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OS BÓRGIAS / Sarah Bradfórd
OS BÓRGIAS / Sarah Bradfórd

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS BÓRGIAS

 

A Itália de 1492, quando tem inicio a história dos Bórgias, era o coração do mundo civílizado, sede do chefe da cristandade; dela tinham saido cidades-estados como Veneza, Florença e Milão, que maravilhavam a Europa pela cultura, progresso tecnológico e artístico e pelo fausto. A Itália era na época um mosaico de pequenos estados índependentes, cujos senhores, unidos entre si por uma rede de parentescos, viviam num ambiente de sumptuosidade com frequência perturbado por explosões de violência. Aquele mundo aristocrático e culto ia ser subvertido pelas paixões e pelas ambições de uma ávida família de pessoas fora do comum - os Bórgias.

 

                   O PAPA

Roma, 26 de Julho de 1492. O sol brilhava por cima da multidão de telhados da cidade medieval, que já não era a Roma gloriosa dos Césares e não era ainda a Roma opulenta dos papas. Ainda se erguiam as antigas muralhas, mas por dentro a cidade reduzira-se a um nticleo desbotado em volta do Tibre, rodeado naqueles tempos por campos onde bois e cabras pastavam entre as ruínas. Os monumentos da Roma imperial pareciam dispersos como ossos de animais pertencentes a outras eras, frequentemente acompanhados por casas miseráveis de madeira e pedras a eles agarradas como ninhos de pardal. Mas Roma ressurgia. Recomeçara a engrandecer-se desde que o pontífice e a sua corte ali tinham regressado uns cinquenta anos atrás, depois de mais de um século de ccativeiro babilónico em Avinhão, em submissão aos reis de França. O ar vibrava com os martelos dos canteiros nos numerosos estaleiros onde se construíam faustosos palácios em travertino, a luminescente pedra romana, para hospedar os grandes séquitos dos cardeais, os cortesãos do Papa, príncipes da Igreja.

Roma era efectivamente uma cidade parasita que sugava sangue das veias da cristandade vivendo à custa dos peregrinos e do clero menor que se espalhavam pela cidade em cada estação do ano; era um fluir constante de população, servida por um exército de prostitutas e de taberneiros, fornecedores de luxos necessários e de caras necessidades. A vida dos Romanos era rica em prazeres, mas muitas vezes violenta. Ruas escuras e vielas tortuosas eram traiçoeiras à noite, quando os sicários das famílias mais importantes executavam as suas vinganças lançando depois as suas vítimas ao Tibre, como a gente do povo fazia com o lixo. Até à luz do dia os partidários das duas grandes famílias dos Orsini e dos Colonna se batiam pelas ruas.

O verdadeiro soberano da cidade era o Papa, bispo de Roma, chefe espiritual de todo o mundo cristão e único detentor do poder temporal da Igreja, os estados pontifícios da Itália Central. Uma grande emoção se insinuava pela cidade naquela quente manhã de Julho; todos os olhos estavam voltados para o Vaticano onde o papa Inocêncio VIII, nascido João Baptista Cibo de Génova, jazia moribundo, alimentado, murmurava-se, por leite de parturientes e talvez também por sangue de meninos cristãos, que lhe era injectado nas veias por um médico hebreu.

Sem que os Romanos soubessem, Inocêncio estava já morto. Jazia certo na penumbra da câmara de abóbada, no palácio medieval. O cheiro pestilento da morte pesava na sala e fazia torcer o nariz a Rafael Riario, o cardeal camerlengo, misturando-se e rivalizando com o mau cheiro estival do lixo em putrefacção que das águas do rio subia e se intensificava pelas persianas das janelas. Riario terminou mecanicamente as formalidades do rito, batendo com o macete na testa do defunto e pro nunciando o seu nome, antes de declarar oficialmente morto o papa Inocêncio VIII.

O camerlengo não estava amargurado pela morte de Inocêncio, um homem indulgente que lhe permitira defender e au mentar as imponentes fortunas amontoadas na sua qualidade de sobrinho do anterior Sisto IV. Como todos os Romanos também o seu pensamento ia para o iminente conclave dos cardeais para eleição do novo papa. Para ele, como para todo o mundo cristão, a eleição do novo papa era de vital importância. Um papa podia fundar uma dinastia, elevar uma família de humildes origens, como acontecera com Riario; podia favorecer ma trimónios de parentes na aristocracia, doar aos seus favoritos ricos feudos, escolhendo-os entre os territórios pertencentes à Igreja; nomear cardeais e familiares eclesiásticos de modo a que o seu poder perdurasse mesmo depois da sua morte; conceder os seus ofícios remunerativos e benefícios abundantes em apoio da sua posição. Portanto, seria o novo papa forte e rapace, da têmpera do tio de Riario? Iria, à semelhança de Sisto, enrique; cer a sua família a expensas da Igreja? Ou a escolha cairia num personagem de carácter mais ascético, como o velho cardeal português Costa ou o veneziano Zeno?

Riario era homem astuto e um hábil político; em sua opinião o tempo não era para santos e menos ainda para pontífices velhos. Atrás da eleição de um papa entrelaçavam-se as densas teias de aranha da política internacional, as opostas reivindicações dos poderosos reis de França e de Espanha, ambos interessados no reino de Nápoles, onde morreria, não tardaria muito, o velho e feroz soberano Ferrante; as ambições de Ludovico Sforza, duque de Bari e regente de Milão, o qual olhava para o Estado do sobrinho, o fraco João Galeazzo Sforza, apenas formalmente duque de Milão. O futuro papa, árbitro espiritual daquelas contendas e senhores temporais de grande parte da península italiana, tinha de ter a força de resistir a intensas pressões internacionais e ao mesmo tempo a habilidade de manobrar com destreza entre reivindicações contrárias e complicadas intrigas. Não, pensava Riario, o candidato vencedor não ia ser escolhido entre os homens mais religiosos, mas sim entre os políticos mais experientes, entre os mais requintados conhecedores dos jogos do poder. Eram assim seu primo julião Della Rovere, homem de grande habilidade e veementes paixões; Ascanio Sforza, membro de uma família poderosa e irmão do regente de Milão, cujo interesse pela política só era igualado pela sua paixão pela caça; ou o vice-chanceler da Igreja, conforme a hierarquia eclesiástica, o segundo após o papa e o mais rico entre todos os cardeais: o espanhol Rodrigo Bórgia. Também este era sobrinho de um pontífice, Calisto III, o qual, usufruindo do seu cargo, encaminhara as fortunas da própria família mais de trinta anos atrás. Um outro papa Bórgia. Riario teve um arrepio. O sino de Campidoglio tocava a finados.

Os dobres do sino provocaram um sorriso nos lábios sensuais do homem ajoelhado no prie-Dieu' à luz do sol matutino. Rodrigo Bórgia era de corpulência maciça, com um grande nariz aquilino, faces pesadas, carnação olivácea, olhos escuros e uma vistosa tonsura na cabeleira grisalha. O cardeal Bórgia era um homem formidável quer na mente quer no corpo. Descendente de uma família obscura do latifúndio de Valença, saíra dos olivais da natal Jativa para um palácio romano e para os limiares do trono pontifício graças a uma mente aguda, a um enraizado instinto de sobrevivência e a uma boa dose inicial de fortuna.

 

Em francês no original: genufìexório. (N. do E. )

 

Apenas com dezoito anos tinha deixado a Espanha para acompanhar a Itália o tio Alonso Bórgia, um óptimo advogado que obtivera a púrpura cardinalícia. Tinha vinte e quatro anos quando o tio, no meio da surpresa geral, fora eleito papa com o nome de Calisto III. No espaço de um ano o tio tinha-o nomeado cardeal e dois anos depois vice-chanceler da Igreja; dois meses antes de morrer atribuía a Rodrigo a cátedra episcopal de Valença, a mais munificente de Espanha, com um rendimento anual de mil e oitocentos ducados. A espantosa fortuna de Rodrigo parece mudar com a morte do tio, em Agosto de 1458, quando violentos sentimentos antiespanhóis nasceram e se dirigiram contra a família do papa e seus apoiantes. Mas Rodrigo recorrera ao seu prestígio de vice- chanceler a fim de que o papa seguinte, Pio II, lhe fosse devedor pela própria eleição. Mantivera-se portanto o cargo em todo o reinado de Pio e também, em seguida, com Sisto IV e Inocêncio VIII, aumentando gradualmente o seu poder, as suas riquezas e a sua influência, tendo sempre como objectivo final o sólio pontifício. Já oito anos antes entrara na liça, pela morte do papa Sisto, tendo por adversário julião Della Rovere, sobrinho do defunto. Uma vez que se criara uma situação de equilíbrio entre os dois, o astuto Julião conseguira que fosse eleito o cardeal Cibo, seu homem de confiança, o qual tomara o nome de Inocêncio VIII. O sino anunciava naquele momento a morte deste último e, para Ro drigo Bórgia, com sessenta e um anos, anunciava a última oportunidade para ver realizada a sua aspiração e com toda a probabilidade o último confronto com Julião Della Rovere, doze anos mais novo do que ele.

Mas com sessenta e um anos, Rodrigo sentia-se ainda no apogeu da sua vida, animado por grande vitalidade para tudo: política, caça e amor. . . principalmente amor. Rodrigo era homem sensualíssimo, sensível ao fascínio feminino, considerado sedutor pelas mulheres. Ainda com dezoito anos e jovem clérigo tinha suscitado a inveja do seu tutor, o qual verificara como atraía a si as mulheres mais belas pior que um íman. Jovem cardeal aos vinte e cinco anos, pela sua desenvoltura numa festa de casamento em Siena merecera uma censura pessoal do papa. Com mais de sessenta anos Rodrigo não mudara e conservava ainda intactas todas as qualidades que agradavam às mulheres: vivacidade tumultuosa, humorismo oportuno, eloquência melosa, aspecto real e, principalmente, impudente sensualidade.

Rodrigo sabia que as mulheres eram a sua maior fraqueza: não lhes sabia resistir. Naquele momento, por exemplo, em atitude de oração e com a mente virada para o iminente conclave anunciado pelo sino, saboreava inconscientemente uma sensação de adormecido desejo. Não pôde resistir à tentação de virar a cabeça e olhar a rapariga na sua cama.

Júlia Farnese Orsini. bela, com o sol a brincar-lhe na rica cabeleira dourada, o polido corpo de dezanove anos brilhante contra os pesados panejamentos de brocado. Rodrigo levantou-se da devota genuflexão, escolheu um pêssego da fruteira de prata que o seu camerlengo predilecto deixara numa mesinha e aproximou-se da cama. Ficou em contemplação. Qualquer homem da sua idade tinha de se sentir orgulhoso de tal companheira de leito, reflectiu, acariciando-a. Júlia levantou o olhar por entre as pestanas densas com uma chama de ávido desejo nos olhos azuis. Rodrigo tinha já ajudado a família dela com a sua influência, arrancando-a à miséria do campo romano. Se fosse eleito papa, era provável que nomeasse o irmão dela, Alexandre, cardeal, e a fortuna da sua família concretizar-se-ia.

Agarrou a mão de Rodrigo para a pousar sobre o ventre liso.

- Vê-se? - perguntou com petulância.

Rodrigo não respondeu. Em vez disso ofereceu-lhe o que restava do pêssego e beijou-a enquanto ela mastigava, lambendo-lhe o sumo do fruto do queixo, afagando-a.

Júlia estendeu os lábios.

- Não o quero.

- E se fosse meu e não daquele cego do teu marido?

- Não.

Rodrigo observou-a afectuosamente, quase paternalmente. Era certo que o filho era seu e não de Orsino Orsini, jovem e fraco marido de Júlia, filho de Adriana de Mila, sua prima em primeiro grau e amiga íntima. Tinha a convicção da sua virilidade, tendo já concebido sete filhos bastardos, quatro dos quais da mesma mulher. Estava ligado àqueles quatro por um afecto profundíssimo, talvez excessivo. O pensamento dos filhos voltou a trazê-lo ao presente. Do seu êxito dependia a possibilidade de fundar uma dinastia Bórgia na Itália.

- Levanta-te, minha filha - disse-lhe -, hoje há muita coisa para fazer.

Júlia escorregou para fora da cama e apertou-se contra ele.

- Vais então ser papa? - perguntou.

Rodrigo encerrou-a entre os braços revestindo-a com as amplas mangas vermelhas da sotaina cardinalícia.

- Depende do que sentirei, direi e farei nos próximos diasrespondeu ele. - Agora tens de me perdoar por te deixar.

Deixou-a ir.

- Anda, Júlia. Tenho de trabalhar.

Júlia fez uma pirueta.

- Ainda sou desejável? - perguntou, casquilha.

Não tendo obtido resposta, Júlia com ar amuado, infantil, desapareceu no quarto contíguo. Rodrigo já não pensava nela. Com a mão na campainha chamava o seu camerlengo privado.

Chegou com passada ágil Pedro Calderón, conhecido por Perotto. Era um jovem de belo aspecto, moreno e frisado, espanhol como todos os servidores de mais confiança de Rodrigo. Vestia como clérigo. Se bem que tivesse decorrido trinta anos desde que deixara a Valença natal no séquito do tio Alonso, Rodrigo Bórgia ainda se sentia espanhol no coração, gostava de se rodear de espanhóis e falava espanhol com os filhos César, João, Lucrécia e Godofredo.

Perotto lançou instintivamente um olhar à cama desfeita nela esperando ver ainda Júlia.

Rodrigo viu a sua mirada e perguntou bruscamente:

- Novidades?

O outro baixou os olhos, respeitoso.

- Vossa Eminência tem óptimos motivos para confiar num sucesso, desta vez. . .

Rodrigo interrompeu-o, impaciente:

- Assim pensei no passado erradamente. Não tenho de te lembrar o ditado: Quem entra papa no conclave, dele sai ainda cardeal. Quantos são os cardeais que vão ao conclave?

- Quatro, Eminência.

- Logo, terei de obter catorze votos. Que se sabe do cardeal Della Rovere? Diz-se que os Franceses lhe tinham oferecido duzentos mil ducados para comprarem o santo sólio. Carlos de França não anda a brincar. É uma bela quantia para apostar no seu campeão para que vença a corrida. Aliás, certamente não ma podia oferecer a mim, espanhol convicto.

- Vossa Eminência acha que tem razão de negociar com Julião Della Rovere?

- É inútil, Perotto. Julião detesta-me. Acho que estás lembrado das injúrias que trocámos à cabeceira do papa Inocêncio?

Já nos enfrentámos no passado. Este será o último combate.

Rodrigo contemplou a grande esmeralda episcopal que trazia no dedo.

- Mesmo que fique com os seus duzentos mil ducados. Terá necessidade de duas vezes isso para satisfazer um homem como Ascânio Sforza e depois existem outros não menos ávidos do que ele. Acho que terei mais para oferecer. Sou vice-chanceler, tenho este palácio que é o mais belo, depois do de Riario, tenho o bispado de Porto, a minha abadia de Subiaco. Sim, acho que posso fazer frente a julião. E depois estas moedas francesas poderiam ser-lhe mais pesadas que uma cadeia. Existem cardeais aos quais não agradará este entendimento com os Franceses. Como te chegou a informação?

- Eminência, conheço uma rapariga que frequenta muitos leitos, entre os quais o do camerlengo do cardeal Della Rovere.

- Deixemos então que a notícia se espalhe. Se acontecesse partir de mim, diriam que a tinha inventado para desacreditar Julião. Negarei. Com horror manifestarei a minha incredulidade. Deixemos que a notícia germine em desmentidos enquanto eu não for obrigado, no momento mais favorável, a tomar uma atitude. Dá rédea solta à tua rapariga, Perotto, com a minha bênção. e com todos os encorajamentos do acaso. Sê parco, Perotto, não mais de um fâmulo por cada cardeal. . . Resta o cardeal Sforza, que é a chave de tudo.

O cardeal Ascânio Sforza, um homem moreno e magro, de ar astuto, sentava-se na frente de Julião Della Rovere numa mesa, na fortaleza de Rovere em Ostia, na foz do Tibre. Entre eles viam-se uma garrafa em cristal de feitio estranho e dois cálices de prata. Ascânio bebeu um gole de vinho e fez uma careta. Julião Della Rovere era conhecedor de arte, não de cozinha e de vinhos. De resto, Ascânio não fora a Ostia para se abandonar aos prazeres da mesa, mas sim para procurar vantagens de mais longa duração. Não tendo probabilidades de eleição ao pontificado, tencionava dar a quem mais oferecesse, o pacote de votos que controlava no conclave. Por cima do rebordo do seu cálice, fitou Julião, impassível e autoritário, homem para não subestimar e menos ainda para não contrariar.

Julião tinha a mente e o físico de um gigante, a face de um imperador romano e as ambições excelsas de uma águia. Era um político subtil, sobrevivente à queda da família Riario que se dera com a morte do tio Sisto, que o nomeara cardeal. Homem de cóleras violentas e incontroladas, era principalmente capaz de rancores inigualáveis. O homem que mais detestava era Rodrigo Bórgia. Levantou-se bruscamente e pôs-se a caminhar pela sala com grandes passadas.

- Já tivemos um papa Bórgia na pessoa de seu tio Calistodisse em tom veemente. - Outro trituraria a Igreja.

- Subestimas a sua elasticidade - argumentou Ascânio, calmo e esperançado.

- E tu subestimas a avidez daqueles catalães - contestou Julião. - Dinheiro, mulheres e ambições familiares. Rodrigo Bórgia não pensa noutra coisa. Goza os seus privilégios de vice-chanceler para vender o perdão aos assassinos, dizendo não ser vontade de Deus que eles morram, mas que vivam para pagar as suas culpas. - Vendo a sombra de um sorriso no rosto mais jovem do seu interlocutor, interrompeu-se para voltar ao problema do momento: - E o mais rico príncipe da Igreja teria de vir a ser papa só porque o voto de um cardeal se pode comprar com dois machos carregados de prata?

- Também as tuas receitas não lhes são indiferentes, Julião - replicou Ascânio pacatamente.

Não havia necessidade de dizer mais nada. O argumento fora encarado e os dois homens compreendiam-se perfeitamente. Mas, como bom representante dos Sforza, Ascânio estava interessado no poder mais do que no dinheiro e havia qualquer coisa que cobiçava mais do que uma pingue bolsa de ducados franceses. Se Julião viesse a ser eleito poderia ter à disposição o mais alto cargo eclesiástico a atribuir a um homem de confiança. Em silêncio, os dois homens observaram-se com atenção, como que a avaliarem-se reciprocamente.

Foi Ascânio quem se levantou da mesa. Dirigiu-se até à janela para contemplar a cintilação do mar no calor do Verão.

- Diz-se que o teu primo Domingos obteria a vice-chancelaria se fosses eleito - observou quase distraidamente, depois voltou-se a tempo de ver contrair-se um músculo no rosto de Julião. - Um homem capaz.

Della Rovere respondeu de lábios apertados:

- Sem dúvida. Mas delicado de saúde, quando o cargo é pesado.

Resta ver se o conseguirá.

- Não te garantirá mais de um voto, enquanto que o cargo será um óptimo incentivo para alguém com maior séquito.

Houve um longo silêncio. Julião não respondia.

Logo, é assim, concluiu Ascânio para consigo. Não obstante a insistência com que defendia ter no coração apenas a Igreja, Julião tencionava aderir à tradição nepotista iniciada por seu tio, o papa Sisto, e pelo papa Bórgia, Calisto II. O poder tinha de permanecer na família. Pois muito bem: aceitaria a nomeação a candidato e manter-se-ia neutral no conclave. De qualquer modo seria imprudente expor-se com demasiada antecipação e, fosse como fosse, o cargo a que aspirava era ainda desempenhado pelo Bórgia. Para constranger Julião, exprimiu em voz alta uma última consideração.

- Na verdade é o cardeal Bórgia quem, de momento, ocupa o lugar - observou em tom brando encaminhando-se para a porta. - Será também um forte candidato. E agora, meu caro Julião, creio que tenho de ir. Os meus assuntos chamam-me com grande urgência a Roma.

- Ascânio - disse Julião pousando uma mão quase suplicante no ombro do Sforza -, não te fies em Rodrigo Bórgia. Lembra-te que também ele tem uma família, uma estirpe de bastardos. Já tive notícias do comportamento arrogante do seu primogénito, aquele César Bórgia que com dezassete anos foi nomeado bispo de Pamplona. Em Pisa, onde frequenta a Universidade, tem uma casa cujo fausto rivaliza com a do jovem Médici, o filho de Lourenço. E corre que se rodeia de sicários espanhóis. Toma cuidado, não vá o novilho revelar-se pior que o touro que o gerou.

César Bórgia, bispo de Pamplona, andava entusiasmado à caça com o falcão quando ouviu o som que esperava: os sinos que anunciavam a morte do papa. No aspecto em nada se parecia com o pai Rodrigo, tendo herdado da mãe romana, Vannozza Cattanei, os belos traços do rosto, a carnação fresca e os cabelos castanhos de reflexos acobreados. Era alto e mus culoso, um atleta em grande forma, amante da equitação e da esgrima. Deleitava-se também em fazer alarde da sua força batendo-se com os camponeses nas aldeias e enfrentando-os em provas de corrida. Como muitos nobres do seu tempo, era apaixonado pela caça e orgulhoso das suas matilhas de cães e da sua cavalariça: e tanto assim era que o seu corcel era o favorito no palio' de Siena, mesmo tendo de bater-se com a famosa estrebaria dos Gonzaga, os marqueses de Mântua.

Juntamente com estes privilégios, César herdara do pai a mente aguda. Era reconhecido como o melhor estudante do curso daquele ano em Pisa, mas de eclesiástico nele havia na verdade pouco. Gostava de se vestir de veludo e de sedas preciosas, segundo a moda, e usar a espada à cintura. A única concessão feita ao seu cargo episcopal era a minúscula tonsura na nuca, mais uma formalidade do que um sinal de devoção. O seu carácter friamente voluntarioso e feroz não lhe vinha do pai: não era homem para perdoar um insulto ou uma ofensa e alimentava profundo rancor contra o desprezo que sentia entre os aristocratas italianos seus companheiros de universidade. Os Médicis, os Orsini, os Este, todos eles eram aparentados entre si e olhavam-no de alto a baixo vendo nele em primeiro lugar um bastardo catalão qualquer. Os seus belos lábios encurvaram-se num sorriso vingativo, ao som dos sinos. Soava a hora da sua desforra. Todos teriam de vergar a cabeça vaidosa para lhe irem prestar homenagem. . . se seu pai viesse a ser eleito papa. Com um gesto que era um desafio lançado a toda a Itália, largou o falcão e ficou a vê-lo subir em espiral no seu voo cruel.

João Paulo Baglioni que cavalgava a seu lado, fitava-o com interesse. Ouvira os sinos e também compreendia perfeitamente o alcance da mensagem. Se bem que Paulo pertencesse à casa reinante de Perúsia, família conhecida pela ferocidade e pela combatividade, César dominara-o desde que se tinham conhecido, ainda rapazes, em Sapienza. João Paulo tinha algum medo dele. Embora soubesse que era o melhor dos companheiros, simpático, divertido e alegre, tivera maneira de descobrir certas zonas escuras do seu carácter que preferia esquecer. Havia porém alguma coisa em César que levava os homens a segui-lo e, se seu pai viesse a ser papa, quem poderia dizer onde o destino guiaria César Bórgia e com ele João Paulo Baglioni?

Alcançavam naquele momento três homens a cavalo que atravessavam a trote um olival. Quando ficaram mais próximos, o olhar de César toldou-se.

- Os irmãos Orsini - disse desdenhoso.

João Orsini deteve o seu corcel negro junto de César.

 

' Corrida de cavaleiros em trajes medievais que tem lugar em Siena duas vezes por ano. (N. do T. )

 

- Ah, o jovem vitelo - exclamou com sarcasmo.

Seu irmão Paulo, mais diplomático, disse calmo:

- Bom dia, Monsenhor César.

Um pouco distante, o criado que os acompanhava, um possante espanhol de nome Miguel da Corella, conhecido por Michelotto, observava atentamente a cena.

João Orsini continuou a provocar César descaradamente:

- O vitelo Bórgia com a sua tonsura discreta entre os corninhos.

- As maneiras do teu irmão não melhoraram, Paulo - comentou César com um sorriso frio.

João fez um cumprimento de escárnio.

- As minhas humildes desculpas, Vossa Graça. Quererá o nosso erudito bispo de Pamplona perdoar-me e dispensar-me a sua bênção?

Paulo Orsini e João Paulo Baglioni trocaram olhares preocupados, mas César não se mostrava perturbado. Levantada a mão esquerda, fez o sinal da Cruz ao contrário.

- Que Lúcifer vá contigo, filho. Em nome do bode, do sapo e da serpente - disse.

Furioso, João levou a mão ao punho da espada. Atrás dele Michelotto lançou o cavalo em frente em sinal de calma ameaça com os olhos postos em César. Paulo Orsini estendeu a mão aberta para deter o irmão e voltou-se em tom de súplica para César:

- Não nos provoque, monsenhor.

- Nada tenho contra ti, Paulo Orsini - disse César. - Tu eras meu amigo em Montegiordano, quando crianças.

- E sê-lo-ei ainda.

- Enquanto o pai dele vai para a cama com a mulher do nosso primo - interveio João maliciosamente.

Na réplica do Bórgia houve um gesto ameaçador:

- Certamente teu primo só terá a ganhar com a experiência de sua mulher.

No silêncio que se seguiu novamente se ouviram os sinos de Siena como que a sublinhar as suas palavras.

- Apostarás contra o meu cavalo no palio, Paulo? - perguntou amistosamente.

- Cem ducados - respondeu Paulo sorrindo aliviado.

- E contra meu pai papa?

Lentamente Paulo Orsini abanou a cabeça.

Em Roma já tinham sido feitos os preparativos para o conclave sob a superintendência do mestre-de-cerimónias do Vaticano Johann Burchard, meticuloso e miudinho eclesiástico alemão. Os carpinteiros construíam as celas de madeira para os cardeais na sala real, enquanto Burchard controlava a lista das coisas consideradas necessárias para tornar suportável a vida de suas eminências na noite que teria de decorrer até à eleição do novo papa. Era o segundo conclave que Burchard organizava e era uma tarefa para a qual era naturalmente dotado. Ninguém melhor do que ele conhecia a vida do Vaticano. Atento a todo o mexerico e ao corrente de toda a intriga da corte pontifícia, anotava quanto sabia num diário secreto que tinha há já bastante tempo e cujas crónicas cobriam dois pontificados. Naquele momento, naturalmente, como qualquer outro, também ele reflectia sobre quem poderia vir a ser o novo senhor e dono do Vaticano, ainda que, como alemão prudente que era, não se deixasse ir em apostas, diferindo da nutrida multidão dos inveterados jogadores romanos. Burchard limitava-se a encostar o ouvido à terra. Conhecia todas as opiniões que circulavam: que à primeira consulta iriam ser nomeados os cardeais português e veneziano, mas que à segunda volta a escolha ficaria entre Della Rovere, apoiado pela França, e Sforza, apoiado por Milão e Veneza. Tal como outros observadores argutos, também ele considerava Rodrigo Bórgia um dos favoritos, justamente por não estar ligado a ninguém. Os cardeais italianos neutrais gostariam pouco de uma dívida de reconhecimento no que tocava à França, nem veriam com bons olhos a ascensão vertiginosa da família Sforza. E não se devia esquecer que o cardeal Bórgia era o mais rico de todos e tinha portanto muito para oferecer.

A 6 de Agosto o conclave reuniu-se na Capela Sistina, uma sala de nobres proporções construída uns vinte anos antes pelo tio de Della Rovere, Sisto, e sem ter ainda os frescos de Miguel Ângelo. Contra as paredes brancas flamejavam as vestes escarlates das filas de cardeais sentados debaixo de baldaquinos verdes e roxos. Em cima de uma mesinha situada no centro da capela estava o cálice de ouro que continha os votos do conclave reunido. O cardeal diácono lia os resultados.

- À segunda votação, no segundo dia, os resultados são agora os seguintes. - com uma inclinação de cabeça e voltado para Della Rovere -. ao cardeal presbítero de São Pedro nove votos. - E, finalmente, inclinando-se para Rodrigo Bórgia:

- Ao cardeal bispo de Porto e Santa Rufina, vice-chanceler da Santa Igreja, cinco votos. Uma vez que não foi alcançada a maioria de dois terços, os papéis serão queimados e as votações recomeçarão amanhã.

Enquanto os folhetos que tinham passado a ser intiteis eram devidamente queimados, os cardeais retiraram-se em silêncio, num ruge-ruge de sedas, na antiga sala real, onde tinham tido lugar as verdadeiras e subtis negociações do conclave.

Catorze votos. Aquele número mágico era como um brasão marcado na mente de Rodrigo Bórgia, ajoelhado na sua cela, aparentemente em oração. A rede de espionagem de criados manobrada por Perotto recolhera as informações que desejava: um velho cardeal tinha pesadas dívidas que ele poderia remediar facilmente; ao cardeal diácono de Santa Maria Nova, representante dos Orsini, tinham sido oferecidas por Della Rovere as fortalezas de Soria e Monticelli, mas na verdade interessavam os lautos lucros da catedral de Cartagena de que Rodrigo dispunha; o cardeal Colonna pusera os olhos na prestigiosa abadia de Subiaco, também ela de Rodrigo; o cardeal Sanseverino, homem dos Sforza, andava presumivelmente mais assustado do que comprado. Depois, naturalmente, sempre havia Ascânio.

Enquanto Rodrigo comprava votos, César, em Siena, preocupava-se em garantir a vitória no palio segundo o seu estilo privado de escrúpulos. Não suportava perder nem sequer uma corrida de cavalos e menos ainda o palio, a competição mais importante para qualquer cavaleiro de Itália, habitualmente vencido pela famosa coudelaria dos Gonzaga de Mântua. César mandava vigiar o seu cavalo para que animal ou arreios não fossem lesados por homens de outros proprietários desabusados quanto a ele; entretanto procedera de maneira a que muitos dos outros cavalos favoritos não estivessem em condições de aguentar o percurso. Mas a coudelaria de Mântua era inexpugnável e ele tinha de temer principalmente o cavalo dos Gonzaga.

No estábulo, na noite na véspera da corrida, César dava as últimas instruções ao seu jóquei Luís:

- Se nos últimos metros da corrida aquele mantuano te der muito que fazer...

- Não o deixarei aproximar-se - disse Luís.

César teve um gesto de impaciência.

- Não me entendeste, estúpido. Se te fizer frente, cais-lhe nas costas como que por acidente, atira abaixo jóquei e cavalo. Sem ti ou contigo na garupa o meu cavalo tem de vencer.

Quando acabava de falar entrou na estrebaria um mensageiro coberto de poeira. Ao ver o touro dos Bórgias bordado no peito do homem, César compreendeu que a mensagem vinha de seu pai. Com um sobressalto no coração agarrou o mensageiro por um braço:

- Meu pai manda-me chamar?

O outro abanou a cabeça. César deixou que a mão voltasse a cair procurando esconder a sua desilusão.

- Nenhuma mensagem?

- Monsenhor, tem de continuar aqui ou não ir mais além de Espoleto no caminho para Roma.

César falou de dentes cerrados:

- O meu irmão João está em Roma?

O mensageiro anuiu com relutância. Rosnando uma imprecação em espanhol, César empurrou-o para o lado e saiu do estábulo de olhos cegos pela inveja e pela cólera.

A ira diminuíra a sua normal presença de espírito: un homem atento com inimigos poderosos não anda de noite sozinho. César ouviu de repente nas suas costas os passos leves de um assassino. Mas antes que tivesse tempo de voltar-se, tinha-lhe o outro apertado o pescoço com um braço aproximando-lhe um punhal da garganta. Mas César era jovem e forte enquanto que o seu agressor parecia pouco convicto e não tardou em ser subjugado. Com o próprio punhal já na garganta do seu agressor, César reconheceu Michelotto, o robusto criado dos Orsini.

- Em nome de Deus, senhor, não me mate! - exclamou o servo em espanhol.

Ligeiramente desorientado, César afrouxou o aperto. Michelotto deitou-o por terra num abrir e fechar de olhos, imobilizando-o com o seu peso e apontando-lhe novamente o punhal à garganta.

- Tendes ainda muito que aprender, senhor bispo - disse caçoando. - Nunca hesitar com a faca desembainhada.

- E tu agora por que hesitaste? - perguntou César perplexo. - Vi-te lá fora a cavalo com João Orsini. Foi ele.

- Tem os cordões da bolsa muito apertados o meu patrão. Sois generoso?

- Sempre mais do que ele neste caso - respondeu César voltando a levantar-se.

Tinha pensado que aquele homem tivesse sido enviado para o matar por ordem dos Orsini.

- Pôr-me-ei ao vosso serviço, monsenhor. Como podeis ver, conheço o meu ofício.

César anuiu. Não tinha por onde escolher. E depois, talvez aquele homem viesse a ser-lhe útil.

- Agora ajuda-me a levantar - ordenou-lhe. - Um bispo talvez tenha necessidade de um braço forte. e de um ferro desembaraçado.

Michelotto ajudou-o respeitosamente a pôr-se de pé. Fingindo-se fraco, César encostou-se debilmente à parede antes de pular para as costas do servo, encostando-lhe a ponta do punhal por baixo do queixo.

- Portanto, queres ficar ao meu serviço? - apostrofou-o. - E quem és tu e por que queres servir-me?

Michelotto assustou-se realmente ao compreender a crueldade e a determinação do homem que naquele momento empunhava a faca.

- Miguel da Corella, senor, de Aragão. Chamo-me Michelotto. Sou espanhol e não tenho simpatia por estes italianos. Também sou ambicioso e dizem que vosso pai será papa.

César deixou-o ir, reembainhando o punhal.

- Isso é possível, senor Michelotto. Mas ao meu serviço terás de respeitar o teu princípio de nunca hesitar quando a faca é desembainhada.

Em Roma, a terceira jornada de votações nada decidira: nenhum dos três candidatos alcançara a maioria necessária. Rodrigo Bórgia, obtido o apoio de Sanseverino e de um outro cardeal estava em segundo lugar com sete votos, superado por Della Rovere com oito, enquanto o Sforza ascendera ao terceiro com seis votos. Sete mais seis era treze. Rodrigo considerava que chegara o momento de oferecer a Ascânio Sforza aquilo que desejava. Naquela noite encontraram-se os dois na cela de Rodrigo. Ascânio negociou com muita decisão. Rodrigo ofereceu-lhe o castelo de Nepi e o seu esplêndido palácio nos Banchi Vecchi, as rendas de Agria e três cargas de prata. Ascânio manteve-se firme: queria a vice- chancelaria. Rodrigo bem sabia o que isto significaria se viesse a ser papa: uma demonstração pública do seu apoio ao irmão de Ascânio, o intriguista e ambicioso Ludovico de Milão. Rodrigo encolheu mentalmente os ombros. Se aceitasse as pretensões de Ascânio encontrar-se-ia praticamente eleito, apenas a um voto do êxito definitivo.

- Muito bem. - A vice-chancelaria - disse em voz baixa. - É tudo?

Não era e Rodrigo sabia-o. Ascânio falou claramente. - Meu irmão Ludovico deseja que o novo papa lhe reconheça o título de duque de Milão.

- Vosso sobrinho, o duque João Galeazzo, está talvez gravemente doente? - perguntou Rodrigo com ar cândido.

- Tememos que possa estar.

- Então não vejo dificuldade. Vosso irmão é já regen te - respondeu Rodrigo em tom conclusivo.

De modo algum emocionado, o Sforza continuou a ilustrar os seus pedidos.

- Meu irmão o duque seria feliz se visse a nossa aliança concretizar-se num leito matrimonial. A vossa sobrinha Lucré cia e o nosso sobrinho João Sforza, senhor de Pesaro.

Rodrigo enrugou a testa.

- Mas já foi prometida.

- A um espanhol insignificante. Que seja desfeito o noivado.

Não era caso para hesitar. Com Ascânio vice-chanceler o mundo inteiro saberia que se comprometera com os Sforza. - Seja - concluiu.

Enquanto a porta da sua cela se fechava nas costas de Ascânio Sforza, Rodrigo reprimiu uma exclamação de triunfo. Sabia ter vencido. A meta a que ambicionava há mais de trinta longos anos fora alcançada. Tornar-se- ia o homem mais poderoso do Mundo. Caiu de joelhos e agradeceu a Deus com sinceridade.

Na manhã de 11 de Agosto de 1492, sob um céu pltimbeo, iluminado por esporádicos relâmpagos e com um constante ribombar de trovoada, a multidão em expectativa em frente de São Pedro viu abrir-se uma janela. Uma cruz foi levantada e no repentino silêncio uma voz gritou:

- Habemus pontificem !

Rodrigo Bórgia fora eleito com o nome de Alexandre VI. Enquanto os Orsini e seus amigos torciam a boca e as famílias aristocráticas de Itália se entregavam a comentários depreciativos sobre os Bórgias, o povo de Roma rejubilava. O novo pap era popular, jovial e generoso. A coroação foi certamente uma das mais exaltantes que se recordavam e o acolhimento reservado a Rodrigo pelos seus novos súbditos foi entusiasta. À sua passagem num cavalo branco pelo trajecto de São Pedro à basílica lateranense, por ruas adornadas com arcos triunfais e o touro rampante dos Bórgias, a multidão gritava:

- Alexandre! Alexandre, o Grande!

Suado, por baixo da pesada tiara papal, no abafado calor de Agosto, com as lágrimas de alegria que se misturavam com as gotas de transpiração, Rodrigo ia com o olhar voltado para aqueles que mais amava, recolhidos com discrição numa varanda na Praça de São Pedro. À frente estava a prima Adriana de Mila, sogra de Júlia Farnese e guàrda da sua amada filha Lucrécia: era uma mulher de meia-idade, que não perdera muito do seu fascínio espanhol. Ao lado dela estava Júlia com os esplêndidos cabelos louros recolhidos numa rede luzente de fios dourados e pedras preciosas. Ali próxima via Lucrécia, com doze anos, a filha adorada, aquela que mais que qualquer outra era parecida com ele, se bem que fosse loura quando ele era moreno. Atrás da mulher, o seu segundo filho João mostrava bastante distinção nos seus trajes vistosos, com um grande diamante no chapéu; ao lado dele estava o filho mais novo, Godofredo, ainda criança e incapaz de conter o entusiasmo. Em segundo plano via-se Orsino Orsini, o marido cornudo de Júlia a observar, com ar carrancudo, a cena com o seu único olho. Ressaltava a ausência de César. Uma sombra atravessou o rosto de Rodrigo ao pensamento do filho mais velho. Sabia que César não entenderia a sua recusa em deixá-lo vir a Roma, sabia ter suscitado a sua amargura e ressentimento. O rapaz era bispo e como tal deveria estar presente na cerimónia. Embaraçante. En contrar-se-ia incomodado em situação tão pouco prestigiante e sempre se ficava em débito com o Diabo quando o orgulho de César era ferido. Rodrigo suspirou para consigo: porque era a vida sempre tão difícil quando César se metia pelo meio?

César estava realmente furibundo. Nem mesmo a vitória do seu cavalo no palio (contestada porém pelo marquês de Mântua que afirmava que o seu jóquei fizera batota) podia compensar a vergonha de ser o único representante da família que fora excluído do triunfo de Rodrigo. E por ordem explícita do pai, ainda por cima. Como que a acentuar o insulto, fora impedido em Espoleto por Perotto, que nunca lhe agradara, com ordem de não ir mais longe. Ignorando as promessas reparadoras do arcebispado de Valença com os seus dezasseis mil ducados anuais de rendimento e de um palácio para si em Trastevere, César deixara-se invadir por um acesso de fúria na frente do pobre Perotto que o olhava aterrorizado.

- Mas eu não devo ir a Roma! - gritara. - Para o Diabo com as aparências ! Já lá estão todos, excepto eu !

Naquele momento sentia ódio pelo pai, pela sua autoridade, pela maneira como favorecia João, o irmão mais novo. César rangeu os dentes de cólera e frustração, mas não podia fazer mais que obedecer. Esperaria. A sua altura havia de chegar.

- Onde está o teu adorado César?

Havia uma nota de despeito na voz de Júlia Farnese, a qual dirigira a pergunta a Lucrécia Bórgia. As duas raparigas estavam sentadas numa longa galeria enfeitada com tapeçarias, nos aposentos de Adriana de Mila, o Palácio de Santa Maria in Portico. Ex-residência cardinalícia, tornara-se o serralho das mulheres amadas por Rodrigo Bórgia e, como um harém, estava localizado convenientemente perto do Vaticano.

Lucrécia arrepiou-se à passagem de uma fria rajada de vento de Março que fez ondular as tapeçarias. Tinham decorrido oito meses desde a eleição do pai e ainda César não obtivera licença para ir a Roma. Mordiscou o lábio para esconder o enfado pela pergunta de Júlia.

- Em Espoleto - respondeu secamente.

Quase com treze anos, Lucrécia era já uma mulher e se bem que não aparentasse a amadurecida beleza dourada da amante de seu pai, possuía toda a graça animal e a sensualidade típica da sua família. Era loura, de olhos azuis e um indício das feições do pai no nariz e no queixo fugidio; no seu aspecto sentiam-se uma força e uma intensidade de carácter que certamente não transpareciam da fisionomia clássica de Júlia. O seu pescoço, diferindo do de Rodrigo, era longo e gracioso, e os cabelos eram de um louro claro enquanto os dele eram pretos; mas na expressão tinha a rápida mobilidade que era própria de seu pai e era fundamentalmente viva e alegre como ele. Sentia antipatia por Júlia de cujas relações com o amado pai estava perfeitamente ao corrente e sabia também que Júlia era ciumenta e invejosa do afecto apaixonado que Rodrigo lhe reservava. Com manifesta insolência abriu muito os grandes olhos azuis e contemplou a jovem Farnese percorrendo-lhe o corpo com o olhar, com uma atitude crítica nas comparações do seu aspecto ainda sobrecarregado pelo recente nascimento de uma filha de Rodrigo.

- César escreveu-me no outro dia - prosseguiu Lucrécia fingindo inocência. - Defimiu-te esposa de Cristo. Não achas divertido? Diz que muita gente te chama outras coisas e que ele tem escrúpulos em escrever- mas antes de eu ser casada.

- Cuidado, Lucrécia - aconselhou Júlia e havia maldade na sua voz.

Mas a outra insistiu, divertindo-se. Agradava-lhe provocar a jovem que era lenta e, não obstante ter mais sete anos, era vítima do rápido sarcasmo da rapariguinha.

Como que mudando de assunto, prosseguiu com candura:

- César diz que quando se tornam gordas as mulheres perdem a inteligência, além da beleza. nunca serei gorda. - Assim o teu adorado irmão César continuará a amar-te. Nas suas palavras vibrou um visível rancor.

Lucrécia levantou-se e foi à janela não desejando expor-se ulteriormente às insinuações da jovem mulher. Júlia Farnese, de corpo apetitoso e de mentalidade mercenária, nunca entenderia o amor que a unia ao irmão, aqueles sentimentos intensos que deles faziam um só ser na presença do mundo. Fechou os olhos. Voltou a ver em pensamento a face jovem e sombria do irmão como a recordava desde os tempos da meninice no palácio dos Orsini em Montegiordano; recordava o leve sussurro com que lhe falara ao ouvido tendo-a apertada a si no vasto leito na noite antes da sua partida para a Universidade de Pertisia.

- Nós os dois, Lucrécia, contra o mundo. Juntos podemos fazer qualquer coisa. Temos de ser leais. . . sempre, para sempre. Só a mim deves ser leal.

Arrepiou-se novamente, mas não pelo vento frio. Adorava César, amava-o mais que quem quer que seja, no entanto, certas vezes a veemência dos sentimentos que manifestava por ele assustavam-na; sentia então a necessidade de lhes fugir. Contudo, desejava tanto vê-lo, que para si pedia, se ele não estivesse já em Roma, visto que lhe escrevera, que chegasse depressa com ou sem o consentimento do pai.

César estava já em Roma em casa da mãe Vannozza, na Praça Pizzo di Merlo. Vannozza, cujas belas feições romanas ainda conservavam traços da beleza que retivera por doze anos preso o volúvel Rodrigo Bórgia, acolhera-o calorosamente: um forte afecto os unia. César era o seu filho preferido entre os quatro postos no mundo em consequência da sua relação com Rodrigo. Talvez fosse pela forte parecença física, talvez fosse porque ambos sofriam pela aridez do afecto de Rodrigo. O favorito do pai, entre os filhos machos, sempre fora o segundo a nascer, João, belo, ornado de caracóis, vaidoso, fascinante e indolente. E Lucrécia. Vannozza pensava com melancolia naquela rapariga que era tão Bórgia ao ponto de mostrar nada ter herdado da mãe. Lucrécia era objecto de apaixonada devoção tanto por parte do pai como por parte do irmão mais velho e simultaneamente fonte de rivalidade entre os dois. Vannozza não podia deixar de ficar perturbada pela intensidade, que não era natural, daqueles sentimentos por Lucrécia; as paixões de Rodrigo eram incontroláveis, bem o sabia ela. Tinha-a amado uma vez com paixão semelhante, ainda que na época do encontro deles ela tivesse já ultrapassado os trinta anos e certamente já não fosse uma menina. Mas com o tempo as suas exigências físicas tinham-no desviado para mulheres mais jovens e no ano em que nascera o filho Godofredo, em 1481, dera-a como mulher a um marido adequado e preocupara-se depois em voltar a casá-la com um outro da mesma inteligência, Carlos Canale, após a morte do primeiro. Pobre, insignificante Carlos, pensou vendo avançar o marido no acto de esfregar nervosamente as mãos e de saudar com uma careta César que, como sempre, o ignorava. César beijou a mão a Vannozza e depois abraçou-a. A mãe afastou-o docemente de si para o contemplar com admiração. Como era belo, pensava, e tão homem. Não como João, tão amado por Rodrigo. Suspirou, sentindo em si o olhar ciumento de joão.

- Por que estás em Roma? - interveio João. - Não te deram permissão para voltar.

César ignorou-o.

- Para quando foram marcadas as bodas de Lucrécia e do Sforza? - perguntou à mãe.

- Para o Verão - respondeu enquanto uma sombra lhe obscurecia o rosto.

Não era realmente aquele o casamento que teria escolhido para a sua única filha ainda tão nova. Mas naquilo, como em qualquer outra questão que dissesse respeito aos filhos, não tinha voz. Era preciso obedecer à vontade de Rodrigo. Aquele matrimónio mal combinado era o preço do papado.

Godofredo, o filho mais novo, um feio bastardo moreno que se divertia em espicaçar a rivalidade entre os irmãos mais velhos, não pôde conter-se mais.

- César - disse -, sabes que João será capitão-general da Igreja?

Em silêncio, todos esperaram a explosão. Mas César só reagiu intensificando o aperto de mão à mãe, a qual torceu a boca com a dor. João apercebeu-se disso e sorriu com maldade. Sabia quão pouco agradava a César ser padre tendo o irmão por soldado. Assim fora decidido pelos seus pais quando ainda eram crianças e o seu meio-irmão mais velho Pedro Luís combatia ao serviço do rei de Aragão, segundo a tradição. Morto Pedro Luís, César, segundo filho, fora destinado à Igreja, como era de uso, ainda que, mais do que qualquer outra coisa no mundo, tivesse desejado servir nas armas. João, pelo que lhe tocava, não tinha índole de combatente: interessava- se predominantemente pelos prazeres mundanos e pela moda, mas a guerra pelo menos afagava-lhe a vaidade. Via-se, agradado, numa cintilante armadura com elmo emplumado, confeccionado para ele, por medida, pelo mais hábil ferreiro de Milão, a cavalo, no comando de uma procissão esplendidamente bem vestida, com o grande vexilo da Igreja a ondular por cima de todos. De guerra sabia bem pouco e imaginava para si o papel de capitão-general não diferente das suas funções daquele momento, as quais se reduziam a desfilar em parada no seu bem lançado ginete adornado de guizos de prata, à frente do pai, tendo ao lado o íntimo amigo, o príncipe turco.

- João será general quando mandarem os soldados colher flores - comentou César entre dentes.

Godofredo riu-se e João teve um sobressalto e fez menção de se adiantar, ameaçador.

Vannozza pousou uma mão ansiosa no braço de César, mas falou em tom firme e autoritário:

- É teu irmão e esta casa é minha. Não admito que saiam daqui em cólera.

César encolheu os ombros; a expressão velada dos olhos escondia as suas emoções.

- Meu pai é um estúpido ao dar-lhe crédito.

- Teu pai ama-te tanto quanto o ama a ele.

- É tanto assim que procurou ter-me longe de Roma - respondeu ele sarcástico.

- Tem paciência, César, verás que ainda há-de chegar a tua vez, disso tenho eu a certeza. - Deteve-o e observou-o com olhos intensos. - Que queres dele. . . e da vida? Amor? Riquezas?

César falou em voz baixa, para que só ela pudesse ouvir: - Não, minha mãe. Poder. - Beijou-lhe a mão. - E agora vou procurar o nosso santo pai.

Rodrigo recebeu César com evidente indiferença no trono papal na Sala do Pappagallo, como para pôr em relevo a disparidade de estado. Estava irritado com César porque fora a Roma contra sua vontade e antes que tivesse tido tempo para completar os seus projectos para Lucrécia e João, que queria ver realizados antes de qualquer outra decisão respeitante ao seu incómodo e imprevisível primogénito. Estava certo de que César teria tentado forçar-lhe a mão. Com voz distante, portanto, Rodrigo perguntou-lhe:

- Tua mãe está bem?

- Está - respondeu César.

- Onde estás alojado?

- No Palácio do Burgo. - César levantou uma sobrancelha interrogativa. - Sou bem aceite?

- Vieste a Roma sem autorização - respondeu Rodrigo com severidade. - Vestes sedas e veludos e usas espada. Contrataste um assassino, disse-me Perotto. Nada disto condiz com um arcebispo. Nem sequer com dezassete anos.

César inclinou a cabeça para mostrar a pequena tonsura, que deu a observar ao pai com um leve gesto de mão. Voltou a levantar a cabeça e sorriu.

- Qualquer homem que tenha a coragem de me olhar de cima a baixo vê bem que sou um servidor de Deus.

Rodrigo sorriu apesar de tudo. Levantou-se e desceu do trono, tomou César pelos ombros e abraçou-o.

- César. César - disse - algum homem tem um filho como tu? Algum outro filho tem de chamar tio ao seu pai? Rodrigo deixou-o ir com um ligeiro embaraço na expressão vagamente amargurada.

- Ah, tua mãe disse. não comprarei o teu amor! Quero a púrpura - declarou César. Tinha vinte e cinco anos, quando me tornei. Vós a haveis concedido a Alexandre Farnese. Estou em segundo lugar em relação ao irmão da vossa amante? Tendes medo de mim?

Rodrigo esquivou-se.

- Não tens os titulos para o sacro colégio. És um ilegítimo.

- Sou aquele que minha mãe fez. E posso vir a ser aquilo que quiserdes. Vós sois o papa.

Rodrigo voltou-se com uma expressão cansada. Falou em seguida com a voz de um velho sob o jugo dos cuidados do mundo. A sua capacidade histriónica sempre o tinha ajudado em toda a sua carreira e a ela recorreu também naquela ocorrência para conter uma questão delicada e ganhar ao mesmo tempo a simpatia do filho.

- Sim, somos papa - disse em voz pesada -, e transportamos nos nossos ombros o mundo como um asno paciente. Temos o futuro da Santa Igreja nestas mãos trémulas. O destino da Itália surge-nos obscuro e por isto derramamos lágrimas. Quando o rei Ferrante de Nápoles morrer, e isso acontecerá em breve, certamente a França e a Espanha irão brigar no ventre de Itália, a não ser que consigamos impedi-lo. Roga por nós, meu filho. - - Bravo! - César era irónico. - E o duque de Gandia será nomeado vosso capitão-general para enfrentar melhor este futuro?

Rodrigo rodeou o argumento. De repente os seus modos tornaram-se vivos.

- Teu irmão João irá para Espanha depois de Lucrécia se casar. Irá como enviado papal e casará com quem quer que lhe ofereçam em Aragão. Uma esposa de casa real, talvez, ou uma mulher da linhagem do rei Fernando. Isto no que toca à Espanha. O casamento de Lucrécia com um Sforza proteger-nos-á dos Franceses, visto sermos óptimos aliados de Ludovico de Milão. Como vês confio em ti e ponho-te a par dos meus planos.

- Confiança? Onde? Sou mantido longe de Roma enquanto João frequenta a vossa corte de mão dada com um turco primitivo.

- O príncipe Djem é um refém. O sultão paga-nos quarenta mil ducados por ano para o manter aqui.

César contrariou com orgulho:

- Eu sei como lidar com os Turcos. Exonerai-me do meu cargo e oferecerei a minha espada aos Cavaleiros de Rodes.

Rodrigo perdeu a compostura desmascarando o filho.

- Se é isso que desejas. Bem sabes que não!

Rodrigo abanou a cabeça num gesto de irónico desespero. Encaminhando-se para a escrivaninha para pegar num papel desenhou-se-lhe nos lábios um vago sorriso de triunfo. - Isto - disse agitando a folha em direcção a César - te manteve afastado de Roma. Os cardeais examinaram a tua posição de legitimidade e concluíram que és filho de Dona Vannozza e do seu primeiro marido. Assinaremos o mais cedo possível uma bula nesse sentido.

- Que mandarei afixar à porta de um bordel! - contrariou o outro com grosseria.

Rodrigo continuou como se o filho não tivesse falado:

- Com uma segunda bula, privada, e que não se tornará pública, vos reconheceremos nosso filho. Será para nós motivo de grande alegria.

- Terei a púrpura?

- Serás cardeal de Valença, meu filho. Estás contente? Na sua voz sentia-se o desejo de um sinal de gratidão e de afecto. Mas César limitou-se a fazer uma saudação. - Antecipando-me à vossa paterna bondade, Santo Padre - disse -, trouxe- vos um presente.

César foi até à porta para deixar entrar um jovem pajem vestido de veludo verde, o qual se ajoelhou diante do pontifice. Entretanto, César, com um sorriso malicioso, arrancou o chapéu do pajem. Uma cascata de cabelos castanhos, sem dúvida femininos, soltou-se pelos ombros. Era uma deliciosa rapariga, esbelta e escura de pele, não tendo mais que dezasseis anos.

- Prove-a, meu pai - convidou César divertido.

Três meses depois, em Junho de 1493, Lucrécia casou aos treze anos com João Sforza, senhor de Pesaro, em cumprimento dos acordos entre Rodrigo e os Sforza. As bodas foram celebradas no Vaticano e seguidas por um banquete no palácio pontifício, ao qual só foram convidadas as mais belas mulheres da nobreza romana juntamente com as mulheres dos delegados do Vaticano cuja presença não podia ser evitada. Foi a primeira daquelas recepções da família Bórgia que iria provocar tanto escândalo em toda a península italiana, para não dizer em todo o mundo cristão, principalmente por causa do comportamento turbulento, se não mesmo licencioso, do pontífice.

Rodrigo divertia-se imenso. Passava por entre as evoluções dos dançarinos ao longo das mesas arrumadas na Sala dos Mistérios brincando com os enviados pontificais e os cortesãos, namoriscando com as suas mulheres e lançando sobre os convidados confeitos prateados. Uma mulher audaz atirou-lhe para os ombros uma chuva de amêndoas e foi recompensada pela mão papal que lestamente lhe meteu no seio uma mancheia de confeitos.

A noite estava quente e os convidados tinham comido muito e bebido outro tanto. As faces violáceas estavam lustrosas de suor. Em contraste, a esposa de treze anos, estava branca e fria não menos que a neve compacta que arrefecia o vinho em grandes baldes de prata. Vestida de brocado branco e prateado, com uma fita de prata e pérolas a enfeitar-lhe a cabeleira loura, quase parecia inanimada; nela, a única palpitação era o piscar dos rubis que lhe ornavam o pescoço, oferta de núpcias dos Sforza. A seu lado, o esposo João estava amuado e nervoso. O mau humor vinha-lhe da frieza com que a esposa reagia às suas aproximações e o mal-estar era suscitado pelas alusões grosseiras que de quando em quando lhe lançavam convidados mais vulgares e embriagados. Lucrécia não lhe dava atenção alguma ignorando até o contacto afectuoso e enérgico da sua mão. Pensava em César, certa de que a sua tristeza por aquelas bodas não seria inferior à sua. As suas narinas foram agredidas pelo aroma inebriante da bergamota. Apercebeu-se, mais do que viu, da face de Júlia, da cor de um pêssego demasiado maduro e ouviu a sua voz sibilar-lhe ao ouvido:

- Onde está o teu irmão César?

Lucrécia continuou com os olhos fitos em frente como se nada tivesse ouvido.

Júlia continuou a manifestar o seu desprezo:

- Já não te ama, agora que passaste a ser esposa para os outros?

Não tendo recebido resposta, disse em voz alta para que todos ouvissem:

- Vi-o na missa nupcial. verde de náusea ao pensamento do teu tálamo.

Estalou seca a bofetada. Adriana de Mila acorreu.

- Cautela, marafona! - murmurou furiosa à nora.

Muitas horas depois, enquanto dançava com João, Lucrécia pouco faltou para desmaiar de fadiga. Rodrigo, ansioso, logo correu para ela e susteve-a nos braços. Vozes empastadas pelo vinho invocavam a retirada dos esposos, o vértice público de toda a celebração nupcial, máximo divertimento dos convidados. Mas Rodrigo abanou a cabeça voltando o olhar para o ensombrado João.

- Esqueceste o contrato, meu filho? - perguntou.

- O contrato?

- Sim, ficou decidido, uma vez que Lucrécia é ainda demasiado jovem para os seus deveres matrimoniais, que não se daria a sua consumação sem que tivesse decorrido um ano. Basta. - Chamou as damas de Lucrécia. - Levem-na para o leito.

Inclinou a cabeça para beijar ternamente a filha nos lábios e a sua boca demorou sobre a dela talvez mais do que o necessário. Adriana de Mila inspirou ruidosamente em sinal de desaprovação; Júlia lançou uma mirada venenosa. João Sforza desviou o olhar, também demasiado consciente dos sorrisos de escárnio que o rodeavam e foi procurar o conforto de Ascânio.

Ascânio Sforza, vindo em representação da familia, acompanhava a cena com escassa paixão. Tinha participado sem entusiasmo nas celebrações e não por desacordo moral com os acontecimentos, mas sim porque, do ponto de vista da casa Sforza, aquela aliança estava já falhada. Falava-se dos projectos de Rodrigo por outros matrimónios que colocariam a família Sforza e o papado em campos adversos. Dizia-se que devia estar iminente a chegada a Roma de um delegado do rei Fernando de Espanha com a oferta de um casamento vantajoso com uma representante da casa real de Aragão para o segundo filho do papa, João Bórgia, o qual já era, por outro lado, duque de Gandia e logo grande de Espanha. Ainda mais inquietante era a informação segundo a qual o terceiro filho do papa, o jovem Godofredo, viria a ficar noivo de uma sobrinha ilegítima do rei Ferrante de Nápoles, parente do rei Fernando e inimigo acérrimo de Ludovico de Milão. Sem necessidade de profetas, Ascânio bem compreendia a quem seria mais leal o papa na eventualidade de um confronto entre a França e a Espanha pelo reino de Nápoles na Itália. Se alguém nasce espanhol é espanhol para sempre, pensou com profunda mágoa. Podia também acontecer, reflectia, que abraçando assim incondicionalmente a causa espanhola e aragonesa em Nápoles, Rodrigo Bórgia tivesse de pagar um preço demasiado alto pelos matrimónios dos seus filhos bastardos. Era tempo de fazer causa comum com o irrequieto Julião Della Rovere, velho adversário de Rodrigo.

Havia, no belo rosto de Ludovico Sforza, aquela expressão astuta que se encontrava também nos traços menos atraentes do irmão mais novo, Ascânio. De vez em quando, porém, aquele intrigante, resolvia ser sincero. Julião Della Rovere era um homem demasiado astuto para se deixar enganar facilmente. Encostou-se ao espaldar com um sorriso sarcástico.

- Vamos, Julião, saibamos ambos o que cada um de nós deseja. Eu quero o ducado de Milão. Tu o papado.

Della Rovere não respondeu. Ludovico interpretou o silêncio como concordância e continuou:

- Para ambos isto significa apoiar a França em Nápoles.

- Ferrante ainda não morreu, Ludovico, e tu perturbaste a paz da Itália. Relembrando àquele pérfido macaco que é Carlos de França os seus direitos dinásticos sobre aquele reino. Sim, ficar-me-á grato e meu sobrinho, o duque, é débil.

- A sua saúde é delicada quanto a do avô Ferrante? Ludovico anuiu com um sorriso rapace.

- Quando Ferrante morrer haverá guerra na Itália. Nomeou seu sucessor o filho Afonso.

- Mas Carlos de França tem mais títulos a seu favor. E fá-los-á valer. lança em riste. Assim, se Ferrante fizer precipitar a situação morrendo antes do Natal, teremos os lanceiros franceses pela Primavera nos nossos olivais. E a França esmagará Nápoles como uma casca de noz. Todas as estradas que vão para Nápoles passam por Roma - disse Julião com ar sabedor. - O mesmo é dizer por Rodrigo Bórgia. De facto. E Afonso de Nápoles é parente do rei Fernando de Espanha. Bórgia é espanhol no coração, seja qual for a bandeira que lhe agrade desfraldar. Não se comprometeu.

Ludovico levantou raivosamente os ombros. - Naturalmente. Mas, permiti-me, estes casamentos que tem em mente para os seus bastardos demonstram com clareza de que lado sopra o vento. E o vento que sopra de França poderia ser suficientemente forte para arrancar Rodrigo Bórgia do seu trono. Posso garantir a Vossa Eminência que será irresistível afirmou Ludovico em tom cortante.

- Carlos declára já querer atravessar os Alpes com o maior exército que alguma vez se viu na Itália desde os tempos de Anbal. Eu e tu estaremos do lado certo, prometo.

- E o Bórgia?

- Terá de pagar por ter apostado no cavalo errado. Recordarás ao rei de França que este papa Bórgia fede de corrupção. O sólio pontifício fica limpo. a favor de um candidato mais digno. Com a morte de Ferrante abrirás a campanha e ganharás duzentos mil ducados.

Ferrante não morreu antes do Natal, como esperara Ludovico Sforza, mas pouco depois, a 27 de Janeiro de 1494. A situação desenvolveu-se rapidamente no sentido previsto pelo regente de Milão. Rodrigo Bórgia saiu por fim a descoberto enviando o seu núncio apostólico para coroar Afonso rei de Nápoles em troca do casamento de Godofredo com a filha ilegítima de Afonso, Sancha, princesa de Squillace; João, duque de Gandia, já casado com Maria Henriques, parente do rei Fernando, recebeu um principado e dois condados napolitanos e César ricas comissões. Julião Della Rovere decidiu-se então a declarar-se aliado dos Franceses, abrìndo a campanha contra Rodrigo com uma alocução veemente que teve no consistório, no qual denunciava o pontífice por nepotismo e corrupção.

- Assim foi degradada a autoridade da Igreja! - trovejou. - Tínhamos visto o filho do papa, César Bórgia, nomeado cardeal contra a vontade de todos os homens probos deste sacro colégio. Tínhamos assistido a um desonesto mercado de matrimónios para os outros filhos do papa. Até o último dos pastores de Campidoglio sabe que o preço pago pelo papa por estes casamentos em Espanha e em Nápoles é a bênção apostólica a uma ilícita sucessão no trono napolitano. Tudo isto pela grandeza da sua estirpe de bastardos.

- Que Deus te queime a língua, Della Rovere! - trovejou César.

Rodrigo, impassivelmente sentado no trono pontifício, fez-lhe sinal para se calar.

- Prossiga, cardeal Della Rovere, mas seja prudente censurou-o.

Mas Della Rovere abandonara intencionalmente toda a prudência. Interviera resolvido a dizer tudo.

- Fora-nos prometida a honestidade - rugiu -e só tivemos mentiras. Fora- nos prometido o fim da corrupção e estamos asfixiados no seu fedor. Fora-nos prometida a paz e teremos de sofrer agora uma guerra.

- Della Rovere! - interrompeu-o Rodrigo.

Della Rovere apelou para a assembleia dos cardeais.

- Não devo falar?

Levantou-se um murmúrio de consenso. Com aquele encorajamento prosseguiu, dizendo:

- Sabeis que as cidades do Norte estão já revoltadas. Em todas as regiões os padres denunciam a mesquinhez de Roma e invocam uma espada vingadora. E chegará! Esta manhã recebi notícia de que o rei de França se prepara para invadir a Itália com o mais forte exército que alguma vez se viu.

A sala foi sacudida por exclamações de espanto e ansiedade.

- Sim! - gritou Della Rovere. - E marchará contra Nápoles para destronar o usurpador Afonso. Ver-se-á contrariado pela Santa Igreja. - Com gesto teatral voltou-se para Ascânio Sforza: - Falai, Ascânio!

Ascânio levantou-se da cadeira com visível relutância e um certo nervosismo. A voz mal se ouvia no sussurro excitado dos cardeais:

- Meu irmão Ludovico - começou. Os cardeais emudeceram. - Meu irmão Ludovico, regente de Milão, pediu-me que informasse o consistório, de que, como fiel servidor do Senhor e da sua consciência, se sente obrigado a dar aos Franceses toda a assistência que... que...

- Que sirva para libertar o trono de Pedro ! - trovejou Della Rovere.

César levantou-se e fez-se ouvir no clamor:

- Acuso! Acuso Julião Della Rovere e Ascânio Sforza de conspiração, cisma, heresia e traição!

- Deus nos céus afastou os olhos desta Igreja corruptaberrou Della Rovere.

- Silêncio. . . silêncio! - gritou Rodrigo.

As pancadas do bastão de Burchard no pavimento obtiveram por fim uma aparência de calma. Rodrigo levantou-se da cadeira fora de si pela cólera.

- Nenhum de vós foi devidamente pago? - gritou aos cardeais. - Haveis tido bolsas mais cheias dos Franceses? É assim? Lamentai-vos, gritais como virgens desfloradas! E eu terei de me deixar amedrontar? Eu sou o papa. Eu !. Eu ! Posso nomear cem novos cardeais e substituir- vos a todos. Ponde-me à prova! Ponde-me à prova e tereis modo de ver de que massa é feito um papa Bórgia!

Cego de fúria saiu da sala com grandes passadas, seguido por César de rosto sombrio.

                 O REI

As folhas das videiras estavam douradas enquanto Carlos VIII de França atravessava o fértil campo toscano em direcção a Florença pelo final do Outono de 1494. Atrás dele o seu exército de trinta mil homens levantava uma nuvem de poeira que embranquecia os campos, seguido nos caminhos pelos sulcos fundos das oitenta peças de artilharia pesada que tanto efeito tinham tido nos Italianos. O sol reflectia-se nos piques longos com mais de três metros dos mercenários suíços e alemães, iluminava uma floresta de compridos arcos, entregue à sua guarda pessoal de archeiros escoceses, e fazia cintilar o metal das armaduras de cavalaria pesada, a nobreza de França, que cavalgava com o soberano. A cabeça da cavalaria, por baixo do grande estandarte de seda no qual estavam bordadas as flores-de-lis de França orgulhosamente projectadas contra o azul céu italiano, cavalgava o rei em pessoa.

Carlos tinha apenas vinte e três anos: um homenzinho disforme e insignificante no seu esplêndido corcel de batalha. Uma faixa de ouro emoldurava-lhe os cabelos pardacentos por cima de uma cara tão feia que os Italianos o consideravam mais parecido com um monstro do que com um ser humano. Tinha a testa baixa e convexa, com um nariz enorme e vistosamente adunco, os olhos pálidos, um pouco salientes, e o queixo agudo e fugidio como um lúcio. A esplêndida armadura construída em Milão escondia-lhe os ombros curvos e as pernas demasiado magras. E, no entanto, apesar da sua fealdade e da seráfica beleza de sua mulher, a rainha Ana da Bretanha, Carlos era um libertino incurável. Brilhavam-lhe os olhos às agradáveis recordações das belas damas que lhe tinham sido dadas em Milão. Delas recordava a pele perfumada e os vestidos ornados de gemas, num ambiente que lhe parecia quase exótico comparado com o sóbrio e reservado da corte de França. Que diacho, pensava, até as prostitutas milanesas viviam num bem-estar igual ao de uma condessa francesa; para não falar do regente de Milão, o luxo da sua corte superava toda a imaginação e experiência do rei de França. O seu olhar pousou na figura direita de Ludovico Sforza que cavalgava a seu lado, com um manto de seda vermelha na qual estava bordado a ouro a amoreira, emblema da família. Por baixo do manto, a armadura de Ludovico era, de longe, mais trabalhada do que a do soberano.

Montado num soberbo animal que lhe fora dado pela cunhada Isabel d'Este Gonzaga, Ludovico alimentava considerações bem menos lisonjeiras em relação a Carlos e à nobreza francesa em geral. O rei não era apenas feio, era também pouco culto e pouco inteligente. Dizia-se mesmo que mal sabia ler. Aquele pobre tolo só tinha no cérebro uma ideia fixa, pensava Ludovico com desprezo, ou seja, Nápoles. . . além das mulheres, como é óbvio. Uma atitude que justamente lhe era oportuna. Ludovico tinha uma alta opinião da sua inteligência e era apaixonado por intrigas, principalmente pelo prazer de demonstrar saber vencer qualquer inimigo. e até os amigos. Ludovico sorriu para consigo. De facto não era difícil influenciar o rei para que agisse segundo os seus desejos, partindo de Milão em direcção a Nápoles. E naturalmente seria forçado a atravessar os estados pontifícios, feudos do único homem na Itália cuja inteligência seria comparável à de Ludovico. Era porém certo que Rodrigo Bórgia optara já pela parte errada. O reino do papa Bórgia com toda a probabilidade estava destinado a ter vida breve. Ludovico encolheu os ombros. Pouco lhe importava lançar na ruína uma família em ascensão, dado ele próprio se encontrar a um passo da realização dos seus projectos dinásticos. Seu sobrinho João Galeazzo não duraria muito tempo, provavelmente não duraria mais que Rodrigo Bórgia.

O curso dos seus pensamentos foi interrompido pela voz estridente de Carlos.

- Que está a dizer o frade? - perguntou indicando um monge mendicante parado diante de uma pequena capela de campo com os olhos e as mãos levantadas para o céu. O religioso entoava uma litania histérica.

- Tece os vossos louvores, senhor - respondeu docemente Ludovico falando ao rei no seu francês nasal.

Carlos não conhecia a língua italiana e o seu latim era fraquíssimo.

- É um partidário do monge Savonarola, que invoca o vosso nome do seu púlpito florentino, definindo-vos como o novo Ciro, o salvador de Itália. O eco do vosso nome bastou para fazer com que os Médicis fugissem de Florença, onde a multidão saqueou os seus palácios aos gritos de Viva a França.

- Na verdade o Senhor está connosco - respondeu Carlos com um sorriso. - Também dizem que está contra o seu malvado servo, o papa Alexandre VI que se opõe a nós. . .

Rodrigo estava ajoelhado no seu prie-Dieu no quarto pontifical, com os ombros abatidos pela desolação e o desespero. Lágrimas de desgosto corriam-lhe das mãos com que tapava os olhos como que para não ver os exércitos em marcha. Ouviu um som de passos rápidos e o clangor das alabardas dos guardas que saudavam a chegada de alguém de alta estirpe. Entrou César em traje de caça, espada à ilharga. Rodrigo levantou-se e foi ao seu encontro com os braços estendidos numa muda imploração de conforto. César, pelo contrário, tirou alguns pergaminhos enrolados de uma das suas longas luvas e atirou-os para os pés do pai como se na verdade quisesse atirar-lhos à cara. - Carlos pede permissão de trânsito gratuito através dos estados pontifícios e ameaça depor-vos se recusardes. Os Médicis entregaram os seus castelos sem combater e fugiram com o rabo entre as pernas como cães vis que são. Carlos está em Florença e ninguém lhe barra o caminho. Que fareis?

Rodrigo sentou-se pesadamente à janela e contemplou os prados fora da muralha do Vaticano, imaginando-os já fervilhantes de soldados franceses. Ergueu os ombros.

- Que posso fazer? A não ser rezar.

César teve um gesto impaciente.

- E para que serviria? Não tendes a força necessária para lhe resistir.

- Não, creio que poderia conquistar Roma sem derramar uma gota de sangue.

César aproximou-se da mesa que estava em frente de Rodrigo. Pegou numa pena e em papel e entregou-os ao pai, de pé na frente dele.

- Digo-vos o que deveis fazer. - O seu tom era animado, persuasivo e vagamente ameaçador: - Escrevei a Afonso de Nápoles e dizei-lhe para me confiar o comando do seu exército.

- Quase meteu a pena na mão de Rodrigo. - Vamos, escrevei.

Mas Rodrigo continuava a olhar pela janela, quase sem se aperceber da mão estendida do filho. Houve um longo silêncio.

- Há já comandantes - disse por fim. - Que têm a minha aprovação.

A mão em que César tinha a pena tremeu visivelmente.

- Quem são? - perguntou César.

- Virgínio Orsini. Os seus filhos Paulo e João.

Seguiu-se uma prolongada pausa, como se o filho tivesse dificuldade em acreditar naquilo que ouvira. Depois, entre dentes, o jovem disse:

- Não posso crer que tenhais sido tão estúpido. Os Orsini são cães traidores como todos os Italianos. Revoltar-se-ão contra vós na primeira altura, como todos os outros. Não haveis aprendido mesmo nada com a reviravolta dos Sforza? Estúpido ! Velho caduco !.

Ouviu-se um ruge-ruge de seda. Júlia apareceu à entrada, iluminada por um sorriso sedutor. César, ao voltar-se, atirou a pena à cara do pai, depois saiu furiosamente empurrando-a. Ela enrugou a boca numa atitude de aborrecimento pelos modos descorteses de César, mas não ousou censurá-lo por tanta má educação. Em vez disso, aproximou-se do papa sentado, convidando-o a afagá-la. Rodrigo puxou-a vivamente a si, cin gindo-a nas amplas mangas. Pousou a testa nos ombros dela e começou a chorar, enquanto com a mão a afagava mecanicamente.

- Meu paizinho - disse Júlia docemente -, estás a chorar por minha causa? Rogo-te, deixa-me ficar contigo.

- Não, minha filha. - Rodrigo levantou a cabeça. - Choro pela Itália. - Prosseguiu em tom dramático como se do sacro sólio se dirigisse ao mundo inteiro: - Ainda que seja espanhol amo a Itália e não desejo vê-la noutras mãos que não sejam italianas.

Júlia, tudo menos comovida, continuou a suplicar-lhe: - Rogo-te, Rodrigo. - Depois, vendo que ele não respondia, olhando pela janela para o setentrião, de onde deviam aparecer os Franceses, caiu em cólera. - É tudo culpa de César! - exclamou. - Odeia-me por causa de sua mãe. Conspiram os dois para nos dividirem. Não querem que outros além deles tenham influência em ti. São da mesma raça, aquela diaba e os seus dignos rebentos, César e Lucrécia. . .

A estridente maldade da sua voz arrancou Rodrigo aos seus pensamentos. Como lhe parecia bela, trémula de cólera. Sentiu-se ser tomado por uma onda de desejo. O desejo dele era ainda capaz de lhe apagar da mente os pensamentos desagradáveis. Apertou contra si o seu corpo flexível.

- Não, não - disse a tranquilizá-la -, não é César, sou eu que te amo quem te diz que deves ir. Queres que os Franceses te ponham fora do meu leito? Estarás em segurança em Pesaro, com Lucrécia e João.

Mas Júlia pensava ainda vergá-lo a seu bel-prazer, poder gozar os apelos do desejo.

- Aquele verme do João Sforza - insinuou maldosa -, se não é capaz de defender a sua honra, como podes esperar que defenda a minha?

Rodrigo fingiu não ter entendido a insinuação contra Lucrécia.

- Júlia - disse-lhe puxando-a para a cama -, não nos resta muito tempo para estarmos juntos.

- Portanto, Júlia, obtiveste uma bênção de boa viagem do nosso santo pai, não é assim? - perguntou César irónico quando a jovem senhora, com um rubor espalhado no rosto, se juntou aos outros prestes a porem-se a salvo em Pesaro.

César parecia ter reencontrado a compostura naquele momento em que, em trajes cardinalícios, esperava poder despedir-se das mulheres do pai numa das antecâmaras do Palácio de Santa Maria, contíguo ao Vaticano, residência de Adzzana de Mila. Encostado à parede revestida de madeira, contemplava o grupo. Estavam Adriana, em traje de viagem, composta como sempre, e Lucrécia e Júlia à beira do choro. O marido de Lucrécia, João Sforza, amuado e ciumento, evitava o olhar de César. Compreendera que César o considerava sacrificável e não estava muito preocupado com isso. Tinha medo do cunhado.

Ouviu-se bater do outro lado do painel. César voltou-se e manobrou uma rosa esculpida. O painel abriu-se e entraram Rodrigo e o seu servo Perotto.

- Bem. bem. estais prontos. - O papa estava alegre, desejoso de evitar novos excessos emotivos. - César, a estrada está ainda aberta?

- Está.

- joão, sabes o que deves fazer? - Rodrigo voltou-se para Perotto. - Escreveste-o para o senhor João? Está tudo escrito? Claramente ?

- Sim, Vossa Santidade.

- Bem, então nada mais há para dizer. Sim, João, o que é? - Santidade, se me é permitido não me unir à familia, seria minha intenção ficar em Roma.

- Para poderes bajular os Franceses? - interveio César. Como o teu tio Ascânio? Não temas, Joãozinho, mando Michelotto contigo até Pesaro.

- Não, não, meu Deus, isso não! - gemeu João. - Santidade. ele. ele. tem intenção de me matar !

- Calma, rapaz tolo, ninguém quer matar-te. - A voz de Rodrigo soou imperiosa. - Tinha ordenado que escoltasses estas senhoras até Pesaro, onde ficarão até que lhes seja possível regressar a Roma sem perigo.

- Eu não - explodiu Júlia com veemência. - Eu não quero ir. Desejo ficar aqui.

Rodrigo reagiu sorrindo àquela manifestação de petulância da amante.

- Doce Júlia, desejas realmente sofrer sevícias de algum francês? Ou alemão ou suíço? Ou talvez de Sua Alteza cristiamíssima em pessoa?

- Santo Padre! - O tormento era em João mais forte que a timidez. - Rogo-vos. os meus deveres me obrigam a...

Rodrigo voltou-se para ele com ira:

- Deveres? Pretendes explicá-lo a nós? O teu dever, Sforza, é obedecer- nos. Isso basta.

João balbuciou, perdeu a cabeça:

- Meu tio Ascânio mandou-me dizer.

Lucrécia agarrou-o por um braço exortando-o a não prosseguir.

Rodrigo falou em tom sereno e severo:

- Sabemos o que teu tio tem para te dizer. A ti e a toda a vossa estirpe Sforza. Espiar os nossos movimentos e trair-nos. Acreditas que realmente não tínhamos lido as cartas?

João ficou atordoado.

- Santidade. - balbuciou.

- Que fale, este parvo - interveio César. - Partilhará uma cela com seu tio Ascânio.

Rosto empalidecido, João procurou a ajuda de Lucrécia. Durante instantes ninguém falou e a ameaça continuou suspensa no ar.

Rodrigo fixou brevemente César como se tivesse a intenção de protestar. Depois, como se nada tivesse havido, atraiu a si Lucrécia e Júlia e beijou a filha tão demoradamente, num abraço tão apaixonado, que Júlia ficou a olhar com uma careta ciumenta enquanto não chegou a sua vez. Tendo, portanto, as duas raparigas pela mão, Rodrigo voltou-se para Adriana com voz trémula de emoção:

- Dona Adriana, estão aqui os meus olhos e o meu coração. Tende cuidado com elas até ao tempo bendito em que possamos de novo estar todos juntos em paz. Agora ide, todos. Que Deus seja convosco. Mas lembrai-vos de um velho que vos ama e escrevei-me muitas vezes.

César tinha uma expressão de desprezo no rosto.

- Jesus - murmurou.

João fez uma última tentativa desesperada.

- Não - disse ainda, obstinado.

Lucrécia aproximou-se para o acalmar.

- Marido, vós nos guiareis a Pesaro. Lá estaremos em segurança e depois é tempo de Carnaval. Com a mão no coração vos prometo que lá seremos felizes.

Rodrigo aumentou a dose, de novo jovial e tranquilizador:

- Mas com certeza. Disse-te porquê? És um rapaz afortunado porque tens agora a nossa permissão, podes consumar as tuas bodas.

César deixou escapar uma risada. Enquanto as mulheres se dirigiam para a porta, abraçou Lucrécia e murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Lucrécia sorriu, mas não falou, apertando-se contra ele; depois voltou- se e seguiu Adriana já nas escadas.

César e Rodrigo viam de uma janela o destacamento que saía do pátio. Novamente Rodrigo alterara o seu humor. Colhido por uma vaga de sentimentalismo, tinha lágrimas nos olhos ao vê-las partir. César fitou- o com presunção. - Como é bela. ainda uma criança. - murmurou Rodrigo ternamente.

- É uma puta.

- É tua irmã.

- Ela, não! Júlia!

- César. Não, não, não pode ser. Não terias ousado. Fizeste-o? Tu fizeste-o?

César sorriu e não respondeu. Rodrigo voltou-se novamente para a janela com um estremecimento nos ombros. Quando César falou o seu tom era brusco e frio:

- Pai, que vamos fazer de Ascânio Sforza?

Também Rodrigo falou friamente:

Foi dada a ordem. Esta noite será conduzido a Santo Ângelo.

- E Della Rovere?

Rodrigo estava de novo muito calmo, pela força da própria superioridade e experiência.

- Deixarei que caia na própria armadilha de traição e excesso de ambição. Fica pois certo que correrá ao rei de França a despejar veneno contra nós. Bom proveito lhe faça.

- Estais enganado - replicou César impetuoso. - É nosso inimigo e devemos eliminá-lo antes que nos cause danos.

- Ainda és um ingénuo em política, César - disse Rodrigo condescendente. - Se o teu inimigo vai ser ridículo perante o mundo inteiro, porque devemos impedi-lo?

- Estais enganado - insistiu César. - Não deveis deixá-lo ir. Eu próprio manobrarei para que não escape. - Voltou-se para sair.

- Vossa Eminência! - O chamamento de Rodrigo soou peremptório.

- Santidade! - César voltou-se numa atitude falsamente submissa.

- Não te permito que desafies a nossa autoridade. Caminharás na nossa sombra.

- Como Sua Santidade preferir. - O sorriso de César era feroz. - A propósito do Sforza. Dizem-me que a peste ceifa muitas vítimas nas celas subterrâneas de Santo Ângelo.

- Não! - exclamou Rodrigo resoluto. - O cardeal Sforza é um príncipe da igreja e ficará alojado como tal. Está resolvido.

Ascânio Sforza sentava-se numa poltrona revestida de pele e guarnecida de gemas. Observava Julião Della Rovere que corria para cá e para lá nos preparativos de uma partida precipitada.

- Ascânio, crê em mim - dizia-lhe. - Convém-te vires comigo para Florença pelo rei de França. Não te fies em Rodrigo Bórgia.

Ascânio tirou um confeito de uma caixa de prata e colocou-o graciosamente na língua antes de responder.

- Talvez tenhas razão, julião. Mas também é verdade que nunca tu confiaste nos Bórgias e não tens outra alternativa senão a de estares com os Franceses. Os teus dados estão lançados, os meus não.

- Mas teu irmão Ludovico.

- Ludovico cuidará dos nossos interesses junto do rei de França. Dois Sforza ao lado de Carlos poderiam ser de mais. Eu fui sincero com Rodrigo Bórgia e ele prometeu- me a amizade e o respeito que me são devidos enquanto for membro do Sacro Colégio.

- E tu acreditas nele? És louco!

- Não sou louco, sou um jogador, Julião, um jogador sensato que não quer apostar todos os seus ducados no mesmo cavalo. especialmente quando o cavalo em questão é um rei de França ainda rapazinho. Ludovico mandou-me dizer que é um tolo e facilmente influenciável.

- E será influenciado, de facto. Por mim.

- Talvez, Julião, talvez. Mas talvez não. Rodrigo Bórgia sempre é o papa. E eu sou vice-chanceler da Santa Igreja e devo estar aqui para receber o rei de França quando chegar.

- De uma prisão dos Bórgias? Naturalmente. Perguntou-me como nunca pensei em quanto isto me seria vantajoso.

- Deus dispõe, Ascânio - avisou-o o outro.

- É justamente como dizes, Julião, Deus dispõe e eu estarei disposto no caso de as suas disposições. - Ascânio sorriu com ar de filósofo tocando ao de leve a superfície trabalhada da caixa de doces com a mão bem cuidada.

Como Rodrigo previu, Della Rovere fugiu de Roma para ir ter com Carlos de França a Florença, resolvido a persuadir o soberano a depor Rodrigo Bórgia em seu favor, tendo para oferecer como garantia a sua tenaz simpatia pelos Franceses. Por ordem de Rodrigo e com íntima satisfação do prisioneiro Ascânio Sforza foi preso e encerrado em Santo Ângelo, não nos subterrâneos como teria desejado César, mas sim em aposentos confortáveis por baixo dos bastiões do castelo. Aqui esperou o êxito dos acontecimentos sabendo que a expectativa não seria demorada. Os Franceses desciam através dos estados pontifícios em volta de Roma. Pela Via Flamínia tinham descido a Viterbo onde, com a ajuda da fortuna, tinham interceptado e capturado as mulheres do pontífice. Pouco depois, os Orsini passaram-se para os Franceses, entregando armas e castelos como César previra. Os Bórgias estavam com os ombros contra a parede. Se bem que não tivessem completa consciência da desventura que os colhera, sabiam porém que no espaço de poucas semanas os Franceses teriam chegado a Roma e preparavam-se por isso para se defenderem o melhor possível.

Rodrigo e César pararam sobre as muralhas da cidade, à Porta de Santa Maria do Povo, da qual partia a Via Flamínia. Estavam perturbados. César, irritado, dava pontapés nas faxinas meio podres que protegiam um canhão antiquado. Por baixo deles, o príncipe turco Djem, amigo de João, curveteava montado no seu cavalo como se não percebesse, nem de perto nem de longe, a gravidade do momento.

- Vossa Santidade está satisfeita - protestou César com raiva. - O primeiro peido de um francês terá mais efeito que as trombetas de Josué.

- Orsini e os seus filhos ainda se opõem.

- Enquanto não farejarem o dinheiro do rei de França.

- Achas que deveria refugiar-me em Nápoles, César?Havia um tom dramático na sua voz. - Não, ainda sou papa e bispo de Roma. Não abandonarei o meu rebanho e não cederei a minha cidade aos bárbaros.

- Será o vosso rebanho a abandonar-vos mal um francês se apresentar junto das muralhas. Não! Que os Franceses conquistem a cidade. Podemos resistir em Santo Ângelo até que Vossa Santidade tenha encontrado o fulgor da razão e nos der carta branca.

- Temes pela minha vida, César. Nunca ninguém matou um papa.

- Recordai-vos de São Pedro. Há precedentes. . . Sim, reflectiu Rodrigo, tinham morto São Pedro. E havia um precedente mais recente que o angustiava: aquele dia desditoso em que os Franceses tinham raptado o papa Bento e o haviam maltratado a tal ponto que o fizeram perder o juízo. Não era um pensamento reconfortante. Nunca Rodrigo se sentira tão só. Apaixonadamente desejoso de voltar a ver Lucrécia ou Júlia, era atormentado pela frustração e assediado pela solidão. Obtinha pouco conforto de César, tão rude e duro. Não era como João. Rodrigo baixou um olhar amistoso sobre Djem. César apercebeu-se disso. - Tendes sempre de ter aquele sarraceno agarrado à vossa sotaina?

- Pobre príncipe Djem. É um querido amigo de teu irmão e por isso me lembra muito João.

- Também a mim. É só por isto que o tendes aqui?

- Esqueceste César, que Djem é uma personalidade no seu país, irmão do sultão que o odeia e o teme. Escrevi ao sultão, que fará bem em mandar-nos auxílio, porque se os Franceses nos levarem a melhor, aquele vaidoso Carlos proclamará uma cruzada contra ele e colocará Djem no trono.

César riu-se admirado.

- Uma manobra ousada, salvar-nos do rei cristianíssimo com a ajuda do pior inimigo da cristandade. Como é que respondeu?

- Como infiel muçulmano que é. - No rosto de Rodrigo desenhou-se um sorriso subtil. - Está pronto a pagar trezentos mil ducados pela notícia da morte do irmão Djem. Anda. Voltemos ao Vaticano.

Enquanto o papa montava a sua mula com a reverencial assistência dos dois guardas pontifícios, César contemplou Djem com novos olhos. Trezentos mil ducados: era o suficiente para organizar e manter um exército, para sustentar e realizar as ambições de um homem. A voz impaciente de Rodrigo interrompeu as suas reflexões.

- Anda, César. Vamos ao Vaticano. Talvez tenham chegado notícias de Lucrécia.

No Vaticano havia uma grande confusão. Enquanto Rodrigo chegava aos seus aposentos privados ouviam-se os alaridos da criadagem pontifícia que saqueava o palácio na previsão da fuga do papa perante a perseguição do exército francês. Do seu apartamento, César ouvia aumentar o tumulto.

- Assim não se pode seguir em frente, Michelotto! - exclamou furioso. - Vem.

Enquanto se levantava para afivelar o cinturão com a espada, ouviu bater à porta. Era Perotto, pálido, olhos cheios de terror.

- Vossa Eminência, Sua Santidade. há novidades. peço-lhes para virem.

Empurrando Perotto rudemente para o lado, César saiu para o corredor, seguido de perto por Michelotto. Quando viravam uma esquina, um servo com os braços cheios de pratas roubadas esbarrou com César. Apanhado em flagrante, deixou cair o saque levando a mão ao punhal. Michelotto avançou de repente e enterrou a sua lâmina experiente no peito do servo. Uma golfada de sangue salpicou o peitoral de César. Este limpou-se com uma careta de repugnância, que Michelotto interpretou mal: julgando o seu patrão assustado, pousou-lhe uma mão no braço em gesto tranquilizante. César reagiu como à mordedura de uma serpente.

- Não me toques! Nunca me toques, sapo! - gritou ameaçador.

Surpreendido pela fúria gelada que lhe vira nos olhos, Michelotto deixou cair a mão sem falar.

Nas vizinhanças dos aposentos pontificais, encontraram Ascânio Sforza que corria na mesma direcção. Ao ver a espada ensanguentada de Michelotto e a expressão turva de César, Ascânio temeu pela vida.

- Tenho o salvo-conduto do papa - apressou-se a declarar mostrando o pergaminho.

Os apartamentos do papa estavam em penumbra, porque as janelas que davam para o augusto claustro do Pappagallo eram pequenas; porém, as paredes reluziam com as ricas cores dos recentes frescos de Pinturicchio e no tecto resplandecia o touro dos Bórgias, celebração rampante do orgulho familiar.

César encontrou o pai sentado à janela, de costas para a luz, de modo que não pôde ver-lhe a expressão. A seus pés estava um homem ajoelhado que vestia uma armadura suja de lama. Era Paulo Orsini.

- Diz-lhe, meu filho - disse Rodrigo em voz átona. Conta de fio a pavio ao teu amigo, cardeal de Valença, como a tua família me foi leal.

Paulo Orsini voltou-se para César com uma face assustada. - Eminência. lembre-se como éramos amigos desde crianças.

César avançou e agarrou Orsini pelo pescoço:

- Por que vieste aqui rojar-te aos pés de Sua Santidade?

- Eminência, por minha honra. meu pai entregou os castelos e o exército ao rei de França e ajoelhou-se perante o rei. eu não podia. a nossa longa amizade.

- Que traiu - contrariou César com fúria. - Enforque-o, pai. Como cão traidor que é.

Rodrigo teve um gesto de negação.

- Escuta-me, Paulo Orsini - disse com um tom sempre mais atormentado na voz -, deixamos-te livre agora porque vieste até nós por tua espontânea vontade. Vai agora e leva esta nossa mensagem a teu pai pecador e a toda a tua infiel familia. Diz-lhes que nós, o papa, não nos esqueceremos daquilo que fizeram, nem nunca lhes perdoaremos e, como prova da nossa inevitável vingança, empenhamos a nossa mitra, as nossas terras e a nossa vida.

Ergueu-se da cadeira, dominou de cima o desventurado Orsini que exclamou suplicante:

- Se Sua Santidade o deseja, estou pronto a negociar com o capitão francês a restituição de Lucrécia e dos outros prisioneiros que estão com ela.

Rodrigo abateu-se de repente na cadeira com a face transtornada pelo horror.

- Prisioneiros? Como prisioneiros?

- Sua Santidade não estava ao corrente? - Alguma segurança voltara à voz de Paulo. - Há cinco dias, em Viterbo.

César atirou Paulo Orsini para a porta com uma força brutal.

- Vai-te embora, cão, enquanto estás vivo! - exclamou entre dentes. - Os Bórgias não têm necessidade da tua ajuda.

A porta abriu-se e entrou Perotto. Paulo Orsini aproveitou para fugir.

- Santidade, o cardeal Sforza está aqui. É portador de notícias graves. Dona Lucrécia, Dona Júlia. . .

- Ele já sabe - interveio bruscamente César. - Saiu agora daqui quem lhe deu a notícia.

- Eminência, que devo dizer ao cardeal Sforza?

- Não lhe digas nada. Que espere. Agora, fora!

Perotto desapareceu. Enquanto abria a porta, chegaram ruídos confusos de tropel, passos de corrida, gritos e rangidos de móveis que eram arrastados pelos pavimentos de pedra do palácio. Também se levantavam os protestos aristocráticos de Ascânio Sforza ofendido pelo tratamento pouco respeitoso de que era alvo.

Rodrigo era presa do mais sombrio desespero. Perdida toda a certeza, movia insensatamente os lábios e rolava os olhos. Agarrou César por um braço e gemeu:

- Qualquer coisa, promete-lhes qualquer coisa, mas faz com que eu volte a ver a minha Lucrécia. Diz a Ascânio. . Diz a Ascânio para vir aqui. Ele lhes dirá para as libertarem. A ele escutarão. É o único. . . Quero falar com Ascânio.

César afastou-se para trás, desgostoso, e agarrou os ombros do pai, como que para incutir nele parte da sua força anímica.

- Que quereis dar-lhe? Tudo aquilo que tendes?

- Qualquer coisa! Tudo! Estamos arruinados. Só quero que nos restituam a nossa filha amada.

César entregou-se à sua exasperação:

- Escuta, velho, e tenta portar-te como papa. As mulheres não contam agora. Não lhes tocarão num cabelo. Nós ainda não estamos perdidos. Teremos Santo Ângelo enquanto as pedras não estiverem derrubadas e mostrar-lhes-emos o que significa ser um Bórgia.

Mas Rodrigo choramingava, recusando o conforto das palavras, balouçando- se para a frente e para trás na cadeira, fechado na sua angústia, a face escondida nas mãos.

- Lucrécia, Lucrécia - gemia.

César contemplou o seu corpo percorrido por soluços e encolheu os ombros.

- Michelotto! - gritou.

Rodrigo levantou a cabeça quando Michelotto entrou. Vendo a espada ensanguentada que ele empunhava assustou-se, pois estava toda a gente pouco lúcida.

- César, que vais fazer? Queres matar-me?

Michelotto, espanhol devoto, caiu de joelhos e beijou a orla da toga pontifícia, embainhando a espada.

- Santo Padre.

- Anda, Michelotto - disse César bruscamente -, vamos para Santo Ângelo. Agarra-lhe o braço, tolo. É apenas um homem.

Enquanto percorriam à pressa a galeria que unia o Vaticano ao castelo, ouviram os gritos na cidade que anunciavam a chegada dos Franceses.

- França! França! Della Rovere! Della Rovere! Abram imediatamente as portas !

Carlos VIII entrou em Roma como conquistador a 31 de Dezembro de 1494, dia de São Silvestre que, segundo os astrólogos da corte, era mais propício ao soberano. As condições meteorológicas, pelo contrário, eram favoráveis aos Bórgias. Carlos apresentou-se à Porta do Povo debaixo de um aguaceiro e por um caminho reduzido a um pântano. À porta foi acolhido por Burchard que Rodrigo tinha encarregado da guarda das chaves da cidade. O mestre-de-cerimónias estava muito infeliz pelas funções que lhe eram atribuídas. Os Franceses nada sabiam do protocolo do Vaticano e Burchard tremia de melancolia à perspectiva de ter de superintender ao encontro entre o papa derrotado e o soberano vitorioso. Felizmente o rei não sabia que Rodrigo se bamcara em Santo Ângelo. Burchard esperava ter o soberano na ignorância do facto o mais tempo que lhe fosse possível.

- Um magnífico exército, senhor.

Congratulou-se o rei para lhe agradar.

Era realmente um espectáculo soberbo o desfile em força do exército francês pela Via Larga em direcção ao Palácio Veneza onde o rei estava alojado. A passagem durou desde as três da tarde até às nove da noite, quando tiveram de acender archotes aumentando a impressão suscitada pelas longas colunas armadas. Em primeiro lugar, chegaram os mercenários alemães e os suíços, de curtos uniformes matizados, com elmos emplumados, espadas curtas e largas, e longuíssimos piques que faziam da sua infantaria a mais temida da Europa. Eram homens altos e musculosos que marchavam ao mesmo tempo ao som das trombetas. A sua estatura e o seu esplendor estabeleciam con traste com os pequenos archeiros gascões que os seguiam com fardas modestas. Atrás da infantaria vinha a cavalaria pesada, o coração do exército do rei, constituída pelos nobres da França, nos seus magníficos mantos de seda sobre as armaduras, armados de lança e de maça ferrada. Seguiam-se os cinco mil homens da cavalaria ligeira, equipada com longos arcos ingleses; atrás deles desfilavam os quatrocentos archeiros da guarda real entre os quais cem escoceses; depois era a vez da guarda pessoal da nobreza, com as maças ferradas ao ombro. Atrás dela vinha o rei, que era acompanhado por Della Rovere e por Ascânio Sforza, que tinham acorrido a procurá-lo. A plebe romana no tou com desilusão que Burchard gritava Viva a França, Della Rovere, Sforza sem nenhuma manifestação a favor do Bórgia.

Muito satisfeito pelo acolhimento recebido, Carlos sentou-se no trono colocado para ele no salão do Palácio Veneza, rodeado pelos seus nobres, admirado pela magnificência das tapeçarias, pelo mobiliário e pelos objectos de prata e de ouro que enchiam a sala. Burchard, com uma reverência obsequiosa, procurou demitir-se, mas o rei reclamou-o:

- Senhor Burchard, desejaríamos saber quando sua Santidade o Papa nos concederá audiência.

- Senhor - respondeu Burchard gaguejando, não ousando enfrentar os olhos do rei -, não sei dizer. Sua Santidade está indisposto.

- Indisposto para saudar Sua Majestade - interveio brus camente Della Rovere, lançando uma mirada para verificar o efeito das suas palavras no soberano. - Informámo-nos de que se retirou para o Castelo de Santo Ângelo onde se rodeou da protecção da guarda. Uma atitude muito hostil.

- O fumo dos meus canhões o fará sair - trovejou Carlos violáceo pela cólera. - Levai esta minha mensagem ao vosso amo, o papa, e fazei de maneira que nos receba. Ide!

Burchard, embaraçadíssimo, não queria mais que desaparecer. Saindo com grande pressa do salão, encontrou-se no alto da escadaria com Ascânio Sforza, que lhe murmurou ao ouvido:

- Burchard, dizei a Sua Santidade que o capitão francês restituirá os prisioneiros por três mil ducados. Uma pequena soma a pagar para uma rápida cura da sua indisposição.

- Ficamos-te gratos por esta tua intervenção numa questão que tanto nos pesava no coração, Ascânio.

Rodrigo ocupava um assento com dossel por baixo da abóbada e entre os frescos da sala de audiências no Castelo de Santo Ângelo. De pé, a seu lado, estava César nas vestes cardinalícias. Ao longo das paredes postavam-se homens armados com as armas dos Bórgias nos peitorais. De fora chegava o rumor incessante dos canhões franceses. As grandes bolas de pedra dos morteiros e das bombardas do rei faziam vibrar as muralhas do castelo que o imperador mandara erigir para seu sepulcro. Ascânio inclinou-se e fez sinal a um guarda para que abrisse a porta a fim de que entrassem Lucrécia, Júlia e Adriana de Mila. Vendo-as, Rodrigo ergueu-se do trono incapaz de conter a alegria. Instintivamente abriu os braços para as acolher. Depois, lembrando-se a tempo de quem era, recompôs-se numa atitude real estendendo a mão às mulheres que ajoelha vam para o beijarem. Adriana manteve respeitosamente os olhos baixos como era norma naquelas públicas circunstâncias; Lucrécia chorava. Tendo-se levantado, foi abraçar o irmão. Só Júlia, indómita, lançou um sorriso impudico ao amante. Rodrigo voltou a sentar-se, impassível.

- Sim, Ascânio? - disse.

- O rei está magoado. Pergunta por que não regressa Sua Santidade ao Vaticano.

- Estivemos gravemente indispostos, Eminência.

Ascânio respondeu com voz grave sem sombra de sorriso: - Posso então comunicar a Sua Majestade que Sua Santidade se recompôs da saúde?

- Deus restituiu-nos as forças - respondeu Rodrigo, no

mesmo tom cerimonioso mas olhando para Lucrécia.

Ascânio sentiu-se encorajado.

- Logo posso dizer a Sua Majestade que voltareis ao Vaticano?

- Não, nunca cederemos a um acto de força contra a nossa sacra pessoa. Enquanto Sua Majestade Cristianíssima perseverar no seu ímpio ataque contra nós, não nos moveremos daqui.

- Com grande pesar, Santidade, devo informar que Sua Majestade deu ordem para continuar a bombardear Santo Ângelo enquanto não receber a notícia de que regressastes ao Vaticano.

- Entristece-me não poder secundar os desejos do rei, Eminência - respondeu Rodrigo -, mas devemos continuar aqui até que a voz de Deus se exprima diversamente. Ele manifestou as suas vontades ao seu servo.

Uma explosão mais violenta fez vibrar a sala. O Sforza teve um sobressalto nervoso. Rodrigo não se agitou.

- Não temeis, Ascânio - disse. - A voz de Deus troará mais forte que os canhões do rei Carlos.

Dez dias depois, dez metros da muralha externa desmoronaram-se e três guardas morreram sob os escombros. Resistir mais era impossível. Rodrigo convocou o cardeal Sforza.

- Deus falou-nos, Ascânio. Deseja que voltemos ao Vati cano. Quereis, portanto, dar notícia a Sua Majestade da nossa decisão a este respeito? O nosso mestre-de- cerimónias o informará da hora em que atravessaremos o nosso jardim.

- O rei de França está extremamente bem-disposto em relação a Sua Santidade - disse Ascânio a Rodrigo enquanto estavam ambos ajoelhados assistindo à missa na Capela Sistina, dois dias depois. - Segundo parece ficou muito impressionado pelo vosso santo porte quando ontem vos viu passar pelo jardtin.

- Assim ouvi. É uma notícia muito grata aos nossos ouvi dos. Segundo parece, Sua Majestade estava montado nos ombros do nosso mestre-de- cerimónias para nos ver melhor. Ainda deseja depor- nos para colocar Julião Della Rovere no sólio papal ?

- Santidade, Julião sibila palavras venenosas contra a vossa santa pessoa, mas desde ontem Sua Majestade não o escuta como fazia antes. Deseja principalmente seguir para Nápoles. Se vós já não levantais oposição às suas pretensões àquele trono, está disposto a apoiar o vosso direito ao papado.

- Que devemos fazer, Ascânio?

- Temporizar, Santidade. Acreditai-me, o povo começa já a ser-lhe adverso. Os príncipes italianos, muitos daqueles que o acolheram com honras.

- Como o duque de Milão - interrompeu-o Rodrigo com malícia.

- Meu irmão Ludovico deseja que Sua Santidade saiba que nunca desejou a vossa deposição.

- Nem nunca desejou combater a Espanha por uma causa francesa?

No tom educado e neutro de Ascânio apareceu um toque de apreensão.

- Logo, é verdade que a Espanha manda reforços para Nápoles ?

Rodrigo sorriu sem nada revelar:

- Vós, os Sforza, sois realmente ávidos cata-ventos. Mas que acontecerá se o vento não soprar na direcção que desejais Ascânio? Que acontecerá se formos depostos?

Sforza teve um gesto inquieto e não respondeu directamente.

- Vossa Santidade receberá o rei? - perguntou.

- Amanhã, Ascânio, na Sala do Pappagallo.

A imponente e solene figura do pontífice Rodrigo Bórgia dominava a Sala do Pappagallo do seu trono, ladeado por César e pelos cardeais que se tinham mantido fiéis. Do trono observou o rei de França avançar com um deselegante arrastar de pés pelo pavimento de mármore marchetado. Carlos fora devidamente instruído pouco antes por Burchard, o qual o achara um aluno zeloso mas inepto. Não obstante a lição, o soberano estava impaciente e nervoso, receoso de errar, posto intencionalmente em submissão pela ostentação de magnifcência da corte papal. Sob os olhos ansiosos de Burchard, o rei aproximou-se do trono, ajoelhou-se e humildemente tirou o chapéu. Com paterna dignidade, Rodrigo fê-lo erguer-se exortando-o a não descobrir a cabeça real. Inclinando-se para beijar o rei em sinal de paz, o papa vacilou e, como que atingido por um mal-estar, agarrou-se ao braço de Carlos.

Carlos ficou maravilhado com isto.

- Vossa Santidade está doente?

- Não é nada. - Rodrigo arquejava. - Preciso de ar. A sala tem gente a mais.

- Uma outra sala - ordenou o rei imperioso. - Deixem-nos sós.

César avançou para o guiar em direcção a uma sala contígua. O papa atravessou o limiar apoiado ao braço solícito do jovem soberano. César, atrás deles, demorou antes de fechar a porta, voltando-se para lançar um vago sorriso a Julião Della Rovere, trémulo de cólera reprimida. Seu pai era realmente um actor consumado, reflectia César, e o rei de França era mesmo um parvo. Enquanto Rodrigo se sentava deixando-se cair pesadamente, César foi ao aparador onde fora preparada uma bandeja com cálices de prata e uma grande taça de cristal cheia de vinho do Reno. Trouxe a bandeja para uma mesa ao lado do pai, depois retirou-se para observar com discrição a cena.

Rodrigo abriu os olhos, como se só então se apercebesse da presença de Carlos, fez-lhe sinal para se sentar a seu lado. Falou depois com voz débil, quase trémula:

- Vede, Majestade, sou um pobre velho. . . fraco e indefeso. Os vossos canhões desarmaram-me. Que deseja de mim Sua Majestade, o rei?

Carlos falou com ingénua franqueza, inexperiente como era naquelas escaramuças diplomáticas.

- Estais em oposição às minhas reivindicações sobre Nápoles, Santidade?

Rodrigo deu sinal de novo desmaio. Fechou os olhos e apontou debilmente para a taça de vinho.

- Perdoai-me, senhor. estou mais fraco do que pensava. passei a noite de joelhos orando a Deus para que me guiasse. Vossa Majestade, peço-lhe um pouco de vinho.

Enquanto Carlos se levantava para servir o vinho, Rodrigo continuou em tom mais firme, observando o soberano por entre as pálpebras semicerradas.

- Deus não nos abandonou e esta manhã iluminou-nos quanto ao significado da vossa vinda aqui.

Carlos estava alerta suspeitando da armadilha.

- Que significado?

- Se pedis a nossa aprovação para Nápoles é necessário que reconheceis em nós o vigário terreno de Cristo.

Mas Carlos tinha uma seta no seu arco.

- Os vossos direitos, Santidade, foram postos em discussão por outros.

- Por Julião Della Rovere?

- Em Ferrara, perante um concílio geral que vos depôs.

Carlos estava satisfeito.

Rodrigo abriu os olhos numa expressão quase de desculpa.

- Ai de mim, temo que Julião vos tenha dado maus conselhos, Majestade.

- Não se pode depor um papa? Por parte de um concílio geral?

- Certamente, Majestade.

Carlos estava confuso.

- Falai com clareza - intimou aborrecido.

- Perdoai-me, Majestade. A mente de um velho não é talvez como a vossa. Quero dizer que a convocação de Ferrara não é válida.

- Como que não é válida? Não, não acredito.

- Só o papa tem poder para convocar o concílio geral. Carlos foi duramente atingido por aquele contra-ataque magistral. A sua arma principal tornara-se inútil na sua própria mão. Rodrigo endereçou-lhe um sorriso de compaixão.

- Foi um comportamento imperdoável da parte de Julião iludir assim a vossa boa-fé, meu filho.

Abatido, Carlos baixou os olhos para o pavimento manipulando nervosamente o seu cálice de vinho com dedos inquietos. Depois levantou um olhar turvo.

- Convocareis tal concílio?

- Vós o faríeis, Majestade?

Seguiu-se um breve silêncio, depois a face do soberano alargou-se num melancólico sorriso.

- Para o Diabo, então. Marcharei para Nápoles. Opor-vos-eis?

- Sua Majestade partirá com a nossa bênção.

Carlos estava de novo em suspeita por ter a intuição de que nada obtivera do colóquio.

- Tendes em mente enganar-me - disse com petulância. - Desejais apenas que me vá embora daqui e nada mais.

Rodrigo sorriu-lhe paternalmente.

- Eu tenho em grande conta a nobreza de alma de Vossa Majestade. Agora que vos haveis apoderado da Cidade Santa deveis restituí-la a Deus e fareis demonstração tangível de merecer o apelativo do mais cristão entre os reis.

Carlos sentiu-se lisonjeado, aplacado.

- Vossa Santidade diz a verdade. . . Portanto, quando for senhor de Nápoles investir-me-eis da respectiva coroa? - Vossa Majestade pode ter a certeza de que Deus iluminará a nossa consciência e o nosso sentido do dever no interesse do máximo príncipe da cristandade.

A voz de Rodrigo soou suave.

Carlos enrugou a testa. Precisava de um sinal concreto para mostrar ao mundo que não fora intrujado pelo papa. Levantou-se e começou a passear mordendo o lábio inferior com os incisivos salientes.

- As palavras não bastam, Santidade - disse sombrio. Rodrigo sabia ser generoso na vitória.

- Podemos sugerir um contributo à bolsa para a campanha, um sinal do nosso apoio à causa militar de Vossa Majestade? Digamos vinte machos carregados de ducados de ouro?

Carlos continuou a caminhar, mas quando falou o triunfo vibrava na sua voz.

- Excelente, Santidade, excelente. Mas também preciso de reféns em demonstração da vossa boa-fé. O príncipe turco pela minha cruzada. - Parou em frente de Rodrigo com uma expressão astuta. - E César, vosso filho, por Nápoles.

Lentamente Rodrigo anuiu.

- Assim seja, filho - respondeu.

Transbordante de gratidão, Carlos ajoelhou aos pés do pontífice e beijou-lhe a mão.

- Santo Padre! A vossa bênção!

Enquanto Rodrigo fazia o sinal da Cruz por cima da cabeça do rei francês, César saía da sala.

Pouco mais de uma semana depois, despedindo-se de modo quase filial do papa, pelo qual parecia fascinado, Carlos partiu de Roma em direcção ao Sul pela Via Ápia, com César e Djem, em direcção a Nápoles.

Carlos foi feliz em Nápoles, bastante mais do que em Roma onde, com medo do veneno dos Bórgias, nunca deixava de dar os seus alimentos a provar a um servo de confiança e mexer o seu vinho com uma colher feita de corno de unicórnio, o antídoto de todos os venenos. A cidade entregara- se-lhe sem reservas como de resto as suas mulheres. O livro em que Carlos descrevia as mulheres de que gozara os favores tornou-se de ingentes proporções. Numa carta ao cunhado definia o seu novo reino com o paraíso terrestre. Existiam porém sintomas sinistros que Carlos, inebriado pelos prazeres, preferia ignorar. O exército francês desmoralizava-se, enfraquecido pelos vinhos e pelas mulheres e por um novo mal que se espalhava violento, a sífilis, que os Franceses, culpando os Italianos, chamavam le mal de Naples e os Italianos, culpando os Franceses, chamavam a doença francesa. Os Napolitanos, cansados de ver as suas mulheres violentadas e as casas saqueadas por franceses embriagados, dirigiam protestos ao rei. Mas o perigo maior vinha da liga antifrancesa promovida pela Espanha e pelo Império, a que iriam aderir Veneza, Milão e o papa.

Carlos estava no arco delicado de uma janela do Castelo Novo voltada para o golfo de Nápoles. Tinha as sobrancelhas unidas numa carranca raivosa e os lábios fracos estavam apertados numa expressão que não lhe era habitual, enquanto os aborrecimentos lhe tinham vergado mais ainda os ombros. Atrás dele encontrava-se um grupo de conselheiros preocupados que tentavam suplicar-lhe. Entre outros estavam Paulo Orsini e Julião Della Rovere. - Senhor - disse Orsini com humildade -, seria politicamente imprudente manter-se durante muito tempo neste reino. O povo.

Carlos voltou-se furioso.

- O povo? Qual povo? Interessam-me tanto os vossos camponeses italianos como um figo seco. Esmago-os a todos - proferiu dando a entender o que pensava com o tacão do sapato.

Julião tentou intervir:

- Vossa Majestade.

Carlos voltou-se para ele.

- Também sois italiano. E não nos podemos fiar nos Italianos. Delaroche - chamou. Era um velho soldado, ao qual pedia opiniões. - Delaroche, como bom francês, diz-me a verdade.

- Vossa Majestade já conhece a verdade. Já não podemos contar com o apoio da população, aqui. O exército de Vossa Majestade está muito indisciplinado, muito enfraquecido pela doença.

- Sim! - exclamou o rei, indicando Orsini e Della Rovere. - Vós, Italianos, combateis com o corpo das mulheres!

Muito ferido, Paulo Orsini contrariou:

- Foi o exército de Vossa Majestade que trouxe a doença. Carlos estava fora de si.

- Mentis! Todos os Italianos são mentirosos, cães, porcos e traidores.

Delaroche interrompeu o chorrilho de impropérios.

- Senhor, os chefes militares italianos levantam-se contra nós. Não há um só príncipe em toda a Itália em quem possais confiar.

Mas a cólera de Carlos estava longe de estar extinta.

- Sei da sua santa aliança. é uma invenção daquele diabo do papa!

- Majestade. - A voz de Delaroche soou calma, mas firme. - Não podemos continuar aqui. Temos de retirar. Antes que um exército espanhol venha meter-se entre nós e a França.

Carlos bateu o pé fazendo uma careta.

- A Espanha ! Enganou-me ! Aquele espanhol ! O touro catalão !

Della Rovere avançou. Fizera um grande esforço para aguentar o seu orgulho perante os insultos do rei, mas conseguira. Tinha os músculos da face contraídos pelo furor mas, quando falou, a sua voz soou serena.

- Posso respeitosamente recordar a Vossa Majestade que ainda tem como refém César Bórgia. Por consequência, através dele, o braço e a vontade do papa.

Carlos acalmou. Um sorriso triunfante se abriu nos traços irregulares do rosto.

- Tendes razão, Della Rovere! - exclamou, consolado. Onde está o novilho?

Os aposentos de César estavam vagos. Sobre a mesa na qual se banqueteara na noite anterior na companhia do filho do papa, jazia, de costas, o corpo morto do príncipe Djem. Um vómito de bílis escura misturada com sangue ficara seco num canto da boca. Algumas moscas mortas jaziam de costas na mancha de vinho que correra do cálice tombado. Durante uns instantes, Carlos ficou paralisado a contemplar o cadáver custando-lhe a crer nos próprios olhos.

- Delaroche ! - berrou. - Onde está o Bórgia? - Desapareceu, senhor. Encontrei nas cavalariças um palafreneiro, que vestia o hábito de Sua Eminência, apunhalado no coração. Desapareceu um cavalo. Nenhuma pista do cardeal e do seu servo espanhol.

- Os cofres, idiota - gritou-lhe Carlos. - Os cofres ainda lá estão? O ouro?

- Majestade, os cofres estão, mas e interrompeu-se temeroso do efeito que as suas palavras podiam suscitar no rei enfurecido.

- Vá, vá - Carlos batia o pé impaciente.

- Estavam cheios de pedras, senhor. . .

Carlos parecia ir ter um colapso. Momentaneamente esmagado pela notícia, revirou os olhos soltando sons estrangulados na garganta. Depois, com o corpo magro a tremer de fúria, voltou-se para Della Rovere como que para o ferir.

- Padres. . . padres! - A voz ficou-lhe sufocada num estertor. Esmurrou a mesa num acesso de ira incontrolável. - Padres. malditos padres Bórgias !

                 A FAMÍLIA

A luz espalhada por uma tarde estival roçava levemente as colunas de mármore e a fachada com frescos da villa Belvedere, no jardim do Vaticano, tingindo de uma cor creme intensa as vestes brancas de Rodrigo sentado num banco de pedra ornamentado por cupidos. Com uma mão alisava os cabelos de Lucrécia acocorada numa almofada pousada na erva. Júlia, por sua vez sentada numa almofada, observava Rodrigo e sua filha com olhos ciumentos. Os raios de Sol do entardecer arrancavam reflexos das fiadas de pérolas que ela usava ao pescoço e faziam sobressair o hábito de tecido vermelho de papoula de César que estava encostado a uma coluna, vistoso contra a pedra. Era um dos últimos dias de Julho de 1495. Carlos correra a pôr-se a salvo em França e os Bórgias tinham voltado ao Vaticano.

- É uma alegria imensa estar de novo em Roma rodeado pelas pessoas amadas - afirmou Rodrigo. - Deus foi realmente benévolo com o seu servidor e feriu do alto o ímpio bárbaro vergando-lhe o orgulho.

- Deus não entra nisto - interrompeu-o César impaciente. Talvez tenha sido Deus a escapar de Nápoles, deixando Carlos sozinho com um turco morto e batis cheios de pedras? Foi Deus a aconselhar-vos para dirigir Carlos através de Orvieto e Pertisia até que ficasse cansado da perseguição e enfrentasse as forças da liga em Fornovo? Derrotámos Carlos graças à nossa perícia e vontade.

- Dois dotes de que o rei de França estava desprovidodisse Rodrigo. - Paz para ele agora que está em França. No coração era um bom filho da Igreja. Poderemos precisar dele no futuro. - Depois o seu tom tornou-se severo, quase de censura. - Não te vanglories desmedidamente, César. Recorda que apesar de tudo és vigário de Deus na Terra.

Com as sobrancelhas franzidas, César fitou ostensivamente Júlia, encolheu os ombros e calou-se.

Em tom mais conciliante Rodrigo disse:

- Contenta-te, meu filho. Seremos de novo uma família. Mandei chamar os teus irmãos. João vem da Espanha e o pequeno Godofredo trará a sua esposa do Sul. A princesa Sancha é realmente bela como dizem, César?

César não respondeu à pergunta distraída do pai. O nome do irmão João pusera-o rígido. Como sucedia muitas vezes, as trevas da sua alma ensombreciam o humor jovial do pai.

- Quem vai marchar contra os Orsini? - perguntou com ares de provocação.

- Não é concedido que nos interroguemos a esse respeitorespondeu Rodrigo altivo.

César não se deu por visado.

- Não me submeterei a meu irmão João - declarou. Onde se encontrava enquanto estávamos em poder dos Franceses?

- Onde o obrigavam a estar os seus deveres e a nossa vontade.

- Enquanto eu restituía a medula à vossa trémula espinha dorsal.

- César! - gritou Rodrigo agastado de repente pela presunção do filho. - Não discutirás as nossas decisões. Aceitarás a nossa autoridade em todas as questões da Igreja. Jura isto, cardeal de Valença. Jura!

Durante um longo instante os dois homens enfrentaram-se com os olhos, depois a voz suplicante de Lucrécia abrandou a tensão:

- César. peço-te.

- Não.

Com um movimento lesto, Lucrécia levantou-se e aproximou-se do irmão.

- Jura, irmão, peço-te - murmurou ao seu ouvido afagando-lhe a face.

Por fim César cedeu:

- Seja, então. Como Vossa Santidade desejar.

Mais tranquilo, Rodrigo abriu os braços para acolher o filho.

- César. César. o meu coração chora quando discutimos. - Agarrou-o pelos ombros e sacudiu-o, como faria com um rapaz intratável, mas havia um tom suplicante na sua voz que reflectia as incertezas das suas relações. - Somos demasiado espanhóis, todos nós. Temos o sangue muito quente. Mas somos Bórgias. Uma família, uma cabeça, um coração. Não é assim, meu filho?

- Eu tenho dois pais na mesma carne - respondeu César com sarcasmo. - Um espiritual e um temporal. Agora que estamos de novo em Roma qual dos dois virá comigo a casa de minha mãe?

Profunda amargura e cólera viviam nos belos olhos negros de Vannozza na contemplação da sua casa devastada. Ela, mãe dos filhos do papa, tratada daquele modo por aqueles bárbaros miseráveis dos Franceses? A Rodrigo pouco importava agora. Os olhos ardiam-lhe com as lágrimas enquanto olhava os estofos rasgados, o pavimento atravancado de destroços, de cacos das suas preciosas faianças, de estilhaços de cristais e de excrementos humanos. Com um frémito de repugnância levantou a orla suja da sua sotaina. Ressoaram passos pelas escadas, depois ouviram-se as exclamações encolerizadas de César, o qual entrou na câmara acompanhado por João Paulo Baglioni e por Michelotto.

- Dona. . . Mãe - inclinou-se para a mão dela.

- César! Meu filho ! - Vannozza atraiu-o a si quase chorando pelo prazer de voltar a vê-lo.

- Quem... quem ousou?

- Os Franceses por ordem de Della Rovere. Ele teve a ousadia de ocupar a minha casa.

- Della Rovere! Era o que eu temia, mas meu pai tinha prometido proteger-te quando parti de Roma com o rei Carlos. . . - Avistando Rodrigo à porta, avançou ameaçadoramente na sua direcção. - Tínheis dado a vossa palavra de que vigiaríeis quanto à sua segurança!

Mas Rodrigo preferiu ignorá- lo. Com passo real aproximou- se de Vannozza, que se ajoelhou para lhe beijar a mão. Com um beijo cordial, ajudou-a gentilmente a levantar-se.

- Amada Vannozza, estou contente por voltar a ver-te.

- Roguei a Deus para que Vossa Santidade viesse um dia a minha casa. Pelo grande amor que vos tenho.

Rodrigo ficou comovido e experimentou uma ligeira sensação de culpa por se ter desleixado nos seus cuidados por ela.

- Sou um pobre pecador, Vannozza, que nunca mereceu o teu amor. . . - Depois, agarrando-lhe a mão, conduziu-a à varanda. - Vem, respiremos ar mais puro do que o emporcalhado por estes porcos.

- Este ultraje vai ser vingado - disse entre dentes César, voltado para Baglioni. - Pega em todos os homens que te servem da guarda espanhola. Que banhem as espadas no sangue de todos os franceses que ainda ficaram em Roma.

- Não, meu senhor, não! Sua Santidade não nos perdoaria ter rompido a trégua.

- Que ordens cumpres, as suas ou as minhas? - respondeu César em fúria. - Vai, agora. Se não for assim é melhor que te refugies em Pertisia.

Baglioni fitou-o por um longo momento, depois baixou o olhar.

- Como Sua Eminência quiser - disse rigidamente. César voltou-se para Michelotto:

- Vai com ele. Faz com que tudo se faça o melhor possível. Vemo-nos mais tarde nos meus aposentos. Tenho de acompanhar Sua Santidade ao palácio.

Rodrigo despediu-se com ternura de Vannozza.

- Espera-me lá fora, meu filho - ordenou a César. - Tenho de falar com tua mãe.

César beijou a mão à mãe, inclinou-se e saiu. O olhar de Vannozza seguiu-o com afecto.

- Ama-o, Rodrigo - pediu. - É valente e quer-me bem. - Gostaria que também fosse assim connosco - respondeu Rodrigo secamente -, mas não falemos disso. Tenho boas notícias para ti. João regressa a Roma.

- E Godofredo? Também ele é vosso filho.

A face de Rodrigo tornou-se enigmática, como se também aquela pergunta lhe causasse embaraço.

- Godofredo também. Todos os teus filhos regressam a Roma. Agora diz-me que isto te faz feliz e que posso assim despedir-me de ti em paz.

Vannozza inclinou a cabeça.

- A vossa felicidade é a minha, Santidade. Quando poderei tornar a ver-vos?

Rodrigo abençoou-a desenhando a cruz na sua cabeça e respondeu:

- Estamos muito ocupados com os assuntos da Igreja, Vannozza. Mas daremos ordem para que a vossa casa seja reconstruída e novamente mobilada em estilo igual em vossa honra. Adeus e que Deus esteja convosco.

- Vinte homens mortos! E em frente do sagrado templo de São Pedro, mesmo no limiar do Vaticano! - A cólera de Rodrigo punha a vibrar toda a sala. - Que Deus tenha piedade da tua alma perdida, João Paulo Baglioni - rugiu. - Não és mais que um assassino assalariado, como todo o teu séquito sanguinário.

Arrancou um papel da mão de Perotto que observava a cena com mal disfarçada satisfação e agitou-o diante do jovem assustado.

- Não eram mais que franceses, Santidade - balbuciou Baglioni. - Tinha ordem.

- Sabemos que tinhas ordens e também sabemos de quem vêm. Se não fosse isso pagarias este ultraje com a vida. Agora não queremos ver-te mais. Fora da nossa cidade! Se não desapareceres imediatamente a tua vida será presa de quem quer que queira tomá-la. Livra-nos deste celerado, Perotto!

Enquanto Baglioni e Perotto se retiravam, Rodrigo, sem dirigir a palavra a César que lhe estava próximo com uma expressão impassível, procurou sair por uma outra porta. César agarrou-o por uma aba do hábito. Rodrigo parou com ar enojado.

- Há sangue na tua mão. Queres emporcalhar as vestes de Cristo?

César não se perturbou:

- Destruíram a casa de minha mãe e chamaram-lhe puta! Vinguei a sua honra. Está aí tudo.

- E o pobre Djem?

César sorriu:

- Um muçulmano que bebia vinho não obstante o seu credo e que morreu pelo seu pecado.

- O amigo do teu irmão eliminado assim friamente.

- Mas a nossa bolsa encheu-se mais com isso. - Agarrou o pai pelo braço e falou-lhe com rudeza. - Pergunta-te se meu irmão, o teu adorado João, seria assim tão resoluto ao teu serviço.

 

João Bórgia, duque de Gandia, magnificamente vestido de veludo verde, com uma esmeralda reluzente no chapéu, cordões de ouro ao pescoço e calções de seda bordados com o desenho do Sol da casa de Gandia, sentava-se ao lado do pai na comprida mesa servida com vinho, fruta e doces. Os olhos de ambos não perdiam de vista as formas sinuosas da jovem esposa de Godofredo, Sancha de Nápoles, a qual dançava com o comandante espanhol da guarda do Vaticano. Ruiva no cabelo, de olhos verdes e de índole voluptuosa, Sancha era alguns anos mais velha que o seu jovem marido, o qual, dizia-se, não estava em condições de a satisfazer, pois que apenas estava interessado em pessoas do seu sexo. Rodrigo, em especial, colhia todo o subentendido sensual dos seus movimentos com extremo interesse, o que não escapava a César, sentado ao lado do pai em sóbrios hábitos eclesiásticos. João, à direita de Rodrigo, debruçou-se a murmurar qualquer coisa ao ouvido do pai. Rodrigo riu e afastou momentaneamente os olhos de Sancha para lhe endereçar um olhar divertido.

- Godofredo - disse -, teu irmão João fez-te um belo cumprimento.

Godofredo morria com vontade de saber.

- Diz-me. É obsceno?

- Obsceno? - zombou João. - E que sabes tu de obscenidades, irmãozinho?

Júlia, despeitada pelas atenções que os Bórgias machos reservavam a Sancha, interveio com malícia.

- Menos do que aquilo que certamente sabe sobre rapazes. - Bruxa. Ah. velha bruxa ! - gritou-lhe Godofredo. Lucrécia tentou aplacá-lo:

- Vá, estão a brincar contigo.

- Não deixarei que brinquem comigo. - Godofredo estava irritado. - Quero ouvir João! Qual é o cumprimento?

- Que com uma mulher como Sancha. . . - atacou João, mas deteve-se. - Tal como és já és bastante presumido.

- Jesus, diz-lhe e acabemos com isto - interveio César.

joão voltou para ele o seu sorriso zombeteiro:

- Também estás impaciente, irmão?

- Como alguém ao ouvir o zurrar de um burro - logo respondeu César.

Seráfico, João limitou-se a dizer:

- Pobre César.

- Não há razão para que tenhas pena de mim, irmão.

Com voz repentinamente carregada de funéreas sombras, João replicou:

- Por que não. Piedade apenas para aquele que, sendo-me agradável, a mim, era desagradável a ti.

César levantou-se estendendo o copo a um servo para que lhe servisse vinho.

- Ainda não encontraste outro com quem andes de mão dada? - apostrofou-o insolente.

João pôs-se de pé furioso:

- E Sua Eminência talvez logo se desvelasse a oferecer-lhe que beber.

Rodrigo estendeu o braço e suavemente fê-lo sentar-se. Estava perturbado pelo litígio.

- João! - exortou em tom suplicante.

Lucrécia tentou mudar de assunto.

- Não podemos ouvir esse famoso cumprimento? - perguntou alegremente.

- Quero saber, quero saber - insistiu Godofredo.

João sorriu-lhe astutamente acentuando a maneira de falar arrastada:

- Não era nada, irmãozinho. Visto que repentinamente pareces ter-te feito homem. Sancha deve ter-te ajudado enormemente a crescer.

Todos riram, mas não Godofredo, o qual se voltou perplexo e um pouco alarmado a olhar César.

- E obsceno?

- É o que de melhor poderia conceber o nosso irmão soldado - respondeu o outro. - Onde aprendeste a arte da guerra, João? Num bordel espanhol?

- E tu a teologia, César? Pelo teu corta-goelas espanhol? Talvez que Sua Eminência tenha de levantar objecções quanto às decisões do nosso Santo Padre?

Por um instante César foi apanhado desprevenido. Lançou uma mirada interrogativa a Rodrigo:

- Não é infalível. que decisão?

Houve uma pausa, depois, em tom de triunfo, João anunciou:

- A de me enviar com o posto de capitão-general contra os Orsini.

Rodrigo olhava na sua frente, impassível. César pulou novamente, ameaçador, sobre o pai e sibilou:

- É verdade?

- Tu és homem de Igreja, César.

- Então, dispensai-me!

Mas Rodrigo fingiu não ter ouvido. Os seus olhos tinham voltado a fixar-se em Sancha. César apercebeu-se disso. A cara carrancuda transformou-se num sorriso vingativo. Deixou a mesa e foi pôr-se na frente de Sancha, fitando-a. Sancha, que ainda dançava com o capitão, correspondeu-lhe ao olhar. Os seus olhos cruzaram-se. Sancha deixou cair a mão do militar e, como que hipnotizada, dançou com o jovem Bórgia.

- És um homem estranho, César Bórgia - observou Sancha pensativa, estendida num leito aberto, naquela mesma noite. - Quem amas?

César levantou-se e foi encher um copo de vinho.

- Ninguém.

- És como eu. chega aqui. - César voltou ao leito. Vocês, Bórgias - havia zombaria nos olhos da mulher - têm de competir em tudo, não é verdade?

César agarrou-lhe o pulso causando-lhe uma careta de dor.

- Que queres dizer?

Sancha soltou uma risadinha maliciosa.

- Sois uma família tão unida - disse com ironia. - Onde vai o pai vão os filhos todos. Tomaste de ponta o teu irmão por desforço contra o teu pai, mas não sabes. - Inspirou ruidosamente quando César lhe torceu com crueldade o braço.

- Não sei o quê?

Mas Sancha não o temia.

- Se me largares, digo-te. -

Depois de ele ter aberto a mão, Sancha lançou-lhe um olhar luminoso de triunfo.

- O Santo Padre já passou por esta via. Antes do seu celerado filho.

Por um instante fitou-a com rancor. Depois soltou uma gargalhada:

- Pelos ossos de Cristo ! É imbatível.

Colocou o copo num canto da sala e fez menção de voltar a meter-se no leito com ela.

Sancha entreteve-o continuando a espicaçá-lo.

- É pena que tenha casado com o único Bórgia que não é um homem. . . - disse. - Como achas que seja o teu irmão João na cama?

João foi investido com as insígnias de capitão-general dos exércitos da Igreja no decorrer de uma esplêndida cerimónia que teve lugar na Basílica de São Pedro a 26 de Outubro de 1496, na presença de todos os cardeais, dos embaixadores e da nobreza romana. Numa soberba armadura ornamentada de prata e ouro (oferta de reconciliação de Ludovico Sforza), João recebeu das mãos do pai o tradicional barrete de veludo carmesim, a que Rodrigo se apressara em acrescentar pela sua própria mão um grande diamante. Juntamente com o chapéu foi-lhe entregue também o grande estandarte com os símbolos pa pais. João estava inebriado com a faustosa cerimónia e pela cara de Rodrigo radiante de orgulho paterno; mas em muitos rostos lia-se o desgosto por um gesto de tão aberto nepotismo. Entre os presentes estava também um contingente de veteranos espanhóis enviados por Fernando e Isabel para apoio do seu amigo e compatriota Rodrigo Bórgia na sua campanha contra os Orsini. Entre os outros sobressaia o perfll esbelto e queimado pelo sol do comandante preferido de Isabel, Consalvo de Córdova, que estava já a ganhar uma óptima reputação de condottiero' e não escondia a mortificação de ser posto em segundo plano por aquele janota do filho do papa.

As mulheres dos Bórgias assistiam da galeria reservada ao coro, onde deveriam passar despercebidas se não fosse o riso e a tagarelice de Sancha e de Lucrécia, que se ouviam distintamente nos momentos solenes da função, provocando escândalo entre os presentes e em especial em Johann Burchard, o qual tomava mentalmente nota de cada pormenor para escrever mais tarde no seu diário. César, único entre os Bórgias, tinha pelo contrário uma máscara gélida no rosto, sentado entre os outros cardeais atrás do altar. No ânimo experimentava um misto de frustração, inveja e desprezo pelo irmão.

As silenciosas previsões de César, as de um triste começo de João como comandante, confirmaram-se em breve tempo. As tropas pontifícias passavam de um revés a outro sob o seu comando inepto. Os temerários Orsini vieram até às muralhas de Roma para insultar o papa e mandaram ao campo papal um burro com um cartaz ao pescoço: sou O EMBAIXADOR DO DUQUE DE GANDIA. Por baixo da cauda do animal estava atada uma carta vulgar endereçada a João. Mas o pior estava ainda para vir: os Orsini derrotaram o exército deste último em Soriano, a 24 de Janeiro de 1497, duramente e com grande desonra.

 

' Dirigente italiano de mercenários nos séculos xlv e xv. (N. do E. )

 

Como escreveu Burchard. João foi transportado para Roma gravemente ferido.

- É verdade que está a morrer?

César chamara o médico hebreu de parte sem tirar os olhos do irmão que jazia inconsciente no leito. Lucrécia estava sentada à cabeceira com a mão inerte do ferido nos lábios. Depois, sob o olhar de César, levantou- se e beijou a face exangue de João.

- Morre? - perguntou César novamente ao médico.

- Sua Eminência pode ter confiança na minha períciatranquilizou-o o doutor.

- Não estou discutindo a vossa capacidade. Respondei à minha pergunta. Morrerá?

- Sua Eminência deseja saber se posso salvá-lo?

- Se podeis fazê-lo, também podeis não o fazer. Ou pelo menos poderíeis não o fazer. Haveis-me compreendido, hebreu?

A ameaça fora expressa em tom quase imperceptível, mas o doutor compreendera e olhava César com horror. Felizmente para ele o colóquio foi interrompido pela chegada de Perotto com uma mensagem e por Burchard, convocado por um Rodrigo angustiado, para discutir com ele sobre as exéquias, na eventualidade da morte de João.

Rodrigo só pensava no filho ferido. Ignorando o pergaminho enrolado que Perotto lhe meteu na mão, voltou-se para Burchard:

- Senhor Burchard. nosso filho. aquela alma valorosa. está próxima da morte. - A voz quebrou-se-lhe. Rodrigo enxugou as lágrimas que lhe corriam dos olhos.

- Não. Não deve morrer! - exclamou Lucrécia levando a mão de João à face molhada.

César observou aquela manifestação de afecto e de dor com a testa franzida. Com rosto sombrio, foi ter com seu pai, tirou-lhe o pergaminho da mão e leu-o.

Rodrigo reencontrou a sua compostura. Mau grado a nossa dor, deveis preparar por nosso encargo, uma cerimónia ftinebre digna do nome dos Bórgias e de um homem que tão nobremente usou este nome. Um requiem solene.

- Vossa Santidade preferirá um Te Deum ou um agradecimento antes da missa de requiem? - perguntou César.

Lucrécia estava consternada.

- Irmão !

César levantou a folha e, com uma nota de escárnio nas palavras dirigidas ao pai, disse:

- Aqui chega a notícia de que os Espanhóis desbarataram os Orsini repelindo-os para os seus covis.

- Ó Deus misericordioso! - ecoou a voz melodramática de Rodrigo caído de joelhos, de braços abertos e olhos no céu. Tu que nos trazes alegria nesta hora de dor, a glória do nosso filho que foi o artífice desta vitória!

César estava estupefacto:

- Artífice? Que artífice?

Lucrécia levantou-se para se aproximar do irmão e convencê-lo a acabar com aquilo:

- César! Não ofendas o seu nome ! - exclamou em tom brusco em defesa do irmão ferido, mas só conseguindo aumentar a cólera de César.

- Até um estúpido se aperceberia de que João estava destinado à derrota. Terei talvez de acreditar que o triunfo de homens de guerra mais competentes seja devido a ele?

Lucrécia pôs-lhe um dedo nos lábios para o calar. Ele agarrou-lhe rudemente a mão e fitou-a bem nos olhos.

- A tua mão fede a suor - disse-lhe, sacudindo-a, e depois encaminhou-se para a porta amarrotando a mensagem e arremessando-a com desprezo para o papa ajoelhado.

- César odeia-me! Conspira contra mim. É por esta razão que me vou embora, se o quereis saber.

João Sforza, encarava Lucrécia com a face culpada do fraco.

- Tu tens essa obsessão das conspirações, João. De noite, ao mínimo rumor, ficas com a pele gelada. Podes ter a certeza que César não tem por ti a consideração bastante para pensar em te matar. a não ser que tu te atravesses no seu caminho. Já te avisei para não te aborreceres com ele. - O tom de Lucrécia era calmo, indiferente, como se a iminente fuga do marido não lhe dissesse assim muito respeito.

- Para ele já é demasiado que eu viva e respire - gritou-lhe João, ferido com a sua frieza. - Quer matar-me para libertar a vossa família do nosso matrimónio.

- Não é preciso matar-te, João, deverias saber isso. Conheces as leis - disse ela fitando-o com dureza.

João baixou o olhar diante dos seus olhos acusadores.

- Sabes que experimentámos - disse com angustiado mal-estar. - Sabes! Em Pesaro. . .

- Por ordem de meu pai - interrompeu ela, inexorável.

- Peço-te, Lucrécia, não podes amar-me da mesma maneira?

- Achas que devia?

- Poderemos ser felizes. - A voz morreu-lhe na garganta.

- Entre lençóis gelados - acusou-o ela.

- Lucrécia - esconjurou-a João. - Quiseste ver-me morto para voltares a casar?

- Quero um homem!

O insulto foi para ele insuportável. Revoltou-se com ódio.

- Um Bórgia! Num leito Bórgia! - Depois, sentindo horror pelas próprias palavras, caiu-lhe aos pés e agarrou-se-lhe às vestes. - Lucrécia, Lucrécia. perdoa-me. perdoa-me.

Lucrécia libertou-se com um safanão e ficou-se a contemplá-lo sem sentir piedade nem desprezo.

- Se tivesse casado com um homem - disse - ter-lhe-ia dado a mão e iria com ele para onde quer que ele quisesse. - Rodou e encaminhou-se para a porta. - É melhor que vás, João. Corre para o teu tio Ludovico em Milão. Não te retenho.

- Lucrécia - choramingou ele estendendo para ela uma mão suplicante, porém, ela já ia a sair sem se voltar para trás.

Sancha estava sentada nua no seu quarto. A sua pele olivácea reluzia no halo das velas que davam realce ao ruivo dos seus cabelos. Fingia pentear-se com um pente de marfim com cabo de prata. Mas, em vez disso, observava César reflectido no espelho e ele olhava-a em resposta, como dois animais alerta que eram.

- O marido de Lucrécia foi-se embora. Escapou para o seu tio em Milão, abandonando a mulher.

César encolheu os ombros com ar indiferente:

- Já esperava. Justamente o tempo de o medo vir ao de cima.

- Medo de ti ou de quem?

César não respondeu. Em vez disso apanhou uma madeixa de cabelos e começou a brincar com ela enrolando-a em volta de um dedo.

- Sabes o que quero - disse. - Diz-me, tu és a sua confidente.

- Por que haveria de me contar o que não revela ao seu amado irmão? - zombou ela.

- Confidências entre mulheres. Não confia em ti?

César começou a aborrecer-se com aquele duelo.

- Começo a estar farto. Sempre que venho ver-te fico com a bolsa mais leve para afastar de nós a tola atenção de teu marido. Hoje tive de arranjar um árabe branco com adornos de prata. Mil ducados pelo prazer de montar sua mulher!

- Se Vossa Eminência me acha demasiado cara - contrapôs Sancha -, não sentirei a vossa falta. Não me faltam Bórgias. Há o vosso pai e o vosso outro irmão. A perspectiva da minha cama restituiria a saúde de imediato a João. - Sorriu provocando-o. - Que vos parece?

César encolheu os ombros.

- Diz-me o que quero saber.

Vivamente atingida pela sua indiferença, Sancha resolveu feri-lo:

- Que te aconteceu, César? - perguntou-lhe. - Estás ofendido porque Lucrécia não tem citimes de mim?

- Puta! - César puxou-a pela madeixa obrigando-a a voltar a cabeça para ele. Apesar da dor, Sancha continuou a sorrir-lhe mostrando não ter medo. - Adoraria frustrar-te - disse-lhe César entre dentes.

- É possível dar prazer a Vossa Eminência. - Pousou-lhe a mão no punho fechado e acariciou-lho. - Sei pôr contentes todos os Bórgias. Sirvo de ama-seca a meu marido. Aguento o espelho à vaidade de João. E digo ámen quando o Santo Padre me arqueja em cima e reza a Deus que lho perdoe. - De repente enterrou-lhe as unhas na carne. - Frustrai-me, por tanto, Eminência, se é isso que quereis.

César retirou a mão sacudindo-a:

- Foi consumado ou não o casamento deles? Responde- me!

- Acreditas que se não fosse assim João abandonaria Roma?

- Até tem medo da sua sombra. - O seu tom de voz tornou-se suplicante. - Sancha, peço-te, tenho de o saber. Disse-te se o fizeram? Fizeram-no? - perguntou sempre mais ansioso.

- Não - disse Lucrécia. - Nem sequer uma vez. Nem uma vez em quatro anos.

Estava sentada na borda da cama de Rodrigo. A pouca luz era espalhada por uma trémula chamazinha na lamparina de prata. Atrás dos cortinados do leito contra os quais sobressaía o touro Bórgia, adensavam-se estranhas sombras. Rodrigo estava sentado erecto contra almofadas bordadas, com os olhos postos na bela filha a quem afagava uma mão.

- Portanto, César tinha razão - foi o seu comentário.

Lucrécia replicou em tom de censura:

- Convidaste-o a descobrir aquilo que eu própria te teria dito espontaneamente se antes me tivesses perguntado.

- A ideia foi de César, não minha - defendeu-se Rodrigo.

- Acredito.

- Querida filha - disse o papa solicitando compreensão com o tom patético da voz. - Errei ao dar-te como esposa ao Sforza. . . Podes perdoar-me este tolo erro de teu pai? Eu esperava que este matrimónio te fosse grato.

- Não. Que te tornasse cómodo para ti.

Rodrigo fingiu-se espantado com aquela acusação.

- Como? Não ganhei com isso mais do que dor.

- Trouxe-te os votos dos Sforza e a coroa papal. Rodrigo suspirou amargurado.

- Tentas fazer-me mal.

Lucrécia não se deixou comover.

- Se pretendes que acredite em mentiras tão pueris, és tu que me ofendes.

Rodrigo puxou-a mais para si e beijou-lhe a mão com aparente aflição. Depois fechou-lhe a boca com um dedo. Lucrécia foi percorrida por um perceptível arrepio, mas prosseguiu como se nada fosse:

- Anularás o meu casamento?

A Rodrigo não escapara a sua reacção às suas carícias. Aquilo excitava- o.

- Se o desejares.

- Se desejares romper com uma aliança que limite a autonomia do teu cargo.

- Tu falas com a voz de uma mulher, mas exprimes conceitos de um homem. Será que estou a ouvir César a falar?

- Não. Eu também sou uma Bórgia.

Rodrigo em vão tentou dominar a excitação que nele aumentava. A sua mão subiu à cabeça dela e, como que por acaso, soltou-lhe os cabelos para que voltassem a cair pelos ombros. Conseguiu manter um tom calmo.

- Voltarias a casar, Lúcia?

- Se Sua Santidade não tivesse isso em mente, nem sequer estaria tão bem-disposto para me libertar de João Sforza.

Rodrigo olhou-a admirado: Uma Bórgia realmente!

- Mas desta vez - continuou Lucrécia em tom resolutoque seja um homem, pai. Que te sirva como preferires, mas que seja capaz de me satisfazer.

Rodrigo ficou comovido:

- Lucrécia. Lúcia. minha amada filha. creio que não haja alguém no mundo que eu ame quanto te amo.

Muito emocionado, confuso, atraiu-a a si e a proximidade do corpo dela venceu-o. Lucrécia opôs-lhe apenas uma aparente resistência.

- Pai, é tarde.

- Lúcia. minha pequena, adorada Lúcia. Fatigo-te? Lúcia, eu amo- te. abraça-me para me demonstrares que me amas, abraça-me !

Cingiu-a nos braços e apoiou-lhe a testa na sua testa, numa atitùde de afecto paternal. Em seguida, com os lábios tocou-lhe ao de leve os cabelos, os olhos, os lábios, já não com doçura mas sim com ávido desejo, descendo-lhe à garganta e depois mais abaixo ainda. Também Lucrécia estava agora excitada. Com os olhos fechados abandonou-se ao pulsar do próprio sangue, enquanto sentia as mãos do pai que lhe descobriam os seios e os seus lábios que lhe procuravam com frenesi os mamilos e a sua voz que arquejava loucas orações:

- Deus misericordioso. tem compaixão da minha fragilidade. Deus misericordioso. perdoa este pobre pecador.

Lucrécia estava sentada no jardim do Belvedere e segurava o espelho a João, de todo restabelecido do ferimento, o qual estava entregue à sua ocupação favorita, ou seja, a escolha de um novo vestuário. Naquele momento estava a provar um chapéu de veludo escarlate ornamentado de pérolas. O espelho reflectia a sua testa franzida. Atrás deles, Sancha esperava num banco de pedra esculpida comendo com indolência bagos de uvas arrancados dos cachos de uma taça de cristal. Godofredo alimentava as pombas. Rodrigo observava com prazer a cena familiar do seu assento com baldaquino, protegido do sol primaveril. O seu sorriso sereno ensombreceu ao ver César que se aproximava. A sua cordialidade resultou um tanto forçada, quando o convidou a unir-se ao seu alegre estado de alma:

- César ! Vês como Deus é benevolente connosco ! Teu irmão está bem outra vez.

César respondeu-lhe com palavras precisas:

- Há duas semanas.

- Não, Lúcia, não. - João estava exasperado. - Tens de o segurar assim. De modo a que eu possa ver a pérola grande que me cai para a orelha.

Sua irmã riu zombeteira e beijou-lhe a orelha.

César teve um gesto de impaciência.

- Afastei-me eu dos meus deveres para assistir a este teatro?

- Somos novamente uma família - contrariou Rodrigo para o serenar. - Sem ti estaria incompleta. Deves estar alegre com isso.

- Não estou alegre. Agora Vossa Santidade vai permitir que me despeça.

Chegou a voz fraca de João:

- Santo Padre. haveis domado o meu intratável irmão?

Rodrigo apressou-se a responder com firmeza:

- Não há nada contra ti.

João estava de bom humor e inclinado para a generosidade. - E eu nada contra ele. Dá cá a mão, César! - Vendo que o irmão desdenhava a sua oferta, encolhendo os ombros, sem a aceitar, sorriu e voltou-se para o criado que lhe estendia um gibão para provar. - Fico com aquele, mas com mais gemas nas mangas. E diz àquele biltre que se mo volta a mandar assim, fica sem uma orelha!

César apelou para Rodrigo:

- Temos de perder tempo com estas palermices? Sabeis que ainda não terminámos o jogo com os Orsini. O pai está morto, mas tendes ainda na prisão os seus dois cachorros. - Desfaleço com a excitação - interrompeu-o João. Irmã, refresca-me a testa com a mão.

Lucrécia acariciou-lhe docemente a testa, gesto que César observou com olhar sombrio.

Rodrigo levantou-se. Os seus cuidados pelo filho convalescente tiveram primazia sobre qualquer outra consideração.

- Basta - disse. - Fatigamo-lo. Tem de repousar. Anda, querido filho, acompanho-te ao teu quarto, onde Lucrécia cantará para ti.

César rodou nos tacões.

- Muitíssimo bem - murmurou submissamente. - Nos Orsini eu mesmo pensarei.

Paulo Orsini levantou um olhar preocupado para a porta da sua cela no Castelo de Santo Ângelo que estava a abrir-se. Baixou as pálpebras, ferido pela luz repentina do archote na mão de Michelotto. César atravessou o limiar, depois com um aceno de cabeça ordenou ao servo que se afastasse. Este enfiou a tocha numa tocheira fixa à parede e retirou- se. Paulo levantou-se fatigado pelo sórdido catre de palha procurando ganhar coragem.

- Senhor César - disse. Depois com ansiedade: - Meu irmão João?

- Vive.

O rosto de Paulo iluminou- se de alívio:

- O Senhor seja louvado!

Mas a sua alegria foi de breve duração, porque César acrescentou:

- Mas será enforcado dentro em pouco.

- Então, por misericórdia, que eu vá com ele. - A voz de Paulo soou angustiada: - Primeiro meu pai.

- Sim, teu pai - replicou César. - E visto que ele já não pode falar, talvez tu possas esclarecer-nos. Que cartas recebeu teu pai de João Sforza?

Paulo estava perplexo.

- Cartas? Que cartas?. Não as vi.

- Nada de tergiversar comigo, Paulo Orsini. Sabes que foram escritas.

- Uma vez que não as vi, não saberei dizer.

César mudou de táctica. Relaxados os músculos da face num sorriso, abriu os braços para acolher o Orsini num abraço amigável. Com emoção disse-lhe:

- Paulo. . . Paulo, meu velho amigo, tu sempre foste honesto comigo. Como podemos ser inimigos? Podes crer que a tua vida me é tão cara quanto o é para ti a de teu irmão.

O ingénuo Paulo ficou comovido.

- Senhor, certamente, espero poder.

- Acredita-me, Paulo. Intercedi por ti junto de Sua Santidade. Foste poupado.

- Não, senhor, enquanto João.

- Paulo, Paulo, sempre a tua honra! Nada de ser tolo. Morto não podes ajudar o teu irmão, vivo talvez possas salvá-lo.

- Verdade?

- Viverá. Se deres ajuda a Sua Santidade.

- Mas não sei nada de cartas escrítas pelo marido da tua irmã.

- Ah, isso! - César deu-lhe uma palmada no ombro. É questão de escasso interesse para Sua Santidade. Agora vem comigo.

Paulo Orsini foi enviado por Rodrigo para negociar a paz com os outros membros da família que estavam ainda barricados nos seus castelos, se bem que derrotados por Consalvo de Córdova e dos seus espanhóis. A paz foi conseguida pela Páscoa de 1497, quando os Orsini restituíram os prisioneiros em troca da impunidade e do direito a conservar os seus castelos. Foi um triunfo confuso de uma guerra que nenhuma parte tinha vencido, deixando aliás muito rancor entre os Bórgias e os Orsini, tanto que nenhum homem perspicaz duvidava de um próximo recomeço das hostilidades. Entretanto, seja como for, Rodrigo destinou honras e hospitalidade amigável aos Orsini, celebrando uma missa pela paz alcançada e decorrendo a Semana Santa numa atitude de serena benevolência. Entre as cerimónias havia a tradicional da lavagem dos pés de doze indigentes da cidade, que toda a corte papal presenciava e, naturalmente, toda a família Bórgia.

César, em hábitos cardinalícios, viu-se ao lado de Ascânio Sforza, a contemplar Rodrigo que lavava os pés aos pobres, função que se tornava pouco cómoda para um homem da sua estatura dado que tinha de se deslocar sobre os joelhos ao longo da fila dos escolhidos.

- Minha irmã tem as faces pálidas. - César indicou Lucrécia com a cabeça.

A jovem estava sentada, branca e imóvel, com a mão entrelaçada na de João. Sancha murmurava-lhe qualquer coisa ao ouvido. César enrugou a testa notando o olhar de entendimento que Lucrécia e João trocaram. Mas continuou voltado para o Sforza:

- Pensais que possa estar doente, Eminência?

Ascânio pensava noutra coisa.

- Falta de ar - respondeu ele distraído.

- Ou talvez esteja infeliz - prosseguiu César - pela ausência de seu marido. Vossa Eminência tem notícias de seu sobrinho?

O outro estremeceu.

- Nenhuma - respondeu prudentemente. Aquele rapaz foi-se embora de Roma demasiado depressa.

- Demasiado depressa? - repetiu Ascânio.

Tranquilo, mas com uma sombra de ameaça, César explicou:

- Antes de poder responder às acusações de Paulo Orsini.

Fez uma pausa.

- Pordoai-me, Eminência, pensava que estivésseis ao corrente.

O Sforza não estava à vontade.

- Ao corrente de quê?

- Das cartas enviadas pelo vosso tolo sobrinho aos Orsini.

Sua Santidade contactará convosco a este propósito. Com um esboçado aceno de cabeça, César despediu-se deixando Ascânio invadido pela apreensão: que diabrura o esperava pelo caminho?

Não iria esperar muito para saber o que dele queriam os Bórgias. Nos primeiros dias de Junho foi convocado para uma curiosa cerimónia no Vaticano, na presença do pontífice, de César, de mais dois cardeais e de João e Godofredo. Lucrécia estava sentada, rígida e mortalmente pálida, a uma pequena escrivaninha, enquanto Perotto, de pé, a seu lado, lia com voz monótona o texto de um documento formal.

- A senhora Lucrécia Bórgia - recitava Perotto - afirma, além disso, testemunha e lamenta, que o marido dela, o senhor João Sforza, não lhe fez companhia nos modos devidos por um marido, consoante está previsto no sacramento do matrimónio para a procriação de um filho, e que, portanto, ela está ainda virgem como Deus a fez. Por esta e pelas outras razões expostas, pede para ser libertada dos vínculos matrimoniais e que as suas bodas sejam declaradas nulas.

Tendo acabado de ler, Perotto pousou o documento em frente da rapariga oferecendo-lhe a pena com que o iria assinar. Após uma breve hesitação, Lucrécia assinou.

Do outro lado da sala, Rodrigo atraiu a atenção de Ascânio Sforza. Baixou a voz para que os outros não o ouvissem e afirmou :

- O vosso sobrinho tem de assinar um documento análogo. Ascânio estava nervosíssimo.

- Sua Santidade. poderei não conseguir convencê-lo que.

- Ascânio - interrompeu-o Rodrigo com severidade -, estamos dispostos a esquecer as cartas que aquele estulto jovem escreveu aos Orsini.

- Santidade, garantiu-me que...

Rodrigo continuou inexorável:

- É que segundo a confissão de Paulo Orsini, feita sob juramento a nosso filho, cardeal de Valença, aquelas cartas foram escritas de acordo com as vossas directivas. Tudo isto, Ascânio, pelo afecto que temos por vós, preferimos esquecer.

Ascânio não tinha saída.

- Será como Vossa Santidade deseja.

- Bem! - Rodrigo sorriu-lhe. - E recordai que o rapaz deve jurar que por causa da sua impotência, Lucrécia é ainda virgo incacta.

Uma virgem intacta! - Sancha lançou a cabeça para trás numa risada grosseira, cheia de subentendidos.

- Que vês tu nisto de tão divertido? É a inveja, talvez. - Não uma condição que te diga respeito, Sancha - apostrofou-a César do leito sobre o qual repousava. Não sabes? - Sancha sorriu-lhe cruelmente. César sentou-se de um salto e agarrou-a, ameaçador, por um pulso torcendo-lho levemente.

- O quê? Diz-me! - ordenou-lhe.

- Pergunta-lho a ela - respondeu Sancha bruscamente. Então ele dobrou- lhe o braço, torcendo-lhe para cima atrás das costas. Sancha soltou um grito de dor, descobriu os dentes como uma loba e cuspiu:

- A tua irmãzinha virgem está grávida!

Perturbado, César largou-a. Uma fracção de segundo depois, feriu-a na face com as costas da mão, atirando-a contra a parede. Imobilizou-a e, face contra face, sibilou-lhe:

- Tu mentes!

- Porque havia de mentir?

- Quem é o homem? Quem?

- Quem, senão um Bórgia?

César deu um passo atrás, vencido pelo horror. Sancha, assustada, mas ainda audaz, viu que o tinha ferido mais do que ele podia suportar.

- João. João !

Por muito difíceis de perceber que fossem aquelas palavras Sancha tinha compreendido e ofereceu a César uma expressão surpreendida. Depois teve um sorriso de triunfo. Que importava que a tivesse entendido mal. Já lhe chegava tê-lo ferido e revolver depois a faca na ferida.

- Não devia ter-te dito. - César vacilava. - Mas ele gaba-se disso!

Sancha compreendeu que César acreditava pela expressão de horror que se desenhara no seu rosto. É verdade - gritou em voz estridente. - É verdade, a tua adorada irmã

Mas César não aguentou mais. Voltou-se e caminhou, vacilante, para a porta, incapaz de soltar um urro de dor e de raiva:

- João. Lucrécia !

- Lucrécia, tenho de a ver! Para onde foi?

César entrou na manhã seguinte pelo quarto de Rodrigo, enquanto o papa se vestia.

Rodrigo antes de responder limpou cuidadosamente as mãos com uma toalha de linho que um servidor lhe entregava. Não olhou para César.

- Tua irmã não está em Roma.

-Não está em Roma? Foi sem se despedir de mim? Para onde foi?

- Para o Convento de São Sisto.

César estava surpreendido e desconfiado.

- Porquê?

- Deixa-nos sós - ordenou Rodrigo ao servo. Depois, evitando sempre os olhos de César e escolhendo com cuidado as palavras, disse: - Era seu desejo retirar-se da vida mundana enquanto o seu divórcio não estivesse concluído.

César transbordou numa exclamação:

- E até ao nascimento da criança que tem no ventre! Culpa e tristeza transpareceram na voz de Rodrigo:

- César !

- Julgas que não o teria sabido? César estava cheio de amargura.

- Já, não.

- E o pai? Quando conhecerei o seu nome?

Rodrigo respondeu átono:

- A criança será parida na sombra e esquecida na ignorância. Não é necessário que conheças o nome do pai.

- Conheço-o.

Houve um longo silêncio. Depois, Rodrigo decidindo astutamente não se comprometer, disse lentamente:

- Que Deus guie então a tua consciência.

- E a vossa.

- E a nossa - anuiu Rodrigo gravemente.

- Ámen - disse o outro com sarcasmo.

- César. - Rodrigo estendeu uma mão em busca de uma compaixão que não encontrou. É tudo o que tendes para dizer? - Não havia sombra de perdão na voz do jovem. Depois passou à zombaria:

- Nada da ira terrível de Deus contra nós?

Rodrigo procurou reftigio nas palavras sibilinas:

- A Igreja e a família são a sua rocha, César. Nela procuramos salvação e compreensão. Tudo o resto é areia que escorre.

- Jesus - murmurou submissamente o filho. - Posso ver nha irmã? - insistiu.

- Ela está bem.

- Mas eu não.

Rodrigo não cedeu.

- Não a verás.

Quando César lhe respondeu com uma breve inclinação raivosa, preparando- se para sair, o papa chamou-o: Vossa Eminência! - O tom de voz tornara-se formal, para acentuar a distância entre pontífice e cardeal. - Também deixareis Roma. Como nosso representante à coroação do novo rei de Nápoles.

- Para me ter longe de meu irmão João?

Sentindo o azedume com que César tinha pronunciado o nome do irmão, Rodrigo teve um instante de hesitação e voltou a ser o pai.

- Ele vai contigo, como nosso capitão-general. Meu filho. lembra-te. não o amo menos do que a ti.

- Disso sempre me lembro, pai - disse o jovem com intenção -, e lembro também que é irmão de minha irmã.

De volta ao seu apartamento chamou Michelotto.

- Meu primo, senhor - anunciou Michelotto. - Dom Ramiro de Lorqua.

César encostou-se ao espaldar e contemplou o homem que se inclinava na sua frente. Era baixo de estatura, mas robusto, e na face escura sobressaíam aqueles traços cruéis que eram também de Michelotto. Sim, pensou César, está bem. Um homem que não se deterá diante de nada. Em voz alta disse:

- Serves meu irmão João?

- Tenho essa honra, Eminência - respondeu Ramiro.

- Em que aspecto?

- Segundo os seus pedidos, Eminência. - O espanhol era respeitoso, mas de modo algum submisso.

- Em especial?

- Em especial a discrição, Eminência.

César olhou para Michelotto.

- Teu primo é homem de poucas palavras, meu amigo. Michelotto falou por ele:

- É o alcoviteiro do duque, senhor.

Ramiro sorriu com orgulho.

- Sei encontrar uma senhora complacente com os olhos vendados na escuridão. Se Vossa Eminência o desejar, poderei.

- Não - interrompeu-o César bruscamente. - Se tens de me servir interessam-me outras capacidades.

- Senhor - disse Ramiro falando lentamente para exaltar o efeito das suas palavras -, sei manejar um garrote capaz de quebrar o pescoço de um homem como se quebra um raminho. E posso escavar numa espinha dorsal obstinada com a ponta de uma faca.

- Uma família de talentos a vossa. - César voltou-se para Michelotto: - Agradeço-te, Dom Ramiro, em breve te darei a saber pelo teu primo como podes prestar-me ajuda.

Ramiro inclinou-se e retirou-se.

- Poderia trair-me com o meu irmão - observou César. - Não o fará pois teme que eu possa cortar-lhee a garganta - respondeu Michelotto calmo. - E depois está contente por passar para o serviço de Vossa Eminência. Tem ambições superiores às de alcoviteiro do duque. E não tem simpatia por ele.

- Tem antipatia ao ponto de tomar em consideração a sua morte?

Poderia não ser necessário, na verdade. A ameaça de morte poderia originar os efeitos desejados.

- Não creio, senhor. Um homem não pode vingar-se.

- Mas outros podem fazê-lo.

- Senhor, um príncipe ou rei. . . - Michelotto hesitou. É disto que estamos a falar? - perguntou com delicadeza.

- Por hipótese.

- Um príncipe poderoso sabe que, mais do que perder os seus favores, os parentes em luto preferem esquecer depressa os seus mortos.

César anuiu. Os seus olhos encontraram-se num olhar de recíproca compreensão.

Rodrigo recebeu Vannozza na sua câmara privada, levantou-se afectuosamente da sua genuflexão e beijou-a com cortesia. Era evidente que estava surpreendido com a visita e um pouco preocupado pelo que podia ser o seu motivo, mas escondia o seu mal-estar com modos muito corteses.

- Vannozza - disse -, vemos-te tão raramente. - Santidade - disse-lhe ela timidamente -, gostaria de ver a nossa filha.

- Está em retiro em São Sisto e não recebe visitas. - Mas, Rodrigo - disse Vannozza, descuidando com a emoção o protocolo -, ela terá medo. Medo? - Rodrigo fmgiu espanto. - A nossa filha? De quê?

- Da dor. da solidão.

- Não está doente. - Falava-lhe em tom despreocupado. - E tem por companhia as boas irmãs.

- Mas quando nascer a criança.

- Criança! - exclamou Rodrigo. - Que criança? Não há criança nenhuma.

Levantou-se e fingiu procurar papéis na sua escrivaninha para não a olhar de frente.

Vannozza consciente da distância que os separava agora, suplicou-lhe com a voz cheia de tristeza:

- Pedi pouco do teu amor, Rodrigo, e bem pouco pretendi para além dele. Parece-te demasiado agora. . . irias negar-me esta pequena gentileza?

Rodrigo voltou-se novamente para ela transformando o argumento num sorriso que a desarmou.

- Naturalmente! Fazes com que tenha vergonha de mim, Vannozza. Ainda não cumpri a promessa que te fiz à partida dos Franceses. Uma nova casa.

- Estou contente com a minha villa no Esquilino.

- Bem! - Estava jovial, simulou interesse. - E como vão as vinhas? Florescem? E o teu digno marido está bem?

Vannozza anuiu incapaz de esconder a desilusão. - Excelente, excelente! - Agarrou-Lhe a mão e beijou-a. Estou realmente contente com a tua vinda, Vannozza. Tenho grande necessidade da tua ajuda. Posso contar com ela? - Vossa Santidade sabe que pode.

Rodrigo deu meia volta e começou de novo a passear. Com sincero desconsolo na voz disse-lhe:

- Os meus filhos perturbam-me o coração. Estou dilacerado entre a severidade e a indulgência. João, por exemplo. . João quer que eu mande enforcar um desventurado que o teria ultrajado. E César. . . sabes como é difícil. Agora, vão a Nápoles juntos e as suas personalidades em conflito metem-me medo. Vannozza, peço-te, convida-os a jantar contigo antes de partirem. Convence-os a viajar como amigos, como irmãos afectuosos.

César, João e Godofredo sentavam-se à mesa da mãe por baixo da latada de videiras na sua casa de campo no Esquilino. O céu estava ainda iluminado pelo dia de Verão, a luz era clara na cidade eterna. Os grilos cantavam nas parreiras em volta da casa e os cachos de uvas pendiam brilhantes por cima das cabeças dos irmãos. Nas suas faces brincavam os reflexos das chamas de azeite dispostas entre recipientes cheios de pêssegos, tabuleiros com pães caseiros e pedaços de carneiro sobre a mesa de madeira. João bebera abundantemente da garrafa de vinho que tinha ao alcance da mão. Suado e corado rejubilava triunfante pela morte do homem que o insultara e que fora punido com o enforcamento por ordem de Rodrigo.

- E quando entrei pela ponte do Castelo Santo Ângelo lá estava ele. Doze metros acima da minha cabeça, pendurado na corda. A morder a língua com que me tinha chamado bastardo.

Vannozza estava aflita e seu marido Canale preocupado. Não fizeram comentários. De qualquer modo, João não os teria ouvido. Godofredo, pelo contrário, estava perplexo e curioso.

- Custa-nos muito a morrer, César? - perguntou ao irmão mais velho. - A morrer enforcado?

César sorriu.

- Conforme aquele que decide a vingança e aquilo que o carrasco sabe inventar, irmãozinho.

- E os olhos ficam saídos como bagos de uva no cacho?

Vannozza interrompeu aquela macabra conversa:

- Godofredo.

Mas João estava ainda absorto.

- Eu vi-lhe os olhos, por cima dos zigomas, que olhavam para mim.

- Com inveja, sem dúvida - disse César, sereno -, pela tua nobreza.

- Com um gibão tão rico! - arrulhou Godofredo.

- Uma capa tão elegante - contrapôs César que parecia seriíssimo mas era irónico.

- Uma pluma tão alegre - ecoou Godofredo.

- Uma espada tão comprida.

João, sem suspeita alguma de que os seus irmãos estivessem a troçar dele, não pôde resistir à tentação de acrescentar algo de seu e disse:

- Um cavalo tão raro.

- E uma sela tão preciosa - continuou César que se divertia imenso.

Naquele ponto a transbordante vaidade de João cedeu por fimt à sombra de uma suspeita.

- Sim - afirmou. - A tua oferta surpreendeu-me, irmão.

- Foi um impulso, irmão - explicou César.

Mas joão estava ainda desconfiado.

- Tu nada fazes por impulso.

- Por gratidão, então - respondeu César. - Aquele estúpido que te chamou bastardo também me ofendeu a mim.

- Foi por isso que me mandaste uma sela de prata? - Não.

- Somos todos Bórgias. Se tocam num, tocam em todos lembrou-lhe César.

João não serenou.

- Sei o que tu realmente queres dizer. Que devia tê-lo desafiado para um duelo e matado.

César suspirou.

- Eu tinha-te dito que era impossível - disse a Vannozza. João furioso levantou-se de repente da mesa.

- Envolveu-te nas suas maquinações! - exclamou voltado para Vannozza. - Volto para Roma!

- Já!

- João - tentou Vannozza serená-lo. - Meu filho, pedi-lhe para ser gentil contigo, afectuoso e amigável. É um erro? César mais uma vez mostrou-se conciliante.

- Vá, deixemos passar.

Vannozza falou com decisão:

- Não deixarás a minha casa nesse estado de alma. Já sofri demasiado com as vossas desavenças para as suportar outra vez, João!

Mas João não tencionava deixar-se persuadir. Não se foi embora, mas ficou de pé como uma estátua a olhar os pescoços. César aproximou-se de Vannozza, pegou-lhe numa mão, beijou-a e reteve-a na sua. Os seus modos eram insolitamente suaves e, quando se voltou para João, o seu tom foi pacífico.

- Irmão. tens medo de me olhar? - Depois, enquanto João se voltava lentamente para ele, disse: - Não sentir afecto por ti não seria natural.

- Deste bem escasso testemunho desse afecto - censurou-lhe João, seco.

- Não posso negar que tenha estado ofuscado pela inveja admitiu César.

João levantou o sobrolho numa expressão irónica.

- E agora a inveja foi-se embora! Assim! - Fez estalar os dedos. - Que milagre foi esse?

Como resposta César levantou a mão da mãe.

- O amor desta mulher por nós os dois. - Beijou-lhe novamente a mão antes de a deixar para se aproximar do irmão. Vamos ser filhos tão ingratos e provocar-lhe nova dor? - perguntou-lhe em tom contrito. - Também nosso pai me ordenou que fosse teu amigo.

João não queria ainda aceitar.

- Não será a primeira vez. E disso me envergonho - confessou César. - Mas desta vez dei a minha palavra. Estás disposto a acreditar. e dares-me a mão?

- Zombaste das minhas feridas - recordou-lhe João com rancor.

- Que Deus queira perdoar-me por isso. Era invejoso. - Troçaste do modo como conduzi a campanha contra os Orsini.

- Sempre por citime. . . uma minha repreensível fraqueza. Peço-te agora que me perdoes, irmão.

- João - suplicou Vannozza.

- Aqui tens a minha mão, irmão - disse César estendendo a direita com um sorriso que o desarmou.

João hesitava, olhando alternadamente a mãe e César. Depois rendeu-se e, relutante, estendeu o braço para o irmão. César agarrou-lhe a mão e puxou-o a si num caloroso abraço.

Vannozza sorriu de alívio e de alegria, com a mão na mão do marido.

- Meus filhos - disse -, é tarde, devem voltar. - Depois abriu muito os olhos com espanto e apreensão ao ver aparecer uma silhueta escura nos limites da zona iluminada pelos candeeiros. - Quem está aí?

João como era evidente esperava-o.

- O meu criado Ramiro - explicou indo ao seu encontro animado por alguma secreta alegria; trocaram um breve sinal e, depois, a um gesto do patrão, Ramiro montou a cavalo atrás dele.

Durante o regresso a Roma, João conservou um humor exaltado como que esquecido da ira de uns momentos antes. Chegados às vielas estreitas e tortuosas do gueto em volta da Praça Judeia, antes de atravessar o Tibre, puxou as rédeas.

- Aqui vos deixo, irmãos - disse aos outros.

Godofredo deu sinais de preocupação.

- É perigoso andar sozinho. Leva o meu palafreneiro.

- Aquele malandrim que vai atrás dele não me parece que convença estranhos à confidência - observou César em

tom tranquilizante apontando Ramiro. - E depois estás a gastar o teu latim, Godofredo. Quando uma mulher chama, ninguém aguenta em casa o meu irmão.

João sorriu agradado.

- O meu palafreneiro espera-me na Praça Judeia com a minha armadura para a noite - disse.

- Três num só leito de prazer? - apostrofou-o César.

João riu-se. Depois, com um aceno de mão, virou o cavalo e desapareceu numa viela escura, escondido da vista por Ramiro que silenciosamente montava atrás dele.

O luar pálido provocava lampejos na superfície sedosa do rio. A corrente dividia-se ao lado de uma barcaça de lenha ancorada no dique. Nela dormia o guarda. O homem acordou sobressaltado devido ao barulho dos cascos. Levantou a cabeça com prudência porque era uma hora perigosa da noite, quando todos os homens sensatos já deveriam estar em suas casas, na cama; viu duas figuras aparecerem da ruela que dava directamente para o desembarcadouro. Os dois olharam em volta, como que para se certificarem de que não havia ali ninguém, depois desapareceram. Da viela emergiu um homem num cavalo branco com um corpo atravessado na garupa, sustido por dois homens para que não caísse. O cavaleiro manobrou de modo a que o seu cavalo ficasse com os quartos traseiros voltados para o rio, depois a uma ordem abafada os dois servos levantaram o cadáver e atiraram-no à água. Quando aqueles sinistros indivíduos desapareceram silenciosamente pelo caminho por onde tinham chegado, o guarda encontrou coragem para se debruçar do parapeito do lanchão.

Viu o cadáver de um jovem ricamente vestido. Por uns instantes flutuou à flor da água, com a face pálida voltada para a Lua. O aterrorizado guarda notou que tinha os olhos imóveis numa expressão de terror, os lábios esticados numa careta de dor. Fosse quem fosse, não morrera de morte misericordiosa. Depois o cadáver desapareceu nas ondas.

- Morto? Meu filho morto? - A voz de Rodrigo tornou-se estridente. - Mas morto, como?

- Com muitas feridas, Santidade. Encontraram o corpo do duque no rio respondeu o capitão espanhol, portador, mau grado seu, de nefastas notícias, que não ousava sequer olhar o papa.

Rodrigo encostou-se ao espaldar da cadeira como se fosse desmaiar. Tinha a face cinzenta pelo horror, os nós dos dedos brancos enclavinhados nos braços da cadeira. Os olhos rolaram em busca de consolação e pararam em César, suplicantes.

- César. César. diz-me que não é verdade !

César atravessou rapidamente a quadra para se ajoelhar em frente do pai, agarrando-lhe a mão e beijando-a num gesto de devoção filial. Na face tinha uma máscara de falsa aflição.

- Meu pai, receio que. vi-o. - Voltou a cara como se achasse insuportável a recordação. - Mas será vingado, os seus assassinos não ficarão impunes - acrescentou levantando a mão com uma expressão grave e digna e chamando o capitão.

O soldado avançou.

- Eminência. O vendedor de lenha que devíeis interrogar. - Que disse?

- Nada, Eminência. Nada mais tem a dizer.

- Que quereis dizer? Não estejas com delongas! - censurou-o César asperamente.

- Morreu, Eminência. O vosso homem, Michelotto, maltratou-o de mais no interrogatório. Era velho. . . da última vez não resistiu.

- Trapalhões ! Deveria despromover-vos ! - gritou-lhe César. - Agora, rua, não vos quero ver mais! - Enquanto o capitão se retirava assustado, César voltou-se para Rodrigo, meio deitado na sua poltrona a olhar o tecto, como que espantado. Docemente, disse-lhe: - Coragem, pai, venha ver João. Burchard preparou-lhe umas magníficas exéquias. Está agora belo na morte como era em vida.

Rodrigo levantou-se da poltrona para aceitar o braço que César lhe oferecia e encaminhou-se com o passo vacilante de um velho.

João estava exposto numa capela lateral da Basílica de São Pedro, na mesma capela em que se encontrava o ttimulo de seu tio-avô, o papa Calisto, fundador da fortuna familiar. Os embalsamadores do Vaticano tinham trabalhado excelentemente. João jazia com os olhos e o rosto composto como o de um adormecido. Burchard mandara-o vestir com os melhores trajes. As chamas dos longos círios reflectiam-se nos rubis do seu gibão de veludo carmesim (que escondia as nove punhaladas recebidas) e os seus cabelos louros, lavados da lama do Tibre, brilhavam como seda sobre a almofada pespontada a ouro. No peito tinham-lhe pousado a espada e as insígnias de capitão-general da Igreja.

César caiu de joelhos ao lado do cadáver, numa cascata de panejamentos purptireos. Teve por muitos minutos a cabeça inclinada em oração, depois levantou-se e beijou o morto numa das faces. Entretanto, ouvia a voz que o pai erguia para o céu num atormentado apelo, cheio de dor.

- João. meu filho adorado. joão!

Ouviu-se o som abafado de um corpo que cai. César voltou-se e viu o pai jazendo sem sentidos.

O papa, escreveu Burchard no seu diário, recebida a noticia de que o duque fora morto e atirado ao rio como lixo, caiu em poder da própria dor e pela angústia e desespero do seu coração se fechou nos seus aposentos para chorar tristissimamente. Sua Santidade não comeu e não bebeu desde quarta-feira ao sábado seguinte, nem desde a manhã de sexta-feira até ao domingo seguinte conheceu um momento de paz. o cardeal de Valença foi à porta do seu quarto para o convencer a abrir.

- Santidade !

César encostou a orelha à porta de madeira para escutar a voz do pai. Ouvia-se distintamente um lamento animalesco, para além do qual não houve resposta ao seu chamamento. César recuou um passo e com um aceno de cabeça ordenou aos dois homens que o seguiam que forçassem a porta com as suas lanças. A madeira pesada depressa fendeu aos seus ataques e César pôde passar pela brecha e entrar na câmara mergulhada em penumbra.

- Pai?

Nada distinguia no escuro. O fedor entrou-lhe pelas narinas. Apressou- se em escancarar a janela. A luz e os sons da cidade logo invadiram a câmara. O sol forte de Junho iluminou o perfil contraído de Rodrigo, encolhido na posição fetal, num canto, com a face hirsuta de barba e cinzenta pelas noites sem dormir e com as mãos a tremer. Olhou César com olhos injectados de sangue, mas incapazes de ver e de compreender. Voltou a encolher-se, aterrorizado. Delicadamente, César ajudou-o a sentar-se, depois ajoelhou-se e beijou-lhe os pés com humildade.

- Vossa Santidade já chorou bastante - disse-lhe enquanto com um gesto de mão despedia os guardas. Depois, quando homens armados se afastaram, gritou a seu pai: - Três dias destas cenas são mais que suficientes.

Ficou porém surpreendido pela violência da resposta de Rodrigo:

- Onde está Abel, teu irmão?

César fingiu não ter compreendido e retorquiu:

- Onde está meu pai, Rodrigo Bôrgia?

Mas Rodrigo continuou na sua acusação bíblica:

- A voz do sangue de teu irmão me invoca da terra! - Pai! - César estava desorientado. - Naquela noite abraçámo-nos! Por amor. Tínhamos deixado a casa de nossa mãe como amigos. Consola a minha dor!

Os olhos de Rodrigo estavam cheios de lágrimas. Roçou com a mão uma das faces de César.

- Como amigos, César? - perguntou, hesitante, manifestando o desejo profundo de acreditar naquilo que ele lhe tinha dito.

César agarrou com força a mão do pai exortando-o a acreditar.

- Juro-te. Tanto quanto é verdade que és papa.

- João. - chorou Rodrigo. - Tivesse eu dez papados e a todos renunciaria para recuperar o meu filho.

- Está com Deus - disse César. - E eu estou contigo. Levantou-se tendo sempre Rodrigo amparado pela sua mão. Ficou de pé ao lado da poltrona e pareceu dominar com a sua atitude de força o homem mais velho abatido pela própria fraqueza.

- Não temas - disse César com orgulho curvando-se para o pai -, és o papa. Eu sou teu filho. Juntos podemos pôr o mundo em xeque.

Como que hipnotizado pela sua força, Rodrigo reagiu lentamente levando a mão de César aos lábios.

Convicto de ter dominado seu pai e de o ter deixado entregue ao desejo de se emendar a si próprio e a toda a Igreja para mitigar os próprios remorsos, César Bórgia partiu pelo final do mês para Nápoles, na qualidade de pontifício, com a mente efervescente de projectos para si e para a sua familia. Uma vez que João estava morto, a ele cabia a tarefa de fundar na Itália uma dinastia Bórgia. Oficialmente dirigia-se a Nápoles para coroar o novo rei Federico; na verdade o seu objectivo era forçar o rei a dar um novo marido a Lucrécia e uma esposa para si próprio logo que abandonasse o clero. Cantava-lhe o coração quando pensava nos sucessos mundanos a que estava destinado, o dia em que tivesse posto de lado aquelas odiosas vestes. Sentia-se seguro de si, confiante na própria capacidade de por si só construir o seu futuro e de lutar por isso. Ocuparia o posto de João à frente das tropas pontifícias, mas não ficaria por ali. Sob a soberania de seu pai, os estados pontifícios, terras da Igreja, estendiam-se pela Itália Central desde os confims do reino de Nápoles a sul até aos confims de Florença, Milão, Ferrara e Mântua a norte. Terras ricas, governadas por príncipes turbulentos, muitos dos quais desdenhosos em relação à autoridade da Igreja: presas cobiçadas por quem tivesse a coragem de as conquistar.

- Querer é poder. repetia César para consigo lembrando uma divisa que resumia tudo aquilo em que acreditava. Para César, Deus e o acaso não influíam de facto no destino.

               O VALENTINO

Lucrécia estava sentada sozinha num banco no claustro do Convento de São Sisto. O ar estava pesado devido ao calor sufocante do final do Verão, como que para se adequar ao seu mau humor. Estava de luto por João. No quinto mês de gravidez, a rotundidade do seu ventre já não ficava escondida nem pelas grandes pregas do hábito. Aquela gravidez não lhe trazia alegria alguma, mas sim vergonha por um segredo que trazia dentro de si, por um pecado terrível que, se morresse no parto, lhe garantiria o fogo do Inferno, sem absolvição para a alma, pois que a nenhum confessor poderia alguma vez confiar a sua culpa. Sentia-se terrivelmente só. Nos três meses decorridos no convento, ninguém da família a fora procurar. César estava em Nápoles com Sancha e seu pai. arrepiou-se de horror. joão morrera há três meses, mas continuavam a circular palavras sinistras sobre aquele episódio. Lucrécia ouvira mais de uma vez as freiras murmurarem sobre o homicídio do duque de Gandia e já dentro de si alimentava uma suspeita atroz que não podia e não queria admitir.

O rumor de passos apressados interrompeu aquelas turvas elucubrações. Levantou os olhos. Uma freira chegava a correr num esvoaçar de túnica e véu.

- Dona Lucrécia - arquejou a irmã sem fôlego -, há alguém que deseja falar-lhe. Um homem. Venha, depressa.

Lucrécia levantou-se com cansaço e também um pouco irritada. Provavelmente, pensou, era a enésima mensagem por parte de seu pai, que ela se recusaria a ler.

- Poderá ser alguém com quem eu não queira falar - protestou enquanto a irmã a empurrava para a saleta das visitas e se apressava a dispor uma cadeira por baixo dos batentes que escondiam a grade, atrás da qual esperava o visitante. Abriu em seguida os batentes e retirou-se depressa como se tivesse medo de ser contaminada pelo macho. A luz na saleta era fraca e os olhos de Lucrécia vinham habituados ao sol forte do jardim; pôde distinguir com dificuldade uma silhueta escura atrás da grade.

- Lúcia.

Ao ouvir a voz de César, Lucrécia correu para a grade apertando-se contra ela. Com as mãos procurou as suas, com os lábios tentou alcançar a sua face entre os varões, enquanto César tirava a máscara que lhe ocultava o rosto. - César. que fazes tu aqui? Teu pai. Foi teu pai que te mandou aqui?

- Deixei Nápoles ontem pela madrugada e vim para aqui directamente.

- Tão depressa!

- Comprei óptimos cavalos novos. Uma esplêndida égua berbere.

- Foi belo? Coroaste o rei Federico. Sancha fala-me sempre das belezas de Nápoles. . . - Retraiu-se um pouco, olhando-o, duvidosa. - Não falemos da morte de João. - Depois debruçou-se de novo, perscrutando ansiosa a face impassível do irmão. - Mataram-no os Orsini. Devem ter sido eles com certeza. Ninguém mais poderia desejar. - Ninguém - repetiu ele. - Quando era vivo invejava-o. Mas por isso não o teria morto. - César alterou a entoação, como que a enganar uma menina. - Lúcia, deves ouvir aquilo que vim dizer-te. Aquilo que encontrei para ti em Nápoles.

- Para mim?

- Encontrei-te um marido. - A expressão de Lucrécia entristeceu-se. Voltou a cabeça. Ele agarrou-a pelo pulso para a convencer a escutar. - Escuta-me, Lucrécia. É o irmão de Sancha, Afonso de Aragão. Tem dezassete anos, é belo e cheio de vontade de viver. Mostrei-lhe a miniatura que tenho de ti e morre com vontade de casar contigo. E o rei consente.

- Não posso casar-me.

- Dizes isso porque és casada com João. Mas ele fugiu.

Lucrécia continuava a não querer olhar para ele.

- Não posso casar-me com ninguém - murmurou.

- Mas tens de te casar ! - exclamou César, um pouco impaciente. - E acima de tudo tens de conhecer Afonso.

- César, não posso.

- Eu sei - argumentou ele encorajando-a -, tens de parir. Mas pode resolver-se tudo. Ninguém sabe além dos membros da família. Obrigaremos João a aceitar o divórcio porque as bodas não foram consumadas.

- Não é por mim, que queres que case com Afonso - protestou Lucrécia. - É só por causa das tuas ambições.

César tornou-se severo e ordenou-lhe que lhe obedecesse: - É pelo futuro da família. É por isso que me preocupo. Agora que João morreu, tenho de traçar novos projectos. . por todos nós.

Lucrécia olhava para o chão. Com um tom na voz, que não era natural, disse:

- Agora tens de me ajudar.

- Como? Como deverei ajudar- te?

- Não há ninguém a quem o possa dizer. Devo confessar-me e não posso. . Não ao sacerdote que vem aqui, César. E a sua voz tornou-se aterrorizada e suplicante. - Poderei morrer e acabar no Inferno. Deixa que me confesse a ti.

- Não sou um sacerdote.

- És um cardeal!

- Não sou um verdadeiro padre - contrariou César aborrecido.

- César, peço-te. Tens de me ouvir. Não existe mais ninguém. Não permitas que eu vá para o Inferno sem a absolvição... - Depois quando o viu anuir de má vontade: - Pequei. - disse. - Tenho de dizer-te. pergunta-me o que fiz.

- Como pecaste?

Havia muita amargura na voz de César: não queria ouvir aquela confissão.

Lucrécia ajoelhou-se a seus pés como se estivesse num confessionário, de cabeça baixa e bateu com o punho no seu peito:

- Padre. mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa. A criança. . o pai da criança que trago no ventre é alguém do meu próprio sangue. Fui levada ao pecado.

- Eu sabia - disse César em voz baixa. - Disse-me Sancha. Foi João.

Lucrécia levantou bruscamente o olhar, surpreendida e desconfiada:

- Sancha? Quando? César? - Visto que ele hesitava, insistiu: - Quando te disse?

- Em Nápoles. Quando estive doente. João já tinha morrido. Pensou talvez que não fosse grave.

- Mas não foi João. Disse-te para ficares ciumento, para se rir de ti, sabes como ela é.

Muito, muito lentamente, César perguntou:

- Não foi João?

Lucrécia sacudiu a cabeça, sem se atrever a olhá-lo: - Portanto, tu compreendes porque. porque não podia mesmo confessar a ninguém. Pela família.

Uma fúria cega sacudiu a voz de César que tremeu:

- Pai nosso. que estás no Inferno.

Rodrigo interrompeu as suas orações para uma repreensão: - Foste precipitado, César. Deixaste-te arrastar pelos teus desejos pessoais. Mais de uma vez te tínhamos avisado para controlar os teus impulsos.

- Pai, é um defeito de família.

Rodrigo não deu sinal de perceber o tom especial da voz do filho.

- Que nós não temos - contrapôs com vivacidade. - Não em política. Nunca revelar os próprios objectivos. Dom Federico tem necessidade do nosso apoio. Se tivesses agido com maior prudência, provavelmente ter-te-ia oferecido a mão de sua filha. Tu, em vez disso, pediste-lha. - Levantou- se do genuflexório e sentou-se na poltrona. - Talvez recusasse em todo o caso - reflectiu em voz alta. - Tem mais necessidade do apoio de Fernando de Espanha por muito que nos tema. Fernando e aquela sua religiosa rainha nunca permitiriam a um cardeal casar-se. - Ele disse: Mostrai-me um cardeal que possa casar-se e despir a sotaina e eu lhe darei a minha Carlota - recordou-lhe César, belicoso.

- A voz da Espanha - observou Rodrigo. Depois, sério, continuou: - E nós não estamos muito convencidos. Estamos de luto. . . talvez seja um pouco cedo para ocupares o lugar deixado por João.

- Nunca mais quis fazer de padre, sabeis isso! - protestou César vivamente. - E posso servir-vos como nunca João fez. Começou a andar para diante e para trás. - Como posso eu ser padre? Não acredito em Deus! - Certamente que acreditas em Deus ! - Rodrigo não tinha intenção de aceitar afirmações daquele género. - Acreditas em Deus como nós acreditamos. Deus é o criador. Deus é a vida.

- E João morreu.

Tremeu a voz de Rodrigo quando respondeu:

- São os pecados dos homens a estragar as obras do Senhor. Também os nossos pecados. Prometemos reformar a cúria depois da morte de João.

- E reformaste? - perguntou César com ironia.

- A comissão ainda não exprimiu o seu parecer. - Rodrigo fez uma pausa. - Mas por que te interessas?

César não respondeu. O silêncio alongou-se entre eles. Depois, incerto, Rodrigo disse:

- César, chega aqui. Quero olhar-te melhor. Há qualquer coisa na tua voz que me diz que nem tudo vai bem. Que te aconteceu em Nápoles?

César não respondeu à pergunta. Após um instante disse:

- Vi Lucrécia.

- Quando?

- No caminho do regresso, hoje à tarde.

Rodrigo levantou-se comovido.

- Falou de nós? Temos-lhe enviado mensagens rogando-lhe para voltar, porém, ela não quer saber disso. Só Deus sabe quantas vezes! - César não respondeu. Fitava-o nos olhos. Por que não respondes? - Seguiu-se uma longa pausa e Rodrigo leu-lhe a resposta nos olhos. Então, voltou-se levando a mão ao peito num gesto de contrição. - Miserere nobis - mur murou -, alguma vez poderá perdoar?

- Creio que o tenha feito. Só Deus sabe quanto sofremos pensando nela. Mas se nos perdoou, assim Deus nos queira perdoar por sua vez. E tu?perguntou voltando-se para o filho.

A voz de César soou glacial, funérea:

- Não tendes necessidade do nosso perdão, Santo Padre. Mas eu tenho absolutamente necessidade do vosso.

Rodrigo agarrou-lhe o braço, dilacerado pelo medo. - Não fales. Absolvemos-te sem confissão por todos os pecados que tenhas cometido. Existem coisas entre nós que é bom que não sejam ditas. Por amor de Deus, César! Pelo amor que temos por ti, não digas nada.

Mas César era inexorável.

- Julgava que fosse ele o pai da criança.

Rodrigo deixou cair os braços e virou a face. Na sua voz havia derrota e infinita tristeza:

- Sabíamos. Tinhas-lhe ódio. Levantava obstáculos à tua vida, mas morreu pelo nosso pecado. E nós fomos justamente punidos com a perda do nosso filho mais amado. - Ficou a contemplar César demoradamente, depois perguntou cansado: E agora? Que queres?

- Aquilo que sempre quis. A glória deste mundo. Não a do outro.

- Assim se fará. Vamos dispensar-te dos teus votos. Vai agora, César, e nós te receberemos formalmente amanhã. Fez o sinal da Cruz e quando César já se voltava para se afastar, voltou a chamá-lo. - Não falámos do matrimónio de Lucrécia. Há a questão do divórcio. Do documento que é preciso ser assinado por João Sforza.

- Assinou. - César teve um sorriso feroz. - De joelhos e choroso diante dos seus tios em Milão. Ludovico disse-lhe que se não era impotente tinha de o provar imediatamente, em público, no corpo de uma prostituta. Preferiu assinar. - Depois a sua voz ensombrou-se: - Contaram-me que disse outras coisas em detrimento de Vossa Santidade e da honra de minha irmã.

- Que coisas? - perguntou Rodrigo, ansioso.

- Declarou tê-la conhecido uma infinidade de vezes. Que é uma rameira. Que. que Vossa Santidade a afastou para seu próprio e pessoal prazer.

- Vão acreditar - disse Rodrigo em tom surdo. - Há a criança para confirmar estes ditos.

- Sim - observou César -, a criança. Quem mais está ao corrente disso, além de nós?

- Ninguém. Bem há um.

- Perotto?

Rodrigo anuiu lentamente, quase contra vontade. César sorriu para consigo. Não foi um sorriso alegre.

- Pode ser-nos útil - disse encaminhando-se para a porta. - César! Que quiseste dizer com aquilo? Nós. . . nós exigimos saber! - A voz de Rodrigo transbordava de ânsia e de temor, mas César saíra sem Lhe responder.

Perotto bateu à porta do quarto do pontífice com o rosto perlado de suor pela importância da notícia. Era tarde, passava muito da meia-noite e o papa, bem o sabia, não estaria sozinho. Mas a mensagem que trazia não podia esperar. Provinha da madre abadessa do Convento de São Sisto. Ele próprio esperara longas horas na fria tarde invernal nas cancelas do convento, esperara para ouvir os vagidos do recém-nascido de Lucrécia.

Rodrigo esperava-o com ansiedade.

- Entra! - O barulho perturbou a rapariga que dormia a seu lado e que se voltou de costas descobrindo o seio bem-feito. Rodrigo sentou-se na cama quando Perotto entrou e arrancou-lhe a mensagem da mão. Uma estranha expressão se lhe desenhou no rosto, um misto de alívio, culpa, ansiedade e mesmo desilusão.

- Está bem - disse simplesmente.

- Santo Padre - disse Perotto inclinando-se para se retirar.

- Bom Pedro.

Perotto demorou-se à porta e voltou-se para olhar o seu senhor com ar interrogativo, perplexo pela preocupação que lhe ouvira na voz.

- Vossa Santidade deseja.

- Nada, meu filho. Que Deus na sua misericórdia nos proteja a ambos.

Por breve tempo, antes de adormecer, encolhendo-se contra o corpo da sua amante Pantasilea, Perotto voltou com o pensamento ansioso, se não era autêntico terror, que tinha percebido na voz do papa. Medo de Deus, talvez, por causa de Dona Lucrécia. Um papa não pode temer homem algum. Serenou e pouco depois adormeceu.

Um fraquíssimo rangido acompanhou o abrir da porta. Duas sombras se insinuaram no quarto. Um feixe de luz que penetrava pelo corredor iluminava os dois corpos no leito.

- Agarra a rapariga! - comandou Michelotto a Ramiro enquanto se lançava a Perotto.

Pantasilea teve tempo de soltar um grito de terror antes de a mão de Ramiro lhe fechar a boca. Irritado, Michelotto voltou-se por um instante e com um gesto seco da mão cortou-lhe a garganta com a faca. Perotto fugiu-lhe e correu para a porta gritando por socorro. No corredor, perseguido de perto por Michelotto, Perotto viu-se frente a frente com César, o qual emergiu da sombra com a espada desembainhada.

- Senhor Deus! - gritou Perotto. - Socorro!

O seu grito morreu num soluço sufocado, quando a lâmina de César o atravessou de lado a lado. Uma golfada de sangue o atingiu na cara. Limpou-se com uma careta de nojo enquanto contemplava o cadáver do espanhol caído no soalho. Depois levantou a cabeça para encarar Michelotto e Ramiro e declarar com grande ênfase:

- Tinha conhecido minha irmã, Michelotto.

- Está vingada, meu senhor. A sua honra está salva - respondeu Michelotto solene.

- Ramiro - perguntou César -, compreendeste bem a razão? - Sim, meu senhor.

- Que se saiba. E atira os corpos ao Tibre onde sejam encontrados.

- Dizem que o camerlengo de confiança do papa, um certo Perotto, foi encontrado morto, retirado do Tibre com uma pedra ao pescoço - disse a Ascânio Sforza um dos cardeais que esperavam com ele o aparecimento do pontífice para as laudas em São Pedro.

- Também eu ouvi. Por aquele alemão, aquele Burchard, que sabe tudo - respondeu Ascânio, prudente. Também dizem que Sua Santidade padeceu muito com a sua morte. Que foi ordenada pelo cardeal de Valença para vingar a honra de sua irmã. É claro que uma punição semelhante não se justificava - observou Ascânio, seco. - A comissão pontifícia declarou-a virgo intacta, dado meu sobrinho não ter consumado as bodas.

- Dizem - começou o outro cardeal, mas interrompeu-se de repente. - Ah! Eis Dona Lucrécia. Decorreram muitos meses desde a última vez que a vimos aqui. As suas formas parecem alteradas, quase diria. . . Que vos parece, Eminência?

- Um milagre.

Calaram-se quando Rodrigo entrou pelo vestibulo em hábitos papais. Ficou como que petrificado ao ver Lucrécia, que avançou para se ajoelhar e lhe beijar um pé. Durante longo tempo ficaram imóveis a fitarem-se até que Rodrigo a ajudou a levantar-se.

- Aquele que está sem pecado que atire a primeira pedra - murmurou o papa e, erguida a mão, abençoou-a antes de se encaminhar para o altar-mor.

- Uma cena de arrependimento e perdão? Estranhomurmurou Ascânio. - Maria Madalena e o vigário de Cristo na Terra. Só falta o filho para reconstituir a Trindade. Onde pára o cardeal de Valença?

- Raramente aparece a estas cerimónias - respondeu o outro. - Dizem que de dia para dia acha mais desgostante o tecido da sotaina. Mas ei-lo que chega e à pressa, pareceria.

Ignorando os perturbados protestos de Burchard, César subiu os degraus do altar-mor alcançando o pai que, de pé, espalhava solenemente incenso. Ajoelhou-se ao lado em atitude devota.

- Santidade - sussurrou, agitado -, Carlos de França morreu. Bateu com a cabeça numa grade de porta em Amboise.

- Que Deus tenha piedade dele - disse religiosamente Rodrigo. - Foi sempre desajeitado. e nunca afortunado.

- O seu infortúnio será a minha fortuna, penso - murmurou César.

Rodrigo sorriu e concordou.

Enquanto César se levantava e descia os degraus, a voz estentórea de Rodrigo entoou:

- Gloria in excelsis Deo.

Carlos de França morreu sem herdeiros na Primavera de 1498. Sucedeu-lhe o primo Luís de Orleães, com o nome de Luís XII. Luís era mais velho e mais astuto do que o seu infeliz parente, mas também ele tinha os olhos voltados para Itália e também ele precisava de Rodrigo Bórgia para realizar dois projectos em que tinha muito empenho. O seu primeiro objectivo era divorciar-se de sua mulher, Joana de França, boa mulher com o defeito de ser disforme no corpo e incapaz de procriar. Luís pretendia casar com a viúva do seu antecessor, Ana da Bretanha, a qual não só era graciosa e instruída, como ainda herdeira do consistente dote do feudo da Bretanha, importante aquisição para a coroa de França. Aquele era o primeiro passo para o qual era essencial a intervenção do pontífice: em primeiro lugar para obter a anulação e secundariamente para a dispensa que lhe permitiria casar com a viúva do primo. O segundo objectivo era a coroação de um sonho de conquista que também se radicara na mente bastante prática de Luís. Não só herdara os direitos ao trono de Nápoles que tinham sido de Carlos, como ele próprio, graças a uma avó que pertencera à casa que precedentemente tinha governado Milão, pretendia a sucessão dinástica àquele ducado, cujas atraentes riquezas verificara pessoalmente durante a campanha de Itália de 1494 no séquito de Carlos. E, para que tais conquistas se tornassem aceitáveis aos olhos do mundo, Luís precisava da aprovação do papa. Assim, pouco depois da subida ao trono, Luís enviou um seu emissário, o bispo de Orleães, para sondar a disponibilidade de Rodrigo Bórgia.

- O rei Carlos era para nós um filho - afirmou Rodrigo em tom solene - e choramos agora amargamente a sua morte. Ficaremos gratos se quiserdes testemunhar a Sua Majestade, a viúva, as nossas profundas condolências.

O bispo de Orleães lançou um olhar embaraçado de Rodrigo a César. Estava perfeitamente ao corrente, como todos, do género de relações que existiam entre o pontífice, o seu filho e o rei de França. Tais relações já não interessavam a nenhum deles. Sabiam os três que o rei Luís tinha enviado o bispo para pedir um favor ao papa. Ficava por estabelecer qual seria o preço a pagar. O bispo inclinou-se.

- Naturalmente que se fará. - Depois hesitou lançando um olhar a César. - Santidade, é justamente a propósito da viúva do rei defunto que Sua Majestade me encarregou de vos consultar. Trata-se de um assunto um pouco delicado.

Rodrigo encorajou-o com um gesto de mão.

- Podeis falar na presença do cardeal de Valença como se estivéssemos sós.

O bispo de Orleães inclinou-se de novo, mas na direcção de César.

- Eminência ! - Depois aproximou como que temendo que outros ouvidos escutassem. - Santidade, o meu senhor, o rei Luís, estabeleceu, no tempo do seu matrimónio, que se o rei Carlos morresse antes dele e sem descendentes, ele renunciaria à sua actual mulher para se casar com a viúva do rei defunto. Este acordo, Santidade, foi estabelecido exclusivamente por razões de Estado.

- É verdade que a actual mulher do rei Luís é feia - interveio César com malícia. Aceito o espírito de Vossa Eminência.

- Mas, Santidade, posso assegurar- vos que questões tão prosaicas não.

- Não influenciaram de modo algum o meu juízo - disse Rodrigo em tom grave. - Apesar disso, para permitir a Sua Majestade obter aquilo que deseja, será necessária uma dupla dispensa. Primeiro para o anulamento do actual matrimónio. . .

- Que não é um matrimónio, Santidade, nem aos olhos de Deus nem aos dos homens - explicou o outro, cortês. Rodrigo ignorou a sua interrupção.

- Depois para lhe conceder que case com a mulher de um seu parente. São questões que poriam à prova a sabedoria da Cúria. Estamos convencidos que todos os expoentes seriam contrários. - Fez uma pausa para dar maior realce à sua afirmação.

- E nós estamos ligados à Espanha, quer pelo sangue, quer pelos próprios interesses do nosso santo mister.

O bispo compôs uma triste cara.

- Então, a minha causa está perdida - disse olhando César que lhe fez eco.

- E também a minha.

O bispo de Orleães tossiu e tentou de outro modo. - Vossa Santidade sabe - disse com candura - que o cardeal de Valença procurou o apoio do rei desaparecido para as suas questões pessoais. Sem êxito.

- Estamos ao corrente - anuiu Rodrigo.

- Sua Majestade o rei Luís - disse então com toda a franqueza - declara- se agora disposto a apoiar um regresso do cardeal ao estado secular como ainda o seu casamento com a filha do rei de Nápoles. Está também disposto a conceder-lhe o ducado de Valença com uma renda de vinte mil francos de ouro. Juntamente com um subsídio pessoal de mais de vinte mil francos de ouro por ano - calou-se, contente por ter exposto as suas ofertas.

- Não é suficiente - respondeu Rodrigo friamente.

O bispo ficou consternado.

- Reparai, bispo, como me levanta obstáculos! - lamentou-se César.

O bispo de Orleães não estava ainda disposto a declarar-se derrotado:

- Que outra coisa pedis, Santidade? Sua Majestade está decidida a obter aquilo que deseja e creio que se conformaria. . .

Mas Rodrigo não queria comprometer-se.

- Tempo, Excelência. Dai-nos algum tempo. Voltaremos a falar.

O bispo de Orleães inclinou-se aceitando a despedida e retirou-se.

César e Rodrigo trocaram um olhar. César sorriu.

- Terei o meu exército - disse.

- Sim.

- E vereis o que serei capaz de fazer.

- Sim - disse novamente Rodrigo, mas com apreensão. Temo que sim.

- Portanto, casarás com Afonso para favorecer César?perguntou Sancha em tom irónico a Lucrécia enquanto jogavam ao volante no jardim do Belvedere.

- Para dar gosto a César, sim, imagino. Ele deseja-o tanto.

- Creio que nunca mais quererei casar.

- Nem sequer com Afonso?

Lucrécia sorriu.

- Só porque é teu irmão. Lucrécia, ele é realmente muito belo.

- Também uma irmã pode apreciar as belezas de um irmão - acrescentou com malícia. - Como tu fazes com César.

- Inocentemente.

- Ah, com certeza. Mas. . . - parou de jogar, de testa levemente enrugada.

- O quê?

Sancha levantou do chão o volante sem falar.

- Não me queres dizer? - Lucrécia estava ofendida.

- Acho que ficarei com ciúmes - cedeu Sancha. - Só um pouquinho. E nunca tinha sido ciumenta. Nem de ti. . . - Fácil - explicou Lucrécia séria. - Nunca tiveste motivo para isso. Eu, pelo contrário, sim.

- Por César? - perguntou Sancha.

Lucrécia não respondeu girando a raqueta entre os dedos, de olhos postos no chão.

- Lucrécia, eu a César não interesso realmente. Não me quer bem, não lhe agrado nem um bocadinho. Sou só o seu colchão. É a ti que ele ama. - Lucrécia continuou ainda em silêncio. Irritada, Sancha deixou-se resvalar para a vontade de arranhar e ofender: - Não vejo realmente por que razão vocês os Bórgias deveriam casar-se fora. Em minha opinião deveriam fazer tudo em família.

Lucrécia não lhe prestou atenção. A sua mente estava voltada para outro lado.

- Sancha - disse -, quando César estava em Nápoles contigo, que lhe contaste?

Sancha levantou o sobrolho, espantada.

- César? Em Nápoles. Pensava ter varíola. Mas curou-se depois de termos ido os dois para a cama. Porquê? Que te disse ele?

- Nada - respondeu Lucrécia e abanando a cabeça, forçou-se a sorrir; no entanto, a sua face estava angustiada.

Sancha mostrou-se solícita:

- Naturalmente! A criança. - Cingiu Lucrécia com um braço num gesto protector. - Que vida delicada tens, justamente como antes. Foi muito mau? - Lucrécia concordou. Sancha abraçou-a fraternamente. - Verás que te esquecerás da má experiência da primeira vez que Afonso te levar para o leito. Esquecerás aquele simplório do Sforza com a sua braguilha vazia, e o outro. Espera, espera até veres Afonso.

Lucrécia era feliz enquanto unia as mãos com as do esposo Afonso de Aragão por baixo da espada desembainhada que tradicionalmente baixavam sobre as cabeças do casal. Empunhava a espada o capitão espanhol da guarda pontifícia, Juan Cervil lon. Afonso era tudo aquilo que Sancha dissera que era: louro, alto, belo, com um sorriso cativante, modos gentis e ao mesmo tempo exuberantes. Casaram-se em Junho, tal como quando Lucrécia casara com João cinco anos antes, e também da segunda vez as bodas tiveram lugar no Vaticano. Mas Lucrécia sentiu crescer em si uma emoção que rapidamente fez esquecer a recordação do seu primeiro marido, tão susceptivel e incapaz. À pressão da mão de Afonso foi percorrida por um frémito de paixão e lançou um olhar vagamente culpado a César, que estava um pouco mais distante, próximo da parede, pálido, com os traços do rosto marmóreo, como se assistisse a uma execução.

Rodrigo, do outro lado, dava todos os sinais de felicidade pelo segundo casamento da filha. O rei Federico, desejoso de evitar uma nova desavença com o papa pela sua constante recusa de ceder a César a mão de sua filha Carlota, optara por conceder a Rodrigo tudo aquilo que queria. O sobrinho Afonso obtivera o ducado de Biselli para que sua esposa fosse duquesa; o rei aceitara também a condição imposta por Rodrigo segundo a qual o casal viveria com ele em Roma.

Na festa, depois da cerimónia, Rodrigo, engrinaldado de sorrisos, sentou-se com Vannozza à sua esquerda. Vannozza, distante, não parecia partilhar a sua alegria. - Não estás orgulhosa de ver a tua filha duquesa? - perguntou-lhe.

- Agora que o seu amante morreu - respondeu Vannozza, seca. - Onde está a criança?

Rodrigo enrugou ligeiramente a testa:

- Dele se ocupa uma ama de leite da nossa escolha.

- Que nome lhe deram?

- Chamámos-lhe João.

- Porquê João? - Vannozza não queria perder aquele argumento do neto, apesar das respostas reticentes de Rodrigo.

- Porquê? E por que não? Era o nome do seu marido.

Depois agarrou-lhe a mão, sorriu-lhe.

- Vamos, Vannozza. Alegra-te com o casamento de tua filha. Olha como dança com César. Teu filho tem um estranho sentido de humor - acrescentou depois, crítico. - Coloca a máscara do unicórnio, símbolo da castidade.

Lucrécia e César bailavam juntos executando com perfeito sincronismo os movimentos lentos e graciosos da pavana. Lucrécia não podia ver a expressão do irmão atrás da máscara branca com o corno, mas percebia a força dos seus sentimentos. Antigas sensações de medo e de amor a invadiram ofuscando momentaneamente a sua alegria.

- César - sussurrou -, porquê o unicórnio?

- Quer. quer dizer castidade.

César inclinou para ela a cabeça e murmurou-lhe num sopro ao ouvido:

- Fidelidade. Até à morte.

Afonso foi buscar a esposa. Sancha ocupou o lugar de Lucrécia. Rodrigo contemplou o casal. Com lágrimas nos olhos voltou-se para Ascânio Sforza sentado à sua direita.

- Olha-os, Ascânio.

- Belo par, Santidade.

- E desta vez - declarou Rodrigo com mais entusiasmo que tacto - não falhará o acasalamento. Olha-o. Não cabe em si de contente.

Ascânio sorriu, educadamente.

- Tenho a certeza que tem.

- Veremos - disse Rodrigo rindo-se com gosto.

Rodrigo estava de pé junto ao leito nupcial no quarto dos esposos, de mãos cerradas no panejamento dos pesados cortinados que escondiam o casal. A familia e os hóspedes apinhavam-se à porta, empurrando-se mutuamente na ânsia de assistirem. César não estava. Com um grito, Rodrigo afastou os cortinados para mostrar Afonso e Lucrécia nus e enleados.

- Consumado! - exclamou.

Depois deixou cair os cortinados e vacilou, como se estivesse prestes a desmaiar.

- Fora!murmurou. - Acabou-se.

Poucas semanas depois das bodas de Lucrécia, as negociações de César com o rei de França foram concluídas. No início de Agosto, César recebia a notícia de que o rei Luís ia enviar um emissário seu a Roma, Monsieur de Trans, que ia investi-lo dos condados de Valença e Diois, e levava-lhe navios para o escoltarem a França. Para César os dados estavam lançados. Chegara o tempo de despir os odiados hábitos religiosos. A 11 de Agosto de 1498, uma sexta- feira, Burchard, incrédulo, escreveu no seu diário:

Houve um consistório secreto no qual o cardeal Valentino declarou que desde a tenra idade sempre se sentiu inclinado para as coisas seculares, mas que seu santo pai lhe impusera a vida religiosa e ele não quisera opor-se ao progenitor. Mas, uma vez que por mentalidade e índole continuava ligado à vida secular, rogava a Sua Santidade que lhe concedesse especial clemência e uma dispensa a fin de que pudesse renunciar à sotaina e à dignidade eclesiástica para voltar ao estado secular e contrair matrimónio; rogava a Suas Eminências que lhe dessem consenso voluntário a tal dispensa.

Naquele mesmo dia, 17 de Agosto, chegou a Roma o enviado do rei, De Trans, com os documentos graças aos quais o ex-cardeal de Valença podia distinguir-se com o título de duque de Valentinois. No ouvido dos Italianos, os dois nomes estrangeiros soavam bastante semelhantes; César ganhou então o nome com que se tornaria famoso e temido: o Valentino.

César, em gibão e calções de pele, fazia evoluções equestres no parque do Belvedere. Com a aproximação do dia da sua partida para França, dedicava mais tempo ao aperfeiçoamento dos seus já consideráveis dotes físicos para se preparar para o seu novo papel de vassalo em armas do rei de França.

Lucrécia, Sancha, Afonso e Godofredo olhavam-no. Com olhos cintilantes, Lucrécia acompanhou orgulhosa o exercício do irmão que saltava do dorso de um cavalo para um segundo que galopava ao lado do seu.

- Bravo, Valentino! - gritou-lhe batendo palmas em admiração. - Viste?! - exclamou depois, entusiasmada, voltando-se para Afonso.

- Sim, vi - respondeu Afonso com um sorriso.

- Valentino - continuou Lucrécia emocionada. - Será estupendo quando estiver em França. Mandou fazer uma lâmina nova, a mais bela que alguma vez se viu. E ontem matou oito touros numa corrida no parque do cardeal Ascânio.

Com alguma suficiência Sancha comentou:

- Em Nápoles vi Miguel Álvarez matar catorze touros numa só tarde.

- Oh, Nápoles - disse Lucrécia. - Tu e Afonso só sabem falar de Nápoles.

Interrompeu-se arregalando os olhos ao ver César que, perdido o equilíbrio, caía pesadamente por terra e rolava entre uma confusão de cascos.

- César! - Assustadíssima correu para ele seguida pelos outros espectadores.

Mas César já começara a sentar-se, antes de chegarem junto dele. - César - disse Lucrécia ansiosa envolvendo-o pelos ombros. - César, magoaste-te?

César estava ofegante, soprava:

- No ombro.

- Em Nápoles vi uma vez cem cavaleiros caírem de duzentos cavalos só numa tarde - disse Sancha de modo muito desagradável.

Afonso riu-se. César ergueu para ele um olhar frio.

- É divertido? Perdoai-me, não entendi.

Afonso respondeu-lhe com candura:

- Sim, haveis caído do cavalo. Era de prever.

César levantou-se sacudindo-se do pó. - É melhor cair do cavalo que acabar esventrado por um touro - disse em tom sinistro para Afonso olhando-o fixamente.

Com a aproximação do dia da partida para França, César gastou dinheiro às mancheias no desejo de impressionar a corte do rei Luís, ao ponto de, nada mais encontrando para comprar em Roma, mandar vir de Veneza jóias, sedas, ouro e baixelas de prata. César escreveu até ao seu antigo rival nas corridas, o marquês Gonzaga, para lhe pedir alguns corcéis. Quando os cavalos chegaram, mandou-os ferrar em prata. Ordenou um jogo de arreios de ouro para o dia da sua recepção formal na corte; ofertas de bodas em cristal de rocha, ouro e prata para a sua prometida esposa. Dizia-se que mandara até fazer uma principesca latrina de viagem, forrada de brocado por fora e de damasco escarlate por dentro, com recipientes de prata dentro com vasos de noite também de prata. Os seus servos, entre os quais se encontravam Michelotto e Ramiro, promovido a mordomo, vestiam de ouro e prata, mas a magnificência do traje de César, no dia da sua partida, era inigualável.

Quando foi saudar o pai, vestia um gibão de brocado branco com um manto de veludo pregado no ombro; na cabeça trazia um chapéu de veludo negro ornamentado com grandes rubis, enquanto as suas botas eram guarnecidas por pérolas e adornos de correntes de ouro. Na mão cintilava a grande espada da cerimónia que mandara forjar expressamente por Hércules de Ferrara, mestre hebreu, com cenas da vida de César, imperador romano, seu herói e homónimo.

- Que ostentação de esplendor! E a que preço! A corte de França será obrigada a receber-te como um grande príncipe.

Rodrigo estendeu a mão pedindo-lhe a espada. - Deixa-me vê-la.

- Belíssima, um trabalho requintado. As cenas representam os triunfos de César - explicou o filho. - Olha - disse apontando-lhe uma cena em que César se encontrava num carro com a inscrição D. CÉsna -, vês o nome do carro? - César ! Dom César. o teu nome espanhol. - Rodrigo estava orgulhoso. - E que atravesses o Rubicão. Alea jacta est, os dados estão lançados. - Ergueu os olhos para o filho, repentinamente sério, quase preocupado. - Caio Júlio César foi assassinado porque tinha começado a considerar-se um deus. Farás bem em recordá-lo.

- Não tenho vontade alguma de me tornar um deus - respondeu César, impaciente. - Basta-me ser um homem. Deus fez um mundo mas um homem dele pode ser o senhor. se quiser. - Retomou a espada e teve-a diante de si, como que para um juramento solene. - Como César, conquistarei. A minha vontade bater-se-á contra o destino. E um dia morrerei. pela lâmina de uma faca ou pela mão do criador, não faz diferença. Tudo o mais é pó. Por mim. e por César. - Ergueu os olhos da espada e olhou na sua frente, como que perscrutando o futuro. A sua voz vibrou com orgulhosa, ambiciosa paixão: - Serei César ou não serei nada!

Rodrigo olhou o filho com apreensão, depois pousou-lhe uma mão no ombro, como se quisesse voltar a trazer-lhe os pés à terra.

- Deus irá contigo, filho, quer o desejes quer não. Mas presta atenção aos Franceses. Luís não é estúpido como Carlos. Agora é cómodo para ele contentar-te mas quando tiver obtido o que quer, poderá mudar de ideias. - Foi depois à sua escrivaninha sobre a qual estavam dois pergaminhos enrolados. Eis a bula da dispensa que permite a Luís casar com a rainha Ana da Bretanha. E a minha carta em que a ele te recomendo. Contemplou os pergaminhos, hesitante. - Talvez devêssemos esperar mais tempo. Prometi que obteria do rei Federico o consentimento para as tuas bodas com sua filha. Mas até hoje ainda não recebemos notícias.

- Eu atravessei o meu Rubicão - afirmou César, resoluto. - Agora não posso esperar mais.

- Nunca soubeste esperar - suspirou Rodrigo. Depois, com astúcia, acrescentou: - Quando vires a filha de Federico na corte de França, procura inspirar-lhe uma igual impaciência.

Entregou as cartas a César, que se inclinou para lhe beijar o anel.

- Adeus, Santo Padre.

- Meu filho. Benedicat. O futuro dos Bórgias está nas tuas mãos. Por isso recorda que o meu coração é sempre espanhol. Não posso fiar-me nos Franceses.

- Não devemos confiar em ninguém - respondeu César, seguro de si. - Quando tiver o meu exército, deveremos ter confiança só em nós próprios.

Rodrigo sorriu-lhe, tranquilizado.

- Será como dizes. Boa viagem, Dom César!

Vieram as lágrimas aos olhos de Lucrécia no momento em que se despediu do adorado irmão.

-           César, querido. - murmurou, abraçando-o - que vás encontrar a felicidade em França. Falas realmente como uma mulher, Lúcia - respondeu ele. - Para um homem não há felicidade; só há a glória ou nada mais. - Apertou-a virilmente contra si. - Sê-me fiel, seja o que for que aconteça. Lembra-te do nosso pacto jurado em Montegiordano - beijou-a, depois deu meia volta afastando-se dela e saindo sem se voltar para trás.

Toda a corte papal assistiu à partida para França do filho do papa. Muitos entre os presentes estavam preocupados pelas consequências que poderiam vir para a Itália daquela nova aliança. Entre os mais apreensivos estava Ascânio Sforza, cujo irmão ia perder a sua coroa ducal a favor do rei de França.

- A ruína da Itália é já um facto consumado - disse desanimado ao emissário de Milão que estava a seu lado - graças aos planos postos em acção pelo pai e pelo filho. - Receio que o Espírito Santo não tenha tido voz neste capítulo.

Quatro meses mais tarde, o faustoso cortejo do duque de Valentinois percorreu as ruas da cidadezinha de Chinon, no Loire, em direcção ao poderoso castelo onde Luís esperava receber o seu novo vassalo. A população do burgo, habituada à sobriedade da corte francesa, ficou estupefacta à passagem dos italianos e à sua ostentação de luxo. Abriam o cortejo vinte e quatro machos com os cofres do duque cobertos por panos em que estava bordado o brasão ducal, depois mais vinte e quatro com os arreios vermelhos e amarelos, as cores do rei, doze dos quais com dorsais de cetim com riscas amarelas e outros com panos dourados; atrás dos machos avançavam dezassete majestosos cavalos de batalha cobertos com mantos de ouro e cetim carmesim e amarelo; depois dezoito pajens em veludo carmesim e malha de ouro. Mais seis machos se seguiam com arreios, jaezes e selas em veludo carmesim e mais dois completamente revestidas a pano dourado com outros escrínios. Os espectadores murmuravam e entre si davam cotoveladas dizendo uns que deviam ser as jóias da amante do duque, dizendo outros que os cofres continham provavelmente bulas e indulgências especiais do pontífice de Roma, se não mesmo as relíquias sagradas. Vinham a seguir os trinta criados de Valentino, ricamente vestidos de ouro e de prata; depois chegavam os músicos, também eles em fio de ouro, com os tambores e rabecas com cordas de ouro, trompas e tubas de prata; em seguida vinte e quatro lacaios em libré, metade de veludo verm lho e metade de seda amarela. Finalmente, num soberbo corcel dos Gonzagas ajaezado a cetim e ouro, vinha César. A todos se sobrepunha pelo aspecto real com os rubis que cintilavam no chapéu e um diamante no pescoço a que os espectadores atribuíam um valor de trinta mil ducados.

O rei Luís, de trinta e seis anos, alto e magro, treze anos mais velho que o seu vassalo, observava a cena faustosa de una janela do salão do castelo, onde uma vez Joana d'Arc apostrofara Carlos VIII, o seu perseguidor. Luís vestia um sóbrio traje de veludo preto, como habitualmente fazia; os cantos da boca ergueram-se-lhe à vista de tanta ostentação.

- Uma exibição muito generosa para um duque de Valentinois - observou ironicamente, voltado para Julião Della Rovere, que ali se encontrava com ele.

- Majestade, o duque Valentino é espanhol, mas os seus hábitos são italianos - respondeu Della Rovere em tom de desculpa. - Com demasiada frequência damos prova da nossa importância com manifestações públicas. Em França seguejustamente o exemplo de Vossa Majestade. É preciso medir o homem e não os trajes que veste.

Luís sorriu.

E dizem que adquiriu uma latrina para seu uso privado em que todas as peças são da mais fma prata. Imagino que quando urina deixa sair ouro puro!

Quando uma fanfarra de trompas e tubas anunciou a chegada de César, Luís deixou a janela e atravessou o salão em direcção ao trono, ladeado por Della Rovere e por um grupo de cortesãos divertidos que em voz baixa trocavam comentários zombeteiros quanto aos excessos daqueles italianos. Entrou César, que se inclinou profundamente no limiar, quase varrendo o pavimento com o chapéu adornado de gemas.

- Bem-vindo, duque de Valentinois. Vinde.

César avançou até aos degraus do trono, inclinou-se de novo profundamente e esboçou o gesto de se ajoelhar para beijar um pé do soberano. Luís levantou-se e ajudou-o a erguer-se segurando-o pelos ombros.

- Bem-vimdo à nossa corte de Chinon. - César beijou-lhe a mão. - Conheceis já Sua Eminência.

- Naturalmente - disse César, olhando friamente Della Rovere. Inclinou- se. - Eminência. . .

- Excelência - respondeu cordialmente o outro. - Haveis perdido a tonsura, mas de modo algum diminuiu o respeito que tenho por vós!

- Disso tenho a certeza - disse César com certo sarcasmo ne voz.

- Sua Eminência foi diligente embaixador do Santo Padre - replicou Luís, reocupando o seu lugar no trono. Inclinou-se para a frente, com o queixo apoiado numa mão e perscrutou atentamente o seu novo vassalo. - Confio, duque, que haveis trazido convosco a dispensa que desejamos. Os nossos olhos anseiam por vê-la.

- Quanto o Santo Padre está ansioso por ter de Vossa Majestade notícias de Nápoles - respondeu César.

- O vosso casamento com a filha de Federico. Apoiámo-lo sem reservas. Mas sua Santidade compreenderá, as belas damas nem sempre se deixam persuadir pelos conselhos de outrem. A presença do pretendente tem frequentemente melhores efeitos.

- A presença do duque Valentino é sem dúvida eloquente - observou Della Rovere.

César fitou-o nos olhos e disse serenamente:

- Mas as aparências enganam, Eminência. Como Sua Majestade sabe.  

Luís sorriu, mostrando-se indulgente.

- Querido duque - interrompeu-o batendo-lhe no ombro -, não podem haver enganos entre nós.

Mas, naquela noite, César, pressentindo a hostilidade que o rodeava na corte francesa, pôs Michelotto e Ramiro de guarda à porta antes de se deitar. As incertezas da sua empresa surgiam-lhe com clareza enquanto deitado sem sono na escuridão. Sabia que não podia confiar em Julião Della Rovere, mas podia confiar no rei? E, principalmente, podia contar com a capacidade de seu pai em Roma para resistir às pressões a que seria submetido na sua ausência?

- Engano! - trovejou Rodrigo a Ascânio Sforza. - Vós acusais-nos de ter duas faces para o mundo! - Rodou, apontando Afonso, seu genro. - E olhai-o! Oh, sei muitíssimo bem o que aconteceu. Vós vos haveis preocupado em recordar-lhe que sua mãe era uma Sforza. Ou, pelo menos, que teria sido uma Sforza se o seu querido pai, que era sem dúvida o indivíduo mais cruel, abjecto e principalmente mais vulgar que alguma vez viveu nesta terra. - Interrompeu-se brevemente para deixar que os prelados que tinha em volta lhe pusessem o pluvial. Voltou a emergir da indumentária e continuou: - Se aquele não tivesse escolhido, como eu dizia, gerar este belo jovem, meu genro, não numa expoente dos Sforza, mas sim no corpo de uma prostituta! Os Sforza de Milão e os Aragões de Nápoles! Bandidos e putas! - gritou, e tanto Burchard, como os bispos que vestiam o pontífice, pareciam surdos àquela linguagem prosaica, mas Afonso, de rosto taciturno, virou a cabeça numa careta de desgosto.

Ascânio Sforza, como sempre, tentou ser diplomático: - Estou desolado, Santo Padre, ofendi-vos.

Rodrigo não estava aplacado.

- Felizmente para vós, Sforza, e também para vós, Afonso, César está longe, em França - disse com rancor. - Bem o conheceis.

- É verdade que o duque Valentino é um homem bastante vigoroso - respondeu Ascânio. - Hábil no manejo das armas e dos cavalos, perito em atletismo. - Aproximou-se de Rodrigo e falou-lhe em voz baixa, em tom de advertência: - Mas acreditai-me, Santo Padre, Luís de França apenas o quer para os seus projectos pessoais. E vós deveis aconselhar César a não olhar para demasiado alto, como está a fazer desta vez, para que ao cair não venha a arrastar atrás de si muitos dos vossos ossos. - Rodrigo fitou-o em silêncio. Ascânio tocara num ponto fraco. O Sforza retomou o tom persuasivo: - Deveis voltar com a vossa confiança não aos bárbaros, mas sim àqueles que certamente mais tendes no coração. A Espanha. E a Milão.

- Em tal caso deveríeis oferecer algo de melhor do que as habituais ameaças - replicou Rodrigo, secamente. - E fomos ameaçados. Os emissários de Espanha e de Portugal acusam-             nos de ter vendido o papado. Ameaçam com a convocação de um concílio para nos depor. E quereis saber o melhor? Ousam dizer-nos que a morte de João foi um castigo divino pelos nossos pecados. - Riu-se, depois continuou venenoso: - Muito bem! Mas Deus deu-nos um outro filho que usa o nosso nome enquanto que os soberanos espanhóis não têm um sucessor directo. A nós, Deus dá e tira. Mas ao nosso bom rei católico, Deus tirou sem nada dar em troca!

Sentou-se triunfante enquanto Burchard se ajoelhava para lhe calçar os sapatos de cetim branco, pespontados com o brasão papal. Depois voltou- se para Afonso.

- Deixa que te retribua com um conselho, Afonso, visto que tu e o teu aliado milanês foram tão pródigos de conselhos comigo. Diz a teu tio Federico que a nossa paciência se esgotou. Que avise em França sua filha Carlota, terna virgem, que não esperaremos mais. Ser-lhe-á concedida uma última oportunidade para ceder a César. Se não o fizer. - e o tom da voz mudou traduzindo uma leve incerteza -. então quer dizer que fomos enganados. - Tinha-o avisado. Virgo Maria. hevantou-se e pousou uma mão no ombro de Ascânio em sinal de paz. - É verdade, Ascânio, os Franceses são bárbaros. Não deve ser demasiado condescendente com eles. Eu tinha-o avisado. Não poderá fugir de Luís tão facilmente como o fez com Carlos.

César, a uma cabeceira da longa mesa do rei, fitava duramente a outra extremidade onde Carlota de Nápoles tinha a cabeça morena, inclinada, numa atitude de aparente submissão, mas que ele interpretava menos ingenuamente por submissa obstinação. César arqueou o sobrolho numa expressão de raivosa desilusão. Sabia bem o que estava por trás daquela tenaz recusa da princesa: as intrigas dos Sforza e da família de Aragão para impedir aquele casamento e quebrar finalmente a aliança dos Bórgias com o rei de França. César estava furibundo. Cheio de cólera contra si próprio por ter jogado precipitadamente a sua cartada, a dispensa papal, sem ter recebido nada em troca do rei, o qual, do seu lado, graças à dispensa, tinha casado com Ana da Bretanha, sem lhe garantir a esposa napolitana que lhe pedira. Estava também preocupado. Apostara tudo nos Franceses e, em vez disso, parecia ter atravessado o seu Rubicão para nada e estar destinado a voltar com as mãos vazias para afrontar a zombaria dos Italianos.

Luís, que se esforçava por manter viva a conversação, viu a cara de César e suspirou. Bem sabia que a paciência dos Bórgias estava nas últimas gotas. Há mais de três meses na corte de França, a nada conseguira chegar. Luís ouvira dizer que César iniciara os preparativos para a partida. Não podia saber se o fazia seriamente, mas não tencionava brigar com o papa, pois tinha necessidade dos Bórgias. Arquitectara aquele desagradável encontro entre César e Carlota, mascarado em jantar informal com o soberano e a sua consorte Ana, numa última tentativa para convencer a princesa a aceitar a mão de César. Mas a empresa demonstrava-se ainda mais árdua do que quanto ele temera e os presságios eram negativos. Para si perguntava naquele momento se César estaria disposto a aceitar a alternativa            que tinha em mente.

Em tom cordial e em voz alta, disse:

- Excelência, desejais alguma coisa em especial? César, sempre com o seu ar carrancudo não tirava os olhos de Carlota.

- Sim - respondeu -, a minha resposta. Havíeis-me prometido que seria para esta noite.

Houve um longo silêncio.

- Minha querida - começou suavemente o rei, um pouco embaraçado, voltado para Carlota.

A rapariga levantou a cabeça, dirigiu um olhar infeliz ao rei e à rainha, corou depois, mordiscou um lábio e levantou-se do seu lugar. Fugiu da sala, demorando-se não mais de uma fracção de segundo para fazer uma reverência aos soberanos. Luís estava mais embaraçado do que antes. - Madame - disse à rainha - estava perturbada. . .

Ana levantou-se da mesa.

- Vou ter com ela. - Inclinou a cabeça na direcção de César. - Se Vossa Excelência nos permite. . .

E como Carlota abandonou a sala.

Privado do apoio moral da consorte, Luís manifestou um embaraço ainda maior. Lançou uma mirada nervosa a César, o qual, com uma face de pedra, olhava na sua frente como se nada tivesse acontecido.

- Ah - suspirou Luís -, nenhum progresso.

- Sua Majestade engana-se - respondeu César, brando.

- De que modo?

- Houve um progresso. Depois que cheguei a Chinon, há três meses, Vossa Majestade casou com a rainha. O que não teríeis podido fazer.

- Certamente, certamente.

- . . . sem a dispensa de Sua Santidade que eu próprio vos entreguei. E pela qual nada obtive em troca. Nada, a não ser a minha vergonha.

Luís fitou o tecto como que a procurar inspiração no seu brasão o porco-espinho, desenhado a ouro na abóbada.

- É uma desdita. - Depois o seu tom tornou-se mais resoluto: - Talvez vos tenhais enganado ao considerar apenas Nápoles. Naquilo que me diz respeito, penso apenas em Milão. Estou tão decidido a ter Milão que tudo o mais me parece irrelevante. Mas olhando mais longe - e aqui voltou ao plural majestático - não podemos esquecer que Nápoles nos pertence através da nossa casa de Anjou.

Houve uma longa pausa durante a qual César reflectiu sobre as perspectivas do novo aspecto das coisas.

- E eu? - perguntou César.

- Certamente haveis considerado as cidades pontifícias, a Romanha, Bolonha, Forli, Rimini, Pesaro.

- Para muralhas de cidades como aquelas tenho necessidade de mais que um exército. Preciso de artilharia.

- Que nós temos.

- E dinheiro para alistar mercenários.

- Que nós temos. - Inclinou-se para a frente e pousou uma mão no antebraço de César. - Reparai, não nos esquecemos. Fizemos uma promessa a Sua Santidade.

- De me garantir uma princesa.

Uma sombra de sorriso passou pelo rosto ossudo do soberano.

- Se não nos parecer ofensivo tomar em consideração uma outra.

- Uma princesa?

- A filha de um grande e nobre duque.

- Conheço-a?

- Vinde vê-la.

Luís levantou-se e foi com César a uma sala antiga onde numa pequena varanda, defendida por cortinados, era possível ver em baixo os aposentos da rainha. Luís afastou os cortinados e os dois homens olharam. Ana da Bretanha estava sentada a bordar, rodeada por damas de companhia, todas jovens e algu mas muito belas. Estava em curso uma lição de dança, porque Ana era uma mulher culta e a sua corte era escola de aperfeiçoa mento para as filhas da nobreza francesa.

- Ali. - Luís apontou a César uma esplêndida rapariga loura vestida de seda verde. - É Charlotte d'Albret, filha de Alain, o Grande, duque de Guyenne, conde de Dreux, Penthiè vre e Périgord, visconde de Tartas e Limoges, senhor di Avesnes. Chega-vos? E a mãe é parente da rainha. . . passaríeis a fazer parte da nossa família.

César ficou em silêncio a observar as formas esbeltas da ra pariga que bailava. A sua graciosidade e os compridos cabelos louros lembravam-lhe Lucrécia, embora devesse ser mais nova do que ela um ano. Não mais que dezasseis anos, pensou. De aspecto era bastante mais bela que Carlota de Nápoles. E depois havia outras considerações.

- Definem-na como a filha mais bela de França. - disse lhe Luís ao ouvido. - Creio que se poderia chegar a um acordo.

- Quero um exército de trezentas lanças com uma cavalarie pesada de vinte mil homens - disse César com voz átona. - Conquistareis Milão a meu lado.

- Após o qual Sua Majestade me nomeará senhor de Asti.

- E obtereis para nós a passagem gratuita através dos estados pontifícios para as nossas forças dirigidas contra Nápoles, a cuja conquista nos assistireis.

Houve uma pausa antes de César, sem nunca tirar os olhos de Charlotte, dizer lentamente:

- Nápoles. E Milão. Atravessando os estados pontifícios. E Charlotte é muito bela.

César sorriu. O seu rosto iluminou-se.

- Senhor - disse -, chega-me.

César, segundo um cronista francês, casou com Charl, d' Albret de grand coeur. O seu entusiasmo pela bela esposa era igual ao que tinha pelas promessas de Luís. Deu-lhe as ofertas que cuidadosamente escolhera em Roma para Carlota: brocados, sedas, jóias, no valor de vinte mil ducados, entre as quais uma grande pérola em forma de gota, um travessão com rubi e cinco esmeraldas engastadas em ouro, um pendente de rubis, um colar de vinte rubis e oitenta pérolas, um diadema de doze diamantes em roseta e trinta pérolas, além de uma cascata de pérolas soltas, diamantes e outras gemas não engastadas. Além das jóias, entre as ofertas havia também serviços de mesa trabalhados ricamente em ouro, em prata, lacados ou de cristal; os serviços compreendiam saleiros, travessas, garfos e colheres, pratos, jarros, terrinas, molheiras, botelhas e garrafas para os vinhos e recipientes para as especiarias. Vinham depois preciosas toalhas de damasco, miniaturas de navios de guerra em madrepérola, uma cidadela com quatro torres de prata, uma fonte prateada e esmaltada em forma de campanário do qual brotavam jactos de água de rosas.

O casamento foi celebrado na capela privada da rainha em Blois, no Loire. Seguiu-se uma magnífica festa que se deu em grandes tendas de seda erguidas nos prados pertencentes ao castelo. Houve justas e torneios. Luís nomeou César cavaleiro da Ordem de São Miguel, a mais importante entre as ordens de cavalaria de França, e a rainha ofereceu- lhe o seu anel. Ninguém podia ter qualquer dúvida sobre as razões de Estado que tinham originado tal cerimónia, dado que o contrato matrimonial, assinado pelo rei e pela rainha, estabelecia claramente que o consenso de Luís àquelas bodas estava subordinado aos cimportantes e louváveis serviços a ele prestados e à sua coroa pelo nobre e poderoso príncipe Dom César Bórgia, duque de Valentinois, com a esperança de que o citado duque e os seus parentes, amigos e aliados, renovariam no futuro a sua devoção assistindo a coroa de França na conquista do seu reino de Nápoles e do seu ducado de Milão".

No dia seguinte, César fez ao pai uma exposição das suas proezas na noite nupcial para lhe garantir que pelo menos aquele casamento não se poderia anular por não ter sido consumado. Assinou orgulhosamente a carta com todos os seus títulos franceses: César Bórgia de França, duque de Valentinois, conde de Diois, senhor de Issoudun, capitão de cem lanças às ordens do rei.

- Afonso - anunciou alegremente Lucrécia -, meu pai recebeu notícias de César, sobre a sua noite de núpcias. E também o rei lhe escreveu e lhe enviou cem garrafas de clarete.

- Eu também recebi notícias dos meus amigos sobre a noite de núcpias do teu irmão - respondeu Afonso, friamente.

Deitado de costas na cama ao lado de Lucrécia, a olhar o tecto, e ela, encolhida contra ele, não estava em condições para lhe observar a expressão.

- Os senhores que espreitaram pelo buraco da fechadura contam que se viu em notável embaraço porque o farmacêutico lhe deu por engano pastilhas laxativas em vez de afrodisíacos.

Lucrécia riu à socapa.

- Mas não tem importância - disse ela. - O rei contou a meu pai na sua carta que César se portou melhor ainda do que ele com a rainha, por altura do seu casamento. Fez amor com Charlotte duas vezes antes de jantar e seis vezes durante a noite. É tão forte. Nada pode atemorizá-lo. E dizem. . . dizem que ela é muito graciosa e muito enamorada por ele. - Afonso não reagiu. Lucrécia acariciou-lhe um braço para o acalmar. - Estou sempre a falar de César? Disto me censurava João.

- E ainda por cima me falas de João! - exclamou Afonso com ódio.

Lucrécia levantou os ombros.

- Duas vezes antes de jantar e seis vezes durante a noite. O meu ventre inchou demasiado? É por isso?

Em tom sério, Afonso respondeu:

- Lucrécia, meu tio Ascânio saiu de Roma. Foi à caça.

- Fugiu? Teu tio, o cardeal, fugiu, não é? Tem medo de César e dos Franceses. Foi para Milão?

- Não. Foi à caça.

- Nem sequer em mim confias, não é? Por causa de César. Porque sou uma Bórgia. - Escondeu a face contra o peito dele e com voz trémula disse: - Peço-te, Afonso, não fujas também tu. João fugiu, mas não me importou porque não o amava. Não, não quero falar novamente de João. ou de César. Afonso!

Ele voltou-se e apertou-a com vigor entre os braços, pousando-Lhe o queixo nos seus cabelos de ouro com uma expressão grave.

- Meu senhor ! - A exclamação ansiosa de Charlotte cortou o ar fresco da manhã. - Meu senhor! - Alcançou o cavalo do marido, arquejante, e ergueu para ele um olhar interrogativo.

- Haveis-vos levantado sem nada me dizer. Onde is? César sorriu-lhe e apontou-lhe o falcão que estava pousado no seu pulso.

- Estais a ver. Vamos apanhar garças-reais.

Charlotte só parcialmente ficou tranquilizada.

- Voltai logo a seguir para casa. Desejo-vos um dia divertido - disse ela agarrando-lhe a outra mão e beijando-a.

César apressou-se a voltar para o seu grupo.

- Vamos.

Charlotte voltou atrás, sem tirar os olhos dele.

- Boa viagem, meu senhor - saudou.

César virou a cabeça para lhe responder e partiu com Michelotto ao lado. Michelotto estudou-lhe a cara impassível.

- Senhor! - César não respondeu. - Meu senhor, vossa mulher sabe que toda a vossa roupa foi mandada para Lião onde nos encontraremos com o rei. - César continuou calado. Cavalgava com os olhos fixos na sua frente. Michelotto continuou:

- Estais sempre tão distante, meu senhor. Até de vossa mulher.

- É a misericórdia de Deus, Michelotto.

- A misericórdia de Deus?

- Um dia não verei mais a tua cara. Não saberei quando chegará esse dia.

- Não queríeis ver as suas lágrimas. . .

- Se morrer em Milão, chorará. Terá bastante tempo.

Michelotto olhou para trás.

- Ainda está olhando - disse.

César não voltou a cabeça.

- Eu sou misericordioso como Deus, Michelotto. E uma mente cruel.

- Não ensinareis os homens a amar-vos como amam Deus.

- Não. Ensiná-los-ei a temerem-me como O temem.

De repente, deu com as esporas no animal e partiu a galope, deixando para trás o passado, com a mente toda voltada para o futuro.

Enquanto César deixava Blois e Charlotte, sua esposa, não havia ainda dois meses, Afonso abandonava Roma sem avisar a mulher grávida.

Lucrécia ficou abatida. Debulhada em lágrimas, correu pelos corredores do Vaticano para se lançar aos pés do pai, ajoelhado nas orações matinais.

- Pai! - exclamou Lucrécia, desesperada, puxando-lhe por uma manga da sotaina. - Pai! Ajuda-me! Afonso foi-se embora. Fugiu. Por causa de César. Peço-te, pai, faz com que ele volte! Faz com que ele volte!

- Minha filha, minha filha! - Rodrigo acolheu-a nos braços embalando-a como uma criança. - Ele voltará. Não temas.  

Não lhe acontecerá mal algum. E o pai do teu menino. . .

A porta do quarto escancarou-se de repente. Entrou Sancha, colérica, seguida por um homem que tinha as roupas rasgadas e manchadas de sangue.

- Que significa esta interrupção? - protestou Rodrigo,

furioso.

- Vosso filho, meu amado marido, foi ferido numa rixa de rua. Este seu criado quase não conseguiu cá chegar com a noticia.

Intimidado pela circunstância, o servo gaguejou: - Santidade. . . o meu senhor, vosso filho. . .

Sancha interveio para dizer:

- Os guardas prenderam-no e encerraram-no em Santo Ângelo.

O servo recompusera-se um pouco:

- Santo Padre, andava pela Calimala Francesca, debaixo do

Tecto de Pisani..     

- À procura de rapazes - precisou Sancha com nojo.

- Está gravemente ferido? - perguntou Rodrigo, não muito preocupado.

- Ferida funda, Santo Padre, com derramamento de sangue. Implora a Vossa Santidade para que o solte. . .         

- Onde está não pode causar dano. Não é meu filho - disse

Rodrigo, resoluto.   

A atenção de Sancha foi atraída por Lucrécia que choramingava aos pés do pontífice.

- Que aconteceu?

- Afonso fugiu. Deixou-a com o menino - explicou Rodrigo.

Sancha, que não se mostrou surpreendida, limitou-se a concordar.

- E também eu tenho de me despedir de vós - disse ela. -

Segundo parece, Roma, em breve, já não será lugar seguro para ninguém da minha familia. Vou ter com Afonso e vos deixarei, Bórgias, para receberem César que está de volta. - Havia muita amargura na sua voz.

- Sancha! - exclamou Lucrécia correndo para ela. - Leva-me contigo. Leva-me para junto de Afonso!

- Lucrécia! - Também Rodrigo se pôs de pé, aflito. - Não vás com ela. É uma rameira. Escuta-me. Dar-te-ei Nepi, o castelo de Ascânio Sforza. Ordenarei a Afonso que ali vá ter contigo. Obedecer-me-á, tem de o fazer. César o obrigará a obedecer.

- César! - Sancha quase parecia ter cuspido aquele nome na cara de Rodrigo. Depois ladrou: - César vos destruirá! E não só a vós, velho monstruoso. Não só a vós! Destruirá toda a Itália! - voltou-se e saiu imediatamente da câmara seguida por Lucrécia.

Rodrigo não tinha maneira de a deter. Meteu a cabeça entre as mãos e pôs-se a murmurar: César. César tem de voltar para casa.

                 PAI E FILHO

César entrou em Milão ao lado do rei Luís. Prudentemente, Ludovico Sforza tinha abandonado a sua capital há já alguns dias. Os Milaneses reservaram um frio acolhimento aos Franceses, mas observaram com interesse o filho do papa, ao lado do rei, vestido com as cores reais, carmesim e amarelo, a significar a sua pertença à casa de França, e seguido pelos seus trezentos cavaleiros. Baldassarre Castiglione, que escreveria um livro de boas maneiras, notou que César se portara galantemente, porém, outros, mais sensíveis aos aspectos práticos da situação, quer dizer, os emissários dos estados italianos como Veneza, Mântua e Ferrara, notaram mais os favores que Luís lhe reservava e temeram as consequências daquela relação para toda a Itália.

Rodrigo recebeu com alegria a notícia da chegada de César. Sentia-se mais tranquilo enquanto seguia viagem para o castelo de Nepi, na primeira semana de Outubro. Aquele casamento francês nunca lhe agradara e temera que as demasiado amistosas relações de César com Luís conduzissem seu filho para alguma cilada de que já não conseguiria sair acabando como refém do soberano em troca da submissão do papa. Porém, as cartas de César juntamente com os relatórios que recebera dos seus agentes em Milão em muito o tinham tranquilizado. Entrou, portanto, de bom humor no terreiro do castelo que em tempos fora seu e que dera a Ascânio para obter o seu voto. Pondo os olhos no brasão dos Sforza no portão, reflectiu sobre os maus humores que Ascânio suscitara no seio da sua família, pondo Afonso e Lucrécia contra César, induzindo- os a temer por aquilo que César e Luís tinham no espírito. Ele próprio poria, portanto, termo àquela situação, tranquilizando a família com a sua autoridade paterna, tal como já tinha persuadido aquele tolo do Afonso a pôr de parte os seus medos e a voltar para Lucrécia.

O seu rosto iluminou-se de alegria ao ver a filha, pesada pela gravidez, que o esperava para o saudar. Desmontou da mula para a receber entre os braços.

- A nossa filha. E estás bem! E que ventre, eh? Será um macho, nós já sabíamos!

Afonso avançou para lhe beijar o anel.

- Dom Afonso. Benedicat.

Aproximou-se também para receber a amistosa bênção Godofredo que fora libertado da prisão.

- Godofredo, nosso filho.

Rodrigo continuou a abraçar Lucrécia, mas tinha os olhos em Afonso.

- Fugiste de Roma - disse em tom grave.

- Santo Padre, obedeci às vossas ordens de voltar de Nápoles - defendeu-se Afonso.

- A nossa carta era para teu tio, o rei. A luz destes olhosacrescentou puxando a si Lucrécia - deveria fazer com que corresses, não o meu mensageiro.

- Tenho a certeza, Santidade, de nunca mais ter que temer por vós.

- Se continuares a ser um marido fiel, que terás a temer de nós? - Depois, abrindo os braços num gesto solene, voltou-se para todos, radiante de orgulho: - Trago-vos notícias! César e o rei entraram triunfantes em Milão! São o duque e o cardeal Sforza que têm de fugir com medo. Enquanto vínhamos em visita a Nepi, ao castelo de Ascânio, nossa oferta a ti, amada Lucrécia. Vá, entremos.

Chamando todos para se reunirem, o pontifice entrou no salão do castelo, onde estavam servidos os refrescos na comprida mesa de nogueira. O músico de Godofredo, Tomasino, seu favorito de momento, dedilhava docemente as cordas do seu alaúde. Juan Cervillon, capitão da guarda pontifícia, imobilizou-se nas costas de Rodrigo quando este se sentou a comer com gosto enquanto relatava a entrada dos Franceses em Milão.

- No castelo dos Sforza, Luís não encontrou tesouro algum disse Rodrigo enterrando os dentes num suculento figo purpúreo com evidente satisfação e examinando ao mesmo tempo

com interesse uma rapariga muito graciosa que estava a servir Lucrécia. - César informa-me que o duque tinha cofres de carvalho para as suas jóias, munidos de fechaduras especiais, inventados por Vinci. Mas os cg res foram encontrados abertos e vazios. Ludovico levou consigo duzentos e quarenta mil ducados de ouro. . . todas as suas jóias e as pérolas. . . uma fortuna. . . - murmurou qualquer coisa ao ouvido de Lucrécia, indicando com um gesto a jovem.         

- Angelina - respondeu ela, sorrindo.

- Ah! - Rodrigo concordou, agradado e satisfeito. - Onde tinha eu ficado? Sim, César também escreveu que os Franceses estão a fazer com que os odeiem em Milão como nos tempos de Carlos. Os seus soldados escarram no soalho das salas, quando não fazem pior, e insultam as mulheres na rua.

Estragaram a grande estátua de Vinci, do pai de Ludovico

Francisco Sforza, dele fazendo alvo para as suas frechas. A estátua era de argila. . . como a dinastia dos Sforza. Nós Bórgias mandaremos construir as nossas em bronze - lançou um sorriso triunfante a quantos estavam à mesa.

- Os Franceses são bárbaros - comentou Godofredo, nervoso. - Poderiam fazer-nos o que fizeram aos Sforza e antes ainda à família de Afonso - acrescentou pouco diplomaticamente.

Rodrigo enrugou a testa, mas preferiu ignorar o deslize do filho:

- Oh, certamente sabemos de que massa são feitos. E por

isso pusémos César em guarda. Ele compreende bem, mas deve ter o seu exército. Acima de tudo o mais, desejaríamos que ele se tornasse um dos grandes senhores de Itália, como já o é em França. Em Milão, saudaram-no como duque Valentino, assim gritava o povo nas ruas.

- Mas senhor de onde? - perguntou Lucrécia. - Que estado pode César conquistar, aqui na Itália?

Rodrigo sorriu-lhe com ternura.

- Então o nosso passarinho começa a cantar política? -

perguntou-lhe com afecto. - Acreditaste que César se declararia rei de Nápoles. - Olhou as caras que tinha em volta, uma por uma. - Também tu, Godofredo. E tu, Afonso. E também o rei. . . - Teve um amplo sorriso e tirou uma mancheia de doces de uma bandeja antes de continuar. - Vejam como nos entendem pouco. Não somos nós espanhóis por sangue como os aragoneses? O touro dos Bórgias e o brasão de Aragão estão já unidos em ambos os vossos casamentos. Os Bórgias não querem Nápoles. Nós não vos ameaçamos. Esta é a mensagem que o capitão Cervillon aqui presente entregou ao rei. Por isso lhe pedimos que viesse a Nepi. - Voltou-se para olhar Cervillon, de pé atrás dele. - Não é assim, capitão?

- Assim é, Santo Padre - respondeu Cervillon.

- Estais a ver? - Rodrigo sorriu de novo, feliz, tranquilizador, contemplando as caras ansiosas dos presentes.

Após uma pausa, Afonso atreveu-se a dizer:

- Mas, Santo Padre, no entanto, não haveis respondido.

Rodrigo concordou.

- À pergunta de Lucrécia. Sim, muito bem. - Inclinou-se para a frente, unindo as mãos pousadas sobre a mesa. - No nosso regresso a Roma tencionamos redigir uma bula papal contra os senhores de Rimini, Pesaro e Faença, privando-os das suas cidades como indignos vigários da Santa Igreja. Interrompeu-se para meter na boca um bolo. - E contra Catarina Sforza, senhora de Forli.

O músico Tomasino levantou de repente a cabeça dedilhando uma corda errada no seu alaúde. Mas recomeçou a tocar com a cabeça inclinada.

- Estas cidades são nossas - prosseguiu Rodrigo -, terras pertencentes à Santa Madre Igreja. Alguns déspotas as subtraíram à nossa protecção delas despojando as populações com as gabelas e recusando-nos o pagamento das contribuições que nos são devidas. Agora será demasiado tarde para que nos enviem as suas bolsas de ouro para a nossa tesouraria. Recusaremos. Os seus lugares ficaram vagos. César os reconduzirá até nós. E nós nomearemos César senhor daquelas terras. Senhor da Romanha! - Olhou em volta. - Quem pode objectar?

Ninguém abriu a boca. Depois, Godofredo, timidamente, disse:

- Para fazer isso, César terá necessidade das tropas francesas.

- Luís prometeu-lhas.

- Então, César deve ter-lhe oferecido alguma coisa em troca. - A voz de Afonso soou insegura. - Dizem em Nápoles.

- interrompeu-se, um pouco embaraçado, para lançar um rápido olhar a Juan Cervillon.

Rodrigo notou a direcção do seu olhar.

- Que há? - perguntou bruscamente.

Afonso prosseguiu com coragem:

- A França estaria mesmo muito alegre por ter conquistado Nápoles, Santo Padre. Era isto que queria dizer.

Rodrigo serenou, recusando tomar nota nas implicações de tal declaração. Chamou a si Angelina e passou-lhe o braço em volta da cintura.

- Afonso - disse paciente -, nós somos como que uma só pessoa. Foi isto que viemos dizer-vos. Deveis voltar a Roma. O filho de Lucrécia nascerá lá. Godofredo também deve vir. E Sancha. Aquela sua bela cara de rameirinha faz- me muita falta.

- Sancha fica em Nápoles, Santo Padre - respondeu a voz amuada de Godofredo.

Rodrigo tranquilizou-o.

- O capitão Cervillon a trará para casa - afirmou com segurança. - Cervillon é espanhol e o rei confia nele. Todos regressaremos a Roma.

César entrou a galope pela Porta Viridaria, junto ao Vaticano, seguido pela sombra escura de Michelotto. Pararam os cavalos na Praça de São Pedro, diante do Palácio de Santa Maria in Portico, onde estavam acesas as tochas.

- Primeiro vou procurar Dona Lucrécia - disse César a Michelotto. - Depois Santo Ângelo.

Michelotto anuiu. César atirou- lhe as rédeas do seu cavalo e atravessou o portão. Os guardas saudaram-no militarmente.

Lucrécia, pálida e desfalecida depois do parto, estava deitada, meio adormecida, cabeça apoiada nalgumas almofadas. Com a entrada de César, Angelina, que estava sentada junto do leito, levantou- se aterrorizada. Lucrécia abriu muito os olhos.

- César - sussurrou debilmente voltada para o irmão. Ele ficou a contemplá-la, lúgubre no traje de veludo negro que agora vestia habitualmente para simbolizar a univocidade da sua ambição.

- Portanto, pariste um macho - disse ele.

Ela concordou.

- Deixa-nos, Angelina - ordenou ele. A rapariga inclinou-se e escapuliu-se dali para fora.

- Por que estás em Roma? Pensava. Pensava que estavas na Romanha.

- Fui convocado por meu pai. - Pegou-lhe na mão pousada na coberta e beijou-lha. Ela afagou-lhe os dedos. - Foi uma conspiração contra Sua Santidade, por isso acorri.

- Contra o nosso pai? É grave?

- Não, uma estupidez.

- César! - exclamou ela, aliviada e cheia de amor. - Estou contente por me teres vindo procurar.

- Porquê?

- Porque te amo. E porque temia.

- Que temias tu, Lucrécia?

Ela rodou a face apertando-a contra a almofada.

- Temo por nós. Por mim e por Afonso. E pelo nosso filho. Tornou a olhá-lo. - Tenho medo dos Franceses - afirmou claramente.

César apertou-lhe a mão para a tranquilizar.

- Não deves ter medo deles - disse-lhe sorrindo. - Tomámos Imola para a Santa Sé. Agora conquistarei o castelo de Forli a Catarina Sforza. A população não a ama, entregou-nos a cidade enquanto ela a invectivava das muralhas por se entregar a nós como uma prostituta. Depressa tomaremos também o castelo àquela bela e valorosa senhora que por sua vez tanto se parece com uma prostituta, que paga aos seus capitães com as suas coxas. - Lucrécia, mau grado seu, sorriu. César prosseguiu: - O rei Luís pôs à minha disposição um exército. Por que terias tu de temer os Franceses? Não és Catarina Sforza. És minha irmã.

- E a mulher de Afonso - acentuou ela.

- Não deves dar ouvidos a Afonso. Afonso odeia-me. Depois, vendo-a afastar o rosto dele, disse com mais firmeza: Sei que conspira contra a minha pessoa e procura afastar meu pai de mim.

Lucrécia retirou a mão da dele.

- Não - disse-lhe em tom acusatório. - És tu que nos trais. Tu prometeste Nápoles aos Franceses. Não foi Afonso que mo disse. Foi o capitão Cervillon.

César levantou-se de repente, como que para interromper a conversa que o aborrecia.

- César! - Lucrécia estava ansiosa. - César, para onde vais? Não queria falar-te de Afonso. Ele nada fez contra ti. Nada. Peço-te. Sabes que o amo. Tenho ainda tantas coisas para te dizer! Por que te vais embora?

César, quase já à porta, disse-lhe:

- Tenho de ir ao Castelo de Santo Ângelo. - Abriu a porta e continuou: - Têm lá um prisioneiro que participou na conspiração para matar o papa. E um servo de Catarina Sforza, de nome Tomasino. - Lucrécia olhava-o petrificada. - Também era músico de Godofredo - acrescentou César. - Porque, repara, Lúcia, é um mundo perigoso. Está atenta às pessoas a quem dás confiança.

Nos subterrâneos de Santo Ângelo, César e Michelotto contemplavam Tomasino, meio nu e inconsciente, de costas num sórdido enxergão. Não tinha feridas, mas as mãos estavam reduzidas a uma polpa sanguinolenta.

- Os homens do castelo deram cabo dele - disse Michelotto em tom profissional. - Deveis ser bom com ele, meu senhor.

César ajoelhou-se ao lado do enxergão com um lenço apertado contra o nariz para se proteger do mau cheiro dos subterrâneos.

- Tomasino - falava suavemente. - Tomasino. . . sou o duque Valentino. . . posso ajudar-te.

A face do músico contraiu-se numa careta de dor; da garganta soltou-se-lhe um gemido. Tomasino tentou tocar em César com as mãos esmagadas. César segurou-o prudentemente pelos braços.

- Tocavas alaúde. . . Se eu estivesse aqui não teria permitido que te fizessem mal aos dedos.

- Meu senhor. . . - murmurou Tomasino debilmente.

- Não te torturaremos mais. - A voz de César era gentil, benévola. - Se me disseres aquilo que sabes.

- Dir-vos-ei. . .

César interrompeu-o de repente.

- Devagar, Tomasino, agora nada tens a temer. Diz-me. Foi Baptista da Mendola, não foi? Ele veio ter contigo a Roma. . .

Debilmente, Tomasino seguiu-o por aquela via.

- Foi enviado. . . pela Dona. . .

- Pela Dona Catarina Sforza de Forli - concluiu César por ele.

Tomasino moveu a cabeça em sinal de assentimento.

- Baptista disse-me. . . que me faria regressar aos seus favores. . . se eu o ajudasse. Tinha uma mensagem dos cidadãos de Forli para entregar nas mãos de Sua Santidade o papa.

- E tu aceitaste ajudá-lo. Como servidor de meu irmão com entrada livre no Vaticano. . .

- Se eu soubesse. . . - Tomasino estremeceu. - O camerlengo queria tirar a mensagem a Baptista. Estava enrolada e     selada numa carta. Baptista temia que o camerlengo a abrisse, assim protestou. E prenderam-nos.

- A mensagem estava envenenada - explicou-lhe César. A senhora de Forli armou-te uma cilada. Talvez Baptista dissesse. . .

Tomasino abanou a cabeça.

- Não sei nada, meu senhor.

César fez uma pausa. Depois perguntou em voz suave: - Queres que te restitua aos homens do castelo? - Tomasino sacudiu de novo a cabeça trémulo. César continuou:

- A mensagem estava selada em uma carta. Devia ser uma mensagem de capitulação dos cidadãos de Forli.

- Sim, meu senhor.

- Mas, pelo contrário, era do punho de Catarina e envenenada para que o papa morresse. Como é que tinha sido envenenada, Tomasino?

- Baptista disse. . . que havia peste na cidade. Dona Catarina esfregou a carta no cadáver de um empestado.

- O papa é Deus na Terra, Tomasino - afirmou solenemente César. - Foste muito tolo ao tentar matá-lo.

- Meu Senhor. tinha jurado morrer. Pela nossa senhora. - Vê-se que és um autêntico trovador - apostrofou-o César, sarcástico. - Acreditaste nas tuas canções cavalheirescas. Mas a tua dona não é mulher gentil. - Levantou-se e dirigiu-se a Michelotto: - Providencia para que o tratem bem. Teremos necessidade dele.

Encaminhou-se para a porta. Do seu enxergão, a voz fraca de Tomasino voltou a chamá-lo:

- Meu senhor!

- Sim, Tomasino? - César estava impaciente.

- Há alguém da guarda pontifícia que se ri de vós. É o amante da princesa Sancha, que vos odeia. Estai atento.

- Dom Juan Cervillon? - disse César. - Eu sei.

- Cervillon? - A voz de Rodrigo estava cheia de horror e de incredulidade. - Quem o disse? - Estavam ali quatro faces impassíveis que confirmavam a acusação com o seu silêncio: a de Lucrécia, de Afonso, de Sancha e de Godofredo. Rodrigo abanou a cabeça: - Não acredito.

- Todos sabem! - exclamou Sancha. Perguntai às servas de Lucrécia ou às de Sancha.

- Todas ouviram - instou Afonso.

Rodrigo levantou a cabeça.

- Não daremos ouvidos a calúnias - declarou ele.

- - Não são calúnias, Santo Padre : insistiu Afonso que se calou quando a porta se abriu e entrou César, vestido de veludo preto, com capa negra e espada à ilharga.

Com alívio, disse Rodrigo:

- Mas eis aqui César. Responderá sozinho, portanto. - Fitou o filho nos olhos. - Ouviste, César? Encontraram o corpo do capitão Cervillon numa rua. Não longe da porta de casa de seu sobrinho. Foi assassinado. Dizem que tinha a cabeça quase completamente separada do corpo.

- Não, Santo Padre. - César respondeu em tom cordialmente surpreendido. - Não sabia.

- Tu ordenaste o homicídio - acusou Afonso. César voltou-se lentamente para ele enrugando a testa.

- Se é verdade que foi assassinado, surpreende-me, caro Afonso, que não sejas tu próprio a reivindicar o acto. - Olhou para Sancha com arrogância. - Eu não acredito, mas disseram-me que o capitão Cervillon se gabava de ter dormido com tua irmã e de ter recebido por isso esplêndidas compensações.

Sancha riu com um riso desdenhoso, encolhendo os ombros.

- Afonso não seria assim tão tonto ou então teria de afiar o seu estilete para matar metade da população masculina de Roma. Não serve de nada falar com César. Anda, Godofredo - disse como que chamando um cão para companhia e voltou-se para sair.

Mas Godofredo enfrentou o irmão mais velho.

- Eu sei por que o mataste - disse em voz estridente de cólera. - Por aquilo que declarou em Nápoles. Que tu assinaste um pacto secreto com os Franceses e que lhes prome teste. . .

Rodrigo interveio:

- Mas é verdade, isso? César, dizes-me a verdade? O capitão Cervillon disse realmente coisas desse género em Nápoles?

- Acho que sim - respondeu César desenvoltamente. Rodrigo empalideceu.

- Estamos verdadeiramente angustiados com esta revelação. Era um nosso fiel. . .

Afonso explodiu:

- Mas, Santo Padre, o que Cervillon disse era verdade!

- Tem cuidado com essa língua! - trovejou Rodrigo. Deixem-nos sós, todos, menos César. Falaremos com ele a sós.

- Depois, enquanto Lucrécia lhe beijava a mão, baixou o tom, no entanto, sempre autoritário. - Estes litígios no seio da família entristecem-me profundamente. Mas não permitiremos nenhum acordo com os Franceses que lhes dê Nápoles. Afonso, Godofredo, haveis ouvido?

Relutantes, os dois inclinaram-se e deixaram a câmara, seguidos por Sancha, cuja saudação a Rodrigo foi altiva e desdenhosa. Nenhum deles ao sair, olhou para César.

Só Lucrécia se deteve a falar-lhe, amorosa e assustada ao mesmo tempo.

- No nosso casamento o capitão levantou a espada sobre a nossa cabeça e também levou o nosso filho à fonte baptismal. Sabias isto?

Com voz átona, César respondeu:

- Estou desolado.

- Mas de quê! - exclamou Lucrécia com paixão. - Que Deus tenha piedade de ti, César ! - saiu a correr deixando sós o papa e o filho.

César falou ao pai como se nada se tivesse passado.

- A artilharia está alinhada diante do castelo de Forli e tenho de estar presente para o assalto. Vim saudar-vos. E, quando tivermos conquistado a fortaleza, teremos as provas com que desonrar Dona Catarina na presença da Itália. Está tudo pronto. Temos uma testemunha.

Rodrigo anuiu, satisfeito:

- Excelente, excelente. Faremos cair a senhora na armadilha que ela tinha preparado para nós ou, pelo menos, assim parecerá. - Abanou a cabeça. - Que estúpido aquele Cervillon! Era um soldado. São mais imprudentes eles com a língua do que as mulheres. Tens de estar mais atento. Prometi a Luís aquilo que queres. Mas não assines nenhum acordo para a cedência de Nápoles. Não nos agradam estes pactos com os Franceses, bem sabes.

César inclinou a cabeça, enquanto se ajoelhava para receber a bênção do papa.

- Santo Padre, confio num triunfo.

Rodrigo fez mecanicamente o sinal da Cruz sobre a cabeça

do filho, de mente já virada para outro lado.

- Seja feita a tua vontade. Benedicat, César. Traz para Roma Catarina Sforza, como fazia o grande César, acorrentada às rodas do teu carro triunfal. Pareceu-nos tão atraente da última vez que a vimos. Uma mulher corajosa! Em nome dos belos

tempos passados, ficaríamos bastante tristes se escolhesse morrer.

Catarina Sforza estava à janela do seu castelo de Forli, à espera daquele que chegaria para a levar acorrentada. Por baixo dela, as muralhas poderosas da cidadela Ravaldino, naqueles tempos a mais impenetrável fortaleza de Itália, apresentavam um rasgão lá onde a artilharia francesa das tropas de César levara finalmente a melhor. Fumo e chamas enchiam o terreiro interior onde o depósito de armas fora pelos ares; uma luz lívida iluminava espaçadamente montes de cadáveres meio submersos no fosso em volta do torreão central. A mesma luz punha em realce os traços resolutos do rosto de Catarina, mulher ainda muito bela, andando embora pelos quarenta anos, com uma forte boca sensual, cabelos pretos e pele branca, de que era tão orgulhosa e com a qual tinha tanto cuidado, a curva cheia do seio por baixo do colete de aço confeccionado à sua medida. Tivera nove filhos, três maridos e um número incalculável de amantes. Era uma mulher especial, tão hábil com a espada quanto com a agulha de bordar, autora de um livro em que reunia receitas para poções de beleza juntamente com outras para favorecer abortos ou lentos envenenamentos.

Ouviram-se passos no corredor. Catarina voltou-se à entrada de César enlameado e molhado até aos joelhos.

- Valentino - disse ela com irónica cortesia.

O comandante francês Yves d'Alègre, que guardara a mulher enquanto esperava pelo duque, inclinou-se:

- Meu senhor, Dona Catarina depôs as armas.

- Obrigado, D'Alègre. Podeis retirar-vos.

- Meu senhor! - D'Alègre afastou-se, depois deteve-se, como que preocupado com alguma coisa. - Desagrada-me ver-me obrigado a acentuar. A senhora de Forli entregou-se nas mãos dos Franceses. Dito isto e com o devido respeito, meu senhor, posso retirar-me.

Inclinou-se e saiu deixando César e Catarina enfrentando-se como duas feras cautelosas. Da última vez que se tinham encontrado para negociar a rendição do castelo, Catarina tinha procurado apanhá-lo mandando levantar a ponte inesperadamente. Naquele momento, estavam frente a frente, mas como vencedor e vencida, um jovem e uma mulher madura, na qual se apercebia, latente, uma correspondência sensual.

Um belo homem, pensou Catarina, que noutras circunstâncias o teria achado muito atraente.

César ofereceu-lhe uma cadeira. Ela recusou.

- Muito bem - disse ele sentando-se. Olhou-a com arrogância, cabeça ligeiramente lançada para trás. - Não foi sensato da vossa parte recusar-vos a render-vos. A vossa obstinação foi paga com muitas vítimas humanas.

- Ouvi como se tinham portado na cidade os vossos soldados. Por minha honra, não podia entregar-vos a minha gente aqui.

César encolheu os ombros.

- Nenhum dos meus soldados abusou do povo. Foram os Franceses, aos quais haveis decidido entregar-vos.

Catarina fitava-o, mas não respondeu.

- Acreditais naquilo que haveis ouvido - disse César -, que os Franceses não fazem mulheres prisioneiras. - Teve um sorriso cruel quando ela novamente não lhe respondeu e prosseguiu, dizendo: - Poderia não ser assim. Haveis oferecido os vossos serviços ao duque de Milão. Os Franceses lembrar-se-ão. O duque Ludovico é o principal inimigo de Sua Majestade e, neste momento, foi capturado e é levado para uma galera francesa, portanto, não pode ajudar-vos. Teríeis sido mais astuta se tivesses negociado comigo. - Fez uma pausa. Divertia-se. Depois levantou os ombros. - Seja como for, não tem importância. Os Franceses é a mim que vos vão vender. Só resta estabelecer o vosso preço.

Catarina fitou-o durante bastante tempo examinando-lhe descaradamente o corpo com o olhar. Depois, sorridente, disse:

- Tenho a certeza que será muito alto. - Aproximou-se dele. - Não estou habituada a ser comprada e vendida, senhor meu. Mas se assim tem de ser. - Ajoelhou-se de repente a seus pés e acariciou-lhe uma perna com a mão. Com voz delicada disse: - Tendes as botas molhadas. Deveis tirá- las.

César olhou-a sem se comprometer.

- Se assim vos parece.

Ela começou a descalçar-lhas enquanto os cabelos lhe caíam sobre as coxas dele. César continuava sentado, imóvel. Observou-a durante todo o tempo que ela demorou a descalçar-lhe as botas. Depois, quando a mão de Catarina saltou das laçadas para a sua perna, inclinou-se de repente e agarrou-a. Ela levantou a cabeça.

- Onde está o vosso filho? - perguntou-lhe friamente.

A face de Catarina, até um instante antes suave e enganadora, endureceu.

- Octaviano? Acreditais que seria assim tão estúpida que o deixasse cair nas vossas mãos? - A sua voz estava cheia de desdém e os seus olhos de ódio pelo homem que a tinha humilhado. - Sois um homem frio, César Bórgia, justamente como deve ser um despadrado. Um bastardo do papa! - Procurou libertar-se, porém, ele tinha-a segura solidamente pela mão.

- E vós - respondeu ele tranquilamente -, sois a filha bastarda de Milão. Acreditais realmente que eu correria o risco de tomar banho nesse poço já visitado por tão nojento populacho? - Com a mão livre, Catarina esbofeteou-o. César sorriu e largou-a. Ela recuou, enquanto ele se curvava para voltar a laçar as botas. - Conduzir-vos-ei aos meus aposentos na cidade

- disse-lhe. - E ficai tranquila que esta noite dormireis um sono virginal. Os meus oficiais montarão guarda e manterão longe os Franceses. Quer vos agrade ou não. - Levantou-se.

- Estais pronta?

Catarina fez-lhe frente, serena e altiva.

- Sim, estou pronta.

César abriu a porta para a deixar sair para o corredor.

- Desagrada-me, dona - disse- lhe com cortesia -, que sejais obrigada a caminhar por cima dos corpos dos que tombaram. Mas não há outro caminho.

- Duque Valentino - disse Catarina altiva -, em minha vida vi muitos mortos. É inútil chorar os que caíram. Para eles tudo acabou. O único verdadeiro triunfo é o da morte, meu senhor. Um dia o descobrireis, vós também, estai certo disso - proferiu numa quase ameaça.

César inclinou a cabeça.

- Sem dúvida alguma, dona. Porém, esse dia poderá estar mais perto de vós do que de mim. O vosso reinado acabou agora para vós, para mim começa. E tenho a intenção de saborear o meu triunfo, como César. Vivo e em Roma. E vós me acompanhareis.

Roma. Última semana de Fevereiro de 1500. Era tempo de Carnaval, a época em que, como ia referir-se um assombrado emissário do sultão, todos os cristãos enlouquecem. Cortesãs vestidas de rapazes vagabundeavam pelas ruas e atiravam ovos dourados cheios de água de rosas aos homens em que pousavam os olhos. Eram corridas de burros e de javardos, de prostitutas e de judeus ao longo da Via Larga. Naquele dia, 26 de Fevereiro, a Via Larga estava particularmente concorrida. Não só era Carnaval, como era ano de jubileu, e a cidade estava inundada de peregrinos, desejosos de para si abrirem o caminho dos céus graças às especiais indulgências do pontífice; naquele dia as ruas estavam apinhadas principalmente por romanos, vindos para ver o triunfo, em estilo romano, do filho do papa, o duque Valentino, o qual entraria na cidade pela Porta do Povo, acompanhado pela sua prisioneira Dona Catarina Sforza de Forli.

Fora da Porta do Povo, esperava um Burchard desesperado. Ali fora enviado por Rodrigo para que organizasse o cortejo que fosse adequado à ocasião e via-se em dificuldades com os suíços e gascões de César, os quais recusavam reconhecer-lhe autoridade e tinham-se colocado no cortejo num local que não lhes fora atribuído. Para piorar as coisas, havia bandos de ciganos e campónios, garotos e vadios que se tinham posto na cauda das tropas de César nas aldeias ao longo da Via Flínia e que Burchard de modo algum estava em condições de ter sob controlo. Mesmo os personagens de maior craveira não sabiam comportar-se devidamente e os enviados de Inglaterra e de Nápoles lutavam pela precedência com os representantes do cunhado de César, o irmão de Charlotte e rei de Navarra, Jean d'Albret. O desconsolado Burchard sentia-se pior que no dia da entrada em Roma do rei Carlos.

Apenas César continuava calmo, digno e dramático no seu traje negro reavivado apenas com o colar de ouro da Ordem de São Miguel. Era a sua primeira reaparição em Roma desde que partira com grande pompa para França dezoito meses atrás. Todos notaram como estava mudado, a espartana simplicidade do seu vestuário em comparação com o fausto opulento dos trajes com que partira em 1498, a atitude de serena superioridade com que se sentava no seu corcel à frente da coluna de soldados. Tinha apenas vinte e quatro anos e, enquanto as mulheres admiravam a sua beleza, os homens não deixavam de notar certas semelhanças com o César da antiga Roma, ainda mais patentes por um cortejo alegórico celebrando os seus triunfos que se daria no dia seguinte na Praça Navona. Quase todos vaticinaram um grande futuro para o Valentino, mas ao dizerem-no não deixaram de se sentir preocupados.

Rodrigo, por seu lado, embalava sentimentos de alegria infinita. Os embaixadores viram-no alternar o choro com o riso, enquanto estendia o pescoço da galeria em frente de São Pedro, para tentar observar melhor a passagem do cortejo do filho em direcção ao Vaticano. Depois apressou-se a ir para a Sala do Pappagallo para receber formalmente César. Também ali lhe era difícil estar imóvel no trono, enquanto esperava que as portas se abrissem para deixarem passar o filho.

E, finalmente, no clangor das tubas, as portas abriram-se, de par em par, e César entrou entre filas de guardas pontifícios e foi ajoelhar-se perante o papa.

- Santissimo Padre - entoou em voz aguda -, neste ano de jubileu entrego nas vossas mãos a cidade e o povo que conquistei para a Santa Sé.

Rodrigo não pôde aguentar mais e exclamou:

- Levanta-te! Levanta-te, meu filho amado! - abraçou César, enquanto lhe vinham aos olhos lágrimas de orgulho. Dom César. Em triunfo! Sereis senhor da Romanha, vos nomearemos capitão-general das nossas tropas, porta-bandeira da Santa Madre Igreja. Sereis distinguido com a Rosa de Ouro, em sinal da nossa estima e do nosso grande afecto. Gloria paa;i et Filio. - Atraindo César a si, murmurou-lhe ao ouvido em espanhol: - Então, onde está Catarina?

Rodrigo recebeu Catarina Sforza, sua prisioneira, na mesma Sala do Pappagallo que vira a entrada triunfal de César. A assistir ao encontro estavam apenas o pontífice, César a seu lado e Lucrécia sentada numa almofada a seus pés. Rodrigo recordava Catarina com vinte anos, jovem e audaz virago que, com a es pada em punho, defendera Santo Ângelo contra a turba romana nos tempos do papa Sisto. A sua face traiu uma certa desilusão quando Catarina se ajoelhou na sua presença com a cabeça inclinada em sinal de reverência.

- Ah, era mais jovem - murmurou Rodrigo para consigo, abençoando-a com o sinal da Cruz. - In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti, amen - recitou. Depois, em tom normal, disse gentilmente: - Da última vez que nos vimos, Catarina, levámos vosso filho à fonte.

- Há quinze anos, Santidade - respondeu de imediato Catarina sorrindo e elevando o rosto para o olhar.

- E defendestes Santo Ângelo aguentando os espaldões com um falcão numa mão e a espada na outra. - Voltou-se para Lucrécia: - Lucrécia, lembras- te, tinhas só cinco anos, lembras-te do troar dos canhões?

- Sim, Santo Padre.

Rodrigo voltou a olhar Catarina, sempre em tom cordial.

- Estais dignamente alojada no Belvedere. Tencionamos honrar-vos como hóspeda, não como prisioneira.

César deu pretexto ao pai:

- É só necessário que assineis uma declaração em que renuncieis aos vossos direitos e aos dos vossos filhos sobre as cidades de Imola e Forli que eu tenho na mão. E - recuperarei a liberdade? - perguntou Catarina.

- Ficareis em Roma - respondeu ele.

- Logo, nada me ofereceis, duque. Estou aqui. Como vedes.

Rodrigo manifestou a sua autoridade intervindo.

- Não sois humilde, Catarina, se bem que ajoelhada. Que desejais?

- Peço muito humildemente a Vossa Santidade que me deige partir. Para Florença.

- Onde vos encontrareis com o vosso filho. - O tom de Rodrigo era sério. - É tolice da vossa parte opor-vos às vontades do duque. Não tendes amigos. O duque Ludovico, vosso tio, é prisioneiro. Juntamente com o outro vosso tio Ascânio. Estão ambos nas mãos dos Franceses.

A face de Lucrécia traía a sua tristeza por ter de assistir àquela cena. Levantou-se da almofada.

- Santo Padre. Quereis desculpar-me?

Rodrigo fez-lhe um aceno de consentimento, interessado na negociação em curso. César acompanhou-a atentamente com o olhar. Que dizeis? - trovejou Rodrigo, voltado para Catarina.

- Estou a dizer que nunca renunciarei às minhas cidades, Santidade. Pelo bem dos meus filhos.

- Então ficareis na prisão como toda a família Sforza - disse-lhe César em tom conclusivo, girando nos tacões para seguir Lucrécia.

- César! - Rodrigo estava irritado.

- Perdoai-me, Santo Padre, mas há uma questão que exige a minha presença - respondeu César continuando a caminhar para a porta.

- Que devemos fazer da senhora? - perguntou Rodrigo quase abatido.

- Que seja acorrentada à parede. . . até que a sua língua se torne mais suave - respondeu César, cruelmente, um instante antes de sair.

- Lucrécia! Espera! - A sua voz ecoou pelo longo corredor.

Lucrécia parou de má vontade e voltou-se, esperando que o irmão a alcançasse. - Por que fugiste? - perguntou-lhe César perscrutando-lhe o rosto, procurando um sinal que lhe revelasse os seus sentimentos e agarrando-a pela mão. - Vou ter com Afonso. para lhe dizer que os seus tios foram capturados pelos Franceses. - Procurou libertar-se. Estás a magoar-me, César. Peço-te, deixa-me ir.

César falou-lhe com arrebatamento e ternura:

- Nosso pai contou quando eras menina em Montegiordano. Quando ficámos com nossa mãe e tu estavas assustada com os canhões, lembras-te? Prometi- te então que viria a ser soldado e com isso ficaste tranquila. Fui leal. Só por tua causa.

- Tens uma mulher em França. E agora tens uma filharespondeu Lucrécia com desinteresse.

- Não me importo nada com eles. Sempre foi assim para mim, só tu e eu, tal como quando éramos crianças. - Atraiu-a a si e, com voz firme e exigente, pediu-lhe: - Escolhe agora, tens de escolher.

- Escolher?

- Ser-me fiel, a mim. Ou a Afonso.

A face de Lucrécia ensombreceu.

- Afonso é meu marido, César. Solta-me as mãos - ordenou-lhe.

- Não te deixarei ir. Sem que tenhas jurado! - exclamou ele.

- Estás louco. E depois não é verdade. Não foste leal. E não foste fiel. Era a língua espanhola aquela que falávamos debaixo dos lençóis em Montegiordano. E bailávamos a mourisca. Em vez disso tu casaste com a França, César. E és tu a ter de escolher agora. - Com um esforço supremo soltou-se. Não compreendes? - perguntou-lhe quase desesperada. Eu amo Afonso! - Depois repetiu lentamente: - Eu. . . amo. . . Afonso.

Voltou-se e fugiu a correr pelo corredor. César ficou a vê-la partir com a face sombria e os olhos tenebrosos.

Valentino estava sentado nos seus aposentos a jogar negligentemente aos dados com Michelotto. Lá fora desencadeara-se um violento temporal estivo, com rajadas de vento e metralha de granizo a sacudir as janelas num ribombar de trovões. De repente, um estrondo particularmente forte fez vibrar todo o palácio. Seguiu-se um silêncio de morte, depois uma confusão distante de gritos e de passos de corrida. Os dois homens trocaram um olhar interrogativo. Michelotto fez instintivamente o sinal da Cruz. César levantou-se e caminhou para a porta. Naquele instante ela foi aberta de par em par e Burchard, coberto de pó, arquejante, entrou sem cerimónias.

- Senhor duque ! O papa. um acidente.

Atrás dele, pela porta que ficara aberta, chegavam vozes alteradas pelo pânico:

- O papa morreu ! O papa morreu !

César estava petrificado, o rosto branco como mármore. Por um instante viu o seu mundo cair aos pedaços antes de ter tido tempo de dele se apoderar. Depois empurrou Burchard e precipitou-se para os aposentos de seu pai, seguido por Michelotto. Burchard correu atrás deles e, ofegando, explicou:

- O Santo Padre estava com o banqueiro Chigi, falavam dos castelos dos Caetani, a chaminé desabou. Gaspar e eu escapámos. Eles ficaram sepultados.

Mas Rodrigo estava salvo. A grande trave que tombara sobre o trono papal, matando Lourenço Chigi com quem conversava, tinha-o protegido da cascata de escombros. Quando César che gou à sala, o camerlengo de Rodrigo, Gaspar Poto, com a ajuda

de alguns guardas, tinha já retirado Rodrigo dos destroços. Rodrigo sangrava de uma ferida superficial na cabeça, estava fraco, mas consciente. - pai !

César caiu de joelhos agarrando uma mão do papa e levando-a aos lábios. Naquele momento ele próprio parecia ter escapado à morte. Naquele instante apercebia-se não só de quanto dependia da vida de Rodrigo, como entendia também a fragilidade de tudo. Compreendeu então que tinha de andar depressa para conquistar o que queria e para consolidar o seu domínio. Aquela trave que ficara ameaçadoramente em equilíbrio por cima da cabeça de seu pai teria podido facilmente despedaçar o seu futuro. Foi tomado portanto por uma íntima urgência, que nunca antes sentira. Com a mesma facilidade poderia ser César ou nada.

Rodrigo estava deitado, amparado por algumas almofadas, servido pela sua nova favorita, Angelina. César e Afonso encontravam-se à sua cabeceira, Lucrécia estava de joelhos e beijava a mão ligada do pai. Estava também Júlia Farnese, enviada urgentemente para que intercedesse por seu tio, Diogo Caetani, que continuava preso em Santo Angelo, depois de os Bórgias lhe terem confiscado também todos os bens. Rodrigo contemplou-a por um momento, depois sorriu e estendeu um braço para lhe afagar o rosto.

- Houve um tempo em que vos amámos - disse.

Encorajada, Júlia começou:

- Santidade, meu tio Diogo Caetani. . .

Rodrigo fez um gesto cansado com a mão:

- Será libertado. - Fitou as caras consternadas em redor do seu leito. - Logo - disse sorrindo, mas com um tom de voz grave - tínheis pensado que eu já estava bom para os vermes, não foi? Que faríeis agora? Das vossas discórdias, por exemplo, César. . . Afonso? -

Nenhum deles respondeu e os seus olhos não se encontraram.

- Aprendam a conviver -     pediu-lhes vivamente Rodrigo. - A vida é tão bela. Um dia o aprendereis. A vida é bela! - Depois deu sinais de fadiga e despediu-os. - Lucrécia, só te quero a ti e à Angelina.

- Gostaria de vos falar mais tarde, Santo Padre. Diogo Caetani. . . - apressou-se a dizer César.

- Sim - interrompeu-o Rodrigo com voz ensonada -, mais tarde. . . dói-me a cabeça. Angelina molhará e torcerá uma toalha e ma aplicará. . . - acrescentou deixando-se cair para trás e fechando os olhos.

As duas mulheres ficaram a seu lado, enquanto César e Afonso se retiravam evitando sempre olhar-se.

Afonso estava de pé a contemplar Lucrécia sentada ao espelho, aplicada a colocar uma fiada de pérolas no penteado. Lucrécia observou a expressão do marido no espelho e murmurou, voltando-se:

- Afonso! Que foi?

- Diogo Caetani morreu - respondeu ele, sombrio.

- Morreu? Quando?

- Foi envenenado. - Afonso voltou-se e dirigiu-se para a janela. - O comandante da guarda de Santo Ângelo convocou a mulher e as irmãs de Diogo ontem à noite. Disse-lhes que ele se encontrava doente, mas estava morto.

Lucrécia ficou em silêncio por uns instantes, depois disse ansiosa :

Mas por que se pensa que tenha sido envenenado?

- Diogo tinha-o suspeitado pelas dores que sentira depois de ter comido a primeira vez. A seguir, a mãe começara a levar-lhe ela própria todos os alimentos à prisão. Nestes últimos três dias os guardas não lhe permitiram fazê-lo. - Fez uma pausa e voltou-se para fitar a mulher. - Lucrécia, todos sabem que foi envenenado.

- Não foi meu pai, se é isso que estás a insinuar! - exclamou Lucrécia. Levantou-se do escabelo e aproximou-se de Afonso. Agarrou-lhe a mão. - Eu estava presente, quando prometeu que o libertaria - disse amargurada. - Por que haveria de o envenenar?

Afonso agarrou-a pelos dois braços, tendo-a de frente para si, desejoso que enfrentasse aquilo que ele considerava a verdade.

- Eu não creio que tenha sido o papa - disse-lhe calmamente. - Eu creio que a ordem veio de César.

- Mas não tinha motivo.

- Não - interrompeu-a Afonso com uma careta. - Não tinha motivo. Por isso ninguém suspeita dele.

Enquanto Lucrécia desviava o olhar, Afonso largou-lhe os braços.

Lucrécia afastou-se um passo, colérica.

- É absurdo - afirmou com altivez. - César tem razão ao queixar-se de que o odeias. Sempre que acontece alguma coisa má, tu julgas que a culpa é dele.

- Não sou só eu a pensar assim; acredita.

Enfurecida, Lucrécia voltou-se de repente, depois tornou a sentar-se. Começou a torcer nervosamente os cabelos em volta dos dedos.

- Não me interessam nada os outros nem aquilo que pensam.

Mas Afonso prosseguiu, inexorável, de braços cruzados, fitando-a:

- Dizem que o fez por ti.

Estupefacta, Lucrécia girou no assento.

- Por mim?

- Teu pai deu-te Sermoneta, uma propriedade de Diogo. Se Diogo tivesse sido libertado, poderia um dia querer recuperar a sua propriedade. Mas os mortos já não podem ter pretensões a nada. Eu acho que César o mandou envenenar por tua causa.

- Mas César sabe que nunca eu o teria consentido. - Lucrécia estava horrorizada e, todavia, não queria acreditar em Afonso.

- Quer queiras quer não, tu própria estás envolvida porque lhe deves a tua propriedade. É uma dívida de sangue que não podes menosprezar. Assim as pessoas dirão que és uma autên tica Bórgia. - Como que ferido por um acesso de desgosto e ira, Afonso voltou-se para outro lado. - César é uma criatura das trevas. Arrastar- nos-á a todos na voragem. Também te arrastará a ti e ao papa.

- Afonso, não é verdade - protestou Lucrécia implorante. - Deixa-me falar com César.

Mas Afonso já não a escutava. Qualquer coisa ou alguém no jardim em baixo atraíra a sua atenção.

- Gostaria que morresse - disse entre dentes, semicerrando os olhos como se tivesse tido uma ideia merecedora de consideração. Depois voltou-se e saiu em grandes e resolutas passadas.

- Afonso! Volta! - gritou Lucrécia. Depois atirou-se de bruços para o leito e rompeu em soluços: - Afonso. . . César. . .

As estrelas brilhavam num cintilante céu nocturno por cima de São Pedro e a praça em frente dos degraus da igreja estava insolitamente serena. Se bem que fosse uma quente noite de Julho, Afonso arrepiou-se um pouco, envolvendo-se na capa estival, dirigindo-se para o portão de Santa Maria in Portico, sua residência. Repentinamente, da sombra na base da colunata, emergiu um grupo de homens envoltos em capas pretas. Foram ao seu encontro. Afonso estugou o passo, esperando alcançar a tempo o portão de casa, mas num instante os desconhecidos estavam atrás de si.

- Socorro! Guarda! - berrou Afonso, quando já sentia o ferro a penetrar-lhe uma coxa. Outra estocada feriu-o num braço. Caiu, então, meio inconsciente devido a uma pancada na cabeça. Naquele momento ouviu o rumor de passos de corrida: era a guarda pontifícia que acudia aos seus gritos. Os seus agressores abandonaram o campo percorrendo transversalmente a escadaria e escondendo-se nas trevas. Ouviu-se um galope de cascos de cavalo. Os guardas espantados reconheceram Afonso e, meio amparando-o, meio arrastando-o, levaram-no para o Vaticano, deixando atrás deles um rasto de sangue nos degraus.

À primeira vista, vendo o marido inconsciente e ensanguentado, Lucrécia pensou em correr e pedir ajuda e protecção ao pai.

- Pai! - exclamou, entrando pelo seu quarto. Rodrigo estava a ditar uma carta ao seu camerlengo, Gaspar Poto. - Pai! Lucrécia estava histérica. - Afonso morre. morre !Agarrou o braço de Rodrigo. - Foi agredido mesmo agora na praça. Está ferido. Salva-o, peço-te, salva-o!

- Calma, minha filha - consolou-a Rodrigo. Depois voltou-se para Poto: - Vai ver! - ordenou-lhe.

O camerlengo obedeceu e saiu do quarto apressadamente. - Pai! - Lucrécia estava abatida pelo desespero. - Está a morrer por perda de sangue.

- Está um médico com ele?

- Está Sancha. Vim avisar-te. Oh, pai, não posso acreditar. Quem pode ter querido fazer mal a Afonso? Era tão bom. . . interrompeu-se e voltou a cabeça, seguindo a direcção do olhar de Rodrigo. César estava a entrar com uma expressão perturbada. É verdade? - perguntou-lhe Rodrigo.

César confirmou.

- Foi assaltado nos degraus da basilica por um grupo de homens que se pôs em fuga. - Voltou-se para Lucrécia, solícito: - Vi os seus ferimentos. Estão a tratá-lo. Acho que se salvará.

- Viverá! - exclamou Lucrécia, levantando-se e correndo para a porta. - Tenho de correr para ele, estar com ele, tratá-lo. Já ninguém poderá fazer-lhe mal!

Rodrigo lançou um olhar interrogativo ao filho.

- Disseste que eram homens armados. - Depois, visto que César não respondia, perguntou vacilante: - Não procuraste por acaso matar o duque?

César voltava-lhe as costas e olhava para fora pela janela.

- Não - respondeu -, mas se o tivesse feito, só teria tido aquilo que merece.

Rodrigo sentiu-se muito aliviado, mas as suas suspeitas não tinham desaparecido inteiramente.

- O rei de Nápoles não o perdoaria - avisou-o. - Roga a Deus que se salve. Montarei guarda nos seus aposentos. Entendido?

César continuou a olhar pela janela. Depois, lentamente, disse:

- Uma coisa compreendo. Agora, se viver, será ele a tentar matar-me.

Afonso viveu. Era jovem e forte e os médicos do palácio eram sabedores. Dali a um mês pôde levantar-se para se sentar na poltrona no seu quarto da nova torre Bórgia, aquela que Rodrigo mandara erigir voltada para os seus jardins no Vaticano. O sol cintilante daquela manhã de Agosto inundava a sala, não obscurecida ainda para defesa do calor da tarde. Sancha e Lucrécia faziam companhia a Afonso e com ele conversavam amavelmente. A seus pés o corcunda preferido de Sancha tocava alaúde.

- Sabíeis - dizia Sancha olhando com interesse o corcunda - que os homens com corcova eram considerados muito viris, tal como os anões?

Lucrécia sorriu.

- Sancha, não sabes falar de outra coisa.

Afonso estava divertido.

- Não há outro argumento sobre o qual esteja mais preparada. - Estendeu uma mão num gesto afectuoso para Lucrécia.

Foram interrompidos por alguém que bateu à porta.

- Entre! - disse Afonso.

Houve um silêncio repentino à entrada de Michelotto seguido por Ramiro. O corcunda deixou cair o alaúde e escondeu-se atrás de Sancha para se proteger.

- Que houve? Por que estais aqui? - perguntou Lucrécia, preocupada.

Michelotto inclinou-se, de face impassível e voz suave.

- Venho da parte do meu amo, senhora. Pede que o duque de Biselli venha connosco.

- Não! - exclamou Lucrécia voltando-se para Afonso. - Tu não irás com eles!

Afonso voltou para eles um olhar atento, mas disse simplesmente:

- Tudo correrá bem. Vai ter com teu pai e diz-lhe que vieram aqui os homens de César. - Depois, enquanto Lucrécia se levantava para obedecer, insistiu: - E apressa-te.

Sancha levantou-se para acompanhar Lucrécia, com o corcunda assustado, agarrado às suas vestes.            

- E eu irei ter com César - disse. - Se quer ver-te, deve          ser ele a vir aqui. - Depois, antes de sair, desafiou o olhar de Michelotto. - Meu irmão está sob a protecção do rei de Nápoles e do Santo Padre. Não o esqueçam.

Michelotto inclinou-se perante a princesa que saía.

- Não o esqueço, dona - respondeu. Depois sorriu e em voz baixa acrescentou: - Estou ao serviço do filho.

Afonso ouviu-o e tentou levantar-se da cadeira, mas já Michelotto e Ramiro se aproximavam.

- Meu senhor - disse Michelotto com burlesco cuidado -, estais fatigado. Deveis repousar em paz.

Lestamente os dois homens pegaram em Afonso e transportaram-no para a cama. Houve uma breve luta, depois o silêncio quebrado por um grito estrangulado e logo sufocado.

Lucrécia, que percorria os corredores em direcção aos aposentos de seu pai, virou uma esquina para cair nos braços de César. Este arrastou-a enquanto ela lhe espancava o tórax com os punhos, na tentativa de se soltar.

- Não ! Deixa-me ir. tenho.

- Lucrécia - disse César em tom grave -, tencionava matar-me. Vi-o pela janela.

- Não! - Lucrécia naquele ponto soltou um grito de angústia, intuindo finalmente o significado das palavras de César. Aterrorizada, murmurou: - Afonso!

Abateu-se entre os braços do irmão. Ele sorriu-lhe afectuosamente como se fosse uma menina.

- Tu não deves ver nada. E está tudo acabado.

César ergueu Lucrécia e encaminhou-se, transportando-a, para a torre Bórgia.

- Não ficaram traços no corpo? - perguntou César da entrada, com Lucrécia desmaiada nos braços.

Michelotto tranquilizou-o.

- Então tudo vai bem. - Baixou o olhar para a irmã. Ela não deve ver - disse indicando com a cabeça o corpo no leito. - Levem-no para a Capela de Santa Maria, na basílica. O duque de Biselli deve jazer onde repousa o duque de Gandia - sentenciou com a sombra de um sorriso. - Mas meu cunhado não merece as honras atribuídas a meu irmão. Providenciem para que seja metido no túmulo rapidamente e em silêncio.

Michelotto inclinou a cabeça.

- Assim se fará, meu senhor - respondeu.

Michelotto e Ramiro envolveram rapidamente o cadáver na coberta da cama com a perícia dos profissionais e transportaram-no para fora do quarto. César deitou Lucrécia delicadamente na cama, ficou por um instante em contemplação, depois inclinou-se e acariciou-lhe uma das faces.

- Lucrécia? - Rodrigo estava sentado com a cabeça entre as mãos perante um César implacável de rosto impassível no tremeluzir da luz do candeeiro. A sua voz era aflita, desesperada. - Como está? Como te responderam? As duas?

- Trancaram a porta. Sancha está com Lucrécia e não nos deixa falar. Seria oportuno mandá-la para Nápoles.

- Nápoles! - Rodrigo suspirou. - Que devemos fazer?             Como informar o rei, agora?        

- Diz-lhe que seu filho tinha intenção de matar-me. Vi-o à janela com um arco na mão.

- E julgas que o rei Federico acreditaria em tal coisa?

- Acredito que outros que têm vontade de me matar não o esquecerão.

Rodrigo fitou-o, sentindo um arrepio de horror:

- Ou César ou nada - disse.

- Eu escolho o meu caminho - respondeu César, sereno. - Não há outros.

- E se nós resolvermos não te acompanhar?

- Então, Santo Padre, deveis fazer aquilo que considerais melhor.

Rodrigo deixou-se cair para trás cansado e fechou os olhos.

- O que eu considero melhor - repetiu irónico. - Desde os meus tempos de rapaz que não faço o que quero, desde os tempos em que brincava nos olivais de Valença. A Espanha. . . o meu coração está ainda em Espanha - reflectiu em voz alta.

Depois, com um certo esforço, voltou ao presente e reabriu os olhos. Lançou um olhar gélido a César. - Que prometeste a Luís? Tens de mo dizer, César. Diz-mo agora.

Com voz átona, César respondeu:

- Prometi Nápoles à França. Em troca do apoio de Luís para a conquista da Romanha.

- Logo era verdade. . .

- Era.

- Não tinhas o direito de negociar um tratado desse género. - Rodrigo ergueu-se com dignidade. - Vai pelo teu

caminho, César. Mas só. - Fez-lhe sinal de que o despedia, mas César não se moveu. - Escreveremos a Federico e explicar-lhe-emos o que foi feito. Para a tua casa e a tua familia!

- Logo, tencionais acusar-me publicamente? De homicídio?

- Sim. De homicídio!

Houve uma pausa. Depois, lenta e distintamente, César disse:

- Então vos direi. Porque não é a primeira vez. Responderei não só pela morte de Afonso, como ainda pela de meu irmão. - Havia crueldade na sua voz. - Não haveis esquecido o motivo pelo qual João morreu, não é verdade? - Rodrigo encostou-se lentamente na sua poltrona. César aproximou-se, dominando-o de cima. - As irmãs de São Sisto cuidam de um infante que já tem dois anos: João. Eu cometi crimes que confessarei, mas há um crime que não cometi.

Rodrigo parecia incapaz de falar. Olhava César, como que hipnotizado.

- Protegerei a honra desta casa. e tornarei grande o nome dos Bórgias, a fim de que dure muito tempo mesmo quando já formos pó. Sois vós, Santo Padre, a ter agora de decidir se nos devemos inclinar perante o destino. Ou vergá-lo à nossa vontade.

Durante um longo momento Rodrigo continuou a fitar César sem falar. Depois ergueu-se com os ombros vergados.

- Tenho de ir ver Lucrécia - disse - porque me dizem que se afoga nas próprias lágrimas. - À porta demorou-se, mas não olhou o filho. - Viste Afonso à janela com um arco em punho, uma seta apontada ao teu coração.

César inclinou a cabeça.

- Sim, Santo Padre. Assim escreverei ao rei. Mas nada pode haver entre nós e Nápoles deste dia em diante. - E esta foi a razão pela qual o mataste.

Saiu, olhando na sua frente. César observou-o com um sorriso de triunfo.

Rodrigo, melancólico e preocupado, sentou-se ao lado da cama de Lucrécia e tinha as mãos dela entre as suas na vã tentativa de a consolar. Sancha estava de pé, em atitude vingativa, do outro lado do leito. Olhava Rodrigo, turva e altiva. Da cama veio a voz fraca de Lucrécia:

- Os homens que o...

- Foram presos três homens - respondeu Rodrigo. O corcunda e os médicos que o tratavam. Serão torturados.

- Michelotto? Ramiro? - Lucrécia não entendia.

- E César - interveio Sancha, furiosa. - Bem, Santo Padre. Dizei-lhe o que haveis feito por César.

Rodrigo não tinha coragem para a olhar.

- Deixai este quarto. É o que vos ordeno! - gritou.

- Agora saberá a verdade. - sentenciou Sancha com ódio e repulsa.

- Estais banida! Confinada a Nápoles. Partireis imediatamente ou vos mandarei fustigar!

Com a cabeça altiva, Sancha dirigiu-se para a porta. Agora não ficaria em Roma nem que todo o colégio dos cardeais se pusesse de joelhos! - Enquanto saía ainda disse:

- Pergunta-lhe, Lucrécia, pergunta-lhe que prometeu ele a César. Saberás agora quanto um homem pode ser malvado. Nada mais que um homem. Pergunta-lhe. . . pergunta-lhe o que fez.

Saiu batendo com a porta.

- Lucrécia! - Rodrigo afagava os cabelos da filha implorante. - És tão nova. amanhã tudo terá passado. Pensas agora que nunca haverá um amanhã. Mas verás. Amanhã o Sol nascerá como todos os dias. - Depois, enquanto Lucrécia virava a cabeça para o outro lado: - Pensa na família, pensa em nós. E César. . . Quer a mais alta glória, não apenas para si, mas para todos os Bórgias. E tu. . . - Beijou-lhe a mão. Afonso queria matá-lo. Isso também nós acreditamos. Já não existe. Mas um dia, e um dia que não vem longe, virá um outro homem. Igualmente belo e muito mais de honrar. Não ! Virá.

- Não o verei nunca mais. E nunca mais verei César. e se tivesse de o ver, arrancar-lhe-ia os olhos.

- Repara no que estás a dizer. - respondeu-lhe Rodrigo nervoso.

- Odeio-te. Tu não podes fazer nada por mim. Restitui-mo! Restitui-mo ! Restitui-mo ! Quero Afonso ! - exclamou ela afundando a cabeça nas almofadas e recomeçando a chorar.

Rodrigo levantou-se e, por uns instantes, deteve-se a olhá-la.

- Tens de ir para Nepi - disse-lhe em tom grave. - Assim que tiveres forças. E o pequeno Rodrigo também. Teve febre. É perigoso ficar em Roma nesta altura. - Depois, uma vez que Lucrécia não respondia, foi tomado pela tristeza. - Não posso fazer nada. Perdoa-me.

Uma voz sufocada saiu das almofadas:

- Sim. Eu sei. Tenho de ir para Nepi. Será oportuno.

Rodrigo voltou-se e saiu com passos pesados e lentos, com o andar vacilante de um velho.

O papa mandou embora a filha e a nora e todos os outros excepto o Valentino, escreveu, perplexo, Burchard no seu diário. Todos os Romanos tremem no temor de serem mortos por este duque. E para muitos a causa da morte de Afonso foi a extrema sede de domínio de César Valentino Bórgia, que reina agora no Vaticano.

                   A ESPOSA VIÚVA

César, mascarado e acompanhado por Paulo Orsini e por um fidalgo francês, deixou o Vaticano e saiu de Roma para um encontro que há algum tempo aguardava. Estava para receber a recompensa pela eliminação de Afonso de Biselli. Chegado ao pátio de uma taberna de campo, desmontou, atirou as rédeas para um moço de estrebaria e entrou. Quando transpôs a entrada, seguido por Paulo Orsini, Yves d'Alègre levantou-se para o saudar.

- Capitão D'Alègre! - César abraçou-o calorosamente. Depois, indicando- lhe o companheiro, disse: - Paulo Orsini. Yves d'Alègre ao serviço de Sua Majestade, o rei Luís de França.

- O duque descreveu-me o vosso valor na tomada de Forli - disse cortesmente Paulo Orsini.

D'Alègre inclinou-se:

- O duque é gentil.

César gritou ao taberneiro para trazer vinho e convidou os outros a sentarem-se.

- Que novidades há de Paris? - perguntou a D'Alègre. - Tenho quatro mil homens sob o meu comando, as minhas tropas e as dos senhores Paulo e Júlio, seu irmão, agora empenhadas em me servirem. Mas não me moverei de Roma sem ter a promessa do rei.

D'Alègre sorriu enquanto tirava da capa um pergaminho enrolado e o entregava a César.

- Tenho-a aqui, duque, com o sinete do rei. Sua Majestade consentiu em enviar dois mil infantes e três mil lanceiros.

César levantou o sobrolho.

- Os lanceiros impressionam as gentes dos campos, mas não servem para abrir as muralhas das cidades. Dá-me artilharia? Falconetes. Canhões pesados?

- Sua Majestade não foi precisa, mas preocupar-me-ei em referir-lhe as vossas exigências.

- Canhões de assédio - disse César com firmeza. - Todos quantos possa pôr à minha disposição. E uma bombarda. Com muitas munições.

Calou-se enquanto o taberneiro chegava com numerosas garrafas de vinho e copos numa bandeja, que pousou em cima da mesa.

- E quanto a nós que prometemos ao rei? - perguntou Paulo Orsini.

- Quereis saber o que quanto a vós prometi? - apostrofou-o ironicamente César. - Capitão, explique a monsenhor o que prometi.

D'Alègre falou com solenidade, como se estivesse a ler as cláusulas de um contrato escrito:

- O duque de Valentinois prometeu garantir livre passagem às tropas francesas para a reconquista do reino de Nápoles. Para cujo reino contribuirá com tropas suas e com o reconhecimento por parte de Sua Santidade o papa da conquista do rei.

- Claro?! - disse César em tom tranquilizador. - Nenhum dano será causado aos Orsini. São os vossos inimigos Colonna por estarem ligados a Nápoles. Eles têm a temer. O capitão D'Alègre nada sabe das nossas brigas entre famílias romanas. Mas podes confirmar que aquilo que disse é verdade.

- Meu senhor - respondeu Paulo num impulso e com entusiasmo -, não tenho necessidade de outra palavra senão da tua.

César lançou-lhe um breve olhar, escondendo o seu desprezo por tanta ingenuidade.

- Não confies em ninguém que tenha uma só razão para te enganar - admoestou-o secamente. - O capitão D'Alègre não tem nenhuma. - Voltou-se depois para o francês. D'Alègre, quando voltardes a França gostaria que levásseis ofertas a minha mulher. Não vos forçarei com coisas pesadas, porque são apenas especiarias e doces de Veneza, como ela própria me deu a saber que desejava.

D'Alègre pareceu contrito:

- Senhor, tinha-me esquecido. A duquesa de Valentinois entregou-me duas mensagens. Uma para vós e outra para vossa irmã, Dona Lucrécia.

César levantou-se bruscamente. O colóquio estava terminado.

- Não está em Roma - disse seco, saindo.

Rodrigo recebeu a carta de Lucrécia enquanto se preparava para receber o embaixador veneziano e César. Ficou maravilhado ao reconhecer a sua característica caligrafia desalinhada, porque pela cólera e pela dor evitara até àquele momento todo o contacto com o resto da familia em Roma. Leu-a, enrugou a testa e pô-la de parte quando finalmente chegou César que esperava há já uma hora. Falou-lhe em tom de compreensível desespero.

- Aqui estás finalmente. Quase se tornou impossível contactar contigo. Ninguém consegue encontrar-te antes do meio-dia. Fazes da noite dia e do dia noite. O emissário de Veneza espera há duas horas. Dissemos-lhe que tínhamos antes de falar contigo e despedimo-lo. Se te tivesses apresentado a tempo, teríamos podido concluir antes da madrugada.

- Admiro o vosso vigor, Santo Padre. - César teve um sorriso alusivo. - Depois de termos estado entretidos com as senhoras a noite passada.

Uma expressão de reminiscências agradáveis se desenhou no rosto de Rodrigo:

- Ah, sim, as dançarinas - disse. Depois, um pouco asperamente: - Mas eu levantei-me pelas seis horas. - César inclinou-se reverente. Rodrigo, irritado, prosseguiu: - A idade em mim não me pesa. Mas tu és jovem. Como fazes quando estás em campanha? Certamente não podes dormir todo o dia.

César pôs-se sério.

- É da campanha que vim falar. A tesouraria pontifícia levanta-me dificuldades quanto à quantia que, no entanto, foi autorizada.

Rodrigo ficou surpreendido e irritado:

- Dificuldades? Como se atrevem? Durante quatro anos o nosso santo mister não teve dívidas, uma coisa que nunca antes se vira. E aumentámos as entradas. Só este ano negociámos um contrato com Chigi para os mineiros de altimen que nos garantiram uma renda muitas vezes superior ao investimento. De quanto tens necessidade para manter o exército? Quanto dinheiro por dia?

César reflectiu um instante, depois respondeu:

- Mil ducados.

- Poderias ter necessidade de uma quantia maior - disse-lhe Rodrigo em tom profissional. Entendia de finanças e irritava-o a superficialidade de César na matéria. - Nomearemos novos cardeais. É o sistema mais simples para encontrar fundos. O colégio acolherá dez ou mesmo doze membros. Dir-lhes-emos que vão ter contigo para pagar as primeiras prestações. - Meditou uns instantes fazendo contas mentalmente. E alguns pagarão também vinte mil ducados pela púrpura. Podemos nomear Marco Cornaro, para agradar a Veneza. Temos depois necessidade de algum espanhol que nos seja fiel.

César concordou.

- Sim, Santo Padre, mas existem outros problemas além do dinheiro para a campanha. A nossa segurança. Veneza. Não posso lançar-me na empresa sem estarmos certos de que Veneza esteja do nosso lado.

- Há mais qualquer coisa - acrescentou Rodrigo com uma estranha entoação na voz. - Não foi em Veneza que pensámos quando nos levantámos esta manhã. - Aproximou-se de uma mesa onde estava estendido um mapa desen rolado. - Chega aqui, César. - Pôs um dedo no mapa. César foi ao seu encontro. - Aqui - disse Rodrigo, mostrando-lhe as Marcas e a Romanha. - Aqui estão as cidades que conquistarás. Pesaro, Faença, Imola. Conseguimos a amizade de Veneza com a promessa de auxílio contra os Turcos que atacam o seu Império. Há porém um outro vizinho na fronteira setentrional que observará com suspeita o teu avanço e que talvez manifeste a sua hostilidade: Ferrara. Tomaste-a em consideração?

- Escrevi ao duque Hércules de Ferrara a propósito da próxima campanha garantindo-lhe as minhas mais amistosas intenções no que diz respeito à sua família e ao seu Estado.

Rodrigo juntou as mãos e ergueu os olhos para o tecto, como que para invocar a assistência do Senhor.

- Se algum modo existe para estarmos seguros do duque, será estabelecer com ele uma sólida aliança. - Suspirou, voltou a baixar os olhos, falsamente pudico. - Seu filho perdeu a mulher. Um bravo soldado. Vinte e quatro anos e belo.

- Um casamento - disse César de repente. - Entre Afonso d'Este - Rodrigo anuiu - e Lucrécia? - César abanou a cabeça:

- Impossível. Recusa-se até a voltar para Roma.

Rodrigo pegou na carta de Lucrécia.

- Escreveu-nos, assinando-se a mais infeliz das mulheres. Mas não voltará enquanto tu aqui estiveres, isso é verdade. E é um casamento que nunca se poderá fazer. Afonso d'Este de Ferrara. Lacrimae Christi! - exclamou o papa. - Porquê Afonso justamente. justamente o nome que ela deveria esquecer? Poderiam escolher outro nome para o rapaz! Mas pensa, Césaracrescentou indicando o mapa -, pensa nas vantagens que daí retiraremos. O território entre Veneza e a Romanha estaria para sempre seguro. E Lucrécia seria duquesa de Ferrara!

- Santo Padre - disse César, duvidoso -, Afonso d'Este é o príncipe hereditário, o príncipe legítimo, legítimo filho da mais orgulhosa família de Itália.

- E nós que te julgávamos orgulhoso - repreendeu-o Rodrigo. - Lucrécia é nossa filha. César, o duque compra-se como qualquer outro homem. É Lucrécia que é preciso persuadir. Tu podes conseguir.

- Mas nunca aceitaria encontrar-se comigo.

- Não, não o farias, se fôssemos nós a aproximá-la. Mas sente-se só e isto se depreende da sua carta. E tu tens de partir com as tuas tropas para Pesaro. Não passes, pois, muito longe, se, num impulso, desejasses fazer-lhe uma visita. És o irmão que ela mais amou - acrescentou para melhor o convencer.

César fitou a carta geográfica, meditabundo. Era evidente que o plano lhe agradava.

- Dizem que é incoerente o caminho para Nepi - observou.

Lucrécia ajoelhou-se no seu prie-Dieu e tentou rezar, mas era distraída pelos olhos vivos do macaquinho que estava sentado a seu lado e a olhava, enquanto catava as pulgas. Mas estava distraída principalmente pelos seus pensamentos. A apatia que se seguiu à dor e ao luto iniciais passara finalmente e a sua mente estava cheia por penosas recordações de amor e de paixão que a atormentavam durante as noites e mesmo nos seus momentos de oração. Sentia-se realmente muito só naquele período e tanto mais desejosa de uma companhia masculina na árida perspectiva de uma longa vida de viuvez.

- Leva Cicero lá para fora - ordenou com ira a Angelina. - Como orar à Virgem se me olha e não pára de se coçar?

Angelina pegou no animal que se lhe agarrou ao vestido, sem no entanto tirar os grandes olhos de Lucrécia.

- Não o faz por maldade, senhora.

Lucrécia sorriu.

- Mas como confessor não vale muito. Fita-me nos olhos e faz-me sentir vergonha. Angelina - disse de repente -, tens um amante?

A rapariga ficou confusa, sem saber que responder, mas Lucrécia continuou, como que falando para consigo:

- Às vezes julgo ser maldita, porque não sei esquecer.

Foi interrompida por gritos e pelo tumulto de cascos no pátio.

Angelina correu à janela.

- Senhora! - exclamou estupefacta. - É o duque Valentino. com um destacamento de homens a cavalo !

Lucrécia levantou-se e correu à janela.

- César! - exclamou pensativa. - Por que terá ele vindo?

Lucrécia deteve-se no alto da longa escadaria de pedra que conduzia ao salão do castelo. Em baixo, na escada, viu César, belo como sempre, vestido de negro, com um séquito de fidalgos entre os quais reconheceu Paulo e Júlio Orsini, atrás dele, e a sua guarda pessoal de libré com as cores amarelo e vermelho com o nome césar bordado no peitoral. Aquela repentina entrada de cor e masculinidade no tranquilo mundo feminino de Nepi, provocou alguma agitação.

Lucrécia também estava vestida de preto, com um véu que lhe cobria o rosto pálido depois de tantos dias e tantas noites de voluntário isolamento nos seus aposentos. A princípio, porém, vendo César, esqueceu a sua dignidade de viúva e correu escadas abaixo ao seu encontro. Parou quando o viu tirar a espada.

Mas César ajoelhou-se de cabeça baixa e entregou-lhe a lâmina oferecendo-lhe o punho em sinal de submissão. Lucrécia não sabia que dizer.

- Levantai-vos, duque Valentino - murmurou -, e aproximai-vos.

Ele levantou-se e subiu a escada ao encontro dela, mas não lhe tocou, nem lhe pegou na mão para a beijar. Lucrécia voltou-se apelando para toda a dignidade que lhe era possível e subiu de novo as escadas em direcção ao salão.

Naquela noite, os dois irmãos sentaram-se sozinhos à longa mesa da sala quando todos os convivas se retiraram.

- Então - perguntou ela -, por que vieste aqui? Reservava-lhe uma atitude rígida e fria. Ele, em troca, falava-lhe em tom suave e persuasivo.

- Venho dizer-te que venceste. - Inclinou-se para ela mas não lhe tocou. - Poderás regressar a Roma guando quiseres. Como viúva respeitável, como é teu direito. E aquilo que pediste. É aquilo que o Santo Padre prometeu garantir-te.

Lucrécia estava ainda alerta.

- Mandou-te dizer-me isto - César anuiu. - E tu, César, que dizes?

César encolheu os ombros.

- A tua carta era para ele. A mim não pediste nada.

- Que poderia eu pedir-te? - perguntou Lucrécia num murmúrio apaixonado. - Recordo como morreu meu marido. por ordem tua.

- Poderias pedir a minha vida. - A voz de César soou não menos emocionada que a dela. - Ceder-ta-ia.

- Não queria a tua vida.

- A vida! - considerou César. - Aqui não tens vida! Vestes- te de preto. Como os produtos da terra tal qual uma boa viúva espanhola. Mas bebes bom vinho e os teus olhos cintilaram ao ver-me e aos meus fidalgos, se bem que tenhas tentado esconder-lhes a luz. Conheço-te bem, Lúcia. Como tu me conheces. E sei que morres de vontade por voltar a viver. Olhou-a intensamente, porém, ela aguentou-lhe o olhar, impassível, sem se trair. - Nosso pai está velho, Lúcia. Não tarda que deixe de existir. Mas tu e eu podemos conquistar para nós o Mundo. E eu o conquistarei. Serei César ou não serei nada. Rei de toda a Itália. Verás.

- E de mim que farás? - perguntou-lhe Lucrécia com in diferença.

- Que queres ser?

- Eu própria.

- Então, seremos fiéis um ao outro. E a nós próprios. Levantou-se. - Tu voltarás para Roma e eu marcharei sobre Pesaro.

Lucrécia ficou surpreendida.

- Tomarás Pesaro?

- Mas não o teu Joãozinho. Escapou-me novamente. Conquistarei a cidade sem sequer desembainhar a espada.

João nunca foi corajoso. Não, nunca. Não no campo de batalha. E nem sequer na cama.

Silêncio. Lucrécia levantou os olhos para ele com uma expressão estranha. De repente envolveu-a nos braços e puxou-a a si. Ela entregou- se-lhe apaixonadamente, cabeça lançada para trás para receber os seus lábios na garganta. Depois tomou-lhe a cabeça entre as mãos para lha apertar contra o peito.

Lúcia! - Por um breve momento a voz de César transformou-se numa exclamação desesperada. Depois separaram-se e ficaram a olhar-se, ofegantes. - Lúcia - disse César, emocionado -, temos de nos dominar. Boa noite - despediu-se, voltou-se num repente e saiu.

Lucrécia estava ainda arquejante. Fechou os olhos e apoiou-se à mesa para não cair.

- Virgo Maria - murmurou. - Devo voltar para Roma.

A chuva lavava a Praça de São Pedro quando o cansado séquito de Lucrécia chegou às portas do Vaticano. Lucrécia não pôde reprimir um frémito à vista dos degraus que menos de um ano antes tinham sido manchados com o sangue de Afonso.

- Tendes frio, senhora? - perguntou-lhe Angelina, ansiosa.

Ela porém não lhe respondeu. Com a mente voltada para o passado contemplava as paredes do Vaticano e o Palácio de Santa Maria, do outro lado da praça, sua residência de rapariga e depois de esposa, com João e com Afonso. Por um momento teve medo ao entrar entre aquelas paredes que tanto tinham visto, para tornar a ficar nas mãos de seu pai e de seu irmão, frágil pedra nos seus planos, grandiosos.

- Lúcia, minha filha! É como se te visse ressuscitar do mundo dos mortos! - Apertando-a num abraço exuberante, Rodrigo manifestou a sua alegria intensa. - Agora que estás aqui, estes terríveis temporais cessarão. O sol brilhará de novo. Reaparecerão as flores. As aves voltarão a cantar. - Afastou-a um pouco examinando-a atentamente. - Acho-te boa. Um pouco pálida, talvez. Mas bela como sempre. Lúcia, minha filha, temos projectos importantes para ti. Eu e César. Um futuro radioso.

Ela soltou-se do seu abraço.

- Sim, César falou-me nisso. Porém, é impossível.

- Porque dizes impossível?

- Pai - respondeu ela com tristeza, vacilante -, justamente agora, ao atravessar a práça, pensei em Afonso e em João. Como posso voltar a casar? É melhor ficar sozinha, se aos meus maridos apenas causo desventuras. - Acreditas em más estrelas. E nós não cremos nisso - censurou-a Rodrigo. Pegou-lhe depois nas mãos com um amplo sorriso. - E a nossa estrela, a estrela dos Bórgias nasce agora sobre a Romanha. César conquistou Pesaro. Conquistou Rimini. Só Faença lhe resiste. Mas também tomará Faença, assim que pararem as chuvas. O príncipe Afonso d'Este está lá para assistir ao bombardeamento de César. Mulher de um estense ! Duquesa de Ferrara ! E César, senhor da Romanha. e depois por que há-de ficar por ali? Imaginamos um futuro tão grandioso para vós, meus filhos, e já não falta muito.

César e Afonso d'Este observavam os tiros da artilharia sobre Faença. César tratara pessoalmente da deslocação das baterias reforçadas pelos seus novos canhões franceses. Tinha paixão pela nova ciência militar, compartilhada pelo seu aristocrático hóspede, ainda que Afonso, fiel à sua política de manifesta indiferença, se esforçasse por manter escondido o seu interesse. Falou a César com ares altivos:

- A granada falhou outra vez. Parece que as muralhas de Faença querem resistir aos canhões franceses. - César não disse nada e o outro prosseguiu: - E há algum tempo que vos fazem frente. Naturalmente a gente de Faença sempre foi singularmente leal aos Manfredi. Deve ser aborrecido para vós encontrar um osso tão duro de roer num rapaz que nem sequer tem dezassete anos.

- É tão corajoso quanto jovem - respondeu César. - Tenho intenção de o nomear capitão do meu exército quando tivermos terminado isto aqui.

- Esquecer os Manfredi? Sem dúvida se sentirá feliz com qualquer futuro desde que fique fora das muralhas do Castelo de Santo Ângelo - comentou Afonso, irónico.

Depois de uma embaraçada pausa, César disse:

- Estais pensando em Catarina Sforza. Prometo-vos, príncipe Afonso, que Dona Catarina de Forli será libertada logo que tenha assinado a cedência das suas cidades à Santa Sé. É uma mulher obstinada. Não me surpreende que a acheis difícil. A minha primeira mulher era aliás uma Sforza.

- Sim, eu sei.

Houve uma pausa. Os dois voltaram a olhar os bombardeamentos.

- Desta vez foi a parábola certa - observou Afonso. Mais uns tiros assim, dirigidos com acerto, e poderá abrir-se uma brecha.

- Sim - respondeu laconicamente César. Depois em tom propositadamente despreocupado: - Creio que o duque vosso pai tenha recebido recentemente uma carta de Sua Santidade o papa.

- Efectivamente - disse Afonso que não se comprometia e a sua voz era tudo menos encorajante.

- Sobre o futuro das nossas duas famílias. - continuou César, em nada atemorizado.

- Conheceis minha irmã Isabel? - perguntou-lhe Afonso. - A marquesa D'Este Gonzaga?

- Nunca nos encontrámos.

- É apaixonada por antiguidades - prosseguiu Afonso com muito à-vontade. - Nada que tenha menos de quatrocentos anos de idade tem para ela algum interesse. Imagino que se possa entender. . . Ah! Outra no centro! O passado cai em ruína bem depressa. E muito do presente seria preferível que de facto não existisse.

- A casa dos Bórgias pertence ao presente - ripostou César, sereno. - A casa dos Este tem um notável passado. Mas qual das duas, meu príncipe, pertence ao futuro? Gostaria de ouvir a vossa opinião.

- É a fortuna que o estabelece.

- A fortuna não estabelece nada - declarou César com firmeza. - Depende de nós. Eu pertenço ao futuro. E uma paixão pelas antiguidades pode bem deixar a casa de Este a esfarelar-se em pó. - Afonso voltou-se para o fitar sem nada trair na expressão do rosto. - Tenho uma aliança com o rei de França continuou César. - Para quem vos voltaríeis a pedir auxilio, se fôsseis atacado por Veneza ou por mim? Vosso pai é duque de Ferrara; mas o meu é papa de toda a cristandade e as suas armas são espirituais além de temporais também.

Afonso não deixou de o olhar fixamente, sem mudar de expressão.

- Uma aliança com os Bórgias pode não ser grata a vossa irmã, a marquesa. Mas poderia ser oportuna.

Afonso arqueou o sobrolho.

- Que estranha descoberta!

- Qual?

- Que vós e eu temos no fundo algo em comum. - Voltou a olhar ao longe, para as baterias. - Por muito desagradável que possa ser o nosso dever, cada um cumprirá o seu. Vós assegurareis o futuro e eu preservarei um passado.

- Mas fareis o vosso dever como vos recomenda o duque vosso pai? - perguntou César.

- Oh, sim, certamente.

- Minha irmã Lucrécia é uma mulher muito bela - argumentou César e na sua voz havia um tom de exaltação. - Assim ouvi dizer - disse Afonso numa voz fria.

Muitas léguas a sul de Faença, Michelotto e Ramiro esperavam, com quatro homens a cavalo, debaixo das ramadas de um bosque. Ao longe aparecia um grupo de guardas armados que se dirigiam para norte, aproximando-se deles. A certa altura, Michelotto esporeou o cavalo seguido por Ramiro e pelos outros.

- Lembrem-se - avisou -, o duque Valentino ordenou que se atacasse só se fosse necessário. Ramiro e eu apanharemos as mulheres.

O dia estava límpido e o sol reflectia-se nas couraças dos guardas e nos coloridos mantos de viagem das duas mulheres que vinham à frente da escolta. A mais ricamente vestida das duas era Doroteia Malatesta Caracciolo. Filha ilegítima de uma das famílias senhoriais dos Malatesta de Rimini, deixara a corte de Urbino, onde estava sob a protecção dos duques, bastante eruditos e de nobre alma, em direcção a Veneza, onde devia encontrar-se com o marido, com o qual casara há pouco por procuração, João Baptista Caracciolo, fidalgo napolitano ao serviço de Veneza, e não poucos anos mais velho do que ela. Doroteia tinha vinte e três anos e era muito bela; tinha muitos admiradores na corte de Urbino, entre os quais um em especial nunca mais esqueceria. Suspirou, recordando o último Carnaval em Urbino.

Os seus pensamentos foram interrompidos pelo entrechocar inesperado das espadas e por gritos irados. Quando olhou para trás, viu Michelotto de braços abertos na atitude de a capturar. Com um grito, um dos homens da sua escolta caiu do cavalo, ferido; os outros três entregaram-se então à fuga, a galope pelo caminho, ignorando os pedidos de socorro de Doroteia e os berros da sua serva que se debatia entre os braços de Ramiro. Um instante depois Doroteia viu-se incomodamente sentada diante de Michelotto no seu cavalo. Sentia os braços dele à sua volta como ferros. Procurou rebelar-se, mas em vão. - Calma, dona, calma - avisou Michelotto. - Se o cavalo se empina.

- Quem sois? Para onde me levais? - perguntou Doroteia, assustada.

Michelotto sorriu.

- Não penseis nisso - disse-lhe. - Estais em boas mãos. E em breve estareis em mãos melhores ainda, as de alguém que vos espera com grande desejo.

Doroteia estremeceu ao atravessar a entrada de uma fortaleza, e perguntou timidamente.

- Onde estamos?

Tinha medo daquele homem feroz que não tivera escrúpulos em atar-lhe brutalmente as mãos atrás das costas. Ele não lhe respondeu, em vez disso, desceu-a do cavalo e, meio empurrando-a, meio arrastando-a, entrou pelo portão em direcção ao torreão, por lanços de escadas e longos corredores, levou-a até uma câmara pequena, mas ricamente mobilada. Tendo-se apercebido de que não acabara numa cela de prisão, Doroteia recuperou um pouco da sua compostura.

- Pagareis por esta afronta - disse a Michelotto com aristocrático desprezo. - O duque e a duquesa de Urbino vos punirão e toda a Veneza se levantará em armas. Meu marido. . .

Interrompeu-se quando Michelotto bateu à porta de uma câmara mais interior, fazendo-lhe sinal para estar calada. A porta abriu-se e César entrou, detendo-se na frente dela, que o fitou em silêncio. Nenhum deles falou. - Tudo como haveis pedido, meu senhor - disse Michelotto. - Os passarinhos caíram incólumes na rede. Só um falcoeiro ficou ferido - acrescentou, inclinando-se e saindo do aposento.

César sorriu a Doroteia, que continuava a olhá-lo, atordoada.

- Sabia que estáveis em viagem para Cervia - disse-lhe ele.

Doroteia tremia. Valentino. Nunca acreditara que o voltaria a ver, depois de Urbino. Sentira-se perdidamente atraída por ele, mas lá estava bem protegida, rodeada por cortesãos. Aqui, pelo contrário, estava em seu poder, pouco segura de si e muito atemorizada por ele. Só conseguiu dizer:

- Devíeis ter-me avisado. Não acredito que.

- Não teria sido prudente. Vossa mãe já sabia demasiado e não podia fiar-me na vossa companheira. Mas também não podia deixar-vos ir para Veneza quando o matrimónio foi contraído contra vossa vontade.

Doroteia tentou sorrir, mas os lábios tremeram-lhe e a sua voz mal se ouviu quando disse:

- E reter-me-eis aqui contra minha vontade?

Depois, enquanto César a acolhia entre os braços, continuou com voz mais clara, mas fremente pela emoção:

- Não posso defender-me. Podeis ver. Oh, senhor. Prometei que me tereis convosco.

César inclinou-se para beijá-la nos lábios.

- Doroteia, prometo que vos terei. Contra Veneza e contra o mundo.

Com a face contraída numa expressão grave, o cardeal de Veneza, Marco Cornaro, reclamou pública e asperamente junto do pontífice pela conduta do duque Valentino. Todos verificaram com evidência o horror de Rodrigo.

- Não estamos dispostos a acreditar - disse a Cornaro. Se o duque faz semelhante coisa é louco. Haveis dito que a senhora foi capturada por homens armados?

Implacável, Cornaro instou:

- Não é concebível, Santidade, que se possa cometer tal crime. A senhora casou há pouco em Urbino, sob a protecção do duque Guidobaldo. Seu marido João Baptista Caracciolo, é um capitão de infantaria do exército de Veneza. Por isso, ofendendo-o a ele, se faz ofensa à nossa sereníssima república!

- Haveis dito, casada há pouco?

- Por procuração, Vossa Santidade - precisou Cornaro. - Perdoai-me, Eminência - perguntou Rodrigo com inocência mas quantos anos tem Dona Doroteia?

- Eu só sei que é jovem e muito bela.

- E o seu valoroso marido?

- Creio, Santidade, que seja um nobre de uns cinquenta anos de idade.

Rodrigo carregou o sobrolho.

- A questão escapa-nos de todo - disse. - Mas haveis dito que o Conselho de Veneza enviou o seu secretário para interrogar o duque a esse respeito?

- Santidade, o duque informou o nosso secretário que não sabe onde se encontra a senhora. Temo, Santo Padre, que tenha acrescentado, que não lhe faltam mulheres.

- Bem, isso também é verdade - concordou Rodrigo não contendo um sorriso.

- Mas também admitiu, Santidade, que um dos seus oficiais, um espanhol, a tivesse conhecido em Urbino, durante o Carnaval. E que ela ofereceu a este espanhol algumas camisas bordadas. O duque ordenou que o oficial fosse preso, porém, este desapareceu.

- Logo - concluiu Rodrigo urbanamente -, parece que o duque fez quanto estava ao seu alcance. - Endireitou-se na sua cadeira, sentindo-se em terreno seguro. - Cardeal Cornaro - ordenou -, ficar-vos-emos gratos se quiserdes expor a Suas Excelências, em Veneza, toda a nossa compreensão e o nosso apoio moral neste escandaloso caso. Estamos certos de que o duque não está menos perturbado do que nós, porque ofender Veneza, especialmente agora, é contrário aos seus interesses e, acreditamos, aos seus desejos.

O cardeal Cornaro inclinou a cabeça e retirou-se com uma expressão furiosa e incrédula.

- Não acreditou em nós! - gritou Rodrigo a César, que via impassível o pai que percorria a sala com gestos coléricos. Ofendeste Veneza para satisfazer a tua sede de conquista. Agora, como se não bastasse, voltaste as tuas tropas contra Florença, cidade que está sob a protecção da França, sabendo que irritavas assim o rei Luís! Endoideceste?

César não se deixou perturbar pela cólera do pai. Encolheu os ombros.

- Assustei Florença para agradar aos meus comandantesexplicou -, os Orsini em especial. Não haverá consequências.

- Arriscaste demasiado para contentar homens de escasso peso - censurou Rodrigo. - Tinha necessidade de ti em Roma. Dentro de poucos dias estarão aqui os Franceses. E tu deverias estar aqui com eles.

- Eu estou aqui - respondeu secamente César. - E já que estou aqui, que me dizes da carta do duque Hércules?Apontou a carta que Rodrigo tinha na mão. - E do casamento de Lucrécia com seu filho?

Rodrigo serenou e entregou a carta ao filho.

- O duque Hércules negoceia como um mercador - disse. Pede um dote de duzentos mil ducados. E a exoneração de Ferrara das contribuições à Santa Sé. Pode pedir o que quiser enquanto não tiver motivo para obrigar o filho a casar com Lucrécia. - Sentou-se, enquanto a irritação voltava a enevoar-lhe o rosto. - Sabes o que Afonso disse quando lhe foi proposto o casamento? Disse ao pai que quando tem necessidade de prostitutas as encontra sem dificuldade nos bordéis de Ferrara, sem precisar de as levar para o palácio.

- Nunca encontraria uma tão graciosa como Lucrécia - observou César serenamente.

- Logo tu aceitas este grosseiro insulto a tua irmã ! - exclamou Rodrigo, surpreendido.

César encolheu os ombros.

- Se casar com ela, o insulto fica sem efeito. Isso é que conta. Uma após outra, as famílias mais orgulhosas de Itália têm de se inclinar perante o nome dos Bórgias.

- E nós o faremos inclinar-se - disse Rodrigo. - Luís saberá como. Não reconheceremos os direitos de Luís sobre Nápoles enquanto o duque Hércules não tiver assinado o contrato matrimonial. Terá de se submeter à vontade do soberano de França.

César anuiu, restituindo-lhe a carta.

- Que diz Lucrécia? - perguntou.

- De início não queria falar nisso. Agora, é estranho, quanto mais dote o duque pede, mais contente me parece. - Mais levará consigo para Ferrara.

- Sim - explodiu Rodrigo, aborrecido. - As mulheres são todas putas. Temos essa convicção. - Mudou de tom. - Mas há qualquer coisa. Parece agradada em fazer-nos pagar para a deixar ir. Porquê, é o que pergunto.

- Uma espécie de vingança, talvez - respondeu César lentamente.

Rodrigo fitou-o com os olhos agudos.

- Vingança?

César sustentou o seu olhar e disse com intenção:

- Há uma criança em Roma.

Na face de Rodrigo apareceu uma expressão de horror e de infinita dor.

- Deus tenha piedade dela. Não tínhamos pensado nisso. - Deixou-se cair na cadeira e fechou os olhos. - Perdê-la-emos. Não chega isto?

- Ainda não, pai - disse César, ácido. - Primeiro temos de fazer coisa grata aos Franceses com Nápoles. Amanhã chega D'Alègre com a vanguarda.

Os toques de trompa anunciaram a chegada do capitão Yves d'Alègre para a audiência oficial do pontífice. Rodrigo, que no íntimo continuava a sentir antipatia e desconfiança pelos Franceses, escondeu os seus sentimentos mais autênticos atrás de uma atitude real, recebendo o companheiro de armas de César com generosa cordialidade e rasgados sorrisos. O soldado entrou escoltado por Burchard e acompanhado por Paulo e Júlio Orsini.

- Santidade - começou Burchard -, o capitão Yves d'Alègre, comandante dos exércitos de Sua Majestade o rei de França.

D'Alègre ajoelhou-se para beijar o pé do papa. Rodrigo fez o sinal da Cruz por cima dele.

- Benedicatte.

Depois que o capitão se levantou para dar um passo atrás, avançaram os Orsini, que foram oficialmente apresentados pelo mestre-de-cerimónias:

- O capitão Paulo Orsini. E o capitão Júlio Orsini. Comandantes das suas tropas ao serviço do duque Valentino.

Rodrigo abençoou-os radiante:

- Os nossos filhos Paulo e Júlio. O triunfo das vossas armas, que nos restituíram as nossas cidades da Romanha, vos fez ganhar a nossa mais alta estima. Deus vos recompensará.

- Humildemente agradecemos a Vossa Santidade - respondeu Júlio. - O nosso único desejo é servir-vos.

- E nos servireis agora, de facto - respondeu Rodrigo. Contra o estado de Nápoles, cujo rei infeliz ousou aliar-se com os Turcos contra nós. Já tínhamos dado passos contra os vossos inimigos Colonna, que estão ao serviço daquele rei sem fé cristã. Ireis a Nápoles com a nossa bênção. - Voltou-se para Burchard: - Mestre-das-cerimónias, acreditamos que os preparativos para o aquartelamento das tropas francesas foram de vidamente levados a termo.

- Sim, Santo Padre - respondeu Burchard, claramente satisfeito -, foram aprontados abrigos para lá da ponte. Enviámos ao capitão D'Alègre cento e cinquenta pipas de vinho, pão, carne, fruta, ovos e outras provisões.

Entregou uma lista a Rodrigo que lhe lançou uma mirada. O papa arqueou a sobrancelha.

- E catorze prostitutas? - Encarou D'Alègre. - Quantos homens tem às suas ordens? - perguntou-lhe.

- Catorze mil, Santidade.

Um vago sorriso atravessou a face de Rodrigo.

- Bem, são mulheres de Roma. bastarão - comentou, restituindo a lista a Burchard. Depois, voltado para D'Alègre, continuou dizendo: - Tendes um pedido, pensamos.

- Santidade - disse então o francês. - Sua Majestade o rei Luís pede clemência para uma prisioneira, Dona Catarina Sforza, que está presa em Santo Angelo. Sua Majestade encarrega-me de dirigir esta súplica a Vossa Santidade, dado que Dona Catarina de Forli, na verdade, foi a mim que se entregou pessoalmente.

- Catarina foi filha desobediente deste pai - respondeu friamente Rodrigo. - Conspirou contra a nossa vida e por esta acusação está detida. Mas, se Sua Majestade o pede, alongaremos também a ela a nossa piedade depois de ter entregue à Santa Sé as suas cidades.

Yves d'Alègre inclinou a cabeça em sinal de aceitação. - Posso informar-vos, Santo Padre, que Dona Catarina decidiu agora ceder a este pedido.

- Em tal caso - concedeu cortesmente Rodrigo -, podeis levá-la convosco e com a nossa bênção.

Catarina Sforza bateu muitas vezes as pálpebras quando a luz a que já não estava habituada invadiu a sua cela. Por uns instantes não conseguiu ver D'Alègre, o qual, por seu lado, teve dificuldade em reconhecer a mulher que vira na fortaleza de Forli há mais de um ano atrás. Tinham acabado há muito os dias em que fora uma prisioneira de respeito na gaiola dourada do Belvedere. Pouco depois César ordenara que fosse transferida para os lúgubres subterrâneos de Santo Angelo com o pretexto de que tinha a intenção de fugir. A terrível experiência encanecera-lhe o cabelo e estava tão mudada que D'Alègre não pôde deixar de se sentir movido pela piedade. Beijou-lhe as mãos, de que em tempo ela se mostrara bastante orgulhosa, defimindo-as macias como zibelina". Naquele momento estavam imundas, com os poros obstruídos pela porcaria da prisão.

- Dona. - foi tudo o que o soldado conseguiu dizer.

A voz de Catarina soou rouca e insegura:

- Capitão D'Alègre, então é verdade? É verdade que me libertam?

- Sim, dona - tranquilizou-a ele docemente. - Tenho ordem para vos acompanhar a casa do cardeal de São Clemente onde estão a assinar os papéis da vossa libertação. Sabeis o que está estabelecido?

Catarina concordou e procurou levantar-se do sórdido enxergão em que estava deitada. O capitão apressou-se a ajudá-la. Ela concedeu-lhe um arremedo de sorriso.

- O meu corpo está um pouco fraco porque fui posta a ferros, mas não me despedaçaram o espírito. Por vosso intermédio, rendo-me ao rei de França. Mas a ele nunca. Aquele demónio. . . - Reunindo as forças, escarrou. - Falais de Sua Santidade? - perguntou D'Alègre aturdido.

Catarina abanou a cabeça.

- Não, estou a falar do príncipe das trevas, César Bórgia!

Ele ofereceu- lhe o braço e Catarina, apoiando-se nele com todo o seu peso, saiu coxeando pelo corredor em direcção à luz.

- Adeus, senhor, e que Deus vos poupe! - gritou na direcção das trevas.

Ouviu-se um arrastar de correntes, depois uma face branca apareceu nas grades.

- Dona - chamou uma voz juvenil.

- Astorre Manfredi, senhor de Faença - disse Catarina a D'Alègre que a observava com uma expressão interrogativa. Acabam de o fechar aqui dentro. Foi tão ingénuo que acreditou em Valentino e foi esta a sua recompensa. Imola, Forli, Rimini, Faença. Alguma vez se deterão estes Bórgias?

- Ferrara - terminou Rodrigo. Disse depois ao camerlengo Gaspar Poto a quem estava ditando: - Providencia para que esta carta seja enviada ao duque Valentino por um correio especial. Depois mandarás entrar Bellingeri, secretário do duque Hércules, para que possa falar- lhe.

Poto anuiu, saiu e regressou com um homenzinho membrudo que imediatamente se pôs de joelhos diante do papa e lhe beijou o anel.

- Bellingeri - disse Rodrigo, jovial -, a notícia que me trazeis é para nós motivo de grande alegria.

- O duque Hércules encarregou-me de informar Vossa Santidade que seu filho Afonso aceitou de todo o coração casar com Dona Lucrécia.

Rodrigo anuiu, benévolo. Depois, assumindo um tom negocial, disse bruscamente:

- E quanto às cláusulas do contrato? Cem mil ducados em lingotes de ouro.

- E cem mil em jóias e objectos preciosos. O duque aceitou o dote.

- Então pode assinar o contrato de casamento em Ferrara sem ulteriores demoras - concluiu Rodrigo, brusco. - Existem naturalmente certas questões que estão por resolver, Santidade - disse, porém, Bellingeri, como que a desculpar-se.

- Eu não vejo assim - respondeu friamente Rodrigo. O duque Valentino tomou Cápuá. A queda de Nápoles está prevista para este mês. Assinado o contrato, coroaremos o rei Luís no trono de Nápoles. Que outra coisa haveria?

Bellingeri hesitava.

- Nada de substancial, Santidade.

- Duzentos mil ducados parecem-me mais que substanciais - apostrofou-o Rodrigo, seco.

- É uma questão delicada. há uma criança.

Seguiu-se um silêncio que Rodrigo se apressou a encher dizendo : O filho do duque de Biselli, o pequeno Rodrigo. Ficai tranquilo, Bellingeri, que se providenciará todo o cuidado à criança. Ficará connosco em Roma.

Bellingeri inclinou a cabeça em sinal de satisfação. Mas não era tudo.

- Sua Santidade é generosa. O filho do duque de Biselli é, confio, o único filho que se deva ter em conta.

- O único - repetiu o papa com firmeza.

- Vossa Santidade me perdoará - insistiu novamente contrito o enviado de Hércules -, mas ouvem-se por aí tantas coisas..

- Que coisas? Sede claro, Bellingeri. Se são coisas que pesam sobre o casamento.

- Santidade, há cerca de três anos, o duque recebeu informações respeitantes ao nascimento de uma criança em Roma. A informação chegava de Veneza, portanto, não se lhe deu ouvidos. Mas dizia-se.

- Foi dada à luz uma criança - disse Rodrigo, sereníssimo. - O que o duque ouviu corresponde à verdade.

Bellingeri ficou surpreendido por aquela imprevista franqueza. E com a curiosidade desperta.

- Santidade?

- Era o filho de uma mulher solteira, um membro da minha família - explicou Rodrigo com o tom de querer encerrar a questão. - Promulgaremos uma bula que esclareça tudo. Levantou-se para indicar ao seu interlocutor que o colóquio terminara. Depois, enquanto Bellingeri, após uma reverência, se voltava para sair, disse-lhe ainda: - Para o dia em que for anunciado o casamento.

A Poto, que esperava para guiar a saída do secretário, disse: Iremos falar a Dona Lucrécia. Anunciai-lhe imediatamente a nossa chegada.

- Santo Padre! - Lucrécia ajoelhou-se diante de Rodrigo, despedindo Angelina com um aceno de mão. - Nada aconteceu de mal, não é verdade?

- Talvez seja hábito meu trazer más notícias? - Rodrigo sorriu levantando e puxando-a pelas mãos. - Deus é bom. Luís e César entraram em Nápoles. Tenho uma carta do duque Hércules que te inflamará as faces de orgulho. Nela se diz que Deus deve ter iluminado o coração de Sua Santidade ao sugerir-Lhe misturar o seu sangue com a familia D'Este! - Afagou-lhe uma face. - E quando vejo tanta beleza. . . sei que é mesmo assim.

Educadamente, Lucrécia retirou as mãos.

- Não é assim - disse ela. - No íntimo eles desprezam-me. Mas modificar- lhes-ei a alma quando for duquesa de Ferrara. Serei doce em tudo aquilo que fizer, serei graciosa e irei à missa todos os dias. - Voltou-se para se ver ao espelho retocando o cabelo. - E farei com que me amem.

- E não dançarás mais? - troçou Rodrigo.

- Estou cansada de dançar - respondeu Lucrécia laconicamente.

Rodrigo pareceu ficar ofendido.

- Mas nós nunca nos cansaremos de querer ver-te. Naturalmente quererás deixar-nos, visto estares cansada de Roma. Implorava-lhe subrepticiamente que tivesse para ele palavras de conforto e de afecto, porém, ela não lhe concedeu nenhuma. Rodrigo desviou os olhos, de rosto triste. - Vim dizer-te - anunciou-lhe - que amanhã tenho de sair de Roma para ir visitar os castelos dos Caetani e dos Colonna, que tomámos para os punir da sua traição. Sermoneta será dada a teu filho Rodrigo. Mas há também as tuas terras e o castelo de Nepi. Levarás contigo um esplêndido dote, para Ferrara, mas não poderás levar atrás as terras. Tens de as ceder a algum outro representante da família Bórgia, alguém que esteja próximo de nós. E nós decidimos quem deve ser. - Voltou a olhá-la com expressão suplicante. - Alguém que não viste mais desde que nasceu. . . mas que virá para junto de nós depois de partires.

Alguém que te esconjuramos a não desprezar. - Fez uma pausa, temendo uma reacção hostil. - Está aqui à espera. Podemos mandá-lo entrar?

Lucrécia concordou, muda. Rodrigo foi à porta, abriu-a e chamou :

- Anda, pequeno.

Entrou uma freira que trazia pela mão uma criança. De uns quatro anos, a criança era morena, viva, com dois belos olhos inteligentes. Rodrigo pegou-lhe numa mão e levou-a a Lucrécia.

- João - disse -, esta senhora é tua irmã, Dona Lucrécia. Podes beijar-lhe a mão.

João, tímido, avançou dispondo-se a beijar formalmente a mão de Lucrécia, que, em vez disso, se inclinou e o levantou nos braços.

           - João - disse Lucrécia. Levantou depois os olhos cheios de lágrimas para o pai. - Obrigado, Santo Padre. - Apertou novamente a criança. - Estaremos juntos um instante.

Satisfeito, Rodrigo disse:

- Enquanto eu estiver fora.

Lucrécia mostrou-se preocupada.

- Mas, Santo Padre, como podeis partir? César está em Nápoles. Quem se ocupará dos vossos assuntos durante a vossa ausência?

- Confiamos o cargo a ti, Lucrécia.

- A mim? - Lucrécia abriu muito os olhos, espantada. - Santo Padre, não sou digna. . .

Sua Santidade confiou câmara, palácio e todos os assuntos

relativos a sua filha Dona Lucrécia, escreveu no seu diário Burchard. A sua pena arranhava o papel com indignação por aquela inaudita novidade. Durante a sua ausência, a filha ocupou os aposentos pontificais com autorização para abrir e ler a correspondência endereçada ao Santo Padre.

- Feio assunto, Poto - comentou, rigidamente, ao fundo da sala das audiências ao lado do camerlengo pontifício. Ambos observavam incrédulos Lucrécia, a qual se sentava no trono papal, cooperava com os cardeais mais velhos, lia documentos da Santa Sé e ditava respostas às cartas. - Nunca se viu coisa assim durante o reinado do papa Sisto ou do papa Inocêncio, que tinha até oito filhos. - Poto, fiel servidor de Rodrigo,

preferia não se comprometer. Limitava-se a anuir. Burchard, arrebatado pela indignação, continuou: - Dizem que é por estar longe o duque Valentino, em Nápoles, e Sua Santidade não poder fiar-se em ninguém que não seja da família. No en tanto, que o Sacro Colégio seja governado por uma mulher. . .

- Não esqueceis, Burchard - interrompeu com severidade Poto, antes que o colega fosse demasiado longe -, que Dona Lucrécia é uma grande dama que muito em breve será duquesa de Ferrara.

- Para glória do duque Valentino - acrescentou Burchard.

No dia do seu noivado com Afonso d'Este, Lucrécia passou em procissão pelas ruas de Roma e foi à Igreja de Santa Maria do Povo em agradecimento. Estava vestida de brocado e ouro, um traje que, dizia-se, custara trezentos ducados. Era escoltada por quatro bispos e trezentos homens a cavalo. Do Castelo de Santo Angelo troou sem parar o canhão e o grande sino do Campidoglio repicou demoradamente. Para aumentar o clamor, havia uma enorme multidão apinhada ao longo do percurso a gritar:

- Longa vida para a ilustríssima duquesa de Ferrara! Naquela noite acenderam-se muitas fogueiras em Santo Ângelo e toda a cidade e todos os edifícios ficaram iluminados pelas tochas acesas. Burchard anotou: A população animada por excessivo entusiasmo despertou algumas preocupações.

César e Michelotto, que chegavam a Roma depois de esgo tante galopada desde Cápua, que fora enfim tomada com grande derramamento de sangue, abriam espaço entre a multidão e chegaram ao palácio de Lucrécia. Desmontaram os dois dos cavalos e, quando começaram a subir as escadas, viram descer a correr o jogral de Lucrécia, envergando a rica veste dourada que a sua senhora usara naquele mesmo dia. Furibundo, César agarrou-o pela garganta:

- Jogral, que fazes tu aqui?

O jogral ficou paralisado pelo terror. Reconheceu César.

- Senhor duque. . . - balbuciou.

- Nos trajes da senhora!

- Senhor duque, é o costume. Chegou a notícia de Ferrara, a nossa senhora está noiva. Ordenou-o o Santo Padre. Roma inteira festeja. A senhora ofereceu-me o vestido que usou esta manhã para apresentar os agradecimentos em Santa Maria. E eu devo mostrar às pessoas.

César largou-o e recomeçou a subir os degraus. O jogral, por seu lado, fugiu gritando:

- Longa vida a nossa senhora! Longa vida à duquesa de Ferrara !

- Escutai a multidão, minha senhora - disse Angelina que, juntamente com outras camareiras, ajudava Lucrécia a vestir um outro traje, desta vez de seda pura e de ouro.

- Minha senhora, tendes mesmo de vos mostrar.

- Estão a saudar o jogral - disse Lucrécia estendendo uma mão. - Mostra-me o chapéu. - Naquele momento a porta abriu-se inesperadamente. César entrou. As mulheres que vestiam Lucrécia ficaram hirtas retendo a respiração. Lucrécia não estava menos aturdida.

- César - disse. - Vens de Nápoles ?

- Sim, de Nápoles - confirmou ele, enquanto as mulheres saíam silenciosamente escapando nas suas costas. - Vejo que Roma está em festa, mas não por mim.

- Chegou a notícia de que serei duquesa de Ferrara.

- E o nosso Santo Padre ordenou estas celebrações.

- Não estás contente? - Lucrécia avançou para o abraçar. Era teu desejo que casasse com Afonso d'Este. E tu tomaste Cápua. E Nápoles. Não te parece que tínhamos bons motivos para festejar? - Olhou-o perplexa. - César? Por que estás tão sério?

- O Santo Padre emitiu uma bula, há cinco dias - respondeu ele com amargura -, legitimando o teu filho João. Dá-me o nome de pai. Filho de César Bórgia e de uma mulher solteira !

Para o serenar, Lucrécia disse:

- Fez aquilo que fez por ti e por todos os seus filhos. Existe um documento que contém a verdade. - Retinha-lhe os braços. Olhou-o de frente e procurou compreender o seu estado de alma. - Admite ser ele o pai de João. Por isso não haverá a desonra.

- Tu afirmaste que eu sou o pai de teu filho. Filho teu e dele - disse em voz baixa. Virou-lhe depois as costas e encaminhou-se para a janela.

- Por João - suplicou-lhe Lucrécia. - Para que possa continuar a ser um Bórgia. Se for anunciado o casamento, será preciso estabelecer um tratamento. - Foi juntar-se com ele à janela. - César, se tivesses estado aqui, ter-te-ia pedido. Mas estavas fora. Assim tive de o fazer. Como poderia eu ser duquesa de Ferrara de outra maneira?

Ele parecia não a ouvir, com os olhos postos na multidão em festa na praça lá em baixo.

- Quanto tomámos Cápua - disse lentamente - a cidade foi saqueada. A infantaria da Gasconha pilhou um depósito de vinho e deixou-se cair em todos os excessos pelas ruas. Mataram todos aqueles que viram por ali. Violentaram as mulheres, violentaram as crianças e rasgaram-lhes o ventre.

Tocou-lhe num braço para lhe pedir que o olhasse. Com voz despedaçada, Lucrécia implorou:

- César.

De repente César voltou-se e apertou-a a si olhando-a com expressão estranha.

- Lucrécia, foi feito por ti.

- Por mim?

- Para que os nossos nomes sejam recordados. Não morreram por outra razão. Deus não os ouviu, serão pó e nada mais. Mas tu e eu não. - Fez uma pausa e por um longo momento ficaram a olhar-se nos olhos. - César Bórgia. E Lucrécia. Seremos recordados. Sê fiel apenas a mim, não a ele, ao nosso Santo Pai que ora a um Deus sem nome. Para ti virá este mundo, não o do Além. O teu nome será eterno. Basta-te?

- Serei duquesa de Ferrara. Isso me basta - respondeu Lucrécia, com voz átona.

- No nome, mas em nada mais. Diz.

- No nome e em nada mais - murmurou ela lentamente, como se a promessa lhe fosse arrancada à viva força, incapaz de afastar os olhos dos dele, estava como sempre hipnotizada pela sua força.

César atirou a cabeça para trás triunfante.

- Darei uma festa para celebrar - anunciou. - Na véspera do dia de Todos os Santos. Anjos e demónios todos serão recebidos na festa. sancti in gloria ! E dançaremos !

As velas pingavam nos preciosos candelabros de bronze. César e Lucrécia dançavam, movendo-se vagarosamente. Era quase madrugada e ela, com os olhos fechados, dormia praticamente de pé. Em volta deles, oficiais espanhóis e italianos de César, entre os quais Ramiro, Michelotto e os Orsini, dançavam com as cortesãs convocadas para seu divertimento. Algu mas das raparigas estavam meio nuas e eram atiradas ao chão por mãos lascivas. Sentado à comprida mesa, Rodrigo contemplava as danças. A seu lado estava sentada Doroteia Caracciolo com os cabelos soltos, evidentemente alegre pelo vinho a mais. Em adoração, acompanhava César com o olhar, talvez também um pouco entristecida: tinha dançado toda a noite com Lucrécia e parecia que nem sequer naquele momento a queria deixar.

Rodrigo apontou com orgulho a filha e o filho.

- É o seu sangue espanhol, Doroteia - disse-lhe. - Não viste nada deste género no Carnaval de Urbino, não é verdade?

- Ninguém o viu - murmurou Doroteia, sem nunca tirar os olhos do seu amante. - Trazia uma máscara. Para que minha mãe não compreendesse. - Vacilou tocando em Rodrigo. Santo Padre, ele faria fosse o que fosse por mim, proezas de todo o género, conseguiu vergar uma ferradura. Vi-o fazer apenas com as mãos.

Rodrigo estava interessado.

- César? Que verga uma ferradura? - Chamou um criado que esperava ali perto. - Tu? Traz aqui uma ferradura. Depressa. Vamos ver se César o pode fazer realmente.

César tinha já de segurar Lucrécia pelos braços. A irmã, esgotada, caía contra ele.

- César, tenho de descansar, é quase dia.

Mas a vitalidade dele era indómita. Sentia-se em pleno vigor justamente de noite.

- O belo está ainda por começar. Espera. Verás! - Largou a irmã e agarrou de passagem uma das cortesãs que dançavam. Angélica - ordenou -, despe-te. - Depois, visto que ela hesitava: - De que estás à espera? - disse-lhe com maus modos. - Foste bem paga para isso. Faz o que te digo, agora. Gritou depois aos outros pares dançantes: - Principia agora o divertimento !

Entretanto, a rapariga começou a tirar o vestido. César pegou num candelabro, indicando a Michelotto e a Ramiro que fizessem o mesmo.

- Que jogo é, senhor? - perguntou Ramiro.

- Corrida a pé. Vencerá a puta mais veloz. Assinalemos o percurso. - Pousou as velas, começando a marcar assim a pista, diante da mesa: - Vá, Michelotto, Ramiro, ponham as velas em baixo, mas não demasiado afastadas.

Michelotto sorriu com maldade.

- Corre-se pelo palio? Veremos quanto tempo levam. Uma a uma, assim não haverá contestações. Não vale desestribar o jóquei. E enquanto correm. - Tirou uma travessa de castanhas da mesa e despejou-a no percurso. - Ali - disse às raparigas que se apertavam à sua volta. - Apanham as castanhas com os dentes, todas.

Rodrigo estava excitado.

- Mas é preciso que sejam montadas. Toda a puta deve ser montada.

Michelotto uniu-se a ele.

- Também haverá prémios para os cavaleiros.

- Usaremos os nossos bastões! - gritou Júlio Orsini. César agarrou Angélica por um pulso e arrojou-a ao chão onde o percurso começava entre duas filas de velas.

- Passa por entre as velas, com as mãos e os joelhos. Depois, enquanto ela começava a avançar de gatas entre as velas, fê-la parar. - Espera. Contaremos agora todos juntos. Estais prontos? Anda! - E começou a bater palmas, convidando todos a medir o tempo com ele, enquanto a rapariga caminhava por entre as velas com as grandes mamas bamboleando e os cabelos castanhos que varriam o soalho sempre que inclinava a cabeça para apanhar com os dentes uma castanha que depois punha de lado. Os homens dispuseram-se ao longo das margens do percurso fazendo eco ao duque que em voz alta contava: - Quatro ! Cinco ! Seis ! Sete !

Rodrigo levantou-se para se unir ao coro, arrastando Doroteia de pé.

- Oito! - gritou. - Nove! Mas devia estar montada. Tinha-se dito que devia ser montada!

Lucrécia, extenuada, encaminhou-se para a porta. César, que constantemente tinha os olhos nela, viu-a afastar-se e seguiu-a para a agarrar por um braço.

- Tens de ficar para ver a corrida - impôs ele.

- Já vi o suficiente.

Apertou-a com força provocando-lhe uma careta de dor. - Lembra-te disto - disse-lhe. Obrigou-a a voltar-se, a olhar a sala e o pai que, à cabeça de todos os presentes, incitava as participantes à competição.

- Ramiro, monta a poldra - gritou Rodrigo. - Ah! Caiu. César olhava o pai cheio de desdém no rosto.

- Recorda o nosso santo pai, quando estiveres em Ferrara - disse a Lucrécia. - Recorda-o aqui em Roma. - virou-a na sua direcção. - E recorda-me. Afonso será frio como gelo. Tu és uma Bórgia. É a mim que pertences. Quando te ajoelhares para rezar, quando estiveres na tua cama. Tenho a tua promessa? Agora e para sempre?

Os seus olhares cruzaram-se, depois Lucrécia murmurou:

- Como era ao princípio é agora e para sempre.

- Pelos séculos dos séculos, ámen.

Com aquelas palavras de César que lhe ecoavam nos ouvidos Lucrécia voltou-se e saiu correndo. Seguiram-na pelos corredores os gritos dos convidados embriagados. Com uma estranha exaltação nos olhos, César agarrou Doroteia e tomou-a esmagando-a contra a parede.

Só, no seu quarto, Lucrécia apoiou-se ao nicho da janela a contemplar a cidade silenciosa. No limite do céu um fio de luz anunciava a alvorada. Um novo dia, pensou com amargura. Seria um novo começo para ela, o início de uma nova vida, simples e tranquíla, uma fuga no ar puro da atmosfera sufocante da sua família, das paixões, dos ciúmes, das ambições e dos crimes.

Tinha vinte e um anos, mas estava envelhecida bem para além da sua idade por causa de quanto vivera pela mão de seu pai e de seu irmão. Tanto tempo vivera na sua sombra que nunca vira a luz para além do mundo deles. Naquele tempo, finalmente, a repulsa que experimentara pelas cenas vistas naquela noite, fizera vir ao de cima o seu desejo inconsciente de se subtrair àquela escravidão dos sentidos e de paixão de que sempre fora objecto. Abrindo os olhos e voltando a olhar a cidade em que nascera e que talvez não mais voltasse a ver, compreendeu que aquele casamento com o estense, por muito desagradável que fosse, era para ela a única oportunidade de uma nova vida longe da sua família. Longe, principalmente, de César aquela estrela negra que até então dominara o seu destino e a cujo poder nunca fugiria de todo. Mesmo naquele momento enquanto procurava fazer reviver na sua memória, Afonso, o marido amado, em vez dele via a face de César e era a voz de César que ouvia vibrar nos ouvidos. Lucrécia arrepiou-se. Como que para exorcismar uma bruxaria, deixou-se cair de joelhos diante da imagem da Virgem.

- Virgo Maria - rezou -, irei para Ferrara. Suplico-te, faz com que seja depressa.

 

               A GRANDE PARTIDA

Foi só, porém, pelo final de Dezembro de 1501 que o relutante duque Hércules mandou finalmente os seus filhos a Roma para irem buscar Lucrécia. César, montado num soberbo corcel dos Gonzaga, acolheu os irmãos D'Este às portas da cidade. Afonso não estava com eles. O destacamento era comandado pelos seus três irmãos mais novos: Sigismundo, Ferrante e o cardeal Hipólito. Vinham para discutir os últimos pormenores das negociações, para assistir ao casamento que seria celebrado por procuração e para escoltar a esposa até Ferrara. Ao saudá- los, César observou-os atentamente, avaliando-lhes o carácter pelo aspecto. Considerou que o adversário mais duro seria Sigismundo, um jovem de rosto sério e traje fino, muito sóbrio. Logo afastou Ferrante, um tipo delgado, lânguido e elegante, a que não era de dar importância alguma; mas havia o cardeal Hipólito: provavelmente era o homem sobre o qual valia a pena que o pontífice fizesse fogo.

Hipólito d'Este, atlético, gigante, com um falcão no pulso, cavalgava orgulhosamente um robusto corcel. A única concessão que fazia ao seu estado clerical era a capa purpúrea por cima de trajes civis muito elegantes, juntamente com um chapéu vermelho do qual fugia uma abundante cabeleira de caracóis pretos. Tinha uma cara aberta, honesta e jovial. César ajuizou-o como o tipo de homem que seu pai manobraria com toda a facilidade. Depois todos os estenses não estavam em posição de grande força naquelas combinações. O rei Luís exercera pressões sobre o duque, para aquele casamento, e Hércules, vendo-se entre o soberano de França e os Bórgias, não tivera outra alternativa. Mas Rodrigo não prometera ainda definitivamente a Luís aquilo em que o soberano tinha empenho, ou seja, o reconhecimento das suas reivindicações ao trono napolitano; conduzira assim os estenses ao que quisera desde o princípio. César sorriu para consigo mesmo. Diziam de seu pai que

era um catalão: pois bem, todos sabiam com que habilidade mercadejavam os Catalães! Sorriu de novo abertamente. - Bem-vindos a Roma, senhores - disse César com uma

leve inclinação. - Sua Santidade, o papa, quis que eu viesse saudar-vos em seu nome. Estou aqui para vos conduzir ao Vaticano onde vos receberá.

Os jovens D'Este corresponderam friamente à sua saudação. Não lhes agradara o noivado forçado do irmão com a filha bastarda do papa e sabiam o suficiente de César Bórgia para não confiarem numa só palavra sua.

- Querido duque - disse Sigismundo -, agradecemos a Sua Santidade e estamos ansiosos por poder prestar-lhe homenagem.

Esporeou o cavalo e seguiu César até à cerca das muralhas, enquanto ressoavam as trompas. Os estenses foram escoltados pelos alabardeiros da guarda pessoal de César, em libré amarela e vermelha com a palavra CÉsAR bordada no peito. Uma salva de tiros de canhão como que para acentuar a força dos Bórgias, saudou de Santo Angelo o cortejo que atravessava a ponte do Tibre em direcção ao Vaticano.

À porta do Vaticano, César despediu-se, afastando-se a pretexto de assuntos urgentes. Instruiu depois Burchard a fim de que os demorasse enquanto ele próprio conferenciava com o papa. Os jovens D'Este ficaram a impacientar-se nervosamente numa antecâmara, enquanto Burchard se cansava em desculpas prometendo que a espera seria breve e afirmando que o pontífice estava momentaneamente absorto em oração. Porém, as     risadas que se ouviam atrás das portas fechadas da Sala do Pappagallo desmentiam-no. Burchard estava mais infeliz do que nunca no meio dos olhares que entre si trocavam os D'Este.

- O santissimo deve estar hoje de óptimo humor - observou Hipólito, sorrindo com malícia.

- Eminência, Excelência, perdoai-me só um momento. . . -Embaraçadíssimo desapareceu, mais do que nunca alegre por

se furtar à impaciência deles.

- É intolerável - disse Ferrante enrugando a testa. - Aquele assassino. . .

- Calma - censurou-o Sigismundo. Aquele assassino maltrapilho recebe-nos com uma demonstração de força e depois faz-nos esperar.

- Comportar-nos-emos segundo a vontade de nosso pai. Estamos de acordo: falo eu em nome de todos?

Ferrante olhou Hipólito com desprezo:

- É claro que aqui os cardeais têm a precedência - disse, sarcástico.

- Irmão, queres tu falar por nós? - perguntou Sigismundo cortesmente a Hipólito.

O cardeal fez para si o sinal da Cruz.

- Que Deus me livre disso!

- Bem - continuou Sigismundo -, não discutiremos o casamento, mas algumas questões que lhe são relativas. E recordai: a França ou os Bórgias estão em situação de nos engolirem como um lagarto engole um mosquito. - interrompeu-se com uma enésima explosão de risadas para lá da porta, e com as sobrancelhas franzidas os irmãos olharam-se.

Rodrigo estava sentado, sacudido pelo riso, enquanto o camerlengo Poto lia em voz alta um documento. A seu lado sentava-se César, cara sombria e, próximo da porta, esperavam Burchard, assustado, e um capitão da guarda, impassível.

- Continua, Gaspar - disse Rodrigo.

- Já ouvi bastante - cortou César. Mas não acabou. - Santidade. . . - interveio Burchard preocupadíssimo. Sim, - sim, Johann - anuiu Rodrigo. - Já os recebemos. Continua, Gaspar.

Poto tornou a erguer a carta e leu com um certo embaraço: É difícil dizer qual destes dois é mais execrável. O pai favorece o filho pela sua perversidade e crueldade. - Não pôde continuar

- Santidade.

- Continua.

- Os cardeais vêem tudo e nada dizem porque foram comprados. Adulam o papa porque vivem todos no terror do seu filho fratricida.

César levantou-se indignado:

- Basta !

Rodrigo fez-lhe um aceno para estar calmo.

- Não basta. Continua, Gaspar. - Sorriu para César com o ar de quem experimenta um prazer perverso ao ver-lhe a cólera.

Era talvez uma pequena vingança pelas humilhações que o filho lhe infligira.

Gaspar leu : - a Seu, seu. filho fratricida, que foi cardeal e que é agora assassino. Vive em esplendores como o grão-turco, cercado por meretrizes e protegido por soldados. Por ordem sua pode, seja quem for, temer ser morto e atirado ao Tibre e ver- se confiscado de todos os bens a favor deste monstro que.

César arrancou-lhe a carta da mão e rasgou-a.

- Encherei a garganta deste biltre com o chumbo da sua tipografia! - jurou com voz alterada.

Rodrigo levantou-se, divertindo-se sempre.

- Não faças nada - aconselhou ao filho, dirigindo-se para a porta. - Uma mentira ignorada é uma verdade poupada. - Depois, à saída, voltou-se com um meio sorriso nos lábios. - Enquanto que uma mentira pode desvendar uma verdade.

Ao mesmo tempo que o seu pai saía para saudar os D'Este César, depois de um instante de silêncio, voltou-se para o capitão da guarda agitando-lhe na cara os pedaços de papel.

- Haveis dito que sabíeis quem largou este veneno.

- Sim, senhor. Um napolitano. Jerónimo Manciani.

- Encontra-o.

- Mas, senhor, Sua Santidade.

- Fazei como ordenei. Sua Santidade está ocupada com os príncipes D'Este.

Tendo visto o olhar de César, o capitão concordou em silêncio e saiu. César aproximou-se da porta para escutar o que se dizia na outra sala.

Rodrigo saudou calorosamente os estenses ajoelhados na sua frente. Depois convidou-os a levantarem-se e ocupou o seu lugar no trono papal, de rosto radiante.

- Eminência, Excelência, Deus dá-nos uma grande alegria por vos ver aqui. Um esplêndido Carnaval está em preparação na cidade para festejar este casamento - anunciou esfregando alegremente as mãos.

- Santidade, nosso pai pede. - avançou Sigismundo. Rodrigo fimgiu não ter ouvido.

- Uma corrida de javalis selvagens do Campo das Flores aos degraus de São Pedro.

- Se posso recordar a Vossa Santidade que.

- Seguida por uma corrida de prostitutas nuas pelo Burgo.

O rosto de Hipólito iluminou-se.

- Falais a sério, Santidade?

Rodrigo observou-o atentamente. César dissera-lhe que aquele indivíduo ingénuo facilmente se vergaria à sua vontade. Sacudiu a cabeça como se Hipólito tivesse ficado impressionado pelo programa da festa.

- Sim, certamente, porém, o povo espera espectáculos deste género. Será talvez mais do vosso agrado o diálogo pastoral que o duque César porá em cena no seu palácio.

Hipólito ficou desiludido.

- Ah, com certeza - respondeu tristemente.

Sigismundo, de novo, tentou falar:

- Posso perguntar a Vossa Santidade quando podemos.

Mas Rodrigo falou a Hipólito.

- E os fidalgos amigos do Valentino darão assalto a uma falsa fortaleza na praça diante da sua residência. Armados com espadas afiadas.

- Belo! - exclamou Hipólito.

Voltaram-se todos quando César entrou. Rodrigo fez apenas um vago aceno de cabeça, depois voltou-se para os três irmãos e perguntou.

- Quem actua como procurador pelo príncipe Afonso?

- Eu, Santidade - respondeu Ferrante, inclinando-se. Santidade, podemos agora considerar. - insistiu Sigismundo.

César sorriu e interveio, dizendo:

- Haveis trazido um cavalo de corrida?

- Uma dúzia prontos a competir com os vossos - respondeu-lhe Ferrante, orgulhoso. Perdoai-me, Santidade. . . - tentou de novo Sigismundo.

César voltou-se para Ferrante:

- Três mil ducados.

- Aceite.

- Por que perdemos tempo com estas trivialidades? - interveio Rodrigo.

Sigismundo ficou-lhe grato.

- Obrigado, Santidade. Meu pai encarrega-me de discutir certas questões que.

Rodrigo agitou a mão:

- Não, não. Amanhã, amanhã. Falaremos com Sua Eminência amanhã.

Hipólito lançou um olhar desesperado a Sigismundo:

- Comigo, Santidade?

- Naturalmente, Eminência.

Hipólito estava assustado.

- Mas.

Rodrigo tranquilizou-o com um sorriso, depois, virando-se para o filho:

- César, acompanha estes senhores junto de tua irmã.

Pálida e aprumada no seu porte, Lucrécia encontrava-se na frente de César à luz das velas. Estava vestida de preto, de luto pela viuvez. César deu mostras de não lhe agradar o seu vestuário.

- Recebê-los-ei aqui - anunciou Lucrécia friamente -, vestida de luto. Sou uma viúva, não o esqueçam.

César agarrou-a por um pulso, puxando-a a si, cara a cara:

- Não, irmã - disse-lhe com firmeza -, tu és uma esposa alegre.

- Viúva e esposa. Ambas por tua mão.

- É uma ordem de nosso pai.

- Onde está agora?

- Não passa de um velho.

- E tem medo de ti.

- Temos necessidade desta aliança com Ferrara - recordou-lhe César. Os estenses odeiam-nos. Para eles somos gente vulgar. César sorriu com desprezo. Sufocarão na garganta o seu ódio. Quando fui ao encontro destes patetas com os meus quatro mil homens a cavalo, o mais novo destes três devorou um dedo da luva com inveja.

Lucrécia não conseguia opor-lhe resistência por muito tempo.

- César, estou cansada, estou esgotada pelo meu desgosto... - suplicou-lhe com voz queixosa.

Ele abraçou-a e afagou-lhe os ombros e os cabelos consolando-a: Doce irmãzinha, querida Lúcia, a noite passada, lembro-me. Há tanto tempo, quando tinhas cinco anos, comprei-te um cavalo, negro como a noite. Com uma sela espanhola de couro vermelho. Lembras-te?

- Gostaria de esquecer.

A voz de César soou suave, convincente:

- Se pudesse guiar o mundo, dirigi-lo-ia para onde tu desejasses. Porque, no meu coração, desejo sinceramente ser apenas um simples cavaleiro de São João, um pobre soldado de Cristo. Acreditas?

- De boa vontade. - Mas Lucrécia era obstinada. Quando tiver a certeza que tu próprio acreditas nisso.

- Sabes que posso fazer com que faças o que eu quero?

E Lucrécia, como sempre, cedeu à sua força de vontade.

- Isso sei eu - respondeu resignada.

César, sorridente, deixou-a ir.

- Agora desce para os receberes. Mostra-lhes quem és. Uma Bórgia. Com ouro e jóias. A gema mais resplandecente da coroa de nosso pai.

Lucrécia apareceu em cima nas escadas, radiosa, vestida de brocado branco. Os cabelos, que surgiam dourados e com veios vermelhos à luz das tochas, estavam arranjados com um fio precioso de ouro e duas fiadas de pérolas; o rosto estava coberto por um véu subtil. Para maior contraste com a sua juventude e á sua sedução, era acompanhada por um fidalgo velho do seu séquito, um homem alto, de cabelo branco, vestido de preto. Vendo-a descer as escadas, os estenses, mau grado seu, sentiram não pouca admiração. Ferrante ficou sem respiração e até os olhos frios de Sigismundo se animaram. Hipólito estava de boca aberta. - Vossa irmã é uma dama realmente bela e graciosa, duque - disse a César avançando um passo para se apresentar.

César sentiu a presença de Michelotto nas suas costas e ouviu a sua voz ao ouvido.

- Senhor, encontraram-no. O escrevinhador napolitano. Está em Santo Ângelo.

César respondeu com um breve aceno de cabeça.

- Sabes o que deves fazer.

- Senhor, há uma outra questão.

- O quê?

- Vitelli está em Roma. Com Baglioni e Paulo Orsini. Desejam ver-vos.

- Que esperem. - Com os olhos indicou os irmãos D' Este. - Estes estúpidos dizem ter cavalos capazes de bater qualquer campeão das minhas coudelarias. É verdade? - Senhor, a marquesa irmã deles é mulher de um Gonzaga. Dizem que convenceu o marquês a enviar alguns dos seus melhores cavalos para esta altura.

- Portanto, a orgulhosa Isabel põe-nos outra vez à prova.

Bati já uma vez, no passado, as cavalariças dos Gonzaga e vou fazê-lo de novo. Trata-me disso, Michelotto.

- César - perguntou Rodrigo, enquanto naquela noite comia uma ceia frugal à base de pão e fruta no seu quarto -, onde está agora?

César pôs-se a passear pelo quarto, impaciente, com uma grotesca máscara carnavalesca que lhe pendia de um dedo. - Lucrécia? Ajoelhada em frente do túmulo de seu marido. Depois, sorrindo à vista da expressão alarmada do pai:Nada mais que uma despedida. Esquecê-lo-á na cama de outro homem.

- E tu?

César encolheu os ombros.

- Eu já esqueci. E verei muitas outras faces de morto antes de meados do Verão.

- Tomarás Urbino?

- Todas as cidades de que recuperareis o rendimento. Todas aquelas que ainda se interpõem entre mim e o título de senhor da Romanha.

- Mas, César, a duquesa de Urbino ficará ligada a Lucrécia por parentesco adquirido. É cunhada da marquesa Isabel.

- Laços que se cortam depressa com uma espadeirada.

Rodrigo não gostou da deixa.

- Não será presunção da nossa parte, esperamos, recordar-te que as terras que conquistas e que tens estão todas em nosso nome. Se bem recordais, nenhuma delas poderia ser obtida de algum modo sem mim. Apelarão para Veneza. O que não servirá de nada. Segundo os desejos da França. A campanha será dispendiosa. Que paguem os vencidos. Es demasiado impetuoso.

César encolheu os ombros.

- Segundo as imposições do tempo. - Voltou-se para sair. Vossa Santidade está a afastar-me dos meus hóspedes. - César - chamou-o Rodrigo ansioso e aborrecido ao mesmo tempo. - E depois de Urbino?

Houve uma longa pausa, depois César respondeu:

- Florença.

Rodrigo levantou-se furibundo ao ponto de as mãos lhe tremerem quando agarrou César por um braço.

- Não! É uma loucura.

César sacudiu-o.

- Uma dinastia Bórgia na Romanha, recorda as tuas próprias palavras, exige a sujeição daquela república toscana de palafreneiros.

Rodrigo agarrou-se à borda da mesa para se segurar, trémulo de cólera.

- Ainda não!

- Agora! - exclamou César. - Passai o vosso rosário, Santidade. As questões da guerra deixai-as comigo. - Estúpido! Imbecil! - gritou-lhe Rodrigo. - A França prometeu-lhes doze mil homens se marchares contra a cidade. Lembra-te da última vez.

- Não ofenderei o rei Luís - respondeu César, calmo. Rodrigo levantou a mão como que para bater no filho. - Proíbo-te, César. nós somos o papa. Proíbo-te!

- Então terei de prometer a Vossa Santidade que o vosso capitão-general não porá os pés na Toscana - respondeu César educadamente. - Agora, se Vossa Santidade me quiser deixar ir, tenho um encontro com o reverendo cardeal D'Este para ir às putas. Podereis falar-lhe amanhã de manhã.

Rodrigo alcançou a cadeira onde se deixou cair pesadamente a olhar o filho com muda impotência.

Na manhã seguinte, Hipólito d'Este viu-se com a cabeça confusa pelo cansaço a afrontar um vivíssimo Rodrigo, enquanto procurava desesperadamente lembrar as instruções recebidas do pai.

- Santidade, um dote de duzentos mil ducados - disse. Rodrigo abanou a cabeça.

- Eminência. Apenas o que ficou estabelecido com o embaixador de vosso pai. Cem mil.

Hipólito ficou confuso.

- Santidade, não poderemos chamar meu irmão Sigismundo? Ele vos poderá dizer.

Solícito, Rodrigo respondeu-lhe:

- Pareceis-me fatigado, Hipólito. Erramos convocando-vos a esta hora, tão cedo. Quando evidentemente haveis passado a noite acordada, de joelhos.

- De joelhos, Santidade? - perguntou Hipólito, cauteloso.

- A pedir iluminação ao Céu - precisou Rodrigo, calmo.

Tranquilizado, Hipólito respondeu com um aceno de cabeça.

- É certo, Santidade. A devoção reanima o espírito, mas cansa a mente. - Rodrigo sorriu. - Ficai tranquilo, filho, nós vos daremos auxílio. A suspensão dos contributos de vosso pai à Santa Sé, por quanto tempo foi estabelecida, recordais?

- Dez anos, Santidade.

Rodrigo abanou a cabeça tristemente.

- Cinco, Hipólito, cinco.

Hipólito olhou em volta, angustiado, à procura de uma ajuda que não podia receber.

Rodrigo continuou desapiedado:

- Haveis trazido as jóias para Dona Lucrécia?

- Santidade, meu irmão Sigismundo disse-me justamente. . - Hipólito desviou os olhos. O seu estado de confusão punha-o a suar.

- Em demonstração da boa-fé da vossa família - interrompeu-o Rodrigo.

- Santidade - respondeu Hipólito apaixonadamente -, as jóias são apenas mostradas nos casamentos e não.

- Temeis que não vos fossem restituídas, Hipólito?

- Não, Santidade.

- Sim, é certo.

- Santidade, meu pai deseja que, de tudo isto, fale convosco meu irmão Sigismundo.

- Sois um príncipe da Igreja, Eminência. Nós somos o papa. Parece incorrecto da nossa parte preferir-vos como interlocutor? - Inclinou-se para a frente para lhe tocar num braço em sinal de compreensão. - Sabemos. Sabemos quanto vos deve angustiar esta troca. Por isso, se possível, devemos ser breves. Fica em suspenso a questão da criança.

Hipólito estava mais infeliz do que nunca.

- Santidade, meu pai, meu irmão Afonso. Santidade, a presença da criança em Ferrara provocaria um espinhoso embaraço.

- Hipólito. - Rodrigo parecia aflito. - Quereis impedir uma mãe de ter junto de si um filho?

- Mas, Santidade, o embaixador de meu pai tinha referido que, segundo os acordos estabelecidos convosco, os filhos da senhora.

- o filho da senhora ficaria em Roma. Se não fosse um pesado fardo para a nossa bolsa.

- Santidade, tem uma renda de quinze mil. . . - lançou Hipólito.

Em tom de desafio, Rodrigo disse:

- Os castelos e as terras que pertencem agora a Dona Lucrécia têm de ser cedidos ao filho.

Hipólito não falou, como que trespassado.

Rodrigo levantou-se considerando encerrado o colóquio. - Reparai como depressa chegam a acordo dois fidalgos honestos! - disse afável. - Todos satisfeitos. Congratulamo-nos convosco, Eminência. Ide agora, meu filho, levar a alegre notícia a vossos irmãos. Tenho outros assuntos a que dedicar a minha atenção. - Depois, enquanto o infeliz Hipólito se preparava para sair, perguntou candidamente: - Meu filho, o duque Valentino trata-vos bem?

O corpo martirizado do napolitano Manciani pendia privado de vida, suspenso de correntes, contra uma parede de uma cela do Castelo de Santo Ângelo.

- Não falará mais, duque - afirmou Michelotto quando César entrou na cela, trazendo ainda a máscara de Carnaval.

César levantou a cabeça do morto, agarrando-o pela barba. Por um breve instante contemplou com ódio a face em que eram evidentes os sinais da dor sofrida.

- Deverias ter-lhe cortado a língua - disse bruscamente. Para avisar o próximo que ousasse. - Deixou cair a mão. O senhor de Faença falou? - perguntou.

- Os seus amigos, senhor. Pagaram-lhe, para caluniar Vossa Excelência.

- Para que o povo de Faença se levantasse contra mim invocando Manfredi. Não é assim, Michelotto?

Michelotto anuiu, sorrindo.

- Se dizeis assim, senhor.

César tirou a máscara e atirou-a para o chão. No seu rosto desenhou-se um sorriso cruel.

- O senhor de Faença tem de pagar por esta traição, Michelotto. Não foste tu, justamente, por altura do nosso primeiro encontro, a ensinar- me que é preciso ser sempre o primeiro a ferir?

- Senhor, para um príncipe que queira viver, não existe outro modo.

César voltou-se e caminhou para a porta da cela.

- Sua Santidade será informada - anunciou.

- Nunca, César! - Rodrigo estava horrorizado, mas resoluto.

- Têm de ser punidos. De outro modo será punido ele. Conspiraram contra vós.

Rodrigo abanou a cabeça:

- Tolices. Tolices.

César curvou-se para a frente, pousando ambas as mãos na escrivaninha em que Rodrigo trabalhava. Falou lentamente, silabando as palavras como se se dirigisse a um imbecil. Faença está no coração da Romanha. Se se revoltar a favor de Manfredi pode acabar com todo o trabalho que fiz até agora. Deixará de nos temer, de pensar que somos invencíveis. E o duque Hércules de Ferrara poderia mudar de ideias quanto à nossa aliança. - Fez uma pausa, para que os conceitos fossem bem compreendidos, depois continuou: - Este rapaz, este Astorre, foi o coração e a mente da resistência de Faença no passado. e nós temos de pensar no futuro. Consigo explicar-me bem a Vossa Santidade? - Rodrigo não respondeu. Mas mostrava ter compreendido bem. - Poderão revoltar-se ao grito da sua libertação. Não posso preparar a minha campanha com aquela faca apontada às costas - insistiu César.

Com um tom de voz curiosamente equívoco, a desmentir a firmeza do conteúdo, Rodrigo disse:

- Santo Ângelo é uma fortaleza papal. Ali tenho eu autoridade. Não lhe tocarás.

César levantou-se.

- Seja - respondeu docilmente. - Nada farei para estragar a alegria de minha irmã por altura das suas próximas núpcias.

A 28 de Dezembro de 1501, ao som de trompas, tubas, alaúdes e rebecas, Lucrécia saiu de cabeça erguida pela última vez do Palácio de Santa Maria in Portico e atravessou a Praça de São Pedro em direcção ao Vaticano. Vestia um rico traje de brocado de ouro com uma cauda segura por Angelina e por outras das suas damas e um véu dourado a cobrir-lhe o cabelo; no pescoço e nas orelhas não trazia gemas. De um e de outro lado iam Ferrante e Sigismundo d'Este e atrás dela seguiam em cortejo, nos seus trajes mais faustosos, cinquenta nobres damas romanas. Lucrécia e o seu séquito subiram as escadas em direcção à Sala Paulina, por cima das portas do palácio, onde se daria a cerimónia celebrada pelo bispo de Ádria.

O bispo começou com um sermão longo e embrulhado, mas Rodrigo interrompeu-o com um gesto impaciente.

- Monsenhor bispo, à cerimónia! - exclamou secamente.

A um sinal de Burchard, introduziram uma comprida mesa que foi colocada na frente de Rodrigo. Ferrante d'Este, na qualidade de procurador do irmão, avançou com Lucrécia e ofereceu-lhe um anel de ouro. Depois foi a vez do cardeal Hipólito que, ainda que preocupado, pousou sobre a mesa um pequeno cofre com as jóias.

- Lucrécia -, peço-vos Graciosíssima senhora - disse

que não desdenheis estas pobres coisas. Prometo-vos que, mal chegueis a Ferrara, o duque meu pai vos dará outras jóias em abundância, bem mais dignas da vossa beleza.

Aberto o pequeno cofre, Rodrigo nele mergulhou uma mão e de lá extraiu um sortido cintilante de diademas, colares, braceletes, pendentes de diamantes, pérolas, rubis em elaboradas montagens. Colocou na cabeça da filha um pequenino chapéu ornamentado com catorze grandes diamantes em conjunto com numerosos rubis e cento e cinquenta pérolas.

- Agradecemos ao duque - disse radiante. - Agradecemos a Vossa Eminência em representação de vosso pai. - Tomou depois Lucrécia entre os braços abraçando-a com exuberância.

- Vem, Lucrécia, celebraremos nós o teu matrimónio. Conduzida por Rodrigo à mesa do banquete na sala contígua, Lucrécia deixou-se arrastar sem emoção, com cara resignada e a mão fria e inerte na mão febril do pai. Sentaram-se, os músicos começaram a tocar e Rodrigo deu sinal para que se dançasse. Lucrécia continuou sentada, erecta e rígida, na sua veste dourada. Os seus olhos encontraram os de César num longo olhar de paixão misturada com altivez.

Lucrécia ajoelhou-se diante do pai para a última despedida. Parecia calma, vazia de qualquer sentimento.

- Recordarás aquilo que te dissemos - afirmou Rodrigo ansioso.

- Recordarei tudo - concordou ela de modo incolor.

- E escrever-me-ás. . . muitas vezes.

- Como desejardes.

Rodrigo sorriu tentando levá-la a fazer o mesmo.

- Irei a Ferrara pela Primavera. Nessa altura estarás certamente à espera de um menino. Irei e. . . tudo estará bem.

- Sei que poderemos não nos ver mais. - Lucrécia recusou responder.

- Lúcia - pediu-lhe ele -, tudo aquilo que fiz. . . tudo aquilo que desejei. foi apenas para ser um bom servo da minha Igreja e da minha família.

- Tu soubeste servir-te de ambas - respondeu ela, seca. - Como servo de Deus - repreendeu ele.

- Que possa perdoar-te.

- Lúcia - serenou-a Rodrigo -, escreverás a César? Por minha conta. Recomendar-lhe-ás que. que.

- É demasiado tarde - interrompeu-o ela, fria. - Já não tem necessidade de ti. Já não precisa de Deus.

Rodrigo irritou-se repentinamente com a sua arrogância. E eu já não tenho necessidade de ti! - exclamou. Lucrécia ergueu-se e olhou-o bem de frente. Tremia no esforço para dominar as suas emoções.

- Finalmente, somos sinceros - disse-lhe. - Agora, ouve-me bem. Mesmo que o meu marido seja uma besta, amá-lo-ei. Marreco e vesgo que seja, abrir-me-ei para ele. Porque estou muito contente por me afastar de todos vós. - começou a chorar e os ombros tremiam-lhe pela angústia.

Rodrigo, com a face contraída por uma dor indizível, aproximou-se para o último abraço. Ela empurrou-o e correu para a porta. Saiu sem se voltar. No pátio caíam os primeiros flocos de neve do novo ano, a embranquecer-lhe a capa escarlate e a pousarem invisíveis no capuz de arminho. Sorrindo graciosamente a Ferrante e a Sigismundo d'Este, que lhe serviam de escolta, Lucrécia passou o portão para partir para Ferrara.

A uma milha da cidade, um homem a cavalo esperava na Via Flamínia. Estava vestido de veludo preto, coberto por um longo manto de pele. Lucrécia puxou as rédeas, reconhecendo-o imediatamente.

- César - murmurou.

Ele manobrou para se pôr a seu lado.

- Lúcia - disse ele, pousando- lhe na mão fria os lábios quentes -, este é o início para ambos. - Ergueu a cabeça e olhou-a nos olhos um longo momento. - Recorda - disse- lhe -, tu e eu. Agora e para sempre.

Depois voltou o cavalo e seguiu a galope para Roma, uma sombra escura contra a neve branca.

César olhava da janela de arco do seu novo palácio no Trastevere, aquele Palácio de São Clemente no qual Catarina Sforza assinara finalmente a cedência das suas cidades. Olhava para o setentrião, onde se alongavam prados brancos, fora da cidade. Para aquele lado era Ferrara. . . e a Romanha. Romanha! Era tempo de preparar uma nova campanha. - Michelotto! - chamou sem se voltar. - Os Orsini e os outros chegaram?

- Estão à espera em baixo, senhor.

- Então deixemo-los esperar. Eu lhes farei ver quem é o senhor.

Numa outra sala do palácio de César, os capitães esperavam que fossem chamados. Vitellozzo Vitelli, um homem robusto, barbudo e tisnado pelo sol, estava encostado à grade de uma janela e parecia escutar os sinos que saudavam a partida de Lucrécia para Ferrara. O velho amigo de César, João Paulo Baglioni com Paulo Orsini ao lado estava meio estendido numa cadeira a olhar Vitelli.

- Portanto - disse Vitellozzo voltando-se por sua vez -, o gato casou com outro rato. Mas descobrirão que os D'Este são uma caça bastante mais perigosa do que aquela que conhecemos até agora. - Pôs-se no centro da sala e ficou apoiado a um montante com ambas as mãos. - Perguntava-me se quando o nosso senhor for sorvido pelo Inferno os sinos tocarão a rebate também por ele.

- E aqueles imbecis que berram lá fora também rezarão por ele? E tu, Vitellozzo? Vais servi-lo como comandante como nós? - respondeu- lhe João Paulo.

- Patrão de mim mesmo - contrariou o outro com desdém. - Os meus antepassados eram senhores de Cidade de Castelo quando os dele pastavam cabras.

- Mas agora é dele que recebes soldo - disse Paulo Orsini. Por dezasseis canhões e o comando de três mil homens. O soldo de um soldado. Soldo honesto.

- Eu não o sirvo.

- Lógica irrepreensível, Vitellozzo - afirmou Paulo, seco. Os Orsini e os Bórgias em preparativos. É esta a bela lógica, João Paulo? E meu amigo. E por isso é vigiado.

- Não nos trairá - afirmou João Paulo, convicto. De novo não.

- Duas vezes não - disse Vitelli impassível. - Não é por isso que estamos aqui?

Orsini e Baglioni trocaram entre si um olhar embaraçado, sentindo o caminho perigoso que tomava aquela alusão de Vitelli.

- Se estiver de acordo. - disse Paulo. - Aceitas a sua palavra? - perguntou por fin.

- Só sobre a santa cruz - respondeu sombriamente Vitelli. Puxou a espada com guarda-mão em cruz para fora da bainha. Só em nome de Cristo ! E ainda poderia. - Voltou a enfiar a lâmina na bainha.

O cortinado que escondia a porta correu repentinamente e César entrou. Mostrando-se bastante alegre por encontrar os seus capitães, abraçou-os um por um afectuosamente. - Vitellozzo. querido, velho amigo!

- Meu senhor. . . - Vitellozzo inclinou-se.

- Paulo. Paulo Orsini !

Orsini sorriu.

- Duque.

- E João Paulo Baglioni. Estou contente por vos ver aqui. Ontem Sua Santidade disse-me quanto se amargura por vos ter assim levianamente banido.

- Senhor! - exclamou Baglioni curvando a cabeça. - Agora - César estava expansivo -, vamos combater novamente todos juntos!

Vitelli estava receoso.

- Os tempos estão a mudar, monsenhor.

César ignorou-o.

- Com o vosso auxilio terei o melhor exército de Itália.

Mas Vitelli não estava convencido.

- Para a França ou para a Espanha, senhor?

- É a mim, senhor da Romanha, que servis - respondeu César.

- Não é toda vossa - lembrou-lhe Vitelli.

- Um castelo aqui, uma cidade ali. Antes que passe o Verão tê-la-ei toda.

- Para a França ou para a Espanha, senhor?

- Que cada um escolha a sua - convidou alegremente César. - Chapéu na mão. - Os capitães trocaram um olhar de dúvida. No jogo complicado da política internacional era muito importante escolher o lado onde estar. Escolher a parte errada podia significar perder as próprias terras, como acontecera aos Colonna, ou a vida, como acontecera com Virginio Orsini. César observou-os. Depois teve um amplo sorriso e pousou uma mão num ombro de Vitelli.

- Vitellozzo!

- Senhor?

- Os tempos estão a mudar, é verdade. Na Primavera as populações de Pisa e de Arezzo revoltaram-se contra Florença.

- Florença! - exclamou Vitelli, incrédulo. - De novo. De novo. Que propõe Sua Excelência?

- Tu, Vitellozzo, marcharás em socorro de Arezzo. Tu, Paulo, levarás reforços a Pisa.

Vitellozzo sorriu cinicamente.

- E vós?

César deixou cair o braço e olhou para outro lado por um instante. Depois voltou-se com um sorriso triunfante no rosto.

- No palácio ducal de Urbino. Onde a França, a Espanha e Florença poderão dentro em breve ajoelhar-se a meus pés.

Os olhos de Baglioni iluminaram-se de admiração.

- Senhor! - avançou para lhe agarrar a mão.

- Não! - A voz de Vitelli soou obstinada.

- Não? - César estava espantado. - Perdoaste aos Florentinos terem enforcado o teu irmão?

- Não esqueço ninguém - respondeu Vitelli -, e não perdoo a ninguém.

César fitou Orsini.

- Paulo? Os Orsini estão empenhados em restituir Florença aos Médicis, seus parentes.

- Agora há a França atrás da Toscana - interveio Vitelli. - Um rei que defende uma república? - Logo contrariou César. - Vitellozzo !

Paulo Orsini hesitava.

- Senhor, há nove meses, depois da queda de Faença, oferecemo-vos a cidade de Florença na ponta das nossas espadas.

- Podeis fazê-lo de novo.

- Haveis recusado - acusou-o Vitelli. - Fomos abandonados por vós.

César fingindo uma cólera que não sentia, gritou:

- Foi uma intervenção do papa, minha, não. - Estendeu as mãos para agarrar Vitelli pelos braços. - Vitellozzo, meu velho amigo. acreditas realmente que não sinta remorsos alguns por aquele abandono?

Vitelli recuou libertando-se da mão de César com uma expressão enigmática no rosto. Depois desembainhou a espada e oferecendo a César o punho em forma de cruz, disse:

- Em nome de Cristo, juro que vos serei fiel.

César tomou a espada e levou o punho aos lábios.

- Em nome de Cristo - repetíu -, eu te serei fiel como creio que o serás a mim. - E enquanto com o olhar abrangia todos os capitães, um sorriso imperceptível passou-lhe pelos lábios.

Na tardia Primavera de 1502, os planos de César por uma audaz surtida em direcção ao setentrião estavam quase cumpridos. Tencionava vibrar um ataque fulminante a Urbino, nos confins meridionais da sua senhoria da Romanha, para expul sar o duque Guidobaldo e a sua duquesa. Era um plano temerário porque o duque Guidobaldo era muito amado e segundo parecia bem estabelecido no seu ducado montanhês. Era também aparentado com outras familias de governantes através da duquesa, que era irmã do marquês de Mântua e portanto cunhada da orgulhosa marquesa Isabel d'Este Gonzaga. Simulta neamente com a conquista de Urbino, César tivera vontade de atacar mais uma vez Florença, fomentando uma revolta nas

cidades que estavam submetidas, Arezzo e Pisa, graças à intervenção dos seus capitães, para ameaçar depois os Florentinos sitiados com a presença das suas tropas na fronteira. Era um

jogo arriscado, porque Florença gozava da protecção da França e certamente se voltaria para Luís em busca de auxilio. Além disso, Luís era esperado na Itália, onde teria aprontado um exército em Milão antes de marchar contra Nápoles, onde o trono estava em contestação com os Espanhóis. Mas, como

bom jogador, César prudentemente avaliara as probabilidades e não tinha medo de olhar mais alto contemplando em segredo algumas alternativas.

Os dias passavam-se assim em preparativos: recolhiam-se fundos para financiar a campanha, recrutavam-se homens, compravam-se armas, assalariavam-se agentes instigadores que fizessem as funções de quinta-coluna no interior das cidades que estavam em mira, de acordo com as forças de César no exterior. César tinha um talento nato para a arte militar. Interessava-se por toda a técnica nova e por toda e qualquer invenção, especialmente no campo da artilharia e das fortificações. Estava interessado principalmente no esquema logístico da complicada estratégia que tinha em mente.

Naquele dia de Primavera César estava sentado à sua mesa. A hora era tardia e ele levantara-se há pouco. Entre os mapas espalhados havia ainda pão, fruta e vinho que tinham ficado da primeira refeição. Estavam com ele para o servirem Michelotto e Ramiro, este último já evidentemente um homem abastado, a ajuizar pelo modo sumptuoso de vestir.

- Ramiro - disse César -, aquele engenheiro florentino, aquele que anteriormente dependia de Ludovico em Milão. Trouxeste-o contigo, como te tinha pedido?

- Da Vinci, senhor? Está na antecâmara a trabalhar nos seus projectos. Vossa Excelência deseja examiná-los? - Dizem que é um génio na arte do desenho. Ludovico Sforza, não obstante tantos defeitos, tinha um faro excelente - respondeu César, mastigando uma côdea de pão. - E era bastante sábio para tomar para si sempre o melhor. Vamos ver esse homem.

Levantou-se da mesa enterrando os fortes dentes brancos na côdea dura de pão e passou à outra sala, onde um homem estava curvado sobre uma escrivaninha, a desenhar a pastel a cabeça de um velho. Estava tão absorvido no seu trabalho, que não se apercebeu da chegada de César e César não lhe falou, inclinando-se porém para rebuscar entre os papéis que tinham invadido o pavimento, em volta da escrivaninha. Muitos eram estudos para retratos e estudos anatómicos de homens e cavalos. Afastou aqueles esboços olhando porém com extremo interesse os bosquejos de máquinas de guerra e fortificações.

- Conheceis as defesas e as fortificações de Florença?perguntou bruscamente ao artista.

Da Vinci levantou a cabeça e, em atitude respeitosa, fez uma reverência. Andava pelos cinquenta anos, usava barba e tinha olhos sonhadores de olhar remoto. Pendiam-lhe do cinto blocos de papel para desenho. Tinha as mãos sujas de pastel e carvão. Estava vestido com simplicidade, quase pobremente.

- Senhor, Sua Excelência propõe-se apertar o cerco à cidade?

César não respondeu à pergunta.

- A mentira podia ser mais eficaz que todas as vossas máquinas - disse. - Mas que sabeis dizer-me de Urbino?

- Sua Excelência verá que arquitectei um sistema de trincheiras que avançam por fases e lentamente.

- Não sou homem de ociosidades - interrompeu-o César. Mostrou-lhe um desenho que o deixava perplexo. - Que é isto?

- Um projecto para uma máquina volante, Excelência, pela qual um homem erecto dentro dela, como podeis ver, levantando e baixando os braços.

Ramiro riu e fez uma careta de desprezo, mas César, ainda

que incrédulo, estava interessado.

- Um homem voador?

- Certamente, Excelência. Aquela ideia fantástica de anjos alados tinha-me impressionado. Como é natural, para um homem de engenho. Os pássaros voam, Leonardo. Os homens caminham. Uma ave não é mais do que um instrumento que responde a certas leis matemáticas e poderia figurar entre as capacidades do homem, com o auxílio das máquinas, poderia reproduzir tais movimentos com o fim de se elevar.

Mas César já não o estava a ouvir. A sua atenção fora atraídapelos projectos militares.

- Tenho necessidade de mapas de Urbino - afirmou em tom decisivo. - Como aquele que haveis desenhado de Arezzo. Planos para um assédio a coberto das muralhas, onde melhor se possam colocar os canhões.

Da Vinci fez uma reverência.

- Excelência, encarregais-me de ser o vosso engenheiro? - Sereis bem pago - respondeu César. Avaliou as roupas

desleixadas de Leonardo. - A sapiência deve ser um patrão avaro. Vereis que sou um patrão generoso, se me servirdes bem. Trazei-me os planos que desejo dentro de cinco dias. Dentro de sete parto.

- Excelência, posso acompanhar as vossas tropas? Para estudar o espírito dos homens em combate, examinar cadáveres, o funcionamento de ossos e músculos.

- Leonardo - disse César um pouco exasperado -, um ferreiro não pode governar a lâmina que tempera, nem um palafreneiro dizer ao seu patrão para que lado ir. Ramiro, acompanharás Da Vinci na Romanha. Dai a saber que por ordem minha deve ser-lhe assegurada toda a assistência de que tenha necessidade. Depois de me ter dado os planos que Lhe pedi.

Ramiro inclinou-se e acompanhou Da Vinci para fora da sala.

César voltou-se para Michelotto:

- Tu estarás em Roma.

- Não irei convosco a Urbino?

- Esperarás as cartas que Vitelli me deve enviar de Arezzo. Virás ter comigo quando o papa tiver deixado Roma pelo Verão. - Foi até à porta e demorou-se no limiar. - Com preendeste-me, Michelotto?

- Senhor?

- Quando o papa tiver partido. . . acenderás uma vela pelo jovem senhor de Faença.

Astorre Manfredi levantou-se desconfiado da palha em que estava deitado quando se abriu a porta da sua cela. Entraram dois homens com duas tochas, que as enfiaram nos suportes das paredes. Manfredi perscrutou-os com apreensão. Nunca os tinha visto e as suas caras não lhe agradavam.

- Quem sois?

Michelotto falou em primeiro lugar:

- Bons amigos, senhor.

- Amigos ?

Michelotto tirou uma carta do punho.

- Para trazer alívio a Vossa Excelência.

Manfredi fitou-o incrédulo enquanto a esperança começava a reanimar-lhe os olhos.

- Alívio? Serei libertado?

Michelotto sorriu-lhe, estendendo-lhe o documento.   Manfredi pôs-se de joelhos e fez o sinal da Cruz para manifestar a sua imensa alegria. Ao lado dele Ramiro moveu-se rapidamente. Tirou da manga um laço de seda e passou-o lestamente em volta da cabeça inclinada do senhor de Faença puxando com violência. Foi uma infatigável luta antes de o corpo de Manfredi ficar imóvel e privado de vida. Michelotto abanou a cabeça, desaprovando:

- Malfeito, Ramiro - comentou. - A vida fácil do teu

governo na Romanha está a estragar-te.

Os dois homens tiraram as tochas dos suportes e saíram, sem se preocuparem mais com a vítima.

- Agora - disse Michelotto no escuro corredor ao fundo do qual se avistava um pouco de luz -, tens de voltar para a Romanha, enquanto eu tenho de ir ter com o duque em Urbino.

Os embaixadores florentinos, o bispo Soderini e o seu secretário Nicolau Maquiavel, entraram a cavalo no terreiro do grande palácio ducal de Urbino. O chefe da delegação, Soderini, estava manifestamente preocupado. Tinham sido convocados pelo duque Valentino de modo um tanto peremptório e sem que lhes fosse dado a conhecer o motivo daquela convocação. Soderini previa um desagradabilíssimo encontro com o homem que recentemente e até com demasiada facilidade expulsara o duque Guidobaldo da sua sede de Urbino. Maquiavel, por seu lado, estava ansioso por conhecer aquele homem do qual tanto ouvira falar, que ameaçara a sua cidade um ano antes e expulsara tantos orgulhosos senhores das suas terras. Este duque Valentino, reflectia Maquiavel, era por certo um homem dedicado exclusivamente à sua causa, capaz de forjar para si a própria política para depois lhe modificar as regras segundo as próprias exigências.

O terreiro estava cheio de homens armados com as cores de

César. Entre eles Maquiavel avistou um grupo de prisioneiros acorrentados, abatidos, ao lado dos quais estava o conhecido braço direito do Valentino, Michelotto.

Michelotto avançou para os saudar com as mãos nos flancos, numa atitude que era mais de zombaria do que de respeito.

- Bem-vindos a Urbino, meus senhores - disse ele. - O duque espera-vos com impaciência.

- Se pudéssemos repousar primeiro. . . - começou Soderini.           

- Não, monsenhor bispo.  

- Mas. . . mas. . . estamos em viagem há dois dias, directamente de Florença. Eu. . . eu insisto.

Michelotto não lhe prestou mais atenção. Voltou-se e bateu com o punho da sua espada na pesada porta com tachas que tinha atrás de si. Quando esta foi aberta por uma guarda armada até aos dentes, Michelotto fez sinal aos delegados para entrarem. Antes de os seguir, chamou a si o capitão encarregado dos seus prisioneiros e sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido, indicando-lhe uma janela alta na muralha. O capitão pareceu ficar surpreendido, depois sorriu e concordou. Michelotto deu meia volta e entrou com um grande estrondo de       

ferros, quando os ferrolhos correram nas suas costas.          

César recebeu os embaixadores numa sala defendida por um

corpo de guarda especial, por cima do átrio. Estava como sempre vestido de preto, mas trazia meia armadura, com uma espada à ilharga para maior segurança. O ambiente era de tensão e inquietação e César recebeu os florentinos com uma atitude que mais era de ameaça do que de boas-vindas. Acenou-lhes que se sentassem e, mal eles se sentaram, começou a andar para a frente e para trás, iniciando uma violenta arenga:

- Sei que a cidade de Florença não me vê com bons olhos! - exclamou com raiva. - Sei o que pensais de mim, vós, Florentinos. Não quero ouvir as hipócritas fanfarronadas do vosso Conselho. Não haveis mantido as promessas que me fizestes o ano passado, quando retirei as minhas tropas do vosso território. Haveis conspirado com a França contra mim!

Soderini mudou de posição. . . um mal-estar. Era justamente como temera, talvez pior. Lançou miradas nervosas aos dois guardas armados que vigiavam a porta, aos dois besteiros à janela e a João Paulo Baglioni, que sabia ser um capitão do Valentino, de pé, de braços cruzados, encostado à parede.

- Tendes de me dar algum penhor da vossa boa-fé - recomeçou César. - Então Florença encontrará em mim um amigo devotado tanto quanto sei ser um inimigo implacável. Sou o senhor da Romanha e não me ponho certamente de joelhos a implorar favores de uma república de lojistas. Eu não vos devo nada, mas vós sois-me devedores pela tolerância que demonstrei pela vossa cidade. O ano passado poupei-vos, mas agora esgotou-se a minha paciência e eu, não vós, direi o que se deve e o que não se deve fazer!

Um leve sorriso passou pelo rosto de Maquiavel perante aquela encenação, enquanto formulava os seus pensamentos. Por que, pensava, este magnífico príncipe deveria honrar a sua palavra? Nenhum príncipe sagaz alguma vez o deveria fazer quando mudam as circunstâncias em que tal palavra foi dada. Se todos os homens fossem bons, então todos os príncipes poderiam ser honestos, mas uma vez que a maioria dos homens são apenas desventurados animais que trairiam o príncipe na primeira altura, seria de tolos honrar a própria palavra. E a nenhum príncipe faltariam alguma vez boas razões para justificar a própria má-fé. - Maquiavel? - A voz de César interrompeu bruscamente as elucubrações do delegado.

- Duque.

- Estais divertido?

- Perdoai-me, senhor duque, um pensamento premonitório, nada mais.

- Visto que vos pôs tão absorto, talvez seja bom que também eu o conheça.

- Um príncipe que tenha dado a sua palavra, senhor, poderia defender que, se mudam as circunstâncias em que a deu, já não tem o dever de a honrar.

- Não defendi isso.

- Assim, quando o nosso governo vos pede que recordeis as garantias que nos haveis dado no ano passado, que não haveis agido contra nós.

- Não fiz isso. Estou em Urbino. Não pus os pés na Tos cana. Não basta isso para demonstrar a minha boa-fé? Maquiavel fez uma pausa, depois com um vago sorriso disse:

- Sim, mas Vitelli está em Arezzo.

- Tenho eu de responder por isso?

- Não é então um homem vosso?

- É um homem meu. Mas juro-vos que nada sabia dessa

surtida de Arezzo.

Soderini considerou que chegara justamente o momento de tomar parte na conversa.

- Então Vossa Excelência vai chamá-lo? - perguntou.

A face de César ensombreceu e a sua voz tornou-se ameaçadora :

- Não espereis favores meus - replicou ao bispo. - Não me aflige o mal que Vitelli possa ter feito à vossa cidade. Sofreu bastante com a crueldade daquela gente, como eu lhe sofri as insolências. Pelo que me diz respeito quanto mais longe lá se for mais contente eu estarei!

Soderini, ferido pela cólera de César, tentou serená-lo.

- Senhor, estas acusações são injustas. O nosso governo pede apenas a Vossa Excelência uma garantia.

- Vamos lá ver se nos entendemos, monsenhor bispo! Não confio no vosso governo. Faríeis bem em modificá-lo. Não sou homem para querer ser tirano, mas diante de Deus esmagaria quem quer que procure tiranizar-me ! - Depois voltou-se para outro lado, como se procurasse dominar a sua ira. Senhor duque - Soderini estava hesitante, mas insistente -, exigis a nossa boa-fé. Não é justo que vos peçamos. . .

Maquiavel estendeu uma mão para o interromper. Aclarou a garganta.

- Senhor - disse com humildade -, que quereis de nós?

De início César não respondeu. Chamou a si com um gesto um dos seus archeiros e pediu- lhe que lhe entregasse a besta. Parecia concentrado a apontar para qualquer coisa em baixo, no terreiro. Depois, sem virar a cabeça, semicerrou os olhos fixos no seu alvo e disse:

- Florença tem de decidir o que deseja que eu seja. Um bom amigo ou um inimigo desapiedado.

Disparou a frecha. Do terreiro chegou um grito de dor. César endireitou-se e tornou a dirigir-se aos delegados com um sorriso amistoso. Parecia que nunca estivera encolerizado. Pediu aos florentinos que se aproximassem da janela. Estendido de cara para baixo, no centro do terreiro, jazia um dos prisioneiros com a extremidade de uma seta que lhe saía das costas.

Calmo, César estendeu a mão para o outro besteiro, recebeu a arma e entregou-lhe a descarregada, que o soldado se apressou a recarregar. Sem uma palavra, César novamente apontou; um outro prisioneiro caiu debatendo-se no terreiro, com a garganta trespassada.

Os outros prisioneiros, agora conscientes do perigo, tentaram fugir da armadilha. Dois puseram-se a bater em vão no portão do castelo para ali procurarem refúgio, um terceiro tentou esconder-se entre os cavalos presos, enquanto o quarto se pôs de joelhos a rezar. Dado que este último oferecia o melhor alvo, César matou-o sem demora. Depois pôs em mira o prisioneiro escondido entre os cavalos. Os animais assustados recuaram esticando as cordas que os prendiam e retirando protecção         ao desventurado. César não falhou o alvo.   

- Monsenhor duque - disse Maquiavel ao Valentino, o qual se voltou para o olhar com as sobrancelhas franzidas, enquanto estendia mecanicamente o braço, para receber uma besta armada. - Monsenhor duque - repetiu, com uma ponta de divertimento no tom da voz -, quatro é já um óptimo resultado. Não pensais que cinco ou seis possa ser excessivo?        

César sorriu e encolheu os ombros. Tornou a virar-se para a janela e novamente apontou. Mais duas frechas e todos os prisioneiros foram eliminados.

- Amigo ou inimigo, Maquiavel. Florença tem uma semana para decidir.

- Passou um mês e Florença ainda não te respondeu - disse Rodrigo. - Acreditaste na verdade que se deixavam assim atemorizar tão facilmente?

Passeava com César no jardim do Vaticano. Fora ele próprio quem chamara o filho a Roma para se informar a esse respeito. Havia tensão entre eles. Rodrigo desaprovava os métodos de César, suspeitava das suas verdadeiras intenções e sentia-se incomodado ao verificar que perdera praticamente todo o controlo sobre ele. César dominava-se, mas por baixo de uma atitude impassível estava irritado pelo que considerava uma cobardia de seu pai.

- O jogo ainda não acabou - respondeu.

- Há um novo jogador. - Rodrigo lançou um punhado de trigo às pombas brancas que esvoaçavam à sua volta. - O rei Luís chegou a Milão.

- Fui eu próprio que vos informei.

- O rei pediu-me que te detivesse.

- E podeis fazê-lo?

Rodrigo não respondeu, não desejando manifestar a sua impotência. Em vez disso tentou um outro lance no jogo de domínio que ambos estavam jogando: porém, um jogo que Rodrigo sabia não poder ganhar.

- A conquista de Urbino ofendeu o mundo - disse com desdém. Não haveis objectado quando disso vos falei. Rodrigo continuou na sua empresa de abrir uma brecha na arrogância couraçada do filho.

- És vítima de uma ilusão. Reis e príncipes erguer-se-ão contra ti.

- E dá-vos prazer - respondeu César com voz seráfica. Se caio, caireis comigo. Julião Della Rovere está com Luís e está sequioso de ter a vossa coroa pelo menos há dez anos.

Rodrigo levantou-se.

- Ainda sou papa.

- Um papa cuja coroa está assente na ponta da minha espada.

- E cujos pés chafurdam no sangue que ela derrama - concluiu Rodrigo com amargura.

- Quando vos é cómodo - disse César irónico -, molhais os dedos no sangue chamando-lhe água benta.

- Que Deus te perdoe - murmurou Rodrigo já colérico. César sorriu espicaçando-o.

- E que o diabo nos leve a ambos se tivesse de falhar agora.

Rodrigo restituiu o golpe sem deixar de procurar um ponto fraco no filho.

- Desafias a sorte - disse-lhe. - Luís está em cólera pela maneira como trataste Florença, por aquilo que os teus capitães fizeram na Toscana.

César encolheu os ombros.

- Declarai-vos contra a Espanha em Nápoles e abraçar-me-á.

- Sabes que não o farei.

- O papa espanhol! - zombou César.

Rodrigo falou com dignidade:

- Para nenhum deles ou para ambos. Mas nunca para os

opôr um ao outro.

- Então pensarei eu nisso. Vou a Milão.

- Não !

- Se os meus capitães o perturbam tanto, dar-lhe-ei um osso para roer.

- Não! Proíbo-te de ir! Impedir-te-ei!

- Como? - disse César que começou a rir, escarnecendo-o.

Por um momento Rodrigo não conseguiu falar e ficou a olhar o filho em que se misturavam terror, horror e humilhação.

Chegara para ele o momento da verdade. Quando reencontrou

a voz, ela tremeu-lhe pela crescente emoção.

- Tudo o que tens feito tinha a única finalidade de me diminuir e te glorificares. Sei que obtiveste a lealdade dos cardeais com falsas promessas, com rapariguinhas e mulheres. Destruíste os senhores da Romanha para que nem eu nem os meus sucessores possam usá-los contra ti. Tu, tu assassinaste o teu irmão e inúmeros outros, só porque dificultavam o teu caminho. Mataste o marido de tua irmã, corrompeste a tua irmã.

- Fostes vós o primeiro.

Rodrigo ficou como que estrangulado. As lágrimas correram-lhe dos olhos.

- Deus, a Igreja e a familia. Não me deixaste nada.

César agarrou-lhe a mão e beijou-lhe o anel papal num gesto de zombaria; depois afastou com maus modos a mão do pai.

- Tendes ainda isto.

Rodrigo empertigou-se numa última e desesperada tentativa para reforçar a sua autoridade.

- Não irás ter com Luís!

- Pedi. Não ordeneis - disse César e a sua voz soou fria como gelo.

Houve uma longa pausa durante a qual os dois homens se fitaram. Depois Rodrigo baixou os olhos em sinal de rendição.

- Peço-te.

César sorriu.

- Irei agora ao meu campo de Fermignano caçar o javali - anunciou alegremente e rodou para sair.

Rodrigo deteve-o.

- Tua irmã espera um filho.

César voltou-se surpreendido.

- E então? Acontece.

- Falta-me a sua doce presença, César. . .

- Que há? - César estava aborrecido.

Em tom de desculpa, Rodrigo disse:

- Errei? Pedi a teu irmão que chamasse a Roma sua mulher. Foi um erro bani-la, não foi? O sorriso de Sancha alegrará a minha solidão.

- Levai para a cama quem quiserdes - respondeu César, grosseiro. - Mas não podeis esperar que sorriam, especialmente Sancha.

Ferido para além do que podia suportar no último bastião da sua virilidade, Rodrigo trovejou:

- Quando eu não existir, os lobos te despedaçarão!

- Quando vós já não viverdes, Santo Padre, olharei o Sol de frente. - César fez uma inclinação irónica e deu meia volta.

- Lembra-te de Ícaro - gritou-lhe Rodrigo para as suas costas. - Voou demasiado próximo do Sol e caiu na terra.

Eram as primeiras horas da manhã, mas o sol de Julho começava a fazer-se sentir. César voltava ao campo de Ferxnignano depois da batida ao javali que teve lugar pela madrugada na mata entre as colinas. Vestia de verde e, como sempre, montava um soberbo cavalo. A seu lado um servo cansava-se a arrastar pelos freios dois enormes cães e atrás deles duas parelhas de machos transportavam dois javalis mortos que perdiam sangue dos flancos e do focinho. De óptimo humor, César desmontou do cavalo em frente da sua tenda, onde Michelotto o esperava.

- É aqui? - perguntou a Michelotto.

Este assentiu, indicando a tenda com a cabeça.

- Está só?

- Veio com vinte homens a cavalo, mas sem outros capitães.

César fez um sinal de assentimento, sorriu e entrou. Lá dentro Ramiro e Vitellozzo estavam de pé a conversar, cabeças próximas, como se temessem ser ouvidos. César deteve-se à entrada a olhá-los, por uns instantes, sem ser visto.

- Bom dia - cumprimentou depois.

Ramiro voltou para ele dois olhos culpados em sobressalto. Com um aceno um pouco nervoso da cabeça, saiu, passando-lhe ao lado. Os olhos de César seguiram-no com uma expressão gélida, depois voltaram-se para Vitelli. Não havia sinal de calor no seu sorriso. Sem sequer lhe estender a mão, disse:

- Vieste depressa, Vitellozzo. Encontrei o vosso mensageiro no caminho.

- Ia já em viagem por minha conta.

César durante um minuto não falou. Aproximou-se da mesa, serviu-se de vinho sem o oferecer a Vitelli e começou a despir-se. Depois, com voz sem entoação, perguntou: - Porquê?

- Farejei uma traição.

César pegou numa toalha com que começou a massajar vigorosamente o corpo. Enrugou a testa.

- De novo? Tens um nariz muito sensível.

- Tomei Arezzo em vosso nome - censurou-o Vitelli. - Proclamando-o publicamente - respondeu César, frio.

- Não o proibistes.

- Nem o ordenei.

- Tenho mesmo de jogar com as palavras? - explodiu Vitelli encolerizado.

- Quando tiveres aprendido a delas fazer bom uso, meu amigo. - Havia desprezo na voz de César.

- Usei uma que exige uma resposta imediata - disse Vitelli em tom intencional.

César ergueu de repente os olhos, simulando perfeitamente a ira.

- Traição? Duvidaste da minha boa-fé?

- Duvido de tudo aquilo que não está ao alcance do meu braço e da minha espada.

- Isso manifesta toda a tua inteligência - insultou-o César.

- Haveis dito aos Florentinos nada saber de Arezzo - acusou-o Vitelli.

- Que sabia eu?

- Haveis jurado sobre a Cruz ser leal connosco.

- Enquanto fôsseis leais comigo.

- Tanto que fiz! - exclamou Vitellozzo exasperado. - Expondo as minhas cores e berrando o meu nome em Arezzo - ironizou César enquanto uma sombra de cólera mortal aparecia na sua voz.

- Como vosso capitão! - explodiu Vitelli.

- Estavas em licença de serviço, para que pudesses ir vingar teu irmão. Com que. . . com que direito me envolveste?

Vitelli apercebeu-se de quanto César o tinha jogado guiando-o para os limites de uma cilada que ele próprio se preparava para armar. Tentou bater em retirada.

- Somos muito diferentes - resmungou. - Voltarei mais tarde.

Mas César não tencionava deixá-lo ir antes de acabar com ele.

- Espera! - ordenou-lhe. - E responde. Com que direito?

- Se tendes intenção de provocar-me, senhor, não esqueça que não estou sem recursos.

- Os teus canhões fazem pouco barulho, Vitellozzo - con trariou César com desprezo.

- O suficiente para que se ouçam em Roma - gritou Vitel li, carrancudo.

- Estás a ameaçar-me? Tu? - César concluiu a sua cena de cólera com um gesto dramático. Atirou a toalha à cara de Vitelli. - Não quero mais nada contigo! Retira-te de Arezzo!

- Uma vez que não estou em Arezzo por vossa ordem.

começou o outro, mas César, furioso, não lhe deu tempo para acabar.

- Retira-te - gritou. - Ou marcharei contra as tuas cidades e os teus senhorios e reduzirei tudo a escombros. Não deixarei mais que pó e mulheres de luto.

De cara dura, Vitelli saiu da tenda sem dizer palavra. Assim que o pano de entrada caiu, César teve um amplo sorriso de satisfação. Como que para celebrar, serviu-se de mais vinho que logo bebeu.

- Michelotto - chamou. Depois, enquanto o servo entrava, disse-lhe: - Prepara os meus cavalos para Milão. E o teu para Roma. Esperemos que o Santo Padre seja indulgente contigo, depois de ter ouvido a notícia que lhe levas.

- Loucura! - trovejou Rodrigo. - Loucura! Foi sozinho?

Michelotto estava de cabeça inclinada em frente do pontífice furibundo. Aquela missão em nada o alegrava.

- Não, Santidade. Com dois fidalgos, no hábito dos Ca valeiros de São João. Avisou o rei da sua vinda.

Rodrigo estava estupefacto.

- Louco visionário - murmurou. - Poderá significar o fin. Já não deixarão que volte a sair de Milão. E Julião Della Rovere está lá com Luís. - Bateu depois com os punhos na escrivaninha na sua frente num acesso de cólera e de frustração. - Fora! - gritou para Michelotto. - Antes que faça com que te metam em Santo Ângelo.

Michelotto não se moveu.

- Santidade - começou, infeliz e angustiado -, tenho de dizer- vos ainda, de vida voz, porque não o escreveu, que prometerá ao rei, em vosso nome, quinhentos homens armados e a livre passagem para o Exército francês em marcha sobre Nápoles.

Rodrigo ficou imóvel, com a face totalmente privada de expressão. Com cansaço, levantou a mão num gesto de despedida. Michelotto bem alegre ficou por ter oportunidade para desaparecer depressa. Enquanto saía caminhando às arrecuas, ouviu o papa murmurar:

- Nápoles.

Rodrigo estava ainda sentado à sua escrivaninha absorvido a fixar a parede pintada, embora tivessem caído as trevas e estivessem acesas as velas, quando Gaspar Poto abriu a porta com pouca convicção.

- Santidade? - chamou hesitante.

Rodrigo voltou-se e viu entrar Godofredo e Sancha. A sua face iluminou- se de alegria. Levantou-se para os abraçar.

- Sancha! Doce filha nossa. Ah, quanto desejámos voltar a ver o teu rostinho!

- E eu o vosso. - Recuou para evitar os seus abraços. - Não! - exclamou.

Rodrigo ficou estupefacto.

- Não? Não posso abraçar-te? - perguntou, incrédulo. - Preferiria engolir um sapo - respondeu-lhe Sancha com maldade.

Atordoado, Rodrigo voltou-se para Godofredo:

- Que tem ela? Está doente?

- Sim - gritou Sancha estridente. - Doente. Contagiada pela vossa família, amaldiçoada por Deus. Sois o vigário do Inferno. Sois o Anticristo na Terra.

- Não, Sancha, não! - Rodrigo estava horrorizado e abalado. - Manda-a calar, Godofredo!

Mas Sancha acossou-o:

- Sois uma fera! Sedenta de sangue! Acabou-se. - Voltou-se para Godofredo: - Leva-me daqui.

Godofredo não se mexeu. Olhava estupidamente para seu pai, que reencontrara um mínimo de dignidade.

- Sancha! - Rodrigo puxou-a a si. - Diz. Que aconteceu?

Sancha soluçava histericamente:

- Assassino! Assassino de meu irmão!

Rodrigo tentou consolá-la com um abraço.

- Não, minha filha, eu não.

Sancha gritou lutando para se soltar dele:

- César. Em vosso nome!

Rodrigo enfureceu-se:

- Caluda, menina!

- Cristo vos amaldiçoou ! A todos vós ! - exclamou Sancha cuspindo-lhe na cara.

- Guarda ! - gritou Rodrigo furioso. - Guarda ! - Entraram homens armados precipitadamente. Rodrigo apontou um indicador a tremer contra a rapariga. - Levem esta cadela, esta puta de Nápoles, enterrem-na, enterrem-na em Santo Ângelo.

Sancha, assustada por ter sido agarrada pelos guardas, apelou para Godofredo para que a socorresse. Mas este tinha a sua dose de egoísmo Bórgia nas veias, além de que lhe faltava a audácia de familia e preferiu voltar-lhe as costas para beijar a orla da sotaina do papa. Sancha foi arrastada a gritar:

- Malditos assassinos! Sereis traídos tal como nos haveis traíd o. . .

A sua voz perdeu-se ao longe. Rodrigo permaneceu sentado, imóvel.

- Traição - murmurou. - Seremos traídos, tal como os traímos.

                 ROTA DA FORTUNA

Vitellozzo Vitelli, suado e gemente, estava deitado no seu quarto em Cidade de Castelo, a sua cidadela. Não pôde levantar-se da cama para receber João Paulo Baglioni, preocupado por o encontrar naquele estado.

- Estás doente?

- Não é nada. Fora daqui, velhaco! - gritou Vitelli ao servo que estava à porta. Com uma careta de dor, puxou as almofadas para se encostar. - Não é nada. O mal francês. E aquela cadela não valia a pena.

- Vais curar-te depressa? - perguntou Baglioni, ansioso. - Se sobreviver às compressas quentes de arsénico e água de rosas. Sim! Se Deus quiser andarei de novo a cavalo antes do Outono. - A sua voz ganhou força. - Mas vieste, Baglioni. Logo, és dos nossos.

- Sim, vim, mas. - A sua cara exprimia confusão, enquanto Vitelli, na tentativa de o abraçar, soltou um gemido angustiado. - Vitellozzo, meu amigo..

- Não - estertorou Vitelli -, ando enervado, eis tudo, tanto mais quanto deveria ter os nervos fortes. Há aí pão e vinho. - Baglioni foi até à mesa e começou a comer com voracidade. - Onde está César? - perguntou Vitelli.

- Em Milão. A tratar com o rei de França sozinho. Vitelli soltou uma risada de satisfação.

- Os Franceses farão o trabalho por nós.

- Poderá oferecer a sua ajuda contra a Espanha - disse Baglioni.

Vitelli lançou um grunhido de troça:

- Sem capitães, sem nós, nada tem para oferecer. - Michelotto recruta um exército entre a gente da Romanha. - Gentalha ! Acreditam que ele os proteja da tirania. Como um lobo protege um rebanho de ovelhas.

- Parece que já não confia mais em nós e.

- Tarde de mais ! - explodiu Vitelli, brusco. Mas Baglioni não estava muito convencido.

- E com a ajuda dos Franceses, poderá. . .

- Tarde de mais! - exclamou Vitelli, decidido. - Tens medo?

Baglioni abanou a cabeça.

- Certamente que não. No entanto.

Vitelli mostrou-lhe os papéis que tinha espalhados por cima da cama.

- Cartas - explicou. - Dos Orsini, de Oliverotto e de outros. Reunimo- nos em La Magione para fundar uma liga. João Baptista Orsini comandar-nos-á.

- Um velho cego! - exclamou Baglioni. Com menos osso e nervo que uma clara de ovo.

- Mas sempre é um Orsini e um cardeal e, se souber reunir à sua volta quanto resta de honesto do colégio dos cardeais, conseguiremos desembaraçar-nos, como é justo, daquele bastardo.

- E do pai de filhos bastardos ! Também do papa? - perguntou Baglioni, assustado.

Vitelli estendeu uma mão.

- Escuta, João Paulo. O cardeal Della Rovere agradecer-nos-á por tornarmos vaga uma cadeira a que aspira. Há muito tempo. - Teve um sorriso feroz. - E o cardeal Della Rovere está em Milão com os Franceses. O nosso duque encontrá-los-á cerrados como carraças nos cabelos de uma meretriz. Toma a minha mão, João Paulo - disse com veemência. - Tens medo?

Baglioni apertou a mão que Vitelli lhe oferecia.

- Não - respondeu lentamente abanando a cabeça. Houve um tempo em que gostei do duque César como de um irmão. Mas a sua traição, as suas infâmias. Que Deus me perdoe, mas agora só desejo a sua morte.

Vitelli sorriu-lhe.

- Perante o criador, João Paulo, juro que o atiraremos abaixo da sua alta sela e lhe esmagaremos o orgulho!

Com a cabeça inclinada em sinal de submissão, vestido com o hábito simples de um humilde cavaleiro de São João, César estava na presença do rei Luís no salão do Castelo Sforzesco de Milão. Estava-se em Agosto e, não obstante as paredes espessas e o alto tecto de abóbada, no palácio de Ludovico Sforza o ar estava pesado e sufocante. Porém, com a chegada de César, a atmosfera tornara-se eléctrica. Desejo de vingança era o que se lia na cara dos inimigos de César que rodeavam o soberano: Julião Della Rovere, Ascânio Sforza, libertado por influência de Della Rovere, o deposto duque de Urbino com o cunhado, Francisco Gonzaga, marquês de Mântua, este último ardendo no desejo de vingança pelo mal feito a sua irmã, a duquesa, mulher de Guidobaldo.

Com expressão altiva, Luís fitou César e falou-lhe com frieza:

- Vossa Graça é um visitante inesperado.

César levantou a cabeça, calmo e seguro de si.

- Sem dúvida, Vossa Majestade está demasiado ocupada para ter tempo de ler a carta por mim enviada precedentemente disse fitando por sua vez o rei.

- E vestido de modo que não é natural - comentou Luís, desaprovador.

- Para poder viajar mais rapidamente.

- Sem escolta.

- Apenas estes dois fidalgos, Majestade.

- E sem bagagem.

- Não tinha necessidade dela, Altéza. Para que eu possa trocar-vos por um pobre mendicante. - A sombra de um sorriso passou-lhe pelo rosto.

- Não vim pedir esmola, Majestade.

Luís assumiu de novo a sua atitude altiva.

- Podeis arrepender-vos de ter vindo. Temos boas razões para estar descontente convosco.

- E eu para vos tranquilizar, se o desejardes.

- Quando se soube que vínheis a caminho de Milão - continuou o soberano com uma breve mirada a Della Rovere - foi-nos aconselhado libertar a Itália da vossa incómoda presença levando-vos connosco para França.

Della Rovere e o Sforza trocaram entre si um rápido sorrisinho de satisfação. César concedeu-lhes um gélido olhar. Depois os seus lábios alongaram-se num sorriso cativante.

- Como poderei resistir a tal convite. A hospitalidade de Vossa Majestade é afamada.

Luís fitou-o por um instante, depois riu, erguendo-se do trono, encaminhou-se para César com os braços abertos para um abraço.

- Primo, querido primo - disse abanando a cabeça -, há muito tempo que não tínhamos o prazer de saborear o vosso espírito. - Depois, voltando- se para os estupefactos cortesãos, ordenou: - Uma câmara. Preparai uma câmara ao lado da minha. E de comer, de comer e de beber para este fatigado viandante!

César estava sentado na magnífica sala do seu apartamento, contíguo ao do rei. Comia com apetite, servindo-se dos numerosos pratos. Sorriu para consigo recordando as caras dos seus inimigos quando Luís o abraçara. Todos tinham desejado assistir à sua queda em desgraça, aqueles orgulhosos senhores. o seu sorriso alargou-se ao pensamento de Della Rovere, iludido pela segunda vez.

O reposteiro da porta abriu-se com um ruge-ruge de seda. César levantou os olhos. Entraram Della Rovere e Ascânio Sforza. César franziu as sobrancelhas sorrindo.

- Esperava ver Vossas Eminências.

Ascânio estava espantado.

- Sabíeis que viríamos?

- Certamente - respondeu Della Rovere com secura.

- As vossas expectativas ficaram frustradas, não é verdade, Della Rovere? - respondeu César candidamente.

Della Rovere inclinou a cabeça em sinal de concordância.

- Admito que esperava que o rei vos recebesse menos calorosamente.

César sorriu de novo.

- Esperais desarmar-me com a candura.

Della Rovere encolheu os ombros.

- Por vezes é mais eficaz que um jogo duplo. E por vezes não se pode distinguir dele.

Houve uma pausa e em seguida Della Rovere perguntou: - Podemos sentar-nos? - Depois, enquanto César os convidava para a sua mesa, continuou dizendo: - Visto que nos esperáveis, Vossa Graça, tem sem dúvida a intuição do motivo da nossa visita.

- Desejais saber de que modo podeis servir-me.

Havia muita ironia na voz de César. Levantou-se agarrando com desenvoltura uma coxa de galinha que se pôs a comer, enquanto passeava pela sala, sem se preocupar muito com a presença dos dois cardeais.

- O rei é atreito a repentinas mudanças de humor. A sua cordialidade pode não ser duradoura. - Della Rovere falava com voz incolor, enquanto vigiava César como um falcão.

- Julgo compreender que vós próprio o haveis experimentado - comentou César, mastigando. No que me diz respeito, sempre educadamente escutou os meus conselhos. - Que eu também farei bem em escutar!

- Poderão ser-vos úteis.

César deteve-se de costas para eles.

- De que modo?

Ascânio Sforza, menos subtil que o companheiro, interveio para dizer:

- Milão pulula com inimigos vossos.

César voltou-se de repente e exclamou:

- Sem excluir os vossos queridos parentes Sforza!

Ascânio ficou indignado.

- Os quais dolorosamente sofreram com a vossa.

Della Rovere apressou-se a intervir:

- Ascânio! - Sorriu a César para o serenar. - Sua Eminência pretendia dizer que o meu parecer poderá garantir-vos a protecção do rei contra tanta hostilidade. - Em troca da minha simples gratidão? - perguntou César, irónico.

Della Rovere fez uma pausa, depois inquiriu com muito à-vontade:

- Como está Sua Santidade?

- Goza de excelente saúde tendo em conta a sua idade. Della Rovere inclinou a cabeça fazendo um amplo gesto com as mãos.

- Estou alegre por o ouvir dizer isso.

César atirou o osso da coxa para um canto e pareceu ficar absorto na contemplação das decorações grotescas do tecto.

- Idade e doenças terão um dia de triunfar - reflectiu.

- Certamente. Rezo para que o santo sólio seja ocupado por uma pessoa de igual engenho depois da sua partida.

César olhou-o nos olhos.

- Posso meter-me por um atalho no tortuoso percurso de Vossa Eminência?

- Quando Sua Santidade não existir mais serei ainda príncipe da Romanha.

- E capitão-general da Igreja, assim espero - contrapôs Della Rovere. - Não é necessário que os nossos interesses estejam em conflito.

- Se aconselhassem ao rei banir os meus inimigos da sua corte.

- E se eu tivesse garantia de que o sacro sólio será adequadamente ocupado.

- Para vossa satisfação.

Della Rovere inclinou-se.

- Como dizeis.

César recomeçou a passear.

- Um grande amigo do rei, o cardeal D'Amboise considera-se qualificado.

- Assim me pareceu - respondeu Della Rovere. - Mas Sua Majestade poderá ser convencido a pensar de maneira diferente. . .

- A favor de um outro.

se tivesse de demonstrar que o Colégio dos Cardeais nunca aceitaria D'Amboise.

visto que tal colégio está sob a minha orientação.

Della Rovere sorriu.

- Estou feliz por verificar tanta compreensão por parte de Vossa Graça.

César voltou-se com uma pequena inclinação.

- Vossa Eminência pode contar connosco.

O sorriso de Della Rovere tornou-se mais caloroso. - Então não demoraremos por mais tempo o vosso repouso - disse, levantando-se e, depois, seguido por um Ascânio silencioso, saiu majestosamente.

Passados uns instantes abriu-se a porta da outra parte da sala. Luís espreitava.

- Ouvi vozes, quem era, primo?

- Ninguém de importância, Majestade - respondeu César.

O rei entrou, sorrindo.

- Vinde - disse em tom solícito, rodando a cabeça.

Atrás dele entraram dois servidores com os braços cheios de preciosas indumentárias. - Trouxe-vos roupas para a vossa estada aqui. Do nosso guarda-roupa pessoal.

César inclinou-se.

- Sua Majestade é muito generosa.

- Não vos quero ver andar pela minha corte vestido como um pedinte.

César compôs uma expressão falsamente piedosa.

- Um pobre cavaleiro de São João.

Luís explodiu em riso e deu uma palmada no ombro de César. Sentou-se, convidando o Valentino a sentar-se a seu lado.

- Vinde, primo, bebamos vinho, juntos. Divertir-nos-emos em Milão. Ludovico Sforza, aquele velhaco, sabia gozar a vida. Há este palácio e um grande parque para a caça em Pavia. Fizestes-nos falta. Estes príncipes italianos, com aqueles focinhos compridos, são uma companhia melancólica.

Ascânio Sforza estava agitado. Ao voltar com Della Rovere da visita a César, disse:

- Julião, não acreditei em nada daquilo que.

- Eu também não, nem numa só palavra das que disse. Teve um sorriso sombrio. - Mas estragar-lhe-á o sono.

- E agora de que maneira o desacreditamos aqui? - perguntou Ascânio em grave embaraço no meio de intrigas tão sofisticadas.

- Acreditas que se podia visitá-lo sem que o rei viesse a sabê-lo? - perguntou Della Rovere em resposta.

Ascânio estava ainda mais perturbado.

- É aquilo que eu disse, quando me propuseste - protestou.

- E não disseste muito mais - replicou o outro, seco. Depois, visto que estava com cara de ofendido, pousou-lhe uma mão no braço e disse-lhe, bonacheiro:

- Não, Ascânio, ouve-me. As mentiras são mais viçosas se crescerem em meias verdades. Amanhã de manhã, quando o rei acordar, dir- lhe-emos que César nos convocou, que nos falou de quando o papa morrer e que me ofereceu os votos contra a candidatura D'Amboise em troca do meu apoio à causa espanhola em relação a Nápoles. O rei acreditará em nós, podes ter a certeza.

- A propósito de príncipes italianos - disse Luís ao servir-se dos abundantes sobejos da ceia de César -, o marquês de Mântua pediu-me licença para vos desafiar. Espada e punhal.

- Sua Majestade deseja que a honre? - perguntou César enchendo o copo do rei.

Luís sorriu, malicioso.

- O duque de Urbino contentar-se-ia em enforcar-vos.

- Na forca mais álta, espero - César sorriu.

- Mas os Florentinos, agora, fazem menos queixas contra vós.

- Os republicanos são volúveis por natureza - respondeu César, desdenhoso.

Luís bebeu um longo golo.

- Tive de os arrastar a custo. Segundo parece o vosso feroz Vitelli declarou que queríeis coroar-vos rei de Toscana.

Olhou intensamente para o Valentino.

- Agiu sem o meu consentimento - respondeu aquele candidamente. - Florença sabe que Lhe ordenei que retirasse de Arezzo.

Luís continuou a fitá-lo.

- Não viríeis até mim de outra maneira - disse tranquilamente. - Aquele florentino, aquele Maquiavel, secretário do seu Conselho, diz que não é possível fazer comparações entre vós e os outros senhores italianos. Diz que sois uma nova potência.

César encolheu os ombros, como se pouco lhe importasse aquilo que os outros diziam dele.

- Sou aquilo que Deus quis que fosse.

Luís sorriu daquela afirmação.

- Acreditais em Deus.

César sorriu-lhe em resposta.

- Quando me trata bem.

- E considerais que actualmente vos está a tratar bem? É isto o que vieste dizer-me?

- Deus encarregou-me de confirmar quanto escrevi já na carta a Vossa Majestade.

- Tendes a palavra do papa?

César anuiu.

- A sua oferta de homens e armas para a vossa campanha contra a Espanha. E livre trânsito pelos estados pontifícios em direcção a Nápoles. E a minha espada de capitão-general, se dela vos quereis servir.

Luís moveu instintivamente a mão para tocar num braço de César em sinal de gratidão. Depois, reflectindo, perguntou:

- Em troca de quê?

- De que perdure o vosso afecto e a vossa protecção - afirmou César simplesmente.

- Contra quem? - Luís estava perplexo e alerta. - Mântua e Urbino já não fazem muito barulho. Florença fará aquilo que eu quiser. - Meditou uns instantes, depois perguntou: Temeis os vossos capitães?

- Não, enquanto contar com óptimos amigos como Vossa Majestade - respondeu César, confiante.

- Compreendo. - Luís estudou as ornamentações da taça que tinha na mão. Depois perguntou: - Sua Santidade goza de boa saúde?

- Quanto lhe concedem os seus anos. Mas a idade e os achaques acabarão por levar a melhor.

Luís abanou tristemente a cabeça.

- Ai de nós. E será preciso pensar num eventual sucessor. O meu bom amigo e conselheiro. . . o cardeal D'Amboise.

- Excelente escolha.

- Estaríeis de acordo?

- Perante todos os homens - respondeu César. - Como disse ao cardeal Della Rovere há pouco, quando aqui veio com o cardeal Sforza.

Luís estava outra vez desconfiado.

- Haveis-me enganado. Dissestes que não eram pessoas importantes.

César encolheu os ombros.

- E de facto não são.

Luís perguntou bruscamente:

- Por que vieram aqui?

César olhou-o de frente.

- Para procurarem o meu apoio - explicou - e o dos cardeais a favor de Della Rovere contra D'Amboise.

Luís levantou-se da mesa furibundo e inadvertidamente entornou o vinho.

- Que biltres ! Biltres italianos ! Caluniam-vos e traem-me ! Pô-los-ei fora de Milão ! - Depois olhou César e o rosto iluminou-se-lhe. Voltou à mesa e agarrou-o firmemente pelos ombros fitando-o nos olhos em busca de certeza e confiança. César, quando nos encontrarmos, no Conselho, em público, não se deve ver que entre nós há já um acordo.

- Vossa Majestade pode contar com a minha discrição - disse o Valentino com vivacidade.

- Tratareis com teimosia?

- Mas submeter-me-ei - sorriu o outro.

Luís riu, deu uma palmada no ombro do duque e voltou-se para sair.

- Tende bom sono, primo. - Depois à porta parou como se, naquele momento, se lembrasse de qualquer coisa. - Sim disse -, o duque de Ferrara informou-nos. Vossa irmã deu à luz uma criança morta e está a sofrer-lhe as consequências. Sabíeis?

César levantou-se abandonando o seu habitual comportamento.

- Não!

Luís quase ficou divertido com aquela manifestação de verdadeira emoção.

- Está gravemente doente - continuou. - Quereis ir vê-la? César inclinou-se, grato:

- Se Sua Majestade me permite.

Luís sorriu com uma ponta de despeito.

- Não. Ainda não. A vossa impudência merece uma punição. Tereis necessidade do nosso salvo-conduto para vos dirigirdes a Ferrara.

César estava junto ao leito na penumbra do quarto. Nele jazia Lucrécia em estado de inconsciência. A sua face parecia de cera sobre as almofadas; os cabelos louros estavam espalhados em volta, inertes e escuros de suor.

O médico à cabeceira disse, nervoso:

- Perguntou por vós muitas vezes, monsenhor, nestes últimos dez dias.

- Como está? - César estava bastante preocupado.

- Muito fraca, senhor, tem de lhe ser feita uma sangria.

- Onde está o marido? - perguntou bruscamente o duque. Visto que o médico hesitava, disse: - Deixai. - Inclinou-se e segurou uma mão inerte de Lucrécia. - Lúcia - chamou.

- Lúcia? Senhor - interrompeu-o educadamente o médico -, tem de se Lhe fazer uma sangria. Não há outro remédio.

- Fazei-a então. Vamos.

Aproximou-se do leito o assistente do médico, com bacia e facas. O médico sentou-se ao lado de Lucrécia e levantou o lençol e expôs-lhe uma perna. Lançou um olhar interrogativo a César :

- Duque, se quereis retirar- vos.

- Não - respondeu César em tom firme e resoluto. Quando o médico lhe agarrou um pé, Lucrécia moveu-se repentinamente gemendo e puxando a si a perna. O médico, com a faca já preparada, levantou os olhos para o irmão.

- Senhor, se quereis segurar-lhe o pé.

César inclinou-se e segurou a perna de Lucrécia por baixo do joelho.

- Agora - ordenou. - Depressa.

César ficou sozinho de joelhos a velar a irmã. Com a face contraída num trejeito de angústia sincera enxugava-lhe o suor da cara com um precioso lenço.

- Lucrécia - murmurou. - Lúcia. perdoa-me. Tudo irá bem se me perdoares. Mas tens de viver. Vive, minha irmãzinha, vive! Somos Bórgias, um só sangue, um só coração, um só espírito. Nós somos a própria essência da vida! - Sacudiu-a suavemente. - Lucrécia, ouves-me? Nós somos a vida triunfante !

Lucrécia moveu-se, entreabriu os lábios.

- César? - disse no sono.

- Irmã? - César estava agitado.

- Amas-me - murmurou ela.

Ele levou aos lábios a mão dela e beijou-lhe os dedos.

- César - repetiu ela debilmente. - César. . . ama-me.

As lágrimas de um raro choro correram-lhe dos olhos para os dedos da irmã.

- Por toda a eternidade - jurou.

Não é mais que um homem como todos os outros!trovejou a voz veemente de Vitelli por baixo das traves da ampla sala do castelo de La Magione, no lago Trasimeno.

Nove pares de olhos o fitavam, não inteiramente convencidos; dois olhos, os do cardeal Orsini, de visão comprometida, chamado a presidir à reunião na comprida mesa, limitaram-se a rolar na sua direcção, sem verem muito. Paulo Orsini sentava-se à direita do cardeal, ladeado por João Paulo Baglioni. Mais seis homens, capitães descontentes de César, sentavam-se em volta da mesa. Vitelli, ainda doente pela infecção venérea, jazia na sua liteira e falava aos presentes com a mesma voz estentória com que tantas vezes incitara os seus soldados. Levantou a comprida espada que tinha ao lado.

- E como qualquer outro homem pode morrer! Os conspiradores trocaram olhares e murmúrios. No sussurro confuso, ouviu-se a voz fraca do cardeal Orsini que pedia silêncio.

- Escutai, escutai!

- Velho estúpido! - insultou-o com raiva Vitelli. - Estais desperdiçando o nosso tempo!

Paulo Orsini, espantado, defendeu o seu parente.

- Vitelli !

O outro não lhe prestou atenção.

- Brincai com o vosso rosário e deixai estas obras para nós! - ladrou voltado para o cardeal.

A voz de Paulo soou mais áspera.

- Vitelli! - repreendeu.

Vitellozzo Vitelli também se atirou a ele.

- Sim, Dona Paula? - escarneceu.

Orsini deu um passo para ele, mão na espada, mas Baglioni puxou-o, voltando-se para o cardeal e dizendo respeitosamente:

- Sim, Eminência?

O cardeal piscou os olhos naquela direcção de onde vinha a voz.

- Baglioni, sois vós?

- Sim, Eminência. Peço-vos, continuai.

Encorajado, o cardeal grasnou:

- Esta não é uma liga defensiva. Não é o que se indicava na carta, Baglioni. Vós pretendeis fazer guerra a...

Vitellozzo interrompeu-o, brutalmente:

- Teremos todos uma guerra, quer a pretendam ou não! Baglioni interveio para esclarecer em tom mais moderado: - Eminência, a questão já não é um segredo. O papa tem intenção de nos aprisionar a todos e de nos mandar matar com a acusação.

O cardeal estava incrédulo.

- Como fizeste para o saber?

- Vimos a carta do papa - explicou-lhe Vitelli.

- Então mostrai-ma. Quero vê-la.

Vitelli soltou uma gargalhada rouca.

- Vê-la? Quereis vê-la?

Paulo Orsini apostrofou-o duramente:

- Cuidado, Vitelli!

Baglioni fez sinal a Vitelli para manter a calma e ao mesmo tempo apoiou uma mão num braço de Paulo Orsini. - Eminência - disse ao cardeal -, não podemos adiar mais. Temos dez mil infantes, mil cavaleiros.

- Contra o bando de mendigos de César - acrescentou Vitellozzo.

- E podemos contar com a ajuda de Veneza e de Florença - continuou Baglioni.

O cardeal abanou a cabeça.

- Não - disse -, a França tem-na pela trela.

- Temos a sua palavra - insistiu Vitelli.

- Que valor tem uma palavra neste jogo de traições? - perguntou o cardeal, sarcástico.

- Se tal é o jogo a que jogamos, porque deveremos fiar-nos nos Orsini? - rosnou Vitelli.          

O cardeal continuou com dignidade:     

- Os Orsini sofreram dos Bórgias para além dos limites, foi derramado o nosso sangue. E encontrai-vos aqui, em minha casa. Com esta atitude ficamos ligados à vossa empresa. - Conseguira finalmente estabelecer o seu papel de presidente.

Voltou-se para João Paulo: - Falai, Baglioni. Que se propõe?

Baglioni avançou com um rolo de pergaminho na mão. Ergueu a voz e voltou-se para todos os participantes:

- César chamou-nos para a sua campanha contra Bolonha.

É apenas um estratagema para nos pôr à prova. Dentro de uma semana, Urbino sublevar-se-á em nome do seu duque legítimo contra a guarnição de Michelotto. Nós ajudaremos a populaçãoe..

- Basta! - gritou Vitelli. - Tudo isso já nós sabemos. - Com um gesto indicou o pergaminho que Baglioni tinha na mão. - Tem de se assinar?

Levantaram-se exclamações:     

- Assinar. . . Assinar !

Vitellozzo estendeu a mão.

- Dêem-me o acordo! - Baglioni entregou-lhe o pergaminho com uma pena apressadamente metida no tinteiro. Vitelli assinou o seu nome no documento e passou-o ao cardeal com os lábios a arquearem-se num sorriso maligno. - Eis aqui um fim rápido para o Bórgia e para o bastardo do Bórgia. Assinai!

Lenta e cuidadosamente, mas quase de má vontade, o cardeal imitou-o, seguido pelos outros conspiradores, os quais assinaram todos o seu nome no documento. Então Vitelli deixou escapar uma exclamação de triunfo, erguendo a sua grande espada para o tecto.

- Esta é para ti, César Bórgia!

César ameaçava Rodrigo obrigando-o a referendar os papéis com que financiava a sua campanha. Mal tinha chegado do seu acampamento de Imola e já tinha a armadura suja e as botas enlameadas até às coxas.

Rodrigo, com a face transformada numa máscara de cólera impotente, gritava ao filho, o qual não lhe prestava atenção alguma:

- Estúpido. imbecil. arruinavas tudo. És um louco. renego-te! César, renego-te!

- Vossa Santidade está descontente comigo? - perguntou César candidamente.

- Se estou. miserável ingrato. filho da puta!

César limitou-se a carregar o sobrolho e a empurrar-lhe para a frente outro documento.

- Três mil ducados não chegam nem sequer para um mês de forragem para dois mil cavalos.

Rodrigo enfurecia-se.

- Entras por aqui dentro como se fosse uma hospedaria. e, como se de nada se tratasse, informas-me que me consagraste à causa francesa!

César encolheu os ombros.

- Tanto barulho para nada. Quero dez mil ducados para. - Para quê? - interrompeu-o Rodrigo, raivoso. - Não há exército! Os teus capitães estão em La Magione. . . a conspirar contra mim!

- Contra nós - corrigiu-o César. - Chega um contingente de cavalaria francesa da Lombardia, o seu mestre-forrageiro pedirá três mil.

Rodrigo levantou-se da cadeira, quase estrangulado pela cólera.

- Não quero os Franceses aqui! - gritou. - O mundo cai-nos em cima e tu ameaças Bolonha!

César falou com calma:

- Bastou a ameaça. Ofereceram-me cavalaria e infantes. E uma direcção por oito anos.

- Como pude eu gerar um tal cretino!

César estava já farto de insultos. Em tom mais áspero disse:

- Vossa Santidade explicou-o. Sou um filho da puta. Rodrigo serenou apercebendo-se de que tinha ido demasiado longe. Quase em tom de súplica, afirmou, desconsolado, abanando a cabeça:

- César, meu filho, andaste a espicaçar um vespeiro.

- Os Orsini? Veremos.

Paulo Orsini e o cardeal estavam sós no átrio de La Magione, no alto da grande escadaria. Tinham saudado há pouco os outros conspiradores. O cardeal piscou os olhos míopes olhando para o fim da escadaria.

- Foram-se embora, Paulo? - perguntou.

- Estamos sós, Eminência - respondeu-lhe Paulo.

O cardeal apoiou-se pesadamente no seu braço.

- Acompanha-me à minha cadeira. - Depois sentou-se novamente, fatigado, no seu lugar à mesa, e perguntou: - Paulo, os soldados do teu comando. quem era o seu oficial pagador?

- O duque César.

- E foram pagos regularmente?

- Sim, Eminência.

- Portanto, podemos agora ter confiança que eles se revoltem?

Paulo Orsini manifestou a sua inquietação movendo os pés.

- Eminência, assinámos o acordo.

O cardeal reagiu com um gesto impaciente da mão. - Teria sido um estúpido se não assinasse com Vitelli a agitar a espada!

- Não obstante - contrariou Paulo -, a honra obriga-nos a...

O cardeal fê-lo calar com um gesto da sua velha mão. - A honra não exclui o bom senso quanto a um mau juízo, Paulo. Todavia, há a considerar que aqueles fanfarrões podem realmente conseguir deitar César abaixo.

- Como nós desejaríamos, talvez. - O cardeal anuiu meditabundo. - Mas não desejo de facto ver Julião Della Rovere tornar-se papa. Agradar-te-ia ter Vitelli por capitão-general? - Sorriu, a mente atravessada por uma recordação. - Quando eu era rapaz, Paulo, era habitual esperar que os outros sacudissem o pessegueiro, antes de recolher os frutos.

- Eminência - começou vacilante Paulo. - Eminência, César Bórgia escreveu-me.

O cardeal anuiu novamente.

- Também a mim.

- Escreveste aos Orsini? Mas porquê em nome de Deus?Rodrigo não entendia.

- Para lhes dar a entender que não esperamos traição alguma - respondeu-lhe César.

- Não acreditarão em nós!

César sorriu tirando a capa e a espada da cadeira. - Quando um homem com diarreia sente necessidade de aliviar o ventre, mete-se pela primeira porta que encontra aberta, seja ela qual for. - Encaminhou-se para a saída. - César - chamou-o Rodrigo. - Lucrécia não me mandou notícias.

César respondeu de modo enigmático:

- Não! Oh, sim, renova-vos o afecto e a devoção, suponho.

Preocupado, Rodrigo perguntou:

- Os estenses estão contentes com ela?

- Estão contentes que um recém-nascido morto fosse fêmea e não macho.

- Mas o marido é gentil com ela?

- É. - A voz de César era cheia de ironia. - Passa grande parte do seu tempo pelas tabernas.

Rodrigo estava angustiado.

- Lúcia !

- Posso partir agora para Imola?

- Não seria melhor se fosses a Urbino? Está mais próximo de Roma. - A voz de Rodrigo, um pouco trémula, traía uma apreensão de outra origem.

- Tendes medo, pai? - perguntou César sorrindo. - Não é preciso. O perigo não está aqui em Roma. E Michelotto saberá aguentar Urbino.

Michelotto entrou tristemente no campo de César em Imola, seguido pelo que restava da guarnição que ocupara Urbino. A derrota súbita lia-se mesmo com muita clareza nas caras dos soldados. Fez uma careta ao desmontar do cavalo no terreiro do castelo, ao pensar na perspectiva pouco alegre de informar o duque de que fora expulso de Urbino por uma turba de plebeus e, para cúmulo do insulto, ter caído numa emboscada de uma horda de camponeses.

O secretário florentino Maquiavel, que esperava para ser recebido por César, observou com interesse a chegada de Michelotto e tirou as suas conclusões. Mal Michelotto desapareceu, aproximou-se dos seus soldados para recolher algumas informações. Era conveniente conhecer os factos antes de falar com César.

César estava sereno quando recebeu o florentino; a sua expressão não traía preocupação nem desilusão. Estava a escolher plantas e mapas entre os que tinha na frente em cima da mesa, e entregava-os a um servidor armado, que os voltava a pôr numa bolsa de viagem de pele.

Maquiavel inclinou-se tendo os olhos fixos no rosto de César.

- Uma desventura assim chegou inteiramente inesperada, monsenhor duque - disse. - Em Urbino, no mês de Junho, o destino parecia sorrir a Vossa Excelência.

- As constelações deste mês parecem ser desfavoráveis aos rebeldes, Nicolau - respondeu o outro.

- A atitude de Vossa Excelência é admirável.

César sorriu.

- É possível que não confie em astrólogo algum que não esteja ao alcance do meu braço.

- Ou talvez porque o rei de França vos está enviando quinhentos gascões.

César carregou o sobrolho.

- Estais bem informado, secretário - disse ele. - Depois o seu sorriso alargou-se. - E dois mil suíços - acrescentou.

- Haveis alistado oitocentos infantes em Val di Lamone. - Seis mil da Romanha - corrigiu-o César.

- Voltais a Florença?

- Hoje mesmo.

- Quando fizerdes ao vosso Conselho um relatório tão pormenorizado das minhas forças, dizei também que eu espero que Florença obedeça ao rei de França e se ocupe dos seus assuntos - fez um aceno ao servidor e dirigiu-se para a porta, convidando Maquiavel a segui-lo.

O secretário deteve-se.

- Posso informar o Conselho que estais para pôr em campo as vossas forças?

César voltou-se já à porta.

- Contra homens que me escrevem para me manifestarem a sua amizade? - perguntou, ponderado. - E aos quais respondo com igual devoção? Vinde, mestre secretário, tenho de despedir-me de vós.

César agarrou amistosamente o braço de Maquiavel, dirigindo-se com ele ao terreiro.

- Bato-me com tolos, Maquiavel. Sois um sábio.

- Em vossa opinião, por que são tão tolos?

- Porque confiam uns nos outros.

- E escrevem-me?

- Porque não confiam uns nos outros.

César sorriu.

- Tentai mais uma vez, mestre secretário.

Tinham chegado ao terreiro. Maquiavel olhou César nos olhos.

- Prefeririam confiar em vós do que uns nos outros - afirmou.

César riu, montou a cavalo e disse para Maquiavel:

- Fazei boa viagem.

Esporeou o cavalo e saiu do terreiro com a escolta, deixando nas suas costas o secretário de Florença a observá-lo com uma expressão absorta. Um homem formidável, este duque Valentino, concluiu para si. Por seu lado não Lhe agradaria estar incluído entre os seus inimigos.

Os capitães rebeldes estavam reunidos no palácio ducal de Urbino, que tinham tomado recentemente ao ex-governador, o duque Guidobaldo, ainda forçado ao exílio. O ambiente era de espinhosa discórdia. Vitellozzo Vitelli fitava com olhos turvos o cardeal Orsini que estava sentado na sua frente, do outro lado da mesa.

- Que significam todos estes rodeios de palavras? - apostrofou-o ele.

O cardeal Orsini parecia impassível.

- Temos escassas possibilidades de sucesso - explicou -, agora que o rei de França fez saber a Veneza e a Florença que, se apoiarem a nossa causa, serão tratadas como inimigas de Luís.

- Então que fez por nós Della Rovere em Milão? - perguntou Vitelli, furioso.

- Temo que o rei o tenha banido da corte.

Vitelli bateu violentamente na mesa com o punho.

- Que o Diabo te leve, César Bórgia! - rugiu.

João Paulo Baglioni voltou-se para o cardeal:

- Eminência, aconselhais que se adie?

O cardeal abanou a cabeça:

- Não. Só que sejamos prudentes.

- Esperar! - acusou-o Baglioni. - Enquanto enviais cartas ao Valentino!

- Parece-me que também vós lhe haveis escrito, caro Baglioni - ripostou imediatamente o cardeal.

Vitelli correu os olhos furiosos pelos homens sentados em volta da mesa.

- Escrito? A quem?

Mas o cardeal não o tinha ouvido, sedento como estava de

lançar as suas contra-acusações.

- Como outros entre nós o fizeram. E todos receberam cartas dele. Vós também, Vitelli. Sabemos que haveis recebido cartas do duque Valentino.

- E limpei-lhes o cu.

- Talvez. - A voz do cardeal soou gélida. Tinha assumido o comando da situação e não tencionava já cedê-lo. - E agora, ouvi-me bem. Estamos sós. Sem amigos, excepto talvez quanto ao homem por nós defimido como nosso inimigo.

- Falso padre - sibilou Vitelli.

- Vitelli! - exclamou João Paulo.

O cardeal voltou para ele os olhos míopes.

- Compreendeis-me, não é verdade, Baglioni?

João Paulo respondeu-lhe lentamente:

- Ofereci esquecer todas as incompreensões do passado, a conciliação de todas as culpas.

O cardeal interveio para dizer:

- A defesa dos vossos interesses e das vossas senhorias em perpétua aliança. Escreveu a outros entre nós nestes termos?

Houve um coro geral de afirmações. Apenas ficou em silêncio Vitelli. Coxeando, afastou-se da mesa e caminhou até uma janela. Contemplou as colinas despidas e queimadas pelo Outono, a norte, em direcção a Imola, onde César esperava. Nas suas costas, os capitães de César mantinham a discussão.

Paulo Orsini continuou:

- Jurou portar-se assim, em troca da nossa lealdade e dos nossos serviços.

Voltou a falar o cardeal:

- Não é que fizemos vacilar a sua segurança? Por que não tirar proveito disto?

Vitelli voltou-se, fremente de ira e parou diante da mesa.

- Mas eu estou realmente no meio de um bando de loucos? - gritou.

Os outros ignoraram-no.

- Estamos então todos de acordo? - perguntou o cardeal.

Todos anuíram.

O cardeal lançou um olhar interrogativo ao seu parente.

- Estou de acordo, Eminência - disse Paulo.

- Eu não! - afirmou com uma careta de desdém Vitelli, porém, o cardeal continuou como se não tivesse ouvido.

- Então encontrar-nos-emos com o duque César. Iremos a Imola. E tu, Paulo?

- Dona Paula vai encontrar o seu patrão e senhor - apostrofou-o Vitelli com aspereza.

Paulo ficou violáceo pela cólera, mas dominou-se. - Sim, falarei a César, para negociar uma conferência com todos nós.

- Haveis-me abandonado! - exclamou Vitelli, desesperado. - Se continuares na tua posição - ripostou friamente - Paulo. Eu o encontrarei - disse Vitelli entre dentes -, com a espada! - Deu meia volta e saiu furioso, coxeando. - Portanto - continuou por fim o cardeal Orsini, como se nada tivesse acontecido -, Paulo irá a Imola e eu a Roma para conferenciar com Sua Santidade. Obteremos garantias do pontífice quanto à palavra do filho.

Com a graça indolente e mortal do gato que espicaça a sua vítima, a mão enluvada de César lançou fora as pedras do tabuleiro de xadrez.

- Mal-educado - censurou Godofredo, enquanto o rapaz seu favorito de momento fitava César com olhos assustados fazendo-se pequeno. - Diziam que estavas em Imola.

- Estou onde os homens me encontram - respondeu-lhe o irmão com um sorriso irónico. - Agora estou em Roma. Preferias que ainda estivesse em Imola, assim tu poderias brincar. - Lançou uma mirada desdenhosa ao rapaz que se azafamava febrilmente, pelo soalho, a apanhar as pedras do xadrez. E como está a tua dilecta mulherzinha, a princesa Sancha?

Godofredo fitou-o por baixo das compridas pestanas com uma expressão sombria.

- Está ainda no cárcere, aquela cadela - disse com ódio. - E sem dúvida conseguiu já transformar a prisão num bordel, como faz em qualquer lugar onde tenha a ventura de residir - observou César. - Agora onde está o nosso santo pai? Tenho de Lhe falar.

- Ali dentro. - Godofredo indicou uma saída. - Trabalha com Gaspar Poto.

Depois, enquanto César se voltava para passar à outra sala, Godofredo deu um pontapé nas pedras de xadrez que o rapaz entretanto tinha apanhado espalhando-as por toda a sala. O rapaz fitou-o com lágrimas nos olhos e a expressão de Godofredo, primeiro cruel, suavizou-se em terno remorso. Ajoelhou-se para abraçar o jovenzito.

César entrou na sala do pai sem se fazer anunciar. Rodrigo, habituado àquelas aparições fulmíneas, levantou o olhar sem surpresa. Num canto da sala, Gaspar Poto garatujava nervosamente fingindo estar absorvido no seu trabalho.

- Então - perguntou Rodrigo -, tens a certeza que vem?

- Mais certo da sua chegada que da tua vontade de pagar a tua parte segundo os acordos.

Rodrigo lançou um olhar embaraçado ao seu camerlengo.

- Não te dirijas a nós tão. - disse em voz baixa em tom ameaçador.

- Não tenho tempo para conveniências - ripostou César. Dentro em breve tenho de regressar a Imola.

- Se o cardeal Orsini vem a Roma.

- Disse-te que chega.

- Recebê-lo-ei - terminou Rodrigo com toda a dignidade que conseguiu apresentar perante a inatacável arrogância do filho.

César sorriu friamente.

- Como irmão se te agradar. Depois aperta-lhe o pescoço como a uma serpente.

Rodrigo baixou os olhos para as mãos que tinha juntas sobre a escrivaninha.

- Quando encontrarás os outros? - perguntou, cansado.

- No fim do ano.

Um vago sorriso de maliciosa satisfação passou pelo rosto de Rodrigo.

- A tua cavalaria francesa voltará à Lombardia antes do Natal.

- Isso não o sabem eles - respondeu César, sereno.

A malícia de Rodrigo dissipou-se de repente.

- Mantém-te atento, César - exortou ele com expressão apreensiva.

- Manda-me meu irmão Godofredo - ordenou César.

- Não! Nada conta para ti.

- Sempre afirmaste que não era teu filho.

- É tudo aquilo que.

- Já se divertiu bastante com rapazinhos. É tempo de se tornar um homem - disse César, decidido, e depois inclinou-se para se despedir com um Santidade, e saiu.

Rodrigo levantou a mão no gesto da bênção, mas voltou a baixá-la quando o filho lhe virou as costas. Gritou-lhe então:

- Manda-me notícias. deixas-me no escuro. manda-me notícias!

César ouviu-o quando já estava no corredor.

- Não, pai - murmurou. - Tens a língua muito comprida. Esta parada tão alta é toda minha.

Paulo Orsini estava na antecâmara dos aposentos de César no castelo de Imola. Sentia-se extremamente pouco à vontade e observava com atenção o duque tentando prever-lhe as reacções. Também estava bem consciente dos olhos escuros de Ramiro e Michelotto que não o perdiam de vista.

- Meu senhor? - disse.

César, aparentemente indiferente à missão de Paulo, provava uma armadura nova no centro da sala. Sem nada trair pela voz ou pela expressão do rosto, disse:

- Honra, Paulo Orsini, é uma palavra que te saiu da boca com demasiada facilidade.

- Esforço-me por viver em tal espírito, senhor. César ajeitou melhor o corselete.

- Está muito apertado - disse ao armeiro. - Desaperta o laço. - Sorriu a Paulo. - E os teus companheiros? - perguntou.

- Tendes também a sua palavra.

- Muito bem. - O seu curioso sorriso alargou-se. - Velhos amigos que me apunhalaram pelas costas. - Depois, dirigiu-se ao armeiro: - Não. Deixai-me agora e trazei-me um outro par de espadas amanhã. - Voltou a olhar para Paulo Orsini. - Amigos desta laia tencionam agora tratar-me das feridas com palavras?

- Apenas respondem à vossa oferta de boa-fé - respondeu Paulo com dignidade.

- Vitelli também?

- Também.

César falou com indiferença:

- O seu único desejo era nomear-me rei da Toscana.

Paulo enrugou a testa, sentindo-se pouco à vontade com o espírito de César. Este notou-o e, tendo saído o armeiro, avançou para o abraçar. - Paulo, meu amigo. Nada tenho contra ti - disse -, mas preciso de me certificar dos outros. E saber o que oferecem. - Fez sinal a Orsini para que se sentasse à mesa com ele. Ramiro e Michelotto continuaram de pé, duas sombras escuras ao fundo da sala. César fixou os olhos no amigo, sentado na frente deles, e carregou o sobrolho.

- Restituir-me-ão Urbino?

Sem se perturbar, Paulo respondeu:

- Se Vossa Graça honrar as ofertas nas cartas que nos escreveu.

- Sempre honrei os meus compromissos, Paulo - disse César escarninho.

O outro não se deixou provocar.

- Encontrar-vos-ei connosco? - perguntou, obstinado. César fitou-o nos olhos, muito sério.

- Em Senigallia - respondeu simplesmente.

- Quando, senhor?

- No último dia do ano. - Fez uma pausa. - Mas tem bem em mente isto, Paulo, deveis vir todos não trazendo mais do que uma escolta. Como eu farei. Nada de besteiros nos telhados. Nada de soldados na mata. Bastará que eu tenha uma suspeita de cilada, voltarei para trás, virei com o meu exército e esmagar-vos-ei. Compreendeste?

Paulo anuiu solenemente:

- Sim.

César concedeu-lhe um sorriso cordial:

- Pela tua honra?

- Pela minha honra, senhor.

César levantou-se da mesa e abraçou Orsini que fez o mesmo.

- Agora vai com Deus, meu amigo.

Quando a porta se fechou atrás dele, Ramiro soltou uma risadinha que pareceu um latido submisso. César voltou-se e, em tom plúmbleo, disse- lhe.

- Por vezes esqueço-me de que és dos nossos, Ramiro. Caminhas a tal ponto na minha sombra, que me esqueço de que és dos nossos.

- Sempre, senhor - respondeu Ramiro, respeitoso.

- Não, não acredito.

- Senhor?

César tirou deliberadamente um pequeno punhal de estranho fabrico de uma bainha que trazia na faixa e pôs-se a brincar com ele, mantendo-o em equilíbrio entre os dedos.

- O rei de França aconselha-me a livrar-me de ti - disse em tom meditativo, enquanto olhava a lâmina, ocupado em percorrer-lhe com os olhos o complicado lavrado. - E outros meus antigos, dizem-me que o teu governo é corrupto, que traficas com o trigo e que engordas com cobranças que deverias entregar-me. - Com despreocupação apontou o punhal ao ventre de Ramiro, onde havia uma saliência por cima de um precioso cinto de prata. Depois levantou de repente os olhos para a cara assustada do servidor. - Estás conspirando contra mim, Ramiro?

- Eu? Meu senhor! - balbuciou Ramiro.

- Talvez não. Talvez ainda não - disse. - Mas lembro-me que quando Vitelli veio ao campo de Fermignano, tu e ele estavam agarrados como moscas num cadáver. Toma cuidado, Ra miro. As queixas contra ti são numerosas. - Ramiro olhava-o incapaz de esconder o seu terror. César levantou o punhal e delicadamente fez-lhe uma linha na garganta. - Não procures o amigo Vitelli para te salvar a vida - disse-lhe. - Nem Orsini. Não te convém dar confiança a cães traidores do teu estofo! - Voltou a embainhar o punhal e virou as costas ao homem aterrorizado. - Michelotto! - Chamou antes de sair.

Michelotto apressou-se a bloquear os braços a Ramiro.

O cardeal Orsini sorriu feliz a Rodrigo enquanto jantavam juntos.

- Santidade, concedeis uma grande alegria a um velho cego - disse.

Rodrigo esticou-se para lhe tocar nas costas de uma mão.

- Sois um bom servidor da Santa Igreja, João Baptistarespondeu amigavelmente.

O cardeal esforçava-se por conter a emoção enquanto as lágrimas lhe vinham aos olhos descorados.

- Tantos anos perdidos na inimizade entre as nossas duas famílias - comentou com voz trémula.

- Águas passadas, João Baptista - tranquilizou-o Rodrigo. - E, quando voltar a Roma, também César o confirmará.

- Volta a Roma? - perguntou o cardeal, duvidoso. Rodrigo sorriu alegremente.

- Para o Carnaval, para a Epifania. Ninguém, Eminência, ninguém sabe como festejar o Carnaval sem ele. Imagina mil diabruras, gasta dez mil ducados, a sua generosidade com os amigos é ilimitada e entre os amigos vos incluo, Eminência, e aos vossos parentes.

O cardeal anuiu com a cabeça em sinal de gratidão.

- Vossa Santidade é muito boa com este velho - disse comovido. - Espero viver o bastante para voltar a abraçar Sua Graça com amizade.

- Isso está nas mãos de Deus, João Baptista - respondeu Rodrigo levantando-se e abandonando a mesa.

Enquanto saía entraram três guardas e aprisionaram o velho eclesiástico levantando-o em peso da cadeira.

- Santidade ! Salvai-me ! - gritou o cardeal aterrorizado.

De nada lhe serviu esse grito. Foi levado para os cárceres de Santo Ângelo, onde os ajudantes de carrasco de César fizeram com que não sobrevivesse muito tempo.

Em Imola, Maquiavel assistia desconcertado às idas e vindas de Paulo Orsini. As suas indagações não conseguiram esclarecer a natureza exacta das negociações em curso; como escreveu aos seus senhores do Conselho florentino, a reserva de César não permitia adivinhar qual seria o seu próximo movimento. Maquiavel estava cansado da sua missão que, embora aparentemente fosse demorar indefinidamente as negociações entre Flo rença e o duque, na verdade era espiar-lhe os movimentos. Mas, na incapacidade de colher noticias de alguma substância, a actividade de espionagem de Maquiavel estava reduzida a zero. Além disso, suportava o frio e a fome dado que o exército de César reduzira ao osso todo o campo. Finalmente com a aproximação do Natal tinha presságios funestos, enquanto César negociava com os capitães.

Escreveu portanto ao Conselho sobre os seus temores quanto ao destino que estava a preparar em relação àqueles acordos de que o mantivera no escuro. Por um lado via o duque em pleno vigor, confiante no futuro, beijado por uma excepcional fortuna e apoiado pelo papa e pelo rei de França; enquanto fazendo-lhe frente havia um grupo de senhores que, se bem que em tempos seus amigos, estavam preocupados pelos seus bens e olhavam com temor o aumento do seu poder. Naquele momento pois, tendo-o ofendido, tinham ulteriores motivos para estar assustados. Assim, escrevia Maquiavel, ele não compreendia como poderiam esperar encontrar perdão para a ofensa e ao mesmo tempo conseguissem serenar os seus temores.

Ramiro foi levado para a praça pública de Cesena para a execução na madrugada do Dia de Natal de 1502. Vestira-se com cuidado e com muita elegância como era seu costume: trazia luvas de pele valiosa para se defender do frio e uma capa de brocado forrado de zibelina.

- Governador - apostrofou-o com zombaria Michelotto tirando-lhe a indumentária -, em breve não tereis mais necessidade disto. Lá para onde ides não estará frio.

Ramiro observou com pena a sua preciosa capa.

- Era uma bela vida - comentou. - Que o Diabo leve César Bórgia!

- E fá-lo-á, mas entretanto leva-te a ti, Ramiro. Tu e o teu amigo Vitellozzo.

Ramiro encolheu os ombros.

- Está um vento cortante. Vá, façamos isto depressa - ordenou ele ajoelhando em frente do seu verdugo.

A lâmina da espada que se levantava soltava magníficos clarões na luz cinzenta da madrugada. Demorou-se no ar por um instante e caiu depois com um baque surdo. O ferro foi inundado de sangue, enquanto o corpo de Ramiro de Lorqua caía para a frente e a cabeça dele se separava lentamente.

Por uns instantes, Michelotto ficou a contemplar o primo e colega, encolheu depois os ombros e voltou-se.

- Deixai o corpo onde está - ordenou aos guardas - para que as pessoas o possam ver. E venham a temer o duque.

- Tinha-vos dito que não podíamos confiar em César Bórgia - gritou Vitelli a Paulo Orsini.

Na sala do palácio ducal de Urbino, os capitães estavam reunidos para uma difícil conferência.

- E agora aquele velho imbecil do teu tio foi enfiar a sua estúpida cabeça no seu nó corredio.

Paulo estava pálido, assustado, e olhava o correio arquejante, como se não pudesse acreditar nos seus ouvidos.

- Aprisionado? O cardeal. em Roma?

- Sim, meu senhor - respondeu o mensageiro.

- Paulo - invocou-o João Paulo Baglioni -, tens de acreditar. Publicamente puseram a correr que o cardeal está isolado por um caso de peste. Assim nós não suspeitávamos do engano.

- Mente! - exclamou Paulo Orsini desesperado. Vitelli atravessou a sala coxeando.

- Não - disse a Paulo. - Seu irmão serve no Vaticano. Paga-lhe bem. - Teve um sorriso de lobo. - Deus é bom para connosco, meus amigos.

- Quê? - gritou Paulo. - Bom?

- Escutai. - Vitelli bateu com a mão na mesa sem demasiada força. - Aquele velho papa estúpido moveu-se com excessiva precipitação, infelizmente para Sua Eminência, mas felizmente para nós. Agora sabemos o que temos a esperar do seu vitelo. Vai fazer-se portanto à minha maneira?

Paulo Orsini hesitava.

- Coragem, Paulo - solicitou-o Vitelli -, não há escolha.

Temos de ser os primeiros a ferir para que o vitelo não tenha tempo de nos dar uma cornada.

Com relutância Paulo estendeu a mão para apertar a de Vitelli. Este fitou então João Paulo Baglioni, que dele se aproximou para apoiar a sua mão na deles, se bem que pouco convencido. Naquele instante outro mensageiro entrou, descuidando a etiqueta com a pressa. Ajoelhou na frente de Vitelli.

- Meu senhor - disse arfando -, um correio do campo do duque César. Hoje pela alvorada Ramiro foi executado na praça pública. Não foi dada razão alguma à execução.

Uma expressão preocupada se desenhou no rosto de Vitelli.

- Ramiro, morto. . - murmurou.

Perguntou depois ao mensageiro:

- O duque César partiu?

- Sim, senhor. Marcha para sul. Para Senigallia.

Na luz fria da tarde do último dia do ano de 1502, César saiu da sua cidade de Fano, na direcção sul, em Senigallia. Levava uma armadura completa e era acompanhado pelo irmão Godofredo e por um destacamento de homens armados. À sua esquerda alongava-se o melancólico e cinzento litoral adriático, enquanto à sua direita as duas colunas escondiam um poderoso contingente de homens sob o seu comando.

- Então? - perguntou César a Michelotto que o esperava na estrada. - Está tudo pronto?

- Senhor duque, os meus mil suíços estão escondidos em Senigallia há uma semana. Os vossos homens, a pé e a cavalo, esperam entre a cidade e as forças de Vitelli a sul.

- Chegou, portanto?

Michelotto anuiu.

- A noite passada. Ao crepúsculo. Com Orsini e mais quatro, e vinte homens a cavalo, como vós. Baglioni encontrei-o no caminho para Perúsia. Disse que sofria dos intestinos.

- Devias tê-lo posto fora imediatamente, Michelotto. Fechá-lo no canil, que bem merece, aquele cão traidor.

- Meu senhor, não podia. Os outros teriam desconfiado.

César anuiu.

- É justo. E os outros?

- Estão numa casa de Senigallia, aquela de que falei a Vossa Excelência, julgam-se em segurança. Têm homens na cidade, mas não lhes servirão de nada, assim que cair a noite.

Paulo Orsini piscou os olhos fora da janela geminada. Na luz que morria custava a ver. O seu evidente nervosismo irritava Vitelli, sentado à mesa, preparando-se para comer.

- Tem calma, Paulo. Estragas-me o jantar - disse desesperado. - Viste o sinal quando chegámos.

- Vi um sinal. Quem o deu?

- Um meu fiel servidor. Reconheci-lhe o chapéu e a barba.

- Chapéu e barba! - Paulo estava sarcástico. - Jesus!Voltou as costas para a janela e olhou Vitelli, incrédulo. E onde está Baglioni?

- Estará aqui não tardará muito - respondeu Vitelli impaciente. - E agora dás-me licença que coma?

Paulo anuiu lentamente e foi sentar-se à mesa. Os outros capitães moveram-se para ocupar lugar. Mas, enquanto os outros comiam com gosto, Paulo não parecia ter muito apetite. Vitelli procurou fugir às suas dúvidas com um pouco de bom humor.

- Grita Orsini - exortou-o mastigando e agitando a faca na direcção de Paulo - ou Vitelli daquela janela e a estrada encher-se-á de homens.

Paulo parecia estar sentado em cima de alfimetes.

Esta casa é uma armadilha - afirmou. Que tem de ser armada - concluiu Vitellozzo sorrindo e servindo-se de uma coxa de lebre com a ponta da faca.

- Contra quem? - perguntou Paulo nervoso, levantando-se da mesa. - Vou procurar Baglioni.

Estava quase junto da porta quando esta se abriu. César estava no limiar com um sorriso bonacheirão.

- Queridos amigos! - exclamou e entrou. - A mão, Paulo - disse agarrando-lha e puxando para trás o capitão estupefacto; depois largou-a.

- Temos muitas coisas a discutir, senhor - disse Paulo embaraçado, enquanto os outros estavam ainda de boca aberta pelo aparecimento inesperado de César.

- Se não fosse assim, para que estaria eu aqui? - perguntou César com bons modos indo à janela para lançar uma mirada para fora.

- Não discutiremos nada - berrou Vitelli com raiva.

César pareceu não o ter ouvido. Fez uma careta repentina, como que involuntária.

- Jesus! - exclamou, como se sofresse. Depois, com todos os olhos nele, explicou: - As noites frias a cavalo fazem mal à bexiga. Antes de falarmos, dêem-me licença por uns instantes - concluiu e com um breve aceno de cabeça caminhou lentamente até à porta e saiu.

Os capitães trocaram entre si olhares inseguros por um momento, depois Vitelli mais rápido que os outros a recompor-se da surpresa, gritou:

- Traição!

Desembainhando metade da longa espada, dirigiu-se, coxeando, para a porta, o mais depressa que podia, mas, lá chegado, viu-a escancarar-se e encontrou-se cara a cara com Michelotto que tinha a espada desembainhada. Entraram os homens de César com as cores dos Bórgias. Os capitães foram desarmados e feitos prisioneiros. Paulo Orsini teve apenas tempo de correr à janela e gritar uOrsini antes de ser dominado por sua vez.

Michelotto sorriu-lhe friamente.

- Poupai o fôlego, Paulo, que não vos resta muito tempo para gozá-lo.

- Um golpe de mestre, senhor - comentou Maquiavel sorridente, tendo ido apresentar as congratulações oficiais do seu Governo ao duque da Romanha por ter batido os seus falsos inimigos. - Um golpe digno de um romano, como me dizem que declarou o rei Luís.

César estava alegre.

- Agradeço-vos e ao vosso Governo, mestre secretáriodisse com um esboço de inclinação. - Foi justo, não achais, enganar aqueles homens que se tinham demonstrado peritos no engano? E Vitelli, inimigo jurado da vossa cidade. - Com um gesto de mão convidou o delegado de Florença a observar a cena pela janela.

- César! César Bórgia! - Um grito rouco se ergueu na praça. - Absolvição. . . não me confessei!

Maquiavel olhou para a praça em baixo. Paulo Orsini e Vitellozzo Vitelli estavam sentados costas com costas num patíbulo, amarrados juntos. Ao lado deles dois carrascos estavam a preparar o garrote sob a orientação experiente de Michelotto. Enquanto Paulo Orsini se sentava direito, a olhar em frente, em silêncio, Vitelli debatia-se seguro pelas cordas e gritava:

- César! Promete-me a indulgência do papa!

Maquiavel manifestou o seu desagrado com um trejeito.

- Não é exactamente um modo romano de enfrentar a morte - comentou -, aquilo de invocar a indulgência. Ou entende dizer compaixão?

César fez sinal com a mão. Os verdugos agarraram as cordas dos garrotes, passaram-nas habilmente pelo pescoço das vítimas e com uma rápida torção em volta dos bastões, sufocaram um último grito de Vitelli:

- Cés...

- Compaixão, Maquiavel? - perguntou César, virando as costas aos dois corpos que se contorciam no patíbulo. A compaixão não entra no Governo, não serve para criar unidade. A ordem e a obediência impõem-se com o medo.

Maquiavel inclinou-se, mas acrescentou:

- Se aqueles que temem um príncipe não têm motivo para o odiar.

Com verdadeiro interesse, César perguntou:

- Medo e ódio são por acaso indivisíveis?

- Com todo o respeito, Excelência, não - respondeu com seriedade Maquiavel. - Porventura não tememos Deus? E depois os homens amam e odeiam na base das suas convenções e nada mais. Não é possível induzi- los a temer aqueles que desejam ser temidos.

- Portanto? - perguntou César.

- Portanto - repetiu Maquiavel -, um bom príncipe se não quer correr o risco de se fazer amar, deveria fazer-se temer sem se fazer odiar. De tal modo poderá governar sem que ele próprio tema.

César observou demoradamente o florentino reflectindo sobre o que acabara de ouvir.

- Talvez, mestre secretário - disse César. - Mas não foi porventura o meu grande homónimo César a afirmar que mais preferia ser odiado que amado?

Maquiavel, inclinando a cabeça, perguntou:

- Sua Excelência recorda-se como acabou aquela história? Uma estranha expressão apareceu no rosto de César.

- Sim - respondeu claramente -, recordo, mas eu próprio desafio a sorte. Quem sabe como irá acabar?

O duque, escreveu Maquiavel no seu relatório ao Conselho de Florença no ano de 1503, durante aquele ano, até quase ao fim do Verão, depois de ter, segundo as suas próprias palavras, libertado a região de uma nuvem de insectos molestos, gozou de um poder como nenhum outro príncipe italiano alguma vez teve antes dele. Os senhores da Romanha que não eliminou, foram anulados pelo medo. Com a força de um governo tão sólido, pôde tratar como iguais a França e a Espanha, mantendo-as distantes, na expectativa das suas decisões. Tornou-se realmente um exemplo para todos aqueles príncipes que no futuro procurem poder absoluto e autoridade indiscutível. E se alguém não lhe deu crédito, quando disse que detinha aquele poder só em nome da Igreja, se estes objectaram que dominou também seu pai, o papa, mantém-se o facto de ninguém ter tido coragem para lho dizer abertamente, porque agora a sua cólera era motivo de terror para quem quer que fosse!

Nuvens tempestuosas adensavam-se sobre a Itália naquela tarde de Verão de 1503. As poderosas forças de Luís de França começavam a lenta marcha para sul da Lombardia ao encontro do reino de Nápoles, onde se encontrariam com o exército do rei Fernando de Espanha, enviado a Itália sob o comando de Consalvo de Córdova para arrancar Nápoles aos Franceses. Em Roma, César esperava para ver para que lado sopraria o vento da vitória. Era agora o primeiro capitão de Itália, com a força de um grande exército. Sabia que a sua ajuda seria solicitada de todos os lados e por isso poderia ditar as suas condições. Muito invejado, para si merecera o apelativo de filho da fortuna.

César e Rodrigo jantavam no Vaticano. A noite de Agosto estava abafada, sem ponta de vento que movesse a gaze leve posta nas janelas contra os mortíferos mosquitos dos pauis romanos. Até as velas que gotejavam nos candelabros de bronze pareciam lançar um calor intolerável. Da face flácida de Rodrigo corria abundante suor. O pontífice parecia agora velho e doente. Estava descascando um pêssego com uma faca de prata e a mão tremia-lhe muito. César sentia o rosto afogueado. Molhou um guardanapo no balde de gelo meio derretido em que refrescava o vinho e apertou-o contra a testa. Depois pegou numa garrafa com que encheu uma taça para o pai, mas não para si.

- Tu não bebes? - perguntou- lhe Rodrigo, desconfiado.

- Não me sinto bem esta noite.

Rodrigo engoliu o fresco Frascão de um só trago, lançando uma mirada maliciosa ao filho por cima do rebordo da taça.

- Estás de novo com o mal francês.

Depois enrugou a cara, pousou rapidamente a taça e passou a manga pelas faces para enxugar o suor.

- E tu que doença tens?

- Estou velho, César - declarou Rodrigo, patético. O Agosto em Roma é fatal para os homens gordos.

César ignorou a tácita súplica de compreensão.

- E então vai-se embora. Ou emagrece.

- Os novos pensam sempre que a juventude é eterna!exclamou Rodrigo tristemente. A mentira de um velho.

- Sabemos que é demasiado breve. Eu agora só tenho um inimigo: o tempo.

- E nem sequer um amigo. E quando foi que precisámos deles - lançou César com arrogância.

Rodrigo contemplou-o e em cada ruga da sua cara lia-se o seu cansaço.

- Vais ter necessidade deles quando eu morrer. Já to disse uma vez.

- Quando morreres eu olharei o Sol de frente. E eu avisei-te agora. - Rodrigo soltou uma repentina exclamação de dor. - Tarde de mais! Tudo agora são trevas! Apertou o ventre entre as mãos, ofegando ruidosamente. - César, estou doente.

Mas César não lhe prestou atenção. Continuou como se falasse consigo mesmo, como que lendo no futuro.

- Há cinco anos - observou - depus a púrpura cardinalícia. Posso vesti-la de novo.

- O quê?

- Tudo é possível - insistiu César.

- Tu. quererias vir a ser papa? - inquiriu ele e a incredulidade levou a melhor sobre as dores físicas.

César olhou-o, duro no rosto.

- Quando foste eleito, quando te perguntaram que nome assumirias, respondeste: Tomo o nome de Alexandre, o Invencível!

 

' Comarca italiana célebre pelo seu vinho afamado. (N. do E. )

 

Eu tornei realidade aquela tua fanfarronada. Tudo é possível.

Perseguido pela dor física e também pelo horror pelo que acabara de declarar o filho, Rodrigo levantou-se da mesa. - Não, isso não - estertorou; subjugado de repente depois de um incontrolável arranque de vómitos.

César assistiu ao tormento do pai com uma cara impassível.

- César! Nos olhos de Rodrigo apareceu repentinamente uma aterrorizada dúvida. - César tu não. . . - balbuciou estendendo as mãos para o filho num gesto alterado, depois caiu de joelhos vomitando.

César pôs-se de pé, mas não para socorrer o pai. Também ele naquele momento se sentia oprimido pela fadiga que experimentara durante todo o serão. Vacilou e teve de se agarrar à mesa para não cair.

- Burchard - gritou -, vinde, depressa. o Santo Padre está doente!

Rodrigo jazia imóvel no leito, a face cor de cinza, os olhos vítreos fixos no tecto. Ao lado da cabeceira, Burchard repreendia o médico que ainda mal terminara uma sangria.

-Dez onças - protestou - é excessivo para um homem de setenta e três anos. Matá-lo-eis.

- Não serei eu a matá-lo - respondeu aborrecido o médico.

Burchard ignorou-o. Olhava o doente.

- Perguntou pelos seus filhos? - quis saber.

- Por nenhum. Por nenhum em três dias.

Um som rouco veio do leito. Burchard inclinou-se para aproximar um ouvido dos lábios do papa.

- Santidade? - Voltou os olhos para o médico. - Quer novamente saber se foi envenenado.

O médico encolheu os ombros, cansado.

- Disse-lhe já que é a febre terçã mas parece que não compreende realmente. Disse-lhe que também o filho está com ela, mas não me ouviu.

Outro som incoerente escapou da garganta de Rodrigo. Com os olhos cheios de terror, moveu os lábios para pronunciar um nome:

- Cés. Cés.

Numa outra ala do Palácio do Vaticano, também César estava de cama. Para maior segurança, não regressara à sua residência.

Suava, com os olhos brilhantes de febre, mas lutava para não desmaiar. Michelotto estava sentado ao lado da cama e vigiava o médico que lhe ministrava um líquido escuro. César abanou a cabeça, desconfiado.

- Ficai tranquilo, senhor - disse-lhe Michelotto. - Fiz com que ele bebesse um pouco.

César bebeu. Falou depois com um grande esforço e emitindo apenas um murmúrio rouco:

- Onde está. onde está o papa?

- Na sua câmara, senhor - respondeu o médico.

- Morrerá?

O médico pareceu ficar embaraçado.

- Está a tratá-lo o meu colega, senhor.

- Michelotto - arquejou César -. ninguém sabe que estamos doentes?

- Ninguém, fora do Vaticano - tranquilizou-o Michelotto. César fitou o médico.

- Cure-me. cure-me - disse com veemência e depois, esgotado, abandonou-se às almofadas e fechou os olhos, tremendo da cabeça aos pés.

Michelotto agarrou o médico pelo colarinho.

- Se morre - ameaçou-o -, juro que vais atrás dele.

O médico balbuciou aterrorizado:

- Senhor Michelotto, a febre está alta de mais. preciso de a baixar.

- Então faz isso. Depressa!

O médico tremia agitadíssimo.

- Preciso. preciso.

- Já ouvimos! - apostrofou-o Michelotto. Agua fria, água e gelo, em grande quantidade. Um jarro grande, muito grande.

Uma hora depois dois servidores entraram na sala com uma volumosa ânfora de terracota. Atrás deles chegaram outros criados com baldes de água e neve gelada retirada da geleira. Despejaram a neve na ânfora enchendo-a até três quartos. César estava sentado no leito, nu, excepto uma tanga, fremente de febre, a olhar com esperança o recipiente de neve. Sob a orientação de Michelotto, dois servos elevaram César do leito. Mas desajeitados com o nervosismo, aguentaram César por uns instantes em equilibrio sobre o vaso, depois deixaram-no cair bruscamente na ânfora. César abriu muito a boca soltando um grito de surpresa e de dor.

O senhor duque viverá? - perguntou Burchard ao médico.

O outro encolheu os ombros.

- Quem o pode dizer, senhor Burchard? Estava à morte. Mas pode acontecer que a cura se verifique. É jovem e forte. - Mas Sua Santidade. - Voltou os olhos para a cabeceira do pontífice. - Pouco mais podemos fazer, está agora nas mãos de Deus.

- Lucrécia! - Um grito quase de agonia se elevou do leito, a que se seguiu um balbucio: - Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa.

Rodrigo continuou a repetir a fórmula do arrependimento até que a voz lhe ficou estrangulada na garganta num estertor de morte.

O médico tirou do bolso uma pequena patena de prata e aproximou-a da boca de Rodrigo. A superfície brilhante não se embaciou. Levantou os olhos para Burchard:

- É bom que informeis o senhor duque de que seu pai morreu, mas cuidado na maneira como lho dizeis, porque o choque o poderá precipitar também na eternidade.

                     A LAMINA DA NAVALHA

César tinha perdido os sentidos. Jazia inerte com a face reduzida a uma máscara de cera, enquanto Michelotto o abanava procurando restituí-lo à vida.

- Senhor! Abri os olhos. - Mas César parecia privado de vida. - Respondei, pelo amor de Deus! Se quereis sobreviver !

As pálpebras de César estremeceram, depois os seus lábios moveram-se quase imperceptivelmente.

- Michelotto.

- Escutai o que vos digo, senhor - disse precipitadamente Michelotto. - O papa morreu. Sua Santidade morreu. Vosso pai. - César não abriu os olhos. Michelotto não tinha a certeza de que tivesse ouvido. - Vosso pai morreu, senhor. Está aqui vosso irmão. Dizei-nos o que temos de fazer.

César moveu-se de novo.

- Meu irmão. João.

Godofredo inclinou-se sobre o leito.

- Sou Godofredo. - Depois, enquanto César abria finalmente os olhos acrescentou: - Que devemos fazer? Sua Santidade morreu.

César olhou-o por um longo momento.

- Não pensei nisso - disse lentamente. - Também eu. Há quanto tempo estou com febre?

- Há seis dias - respondeu- lhe Michelotto.

- Seis dias? - César agarrou- o num impulso por um braço.

- Depressa! Fecha à chave as portas da câmara do papa. Guarda tu as chaves.

- Sim, senhor. Atrás do leito há um armário, o seu tesouro secreto. Trazei-mo. Depressa. - Depois, enquanto Michelotto se voltava para sair, ordenou- lhe: - Põe um guarda à sua porta.

- Já está, senhor.

Michelotto saiu deixando Godofredo à cabeceira do irmão. Godofredo. - Este estava mais do que nunca ansioso. Curvou-se para melhor ouvir o rouco sussurro de César. - Sê-me fiel ou rasgo-te o ventre e ponho-te as tripas de fora.

Dois segundos da eternidade, Gaspar - rosnou Michelotto. - Onde estão as chaves?

Gaspar Poto revirou os olhos de terror.

- Debaixo da almofada - arquejou diante da faca que Michelotto lhe apontava à garganta.

Sem lançar sequer um olhar ao cadáver do pontífice que jazia no leito, Michelotto remexeu por baixo da almofada e de lá tirou um pesado molho de chaves.

- Ponham-no lá fora! - ordenou depois aos seus homens indicando Gaspar. - E fechem a porta à chave.

A seguir arrancou a tapeçaria pendurada atrás do leito e pôs à vista uma porta secreta. À pressa, experimentou uma após outra as chaves do molho, até encontrar a chave certa. Entrou no cubículo e dele saiu puxando atrás de si um pesado cofre.

- Mais duas - disse em tom peremptório apontando o cubículo com um aceno de cabeça.

Enquanto os seus homens punham cá fora os baús, Michelotto abriu o seu com um suspiro de satisfação, quando por baixo da tampa levantada emergiu o cintilar de uma massa de objectos preciosos em ouro e prata, pérolas e pedras não facetadas.

- Procurem por toda a parte, depressa - ordenou aos seus homens. - Poderão estar aí mais.

Do outro lado da pesada porta de carvalho chegavam os gritos dos servos do palácio que se entregavam ao habitual saque. Os gritos ouviram-se mais próximos, quando os criados chegaram aos aposentos pontificais. Um instante depois a porta foi abalada por violentas pancadas. Michelotto mostrou os dentes num sorriso cruel. - Aos cães, só lhes deixamos os ossos descarnados. Espadas desembainhadas e abram a porta.

Quando a porta se abriu, a turba que estava de fora recuou, repentinamente emudeceu na frente das espadas desembainhadas. Quando Michelotto e os seus homens, com os três pesados baús e os braços carregados de candelabros de prata e outros objectos preciosos, se foram afastando pelo corredor em direcção ao quarto de César, a turba voltou a ganhar afoiteza e espalhou-se pela sala do papa, onde tudo danificaram a brigarem na avidez de se apoderarem do que restava, despojando as paredes, os móveis e chegando mesmo a tirar o anel pastoral da mão do morto.

Com grande esforço, César levantou-se da cama para mergulhar os dedos abertos nas jóias do baú que Michelotto colocara ao seu lado.

- Bastará para comprar um papa. É mais do que aquilo de que preciso. Tenho o dinheiro. Tenho um exército. Faltam aos cardeais tanto um como outro. - Levantou os olhos numa expressão de escarninha devoção. - Agradeço-vos, Santo Padre. Que o Diabo conserve a vossa alma. Eu terei o resto. - Teve um sorriso de desprezo ao ver Godofredo que se benzia. Vais chorá-lo? - perguntou-lhe.

- Era nosso pai, apesar de tudo - respondeu Godofredo.

- Nunca te reconheceu - disse-lhe César cruelmente. Depois em tom mais compreensivo: - Não temas, irmãozinho, também terás a tua parte. Basta que me sejas leal - acrescentou voltando a cair nas almofadas porque o esforço fatigara-o muito e faltava-lhe a respiração. Depois dirigiu-se a Michelotto: - Onde estão os exércitos de França e de Espanha? Souberam?

Michelotto anuiu.

- Da doença do papa. Sim. Estão à porfia, a ver quem chega primeiro a Roma. Não temos muito tempo.

- Quem comanda?

- As forças espanholas estão sob o comando de Próspero Colonna. Está em Marino, a poucas horas de marcha. Os Franceses terão necessidade ainda de alguns dias para chegarem à cidade. Comanda-os Yves d'Alègre.

- Aguenta aqui as minhas tropas - ordenou César com a voz estrangulada. - Trata de pagar o soldo. Manda dizer na Romanha que resistam. Godofredo!

- Sim, César.

- Procura Próspero Colonna. Diz-lhe que lhe restituo as suas terras. Michelotto te dará as contra-senhas das suas fortalezas, a minha garantia. - Teve de se interromper para recuperar o fôlego. - Traz-mo aqui para que eu possa negociar com ele. Tem de vir.

Godofredo tinha dúvidas.

- Achas que confiará em ti?

- Não, mas confiará em ti. Tu foste fiel à causa espanhola. Tenho necessidade do seu exército ou os Orsini devorar-me-ão o coração. Assim que se saiba que o papa morreu toda a nossa familia estará em perigo. Onde está nossa mãe?

- Mandei informá-la - respondeu-lhe Godofredo. - Virá.

Vannozza contemplava o cadáver do homem que amara. Tudo lhe parecia ter acontecido muito tempo atrás, quando Rodrigo era um jovem cardeal espanhol com tanta alegria de viver num corpo robusto. Estava morto. Um velho de setenta e três anos que nem sequer morrera em paz. Os seus olhos, em tempos orgulhosos, estavam fechados numa expressão de terror; o seu corpo, em tempos tão atraente, era agora apenas uma massa gelatinosa de carne flácida. Vannozza afastou da mente o passado já sepultado.

- Sim? Senhor Burchard? - disse.

- Senhora, desculpai-me. - Os olhos assustados de Burchard contemplavam a cena do saque à sua volta. - Lamentável - disse -, muito lamentável, os homens de César, os criados, levaram tudo. - Com esforço, inclinou-se para apanhar uma tapeçaria abandonada pelos ladrões. - Nada se fez se gundo a etiqueta - lamentou. - Não consegui encontrar um só membro do sacro colégio em todo o Vaticano. - Estendeu cuidadosamente a tapeçaria por cima do corpo. - O cardeal camerlengo devia vir aqui verificar o óbito de Sua Santidade. E depois há o sino, deve dar ordem para tocar a Paterina, para que Roma saiba que o papa morreu - acrescentou encami nhando-se para a porta.

Vannozza estendeu a mão para o deter.

- Será apenas um sinal para assassínios e saques. Burchard fitou-a.

- Mas é o uso - objectou ele. - Sempre se toca a Paterina.

- Logo, se não toca, quer dizer que o papa não morreu - disse ela. - Vamos dar tempo ao duque - pediu-lhe.

Burchard olhou-a com tristeza.

- Senhora, não posso. É o uso. É preciso que o sino toque para anunciar o termo do nosso senhor Rodrigo Bórgia. - Aquilo que tem de ser, que seja.

A Paterina, o grande sino de Campidoglio, lançou os seus baixos repiques balanceando nos apoios de bronze para anunciar a morte do segundo papa Bórgia. Na sua cela em Santo Ângelo também o ouviu Sancha, que logo compreendeu o que significava. Empurrando para longe de si o guarda que a estava acariciando, correu à janela com um apaixonado grito de alegria.

- O papa morreu. O Bórgia bastardo morreu! E eu serei livre. Abri as portas! - Levantou os olhos para o céu. Agora vingança será feita. Também os espectros se erguerão. Meu irmão e todos os outros. Ninguém verterá uma lágrima. Talvez Lucrécia, sim, e César - acrescentou sorrindo um riso de triunfo.

César, com Vannozza ao lado, recebeu os dois pequenos filhos de Lucrécia, Rodrigo e João, acompanhados pelo seu tutor, o cardeal Vera.

- Obrigado pelos vossos cuidados, Eminência - disse César. - Escrevei a Dona Lucrécia em Ferrara e dizei-lhe que ficarão ao cuidado de nossa mãe. - Fez sinal às crianças para que se aproximassem. - João, tu és um Bórgia. E tu, Rodrigo, também. Não tenham medo de ninguém. Entendido?

- Sim, senhor - respondeu João.

- Cumprimentai o cardeal Vera - disse-lhes César - e ide com Dona Vannozza. - Depois, enquanto Vannozza saía com as crianças, César acenou ao cardeal para que se aproximasse. Como está a situação nas ruas? - perguntou-lhe.

- Há alguma desordem e grita-se muito - respondeu Vera. - Mas o pior está para vir.

- Que tendes ouvido? - Depois, visto que Vera hesitava, incitou-o com uma certa impaciência. - Vamos, Eminência, falai sem receio de problemas.

O cardeal compôs um rosto grave.

- Passámos próximo de um destacamento de homens fiéis aos Orsini. Estavam armados e gritavam: Morte aos Bórgias, morte aos espanhóis judeus.

César não traiu surpresa alguma.

- Os cardeais reuniram-se?

- Fomos convocados para a Igreja de Santa Maria amanhã de manhã. Não ousam vir ao Vaticano convosco aqui - respondeu e afivelou um fraco sorriso.

A voz de César ouviu-se repentinamente forte.

- Eu ficarei até que me tenham prometido o que quero. Tenho duzentas lanças fora das muralhas. - Fixou Vera nos olhos. - Com os meus apoiantes em conclave farei com que vos elejam papa. Quantos cardeais estão já dispostos a votar?

- Tendes oito votos certos, senhor - respondeu Vera com uma reverência.

- Mais! Talvez onze - corrigiu o outro, cauteloso. Quase um terço. Se tivéssemos apenas algum tempo. Começava a agitar- se, enquanto a febre voltava a subir. Debateu-se, irrequieto, nas almofadas, com a cara vermelha e perlada de suor. - Tenho de tomar um banho. Dizei-lhes que me mandem Vasia, a grega. - Depois, vendo a preocupação nos olhos do prelado, afirmou bruscamente: - Não estou com febre.

- Não, senhor - apressou-se a concordar o cardeal. Depois inclinou-se para se despedir, demorou-se ainda: - Senhor duque, devo lamentar-me pelo óbito de Sua Santidade. . . - Não tendes razão para vos lamentardes, João Vera - interrompeu-o César. - Farei de vós o papa.

João Vera levantou-se para se dirigir ao pequeno grupo de cardeais reunidos na Igreja de Santa Maria Minerva. Eram só doze porque a maioria não se atrevera a deixar os seus palácios para se aventurarem nas ruas em tumulto e porque alimentavam muitos temores quanto ao que poderiam fazer as tropas do duque Valentino. Entre eles estavam os cardeais D'Amboise e Caraffa, os candidatos francês e espanhol ao trono papal, ambos com pressa de chegar à cidade à frente das suas tropas, e o macilento e fraco cardeal de Siena, Piccolomini, o único italiano presente. Vera, ladeado por um pequeno grupo de cardeais espanhóis que deviam a púrpura aos Bórgias, tal como ele, actuava como porta-voz.

- Eminência - disse -, na ausência do cardeal Riario de Roma, haveis-me eleito para o alto cargo de cardeal camerlengo.

- Para que faleis por nós ao duque Valentino - precisou D'Amboise, o protegido do rei Luís.

- Deveis persuadir o duque a deixar a cidade com o seu exército - instou Caraffa.

- O Vaticano está nas mãos de homens de armas - insistiu D'Amboise. - Estamos em perigo e não se pode promover um conclave. - Fez uma pausa para suscitar maior efeito. - Podemos ver-nos obrigados a pedir a intervenção das armas de França.

- As de Sua Majestade espanhola estão mais próximas, cardeal D'Amboise - interrompeu-o Caraffa. - Ainda que, naturalmente, não vá ao encontro dos vossos desejos - acrescentou com malícia.

- Se fazeis vir as tropas espanholas, cardeal Caraffa - advertiu-o D'Amboise -, teremos aborrecimentos com os Orsini.

- Vossas Eminências. - começou Vera.

D'Amboise voltou-se para ele:

- Monsenhor Vera, olhai o perigo em que nos vemos. É necessário que todas as tropas sejam afastadas. Sem demora. Só então poderemos eleger o novo papa.

- Suas Eminências solicitam-me que organize um encontro urgente com o duque Valentino? - perguntou-lhes Vera. Houve um nurmúrio de assentimento. Continuou: - Devemos também ocuparmo-nos dos sinetes papais. E das exéquias pelo papa defunto.

Mas os cardeais fingiram que não o tinham ouvido. Só Piccolomini anuiu educadamente. Caraffa murmurou:

- O papa defunto. dizem que o seu corpo ficou negro pelo veneno e que invocou o Diabo antes de morrer. não irei aos seus funerais.

- Nem eu - anunciou o seu colega e muitas cabeças se moveram em concordância.

O cadáver de Rodrigo tinha sido colocado atrás do altar-mor de São Pedro, protegido por uma grade de ferro. Nisso tinham pensado Gaspar e Burchard, quando, enquanto o corpo era solenemente transportado, rebentara uma rixa entre monges e soldados pelas preciosas velas do cortejo fúnebre e o corpo de Rodrigo foi abandonado descomposto e esquecido. O calor de Agosto acelerara o processo de decomposição e a sua cara estava inchada e negra com a língua intumescente e saída dos lábios. Em volta do cadáver havia um cheiro pútrido de morte.

Burchard tinha um lenço no nariz, enquanto indicava o cadáver aos três carpinteiros que chegavam com o caixão. - Sua Santidade - disse.

O mestre carpinteiro, Estêvão, olhou o cadáver com manifesta repugnância.

- Deveríeis ter-nos chamado mais cedo, mestre Burchard protestou.

Um dos seus companheiros, Bartolomeu, torceu o nariz.

- Que Deus tenha misericórdia de nós. Gostaria de saber de que é que morreu o Santo Padre.

- Veneno - disse-lhe Estêvão em tom de autoridade. - Já viste de mais. E vamos fechá-lo no caixão como qualquer outro.

- Com respeito, com cautela. - avisou Burchard mas o lenço já não chegava para evitar a náusea que o estava a dominar e saiu dali murmurando uma desculpa.

Estêvão abanou a cabeça, desapiedado.

- Não há estômago que o suporte.

- Mas é o pior que me calhou - comentou Bartolomeu. Espantosamente inchado ! Olha que ventre, Estêvão !

Estêvão teve um sorriso maldoso.

- Água benta, Bartolomeu, água e vento bentos. Espeta-o com uma verruma e terás bastante com que baptizar Roma inteira.

O terceiro carpinteiro, Pedro, riu:

- Coragem, rapazes, acabemos com isto. Há uns bons patacos a ganhar. Vamos metê-lo lá dentro.

- Não lhe toquem com as mãos - avisou Estêvão.

- E como é que fazemos? - quis saber Bartolomeu.

- Peguem no tapete - explicou Estêvão apontando-o. Agora, todos ao mesmo tempo, vamos atirá-lo para cima. Ave-Maria, cheia de graça, aguentai a venta e fechem os olhos! Está feito. Agora enrolamo-lo, assim não temos de o ver. Dizem que benzeu cem virgens por noite. Pedro aguenta com força aquele canto. Estão prontos? Vá!

Meteram sem cerimónia o corpo de Rodrigo no esquife, que se revelou muito apertado.

- Não entra! - praguejou Pedro.

- Isso é que entra. . . uns empurrões com jeito, rapazes - disse Estêvão que pegou na mitra e a meteu lá dentro ao lado do cadáver.

- Uf! - exclamou Bartolomeu com uma careta, enquanto com os companheiros carregava no cadáver para que entrasse no caixão. - Que cheiro! Custa a resistir.

- Bom, que o Diabo o leve agora - afirmou Pedro deixando cair a tampa do caixão - porque ninguém mais o há-de querer.

Michelotto inclinou-se com escárnio.

- Não será o Diabo a levar-vos, Monsenhor Júlio - disse -, mas Próspero Colonna e todo o seu exército. Chegaram de noite.

Júlio Orsini ficou surpreendido e assustado.

- Colonna? - perguntou em dúvida.

Michelotto sorriu.

- Neste preciso instante está negociando com o duque. Aconselho-vos vivamente a fugir de imediato e escondei-vos nas vossas tocas de Montegiordano antes que cheguem a acordo.

- Tende cuidado, Michelotto - ripostou Orsini, furioso. - Também o Diabo já vos chamou e já não existe um papa Bórgia para vos proteger.

No entanto, Michelotto continuou a olhá-lo rindo dele. Orsini virou o cavalo com uma imprecação e partiu a galope seguido pelos seus homens que gritavam:

- Morte aos Bórgias. Morte aos judeus espanhóis!

- Haveis ouvido os gritos nas ruas? - perguntou Próspero Colonna a César com uma certa frieza. - Não vos são favoráveis.

- Os Orsini. São também inimigos vossos - lembrou-lhe César.

Jazia no leito, nu até à cintura, enquanto Vasia, a rapariga grega, lhe fazia massagens aos músculos cansados com óleo. Levantou a cabeça e fitou Próspero com calma. Próspero era seco, quase magro, bronzeado e de muita dignidade no porte.

- Que dizeis, Próspero? Estais ao serviço do rei Fernando de Espanha. Então que vos disse?

Próspero nada respondeu. Indicou a rapariga com os olhos. César abanou a cabeça.

- Minha amante. Grega. Não entende o italiano - disse laconicamente. - Serei franco, Próspero, tenho necessidade do vosso exército. Dizei-me o que quereis.

Próspero aproximou-se do leito e ficou a contemplar César sem nenhum sinal de amizade.

- Estou a lembrar-me de Cápua - afirmou.

- Cápua? - César pareceu ficar perplexo. Defendi a cidade contra vós, recordais? Os vossos soldados portaram-se como magarefes. Vi depois raparigas, às quais tinham enfiado tochas no meio das pernas.

- Não por minha ordem.

- Não pensei isso.

- E as sessenta virgens que haveis levado convosco para Roma? - perguntou.

- Sou um monstro. É isso?

- É o que penso - respondeu Próspero.

César soltou um gemido.

- Fernando é um tolo ao fiar-se em vós. Acreditais em muitas coisas. - Agarrou uma mão da rapariga e apertou-a até a fazer gritar de dor. - Estão a voltar-me as forças. Haveis ouvido? Os seus lábios pareceriam dar-vos palavras de amor se estivésseis disposto a acreditar. Mas só um grito de dor é verdadeiro. Acreditar nas lágrimas, sim, nos sorrisos nunca. Que importância tem até que ponto me odiais? Tenho precisão de vós, Próspero. Portanto, em nome do tormento, dizei-me o que quer o vosso patrono.

Próspero fitou-o por um instante, alerta.            

- Quantos votos podeis controlar no conclave. - perguntou.

- Onze.

- Quantos bastam para papa espanhol.

- Quem

escolheis?

- Caraffa?

Próspero anuiu.

- Podeis garanti-lo?

- Se tiver necessidade de outros votos, posso comprá-los. - E como garantia?

- Eu próprio. - César levantou-se para se sentar e fez sinal à rapariga para que o ajudasse a vestir-se. - Preciso de três dias para negociar com os cardeais. Querem que me retire de Roma. Se aceitarem as minhas condições irei ter convosco fora das muralhas. Esperaremos juntos a notícia da eleição de Caraffa. - porquê? Oferecei-vos como refém..

- Por necessidade, Próspero. Pela minha própria segurança. Nicolau Orsini está para chegar a Roma com mil e quinhentos homens. Sabeis que há sangue derramado entre mim e os Orsini. Preciso que as vossas tropas estejam em Roma esta noite. Não quero o vosso afecto. Que dizeis disto?

Próspero anuiu, convencido.

- Estamos de acordo. - Olhou depois para Godofredo, que esperava em silêncio do outro lado do leito. - Uma última condição. O rei pede a libertação de uma sua parente, a princesa Sancha.

Godofredo, involuntariamente, teve um sobressalto.

- César - chamou, alarmado.

Troçando dele, César disse a Próspero:

- Estais a ver? Também o seu marido não pensa senão na hora em que ela esteja a salvo. A força do amor. - Depois para Godofredo, em tom autoritário, ordenou: - Vai com ele, Godofredo, procurar a princesa Sancha.

Godofredo e Próspero estavam na presença de Sancha na sua cómoda cela de Santo Ângelo. Depois de um cumprimento desdenhoso ao marido, Sancha demorara-se a olhar Próspero com sensual interesse pois que era um belo homem. Próspero inclinou-se galantemente:

- Princesa.

A face de Sancha iluminou-se.

- Ah, vós sois um verdadeiro homem - observou quase falando para consigo e dele se aproximou a fim de que lhe pudesse cheirar o perfume. - Há quase um ano que só vejo carcereiros. E ele. - indicou Godofredo com um aceno de cabeça. - Trazeis a minha ordem de soltura?

- Disso trazemos notícia - respondeu Próspero. - Seguir-se-á à eleição de um papa espanhol. César Bórgia honrará o compromisso que comigo estabeleceu e vós sereis libertada.

- Deve haver uma troca? Eu contra César? - perguntou Sancha.

- Na prática.

- Curioso - observou ela. Depois, ansiosa: - E a seguir, matá-lo-eis.

Próspero teve um sorriso cruel:

- Dar-me-ia imenso prazer!

- Prazer! - Sancha afagou-lhe a face. - Que pele lisa tendes. Tinha-me esquecido o efeito de uma pele como a vossa. . . Sorriu-lhe, sedutora. - Próspero, estou contente por terdes sido vós a libertar-me. - Cingiu-o com os braços e roçou-se contra ele.

Colonna lançou um olhar embaraçado a Godofredo, que se virou para outro lado.

- Não vos preocupeis com meu marido - disse ela com desprezo -, muitas vezes está perto de mim. Próspero Colonna, vós me tereis em troca de César Bórgia.

César, pálido, numa teatral exibição de prostração, mandou que o transportassem de maca à audiência dos cardeais em conclave. Era escoltado por Godofredo que falava em seu lugar:

- Eminências - começou inclinando-se perante a assembleia -, o duque está aqui em resposta ao vosso pedido de encontro. Como podeis ver, está muito enfraquecido pela febre. A audiência tem de ser breve. Sua Excelência fará tudo aquilo que puder.

Levantou-se um murmúrio de compaixão entre os cardeais, muitos dos quais estavam sinceramente comovidos por verem o terrível duque Valentino reduzido àquele estado. Esses eram naturalmente os partidários dos Bórgias, mas entre estes estava também o piedoso e condescendente Piccolomini, que, antes da morte de Rodrigo, defimira uma vez como lobos, os dois Bórgias, pai e filho.

Levantou-se o cardeal Vera, que se voltou para César:

- Senhor duque. Em relação a quanto disse o príncipe Godofredo, porei de parte as conveniências. Estamos ansiosos por eleger um papa. Por isso todas as facções armadas devem deixar a cidade. Isto significa, duque, que também vós e os vossos apoiantes devem afastar-se.

Com grande esforço, César apoiou-se num cotovelo. Falou depois de modo desconexo e com dificuldade:

- Eminências, também estou ansioso por vos favorecer. Se bem que doente, estou pronto a fazer essa viagem se vos comprometeis pela minha segurança. Duas coisas vos peço em troca. Que seja confirmado o meu título de capitão-general da Igreja e que me apoieis na reivindicação do título de senhor da Romanha.

- Eu não levanto objecções, na expectativa da eleição do novo papa - disse Caraffa.

- Cardeal Caraffa, sou-vos grato pelo vosso apoio - declarou César, exangue.

Caraffa dirigiu-lhe um sorriso de entendimento e voltou-se para Vera:

- Cardeal Vera, estamos de acordo?

- Há certos pormenores.

- Mais que porinenores, cardeal camerlengo! - exclamou D'Amboise, colérico. - O duque sabe que um exército de dois mil espanhóis penetrou na cidade esta noite? É uma invasão. Isto pode não alarmar o cardeal Caraffa - insinuou alusivo -, mas alarmará certamente o rei Luís de França. E devo insistir.

César levantou debilmente uma mão:

- Cardeal D'Amboise - deixou-se cair na liteira como se as forças lhe faltassem repentinamente e acenou ao cardeal para que se aproximasse dele.

D'Amboise surpreendido, aproximou-se da maca com ar preocupado:

- Senhor duque - começou.

César agarrou-lhe as mãos num gesto patético. - Próspero Colonna respeitará os meus desejos - tranquilizou-o -, o seu exército partirá a ordem minha. - A sua voz era tão fraca que o cardeal teve quase de encostar o ouvido aos lábios de César. Este murmurou-lhe: - Vinde até mim particularmente. - Depois, em voz alta, acrescentou: - Coloco em vós a minha confiança. Sabeis que fui amigo da França.

D'Amboise inclinou-se em sinal de assentimento. - Senhor, recordo-o. - Voltou ao seu lugar antes de continuar. - Os termos desse acordo estão definidos. Para mim desejo que me possa considerar satisfeito.

Uma voz fraca veio da maca:

- Eu creio que o sereis.

Houve entre eles uma breve troca de olhares.

O cardeal Piccolomini lançou um olhar à assembleia com expressão beata.

- Então estamos agora de acordo? - perguntou alegremente. - Deo gratias! O amor de Deus harmonizou os nossos corações!

- Velho imbecil. - murmurou César sem permitir que o ouvissem.

O cardeal de Siena voltou-se para ele, sempre educado:

- Haveis dito alguma coisa, senhor duque?

- Nada, cardeal Piccolomini. Imploro apenas a vossa bênção para um doente.

- Certamente, meu filho - respondeu gentilmente o ancião purpurado fazendo o sinal da Cruz sobre o filhote do leão.

Noite alta, César e o cardeal D'Amboise conferenciavam privadamente nos aposentos de César. A face deste estava pálida à luz das velas, mas o Valentino já não fingia estar fraco e doente. Sentavam-se os dois frente a frente dos dois lados de uma mesa e perscrutavam-se no rosto. Cada um deles sabia ter necessidade do outro. Tratava-se apenas de estabelecer qual dos dois estaria em maior dificuldade e portanto em condições de ter de ceder mais. César calculava ter uma vantagem. D'Amboise desejava desesperadamente o papado e, com a França e a Espanha que se olhavam raivosas por causa de Nápoles, cada uma das partes teria dado alguma coisa por um papa favorável. Era opinião comum que César, com o seu bloco de cardeais que lhe eram fiéis, estivesse na situação de fazer pender o êxito da eleição para a parte que quisesse. O Valentino tencionava vender caro o seu apoio. O seu preço era a Romanha, onde o seu domínio estava a esfarelar-se. Os seus inimigos iam sucessivamente regressando às respectivas cidades e uma Veneza hostil ia na dianteira para tomar para si a sua parte. Luís era forte a norte do país e poderia ajudá-lo a restabelecer o seu ducado, enquanto a sua influência afastaria Veneza e os senhores no exílio. César esperava que o medo de D'Amboise de que os votos do bloco por ele controlado fossem para Espanha impedisse o cardeal de vislumbrar claramente até que ponto ele próprio tinha necessidade da França. Uma outra coisa unia os dois homens: ambos não confiavam em Julião Della Rovere e estavam decididos a não lhe permitirem a eleição.

- Um italiano, por exemplo, Piccolomini - estava a dizer D'Amboise. - Não, não acredito que valha a pena tomá-lo em consideração. Eu creio, monsenhor duque, que o papado tenha de ir para a Espanha ou para a França. Alguns, de início, pensaram que queríeis o cardeal Vera.

César abanou a cabeça.

- Não tem o apoio necessário. Para mim e para os meus desígnios não serve.

- Resta-nos agora considerar apenas quem deveis temer mais - prosseguiu D'Amboise, pensativo.

- Della Rovere - declarou César com ódio. - Julião Della Rovere que se encontra em Milão com Luís.

D'Amboise anuiu imediatamente.

- E voltará a Roma, mal dela tiverdes saído. É sem dúvida o vosso inimigo mais perigoso.

- É a razão por que mantive ao largo os Franceses desde que o papa morreu.

O prelado não escondeu um breve clarão de triunfo nos olhos:

- É exactamente o que pensava, assim o disse ao nosso embaixador. - Aproximou a cadeira da de César em atitude mais confidencial. - Senhor duque, deixai que vos assegure que Luís é hostil a Della Rovere não menos do que vós. Eu sou o candidato preferido por Sua Majestade nestas eleições. Todos os cardeais do lado francês votarão em mim.

César encostou-se ao espaldar e contemplou o cardeal.

- E os italianos? - perguntou candidamente.

- Dividir-se-ão. São os vossos dez ou onze votos a decidir entre a França e a Espanha. Decidireis.

Houve um prolongado silêncio. César brincou com uma condecoração de prata que tinha suspensa do pescoço. Por fim perguntou:

- Então, D'Amboise. Que ofereceis?

- Que quereis?

- Protecção para mim e para a minha família. Com todos os nossos haveres e as nossas terras. O apoio da França na manutenção dos estados que possuo e na recuperação dos que perdi. Fitou o cardeal nos olhos com dureza. - Considerais que o rei Luís ofereça tanto?

O outro apressou-se a responder:

- Senhor duque, posso dar-vos a ver pelas cartas.

- E posso confiar nele?

- Que há de seguro na vida? - perguntou D'Amboise, calmo. - Existe talvez melhor alternativa?

César hesitou fazendo oscilar a condecoração.

- Uma coisa é certa, Eminência - declarou. - Tenho de sair de Roma. E irei para aquele que souber oferecer-me mais.

- Mãe, tenho de ir agora - disse César abraçando Vannozza.

Godofredo e as duas crianças, João e Rodrigo, estavam já a cavalo. As bagagens da família, em sacos e baús, estavam amarradas no dorso dos machos que os transportariam a Nepi.

- Entendeste o plano? - perguntou-lhe. - Eu só deixarei o Vaticano no último momento. Quando Próspero Colonna estiver à espera à Porta do Povo. Estou de acordo em encontrar-me ali com ele à hora das vésperas.

- Mas esperará em vão. Naquele momento tu já estarás longe, de volta a Nepi, e eu irei ter com os Franceses.

Vannozza hezitou antes de subir para a cadeirinha preparada para ela.

- Não me agrada deixar Roma - confessou.

César inclinou-se para a beijar.

- Voltaremos - disse-lhe em tom tranquilizador. - E depressa. - Depois saudou Godofredo e as crianças. - Cuidai da nossa mãe. Os nossos caminhos afastam-se aqui, mas voltaremos a encontrar-nos amanhã à noite.

-Que Deus te ajude, César - desejou-lhe Godofredo.

César levantou a mão em sinal de despedida, depois deu meia volta e regressou ao Vaticano, enquanto o cortejo saía do terreiro.

Michelotto foi ao seu encontro.

- Senhor, o cardeal Della Rovere regressa hoje, à cidade. Tenho aqui o seu servidor como haveis ordenado.

César lançou uma mirada ao servo, atrás das costas de Michelotto.

- Podemos confiar nele?

Michelotto anuiu.

- Até ao exilio do cardeal, este homem foi o seu braço direito. Desde então vendeu-me muitas informações. Sempre me disse a verdade.

César chamou a si o criado de Della Rovere.

- Chega aqui. - O homem parou diante dele com o chapéu na mão. - Como te chamas?

- Jorge, senhor.

- Serviste o cardeal Della Rovere? - perguntou César, fittando-o nos olhos.

Jorge fez uma reverência respeitadora. César era conhecido pela sua generosidade.

- Não vejo o meu amo há nove anos, desde que partiu para França - respondeu. - Umas vezes o dinheiro chega, Excelência, outras fico sem receber. Dizem que o meu patrão depressa estará de novo em Roma. Mas enquanto espero. - abriu as mãos vazias num gesto explícito.

César tirou uma pérola da bolsa que trazia à cintura e estendeu-lha de modo que o servo pudesse examiná-la.

- Uma pérola de grande valor, Jorge - disse ao homem ao qual brilhavam os olhos na avidez de entrar na sua posse. Podes ter esta já e uma outra para acompanhar esta depois de teres feito aquilo que te peço. Tens medo de matar?

Jorge sacudiu a cabeça com os olhos postos na pérola. - Mesmo que se trate do teu patrão? Garanto-te que não deixarás vestígios.

- Como?

César deu-lhe a pérola e tirou do bolso uma ampola de vidro.

- Parte esta ampola e deita o pó que contém na taça do cardeal quando um dos seus inimigos estiver nas vizinhanças. Não lhe sentirá o sabor. O efeito é lento, mas seguro.

Jorge estendeu a mão para receber a ampola, depois inclinou-se para se despedir.

- Confiai em mim, senhor. Que Deus abençoe sempre Vossa Excelência.

Quando Jorge desapareceu, César observou Michelotto perplexo.

- Um patife honesto, senhor - tranquilizou-o Michelotto. - Bem. - César levantou-se da cadeira mas, assim que se pôs de pé, vacilou como que prestes a desmaiar. Tinha as faces inflamadas e uma luz pouco natural nos olhos. Michelotto adiantou-se imediatamente para lhe oferecer o braço, mas César repeliu-o com irritação.

- Não me apoio em ninguém - sibilou entre dentes. Depois, com esforço, reencontrou uma voz normal. - Está tudo pronto?

Precedido por Michelotto a cavalo, César deixou o Vaticano numa cadeirinha com cortinas de damasco cor carmesim segura por oito alabardeiros. Atrás da cadeirinha vinha o seu grande cavalo Gonzaga de batalha, ajaezado de negro com o diadema ducal e montado por um pajem. Era uma encenação estudada justamente para suscitar a compaixão e, de facto, quando o encontrou fora da Porta Viridaria, Yves d'Alègre não pôde deixar de se comover ao ver César naquele estado.

Mas César não estava, na verdade, em condições para cavalgar. As tensões dos últimos dias tinham favorecido uma recaída e, quando finalmente chegou a Nepi, ficou deitado durante algumas semanas num estado de total esgotamento e atingido por uma febre altíssima, tratado por Vannozza e vigiado pela lealdade solícita de Godofredo.

Com a notícia de que César estava já em viagem para Nepi sob a protecção de Yves d'Alègre, Próspero Colonna compreendeu que fora ludibriado. Entrou no Castelo de Santo Ângelo: se não podia ter César então pelo menos apoderar-se-ia da princesa Sancha. Ela era feliz. Deu ordem à serva para preparar toda a sua roupa, enquanto Próspero caminhava pela cela para cá e para lá praguejando contra César.

- Que o Diabo o leve, esse César Bórgia! Que tenha de apodrecer e assar nas mais ardentes chamas do Inferno! Durante três horas o esperámos à Porta do Povo. Traiu-nos!

- Mas se não tendes César, por que sou eu libertada? Quem é o novo papa?

- Não há papa! Não houve eleição! Liberto-vos por minha vontade. E César Bórgia sumiu-se como demónio que é.

Sancha tentou consolá-lo.

- Roma está agora livre dele - disse-lhe. - Ele foi-se embora e eu irei para Nápoles e serei vossa amante. A quem é que interessa quem seja o novo papa?

Juão Della Rovere, chegado a Roma para participar no iminente conclave para eleição do novo pontífice, estava sentado no seu lugar, absorto na contagem de uma lista que tinha na mão. Caraffa. . . estamos a nove votos. - Foi interrompido por uma pancada na porta. Levantou os olhos.

- Sim? - disse e apareceu o seu servo Jorge.

- Um reverendo monsenhor pede audiência, Eminência.

- Não é estranho - respondeu o outro seco. - Será já o décimo quarto desde que cheguei. Quem é?

- O Cardeal Sforza, Eminência.

Julião Della Rovere ficou surpreendido, mas não contente.

- Ascânio! Também ele voltou. Temos de nos ver. - Fez um aceno de concordância a Jorge. - Recebo-o imediatamente. - Logo de seguida, enquanto Jorge se voltava para sair, acrescentou: - Depois de o teres mandado entrar, ficarás aqui enquanto eu não te disser para ires embora. Sua Eminência está sozinha?

- Sim, o cardeal está só, Eminência.

jorge voltou um instante depois com Ascânio Sforza. A face angulosa de Della Rovere iluminou-se com um sorriso pouco acalorado. Estendeu a mão e saudou:

- Ascânio ! Querido amigo !

Enquanto os dois cardeais se abraçavam, Jorge aproximou-se furtivamente da mesa em que se encontravam uma garrafa de vinho e uma taça e despejou o pó da ampola na taça. Depois afastou-se em silêncio e ficou parado à espera ao fundo da sala, de olhos respeitosamente baixos, enquanto os dois eclesiásticos falavam ou, para melhor dizer, esgrimiam com palavras.

- Quando chegaste? - perguntou Della Rovere.

- Ontem à noite, julião. Disseram-me que estás aqui há três dias.

O outro anuiu.

- Sim, mas voaram num instante. Nove anos passados e descubro ter tantos amigos. Tu também. - Ascânio notara o movimento de Jorge nas costas de Della Rovere e resolvera nada dizer se tal não lhe fosse vantajoso.

- Foste recebido com afecto? - Havia muito mais que um pouco de desagrado na voz de Della Rovere.

- O entusiasmo foi surpreendente - respondeu Sforza,

sorrindo. - Mal se espalhou a notícia a rua encheu-se com um coro de gritos de saudação. Gritavam: Sforza! Sforza! Ensurdecedor, diria eu.

- Sim - comentou gentilmente Julião recuando e convidando o outro a sentar-se. Acomodaram- se ambos. - O povo está tão contente por o Bórgia se ter ido que é difícil ajuizar os humores. - Fez um aceno a Jorge. - Traz uma taça ao cardeal. - Depois a Sforza: - Tens de ficar mais um pouco, Ascânio. Há uma questão importante que temos de discutir.

Houve uma pausa durante a qual os dois homens se fixaram vigiando-se. Depois Della Rovere começou prudentemente:      

- Vieste sem dúvida com instruções por parte do rei A propósito da eleição.

- Sim - respondeu Sforza. - Sua Majestade soltou-me para que desse o meu voto a D'Amboise.

- E irás fazê-lo?

- Não !

Della Rovere sorriu.

- Eu também não. Vim para tratar dos meus assuntos pessoais, aqui, não os de outrem. - Acrescentou depois corajosamente: - Sabia que podia contar contigo.

Sforza manteve as distâncias.

- Isso, como é natural, depende. . .

- De quê?

- De qual de nós tiver o maior número de votos. Ao primeiro escrutínio.

- Ao primeiro escrutínio. . . Compreendo. . . compreendo.

Não me tinha dado conta. . . - Pareceu preocupado. Jorge, que se aproximava com a taça de vinho para Ascânio apercebeu-se disso e, como que por acaso, pousou a taça ao alcance da mão do seu amo.

- Deixa-nos sós - ordenou Della Rovere pegando na taça. - Bebamos então ao sucesso - propôs a Sforza. - O teu ou o meu. . . - e levou a taça aos lábios.

Ascânio tomara uma rápida decisão. Estendeu uma mão para deter o gesto de Julião.

- Não, se tens amor à vida, meu amigo. A taça está envenenada.

Della Rovere ficou espantado.

- Envenenada? - repetiu baixando-a e contemplando-a com horror.

- A mão de César Bórgia conseguiu vir tocar-te de novo. mesmo agora - Della Rovere lançou uma mirada desconfiada na direcção da porta. - Poderá servir para fazer um papa - continuou Sforza -, mas tu? Ou eu? - Agitou os ombros, incrédulo.

Antes de o conclave se reunir para eleição do novo senhor e patrono, escreveu Burchard no seu diário, em toda a parte se considerava que o duque Valentino faria eleger para o pontificado uma pessoa do seu agrado, pois que controlava o voto de todos aqueles cardeais que tinham obtido a púrpura de seu pai, o papa Alexandre. E uma vez que o duque fora para Nepi sob a protecção da França, o cardeal francês alimentava seriíssimas esperanças de ser escolhido. O Valentino encorajava aquelas esperanças com falsas promessas: fez isto até ao dia do conclave. Mas na realidade o duque sabia não poder obrigar todos os seus cardeais, na maioria espanhóis, a votar num francês: por muito que o temessem, temiam também o rei de Espanha. Assim, César disse-lhes que, se não conseguissem eleger um do grupo, ou seja, o cardeal Vera, deveriam dar os seus votos a um candidato italiano que fosse aceitável para ambas as partes e impedisse a eleição ao sólio de Julião Della Rovere e de Ascânio Sforza, que eram seus inimigos jurados. Assim os cardeais fiéis à casa dos Bórgias alinharam com D'Amboise e com o Sforza contra Della Rovere, que tivera a maioria à primeira volta, para depois elegerem para o pontificado o cardeal de Siena, Piccolomini, o qual assumiu o nome de Pio III, em memória do tio Pio II, que fora amigo e protector de Rodrigo Bórgia. Assim o sobrinho de Pio II viu-se como devedor do filho de Rodrigo Bórgia. Muitos se lamentaram por aquela eleição, porque o novo papa, ainda que fosse um bom homem, era velho e doente e não reinaria por muito tempo.

Pio III coxeava por um corredor do Vaticano, apoiando-se a uma bengala. Sofria de gota e no seu rosto havia uma faceta de dor misturada com irritação pela insistência de Julião Della Rovere, que o perseguia pelo corredor bombardeando-o com pedidos e acusações.

- Se Vossa Santidade quer ouvir-me só por um momento. - Tremia a voz de Della Rovere pela irritação. Dominava o papa do alto da sua estatura.

- Meu caro Della Rovere, parece-me justamente que esta manhã não me foi possível fazer outra coisa.

- E, no entanto, Vossa Santidade, ainda não explicou. . . Haveis mandado instruções oficiais à Romanha confirmando a senhoria a César Bórgia. E a Veneza haveis escrito repreendendo contra um ataque a César.

- Mas mais não farei - prometeu Pio. - O que fiz pelo duque foi-me imposto pelos cardeais espanhóis. Julião.

Della Rovere interrompeu-o com indignação.

- Vossa Santidade dar-se-á conta de que aquele homem procurou matar-me? Eu conheço-o como assassino e chantagista que é.

- Naturalmente seremos generosos no amor também para com os pecadores - respondeu Pio timidamente. - É dever de um papa demonstrar compaixão por todos.

- Deixareis que César Bórgia vos domine como dominou seu pai? - apostrofou-o furiosamente o outro.

Pio abanou a cabeça. Conhecia desde há algum tempo os acessos de cólera de Julião.

- Dei conforto ao duque porque sei que por vontade de Deus está destinado a mau fim. Os Franceses abandonaram-no e desceram em direcção a Nápoles. As tropas espanholas abandonaram-no para se juntarem às napolitanas contra os franceses. Está sozinho em Nepi com a sua família. E está doente.

- César? Doente? - A voz de Della Rovere era incrédula mas palpitante de esperança.

- Muito doente - precisou o bom Pio. - Pediu-nos que o deixássemos vir morrer em Roma e nós de boa vontade lhe concedemos essa permissão.

- Deus misericordioso!

Pio teve para ele um olhar de censura.

- Devemos mostrar-nos misericordiosos para com um homem que sofre. Não vejo na verdade que mal possa fazer. Recomeçou o seu avanço claudicante pelo corredor. - Loucura! - pôs-se a gritar Della Rovere, trémulo de cólera. - Não está a morrer! É um truque sujo! Vereis!

Quando Pio desapareceu ao longe sem ceder, voltou-se para seguir pelo caminho por onde viera. Atirou um murro poderoso a um busto atirando-o abaixo do seu pedestal. - César Bórgia. Em Roma! - rugiu com a voz contraída pela frustração.

Pio ofereceu o anel a César para o habitual beijo. - Disseram-me que estáveis gravemente doente - disse, mortificado, verificando que o duque estava em perfeita forma.

- Santidade, o regresso a Roma contribuiu muitíssimo para a minha convalescença graças também aos cuidados da minha família que me acompanhou.

Mas Pio continuava infeliz.

- Bem, sou apenas um homem e posso cometer erros - murmurou para consigo.

- Eu também estou preocupado com a vossa saúde, Santo Padre - apressou- se César a dizer cordialmente.

Pio levantou os ombros num gesto desesperado.

- Os médicos fizeram por nós o que podiam, mas já não podemos ajoelhar- nos diante de Deus para lhe agradecermos a nossa eleição.

- Espero ter tido aí uma boa parte - acentuou César. - É verdade, é verdade e nós não nos esquecemos. Mas rogamo-vos que não nos façais mais pedidos. O apoio que já vos demos não nos custou pouco - explicou Pio em tom defensivo. Depois, feito o sinal a César para que se aproximasse, disse-lhe em voz baixa: - O cardeal Della Rovere acredita que haveis tentado matá-lo.

César simulou espanto.

- Com que provas?

- Com as de um servo.

- Torturado. Desagrada-me que Vossa Santidade não queira ouvir os meus pedidos. Vim. - Fez uma pausa como que desorientado. - Mas colocarei Vossa Santidade em embaraço se oferecesse. . .

- Oferecer? - Pio estava em guarda, porém curioso. Oferecer o quê?

- Uma contribuição para as despesas na coroação de Vossa Santidade. Segundo parece a tesouraria está vazia.

- Só há dívidas - lamentou-se Pio, irritado. - Encontrámos todos os cofres vazios. Não ficou nada.

César abanou tristemente a cabeça.

- Meu pai tinha muitos inimigos.

- Mas era bom amigo de meu tio, Pio II. - De novo atraiu a si César para lhe falar em confidência. - César, não podemos permitir-nos à cerimónia da coroação. Que havemos de fazer? Temos necessidade de uma cerimónia, mesmo que tivesse de ser das mais simples. Mas os custos são elevadíssimos.

César inclinou-se em compassiva mágoa.

- Santidade, se não vos ofendeis, aceitai um empréstimo meu. Cem mil ducados. Mais, se tiverdes necessidade.

Pio sorriu muito aliviado.

- Sois um bom filho, César, como o foi vosso pai com nosso tio. Aceitaremos o vosso empréstimo. Deo gratias.

César inclinou-se de novo.

- Santidade, será para mim um imenso prazer. E para não vos embaraçar mais com a minha presença aqui, partirei para a Romanha. Tenho de reconquistar as cidades que os meus inimigos me arrebataram. Só tenho necessidade de um salvo-conduto e a vossa confirmação de capitão-general da Igreja.

- Capitão-general? - repetiu Pio sorrindo. - Será anunciado. por altura da minha coroação! Ide, meu filho, com a minha bênção. - Fez o sinal da Cruz por cima de César ajoelhado. E que Deus nos liberte dos nossos inimigos.

Júlio Orsini e João Paulo Baglioni, ambos armados até aos dentes, entraram pelo palácio de Della Rovere empurrando para o lado os criados aterrorizados. Já passava da meia-noite e Della Rovere preparava-se para se deitar. Surpreendido e consternado, lançou os olhos para a porta que se escancarava. Os dois homens entraram e imediatamente se ajoelharam.

- Eminência - disse Júlio Orsini agarrando a orla da sotaina do cardeal para a beijar. Dai-nos a absolvição! - exclamou Baglioni inclinando a cabeça num gesto melodramático. - Julgai-nos, Eminência, por uma acção que vai ser empreendida.

Della Rovere pousou o candelabro que tinha na mão e despediu os servidores.

- Esta é a vontade de Deus - disse com devoção. - Deixai-me com estes fidalgos. - Depois, saídos os fâmulos, que não deixaram de lançar olhares cépticos aos dois homens armados, perguntou: - Por que viestes até mim?

- Temos de matar César Bórgia - anunciou João Paulo.

- Esta noite - ecoou Júlio.

Della Rovere sorriu com indulgência.

- Esta sim, poderia ser vontade de Deus - observou estendendo a mão num gesto pastoral e que lhes pedia que se levantassem. - Mas não posso conceder absolvição a um gesto ainda não cumprido. . . Como será cumprido?

- Eu vim a Roma com homens armados - apressou-se a explicar João Paulo Baglioni.

- Com os nossos, os dos Orsini e os de João Paulo - começou Júlio febrilmente.

- São mais de mil - terminou Baglioni por ele.

- César está sozinho - comentou Della Rovere com satisfação -, com pouco mais de um punhado de homens. - Michelotto e as suas tropas partiram para a Romanha - acrescentou João Paulo.

Della Rovere pousou as mãos nos ombros dos dois capitães.

- Não posso dar-vos a minha bênção - disse. - Devereis procurar nas vossas almas motivos suficientemente válidos aos olhos de Deus.

- O assassínio do cardeal meu tio e de meu irmão Paulodisse Júlio Orsini com ódio.

- E o do meu camarada Vitelli - acrescentou João Paulo. Della Rovere inclinou a cabeça numa atiútude grave.

- Deus sabe que são motivos suficientes. - Fitou-os nos olhos. - Desta vez - acrescentou sério - não se devem cometer erros.

Gritando: Morte aos Bórgias! Morte aos judeus espanhóis! Júlio e João Paulo incitaram as suas tropas às portas do Vaticano. Nas suas costas, uma multidão de plebeus romanos, que tinham farejado sangue, fez-lhes eco. João Paulo ordenou aos guardas pontifícios que abrissem as portas.

Os gritos acordaram Godofredo, que se precipitou para César, que dormia com a rapariga grega.

- César, não os ouves? É uma multidão numerosa que pede a tua cabeça. Há também homens armados.

César sentou-se na cama, alerta. Saltou do leito e vestiu-se à pressa.

- Quantos são? - perguntou de repente.

- São os dos Orsini. Milhares.

César acordou Vasia puxando-lhe os cabelos.

- Acorda todos! Minha mãe! As crianças. Compreendeste? - Chamou: - Godofredo!

- Sim, César.

- Vamos levar cavalos da cavalariça. Pode acontecer que daquele lado haja menos gente. Aqui ninguém nos defenderá. Temos de fugir. - Afivelou aos flancos o cinto com a espada.

- Para onde vamos?

- Para Espoleto. Vamos ter com Michelotto se conseguirmos sair da cidade. - Aproximou-se dele. - Estás comigo?

- Não existe mais ninguém.

Godofredo fitou o irmão com as faces avermelhadas e olhos luminosos pela emoção e pelo orgulho.

- Tu e eu sozinhos - disse. - Juntos!

Os gritos da multidão que queria os Bórgias condenados à morte tornavam- se ensurdecedores. Os irmãos montaram a cavalo no terreiro das cavalariças e caminharam em direcção às portas, seguidos por um modesto destacamento de infantes.

- Fica junto de mim - gritou César a Godofredo. - Assim que as portas se abrirem, caímos-lhes em cima. Vai à doida para os dispersar, entendido? Abram! - ordenou depois à guarda.

Os soldados dos Bórgias correram as pesadas trancas de ferro e abriram os pesados batentes opondo imediata resistência à multidão que carregou para entrar.

- Agora! - berrou César.

César e Godofredo esporearam os cavalos e lançaram-se contra a multidão em tumulto enquanto os soldados saíam para travar batalha com os homens dos Orsini.

- Avante! Avante! - incitava César voltado para o irmão atirando espadeiradas para a direita e para a esquerda.

No entanto, o cavalo de Godofredo viu-se bloqueado mal saiu porta fora e César tendo-se apercebido disso voltou atrás para o socorrer. Ficaram assim ambos aprisionados na multidão a vibrar golpes desesperados numa floresta de braços estendidos para tentarem desmontá-los. Gritos de dor elevaram-se a cada golpe das suas espadas ensanguentadas. Na orla da multidão apareceu um destacamento da cavalaria dos Orsini atraídos pelo clamor. À frente vinham Júlio Orsini e João Paulo Baglioni.

- Está ali! César! - gritou Baglioni apontando a espada em frente.

César ouviu-o, levantou os olhos por um instante e viu que os seus adversários lhe bloqueavam o caminho.

- Para trás ! - gritou a Godofredo. - Para a porta ! Recuou até junto do portão, que estava fechado, e sem hesitar, saltou por cima dele, enquanto Baglioni e Orsini abriam espaço entre a multidão para o alcançarem. Também Godofredo tentou saltar, mas não chegou lá e ficou suspenso pelas mãos. Enquanto Júlio e João Paulo chegavam ao portão, César conseguiu por fim içar Godofredo para depois saltarem a salvo para o outro lado.

César ergueu-se do chão e sacudiu o pó do vestuário. - Estás ferido? - perguntou ao irmão, solícito, ajudando-o a levantar-se da terra.

Este abanou a cabeça.

- Já não escapamos mais, irmãozinho - anunciou depois com sombrio pesar, enquanto a multidão recomeçava a bater ao portão.

- Pedimos asilo - arquejou Godofredo. - Ao papa.

- Que imbecil! - murmurou César com raiva.

Depois encolheu os ombros.

- Mas não temos alternativa - disse, voltando-se seguido por Godofredo, e foi em corrida atravessando o terreiro em direcção ao palácio.

Certa agora de ter a presa na mão, a multidão no exterior uivava:

- Morte aos Bórgias!

Pio jazia em estado de semiconsciência assistido pelo médico e pelo seu camerlengo. Perturbado pela dor e pelos fármacos, não deu mostras de reconhecer César que se curvava para ele. Ouvia-se distintamente o clamor da população ao longe.

- Santo Padre - disse César, excitado.

- Estais a ouvi-lo? - murmurou Pio. Os meus inimigos estão às portas. Dominus illuminatio mea. Estamos rodeados por uma nuvem de glória - sussurrou o velho com um sorriso seráfico na face pálida.

César lançou um olhar impaciente ao médico.

- Senhor, a infecção espalhou-se. Administrei-lhe mandrágora para aliviar as suas dores - explicou este.

César tornou a voltar-se para o leito.

- Santo Padre! - gritou.

Finalmente Pio pareceu ouvi-lo.

- Sim, querido filho - murmurou.

- Confio-me e à minha família à vossa protecção. Refugiar-nos-emos no Castelo de Santo Ângelo. O meu empréstimo está à vossa disposição. se souberdes salvar-nos.

- Confio no Senhor. De quem devo ter medo? - perguntou Pio, enigmático.

César estava desorientado.

- Tenho de ter a certeza. Quem tem medo? Nenhum medo. Nenhum medo. Fechou depois os olhos e pareceu entregar-se a uma nuvem da sua imaginação.

- Está em perigo? - perguntou César ao médico.

- Tem de dormir. Tem necessidade de repouso. Tudo irá bem - tranquilizou-o o médico.

César levantou-se, animado, e voltou-se para o camerlengo:

- Ide às portas - intimou-o - e dizei à multidão que os aposentos dos Bórgias estão desertos. Fugiremos debaixo dos seus pés pelas catacumbas da basílica.

César mandou dizer a toda a família que se reunisse junto de um sarcófago aberto na cripta de São Pedro, da qual um lanço de escadas dava para uma passagem secreta. Godofredo desceu para dentro do túmulo, seguido por Vasia e Vannozza, que levava nos braços Rodrigo adormecido. João desceu atrás dele com uma macaquinha agarrada a um ombro. Hesitou, piscando os olhos no escuro ao fundo da escada.

- João. não terás medo? - perguntou César e a criança em resposta abanou a cabeça.

César levou-o pela mão acompanhando-o.

- Vamos. Temos de andar depressa. Em Santo Ângelo mostrar-te-ei o grande canhão dos bastiões.

César e Godofredo estavam nos bastiões de Santo Ângelo a olhar para oriente, na direcção da cidade, onde o horizonte começava a tingir-se com as cores da alvorada. De lá o tumulto das ruas de Roma chegava enfraquecido.

- Cansam-se pela manhã - observou César. Olhou o canhão que tinha ali na sua frente. - Aguentei esta fortaleza contra os Franceses. Como queres que tema aquele bando de maltrapilhos dos Orsini? - Depois voltou a olhar para o Vaticano. O tom da sua voz reanimou-se. - Depressa sairemos daqui. Iremos ter com Michelotto a Cesena! Foram leais. . . Tenho o Santo Padre no bolso e ele é a chave de tudo o mais. Era assim, é agora e sempre será.

Ouviu-se então um sombrio dobre de sino.

- Que aconteceu? - perguntou César alarmado.

- Acho que vem de Campidoglio - observou Godofredo. Depois, enquanto os dobres do sino se sucediam, os dois irmãos trocaram entre si um olhar cheio de consternação. Invadido pelo pânico, Godofredo agarrou o irmão por um braço.

- César ! A Paterina !

César atirou a cabeça para trás e trovejou para as estrelas, praguejando contra a pouca sorte.

- Não ! Aquele imbecil ! Logo agora é que tinha de morrer?

 

                   OU CÉSAR OU NADA

Um doce sol de Outubro ungia de reflexos dourados os bastiões de Santo Ângelo; uma azul bruma outonal envolvia a cidade tranquila e na distância soava o sino. João Bórgia estava a cavalo de uma grande bombarda e olhava César, o qual se encontrava entre as ameias a olhar a cidade.

- Se os Orsini voltarem - perguntou João - poderei disparar a bombarda? - César não lhe respondeu talvez porque não o tivesse ouvido, porém, a criança continuou: - Senhor, por que é que os vossos inimigos se foram embora?

- Para eleger um novo papa. - César voltou-se para olhar o sobrinho. - Combatem, entre eles, com tal encarniçamento, que já nem têm pólvora para mim. - Aproximou-se do canhão e afagou-lhe o cano. - Ouvi os canhões defenderem este castelo quando era ainda um menino. Tua mãe tinha medo...

- Minha mãe? - João estava perplexo.

César apercebeu-se de que falara de mais, levantou os olhos para o rapazinho e anuiu, sem acrescentar mais nada.

- Eu nunca a vi - confessou João. - Meu pai, o Santo Padre, disse-me que era muito bela.

- Sim - confirmou César. - Muito bela.

Voltou a contemplar a boca de fogo.

- E tinha medo - continuou João.

César concordou.

- Disse-lhe que havia de ser um soldado e que a protegeria! - Encontrou o olhar da criança. - João, não me arrebatarão aquilo que é meu - disse com orgulho. - Agora que quase tinha. bateu com o punho violentamente no fuste do canhão. - Deus é o inimigo que nos traiu. A morte é o jogo a que joga. Mas também o derrotarei. Farei o nosso nome imortal. Tu também serás soldado.

João concordou um tanto desagradado com a referência sacrilega a Deus.

- Sim, mas não acredito que Deus tenha de ser nosso inimigo. Não acredito que minha mãe dissesse uma coisa desse género. Por ela de boa vontade serei soldado. Tenho pena de não a ter conhecido.

No sorriso de César havia uma sombra de tristeza.

- Eu ficarei aborrecido se não vieres a conhecê-la. - declarou. Depois, tendo levantado os olhos, viu Godofredo que aparecera nos bastiões.

- Se não?. . . - perguntou-lhe João.

Mas César já se encaminhara na direcção de Godofredo.

- Onde ides, senhor?

- Encontrar o meu inimigo - respondeu César. - Não Deus, João, se a fortuna estiver do meu lado. - Apontou o terreiro. - O meu inmigo aqui em baixo, o cardeal Julião Della Rovere.

Julião Della Rovere esperava César no camarim do papa. Suspeitando de traição e em cólera pela expectativa, passeava irrequieto atirando-se ao cardeal Vera que lhe suportava estoicamente os ataques verbais.

- Haveis-me dito que estava disposto a ver-me! - gritou invadido pela ansiedade e pela cólera.

- É assim, Eminência - respondeu Vera pacientemente. - Está já com um atraso de uma hora! César Bórgia já não está em condições de temporizar comigo, agora! É um insulto e não tenho a intenção de o suportar.

Interrompeu-se porque César entrou acompanhado por Godofredo.

- Não estáveis aqui apostrofou-o de repente - à hora combinada, senhor.

César inclinou-se.

- Para mortificar o espírito - respondeu César escarnecendo-o friamente. - Estava impaciente por ver-vos e forcei-me a esperar.

- E acreditais que podeis ainda troçar de mim?! - exclamou Julião de dentes cerrados.

- E deveria estar impaciente? - perguntou César com calma. - Cada um de nós, Julião, tem um punhal na garganta do outro! - Levantou uma mão com os dedos estendidos. Aguentai quieta a mão, portanto. Tal como a minha.

Della Rovere a custo dominou a cólera.

- Senhor - disse forçando-se a um sorriso sem alegria -, falais bem. Há onze anos vosso pai enganou-me subtraindo-me a tríplice coroa. Creio agora que o Senhor se exprimiu claramente através da morte de Pio. Deseja que eu me sente no trono de Pedro e desta vez o papado será meu. - Onze votos - recordou-lhe César. - A vontade de Deus depende deles.

- Que se manifestou através da vontade dos homens. Estes votos são meus - recordou-lhe César com ênfase. Depois, voltando-se para Vera, continuou: - Os cardeais espanhóis ainda me são fiéis?

- A vós, senhor - respondeu Vera. Esses votos são meus. Por que havia de vos dar, Julião? Sabeis dizer- me? - Pela Romanha - explicou tranquilamente Della Rovere. Pelas cidades pontifícias que foram vossas, mas que caem agora uma a uma. Os governantes que haveis prendido voltam a Urbino, a Rimini. Talvez não estejais ao corrente - acrescentou com uma pausa de efeito -, mas ontem justamente João Sforza reconquistou a cidadela de Pesaro.

Houve um relâmpago de cólera no rosto do duque, pela humilhação que sofria.

joão Sforza!, pensou. Incapaz de conquistar minha irmã nua por esposa. . . Com esforço controlou-se.

Não devia trair-se, naquele momento, e com Della Rovere.

- Sim, é verdade, cada um de nós tem um punhal na garganta, Eminência. Muito bem. Onze votos, cardeal. Pela Romanha.

Uma indizível alegria se estampou no rosto aristocrático de Della Rovere. Finalmente chegara o momento do seu triunfo.

- Quando for papa! - exclamou, quase com gratidão, pela grande felicidade.

César concedeu-lhe um instante para saborear a sua vitória, depois recomeçou a expor as suas condições.

- Serei confirmado capitão-general da Igreja. Serei reconfirmado senhor de Cesena e Forli e de todas as cidades que os meus inimigos me tomaram. - Abriu os braços num gesto de amizade olhando Della Rovere bem de frente com um sorriso cativante. - Fomos inimigos, Julião. Pensai agora apenas em tudo aquilo que poderemos fazer juntos! - Desembainhou o punhal que tinha à cintura e atirou-o para a mesa que havia entre eles. - O meu punhal está aí. Quereis apertar-me a mão ?

Della Rovere hesitou um instante, depois decidiu-se e estendeu a mão:

- Seja feita a vontade de Deus.

César agarrou-lhe a mão com um grito de triunfo.

- E actuaremos de acordo ! Contra os nossos inimigos ! Julião respondeu-lhe com um sorriso glacial.

- Apertámos a mão para selar o nosso acordo, Michelotto - contou César. - Por que não hei-de acreditar nele?

Estava excitado, entusiasmado perante a perspectiva de voltar à acção. Estava debruçado com Michelotto sobre a mesa cheia de mapas no seu velho apartamento a que regressara depois da eleição de Julião Della Rovere ao pontificado com o nome de Júlio II. Michelotto encolheu os ombros, sem responder, com os olhos no mapa que César acabava de desenrolar.

- Tu levarás a artilharia passando por Arezzo - disse-lhe César. - A cidadela de Forli está segura por agora. São os castelões de Cesena que terão necessidade da nossa ajuda.

- Terei então de passar próximo de Florença - comentou Michelotto observando pensativo o mapa.

- Tens a autoridade do papa sobre os ombros. - Depois, vendo que Michelotto continuava céptico, prosseguiu com força: - Michelotto, ele sempre foi um homem de honra. Por que iria faltar à palavra comigo?

Michelotto carregou o sobrolho.

- Talvez porque haveis tentado matá-lo?

- Também tu tentaste matar-me uma vez!

- Mas então, senhor, era mais vantajoso para mim não o fazer.

- E eu sou vantajoso para ele! - César afastou-se da mesa e deteve-se junto de Vasia que estava a pôr um colar em frente do espelho. - Repito-te, Michelotto, que cumprirá os pactos. Tem necessidade de mim na Romanha contra Veneza. Ninguém mais na Itália é tão poderoso como eu, ninguém!

De repente, César agarrou o colar que Vasia tinha ao pescoço, obrigando brutalmente a rapariga a voltar-se com um puxão. O colar partiu-se e as pérolas rolaram pelo chão. Vasia abriu muito os olhos, espantada, antes de se ajoelhar para as apanhar. César enrugou a testa e não falou durante uns instantes.

- Passarás por Florença e eu te seguirei - continuou depois com um tom de ira na voz. - Pode acontecer que vá primeiro à corte de minha irmã, em Ferrara. Dona Lucrécia envia-nos mil e quinhentos homens. - Levantou- se e agarrou Michelotto pelos ombros. - Sua Santidade prometeu-nos um salvo-conduto. Logo, Michelotto, voltaremos a ver-nos. Em Cesena - concluiu sorrindo.

Michelotto não correspondeu ao sorriso. Fez um esboço de reverência e encaminhou-se para a porta.

- Ou no Inferno - murmurou. Depois enquanto saía, acrescentou: - Tenho a certeza de que Sua Santidade tem um salvo-conduto para o Inferno!

- Deu a sua palavra. - recomeçou César, mas a porta já se fechara nas costas de Michelotto e César agarrou então Vasia pelos cabelos e obrigou-a a comprimir a sua face contra uma coxa. - A mim. Deu-ma. Vê-lo-ei antes que diga missa! Não tenciono esperar.

César abriu espaço entre guardas e camerlengos que protestavam e entrou no apartamento do papa, onde Della Rovere se vestia assistido por alguns eclesiásticos.

- Quero vê-lo já.       gritou irritado.

Julião Della Rovere voltando-lhe as costas, disse simplesmente e com serena autoridade:    

- Estamos preparando-nos para o nosso sagrado ofício, senhor duque. . .

César interrompeu-o agitando uma carta para as suas costas!

- O salvo-conduto foi recusado. Florença impediu-me de passar. Havíeis jurado..

- Nós não vos impedimos - respondeu friamente Della Rovere. - São os Florentinos que vos detêm.

- Haveis-me traído! - gritou-lhe César. - Segundo os termos do nosso pacto, haveis jurado que me confirmaríeis no cargo de capitão-general da Santa Sé! A vossa palavra. - Basta! - Júlio II rodou nos tacões num esvoaçar da capa, mão levantada num gesto autoritário. Desceu do estrado e enfrentou o Valentino. - Com a nossa divina autoridade vos ordenamos que modereis a vossa língua! Escutai o que vos dizemos, senhor, porque haveis feito irrupção na comunhão entre mim e Deus. Haveis pedido a confirmação do vosso cargo e obtê-lo-eis, de acordo com o que pactuámos.

- Mas não o estais fazendo! - protestou César, exasperado.

Della Rovere ignorou-o.

- No instante em que vos submeterdes em obediência à Santa Igreja. Como esperaríeis vir a ser um paladino de outra maneira? Por isso, senhor, como penhor de tal obediência, ireis ceder-nos as cidadelas de Cesena e Forli.

- Nunca ! Não.

- Então acabamos - respondeu o papa com firmeza. Nada mais. Enquanto Deus não vos tiver punido por tanta arrogância.

Imperioso e real, virou-lhe as costas, seguido pelos padres assustados, deixando César para trás.

- Serpente e ministro do Inferno! - gritou-lhe o Valentino nas suas costas. - Mentiroso e hipócrita!

Tentou segui-lo, mas parou evitando por pouco a colisão com seu irmão que entrava naquele momento. Godofredo era acompanhado por um homem que parecia espanhol, em traje de viagem.

- César! - exclamou Godofredo.

De momento, César com o rosto contraído pela fúria quase não reparou neles.

- Traiu-me! - gritou - denunciá-lo-ei. Também na basílica. - Viu depois as suas expressões e interrompeu-se. Dom Jaime ! - exclamou olhando o companheiro de Godofredo. Depois, bruscamente, perguntou: - Que há? - Senhor duque. - balbuciou, mas um tremor na voz impediu-o de prosseguir o seu discurso.

Godofredo falou por ele.

- Vem de Arezzo. Michelotto foi interceptado.

Dom Jaime reencontrou o uso da palavra.

- Por um forte exército, senhor, de Florença.

- Michelotto?

- Apanharam a artilharia - disse-lhe Dom Jaime. - Dom Miguel foi preso.

César empalideceu como um morto. Ficou por uns instantes petrificado. Depois trovejou:

- Debaixo de juramento de Deus. . . traição!

Empurrou-os para o lado para sair, mas o passo foi-lhe barrado pelos guardas.

- Deixai-me passar! - gritou.

Os homens, impávidos, não responderam. Para lá das alabardas cruzadas, César fitou nos olhos o comandante da guarda pontifícia. Compreendeu então a gravidade da situação. - Portanto - murmurou -, Michelotto e eu também. dois pássaros na gaiola.

César foi acompanhado debaixo de escolta aos aposentos que tinham sido de Lucrécia. Com sombria ironia, sem dúvida intencional por parte do papa, ficou detido justamente na própria sala da torre Bórgia onde Afonso de Biselli fora morto por ordem sua, apenas três anos antes. Ali, depois da meia-noite, o foi encontrar Vannozza.

- César. - Estava assustada. - Meteram-te nesta sala? - À luz da única vela não distinguia a expressão do filho. - Assim chega - respondeu ele resoluto. - Recebeste a minha carta? - Ela anuiu e ele lançou uma mirada desconfiada à porta. - Fala em voz baixa - sugeriu-lhe.

- Fiz como me disseste - sussurrou-lhe ela. - Os registos da minha casa de Roma. Passei-os para a Igreja de Santa Maria.

Dela tenho o usufruto para toda a vida, porém, ele não ousará derrubar a igreja. Os cofres para Lucrécia? Dois carros cheios para Ferrara. Rogamos a Deus que lhe cheguem sem empecilhos. Há ainda o ouro depositado pelos banqueiros de Génova.         Trezentos mil ducados. Teu pai deu-lhes esse destino para uma eventualidade como esta, mas na altura nunca teria imaginado. . . - Vannozza interrompeu-se dominada pelo choro.       

César apertou-lhe as mãos para a tranquilizar.

- Nada está perdido - consolou-a. - Também agora poderei recuperar a liberdade se lhe ceder Cesena e Forli. Mas não o farei!

- Que farás, então? - Vannozza olhou-o, perplexa.

- Enganá-lo-ei como ele fez comigo - respondeu César.

Depois conduziu-a ao leito. - Vês como durmo aqui? Com a espada ao lado... Julião mentiu-me, mas vai pagar. Eu recuperarei a minha liberdade e nada lhe darei em troca. - Inclinou-se e pegou na espada, mostrando-lha. - Lembras-te desta?

Vannozza anuiu.

- Mandaste-a fazer quando foste para França.

César contemplou a lâmina, lendo-lhe em voz alta a inscrição como que hipnotizado.

- Aut Caesar aut nihil. ccOu César ou nada. Fugirei de Roma. Aliar-me-ei com os Venezianos ou com o Diabo! Mas vencerei !

Ficou em silêncio a olhar a espada, o seu símbolo. Vannozza interrompeu os seus pensamentos com uma interrogação de ordem prática que tinha no coração.

- Godofredo? E as crianças?

- Fugiram para Nápoles - respondeu-lhe César laconicamente como se o destino deles fosse pouco importante comparado com o seu. Foi à janela para olhar a escura noite de Inverno. Mandei uma mensagem a Consalvo de Córdova. É um bom soldado, um verdadeiro espanhol. Se me recebesse. - Ouviu-se um barulho fora. Vannozza levantou a mão em sinal de aviso. César lançou-lhe uma breve mirada. - Estão a render a guarda. - Tornou depois a voltar-se para a janela, a perscrutar as trevas como se visse despontar a alvorada. - Tenho um plano - disse à mãe. - Nada está ainda perdido. Lembras-te que sala é esta. - Voltou-se para a olhar. Ela abanou a cabeça. - A de Afonso de Biselli, quando casou com Lucrécia.

Vannozza soltou um pequeno grito.

- Nesta sala? - murmurou.

César anuiu.

- Agora compreendes. Prenderam-me aqui num belo lugar. Na sala em que Afonso morreu.

Vannozza persignou-se.

- Virgo Maria.

- Lucrécia perdoou-me - murmurou o duque submissamente. - Ainda confia em mim. E eu nela. Escrevi-lhe acerca dos carros. E dos meus projectos. Darei a Julião aquilo que me pede, as cidadelas de Cesena e Forli. Soltar-me-á como prometeu e eu embarcarei de Ósúa para Nápoles antes de Sua Santidade se aperceber de que foi enganado. Os castelões têm ordens secretas para não cederem as fortalezas porque a cedência me foi arrancada pela força. - Sorriu à mãe satisfeito com a sua astúcia. - Gostaria de ver a cara de Julião, quando se aperceber disto. Mas nessa altura estarei ao largo, em rota para Nápoles.

O plano de César teve o êxito por ele esperado. Ainda que os navios prometidos por Nápoles não pudessem levantar ferro para o irem buscar por causa de ventos contrários, César fugiu de Ósúa acompanhado por Dom jaime a bordo de um barco a remos. Pela Primavera chegou a Nápoles e entrou a cavalo no pátio da casa de Godofredo com o coração cheio de esperança.

Foi recebido por Godofredo e pelos filhos de Lucrécia, Rodrigo e João.

- Senhor! - exclamou João quando César se inclinou para o abraçar. - Haveis feito pouco do papa?

César sorriu.

- Comprei Cesena. . . por seis mil ducados. A fortaleza de Forli ainda é minha.

Tirou dois ducados da bolsa presa ao cinto e deu um a cada um dos rapazes.

- Agora poderei ser realmente soldado ! - exclamou Rodrigo, feliz.

- E combater pelo nome dos Bórgias - disse-lhe César.

Mal as crianças partiram a correr para mostrar ao seu tutor as moedas recebidas em oferta, César voltou-se para Godofredo.

- Falaste ao vice-rei Consalvo de Córdova? - Estava excitado e nervoso e passeava pelo átrio como se fosse incapaz de conter as suas energias. - Demonstrou ser valoroso, certamente o melhor soldado sob o estandarte de Espanha. Não há outro homem no mundo pelo qual eu combateria da melhor vontade. - Parou voltando-se de repente para Godofredo. - Eu posso dar-lhe ajuda. E ele pode salvar-me. - Notou que Godofredo hesitava. - Falaste-lhe, portanto.

E ele recusou - acrescentou e a sua voz baixou devido a um certo desapontamento.   

Godofredo abanou a cabeça.

- E então que houve? - perguntou César secamente. - Estás aí a agitar-te como um berbere. Que disse de mim Consalvo?

- Não é por ti...

- Que é então?

- E Sancha.

César ficou espantado.     

- Sancha?

- Veio para Nápoles com Próspero Colonna.

Que. . . Deixou Próspero. - Godofredo agarrou César por um braço e falou-lhe depressa e com ódio, procurando o seu apoio.

- Fui humilhado. Estão todos em Nápoles. Quero que vás ter com Sancha para lhe dizer. . .

César abanou a cabeça, impaciente.

- É uma puta. Para que estamos para aqui a falar dela. Pelo que me diz respeito pode entregar-se aos maltrapilhos de Nápoles num carro de estrume. - Depois agarrou o irmão pelos ombros, como se quisesse sacudi-lo. - Tenho de falar com Consalvo. Que diabo vem fazer Sancha em tudo isto?

- É amante dele - respondeu Godofredo.

- E esta? - César largou-o e voltou-se para outro lado enrugando a testa.

- Sim, é assim - continuou Godofredo. - Deu-lhe aposentos em Castelo Novo. Como sou marido dela, Consalvo não me quer junto de si. César, peço-te - suplicou-lhe -, se tu quisesses falar-lhe.

César pareceu reencontrar a confiança. Sorriu.

- Não temas, irmãozinho. Falar-lhe-ei. E bem depressa. Continua muito bela?

Sancha estava deitada elegantemente vestida sobre um divã coberto por sedas orientais. Por baixo das delicadas aberturas do mármore branco das janelas cintilava o sol de Maio nas águas do golfo de Nápoles e os reflexos ornavam-lhe a pele quente. O mais vago dos sorrisos brincava nos seus lábios sensuais, enquanto observava César que descascava habilmente um pêssego com uma faca de prata.

- César Bórgia - murmurou com a sua voz quente. Pegou no pêssego que ele lhe oferecia e lambeu uma gota do sumo com um movimento felino da língua, antes de muito lentamente lhe dar uma dentada. - Estou contente por me teres vindo procurar. Passou-se tanto tempo.

- Muito - confirmou ele com um sorriso.

- Mas tu andavas lá fora - continuou ela tranquila. E eu estava na prisão.

- Por culpa de meu pai - comentou ele, comovido. - Que homem terrível.

- Sim, era. Mesmo terrível - concordou Sancha, imperturbável. Indicou a bandeja da fruta com os olhos. César pegou noutro pêssego para lho descascar. - Consalvo arranjou-mos explicou ela. - Adoro pêssegos. É divertido que tivéssemos de nos encontrar em Nápoles. Quantas recordações. . .

Fez uma pausa. César fitou-a, cauteloso.

- Que recordas?

- Que Nápoles foi a causa de tudo o que se passou entre nós.

Fez outra pausa.

César continuou a vigiá-la.

- Aludes à morte de teu irmão - disse-lhe.

- O homicídio de Afonso - corrigiu-o ela. - Sim. E outras coisas.

A face de César não traiu emoção alguma.

- Não foi por Nápoles que matei meu irmão - disse-lhe depois, conciliador. - Foi a mentira que me disseste que originou a morte de João.

Sancha suspirou.

- Estava muito enraivecida com João. E também contigo. Eu não pensava que fosse uma mentira. Pensava que pudesse ser verdade.

César mostrou-se benévolo.

- Perdoar-te-ei pela parte que tiveste na morte de João se me perdoares pela de Afonso. Existem coisas que ambos lamentamos. Estás disposta a isso?

Os olhos de Sancha dilataram-se um pouco, depois assumiram de novo a sua normal expressão, um pouco enfastiada.

- Curioso - disse ela. Passou a mão pelo cabelo de César como que para se certificar de que estivesse realmente ali, em carne e osso. - Aí está o que eu adoro em ti, César. Para ti é tudo sempre tão simples. És como um rapazinho. E os jogos que faziam, tu, João e Lucrécia, não eram mais que jogos de crianças. Só que os meninos maus habitualmente correm para a cama. Que no teu caso não.

Interrompeu-se enquanto ele lhe oferecia uma rodela de pêssego. Quando recomeçou, novamente mudou de tom. Começou a desatar o corpete e falou-lhe com um timbre indolente e sensual.

- Como está apertado! - lamentou-se. - Porque queria agradar-te. Agora comi demasiado. - Puxou os laços de seda com os longos dedos, expondo aos seus olhares a pele por baixo, até à cintura. - Gostaste da salada de mar? - César anuiu. Tinha ainda a rodela de pêssego entre os dedos. - Consalvo arranjou-me o melhor cozinheiro de Nápoles. E com as lulas.

Encostou-se comodamente às almofadas, seio nu oferecido aos seus olhos. - Na verdade nada mais há que se possa desejar, não achas?

César teve um instante de hesitação.

- Mas há mais qualquer coisa.

- Eu sei. Querias que falasse a teu favor a Consalvo.

- Sim. - Depois, temendo que se tivesse exposto demasiado depressa acrescentou: - Quer dizer.

Sancha franziu as sobrancelhas numa expressão maliciosa.

- E fazer amor comigo, naturalmente. - Agarrou-lhe a mão que ia tocar-lhe no peito e fê-la parar. - Mas há Consalvo.

- Consalvo que vá para o Diabo.

Sancha sorriu com uma expressão de zombeteira censura.

- Rapaz impulsivo e generoso. Mas temos de crescer. E visto que não sabes portar-te como adulto, fá-lo-ei eu. Depois, com muita graça, aceitou por fim a rodela de pêssego, comendo directamente dos dedos de César. - Portanto, recomendarei a Consalvo que te veja. E que seja clemente contigo. E em troca. tu farás qualquer coisa por mim.

César começou a sentir-se pouco à vontade.

- Não me perguntas o que é? - inquiriu Sancha.

- Que devo fazer por ti? - replicou César.

- Dar-me um filho.

- Não !

Ela riu para a sua face perplexa.

- Não dessa maneira. Já nos conhecemos até demasiadamente bem. O filho que quero é o rapazinho que trouxeste para Nápoles. O filho de Afonso.

- Rodrigo?

Sancha anuiu.

- É um aragonês, por isso é justo que esteja comigo. João é um Bórgia. - Sorriu maliciosamente. - Direi que é impossível ser mais Bórgia do que João. . . - Depois, vendo que ele parecia prestes a explodir, apressou-se a dizer: - De acordo, não falaremos nisso por amor à querida Lucrécia. Mas Rodrigo pertence-me. Dar-mo-ás?

César concordou. Sancha perscrutou por baixo das pálpebras pesadas.

- Sempre desejei um filho - disse. - Poderia ter sido teu. Depois a sua voz fez-se acariciadora. - Tinhas realmente muita vontade de fazer amor comigo? Como é triste a vida. Houve um momento em que te teria dado o meu amor e te teria permitido amar-me. Agora não posso.

Mas César, concentrado nos seus objectivos e nas suas preocupações, não se interessava por aquele género de recriminações. Debruçou-se para ela.

- Fala a Consalvo - exortou-a. - Creio que o poderei servir e ao rei de Espanha. Tenho um ponto de apoio na Romanha. Só tenho necessidade dos navios e dos canhões. Por mim encontrarei os homens. Sancha, tu tens de lho dizer por tudo aquilo que houve entre nós. . . - Ajoelhou-se diante dela.

- Sim - respondeu Sancha lentamente e com clareza. Por tudo isso. Dou-te a minha palavra. - César levantou os olhos e examinou-lhe o rosto procurando interpretar a expressão dos seus olhos. - Sim - repetiu ela -, por tudo aquilo que se passou. Consalvo ver-te-á.

Consalvo de Córdova, vice-rei nomeado por Fernando de Espanha, conhecido como EI Gran Capitan pelas suas glórias militares, levantou os olhos para César da mesa em que estava a escrever. Os seus traços secos e atraentes não traíam emoção alguma.

- A princesa Sancha falou elogiosamente de vós. É uma nobre mulher.

César inclinou-se com um sorriso cortês.         

- E bela. O príncipe seu marido pede-me que o recomende para que o aceiteis ao vosso serviço.

Consalvo pareceu ficar ligeiramente surpreendido.

- E não se sentiria insultado?

- A vossa relação com sua mulher não o entristece realmente - tranquilizou-o César. - Preocupa-se apenas em vê-la feliz.

- Compreendo. Quase estou grato a Vossa Excelência. - Consalvo lançou uma mirada ao papel que tinha na mão. - No que diz respeito a esta carta. . . Dos cidadãos de Pisa. - César pôs-se de pé e começou a caminhar. - Voltam-se para mim para que os liberte da opressão dos Florentinos. Tenho necessidade de navios. Preciso de artilharia. E se vencer. . . - Voltou-se para olhar o vice-rei. - Pisa terá necessidade de um governador.

Consalvo sustentou o seu olhar.

- Vós? - perguntou serenamente.

- Sou senhor da Romanha. - César voltou a sentar-se. - Ambos conquistámos Nápoles, Consalvo. Eu tomei-a ao seu rei e vós aos Franceses. Agora vós a governais em nome de Fernando de Espanha, como vice-rei, EI Gran Capitan, o mais valoroso dos soldados. Que tendes de verdadeiramente vosso?

- Não nasci prímcipe.

- Então não servis um. Apenas para vosso benefício. Eu nunca servi homem algum, nem sequer um soberano, por outros motivos. Servir-vos-ei, Consalvo, se me ajudardes. E far-vos-ei senhor de Pisa. - Fitou-o nos olhos. - Que me dizeis?

Consalvo não respondeu directamente. Levantou-se e caminhou até à janela.

- É uma empresa que se revelará dispendiosa - foi tudo quanto disse.

- Tenho dinheiro - explicou César. - E encontrarei homens. Três mil.

O vice-rei continuou à janela, de costas voltadas para César.

- Haveis pedido navios e artilharia. - César anuiu. - Para quando? - quis saber o outro.

- Para daqui a um mês. Oito navios bastarão. Oito bastarão. E canhões. Tende-os em abundância.

Levantou-se, atravessou a sala e parou ao lado do vice-rei. Em nome do Diabo, Consalvo! - exclamou. - Não me haveis feito vir a Nápoles para contemplar a paisagem. Esperei muito. Falai !

Consalvo voltou-se para o olhar. A princípio hesitou, como se a decisão que estava para tomar se lhe tornasse penosa.

- Vinde ter comigo quando estiverdes pronto - disse fimalmente. - Dentro de um mês.

César agarrou-lhe a mão, rosto radioso.

- Um mês, então, a contar de hoje.

Fiel à promessa, César apresentou-se no palácio do vice-rei, o Castelo Novo, no dia marcado, para saudar Consalvo na véspera da sua partida para Pisa. Tudo estava pronto; no porto esperavam os navios postos à sua disposição, nos quais tinham sido embarcados os canhões; na manhã seguinte embarcaria a cavalaria e a infantaria de César. Entusiasmado pela perspectiva da acção depois de longos meses de inactividade, César entrou com confiança na sala do vice-rei. Ficou surpreendido por encontrá-la deserta. Lançou uma mirada interrogativa a um dos oficiais de Consalvo que o acompanhavam.

- Largamos amanhã de manhã. O vice-rei pediu-me que passasse por aqui para o saudar antes de embarcar. Está na hora marcada. Faltam dois dias para que acabe o mês, de acordo.

- O vice-rei desculpa-se. Se tiverdes a paciência de esperar. . . - disse gentilmente o oficial.

- Não esperaria por ninguém senão por ele – respondeu Valentino. - Mas o vice-rei é um soldado de honra. Disse que estaria aqui e não faltaria à sua palavra. - Mas o oficial não se mexeu. - Temeis que eu roube as pratas? - apostrofou-o César com raiva.

De repente o medo atenazou-o. Olhou rapidamente em volta levando a mão à espada e farejando a cilada. - Não, não esperarei mais - disse secamente dirigindo-se para a porta.

Mas justamente naquele instante entrou Próspero

Colonna. César recuou, surpreendido.

- Próspero. . . que fazes aqui!

- Sancha traiu-te.    

Próspero não respondeu. Fez um sinal com a cabeça. Seis homens armados apareceram no limiar da porta. César soltou um grito de espanto:

- Santa Maria! Só comigo Consalvo foi desleal! - Empunhou a pistola e avançou ameaçador: - Deixai-me passar!          

- A espada - ordenou Próspero laconicamente.

Os soldados imobilizaram César, desarmaram-no e empurraram-no contra a parede.

- Vais matar-me? - gritou César a Próspero.    

- Não. . . mas acerto as contas contigo, César Bórgia. Devíamos encontrar-nos. Lembras-te? Nas vésperas, às portas de Roma - respondeu-lhe ele.

- Tens ordens de Consalvo? - perguntou César, aindá incrédulo, quando Sancha apareceu à entrada.

Ela foi ao seu encontro com passos graciosos, parou na frente dele e falou-lhe com voz acariciante:

- César Bórgia, que mataste meu irmão. Obrigada pelo seu filho.

Com delicadeza e cuidado cuspiu-lhe na cara.

César estava deitado e febril num enxergão na cela chamada forno por baixo dos telhados de chumbo de Castelo Novo, um lugar estudado propositadamente para garantir a máxima segurança, numa ilhota rochosa junto do litoral, e para tornar a sobrevivência particularmente difícil aos prisioneiros importantes. Estava-se no rigor do Verão e o calor era mortal. Vasia, vestida com uma simples tanga de linho, enxugava o corpo seminu de César. Também ela escorria suor. César estava quase em delírio, sacudia a cabeça e gemia.

- Não confies em ninguém - sussurrou ele entre lábios gretados pela febre. - Tinha dado a sua palavra. Um homem de honra. . . - Depois olhou Vasia, reconheceu-a e foi invadido pelo pânico. - Esta cela. é o forno. Por que não me tiram daqui? Não me podem ter aqui. Não sobreviverei a mais um dia! - Com cansaço pôs-se de pé agarrando a rapariga por um pulso. - Tinha prometido. . . se tivesse cedido Forli. Eu dei a fortaleza ao papa. Que mais é meu? Mentem! Mentem. . . para me torturarem! - Torceu repentinamente o braço à rapariga, vergando-o brutalmente para trás das costas. Vasia soltou um grito de dor. - Que te ouçam gritar. As tuas lágrimas são sinceras. Nada mais resta! - Depois apertou-a contra si com violência e beijou-lhe os cabelos e a face, na tentativa desesperada de anular assim os horrores do presente. - Vasia. não vão apanhar-te. Apenas me matarão. me acusarão de crimes. Mil assassínios. talvez. Mas eu daria o teu corpo às chamas pela liberdade. E quem não trairia. - Largou-a, enquanto na sua face aparecia uma expressão de terror. - Michelotto. - murmurou.

Quase nu, usava apenas uma tanga, Michelotto jazia numa cela de Santo Ângelo. Também ele suava, mas não de calor, pois que os subterrâneos da prisão eram gelados. Michelotto suava pela dor na mão que lhe era lenta e eficazmente esmagada numa prensa pelo torturador cujo trabalho era dirigido pessoalmente pelo pontífice. Julião Della Rovere estava ansioso por ouvir da boca do homem que fora o braço direito de César Bórgia todos os seus segredos, a fim de que este traísse fimalmente o seu patrão.

- Chega! - exclamou o papa indicando ao torturador que afrouxasse a pressão. Curvou-se para Michelotto. - Filhodisse-lhe com doçura -, ouves-me? Reconheces a minha face?

- Sim, Santo Padre - ofegou Michelotto entre os lábios distorcidos.

- A morte de Afonso de Biselli. Tu estavas presente. Em breve verás Deus, face a face. Michelotto, responde-me: Quem to ordenou? - Indicou ao torturador que recomeçasse a esmagar. Michelotto debateu-se na dor, enquanto Della Rovere insistia desapiedadamente. - Quem te ordenou que matasses o duque? Jovem ainda, sem absolvição. - Michelotto deixou escapar um grito. - Falarás? - perguntou-lhe o papa e, quando a sua vítima anuiu, fez sinal ao torturador para parar.

- Santo Padre! - A voz de Michelotto estava reduzida a um rouco sussurro. - Falarei. perante Deus. o homem que deu ordem era um criminoso. sem igual. desde o começo do mundo. - Júlio II, na avidez de ouvir o que Michelotto dizia inclinou-se até roçar por ele a face. - O papa - disse então Michelotto -. Foi o Santo Padre, o Santo Padre. Rogamos a Deus. que arda no Inferno.

O rosto de Julião Della Rovere ensombreceu de desilusão. Ordenou ao seu homem que recomeçasse a esmagar, mas, olhando o espanhol, compreendeu que tinha perdido. Os segredos de César Bórgia ficariam encerrados naquele corpo forte e corajoso.

César ergueu os olhos ansiosos para o barulho da chave que rodava na fechadura da cela. Entrou Próspero Colonna.

- Vim por tua causa - disse-lhe bruscamente. - Vem comigo.

César levantou-se da cama desconfiado.

- Restituís-me a liberdade?

Próspero sacudiu a cabeça.

- Então porquê? - Depois, enquanto começava a vestir-se, com dores e cansado, disse com orgulho: - Não, não quero saber. Seria uma mentira.

Próspero considerou o insulto com um encolher de ombros.

- Largarás comigo para Villanueva del Grao.

Um fraco raio de esperança iluminou os olhos de César.

- Em Espanha? O rei Fernando poderia aproveitar-me. Poderia ser uma arma contra o papa. - Sentou-se novamente no seu enxergão para calçar as botas. - Podes dizer a Consalvo que não lhe guardo rancor. Se vou para Espanha, agiu por ordem do rei. Fernando tem necessidade que o papa reconheça os seus direitos sobre Nápoles. E o papa quer a minha vida. Levantou-se. - O jogo é jogado segundo as regras ditadas por mim. A honra é uma cagada espanhola. Se disso me tivesse lembrado não teria perdido. - Afivelou o cinturão e aproximou-se de Próspero que esperava junto da saída. - Quem posso ver antes da partida? O meu irmãozinho?

- O príncipe Godofredo entrou ao serviço do senhor Consalvo.

- E prosperará - disse César com desprezo. - Como um cagalhão espanhol.

Vasia pusera-se timidamente a seu lado, pronta a partir com ele. Mas Próspero sacudiu a cabeça, com expressão resoluta.

- Irás para Espanha sozinho - disse a César. - Irá o teu pajem contigo.

César olhou Vasia.

- Espera. Voltarei - disse-lhe calmamente e saiu depois sem se voltar para a olhar.

Próspero saiu atrás dele batendo com a porta na cara de Vasia. No corredor ouviram os seus gritos desesperados e o som dos punhos que batiam na madeira. César olhava a direito na sua frente, a cara virada para o futuro. Ia regressar à terra dos seus antepassados.

Em Espanha César foi aprisionado apenas com o pajem Juanito por companhia no alto torreão chamado Torre de Homenajen, na Fortaleza de La Mota, em Medina del Campo, nos planaltos centrais de Castela. Aqui passava o tempo a observar o voo dos falcões e a escrever cartas a Lucrécia para que intercedesse por ele junto do rei Fernando.

Sentada no seu quarto de Ferrara, Lucrécia tinha a carta nas mãos. César voltava-se para ela e só para ela, em busca de auxílio. E ela sentia-se no dever de tentar fazer qualquer coisa. Bastaria que seu marido Afonso não fosse tão hostil a ambos. Para ele não eram mais que Bórgias. Ouviu os passos do marido que entrava e levantou os olhos para o ver no espelho que tinha em frente. Afonso parou atrás dela com um candelabro na mão. Por um instante ficaram a olhar-se, depois Lucrécia perguntou submissamente:

- Vindes para o leito, meu senhor?

Afonso anuiu, enquanto o seu olhar caía sobre a missiva que Lucrécia tinha na mão. Ela lançou-lhe uma mirada ansiosa.

- Dareis agora uma resposta mais piedosa às minhas súplicas. Tem mesmo de morrer na prisão?

- Lucrécia, nada mais há que eu possa fazer - respondeu-lhe Afonso traindo a irritação na voz.

- Escrevei ao rei de Espanha. É isto que pede.

- O rei não me ouviria - disse Afonso friamente. - Tem César preso como se fosse um cão raivoso e ameaça o papa com a sua liberdade. Se César fosse libertado. . .

Lucrécia levantou-se bruscamente e dirigiu-se para a porta. Afonso agarrou-a por um braço e puxou-a.

- Deixai-me passar, meu senhor. - A voz de Lucrécia soou não menos gelada que a dele. - Não vos darei acesso ao meu leito esta noite. Não haveis mostrado nenhuma bondade de alma.

- Não foi por bondade de alma que vim - recordou-lhe Afonso. - Essa a haveis tido de outros. E também os beijos não vos faltam Não lhe largou o braço, enquanto Lucrécia procurava separar-se dele. - Quando me derdes um filho, encontrar-me-eis menos exigente.

- Gerei um filho! - exclamou Lucrécia. - Mas não vosso! - Libertou o braço, carrancuda. - Como quereis que vos dê um filho sabendo o que me negais?

Afonso respondeu-lhe em tom mais sereno:

- Rodrigo não pode vir até vós em Ferrara. Pertence à casa de Aragão. Mas em Nápoles existe uma outra criança. - Lucrécia olhava-o, espantada. - Se a sua descendência pudesse ser provada. . . - prosseguiu ele.

- Tenho os documentos. Sob sigilo papal, meu pai reconheceu João como seu filho. Seu e de uma mulher nobre romana.

- Logo, tendes a prova de que. é vosso irmão?

Lucrécia fitou-o nos olhos.

- Sim, certamente. - De novo meiga, moveu-se para ele. Meu senhor. se condescendêsseis.

- Não há razão para que me oponha. A não ser que levanteis oposição aos meus desejos.

Lucrécia encaminhou-se para o leito.

- Pode ser - disse - que me tenha negado a vós, no coração, no passado. - Voltou-se para o olhar. - Mas agora. Afonso aproximou-se dela. - Mesmo que de nada sirva. prosseguiu ela - podeis escrever ao rei de Espanha. Está na prisão há mais de um ano. Pobre César. - Estendeu a mão e roçou-a pelo roupão do marido com um sorrisinho. - Pobre cão raivoso.

César estava à janela do seu quarto no alto da Torre de Homenaje a contemplar as planícies varridas pelo vento, na direcção sul, a sonhar com a Itália e a liberdade. Entretanto alimentava distraidamente um falcão empoleirado no pulso com pedacinhos de carne. O seu pajem, Juanito, sentado à mesa perto dele, levantou a cabeça numa expressão de surpresa ao ouvir barulho de passos que subiam a escada de pedra até ao alto da torre. Entrou um sacerdote acompanhado por um guarda. O padre fez uma meia reverência a César, que não se voltou.

- Senhor - disse o padre, respeitoso, ao guarda -, deixai-me com Sua Excelência.

O soldado retirou-se e o padre avançou para se apresentar.

- Chamo-me Dom Diego Ibánez. O governador da Mota concedeu gentilmente a Vossa Excelência que pudesse contar com os serviços de um capelão. Por tal razão vim apresentar-me.

César continuava a olhar para fora da janela sem se dignar conceder ao padre um olhar.

- Deixai-nos sós - disse com desprezo -, a não ser que tenhais asas.

- Sou apenas um padre, senhor, não um anjo. - Dom Diego aproximou-se dele lançando ainda uma mirada desconfiada a Juanito. - Todavia, se pudéssemos conferenciar em privado.

Qualquer coisa na voz do sacerdote levou César a voltar-se e a estudá-lo com um certo interesse.

- Juanito, que estás a fazer? - perguntou.

Juanito tinha qualquer coisa entre o indicador e o polegar por cima da chama de uma vela acesa.

- Queimo piolhos, senhor.

- Como almas atormentadas! - exclamou César com raiva. - Não me confessarei. Por uma hora de liberdade enforcarei cem padres.

Dom Diego sorriu abertamente.

- Ah, Excelência - ripostou -, vem mesmo a propósito que eu tenha trazido comigo a corda! - E levantou a sotaina para lhe mostrar a corda que tinha enrolada em volta do corpo. Perante os olhos estupefactos de César e Juanito, continuou: Vim da parte do meu amo, o conde de Benavente. Houve uma troca de cartas entre ele e vossa irmã.

César deu um passo em frente e agarrou-o por um braço.

- Dona Lucrécia.

Dom Diego começou a desenrolar a corda do corpo enquanto falava:

- Daqui a três dias, pela lua nova, esperarei para lá do fosso com o vosso oficial Dom Jaime Requerenz. Teremos cavalos. Basta apenas que Vossa Excelência desça desta janela sem que os guardas acordem. Dom Jaime e eu vos acompanharemos à costa. Dali esperamos poder chegar ao reino de Navarra.

- Para fomentar uma rebelião contra a casa de Aragãodisse César. - Segundo o desejo do teu patrão.

- A liberdade de Castela, senhor. Se vos puserdes ao serviço.

- Dom Diego, estou pronto a combater por qualquer piolho nos cabelos de Juanito. - Agarrou o pajem por uma orelha. - Para preparar um exército. - Largou o rapaz e voltou-se para a janela para esconder a loucura que tinha nos olhos. Três dias, três noites, por que razão temos de esperar tanto?      !

Três dias depois, o guarda, que dormia no banco fora da cela de César foi acordado pelos gritos que vinham de dentro. Manobrando febrilmente a chave, abriu a porta e viu um corpo que se debatia por baixo do cobertor da cama. Dali vinha abafada a voz do rapaz:      

- Senhor. Não! Não quero.. largai-me! Não quero. . .   !

O guarda precipitou-se para a cama e arrancou o cobertor por baixo do qual só encontrou Juanito. Naquele momento César saltou de trás da porta e mergulhou a lâmina do punhal nas costas do carcereiro. Enquanto Juanito recolhia a tocha caída da mão do guarda, César ajoelhou-se e lançou-se ao corpo ferido com cega loucura apunhalando-o repetidamente.

- Senhor! Está morto! - disse Juanito assustado.

César ergueu a cabeça, como que chamado de repente à realidade. Aos seus olhos voltou a luz da razão. Pôs-se lentamente de pé e foi à janela. Dois dos varões tinham já sido tirados e a corda fora solidamente atada ao terceiro. César apanhou o rolo de corda do chão e atirou-a para lá do peitoril.

Tirou depois o archote da mão do pajem e ordenou-lhe que descesse primeiro.

- Vi o sinal - disse. - Vai agora. Atravessa o fosso a nado. Eu sigo-te. - Juanito saltou atleticamente para o peitoril e agarrou a corda. - Agarra-te com força, Juanito - recomendou-lhe César.

Juanito sorriu.

- É uma brincadeira. Passei a vida a trepar a enxárcias.

Desceu para lá do peitoril e César viu-o deslizar nas trevas que estavam por baixo. O rapaz, porém, não avaliara bem as dificuldades da descida. A corda na verdade era curta, faltava-lhe uma dezena de metros. Chegado ao fundo foi tomado pelo pânico e pôs-se a escoucear desesperadamente, procurando um

apoio para a ponta do pé entre as fendas da muralha. Quando estendeu uma mão para interromper a oscilação, perdeu o apoio para o pé. Tendo ficado suspenso apenas por uma mão, cedeu logo a seguir e caiu com um grito no terreno em baixo.

César ouviu o baque surdo da sua queda. Ouviu também os passos de um guarda que subia precipitadamente as escadas, desconfiado com o grito do rapaz. Não havia tempo a perder. Cavalgou o peitoril, agarrou-se à corda e começou a descer apoiando-se com os pés na muralha da torre. Quando finalmente o guarda entrou na cela tropeçando no cadáver do seu companheiro, já César ia a meio da corda. Pondo-se a gritar para dar o alarme, o carcereiro começou a dar espadeiradas na corda na tentativa de a cortar.

- Porco assassino! - gritou para a escuridão.

Por baixo dele, César deu um forte impulso com os pés para oscilar para fora e evitar cair como Juanito na dura terra da barreira. Naquele momento o guarda conseguiu cortar a corda. César caiu como uma pedra na água do fosso.

Veio à tona entre os gritos confusos do corpo da guarda. Alguns carcereiros percorriam a correr o dique nas proximidades do local onde caíra Juanito. César nadou rapidamente para a borda do fosso, onde Dom Diego e Dom Jaime, atraídos pelo som do mergulho, estavam já prontos para o acolherem com os braços estendidos.

- O rapaz. - arquejou César pondo-se de pé.

- Caiu, temo que esteja morto - disse Jaime.

Ouviu-se então a voz de Juanito que gritava entre gemidos de dor, do outro lado do canal.

- Ah ! Acudam ! Acudam ! As pernas !

Jaime lançou uma mirada interrogativa a César, o qual sacudiu brevemente a cabeça.

- Tarde de mais. Aos cavalos! Por este lado - disse Diego invisível na escuridão. Chegaram junto dos quatro cavalos presos a arbustos raquíticos. Dom Diego teve de ajudar César a montar, dado que a longa prisão e a falta de exercício físico o enfraquecera muito. Jaime entretanto olhava para o fosso, de onde continuavam a chegar os gritos de Juanito.

- Acuda, senhor. Eles estão a chegar! Não me deixeis aqui sozinho, não me abandoneis!

César ignorou-o. Gritando aos companheiros que o seguissem, esporeou o cavalo e partiu a galope na escuridão. Os gritos angustiados de Juanito perseguiram-no ainda durante algum tempo, até serem calados por uma espadeirada.

César e os seus libertadores alcançaram por mar e por terra a salvação em Navarra, o microscópico reino montanhês do cunhado de César, Jean d'Albret. Aqui César foi recebido pelo rei e pela sua corte de Pamplona como aliado contra o inimigo comum, o rei Fernando. Assim que chegou, sentou-se para escrever a Lucrécia.

Querida irmã, informo-te com esta minha carta que estou a salvo na corte de meu cunhado de Navarra, que me recebeu com afecto e com a esperança de que o ajude na luta contra o tirano de Aragão o qual tinha tentado aprisionar-me para sempre. O que eu não daria para ver a cara de Julião, quando receber a notícia.

Lucrécia estava sentada no jardim do Palácio de Ferrara. Um pálido sol de Primavera iluminava-lhe o rosto comovido. A mão com que segurava a carta de César tremia-lhe ligeiramente. César estava vivo, liberto! Voltou-se para a criança a seu lado.

- João! O duque está salvo. Ouve o que te diz. Diz ao João que não precisa vir combater em nome dos Bórgias. Que espere que eu dentro de pouco tempo voltarei a Itália em triunfo à frente de um exército como fez o meu homónimo dos tempos antigos e João usará a minha espada com a frase Aut Caesar aut nihil através daquele mesmo Rubicão vadeado por César e em todas as minhas cidades da Romanha...

- Por favor - interrompeu-a o rapaz -, não posso ir já ter com ele ?

Lucrécia abanou a cabeça sorrindo do seu entusiasmo. - Não encontrarias glória alguma por lá, João. É um reino pequeníssimo. Tens de esperar. . . esperarás aqui que César volte. Escuta o que diz.

Voltou a pegar na carta e retomou a leitura em voz alta. Aqui em Navarra não há forma de realizar gesta à altura do valor de João, pois que eu assumi o comando de um exíguo exército contra um nobre de baixa craveira, um pequeno conde, que se revoltou contra o rei.

Lucrécia interrompeu-se porque uma rajada de vento de Março lhe desarranjara o véu colando-lho à cara. - Continuai, peço-vos, continuai - incitou-a João.

Lucrécia curvou-se para a carta, procurando decifrar os nomes que lhe eram pouco familiares.

- Espera - disse. - Sim, diz que acampou num lugar que se chama Viana no rio Ebro nos confins de Castela, onde o conde rebelde tem uma cidadela mal defendida e com falta de víveres. Escuta! Nós controlámos já a estrada em que colocámos as nossas sentinelas para impedir os fornecimentos à cidadela, que caem todos nas nossas mãos. A campanha nesta região remota em nada se parece com a da Romanha. Não tenho bombardas e a artilharia é pouquíssima, por isso, por muito impaciente que eu esteja, como sabeis, tenho de esperar que aquela cidadela se renda pela fome; mas já não falta muito.

Lucrécia levantou a cabeça, semicerrou os olhos e procurou imaginar o irmão naquele lugar tão distante. Pobre César, pensou, como por lá tudo devia surgir-lhe diferente. Como ele desejaria voltar a Itália. Ser de novo um homem livre no mundo. Uma rajada de vento sacudiu repentinamente os ramos dos salgueiros ao longo do ribeiro que pouco mais adiante corria. Lucrécia viu nuvens escuras que corriam pelo céu.

- Vem, João - disse agarrando o rapaz pela mão e levantando-se do banco. - É melhor voltarmos. Dentro em pouco haverá com certeza um temporal.

- Nunca há Primavera neste lugar maldito? - perguntou César ao seu escudeiro Grasica quando a tenda tremeu com a enésima rajada de vento e uma chuvada.

O escudeiro tirou- lhe a capa. César estendeu as mãos para a braseira.

- Aqui acabamos despedaçados pelo vento ou pela chuva!

- Creio que temporais assim não são insólitos nestas regiões, senhor. Mesmo nesta estação - disse Grasica.

- Então é preciso que o inimigo seja conquistado pela fome antes que acabemos nós afogados.

César levantou os olhos para ver os mapas dos seus planos de batalha que estavam espalhados devido às correntes de ar que se introduziam por entre as abas da tenda. Entrou Jaime, resmungando.

- Senhor.

- Sim, Jaime.

- Senhor, o comandante da guarda pede para retirar as sentinelas até amanhã de manhã. É bem pouco o que o conde possa fazer para mandar provisões ao castelo enquanto durar esta tempestade. E está impossível para os nossos lá fora, com este temporal.

César anuiu.

- Sim, é verdade, nada acontecerá esta noite. - Reflectiu por um instante, depois acenou de novo em sinal de concordância.

- Diz ao comandante da guarda para suspender a vigilância até à alvorada.

- Muito bem, senhor - disse Jaime caminhando em direcção às abas levantadas da tenda para sair para o vendaval.

- Jaime.

- Senhor?

- Às primeiras claridades do dia. Fiz-me entender?

- Sim, senhor.

- Não nos podemos fiar em ninguém. E muito menos em Deus - disse César calmamente. Depois encolheu os ombros. Seja como for de nada serve vigiar a estrada esta noite. Dai-lhes esta ordem.

Requerenz saiu deixando César com a testa franzida a olhar os reflexos vermelhos da braseira e a escutar os sons da tempestade.

César dormiu mal naquela noite, até ser acordado por gritos confusos fora da tenda. Sentou-se na cama, subitamente alerta.

- Grasica !

O escudeiro moveu-se no seu enxergão arrumado ao lado da cama de campanha.

- Senhor - murmurou ensonado.

César estava a escutar atentamente. Era um outro rumor, ou melhor. Depois compreendeu.

- Deixou de chover! - exclamou de súbito, levantando-se. Naquele instante um guarda apareceu à entrada da tenda.

- Senhor, dizem que há homens a cavalo na estrada e machos carregados, em direcção ao castelo.

- Machos! - César precipitou-se para colocar a couraça. Guarda! - ordenou. - Dá o alarme geral. Ouviste?O guarda saudou e desapareceu. - Pelo fogo do Inferno!gritou César pondo a armadura. - Grasica, onde diabo estás?

- Aqui, senhor - respondeu o escudeiro que estava a seu lado com o elmo nas mãos.

- Sela o meu cavalo. Não, espera! Eu chamo-os. Os machos. Devia ter deixado as sentinelas. Se conseguimos apanhá-los antes que cheguem ao castelo, faço-os em pedaços. Furioso pela pressa que tinha, voltou-se contra o escudeiro. - Por que andas nessa molenguice como uma prostituta desmiolada! Ajuda-me a colocar a armadura!

César saiu da tenda para um caos indiscritível. A chuva cessara, mas soprava ainda um forte vento e os soldados corriam daqui para ali gritando no escuro.

- Onde está Dom Jaime? - perguntou César ao guarda postado fora da tenda.

- Cá estou, senhor - respondeu prontamente o soldado. Chegou um palafreneiro com o cavalo de César. Este meteu um pé no estribo e, ajudado por Grasica, montou. O escudeiro estendeu-lhe a lança. César colocou-se melhor, empunhando a arma.

- Não esperarei. Diz a Dom Jaime que me siga com todos os homens que possa. Diz-lhe para não perder tempo com esperas. Entendido?

- Sim, senhor. - Semicerrou os olhos esforçando-se por ver melhor no escuro, escutando. - Creio que Dom Jaime está a chegar.

César ignorou-o. Estava a ser dominado por um turbilhão de paixões em que à cólera se misturava a frustração pela tacanhez daquela guerra de pouca monta. Naquele estado de ânimo a sua presença de espírito estava obscurecida.

- Onde está esse pequeno conde? - perguntou entre dentes. Depois, gritando: - Acompanhai-me ao castelo!

Esporeou o cavalo e mergulhou a toda a brida nas trevas deixando Grasica para trás. A sua voz perdeu-se no rumor do vento.

Quando apareceu a primeira claridade no céu, César atravessava a galope os campos desolados em volta do castelo. Naquele ponto o caminho acidentado enfiava-se numa garganta entre paredes de arenito. De repente viu-se no caminho barrado por oito homens a cavalo. César puxou com força as rédeas voltando-se de repente para olhar para trás com a intenção de regressar por onde tinha vindo. Mas também por aquele lado o caminho estava bloqueado por quatro homens a cavalo. César tornou a virar-se para os homens que tinha na sua frente. Estes começaram a avançar lentamente. César olhou para trás. Também os outros quatro se aproximavam. Onde está a escolta? - gritou.

- Perdi-os no escuro. Estamos a escoltar machos com abastecimentos para o castelo.

Os outros não falaram. Continuaram a aproximar-se, apertando sempre mais a armadilha entre as paredes escarpadas da garganta.

- Não é altura! - exclamou o duque. - Não são ainda os Idos de Março, compreendeis-me?

Os homens que tinha na sua frente estavam já muito próximos.

César baixou a lança e partiu a galope com um grito veemente:

- Ou César ou nada!

O grupo dividiu-se diante da sua carga, mas, no momento em que passava, um dos adversários trespassou-o com uma lançada por baixo do braço erguido, atirando-o ao solo. César soltou um grito estrangulado quando o ferro lhe penetrou na profundidade do peito. Conseguiu pôr-se de pé e desembainhar a longa espada para se defender dos inimigos que se juntavam à sua volta. Uma, duas vezes brandiu a espada contra os homens que o assediavam, antes de cair na lama, trespassado pelas suas lanças. Depois tudo acabou. Os homens do conde desmontaram para olharem a sua vítima. O seu interesse animou-se à vista da armadura preciosa.

- Um dos homens do duque Valentino - comentou um deles. - Fiquemos-lhe com a armadura.

Nu e sangrando de mais de vinte lançadas, o corpo de César Bórgia ficou caído na lama daquele caminho desolado dos planaltos de Navarra, negras manchas de sangue na brancura da pele nos frios alvores da madrugada. Era a manhã de 12 de Março, três dias antes dos Idos, a data que fora fatal ao seu homónimo, César.

Ou César ou nada.

 

                                                                                Sarah Bradfórd  

 

                      

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