocasional: «Meu Deus, que cansada que eu estou!», acompanhada de um violento bocejo.

Quando, finalmente, se ergueram para se despedir, a Sr.a Bennet renovou numa delicadeza por de mais insistente as suas esperanças de ver em breve toda a família em Longbourn; e, dirigindo-se em particular ao Sr. Bingley, asseverou - o do prazer imenso que ele lhes dará ao aceder jantar um dia com eles na intimidade e sem que para isso necessitasse de um convite formal. O Sr. Bingley mostrou-se agradavelmente reconhecido e prontamente se comprometeu a visitá-la na primeira oportunidade, logo após o seu regresso de Londres, para onde se via forçado a seguir na manhã seguinte para uma curta estada.

A Sr.a Bennet deu-se por satisfeita, e deixou a casa deliciosamente persuadida de que, tomando em linha de conta os preparativos necessários para possíveis arranjos, novas carruagens e enxoval, dentro de três ou quatro meses teria sem dúvida a sua filha instalada em Netherfield. Com igual certeza e considerável, embora não igual, prazer, pensava no casamento de outra filha com o Sr. Collins. Elizabeth era, a seus olhos, a menos querida entre as suas filhas, e, embora considerasse tanto o pretendente como a união suficientemente adequados a «ela», o valor de cada um era facilmente eclipsado pelo Sr. Bingley e Netherfield.

 

O dia seguinte trouxe um novo acontecimento para Longbourn. O Sr. Collins fez a sua declaração em forma. Tendo resolvido proceder a ela sem perda de tempo, uma vez que a sua licença caducava já no sábado seguinte, e não nutrindo, mesmo naquela altura, qualquer sentimento de desconfiança em vir a tornar-se numa situação embaraçosa para ele, entregou-se a ela de forma muito metódica, não descurando todas aquelas observâncias que ele supunha inerentes ao assunto. Encontrando reunidas, pouco tempo depois do pequeno-almoço, a Sr.a Bennet, Elizabeth e uma das irmãs mais novas, dirigiu-se à mãe nos seguintes termos:

- Poderei eu, minha senhora, no seu próprio interesse e no da sua encantadora filha Elizabeth, solicitar-lhe a honra de uma audiência privada com ela no decorrer da manhã?

Antes que Elizabeth tivesse tempo para algo, excepto corar pela surpresa, a Sr.a Bennet imediatamente respondeu:

- Oh!, meu Deus! Sim, com certeza. Estou certa de que Lizzy terá todo o prazer. Estou certa de que ela não porá objecções. Vem, Kitty, preciso de ti lá em cima. - E, arrumando precipitadamente o seu trabalho, preparava-se para os deixar, quando Elizabeth exclamou:

- Minha querida senhora, não se vá embora. Peço-lhe que não saia. O Sr. Collins desculpar-me-á. Ele nada terá para me dizer que outros não possam ouvir. Eu própria me vou embora.

- Não, não, que disparate, Lizzy. Fica onde estás. - E, vendo que Elizabeth, extremamente embaraçada e aflita, parecia realmente querer esgueirar-se, acrescentou: - Lizzy, «insisto» para que fiques e ouças o que o Sr. Collins tem para te dizer.

Elizabeth não se oporia a tal determinação, e, após durante alguns momentos considerar que seria mais sensato acabar com aquilo quanto antes, tornou a sentar-se e procurou disfarçar os sentimentos que a dividiam entre a aflição e o divertimento. A Sr.a Bennet e Kitty afastaram-se e, mal elas saíram, o Sr. Collins começou.

- Acredite-me, cara Menina Elizabeth, que a sua modéstia, longe de lhe causar algum detrimento, apenas se vem juntar às suas outras perfeições. A menina aparecia menos graciosa aos meus olhos, não fosse por essa pequenina má vontade da sua parte; mas permita-me lembrar-lhe que gozo da conceituada autorização da sua mãe para lhe falar nestes termos. Não terá dúvidas quanto ao teor da comunicação que tenho a fazer-lhe, se bem que a sua natural delicadeza a leve a dissuadi-la do contrário; as minhas atenções têm sido sobejamente incisivas para admitirem uma interpretação diferente. Quase imediatamente após ter entrado nesta casa, escolhi a menina para companheira da minha vida futura. Mas, antes de me deixar arrastar pelos meus sentimentos neste assunto, será talvez preferível passar a expor-lhe as razões que me induzem a casar, e, sobretudo, que me trouxeram a Hertfordshire no intuito de procurar uma esposa, como de facto o fiz.

A ideia do Sr. Collins, sendo, com toda a sua solene compostura, arrastada pelos seus sentimentos, provocou em Elizabeth um ataque de riso tão iminente que a incapacitou de fazer uso da pequena pausa à sua disposição, numa tentativa de o impedir de prosseguir, pelo que ele continuou:

- As razões que me levam a casar são, primeiro, porque considero que um clérigo em situação abastada (como é o meu caso) deve dar o exemplo da harmonia conjugal na sua paróquia. Segundo, porque estou convencido de que, agindo de tal modo, contribuirei grandemente para a minha própria felicidade; e terceiro, que eu deveria talvez ter mencionado antes, porque vou deste modo ao encontro do desejo e recomendação especial da mui nobre senhora a quem eu tenho a honra de chamar minha patrona. Por duas vezes ela condescendeu em me dar (sem que eu lho tivesse pedido sequer) a sua opinião sobre o assunto; e ainda no sábado à noite, antes de eu deixar Hunsford, entre duas partidas de cartas e enquanto a Sr.a Jenkinson arrumava o jogo da menina de Bourgh, ela me disse: «Sr. Collins, o senhor deve casar. Um clérigo gozando de uma situação como a sua deve casar, escolha com acerto, «por mim«, que se trate de uma senhora distinta e educada, e «por si«, que ela se mostre uma pessoa activa e útil, não habituada a grandezas, mas capaz de tirar proveito de um pecúlio reduzido. É este o meu conselho. Busque essa mulher tão depressa quanto possível, traga-a para Hunsford, e eu visitá-la-ei.» A propósito, permita-me observar-lhe, minha querida prima, que não considero a atenção e a generosidade de Lady Catherine de Bourgh entre as vantagens de menor envergadura que em meu poder tenho para lhe oferecer. Encontrará nela uma distinção superior, que, estou em crer, aceitará de boa mente o espirito e a vivacidade de que a prima dá provas, sobretudo quando moderados pelo silêncio e o respeito que a elevada posição social dela inevitavelmente suscitarão. São estas, portanto, e de um modo geral, as minhas tenções em favor do matrimónio; resta-me dizer porque me decidi por Longboarn, em lugar da minha vizinhança, onde lhe asseguro existirem numerosas jovens igualmente encantadoras. Ora, acontece que, na minha qualidade de futuro herdeiro destes bens após a morte de seu pai (que, contudo, espero que viva ainda por muitos anos e bons), nunca me sentiria em paz com a minha consciência se não tivesse diligenciado por escolher uma esposa entre as suas filhas, de modo a minimizar o prejuízo a sofrer por altura de tão melancólico acontecimento, o que, como já atrás referi, sinceramente espero que só se dê daqui a muitos anos. Foi este o meu principal motivo, querida prima, e estou certo de que não será ele a contribuir de algum modo para a diminuição da sua estima por mim. E, de momento, não me resta mais do que exprimir-lhe numa linguagem vigorosa a violência do meu afecto. Quanto a meios de fortuna, é um assunto a que eu devoto uma total indiferença, e não farei nesse sentido qualquer exigência a seu pai, visto que de antemão sei não poder contar com isso; e que se limita a um milhar de libras aquilo que a prima por direito receberá, apenas após o falecimento de sua mãe. Sobre este assunto, por isso, guardarei o mais escrupuloso silêncio; e pode estar certa de que nunca uma censura menos generosa passará alguma vez pelos meus lábios, uma vez casados.

Era absolutamente necessário interrompê-lo nesta altura.

- Mas que precipitação é essa? - exclamou ela. - O senhor esquece-se de que ainda não dei qualquer resposta. Deixe-me que o faça sem mais delongas. Aceite o meu agradecimento pelo elogio que me está fazendo. Tenho consciência da honra que o seu pedido me confere, mas é-me impossível outra atitude senão recusá-lo.

- Não me venha com isso - replicou o Sr. Collins, com um aceno formal da mão - pois eu sei que é costume entre as jovens repelir as atenções do homem que, secretamente, elas tencionam aceitar, quando pela primeira vez ele lhes solicita o seu favor; e que por vezes a recusa se repete uma segunda e até terceira vez. Não me sinto, por conseguinte, de nenhum modo desencorajado e espero poder em breve conduzi-la ao altar.

- Por Deus, senhor - exclamou Elizabeth -, a sua esperança é bem extraordinária após ter ouvido declaração como a minha. Garanto-lhe que não sou nenhuma daquelas jovens (se é que tais jovens existem) que se mostram tão audaciosas, a ponto de arriscar a sua felicidade na perspectiva de serem pedidas uma segunda vez. Estou sendo perfeitamente sincera na minha recusa. O senhor nunca «me» poderia fazer feliz e estou certa de que seria eu a última mulher no mundo capaz de o fazer «a si» igualmente feliz. Mais ainda, se acaso a sua amiga Lady Catherine me conhecesse, estou em crer que ela me consideraria em todos os aspectos inadequada à situação.

- Se acaso Lady Catherine pensasse de facto assim - disse o Sr. Collins, muito sério -, mas não me parece que Sua Excelência a desaprove sequer. E a prima pode estar certa de que, quando me for dada a honra de voltar a avistar-me com Sua Excelência, lhe falarei nos termos mais elevados da sua modéstia, parcimónia e outras qualidades que tais.

- Realmente, Sr. Collins, todo o elogio a meu respeito é absolutamente desnecessário. O senhor deve-me a oportunidade de me decidir e conceder-me-á a honra de acreditar no que lhe digo. Desejo-lhe uma felicidade imensa e uma vida próspera, e, ao recusar a sua mão, não faço mais do que evitar que o contrário lhe suceda. Ao fazer-me a proposta, o senhor terá, decerto, satisfeito a delicadeza dos seus sentimentos a respeito da minha família e poderá assim, uma vez chegada a ocasião, entrar na posse dos bens de Longbourn sem que qualquer escrúpulo o aflija, Trata-se, por conseguinte, de um assunto decididamente arrumado. - E, levantando-se à medida que assim falava, ela teria certamente deixado a sala, não fosse o Sr. Collins dirigir-se-lhe nos seguintes termos:

- Quando de novo me for concedida a honra de retomar o mesmo assunto, espero receber uma resposta bem mais favorável que aquela que por ora me foi dada; ainda que esteja longe de a acusar de crueldade no momento presente, pois sei que não passa de um costume aceite entre o belo sexo repelir o homem na primeira solicitação, e talvez a prima se tenha exprimido de tal modo no fito de encorajar o meu pedido, o que está perfeitamente de acordo com a mais pura delicadeza própria do carácter feminino.

- Na realidade, Sr, Collins - exclamou Elizabeth, com um certo ardor -, o senhor confunde-me de uma maneira extraordinária. Se o que acabei de lhe dizer surge aos seus olhos como uma forma de encorajamento, não sei como exprimir-lhe a minha recusa de modo que o senhor se convença de tal.

- Permita-me dizer-lhe, então, minha querida prima, que considero a sua recusa ao meu pedido destituída de qualquer fundamento e que, por conseguinte, não passa de uma mera formalidade. As razoes que me levam a pensar assim são, em resumo, as seguintes: não me parece que a minha mão seja indigna do seu acolhimento ou que as condições que eu lhe posso oferecer não sejam mais do que altamente desejáveis. A minha situação na vida, as minhas relações com a família de Bourgh e o meu parentesco com a sua própria família são circunstâncias altamente a meu favor; deve, além do mais, considerar que, apesar dos seus inúmeros atractivos, nada indica que venha a receber jamais outro pedido em casamento. O seu dote é, infelizmente, tão insignificante que, sem dúvida, anulará os efeitos de todo o seu encanto e das demais qualidades. Como de tudo isto sou levado a concluir que não está sendo sincera na recusa que me faz, decidir-me-ei por atribui-la ao seu desejo de ver aumentar o meu amor nela incerteza, de acordo com as práticas usuais das jovens elegantes.

- Garanto-lhe, Sr. Collins, que não tenho qualquer pretensão quanto a esse género de elegância que consiste em atormentar um cavalheiro respeitável. Preferiria que me elogiasse antes pela minha sinceridade. Mais uma vez lhe agradeço a honra que me foi concedida ao apresentar-me a sua proposta, mas aceitá-la é-me absolutamente impossível. Os meus sentimentos repelem-na sem hesitação de espécie alguma. Não fui já suficientemente clara? Deixe de me considerar uma jovem elegante tentando aguilhoá-lo, para ver em mim uma criatura racional que lhe fala do coração.

- A prima é de um encanto sempre igual! - exclamou ele, com um ar de desajeitada galantaria. - Estou persuadido de que, quando aprovada pela autoridade expressa dos seus excelentes pais, a minha proposta não deixará de ser aceite.

Perante tal obstinação em se iludir a si próprio, Elizabeth nada via a acrescentar e, em silêncio, tratou de se afastar sem demora; decidida, caso ele persistisse em considerar as suas repetidas recusas como um encorajamento lisonjeador, a solicitar a ajuda de seu pai, cuja negativa seria pronunciada de maneira a não permitir dúvidas e cujo comportamento, pelo menos, nunca poderia ser tomado como afectação ou coquetismo de uma mulher elegante.

O Sr. Collins não permaneceu só por muito tempo na silenciosa contemplação do seu feliz amor; pois a Sr.a Bennet, que se passeava no vestíbulo à espreita do fim da entrevista, mal viu Elizabeth abrir a porta e, num passo apressado, cruzar-se com ela na direcção das escadas, entrou na saleta e calorosamente felicitou-o e felicitou-se a si própria pelas radiosas perspectivas da sua próxima união. O Sr. Collins recebeu e retribuiu estas felicitações com igual prazer e passou a relatar os pormenores da entrevista, cujo resultado ele confiava poder classificar de satisfatório, uma vez que a recusa que a sua prima tão peremptoriamente lhe dera não provinha senão de uma tímida modéstia e da delicadeza genuína do seu carácter.

Esta informação, contudo, causou um certo alarme na Sr.a Bennet; gostaria de ser capaz de se mostrar igualmente satisfeita por sua filha ter pretendido encorajá-lo ao repelir o seu pedido, mas custava-lhe acreditar em tal, e não se absteve de lho dizer.

- Mas pode estar certo, Sr. Collins - acrescentou ela -, que Lizzy acabará por se convencer. Vou deste mesmo passo conversar com ela sobre o assunto. Ela é uma rapariga muito teimosa e insensata e não sabe ver. onde está o seu interesse; mas eu «mostrar-lho-ei».

- Perdoe-me interrompê-la, minha senhora - exclamou o Sr. Collins -, mas, se ela é, na realidade, tão teimosa e insensata como mo diz, já não estou tão certo de que ela se possa tornar na esposa ideal para um homem na minha situação, que, naturalmente, procura a harmonia no casamento. Se, por conseguinte, ela persiste em recusar o meu pedido, talvez fosse preferível não forçá-la a aceitar-me, uma vez que, sujeita a tais defeitos de temperamento, ela pouco contribuiria para a minha felicidade.

- Sr. Collins, o senhor não me percebeu - disse a Sr.a Bennet, alarmada. - Lizzy mostra-se teimosa apenas em casos como estes. Em tudo o resto ela é de uma doçura como eu nunca vi igual. Vou imediatamente falar com o Sr. Bennet e em breve poderemos dar o assunto por arrumado entre nós.

Não lhe dando tempo sequer para responder, saiu precipitadamente ao encontro de seu marido, e, entrando de rompante na biblioteca, proferiu numa voz agitada:

- Oh!, Sr. Bennet, necessito com urgência da sua ajuda; estamos todos em alvoroço. E preciso que venha e obrigue Lizzy a casar com o Sr. Collins, pois ela jura a pés juntos que não o fará e, se o senhor não se apressa, ele poderá mudar de ideias e, por sua vez, também não a querer.

O Sr. Bennet ergueu os olhos do livro quando a viu entrar e fixou-os no seu rosto, numa calma indiferença que em nada se alterou com a comunicação dela.

- Desculpe-me, mas não entendo nada do que me diz - disse ele, após ela ter terminado a sua arenga. - De que está falando?

- Do Sr. Collins e de Lizzy. Lizzy declara que não quer o Sr. Collins e o Sr. Collins começa a dizer que também não pretende Lizzy.

- E que espera que eu faça em tal situação? Parece tratar-se de um assunto sem remédio.

- Converse o senhor com Lizzy. Diga-lhe que insiste para que ela case com ele.

- Chame-a, então. Ela ouvirá o que tenho para lhe dizer.

A Sr.a Bennet tocou a campainha e a Menina Elizabeth foi convocada à biblioteca.

- Vem cá, minha filha - exclamou seu pai, quando a viu aparecer. - Mandei-te chamar por causa de um assunto importante. Pelo que entendi, o Sr. Collins pediu-te em casamento. é verdade? - Elizabeth respondeu afirmativamente. - Muito bem... e esta oferta tu recusaste-la?

- Recusei-a, meu pai.

- Muito bem. Estamos a chegar agora ao fundo da questão. A tua mãe insiste para que tu o aceites. Não é isso, Sr.a Bennet?

- Sim, ou nunca mais a quererei ver.

- Oferece-te uma difícil alternativa, Elizabeth. A partir de hoje não passarás de uma estranha aos olhos de um de nós. Se «não casas» com o Sr. Collins, tua mãe nunca mais te quererá ver; se «casas», serei eu que te repudiarei.

Elizabeth não pôde reprimir um sorriso perante tal conclusão para tal começo; mas a Sr.a Bennet, que estava persuadida de que o marido encarava o assunto como ela o desejava, sofreu um desapontamento profundo.

- Francamente, Sr. Bennet, onde pretende chegar com tal conversa? O senhor prometeu-me «insistir» com ela para que casasse com ele.

- Minha querida - replicou-lhe o marido -, tenho dois pequenos favores a pedir-lhe. Primeiro, que no momento presente me autorize o pleno gozo do meu entendimento; e segundo, o do meu espaço vital. Ficar-lhe-ia eternamente grato se deixasse o mais breve possível a biblioteca à minha inteira disposição.

Mas não foi desta feita, contudo, e apesar do desapontamento causado pelo marido, que a Sr.a Bennet desistiu do seu intento. Continuou insistente na sua tarefa de persuadir Elizabeth, quer usando da lisonja, quer por meio de ameaças. Tentou por todos os meios atrair Jane à sua causa, mas esta, com toda a afabilidade ao seu alcance, declinou interferir; e Elizabeth, ora extremamente séria, ora alegre e jocosa, não evitava os ataques da mãe. Embora a sua disposição variasse, na vontade mantinha-se inabalável.

O Sr. Collins, entretanto, entregara-se a uma solitária meditação sobre o que se passara. Tinha uma elevada opinião de si próprio para compreender a razão pela qual a sua prima o recusara; e, embora se sentisse atingido no seu orgulho, nada mais o afectava. A sua estima por ela era puramente imaginária; e a possibilidade de ela merecer a censura de sua mãe impedia-o de sentir qualquer pena.

Vivia a família toda esta agitação, quando apareceu Charlotte Lucas, que viera no propósito de passar o dia com as suas amigas. No vestíbulo foi recebida por Lydia, que, precipitando-se para ela, lhe segredou ao ouvido:

- Ainda bem que vieste, porque te vais divertir um bocado! Que calcules tu que se passou aqui esta manha? O Sr. Collins pediu Lizzy em casamento, mas Lizzy não está pelos ajustes.

Charlotte não teve sequer tempo para lhe responder, pois Kitty, que entretanto também acorrera ao seu encontro, repetia-lhe em atropelo a mesma novidade, e ainda mal tinham passado a porta da saleta, onde a Sr.a Bennet se encontrava sozinha, quando esta se referiu igualmente ao assunto, apelando para a compaixão da Menina Lucas e implorando-lhe encarecidamente que persuadisse a sua amiga Lizzy a aceder aos desejos de toda a sua família.

- Faça-me esse favor, querida Menina Lucas - acrescentou em tom melancólico -, pois não tenho ninguém do meu lado, ninguém que me apoie, sou cruelmente tratada, ninguém quer saber dos meus pobres nervos.

Charlotte não teve, felizmente, que responder, pois Jane e Elizabeth acabavam de entrar.

- Pois aí vem ela - continuou a Sr.a Bennet -, maravilhosamente despreocupada e ralando-se tanto por nossa causa como se não existíssemos, posto que tudo corra à sua maneira. Mas oiça bem o que lhe digo, Menina Lizzy: se está decidida a continuar recusando deste modo todos os pedidos de casamento, acabará por nunca arranjar um marido... e não faço ideia de quem a vai sustentar após a morte de seu pai. Não contes comigo, desde já te previno. A partir de hoje deixaste de existir para mim. Na biblioteca avisei-te do que aconteceria, e verás como cumpro com a minha palavra. Não me agrada falar para filhas mal agradecidas. Não é que eu tenha um grande prazer em f lar para não importa quem. Pessoas que, como eu, sofrem de doenças nervosas não podem sentir grande inclinação para falar. Ninguém imagina o que eu sofro! Mas é sempre assim. Dos que não se queixam ninguém tem dó.

As filhas escutaram em silêncio o seu desabafo, cientes de que qualquer tentativa em persuadi-la do contrário ou acalmá-la apenas agravaria a sua irritação. E ela continuou, sempre na mesma toada e sem que nenhuma delas se atrevesse a interrompê-la, até que apareceu o Sr. Collins, com um ar mais digno do que o costume, e, ao avistá-lo, ela disse para as raparigas:

- Agora, peço-lhes, nem mais uma palavra sobre o assunto e deixem-me a sós com o Sr. Collins, pois precisamos de conversar.

Elizabeth abandonou calmamente a sala, seguida por Jane e Kitty, mas Lydia deixou-se ficar, decidida a ouvir tudo o que pudesse; e Charlotte, retida a princípio pela amabilidade do Sr. Collins, cujas inquirições acerca dela e de toda a sua família eram bastante minuciosas, e em seguida, graças a uma certa curiosidade, contentou-se em ir para junto de uma janela e fingir não ouvir. Numa vos pesarosa, a Sr.a Bennet deu início à projectada conversa, exclamando:

- Oh!, Sr. Collins!

- Minha querida senhora - respondeu-lhe ele -, incito-a a guardarmos para sempre o silêncio sobre tal assunto. Estou longe - continuou ele, numa voz que acentuava o seu desagrado - de me ofender com o comportamento de sua filha. É um dever comum a todos nós resignarmo-nos perante males inevitáveis; e é o dever especial de um jovem como eu, que teve a felicidade de prematuramente se ver numa posição de destaque; e creio ter alcançado essa resignação. A ela não é estranho, talvez, o sentimento de uma certa dúvida quanto à minha felicidade absoluta, tivesse a minha encantadora prima acedido ao meu pedido; pois com frequência tenho observado que a resignação nunca atinge o seu grau de perfeição senão quando o beneficio que nos é negado começa a perder algo do seu valor na nossa estima. Espero, minha querida senhora, que não veja na minha atitude qualquer desconsideração para com a sua família, tanto ao retractar-me nas minhas pretensões à mão de sua filha, como pelo facto de não lhes ter concedido, à senhora e ao Sr. Bennet, a oportunidade de interpor a vossa autoridade em defesa do meu interesse. Terei, talvez, incorrido no vosso desagrado por ter aceite a minha demissão directamente da boca de vossa filha, e não da vossa. Mas todos estamos sujeitos a cair em erro. Fui um bem intencionado, desde o início até ao fim. Era meu objectivo assegurar-me uma companheira fiel e adorável, considerando simultaneamente a vantagem que daí adviria para toda a vossa família, mas, se acaso os meus modos suscitaram a vossa desaprovação, desde já lhes peço que me concedam o perdão.

 

A discussão a propósito do pedido do Sr. Collins tinha praticamente acabado e Elizabeth estava sujeita apenas à sensação inconfortável que necessariamente acompanha tal situação e ao azedume das alusões que sua mãe ocasionalmente lhe dirigia. Quanto ao cavalheiro, os seus sentimentos revelavam-se, sobretudo, não numa atitude de embaraço ou abatimento, nem ao tentar evitá-la, mas por uma agravada afectação nos modos, acompanhada de um silêncio rancoroso. Raramente lhe dirigia a palavra e as atenções assíduas de que ele tanto se ufanava foram transferidas durante o resto do dia para a pessoa da Menina Lucas, cuja delicadeza em escutá-lo se tornou numa ajuda preciosa para todos eles, e para a sua amiga em especial.

A manhã seguinte não registou qualquer diminuição no mau humor da Sr.a Bennet ou melhoria no seu estado de saúde. O Sr. Collins mantinha-se, igualmente, na mesma disposição de orgulho ferido. Elizabeth alimentara a esperança de que o seu ressentimento abreviasse a visita, mas o seu plano parecia não sofrer qualquer alteração. A partida estava fixada para sábado, e até sábado ele fazia tenções de ficar.

Após o pequeno-almoço, as raparigas foram em passeio a Meryton, para saberem do Sr. Wickham e lamentarem a ausência dele no baile de Netherfield. à entrada da vila, ele acorreu ao seu encontro e acompanhou-as a casa da tia, onde muito se disse sobre a sua pena e aborrecimento e o interesse de todas elas. A Elizabeth, contudo, ele confessou ter-se imposto a si próprio a necessidade de se ausentar.

- Considerei - disse ele -, à medida que o tempo se aproximava, que seria preferível não me encontrar com o Sr. Darcy; que achar-me com ele na mesma sala, na mesma festa, durante tantas horas seguidas seria superior às minhas forças, podendo dar azo a cenas desagradáveis, não só para mim como também para outros.

Ela aprovou, entusiasmada, a sua atitude e tiveram ocasião para a sua discussão pormenorizada, assim como para todos os elogios que amavelmente trocavam entre si, visto Wickham e um outro oficial as terem acompanhado no seu regresso a Longbourn e durante o passeio ele ter caminhado quase sempre a seu lado. Nesta sua adesão ao passeio, ela via uma vantagem dupla; além de se tratar de um gesto particularmente lisonjeador para com ela, seria a altura propícia para o apresentar a seus pais.

Pouco depois de terem chegado, entregaram uma carta à Menina Bennet; provinha de Netherfield, e imediatamente foi aberta. O envelope encerrava uma elegante folha de papel calandrado, impecavelmente preenchida com uma letra de senhora, bonita e harmoniosa; e Elizabeth viu a fisionomia da irmã alterar-se à medida que a lia e viu-a demorar-se atentamente nalgumas passagens. Jane em breve se recompôs e, guardando a carta, tentou, com a sua boa disposição habitual, participar na conversa dos outros; mas Elizabeth não pôde evitar sentir uma certa ansiedade, que a distraiu até da pessoa do Sr. Wickham; e, tão logo ele e o seu companheiro se despediram, um olhar de Jane convidou-a a segui-la. Uma vez a sós, Jane pegou na carta e disse:

- É de Caroline Bingley; o seu conteúdo surpreendeu-me bastante. Por estas horas já todos terão deixado Netherfield e encontram-se a caminho da capital; e sem intenção de regressar. Verás o que ela aqui diz.

Então, em voz alta, procedeu à leitura da primeira frase que a informava de elas terem, de um momento para o outro, resolvido acompanhar de vez o irmão até à capital e da sua intenção de jantarem ainda naquele dia ria Rua Grosvernor, onde o Sr. Hurst possuía uma casa. A seguinte vinha expressa nestas palavras: «Nada tenho que me prenda a Hertfordshire, excepto a sua amizade, minha querida amiga; mas haja a esperança de, um dia no futuro, voltarmos a gozar a repetição dos deliciosos momentos passados juntas e que, entretanto, a dor da separação seja mitigada por uma correspondência assídua e franca. Conto consigo para tal.» Elizabeth escutou estas estudadas expressões com toda a insensibilidade da desconfiança; e, embora aquela súbita partida não deixasse de a surpreender, não via nela caso para lamentar; não era de supor que a sua ausência de Netherfield acarretasse a do Sr. Bingley também: e, quanto à perda da amizade entre elas, era da opinião de que Jane a devia esquecer no gozo da do irmão.

- Foi pena - disse ela após uma pequena pausa - não teres tido a oportunidade de te avistares com as tuas amigas antes de elas partirem. Mas não nos é licito esperar que o tal dia de felicidade futura, que a Menina Bingley antevê, ocorra mais cedo do que ela pensa e que os deliciosos momentos vividos por vós como amigas sejam revividos com satisfação maior ainda na qualidade de irmãs? O Sr. Bingley não se deixará prender por elas em Londres.

- Caroline afirma declaradamente que nenhum deles virá para Hertfordshire este Inverno. Vou ler-te essa passagem: «Quando meu irmão ontem nos deixou, estava firmemente persuadido de que os assuntos que o levavam a Londres estariam concluídos dentro de três ou quatro dias, mas, como estamos certas de que tal não pode acontecer e ao mesmo tempo convencidas de que, uma vez na capital, Charles não terá pressa em de lá sair, decidimos acompanha-lo para lhe evitar as incomodidades de um hotel. Já ali se encontram várias pessoas das minhas relações a passar o Inverno; seria para mim uma grande alegria vir a saber que a minha querida amiga fazia também parte do grupo, mas não chego a acreditar. Desejo-lhe sinceramente um Natal em Hertfordshire prolífero em alegrias próprias de quadra tão feliz e que não lhe faltem admiradores, para que não sinta a ausência dos três de que a privamos.»

- É bem evidente - acrescentou Jane - que ele não regressa este Inverno.

- Torna-se apenas evidente que a Menina Bingley não pretende que ele venha.

- O que te leva a pensar assim? É ele que tem de decidir. Ele é senhor de si próprio. Mas não é «tudo». «Vou» ler-te a passagem que particularmente me feriu. Não pretendo esconder-te nada: «O Sr. Darcy está impaciente por ver a irmã e, para lhe dizer a verdade, também nós ansiamos por a encontrar de novo. Estou realmente convencida de que Georgiana Darcy não tem par, tanto na beleza e elegância como nos dotes; e a afeição que ela nos inspira, a Louisa e a mim, eleva-se a algo de bem mais atraente, pela esperança que ousamos acalentar de um dia ela se tornar nossa irmã. Não me recordo de alguma vez lhe ter mencionado os meus sentimentos sobre o assunto, mas não partirei sem lhos ter confiado, e espero que a minha boa amiga não os considere de algum modo injustificados. Já há algum tempo que o meu irmão devota a esta menina grande admiração e terá agora a oportunidade de a ver com frequência e numa maior intimidade. A família dela leva tanto em gosto a união como nós próprios, e creio não me iludir na minha parcialidade ao considerar Charles capaz de conquistar qualquer coração feminino. Com todas estas circunstâncias em favor de um afecto recíproco, e sem que nada haja a impedi-lo, estarei eu enganada, minha querida Jane, ao acreditar na possibilidade de um acontecimento que fará a felicidade de tantos?» Que pensas «desta» frase, minha querida Lizzy? - disse Jane, ao terminar a sua leitura. - Não é suficientemente clara? Não exprime ela sobejamente que Caroline não espera nem deseja ver em mim a sua futura irmã; que ela está perfeitamente convencida da indiferença do irmão e que, se ela suspeitando da natureza dos meus sentimentos por ele, pretende com isto (muito caridosamente!) prevenir-me? Poder-se-á pensar de outro modo?

- Sim, claro; pois eu penso de modo totalmente diferente. Queres ouvir?

- Com certeza.

- Pois vais ficar a sabê-lo em poucas palavras. A Menina Bingley vê que o irmão gosta de ti, mas pretende que ele case com a Menina Darcy. Ela segue-o até à capital na esperança de aí o conservar e tenta persuadir-te de que ele não se interessa por ti.

Jane abanou a cabeça.

- Oh!, Jane, acredita no que te digo! Nenhuma pessoa que vos tenha visto juntos poderá duvidar da sua atracção por ti. A Menina Bingley, pelo menos, não o duvida. Ela não é tão tola como isso. Tivesse ela encontrado uma pequena parcela que fosse de amor idêntico no Sr. Darcy, a estas horas teria já encomendado o enxoval. Mas o que se passa é o seguinte: nós não somos suficientemente ricas, ou suficientemente importantes, para a categoria deles; e, se ela está tão ansiosa por casar o irmão com a Menina Darcy, é porque imagina que, uma vez unidas as duas famílias, ela terá menos dificuldade em realizar um segundo casamento; o que é, sem dúvida, bastante engenhoso e estou em crer que resultaria, não fosse a existência da Menina de Bourgh. Mas, minha querida Jane, não te convenças, lá porque a Menina Bingley diz que o irmão admira a Menina Darcy, de que ele te aprecia menos que quando na terça-feira se despediu de ti, ou que ela possa alguma vez persuadi-lo de que, apesar de estar apaixonado por ti, está também muito apaixonado pela amiga dela.

- Se ambas pensássemos o mesmo da Menina Bingley - replicou Jane -, a tua representação dos factos tranquilizar-me-ia bastante. Mas eu sei quão injusto é o fundamento. Caroline é incapaz de enganar alguém; e só me resta esperar que seja ela quem está enganada.

- Está certo. Não poderias ter encontrado ideia mais feliz, uma vez que te recusas a refugiar-te na minha. Esforça-te por acreditar que o engano é apenas dela, e agora, que cumpriste a tua obrigação para com a tua amiga, não te apoquentes mais.

- Mas, minha querida irmã, como poderei eu ser feliz, mesmo supondo, o melhor, ao aceitar um homem cujas irmãs e amigas desejam casado com outrem?

- Tens de decidir por ti - disse Elizabeth -; e se, após aturada deliberação, considerares que a tua tristeza em descontentares as irmãs é superior à felicidade de te tornares sua esposa, nessa altura aconselho-te a recusá-lo.

- Como podes dizer tal coisa? - disse Jane, esboçando um sorriso -; deverias saber que, embora eu sentisse um grande desgosto pela desaprovação das irmãs, nunca poderia hesitar.

- Sou da mesma opinião; e, sendo assim, não vejo caso para grandes aflições.

- Mas, se ele não volta este Inverno, não terei a oportunidade de fazer a minha escolha. E sabe Deus o que pode acontecer nesses seis meses!

Elizabeth recusou terminantemente aceitar a ideia de ele nunca mais voltar. Afigurava-se-lhe não passar de uma mera sugestão inspirada pelo interesse da Menina Bingley, e não queria, nem por um segundo, admitir que essa sugestão, por mais declarada e engenhosa que ela fosse, pudesse influenciar jovem tão independente como ele.

Ela revelou à irmã, tão convincentemente quanto possível, a sua maneira de encarar o assunto, e em breve teve o prazer de constatar o seu feliz efeito. Jane não era dada à melancolia e, gradualmente, foi serenando, embora por vezes a incerteza de ser amada se sobrepusesse à esperança de que Bingley alguma vez regressasse a Netherfield e correspondesse a todos os desejos do seu coração.

Decidiram entre si informar a Sr.a Bennet apenas da súbita partida, evitando causar-lhe alarme perante o comportamento do cavalheiro; mas bastou esta informação para a preocupar, e então deplorou a infelicidade de os ver partir exactamente quando se tornavam mais íntimos. Após se ter demoradamente lamentado, procurou a consolação na ideia de que o Sr. Bingley em breve regressaria e em breve se encontraria jantando em Longbourn, e, à guisa de conclusão, reconfortada, declarou que, embora ela o tivesse convidado para um jantar em família, preparar-lhe-ia um lauto banquete.

 

Os Bennet foram convidados para jantar com a família Lucas e de novo a Menina Lucas se prestou à amabilidade de fazer companhia ao Sr. Collins durante grande parte do dia. Elizabeth aproveitou, em dada ocasião, para lho agradecer.

- Tu entretens-lo - disse-lhe ela - e fico-te extremamente grata por isso.

Charlotte asseverou a amiga de que era para ela uma satisfação saber-se de alguma utilidade e que se sentia com isso amplamente recompensada pelo pequeno sacrifício do seu tempo. Era, sem dúvida, muito simpático da sua parte, mas a generosidade de Charlotte ia mais além daquilo que Elizabeth pudesse alguma vez supor; o seu objectivo resumia-se em poupar, de facto, a amiga a um possível retorno das atenções do Sr. Collins, mas, ao fazê-lo, atrair para si essas mesmas atenções. Tal era o esquema da Menina Lucas; e as perspectivas pareciam tão favoráveis que, à noite, quando se separaram, ela sentir-se-ia segura de um bom êxito, não fosse ele ter de abandonar Hertfordshire em breve. Mas neste ponto não deu o devido valor ao ardor e independência do carácter do cavalheiro, que o levaram na manhã seguinte a esgueirar-se de Longbourn com admirável astúcia e tomar resolutamente o caminho da casa dos Lucas, para se lançar a seus pés. A sua intenção ao procurar passar desapercebido baseava-se na convicção de que, acaso as primas o vissem partir, elas não deixariam de adivinhar o seu objectivo, e ele não estava disposto a dar a conhecer o empreendimento senão quando tivesse a certeza do seu êxito total; pois, embora se sentisse seguro, e com razão, visto Charlotte se ter mostrado suficientemente encorajadora, não conseguia evitar uma certa desconfiança desde a aventura de quarta-feira passada.

A sua recepção, contudo, foi extremamente lisonjeira. A Menina Lucas, que de uma janela o avistara caminhando na direcção da casa, imediatamente saiu para, acidentalmente, com ele se cruzar na azinhaga. Porém, nunca ela ousou supor ir ao encontro de tanto amor e eloquência.

Em tão pouco tempo quanto os longos discursos do Sr. Collins o permitiram tudo ficou decidido entre eles, a contento de ambos; e, ao entrarem em casa, ele gravemente rogou-lhe que fixasse o dia que o tornaria no mais feliz dos mortais; e, embora tal solicitação devesse por ora ser adiada, a donzela não se sentia inclinada a menosprezar a felicidade dele. A estupidez de que a natureza o dotara preservaria a sua corte de todo o encanto que pudesse levar uma mulher a desejar a sua duração; e a Menina Lucas, que o aceitara unicamente pelo simples e desinteressado desejo de se estabelecer, não via inconveniente quanto à brevidade com que o realizaria.

Sir William e Lady Lucas foram prontamente convocados a dar o seu consentimento, o qual foi concedido com um entusiasmo esfuziante. A actual condição do Sr. Collins tornava a união bastante vantajosa para sua filha, a quem não tinham grande fortuna para deixar; além de que as perspectivas dele quanto ao futuro eram extremamente promissoras. Lady Lucas viu-se no mesmo instante a calcular, com um interesse maior, que o assunto alguma vez lhe suscitara, por quantos anos viveria ainda o Sr. Bennet; e Sir William frisou, categórico, que, uma vez na posse de Longbourn, o Sr. Collins veria chegado o momento oportuno para se apresentar com a mulher em St. James. Em resumo, toda a família se regozijou particularmente pela ocasião. As raparigas mais novas afagaram a esperança de «aparecer» em sociedade um ano ou dois mais cedo do que de outro modo teria acontecido; e os rapazes libertaram-se da sua apreensão de ver Charlotte chegar ao fim da sua vida como uma velha solteirona. A própria Charlotte se mostrava radiante. Uma vez atingido o seu fim, tinha todo o tempo disponível para reflectir sobre ele. O resultado das suas reflexões era, em geral, satisfatório. o Sr. Collins, com efeito, não era um homem sensato, nem agradável, tão-pouco; em convívio tornava-se terrivelmente enfadonho e o seu afecto por ela era, sem dúvida, simples fruto da imaginação. Contudo, seria ele o seu marido. Sem que nunca tivesse devotado uma atenção especial aos homens ou ao matrimónio, considerara sempre o casamento como o seu objectivo último; era, aos seus olhos, a única precaução respeitável susceptível de ser tomada pelas jovens educadas e de pequena fortuna, e, embora nem sempre garantisse a felicidade, não deixaria de ser o refúgio mais agradável perante a iminência de uma vida necessitada. Esse refúgio, ela acabara de o atingir; e, com vinte e sete anos de idade, sem que nunca tivesse sido bonita, ela sentia-se plenamente satisfeita por isso. A perspectiva menos agradável que se lhe oferecia era a surpresa que iria causar em Elizabeth Bennet, cuja amizade ela estimava acima da de qualquer outra pessoa. Elizabeth admirar-se-ia da sua atitude e não deixaria de a censurar; e, embora não permitisse que a sua resolução fosse de algum modo abalada, não poderia deixar de sentir-se ferida por tal desaprovação. Decidiu informá-la ela própria, e, como medida, instruiu o Sr. Collins para que, quando de regresso a Longbourn, não deixasse escapar qualquer alusão ao assunto. A promessa de manter o segredo foi, naturalmente, feita com pronta submissão, mas não poderia ser mantida de animo leve, pois a curiosidade suscitada pela sua longa ausência irrompeu, por altura do seu regresso, em perguntas tão incisivas que requeria uma certa habilidade em iludi-las, quando, para mais, ele estava exercitando grande abnegação, pois era enorme a sua ansiedade em tornar do domínio público o seu bem sucedido amor.

Como a sua partida no dia seguinte estava marcada para hora bastante matinal, a cerimónia das despedidas teve lugar naquela mesma noite, pouco antes de as senhoras se retirarem. A Sr.a Bennet, extremamente delicada e cordial, disse-lhe da felicidade que, todos teriam em vê-lo de novo em Longbourn, sempre que os seus outros compromissos lho permitissem.

- Minha querida senhora - replicou ele -, o seu convite afecta-me particularmente, pois outra coisa eu não esperava; e pode estar certa de que dentro em breve o utilizarei.

Houve surpresa geral; e o Sr. Bennet, que não tinha qualquer desejo em tornar a vê-lo tão cedo, imediatamente disse:

- Mas não haverá o perigo de incorrer no desagrado de Lady Catherine? É preferível negligenciar os seus parentes a correr o risco de ofender a sua patrona.

- Meu caro senhor - replicou o Sr. Collins -, estou-lhe particularmente agradecido por tão amável advertência e fique ciente de que não darei tal passo sem a aprovação explícita de Sua Excelência.

- Uma certa cautela nunca é demasiada. Arrisque tudo, excepto dar-lhe motivo para desagrado; e, acaso o senhor receie poder vir a suscitá-lo ao pretender regressar para junto de nós, o que eu considero quase como uma certeza, deixe-se ficar pacatamente em sua casa e não pense que nos sentiremos melindrados com isso.

- Acredite-me, meu caro senhor, que não tenho palavras para agradecer tão afectuosa atenção; e pode, muito em breve, contar com uma missiva da minha parte em agradecimento por esta sua atitude e por todas as outras provas de atenção de que fui alvo durante a minha estada no Hertfordshire. Quanto às minhas formosas primas, embora a minha ausência não deva ser tão longa que o justifique, aqui tomo a liberdade de lhes desejar muita saúde e felicidades, não exceptuando a minha prima Elizabeth.

Com as adequadas manifestações de delicadeza, as senhoras retiraram-se finalmente, comentando entre si a sua igual surpresa por o ver planear um pronto regresso. A Sr.a Bennet insistia em não encontrar outra explicação senão no facto de ele tencionar transferir as suas atenções para uma das suas filhas mais novas e considerou que Mary seria aquela que mais facilmente se convenceria a aceitá-lo. De facto, ela tinha das faculdades dele uma opinião mais elevada que qualquer uma das outras; constatara uma solidez nas suas reflexões que por várias vezes a impressionou, e, embora não o considerasse de modo algum tão inteligente como ela própria, acreditava que, por meio do seu exemplo, ele se dedicaria mais aos livros, num esforço de se aperfeiçoar, tornando-se possivelmente até num companheiro bastante agradável. Na manhã seguinte, contudo, todas estas esperanças se desvaneceram. A Menina Lucas fez o seu aparecimento logo após o pequeno-almoço e, numa entrevista a sós com Elizabeth, pô-la ao corrente do acontecimento da véspera.

Que o Sr. Collins pudesse ter tido a ideia de morrer de amores pela sua amiga, ocorrera a Elizabeth pensar uma vez, pelo menos, naqueles dois últimos dias; mas que a própria Charlotte o tivesse encorajado parecia-lhe tão impossível que o seu pasmo ultrapassou os limites do decoro e a levou a exclamar:

- Noiva do Sr. Collins, minha querida Charlotte!... É impossível!

A expressão séria e decidida que a Menina Lucas conservara durante o relato da sua história cedeu perante uma perturbação passageira ao ouvir censura tão declarada, mas, como não era mais do que aquilo que já esperava, em breve recuperou a serenidade e calmamente respondeu:

- Porque te surpreendes assim, querida Elizabeth? Acaso consideras o Sr. Collins incapaz de granjear a boa opinião de uma mulher, só porque ele não teve a felicidade de conquistar a tua?

Mas Elizabeth recompôs-se a tempo e, por meio de um grande esforço, foi capaz de, numa voz razoavelmente firme, assegurar a amiga da satisfação que lhe dava a perspectiva de um parentesco entre elas e desejar-lhe uma felicidade imensa.

- Sei o que pensas - replicou Charlotte -, deves estar surpreendida, muitíssimo surpreendida até... ainda há tão poucos dias o Sr. Collins pretendia casar contigo. Mas, quando te deres ao trabalho de reflectir em tudo isto, estou certa de que concordarás comigo. Como deves saber, eu não sou uma romântica. Nunca o fui. Apenas desejo um lar confortável; e, considerando o carácter do Sr. Collins, as suas relações e situação na vida, estou convencida de que as probabilidades que se me oferecem de vir a ser feliz com ele são tantas quanto as da maioria ao darem tal passo.

Elizabeth, serenamente, respondeu:

- Sem dúvida! - e, após uma pausa embaraçosa, foram juntar-se ao resto da família. Charlotte não se demorou muito mais e Elizabeth pôde então reflectir sobre o que acabara de ouvir. Levou muito tempo a reconciliar-se com a ideia de casamento tão absurdo. A singularidade de o Sr. Collins fazer dois pedidos de casamento num prazo de três dias nada era em comparação com o facto de ter sido agora aceite. Ela sempre sentira que as ideias de Charlotte não correspondiam exactamente às suas, mas nunca supusera que, uma vez perante a realidade, ela fosse capaz de sacrificar o sentimento a considerações de ordem material. Charlotte, como esposa do Sr. Collins, oferecia-lhe uma imagem extremamente humilhante! E à dor de uma amiga desgraçando-se a si própria e deteriorando-se na sua estima juntava-se a convicção aflitiva de que era impossível a essa amiga encontrar a felicidade no caminho que escolhera.

 

Elizabeth encontrava-se na sala, junto de sua mãe e de suas irmãs, reflectindo no que ouvira e hesitando se acaso estaria autorizada a mencioná-lo, quando entrou Sir William Lucas em pessoa, enviado pela filha a participar o noivado. Cumprimentando-as calorosamente e felicitando-se pela perspectiva de uma ligação entre as duas famílias, revelou o objectivo da sua visita, perante uma audiência não apenas surpreendida, como sobretudo incrédula; pois a Sr.a Bennet, com uma perseverança maior do que a delicadeza o permitia, sustentava que ele devia estar redondamente enganado, e Lydia, sempre irreflectida e frequentemente descortês, exclamava desabridamente:

- Meu Deus! Sir William, que história é essa? Então não sabe que o Sr. Collins pretende casar com Lizzy?

Nada, que não ser a complacência de um cortesão, teria suportado imperturbável tal tratamento; mas a boa educação de Sir William não o abandonou; e, embora ele lhes pedisse licença para as assegurar da veracidade da sua informação, foi com estóica cortesia que prestou ouvidos a toda a sua impertinência.

Elizabeth, então, sentindo-se chamada a libertá-lo de situação tão desagradável, adiantou-se e confirmou o relato, referindo o conhecimento prévio que dele obtivera da própria Charlotte; e tentou pôr cobro às exclamações de sua mãe e de suas irmãs congratulando sinceramente Sir William, no que foi prontamente secundada por Jane, e fazendo uma série de observações quanto à felicidade que seria de esperar de tal união, ao caracter do Sr. Collins e à distância adequada a que Hunsford se encontrava de Londres.

A Sr.a Bennet ficara, com efeito, profundamente afectada para conseguir pronunciar-se durante o tempo em que Sir William ali permaneceu; mas, mal ele as deixou, os seus sentimentos imediatamente afluíram em catadupa. Primeiro, ela persistia em não acreditar em tudo aquilo; segundo, jurava que o Sr. Collins tinha sido pura e simplesmente apanhado; terceiro, tinha a certeza de que eles nunca seriam felizes os dois; e quarto, desejaria que o noivado se rompesse. Porém, de tudo isto extraía duas conclusões; uma delas, que Elizabeth era a causadora de todo o mal; e a outra, que ela própria fora barbaramente tratada por todos eles; e sobre estes dois pontos ela discorreu incansavelmente durante o resto do dia. Nada havia que a consolasse ou, mesmo, a tranquilizasse. E o seu ressentimento não se apagou com o dia. Uma semana decorreu antes que ela pudesse encarar Elizabeth sem lhe dirigir inflamadas repreensões; um mês passou antes que ela conseguisse falar para Sir William ou Lady Lucas sem se mostrar grosseira; e vários meses transcorreram antes que ela tivesse perdoado totalmente a sua filha.

As emoções do Sr. Bennet pela ocasião eram de índole bem diversa, e, após tê-las experimentado, classificou-as nada menos do que bastante agradáveis; pois consolava-o, disse ele, descobrir que Charlotte, que ele tinha na conta de uma rapariga sensata, era, afinal, tão estouvada como sua mulher e mais estouvada que sua filha!

Jane confessou-se um pouco surpreendida com o noivado, mas dedicou menos palavras ao seu espanto que ao desejo sincero de os ver felizes; e nem mesmo Elizabeth a conseguiu convencer de tal improbabilidade. Kitty e Lydia estavam longe de invejar a sorte da Menina Lucas, visto o Sr. Collins não passar de um pastor; e no assunto outro interesse não viam, senão pelo facto de se tratar de um belo mexerico a espalhar em Meryton.

Lady Lucas não era insensível ao triunfo de poder dar réplica à Sr.a Bennet sobre o conforto de ter uma filha bem casada; e as suas visitas a Longbourn sucediam-se com uma frequência maior do que a habitual, embora a expressão carrancuda da Sr.a Bennet e os comentários desagradáveis que ela não se abstinha de fazer bastassem para afugentar toda a alegria.

Entre Elizabeth e Charlotte subsistia um constrangimento que as impedia de tocar no assunto entre si; e Elizabeth estava persuadida de que a amizade que um dia as unira nunca mais voltaria a ser a mesma. A desilusão sofrida com Charlotte fê-la voltar-se com um carinho redobrado para sua irmã, sobre cuja rectidão e delicadeza ela sabia poder contar e por cuja felicidade ela se inquietava cada vez mais, pois já decorrera uma semana depois que Bingley partira e ainda nada se sabia sobre o seu regresso.

Jane respondera prontamente à carta de Caroline e contava os dias à espera de novas noticias dela. A prometida carta de agradecimento do Sr. Collins chegou na terça-feira, dirigida ao pai das raparigas e escrita com toda a solenidade e gratidão que a estada de um ano no seio da família teria inspirado. Após ter satisfeito a sua consciência neste capítulo, prosseguiu na sua missiva, informando-os, com expressões verdadeiramente arrebatadoras, da sua felicidade em ter conquistado a afeição da tão simpática vizinha, a Menina Lucas, e aproveitando o ensejo para explicar que fora apenas pensando no prazer da companhia dela, que ele aderira tão entusiasticamente ao simpático desejo de o tornarem a ver em Longbourn, onde ele contava chegar da próxima segunda-feira a quinze dias; pois Lady Catherine, acrescentava ele, aprovava tão calorosamente o seu casamento que o desejava ver realizado quanto antes, o que ele considerava argumento irrefutável junto da sua adorável Charlotte e que a levaria a fixar o dia que o tornaria no mais feliz dos mortais.

O regresso do Sr. Collins a Hertfordshire deixou de constituir um motivo de prazer para a Sr.a Bennet. Pelo contrário, ela sentia-se tão inclinada a lastimá-lo como o seu próprio marido. Não via por que razão haveria ele de escolher Longbourn em vez da casa dos Lucas; e, além da inconveniência que era, causava-lhe um transtorno dos demónios. Detestava albergar estranhos enquanto a sua saúde se mantinha tão periclitante, e, da humanidade inteira, os apaixonados eram quem ela menos suportava. Tais eram as amáveis murmurações da Sr.a Bennet, que apenas cediam perante a aflição da prolongada ausência do Sr. Bingley.

Tanto Jane como Elizabeth se sentiam pouco à vontade sobre tal assunto. Dia após dia; o tempo passava sem que trouxesse outras notícias dele, que não fosse o rumor, que em breve correu em Meryton, de que ele não regressaria no Inverno a Netherfield; rumor este que conduzia a Sr.a Bennet ao paroxismo da raiva, e o qual ela nunca deixava de contradizer, classificando-o como uma escandalosa mentira.

A própria Elizabeth se achou receando, não que Bingley fosse indiferente, mas que as suas irmãs tivessem conseguido o seu intento em mantê-lo afastado. Embora fosse com relutância que admitia ideia tão destrutiva da felicidade de Jane e tão desonrosa para a constância do seu apaixonado, era com frequência que ela lhe ocorria ao espírito. Os esforços unidos das duas insensíveis irmãs e do amigo tão subjugador poderiam, ela temia, assistidos pelos atractivos da Menina Darcy e os divertimentos de Londres, ser demasiados para a intensidade do seu amor.

Quanto a Jane, a «sua» ansiedade perante tal incerteza era, naturalmente, mais dolorosa do que a de Elizabeth; mas, o que quer que fosse que ela sentisse, vivia a escondê-lo, pelo que entre ela e a irmã não se pronunciava uma palavra sobre o assunto. Porém, como delicadeza idêntica não habitava sua mãe, raramente passava uma hora sem que ela falasse de Bingley, exprimisse a sua impaciência pelo regresso dele e forçasse Jane a reconhecer que, se ele não o fizesse dentro em breve, ela deveria sentir-se ultrajada. Tais ataques requeriam da parte de Jane toda a docilidade do seu carácter, de modo a suportá-los com uma tranquilidade razoável.

O Sr. Collins regressou, muito pontualmente, na segunda-feira anunciada por ele, mas a sua recepção em Longbourn não decorreu com a espontaneidade da visita anterior. De qualquer modo, era suficientemente intensa a sua felicidade para não sentir a falta de outras atenções; e, felizmente para a família, aquele entusiasmado namoro aliviava-os quase totalmente da sua companhia. Com efeito, passava os dias em casa dos Lucas, e, por vezes, reaparecia em Longbourn apenas a tempo de desculpar-se pela sua ausência, antes de a família se retirar para passar a noite.

A Sr.a Bennet encontrava-se realmente num estado lastimável. Qualquer alusão ao casamento a prostrava numa agonia de mau humor, e, onde quer que ela fosse, tinha a certeza de não ir ouvir falar noutra coisa. A visão da Menina Lucas era odiosa para ela. Como sua sucessora naquela casa, ela encarava-a com invejosa aversão. Sempre que Charlotte as visitava, ela julgava-a antecipando a hora da posse; e, sempre que a via cochichando ao ouvido do Sr. Collins, convencia-se de que conferenciavam sobre os bens de Longbourn e estavam decidindo expulsá-la, a ela e às filhas, daquela casa, mal o Sr. Bennet se passasse. De tudo isto ela fez queixas amarguradas ao marido.

- Na verdade, Sr. Bennet - disse ela -, é doloroso pensar que Charlotte Lucas será um dia a dona desta casa, que eu serei forçada a afastar-me por sua causa e que viverei para a ver ocupar o meu lugar aqui.

- Então, minha querida, não se deixe arrastar por pensamentos tão melancólicos. Esperemos por coisas melhores. Alimentemos a esperança de que eu sobreviva à senhora.

Tal perspectiva não consolava a Sr.a Bennet, pelo que, em lugar de lhe responder, continuou:

- Não suporto pensar que eles terão tudo isto. Se não fosse a existência do vinculo, eu não me importaria.

- Não se importaria com quê?

- Não me importaria com nada.

- Agradeçamos então a senhora encontrar-se desse modo perseverada de um estado de insensibilidade tal.

- Nada agradecerei, Sr. Bennet, que tenha algo que ver com o vínculo. Como foi possível a alguém alienar os seus bens perante o rancho de filhas a seu cargo, é assunto que eu não chego a entender; e em benefício do Sr. Collins, ainda por cima! Porquê ele, e não outro qualquer?

- Deixo-lhe a si a tarefa de o descobrir - disse o Sr. Bennet.

 

A carta da Menina Bingley chegou, finalmente, e pôs termo a todas as dúvidas. Logo na primeira frase, começava por comunicar a certeza da permanência de todos eles em Londres durante o Inverno inteiro e concluía participando o pesar do irmão em ter partido sem que lhe fosse dado tempo para uma palavra de atenção a todos os seus amigos de Hertfordshire.

Era o fim da esperança, de toda e qualquer esperança; e, quando Jane conseguiu retomar a leitura da carta, nela nada mais encontrou que lhe trouxesse algum conforto, para além da professada afeição da amiga. O elogio da Menina Darcy preenchia-a quase por completo. Os seus inúmeros atractivos eram de novo esmiuçados e Caroline exultava de alegria pela crescente intimidade entre elas, ousando até predizer a realização dos desejos revelados na sua primeira carta. Regozijava-se também pelo facto de o irmão se encontrar presentemente instalado em casa do Sr. Darcy e referia-se, enlevada, aos planos deste último com respeito a novas alterações no mobiliário.

Elizabeth, a quem Jane prontamente comunicou a súmula de tudo isto, escutou-a em silenciosa indignação. O seu coração dividia-se entre a inquietação por sua irmã e o ressentimento contra todos os outros. Quanto à informação de Caroline sobre a preferência do irmão pela Menina Darcy, não lhe dava crédito. Que ele estava realmente apaixonado por Jane, ela não alimentava quaisquer dúvidas; e, embora ela sempre tivesse simpatizado com ele, não podia deixar de considerar com rancor, quase com desprezo até, a moleza de carácter e a falta de poder de decisão que agora o escravizavam à vontade insidiosa dos amigos e o levavam a sacrificar a própria felicidade ao capricho das inclinações deles. Se acaso se tratasse apenas da sua felicidade, ser-lhe-ia permitido dispor dela conforme melhor lhe aprouvesse, mas estava também em jogo a felicidade de Jane, e Elizabeth não admitia que ele o pudesse ignorar. Era, em resumo, um assunto que oferecia à reflexão pano para mangas, mas baldadamente. Ela não encontrava outra explicação; e, contudo, quer o amor de Bingley tivesse realmente sucumbido ou sido abafado pela interferência dos amigos, quer ele tivesse tido consciência do afecto de Jane, ou esse mesmo afecto tivesse escapado à sua observação, em qualquer que fosse o caso, embora a sua opinião dele sofresse materialmente pela diferença, a situação da irmã conservava-se idêntica e a sua tranquilidade igualmente afectada.

Um ou dois dias passaram sem que Jane tivesse tido coragem para desabafar com Elizabeth; mas numa dada altura, em que a Sr.a Bennet as deixou a sós após uma irritação mais prolongada do que o habitual sobre Netherfield e o seu dono, ela não se conteve e disse:

- Oh! Quisesse Deus que a minha mãe tivesse mais domínio sobre si; ela não faz ideia como me magoa ouvi-la constantemente referindo-se a ele nestes termos. Mas não me quero lamentar. Isto não demorará muito mais. Ele em breve será esquecido e todos tornaremos a ser o que éramos antes.

Elizabeth fitou a irmã com incrédula solicitude, mas nada disse.

- Duvidas de mim - exclamou Jane, corando ligeiramente -; mas não tens razão para tal. Ele pode perdurar na minha memória como o homem mais simpático que conheci, mas não passará dai. Nada tenho que esperar ou que recear e nada tenho para lhe censurar. Graças a Deus, foi-me poupada «essa» dor! Por isso, mais um pouco... e tentarei certamente recompor-me. - Com uma voz mais firme, em breve acrescentou: - Por agora, reconforta-me a ideia de não passar de um erro de imaginação meu e de não ter causado sofrimento em ninguém, excepto em mim própria.

- Minha querida Jane - exclamou Elizabeth -, és boa de mais! A tua doçura e desinteresse são verdadeiramente angélicos; não sei o que te dizer. Sinto como se nunca tivesse apreciado bastante ou gostado de ti como realmente o mereces.

A Menina Bennet negou qualquer mérito extraordinário e atribuiu o elogio à profunda afeição da irmã.

- Não - disse Elizabeth -, isso não é justo. Partes do princípio de que todos são respeitáveis e ficas magoada quando eu digo mal de alguém, mas, se eu decido achar-te «a ti» perfeita, rebelas te contra mim. Não receies que eu caia em exagero ou usurpe o teu privilégio de boa vontade universal, pois não há razão para isso. São poucas as pessoas de quem eu gosto realmente e mais restrito ainda o número daquelas de quem eu faço um bom juízo. Quanto mais conheço o mundo, maior é o meu descontentamento por ele; e cada dia confirma a minha crença na inconsistência de todos os caracteres humanos e na pouca confiança susceptível de ser depositada na aparência quer do mérito como do bom senso. Encontrei dois exemplos ultimamente; um deles não mencionarei; o outro é o casamento de Charlotte. É inexplicável! Em todos os aspectos ele é inexplicável!

- Minha querida Lizzy, não te deixes arrastar por tais sentimentos. Eles ainda arruinarão a tua felicidade. Tu não concedes uma margem suficiente para as diferenças de situação e temperamento. Considera a respeitabilidade do Sr. Collins e o carácter prudente e resoluto de Charlotte. Lembra-te de que ela faz parte de uma numerosa família; que, monetariamente, trata-se de uma união desejável; e, para o bem de todos, inclina-te a acreditar que ela sinta inclinação ou estima pelo nosso primo.

- Só para te agradar, eu tentaria acreditar em tudo o que quisesses, mas ninguém mais beneficiaria com isso além de tu mesma; pois, estivesse eu persuadida de que Charlotte tivesse alguma consideração por ele, apenas teria pior opinião do seu entendimento do que aquela que agora tenho do seu coração. Minha querida Jane, o Sr. Collins não passa de um homem que, além de presunçoso e convencido das suas possibilidades, é tacanho e estúpido; tu sabe-lo, tão bem como eu; e deves sentir, tão bem como eu, que a mulher que casa com tal homem não pode ter uma maneira de pensar adequada. Não a defenderás, embora se trate de Charlotte Lucas. Não modificarás, por causa de um indivíduo, o significado do princípio ou da integridade, nem tentarás persuadir-te a ti ou a mim de que egoísmo é prudência, e insensibilidade do perigo segurança para a felicidade.

- Penso apenas que a tua linguagem é demasiado forte referindo-te a ambos - replicou Jane - e que virá o dia em que te convencerás disso, quando os vires felizes um com o outro. Mas acabemos com este assunto. Tu falaste ainda noutra coisa. Mencionaste «dois» exemplos. Não quero interpretar-te mal, mas suplico-te, querida Lizzy, que não me atormentes ao pensar que «essa tal pessoa» merece censura e ao dizer que a tua opinião dele se perdeu. Devemos a todo o custo evitar precipitações e imaginarmo-nos intencionalmente injuriados. Não nos é lícito esperar que um jovem tão cheio de vida se comporte invariavelmente de forma tão reservada e circunspecta. Grande parte das vezes é a nossa própria vaidade que nos ilude. Para as mulheres, a admiração de que elas se crêem o objecto significa mais do que aquilo de que de facto se trata.

- E são os homens que se encarregam de as convencer.

- Se é propositadamente que o fazem, não têm desculpa; mas não creio que no mundo haja tanta duplicidade, como a maioria das pessoas pretende fazer acreditar.

- Estou longe de atribuir à duplicidade qualquer faceta do comportamento do Sr. Bingley disse Elizabeth -; mas o que é certo é que, mesmo sem se planear fazer o mal ou tornar outros infelizes, podem-se criar situações de equívoco e de miséria. Refiro-me à inconsciência, à falta de atenção para com os sentimentos dos outros e à falta de poder de resolução.

- E qual lhe atribuis?

- O último. Mas não vou continuar, pois corro o risco de te desagradar ao dizer o que penso de pessoas que tu estimas.

- Persistes, então, em supor que as suas irmãs o influenciam?

- Sim, de combinação com o amigo dele.

- Não acredito. Por que tentariam elas influenciá-lo? Apenas lhe podem desejar a sua felicidade, e, se ele sente atracção por mim, nenhuma outra mulher lha pode garantir.

- A tua primeira afirmação é falsa. Elas podem desejar-lhe várias outras coisas além da felicidade; podem desejá-lo mais rico e mais influente; podem desejar casá-lo com uma rapariga investida de toda a importância que o dinheiro, a nobreza e o orgulho conferem.

- Sem dúvida que elas desejam vê-o escolher a Menina Darcy - replicou Jane -, mas os sentimentos que as norteiam podem ser melhores do que aqueles que supões. Conhecendo-a há mais tempo do que me conhecem a mim, não me admira que a apreciem mais. Porém, quaisquer que sejam os seus desejos, não é provável que se oponham aos do irmão. Que irmã se atreveria a tanto, a não ser numa situação deveras censurável? Se elas acreditassem no amor dele por mim, nunca tentariam separar-nos; e, se acaso ele gostasse de mim, nunca elas conseguiriam o seu intento. Tu acreditas no seu amor, e por isso vês em todos eles uma atitude repreensível, mas não deixas de me magoar. Afliges-me com tal ideia. Não é para mim uma vergonha ter-me enganado... ou, pelo menos, pouca coisa ou nada é comparado com aquilo que sentiria se me visse obrigada a fazer um mau juízo dele e de suas irmãs. Deixa-me encarar a questão pelo seu lado menos antipático, pelo lado pelo qual ela deve ser compreendida.

Elizabeth não poderia opor-se a tal desejo; e desde então o nome do Sr. Bingley muito raramente foi mencionado entre elas.

A Sr.a Bennet continuava conjecturando e lamentando a sua longa ausência, e, embora não passasse um dia sem que Elizabeth lhe desse sobre ela uma explicação plausível, parecia pouco provável que ela alguma vez a considerasse com menos perplexidade. A filha tentava convencê-la daquilo em que ela própria não acreditava, que as atenções dele para com Jane tinham sido mero fruto de uma simpatia vulgar e passageira, a qual acabara quando ele deixou de a ver; mas, se bem que a probabilidade da sua explicação fosse na altura admitida, ela via-se obrigada a repetir a história diariamente. O único consolo da Sr.a Bennet era pensar que o Sr. Bingley voltaria de novo no Verão.

O Sr. Bennet encarava o assunto de modo bem diverso.

- Então, Lizzy - disse ele um dia -, pelo que entendi, a tua irmã deu-se mal com o amor. Felicito-a. Uma rapariga, para além do casamento, adora uma pequenina frustração de vez em quando. É sempre algo que lhe dá que pensar e confere-lhe uma espécie de distinção entre as amigas. Quando chegará a tua vez? Dificilmente suportarás que Jane te leve a palma por muito tempo. Aproveita a ocasião. Existem neste momento em Meryton oficiais em número suficiente para enganarem todas as raparigas da região. Porque não Wickham? Que seja ele o ateu» homem. Ele é um rapaz verdadeiramente encantador e iludir-te-ia sem deixar de te estimar.

- Agradeço-lhe, meu pai, mas contentar-me-ia com alguém menos encantador. Não podemos todas esperar ter a sorte de Jane.

- Lá isso é verdade - disse o Sr. Bennet -, mas consola pensar que, o que quer que nesse capítulo te aconteça, terás sempre a teu lado uma mãe estremosa para tirar o máximo proveito da situação.

O convívio do Sr. Wickham teve uma acção preponderante em dissipar a melancolia que a adversidade das últimas ocorrências abatera sobre os vários membros da família de Longbourn. Viam-no com frequência, e, às suas outras recomendações, juntava-se agora a de uma franqueza cativante. Tudo aquilo sobre o que Elizabeth fora informada, quer as suas alegações contra o Sr. Darcy como o que por causa dele sofrera, era já do domínio público e publicamente analisado; e todos se sentiam satisfeitos por não ser, afinal, infundada a antipatia que o Sr. Darcy desde o princípio lhes inspirara.

A Menina Bennet era a única criatura capaz de supor a existência de circunstâncias atenuantes no caso e que não fossem do conhecimento da sociedade de Hertfordshire; a sua terna e serena candura apelava constantemente para a tolerância e instava pela possibilidade de enganos, mas por todos os outros o Sr. Darcy era apontado como o mais malvado dos homens.

 

Após uma semana passada em promessas de amor e esquemas de felicidade, o Sr. Collins foi arrebatado à companhia da sua adorável Charlotte pela chegada de sábado. A dor da separação seria nele, contudo, aliviada pelos preparativos para a recepção da sua noiva, pois não era infundadamente que alimentava a esperança de, no seu próximo regresso a Hertfordshire, ver finalmente fixado o dia que o tornaria no mais feliz dos mortais. Despediu-se dos seus parentes de Longbourn com tanta solenidade como anteriormente; às formosas primas renovou os seus votos de um futuro feliz e próspero e ao pai delas prometeu uma outra carta de agradecimento.

Na segunda-feira seguinte, a Sr.a Bennet teve o prazer de ver chegar o seu irmão e a mulher, que, como de costume, vinham para passar o Natal em Longbourn. O Sr. Gardiner era um homem sensato e distinto, consideravel-mente superior à irmã, tanto por natureza como por educação. As senhoras de Netherfield ver-se-iam em sérios embaraços para acreditar que um homem que, como ele, vivia do comércio e à vista dos seus próprios armazéns pudesse mostrar-se tão bem educado e agradável no seu trato. Quanto à Sr.a Gardiner, vários anos mais nova que a Sr.a Bennet e a Sr.a Philips, tratava-se de uma : ,mulher extremamente simpática, inteligente e elegante, e era especialmente apreciada pelas sobrinhas de Longbourn. às duas mais velhas dedicava ela, contudo, uma ternura particular, levando-as frequentemente a passar longas temporadas a sua casa, na capital.

A primeira ocupação da Sr.a Gardiner à chegada foi distribuir os seus presentes e descrever os últimos gritos da moda. Quando as viu satisfeitas, declarou chegada a sua vez de escutar. A Sr.a Bennet tinha várias queixas a fazer e muito que se lamentar. A desgraça imperava naquela casa desde a última vez que estivera com a cunhada. Com duas filhas a ponto de casar, vira as suas esperanças desvanecer-se como que por encanto.

- Não censuro a Jane - continuou ela -, pois Jane teria apanhado o Sr. Bingley, se ela o pudesse. Mas Lizzy! Oh!, irmã!, como é penoso pensar que a estas horas ela poderia ser a mulher do Sr. Collins, não fosse ser tão obstinada. Ele propôs-se-lhe nesta mesma sala e ela recusou-o. O resultado de tudo isto é que Lady Lucas vai casar uma filha primeiro do que eu e que os bens de Longbourn continuam tão vinculados corno dantes. Os Lucas são gente de muita manha. Desunham-se para conseguir os seus intentos. Custa-me falar deles assim, mas é a pura verdade. Põe-me fora de mim ser contrariada na minha própria família e ter vizinhos que velam pelos seus interesses na ignorância total dos de todos os outros. Enfim, a vossa chegada numa altura como esta traz-nos grande conforto e alegra-me particularmente o que me conta, sobretudo o que diz respeito às mangas compridas.

A Sr.a Gardiner, para quem todos estes acontecimentos não constituíam novidade, graças à correspondência mantida com Jane e Elizabeth, respondeu superficialmente à cunhada e, em atenção pelas duas sobrinhas, mudou o rumo à conversa.

Quando, mais tarde, se encontrou a sós com Elizabeth, abordou mais detalhadamente o assunto.

- Tudo indicava tratar-se de um casamento desejável para Jane disse ela. - Tenho pena que não tenha ido avante. Mas isso acontece com tanta frequência! É tão vulgar um jovem, como esse Sr. Bingley que me descrevestes, apaixonar-se como do pé para a mão por uma rapariga bonita e, após algumas semanas e quando o acaso os separa, esquecê-la com a mesma facilidade.

- Não deixa de ser uma excelente consolação - disse Elizabeth -; contudo, não anos» serve. Não foi o «acaso» que interveio em nosso desfavor. Não é com frequência que a intervenção de amigos consegue persuadir um jovem abastado a esquecer uma rapariga por quem ainda há tão poucos dias estava violentamente apaixonado.

- Mas essa expressão «violentamente apaixonado» está tão vulgarizada, é tão duvidoso e indefinido o seu significado que ela pouco me diz. Aplica-se, geralmente, mais aos sentimentos que brotam numa meia hora de conhecimento que a um afecto sincero e duradouro. Diz-me, qual a «violência« do amor do Sr. Bingley?

- Nunca me foi dado deparar com inclinação mais promissora; ele quase não atendia as outras pessoas, pois só tinha olhos para ela. Cada vez que se encontravam, a atracção dele por ela parecia mais evidente e decidida. No seu próprio baile ele ofendeu duas ou três meninas por não as ter convidado para dançar; e por duas vezes eu lhe dirigi a palavra sem conseguir obter resposta. Podem haver sintomas mais optimistas? Não é a distracção daquilo que nos rodeia a própria essência do amor?

- Oh!, sim!... daquela espécie de amor que eu julgo ter sido o dele. Pobre Jane. Lastimo-a porque, com o feitio dela, não se recomporá tão cedo. Seria preferível teres sido «tu» a protagonista, Lizzy; deitarias tudo mais facilmente para trás das costas. Achas que a conseguiremos convencer a partir connosco? Uma mudança de ares talvez a ajude... e é importante, também, que ela saia daqui de casa.

Elizabeth regozijou-se com a proposta da tia e mostrou-se persuadida de que a irmã acederia a ela com prontidão.

- Espero - acrescentou a Sr.a Gardiner - que não a vá influenciar qualquer consideração a respeito desse jovem. Vivemos em locais tão apartados na capital, damo-nos com pessoas tão diferentes e, como sabes, saímos tão pouco que não é provável que eles se encontrem, a não ser que ele a vá visitar.

- E «isso» é praticamente impossível, pois ele encontra-se agora sob a custódia do amigo, e o Sr. Darcy nunca lhe permitiria ir visitar Jane a tal local de Londres! Minha querida tia, que ideia a sua! O Sr. Darcy talvez conheça de nome a Rua Gracechurch, mas entrar nela significaria para ele um mês, pelo menos, de abluções, de modo a libertá-lo de todas as impurezas; e pode estar certa de que o Sr. Bingley não dará um passo sem ele.

- Tanto melhor. Espero que não se encontrem, visto isso. Mas não se corresponde Jane com a irmã dele? «Ela« não deixará de a visitar.

- Ela ignorá-la-á, pura e simplesmente.

Mas, apesar do tom decidido com que Elizabeth proferiu tal certeza, assim como aquela outra de Bingley vir a ser impedido de se avistar com Jane, ela sentia uma certa ansiedade, que, após reflexão, a convenceu de não estar assim tão certa delas. Era possível, provável até, que o afecto dele tivesse ocasião de ser reanimado e a influência dos seus amigos desafiada e vencida pela influência mais cultural dos atractivos de Jane.

A Menina Bennet aceitou com prazer o convite da tia; e não dedicava na altura qualquer outro pensamento a Bingley que não fosse na sua esperança de poder passar uma manhã na companhia de Caroline sem correr o risco de o encontrar, visto não estarem a viver na mesma casa.

Os Gardiner permaneceram em Longbourn uma semana, que, com a cooperação dos Philips, dos Lucas e dos oficiais, decorreu fértil em compromissos. A Sr.a Bennet providenciara tão cuidadosamente para o entretenimento do irmão e da cunhada que não se sentaram uma vez só para um jantar verdadeiramente em família. Quando ficavam em casa, havia sempre alguns oficiais convidados, e, entre eles, Wickham nunca faltava; e nestas ocasiões a Sr.a Gardiner, que os calorosos elogios de Elizabeth a respeito dele tinham posto de sobreaviso, dedicava uma atenção especial a ambos. Embora, pelo que lhe fora dado observar, nada a fizesse supor que eles estivessem seriamente apaixonados, a preferência de um pelo outro era suficientemente evidente para lhe causar uma certa preocupação, pelo que resolveu ter uma conversa com Elizabeth antes de deixar o Hertfordshire e mostrar-lhe a sua imprudência ao encorajar tal amor.

Para com a Sr.a Gardiner, dispunha o Sr. Wickham, à parte de todas as suas outras possibilidades, de um recurso próprio a proporcionar-lhe um certo prazer. Há cerca de dez ou doze anos atrás, quando ainda solteira, passara um período considerável da sua vida naquela mesma região do Derbyshire, da qual ele provinha. Tinham, por conseguinte, vários amigos em comum; e, embora Wickham raramente lá tivesse ido desde a morte do pai do Sr. Darcy, ou seja, há mais de cinco anos, ele tinha para lhe oferecer sobre esses amigos notícias mais frescas que aquelas que ela alguma vez conseguira.

A Sr.a Gardiner visitara Pemberley e conhecera muito bem, de reputação, o falecido Sr. Darcy. Tal coincidência proporcionou, consequentemente, um inesgotável assunto de conversa, e, ao comparar as suas recordações de Pemberley com a descrição minuciosa que Wickham lhe oferecia, assim como ao render homenagem ao caracter do seu último possessor, ela não só o estava deliciando, como também ela própria se comprazia em fazê-lo. Quando a informaram da atitude do actual Sr. Darcy para com o Sr. Wickham, a Sr.a Gardiner tentou recordar-se de algo relacionado com a reputada disposição daquele cavalheiro e que condissesse com ela, acabando por afirmar que se lembrava vagamente de ter ouvido falar do Sr. Fitzwilliam Darcy como tratando-se, na altura, de um rapazinho muito orgulhoso e de bastante mau génio.

 

A advertência da Sr.a Garliner a Elizabeth foi feita sem demora e em tom de grande afabilidade na primeira oportunidade favorável que se lhe ofereceu para falar a sós com ela; após ter-lhe dito sinceramente o que pensava, prosseguiu do seguinte modo:

- És uma rapariga suficientemente sensata, Lizzy, para não te apaixonares só porque te previnem contra tal, e é essa a razão por que não receio falar-te tão abertamente sobre o assunto. Gostava, seriamente, que tomasses cautela. Não te envolvas, nem lhe dês a ele ocasião de se envolver num afecto que a falta de meios de fortuna tornaria deveras imprudente. Nada tenho a apontar-lhe»; trata-se de um jovem muito atraente e agradável; e, se ele tivesse a fortuna que lhe estava destinada, não poderias escolher melhor. Porém, no pé em que as coisas estão, não te deixas arrastar pela fantasia. Tens a cabecinha no seu lugar e todos esperamos que faças bom uso dela. Estou certa de que o teu pai conta com a tua firmeza e a tua prudência. Evita a todo o custo desiludi-lo.

- Minha querida tia, trata-se, na verdade, de um assunto sério.

- Sim, e espero convencer-te a portares-te à altura dele.

- Bom, nesse caso não terá de que se afligir. Olharei por mim e pelo Sr. Wickham também. Ele não se apaixonará por mim, se eu o puder evitar.

- Elizabeth, agora não estás a falar a sério.

- Perdoe-me. Vou tentar de novo. De momento não estou apaixonada pelo Sr. Wickham; não, é certo que não estou. Contudo, ele é, sem dúvida alguma, o homem mais simpático que encontrei na minha vida, e, caso ele se prenda verdadeiramente a mim, creio que será preferível ele não o fazer. Oh! «aquele» detestável Sr. Darcy! A opinião de meu pai tem para mim inestimável valor e sentir-me-ia desgraçada no momento em que a perdesse. Meu pai, porém, simpatiza com o Sr. Wickham. Em resumo, minha querida tia, custar-me-ia bastante tornar-me motivo de infelicidade para algum de vós; mas, se diariamente assistimos ao enlace de jovens cuja falta de fortuna raramente os impede de unir os seus destinos, como poderei eu, uma vez tentada, prometer ser mais sensata que eles, ou como poderei eu alguma vez saber qual a sensatez em resistir? A única coisa que lhe posso prometer é não ter pressa. Não terei pressa em considerar-me o principal objecto a seus olhos. Quando na sua companhia, nada desejarei. Enfim, farei o melhor que puder.

- Talvez também não fosse má ideia dissuadi-lo de vir aqui a casa tantas vezes. Pelo menos, não deverias «lembrar« tua mãe a convidá-lo.

- Como fiz no outro dia - disse Elizabeth, com um sorriso malicioso -; tem razão, será mais sensato evitá-lo. Mas não julgue a tia que ele tem passado aqui os dias. É por vossa causa que ele tem sido convidado com tanta frequência no decorrer desta semana. Sabe como é a minha mãe, e o que ela pensa da necessidade de um entretenimento constante para os amigos. Mas, sinceramente, e pela minha honra, tentarei proceder da maneira que achar mais conveniente; e agora espero tê-la satisfeito.

A tia assegurou-a da sua inteira satisfação e as duas separaram-se, após Elizabeth ter-lhe agradecido a amabilidade da sua atitude; exemplo maravilhoso de um inofensivo conselho abordando matéria tão delicada.

O Sr. Collins regressou a Hertfordshire pouco depois de os Gardiner e Jane terem partido; mas, como vinha para se instalar em casa dos Lucas, a sua chegada não trouxe grande inconveniente para a Sr.a Bennet. O casamento dele aproximava-se agora a passos largos, mas ela já estava, por fim, suficientemente resignada, a ponto de o considerar inevitável e repetidas vezes proferir, num tom azedo, que «lhes desejava muitas felicidades». Quinta-feira viria chegar o dia da cerimónia e na quarta-feira a Menina Lucas fez a sua visita de despedidas; e, quando ela se ergueu para partir, Elizabeth, envergonhada pela atitude pouco graciosa e relutante de sua mãe e profundamente afectada ela própria, acompanhou-a à porta. Quando desciam juntas as escadas, Charlotte disse-lhe:

- Espero que me escrevas com frequência, Eliza.

- «Disso« podes estar tu certa.

- Tenho outro favor a pedir-te. Virás um dia visitar-me?

- Teremos inúmeras oportunidades de nos vermos aqui em Hertfordshire, creio eu.

- Não sairei de Kent tão cedo. Promete-me que virás tu a Hunsford.

Elizabeth não podia recusar, embora antevesse a visita com pouco prazer.

- O meu pai e Maria irão ter comigo em Março - acrescentou Charlotte - e espero que consintas em acompanhá-los. Acredita, Eliza, que serás para mim tão bem-vinda como qualquer deles.

Realizado o casamento, os noivos partiram logo de seguida para Kent, e o acontecimento foi amplamente discutido e comentado por todos, como é habitual. Elizabeth em breve teve notícias da amiga, e entre elas estabeleceu-se uma correspondência tão regular e frequente como outrora, embora não tão franca, pois tal seria impossível. Elizabeth nunca se lhe dirigia sem que sentisse um vazio dentro de si, pois havia cessado aquele conforto da intimidade, e, embora decidida a não faltar com as suas cartas, fazia-o mais por aquilo que entre elas existira do que pelo que agora existia. As primeiras cartas de Charlotte foram recebidas com uma certa ansiedade, explicada apenas pela curiosidade em saber como ela falaria do seu novo lar, que achara de Lady Catherine e até que ponto ousaria pronunciar-se sobre a sua própria felicidade; embora, uma vez lidas as cartas, Elizabeth sentisse que Charlotte se exprimiria em todos os aspectos exactamente como ela o teria previsto. O tom era animado, dizia-se rodeada de todas as comodidades e nada mencionava que não fosse digno do seu louvor. A casa, a mobília, a vizinhança e as estradas, tudo lhe agradava, e a atitude de Lady Catherine, afável e cortês. Não passava, ao fim e ao cabo, da própria descrição do Sr. Collins de Hunsford e Rosings adequadamente suavizada; e Elizabeth percebeu que teria de esperar pela sua visita ali, se quisesse saber o resto.

Jane escrevera algumas linhas à irmã para lhe anunciar a sua chegada a Londres; e, quando ela lhe tornou a escrever, Elizabeth esperou que ela já lhe pudesse dizer algo sobre os Bingleys.

A segunda carta, porém, não correspondeu à sua impaciência. Desde há uma semana que Jane se encontrava na capital sem que Caroline tivesse ainda dado qualquer sinal de vida. Esta atitude, contudo, a irmã atribuía-a ao facto de a sua última carta dirigida de Longbeurn à amiga se ter provavelmente perdido.

- A minha tia - continuava ela - tenciona ir amanhã para aqueles lados da cidade e eu aproveitarei a oportunidade para uma visita à Rua Grosvernor.

Após a visita, em que estivera com a Menina Bingley, ela tornou a escrever. «Não achei Caroline muito bem disposta», referia-se ela, «mas mostrou-se bastante contente por me ver e queixou-se-me de não a ter avisado da minha vinda a Londres. Afinal, eu sempre tinha razão, pois ela nunca chegou a receber aquela minha carta. Perguntei-lhe pelo irmão, naturalmente. Respondeu-me que ele estava de perfeita saúde, mas tão ocupado com o Sr. Darcy que raramente lhe punham a vista em cima. Percebi que esperavam a Menina Darcy para jantar. Gostaria de a ter visto. A minha visita não durou muito tempo, pois Caroline e a Sr.a Hurst preparavam-se para sair. Creio que em breve as verei aqui«.

Elizabeth contemplou a carta, profundamente desanimada. Estava convencida de que só por um acaso o Sr. Bingley viria a saber da presença da irmã na capital.

Quatro semanas passaram sem que Jane soubesse alguma coisa dele. Tentou persuadir-se de que não o lastimava; mas não poderia continuar a iludir-se sobre o desinteresse da Menina Bingley. Após ter, durante quinze dias, permanecido todas as manhãs em casa, e em cada manhã ter inventado uma nova desculpa para o fazer, a amiga dignou-se finalmente retribuir-lhe a visita; porém, o pouco tempo que condescendeu em ficar e, sobretudo, a alteração dos seus modos tiraram qualquer dúvida a Jane. A carta que, pela ocasião, escreveu à irmã demonstra o que ela sentiu.

 

           Minha querida Lizzy,

sei que serás incapaz de uma atitude de triunfo quando te confessar que estava inteiramente iludida a respeito da estima da Menina Bingley por mim. Contudo, minha querida irmã, se bem que o que aconteceu te venha dar razão, não me julgues obstinada ao continuar a afirmar que, perante o comportamento dela no decorrer da nossa amizade, a minha fé era tão justificada quanto a tua reserva. Não entendo qual o intuito dela ao alimentar uma certa intimidade comigo, mas, se as mesmas circunstâncias voltassem a repetir-se, estou certa de que me deixaria de novo iludir. Caroline só ontem me retribuiu a visita, e até lá não recebi da sua parte uma palavrinha sequer. Quando, finalmente, apareceu, tornou bem evidente que não tinha qualquer prazer nisso; deu uma desculpa ligeira e formal por não me visitado mais cedo, nada disse quanto a desejar ver-me de novo e comportou-se de modo tão estranho e diferente que quando ela saiu eu estava perfeitamente decidida a não continuar como sua amiga. Tenho pena dela, mas não posso deixar de a censurar. Foi incorrecta ao sacudir-me do modo como o fez. Posso, sem receio, afirmar que todas as iniciativas para uma maior intimidade partiram sempre dela. Contudo, lastimo-a, pois deve sentir que agiu mal e porque estou certa de que foi a sua ansiedade pelo irmão que lhe inspirou tal atitude. Não será necessário alongar-me no assunto; e, embora «nós» saibamos que tal ansiedade é absolutamente descabida, uma vez que ela a sente, vejo facilmente justificado o seu comportamento para comigo; além disso, o irmão devota-lhe tal ternura que qualquer que seja a ansiedade dela a seu respeito é sempre norteada por sentimentos naturais e sãos. Não deixo, contudo, de estranhar que precisamente agora alimente tais receios, pois, se ele tivesse algum interesse por mim, há muito tempo que nos teríamos encontrado. Creio que ele sabe da minha presença na capital, pois foi, pelo menos, o que da conversa dela deduzi; porém, pela sua maneira de falar, fiquei também com a impressão de que ela tentava persuadir-se a si própria de que o irmão se interessava realmente pela Menina Darcy. Não compreendo. Se não receasse qualquer precipitação ou crueldade no meu juízo, sentir-me-ia tentada a dizer que existe em tudo isto uma forte aparência de duplicidade. Enfim, tentarei banir do meu pensamento tudo o que me apoquenta e pensar naquilo que me fará verdadeiramente feliz, ou seja, na tua afeição e na infatigável bondade dos meus queridos tios. Não tardes em escrever-me. A Menina Bingley falou em nunca mais voltarem a Netherfield e tencionarem largar a casa, mas por ora ainda nada é certo. Seria preferível nada dizeres sobre isto em casa. Alegra-me que tenhas recebido notícias tão agradáveis dos nossos amigos em Hunsford. Por que não acompanhas Sir William e Maria? Estou certa de que acabarias por gostar.

                               A tua, etc.

 

A carta entristeceu Elizabeth; mas em breve teve a consolação de pensar que Jane não continuaria sendo ludibriada, pelo menos pela irmã. Quanto ao irmão, tinha ruído toda a expectativa que ela à volta dele criara. Não desejava sequer que ele tentasse retomar com Jane. Quanto mais analisava o caracter dele, tanto maior era o seu desânimo; e, como punição para ele, assim como possível vantagem para Jane, esperava que em breve ele se casasse com a irmã do Sr. Darcy, pois, segundo o Sr. Wikcham, ela depressa o faria lastimar o que ele desdenhara.

A Sr.a Gardiner, entretanto, escrevera a Elizabeth, lembrando-a da sua promessa referente àquele cavalheiro e pedindo-lhe notícias, ao que Elizabeth prontamente acedeu, embora elas fossem motivo de maior regozijo para a tia do que para ela própria. A sua aparente inclinação acalmara, as suas atenções tinham cessado, e ele era agora o admirador de uma outra. Elizabeth era suficientemente perspicaz para constatar tal facto, e, ao observá-lo e escrever sobre ele, fazia-o sem grande mágoa. O seu coração tinha sido ligeiramente afectado apenas e a sua vaidade comprazia-se em acreditar que seria ela a eleita, tivesse a fortuna permitido. A súbita aquisição de dez mil libras constituía o principal encanto da jovem junto de quem ele presentemente se fazia valer de toda a sua amabilidade; mas Elizabeth, menos sagaz neste caso do que no de Charlotte, não lhe criticou o seu desejo de independência. Pelo contrário, nada poderia ter decorrido mais naturalmente; e, tendo-lhe sido dado supor que representava para ele um doloroso esforço renunciar a ela, Elizabeth, pelo seu lado, prontificou-se a aceitar tal atitude como uma medida sensata e desejável para ambos, e muito sinceramente desejou-lhe felicidade.

De tudo isto a Sr.a Gardiner foi informada; e, após o relato das circunstâncias, ela continuou: «Estou agora convencida, querida tia, de que não cheguei a estar verdadeiramente apaixonada; pois, se acaso eu tivesse experimentado essa pura e elevada paixão, a estas horas não suportaria ouvir mencionar o seu nome sequer e desejar-lhe-ia todo o mal. Ora acontece que não só os meus sentimentos por ele são extremamente cordiais, como nada tenho contra a Menina King. Não sinto em mim qualquer ódio por ela, nem má vontade, tão-pouco que me impeça de ver nela uma boa rapariga. Nunca poderia ter-se tratado de amor. A minha cautela foi providencial; e, embora eu me tivesse decerto tornado num objecto de maior interesse aos olhos dos outros, estivesse eu perdidamente apaixonada por ele, não posso dizer que lastime a minha relativa insignificância. A importância é, por vezes, adquirida a elevado preço. Kitty e Lydia sentiram-se mais do que eu própria pela sua deserção. Elas pouco conhecem do mundo e ainda não estão preparadas para admitir a mortificante ideia de que um jovem belo necessita tanto de um pecúlio para viver como qualquer outro.»

 

Sem outros acontecimentos de maior na família de Longbourn e apenas diversificados pelos passeios a Meryton, umas vezes com chuva, outras vezes com frio, decorreram Janeiro e Fevereiro. Em Março iria Elizabeth para Hunsford. Não simpatizara, a princípio, com a ideia da visita, mas, tendo descoberto que Charlotte tinha grande empenho na sua ida, foi, a pouco e pouco, habituando-se a considerá-la não só com um certo prazer, como com uma certeza cada vez maior. A ausência aumentara o seu desejo de voltar a ver Charlotte e mitigara a sua aversão pelo Sr. Collins. Não deixava de constituir uma novidade, e como, com uma mãe como a sua e irmãs tão pouco cativantes, o ambiente em casa nem sempre era o que seria de desejar, considerava oportuna uma pequena mudança de ares. A viagem permitir-lhe-ia, além do mais, avistar-se com Jane; e, em resumo, á medida que o tempo se aproximava, assim crescia a sua impaciência. Porém, tudo decorria lentamente, e quando, por fim, fixaram a viagem, decidiram de acordo com a primeira ideia de Charlotte. Elizabeth iria na companhia de Sir William e de sua segunda filha. Londres completaria a primeira etapa e aí tencionavam passar parte do dia e a noite.

A Elizabeth unicamente lhe custava deixar seu pai, que decerto sentiria a sua falta, e a quem, chegada a altura, agradava tão pouco a partida da filha que lhe pediu para ela lhe escrever e quase lhe prometeu responder à sua carta.

A despedida entre ela e o Sr. Wickham decorreu de forma perfeitamente amigável; e mais acentuada nele ainda. Embora de momento as suas atenções se encaminhassem noutro sentido, ele não poderia esquecer que Elizabeth fora a primeira a despertar-lhe e a merecer-lhe essas mesmas atenções, a primeira a escutá-lo e a lastimá-lo, a primeira a ser digna da sua admiração; e, no modo como ele se despediu, lhe desejou bons momentos e lhe lembrou com o que ela deveria contar na pessoa de Lady Catherine de Bourgh, fazendo simulta-neamente votos para que a opinião de ambos, tanto sobre essa senhora como sobre todo o mundo em geral, nunca deixasse de coincidir ele deu provas de uma solicitude e de um interesse que ela sentiu não deixar de fortalecer para sempre os laços de uma amizade sincera entre eles; e dele ela se apartou convencida de que, casado ou solteiro, ele seria sempre a seus olhos o modelo da simpatia e do encanto.

Os seus companheiros de viagem, no dia seguinte, não eram de índole a desfazer nela a boa impressão que Wickham lhe deixara. Tanto Sir William como sua filha Maria, uma jovem prazenteira mas tão fútil como ele, nada tinham que dizer que valesse a pena ser ouvido, e não eram escutados com maior delícia que a chiadeira da carruagem. Elizabeth tinha, com efeito, uma predilecção pelo absurdo, mas há muito tempo que conhecia Sir William. O relato maravilhoso da sua apresentação na corte e da sua investidura já não era novidade para ela; e as suas delicadezas tinham sofrido um desgaste idêntico ao da sua conversa.

Não teriam, nesse dia, mais de vinte e quatro milhas a percorrer, mas quando saíram ainda era madrugada, pois tencionavam estar na Rua Gracechurch por volta do meio-dia. Quando pararam à porta do Sr. Gardiner, Jane encontrava-se a uma das janelas da sala aguardando a sua chegada; e, quando entraram em casa, já ela se encontrava no vestíbulo para os receber, e Elizabeth, olhando-a demoradamente, regozijou-se por a ver tão saudável e encantadora como nunca. Ao cimo das escadas acotovelava-se um pequeno grupo de crianças, rapazes e raparigas, cuja ânsia de ver a prima não lhes permitira esperar na sala de visitas, e cuja timidez, pois há um ano que a não viam, lhes impedia de descer ao seu encontro. O ambiente era de alegria e afabilidade. O dia decorreu da forma mais agradável; a tarde passada no alvoroço das compras e a noite num dos teatros. Aí, Elizabeth procurou o lugar junto da tia. O primeiro assunto a ser abordado entre elas foi a respeito de sua irmã; e assaltou-a maior preocupação que espanto ao ouvir, em resposta às suas minuciosas inquirições, que, embora Jane continuasse lutando por manter a sua boa disposição, tinha períodos de desânimo e melancolia. Era, contudo, de esperar que eles não durassem por muito tempo. A Sr.a Gardiner contou-lhe também em pormenor a visita da Menina Bingley à Rua Gracechurch e repetiu-lhe as várias conversas que desde então tivera com Jane, e que lhe davam a entender não existir da sua parte qualquer interesse em continuar tal amizade.

A Sr.a Gardiner referiu-se, seguidamente, à deserção de Wickham e congratulou a sobrinha por a suportar com tanta dignidade.

- Mas, querida Elizabeth - acrescentou ela -, que género de rapariga é a Menina King? Custar-me-ia ver que o nosso amigo, afinal, não passa de um interesseiro.

- Por amor de Deus, querida tia, qual a diferença no casamento entre o interesse e o motivo prudente? Onde acaba a prudência e começa a cobiça? No Natal a tia receava que ele casasse comigo, pois seria uma imprudência; e agora, porque ele procura cativar uma rapariga que possui dez mil libras, a tia pretende que ele seja um interesseiro.

- Basta que tu me digas que género de rapariga é a Menina King, e eu saberei o que pensar dele.

- Ela é uma rapariga estupenda, creio eu. Nunca ouvi dizer o contrário.

- Mas ele nunca lhe ligou importância, senão quando o avô morreu e lhe deixou a sua fortuna.

- Não, por que haveria ele de lhe ligar? Se não lhe era permitido conquistar a minha afeição, porque eu não tinha dinheiro, por que razão haveria ele de se voltar para uma rapariga por quem ele não se interessava e que era tão pobre como eu?

- Contudo, parece-me pouco delicado da parte dele rodear de atenções essa menina após a morte tão recente do avô.

- Um homem em situação embaraçosa não tem tempo para considerações dessa ordem e que outros podem acatar. Se «ela» não põe objecções, por que haveremos «nós» de o fazer?

- O facto de «ela» não objectar não quer dizer que «o» justifique. Apenas demonstra que também nela há ausência de algo; bom senso ou sentimentos.

- Pois bem - exclamou Elizabeth -, como queira, minha tia. «Ele» será um interesseiro e «ela« uma tola.

- Não, Lizzy, «não» é isso que eu quero. Teria a maior pena, tu sabe-lo bem, de pôr defeito num jovem que durante tanto tempo viveu no Derbyshire.

- Oh!, se é só isso, tenho uma péssima opinião dos jovens que viveram no Derbyshire; e os seus amigos íntimos que vivem em Hertfordshire não são de melhor cepa. Estou farta de todos eles. Graças a Deus! A partir de amanhã gozarei da companhia de um homem destituído de qualquer qualidade, bom senso ou distinção. Os estúpidos são, no fundo, os únicos que vale a pena conhecer.

- Toma cuidado, Lizzy; o que acabaste de dizer encerra qualquer coisa de muito parecido com desilusão.

Pouco antes do fim da peça que viria pôr termo à sua conversa, Elizabeth teve a inesperada alegria de um convite para acompanhar os seus tios numa digressão que eles se propunham realizar no Verão.

- Ainda não decidimos até onde iremos - disse a Sr.a Gardiner -, mas não pomos de parte a ideia de visitar a região dos Lagos.

Nenhum projecto ofereceria perspectivas mais agradáveis a Elizabeth, e a sua aderência ao convite foi pronta e reconhecida.

- Minha querida, querida tia - exclamou ela arrebatada -, que delícia! Que felicidade! É como se revivesse. Adeus, desilusão e melancolia. Que são os homens comparados com as rochas e as montanhas? Oh! Que horas de êxtase não serão as nossas! E, quando regressarmos, não acontecerá como com os outros viajantes, que não são capazes de dar uma ideia exacta de nada. Nós saberemos onde fomos, nós descreveremos o que vimos. Lagos, montanhas e rios não se misturarão nas nossas imaginações; e, na nossa tentativa de descrever determinado cenário, não discutiremos quanto à sua situação relativa. Não deixaremos que as «nossas» primeiras efusões sejam tão insuportáveis como as da maioria dos viajantes.

 

Tudo na jornada do dia seguinte oferecia novidade e era objecto de interesse aos olhos de Elizabeth. A sua disposição de espírito era excelente, pois não só o bom aspecto da irmã dissipara todas as preocupações a respeito da sua saúde, como a perspectiva da sua digressão pelo Norte era para ela uma fonte de constante regozijo.

Quando deixaram a estrada principal para tomar a azinhaga que os conduziria a Hunsford, esperaram a todo o momento e a cada curva do caminho deparar com o presbitério. A cerca do parque de Rosings limitava a estrada de um lado. Elizabeth sorriu ao recordar-se de tudo o que lhe tinham contado sobre os seus habitantes.

Finalmente lobrigaram o presbitério. O jardim descendo em rampa suave até à estrada, a casa que o encimava, a cerca verde, as sebes de loureiro, tudo indicava que estavam chegando. O Sr. Collins e Charlotte apareceram à porta, e a carruagem, no meio de acenos e sorrisos de todos, parou em frente de um pequeno portão, que por um estreito caminho de gravilha dava acesso à casa. No momento seguinte já todos se encontravam apeados, exultantes na alegria de se tornarem a ver. A Sr.a Collins recebeu a amiga numa manifestação de genuíno prazer e Elizabeth sentiu-se ainda mais satisfeita com a sua vinda ao ver-se objecto de recepção tão carinhosa. Ela imediatamente notou que os modos do primo não tinham sofrido qualquer modificação com o casamento; continuava a caracterizá-lo aquela sua delicadeza formal, que durante alguns minutos a deteve junto ao portão, a fim de ele ouvir e satisfazer as suas inquirições concernentes a toda a sua família. Foram, em seguida, conduzidos para dentro de casa. O Sr. Collins chamou a atenção para a beleza da entrada, e assim que chegaram à sala ele tornou a dar as boas-vindas e repetiu meticulosamente todas as recomendações da sua esposa para que os visitantes se pusessem à vontade.

Elizabeth estava preparada para o ver em toda a sua glória; e não lhe passou despercebido que, ao apontar para a proporção ideal da sala, o seu aspecto e mobília, ele se estava dirigindo particularmente a ela, como que desejando fazer-lhe sentir o que perdera em recusá-lo. Contudo, embora a Elizabeth tudo parecesse belo e confortável, não estava dentro das suas possibilidades satisfazê-lo mostrando qualquer sinal de arrependimento; e, pelo contrário, olhou de relance a amiga com um espanto mal disfarçado, por a ver tão animada junto de companheiro igual. Se acaso o Sr. Collins proferia algo de que sua mulher pudesse naturalmente envergonhar-se, o que decerto não acontecia poucas vezes, Elizabeth involuntariamente olhava para Charlotte. Por uma ou duas vezes, ela pode vê-la corar ligeiramente; mas, em geral e muito sensatamente, Charlotte fingia não ouvir. Após terem permanecido na sala o tempo suficiente par admirarem todos os seus objectos de mobiliário, desde o aparador ao guarda-fogo, e para contarem os pormenores da viagem e tudo o que tinham feito em Londres, o Sr. Collins convidou-os para um pequeno passeio pelo jardim, que era grande e muito bem cuidado, e de cujo cultivo ele próprio se encarregava. Trabalhar no jardim era um dos seus prazeres mais respeitáveis; e Elizabeth admirou a seriedade com que Charlotte se pronunciou sobre os aspectos salutares de tal exercício, admitindo encorajar o marido nesse sentido tanto quanto possível. Este, precedendo o grupo por todas as veredas e carreiros e não lhes permitindo sequer um pequeno intervalo para proferir os elogios que ele constantemente parecia clamar, aludia às várias perspectivas com uma minúcia tal que não deixava lugar à beleza. Sabia enumerar os campos em todas as direcções para que se voltava e de quantas árvores se compunha a mata mais distante. Mas, de todas as vistas de que o seu jardim, o condado ou o reino inteiro se podiam gabar, nenhuma se comparava ao panorama de Rosings, proporcionado por uma clareira entre as árvores que bordejavam o parque, mesmo defronte de sua casa. Era um belo edifício em estilo moderno, convenientemente situado numa elevação de terreno.

Do jardim, o Sr. Collins preparava-se para os conduzir através dos dois prados que também lhe pertenciam, mas as senhoras, que não dispunham dos sapatos adequados para enfrentar uns restos de geada, preferiram voltar para trás; e, enquanto Sir William o acompanhava no aludido passeio, Charlotte reconduziu a irmã e a amiga para casa, extremamente satisfeita por ter a oportunidade de a mostrar sem a ajuda do marido. A casa era pequena porem bem construída e cómoda; e tudo nela se harmonizava e estava disposto com uma arte e saber, que Elizabeth atribuía exclusivamente a Charlotte. Uma vez esquecido o Sr. Collins, poder-se-ia, de facto, gozar de um certo conforto, e, pela animação que transparecia no rosto de Charlotte, Elizabeth concluiu que ela o esquecia frequentes vezes.

Já a tinham informado de que Lady Catherine ainda ali se encontrava. Durante o jantar referiram de novo o assunto, e o Sr. Collins observou:

- Sim, a Menina Elizabeth terá a honra de ver Lady Catherine de Bourgh no próximo domingo na igreja, e é escusado repetir-lhe que ficará encantada com ela. Ela é de uma afabilidade e condescendência sem par, e, ou eu me engano muito ou a menina vê-la-á dignar-se dirigir-lhes a sua atenção após o serviço. Quase sem hesitação ouso afirmar que ela a incluirá a si bem como à minha irmã Maria em todos os convites que ela se digne fazer-nos durante a vossa estada aqui. A atitude dela para com a minha querida Charlotte é deveras encantadora. Costumamos jantar em Rosings duas vezes por semana, e Lady Catherine nunca permite que regressemos a pé para casa. Oferece-nos sempre a sua carruagem, ou melhor, uma das suas carruagens, pois ela possui várias.

- Lady Catherine é, na realidade, uma senhora muito respeitável e sensata - acrescentou Charlotte - e uma vizinha extremamente atenciosa.

- Dizes bem, minha querida, pois é o que eu penso. É uma senhora junto de quem a deferência nunca é demasiada.

O serão foi amplamente preenchido com a conversa suscitada pelas notícias de Hertfordshire e pela repetição dos assuntos já referidos; e, terminado este, Elizabeth, na intimidade do seu quarto, deu consigo a meditar no grau de contentamento de Charlotte, a apreciar o seu jeito em conduzir e a sua serenidade em suportar o marido e a reconhecer a perfeição com que ela desempenhava esse seu papel. Imaginou também como decorreria a sua visita entre eles, o calmo teor das suas ocupações habituais, as penosas interrupções do Sr. Collins e o esplendor das visitas a Rosings. Uma imaginação viva em breve se encarregou de tudo isto.

A meio do dia seguinte, encontrava-se Elizabeth no seu quarto preparando-se para um passeio, quando um súbito ruído em baixo lançou a casa em alvoroço; e, após escutar durante alguns momentos, ouviu alguém precipitando-se pelas escadas acima e gritando pelo seu nome. Abriu a porta e no patamar encontrou Maria, que, sem fôlego, tal a sua agitação, exclamou:

- Oh!, minha querida Eliza! Despacha-te e desce comigo à sala de jantar, pois vais ficar deslumbrada com o que vires! Não te direi do que se trata. Depressa, vem comigo.

Elizabeth em vão tentou obter resposta às suas perguntas, mas Maria estava decidida a nada lhe dizer, e, em atropelo, desceram até à sala de jantar, que dava para a azinhaga, para verem essa maravilha; tratava-se de duas senhoras num pequeno faetonte parado frente ao portão do jardim.

- E é tudo? - exclamou Elizabeth. - Esperei, pelo menos, que fossem os porcos que tivessem invadido o jardim, mas afinal não passa de Lady Catherine e de sua filha.

- Que ideia, minha querida! - disse Maria, um pouco ofendida com o engano. - Não é Lady Catherine. A senhora idosa é a Sr.a Jenkinson, que vive com elas; a outra é a Menina de Bourgh. Repara nela. É tão franzininha. Nunca pensei que ela fosse tão frágil e pequena!

- Ela é de uma crueldade atroz obrigar Charlotte a sair com uma ventania destas. Por que não entra ela?

- Oh! Charlotte diz que ela raramente o faz. É uma honra quando a Menina de Bourgh se digna a entrar nesta casa.

- Agrada-me a aparência dela - disse Elizabeth, lembrando-se subitamente de outra coisa. - Tem um aspecto doentio e de pessoa mal humorada. Sim, parecem ter nascido um para o outro. Ela será para ele a esposa ideal.

O Sr. Collins e Charlotte encontravam-se ambos ao portão conversando com as senhoras; e Sir William, para gáudio de Elizabeth, conservava-se na soleira da porta, contemplando gravemente a grandeza perante os seus olhos e fazendo repetidas vénias sempre que a Menina de Bourgh olhava na sua direcção.

Finalmente, o assunto esgotou-se; o carro partiu e os outros voltaram para casa. O Sr. Collins, mal deparou com as duas raparigas, começou a felicitá-las pela sua sorte; Charlotte explicou que todos tinham sido convidados para jantar em Rosings no dia seguinte.

 

O triunfo do Sr. Collins em virtude deste convite foi completo. A possibilidade de exibir a magnificência da sua patrona aos olhos maravilhados dos seus hóspedes e de os deixar entrever a delicadeza de Sua Excelência para com ele próprio e sua mulher vinha ao encontro daquilo que ele mais desejava; e o facto de essa oportunidade lhe ter sido facultada tão cedo era tão característico da condescendência e atenção próprias de Lady Catherine que ele não tinha palavras para exprimir a sua admiração.

- Confesso - dizia ele - que não me surpreenderia se acaso no domingo Sua Excelência nos convidasse para tomar chá e passar a tarde em Rosings. Conhecendo eu a sua afabilidade, achava natural que assim sucedesse. Mas quem poderia prever uma prova de atenção como esta? Quem imaginaria que nós havíamos de receber um convite para jantar, um convite, aliás, que abrange todo o grupo, tão imediatamente após a vossa chegada?

- Sou eu o menos surpreendido de todos - replicou Sir William -, graças ao conhecimento que tenho do que é usual nas altas esferas, e o qual me foi facultado pela minha situação na vida. Na corte não são invulgares tais manifestações, reveladoras de uma educação primorosa.

Em pouco mais se falou durante o resto do dia e na manhã seguinte, senão na visita a Rosings. O Sr. Collins teve a precaução de os esclarecer sobre as maravilhas que os esperavam, de modo a que a visão dos salões, dos inúmeros criados e do opulento jantar não os mergulhasse num assombro desmedido.

Antes de as senhoras se retirarem, a fim de se prepararem, ele disse a Elizabeth:

- Não se preocupe demasiado com o seu traje, querida prima. Lady Catherine está longe de exigir de nós a elegância que ela e sua filha ostentam. Aconselho-a, portanto, a escolher o seu vestido mais elegante, apenas, pois a ocasião pouco mais requer. Lady Catherine não lhe levará a mal a simplicidade da sua aparência. Ela gosta de ver preservada a distinção das classes.

Enquanto elas se vestiam, o Sr. Collins veio por duas ou três vezes bater à porta dos diferentes quartos e recomendar-lhes que não se demorassem, pois Lady Catherine não gostava que a fizessem esperar para jantar. Considerações tão formidáveis sobre Sua Excelência e o seu modo de vida não deixavam de assustar Maria Lucas, que não tinha ainda a prática da convivência social e que antevia a sua visita a Rosings tão apreensivamente como seu pai no dia da sua apresentação na corte.

Como o tempo estava bom, o passeio através do parque foi muito agradável. Todos os parques têm as suas belezas e as suas perspectivas; e Elizabeth sentia-se satisfeita com o que via, embora não se entregasse às efusões que o Sr. Collins esperava que o cenário nela suscitasse, e apenas se mostrou ligeiramente impressionada pela enumeração das janelas da frente da casa e o que envidraçá-las originalmente custara a Sir Lewis de Bourgh.

Enquanto subiam a escadaria da entrada, a emoção de Maria aumentava a cada momento e o próprio Sir William deixava transparecer o eu nervosismo. A coragem de Elizabeth, porém, não a abandonou. Ela nada ouvira a respeito de Lady Catherine que a impressionasse, quer por quaisquer talentos extraordi-nários ou miraculosa virtude, e, quanto à pompa de que tanto o dinheiro como a sua classe a rodeavam, ela acreditava poder contemplar sem desfalecer.

Da sala de entrada, cujas belas proporções e ricos ornamentos o Sr. Collins fez ressaltar com ar extático, seguiram os criados através de uma antecâmara até à sala onde se encontravam Lady Catherine, sua filha e a Sr.a Jenkinson. Sua Excelência condescendeu em levantar-se para os receber; e, de acordo com o que previamente ficara estabelecido entre os cônjuges, a apresentação a cargo da Sr.a Collins decorreu da forma mais adequada e sem nenhuma daquelas desculpas e agradecimentos que o marido teria considerado indispensáveis.

Apesar de já ter sido recebido em St. James, Sir William estava tão impressionado pelo esplendor que o rodeava que apenas teve animo para uma profunda vénia e sentar-se sem proferir palavra; e sua filha, terrivelmente assustada, ocupou a borda de uma cadeira e não sabia para que direcção olhar. Elizabeth sentia-se perfeitamente à vontade e pôde observar serenamente as três senhoras à sua frente. Lady Catherine era uma mulher alta e forte, de feições muito carregadas e que teriam, em tempos, sido belas. O seu ar não cativava e a atitude dela ao recebê-los não era de molde a fazê-los esquecer a sua inferioridade. Quando em silêncio, nada tinha de terrível; mas o que quer que ela dissesse era dito num tom tão autoritário que revelava toda a sua presunção, e imediatamente trouxe o Sr. Wickham ao espírito de Elizabeth; e, pelo que lhe foi dado observar no decorrer desse dia, ela acreditou na veracidade da imagem que de Lady Catherine ele lhe dera.

Quando, após o exame da mãe, em cujo semblante e comportamento em breve descobriu a semelhança com o Sr. Darcy, Elizabeth voltou os olhos para a filha, sentiu-se capaz de partilhar do espanto de Maria ao considerá-la tão frágil e miudinha. Não existia, quer na figura como no rosto, qualquer parecença entre as duas senhoras. A Menina de Bourgh era pálida e de compleição doentia; as suas feições, embora não fossem feias, eram insignificantes. Ela pouco falava e o que dizia pronunciava-o numa voz sumida ao ouvido da Sr.a Jenkinson, cuja aparência nada tinha de notável e que se ocupava inteiramente em escutar a outra e em colocar um biombo em situação conveniente diante dos olhos da rapariga.

Após permanecerem alguns minutos sentados, foram todos levados para junto de uma das janelas, a fim de admirarem a panorâmica; o Sr. Collins encarregou-se de lhes indicar o que era digno de ser visto e Lady Catherine, amavelmente, observou que no Verão era tudo muito mais belo.

O jantar decorreu magnificamente, com todos os criados e a esplêndida baixela de prata de que o Sr. Collins falara; e, de acordo com o que igualmente predissera, ele sentou-se, por desejo expresso de Sua Excelência, à cabeceira da mesa, e, pela sua radiosa expressão, era como se sentisse que para ele a vida nada tinha de mais grandioso para lhe oferecer. Ele trinchava, comia e louvava com um entusiasmo embevecido; e cada iguaria era apreciada, primeiro por ele e em seguida por Sir William, que por esta altura readquirira já a confiança suficiente para repetir tudo o que o genro dizia, mas de uma feição tal que Elizabeth duvidava se Lady Catherine o suportaria. Lady Catherine, contudo, parecia satisfeita com aquela admiração excessiva e concedia a graça de um sorriso ou outro, sobretudo quando alguma das iguarias se revelava uma novidade para eles. O grupo, porém, não era de índole a permitir uma conversa generalizada. Elizabeth estava pronta a pronunciar-se sempre que via ocasião, mas encontrava-se sentada entre Charlotte e a Menina de Bourgh, e, enquanto a primeira tinha a sua atenção absorvida por Lady Catherine, a segunda não lhe dirigiu uma só palavra durante todo o jantar. A Sr.a Jenkinson, principalmente ocupada em observar o que a Menina de Bourgh comia, incitava-a constante-mente a variar de prato e amiúde lhe perguntava se acaso se sentia indisposta. Maria pusera completamente de parte a ideia de falar e os cavalheiros limitavam-se a comer e a admirar.

Em seguida, as senhoras voltaram para o salão, e até à hora do café nada mais fizeram senão ouvir Lady Catherine. Esta falava sem interrupção, dando a sua opinião sobre cada assunto com uma segurança que mostrava bem não estar habituada a que lhe contestassem as palavras. Fez inúmeras perguntas a Charlotte a respeito de assuntos domésticos, com familiaridade e minúcia; e aconselhou-a generosamente. Disse-lhe como tudo deveria ser regulado numa família pequena como a sua e ensinou-lhe a cuidar das vacas e das aves de capoeira. Elizabeth verificou que nenhum assunto, por mais humilde que fosse, escapava à atenção de Lady Catherine, contanto que neles encontrasse uma oportunidade para doutrinar. Nos intervalos das suas recomendações à Sr.a Collins, dirigia algumas perguntas a Maria e a Elizabeth, especialmente a esta última, que conhecia menos e que, observou ela para a Sr.a Collins, era uma rapariga muito simpática e atraente. Perguntou-lhe várias vezes quantas irmãs ela tinha, se eram mais novas ou mais velhas do que ela, se alguma delas estava em vias de se casar, se eram bonitas, onde tinham sido educadas, qual a situação de seu pai e o nome de solteira de sua mãe. Elizabeth sentiu toda a impertinência contida nas perguntas, mas respondeu com grande simplicidade. Lady Catherine então observou:

- A propriedade de seu pai está destinada, pela sucessão, a cair nas mãos do Sr. Collins. Alegro-me por sua causa - continuou ela, virando-se para Charlotte -, mas, de outro modo, não vejo por que privam a descendência feminina do direito de herdar propriedades. Na família de Sir Lewis de Bourgh não julgaram necessário tomar tal medida. Sabe tocar piano e cantar, Menina Bennet?

- Um pouco.

- Oh!, nesse caso, espero que um dia destes nos dê o prazer de a ouvir. O nosso piano é estupendo, o que há de melhor. Provavelmente superior ao... Tem de experimentá-lo. As suas irmãs também sabem tocar e cantar?

- Uma delas sabe.

- Por que não aprenderam as outras também? Todas deviam saber música. As Meninas Webbs todas sabem tocar; e o pai delas não é mais rico que o seu. Sabe desenhar?

- Não, minha senhora.

- O quê, nenhuma de vós?

- Nenhuma de nós.

- Que curioso. Mas com certeza não tiveram oportunidade. Vossa mãe deveria tê-las levado na Primavera para a capital, para receberem lições.

- Minha mãe não poria objecção, mas o meu pai detestava Londres.

- A vossa mestra foi despedida?

- Nós nunca tivemos mestra.

- Nunca tiveram mestra? Como é isso possível! Educar cinco filhas sem uma mestra! Nunca ouvi tal coisa! Vossa mãe deve ter sido uma escrava da vossa educação.

Elizabeth não pôde deixar de sorrir ao responder que esse não fora o caso.

- Então, quem as ensinou? Quem se encarregou da vossa educação? Sem a assistência de uma mestra, ela terá sido imperfeita.

- Em comparação com a de certas famílias, acredito que sim; mas lá em casa, àquelas que quiseram aprender nunca lhes faltou meios para tal. Sempre nos encorajaram a prática da leitura e tivemos todos os professores necessários. Porém, às que preferiram não estudar foi-lhes feita a vontade.

- Sem dúvida, mas seria isso justamente que uma mestra permanente teria evitado. Se acaso eu fosse das relações de sua mãe, tê-la-ia com insistência aconselhado a que tomasse uma mestra. Para uma educação perfeita, entendo uma instrução constante e regular, e isso só uma mestra o pode garantir. É espantoso o número de famílias em que eu coloquei mestras. É com prazer que eu recomendo uma rapariga bem educada. Graças aos meus cuidados, quatro sobrinhas da Sr.a Jenkinson encontram-se hoje magnificamente colocadas. Ainda no outro dia falei numa jovem cujo nome ouvira apenas acidentalmente e a família a quem a recomendei ficou muito satisfeita com ela. Sr.a Collins, já lhe contei que Lady Metcalf me veio visitar ontem para me agradecer? Ela está positivamente encantada com a Menina Pope. «Lady Catherine», disse-me ela, «a senhora arranjou-me um tesouro.» Alguma das suas irmãs mais novas já foi apresentada à sociedade, Menina Bennet?

- Sim, minha senhora, todas elas.

- O quê? Todas as cinco de uma vez? É muito estranho. E a menina é apenas a segunda! As mais novas já frequentam a sociedade mesmo antes de as mais velhas se casarem! As suas outras irmãs são muito novinhas?

- A mais nova ainda não fez dezasseis anos. Talvez seja um pouco cedo de mais para fazer vida social, mas, realmente, minha senhora, considero uma crueldade recusar-lhes a sua parte de divertimentos e relações sociais apenas porque a mais velha não teve oportunidade ou inclinação para se casar mais cedo. As mais novas tem os mesmos direitos que as mais velhas aos prazeres da mocidade; e estou em crer que fechá-las em casa não seria um bom meio de promover a afeição fraternal ou a delicadeza de sentimentos.

- Por Deus - disse Lady Catherine -, a menina exprime a sua opinião muito decididamente para uma pessoa tão jovem. Diga-me, quantos anos tem?

- Com três irmãs mais novas já adultas - replicou Elizabeth -, Vossa Excelência não pode esperar que eu lhe dê uma resposta.

Lady Catherine pareceu ficar atónita por não ter recebido uma resposta directa e Elizabeth suspeitou que fora ela a primeira pessoa que jamais ousara ludibriar tão pomposa impertinência.

- A menina não pode ter mais de vinte anos, portanto não precisa de esconder a sua idade.

- Ainda não fiz vinte e um anos.

Depois do chá, quando os cavalheiros se lhes reuniram, prepararam as mesas de jogo. Lady Catherine, Sir William, o Sr. e a Sr.a Collins sentaram-se para o quadrille; e, como a Menina de Bourgh preferisse jogar o «casino», as duas raparigas e a Sr.a Jenkinson tiveram a honra de formar uma segunda mesa com ela. Esta mesa foi extremamente maçadora. Não se ouviu uma sílaba que não se referisse ao jogo, a não ser quando a Sr.a Jenkinson exprimia os seus receios de que a Menina de Bourgh estivesse agasalhada de mais, ou de menos, ou que a luz fosse fraca, ou demasiada. A outra mesa era muito mais animada. Lady Catherine não cessava de falar, apontando os erros dos outros três ou contando algum caso passado consigo. O Sr. Collins estava ocupado em concordar com tudo o que Lady Catherine dizia, agradecendo-lhe cada ponto que ganhava ou pedindo desculpas se achava que estava ganhando de mais. Sir William pouco dizia. Procurava afanosamente na sua memória as histórias e os nomes nobres que conhecia.

Quando Lady Catherine e sua filha jogaram o que tinham na vontade, as mesas foram desfeitas, a carruagem foi oferecida à Sr.a Collins, aceite com gratidão e imediatamente chamada. Entretanto, o grupo reuniu-se em torno da lareira para ouvir Lady Catherine lançar os seus oráculos sobre o tempo que faria no dia seguinte. Foi interrompida pela chegada da carruagem; e, depois de muitos agradecimentos da parte do Sr. Collins e outras tantas reverencias de Sir William, eles partiram. Mal tinham transposto a porta, o Sr. Collins pediu à prima que desse a sua opinião sobre tudo o que vira em Rosings. Em atenção de Charlotte, Elizabeth respondeu-lhe mais favoravelmente do que o que na realidade desejava. Os seus louvores, embora lhe tivesse custado algum trabalho, de modo algum foram considerados suficientes pelo Sr. Collins, que imediatamente se sentiu obrigado a tomar ao seu cuidado o elogio de Lady Catherine.

 

Sir William passou apenas uma semana em Hunsford; mas a sua visita bastou para o convencer de que sua filha estava magnificamente instalada e de que possuía um marido e uma vizinha como poucos. Durante o tempo em que Sir William permaneceu em Hunsford, o Sr. Collins consagrou-lhe as suas manhãs. Levava-o, em geral, a passear na sua jardineira, dando-lhe a conhecer a região. Quando aquele partiu, a família voltou às suas ocupações habituais e Elizabeth regozijou-se por não o ter tão constantemente na sua companhia, pois a maior parte do tempo, entre o pequeno-almoço e o a moço, ele passava-o agora trabalhando no jardim, lendo ou escrevendo e olhando pela janela da biblioteca, que dava para a estrada. A sala das senhoras ficava nas traseiras. Elizabeth, a princípio, estranhou que Charlotte não preferisse a salinha de jantar para uso comum, pois era maior e mais agradável; mas em breve compreendeu que a sua amiga tinha um excelente motivo para o que fazia, pois sem dúvida o Sr. Collins passaria muito menos tempo na sua biblioteca se elas escolhessem uma sala igualmente agradável.

Da salinha de estar não viam a estrada e ao Sr. Collins deviam a notícia das carruagens que surgiam e número de vezes que a Menina de Bourgh passava no seu faetonte, coisa que ele jamais deixa de anunciar, embora se tratasse de um acontecimento quase diário. Com frequência a Menina de Bourgh parava no presbitério e conversava alguns minutos com Charlotte, mas muito raramente condescendia em apear-se. Poucos dias decorriam sem que o Sr. Collins fosse a Rosings, e era frequente que sua mulher achasse seu dever acompanhá-lo; e Elizabeth só compreendeu o sacrifício de tantas horas quando se lembrou de que possivelmente existiam outros cargos eclesiásticos que dependiam da família. De quando em vez, Lady Catherine honrava-os com uma visita, e nessas ocasiões nada do que se passava na sala escapava à sua atenção. Ela observava as várias ocupações das raparigas, olhava para os seus trabalhos e aconselhava que os fizessem de modo diferente. Tinha sempre algum reparo a fazer sobre a disposição dos móveis, ou descobria alguma negligência da criada. Se ficava para alguma refeição, não perdia a ocasião de observar que as porções da Sr.a Collins eram grandes de mais para a família.

Elizabeth em breve descobriu que esta grande senhora, embora não fosse investida dos poderes de juiz de paz para o condado, desempenhava na sua paróquia as funções de magistrado muito activo e nada se passava que ela não desse a conhecer ao Sr. Collins; e, quando algum dos aldeões se mostrava quezilento, descontente, ou caía na miséria, ou quando surgia uma contenda, ela acorria à aldeia, a fim de pôr termo às questões, silenciar as queixas e harmonizar as disputas e as desgraças com reprimendas e dinheiro.

Os jantares em Rosings tinham lugar duas vezes por semana e, não fosse a ausência de Sir William e o facto de apenas se formar uma mesa de jogo, não passariam da repetição exacta do primeiro. Os seus compromissos sociais montavam a pouco mais do que isto, pois o género de vida das famílias da vizinhança estava, em geral, para além dos meios da família Collins. Elizabeth não se ressentia com isso e, em suma, passava o tempo muito agradavelmente. Entretinha-se a conversar com Charlotte e, como fizesse um tempo excepcionalmente bom para aquela época do ano, encontrava grande prazer nos passeios ao ar livre. O seu passeio de eleição, que em geral fazia enquanto os outros visitavam Lady Catherine, era no bosque aberto que limitava aquele lado do parque, onde havia uma pequena alameda coberta que ninguém mais parecia apreciar e onde ela se sentia protegida da curiosidade de Lady Catherine.

Deste modo tranquilo passaram os primeiros quinze dias da sua visita. Aproximava-se a Páscoa e a semana que a precedia traria uma pessoa a Rosings; e, numa família tão pequena, tal acréscimo não deixava de ser importante. Pouco depois da sua chegada, Elizabeth ouvira dizer que o Sr. Darcy era esperado em Rosings daí a poucas semanas; e, embora ela preferisse qualquer outra pessoa do seu conhecimento, a chegada do Sr. Darcy contri-buiria para o aparecimento de um rosto de certo modo novo nos jantares em Rosings. Além disso, ela teria ocasião de observar a atitude dele para com a sua prima, a quem ele estava, evidentemente, destinado por Lady Catherine, e até que ponto eram infundadas as esperanças da Menina Bingley nele. Lady Catherine falava na sua vinda com a maior satisfação, referia-se a ele nos termos mais elogiosos e quase se zangou ao saber que a Menina Lucas e Elizabeth já o conheciam.

A notícia da sua chegada imediatamente chegou ao presbitério, pois o Sr. Collins passou a manhã inteira passeando perto dos portões do parque, a fim de não perder o acontecimento. Quando viu surgir a carruagem, ele fez uma profunda vénia e correu para casa. Na manhã seguinte tomou desde logo o caminho de Rosings, a fim de ir apresentar cumprimentos, função esta que ele fez a dobrar, pois eram dois os sobrinhos de Lady Catherine. O Sr. Darcy tinha trazido consigo o coronel Fitzwilliam, o filho mais novo de seu tio, o Lord; e, para grande surpresa de todos, quando o Sr. Collins voltou a casa tinha a acompanhá-lo os dois cavalheiros. Charlotte, que os avistara da janela do quarto do Sr. Collins, correu para o pé das outras e avisou-as da honra que as esperava, acrescentando:

- E a ti se deve, Eliza, este gesto de amabilidade. O Sr. Darcy não viria aqui tão cedo por minha causa.

Elizabeth ainda não tivera tempo para protestar contra tal homenagem, quando a chegada dos cavalheiros foi anunciada pela campainha da porta, que pouco depois fizeram a sua aparição na sala. O coronel Fitzwilliam, que entrou primeiro, aparentava ter aproximadamente trinta anos de idade; não era belo, mas nas atitudes e nos modos mostrava-se um verdadeiro senhor. O Sr. Darcy não mudara. Apresentou os seus cumprimentos à Sr.a Collins, com a reserva habitual, e, quaisquer que fossem os seus sentimentos para com a amiga da dona da casa, ele cumprimentou-a discretamente. Elizabeth respondeu-lhe com uma ligeira vénia, sem pronunciar uma só palavra. O coronel Fitzwilliam encetou imediatamente conversa, com a simplicidade de um homem bem educado. A sua conversa era muito agradável; mas seu primo, após ter dirigido uma ligeira observação sobre a casa e o jardim, guardou silêncio durante algum tempo. Por fim, achou-se na obrigação de perguntar pela família de Elizabeth. Esta respondeu-lhe com a costumada simplicidade e, após uma curta pausa, acrescentou:

- Minha irmã mais velha esteve em Londres estes últimos três meses. Acaso não a encontrou?

Ela sabia perfeitamente que ele nunca a poderia ter encontrado; mas pretendia ver se ele trairia alguma consciência do que se passara entre os Bingleys e Jane. Pareceu-lhe, de facto, discernir uma certa perturbação no Sr. Darcy, quando ele lhe respondeu não ter tido a felicidade de encontrar a Menina Bennet. O assunto não tornou a ser mencionado e pouco depois os dois cavalheiros partiram.

 

Os modos do coronel Fitzwilliam foram muito apreciados no presbitério e todas as senhoras foram unanimes em como ele contribuiria consideravelmente para alegrar os jantares em Rosings. No entanto, alguns dias passaram antes que recebessem novo convite pois, havendo visitas em casa, eles não eram tão necessários; e só nó Domingo de Páscoa, quase uma semana depois da chegada dos cavalheiros, foram honrados com tal prova de tenção, que lhes foi dirigida à saída da igreja e os convocava a passar apenas a tarde com a família. Durante essa semana raramente tiveram a ocasião de ver Lady Catherine ou sua filha. O coronel Fitzwilliam visitou várias vezes o presbitério, mas o Sr. Darcy apenas foi avistado na igreja.

O convite foi, naturalmente, aceite, e, a uma hora apropriada, eles reuniram-se ao grupo que já se encontrava no salão de Lady Catherine. Esta recebeu-os amavelmente, mas era evidente que a companhia deles não lhe agradava tanto como nos dias em que não tinha mais ninguém. Lady Catherine deixava-se, com efeito, absorver pelos seus sobrinhos, e com eles falava, sobretudo com Darcy, mais do que com qualquer outra pessoa na sala.

O coronel Fitzwilliam parecia realmente encantado por os ver. Em Rosings, tudo o que apresentasse novidade era bem-vindo para ele e a atraente amiga da Sr.a Collins não deixara de o impressionar. Ele procurou um lugar junto dela e falou-lhe tão agradavelmente sobre Kent, Hertfordshire, viagens, livros e música que Elizabeth sentiu nunca se ter divertido tanto naquele salão; e a conversa de ambos decorria tão animada e distraída de tudo o resto que em breve atraiu a atenção de Lady Catherine, bem como a do Sr. Darcy. Os olhos deste volveram repetidas vezes naquela direcção, com uma expressão de curiosidade; e dentro em pouco se tornou evidente que Lady Catherine partilhava dos sentimentos do sobrinho, pois, sem reservas, ela exclamou:

- Que diz, Fitzwilliam? De que estão vocês a conversar? O que conta à Menina Bennet? Quero saber o que é.

- Estamos a falar de música, minha senhora - disse ele, quando não pôde mais evitar uma resposta.

- De música! Então fale em voz alta. É, de todos os assuntos, o meu preferido. Se estão realmente a falar de música, quero tomar parte na conversa. Creio que existem poucas pessoas em Inglaterra que apreciem música tanto como eu, ou que tenham um gosto para ela mais natural do que o meu. Se acaso a tivesse aprendido convenientemente, seria uma grande intérprete. E Anne igualmente, se a sua saúde o tivesse permitido. Estou certa de que ela tocaria divinalmente. Georgiana tem feito muitos progressos, Darcy?

O Sr. Darcy louvou afectuosamente o talento de sua irmã.

- Fico muito satisfeita com o que me conta - disse Lady Catherine -; e diga-lhe, da minha parte, que ela só poderá brilhar se estudar com afinco.

- Pode estar certa, minha senhora - replicou ele -, de que ela não precisará de tal conselho. Ela estuda e pratica com muita regularidade.

- Tanto melhor. Nunca será de mais; e, quando lhe tornar a escrever, recomendar-lhe-ei para que não descuide a prática do piano. É constantemente que repito às jovens que nenhuma distinção poderá ser alcançada na música sem uma prática constante. Por várias vezes disse à Menina Bennet que ela nunca chegará a tocar realmente bem se não se dedicar mais ao instrumento; e, uma vez que o Sr. Collins não possui piano em casa, torno a renovar o meu convite para diariamente vir a Rosings exercitar-se no piano, no quarto da Sr.a Jenkinson. Naquela parte da casa, ela não correrá o risco de incomodar alguém.

O Sr. Darcy pareceu um pouco envergonhado com a grossaria de sua tia e nada respondeu.

Depois do café, o coronel Fitzwilliam lembrou a Elizabeth a promessa que ela lhe fizera em tocar para ele; e ela imediatamente se dirigiu para o piano. Ele aproximou a sua cadeira. Lady Catherine ouviu metade de uma canção e de novo reatou a conversa com o seu outro sobrinho; mas este em breve se afastou dela e, resolutamente, dirigiu-se para o piano, colocando-se de maneira a obter uma visão perfeita do rosto da bela executante. Elizabeth teve consciência da sua presença e, na primeira pausa, voltou-se para ele e disse-lhe, com um sorriso malicioso:

- É para me assustar, Sr. Darcy, que se aproximou com toda essa imponência? Mas eu não ficarei alarmada, embora sua irmã toque tão bem. Existe em mim uma ousadia que a vontade dos outros é incapaz de intimidar. Nesses momentos a minha coragem não se faz ignorada.

- Não lhe direi que está enganada - replicou ele -, pois nunca a menina poderia realmente acreditar que eu tivesse a intenção de a alarmar. Tenho o prazer de a conhecer já há bastante tempo para saber que gosta ocasionalmente de exprimir opiniões que de facto não são as suas.

Elizabeth riu com gosto da imagem que ele dela oferecia e disse para o coronel Fitzwilliam:

- O seu primo dar-lhe-á uma bela ideia a meu respeito e ensiná-lo-á a não acreditar numa palavra do que eu digo. é infortúnio meu encontrar a pessoa capaz de expor aos outros o meu verdadeiro caracter num lugar onde eu acalentara a esperança de deixar uma boa impressão. Realmente, Sr. Darcy, é uma falta de generosidade da sua parte mencionar aqui tudo o que sobre as minhas fraquezas descobriu no Hertfordshire. Considero, além disso, a sua atitude muito pouco delicada, pois me incita a represálias. Receio dizer coisas que escandalizem os seus parentes,

- Não tenho medo de si - disse ele, sorrindo.

- Oh, deixe que eu ouça as acusações que tem para lhe fazer - exclamou o coronel Fitzwilliam. - Gostaria de saber como ele se comporta entre estranhos.

- Eu lho direi... mas prepare-se para ouvir coisas horríveis. A primeira vez que o vi em Hertfordshire, foi num baile. E, nesse baile, que pensa o senhor que ele fez? Dançou apenas quatro danças! Sinto muito ter de magoá-lo, mas e a verdade. Ele dançou apenas quatro danças, embora os cavalheiros fossem escassos; e, de meu conhecimento, mais de uma rapariga ficou sentada por falta de par. Sr. Darcy, o senhor não pode negar tal facto.

- Na altura não tinha a honra de conhecer outras raparigas presentes no salão, para além das do meu próprio grupo.

- É verdade; e ninguém pode ser apresentado a outro num salão de baile. Bem, coronel Fitzwilliam, que devo eu tocar em seguida? Os meus dedos esperam ordens suas.

- Talvez - disse Darcy - eu devesse ter solicitado uma apresentação, mas considero-me mal qualificado para me recomendar pessoalmente a pessoas estranhas.

- Deveremos nós perguntar a seu primo qual a explicação para tal atitude? - disse Elizabeth, dirigindo-se sempre ao coronel Fitzwilliam. - Deveremos nós perguntar-lhe por que razão um homem bem educado e sensato e que tem a experiência do mundo se considera mal qualificado para se recomendar a pessoas estranhas?

- Posso responder à sua pergunta - disse Fitzwilliam - sem ter de o consultar. É porque ele não está para se dar a esse trabalho.

- O que é certo é que não tenho o talento que muita gente possui - disse Darcy - de dirigir facilmente a palavra a pessoas que nunca vi anteriormente. Não sou capaz de entrar no estilo de conversa, ou fingir-me interessado nos problemas dos outros, como frequentemente vejo acontecer.

- Os meus dedos - disse Elizabeth - não se movem sobre este instrumento de modo tão magistral como os de muitas mulheres. Eles não têm a mesma força e a mesma rapidez, nem possuem a mesma força de expressão; mas disso eu me culpo só a mim, pois nunca me dei ao trabalho de praticar. Não é que acredite que os meus dedos sejam inferiores aos de qualquer outra mulher.

Darcy sorriu e disse:

- Tem toda a razão. Empregou o seu tempo muito melhor. Nenhum dos que terão tido o privilégio de a ouvir poderão apontar qualquer erro. Nenhum de nós executa para estranhos.

Aqui foram interrompidos por Lady Catherine, que quis saber sobre o que conversavam. Elizabeth imediatamente recomeçou a tocar. Lady Catherine aproximou-se e, após ouvir durante alguns momentos, disse para Darcy:

- A Menina Bennet não tocaria nada mal se praticasse mais e pudesse gozar as lições de um mestre londrino. Ela articula bem, mas não com tanta expressão como Anne. Anne seria uma pianista notável, se a sua saúde o permitisse.

Elizabeth olhou para Darcy, para ver como ele acolhia aquele elogio a sua prima; mas nem naquele momento nem em qualquer outra altura ela discerniu o mais leve sintoma de amor; e, pela atitude geral do Sr. Darcy, Elizabeth chegou à conclusão, de certo modo consoladora para a Menina Bingley, de que, fosse ela também sua prima, e as probabilidades de casar com ele seriam as mesmas.

Lady Catherine continuou com as suas observações sobre a execução de Elizabeth, alternando-as com conselhos sobre a técnica e a expressão. Elizabeth acatou-os paciente e amavelmente; e, a pedido dos cavalheiros, permaneceu ao piano até a carruagem de Lady Catherine ser chamada, para os conduzir a casa.

 

Na manhã seguinte, encontrava-se Elizabeth, na ausência da Sr.a Collins e de Maria, que tinham ido fazer compras à aldeia, sozinha em casa e escrevendo a Jane, quando a campainha da porta a fez sobressaltar. Como não ouvira o ruído de qualquer carruagem, calculou que se tratasse de Lady Catherine e, apreensiva, tratou de esconder a carta que escrevia, a fim de evitar perguntas indiscretas, quando a porta se abriu e, para sua grande surpresa, o Sr. Darcy, e o Sr. Darcy apenas, entrou na sala.

Ele pareceu igualmente surpreendido por a encontrar só e desculpou-se pela intrusão, dizendo ter pensado encontrar todas as senhoras em casa.

Sentaram-se, então, e após ela se ter delicadamente informado sobre as moradoras de Rosings, pareciam ir cair num silêncio total. Era, pois, absoluta-mente necessário introduzir qualquer assunto; e, nessa emergência, Elizabeth, lembrando-se da última vez em que o vira no Hertfordshire e curiosa de saber o que ele diria para justificar a sua súbita partida, observou:

- Com que precipitação deixaram todos Netherfield em Novembro passado, Sr. Darcy! Deve ter sido uma surpresa muito agradável para o Sr. Bingley revê-los a todos tão cedo, pois, se não me engano, ele partira no dia anterior. Ele e as irmãs encontravam-se bem, espero, desde a última vez que os viu em Londres?

- Perfeitamente, obrigado.

Elizabeth compreendeu que não receberia outra resposta; e, após uma curta pausa, acrescentou:

- Pelo que me foi dado entender, o Sr. Bingley não faz tenção de voltar a Netherfield?

- Nunca o ouvi dizer tal coisa; mas é provável que daqui para o futuro ele lhe dedique menos tempo. Ele tem muitos amigos e está numa idade em que os amigos e os compromissos aumentam continuamente.

- Se ele tenciona passar tão pouco tempo em Netherfield, seria preferível para a vizinhança que ele desistisse inteiramente do lugar, pois, nessa altura, instalar-se-ia ali outra família. Contudo, talvez o Sr. Bingley e tenha tomado pensando menos na conveniência dos vizinhos do que na sua própria, e, nesse caso, não teremos mais do que aguardar que ele, baseado nesse mesmo princípio, a conserve ou desista dela.

- Não me surpreenderia que ele optasse pela desistência, mal se lhe oferecesse uma oportunidade vantajosa - respondeu Darcy.

Elizabeth nada acrescentou. Receava continuar falando do amigo dele; e, como nada mais tinha para lhe dizer, resolveu deixar ao cargo dele a tarefa de encontrar um novo assunto.

Ele compreendeu-a e logo começou:

- Esta casa parece muito acolhedora. Lady Catherine, creio eu, reformou-a bastante com a vinda do Sr. Collins para Hunsford.

- Creio que sim, e estou certa de que ela não poderia ter dispensado a sua bondade a uma pessoa mais reconhecida.

- O Sr. Collins parece ter tido muita sorte com a esposa que escolheu.

- Com efeito. Os seus parentes têm motivos para satisfação, pois ele encontrou uma das poucas mulheres sensatas que alguma vez o teriam aceite, e, aceitando-o, o teriam feito feliz. A minha amiga é muito compreensiva, e, embora não considere o seu casamento com o Sr. Collins um dos seus actos mais ajuizados, reconheço que ela parece perfeitamente feliz; e, considerando as coisas sob o ponto de vista da prudência, ela realizou, de facto, o casamento ideal.

- Deve ser muito agradável para ela ter a sua casa a uma distância relativamente pequena da dos seus pais e amigos.

- Uma distância pequena, diz o senhor? São perto de cinquenta milhas.

- E o que são cinquenta milhas numa boa estrada? Pouco mais do que meio dia de viagem. Sim, considero uma distância bastante viável.

- Nunca me lembraria de considerar a distância como uma das vantagens do casamento - exclamou Elizabeth. - Jamais teria dito que a Sr.a Collins se encontra instalada «perto» da sua família.

- É uma prova da sua afeição pelo Hertfordshire. Qualquer lugar que não se encontre nas proximidades de Longbourn lhe deve parecer longínquo.

Enquanto falava, havia nele uma espécie de sorriso que Elizabeth julgou compreender; ele devia supor que ela estava a pensar em Jane e em Netherfield e enrubesceu ao responder-lhe:

- Não quis com isso dizer que uma mulher não deva morar um pouco longe da família. Longe ou perto, ambos são relativos e dependem de várias circunstâncias. Quando existem meios e as despesas da viagem são de pouca monta, a distância não oferece inconveniente. Mas não é este o caso. O Sr. e a Sr.a Collins usufruem de um rendimento que lhes permitirá uma viagem confortável, embora não frequente, e estou persuadida de que a minha amiga só se consideraria «perto» da família e se encontrasse a metade da distância a que realmente se encontra.

O Sr. Darcy aproximou um pouco a sua cadeira e disse:

- Mas a menina não pode alimentar em si sentimento tão bairrista. Não poderá viver sempre em Longbourn.

Elizabeth olhou-o, surpreendida. O Sr. Darcy pareceu mudar de ideia; recuou a cadeira, pegou num jornal que se encontrava em cima da mesa e, relanceando-o, disse num tom de voz mais frio:

- Agrada-lhe o Kent?

Seguiu-se um curto diálogo sobre o condado, calmo e conciso de ambas as partes, que a chegada de Charlotte e de sua irmã, um pouco depois, veio interromper. O tête-á-tête pareceu surpreendê-las. O Sr. Darcy contou-lhes o engano que ocasionara a intrusão e, após ter permanecido sentado mais alguns minutos num silêncio quase absoluto, foi-se embora.

- Que quererá isto dizer? - disse Charlotte, após ele ter partido. - Minha querida Eliza, ele está decerto apaixonado por ti, ou nunca nos teria visitado com tão sem-cerimónia.

Mas, quando Elizabeth lhes contou do seu silêncio, a ideia pareceu menos plausível, mesmo para Charlotte, que a desejava; e, após várias conjecturas, elas concluíram finalmente que a visita se devia apenas à dificuldade de encontrar qualquer outra coisa em que se ocupar, o que não era de estranhar para a época do ano. Todos os desportos ao ar livre estavam fora de questão. Dentro de casa havia Lady Catherine, livros e uma mesa de bilhar, o que nunca entreteria um homem por muito tempo; e, ou porque o presbitério se encontrava tão próximo, ou porque o passeio até lá era agradável, ou ainda porque os seus moradores os interessavam de certo modo, o facto é que os dois primos se sentiam tentados a percorrer aquela distância quase todas as manhãs. Chegavam a horas variadas, por vezes juntos, outras vezes separados, e de vez em quando acompanhados pela tia. Tornava-se evidente a todos que o coronel Fitzwilliam vinha porque se sentia bem na companhia dos moradores de Hunsford, facto esse que por si só abonava em seu favor; e a satisfação que Elizabeth experimentava ao vê-lo, bem como aquela com a qual recebia a sua evidente admiração, lembrava-lhe o seu antigo favorito George Wickham; e, embora, ao compará-los, visse que havia menos doçura cativante nas maneiras do coronel Fitzwilliam, acreditava que dos dois fosse ele o mais bem formado.

Mas por que viria o Sr. Darcy com tanta frequência ao presbitério era mais difícil de compreender. Não seria, decerto, pelo prazer da companhia, pois ele permanecia a maior parte do tempo calado, por vezes durante dez minutos seguidos; e, quando falava, parecia fazê-lo mais por obrigação do que por prazer. Raramente se animava. A Sr.a Collins não sabia o que fazer com ele. O coronel Fitzwilliam costumava troçar do ar sorumbático do primo, o que provava que numa situação normal ele não se comportaria assim; e, como ela gostaria de ver nessa mudança o efeito do amor e como objecto desse amor a sua amiga Eliza, Charlotte dispôs-se seriamente a procurar a causa de tal atitude. Observava-o sempre que o encontrava em Rosings, ou quando ele visitava Hunsford, mas sem grande sucesso. Ele olhava, de facto, bastante para a sua amiga, mas era duvidosa a expressão daquele olhar. Era um olhar sério, fixo, mas Charlotte não estava certa de que se tratasse de um olhar admirativo, parecendo-lhe por vezes não passar de distracção.

Uma ou duas vezes sugerira a Elizabeth a possibilidade de o Sr. Darcy se achar interessado por ela, mas esta ria-se sempre de semelhante ideia; e a Sr.a Collins achou mais prudente guardar para si as suas suspeitas e não despertar esperanças que pudessem acabar em desapontamento; pois, na sua opinião, toda a relutância da amiga se desvaneceria no momento em que o supusesse em seu poder.

Nos planos que, fruto da sua afeição, arquitectava para Elizabeth, por vezes imaginava-a casando-se com o coronel Fitzwilliam. Ele era, sem compa-ração, o mais simpático; admirava-a, sem dúvida, e a sua situação na vida era de destaque; mas, a contrabalançar tais vantagens, enquanto o Sr. Darcy tinha considerável influência na Igreja, o seu primo não tinha nenhuma.

 

Mais de uma vez, durante os seus passeios pelo parque, Elizabeth teve a surpresa de se encontrar com o Sr. Darcy. Ela sentia a perversidade do acaso, que o trazia onde ninguém mais costumava aparecer; e, para impedir que tal incidente voltasse a ocorrer, ela teve o cuidado de desde logo o informar de que aquele era o seu passeio favorito. Achou muito estranho, portanto, que o acaso se repetisse segunda vez, e até terceira. Parecia o efeito de uma vontade maléfica, ou então de uma voluntária mortificação, pois nessas ocasiões o Sr. Darcy não se limitava a balbuciar simples perguntas de cortesia e, após embaraçada pausa, afastar-se, como retrocedia na direcção tomada e a acompanhava. Ele pouco falava e Elizabeth não se dava ao trabalho de escutá-lo com muita atenção; mas da terceira vez ele fez-lhe perguntas estranhas e desconexas - sobre o prazer de estar em Hunsford, o gosto que ela parecia encontrar naqueles passeios solitários e a opinião dela sobre a felicidade do casal Collins; e, quando falavam em Rosings e no facto de ela não compreender muito bem o espírito naquela casa, ele parecia dar a entender que quando ela voltasse ao Kent ela residiria ali também. As palavras empregues por ele pareciam não admitir outra interpretação. Estaria ele a pensar no coronel Fitzwilliam? Elizabeth supôs que, se acaso se tratasse de uma indirecta, seria esse o sentido mais provável. Ficou um pouco perturbada e deu graças a Deus por naquele momento se encontrarem próximo do portão do presbitério.

Certo dia em que Elizabeth, no seu passeio habitual, se encontrava relendo a última carta de Jane, especialmente determinado trecho em que Jane se mostrava mais deprimida, viu, ao levantar os olhos, que se encontrava diante do coronel Fitzwilliam, e não do Sr. Darcy, como ela tinha suposto. Guardando imediatamente a carta e forçando um sorriso, disse:

- Ainda nunca o tinha visto por estes lados.

- Estava dando a volta ao parque - replicou ele -, como geralmente faço todos os anos, e tencionava encerrá-la com uma visita ao presbitério. Tenciona continuar?

- Não, eu ia j á voltar.

E, dizendo isto, ela tomou a direcção oposta e juntos tomaram o caminho do presbitério.

- Está mesmo decidido a deixar o Kent no sábado? - perguntou-lhe Elizabeth.

- Sim, a menos que Darcy torne a adiar a partida. Mas estou ao seu inteiro dispor e ele que decida como bem entender.

- E acaso não seja do seu inteiro agrado o programa, terá sempre, pelo menos, o maior prazer em exercer a faculdade de escolha. Não conheço ninguém que pareça ter tanto prazer em fazer as suas vontades como o Sr. Darcy.

- Tem razão, ele gosta bastante de fazer o que quer - replicou o coronel Fitzwilliam. - Como todos nós, aliás. Só que ele tem meios para se dar a tal luxo, pois ele é rico e os outros, na sua maioria, são pobres. Falo com sinceridade. Na minha qualidade de filho mais novo, como sabe, tenho de estar preparado para o sacrifício e a obediência.

- Na minha opinião, o filho mais novo de um nobre nunca se familiarizará de mais com tais aspectos da vida. Diga-me, seriamente, que sabe o senhor a respeito de sacrifício e obediência? Quando foi o senhor impedido, por falta de dinheiro, de se locomover livremente ou de obter coisas que desejava?

- Isso são perguntas de carácter privado, e talvez eu não possa dizer que tenha experimentado muitas dificuldades dessa ordem. Porém, em assuntos de maior importância, é possível que eu sofra pela falta de dinheiro. Os filhos mais novos nem sempre se podem casar segundo as suas inclinações.

- A não ser que simpatizem com mulheres de fortuna, o que não é raro.

- O hábito que temos de gastar dinheiro torna-nos dependentes de mais e são poucos aqueles que em situação idêntica à minha se aventuram a casar sem considerar a questão monetária.

«Estará ele a pensar em mim?», lembrou-se Elizabeth, que corou com a ideia; mas, dominando-se, disse, num tom alegre: - E, diga-me, qual o preço habitual para o filho mais novo de um nobre? A não ser que o irmão mais velho seja muito doente, não creio que possam exibir para além de cinquenta mil libras.

Ele respondeu-lhe no mesmo tom e o assunto morreu. Para interromper um silêncio que poderia fazer crer ao coronel que ela se sentira de qualquer modo afectada pelo que se passara, Elizabeth disse, pouco depois:

- Imagino que o seu primo o tenha trazido consigo apenas com o intuito de ter alguém à sua disposição. Sendo assim, não percebo por que não se casa. Teria, desse modo, o problema resolvido. Mas talvez a irmã, de momento, preencha esses requisitos, pois ela está inteiramente ao seu cuidado e ele pode fazer com ela o que quiser.

- Não - disse o coronel Fitzwilliam -, é essa uma vantagem que ele tem de partilhar comigo. Exerço juntamente com ele a tutela da Menina Darcy.

- Ah, sim? Diga-me, que espécie de tutores são os senhores? A vossa tutela dá-lhes muito trabalho? As jovens da idade dela são, por vezes, difíceis de levar, e, se ela possui o verdadeiro espírito dos Darcy, deve ser voluntariosa.

Enquanto assim falava, Elizabeth reparou que ele a olhava seriamente, e, pela maneira como ele lhe perguntou, pouco depois, porque supunha ela que a Menina Darcy lhes pudesse causar preocupações, ficou convencida de que andara próximo da verdade. Ela imediatamente respondeu:

- Não se assuste. Nunca ouvi nada de mal a respeito dela; e tenho-a na conta de uma das pessoas mais maleáveis do mundo. Conheço duas senhoras que a apreciam bastante, a Sr.a Hurst e a Menina Bingley. Creio que já o ouvi dizer que as conhece também.

- Conheço-as vagamente. O irmão delas é um cavalheiro muito simpático e bem educado. É um grande amigo de Darcy.

- Oh!, sim - disse Elizabeth, secamente -, o Sr. Darcy é invulgarmente atencioso para com o Sr. Bingley e tem com ele um cuidado realmente prodigioso.

- Cuidado com ele! Sim, não me custa a acreditar. Darcy cuida e vela por ele, sobretudo nas situações mais delicadas e que exigem cautela. Por qualquer coisa que ele me contou na nossa viagem para cá, tenho razões para pensar que Bingley deve muito a Darcy. Contudo, ele terá de me desculpar, pois não tenho o direito de supor que Bingley seja o protagonista dessa história. É uma simples conjectura.

- Que quer dizer com isso?

- É uma coisa que Darcy não desejará com certeza que se espalhe, pois, se chegasse aos ouvidos da família da rapariga, seria bastante desagradável.

- Pode ter a certeza de que nada direi a tal respeito.

- E lembre-se de que não estou absolutamente certo de que isto se passe realmente com Bingley. O que ele me contou foi apenas o seguinte: que ele se felicitava a si mesmo por ter salvo um amigo dos inconvenientes de um casamento dos mais imprudentes, mas não mencionou nome ou quaisquer detalhes, e eu suspeitei de que se tratasse de Bingley apenas porque o tenho na conta de um desses rapazes capazes de se meterem em tais apuros e porque sei que eles estiveram juntos todo o Verão passado.

- E o Sr. Darcy expôs os motivos dessa interferência?

- Compreendi que havia objecções muito fortes contra a rapariga.

- E que artifícios empregou ele para separá-los?

- Ele não me pôs a par da manobra - disse Fitzwilliam, sorrindo. - Apenas me disse o que acabei de lhe contar.

Elizabeth não respondeu e continuou a caminhar, o coração repleto de indignação. Após observá-la durante alguns instantes, Fitzwilliam perguntou-lhe porque estava tão pensativa.

- Estava a pensar no que me contou. A conduta do seu primo não se coaduna com os meus sentimentos. Por que se achou ele no direito de julgar?

- Parece estar disposta a considerar inoportuna a atitude dele.

- Não vejo com que direito o Sr. Darcy pode decidir da legitimidade das inclinações do amigo, ou, baseado apenas no seu julgamento, determinar de que maneira aquele amigo poderá ser feliz. Mas - continuou ela, voltando a si -, como não temos qualquer conhecimento das circunstâncias, não é justo condená-lo. Decerto não terá havido grande amor no caso.

- A suposição não é improvável - disse Fitzwilliam -, porém, diminui bastante o triunfo do meu primo.

Estas palavras foram ditas em tom de gracejo; mas a Elizabeth pareceram retrato tão fiel de Darcy que achou mais prudente calar-se, á fim de não se trair na sua resposta; e, mudando abruptamente de assunto, falaram de coisas indiferentes até chegarem ao presbitério. Uma vez aí e fechada no seu quarto, mal o visitante a deixou, pôde pensar sem interrupção sobre tudo o que ouvira. Não havia dúvida de que se tratava da sua família. Não poderiam existir no mundo dois homens sobre os quais o Sr. Darcy exercesse um domínio tão absoluto. Que ele influíra nas medidas adoptadas para separar o Sr. Bingley de Jane, nunca ela pusera em causa; mas sempre atribuíra à Menina Bingley a iniciativa do plano e a parte mais importante da execução. Se a sua vaidade não o iludira, o Sr. Darcy era, pelo seu orgulho e capricho, a causa de tudo o que Jane tinha sofrido. Ele arruinara por algum tempo todas as esperanças de felicidade para o coração mais afectuoso e mais generoso do mundo; e ninguém poderia prever quão duradouro era o mal por ele infligido.

«Havia fortes objecções contra a rapariga», tais tinham sido as palavras do coronel Fitzwilliam; e essas fortes objecções eram, provavelmente, o facto de ela ter um tio advogado na província e outro comerciante em Londres.

«Contra a própria Jane», exclamou ela, «não poderia haver qualquer possibilidade de objecção. Toda ela é doçura e bondade! É inteligente, educada e as suas maneiras são cativantes. Nada têm contra meu pai, tão-pouco, que, embora um pouco excêntrico, tem qualidades que nem o Sr. Darcy pode desdenhar, acrescidas de uma respeitabilidade que ele provavelmente nunca alcançará.» Porém, quando pensou na mãe, a sua confiança declinou um pouco; mas não admitia que quaisquer objecções nesse campo pesassem aos olhos do Sr. Darcy, cujo, estava ela convencida, seria mais facilmente atingido pela insignificância dos parentes do amigo do que pela falta de senso dessas mesmas pessoas; e, por fim, ela decidiu que o Sr. Darcy se deixara levar em parte pelo seu desmedido orgulho e em parte pelo desejo de guardar o Sr. Bingley para sua irmã.

A agitação e as lágrimas que o assunto provocou trouxeram a Elizabeth uma dor de cabeça que, agravando-se pela tarde e aliada à sua aversão pelo Sr. Darcy, a impediram de acompanhar seus primos a Rosings, onde deviam ir tomar chá. A Sr.a Collins, vendo que ela realmente não estava bem, não insistiu e poupou-a à própria insistência do Sr. Collins, que, apesar de tudo, não escondia a sua apreensão de Lady Catherine se mostrar aborrecida por Elizabeth ficar em casa.

 

Depois de todos eles terem partido, Elizabeth, como se tencionasse exasperar-se ainda mais contra o Sr. Darcy, escolheu como ocupação a leitura de todas as cartas que Jane lhe enviara, desde que ela, Elizabeth, estava no Kent. Elas não continham nenhuma queixa expressa, nem relembravam acontecimentos passados ou comunicavam sofrimentos presentes. Contudo, em todas elas, em quase cada linha, sentia-se a falta daquela animação que sempre caracterizara o estilo de Jane, e que procedia da serenidade de um espírito tranquilo e bem disposto para consigo mesmo e para com todos. Com uma atenção maior do que na primeira leitura, notava agora a inquietude traída nalgumas frases. A vergonhosa jactância do Sr. Darcy a respeito dos sofrimentos que ele pudesse ter causado fazia que ela sentisse. mais dolorosamente os sofrimentos de sua irmã. Consolava-a a ideia de que dentro de dois dias ele sairia de Rosings, e, sobretudo, que em menos de quinze dias ela estaria de novo junto de Jane e em situação de, com toda a sua afeição, contribuir para o restabelecimento da sua tranquilidade.

Ao pensar na partida de Darcy, lembrou-se de que o primo também o acompanharia; mas o coronel Fitzwilliam dera claramente a entender que não tinha quaisquer intenções, e, embora ele fosse muito simpático, Elizabeth não estava disposta a sofrer por sua causa.

Enquanto assim pensava, foi subitamente despertada pelo som da campainha da porta. A princípio ficou um pouco emocionada com a ideia de que pudesse ser o coronel Fitzwilliam, que já uma vez aparecera bastante tarde, e que agora viesse saber notícias dela. Esta ideia, porém, foi logo banida e a emoção inteiramente diversa quando viu, para sua imensa surpresa, o Sr. Darcy avançar pela sala. Um pouco em atropelo, ele fez-lhe várias perguntas sobre a sua saúde, atribuindo a sua visita ao desejo de a vir encontrar um pouco melhor. Ela respondeu-lhe com fria amabilidade. Darcy conservou-se sentado durante alguns instantes e depois, levantando-se, pôs-se a passear pela sala. Elizabeth estava espantada, mas nada disse. Após um silêncio de alguns minutos, aproximou-se, agitado, e disse:

- Em vão tenho lutado, mas de nada serve. Os meus sentimentos não podem ser reprimidos e permita-me dizer-lhe que a admiro e a amo ardentemente.

Elizabeth ficou abismada. Olhou-o fixamente, corou, duvidou e não pronunciou palavra. O Sr. Darcy viu nisso um encorajamento e fez-lhe a confissão de tudo o que ele sentia e desde quando ele o sentia. Ele exprimiu-se bem, mas através das suas palavras outros sentimentos podiam ser percebidos, além dos do coração, e ele não falava com maior eloquência da sua ternura do que do seu orgulho. O sentimento da inferioridade de Elizabeth, do rebaixa-mento que aquele amor representava, os obstáculos da família que a razão sempre opusera à inclinação, foram descritos com um ardor que provinha do triunfo da sua afeição, mas que recomendava pouco as suas pretensões.

Apesar da sua profunda antipatia, Elizabeth nunca poderia permanecer indiferente à paixão de tal homem, e, embora as suas intenções a tal respeito não mudassem por um só instante que fosse, a princípio sentiu pena por se ver obrigada a decepcioná-lo; mas, ressentida de novo com tudo o que ele. a seguir lhe disse, ela perdeu toda a compaixão na sua cólera. Procurou, no entanto, dominar-se, para, com paciência, lhe saber responder mal ele acabasse de falar.

Ele concluiu descrevendo a força da sua afeição, que, apesar de todos os seus esforços, não conseguira dominar; e exprimiu a sua esperança de ver essa afeição recompensada pela aceitação de Elizabeth. Elizabeth percebeu, assim, que ele não duvidava de que a sua resposta fosse positiva. Ele falava em apreensão e ansiedade, mas no seu rosto transparecia a certeza. Tal atitude só a exasperava ainda mais, e, quando terminou, o sangue subiu ao rosto de Elizabeth, que lhe disse:

- Em casos como este, creio que é costume exprimir a nossa gratidão pelos sentimentos que nos são confessados, qualquer que seja a incapacidade de os retribuir. É natural o sentimento de obrigação, e, se eu me sentisse de qualquer modo reconhecida, não deixaria de lhe agradecer. Mas nada disso me é possível; nunca desejei a sua boa opinião, que, aliás, o senhor me confere contra a sua vontade. Custa-me decepcionar alguém. Não é propositadamente que o faço e só me resta esperar que não dure muito. Os sentimentos que, segundo o senhor me disse, o impediram durante muito tempo de reconhecer o seu amor hão-de socorrê-lo facilmente após a presente explicação.

O Sr. Darcy, que estava apoiado contra a cornija da lareira, com os olhos fixos no rosto de Elizabeth, pareceu receber a comunicação dela com um ressentimento não menor do que a sua surpresa. O seu rosto tornou-se pálido de cólera e a perturbação era visível em cada um dos seus traços. Lutava por aparentar serenidade e não ousava pronunciar-se sem que o tivesse conseguido. A pausa era insuportável para Elizabeth. Finalmente, numa voz que ele esforçava por manter calma, disse

- E é esta a única resposta a que eu tinha direito e com a qual tenho de me contentar! Desejaria, talvez, ser informado da razão por que me rejeita assim, sem a menor tentativa de delicadeza da sua parte. Mas não tem importância.

- Também eu poderia perguntar - replicou ela - porque, com o intuito tão evidente de me ofender e insultar, resolveu o senhor dizer-me que gostava de mim contra a sua vontade, contra a sua razão e mesmo contra o seu carácter? Não é essa desculpa suficiente para a minha falta de cortesia? Se é que realmente cometi essa falta. Mas tenho outros motivos para me sentir ferida. O senhor conhece-os bem. Se acaso os meus sentimentos não me indispusessem contra o senhor, se eles lhe fossem indiferentes ou mesmo favoráveis, está convencido de que qualquer consideração me inclinaria a aceitar um homem que arruinou talvez para sempre a felicidade da minha irmã adorada?

Ao ouvir pronunciar tais palavras, o Sr. Darcy mudou de cor; mas a emoção pouco durou, e ele continuou a ouvir sem tentar interrompê-la.

- Tenho mil e uma razões para pensar mal do senhor - prosseguiu Elizabeth. - Nenhum motivo poderá desculpar o acto injusto e mesquinho que praticou. O senhor não ousará, não poderá negar que foi o principal, senão o único, agente na separação daquelas duas pessoas e em expô-las à censura e ao ridículo do mundo, uma delas por capricho e instabilidade e a outra pela decepção das suas esperanças, envolvendo-os aos dois numa situação extremamente embaraçosa.

Ela fez uma pequena pausa e viu, com grande indignação, que ele a escutava com ar de quem não sentia a mais pequena ponta de remorso. Ele olhava-a, até, com um sorriso de incredulidade afectada.

- Acaso nega o que fez? - replicou ela.

Com uma fingida tranquilidade, ele então respondeu:

- Não desejo negar que fiz tudo o que pude para separar o meu amigo da sua irmã; nem tão-pouco negarei que me alegro desse êxito. Fui mais previdente para com ele do que para comigo próprio.

Elizabeth desdenhou mostrar que compreendera a delicadeza desta observação, mas o seu sentido não lhe escapou, nem era de natureza a aplacá-la.

- Mas não é apenas daí que data a minha antipatia - continuou ela. - Muito antes disso já eu tinha opinião formada a seu respeito. O seu carácter foi-me revelado há alguns meses atrás pelo Sr. Wickham. Que se lhe oferece dizer a esse respeito? Que acto imaginário de amizade poderá o senhor alegar para se justificar? Que falsos motivos poderá inventar para iludir os outros?

- A menina denota um ávido interesse por esse cavalheiro - disse Darcy, com uma voz menos firme e corando intensamente.

- Qual a pessoa que conheça o seu infortúnio pode deixar de se interessar por ele?

- O seu infortúnio! - repetiu Darcy, com desprezo. - Sim, o seu infortúnio foi realmente grande.

- E foi o senhor quem o infligiu! - exclamou Elizabeth, energicamente. - Foi o senhor quem o reduziu ao seu estado actual de pobreza, de relativa pobreza. O senhor quem lhe recusou as vantagens que lhe estavam destinadas. Privou-o, durante os melhores anos da sua vida, da independência a que ele tinha direito, e aquela que, aliás, merecia. Tudo isto o senhor fez, e atreve-se agora a ouvir o relato do seu infortúnio com desprezo e ironia.

- É, então, essa a opinião que tem de mim! - exclamou Darcy, caminhando agitado pela sala. - É esse o valor que me dá! Agradeço-lhe por se ter mostrado tão explícita. As minhas faltas, tais como as representa, são realmente pesadas! Mas quem sabe - acrescentou ele, detendo-se no seu passeio e voltando-se para ela - se essas ofensas nunca teriam sido reveladas, acaso eu não tivesse ferido o seu orgulho ao confessar-lhe com toda a sinceridade os escrúpulos que durante tanto tempo me impediram de tomar uma resolução. Poderia ter evitado as suas amargas acusações se me tivesse mostrado mais hábil, escondendo-lhe as minhas lutas e fazendo crer que era movido por uma inclinação a que nada e opunha, nem a razão, nem a reflexão, nem qualquer outro motivo. Mas eu odeio toda a espécie de fingimento; nem tão-pouco me envergonham os sentimentos que lhe exprimi. São naturais e justos. Acaso esperava que me felicitasse pela inferioridade dos seus parentes! Ou que me alegrasse com a esperança de me relacionar com pessoas de condição tão decididamente inferior à minha?

Elizabeth sentia a sua cólera crescer a todo o momento; contudo, esforçou-se por responder serenamente:

- Está enganado, Sr. Darcy. A sua atitude apenas me poupou qualquer sentimento de pena que eu pudesse alimentar ao ter de recusar o seu pedido, acaso ele tivesse sido feito de uma forma mais cavalheiresca.

Ela notou como ele se sobressaltara ao ouvir tais palavras, mas o Sr. Darcy nada disse e ela continuou:

- Eu tê-lo ia recusado de qualquer modo. Nada me persuadiria a aceitar a sua mão.

De novo o seu espanto se tornou evidente; ele olhou-a com incredulidade e mortificação. Ela prosseguiu:

- Desde o princípio, desde o primeiro instante em que o vi, posso afirmá-lo, que as suas maneiras me convenceram de que era um homem arrogante, pretensioso e devotando a maior indiferença pelos sentimentos dos outros. Esta impressão foi tão profunda que constituiu, por assim dizer, o alicerce sobre o qual os acontecimentos subsequentes elevaram uma indestrutível antipatia; e ainda não o conhecia há um mês e já estava convencida de que seria o senhor o último homem no mundo com quem me convenceriam a casar.

- Não precisa acrescentar mais nada, minha senhora. Compreendo perfeitamente os seus sentimentos e nada me resta senão envergonhar-me dos meus. Perdoe-me ter tomado o seu precioso tempo e aceite os meus mais sinceros votos de felicidade.

E com estas palavras ele abandonou apressadamente a sala e, após alguns minutos, Elizabeth ouviu-o abrir a porta da frente e sair. O tumulto no seu espírito tornara-se agora insustentável. Incapaz de se manter de pé, deixou-se cair sobre uma cadeira e chorou durante meia hora. A sua surpresa aumentava a cada recordação do que se passara. Recebera uma proposta de casamento do Sr. Darcy! Há vários meses que ele estava apaixonado por ela! E amava-a tanto que desejava desposá-la apesar de todas as objecções que tinham contribuído para que ele impedisse o casamento do amigo. Era agradável saber que ela tinha inspirado uma afeição tão forte. Mas a piedade que por momentos a ideia de tal paixão suscitara em Elizabeth foi imediatamente sufocada pela do orgulho do Sr. Darcy, o seu abominável orgulho, pela cínica confissão da sua atitude para com Jane, a sua imperdoável tranquilidade ao reconhecer o que tinha feito, embora não o pudesse justificar, e pela maneira desapiedada com que se referira ao Sr. Wickham, sem que tentasse negar a crueldade com que o tinha tratado.

Estas agitadas reflexões prosseguiram torturando-a, até Elizabeth ouvir o ruído da carruagem de Lady Catherine, com o que correu para o seu quarto, pois não se sentia em condições de enfrentar a perspicaz atenção de Charlotte.

 

Na manhã seguinte, ao despertar, Elizabeth encontrou no seu espírito os mesmos problemas e meditações que, na véspera, o sono acabara por vencer. Ainda não se recompusera da surpresa. Era-lhe impossível pensar noutra coisa; e, incapaz de encontrar uma ocupação que a distraísse, resolveu, logo após o pequeno-almoço, fazer um pouco de exercício ao ar livre. Encaminhara-se para o seu passeio favorito, quando a deteve a lembrança de que o Sr. Darcy costumava por lá aparecer, e, em vez de penetrar no parque, Elizabeth tomou a azinhaga que o bordejava. A cerca do parque acompanhava a estrada de um dos lados e em breve ela passou por um dos portões.

Após percorrer por duas ou três vezes aquele trecho da azinhaga, sentiu-se tentada, pela beleza da manhã, a parar a um dos portões e contemplar o parque. Durante as cinco semanas que permanecera no Kent, uma grande transformação se operara, e cada dia as árvores ficavam mais verdes. Elizabeth preparava-se para continuar o passeio, quando, no pequeno bosque que limitava o parque, avistou de relance um homem caminhando na sua direcção. Receando que se tratasse do Sr. Darcy, Elizabeth tratou de se afastar, mas a pessoa já se encontrava suficientemente perto para poder vê-la. Apressando o passo, essa pessoa aproximou-se e pronunciou o nome de Elizabeth. Esta estava de costas, mas, ao ouvir o seu nome, embora reconhecesse a voz do Sr. Darcy, voltou a acercar-se do portão. Ele, do outro lado, fizera o mesmo, e, estendendo-lhe uma carta, que ela instintivamente aceitou, disse-lhe com ar altivo:

- Andei pelo bosque na esperança de a encontrar. Quer dar-me a honra de ler esta carta? - E, fazendo uma ligeira vénia, voltou-se e partiu.

Sem qualquer expectativa de prazer, mas com grande curiosidade, Elizabeth abriu a carta e, com um espanto sempre crescente, viu que o envelope continha duas folhas de papel, inteiramente preenchidas por uma letra apertada. Prosseguindo no seu passeio pela alameda, Elizabeth começou a ler. A carta estava datada de Rosings, das oito horas da manhã, e constava do seguinte:

Não fique alarmada, minha senhora, ao receber esta carta, pela apreensão de que ela contenha a repetição daqueles sentimentos ou a renovação daquelas propostas que ontem à noite tanto a maçaram. Escrevo-lhe sem qualquer intenção de a aborrecer, ou de me humilhar, insistindo em exprimir esperanças de que, para a felicidade de ambos, não poderão ser esquecidas cedo de mais; e o esforço que esta carta poderá representar, para mim ao escrevê-la e para si ao lê-la, teria sido poupado, acaso o meu carácter não exigisse que ela fosse escrita e lida. Necessito, pois, que me perdoe a liberdade com que exijo a sua atenção; sei que os seus sentimentos me a concederão com relutância, mas não posso deixar de o fazer.

Duas foram as acusações que ontem à noite me fez, diferentes tanto na natureza como pela sua importância. Acusou-me, primeiro, de ter separado o Sr. Bingley de sua irmã, indiferente aos sentimentos de ambos; e, segundo, de ter arruinado a possibilidade imediata e as probabilidades futuras do Sr. Wickham, desafiando abertamente quaisquer direitos, a própria honra e a humanidade. Ter repudiado voluntária e gratuitamente o companheiro da minha infância, o favorito declarado de meu pai, um rapaz que dependia exclusivamente da nossa protecção e a quem esta fora prometida, seria uma perversidade incomparavelmente mais grave do que a separação de duas pessoas cuja afeição, embora verdadeira, nunca poderia ter crescido excessivamente durante aquelas poucas semanas que estiveram juntas. Espero, de futuro, estar salvaguardado da severidade das censuras que me foram feitas com tanta veemência sobre estes dois casos, após a leitura da seguinte explicação dos meus actos e seus motivos. Se nesta minha exposição me vir na iminência de exprimir sentimentos que a possam ofender, apenas me resta participar-lhe o meu sincero pesar. A necessidade a isso me obriga - e quaisquer outras desculpas seriam absurdas. Pouco tempo depois da nossa chegada ao Hertfordshire, percebi, juntamente com outras pessoas, que Bingley preferia a sua irmã mais velha a qualquer outra rapariga na região. Porém, foi só por ocasião do baile em Netherfield que pela primeira vez receei que ele se apaixonasse seriamente. Já várias vezes o vira apaixonado. No baile, enquanto dançava com a menina, soube, através da informação acidental de Sir William, que as atenções de Bingley para com a sua irmã tinham dado azo a um rumor geral acerca do casamento de ambos. Sir William fez-lhe referência como a um acontecimento positivo, do qual só a data era incerta. A partir desse momento dediquei toda a minha atenção à atitude do meu amigo; e reparei que a inclinação dele pela Menina Bennet era mais evidente do que qualquer uma das que lhe tinha visto anteriormente. Observei também a sua irmã. O olhar e as maneiras eram francos, alegres e atraentes como sempre, mas sem qualquer sintoma especial de afeição, o que definitivamente me convenceu de que, embora ela aceitasse as atenções de Bingley com prazer, não as provocava porque participasse do mesmo sentimento. Aqui, se a menina não se enganou, enganei-me eu. O seu conhecimento íntimo de sua irmã tornará mais provável última hipótese. Nesse caso, se o meu erro me levou a inflingir um desgosto a sua irmã, o seu ressentimento não é injustificado. Porém, nada me impedirá de afirmar que a serenidade do rosto de sua irmã e a tranquilidade dos seus modos eram tais que trariam ao observador mais perspicaz a convicção de que, apesar de toda a amabilidade do seu temperamento, o coração não era dos mais fáceis de atingir. E certo que desejava acreditar na indiferença dela, mas ouso afirmar que as minhas investigações e decisões não são geralmente influenciadas pelas minhas esperanças ou receios. Não foi porque o desejasse que acreditei na indiferença da sua irmã, mas, simplesmente, porque cheguei a esta convicção imparcial, e ela é tão sincera quanto o meu desejo. As minhas objecções contra tal casamento não foram apenas aquelas que ontem à noite lhe expus e que, no meu caso, exigiram toda a força da paixão para serem vencidas; a desigualdade social não representaria um mal tão grande para o meu amigo como para mim. Mas existiam outras causas para a minha resistência; causas que, embora ainda existentes e idênticas para ambos os casos, eu tentei esquecer porque não diziam imediatamente respeito a mim. Tais causas necessitam ser mencionadas, embora sumariamente. A situação da família de sua mãe, se bem que pouco recomendável, nada era em comparação com aquela falta total de delicadeza tão frequente e quase permanentemente demonstrada por tal senhora, pelas suas três irmãs mais jovens e por vezes até pelo seu pai. Perdoe-me. Custa-me ofendê-la. Contudo, qualquer que seja o aborrecimento que os seus parentes mais próximos lhe possam causar ou a tristeza que a presente descrição não deixará de lhe suscitar, espero que a seguinte reflexão lhe sirva de consolo: que o facto universalmente reconhecido de que tanto a menina como a sua irmã mais velha sempre se comportaram de modo a evitar uma censura semelhante é o melhor elogio que se poderá fazer à sensatez e ao carácter de ambas. Acrescentarei apenas que tudo o que se passou naquela noite veio confirmar a minha opinião sobre todas as pessoas em questão e fortalecer a minha resolução de proteger o meu amigo de uma aliança que eu considerava altamente desastrosa. Ele deixou Netherfield no dia seguinte, como decerto está lembrada, com a intenção de regressar em breve. Devo agora explicar qual a minha interferência no caso. A inquietude das irmãs de Bingley fora igualmente despertada e logo descobrimos a coincidência dos nossos sentimentos a tal respeito; e, convencidos da urgência em afastar o irmão, decidimos acompanhá-lo a Londres. Foi o que fizemos, e não perdi tempo em revelar ao meu amigo os inconvenientes da sua escolha. Descrevi-lhos e frisei-os com toda a gravidade. No entanto, por mais que esta advertência possa ter abalado a sua resolução, não creio que ela teria sido suficiente para impedir o casamento, se não tivesse sido apoiada pela afirmação, que não hesitei em fazer, de que a sua irmã lhe era indiferente. Ele acreditara até àquele momento que a Menina Jane correspondia sinceramente à sua afeição, senão com igual intensidade. Mas Bingley é por natureza muito modesto e comovedoramente dependente da minha opinião. Convencê-lo, portanto, de que ele estava enganado, não foi tarefa difícil. Persuadi-lo de voltar ao Herfordshire, após ter firmado o primeiro ponto, foi coisa de um instante. Não me arrependo de o ter feito. Existe apenas uma parte da minha conduta que não me satisfaz inteiramente; pois condescendi em usar de certos artifícios para esconder de Bingley o facto de sua irmã se encontrar em Londres. Sabia dessa presença, bem como a Menina Bingley, mas o irmão desta ainda agora o ignora. É, talvez, provável que eles se encontrassem sem outras consequências; mas o seu afecto não me pareceu suficientemente extinto para que ele pudesse ver sua irmã sem correr algum perigo. Talvez tal encobrimento, tal subterfúgio, seja indigno de mim. Contudo, é um facto consumado e assistido das melhores intenções. Sobre este assunto nada mais se me oferece dizer-lhe, nem outras explicações a dar-lhe. Se acaso causei desgosto a sua irmã, foi sem saber que o fiz, e, embora os motivos que inspiraram a minha conduta lhe pareçam a si naturalmente insuficientes, não vejo ainda razões para condená-los. Quanto à outra acusação que me foi feita, a mais grave e a que diz respeito ao Sr. Wickham, só poderei refutá-la revelando-lhe a história da sua relação com a minha família. Ignoro se ele formulou alguma acusação particular à minha pessoa; mas acerca da verdade do que vou relatar poderei indicar-lhe mais de uma testemunha insuspeita. O Sr. Wickham é filho de um homem muito respeitável, que durante vários anos geriu os bens da propriedade de Pemberley e cuja conduta irrepreensível no desempenho do seu cargo mereceu naturalmente a gratidão de meu pai, que se reflectiu sobretudo em George Wickham, seu afilhado, para com o qual se mostrou de uma generosidade sem limites e lhe devotou grande afeição. Meu pai pagou-lhe os estudos num colégio e mais tarde em Cambridge, auxílio este deveras importante, pois o pai do Sr. Wickham, que as extravagancias da esposa privavam quase sempre do necessário, não estava em condições de dar ao filho uma educação liberal. Meu pai não só apreciava a companhia de George Wickham, cujas maneiras, aliás, eram sempre muito cativantes, como tinha por ele a maior admiração e, alimentando a esperança de que o rapaz abraçasse a carreira eclesiástica, tencionava reservar-lhe um lugar na mesma. Quanto a mim, desde há muito tempo que me desiludira a respeito dele. As suas más inclinações, a falta de escrúpulos, que ele tinha o cuidado de esconder do seu melhor amigo, não poderiam passar despercebidas a um rapaz da sua idade, que o observava e tinha a oportunidade de o ver em momentos de descuido, coisa que ao Sr. Darcy era totalmente impossível. De novo me vejo forçado a magoá-la - até que ponto, só a menina o poderá dizer. Mas quaisquer que sejam os sentimentos que o Sr. Wickham lhe possa ter inspirado, a suspeita que alimento acerca desses sentimentos não me impedirá de lhe revelar o verdadeiro carácter de tal pessoa, e apenas constituirá mais um motivo. O meu excelente pai morreu há cerca de cinco anos e a sua afeição pelo Sr. Wickham manteve-se tão firme até ao fim que nas suas últimas vontades me recomendou que me encarregasse de velar pelo bem-estar do seu afilhado e, acaso ele sempre se ordenasse, providenciasse para que ele fosse ocupar um importante posto, mal este vagasse. Deixou-lhe também um legado de mil libras. O pai dele não sobreviveu muito tempo ao meu, e meio ano após estes acontecimentos recebi uma carta do Sr. Wickham em que ele me informava ter decidido não tomar ordens e me pedia o adiantamento da compensação pecuniária pelo lugar que ele nunca ocuparia. Tencionava, acrescentava ele, dedicar-se ao estudo de Direito e esperava que eu compreendesse que o rendimento das mil libras não bastariam para tal. Apesar do meu desejo em acreditar na sua sinceridade, não o consegui; mas, mesmo assim, mostrei-me favorável à sua proposta. Eu sabia que o Sr. Wickham nunca enveredaria pela carreira eclesiástica. O assunto foi em breve arrumado. Ele desistiu de toda a protecção relativa à sua entrada na Igreja, mesmo se algum dia estivesse em situação de recebê-la, e aceitou em troca a quantia de três mil libras. A partir daí, nada tínhamos que dizer um ao outro. O que eu sabia a respeito dele era suficiente para não o desejar como amigo. Não o convidava para Pemberley, nem procurava a sua companhia na capital. Aí instalado, creio que praticamente sempre, a sua pretensão de estudar Direito não passou de um subterfúgio e achando-se nessa altura liberto de qualquer obrigação, entregou-se a uma vida de indolência e dissipação. Durante três anos poucas notícias tive dele; mas, quando faleceu a pessoa que ocupava o posto que lhe fora destinado, ele tornou a escrever-me, solicitando a sua apresentação para o dito lugar. A sua actual situação, dizia ele, e o que não me custou a acreditar, era bastante precária. Descobrira que o estudo de Direito era pouco proveitoso e estava agora absolutamente resolvido a tomar ordens, acaso eu o apresentasse para o posto que acabara de vagar, coisa de que ele não duvidava, pois estava informado de que não havia outro pretendente e confiava que eu tivesse presente as intenções do meu venerando pai; creio que não me censurará por lhe ter recusado tal pretensão e rejeitado todas as suas tentativas no mesmo sentido. O seu ressentimento foi proporcional à situação desesperada em que se encontrava - e mostrou-se, sem dúvida, tão violento no ataque que à minha pessoa fez na opinião dos outros como nas recriminações que me dirigiu. Após esse período, todas as relações de mera formalidade foram cortadas. Como ele viveu não sei. Mas no Verão passado tornou a atravessar-se no meu caminho, e da forma mais repugnante. Devo agora mencionar certas circunstâncias que eu mesmo desejaria esquecer e que apenas uma obrigação tão forte como a actual me levam a revelá-las a alguém. Depois de ter dito isto, confio inteiramente na sua discrição. A minha irmã, dez anos mais jovem do que eu, foi deixada em tutela ao sobrinho da minha mãe, o coronel Fitzwilliam, e a mim próprio. Há cerca de um ano, ela saiu do colégio e foi morar para Londres, na companhia de uma senhora encarregada de superintender na sua educação. No Verão passado, ela e essa senhora foram para Ramsgate. O Sr. Wickham, obedecendo sem dúvida a um plano, partiu para o mesmo lugar; descobriu-se depois que houvera um entendimento prévio entre ele e a Sr.a Younge, sobre cujo carácter nos enganámos desgraçadamente. Com o auxílio e a conivência de tal pessoa, George Wickham conseguiu captar de tal modo as boas graças de Georgiana, cujo coração extremamente afectivo conservava ainda viva a impressão da bondade com que ele a tratara em criança, que ela se convenceu de que o amava realmente e consentiu em ser raptada. Ela tinha então apenas quinze anos, o que lhe servirá de desculpa; e, após ter constatado a sua imprudência, tenho o consolo de poder acrescentar que soube disto por ela própria. Cheguei a Ramsgate, inesperadamente, um ou dois dias antes da projectada fuga, e Georgiana, incapaz de suportar a ideia de desgostar e ofender um irmão que ela considerava quase como um pai, confessou-me tudo. Pode bem imaginar como me senti e como agi. A fim de não prejudicar a reputação da minha irmã e não ofender os seus sentimentos, abstive-me de qualquer acto de represália em público; mas escrevi ao Sr. Wickham, que partiu imediatamente. Quanto à Sr.a Younge, não hesitei em despedi-la. O principal objectivo do Sr. Wickham era, sem dúvida, apoderar-se da fortuna de minha irmã, que é de trinta mil libras; mas não posso deixar de pensar que o desejo de se vingar de mim tenha também influído fortemente nele. A sua vingança seria, de facto, completa.

Esta é, minha senhora, a narrativa fiel dos acontecimentos que nos dizem respeito a ambos; e, se não a rejeitar como absolutamente falsa, espero que me sirva de atenuante para a crueldade com que agi contra o Sr. Wickham. Não sei de que modo, nem as falsidades de que ele usou para a atrair à sua causa; mas o êxito por ele alcançado não é de estranhar. Dada a sua ignorância total dos factos e das personagens, não só não estava em seu poder desmascarar essas falsidades, como, além de tudo, o seu temperamento não é dado à desconfiança. Talvez se surpreenda por eu não lhe ter contado tudo isto ontem à noite, mas naquele momento não tinha suficiente domínio sobre mim mesmo para decidir o que devia e o que não devia revelar. Quanto à verdade de tudo o que aqui ficou relatado, posso apelar particularmente para o testemunho do coronel Fitzwilliam, que, dado o nosso parentesco e constante intimidade, e sobretudo a sua qualidade de executor testamentário de meu pai, foi posto necessariamente a par de todos os detalhes concernentes a esses acontecimentos. Se acaso a antipatia que por mim nutre a impedir de dar o devido valor às minhas asserções, o mesmo não acontecerá em relação ao meu primo, e, para que haja a possibilidade de consultá-lo, procurarei entregar-lhe esta carta logo de manhã. Acrescentarei apenas, Deus a abençoe! - Fitzwilliam Darcy.

 

Se Elizabeth, quando recebeu a carta das mãos do Sr. Darcy, não esperava que ela contivesse a repetição das propostas dele, também não tinha qualquer ideia sobre o que ela pudesse versar. É fácil, portanto, imaginar com quanta avidez ela a percorreu e quantas emoções contraditórias o seu conteúdo produziu no seu espírito. Os seus sentimentos durante a leitura não se podiam definir. Começou por constatar, com assombro, que ele acreditava poder desculpar-se, pois estava persuadida de que um justo pudor o impediria de dar qualquer explicação. Fortemente prevenida contra tudo o que ele pudesse dizer, começou a ler o seu relato do que tinha acontecido em Netherfield. Leu com uma ansiedade que quase a impedia de compreender; a impaciência de saber o que a próxima frase traria incapacitava-a de aprofundar o sentido daquela que tinha diante dos olhos. Elizabeth desde logo decidiu que era falsa a alegação do Sr. Darcy de que ele acreditara na insensibilidade da sua irmã. As suas outras objecções contra o casamento, as mais difíceis de aceitar, enfureciam-na a tal ponto que aboliam todo o seu desejo de ser justa. As palavras de Darcy não exprimiam qualquer arrependimento; o seu estilo não era o de quem se queria desculpar. Era arrogante, orgulhoso e insolente.

Porém, quando passou para o outro assunto, depois de ter lido, com mais atenção, o relato de acontecimentos que, se verdadeiros, deitariam por terra a sua elevada opinião do Sr. Wickham, e que aliás ofereciam uma semelhança alarmante com a história que o Sr. Wickham contara a seu próprio respeito, os seus sentimentos aumentaram de intensidade e tornaram-se ainda mais difíceis de definir. Assombro, apreensão, e até horror, oprimiam-na. Recusando-se a acreditar em tal coisa, exclamava repetidamente: «É falso! Não pode ser! Trata-se de uma tremenda mentira!»; e, após ter lido toda a carta, apesar de ter passado por alto e já não se lembrar do que lera nas duas últimas páginas, Elizabeth guardou precipitadamente a carta, decidida a não tornar a olhar para ela.

Neste confuso estado de espírito, assaltada por pensamentos que não se concretizavam, ela continuou andando, sem rumo certo; mas não era solução; em meio minuto a carta foi de novo desdobrada, e, concentrando toda a sua atenção, ela retomou de novo a mortificante leitura de tudo o que dizia respeito a Wickham e esforçou-se por pesar o sentido de cada frase. A história das suas relações com a família de Pemberley condiziam exactamente com o que ele próprio lhe contara; e a bondade do falecido Sr. Darcy, embora anteriormente não lhe conhecesse toda a sua extensão, concordava igualmente com as próprias palavras dele. Até aqui as duas narrativas coincidiam: mas, quando ela chegou ao testamento, a diferença era grande. Conservava ainda frescas na memória as palavras de Wickham, e, ao compará-las ao presente relato, tornava-se-lhe evidente a existência de uma grosseira duplicidade em qualquer dos lados; e, por alguns momentos, ela teve a esperança de que a verdade coincidisse com os seus desejos. Porém, depois de ler e reler com a maior atenção os detalhes que se seguiam imediatamente à desistência de Wickham de todos os direitos ao lugar que lhe fora destinado, recebendo em troca a soma considerável de três mil libras, novamente ela foi forçada a hesitar. Afastou a carta, pesou cada circunstância com aquilo que ela considerava imparcialidade, ponderou na probabilidade de cada testemunho, mas sem grande êxito. Tanto de um lado como do outro, havia apenas as afirmações em que se basear. Retomou a leitura. Mas cada linha provava mais claramente que a história, que a princípio achara impossível interpretar de maneira a tornar a conduta do Sr. Darcy menos infame, podia ser vista sob um prisma que o ilibava inteiramente.

A extravagância e a dissolução que o Sr. Darcy não hesitava em atribuir ao carácter do Sr. Wickham feriam-na extremamente; tanto mais que ela não podia apresentar uma prova de que essas acusações eram injustas. Elizabeth nunca ouvira falar em Wickham antes da sua entrada no destacamento, no qual ele se incorporara por sugestão de um jovem que ele acidentalmente encontrara em Londres. Nada se sabia no Hertfordshire que dissesse respeito ao seu género de vida anterior, a não ser o que ele próprio tornara público. Quanto ao seu verdadeiro carácter, mesmo que isso lhe fosse possível, Elizabeth nunca se sentira tentada a aprofundá-lo e fazer investigações nesse sentido. A sua figura, voz e modos haviam bastado para que ela lhe atribuísse todas as virtudes. Ela buscou nas suas recordações algum exemplo de bondade, de algum traço marcante de integridade ou de benevolência que o pudesse imunizar dos ataques do Sr. Darcy; ou, pelo menos, de uma virtude que prevalecesse sobre aquilo que este, por incompatibilidade, descrevera como sendo ociosidade e vício e em que ela procurava ver apenas uma série de erros casuais. Mas nada encontrou dessa natureza. Recordava-se perfeitamente dele, com todo o encanto das suas boas maneiras, mas não via maneira de atribuir-lhe um acto concreto de virtude que merecesse a aprovação geral da sociedade e a conside-ração que ele desfrutava entre os oficiais. Após reflectir consideravelmente sobre este ponto, voltou de novo a ler. Mas, infelizmente, a história que se seguia, relativa aos seus desígnios de raptar a Menina Darcy, era confirmada pela conversa que na manhã anterior tivera com o coronel Fitzwilliam; e, por fim, o Sr. Darcy apelava para o testemunho do coronel Fitzwilliam, de modo que ela pudesse ,obter a confirmação de cada pormenor da sua versão. Sabia, por informação prévia do coronel, que este estava intimamente ligado a todas as circunstancias da vida de seu primo e não tinha motivo algum para duvidar do seu carácter. Por momentos, ela esteve quase tentada a procurar o coronel, mas em breve pôs a ideia de parte, pois não só tal atitude exigiria uma explicação embaraçosa, como também estava ciente de que o Sr. Darcy jamais a teria sugerido se não tivesse a certeza absoluta da confirmação do seu primo.

Ela lembrava-se perfeitamente da conversa que tivera com o Sr. Wickham, naquela primeira noite em casa da Sr.a Philips. Muitas das expressões que ele usara conservavam-se ainda frescas na sua memória. Ela compreendeu, então, de súbito toda a impropriedade que havia naquelas confidências feitas a uma pessoa estranha e admirou-se de nunca haver pensado isso antes. Percebeu a indelicadeza daquela exibição e a incongruência entre as suas afirmações e a sua atitude. Lembrava-se de que ele se ufanara de não temer um encontro com o Sr. Darcy, que o outro se afastasse, se quisesse, mas que ele se manteria ali. Contudo, na semana seguinte ele encontrou maneira de fugir ao baile em Netherfield. Recordou-se também de que, até ao momento da partida da família de Netherfield, ele se abstivera de contar a sua história a outra pessoa, mas que a partir daí ela fora comentada em toda a parte; que ele não tivera então nenhum escrúpulo em denegrir o carácter do Sr. Darcy, apesar de lhe ter declarado a ela que o respeito pela memória do pai sempre o impediria de acusar o filho.

Como tudo lhe parecia agora diferente! As suas atenções para com a Menina King eram a consequência de odiosas intenções puramente mercenárias; e a reduzida fortuna da rapariga não provava tanto a moderação dos desejos do pretendente, como a sua ansiedade em se agarrar à primeira oportunidade que lhe aparecesse. Quanto à atitude dele para com ela própria, Elizabeth era levada a pensar que ou ele se enganara a respeito da sua fortuna, ou agira por pura vaidade, encorajando uma preferência que ela tivera a imprudência de revelar. Todos os esforços de Elizabeth para justificá-lo se tornaram cada vez mais ténues. E, como justificação adicional ao que dissera o Sr. Darcy, ela não podia esquecer-se do que dissera o Sr. Bingley, que, quando interrogado por Jane, respondera categoricamente pela inocência do amigo. Por mais orgulhosos e desagradáveis que fossem os modos do Sr. Darcy, nunca Elizabeth, no decurso das suas relações com ele - relações essas que ultima-mente se tinham declarado com uma certa assiduidade, proporcionando a ela um conhecimento mais íntimo do seu carácter -, lhe encontrara algo que o definisse como uma pessoa sem escrúpulos ou injusta, ou possuindo hábitos irreligiosos ou morais. Todos os seus amigos o prezavam, e até Wickham lhe havia reconhecido qualidades como irmão. Ouvira-o várias vezes falar afectuosamente da sua irmã, o que provava que ele era capaz de sentimentos ternos. Acaso os seus actos fossem tais como Wickham os descrevera, acaso houvesse violado tão brutalmente todos os direitos, dificilmente ele poderia ocultar essa sua conduta aos olhos do mundo. E, se ele fosse capaz de tamanha injustiça, não se explicaria a sua amizade com um homem tão estimável como o Sr. Bingley.

Elizabeth sentiu então uma vergonha profunda. Não podia pensar em Darcy nem em Wickham sem ver que ela tinha sido cega, parcial, injusta e absurda.

«Como foi mesquinho o meu comportamento!», exclamou ela, «eu, que me orgulhava tanto do meu discernimento, das minhas capacidades! Eu, que tantas vezes desdenhei a generosa candura da minha irmã e gratifiquei a minha vaidade com inúteis e censuráveis desconfianças. Como é humilhante esta descoberta! Mas como é justa esta humilhação! Não poderia ter agido mais cegamente, se estivesse apaixonada! Mas foi a vaidade, e não o amor, a minha loucura! Lisonjeada pela preferência de um deles e ofendida com a negligência do outro, logo no início das nossas relações cortejei a parcialidade e a ignorância e expulsei a razão. Até este momento, eu não conhecia a minha verdadeira natureza.»

Dela para Jane e de Jane para Bingley, os seus pensamentos seguiram um curso que em breve lhe sugeriram a ideia original de que a explicação do Sr. Darcy a esse respeito lhe parecera insuficiente, e ela voltou a lê-la. Que diferente foi o efeito desta segunda leitura. Como lhe seria possível dar valor às afirmações do Sr. Darcy num ponto e negar lho noutro? Declarava ele que estava bem longe de suspeitar da afeição de sua irmã; e Elizabeth recordou-se da opinião de Charlotte. Nem tão-pouco poderia negar que fosse justa a sua descrição de Jane. Ela sabia que Jane, embora capaz de fervorosas afeições, pouco as exteriorizava; e reconhecia que havia nos seus modos uma placidez que raramente se encontra unida a uma grande sensibilidade.

Quando chegou àquela parte da carta em que a sua família é mencionada, em termos mortificantes, mas merecidos, ela sentiu-se ainda mais envergonhada. No entanto, a justiça de tais afirmações era inegável, e as circunstancias que ele mencionava, particularmente as que se referiam ao baile de Netherfield e que confirmavam as suas primeiras impressões desfavoráveis, não haviam causado uma impressão mais forte no espírito dele do que no seu.

Elizabeth não ficou insensível ao elogio que Darcy lhe fizera, bem como à irmã. Tal elogio, porém, embora suavizasse a sua mortificação, não compensava o desdém que o resto da sua família suscitava pela sua conduta. E, ao reflectir que o desgosto de Jane tinha sido de facto causado pelos seus parentes mais próximos, cuja singularidade prejudicava o bem de ambas, ela sentiu-se tão deprimida como nunca antes estivera.

Após ter passeado pela azinhaga durante duas horas, entregando-se a toda a espécie de pensamentos, relembrando acontecimentos, determinando probabilidades e reconciliando-se como podia com uma mudança tão súbita e tão importante, o cansaço e a lembrança de que ficara muito tempo ausente fizeram que ela voltasse para casa; e, ao entrar, faz um esforço sobre si mesma, a fim de parecer alegre como de costume, reprimindo todas as reflexões que a incapacitassem de tomar parte na conversação.

Participaram-lhe imediatamente que os dois cavalheiros de Rosings tinham aparecido durante a sua ausência, o Sr. Darcy apenas durante alguns minutos, mas que o coronel Fitzwilliam esperara pelo menos uma hora pelo seu regresso, quase decidindo-se a partir a pé em busca dela. Elizabeth fingiu sentir-se decepcionada; mas, na verdade, ela regozijava. Tinha perdido todo o interesse pelo coronel Fitzwilliam; ela só pensava na carta.

 

Os dois primos deixaram Rosings na manhã seguinte, e o Sr. Collins, que tinha ido esperá-los ao portão para lhes apresentar as suas despedidas, voltou, pouco depois, trazendo a boa notícia de que eles pareciam estar de perfeita saúde e relativamente bem dispostos, apesar da melancolia que ultimamente parecia ter abatido sobre Rosings. O Sr. Collins dirigiu-se então apressadamente para Rosings, a fim de consolar Lady Catherine e sua filha, e, quando regressou, trazia, com grande satisfação, um recado de Lady Catherine, que, dizendo-se cheia de tédio, os convocava a todos para jantar em sua casa.

Elizabeth, ao encontrar-se de novo na presença de Lady Catherine, não pôde deixar de pensar que, se o tivesse desejado, poderia agora ser-lhe apresentada como a sua futura sobrinha, e sorriu ao imaginar a indignação com que Sua Excelência receberia tal notícia.

O primeiro assunto abordado foi a diminuição que sofrera o grupo de Rosings.

- Asseguro-lhes que me sinto verdadeiramente afectada - disse Lady Catherine -, creio mesmo que ninguém sente tanto a ausência dos amigos como eu. Tenho grande afeição por aqueles dois jovens e sei que eles também gostam muito de mim! Ficaram tristíssimos por partir, como aliás acontece sempre! O coronel conseguiu dominar os seus sentimentos até ao fim, mas Darcy parecia consternado. Mais do que no ano passado. Vê-se que aprecia Rosings cada vez mais.

O Sr. Collins aproveitou a ocasião para elaborar um elogio, que foi recebido com um sorriso pela mãe e pela filha.

Lady Catherine constatou, após o jantar, que a Menina Bennet parecia melancólica, e, atribuindo imediatamente essa tristeza à proximidade da sua partida, acrescentou:

- Mas, se é esse o caso, escreva à sua mãe rogando-lhe que a deixe ficar mais um pouco. Estou certa de que a Sr.a Collins terá o maior prazer em gozar por mais algum tempo da sua companhia.

- Agradeço-lhe muito tão amável convite - replicou Elizabeth -, mas, infelizmente, não posso aceitar. Preciso de estar em Londres no sábado próximo.

- Mas, sendo assim, só terá passado aqui seis semanas. Contava que permanecesse dois meses, pelo menos. Foi o que eu disse à Sr.a Collins, antes da sua vinda. Não pode haver motivo para uma partida tão prematura. A Sr.a Bennet passará bem sem si outros quinze dias.

- Mas o mesmo não poderei dizer de meu pai. Ele escreveu-me na semana passada, pedindo-me que abreviasse a minha estada.

- Oh!, se a sua mãe a dispensa, também o seu pai o fará. Uma filha nunca é muito necessária a um pai. E, se quiser ficar mais um mês, eu poderei levá-la comigo até Londres. Preciso de lá ir em princípios de Junho. Demorar-me-ei uma semana, e na minha carruagem haverá espaço para uma de vós. E, se acaso o tempo estiver fresco, poderão ir ate as duas, pois ambas são magrinhas.

- É muita bondade sua, Lady Catherine; mas creio que serei obrigada a seguir o meu plano anterior.

Lady Catherine pareceu resignar-se:

- Sr.a Collins, deverá mandar uma criada com elas. Sabe como eu digo sempre o que penso e não suporto a ideia de duas jovens viajando sozinhas numa diligência. É deveras impróprio. Terá de tratar de mandar alguém com elas. Se há coisa que não tolero, é exactamente isso. As jovens devem ser sempre adequadamente acompanhadas e protegidas, de acordo com a sua situação na vida. Quando a minha sobrinha Georgiana se deslocou a Ramsgate no Verão passado, fiz questão em que dois criados a acompanhassem. A Menina Darcy, filha do Sr. Darcy de Pemberley e de Lady Anne, não poderia viajar de maneira diferente. Sou extremamente escrupulosa neste capítulo. Sr.a Collins, providencie para que John acompanhe estas duas meninas. Alegra-me ter-me ocorrido tal pormenor, pois seria pouco recomendável mandá-las sozinhas.

- Meu tio combinou comigo mandar-nos um criado para nos acompanhar.

- Oh!, o seu tio! Ele tem um criado? Ainda bem que há alguém na sua família que pense nestas coisas. Onde mudarão de cavalos? Oh!, Bromley, naturalmente. Se mencionarem aí o meu nome, serão muito bem servidas.

Lady Catherine fez ainda muitas perguntas a respeito da viagem, e, como ela própria não respondia a todas, era necessário prestar atenção, coisa que Elizabeth apreciou, pois, de outro modo, com as preocupações que a absorviam, ela correria o risco de se esquecer até do lugar onde se encontrava. As suas reflexões deveriam ser reservadas para horas solitárias; e, quando se achava só, entregava-se a elas com alívio. Não passava um dia sem que desse um passeio sozinha, e nele podia dar-se ao consolo de recordar as coisas desagradáveis.

Já quase sabia de cor a carta do Sr. Darcy. Estudava cada frase e os seus sentimentos para com o autor variavam frequentemente. Quando se recordava do seu estilo, enchia-se de indignação, mas, quando considerava a injustiça com que o tinha condenado e tratado, a sua cólera voltava-se contra si mesma; e o desapontamento por ele sofrido tornava-o objecto da sua compaixão. O Sr. Darcy despertava-lhe gratidão e o seu carácter respeito; mas Elizabeth não podia concordar com a conduta dele; nem podia, por um momento sequer, arrepender-se de o ter recusado, ou sentir sequer vontade de tornar a vê-lo. A sua anterior atitude para com ele era uma fonte constante de amargura e ressentimento; e os infelizes defeitos da sua própria família um motivo ainda mais forte de aborrecimento. Nada podia fazer para o evitar. Seu pai, limitando-se a troçar, nunca faria um esforço para corrigir as leviandades das suas filhas mais jovens, e sua mãe, cujas maneiras não eram muito melhores, continuava naturalmente insensível a esse mal. Elizabeth frequentemente reunia o seu esforço ao de Jane, numa tentativa de refrear as imprudências de Katherine e de Lydia; mas, uma vez que elas eram protegidas pela indulgência da sua própria mãe, que possibilidades teriam elas de se emendarem? Katherine, excessiva-mente influenciável e fraca e completamente sobre o domínio de Lydia, levava sempre a mal os conselhos das suas irmãs mais velhas; e Lydia, voluntariosa e descuidada, nem sequer lhes dava ouvidos. Ambas eram ignorantes indolentes e vaidosas. Enquanto existisse um oficial em Meryton, elas continuariam namorando; e, enquanto Meryton se conservasse àquela distância de Longbourn, elas viveriam caminhando para lá.

Outra das suas maiores preocupações era o futuro de Jane, e a explicação do Sr. Darcy, inocentando Bingley, realçava o valor daquilo que Jane perdera. A sua afeição provava ter sido sincera e a sua conduta ficara livre de toda a censura, a não ser, talvez, a de uma demasiada confiança no seu amigo. Como era triste, pois, pensar que Jane fora privada de uma situação tão desejável, tão rica em vantagens e promessas de felicidade, pela extravagancia e insensatez da sua própria filha!

Quando, a essas recordações, se acrescentava a decepção que sofrera com Wicklam, era fácil acreditar que a coragem e o bom humor de Elizabeth, tão difícil de reprimir, estavam agora tão afectados que lhe era quase impossível manter na companhia das outras pessoas o mesmo tom alegre de outrora.

Os convites para Rosings durante a última semana sucederam-se com a mesma frequência de a princípio. A última noite foi passada ali; e Sua Excelência de novo se informou minuciosamente de todos os pormenores da viagem. Deu conselhos sobre a melhor maneira de fazer as malas e insistiu tanto nesse capítulo que Maria, ao regressar, se sentiu na obrigação de desfazer todo o trabalho da manhã e tornar a fazer novamente a sua mala.

Quando se despediram, Lady Catherine, com grande amabilidade, dese-jou-lhes uma boa viagem e convidou-as a voltarem a Hunsford no ano seguinte. E a Menina de Bourgh levou a sua benevolência a ponto de fazer uma reverência e estender a mão a ambos.

 

Sábado de manhã, Elizabeth e o Sr. Collins encontraram-se à hora do pequeno-almoço, momentos antes de os outros aparecerem; e ele aproveitou a oportunidade para apresentar as suas despedidas com toda a formalidade que ele julgava indispensável.

- Não sei, Menina Elizabeth - proferiu ele -, se a Sr.a Collins já teve a ocasião de lhe exprimir a gratidão pela visita que nos fez; mas estou certo de que não deixará esta casa sem receber todos os seus agradecimentos. Asseguro-lhe que o privilégio da sua companhia foi muito apreciado. Temos consciência dos reduzidos atractivos que a nossa humilde habitação possa possuir. A nossa vida simples, a exiguidade das dependências, o pequeno número dos criados e o pouco que vemos do mundo devem tornar Hunsford extremamente aborre-cido para uma jovem como a menina. Espero, contudo, que acreditará que tenhamos feito tudo em nosso poder para passar o seu tempo da forma mais agradável e que não duvidará da nossa gratidão pela sua condescendência.

Elizabeth respondeu, exprimindo-lhe os seus calorosos agradecimentos e assegurando-lhe que tinha passado uma temporada muito feliz. Tinham sido seis semanas muito agradáveis; e o prazer de estar com Charlotte, assim como as numerosas atenções de que ela fora alvo, faziam que fosse ela quem devesse mostrar-se reconhecida. O Sr. Collins ficou satisfeito, e, sorrindo, replicou com solenidade:

- Sinto enorme alegria por saber que não passou o seu tempo de forma desagradável. Fizemos tudo o que estava ao nosso alcance; e tivemos a felicidade de ter podido apresentá-la à mais alta sociedade. Graças às nossas relações com Rosings, tivemos a oportunidade de variar frequentemente a humilde cena doméstica, e creio podermo-nos gabar de lhe termos proporcio-nado assim uma visita a Hunsford pouco enfadonha. A nossa situação relativamente à família de Lady Catherine é realmente uma dessas extraor-dinárias vantagens de que poucos se podem gabar. Viu a intimidade que temos e os convites frequentes que recebemos. Na verdade, é preciso reconhecer que, apesar de todos os inconvenientes deste humilde presbitério, os seus hóspedes não são de modo algum objecto de compaixão, desde o momento em que compartilham da nossa intimidade com Rosings.

As palavras eram insuficientes para traduzir a elevação dos seus sentimentos; e, na sua agitação, ele pôs-se a caminhar de um lado para o outro na sala, enquanto Elizabeth procurava, em frases curtas, servir simultanea-mente a delicadeza e a verdade.

- Creio que poderá levar consigo para o Hertfordshire um relato muito favorável a nosso respeito, minha cara prima - continuou ele. - Estou certo de que possui, pelo menos, todos os meios para isso. Presenciou as atenções com que quase diariamente Lady Catherine cumula a Sr.a Collins; e espero que se tenha tornado evidente que a sua amiga não fez mal ao... mas sobre este ponto prefiro guardar o meu silêncio. Permita-me apenas, minha querida Menina Elizabeth, que lhe deseje do fundo do coração uma felicidade igual no casa-mento. A minha adorável Charlotte e eu só temos um espírito e um pensa-mento. Existe sob todos os aspectos, entre nós, uma notável semelhança de carácter e de ideias. Tudo indica que nascemos um para o outro.

Elizabeth pôde afirmar que era essa uma grande felicidade e com igual sinceridade acrescentou que ela acreditava firmemente na sua harmonia domestica, com o que muito se alegrava. Não a contrariou, contudo, ter sido interrompida no seu discurso pela entrada da pessoa cuja felicidade comentavam. Pobre Charlotte! Era triste deixá-la só em tal companhia. No entanto, era necessário reconhecer que ela escolhera de olhos abertos; e, embora aparentasse uma certa tristeza por as ver partir, não parecia querer solicitar a sua compaixão. A casa, as tarefas domésticas, a paróquia, a sua criação de aves de capoeira e tudo o mais ainda não haviam perdido o seu encanto. Finalmente, a carruagem chegou, as malas foram amarradas, os embrulhos levados para o interior e a partida anunciada. Depois de afectuosa despedida, Elizabeth foi conduzida até à carruagem pelo Sr. Collins, e, enquanto atravessavam o jardim, este encarregou-a de transmitir os seus mais respeitosos cumprimentos a toda a sua família, não esquecendo os seus agradecimentos pelas atenções que recebera em Longbourn quando ali estivera e as suas saudações para o Sr. e a Sr.a Gardiner, embora não tivesse o prazer de os conhecer. Então, ele ajudou-a a subir para a carruagem. Maria imitou-a, e a porta estava a ponto de ser fechada quando, de súbito, ele lembrou que elas se tinham esquecido de deixar qualquer mensagem para as senhoras de Rosings.

- Naturalmente - acrescentou ele - desejarão que eu transmita os vossos humildes respeitos, com os vossos mais cordiais agradecimentos, pela bondade de que foram objecto enquanto aqui permaneceram?

Elizabeth não pôs objecção; a porta pôde ser finalmente fechada e a carruagem afastou-se.

- Meu Deus! - exclamou Maria, após alguns minutos de silêncio. - Parece que chegámos ontem, e, no entanto, quanta coisa não sucedeu!

- Muita coisa, de facto - concordou Elizabeth, com um suspiro.

- Jantámos nove vezes em Rosings, além das duas vezes que lá fomos tomar o chá. O que eu tenho para contar!

E Elizabeth, interiormente, acrescentou: «E o que eu tenho para esconder!»

A viagem decorreu praticamente em silêncio e sem qualquer incidente. Quatro horas depois de terem saído de Hunsford chegaram a casa do Sr. Gardiner, onde deveriam passar alguns dias.

Jane parecia de perfeita saúde e Elizabeth não teve oportunidade de obser-var as verdadeiras disposições de sua irmã, graças aos vários divertimentos que a sua tia tivera a bondade de organizar para elas. Mas Jane regressaria com ela e em Longbourn teria a ocasião de a observar mais detidamente. Não foi sem esforço, no entanto, que ela esperou até Longbourn para contar à irmã a resposta do Sr. Darcy. Sabia ter em seu poder a possibilidade de fazer uma revelação que não só causaria grande assombro em Jane como desperta ia agradavelmente em si o resto de vaidade que lhe restava. Era uma tentação a que nada se poderia opor, senão o estado de indecisão em que ela se encontrava sobre o número exacto de factos que deveria revelar e o medo de ter de repetir certas coisas a respeito de Bingley que poderiam ferir Jane ainda mais.

 

Na segunda semana de Maio partiram as três jovens da Rua Gracechurch com destino à cidade de..., no Hertfordshire; e, ao aproximarem-se do lugar em que a carruagem do Sr. Bennet as deveria encontrar, elas avistaram, como garantia da pontualidade do cocheiro, Kitty e Lydia, numa das janelas superiores de uma hospedaria. Havia mais de uma hora que aquelas meninas se encontravam naquela localidade fazendo visitas frequentes a uma modista em frente, olhando de soslaio e demoradamente a sentinela de plantão e preparando um molho para salada.

Depois de darem as boas-vindas às irmãs, elas exibiram uma mesa posta com várias espécies de carnes frias, que tinham logrado encontrar na dispensa da hospedaria:

- Que dizem a isto? Não acham uma surpresa agradável?

- Tencionamos convidá-las a todas - acrescentou Lydia -, mas terão de nos emprestar dinheiro, pois gastámos o nosso naquela loja ali defronte. - Em seguida, mostrando as suas aquisições: - Olhem, comprei este chapéu. Não o acho nada se especial, mas resolvi comprá-lo, mesmo assim. Mal chegue a casa, vou desmanchá-lo e ver o que poderei fazer com ele.

E quando as irmãs lhe disseram que ele era, de facto, muito feio, ela acrescentou, com perfeita indiferença:

- Oh!, mas havia dois ou três ainda mais feios na loja; e, quando eu comprar um cetim bonito para o enfeitar, vão ver como ele ainda vai ficar. Além disso, não interessa muito o que possamos vestir este Verão, pois o destacamento sai de Meryton dentro de quinze dias.

- Ah!, sim? - exclamou Elizabeth, com grande satisfação.

- Vão acampar perto de Brighton. Gostava tanto que o pai nos levasse até lá para passarmos o Verão... seria estupendo. Creio que não sairia dispendioso, e a mãe, principalmente, ficaria encantada por ir. Pensem só que Verão mais enfadonho não teremos, se ficarmos por aqui.

- Sim - pensou Elizabeth -, seria estupendo, de facto. Imaginem! Estas meninas à solta em Brighton, com um acampamento repleto de oficiais, quando aqui, com um reduzido destacamento e um baile mensal em Meryton, é o que se vê.

- Tenho ainda outra novidade para lhes dar - disse Lydia, sentado-se todas à volta da mesa. - Que acham? Trata-se de uma novidade formidável e importantíssima, e é sobre uma pessoa de que todas gostamos muito.

Jane e Elizabeth olharam uma para a outra e o criado foi informado de que se podia ir embora. Lydia pôs-se a rir e disse:

- É mesmo característica vossa essa formalidade e discrição. Acham que o criado não deve ouvir, como se ele se importasse! Estou certa de que ele terá ouvido coisas muito piores do que a que eu tenho para dizer. Mas ele é tão medonho! Alegra-me que se tenha ido embora. Nunca vi um queixo tão comprido na minha vida. Bem, passemos agora à novidade: é acerca do nosso querido Wickham; bom de mais para o criado, não é? Não há perigo de Wickham se casar com Mary King. Ela foi morar com um tio dela, para Liverpool, definitivamente. Wickham está salvo.

- E Mary King está salva! - acrescentou Elizabeth. - Salva de um casamento pecuniariamente imprudente.

- Ela é uma tola em partir, se gosta dele.

- Mas espero que não haja uma paixão muito forte em ambos os lados - disse Jane.

- De que não há do lado dele, estou eu certa. Aposto em como ele nunca se importou com ela. Quem se interessaria por uma insignificante daquelas? E, para mais, cheia de sardas!...

Elizabeth pensou, com certa amargura, que, embora ela fosse incapaz de se exprimir com tanta grossaria, aqueles sentimentos não eram menos brutais que os que anteriormente ela mesma abrigara no seu coração, e considerara liberais.

Após todas terem comido, as mais velhas pagaram a despesa e as meninas pediram a carruagem; instaladas todas as malas, caixas e embrulhos, além das aquisições de Kitty e Lydia, todas subiram e tomaram os respectivos lugares.

- Que aconchegadas que vamos! - exclamou Lydia. - Estou contente por ter comprado aquele chapéu, pois de qualquer modo terei mais uma caixa bem jeitosa. Bom! Ponhamo-nos à vontade e toca a conversar e rir até chegarmos a casa. Em primeiro lugar, contem-nos vocês o que se passou convosco desde que daqui partiram. Conheceram rapazes simpáticos? Divertiram-se? Tive esperan-ças de que uma de vocês regressasse com promessas de um casamento. Jane, se não toma providências, em breve será uma velha solteirona. Ela tem quase vinte e três anos! Sentiria uma vergonha imensa se não conseguisse casar-me antes disso! A tia Philips só pensa em vê-las casadas. Ela acha que Lizzy deveria ter aceite o Sr. Collins; mas ele deve ser um terrível sensaborão. Meu Deus! Que graça eu acharia casar-me primeiro que todas vós. Acompanhá-las-ia a todos os bailes. Ena! Divertimo-nos tanto no outro dia em casa do coronel Forster. Kitty e eu tínhamos lá ido passar o dia, e a Sr.a Forster, que, entre parênteses, se tornou numa amiga inseparável, prometeu organizar uma pequena festa para essa noite. Convidou as duas Harrington, mas, como Harriet estava adoentada, Pen teve de ir sozinha. Sabem o que fizemos? Vestimos o Chamberlayne com roupas de mulher. Foi engraçadíssimo, e que cara a dele! Ninguém sabia disso, para além do coronel e da mulher, Kytti e eu, com excepção da nossa tia, que foi quem emprestou o vestido. Quando Denny, Wickham e Pratt e mais dois ou três deles entraram, não o reconheceram de todo. Caramba! O que nós nos rimos! E a Sr.a Forster também. Eu quase asfixiava de tanto riso. Claro que nessa altura os outros começaram a desconfiar e acabaram por descobrir toda a tramóia.

Com histórias deste género e diversos episódios divertidos, procurou Lydia, auxiliada pelas sugestões de Kitty, distrair as suas companheiras durante todo o caminho até Longbourn. Elizabeth tentava não ouvir, mas a sua atenção era constantemente despertada pelas frequentes alusões ao nome de Wickham.

A recepção em casa decorreu da forma mais afectuosa. A Sr.a Bennet alegrava-se por constatar a beleza sempre igual de Jane; e mais de uma vez durante o jantar o Sr. Bennet se voltou espontaneamente para Elizabeth e lhe disse:

- Estou contente por te ter de volta, Lizzy.

O grupo que se sentou para jantar era numeroso, pois quase todos os Lucas tinham vindo para rever Maria e ouvir as novidades. Foram vários os assuntos abordados; Lady Lucas fazia perguntas sucessivas a Maria, que estava do outro lado da mesa, acerca da prosperidade e criação de aves domésticas da sua filha mais velha; a Sr.a Bennet, duplamente ocupada, de um lado indagava quais os últimos gritos da moda e do outro repetia essas informações para as filhas mais jovens dos Lucas; e Lydia, numa voz mais alta e estridente do que a de qualquer outra pessoa, enumerava os vários acontecimentos da manhã para todos os que desejassem ouvir.

- Oh!, Mary - disse ela -, que pena não teres vindo connosco, pois diver-timo-nos imenso. Durante o caminho, Kitty e eu fechámos todas as cortinas da carruagem e fingimos que não ia lá ninguém dentro. Teríamos continuado assim até chegar, mas Kitty começou a sentir-se enjoada; e, quando chegámos à hospedaria, creio que nos portámos como devíamos, pois regalámos as outras três com o melhor almoço frio do mundo, e, se nos tivesses acompanhado, também te teríamos convidado. E, depois, a volta também foi muito divertida. Pensei que nunca caberíamos naquela carruagem. Quase morri de tanto rir. Falámos e rimos tão alto que qualquer pessoa nos ouviria a dez milhas de distância.

Mary replicou, gravemente:

- Longe de mim menosprezar tais prazeres, minha querida irmã; são os que sem dúvida se enquadram mais naturalmente nos temperamentos femininos. Mas confesso que não me seduzem. Prefiro infinitamente mais um bom livro.

Mas Lydia não ouviu uma só palavra desta resposta. Ela não dava atenção a ninguém durante mais de meio minuto; e nunca ouvia o que Mary dizia.

De tarde, Lydia insistiu com as outras para que fossem todas a Meryton saber das novidades; mas Elizabeth opôs-se firmemente a tal plano. Não deveriam dar azo a que se dissesse que as Meninas Bennet não aguentavam meio dia em casa sem ter de ir a correr atrás dos oficiais. Havia ainda outro motivo para esta oposição. Ser-lhe-ia extremamente penoso encontrar-se com Wickham e estava resolvida a evitá-lo, tanto quanto possível. A próxima partida do destacamento causava-lhe grande alívio. Dentro de quinze dias partiriam os oficiais, e ela esperava ficar livre deles para sempre.

Poucas horas depois de chegar a casa, Elizabeth descobriu que a viagem a Brighton, a que Lydia aludira na hospedaria, estava frequentemente em discussão entre os pais. Percebeu imediatamente que seu pai não tinha a menor intenção de ceder; mas as suas respostas eram ao mesmo tempo tão vagas e equívocas que sua mãe, embora muitas vezes desanimada, não desesperava de alcançar um triunfo final.

 

Elizabeth não conseguiu refrear por mais tempo a sua impaciência em contar a Jane o que lhe tinha sucedido; e, finalmente, resolvendo omitir todos os detalhes que dissessem respeito a sua irmã e prevenindo-a de que ia ficar imensamente surpresa, contou-lhe, na manhã seguinte, grande parte da cena que se passara entre o Sr. Darcy e ela própria.

O assombro da Menina Bennet foi, a princípio, grande, mas em breve foi mitigado pela sua forte afeição fraternal, que tornava qualquer admiração por Elizabeth perfeitamente natural, acabando por toda a surpresa se perder no âmago dos outros sentimentos. Era, realmente, lamentável que o Sr. Darcy tivesse manifestado a sua afeição de forma tão pouco cativante; mas o que mais a entristeceu foi o desgosto que a recusa de sua irmã lhe teria causado.

- A certeza que ele tinha do seu êxito foi despropositada - disse Jane -; e não deveria tê-la deixado transparecer; mas não te esqueças de como isto torna ainda mais cruel o seu desapontamento.

- Com efeito - disse Elizabeth -, tenho muita pena dele; mas o Sr. Darcy tem outros sentimentos que provavelmente expulsarão dentro em breve a admiração que ele possa ter por mim. Não me censuras por o ter recusado, não?

- Censurar-te! Oh, não.

- Mas censuras-me por ter aludido tão calorosamente a Wickham?

- Não, não tenho conhecimento de causa para apontar o mal naquilo que tu disseste.

- Mas em breve o terás, quando te contar o que se passou na manhã seguinte.

Elizabeth falou então na carta, repetindo tudo o que ela continha na parte referente a Wickham. Foi um grande choque para a pobre Jane, que de bom grado passaria pelo mundo sem se aperceber de que existia nele tanta maldade como a que se concentrava aqui num só indivíduo. Nem mesmo a justificação de Darcy, grata aos seus sentimentos, era suficiente para a consolar de tal descoberta. Com grande seriedade, Jane procurou ainda provar que havia uma possibilidade de erro, tentando ilibar um deles sem acusar o outro.

- Isso de nada serve, minha querida Jane - disse Elizabeth -; nunca conseguirás descobrir a maneira de provar que ambos são bons. Faz a tua escolha, mas terás de te contentar apenas com um deles. As qualidades dos dois reunidas dariam um homem bom; mas ultimamente as situações têm-se invertido várias vezes. Quanto a mim, estou inclinada a acreditar no Sr. Darcy, mas tu podes escolher o que quiseres.

Passou-se algum tempo, contudo, antes que um sorriso aparecesse no rosto de Jane.

- Não me lembro de ter alguma vez sofrido tamanha desilusão - disse ela. - Wickham é assim tão má rês?! E quase inacreditável. E coitado do Sr. Darcy! Imagina só, Lizzy, o que ele não terá sofrido. Que decepção! E saber, para mais, a má opinião que tu tinhas dele! E ter de revelar tal coisa da sua própria irmã! É, realmente, muito triste. Creio que sentirás como eu.

- Oh!, não! Toda a minha compaixão e remorso se dissipam ao ver-te tão atormentada pelos mesmos sentimentos. Confio tanto na tua capacidade de o redimir que cada vez me sinto mais despreocupada e indiferente. A tua generosidade dispensa bem a minha, e, se continuas lamentando-o por muito mais tempo, o meu coração ficará tão leve como uma pena.

- Pobre Wickham! O rosto dele parece exprimir tanta bondade! E os seus modos são tão abertos e simpáticos.

- Houve, decerto, um grande erro na educação desses dois jovens. Um deles tem todas as qualidades e o outro apenas a aparência.

- Nunca achei, verdadeiramente, que o Sr. Darcy aparentasse aquilo que tu lhe vias.

- E, no entanto, considerava-me invulgarmente perspicaz ao tomar tão violentamente partido contra ele, sem qualquer fundamento. Uma antipatia tão forte como a que eu tinha por ele é um grande incentivo da inteligência e abre o caminho para a ironia. Uma pessoa pode gracejar sem nada exprimir de justo, mas não pode rir a vida inteira de um homem sem volta e meia esbarrar com algo de espirituoso.

- Lizzy, estou certa de que quando leste a carta pela primeira vez não encaravas as coisas do modo como o fazes agora.

- Realmente, nessa altura não o podia. Fiquei muito perturbada, posso dizer infeliz, até. E depois, não tinha ninguém com quem me abrir, não tinha uma Jane para me consolar e dizer-me que eu não tinha sido tão fraca, leviana e insensata como eu sabia que o fora. Oh!, como eu desejei ter-te junto de mim!

- Foi pena teres usado expressões tão violentas falando de Wickham ao Sr. Darcy, pois agora vê-se claramente quão imerecidas elas foram.

- Certamente. Mas a infelicidade de ter falado tão amarguradamente foi uma consequência natural dos preconceitos que eu vinha alimentando dentro de mim. Há um ponto sobre o qual eu necessito do teu conselho. Gostava que me dissesses se devo ou não revelar aos nossos conhecidos qual o verdadeiro carácter do Sr. Wickham.

A Menina Bennet fez uma pequena pausa e respondeu:

- Acho que não há motivo para tão terrível denúncia. Que pensas tu própria sobre isso?

- Penso não dever dar tal passo. O Sr. Darcy não me autorizou a tornar públicas as suas revelações; pelo contrário, rogou-me que guardasse para mim todos os pormenores relativos ao episódio passado com sua irmã. E, se eu não mencionar este facto capital, quem me acreditará? A má vontade que se generalizou contra o Sr. Darcy é de tal modo violenta que metade da população de Meryton preferiria morrer a vê-lo colocado sob uma luz mais favorável. Não me sinto com forças para luta tão feroz. Wickham em breve partirá; e, posto isso, pouco importa que ninguém aqui saiba qual o seu verdadeiro carácter. Algum dia ele acabará por ser desmascarado, e nessa altura poderemos rir das estupidez dos outros por não o terem adivinhado há mais tempo. De momento, nada direi.

- Tens toda a razão. Denunciar publicamente os seus erros poderia representar para ele a ruína de toda a sua vida. Quem sabe se ele já não se arrependeu do que fez e vive ansioso por refazer a sua reputação. Não deveremos fazê-lo desesperar.

Esta conversa servia de grande ajuda a Elizabeth para pôr um pouco de ordem no tumulto dos seus pensamentos. Libertara-se dos dois segredos que lhe pesavam há quinze dias e encontrara em Jane uma ouvinte atenta e interessada, que não hesitaria em prestar-se de boa vontade a uma nova conversa sobre o assunto. Havia, porém, algo mais que se escondia na sombra e que a prudência de Elizabeth a impedia de desvendar. Não ousava relatar a Jane a outra metade da carta de Darcy, nem revelar-lhe quão sinceramente Bingley correspondera ao seu afecto. Esse segredo não poderia ela compartilhar com ninguém; e tinha a consciência perfeita de que só se veria livre dele quando entre ambos se restabelecesse um entendimento perfeito. «E então», pensou ela, «se acaso tal acontecimento deveras improvável tomar alguma vez lugar, apenas me limitarei a repetir o que o próprio Bingley terá dito de forma bem mais agradável. Tal comunicação só poderá ser feita por mim, quando ela tiver perdido todo o seu valor!»

De momento, instalada na sua casa, ela tinha toda a oportunidade de observar o verdadeiro estado dos sentimentos de sua irmã. Jane não estava feliz. Ela conservava ainda muito viva a sua afeição por Bingley. Como nunca anteriormente se julgara apaixonada, esses sentimentos tinham todo o calor e toda a frescura de um primeiro amor, e, devido ao seu carácter e idade, maior firmeza do que essas primeiras paixões em geral possuem. Ela guardava em tão fervoroso culto a lembrança de Bingley e de tal modo o preferia a qualquer outro homem que precisava lançar mão de todo o seu bom senso e de toda a sua consideração dos sentimentos alheios para dominar aquelas tristezas, que corriam o risco de tornar-se prejudiciais à sua saúde e à tranquilidade das pessoas que a rodeavam.

- Então, Lizzy - disse a Sr.a Bennet, um dia -, qual, agora, a tua opinião do insucesso de Jane? Quanto a mim, estou decidida a não falar mais no assunto a ninguém. Foi o que disse à minha irmã Philips, no outro dia. Mas não consigo perceber se Jane se avistou com ele em Londres. Bem, isso só revela que ele não a merece, e suponho que ela não terá qualquer possibilidade de reave-lo. Nada se diz sobre se ele sempre vem passar o Verão a Netherfield. Já tratei de o indagar, mas ninguém me soube responder.

- Creio bem que ele nunca mais voltará a Netherfield.

- Oh, pois bem! Ele fará o que quiser. Ninguém lhe pede que volte. Mas eu continuarei dizendo que ele se portou de maneira muito desleal para com a minha filha; e, no lugar dela, eu nunca o teria admitido. Resta-me a consolação de que Jane morrerá de desgosto, e nessa altura ele arrepender-se-á do que fez.

Mas, como Elizabeth não via consolação em tal prognóstico, preferiu não responder.

- Então, Lizzy - continuou sua mãe -, pelo que me contas, os Collins não querem melhor vida, não é? Muito bem, posto que isso dure. E que tal se come em casa deles? Charlotte é uma excelente dona de casa, creio eu. Se ela é tão económica como a mãe, devem estar pondo bastante dinheiro de lado. Extravagância é coisa que não se ouve falar em casa deles, não?

Assim é, de facto.

- Eles velam por uma boa administração dos seus haveres, podes estar certa. Sim, sim, aqueles nunca correrão o risco de gastar mais do que aquilo que tem. Nunca terão dificuldades de dinheiro. Ora, que isso lhes sirva de muito bom proveito! E, naturalmente, eles estão constantemente arquitectando planos sobre Longbourn, depois da morte de teu pai, não? Consideram-no já propriedade sua.

- Foi esse um assunto que nunca mencionaram na minha frente.

- Claro! Era só o que faltava. Mas não duvido que discutem o assunto amiúde entre eles. Pois bem, se eles não têm quaisquer escrúpulos em apoderar-se dos bens que legalmente não lhes pertencem, tanto melhor para eles. Eu, no seu lugar, esconder-me-ia de vergonha.

 

A primeira semana desde o regresso delas em breve passou e uma segunda começou. Era a última da estada do destacamento em Meryton, e todas as jovens das redondezas definhavam de desgosto. A melancolia era quase geral. Apenas as duas mais velhas da família Bennet conseguiam ainda comer, beber, dormir e passar o seu tempo da forma habitual. Frequentemente eram acusadas de insensibilidade por Kitty e Lydia, cujo desgosto era profundo, e não compreendiam a indiferença em qualquer membro da família.

- Meu Deus! Que vai ser de nós? Em que nos vamos nós ocupar? - exclamavam elas amarguradamente. - Como te podes tu mostrar tão sorridente, Lizzy?

A Sr.a Bennet, que era uma mãe afectuosa, compartilhava da tristeza das filhas. Ela recordava-se do que sofrera há vinte e cinco anos atrás, numa situação idêntica.

- Compreendo-as perfeitamente - dizia ela -, chorei durante dois dias seguidos quando o regimento do coronel Miller partiu. Pensei morrer de desgosto.

- Creio bem que é o que me irá acontecer - disse Lydia.

- Se ao menos pudéssemos ir até Brighton! - observou a Sr.a Bennet.

- Oh!, sim!, se ao menos pudéssemos ir até Brighton! Mas o pai é um desmancha-prazeres.

- Alguns banhos de mar restabelecer-me-iam para sempre.

- E a tia Philips disse que uma mudança de ares me faria muito bem - acrescentou Kitty.

Tais eram as lamentações que constantemente se ouviam em Longbourn. Elizabeth procurava rir-se delas, mas a sua vergonha roubava-lhe todo o prazer. Ela apercebia-se de novo da justiça das objecções do Sr. Darcy; e nunca antes se sentira tão disposta a perdoar a sua interferência na vida do amigo.

Porém, as sombrias perspectivas de Lydia em breve foram dissipadas, pois a Sr.a Forster, a mulher do coronel do destacamento, convidou-a para acom-panhá-la a Brighton. Essa inestimável amiga era bastante jovem e estava casada há muito pouco tempo. A boa disposição e a frivolidade de ambas recomen-dara-as uma à outra e após três meses de relações tinham-se tornado íntimas.

O êxtase de Lydia, a sua adoração pela Sr.a Forster, a alegria da Sr.a Bennet e a mortificação de Kitty eram impossíveis de descrever. Inteiramente indiferente aos sentimentos da irmã, Lydia corria pela casa expandindo a sua enorme felicidade, exigindo as congratulações de todos, rindo e falando com uma estridência maior do que o costume; e, enquanto isso, a desafortunada Kitty permanecia na sala. lamentando o seu destino em termos despropositados e numa voz ressentida.

- Não compreendo por que não me convidou a Sr.a Forster também a mim - dizia ela. - Embora eu não seja tão íntima dela, tenho tanto direito em ser convidada como Lydia, e mais até, pois sou dois anos mais velha.

Em vão Elizabeth procurou incutir-lhe sentimentos mais sensatos e Jane maior resignação. Quanto a Elizabeth, esse convite estava longe de lhe produzir os mesmos sentimentos que em sua mãe e Lydia, pois ela considerava-o como uma espécie de sentença de morte para todas as possibilidades de sua irmã vir um dia a ter algum bom senso; e apesar da repugnância que tal caso lhe inspirava, não hesitou em aconselhar confidencialmente seu pai a não a deixar ir. Chamou-lhe a atenção para todas as impropriedades da conduta de Lydia e para as poucas vantagens que lhe poderiam advir da intimidade com uma mulher como a Sr.a Forster e para a probabilidade de Lydia se tornar ainda mais imprudente na companhia de tal pessoa e num lugar onde as tentações seriam maiores que em casa. Após ouvi-la atentamente, ele respondeu-lhe:

- Lydia não descansará enquanto não lhe acontecer alguma; e nunca ela encontrará melhor ocasião para fazer uma tolice como a actual, em que não dará despesas ou trabalho à família.

- Se o senhor se desse conta - disse Elizabeth - dos grandes inconvenientes que o comportamento leviano de Lydia, em público, nos pode trazer, ou melhor, que já nos trouxe, encararia a questão de modo diferente.

- Já vos trouxe? - repetiu o Sr. Bennet. - Será que ela já afugentou algum dos teus apaixonados? Minha pobre Lizzy! Mas não desanimes. Esses jovens difíceis, que não suportam a proximidade de um pouco de absurdo, não são dignos de consideração. Vamos, dá-me a lista dos pobres coitadas que foram postos em fuga pelas tolices de Lydia.

- Está enganado, meu pai. Não tenho desgostos desses a lamentar. Não é de dissabores particulares, mas de inconvenientes que eu me queixo. A nossa reputação é necessariamente afectada pela leviandade, a imprudência e o desprezo de Lydia por qualquer restrição, características do seu carácter. Perdoe-me, mas preciso falar claramente. Se não for o pai a dar-se ao trabalho de reprimir a excessiva exuberância dela e a fazer-lhe ver que as suas actuais ocupações não constituem a essência da vida, em breve perderá a possibilidade de alguma vez a corrigir. O seu carácter está-se definindo e aos dezasseis anos ela só pensará em namorar, cobrindo-se a si mesma e à família de ridículo. E, quando falo em namorar, refiro-me a coisa bem pior, sem que ela não tenha outros atractivos que não sejam a sua juventude e boa aparência. A sua ignorância e futilidade torná-la-ão incapaz de vencer o desprezo geral que o seu apetite imoderado de admiração há-de provocar. Kitty corre o mesmo perigo também. Ela acompanhará de olhos fechados os passos de Lydia. Vaidosa, ignorante, ociosa e absolutamente descontrolada! Oh!, meu querido pai, como pode supor que elas não sejam censuradas e desprezadas em qualquer lugar que apareçam e que as suas irmãs não se vejam frequentemente envolvidas no seu desprezo?

O Sr. Bennet percebeu a profunda ansiedade da filha, e, tomando-lhe afectuosamente a mão, respondeu:

- Não te preocupes demasiado, meu amor. Onde quer que tu e Jane apare-çam, serão sempre respeitadas e apreciadas; e não serão menos admiradas por terem duas, ou, melhor, três irmãs bastante tolas. Se Lydia não for a Brighton, não teremos um momento de sossego nesta casa. Deixemo-la ir, portanto. O coronel Forster é um homem sensato e tomará precauções para que nada de mal lhe aconteça. Felizmente, ela é suficientemente pobre para não se tornar num objecto de grandes cobiças. Em Brighton ela passará mais despercebida do que aqui. Os oficiais não deixarão de encontrar raparigas mais dignas de atenção. Esperemos, pois, que a sua estada lhe sirva de lição e lhe faça ver qual a sua verdadeira insignificância. De qualquer modo, ela nunca poderá piorar a sua conduta muito mais, sem que nos autorize a fechá-la em casa para o resto da vida.

Elizabeth foi obrigada a contentar-se com tal resposta; mas a sua opinião continuava inabalável e deixou seu pai, desanimada e triste. Contudo, não estava na sua natureza remoer os seus desgostos, tornando-os assim ainda maiores. Bastava-lhe o consolo de ter cumprido o seu dever; e inquietar-se com males inevitáveis ou aumentá-los pela ansiedade era atitude que não combinava com o seu feitio.

Se Lydia e sua mãe tivessem alguma vez sabido da conversa que Elizabeth tivera com o Sr. Bennet, toda a sua volubilidade conjunta não seria suficiente para exprimir a indignação que as possuiria. Na imaginação de Lydia, uma visita a Brighton compreendia todas as possibilidades de felicidade terrena. Ela via, com o olhar criador da ficção, as ruas daquela alegre cidade balneária repletas de oficiais. Imaginava-se o centro de atenção de dezenas e centenas deles. Via todo o esplendor do acampamento militar, as barracas estendendo-se em belas filas regulares, povoadas de jovens alegres e resplandecentes nos seus belos uniformes; para completar a cena, via-se a si mesma sentada sob uma dessas barracas, namorando, pelo menos, seis oficiais ao mesmo tempo.

Se ela tivesse sabido que a sua irmã procurara arrancá-la a tais perspec-tivas e realidades como essas, qual não teria sido a sua indignação? Ela apenas poderia ser compreendida por sua mãe, cujos sentimentos se assemelhariam aos seus. A ida de Lydia a Brighton era a única coisa que a consolava da certeza melancólica de que o seu marido não tencionava também ir.

Mas viviam na ignorância do que se passara; e os seus êxtases conti-nuaram com pequenos intervalos, até ao dia da partida de Lydia.

Elizabeth veria, então, o Sr. Wickham pela última vez. Tendo-o encontra-do, desde o seu regresso, frequentemente em sociedade, a sua agitação acal-mara-se um pouco; quanto às emoções da sua antiga preferência, elas tinham-se desvanecido por completo. Conseguia, mesmo, distinguir uma certa afectação e monotonia nas próprias gentilezas que a princípio a tinham deliciado. Além disso, na conduta actual de Wickham para com ela Elizabeth encontrava uma nova fonte de contrariedade, pois a vontade que ele manifestava em renovar aquelas atenções, que tinham caracterizado os primeiros tempos das suas relações, agora, após tudo o que se passara, apenas serviam para a irritar ainda mais. Ela acabou por perder todo o respeito por ele, ao ver-se assim escolhida como objecto de tão fúteis galanteios. E, enquanto os repelia com firmeza, não podia deixar de sentir a censura implícita na convicção de Wickham de que, quaisquer que tivessem sido as causas que tinham feito cessar as atenções para com ela, e por maior que tivesse sido o período de tempo em que o fizera, a vaidade de Elizabeth seria gratificada e a sua preferência reconquistada no momento em que quisesse renovar as suas gentilezas.

No último dia em que o destacamento permaneceu em Meryton, Wickham jantou em Longbourn, juntamente com outros oficiais. Elizabeth estava tão pouco disposta a deixá-lo partir impune que, quando Wickham se quis informar de como ela passara o seu tempo em Hunsford, respondeu-lhe que o coronel Fitzwilliam e o Sr. Darcy - tinham passado três semanas em Rosings e perguntou-lhe se acaso conhecia o primeiro.

Ele pareceu-lhe deveras surpreendido e alarmado; mas, após alguns minutos de concentração, respondeu-lhe, sorrindo, que outrora se encontrara frequentes vezes com ele; e, depois de observar que ele era um autentico cavalheiro, perguntou se Elizabeth simpatizara com ele. Ela deu lhe uma resposta calorosamente afirmativa. Com ar de perfeita indiferença, pouco depois ele acrescentou:

- Quanto tempo disse que eles passaram em Rosings?

- Perto de três semanas.

- E viu-o com frequência?

- Sim, praticamente todos os dias.

- As suas maneiras diferem bastante das de seu primo.

- Sim, bastante. Mas sou agora de opinião de que o Sr. Darcy ganha muito em ser conhecido.

- Sim!? - exclamou Wickham, com um olhar que não escapou a Elizabeth. - E poderei perguntar... - mas, refreando-se, ele acrescentou em tom mais alegre: - Terá sido na maneira de falar que ele melhorou? Ter-se-á dignado a introduzir um pouco de cortesia no seu estilo habitual? Pois não ouso esperar - continuou ele num tom mais baixo e grave - que ele tenha melhorado no essencial.

- Oh!, não! - disse Elizabeth - Quanto ao essencial, creio bem que ele continua exactamente como sempre foi.

Enquanto ela falava, Wickham, pela sua expressão, parecia hesitar se haveria de se mostrar alegre pelas suas palavras ou desconfiar do sentido das mesmas. Notava qualquer coisa no rosto de Elizabeth que o obrigava a seguir as palavras dela com ansiosa atenção. Elizabeth acrescentou:

- Quando eu disse que ele ganhava em ser conhecido, não queria com isso dizer que o seu espírito, nem tão-pouco as suas maneiras, estavam em vias de aperfeiçoamento, mas que, graças a um conhecimento mais íntimo, o seu carácter se tornava mais compreensível.

A inquietude de Wickham transparecia agora no rubor que lhe subira ao rosto e no seu olhar pouco tranquilo. Durante alguns minutos não pronunciou palavra, e, finalmente, vencendo o seu embaraço, voltou-se de novo para Elizabeth e disse-lhe, em tom muito grave:

- A menina, que conhece tão bem os meus sentimentos para com o Sr. Darcy, compreenderá decerto quanto eu me alegro por o ver assumir, pelo menos, a aparência de justiça. Nesse sentido o orgulho dele prestar-lhe-á o melhor dos serviços, senão para ele próprio, pelo menos para os outros, pois o impedirá de cometer tão flagrantes injustiças como as de que eu fui objecto. Temo somente que essas precauções, às quais a menina acaba de aludir, sejam apenas adoptadas durante as visitas a casa de sua tia, por cuja opinião e julgamento ele nutre o maior respeito. O temor que a sua tia lhe inspira sempre actuou nele, quando se encontram juntos, e grande parte se deve atribuir ao desejo que ele tem de favorecer o seu projectado casamento com a Menina de Bourgh, que ele há muito tempo acaricia.

Elizabeth não pôde deixar de sorrir, mas respondeu apenas com um ligeiro aceno de cabeça. Compreendeu que ele desejava arrastá-la para o assunto das suas mágoas e não estava disposta a tolerá-lo. Durante o resto da noite, Wickham procurou mostrar-se alegre e despreocupado como sempre, mas cessou todas as suas atenções para com Elizabeth. Separaram-se com mútua cortesia e possivelmente com o desejo igual de nunca mais se encontrarem.

Quando chegou a hora de as visitas se retirarem, Lydia regressou com a Sr.a Forster para Meryton, de onde partiriam no dia seguinte, logo de madru-gada. A separação dela do resto da família foi mais ruidosa do que patética. Kitty foi a única que chorou, mas as suas lágrimas eram de humilhação e inveja. A Sr.a Bennet mostrou-se prolífica nos seus desejos de felicidade para a filha e eloquente nas suas incitações para que ela não perdesse uma oportunidade de se divertir, conselho este que, como tudo levava a crer, seria seguido fielmente; e, no meio do clamor com que Lydia exprimia a sua felicidade, os adeuses menos ruidosos das irmãs quase não foram ouvidos.

 

Se as opiniões de Elizabeth se baseassem no exemplo dado pela sua própria família, a sua ideia de felicidade conjugal e conforto doméstico não seria das mais lisonjeiras. Seu pai, cativado pela vivacidade, beleza e animação que a juventude em geral confere às mulheres, tinha-se casado com uma pessoa cuja mediocridade intelectual e insensatez em breve o impediu de sentir por ela qualquer afeição. O respeito, a estima e a confiança tinham-se desvanecido para sempre; e todos os seus anseios de felicidade doméstica foram destruídos. Contudo, o Sr. Bennet não era desses homens que procuram o lenitivo para as suas desilusões, causadas pelas suas próprias imprevidências, entregando-se a esses prazeres em que os infelizes procuram uma compensação para as suas loucuras e para os seus vícios. Ele gostava do campo e dos livros, e daí tirava as suas principais distracções. Quanto à sua mulher, ele nada lhe devia, para além dos divertidos momentos que o espectáculo da sua ignorância e a sua falta de senso lhe haviam proporcionado. Não é essa a espécie de felicidade que os homens em geral desejam encontrar no casamento, mas, na falta de outros dons, o verdadeiro filósofo contentar-se-á com os poucos que lhe são concedidos.

Elizabeth, no entanto, nunca fora cega aos defeitos de seu pai como marido. Isso sempre lhe doera, mas, admirando as suas qualidades e grata pela maneira afectuosa como ele a tratava, esforçava-se por esquecer o que não lhe podia passar despercebido e banir dos seus pensamentos aquelas contínuas irregularidades de conduta conjugal que, expondo a sua mãe ao desprezo das próprias filhas, era, por conseguinte, altamente repreensível. Porém, nunca, como agora, sentira tão fortemente a ameaça para os filhos dos inconvenientes trazidos por um casal tão pouco unido, nem compreendera antes tão claramente os males que podiam advir de uma defeituosa aplicação de talentos; talentos esses que, bem conduzidos, poderiam proteger a reputação e bom nome de suas filhas, mesmo se não conseguissem alargar a mentalidade de sua esposa.

Após o alívio que lhe causara a partida de Wickham, Elizabeth encontrou menos prazer do que esperava com a partida do próprio destacamento. As reuniões em sociedade eram menos frequentes; e em casa tinha uma mãe e uma irmã cujas contínuas lamentações sobre o tédio da vida que levavam projec-tavam uma nuvem realmente negra sobre o circulo da família; e, se bem que houvesse a possibilidade de Kitty, com o tempo, vir a atingir o seu grau normal de sensatez, uma vez que tinham sido removidas as causas perturbadoras do seu cérebro, Lydia, cujas tendências eram mais perniciosas, encontrando-se agora num local tão pouco próprio, a um tempo caserna e estância balnear, acentuaria provavelmente os seus defeitos e a sua inconsciência. Em suma, mais uma vez ela se dava conta de que os acontecimentos por elas esperados com tanta impaciência não produziam, ao realizar-se, aquela satisfação tão prome-tida. Necessitava, portanto, de marcar um outro período para o começo da sua verdadeira felicidade, ter outros pontos de apoio para os seus desejos e esperanças. Presentemente, servir-lhe-ia de consolo e prazer antecipar futuras felicidades. A sua viagem aos Lagos, por exemplo, constituía agora o objecto dos seus pensamentos mais felizes. Era o seu refúgio para os momentos desa-gradáveis que o descontentamento de Kitty e de sua mãe tornavam inevitáveis; e, para tornar o seu plano perfeito, só faltava incluir Jane.

«Mas ainda bem que tenho alguma coisa a desejar», pensava ela, «pois, se tudo no meu plano fosse perfeito, a decepção seria mais que certa. Sendo assim, levando comigo uma fonte de contínua tristeza, a saudade de minha irmã, poderei de certo modo esperar que todas as minhas expectativas de prazer se realizem. Um plano perfeito nunca tem realização.»

Lydia, na hora da partida, prometera escrever frequente e detalhadamente a sua mãe e a Kitty; mas essas cartas, longamente esperadas, eram sempre muito curtas. Nas que escrevia à Sr.a Bennet, pouco mais lhe dizia do que terem acabado de regressar da biblioteca, onde tais e tais oficiais as haviam acompa-nhado e onde tinham visto trajes de enlouquecer; ter comprado um vestido novo ou uma nova sombrinha que ela desejaria descrever com mais detalhes, mas não podia, pois a Sr.a Forster acabara precisamente de a chamar para irem dar um passeio para os lados do acampamento. As cartas para Kitty não eram muito mais esclarecedoras, embora mais longas; grande parte do sentido vinha contido entre as linhas.

Após três semanas de ausência de Lydia, a saúde, o bom humor e a alegria recomeçaram a aparecer em Longbourn. Tudo tomou um aspecto mais agradável. As famílias que tinham ido passar o Inverno a Londres começaram a regressar e reiniciaram-se os divertimentos de Verão. A Sr.a Bennet voltou à sua exuberância habitual e, no meio de Julho, Kitty havia melhorado tanto que já lhe era possível entrar em Meryton sem verter uma lágrima, acontecimento deveras promissor que deu a Elizabeth a esperança de que no próximo Natal ela tivesse juízo suficiente para não mencionar sequer o nome de um oficial mais de uma vez por dia, a não ser que, por uma ordem maliciosa e cruel do Departa-mento de Guerra, outro destacamento viesse acampar para Meryton.

A data fixada para a sua digressão pelo Norte aproximava-se rapidamen-te. Faltavam apenas quinze dias, quando chegou uma carta da Sr.a Gardiner, que não só adiava a partida, como abreviava a duração do passeio. Os negócios impediam o Sr. Gardiner de sair de Londres até quinze dias depois da data marcada e obrigavam-no a regressar dentro de um mês. Esse período não daria para irem tão longe quanto planearam e impediria, pelo menos, que visitassem tudo com o vagar e o conforto que haviam planeado. Viam-se, desse modo, obrigados a desistir de vez dos Lagos. Urgia fazer um circuito mais reduzido. De acordo com o novo plano, não iriam para além do Derbyshire. Naquele condado havia muito que ver e que daria para preencher as três semanas de que dispunham. Para a Sr.a Gardiner, tal plano possuía um encanto particular; considerava aquela região, onde ela passara alguns anos da sua vida, tão digna de atenção quanto a célebre região dos Lagos.

Elizabeth ficou extremamente desapontada. Desejava ardentemente ver os Lagos e achava que teriam tempo suficiente para isso. Não tinha, porém, outra alternativa senão contentar-se, e em breve a sua decepção passou.

Muitas ideias se associavam a esse condado do Derbyshire. Era-lhe impossível ler a palavra sem pensar em Pemberley e na seu proprietário. «Mas decerto», pensou ela, «poderei penetrar naquela região e espraiar por ela os meus olhos, sem que ele dê por mim.»

O período de espera fora agora duplicado. Ela teria ainda de esperar quatro semanas até à chegada dos seus tios. Essas semanas, porém, em breve passaram, e o Sr. e a Sr.a Gardiner apareceram finalmente em Longbourn, acompanhados dos quatro filhos. As crianças, duas raparigas de seis e oito anos de idade e dois rapazes mais novos, ficariam entregues aos cuidados da prima Jane, que era a sua grande favorita. O seu bom senso, doçura e génio pareciam destiná-la à missão de cuidar das crianças.

Os Gardiner ficaram apenas uma noite em Longbourn e partiram na manhã seguinte com Elizabeth, em busca de aventuras. Um prazer, pelo menos, lhe estava garantido: o de ter bons companheiros de viagem, saudáveis e empreendedores para suportar os pequenos contratempos, bem humorados para realçar todos os prazeres e afectuosos e inteligentes de modo a sugerirem novas distracções, caso deparassem com decepções no caminho.

Não constitui objectivo desta obra fazer a descrição do Derbyshire, nem dos vários locais famosos por que passaram. Oxford, Blenheim, Warwich, Kenilworth, Birmingham, etc., são suficientemente conhecidos. Apenas uma pequena parte do Derbyshire nos interessa, a cidade de Lambton, onde a Sr.a Gardiner residira e para onde eles se dirigiram. Descobrira recentemente que ainda ali se encontravam alguns dos seus velhos conhecidos e aí Elizabeth soube, pela tia, que Pemberley se encontrava situada a cinco milhas de distância. Para lá chegar teriam de fazer um pequeno desvio de duas milhas. Na véspera, ao conversarem sobre o itinerário, a Sr.a Gardiner tornou a manifestar o seu desejo de rever a propriedade. O Sr. Gardiner concordou e perguntaram a Elizabeth se ela aprovava a ideia.

- Minha querida, não gostarias de ver esse lugar de que tanto ouviste falar? - disse-lhe a tia. - Um lugar onde muitos dos teus conhecidos já moraram. Wickham passou ali a sua mocidade, como sabes.

Elizabeth ficou embaraçada. Ela não sentia qualquer interesse em ver Pemberley e foi obrigada a manifestar a sua pouca disposição. Declarou que estava cansada de ver grandes casas e, após percorrer tantas, já não encontrava prazer nos belos tapetes ou cortinas de cetim.

A Sr.. Gardiner zombou da sua ingenuidade.

- Se Pemberley fosse apenas uma casa ricamente mobilada, também eu não teria grande empenho em ir; mas o parque é lindo e os bosques são dos mais belos do país.

Elizabeth não respondeu, mas intimamente não concordava. Imediata-mente lhe ocorrera a possibilidade de encontrar o Sr. Darcy enquanto visitava o local, e isso seria horrível. A simples ideia a fazia corar. Talvez fosse preferível contar tudo à tia do que correr um tal risco. Mas havia objecções. Decidiu, por fim, não hesitar a recorrer a tais meios, caso as indagações particulares que fizessem lhe revelassem a presença da família em Pemberley.

Nesta ordem de ideias, à noite, quando se retirou para se deitar, perguntou à criada se era verdade que Pemberley era um local muito bonito, qual era o nome do proprietário e, com íntimo alarme, se a família ali se encontrava a passar o Verão. Felizmente, a última pergunta foi-lhe respondida na negativa; e, cessada a causa das suas inquietações, ela sentiu agora grande curiosidade em ver a casa. Quando o assunto de novo foi abordado no dia seguinte e novamente lhe perguntaram a sua opinião, ela respondeu, prontamente e com ar de inferença, que não punha objecções ao plano.

 

À medida que se aproximavam, Elizabeth esperava, emocionada, a primeira aparição dos bosques de Pemberley; e quando, finalmente, passaram os portões e entraram no parque, a sua agitação cresceu ainda mais.

O parque era extenso e tinha aspectos muito variados. Entraram nele pela parte mais baixa e durante algum tempo rodaram através de um belo e extenso bosque.

Apesar da conversa animada que mantinha com os tios, Elizabeth via e admirava todas as vistas e recantos pitorescos. Durante meia milha foram subindo suavemente, até que se encontraram no topo de um morro bastante alto, onde o bosque cessava.

No outro lado do parque avistava-se imediatamente a casa de Pemberley, e a estrada, virando bruscamente, descia em direcção a ela. Tratava-se de um imponente e belo edifício, situado na encosta de uma colina, por detrás da qual se elevava uma ou outra série de belas colinas arborizadas. Defronte da casa corria um riacho de caudal regular que, represado, formava um pequeno lago. As suas margens não haviam sido adornadas pela mão do homem. Elizabeth estava encantada. Nunca vira lugar tão bem dotado pela natureza. Ali, a sua beleza natural não fora ainda adulterada por artifícios de um gosto duvidoso. Todos manifestavam a sua admiração; e naquela altura Elizabeth sentiu que ser proprietária de Pemberley significaria alguma coisa!

Desceram a colina, atravessaram a ponte e aproximaram-se de casa; e, enquanto a examinavam de perto, Elizabeth foi de novo assaltada pelas suas apreensões quanto a um possível encontro com o dono da casa. Receava que a criada se tivesse enganado. Depois de pedirem para ver a casa, foram introdu-zidos na sala de entrada; e, enquanto esperavam pela governanta, Elizabeth teve todo o tempo para se compenetrar do sítio em que se encontrava.

A governanta apareceu; era uma senhora idosa, de aspecto respeitável, muito mais simples e amável do que Elizabeth esperava. Seguiram-na até à sala de jantar. Tratava-se de uma dependência bastante grande, bem proporcionada e mobilada com gosto e elegância. Elizabeth, após examiná-la sumariamente, foi até uma das janelas para apreciar a vista. A colina, pela qual tinham descido, coroada pelas frondosas árvores, parecia mais abrupta e ganhava em beleza vista de longe. Tudo naquele local tinha as condições ideais; e ela contemplou toda a paisagem com encanto, o rio, as árvores espalhadas pelas suas margens e o vale serpenteando até se perder de vista. à medida que passavam de quarto para quarto, a cena variava; mas de todas as janelas a vista era magnífica. Os quartos eram espaçosos e elegantes e a sua mobília revelava a fortuna do seu proprietário; mas Elizabeth reparou, enquanto admirava o seu bom gosto, que os móveis não eram nem vistosos de mais nem desnecessariamente complica-dos. Se bem que mais sóbrios, eram também mais elegantes que os de Rosings.

«E pensar«, dizia ela para si, «que eu poderia ser a dona de tudo isto! A estas horas já estaria suficientemente familiarizada com todos estes quartos! Em vez de os percorrer como uma estranha, poderia regozijar-me de os possuir e receber neles, como visitantes, meu tio e minha tia.» Mas, voltando a si, continuou: «Mas não, isso nunca poderia acontecer. Meu tio e minha tia estariam perdidos para mim. Jamais me autorizariam a recebê-los.»

Foi esta uma lembrança oportuna, pois evitou-lhe sentir algo de parecido com o arrependimento.

Ansiava por perguntar à governanta se acaso o senhor sempre se encontrava ausente, mas não tinha coragem. Finalmente, a pergunta acabou por ser feita pelo seu tio; e ela afastou-se um pouco, alarmada, enquanto a Sr.a Reynolds respondia que ele se encontrava ausente, acrescentando:

- Mas esperamo-lo amanhã com um grupo de amigos.

Elizabeth deu graças a Deus por terem vindo exactamente naquele dia, e não no dia seguinte.

Sua tia chamou-a, então, para ver um quadro. Ela aproximou-se e viu sobre a lareira, entre várias outras miniaturas, um retrato do Sr. Wickham. A Sr.a Gardiner perguntou, sorrindo, se Elizabeth gostava do quadro. A Sr.a Reynolds aproximou-se e disse que se tratava de uma gravura do filho do intendente do seu falecido patrão, que o tinha educado como se seu filho fosse. - Ultimamente ingressou no exército - acrescentou ela -, mas receio bem que ele não vá muito longe.

A Sr.a Gardiner olhou para a sobrinha com um sorriso que Elizabeth não pôde retribuir.

- E este - disse a Sr.a Reynolds, apontando para uma outra miniatura - é o meu actual patrão. O retrato é bastante fiel e foi feito ao mesmo tempo que o outro, há oito anos atrás.

- Tenho ouvido dizer que o seu patrão é um belo homem - disse a Sr. Gardiner, olhando para o retrato -, tem um rosto simpático. Mas Lizzy, tu é que nos poderás dizer se ele se parece ou não.

- Esta menina conhece o Sr. Darcy?

Elizabeth corou e respondeu:

- Um pouco. - E não o acha um belo tipo de homem?

- Sim, de facto.

- Creio que não conheço ninguém que lhe leve a palma; mas na galeria lá em cima verão um outro retrato dele, maior e melhor do que este. Esta sala era o lugar favorito do meu falecido patrão e essas miniaturas estão exactamente no lugar onde estavam quando ele era vivo. Ele gostava muito delas.

Tal era, para Elizabeth, a explicação para o facto de a miniatura de Wickham se encontrar entre as outras.

A Sr.a Reynolds chamou, em seguida, a atenção dos visitantes para um retrato da Menina Darcy, pintado quando ela tinha apenas oito anos de idade.

- E a Menina Darcy também é bonita? - perguntou o Sr. Gardiner.

- Oh! sim! É a menina mais bonita que eu jamais vi. É tão dotada! Toca piano e canta o dia inteiro. Na sala contígua encontra-se de momento um novo instrumento que acabou de chegar para ela. É um presente do meu patrão. Ela chega amanhã também.

O Sr. Gardiner, com o seu modo agradável e comunicativo, encorajava a Sr.a Reynolds com perguntas e observações; e esta, fosse por orgulho ou afeição, demonstrava um prazer evidente em falar do seu patrão e da irmã deste.

- O seu patrão vem muitas vezes a Pemberley, durante o ano?

- Não tanto quanto eu desejaria, mas calculo que, ao todo, passe metade do ano aqui. A Menina Darcy vem sempre todos os Verões.

«Excepto», pensou Elizabeth, «quando ela vai para Ramsgate.»

- Se o seu patrão se casasse, a senhora tê-lo-ia mais vezes aqui.

- Sem dúvida; mas não sei quando «isso» acontecerá. Não conheço ninguém que esteja à altura dele.

O Sr. e a Sr.a Gardiner sorriram e Elizabeth não pode evitar dizer:

- É esse um grande elogio que lhe está fazendo.

- Mas é a pura verdade; e todos os que o conhecem lhe dirão a mesma coisa - replicou a Sr.a Reynolds. Elizabeth achou que ela exagerava, mas, com maior assombro ainda, ouviu a governanta acrescentar: - Nunca o ouvi dizer uma palavra ríspida em toda a minha vida; e eu conheço-o desde que ele tinha quatro anos de idade.

Era o elogio mais extraordinário de todos, mais oposto às ideias de Elizabeth. Ela considerava o Sr. Darcy um homem de maus fígados. A sua curiosidade foi acirrada. Pretendia outras informações, e intimamente ficou reconhecida para com o tio, pois este continuou:

- São poucas as pessoas sobre quem se pode dizer outro tanto. Tem muita sorte em ter um patrão assim.

- Sim, senhor, sei isso muito bem. Se eu saísse por esse mundo afora, estou certa de que não encontraria outro melhor. Mas já notei que as pessoas de bom carácter em criança também o são quando adultos. E o Sr. Darcy, quando pequenino, tinha um temperamento de anjo e um coração de oiro.

Elizabeth ficou boquiaberta. «Tratar-se-á da mesma pessoa?», pensou ela.

- O pai dele era um homem excelente - disse a Sr.a Gardiner.

- Lá isso era, minha senhora; e o filho não lhe ficará atrás. É igualmente afável para com os pobres.

Elizabeth ouvia, pasmava e duvidava, e ficou impaciente por mais. A Sr.a Reynolds não a poderia interessar de outro modo. Em vão ela falava sobre as personagens que os quadros representavam, as dimensões da sala e o preço dos móveis. O Sr. Gardiner, a quem enternecia aquela afeição pela família e a que ele atribuía os excessivos louvores da Sr.a Reynolds, tornou a introduzir o assunto; e a Sr.a Reynolds discorreu com energia e calor sobre as qualidades do seu patrão, enquanto subiam a ampla escadaria.

- Ele é o proprietário mais bondoso e o melhor dos patrões que jamais existiu - dizia ela. - Não é como os jovens de hoje, que só pensam em si próprios. Não existe um só dos seus rendeiros ou criados que não fale dele com admiração. Há quem diga que ele é um orgulhoso; mas eu nunca dei por isso. Quanto a mim, penso que é porque ele é mais fechado que a maioria dos outros jovens.

«Sob que luz favorável ela o coloca», pensou Elizabeth.

- Estas informações não condizem com o seu procedimento para com o nosso pobre amigo - sussurrou-lhe a tia, enquanto caminhavam.

- Talvez estejamos enganadas.

- Não é provável; o testemunho do outro era dos melhores.

Após chegarem ao espaçoso patamar, foram introduzidos numa linda sala de estar, decorada recentemente, e com maior elegância e graça ainda que os apartamentos e salas do rés-do-chão. Informaram-nos de que tudo aquilo tinha sido feito em atenção pela Menina Darcy, que tinha manifestado preferência por aquela sala, da última vez que estivera em Pemberley.

- Ele é, decerto, um bom irmão - disse Elizabeth, enquanto se dirigia para uma das janelas.

A Sr.a Reynolds antecipava a surpresa da Menina Darcy ao entrar naquele aposento.

- Tudo o que ele possa fazer para agradar a sua irmã, manda imediatamente executar. E é sempre assim a sua forma de agir; não existe nada que não faça para procurar dar-lhe prazer.

A galeria de retratos e os dois ou três quartos de dormir principais era tudo o que lhes restava para ver. A galeria continha muitos quadros interessan-tes, mas Elizabeth pouco entendia de pintura. Já quando lhe tinham mostrado os outros, em baixo, ela afastara-se para examinar uns desenhos a lápis, da autoria da Menina Darcy, cujos assuntos eram, em geral, mais interessantes e também mais fáceis de entender.

Na galeria havia também muitos retratos da família. Esses quadros, porém, pouco interesse ofereciam a uma estranha. Elizabeth procurou neles, apenas, os traços que conhecia. Finalmente, um desses retratos despertou-lhe a atenção. Tratava-se de alguém cujo rosto se parecia notavelmente com o do Sr. Darcy e no qual transparecia um sorriso que ela se lembrava de o já ter visto nele, quando ele a contemplava. Deteve-se durante vários minutos diante do quadro, olhando-o fixamente; e, antes de sair da galeria, voltou atrás para examiná-lo mais uma, vez. A Sr.a Reynolds informou-a de que ele fora pintado ainda em vida do falecido Sr. Darcy.

Existia naquele momento, no coração de Elizabeth, um sentimento de ternura para com o actual proprietário de Pemberley, como jamais tivera naquele período em que melhor o conhecera. Os elogios de que a Sr.a Reynolds o tinha cumulado não eram de pouca monta. Nenhum louvor é mais valioso do que o de um criado inteligente. A felicidade de muitas pessoas dependia dele, como irmão, como proprietário e como patrão. Ele tinha o poder de dispensar o prazer e infligir a dor; e a faculdade de praticar, em grande escala, tanto o bem como o mal. Tudo o que a Sr.a Reynolds dissera a seu respeito tinha-lhe sido favorável; e, diante da tela, em que o seu rosto fora retratado e cujos olhos pareciam fitá-la, Elizabeth pensou na admiração do Sr. Darcy por si própria e experimentou um sentimento de gratidão como jamais lhe fora dado sentir. Ela recordou a força daquela afeição e suavizou as expressões com que ele a exteriorizara.

Após terem terminado a visita a toda a casa, tornaram a descer as escadas e, ao despedirem-se da governanta, foram entregues aos cuidados do jardineiro, que os esperava na sala de entrada.

Enquanto atravessavam o relvado em direcção ao riacho,

Elizabeth voltou-se para tornar a ver a casa; sua tia também se detivera, e, enquanto a primeira fazia conjecturas sobre a data em que o edifício, fora construído, o proprietário em pessoa surgiu de súbito na alameda que conduzia às cocheiras, do outro lado da casa.

Encontravam-se a cerca de vinte jardas um do outro, e o seu aparecimento fora tão repentino que se tornara impossível a Elizabeth esconder-se. Os seus olhares imediatamente se cruzaram e ambos coraram de modo intenso. Ele teve um sobressalto e por momentos a surpresa paralisou-o; mas, voltando imediata-mente a si, adiantou-se para o grupo e dirigiu-se a Elizabeth, senão com uma calma absoluta, pelo menos com uma amabilidade sem limites.

Elizabeth, que se virara instintivamente, ao vê-lo aproximar-se, deteve-se e recebeu os seus cumprimentos com um embaraço impossível de dominar. Se a sua aparência, a princípio, ou a sua semelhança com o retrato que tinham acabado de examinar não bastassem para o Sr. e a Sr.a Gardiner perceberem que se encontravam perante o Sr. Darcy em pessoa, a expressão de surpresa do jardineiro ao ver o seu patrão teria sido suficiente para o revelar. Conservaram-se um pouco afastados, enquanto ele conversava com a sua sobrinha, e esta, atónita e embaraçada, mal ousava levantar os olhos e respondia inconsciente-mente às perguntas de cortesia que ele lhe fazia sobre a sua família. Extrema-mente surpresa com a alteração dos seus modos desde a última vez que o vira, cada frase que ele pronunciava aumentava ainda mais a sua confusão; e, tomando de novo consciência de toda a inconveniência de ele a encontrar ali, os poucos minutos em que estiveram juntos tornaram-se os mais penosos da sua vida. Também ele parecia não estar muito à vontade. Enquanto falava, o tom da sua voz não aparentava a firmeza habitual; e as perguntas várias vezes repetidas de quando ela saíra de Longbourn e por quanto tempo se demoraria no Derbyshire, assim como o atropelo com que ele as pronunciava, tornavam evidente quão distantes os seus pensamentos andavam.

Por fim, nada mais encontrou para dizer; e, após ter permanecido alguns momentos sem dizer palavra, o Sr. Darcy voltou de súbito a si e despediu-se.

Os outros, então, juntaram-se a ela e exprimiram toda a sua admiração por tão garbosa figura; mas Elizabeth, inteiramente absorta nos seus pensamentos, não ouviu uma palavra sequer do que lhe disseram. Acompanhou-os em silêncio; sentia-se esmagada de vergonha e de contrariedade. A sua vinda ali fora a ideia mais irreflectida e infeliz do mundo. Como ele deveria estranhar tal encontro! E sob que luz não a colocaria aos olhos de homem tão vaidoso!

Poderia até parecer que ela se colocara propositadamente no seu caminho! Oh, por que tinham vindo? Ou por que havia ele de vir na véspera do dia em que era esperado!? Se tivessem saído dez minutos mais cedo de Pemberley, ele não a teria reconhecido de longe, pois era evidente que chegara naquele momento e que tinha acabado de se apear do cavalo ou da carruagem. Ela corou várias vezes ao recordar-se da perversidade daquele acaso. E que significaria aquela alteração nos seus modos? Era espantoso que ele lhe tivesse dirigido a palavra, sequer. E falar com tanta amabilidade e perguntar pela sua família! Nunca, na sua vida, Elizabeth lhe vira maneiras tão cordiais e tão pouco cerimoniosas. Nunca ele lhe falara com tanta doçura como durante aquele inesperado encontro. Que diferença, desde aquela ocasião em que se dirigira a ela no parque de Rosings, a fim de lhe entregar a carta. Ela não sabia o que pensar nem como explicar tudo aquilo.

Tinham agora penetrado numa simpática vereda que acompanhava as margens do riacho e, a cada passo que davam, aproximavam-se cada vez mais de uma das mais belas partes do bosque. Só algum tempo depois é que Elizabeth despertou para o que a rodeava, e, embora respondesse mecanica-mente aos repetidos apelos dos seus tios para que contemplasse os panoramas que lhe apontavam, não distinguia perfeitamente nenhum detalhe da paisagem. Os seus sentimentos voltavam-se para a casa de Pemberley e procuravam adivinhar em que lugar o Sr. Darcy agora se encontrava. Adoraria saber o que lhe passava naquele momento pelo espirito, de que maneira pensava nela, e se, apesar de tudo, ainda tinha alguma afeição por ela. Talvez ele se tivesse mostra-do tão amável porque se sentisse indiferente. No entanto, na sua voz havia transparecido aquela insegurança. Elizabeth não sabia se ele sentira aborreci-mento ou prazer ao vê-la, mas, certamente não permanecera indiferente.

Por fim, as observações dos tios à sua distracção acabaram por despertá-la e ela lembrou-se de que era necessário mostrar maior naturalidade.

Penetraram no bosque e, dizendo adeus ao riacho por algum tempo, subiram para uma região mais elevada; e ai, através de clareiras ocasionais, descobriram encantadoras vistas do vale, das colinas do outro lado, recobertas de extensos bosques, e do riacho. O Sr. Gardiner exprimiu o seu desejo de percorrer todo o parque, e, se possível, a pé, mas o jardineiro, triunfante, informou-os de que o parque tinha mais de dez milhas de periferia. Teriam, portanto, de se contentar com o circuito habitual. Tornaram a descer a colina por entre os bosques que lhe revestiam a encosta, até voltar ao riacho num dos pontos em que as suas margens eram mais estreitas. Atravessaram-no por uma ponte rústica; tratava-se de uma região mais selvagem do que as que tinham visitado anteriormente; e o vale, estreitando-se, tornava-se numa várzea diminuta, preenchida pelo curso de água e por um caminho estreito, cercado de tufos de arbustos selvagens. Elizabeth desejara explorar os meandros do riacho, mas, depois de atravessarem a ponte e perceberem a distância a que se encontravam de casa, a Sr.a Gardiner, que não gostava muito de caminhar, declarou não poder avançar mais e desejar voltar para a carruagem o mais depressa possível. Elizabeth viu-se, assim, obrigada a submeter-se, e o grupo tomou de novo a direcção da casa, do outro lado do rio, enveredando pelo caminho mais curto. A caminhada, porém, era lenta, pois o Sr. Gardiner, que gostava muito de pescar, mas raramente tinha a oportunidade de o fazer, detinha-se a todo o instante para observar as trutas e fazer perguntas ao homem que os acompanhava. Enquanto deste modo caminhavam, tiveram novamente a surpresa de avistar o Sr. Darcy, que se aproximava deles a pequena distância. O espanto de Elizabeth por pouco ultrapassou aquele que sentira aquando do primeiro encontro. A vereda pela qual seguiam, que era menos abrigada que a do outro lado, permitiu-lhes vê-lo antes de se encontrarem. Elizabeth, embora espantada,- estava, pelo menos, preparada para a entrevista. Resolveu que se exprimiria com calma, acaso o Sr. Darcy tencionasse realmente abordá-los. Por um instante, ela pensou que ele iria virar para outro caminho, mas a ideia apenas prevaleceu enquanto uma curva da alameda o ocultava da sua vista, pois, feita a volta, ele surgiu directamente diante deles. Elizabeth percebeu que o Sr. Darcy nada tinha perdido da sua recente amabilidade; e, para o imitar na sua cortesia, após se encontrarem, ela começou a louvar as belezas do sítio. Porém, ainda mal tinha pronunciado as palavras «lindo» e «encantador», quando uma infeliz lembrança a assaltou, e, receando que aqueles seus elogios a Pemberley pudessem ser mal interpretados, empalideceu e nada mais disse.

A Sr.a Gardiner detivera-se um pouco atrás; e, quando Elizabeth se calou, o Sr. Darcy pediu-lhe que lhe desse a honra de o apresentar aos seus amigos. Elizabeth não esperava tal demonstração de cortesia e não pôde deixar de sorrir, ao vê-lo agora procurar o conhecimento daquelas mesmas pessoas contra as quais o seu orgulho se tinha revoltado, quando lhe propusera casamento. «Que surpresa a dele», pensou ela, «quando lhe disser quem eles são! Toma-os, naturalmente, por pessoas de elevada categoria.»

A apresentação, no entanto, imediatamente foi feita; e, ao mencionar o parentesco que os unia, Elizabeth não pôde deixar de olhar de soslaio para o Sr. Darcy, esperando vê-lo fugir o mais depressa que pudesse da companhia de gente tão modesta. A sua surpresa foi evidente, contudo, ele suportou-a, e, longe de se voltar para partir, ele fez questão em regressar com eles e entrou em conversação com o Sr. Gardiner. Elizabeth não pôde deixar de se sentir lisonjeada. Porém, não experimentava nenhum sentimento de triunfo, e era consolador ter e certeza de que ele sabia agora que ela não precisava de se envergonhar dos seus parentes. Ouvia com a maior atenção tudo o que se passava entre eles e ficava radiante cada vez que uma expressão ou uma frase do seu tio revelava a sua inteligência, o seu bom gosto e as suas boas maneiras.

Em breve conversavam sobre a pesca. Ela ouviu o Sr. Darcy convidar o seu tio, com a maior delicadeza, para pescar no parque todas as vezes que quisesse, oferecendo-lhe ao mesmo tempo os acessórios necessários e indicando-lhe os sítios do riacho em que a pesca em geral era mais proveitosa. A Sr.a Gardiner, que caminhava de braço dado com Elizabeth, lançou na direcção da sua companheira um expressivo olhar de surpresa. Elizabeth nada disse, mas sentiu-se extremamente satisfeita. Sem dúvida que aquela galante atitude lhe era dirigida, mas o seu espanto era ilimitado, e frequentemente ela repetia para consigo: «Por que razão estará ele tão modificado? Qual será o motivo de tudo isto? Não será, decerto, por minha causa, pois tudo o que eu lhe disse em Hunsford não poderiam efectuar nele uma tão grande alteração. É impossível que ele tenha ainda algum amor por mim.»

Após caminharem durante algum tempo naquela disposição, as duas senhoras à frente e os dois cavalheiros atrás, ao chegarem à margem do rio onde esperavam examinar uma curiosa planta aquática, operou-se uma ligeira alteração: a Sr.a Gardiner, fatigada pelo exercício daquela manhã, achou o braço de Elizabeth inadequado para nele se apoiar e preferiu o do seu marido. O Sr. Darcy tomou o lugar ao lado de Elizabeth e retomaram a caminhada. Após um curto silêncio, Elizabeth foi quem primeiro tomou a palavra. Desejava tornar do conhecimento do Sr. Darcy o facto de ela ter feito as necessárias indagações e lhe terem assegurado que ele se encontraria ausente, condição essencial para a sua decisão em visitar o local. Começou, portanto, por observar que a sua chegada fora inesperada.

- A sua governanta - acrescentou ela - informara-nos de que o senhor apenas chegaria amanhã. Além disso, antes de sairmos de Backwell, disseram-nos que o senhor não era esperado tão cedo.

Ele confirmou a verdade de tudo isto e respondeu-lhe que, por causa de alguns negócios a tratar com o seu intendente, se vira forçado a adiantar-se algumas horas aos seus companheiros de viagem.

- Chegarão amanhã cedo - continuou ele - e entre eles virão algumas pessoas que a conhecem: o Sr. Bingley e as irmãs.

Elizabeth respondeu com um leve aceno da cabeça. Os seus pensamentos imediatamente a levaram para a ocasião em que pela última vez o nome do Sr. Bingley fora pronunciado entre eles; e, a julgar pela expressão do rosto dele, os seus pensamentos haviam tomado rumo semelhante.

- Do grupo faz parte, também, uma outra pessoa - continuou ele, após uma pausa - que deseja particularmente conhecê-la. Se me permite, apresentar-lhe-ei a minha irmã, durante a sua estada em Lambton, ou será que lhe peço demasiado?

A surpresa de Elizabeth perante tal pedido foi imensa, de facto. Na sua perturbação, ela concordou, mas sem saber de que maneira o fazia. Compre-endeu imediatamente que esse desejo da Menina Darcy só poderia ter sido inspirado pelo irmão e não era preciso reflectir muito para descobrir quanto isso a satisfazia. Era agradável saber que o ressentimento do Sr. Darcy não o indispusera totalmente contra ela.

Continuaram caminhando em silêncio, ambos mergulhados nas suas reflexões. Elizabeth não se sentia à vontade, pois isso era-lhe impossível; mas sentia-se lisonjeada e satisfeita. O desejo dele em lhe apresentar a irmã era altamente lisonjeador. Em breve se haviam distanciado bastante dos outros, e, quando chegaram perto da carruagem, o Sr. e a Sr.a Gardiner encontravam-se ainda a umas duzentas jardas mais atrás.

O Sr. Darcy convidou-a a entrar, mas Elizabeth declarou não estar fatigada, e eles esperaram juntos no relvado. Numa ocasião como aquela muitas coisas podiam ser ditas, e o silêncio era embaraçador. Elizabeth gostaria de conversar, mas em quase todos os assuntos parecia haver um obstáculo. Final-mente, ela lembrou-se de que estivera viajando, e então falaram de Matlock e de Dove Dale com grande insistência. Contudo, o tempo e a sua tia pareciam caminhar lentamente, e, antes que o tête-á-tête terminasse, ela tinha esgotado a sua paciência e o assunto. Quando o Sr. e a Sr.a Gardiner finalmente chegaram, foram convidados a entrar; e, tendo recusado, todos se separaram com a maior cortesia. O Sr. Darcy ajudou as senhoras a entrarem na carruagem e, quando esta se afastou, Elizabeth viu-o caminhando lentamente em direcção a casa.

As observações dos seus tios tiveram então inicio. Ambos declararam que o tinham achado infinitamente superior ao que esperavam.

- Ele é impecável de educação, afabilidade e modéstia - disse o Sr. Gardiner.

- Existe, decerto, um não sei quê de frieza nos seus modos - replicou a Sr.a Gardiner. - Mas, parafraseando a Sr.a Reynolds, embora haja quem o considere um orgulhoso, nada lhe notei dessa natureza.

- O que mais me surpreendeu foram as suas maneiras para connosco. Eram mais do que polidas, eram atenciosas, de facto. E, contudo, as suas relações com Elizabeth são bastante recentes.

- Naturalmente, Lizzy - disse a Sr.a Gardiner -, ele não será tão bonito como o Sr. Wickham, embora os seus traços sejam perfeitamente regulares; mas não compreendo por que nos disseste que ele era tão desagradável.

Elizabeth desculpou-se da melhor forma; disse que o achara mais simpático de última vez que estivera com ele no Kent e que nunca o vira tão amável como naquela manhã.

- Pode-se dar o caso de ele ser um pouco excêntrico nas suas amabilidades - replicou o Sr. Gardiner. - É frequente nos homens importantes; por isso não tomarei à letra o seu convite para pescar, pois é possível que amanhã tenha mudado de ideias e me faça expulsar do seu parque.

Elizabeth sentiu que eles se enganavam redondamente sobre o verdadeiro carácter do Sr. Darcy, mas nada disse.

- Pelo que vimos dele - continuou a Sr.a Gardiner -, jamais poderia pensar que ele fosse capaz de agir tão cruelmente contra alguém como ele o fez com o pobre Wickham. A sua expressão não revela mau carácter, pelo contrário, ele tem um modo de mover os lábios, quando fala, que muito me agrada; e há uma dignidade no seu rosto que dificilmente daria a alguém uma ideia desfavorável do seu coração. Aliás, a boa mulher que nos mostrou a casa, atribui-lhe o melhor dos caracteres. Por pouco que não ria às gargalhadas, com o que por vezes lhe ouvia. Creio que ele deve ser um patrão condescendente, e, aos olhos de um criado, isso resume todas as virtudes.

Elizabeth sentiu chegado o momento de dizer alguma coisa para justificar o procedimento de Darcy em relação a Wickham, e deu a entender a seus tios que, pelo que ouvira dos seus parentes no Kent, os seus actos eram susceptíveis de uma interpretação totalmente diferente. Que, além disso, o seu carácter não era de longe tão defeituoso quanto o tinham suposto no Hertforshire, e que, por outro lado, o de Wickham estava longe de ser tão perfeito. E, para confirmar o que lhes dizia, relatou-lhes os detalhes de todas as transacções monetárias em que ele se envolvera, sem revelar, no entanto, o nome da pessoa que a infor-mara, mas acrescentando que ela era digna de todo o crédito.

A Sr.a Gardiner mostrou-se surpreendida e preocupada; mas, como se aproximavam na altura do lugar onde ela residira na sua mocidade, ela entregou-se a todo o encanto das suas recordações, e estava tão ocupada em mostrar ao marido as maravilhas das redondezas que se esqueceu de tudo o resto. Apesar de todas as fadigas da manhã, logo após a refeição do meio-dia, tornaram a sair em busca dos antigos conhecimentos da Sr.a Gardiner, e esta passou a tarde entregue ao prazer de reatar antigos laços de amizade.

As ocorrências desse dia tinham sido demasiado interessantes para permitirem a Elizabeth prestar uma maior atenção a esses novos amigos; e não podia fazer outra coisa senão pensar e reflectir com assombro nas amabilidades do Sr. Darcy, e sobretudo no seu desejo de lhe apresentar a irmã.

 

Elizabeth combinara com o Sr. Darcy trazer-lhe a irmã a visitá-la logo no dia seguinte ao da sua chegada a Pemberley e decidiu não se afastar da hospedaria durante essa manhã. Porém, a sua conclusão foi falsa, pois logo na manhã seguinte ao da sua chegada a Lambton, surgiram esses visitantes. Elizabeth e seus tios tinham andado passeando pela cidade com alguns dos seus novos amigos e acabavam de regressar à hospedaria, a fim de se vestirem para jantar com a mesma família, quando o ruído de uma carruagem os atraiu a uma janela. Elizabeth imediatamente reconheceu a libré e, compreendendo o que se tratava, participou, com grande surpresa dos seus parentes, a honra que estava esperando. Os seus tios ficaram estupefactos; e, tanto o embaraço de Elizabeth ao comunicar-lhes tal acontecimento como a circunstância em si, acrescida ainda à lembrança das muitas outras coisas do dia precedente, lhes deu uma nova visão do que realmente se passava. Nada o havia sugerido anteriormente, mas sentiam agora não haver outra maneira de explicar as atenções do Sr. Darcy sem supor um interesse dele pela sua sobrinha. Enquanto essas novas ideias lhes atravessavam o pensamento, a perturbação de Elizabeth crescia a cada momento. Ela mesma se surpreendeu com o seu nervosismo. Além de outras inquietações, ela temia que o Sr. Darcy, com a sua parcialidade, houvesse exagerado na apologia da sua pessoa; e, ansiosa como nunca por agradar, desconfiava naturalmente de que todos os seus recursos seriam escassos.

Elizabeth afastou-se da janela, receando ser vista; e, enquanto caminhava de um lado para o outro, procurando acalmar-se, reparou nos olhares curiosos dos seus tios, o que dificultou tudo muito mais.

O Sr. Darcy e a irmã apareceram, e aquela temível apresentação teve lugar. Com espanto, Elizabeth percebeu que a sua nova conhecida estava tanto ou mais embaraçada do que ela. Desde que se encontrava em Lambton, Elizabeth ouvira várias vezes dizer que a Menina Darcy era extremamente orgulhosa; mas aquele exame de alguns minutos bastou-lhe para constatar que ela era apenas excessivamente tímida. Foi muito difícil arrancar dela outras palavras que não fossem simples monossílabos.

A menina era alta e mais corpulenta do que Elizabeth, e, embora contasse pouco mais de dezasseis anos, as suas formas eram bem desenvolvidas e a sua aparência graciosa. Os seus traços eram menos regulares e belos do que os do irmão, mas transparecia neles o bom senso e a cordialidade, e os seus modos perfeitamente simples e delicados. Elizabeth, que receava encontrar nela uma observadora tão perspicaz e implacável como o Sr. Darcy se mostrara, sentiu-se extremamente aliviada ao discernir tamanha diferença de feitio.

Poucos momentos depois de chegar, o Sr. Darcy participou que Bingley também lhe viria apresentar os seus cumprimentos, e Elizabeth mal tivera tempo de exprimir a sua satisfação quando ouviu na escada os passos rápidos de Bingley, e, no mesmo instante, ele surgiu na sala. Há muito que se tinha acalmado todo o ressentimento de Elizabeth contra ele; e, mesmo que conservasse ainda um resto daqueles sentimentos, ter-lhe-ia sido impossível resistir à si gela cordialidade com que ele se exprimiu ao tornar a vê-la. Ele perguntou-lhe delicadamente pela sua família, embora de um modo vago, falando-lhe com a mesma tranquilidade bem humorada de sempre.

O Sr. e a Sr.a Gardiner olharam-no também com muito interesse. Há muito que desejavam conhecê-lo. O grupo todo, aliás, despertava neles a mais viva curiosidade. As suspeitas que neles brotaram com respeito ao Sr. Darcy e à sobrinha fizeram que eles os observassem atenta mas reservadamente; e imediatamente chegaram à conclusão de que um deles, pelo menos, sabia o que era o amor. Quanto aos sentimentos de Elizabeth, ficaram um pouco na dúvida; mas era evidente que o jovem tinha por ela uma fervorosa admiração.

Elizabeth, pelo seu lado, tinha muito que fazer. Queria certificar-se dos sentimentos de cada um dos visitantes, dominar os seus e tornar-se agradável para todos; e neste último ponto, acerca do qual eram maiores as suas apreensões, ela podia estar certa do seu êxito, pois aqueles a quem ela desejava agradar estavam predispostos em seu favor. Em Bingley encontrou ela a melhor das disposições, Georgiana ansiava por satisfazê-la e Darcy estava sequioso das suas atenções.

Perante Bingley, Elizabeth lembrou-se naturalmente de sua irmã; e naquele momento ela teria dado tudo para saber se os pensamentos dele tinham tomado o mesmo rumo que os seus. Por vezes ela tinha a sensação de que ele falava menos do que o costume; e outras vezes parecia-lhe que, ao olhar para ela, ele procurava encontrar no seu rosto a semelhança de outra pessoa. Mas, embora tudo isto não passasse de pura imaginação, Elizabeth não se iludia quanto ao comportamento dele para com a Menina Darcy, na qual certas pessoas tinham esperado encontrar uma rival de Jane. Nem de um lado nem de outro, um só olhar deixou transparecer qualquer interesse especial. Nada se passou entre eles que pudesse justificar as perspectivas da Menina Bingley. Neste ponto ela em breve se satisfez; e, antes de partirem, um ou dois pequenos factos ocorreram que, segundo a interpretação ansiosa de Elizabeth, denotavam uma recordação de Jane, não destituída de ternura, e um desejo de dizer algo mais que poderia conduzir à menção do seu nome, tivesse ele ousado. O Sr. Bingley observou-lhe, numa dada altura, em que os outros se encontravam conversando, e num tom que denotava uma certa mágoa, que «há muito tempo que ele não tinha o prazer de vê-la»; e, antes que ela pudesse responder-lhe, acrescentou: «Há mais de oito meses. Não nos vemos desde o dia 26 de Novembro, quando nos encontrávamos todos dançando em Netherfield.»

Elizabeth ficou satisfeita pela precisão da sua memória; e, numa outra altura, ele logrou, sem ser ouvido pelos outros, perguntar-lhe se «todas» as suas irmãs se encontravam em Longbourn. A pergunta nada tinha de excepcional, assim como a observação precedente, mas eram o seu olhar e modos que lhe emprestavam todo o significado.

Elizabeth não teve muitas ocasiões de voltar os olhos para o Sr. Darcy, mas, de todas as vezes que o olhava de relance, surpreendia nele uma expressão de contentamento, e tudo o que ele dizia era num tom tão diferente da sua antiga altivez e desdém que Elizabeth se convenceu de que a melhoria nos seus modos que ela presenciara na véspera, por mais temporária que fosse, demorava pelo menos mais de um dia. Quando ela o via assim ocupado em procurar a companhia e a boa opinião de pessoas com as quais ainda há tão poucos dias ele teria julgado desonroso manter relações, quando o ouvia tratar com a maior amabilidade não só a ela, Elizabeth, mas aos seus próprios parentes, que ele tão abertamente desdenhara durante aquela cena no presbitério de Hunsford, a mudança parecia tão radical e impressionava-a a tal ponto que só com o maior esforço ela conseguia esconder a sua surpresa. Nunca o vira tão desejoso de agradar, tão livre de orgulhosas e rígidas reservas como agora, nem mesmo quando na companhia dos seus queridos amigos de Netherfield, ou no meio dos seus importantes parentes em Rosings.

Os visitantes permaneceram com eles mais de meia hora; e quando se levantaram para partir, o Sr. Darcy dirigiu-se à irmã, pedindo-lhe que o secundasse no convite que ele fazia aos Srs. Gardiner e a Elizabeth para um jantar em Pemberley antes da sua partida. A Menina Darcy prontamente acedeu ao seu pedido, embora com uma timidez que revelava o pouco hábito em fazer convites. A Sr.a Gardiner olhou para a sobrinha, desejosa de saber se Elizabeth, a quem o convite principalmente se destinava, estava disposta a aceitá-lo, mas ela voltara a cara. Presumindo, porém, que tal atitude exprimia mais um momentâneo embaraço do que qualquer desagrado na proposta, e percebendo que o seu marido, que apreciava a sociedade, estava disposto a aceitar, ela deu o seu consentimento, e o jantar foi marcado para daí a dois dias.

Bingley exprimiu então todo o seu prazer em tornar a ver Elizabeth, pois tinha ainda muito que lhe dizer e perguntas a fazer sobre os seus amigos do Hertfordshire. Elizabeth, notando nisso o seu desejo de ouvir falar em Jane, ficou satisfeita; e, graças a isso, assim como a outras coisas, depois de os visitantes partirem, ela pôs-se a pensar naquela última meia hora com alguma satisfação, embora durante todo o decurso da visita tivesse sido pequeno o seu prazer. Ansiosa por ficar a sós e temendo as perguntas e alusões dos seus tios, permaneceu na companhia destes apenas o tempo necessário para ouvir às suas opiniões favoráveis sobre Bingley, depois do que os deixou precipitadamente, pretextando ter de se vestir.

Porém, ela não tinha razão em temer a curiosidade do Sr. e da Sr.a Gardiner, pois não desejavam forçar as suas confidências. Tornara-se-lhes evidente que Elizabeth conhecia o Sr. Darcy muito mais intimamente do que eles tinham suposto; e percebiam que ele estava muito apaixonado por ela. Sentiam por tudo aquilo um grande interesse, porém nada que justificasse indagações.

Quanto ao Sr. Darcy, ansiavam por imaginar as melhores coisas a seu respeito, e, tanto quanto o conheciam, não encontravam nele qualquer defeito. Não podiam deixar de se sentir impressionados pela sua delicadeza; e, se fossem ajuizar o seu carácter pelas suas próprias impressões e pelas informações da governanta, sem qualquer referência a outro respeito, o circulo de pessoas do Hertfordshire no qual ele era conhecido não o teria reconhecido como sendo o do Sr. Darcy. Viam agora um certo interesse em acreditar nas palavras da governanta; e em breve concluíram que a opinião de uma criada, que o conhecera desde os quatro anos de idade e cuja aparência era a de uma pessoa digna e respeitável, não poderia ser sumariamente rejeitada. Os seus amigos de Lambton, por outro lado, nada sabiam que pudesse diminuir o valor daquele testemunho. De nada o acusavam, a não ser do seu orgulho. E orgulho, ele tinha-o, certamente; e, mesmo que não o tivesse, esse defeito ser-lhe-ia de qualquer modo imputado pelos habitantes de uma pequena cidade provinciana, onde a família não possuía relações. Todos eram unânimes, no entanto, em ver nele um homem generoso e pródigo para com os pobres.

Quanto a Wickham, os visitantes logo descobriram que ele não era muito estimado no lugar, e, embora nada de preciso se soubesse sobre as suas relações com o filho do seu protector, era, no entanto, sabido que ao sair do Derbyshire deixara muitas dividas, que acabaram por ser saldadas pelo Sr. Darcy.

Elizabeth pensou mais em Pemberley naquela noite do que na precedente; e, embora as horas lhe parecessem difíceis de passar, não foram suficientes para chegar a uma conclusão acerca dos seus sentimentos; e ficou duas horas acordada, tentando ler no seu coração. Certamente não o odiava. Não, o ódio há muito que se dissipara e há muito também que se envergonhava de ter alguma vez antipatizado com ele. O respeito que as suas valiosas qualidades lhe inspiravam, embora a principio admitido com relutância, já há bastante tempo que deixara de repugnar aos seus sentimentos; e tinha-se agora transformado num sentimento mais cordial, graças aos testemunhos tão altamente em seu favor e à impressão favorável que Darcy lhe produzira na véspera. Mas, acima de tudo, para além do respeito e da estima, encontrava em si mesma um motivo de boa vontade que não poderia ignorar: era a gratidão. Gratidão não só porque ele a amara, mas porque ele ainda a amava o bastante para esquecer toda a acrimónia e petulância com que ela o rejeitara e todas as acusações injustas com que fizera acompanhar essa rejeição. Ela chegara a persuadir-se de que Darcy, de futuro, a evitaria como a pior inimiga; e, no entanto, durante aquele encontro acidental, ele mostrara-se ansioso por reatar relações; e, sem exibir qualquer indelicadeza de sentimentos ou excentricidade de maneiras, que sugerisse aquilo que lhes dizia respeito apenas a eles dois, ele procurava angariar a boa opinião dos amigos dela e insistira para apresentá-la a sua irmã. Uma tal mudança num homem tão orgulhoso suscitava não só o espanto, como a gratidão - pois só ao amor, e a um amor ardente, é que ela poderia ser atribuída; e a impressão que sobre ela esse amor produzia não era de modo algum desagradável, embora não pudesse ser exactamente definido. Ela respeitava-o, estimava-o, era-lhe grata e sentia um interesse real pelo seu bem-estar; e quereria apenas saber até que ponto ela desejava que aquele bem-estar dependesse dela e, para a felicidade de ambos, até que ponto ela deveria empregar o poder que imaginava ainda possuir em fazer que ele renovasse as suas atenções.

Ficara decidido naquela noite, entre tia e sobrinha, que uma delicadeza tão decisiva como aquela manifestada pela Menina Darcy, em vir visitá-las no dia da sua própria chegada a Pemberley, deveria ser retribuída por um esforço de cortesia da sua parte; e decidiram pela conveniência de uma visita a Pemberley na manhã seguinte. A Elizabeth agradou-lhe a ideia, e, embora perguntasse a si própria o motivo desse contentamento, não encontrou resposta.

O Sr. Gardiner deixou-as logo após o pequeno-almoço. O convite para pescar fora renovado no dia anterior e um encontro fora marcado com alguns dos cavalheiros em Pemberley, ao meio-dia.

 

Convencida agora de que a antipatia da Menina Bingley era devida ao ciúme, Elizabeth não podia deixar de antever quão desagradável não seria a sua visita a Pemberley para tal senhora e sentia uma certa curiosidade em ver até que ponto ela se mostraria amável no reatar das suas relações.

Ao entrarem em casa, foram conduzidas, através da sala de entrada, para o salão, que, virado ao norte, se tornava muito agradável no Verão. Das suas janelas, que se abriam para o átrio, descortinava-se uma vista encantadora das altas colinas cobertas de arvoredo e dos belos carvalhos e castanheiros que povoavam o relvado próximo.

Nesse aposento foram recebidas pela Menina Darcy e pela senhora com quem ela morava em Londres; a Sr.a Hurst e a Menina Bingley também se encontravam presentes. Georgiana recebeu-as com toda a amabilidade, embora na sua atitude transparecesse aquele embaraço proveniente da sua timidez e do seu medo de errar, e que poderia facilmente ser tomado por orgulho e reserva pelas pessoas que lhe eram inferiores. A Sr.a Gardiner e a sua sobrinha, no entanto, faziam-lhe justiça e tinham pena dela.

A Sr.a Hurst e a Menina Bingley limitaram-se a cumprimentá-las de longe com uma pequena vénia de cabeça; e, quando todas se sentaram, seguiu-se uma pausa embaraçosa durante alguns minutos, pausa essa que foi quebrada pela Sr.a Ansley, uma senhora muito gentil e simpática, e que, ao tentar introduzir um assunto de conversação, provava ser bem mais educada que qualquer das outras duas. Estabeleceu-se uma conversa entre essa senhora e a Sr.a Gardiner, com o apoio ocasional de Elizabeth. Quanto à Menina Darcy, parecia desejar apenas um certo encorajamento para entrar nela, e, por vezes, arriscava uma frase curta, quando parecia não haver o perigo de ser ouvida.

Elizabeth em breve percebeu que estava sendo atentamente observada pela Menina Bingley e que não dizia uma só palavra, especialmente quando se dirigia à Menina Darcy, sem que a outra não se pusesse à escuta. Tal exame não teria impedido Elizabeth de procurar estabelecer uma conversa com a Menina Darcy, não fosse esta encontrar-se a uma distância tão inconveniente dela. Esperava a cada momento a entrada dos cavalheiros. Desejava, e ao mesmo tempo temia, que o dono da casa aparecesse entre eles; e não discernia qual dos seus sentimentos era o mais forte, se o seu desejo ou o seu temor. Após permanecerem deste modo durante um quarto de hora e sem ouvir a voz da Menina Bingley, Elizabeth teve a sua atenção despertada por uma fria pergunta que aquela lhe dirigia sobre a sua família. Ela respondeu com igual indiferença e concisão e a outra nada mais disse.

O acontecimento seguinte foi a entrada dos criados, que traziam travessas de carnes frias, bolos e uma grande variedade das melhores frutas da estação; mas tal só se deu após muitos olhares significativos e sorrisos da Sr.a Ansley e dirigidos à Menina Darcy, lembrando-lhe as suas obrigações como dona de casa. Havia agora ocupação suficiente para o grupo inteiro, pois, embora nem todas pudessem conversar, todas podiam comer; e as pessoas presentes reuniram-se em volta da mesa, diante das apetitosas pirâmides de uvas, ameixas e pêssegos.

Assim ocupada, Elizabeth teve a oportunidade de reflectir se ela realmente temia o aparecimento do Sr. Darcy ou se, pelo contrário, o desejava; e nessa altura, embora minutos antes fosse esse o desejo que predominara, começou a recear que ele aparecesse.

O Sr. Darcy conservara-se durante algum tempo junto do Sr. Gardiner, que pescava na companhia de outros dois cavalheiros da casa, mas, ao ser informado de que Elizabeth e sua tia tinham resolvido fazer uma visita a Georgiana naquela manhã, ele deixou-os e voltou para casa. Assim que ele fez a sua aparição, Elizabeth resolveu sensatamente fazer o possível por se mostrar perfeitamente tranquila e à vontade; resolução essa mais fácil de ser tomada do que de ser cumprida, pois ela percebeu que a atenção de todo o grupo fora despertada para ambos e, desde o momento em que ele entrou na sala, todos os olhares se voltaram para observar a atitude do Sr. Darcy. Porém, em nenhuma fisionomia se espelhava curiosidade tão forte como na da Menina Bingley, apesar dos seus derramados sorrisos sempre que se lhe dirigia, pois o ciúme ainda não a fizera desesperar e de forma alguma desistiria de cumular de atenções o Sr. Darcy. Com a chegada do irmão, a Menina Darcy fez um esforço ainda maior para conversar; e Elizabeth percebeu que ele ansiava, que sua irmã a conhecesse melhor, encorajando todas as tentativas de conversação entre elas. à Menina Bingley tal atitude também não passou despercebida e, na imprudência da sua cólera, aproveitou a primeira oportunidade para dizer, com um sarcasmo mal disfarçado:

- É verdade, Menina Eliza, que o destacamento de milícia foi removido de Meryton? Deverá ter sido uma grande perda para a sua família.

Na presença de Darcy ela não ousava pronunciar o nome de Wickham, mas Elizabeth compreendeu exactamente que era nele que ela estava pensando; e, por instantes, todas aquelas tristes recordações lançaram-na numa certa confusão; mas, incitando-se vigorosamente para responder a tão malévolo ataque, ela falou-lhe num tom sobejamente indiferente. Enquanto falava, lançou um olhar involuntário para Darcy, e viu que este, com o rosto alterado, olhava fixamente para ela e que a Menina Darcy, cheia de confusão, mantinha os olhos baixos. Se acaso a Menina Bingley adivinhasse a perturbação que causaria na sua querida amiga, decerto teria evitado a alusão; mas a sua intenção fora apenas perturbar Elizabeth, aludindo a um homem por quem acreditava que ela nutria afeição, obrigando-a a mostrar uma susceptibilidade que a poderia prejudicar aos olhos de Darcy, lembrando-lhe todas as loucuras e os absurdos de certos membros da família de Elizabeth. A Menina Bingley nada sabia a respeito do planeado rapto da Menina Darcy. Ninguém o sabia, além de Elizabeth; e Darcy desejaria de certo esconder tal facto da família de Bingley, de acordo com aquela esperança que Elizabeth desde há muito lhe atribuía de que um dia aquela família se tornasse a de sua irmã. Ele tinha decerto formado esse plano, e, embora não admitisse que tal intenção tivesse pesado na sua tentativa de separar o seu amigo da Menina Bennet, era provável que aumentasse o seu vivo interesse pela vida do seu amigo.

Contudo, a atitude digna de Elizabeth em breve acalmou aquela emoção; e como a menina Bingley, contrariada e desiludida, não ousasse fazer nenhuma alusão mais directa a Wickham, Georgiana recompôs-se a pouco e pouco, mas não ousou dizer mais uma palavra. Darcy, cujos olhos Elizabeth temia encon-trar, já esquecera quase por completo o interesse que esta tivera por Wickham, e aquele ataque, cujo propósito fora afastar os seus pensamentos de Elizabeth, pareceu ter efeito exactamente contrário.

Pouco depois terminou a visita; e, enquanto o Sr. Darcy acompanhava as senhoras a carruagem, a Menina Bingley dava expansão aos seus sentimentos, criticando a pessoa de Elizabeth, as suas maneiras e o seu traje. Georgina, contudo, não a encorajava. Bastava-lhe a recomendação do seu irmão. Aos seus olhos, o julgamento dele era considerado infalível; e Darcy tinha-lhe falado em Elizabeth em termos tão elogiosos que Georgiana desde logo se dispusera a encontrar nela todos os encantos e qualidades imagináveis. Quando Darcy voltou ao salão, a Menina Bingley não se absteve de repetir uma parte do que momentos atrás dissera à irmã.

- Que mal que Eliza Bennet vinha, esta manhã - exclamou ela. - Nunca vi uma pessoa mudar tanto em tão pouco tempo. A sua tez tornou-se tão escura e áspera! Louise e eu estávamos precisamente dizendo que quase não a reconhe-cemos.

Por muito que estas palavras tivessem desagradado ao Sr. Darcy, ele limitou-se a dizer que não notara nela qualquer alteração, a não ser que se encontrava um pouco tisnada, facto esse que nada tinha de milagroso numa pessoa que viajava no Verão.

- Aliás - continuou a Menina Bingley -; devo confessar que nunca a consi-derei uma beleza. O seu rosto é fino de mais, a pele não tem uma frescura por ai além e os traços não são nada bonitos. O nariz é insignificante e não tem nada de distinto nas suas linhas, e os dentes são razoáveis mas também nada tem de extraordinário. Quanto aos olhos, que há quem diga que são lindos, também nada lhes encontro de excepcional. O seu olhar é duro e falso. E das suas maneiras desprende-se uma vaidade deselegante que eu considero intolerável.

A Menina Bingley estava persuadida de que Darcy admirava Elizabeth, e aquela não seria, portanto, a atitude mais adequada para se fazer valer aos seus olhos, mas o ciúme fazia-a perder as estribeiras. Todo o êxito que obteve foi vê-lo finalmente um pouco irritado. No entanto, ele permaneceu resolutamente calado. Decidida a faze-lo falar, ela prosseguiu:

- Lembro-me perfeitamente de quando a vi pela primeira vez no Hertfordshire, e como nós nos surpreendemos de que ela tivesse a fama de ser bonita. Recordo-me particularmente de ouvi-lo a si dizer, certa noite, depois de um jantar para que foram convidados em Netherfield: «Se ela é bonita, nesse caso a mãe dela é inteligente.» Mas, a partir daí, parece-me que mudou um pouco de opinião, pois já o ouvi declarar, uma vez, que a considerava muito bonita.

- Sim - replicou Darcy, incapaz de se conter por mais tempo -, mas isso foi quando a vi pela primeira vez, pois há muito tempo já que a considero uma das mulheres mais belas que conheço.

Ele então afastou-se, e a Menina Bingley viu-se entregue à satisfação de o ter forçado a dizer uma coisa que não magoava a ninguém a não ser a ela própria.

No regresso, a Sr.a Gardiner e Elizabeth conversaram a respeito de tudo o que acontecera durante a visita, excepto sobre o que as interessava particular-mente. Discutiram a atitude e as palavras de todos, excepto as da pessoa que mais fortemente havia atraído a sua atenção. Falaram na irmã, nos amigos, na casa, nas frutas, em tudo, excepto nele próprio. Contudo, Elizabeth ansiava por saber qual a opinião da Sr.a Gardiner sobre ele; e a Sr.a Gardiner teria ficado muito satisfeita se Elizabeth tivesse introduzido o assunto.

 

Elizabeth ficara muito desapontada por não encontrar, na sua chegada a Lambton, uma carta de Jane; e tal desapontamento era, desde que ai se encontrava, diariamente renovado. No terceiro dia, contudo, a sua expectativa foi recompensada e Jane justificada, pois recebeu da irmã duas cartas ao mesmo tempo, numa das quais vinha assinalado o seu transvio. Elizabeth não se surpreendeu, pois Jane escrevera o endereço de maneira quase ilegível.

Preparavam-se para sair quando as cartas chegaram, e os seus tios, querendo deixá-la à vontade com o seu correio, partiram sem ela. A carta extraviada deveria ser lida primeiro, pois fora escrita cinco dias antes. O começo continha o relato de todas as pequenas reuniões e divertimentos da família, assim como as últimas novidades da região; mas a segunda parte, que datava do dia subsequente e fora evidentemente escrita em grande agitação, traria notícias bem mais importantes, e versava assim:

           Minha querida Lizzy,

desde que encetei esta carta, aconteceu um facto inesperado e de extrema gravidade. Receio com isto assustar-te, mas asseguro-te que nos: encontramos todos bem. O que eu tenho para contar diz respeito à nossa pobre Lydia. Um mensageiro chegou ontem à noite, quando já nos encontrávamos todos deitados, vindo da parte do coronel Forster e dizendo que Lydia tinha partido para a Escócia com um dos seus oficiais; mais concretamente, com o Wickham! Imagina a nossa surpresa. Kity, porém, não pareceu tão surpreendida. Estou muito triste. Considero um casamento altamente imprudente para ambos; mas pretendo esperar o melhor e faço o possível por acreditar que o carácter dele foi mal compreendido. Ele será um inconsciente e um insensato, mas um acto como este não me parece revelar um mau coração. A sua escolha por Lydia é desinteressada; pois ele não deve ignorar que o nosso pai nada tem para dar à filha. A mãe, pobrezinha, está muito desgostosa, mas o pai suporta tudo isto muito melhor. Considero um feliz acaso nada lhes termos contado do que sabíamos contra ele; e, de momento, precisamos também esquecer tais coisas. Partiram no sábado por volta da meia-noite, ao que parece, mas a sua ausência não foi notada senão ontem de manhã, às oito. O mensageiro foi imediatamente enviado. Minha querida, eles devem ter passado a dez milhas de distância daqui. O coronel Forster diz que tem motivos para esperar para breve o regresso de Wickham. Lydia deixou algumas linhas escritas à Sr. Forster, informando-a da sua resolução. Preciso concluir, pois não posso manter-me muito tempo afastada da minha pobre mãe. Espero que compreendas esta carta, pois já nem sei bem o que escrevi.

 

Sem perder tempo a reflectir e sem saber exactamente quais eram os seus sentimentos, Elizabeth, ao acabar a carta, abriu imediatamente a outra, com grande impaciência, e leu o que se segue (a carta fora escrita um dia depois da conclusão da primeira):

 

Quando receberes esta carta, minha querida irmã, já terás em teu poder uma primeira. Faço votos para que a segunda seja mais inteligível, pois, embora com tempo suficiente a minha disposição, sinto a cabeça confusa que não me responsabilizo pela coerência das minhas palavras. Minha querida Lizzy, eu nem sei o que vou escrever; tenho más notícias para te dar e não posso adiar a sua comunicação. Por mais imprudente que seja o casamento do Sr. Wickham com a nossa pobre Lydia, vivemos agora na ânsia de obter a confirmação de que ele tenha sido realmente realizado, pois existem fortes motivos para acreditar que eles não foram para a Escócia. O coronel chegou aqui ontem, tendo saído de Brighton no dia anterior, poucas horas depois de ter enviado o expresso. Embora o bilhete de Lydia dirigido à Sr.a Forster desse a entender que eles tinham ido para Gretua Green, correu em Brighton que Denny dissera que, na sua opinião, Wickham não tencionava de modo algum ir para a Escócia, nem casar com Lydia. Ao saber disto, o coronel Forster ficou muito alarmado e saiu imediatamente de Brighton, com o intuito de ir no encalço dos fugitivos. Conseguiu descobrir facilmente o caminho que tinham tomado até Clapham, mas a partir dai não havia sinais da sua passagem, pois nesse local tomaram uma diligência e deixaram o carro que os trouxera de Epson. Tudo o que se sabe deles, depois disso, e que foram vistos na estrada para Londres. Não sei o que pensar! Após ter feito todas as indignações possíveis daquele lado, o coronel Forster voltou para o Hertfordshire, detendo-se em todas as encruzilhadas e hospedarias, em Barnet e Hartfield, mas sem qualquer resultado. Ninguém os tinha visto passar. Preocupado, por nossa causa, ele veio atenciosamente a Longbourn e revelou-nos as suas apreensões da forma mais delicada e honrosa para o seu carácter. Tenho uma pena sincera por ele e pela Sr.a Forster, mas ninguém os poderá acusar de nada. A nossa aflição é grande, minha querida Lizzy; os nossos pais acreditam no pior, mas eu não posso crer que ele seja assim tão perverso. É muito possível que Lydia e ele tenham julgado mais conveniente realizar o casamento em segredo, em Londres, e desistido do seu primeiro projecto; e mesmo que ele tenha desígnios tão perversos contra uma rapariga bem relacionada como a Lydia, o que não é provável, não posso crer que Lydia tenha perdido todo o juízo. É impossível! Lamento, no entanto, dizer que o coronel Forster não acredita no casamento. Ele abanou a cabeça quando lhe exprimi as minhas esperanças e disse que temia que Wickham não fosse um homem de confiança. Pobre mãe, ela está realmente abatida e não quer abandonar o quarto. Seria preferível que ela se esforçasse por reagir, mas não é provável. Quanto ao pai, nunca na minha vida o vi tão perturbado. Ele zangou-se muito com a pobre Kitty, por ela ter escondido aquele namoro, mas, como se tratava de um segredo, acho natural essa atitude da parte dela. Alegra-me, querida Lizzy, que algumas destas cenas penosas te tenham sido poupadas, mas agora não posso deixar de te dizer que anseio pelo teu regresso. Não serei, no entanto, egoísta ao ponto de pedir muita pressa, se isso te não convir. Até breve. Tomo novamente a minha pena para fazer o contrário do que acabo de te dizer, mas as coisas estão de tal modo que te suplico que venham todos o mais depressa possível. Conheço os tios muito bem e não receio fazer tal pedido. Aos primeiros terei outro pedido a fazer. O pai vai partir imediatamente para Londres com o coronel Forster, a fim de procurar os fugitivos. Numa circunstância como esta, os conselhos e auxilio de meu tio seriam inestimáveis. Ele compreenderá imediatamente o que eu sinto. Confio na sua bondade.

 

- Oh, onde estará o meu tio? - exclamou Elizabeth, dando um salto da cadeira mal acabara de ler a carta, na sua ansiedade de ir ter com ele sem perda de um minuto; mas, ao chegar à porta, esta foi aberta por um criado e o Sr. Darcy apareceu. A palidez do rosto de Elizabeth e os seus gestos agitados fizeram-no sobressaltar, e, antes que ele pudesse voltar a si e falar, ela, que apenas pensava na situação aflitiva de Lydia, exclamou precipitadamente:

- Sinto muito, mas tenho que deixá-lo. Preciso de encontrar o Sr. Gardiner imediatamente. O assunto é urgente e não tenho um instante a perder.

- Meu Deus, mas que terá acontecido? - exclamou ele, com mais inquietude do que cortesia. Mas, recompondo-se, acrescentou: - Não a deterei um instante, mas deixe que eu próprio vá chamar os Srs. Gardiner ou mande lá um criado. No estado em que está, quem não poderá ir é a menina.

Elizabeth hesitou, mas os joelhos tremiam-lhe tanto que ela compreendeu que não poderia ir muito longe. Chamando o criado, ela encarregou-o de partir imediatamente em busca dos patrões e dizer-lhes que voltassem para casa.

Depois de o criado ter saído, Elizabeth sentou-se, incapaz de se suster nas pernas por mais tempo. O seu estado era tão lamentável que Darcy compreendeu ser-lhe impossível deixá-la; e, num tom doce e apiedado, disse-lhe:

- Deixe que eu chame a sua criada. Quer tomar alguma coisa? Posso oferecer-lhe algum reconstituinte, um copo de vinho? Está indisposta.

- Não, obrigado - replicou ela, procurando dominar-se. - Nada tenho. Sinto-me perfeitamente bem. Estou apenas muito aflita por causa de más notícias que acabo de receber de Longbourn.

Ao aludir tal facto, ela começou a chorar e durante alguns minutos não conseguiu dizer palavra. Darcy, penalizado e aflito, pôde apenas exprimir vagamente a sua preocupação, e observá-la num silêncio de comiseração. Por fim, ela tornou a falar.

- Acabo de receber uma carta de Jane com terríveis notícias. Não é possível escondê-las de ninguém. A minha irmã mais nova abandonou todos os seus parentes... e fugiu; entregou-se a... Wickham. Partiram juntos de Brighton. Conheço-o bem de mais para não ter dúvidas quanto ao resto da história. Ela não tem dinheiro, relações, nada que o possa tentar. Esta perdida para sempre!

Darcy ficou imobilizado de espanto.

- E quando eu penso - acrescentou ela, num tom mais agitado - que eu própria poderia ter evitado isto, eu, que sabia quem ele era, se tivesse apenas revelado à minha própria família uma parte do que vim a saber; se o carácter dele fosse conhecido, nada disto teria acontecido. Mas agora é tarde, demasiado tarde.

- Estou profundamente desgostado - exclamou Darcy, aflito. - Mas isso é certo, absolutamente certo?

- Oh!, sim. Eles saíram de Brighton juntos, sábado à noite, e foram seguidos quase até Londres. Certamente não foram para a Escócia.

- E o que foi feito, que foi tentado para recuperá-la?

- Meu pai seguiu para Londres e Jane escreveu pedindo o auxílio imediato de meu tio. Partiremos, assim o espero, dentro de meia hora. Enquanto isso, nada mais poderá ser feito. Sei muito bem que nada há a fazer. Como obrigar um homem como aquele a proceder correctamente? Como, ao menos, descobrir o seu paradeiro? Não tenho qualquer esperança. É horrível!

Darcy abanou a cabeça, numa silenciosa aquiescência.

- Quando descobri qual era o verdadeiro carácter daquele homem... Oh!, se eu soubesse o que deveria fazer! Mas eu não sabia... tinha medo de ir demasiado longe. Que asneira, meu Deus!

Darcy não respondeu. Ele mal parecia ouvi-la e caminhava de um lado para o outro na sala, em profunda meditação, as sobrancelhas vincadamente franzidas e a expressão sombria. Elizabeth imediatamente compreendeu o que a sua ascendência sobre Darcy não sofreria. Nada poderia resistir a uma tal demonstração de fraqueza da parte de sua família, a tão grande escândalo. Não se surpreendia, nem o condenava. Considerou que ele exercia sobre si mesmo um grande domínio, mas isso não lhe trouxe qualquer consolação; e nunca Elizabeth sentira tão claramente como naquele momento, quando todo o amor era vão, que poderia tê-lo amado.

Mas as considerações pessoais, embora ocorressem, não a absorviam. Lydia, a humilhação e a desgraça que ela estava causando à família dominaram desde logo todos os pensamentos de carácter particular; e, cobrindo o rosto com o lenço, Elizabeth esqueceu tudo o mais. Após uma pausa de vários minutos, a voz do companheiro fê-la voltar à realidade; e no tom daquela voz, se transparecia a piedade, havia também constrangimento:

- Creio que há muito que estará desejando a minha ausência - disse Darcy - e, a não ser a minha simpatia sincera, porém, inútil, nada lhe posso oferecer que justifique a minha presença. Oxalá eu pudesse fazer ou dizer algo que a consolasse; mas não a atormentarei mais, exprimindo os meus vãos desejos e como que solicitando propositadamente a sua gratidão. Receio bem que este infeliz acontecimento impeça minha irmã de a ver hoje à noite em Pemberley.

- Oh, sim, tenha a bondade de apresentar as nossas desculpas à Menina Darcy. Diga-lhe que assuntos urgentes nos obrigam a voltar imediatamente. Esconda a infeliz verdade por tanto tempo quanto puder. Sei que não poderá ser por muito tempo.

Ele assegurou-lhe prontamente que poderia contar com a sua discrição, tornou a exprimir o seu pesar por tão grande aflição, desejou que o caso tivesse uma conclusão mais favorável do que no momento era possível esperar e, deixando cumprimentos para o Sr. e Sr.a Gardiner, com um grave olhar de despedida, apenas, foi-se embora.

Após ele ter abandonado a sala, Elizabeth sentiu que era muito pouco provável que eles jamais se tornassem a encontrar em termos tão cordiais como os que tinham marcado os seus vários encontros no Derbyshire; e, ao lançar um olhar retrospectivo sobre a súmula das suas relações com Darcy, súmula tão prenhe de contradições e surpresas, não pôde deixar de suspirar pela perversidade daqueles sentimentos que agora teriam promovido a sua continuação, quando anteriormente rejubilariam pela sua cessação.

Se a gratidão e a estima são fundamentos suficientes para a afeição, a alteração no sentir de Elizabeth não seria nem improvável nem inadequada. Mas se, pelo contrário, a afeição oriunda de tais motivos é insensata e pouco natural, comparada com aquela que em geral dizem originar-se no próprio instante do encontro e mesmo antes de qualquer palavra ser trocada, nada poderá ser dito em defesa de Elizabeth, a não ser que ela experimentou esse último método com Wickham e que o seu fracasso talvez a autorize a procurar a outra espécie menos interessante de afeição. Seja como for, foi com tristeza que ela o viu partir. E, ao reflectir sobre aquele infeliz acontecimento, encontrou um motivo adicional de angústia por pensar que aquele era apenas um exemplo dos males que a leviandade de Lydia poderia causar. Nem por um só instante, desde que lera a segunda carta de Jane, Elizabeth tivera a esperança de que Wickham tencionasse realmente casar-se com a sua irmã. Ninguém, a não ser Jane, pensou ela, poderia alimentar tais esperanças. A surpresa fora o menos que ela sentira naquela ocasião. Ao lembrar-se do conteúdo da primeira carta, ela surpreendia-se enormemente que Wickham pretendesse alguma vez casar com aquela rapariga sem meios de fortuna ou que Lydia estivesse sequer apaixonada por ele. Mas agora achava tudo perfeitamente natural. Numa aventura daquelas, ela teria encontrado o encanto suficiente; e, embora Elizabeth não supusesse que Lydia consentisse deliberadamente numa fuga sem intenção de casamento, tinha razões para acreditar que nem a virtude nem o entendimento da irmã a preservariam de se tornar numa presa fácil.

Enquanto o destacamento permanecera no Hertfordshire, nunca ela dera por que Lydia manifestasse qualquer preferência por Wickham; mas tinha, porém, a consciência perfeita de que Lydia se apegaria a quem quer que a encorajasse. Entre os oficiais, ela mudava constantemente de favorito, conforme as atenções de que eles a rodeavam. Os seus entusiasmos sofriam continuas flutuações, mas nunca sem motivo; e só agora Elizabeth compreendia o erro que houvera em confiar demasiado numa rapariga daquela índole. E de que maneira ela o sentia!

Elizabeth ansiava por se achar em sua casa, para ver, ouvir e compartilhar com Jane os cuidados que numa situação destas deveriam cair sobre ela, numa família tão desorganizada, com o pai ausente e a mãe incapaz de um esforço e exigindo constantes atenções; e, embora praticamente persuadida de que nada poderia ser feito por Lydia, a interferência de seu tio parecia-lhe ser da maior importância, e a sua impaciência tornou-se intolerável enquanto não o viu entrar na sala. O Sr. e a Sr.a Gardiner tinham regressado apressadamente, alarmados, supondo, pela versão do criado, que a sua sobrinha tivesse adoecido subitamente. Após tranquilizá-los sobre esse ponto, Elizabeth não perdeu tempo em revelar-lhes a verdadeira causa de tudo aquilo. Leu as duas cartas em voz alta e insistiu no post-scriptum da última com trémula veemência, embora Lydia nunca tivesse sido a favorita de seus tios. O Sr. e a Sr.a Gardiner mostra-ram-se profundamente afectados, e não apenas por causa de Lydia. E. após as primeiras exclamações de surpresa e de horror, o Sr. Gardiner prontamente se pôs à disposição, prometendo fazer tudo o que lhe fosse possível. Elizabeth, embora nunca duvidando de tal atitude da sua parte, agradeceu-lhe com lágrimas de gratidão; e, como todos os três viviam na mesma tensão, os pormenores relativos à viagem foram rapidamente combinados.

Resolveram partir naquele mesmo instante.

- Mas que faremos com respeito a Pemberley? - exclamou a Sr.a Gardiner. - John disse-nos que o Sr. Darcy se encontrava aqui quando nos mandaste chamar. É verdade?

- Sim, e eu disse-lhe que não contasse connosco. Por esse lado, está «tudo» resolvido.

«Está tudo resolvido!», repetiu a outra de si para si, enquanto corria para o quarto a fim de se preparar. «Será que eles estão em termos tais que ela lhe possa revelar toda a verdade? Oh!, como eu desejaria sabê-lo!

Mas eram desejos vãos: ou, pelo menos, apenas serviriam para distraí-la da pressa e confusão da hora que se seguiu. E, se Elizabeth tivesse tido tempo para entregar-se a si e aos seus pensamentos mais íntimos, nunca encontraria igual distracção, pois o seu desespero não o permitiria. Ela também tinha muito em que se ocupar; e, entre outras coisas, precisava de escrever bilhetes para todos os seus amigos em Lambton, apresentando desculpas pela partida tão repentina. Dentro de uma hora tudo estava pronto; e como, entretanto, o Sr. Gardiner tratara da conta da hospedaria, nada lhes restava fazer senão partir; e Elizabeth, depois de todas as aflições da manhã, encontrou-se, mais cedo do que esperava, instalada na carruagem e a caminho de Longbourn.

 

- Estive reflectindo novamente no caso, Elizabeth - disse o tio, quando já se afastavam da cidade -; e, pensando bem, sinto-me mais inclinado a encarar as coisas como a tua irmã mais velha. Parece-me muito pouco provável que qualquer rapaz possa formar um desígnio desses contra uma rapariga que não é de forma alguma desprotegida nem carece de relações, e que, além disso, se encontrava a residir com a família do coronel do próprio destacamento. Por tudo isto me inclino a acreditar no melhor. Poderia ele supor que os amigos dela não interviriam a seu favor? Poderia ele esperar ser novamente aceite pelo destacamento depois de uma tal afronta ao coronel Forster? O risco seria maior do que a tentação.

- Pensa realmente assim? - exclamou Elizabeth, subitamente esperançada.

- Dou-te a minha palavra de honra que também eu começo a ser da opinião do teu tio - disse a Sr.a Gardiner. - Um tal acto representa tão grande violação da decência, da honra e do bom senso que não considero Wickham capaz de praticá-lo. E tu, Lizzy, será que mudaste tanto a respeito de Wickham que o julgues agora capaz disso?

- Não o julgo capaz de descuidar os seus próprios interesses, mas, quanto ao resto, ponho as minhas dúvidas. Se, ao menos, eu pudesse acreditar no que acabam de me dizer! Mas não ouso esperar. Se tudo isso é verdade, por que não foram eles para a Escócia?

- Em primeiro lugar - replicou o Sr. Gardiner - não temos provas concludentes de que eles não tenham ido para a Escócia.

- Oh!, mas o facto de eles terem tomado uma diligência indica claramente qual a sua intenção; e, além do mais, não encontraram sinais da sua passagem na estrada de Barnett.

- Bom, supondo que eles estejam em Londres; poderão ter ido lá apenas para se esconder. Não é provável que algum deles tenha dinheiro suficiente e é justo que tenham achado mais económico casarem em Londres do que na Escócia.

- Mas, então, porquê todo este mistério? Por que se escondem eles? Por que razão desejam casar secretamente? Oh!, não, isso não é verdade! O mais íntimo amigo de Wickham, como puderam ver pela carta de Jane, está persuadido de que ele nunca teve a intenção de casar com ela. Wickham nunca se casará com uma mulher que não tenha meios de fortuna. Ele não poderá sustentá-la. E que atractivos possui Lydia, para além da frescura da sua mocidade, para que ele renuncie por sua causa a um casamento rico? Quanto à ofensa aos brios de um regimento que esse atentado contra a honra de uma rapariga possa produzir, não sei até que ponto isso lhe terá trazido qualquer hesitação, assim como também não sei quais as consequências de tal acto. Mas, quanto à sua outra objecção, não creio que ela tenha muito peso. Lydia não tem irmãos que a possam defender; e Wickham, que conhece meu pai, terá julgado que, com a sua indolência e a pouca atenção que ele parece dar à família, ele pouco faria e pensaria o menos possível no assunto.

- Mas pensas tu que Lydia está tão perdidamente apaixonada por ele que consinta em viver com um homem sem serem casados?

- Tudo o indica, e é bem triste - respondeu Elizabeth, com lágrimas nos olhos - ter de pôr em dúvida o senso da decência e da virtude de uma irmã! Mas, realmente, eu não sei o que dizer. Talvez eu esteja sendo injusta; mas Lydia é muito jovem e inexperiente, nunca lhe ensinaram a pensar em coisas sérias. Durante os últimos seis meses, ou, melhor, durante todo o ano, ela não fez mais do que divertir-se e dar largas à sua vaidade. Deram-lhe toda a liberdade para dispor do seu tempo da maneira mais frívola e inútil e de adoptar as opiniões de todos os que encontrava. Desde que o destacamento miliciano foi para Meryton, ela não pensou noutra coisa senão em namorar os oficiais. Ela fez tudo o que estava em seu poder para, pensando ou falando sobre o assunto, dar maior... corno direi?... susceptibilidade aos seus senti-mentos, já por natureza facilmente inflamáveis. E, como sabemos, a Wickham não lhe faltam qualidades para cativar uma mulher.

- Mas como podes ver - disse-lhe a tia -, Jane não o julga capaz de tal procedimento.

- Mas haverá alguém de quem Jane possa alguma vez pensar mal? E qual a pessoa que ela alguma vez consideraria capaz de tal procedimento, quaisquer que fossem os seus antecedentes, até o facto ter sido confirmado? Mas Jane conhece esse Wickham tão bem como eu. Ambas sabemos que se trata de um dissoluto em todos os sentidos da palavra; que ele não tem integridade nem honra; e que ele é tão falso e perigoso como insinuante.

- E sabes realmente tudo isso? - exclamou a Sr.a Gardiner, curiosa.

- Sim, sei-o - replicou Elizabeth, corando. - Já no outro dia os pus a par da sua infame conduta para com o Sr. Darcy. E a própria tia, quando esteve em Longbourn da última vez, ouviu em que termos ele falou de um homem que se mostrou tão generoso para com ele. Existem ainda outras circunstâncias que não vale a pena mencionar. Mas as mentiras dele a respeito da família de Pemberley são inumeráveis. Pelo que ele me disse da Menina Darcy, julgava ir encontrar nela uma rapariga orgulhosa, fechada e desagradável. No entanto, ele sabia a verdade. Ele deve saber que, pelo contrário, ela é amável e modesta.

- Mas Lydia nada sabe de tudo isto? Será que ela ignora o que tu e Jane parecem compreender tão bem?

- Oh!, sim, e é isso que me amargura! Até ir para o Kent e conhecer mais intimamente tanto o Sr. Darcy como o coronel Fitzwilliam, seu primo, eu pró-pria ignorava toda a verdade. Ao voltar para casa, soube que o destacamento deixaria Meryton dentro de quinze dias, e, visto isso, nem eu nem Jane, a quem contei todo o caso, julgámos necessário tornar pública a nossa descoberta, pois pensámos que a ninguém aproveitaria destruir a boa reputação de que ele gozava na vizinhança. E, mesmo quando ficou decidido que Lydia iria com a Sr.a Forster, nunca me ocorreu a necessidade de abrir os seus olhos quanto ao carácter de Wickham. Não conjecturei, nem por um instante, que ela corresse o risco de ser iludida; e, naturalmente, nem de longe imaginava que pudesse sobrevir tal consequência.

- E, quando partiram todos para Brighton, não tinhas motivos para supor, então, que eles gostassem um do outro?

- Nem sombra deles. Não me lembro do menor sintoma de afeição, tanto de um lado como do outro. E, se algo de semelhante houvesse entre eles, a tia bem sabe que a nossa família não deixaria de dar por isso. Quando ele apareceu, Lydia estava tão disposta a admirá-lo como, aliás, todas as raparigas das redondezas, que durante uns dois meses tiveram a cabeça perdida por ele. Mas Wickham nunca distinguiu Lydia com qualquer atenção particular, e, após um curto período de desvairado entusiasmo, ela voltou de novo a sua atenção para os outros oficiais.

Facilmente se compreenderá que, durante toda a viagem, conquanto nenhum facto novo os viesse esclarecer acerca dos seus temores, esperanças e conjecturas, nenhum outro tópico tenha podido desviá-los por muito tempo daquele interessante assunto. Elizabeth pensava nele continuamente; e a mais aguda de todas as angústias, o remorso, a impedia de encontrar um só minuto de paz.

Viajaram o mais velozmente possível; e, tendo dormido uma noite no caminho, chegaram a Longbourn no dia seguinte, à hora do jantar. Era um consolo para Elizabeth saber que, pelo menos, Jane não teria de esperar muito tempo. Quando a carruagem entrou no jardim e se aproximou da porta de casa, todos os pequenos Gardiners, atraídos pelo rumor, se vieram colocar nos degraus da escada; e, quando o carro finalmente parou, a alegria transpareceu nas suas caritas e fê-los dar pulos e piruetas de contentes.

Elizabeth apeou-se de um salto, e, após ter dado a cada um rápido beijo, correu para o vestíbulo, onde se encontrou com Jane, que momentos antes se encontrava no quarto da mãe e tinha descido precipitadamente as escadas. Abraçaram-se ternamente e com os olhos marejados de lágrimas. Elizabeth, sem perda de tempo, perguntou-lhe se já sabiam alguma coisa dos fugitivos.

- Ainda não - replicou Jane -, mas agora, que o nosso tio veio, espero que tudo corra melhor.

- O nosso pai está em Londres?

- Está. Foi para lá na terça-feira, conforme te escrevi.

- Já receberam notícias dele?

- Sim, escreveu uma vez. Escreveu-me umas linhas na quarta-feira, dizendo que tinha chegado bem e dando a sua morada, como eu lhe tinha pedido. Acrescentava também que não tornaria a escrever enquanto não tivesse alguma coisa de positivo a comunicar.

- E a mãe, como está ela? Como estão todos?

- A mãe está razoavelmente bem, embora muito deprimida. Ela está lá em cima e terá um prazer imenso em vê-los a todos. Não saiu ainda do quarto. Mary e Kitty, graças a Deus, estão bem.

- E tu, minha querida, como estás? - exclamou Elizabeth. - Pareces pálida! Que momentos difíceis não terás passado!

Jane, no entanto, era categórica em afirmar que se sentia perfeitamente bem. O diálogo foi interrompido pela entrada do Sr. e da Sr.a Gardiner, que até àquele momento tinham estado com as crianças. Jane correu para os tios e abraçou-os, agradecendo a ambos, entre sorrisos e lágrimas.

Quando entraram para a sala, as perguntas que Elizabeth já tinha feito foram naturalmente repetidas pelos outros; mas logo se inteiraram de que Jane nada tinha de novo para lhes dizer. No entanto, devido ao seu caracter indulgente, Jane não perdera ainda todas as esperanças. Ela ainda acreditava que tudo acabasse em bem e que numa das manhãs próximas chegaria uma carta, de Lydia ou de seu pai, explicando o procedimento dos fugitivos e anunciando, talvez, o seu casamento.

Em seguida, subiram todos ao quarto da Sr.a Bennet, que os recebeu exactamente como era de esperar. Com lágrimas, lamentações, invectivas contra a conduta infame de Wickham e queixas pelos padecimentos que lhe estavam infligindo, ela atirava as culpas para todos, esquecendo-se que fora ela própria, com a sua insensata indulgência, a principal causadora do que acontecera à filha.

- Se me tivessem feito a vontade - dizia ela -, se eu tivesse ido também para Brighton, com toda a família, nada disto teria acontecido. Mas a minha pobre Lydia não tinha ninguém que tomasse conta dela. Por que é que os Forster não olharam mais por ela? Estou certa de que houve um grande descuido da parte deles, pois Lydia nunca faria tal coisa se tivesse alguém a olhar por ela. Sempre pensei que eles nunca serviriam para tomar conta da minha filha. Mas, como sempre, ninguém quis ouvir a minha opinião. Minha pobre filhinha... e o Sr Bennet, lá foi. Sei que ele se vai bater em duelo com Wickham e decerto será morto. Que vai ser de nós, então? Os Collins expulsar-nos-ão daqui antes de o corpo ter tido sequer tempo para esfriar. E, se não fores tu, meu irmão, não sei o que será.

Todos protestaram contra ideias tão sinistras; e o Sr. Gardiner, após tranquilizá-la quanto à afeição que sentia por ela e pela sua família, disse tencionar partir para Londres no dia seguinte, a fim de prestar o auxílio devido ao Sr. Bennet nas suas tentativas para encontrar Lydia.

- Não te entregues a receios exagerados - acrescentou ele.

- Embora seja acertado uma pessoa preparar-se para o pior, não há motivo para considerá-lo uma certeza. Ainda não há uma semana que saíram de Brighton. Dentro de poucos dias deveremos receber notícias deles; e, até que tenhamos a confirmação absoluta de que não estão casados e de que não têm a intenção de casar, não podemos considerar tudo perdido. Mal chegue a Londres vou ter com o teu marido e levá-lo-ei comigo para a Rua Gracechurch; e aí combinaremos o que deve ser feito.

- Oh, meu querido irmão - replicou a Sr.a Bennet -, é exactamente isso o que eu mais desejo. E, quando chegares a Londres, faz tudo para encontrares a minha filha, onde quer que ela esteja. E, se eles não estiverem casados, faz que se casem. Quanto ao enxoval, diz-lhes que não precisam de esperar. Diz a Lydia que ela terá todo o dinheiro que quiser para o comprar depois de se casar. E, sobretudo, não deixes o Sr. Bennet brigar com o Sr. Wickham. Conta-lhe em que estado me vieste encontrar, que estou terrivelmente assustada, e tenho tremores por todo o corpo, horríveis dores no lado, na cabeça e tantas palpitações que não posso descansar nem de dia nem de noite. E diz à minha querida Lydia que nada decida sobre as roupas até ter falado comigo, pois ela não conhece as melhores lojas. Oh!, meu querido irmão, que bom que és! Estou certa de que arranjarás tudo!

O Sr. Gardiner, embora lhe assegurasse que faria todos os esforços possíveis, não pôde deixar de lhe recomendar moderação, tanto nas suas esperanças como nos seus receios; e após terem-na reconfortado até à hora do jantar, deixaram-na entregue aos cuidados da governanta, que a servia na ausência das filhas.

Embora o Sr. e a Sr.a Gardiner estivessem persuadidos de que não havia motivo para tal reclusão, preferiram não se opor, pois sabiam que ela não tinha prudência suficiente para se abster de proferir algo diante dos criados. Era preferível, portanto, que a governanta apenas, aquela em quem mais confia-vam, ficasse sabendo de todas as suas mágoas e temores.

Na sala de jantar, Mary e Kitty, que até àquele momento se tinham conservado nos seus respectivos quartos e não haviam ainda aparecido, juntaram-se finalmente ao resto da família. Uma vinha dos seus livros e a outra do toucador. Os seus rostos, no entanto, aparentavam grande calma. Apenas Kitty se mostrava mais quezilenta do que o costume, mas não se percebia se seria por causa da perda da irmã ou da raiva que sentia por se ver envolvida no acontecimento. Quanto a Mary, o domínio sobre si mesma era perfeito; e, com uma expressão muito séria, sussurrou a Elizabeth, pouco depois de se sentar à mesa:

- É um acontecimento deveras desagradável; e provavelmente será muito comentado. Mas nós devemo-nos opor à maré da maledicência e derramar sobre os nossos corações feridos o bálsamo do consolo fraternal.

Em seguida, vendo que Elizabeth não estava disposta a responder, acres-centou:

- Por mais infeliz que Lydia possa vir a ser, poderemos de tudo isto extrair uma útil lição: que a perda da virtude numa mulher é irreversível; que um só passo em falso acarreta uma série de desgraças sem fim; que a sua reputação não é menos frágil que a sua beleza; e que uma mulher nunca será cautelosa de mais para com as pessoas do sexo oposto, especialmente para com aquelas que não merecem a sua confiança.

Elizabeth ergueu os olhos, atónita, mas sentia-se oprimida de mais para responder. Mary, contudo, continuou consolando-se, extraindo máximas morais da infelicidade de sua irmã.

Durante a tarde, as duas mais velhas lograram ficar meia hora sozinhas; e Elizabeth imediatamente aproveitou a oportunidade para pedir a Jane que lhe contasse todos os pormenores do sucedido. Jane estava igualmente ansiosa por conversar com a irmã sobre o assunto. Começaram por lamentar as terríveis consequências daquele facto, consequências essas que Elizabeth considerava extremamente graves. Jane não podia afirmar que os prognósticos de sua irmã fossem de todo impossíveis. Em seguida, Elizabeth prosseguiu no assunto, dizendo:

- Conta-me tudo o que ainda não sei. Dá-me outros detalhes. Que diz o coronel Forster? Desconfiaram alguma coisa antes da fuga, decerto. Tê-los-ão visto os dois frequentemente juntos.

- O coronel Forster, de facto, confessou que muitas vezes desconfiara de que havia algo, especialmente da parte de Lydia, mas que nunca nada se passou que lhe inspirasse alarme. Tenho muita pena dele. Mostrou-se extremamente bom e atencioso. Desde logo resolveu vir até cá para nos comunicar as suas preocupações, mesmo antes de saber que eles não tinham ido para a Escócia. Os rumores que começaram a circular apressaram a sua partida.

- E Denny estava convencido de que Wickham não pretendia casar? Sabia que eles planeavam fugir? O coronel Forster falou com Denny pessoalmente?

- Falou; mas, ao ser interrogado pelo coronel, Denny negou saber qualquer coisa a respeito do plano deles. Não quis dar a sua verdadeira opinião e não tornou a repetir que estava convencido de que eles não se casariam. Por tudo isto, alimento uma certa esperança de que ele não tenha medido as palavras que anteriormente proferira.

- E, até o coronel Forster chegar, nenhuma de vocês suspeitou que eles não tivessem realmente casados?

- Como é que tal ideia nos poderia passar pela cabeça? Eu senti-me um pouco temerosa quanto à felicidade de minha irmã com aquele casamento, pois sabia que o comportamento dele nem sempre fora dos melhores. O pai e a mãe nada sabiam a respeito dos antecedentes do rapaz e sentiam apenas que aquele casamento era imprudente. Kitty então confessou, triunfante, que sabia mais do que nós, pois Lydia, na sua última carta, deixara entrever as suas intenções. Deu a entender que há muitas semanas que ela já sabia que os dois estavam apaixonados.

- Mas sabia disso antes de eles partirem para Brighton?

- Não, creio que não.

- E o coronel Forster mostrou que desconfiava de Wickham? Ele conhece o seu verdadeiro carácter?

- Devo confessar que ele não falou tão bem de Wickham como anterior-mente o fizera. Disse que o considerava imprudente e extravagante. E, desde que este infeliz acontecimento teve lugar, soube-se que ele saiu de Meryton muito endividado; mas espero que isto seja falso.

- Oh, Jane, se nós não tivéssemos sido tão discretas, se tivéssemos dito o que sabíamos a respeito dele, nada disto teria acontecido!

- Talvez tivesse sido melhor - replicou Jane -, mas não me parecia justo denunciar os erros passados de uma pessoa sem saber quais os seus senti-mentos naquele momento. Agimos com a melhor das intenções.

- E o coronel Forster sabia os termos da carta de Lydia para sua mulher?

- Ele trouxe-a consigo.

Jane tirou então a carta do bolso e estendeu-a a Elizabeth. O seu conteúdo era o seguinte:

 

               Minha querida Harriet:

Rirás quando souberes que fugi, e eu não posso deixar de rir também ao pensar na tua surpresa quando amanhã de manhã deres pela minha falta. Vou para Gretna Green; e, se não adivinhas com quem, és uma tola. Só existe um homem no mundo que eu amo, e ele é um anjo. Nunca poderia ser feliz sem ele, por isso não vejo mal em partir. Escusas de escrever para Longbourn a comunicar a minha partida, se não te apetecer, pois isso tornará apenas maior a surpresa quando eu própria lhes escrever e assinar o meu nome: Lydia Wickham. Há-de ser uma boa piada. Quase não consigo escrever, de tanto rir. Transmite as minhas desculpas a Pratt por não poder cumprir a minha palavra e dançar com ele hoje à noite. Diz-lhe que espero que ele me perdoe quando souber o motivo e que terei o maior prazer em dançar com ele no próximo baile em que nos encontrarmos. Mandarei buscar as minhas roupas quando chegar a Longbourn; mas gostaria que dissesses à Sally para coser o enorme rasgão do meu vestido de mousseline, antes de guardar tudo na mala. Até breve. Cumprimentos ao coronel Forster. Espero que bebam à nossa saúde, desejando-nos uma boa viagem.

                     Tua amiga afectuosa, Lydia Bennet.

 

- Oh! Que cabeça oca a tua, Lydia! - exclamou Elizabeth, depois de ler a carta. - Escrever uma carta destas num tal momento! Pelo menos, mostra que as suas intenções eram sérias. Não sei se ele depois a persuadiu a fazer outra coisa, mas, pelo menos da parte dela, a infâmia não foi premeditada. Pobre pai, como ele não deve ter sofrido!

- Nunca vi ninguém tão abalado. Durante dez minutos não conseguiu dizer palavra. A mãe adoeceu imediatamente e toda a casa ficou em alvoroço e confusão!

- Oh, Jane - exclamou Elizabeth -, terá havido algum criado nesta casa que, ate ao fim do dia, não ficasse ao par de toda a história?

- Não sei, mas espero que sim. Mas numa ocasião destas é muito difícil ser-se discreta. A nossa mãe ficou histérica; e, embora eu procurasse auxiliá-la da melhor forma, creio que não fiz tanto quanto devia ter feito! Mas o horror do que poderia acontecer quase me privou do uso das minhas faculdades.

- Os teus cuidados para com ela exigiram muito de ti. Não te encontro tão bem de saúde. Gostaria de ter estado a teu lado. Tiveste de suportar tudo sozinha.

- Mary e Kitty mostraram-se muito prestáveis, e estou certa de que fariam o possível por me ajudar, mas achei que não convinha a nenhuma delas. Kitty é muito sensível e Mary estuda tanto que as suas horas de repouso não devem ser interrompidas. A tia Philips apareceu cá na terça-feira, após a partida do pai, e teve a bondade de ficar até quinta comigo. O seu auxílio foi-nos precioso. Lady Lucas também tem sido muito delicada. Veio até aqui, pelos seus próprios meios, na quarta-feira de manhã, para nos acompanhar na nossa mágoa e oferecer os seus serviços e os de qualquer uma das suas filhas, caso necessitássemos.

- Seria melhor que ela tivesse ficado em casa - exclamou Elizabeth -, talvez a intenção fosse boa, mas numa situação como esta deve-se procurar os vizinhos o menos possível. Qualquer auxílio é impossível. As condolências são insuportáveis. Que elas triunfem sobre nós à distância e se dêem por satisfeitas.

Elizabeth quis saber, então, quais os planos do pai para a recuperação de Lydia.

- Creio que ele tencionava ir a Epsom, local onde os fugitivos mudaram de cavalos pela última vez, para falar com os postilhões e ver se poderia obter deles qualquer informação. O seu principal objectivo era descobrir o número da diligência tomada por eles e que os trouxe de Clapham. Ela acabara de chegar de Londres e é possível que alguém tenha reparado neles, pelo menos o passageiro que lá vinha e que foi depositado antes de os outros subirem. Ele ia tentar descobrir esse passageiro e saber qual o posto e o número do coche. Não sei se o pai tem outros projectos em mente. Ele estava com tanta pressa em partir, tão inquieto e deprimido, que foi com grande dificuldade que lhe consegui extrair o que acabo de te dizer.

 

Todos esperavam receber, no dia seguinte, uma carta do Sr. Bennet, mas o correio chegou sem trazer quaisquer notícias dele. A família sabia que, em circunstâncias normais, ele era um correspondente negligente e desinteressado, mas, num momento daqueles, sempre esperavam que ele fizesse um esforço. Foram obrigados, portanto, a concluir que ele nada tinha de positivo a comunicar, mas apesar disso, gostariam de ter uma certeza. O Sr. Gardiner esperara pela carta, e, como esta não viesse, partiu sem demora.

Com a sua partida, teriam, pelo menos, a certeza de receber informações mais frequentes do que se ia passando; e, ao despedir-se, o Sr. Gardiner prometeu insistir com o Sr. Bennet para que ele voltasse a Longbourn, o que muito consolou a irmã, pois ela via nesse regresso a única possibilidade de o seu marido escapar de ser morto em duelo. A Sr.a Gardiner e as crianças deveriam permanecer no Hertfordshire durante mais alguns dias, pois achava ela que a sua presença poderia ser de alguma utilidade para as suas sobrinhas. Ela ajudava-as junto da Sr.a Bennet, o que lhes permitia gozar de algumas horas de liberdade. A sua outra tia também aparecia com frequência, e sempre, como dizia, com o propósito de lhes infundir coragem e confiança, embora nunca chegasse sem trazer um novo exemplo da extravagância e da leviandade de Wickham, e raramente partia sem as deixar mais desanimadas do que quando chegara.

Meryton em peso parecia esforçar-se por denegrir o homem que três meses antes fora quase como um anjo de bondade. Diziam que ele devia dinheiro a todos os comerciantes da localidade e que as suas aventuras,. todas designadas por «seduções», se tinham estendido às famílias dos vários comer-ciantes. Todos eram unanimes em declarar que ele era o homem mais perverso do mundo e todos começaram a descobrir que sempre haviam desconfiado dele, apesar da sua aparência de distinção. Elizabeth, embora só desse crédito a metade do que diziam, achava aquilo suficiente para tornar ainda mais acertados os seus antigos prognósticos quanto à desgraça da sua irmã. E até a própria Jane, que acreditava ainda menos do que Elizabeth nas coisas que se diziam, perdeu quase todas as esperanças, sobretudo porque chegara agora a altura de receber notícias ou cartas deles, caso tivessem ido para a Escócia, coisa de que nunca desesperara inteiramente.

O Sr. Gardiner deixara Longbourn no domingo. Na terça-feira a mulher recebeu uma carta dele. Contava ele que tinha imediatamente encontrado o cunhado e que o convencera a ir instalar-se na Rua Gracechurch. Que o Sr. Bennet já estivera em Epsom e Clapham, mas que nada tinha sabido de concreto; e que ele estava agora decidido a fazer indagações em todos os principais hotéis da cidade, pois achava possível que eles se tivessem instalado em algum após a sua chegada a Londres e antes de procurar novas acomodações. O Sr. Gardiner, pessoalmente, não tinha muita fé no êxito de tal plano, mas, como o Sr. Bennet insistira nele, estava resolvido a ajudá-lo. Acrescentava que de momento o Sr. Bennet não estava disposto a deixar Londres e prometia escrever de novo muito em breve. Havia ainda um post-scriptum que dizia o seguinte:

 

Escrevi igualmente para o coronel Forster, pedindo-lhe que indagasse, se possível, entre os amigos mais íntimos de Wickham, no destacamento, se este teria quaisquer parentes ou relações que pudessem saber em que parte da cidade ele se encontra. Se acaso entre essas pessoas houvesse alguém de quem se pudesse, com alguma probabilidade, obter tal informação, isso teria uma importância talvez capital. De momento, nada temos para nos guiar. Estou certo de que o coronel Forster tudo fará para nos ajudar, mas, em última análise, talvez Lizzy, melhor do que ninguém, saiba se ele tem parentes vivos.

 

Elizabeth imediatamente compreendeu de onde provinha aquela deferência pela sua autoridade no assunto, mas, infelizmente, não possuía informações que a justificassem.

Nunca ouvira dizer que ele tivesse quaisquer parentes, além do pai e da mãe, e ambos já haviam falecido há muitos anos. Era possível, no entanto, que alguns dos seus companheiros do regimento pudessem dar informações mais substanciais; e, embora não alimentasse grandes esperanças a esse respeito, tal medida não era de desdenhar.

Cada dia em Longbourn era agora um dia de ansiedade; mas o momento mais angustioso era o da chegada do correio. Eram esperadas cartas todas as manhãs, com a maior impaciência; e cada dia que passava aguardavam notícias importantes.

Porém, antes de tornarem a receber notícias do Sr. Gardiner, chegou uma carta para o Sr. Bennet da parte do Sr. Collins; e, como Jane recebera instruções para abrir toda a correspondência dirigida a seu pai na sua ausência, ela leu a carta. Elizabeth, que sabia como as cartas do Sr. Collins eram curiosas e singulares, debruçou-se sobre a irmã e leu também. Dizia o seguinte:

 

                 Meu caro senhor:

Sou chamado, pelo nosso parentesco e pela minha situação na vida, a apresentar-lhe as minhas condolências pela grande aflição por que está passando e da qual fomos ontem informados por uma carta do Hertfordshire. Fique certo, meu caro senhor, de que tanto eu como a Sr.a Collins os acompanhamos a todos sinceramente no vosso actual sofrimento, que deve ser dos mais dolorosos, pois provem de uma causa que jamais algum tempo poderá remover. Não faltarão argumentos da minha parte para lhe aliviar tão grande infelicidade ou trazer-lhe qualquer conforto num transe destes, que, entre todos, será o mais duro para o coração de um pai. A morte da sua filha seria uma bênção, em comparação com o que lhe sucede agora. E tudo isto é ainda mais de lamentar quando sabemos existirem razões para supor, como a minha Charlotte me informou, que esta licenciosidade de conduta da parte de sua filha se deve a uma excessiva e culposa indulgência; embora, para seu consolo e da Sr.a Bennet, me sinta inclinado a acreditar na perversidade inata das tendências de sua filha, ou nunca ela teria perpetrado tio grande crime com tão pouca idade. Seja como for, o senhor merece toda a nossa compaixão, no que sou acompanhado não só pela Sr.a Collins, como também pela Lady Catherine e sua filha, que eu pus ao corrente de tudo o que se passava. Todas concordaram comigo quanto às minhas apreensões de que este mau passo de uma das suas filhas será prejudicial para o futuro de todas as outras. Na verdade, quem, como Lady Catherine, ela própria, condescende em dizer, se quererá relacionar com tal família? E tal consideração me leva a reflectir, com satisfação crescente, num certo acontecimento do mês de Novembro passado, pois de outro modo encontrar-me-ia envolvido em todas essas tristezas e desgraças. Permita-me, pois, que o aconselhe, meu caro senhor, a consolar-se a si próprio o mais que puder, a expulsar para sempre a sua filha indigna da sua afeição e deixá-la colher os frutos do seu odioso crime.

                               Sou, meu caro senhor, etc.

 

O Sr. Gardiner não voltou a escrever senão quando recebeu uma resposta do coronel Forster; e, quando o fez, nada tinha de agradável a comunicar. Não se sabia de um só parente com quem Wickham mantivesse relações e era certo que ele não tinha nenhum parente próximo ainda vivo. Contava com numerosos conhecimentos, mas, desde que entrara para a milícia, parecia não manter relações com qualquer deles. Não havia ninguém, portanto, a quem se pudessem dirigir e obter informações sobre o seu paradeiro. No estado precário das suas finanças, o casal tinha um motivo poderoso para a sua reclusão, além do medo de Wickham em ser descoberto pelos parentes de Lydia. Foram informados de que ele tinha contraído grandes dívidas ao jogo e o coronel Forster acreditava que seriam precisas mais de mil libras para cobrir todas as despesas que o oficial deixara em Brighton por pagar. Devia muito na cidade, mas as suas dívidas de honra eram ainda maiores. O Sr. Gardiner não procurou esconder quaisquer detalhes da família de Longbourn. Jane ouviu-os com horror.

- Um jogador! - exclamou ela. - Isso não esperava eu.

O Sr. Gardiner acrescentava ainda na sua carta que podiam contar com o regresso do Sr. Bennet no dia seguinte, um sábado. Abatido pelo insucesso dos seus esforços, acabara por se render às persuasões do cunhado para que voltasse para junto da sua família e deixasse a seu cargo tudo o que lhe parecesse aconselhável para a continuação das pesquisas. Ao ser informada do facto, a Sr.a Bennet não exprimiu a satisfação que as filhas esperavam, dada a ansiedade que ela manifestara pela vida do marido.

- O quê? - ela exclamou. - Ele volta sem me trazer a nossa Lydia? Decerto que o Sr. Bennet não vai abandonar Londres antes de ter encontrado os fugitivos. Quem, na ausência dele, irá brigar com Wickham e forçá-lo a casar-se com ela?

Como a Sr.a Gardiner começasse a sentir saudades de sua casa, ficou combinado que ela e as crianças voltariam para Londres no dia da chegada do Sr. Bennet; e, de acordo com o plano, a carruagem que os levou até metade do caminho trouxe na volta o Sr. Bennet para Longbourn.

A Sr.a Gardiner partiu, tão perplexa a respeito de Elizabeth e do seu singular amigo como viera, desde o Derbyshire. O seu nome não fora mencionado pela sobrinha uma vez sequer na presença deles; e a vaga esperança acalentada pela Sr.a Gardiner de que Elizabeth em breve recebesse uma carta dele não fora correspondida. Elizabeth nada recebera até então proveniente de Pemberley.

Os actuais dissabores vividos na família tornavam desnecessária qualquer outra desculpa para a depressão de Elizabeth; nada, portanto, havia a conjecturar fundamentado «nisso», embora Elizabeth, que actualmente conhecia relativamente bem os seus sentimentos, tivesse a noção perfeita de que, não tivesse ela encontrado de novo o Sr. Darcy, teria suportado melhor a mágoa pela infâmia de Lydia. Poupar-lhe-ia, pensava ela, uma noite de sono em cada dois dias.

Quando o Sr. Bennet chegou, conservava a aparência da sua habitual serenidade filosófica. Falou muito pouco, como também era seu hábito. Não mencionou o assunto que o levara a Londres e só passado muito tempo as suas filhas tiveram coragem de se referir a tal.

Apenas da parte da tarde, à hora do chá, é que Elizabeth se aventurou a falar sobre o assunto. Começou por se condoer das aflições por que o pai passara, ao que o pai lhe respondeu:

- Não falemos mais nisso. Quem deveria sofrer, senão eu mesmo? Foi tudo por minha culpa, sou obrigado a reconhecê-lo.

- Não deve ser severo de mais para consigo próprio - replicou Elizabeth.

- Por mais que me previnas contra esse erro, a natureza humana tem uma grande tendência a cair nele. Não, Lizzy, deixa que, pelo menos, uma vez na vida eu sinta o peso da minha responsabilidade. Não receio ser esmagado pela impressão Tudo isto não tardará a passar.

- Acha que eles se encontram em Londres?

- Decerto, pois em que outro local poderiam eles esconder-se?

- E Lydia sempre desejou ir para Londres - acrescentou Kitty.

- Então, deve estar muito feliz - disse o pai, secamente -; e, provavelmente, residirá aí durante algum tempo.

Em seguida, após um curto silêncio, continuou:

- Lizzy, não te guardo rancor pelo conselho que me deste no mês de Maio passado; em vista do que aconteceu, demonstra bem a tua capacidade.

Foram interrompidos pela Menina Bennet, que vinha buscar o chá da sua mãe.

- Ora aí está uma atitude - exclamou ele - que conforta uma pessoa; dá um toque de elegância ao infortúnio. Um dia destes farei o mesmo. Recolherei à minha biblioteca, de touca e camisa de dormir, e darei aos outros o maior trabalho possível, ou talvez aguarde até Kitty fugir também.

- Eu não vou fugir, pai - disse Kitty, inquieta. - Se me tivessem deixado ir para Brighton, ter-me-ia comportado melhor do que Lydia.

- Tu, ires a Brighton! Não te deixarei ir nem a Eastborn, que fica aqui ao lado. Nem por cinquenta libras. Não, Kitty, pelo menos aprendi a ser prudente, e tu irás sentir os seus efeitos. Nenhum oficial entrará jamais, daqui para o futuro, em minha casa, nem que esteja só de passagem pela localidade. Os bailes ser-te-ão absolutamente proibidos, a não ser que permaneças o tempo todo junto de uma das tuas irmãs. E nunca passarás por esta porta sem primeiro provares que passas diariamente dez minutos de forma sensata.

Kitty, que levava todas aquelas ameaças a sério, pôs-se a chorar.

- Bom, bom - disse ele -, não fiques triste, se te portares bem durante os próximos dez anos, talvez te leve a ver uma parada militar.

 

Dois dias depois da chegada do Sr. Bennet, Jane e Elizabeth encontravam-se passeando no pequeno bosque nas traseiras da casa, quando viram a governanta caminhando na sua direcção e, concluindo que vinha a mandado da Sr.a Bennet para as chamar, foram ao seu encontro. Mas, em vez da ordem esperada, apenas chegada, a governanta disse para a Menina Bennet:

- Perdoem-me interrompê-las, meninas, mas, como pensei que tivessem recebido boas notícias da capital, tomei a liberdade de lhes vir perguntar.

- Que dizes, minha boa Hill? Nada soubemos ainda da capital.

- Minha querida menina - exclamou a Sr.a Hill, espantada -; não sabe, então, que chegou um expresso da parte do Sr. Gardiner para o patrão? Ele já aqui está há meia hora e trouxe uma carta para o Sr. Bennet.

As raparigas não perderam tempo a responder e partiram a correr. Atravessaram a sala de entrada, a pequena saleta e entraram na biblioteca mas não encontraram o pai. Preparavam-se para subir e ir procurá-lo ao quarto da mãe, quando o mordomo se lhes dirigiu è lhes disse:

- Se procuram o patrão, ele dirigiu-se agora mesmo para o bosque.

Tendo recebido esta informação, as raparigas tornaram a passar pelo vestíbulo e atravessaram o relvado em busca do pai, que se dirigia para um dos pequenos bosques que havia de um dos lados do jardim.

Jane, que não era tão leve nem tinha tanta prática de exercício, ficou para trás, enquanto a sua irmã alcançava o Sr. Bennet e exclamava, quase sem fôlego:

- Oh, pai, diga depressa quais as notícias? Que diz o tio?

- Acabo de receber uma carta dele pelo expresso.

- E que notícias traz, boas ou más?

- Que é que se pode esperar de bom? - disse ele, extraindo a carta do bolso. - Mas talvez a queiras ler.

Elizabeth pegou na carta, ansiosa, enquanto Jane se aproximava.

- Lê em voz alta - disse o Sr. Bennet -; pois ainda não percebi bem do que se trata.

 

           Rua Gracechurch, segunda-feira, 2 de Agosto

         Caro cunhado:

Finalmente, tenho notícias da minha sobrinha para lhe enviar; notícias que, no seu conjunto, julgo não deixarem de lhe agradar. Pouco após a sua partida, no sábado, tive a felicidade de descobrir em que parte de Londres o casal se encontrava. Quanto aos detalhes, deixo-os para quando de novo nos encontrarmos. De momento, basta saber que os descobri e que estive com ambos.

 

- Então, tudo se passou como eu o esperava - exclamou Jane -; eles estão casados!

Elizabeth continuou:

 

... estive com ambos. Eles não estão casados, nem encontrei neles a menor intenção de o fazer. Porém, se o senhor estiver disposto a cumprir com aquilo que eu tomei a liberdade de aceitar em seu nome, espero que em breve se casarão. Tudo o que lhe exigem é que assegure a esta sua filha parte das cinco mil libras destinadas a ser repartidas por todas após a sua morte e de sua mulher. Além disso, comprometer-se-á, em vida, a dar à sua filha a quantia de cem libras por ano. E são estas as condições que não hesitei em aceitar, sentindo-me autorizado a fazê-lo. Enviar-lhe-ei esta minha comunicação por expresso, para que a sua resposta me chegue sem perda de tempo. Facilmente compreenderá, por tudo o que aqui lhe digo, que a situação do Sr. Wickham não é tão desesperada como se supunha. Quanto a isso, os rumores que corriam eram falsos; e alegra-me dizer que, sem considerarmos o dote de Lydia, ele ainda disporá, após pagas todas as dividas, de um pouco de dinheiro para a sua instalação. Apenas necessito que delegue em mim plenos poderes para agir em seu nome, do que eu não duvido, e imediatamente darei instruções a Haggerston para preparar um contrato. Não vejo qualquer vantagem em voltar de novo a Londres, por isso o aconselho a ficar tranquilamente em Longbourn e conte com toda a minha colaboração e diligência. Responda-me logo que possível e tenha cuidado de escrever claramente. Achámos preferível, minha mulher e eu, que a nossa sobrinha casasse em nossa casa, o que decerto terá a sua aprovação. Ela vem hoje para junto de nós. Voltarei a escrever-lhe, assim que houver algo de novo a participar-lhe.

                                     Seu, etc. Edw. Gardiner.

 

- Será possível!? - exclamou Elizabeth, assim que terminou a carta. - Será possível que ele case com ela?

- Wickham não é, então, tão ruim como pensávamos - disse Jane. - Meu pai, aceite os meus parabéns.

- Já respondeu à carta? - perguntou Elizabeth.

- Não; mas devo fazê-lo imediatamente.

Elizabeth suplicou-lhe, então, que não perdesse mais tempo.

- Oh, pai - exclamou ela -, volte para casa e escreva-a sem demora! Pense na importância que cada momento tem num caso destes.

- Eu própria lhe escrevo a carta - disse Jane -, se tal tarefa lhe desagrada.

- Desagrada-me muito - replicou ele -, mas precisa de ser feita.

E, dizendo isto, ele virou-se e voltou com as filhas para casa.

- E posso saber qual é a resposta? - perguntou Elizabeth. - Suponho que os termos devam ser aceites.

- Aceites? Só tenho vergonha de que ele peça tão pouco.

- E eles devem casar-se! Contudo, Wickham é tão ruim.

- Sim, sim, é preciso que eles se casem. Não há outra alternativa. Porém, há duas coisas que eu desejaria saber: uma delas, que quantia o vosso tio não pagou para conseguir tudo isto; e a outra, como poderei eu reembolsá-lo.

- Que quantia? O nosso tio? Que quer dizer com isso? - exclamou Jane.

- Quero dizer que nenhum homem, no seu juízo perfeito, se casaria com Lydia recebendo em troca uma compensação tão pequena. Cem libras anuais durante a minha vida e cinquenta depois de eu morrer!

- É verdade - disse Elizabeth. - Não me tinha ocorrido isso antes. Depois das dívidas a pagar, diz ele que ainda sobra dinheiro. Deve ter sido o nosso tio quem arranjou tudo isso. Como ele é generoso e bom! Receio que ele se vá ressentir disso. O dinheiro que gastou não deve ter sido pouco.

- Não - disse o Sr. Bennet -, Wickham seria um idiota se aceitasse entrar no negócio com menos de dez mil libras. De outro modo, custar-me-ia ter tão má opinião dele logo no começo das nossas relações.

- Dez mil libras! Valha-nos Deus. Como poderemos alguma vez pagar tal soma.

O Sr. Bennet não respondeu; e todos, mergulhados nas suas reflexões, continuaram em silêncio até chegarem a casa. O Sr. Bennet dirigiu-se então para a biblioteca, a fim de escrever ao cunhado, e as filhas foram para a saleta.

- Então, eles sempre se casam! - exclamou Elizabeth, quando se encontrou a sós com Jane. - Como tudo isto é estranho! E, ainda por cima, temos de nos dar por muito felizes! E dar graças a Deus que assim aconteça, embora sejam diminutas as possibilidades de Lydia em ser feliz e Wickham tenha um carácter tão ruim. Oh!, Lydia!

- Eu consolo-me pensando que decerto ele não se casaria se não tivesse afeição por Lydia - replicou Jane. - Embora acredite que o nosso tio tenha feito alguma coisa por isso, não me parece que tenha rondado sequer as dez mil libras. Ele tem muitos filhos, além de outras preocupações possíveis. Como poderia ele dispor dessas dez mil libras?

- Se nos fosse possível saber quais as dívidas de Wickham - disse Elizabeth - e com quanto ele dotou a nossa irmã, saberia exactamente o que o Sr. Gardiner fez por eles, pois Wickham não tem um tostão de seu. A bondade dos nossos tios é uma coisa que nunca poderá ser paga. O facto de eles a terem levado para sua casa e lhe terem dado a sua protecção e apoio moral é um sacrifício que anos de gratidão não poderão compensar. Neste momento ela está em casa deles; e, se tamanha bondade não lhe der a consciência da falta que praticou, é que ela não merece nunca ser feliz! Imagina a cara dela, quando se vir na frente da nossa tia!

- Devemos esforçarmo-nos para esquecer tudo o que se passou - disse Jane. - Confio e espero que eles sejam felizes. Estou em crer que o facto de ele consentir em casar com ela é uma prova de que ganhou um pouco de juízo. A afeição que nutrem um pelo outro lhes dará a estabilidade. E eu tenho a esperança de que eles em breve se estabeleçam na sua nova vida e procedam de forma tão ajuizada, que, com o tempo, a sua imprudência acabe por ser esquecida.

- O comportamento deles foi de tal ordem - replicou Elizabeth - que nem tu, nem eu, nem ninguém, poderá jamais esquecê-lo. É inútil falarmos nisso.

Nesse momento, ocorreu-lhes que talvez sua mãe permanecesse ainda na ignorância de tudo o que se passava. Dirigiram-se, pois, à biblioteca, e perguntaram ao pai se não desejava que elas lhe transmitissem a notícia. Ele encontrava-se escrevendo e, sem levantar a cabeça, respondeu friamente:

- Como queiram.

- Poderemos levar-lhe a carta do tio e ler-lha?

- Levem a que quiserem e deixem-me.

Elizabeth pegou na carta de cima da mesa e as irmãs subiram juntas. Mary e Kitty encontravam-se ambas junto da mãe. A mesma comunicação serviria, portanto, para todas. Após uma breve preparação para as notícias que traziam, a carta foi lida em voz alta. A Sr.a Bennet não pôde conter os seus sentimentos.

Assim que Jane leu o trecho em que o Sr. Gardiner falava na esperança de os ver em breve casados, a Sr.a Bennet deu livre curso a toda a sua alegria, e cada frase subsequente a tornava mais expansiva. A sua alegria manifestou-se tão ruidosa e violenta como anteriormente as suas apreensões e desespero. Bastava-lhe saber que a sua filha se casaria; não a atormentava qualquer receio quanto à felicidade da filha, nem tão-pouco a lembrança da sua falta.

- Oh!, minha querida Lydia! - exclamou ela. - Isso é realmente maravi-lhoso! Ela vai-se casar! E eu tornarei a vê-la! Ela casa-se com dezasseis anos! Meu querido e generoso irmão! Eu sabia que o conseguirias e que acabarias por tudo arranjar! Que saudades tenho dela!... e do meu querido Wickham também! Mas os vestidos, o enxoval! Vou deste pé escrever à minha cunhada Gardiner para que trate de tudo isso. Lizzy, meu amor, corre lá a baixo e pergunta ao teu pai de quanto ele dispõe para o enxoval de Lydia. Não, espera, eu mesma o farei! Toca a campainha, Kitty, para chamar a Hill. Vou-me vestir a correr. Oh!, minha querida Lydia! Que alegria, quando nos virmos todos juntos outra vez!

Jane procurou refrear a violência de tais expansões, lembrando sua mãe o que deviam ao Sr. Gardiner pelo que ele tinha feito.

- Devemos, em grande parte, atribuir a feliz conclusão desta história à bondade do nosso tio - acrescentou Jane. - Estamos convencidas de que ele se empenhou para auxiliar pecuniariamente o Sr. Wickham.

- Pois sim - exclamou a Sr.a Bennet -, mas quem o havia de fazer, senão o vosso próprio tio? Se ele não tivesse família, todo o dinheiro dele viria para nós, bem sabes; e é a primeira vez que recebemos alguma coisa dele, a não ser um presente ou outro de vez em quando. Oh!, como me sinto feliz! Em breve terei uma filha casada! Sr.a Wickham! Que bem que soa... e fez apenas dezasseis anos em Junho passado. Minha querida Jane estou tão nervosa que creio bem não conseguir escrever; eu dito e tu escreves por mim. Mais tarde combinaremos com o teu pai a respeito do dinheiro. Mas é preciso encomendar as coisas imediatamente.

A Sr.a Bennet começou desde logo a fazer uma lista de todas as peças de tecido estampado, mousseline e cambraia, e teria feito dentro em pouco uma grande encomenda se Jane não a tivesse persuadido, com alguma dificuldade, a aguardar até poder consultar o marido. Um dia de atraso, observou ela, não teria qualquer importância; e a Sr.a Bennet sentia-se feliz de mais para se mostrar tão obstinada como de costume. Outros planos vieram ocupar o seu pensamento.

- Logo que me vista, irei a Meryton dar as boas novas à minha irmã Philips; e, na volta, passarei pela casa de Lady Lucas e da Sr.a Long. Kitty, corre lá a baixo e pede a carruagem. Um pouco de ar far-me-á muito bem. Meninas, desejam que eu lhes traga alguma coisa de Meryton? Oh!, aí vem Hill! Minha querida Hill, já sabes da novidade? A Menina Lydia vai-se casar. Terás de preparar um jarro de punch para o casamento.

A Sr.a Hill exprimiu imediatamente a sua alegria. Elizabeth, entre outras, recebeu os seus parabéns e, cansada de tanta loucura, foi-se refugiar no seu quarto, para poder reflectir em paz.

Pobre Lydia, a sua situação seria, apesar de tudo, bastante ruim; mas ainda teria de dar graças por não ser pior. E, embora assim pensasse, não via para a irmã grandes possibilidades de uma vida feliz e próspera; mas, recordando-se dos momentos de aflição e de todos os seus receios de há duas horas apenas, ela sentiu o grande passo em frente que tinham dado.

 

O Sr. Bennet por várias vezes se arrependera de ter gasto todo o seu rendimento e não tomar as devidas precauções para garantir o futuro da sua mulher e filhas. Agora, mais do que nunca, se arrependia de não o ter feito. Lydia estava em divida para com o seu tio, não só em dinheiro, como em honra e bom nome; quando só a ele caberia a satisfação de obrigar um dos mais inúteis rapazes da Grã-Bretanha a casar com a filha.

Preocupava-o seriamente que uma coisa, questão poucas vantagens oferecia para qualquer, tivesse sido conseguida unicamente as expensas do seu cunhado, e resolveu, caso fosse possível, averiguar a importância exacta do seu auxilio e arranjar maneira de saldar a dívida tão breve quanto possível.

A princípio, quando se casara, o Sr. Bennet julgara perfeitamente útil economizar, pois teria naturalmente um filho. Esse filho teria todo o direito aos seus bens, e desse modo veria garantido o futuro da viúva e dos filhos menores. Cinco filhas, sucessivamente, vieram ao mundo, mas o filho ainda estava para vir. Muitos anos após o nascimento de Lydia a Sr.a Bennet acreditava ainda no filho. Por fim, teve de renunciar a tal esperança, mas nessa altura já era tarde de mais para poupar. A Sr.a Bennet não tinha feitio para economizar e só a moderação do marido os impedia de exceder o rendimento.

Segundo o contrato de casamento, cinco mil libras seriam deixadas para a Sr.a Bennet e seus filhos; mas a partilha deveria ser feita de acordo com a vontade dos pais. Em vista do que acontecera a Lydia, tal ponto deveria agora ser definido, e o Sr. Bennet não hesitava em aceitar os termos da proposta que lhe tinha sido feita. Em termos precisos, mas cordiais, ele exprimiu a sua gratidão pela bondade do cunhado. Em seguida declarou a sua plena aprovação a tudo o que tinha sido feito e a sua aceitação dos compromissos que o Sr. Gardiner aceitara em seu nome. Nunca supusera que fosse possível convencer Wickham a casar com a sua filha em termos tão convenientes. As cem libras que deveria pagar anualmente não representavam um déficit real de mais de dez libras; quando, além do mais, a tanto choruda mesada de que Lydia dispunha, assim como os belos presentes em dinheiro que continuamente lhe chegavam às mãos por intermédio da Sr.a Bennet, cobririam grande parte das despesas que Lydia pudesse fazer.

A outra surpresa agradável, considerava ele, fora a facilidade com que tudo se compusera sem lhe dar qualquer trabalho. O seu desejo era, agora, pensar o menos possível no assunto. O ímpeto com que se lançara na persegui-ção de sua filha fora apenas fruto momentâneo da sua cólera. Cessada esta, o Sr. Bennet recaiu na sua indolência habitual. A carta fora desde logo despachada, pois, embora lento na elaboração dos seus projectos, ele era rápido na sua execução. Pedia ao Sr. Gardiner que lhe desse uma relação detalhada das suas despesas, mas nada mandava dizer a Lydia, pois ainda estava ressentido com ela.

As boas notícias em breve se propagaram por toda a casa e pela vizinhança. Esta acolheu-as filosoficamente. Decerto teria sido mais interessante se a própria Menina Lydia tivesse regressado, ou a mandassem em reclusão para alguma propriedade distante, mas o casamento já era tópico suficiente para mexericos. As velhas invejosas de Meryton continuaram a enviar os seus votos de felicidade com o mesmo secreto contentamento com que anteriormente exprimiam as suas condolências, pois, embora a situação tivesse mudado, com um tal marido, a desgraça de Lydia era considerada como certa.

A Sr.a Bennet, que passara quinze dias sem sair do quarto, naquele grande dia tornou a ocupar o seu lugar à cabeceira da mesa. A sua satisfação era extrema. Nenhum sentimento de vergonha atenuava o seu triunfo. Desde que Jane completara os seus quinze anos de idade, o seu maior desejo fora ver uma das suas filhas casadas; e, agora, esse mesmo desejo estava a ponto de se reali-zar. Todos os seus pensamentos giravam em torno dos preparativos para um casamento no melhor estilo, tais como as mousselines finas, novas carruagens e criados. Procurava lembrar-se de uma casa nas redondezas que servisse para sua filha e, desconhecendo quais as verdadeiras possibilidades do casal, recusava muitas as que lhe sugeriam por considerá-las modestas e acanhadas de mais. «Haye-Park talvez servisse», dizia ela, «se os Gouldings consentirem em sair. E aquela casa grande em Stoke também daria. É pena é ter a sala de visitas um pouco pequena de mais. Ashworth é muito distante; não a quero ter tão longe de mim mais de dez milhas, no máximo. Quanto à casa de Pulvis, as mansardas são horríveis.»

O Sr. Bennet deixou-a falar sem interrupção, enquanto havia criados próximo; mas, quando estes saíram, disse:

- Sr.a Bennet, antes que tome alguma dessas casas, ou todas elas, para sua filha, considero indispensável chegarmos desde já a um acordo sobre tal assun-to. Saiba que há, pelo menos, «uma» casa em que eles não serão admitidos. Não pretendo encorajar a imprudência de ambos ao recebê-los em Longbourn.

A tal declaração seguiu-se uma longa polémica; mas o Sr. Bennet mostrou-se firme. O assunto em breve os conduziu a outro, e a Sr.a Bennet descobriu, com espanto e horror, que o seu marido não estava disposto a adiantar um só tostão para as despesas do enxoval. Declarou, intransigente, que não seria ele quem, por ocasião do casamento da filha, lhe daria o menor sinal da sua estima. A Sr.a Bennet recusava-se a compreender e a aceitar tal atitude. Achava impos-sível que ele levasse o seu ressentimento a ponto de recusar à filha um dos privilégios sem o qual o casamento dela parecer-lhe-ia quase que inválido. A Sr.a Bennet era muito mais sensível à vergonha de ter casado a sua filha sem roupas novas do que à desonra causada pela sua fuga e pelo facto de ter vivido quinze dias com Wickham sem ser casada.

Elizabeth mais do que nunca se arrependeu por se ter deixado levar pela aflição do momento e ter revelado ao Sr. Darcy os seus anseios quanto ao futuro da irmã; pois, com o casamento em breve realizado, talvez tivessem podido esconder tão vergonhoso facto de todos aqueles que não estavam directamente relacionados com a família.

Ela não receava que o caso se espalhasse por intermédio dele. Havia, actualmente, poucas pessoas em cuja discrição ela tivesse maior confiança; mas, em contrapartida, não havia ninguém cujo conhecimento da leviandade da irmã a mortificasse tanto. Não era que temesse qualquer desvantagem para si própria, pois, de qualquer modo, parecia haver um abismo intransponível entre eles. Mesmo que o casamento de Lydia tivesse sido levado a cabo da forma mais respeitável, não era crível que o Sr. Darcy insistisse em relacionar-se com uma família contra a qual tinha tantas objecções e às quais se vinha juntar uma outra, a de um parentesco íntimo com o homem que ele tão justamente desprezava.

Não era, pois, de estranhar que ele hesitasse. O desejo de obter a consideração de Elizabeth, desejo por ele tão declaradamente manifestado no Derbyshire, nunca sobreviveria a tal golpe. Elizabeth sentia-se humilhada e ferida. Tinha remorsos, mas não sabia bem de quê. Ansiava pela estima dele, quando acreditava não poder jamais gozar dela. Gostada de ter notícias suas, e não tinha a menor esperança de que ele lhe escrevesse. e agora, que não via quaisquer possibilidades de encontrá-lo, estava convencida de que poderia ter sido feliz com ele.

Que triunfo para ele, pensava ela, se ele pudesse saber que as propostas que há quatro meses atrás ela tão orgulhosamente recusara seriam recebidas agora com alegria e gratidão. Ele era generoso, disso Elizabeth não tinha a menor dúvida. Havia, mesmo, poucos homens mais generosos. Mas, para não sentir triunfo numa ocasião como esta, era preciso que não fosse humano.

Elizabeth começou a compreender, então, que o Sr. Darcy era o homem que mais lhe convinha, tanto pelo seu temperamento como pelas suas qualidades. O seu génio, embora o oposto do seu, vinha ao encontro dos seus desejos. Tal união apenas resultaria vantajosa para ambos. A espontaneidade e naturalidade de Elizabeth contribuiriam para suavizar o seu espirito e melhorar também as suas maneiras. Ele, por seu lado, teria um beneficio ainda maior a receber com a segurança do seu julgamento e a sua experiência do mundo.

Porém, nunca tal casamento se realizaria, expoente máximo da felicidade conjugal; e, em seu lugar, união bem diferente estava em vias de se formar no seio da sua família.

Não imaginava como Lydia e Wickham se arranjariam para subsistir numa independência relativa; contudo, para um casal que se tinha unido por paixões mais fortes do que a sua virtude, eram diminutas as possibilidades de uma felicidade duradoura.

Em breve o Sr. Gardiner tornou a escrever ao cunhado. Aos pedidos do Sr. Bennet, ele apenas respondeu que estava sempre disposto a dar do seu melhor para o bem de qualquer membro da família e concluiu rogando que não se mencionasse mais o assunto. A principal finalidade da sua carta era anunciar que o Sr. Wickham decidira sair da milícia.

Desejaria muito que ele o fizesse assim que o casamento fosse marcado (acrescentava ele). E creio que concordará comigo, em como esse passo é desejável, tanto para ele como para a minha sobrinha. O Sr. Wickham tenciona entrar no exército regular; e alguns dos seus antigos amigos estão dispostos a apoiá-lo. Prometeram-lhe um posto de tenente no regimento do general, actual-mente aquartelado no Norte. Há toda a vantagem em que ele permaneça longe daqui. Ele parece cheio de boas intenções e espero que, uma vez entre pessoas estranhas, ambos se mostrarão prudentes e procurarão salvar as aparências. Escrevi ao coronel Forster, informando-o da nossa actual situação e pedindo-lhe que tranquilize os vários credores de Wickham em Brighton e arredores, com promessas de rápido pagamento, assumi tal compromisso. Peço-lhe que faça o mesmo com os credores dele em Meryton, dos quais lhe envio a lista, de acordo com as informações do Sr. Wickham. Ele confessou todas as suas dividas, e espero que, ao menos, não nos tenha enganado. Haggertons já recebeu as nossas instruções e tudo ficará pronto dentro de uma semana. Eles partirão logo de seguida para a sede do regimento, a não ser que o senhor os convide primeiro a ir a Longbourn. A Sr.a Gardiner participou-me que a sobrinha ansiava por os ver a todos, antes de partir para o Norte. Ela encontra-se bem e pede-me que lhes envie, a ambos, toda a sua afeição. Seu, etc. E. Gardiner.

 

O Sr. Bennet e as filhas compreenderam, tão bem como o Sr. Gardiner, quais as vantagens da saída do Sr. Wickham do regimento da milícia; mas a Sr.a Bennet é que não se conformava com a ideia. Lydia iria morar para o Norte, exactamente quando ela teria todo o prazer e orgulho da sua companhia, pois não desistira nem por um só instante do seu plano de instalar a filha no Hertfordshire. O seu desapontamento foi grande. Além disso, era uma pena que Lydia fosse afastada de um local onde ela tinha tantas relações.

- Lydia simpatizava tanto com a Sr.a Forster! - dizia ela. - É uma pena mandá-la para tão longe. Além disso, havia tantos rapazes que ela apreciava. Os oficiais do regimento do general podem não ser tão amáveis.

A insinuação do Sr. Gardiner poderia ser tomada como um pedido formal para que Lydia tornasse a ser admitida entre os seus antes da sua partida para o Norte. A princípio, o Sr. Bennet mostrou-se intransigente a tal pedido, mas Jane e Elizabeth, que comungavam das mesmas ideias, eram da opinião de que, para o bem de sua irmã, não lhe deveria ser negado o apoio dos pais. Fizeram o seu pedido de modo tão insistente, e ao mesmo tempo com tanta doçura, que conseguiram demover o pai e obter dele a permissão para que eles visitassem Longbourn logo após o seu casamento. Quanto à Sr.a Bennet, era com satisfação que encarava aquela oportunidade de exibir nas redondezas a sua filha casada, antes do seu exílio no Norte. O Sr. Bennet escreveu, então, ao seu cunhado, participando-lhe a sua anuência ao pedido. Elizabeth, contudo, não pôde deixar de se surpreender por Wickham ter concordado com o plano; e, se ela tivesse consultado apenas o seu coração, um encontro com ele seda a última coisa no mundo que ela própria desejada.

 

O dia do casamento chegou finalmente; e Jane e Elizabeth sentiram-se mais comovidas do que a própria Lydia. A carruagem foi enviada ao encontro dos noivos, que eram esperados para jantar. Jane e Elizabeth viam com apreensão a hora da chegada; e Jane especialmente, que atribuía a Lydia os sentimentos que ela sentiria em situação idêntica, afligia-se com a ideia do que a irmã iria sofrer.

Chegaram. A família encontrava-se reunida na saleta para os receber. A Sr.a Bennet desfez-se em sorrisos, assim que a carruagem parou à porta; o marido conservava uma expressão grave e impenetrável; e as filhas estavam alarmadas, ansiosas e inquietas.

Ouviram a voz de Lydia no vestíbulo; a porta foi aberta com violência, e ela entrou a correr na sala. A sua mãe adiantou-se e abraçou-a com grandes demonstrações de alegria. Sorrindo afectuosamente, ela estendeu a mão a Wickham, desejando felicidades a ambos com uma alacridade que demonstrava bem que ela não duvidava nem um minuto da realização do seu desejo.

O Sr. Bennet recebeu-os muito menos cordialmente. O seu rosto tornou-se ainda mais grave e mal abriu a boca. A atitude despreocupada do jovem casal era realmente uma provocação. Elizabeth ficou irritada e a própria Jane sentiu consternação. Lydia continuava a mesma; imprudente, indomável, louca, ruidosa e temerária. Falou a cada uma das irmãs exigindo-lhes os parabéns, e, depois de todos se sentarem, pôs-se a olhar à sua volta com curiosidade, notando as pequenas alterações que tinham sido introduzidas naquela sala; depois observou, com uma risada, que há muito tempo que dali partira.

Wickham não se mostrava mais embaraçado do que ela, mas os seus modos eram sempre tão agradáveis que, se o seu carácter fosse sem mancha e o casamento tivesse sido realizado com todo o preceito, os seus sorrisos e atitudes teriam conquistado toda a família. Elizabeth nunca o supusera capaz de um tal cinismo: mas ela sentou-se, resolvendo no seu íntimo nunca mais estabelecer limites à imprudência de um homem sem escrúpulos. Ela corou e Jane também, mas os rostos daqueles que lhes causaram tal perturbação mantinham-se inalteráveis na sua cor.

A conversa era incessante. A noiva e a mãe competiam em exuberância; e Wickham, que se encontrava perto de Elizabeth, começou a perguntar pelos conhecidos na vizinhança, com uma tranquilidade bem-humorada que ela sentiu jamais poder imprimir nas suas respostas. Tanto Wickham como a esposa apenas pareciam ter lembranças agradáveis na sua vida. Nenhum facto passado era lembrado com amargura. Ela própria mencionava assuntos, a que suas irmãs por coisa alguma no mundo aludiriam.

- Imaginem, faz já três meses que me fui embora , exclamou Lydia. - Não me parecem mais do que quinze dias. E, no entanto, tantas coisas aconteceram. Meu Deus! Quando daqui parti, quem me diria que havia de voltar casada! Mas pensei que seda engraçado se o fizesse.

O Sr. Bennet ergueu os olhos, Jane ficou aflita e Elizabeth olhou significati-vamente para Lydia; esta, porém, continuou, como se não desse por nada:

- Oh, mãe, as pessoas daqui dos arredores sabem que me casei hoje? Receei que eles não soubessem. No caminho cruzámo-nos com William Goulding na sua charrette, e, para que o ficasse sabendo, baixei o vidro, tirei a luva e apoiei a mão no rebordo da janela, para que ele visse bem a minha aliança. Só então o cumprimentei, e não pude conter por mais tempo o meu riso.

Elizabeth achou que tudo aquilo passava dos limites. Levantou-se, saiu e só voltou quando os ouviu passarem para a sala de jantar. Quando se lhes foi juntar chegou ainda a tempo de ver Lydia, que, com uma expressão de ansie-dade, se aproximara do lugar à direita da mãe e, dirigindo-se à sua irmã mais velha, lhe dizia:

- Ah, Jane, esse lugar pertence-me agora por direito. Sou a mais importante, dada a minha situação de mulher casada.

Não era suposto que a solenidade daquela hora desse a Lydia o constran-gimento que até àquele instante não demonstrara. Pelo contrário, o seu à-vontade e boa disposição pareciam aumentar. Ansiava por voltar a ver a Sr.a Philips, a família Lucas e todos os outros vizinhos e ouvi-los designá-la por «Sr.a Wickham»; e, enquanto isso não acontecia, foi, logo após o jantar, mostrar a aliança à Sr.a Hill e às criadas.

- Bem, mãezinha - disse ela, quando voltou à sala -, que acha do meu marido? Não é um homem encantador? Estou certa de que todas as minhas irmãs me invejam. Só lhes desejo tanta sorte como a minha. Precisam todas de ir a Bdghton. É o sitio ideal para se arranjar um marido. Que pena, mãe, não termos ido todas!

- É verdade, se me tivessem dado ouvidos, teríamos ido. Mas minha querida Lydia, não gosto nada que vás para tão longe. Será mesmo necessário?

- Oh, mas claro! Não vejo mal nenhum nisso. Até gosto muito. Os pais e as manas só terão de nos ir visitar. Passaremos em New Castle todo o Inverno. Bailes não faltarão e eu arranjarei par para todas as que forem.

- Adoraria poder ir! - disse a mãe.

- E depois, quando regressassem, poderiam deixar comigo uma ou duas das minhas irmãs. Garanto-lhes que arranjada maridos para todas elas antes do fim do Inverno.

- Agradeço, pela parte que me toca - disse Elizabeth -, mas não aprecio a tua maneira de arranjar maridos.

Os visitantes não poderiam demorar mais de dez dias. O Sr. Wickham fora nomeado antes de sair de Londres e apenas lhe haviam concedido quinze dias para se reunir ao seu regimento.

Com a excepção da Sr.a Bennet, ninguém mais lamentou que eles se demorassem tão pouco; e esse tempo foi por ela aproveitado da melhor forma possível, fazendo visitas com a sua filha e recebendo frequentemente em sua casa. Tais reuniões vinham ao encontro do desejo de todos; pois escapar ao círculo da família era ainda mais desejável para aqueles que pensavam do que para aqueles que não o faziam.

A afeição de Wickham por Lydia manifestava-se exactamente como Elizabeth o supunha: inferior à que Lydia tinha por ele. Mesmo que não lhe tivesse sido dada a oportunidade de observá-los, chegaria à conclusão lógica de que a fuga se devera mais à paixão dela do que ao interesse dele. E, se não fosse a certeza de que ele tinha fugido porque a sua situação no local se tornara insuportável, Elizabeth surpreender-se-ia pelo facto de Wickham ter raptado a sua irmã sem sentir por ela uma paixão violenta. Como as coisas realmente se passaram, ele não resistira à oportunidade de ter uma companheira para a sua viagem.

Lydia gostava imensamente de Wickham. Ele continuava a ser o seu querido Wickham. Ninguém podia competir com ele no seu coração; e, segundo ela, ele fazia tudo melhor do que ninguém. Certa manhã, pouco depois da sua chegada, encontrando-se sentada junto das duas irmãs mais velhas, Lydia disse para Elizabeth:

- Lizzy, ainda não te contei como foi o nosso casamento. Não estavas presente quando descrevi tudo à mãe e às outras. Não sentes curiosidade em saber como tudo isto se passou?

- Não, para te dizer a verdade - replicou Elizabeth -, e penso que quanto menos se falar no assunto tanto melhor.

- Ora, és tão esquisita! Mas vou-te contar como tudo aconteceu. Como deves saber, casamo-nos na Igreja de St. Clement, pois Wickham pertence àquela paróquia. Combinámos encontrarmo-nos lá às onze horas. Os meus tios e eu iríamos juntos; e os outros encontrar-nos-iam na igreja. Bom, chegou segunda-feira de manhã, e eu estava numa aflição que nem imaginas! Receava que acontecesse algo que viesse adiar o casamento. Teria ficado desesperada! Enquanto me vestia, a nossa tia não parava de falar, como se me estivesse a pregar um sermão. Quase não entendi palavra, pois, como deves calcular, só pensava no meu querido Wickham. Estava doida por saber se ele poria a casaca azul. Bom, tomamos o pequeno-almoço às dez, como de costume. Pensei que nunca mais teria fim; e, a propósito, os tios foram horrivelmente severos para comigo durante todo o tempo que estive com eles. Imagina que não me deixa-ram sair de casa uma só vez, durante os quinze dias que ali passei. Nem uma festa, nem uma reunião, nada! De facto, Londres encontrava-se praticamente deserta, mas o Little Theatre estava aberto. Bem, quando a carruagem chegou, o meu tio foi detido ainda por alguns instantes para tratar de quaisquer negócios com aquele horrível Sr. Stone; e, como deves saber, quando ele se põe a falar de negócios, nunca mais pára. Eu estava tão assustada que não sabia o que havia de fazer, pois era o tio quem me servida de padrinho, e, se não estivéssemos lá a horas, seriamos obrigados a deixar o casamento para o dia seguinte. Mas, felizmente, passados dez minutos, ele voltou e partimos todos. Nessa altura, porém, lembrei-me de que, se acaso ele não pudesse ter ido, seria o Sr. Darcy quem o substituiria.

- O Sr. Darcy? - repetiu Elizabeth com um espanto ilimitado.

- Sim, ele tinha ficado de ir com Wickham. Oh, meu Deus, que estou eu para aqui a dizer! Esqueci-me completamente! Nunca deveria ter mencionado tal coisa! Prometi que não o faria! Que é que Wickham não vai dizer? Era segredo!

- Se era segredo - disse Jane -, então não digas mais nada. Tranquiliza-te que nada te perguntaremos.

- Decerto - disse Elizabeth, ardendo em curiosidade. - Nada te perguntaremos.

- Obrigada - disse Lydia -, pois se vocês me perguntassem, eu acabada por tudo lhes contar. E depois Wickham ficaria muito zangado comigo.

Para resistir à tentação, Elizabeth foi obrigada a fugir.

Mas era-lhe impossível viver na ignorância daquele detalhe; ou, pelo menos, era-lhe impossível não tentar informar-se. O Sr. Darcy assistira ao casamento da sua irmã, e nada lhe parecia mais inverosímil e inacreditável. As conjecturas mais loucas atravessaram o seu espirito, sem que nenhuma delas a satisfizesse. As explicações que mais lhe agradavam, e justamente aquelas que o colocavam sob uma luz mais nobre, pareciam-lhe as menos prováveis. Não poderia suportar tal incerteza; e, tomando uma folha de papel, escreveu apressadamente uma curta missiva dirigida a sua tia, pedindo a explicação para o facto a que Lydia aludira, caso não fosse segredo.

«Como deve compreender», acrescentava ela, «tenho curiosidade em saber por que razão uma pessoa que não tem relações com qualquer uma de nós e é quase um estranho à nossa família, se encontrava presente no casamento. Peço-lhe que me escreva sem demora e me explique tudo, a não ser que haja motivos mais fortes para guardar o segredo que Lydia parece achar necessário. Nesse caso, terei de me resignar à minha ignorância.»

«Não, jamais me resignarei», pensou Elizabeth, enquanto terminava a carta: «Mas, minha querida tia, se não mo disser a bem, serei obrigada a lançar mão de estratagemas para o tentar descobrir.»

A delicadeza de Jane não lhe permitia referir a Elizabeth o que Lydia desvendara; mas a Elizabeth só satisfez tal atitude. Preferia não ter uma confidente até saber se a sua curiosidade seria satisfeita.

 

Elizabeth teve a satisfação de receber a resposta à sua carta, e tão depressa quanto ela o poderia desejar. Assim que a carta chegou, correu para o pequeno bosque e, sentando-se num banco, preparou-se para a ler tranquilamente, sentindo-se feliz, pois, pelo número das páginas, era fácil deduzir que não continha uma simples negativa.

 

                     Rua Gracechurch, 6 de Setembro

                     Minha querida sobrinha,

Acabo de receber a tua carta e consagrarei toda esta manhã a escrever a minha resposta, pois prevejo que em poucas linhas não poderei transmitir tudo o que tenho para te dizer. Devo confessar que o teu interesse não deixa de me surpreender. Não o esperava da tua parte. Não penses que estou zangada, pois o que eu quero dizer na minha é que não esperava que estas informações te fossem necessárias. Se preferes não compreender o que digo, desculpa a impertinência. O teu tio ficou tão espantado como eu: pois nada, a não ser ter-te tomado a ti como uma das partes interessadas, o levou a agir da maneira que o fez. Mas, se és realmente inocente e ignorante, precisarei de ser mais explícita. No próprio dia da minha chegada de Longbourn, o teu tio recebeu uma visita inesperada. O Sr. Darcy veio à nossa casa e permaneceu em conferência com ele durante várias horas. Quando entrei, já tudo isso se tinha passado, e por essa razão a minha curiosidade não foi tão intensamente despertada como a tua parece ter sido. Ele veio para dizer ao teu tio que tinha descoberto o paradeiro do Sr. Wickham e de tua irmã e que já os tinha visto e conversado com ambos, com Wickham várias vezes e com Lydia apenas uma. Ao que parece, ele deixou o Derbyshire um dia após a nossa partida, e com destino a Londres, decidido a procurar os fugitivos. O motivo alegado era a sua convicção de que fora por sua causa que o carácter de Wickham não tinha sido convenientemente revelado, de modo a impedir que uma rapariga decente o amasse e confiasse nele. Generosamente, atribuiu tudo isto ao seu orgulho mal compreendido, pois julgava estar acima da necessidade de expor à opinião pública os seus actos particulares. O seu caracter respondia por ele. Ele considerava, portanto, seu dever vir a público e tentar reparar o mal que ele julgava ter causado. Se tinha «outro motivo», estou certa de que nunca o desonraria. Passara alguns dias em Londres, antes que lograsse descobrir os fugitivos. Mas ele possuía um elemento para dirigir a sua busca, e que a nós nos fazia falta: e este era o motivo que justificava a sua vinda. Existe uma senhora, ao que parece uma certa Sr.a Younge, que foi durante algum tempo a dama de companhia da Menina Darcy e que fora despedida por motivos que ele não nos revelou. Depois disso, ela alugou uma grande casa na Rua Edward e nela abriu uma pensão. O Sr. Darcy sabia que esta Sr.a Younge era intima de Wickham; e, sem perda de tempo, logo a procurou em busca de informações, mal chegou a Londres. Porém, levou dois dias para obter dela o que desejava. Suponho que essa mulher não estava disposta a trair o segredo que lhe fora confiado sem receber com isso uma compensação, pois ela sabia perfeitamente onde se encontrava o seu amigo. Wickham, de facto, tinha-a procurado mal chegara a Londres, e, se ela tivesse vaga, seria em sua casa que ele se instalaria. Por fim, o nosso bom amigo conseguiu obter o endereço desejado. Estavam na Rua... O Sr. Darcy esteve com Wickham e posteriormente insistiu para ver Lydia. O seu primeiro objectivo para com ela, reconheceu ele, fora persuadi-la a abandonar tão triste situação e voltar para junto da sua família assim que esta consentisse em recebê-la, oferecendo todo o seu auxílio nesse sentido. Mas ele encontrou Lydia absolutamente decidida a conservar-se onde estava. Ela não queria saber da família, não precisava do auxílio dele e por coisa alguma desta vida abandonaria Wickham. Estava certa de que casariam mais cedo ou mais tarde e que a data não tinha importância. Visto isso, pensou ele, restava-lhe apenas fazer com que casassem o mais rapidamente possível. Logo na primeira conversa que tivera com Wickham, ele compreendera que nunca fora essa a sua intenção. Aquele confessara-lhe que tinha deixado o regimento devido a algumas dívidas de honra muito urgentes; e não hesitava em atribuir unicamente à sua própria leviandade todas as más consequências da fuga de Lydia. Tinha também a intenção de resignar o seu cargo imediatamente; e, quanto à sua futura situação, não sabia absolutamente o que fazer. Precisava de ir para algum lugar, mas não sabia para onde. Sabia apenas que não tinha dinheiro para viver. Darcy perguntou-lhe por que razão ele não tinha casado imediatamente com a tua irmã; mas, em resposta a esta pergunta, o Sr. Darcy descobriu que Wickham acalentava ainda a esperança de fazer fortuna pelo casamento, num outro condado. Perante isto, não seria prudente oferecer-lhe um auxílio imediato. Encontraram-se várias vezes, pois havia muito que discutir. Wickham, naturalmente, queria mais do que poderia obter. Mas, por fim, ele rendeu-se à evidência e tudo ficou combinado entre eles. Foi nessa altura que o Sr. Darcy procurou o teu tio para lhe participar o que tinha feito. E, assim, ele esteve na nossa casa na noite anterior à minha chegada. Contudo, ele não se avistou com o meu marido, que se encontrava ausente, e foi então que descobriu que o teu pai ainda aqui se encontrava e que só partiria de Londres no dia seguinte. Considerando que seria melhor entender-se com o tio que com o teu pai, resolveu adiar a entrevista para depois da partida deste. Não deixou o nome, e, até voltar, no dia seguinte, sabia-se apenas que um cavalheiro tinha procurado o Sr. Gardiner por causa de uns negócios. No sábado tornou a aparecer. O teu pai já aqui não se encontrava, o teu tio estava em casa e, como te disse atrás, estiveram a conversar durante muito tempo. Voltaram a encontrar-se no domingo, e nesse dia também eu estive com ele. Só na segunda-feira é que tudo ficou definido; e imediatamente um expresso foi despachado para Longbourn. Mas o nosso visitante mostrou-se muito obstinado: creio, Lizzy, que, no fim de contas, a obstinação é o verdadeiro defeito do seu carácter. Já o acusaram de muita coisa, mas esta é a única que lhe diz realmente respeito. Insistia em ser ele a fazer tudo pessoalmente; embora eu esteja certa (e não falo nisto para receber agradecimentos, portanto não digas a ninguém) de que o teu tio trataria de tudo rapidamente. Discutiram um com o outro demoradamente, mais do que as duas pessoas em questão o mereciam. Por fim, o teu tio foi obrigado a ceder. Em vez de ser realmente útil à sobrinha, teve de se contentar com a fama, o que não lhe agradou de forma nenhuma; e eu creio que a tua carta de hoje lhe deu um grande prazer, pois exigia uma explicação que o despojaria das suas falsas plumagens, restituindo a glória a quem de direito. Mas, Lizzy, isto deve ficar entre nós... e, vá lá, também Jane. Suponho que saibas o que foi feito pelo jovem casal. As dívidas de Wickham, que montam, creio eu, para além de mil libras, necessitavam ser pagas. Outras mil eram necessárias para o dote de Lydia. E a sua fiança ao cargo que pretende teria de ser paga também. O motivo alegado para fazer tudo isto foi o que eu acima mencionei. Fora devido a ele, aos seus escrúpulos excessivos, que os outros se tinham iludido a respeito do carácter de Wickham, depositando nele a confiança que ele não merecia. Talvez haja uma certa verdade em tudo isto, pois eu duvido que o seu silêncio ou o silêncio de qualquer outra pessoa possa ter sido a causa do sucedido. Mas, apesar de todo esse belo discurso, minha querida Lizzy, podes estar certa de que o teu tio nunca teria cedido se não tivesse julgado que o Sr. Darcy tinha um «outro» interesse no assunto. Quando tudo se resolveu, ele voltou de novo para junto dos amigos que o aguardavam em Pemberley, mas ficou combinado que voltaria a Londres no dia do casamento para dar um avanço nos assuntos de dinheiro. Creio que já te pus a par de toda a história. É um relato que, pelo que vejo pela tua carta, te surpreenderá bastante. Espero, pelo menos, que não te cause qualquer dissabor. Lydia veio para a nossa casa e Wickham estava frequentemente a vir cá. Achei-o exactamente como quando o conheci no Hertfordshire; mas a conduta de Lydia não poderia ter-me desagradado mais. Segundo a carta de Jane, condiz com o seu procedimento em Longbourn, portanto não hesito em referi-lo, e o que te vou contar não te causará um novo desgosto. Tentei por várias vezes falar-lhe ao coração, mostrando-lhe o mal que tinha feito e toda a infelicidade que causara à família. Se ela me ouviu, foi por acaso. Estou certa de que não prestou qualquer atenção ao que lhe disse. Por várias vezes me senti irritada. Nessas alturas lembrava-me das minhas queridas Elizabeth e Jane, e por vossa causa me enchi de toda a paciência. O Sr. Darcy voltou, como prometera, e, como Lydia te contou, assistiu ao casamento. Jantou connosco no dia seguinte e fazia tenções de partir na quarta ou quinta-feira. Espero que não te zangues comigo, minha querida Lizzy, por aproveitar esta oportunidade para te dizer uma coisa que nunca antes tinha ousado dizer: é que eu simpatizo muito com ele. A sua atitude para connosco foi tão amável como quando estivemos no Derbyshire. A sua maneira de encarar as coisas, as suas opiniões, tudo me agrada e encontra eco no meu coração. Só lhe falta um pouco de vivacidade, mas, se ele se casar com acerto, a sua mulher lha emprestará. Achei-o muito astuto. Quase nunca mencionou o teu nome; mas a astúcia parece estar na moda. Espero que me perdoes se me mostrei muito ousada, ou, pelo menos, não me castigues a ponto de me excluíres de P... Nunca me sentirei inteiramente feliz enquanto não tiver percorrido todo aquele parque. Um faetonte baixo e uma bonita parelha de garranos completariam o programa. Não posso continuar, pois as crianças esperam-me há meia hora.

                                   A tua tia muito afectuosa, etc., M. Gardiner.

 

O texto desta carta lançou o espírito de Elizabeth numa agitação tal que era difícil determinar qual predominava, se o prazer ou a dor. As vagas suspeitas acerca do que o Sr. Darcy poderia ter feito para auxiliar o casamento de sua irmã, suspeitas essas que ela receara encorajar, pois demonstravam uma grandeza de alma que dificilmente encontraria em alguém, suspeitas essas cuja confirmação, ao mesmo tempo, temia, pela obrigação que acarretariam, tinham-se convertido em realidade para além das suas expectativas. Ele deliberada-mente seguira-os até Londres. Assumira todos os incómodos e mortificações inerentes a uma tal pesquisa. Tivera de suplicar a uma mulher que ele naturalmente deveria abominar e desprezar. Fora obrigado a encontrar-se frequentemente, a discutir, persuadir e finalmente subornar o homem que mais do que ninguém desejava evitar e cujo simples nome lhe era detestável. E tudo isso ele tinha feito por uma rapariga que ele não podia nem admirar nem estimar. O seu coração dizia-lhe que fora unicamente por sua causa: mas essa esperança logo era sufocada por outras reflexões, e ela não se sentia vaidosa a ponto de julgar que Darcy nutriria qualquer afeição por uma mulher que o rejeitara, ou que ele fosse capaz de vencer um sentimento tão natural como a aversão em relacionar-se novamente com Wickham. Cunhado de Wickham! O orgulho mais elementar se voltaria contra isso. Decerto que ele já tinha feito muito; Elizabeth envergonhava-se, até, ao pensar em tudo o que lhe devia. Mas Darcy tinha apresentado um motivo para a sua interferência, um motivo que não exigia subtilezas de interpretação. Não era natural que ele atribuísse a si próprio todas as culpas. Era generoso e tinha meios de exercer a sua generosi-dade. E, embora ela não se considerasse a causa principal da sua conduta, poderia talvez supor que um resto de afeição por ela tivesse contribuído para os seus esforços num assunto de que dependia directamente a sua paz de espírito. Era doloroso, extremamente doloroso, saber que estavam em dívida para com uma pessoa a quem nunca poderiam pagar. Deviam a reabilitação de Lydia e a sua restituição ao seio da família unicamente ao Sr. Darcy. Elizabeth arrepen-deu-se amargamente de todos os dissabores que lhe causara, de todas as palavras duras que lhe dirigira. Sentia-se humilhada consigo mesmo, mas tinha orgulho por ele. Orgulho por, entre a compaixão e a honra, ele ter levado a melhor sobre si mesmo. Ela leu vezes sem conta os elogios que a tia lhe fazia. Não bastavam; mas davam-lhe satisfação. Ela sentia até mesmo um certo prazer, embora misturado com mágoa, em descobrir como a tia e o marido se tinham convencido da existência de um amor entre o Sr. Darcy e ela própria.

Elizabeth foi arrancada das suas reflexões pela aproximação de alguém.

Levantou-se, mas, antes de conseguir fugir pelo outro caminho, foi abordada por Wickham.

- Interrompo o seu passeio solitário, minha querida irmã? - perguntou-lhe ele, acercando-se dela. - Sentiria, se assim o fosse. Sempre fomos bons amigos. E agora mais do que nunca.

- É verdade. Os outros não vêm passear?

- Não sei. A Sr.a Bennet e Lydia vão no carro a Meryton. Então, minha querida irmã, soube pelos nossos tios que visitou Pemberley.

Elizabeth respondeu afirmativamente.

- Quase lhe invejo tal prazer, e, no entanto, acho que seria demasiado para mim, sem o que iria até lá no caminho para New Castle. Naturalmente, esteve com a velha governanta. Pobre Sr.a Reynolds, ela gostava muito de mim! Mas suponho que ela não tenha falado em mim.

- Falou sim.

- E o que foi que ela disse?

- Que o senhor tinha entrado para o exército e que parecia não ter dado grande coisa. Mas, compreende, a uma tal distância há sempre o perigo de as coisas serem deturpadas.

- Certamente - replicou ele, mordendo os lábios.

Elizabeth supôs que o silenciara, mas pouco depois ele tornou:

- Fiquei muito espantado por ver Darcy em Londres, quando agora lá estive. Encontrei-o várias vezes por acaso, na rua. Que andará ele por lá a fazer?

- Talvez preparando o casamento dele com a Menina de Bourgh - disse Elizabeth. - Terá com certeza de ter um motivo especial para ir a Londres nesta época do ano.

- Sem dúvida. Viu Darcy alguma vez, enquanto esteve em Lambton? Se bem me lembro, os Gardiner falaram-me nisso.

- Sim, ele apresentou-me à irmã.

- E que achou dela?

- Gostei muito.

- Com efeito, ouvi dizer que ela melhorou extraordinariamente nestes últimos dois anos. Da última vez que a vi, não prometia muito. Alegra-me que tenha gostado dela. Espero que ela se torne uma senhora verdadeiramente completa.

- Estou certa disso, pois já passou a idade mais perigosa.

- Visitaram a aldeia de Kympton?

- Não me lembro.

- Falei nisso, apenas, porque era essa a paróquia que me estava destinada. Um lugar encantador! E uma bela casa, também! Convir-me-ia maravilhosa-mente em todos os aspectos.

- Pensa que gostaria de fazer sermões?

- Muito até. Considerá-los-ia parte do meu dever, e o esforço não seria, assim, tão grande. Não nos devemos queixar; mas, teria sido um lugar esplêndido para mim! A tranquilidade daquela vida teria correspondido a todas as minhas ideias de felicidade! Mas o destino não o quis. Darcy falou-lhe alguma vez sobre o caso, enquanto esteve em Kent?

- Houve alguém, que eu considero tão bem informado como ele, que me disse que o presbitério lhe fora deixado apenas condicionalmente, ao arbítrio do actual proprietário.

- Ah, sim? Realmente, existe alguma verdade nisso. Aliás, foi o que eu lhe disse desde o princípio, não se lembra?

- Também me contaram que, numa certa época da sua vida, a necessidade de fazer sermões não lhe era tão agradável como actualmente parece ser. Disseram-me, até, que o senhor desistira de se ordenar; e que, nesse sentido, chegou a haver mesmo um acordo.

- Ah, ouviu dizer isso? E não foi sem fundamento. Deve lembrar-se que mencionei também esse ponto, quando falámos pela primeira vez no assunto.

Estavam quase à porta de casa, pois Elizabeth caminhara depressa para se ver livre dele.

Não querendo provocá-lo mais, em atenção pela sua irmã, ela limitou-se a responder-lhe com o melhor dos sorrisos.

- Acabemos com isto, Sr. Wickham, agora somos irmãos. Não devemos brigar por causa do passado. No futuro, espero que estejamos sempre de acordo.

Elizabeth estendeu-lhe a mão e ele beijou-lha com galante cordialidade, embora não soubesse que expressão tomar ao entrar em casa.

 

O Sr. Wickham ficou tão satisfeito com a conversa que nunca mais mencionou aquele assunto na presença de Elizabeth; e esta ficou contente por ter dito o suficiente para o silenciar.

Em breve chegou o dia da partida de Lydia; e a Sr.a Bennet viu-se obrigada a resignar-se com a separação que, provavelmente, duraria, pelo menos, um ano, pois o Sr. Bennet recusava-se terminantemente a aderir ao plano de irem todos a New Castle.

- Oh, minha querida Lydia - exclamou ela -, quando nos tornaremos a ver?

- Não sei. Daqui a dois ou três anos, talvez.

- Não deixes de me escrever, meu amor.

- Escreverei sempre que puder; mas, como a mãe sabe, as mulheres casadas não têm muito tempo para escrever. Não é o caso das minhas irmãs, pois essas não têm mais nada que fazer.

As despedidas do Sr. Wickham foram muito mais afectuosas do que as de sua mulher. Ele sorria, cativava e exprimia-se agradavelmente.

- É um óptimo rapaz - disse o Sr. Bennet, assim que o viu fora de casa. - Distribui sorrisos, gracinhas e faz a corte a todos nós. Tenho grande orgulho nele. Desafio o próprio Sir William Lucas a apresentar um genro melhor do que o meu.

A partida da sua filha tornou a Sr.a Bennet melancólica durante vários dias.

- Muitas vezes penso - dizia ela - que não há nada de mais doloroso do que separarmo-nos dos nossos amigos. Uma pessoa sente-se tão abandonada.

- Como pode ver, mãe - disse Elizabeth -, é essa a consequência de casar uma filha. Alegre-se por as outras quatro continuarem ainda solteiras.

- Não é nada disso. Eu só me separo de Lydia, não pelo facto de ela ter casado, mas por o regimento do marido se encontrar lá para tão longe. Se estivesse mais próximo, não seria obrigada a partir tão cedo.

Mas, do desânimo em que este acontecimento a precipitou, a Sr.a Bennet em breve foi despertada por uma notícia que começou a circular. A governanta de Netherfiel recebera ordens do patrão para ter a casa a postos e pronta a recebê-lo dentro de um ou dois dias, pois ele tencionava demorar-se aí várias semanas para caçar. A Sr.a Bennet ficou muito agitada. Olhava constantemente para Jane, e sorria, ou abanava a cabeça.

Fora a Sr.a Philips quem lhe trouxera a notícia.

- Bom, bom, então o Sr. Bingley está para chegar! Tanto melhor. Não é que isso me diga muito respeito; conhecemo-lo muito pouco, como sabes, e eu perdi toda a vontade de o voltar a ver. No entanto, acho que faz muito bem em vir para Netherfield. Quem sabe o que pode acontecer? Mas, bem sabes, há muito tempo que resolvemos não falar mais no assunto. Então, é mesma certa a chegada dele?

- Conta com ela como tal - replicou a outra -, pois a Sr.a Nichols ainda ontem à tarde esteve em Meryton. Vi-a passar, e sai de propósito para lhe perguntar o que havia de certo em tudo o que ouvira. Ela confirmou a verdade e disse que ele deveria chegar na quinta-feira, o mais tardar, ou talvez mesmo na quarta. Ia precisamente a caminho do talho, disse-me ela, para encomendar carne para quarta-feira, e que tinha, além disso, três casais de patos prontos para matar.

Jane, ao ouvir a notícia, não pôde deixar de empalidecer. Havia muitos meses já, desde a última vez em que ela pronunciara o nome de Bingley na presença de Elizabeth. Agora, encontrando-se as duas a sós, ela disse-lhe:

- Reparei que olhaste muito para mim, Lizzy, quando a tia nos participou a notícia. Fiquei perturbada, com efeito, não pelo que pareces pensar, mas porque senti que todas iam olhar para mim. Acredita-me que nada sinto com essa notícia, nem alegria nem outro sentimento qualquer. Alegra-me, contudo, que ele não venha acompanhado, pois desse modo vê-lo-emos menos vezes. Não é que eu tenha medo de mim própria, mas acima de tudo tenho horror às observações das outras pessoas.

Elizabeth não sabia o que pensar. Se ela não o tivesse visto no Derbyshire, poderia aceitar o motivo que alegavam para a sua vinda. Porém achava que Bingley ainda gostava de Jane; e hesitava perante duas outras explicações, que considerava muito mais prováveis; se ele vinha porque o seu amigo lho permitira ou se ousara espontaneamente tomar essa resolução.

Por vezes, contudo, Elizabeth pensava: «Não vejo por que razão este pobre homem não haveria de visitar a casa que alugou, e que é dele, sem despertar toda a curiosidade. Não pensarei mais nele e deixá-lo-ei com a sua boa estrela.»

Apesar do que a irmã lhe dissera, e que ela acreditava ter sido dito com toda a sinceridade, Elizabeth percebia facilmente que a perspectiva da chegada de Bingley a tinha afectado profundamente. Jane andava perturbada e agitada, como poucas vezes a vira.

O assunto que, há um ano atrás, fora tão calorosamente discutido entre os pais voltava agora a apresentar-se.

- Logo que o Sr. Bingley chegue, meu caro - dizia a Sr.a Bennet - espero que o vá visitar, naturalmente.

- Não, não. A senhora obrigou-me a visitá-lo o ano passado e disse-me que, se eu lá fosse, ele casaria com uma das minhas filhas. Ora isso não aconteceu, e eu não quero tornar a fazer figura de tolo.

A mulher procurou convencê-lo de que era essa uma obrigação a que todos os cavalheiros da região se deviam submeter, uma vez que ele estava de volta.

- É uma etiqueta que eu desprezo - respondeu o Sr. Bennet. - Se deseja a nossa companhia, ele que a procure. Já sabe onde moramos. Não vou perder o meu tempo a correr atrás dos vizinhos de cada vez que eles se vão embora e tornam a voltar.

- Pois bem, tudo o que eu sei é que praticará uma abominável grosseria se o não for visitar. Contudo, isso não me impedirá de convidá-lo para jantar connosco. Como necessito de convidar a Sr.a Long e os Gouldings, contando connosco, seremos treze à mesa, por isso haverá justamente um lugar para o Sr. Bingley.

Consolada com esta resolução, a Sr.a Bennet sentiu-se com maior força para suportar a falta de cortesia do marido, embora a mortificasse sobremaneira saber que por causa dela todos os vizinhos veriam o Sr. Bingley primeiro do que a família Bennet.

Poucos dias antes da sua chegada, Jane disse para sua irmã:

- Quase preferia que ele não viesse de todo. Continuo perfeitamente indiferente; mas não suporto ouvir falar constantemente no assunto. A intenção da nossa mãe é boa; mas ela não sabe, ninguém sabe, como eu sofro com o que dizem. Que felicidade, quando ele tornar a partir de Netherfield!

- Gostaria de te dizer alguma coisa que servisse de consolo - replicou Elizabeth -, mas é-me completamente impossível; tu sabe-lo. E a satisfação usual de pregar paciência a um sofredor é-me negada, pois tu tem-la de sobra.

O Sr. Bingley chegou. A Sr.a Bennet, por intermédio dos criados, arranjou maneira de saber do facto o mais cedo possível, de modo a aumentar em si, tanto quanto possível, o período de ansiedade e agitação. Ela contava os dias que deveriam decorrer antes de o convite ser enviado, pois durante esse período não poderia ter esperanças de o ver. Contudo, uma manhã, três dias após a sua chegada ao Hertfordshire, a Sr.a Bennet, que estava à janela do seu quarto de vestir, viu o Sr. Bingley entrar a cavalo pelo portão e aproximar-se de casa.

As filhas foram imediatamente chamadas para participarem da sua alegria. Jane continuou resolutamente sentada no seu lugar; mas Elizabeth, para contentar a mãe, foi até à janela, olhou e, vendo que o Sr. Darcy vinha na companhia de Bingley, voltou a sentar-se ao lado de sua irmã.

- Vem outro senhor com ele, mãezinha - disse Kitty. - Quem será?

- Deve ser alguém conhecido dele, meu amor, mas não sei quem é.

- Ora! - tornou Kitty. - Parece aquele senhor que já aqui esteve da outra vez. - O Sr. Não-sei-quê... aquele homem alto e muito orgulhoso...

- Meu Deus! O Sr. Darcy!... é ele, é. Pois, e que seja, qualquer amigo do Sr. Bingley é sempre bem recebido nesta casa; mas devo confessar que o odeio, só de olhar para ele.

Jane olhou para Elizabeth, com surpresa e inquietação. Ela pouco sabia a respeito dos encontros que a irmã tivera com o Sr. Darcy no Derbyshire, e supunha, portanto, que ela se sentiria muito embaraçada em vê-lo depois da carta que recebera dele. Ambas as irmãs se sentiam pouco à vontade. Cada uma delas sentia pela outra e, naturalmente, por si própria. A Sr.a Bennet continuava falando na antipatia que tinha pelo Sr. Darcy e repetia que estava disposta a tratá-lo delicadamente apenas porque se tratava de um amigo do Sr. Bingley. Mas as suas palavras não eram ouvidas por nenhuma das suas filhas. Elizabeth tinha motivos para inquietação de que sua irmã não suspeitava, pois nunca tivera a coragem de revelar a Jane a carta da Sr.a Gardiner, bem como a mudança radical dos seus sentimentos para com o Sr. Darcy. Para Jane, ele continuava a ser o homem cujas propostas a irmã recusara e cujas qualidades ela subestimara. Mas, para Elizabeth, que possuía outras informações, ele era a pessoa a quem toda a família devia o maior dos benefícios e a quem ela própria votava uma afeição, senão tão terna como a de Jane por Bingley, pelo menos tão razoável e tão justa. A surpresa da vinda dele a Netherfield e a sua visita a Longlourn, propositadamente para voltar a vê-la, era tão forte como aquela que sentira ao dar pela transformação que nele se tinha operado, no Derbyshire.

As cores, que tinham desaparecido do seu rosto, tornaram a voltar com maior intensidade e um sorriso de prazer deu um brilho novo aos seus olhos, durante alguns instantes; e pensou para si que provavelmente os sentimentos de Darcy continuavam inalterados. No entanto, não queria precipitar-se.

«Vejamos, primeiro, como ele se porta«, disse ela; «antes disso, será cedo de mais para qualquer esperança.»

Continuou atenta ao seu trabalho, procurando acalmar-se e sem ousar levantar os olhos, até que uma curiosidade ansiosa a levou a fitar o rosto da irmã, enquanto o criado se aproximava da porta da entrada. Jane parecia um pouco mais pálida do que o costume, porém mais calma do que Elizabeth esperava. Quando os cavalheiros finalmente entraram, ela viu-a enrubescer ligeiramente; no entanto, recebeu-os com tranquilidade e modos totalmente destituídos tanto de qualquer sinal de ressentimento como de qualquer desejo exagerado em agradar.

Elizabeth, por seu lado, limitou-se a cumprimentá-los e a dizer-lhes estritamente o necessário, voltando ao seu trabalho com um afinco que ele nem sempre requeria. Arriscara apenas um olhar na direcção de Darcy. A expressão dele mantinha-se grave, como de costume; e, pensava ela, mais do que anterior-mente, no Hertfordshire ou em Pemberley. Mas talvez ele não conseguisse ser, na presença da sua mãe, o que fora na dos tios. Era uma conjectura bem dolo-rosa, embora nada improvável.

Para Bingley ela também só olhara de relance; e, naquele instante, a sua expressão era ao mesmo tempo alegre e embaraçada. A Sr.a Bennet recebeu-o com uma tal cortesia e tão grande amabilidade que as suas filhas se sentiram envergonhadas; sobretudo quando viram a fria polidez com que ela cumpri-mentou o amigo.

Elizabeth, em particular, que sabia quanto a sua mãe devia a este último, cuja iniciativa salvara a sua filha favorita de uma irremediável desonra, sentiu-se profundamente ferida e em agonia com aquela distinção tão mal aplicada.

Darcy, após perguntar pelo Sr. e Sr.a Gardiner, pergunta a que Elizabeth não pôde responder sem um certo embaraço, praticamente não falou. Ele não estava sentado perto de Elizabeth e talvez fosse esse o motivo do seu silencio. Contudo, no Derbyshire, ele não procedera daquele modo. Aí, ele tinha conversado com os parentes de Elizabeth, quando não o podia fazer com ela própria. Agora, decorriam vários minutos sem que se ouvisse o som da sua voz. E quando, por vezes, incapaz de resistir a um impulso de curiosidade, Elizabeth levantava os olhos e procurava o seu rosto, via que ele olhava tanto para Jane como para ela própria, e frequentemente olhava apenas para o chão. Tal atitude exprimia, evidentemente, maior despreocupação e menos ansiedade em agra-dar do que da última vez em que tinham estado juntos. Ela ficou desiludida e depois zangada consigo mesma por ter cedido àquele sentimento.

«Poderia eu esperar que tudo se passasse de outro modo?» exclamou ela para si própria. «Mas, sendo assim, por que veio ele?»

Ela não se sentia disposta a conversar com ninguém senão com ele; e com ele ela mal tinha coragem para falar.

Ela perguntou-lhe pela irmã, mas não conseguiu ir mais longe.

- Passou uma eternidade, Sr. Bingley, desde que o senhor se foi embora - disse a Sr.a Bennet.

Ele concordou prontamente.

- Receava que o senhor não voltasse - continuou ela. - Correu por aí que tencionava abandonar Netherfield completamente, por ocasião da festa de S. Miguel; mas espero que não seja verdade. Muitas coisas aconteceram nas imediações desde que o senhor partiu. A Menina Lucas está casada e uma das minhas filhas também. Creio que já terá ouvido falar nisso. Aliás, o senhor deve ter lido nos jornais. A notícia apareceu no Times e no Courier. Não apareceu como devia, mas enfim... Dizia apenas: «Casamentos: George Wickham com a Menina Bennet», sem acrescentar nem uma sílaba a respeito do pai dela, do lugar onde vivia, nada. O contrato foi feito pelo meu irmão Gardiner e a notícia também foi dada por ele. Não percebi qual a ideia em comunicar o casamento de forma tão destituída de graça. O senhor leu?

Bingley respondeu que não tinha lido e deu-lhe os parabéns. Elizabeth não ousou levantar os olhos e ficou sem saber qual a expressão no rosto de Darcy.

- É muito agradável ter uma filha bem casada - continuou a Sr.a Bennet -, mas é tão duro, Sr. Bingley, separarmo-nos dela. Eles foram para New Castle. Uma localidade lá para os confins do Norte, segundo parece. E eles terão de permanecer aí durante não sei quanto tempo. É a sede do actual regimento do meu genro. O senhor deve ter ouvido dizer que ele saiu da milícia e entrou no exército regular. Dou graças a Deus por ele ter alguns amigos, embora não tantos quantos aqueles que ele merece.

Elizabeth, que percebeu que ela se dirigia indirectamente ao Sr. Darcy, sentiu uma tal vergonha e confusão que por pouco não se levantou e fugiu. Estas palavras, no entanto, conseguiram arrancá-la ao seu silêncio; e, voltando-se para Bingley, perguntou-lhe se ele tencionava ficar algum tempo na região. Ele respondeu-lhe que ficaria algumas semanas.

- Depois de ter morto todos os seus pássaros, Sr. Bingley - continuou a Sr.a Bennet -, venha caçar à nossa propriedade e matar tantos quanto tiver na vontade. Estou certa de que o Sr. Bennet terá todo o prazer nisso. E reservar-lhe-emos os melhores postos para o senhor.

Todas estas atenções desnecessárias e exageradas faziam crescer o mal-estar de Elizabeth. Se agora surgissem para Jane as mesmas possibilidades do ano anterior, tudo se precipitaria para a mesma desastrosa confusão. Naquele instante ela sentiu que muitos anos de felicidade não poderiam compensar os momentos desagradáveis por que ela e Jane estavam passando.

«O meu maior desejo», disse ela para si, «é não tornar a encontrar-me na companhia de qualquer destes dois. Por mais simpáticos que eles se mostrem, nunca atenuarão a minha miséria neste instante! Deus permita que nunca mais os veja!»

Contudo, a miséria, que anos de felicidade não poderiam compensar, foi pouco depois atenuada de maneira muito sensível, ao observar quão rapidamente a beleza de sua irmã levava a melhor sobre a admiração do seu antigo apaixonado. A princípio ele quase não lhe dirigiu a palavra, mas a cada minuto que passava ele multiplicava as suas atenções para com ela. Ele achava-a tão bela como no ano anterior; tão simples e tão natural, embora menos comunicativa. Jane esforçava-se por não deixar perceber qualquer diferença na sua atitude e estava realmente convencida de que conversava tão animada-mente como sempre; contudo, os seus pensamentos absorviam-na tanto que ela não reparava nos momentos em que permanecia calada.

Quando os cavalheiros se levantaram para partir, a Sr.a Bennet lembrou-se do convite que tencionava fazer-lhes e ficou assente que voltariam para jantar em Longbourn dai a uns dias.

- O senhor deve-me uma visita, Sr. Bingley - acrescentou ela -, pois, quando no ano passado partiu para Londres, o senhor prometeu que tomaria parte num jantar de família aqui em casa logo que regressasse. Como vê, eu não me esqueci. Asseguro-o de que fiquei muito desiludida por não o ver regressar como tinha prometido.

Bingley pareceu um pouco embaraçado e aludiu vagamente a uns negó-cios que o tinham detido na capital, e que sentia muito. Em seguida partiram.

A Sr.a Bennet sentira-se fortemente inclinada a convidar os dois para jantar naquele mesmo dia. No entanto, embora se comesse sempre muito bem em sua casa, considerou que um jantar com menos de dois pratos não seria digno de um homem no qual depositava tantas esperanças, nem suficiente para satisfazer o apetite e o orgulho do outro, que possuía dez mil libras de rendimento anuais.

 

Assim que as visitas partiram, Elizabeth saiu para tentar recuperar a serenidade; ou, por outras palavras, para reflectir sem interrupção nesses assuntos que, na realidade, apenas a perturbariam ainda mais. A atitude do Sr. Darcy surpreendera-a e causara-lhe vexame.

«Para que teria ele vindo», perguntava-se ela, «se era para permanecer silencioso, grave e indiferente?»

E não encontrava nenhuma resposta que a satisfizesse.

«Ele continuou a mostrar-se amável para com os meus tios, quando esteve em Londres; mas por que não para comigo? Se me receia, por que veio aqui? Se já não gosta de mim por que permanece silencioso? Que homem misterioso! Não pensarei mais nele.»

A sua resolução foi, durante algum tempo, cumprida involuntariamente, graças à aproximação de sua irmã, que se acercara dela com uma expressão animada no rosto, sinal evidente de que a visita lhe trouxera maior satisfação do que a Elizabeth.

- Agora - disse ela -, que o primeiro encontro passou, sinto-me perfeita-mente à vontade. Conheço as minhas forças e não mais me sentirei embaraçada na presença dele. Alegra-me que ele venha jantar na terça-feira; pois, nessa altura, todos terão a ocasião de ver que nos damos apenas como bons amigos e indiferentes um ao outro.

- Oh, sim. Muito indiferente, de facto - disse Elizabeth, sorrindo. - Toma cuidado, Jane!

- Minha querida Lizzy, não me julgarás tão fraca que me consideres em perigo agora.

- Considero que mais do que nunca estás em perigo de ele se apaixonar irremediavelmente por ti.

Não tornaram a ver os cavalheiros senão na terça-feira; e, enquanto isso, a Sr.a Bennet entregou-se a todos os planos felizes que o bom humor e a delica-deza habitual de Bingley haviam reavivado na meia hora de visita.

Na terça-feira reuniu-se um numeroso grupo em Longbourn; e as duas pessoas que mais ansiosamente eram esperadas apareceram pontualmente. Quando todos se dirigiram para a casa de jantar, Elizabeth observou ansiosa-mente se Bingley tomaria, como outrora, o lugar ao lado de sua irmã. Sua mãe, que era uma pessoa avisada e que estava pensando no mesmo, não o convidou para se sentar a seu lado. Quando entrou na sala, ele pareceu hesitar, mas, como por acaso, Jane olhou à sua volta e, igualmente por acaso, sorriu, foi o suficiente para que ele se decidisse e avançasse para se sentar ao lado dela.

Elizabeth, triunfante, olhou para o Sr. Darcy. Este recebeu o facto com nobre indiferença e Elizabeth teria imaginado que Bingley tinha finalmente licença para ser feliz, se não tivesse visto que também este olhava para o Sr. Darcy com uma expressão entre sorridente e alarmada.

Durante o jantar, a atitude de Bingley para com a sua irmã persuadiu Elizabeth de que a sua admiração por Jane, embora mais reservada, em breve resultaria na felicidade de ambos, caso não houvesse interferências alheias. E, se bem que ela não confiasse cegamente nesse resultado, ela sentia um enorme prazer em observar a atitude dele, despertando nela toda a animação que lhe era possível sentir, pois não estava de humor muito alegre. O Sr. Darcy encontrava-se tão distante dela quanto o comprimento da mesa o permitia. Estava ao lado de sua mãe. Ela sabia que essa situação daria muito pouco prazer a qualquer um dos dois. Não podia ouvir o que eles diziam, mas via que raramente falavam um para o outro, e quando isso acontecia faziam-no muito cerimoniosa e friamente. A hostilidade de sua mãe lembrava dolorosamente a Elizabeth tudo o que deviam ao Sr. Darcy; e, por vezes, ela sentia-se capaz de tudo para ter o privilégio de lhe dizer que a sua bondade não era nem ignorada nem desdenhada pela totalidade da família.

Elizabeth tinha esperanças de que, no decorrer da noite, eles tivessem uma oportunidade de ficar junto um do outro; e que a visita não se passaria sem lhos dar a ocasião de trocar palavras mais significativas do que as simples saudações de cortesia. Ansiosa e inquieta, o período decorrido na sala antes da entrada dos cavalheiros custou-lhe de tal modo a suportar que quase se tornou indelicada. Ela concentrara todas as suas esperanças no momento em que eles entrariam na sala.

«Se nessa altura ele não se encaminhar para mim», pensou ela, «renun-ciarei a esse homem para sempre.»

Os cavalheiros entraram. Por um momento Elizabeth acreditou que as suas esperanças se iriam realizar, mas, infelizmente, todas as senhoras se tinham reunido em volta da mesa, onde Jane se encontrava fazendo o chá e Elizabeth servindo café, não havendo lugar a seu lado nem para uma cadeira. E, quando os cavalheiros se aproximaram, uma das raparigas acercou-se ainda mais dela e disse-lhe ao ouvido:

- Os homens não nos hão-de separar, estou decidida. Não queremos nenhum deles aqui, pois não?

Darcy tinha-se afastado para o outro lado da sala. Elizabeth seguiu-o com os olhos, invejando todas as pessoas com quem ele falava e servindo o café com incontida impaciência; e nessa altura ficou irritada consigo mesma, por se portar de forma tão idiota!

«Um homem que foi recusado uma vez! Que tolice a minha, esperar que ele se torne a declarar! Haverá alguma pessoa do seu sexo que não se revolte contra uma tal fraqueza, como a de propor casamento duas vezes à mesma mulher? Nenhuma indignidade é tão aversa aos sentimentos dos homens!

Elizabeth ficou, no entanto, um pouco mais animada quando o viu trazer pessoalmente a sua chávena de café; e aproveitou a oportunidade para lhe dizer:

- A sua irmã ainda está em Pemberley?

- Sim, ela conservar-se-á ali até ao Natal.

- E está sozinha? Todos os amigos partiram?

- A Sr.a Annsley encontra-se com ela. Os outros foram para Scarborough passar as próximas três semanas.

Elizabeth nada mais encontrou para dizer; mas, se ele desejasse conversar com ela, teria, decerto, sido mais bem sucedido. Contudo, ele conservou-se a seu lado, em silêncio, durante alguns minutos; e por fim, quando a jovem de novo sussurrou ao ouvido de Elizabeth, ele tornou a afastar-se.

Quando o serviço de chá foi retirado e colocadas as mesas de jogo, todas as senhoras se levantaram, e Elizabeth teve de novo a esperança de vê-lo aproximar-se, mas todos os seus planos se desmoronaram ao vê-lo cair vítima da capacidade de sua mãe em obter parceiros para o whist, e, alguns minutos depois, sentar-se a uma mesa com o resto do grupo. Ela desesperou, então, de encontrar qualquer prazer. Seriam obrigados a passar o resto da noite sentados em mesas diferentes, e a única esperança que lhe restava era a de que Darcy voltasse frequentemente os olhos na sua direcção e que, por isso, jogasse tão mal como ela própria.

A Sr.a Bennet decidira convidar os dois cavalheiros de Netherfield para cear, mas, desafortunadamente, a carruagem deles foi chamada antes que qualquer uma das outras e ela não descobriu maneira de os retardar.

- Então, meninas - disse a Sr.a Bennet, quando se viram sós -, que acharam da festa? Penso que tudo correu da melhor forma possível. O jantar estava excelente. O assado do cabrito mesmo no ponto e todos foram unânimes em declarar que nunca tinham visto uma perna tão gorda. A sopa estava incompa-ravelmente melhor do que a que serviram em casa dos Lucas na semana passada. E o próprio Sr. Darcy reconheceu que as perdizes estavam invulgar-mente boas; e creio que ele tem dois cozinheiros franceses, pelo menos. Tu, minha querida Jane, estavas tão bonita como nunca te vi. A Sr.a Long foi da mesma opinião. E sabes o que ela me disse também? «Ah, Sr.a Bennet, creio que, afinal, sempre a veremos instalada em Netherfield.» É a pura verdade. A Sr.a Long é, de facto, uma esplêndida criatura e as sobrinhas dela são muito bem-educadas. E não são nada bonitas. Gosto muito delas.

A Sr.a Bennet, em suma, estava de excelente humor. O que observara na atitude de Bingley para com Jane fora suficiente para convencê-la de que ele estava praticamente conquistado. E, quando a Sr.a Bennet se encontrava de bom humor, as suas expectativas matrimoniais eram tão ilimitadas que, no dia seguinte, ficaria desapontada se não visse o jovem aparecer para fazer o seu pedido.

- Foi um dia muito bem passado - disse Jane para Elizabeth. - Os convi-dados foram muito bem escolhidos e pareciam dar-se todos admiravelmente uns com os outros. Espero que nos tornemos a reunir com frequência.

Elizabeth sorriu.

- Lizzy, não sejas assim. Não deves duvidar de mim. Mortifica-me. Asseguro-te de que aprendi a apreciar a conversa dele como a de um jovem simpático e inteligente, sem nada esperar para além disso. Sinto-me perfeita-mente satisfeita com a presente atitude dele para comigo e vejo agora que nunca desejou cativar a minha afeição. O que se passa, apenas, é que é dotado de uma simpatia extrema e de um desejo de agradar muito mais forte do que qualquer outro homem.

- És muito cruel - disse-lhe a irmã. - Não me deixas sorrir e provocas-me o riso a cada palavra que dizes.

- Como é difícil em certos casos uma pessoa fazer-se acreditar!

- E como é impossível noutros!

- Mas por que insistes em persuadir-me de que eu sinto mais do que aquilo que eu própria reconheço?

- E essa uma pergunta à qual não sei bem como responder. Todos nós gostamos de ensinar, contudo, apenas ensinamos aquilo que não vale a pena ser sabido. Desculpa-me; e, se persistes na tua indiferença, não me tomes para tua confidente.

 

Alguns dias após esta visita, o Sr. Bingley tornou a aparecer, mas só. O amigo partira naquela manhã para Londres, com a promessa de voltar dentro de dez dias. O Sr. Bingley demorou-se mais de uma hora e estava de excelente humor. A Sr.a Bennet convidou-o para jantar, mas, desculpando-se amavel-mente, declarou já estar comprometido para essa tarde.

- Da próxima vez que nos visitar - disse a Sr.a Bennet - espero que tenhamos mais sorte.

Ele respondeu-lhe que teria imenso prazer em vir em qualquer outra ocasião, etc., etc.; e que, se ela lhe desse licença, voltaria muito em breve.

- Poderá vir amanhã?

Que sim, que não tinha compromissos para o dia seguinte, e o convite foi aceite com entusiasmo.

Ele veio, e tão pontualmente que as senhoras ainda não estavam prontas quando ele chegou. A Sr.a Bennet precipitou-se para o quarto das filhas, enrolada no seu roupão e o cabelo meio por pentear, exclamando:

- Minha querida Jane, despacha-te e corre lá abaixo. Ele chegou... o Sr. Bingley chegou. Ele já chegou. Vá, depressa! Sarah, vem ajudar a Menina Bennet a vestir-se. Deixa o cabelo da Menina Lizzy para depois.

- Nós desceremos logo que pudermos - disse Jane -; mas Kitty é mais despachada que nós e já desceu à meia hora.

- Oh, que interessa Kitty! Que tem ela a ver com isto!? Vá, despacha-te, despacha-te! Onde tens o teu lenço, minha querida?

Mas, quando a sua mãe as deixou, Jane recusou-se a descer sem uma das irmãs.

Durante a visita, a Sr.a Bennet mostrou a mesma ansiedade que de costume para deixar o Sr. Bingley e Jane a sós. Findo o chá, o Sr. Bennet retirou-se para a biblioteca, como sempre o fazia; e Mary subiu para praticar no piano. Dos cinco obstáculos, dois estavam suprimidos. A Sr.a Bennet pôs-se, então, a olhar fixamente e a fazer sinais na direcção de Kitty e Elizabeth, que pareciam determinadas a não dar por nada. Elizabeth fingiu que não via e Kitty, ingenuamente, disse:

- Que é, mãezinha? Por que me está a piscar os olhos dessa maneira? Que quer de mim?

- Nada, minha filha, nada. Não te pisquei os olhos. - Ela então permaneceu quieta durante mais cinco minutos; mas, incapaz de ver desperdiçada ocasião tão preciosa, levantou-se subitamente e, dizendo para Kitty: - Anda, meu amor, preciso de conversar contigo - levou-a da sala. Jane imediatamente lançou um olhar para Elizabeth, em que exprimia a sua contrariedade por tal manobra e lhe suplicava que, pelo menos ela, não se prestasse àquela comédia.

Poucos minutos depois, a Sr.a Bennet entreabriu a porta e chamou:

- Lizzy, minha querida, preciso de falar contigo.

Elizabeth foi forçada a ir.

- É melhor deixá-los a sós, sabes - disse-lhe a mãe, assim que se encontrou no vestíbulo. - Kitty e eu vamos lá para cima, para o meu quarto de vestir.

Elizabeth decidiu não argumentar com a mãe; contudo, permaneceu tranquilamente no vestíbulo e, quando sua mãe e Kitty subiram, voltou para a sala.

As manobras da Sr.a Bennet para aquele dia resultaram infrutíferas. Bingley era o encanto personificado, mas não o professado apaixonado de sua filha. O seu à-vontade e boa disposição tornavam-no no mais agradável dos companheiros e ele suportava as inadequadas delicadezas com que o cumulava a Sr.a Bennet e escutava as suas tolas observações com uma paciência e serie-dade pelas quais a filha se sentia intimamente reconhecida.

Ele quase não precisou de convite para ficar para jantar; e, antes de se ir embora, foi-lhe feito um convite, que não só se deveu à intervenção da Sr.a Bennet como também fora provocado por ele próprio, de voltar na manhã seguinte para caçar com o Sr. Bennet.

A partir daquele dia, Jane não tornou a falar na sua indiferença. Nem uma palavra foi trocada entre as irmãs acerca de Bingley; mas Elizabeth foi para a cama contente, com a certeza de que tudo chegaria em breve a uma conclusão feliz, a menos que o Sr. Darcy voltasse antes da data prometida. Contudo, ela estava de certo modo persuadida de que tudo aquilo acontecia com a aquiescência dele.

No dia seguinte, Bingley chegou pontualmente; e o Sr. Bennet e ele passa-ram a manhã juntos, conforme haviam combinado. O Sr. Bennet encontrou nele um companheiro muito mais agradável do que esperava; não encontrava em Bingley nenhuma pretensão que o tornasse ridículo, nem insensatez que o obrigasse a ele a refugiar-se irritadamente no seu silêncio. Quanto ao Sr. Bingley, nunca o achara mais comunicativo e menos excêntrico do que naquele dia. Bingley, naturalmente, voltou com ele para jantar, e, à noite, a Sr.a Bennet lançou mão de todos os recursos para deixá-lo a sós com a filha. Elizabeth, que tinha uma carta para escrever, retirou-se logo após o chá; pois, uma vez que todos eles iam jogar às cartas, ela não seria necessária para contrariar as manobras de sua mãe.

Mas, ao voltar à sala, depois da carta acabada, ela viu, com infinita sur-presa, razão para temer que sua mãe tivesse sido astuciosa de mais para ela.

Ao abrir a porta, deparou com a sua irmã e Bingley perto um do outro e de pé, junto da lareira, como se conversassem sobre assunto de extrema gravidade. E, se tal facto não bastasse para despertar suspeitas, a expressão de ambos, ao voltarem-se subitamente e afastarem-se um do outro, revelaria tudo. A situação deles era bastante embaraçosa, mas a sua própria, pensou Elizabeth, era pior ainda. Nenhum deles pronunciou uma palavra, e Elizabeth preparava-se para sair novamente quando Bingley, que, imitando o exemplo de Jane, se tinha sentado, subitamente se levantou e, sussurrando algumas palavras ao ouvido de Jane, saiu apressadamente da sala.

Jane não tinha reservas para com Elizabeth quando o assunto da confi-dência era ocasião para regozijo; e, abraçando a irmã, imediatamente lhe confessou, com viva emoção, que ela era a criatura mais feliz do mundo.

- É demasiado para mim - acrescentou ela. - Não mereço tanto. Por que razão não hão-de ser todos tão felizes como eu?

Elizabeth deu-lhe os parabéns com uma sinceridade, um calor e um entusiasmo que as palavras não podiam exprimir. Cada uma das suas palavras era uma nova fonte de felicidade para Jane. Mas esta não poderia demorar-se mais junto da irmã, nem tinha tempo para lhe dizer metade do que ainda lhe restava para contar.

- Preciso de ir neste instante ver a mãe - exclamou ela. - Não quero deixá-la por mais tempo em suspenso, depois de toda a sua carinhosa solicitude. Nem quero que ela saiba de tudo senão por meu intermédio. Ele já foi falar com o pai. Oh, Lizzy, que contentes que todos eles vão ficar, com o que eu tenho para lhes dizer! Como poderei suportar tamanha felicidade!

Jane correu, então, ao encontro de sua mãe, que propositadamente interrompera o jogo das cartas e se encontrava em cima com Kitty.

Elizabeth, que ficara sozinha, sorriu da rapidez e da facilidade com que se tinha resolvido o assunto, que durante tantos meses lhes causara ansiedade e incerteza.

«E este», disse ela para consigo mesma, «é o fim de todos os cuidados e precauções do amigo e das mentiras e ardis da irmã; o fim mais feliz, mais justo e mais razoável!»

Poucos minutos depois, Bingley, cuja entrevista com o Sr. Bennet fora curta e decisiva, veio juntar-se a ela.

- Onde está a sua irmã? - Perguntou ele ansiosamente, ao abrir a porta.

- Lá em cima, com a minha mãe. Ela vem já.

Bingley então fechou a porta e, aproximando-se, reclamou-lhe os seus parabéns e a sua afeição de irmã. Elizabeth, sincera e cordialmente, exprimiu-lhe toda a sua alegria, e apertaram-se as mãos. Em seguida, até sua irmã voltar, ela teve de ouvir tudo o que ele dizia sobre a sua própria felicidade e as perfei-ções de Jane; e, apesar de serem aquelas as expressões de uma pessoa apaixo-nada, Elizabeth acreditava realmente no bom fundamento das suas esperanças, pois elas tinham como base a excelente compreensão e o génio incomparável de Jane e uma similaridade geral de sentimentos e gostos entre ambos.

Aquela foi uma noite de grande alegria para todos. A felicidade de Jane dava ao seu rosto um brilho e uma doçura que o tornava mais belo do que nunca. Kitty soltava risinhos e sorria, na esperança de que em breve chegaria a sua vez. A Sr.a Bennet não encontrava termos suficientemente calorosos para exprimir o seu consentimento e a sua aprovação, pelo que se referiu ao acontecimento durante apenas meia hora. E, quando o Sr. Bennet apareceu, à hora da ceia, a sua voz e os seus modos mostravam claramente o contentamento que o possuía.

Porém, não aludiu uma só vez ao facto, enquanto o conviva esteve presente; mas, assim que ele partiu, o Sr. Bennet voltou-se para a filha e disse-lhe:

- Jane, dou-te os meus parabéns. Serás uma mulher muito feliz.

Jane correu para ele, beijou-o e agradeceu-lhe a sua bondade.

- És uma boa pequena - disse ele - e tenho enorme prazer em ver-te bem casada. Não duvido de que se hão-de dar muito bem um com o outro. Os vossos temperamentos são bastante semelhantes. Ambos são tão tolerantes que nunca tomarão resoluções definitivas; tão fáceis de levar que todos os criados vos enganarão; e tão generosos que hão-de sempre gastar mais do que têm.

- Espero bem que não. Imprudência ou imprevidência em matéria de dinheiro seriam imperdoáveis da minha parte.

- Gastar mais do que têm! Meu caro Sr. Bennet - exclamou a sua mulher -, que está o senhor a dizer? Ora, ele tem quatro ou cinco mil libras anuais, ou talvez mais ainda. - E, em seguida, voltando-se para a filha: - Oh, minha querida e adorada Jane, sinto-me tão feliz que estou certa de não conseguir pregar olho esta noite! Eu sabia que isto haveria de acontecer. Eu sempre disse que tudo acabaria em bem. Tinha a certeza de que a tua beleza acabaria por triunfar! Lembro-me perfeitamente que, quando no ano passado ele aqui chegou e eu o vi, imediatamente disse para comigo que vocês tinham nascido um para o outro. Oh! Ele é a criatura mais simpática que jamais se viu.

Wickham, Lydia e tudo o mais ficou esquecido. Jane era, de longe, a sua filha favorita. Naquele instante, ela não pensava em nenhuma outra. As suas irmãs mais novas começaram logo a imaginar os proveitos e prazeres susceptíveis de lhes serem proporcionados com o casamento dela.

Mary pediu para usar a biblioteca de Netherfield; e Kitty insistia para que ela desse vários bailes todos os Invernos.

A partir daí, naturalmente, Bingley passou a vir todos os dias a Long-bourn; chegando quase sempre antes do pequeno-almoço e nunca partindo senão depois do jantar, excepto quando algum cruel vizinho o convidava para sua casa, o que ele não tinha coragem para recusar.

Elizabeth dispunha agora de muito pouco tempo para conversar com a irmã, pois, enquanto Bingley estava presente, Jane não podia dar atenção a mais ninguém; contudo, viu-se de considerável utilidade para ambos, durante aquelas pequenas separações que necessariamente ocorrem por vezes. Na ausência de Jane, ele procurava a companhia de Elizabeth, pelo prazer de conversar com ela; e, depois de Bingley partir, Jane procurava constantemente idêntico consolo.

- Ele deu-me uma grande felicidade - disse Jane, certa noite - ao dizer-me que ignorara totalmente que eu tivesse estado em Londres na Primavera passada. Não acreditava que isso fosse possível.

- Eu já suspeitava disso - replicou Elizabeth. - Mas como é que ele te explicou o facto?

- Deve ter sido por culpa das irmãs. Naturalmente, elas não viam com bons olhos as suas relações comigo, coisa, aliás, que eu acho aceitável, pois ele poderia ter feito uma escolha muito mais vantajosa sob todos as aspectos. Mas, quando elas virem a felicidade do irmão comigo, espero que se resignem e me aceitem, embora nunca mais possamos ter a mesma intimidade de antes.

- Essas tuas palavras - exclamou Elizabeth - são as mais severas que eu jamais te ouvi pronunciar. Minha valente! Custar-me-ia bastante, de facto, ver-te de novo iludida pela falsa amizade da Menina Bingley.

- Imagina, Lizzy, que quando ele foi para Londres, em Novembro, já gostava de mim; e só não voltou porque o convenceram de que eu lhe era totalmente indiferente.

- Ele cometeu um pequeno erro, decerto; mas isso só prova a sua modéstia.

Isto conduziu Jane, naturalmente, a fazer um panegírico da discrição de Bingley e do pouco valor que ele atribuía às suas boas qualidades.

Elizabeth ficou satisfeita por descobrir que ele não tinha revelado a interferência do amigo, pois, embora Jane tivesse o coração mais generoso do mundo, tal atitude seria considerada por ela imperdoável.

- Sou decerto a criatura mais feliz que jamais existiu - exclamou Jane. - Oh! Lizzy, porque, entre todas, fui eu a escolhida para receber tão grande graça! Se ao menos te pudesse ver tão feliz como eu! Se existisse outro homem igual para ti!

- Mesmo que me arranjassem quarenta desses homens, nunca seria tão feliz como tu. Para ter a tua felicidade, teria de ter também o teu temperamento e a tua bondade. Não, não, deixa-me entregue ao meu próprio destino; e quem sabe se, com um pouco de sorte, não me aparecerá um dia um outro Sr. Collins pela frente.

A nova situação na família de Longbourn não poderia permanecer por muito mais tempo em segredo. A Sr.a Bennet teve o privilégio de sussurrar a novidade ao ouvido da Sr.a Philips, e esta ousou, sem autorização, fazer o mesmo a todas as suas vizinhas em Meryton.

Os Bennet em breve foram considerados por todos como a família mais afortunada do mundo, embora poucas semanas antes, quando Lydia fugira, tivessem sido apontados como pessoas marcadas pelo infortúnio.

 

Certa manhã, uma semana após o noivado de Bingley e Jane, encontrava-se aquele e o resto da família reunidos na sala de jantar, quando a sua atenção foi, de súbito, despertada pelo ruído de uma carruagem; e, chegando perto de uma janela, viram tratar-se de um coche puxado por quatro cavalos que se aproximava de casa. Era demasiado cedo para uma visita e, além disso, aquela equipagem não era a de nenhum dos vizinhos. Tanto a carruagem, puxada por cavalos de posta, como a libré do criado que a precedia, lhes eram desco-nhecidos. Como não se punham dúvidas de que se tratava de alguém que chegava, Bingley imediatamente propôs à Menina Bennet que evitassem o intruso e fossem dar uma volta pelo bosque. Eles saíram e as três pessoas restantes continuaram conjecturando, mas sem grande êxito, até que a porta se abriu e a visita entrou. Era Lady Catherine de Bourgh.

Todas se tinham naturalmente preparado para uma surpresa, mas o seu espanto foi muito maior do que esperavam; e o da Sr.a Bennet e de Kitty, embora não soubessem de quem se tratava, inferior ainda ao que Elizabeth experimentou.

Ela entrou na sala com um ar ainda menos afável do que o costume, respondeu à saudação de Elizabeth com uma ligeira inclinação da cabeça e sentou-se, sem dizer uma palavra. Elizabeth mencionara o nome da visitante à sua mãe, embora Lady Catherine tivesse solicitado uma apresentação.

A Sr.a Bennet, assombrada e ao mesmo tempo envaidecida por receber uma visita tão importante, acolheu-a com demonstrações de grande delicadeza. Depois de permanecerem sentadas durante algum tempo em silêncio, Lady Catherine disse, muito secamente, a Elizabeth:

- Espero que esteja de perfeita saúde, Menina Bennet. Aquela senhora, suponho eu, é a sua mãe?

Elizabeth, concisamente, confirmou a suposição.

- E aquela deve ser uma das suas irmãs, não?

- Sim, minha senhora - disse a Sr.a Bennet, deliciada por falar com Lady Catherine em pessoa. - É a minha penúltima filha. A mais jovem casou-se ultimamente e a mais velha passeia-se neste momento pelo bosque com um jovem que em breve se tornará membro desta família.

- O vosso jardim é ridiculamente pequeno - disse Lady Catherine, após um curto silêncio.

- Nada é em comparação com o de Rosings, estou certa, minha senhora; mas é muito maior do que o de Sir William Lucas.

- Esta sala de visitas deve ser muito inconveniente para passar as tardes durante o Verão. As janelas estão todas viradas a ocidente.

A Sr.a Bennet asseverou-a de que não costumava passar ali a tarde e acrescentou:

- Se V. Excelência me permite, tomarei a liberdade de lhe perguntar se o Sr. e a Sr.a Collins se encontram bem de saúde.

- Sim, eles estão muito bem. Estive com eles a noite passada.

Elizabeth esperou então que ela lhe estendesse uma carta de Charlotte para ela, pois tal lhe parecia o motivo mais provável da sua visita. Porém, a carta não apareceu, e Elizabeth ficou ainda mais intrigada.

A Sr.a Bennet, com grande amabilidade, perguntou se Lady Catherine desejaria tomar alguma coisa; mas Lady Catherine, muito decidida e pouco delicadamente, recusou o oferecimento. Em seguida, levantando-se, disse para Elizabeth:

- Menina Bennet, segundo me pareceu, há um pequeno bosque bastante agradável de um dos lados da casa. Gostaria de dar uma volta por lá, se me quiser conceder o favor da sua companhia

- Vai, meu amor - exclamou sua mãe -, e mostra a S. Excelência os vários caminhos. Estou certa de que o eremitério a encantará.

Elizabeth obedeceu e correu ao quarto para ir buscar a sua sombrinha, acompanhando pouco depois a ilustre visitante.

Ao atravessarem o vestíbulo, Lady Catherine abriu as portas que davam para a casa de jantar e declarou que se tratava de compartimentos bastante agradáveis, e continuou o seu caminho.

A carruagem permanecia parada à porta de casa e Elizabeth viu que a dama de companhia se encontrava nela. Caminharam em silêncio pela rua ensaibrada que levava ao bosque; Elizabeth estava decidida a não fazer qual-quer esforço para introduzir conversa com uma pessoa que, naquele momento, se mostrava ainda mais insolente e desagradável do que o costume.

«Como pude alguma vez achá-la parecida com o sobrinho?», disse Elizabeth para si, ao olhar de frente para o rosto de Lady Catherine.

Assim que entraram no bosque, Lady Catherine começou a falar do seguinte modo:

- Não terá dificuldade em compreender, Menina Bennet, a razão da minha viagem até aqui. Tanto o seu coração, como a sua consciência, lhe revelarão porque foi que eu vim.

Elizabeth olhou para ela com um espanto sincero.

- Realmente, está enganada, minha senhora. Ainda não fui capaz de descobrir qual o motivo para nos honrar com uma visita sua.

- Menina Bennet - replicou Lady Catherine num tom irritado -, deve compreender que eu não sou para brincadeiras. E, já que prefere ser pouco sincera, fique sabendo que o mesmo não farei eu. O meu carácter sempre foi célebre pela sua sinceridade e franqueza; e, num assunto de tamanha impor-tância como o presente, não me mostrarei diferente do que sou. Chegou-me, há dois dias atrás, aos ouvidos uma notícia de natureza muito alarmante. Disse-ram-me não só que a sua irmã estava em vésperas de realizar um casamento muito vantajoso, como também você, Menina Elizabeth Bennet, estaria, prova-velmente, muito em breve unida ao meu sobrinho, ao meu próprio sobrinho, o Sr. Darcy! Embora eu esteja certa de que se trata de uma escandalosa falsidade, embora eu nunca fizesse ao meu sobrinho a injúria de supor que esta notícia seja verdadeira, imediatamente resolvi partir para cá, a fim de lhe revelar claramente o que penso de tudo isto.

- Se a senhora considera impossível que seja verdade - disse Elizabeth, corando de espanto e de desdém -, não compreendo por que se deu ao trabalho de vir até tão longe. Qual o verdadeiro intento de V. Excelência?

- Insistir desde logo para que tal boato seja universalmente desmentido.

- A sua vinda a Longbourn, para me ver a mim e à minha família - disse Elizabeth friamente -, será antes a confirmação dele; se, de facto, existe tal boato.

- Se existe! Pretende, então, convencer-me de que ignora o boato? Acaso não foi ele artificiosamente posto a correr pela sua própria família? Não sabe que não se fala de outra coisa por ai?

- Nada sei sobre isso.

- E pode declarar, igualmente, que não existe «fundamento» para ele?

- Não tenho a pretensão de arvorar a mesma franqueza que V. Excelência. Poderá fazer-me todas as perguntas que quiser, mas reservo-me a mim o direito de responder apenas àquelas que eu bem entender.

- Isso é inadmissível. Menina Bennet, exijo que me responda. Acaso ele, acaso o meu sobrinho, lhe fez alguma proposta em casamento?

- V. Excelência mesma declarou que isso era impossível.

- Devia sê-lo; deve sê-lo, enquanto ele permanecer no uso da sua razão. Mas os seus artifícios e astúcias podem tê-lo levado a esquecer, num momento de fraqueza, qual o seu dever para com ele próprio e toda a sua família. É possível que o tenha seduzido.

- Se o fiz, serei a última pessoa a confessá-lo.

- Menina Bennet, acaso sabe quem eu sou? Não estou acostumada a que me falem nesse tom. Sou praticamente o parente mais próximo que o Sr. Darcy tem no mundo e tenho o direito de saber todos os seus assuntos mais íntimos.

- Mas não tem o direito de saber os «meus»; nem atitude idêntica me induzirá a explicar-me.

- Vamos a ver se me faço entender. Essa união, a que tem a pretensão de ambicionar, jamais se realizará. O Sr. Darcy está noivo da minha filha. E, agora, que se lhe oferece dizer?

- Apenas isto; que, nesse caso, não terá de temer que ele me faça uma proposta.

Lady Catherine hesitou por um momento e em seguida replicou:

- O noivado entre eles é de natureza especial. Desde a infância, foram destinados um para o outro. Era esse o maior desejo da mãe dele, bem como o meu. Planeámos a união, ainda eles estavam no berço; e agora, quando o desejo de ambas as irmãs poderia ser realizado, uma rapariga de classe inferior, sem qualquer renome na sociedade e totalmente estranha à família, ousa interpor-se entre eles! Não tem qualquer consideração pelos anseios da família dele? Será que é totalmente destituída do sentimento da propriedade e da delicadeza? Não me ouviu dizer que desde o seu nascimento ele foi destinado à prima?

- Sim, e já o tinha ouvido antes. Mas que tenho eu a ver com isso? Se não existe outra objecção ao meu casamento com o seu sobrinho, o simples facto de saber que sua mãe e sua tia desejavam que ele casasse com a Menina de Bourgh não me faria renunciar a ele. Planeando o seu casamento, ambas fizeram o que lhes era dado fazer. A sua realização, porém, depende de outras pessoas. Se o Sr. Darcy não está comprometido com a prima nem pela honra nem pela inclinação, por que motivo não poderá ele escolher outra pessoa? E se essa escolha recair sobre mim, por que não hei-de eu aceitá-lo?

- Porque a honra, a decência, a prudência e também o interesse o impedem. Sim, Menina Bennet, o interesse; pois não esperará ser recebida pela família e pelos amigos dele se agir propositadamente contra a vontade de todos. Será censurada, humilhada e desprezada pelos parentes do Sr. Darcy. Tal aliança será uma desonra; e o seu nome nunca será mencionado por qualquer um de nós.

- São esses graves infortúnios - replicou Elizabeth -, mas a mulher do Sr. Darcy ocupará situação tão privilegiada e terá tantos motivos de felicidade que, no fim, não terá motivos para se arrepender.

- Teimosa e obstinada criatura! Envergonho-me de si! É esta a sua gratidão para com as atenções de que a cumulei quando esteve em casa do Sr. Collins? Acha que nada me deve por isso? Mas, sentemo-nos. Deve compreender, menina Bennet, que vim decidida a levar a minha avante. Nada me poderá dissuadir da minha resolução. Não fui habituada a submeter-me ao capricho dos outros. Não estou habituada a que resistam aos meus desejos.

- Isso apenas tornará a sua situação presente mais lamentável; mas não terá qualquer efeito sobre mim.

- Não admito que me interrompam! Ouça-me em silêncio. A minha filha e o meu sobrinho foram feitos um para o outro. Ambos descendem, pelo lado materno, de uma nobre linhagem; e, do lado paterno, de famílias respeitáveis, honradas e antigas, embora sem titulo. As fortunas de ambos são esplêndidas. Eles estão destinados um ao outro por um unânime acordo de cada membro das respectivas famílias; e quem pretende separá-los?... Uma rapariga ambiciosa, que não possui nem família, nem relações, nem fortuna. Poder-se-á tolerar tal coisa? Não se pode, nem o será! Se considerasse os seus próprios interesses, não desejaria sair da esfera em que foi criada.

- Não acho que, casando com o seu sobrinho, saia dessa mesma esfera. Ele é um gentleman e eu sou a filha de um gentleman; portanto, somos iguais.

- Tem razão. Você é filha de um gentleman. Mas quem era a sua mãe? Quem são os seus tios? Não julgue que ignoro a situação deles.

- Quaisquer que sejam os meus parentes - disse Elizabeth - se o seu sobrinho não objecta contra eles, a senhora não tem que se preocupar com eles.

- Diga-me de uma vez para sempre, está noiva dele?

Embora Elizabeth não se sentisse tentada a responder a esta pergunta, pelo simples facto de não querer fazer a vontade a Lady Catherine, ela não tinha outra solução senão fazê-lo, após alguns instantes de deliberação:

- Não, não estou.

Lady Catherine pareceu ficar satisfeita.

- E promete-me nunca aceitar tal compromisso?

- Não farei nenhuma promessa dessa espécie.

- Menina Bennet, estou ofendida e atónita. Esperei encontrar em si uma pessoa mais sensata. Mas não se iluda pensando que eu desistirei tão facilmente. Não sairei daqui sem receber a garantia que exijo.

- E não serei eu quem lha dará. A senhora não me pode intimidar nem obrigar a fazer uma coisa tão pouco razoável. V. Excelência deseja que o Sr. Darcy case com a sua filha; mas, acaso crê que a minha promessa tornaria o casamento deles mais provável? Suponha que ele tenha afeição por mim. Seria a minha recusa suficiente para que ele transferisse essa afeição para a sua filha? Permita-me dizer-lhe, Lady Catherine, que os argumentos com que procurou justificar esse extraordinário pedido foram tão frívolos; quanto ao pedido, ele mesmo, é insensato. Enganou-se redondamente acerca do meu carácter, se pensa que eu possa ser influída por persuasões dessa natureza. Não sei até que ponto o seu sobrinho lhe permite imiscuir nos assuntos dele, mas V. Excelência não tem o menor direito de interferir nos meus. Peço-lhe, portanto, que não me importune mais sobre este assunto.

- Mais devagar, se não se importa. Ainda não acabei. A todas as objecções que até agora lhe apresentei, acrescentarei ainda uma outra. Sei tudo a respeito da infame conduta da sua irmã mais nova. Tudo: que o casamento apenas se realizou graças ao seu tio e ao seu pai, que tiveram de pagar para isso. E é uma rapariga dessas que será a irmã do meu sobrinho? E é o marido dela, filho de um antigo intendente da casa Pemberley, que será irmão dele? Deus do Céu!, onde é que tem a sua cabecinha! Serão as sombras de Pemberley a tal ponto poluídas?

- Creio que agora nada mais tem para me dizer - disse Elizabeth, ressen-tida. - Insultou-me de todas as maneiras possíveis. Com a sua licença, voltarei para casa.

E, dizendo isto, ela levantou-se. Lady Catherine levantou-se também e regressaram juntas. S. Excelência estava furibunda.

- Não tem, então, a menor consideração pela honra e bom nome do meu sobrinho?! Insensível e egoísta criatura! Não vê que o seu casamento com ele o desonrará aos olhos do mundo?

- Lady Catherine, nada mais tenho a dizer-lhe. Sabe qual é a minha opinião.

- Está, então, resolvida a obtê-lo?

- Nunca disse tal coisa. Estou apenas resolvida a agir de maneira a con-quistar aquilo que, segundo a minha opinião, eu considero a minha felicidade, sem que admita a sua interferência ou a de qualquer outra pessoa que não me é nada.

- Muito bem, recusa-se então a atender o meu pedido. Recusa-se a reconhecer os direitos do dever, da honra e da gratidão? Está decidida a arruiná-lo na boa opinião da família e dos amigos e fazer dele um objecto de troça e de desdém de todo o mundo.

- Nem o dever, nem a honra, nem a gratidão - replicou Elizabeth - têm quaisquer direitos sobre mim no presente caso. Nenhum desses princípios seria violado pelo meu casamento com o Sr. Darcy. E, quanto ao ressentimento da sua família ou indignação do mundo, se o primeiro acaso fosse provocado pelo meu casamento com ele, não lhe devotaria nem um minuto de atenção... o mundo, em geral, é suficientemente sensato para se unir no escárnio.

- É esta a sua verdadeira opinião! A sua decisão final! Muito bem, saberei agora como agir. Não imagine, Menina Bennet, que a sua ambição seja alguma vez satisfeita. Vim aqui para a experimentar. Esperei encontrá-la mais sensata, mas verá como a minha vontade acabará por vencer.

E Lady Catherine continuou falando do mesmo modo, até chegarem perto da carruagem, quando de súbito ela se voltou e acrescentou:

- Não me despeço de si, Menina Bennet. Nem envio cumprimentos à sua mãe. Não merecem uma tal atenção. Estou seriamente ofendida.

Elizabeth não lhe respondeu; e, sem tentar persuadir S. Excelência a entrar em casa, voltou as costas e afastou-se calmamente. Quando subia a escadaria, ouviu a carruagem partindo. Sua mãe, que se impacientava, veio ao encontro dela à porta da sala, para indagar se Lady Catherine não tornaria a entrar a fim de repousar um pouco.

- Ela não quis - respondeu Elizabeth. - Preferiu partir.

- É uma senhora muito elegante! E o facto de nos ter visitado diz muito da sua prodigiosa amabilidade, pois suponho que ela tenha vindo apenas para dizer que os Collins se encontram bem. Ela decerto veio de passagem e lembrou-se de nos fazer uma visita. Suponho que ela não tivesse nada de especial para te dizer, Lizzy?

Elizabeth foi obrigada a inventar uma pequena história; pois ser-lhe-ia impossível revelar o que de facto se tinha passado.

 

A agitação que esta extraordinária visita provocou no espírito de Elizabeth não poderia ser facilmente dominada; e durante várias horas ela não pôde deixar de pensar incessantemente naquilo. Lady Catherine, segundo parecia, tinha-se dado ao trabalho de sair de Rosings e empreender aquela viagem com o único fito de desmanchar o seu suposto noivado com o Sr. Darcy. Não era mal pensado, de facto! Mas de onde poderia originar a notícia de tal noivado, Elizabeth não sabia determinar. Por fim, lembrou-se que o facto de ele ser um íntimo amigo de Bingley e ela irmã de Jane fosse suficiente para, numa altura em que a expectativa de um casamento alerta o espírito das pessoas para outro, originar tal ideia. Ela própria não deixara de sentir que o casamento da irmã juntá-los-ia com maior frequência; e, provavelmente, que os seus vizinhos Lucas (pois fora, de certo, por seu intermédio que a notícia chegara, através dos Collins, aos ouvidos de Lady Catherine) tinham apresentado como coisa quase certa e imediata aquilo que ela própria encarava como uma . remota possibili-dade num futuro longínquo.

Reflectindo sobre as expressões de Lady Catherine, ela não era estranha a uma certa inquietude quanto às possíveis consequências de tal interferência. Pelo que ela dissera da sua resolução em impedir o casamento, ocorreu a Elizabeth que ela devia ter em mente uma entrevista com o sobrinho; e como reagiria ele à sua representação das consequências funestas ligadas a tal acto, ela não ousava pronunciar-se. Elizabeth não sabia qual a afeição do Sr. Darcy pela tia, nem a confiança que ele depositava nas suas opiniões; mas era natural que ele tivesse maior consideração por S. Excelência que ela própria; e era certo que, ao enumerar as misérias de um casamento com uma pessoa cujos parentes eram tão inferiores aos seus, ela o atacaria pelo seu lado mais fraco. Com os seus preconceitos de classe, ele provavelmente sentiria que os argumentos, que a Elizabeth tinham parecido fracos e ridículos, continham bastante bom senso e um raciocínio sólido.

Se ele já antes hesitara quanto ao que devia fazer, o que frequentemente a sua atitude dera a entender, os conselhos e as exortações de uma pessoa que lhe era tão chegada poderia destruir todas as suas dúvidas e convencê-lo, de uma vez para sempre, a procurar a sua felicidade sem ofender os seus brasões de família. Sendo assim, ele já não voltaria. Lady Catherine encontrá-lo-ia em Londres e a promessa dele a Bingley de voltar a Netherfield seria esquecida.

«Se, portanto, ele enviar qualquer desculpa ao amigo dentro destes dias mais próximos, dizendo que está impossibilitado de vir, saberei então o que pensar«, disse Elizabeth para si. «Nessa altura desistirei de tudo. E, se ele se limitar a lamentar a minha perda, quando está nas suas mãos obter a minha afeição, renunciarei a ele, sem mágoa.»

A surpresa dos restantes membros da família quando souberam quem tinha sido a visitante foi ilimitada. Contentaram-se, no entanto, com as mesmas suposições que haviam aplacado a curiosidade da Sr.a Bennet, e Elizabeth não foi mais incomodada sobre o assunto.

No dia seguinte, de manhã, Elizabeth descia as escadas quando seu pai, saindo da biblioteca, veio ao seu encontro com uma carta na mão:

- Lizzy - disse ele -, ia à tua procura. Vem à biblioteca.

Ela seguiu-o; e a sua curiosidade em saber o que ele tinha para lhe dizer era aumentada pela suposição de que se relacionasse com a carta que tinha na mão. Ocorreu-lhe de súbito que ela proviesse de Lady Catherine; e com horror anteviu todas as consequentes explicações.

Ela seguiu o pai até à lareira, sentaram-se diante dela, e o Sr. Bennet então disse:

- Recebi esta manhã uma carta que me surpreendeu extraordinariamente. Como ela se refere principalmente à tua pessoa, é necessário que sejas informada do seu conteúdo. Não sabia que tinha duas filhas à beira do matrimónio. Deixa-me que te felicite pela tua conquista de grande envergadura.

O sangue afluiu ao rosto de Elizabeth e por um instante ela supôs que a carta viesse do sobrinho, e não da tia, e hesitava se devia sentir-se contente por ele se ter finalmente explicado ou ofendida porque a carta não lhe era dirigida a si, quando seu pai prosseguiu:

- Parece compreenderes do que se trata. As jovens mostram grande penetração em assuntos desta natureza; no entanto, acho que posso até desafiar a tua sagacidade em descobrires qual o nome do teu admirador. A carta é do Sr. Collins.

- Do Sr. Collins! E que poderá ele dizer?

- Algo que vem muito a propósito, decerto. Começa congratulando-me pelo próximo casamento da minha filha mais velha, sobre o que, segundo tudo leva a crer, foi informado por alguma das bem-intencionadas e mexeriqueiras Meninas Lucas. Não te vou ler essa parte, para não atentar contra a tua paciên-cia. Aquela que te diz respeito, versa assim: «Tendo-lhe apresentado deste modo as sinceras congratulações da Sr.a Collins, bem como as minhas, pelo feliz acontecimento, permita-me acrescentar uma ligeira alusão ao assunto de outro, do qual fomos advertidos pela mesma autoridade. A sua filha Elizabeth, ao que parece, não usará por muito mais tempo o nome de Bennet, depois de sua irmã mais velha ter renunciado ao mesmo, e o eleito pode, com toda a justiça, ser nem mais nem menos considerado como uma das pessoas mais ilustres deste pais.»

- Imaginarás de quem se possa tratar? «Esse jovem foi aquinhoado com tudo o que um coração mortal pode desejar: esplêndidas propriedades, nobre linhagem e considerável influência. Contudo, apesar de todas estas vantagens, permita-me que eu previna a minha prima Elizabeth, como a si próprio, dos males que poderão advir de um consentimento precipitado às propostas daquele cavalheiro, propostas das quais, naturalmente, se sentirão inclinados a tirar o proveito imediato.»

- Tens alguma ideia, Lizzy, de quem possa ser este cavalheiro? Mas agora surge a revelação:

«A razão por que a prevenimos é a seguinte: temos razões para acreditar que a sua tia, Lady Catherine de Bourgh, não olha com bons olhos este casamento.»

- Como vês, trata-se do Sr. Darcy! E agora, Lizzy, creio que te surpreendi. Poderiam o Sr. Collins ou os Lucas ter feito suposição mais absurda!? O Sr. Darcy, que não olha para uma mulher senão para criticar e que provavelmente nunca olhou para ti em toda a sua vida! é espantoso!

Elizabeth tentou fazer coro com o pai na sua jocosidade, mas pôde apenas sorrir com relutância. Nunca o espírito de seu pai fora dirigido de maneira tão pouco agradável para ela.

- Não estás divertida?

- Oh! Claro. Continue a ler.

- «Tendo eu mencionado a possibilidade deste casamento a Lady Catherine ontem à noite, ela imediatamente exprimiu o que sentia acerca desse assunto, com a sua usual condescendência, proclamando que, devido a certas objecções de família, ela jamais daria o seu consentimento para o que, segundo a sua própria expressão, era um péssimo casamento. Considerei ser meu dever comunicar tudo isto à minha prima, para que ela e o seu nobre admirador saibam o que estão fazendo e não se precipitem num casamento que nunca será convenientemente sancionado.» O Sr. Collins, mais adiante, acrescenta: «Causa-me muita alegria saber que o triste caso da minha prima Lydia foi rapidamente abafado, preocupando-me apenas que se tenha tornado do domínio público o facto de eles terem vivido juntos antes de se casarem. Não posso, contudo, esquecer os deveres do meu estado, nem deixar de manifestar o meu espanto ao saber que o senhor recebeu o jovem casal em sua casa, logo após o matrimónio. Considero tal atitude um encorajamento ao vício, e pode estar certo de que, se eu fosse o pastor de Longbourn, ter-me-ia oposto terminantemente a isso. É certo que, como cristão, os devia ler perdoado, porém, jamais deveria admiti-los na sua presença nem permitir que os seus nomes lhe fossem mencionados.» Esta é a noção que ele tem do perdão cristão! O resto da carta trata apenas da situação da sua querida Charlotte e das suas esperanças de um rebento. Mas, Lizzy, parece que não gostaste. Tão cedo não serás «senhora dona», espero eu, nem te fingirás ofendida por causa de um boato tão tolo; pois, para que vivemos nós, senão para nos tornarmos objecto de troça dos nossos vizinhos, e, por nossa vez, rirmo-nos à custa deles?

- Oh! - exclamou Elizabeth. - Estou até muito divertida. Mas acho tudo isso tão estranho!

- Sim, mas é isso, precisamente, que lhe dá toda a graça. Se tivessem escolhido outro homem qualquer, não teria interesse nenhum; mas a perfeita indiferença do Sr. Darcy e a tua manifesta antipatia tornam essa suposição tão maravilhosamente absurda! Abomino escrever, mas por coisa nenhuma deste mundo desistiria da minha correspondência com o Sr. Collins! Quando leio uma carta dele, não posso deixar até de preferi-lo a Wickham, por mais que eu preze a imprudência e a hipocrisia do meu genro. Conta-me agora, Lizzy que disse Lady Catherine acerca deste boato? Ela veio visitar-te para te recusar o seu consentimento?

A esta pergunta, a filha respondeu-lhe apenas com uma gargalhada; e, como ele lhe fizera a pergunta sem de nada suspeitar, Elizabeth não ficou embaraçada, mesmo quando ele a repetiu. Jamais ela sentira tamanha dificul-dade em esconder os seus sentimentos. Era necessário rir, quando ela teria preferido chorar. Seu pai mortificara-a cruelmente como o que dissera a respeito da indiferença do Sr. Darcy e ela nada podia fazer senão admirar-se da sua falta de penetração, ou recear que - quem sabe! - se, em vez de ele ver «pouco», não fora ela que imaginara «demasiado».

 

O Sr. Bingley não recebeu carta nenhuma do seu amigo, como Elizabeth receara, e, em vez disso, trouxe Darcy em visita a Longbourn, poucos dias depois da vinda de Lady Catherine. Os cavalheiros chegaram cedo; e, antes que a Sr.a Bennet tivesse tempo para lhe contar que tinham recebido a visita de sua tia, o que Elizabeth receava a todo o momento, Bingley, que queria ficar a sós com Jane, propôs um passeio. Todos concordaram. A Sr.a Bennet não tinha o hábito de caminhar e Mary não tinha tempo a perder, mas os cinco restantes partiram juntos. Bingley e Jane, contudo, em breve deixaram que os outros se distanciassem. Foram ficando para trás, enquanto Elizabeth, Kitty e Darcy teriam de se bastar uns aos outros. Os três pouco conversavam; Kitty tinha medo de Darcy; Elizabeth estava intimamente formando uma resolução desesperada; e ele talvez estivesse fazendo o mesmo.

Caminhavam em direcção a casa dos Lucas, pois Kitty queria fazer uma visita a Maria; e, quando Kitty os deixou, Elizabeth continuou resolutamente com Darcy. Chegara agora o momento de pôr em prática a sua resolução, e, antes que a sua coragem fraquejasse, disse:

- Sr. Darcy, sou uma criatura muito egoísta; e, a fim de aliviar as incertezas dos meus sentimentos, vou talvez ferir os seus. Não posso adiar por mais tempo os agradecimentos que lhe devo pela sua inestimável intervenção a favor de minha irmã. Desde que tomei conhecimento de tal atitude, tenho ansiado por uma ocasião para lhe manifestar toda a minha gratidão. E, se todas as outras pessoas da minha família o soubessem, não lhe falaria apenas em meu nome.

- Sinto imensamente - replicou Darcy, num tom de surpresa e emoção - que tenha sido informada de um facto que, mal interpretado, poderia tê-la contrariado. Julguei poder confiar na discrição da Sr.a Gardiner.

- Não deve culpar a minha tia. Foi por uma inatenção de Lydia que eu soube que o senhor se tinha envolvido no caso; e, naturalmente, não descansei enquanto não fui posta ao corrente de tudo o que se passara. Deixe-me agradecer-lhe novamente, em meu nome e no da minha família, pela generosa compaixão que o levou a dar-se a todos os incómodos e a suportar tantas mortificações, na busca que lhes fez.

- Se insiste em agradecer-me - replicou ele -, faça-o apenas por si. Não nego que o desejo de lhe causar prazer tenha contribuído também para o que fiz. Mas a sua família nada me deve. Respeito-a muito, mas creio que foi só em si que pensei.

Elizabeth ficou tão embaraçada que não soube o que responder. Após uma pequena pausa, o seu companheiro acrescentou:

- Sei que é generosa de mais para fazer pouco de mim. Se os seus sentimentos são ainda os mesmos que manifestou em Abril passado, diga-mo imediatamente. O meu amor e os meus desejos permanecem inalterados; mas basta uma única palavra sua para que nunca mais lhe fale no assunto.

Elizabeth, sentindo, além do mais, a difícil e aflitiva situação em que Darcy se encontrava, esforçou-se então por falar; e imediatamente, embora de forma hesitante, lhe deu a entender que os seus sentimentos tinham sofrido uma transformação tão substancial desde o período a que ele aludira que a levavam agora a aceitar as suas declarações com prazer e gratidão. A felicidade que esta resposta causou em Darcy foi a maior que até então conhecera; e, na ocasião, ele exprimiu-a nos termos mais calorosos que o seu coração de apaixonado logrou encontrar. Se Elizabeth tivesse podido erguer os olhos, teria visto toda a felicidade reflectida no rosto dele, infundindo-lhe uma animação que o tornava belo; mas, se ela não podia olhar, podia ouvir, e ele contou-lhe tudo o que sentia, o que, ao provar a importância que ela tinha para ele, valorizava a cada instante o seu amor aos olhos de Elizabeth.

Continuaram a caminhar ao acaso. Profundamente absorvidos nos seus pensamentos, tinham, além disso, muito que sentir e muito para dizer. Elizabeth em breve ficou a saber que deviam o seu actual entendimento aos esforços da tia de Darcy, que, com efeito, o fora visitar no seu regresso e, de passagem por Londres, lhe relatara a sua viagem a Longbourn, a sua causa e a conversa que tivera com Elizabeth, repetindo enfaticamente cada uma das expressões desta última, expressões essas que aos olhos de Lady Catherine denotavam a perversidade e o cinismo da rapariga, com o intuito de desacre-ditá-la perante o sobrinho. Mas, infelizmente para Sua Excelência, o efeito tinha sido exactamente o oposto.

- Ensinou-me a esperar - disse ele - como nunca antes o tinha ousado fazer. Conhecia suficientemente o seu carácter para saber que, se estivesse absoluta e irrevogavelmente decidida a recusar-me, não hesitaria em dizê-lo a Lady Catherine com toda a franqueza.

Elizabeth corou e sorriu ao replicar:

- Sim, conhecia suficientemente a minha franqueza para saber-me capaz disso. Após tê-lo tratado de forma tão abominável pessoalmente, não teria escrúpulos em fazê-lo perante toda a sua família.

- Que me disse que eu não tivesse merecido? Pois, embora as suas acusações assentassem sobre premissas falsas, a minha atitude naquele tempo merecia as mais severas censuras. Era imperdoável. Não posso lembrar-me dela sem horror.

- Não discutiremos a quem cabe a maior culpa na desavença daquela noite - disse Elizabeth. - Se analisarmos bem, nenhum de nós se conduziu irrepreen-sivelmente; mas, desde então, creio bem que progredimos em delicadeza.

- Não me poderei reconciliar tão facilmente comigo mesmo. A recordação do que na altura disse, do meu comportamento, dos meus modos e das minhas expressões, tem sido durante todos estes meses, e continua ainda a ser, indizi-velmente doloroso. Nunca esquecerei aquele seu reparo, tão bem aplicado: «Se tivesse agido de forma mais cavalheiresca.» Foram estas as suas palavras. Não sabe, nem poderá imaginar, como essas palavras me torturaram, embora, confesso-o, só algum tempo depois lhes tenha reconhecido a justiça.

- Estava, decerto, muito longe de esperar que elas lhe produzissem uma impressão tão forte. E nunca pensei que elas pudessem ser sentidas de tal modo.

- Acredito perfeitamente. Considerava-me naquela altura destituído de todos os sentimentos humanos, tenho a certeza. Nunca esquecerei a expressão do seu rosto ao dizer-me que nada a poderia ter persuadido a aceitar a minha mão.

- Oh! Não repita o que eu disse! Tais coisas não devem ser lembradas. Acredite-me, há muito tempo que me envergonho profundamente delas.

Darcy mencionou a sua carta.

- Acaso ela - disse ele - me reabilitou aos seus olhos? Acaso acreditou no que nela eu lhe dizia?

Ela explicou-lhe os efeitos que a sua carta lhe tinha produzido e como, gradualmente, a sua antipatia se foi dissipando.

- Eu sabia - disse ele - que o que tinha para lhe escrever a iria ferir, mas era necessário. Espero que tenha destruído a carta. Não descansarei enquanto não tiver a certeza de que não a tornará a ler, sobretudo o começo. Lembro-me de certas expressões que poderiam justificadamente provocar o seu ódio contra mim.

- A carta será queimada, se acredita que isso seja essencial para a preservação da minha estima; mas, embora tenhamos ambos razões para pensar que as minhas opiniões não são inteiramente inalteráveis, não creio, por outro lado, que sejam tão facilmente influenciáveis como parece supor.

- Quando escrevia aquela carta - replicou Darcy - pensava que me encon-trava num estado de espírito perfeitamente calmo e frio, mas desde então descobri que a escrevera profundamente amargurado e triste.

- Talvez no princípio a carta denotasse uma certa amargura, mas ela não persistiu até final. A despedida era caridosa. Mas não pense mais na carta. Os sentimentos da pessoa que a recebeu e da pessoa que a escreveu são agora tão diferentes do que eram que todas as circunstancias dolorosas relativas a ela devem ser esquecidas. É preciso que aprenda um pouco da minha filosofia. Lembre-se apenas daquilo que lhe causa prazer.

- Não creio que necessite de qualquer filosofia do género na sua vida. As suas retrospecções devem ser tão totalmente desprovidas de mancha que o contentamento que delas extrai se deve não a uma filosofia, mas à ignorância, o que é muito melhor. Comigo, porém, não se passa o mesmo. Quando penso no passado, sou assaltado por dolorosas recordações que não podem, nem devem, ser repelidas. Toda a minha vida fui uma criatura egoísta, se não na prática, pelo menos nos meus princípios. Em criança ensinaram-me o que era certo, mas não me ensinaram a corrigir o meu génio. Deram me bons princípios, mas deixaram-me segui-los baseado no meu orgulho e no meu conceito. Desafor-tunadamente filho único (durante muitos anos fui o seu único filho), fui mimado pelos meus pais, que, embora fossem bons (o meu pai, sobretudo, era a benevolência e a afabilidade em pessoa), permitiram, encorajaram e quase me ensinaram a ser egoísta e tirânico, a não me interessar por ninguém para além do círculo da família, a desprezar todo o resto do mundo e a minimizar o seu bom senso e o seu valor comparados com o meu. Assim fui eu dos oito aos vinte e oito; e assim permaneceria ainda se não fosses tu, minha querida e encantadora Elizabeth! O que eu não te devo! Deste-me uma lição, dura a princípio, mas muito vantajosa. Fui, por ti, devidamente humilhado. Fui até ti, sem duvidar de que me aceitarias. Foi então que me revelaste a insuficiência de todas as minhas pretensões para agradar a uma mulher digna de ser amada.

- Estava realmente persuadido de que eu me sentiria lisonjeada?

- Confesso que estava. Que pensa da minha vaidade? Acreditei mesmo que desejava e esperava as minhas propostas.

- A culpa talvez caiba aos meus modos, mas não agi intencionalmente, asseguro-lhe. Nunca tencionei iludi-lo. Como me deve ter odiado, a partir daquela noite!

- Odiá-la! Fiquei furioso, talvez, a princípio, mas a minha fúria em breve tomou a direcção acertada.

- Quase não ouso perguntar-lhe o que pensou de mim quando me encontrou em Pemberley. Censurou-me intimamente por lá ter ido?

- Não, de modo algum, senti apenas surpresa.

- A sua surpresa não foi menor do que a minha ao ser notada por si. A minha consciência dizia-me que eu não merecia nenhuma delicadeza extraordi-nária e confesso que não contava receber mais do que o que me era devido.

- O meu objectivo naquela ocasião - replicou Darcy - era mostrar-lhe, por toda a delicadeza ao meu alcance, que não era tão mesquinho que guardasse rancor pelo passado; e esperava obter o seu perdão e apagar a má opinião que tinha de mim, dando-lhe a entender que tinha acatado as censuras que me fizera. A partir de quando outros desejos se introduziram, não lhe posso precisar, mas creio que meia hora depois de a ter visto.

Darcy contou-lhe então o prazer que Georgiana tivera em conhecê-la e o desapontamento que sentira com a súbita interrupção da sua visita. Passou, naturalmente, a falar nas causas dessa interrupção, e Elizabeth ficou a saber que a resolução dele em partir em busca da sua irmã fora tomada ainda na hospedaria, e que, se naquela ocasião se mostrava grave e pensativo, era porque debatia no seu espírito tal ideia e tudo o que ela acarretava. Ela tornou a exprimir a sua gratidão, mas o assunto era demasiado penoso para ambos para que insistissem nele.

Após caminharem várias milhas sem destino e ocupados de mais para se preocuparem com isso, descobriram finalmente, ao olharem para o relógio, que já tinha passado a hora de regressarem.

- Que será feito de Bingley e de Jane! - foi a observação que os introduziu na discussão do seu caso. Darcy estava encantado com o noivado; o seu amigo participara-lho sem demora.

- Devo-lhe perguntar se se surpreendeu? - disse Elizabeth.

- Não, de modo algum. Quando parti, já sabia que isso ia acontecer.

- Quer dizer, deu-lhe o seu consentimento. Bem me queria parecer. - E, embora ele protestasse contra o termo, ela percebeu que a sua suposição não estava muito longe da verdade.

- Na noite da minha partida para Londres - disse ele - fiz a Bingley uma confissão que há muito tempo lhe devia ter feito. Contei-lhe como tudo ocorrera, tornando absurda e impertinente a minha interferência na vida dele. Ele ficou muito surpreendido. Nunca suspeitara de nada. Disse-lhe, além disso, que tinha motivos para acreditar ter-me enganado quando lhe dissera que a sua irmã lhe era indiferente; e como, nessa altura, pude ver que a sua afeição por ela continuava inalterada, não duvidei da sua felicidade juntos.

Elizabeth não pôde deixar de sorrir pela facilidade com que ele conduzia o amigo.

- Baseou-se na sua própria observação - disse ela - quando lhe disse que a minha irmã gostava dele, ou apenas na minha informação da Primavera passada?

- Na minha observação. Durante as duas últimas visitas que aqui fiz, observei-a atentamente e fiquei convencido de que ela o amava sinceramente.

- E a sua certeza disso, suponho eu, em breve o convenceu a ele também.

- Sim. Bingley é extraordinariamente modesto. Foi isso que o impediu de confiar no seu próprio julgamento, mas a confiança que ele deposita em mim tornou tudo fácil. Fui obrigado a confessar-lhe uma coisa que durante vários dias o indispôs contra mim. Precisei de lhe dizer que tinha sabido da presença da sua irmã em Londres durante aqueles meses de Inverno e que propositada-mente escondera o facto do conhecimento dele. Ele ficou furioso, mas estou persuadido de que a sua fúria durou apenas enquanto duvidava ainda dos sentimentos de sua irmã. Já me perdoou.

Elizabeth sentiu-se tentada a observar que o Sr. Bingley tinha sido um amigo encantador, tão fácil de conduzir que o seu valor era incalculável, mas conteve-se. Lembrou-se de que ele precisava ainda de aprender a que se rissem dele e que era um pouco cedo de mais para começar. Ao prever a felicidade que esperava Bingley, que seria apenas menor que a sua, ele continuou a conversa até chegarem a casa. No vestíbulo, separaram-se.

 

- Minha querida Lizzy, por onde andaram? - foi a pergunta que Elizabeth recebeu de Jane quando ela entrou no quarto e de todos os outros quando se sentaram à mesa. Ela limitou-se a responder que se tinham distraído e caminhado mais longe do que esperavam, e, embora ela corasse, ninguém suspeitou da verdade.

A tarde passou calmamente, sem que nada de extraordinário ocorresse. Os noivos reconhecidos falaram e riram; os não reconhecidos permaneceram calados. Darcy não era daquelas pessoas em que a felicidade transborda em alegria; e Elizabeth, agitada e confusa, tinha consciência da sua felicidade, mas não a sentia propriamente; pois, para além dos obstáculos imediatos, ainda existiam outros à sua frente. Ela antecipava a reacção da família quando tomassem conhecimento da sua situação; sabia que ninguém gostava dele a não ser Jane; e receava mesmo que a antipatia deles fosse de tal ordem que toda a fortuna e importância de Darcy não pudessem dissipar.

À noite, ela abriu-se com Jane. Embora a suspeita não fizesse parte dos hábitos da Menina Bennet, desta vez Elizabeth esbarrou com a sua incredulidade.

- Estás a brincar, Lizzy. Não pode ser! Noiva do Sr. Darcy! Não, não penses que me enganas. Sei que tal coisa é impossível.

- Este começo não é, de facto, muito animador! Tu eras a única pessoa que eu contava que me acreditasse, e, se não acreditas, ninguém mais o fará. Porém, é verdade o que te digo. Ele ainda me ama e estamos noivos.

Jane olhou para ela, duvidosa:

- Oh, Lizzy! Não pode ser. Sei bem como tu o detestas.

- Tu não sabes absolutamente nada. Tudo isso é para esquecer. Talvez outrora eu não o soubesse apreciar como o aprecio agora, mas em casos como estes a boa memória é imperdoável. É esta a última vez que recordarei tais coisas.

Jane continuava atónita, e Elizabeth, de novo e com mais seriedade, a assegurou da verdade.

- Deus do Céu! Será possível! Porém vejo-me obrigada a acreditar em ti - exclamou Jane. - Minha querida, querida Lizzy! Eu gostaria... eu dou-te os meus parabéns... mas tens a certeza? Desculpa-me a pergunta... tens a certeza absoluta de que poderás ser feliz com ele?

- Quanto a isso, não pode haver a menor dúvida. Ficou decidido entre nós que seriamos o casal mais feliz do mundo. Mas estás contente, Jane? Gostarás dele para teu irmão?

- Muitíssimo. Nada nos poderia causar maior prazer, a Bingley e a mim. Conversámos sobre isso, mas achámo-lo impossível. E tu gostas realmente o suficiente dele? Oh, Lizzy! Faz o que entenderes, excepto casar sem amor. Estás certa da sinceridade e força do teu amor?

- Oh, sim! Quando eu te contar tudo, até acharás que eu amo de mais.

- Que queres dizer com isso?

- Quero eu dizer na minha que, se te disser que gosto mais dele do que tu de Bingley, receio que te zangues.

- Minha querida irmã, não brinques e falemos a sério. Conta-me, sem demora, tudo o que achas que eu devo saber. Diz-me: desde há quanto tempo gostas dele?

- Isso aconteceu tão gradualmente que não sei bem quando começou. Contudo, creio dever situar esse meu amor desde aquela primeira vez que vi o belo parque de Pemberley.

Seguiu-se outra súplica para que ela falasse seriamente, e Elizabeth acatou-a, dando à irmã as garantias mais solenes da sua afeição por Darcy Tranquilizada sob esse aspecto, Jane nada mais tinha a desejar.

- Agora sinto-me duplamente feliz - disse ela -, pois serás tão feliz como eu. Sempre o apreciei. Bastava, aliás, o amor dele por ti para que eu o estimasse para sempre, mas agora, como amigo de Bingley e teu marido, só Bingley e tu própria terão a sua precedência na minha afeição. Mas, Lizzy, foste muito astuta e reservada para comigo. Não me contaste praticamente nada do que se passou em Pemberley e Lambton! Tudo o que sei devo-o a outro e não a ti.

Elizabeth explicou-lhe a razão do seu segredo. Não quisera mencionar o nome de Bingley; e a incerteza dos seus próprios sentimentos fazia que ela calasse também o nome do amigo. Mas agora Elizabeth não podia esconder por mais tempo de sua irmã a participação de Darcy no caso de Lydia. Pô-la ao corrente de tudo e passaram metade da noite conversando.

- É de mais! - exclamou a Sr.a Bennet, quando se encontrava à janela, na manhã seguinte. - Então não é aquele desagradável do Sr. Darcy que torna a vir na companhia do nosso querido Bingley? Que desejará ele, com todas estas visitas? Não vê que nos importuna? Por que não vai ele caçar ou fazer qualquer outra coisa, em vez de nos impor a sua presença? Que faremos com ele? Lizzy, será melhor levá-lo de novo a passear, para que ele não se atravesse no caminho de Bingley.

Elizabeth por pouco não conteve o riso perante proposta tão conveniente; contudo, ficou contrariada por sua mãe insistir em tão desagradável epíteto.

Assim que entraram, Bingley olhou para Elizabeth tão significativamente e apertou-lhe as mãos com tanto calor que não deixava dúvidas de que estava bem informado; e pouco depois ele disse em voz alta:

- Sr.a Bennet, não tem no seu parque outros caminhos por onde Lizzy se possa perder de novo, hoje?

- Aconselho o Sr. Darcy, Lizzy e Kitty - disse a Sr.a Bennet - a darem um passeio até Oakham Mount. É um belo e longo passeio e o Sr. Darcy nunca viu a vista.

- Será perfeito para os outros - replicou o Sr. Bingley -, mas creio que demasiado distante para Kitty. Não achas, Kitty?

Kitty confessou que preferia ficar em casa. Darcy declarou que tinha toda a curiosidade em ver a vista e Elizabeth consentiu silenciosamente. Enquanto subia as escadas para se ir aprontar, a Sr.a Bennet acompanhou-a, dizendo:

- Sinto muito, Lizzy, por te obrigar a suportar a companhia daquele homem tão desagradável. Mas espero que não te importes muito: é tudo para o bem de Jane, como deves perceber; e depois, não precisarás de conversar muito com ele, apenas de volta e meia. Portanto, não te exponhas e não te tornes inconveniente.

Durante o passeio, ficou decidido entre eles que o consentimento do Sr. Bennet seria solicitado naquela mesma noite. Elizabeth encarregou-se ela própria de fazer a comunicação a sua mãe. Não sabia como a Sr.a Bennet reagiria, e por vezes duvidava de que toda a fortuna e importância de Darcy não fossem suficientes para vencer a antipatia que sua mãe tinha por ele. Porém, quer a Sr.a Bennet se declarasse violentamente contra o casamento, ou violentamente a favor, a filha estava certa de que a sua atitude seria pouco conveniente e sensata, e ela não estava disposta a tolerar que o Sr. Darcy assistisse às primeiras manifestações da sua alegria ou à veemência da sua desaprovação.

À noite, pouco depois de o Sr. Bennet recolher à sua biblioteca, Elizabeth viu o Sr. Darcy levantar-se igualmente e segui-lo, e ela ficou numa agitação extrema. Não receava a oposição do pai, mas sabia que o ia desgostar; e a ideia de que ela, a sua filha favorita, lhe causaria uma grande decepção com a sua escolha, enchendo-o de preocupações quanto ao seu futuro, fê-la aguardar, em profunda angústia e aflição, o momento em que o Sr. Darcy tornou a aparecer. Este sorriu-lhe e ela sentiu-se um pouco aliviada. Poucos minutos depois, ele aproximou-se da mesa onde Elizabeth estava sentada com Kitty e, fingindo admirar o trabalho que ela executava, sussurrou-lhe ao ouvido:

- Vá até à biblioteca. O seu pai quer falar-lhe.

Elizabeth partiu imediatamente.

Seu pai caminhava de um lado para o outro, com uma expressão grave e ansiosa.

- Lizzy - disse ele -, que fazes? Estarás no teu juízo perfeito aceitando este homem? Não o odiavas?

Naquele momento Elizabeth desejou ardentemente ter exprimido as suas opiniões anteriores com menos ênfase! Ter-lhe-ia poupado as explicações embaraçosas que agora se via obrigada a fazer. Era necessário. E, um tanto confusa, assegurou o pai da sua afeição pelo Sr. Darcy.

- Ou, por outras palavras, estás decidida a tê-lo para ti. Ele é rico, decerto, e poderás ter roupas e carruagens ainda mais belas do que as de Jane, Mas tudo isso te fará feliz?

- Não tem outra objecção a fazer-me - disse Elizabeth - senão a sua suposição de que eu lhe seja indiferente?

- Nenhuma. Todos sabemos que ele é um homem orgulhoso e desagradável; mas nada disso contaria aos nossos olhos se gostasses realmente dele.

- Gosto, gosto muito dele - replicou ela, com lágrimas nos olhos. - Amo-o sinceramente. O seu orgulho não é injustificado e ele é um homem bom e generoso. O pai não o conhece bem, por isso não me magoe falando nesses termos a respeito dele.

- Lizzy - respondeu o Sr. Bennet -, eu já lhe dei o meu consentimento. Ele é realmente um daqueles homens a quem eu nunca recusaria coisa alguma que ele condescendesse em pedir. E agora torno a dá-lo a ti, se estás verdadeira-mente decidida a obtê-lo. Mas deixa que te aconselhe a reflectir mais sobre o assunto. Conheço o teu génio, Lizzy, e sei que jamais poderás ser feliz sem que estimes verdadeiramente o teu marido, sem que o consideres teu superior. A tua vivacidade e inteligência colocar-te-iam numa situação de grande perigo num casamento desigual. Cairias facilmente nas garras do descrédito e da miséria. Minha filha, não me dês o desgosto de te ver impossibilitada de respeitar o companheiro da tua vida. Não te dás conta da gravidade do momento.

Elizabeth, ainda mais emocionada, respondeu-lhe solene e gravemente; e por fim, após repetidas vezes afirmar que o Sr. Darcy era realmente o homem da sua vida, explicar a mudança gradual por que tinha passado a sua estima por ele, relatar a absoluta certeza que tinha da sua afeição, que não era coisa de momento, mas que resistira à experiência de muitos meses de incerteza, e enumerar com energia todas as qualidades do seu futuro marido, acabou por conquistar a incredulidade do pai e reconciliá-lo com a ideia do casamento.

- Pois bem, minha querida - disse ele, quando Elizabeth acabou de falar. - Nada mais tenho para te dizer. Se é esse o caso, ele merece-te. Nunca me poderia separar de ti, minha querida Lizzy, entregando-te a alguém menos digno da tua estima.

Para completar a impressão favorável de seu pai, ela então relatou-lhe o que o Sr. Darcy voluntariamente fizera por Lydia. Ele ouviu-a com um espanto ilimitado.

- Realmente, esta é uma noite de surpresas! E assim, Darcy tratou de tudo! Fez o casamento, deu dinheiro, pagou as dívidas do outro e arranjou-lhe um novo cargo? Tanto melhor. Poupa-me inúmeros incómodos e avultada soma de dinheiro. Se tudo tivesse sido feito pelo teu tio, sentir-me-ia na obrigação de lhe pagar, e tê-lo-ia feito; mas estes jovens violentamente apaixonados hão-de querer tudo a seu modo. Oferecer-me-ei, amanhã, para lhe pagar, mas ele protestará com veemência, alegando o seu amor por ti e pôr-se-á ponto final no assunto.

O Sr. Bennet lembrou-se, então, do embaraço de Elizabeth a propósito da carta do Sr. Collins; e, após brincar com ela sobre o assunto, deixou-a final-mente partir, dizendo-lhe, quando ela já ia perto da porta:

- Se chegarem alguns jovens para Mary e para Kitty, manda-os entrar, pois estou à disposição.

Elizabeth sentia-se aliviada de um grande peso; e, após reflectir calmamente no seu quarto durante meia hora, voltou para junto dos outros com um rosto calmo e sereno. Tudo era ainda muito recente para que a sua alegria transbordasse. A noite passou tranquilamente; nada mais havia a temer e a calma voltaria aos poucos.

Quando a sua mãe subiu para o quarto, Elizabeth acompanhou-a e fez-lhe a importante comunicação. O efeito foi extraordinário, pois, ao ouvi-la, a Sr.a Bennet permaneceu completamente imóvel, incapaz de pronunciar urna palavra. Sb passados largos minutos ela pôde compreender o que ouvira, embora estivesse sempre atenta a tudo o que redundasse em proveito para a família, ou que se lhe apresentasse sob o aspecto de um noivo para qualquer uma das suas filhas. Finalmente, ela começou a voltar a si e a mexer-se na cadeira; levantou-se, tornou a sentar-se, abriu a boca de espanto e persignou-se.

- Deus do Céu! Deus me abençoe! Imagine-se! Quem poderia supor!? O Sr. Darcy! É mesmo verdade? Oh, minha querida Lizzy! Como serás rica e importante! Que mesadas, que jóias e que carruagens tu não terás! O casamento de Jane nada é em comparação com o teu! Sinto-me tão feliz, tão contente! Que homem encantador! Tão belo! Tão alto! Oh, minha querida Lizzy, perdoa-me ter antipatizado com ele no princípio! Estou certa de que ele me perdoará. Minha querida Lizzy... uma casa em Londres! Tudo o que há de melhor! Três filhas casadas! Dez mil libras por ano! Meu Deus do Céu, que será de mim? Enlouqueço.

Tais exclamações foram suficientes para mostrar que não havia dúvidas quanto à sua aprovação; e Elizabeth, felicitando-se por ser a única testemunha daquela efusão, em breve se retirou. Porém, ainda ela não se encontrava há bem três minutos no seu quarto, quando a sua mãe de novo lhe apareceu:

- Minha querida filha - exclamou ela -, não posso pensar noutra coisa! Dez mil libras por ano, e talvez mais! É tão bom como se se tratasse de um lorde! É necessário obter uma licença especial! Mas, meu querido amor, diz-me qual o prato preferido do Sr. Darcy, para eu lho dar amanhã.

Era um triste prenúncio do que poderia ser o comportamento da mãe para com o próprio cavalheiro; e Elizabeth descobriu que, embora de posse dos mais calorosos dos afectos e tranquila quanto ao consentimento dos pais, havia ainda algo a desejar. Mas o dia seguinte passou-se muito melhor do que ela esperara, pois a Sr.a Bennet, afortunadamente, tinha tanto respeito pelo seu futuro genro que só se atreveu a dirigir-lhe a palavra para lhe dizer alguma amabilidade ou manifestar a sua deferência pelas opiniões dele.

Elizabeth viu com satisfação o seu pai fazer esforços para melhor o conhecer; e o Sr. Bennet em breve a assegurou de que a sua estima por ele crescia a todo o momento.

- Tenho grande admiração pelos meus três genros - disse ele -: Wickham é talvez o meu preferido, mas creio que gostarei tanto do teu marido como do de Jane.

 

Readquirida a tranquilidade de espírito, e com ela o seu bom humor, Elizabeth exigiu do Sr. Darcy que ele lhe contasse como se apaixonara por ela.

- Como começou? - disse ela. - Compreendo que tenha progredido gradu-almente, após o primeiro passo; mas o que foi que o impulsionou?

- Não posso determinar a hora ou o lugar, o olhar ou as palavras que alicerçaram o meu amor. Já estava no meio e ainda não dera por que tivesse começado.

- Quanto à minha beleza, foi desde logo classificada por si, e, quanto aos meus modos, o meu comportamento para consigo andou perto da má educação, e quando me dirigia a si era quase sempre com o intuito de feri-lo. Agora, seja sincero: foi pela minha impertinência que me admirou?

- Admirei-a pela vivacidade do seu espírito.

- Ou impertinência, como queira. Pouco menos era do que isso. O que é certo é que estava farto de amabilidades, deferências e atenções. Desdenhava todas aquelas mulheres que falavam, agiam e pensavam com o único fito de o conquistar. Desperte a sua atenção porque eu era diferente delas. Se não tivesse um fundo realmente bom, ter-me-ia odiado. Mas, apesar do trabalho que teve em disfarçar os seus sentimentos, estes sempre foram nobres e justos. No seu coração, nunca deixou de desprezar as pessoas que o cortejavam tão assidua-mente. Ora aí tem... poupei-lhe o trabalho de uma explicação; e, de facto, pensando bem, começo a achá-la perfeitamente razoável. De resto, não me conhecia nenhuma boa qualidade, mas ninguém pensa nisso quando se apaixona.

- E não havia bondade na afectuosa atitude que teve para com Jane, quando ela esteve doente em Netherfield?

- Querida Jane! Quem não teria feito outro tanto por ela? Mas faça disso uma virtude, se quiser; as minhas boas qualidades ficam ao seu cuidado, e pode exagerá-las como melhor lhe convier. Em troca, cabe-me o direito de provocá-lo e discutir consigo todas as vezes que me apetecer; e, para começar, diga-me por que razão à última hora se mostrou tão indeciso. Por que razão se mostrou tão tímido comigo na primeira vez que nos visitou e, depois, quando aqui jantou? E, sobretudo, por que conservava uma atitude tão distante e fria?

- Porque também você se mantinha grave e silenciosa e não me deu qualquer encorajamento.

- Mas eu estava embaraçada.

- E eu também.

Podia ter procurado conversar mais comigo, quando veio jantar.

- Um homem menos apaixonado que eu talvez o tivesse feito.

- É pena que encontre para tudo uma resposta razoável e que eu tenha o bom senso de aceitá-la! Mas pergunto-me a mim mesma quanto tempo levaria ainda para se declarar, se eu não tivesse interferido! Pergunto-me quando se resolveria a falar, se eu não o tivesse interrogado! A minha resolução em agradecer-lhe a sua bondade para com Lydia teve, sem dúvida, um grande efeito. Receio que até demasiado, pois que será da moral se o nosso entendi-mento se deve a uma quebra de promessa, uma vez que eu não deveria ter mencionado o assunto? Assim não iremos longe.

- Não se preocupe. A moral está a salvo. As injustificadas tentativas de Lady Catherine para nos separar foram um meio de remover todas as minhas dúvidas. Não é ao seu ávido desejo de exprimir a sua gratidão que devo a minha actual felicidade. Não me sentia em estado de esperar muito tempo por uma intervenção sua. A comunicação da minha tia deu-me novas esperanças e eu estava decidido a saber tudo imediatamente.

- Lady Catherine foi-nos de imensa utilidade, e isso deverá torná-la feliz, pois ela gosta de ser útil. Mas, diga-me, por que veio a Netherfield? Foi apenas para passear até Longbourn e ficar embaraçado? Ou terá pensado na possibi-lidade de consequências mais sérias?

- O meu verdadeiro objectivo foi vê-la e verificar se poderia alguma vez fazer que gostasse de mim. O motivo declarado, ou pelo menos aquele que confessei a mim mesmo, foi verificar se a sua irmã ainda gostava de Bingley e, acaso ainda gostasse, fazer ao meu amigo a confissão que mais tarde realmente lhe fiz.

- Terá alguma vez a coragem de participar o nosso noivado a Lady Catherine?

- É mais fácil faltar-me o tempo do que a coragem. Mas, uma vez que tem de ser feito, dê-me uma folha de papel e escreverei neste mesmo instante.

- E, se eu não tivesse também uma carta a escrever, sentar-me-ia a seu lado e admiraria a regularidade da sua caligrafia, como certa jovem, um dia, já o fez; mas acontece que também tenho uma tia e estou em falta para com ela.

Elizabeth, que até então evitara ter de dizer aos tios que eles tinham exagerado a intimidade entre o Sr. Darcy e ela, ainda não respondera à carta da Sr.a Gardiner, mas, actualmente, sabendo que eles receberiam da melhor maneira a comunicação que tinha a fazer-lhes, ela sentiu-se quase envergo-nhada ao reflectir que os seus tios já tinham perdido três dias de felicidade, e imediatamente respondeu o seguinte:

 

Eu já lhe teria escrito, minha querida tia, para lhe agradecer, como devia, a sua longa e carinhosa carta, tão rica em pormenores, se, para lhe dizer a verdade, não me sentisse aborrecida de mais para o fazer. A tia supôs mais do que aquilo que realmente existia. Mas, agora, suponha tudo o que quiser; dê largas à fantasia e entregue-se à sua imaginação, para os voos mais arrojados, e, a menos que me imagine já casada, não errará por muito. Escreva-me tão depressa quanto puder e elogie-o a ele ainda mais do que na sua última carta. Não me canso de lhe agradecer por não me terem levado até aos Lagos. Não sei como pude ser tola a ponto de desejar tal passeio! A sua ideia dos garranos é encantadora. Percorreremos o parque todos os dias. Sou a criatura mais feliz do mundo. Talvez outras pessoas já o tenham dito antes, mas nunca com tanta justiça. Sou mais feliz até do que Jane; ela apenas sorri, eu rio. O Sr. Darcy envia-lhe todo o seu amor, aquele que ainda lhe resta. Contamos com todos em Pemberley, para passar o Natal.

                       A sua, etc.

 

A carta do Sr. Darcy para Lady Catherine foi escrita em estilo bem diferente. Diferente também de ambas foi a carta que o Sr. Bennet escreveu ao Sr. Collins, em resposta à última daquele cavalheiro.

 

           Caro Senhor,

Venho incomodá-lo mais uma vez para novas participações. Elizabeth será em breve a esposa do Sr. Darcy. Console Lady Catherine como puder. Mas, se fosse a si, tomaria o partido do sobrinho. Ele tem mais para dar.

               Sinceramente seu, etc.

 

Os parabéns que a Menina Bingley mandou ao irmão pelo seu próximo casamento foram tudo o que havia de mais afectuoso e menos sincero. Ela escreveu também a Jane, nessa ocasião, a fim de exprimir o seu contentamento e repetir todas as suas anteriores declarações de estima. Jane não se deixou iludir, mas ficou enternecida; e, embora não tendo confiança nela, não pôde deixar de lhe escrever uma carta muito mais amável e carinhosa do que ela sabia que a outra merecia.

A alegria que a Menina Darcy exprimiu ao receber informação semelhante foi tão sincera quanto a do seu irmão ao enviá-la. Quatro páginas foram insuficientes para exprimir todo o seu sentir e o seu sincero desejo de ser estimada pela sua futura irmã.

Antes de qualquer resposta do Sr. Collins ou parabéns de Charlotte para Elizabeth, a família de Longbourn soube que os Collins em pessoa tinham chegado ao Hertfordshire. O motivo dessa súbita viagem tornou-se logo evidente. Lady Catherine ficara tão exasperada com a carta do sobrinho que Charlotte, que na realidade se alegrava com o casamento, desejou ir-se embora até a tempestade passar. Num momento como aquele, a chegada da amiga causou um sincero prazer a Elizabeth, muito embora esse prazer tivesse de ser pago a alto preço, quando via o Sr. Darcy exposto às delicadezas obsequiosas e enfatuadas do Sr. Collins.

Darcy, no entanto, suportava tudo aquilo com uma calma admirável. Ouviu até com serenidade as palavras de Sir William Lucas, que o congratulou por ter conquistado a mais bela jóia do pais e exprimiu a esperança de todos eles se encontrarem frequentemente em St. James. Se ele chegou a encolher os ombros, foi apenas quando Sir William se afastou.

A vulgaridade da Sr.a Philips foi outra sobrecarga, talvez maior do que qualquer outra, para a paciência dele; e, embora a Sr.a Philips, tal como a sua irmã, a Sr.a Bennet, se sentisse atemorizada diante de Darcy, que não tinha o bom humor de Bingley, todas as vezes que abria a boca era para dizer coisas vulgares. Elizabeth fazia tudo o que podia para protegê-lo das frequentes atenções de ambas, atraindo-o constantemente para junto de si ou dos outros membros da sua família, com quem ele poderia conversar sem mortificação; e, embora as contrariedades consequentes tirassem ao período de noivado muito do seu encanto, faziam-na pensar com maior satisfação no futuro, antecipando a vida confortável e intimamente familiar que teriam em Pemberley, longe daquela sociedade tão pouco agradável para ambos.

 

Feliz para os seus sentimentos maternais foi o dia em que a Sr.a Bennet se viu livre de duas das suas filhas mais queridas. E fácil imaginar com que orgulho ela visitava, mais tarde, a Sr.a Bingley e falava da Sr.a Darcy. Desejaria poder acrescentar, em atenção pela sua família, que a realização do seu mais elevado desejo em ver casadas grande parte das suas filhas tivera o feliz efeito de a tornar numa mulher sensata, discreta e interessante para o resto da sua vida. Contudo, afortunadamente para o marido, que talvez não tivesse apreciado uma felicidade doméstica tão excepcional, ela continuou ocasionalmente nervosa e invariavelmente tola.

O Sr. Bennet sentiu grandemente a falta da sua segunda filha. A sua afeição por ela foi um dos motivos por que, dai por diante, mais o obrigaram a sair de casa. Adorava ir a Pemberley, sobretudo quando não era esperado. O Sr. Bingley e Jane ficaram em Netherfield apenas mais um ano. Tamanha proximidade da Sr.a Bennet e dos conhecidos de Meryton não era desejável, mesmo levando em conta o temperamento brando de Bingley e o coração afectuoso de Jane. O grande desejo das irmãs de Bingley foi finalmente satisfeito, e ele comprou uma propriedade nas proximidades do Derbyshire; e, em acréscimo a todas as suas outras felicidades, Jane e Elizabeth residiam agora a trinta milhas uma da outra.

Kitty passava a maior parte do tempo com as duas irmãs mais velhas, o que constituiu verdadeira vantagem para ela. Numa sociedade tão superior à que ela conhecera, em breve fez grandes progressos. Kitty não tinha o génio rebelde de Lydia, e, longe da influencia e do exemplo da irmã e graças a certos cuidados e atenções, ela tornou-se menos irritável, menos ignorante e menos insípida. Ela era cuidadosamente preservada de qualquer nova influência da parte de Lydia, e, embora a Sr.a Wickham frequentemente a convidasse a ir passar alguns tempos a sua casa, com promessas de bailes e rapazes, o seu pai jamais consentia que ela fosse.

Mary era a única que permanecia em casa; e, como a Sr.a Bennet não suportasse a solidão, ela viu-se necessariamente impedida de prosseguir no aperfeiçoamento dos seus talentos. Obrigada a frequentar mais assiduamente a sociedade, continuou, no entanto, a tirar conclusões morais de cada visita que fazia; e, como Mary já não sentisse a mortificação da comparação da beleza das suas irmãs com a dela própria, seu pai desconfiou que ela aceitava sem muita relutância essa alteração dos seus hábitos.

Quanto a Wickham e Lydia, o casamento pouco os modificou. Wickham resignou-se filosoficamente à convicção de que Elizabeth estava agora a par de todas as suas ingratidões e mentiras; mas, apesar disso, continuava a alimentar a esperança de que ela um dia pudesse convencer Darcy a fazer a sua fortuna. A carta que Elizabeth recebeu de Lydia por ocasião do seu casamento revelou-lhe que tal esperança era acalentada pela mulher, senão pelo próprio marido. A carta dizia o seguinte:

 

             Minha querida Lizzy,

Desejo-te grande felicidade. Se o teu amor pelo Sr. Darcy é apenas metade do que eu sinto pelo meu marido Wickham, então és decerto muito feliz. E um consolo saber-te tão rica, e, quando não tiveres nada para fazer, espero que te lembres de nós. Wickham gostaria muito de enveredar pela carreira jurídica, mas não creio que tenhamos dinheiro suficiente para vivermos sem auxílio. Qualquer lugar de trezentas ou quatrocentas libras por ano serviria; mas, se preferes, não menciones o assunto ao Sr. Darcy.

                    A tua, etc.

 

Como Elizabeth preferiu não mencionar o assunto, procurou, na sua resposta, pôr termo a todos os pedidos dessa natureza. No entanto, ela passou a enviar-lhe tudo o que economizava das suas despesas particulares. Sempre lhe parecera evidente que a renda de que eles gozavam, dirigida por pessoas tão extravagantes nos seus desejos e imprevidentes quanto ao futuro, seria insuficiente para o seu sustento; e, sempre que o casal mudava de residência, Jane e Elizabeth podiam estar certas de receber um pedido de auxílio, pois havia sempre contas por pagar. A sua maneira de viver, mesmo quando tinham uma casa, era sempre muito irregular. Estavam constantemente em mudança, de localidade para localidade, em busca de uma situação barata, e gastavam sempre mais do que possuíam. A afeição de Wickham por Lydia em breve se transformou em indiferença. A de Lydia resistiu por mais algum tempo. Apesar da sua mocidade e das suas maneiras, ela conservou intacta a reputação que o casamento lhe havia assegurado.

Embora Darcy não admitisse a ideia de receber Wickham em Pemberley, contudo, em atenção por Elizabeth, ajudou-o na sua carreira. Lydia visitava-os ocasionalmente, quando o seu marido ia a Londres ou a Bath, para se divertir. Em casa dos Bingley, no entanto, eles demoravam-se mais tempo, a ponto de esgotar toda a paciência e bom humor de Bingley, que chegou a falar em dar-lhes a entender que os desejaria ver da sua casa para fora.

A Menina Bingley ficou profundamente mortificada com o casamento do Sr. Darcy; mas, como achou aconselhável conservar o direito de frequentar Pemberley, sufocou todo o seu ressentimento. Continuou a gostar de Geor-giana, mostrou-se quase tão atenciosa para com Darcy como antigamente e pagou com juros todas as cortesias que devia a Elizabeth.

Georgiana foi residir para Pemberley. A afeição entre as duas novas irmãs correspondeu a todas as expectativas de Darcy, e até mesmo às intenções das duas raparigas. Georgiana tinha uma grande admiração por Elizabeth. A princípio, fora com assombro e um pouco de horror que ouvira os gracejos e brincadeiras de Elizabeth para com o marido. O irmão sempre lhe inspirara um respeito que quase sufocava a sua afeição. Começou, então, a saber coisas que ignorava: e Elizabeth explicou-lhe que uma esposa pode-se permitir com o marido liberdades que um irmão nem sempre poderia tolerar na irmã dez anos mais jovem do que ele.

Lady Catherine ficou extremamente indignada com o casamento do sobrinho; e, dando largas à franqueza que a caracterizava, ela enviou uma resposta em termos tão violentos, especialmente contra Elizabeth, à carta de participação do sobrinho que durante algum tempo as relações mantiveram-se totalmente cortadas. Por fim, contudo, Elizabeth conseguiu o perdão do marido para a ofensa e fez que ele procurasse a reconciliação. Após alguma resistência, o ressentimento de Lady Catherine cedeu, quer pela afeição que tinha pelo sobrinho, quer pela sua curiosidade em ver como a sua esposa se conduzia; e consentiu em ir visitá-los a Pemberley, apesar da afronta aos seus ilustres antepassados, não só pela presença de uma esposa de tão baixa extracção, como pelas visitas constantes dos seus tios de Londres.

Com os Gardiner, eles mantiveram sempre grande intimidade. Darcy, a exemplo de Elizabeth, tinha a maior afeição por eles, pois, além de tudo o mais, nunca se esqueceram da gratidão que deviam às pessoas por cujo intermédio eles tinham reatado as suas relações, durante aquele passeio pelo Derbyshire.

 

                                                                                Jane Austen  

 

                      

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