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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS AMBICIOSOS / Harold Robbins
OS AMBICIOSOS / Harold Robbins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS AMBICIOSOS

Primeira Parte 

 

                         AGORA

A última vez em que vi meu pai ele estava deitado de costas, no caixão, os olhos fechados, uma serenidade inesperada nas feições firmes, os cabelos brancos abundantes e as sobrancelhas espessas impecavelmente escovados. Fiquei parado ali, no silêncio da capela, contemplando-o. Havia algo errado. Totalmente errado. Depois de um momento, percebi o que era. Meu pai nunca dormira de costas. Não o vira dormir assim nem uma única vez em todos os anos que o conhecia.

Geralmente meu pai dormia de lado, o peito imenso e a barriga protuberante afundando no colchão, um braço por cima dos olhos, para protegê-los da luz, o rosto franzido numa expressão de intensa concentração durante o sono. Agora, nada mais havia. Nem mesmo o ódio da manhã que viria arrancá-lo de seu mundo particular. E depois a tampa do caixão foi baixada e nunca mais tornei a vê-lo.

Fui inundado por uma sensação de alívio. Estava tudo acabado. E eu estava livre. Desviei os olhos do lustroso caixão de cobre e mogno, levantando a cabeça.

O ministro estava gesticulando para que nos retirássemos. Comecei a encaminhar-me para a porta. Meu irmão, D. J., o que significava Daniel, Júnior, tratou de puxar-me e sussurrou, asperamente:

— Pegue o braço de sua mãe. E tire da cara esse sorriso estúpido. Há um milhão de fotógrafos lá fora.

Fitei-o fixamente, ele estava com 37 anos, era 20 anos mais velho do que eu... e estávamos separados por mundos de distância. D J era um filho do primeiro casamento de meu pai, enquanto eu era o produto do último. No intervalo, meu pai tivera outras mulheres, mas não outros filhos. Desvencilhei o braço bruscamente e disse:

— Vá-se foder.

Saí para a pequena ante-sala da capela funerária, onde a família devia esperar até que as limusines do cortejo fúnebre estivessem em posição para a partida. Acendi um cigarro. Diversos amigos íntimos e associados de meu pai já estavam ali.

Moses Barrington, o assistente-executivo de meu pai, aproximou-se, o rosto preto brilhando com o calor.

— Como está sua mãe?

Dei uma tragada no cigarro, aspirando a fumaça para o fundo dos pulmões, antes de responder.

— Está bem.

Ele ficou observando a espiral de fumaça sair do meu nariz.

— Pode acabar com câncer, se continuar fumando assim.

— Sei disso. Li o aviso no maço.

A porta se abriu e todos os olhos se viraram naquela direção. Minha mãe apareceu, apoiando-se no braço de D. J. Ele a enlaçava com o outro braço, como a ampará-la. Parecia mais como um irmão mais velho do que um enteado. O que de certa forma era compreensível, já que era três anos mais velho.

O preto da viuvez fazia minha mãe parecer ainda mais jovem. Tornava a pele branca ainda mais alva e ressaltava os cabelos louros compridos. Assim que a porta se fechou atrás deles, a fragilidade de viúva se desvaneceu. Ela se desvencilhou do braço de D. J.   e caminhou em minha direção.

— Jonathan, meu filho, você é tudo o que me resta agora...

Dei um jeito de evitar os braços dela. Aquilo que não podia ser verdade, a se acreditar em metade das coisas que os jornais haviam publicado a respeito de meu pai. Ele conseguira acumular uma grana alta pelo caminho. Com ou sem sindicato. Com ou sem Departamento de Justiça. Com ou sem cadeia.

Minha mãe ficou parada ali por um momento, as mãos segurando o ar. Depois, baixou os braços e disse:

— Dê-me um cigarro.

Estendi o maço e depois acendi o cigarro. Ela deu uma tragada, murmurando:

— Assim é melhor...                                                    

Observei um pouco de cor retornar ao rosto dela. Era uma mulher bonita e sabia disso.

— Quando voltarmos para casa, precisamos ter uma conversa.

— Está certo. — Apaguei o   cigarro   numa caixa   de   areia. — Ficarei esperando por você lá.

— Vai esperar-me? — A voz dela era meio aturdida.

— Não vou   ao cemitério.

— Que história é essa? — indagou D. J., aproximando-se por trás de minha mãe. — O que os outros vão pensar?

— Estou cagando e andando para o que os outros vão pensar.

— Mas é muito importante. O funeral vai aparecer nos jornais nacionais da televisão. O pessoal dos sindicatos do país inteiro vai assistir.

— Pois então cuide de ficar bem na frente, onde todos possam vê-lo. Isso é tudo o que importa. Você é que vai ser o próximo presidente nacional deles e não eu.

Ele virou-se para minha mãe.

— Margaret, é melhor fazê-lo ir.

— Jonathan...

Não a deixei continuar:

— Não vou mesmo, mamãe. É pura perda de tempo. Não gostava dele quando estava vivo e agora que está morto não há razão para fingir que mudei de opinião. É um costume bárbaro e hipócrita e não quero participar.

Houve um silêncio opressivo na sala,enquanto eu saía. Quando me virei para fechar a porta, percebi que todos se apinhavam em torno de minha mãe. Somente Jack Haney continuava onde estava, encostado na parede, observando. Não tinha pressa nenhuma. Iria ao encontro dela mais tarde. Na cama. Isto é, se Jack ainda a quisesse, agora que ela não era mais a esposa do presidente nacional e não mais poderia ser-lhe útil. Os olhos dele se encontraram com os meus. Jack acenou com a cabeça. Sacudi também a cabeça em resposta e fechei a porta silenciosamente.

Jack não era um mau sujeito. Não era pior do que todos os outros que cercavam meu pai. Não podia culpá-lo pelo que fazia, assim como não podia culpar minha mãe. Meu pai corrompera o mundo a seu redor.

Saí por uma porta lateral, a fim de evitar a multidão comprimida diante da agência funerária. D. J. estava certo. Havia centenas de pessoas esperando. E as câmaras de televisão achavam-se devidamente postadas na frente da porta principal, um batalhão de jornalistas por trás. Encostei na parede e fiquei observando.

As pessoas estavam saindo da capela naquele momento e entrando em suas imensas limusines pretas. O Vice-Presidente dos Estados Unidos foi o primeiro. Parou diante das câmaras de TV, o rosto afilado exibindo a expressão soturna apropriada. Os lábios se mexeram. Não podia ouvir o que ele dizia, mas não tinha a menor dúvida de que era uma declaração apropriada para o momento. Afinal, os trabalhadores sindicalizados ainda tinham permissão para votar. Depois, apareceram governadores, senadores, deputados, prefeitos, outras autoridades e líderes sindicais. Um a um, postaram-se sob o foco dos refletores, na esperança de que, quando a notícia fosse transmitida pela emissora local, não esquecessem de apresentar o produto da cidade.

Um caminhão parou bruscamente na viela, atrás de mim. Houve o som de passos e pude sentir o cheiro do homem antes mesmo de me virar para vê-lo. Ninguém precisava informar-me que era um caminhão de lixo.

— É o funeral de Big Dan?

Olhei para o homem. O distintivo sindical, pequeno, azul e branco, estava pregado no bolso do blusão encardido, manchado de gordura.

— É, sim.

— Uma multidão e tanto.

— Hum, hum...

— Tem alguma gata interessante?

— Por que pergunta?

— Pelo que todo mundo diz, Big Dan não era fácil com as mulheres. O nosso representante no sindicato esteve com ele algumas vezes e contou que sempre havia muita mulher e muito uísque toda vez que Big Dan estava presente.

— Não vi nenhuma.

— Oh! — Ele parecia desanimado, mas voltou a se animar quando falou:

— É verdade que havia uma garota com ele no avião, quando houve o acidente?

Decidi que não devia desapontá-lo ainda mais por aquele dia. Baixei a voz para um sussurro, apesar de não haver a menor necessidade. Não havia ninguém a menos de 30 metros de nós.

— Sei o que realmente aconteceu.

Ele tirou do bolso um maço de cigarros e estendeu-o em minha direção. Cada um acendeu o seu, o homem sem tirar os olhos de mim, na maior expectativa.

— Já ouviu falar do Clube do Quilômetro de Altura?

O homem sacudiu a cabeça.

— O que é isso?

— Se você come uma gata num avião, torna-se automaticamente sócio.

— Santo Deus! — exclamou ele, reverentemente. — Era isso o que Big Dan estava fazendo?

— Melhor do que isso. Estava com uma loura de peitos grandes. E ela estava ajoelhada diante dele, os peitos no colo dele, com o pau no meio. E dava uma chupada quando o avião saiu das nuvens e a montanha apareceu bem na frente. Big Dan tentou puxar a alavanca de comando em sua direção, a fim de levantar o avião. Mas não conseguiu, pois a cabeça da loura bloqueava o caminho.

— Santo Deus! — exclamou o homem novamente. — Que maneira de morrer!

Não respondi. Ele olhou novamente para a multidão e comentou:

— Tem gente que não acaba mais.

— Hum, hum...

— Ele era mesmo o maior — murmurou o homem, em tom de admiração. — Meu velho me contou que durante a Depressão ganhava 9 dólares por semana para fazer o mesmo trabalho que tenho agora. Só que estou ganhando 195 dólares por semana. Big Dan era o melhor amigo que o trabalhador jamais teve.

— Era um filho da puta. Tudo o que o trabalhador significava para ele era poder.

— Ei, espere aí! — disse o homem, cerrando o punho, ameaçadoramente. — Não tem o direito de dizer uma coisa dessas.

— Tenho todo o direito do mundo. Era meu pai.

Uma expressão estranha apareceu no rosto dele. Depois, o punho relaxou.

— Lamento, garoto.

O homem voltou para o caminhão. Fiquei observando-o entrar na cabine e partir. Depois, virei-me novamente e olhei para a entrada da agência funerária. Mamãe e D. J. estavam saindo. Os fotógrafos se adiantaram aos empurrões. Virei-me novamente e comecei a me afastar pela viela, no momento em que eles entravam na limusine.

— Isso não é jeito de falar de seu pai.

— Vá embora, velho.   Você está morto.

— Não estou morto. Continuarei vivo enquanto você estiver vivo, enquanto seus filhos e os filhos deles estiverem vivos. Há algo de mim em cada célula do seu corpo e não tem a menor possibilidade de livrar-se de minha presença.

— Está morto, morto, morto.

— Tem dezessete anos e não acredita em nada, não é mesmo?

— Exatamente.

— Gostaria de saber o que realmente aconteceu naquele avião antes do desastre?

— Claro que gostaria.

— Pois já sabe. Contou àquele lixeiro.

— Inventei a história.

— Não, não inventou. Pus as palavras em sua boca. Não se esqueça de que seu cérebro também é feito de células.

— Não acredito no que está dizendo. Sei que está mentindo. Sempre me mentiu.

— Nunca menti para você. Não podia mentir. Você era parte de mim. Era a minha verdade. Não era como seu irmão. Ele é uma cópia de mim. Mas você. . . é você mesmo. Ê a minha verdade.

— Mentiras, mentiras, mentiras. Nem mesmo o túmulo o impede de dizer mentiras!

— O que estão levando para o cemitério nada representa. Ê apenas um corpo, uma casca vazia. Eu estou aqui. Dentro de você.

— Pois não o estou sentindo, papai. Nunca o senti. E não o sinto agora.

— Mas vai sentir, com o tempo.

— Nunca!

— Jonathan, meu filho. . .

— Vá embora, velho. Está morto.

Virei a esquina de minha rua. E avistei imediatamente os carros estacionados diante da casa. Vários homens estavam parados ali, à sombra das árvores. Repórteres. Pensara que, àquela altura, já teriam ido embora. Mas continuavam a esperar. Aparentemente, Big Dan era notícia mesmo depois de morto e enterrado.

Segui pela rua por trás da casa e subi pelo caminho de carro da casa dos Forbeses. Nossa entrada dos fundos ficava à direita, por trás da cerca que separava as duas casas.

Estava passando com todo cuidado por cima do canteiro encostado na cerca, sabendo como a Sra. Forbes era histérica em relação a suas flores. Já estava com um pé na cerca quando Anne me chamou. Com o mesmo cuidado, tornei a pôr o pé no chão e virei-me. Ela estava sentada na varanda dos fundos e tinha um copo de vinho na mão.

— Pensei que estava no funeral — disse ela.

— Fui ao serviço fúnebre, mas decidi não ir ao cemitério. Era demais para mim. E vim por aqui porque os repórteres ainda se encontram lá na frente e não estou com a menor vontade de falar com eles.

— Sei disso. Eles vieram até aqui esta manhã. Queriam saber que tipo de vizinho era seu pai.

— E o que respondeu?

— Não falei com eles. Mamãe e papai é que falaram. — Anne soltou uma risadinha. — E disseram que seu pai era um grande homem. Mas acho que pode imaginar.

Não pude deixar de sorrir. Jamais houvera qualquer amor entre os Forbeses e meu pai. Quando nos mudáramos, os Forbeses haviam liderado a luta contra meu pai. Não queriam que um gângster sindical comunista poluísse o ar puro de Westchester.

— Onde estão seus pais agora, Anne?

Ela soltou outra risadinha.

— No funeral. Onde pensava que eles poderiam estar?

Também ri. O mundo inteiro era povoado por hipócritas.

— Quer um copo de vinho?

— Não. Mas tomo uma lata de cerveja, se tiver.

— Vou pegar.

Anne desapareceu pela porta da cozinha, enquanto eu subia para a varanda. Ela voltou um momento depois com uma lata gelada de Miller's.

Puxei a tampa e a cerveja gelada esguichou-me sobre a mão. Levei-a rapidamente à boca. Não sabia como estava ressequido e sedento até que senti o travo gelado na garganta. Já tinha tomado a metade da lata quando parei para respirar. Encostei-me na grade da varanda.

— Você está na pior — comentou Anne.

— Não estou tão mal assim.

— Pior do que imagina. — Os olhos dela se fixaram na lata de cerveja. — Suas mãos estão tremendo.

Levantei a lata de cerveja. Ela estava certa.

— Não dormi muito ontem à noite.

— Quer um tranqüilizante?

Sacudi a cabeça. Não era de ficar tomando pílulas a torto e a direito.

— Tenho uma erva da boa. Posso enrolar um cigarrinho.

— Não, obrigado. Não estou com vontade.

— Importa-se de eu fumar?

— À vontade.

Anne pegou a pequena bolsa de fumo Bulldog que estava no chão, ao lado de sua cadeira. Enrolou rapidamente o baseado. Bateu as pontas, impecavelmente, depois acendeu-o. Deu uma tragada funda, tomou um gole de vinho, e deu outra tragada.

Um brilho intenso surgiu nos olhos de Anne. Não precisava de muito para entrar numa viagem... estava sempre nela, durante todo o tempo.

— Estive pensando em seu pai.

— É mesmo?

— E passei a tarde inteira com a maior tesão, só de pensar nele. Há alguma coisa na morte que deixa a pessoa acesa.

Tomei outro gole de cerveja.

— Nunca pensei nisso.

— Pois é verdade. Li em algum lugar que na última guerra, quando as bombas estavam caindo, todo mundo ficava aceso. Acho que tem algo a ver com a imortalidade.

— Isso é profundo demais. Já parou para pensar que talvez as pessoas estivessem simplesmente com vontade de trepar e que era um bom pretexto para quebrar as regras?

— É mais do que apenas isso. Quando acordei esta manhã, fiquei pensando como era triste ele ter morrido e que nunca mais teria outra   oportunidade de   deixar mais   de si mesmo.   Depois, pus-me   a pensar como seria maravilhoso   se tivéssemos trepado uma vez que fosse e ele deixasse um filho em meu ventre. E senti tanta tesão que já me fiz gozar três vezes hoje.

Soltei uma risada.

— Isso é que é tesão!

Anne me fitou com uma expressão ressentida.

— Não está compreendendo.

— Meu pai tinha setenta e quatro anos e você tem apenas dezenove.

— A idade não importa.   Você está com dezessete anos, e tinha quatorze quando trepamos pela primeira vez. Isso não nos deteve.

— É diferente.

— Não é, não. Já trepei com homens mais velhos. É a mesma coisa. Tudo está na maneira como a gente sente. — Anne deu outra tragada e tomou mais um gole de vinho. — Mas agora ele está morto e tudo o que posso fazer é lamentar não termos trepado.

Terminei a cerveja e amassei a lata.

— Obrigado pela cerveja.

— Não há de quê.

Virei-me para ir embora. Anne me chamou.

— O que pretende fazer agora? Isto é, o que está pensando em fazer neste verão?

— Pensei em fazer uma excursão até as aulas recomeçarem, no outono. Mas agora não sei mais.

— Já vai completar dezoito anos.

— Isso mesmo. E passo a votar e todas as outras merdas. Mais dois meses e viro adulto. Mais sete semanas. — Olhei para a espiral de fumaça que saía pelas narinas de Anne. — Gostaria que me explicasse uma coisa.

— O quê?

— Se sentia tanta tesão por meu pai, por que não fez alguma coisa para resolver o problema?

— Acho que fiquei com medo.

— De quê?

Os olhos de Anne estavam pensativos.

— De rejeição. Que ele pudesse rir de mim. Pensar que eu não passava de uma criança tola. — Hesitou por um momento. — Já me aconteceu uma vez. Com outro homem. Levei meses para me recuperar.

— Não teria acontecido com meu pai — falei. E pulei por cima da grade da varanda, caindo na terra macia.

— Jonathan... — Ela se aproximou da grade da varanda e fitou-me. — Não se sente sozinho? Terrivelmente sozinho?

— Sempre me senti. Até mesmo quando ele estava vivo.

Peguei a chave embaixo do capacho e entrei em casa. Fui para a cozinha. O único barulho em toda a casa era o dos meus passos. Havia pratos empilhados impecavelmente no balcão ao lado da pia e panelas no fogão. O mundo podia acabar, mas Mamie teria tudo pronto para o jantar às sete horas. Era a hora que meu pai gostava de jantar. Fiquei pensando se essa rotina não iria mudar agora. Subitamente, senti fome. Abri a geladeira, encontrei o presunto e o queijo, preparei um sanduíche. Peguei uma lata de cerveja e sentei à mesa da cozinha. Dei a primeira mordida no sanduíche antes de perceber o que estava errado. Não havia qualquer outro som na casa.

Levantei-me e liguei a TV que havia na cozinha. O zumbido do aparelho esquentando acompanhou-me de volta à cadeira. Um momento depois, a tela adquiriu vida e meu pai fitou-me de cara amarrada. A voz áspera se espalhou pela cozinha.

Era o seu discurso mais famoso. O Desafio à Democracia.

“Um homem nasce, trabalha e morre. E não há mais nada. . .”

Levantei-me novamente e mudei de canal. Já tinha ouvido aquele discurso antes. Estava passando uma reprise de Jornada nas Estrelas no Canal 11. Ajeitei-me com esse programa. Monstros de outros mundos eram muito mais apetecíveis do que os monstros deste mundo. O Sr. Spock apresentou o seu número. Jamais exibia um sorriso.

Terminei o sanduíche e saí da cozinha, deixando a televisão ligada. O barulho acompanhou-me pela casa. Espiei pelas janelas antes de subir para meu quarto. Os repórteres ainda estavam lá fora.

Tirei o terno e vesti uma calça americana e uma camisa de malha. Troquei os sapatos pretos de couro por sapatos de lona. Fui para o banheiro e tirei toda a sujeira dos cabelos. Contemplei-me no espelho. Meu rosto fitou-me de volta com uma expressão crítica.

Nada mau. Não tinha espinhas.

Acenei com a cabeça para meu reflexo e depois desci. A porta do escritório de meu pai estava aberta. Fiquei parado ali por um momento, antes de entrar.

Já havia algo de bolorento na sala. Como se de repente tivesse virado a sala de ontem. Podia-se sentir que, de alguma forma, não era mais a sala de meu pai.

Avancei alguns passos e olhei para a escrivaninha. Achava-se coberta de relatórios e outros papéis. Diversos cinzeiros ainda continham pontas de charuto, e a cesta de papel estava cheia. Lentamente, contornei a escrivaninha e me sentei na imensa cadeira de couro. Ainda estava moldada pelo traseiro grande de meu pai e afundei direto. Tratei de me endireitar e dei uma olhada nos papéis.

A maior parte era constituída por relatórios de diversos pontos do país. Cobranças devidas, contas atrasadas, avisos de contratos. As coisas mais insípidas do mundo. Não entendia por que meu pai desperdiçava tanto tempo examinando tudo aquilo, quando tinha tantas outras coisas para fazer.

Houve uma ocasião em que perguntei. E lembrei agora a resposta:

— Não se pode dirigir um grande negócio, filho, sem estar a par da situação de suas finanças a cada minuto. E não se esqueça de que a nossa organização sindical é uma das maiores do país. Só o fundo de pensão tem um saldo de quase duzentos milhões de dólares. Temos investimentos em tudo, de títulos do governo a Las Vegas.

— Sendo assim, papai, não é diferente de qualquer das companhias que combate. Só está preocupado com os lucros.

— Temos motivações diferentes, filho.

— Não vejo onde está a diferença. Quando se trata do seu dinheiro, é tão reacionário quanto qualquer outro.

Meu pai tirou os óculos de ler, de lentes grossas, colocou-os em cima da mesa.

— Nunca imaginei que se interessava pelo que fazemos.

— E não me interesso — apressei-me em dizer. — Apenas chego à conclusão, pelo que vejo, de que não há a menor diferença entre os grandes sindicatos e as grandes empresas. É tudo a mesma coisa. Só dinheiro importa.

Os penetrantes olhos azuis de meu pai esquadrinharam-me o rosto. E finalmente ele disse:

— Algum dia, quando eu tiver tempo, vamos conversar sobre isso. Creio que poderei convencê-lo de que está enganado.

Mas como sempre acontecia, quando chegava a minha vez, ele não tinha tempo. E agora era tarde demais. Larguei os papéis e comecei a abrir as gavetas.

A gaveta do meio estava repleta de mais papéis. E o mesmo acontecia com a gaveta de cima do lado esquerdo. Mas não havia nada na gaveta de cima do lado direito. Absolutamente nada.

Não fazia sentido. Todas as outras gavetas estavam atulhadas, quase transbordando. Enfiei a mão na gaveta e tateei até o fundo. Nada. Só depois é que descobri um pequeno botão. Apertei-o e o fundo da gaveta deslizou para a frente.

Olhei para o fundo falso. Lá estava um imenso Colt de uso privativo do governo, automático, de um preto azulado, aspecto mortífero. Lentamente, estendi a mão e peguei-o. Pesava uma tonelada em minha mão. Não era nenhum brinquedo, mas algo muito sério. Lera em algum lugar que uma bala de um Colt 45, automático, deixava um buraco tão grande quanto um dólar de prata ao sair do outro lado.

Tornei a pôr a arma na gaveta e fechei-a. Continuei sentado ali olhando para a gaveta fechada. Finalmente, levantei-me e deixei a sala. Peguei outra lata de cerveja na geladeira e saí para a varanda dos fundos.

Anne ainda estava sentada no mesmo lugar em que a deixara. Ela me acenou. Acenei em resposta, depois me sentei na cadeira de balanço. Tomei um gole de cerveja. Ficamos os dois sentados assim, apenas olhando um para o outro, por cima da cerca que separava os quintais.

— Por que revistou minha escrivaninha?

— Não sei. Talvez só porque estava ali.

— Não tenho objeções. Estava apenas curioso.

— Está morto. Não deve mais se importar com essas coisas. Os mortos não têm privacidade.

— Não estou morto.   Pensei   que já   estivesse   começando   a compreender isso.

— Chega de merda. Um morto está morto.

— Os mortos nunca estão mortos. Você ainda está vivo.

— Mas você não está.

— Por que mudou a televisão para Jornada nas Estrelas? Ficou com medo de me olhar?

— Era um programa melhor.

— Por que está sentado aqui? Pensei que fosse partir.

— Ainda não me decidi.

— Pois vai embora.

— Por que tem tanta certeza?

— Aquela garota que está ali. Ainda não acabei com ela.

— Não mudou nada, não é mesmo?

— Por que deveria? Você ainda está vivo.

A lata de cerveja estava vazia. Levantei-me e joguei-a na lixeira de plástico que estava ao lado da porta da cozinha. Abri a porta, e dei um passo para tornar a entrar em casa. Olhei para trás.

Anne continuava sentada. A fumaça do cigarro se enroscava diante do rosto dela, os olhos me observavam. A esta altura, tinha de estar completamente alta. E logo Anne me acenou com a cabeça e se levantou lentamente. Observei-a desaparecer por detrás da porta de tela e ouvi o estalido do trinco. O som pareceu perdurar até que fechei a porta. Subi para meu quarto, joguei-me na cama e adormeci quase que imediatamente.

Fui despertado pelo zumbido de vozes subindo do chão. Abri os olhos. O sol da tarde já se afastara das janelas. Olhei para o teto, escutando o zumbido de vozes que vinham lá de baixo.

Era familiar e estranhamente confortador. Não haviam sido poucas as noites em que dormira assim, com os sons de conversa abafada nos ouvidos. Meu quarto ficava bem em cima do escritório de papai.

Era familiar, mas havia algo diferente desta vez, algo que faltava. Levei um momento para compreender o que era: a voz dele estava faltando. Não sei como, eu sempre pudera ouvi-la acima de todas as outras.

Levantei-me da cama e desci. A porta do escritório achava-se fechada, as vozes se filtravam pela madeira. Abri-a e dei uma olhada. A sala ficou subitamente em silêncio.

  1. J. estava na cadeira atrás da escrivaninha, com Moses de pé, ao lado, como costumava fazer com meu pai. Jack achava-se sentado ao lado da mesa, à direita de D. J. Três outros homens sentavam-se na frente da mesa, de costas para mim. Viraram-se e me olharam, em silêncio. Eu não os conhecia.

— Meu irmão Jonathan — disse D. J.

Era mais uma explicação do que uma apresentação. Os estranhos acenaram com a cabeça cautelosamente, uma expressão de expectativa nos olhos. D. J. não se deu ao trabalho de apresentá-los.

— Não sabia que estava em casa, Jonathan.

— Vim direto da agência funerária. — Fiquei parado na porta aberta. — Onde está mamãe?

— O médico deu-lhe uma pílula e mandou-a para a cama. Ela teve um dia terrível.

Acenei com a cabeça em assentimento, e D. J. acrescentou:

— Achei melhor virmos para cá. Havia algumas coisas que precisavam ser acertadas antes que eu voltasse para casa. Vou pegar o vôo das oito e meia e já marcamos uma reunião do conselho executivo para amanhã de manhã.

Entrei na sala.

— Já chegaram a uma conclusão?

Dan ficou surpreso.

— Como assim?

— Sobre a divisão dos despojos e tudo o mais.

Avancei até a mesa e dei uma olhada. Todos os papéis que eu vira nas gavetas encontravam-se agora espalhados por cima da mesa. A arma não estava ali. Será que a tinham achado?

— A vida não pode parar só porque... — D. J. interrompeu a frase no meio e tratei de arrematar por ele:

— O Rei está morto. Vida longa para o Rei.

  1. J. ficou vermelho. Moses interveio, com sua voz suave:

— Jonathan, temos realmente muito trabalho para fazer.

Fitei-o. Havia uma tensão em seus olhos que eu nunca vira antes. E incerteza também. Olhei para os outros. E subitamente compreendi qual era o problema. A fundação desaparecera e tinham medo de que a casa desmoronasse.

Senti pena deles. Estavam agora entregues à própria sorte. Meu pai não se achava mais presente para dizer-lhes o que fazer.

— Não vou mais atrapalhar. — Olhei para meu irmão. — Não se preocupe. Vai dar tudo certo.

Ele não respondeu. Estendi a mão.

— Boa sorte.

  1. J. olhou para minha mão, depois fitou-me nos olhos. Apertou-a, com algo próximo das lágrimas a surgir em seus olhos, e a voz rouca:

— Obrigado, Jonathan. — Piscou rapidamente. — Obrigado.

— Vai sair-se bem.

— Espero que sim. Mas não vai ser fácil.   As coisas não serão mais como antes.

— Nunca são.

Saí da sala, fechando a porta. Encostei-me nela por um momento. As vozes recomeçaram. Fechei os olhos, esforçando-me em ouvir a voz de meu pai. Mas não estava ali.

  1. J. o amara. O que já não acontecera comigo. Por quê? Por que era diferente para nós dois? Éramos ambos seus filhos. O que D. J. vira nele que eu não vira?

Fui para a cozinha. Mamie estava lá, ocupada com suas panelas, murmurando para si mesma. Perguntei-lhe:

— A que horas vai ser o jantar?

— Não sei. Não sei de mais nada nesta casa. Está tudo na maior confusão. Seu irmão não quer jantar e sua mãe está lá em cima se acabando de tanto chorar.

— Pensei que o médico tivesse dado uma pílula para ela dormir.

— Talvez tenha dado mesmo. Mas não vai adiantar. Isso é tudo o que sei. — Mamie mergulhou uma concha numa panela e depois levantou-a, fumegante, diante de mim, ordenando:

— Prove. Mas sopre antes. Está muito quente.

Soprei e provei. Era um bom guisado de carne.

— Precisa de mais sal.

Ela riu e retirou a concha.

— Eu já devia esperar isso. Igualzinho a seu papai. Era o que ele sempre costumava dizer.

Fitei-a atentamente.

— Gostava de meu pai?

Mamie pôs a concha na pia e virou-se para mim:

— È a pergunta mais idiota que já ouvi, Jonathan. Adorava seu papai. Era o maior homem que já existiu.

— Por que diz isso?

— Porque é a verdade. Pode perguntar a qualquer um lá na minha terra. Todo mundo vai dizer a mesma coisa. Ele tratava os negros como pessoas antes de virarem pretos. — Mamie voltou para o fogão, tirou a tampa da panela e olhou. — Disse que está precisando de mais sal?

— Isso mesmo.

Saí da cozinha. Subi e parei diante da porta do quarto de minha mãe.

Mamie estava enganada.

Não havia qualquer som lá dentro.

Jack Haney entrou na cozinha, onde eu estava jantando sozinho. Puxando uma cadeira, ele disse:

— Vou acompanhá-lo com   uma xícara   de café.

— Coma um pouco de guisado.   Tem o bastante   para um batalhão.

— Não, obrigado — respondeu ele, enquanto Mamie servia o café. — Vamos comer alguma coisa no avião.

Observei-o levar a xícara de café à boca. -— Está indo para Washington?

— Dan quer que eu o acompanhe à reunião do comitê executivo amanhã — disse Jack, acenando com a cabeça. — Pode haver alguns aspectos legais.

De repente não era mais D. J., nem mesmo Daniel, Júnior era Dan.

— Algum problema?

— Não creio. Seu pai mantinha tudo em ordem.

— Então, por que D. J. está tão preocupado?

— Há uma porção de veteranos que podem ficar ressentidos pelo fato de um homem mais moço assumir o comando.

— E por que ficariam? Sabiam o tempo todo que isso ia acontecer.

— É verdade. Mas enquanto seu pai estava vivo, não iam enfrentá-lo. Mas agora é diferente. O que eles não compreendem é que, pela primeira vez, precisarão de alguém que esteja preparado para o cargo e não precisa aprender à medida que avança. Não importa realmente que ele jamais tenha trabalhado no campo, que nunca tenha organizado nem participado   de   um piquete.   Dirigir um   sindicato é algo muito parecido   com   dirigir   uma empresa. Precisa-se de homens preparados. É por isso que as corporações competem tanto pelos melhores jovens que saem das universidades. Seu pai sempre achou que era isso o que deveríamos fazer. Foi por isso que obrigou Dan a cursar todas aquelas escolas.

Eu podia entender o que ele estava dizendo. Papai também insistira comigo para fazer a mesma coisa. Primeiro, a Faculdade de Direito de Harvard e depois a Escola de Administração de Empresas. Já tinha calculado tudo. Menos uma coisa: eu não estava disposto a me submeter a qualquer pressão. Enxuguei o que restava de molho no prato com um pedaço de pão. Mamie olhou para o prato vazio.

— Quer mais?

Sacudi a cabeça e ela recolheu o prato.

— Tinha pouco sal?

— Estava perfeito.

Ela riu e serviu-me o café.

— Igualzinho a seu papai. Primeiro   se queixa de que não tem bastante sal, depois adora como estava, sem que eu pusesse mais sal.

Olhei para Jack.

— O que vai exatamente acontecer amanhã?

— O comitê executivo deve designar Dan para presidente em exercício até a próxima eleição geral, que será daqui a nove meses, na próxima primavera. Esperamos ter tudo sob controle   a   esta altura.

Não pude deixar de acenar em concordância. Se meu pai planejara assim, daria certo. Todos os planos de papai sempre davam certo. Jack acabou de tomar o café e se levantou

— Poderia explicar à sua mãe por que fui embora e dizer que telefonarei de manhã?

— Está certo.

— Obrigado.

Jack encaminhou-se para a porta. Poucos minutos depois, ouvi a porta de um carro bater lá fora. Fui até a janela e dei uma olhada. O grande Cadillac preto estava-se afastando. Fiquei observando até que as luzes vermelhas desaparecessem na rua. Depois, subi e parei diante do quarto de minha mãe. O silêncio lá dentro ainda era total.

Girei a maçaneta suavemente e espiei. À luz difusa do final do dia, pude divisar o vulto dela na cama. Sem fazer barulho, entrei no quarto e contemplei-a.

Havia algo de pálido e desamparado em mamãe quando dormia que não se encontrava quando ela estava desperta. Endireitei gentilmente o lençol. Ela não se mexeu.

Saí na ponta dos pés e atravessei o corredor para meu quarto. Tirei a mochila do armário e comecei a arrumá-la. Acabei em 10 minutos. Não precisava levar muita coisa.

Acordei um minuto antes do despertador soar. Estendi a mão e desliguei-o. Não havia sentido em acordar a casa inteira. Vesti-me rapidamente e desci.

A casa estava toda às escuras, mas a cozinha, de frente para o leste, recebia a primeira claridade da manhã. Liguei a cafeteira. Como sempre, Mamie deixara tudo preparado.

Meu pai sempre levantava cedo. Descia sozinho ao amanhecer, sentava-se e tomava café, até que o resto da casa despertasse. Costumava dizer que eram as horas que tinha para pensar. As horas em que ficava sozinho. E qualquer que fosse o seu problema, grande ou pequeno, já fora devidamente analisado quando o resto da casa acordava, deixando de ser um problema e tornando-se apenas uma tarefa a ser cumprida.

Voltei para meu quarto e desci com a mochila. A porta do escritório estava aberta. Num súbito impulso, entrei e abri a gaveta.

A pistola ainda estava lá. Não haviam percebido o fundo falso. Peguei-a e examinei-a. Estava bem oleada e tinha um pente inteiro. Não continuava a fazer sentido. Armas eram para pessoas assustadas e meu pai jamais conhecera o significado da palavra medo.

Abri uma aba da mochila e meti a arma lá dentro, entre as cuecas e as camisas. Fechei a gaveta com o joelho. O café já devia estar pronto.

— Jonathan... — Mamãe estava parada na porta. — O que está fazendo?

— Nada.

Era a resposta clássica da criança que fora surpreendida pelos pais com a mão na lata de doce. Não podia saber há quanto tempo ela estava parada ali. Mamãe entrou na sala, murmurando, quase que para si mesma:

— Ainda posso sentir o cheiro dos charutos dele.

— Airwick pode dar um jeito nisso, a se acreditar nos comerciais.

— Será tão fácil assim? — indagou ela, virando-se para mim. Demorei um pouco a responder.

— Não, enquanto não inventarem uma coisa para arejar o interior da sua cabeça.

Mamãe avistou a mochila.

— Já vai partir, tão cedo?

— Não há qualquer motivo para esperar mais um pouco. E só restam sete semanas do verão.

— Não pode esperar mais um pouco? Há tanta coisa sobre a qual precisamos conversar. . .

— Por exemplo?

— Os estudos. Para que universidade pretende ir, o que vai fazer com a sua vida.

Não pude deixar de rir.

— Não tenho muita opção. A junta de recrutamento é que me vai dizer.

— Seu pai diz... — mamãe fez uma breve pausa e apressou-se em corrigir: — Seu dizia que você não seria convocado.

— Claro. Ele já tinha providenciado. Como fazia com tudo.

— Não está na hora de parar de combatê-lo, Jonathan? Ele está morto agora e não pode fazer mais nada. — A voz dela estava trêmula.

— E o que você pensa, mamãe? Não acredita nisso, tanto quanto eu. Ele cuidava de tudo. Até mesmo da morte.

Mamãe ficou em silêncio, as lágrimas escorrendo silenciosamente pelas faces. Aproximei-me dela e, desajeitadamente, passei os braços por seus ombros. Ela comprimiu o rosto contra meu peito.

— Jonathan, Jonathan. . .

— Relaxe, mamãe   —   murmurei,   afagando-lhe   os   cabelos. — Está tudo acabado.

— Sinto-me culpada. — A voz dela soava abafada, a boca encostada em minha camisa. — Nunca o amei. Eu o idolatrava, mas nunca o amei. Será que pode compreender?

— Então por que se casou?

— Por sua causa.

— Por minha causa? Mas eu ainda nem tinha nascido.

— Eu tinha dezessete anos e estava grávida. . .

— Mesmo naquele tempo já havia meios de resolver um problema assim.

Ela se desvencilhou de meus braços.

— Dê-me   um   cigarro. — Acendi   o   cigarro e   depois   ela indagou:

— Ligou a cafeteira?

Acenei com a cabeça afirmativamente em resposta e segui-a para a cozinha. Mamãe encheu duas canecas e sentamos à mesa.

— Ainda não respondeu   à minha   pergunta,   mamãe.   Não precisava casar-se com ele.

— Ele não admitia qualquer outra solução. Disse que queria um filho.

— Por quê? Já tinha um.

— Dan não era suficiente para seu pai. Ele sabia disso   e, às vezes, penso que o próprio Dan também sabia. É por isso que ele sempre tentou ser duro para agradar a seu pai. Mas Dan era muito brando, ao contrário do pai. — Até mesmo mamãe já não o chamava mais de D. J. — Seu pai conseguiu o que   queria. Quer você goste ou não, é exatamente como ele.

Levantei-me e fui buscar a cafeteira.

— Quer mais café?

Ela sacudiu a cabeça. Tornei a encher minha caneca, enquanto mamãe comentava:

— Toma café demais.

— Acha que isso vai deixar-me raquítico e mirrado? — falei, soltando uma risada. Eu já tinha passado de l,82m de altura. Até mesmo ela teve de sorrir. — É uma mulher muito bonita, mamãe.

— Não me sinto bonita neste momento — falou ela, tornando a sacudir a cabeça.

— Dê tempo a si mesma. Voltará a se sentir bonita.

Ela hesitou por um momento, depois seus olhos se encontraram com os meus.

— Sabe o que existe entre mim e Jack? — Limitei-me a assentir. — Era o que eu imaginava, Jonathan. Mas você nunca disse nada.

— Não é da minha conta.

— Agora, Jack está querendo casar. Mas ainda não sei se devo.

— Não precisa tomar nenhuma   decisão apressada. Ninguém a está pressionando desta vez.

Uma expressão de espanto se insinuou nos olhos dela.

— Parecia igualzinho a seu pai quando disse isso.

— Não é possível. — Soltei outra risada. — Se eu fosse meu pai, não entenderia por que não se juntou a mim na pira fúnebre.

— É uma coisa horrível de se dizer, Jonathan.

— Sempre fico horrível quando estou com fome. Também nisso sou igual a ele?

— Exatamente. — Mamãe se levantou. — E vou tratá-lo exatamente como o tratava. Vou preparar o maior café da manhã que já comeu.

— Já chega, mamãe. Não vou precisar comer mais nada durante uma semana inteira.

Ela sorriu, pondo os pratos vazios na pia e tornando a servir-nos de café.

— Era a minha idéia. Já sabe para onde vai? Sacudi a cabeça.

— Não exatamente. Primeiro para o sul, depois talvez para oeste. Mas tudo vai depender do movimento do tráfego.

— Vai tomar cuidado?

Acenei com a cabeça em assentimento.

— Há todo tipo de gente na estrada.

— Nada vai acontecer-me.

— Vai escrever e me dizer como está?

— Claro. Mas não precisa preocupar-se.

— Mas ficarei preocupada. Se houver algum problema, vai telefonar-me?

— A cobrar.

— A cobrar. — Sorriu. — Já me estou sentindo melhor.

Olhei para o relógio da cozinha. Faltavam 15 minutos para as sete horas.

— Está na hora de eu partir.

Mamãe ficou-me olhando, enquanto eu me levantava.

— Sou muito moça. Sempre fui muito moça.

— Como assim?

— Primeiro, era moça demais para ser casada, depois para ser mãe. E agora sou muito moça para ser viúva e ficar só.

— Todo mundo tem de crescer um dia, mamãe. Talvez seja esta a sua oportunidade.

— É seu pai quem está falando agora. Ele tinha o mesmo jeito de separar-se friamente de seus sentimentos. — Uma expressão estranha surgiu no rosto dela. — É realmente meu filho, Jonathan? Ou é apenas uma extensão de seu pai implantada em mim, como ele disse certa vez?

— Eu sou eu. Sou seu filho. E dele. Mais nada.

— Você me ama?

Fiquei em silêncio por um momento. Depois, peguei a mão dela e beijei-a.

— Amo, sim, mamãe.

— Tem dinheiro suficiente?

Ri mais uma vez. Tinha quase 100 dólares. A 10 dólares por semana, não teria qualquer problema.

— Tenho, sim, mamãe.

Ajeitei a mochila nos ombros e desci pelo caminho de carro. Olhei para trás ao chegar à rua ainda adormecida. Mamãe estava parada na porta. Acenou-me. Acenei em resposta e desci a rua.

A manhã já continha a promessa de um dia de calor. Os pardais estavam espalhados pelos gramados, pegando as minhocas madrugadoras, a seu chilreio misturando-se o trinado ocasional de um tordo. O ar recendia a verde. A Rodovia U.S. 1 ficava a dois quilômetros e meio de distância, no outro lado da ponte sobre o Cór­rego Schuylkill.

O caminhão do leiteiro dobrou a esquina ao mesmo tempo que eu. Pete parou o caminhão assim que me viu.

— Jonathan!

Virei-me e fiquei esperando, enquanto ele descia. Tinha uma garrafa de plástico de suco de laranja numa das mãos e uma lata de cerveja na outra.

— O viajante pode escolher.

Peguei a cerveja. Era uma boa manhã para isso. O calor já me estava envolvendo. Pete tornou a guardar o suco de laranja no caminhão e pegou outra lata de cerveja para ele. Tiramos a tampa ao mesmo tempo e o estalido era o único ruído na rua. Ele tomou um gole grande e enxugou a boca com as costas da mão.

— Lamento por seu problema.

Pete era irlandês, típico. Fiz um gesto de assentimento com a cabeça.

— Para onde vai, Jonathan?

— Não sei exatamente. Vou apenas sair por aí.

— É sempre bom escapar das coisas de vez em quando. Sua mãe vai ficar bem?

— Claro. É uma mulher forte.

Pete estudou-me por um momento enquanto pensava na minha resposta. Ele nos conhecia há muito tempo. Para ser mais preciso, há 15 anos. Finalmente murmurou:

— Tem razão.

Terminei a cerveja e amassei a lata. Pete tirou-a de minha mão.

— Por quanto tempo ficará viajando?

— Sete semanas.

— Mas que merda! — Pete sorriu. — Dá oitenta e quatro litros. Lá se vai a minha bonificação.

Não pude deixar de rir.

— Deixe os litros de   qualquer maneira. Mamãe   nem   vai perceber.

— Talvez não. Mas aposto que Mamie já deixou um bilhete na garrafa. — Pete voltou ao caminhão. Remexeu lá dentro por um momento   e   pegou   uma   embalagem   de   seis   latas   de   cerveja. — É melhor levar isso, Jonathan. Vai ser um dia quente.

— Obrigado.

Pete fitou-me em silêncio por um instante.

— Vamos sentir falta de seu pai. — Tocou no distintivo sindical pregado no macacão branco. — Ele fez com que isto significasse muita coisa. Espero que seu irmão faça pelo menos a metade.

— Fará muito melhor.

Pete tornou a fitar-me em silêncio por um momento.

— É o que veremos. Mas ele não é seu pai.

— E quem é?

— Você é.

Foi a minha vez de fitá-lo fixamente, antes de dizer:

— Mas não sou velho o bastante.

— Algum dia será. E estaremos esperando.

Pete voltou ao caminhão e deu a partida. Fiquei observando-o terminar de virar a esquina e depois atravessar a rua.

— Acredita agora em mim?

— Não. É o que você queria que as pessoas pensassem. E por isso meteu a idéia em suas cabeças.

— Por que eu faria isso?

— Porque é um escroto. E porque estava com ciúme de D. J. Sabe que ele vai sair-se melhor do que jamais conseguiu.

— De repente, você passou a amar seu irmão.

— Não há a menor possibilidade. Mas posso ver quem ele é. Ele se importa.

— Eu também me importava.

— Quando? Há quantos anos? Antes de eu nascer, antes de se apaixonar pelo dinheiro e pelo poder?

— Ainda não se está permitindo compreender.

— Claro que compreendo. E compreendo bem demais.

— Apenas pensa que compreende. Mas vai descobrir. No devido tempo.

— Vá embora. E tão chato morto quanto era vivo.

— Só estou vivo enquanto você e seus filhos estiverem vivos. Estou em seus genes, células, na sua mente. Dê tempo a si mesmo Vai lembrar-se.

— Lembrar do quê?

— De mim.

— Não quero lembrar-me de você.

— Mas vai lembrar. De mil maneiras diferentes. Não pode evitar.

— Mas não agora, papai. Estou em férias.

Ela estava sentada na pilastra de concreto à entrada da ponte uma mochila ao lado, de frente para o rio, as pernas para fora. Olhava para a água, a fumaça cinzenta saindo de seus lábios se enroscando como uma nuvem.

— Bom dia, Jonathan — disse ela, sem se virar. Parei mas não respondi. — Estava à sua espera — acrescentou ela, ainda sem se virar. — Não fique zangado comigo.

— Não estou zangado.

Virou-se para me encarar, sorrindo.

— Quer dizer que vai levar-me?

Eu já conhecia aquela expressão em seus olhos.

— Está alta.

— Só um pouquinho. — Estendeu o cigarro em minha direção. — Não quer dar uma tragada? É fumo do bom.

— Não, obrigado. A U.S. 1 não é uma estrada para se andar com a cabeça nas nuvens.

— Está zangado comigo. — O tom dela era magoado.

— Já disse que não.

— Mas não falou o que estava sentindo.

— Falei, sim.

— Então por que não posso ir com você?

— Porque quero ficar sozinho. Será que não pode entender?

— Não vou incomodá-lo. Ficarei fora do seu caminho.

— Volte para casa. Não daria certo. — Comecei a subir os degraus para a ponte.

— Então, por que me disse para vir encontrá-lo aqui? — gritou Anne.

Virei-me no meio dos degraus e fitei-a.

— Quando falei isso?

— Ontem de tarde — respondeu ela, com uma estranha intensidade nos olhos, brilhando através das nuvens. — Logo depois que acabou de conversar com seu pai.

— Meu pai está morto.

— Sei disso.

— Então como eu poderia ter conversado com ele? Acho que a merda que está fumando deixou-a de cuca fundida.

— Vi quando conversou com ele — insistiu Anne, obstinadamente. — Depois se levantou, foi até a porta de tela e virou-se para me olhar. Ouvi-o dizer: Encontre-se comigo na ponte amanhã de manhã.

Assenti e entrei.

Fiquei calado e ela acrescentou:

— Sua voz soava exatamente como a de seu pai.

Fitei-a atentamente. O calor da manhã já fizera pequenas gotas de suor aflorarem em seu rosto, fazendo-o brilhar à luz forte do sol. Pude ver os vestígios de umidade se acumulando na abertura da blusa, entre os seios, as manchas de suor aumentando debaixo dos braços.

— Falei mais alguma coisa?

— Falou, sim. Mas foi meio indistinto. Não entendi direito. Foi algo como “Ainda não acabei com você.” Tudo o que sei é que me deixou com a maior tesão. Subi, tirei todas as roupas, deitei na cama inteiramente nua e, sem fazer nada comigo mesma, acabei gozando uma porção de vezes, até ficar completamente exausta.

— Dê-me esse cigarro — falei, estendendo a mão.

Anne colocou-o entre meus dedos. A pele dela estava quente e ressequida. Joguei o cigarro no rio.

— Tem mais fumo?

Ela meteu a mão na mochila e tirou a bolsa Bulldog. Peguei-a.

— É isso?

Anne fez que sim.

Joguei a bolsa no rio. Anne virou-se, observando-a flutuar por um momento, depois afundar lentamente, ao começar a passar por baixo da ponte, impelida pela correnteza.

— Não se consegue mais arrumar um fumo como aquele — murmurou Anne, desconsolada. — Por que fez isso?

— Não estou a fim de ser preso e passar as próximas sete semanas na cadeia de alguma cidadezinha de merda.

Subitamente, os olhos dela começaram a se encher de lágrimas.

— Toque-me, Jonathan.

Peguei-lhe a mão e ela me guiou para o seio. Fechou os olhos, comprimindo as lágrimas nos cantos. E sussurrou:

— Oh, Deus, como é bom. . .

Anne desceu da pilastra. E fomos para baixo da ponte. Trepamos ali, com o barulho dos caminhões rugindo na ponte por cima de nossas cabeças e abafando os gemidos dela. Depois, Anne ficou imóvel, deitada ali, olhando-me, enquanto eu ajeitava a calça e me abotoava. Ela estendeu a mão para sua mochila, tirou alguns lenços de papel e meteu na cona. Depois se levantou e suspendeu a jeans.

— A sensação é tão boa que não quero perder nada, Jonathan Melhor do que qualquer coisa que eu possa imaginar.

Não respondi. Ela pegou-me a mão.

— Jonathan, acha que talvez eu esteja apaixonada por você?

Fitei-a nos olhos. Exibiam um brilho intenso de contentamento. E falei bruscamente:

— Não, não está apaixonada por mim. Está apaixonada por meu pai.

A U.S. 1 já estava quente e poeirenta, uma mortalha entre azul e cinzenta dos canos de descarga pairando no ar, por cima da estrada. Esperamos por uma brecha no tráfego e depois passamos para o lado em direção ao sul. Ficamos parados ali, observando os veículos passarem ruidosamente. Anne afastou do rosto os cabelos compridos e úmidos, comentando:

— Já deve estar fazendo mais de vinte e seis graus.

Limitei-me a assentir.

— Não poderíamos procurar alguma sombra e nos refrescarmos um pouco antes de começarmos?

Levei-a para um capão e nos sentamos à sombra das árvores. Abri a embalagem de seis latas de cerveja que Pete me dera.

— Isso vai ajudar.

Anne tomou um gole grande.

— Puxar fumo me deixa desidratada. E trepar também.

— Pois vai acabar sem um pingo de água no corpo — falei, dando uma risada.

Anne sorriu-me. Tomei um gole de cerveja e olhei para a estrada. Os primeiros caminhões já tinham sumido e a estrada estava agora ocupada pelo tráfego das pessoas que moravam nas comunidades suburbanas e trabalhavam em Nova York. Os carros grandes, equipados com ar condicionado contra o calor e o mau cheiro, achavam-se com as janelas hermeticamente fechadas. Os carros pequenos estavam com as janelas escancaradas, os ocupantes esperando escapar ao calor com a velocidade, embora fosse uma esperança vã no intenso movimento matutino.

— Para onde estamos indo, Jonathan?

— Virgínia Ocidental — respondi, sem pensar.

— Por que a Virgínia Ocidental?

— Um lugar tão bom quanto qualquer outro. Além do mais, nunca estive lá.

Não revelei que era o lugar de onde meu pai viera. Das proximidades de uma cidadezinha chamada Fitchville, que certa vez eu conseguira localizar num minucioso mapa rodoviário. Procurava imaginar como era, porque ele nunca falara a respeito. Agora, subitamente, eu sabia que tinha de ir até lá, apesar de não compreender isso ao sair de casa naquela manhã.

Acabei de tomar a cerveja num gole comprido e me levantei. Ajeitei a mochila nos ombros e olhei para Anne.

— Está pronta?

Ela tirou da mochila um chapéu de feltro de aba mole, metendo-o na cabeça.

— Como estou?

— Linda.

Anne também se pôs de pé.

— Vamos embora.

Uma hora depois ainda sacudíamos os polegares para os carros que passavam. A esta altura, Anne estava sentada na mochila, o rosto vermelho e suado. Acendi um cigarro e dei para ela.

— Não é tão fácil como parece nos filmes, Jonathan.

Sorri enquanto acendia outro cigarro para mim.

— Nunca é.

— Tenho de mijar.

— Vá até ali — respondi, apontando para as árvores. Anne me fitou inquisitivamente e acrescentei:

— É melhor começar a se acostumar.

Ela tirou alguns lenços de papel da mochila e desapareceu por trás das árvores. Virei-me para observar a estrada. O tráfego já não era tão intenso, agora que acabara o rush da manhã. O número de carros de passeio tinha diminuído, porém havia mais caminhões. A estrada começava a tremeluzir com a névoa do calor.

Ouvi Anne se aproximar por trás de mim, enquanto eu cerrava os olhos por causa do sol. Um gigantesco trailer Fruehauf surgia no topo da colina e começava a descer em nossa direção. Levantei a mão automaticamente, no gesto familiar. E um instante depois ouvi o silvo dos potentes freios a ar, enquanto o caminhão parava lentamente, a sombra imensa a nos proteger do sol.

Observei a porta se abrir silenciosamente para fora da cabine, um metro acima do chão. A voz vinha de um homem que eu não podia ver:

— Querem uma carona até a cidade, garotos?

Senti a mão de Anne em meu braço, procurando conter-me. Mas a voz que ouvi não era a dela:

— Daniel, o pai disse para a gente andar.

Empurrei a mão de Anne do meu braço, irritado. E falei:

— Queremos, sim, mister.

 

                                   Outro Dia

O pequeno platô na encosta da colina estava vazio, exceto por algumas moitas esparsas que resistiam à estiagem e ao calor do verão. A terra começava a esfriar enquanto o sol da tarde mergulhava para o horizonte, quando o coelho cautelosamente pôs o focinho para fora do pequeno buraco, por trás de uma das moitas, farejando o ar parado. Emergia do buraco um segundo depois. Com pequenos movimentos bruscos, virou a cabeça. Nada avistou. O mundo estava seguro.

Mesmo assim, o coelho moveu-se cautelosamente. As orelhas voltadas para trás, encostadas na cabeça, ele mantinha o corpo quase colado ao chão, a fim de que o pêlo de um cinza arenoso, salpicado de branco, não sobressaísse na terra árida, esbranquiçada pelo sol. Em pulos curtos e rápidos, foi de moita em moita, parando em cada uma para fazer um reconhecimento, antes de descer a encosta, na direção do pequeno bosque ainda verde, nas margens do córrego quase seco.

Percorreu os últimos 100 metros numa extraordinária explosão de velocidade, indo parar nas sombras escuras das pequenas árvores, o coração batendo forte com medo de sua exposição. Mas a fome fora grande demais. E o cheiro da erva-doce silvestre crescendo perto das raízes das acácias acabara por sufocar a cautela.

Mas agora o senso de cautela voltara. O coelho manteve-se quase grudado no solo, o pêlo se confundindo com as sombras. O cheiro da erva-doce era agora mais forte. Mas como estava a seu alcance pôde conter a fome até estar certo da segurança. Esperou por algum tempo, enquanto o bater descompassado do coração voltava ao normal, depois se encaminhou lentamente para as acácias.

Encontrou uma moita de erva-doce a poucos metros do córrego que corria lentamente, reduzido a um mero filete. Rapidamente, começou a escavar a terra, a fim de desprender os talos mais tenros e mais suculentos. Um momento depois, tinha um talo comprido nas patas dianteiras e ele se sentou de cócoras, erguendo-o diante do nariz. De maneira especulativa, quase delicadamente, deu uma mordida no talo. Era a coisa mais deliciosa que já tinha provado. E foi também a última. Pois nesse exato momento avistou o rapaz parado a quase 15 metros de distância. Os olhos se encontraram por um breve segundo. Depois, antes que o coelho pudesse reagir à explosão de medo dentro dele, a bala de calibre 22 penetrou no córtice na base do pescoço, destruindo-lhe a espinha. Foi arremessado para trás num vôo, morto antes mesmo de tocar no solo.

Daniel Boone Huggins deixou que o estampido do tiro e a nesga de fumaça do rifle se desvanecessem antes de avançar para recolher o coelho morto. Levantou-o pelas orelhas. Os olhos do bicho já estavam vidrados e vazios. Cuidadosamente, prendeu-o com uma tira de couro em torno de sua cintura. Depois ajoelhou-se e examinou o rastro do coelho.

Rapidamente, pegou um punhado de talos de erva-doce e começou a seguir a trilha deixada pelo coelho. Alguns minutos depois, estava no campo na encosta da colina, no outro lado da moita de onde o coelho saíra. Encontrou o pequeno buraco no solo. Cuidadosa e silenciosamente, desprendeu a tira de couro e pôs o coelho morto em frente ao buraco, com os talos de erva-doce ao redor.

Um momento depois, estava acocorado a cerca de 20 metros de distância, esperando. Seria apenas uma questão de tempo até que o cheiro da erva-doce e do coelho morto atraíssem sua companheira da toca para investigar.

Jeb Stuart Huggins estava sentado nos frágeis degraus de madeira da frente de sua casa, a bilha de aguardente ao lado, observando o filho mais velho se aproximar.

— Teve sorte? — A voz soava um pouco rouca da falta de uso.

— Dois coelhos — respondeu Daniel.

— Vamos dar uma olhada.

Daniel afrouxou a tira de couro em torno da cintura e estendeu os coelhos para o pai. O homem mais velho suspendeu-os por um momento e depois devolveu-os, murmurando:

— Estão um tanto esqueléticos. Só vão dar para guisado.

— A estiagem também não tem sido boa para a caça — explicou Daniel, defensivamente.

— Não me estou queixando. Aceitamos o que o Bom Deus acha justo nos dar.

Daniel acenou com a cabeça, assentindo. Seria a primeira carne que iriam comer em mais de uma semana.

— Leve para sua mãe e diga que pode aprontar os coelhos para a panela.

Daniel tornou a assentir e começou a se afastar. O pai perguntou:

— Quantas balas usou?

Daniel parou.

— Duas.

Jeb meneou a cabeça em aprovação.

— Não se esqueça de limpar a arma muito direitinho.

— Não vou esquecer, Pai.

Jeb ficou observando o filho virar na quina da casa. Daniel estava-se tornando agora um garoto crescido. Tinha quase 14 anos e era tão alto quanto o pai, e começava a ficar com a calça estufada. Já estava na hora de tirá-lo do quarto que partilhava com o irmão e irmãs. Não era nada bom os menores ficarem vendo aquelas coisas. Punha pensamentos errados nas cabeças deles e Jeb já tinha problemas mais do que suficientes com Molly Ann.

Esta era a filha mais velha, um ano a mais que Daniel e já uma mulher completa, sangrando agora há mais de dois anos. Estava na hora de começar a pensar em arrumar um marido para ela. O problema é que não havia rapazes ao redor. Todos eles tinham descido as montanhas para trabalhar nas fábricas têxteis e de vidro da cidade.

Jeb suspirou, pegou a bilha e tomou um gole. O líquido ardente queimou intensamente na descida até o estômago, esquentando-o Problemas, sempre havia problemas com sete filhos. E seriam 10 se três não tivessem nascido mortos. O Bom Deus sabia o que estava fazendo. Calculara que Jeb Stuart Huggins já teria trabalho suficiente para sustentar os outros filhos. Mesmo assim, não era justo Especialmente desde que Mae cruzara as pernas e se fechara para ele. Chega de filhos. Não era fácil para um homem. Especialmente para um homem como Jeb, que estava acostumado com aquilo Agora que Molly Ann se exibia com aquelas tetas maduras e com o rabo grande, ele vinha tendo uma porção de pensamentos pecaminosos. Tomou outro gole de aguardente e ficou imaginando quando o pregador do circuito iria aparecer. Uma boa e antiquada reunião de recuperação do fervor religioso seria ótima para dissipar as idéias sacrílegas e pecaminosas que o Demônio estava plantando em sua mente. Jeb tornou a suspirar. Não era fácil ser um chefe de família naqueles tempos difíceis.

Marylou Huggins olhava fixamente para a caçarola de ferro enegrecida pelo fogo no velho fogão de lenha. A água estava fervendo e borbulhando, grandes nacos de gordura amarelada inchavam e afloravam à superfície. Com um garfo de cabo comprido, espetou o grande quadrado de gordura de porco salgado do seu túmulo aquático. Estudou-o atentamente, vendo os pingos caírem na panela. Depois, com um ar de satisfação, colocou-o num prato. Daria pelo menos para preparar mais duas refeições, antes de ficar inteiramente gasto. Rapidamente, Marylou despejou uma pilha de batatas miúdas, nabos e verduras no caldo fervendo e começou a mexer. Sentiu mais do que ouviu Daniel passar pela porta da cozinha. E não se virou.

— Mãe...

Como sempre, Marylou experimentou um choque ao ouvir a voz cada vez mais grave do filho. Parecia ainda ontem que ele não passava de um bebê.

— O que é, Daniel?

— Peguei dois coelhos. Pai disse que deve preparar para a panela.

Ela virou-se para fitá-lo. Tinha apenas 34 anos, era magra e esquelética, e as rugas no rosto faziam-na parecer muito mais velha. Pegou os coelhos da mão estendida do filho, comentando:

— É bom variar de só comer esquilos.

— Mas não temos esquilos há mais de um mês!

O rosto vincado de Marylou relaxou num sorriso. Daniel era sério demais para um rapaz de sua idade.

— Estava apenas brincando, filho.

Os olhos dele se iluminaram.

— Sim, Mãe.

— Vá dizer a Molly Ann para vir ajudar-me a limpar os coelhos. Ela está lá nos fundos cuidando das crianças.

— Sim, Mãe. — Daniel hesitou por um instante, farejando o ar. — O cheiro está um bocado bom.

— É só gordura de porco e verduras. Está com fome?

Daniel fez que sim. A mãe pegou um pedaço de pão duro na prateleira ao lado do fogão e usou-o para enxugar o naco de porco salgado, absorvendo toda a gordura. Entregou ao filho. Daniel deu uma mordida grande, mastigou e engoliu.

— Está ótimo. Obrigado, Mãe.

Marylou sorriu.

— E agora vá chamar sua irmã. — Ela ficou observando-o sair depois virou-se e pegou o facão, pondo-se a afiá-lo cuidadosamente na pedra de amolar.

Daniel encaminhou-se lentamente para os fundos da casa. Esperou por um momento antes de virar no canto, a fim de acabar o pedaço de pão. Não queria que as outras crianças o vissem, pois começariam a clamar para que lhes desse um pedaço. Assim que terminou de engolir o fragmento final, seguiu em frente.

A explosão de barulho atingiu-o no momento em que duas crianças passaram correndo por ele, na direção do campo aberto. Mase, o bebê, com 16 meses, pôs-se a berrar em sua tipóia, pendurada num galho sem folhas de um pinheiro velho, perto da pilha de lenha. Molly Ann empertigou-se, a machadinha de cortar lenha reluzindo em sua mão.

— Richard, Jane! Voltem aqui! Se o Pai ouvir vocês, vão levar uma surra!

As crianças ignoraram o aviso. Molly Ann virou-se para Ra­chel, a irmã de 10 anos, que estava sentada num bloco de madeira, olhando para um livro de gravuras.

— Rachel, vá buscar os dois e traga de volta.

Rachel, a estudiosa da família, levantou-se, depois de marcar a altura que estava no livro, saiu correndo atrás dos irmãos mais moços, que estavam agora sumidos no mato alto do campo.

Molly Ann afastou os cabelos castanhos compridos do rosto corado, depois pegou um galhinho na pilha de gravetos e meteu-o na boca do bebê. Mase ficou imediatamente quieto, mastigando o pequeno pedaço de madeira.

— Essas crianças me deixam louca — murmurou Molly Ann, olhando para o irmão. — Onde você passou o dia inteiro?

— Caçando.

— Pegou alguma coisa?

— Dois coelhos. A Mãe disse para você ir ajudar a limpar.

Molly Ann percebeu subitamente que o irmão estava olhando para o topo de seu vestido. Ela abrira os botões de cima, na altura dos seios, a fim de poder manejar melhor a machadinha, e estava quase que completamente exposta.

— O que está olhando? — indagou Molly Ann, sem fazer a menor menção de se cobrir.

— Nada. — Daniel desviou os olhos, com um sentimento de culpa, corando no mesmo instante.

— Estava olhando para meus peitos — disse a irmã, começando a se abotoar. — Posso saber por sua cara.

— Não estava, não — murmurou Daniel, ainda olhando para o chão.

— Estava, sim. — Molly Ann terminou de se abotoar e aproximou-se do irmão. — Vai ter de acabar de arrumar a lenha, se eu tenho de ajudar a Mãe.

— Está certo. — Daniel continuava a não olhar para a irmã.

— Sua calça está estufada.

Ele sentiu que o rosto ficava ainda mais vermelho. E não foi capaz de responder. Molly Ann soltou uma risada.

— É igualzinho ao Pai.

Só então Daniel a fitou.

— O que está querendo dizer com isso?

Molly Ann riu novamente.

— Eu estava lá no córrego esta tarde, lavando-me, quando vi o Pai me olhando de detrás de uma árvore.

Daniel não pôde ocultar o espanto em sua voz: — E o Pai sabia que você o tinha visto?

— Não. — Molly Ann sacudiu a cabeça. — Não deixei o Pai perceber que eu sabia que ele estava ali. Mas continuei a observar pelo canto dos olhos. E o pai estava com a calça estufada como você. Só que muito mais. A vara dele parecia até ter um metro de comprimento.

Daniel ficou boquiaberto.

— Santo Deus!

— Não comece a blasfemar! — disse a irmã, rispidamente. Ele não respondeu. Molly Ann acrescentou: — A Mãe tem razão. Todos os homens são iguais. Vocês só pensam numa coisa. Ela diz que é o Demônio que está nos homens.

Rachel voltou, acompanhada pelos dois irmãos menores.

— Trate de fazer essas duas crianças se limparem — ordenou Molly Ann. — E depois vá chamar Alice na horta e mande todo mundo acabar as lições.

Obedientemente, as crianças se encaminharam para a casa. Molly Ann pegou Mase na tipóia. O bebê gorgolejou de felicidade, fragmentos de casca ainda grudados nos lábios. Molly Ann tirou-o com a mão, depois limpou a mão na saia.

— É melhor cortar bastante lenha, Daniel. O Sr. Fitch vai aparecer esta noite e a Mãe quer um bom fogo. O Pai está querendo vender um pouco de aguardente para ele.

Daniel ficou olhando a irmã se encaminhar para a casa, segurando o bebê com um dos braços, o corpo cheio e firme delineado sob o vestido de algodão. Depois, ele pegou a machadinho e concentrou-se na pilha de lenha.

E logo não havia qualquer outra coisa além do barulho da lâmina golpeando e o ruído da madeira se partindo ao meio.

 

Já iam sentar-se à mesa quando ouviram o ranger de rodas de carroça. Jeb levantou a mão.

— Ponha outro prato na mesa, Mãe.

Ele passou pela porta e já tinha descido os degraus para o pátio quando a mula parou.

— Boa noite, Sr. Fitch. Chegou bem a tempo de nos acompanhar no jantar.

— Boa noite, Jeb. Não quero incomodar.

— Não é incômodo nenhum. A Sra. Huggins preparou um bom guisado de coelho. Seria uma pena se perdesse.

— Guisado de coelho. . . — repetiu Fitch, pensativo, pois esperava encontrar apenas caldo de gordura de porco e verduras. — Bem que gosto de um guisado de coelho. Desceu da carroça, com a respiração ofegante. O Sr. Fitch era extremamente largo na cintura. — Já vou juntar-me a vocês, assim que der água e forragem à mula.

— Pode deixar que Dan cuidará disso. — Jeb chamou o filho, que saiu de casa. — Já conhece o Sr. Fitch.

— Boa noite, Sr. Fitch — disse Daniel, com um aceno de cabeça.

— Boa noite, Daniel — falou   o homem imenso, com um sorriso.

— Cuide da mula do Sr. Fitch, filho.

— O saco de forragem está atrás da carroça — informou o Sr. Filch. — Mas não a deixe beber muita água. Isso a faz peidar horrivelmente e ainda tenho de viajar uns trinta quilômetros esta noite.

Jeb pegou a bilha com aguardente.

— Tem de dar uma provada, Sr. Fitch. Vai lavar um pouco da poeira da viagem de sua boca.

— Ora, é muita gentileza de sua parte, Jeb. — Fitch limpou a borda da bilha com a mão e tomou um trago comprido. Estalou os lábios, baixando a bilha. — Parece que você também não põe muita água nesta mula, Jeb.

Dez minutos depois, estavam sentados em torno da mesa. Marylou pôs a grande panela de ferro com o guisado diante do marido. Logo atrás dela, Molly Ann apareceu com uma travessa repleta de pão de milho ainda quente.

Jeb cruzou as mãos e baixou a cabeça. Todos fizeram a mesma coisa.

— Pedimos as Tuas bênçãos, Senhor, para esta mesa, para esta casa, para aqueles que nela habitam e para nosso convidado. Sr. Fitch. E por Tua abundância e pelo alimento que estamos prestes a receber, nós Te agradecemos, Senhor, Amém.

O coro de “Amém” elevou-se da mesa e as crianças levantaram a cabeça, ansiosas. Rapidamente, Jeb pegou a concha e encheu o prato de Fitch, depois o seu próprio. Acenou com a cabeça para Marylou. Ela pegou a concha e começou a encher os pratos das crianças. Quando finalmente chegou a vez de servir a si mesma, já não restava muita carne. Mas Marylou não se importava. Não era mesmo de comer muito.

Além do mais, sentia-se satisfeita por saber que o Sr. Fitch iria contar aos vizinhos que os Huggins serviam guisado de coelho ao jantar, não se limitando a comer caldo de gordura de porco com verduras durante todo o tempo, ao contrário do que acontecia com muitos outros.

Comeram em silêncio, rapidamente, sem qualquer conversa, enxugando os pratos da última gota de caldo com pedaços de pão de milho fumegante.

O Sr. Fitch afastou a cadeira da mesa e apalpou a barriga com um ar de satisfação.                                      

— É o melhor guisado de coelho que já comi, Sra. Huggins

— Obrigada, Sr. Fitch — disse Marylou, corando.

O homem imenso palitou os dentes. Depois, cerimoniosamente tirou o relógio do bolso e olhou-o.

— Já são quase seis e meia, Jeb. Vamos sair e tratar de negócios?

Jeb acenou com a cabeça em concordância e se levantou.

— Venha também, Daniel.

O rapaz seguiu os homens mais velhos para o pátio. O pai foi na frente, contornando a casa para os fundos e começando a subir a encosta, a caminho do alambique. Caminharam em fila indiana pela trilha estreita.

— Quanto tem para mim, Jeb?

— Cerca de vinte galões. E é de primeira.

Fitch ficou calado até chegarem ao alambique, só então comentando:

— Não é muita coisa.

— A seca está queimando todo o milho, Sr. Fitch — explicou Jeb, em tom de desculpas.

— Quase não vale a pena ter subido até aqui.

Já não era mais o Sr. Fitch, o homem delicado que se sentara à mesa do jantar. Agora, era o Sr. Fitch, o comerciante, que mantinha metade dos meeiros do vale a lhe dever, com o crédito que oferecia em seu armazém e o preço que pagava pelas bebidas destiladas ilegalmente e por tudo o mais que tivessem para vender.

As grandes caldeiras e tubos de cobre estavam camuflados por galhos cheios de folha, entrecruzando-se. Havia ao lado uma pilha de lenha cortada.

— Pegue uma bilha, Daniel — ordenou Jeb.

Daniel começou a tirar lenha da pilha. Um momento depois, as bilhas de barro estavam à mostra. Jeb tirou a rolha com os dentes.

— Sinta só o cheiro, Sr. Fitch.

Fitch pegou a bilha e cheirou. Jeb acrescentou:

— Dê uma provada.

O homem inclinou a bilha, tomando um trago.

— Isso é que é qualidade, Sr. Fitch. Não tem carbureto nem lixívia. Está suave e natural. Pode-se dar até a um bebê.

— Não está ruim — reconheceu Fitch, estreitando os olhos. — Quanto vai querer?

— A bagatela de um dólar por galão.

Fitch não respondeu. Jeb perdeu a coragem.

— Setenta e cinco cents?

— Meio dólar.

— Sr. Fitch, meio dólar é o que estão pagando pela aguardente que não presta. É o preço da que é feita às pressas, não uma aguardente feita com vagar, natural como esta.

— Os negócios não andam bons, Jeb. As pessoas já não estão mais comprando as coisas. Há uma guerra na Europa e está tudo confuso.

— Meio dólar por galão não é muita coisa. — Jeb estava agora quase suplicante. — Pelo menos me encontre no meio do caminho, Sr. Fitch.

— Quanto está-me devendo, Jeb? — perguntou Fitch, fitando o outro firmemente.

Jeb baixou os olhos.

— Acho que cerca de quatro dólares.

— Quatro dólares e cinqüenta e cinco cents.

— Acho que é isso mesmo — respondeu Jeb, sem levantar os olhos.

Daniel não teve coragem de olhar para o pai. Estava envergonhado demais. Não era direito um homem ser humilhado daquela maneira só porque era pobre. Desviou os olhos para os campos.

— Já sei o que vamos fazer, Jeb — disse Fitch. — Estou com um bom ânimo. Pode-me mesmo dizer que é um ânimo generoso. E pode agradecer por isso pelo excelente guisado de coelho que a Sra. Huggins serviu. Sempre digo que uma barriga cheia embota a esperteza de um homem nos negócios. Vou dar-lhe sessenta cents por galão.

Jeb levantou a cabeça.

— Não pode fazer melhor?

— Falei que estava com um ânimo generoso e não tolo.

A voz de Fitch tinha um tom categórico. Jeb sentiu o gosto amargo da derrota. Três meses de trabalho, dia e noite, com sol e com chuva, cuidando do alambique, tirando aguardente gota a gota, à medida que se condensavam lentamente ao longo dos tubos, de tal forma que cada gota era cristalina e perfeita. Mas Jeb forçou-se a sorrir.

— Obrigado, Sr. Fitch. — Virou-se para o filho e acrescentou: — Ponha as bilhas na carroça do Sr. Fitch.

Daniel acenou com a cabeça. Não confiava em si mesmo para falar. Havia uma raiva intensa dentro dele, como nunca antes sentira. Era uma raiva que deixava seu estômago tenso por dentro como o nó do laço de um carrasco. Jeb olhou para o homem imenso.

— Vamos para casa, Sr. Fitch. A Sra. Huggins já deve ter preparado o café.

— Não sei o que vai ser desta terra — comentou o Sr Fitch a caneca fumegante de café de chicória na mão. — Os negócios andam mal, as pessoas estão deixando a terra porque não podem pagar o aluguel. Não sabe como tem sorte, Jeb, por ser o dono de sua própria terra, livre e desimpedida.

— Podemos agradecer ao Bom Deus por isso — disse Jeb, meneando a cabeça em assentimento. — Mas as coisas estão cada vez mais difíceis. São nove bocas para alimentar. Com a estiagem e as colheitas ruins, não está fácil.

— Nunca pensou em ir trabalhar na cidade?

— Não sou um homem da cidade. — Jeb sacudiu a cabeça. — Nunca serei. Se eu não puder levantar de manhã e olhar para a minha terra, prefiro estar morto. Além do mais, o que posso fazer na cidade? Tudo o que sei é cuidar da terra.

Marylou entrou na sala e acendeu a lenha na lareira com um fósforo.

— Está começando a haver um frio no ar. . .

— Sra. Huggins — disse Fitch, sorrindo — sabe como ninguém o jeito de fazer um homem sentir-se bem.

Marylou corou e sorriu, baixando os olhos para o chão.

— Obrigada, Sr. Fitch.

Ela saiu da sala, mas permaneceu junto à porta, na cozinha, a fim de poder ouvir tudo o que se dissesse. Fitch tomou um gole do café e indagou:

— Nunca pensou em mandar seus dois filhos mais velhos trabalharem na cidade?

Jeb ficou surpreso.

— Daniel e Molly Ann?

— O rapaz já está com quatorze anos e a irmã é mais velha, se bem me lembro — disse Fitch.

— Molly Ann está com quinze anos.

— Sou bom amigo dos homens que dirigem as fábricas têxteis e de vidros. Eles estão sempre procurando jovens vigorosos para trabalhar. Posso pedir um emprego para seus filhos.

— Não sei, não... — Jeb estava em dúvida. — Eles parecem ainda muito jovens para viver fora de casa, sem eu estar por perto.

— Eles podem ganhar quatro dólares por semana, talvez mesmo cinco. Quarto e comida numa casa respeitável vai custar um dólar e meio. Isso deixa cinco dólares por semana, podendo esticar até sete, que eles podem mandar para casa. Tornaria muito mais fácil alimentar os outros. — Fitch fez uma pausa, fitando-o atentamente. — Poderia até fazer algumas melhorias na casa. Soube que a companhia elétrica está disposta a instalar luz em qualquer casa, desde que possa ter a garantia de cinco dólares por mês.

— Não gosto de luz elétrica. Não é natural, é brilhante demais. Não tem a mesma suavidade dos lampiões. — Ao mesmo tempo em falava, Jeb não podia deixar de se entusiasmar. Sua casa seria a primeira das montanhas a ter luz elétrica.

Daniel entrou na sala.

— Já acabei, Pai.

O Sr. Fitch meteu a mão no bolso e tirou uma moeda de cinco cents, brilhando de nova.

— É um bom rapaz, Daniel. Tome isto para você.

Daniel sacudiu a cabeça.

— Não, obrigado, Sr. Fitch. Não há motivo para isso. — E deixou a sala apressadamente.

— Tem um bom rapaz, Jeb — comentou Fitch.

— Obrigado, Sr. Fitch.

Fitch encaminhou-se para a porta.

— É melhor eu partir. A mula velha não vê muito bem no escuro, nestas estradas rurais.

— Ainda resta pelo menos uma hora de luz do dia, Sr. Fitch. A esta altura, já estará no vale. Não vai ser tão ruim assim.

Fitch fez que sim. Depois, alteou a voz, sabendo perfeitamente que Marylou estava logo do outro lado da porta da cozinha e podia ouvi-lo:

— Por favor, apresente meus agradecimentos à Sra. Huggins pelo delicioso guisado de coelho e por sua graciosa hospitalidade.

— Farei isso, Sr. Fitch.

Fitch desceu os degraus da varanda e subiu na carroça. Inclinou-se para o lado e disse a Jeb, ainda em voz alta o bastante para que Marylou ouvisse:

— E não se esqueça do que falei. Quatro ou cinco dólares por semana para cada garoto não é pouca coisa. Quando quiser, é só me mandar os garotos, e imediatamente arrumarei emprego para eles.

Jeb tornou a acenar com a cabeça, em assentimento.

— Obrigado, Sr. Fitch. E boa noite.

— Boa noite, Jeb.

Fitch pegou as rédeas e estalou-as bruscamente. Devagar, a mula começou a deixar o pátio. Fitch pôs-se a cantarolar para si mesmo satisfeito. Jeb estava certo. Era a melhor aguardente que já provara. Poderia conseguir um dólar por cada litro. O que daria um lucro de 68 dólares.

E ele tinha o pressentimento de que muito em breve os garotos Huggins estariam batendo em sua porta. O que também representaria dinheiro. Não havia razão para que ele dissesse a Jeb que as companhias lhe pagavam uma taxa de recrutamento de 20 dólares para cada jovem que encaminhava.

 

O clarão amarelado e bruxuleante do lampião se projetava sobre a mesa. As moedas de prata empilhadas diante de Jeb pareciam transformar-se num ouro opaco. Lenta e meticulosamente, ele contou as moedas. Depois de um momento, Marylou entrou silenciosamente na sala e sentou-se na frente dele. Só falou depois que o marido acabou de contar:

— Quanto tem?

— Sete dólares e 45 cents.

— Não é muito. — Não havia qualquer tom de queixa na voz de Marylou, apenas uma triste aceitação.

— Nós estávamos devendo quatro dólares e cinqüenta e cinco cents — disse Jeb, na defensiva. — E os preços estão baixos. O Sr. Fitch diz que as coisas não estão nada boas. Há uma guerra na Europa.

— Não entendo como uma guerra tão longe nos pode incomodar.

— Também não entendo — confessou Jeb. — Mas, se um homem como o Sr. Fitch diz isso, só pode ser porque está mesmo acontecendo. Acho que só nos resta esperar que o Sr. Presidente Wilson possa endireitar as coisas. Se alguém pode dar um jeito na situação, é ele mesmo. Afinal, é um professor de universidade muito instruído.

— Sei disso, Jeb. Mas as coisas não melhoraram desde que ele se tornou Presidente. Foi em 1914 e as coisas estão ficando piores desde então.

— As coisas levam tempo. As mulheres não têm a paciência ou a compreensão que os homens têm para essas coisas.

Marylou ficou calada, aceitando a reprimenda sem qualquer comentário. Havia ocasiões em que ela se perguntava por que o Bom Deus concedera um cérebro às mulheres, se elas não tinham o direito de usá-lo. Mas esse era um pensamento que ela mantinha na própria cabeça. Era um pensamento inspirado pelo Demônio, não era absolutamente apropriado.

— Não há dinheiro suficiente para comprar as sementes para outro plantio — comentou Jeb.

Marylou acenou com a cabeça, assentindo. Sempre fora assim. A cada ano ficavam mais endividados.

— Preciso de pano a fim de fazer roupas para as crianças. Estão crescendo depressa e não dão mais nas roupas. E daqui a pouco será outono e vão precisar de sapatos para a escola. Estará muito frio para irem descalças. Além do mais, não será conveniente.

— Nunca tive sapatos até chegar aos dezesseis anos. E isso jamais me prejudicou.

— Também não ia à escola. As coisas são diferentes agora. As crianças têm de ser educadas.

— Aprendi tudo o que tinha de saber de meu pai. Não vejo como aprender a ler ajuda Daniel a ser um fazendeiro melhor. Mesmo agora que já terminou a escola, não é melhor do que eu era na sua idade.

Marylou ficou novamente calada. Jeb acrescentou:

— E ir à escola também não ajudou Molly Ann. Ela ainda não encontrou um marido. Não se esqueça de que já estávamos casados quando você tinha dezesseis anos.

— A culpa não é dela — falou a mulher. — Molly Ann está mais do que pronta para se casar, só que todos os rapazes desceram as montanhas para trabalhar nas cidades.

Jeb fitou-a por um momento, antes de dizer:

— O Sr. Fitch diz que pode arrumar bons empregos para Daniel e Molly Ann, se a gente quiser.

Marylou não disse nada. Ouvira a proposta do Sr. Fitch, mas não lhe competia admiti-lo.

— Ele diz que as crianças podem conseguir quatro ou cinco dólares por semana.

— é um bom dinheiro.

— E talvez Molly consiga arrumar um homem lá embaixo. Essa garota está amadurecendo tão depressa que mal consigo acreditar em meus próprios olhos.

Marylou sacudiu a cabeça, pensativa. Já percebera a maneira como os olhos de Jeb acompanhavam a filha. Ela conhecia bem o marido que tinha. Jeb era um bom homem, mas também era humano e tinha dentro de si uma porção de desejos carnais inspirados pelo Demônio. Marylou sabia também que, às vezes, esses desejos podiam tornar-se demais para um homem. Havia muitos incidentes registrados nas colinas ao redor para confirmá-lo. Mais de uma moça fora despachada para morar com parentes, porque o pai cedera ao Demônio. E havia muito tempo que o pregador não aparecia para purificá-los.

— Pode ser uma boa coisa para as crianças — disse Marylou finalmente.

— Não tenho muita coisa para Daniel fazer por aqui, com essa estiagem e a terra tão ruim. Os campos do norte estão praticamente perdidos.

— E Rachel pode ajudar-me com os pequenos, depois que vier da escola — acrescentou Marylou.

Jeb olhou para as moedas em cima da mesa.

— Poderíamos até trazer a luz elétrica até aqui.

Marylou olhou fixamente para as mãos do marido, tocando no dinheiro.

— Talvez a gente possa comprar algumas galinhas, uma ou duas porcas, até mesmo uma vaca. Os pequenos bem que estão precisando de um pouco de leite fresco.

— Callendar está disposto a me vender sua outra mula por cinco dólares — disse Jeb, pensativo. — Ajudaria muito a arar a terra. E aos domingos poderíamos atrelar a mula na carroça para visitar os parentes.

Ficaram em silêncio, cada um absorvido em seus próprios pensamentos. Depois de um momento, Jeb começou a recolher as moedas e guardar numa bolsa de couro, amarrada por tiras.

— Talvez a gente devesse fazer isso mesmo — murmurou ele, especulativamente.

— Talvez — murmurou Marylou, sem fitá-lo nos olhos.

Jeb levantou e pôs a bolsa com o dinheiro numa prateleira por cima da lareira. Virou-se e olhou para a mulher.

— Pode usar dois dólares desse dinheiro para o que estiver precisando.

— Obrigada, Jeb. — Não era o suficiente, mas era melhor do que nada. — Acho que vou dar uma olhada nas crianças antes de ir para a cama.

Marylou foi até a porta.

— Já vem deitar?

Foi a vez de Jeb evitar os olhos dela.

— Acho que vou pensar mais um pouco e fumar meu cachimbo.

— Não demore muito, Jeb, já que você e Daniel estão querendo limpar o campo de oeste amanhã.

Jeb começou a encher o cachimbo com o tabaco do pote em cima da mesa. Ambos sabiam por que ele ia deitar-se mais tarde. Assim, Marylou podia fingir estar dormindo, Jeb não tinha de pedir e ela não precisava recusar.

Daniel estava imóvel, deitado na cama que partilhava com o irmão Richard. Este dormia no lado da parede, todo enroscado, uma bola contraída sobre o lençol de algodão áspero. Daniel podia ouvir os sons suaves do sono das irmãs, no outro lado do quarto. Molly Ann ocupava uma cama com a irmã mais moça, Alice. Rachel dividia a outra cama com Jane. O bebê, Mase, ainda dormia num berço no quarto dos pais.

Daniel fechou os olhos, mas nem assim o sono chegou. Sentia um descontentamento vago. Era informe, indistinto, a fonte desconhecida, mas existia e o perturbava.

Não era o fato de serem pobres. Daniel sempre soubera disso e não se encontravam em situação pior do que a maioria das famílias que conhecia. Mas, de alguma forma, a situação parecera muito pior naquele dia. O Sr. Fitch mostrara-se seguro e confiante. E o medo oculto do pai tornara-se subitamente patente para Daniel. Aquilo não era certo.

A Lua branca espiava pela janela e Daniel virou-se para contemplá-la. Calculou que deveria ser nove horas, pela posição da Lua no céu. Ouviu o som de passos através da parede fina que separava os dois quartos. Eram os passos do pai. Daniel ouviu as botas batendo nas tábuas do assoalho, depois o rangido da cama, quando o pai se deitou. E novamente houve silêncio. Um estranho silêncio.

Não era assim antes. Só começara depois de Mase nascer. Antes, havia sempre ruídos noturnos. Ruídos de amor, às vezes gritos de prazer e risos. Agora, havia sempre o silêncio. Era quase como se ninguém vivesse no quarto ao lado.

Molly Ann já lhe explicara o que acontecia. O pai e a mãe não queriam ter mais filhos. Mas isso também não fazia muito sentido para Daniel. Por acaso significava que não iam mais ter prazer um com o outro? Por que não podiam? O sexo não era mistério para Daniel. Estava sempre a seu redor. Os animais na fazenda sempre o faziam. E ele concluíra que a mesma coisa acontecia com os pais. Havia algo de antinatural na maneira como eles tinham parado.

Daniel virou-se na cama, ficando ao contrário do irmão, deitado de barriga para baixo, a fim de poder melhor contemplar a Lua. O vento noturno trouxe-lhe os ruídos de cachorros correndo a distância. Imaginou vagamente quem poderia estar caçando guaxinins, quando todos sabiam que os guaxinins tinham-se deslocado para o norte, para ficar perto da água.

Sem fazer barulho, o rapaz saiu da cama e foi até a janela. Os latidos dos cachorros pareciam vir da colina a oeste da casa. Teve a impressão de reconhecer um dos cachorros. Era o grande cachorro amarelo do Sr. Callendar, que morava lá embaixo, no vale. Daniel ouviu o farfalhar de pano às suas costas e virou-se.

— Também não consegue dormir? — perguntou Molly Ann.

— Não.

Ela postou-se ao lado do irmão na janela e olhou para fora.

— Estive pensando, Daniel. . . Ouviu o que o Sr. Fitch disse ao Pai? — Ele acenou com a cabeça e Molly Ann acrescentou, ainda sussurrando: — Sempre imaginei como seria viver na cidade. Ouvi dizer...

Houve um rangido numa das camas e Daniel murmurou:

— Fale baixo! Vai acabar acordando as crianças.

— Não quer sair?

Ele fez que sim e os dois saíram para o pátio, fechando a porta, sem qualquer barulho. A Lua cheia fazia com que parecesse quase dia.

— A noite tem um cheiro um bocado bom — murmurou Molly Ann.

— Tem razão.

— E é quieta também. A noite é muito diferente do dia. Tudo parece tão calmo e sossegado!

Daniel seguiu na frente até o poço, encheu a caçamba com água e bebeu. Estendeu a caçamba para a irmã, que sacudiu a cabeça. Ele largou a caçamba. Os latidos dos cachorros haviam-se reduzido a débeis ganidos distantes.

— Acha que eles pegaram alguma coisa, Daniel?

— São uns cachorros idiotas — disse ele, desdenhosamente. — Devem ter ouvido o pio de uma coruja, nada mais do que isso.

— Ouvi a mãe falando, Daniel. Se a gente descer para a cidade, eles podem comprar algumas galinhas e talvez mesmo uma vaca. O Pai diz que pode conseguir a mula velha de Callendar por cinco dólares.

Daniel não respondeu. Molly Ann acrescentou:

— Em que está pensando?

As palavras dele saíram lentamente, quase com relutância:

— Não gosto daquele Sr. Fitch. Há alguma coisa nele que não me agrada.

— Está querendo dizer que não vai, se o Pai mandar?

— Não foi isso o que falei. Apenas disse que não gosto daquele homem.

— Pois ele me parece muito bom.

— Não se deixe enganar pelo jeito elegante e pelas maneiras pretensiosas dele. É um homem impiedoso.

— Acha que o Pai vai-nos mandar?

Daniel virou-se para fitá-la, assentindo depois de um momento.

— Acho que sim, Molly. O Pai não tem outro jeito. Precisamos de dinheiro e não há outra maneira de o conseguir.

Um tom de excitamento se insinuou na voz de Molly Ann, quando ela disse:

— Ouvi dizer que tem bailes na cidade todas as noites de sábado, depois que largam o trabalho.

Daniel continuou a fitá-la, em silêncio por um instante.

— O que está tendo agora são os pensamentos do Demônio.

Molly Ann soltou uma risada e apontou-lhe um dedo.

— E é você quem me fala, parado aí com esse negócio duro estufando a frente da calça.

Daniel corou, sentindo o rosto arder intensamente. Esperava que a irmã não percebesse, na escuridão da noite. Mas ele murmurou, tentando defender-se:

— Sempre fica assim quando saio para dar uma mijada à noite.

— Pois então vá dar sua mijada — disse Molly Ann, meneando a cabeça e começando a voltar para a casa. — Mas não demore muito ou vou saber o que está fazendo.

— Molly Ann. . .

Ela virou-se e fitou-o.

— Por que está tão ansiosa em ir embora daqui, Molly Ann?

— Não sabe mesmo, Daniel?

Ele sacudiu a cabeça.

— Não há nada para mim aqui. A não ser crescer para me tornar uma velha solteirona. Talvez lá embaixo, na cidade, eu tenha alguma oportunidade. Talvez não me sinta tão vazia e inútil.

Daniel não disse nada, e a irmã continuou:

— É diferente para os homens. Eles podem fazer o que bem quiserem. Não precisam casar, se não quiserem. — Molly Ann tornou a aproximar-se do irmão. — Não sou uma menina má, Daniel. Não sou mesmo. Mas também não sou mais uma menina. Sou uma mulher adulta, que já vai fazer dezesseis anos. E há coisas dentro de mim, coisas que sinto que deveria estar fazendo, como ter a minha própria família antes de ficar velha demais.

Ela estendeu a mão e pegou a dele. Daniel sentiu que a pele da irmã estava extremamente fria ao contato.

— Amo o Pai e a Mãe, amo você e as crianças. Mas tenho de viver a minha própria vida. Pode entender isso, Daniel?

Ele ficou em silêncio por um longo momento, antes de murmurar, hesitante:

— Acho que sim.

Molly Ann largou a mão dele.

— É melhor vir deitar logo, Daniel. Vai ter de levantar cedo para ajudar o Pai a limpar o campo de oeste.

— Pode deixar.

Daniel ficou observando a irmã entrar na casa e depois foi para trás da pilha de lenha para urinar. Quando voltou para o quarto, só encontrou os ruídos suaves da noite adormecida.

Daniel sentiu o cheiro de milho frito assim que entrou na cozinha.

— Eu estava no campo do oeste, mas o Pai não apareceu.

Marylou virou-se para fitá-lo.

— Seu pai saiu de manhã bem cedo para ver se conseguia tomar emprestada a mula dos Callendars para ajudar. Já deve estar voltando. — Entregou um prato ao filho. — Sente-se e coma um pouco.

Daniel puxou uma cadeira e se sentou à mesa, começando a meter a comida insípida na boca com uma colher.

— Seu pai e eu estivemos pensando que talvez você e Molly Ann devessem ir trabalhar na cidade, Daniel. Gostaria de ir?

— Nunca pensei muito nisso — respondeu ele, dando de ombros.

O Sr. Fitch diz que vocês podem ganhar quatro ou mesmo cinco dólares por semana.

Daniel parou de comer e olhou para a mãe.

— O que ele ganha com isso?

Marylou ficou desconcertada.

— De quem está falando?

— Do Sr. Fitch.

Marylou passou da perplexidade ao choque.

— Nada. Como pode pensar uma coisa dessas? O Sr. Fitch é um homem de bem. Apenas está vendo como as coisas andam ruins por aqui e quer ajudar.

— Então por que ele não paga ao Pai um preço justo pelo milho?

— Isso é diferente, Daniel. Os negócios são assim.

— É a mesma coisa para mim. — Ele terminou de comer e se levantou. — Acho que um homem não pode ser de um jeito numa coisa e diferente em outra.

Marylou estava furiosa.

— Não tem o direito de falar assim de um homem de bem como o Sr. Fitch. Ele sempre foi bom para nós. Não nos dá crédito na loja quando não temos dinheiro?

— Mas pega o dinheiro de volta, quando vem buscar a aguardente. Não corre muito risco.

— Cale essa boca, Daniel! — disse Marylou, asperamente. — Seu pai não vai gostar, se eu contar o que você falou. O Sr. Fitch tem ajudado muitas famílias daqui. E também arrumou bons empregos para muitos dos jovens. Por isso, trate de controlar sua língua e suas maneiras.

Sem dizer nada, Daniel se retirou. Foi sentar-se nos degraus da frente. Ficou olhando para a estrada pela qual seu pai viria. Talvez fosse melhor descer para a cidade.

No final das contas, Molly Ann poderia estar certa. Também não havia muita coisa para ele por ali.

 

— Se não perderem tempo na estrada, devem chegar ao armazém do Sr. Fitch antes do pôr-do-sol. — Jeb estreitou os olhos, contemplando o sol da manhã. — Não deve ser muito quente hoje e por isso não vai ser muito ruim.

— Não será — disse Daniel, olhando para o pai.

— Mantenha a calça extra e a camisa boa sempre limpas — recomendou a mãe. — E não se esqueça de lavar a ceroula todos os dias.

— Não esquecerei.

— Não queremos que as pessoas pensem que vivemos como porcos só porque somos das montanhas. Temos um bom nome, antigo e orgulhoso como qualquer outro. Não queremos que as pessoas se esqueçam disso.

Daniel mudou de posição, pouco à vontade. Os sapatos que usava já começavam a lhe parecer apertados. Geralmente não usava sapatos até a primeira geada do inverno. Molly respondeu à mãe:

— Pode deixar que cuidarei dele, Mãe. Não precisa preocupar-se.

Marylou virou-se para a filha.

— Seja uma boa moça, Molly. Lembre-se do que ensinei. Não dê ouvidos à conversa mole de homens que não prestam para nada.

— Sei como me comportar, Mãe. Não sou mais uma criança.

Marylou ficou olhando para a filha, sem dizer nada. Molly Ann corou. Sabia o que a mãe estava pensando.

— Pode deixar que saberei comportar-me, Mãe.

Jeb meteu a mão no bolso e tirou algumas moedas.

— Vou dar um dólar para os dois. Ê para poderem pagar casa e comida até começarem a trabalhar. Não devem aceitar nada de ninguém. Não quero que ninguém diga que os Huggins aceitam caridade dos outros.

Em silêncio, Daniel pegou as moedas da mão do pai e guardou-as no bolso.

— É um bocado de dinheiro, Daniel. Não vá gastar em bobagens.

— Não vou, não, Pai.

Jeb tornou a olhar para o céu.

— Acho melhor vocês partirem logo de uma vez.

Daniel fez um gesto de assentimento. Olhou para os pais, depois para os irmãos, todos reunidos no pátio, ao redor deles.

— Acho que sim.

As crianças olhavam em silêncio para Daniel e Molly Ann. Aquele era um momento solene, mas não havia nada para dizerem.

Daniel meio que acenou com a mão, depois pegou a pequena sacola de algodão, contendo a outra camisa, a calça extra e a ceroula. Empurrou o pequeno bastão pelo nó e pendurou no ombro.

— Vamos, Molly Ann.

A irmã fitou-o por um momento, depois correu para a mãe. Marylou abraçou a filha por um longo momento, antes de largá-la. Rapidamente, Molly Ann deu um beijo no rosto de cada irmão, depois foi juntar-se a Daniel. Lentamente, encaminharam-se para a estrada.

— Daniel!

A voz de Jeb soava rouca. Os filhos pararam.

— O que é, Pai?

Jeb se aproximou deles, dizendo, visivelmente constrangido:

— Se não der certo, por qualquer que seja o motivo, voltem para casa. Não se esqueçam de que têm uma família que os ama e sente orgulho de vocês.

Daniel sentiu um aperto na garganta. O rosto do pai estava tenso e sob controle, mas os olhos achavam-se marejados de lágrimas.

— Sabemos disso, Pai — respondeu Daniel, com um sentimento súbito de profunda compreensão. — Mas não se preocupe. Vai dar tudo certo.

Jeb fitou-o em silêncio por um momento, e depois meneou a cabeça.

— Sei que vai conseguir — disse ele finalmente, piscando os olhos. —Cuide de sua irmã, filho.

— Cuidarei, Pai.

Jeb estendeu a mão calosa, pegou a de Daniel e apertou-a. Depois, abruptamente, largou a mão do filho, virou-se e afastou-se.

Daniel ficou observando o pai contornar o canto da casa, sumindo de vista. Virou-se novamente para a irmã e disse:

— Vamos embora, Molly Ann. Temos uma longa caminhada pela frente.

Eram 55 quilômetros, para ser mais exato.

O dia esquentara bastante, fazia muito mais calor do que Jeb previra. O Sol estava quase a pino sobre as cabeças deles, os raios brancos incidindo implacavelmente sobre a estrada de terra.

— Quanto calcula que a gente já andou? — perguntou Molly Ann.

Daniel empurrou para trás da cabeça o chapéu de aba larga e enxugou o suor do rosto com o antebraço.

— Talvez uns dezoito ou vinte quilômetros.

— Meus pés estão doendo, Daniel. Será que não podemos descansar por alguns minutos?

Ele pensou por um momento e depois concordou:

— Acho que sim.

Molly Ann seguiu-o para fora da estrada e foram sentar-se à sombra de uma árvore. Tiraram rapidamente os sapatos e, deitados de costas, deixaram que os dedos dos pés se remexessem na alegria da liberdade.

— A única coisa que não gosto em ir para a cidade é ter de usar sapatos — comentou Molly Ann.

— Também não gosto. — Daniel massageou os pés. — Mas acho que vamos ter de nos acostumar a usar.

— Estou com a boca ressequida, Daniel. Gostaria de beber um pouco de água.

— Há um córrego cerca de cinco quilômetros adiante Podemos beber quando chegarmos lá. E aproveitaremos para comer nossos sanduíches.

— E podemos também lavar os pés?

Daniel não pôde deixar de rir.

Isso também. — Ele se levantou. — Vamos indo.

Molly olhou para os pés do irmão.

— Não pôs os sapatos.

— Acho melhor a gente poupar os sapatos. Do contrário, estarão arrebentados quando chegarmos à cidade.

— É uma boa idéia — disse a moça, com um sorriso.

Carregando os sapatos, ambos recomeçaram a descer a encosta.

Depois de alguns minutos, Molly Ann falou:

— Daniel.

— O que é?

— Acha que o Sr. Fitch estava mesmo falando sério no que disse ao Pai?

— Acho que sim.

— Não gosta dele, não é mesmo?

Daniel não respondeu.

— Mas isso não importa, se ele puder realmente nos arrumar os empregos de que falou.

— Acho que tem razão, Molly Ann — falou Daniel, após um momento.

— Daniel... — Havia um tom de tensão na voz de Molly Ann. — Não me estou sentindo bem, Daniel.

Ele olhou prontamente para a irmã. Molly Ann empalidecera subitamente, havia gotas de suor em sua testa. Rapidamente, Daniel pegou o chapéu e pôs na cabeça da irmã. Os cabelos castanhos compridos dela estavam bastante quentes. Daniel pegou-a pelo braço e disse:

— Venha descansar mais um pouco. É por causa do sol.

Molly Ann deixou-se conduzir lentamente para a sombra de outra árvore. Daniel ajeitou-a no chão gentilmente.

— Descanse um pouco.

Ela sacudiu a cabeça debilmente.

— Não. Temos de continuar ou não vamos conseguir chegar.

Um tom de comando insinuou-se na voz de Daniel:

— Vai descansar um pouco. Também não vamos conseguir chegar, se você tiver uma insolação. Fique deitada aqui enquanto vejo se consigo encontrar um pouco de água.

Molly Ann recostou-se na árvore, fechando os olhos e murmurando:

— Está bem, Daniel.

Agilmente, ele desamarrou o nó que prendia sua trouxa e pegou a pequena caneca de estanho que guardara entre as roupas. Desceu correndo a encosta, na direção de um grupo maior de árvores. Geralmente existia água onde havia muitas árvores. Chegando lá, Daniel ajoelhou-se, pegou um punhado de terra e cheirou-a. Estava úmida.

Ficando de quatro, pôs-se a avançar, seguindo a pista da umidade Assim que enfiou os dedos na terra e descobriu que estavam úmidos ao tirá-los, começou a escavar com as mãos. A água começou a escorrer quando estava a pouco mais de um palmo de profundidade.

Rapidamente, Daniel fez um buraco redondo no solo, depois comprimiu a terra nos lados. Abrindo os dedos, comprimiu a palma da mão contra o fundo do buraco, aplicando todo o peso do corpo na pressão. Um momento depois, a água começou a se acumular em torno dos dedos. Manteve a pressão até que a água estava quase alcançando o pulso e começando a se drenar pelos lados. Com a outra mão, segurou a caneca dentro do buraco, até que se enchesse de água.

Segurando a caneca com todo cuidado, Daniel correu de volta para junto da irmã. Molly Ann achava-se imóvel, os olhos fechados. Já não estava mais tão pálida como antes. Abriu os olhos com uma expressão de cansaço e tentou sentar-se.

— Fique quieta — ordenou Daniel, ajoelhando-se ao lado dela. Tirou   da trouxa um lenço pequeno. Umedecendo-o, comprimiu-o contra a testa de Molly Ann e passou gentilmente pelo rosto dela.

— A sensação é boa — murmurou Molly Ann.

Daniel torceu o lenço e tornou a umedecê-lo. Desta vez espremeu as gotas sobre os lábios ressequidos da irmã. Ela lambeu as gotas.

— Está-se sentindo melhor, Molly Ann?

— Só um pouco.

O rapaz passou o braço pelos ombros dela, ajudando-a a sentar-se. Levou a caneca aos lábios da irmã, advertindo:

— Não beba muito agora. Só um gole pequeno.

Molly tomou um gole e depois suspirou. Olhou para o irmão, murmurando:

— Não sei o que deu em mim...

— Deveria estar usando um chapéu. Esse sol está forte de verdade.

— Posso descansar só um pouquinho? Depois estarei forte o bastante para a gente continuar.

— Não há pressa. O Sr. Fitch estará lá quando a gente chegar.

Molly Ann tornou a deitar-se e fechou os olhos Estava dormin­do um momento depois. Lentamente, Daniel tomou a enxugar o rosto da irmã com o lenço e em seguida deixou-a descansar. Um pouco de sono não faria mal algum.

O rapaz recostou-se na árvore, cerrou os olhos para observar o Sol e depois contemplou a estrada que tremeluzia ao calor. Deveria ser por volta do meio-dia. Não havia sentido em voltar à estrada agora. Por algum tempo, andar pela estrada seria como estar dentro de um forno. O melhor era esperarem até depois de duas horas. A esta altura, o Sol já teria passado além das colinas a oeste e a estrada começaria a esfriar. Deitou-se, pondo os braços atrás da cabeça e fechando os olhos. Um momento depois, estava dormindo também.

Daniel foi despertado por uma toutinegra, empoleirada num galho logo acima de sua cabeça. Espiando através das folhas para o céu azul, o jovem contemplou por um momento o pássaro canoro. Sentou-se em seguida. Afugentado pelo movimento, o pássaro alçou vôo. Olhou para a irmã. Os olhos dela estavam abertos.

— Como está-se sentindo, Molly Ann?

— Melhor.

— Pois então é melhor a gente continuar — disse Daniel, pondo-se de pé.

Ela se sentou.

— Isso nunca tinha-me acontecido antes.

Daniel não pôde deixar de sorrir.

— Mas também nunca antes você havia passado quatro horas no sol sem chapéu.

— Tem razão. — Molly Ann se levantou e ficou parada por um momento, olhando em seguida para o irmão. — Já estou bem agora.

Daniel acenou com a cabeça em assentimento e começou a prender novamente a trouxa.

— Vamos beber de verdade, quando chegarmos ao córrego.

Além de sua própria trouxa, Daniel pegou também a da irmã.

Encaminharam-se para a estrada. Molly Ann fez menção de devolver-lhe o chapéu, mas ele disse:

— Pode ficar com o chapéu. Estou mais acostumado do que você a ficar ao sol.

Caminharam em silêncio por cerca de meia hora até chegarem ao córrego. Saíram da estrada e, alegremente, lavaram o rosto e beberam até se saciar.

— É uma boa água — comentou Daniel.

A irmã sorriu em concordância.

— Tem gosto de açúcar.

— Temos de continuar.

— Já estou pronta.

Daniel seguiu na frente de volta à estrada, chegando lá no momento em que uma carroça puxada por uma mula contornava uma curva, escondida por árvores. Ele parou à beira do caminho estreito para deixar a carroça passar. Molly Ann parou atrás do irmão.

Um rapaz magro, o rosto meio escondido por um chapéu de montanhês de aba larga, estava sentado no lugar do cocheiro, as rédeas pendendo frouxas entre os dedos.

— Trate de andar mais depressa! — gritou ele para o relutante animal, que quase se arrastava pelo calor.

A mula não alterou o ritmo por causa da ordem, continuando a avançar lenta e penosamente. O rapaz praguejou, jovialmente:

— Maldita mula! — A carroça passou pelo lugar em que Daniel e Molly Ann estavam parados, à beira da estrada. O rapaz fitou-os. — Querem uma carona até a cidade?

Molly pôs a mão no braço do irmão, para contê-lo, ao mesmo tempo em que dizia:

— Daniel, o Pai disse para a gente andar.

Quase que furiosamente, ele afastou a mão da irmã. Mas que garota estúpida! Será que não percebia que não estava em condições de chegar à cidade a pé? Ele olhou para o rapaz magricela e disse:

— Queremos, sim, mister.  

 

Jimmy Simpson tinha cabelos louros cor de areia, olhos azuis um sorriso jovial e cativante. Jamais tivera um emprego em todos os 20 anos de sua vida e também nunca precisara. Dinheiro não era problema. Podia obtê-lo de muitas maneiras diferentes, como jogando klaberjass com os mineiros poloneses, pôquer de sete cartas com os montanheses ou sinuca com os espertalhões da cidade.   E sempre havia a possibilidade de fazer algum contrabando de bebidas, quando as coisas ficavam mais difíceis. Como naquele dia.

Passara o dia inteiro nas montanhas. Não fora fácil. O velho Fitch fizera sua ronda no dia anterior e recolhera o que havia de melhor. Se não fosse pelo fato de Jimmy pagar duas vezes mais do que Fitch e estaria agora voltando com a carroça vazia. Mas o preço dele era bom e lhe proporcionava a boa aguardente de milho, a que os montanheses guardavam para o próprio consumo.

Ficou observando o rapaz colocar as duas trouxas que estava carregando na carroça, depois ajudar a irmã a subir e sentar-se ao lado dela. Jimmy empurrou o chapéu para trás da cabeça e uma mecha de cabelos louros rebeldes caiu-lhe sobre o rosto.

— Sou Jimmy Simpson.

O rapaz tinha uma expressão solene.

— Prazer. — A voz era mais profunda do que Jimmy imaginara. — Sou Daniel Boone Huggins, e essa é minha irmã, Molly Ann.

— Prazer em conhecê-los — disse Jimmy, sorrindo. — Olhou para a moça. Pelo que podia ver do rosto dela, oculto pelo chapéu de aba larga que obviamente pertencia ao irmão, era muito bonita. — Andaram muito?

— Cerca de vinte e cinco quilômetros desde o início da manhã — disse Daniel. — Mas o calor obrigou a gente a ir mais devagar.

— Para onde estão indo?

— Fitchville.

Jimmy sorriu novamente.

— É para onde estou indo também. Vão fazer uma visita?

— Não. — Daniel sacudiu a cabeça. — Vamos trabalhar.

— Já têm empregos?

— Ainda não. Mas o Sr. Fitch disse a meu pai que arrumaria.

— Para os dois?

— Isso mesmo.

Jimmy ficou calado. O velho filho da mãe tinha os montanheses na palma da mão. Não havia coisa alguma que entrasse ou saísse das montanhas em que ele não metesse os dedos compridos e gananciosos. Até mesmo gente. Mas não havia a menor possibilidade de o velho filho da mãe sair perdendo, com uma cidade inteira batizada em homenagem a seu tataravô.

Daniel deu uma olhada na parte de trás da carroça. Reconheceu as moringas de aguardente, embora estivessem cobertas por sacos velhos de açúcar. Em seguida, voltou a olhar para a estrada à sua frente. Não era da sua conta.

Jimmy olhou para a moça. Ela estava encostada no irmão, de olhos fechados, o corpo balançando levemente ao movimento da carroça. Parecia estar cochilando.

— Se sua irmã está cansada — disse Jimmy — podemos arrumar um lugar na carroça para ela se deitar.

Molly empertigou-se, apressando-se em dizer:

— Não quero incomodar ninguém.

— Não é incômodo nenhum. . . especialmente em se tratando de uma moça tão bonita — disse Jimmy, parando a mula   Passou por cima do banco e empurrou para o lado de trás da carroça algumas bilhas. Improvisou rapidamente um colchão com os sacos de açúcar de algodão, depois ajeitou uma pequena cobertura para proteger Molly Ann do sol. Empertigou-se, comentou: — Não é tão mau assim. Eu próprio dormi assim ontem à noite.

Estendeu a mão para Molly Ann. Esta olhou para o irmão em busca de aprovação. Daniel assentiu. Molly Ann pegou a mão de Jimmy e passou por cima do banco. Fitou-o nos olhos e disse:

— É muito gentil, Sr. Simpson.

— Jimmy... Todo mundo me chama de Jimmy — disse o rapaz sorrindo.

— Jimmy.

Subitamente, ele percebeu que ainda estava segurando a mão de Molly Ann. Largou-a no mesmo instante e disse, meio constrangido:

— Fique à vontade.

Molly Ann sentiu o coração bater descompassadamente dentro do peito e o rosto arder. Não sentiu confiança suficiente em si mesma para dizer mais qualquer coisa. Devia ter sido mais afetada pelo sol do que imaginara. Limitou-se a acenar com a cabeça.

Jimmy voltou para seu lugar e pegou as rédeas. Um rápido olhar para trás confirmou que a moça já estava deitada. Estalou as rédeas e gritou:

— Vamos embora, mula maldita! — Falou quase num sussurro, a fim de não incomodar a moça.

Molly Ann despertou abruptamente, sentindo o frio da noite no ar. Ao começar a se levantar, descobriu que fora coberta com uma manta grossa. Empurrou-a para baixo e respirou fundo. Estava-se sentindo bem melhor agora.

Virou-se e viu o irmão e o rapaz, magro, sentados de costas, delineados contra o céu do princípio de noite. Vagamente, imaginou por quanto tempo teria dormido. O rapaz sacudiu as rédeas. Molly Ann sentiu novamente o rosto arder. Ele era muito simpático.

— Já acordou? — Daniel ouvira a irmã sentar-se.

— Já, sim.

Jimmy virou-se para fitá-la.

— Não quer sentar-se aqui com a gente?

Molly Ann assentiu. Ele parou a mula e estendeu a mão. Ela pegou-a, sentindo novamente o coração bater descompassadamente. Dominada pela confusão, Molly Ann deixou-se puxar para o banco.  

— Ainda falta muito?                                                                    '

— Não mais do que duas horas — respondeu Jimmy. — Não consigo fazer essa mula andar mais depressa. É a mula mais preguiçosa de todo este condado.

— Já será bem tarde quando chegarmos lá — disse ela, olhando para o irmão. — E se o armazém do Sr. Fitch estiver fechado?

— Então vamos procurá-lo de manhã.

— Vocês têm algum lugar para passar a noite? — perguntou Jimmy. — Algum parente?

— Não — respondeu Daniel.

— Posso arrumar um lugar para vocês lá onde eu moro. A viúva Carroll dirige uma ótima pensão.

Daniel e Molly Ann se entreolharam, hesitantes.

— Ela não vai cobrar nada de vocês por esta noite — apressou-se Jimmy em dizer. — São meus convidados.

Daniel, por sua vez, falou rapidamente:

— Podemos pagar. Temos dinheiro. É que estamos querendo começar a trabalhar o mais depressa possível.

— Onde vão trabalhar? — indagou Jimmy. — Na tecelagem?

Molly olhou novamente para o irmão, que admitiu:

— Não sabemos direito. Ele apenas disse a nosso pai para a gente descer a montanha, pois cuidaria de tudo.

— Fitch não explicou que tipo de trabalho vocês vão fazer?

— Não. Disse apenas que iríamos ganhar um bom dinheiro. Talvez quatro ou cinco dólares por semana.

Jimmy soltou uma risada, mas havia algo mais por trás de sua reação.

— Aquele Fitch tem mesmo uma conversa macia.

— Está querendo dizer que não há empregos — indagou Molly Ann, ansiosamente.

— Não é bem isso. Claro que há trabalho. Mas, a sete cents por hora, vão precisar trabalhar pelo menos doze horas por dia para conseguir esse dinheiro.

— Não me importo de trabalhar — declarou Molly Ann.

— Alguma vez já trabalhou numa tecelagem?

— Não.

— Fica-se de pé o dia inteiro, trocando bobinas numa máquina em movimento. O corpo dá a impressão de que vai quebrar em cem pedaços. Não é fácil.

— Nada é fácil — retrucou ela. — Mas se o pagamento é bom, não esperamos que seja fácil.

— Pagamento bom? — Jimmy riu novamente. — Chama a isso de pagamento bom? Por que acha que eles usam crianças? Porque podem pagar sete cents a hora, quando teriam de pagar quinze cents a hora para adultos. Lucram com a diferença.

— Não é da nossa conta o que os outros fazem — disse Daniel — Só nos importa ter um dia de trabalho honesto.

Jimmy sentiu vontade de rir outra vez, mas havia algo na expressão do rapaz que o deteve. Aquele não era um montanhês comum. Em algum lugar, por trás daqueles olhos, havia uma maturidade objetiva, uma percepção das pessoas que ia muito além de seus anos Depois de um momento, comentou:

— As pessoas devem fazer o que é preciso.

Mas, no fundo de seu coração, Jimmy sabia que não era bem assim. As pessoas não faziam o que deviam. Dançavam como marionetes presas a cordões, manipulados por outros homens, que só se interessavam por seus lucros e conveniências.

Já passavam alguns minutos das nove horas quando chegaram à Rua Main e a carroça parou diante do armazém do Sr. Fitch. A porta estava fechada, as janelas às escuras. Ficaram sentados em silêncio por alguns minutos. Jimmy sentiu que devia pedir desculpas.

— Sinto muito. Se esta mula velha não fosse tão teimosa, poderíamos ter chegado aqui uma hora antes.

— Não foi sua culpa — disse Daniel, olhando em seguida para a irmã e acrescentando: — Talvez seja melhor a gente saltar aqui.

— Não há a menor necessidade — apressou-se Jimmy em dizer. — Podem ir comigo até a pensão da viúva. Jantam e vão para a cama, podendo chegar aqui de manhã cedo.

Daniel fitou-o nos olhos.

— Não queremos incomodar ninguém. E já lhe estamos devendo o favor que nos fez.

— Não vão incomodar ninguém — assegurou Jimmy. — Casa e comida é o negócio da viúva.

A viúva Carroll era uma mulher magra, com um rosto fino e uma língua afiada, que usava para manter seus pensionistas na linha. Era uma mistura estranha e irregular de homens que trabalhavam nas tecelagens, fábricas e minas, procedentes das partes mais próximas e mais distantes do mundo. Eslavos da Europa Central conviviam ali com montanheses de lábios finos e taciturnos, que estavam trabalhando num ambiente que lhes era tão estranho quanto o era para os imigrantes. Apesar de tudo, a viúva os mantinha sob controle. Não havia brigas em sua pensão, ninguém se embriagava, ninguém blasfemava. O que os homens faziam lá fora não era da sua conta. Mas ao chegarem à sua mesa era melhor estar de mãos limpas e rosto lavados, caso contrário não os deixaria sentar. E cada um vivia dominado pelo terror dela, falando em voz desusadamente abafada sempre que a viúva estava por perto, pois ninguém queria perder sua vaga na pensão. As refeições não eram rebuscadas, mas ela servia a melhor mesa em toda a região.

— Está atrasado para o jantar — disse ela, rispidamente, para Jimmy — sabe que o jantar é servido às seis e meia.

— A culpa é daquela mula velha — respondeu Jimmy, exibindo todo seu charme. — Não consegui fazer com que andasse mais depressa. E depois encontrei esses garotos andando na estrada, com todo aquele calor. Não podia deixá-los fazer isso, não é mesmo?

A viúva Carroll olhou para Daniel e Molly Ann e farejou-os, sem dizer nada. Os irmãos ficaram inquietos sob o olhar penetrante dela.

— Eles vieram procurar o Sr. Fitch, que lhes vai arrumar emprego — explicou Jimmy. — Mas o armazém já estava fechado quando chegamos.

— Nada de mulheres aqui! — A viúva virou-se para Jimmy. — Conhece as regras da casa.

Daniel pegou a irmã pela mão.

— Vamos embora, Molly Ann. Não queremos criar-lhe nenhum problema, Sr. Simpson. Obrigado por sua gentileza.

Algo no tom de voz dele penetrou fundo na memória da viúva Carroll. O marido dela era um montanhês. Muitos anos antes, quando ambos eram jovens, ele parecia, com aquele rapaz, forte, determinado, imbuído de um intenso sentimento de orgulho. Mas isso fora há muitos anos, antes de as minas destruírem seus pulmões. Ele morrera cuspindo um sangue escuro nos lençóis brancos.

—- Além do mais — disse ela — só tenho um quarto vago.

Daniel fitou-a nos olhos, firmemente.

— Não tem problema, madame. Minha irmã e eu sempre dormimos no mesmo quarto durante toda nossa vida, juntamente com nossos irmãos e irmãs.

— Não importa o que vocês sempre fizeram ou deixaram de fazer — disse a viúva, asperamente. — Nenhum homem e mulher vão partilhar um quarto nesta casa, mesmo que sejam irmãos.

— Posso dormir na varanda, com sua permissão, madame — insistiu Daniel. — E Molly Ann pode ficar sozinha no quarto.

— Não sei, não. . . — murmurou a viúva, em dúvida. — Não é direito ter alguém dormindo na varanda.

— Ele pode usar o catre em meu quarto — sugeriu Jimmy.

A viúva Carroll tomou uma decisão. Eles pareciam crianças bem educadas e respeitáveis, de uma boa família.

— Está certo. Mas a única coisa que resta para comer é um pouco de carne de porco fria e pão.

— É muita gentileza sua, madame — disse Daniel.

A viúva fitou-o atentamente.

— Vai custar dez cents para cada um. — Hesitou por um momento, e depois acrescentou: — Inclusive o café da manhã, que é servido às cinco e meia em ponto.

Em silêncio, Daniel tirou algumas moedas do bolso. Estendeu duas moedas de cinco cents e outra de dez cents.

— Obrigado,   madame.   Agradecemos   sua gentileza.

Ela acenou com a cabeça e virou-se para Molly Ann.

— Venha comigo agora, mocinha. Vou-lhe mostrar seu quarto.

Molly Ann estava deitada na cama no pequeno quarto às es­curas, prestando atenção ao silêncio. Era estranho. Não havia nenhum som. Era a primeira vez que dormia sozinha num quarto, sem os ruídos noturnos familiares dos irmãos. Não era fácil se acostumar.

Pensou na família e se perguntou se estavam sentindo saudade dela. Inexplicavelmente, as lágrimas começaram a rolar por suas faces. Houve uma batida discreta na porta. Molly Ann saiu da cama e atravessou o quarto sussurrando junto à porta:

— Quem está aí?

— Sou eu, Daniel. Você está bem?

— Estou, sim.

O rapaz hesitou por um instante.

— Então. . .   boa noite.

— Boa noite.

Molly Ann ouviu os passos suaves do irmão afastando-se da porta. Ela voltou para a cama. Em apenas um curto dia, muitas coisas haviam mudado. Ou melhor, tudo mudara.

Até aquele dia, Daniel fora o irmão mais moço. Mas agora, hoje, subitamente, ele ficara diferente. Havia uma força nele que Molly Ann jamais conhecera antes. Como se, num relance, ele a houvesse ultrapassado em maturidade.

Molly Ann sentiu-se invadida por uma curiosa sensação de conforto e segurança. As lágrimas cessaram e ela mergulhou num sono profundo, sem sonhos.

 

Daniel e Molly Ann estavam esperando na frente do armazém na Rua Main, pouco depois das seis horas da manhã, quando a porta se abriu e um preto velho apareceu, com uma vassoura nas mãos. O homem olhou para os dois, curioso, mas não disse nada, começando a varrer a calçada de madeira na frente da entrada. Daniel foi até a porta e olhou para o interior do armazém.

— Ainda não tem ninguém — informou o preto. — Se está querendo comprar alguma coisa, Mister Harry deve chegar a qualquer momento.

— Estamos esperando pelo Sr. Fitch — informou Daniel.

— Ele não chega antes das oito horas.

— Vamos esperar.

Daniel voltou para junto da irmã. Havia um pequeno banco diante de uma das janelas e eles sentaram ali.

Alguns minutos depois, um homem pequeno, de aparência nervosa, num casaco lustroso, colarinho engomado e gravata, chegou apressadamente ao armazém, indagando, em voz estridente e solícita:

— Já apareceu algum freguês, Jackson?

O negro deu um passo para o lado, polidamente, a fim de deixar o homenzinho passar.

— Não, senhor, Mister Harry.

O homem parou e olhou para Daniel e Molly Ann, mas não lhes dirigiu a palavra.

— O que eles querem?

— Estão procurando por Mister Fitch.

O homemzinho virou-se para os irmãos e perguntou.

— Estão procurando emprego?

Daniel levantou-se.

— Estamos, sim, senhor.

— Pois não podem ficar sentados aí — disse o homenzinho, bruscamente. — Esse banco está reservado aos fregueses.

— Desculpe.

Antes mesmo que Daniel acabasse de falar, o homenzinho já havia desaparecido pela loja adentro. O rapaz virou-se para Molly Ann, que já se levantara. Os dois ficaram parados, indecisos.

— Tem um banco no lado do armazém que podem usar — informou o preto velho.

— Obrigado.                                                                        

Daniel levou a irmã para o lado do armazém e se sentaram no banco que havia ali.

Lentamente, a pequena cidade começou a entrar em atividade em torno deles. As lojas foram abertas, pessoas começaram a. aparecer na rua, em seguida surgiram algumas carroças, depois mais.. Alguns minutos após as sete horas, o dia já estava em plena efervescência.

Os irmãos ficaram observando, em silêncio, curiosos. As pessoas que passavam pareciam não lhes prestar a menor atenção. Todos pareciam estar absorvidos nos próprios pensamentos. Os homens iam trabalhar, as mulheres faziam compras, as crianças saíam para brincar. Todos pareciam preocupados.

— Quanto tempo mais vamos ter de esperar? — perguntou Molly Ann.

Daniel estreitou os olhos, observando o Sol.

— Talvez meia hora.

— Viu o Sr. Simpson esta manhã, Daniel?

— Ele ainda estava dormindo quando saí do quarto.

— Ele não desceu para o desjejum.

— Antes da gente dormir, ele me disse que nunca desce para o desjejum. E a madame serve uma refeição muito boa. Mingau de aveia, pão de milho com manteiga e café de verdade. Não faz sentido ele perder uma comida tão boa.

— Eu queria agradecer a gentileza dele — comentou Molly Ann.

— Não precisa preocupar-se com isso. Já agradeci por nós

— Ele foi muito delicado...

Daniel olhou para a irmã e sorriu, caçoando:

— Será que ficou um pouco enrabichada por ele?

— Não diga bobagem — falou Molly Ann, corando. — Será que uma moça não pode dizer que um rapaz foi delicado sem que os outros entendam errado?

Daniel sorriu novamente. Podia contar à irmã que Jimmy quisera saber tudo a respeito dela. . . Mas se Molly Ann soubesse, isso poderia virar-lhe a cabeça.

O preto velho se aproximou nesse momento e informou:

— Mister Fitch já chegou, se vocês dois ainda estão querendo falar com ele.

Os dois o seguiram para o armazém. Levaram algum tempo para se acostumar à escuridão lá dentro, depois da claridade do sol na rua. Mas assim que os olhos se ajustaram, eles viram os barris e sacos empilhados por toda parte, as prateleiras com todos os tipos de mercadorias, de alimentos enlatados a peças de pano. O preto velho levou-os em torno do balcão comprido, passando pelo homenzinho nervoso, até um pequeno escritório envidraçado.

O Sr. Fitch estava sentado atrás da escrivaninha, ainda com o chapéu de aba larga. Não houve qualquer indício de reconhecimento em sua expressão. E ele indagou, rispidamente:

— O que vocês querem?

— O Pai nos disse para vir até aqui — respondeu Daniel. — Disse que o senhor tinha falado que nos ia arrumar empregos.

O rosto do Sr. Fitch continuou impassível.

— Seu pai?

— Isso mesmo. Jeb Huggins.

A voz de Fitch mudou no mesmo instante, tornando-se mais jovial. Ele se levantou de detrás da escrivaninha.

— Ora, mas são os garotos Huggins! Não sei como não os reconheci. Só pode ter sido por causa dessas roupas bonitas que estão usando. Mas foi exatamente o que falei ao pai de vocês.

Daniel foi invadido por uma imensa sensação de alívio. Por um momento, chegara a pensar que houvera um mal-entendido.

— Foi por isso que viemos, Sr. Fitch.

Fitch fitou-o atentamente por um momento, antes de indagar:

— Você é Daniel?

Daniel assentiu. Fitch virou-se para Molly Ann.

— E você é Molly Ann?

— Isso mesmo, Sr. Fitch — respondeu a moça, sorrindo.

— Foi um guisado delicioso o que a mãe de vocês serviu ao jantar. Nunca esquecerei.

Os dois irmãos ficaram calados. Fitch tornou a sentar-se e começou a folhear alguns papéis em cima da mesa.

— Deixe-me ver. . . Ah, aqui estão! — Estendeu alguns papéis para Daniel. — Faça seu pai assinar estes papéis e poderemos arrumar um emprego para vocês.

Daniel ficou surpreso.

— O Pai não disse para a gente que tinha papéis para serem assinados.

— Há sempre papéis para se assinar — disse Fitch. — Por lei, vocês ainda são menores. Até os vinte e um anos, seus pais têm de assinar por vocês.

— Mas é uma caminhada de cinqüenta e cinco quilômetros para um lado e outro, Sr. Fitch! — protestou Daniel. — Levaríamos dois dias para esses papéis serem assinados!

— Não posso fazer nada. A lei é a lei.

Daniel sentiu a raiva subindo-lhe à cabeça.

— Por que não disse isso a meu pai antes de falar para a gente vir até aqui?

Fitch examinou o rapaz por cima da escrivaninha. Os olhos de Daniel haviam assumido subitamente uma expressão sombria. O garoto tinha mau gênio. Não era um temperamento apropriado para trabalhar nas tecelagens ou fábricas de vidro da região. O melhor lugar para ele seria mais ao sul, a cerca de 30 quilômetros dali, nas minas de carvão de Grafton. Fitch deixou escapar um suspiro profundo e admitiu:

— Esqueci inteiramente. Mas, como a culpa foi minha, vou arrumar trabalho para vocês imediatamente e depois providenciarei para que Jeb assine os papéis.

Daniel relaxou, acenando com a cabeça, sem dizer nada.

— Qual é a sua altura, filho?

A voz de Fitch estava agora mais amistosa.

— Acho que tenho um metro e oitenta. O pai diz que tive meu crescimento cedo.

— É mesmo bastante alto. — Fitch pensou por um momento. É muito alto para trabalhar nas fábricas de vidro. Eles estão procurando por rapazes mais baixos, porque todos os seus tubos são baixos. Você se importa de trabalhar num poço?

— O que é isso?

— Uma mina de carvão. Pode começar pegando ardósia e depois descer para o fundo da mina.

— Não, não me importo.

— Ótimo. Há uma boa oportunidade numa nova mina de carvão perto de Grafton. Eu lhe darei um bilhete e poderá partir imediatamente.

— Mas Grafton fica a trinta quilômetros daqui! — protestou Daniel.

— Não quer trabalhar, rapaz? — indagou Fitch, fulminando-o com o olhar.

Daniel acenou com a cabeça, assentindo.

— Seu pai confiou o bastante em mim para mandá-lo até aqui. E agora você tem de confiar que lhe estou arrumando o melhor emprego possível.

— Mas Molly Ann e eu pensávamos   que poderíamos ficar juntos!

— Podem ficar juntos, se quiserem. Mas não há empregos por aqui para você. Grafton é o único lugar.

— E o que vai ser de Molly Ann?

Fitch olhou para a moça.

— Posso arrumar um emprego para sua irmã aqui mesmo, na tecelagem.

Daniel virou-se para a irmã, hesitante.

— Não sei. . .

— Não se preocupe, Daniel. — Apressou-se Molly Ann em dizer. — Ficarei bem.

— Pode deixar que cuidarei dela pessoalmente, rapaz — prometeu Fitch. — A Sra. Fitch vai providenciar para que ela tenha um lugar decente onde ficar.

Daniel olhou para o homem corpulento atrás da escrivaninha, depois para a irmã. A situação não lhe agradava, mas não tinha opção. O pai os mandara até ali para arrumarem trabalho. Não podia voltar e dizer que a coisa não lhe agradara. Naquele momento tomou a decisão de voltar à casa da viúva Carroll e pedir a Jimmy que ficasse de olho em sua irmã. Havia algo no rapaz que inspirava confiança a Daniel. Era muito diferente do sentimento que tinha em relação ao Sr. Fitch.

— Está bem — disse ele, relutantemente.

— Assim é melhor. — Fitch sorriu e se levantou. — Tenho uma carroça seguindo para Grafton esta tarde. Pode pegar uma carona. — E se encaminhou para a porta, acrescentando: — Fiquem esperando aqui mesmo, enquanto tomo algumas providências.

Os irmãos se olharam assim que Fitch saiu, e Daniel disse:

— Não gosto dele.

Molly Ann pegou a mão de Daniel.

— Está   crescendo depressa, Daniel, mas não se esqueça de que também estou crescendo.

Passava um pouco das 10 horas quando Daniel e Molly Ann voltaram à pensão. A viúva Carroll veio abrir a porta em resposta à batida.

— O Sr.   Simpson   ainda   está,   Sra.   Carroll?   — perguntou Daniel.

— Ele está lá no estábulo, cuidando da mula. — A viúva fitou-o atentamente. — Estão pensando em passar esta noite aqui?

— Não, madame. Vou para Grafton esta tarde.

— Sua irmã também vai?

— Não, madame. Ela arrumou um emprego aqui mesmo, na tecelagem.

— Mas ela não vai poder ficar aqui — disse a viúva bruscamente. — Ontem à noite foi uma exceção, mas não permito mulheres em minha pensão. Mais   cedo ou mais tarde sempre   há problemas.

Daniel fitou a mulher nos olhos e disse calmamente:

— Agradecemos por sua hospitalidade, madame. E não temos a menor intenção de abusar dela.

Os olhos da senhora se abaixaram diante do olhar firme de Daniel. Ela se sentia estranhamente confusa.

— É claro que se sua irmã. . .

Daniel interrompeu-a:

— Espero que não seja necessário, madame. Mas agradeço sua generosidade.

A viúva Carroll ficou observando-os descerem os degraus da varanda e contornarem o canto da casa, antes de fechar a porta e voltar, aos trabalhos de limpeza. Ela estava certa. Sabia que estava certa. As mulheres sempre causavam problemas. Mais cedo ou mais tarde, os homens começavam a brigar por uma mulher. Mas aquela era uma moça delicada, de uma boa família. Muito diferente da escória ordinária que geralmente trabalhava nas tecelagens. Talvez tivesse falado precipitadamente. Em silêncio, amaldiçoou a própria língua. Sempre fora o seu maior defeito. Furiosamente, pôs-se a varrer a poeira.

Daniel e Molly Ann foram encontrar Jimmy no estábulo, só que ele não estava cuidando da mula. O animal encontrava-se na baia mastigando a ração de aveia tranqüilamente, enquanto Jimmy transferia a aguardente para garrafas.

Ele estava diante de uma bancada de madeira, cheia de garrafas de vidro transparente de meio litro. Tinha uma bilha debaixo de um braço, com um funil na outra mão. Rápida e eficientemente, com uma fluência de movimentos nascida de anos de prática, Jimmy inclinava a bilha e deixava o líquido cristalino escorrer para a garrafa. Assim que. a garrafa ficava cheia, ele passava para outra.

Daniel ficou fascinado. Não tanto pela transferência da aguardente para as garrafas, mas pelo fato de o líquido cristalino adquirir imediatamente uma coloração meio marrom. Nunca antes vira nada parecido. Os irmãos ficaram parados ali, em silêncio, até que Jimmy terminou de esvaziar uma bilha e virou-se para pegar outra.

— Sr. Simpson. . . — disse Daniel.

Jimmy sorriu ao vê-los, largando a bilha vazia.

— Tudo bem com vocês?

— Acho que sim — falou Daniel. Em seguida, olhou para a bancada. — Não queremos interromper. . .

— Eles esperam há tanto tempo pelo uísque de Simpson que podem esperar mais um pouco — disse Jimmy, rindo.

— Uísque? — repetiu Daniel, desconcertado.

— É o que estou fazendo — confirmou Jimmy. — Algumas gotas de salsaparrilha e um pouco de aromatizante e ninguém pode dizer a diferença entre o meu uísque e o que se compra no armazém. E sempre se pode vender por um preço melhor do que o da aguardente pura.

Daniel hesitou.

— Gostaria de pedir-lhe um favor, mas já tem sido tão bondoso. . .

— Pode falar — disse Jimmy, rapidamente. — Farei tudo o que estiver a meu alcance.

— O Sr. Fitch diz que sou alto demais para trabalhar na fábrica de vidro aqui e arrumou-me um emprego numa mina em Grafton.

Jimmy não fez qualquer comentário, limitando-se a perguntar:

— E sua irmã?

— Ela vai trabalhar na tecelagem aqui. — Daniel olhou para Molly Ann. — Não era exatamente assim que a gente estava querendo. Pensávamos que ficaríamos juntos. Mas o Sr. Fitch disse que vai tomar conta dela.

Jimmy fitou Molly Ann, que baixou os olhos, pudicamente. Ele percebeu que a moça ficava ligeiramente ruborizada e perguntou-lhe:

— O que você acha?

Molly Ann não respondeu. Jimmy virou-se para Daniel.

— Você não gosta do Sr. Fitch. — Era mais uma declaração do que uma pergunta.

— Aquele homem não me agrada muito — admitiu Daniel. — Eu me sentiria muito melhor se soubesse que está tomando conta de minha irmã, em vez do Sr. Fitch.

Jimmy acenou com a cabeça.

— Sei como se sente. — Virou-se novamente para a moça. — Como se sente a respeito, Srta. Molly Ann?

A voz dela era suave, mas falou sem levantar os olhos:

— Eu me sentiria muito confortada com sua bondade.

— Sendo assim, terei o maior prazer em ajudar — disse Jimmy, com um sorriso. — A primeira coisa a fazer é arrumar um lugar apropriado para morar. Tenho alguns amigos, uma boa família. A filha mais velha deles acaba de casar, e estão com um quarto vago e bem que precisam do dinheiro da pensão. Vamos até lá para ver se podemos chegar a um acordo. — Ele largou o funil em cima da bancada e aproximou-se dos irmãos.

— E o uísque que está fazendo? — perguntou Daniel.

Jimmy soltou uma risada.

— Pode ficar onde está. Nunca ouviu falar que o uísque envelhecido é o melhor que existe?

 

Daniel ouviu no sono o guincho distante do apito da mina, assinalando a primeira mudança de turnos. Rolou na enxerga estreita e abriu os olhos. Os três outros rapazes com que partilhava o quarto ainda estavam encolhidos sob as mantas ordinárias.

Silenciosamente, saiu da cama e foi descalço até o lavatório. Pôs a tampa na bacia e despejou um pouco de água do imenso cântaro. Sentiu a água bastante fria no rosto, o que ajudou a despertá-lo. Olhou para o espelho rachado por cima do lavatório.

O rosto que ali estava refletido era diferente do que contemplara pela primeira vez naquele espelho, há quase três meses. Todos os vestígios da cor do sol há muito que haviam desaparecido. A pele estava agora pálida, com uma peculiar coloração azulada, e esticada nas faces. Imensas depressões escuras continham os olhos, que pareciam pedaços do antracito com que trabalhava durante o dia inteiro.

Daniel esfregou as faces. Havia um princípio de barba, entre preta e azulada. Sem passar a mão, nunca podia ter certeza se era barba ou simplesmente o pó de carvão que penetrara nos poros e se tornara uma parte permanente da pele. Enfiou os dedos na lata de Gresolvent e esfregou a pasta áspera, até transformá-la em espuma. Mas, mesmo depois que lavou a espuma e se enxugou com a toalha ordinária, não havia qualquer diferença, a não ser do rosto estar um pouco dolorido dos grãos arenosos do sabão. O pó de carvão tinha um jeito de se implantar dentro da pele, da mesma forma que as ervas daninhas aderiam à terra. Não importava o que se fizesse, não se conseguia tirar.

Depois de molhar os cabelos e penteá-los, grudando no couro cabeludo, Daniel voltou para sua enxerga e começou a vestir-se, o blusão de trabalho e o macacão, ambos azuis, estavam duros do pó de carvão, assim como as botas pesadas. Ele pegou o boné de brim de mineiro e verificou o lampião preso na pala. A mecha estava mole e havia óleo suficiente na lata para durar o dia inteiro. Daniel encaminhou-se silenciosamente para a porta. Deu uma última olhada nos outros rapazes adormecidos antes de sair, mas não se preocupou em acordá-los. Eram separadores e só precisavam chegar ao trabalho meia hora depois dele, às sete horas.

Daniel fechou a porta e desceu a escada estreita para o primeiro andar da pensão. Atravessou o corredor até a cozinha. A corpulenta cozinheira, o rosto preto já brilhando com o calor do fogão, fitou-o com um sorriso.

— Bom dia, Mister Daniel.

— Bom dia, Carrie.

— O de sempre esta manhã, Mister Daniel?

— Isso mesmo, por favor. E não esqueça...

— Pode deixar que não vou esquecer — disse ela, sorrindo. — Ovos fritos com bastante sal e pimenta.

Daniel se sentou e encheu uma caneca com café fumegante que havia no bule de ferro grande em cima da mesa. Acrescentou creme e três colheres de açúcar. Mexeu o café.

— Tenho um bom pedaço de gordura de porco para fritar com os ovos, se gostar.

— É muita bondade sua, Carrie. É claro que quero. — Daniel passou manteiga no pão feito em casa, ainda quente, deu uma mordida e depois acrescentou: — Depois de   minha mãe, Carrie, você faz o melhor pão de toda a Virgínia Ocidental.

— Ora, Mister Daniel, pare com isso!

Mas o rosto de Carrie exibia um sorriso de satisfação, quando pôs os ovos com a gordura de porco na mesa. Daniel estendeu a mão para o sal, mas ela avisou-o:

— Espere um instante! Já pus bastante sal!

Daniel provou os ovos e acenou com a cabeça.

— Está ótimo.

Mas assim que Carrie virou as costas, ele acrescentou mais sal. Comeu rápida e cuidadosamente, enxugando as gemas dos ovos no prato com pedaços de pão. Terminou de tomar o café e levantou-se. Carrie trouxe-lhe a lancheira preta de metal.

— Pus uma maçã e uma laranja extras, Mister Daniel. Sei como gosta de frutas frescas.

— Obrigado, Carrie. — Daniel pegou a lancheira e encaminhou-se para a porta. — Até de noite.

— Tome todo cuidado, Mister Daniel. Não chegue perto das cargas de dinamite.

— Pode ficar sossegada.

O rapaz sorria ao passar pela porta, sabendo que era sua função, como artilheiro, colocar o estopim das cargas e acender. Isso lhe proporcionava um dólar extra por semana e não estava disposto a perder esse dinheiro. Sete dólares por semana era quase tanto quanto um homem adulto conseguia ganhar.

Em silêncio, Daniel avançou pela rua enlameada pela chuva, passando pelas fileiras de casas da companhia, cinzentas e pretas com o pó da mina. Alcançou a rua que levava à entrada da mina. A rua estava começando a se encher com homens que iam para o trabalho e homens que saíam do trabalho. Alguns iriam para as camas que os homens do turno do dia tinham acabado de desocupar. As camas eram escassas e muitas pensões acomodavam dois turnos. Aos domingos, quando as minas fechavam, a confusão era total. Não eram raras as brigas em disputa das camas. As regras das pensões previam a ocupação em domingos alternados, mas isso não ajudava muito, porque todos estavam cansados demais e irritados. Daniel achava que tinha muita sorte por ter encontrado um quarto para partilhar com três outros rapazes. Mas parecia que os homens adultos não sentiam a menor disposição de partilhar seus quartos.

Daniel alcançou a entrada da mina. Como sempre, era o primeiro de sua turma a chegar. Sentou-se numa caixa de madeira e ficou observando os homens saírem.

Os rostos deles estavam pretos, as roupas ainda mais empoeiradas do que as suas, os olhos contraídos dolorosamente, enquanto se ajustavam à claridade da manhã. Moviam-se devagar, quase penosamente, enquanto acostumavam o corpo a caminhar erecto, ao invés de encurvado, como eram obrigados a fazer nos corredores de teto baixo da mina.

Um dos homens parou diante de Daniel. Era corpulento o peito estufado, os cabelos louros esbranquiçados cobertos de pó de carvão.

— Andy já chegou?

— Não, senhor   — Daniel sacudiu a cabeça enquanto falava. Andy era o capataz de seu turno. O homem que lhe dirigia a palavra era o capataz do turno da noite. O mineiro olhou ao redor Por um momento, antes de falar:

— Pois diga a Andy que o Túnel Oeste está precisando de mais escoramento, antes de qualquer outra explosão. As paredes estão ficando finas.

— Pode deixar que direi.

— Não se esqueça. Ou vocês todos poderão descobrir-se comendo terra.

— Não esquecerei. E obrigado.

O homem sacudiu a cabeça e se afastou, visivelmente exausto. Daniel meteu a mão no bolso e tirou um pedaço de fumo de mascar. Mordeu um naco e começou a formar uma bola no canto da boca. Uma boa cusparada ajudava a manter o pó de carvão longe dos pulmões. Habilmente, ele cuspiu em cima de um besouro perto de seus pés. O besouro se afogou na poça marrom de veneno.

Daniel ficou olhando o capataz da noite afastar-se. Não estava particularmente preocupado. O aviso era uma história que há muito conhecia. Cada turno tentava jogar para cima do outro o escoramento, porque o tempo exigido pela tarefa reduzia a tonelagem de carvão. Não se podia tirar carvão enquanto se estava escorando as paredes de um túnel.

O ar no interior da mina achava-se saturado de umidade, e a água porejava nas paredes. A terra do chão era macia e esponjosa. As botas pesadas afundavam um pouco e a água escorria para encher a pegada assim que o pé se levantava.

— Mas que diabo! — praguejou o capataz. — É melhor a gente trazer algumas bombas aqui para baixo ou vamos ficar afundados na água até o pescoço antes de sabermos o que está acontecendo.

— Todas as bombas estão sendo usadas no Túnel Leste — informou um dos homens.

O capataz virou-se para Daniel.

— Vá até o barracão do superintendente e diga que precisamos de algumas bombas, porque nossos burros estão com água pela barriga e não podem puxar o carvão.

Daniel acenou com a cabeça em concordância e afastou-se prontamente. Subiu pelo túnel na direção da entrada principal, passando por uma turma de trabalhadores que estava instalando trilhos para os vagonetes de carvão.

— Como então as coisas   lá embaixo? — indagou   um dos homens.

— Molhadas — respondeu Daniel. — Estou indo buscar algumas bombas.

— Aproveite a viagem e traga também um passarinho — disse homem. — Não estou gostando do cheiro lá de baixo.

Daniel sorriu. Já fora enviado naquelas missões antes. Os canários supostamente eram usados para detectar vazamentos de gás ou escassez de oxigênio, mas o rapaz nunca vira nenhum durante o tempo em que trabalhava na mina.

— Acho que posso arrumar uma águia, se me derem o resto da tarde de folga para procurar.

O coro de risadas acompanhou-o até a quina do corredor. A entrada achava-se cerca de 20 metros à sua frente, no alto do corredor inclinado. Daniel olhou para o céu azul-escuro, em que cintilavam milhares de estrelas. Ficou assombrado, como sempre acontecia. Era dia lá fora, mas contemplar o céu através do túnel comprido e estreito transformava-o em noite. As estrelas estavam sempre ali, por trás do céu. Desvaneceram-se e desapareceram, quando se aproximou da entrada. O apontador das horas de trabalho dos empregados deteve-o à entrada.

— Para onde vai, garoto?

— Andy mandou-me buscar algumas bombas no escritório do superintendente.

— Está perdendo tempo. Volte para o trabalho.

— Andy diz que os burros estão afundando na água até a barriga e não podem assim puxar o carvão.

O apontador fitou-o em silêncio por um momento; depois, deu de ombros, dizendo, belicosamente:

— Pode ir. Mas não vai adiantar.

Daniel seguiu para o escritório. Bateu na porta e entrou. O amanuense perguntou-lhe.

— O que está querendo aqui?

— Andy diz que precisamos de bombas no Túnel Oeste. Não podemos tirar o carvão.

— Por que não?

Daniel fitou-o com tremenda irritação. Já possuía a aversão arraigada que todo mineiro sentia contra o pessoal que trabalhava no escritório.

— Todo mundo sabe que os burros não podem nadar e puxar carvão ao mesmo tempo.

O amanuense também fitou-o com raiva.

— Ah, que garoto esperto! — Tornou a olhar para os papéis em sua mesa. — Mas pode voltar e dizer a Andy que não há bombas.

Daniel era obstinado.

— Ele me disse para falar com o superintendente.

— Ele não está.

— Então vou esperar. — Daniel olhou ao redor, à procura de uma cadeira.

— Não vai, não. Volte para o trabalho ou vai ter seu pagamento cortado.

— Está certo. Voltarei e direi a Andy. Mas já sabe como ele é. Não pensa duas vezes nas coisas. Tenho certeza de que vai subir pessoalmente para resolver o problema.

O amanuense tratou de recuar. Todos conheciam a reputação de Andy. Ele passara a vida inteira trabalhando nas minas e tinha um temperamento estourado. Ninguém se metia numa discussão com Andy, a menos que estivesse disposto a brigar até o fim.

— Está bem, está bem. Diga a Andy que vou providenciar algumas bombas e despachar para vocês.

Daniel acenou com a cabeça e virou-se para ir embora. O amanuense chamou-o indagando:

— É novo por aqui?

— Não, exatamente.

— Como é o seu nome?

— Daniel Boone Huggins.

O amanuense fez uma anotação numa folha de papel à sua frente, comentando:

— Pode ir. Não vou esquecer seu nome.

Daniel não respondeu. Voltou para a escuridão do interior da mina e foi ao encontro de Andy, que imediatamente lhe perguntou:

— E as bombas?

— O superintendente não estava. O amanuense disse que nos vai mandar as bombas.

Andy sacudiu a cabeça sombriamente. Chutou a terra, esguichando água para todos os lados.

— Pois é melhor as malditas bombas não demorarem. Tenho o pressentimento de que vamos encontrar uma fonte subterrânea. — Levantou a cabeça para fitar Daniel. — Pode começar a trazer as tábuas de escoramento.

— Está bem.

Daniel avançou pelo túnel até a pilha de tábuas usadas no escoramento dos túneis. Arduamente, arrastou as tábuas de três metros, uma a uma, pela lama, até a extremidade do túnel.

Já se havia passado cerca de uma hora e ele transportara 30 tábuas quando ouviu um dos homens gritar:

— Ei, capataz! Bati em água!

Por um momento, ficaram todos paralisados, olhando para Andy O capataz estava calmo, avaliando a situação. Uma torrente de água esguichava da parede mais distante, derrubando a terra ao redor.

— Não fiquem parados olhando para a água, seus imbecis! — gritou Andy finalmente. — Comecem a tapar!

No mesmo instante, uma dúzia de pás começaram a se agitar, arremessando a terra de volta contra a parede, num esforço para conter o fluxo de água.

— Tragam as tábuas de escoramento! — berrou Andy. — Quero uma parede aqui! — Virou-se para outro homem. — Comece a escavar um dreno!

Todos trabalharam ativamente, mas passou-se mais de uma hora até que conseguiram finalmente deter o jorro de água. A esta altura, os homens estavam arquejando, suando profusamente do esforço. Um a um, estenderam-se no chão, exaustos.

Andy encostou-se nas tábuas de escoramento e olhou para seus homens. Passou o braço pela testa, removendo o suor. Respirou fundo e depois disse:

— Tratem de se levantar! E comecem a levar esse carvão daqui. Estamos mais de vinte toneladas em atraso.

Daniel fez um tremendo esforço para se levantar. As roupas estavam encharcadas até a pele.

— E as bombas? — perguntou ele.

Andy fitou-o com uma expressão furiosa.

— As bombas que se danem! Já resolvemos nosso problema. Vamos deixar que o turno da noite cuide do assunto, como já deveria ter feito antes.

— Mas. . .

O capataz não deixou que Daniel continuasse a falar, fulminando-o com um olhar furioso.

— Comece a pôr o carvão nos vagonetes ou vou expulsá-lo daqui a pontapés!

Daniel ainda ficou parado por um momento, hesitante.

— Ande logo! — berrou Andy. — Não é de nossa conta nos preocuparmos com eles, assim como também não se preocupam com a gente!

Sem dizer mais nada, Andy voltou ao trabalho. O capataz estava certo. Cada homem tinha de cuidar de si mesmo.

Ou pelo menos era o que parecia até três horas da madrugada quando o gemido assustador do apito da mina penetrou no sono de Daniel.

Ele sentou-se na cama, esfregando os olhos. Os outros rapazes que partilhavam o quarto já estavam acordados, e um deles disse:

— O que será que aconteceu?

Ouviram o barulho de pessoas correndo lá fora. Daniel foi até a janela e olhou. Vários homens já estavam saindo das casas para a noite escura. Levantando a janela, Daniel inclinou-se para fora e gritou:

— O que aconteceu?

Um homem parou e virou-se para fitá-lo, o rosto muito pálido.

— Um desmoronamento na mina! — gritou o homem em resposta. — O Túnel Oeste desabou!

 

— Traga outra tocha até aqui, rapaz!

A voz do superintendente ecoou na boca do túnel. Daniel subiu de volta pela lama, pegou uma tocha no suporte na parede e voltou ao paredão de terra onde o desmoronamento cessara. Olhou para o superintendente, que lhe disse:

— Suba naquelas tábuas de escoramento e mantenha essa tocha bem firme.

Daniel subiu nas tábuas, até que seu rosto ficou a centímetros do paredão de terra úmida. Estendeu a outra mão para se equilibrar. O superintendente gesticulou para Andy, e os dois homens subiram para o lado de Daniel, examinando a terra úmida. Por baixo deles, um constante fluxo de água subia da terra. Podiam ouvir o zumbido das bombas em funcionamento. Os dois homens ficaram calados, estudando o paredão do desabamento.

Daniel ficou observando-os, fascinado. Eram bastante diferentes. Andy era grandalhão, vigoroso, mal-humorado; as roupas de trabalho estavam cobertas de lama e pó de carvão. O superintendente, por outro lado, era formal, pequeno, impecável. A gravata e a camisa branca, com colarinho duro, assim como o terno cinzento, pareciam não ter sido afetados pela lama e sujeira a seu redor. Os olhos brilhavam por trás do pince-nez. Daniel seguiu o olhar do homem. Nos poucos minutos em que estavam parados ali, a linha de lama nas tábuas de escoramento subira quase três centímetros.

— Ainda está vindo. — A voz do superintendente era opressiva.

— Sim, senhor. — A voz normalmente retumbante de Andy estava abafada.

— Por que não trouxe as bombas para cá? — indagou o superintendente.

— Mandei Daniel buscar — respondeu Andy. — Ele voltou sem as bombas.

O superintendente virou-se para Daniel.

— Por que não trouxe as bombas?

Daniel limpou a garganta.

— O amanuense disse que mandaria as bombas aqui para baixo.

O superintendente virou-se novamente para Andy.

— Acho melhor subirmos para o escritório. — Começou a descer, mas parou no meio do movimento e acrescentou: — Leve o rapaz com você. — O superintendente desceu do escoramento e, caminhando com extremo cuidado sobre as tábuas estendidas no chão, a fim de não sujar os sapatos, saiu do túnel.

Andy partiu atrás dele, depois parou, deu uma cusparada de tabaco no chão. Olhou para Daniel e perguntou:

— Tem certeza de que falou com o amanuense?

— Não tenho o hábito de mentir, Sr. Androjewicz — respondeu Daniel, calmamente.

Andy não respondeu. Desceu do escoramento e ficou esperando que Daniel o seguisse. Virou-se para a turma de trabalho.

— Continuem bombeando e tentem remover um pouco dessa terra.

Os homens assentiram e voltaram ao trabalho. Mas tão depressa quanto conseguiam esvaziar cada pá no barril, a terra úmida avançava para preencher o espaço. Andy ainda ficou parado ali por um momento, observando-os, depois começou a se afastar, dizendo:

— Vamos embora, Daniel.

A luz do dia fora da mina doeu nos olhos de Daniel, e o estranho silêncio da multidão à espera deixou-o angustiado. Assim que os olhos puderam focalizar melhor, Daniel divisou as mulheres, as cabeças cobertas por xales puídos, as bocas firmemente contraídas pelo medo. Viu as crianças, com olhos arregalados, expressões sombrias, caladas. E lá estavam os homens, cujos rostos pacientes refletiam a familiaridade com a morte nas minas. Um dos homens mais velhos perguntou a Andy quando ele passou:

— Como está a coisa lá embaixo?

Andy sacudiu a cabeça, sem dizer nada. Um suspiro abafado de angústia escapou da multidão. Depois, voltou a reinar o silêncio o silêncio terrível da resignação.

— Já se passaram dois dias — disse outro homem. — Chegou mais perto deles?

— Não — respondeu Andy. — O terreno está úmido demais e ainda se mexendo.

Uma mulher começou a chorar. No mesmo instante, as vizinhas se amontoaram a seu redor, para esconder as lágrimas dela. Levaram-na dali um momento depois. Havia uma regra antiga. Nada de lágrimas no poço de uma mina. Não se deve nunca deixar transparecer que já se perdeu toda a esperança.

Daniel seguiu Andy até o escritório. O amanuense levantou a cabeça de detrás da mesa e gesticulou para a porta às suas costas.

— O Sr. Smathers disse que podem entrar direto.

Havia dois outros homens na sala com o superintendente. Sentavam-se em cadeiras perto do Sr. Smathers, que estava atrás da mesa. Um mapa aberto da mina encontrava-se sobre a mesa. Smathers fez as apresentações.

— Esse é o Sr.   Androjewicz, capataz do turno   do dia no Túnel Oeste. Andy, Sr. Carter e Sr. Riordan. . .   engenheiros de segurança do governo.

Os homens acenaram com a cabeça. Não estenderam a mão para um aperto. Andy também não o fez.

— Esses cavalheiros estão tentando   determinar   a causa do desmoronamento — acrescentou Smathers.

Andy limitou-se a acenar com a cabeça. Não disse nada. Qualquer idiota tinha de saber por que ocorrera o desmoronamento. Água demais. As bombas poderiam ter evitado que acontecesse. Mas como não havia bombas, não houvera nada que alguém pudesse fazer. O Sr. Carter foi o primeiro a falar:

— Soube que   encontrou uma fonte   durante seu turno, encheu-a de terra e escorou-a. Por que também não pôs as bombas em funcionamento?

— Pedi as bombas, mas não me mandaram — respondeu Andy.

— Pediu pessoalmente?

— Não, senhor. Mandei esse rapaz aqui, o Daniel, vir pedir.

Os dois homens olharam para Daniel.

— A quem você pediu as bombas?

— Ao amanuense lá fora — respondeu Daniel, sustentando o olhar deles.

Os   dois   homens   se   entreolharam,   silenciosamente.   Daniel apressou-se em dizer:

— Se não   acreditam em   mim, por que não o chamam e perguntam?                                                                                  

— Já fizemos isso, rapaz — falou o Sr. Smathers calmamente. — Ele diz que você nunca apareceu aqui. Agora, por que não nos conta a verdade? Não seremos muito severos com você.

Daniel começou a sentir uma raiva intensa aflorar dentro de si.

— Estou mesmo dizendo a verdade, Sr. Smathers. Há vinte e sete homens mortos lá embaixo. Eu conhecia alguns deles. Acha que eu mentiria, se fosse culpado pela morte deles?

— Ele insiste em dizer que ninguém apareceu aqui para pedir as bombas — repetiu o Sr. Smathers.

— Pois estive aqui! — declarou Daniel, veementemente. — O apontador até anotou minha saída.

— Não há qualquer referência no relatório dele. Já verificamos.

Daniel sentiu que toda cor deixava seu rosto. Estavam todos envolvidos naquilo. Iam jogar toda a culpa em cima dele, a fim de salvarem as próprias peles. Ele pensou rapidamente, olhando de um homem para outro.

— Sr. Smathers, por acaso falou o meu nome quando perguntou se eu tinha aparecido?

— Como poderia fazê-lo, rapaz? — disse o superintendente, irritado. — Nem mesmo sei o seu nome.

— E acha que o seu assistente poderia saber o meu nome?

— Não creio. Ele não tem nada a ver com o pessoal.

— Ele escreveu meu nome num livro que estava em cima de sua mesa. Ficou furioso quando falei que Andy iria subir para dar um aperto nele, se não mandasse as bombas. E fez questão de perguntar meu nome.

— Mesmo que ele conheça seu nome, isso nada prova — insistiu Smathers.

— Provará que estive aqui, como estou dizendo.

— Respondo   pelo   Daniel — interveio   Andy,   subitamente. — Ele não é um mentiroso.

— Creio que   está   errado — disse   Smathers,   suavemente. — Não importa o que o rapaz possa dizer.

— Não custa nada verificar o livro que está em   cima da mesa dele — disse Andy, sentindo que o rosto começava a ficar vermelho. Smathers fitou-o em silêncio por um momento, depois se levantou.

— Venham comigo, cavalheiros.

Seguiram-no para a outra sala. O amanuense fitou-os, e o superintendente disse:

— Hatch, conhece este rapaz?

— Não, senhor.

— Já o viu antes?

— Não, senhor.

Smathers olhou para os dois homens.

— Satisfeitos?

Ambos assentiram. Smathers voltou na direção de sua sala. Parou na porta, virou-se e disse:

— Hatch, traga-me do arquivo a ficha pessoal desse rapaz.

Entraram todos na sala e ele fechou a porta. Foi para trás de sua mesa e se sentou. Daniel fitou-o, fixamente.

— Se ele não sabe meu nome, como vai pegar minha ficha?

Smathers olhou para Daniel, um respeito súbito surgindo-lhe nos olhos.

— Estou vendo que tem o hábito de pensar, rapaz.

Um momento depois, o funcionário entrou na sala, com um papel na mão. Colocou-o em cima da mesa, diante do Sr. Smathers, e começou a se retirar.

— Hatch. — O Sr. Smathers havia pegado o papel e o estava examinando. — Trouxe-me a ficha errada.

Hatch virou-se, uma expressão de confusão se estampando em seu rosto.

— Oh, não, senhor. É mesmo a ficha certa. Daniel Boone Huggins. Está marcada... — A voz dele se calou abruptamente, ao compreender que todos o fitavam fixamente.

— O que vão fazer com ele? — perguntou Daniel.

Andy mudou de posição, desajeitadamente, no tronco em que estavam sentados, fora do escritório do superintendente, os olhos semicerrados observando a entrada da mina.

— Nada...

Daniel ficou chocado.

— Mas a culpa foi dele...

— Cale a boca! — A voz de Andy era ríspida. — E trate de esquecer tudo! A companhia não vai assumir a culpa pelo que aconteceu. E se dê por feliz pelo fato de não lhe terem atribuído toda a culpa.

— Mas eles   têm que apresentar alguma razão!

— E vão arrumar uma — retrucou Andy. — Anote minhas palavras: vão encontrar uma explicação qualquer.

A porta se abriu. Smathers estava parado à entrada do escritório.

— Podem voltar.

Andy e Daniel entraram no escritório. Hatch estava sentado à sua mesa, a cabeça inclinada sobre um livro de contabilidade aberto. Não levantou os olhos quando passaram por ele e entraram na sala do superintendente.

Smathers fechou a porta, foi para detrás de sua mesa e se sentou. Os dois engenheiros estavam de pé junto à parede. Smathers olhou para Andy.

— Já determinamos o motivo para o desmoronamento e gostaríamos de saber se concorda conosco.

Andy não disse nada. Smathers limpou a garganta.

— Descobrimos que o turno acidentado disparou alguns tiros para desprender   carvão,   sem   primeiro verificar o escoramento. A culpa foi deles. Não deveriam ter sido tão negligentes.

Andy sustentou firmemente o olhar do superintendente.

— Foi mesmo muita negligência...

— É o que vai constar do relatório que esses cavalheiros vão apresentar — disse Smathers, relaxando.

Andy olhou para os dois engenheiros de segurança, depois voltou a fitar Smathers, dizendo secamente:

— Eles devem saber dessas coisas. São peritos.

Houve um momento de silêncio constrangedor, que foi finalmente rompido por Smathers:

— Mas a companhia vai ser generosa. Apesar de o acidente ter sido culpa dos próprios homens, vamos dar às famílias dos mineiros 100 dólares de compensação pela morte e seis meses de aluguel nas casas da companhia.

Andy não disse nada. Smathers levantou-se.

— E agora temos de pôr a mina novamente em operação. Não haverá dinheiro para nenhum de nós, se não começarmos logo a tirar o carvão.

— Vamos precisar de pelo menos um mês para desobstruir o Túnel Oeste — comentou Andy.

— Sei disso — falou Smathers, em tom de indiferença. — Mas não vamos desobstruí-lo. Em vez disso, vamos tampá-lo. Começaremos um novo túnel no Veio Sul.

— E os homens lá dentro? — indagou Andy.

— Que homens? — A voz de Smathers era totalmente destituída de qualquer emoção. — Está-se referindo aos corpos deles? Estão mortos e já enterrados. Não podemos correr o risco de perder mais vidas só para tirá-los de lá e enterrar novamente.

Andy ficou calado. Olhou para Daniel, que pôde ver a raiva e o desespero nos olhos do capataz. Depois de um momento, Andy virou-se para Smathers e murmurou:

— Acho que está certo, Sr. Smathers.

Smathers sorriu.

— Pode dizer também a seus homens que a companhia não vai reduzir-lhes o ganho pelo tempo perdido nos últimos dois dias, embora não tenhamos extraído qualquer carvão. A companhia sabe zelar por seus empregados.

— É isso mesmo, Sr. Smathers — disse Andy, com um aceno de cabeça.

O superintendente virou-se para Daniel.

— Quantos anos você tem, rapaz?

— Dezesseis — respondeu Daniel, lembrando a tempo a mentira no formulário de pedido de emprego.

— Sabe ler e escrever?

— Sei, sim, senhor. Estudei seis anos na escola rural.

— O Sr. Hatch vai deixar seu cargo hoje. Gostaria que viesse para cá amanhã, a fim de ser o meu amanuense.

A surpresa transpareceu no rosto de Daniel. Ele olhou para Andy, indeciso. Os olhos do capataz se baixaram num meio assentimento. Daniel virou-se novamente para Smathers.

— Fico agradecido pela oportunidade, Sr. Smathers.

O ambiente na sala relaxou. Até mesmo os dois engenheiros do governo estavam sorrindo. Desta vez, todos se apertaram as mãos.

Daniel observou Andy ao voltarem para a mina. O capataz parecia inteiramente absorvido em seus pensamentos. Finalmente, falou:

— Tem um fumo?

Daniel tirou o naco de tabaco do bolso e entregou-lhe. Andy deu uma mordida, mastigou por um momento e cuspiu. Em seguida, exclamou:

— Filho da puta!

— O que está querendo dizer com isso?

— Aquele Smathers é um camarada esperto de verdade. Conseguiu deixar todo mundo fisgado. Até mesmo a companhia. E nós estamos tão amarrados que não podemos fazer nada. As próprias famílias daqueles desgraçados mortos terão de se sentir gratas a Smathers!

 

O apito das seis horas foi um guincho penetrante que assinalou o fim do dia. Molly Ann deu um passo para trás na plataforma estreita, afastando-se dos fusos   que   giravam   rapidamente.   Com cuidado, calculou a extensão do fio no final da bobina e depois, no momento exato, levantou a mão e puxou a chave, desligando a máquina. Ficou observando a bobina, assentindo para si mesma de satisfação quando finalmente parou, totalmente cheia. Rapidamente, tirou o rolo de fio do fuso e colocou-o na cesta de expedição. Desceu da plataforma, depois de uma última olhada. O ar estava povoado por   um   sussurro sibilante,   enquanto   as grandes máquinas a vapor que proporcionavam a energia paravam de funcionar. Era sábado, a única noite   da semana em   que a fábrica ficaria silenciosa.

Molly Ann meteu-se no meio das outras moças que atravessavam a fábrica, passando pelas gigantescas máquinas silenciosas, a caminho do guichê do pagador, perto dos portões. Havia um clima de feriado. Dia do pagamento. Noite de sábado. As vozes das moças, ainda estridentes de tentarem elevar-se acima do barulho do dia, estavam repletas de excitamento, discutindo os planos para a noite e o dia seguinte.

— Vai ao baile da Igreja Batista esta noite, Molly Ann? — perguntou uma das moças.

— Vai haver um piquenique amanhã no terreno da feira — comentou outra.

— A Igreja da Santidade vai promover uma revificação religiosa amanhã — disse uma terceira. — Soube que arrumaram uma porção de cobras e vários dos Santos já se estão preparando para partilhar o Espírito.

Molly Ann sorriu, sem dizer nada. Nos seis meses em que ali estava já haviam ocorrido muitas mudanças. Os vestígios de gordura infantil tinham desaparecido de seu rosto, dando-lhe uma aparência estranhamente exótica. Os malares salientes contribuíam para ressaltar os olhos verdes, e os lábios cheios se fundiam com o queixo firme. O corpo também mudara. Os seios estavam agora mais cheios, a cintura mais estreita, e os quadris se prolongavam nas pernas esguias e compridas.

— Molly Ann nunca sabe o que vai fazer — comentou a primeira moça. — Está esperando que Jimmy lhe diga.

— Essa não! — exclamou Molly Ann, sorrindo.

— Está apaixonada por ele — zombou a moça.

Molly Ann tornou a sorrir, sem responder. Elas eram apenas crianças. O que podiam saber sobre o que ela sentia em relação a Jimmy? Ou o que Jimmy sentia em relação a ela? Só queriam saber de bailes, diversões na noite de sábado e no domingo, e depois a longa espera até o próximo fim-de-semana. Ela entrou na fila diante do guichê do pagador. A fila andava depressa e logo chegou sua vez. O velho escriturário fitou-a do outro lado do guichê.

— Boa noite, Molly Ann — disse ele, empurrando o recibo sob as grades do guichê para ela assinar.

— Boa noite, Sr. Thatcher — respondeu Molly Ann, assinando o recibo e devolvendo-o.

Ele pegou o recibo, examinou-o, depois folheou os envelopes numa caixa sobre o balcão, a seu lado, até encontrar o que tinha o nome dela. Tirou-o e entregou a Molly Ann, dizendo:

— É melhor contar. Tem um pagamento grande, com as horas extras. Chegou a oitenta horas na última semana.

Molly Ann acenou com a cabeça e abriu o envelope, em silêncio. O dinheiro se derramou em sua mão. Contou-o rapidamente.

— Seis dólares e quarenta cents — disse ela ao final, olhando para o caixa.

— É isso mesmo. Oito cents por hora. Tome cuidado com todo esse dinheiro, Molly Ann. Não vá gastar tudo em um único lugar.

— Isso não vai acontecer, Sr. Thatcher.

Molly Ann tornou a guardar o dinheiro no envelope e enca­minhou-se para os portões. Lá estava a multidão habitual de homens e rapazes, esperando que as moças saíssem do trabalho. Os pais esperavam pelas filhas, maridos pelas esposas, rapazes pelas namoradas. Todos pensando a mesma coisa. Era o dia do pagamento.

O frio da noite passou pelo vestido de algodão empapado de suor de Molly Ann, fazendo-o grudar no corpo. Ela estremeceu aconchegando-se no xale. Passou pela primeira fileira de rapazes que assoviaram e a chamaram. Ela evitou olhar e acelerou os passos. Um deles gritou-lhe:

— O que vai fazer esta noite, Molly Ann? Não estou vendo Jimmy por aqui.

Ela não respondeu. Sabia que Jimmy não estaria à sua espera. Ele fora às montanhas a fim de comprar mais aguardente e só voltaria mais tarde.

O som de uma garota chorando fê-la virar-se, a tempo de ver um homem batendo nela. Era um homem grandalhão e já estava meio embriagado. A garota cambaleou para trás e caiu na lama da rua, olhando para o homem com uma expressão assustada. Ele ficou parado ali, oscilando, o envelope amarelo de pagamento da garota em sua mão. E gritou:

— Isso vai ensinar-lhe a quem pertence seu pagamento! Sou seu pai e vai fazer o que eu mandar! E agora vá para casa e diga à sua mãe que darei a ela o que quiser!

Depois de um momento, o homem virou-se e se afastou, os passos trôpegos. Os outros homens continuaram parados onde estavam, em silêncio, sem se mexer. Molly Ann aproximou-se da garota e ajudou-a a levantar-se. A garota parecia não ter mais do que 11 anos de idade e estava choramingando de medo.

— Calma, calma. . . — disse Molly Ann, procurando acalmá-la. — Vai acabar tudo bem.

— Não! — gritou a garota. — Minha mãe disse que me daria uma surra, se eu não levasse o envelope para casa!

— Pois conte o que aconteceu.

— Não vai adiantar. — A garota começou a remover a lama do vestido. Olhou para Molly Ann, ainda com lágrimas nos olhos, — Não posso esperar até o momento de ficar crescida como você. Poderei então fazer o que quiser com o meu dinheiro. — Terminou de limpar o vestido e acrescentou: — Obrigada.

Molly Ann ficou observando a garota desconsolada se afastar pela rua. Respirou fundo. Havia muitas coisas erradas naquela cidade. Que direito tinham os pais de tratar os próprios filhos como se fossem escravos? Agradeceu a Deus pelo fato de seus pais serem diferentes.

Um rapaz pôs-se a andar ao lado dela.

— Quer ir ao baile comigo esta noite, Molly Ann?

Ela fitou-o. O rapaz era alto, os cabelos estavam penteados trás com gomalina, na última moda. Podia sentir o cheiro de Cerveja no seu hálito. Sacudiu a cabeça.

— Não.

— Deixe disso, Molly Ann — falou ele, pondo a mão no braço dela. — Não seja tão altiva. Jimmy não é o único homem da cidade. Você é uma garota bonita. Deve sair mais, divertir-se.

— Tire a mão do meu braço ou Jimmy vai saber disso — falou Molly Ann, com uma calma ameaçadora. Ele retirou a mão rapidamente.

— Você é uma tola, Molly Ann. Pensa que é a única garota que Jimmy tem,   mas está redondamente enganada. Jimmy tem mais garotas do que qualquer outro homem da cidade.

— Você não passa de um mentiroso. E agora trate de sumir da minha frente.

O rapaz parou e Molly Ann continuou a andar.

— Espere só, Molly Ann. Vai descobrir que estou dizendo a verdade.

Ela chegou à esquina e entrou na Rua Main, seguindo para o armazém do Sr. Fitch.

— Esta é uma boa cidade, Sr. Cahill. — A voz de Fitch era calorosa, impregnada de sinceridade. — Uma boa gente, simples, trabalhadora, temente a Deus, honesta. Há muita mão-de-obra disponível. As famílias grandes são comuns por aqui. Normalmente têm oito ou dez filhos. Mais cedo ou mais tarde, precisam arrumar trabalho. As crianças não constituem problema. Fazem seu trabalho e não pedem muita coisa. Não é como no leste ou lá no norte. Não existem sindicatos por aqui. As pessoas não querem sindicatos, não precisam deles. São independentes demais. Montanheses. Não confiam em estranhos.

— Mas confiam em você?

— Por que não iriam confiar? — Fitch soltou uma risada. — Sou um deles. Nascido e criado aqui. Meu tataravô fundou esta cidade. Todo mundo sabe que Sam Fitch é um amigo. Pode levar esse recado a seus sócios na Filadélfia: Sam Fitch lhes assegura que, se instalarem outra tecelagem aqui, terão toda a mão-de-obra que quiserem, ao preço que desejarem pagar. E não terão de pagar impostos em Fitchville pelo menos por vinte e cinco anos.

— Faz com que Fitchville pareça um   lugar extremamente atraente. — O Sr. Cahill estava agora sorrindo.

— E é mesmo. Não tenha a menor dúvida quanto a isso. Não têm do que se queixar com a primeira tecelagem. Construam outra e posso garantir que será ainda melhor.

— O mesmo arranjo que na primeira?

— A mesma coisa. Sam Fitch não é ganancioso. Só está interessado em fazer o bem à sua cidade.

— Está certo, Sr. Fitch — falou Cahill. — Vou conversar com meus colegas e tenho certeza de que eles ficarão favoravelmente impressionados. Pode estar certo de que terá todo o meu apoio.

— Obrigado, Sr. Cahill, muito obrigado.

Fitch levantou-se detrás da escrivaninha, a barriga imensa quase preenchendo a pequena sala. Contornou a mesa se espremendo todo e acompanhou o Sr. Cahill pelo armazém, até a rua. Apertaram-se as mãos e o Sr. Cahill embarcou em sua carruagem.

Fitch ficou parado ali, enquanto a carruagem se afastava, depois virou-se e tornou a entrar no armazém. A expressão era pensativa. Uma nova tecelagem representava pelo menos mais 200 empregos. E qualquer que fosse o ângulo por que olhasse, isso redundava em muito dinheiro para ele.

— Sr. Fitch... — A voz era suave. Ele virou-se, surpreso. Não percebera que ela entrara no armazém, pois estava ocupado com o Sr. Cahill.

— Molly Ann!

— É a noite de sábado, Sr. Fitch.            

Ele recuperou-se rapidamente, um sorriso se estampando no rosto.

— Isso mesmo. Venha a meu escritório.

Fitch sentou-se atrás da mesa e contemplou Molly Ann. Ela se transformara numa mulher e tanto. Sentiu água na boca ao compará-la mentalmente com a esposa.

— Como vai, minha cara?

— Muito bem, obrigada, Sr. Fitch. — Molly abriu o envelope do pagamento e contou três dólares. — Gostaria que pusesse esse dinheiro na conta de meu pai.

— Nada me daria maior prazer. — Fitch pegou o dinheiro e guardou-o numa gaveta da mesa. — Como estão seus pais?

— Eles não são muito de escrever, Sr. Fitch. Mas fui até lá no mês passado e eles estavam muito bem. O pai está feliz com a mula nova. Ele calcula que vai conseguir agora uma colheita pelo menos quatro vezes maior.

— Eles devem estar muito orgulhosos de você e seu irmão. O Sr   Smathers me disse que Daniel é o melhor amanuense que ele já teve.

— Obrigada, Sr. Fitch — disse a moça,   acenando com   a cabeça. Ele se levantou.

— Devia vir até aqui mais vezes, Molly Ann. Não apenas uma vez por semana, na noite de sábado, para tratar de negócios. Sabe como gosto de vê-la.

— É um homem muito ocupado,   Sr.   Fitch. Não gosto de incomodá-lo.

Ele contornou a mesa e segurou a mão dela.

— Uma garota   bonita   como você,   Molly Ann,   nunca me incomoda.

Constrangida, Molly Ann retirou a mão. Não sabia o que dizer.

— Conhece aquele homem que acaba de sair daqui? — indagou Fitch, subitamente.

— Não — respondeu Molly Ann, sacudindo a cabeça.

— É o   Sr.   J. R. Cahill.   Veio conversar com o velho Sam Fitch sobre a construção de outra tecelagem aqui. Sabe o que isso significa?

Molly Ann sacudiu a cabeça novamente.

— Significa que, se você me tratar direito, posso arrumar-lhe um lugar de capataz na nova tecelagem.

Ela sorriu. Agora, estava entendendo tudo. Fitou o homem nos olhos e disse:

— é muita gentileza sua, Sr. Fitch.

Ele tornou a pegar-lhe a mão.

— É uma garota esperta, Molly Ann. Não tem a menor necessidade de perder seu tempo com rapazes que não valem nada, como Jimmy Simpson, quando tudo o que precisa fazer é dizer uma só palavra, para ter um amigo de verdade.

—   Agradeço seu interesse, Sr. Fitch. Do fundo do meu coração. — Fez uma pausa, sorrindo. — E quando a nova tecelagem abrir, não fique surpreso se eu for bater em sua porta.

Fitch fitou-a em silêncio por um longo momento, depois largou-lhe a   mão.

— Pois faça isso, Molly Ann, e garanto que não vai arrepender-se.

Ela já estava na porta do escritório.

— Boa noite, Sr. Fitch.

Ele acenou com a cabeça, os olhos semicerrados encobrindo seus pensamentos.

— Boa-noite, Molly Ann. — Fitch continuou a olhar para a porta por muito tempo depois de a moça ter saído.   Pegou um charuto e mastigou a ponta, acendendo-o em seguida. As mocinhas eram tão estúpidas... Encheu os pulmões com a fumaça cinzenta, depois soprou-a lentamente. Ficou observando a fumaça se elevar para o teto. Ora, mas isso não fazia diferença. Mais cedo ou mais tarde, acabaria conquistando-a. Era um homem muito paciente.

 

Molly Ann estava sentada na banheira de ferro portátil, no meio da cozinha. A senhoria pegou uma chaleira grande no fogão de carvão e aproximou-se dela.

— Mais água quente?

— Quero, sim, obrigada, Sra. Wagner.

Inclinou-se para a frente, a fim de que a água pudesse ser derramada às suas costas sem escaldá-la. As nuvens de vapor se elevaram em torno de seu rosto. Depois de um momento, Molly Ann tornou a se recostar, fechando os olhos. Podia sentir o cansaço do longo dia de trabalho na tecelagem deixar seu corpo.

— Sra. Wagner...

— O que é, Molly Ann?

— As banheiras como esta são muito caras?

— Acho que custam uns três ou quatro dólares. Molly Ann suspirou.

— Algum dia, se eu conseguir dinheiro extra, gostaria de comprar uma assim para minha mãe. Aposto que ela adoraria.

 

O domingo estava ensolarado, o vento ameno de março continha os primeiros indícios da primavera. Os botões se formavam nas árvores, os brotos entre verdes e amarelados projetavam um brilho dourado nos galhos desfolhados. Molly Ann desceu os degraus da varanda ao encontro de Jimmy, que esperava junto à carroça atrelada à mula.

O rapaz contemplou-a extasiado, admirando o vestido branco, as fitas amarelas na cintura e em torno do chapéu. E soltou um assovio.

— É você mesma, Molly Ann?

— Gosta? — Ela corou e deu um sorriso. Jimmy sorriu também.

— Está linda. E o vestido é maravilhoso.

— Fui eu mesma que fiz. Comprei tudo no armazém francês. As coisas vieram diretamente de Paris.

Jimmy pegou-lhe a mão, murmurando, em tom de dúvida:

— Não sei, não. . .

— Não sabe o quê?

— Essa carroça velha, essa mula velha. .. É uma pena sujar um vestido novo tão bonito.

— Basta pôr uma manta no banco. E não me venha com suas zombarias.

Jimmy riu e ajudou-a a subir. Ficou parado por um momento admirando-a.

— Está bonita de verdade, Molly Ann.

— Obrigada. E agora dê um pulo até a cozinha. Preparei uma cesta de piquenique para a gente.

— É mesmo? E como sabia que ia fazer um dia tão bonito?

Molly Ann soltou uma risada.

— Olhei pela janela, seu tolo. E agora trate de se apressar. O dia está passando depressa.

Alguns minutos depois, Jimmy estava no banco ao lado dela e a mula puxava a carroça pela estrada.

— Pode escolher à vontade, Molly Ann. Há um piquenique no terreno da feira, uma revificação religiosa da Igreja da Santidade e a festa do Córrego Woodfield.

— A festa do Córrego Woodfield? Não ouvi falar. O que vai acontecer por lá?

— Nada. É uma festa só para nós dois.

Molly Ann passou o braço pelo dele, sorrindo.

— Pois é essa que eu escolho.

Jimmy terminou de comer o último pedaço da torta de maçã, apoiou-se num cotovelo e olhou para Molly Ann.

— É o melhor piquenique que já comi.

— Pare com isso, Jimmy — disse ela, sorrindo. — Não foi nada demais. Apenas um pouco de galinha frita, pão de milho e torta de maçã.

— Esqueceu-se da limonada. Não deveria gastar todo esse dinheiro. Trabalha demais para ganhá-lo.

— De que outra maneira você vai poder descobrir que sei cozinhar?

— Talvez você esteja certa — falou o rapaz, rindo.

— Esteve com meu pai, Jimmy?

— Estive, sim. Eles estão todos bem e mandam lembranças.

— O pequeno Mase já deve estar bastante crescido.

— E como está. Devia vê-lo correndo com as pernas curtas e grossas.

A voz de Molly Ann era ansiosa, quando murmurou:

— Gostaria de poder visitá-los, mas é tão longe. ..

— Talvez a sua capataz possa dar-lhe folga no próximo sábado. Podemos ir até lá e voltar no domingo.

Molly Ann animou-se logo.

— Seria maravilhoso! — Porém o entusiasmo arrefeceu no instante seguinte. — Mas ela nunca me daria folga no sábado. Estamos atrasadas na produção e todas têm de trabalhar horas extras.

Ficaram em silêncio por um momento, rompido por Molly

— Talvez as coisas fiquem mais fáceis quando a nova tecelagem for construída.

— Uma nova tecelagem? Como assim?

— O Sr. Fitch me falou a respeito. Fui ao armazém ontem para pôr mais algum dinheiro na conta de meu pai e ele disse que talvez possa arrumar-me um cargo de capataz, quando a nova tecelagem começar a funcionar.

— É mesmo? — A voz de Jimmy tinha agora um tom áspero, que não havia antes. — E você teria de fazer alguma coisa especial para conseguir o cargo?

Molly Ann fitou-o com atenção. Sabia perfeitamente o que Jimmy estava querendo saber, mas achou melhor não mencionar aquela parte da conversa.

— Não. Ele apenas disse que eu fosse procurá-lo, quando chegasse o momento.

Jimmy ficou calado. Baixou os olhos para a manta estendida no chão, pensativo. Uma nova tecelagem... Ficou imaginando onde seria construída. Provavelmente o velho Fitch já comprara a propriedade por uma bagatela, de algum pobre fazendeiro arruinado. Ficou calado por tanto tempo que Molly Ann voltou a falar:

—- Alguma coisa errada, Jimmy?

— Não — disse ele, sacudindo a cabeça. E sua voz estava amargurada, ao acrescentar: — Quando será que as pessoas desta cidade vão descobrir quem é realmente esse homem? Será que não percebem que ele está drenando suas vidas, sugando todo o seu sangue?

— Jimmy! — Molly Ann estava horrorizada. — Como pode dizer essas coisas horríveis?

— Porque é verdade! — respondeu ele, veementemente. — Você lhe dá dinheiro todas as semanas para pôr na conta de seu pai, não é mesmo?

Molly Ann acenou com a cabeça, em concordância.

— Alguma vez já perguntou qual é o saldo?

— Não. Isso não é da minha conta, mas de meu pai.

— Se pusesse esse dinheiro no banco, eles lhe pagariam juros. O velho Fitch não lhe dá nada e aposto que ainda por cima rouba o seu dinheiro. Aposto que, se seu pai perguntar qual é o saldo vai descobrir que não existe nenhum.

Ela não disse nada.

— Quantas pessoas acha que estão fazendo a mesma coisa Molly Ann? Talvez mais de uma centena. É uma porção de dinheiro que o velho Sam Fitch ganha sem fazer o menor esforço para merecê-lo. — Jimmy fez uma pausa, soltando uma risada áspera. — E todos vocês, montanheses, sentem-se gratos porque ele lhes arrumou os empregos, a fim de que possam passar fome enquanto continuam a dever dinheiro para sempre. Mas basta saírem da linha e vão descobrir como Sam Fitch é amigo. Nada de dinheiro. Nada de crédito. Nada de nada. E logo aparece o xerife com um mandado e não se tem mais casa nem terra, não se tem onde viver. Foi o que aconteceu com os Craigs, na curva do rio. Num dia tinham quarenta acres, no outro não tinham mais nada. — Parou de falar abruptamente, ao compreender o que acabara de dizer. E explodiu: — Mas que diabo! É isso mesmo!

— Não blasfeme! — protestou Molly Ann, asperamente.

— Mas foi isso mesmo o que aconteceu. Ele está planejando a coisa há mais de um ano. Sem qualquer motivo, os garotos Craigs perderam os empregos na tecelagem e na fábrica de vidro. Como se em apenas uma semana se tivessem tornado péssimos trabalhadores. Alguns meses depois, o velho Fitch comprou a propriedade por um pouco mais do que lhe deviam, e os Craigs se mudaram.

— Não estou entendendo, Jimmy.

— É onde vai ser construída a nova tecelagem. Na propriedade do velho Craig. Tem tudo o que é necessário. Água. Energia. E espaço, bastante espaço.

— Mas por que está tão irritado com isso? Não tem nada a ver com a gente.

— Talvez não tenha, Molly Ann. Não agora. Mas terá, com o tempo. Sam Fitch está conquistando cada vez mais poder e não demora muito e será o dono de tudo no vale, inclusive das pessoas.

Ela fitou-o em silêncio por um momento, depois pegou o cântaro e disse:

— Tome mais um pouco de limonada. Está ficando todo irritado por nada.

Jimmy pegou o copo. O rosto relaxou, as rugas de raiva se desanuviaram num sorriso. Levantou o copo e olhou para o Sol, através da limonada.

— É uma criança inocente e maravilhosa, Molly Ann. E algum dia vai dar uma ótima esposa para algum homem.

O copo voou de repente de sua mão, a limonada se derramando na camisa. Molly Ann levantou-se, furiosa.

— Não sou uma criança! Já passei dos dezesseis anos e sou uma mulher! E melhor você ser homem o bastante para me pedir emcasamento ou então pode levar-me para casa!

Jimmy ficou aturdido. A mágoa e a raiva tornavam-na ainda mais bonita. Ele sentiu o coração inchar dentro do peito, dando até a impressão de que ia explodir. A própria voz soou estranha a seus ouvidos, quando murmurou:

— Estou pedindo você em casamento, Molly Ann.

Foi a vez dela ficar surpresa, sem conseguir falar.

— Estou pedindo você em casamento, Molly Ann. Qual é a sua resposta?

— Oh, Jimmy! — exclamou ela, jogando-se em cima dele, as lágrimas escorrendo. — Sim, sim, sim!

Casaram-se pouco mais de um mês depois, a 1º e maio de 1915, na Primeira Igreja Batista de Fitchville. Toda a família de Molly Ann estava presente, descendo das montanhas em seus melhores trajes dominicais. Todos foram, menos Daniel. Ele não conseguiu tirar uma folga em seu trabalho.

Foi nesse mesmo dia que começaram a limpar a terra na fazenda que pertencera ao velho Craig para a construção da nova tecelagem.

Molly Ann entrou no quarto, o rosto corado de excitamento.

— Acorde! — gritou ela, sacudindo Jimmy pelo ombro. — Acorde!

Jimmy estendeu um braço por cima da cabeça, murmurando:

— Deixe-me em paz, mulher. É a manhã de domingo.

— O Sr. Fitch está aqui para falar' com você.

— O velho Fitch? — Jimmy estava subitamente desperto. — Quer falar comigo?

Molly Ann fez que sim.

— O que será que ele quer comigo?

— Não tenho a menor idéia. Houve uma batida na porta. Fui abrir e lá estava ele. Disse que é muito importante.

— Muito importante, hem? — Jimmy se mexeu subitamente, puxando-a para a cama. — Esta é a manhã de domingo e ainda não tomei o meu desjejum.

Molly Ann comprimiu os braços contra o peito dele.

— Estava ocupado demais dormindo. — Os lábios se encontraram e ela murmurou: — Por favor, Jimmy. .. O que ele vai pensar?

— Ele que vá para o diabo!

Molly Ann conseguiu desvencilhar-se.

— Não blasfeme! E agora trate de se vestir e desça o mais depressa possível. — Ela se encaminhou para a porta. — Acabei de fazer café.

O Sr. Fitch estava sentado à mesa da cozinha, quando Jimmy entrou. Tinha à sua frente um prato de presunto com ovos, uma caneca de café fumegante e pão quente com manteiga. Estava metendo comida na boca como se tivessem passado muitos anos desde que comera pela última vez.

— Bom dia, Sr. Fitch.

O homem engoliu a comida antes de responder:

— Bom dia, Jimmy. A sua esposa e tão boa cozinheira quanto a mãe. Você é um homem de sorte.

Jimmy assentiu. Aproximou-se da mesa e se sentou. Molly Ann colocou uma caneca de café na frente dele e voltou para o fogão. Jimmy pegou a caneca. O café estava fumegante e cheiroso.

— Sei disso.

O Sr. Fitch enxugou o último vestígio de gema do prato com um pedaço de pão. Engoliu-o e empurrou para baixo com um gole de café. Depois, recostou-se na cadeira, afagando gentilmente a barriga.

— Estava tudo delicioso, Sra. Simpson.

Molly Ann corou, como sempre acontecia com a mãe. Não deixara de perceber que Fitch a promovera de Molly Ann a Sra. Simpson.

— Obrigada, Sr. Fitch. — Olhou para Jimmy. — Já vai comer agora?

— Ainda não. Vou tomar apenas o café agora.

— Neste caso, vou deixar os cavalheiros tratarem de negócios  disse Molly Ann polidamente, saindo da cozinha. Mas, também como a mãe, ela ficou perto da porta, a fim de poder ouvir toda a conversa.

— O que o traz aqui numa manhã de domingo? — perguntou Jimmy, antes que Fitch tivesse tempo de falar qualquer coisa.

— Tenho sentido a sua falta na igreja nos últimos domingos — respondeu Fitch, sorrindo.

Jimmy não respondeu. Não tinha a menor dúvida de que Fitch sabia que não lhe agradava ir à igreja aos domingos. Fitch acrescentou, suavemente:

— Mas imaginei tudo perfeitamente. Um homem jovem, recém-casado, uma esposa bonita... O que ele iria fazer na igreja numa manhã de domingo?

Jimmy pegou a caneca de café e ficou olhando-a.

— Molly Ann falou que tinha dito que era importante.

— E é mesmo — declarou Fitch, agora sério. — Muito importante. — Fez uma pausa, para aumentar o efeito. — Há muito tempo que o venho observando, meu rapaz. E tenho gostado do que vejo. Faz-me lembrar de mim mesmo quando tinha sua idade. Um jovem cheio de iniciativa.

Jimmy limitou-se a sacudir a cabeça, sem dizer nada.

— Estive pensando muito, meu jovem. Não estou ficando mais moço e um jovem como você poderia ir longe trabalhando comigo. Não tenho ninguém em quem possa confiar e trabalho demais para fazer.

— Está-me oferecendo um emprego, Sr. Fitch? — Indagou Jimmy, incrédulo.

— De certa forma, sim. Mas é mais do que isso. Quero que tome conta de algumas coisas para mim, a fim de que eu possa dedicar toda atenção a outras.

— Que espécie de coisas, Sr. Fitch?

— Pode chamar-me de Sam.

— Está certo, Sam. Que coisas?

— O pessoal daqui o conhece e gosta de você. Pode ajudar no armazém, comprar a aguardente, cuidar das coisas mais difíceis. Acho que sabe do que estou falando.

— Não sei, não.

— Sempre surgem problemas nos negócios. Às vezes, as pessoas não compreendem que estamos fazendo   as coisas para seu próprio bem.

Jimmy assentiu, em silêncio. Podia perfeitamente entender o problema. Nem sempre era fácil persuadir as pessoas de que as estava enganando para o próprio bem delas. Fitch interpretou o aceno de cabeça de Jimmy como aprovação.

— Sempre fiz o melhor possível por esta cidade. Mas agora estão começando a dizer que só me interesso em passar manteiga no meu próprio pão. E o que está acontecendo com a nova tecelagem. São duzentos empregos para   a boa gente daqui.   Mesmo assim, estão dizendo que só faço isso pelos meus próprios interesses.

— E não se está beneficiando? — perguntou Jimmy, com uma ingenuidade simulada.

— Claro que me estou beneficiando. Afinal, é um negócio como outro qualquer. Mas a cidade também está-se beneficiando! Estou trazendo mais indústria, mais empregos. E as pessoas só falam que os Craigs disseram que lhes arranquei a terra por uma ninharia para vender à tecelagem. E agora os Craigs alegam que ainda possuem sete acres, à beira do rio, uma terra que estava em nome do avô, que continua vivo.

— Mas já estão desmaiando a terra à beira do rio — comentou Jimmy. — Como podem fazer isso, se não são os proprietários?

— É justamente esse o problema. Os Craigs estão errados. Mas levaria muito tempo para vencer a questão nos tribunais. Enquanto isso, a tecelagem não poderia entrar em funcionamento e o pessoal da cidade ficaria privado dos empregos e do pagamento. Por isso, sendo generoso, fiz uma oferta aos Craigs pelos sete acres. Mas eles recusaram.

— Quanto ofereceu? — perguntou Jimmy.

— Dez vezes mais   do que vale aquela terra. Ou   seja, cinqüenta dólares por acre, o que dá um total de trezentos e cinqüenta dólares. E não podemos esquecer que nem ao menos eles têm o título de propriedade definido.

— Mas a tecelagem também não tem, se eles apresentarem sua reivindicação no tribunal — comentou Jimmy.

— Não existe nenhum tribunal neste país que apóie a reivindicação dos Craigs contra a tecelagem. Já conversei com o Juiz Hanley e foi isso o que ele me disse.

— Então, por que está preocupado?

— Não quero ter problemas maiores e desagradáveis. Quero que as pessoas compreendam que estou fazendo tudo isso para seu próprio bem.

— Ainda não estou entendendo como poderia ajudá-lo nesse assunto.

— Os Craigs o conhecem e gostam de você. Vão acatar o que disser.

Jimmy meneou a cabeça, lentamente.

— É possível. — Levantou-se e tornou a encher a caneca com café. — E o que vou ganhar com isso?

Fitch fitou-o atentamente.

— Estará comigo, rapaz. Eu o farei rico. Começará com um salário de vinte e cinco dólares por semana.

Era pelo menos cinco dólares a mais do que qualquer outro homem da cidade recebia como salário. Era também cerca de 10 dólares a mais por semana do que Jimmy costumava ganhar, mesmo nas épocas melhores. Mas ele disse, cautelosamente:

— Não sei. . . Afinal, é apenas um emprego e gosto da idéia de trabalhar por conta própria.

— Não consegue nunca ganhar tanto dinheiro.

— Tem razão. Mas também não preciso trabalhar todos os dias.

— Isso é ótimo, quando se está sozinho. Mas agora é um homem casado, constituiu família. Não demora muito e vai ter filhos. Deve começar a pensar neles agora.

Jimmy tornou a sentar-se à mesa e repetiu:

— Não sei...

Fitch sorriu. Sentia que conquistara o rapaz.

— Converse a respeito com sua esposa. — Fitch se levantou. — Ela certamente vai concordar comigo. É uma moça sensata. E, pode dar-me a resposta amanhã.

Depois que ele foi embora, Molly Ann entrou correndo na cozinha.

— Não é maravilhoso, Jimmy?

— Não está entendendo, não é mesmo? — indagou ele, fitando-a com uma expressão sombria.

— Entender o quê? — indagou ela, aturdida.

— Que Fitch está querendo que eu seja um patife como ele. Que eu trapaceie e roube pessoas como a sua família e os Craigs.

— O que vai fazer? — indagou Molly Ann, após um momento.

— A mesma coisa que venho fazendo:   cuidando da minha própria vida e vendendo o meu uísque.

Mas não era assim que estava fadado a acontecer. Dois dias depois que Jimmy recusou a proposta do Sr. Fitch, alguém disparou um tiro de rifle pela janela aberta da casa de madeira decrépita em que os Craigs agora viviam, a cerca de 18 quilômetros da cidade, matando o vovô Craig.

O Sr. Fitch ficou tão indignado quanto os demais moradores da cidade com o bárbaro assassinato do velho e ofereceu um prêmio de 50 dólares, do seu próprio bolso, pela descoberta e captura do assassino. E apesar da reivindicação dos Craigs pelos acres à beira do rio ficar bastante prejudicada pela morte do velho, ele aumentou a oferta pela terra para 500 dólares, a fim de ajudar a própria família. Prometeu também interceder pela família, providenciando para que os garotos Craigs recuperassem seus empregos na tecelagem e na fábrica de vidro.

Fitch achava que era uma oferta extremamente generosa. Só tinha uma coisa errada com ela: os Craigs a rejeitaram. E alguns dias depois do enterro, um tiro disparado do bosque adjacente à propriedade Craig matou o capataz da construção da tecelagem, no momento em que dava ordens a seus homens para recomeçarem a desmatar a terra à beira do rio.

Todo o trabalho cessou prontamente. Não havia a menor possibilidade de os homens saberem qual seria o próximo a ser liquidado. Recusaram-se a voltar ao trabalho, até que guardas armados foram contratados para patrulhar os perímetros da propriedade. No primeiro dia depois da chegada dos guardas, um deles foi encontrado morto em seu posto, pelo homem que ia substituí-lo. Levara um tiro na cabeça, por trás, disparado a curta distância por um revólver Smith & Wesson, calibre 44.

Assim que recebeu a notícia dessa morte, ao final da tarde, Sam Fitch contraiu os lábios sombriamente e toda a sua jovialidade desapareceu. Pela primeira vez na vida, seu domínio estava sendo ameaçado. Sua reação foi a reação inevitável do poder. Naquela mesma noite, John, de 19 anos, o filho mais velho dos Craigs, foi mortalmente baleado quando dava água à sua mula.

E foi assim que começou em Fitchville o que iria ser conhecido como a Guerra dos Craigs. Iria prolongar-se por quase dois anos e só acabaria depois que muitas outras pessoas fossem mortas, inclusive mulheres e crianças. Seria lembrada como a mais sangrenta guerra nas montanhas na história da Virgínia Ocidental.

 

Daniel sentiu o ronco no estômago e olhou para o relógio na parede. Era meio-dia e meia e o Sr. Smathers e seus visitantes ainda não haviam saído para o almoço. Deveria ser uma reunião muito importante, porque o superintendente era um homem que sempre saía para almoçar pontualmente ao meio-dia. Talvez houvesse alguma procedência nos rumores que corriam há alguns meses de que a mina estava para ser vendida. A porta da sala interna se abriu e o Sr. Smathers apareceu, indagando, com um tom de surpresa na voz:

— Ainda não foi almoçar, Daniel?

— Não, senhor — respondeu Daniel, polidamente. —, Estava esperando que saísse.

— Não há necessidade de esperar, Daniel. Pode sair para almoçar agora.

Daniel fechou o livro de registros e levantou-se.

— Obrigado, Sr. Smathers. — Abaixou-se e pegou sua lancheira debaixo da mesa. O Sr. Smathers voltou para sua sala e Daniel saiu pela porta do escritório.

Foi sentar-se no banco ao lado da porta e abriu a lancheira. Não pôde conter um sorriso. Carrie fora extremamente generosa. Colocara uma banana extra, além da maçã habitual e do sanduíche de salada de batata e salsicha de patê com o pão fresco feito em casa, que tinha um cheiro dos mais agradáveis.

Daniel recostou-se no prédio, os olhos meio fechados de satisfação, mastigando lentamente o sanduíche. Estava começando sentir o colarinho apertado. Afrouxou a gravata e abriu o colarinho. Muitas coisas haviam mudado desde que começara a trabalhar como amanuense, um ano antes.

Talvez a mais importante fosse o fato de poder agora ter um quarto só para si. A outra mudança marcante era a que seus olhos não mais doíam à luz do dia. Mais do que compensava a obrigação de usar colarinho e gravata todos os dias. Desatarraxou a tampa da garrafa térmica e tomou um gole do café quente e doce. Carrie era realmente extraordinária. Valia até o último cent do meio dólar extra que Daniel lhe dava todas as semanas. Ouviu passos se aproximando e virou a cabeça na direção do som. Seu antigo capataz, Andy, veio parar diante dele e disse bruscamente:

— Quero falar com você, Daniel.

— Pode falar, Andy. Estou escutando.

Daniel tentou imaginar o que poderia ser tão importante a ponto de Andy sair da mina para falar a respeito. Geralmente o capataz almoçava dentro da mina, com o resto dos homens.

— Aqui não, Daniel. Há muita gente por perto. Daniel não viu ninguém, mas mesmo assim se levantou.

— Está certo, Andy. Onde quer conversar?

— Atrás do barracão de ferramentas — respondeu Andy, começando a se afastar. — Ficarei à sua espera.

Daniel acenou com a cabeça, assentindo. Terminou de comer o sanduíche e depois, lentamente, encaminhou-se para o barracão de ferramentas. Andy estava encostado na parede dos fundos, mascando um pedaço de fumo. Deu uma cusparada quando Daniel se aproximou, acertando numa pedra, a três metros de distância, com o ruído de um tiro.

Daniel fitou-o atentamente. Andy estava-se comportando de maneira estranha. Nunca antes o vira daquele jeito. Andy olhou para todos os lados, antes de falar:

— Alguém o viu a caminho daqui?

— Creio que não. — Daniel estava perplexo. — E que diferença poderia fazer, se alguém me visse?

Andy não respondeu à pergunta. Em vez disso, fez outra:

— A mina está sendo vendida?

— Não sei — respondeu Daniel, com toda sinceridade.

— Estão dizendo que vai mesmo ser vendida. Pensei que podia saber de alguma coisa.

— Também ouvi os rumores, mas não sei mais do que qualquer outro.

— Aqueles homens com Smathers são de Detroit.

— Eis algo que não sei. Ninguém me disse nada.

— Dizem que a mina vai passar para o controle de uma companhia automobilística e que a primeira providência deles será mudar o pagamento para vales, como fizeram em Parlee.

— Está falando com o homem errado. O Sr. Smathers é que pode responder às suas perguntas, não eu. Não passo de um ama­nuense

— Pensei que poderia ter ouvido alguma coisa.

— E por que eu deveria ouvir? Não tenho o hábito de escutar atrás das portas.

— Não estou dizendo isso.

— Não sei por que está tão preocupado. Que diferença faz quem é o dono da mina, contanto que continuem a nos pagar?

— A diferença é muito grande — respondeu Andy, sombria­mente. — Eles nos pagam em vale em vez de dinheiro e estamos liquidados. Somos obrigados a comprar tudo em seus armazéns e, antes de percebermos, estamos devendo até a raiz dos cabelos e nunca mais nos conseguimos livrar.

— Mas se venderem a mina não há muita coisa que você possa fazer, a não ser largar o emprego, se não estiver gostando.

— Eles bem que gostariam que fizéssemos isso. Poderiam então nos substituir por outros homens mais baratos. Mas há outro recurso, um jeito muito melhor.

— E qual é? — indagou Daniel, curioso.

O rosto de Andy assumiu uma expressão cautelosa.

— Não posso falar a respeito agora. Ainda não sei de que lado você está.

— Como assim? — indagou Daniel, aturdido.

— O lado dos donos da mina ou o nosso.

— O nosso?

— Dos mineiros. É diferente quando não se está trabalhando lá embaixo.

— Não vejo onde está a diferença. Continuo trabalhando para me sustentar, assim como você.

Andy fitou-o em silêncio por um momento, antes de comentar:

— Você é um sujeito estranho.

Daniel não disse nada.

— Poderia contar-me, se ouvir alguma coisa?

— Não — disse Daniel, categórico. — Não sou de espionar. Para ninguém.

— Nem mesmo por uma boa causa?

— Tenho primeiro de saber direitinho que causa é essa. Só depois é que posso tomar uma decisão.

Andy sorriu subitamente, voltando a ser o homem que Daniel conhecia.

— O que anda fazendo com suas noites, rapaz?

— Quase nada.

— Soube que anda passando muitas noites com a Srta. An­drews, a nova professora da escola.

Daniel sentiu que o rosto ficava vermelho. Não havia segredos numa cidade mineira.

— Ela está-me dando aulas sobre coisas que ainda não estudei.

— Isso é tudo o que ela lhe está dando? — perguntou Andy, com um sorriso.

Daniel sentiu que ficava ainda mais vermelho.

— Tenho muita coisa para aprender.

— Aposto que tem mesmo. — Andy soltou uma risada. Depois, abruptamente, voltou a ficar sério. — Posso voltar a procurá-lo dentro de alguns dias?

— Sabe onde encontrar. Não vou mudar-me.

Daniel ficou observando o capataz se afastar, depois virou-se e voltou para o banco ao lado da porta do escritório. Sentou-se e tirou a banana da lancheira, descascando-a cuidadosamente. Comeu devagar, saboreando devidamente. Aquela Carrie era um amor.

Engoliu o último pedaço da maçã com o resto do café. Fechou a lancheira e voltou para o escritório. A porta da sala do Sr. Smathers continuava fechada. Daniel olhou para o relógio na parede e pôs a lancheira debaixo da mesa. Havia tempo suficiente para dar um pulo à sala de separação para ver o que estava acontecendo por lá.

A sala de separação ficava localizada na outra extremidade dos trilhos que saíam da entrada da mina. Era lá que o carvão tirado da mina era despejado em uma correia transportadora. Descia por uma rampa até o lugar em que os meninos separavam a escória com as mãos, o carvão propriamente dito seguindo adiante para ser despejado em um carro. A escória era jogada no outro lado da montanha.

Daniel entrou no galpão construído sobre a sala de separação, que ficava num platô escavado na encosta da montanha. Foi para a plataforma por cima dos meninos que trabalhavam como separadores. A sala estava voltando agora a funcionar em plena carga, depois da hora do almoço. Nunca chegava a parar completamente, porque a metade dos meninos continuava a trabalhar, enquanto a outra metade almoçava. Agora estavam todos de volta ao trabalho e o carvão descia ruidosamente pela rampa, levantando nuvens de poeira escura no ar e obscurecendo parcialmente a visão da plataforma. Depois de um momento, os olhos de Daniel se ajustaram à escuridão, e ele pôde ver os meninos lá embaixo.

Eles estavam sentados em fila, nos dois lados da rampa. Espremidos em seus pequenos bancos, debruçavam-se sobre as caixas de separação, as mãos voando sobre o carvão e pegando a escória mais pelo contato do que pela vista. A velocidade do trabalho era controlada pelos supervisores, que forçavam o ritmo com o aumento do fluxo de carvão na rampa. Se um menino se atrasasse, ficaria rapidamente com os braços enterrados numa pilha de carvão.

Por cima do barulho do carvão descendo pela rampa, Daniel podia ouvir as vozes dos supervisores, andando para cima e para baixo dos degraus estreitos ao lado da rampa, gritando para que os meninos acelerassem o ritmo e esvaziassem suas caixas. Eram todos ainda muito jovens, as idades variando dos nove aos 13 ou 14 anos. Mas com os rostos enrugados e enegrecidos, com as costas permanentemente encurvadas, mais pareciam com miniaturas de velhos.

Um dos supervisores subiu à plataforma e aproximou-se de Daniel. Fitou-o e sacudiu a cabeça, enquanto ia até o balde, enchia uma caneca com água e bebia. Só depois é que falou:

— Filhos da mãe preguiçosos!

Daniel não disse nada. O supervisor veio postar-se ao lado dele, olhando para os meninos.

— Fico imaginando se o escritório sabe o quanto temos de trabalhar para fazer os meninos separarem o carvão.

— Pois me parece que eles estão trabalhando muito bem — disse Daniel, virando-se para o homem.

— Diz isso porque não os conhece. Passam a metade do tempo fingindo. Apenas parecem que estão ocupados. Muito diferente do que era no meu tempo, quando os meninos separavam a escória com gana e uma rapidez que não existe mais.

Daniel deu de ombros.

— A mina está mesmo sendo vendida? — perguntou o supervisor.

— Não sei — respondeu Daniel, bruscamente.

— Pode contar-me tudo — murmurou o supervisor, num tom confidencial.

— Já disse que não sei de nada. — A voz de Daniel soou ainda mais áspera do que antes. O supervisor apressou-se em dizer:

— Está bem, está bem. Não fique tão irritado só porque está agora trabalhando no escritório. Não é melhor do que a gente.

Daniel tornou a fitá-lo, os olhos subitamente frios.

— O que está querendo dizer com isso?

— Pensa que não sabemos por que vem até aqui? Não é apenas para passar o tempo.

A boca de Daniel se contraiu, enquanto a raiva o invadia. Deu um passo na direção do homem, mas foi detido por um grito estridente que soou lá embaixo nesse momento. Era o grito de um menino sentindo uma dor intensa.

— Parem o carvão! — gritou um supervisor.

O homem que estava na plataforma ao lado de Daniel levantou a mão e fechou o alçapão. O fluxo de carvão na rampa cessou imediatamente.

— Mas que   diabo! O que aconteceu agora? — gritou ele, indo até a grade da plataforma e espiando para baixo.

Podiam ouvir o menino gritando, mas não podiam vê-lo, até que as nuvens de pó de carvão se dissiparam um pouco. Um garoto pequeno, quase ao final da rampa, ficara com a mão presa entre a correia transportadora e sua caixa de separação.

— Filho da mãe estúpido! — gritou o supervisor ao lado de Daniel, encaminhando-se para os degraus. Ele desceu de três em três degraus. Ao chegar lá embaixo, diversos outros   meninos já estavam apinhados em torno do companheiro que ficara com a mão presa. O menino ferido desmaiara.

— Voltem para suas caixas! — berrou o supervisor.

Outro supervisor se aproximou e, rápida e habilmente, os dois tiraram a mão do menino da correia. O primeiro supervisor pegou o menino no colo, não muito gentilmente, e começou a subir os degraus. Ao chegar à plataforma com o menino desmaiado, estendeu uma das mãos para acionar novamente o mecanismo de fluxo de carvão pela rampa.

Daniel olhou para o menino. Parecia não ter mais do que 10 anos, o rosto extremamente pálido, o sangue pingando da mão mutilada, completamente inerte nos braços do supervisor. Este percebeu o olhar de Daniel e apressou-se em dizer:

— Pode dizer no escritório que não foi culpa nossa. O maldito garoto não conseguiu acompanhar o ritmo.

Daniel não disse nada e o supervisor insistiu:

— Não foi culpa nossa.

— É melhor levar logo o garoto para cuidarem da mão dele — falou Daniel.

Ficou observando o supervisor deixar apressadamente o galpão com o menino. Não havia enfermaria na mina, mas o velho encarregado do barracão de ferramentas sabia o que fazer quando havia acidentes. O menino seria levado para lá, a mão seria devidamente enfaixada e depois o mandariam para casa. É claro que o pagamento dele seria suspenso até que pudesse voltar ao trabalho. Isto é, se é que algum dia poderia voltar a ser um separador. Não existia a menor possibilidade de um menino poder ser separador com apenas uma das mãos.

Daniel olhou novamente para baixo. O carvão descia ruidosamente pela rampa, a poeira se elevava por toda parte, os supervisores gritavam. E os meninos continuavam a separar o carvão. Como se nada tivesse acontecido.

Daniel descobriu subitamente que suas mãos apertavam a grade da plataforma com toda força. Olhava fixamente para os meninos. E imaginava sua própria mão sendo dilacerada, sangrando profusamente. Alguma coisa não podia deixar de estar errada. Um par de mãos certamente valia muito mais do que os três dólares por semana que pagavam aos meninos que trabalhavam na separação.

 

Quando bateu nove horas e ele não apareceu, Sarah Andrews chegou à conclusão de que não viria naquela noite e resolveu aprontar-se para dormir. Geralmente ele chegava às sete e meia, logo depois do jantar. Ela trancou a porta da frente da pequena casa contígua à escola em que ensinava, deixou a pequena sala e foi para o quarto ainda menor.

Começou a despir-se, lentamente. Era estranho que ele não tivesse falado nada no dia anterior. Normalmente, sempre que não podia ir, ele a informava com antecedência. Talvez alguma coisa lhe tivesse acontecido. Ela ouvira falar que ocorrera um acidente na mina naquele dia. Um medo brusco dominou-a por um momento, mas logo se lembrou de que ele não trabalhava no fundo da mina e sim no escritório.

Pendurou o vestido com todo cuidado, saiu da anágua e tirou os grampos dos cabelos. Eram compridos e castanhos-escuros, caindo por seus ombros. Vislumbrou-se no espelho, com as depressões fundas e escuras dos olhos. Parou e contemplou-se. A mãe estava certa. O que não era de surpreender, porque a mãe estava sempre certa.

— Sarah Andrews — dissera a mãe — passa os dias e as noites com o nariz enterrado nos livros e assim vai acabar solteirona.

E era justamente o que ela se tornara. Estava com 30 anos, sem ter-se casado. E sem qualquer marido em perspectiva. Uma solteirona, exatamente como a mãe previra.

Tirou a túnica e os seios pareceram encher o espelho. Contemplou-os, fascinada. E enquanto olhava, os mamilos pareceram ficar maiores e os seios começaram a doer. Pegou-os com as mãos em concha, apertou-os firmemente. O que parecia atenuar a dor. Fechou os olhos. Eram as mãos dele.

Mas não eram. Já se haviam passado cinco anos desde que ele a tocara e depois fora embora. A mãe dissera que ele nunca tencionara casar-se. Mas “nunca” era uma palavra forte demais. Ele simplesmente não era o tipo de homem que pudesse casar. A responsabilidade o assustava. Mas ela só compreendera isso, quando era tarde demais.

Mesmo assim, nunca lamentara tê-lo conhecido e amado. Pela primeira vez na vida, sentira que era uma mulher e aprendera a descobrir alegria em sua feminilidade. A mãe dissera que ela era uma leviana e que não podia mais andar de cabeça erguida na comunidade. A partir desse momento, fora apenas uma questão de tempo até que ela pudesse escapar. E depois disso houvera uma escola diferente numa cidade diferente a quase cada ano. E nem uma única vez, naqueles cinco anos, ela tornara a aparecer em casa.

Houvera outros homens. Foram casos rápidos, provocados pela profunda e desesperada necessidade física que havia dentro dela. Mas depois que o corpo estava saciado, uma intensa aversão substituía o anseio. E a cada vez prometia a si mesma que não tornaria a acontecer. Mas sempre sucedia de novo. No final das contas, isso a levava a ir de uma cidade para outra, mudando de escola, sempre que sentia que a comunidade tomava conhecimento do seu comportamento. Especialmente os homens. Pela maneira como a olhavam, pareciam cachorros atrás de uma cadela no cio. Não havia segredos numa cidade pequena.

Fazia sete meses que ela chegara àquela pequena cidade mineira, perto de Grafton. Ao ver a pequena casa ao lado da escola compreendera que desta vez seria diferente. Ali ficaria sozinha, não na pensão habitual, sujeita às tentações e aos cheiros dos homens, Ficando sozinha, nada poderia despertar seu desejo. Iria contentar-se com seu trabalho. Desta vez não ficaria frustrada pela tentativa de meter algum conhecimento nas cabeças de crianças que sabiam estar ali apenas até chegarem à idade de trabalhar nas minas ou fábricas. Resignada, aceitava o fato de que os meninos iriam deixar a escola aos 10 e 11 anos de idade. As meninas ficariam mais um pouco, mas também largariam os estudos quando chegassem aos 12, 13 ou 14 anos. De qualquer forma, nunca havia escassez de crianças na escola. Quer o ano fosse bom ou mau, era a única colheita que jamais falhava.

Fora por isso que ela ficara surpresa no dia em que levantara a cabeça de sua mesa durante a hora de almoço, deparando com ele parado no outro lado da sala. Pensara a princípio que fosse o pai de uma das crianças, vindo tirar o filho da escola para fazê-lo trabalhar. Ele parecia ocupar todo o espaço da porta. Era grande, mais de l,80m de altura, ombros largos, peito forte. Algumas mechas dos cabelos pretos rebeldes caíam sobre as sobrancelhas espessas e os olhos de um azul intenso. A barba raspada deixava uma mancha azulada no rosto, contornando a boca larga e ressaltando o queixo firme. Assim que ele entrara na sala de aula, ela percebera que não era tão velho como inicialmente pensara.

— Srta. Andrews? — A voz era profunda, mas gentil.

— Pois não?

Ele deu alguns passos hesitantes na direção dela.

— Desculpe incomodá-la, madame. Sou Daniel Boone Huggins.

Ela quase sorrira, pois ele se sentia visivelmente intimidado.

— Não me   está incomodando, Sr. Huggins. Em que posso servi-lo?

Ele não chegara mais perto.

— Sou o amanuense do escritório do Sr. Smathers na mina.

Sarah assentira, sem dizer nada.

— Estou trabalhando lá há cerca de um ano e estou começando a compreender como sou estúpido. Preciso aprender mais.

Ela ficara surpresa. Fora a primeira vez, em todos os anos em que era professora, que alguém lhe admitira tal coisa. Devorar livros, como eles diziam, era considerado pura perda de tempo.

— Gostaria de aprender exatamente o que, Sr. Huggins?

— Não sei. — Depois de uma breve pausa, o rapaz acrescentara: — Acho que tudo.

Sarah não pudera conter um sorriso.

— É um desejo muito grande.

O rosto dele permaneceu compenetrado.

— Há muitas coisas sobre as quais nada sei. Desde que comecei a trabalhar no escritório que fico escutando as pessoas falarem. Política, negócios, economia. Não sei nada a respeito dessas coisas. Posso ler e escrever, fazer algumas contas. Mas há palavras que não sei o que significam e me complico todo na hora de multiplicar e dividir.

— Estudou em alguma escola?

— Estudei, madame. Passei seis anos numa escola rural. Mas parei quando cheguei aos quatorze anos e não voltei a estudar.

Sarah o fitara em silêncio por um instante, pensativa, antes de indagar:

— Nunca pensou em ir à biblioteca?

— Já, sim, madame. Mas a biblioteca mais próxima fica em Grafton. Trabalho seis dias por semana, e a biblioteca está fechada aos domingos.

Sarah acenou com a cabeça. Grafton ficava a cerca de 25 quilômetros de distância e assim não havia a menor possibilidade de ele ir até lá durante a semana.

— Não sei o que posso fazer para ajudá-lo, Sr. Huggins.

— Agradeceria imensamente qualquer coisa que pudesse fazer, madame. É mais do que posso fazer sozinho.

Ela pensara por um momento. As crianças estavam voltando à sala, terminada a hora do almoço. Olhavam para Daniel, a curiosidade estampada nos rostos normalmente inexpressivos.

— Não há muito o que possamos fazer neste momento, Sr. Huggins. A aula já vai recomeçar. Não pode voltar mais tarde?

— Trabalho até seis horas, madame. Posso chegar aqui logo depois.

— Estarei à sua espera, Sr. Huggins — dissera Sarah.

— Muito obrigado, madame.

Ela ficara observando-o sair e fechar a porta, depois se virará para a turma. Ouvira algumas risadinhas das crianças maiores, que sentavam nos fundos da sala. Batera com o apontador em cima da mesa e dissera bruscamente:

— Vocês lá atrás! Abram seus livros na página trinta, lição número dois de Geografia!

Só depois que a última criança deixara a sala de aula, após as quatro horas da tarde, é que Sarah voltara a pensar nele. Não sabia o que podia fazer para ajudá-lo. Talvez o melhor fosse descobrir o quanto ele realmente aprendera. Pelo menos seria um princípio. Ela fora até o armário e tirara um jogo de provas do sexto ano do primeiro grau, espalhando-as sobre a mesa.

Isso acontecera seis meses antes. Desde então, para sua surpresa e excitamento, Sarah descobrira que aquele rapaz grandalhão e quieto possuía uma inteligência extraordinária e inquisitiva, que absorvia o conhecimento assim como a terra fértil absorve a chuva. Encontravam-se três noites por semana e nas tardes de domingo. Daniel lia de maneira voraz e fazia perguntas incessantemente. Sarah finalmente escrevera para a mãe e pedira que lhe enviasse os seus livros da universidade. Pela primeira vez na vida, experimentava a pura alegria de ensinar. No fundo da mente, em algum lugar, sabia que era assim que deveria ser.

Agradecido, Daniel se oferecera para pagar as aulas. Sarah recusara. Sentia-se contente por ter algo com que ocupar suas horas de folga. Finalmente concordara que Daniel poderia retribuir cortando o suprimento de lenha de uma semana para a escola e sua pequena casa, aos domingos.

Sarah passara a aguardar ansiosamente as manhãs de domingo, quando seria despertada pelo som retumbante nos fundos de sua casa. Havia nisso algo estranhamente tranqüilizante e confortador. A impressão de lar. Um eco de sua infância, quando o irmão mais velho costumava executar a mesma tarefa. De certa forma, ela não se sentia mais uma estranha ali. Não mais estava sozinha.

Para ela, o sentimento simples de afeição perdurara durante todo o inverno e no início da primavera. Depois, numa manhã de sol, levantara da cama e fora à janela.

Daniel estava despido até a cintura. O suor que escorria por seu corpo tinha um brilho avermelhado à luz do sol. Os músculos ondulavam enquanto o machado subia e descia. Paralisada, Sarah ficara observando a calça beje se escurecer com o suor nas nádegas e virilha.

E foi tomada de surpresa pela súbita sensação de calor e a umidade na sua própria virilha. Sentira as pernas cederem sob seu peso e tivera de se segurar no peitoril da janela para não cair. Furiosa, sacudira a cabeça, para desanuviá-la. Não era assim que deveria acontecer. Fechara os olhos firmemente e mantivera-os fechados, até recuperar o controle.

A partir desse dia, Sarah se tornara conscientemente mais circunspecta, tomando a precaução de não se sentar muito perto de Daniel, mais cuidadosa no vestir, mais formal na linguagem. Se Daniel percebia como ou por que ela se comportava assim, não deixava transparecer. Ocasionalmente, quando o olhar dela o pegava de surpresa, Daniel ficava vermelho. Mas Sarah atribuía isso à timidez normal dele.

Fora o que acontecera na noite anterior, quando Sarah o fitara através da mesa da cozinha e o surpreendera a observá-la. No mesmo instante, a vermelhidão começara a subir pelo rosto de Daniel. Sem pensar, ela perguntara:

—   Daniel, quantos anos você tem?

O vermelho se tornara ainda mais intenso. Ele hesitara por um momento e depois mentira:

— Dezoito anos, madame.

Sarah ficara calada por um minuto.

— Parece mais velho. — E, depois, ela mentira também: — Estou com vinte e cinco anos.

Daniel limitara-se a sacudir a cabeça, e ela acrescentara:

— Não tem amigos?

— Alguns.

— E imagino que tem namoradas também.

— Não tenho, não, madame.

— Nem mesmo em casa? Alguma garota especial? — Daniel sacudira a cabeça. — E o que faz com suas horas de folga? Não vai a reuniões e aos bailes na noite de sábado?

— Nunca fui muito de dançar, madame.

— Não me parece muito certo, Daniel. Afinal, você é jovem e bonito...

— Srta. Andrews... — interrompera ele. Sarah ficara surpresa. Era a primeira vez que ele fazia algo assim. E estava com o rosto vermelho. — Também não me interesso por essas coisas, madame. As moças estão sempre querendo casar e não estou disposto. Tenho uma família dependendo de mim.

— Desculpe — murmurara Sarah, aceitando a censura. — Não quis bisbilhotar sua vida.

Daniel se levantara.

— Já é tarde. Está na hora de eu ir embora.

Sarah também se levantara. Inclinara-se e fechara o livro que ele deixara em cima da mesa.

— Vamos acabar essa lição amanhã de noite.

Mas agora já eram nove horas e Daniel ainda não aparecera. Lentamente, ela se aprontou para deitar. O último pensamento que teve, antes de apagar a luz, foi o de que o perdera. Ele nunca mais voltaria.

 

A pequena sala de visitas da casa de Andy estava apinhada e sufocante com a fumaça dos charutos pretos e parecidos com cordas que a maioria dos mineiros fumava. Daniel correu os olhos pela sala, do canto em que se postara. Havia um clima de expectativa tensa, os mineiros conversavam em vozes abafadas, quase furtivas, como se temessem que o homem de quem falavam pudesse ouvi-los.

Andy havia aparecido na pensão no momento em que Daniel se preparava para ir à aula com a Srta. Andrews.

— Venha comigo — disse o capataz, bruscamente.

— Para quê?

— Vai descobrir. — Andy começou a descer os degraus da varanda, olhou para trás e acrescentou:

— E então?

Daniel assentiu e desceu os degraus atrás dele. Caminharam lado a lado por quase um quarteirão, antes que Andy voltasse a falar:

— Estou correndo um risco grande ao levá-lo. A maioria dos homens pensa que você passou para o outro lado. Acham que está agora com os patrões.

— Então por que se está dando a todo esse trabalho?

O corpulento capataz parou e fitou-o, os cabelos brancos brilhando à luz do lampião de gás.

— Pediram-me que o levasse.

— Quem pediu?

— Vai descobrir — falou Andy em tom de mistério e recomeçou a andar. — Além do mais, acho que está conosco. Trabalhei no fundo da mina a seu lado. E a partir do momento em que se trabalha lá embaixo, nunca mais se deixa de ser um mineiro, não importa qualquer outra coisa que se possa fazer.

Cobriram em silêncio o resto do percurso até a casa de Andy. Os outros homens começaram a chegar pouco depois. Olhavam para Daniel, mas não lhe diziam nada. Gradativamente, Daniel foi-se deslocando para um canto, onde se encostou na parede, fumando seu charuto. Havia mais de uma dúzia de homens na sala, reunidos em pequenos grupos.

Houve o som de um automóvel se aproximando. Um dos homens perto da porta olhou para fora. Virou-se para o interior da sala e anunciou:

— Eles chegaram!

Houve um movimento geral na direção da porta. Andy abriu-a. Daniel pôde ver o Ford preto, Modelo T, parar diante da casa. Os homens saíram para a varanda. Daniel não se mexeu.

Um momento depois, Andy tomou a entrar na casa, acompanhado por um homem grande e corpulento. Daniel examinou o homem com alguma curiosidade. Não chegava a ser um homem muito alto, mas parecia imenso. De ombros largos, peito grande, tinha cabelos pretos abundantes e desgrenhados, caindo sobre as sobrancelhas espessas e os olhos azuis penetrantes. Ele avançou com uma aura de importância e segurança entre os homens que se agrupavam a seu redor, apertando mãos firmemente, fitando cada um nos olhos. Os dentes eram surpreendentemente pequenos, por trás dos lábios grossos. Os dois se aproximaram de Daniel.

— Esse é Daniel — disse Andy, como se isso explicasse tudo. O homem estendeu a mão para Daniel, e Andy acrescentou: — John L. Lewis, Vice-Presidente Executivo da União dos Trabalhadores em Minas.

A mão do Sr. Lewis era macia, mas surpreendentemente forte.

Ele fitou Daniel nos olhos:

— Você é o cunhado de Jimmy Simpson. Ele me falou muito a seu respeito.

Daniel teve de fazer um esforço para impedir que o espanto transparecesse em sua voz:

— Conhece Jimmy?

— E também conheço sua irmã, Molly   Ann.   Uma   ótima moça. Jimmy está fazendo um bom trabalho por nós em Fitchville. Vamos todos torcer para que consigamos o mesmo progresso aqui.

Antes que Daniel pudesse dizer qualquer coisa, o homem se virou e foi até a frente da sala. Não era homem de perder tempo. Levantou uma das mãos e os homens ficaram em silêncio.

— Em primeiro lugar, tenho de corrigir a apresentação de Andy. Meu bom amigo insiste em me apresentar como vice-presi­dente executivo do sindicato. Eu lhe agradeço a promoção, mas esse cargo ainda pertence a Frank Hayes. Um coro de vozes interrompeu-o:

— Não por muito tempo, John! Você é o nosso homem!

Lewis sorriu. Tornou a levantar a mão e todos voltaram a ficar em silêncio.

— Isso compete ao futuro decidir. Não tenho ambições. Tudo o que quero agora é fazer um bom trabalho para vocês. E a recompensa que estou procurando. Quero que tenham seus empregos garantidos, que o trabalho seja seguro e que recebam pagamento equivalente aos padrões mais altos da indústria.

Os homens puseram-se a aclamar. Lewis esperou até que os gritos se desvanecessem. Depois de um momento, recomeçou a falar:

— Como sabem, a U.T.M., já é um dos maiores sindicatos do país. Desde o início deste ano que temos mais de um quarto de milhão de associados, pagando suas mensalidades. O fato de que somos reconhecidos pelo governo dos Estados Unidos é confirmado pela nomeação feita pelo Presidente Wilson, escolhendo para seu primeiro Secretário do Trabalho um dos líderes e fundadores da U.T.M., o Sr. William B. Wallace.

Os homens tornaram a aclamar. Desta vez, Lewis se sobrepôs às aclamações:

— No último ano, representei Sam Gompers como assistente legislativo em Washington. Agora voltei ao meu antigo posto na U.T.M., em Indianápolis, para devotar-me outra vez às pessoas que amo, os mineiros. Há dois meses, depois de muita consideração, decidimos que era chegado o momento de a U.T.M., entrar na última área ainda não sindicalizada do país, o setor mineiro da Virgínia Ocidental e Kentucky. Não vou entrar na história dos motivos pelos quais não viemos para cá antes. Tentamos diversas vezes instalar o sindicato aqui, mas sempre fomos derrotados. Não foi culpa nossa. Vocês queriam o sindicato. Mas as táticas de corrupção e terror dos patrões foram demais para nós. E assim, para proteger a vida e a saúde de vocês, preferimos recuar. Não pretendo discutir agora se a nossa decisão foi certa ou errada. Foi tomada há oito anos e talvez estivesse certa na ocasião, a fim de evitar um derramamento de sangue. Mas, desde então, as condições dos mineiros aqui não melhoraram. Ao contrário, ficaram ainda piores. Hoje, todos vocês, mineiros desta região, estão recebendo menos por seu trabalho do que ganhavam naquela ocasião. Estão mais endividados e trabalhando mais horas, em condições mais arriscadas e perigosas. E agora que as companhias automobilísticas de Detroit formaram um consórcio das vinte maiores minas desta região, a situação não vai melhorar. Se alguma mudança houver, será para pior.

Os homens   permaneceram   calados.   Lewis   correu   os   olhos pela sala.

— Este é o momento para uma decisão. Dentro de alguns meses, pode ser tarde demais. A partir do momento em que o consórcio assumir o controle, pode tornar-se tarde demais. A esta altura, vocês podem estar inteiramente sob o poder deles. A esta altura, talvez não possamos fazer nada para ajudá-los. A fim de enfrentar a emergência, a comissão executiva da U.T.M. criou um novo distrito para esta área. Será conhecido como Distrito 100. Estamos investindo 5.000 dólares para as despesas imediatas de organização. A primeira coisa que vocês precisam fazer é sair daqui e recrutar todos os seus irmãos para o sindicato. Se puderem fazer isso antes de o controle das minas ser transferido oficialmente, estarão numa boa posição para negociar. Já temos homens trabalhando em todo o distrito. Este é o momento para vocês demonstrarem toda a solidariedade com seus irmãos. Cada um de vocês deve tornar-se um organizador. Nosso sucesso, o sucesso de vocês, depende dos esforços individuais.

Não houve aclamações agora. Os homens ficaram calados, entreolhando-se em dúvida. Uma coisa era aderir ao sindicato, outra, muito diferente, era colocar-se na linha de frente de uma batalha que, se fosse perdida, poderia custar-lhes o emprego e o futuro.

— Tem mesmo certeza de que as minas vão mudar de donos? — perguntou um dos homens.

— Tanta certeza quanto a de que estou aqui — disse Lewis. — E temos informações que nos levam a acreditar que a partir do momento em que isso aconteça, os patrões desfecharão a maior campanha da história para sufocar o sindicato e escravizar ainda mais os trabalhadores.

— Nunca tivemos problemas nesta mina — comentou outro homem.

— Houve trinta e quatro homens mortos e mais de uma centena permanentemente inválidos nesta mina nos últimos dois anos, e você diz que não existem problemas aqui? O pior índice de segurança de todo o país e a escala de pagamento mais baixa de toda a indústria, e você diz que não existem problemas aqui? Se não consideram isso como problemas, então devo dizer que devem saber o que são problemas mais do que as outras pessoas. Existe algum homem entre vocês que seja dono da   sua própria casa? Existe algum homem entre vocês que não esteja devendo os salários do próximo mês aos armazéns por comida e outras necessidades? Existe algum homem entre vocês que possa continuar a morar nas casas pelas quais a companhia cobra um aluguel exorbitante, se por acaso ficar ferido e não puder continuar a trabalhar? E agora, para tornar as coisas ainda piores, quando as minas mudarem de donos nem mesmo continuarão a receber em dólares dos Estados Unidos. Eles vão fazer o tempo voltar atrás e pagar-lhes em vales da companhia. Vão descobrir como os patrões conseguirão empurrá-los ainda mais para o fundo do buraco. E ficarão tão no fundo que nunca mais poderão escapar.   A única saída será para o cemitério.

Lewis esperou por um momento, antes de continuar a falar: — A única esperança de vocês é a rapidez. Devem organizar-se rapidamente, antes que os patrões percebam o que estão fazendo.   Na   semana que   vem   pode   ser tarde demais. Amanhã mesmo, cada um de vocês deve recrutar os seus irmãos trabalhadores, antes que a coisa se espalhe. Porque, quando isso acontecer, vai haver o diabo. A única chance de vocês é todos estarem unidos no sindicato. — Lewis abriu a pasta que trouxera e tirou   um documento. — Tenho aqui os artigos de incorporação e a constituição aprovada pelo conselho geral da U.T.M., organizando vocês nesta mina como o Local 77 do Distrito 100. Andy Androjewicz será o presidente provisório, até que haja um número suficiente de associados para elegerem sua própria diretoria e representantes. — Pegou um maço de papéis. — Aqui estão as propostas de associação. Espero que cada homem nesta sala assine sua proposta antes de ir embora e que depois obtenha as assinaturas de todos os outros mineiros com os quais entrar em contato. O conselho executivo abriu mão das taxas de matrícula e mensalidades pelos primeiros três meses, o que lhes dá a oportunidade de se beneficiarem antes de pagarem qualquer coisa. E isso também tornará mais fácil recrutar outros associados.   Mostrem   que nos querem aqui, recrutando cem associados, e enviaremos um organizador da sede para ajudá-los. O resto compete a vocês. Apóiem os seus irmãos da U.T.M., e seus irmãos irão apoiá-los.

Entregou os formulários de associação a Andy, que começou a distribuí-los. Circulou pela sala rapidamente, acompanhado pelo filho de 13 anos, que trabalhava na separação do carvão e que estava ali distribuindo lápis. Quase sem fazerem qualquer comentário, os homens se puseram a preencher e assinar os formulários.

Daniel pegou o formulário que Andy lhe entregou e olhou-o. Não disse nada. Andy foi até a frente da sala e postou-se ao lado do Sr. Lewis. Levantou uma das mãos e disse:

— Se algum de vocês tem qualquer pergunta a fazer, o Sr. Lewis vai responder agora.

Daniel foi o único que levantou a mão. O Sr. Lewis acenou-lhe com a cabeça.

— O que é, Daniel?

— Sou amanuense no escritório do superintendente da mina. Não trabalho lá embaixo. Não sei se é apropriado eu assinar este formulário.

Lewis olhou para Andy, que assentiu. O homem do sindicato virou-se novamente para Daniel e perguntou:

— Trabalha para a mina?

— Sim, senhor.

— Então não vejo onde está o problema. Podem-lhe acontecer as mesmas coisas que aos outros. Precisam da mesma proteção de trabalho que os outros.

— Talvez isso seja verdade, Sr. Lewis. Mas estou a par de muitas coisas que envolvem os mineiros. Não vejo como posso fazer um trabalho honesto para o Sr. Smathers e ao mesmo tempo ser um associado do sindicato. Afinal, meu trabalho para o Sr. Smathers pode ser contrário ao que o sindicato esteja querendo.

Lewis ficou em silêncio por um momento.

— Está apresentando um problema de ética muito delicado, Daniel. Receio que terá de decidir com base em sua própria consciência o que é certo ou errado.

Daniel fitou-o fixamente.

— Concordo com o que disse a respeito do trabalho nas minas. Mas a única maneira pela qual posso juntar-me ao sindicato é deixar o trabalho no escritório. Não posso servir a dois amos ao mesmo tempo e ser honesto com ambos. E não vou ser um espião. Meu pai sempre disse que a honra de um homem é tudo o que ele tem entre si mesmo e seus semelhantes.

— O que está querendo dizer, no final das contas, é que não vai assinar o formulário?

— Exatamente, senhor.   Acho que,   honestamente, não posso assinar.

Um murmúrio baixo e furioso correu pela sala. Alguns homens avançaram ameaçadoramente para Daniel. Mas Lewis deteve-os levantando a mão.

— Daniel! — disse ele, asperamente. — Respeito sua honestidade. Se deixar esta reunião, tenho sua palavra de que nada do que foi dito aqui chegará aos ouvidos da direção da companhia?

Daniel sustentou o olhar carrancudo dele.

— Já disse que não sou um espião.   Se eles souberem de alguma coisa, não terá sido por meu intermédio.

Lewis correu os olhos pela sala.

— Estou disposto a aceitar a palavra de Daniel. Conheço o cunhado dele, Jimmy Simpson, lá de Fitchville, que está agora representando os trabalhadores têxteis na região e nos ajudando a organizar os mineiros. Jimmy garante   que Daniel é o rapaz mais   direito   que já   conheceu. Digo   que devemos permitir que Daniel se retire desta   reunião   e   esperarmos que o   futuro   nos proporcione a oportunidade de trabalharmos juntos. Alguém concorda com isso?

Houve um momento de silêncio, rompido por Andy:

— Apoio o que diz, Sr. Lewis. Foi por minha culpa que Daniel veio até aqui. Quando conversei com ele esta tarde, Daniel me disse exatamente o que acabou de falar. Eu deveria ter aceitado a posição dele. Mas confio em Daniel. Trabalhamos juntos, no fundo da mina, sei que o coração dele está conosco e que nada fará para nos prejudicar. Digo também que devemos deixá-lo ir embora.

Os homens se entreolharam por um momento, depois murmuraram um assentimento relutante. Daniel pôs o formulário em branco em cima de uma mesa e encaminhou-se lentamente para a porta. Podia sentir os olhos de todos fixados em suas costas. Fechou a porta e ouviu o ruído de vozes recomeçar do outro lado. Saiu para a rua. Estremeceu por um instante, pois a noite se tornara bastante fria. Olhou para o céu. A lua estava no alto. Eram nove horas.

Ele hesitou por um momento, depois pôs-se a caminhar rapidamente, tendo tomado uma decisão. Se as luzes ainda estivessem acesas na casa da Srta. Andrews, iria explicar-lhe por que não aparecera naquela noite.

 

Em silêncio, Molly Ann observou-o abrir o revólver e verificar o cilindro cuidadosamente, certificando-se de que cada câmara estava carregada Satisfeito, Jimmy fechou o cilindro e pos o revolver na cintura. Virou-se para Molly Ann, viu a expressão no rosto dela e disse:

— Não se preocupe.

— Não posso evitar. Armas são feitas para matar. E só de pensar em você andando armado todos os dias me provoca calafrios.

— Já atiraram duas vezes em mim. O que acha que devo fazer? Ficar parado e deixar que me matem?

Molly Ann não respondeu.

— Já mataram mais de dez homens. E eram homens que não tinham com que responder aos tiros.

— O que vai acontecer hoje?

— Sabe tanto quanto eu. Eles vão tentar abrir as tecelagens. Fitch contratou um exército de homens da Pinkerton, a agencia de segurança para levar os fura-greves as tecelagens. Se os deixarmos chegarem lá, está tudo acabado. Nunca mais sairão. Fitch vai mandar comida, suprimentos, tudo o que eles precisarem, até começarmos a passar fome, estarmos derrotados.

— Os mineiros não vêm ajudar?

— Não — Jimmy sacudiu a cabeça. — Os mineiros caíram direitinho na ratoeira. Aceitaram o aumento de dez por cento que os patrões ofereceram, sem pensar que a mudança do pagamento de dinheiro para vales vai tomar tudo de volta nos juros. Eu ficaria surpreso se ainda houver mais que dez associados da U.T.M. em todo o vale.

A voz de Molly Ann estava impregnada de amargura, quando ela comentou:

— Eu disse que você não deveria confiar naquele tal de Lewis.

— A culpa não foi dele. Temos de lembrar aquele velho ditado: “Pode-se levar um cavalo até a água, mas não se pode obrigá-lo a beber.”

— Daniel foi mais esperto do que todos vocês. Ele ficou fora disso.

Jimmy não disse nada. Mas Molly Ann sabia que ele ficara profundamente magoado ao saber que Daniel não seguira seu exemplo.

— Oh, Jimmy, estou tão apavorada! — Ela correu para os braços do marido e encostou a cabeça no peito dele. — Éramos tão felizes e você estava indo tão bem com o seu negócio de uísque! Por que tinha de se meter em tudo isso?

Jimmy apertou-a firmemente. A voz estava sombria quando falou:

— Chega um momento em que um homem tem de parar de falar e começar a agir. Esses homens, os fazendeiros, os trabalhadores, são todos meus amigos. Cresci junto com eles. O que eu podia fazer? Ficar de braços cruzados e deixar que San Fitch transformasse a todos em escravos, para seu próprio benefício?

Molly Ann começou a chorar. Jimmy afagou-lhe os cabelos suavemente.

— Pare de chorar. Não é bom para uma mulher grávida ficar tão desesperada.

— Vai tomar cuidado? — Ela levantou a cabeça para fitá-lo nos olhos. — Eu não poderia agüentar, se alguma coisa lhe acontecesse.

— Pode deixar que tomarei todo cuidado. Também não quero que me aconteça coisa alguma.

Ainda não amanhecera quando Jimmy chegou à loja na Rua Front que servia como sede dos sindicato. Vários homens já estavam ali, esperando-o na rua. Jimmy tirou as chaves do bolso e abriu a porta da frente. Seguiram-no para o interior da loja. Estava úmido e escuro. Acendram rapidamente alguns lampiões a óleo. A companhia elétrica se recusara a fornecer-lhes eletricidade. A luz dourada dos lampiões incidiu sobre os cartazes e faixas de piquete nas paredes.

Jimmy foi para trás da mesa escalavrada que lhe servia de escrivaninha e sentou-se.

— Muito bem, Roscoe, vamos começar por você — disse ele. — O que está acontecendo na nova fábrica?

Roscoe Craig mudou o naco de tabaco de um lado para outro na boca, antes de falar:

— Eles têm uns cinqüenta Pinkertons por lá e talvez uns cem fura-greves.

Jimmy acenou com a cabeça e virou-se para outro homem.

— E como está a situação na fábrica da cidade?

O homem limpou a garganta.

— Eles têm quase um exército por lá. Mais de cem Pinkertons e talvez uns trezentos fura-greves. Chegaram durante a noite inteira, de caminhão.

Jimmy ficou em silêncio por um momento. Estavam desesperadamente em inferioridade numérica. Podia contar talvez com 70 homens, no máximo. Havia também várias centenas de mulheres e garotas que podiam ser usadas em piquetes. Mas num dia como aquele, Jimmy sentia-se relutante em expô-las ao perigo que parecia inevitável. Elas acabariam sendo machucadas. Os Pinkertons estavam armados e tinham ordens expressas de não deixar que coisa alguma os impedisse de chegar à tecelagem. Ele respirou fundo. Receava o amanhecer.

— A que horas os nossos homens vão chegar?

— Devem estar chegando — respondeu Roscoe. — Estarão todos aqui por volta das seis horas.

— E estarão prontos?

— Virão com espingardas e rifles — disse Roscoe, com um aceno de cabeça. — Os Pinkertons não vão fazer um simples passeio.

— Vamos ter de tomar uma decisão. Não podemos vencê-los nos dois lugares. Precisamos decidir qual dos dois é mais importante para impedir a entrada deles.

Os homens ficaram calados.

— Voto para deixarmos que eles ocupem a fábrica nova. Não tem mais de dez por cento das máquinas em funcionamento. Ainda não podem produzir nada.

— Não me agrada isso — disse Roscoe. — Duas pessoas da minha família morreram para mantê-los fora de nossa terra. E só de pensar neles entrando lá com a maior tranqüilidade...

— Isso não vai acontecer, Roscoe. Vamos postar dez atiradores de primeira na floresta e nas colinas ao redor do caminho. Eles vão precisar de muita cautela para chegar até lá. — Jimmy fez uma pausa.

— Mas a coisa é diferente na tecelagem da cidade. Se conseguissem chegar lá, podem produzir a pleno vapor. E neste caso estamos perdidos. Se aquela tecelagem começar a funcionar, não poderemos fazer mais nada.

Jimmy achava-se parado na esquina, olhando para a fábrica, no outro lado da rua. Os piquetes, formados em sua maioria por mulheres, já estavam andando diante dos portões, em grupos de quatro. Do outro lado do portão e da cerca de arame que corria ao longo da calçada, diante da tecelagem, os guardas olhavam em silêncio para os cartazes, ouvindo os piquetes entoarem:

— Lincoln libertou os escravos. Por que ainda somos escravos?

E todos gritaram em resposta à própria pergunta:

— Ninguém disse nada à tecelagem!

E depois soou outro grito:

— Liberdade!

Um homem desceu a rua correndo, na direção de Jimmy, no momento em que soava o apito das sete horas. No mesmo instante, a chuva começou a cair. O homem gritou:

— Três caminhões de fura-greves! Estão vindo pela Rua High!

Jimmy olhou para o outro lado da rua. Os piquetes continuavam a marchar. Os Pinkertons, no outro lado da cerca, estavam-se encaminhando para o portão. Houve o ruído áspero de uma corrente de ferro sendo puxada. O portão começou a ser aberto.

Jimmy sentiu uma pontada de dor no estômago, tão real quanto qualquer dor que já sentira. Virou-se para o homem a seu lado.

E, subitamente, tudo ficou claro em sua mente. Era a ele que estavam observando. Era ele que estavam esperando. Era a ele que procuravam em busca de liderança no meio daquela loucura. Jimmy sentiu-se velho, terrivelmente velho. Molly Ann tinha razão. O que ele estava fazendo ali? Não era nenhum herói.

Mas o sentimento logo passou. Jimmy levantou a mão e se encaminhou para os piquetes. Em silêncio, os homens o seguiram. Ele parou diante dos piquetes e disse, em voz firme:

— Muito bem, senhoras, está na hora de irem para casa.

Elas continuaram paradas, fitando-o, sem se mexerem. Jimmy tornou a falar, a voz agora mais insistente:

— Já me ouviram, senhoras! Está na hora de irem para casa!

Houve um momento de silêncio. Depois, uma das mulheres gritou:

— Vamos ficar aqui mesmo, Jimmy! A luta é nossa também!

— Mas pode haver tiroteio!

— Pois terão de atirar em nós também! — gritou outra mulher. — Não vamos voltar para casa!

As mulheres começaram a se dar os braços e, um momento depois, formavam uma corrente viva diante do portão aberto. E se puseram a entoar novamente:

— Liberdade! Pão e manteiga, correntes não!

Os caminhões viraram a esquina e começaram a descer a rua em direção da fábrica. Já estavam na metade do quarteirão e o caminhão da frente não apresentava qualquer indício de que ia reduzir a velocidade. Jimmy virou-se na direção dos caminhões, diante da linha de piquete. Subitamente, houve silêncio às suas costas. Os caminhões continuavam a avançar.

— Saiam da frente! — gritou um guarda de detrás da cerca. — Vão ser todos mortos!

Ninguém se mexeu.

O caminhão da frente freou bruscamente e foi parar a poucos metros dos piquetes. Homens começaram a saltar das traseiras dos caminhões. Eram Pinkertons, grandalhões, repulsivos, ameaçadores... Formaram uma linha diante dos piquetes, cada um empunhando um porrete ou um cano de ferro, os chapéus-coco no alto da cabeça. A um sinal, começaram a avançar.

Jimmy levantou a mão.

— Estou avisando, homens. Há mulheres aqui. Não serei responsável pelas vidas de vocês, se uma delas ficar machucada.

Os Pinkertons pararam, indecisos.

— Não vão salvar-se escondendo-se atrás das saias das mulheres — gritou um deles. — Saiam daí e lutem como homens!

— Estamos aqui para ficar, quer vocês gostem ou não! — berrou uma mulher em resposta.

As outras mulheres se puseram a gritar:

— Fura-greves! Fura-greves! Fura-greves!

Um cano de ferro voou pelo ar. Jimmy ouviu uma mulher gritar às suas costas. Olhou rapidamente para trás e viu uma mulher caindo, o sangue esguichando de sua cabeça. Virou-se para encarar novamente os Pinkertons.

— Vou matar o próximo homem que fizer isso! — gritou ele, sacando a arma do cinto.

Jimmy avistou o homem com o rifle no alto do caminhão quase antes de ouvir a bala passar zunindo a poucos centímetros de sua orelha. Houve outro grito. Desta vez Jimmy não se virou para ver quem fora atingido. Disparou no mesmo instante. O homem caiu do alto do caminhão para a rua. E ficou caído ali, o sangue esguichando do buraco redondo no chapéu-coco, que continuara preso em sua cabeça.

— Vamos pegá-lo! — gritou um dos Pinkertons. Ele sacou a sua arma e disparou contra Jimmy. O tiro de Jimmy acertou-o no peito, no momento em que outro Pinkerton disparava os dois canos de uma espingarda. Jimmy ouviu os gritos e atirou novamente. A espingarda caiu das mãos do homem, enquanto ele segurava a garganta. Avançou para Jimmy, o sangue esguichando entre os dedos, um grunhido horrível saindo de sua boca. E depois tombou para a frente, rolou e ficou com a cara para baixo, o sangue saindo da jugular cortada como uma fonte vermelha a pulsar.

Os grevistas e os Pinkertons se encararam, em silêncio. Jimmy fez um gesto com as mãos. Os homens saíram de trás dele e se postaram nos dois lados, formando uma linha comprida diante das mulheres. Espingardas e rifles apareceram subitamente em suas mãos. Aqueles homens, com expressões sombrias, eram montanheses e fazendeiros. Os Pinkertons haviam alvejado e ferido as suas mulheres.

Vagarosamente, Jimmy abriu o tambor do revólver e substituiu as três balas que havia disparado. Tornou a fechar o tambor, encarou os Pinkertons. Quando falou, a voz era baixa, mas todos puderam ouvi-lo nitidamente através da chuva fina que caía:

— A Pinkerton paga a vocês uma gratificação de morte?

Sem responder, os Pinkertons começaram a se afastar, lentamente. Alguns minutos depois, os caminhões voltavam pela mesmo caminho por que tinham vindo. Exceto pelos três homens mortos caídos nos pedras do calçamento, a rua estava vazia quando os grevistas ouviram o rangido do grande portão de ferro sendo fechado. Um grito de alegria se elevou dos grevistas:

— Vencemos! Vencemos!

A expressão de Jimmy era sombria. Olhou para os corpos caídos na rua, e depois para os grevistas triunfantes.

— Não — disse ele, um estranho presságio aflorando em sua consciência. — Nós perdemos.

E ele estava certo. Dois dias depois, a Guarda Nacional marchou para Fitchville e tudo o que eles puderam fazer foi assistir aos fura-greves entrarem na fábrica sob a proteção do governo.

 

O pequeno escritório de Sam Fitch nos fundos do armazém estava apinhado, embora estivessem ali apenas três homens, além dele próprio. Lá estavam o Sr. Cahill, o representante dos donos da tecelagem, seu associado de Filadélfia e Jason Carter, o xerife do condado. Cahill estava de pé diante da mesa, olhando para Fitch, que transbordava da cadeira pequena em que se sentava. E a voz de Cahill estava furiosa:

— Já se passou um mês desde que abrimos as fábricas. E olhe o que aconteceu! A nova fábrica Craig está fechada, as máquinas enferrujando. A fábrica da cidade está funcionando com apenas dez por cento de sua capacidade. Tudo isso porque os trabalhadores não voltaram, como você disse que aconteceria, se abríssemos as fábricas. Além disso, os empregados que trouxemos estão indo embora aos bandos. Só restam provavelmente uns noventa, quando precisamos pelo menos de quatrocentos.

Sam Fitch sacudiu a cabeça.

— Sei disso — murmurou ele, procurando imprimir à voz rouca o máximo de suavidade.

— Sabe, hem? — Cahill estava sarcástico. — Sei que você sabe. O que queremos agora é saber quais as providências que vai tomar.

— O xerife e eu estamos fazendo o melhor possível — garantiu Fitch. — Mas não conhece as pessoas daqui. Não se trata mais de uma simples greve. Virou uma guerra. Eles estão contra a companhia. Eu lhe disse para não trazer os Pinkertons, deixando que o xerife e eu cuidássemos de tudo. Poderia demorar mais tempo, mas faríamos com que todos voltassem ao trabalho. Agora, eles estão recebendo alguma ajuda do sindicato têxtil lá do Norte e passaram a encarar Jimmy Simpson como se fosse um deus ou algo assim.

— Mas ele é um assassino! — A voz de Cahill estava chocada — Matou três homens!

— Isto é, Pinkertons — corrigiu-o Fitch. — E somente depois que eles atiraram nas mulheres. Nós, montanheses, não gostamos que atirem em nossas mulheres.

— Agora está defendendo o assassino? — acusou Cahill. — De que lado está, afinal?

— Estou do seu lado, Sr. Cahill — disse Fitch, suavemente. — Não pense que não estou sendo prejudicado por tudo isso. Os negócios no armazém estão praticamente parados.

— Pois então aja de acordo! — disse Cahill, rispidamente. — Faça alguma coisa para tirar esse Simpson do nosso caminho e as pessoas voltarem ao trabalho ou sairemos daqui. A companhia está perdendo quarenta mil dólares por mês e deram-me exatamente um mês para fazer as fábricas voltarem a operar. Se isso não acontecer, vamos encerrar as atividades aqui e transferir as fábricas para outro lugar.

Fitch ficou calado por um momento. Olhou para o homem de Filadélfia e depois disse:

— Jimmy vai a julgamento pelas mortes dos Pinkertons dentro de duas semanas. Talvez isso resolva o problema dele. O Juiz Harlan está do nosso lado.

Cahill riu desdenhosamente.

— Mas o júri será inteiramente formado por moradores locais. Simpson sairá do tribunal não apenas como um homem livre, mas também mais herói do que nunca. O que quer que pretenda fazer, é melhor que seja antes de ele entrar no tribunal. Porque, no dia em que ele sair de lá, as fábricas serão definitivamente fechadas e começaremos a providenciar a mudança.

Assim que Cahill e seu amigo se retiraram, Fitch acendeu um charuto. Olhou para o xerife, que não dissera qualquer palavra durante toda a reunião.

— O que acha, Jase?

— Esse Sr. Cahill é um homem duro.

— O pessoal da cidade grande nunca consegue compreender a gente.

— Tem razão.

— E como está Jimmy? Seus homens estão de olho nele?

— Não conseguimos nem chegar perto dele. Jimmy não vai a lugar nenhum sem estar acompanhado por seis ou sete homens armados. E aquele advogado judeu de Nova York não está tornando as coisas mais fáceis para a gente. Cada vez que prendemos um dos homens de Jimmy, ele aparece no tribunal com um pedido de habeas-corpus, quase antes mesmo de fecharmos a porta da cela. E sempre consegue livrar o homem.

— Mas que merda! — exclamou Fitch. — Eu sempre soube que Jimmy Simpson ia acabar mal!

O sol da tarde penetrava pelas janelas empoeiradas da loja, projetando manchas de luz na escuridão. A sineta por cima da porta retinou asperamente, quando alguém a abriu. Jimmy levantou a cabeça, assim como todos os outros homens que estavam na loja, as mãos se encaminhando inconscientemente para as armas. Quando viram quem era, relaxaram e recomeçaram a conversar.

Morris Bemstein avançou pela loja. Ele não andava, mas se arrastava pesadamente, os imensos sapatos da cidade grande ressoando no chão, sustentando seus quase 100 quilos. Ninguém pensaria, ao ver seu nariz quebrado, as cicatrizes sob os olhos e as orelhas de couve-flor, que era um advogado. Mas ele adquirira aquele rosto nos tempos da universidade, lutando como semiprofissional para poder formar-se. Foi diretamente para a mesa atrás da qual Jimmy estava sentado.

— E então? — indagou Jimmy.

— Disseram que não.

Jimmy procurou disfarçar seu desapontamento.

— Explicou que era só mais um mês?

— Fiz tudo o que era possível, menos assoviar Dixie. E mesmo assim eles recusaram.

— E deram alguma explicação para isso?

Morris fitou-o em silêncio por um instante, antes de murmurar:

— Preciso falar com você em particular.

Jimmy demorou um pouco a responder, depois levantou-se e disse:

— Vamos até a viela nos fundos. — Encaminhou-se para a porta, mas um dos homens bloqueou-lhe o caminho.

— Espere um instante. Vamos primeiro verificar como está a situação lá fora.

Jimmy ficou parado, enquanto dois homens saíam pela porta dos fundos.

— Estão sendo cautelosos demais — comentou Jimmy.

— Não estamos, não — disse o homem que lhe bloqueava o caminho. — Já tentaram liquidá-lo quatro vezes. Não vou permitir que eles tenham sorte na quinta tentativa.

Os dois homens voltaram à loja e um deles informou:

— Está tudo bem.

O homem diante de Jimmy afastou-se. Jimmy deu um passo para a frente e depois parou.

— Obrigado, Roscoe.

Roscoe Craig sorriu, entreabrindo os lábios finos.

— Mataram o meu pai e o meu filho mais velho assim. Não vão pegar mais nenhum de nós.

Bernstein seguiu Jimmy para a viela. Os raios de sol estavam brilhantes demais, depois da escuridão da loja. Ficaram parados em silêncio por um instante, depois Jimmy virou-se para o advogado e disse:

— Muito bem, pode falar.

Bernstein fitou-o nos olhos.

— A greve está acabada. — Jimmy não disse nada. — Estão-me tirando daqui. E não vão mais mandar dinheiro. A comissão executiva diz que não se pode gastar dinheiro em causas perdidas. Preferem aplicá-lo onde possa produzir resultados.

— Por que eles dizem isso?

— Souberam ontem em Filadélfia que a companhia está disposta a transferir as fábricas mais para o sul. Deram as ordens a Cahill. As fábricas devem ser abertas até o mês que vem ou serão transferidas. — Jimmy ficou calado e Morris acrescentou: — Sinto muito, Jimmy.

A voz de Jimmy tinha um tom de amargura, quando ele disse:

— Então é assim que as coisas são. Nós nos arrebentamos durante um ano inteiro. Somos mortos, expulsos de nossas casas, passamos fome e tudo o mais, para que alguns homens que nunca estiveram aqui, sentados confortavelmente em torno de uma mesa na cidade grande, decidam que está tudo acabado para nós.

— É a realidade da vida, Jimmy. Não podemos vencer todas.

— Não me importo com todas as outras! — disse Jimmy, veemente. — Só quero saber desta! São os meus amigos, a minha cidade, a minha gente! O que vou dizer a eles agora?

O advogado divisou a angústia nos olhos dele. E disse, suavemente:

— Diga que voltem ao trabalho. Diga que haverá outra oportunidade. Perder uma batalha não significa que a guerra está perdida. Algum dia o sindicato estará aqui.

Jimmy fitou-o nos olhos.

— O sindicato não representa porra nenhuma para essa gente. Começamos a greve sem o sindicato e vamos continuá-la sem o sindicato.

Ele começou a voltar para o prédio, mas o advogado chamou-o:

— Espere um instante, Jimmy. Consegui permissão para continuar aqui até o seu julgamento.

— Obrigado, Morris — disse ele, cansado. Hesitou por um instante, depois, acrescentou: — Sei que fez tudo o que podia. E lhe agradeço por isso.

— O que vai fazer agora, Jimmy?

— Não tenho muita opção, não é mesmo? Tenho de contar-lhes o que acabou de me dizer. A greve é deles. E ainda lhes compete decidir o que querem fazer com ela.

— E você, Jimmy? O que pretende fazer depois que tudo estiver acabado?

— Estava indo muito bem com o meu negócio de uísque, antes disso tudo começar — disse Jimmy, rindo. — Sempre posso voltar.

— Precisamos de homens como você no sindicato. Pode ir comigo para Nova York. Eles disseram que arrumariam um bom lugar para você.

— Não é para mim. — Jimmy sacudiu a cabeça. — Sou um homem de cidade pequena. Pertenço a este lugar, com a minha gente. Mas, de qualquer forma, agradeço pela consideração. — Voltou para o interior do prédio. O advogado seguiu-o. Um momento depois, Ros­coe Craig saiu para a viela. Olhou para os telhados no outro lado e acenou com a mão.

Os guardas que postara ali, para proteger Jimmy, acenaram em resposta, depois penduraram os rifles nos ombros e começaram a descer para a rua.

Na reunião geral daquela noite, houve uma votação unânime pela continuação da greve. Mesmo que isso significasse a transferência das fábricas e a perspectiva de perderem os empregos para sempre.

O dia do julgamento amanheceu ensolarado. A brisa de princípio de maio espalhava a fragrância da primavera, entrando suavemente pela janela da cozinha, onde eles estavam tomando o café da manhã.

Morris Bernstein tirou o relógio do bolso e verificou a hora.

— Está na hora de partirmos. O tribunal vai entrar em sessão às 10 horas.

— Estou pronto — disse Jimmy, levantando-se. Roscoe Craig e Morris também se levantaram.

— Vou buscar seu paletó e a gravata — disse Molly Ann.

Jimmy virou-se para Morris, assim que ela se retirou, e perguntou:

— Quanto tempo acha que o julgamento deve demorar?

— Alguns dias, Um ou dois dias para escolher o júri, depois mais dois para o julgamento propriamente dito. E você será um homem livre.

— É o que espero — murmurou Molly Ann, voltando à cozinha.

— Não pode acontecer qualquer outra coisa — declarou Morris, confiante. — Temos uma centena de testemunhas para provar que foi legítima defesa.

— Eles também terão testemunhas — disse Molly Ann.

— Apenas Pinkertons — comentou Roscoe, desdenhosamente. — Ninguém por aqui vai acreditar neles.

Jimmy acabou de dar o nó na gravata e vestiu o paletó. Foi até o espelho no corredor e contemplou-se, comentando:

— Não estou nada mal nestas roupas compradas em loja.

— Está bonito de verdade, querido — disse Molly Ann.

Jimmy voltou à cozinha. Abriu uma gaveta e tirou o revólver. Já ia pô-lo no cinto, quando Morris disse:

— Nada disso. Guarde-o de volta.

— Eu me sinto mais seguro com a arma.

— Não pode entrar armado no tribunal. Seria falta de respeito. Além do mais, não vão tentar nada na frente de todo mundo. Não se esqueça de que a cidade inteira estará presente.

Jimmy olhou para Roscoe, em dúvida.

— O que você acha?

— Talvez ele esteja certo — respondeu Roscoe, também indeciso.

— Claro que estou certo — assegurou Morris. — Sabia que o juiz pode mandar prendê-lo por desrespeito, se entrar armado no tribunal?

— Vou ter que deixar a arma aqui também? — perguntou Roscoe.

— O que você faz ou deixa de fazer é da sua conta — respondeu Morris. — Tenho de me preocupar com o meu cliente e mais nada.

— Pois então deixe a arma, Jimmy — disse Roscoe. — Os rapazes e eu estaremos presentes. Não vai acontecer nada.

Jimmy tornou a guardar a arma na gaveta. Molly Ann tirou o avental, dobrou-o meticulosamente e pôs no encosto de uma das cadeiras da cozinha. E disse:

— Estou pronta.

Jimmy olhou para ela. Molly Ann já estava no sexto mês e a gravidez era mais do que visível.

— Não acha que seria melhor se você ficasse em casa, meu bem? Talvez emoção demais não seja uma boa coisa para o bebê.

— Vou com você — disse ela, firmemente, — O lugar de uma esposa é ao lado do marido.

— Pois então vamos logo embora — disse Morris. — Já está ficando tarde.

A praça do tribunal ficava bem no centro da cidade. Quando Jimmy e Molly Ann lá chegaram, já estava repleta de pessoas, vestindo os seus melhores trajes dominicais. Havia quase um clima de piquenique. Crianças corriam por toda parte, gritando e brincando, os adultos conversavam animadamente. Agruparam-se em torno de Jimmy e de Molly Ann, enquanto os dois seguiam para o tribunal.

Sam Fitch e o xerife estavam parados na entrada do armazém, observando a multidão no outro lado da rua. O xerife meneou a cabeça, murmurando:

— Não sei, não... A coisa não me agrada.

— Também não me agrada — disse Fitch, olhando para o outro. — Mas tem alguma idéia melhor?

O xerife respirou fundo.

— Há gente demais. Pode haver um motim.

— Não temos alternativa. Ouviu pessoalmente o que o homem disse. Ou será que prefere ser o xerife de uma cidade fantasma?

— De qualquer maneira, a coisa não me agrada. — O xerife tornou a olhar para a praça. — Lá está ele, cercado por Roscoe Craig e alguns dos rapazes, com toda a multidão em volta. Não vai ser fácil conseguir acertá-lo.

Fitch acompanhou o olhar do xerife.

— Mais cedo ou mais tarde, ele vai ficar parado sozinho em algum lugar. Mesmo que seja só por um momento. Só espero que você e seus homens estejam prontos quando isso acontecer.

— Se acontecer — disse o xerife, sombriamente. — Meus homens estarão prontos.

Com os cumprimentos, apertos de mão e votos de boa sorte, eles levaram quase 20 minutos para atravessar a praça, até os degraus do prédio do tribunal. As portas já estavam abertas, quando chegaram ao alto dos degraus. O ímpeto da multidão para as portas foi contido pelos quatro auxiliares do xerife, que revistaram cada homem que entrava, à procura de armas.

As caixas grandes de madeira nos dois lados da entrada começaram a se encher lentamente de armas. Os auxiliares do xerife eram polidos, mas firmes, explicando:

— É proibido entrar com armas no tribunal. Podem buscá-las no gabinete do xerife depois do julgamento.

Alguns homens resmungaram e protestaram. Mas se queriam entrar no tribunal, tinham de renunciar às armas. Roscoe parou na base dos degraus, furioso, murmurando:

— Não estou gostando nada disso...

Morris virou-se para ele e disse:

— Não vai acontecer nada, depois que estivermos lá dentro.

— Não estou preocupado com o que pode acontecer lá dentro, mas sim com o momento em que tivermos de sair.

— Ficaremos esperando lá dentro até que vocês peguem suas armas e venham-nos buscar — sugeriu Jimmy.

— Assim é melhor — declarou Roscoe.

Jimmy olhou para a multidão que avançava para o tribunal.

— É melhor você e os rapazes entrarem logo, Roscoe, ou não haverá lugar para todos.

Roscoe correu os olhos pela praça.

— Suba os degraus com a gente, Jimmy. Vou sentir-me melhor depois que sairmos aqui na rua.

Roscoe e seus homens já haviam passado, quando os auxiliares do xerife detiveram Jimmy.

— Não vai entrar por aqui, Jimmy — disse um deles. — Deve passar pela entrada lateral.

— Por quê? — indagou Jimmy, desconfiado.

— Deve passar pela sala do escrivão. Algo a ver com a devolução da fiança. Não vai querer perder os quinhentos dólares, não é mesmo?

Roscoe ouviu e começou a voltar, dizendo:

— Vou com vocês.

— Não se preocupe — disse Jimmy. — Eu o verei lá dentro do tribunal.

Molly Ann já havia entrado, um pouco à frente dele. Ela estava agora voltando.

— Pegue Molly Ann e me acompanhe — disse Jimmy a Morris, começando a afastar-se.

Quando os dois saíram pela entrada principal, Jimmy já estava cerca de 20 passos à frente, quase na quina da fachada.

E foi nesse momento que o atacaram, contornando a quina. Eram três homens, dois Pinkertons e Clinton Richfield, um dos assistentes do xerife, que não estava de uniforme.

Jimmy não chegou a vê-los, pois surgiram já com as armas disparando. Sete balas acertaram em seu corpo, arremessando-o, já morto, contra uma coluna, da qual ele caiu, de cara no chão, metade na varanda, metade nos degraus.

Os três homens atiraram novamente. O corpo de Jimmy sacudiu-se ao impacto das balas e escorregou mais ainda pelos degraus. Os homens ficaram parados, esperando que Jimmy se mexesse.

— Jimmy! — gritou Molly Ann.

Ela desvencilhou-se das mãos de Morris e correu para o marido, jogando-se em cima dele. Puxou-o para si, o sangue manchando o vestido. Olhou para os homens, com uma expressão de terror, as lágrimas escorrendo pelas faces. E suplicou:

— Por favor, não atirem mais no meu Jimmy!

O corpo de Jimmy se sacudiu num último espasmo convulsivo. Automaticamente, os homens atiraram outra vez. Arrancaram Molly Ann de junto do marido, fazendo-a rolar, morta, pelos degraus brancos de concreto, até a rua. O seu próprio sangue misturava-se agora com o sangue do marido, manchando de vermelho o vestido branco que fora lavado e passado algumas horas antes.

— Santo Deus! — exclamou Morris, olhando aturdido para os assassinos. — O que vocês fizeram?

— Ele veio para cima de nós com uma arma — disse Richfield.

— Que arma? — gritou Morris. — Ele não tinha arma nenhuma! Obriguei-o a deixar o revólver em casa!

Richfield levantou a pistola e apontou-a para Morris.

— Está-me chamando de mentiroso, judeu?

— Estou, sim, seu filho da mãe! — explodiu Morris, a raiva e a repulsa sobrepondo-se ao medo que lhe contraía o estômago. — Você é um mentiroso e um assassino!

A bala de calibre 38 da arma do assistente do xerife acertou Morris no ombro, jogando-o para trás, sobre o chão de pedras. Através dos olhos enevoados pela dor, Morris viu Richfield levantar a arma e apontar cuidadosamente. Estava tudo acabado. Agora, não tinha mais nada a perder. E gritou, em desafio:

— Mentiroso! Assassino!

Mas o tiro nunca foi disparado. Subitamente, o xerife estava ali, seus assistentes se encontravam por toda parte, mantendo a multidão a distância. O xerife se aproximou e olhou para Morris, dizendo com extrema frieza:

— Escute bem, judeu nojento. Há um trem que parte daqui dentro de uma hora. Como somos bons cristãos, vou mandar um médico fazer um curativo em você, antes de despachá-lo nesse trem. E vai levar um aviso para o Norte. Se você ou qualquer outro agitador judeu lá do Norte, qualquer anarquista miserável, tornar a aparecer por aqui, vamos matá-lo antes de fazer perguntas. — O xerife virou-se para um assistente e ordenou: — Você e Mike levem o judeu miserável ao Dr. John e depois o metam no trem.

Morris quase desmaiou com a dor, quando os assistentes do xerife o levantaram bruscamente. Começaram a descer os degraus. A multidão olhava-o com a maior curiosidade, mas abria espaço para que os três passassem. Às suas costas, ouviu o xerife gritar:

— E agora todos vocês, minha boa gente, saiam da praça e voltem para suas casas. Deixem que a lei siga o seu curso certo.

 

Jeb acabara de atrelar a mula ao arado, no campo oeste, quando avistou a carroça saindo da floresta lá embaixo, pela estrada. Dois homens estavam sentados na frente e a mula puxava a carroça penosamente. Ainda estavam longe para que Jeb pudesse reconhecê-los. Ele gritou para a sua mula e começou a abrir o primeiro sulco na terra. Os homens levariam pelo menos mais meia hora para alcançá-lo.

Já passara quase uma hora e Jeb iniciara o terceiro sulco quando os homens chegaram ao lugar em que ele estava. Jeb parou a mula, largou as rédeas e foi até a estrada para cumprimentá-los. Reconheceu um dos homens pelo chapéu preto de aba larga. Era o Pregador Dan, o ministro que fazia o circuito das montanhas em tomo de Fitchville. Ociosamente, Jeb imaginou o que o ministro estaria fazendo lá em cima. Geralmente ele só aparecia para casamentos, batizados e funerais.

Quando a carroça parou à sua frente, Jeb reconheceu o outro homem. Roscoe Craig. Ele tirou o chapéu e limpou o suor da testa com o braço. Era uma manhã de sol e fazia bastante calor. Jeb encaminhou-se para a carroça, sorrindo.

— Pregador Dan... — Ele parou de falar abruptamente, o sorriso se desvanecendo. O ministro, um homem alto, corpulento, desceu da carroça e aproximou-se dele.

— Tenho más notícias para você, Jeb.

Jeb fitou-o, depois olhou para Roscoe. O rosto de Roscoe estava muito pálido, visivelmente exausto. Sem dizer nada, Jeb foi até a traseira da carroça e olhou. Os dois caixões ali estavam, lado a lado, cobertos por uma lona.

Ele ouviu os passos pesados do ministro, vindo postar-se a seu lado. Sem olhar para ele, Jeb indagou:

— Molly Ann e Jimmy? — Não precisava de uma resposta afirmativa. Já sabia. Ainda olhando fixamente para os caixões ordinários de pinho, Jeb perguntou, a voz impassível: — O que aconteceu?

O ministro não respondeu. Foi Roscoe quem se encarregou de informar, virando-se no banco da carroça:

— Eles foram mortos a tiro diante do tribunal, anteontem. — A voz dele era amargurada. — Poderíamos tê-los trazido antes, mas o médico não queria entregar os corpos. Achamos que ia querer enterrá-los em casa, em vez de deixá-los na cidade.

— Tem razão — disse Jeb, acenando com a cabeça. — Agradeço por isso. — Levantou a cabeça, olhando para Roscoe. — Quem os matou?

— Clinton Richfield e dois Pinkertons. Estavam esperando por Jimmy na quina da varanda. Ele não teve qualquer chance. Nem mesmo estava armado. Molly Ann correu para ajudá-lo e atiraram nela também.

As linhas no rosto de Jeb pareciam esculpidas em pedra. Ele subiu na carroça e levantou a lona que cobria os caixões. Levantou a tampa de cada caixão e deu uma olhada. Respirou fundo, sentindo a boca subitamente ressequida. Lentamente, com as mãos trêmulas, fechou os caixões. Olhou novamente para Roscoe.

— O xerife meteu na cadeia os homens que fizeram isso?

— Alegaram que foi legítima defesa — respondeu Roscoe, sa­cudindo a cabeça.

— Mas acabou de dizer que Jimmy não estava armado.

— E não estava mesmo. Eu estava presente quando ele guardou sua arma numa gaveta da cozinha. Eles mentiram.

— Onde eles estão agora? — Os olhos claros de Jeb tinham agora uma frieza terrível.

— Os Pinkertons deixaram a cidade. O único que ficou é Clint. Jeb meneou a cabeça lentamente. Virou-se e olhou para o Pregador Dan, parado na estrada, atrás da carroça.

— Venha comigo até em casa para contar à Sra. Huggins. Depois, enquanto a estiver confortando, Roscoe e eu vamos preparar as covas.

— Não quero que acalente pensamentos diabólicos, Jeb — disse o Pregador Dan, fitando-o nos olhos. — Já houve mortes demais. Lembre-se: “A vingança me pertence”, disse o Senhor. '

Jeb desceu da carroça, sem responder.

— Vou buscar minha mula e subiremos para minha casa. — Encaminhou-se para o campo oeste. Parou à beira e olhou para trás. — Preguem as tampas dos caixões. Não quero que a Sra. Huggins veja Molly Ann toda cheia de tiros assim. — Fez uma pausa, antes de balbuciar: — Ela era uma moça tão bonita...

A última pá de terra caiu sobre as covas. Lentamente, Jeb pegou as duas pequenas cruzes de madeira e fincou-as na terra, uma na cabeceira de cada cova. Depois recuou e olhou.

As palavras gravadas nas cruzes de madeira, com um atiçador de ferro em brasa, eram simples, Uma dizia: MOLLY ANN SIMPSON, nossa filha; a outra, ao lado, dizia simplesmente: JIMMY SIMPSON, seu marido.

Jeb olhou para Marylou, parada ao pé das covas, as crianças a seu redor. O rosto dela estava vincado, marcado pelo sofrimento. Inconscientemente, Marylou estendera os braços, parecendo atrair todas as crianças para si. Ela levantou a cabeça e fitou o marido.

— Vou preparar alguma coisa para o Sr. Craig e o ministro comerem, antes de começarem a viagem de volta.

Jeb acenou com a cabeça, em assentimento.

— Vamos, crianças — disse Marylou.

As crianças começaram a segui-la. Durante todo o serviço fúnebre, haviam ficado muito quietas. Jeb se perguntava se realmente compreendiam o que acontecera. Agora, todas começaram a falar, quase ao mesmo tempo. Somente uma pergunta ficou gravada na mente de Jeb. Fora feita por Alice, a menina mais moça, que estava agora com oito anos:

— Agora que Molly Ann está no céu, isso significa que ela não pode mais nos visitar?

Richard, com a superioridade de seus 11 anos, é que se encarregou de responder:

— Quando as pessoas estão mortas, não voltam mais, a não ser que virem fantasmas.

— E ela vai ser um fantasma bom ou um fantasma mau? — indagou Alice.

Rachel, a filha mais velha agora, respondeu, em tom de irritação:

— Fantasmas não existem. Além do mais, Molly Ann é agora um anjo no céu, ao lado de Deus. E Deus não vai deixá-la voltar para cá.

Assim que Marylou e as crianças já estavam bem afastadas, encosta abaixo, Jeb virou-se para os dois homens e disse:

— Acho que um bom trago agora poderia ajudar.

— Não pode fazer mal nenhum — concordou o Pregador Dan. — Estou sedento.

— Pois então me acompanhem até o alambique. Vou mostrar o caminho.

 

Depois do almoço, Jeb e Roscoe saíram de casa, enquanto o Pregador Dan ficava na cozinha, para conversar com Marylou. Os homens sentaram-se nos degraus e acenderam pequenos charutos pretos.

— Não consigo entender — murmurou Jeb.

— Era a única maneira que eles tinham de acabar com a greve — disse Roscoe, olhando para o chão. — Todo mundo confiava em Jimmy. Agora que ele está morto, não há mais ninguém. E alguns já voltaram ao trabalho.

— Não sei nada dessas coisas. Mas os Richfields sempre foram bons amigos. Por que Clint fez uma coisa dessas?

— O pai dele é capataz na tecelagem. A família inteira estava furando a greve.

— Isso não é motivo para matar. Nunca fizemos nada a eles.

Roscoe olhou para Jeb. O montanhês não tinha a menor idéia da diferença entre trabalhadores e patrões. Para Jeb, tudo se traduzia em termos pessoais. As guerras entre famílias eram uma coisa, algo com que sempre convivera; as greves eram outra coisa. Ele jamais compreenderia. Mas Roscoe não podia culpá-lo por isto. Ele próprio não compreendera, até que seu pai e o filho mais velho foram assassinados. A princípio, ele também travara uma guerra exclusivamente pessoal. Mas depois começara a compreender o que realmente significava tudo aquilo. Era-lhe evidente agora que representava o poder e o dinheiro alimentando-se do trabalho árduo das pessoas, a fim de criarem mais poder e dinheiro para si mesmos.

— Sei como se sente, Jeb — disse ele, constrangido. — Também perdi meu pai e meu filho mais velho para eles.

— E o que você fez? — indagou Jeb, fitando-o.

— Sabe muito bem o que fiz, Jeb. Tratei de revidar. Mas agora não sei mais.

— Não sabe o quê?

— Estivemos conversando, minha mulher e eu — murmurou Roscoe. — Achamos que não existem muitas chances aqui neste momento. Talvez a gente vá para Detroit. Soubemos que as companhias automobilísticas estão contratando mais empregados.

Jeb ficou calado por um longo tempo, até que finalmente disse:

— Não sei se vão sentir-se satisfeitos por lá. São gente do campo, não da cidade.

— Que outra coisa podemos fazer, Jeb? A escolha é entre trabalhar e passar fome. Minha mulher recebe cartas dos parentes que estão por lá. Eles estão ganhando um bom dinheiro. Três dólares por dia, às vezes até mais.

Houve outro silêncio prolongado, também rompido por Jeb:

— Vou descer até a cidade.

Roscoe fitou-o. A expressão de Jeb era impassível.

— Quando?

— Amanhã de manhã. — Jeb virou-se bruscamente para Roscoe. — Posso contar com você?

Roscoe não disse nada por um momento, depois acenou com a cabeça, lentamente.

— Você sabe que pode.

Marylou ouviu-o remexer-se durante a noite. Depois, sentiu-o levantar-se da cama e sair silenciosamente do quarto. Ela continuou deitada até que não conseguiu mais agüentar. Saiu da cama e foi até a cozinha. Estava vazia.

Abriu a porta e deu uma olhada no pátio. Jeb também não estava ali. Ela saiu para o ar frio da noite e levantou os olhos para o pequeno cemitério na encosta. Jeb estava parado ali, iluminado pelo luar, olhando para as duas sepulturas. Marylou sentiu um calafrio.

Rapidamente, tornou a entrar em casa, envolveu-se num xale, depois subiu a encosta, para ficar ao lado do marido. Jeb ouviu os passos dela, mas não virou a cabeça. As pequenas cruzes de madeira tinham um brilho prateado com o orvalho da noite. Depois de um momento, Jeb falou:

— Não havia motivo para que Clint Richfield matasse Molly Ann. Ela era apenas uma moça, não tinha nada a ver com a briga deles.

— Não deve pensar nisso, Jeb. Estou tentando não pensar.

— Os Richfields e nós sempre fomos bons amigos. Isso não faz sentido.

— A vontade do Senhor seja feita. Devemos contar as nossas bênçãos. Temos as outras crianças, e Daniel está-nos fazendo orgulhosos. Temos de ser gratos por isso.

— Está falando como o Pregador Dan — disse Jeb, virando-se para a mulher.

Marylou fitou-o nos olhos.

— O que ele diz faz sentido. Olhe para o futuro, não para o passado.

— É muito fácil para ele dizer isso, pois não é a filha dele que está nesta sepultura. — Abruptamente, Jeb virou-se e começou a descer a encosta.

Marylou ficou observando-o voltar para a casa, depois virou-se e olhou para a sepultura por um momento, antes de começar a descer a encosta, atrás dele. Quando ela entrou na cozinha, Jeb estava sentado à mesa, com o rifle Winchester, preto e reluzente, nas mãos, pondo balas no pente. Um terror frio invadiu Marylou, que murmurou:

— Não, Jeb! Não faça isso!

Ele fitou-a com os olhos distantes de um estranho. E não respondeu.

— Chega de mortes, Jeb. Isso não vai trazê-la de volta.

— Você não entende, mulher. É uma questão de honra. Como eu poderia andar de cabeça erguida, se deixar Clint escapar impune?

— Não me importo que você ande de cabeça erguida ou não! — explodiu Marylou, bruscamente. — Não vai provar coisa alguma, se começar uma guerra sangrenta com os Richfields. Eles viriam atrás de nós, depois seria a nossa vez de atacar de novo e não demoraria muito para que não restasse ninguém para contar a história.

— Não fui eu que comecei matando um deles — disse Jeb, obstinadamente.

— Não importa quem começou. Só importa que você não deve continuar. Temos outros filhos em que pensar. Não quero que eles cresçam sem o pai.

— Ninguém vai-me matar.

— Como pode ter certeza?

Jeb ficou calado por um momento. Depois, levantou-se e disse:

— É melhor estar morto e no fundo de uma sepultura, ao lado de minha filha, do que deixar que o mundo fique pensando que não passo de um covarde.

Marylou aproximou-se, comprimindo-se contra ele, as mãos agarrando-lhe a camisa.

Podemos ter outro bebê, Jeb — sussurrou ela. — Outra Molly Ann.

Jeb respirou fundo, lentamente desprendeu as mãos da mulher e as colocou nos lados dela. E disse, gentilmente:

— Não, Marylou. Isso também não é solução e você sabe disso.

Através de um nevoeiro de lágrimas, ela o observou encaminhar-se para a porta. Jeb parou e olhou-a.

— Estarei de volta amanhã, ao cair da noite.

De alguma forma, Marylou conseguiu encontrar a voz para balbuciar:

— É melhor levar algum agasalho. A noite está fria.

— Vou levar o meu casaco de pele de carneiro.

E depois ele se foi. Marylou arriou numa cadeira, completamente atordoada. Após um momento, ouviu o marido chamar a mula, baixinho. E logo soou o rangido da carroça, quando ele deixou o pátio para seguir pela estrada escura.

 

O Xerife Jason Carter andava furiosamente de um lado para outro de sua sala, nos fundos do prédio do tribunal. Pela porta aberta nos fundos da sala podia ouvir um dos seus assistentes servindo café aos ocupantes da pequena cadeia. Somente quatro celas estavam ocupadas naquela manhã. A colheita noturna habitual, de homens que se embriagavam e brigavam. Nada de especial nos presos. Pela primeira vez, em mais de um ano, a cidade estava realmente quieta. Não houvera quaisquer manifestações dos grevistas. E alguns já estavam retornando ao trabalho. Não havia razão para que ele se sentisse tão nervoso e apreensivo. Mesmo assim, achava-se dominado por um pressentimento de perigo, que o deixava tão sobressaltado quanto uma mula arisca. O assistente saiu da cadeia.

— Estão todos alimentados, Jase. O que vai querer que seja feito com eles?

Carter olhou pela porta aberta com uma expressão sombria.

— Eles têm algum dinheiro?

O assistente deu de ombros.

— Se tiverem, arranque um dólar de multa de cada um e depois expulse-os daqui — acrescentou o xerife.

— E se não tiverem?

— Mande-os embora de qualquer maneira. Não há motivo para que a gente pague o almoço deles.

O xerife foi até o armário, enquanto seu assistente voltava à cadeia, e pegou um maço de papéis. Praguejando baixinho, voltou à mesa e se sentou, espalhando os papéis à sua frente. Pegou um lápis e começou a escrever, penosamente. Era a parte pior do trabalho. Formulários demais para preencher. Maldito governo estadual bisbilhoteiro! Que diabo tinha de se intrometer no que acontecia em seu condado?

Concentrado no trabalho, Carter quase pulou de susto quando a porta exterior foi aberta bruscamente e Clint Richfield entrou. Clint estava pálido, suando profusamente.

— Acho que Jeb Huggins está na cidade!

O xerife não pôde conter a explosão de raiva:

— Mas que diabo, Clint! Por que ainda não saiu da cidade, como eu mandei?

— Não vi motivo para fugir — murmurou Clint. — Estava apenas cumprindo o meu dever.

— O seu dever não incluía matar a moça — disse o xerife, sarcasticamente.

— Já disse que vi Jimmy tentando pegar uma arma.

O xerife fitou-o atentamente.

— Os mortos não tentam pegar armas.

— Como eu podia saber que ele estava morto?

— Oh, Deus! — praguejou o xerife. Baixou os olhos para a mesa. Clint fora tão instruído na história que passara a acreditar em sua veracidade. Carter empurrou os papéis para um lado da mesa, formando uma pilha, e levantou-se. — Como sabe que Jeb está na cidade? Alguém o viu?

— Meu irmão caçula viu uma mula estranha e uma carroça diante da casa dos Craigs, ao ir para a escola esta manhã. E voltou para me contar.

— Pode ser qualquer outra pessoa.

Mas, no fundo, o xerife sabia que não era o caso. Respirou fundo, tirou o cinturão da arma da cavilha na parede às suas costas, ajeitou-o na cintura. Tirou o Ingersoll imenso e examinou-o.

— O trem das oito e quinze vai chegar aqui dentro de meia hora. Vou embarcá-lo nele.

— Tenho de ir em casa buscar minhas roupas — falou Clint, aturdido.

— Mandarei suas roupas depois. Já tenho problemas suficientes para ter de me preocupar com outra guerra de sangue entre famílias.

O assistente voltou das celas. Pôs três notas amarrotadas de um dólar em cima da mesa, dizendo:

— Eles já foram. Todos pagaram, à exceção de Tut, que não tinha dinheiro.

— Tut nunca tem dinheiro — disse o xerife, pegando as notas e as guardando no bolso. — As celas estão limpas?

— Mandei que eles varressem e limpassem tudo antes de ir embora — disse o assistente.

— Ótimo. Quero que assuma o comando aqui. Clint e eu vamos ficar algum tempo fora.

— Não vai chamar alguns homens? — indagou Clint, nervosamente.

— Não quero chamar atenção. — O xerife sacudiu a cabeça. — Conheço bem Jeb Huggins, fomos garotos juntos. Um exército não conseguiria impedir que ele o pegasse. Temos de ir pelas ruas estreitas e sem movimento, chegando à estação ferroviária pelo outro lado.

— E se ele nos descobrir? — O suor escorria pelo rosto de Clint.

— Então é melhor você começar a rezar para que eu consiga convencer Jeb a não fazer nada — disse o xerife, com voz sombria. — Ele ganhou todos os concursos de tiro por aqui nos últimos vinte anos. — Carter fez uma pausa e depois, percebendo o pavor de Clint, acrescentou: — Mas não se preocupe. Ele não vai encontrar-nos.

Clint balançou a cabeça, o pomo-de-adão subindo e descendo rapidamente. O xerife pegou o chapéu.

— Vamos embora. — Clint encaminhou-se para a porta. O xerife deteve-o. — Por aí, não. Vamos sair pela porta da cadeia, nos fundos do prédio.

Chegaram à torre de sinalização, no outro lado da estação. Podiam ouvir à distância o apito do trem.

— Fique esperando aqui — disse o xerife. — Vou até a estação para dar uma olhada. Não saia daqui enquanto eu não fizer um sinal.

— Está bem, Jase.

— E trate de ficar escondido. Não quero que ninguém o veja.

— Pode deixar, Jase. — Clint recuou, encostando-se na parede ensombreada da torre de sinalização.

O xerife olhou para ele por um momento, depois atravessou os trilhos, na direção da estação. Pelo que podia ver, não havia ninguém ali, à exceção da turma habitual da estação. Pokey, o agente da estrada de ferro, tentava parecer importante, embora nada tivesse para fazer. Alguns velhos esperavam pelo trem, assim como George, o carregador.

Pokey foi o primeiro a avistá-lo, no momento em que ele subiu na plataforma de madeira diante da estação.

— Como vai, Xerife? — gritou ele, em sua voz cantada de ferroviário. — O que o traz aqui a esta hora da manhã? Está planejando deixar a cidade?

Pokey desatou a rir da própria piada. Mas o xerife não riu, limitando-se a dizer:

— Não exatamente.

A outra voz partiu da entrada da estação, atrás dele:

— Exatamente o que o trás até aqui, Jase?

O xerife virou-se rapidamente. Jeb estava parado na entrada, o rifle Winchester no gancho do braço.

— Como vai, Jeb? — murmurou o xerife.

Jeb não respondeu ao cumprimento, limitando-se a dizer, a voz terrivelmente fria:

— Não respondeu à minha pergunta, Jase.

O xerife fitou-o cautelosamente.

— Resolvi dar uma volta esta manhã e por acaso vim parar aqui.

— E por acaso não encontrou Clint Richfield enquanto estava dando essa volta, Jase?

— Ora, Jeb, é melhor esquecer tudo isso. Não vai querer entrar nessa confusão. Aquela greve nada tem a ver com você.

— Também nada tinha a ver com Molly Ann. Mesmo assim, ele a matou.

— Foi um acidente. Pensaram que Jimmy ia sacar uma arma.

— Jimmy nem estava armado — disse Roscoe, aparecendo na entrada da estação, atrás de Jeb. — Além do mais, todo mundo sabia que ele já estava morto.

— Não havia a menor possibilidade de saberem disso. — O xerife olhou novamente para Jeb. — Tem de acreditar nisso, Jeb. Ninguém queria machucar sua Molly Ann. Além disso, encontraram uma arma nos degraus, perto da mão de Jimmy.

— Puseram a arma lá depois que o mataram — disse Roscoe.

— Se puseram, não sei de nada a respeito — apressou-se o xerife em dizer. — Você me conhece desde que fomos garotos juntos, Jeb. Sabe que eu não tomaria parte numa coisa dessas.

Jeb avançou pela plataforma, os olhos vasculhando toda a área. O xerife observou-o cautelosamente. O apito do trem soou novamente, desta vez mais perto. Pokey e os outros homens na estação estavam calados, olhando para eles. Silenciosamente, o xerife rezou para que Clint continuasse escondido atrás da torre de sinalização e não tentasse fazer algo estúpido. Mas era quase esperar demais que ele fosse esperto o bastante para se esconder atrás do trem quando parasse na estação e embarcar pelo outro lado.

O apito soou mais uma vez, ainda mais alto. Jeb foi até a beira da plataforma, olhando para os trilhos na direção de onde viria o trem, além da torre de sinalização. Começou a mudar o rifle de uma mão para outra. Por puro instinto, o xerife começou a se afastar. Não tinha a menor intenção de ser apanhado na linha de fogo e sabia que Clint ia pensar que fora avistado ao ver Jeb mexer com o rifle. O xerife estava certo. Só que não foi bastante rápido. O primeiro tiro de Clint acertou-o na perna e ele caiu na plataforma.

Jeb já tinha pulado para os trilhos e corria na direção da torre de sinalização antes mesmo que o xerife batesse nas tábuas da pla­taforma. Roscoe pulou por cima do corpo caído do xerife, atrás de Jeb, ao mesmo tempo em que gritava:

— Ele está atrás da torre de sinalização!

O xerife virou-se e ergueu-se, apoiado nas mãos, berrando:

— Pare, Jeb! Não faça isso! Vai começar outra guerra no vale. Eles irão atrás de você e depois de Daniel... O resto de suas palavras foi abafado pelo barulho do trem entrando na estação, escondendo o que estava acontecendo além.

Ele se virou e viu o agente da estação e George olhando em sua direção, aturdidos. O negro foi o primeiro a se mexer.

— Está ferido, Xerife?

— O filho da puta me acertou na perna! É claro que estou ferido!

— Deixe-me ajudá-lo, Xerife — disse George, aproximando-se.

— Pokey pode ajudar-me! — gritou o xerife. — Vá até meu escritório e chame todos os meus homens que puder encontrar!

George hesitou por um momento, depois deixou a plataforma e começou a correr pela rua, enquanto o trem parava. Como sempre acontecia, duas malas de correspondência foram jogadas na plataforma, mas nenhum passageiro embarcou ou desembarcou.

— Pokey, venha até aqui e me ajude! — gritou o xerife para o agente da estação.

Pokey olhou para ele, depois para o trem, novamente para o xerife. E disse, em sua voz fina, esganiçada:

— Mas tenho de fazer o trem partir!

— Que se dane o trem! Estou sangrando até a morte!

Houve o som de tiros na área da torre de sinalização. E depois, silêncio.

— Oh, Deus! — praguejou o xerife. Ele se estendeu todo, pegou uma ripa solta e apoiou-se nela para se levantar. Com uma das mãos, tirou o cinto da calça e tentou apertá-lo na perna, a fim de conter a hemorragia.

O trem recomeçou a andar. Lentamente, deixou a estação. Soou um grito no outro lado dos trilhos:

— Xerife!

Ele olhou. Clint estava parado lá, a camisa empapada de sangue.

— Você está bem, Clint? — gritou o xerife, esquecendo por um momento do próprio ferimento.

Clint ficou imóvel por um instante, como se procurasse definir a melhor resposta. E depois gritou:

— Eles me mataram, Xerife! — E Clint tombou para a frente, caindo sobre os trilhos.

— Devagar, Doc! — gemeu o xerife, contorcendo-se de dor, na mesa da sala de tratamento do Dr. John.

— Pare de se contorcer como um bebê chorão! — disse o médico, bruscamente. — Do contrário, como vai querer que eu tire essa bala?

— Dói muito, Doc — queixou-se o xerife, olhando para o fórceps na mão do médico.

— Claro que dói — disse o Dr. John, em tom tranqüilizador. — Mas teve muita sorte de a bala entrar na parte carnuda da coxa e não atingir o osso. — Virou-se para a mesa às suas costas e pegou a garrafa de uísque. — Tome outro gole.

O xerife engoliu um trago prolongado.

— E agora se agarre com toda força nos lados da mesa — disse o médico.

O xerife fez com que lhe era ordenado. O médico agiu depressa demais para que o xerife compreendesse o que ele estava fazendo. Uma pontada de fogo correu pela perna do xerife. Involuntariamente, ele soltou um berro.

— Pode parar de gritar agora — falou o médico. — Já está tudo acabado.

Ele levantou o fórceps para que o xerife pudesse ver a bala que acabara de extrair, comentando:

— Foi esse pedacinho de chumbo que causou tudo isso.

O xerife recostou-se na mesa, o rosto pálido, coberto de suor, balbuciando:

— Puxa...

— E agora vou fazer um curativo e enfaixar sua perna. — O médico largou o fórceps. — Dentro de alguns dias estará novinho em folha.

Ele começou a trabalhar. Sam Fitch e o pai de Clint, Mike Richfield, aproximaram-se da mesa e olharam para o xerife. Estavam esperando no outro lado da sala que o médico terminasse de extrair a bala.

— Vai convocar uma força de voluntários para ir atrás dos que mataram o meu garoto, Xerife? — perguntou Richfield.

O xerife fitou-o atentamente.

— Não.

— Eles mataram o meu garoto, Xerife.

— Clint era um idiota. Disse a ele para não começar nada, mas não quis saber. Tinha de começar a atirar. Nenhum júri no mundo vai condená-los. Foi um caso evidente de legítima defesa e tenho uma bala extraída da minha perna para prová-lo.

— Mas eles estavam atrás do meu garoto.

— Nem mesmo sabiam que Clint estava na estação, até que ele começou a atirar. Tudo o que Clint precisava fazer era se meter naquele trem e não haveria problemas.

— Tem de ir atrás deles, Xerife — interveio Sam Fitch. — É o seu dever.

— Meu dever termina nos limites do condado — disse o xerife, olhando para Fitch. — A propriedade dos Huggins fica quinze quilômetros além.

— Não importa —- insistiu Fitch. — Se os deixar escapar impunes, eles vão-se tornar os novos heróis. E a greve pode começar de novo.

— Não é problema meu. Já fiz coisas demais que eram contra a minha consciência. Há uma porção de crianças lá na casa dos Huggins. Não vou ser o responsável por mais mortes.

— O sangue do meu filho está clamando por vingança — disse Richfield.

O xerife tornou a olhar para ele.

— Então talvez possa compreender como Jeb se sentiu ao olhar para o cadáver da filha. — Soergueu-se, apoiado nos cotovelos. — Aceite meu conselho e deixe as coisas como estão.

— O que pretende fazer? — perguntou Fitch.

— Comunicar o fato à polícia estadual. Vamos deixá-los fazer algo mais além de me devolver formulários porque os preenchi errado.

— Sabe que eles não vão fazer nada — insistiu Fitch.

O xerife não disse nada.

— Já acabei — disse o médico. — Pode tirar as pernas da mesa agora. — Ajudou o xerife a sentar-se na mesa e depois a ficar de pé. — Como está-se sentindo?

— Dói bastante.

— E vai continuar a doer por mais algum tempo. Procure não fazer muita força com a perna.

— Não podemos deixar a greve recomeçar — insistiu Fitch.

O xerife não respondeu. Um dos seus assistentes, que estava encostado na parede, aproximou-se para ajudá-lo. O xerife encaminhou-se para a porta, claudicando.

— Está-me obrigando a chamar os Pinkertons novamente — disse Fitch. — E está jogando fora um bom emprego, Jase. Não imagina o erro que está cometendo.

O xerife parou na porta, apoiando-se no ombro do assistente. E disse, friamente:

— Não sou eu quem está cometendo um erro, Sam. Faça o que está pensando e cometerá o maior erro de sua vida.

Em silêncio, ficaram observando-o sair da sala de tratamento. Ouviram-no praguejar ao começar a descer a escada. Sam Fitch virou-se para Richfield.

— Posso trazer os Pinkertons para cá no trem de meio-dia.

Richfield ficou calado e Fitch acrescentou:

— Bastou uma bala para que o xerife se acovardasse. Vamo-nos encontrar no meu armazém, à uma hora.

— Não vou acompanhá-lo, Sr. Fitch — falou Richfield, evitando os olhos do outro. — O xerife está certo. Já foi derramado sangue demais. Não tem sentido começar outra guerra de famílias.

A voz de Fitch estava impregnada de desprezo:

— Vocês dois não passam de uns covardes. Mas posso resolver tudo, sem a ajuda de ninguém. Só não quero que me venha procurar com o rabo entre as pernas, quando estiver tudo acabado. Porque nunca mais vai conseguir nada de mim. — E, furioso, Fitch saiu da sala.

Por um momento, houve silêncio. Depois, Richfield virou-se para o médico.

— Vai cuidar do meu garoto?

O médico, que era também o legista e o agente funerário local acenou com a cabeça, assentindo.

— Pode deixar que o prepararei devidamente.

— Obrigado, Dr. John.

 

Sarah Andrews abriu os olhos ao sentir que ele saía da cama. Mal amanhecera, e o corpo nu de Daniel tinha um brilho esbranquiçado, quando ele atravessou o quarto, descalço, até a cadeira em que estava pendurada a calça, meticulosamente dobrada. Sarah viu os músculos se contraírem sob a pele muito branca, quando ele pegou a calça. Sentiu alguma coisa se remexer dentro de si. Prendeu a respiração. Nunca antes sentira algo parecido. Era assim desde a primeira vez, na noite em que o Sr. Lewis aparecera para organizar os mineiros num sindicato, há mais de três meses.

Ela estava quase dormindo ao ouvir as batidas na porta naquela noite. Levantou rapidamente, vestiu um roupão e foi até a porta.

— Quem está aí? — perguntou, sem abrir a porta.

A voz de Daniel soou estranhamente amortecida pela porta:

— Sou eu, Srta. Andrews.

— Mas já estou pronta para dormir!

— Desculpe, Srta. Andrews. Não queria incomodá-la. Vim apenas explicar por que me atrasei. — Houve um momento de silêncio e depois Daniel acrescentou: — Eu a verei pela manhã.

Com um sobressalto de surpresa, Sarah lembrou subitamente que o dia seguinte era um domingo. E aos domingos Daniel vinha cortar a lenha. Não havia aula aos domingos. Assim, não tinha importância se ela ficasse acordada até mais tarde.

— Espere um instante, Daniel. Já estou mesmo acordada e você pode entrar. Ainda resta um pouco de café.

Ela puxou o trinco e abriu a porta. Daniel continuou parado, hesitante.

— Tem certeza de que não vou incomodá-la, Srta. Andrews?

— Claro que não. Pode entrar.

Daniel entrou e ela fechou a porta.

— Espere um instante que vou acender o lampião.

O clarão suave do lampião em cima da mesa derramou-se pela sala. Sarah virou-se para fitá-lo.

— Estava imaginando o que poderia ter-lhe acontecido.

— Tive de ir a uma reunião.

— Uma reunião? Sobre o quê?

— Não sei se posso contar. — Daniel hesitou. — Prometi que não falaria a respeito.

— Não foi nada ilegal, não é mesmo? — indagou Sarah, com uma súbita preocupação na voz.

— Não, madame. Não foi nada ilegal.

— Então não precisa contar-me. E agora sente-se um pouco, enquanto esquento o café.

Quando Sarah voltou à sala, Daniel ainda estava de pé. Ela pôs o bule de café e as xícaras na mesa.

— Por que não se sentou?

— É que dei uma olhada no relógio. Já passa de dez horas. Não sabia que era tão tarde. Talvez seja melhor eu ir embora.

— Não diga bobagem.

Sarah encheu a xícara e a estendeu para Daniel, o roupão solto se entreabrindo no gesto. Percebeu que ele ficou subitamente vermelho, enquanto pegava a xícara, desviando os olhos. Olhou para si mesma. A camisola de algodão que usava era quase transparente. Ela foi dominada por um desejo intenso, sentindo os mamilos endurecerem, comprimindo-se contra o tecido.

Sentiu as pernas fracas e pôs a mão na mesa para apoiar-se. Mas não fez qualquer menção de fechar o roupão. Os olhos dele ainda estavam desviados quando ela falou:

— Daniel...

Ele olhou para a xícara de café.

— Pois não, Srta. Andrews?

Sarah sentiu o coração martelando furiosamente dentro do peito.

— Por que não está olhando para mim?

Daniel demorou um pouco para responder:

— Seu roupão... — Não conseguiu continuar.

— Quero que olhe para mim — disse Sarah, a própria voz soando estranha em seus ouvidos.

Daniel levantou os olhos lentamente. Ela viu o súbito volume na calça justa. A xícara tremia na mão dele. Sarah adiantou-se, tirou a xícara de sua mão e pôs na mesa.

— Nunca andou com uma mulher?

— Não, madame — balbuciou Daniel, tornando a baixar os olhos.

— O que faz então quando fica excitado?

Daniel não respondeu.

— Deve fazer alguma coisa. Não pode sair por aí desse jeito.

— Eu me alivio — falou, sem fitá-la.

— Freqüentemente?

Daniel sacudiu a cabeça, mais vermelho do que nunca.

— De manhã e de noite. Às vezes também na hora do almoço, quando a coisa aperta.

Sarah podia sentir a umidade entre suas pernas.

— E pensa o que, quando se alivia?

Ele levantou os olhos bruscamente, fitando-a.

— Em você.

— Quero vê-lo.

Daniel não se mexeu.

Sarah estendeu a mão para a virilha dele. Os dedos puderam sentir a dureza, através do pano. Desabotoou rapidamente a braguilha. O falo erecto, libertado de sua prisão, molhou-lhe a mão. Ela empurrou o prepúcio para trás, gentilmente. E olhou.

A glande intumescida de sangue parecia estar prestes a explodir. E enquanto ela olhava, Daniel estremeceu no orgasmo, o sêmen esbranquiçado esguichando.

— Meu Deus! — sussurrou Sarah, as pernas não mais conseguindo sustentá-la.

Ela caiu de joelhos diante dele, o corpo sacudido pelo próprio orgasmo. Freneticamente, puxou a camisola com a mão livre, expondo os seios. O sêmen caiu em sua pele.

— Oh, meu Deus!

Meia hora depois, estavam nus na cama, as coxas de Sarah esmagadas pelas de Daniel. Ela se deixou dominar pela memória e sensação. Nunca tinha sido assim antes. De certa forma, sempre se sentira usada; agora, percebia que estava dando. E sentiu Daniel se mexer novamente dentro dela, um tremor indicando a iminência do orgasmo. Rapidamente, ela estendeu a mão entre os dois, segurando os testículos redondos, duros como pedra, enquanto com a outra mão empurrava a cabeça dele para seu seio.

— Ainda não, Daniel. Devagar, bem devagar...

Ele se conteve, por um longo momento. Quando começou a se mexer novamente, foi com os movimentos longos e gentis que ela adorava.

— Assim é melhor — sussurrou Sarah, os movimentos do seu corpo acompanhando os de Daniel.

Ela sentiu os lábios dele se movendo contra o seu seio. E Daniel murmurou:

— Basta dizer-me o que fazer,   Srta. Andrews. Aprenderei depressa.

Daniel provou ser um amante infatigável. Um erótico nato, forte, desinibido a partir do instante em que se libertava, parecia nunca se cansar. Parecia não precisar de qualquer esforço para ter quatro, cinco ou mais orgasmos em uma única noite. Mais de uma vez, Sarah ficou surpresa com a disposição dele. Certa ocasião, tocou-o por acaso e descobriu-o duro. Ela riu.

— Puxa vida, Daniel! Anda sempre assim durante todo o tempo?

O rapaz ainda não havia perdido a capacidade de corar. O rosto ficou imediatamente vermelho e ele sorriu.

— É o que parece às vezes, não é mesmo, Srta. Andrews?

O único hábito que Sarah não conseguiu acabar foi o tratamento de Srta. Andrews. Nem mesmo nos momentos mais íntimos, quando ele rugia como um touro e ela gritava com toda a força dos pulmões, no orgasmo mútuo, não conseguia fazer com que Daniel a chamasse de Sarah. Depois de algum tempo, ela acabou desistindo. No fundo da mente de Daniel, ela sempre seria a sua professora.

Fora do quarto, o rapaz nunca passava dos limites. Lia e estudava os livros e lições que Sarah dava. A crescente capacidade dele de aprender e compreender o que era ensinado surpreendia-a quase tanto quanto a capacidade de amar. A rapidez com que Daniel absorvia idéias levou-a a começar a se perguntar se se achava realmente em condições de educar uma inteligência assim. Já estavam trabalhando com os livros que Sarah estudara no primeiro ano da universidade. Em breve chegariam ao máximo que ela poderia ensinar.

Mas os meses em que eram amantes pareciam voar e ela parou de pensar no que poderia acontecer com as aulas. O final de maio estava-se aproximando. Dentro de pouco tempo, as aulas seriam encerradas e a escola fechada. Sarah voltaria para casa, talvez nunca mais viesse àquela escola. Talvez nunca mais o encontrasse. E parou de pensar nisso também.

Ela fechou os olhos quando Daniel terminou de vestir a calça e saiu. Poucos minutos depois, ouviu o barulho do machado lá fora e mergulhou num sono agradável.

 

Não foi a luz do sol entrando pela janela aberta que a despertou. Foi o silêncio. Continuou imóvel por um momento, até compreender que não mais ouvia o barulho do machado. Olhou para o relógio perto da cama. Passavam apenas alguns minutos das oito horas. Daniel geralmente não terminava de cortar a lenha antes das 10 horas.

Ela se levantou e olhou pela janela. Daniel, ainda com o machado nas mãos, estava falando com um estranho. O homem encontrava-se de costas e por isso Sarah não podia saber como ele era. Mas as roupas estavam rasgadas e sujas de terra. Enquanto ela olhava, Daniel largou o machado e encaminhou-se para a casa. O homem seguiu-o. Sarah vestiu rapidamente um robe e foi para a sala a fim de recebê-los.

A porta se abriu no momento em que ela lá chegou. Daniel entrou, o homem logo atrás. O rapaz fitou-a por um momento, os olhos estranhamente velados, com um palidez extrema. Era quase como se não a estivesse vendo.

— Daniel... — murmurou Sarah, subitamente consciente de algum terror desconhecido. Ele piscou rapidamente várias vezes.

— Srta. Andrews... — A voz parecia inteiramente desprovida de vida. — Srta. Andrews, esse é o meu amigo Roscoe Craig.

Ela olhou para o homem. Era quase tão alto quanto Daniel, só que muito mais magro. Uma barba de dois ou três dias lhe escurecia o rosto, as olheiras eram profundas. A camisa e a calça estavam rasgadas e empoeiradas, os sapatos cobertos de lama. Ele tirou o chapéu de montanhês manchado de suor, revelando cabelos pretos, com entradas acentuadas.

— Madame...

— Sr. Craig. . . — Ela virou-se para Daniel. — Aconteceu alguma coisa, Daniel?

Ele não respondeu à pergunta.

— O Sr. Craig está viajando há três dias e duas noites. Haveria problema se arrumássemos alguma coisa para ele comer?

— Claro que não — disse Sarah, rapidamente. — Pode deixar que vou providenciar.

— Obrigado, Srta. Andrews — falou Daniel com a mesma voz sem vida, depois virou-se abruptamente e desapareceu pela porta aberta.

— Daniel — Sarah começou a se encaminhar atrás dele, mas o estranho estendeu o braço, detendo-a.

— Deixe-o ir, madame. Ele voltará.

Sarah fitou-o, aturdida.

— O que aconteceu?

— Toda a família dele está morta, madame — respondeu Roscoe, a voz estranhamente controlada. — Assassinada.

Já passava da meia-noite quando Roscoe, dormindo no estábulo, ouviu vozes. Levantou a cabeça devagar e ficou escutando. Ouviu os sussurros ásperos de homens mais acostumados a gritar do que a falar. Pôs os sapatos e se levantou. Num movimento inconsciente, levou a mão ao cinto, à procura da arma. Praguejou silenciosamente ao lembrar que a deixara na mesa da cozinha dos Huggins.

As vozes estavam agora mais perto. Freneticamente, Roscoe procurou um lugar para se esconder. E o único que pôde encontrar foi uma pilha de feno atrás da mula, na baia. Enfiou-se por baixo. Contrariada a mula cutucou o feno com o focinho.

— Maldita mula! — praguejou Roscoe baixinho, arrastando-se ainda mais para o fundo do feno.

Passos entraram no estábulo. Ele avistou os sapatos de vários homens. Prendeu a respiração.

Os homens ficaram parados por um momento. Depois, um par de sapatos aproximou-se da pilha de feno. Roscoe ficou inteiramente imóvel. O homem parou perto da mula, depois voltou para junto dos outros. Roscoe pôde ouvir o sussurro rouco dele:

— Não tem mais nada além da mula.

— Vá dizer a Fitch — sussurrou a voz. — Vamos subir a encosta nos fundos da casa, como ele mandou.

Os homens saíram do estábulo. Roscoe deixou a respiração escapar lentamente e depois saiu de debaixo do feno. Rastejou pelo chão de terra até ficar em posição de ver o que estava acontecendo fora do estábulo.

Havia dois homens parados ali. Eram obviamente Pinkertons, com os habituais chapéus-coco. Cada homem empunhava um rifle. Roscoe olhou além deles, para a casa.

Outros homens estavam lá. Contou pelo menos nove. E talvez houvesse mais no outro lado da casa. Enquanto ele observava, os homens pareciam estar tomando posições. Depois de alguns minutos, um deles levantou a mão, num sinal. Sam Fitch emergiu das sombras, deslocando-se silenciosamente, apesar da barriga volumosa.

— Todos os homens já estão em posição?

O sussurro rouco dele chegou até aos ouvidos de Roscoe no estábulo. Um dos Pinkertons, o mesmo que fizera o sinal, assentiu.

— Levem as tochas para perto dos degraus da varanda e acendam — ordenou Fitch.

Dois homens correram silenciosamente até a casa e fincaram as tochas no chão, perto dos degraus. Depois, acenderam os trapos embebidos em óleo e voltaram correndo, enquanto as chamas amareladas se elevavam pela noite.

Sam Fitch virou-se para a casa e gritou:

— Jeb! Você e Roscoe têm um minuto para sair com as mãos levantadas ou vamos entrar para agarrá-los!

Houve um momento de silêncio. Depois, a porta foi ligeiramente entreaberta e Jeb gritou:

— Roscoe não está aqui! Vou sair, mas não quero tiros! A Sra. Huggins e as crianças estão na casa!

— Pois saia bem devagar, com as mãos levantadas, e não haverá tiros! — respondeu Fitch.

A porta abriu lentamente, revelando Jeb ali parado, apenas de calça, o corpo pálido brilhando à luz das tochas. As mãos estavam levantadas acima da cabeça. Ele piscou os olhos, tentando divisar alguma coisa além das tochas à sua frente. Bem devagar, atravessou a varanda e começou a descer os degraus. Roscoe viu Fitch baixar o braço, dando o sinal.

— Agora!

— Volte, Jeb! — começou Roscoe a gritar, mas sua voz se perdeu nos estampidos dos rifles.

As balas sacudiram o corpo de Jeb, que cambaleou para o lado e caiu em cima de uma das tochas, derrubando-a, por baixo da varanda de madeira. Um segundo depois, a madeira seca estava em chamas, o fogo subindo pelas paredes da casa.

O fogo entrou na casa pela porta aberta, transformando-se num paredão intransponível de chamas.

A mula, assustada pelo cheiro da fumaça, saiu da baia e passou correndo por Roscoe, indo para o pátio. Avançou pelo meio dos Pinkertons, que trataram de se dispersar, depois disparou pela estrada. Os Pinkertons voltaram a se reunir, e um deles gritou:

— Temos de tirar as crianças lá de dentro!

— Não seja idiota! — gritou outro. — Não resta mais ninguém vivo lá dentro!

— O que vamos fazer então? — indagou o primeiro homem.

— Vamos sair daqui! Não quero estar por perto, quando descobrirem o que aconteceu!

Ele se encaminhou para Sam Fitch, que parecia estar hipnotizado pelo fogo.

— Sr. Fitch...

— O que é? — A voz estava apática e ele continuou a olhar fixamente para o fogo.

— Acho melhor irmos embora, Sr. Fitch — disse o Pinkerton.

Fitch finalmente virou-se para ele.

— Foi um acidente. Você viu tudo. Foi um acidente.

— Ninguém vai acreditar que foi um acidente, quando descobrirem o corpo do homem crivado de balas.

Subitamente, Fitch pareceu recuperar o controle.

— Pois vamos dar um jeito nisso. Vocês podem ajudar-me. Jogaremos o corpo no fogo.

Os Pinkertons não se mexeram. Fitch olhou de um para um, antes de acrescentar:

— São tão culpados quanto eu. Querem deixar a prova que pode enforcá-los?

Em silêncio, vários homens se adiantaram junto com Fitch. Pegaram o corpo de Jeb pelas mãos e pés e atiraram-no no meio da casa em chamas. Fitch ficou olhando para o incêndio por mais um momento, depois virou-se e gritou:

— Agora, podemos ir embora.

Já não havia mais nenhum sinal deles alguns minutos depois, e Roscoe levantou-se, exausto. Aproximou-se da casa em ruínas, ainda ardendo, que fora antes o lar dos Huggins. Depois de um momento, caiu de joelhos, as lágrimas escorrendo pelas faces. E começou a rezar.

— Oh, Deus, por que deixou que isso acontecesse com aquelas crianças lindas?

 

— Quando o Sol apareceu, desci para o vale até a casa dos Callendars — disse Roscoe. — O velho Callendar e seu filho subiram comigo em sua carroça. Providenciamos um enterro cristão para todos. Callendar tinha levado a Bíblia e a leu para todos.

O rosto de Daniel estava impassível.

— Sou grato a você e a ele por isso.

Sarah olhou para ele. Quase cinco horas se haviam passado antes que Daniel voltasse. E, durante esse tempo, parecia ter envelhecido 10 anos. Os vincos que surgiram em seu rosto tinham subitamente destruído a juventude. Agora, era um homem que estava ali. E havia também algo mais. Algo estranho e implacável. Forte e ao mesmo tempo distante, como se uma parte dele tivesse ido embora, para nunca mais voltar.

— Foi tudo o que pude fazer — acrescentou Roscoe. — Levei quase três dias para chegar aqui. Mantive-me fora das estradas durante o dia, contornando Fitchville. Não queria que Sam Fitch me descobrisse.

— O que vai fazer agora, Sr. Craig? — perguntou Daniel.

— Minha mulher e eu temos conversado em irmos para Detroit. Há bastante trabalho por lá. Acho que será o nosso destino. Tenho parentes lá que me poderão ajudar. E assim que arrumar um emprego, mandarei buscar a família.

Daniel ficou calado e Roscoe acrescentou:

— Acho que não há mais nada que eu possa fazer em Fitch­ville. Tudo acabou no momento em que os tribunais se viraram contra a gente e deram nossa terra à companhia.

— Não o estou culpando, Sr. Craig. Fez o melhor que pôde e isso é o máximo que um homem é capaz de dizer. Estava apenas pensando que Detroit fica um bocado longe.

— Chegarei lá.

— Tem algum dinheiro?

— Tenho o suficiente — respondeu Roscoe. — Posso dar um jeito.

— Quanto?

Daniel era persistente. Roscoe não olhou para ele ao responder:

— Cerca de um dólar e meio.

— Vai precisar mais do que isso. Tenho vinte dólares que não vou precisar. Estava planejando mandar esse dinheiro para minha família. Acho que meu pai ficaria satisfeito, se permitir que eu lhe empreste esse dinheiro.

— Não posso aceitar.

Sarah ficou calada. O orgulho daqueles montanheses algumas vezes escapava à sua compreensão. Se podia parecer como caridade, eles não aceitavam de jeito nenhum.

— Pode   pagar-me   quando   conseguir   um   emprego — disse Daniel.

Roscoe pensou por um momento e depois concordou.

— Vamos pôr a coisa da seguinte maneira, Daniel: não vejo como posso ter o direito de recusar.

Sarah interveio na conversa nesse momento, perguntando:

— Quando planeja partir, Sr. Craig?

— Gostaria de voltar à estrada ao cair da noite, madame — respondeu ele, virando-se para ela.

— Então deixe-me providenciar-lhe um banho quente. E depois pode descansar um pouco. Enquanto estiver dormindo, limparei suas roupas.

— É muita bondade sua, madame. — Roscoe ficou observando-a sair da sala, e depois virou-se para Daniel. — Ela é uma boa mulher. Ninguém pensaria que é uma professora. Ela é como a gente.

Daniel acenou com a cabeça, em assentimento. Mas seus pensamentos estavam longe dali. Com visível esforço, voltou ao presente e disse:

— Há um trem de carvão deixando a mina à meia-noite. Vai para Detroit, e o guarda-freios é amigo meu. Talvez ele o deixe ir de carona no vagão dos empregados.

— Poderia ajudar muito.

— Iremos até lá por volta das onze horas, quando o trem chega. Roscoe ficou calado por um instante, observando Daniel atentamente.

— E você, Daniel, o que vai fazer?

Daniel sustentou firmemente o olhar dele.

— Não sei, Sr. Craig. Vou para casa, cuidar das sepulturas, prestar o meu respeito. Depois disso... simplesmente não sei.

Mas Roscoe, fitando os olhos do rapaz, sabia que não era esse o caso. Eram os mesmos olhos que vira no rosto de Jeb alguns dias antes.

Daniel passou o resto da tarde cortando lenha, o machado zunindo enquanto subia e descia no mesmo ritmo. Depois de algum tempo, começou e empilhar a lenha cortada no lado da escola. Ao terminar, quase toda a parede estava escondida. A escuridão se avizinhava, quando ele finalmente entrou na casa.

— Está com fome? — perguntou Sarah.

Daniel sacudiu a cabeça.

— Tem de comer alguma coisa. Ainda não jantou.

— Não estou com fome. — Daniel percebeu a expressão no rosto dela e acrescentou: — Desculpe, Srta. Andrews. Não queria incomodá-la.

— Não há problema. Quer acompanhar-me numa xícara de café?

Ele assentiu.

Sarah foi buscar o café na cozinha. Daniel pôs três colheres de açúcar em sua xícara e mexeu lentamente.

— Ele ainda está dormindo — comentou Sarah.

Daniel tomou um gole do café.

— Andou mais de cem quilômetros para chegar aqui.

— Conhece-o há muito tempo?

— Desde que eu era pequeno. Ele e meu pai se conheceram bem quando eram garotos, mas quase não se encontravam. Os Craigs tinham uma fazenda à beira do rio, perto de Fitchville, enquanto nós vivíamos nas montanhas. Antes de as fábricas chegarem, parecia que todo mundo conhecia todo mundo. Depois, as coisas mudaram. Cultivar a terra tornou-se um péssimo negócio e as fábricas começaram a tomar conta de tudo. As pessoas começaram a ir embora. Como ele está planejando fazer agora.

— O que aconteceu com a fazenda dele?

— Tomaram a terra para construir uma fábrica. Havia sete acres à beira do rio que pertencia ao pai dele. Começaram a brigar por essa terra. A fábrica e ele.

— E o que aconteceu?

Daniel fitou-a, com uma frieza terrível nos olhos.

— Mataram o pai dele e o filho mais velho e fizeram os tribunais tirar a terra da família. E agora ele não tem para onde ir. Exceto Detroit.

— Você tem sorte, Daniel. Pelo menos tem um lugar para onde ir.

— Será que tenho mesmo?

— Claro que sim. Tem um bom emprego aqui. E um futuro. Pode cuidar de si mesmo.

A voz de Daniel era impassível:

— Um bom emprego? Quarenta dólares por mês. Acha que isso é um bom emprego?

— Há homens que não ganham tanto.

— Tem razão. Tudo se resume a uma questão de quanta fome uma pessoa consegue suportar. O mineiro, o lavrador e o operário estão no mesmo barco. A única escolha que eles têm é quanta fome vão querer passar.

Sarah não disse nada, e Daniel continuou:

— Não consigo entender as coisas, Srta. Andrews. Vi meu pai se desesperando porque o Sr. Fitch não lhe queria dar alguns cents a mais pela aguardente que fabricara. Vi mineiros morrendo no fundo da terra por um dólar e meio por dia. Ouvi histórias de meninas que têm os braços arrancados nas máquinas das fábricas por cinco cents a hora. E os garotos que trabalham na separação do carvão perdem as mãos pelo mesmo dinheiro. Não compreendo por que as pessoas que decidem essas coisas não podem dar um pouco, a fim de que os outros, os que trabalham para elas, possam sobreviver direito.

Era o discurso mais longo que Sarah já o ouvira fazer e a primeira vez que lhe revelava os seus pensamentos. E ela não tinha resposta. Pela primeira vez, sentia a própria incapacidade.

— Sempre foi assim, Daniel.

— Mas não tem de ser. E algum dia não será.

Sarah não disse nada.

— Estive pensando. Tinha de haver uma razão. Uma razão para tudo isso. O que aconteceu com a minha família. Jimmy compreendeu tudo. Eu não compreendi. Só há dois tipos de pessoas neste mundo. Os que são os donos de tudo e os que trabalham para eles. Agora sei de que lado estou.

— Daniel, já pensou em continuar a estudar? Ir para a universidade, ser alguém?

— Pensei nisso quando descobri como sabia pouco. Mas isso exige dinheiro.

— Talvez não tanto quanto pensa. Tenho amigos na universidade. Estou certa de que lhe posso arrumar pelo menos uma bolsa de estudo parcial.

— Mesmo assim, ainda exige dinheiro.

— Não haverá ninguém para comprar. A terra está gasta, sem valor. Meu pai só conseguiu continuar a viver lá porque Molly Ann e eu fomos trabalhar e mandávamos dinheiro para casa. Se não fizéssemos isso, todos passaríamos fome.

Sarah estendeu a mão por cima da mesa e tocou na dele, dizendo suavemente.

— Sei como se sente, Daniel. E lamento profundamente o que aconteceu.

Daniel olhou para a mão dela, depois para o rosto.

— Agradeço sua compaixão, Srta. Andrews. — Ele se levantou. — Vou até a pensão para pegar o dinheiro para o Sr. Craig. Voltarei daqui a pouco.

 

Roscoe saiu do quarto por volta das oito horas, esfregando os olhos para afugentar os últimos vestígios de sono. Usava o roupão desbotado que Daniel vestia quando passava a noite na casa.

— Já está escuro — disse ele, com um ligeiro tom de surpresa. — Onde está Daniel?

— Ele foi até a pensão buscar algumas coisas. Já deve estar voltando. — Sarah foi até a cozinha e retornou com as roupas de Roscoe. — Fiz o melhor que pude, Sr. Craig.

— Estão ótimas, madame — disse Roscoe, olhando a calça e a camisa impecavelmente passadas, e as botas engraxadas.

— Vou aprontar o jantar enquanto se veste. E farei alguns sanduíches para o senhor comer na viagem.

— Não precisa incomodar-se, madame.

— Não é incômodo algum, Sr. Craig. — Encaminhou-se para a cozinha, parou no meio do caminho e virou-se. — O que vai acontecer agora com Daniel, Sr. Craig?

Ele fitou-a, pensativo.

— Não sei direito. Daniel é agora um homem sozinho e vai tomar as próprias decisões.

Daniel voltou, enquanto Sarah ainda estava aprontando o jantar. Era um Daniel que ela nunca vira antes. Não mais estava de camisa branca e gravata, com a calça comprada em loja e os sapatos pretos reluzentes. Usava agora um macacão de zuarte surrado e desbotado, preso por tiras cruzadas, por cima de uma camisa azul de algodão, limpa, mas parecendo excessivamente usada. Um chapéu preto de montanhês, desbotado, de aba larga, estava ajeitado na cabeça. Subitamente, não era mais um menino e sim um homem. E um homem cansado, ferido, amargurado pela vida. Sarah sentiu uma dor intensa por dentro. Foi nesse momento que aceitou o que sempre soubera desde aquela manhã. Que Daniel estava indo embora.

Jantaram em silêncio. Depois que acabaram de comer, ela recolheu os pratos e levou para a cozinha. Colocou tudo na pia e voltou para a sala, sem lavar. Haveria tempo suficiente para isso mais tarde. Daniel levantou-se da mesa assim que ela entrou na sala, dizendo:

— Já são quase dez horas. Temos de partir.

Ela fitou-o em silêncio por um momento, depois murmurou:

— Preparei alguns sanduíches.

Foi para a cozinha, voltou com um saco de papel e entregou a Roscoe. O lavrador aceitou, agradecido.

— Muito obrigado, madame.

Mas Sarah não estava olhando para ele. Os olhos dela estavam fixados em Daniel.

— Ficarei esperando lá fora, Daniel — disse Roscoe, compreendendo a situação e saindo da casa apressadamente.

Os dois ficaram imóveis por um longo tempo, simplesmente se olhando. Finalmente, Sarah deixou escapar o ar que prendera nos pulmões e indagou:

— Vai para Detroit com ele?      

Daniel sacudiu a cabeça.

— Vou voltar para casa. O trem pode deixar-me em Turner's Pass, que fica apenas a quatorze quilômetros de distância.

— E depois disso?

— Não sei.

— Vai voltar? — Sarah sentiu um aperto terrível no coração.

Daniel fitou-a nos olhos.

— Acho que não, Srta. Andrews.

Os olhos dela começaram a se encher de lágrimas.

— Só agora, Daniel, por esta vez, chame-me de Sarah, por favor.

Ele hesitou por um momento, depois assentiu.

— Está bem... Sarah.

Ela foi para os braços dele, encostou a cabeça em seu peito, sussurrando:

— Algum dia voltarei a vê-lo?

Daniel continuou a abraçá-la gentilmente, sem responder. Ela ergueu a cabeça para olhá-lo.

— Você me ama, Daniel? Só um pouquinho?

Ele fitou-a nos olhos.

— Amo, sim. Só não sei quanto. Ê a primeira vez que amei uma garota.

— Não se esqueça de mim, Daniel — soluçou Sarah. — Não se esqueça de mim.

— Como poderia? Nunca mais vou esquecê-la. Eu lhe devo muita coisa.

Sarah apertou-o com toda força. E mais tarde, depois que ele se foi e ela estava sozinha na cama, ouviu o apito do trem à meia-noite, virou o rosto no travesseiro e ainda pôde sentir o calor dos braços de Daniel a enlaçá-la.

— Eu o amei, Daniel — balbuciou ela, dizendo as palavras que nunca conseguira dizer para ele. — Ó   Deus, nunca saberá o quanto o amei!

 

A locomotiva arrastando os 22 vagões de carvão subia penosamente pelo aclive na direção do Turner's Pass, pouco depois das oito horas da manhã. Havia apenas oito vagões de carvão quando Daniel e Roscoe tinham embarcado, mas a composição parara em mais três minas no caminho. O pequeno vagão destinado aos empregados balançava suavemente no final da composição. O guarda-freios meteu a cabeça para fora da janela, depois recuou e informou:

— Estamos chegando ao Turner's Pass, Daniel.

— Obrigado pela cortesia, Sr. Small — disse Daniel, levantando-se.

— Não foi nada, Daniel — disse o guarda-freios, sorrindo.

Daniel virou-se para Roscoe.

— Boa sorte, Sr. Craig. Espero que tudo lhe corra bem.

Roscoe estendeu a mão.

— Boa sorte para você também, Daniel.

O rapaz acenou com a cabeça. Encaminhou-se para a porta na traseira do vagão. Roscoe chamou-o. Daniel virou-se. E o homem mais velho disse, meio sem jeito:

— É o único que restou, Daniel. Acho que seu pai não iria querer que lhe acontecesse alguma coisa.

Daniel não disse nada e Roscoe acrescentou:

— O que estou querendo dizer, Daniel, é que, se lhe acontecer alguma coisa, então a vida de seu pai nada terá significado.

Daniel tornou a acenar com a cabeça.

— Vou pensar nisso, Sr. Craig.

— O trem está diminuindo a velocidade — informou o guarda-freios. É melhor saltar agora, Daniel.

O rapaz saiu para a pequena plataforma e ficou esperando no degrau de baixo, até que o trem estava quase se arrastando. Roscoe e o guarda-freios também saíram para a plataforma. Daniel pulou, correu alguns passos e deslizou pela encosta ao lado dos trilhos. Depois se levantou, acenando com a mão para mostrar que estava bem. Eles acenaram em resposta, enquanto o trem aumentava de velocidade novamente. Alguns minutos depois, o trem desaparecia numa curva e Daniel começava a andar pelas montanhas, a caminho de sua casa.

Encontrou as velhas trilhas, como se nunca tivesse estado longe dali. Era o lugar em que crescera e conhecia aquela terra como a palma da mão. Lembrou-se do tempo em que era pequeno e o pai o levara a caçar pela primeira vez. Sentira-se extremamente orgulhoso ao levar um coelho para casa.

Absorvido nas recordações, as duas horas que levou para percorrer os 14 quilômetros até sua casa pareceram-lhe apenas alguns minutos. Assim, não estava preparado para o choque, quando saiu da estrada e se aproximou do lugar em que outrora estava a casa.

Ficou paralisado. A casa estava reduzida a escombros carbonizados, só restando de pé a estrutura e a chaminé. Ao sol da manhã, o ar parecia tremeluzir sobre os escombros. E por trás da casa estava o estábulo, intacto, sem vida. Daniel respirou fundo, fazendo um esforço para avançar até o pátio.

Houve um ruído forte às suas costas. Daniel virou-se rapidamente. A mula saiu de detrás das moitas à beira da estrada. Os olhos grandes e redondos fixaram-se em Daniel, inquisitivamente.

A mula foi a primeira a se mexer. Atravessou a estrada, aproximou-se de Daniel e cutucou-o gentilmente com o focinho. O rapaz deu um passo para o lado e a mula seguiu em frente, atravessando o pátio e entrando no estábulo.

Daniel seguiu-a. A mula estava com o focinho enterrado no feno. Daniel olhou para o cocho. Estava seco. Ele saiu para o pátio, foi até o poço. O balde ainda estava ali, pendurado na boca da bomba. Daniel pôs-se a acionar a bomba. Não demorou muito para que a água subisse e enchesse o balde. Daniel levou-o até o cocho.

A mula levantou a cabeça e observou-o. Lentamente, Daniel esvaziou o balde no cocho. Ainda mastigando pedaços de feno, a mula aproximou-se do cocho. Olhou-o por um momento, depois virou a cabeça para Daniel, que assentiu e murmurou;

— É isso mesmo, mula estúpida. É assim que a água chega aqui. Pode beber.

A mula parecia quase estar sorrindo ao remover os pedaços de feno dos dentes com a língua. Depois, delicadamente, enfiou o focinho na água e começou a beber. Daniel afastou-se.

Sem tornar a olhar para a casa, subiu a encosta até o pequeno cemitério. Olhou para as sepulturas, a terra ainda preta e recente a cobri-las. Tirou o chapéu e ficou parado ao sol. Nunca estivera num enterro e por isso não sabia qual a prece certa a dizer. A única que podia recordar-se era a que a mãe lhe ensinara quando era pequeno. E os lábios se mexeram suavemente:

 

         “Agora eu me deito para dormir.

           Rezo ao Senhor para guardar-me a alma.

           Se eu tiver de morrer antes de acordar,

           Rezo ao Senhor para levar-me a alma.

           Deus abençoe a Mãe, Deus abençoe o Pai,

          Deus abençoe meus irmãos e minhas irmãs...”

 

A voz se desvaneceu. Pela primeira vez, as lágrimas afloraram a seus olhos, borrando as sepulturas. Daniel continuou de pé ali, sem se mexer, as lágrimas escorrendo pelas faces. As lágrimas cessaram depois de algum tempo, mas Daniel permaneceu ali, as sepulturas e as pequenas cruzes de madeira se gravando indelevelmente em seu cérebro, a perda, a dor e o vazio drenando sua alma. E depois, subitamente, estava acabado. A dor cessou. Ele ficou de olhos fechados por um longo momento. Sabia o que tinha a fazer.

Sem olhar para trás, deixou o pequeno cemitério e continuou a subir pela trilha. Contornou a pequena curva e lá estava, como sempre estivera. O alambique do pai, o pequeno barracão, os tubos de cobre, as moringas. Era como se nada tivesse acontecido.

Ele abriu a porta do pequeno barracão e entrou. Estava escuro, bem pouca luz passava pela porta. Estendeu a mão para a prateleira de cima e encontrou o que procurava. Tornou a vasculhar com os dedos e encontrou a caixa que sabia estar por perto. Saiu do barracão com a espingarda de cano duplo envolta por uma lona e com a caixa de balas. Tirou a lona rapidamente. A espingarda estava limpa, reluzindo. Daniel puxou os cãos e apertou os gatilhos. Os cãos se encaixaram perfeitamente no percussor. O pai sempre insistira em manter suas armas limpas e em perfeito funcionamento. Daniel abriu a caixa de balas. Estava quase cheia.

Pôs tudo em cima de uma bancada de madeira e tornou a entrar no barracão. Saiu desta vez com uma serra de cortar aço e com uma lima. Cuidadosamente, prendeu a espingarda no torno que havia na bancada e começou a cortar lentamente os canos da espingarda, reduzindo-os a um quarto do seu comprimento. Depois que acabou, passou a lima nas beiras, alisando-as. Limpou tudo com um pedaço de pano embebido em óleo. Com outro pedaço de pano, removeu os vestígios de óleo e depois tirou a espingarda do torno. Levantou-a e olhou. A arma toda, inclusive o cabo de madeira, tinha agora menos de três palmos de comprimento.

Tornou a largar a arma em cima da bancada, pegou duas moringas e foi colocá-las na cerca, ao sol. Segurando a espingarda na altura da cintura, apoiada contra o quadril, puxou os dois gatilhos. O coice fê-lo virar-se bruscamente, o estampido doeu em seus ouvidos. Virou-se para verificar o alvo. Errara completamente. A moringa em que mirara continuava intacta.

Foi até a cerca, os olhos inspecionando a árvore por trás, à procura de vestígios dos disparos. Encontrou-os. Estavam altos e para a esquerda, espalhados demais. A árvore ficava alguns passos atrás do alvo, o que significava que teria de chegar mais perto para que a arma se tornasse eficaz. Daniel avançou, deliberadamente. Não havia pressa. Tinha a tarde inteira.

Quando finalmente ficou satisfeito, já usara todos os cartuchos, à exceção de quatro. Meteu dois na arma e guardou no bolso os outros dois.

O Sol estava começando a descair para oeste, quando ele desceu pela trilha. Passou pelo cemitério sem parar e foi direto para o estábulo. A mula estava em sua baia, aparentemente satisfeita.

Daniel pegou os arreios numa cavilha de madeira na parede do estábulo e aproximou-se da mula. O animal ficou observando-o, cautelosamente.

— Vamos logo, mula — disse Daniel. — Chegou o momento de fazer jus à sua manutenção.

Jackson começou a varrer a calçada de madeira diante do armazém de Fitch às sete horas da manhã. Não prestou a menor atenção ao homem que estava sentado no banco da praça, no outro lado da rua. Parecia simplesmente outro lavrador, tirando um cochilo, o chapéu puxado sobre os olhos para impedir a passagem da claridade da manhã. Até mesmo a mula velha, amarrada a uma árvore próxima, não merecia um segundo olhar.

Pouco depois, Harry, o irrequieto empregado, chegou ao armazém e começou a arrumar as prateleiras de mostruário na entrada. Tinha acabado seu trabalho no momento em que o Sr. Fitch apareceu. Harry deu uma olhada rápida para o relógio grande nos fundos da loja. Oito horas. Pontualmente, como sempre. O Sr. Fitch esta com boa disposição.

— Tudo bem, Harry?

O homenzinho sacudiu a cabeça vigorosamente.

— Está, sim, Sr. Fitch. Está tudo ótimo.

O Sr. Fitch soltou uma risadinha, passou por ele e entrou no armazém. Harry seguiu-o.

— Acabamos de receber as latas de feijão, Sr. Fitch. Quer que ponha à venda?

Fitch parou por um instante, depois acenou com a cabeça.

— E por quanto, Sr. Fitch?

— Três por dez cents, Harry. É barato o bastante e ainda dá um bom lucro. Custam apenas dois cents por unidade para nós.

— Pode deixar que cuidarei de tudo, Sr. Fitch — disse Harry.

Fitch continuou a seguir para seu escritório nos fundos do armazém, enquanto Harry chamava Jackson aos gritos, mandando-o buscar as latas de feijão no porão.

No outro lado da rua, o homem levantou-se do banco. Olhou para um lado e outro da rua, por um momento. Não havia muita gente à vista. Lentamente, atravessou a rua, encaminhando-se para o armazém, os braços apertando o casaco em torno do corpo, o chapéu ainda abaixado sobre os olhos. Entrou no armazém. Harry empertigou-se prontamente por trás do balcão.

— Posso servi-lo em alguma coisa, senhor?

— O Sr. Fitch está? — disse o homem, sem dirigir o olhar para o empregado.

— No escritório, lá nos fundos.

— Obrigado — agradeceu o homem, polidamente.

Ele já se estava afastando antes de acabar de falar. Desapareceu por detrás de uma pilha de engradados, perto da entrada do escritório.

Sam Fitch, sentado atrás de sua escrivaninha, levantou a cabeça quando o homem entrou.

— Bom dia, amigo — disse ele, com a voz reservada aos fregueses. — Posso servi-lo em alguma coisa?

O homem parou diante da mesa. Empurrou o chapéu para trás da cabeça. A voz era inexpressiva:

— Acho que pode.

O rosto de Sam Fitch empalideceu. —- Daniel!

Daniel ficou calado.

— Não o reconheci, rapaz. Cresceu um bocado.

Daniel fitou-o nos olhos, firmemente.

— Por que fez aquilo, Sr. Fitch?

— Fiz o quê? — Fitch tentou bancar o surpreso. — Não sei do que está falando.

Os olhos de Daniel estavam terrivelmente frios.

— Acho que sabe, Sr. Fitch. O que lhe fizemos para que matasse todos eles?

— Ainda não sei do que está falando.

— Roscoe Craig estava lá, escondido no estábulo. Viu tudo. E me contou. — A voz de Daniel continuava destituída de qualquer emoção. Fitch decidiu abandonar a pretensão de que não sabia de nada, mas nem por isso deixou de mentir.

— Foi um acidente, Daniel. Tem de acreditar em mim. Não tínhamos a menor intenção de iniciar um incêndio.

— E também não tinha a menor intenção de matar meu pai, não é mesmo? Apenas deu o sinal para que os homens atirassem, quando ele saiu da casa.

— Estava tentando detê-los. Era isso o que eu estava tentando fazer. Queria detê-los. — Os olhos de Fitch se arregalaram quando o casaco de Daniel se abriu, deixando à mostra a espingarda de canos serrados. Continuou a falar, enquanto abria uma gaveta da mesa, estendendo a mão para a arma que estava lá dentro. — Tentei detê-los, Daniel. Mas não quiseram ouvir-me. Estavam enlouquecidos.

— Está mentindo, Sr. Fitch. — A voz de Daniel era categórica e definitiva.

Fitch estava agora com a mão na arma. Movendo-se rapidamente para um homem do seu tamanho, tirou a arma da gaveta e pulou para o lado da cadeira, na direção das janelas de vidro que separavam o escritório do resto do armazém. Mas não conseguiu mover-se com rapidez suficiente.

O estrondo dos dois canos sendo disparados foi como uma trovoada no pequeno escritório. O corpo de Fitch foi inteiramente destroçado, do peito à barriga, os tiros arremessando-o para trás, através da divisória de vidro. Seu sangue e entranhas espalharam-se sobre os engradados de madeira, que caíram ao redor do corpo.

Lentamente, Daniel adiantou-se e olhou para o corpo mutilado de Sam Fitch. Ainda estava parado no mesmo lugar, quando o xerife entrou correndo no armazém, seguido por um de seus auxiliares.

O xerife olhou rapidamente para o corpo de Sam Fitch, depois virou-se para Daniel. Guardou seu revólver no coldre. E estendeu a mão para Daniel.

— Acho melhor me entregar essa arma, Daniel.

O rapaz despregou os olhos do corpo de Sam Fitch.

— Xerife, ele matou toda a minha família.

— Dê-me a arma, Daniel — repetiu o xerife, gentilmente.

Daniel sacudiu a cabeça, lentamente.

— Sim, senhor.

O xerife pegou a espingarda e entregou-a a seu auxiliar.

— Vamos embora, Daniel.

Daniel saiu do escritório e parou para olhar novamente o corpo de Sam Fitch. Ao levantar a cabeça a fim de olhar para o xerife, havia uma estranha angústia em seus olhos. E foi com uma voz desesperada que perguntou:

— Xerife, será que não havia ninguém em toda esta cidade que pudesse detê-lo?

O juiz fitou Daniel, que estava parado em silêncio diante dele, no tribunal quase vazio. E disse, solenemente:

— Daniel Boone Huggins. Tendo em vista as circunstâncias atenuantes, a morte de sua família e a sua extrema juventude, e na esperança de que a morte e a violência que assolaram este condado no último ano tenham finalmente chegado ao fim, a decisão deste tribunal é de que seja enviado para o Instituto Estadual de Correção para Rapazes, por um período de dois anos ou até chegar à idade de 18 anos, qualquer das duas coisas que acontecer primeiro. Este tribunal tem também a esperança de que se aplique diligentemente para aprender um ofício e aproveite as muitas oportunidades que vai encontrar no Instituto de Correção para se tornar um membro útil da sociedade. — Ele bateu com o martelo duas vezes no tampo da mesa e depois se levantou. — A sessão do tribunal está encerrada.

O juiz desceu da plataforma, enquanto o xerife se aproximava de Daniel. Tirando um par de algemas do bolso, o xerife disse:

— Sinto muito, Daniel. Mas a lei manda eu usar algemas nos prisioneiros condenados.

Daniel olhou para o xerife e depois estendeu as mãos, sem dizer nada. O xerife meteu as algemas nos pulsos dele e fechou-as. Olhou para Daniel, pensativo.

— Não está zangado, não é mesmo, Daniel?

Daniel sacudiu a cabeça.

— Não, Xerife. Por que deveria ficar zangado? Está tudo acabado. Talvez agora eu possa esquecer.

Mas ele jamais esqueceu.

 

                                       Agora

Os freios a ar sibilaram, enquanto o imenso trailer parava à beira da estrada. A porta se abriu e o motorista ficou-nos olhando, aturdido, enquanto eu saltava. Estendi a mão para ajudar Anne a descer.

— Acho que estão doidos — comentou o motorista. — Não entendo como podem descer no meio do nada. Fitchville está a cinqüenta e cinco quilômetros daqui pela estrada e a outra cidade mais próxima fica a oitenta quilômetros de distância. E não há nada entre as duas, a não ser talvez alguns meeiros.

Anne desceu da cabine e eu peguei as mochilas, dizendo:

— Obrigado pela carona.

O motorista continuava aturdido.

— Não tem de quê. Mas é bom tomar cuidado. As pessoas daqui não são lá muito amistosas com estranhos. E às vezes atiram antes de fazer perguntas.

— Nada nos acontecerá — falei.

O homem acenou com a cabeça e fechou a porta. Ficamos observando o caminhão ganhar velocidade. Um momento depois, desaparecia completamente, em meio ao tráfego na estrada. Virei-me para Anne. Ela não dissera nada até aquele momento.

— Sabe para onde estamos indo, Jonathan?

Acenei com a cabeça. A voz dela tornou-se sarcástica:

— Importa-se de me dizer?

Corri os olhos pelo terreno à beira da estrada, depois apontei para uma pequena colina a cerca de um quilômetro e meio de distância.

— Estamos indo para aquela colina.

Ela olhou para a colina e depois voltou a me fitar.

— Por quê?

— Saberei quando chegar lá. — Desci pela encosta à beira da estrada. Quando olhei para trás, descobri que Anne continuava parada no mesmo lugar, olhando-me.

— Vem comigo?

Ela assentiu e começou a descer. Escorregou no meio e tive de segurá-la. Anne encostou a cabeça em meu peito. Estava tremendo. Depois de um momento, levantou a cabeça para me fitar.

— Estou com medo.

— Não precisa ter medo — falei, fitando-a nos olhos. — Está comigo.

Levamos quase duas horas para chegar ao topo da colina, outra meia hora para descer até o cômoro a cerca de um quarto da encosta do outro lado. Larguei a mochila e sentei-me no chão. Depois, de joelhos, comecei a tatear a terra sob a relva alta.

— O que está fazendo? — perguntou Anne.

— Procurando uma coisa.

No mesmo instante, senti a mão bater em uma pedra. Tateei-a cuidadosamente. O formato era retangular, a superfície superior inclinada ligeiramente em minha direção. Era um bloco de pedra, que não tinha mais de meio metro de comprimento e cerca de um palmo de largura. Com as mãos, afastei a terra que a cobria, até que as letras gravadas na pedra ressaltaram, bem nítidas.

 

                 HUGGINS.

 

— O que descobriu? — A voz de Anne soou suavemente às minhas costas.

Olhei novamente para a pedra, depois para Anne.

— A sepultura de meu avô.

— Sabia onde estava?

— Não — respondi, sacudindo a cabeça.

— Então como descobriu?

— Não sei.

— Conte a ela que fui eu que lhe disse, filho.

— Nunca me disse nada. Mesmo quando estava vivo.

— Eu lhe disse tudo. Mas você não estava escutando.

— O que o faz pensar que estou escutando agora?

A risada dele, profunda, intensa, era a mesma que eu ouvira por toda a minha vida.

— Vá embora, Pai. Está morto. E tenho de viver a minha própria vida.

— Ainda é jovem. Tem tempo. Primeiro, precisa viver a vida. E depois poderá viver a sua.

— Mas que merda!

— Exatamente. — A risada profunda soou novamente. — Mas terá de aprender a andar, antes de poder correr.

— E é você quem vai ensinar-me?

— Isso mesmo.

— E como vai conseguir fazê-lo com sete palmos de terra por cima de sua cabeça lá em Scarsdale?

— Já lhe disse. Estou em cada célula de seu corpo. Eu sou você e você é eu. E enquanto você viver, eu estarei presente.

— Mas um dia eu também morrerei. E onde você estará então?

— Com você. No seu filho.

A voz do homem soou atrás de nós:

— Virem devagar e não façam movimentos súbitos.

Levantei-me. Anne pôs a mão na minha e nos viramos lentamente para encarar o homem. Ele era alto e magro, macacão desbotado, camisa velha, rugas em torno dos olhos de tanto cerrá-los por causa do sol, chapéu de palha de aba larga e uma espingarda de cano duplo apontando para nós.

— Não viram os cartazes no caminho avisando que é proibida a entrada?

— Não viemos pelo caminho. Subimos pela colina, vindo da estrada.

— Pois tratem de voltar pelo caminho por onde vieram. O que quer que estão procurando aqui, não vão encontrar.

— Já encontrei o que estava procurando — falei, apontando para a pedra no chão.

Ele deu um passo para o lado e olhou.

— Huggins — disse o homem, suavemente. — O que isso tem a ver com você?

— Ele era meu avô.

O homem ficou calado por um momento, os olhos examinando atentamente meu rosto.

— Como é o seu nome?

— Jonathan Huggins.

— O filho de Big Dan?

Acenei com a cabeça, assentindo. O cano da arma baixou para o chão, e a voz dele tornou-se mais gentil:

— Vocês dois me acompanhem até a casa. Minha esposa tem uma boa limonada pendurada no poço.

Seguimos o homem por uma trilha entre as árvores no outro lado da colina. Saímos num pequeno cômoro logo acima de um milharal. A casa ficava depois do milharal. Se é que se podia chamar de casa. Era mais um barraco, com pedaços irregulares de madeira pregados juntos, as frestas tapadas com papelão e alcatrão, outras tábuas no telhado pregadas por cima de um plástico. Uma velha pickup toda amassada estava parada diante da casa, coberta de poeira, ao sol da tarde, a tinta que ainda restava com uma cor desbotada e indefinida. O homem conduziu-nos além do milharal, passando pela pickup e chegando à porta. Abriu-a e gritou:

— Betty May, temos visitas!

Um momento depois, uma moça apareceu na porta. Não devia ter mais do que 16 anos, rosto redondo, olhos azuis, cabelos louros compridos. E estava grávida. Fitou-nos atentamente, um princípio de medo nos olhos.

— Está tudo bem — disse o homem, procurando tranqüilizá-la. — Eles são lá do Norte.

— Como vão? — A voz era a de uma menina.

— Olá — falei.

O homem virou-se para mim, estendendo a mão.

— Sou Jeb Stuart Randall. Minha mulher, Betty May.

— Prazer em conhecê-lo, Jeb Stuart. — Apertei-lhe a mão. — Essa é Anne.

Ele fez uma meia mesura antiquada.

— Honrado, madame.

— Nada de madame.

— Como? — murmurou ele, sem entender.

— É um prazer conhecê-los, Sr. Randall, Sra. Randall — disse Anne, sorrindo.

— Pegue a limonada no poço, Betty May. As visitas devem estar ressecadas do sol da tarde.

Betty May pareceu deslizar por nós, enquanto seguíamos o homem para o interior da casa. Estava escuro e fresco, depois do calor intenso lá fora. Sentamo-nos em torno de uma mesa pequena, no cômodo único. Numa das paredes havia um antiquado fogão de carvão e uma pia, com armários por cima. Na outra parede havia um armário, uma arca de gavetas e uma cama, sobre a qual estava estendida uma colcha de retalhos. Havia um pequeno lampião a óleo centro da mesa.

Jeb Stuart tirou do bolso um cigarro fumado pela metade e o colocou na boca, sem acender. Betty May voltou com o cântaro de limonada.. Em silêncio, encheu três copos e colocou diante de nós. Não se serviu, assim como também não se sentou à mesa conosco. Em vez disso, foi postar-se ao lado do fogão e ficou parada ali, observando-nos. Provei a limonada. Estava aguada e muito doce. Mas um pouco gelada.

— Está ótima, madame.

— Obrigada — murmurou ela, numa vozinha de criança satisfeita.

— Ouvi a notícia do falecimento de seu pai — disse Jeb Stuart. — Meus pêsames.

Acenei com a cabeça.

— Vi seu pai uma vez. Como ele sabia falar! Lembro-me que fiquei escutando e pensando: esse homem é capaz de deixar os anjos encantados!

Soltei uma risada.

— Provavelmente é o que ele está fazendo neste momento. Ou então está forçando o Diabo a mudar o horário de trabalho lá embaixo.

Ele ficou sem saber se devia sorrir ou não.

— Seu pai era um temente a Deus. Está provavelmente lá em cima, com os anjos.

Tornei a assentir. Tinha de me lembrar que não falávamos a mesma língua.

— Seu pai era um de nós. Nasceu aqui mesmo. Fez um nome por si mesmo que o país inteiro aprendeu a respeitar. — Jeb Stuart meteu a mão no bolso e tirou o distintivo familiar, o trevo de quatro folhas azul, sobre um fundo branco, as letras C.A.L.L. numa das folhas, também brancas. — Quando ele começou a Confederação, fomos das primeiras organizações sindicais que se associaram.

— Qual era a organização?

— A S.F.W.U.

O que fazia sentido. A União dos Trabalhadores Rurais do Sul (Southern Farm Workers Union). Nem o C.I.O. (Congress of Indus­trial Organizations — Congresso de Organizações Industriais) nem a A.F.L. (American Federation of Labor — Federação do Trabalho Americana), as duas grandes centrais sindicais, jamais se deram ao trabalho de fazer algo mais além de cobrar-lhes as contribuições. Não havia dinheiro de verdade por lá. Mas meu pai pensava de maneira diferente. Sabia que tinha de começar em algum lugar. O que estava procurando antes de mais nada era associados e não dinheiro. O Sul estava maduro para a colheita. Fora por isso que insistira na palavra “Confederação”, ao invés de “Internacional”. E estava certo. Em apenas um ano, já tinha todas as organizações sindicais do Sul a seu lado. E contando com essa base, avançou rapidamente para o norte, leste e oeste. Três anos depois, podia apresentar uma filiação nacional de 700 federações sindicais, representando mais de 20 milhões de trabalhadores.

Jeb Stuart gesticulou para a esposa. Sem dizer nada, ela tornou a encher os copos. O homem continuou a falar:

— Ainda posso lembrar-me de cada palavra que seu pai disse: “Sou um de vocês. Nasci nestas montanhas. Ajudei meu pai com o arado e a aguardente. Meu primeiro emprego, quando tinha quatorze anos, foi numa mina de carvão. Conduzi gado no Texas, trabalhei em poço de petróleo em Oklahoma, carreguei barcas de rio em Natchez, dirigi um caminhão de lixo na Geórgia, colhi laranjas na Flórida. Fui despedido de mais empregos do que qualquer um de vocês jamais sonhou que pudessem existir.”

“Ele olhou para a gente, no salão grande, por baixo daquelas suas sobrancelhas espessas. Estávamos todos rindo. Ele nos tinha na mão. Sabia disso e nós sabíamos também. Mas não sorriu. Estava sério, tratando de negócios. 'Não estou pedindo que deixem o C.I.O. e se juntem a nós. O C.I.O. está fazendo um bom trabalho para vocês. Apesar de o velho John L. estar ficando um pouco entrado em anos e os rapazes Reuther lá de Detroit serem ainda um tanto jovens, precisando de mais um pouco de experiência, mesmo assim ainda estão fazendo um bom trabalho por vocês. Mas não podem fazer tudo o que há para se fazer. Nem mesmo quando se juntarem com a A.F.L. . . e podem estar certos de que isso vai acontecer... eles poderão fazer tudo o que é necessário”.'

“Não estou pedindo a vocês para ficarem ainda mais sobre­carregados com contribuições e taxas. Deus sabe que vocês já estão pagando atualmente mais do que o suficiente. Estou pedindo a vocês para se juntarem a uma confederação. Todo mundo aqui no Sul sabe exatamente o que significa uma confederação, dos seus livros de história. É um grupo de pessoas que se juntam por sua livre e espontânea vontade, a fim de preservar seus direitos como indivíduos. Exatamente como nossos bisavós fizeram há anos, na guerra entre os Estados.

“ 'O objetivo da Aliança Confederada de Trabalho Ativo (Confederated Alliance of Living Labor — C.A.L.L.) é ajudar cada sindicato individual a manter sua posição de independência e alcançar os melhores resultados para os seus associados. Nós prestamos serviços. Consultoria, planejamento, administração. A fim de que possam decidir o que é melhor para vocês, exatamente como as grandes organizações sindicais e as grandes corporações, que chamam especialistas para ajudar a resolver seus problemas. Vocês não precisam pagar contribuições, absolutamente nada, a menos que nos chamem para trabalhar. E neste caso só pagarão enquanto estivermos trabalhando. Assim que o trabalho estiver concluído, deixam de pagar.

Jeb Stuart tomou um gole de limonada, antes de continuar:

— Eu não podia entender direito o que ele estava falando e acho que ninguém por lá entendia. Mas isso não tinha importância. Big Dan tinha-nos prendido.

Ri interiormente. Conhecia o discurso de cor, pois o ouvira um milhão de vezes. Meu pai procurava dar a impressão de que era uma conclamação à Confederação: o Sul se levantaria de novo. A partir do momento em que uma organização sindical aderia, era apenas o início. Começava então o programa de vendas. Não creio que houvesse uma única organização sindical que jamais percebesse antes que precisava de tanto ajuda. Onde pensavam que havia apenas um problema, a C.A.L.L. tratava de mostrar que existiam pelo menos 10. E depois estava tudo acabado. O melhor de tudo era que a A.F.L. e o C.I.O. não podiam fazer nada. Afinal, a C.A.L.L. existia para ajudá-los também.

— E o que aconteceu depois? — perguntei

— Naquele verão, falou-se muito em entrar em greve, porque a colheita seria extraordinária. A C.A.L.L. nos explicou que iríamos prejudicar mais a nós mesmos do que aos grandes fazendeiros, porque havia uma possibilidade de todo mundo trabalhar, pela primeira vez em três anos. E se perdêssemos aquela colheita grande, levaríamos mais de seis anos para compensar a perda. As previsões eram de que a colheita do ano seguinte seria fraca. Aquele era o momento propício para imprensarmos o fazendeiro, porque metade dos trabalhadores estaria de qualquer forma sem trabalho. E foi o que fizemos. Tudo deu certo. A greve terminou em duas semanas. Os fazendeiros cederam, porque não podiam suportar uma perda total.

Fitei-o em silêncio por um momento, antes de comentar:

— E depois disso havia sempre alguém da C.A.L.L. no escritório da federação, trabalhando em algum projeto importante.

O homem ficou surpreso.

— Como sabia?

Não pude deixar de sorrir.

— Foi no meio disso que cresci. Conhecia meu pai muito bem.

— Ele era um grande homem — murmurou Jeb Stuart, reve­rentemente.

— Ainda pensa assim, agora que está trabalhando por conta própria?

— Não   estou   entendendo — disse   ele,   com   uma   cara   de espanto.

— Vi um milharal no caminho.

— Isso não é nada. Apenas três acres. Posso cuidar da plantação sozinho.

— E se o sindicato aparecer e disser que precisa de dois homens para ajudá-lo?

— Eles não vão aparecer. Ninguém mais sobe para estas bandas. Há muito tempo. Ninguém sabe que tenho uma plantação aqui em cima. Toda a região ao redor é árida.

Lembrei-me de algumas palavras que ele citara do discurso de meu pai, feita há tantos anos: “Ajudei meu pai com o arado e aguardente.” E subitamente entendi tudo, murmurando:

— O alambique de meu avô...

Jeb Stuart ficou subitamente pálido.

— Como?

— O alambique de meu avô. Descobriu-o?

Ele hesitou por um momento, depois assentiu. Agora, tudo começava a fazer sentido. Três acres de milho em aguardente era uma pequena fortuna.

— Quero ver o alambique.

— Agora?

— Agora.

Ele se levantou em silêncio, pegou a espingarda e encaminhou-se para a porta. Levantei-me para segui-lo. Subitamente, a voz de Betty May não era mais a de uma criança:

— Não, Jeb Stuart, não! Não faça isso!

Olhei para ele, depois para Betty May.

— Não se preocupe, madame. Ele não vai fazer nada.

Jeb Stuart acenou com a cabeça e saiu pela porta. Olhei para Anne.

— Fique esperando aqui até eu voltar.

Anne fez que sim, enquanto Betty May dizia:

— Já terei preparado o jantar antes de vocês voltarem.

— Obrigado — falei. E saí pela porta, atrás de Jeb Stuart. Ele foi andando na minha frente,   depressa, sem olhar para trás uma única vez. Não disse nada enquanto percorríamos a trilha através do pequeno bosque na encosta da colina. Ele parou de repente.

— É ali.

Olhei para o que parecia uma parede quase sólida de arbustos.

— Isso mesmo.

— Como sabia? — perguntou ele.

— Você me disse.

— Não estou entendendo.

— Não importa.

Ele se adiantou uns poucos passos, empurrou para o lado alguns galhos e seguiu adiante. Fui atrás e os galhos voltaram a se fechar numa parede às nossas costas. O caldeirão preto de ferro parecia limpo e incólume ao tempo, os tubos de cobre brilhavam como se fossem novos, na pequena clareira aberta na encosta da colina. Os 10 barris de carvalho de 40 galões estavam alinhados perto do alambique. No outro lado, havia uma pilha de lenha, impecavelmente cortada. Ouvi o sussurro de um pequeno córrego e fui para trás do alambique. Estava ali, faiscando aos raios de sol que penetravam pelas copas das árvores, descendo sobre as pedras. Pus as mãos na água e levei-as aos lábios. A água estava fresca.

— Essa água desce para o poço lá embaixo — comentou Jeb Stuart.

— Como descobriu?

— Caçando. Há dois anos. Meu cachorro descobriu um guaxinim. Depois de matá-lo, segui o córrego até o lugar em que ficava a velha casa. Compreendi imediatamente o que tinha de fazer. Três bons anos e estaria rico. Nunca mais precisaria trabalhar como lavrador para ganhar uma miséria. Poderia viver como um ser humano.

Voltei ao alambique. Ele me seguiu. Olhei para os tubos de cobre brilhantes.

— Os tubos são novos?

— Tive de consertar tudo — disse Jeb Stuart assentindo. — Betty May e eu trabalhamos por um ano inteiro. Limpando a terra para plantar o milho, construindo o barracão. Gastamos todas as nossas economias para comprar os suprimentos e os materiais necessários. Mais de seiscentos dólares. E só depois que colhemos o milho na primavera passada é que começamos a acreditar que estava realmente acontecendo. Tudo corria como a gente esperava. Ninguém sequer sabia que a gente estava aqui. Nunca íamos a Fitchville para comprar qualquer coisa. Uma vez por semana, vamos de carro até Grafton, a oitenta e tantos quilômetros de distância pela estrada, para comprar o que precisamos. Tudo estava indo muito bem. E foi então que vocês apareceram.

Fitei-o, sem dizer nada. Ele pôs a espingarda no chão e olhou ao redor, pensativo, enquanto tirava um cigarro do bolso da camisa. O cigarro estava todo amassado e torto, como se lá estivesse há muito tempo. Jeb Stuart endireitou-o cuidadosamente e depois acendeu-o. Deixou a fumaça sair dos pulmões lentamente, turbilhonando diante de seu rosto, enquanto se virava para mim.

— Acho que Betty May e eu sempre soubemos, lá no fundo, que era bom demais para ser verdade. Não podia acontecer. — Ele fez uma pausa e depois acrescentou, a voz cansada, tensa: — Não temos muita coisa aqui. Podemos deixar o lugar amanhã de manhã.

— Por que pensa que vou querer que faça isso?

— A propriedade é sua, não é mesmo? — Ele me fitou nos olhos. — Descobri nos registros do condado, quando fui verificar quem era o dono. Vi o seu nome lá. Seu pai transferiu a propriedade para o seu nome, há três anos. Mas todo mundo lá no escritório de registro disse que ninguém aparecia por aqui há mais de trinta anos, à exceção do advogado que veio providenciar a transferência da propriedade.

Tratei de me afastar. Não queria que ele visse as lágrimas que eu procurava desesperadamente conter. Apenas mais uma coisa que meu pai nunca me contara. Uma entre muitas.

— Volte para a casa e informe a Betty May que eu disse que não vão precisar sair daqui. Irei também daqui a pouco.

— Tem certeza de que pode encontrar o caminho de volta?

— Tenho, sim.

Ouvi o barulho das moitas sendo afastadas. Quando me virei, ele havia desaparecido. Pude ouvir o som dos seus passos descendo pela trilha. E depois até isso cessou e nada mais restou além do silêncio e o sussurro da brisa nas árvores. Sentei-me no chão. A terra estava fria e úmida ao contato de meus dedos. Peguei um punhado de terra. E contemplei-a. Era preta e úmida. Comprimi-a contra o rosto, deixei que as lágrimas escorressem pela terra. Desatei a chorar, pela primeira vez desde a morte de meu pai.

Ainda não escurecera quando acabamos de comer. Pé de porco defumado, ervilhas pretas e verduras, com um molho escuro, pão de milho feito em casa e canecas de café fumegante. Vi que Betty May me observava pelo canto dos olhos.

— Está ótimo — comentei, enxugando o molho em meu prato com um pedaço de pão.

— Não é muita coisa, mas é um verdadeiro jantar do interior — disse ela, sorrindo satisfeita.

— E que é o melhor que existe, Betty May

— É o que eu sempre digo — interveio Jeb Stuart. — Betty May está sempre lendo essas receitas empoladas que saem nas revistas. Mas não são coisas para se comer, apenas para ler.

— Betty May não precisa preocupar-se com isso — disse Anne,. rindo. — Tenho a impressão de que ela pode cozinhar muito bem qualquer coisa que desejar.

— Obrigada, Anne — falou Betty May, um ligeiro rubor surgindo-lhe nas faces. Jeb Stuart empurrou o prato para o lado.

— Como podem ver, não temos muito espaço aqui. Mas podem dormir na cama. Betty May e eu dormiremos na traseira da pickup.

— Não precisam incomodar-se — apressei-me em dizer. — Anne e eu estamos com os nossos sacos de dormir. Além do mais, gostamos de dormir ao ar livre.

— Então o melhor lugar é o milharal. Os mosquitos não vão incomodá-los lá. Mantenho a plantação sempre protegida por inseticida. — Ele se levantou. — Venham comigo. Encontrei um bom lugar onde ficarão resguardados do vento da noite.

Levantei-me para segui-lo. Anne também se pôs de pé e disse para Betty May:

— Deixe-me ajudá-la com os pratos.

Betty May sacudiu a cabeça.

— Não há muita coisa para lavar. Pode ficar sentada. Não precisa incomodar-se.

A escuridão caiu rapidamente. Dez minutos depois, quando Jeb eu voltamos do milharal, havia um lampião com tampo de vidro aceso na mesa, o clarão amarelado dançando nas paredes. Olhei para o relógio. Eram quase oito horas.

— Tem um rádio? — perguntei.

Jeb Stuart sacudiu a cabeça.

— Não temos muito tempo para escutar, mesmo que tivéssemos. Geralmente vamos para a cama logo depois do jantar.

— Queria ouvir o noticiário. Meu irmão deveria ser designado para presidente em exercício da C.A.L.L. esta tarde.

— Sinto muito.

— Não há problema. — Virei-me para Anne. — Vamos embora. Vou mostrar-lhe onde deixei os nossos sacos de dormir. — Seguimos para a porta. — Obrigado pelo jantar, Betty May. Voltaremos a nos ver pela manhã.

Fomos em silêncio até os sacos de dormir. Quando lá chegamos, já era noite fechada, a última claridade se desvanecera no céu.

— Eles não têm luz — comentou Anne.

— Nem querem.

— Betty May sente falta da televisão. Foi o que ela me disse.

Não falei nada.

— Vai deixá-los ficar aqui, Jonathan?

— Vou.

— Fico contente por isso. Ela estava com medo de que você os mandasse embora.

— Ela contou isso?

— Contou. Encontraram seu nome nos registros. Sabia que seu pai havia transferido esta terra para o seu nome?

— Não.

— Então por que veio até aqui?

— Não sei. E não me pergunte mais nada. Não sei de nada. Por que estamos aqui hoje. Ou onde estaremos amanhã.

A mão dela procurou a minha e apertou-a firmemente. Virei-me para ela. A Lua surgira no céu e eu podia ver seu rosto.

— Você é muito estranho, Jonathan. Está-se tornando mais e mais parecido com seu pai, a cada minuto que passa. Até mesmo o som de sua voz.

— Mas que merda! — Ficamos em silêncio por um momento. — Estou arrependido de tê-la obrigado a jogar fora toda aquela maconha. Bem que estou precisando de puxar um fumo.

Anne soltou uma risadinha.

— Fala sério?

— Claro.

Ela saiu do saco de dormir e se sentou. Um momento depois, tinha nos mãos uma pequena bolsa e papéis.

— Minha reserva de emergência. Nunca fico sem ela.

Não falei nada, observando-a enrolar habilmente o cigarro de maconha e fechando-o com uma lambida rápida com a língua. Anne pegou um fósforo.

— É melhor deixar eu acender, Anne. Não vamos dar início a um incêndio. — Risquei o fósforo e acendi o cigarro, dando uma tragada funda. Passei o cigarro para Anne, enquanto enterrava o fósforo no chão. Ela puxou duas vezes, depois estendeu-se, apoiada num cotovelo, soltando um suspiro de satisfação. Dei outra tragada, devolvi a Anne, peguei de volta, apaguei e guardei no bolso da camisa.

— Alguma vez já viu tantas estrelas, Jonathan?

— Não — respondi, olhando para o céu.

Senti um movimento no saco de dormir de Anne e virei-me para vê-la. O rosto dela tinha a expressão de concentração peculiar que eu já conhecia. Subitamente, a respiração saiu ruidosamente pelos lábios contraídos de Anne.

— Oh, Deus! — suspirou ela. Percebendo que eu a observava, Anne acrescentou:   — Não   pude evitar.   De repente   senti tesão demais.

Ela se inclinou para mim, as mãos puxando-me o rosto. Senti os lábios dela sob os meus. E ouvi o sussurro:

— Daniel!

Furioso, empurrei-a bruscamente.

— Não sou eu que sou esquisito, mas. você. Está tentando trepar com um fantasma.

— Desculpe, Jonathan. — Ela começou a chorar. Fiquei fu­rioso comigo mesmo.

— Não precisa pedir desculpa. — Puxei a cabeça dela para o meu ombro. — A culpa não foi sua.

Ela virou o rosto para me fitar.

— Tem conversado com ele, não é mesmo, Jonathan?

— Não é verdade. Isso só acontece na minha cabeça.

— Tem conversado com ele mesmo.   Posso sentir. Conheço essas coisas.                              

— Não tenho conversado com ninguém.

Ela riu. Os lábios roçaram nos meus, suavemente.

— Jonathan Huggins.

— É o meu nome.

— Algum dia você vai aprender.

— Aprender o quê?

— Que é exatamente como seu pai.

— Não. Eu sou eu.

Os olhos dela estavam fixados nos meus.

— Jonathan Huggins... — Anne levantou a boca até a minha. — Quero que faça amor comigo. Por favor...

— E com quem você estará fazendo amor? Comigo ou com meu pai?

— Com você, Jonathan. — Os olhos dela ainda estavam fixados nos meus. — Não há jeito de se poder trepar com um fantasma.

Eu estava de pé na cabine telefônica envidraçada, à beira do estacionamento, esperando que fosse concluída a minha ligação para casa. O cartaz por cima do supermercado, na outra extremidade do estacionamento, era simples. Letras vermelhas grandes, num círculo branco. FITCH'S. E uma linha menor por baixo do nome DESDE 1868.

O telefone estalou em meu ouvido quando a voz de minha mãe entrou na linha. Comecei a falar, mas a telefonista me cortou. E pude ouvir sua voz:

— Tenho uma chamada a cobrar para a Sra. Huggins, de seu filho Jonathan. — Não pude ouvir a resposta de minha mãe, mas a telefonista logo acrescentou: — Pode falar agora.

— Alô, Mãe.

Percebi a tensão na voz dela quando disse:

— Jonathan! Onde está você?

— Na Virgínia Ocidental, numa cidadezinha chamada Fitchville. Já ouviu falar?

— Não. — A voz continuava tensa. — Eu estava quase ficando doida. Já se passaram quatro dias desde que você partiu.

— Estou bem.

— Podia ter ligado antes. Os pais de Anne estão desesperados. Ela não deixou sequer um bilhete. Calculamos que ela foi com você.

— Pois calcularam certo.

— A mãe dela está querendo que Anne telefone.

— Vou dizer a ela.

— Espero que vocês dois não estejam fazendo nenhuma tolice.

— Não se preocupe com isso, Mamãe — falei, rindo. — Ela toma pílula.

— Não é disso que estou falando. — A voz dela estava agora um pouco irritada.

— Pois diga aos pais de Anne que ela também não se está dopando. Obriguei-a a jogar fora todo o fumo. — Mudei bruscamente de assunto. — Não ouvi as notícias   O que aconteceu com Dan?

— Foi conduzido à presidência. Tudo correu exatamente como seu pai previu.

— Fico contente com isso. Dê meus parabéns a Dan, quando o encontrar.

Ela ficou calada.

— Mamãe... — O telefone continuou mudo. — Mamãe, qual é o problema.                                                                            

A voz tornou-se trêmula.

— A casa está vazia. Terrivelmente silenciosa. Ninguém mais aparece aqui.

— O Rei está morto.

— Por favor, Jonathan, volte para casa. — Ela estava agora chorando. — Estou-me sentindo tão sozinha...

— Mesmo que eu estivesse aí, Mamãe, não poderia evitar que isso acontecesse.

— Sempre houve pessoas por aqui. Havia sempre alguma coisa acontecendo. E agora Mamie e eu passamos o dia inteiro olhando uma para a outra. Ou assistindo à televisão.

— Onde está Jack?

Ela hesitou antes de responder. Ainda não se acostumara ao fato de que eu sabia de tudo a respeito deles.

— Ele não poderá vir antes do próximo fim-de-semana. Dan quer que ele fique mais algum tempo em Washington.

— Por que não vai para lá? Ainda tem o apartamento.

— Não é mais nosso. É o apartamento do presidente da Confederação.

— Tenho certeza de que Dan não se importaria.

— Não pareceria direito. Às pessoas iriam comentar.

— Pois então case com Jack, se é isso que a está preocupando.

— Não quero. — Fez uma pausa, antes de acrescentar: — Fui casada com seu pai. Ainda não estou preparada para aceitar um homem que seja menos do que ele.

— Não duvido, Mamãe. Mas tem de começar a reconstruir sua vida. Ele está morto. Não precisa vestir-se de preto pelo resto da vida.

A voz de minha mãe tornou-se subitamente abafada.

— Jonathan, você é mesmo o meu filho? Ou de seu pai? Está dizendo exatamente o que ele falaria.

— Sou seu filho. E dele. Pense a respeito, Mãe. Todos nós temos de crescer um dia. Não precisávamos, enquanto ele estava presente. Papai tomava todas as decisões por nós. Agora, temos de descobrir o nosso próprio caminho.

— É o que está fazendo, Jonathan?

— Estou tentando, Mamãe. E conseguirei. Se ele me deixar.

— Ele nunca deixa as coisas serem fáceis.

— Sei disso.

— Também sei. — Houve outra breve pausa. — Onde você está, Jonathan? Há algum meio pelo qual eu possa entrar em contato com você?

— Não, Mamãe. Estou sempre em movimento. Não sei exatamente onde estarei de um dia para outro.

— E vai-me ligar de novo? Em breve?

— Mais ou menos no meio da próxima semana.

— Precisa de dinheiro?

— Estou bem quanto   a isso.   Mas,   se precisar,   sei onde procurar.

— Cuide-se, Jonathan. Eu o amo.

— Também a amo, Mãe. — Desliguei, ouvindo a minha moeda de 10 cents cair ruidosamente na abertura de devolução. Peguei-a e saí da cabina telefônica.

Anne estava-me esperando na frente da entrada do supermercado. Abriu uma sacola de papel.

— Estas sementes servem?

Dei uma olhada nos rótulos. Violetas, amores-perfeitos, rosas.

— Parece que está ótimo. Não sei nada de flores.

— Também não sei. Mas achei que essas flores ficariam ótimas lá no cemitério. O homem disse que crescem praticamente sozinhas.

— Acho que está bom.

— Jeb Stuart disse que ficaria esperando por nós logo depois do posto da Exxon, à saída da cidade.

— Ótimo. Sua mãe está querendo que você telefone.

— Disse à sua mãe que eu estava bem?

Assenti.

— Já é suficiente, Jonathan.

— Pois então vamos embora.

— Espere um instante. Tenho duas sacolas de compra num carrinho logo depois da entrada. Tive a impressão de que você não é tão louco assim por ervilhas pretas e couve.

— E fez tudo isso por mim? — perguntei, soltando uma risada.

— Uma mudança de dieta também não vai fazer mal algum ao bebê de Betty May — falou Anne, sorrindo.

— Há doze sepulturas aqui — disse Jeb Stuart.

Olhei para a terra recentemente revirada. Era preta e úmida.

— Não. Só tem onze.

— Como sabe? Não há lápides. . . nada para indicar.

— Mas sei. Há um lugar para meu pai. Mas ele está enterrado em outro lugar. Puxei a enxada pelo chão, cortando um pequeno retângulo perto do canto do cemitério. — Este devia ser o lugar dele.

Jeb Stuart olhou para o céu.

— Está ficando tarde! Podemos acabar amanhã.

— Está certo.

Ele encostou o ancinho numa árvore.

— Vou avisar a Betty May que estamos descendo.

Acenei com a cabeça e virei-me para Anne, que estava sentada, encostada numa árvore.

— Tem um cigarro?

Ela assentiu,   acendeu-o e entregou-me. Não falamos até que Jeb Stuart se afastou.

— Estou com medo, Jonathan.

— De quê?

— Da morte.

Não respondi. Apenas dei uma tragada no cigarro.

— A morte está aqui, Jonathan. Neste lugar. Quem quer que viva aqui, vai morrer.

— Todo mundo morre.              

— Entende o que estou falando. — Anne se levantou e aproximou-se de mim. — Vamos embora, Jonathan. Agora. Esta noite.

— Não. Amanhã. Quando eu terminar.

— Promete?

— Prometo.

— Está certo. Vou descer para ver se Betty May precisa de alguma ajuda.

— Não deixe que ela queime os bifes.

— Não deixarei. — Anne riu e começou a descer pela trilha. Virei-me para o cemitério e, com a ponta da enxada, escrevi o nome de meu pai na terra, sobre a sepultura vazia.

— Obrigado, meu filho.

— Quais eram os nomes deles, Pai?

— Os nomes não mais importam. Eram seus tios e tias, meus irmãos e irmãs. Mas já se foram agora, não mais existem.

— Mas você existe?

— Existo. Tenho você. Eles não têm ninguém.

— Não faz sentido.

— Não precisa fazer. Nada faz. Como a sua garota.

— O que há com ela?

— Ela está grávida. — ouvi a risada silenciosa dele. — Ontem à noite ela se abriu para você. Recebeu sua semente e a manteve.

— Mas que merda!

— Será apenas por pouco tempo. Depois ela rejeitará. Ainda não chegou o momento. Para nenhum dos dois.

— Para um morto, você sabe muitas coisas.

— Somente os mortos conhecem a verdade.

 

Ouvi música saindo do barracão quando me aproximei. Jeb Stuart estava sentado no estribo da pickup.

— Não sabia que você tinha um rádio — comentei.

— Pensei que soubesse — disse ele, olhando-me. — Anne comprou o rádio. E Betty May está na maior felicidade.

— Vou precisar de ajuda para o plantio das sementes. Não sei como fazer essas coisas.

— Betty May ajudará. Ela adora flores e tem mão boa para plantá-las.

— Ficarei profundamente grato.

Ele olhou para o milharal.

— Só mais cinco ou seis semanas. E depois poderemos começar a colheita.

— Vai precisar de ajuda?          

— Podemos dar um jeito sozinhos — respondeu Jeb Stuart, sacudindo a cabeça.

— E quando vai nascer o bebê?

— Achamos que daqui a dois meses. Mais ou menos da ocasião em que começaremos a produzir a aguardente.

— Vai vender logo?

— Não. Ainda não estará no ponto. Vou deixar nos barris durante o inverno. Estará boa então e poderei pedir um bom dinheiro. O uísque fora do ponto não vale nada.

A porta do barracão se abriu e Anne saiu.

— O jantar está pronto.

— Estamos indo — disse Jeb Stuart, levantando-se.

Os bifes não estavam ruins, mas Anne ficou desapontada. Bet­ty May e Jeb pareciam não lhes dar muita importância. Olharam consternados para os nossos bifes sangrentos, depois puseram os seus para cozinhar ainda mais, até quase se transformarem em carvão. Só então ficaram satisfeitos. Estávamos tomando o café quando ouvimos o barulho ritmado se aproximando. Betty May ficou imóvel, a xícara de café na mão.

— O que é isso?

Eu nem precisava olhar para saber.

— Um helicóptero. — Conhecia o barulho muito bem. Meu pai tinha um helicóptero que usava para viagens rápidas. O ruído se tornou ainda mais forte e comentei: — Está descendo para cá.

— É melhor eu dar uma olhada. — Jeb se levantou, pegou a espingarda que deixara encostada na parede e abriu a porta.

Saímos atrás dele. O helicóptero estava voando baixo sobre o milharal, encaminhando-se para uma pequena clareira não muito longe da plantação. Pudemos divisar as letras pretas pintadas no lado, quando o aparelho pairou por um momento, antes de pousar.

 

                     POLICIA.

 

A porta se abriu e dois homens em uniformes caquis e chapéus de patrulheiros desceram. O piloto continuou sentado na cabine, aos controles. Também usava uniforme, mas estava sem chapéu. O sol da tarde faiscava nas estrelas prateadas pregadas nas blusas, quando os homens se viraram para nós. Jeb foi o primeiro a falar:

— Como vai, Xerife?

Havia um ligeiro tom de surpresa na voz do homem maior:

— É você mesmo, Jeb Stuart?

— O próprio.

O xerife sorriu e aproximou-se de Jeb, com a mão estendida. O outro policial permaneceu perto do helicóptero.

— Prazer em vê-lo, Jeb.

Este acenou com a cabeça, enquanto apertava a mão do xerife.

— Acabamos de jantar, Xerife. Chegou bem a tempo de tomar café com a gente.

— Obrigado. Seria ótimo. — Virou-se para o outro policial. — Está tudo bem. Voltarei daqui a pouco.

Seguiu-nos para o barracão. Desta vez, Betty May não se sentou à mesa conosco. Apressou-se em pôr uma caneca de café fumegante diante do xerife. O policial tomou um gole.

— O café está ótimo, Betty May.

Ela sorriu, sem responder.

— Fico contente de encontrar vocês aqui em cima — continuou o xerife. — Tínhamos informações de que havia posseiros aqui há mais de um ano, mas não pudemos verificar, até que recebemos o helicóptero novo na semana passada. E estávamos preparados para expulsar alguns negros da propriedade.

Jeb acenou com a cabeça, sem nada dizer. O xerife acrescentou :

— Estávamos todos imaginando para onde vocês teriam ido. Há mais de um ano e meio que ninguém os vê na cidade.

— Tenho trabalhado por aqui.

— Posso ver. Tem três acres plantados com milho. — O xerife lançou um olhar astuto para Jeb. — E é claro que tem o arrendamento da terra.

Jeb hesitou, olhando para mim. Assenti.

— Tenho, sim — respondeu ele.

— Dos legítimos proprietários?

— Exatamente — falei pela primeira vez.

O xerife olhou inquisitivamente para Jeb, que disse:

— Esse é Jonathan Huggins. O filho de Big Dan. Jonathan, esse é o Xerife Clay, do Condado de Fitch.

Apertamo-nos as mãos.

— Xerife Clay...

— Seu pai era um de nós — disse ele, acenando com a cabeça. — Tínhamos grande respeito por ele. Meus pêsames.

— Obrigado, Xerife.

— É o proprietário legal?

— Sou, sim. Já devia saber disso. — Subitamente, compreendi tudo. Não havia a menor possibilidade de o xerife saber. — Os registros estão na sede do condado.

Ele ficou meio constrangido. — Claro, claro...

— Em Sentryville — falei. — Esta propriedade fica no Conda­do de Sentry.

O xerife assentiu e eu continuei:

— Fica a cem quilômetros daqui. Está apenas ajudando o xerife de lá, já que estamos tão pertos. É isso?

— É, sim — respondeu o xerife, rapidamente.

Inclinei-me, peguei a espingarda de Jeb que estava encostada na parede, coloquei-a em cima da mesa, com o cano virado para a barriga do xerife, e puxei a trava de segurança.

— Está invadindo propriedade particular fora de sua jurisdição, Xerife. Posso puxar este gatilho e cortá-lo ao meio sem que qualquer tribunal do país conteste o meu direito de fazê-lo. Não tem autoridade e não tem o que fazer aqui.

Ele olhou para a arma, o rosto subitamente pálido. Os outros ficaram paralisados. Jeb começou a se levantar e falei, rispidamente:

— Não se mexa, Jeb! — Olhei para o xerife. — E agora nos diga por que veio até aqui.

O Xerife engoliu em seco.

— A esposa de Jeb tem um mandado contra ele e Betty May por fornicação ilegal.

— Não é motivo suficiente para fazê-lo atravessar a fronteira do condado. Tente outra coisa.

Ele ficou calado.

— Não seriam três acres de milhara!? — acrescentei. — Uma mancha no meio de uma terra árida que avistou lá de cima. Não seria isso?

Ele continuou calado.

— E talvez houvesse aqui negros que pudesse expulsar. Três acres de uma plantação de milho podiam valer um bom dinheiro. É o xerife. Conhece as pessoas que podem cuidar dessas coisas.

Uma expressão de respeito relutante surgiu no rosto do xerife. E ele admitiu:

— Tem razão. Não é de minha conta o que está acontecendo aqui por cima.

Tirei a arma da mesa e tornei a encostá-la na parede.

— É onde se engana. Tem algo muito importante a conversar com Jeb. — Levantei-me. — Anne e eu vamos sair e deixá-los conversar mais à vontade.

O xerife me fitou atentamente.

— Por tudo o que ouvi a respeito de seu pai, é a imagem escrita e escarrada dele.

— Não tenho absolutamente nada de parecido com ele.

Saí acompanhado por Anne. Fui encostar-me na pickup, acendi um cigarro, entreguei-o a Anne, e acendi outro para mim.

— Vamos partir amanhã, Anne. Depois que as sementes de flores estiverem plantadas.

— Para onde vamos?

Fechei os olhos e contemplei através do tempo.

— Mais para o sul.

Anne ficou calada por um longo tempo.

— Pretende voltar aqui, Jonathan?

— Pretendo. Ao voltar para casa.

— Pois eu vou para casa amanhã.

O tempo se desvaneceu. Abri os olhos e avistei o helicóptero. O piloto saltara e estava conversando com o assistente do xerife. Os dois olhavam para nós. Virei-me para Anne.

— Gostaria de voltar até aqui com você algum dia, Jonathan. Posso?

Havia lágrimas nos olhos dela.

— Sabe que pode.

Ela pegou-me a mão e a apertou firmemente.

— O xerife estava certo. Você é o seu pai.

— Não foi isso o que o xerife disse.

— Mas é o que eu digo.

Não contei a ela que meu pai também dissera a mesma coisa.

— Tenho visto muito de seu pai desde que viemos para cá. É por isso que quero voltar para casa. Não quero ver mais nada. Estou com medo. Acho que tudo isso pode até me fazer perder o juízo.

Levei a mão dela aos lábios e beijei-a.

— Não está zangado comigo, Jonathan?

— Não. Está tudo bem.

A porta atrás de nós se abriu e Jeb e o xerife saíram. Contor­naram a pickup até o lugar em que estávamos. Jeb sorria.

— O xerife e eu chegamos a um acordo.

— Isso é ótimo — comentei.

— Não haverá mais nenhum problema agora.

Virei-me para o xerife, que se apressou em dizer:

— Não havia a menor possibilidade de Jeb fazer a coisa sozinho. Os negros e os carcamanos já tinham descoberto o que ele está fazendo. Só estavam esperando que Jeb terminasse de fazer todo o trabalho, antes de aparecerem para tomar conta.

Limitei-me a assentir, e o xerife perguntou:

— Vai ficar por aqui, filho?

— Vou embora amanhã.

O xerife olhou para o céu. O sol começava a mergulhar a oeste.

— Acho melhor eu voltar. Ainda não confio nesse negócio durante a noite. — Virou-se para Jeb. — Pode aparecer na cidade no sábado. Darei um jeito para cancelar o mandado.

— Obrigado, Xerife.

O policial tornou a olhar para mim.

— Quantos anos tem, filho?

— Dezessete.

Ele acenou com a cabeça.

— Foi no que fiquei pensando durante todo o tempo em que estava com a espingarda apontada para a minha barriga. Dezessete anos. Isso e mais a expressão em seu rosto. Era assim que seu pai devia estar parecendo quando explodiu o velho Fitch ao meio, nos fundos do armazém, há quase cinqüenta anos. Ele estava com dezessete anos naquela ocasião. Mandaram-no para um reformatório até que completasse dezoito. Mas seu pai não ficou por lá. Havia uma guerra e ele se alistou no Exército, indo para a Europa. E só voltou a Fitchville vinte anos depois da guerra. Apareceu de repente na estação ferroviária numa cadeira de rodas. Estava todo arrebentado. Não podia andar. Havia uma mulher com ele. E não era a esposa. Disseram que ele havia tido um filho em algum lugar do oeste. A mulher comprou um carro do revendedor Dodge, pagando à vista. Vieram para as montanhas. Depois disso, ninguém mais viu seu pai. A mulher é que aparecia na cidade para fazer compras. Cerca de seis meses depois, ele apareceu na estação ferroviária, deu um beijo de despedida na mulher e pegou o trem para Nova York. Foi a última vez que alguém da cidade o viu por aqui.

— E a mulher? — perguntei.

— Ela esperou até que o trem deixasse a estação, pegou o carro e nunca mais foi vista.

— Viu meu pai nesta ocasião?

— Não. Meu pai me contou a história. Ele era o assistente do xerife em 1917 e o xerife em 1937. Devo ter ouvido a história mais de mil vezes. Toda vez que alguém mencionava o nome de Big Dan, meu pai a contava. O xerife fez uma pausa, fitando-me. — Ele tinha muito orgulho de seu pai. Era um dos nossos rapazes que se havia tornado um dos homens mais importantes do país. — O xerife tornou a olhar para o céu e depois estendeu-me a mão. — Se quiser ler a respeito dessas coisas, a biblioteca da cidade tem todos os números atrasados do Fitchville Journal, desde a Guerra Civil. — Apertamo-nos as mãos. — Se precisar de alguma coisa, basta me procurar.

— Obrigado, Xerife.

Ficamos observando o helicóptero alçar vôo e se afastar, ao Sol poente. Assim que o barulho parou de ressoar pelas colinas, voltamos para o barracão.

Peguei o meu saco de dormir e o de Anne.

— Foi um dia comprido — falei. — Acho que vamos deixar vocês dois dormirem cedo.

O céu ainda estava dourado, quando nos sentamos no milharal.

— Não pensei que eles não eram casados — comentou Anne.

— Nem eu.

Em silêncio, ela pegou um cigarro de maconha, acendeu e o estendeu para mim. Dei duas tragadas e devolvi, apoiando-me num cotovelo. Podia sentir uma tranqüilidade imensa me dominando.

— Jonathan...   — murmurou Anne, a fumaça saindo pelo nariz.

— O que é?

— Volte para casa comigo.

Virei-me para fitá-la.

— Não posso. Ainda não.

— Por quê?

— Vive perguntando-me e fico sempre dando a mesma resposta. Não sei por quê.

Anne devolveu-me o cigarro, dei mais algumas tragadas e depois deitei de costas, contemplando a escuridão cobrir o céu como se fosse uma manta. Ela terminou de fumar o cigarro de maconha e apagou-o no chão, cuidadosamente. Aproximou-se e encostou a cabeça em meu ombro.

— Vou sentir saudade, Jonathan.

Não falei nada.

— Sabe onde pode encontrar-me. Estarei sentada na varanda dos fundos, olhando para sua casa.

— Sei disso.

— Não demore muito, Jonathan. Gostaria de ser jovem com você só por mais algum tempo. Todos nós crescemos depressa demais.

Fiquei parado diante do barracão, observando a pickup descer pela estrada de terra. Vi o rosto de Anne na janela traseira, olhando para mim. Ela levantou a mão num gesto de despedida. Também ergui a minha. E um instante depois eles desapareciam. Peguei a mochila e ajeitei-a nos ombros. Eram quase 11 horas e o Sol já estava bastante quente. O ônibus de meio-dia e meia deixaria Anne em Nova York às cinco horas da tarde. Se ela conseguisse pegar o trem das 5:50 na Grand Central, poderia estar em casa às sete horas.

Comecei a subir pela encosta. A trilha para a estrada passava pelo cemitério. Parei ali por um momento, contemplando a terra recentemente revolvida, as impecáveis fileiras de sementes plantadas em torno das sepulturas.

— Não se preocupe, Jonathan — prometera Betty May. — Cuidarei para que sejam regadas todos os dias. Haverá flores antes mesmo de você poder voltar.

Olhei para o barracão lá embaixo e me perguntei se algum dia voltaria. Talvez estivesse em algum outro lugar.

— Não precisa ficar com dúvidas, meu filho. Pode estear certo de que vai voltar.

— Tem certeza, pai? Você nunca voltou.

— Voltei uma vez, Jonathan. O xerife lhe falou a respeito.

— Mas não ficou.

— E você também não ficará.

— Então qual o propósito? É muito melhor eu não voltar.

— Mas terá de voltar. Pela mesma razão que me levou a voltar. Para se tornar inteiro novamente.

— Não estou entendendo, Pai.

— Mas vai entender, Jonathan. Quando o momento chegar. Voltará pelo seu filho.

— Meu filho, Pai?

— Isso mesmo, meu filho. A criança que nunca fez.

 

                                   Outro Dia

Eram duas horas da madrugada. A última neve da primavera se derretera ao calor do dia, depois transformara a estrada num lençol de gelo lustroso com o vento noturno. As nuvens deslizavam pela face da Lua, obscurecendo até mesmo as beiras da estrada. Não havia qualquer iluminação que o impedisse de escorregar e deslizar. Silenciosamente, ele praguejou para si mesmo, aconchegando-se no casaco fino, enquanto seguia em frente.

Quinze quilômetros a oeste de St. Louis. Rodovia 66. Se andasse o bastante, acabaria na Califórnia. Ele sorriu amargamente. Isto é, se não congelasse até a morte pelo caminho. Esquadrinhou a escuridão à sua frente. Já estava andando há quase uma hora. Devia haver uma parada de caminhão em algum lugar por ali. Ou pelo menos era o que lhe disseram, ao expulsá-lo do carro. Três quilômetros a oeste, pela estrada. Uma parada de caminhão.

Parou subitamente. E se lhe tivessem mentido e não houvesse nada? Estava começando a congelar. Cinco horas assim e não haveria mais nada com que se preocupar. Estaria morto, duro como papelão, na vala à beira da estrada. Todos ficariam felizes, John L. na U.T.M., Big Bill nos Carpinteiros, Murray e Green no quartel-ge­neral da A.F.L. Até mesmo Hillman e Dubinsky, que se odiavam, ficariam igualmente felizes se ele não existisse.

— Vá para Kansas City — disseram. — Se existe alguém que pode unir os trabalhadores em frigoríficos, você é o homem indicado.

Como ir para a Sibéria. Dos quatro últimos organizadores que haviam enviado para lá, ele era o único que ainda estava vivo. E por quanto tempo mais era uma questão de conjetura. Nenhum caminhão parara, quatro em quatro. Podiam muito bem tê-lo pendurado num gancho de carne em algum frigorífico, como tinham feito com o pobre do Sam Masters.

Três dias num carro com os carcamanos. Três deles tinham sotaques tão grandes quanto os revólveres e facas que carregavam. Três dias comendo sanduíches de salame com bastante alho, até que o fedor podia impulsionar o carro melhor do que a gasolina que punham no tanque. Três dias cagando à beira da estrada, com o vento a congelar o traseiro, imaginando se os homens não iriam aproximar-se por trás e meter uma bala em sua cabeça ou no rabo. Três dias de espera ao lado de cabines telefônicas, enquanto eles telefonavam para pedir instruções. E depois, na noite anterior, quando voltaram para o carro, ele compreendeu que a espera chegara ao fim. Os homens pararam subitamente de conversar. Até mesmo entre si. O carro começara a seguir pela 66. Passaram por St. Louis à meia-noite. E vinte minutos depois paravam o carro num trecho deserto da estrada.

A porta se abriu, um sapato pesado chutou-o no lado e ele saiu voando sobre a estrada gelada. Caiu de costas, as mãos estendidas. Viu o homem sair do carro atrás dele, a pistola parecendo um canhão em sua mão. Num reflexo, ele se enroscou todo, formando uma bola, procurando tornar-se o alvo menor possível. Ouviu o rugido da automática sendo descarregada. Quase pôde sentir as balas se cravando em seu corpo. E depois a arma silenciou. Nada. Não podia acreditar. Virou-se, olhando para o pistoleiro. O italiano estava sorrindo.

— Cagou nas calças. Posso sentir o fedor.

— Caguei mesmo.

— Está com sorte. Mas não volte a Kansas City, porque da próxima vez não vai limitar-se a cheirar a própria morte. Estará morto antes disso.

A porta do carro bateu e o motor entrou em funcionamento. O carro fez uma curva em U e voltou a toda velocidade para Kansas City. Parou abruptamente e voltou em marcha à ré. A esta altura, ele já estava de pé.

O motorista parou ao lado dele. Inclinou-se para fora, apontando com a mão na direção oposta a que o carro estava seguindo.

— Vá para esse lado. Há uma parada de caminhão a uns três quilômetro daqui. E depois o carro tornou a partir e não demorou muito para que as luzes traseiras desaparecessem na estrada.

Ele foi para o lado da estrada e limpou-se da melhor forma possível, com neve derretida na mão, enxugando-se com pedaços de jornal, frios e ressequidos, que o vento soprara em sua direção. E depois começou a andar. Duas horas. Foi então que avistou as luzes. Precisou de outra meia hora, entre correr e andar, para chegar até lá.

As lâmpadas brancas e vermelhas brilhavam como o cartaz por cima do portão do paraíso. PARADA DE CAMINHÃO. GASOLINA. COMIDA, CAMAS. BANHOS. Seis caminhões grandes estavam estacionados no outro lado do posto, as lonas amarradas, num silêncio sombrio, enfrentando os elementos implacáveis. Cautelosamente, fez a volta por trás dos caminhões, antes de entrar no prédio. Não havia carros estacionados. Não havia sentido em correr riscos desnecessários, caso os carcamanos tivessem mudado de idéia e decidido voltar à sua procura. Mas podia também ser uma armadilha. Talvez houvesse alguém lá dentro à sua espera.

Sem fazer barulho, ele foi a uma entrada lateral e deu uma espiada. O restaurante estava vazio, exceto por uma garçonete, ocupada a arrumar as mesas para o café da manhã e, um homem por trás do balcão, apoiando a barriga na caixa registradora, enquanto lia o jornal. Depois de um último olhar ao redor para certificar-se de que estava tudo em ordem, ele foi até a porta da frente e abriu-a.

Não entrou no restaurante. Ficou parado na porta aberta. O vento soprou para o interior e a garçonete e o homem olharam.

— Feche essa porta! — disse o homem. — Está congelando aqui dentro!

— Pode entrar — disse a garçonete.

— Preciso de um banho primeiro.

Apesar de sua determinação, os dentes começaram a chocalhar incontrolavelmente. A garçonete fitou-o, curiosa.

— Está precisando mais de alguma coisa quente por dentro. Vou providenciar um café.

— Onde fica o banheiro? Leve o café para lá. — Olhou para o homem atrás da caixa registradora. — Tem uma calça extra para me vender?

— Você está bem?

— Alguns carcamanos me fizeram cagar e depois me jogaram na estrada. E estou meio congelado.

O homem ficou calado por um momento.

— Tenho uma calça que pode dar em você. Mas vai custar-lhe dois dólares. Está quase nova.

Ele enfiou a mão no bolso e tirou uma nota. Estendeu-a para a garçonete.

— Aqui estão cinco dólares. Leve o café e a calça para o banheiro. E leve também uma navalha, se tiver.

A garçonete pegou a nota.

— O banheiro fica no prédio à esquerda, ao lado do dormitório.

— Obrigado, madame — disse ele, polidamente.

A porta se fechou às suas costas e viram-no passar pelas janelas, contornando o prédio. A garçonete levou a nota de cinco dólares até a caixa registradora e entregou-a ao homem, comentando, em tom de censura:

— Aquela calça não vale mais do que um dólar e você sabe disso muito bem.

— Pode valer um dólar para você e para mim. Mas para ele vale dois dólares. — O homem bateu 25 cents na registradora, tirou o troco, embolsou dois dólares e entregou o resto à garçonete. — Estou cobrando o banho e a navalha.

— Está certo.

— A calça está pendurada no armário atrás da porta.

— Sei onde está — disse ela, contornando-o para ir à cozinha, O homem deu-lhe uma tapa nas nádegas na passagem, soltando uma risada.

— Se você for esperta, pode dar um jeito para que ele não receba qualquer troco.

A garçonete lançou-lhe um olhar irritado e disse sarcasticamente:

— Ele não é como você, seu idiota. Pode ter essas coisas de graça.

Ele estava dentro da banheira de água quente quando a garçonete entrou. Achava-se com a cabeça recostada na borda, os olhos fechados. A primeira coisa que ela percebeu foram as equimoses arroxeadas no corpo dele. E depois reparou no olho inchado, na face e no queixo estufado.

— Eles cuidaram de você direitinho — comentou a garçonete, em voz suave.

— Tive sorte de não me matarem. — Apontou para o chão, perto da banheira. A calça achava-se ali, toda amarrotada. O paletó e a camisa estavam pendurados impecavelmente no encosto de uma cadeira, diante do aquecedor, para secarem. — Jogue a calça no lixo. Já lavei o cocô.

— Está certo — disse a garçonete, inclinando-se para pegar a calça.

— É melhor pegar com um jornal. Eu não estava brincando.

Ela foi para a outra sala e voltou com um jornal. Embrulhou cuidadosamente a calça, sem tocá-la. Pôs a navalha e o troco na cadeira em que estavam o paletó e a camisa.

— Vou jogar tudo isso fora. E depois voltarei para ajudá-lo.

— Obrigado madame, mas acho que posso arrumar-me sozinho.

— Não seja tolo — disse ela, bruscamente. — Fui criada com cinco irmãos e já fui casada duas vezes. Sei perfeitamente quando um homem precisa de ajuda e quando não precisa.

Ele virou-se para fitá-la. Apesar do olho inchado, ela podia sentir a força em seu rosto.

— E acha que preciso de ajuda?                                        

— Sei que precisa.

Ele acenou com a cabeça.

— Então agradeço sua gentileza, madame, e aceito a oferta.

Ao voltar, ela puxou uma cadeira para perto da banheira e começou a lavá-lo gentilmente, com uma pequena toalha molhada e com sabão. Ele estava com equimoses por todo o corpo e estremecia sempre que ela o tocava, apesar de todo o seu esforço para não fazê-lo. Ela mudou a água da banheira duas vezes e finalmente lavou-lhe o rosto e os cabelos. E depois barbeou-o, cuidadosamente. O sangue começara a fluir de um talho por cima da sobrancelha espessa,

— É um ferimento fundo — disse ela. — Será melhor chamarmos o médico pela manhã para costurar. Se não o fizer, vai ficar com uma cicatriz imensa. Rasgou uma tira de um pano limpo e comprimiu-a contra o talho. — Fique segurando enquanto vou buscar um esparadrapo.

Não demorou a voltar com o rolo de esparadrapo. Pregou-o rapidamente sobre o ferimento.

— E agora pode levantar-se e se enxugar.

Estremecendo, ele se levantou e pegou a toalha que ela lhe dava, enrolando-se nela. A garçonete estendeu a mão para ajudá-lo, quando ele saiu da banheira.

— Você está bem? — Ele acenou com a cabeça afirmativamen­te. — Talvez seja melhor deitar-se um pouco. Posso buscar alguma coisa para você comer.

— Pode deixar que vou agüentar — disse ele, enquanto se enxugava. — Tem um telefone no restaurante?

A garçonete assentiu.

— Tenho que dar um telefonema primeiro. — Ele passou um dedo pelo rosto, contemplando-se no espelho. Depois, virou-se para ela e disse, quase timidamente: — É a primeira vez que uma mulher me faz a barba.

— E ficou direito?

Ele sorriu e, subitamente, parecia quase jovem.

— Ficou ótimo. Um camarada pode ser estragado por uma coisa assim.

— Vou aprontar sua comida. — Ela riu. — Bolinhos de trigo, ovos e salsicha. Está bom assim?

— Está ótimo. Só quero que me dê dez minutos para chegar lá.

 

A calça era grande demais e o cinto segurou-a na cintura com uma porção de pregas. Depois de haver acabado o segundo prato de bolinhos de trigo, ovos e salsichas, quando já estava na metade do segundo bule de café, ele se recostou na cadeira, com um suspiro de satisfação, murmurando:

— Estava ótimo.

A garçonete sorriu.

— Por um momento,   cheguei   a   pensar que   ia   comer   até encher a calça.

Ele sorriu, tristemente.

— Não sabia como estava com fome. Tem charutos aqui?

— Claro.   Tampa   Especial.   Um Havana   de   verdade.   Custa cinco cents cada.

Ele tornou a sorrir.

— Exatamente o que o país precisa.   Um bom charuto de cinco cents. Fico com dois.

Ela foi até o balcão e voltou com a caixa. Ele pegou dois charutos, metendo um na boca. A garçonete riscou um fósforo e acendeu-o, enquanto ele puxava fundo, observando-a por baixo das sobrancelhas espessas.

— Obrigado. E agora pode dizer-me onde fica o telefone?

Ela apontou para o telefone público na parede do outro lado. Daniel tomou outro gole de café e foi até o telefone. A garçonete tirou a mesa e foi para trás do balcão. O gordo continuava junto à caixa registradora. Ela pôs os pratos na pia. O lavador chegaria dentro de meia hora e poderia limpar tudo. Ela se aproximou do homem atrás da registradora.

— Estou que não me agüento mais esta noite. Mal posso esperar o momento de ir para casa.

— Não vejo por que está assim. Não fez nada. Quase não houve movimento esta noite.

— Pois são as piores noites. Pelo menos o tempo não se arrasta quando a gente está ocupada.

— Mais meia hora e poderá ir embora.

Ouviram o barulho da moeda no telefone e olharam. A voz era baixa, mas puderam ouvir:

— Interurbano, por favor. Ligação a cobrar para Washington, D. C. O número é Capitol 2437.

A moeda retiniu na fenda de devolução. Ele pegou-a e ficou esperando, dando baforadas no charuto. Depois de um momento, tornou a falar:

— Continua a tocar, telefonista. Há sempre alguém lá. Já vão atender.

Ele soprou pacientemente o charuto. A telefonista entrou na linha novamente. Uma súbita autoridade surgiu na voz dele.

— Continue a tocar, mocinha. O telefone fica no salão embaixo e eles estão dormindo em cima. Toque bastante e acabarão ouvindo.

Um momento depois, alguém atendeu. Ele baixou a voz ainda mais:

— Moses, aqui é Daniel B.   . . .Não, não estou morto. Não permitem telefonemas do Inferno.   . . .Já sei que voltaram ao trabalho em Kansas City. Diga a John L. e a Phil que entramos lá como um bando de amadores. Os donos dos frigoríficos já tinham tudo preparado. Os tiras e os carcamanos. Não tivemos a menor chance. Passei os últimos três dias andando de carro com um bando de comedores de alho. Compreendi que a greve havia acabado no momento em que me soltaram. Não estaria vivo agora, se a greve continuasse. Deixaram-me nos arredores de St. Louis, na 66. Estou telefonando de uma parada de caminhão. O escritório está-me devendo um terno novo.

Ele ficou calado, mastigando o charuto, enquanto a voz no outro lado da linha falava. E sua voz estava ligeiramente rouca, quando tornou a falar:

— Estou bem. Apenas um pouco arrebentado, mas já passei por coisas piores.   . . .Não, não vou voltar por algum tempo. Há quatro anos que venho trabalhando sem cessar, sem tirar férias, sem descansar. Chegou o momento de entrar em férias.   Quero pensar um pouco nas coisas. Estou cansado de fazer o que os outros mandam.

A voz no outro lado da linha voltou a falar, enquanto ele escutava. E quando tornou a se manifestar, a voz era categórica:

— Já chega. . . .Nem quero saber o que arrumaram para mim. Provavelmente outra missão suicida. . . .Acho que vou para a Califórnia. Já estou mesmo na metade do caminho. Talvez eu possa colher algumas laranjas nas árvores e comê-las frescas e adocica­das, amadurecidas pelo Sol.   . . . Está   certo,   ficarei   em  contato. . . .Não, tenho dinheiro. . . .E não vou ficar esperando que John L. me ligue de volta. Vou partir agora, enquanto ainda tenho tempo. . . .Sei disso. As coisas vão melhorar, mas não sei de que isso nos adiantará. John L. está trabalhando para Landon, e Roosevelt não vai ficar muito satisfeito com isso. . . Pode apostar que F.D.R. vai ser reeleito. . . . Está bem. Telefonarei assim que chegar à Califórnia.

Ele desligou e voltou para a mesa. Levantou a mão e a garçonete trouxe-lhe outra xícara de café.

— Há algum hotel por aqui onde eu possa alugar um quarto?

— O mais próximo fica em St. Louis.

Ele sacudiu a cabeça.

— É a direção errada. Vou para oeste, não para o leste. — Daniel tomou um gole de café. — Será que eu conseguiria uma carona num desses caminhões a caminho do oeste?

— Pode perguntar. Eles vão começar a se levantar daqui a pouco.

— É o que farei. Obrigado.

Ela começou a caminhar de volta para o balcão. Parou na metade do caminho, virou-se e voltou.

— Estava mesmo falando sério? Pretende ir para a Califórnia?

Ele acenou com a cabeça, assentindo:

— Também   nunca   estive   lá — acrescentou   a   garçonete. — E ouvi dizer que é uma terra maravilhosa. O Sol brilha durante todo o tempo e nunca faz frio.

Ele fitou-a, sem dizer nada.

— Tenho um carro. Não é grande coisa. Um velho Jewett. Mas anda. Podemo-nos revezar ao volante e dividir as despesas.

Ele ficou fumando o charuto por um momento, pensativo.

— E o seu emprego?

— Posso arrumar um emprego como este em qualquer lugar. Não me pagam salário, ganho apenas as gorjetas.

— E não tem família?

— Não. Meu último marido sumiu de repente, no instante em que descobriu que não gostava de pagar contas. Divorciei-me dele no ano passado.

— E aqueles irmãos de que me falou?

— Estão todos espalhados. Não restou ninguém. Não há muito trabalho por aqui.

Ele sacudiu a cabeça, pensativo.

— Tem algum dinheiro?

— Cerca de duzentos dólares. E tem um homem que quer comprar minha casa. Está disposto a pagar quatrocentos dólares à vista, se eu deixar os móveis.

Ele tornou a ficar em silêncio por algum tempo,   os olhos examinando-a.

— Quantos anos você tem?

— Vinte e seis.

— Não vai tornar-se nenhuma estrela do cinema.

— Nem quero ser. — Ela sorriu. — Só   desejo   encontrar algum lugar onde possa levar uma vida decente.

— E quando pode partir? — indagou ele, recostando-se na cadeira.

— Hoje mesmo. Arrumo minhas coisas, vou procurar o homem, recebo o dinheiro e podemos cair na estrada esta tarde.

Ele subitamente sorriu, o rosto todo se iluminando. Estendeu a mão.

— Combinado. Califórnia,   aqui vamos nós!

Ela riu. Depois, o contato da mão dele provocou-lhe um calor a subir pelo braço e sentiu que corava.

— Califórnia, aqui vamos nós!

— Nem sei o seu nome até agora — falou ele, ainda segurando-lhe a mão e fitando-a nos olhos.

— Tess Rollins.

— Prazer em conhecê-la, Tess. Meu nome é Daniel. . . Daniel B. Huggins.

O médico empertigou-se, cortando a ponta da sutura.

— É um trabalho de sutura que nem minha mulher faz melhor em sua Singer. Dê uma olhada.

Daniel contemplou-se no espelho que o médico segurava. O que fora antes um talho largo era agora uma linha fina, com pontinhos pretos nos locais em que as suturas afloravam à superfície da pele. A única coisa diferente era o fato de a sobrancelha por baixo parecer ligeiramente levantada. Daniel tocou-a.

— A sobrancelha vai ficar assim?

— Vai descer um pouco, quando tirar os pontos. E depois de um ano estará como a outra.

Daniel levantou-se.

— Espere um pouco — disse o médico. — Quero pôr um curativo por cima.

O médico trabalhou rapidamente.

— O importante é manter o curativo limpo. Mude-o todos os dias. E volte dentro de sete dias para tirarmos os pontos.

— Não estarei aqui.

O médico terminou de fazer o curativo e prendeu-o no lugar com tiras de esparadrapo.

— Pode tirar os pontos em qualquer hospital ou clínica. Mas não se esqueça de manter o curativo limpo.

— Quanto lhe devo, Doc? — perguntou Daniel, metendo a mão no bolso.

— Dois dólares é demais? — perguntou o médico, hesitante.

— Dois dólares está ótimo. — Daniel tirou um rolo de notas do bolso e separou duas notas. — Obrigado, Doc. — Percebeu que o médico olhava fixamente para o rolo de notas. — Algum problema, Doc?

— Não — disse o médico sorrindo e sacudindo a cabeça. — Eu estava apenas pensando que é o primeiro paciente que me paga em dinheiro e à vista nos últimos dois meses.

Daniel soltou uma risada.

— Pois então não vá esbanjar.

O médico riu também.

— Não se preocupe. Sou capaz até   de   mandar emoldurar para poder lembrar-me de como o dinheiro é realmente. — Acompanhou Daniel até a sala de espera, onde Tess estava sentada. Ela se levantou.

— Estava muito ruim, Doc?

O médico sorriu.

— Já vi casos piores. Cuide apenas para que ele mantenha o curativo limpo.

— Pode deixar comigo — disse Tess.

Daniel foi para o carro. Era um Jewett com os protetores de inverno de celulóides pregados. Entrou no carro. Tess contornou o carro e foi sentar-se ao volante.

— E agora, para onde vamos? — perguntou Daniel.

— Até o banco, para que eu possa assinar todos os papéis e transferir a hipoteca. Depois, poderemos ir para a casa, a fim de entregarmos as chaves ao novo proprietário.

Daniel ajeitou um charuto na boca.

— Tem certeza de que está mesmo querendo ir comigo? Ainda pode mudar de idéia. Mas depois de assinar os papéis, não terá como recuar.

— Já tomei minha decisão.

No banco, o advogado aconselhou-a a deixar o dinheiro no banco e mandar buscá-lo quando chegasse à Califórnia. Tess olhou para Daniel, que disse:

— É uma boa idéia. Não há como prever o que pode acontecer na estrada, quando se está com todo esse dinheiro.

— Quanto acha que vou precisar?

— Talvez cem dólares. Provavelmente menos. Mas isso deve dar de   sobra. Além do mais, se houver algum problema,   tenho dinheiro comigo. Poderemos acertar as contas depois.

— Está bem — disse Tess ao advogado.

Partiram logo depois do almoço e viajaram durante toda a tarde e pelo princípio da noite. Ao saírem da estrada, a fim de procurar um quarto onde passar a noite, estavam a 530 quilômetros de St. Louis.

Pararam diante de uma casa velha, onde havia um cartaz: QUARTOS PARA ALUGAR, iluminado por uma única lâmpada. Saíram do carro, bateram na porta e entraram. Um velho fumando um cachimbo recebeu-os:

— Como vão? Em que posso servi-los?

— Queremos um quarto para passar a noite — disse Daniel.

— Incluindo o café da manhã?

Daniel assentiu.

— Tenho um ótimo quarto. Cama de casal. Um dólar e cinqüenta cents, com o café da manhã. — O velho fez uma breve pausa e acrescentou: — Adiantado.

— Está certo. — Daniel meteu a mão no bolso. — Tem algum lugar por aqui onde a gente possa jantar?

— Se não estiverem querendo coisa de luxo, minha mulher pode arrumar alguma coisa. Vai custar mais cinqüenta cents para cada um.

Daniel contou o dinheiro. O velho levantou-se.

— Precisa de ajuda com as malas?

— Não há necessidade.

O velho tirou uma chave da gaveta da escrivaninha e entregou-a.

— É o primeiro quarto, logo depois da escada.   Vou dizer à mulher para preparar o jantar. Estará pronto assim que vocês se lavarem e descerem.

O jantar foi simples. Galinha frita e batatas. Ervilhas e milho em lata. Pão quente e café.

— O café da manhã sai às sete em ponto — disse o velho, quando eles subiram.

Entraram no quarto. Daniel olhou ao redor, depois tirou o paletó e pendurou-o no encosto de uma cadeira, comentando:

— Na próxima cidade a que chegarmos, tenho de comprar algumas camisas, meias, cuecas, um terno e outro par de sapatos.

— Está certo.

Daniel começou a desabotoar a camisa, parou de repente e olhou para Tess.

— Vai mudar de roupa?

Ela acenou com a cabeça, assentindo.

— Mas achei que seria melhor esperar até que você fosse ao banheiro. Irei depois. Demoro mais, porque tenho de tirar a maquilagem e todo o resto.

— Está bem. — Daniel saiu do quarto, a cueca branca aparecendo acima da calça.   Foi para   o banheiro, que   estava   com a porta aberta. Voltou em menos de 10 minutos.

Tess se despira e estava agora com um robe branco.

— Por que não se deita um pouco e descansa? Vou tentar não demorar muito.

Daniel acenou com a cabeça, tirou a calça e deitou-se de cueca. Olhou para o teto. A vida sempre dava um jeito de tirar as cartas do fundo do baralho. Uma semana antes, em Kansas City, ele estava na melhor suíte do mais luxuoso hotel da cidade. Só precisava estender a mão para o telefone a fim de ter tudo o que desejasse. O melhor uísque, a melhor mulher. E o café da manhã era servido na hora que ele bem desejasse. Tess voltou ao quarto 20 minutos depois.

— Não pretendia demorar tanto. — Daniel não respondeu e ela percebeu que ele estava profundamente adormecido. — Daniel...

Ele não se mexeu.

Silenciosamente, Tess tirou o robe e deixou-o ao pé da cama. Olhou para si mesma. Mas que diabo!, praguejou, baixinho. Pusera a sua camisola mais sensual.

Apertou o interruptor e o quarto ficou às escuras. Ela contornou a cama até o outro lado e meteu-se debaixo das cobertas. Especulativamente, inclinou-se através da cama e tocou-o.

Daniel continuou imóvel.

Tess retirou a mão e contemplou-o no escuro. O rosto dele estava relaxado. Ele parecia muito mais jovem quando estava dormindo. Muito mais vulnerável.

Subitamente, Tess sorriu para si mesma. Com todos os homens na parada de caminhão tentando levá-la para a cama, o primeiro que ela aceitara, desde que o marido a abandonara, caía no sono logo na primeira noite que passavam juntos.

Impulsivamente, tornou a inclinar-se através da cama e beijou-o no rosto.

— Espero que a viagem até a Califórnia seja um bocado demorada — sussurrou Tess. Em seguida, ajeitou-se no seu lado da cama e fechou os olhos. Estava dormindo um instante depois.

 

Chegaram a Tulsa por volta de uma hora do tarde seguinte, em meio a uma violenta tempestade de chuva e granizo. Os limpadores não mais conseguiam limpar o pára-brisa, por causa do gelo que se formava no vidro. Os protetores de inverno quase de nada serviam para evitar que o frio intenso entrasse no carro. Daniel tentou novamente limpar o pára-brisa pelo controle manual. Foi em vão. E os limpadores continuaram a deslizar sobre o gelo.

— É melhor pararmos aqui — disse ele. — Não adianta tentarmos continuar, enquanto a tempestade não passar.

Tess assentiu, os dentes tiritando, apesar do suéter grosso que usava por baixo do casaco de pano. Daniel acrescentou:

— Fique de olhos bem abertos. Procure um hotel que pareça razoável.

Avançaram lentamente pelo que parecia ser a rua principal e entraram na zona comercial da cidade. As ruas estavam quase vazias, a tempestade afugentando os pedestres. As lojas, com as vitrines iluminadas ao meio-dia, pareciam estranhamente abandonadas.

— Há um cartaz ali — disse Tess. — Brow's Tourist Hotel. Logo adiante.

Uma placa na frente do hotel indicava o estacionamento adjacente. Daniel parou o carro o mais perto possível da entrada lateral do hotel. Desligou o motor, comentando:

— Não parece dos piores.

— Pois vamos logo entrar. Estou congelando.

Correram do carro para a entrada. O saguão era pequeno e feio, mas estava limpo e arrumado. O recepcionista achava-se por detrás do balcão quando se aproximaram. O aviso por cima das chaves atrás dele era simples: NÃO SE PERMITEM NEGROS NEM ÍNDIOS.

— Pois não, senhor?

— Tem um quarto de casal?

O homem olhou para o mapa dos quartos.

— Tem reserva, senhor?

Daniel continuou a fitá-lo, sem dizer nada. O homem ficou subitamente afogueado.

— Temos, sim, senhor. Gostaria de um quarto de luxo, com banheiro, por um dólar, ou prefere um quarto comum, com banheiro no corredor, por 75 centsi

— Vamos ficar com o quarto de luxo.

— Obrigado, senhor. — E empurrou o livro de registro para Daniel. — Assine aqui, por favor. — Tocou a campainha, chamando o carregador. — É um dólar, senhor, pago adiantado.

Daniel olhou para Tess e depois assinou no registro Sr. e Sra. D. B, Huggins, Washington, D. C. O carregador se aproximou e o recepcionista entregou-lhe a chave.

— Vai ficar no Quarto 405, senhor — disse ele, olhando para o registro. — Tenho certeza de que vai gostar, Sr. Huggins. É um quarto de esquina. O rapaz vai ajudá-lo com a bagagem.

Daniel virou-se para o carregador.

— Mostre-nos o quarto primeiro e depois poderá buscar a bagagem no carro. É o Jewett que está perto da entrada.

Seguiram o carregador até o elevador e depois para o quarto. Tess foi para o banheiro assim que entraram. Daniel virou-se para o carregador:

— Depois que pegar a bagagem, quais são as possibilidades de providenciar um bule de café e uma garrafa de uísque?

O rosto do carregador ficou impassível.

— Este é um condado seco, senhor.

Daniel tirou uma nota de um dólar do bolso, mostrando-a.

— Continua seco?

— Continua, senhor — respondeu o rapaz.

Daniel acrescentou outro dólar.

— Ainda seco?

O carregador sorriu, pegando os dois dólares.

— Veremos o que é possível fazer.   Voltarei num instante. Obrigado, senhor.

A porta se fechou atrás dele no momento em que Tess saía do banheiro, comentando:

— Puxa! Por um instante, cheguei a pensar que as comportas iam arrebentar.

— Posso entender o problema — disse Daniel, rindo. — E estou na mesma situação.

O carregador voltou em menos de 10 minutos, trazendo tudo: a mala, o bule de café, uma garrafa de uísque, copos, água gelada, xícaras e pires.

— Mais alguma coisa, senhor?

— Tem bons restaurantes por aqui?

— Bem ao lado do hotel. Pode conseguir uma refeição de três pratos por trinta e cinco cents, até duas e meia.

Daniel jogou-lhe uma moeda de vinte e cinco cents. Pegou a garrafa de uísque, tirou o selo e depois arrancou a rolha com os dentes. Olhou para Tess.

— Serve para esquentar.

— Só quero um gole. Fico tonta depressa demais.

Daniel despejou um pouco de uísque no copo dela e depois uma dose reforçada para si mesmo.

— À nossa! — Ele engoliu o uísque de um só trago, depois tomou outra dose, enquanto Tess terminava a primeira. Ele largou o copo e serviu o café. Beberam devagar.

— Está-se sentindo melhor agora?

Tess acenou com a cabeça. Daniel correu os olhos pelo quarto.

— Não está nada mau.

— Acho maravilhoso. — Tess fitou-o nos olhos. — Sabe de uma coisa? Nunca antes estive num hotel de luxo como este.

Daniel riu e levantou-se.

— Vamos descer e comer alguma coisa. Depois, tenho que fazer algumas compras.

 

Daniel contemplou-se no espelho comprido. O terno parecia muito bem nele, cinza-escuro, com listras bem finas. Virou-se para Tess:

— O que acha?

Antes que ela pudesse responder, o vendedor apressou-se em dizer:

— É a última moda em Nova York, senhor. Observe as pregas invertidas na calça. Lã genuína, com forro de seda. E custa apenas quatorze dólares e noventa e cinco cents com uma calça, dezessete dólares e cinqüenta cents com duas calças.

— Gosto muito — comentou Tess.

— Vou ficar com ele — disse Daniel. — E com duas calças. Quanto tempo vai demorar para ajeitar as bainhas?

— Dez minutos está bom, senhor?

— Está ótimo.   E enquanto   esperamos,   quero comprar   três camisas, duas brancas e uma azul, três pares de meias pretas, três cuecas, um par de sapatos pretos e uma gravata preta, com uma listra inclinada vermelha ou cinza.

Um sorriso de satisfação se estampou no rosto do vendedor.

— Pois não, senhor. E teremos a maior satisfação em oferecer-lhe a gravata como presente. Gostamos de cuidar bem   dos nossos bons fregueses.

Quinze minutos depois, Daniel estava ajustando a gravata diante do espelho. O vendedor segurou o paletó para que ele o vestisse.

— Permite que faça uma sugestão, senhor? — perguntou o vendedor, hesitante.

— Pode fazer.

— Só está faltando uma coisa, senhor:   um chapéu. Somos representantes de Adam Hats, de Nova York. Temos um modelo especial, da última moda, por apenas um dólar e noventa e cinco cents.

Quando Daniel saiu da loja, o chapéu estava assentado em sua cabeça. Foram andando cuidadosamente sob as saliências dos prédios. Daniel não queria molhar o chapéu logo na primeira vez em que o usava. Tess estava orgulhosamente pendurada no braço dele. Era um homem da melhor aparência.

Havia uma loja de material esportivo algumas portas depois. Daniel parou abruptamente e olhou para a vitrine. Estava cheia de rifles e espingardas.

— Vamos entrar, Tess.

Ela seguiu-o para o interior da loja. Daniel foi direto para o homem que estava parado atrás do balcão nos fundos da loja.

— Como vai? — disse o homem. — Em que posso servi-lo?

— Estou interessado num revólver. Não deve ser muito grande.

— Calibre 22, 38 ou 45?

— Prefiro um 38, mas depende do tamanho.

O homem assentiu. Tirou um molho de chaves do bolso e abriu uma gaveta por baixo do balcão. Colocou em cima do balcão um Colt Policial, de cano comprido.

— O que acha?

— Grande demais — respondeu Daniel, sacudindo a cabeça. Q homem trocou por um Smith & Wesson Modelo Militar e Policial. Daniel tornou a sacudir a cabeça.

— O que me diz de uma Automática Colt Modelo do Governo?

— Não gosto. Já a usei no Exército. Não atira para onde a gente aponta. E o coice é forte demais.

— Então só tenho mais uma coisa em termos de calibre 38. Se não gostar, teremos de passar para calibre 22.

— Deixe-me ver.

Desta vez o homem apresentou uma pequena caixa de couro. Abriu-a respeitosamente. A arma era de um metal brilhante, de um prateado azulado, com o cabo de madrepérola.

— Smith & Wesson 38 Terrier de cano curto — disse ele, reverentemente. — E vem com o coldre de couro para o ombro. Mas é caro.

— Quanto custa? — perguntou Daniel, fitando-o.

— Trinta e nove dólares e cinqüenta cents.

— É mesmo caro. — Daniel pegou a arma e a sentiu. — Não parece grande coisa.

— É onde todo mundo se engana. Pode fazer tudo o que o maior faz. E melhor.

Daniel abriu a arma e girou o tambor com o polegar. Tornou a fechá-lo, empunhando a arma.

— Dê-me um preço melhor.

O homem hesitou por um momento.

— Trinta e cinco dólares.

— Pode baixar mais.

— Trinta e dois dólares e cinqüenta cents. E não posso ir além disso.

— Tem um estande de teste?

— No porão. — O homem apertou um botão por baixo do balcão. Um rapaz em roupas de trabalho, manchada de graxa, saiu de uma sala nos fundos. O vendedor entregou-lhe a arma, juntamente com um punhado de cartuchos.

— Leve o cavalheiro para o porão. Ele quer experimentar a arma.

Daniel e Tess seguiram o rapaz por um lance de escada nos fundos da loja. O empregado acendeu a luz ao chegarem lá embaixo. Havia um estande de tiro iluminado no outro lado, um alvo de papel branco num suporte à frente de sacos de areia. O rapaz entregou a arma e os seis cartuchos a Daniel.

Daniel carregou a arma rapidamente. Girou o tambor, experimentou o gatilho para verificar a tensão, depois puxou o cão. Satisfeito por a arma não ser dura, empunhou-a com as duas mãos estendidas, mirando o alvo.

— Abaixe um pouco — aconselhou o rapaz. — A tendência é a bala subir cerca de trinta centímetros a cada seis metros. E o alvo está a dez metros de distância.

— Ou seja, não há muita precisão.

— É o problema do cano curto. É preciso compensar. Mas vai acostumar-se rapidamente.

Daniel olhou pelo cano e apertou o gatilho. O coice foi muito pequeno. Ele verificou o alvo. Errara completamente.

— Abaixe mais — disse o rapaz. — E mire com o cão, não com o cano.

Daniel atirou novamente, desta vez acertando na beira do alvo. Acenou com a cabeça e disparou os tiros restantes em rápida sucessão. Acertou três na mosca e um ligeiramente ao lado. Entregou a arma ao rapaz, comentando:

— Está ótima. — Virou-se para Tess, que o fitava fixamente, o rosto pálido. Pegou-lhe o braço. Ela estava tremendo. — Você está bem?

— Estou, sim — respondeu Tess, respirando fundo. Ele segurou-lhe o braço enquanto subiam a escada nos fundos da loja.

— Vou levar, se acrescentar uma caixa de balas — disse Daniel ao vendedor.

— Não posso fazer isso. Mas darei como bonificação o pano de limpeza, a vareta e o vidro de óleo.

— Está certo. E levarei uma caixa de balas.

O homem pegou um formulário e disse, em tom de desculpas:

— É o regulamento. Tem de preencher este formulário com seu nome, endereço e identidade.

— Não há problema. — Daniel pegou a carteira de motorista e colocou-p. em cima do balcão. — Isto serve?

— Dê-me um minuto para preencher o formulário e depois limparei a arma — respondeu o homem, com um aceno de cabeça.

Enquanto esperava que o homem preenchesse o formulário, Daniel tirou o paletó e pôs o coldre no ombro e apertou a tira de couro. Ao terminar de ajeitar, encontrando a posição mais confortável, o homem já preenchera o formulário e limpara a arma.

— São trinta e sete dólares e cinqüenta cents, com um caixa com cinqüenta balas.

Daniel contou o dinheiro e tirou a arma da mão do homem. Carregou-a rapidamente e meteu-a no coldre. Depois, tornou a vestir o paletó. Apalpou o paletó. Caía suavemente, como se nada houvesse ali.

Saíram para a rua. Daniel olhou para o relógio de pulso e disse para Tess:

— Ainda é cedo. Não gostaria de ir a um cinema antes de voltarmos para o hotel?

Ela sacudiu a cabeça.

— Não — respondeu, em voz tensa. — Vamos voltar para o hotel imediatamente.

Havia alguma surpresa na voz de Daniel, quando ele perguntou:

— Tem certeza de que está tudo bem?

E na voz de Tess havia um tom de irritação:

— Está tudo bem, seu idiota. Mas por quanto tempo acha que pode manter uma mulher esperando?

 

Ela despertou lentamente, primeiro se apercebendo de uma sensação dolorida deliciosa entre as pernas, uma sensação intensa de que estava cheia e inchada. Era ótimo. Abriu os olhos.

Ele estava de pé, inteiramente nu, de costas para ela, olhan­do através das cortinas da janela da frente. Tinha um charuto numa das mãos e um copo de uísque na outra. Era mesmo grande. Os ombros e o tronco quase quadrados até os quadris, apoiados em pernas grossas e musculosas. E era forte também. Ela sabia disso. Ainda podia sentir a força dele. Sabia que não era pequena e que pesava em torno dos 65 quilos. Mas mesmo assim ele a levantara e a movera como se fosse uma boneca de papel. Só que bonecas de papel nunca podiam sentir-se da maneira como ele a fizera sentir-se.

— Que horas são? — perguntou Tess. — Caí no sono.

— Quase seis horas. — Ele virou-se para fitá-la. — A chuva parou.

— Ótimo. — Tess sentou-se na cama, puxando o lençol por cima dos seios nus. Uma súbita umidade quente saiu de dentro dela e escorreu por suas coxas. Havia um tom de surpresa em sua voz quando comentou:

— Você ainda está saindo de mim. Daniel não disse nada.

— É melhor pegar uma toalha no banheiro para mim.

— Para quê?

— Não me parece certo deixar que tudo se derrame sobre os lençóis.

— Os hotéis já esperam que isso aconteça. Até mesmo os casados trepam mais quando vão para um hotel do que em casa.

— Fala como se conhecesse essas coisas. Já foi casado alguma vez?

— Nunca — respondeu Daniel, sacudindo a cabeça.

— Por quê?

— Acho que nunca fiquei num lugar pelo tempo suficiente para isso.

— E jamais quis casar-se?

— Pensei nisso.   Talvez algum   dia ainda   me case.

— Pois eu já fui casada duas vezes.

— Sei disso. Já me contou.

Tess sentiu os mamilos se endurecerem e um rubor surgiu em suas faces ao lembrar o que tinham feito.

— E com nenhum dos dois maridos jamais fiz as coisas que fiz com você.

— E o que você fazia?

— Sabe o que era. Apenas trepava. Uma metida. Às vezes pela frente, às vezes por trás. E mais nada. Nunca antes tinha chupado um homem.

— E não foi mau, não é mesmo? — falou ele, rindo. Tess riu também.

— Não. — Ela fitou-o nos olhos e perguntou timidamente:

— E fiz direito?

— Foi ótima. Se não me tivesse falado, eu pensaria que era uma coisa que fez durante toda a sua vida.

— E fiz mesmo — disse ela, bruscamente. — Dentro da cabeça. Mas sempre tive medo de fazer com os meus maridos, porque eles podiam pensar que eu era uma puta.

— É uma pena que não o tenha feito. Talvez ainda estivesse casada.

— Estou contente por não ter feito — apressou-se Tess em dizer. — Nenhum dos dois era um homem amoroso como você. Limitavam-se a trepar, sem pensar em nada.

Daniel tomou um gole do uísque.

— Quer um drinque?

— Não, obrigada.   — Pegou o   robe no   chão,   onde   caíra, vestindo-o enquanto saía da cama. Aproximou-se dele, a caminho do banheiro. — Vou tomar um banho.

Daniel pôs a mão no braço dela, detendo-a.

— Não tome o banho.

— Por quê?

— Gosto do cheiro de sua cona.

— Oh, Deus! — Tess percebeu o   apetite nos olhos dele. — Está-me deixando toda molhada outra vez.

Daniel riu e pegou-lhe a mão.

— Pois olhe o que está fazendo comigo.

A mão dela fechou-se em torno da dureza crescente dele. Tess sentiu uma fraqueza nas pernas e não precisou que as mãos de Daniel em seus ombros a fizessem ficar de joelhos no tapete. Ele entrou na boca aberta de Tess, mantendo uma das mãos atrás da cabeça dela, murmurando:

— Pegue as minhas bolas e aperte.

Ela sentiu as bolas ficarem duras como pedra em suas mãos e depois se contraíram subitamente. O sêmen esguichou em sua boca e desceu pela garganta. Tess sentiu-se engasgada, quase sufocando, enquanto tentava engolir o fluxo. E depois, quando pensou que não mais conseguiria   agüentar,   finalmente acabou.

Ainda ofegante, fazendo um esforço para respirar, o sêmen escorrendo pelos cantos da boca e pelo queixo, ela levantou a cabeça para fitá-lo.

— Nunca conheci um homem como você.

Daniel fitou-a também, sem dizer nada. Pegou o copo de uísque e derramou o que restava pela garganta, depois abaixou-se para ajudá-la a levantar-se.

— Não. — Tess sacudiu a cabeça vigorosamente. — Bata-me primeiro. Quero que me dê um tapa na cara.

— Por quê?

— Porque quero que me faça sentir como uma puta. Porque se eu não me sentir como uma puta com você, vou acabar-me apaixonando.

A mão aberta de Daniel acertou-a a face e ela se estatelou no chão, caindo de lado. Um seio grande saiu pelo robe aberto, esmagando-se contra o chão. Lentamente, Tess levantou os dedos para tocar no rosto. A marca branca dos dedos de Daniel ainda estava ali, começando a ficar vermelha. Ela fitou-o novamente, quase com raiva, murmurou:

— Toda vez...

Ele não disse nada.

— Toda vez que trepar comigo, faça isso. Para que eu não me esqueça de onde estou.

Por um momento, Daniel não se mexeu. Depois abaixou-se e ajudou-a a levantar-se, dizendo, quase gentilmente:

— Vista-se. É melhor irmos jantar logo, se quisermos partir de manhã bem cedo.

Daniel acabara de ajustar o coldre no ombro quando ela saiu do banheiro. Ficou parada, observando-o, enquanto ele verificava o tambor e depois guardava a arma no coldre. Daniel olhou para o espelho por cima da cômoda à sua frente e viu o reflexo dela. Meneou a cabeça, com uma expressão de aprovação.

— Esse vestido é muito bonito.

— Obrigada. — Tess sentiu-se satisfeita por ele ter notado. Era o seu vestido predileto. Bege e preto. Fazia-a parecer mais esguia, os seios e quadris não tão grandes. Daniel terminou de ajeitar a gravata, enquanto ela comentava:

— Você também está ótimo.

Ele tocou no curativo na testa.

— Exceto por isso.

— Só terá de agüentar mais alguns dias. Depois, encontraremos uma clínica qualquer para tirar os pontos. — Ela atravessou o quarto para pegar o casaco, enquanto Daniel vestia o paletó. — Daniel.

— O que é? — indagou ele, virando-se.

— Talvez eu não devesse perguntar, mas de que está fugindo? — Tess fez um esforço para evitar que o nervosismo que sentia transparecesse em sua voz.

— Não estou fugindo de nada.

— Mas comprou uma arma.

Ele tornou a virar-se, sem responder. Abotoou o paletó e estendeu a mão para o chapéu. Tess aproximou-se dele.

— Não precisa contar-me nada, se não quiser. Mas se estiver em dificuldades, talvez eu possa ajudar.

Daniel pegou-lhe a mão e apertou-a gentilmente.

— Não estou   metido   em   nenhuma   encrenca.   Nem   com a polícia nem com ninguém. E não estou fugindo.   Queria apenas algum tempo sossegado para poder pensar.

— E uma arma ajuda-o a pensar melhor?

— Não. — Daniel soltou uma risada. — Mas estou metido num negócio que não é brincadeira. Há poucos dias, alguns homens me meteram à força num carro, no momento em que eu saía do meu escritório. Levaram-me de um lado para outro durante três dias, enquanto decidiam o que fazer comigo. Poderiam ter-me matado a qualquer momento e eu nada poderia fazer para evitá-lo. Finalmente me jogaram do carro e descarregaram um revólver no chão a meu redor. Pensei que iam matar-me e fiquei tão apavorado que caguei na calça. Foi algo que nunca me tinha acontecido antes, mesmo durante a guerra... e estive no pelotão do Sargento York na França, vi muita morte por lá. Tomei a decisão, naquele momento, de que ninguém jamais voltaria a me agarrar daquela maneira sem uma luta.

— Não estou entendendo. Em que tipo de negócio está metido para que as pessoas queiram fazer-lhe uma coisa dessas? Isso só costuma acontecer com os gângsteres.

— Sou um organizador sindical.

— Não sei o que é isso.

— Fui designado pela U.T.M., para trabalhar com o C.I.O., ajudando na organização de sindicatos em diferentes indústrias.

— Quer dizer que é um desses comunistas sobre os quais andei lendo nos jornais?

— Nada disso. — Daniel riu, sacudindo a cabeça. — A maioria dos homens para os quais trabalho apóia os republicanos, embora eu me incline para os democratas.

— Nunca ouvi falar dessas coisas antes.

— Vamos embora — disse Daniel, pegando-a pelo braço e guiando-a para a porta. — Tentarei explicar tudo durante o jantar.

 

                                                                                CONTINUA 

 

                      

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