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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS CANIBAIS ESTÃO NA SALA DE JANTAR / A. Jabor
OS CANIBAIS ESTÃO NA SALA DE JANTAR / A. Jabor

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS CANIBAIS ESTÃO NA SALA DE JANTAR

 

Choram as quatro damas do baralho nacional

Em meio ao recente vaudeville da nacionalidade quatro mulheres nos ajudam a compreender mais da crise selvagem que o Brasil sofre. Os sintomas de 400 anos de loucura reprimida vieram todos à tona. Surge um grande Frankenstein de mil corrupções, um neomacunaíma sem nenhum caráter mesmo, muito mais incongruente e violento do que pudemos crer. Todos os retratos do país, da Prosopopéia até Hélio Jaguaribe, estão sendo superados pelo grand guignol de descaro que o brasileiro resolveu expor.

Neste pôquer maldito, neste burro-em-pé, nesta canastra irreal, afloram quatro damas que ajudam a ilustrar o lado feminino desse retrato: a dama do latifúndio improdutivo, a dama do latifúndio eletrônico, a economista romântica e a retirante politizada.

Rosane, Xuxa, Zélia e Erundina são os rostos unidos dessa alegoria cubista da trêmula mulher brasileira. Nasceram talvez do acaso e agora suportam o fogo cruzado da vingança nacional. Rola entre elas um misto sanduíche de arcaico com moderno, uma mistura existencial de Maria Bonita, Nashville, Chanel e Glorinha Pires Rebelo.

É curioso que todas estejam em crise, que três delas (Z, R, X) queiram ter filhos, que quatro explodam em lágrimas (X, R, Z e E), e que, de modos sutilmente diversos, todas estejam sob ataque de um perigo masculino qualquer, de um fogo cruzado machista, e que as quatro, por desejo confesso, queiram retornar a uma fragilidade feminina perdida.

Nenhuma delas errou propriamente e todas de alguma forma cumpriram seus programas feitos ou na faculdade de economia, nas células do PC-PT, nas planilhas do marketing Pelé-Globo ou nas verdes águas da piscina de Canapi.

A verdade é que entre as recentes descobertas de nossos defeitos está a carranca violenta cio machismo brasileiro secular, seja na construção de nossas damas, seja no posterior ataque a elas. Tudo, menos suportar a leveza da mulher no poder, comandando o peso de nossas certezas de homem.

 

A dama da economia romântica

Zélia, por exemplo. Nunca um homem público ou cidadão comum deixou de vê-la sem fantasias sexuais.

Zélia foi a mãe castradora que causou um estrago no orgulho de nossos homens. Collor só pôde suportar uma mulher no ministério do confisco (seria muito poder para um Simonsen, um Daniel Dantas). A partir daí Zélia era uma mulher marcada para morrer. Eu próprio senti o poder de sua sedução quando a entrevistei, trêmula e branca na grande sala do ministério. O tempo todo da entrevista não esqueci que o ministro era mulher, o ministro tinha seios. E certamente Zélia nunca esqueceu um instante, nem aqui nem no Federal Reserve Bank, que era uma mulher. Teria Bernardo Cabral se aproximado dela se fosse apenas figurante na esplanada dos ministérios? O nosso boto-tucuxi (em que girândola de amores estará, em que boleros flutuará nosso herói?) foi o peixe envenenado que tinha por missão derrubá-la.

Foi imperdoável para nós que tivesse sexualidade. Talvez como Virgem Maria, como Nossa Senhora dos Cruzados Seqüestrados a suportássemos até hoje.

Zélia caiu quando seu coque subiu e talvez ai o governo Collor tenha começado a se desmoralizar. A dissincronia entre a sutileza das missões econômicas com a adolescência do Besame mucho brada aos céus da pátria.

Tudo que aconteceu depois foi irrelevante. Zélia caiu com Cabral. Foi a vingança de Getúlio.

Nem acredito hoje em corrupções da ex-ministra. Talvez um proveito ou outro de assessores, que é inevitável numa gestão; mas em seus olhos na tarde de Brasília eu vi quase fanatismo.

Zélia foi a tentativa de salvar o país por um estranho social-liberalismo. Seu grave erro é agora dizer que 'quer ser feliz e ter filhos'. Uma mulher como Zélia não pode querer ser feliz. Não pode, pelo menos, confessá-lo. Tem de se vingar dos ardilosos com o mesmo feitiço: ocultar-se, ser vaga, ser genérica e mentirosa como seus atacantes, nunca ofertar ao pais de perversos o presente de seus desejos simples.

Esta foi a primeira clama que mobilizou as massas, confiscou-as, na girândola louca da economia.

O fato é que Zélia mexeu em multidões, e dela corta direto para Xuxa, com outras multidões nacionais mobilizadas a sua volta, via Globo e pela indústria country-atômica, menudo-2001, que a mercadeja.

 

A dama do latifúndio eletrônico

Xuxa nasce do colo de um negro para o mundo da media. Estranho parto o que lhe fez Pele. Uma loura pura, quase uma atriz de filme nazista, personagem de Leni Riefenstahl, saindo do leito de um crioulo-deus e depois, mais ninguém, apenas o rápido vácuo de Ayrton Senna a 300 por hora.

Xuxa era outra mãe-virgem. Começou como pantera, no filme Amor estranho amor, como avesso absoluto de Zélia, que quer ser mãe. Xuxa quis provar desesperadamente que a virgindade era possível, reconstituível. Xuxa é a pin-up arrependida, a prova de que uma extraordinária gostosa pode virar criança outra vez e dançar para sempre.

Xuxa sempre me provocou uma espécie de desespero sexual quando a via de manhã pulando, uma angústia de castração. É um caso raríssimo de histeria obsessiva construindo um império de 20 milhões de dólares em cima de nosso tesão insatisfeito. Ela é malbaratada por criancinhas que a pegam num sinistro conluio pré-genital.

Montou um império de pureza loura, um III Reich de baixinhos eunucos.

Xuxa é o triunfo da fase oral num país de onanistas, num pais sem Pai. Xuxa é um caso de pedofilia velada, um terrível pesadelo de crianças. Xuxa nos fez odiar nossos filhos e espalha agora pelo mundo latino uma onda de superficialidade sexual. Será que ela colore nossa repressão, será que ela é o ideal de primeiro mundo que nós mulatos punheteiros sempre quisemos? Já vejo multidões de mães aflitas puxando miguelitos e adelitas pelas luvinhas de couro, sob o olhar deprimido e sombrio de bigodudos pais latinos.

E hoje Xuxa chora. Começou a depressão em Xuxa. O que causou a depressão em Xuxa? O quê? Certamente a absurda, esquizofrênica agenda que sua guardiã Marlene lhe montou. Certo que a mocinha está quebrando por excesso de trabalho, mas a Xuxa começou a quebrar mesmo quando se juntou a ela o terrível mundo do Exterminador do Futuro. Esta é a verdade.

A crise de Xuxa veio quando dois meninos armaram um Corcel com supermetralhadoras de cano cortado e atacaram o Teatro Fênix para salvá-la. Diante da Globo encenou-se um trecho dos filmes de violência que a Globo exibe toda noite. Quando o filme virou realidade, a tragédia começou. Os dois meninos mataram o guarda, correram numa perseguição de carros digna de French Connection e terminaram mortos em câmera lenta, com vidro partido, sangue jorrando, no melhor estilo dos action films.

Aí Xuxa quebrou. O machismo estava inclusive na terrível capa de seqüestro de proteção que os dois jovens iludidos de Hollywood tentaram. Isso ninguém disse. Um morreu à americana, no volante. O outro morreu misteriosamente à brasileira no hospital. Isso ninguém comentou mais, a não ser a foto à la Mantegna que a Folha publicou.

E Xuxa agora, como Zélia, quer casar e ter filhos, embora talvez seja tarde demais. Marlene não deixará, a indústria não deixará.

Interessantíssimo que Zélia e Xuxa e Rosane e Erundina percam batalhas quando viram mulher. Como se a atuação anterior delas fosse apenas um prefácio, um treino. A verdade chega com casar e ter filhos, como no final dos filmes americanos.

Estranho: boto faz mal a 'Margareth Thatcher' que se arrepende e quer ter filhos; duros de matar tentam salvar loura-robô que se arrepende e quer casar e ter filhos. Estranho, muito estranho amor.

 

A dama do latifúndio improdutivo

E  aí chegamos a outra que quer ter filhos. Nossa primeira-dama.

Rosane, diferentemente das outras, sempre quis isso. Nunca imaginou que das águas da piscina de Canapi, dos sururus com leite de côco, ela chegaria ao sofrimento de uma Jackie Kennedy de marido vivo, desabando em lágrimas ao lado da dona Sarah, o verdadeiro memorial de Juscelino Kubitschek.

Seu rosto louro e rosinha lembra-me mil filhas de pai rico em festas do Hotel Jatiúca de Maceió, em footings da praia de Pajuçara.

Sempre quis ser apenas isso: ouvir música romântica (quem, antes de Leandro e Leonardo, quem? Belchior, Roberto?), almejando o tafetá, o ouro, o brinco, a pérola, o cabeleireiro, o veraneio, a gargalhada, a diversão, a família, a lancha, o delicado orgulho das filhas dos clubes do Nordeste, sorridentes entre gargalhantes pais, tios e irmãos.

Aconteceu que o vento da história pegou-a de jeito. Rosane Collor é moça normal na burguesia nordestina. Rosane é uma fiel lourinha que foi sanduichada entre duas ambições.

Collor se enamora dela (recém-desquitado de uma aristocrata com casa em Cap d'Antibes) e sai fortalecido por unir-se aos Malta, a família dos rambos gordos de Canapi. E aí se traça o destino de Rosane: ela é a ponte de ligação entre dois poderes: o poder nascente de Collor e o poder coronelista do Nordeste. O resto nós sabemos. Vimos confrangidos os abraços, os sorrisos, as cores vivas da inacreditável Glória Pires Rebelo (e aqui fica minha acusação: será que Rosane não tinha uma amiga que a impedisse de usar o vestido que usou no Japão?).

Vimos a festa de Eunícia, as flores na piscina, Chitãozinho e Chororó, e vimos depois as lágrimas verdadeiras, sinceras, da primeira-dama, quando do escândalo da LBA.

Rosane apenas cumpriu a missão de uma perfeita filha de família. As verbas desviadas, os favores aos barrigudos parentes, tudo foi a pura ordem natural das coisas. E agora está sendo atacada por duas patrulhas machistas, a malta-rambo, que de certo modo a traiu com o exercício de sua truculência, e o terrível dedo vazio e acusador do presidente. Os gordos atiram-na caatinga e o marido magro a ignora na solidão do planalto sem amor.

E aquela moça, que apenas quis fazer alguma coisa pela continuidade dos seus valores mais genuínos (família, o doce clientelismo, os risonhos parentescos, a brisa de Maceió), caiu em prantos ao lado de dona Sarah.

Como Zélia, Xuxa, Rosane quer ter filhos. Mais uma que na derrota, na destituição do cargo, quer voltar a ser mulher. Que é isso, a feminilidade como retorno?

 

A dama retirante dos sem-teto

E de suas lágrimas nordestinas cortamos direto também para as lágrimas amargas de outra mulher que não nasceu longe de Canapi, as lágrimas de Erundina, a retirante que governa São Paulo.

A prefeita também está de certo modo pagando por uma briga que não foi diretamente sua. Quando Eduardo Suplicy tentou cassar o mandato dos vereadores do PDS, PMDB e PFL, ficou estocada a munição de contra-ataque que agora é disparada contra Erundina.

A vitória de Erundina sobre Maluf (lembro com delícia) foi o prazer do máximo absurdo possível que baixou do céu de São Paulo. A eleição desta mulher simples como uma freira laica teve o sabor de uma desobediência: colocar o improvável no poder.

Mulher, madura e nordestina, entrou em parte com os votos do estamento de flagelados e sem-terra, mas também como um corpo estranho colocado no poder, um quase-cacareco, um quase voto-anulado, um protesto branco pelas mãos da pequena burguesia transgressiva.

A mulher aí entrou premiada por sua hipotética inaptidão.

Não posso julgar-lhe o mandato, mas certamente a vejo como uma dama-de-couro, sólida, resistente, obstinada. E por mais que tentem destruí-la, dificilmente será por corrupção, no seio do Estado das caixinhas e percentagens. Os economistas que examinaram as contas da Prefeitura não encontraram nada. No meio da república dos escândalos, Erundina é quase um arcaísmo. E como as outras, chora, e vira mulher, dizendo que não agüenta mais.

Suas lágrimas se unem às outras. Erundina não quer casar e ter filhos. É a menos feminina, porém a mais bela.

 


A elegância pode ser uma forma de violência

Debaixo de um viaduto ando com os olhos vermelhos. Uma mendiga japonesa (raro ver uma), louca e gritando no meio do trânsito, me joga um pedaço de caixote, do qual me esquivo e atravesso a rua fumacenta. O ar está regular, no anúncio luminoso. Regular? Quando será: Fujam!? Dou uma cafungada no carbônico e vou em frente.

A miséria em São Paulo, não é estrelada, invasiva como a do Rio, onde os jardins suspensos das favelas nos olham do alto, como avalanchas. Em São Paulo a miséria não é uma paisagem natural como no Nordeste. Em São Paulo suspiram os bem-nascidos, a miséria é mais periférica e só entra para pequenos serviços na forma de úteis paraíbas nas construções, nos táxis, no lixo. No Rio, nossa pobreza já teve um passado, uma tradição, uma arte. Príncipes como Cartola, Nelson Cavaquinho, o samba. A favela paulista se atravanca em planícies e nela não há samba nem tradição. Não venta, não tem vista para o mar. É lama pura e dormitório para a mão-de-obra suja e não-qualificada. A miséria carioca tem uma certa allure, um certo bafejo de elegância (cada vez menos, belas...) e, como é presente a cada instante, cria a consciência do nada, da morte nos mais bem-nascidos, assim contribuindo para a evolução existencial das classes privilegiadas. Já há no carioca um convívio com a morte que é um verdadeiro avanço cultural. Já que extinguiram outras formas de arte, temos esta living art, esta constante installation de trapos e mãos postas. Jovens louros e lindos já não têm a ingenuidade alienada dos anos 60. Em seus belos olhos já vemos sombra do sentido trágico da vida. Em São Paulo, graças às recentes enchentes, já começam a ser minadas as certezas antigas. Nada é mais tão cor-de-rosa como nos tempos de dona Olivia Penteado, quando a sofisticação art nouveau da vida permitia de um lado a Semana de Arte Moderna e de outro o monobloco do burguês total, do bigode total, do industrial total. Hoje não se fazem mais burgueses como os de Mário de Andrade, quando São Paulo não podia parar. Hoje São Paulo pode parar, como aliás está parando a qualquer momento. Hoje o burguês sai de casa impecável no Mercedes e pode ser seqüestrado (onde andarão os sequestradores? Dando um tempo? Bons tempos de suspense...) ou então pode morrer afogado na avenida Pacaembu agarrado num poste.

 

A felicidade é uma forma de fuga

Hoje nossas elites são mais sofisticadas em suas alienações. Não há mais a implacável insensibilidade diante da miséria. Bons tempos de Teobaldo de Nigris, quando Vicentinho jamais poria os pés na sala de empresários. Mario Amato é um conciliador, Paulo Francini um progressista, Semler um socialista fabiano. Todos nós privilegiados temos que adotar um discurso moderno. Com o crescimento da pobreza, amplia-se a elite, onde nos incluímos todos, mesmo que não moremos no Morumbi e que nos acotovelemos num muquifo Lindenberg da Vila Madalena. Tirando uns darks ressentidos e uns bichos-grilos tardios, somos todos hoje burgueses, mesmo duros. Burgueses no sentido de que temos de usar antolhos, viseiras para não ver o desilno negro da cidade.

"O senhor agüenta esta fumaça na cara o dia inteiro?" pergunto com os olhos vermelhos na avenida Santo Amaro, às sete da noite, indo em busca das elites. "Respire fundo, vá, moço, respire fundo que passa, vá!" diz o paraíba de meio metro que dirige o táxi. E ri, ri de mim, de minha queixa ecológica. Em volta, privilegiados encalhados no trânsito. Rostos mortos no volante. A fumaça cresce. Vingança dos homens que construíram tudo? Vingança de quem, esta fumaça? E daqui a dez anos, sairemos tie casa?

Chego a minha primeira burguesa. "Como você faz para ser feliz, querida?" pergunto, já com um ar displicente, agarrando o uísque para esquecer o paraíba rindo. Ela é linda e me diz dez mandamentos de felicidade. Todos começam com não.

"Não olhar tragédias, não assistir ao Jornal Nacional, não ouvir conversa de câncer no Gallery, não pegar trânsito ruim, não ficar muito tempo no Brasil..." Tudo é não. A felicidade é uma virtude negativa, fugitiva.

 

Afinal de contas, quem são eles?

Engulo o uísque e vou caminhando. Tenho um encontro com um empresário e um americano antropólogo que está com ele. Cinema, grana, outros papos. O burguês amigo meu fala sem parar nas tragédias da lucratividade nacional. Meu amigo fala muito "deles... deles... deles". Todo o mal do Brasil é culpa deles. O mundo e o país estão sendo destruídos por eles. Até que o americano não agüenta mais de curiosidade e pergunta: "Who are they?" (Quem são eles?) Meu amigo pára, travado. Quem serão eles? Aí descubro o óbvio triunfal. Eles são os outros. São as forças ocultas que desculpam nossa omissão. Grande categoria descobri: eles. Todos nós falamos da desgraça nacional como se fosse feita por outros, seres impalpáveis que são responsáveis por tudo. Eles podem ser o governo, o operariado, os americanos, os jornalistas, até os judeus talvez...Todos, menos nós.

 

As refinadas formas de ignorar

Vou pela rua morta da madrugada paulista, atrás de outro táxi (outro paraíba rirá de mim?). Perfeitos mendigos se colam nas vitrinas da Oscar Freire, bem ajustados nas fachadas menfis. Como ficou antiga esta visão de contrastes. Outrora nos chocava ver a miséria grudada na fartura... Tanto Brecht, tanto... Hoje apenas banalizam nossa elegância. O desgraçado dorme na porta da Fit. Fitness. Misfits? Deus, como dá para produzir ilações ricas, como a miséria é fecundante. A miséria é útil para criar assuntos, textos. A pobreza está voltando às pautas porque não está dando para ignorar mais. Há uma grande produção de grades, porteiros eletrônicos, alarmes, seguranças. Assim como se sofisticam os mecanismos de proteção nos prédios, se refinam as formas de ignorar a decadência da cidade.

 

A elegância é uma forma de violência

São Paulo é leito uma cebola. Não é apenas a Bélgica da Belíndia. É uma cebola de bélgicas cada vez mais fechadas, mais finas.

Agora estou diante da elegância absoluta. A mulher que me fala sabe tudo. Inteligentíssima, está toda hora nas colunas, nos olhando de dentro, como se estivesse atrás de um cristal.

"A elegância é uma forma de violência", me diz com um corselete de Kenzo. "Miséria também é cultura. Tanta é a evidência do absurdo do mundo atual que não dá para excluir do teu universo culto uma posição progressista. Na época em que o socialismo vago e imaginário era a panacéia para nossos problemas, todos éramos socialistas e quase todos não fazíamos nada. Mas nos iludíamos, achando que nosso mal-estar com a tragédia dos pobres ajudava-os em alguma coisa. Iludíamo-nos achando que nosso sofrimento interior, nosso escândalo minorava o horror de suas vidas. Hoje que caiu o socialismo, caiu a ilusão de que éramos úteis em pensamento, tempo em que torcíamos por Cuba como por um time. Somos habitados por um desalento diante da ausência de formas para lutar contra a injustiça. Este desalento gera um desconforto inicial, mas, aos poucos, dá lugar a um secreto cinismo quase doce. De certa forma, o fim das ilusões de que éramos úteis gera um alívio. Hoje sofremos menos porque não adianta mesmo e vamos nos dedicar à elegância, por exemplo, nossa arte pessoal de viver. O fim das ideologias é um alívio para a culpa."

Saio arrasado, como um padre num universo sem Deus. "Como se vai auto-regular o mercado da miséria crescente? Bem, para ela existem vários remédios úteis: primeiro, não pensar nela; segundo, se incomodar muito, existem as grades, as companhias de segurança, e as armas se preciso. Ademais, a grande arma contra ela é a fome. A fome debilita, fragiliza e extingue tudo num genocídio branco sem autores. A fome se encarrega de auto-regular o mercado da pobreza. A fome extermina e estabiliza o excesso de carência. A fome é o grande freio ao malthusianismo e à falta de planejamento familiar destes nordestinos eróticos."

E a fome me leva naturalmente ao restaurante fino dos Jardins. Lá dentro, tudo se move com harmonia, como uma sociedade do futuro, social-democrata, bem-azeitada. Garçons nordestinos servindo sorridentes no seu papel correto (como certos políticos dariam bons garçons), sorrisos, empresários, mulheres finas, negócios. Ah, querida Bélgica... Como tudo rola bem, como é fácil esquecer... Só que (detalhe sinistro) as bélgicas estão diminuindo alguns centímetros por dia.

 


De volta ao futuro da Semana de Arte Moderna

Em uma viagem ao passado, vemos no dia 15 de fevereiro de 1922 a noite mais louca da Semana de Arte Moderna.

Sempre tive do passado uma idéia em preto-e-branco. Achava também que os espaços eram baldios, poucas figuras nas aias. Nesta noite de 15 de fevereiro de 1922, com o coração aos pulos, cheguei em frente ao Theatro Municipal e me impressionou a imensa fila de carros de onde jorrava uma onda contínua de homens e mulheres subindo as escadas. Nunca pensei que houvesse tanta gente no passado. Ninguém me notou na beira da calçada, pois tive o cuidado de alugar uma roupa de época, sendo meu único indício o pequeno gravador da Folha. Meu chapéu, desabado, como o de Santos Dumont, guardava uma Bic oculta, por via das dúvidas. O burburinho tinha um timbre diferente das multidões de hoje. Eram famílias que chegavam, com um clima de aventura culta, uma curiosidade provincial, um ar de pecado nas mocinhas e senhoras (não muitas.), e um jeito gingado nos janotas e rapazes que entravam como para um desafio.

Ali, num grupo que me pareceu de intelectuais, pelos pescoços magros, os colarinhos cocados, a tosse pertinaz de um deles, captei que Manuel Bandeira não viria, e que o discurso de Graça Aranha no dia 13 tinha sido uma patranha, disse o tísico com riso cortante. Disse também que (textual): "O Aranha veio direto da Academia, e ele está é metido numa nebulosidade metafísica, com conceitos de uma empoada filosofia". Reconheci com espanto que o magro era Plínio Salgado, mais tarde de camisa verde e sigma no braço. "Além do mais", sussurrava o futuro fascista, "o Graça está é metido aí com os barões do café, e seus interesses são muito mais comerciais que poéticos. Ele e Paulo Prado estão querendo é lucrar com o café retido em Hamburgo." "De noite é com as musas; de dia com os magnatas da Prado, Chaves e Cia.", disse outro.

Entrei. Tonteei no interior do teatro, lotado até as toninhas. Menotti dei Picchia começara seu discurso sobre a Arte Moderna. Rosto rombudo, óculos de metal, gritava muito e notei certa distância entre o que ele dizia e como dizia, e os termos que usava. Parecia um parnasiano infiltrado na Semana, fazendo um elogio eternizante do efêmero, um antiquado elogio dos tempos novos. Risos espoucavam aqui e ali, mas o silêncio ainda era respeitoso.

Menotti: "A Babilônia Paulista está cheia de faunos urbanos e as ninfas modernas dançam maxixe ao som do jazz!. Morra a Hélade! Organizemos um zé-pereira canalha para dar uma vaia definitiva nos deuses cio Parnaso!" O que me pareceu no início algo grego no redator político do Correio Paulistano foi se diluindo num simpático tom sincero. "Queremos luz, ar, ventiladores (pensei: ares-condicionados!), aeroplanos, reinvidicações obreiras, idealismos, motores, chaminés de fábricas (gemi: poluição!), sangue, velocidade, sonho na nossa Arte! E que o rufo do automóvel, nos trilhos de dois versos, espante da poesia o último deus homérico, que ficou anacronicamente a dormir na era do jazz band e cio cinema!"

E aí, Menotti começa a falar de mulheres:

"E a mulher? Fora a mulher fetiche, a mulher monomania, a mulher cocaína (pensei: esta vai durar...), Veternelle madame! Queremos uma Eva ativa, bela, prática, útil no lar e na rua, dançando o tango e datilografando uma conta corrente! Morra a mulher tuberculose lírica!"

Já mais calmo, comecei a dar uma olhada geral nas mulheres. Estavam em grupos as solteiras, e tinham uma discrição contida, cheia de rubores. Sentia-se nelas que estavam numa fronteira ainda entre o seio da família e os desejos de participação. Um ar de pecado cultural.

E Menotti terminava com gestos lancinantes, que traíam um tanto sua modernidade solene:

"Os automóveis, os fios elétricos, as usinas, a arte — tudo isso forma os elementos da estética moderna, fragmentos de pedra com que construiremos, dia a dia, a Babel do nosso Sonho, do nosso desespero de exilados de um céu que fulge lã em cima, para o qual galgamos na ânsia devoradora de tocar com as mãos as estrelas!"

Os aplausos vinham misturados a gritos e vaias, mas a maioria sentiu ali a veia pulsante de uma emoção. Um burguês tenso e suado (estávamos no verão, sem ventiladores modernistas) murmurou para os lados: "Há talento... há lirismo!..." Mas o bom Menotti parecia que não queria largar o palco, senti que aquela noite era dele, que ele ia cravar a imagem de moderno a ferro e fogo na História. E ele logo emendou como um mestre-sala: "Estou certo de que não vos espantou nosso programa. Vou agora passar em revista as forças dos vanguardistas da Arte Moderna. Agora, 'o romance'! Vai falar Oswald de Andrade!"

O telão do teatro subiu e vi, então, Oswald! Estava elegante, sem os dentes sangrando ainda do futuro antropofágico, paletó escuro, gravata cuidada, cabelos repartidos ao meio, começou com um jeito d'annunziano a ler trechos de Os condenados (Pagu teria 11 anos naquele dia). As vaias começaram, terríveis, inclusive sem motivo, pois o que Oswald lia era pouco corrosivo, romântico. Mas a patuléia queria a zona (como diríamos mais tarde), patear, chiar, silvar. Não me contive e lancei um severo "Chut!" que funcionou, talvez por meu timbre raro, futurista, eu que vinha de tão peito, ali de Higienópolis, 70 anos depois. Oswald terminou, e eu via em seus olhos a clara consciência da histeria do momento; Oswald era um daqueles que não têm descanso, com um excesso de lucidez que impede muita entrega. Menotti, mais crédulo e eficaz, saltitou logo, enquanto Oswald saía com um esgar de riso amargo sob vaias. Menotti: "Agora vem aquele que escandaliza os arraiais sonolentos da arte paulista! Mário de Andrade!"

Um janota deu um grande bocejo alto, a vaia estrondou. Mário, magro ainda, com uma auréola de santo na cabeça, reclamou: "Assim não recito!" Alguém gritou: "Que pena!" Gargalhadas gerais. Mário, então, num arranco de revolta, começou como uma metralha a "Ode ao burguês": (Alguns pesquisadores negam que ele tenha declamado, pois seria linchado. Não; Mário declamou a "Ode"; eu estava lá e vi!) "Eu insulto o burguês/o burguês níquel/o burguês-burguês/A digestão bem-feita de São Paulo/O homem curva/ o homem nádegas/ o homem que sendo francês, brasileiro, italiano/ é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!"

Estranhamente, fez-se um silêncio tenso. Fascinado, o público ouvia os ataques do mulato à sua elite industrial e cafeeira. No grupo dos financiadores, correu um arrepio. Martinho Prado mudou de posição na poltrona.

Mário: "Come-te a ti mesmo, oh, gelatina pasma! Oh, puree de batatas morais! Oh, cabelos nas ventas! Oh, carecas!"

Neste momento um careca de casaca se retirava com a esposa de peito de pombo. Alguém gritou: "Olha o careca!" Aí a vaia ficou eterna, profunda, para sempre. E Mário gritava: "Ódio aos relógios musculares! Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!" Uivos e cacarejos. Menotti pulou na frente e gritou: "Curto é o tempo, longa é a arte! Cacete é a parlapatice!" Aí, eu próprio me irritei com tanto desejo de aparecer e berrei, entrando para a História: "Tira o cravo da lapela, Menotti!" Dois boçais do meu lado me aprovaram, e eu trêmulo agradeci.

E tudo foi ficando sublimemente histórico.

Ronald de Carvalho entrou e disse: "Vou declamar de Manuel Bandeira "Os sapos". E começou: "Enfunando os papos, saem da penumbra aos pulos os sapos!"

Rajadas de zurros, apitos e até bexigas (bolas de ar) que explodiam, encheram o teatro. Ronald, pequeno e valente ia: "Em ronco que aterra, berra o sapo-boi: Meu pai foi à guerra!"

De repente um sujeito late na platéia. Ronald: "Há um cachorro na platéia?" Um rapaz muito magro, com perfil de passarinho, berra: "É o eco da tua voz!" Estoura outra bexiga! Ploft! Ronald uiva na ponta dos pés: "Canalha cio cachorro e da bexiga, respeitem Manuel Bandeira!" A platéia fazia um coro que começou a ficar genial, me lembrando do futuro, dos programas do Chacrinha, com todos gritando como sapos: " Meu pai foi à guerra! Foi!... Não foi! Foi... Não foi!..." no ritmo da poesia. Um parnasiano de guarda-chuva berrou a meu lado: "Bilac está acima do lamaçal!" Pois os sapos satirizavam os parnasos.

Tento me aproximar de Oswald, que tinha saído dos bastidores e estava junto a uma frisa. A gritaria dos sapos tinha amainado, pois agora recitava Agenor Barbosa, com o seu "Pássaros de aço". Uma mulher com estranha tiara no cabelo dizia alto para Oswald, de sorriso ácido e olhos em suas coxas: "Isto é poesia, sr. Oswald... os aviões... ouça..."

Chego-me: "Sr. Oswald, uma pergunta?" Oswald se vira. Seus olhos sacam de cara minha gravata da Brooks Brothers do futuro, única peça errada em meu figurino. "Futurista", brinco.

— Em que vai dar tudo isso, sr. Oswald? — pergunto.

— Voce é de que jornal?

— Folha de... da Noite.

— Foi você que escreveu ontem que o Vila-Lobos tem olhos de quem sabe amar homens? Você acha que o Vila é 'fruta'?

— Não... não fui eu... eu nem estava ontem aqui... — tremi.

— Pois saíram no jornal, meu amigo, alusões mesquinhas em torno desta frase de terceiros... mas o que perguntou?

— Que vai ser no futuro, isso aí... o senhor tem idéia?

Oswald me olhou fundo, como se suspeitasse de uma armadilha.

— Você parece saber a resposta... mas... acho que o que vai ficar... para além dos futurismos... dos pássaros de aço... (riu, apontando Agenor) é... uma coisa brasileira... que vai passar e voltar... que vai passar... mas de um primitivismo fundo, vamos tirar, muito depois, um caminho.

Neste momento, Sérgio Milliet estava no palco, recitando.

Fomos submergidos por uma vaia monstro que virava quase um cantochão. Sérgio, recém-chegado de Paris, recitava: "Làbas... mon âme... Mais non, la France, Allemagne... Silence!..." E a platéia emendava num cantochão gargalhado: "Hen... hunn... huan... honhon... Miau! Miau! Mais non... me... notti!... Miau!"

Um homem decidido surgiu a nosso lado e convocou Oswald: "Vamos subir lá nesse galinheiro! Vamos lá!" Era Armando Leal Pamplona, um cineasta primitivo que incendiou Oswald, e os dois foram escalando o balcão. Fui atrás, com o gravador escondido. "Quem é que está vaiando aí, seus filisteus?!!" berrou Oswald. Um sujeito imenso pulou em nossa frente. "Eu!!! Eu!!! Miau!!! Miau!!!" E para meu espanto absoluto, Oswald se dirige ao ciclope e encomenda: "Vaia, vaia bastante, que é bom!" O sujeito ficou murcho e sem entender.

Súbito, silêncio total. Sou atraído pelo som de um piano: Guiomar Novais toca Vila-Lobos, e Vila olha entre as cortinas de uma frisa. Depois, entre raios de luz, surge uma pequena figura dançante, Yvonne Daumerie, linda como uma chama viva, que percorre o palco com seu corpo seminu. A dança vivia no silêncio perfeito. As cabeças pendiam. As mulheres aspiravam aquela liberdade; os homens olhavam-lhe o corpo. Paulo Prado, Marinette Prado (Tarsila estava em Paris), as esposas do grupo cafeeiro que financiou o festival: René Thiollier, Antônio Prado jr., Alberto Penteado...todos absortos.

Desci no intervalo para ver os quadros da exposição no bali. Alguns eram quadros com clara filiação acadêmica, nada corrosivos, tais como os de Zina Aita, Ferrignac e até coisa muito fraca, como o trabalho de Haerberg que eu nem conhecia. Mas, avultava a força dos verdes e amarelos deformados de Anita Malfatti, que olhava timidamente de um canto.

Gritos na escadaria do vestíbulo do teatro. Olho e vejo Mário de Andrade, apontando os quadros expostos e falando deles com ardor:

"A natureza existe fatalmente! O poeta cria por vontade própria! Querer que ele reproduza a natureza é rebaixá-lo!"

Santo Deus, eu estava vendo ao vivo a conferência de Mário A escrava que não era Isaura.

A gritaria estava aumentando. Vários sujeitos (pintores?) ameaçavam Mário com o punho, espumantes, a ponto de eu pensar em defender o mulato corajoso, que vociferava: "Quem procurar o belo da natureza numa obra de Picasso não o achará! E a incompreensão que nós modernistas sofremos é causada pela preguiça de mudar, a falta de amor, a inveja e a burrice!"

Aí estoura um mugido coletivo tão forte que chego a temer por Mário, que continua a gritar, sendo aplaudido por Anita Malfatti, frenética e sozinha, e vejo Zina Aita também, frágil, defendendo-se daqueles boçais que prefiguravam tantos que eu conheço hoje. Um pintor (via-se pela gravata folhuda) gritava: "Este Homem amarelo da Malfatti é inspirado nos vomitórios da clinica dos irmãos Rovoredoü É um vômito!!!"

E começa a subir dentro de mim um intenso ódio por aqueles anões mentais, avós e pais dos outros que eu veria na minha vida futura. E gritavam, urravam, zuniam, com as mesmas gargalhadas que eu veria anos depois nas churrascarias do futuro: "Sai daí, ô mulato pernóstico!" E a meu lado estourou uma gargalhada mais forte, e eu me lembrei do telefonema que dei para o Mário da Silva Brito, o grande intelectual brasileiro da Semana, que me disse anteontem no telefone, daqui a 70 anos .- "Meu caro, a Semana não adiantou nada. Veja esse Brasil como está! O Oswald perdeu o tempo dele! O Mário perdeu o tempo dele! Veja o Brasil como está!"

A meu lado um grupo maior se juntou e imitava burgueses e burguesinhas, cacarejos de galinha, grasnar de araras. Subiu-me o sangue à cabeça e gritei, a plenos pulmões: "Calem a boca, babacas!!!"

O silêncio foi total. E me lembrei num segundo, antes do primeiro empurrão, que a palavra babaca significava na época a vulva, o sexo das mulheres. Como se eu gritasse.- "Calem-se, xoxotas!" Ou algo pior. Estou perdido, pensei, enquanto me empurravam escada abaixo, e eu fugia, entre um safanão e outro. E sob o olhar de pânico das mocinhas finas, vi, aterrado, que Paulo Prado me deu o último tranco, antes que eu, como me ensinara Mário da Silva Brito, chegasse a correr sob as escadas e contemplasse o número 92 entre dois degraus, como um aleph, e fosse catapultado de volta ao futuro, materializando-me na praça Ramos de Azevedo, no exato instante entre um jato de Colorjet de um grafiteiro e a parede externa do teatro. O menino correu com um berro de pavor e eu saí na madrugada, com a palavra grunz rafitada no meu peito.

 


O travesti não quer ser mulher

O travesti não quer ser mulher. Ele quer muito mais. O travestimento é um desejo do homem, que numa cascata para cima de insatisfações sucessivas vai recompondo as possibilidades de um buraco vazio.

O travestimento não se contenta com pouco. O travestimento está na mesma origem do barroco. Não existem travestis clássicos, só existem travestis maneiristas.

O travesti não deseja a identidade; ele quer a ambigüidade. O travesti surge no mundo urbano brasileiro com a pós-modernidade, perdoem a palavra. O que oferece o travesti ao homem que o procura? Oferece a oportunidade de ser mulher de uma mulher, de ser homossexual sem ser, oferece um pau.

O travesti que se opera perde sua maior jóia: a ambigüidade. Nada mais triste do que o travesti castrado. Vira nada. Não é mulher, nem homem; passa a existir só na sua própria fantasia.

O travesti que se opera fraquejou; não teve coragem. O homossexual se identifica com ele mesmo, com um igual (homed).

O travesti se identifica com uma terceira coisa, com um centauro, com um clone da mulher, com um crime. Há um lado criminal no travesti. Não é uma coisa simples, doce.

O travesti não é viado. Ele tem coragem, coragem de ser duplo, coragem do ridículo, coragem do perigo, no horror da madrugada. Tudo isto o travesti suporta pela grana, claro; mas também pelo supremo prazer do místico hiperespaço da esquina do Hotel Hilton. Por que o mundo fica tão cheio de suspense com o travesti por perto? Porque ele atrai os homens para seu mundo. Um homem dito normal tem tesão pelo travesti; vejam o ódio que eles despeitam em machões. Por uma simples bicha ele não tem nem ódio nem tesão. De repente, surge a Marlene Dietrich com botas de couro no meio dos faróis e lá está o pai de família perdido de loucura.

O travesti ameaça as famílias.

O travesti é útil porque cria a duplicidade no mundo dos executivos.

O travesti cria o racha real do mundo de hoje, porque age diretamente sobre o sexo e a perda da identidade. Ele é uma alegoria da transparência do mal.

O travesti não brinca em serviço; tem orgulho de ser quem é. Ele não é uma puta, ele não é uma decaída; ele é um ascendente. Ele tem um orgulho shakespeariano, um clima mágico que nem o cliente nem a puta têm.

O travesti não é uma pobre mulher por quem você pode se apaixonar e viver feliz para sempre.

O travesti é perigoso, você pode virar mulher dele. Quem se casa com puta vira um benfeitor. Humilha para sempre a mulher que ele salvou da vida.

Quem se casa com travesti pode virar escravo. Você não pode ajudar um travesti. O travesti nunca será grato a você. Você é que tem de lhe agradecer.

O travesti é um homem, nunca uma boa mulher.

O travesti não dá uma boa esposa; você pode virar boa esposa para o travesti. "Querida, já lavei sua saia de oncinha..." Você não tira um travesti da vida; ele é que pode te tirar da tua. Veja Num ano de treze luas, do Fassbinder. O pai de família larga tudo e vai ser travesti. O travesti não é uma decaída: é uma ascensão, repito. Ele tem mais que a mulher e mais que o homem. Ele tem tudo, é auto-suficiente. Ele está em perpétuo amor consigo mesmo. Ele é um casal. Se você entrar, você é o terceiro, e pode ser excluído.

O travesti nunca é bom; ele é a tua loucura, ele pode te levar para o caminho do crime.

O travesti está tendo algum lucro, além do dinheiro que você lhe paga. A puta é humilde; o travesti não. Além do que, o travesti na rua tem uma vertiginosidade que a puta não tem; porque o travesti é fálico; não é uma empregada, como a puta.

O travesti sabe de tudo que um homem quer. Como o desejo do travesti é masculino, ele conhece a mulher ideal. Ele sabe intuitivamente a síntese dos desejos perversos do mundo, e os encarna na sua roupa, nas suas coxas, nos seus gestos. O travesti procura a mulher ideal, e só o homem pode ser a mulher ideal.

O travesti está numa missão suicida, melhor, a missão do travesti é impossível; e ele sabe disso. Ele ainda é um dos poucos redutos de sonho no mundo. Ele não é da área moral, como a puta; ele é da área artística. Você não pode dizer que um travesti é imoral; quem está sendo imoral, o homem ou a mulher nele? A bicha é uma caricatura da mãe; o travesti é um ideal de homem. Um ideal de mulher e homem. O travesti encarna também um ideal de casamento.

O travesti não é caricatural. Até os há; que fazem a crítica da crítica etc... Os grandes são os que se levam a sério e são uma alegoria selvagem do amor lunar.

O travesti não tem par. Quem é o par do travesti? A puta tem seu amante, seu cafetão. Quem é o par do travesti? Ele é só. Às vezes eles transam uns com os outros no fim da noite, sob postes. Além do que, ele não tem vergonha. Um travesti nu em Copacabana desafia todos os pudores. A puta tem um certo pudor. Quem está nu na esquina? O homem ou a mulher nele? Ninguém está nu ali, por isso seu total despudor.

O travesti viaja na identidade, por isso ele se disfarça o tempo todo. Ele é movente, por isso pode ficar nu na rua, pois ele não é ninguém.

O travesti tem algo de cowboy, em nós desperta a mesma admiração que um John Wayne. Você está na paz, ele está na guerra. Quem passa em seu Monza da paz é atraído pela terceira margem do rio do travesti. Ele está na terceira margem. Imaginem o mundo do travesti de rua; o mundo visto daquele ponto de vista. Todos somos caretas vistos desse ângulo. A puta tem esperança. O travesti não tem.

O travesti não é um fenômeno moral nem social. É um caso de invenção artística.


Todos somos culpados com o fim da caridade

 

A esmola

Olho para o menino parado no farol de trânsito que vem em minha direção e pede esmola. Eu preferiria que ele não viesse. Não que ele seja agressivo, mas ele é sujo e sua roupinha está rasgada. Se ao menos ele viesse sozinho, seria mais suportável; ele deve ter uns doze anos e, no colo, carrega o irmãozinho, de seus dois anos. Ou seja, um menino miserável de doze anos leva outro como isca para me emocionar e tirar a minha esmola. Ao longe, na calçada, vejo a mãe do menino, esperando o efeito da cena, esperando o lucro da cena.

É um comércio, como uma exibição de cinema ou como uma peça de teatro. Assim como, digamos, Tennessee Williams quer arrancar emoção, a mãe-dramaturga também quer a empatia e, se possível, ter um sucesso de bilheteria: muitas esmolas.

Há certos mendigos que são sucesso de bilheteria; outros não mexem conosco e são fiascos.

O menino maior (o menor dorme no colo) se comporta como um bom ator. Sua vozinha é treinada com um tremolo de desespero e procura olhar bem no fundo de meus olhos, se bem que eu evite olhá-lo. Sucesso! Sou tomado por uma funda emoção (coisa rara, porque tenho me esforçado para não me deixar levar por sentimentos baratos). Mas, como é uma criança carregando outra (bom script: o frágil protegendo o frágil), vêm lágrimas em meus olhos, lágrimas que eu escondo, evidentemente, para que o menino não veja. Enquanto seco meus olhos voltado para outro lado, o menino insiste na janela do carro. Por alguns segundos sou grato ao menino, pois sua imagem com o bebê me deu a rara bênção, a boa fortuna de uma emoção humanitária. Por instantes, eu gozo aquela alegria como uma sorte grande. Eu me sinto feliz por ser tão bondoso e me consolo por ser um homem sensível. Meu primeiro impulso é dar um dinheirão ao menino, mas logo me controlo para não ceder ao óbvio e apenas dou a esmola normal, sem olhar para o garoto, que no entanto me olha sem parar. Sua mãe me olha a distância também. Mas eu não olho para eles. Por que esta dissincronia de olhares? A riqueza não olha a miséria, mas a miséria olha a riqueza. Não olho para não sentir culpa, ou para não ferir meu universo estético em que a miséria é um fator de desarmonia. A miséria não é plástica. A miséria nos lembra de que a desgraça existe, e que, por conseguinte, a morte também existe. Como quero esquecer a morte, não olho o menino.

Assim que dou o dinheiro ao menino, sou tomado por um ódio terrível ao estado de coisas, tenho um tremor meio histérico contra a situação brasileira, contra os políticos, contra os ricos (mais do que eu). Acelerando o carro, vejo que a indignação me enobrece e me faz atacar vagos personagens que formam uma alegoria do mal, um difuso conjunto de latifundiários, milionários, carrascos egoístas etc. Aos poucos me acalmo, enquanto o carro rola. Eu saio lucrando com a esmola, pois estou apaziguado; cumpri meu dever, me sinto legal, pois paguei um pedágio ao miserável por ter carro, comida e casa. Foi bom para mim aquele miserável. Assim, a miséria cumpriu uma função estabilizadora das regras sociais. A esmola que dei me consola mais do que ao mendigo. Também permite que eu me exclua da injustiça social, já que eu me indigno. Assim, a injustiça é feita por outros, por eles, pessoas sem rosto que são culpadas de tudo. O mundo é mau, mas eu estou fora; isto é um affair mal resolvido entre aquele garoto mendigo e os malvados do mundo. Assim, a caridade me faz bem, mais do que ao garoto que leva aquela mixaria que eu dei. A miséria mantém o mundo funcionando, apesar de sujar a paisagem.

 

O assalto

Outro cenário seria o do assalto. Estou no carro no mesmo lugar e um garotão ou dois me metem um revólver na cara e me levam o relógio, a carteira, talvez o carro e talvez me matem. Excluamos a morte, para sentirmos o after-taste, o arrière-goût, o prazer do assalto.

Primeiro, o assalto inverte a posição. Eu sou a vítima, não o esmoler. A pobre pessoa sou eu, num primeiro instante. Cheio de medo, tenho de soltar a grana para não morrer. O assalto é a esmola ao contrário; você recebe a graça de viver, se for humilde. Eles é que dão a esmola.

Além disso, o assalto desconstrói terrivelmente o meu universo. A pobreza perde sua face milenarmente doce e triste e ganha a face da vingança. A injustiça social que se abatia sobre eles é desviada sobre você. Você passa a ser vítima de uma injustiça social. E, mais terrível, aqueles pobres-diabos que tinham a missão de manter a sociedade funcionando na injustiça eterna se rebelam e parecem mudar a face do mundo. Há um sabor de sacrilégio no assalto. O assalto não te exclui. Ele te inclui. Você é o culpado de ter coisas, não os outros, os tais outros malvados. No assalto, você é vítima e culpado. Isso provoca um sentimento de confusão no mundo. Mais ainda se você for metido a progressista, a amante dos pobres oprimidos, um petista talvez. Nada pior que um petista sendo assaltado.

E aí começa um processo de inclusão em você, de incriminação, em que você é uma peça deste complexo micro-macro de injustiças, que começa talvez no capitalismo de Nova York e acaba ali no teu relógio. Retraçando o mapa, vemos que o teu Rolex foi comprado com o dinheiro que teu pai deixou da fazenda que o avô vendeu para pagar o banco que etc. etc... e daí vai-se numa linha genealógica de dinheiro que acaba te remetendo ao mundo dos exploradores.

Não há remissão no assalto. Além de te levar a grana, a culpa é tua. Com o fim do mundo da caridade, todos ficam suspeitos, todos incluídos no crime, e a guerra começa para todos. Ficam visíveis relações finíssimas: no esgar da cara de um burguês nordestino se vê a seca desenhada como uma tatuagem; na barriga de um político ou num bigode se vêem anos de corrupção. O fim da caridade é útil. Acabou o mundo do escândalo bondoso e vai começar o mundo da violência. E através dos olhos furiosos dos marginais a cara verdadeira do Brasil aparecerá. Nunca quisemos ver a miséria, agora não há outro jeito. Quando ainda dava tempo, e havia dinheiro para consertar, não fizemos nada — há uns 30 anos. Agora é tarde demais; iremos correndo atrás do social (como se houvesse algo fora) para ver se ainda dá para quebrar um galho paliativo, cestas básicas, reforminhas etc... mas não dará mais tempo. E como o país é um enigma politico-secular, com um jogo de poder onde não se consegue consenso nunca (vejam o inferno de partidarismos que não aprovam nada nunca), teremos finalmente o social desencadeado. Vai acabar a ópera-bufa e começar a tragédia. O fascismozinho caboclo vai começar a criar formas novas de extermínio. Está sendo chocado o ovo da jibóia, que culminará numa ditadura.

 

João Cabral fala do Brasil na hora da verdade

A simples aproximação da casa de João Cabral de Melo Neto já dá às coisas uma luz mais recortada. Atravesso o bairro de Botafogo e depois o Flamengo, duas florestas zoneadas de estímulos. Vou em busca de João como em busca de um oásis feito de ausências que me acalmasse dos berros das ruas. Assim como John Cage é o descanso da música, João é o descanso da poesia.

No elevador, imaginava-o numa sala deserta 'toda de luz invadida'. Imaginava-o em pé em sala branca, e em volta a "vida mais intensa, com nitidez de agulha (...) e tudo que era vago, toda frouxa matéria ganhando nervos e arestas". Imaginava-o num apartamento de Mondrian, Brancusi.

 

João e a angústia

Contrariando minha expectativa formal, o poeta abre a portinhola do apartamento. Por um segundo vejo seu rosto espiar, como um contínuo de si mesmo. Odeio-o por um instante por esta falta de apuro estilístico. Como? Sem preâmbulos, surge em close seu rosto de nordestino? Nem um prefácio introduzindo sua chegada? Não. Nada. João abre a própria porta, simplesmente. E logo vejo que o que parecia descaso é rigor. Direto ao texto, primeira lição. Nada de floreios de empregadas, nada de adjetivos de criados. Ele abre, ele é o texto, ele fala, ele se oferece pequeno e corroído por anos de diplomacia e de poesia e de dor à minha frente.

Fico extremamente calmo diante de João. Com sua primeira frase atira-se em busca de um amigo:

"Ando sentindo uma angústia danada. O negócio da angústia é terrível porque não se sabe o que ela é."

Óbvio que sei, falo logo em psicanálise, mas João não quer a cura. A dor é sua matéria. Um analista o explicaria. João não quer explicações. Esta angústia se filtra a anos, gota a gota, e se consolida em palavras justas, facas, balas. João se agarra a sua angústia, sua riqueza que o consome.

No apartamento típico de diplomata, restos de Sevilha, Equador, Lisboa, Londres se espalham pela sala grande no Flamengo. Pela janela, a paisagem cio Pão de Açúcar se desenha, óbvia.

 

João e o Brasil ausente

A primeira sensação que João dá é a de que ele foi longe demais. Pensou demais, viu demais e agora está sozinho. De jeans e Bamba, penso, um dos maiores poetas do mundo, de Bamba à minha frente. Parece que o Brasil lhe fugiu em volta e só ficou ele. Sevilha lhe fugiu, fugiu-lhe Pernambuco. João está de mãos abanando. Mas o Brasil está ali presente pelo avesso, pois João mostrou tudo o que não tínhamos. João nunca mostrou pobrezas, mas riquezas ausentes. Mostrou o que poderia ser a língua e o que poderia ser o país.

João descreveu o Brasil em negativo.

João fez um serviço, uma faxina na língua portuguesa. Fez mais que poesia; fez uma teoria da percepção.

João é materialista, mas nunca épico. Sempre matemático. Não parece artista, parece cientista, e é isso que faz a beleza do seu sopro lírico enjaulado.

A solidão do João mostra o que o país está perdendo. Todos evitam as verdades que ele disse, como se fosse uma luz forte. Ele está numa solidão pânica e precisa de cotidiano. João precisa de cotidiano como nós precisamos de poesia.

João parece uma caatinga, uma praia vazia. João precisa de amigos, mas ninguém tem nível. Penso em lhe apresentar João Gilberto.

 

João e o cotidiano

João é um homem que se gastou por bons motivos. Nunca se dissipou. Bebe bem hoje, porque ninguém é de ferro.

— A vida diplomática só é possível por causa do álcool. O álcool é bom porque age mais rápido que o calmante. O calmante demora.

— Qual calmante você gosta mais? — pergunto.

— Ah... tem o grande Valium, um clássico... tem hoje em dia o Frontal, que também é bom...

Frontal bota uma faixa de vazio acima dos olhos, já tomei, anestesia na testa. Com ele João pode descansar.

— Já li todo o Freud. Mas análise, não — me olha matreiro.

Perto de sua inteireza, todos os conselhos ficam babacas, ligeiros, tipo "você precisa se divertir, passear, arejar".

— Arejar onde, no Brasil, ai fora? — pergunta.

— Você tem consciência da importância do seu trabalho?

Por trás de toda a dor ele se permite um bater de pálpebra. Uma agulha de orgulho o fura por um segundo. Mas ele persiste:

— A obra não me dá nenhum lucro. Minha obra é motivo de angústia. Eu sempre exijo mais de mim, mais... Saio do poema com picareta, suando. Só há dois caminhos; ou você arruina a saúde pela poesia ou pela preguiça. O sujeito tem de viver no extremo de si mesmo. Eu vejo isto na tourada. O bom torero é o que dá a sensação ao público de que vai morrer. Quanto mais perigo melhor poesia, melhor tourada. Mesma coisa no canteflamenco. É um cante que se expone, se expõe, corre risco. Sem exponerse, não há poesia.

"Eu sempre escolho a pichação em lugar do elogio. O Nelson Ascher da Folha disse do Sevilha andando: 'Nada de novo na obra do maior poeta brasileiro'. Eu podia ter escolhido a segunda parte da frase, mas escolhi o 'nada de novo'. E fiquei remoendo aquilo."

 

João e Vinicius

Fica uma calmaria na sala com o Pão de Açúcar ao fundo. Lembro-me de uma noite, há 20 anos, na casa do Rubem Braga, em que o João, meio triscado de uísque, esculhambou o Vinicius a noite toda, implicando com sua falta de rigor. João tinha inveja do Vinicius, de sua aptidão para o prazer. E Vinicius, vice-versa, inveja da exatidão. Vinicius também de porre dizia: "Deixa pra lá, Joãozinho". E os dois, o sacana e o asceta, bebiam pelo bem poético do país, enquanto Danuza Leão reclamava: "Que gente chata os poetas..."

"Quando publiquei o 'Morte e vida severina', o poema vinha junto com 'Uma faca só lâmina', no mesmo livro, Duas águas. O Vinícius falou que adorou o 'Morte e vida'. Eu falei: Mas este poema, Vinícius, eu fiz para o povo. Pra você eu fiz o 'Faca só lâmina!'..."                                   

 

João, Schmidt, Pessoa

E mais animado pela confissão da angústia, João critica o que mais detesta, o derramamento em poesia. Apesar de agradecido, não perdoa o Schmidt:

"Augusto Frederico Schmidt, autor de poesias derramadas, metafóricas, me fez o grande favor de publicar meu primeiro livro, O engenheiro. Leu, ficou pálido e disse: 'Este livro vai me fazer um grande mal. Mas publica e manda a conta para o meu escritório...'"

João esculhamba Fernando Pessoa:

" O mal que Pessoa fez à literatura é imenso. Aquela coisa inspirada, caudalosa, criou uma legião de poetastros que acreditam na inspiração metafísica... Até Drummond ficou assim no fim da vida. Sei lá, foi preguiça... Porque o poeta tem de aprender sempre. A experiência anterior pouco adianta. O poeta nunca aprende a escrever."

 

João e a prima

João detesta idéias gerais. Há poetas e leitores que se atiram na poesia em busca de redenção. João tira qualquer esperança. João detesta otimistas.

'Uma faca só lâmina', digo, "é para mim o maior poema da língua. Você chega a níveis indizíveis de sentido. É um dos poucos poemas que parece ter tocado em alguma essência do real", arrisco envergonhado.

João: "'Uma faca só lâmina' é um poema sobre a obsessão. Mas não a obsessão metafísica, sobre a condição 'vazia' do homem. Se chegou a isso, foi por acaso. Você se lembra da última estrofe, quando eu digo: 'Por fim â realidade, prima, e tão violenta que ao tentar apreendê-la toda imagem rebenta"? Se lembra? Pois saiba que eu fiz este poema pra minha prima. 'Prima' ali não é 'primeva', ou 'originária' não... E minha prima mesmo, uma moça linda que não quis dar para mim. Ela é a razão do poema. É um poema de amor."

Estranhos caminhos de um tesão mal resolvido. A partir do tesão, João chega ao ser.

 

João e Macunaíma

João não é de cair em tentações, mas mesmo assim procuro extrair dele algumas idéias gerais sobre o Brasil. E o que consigo é um breviário de idéias parciais. João nos ensina sobre a serventia das idéias parciais.

E aí é que ele esculhamba o Mário de Andrade. "O que você está me perguntando é um vício inventado pelo Mário de Andrade. Esta história de identidade nacional foi ele quem inventou. Esta história de fazer uma síntese do que é Brasil é coisa dele. Este fusionismo é bobagem. Se você pegar o Gilberto Freyre, Casa grande é um livro sobre o cotidiano da escravidão. Não quer sínteses. Por isso que é bom. Já o Macunaíma é um erro. um cadavre exquis, um Frankenstein."

Esta é a grande lição de João. Não faz um poema de princípios gerais. Só fala do parcial, do concreto: o alpendre, a aspirina, o ovo, o canavial, Sevilha, o toureiro. E suas metáforas são concretas também: uma mulher é uma fruta, uma onda, uma andaluza é uma égua, o mistério da vida é uma faca só lâmina a comer o tempo em volta.

 

João e as idéias gerais

Tento uma serventia de João para a crise nacional. Provoco-o com perguntas genéricas:

"Pra onde vai o Brasil, João?"

João: "O Brasil está numa crise de parto. É um parto muito demorado. As coisas são surpreendentes. A revolução militar prendeu, torturou etc... mas não regrediu o país. O país cresceu. Agora, com a liberdade está parado. Se puser o homem mais genial do mundo no governo, os estamentos burocráticos e os políticos reacionários não deixam.

"O Brasil tem de ser conhecido aos pedaços e consertado aos pedaços. A medida que você conhece bem uma coisa, fica mais difícil generalizar. Até a carta de Pero Vaz de Caminha dava para ter idéias panorâmicas, depois... É preciso mais 'casas grandes e senzalas' sobre as diferentes regiões.

"Acho também que esta euforia neoliberal é provisória. Daqui a uns anos o espírito do socialismo vai voltar em bases novas. Capitalismo não é regime político.


"Esta visão também de que o Brasil era melhor antes é errônea. O Brasil era menor, mais atrasado, as idéias eram mais toscas. E tudo se juntava, dando idéia de que era melhor. Agora com a TV, os meios de comunicação etc, é que vemos como é complexo e maior. A literatura, por exemplo. Parecia melhor porque tinha poucos escritores. Agora tem muitos. Em suma, o Brasil em detalhe é só decadência, mas acho que no conjunto é positivo."

 

João e a hora da verdade

João nos ensina que além de condenar o totalitarismo social, temos de condenar o totalitarismo das idéias.

Esta massa informe de loucuras que nos assola está plasmando novas realidades que vão arrebentar com o eixo rural-patronal-essencial do país trancado em três ou quatro verdades. Pode ser bom.

João é a favor de tudo o que trinca, que desmancha as idéias gerais de um coronelismo mental que nos trancafia. João é a favor dos best-sellers, da massa doida da TV. João é pela balcanização do país em regiões e idéias.

Ele não diz, mas vejo em sua atitude que ele quer tudo o que arrebente com o academicismo bilaquiano de um passado pomposo. Ele quer o Brasil desfigurado por parcialidades que possam fazer nascer alguma significação. Quer que no meio desta ópera-bufa os cacos possam fazer surgir a verdade de alguma tragédia.

João fala com veemência sobre a arte de torear:

"A hora da verdade é quando o toureiro mata o touro. O bom toureiro corre o risco de propósito nesta hora. O risco é fundamental. A hora da verdade."

Percebo que João não fala só do touro, fala do Brasil.                  


Matupá: o último filme brasileiro

 

 

Um cinegrafista amador grava o martírio de três homens queimados vivos.

 

Cena 1: a história

 

Três assaltantes entregaram-se à polícia, foram baleados e queimados vivos, no ar. Inventou-se em Matupá um novo estilo de martírio. Um marco na história da crueldade.

 

Cena 2: a locação e personagens

 

Um travelling violento em dose sobre a lama e o capim molhado. A câmera sobe para plano geral e mostra a locação onde a tragédia já começou.

Vemos o horror da brutal colonização sem amor: campo de futebol, lodo, lixo, a tristeza dos dias militares que criaram os incentivos da Sudani e que geraram a cidade.

Na lama, despojos do consumo urbano supérfluo: motocas, Voyages, Monzas, colonização inacabada e sem plano. O lado imundo do Brasil: esta coisa nem agropastoril nem urbana que virou o interior do país. Cheiro de Mediei, de Figueiredo. Música: talvez uma rabeca tocando desesperada? Não; Bernard Hennan.

Personagens principais: três assaltantes desgraçados, ineptos, fracos, quatro soldados da PM (que os salários não viam), um capitão de Ray-ban (os clichês imitam a vida), uma freira alemã idealista, um prefeito fichado, um padeiro ferido de amor. Direção de Leno Durrenwald, tímido rapaz que filma casamentos, batizados e martírios.

Terríveis gritos de reféns e mulheres. No ar, maleita. Ao redor, o mercúrio na água dos rios. Começa um filme de horror, feito de balas, febres, detritos de Brasil Grande. Uma liga escrota de tecnologia, VT, Ninjas Kawasakis, estéreo e sangue. Cores básicas: marrom-lama, rosa-pálido, verde sujo, céu de chumbo, sem horizontes. A terra treme.

A ação se passa em torno da casa de Carlos Mazzonetto, dono de garimpo, com a família seqüestrada na noite escura. A energia elétrica gerada a diesel faltara por causa do racionamento da guerra do golfo Pérsico. Saddam nas bocas, presente. ONU, tudo. A grande transa sórdida entre todas as coisas. Interdependência de encrencas mundiais. O delegado aleijado Oswaldo Florentino comanda trôpego as negociações. Tudo vai mal. Tudo.

 

Cena 3: um milímetro de amor

 

Chega o capitão Edyr Macho, bigode, gordo, Ray-ban, fala boa, dentes brancos. Um líder. As coisas começam a se organizar. Capitão Edyr é treinado e calculado. Alívio dos capiaus. Quase dá vontade de se entregar a um homem tão viril. Amor ao captor. "O que eu cumpro eu prometo", diz num ato falho. "Ou melhor... o que eu prometo eu cumpro". Vira-se para a câmera de Leno: "Agir com cautela... há vidas humanas em jogo... uma questão de nobreza... sou pai de família... trata-se da honra do prefeito... etc..." Capitão Edyr fala imitando o Cid Moreira ou o Alexandre Garcia.

Plano geral, aumenta a multidão cercando a casa. Centenas com escopetas e pistolas. Nem na paisagem horrenda nem nos homens, um só milímetro de amor.

Close-up: Óculos Ray-ban do capitão reflete chegada de um Opala, que levará os assaltantes. A voz de Edyr seduz. Assaltantes soltam os reféns. Palmas para os reféns...

Na porta, o capitão Edyr conversa baixo com o prefeito de uma cidade vizinha, Ênio Lacerda. Um repórter, Aroldo de Souza, teria gravado em fita os dois combinando a execução dos bandidos.

 

Cena 4: o anjo da malária

 

Uma imensa fila de homens armados. Em meio a este exército, uma frágil freira parece voar: a irmã da malária, a santinha Adele Schwalen, que deveria ir no Opala com os bandidos, a quem se prometeu 500 mil cruzeiros. Uma ilha de humanismo em meio à selva do quarto mundo. A irmã que cura a malária flutua em pânico, forte sotaque alemão. Adele: "O dinheiro... onde está o 'dinheiros' que vocês vão dar a eles?... Vocês 'prometeu'..." Ela adivinha o perigo. Busca ajuda. Nada.

Travelling dos rostos cínicos e rudes... Uns riem... Todos já sabem o que vai acontecer. Tratam a freirinha como um pragmático trataria um idealista alemão, com o tédio carinhoso que os vividos dispensam aos ingênuos.

"O dinheiro? Estão fazendo o cheque, irmã... Calma, irmã..." Riem, cínicos.

A irmã da malária abre os braços como garça e parece que vai voar dali para os céus de Berlim. As asas do desejo. Ela é o anjo que Wim Wenders devia filmar.

Adele sai de quadro, branca de dor. Ela já sabe.

O rosto excitado dos cidadãos. Há certo tesão no ar. Um sexo torto. Todos sabem o destino cios bandidos..

 

Cena 5: realidade vira TV

 

Os bandidos estão sós. A voz de Edyr é sedutora, de hipnotizador. Ele denega bem para a câmera qualquer hipótese de desejar a violência. "Podem confiar em mim. Seria muita covardia matar vocês! Não estamos aqui para isto!"

Corte abrupto para cinco mil homens gritando em plano geral. Armas erguidas.

A realidade vai virando televisão. A realidade vai ficando rala; em seu lugar começa a rodar um filme de sangue e dor. O último filme brasileiro. Nem a arte imita a vida nem a vida imita a arte. Tudo acontece agora como dirigido pelo jornalismo da TV. Onde começa a vida e onde acaba o jornalismo?

Ao sair, os bandidos provocam imensa decepção. Três pobres peões, ralos, frágeis, numa humildade desamparada e quase doce olham inermes a multidão que grita: "Mata! Mata!" Algemados aos braços dos PMs parecem quase gratos aos soldados.

O Opala arranca com os três na paisagem de Mediei, sob o céu de Figueiredo. Só que não vai o prefeito, não vai a freira, não veio o dinheiro. Vai com eles o chefe de segurança de um garimpo. Humildes, não reclamam. Vão calmamente para a morte.

 

Cena 6: Voyage para a morte

 

A cena começa com uma panorâmica onde vemos PMs contendo a multidão. Parecem defender os três. Mas a Pan continua e vai ao rosto dos presos. Estão ensangüentados e batidos, ao lado de um Voyage. Já apanharam muito. Da Polícia. Deitados no chão.

Câmera no chão. "Vocês não pensavam em trabalhar? Ser honestos?" A oposição trabalho versus crime fica espantosa neste lugar. Todos aventureiros, garimpos ilegais, predadores, com este papo meio quake no Mato Grosso. O sinistro e fascinante é ver um criminoso julgando a vítima. O crime é de quem interroga. O assassino é justo; a vítima é o réu.

Os bandidos estão perdidos. A multidão já não os reconhece como semelhantes. Eles já são os Outros.

Um responde que tem medo de morrer, com o rosto no chão; alguém grita off-screen. "Fala para a câmera, vagabundo!"

O último fiapo de realidade cai. Todo mundo começa a viver para a câmera e a morrer para a câmera.

Os soldados dão pontapés autoconscientes para o VT e empurram-nos para dentro do Voyage. Um bandido lança um olhar espantado para a câmera, como se quisesse fugir pelo tubo e é empurrado para o poltergeist de seu destino. O carro parte de novo. Voyage para a morte.

 

Cena 7: a farra dos homens

 

É um sacrifício sem Deus. Um ritual cego. Eles já estão caídos no chão de lama. Um já está morto. Os outros dois, baleados na nuca, ainda respiram. Cortaram a cena de caça, mas soubemos como foi.

Flashback. O Voyage parou e mandaram eles correr. Foram caindo sob rajadas. Uma espécie de farra do boi. Farra dos homens.

Já estão no altar do sacrifício. Os três corpos de cristos sujos amontoados. Seminus. Nenhum soldado mais. A farra agora é civil.

Tudo virou espelho. Os linchadores se exibem para o espelho infinito nos olhos dos sacrificados. Ou para a câmera. Isto é uma visão do inferno. Os carrascos não portam capuz. Eles querem ser vistos pelos moribundos, refletidos nos olhos deles, ouvidos por eles. Os olhos baços de um agonizante se viram para Alcindo Mayer, comerciante, que então (para ele e para a TV) pisa-lhe no pescoço três vezes, matando-o para que ele se veja morrer.

 


Cena 8: a dança da morte

 

Então, sobre os corpos dos moribundos adianta-se o padeiro Valdemir que viu sua mulher estuprada dias antes. O traumatizado padeiro lança gasolina sobre os corpos vivos. As chamas explodem. Palmas, felicidade. Viva Matupá! Viva a Polícia!            

Há uma mutação ética em Matupá e no Brasil.

Não dá para analisar em termos de justiça ou moral. Foram atos despojados de valor. Um país sem rituais. Uma dança da morte, sem música, sem passos. O horror é pouco para justificar falatórios. É ridículo usar este massacre para mostrar nosso escândalo, nosso humanismo. Certamente as anistias internacionais acalmarão suas consciências com mais esta exportação de sangue. Mas eles, os países ricos, estão ali, presentes, presentes desde o VT até o ethos que nos mandaram com o milagre dos anos 70 e a dívida correspondente, assim como Saddam estava presente no diesel que faltava. Paris-Matupá.

O nível de martírio é horrendo. Imediata reação do espectador: "Que sorte a dos que já morreram de bala". Um deles resiste e é queimado lentamente durante 20 minutos. Cravados. Um cristo de fogo. E fala. E grita: "Meu pai, me deixa morrer, paizão!"

Ele queima sem parar, e neste momento, é obrigado ainda a trabalhar para a televisão. E este homem em chamas, baleado na nuca, uivando, é submetido ao interrogatório de um anônimo que lhe fala de trabalho e honestidade. O pior suplício talvez tenha sido este. Ser alugado por um pentelho na hora da morte. Surgiu aí um novo tipo de chato: o chato in extremis.

O espantoso é pensar que ninguém se escondeu da câmera. Todos queriam ser vistos. Por quê? Por que não havia um sentimento de culpa, medo do olho da Lei? Será que eles eram a Lei?

Será que eles eram o Pai que o último sobrevivente chamava enquanto era queimado vivo? Por que os supliciados chamam o nome do Pai?

A imagem se interrompe bruscamente. Não sobem letreiros. Não sobe música. Mas eu gostaria de ouvir na trilha sonora um blue, um spiritual. Talvez Strange fruit, com Billie Holiday.


 

O primeiro take do Cinema Novo

 

Esta foto tem 32 anos. Glauber Rocha em 1961 filmando o Barravento em Salvador, batido pelo vento e o sol da praia da Bahia.

É apenas uma foto de filmagem, mas dentro dela estão os indícios dos anos que Glauber percorreu até o leito de morte em 1981. Na foto estão também vestígios proféticos do estilo do Cinema Novo que nascia.

A foto não está parada; Glauber e sua câmera parecem mover-se para a direita do quadro, como se fossem montados num trilho. Glauber parece estar à cavaleiro na câmera ou ser o cavalo de alguma entidade do vento e do mar. Glauber galopa na câmera ou no tempo? Pode também estar flutuando num travelling que se estende para muitos anos além daquela praia.

Com o braço direito ele parece chicotear um cavalo (ou o passado, o cinema passado?). Com o braço esquerdo aponta em direção a quê?

Ao futuro seria muito alegórico para ele. Ele aponta talvez para outras posições de câmera, para outros lugares, onde ele e nós estaríamos nos tempos seguintes do Cinema Novo.

A foto parece captar inteira a própria idéia do que seja a felicidade. Há uma espantosa alegria; há a aura fotografada de um sentimento indizível. Sente-se ali o vento da Bahia, sente-se o ruído do mar e sente-se que Glauber está numa euforia épica, materialista, que se alegra com o que liberta, não com o que acumula. Glauber começava a libertar coisas.

Não é o típico orgulho comandante de cineasta padrão. Glauber está nu e não chefia autoritário equipe alguma. Na foto não se vê a equipe, como se só ele, com uma câmera na mão e idéia na cabeça, comandasse a si mesmo na direção de alguma coisa além do quadro. Para onde vai Glauber nesta foto? Para uma guerra ou para um êxtase? Há algo nele de corredor de biga de Ben-Hur. Estará competindo já com o grande espetáculo?

Glauber também parece chamar uma fila de seguidores que estão fora do quadro. Quem são eles? Somos nós, na época, ou há outros, hoje? Para onde os guia? Para a guerra ou para o prazer? Há nesta foto as duas coisas. Porque, assim como um braço chicoteia, o outro aponta o caminho. Há um contraste lindo entre o seu imenso sorriso de felicidade (diria ventura) e a câmera, guerreira também, apontando para ferir realidades novas.

A câmera de Glauber também assume o vulto de uma arma. Tem alguma coisa de fuzil, de metralha, de matadeira que, junto ao riso-grito de Glauber, cria a dualidade máxima do Cinema Novo: a câmera como fuzil e o infinito prazer da arte.

Não se vê a terra (só o mar) e ele poderia estar em uma caravela ou canoa de pescador.

Assim, ele poderia ser descobridor marítimo ou argonauta. Poderia estar gritando: "Terra à vista!"

Há no sorriso dele (para quem o conheceu, é claro) um travo de prazer de vitória, quase uma arrogância de vencedor, o uivo de um general no êxito, na Vitória da Conquista (onde nasceu), que é no sertão da Bahia, cidade rude que ele transporta ali para beira-mar.

Mas a vitória que Glauber cantava era a consciência antevista de que a câmera começava a captar um país. Começava a descoberta de um país que ainda estava invisível. Ao fundo, a música ondulante do candomblé, soando aguda nas vozes das iaôs: "Euaááá euaáá lajô... euaáá!"

Glauber está numa espécie de fotoprofecia de tudo o que fizemos nos anos seguintes.

A foto traz dentro de si os traços essenciais do que seria o Cinema Novo. Assim: a câmera leve, portátil, permitiu que nós, brasileiros, filmássemos, longe das pesadas Mitchells de estúdio de Hollywood.

A luz da foto é natural. Não há arcos voltaicos por perto, só o sol. A luz não está domada por filtros mexicanos. Os filtros estão fora; o negativo Plus X está inerme diante da luz crua do trópico, sem defesas acadêmicas de sombras e claros. A luz estoura mesmo, como virou quase nuclear em Vidas secas, dois anos depois.

A foto prevê que o cinema que faríamos nos anos seguintes seria todo de exteriores. Não tínhamos estúdios, a Vera Cruz tinha acabado. E esta câmera era uma câmera de cinema. Não havia ainda o vídeo com seu ar de microfone de imagens. O vídeo tudo capta, ao léu, como um olho multíparo, um olho onívoro, que não coita nunca, que tudo emenda num vórtice de informações desnecessárias. Já a câmera de cinema é seletiva e escolhe o que enquadrar. O cinema aspira a um sentido, no detalhe. O VT aspira a tudo mostrar; mas o cinema sabe que nem tudo existe. O VT mostra muito e, portanto, vemos pouco. Tanto é mostrado, que nada aparece. A miséria vista no aquário sem fim da TV acaba se banalizando; no cinema, a miséria da seca refletida no olho de um boi morto (primeira imagem de Deus e o diabo na terra do sol) pode falar mais que duas horas de Globo repórter. O VT nos virtualiza, o cinema nos traz ao real.

Só o cinema arejava, ventava, com nossas câmeras abertas sobre o país, como fuzis ao contrário que, em vez de expelir balas, impeliam para dentro paisagens e rostos.

Assim, uma série imensa de realidades que hoje são inclusas em nosso vocabulário visual foi desvelada nesta época: o mar, a lama, a fome, a favela, os presépios da miséria, as classes sociais, a estupidez da classe média e todo um generoso esquematismo sobre o Brasil.

Hollywood e a TV eram ainda filhas do teatro. O Cinema Novo era filho do documentário.

No momento em que esta foto foi feita, havia uma euforia no país. Brasília tinha sido inaugurada, a Bossa Nova soava no mundo e Fidel Castro podia ser visto do outro lado do mar que se encapela atrás de Glauber. Este é um cartão-postal político, um correio metafísico que Glauber nos manda do passado para hoje. E por esta câmera entraram outras imagens, do mar para o sertão. Por estas lentes entraram os miseráveis de Vidas secas, os loucos de Os fuzis, e os negros de Ganga Zumba. Uma longa fila de mais de 300 filmes foi feita durante 20 anos, seguindo este braço de Glauber. E em todos estes filmes ficou esta lição salina, ventosa, de areia branca e mar batido.

Os tempos pioraram, o país ficou mal, mas esta foto ficará como o primeiro fotograma de um longo filme que pode ainda criar uma terceira margem do rio' entre o bem e o mal. Barravento quer dizer transformação no mar e na terra. Isto se passava nesta foto e fora dela, pois Glauber olha para fora, olha para o que vê em volta, olha para uma tempestade de luz que vai em todas as direções.

Havia um barravento em sua alegria. Esta alegria não é só do Glauber. Esta alegria que se vê na foto vem de fora e entra nele; a alegria estava na paisagem, nos homens em volta, na equipe, na esperança alada de todos. Como Cézanne disse, Glauber poderia estar dizendo: "Eu sou a consciência da paisagem que se pensa em mim!"

Em resumo, nesta foto está o futuro do que seria o Cinema Novo nos 20 anos seguintes: um mulato-índio do sertão, o sol, o vento, o sal, a câmera como arma, o braço armado da utopia (ut topos— outro lugar), o riso debochado, a pele nua contra o figurino, o grão da foto estourada, a câmera movente, a idéia na cabeça, a atitude de guerra, o cinema de autor, a miséria e o ouro, o choro e a dança, o precário assumido, o horror ao posado, a estética da fome, e, não sabíamos ainda, a morte nos esperando fora de quadro.

E agora, além da morte, depois dela, começam a renascer as possibilidades. Pode ser que apareçam aos poucos os novos artistas que Glauber chama com a mão direita. E pode aparecer também o que ele aponta com o braço esquerdo. Aliás, olhando bem, nesta foto o Glauber podia estar também começando o primeiro batimento de braços, preparando-se aos poucos para alçar um grande vôo.


O óbvio ululante é a grande descoberta

 

O primeiro encontro

"O prazer estético é igual ao orgasmo de uma cotia do Campo de Santana", me disse Nelson Rodrigues. Esta foi a primeira coisa que ouvi dele. Eu era recruta no Exército e colega do seu filho Jofre. Cabelo raspado, peguei uma carona com ele, que foi buscar Jofre no quartel. Eu tinha 18 anos, já tinha lido tudo dele e escrevia sobre teatro na Última Hora. Quis impressioná-lo com frases de esquerda sobre estética. E ele: "A cotia amando tem o mesmo prazer que nós temos no quinto ato do Rigoletto". Eu falava de Brecht e ele ria: "Brecht é uma besta". E eu em pânico entre a tietagem e o escândalo. O orgasmo da cotia foi minha primeira lição.

 

Nelson contra os laranjas

A importância de Nelson não tem sido alcançada pelos críticos e ensaístas. Ele está muito além (ou aquém?) do rótulo de pornográfico ou tarado que os leigos lhe atribuem. Está muito além (ou aquém?) até das corretas análises teóricas que lhe fizeram. A importância da obra de Nelson parece não ter importância. Onde ela menos parece profunda, ali é que ela encontra uma altura rara. Nelson não é traduzível em conceitos laranjas (gíria de jornal que quer dizer intelectualóide ou embromador, que ele muito usava: "Fulano é laranja etc"). Nelson fez uma grande resistência ao laranjismo ou laranjada da literatura brasileira. Vou tentar explicar, correndo o risco de ser laranja.

 

Antes e depois da nudez

Em 1972 resolvo fazer o filme Toda nudez será castigada. Procuro o Nelson. Ele me reconheceu: "Você parecia o Byron aos 17 anos". "Quero fazer a tua peça e tal..." "Mas você já fez alguma fita?" "Já, Nelson, e a última foi Pindorania, o maior fracasso". "Ah, tens um fracasso? Então pode filmar... estás no bom caminho. Só os fracassados verão a Deus..."

Quando o filme ficou pronto, levei o Nelson para ver, que chegou desconfiado, certo de que ia ver um abacaxi. No meio da projeção, Nelson apertou meu braço e segredou: "Tá bom pra burro, rapaz..." Quando acendeu a luz, Nelson me olhava diferente. Sou um homem antes e outro depois daquela primeira projeção de Toda nudez será castigada.

Daí para frente nossa amizade não parou mais.

 

A luz dos botequins

Nelson é filho do jornal. Do texto jornalístico. Do efêmero do texto do jornal. Dos casos de polícia. Das noites nas delegacias. O pai era dono de jornal passional. O irmão foi assassinado na frente dele. Nelson dirigu o Gibi, o Guri. Nelson foi empregado do Roberto Marinho. Isto deu ao Nelson a profunda captação do óbvio da realidade. Isto deu a ele a sensibilidade rara de profeta, haurida não na babaquice livresca dos laranjas dos anos 20, mas nos crimes passionais da Lapa, no cotidiano das vilas, na verdade luminosa dos subúrbios, nas empadas de botequim, na crua verdade dos fatos.

 

A adúltera marxista

Estou comendo o ensopadinho de quiabo na casa dele.

"Rapaz, o Oduvaldo Viana Filho e o Rui Guerra me chamaram uma vez para escrever o roteiro de um filme: Adultério. Fui a umas reuniões, mas eles queriam que a heroína, uma Madame Bovary de Copacabana, não tivesse culpa nenhuma. Aí eu larguei o serviço. Eles queriam que a adúltera fosse para a cama do amante movida apenas pelas 'relações de produção...'"

"E o Ferreira Gullar? Grande poeta, mas agora só vive reunido em grupos, só cria coletivamente. Outro dia, encontrei o Gullar na rua e em vez de dizer: 'Oh Gullar, como vai você?' disse: 'Oh Gullar, como vão vocês?'"

 

Contra o lero-lero

Nelson detestava teorias, e por isso pôde preservar o real brasileiro dos anos 30, 40 em diante, como fez Gilberto Freyre indo ao concreto da Colônia. Nelson transformou o óbvio ululante em categoria filosófica. Escapou assim dos enleios ideológicos facilitantes, dos estrangeirismos. O que o irritava no marxismo era a ingênua crença na possível solidariedade humana. "Um regime que não reflete sobre a morte está fadado a desaparecer." Nelson sabia que o homem não prestava. "Jabor, se houver uma guerra total e acabar a humanidade, não se perde absolutamente nada." Era reacionário porque reagia ao novo falso, ao lero-lero, ao papo furado. Por isso sua obra é um depósito, um armazém, um botequim geral, uma quitanda emocionante, uma padaria de Brasil. Essa importância, a meu ver, é maior que as greco-tragicidades de suas peças mais solenes.

 

Desejo de pobreza

Toca o telefone:

— Rapaz, você atendendo ao próprio telefone... você é o contínuo de si mesmo?...

— Doce Nelson... como é?

— Sou um pobre homem de Póvoa do Varzim... — dizia imitando o Eça de Queiroz. Durante oito anos os telefonemas começaram assim:

— Eu vou na minha obscuridade...

— Que nada, Nelson, você é um craque!

"Ainda tenho pão e um pouco de manteiga para lhe barrar por cima..." ou "Se você vir um sujeito tocando acordeom no chão da rua do Ouvidor, pode dar esmola que sou eu..." E aí contava as coisas, falando como escrevia: "Chegou o crítico para mim e falou que boas eram minhas peças profundas etc e tal... Falou que na Falecida eu empobreci minha linguagem... se ele soubesse o esforço que eu faço para empobrecê-la...."

 

Brasília é Nelson puro

"A poesia está nos fatos", dizia Oswald no Pau Brasil. A poesia de Nelson ficava ao rés-do-chão, na infinita riqueza da língua real, na recusa a qualquer laranjismo totalizante (já estou exagerando no meu laranjismo). Nelson odiava realidades não concretas, metáforas gasosas, metáforas gosmentas. Nelson inventou a antimetáfora no Rio enquanto Oswald a inventou em São Paulo. Nelson era um Oswald sem viagens nem cultura fina. Esta cultura impediu Oswald de sacar o Nelson, pois implicava com ele. Nelson não era politicamente correto, por isso estava livre para ver. Ler Nelson, principalmente das crônicas (O reacionário), as pequenas histórias de A vida como ela é, as peças pobres e suburbanas, é viajar pelo país, pelo passado e entender o presente.

O Brasil já esteve mais para Glauber Rocha, durante os anos épicos da violência, da tortura, cio militarismo louco. Nunca o Brasil esteve tão Nelson Rodrigues quanto hoje em dia. Não é o caso Magri, por exemplo, um lancinante episódio de A vida como ela é. Esta dosagem de caricatura com tragédia que regeu o caso da Zélia e do Boto, com o adultério transcendendo a política, a piada sinistra do Alceni das bicicletas, tudo é Nelson. Uma viagem a Brasília mostra o trôpego, o manco, o ridículo da dignidade nacional no Congresso, nos lobistas, em tudo. O traço palhaço, circense, de Nelson nos retrata mais até que os sóbrios subtons ingleses de Machado. Só pelo entendimento do atraso, da sólida mediocridade de nossas cabeças, é que começaremos a saber o que nos acontece.

 

Sartre e as jabuticabas

"O problema da literatura brasileira é que os escritores, nenhum deles, sabem bater um escanteio. Os intelectuais brasileiros vivem de olho na Europa. Quando o Saitre veio ao Brasil, fui numa conferência dele na casa de um intelectual importante. Grã-finas, artistas. Lá pelas tantas, dão umas jabuticabas para o Sartre chupar. O filósofo falava e chupava as frutas. E como não tinha onde cuspir, o intelectual brasileiro ficou com uma tigelinha de prata, ajoelhado, onde o Sartre cuspia os caroços... Rapaz, aí eu descobri a verdade fundamental: o intelectual brasileiro era a escarradeira do Sartre!"

Eu no telefone, numa crise de laranja: "Porque Nelson, tudo bem, você não precisa ser marxista, mas as classes sociais, lutas de classes, a burguesia etc, tudo isto importa, o proletariado, a classe média, porque a classe média..."

"Rapaz, para com isso, o Homem é de classe média!" atalha Nelson.

Realmente o homem era de classe média e não sabíamos. Vejam o mundo hoje com a vizinha gorda e patusca comendo hambúrguer no Kremlin e o Yéltsin de classe média subindo ao poder.

 

O triunfo do óbvio

A própria história da literatura não sabe situá-lo direito. Apesar da unanimidade em colocá-lo como o maior dramaturgo brasileiro (critério hierárquico), não se aponta a infinita riqueza de seu minimalismo profundo, da atenção ao detalhe do cafezinho, do cachorro atropelado, do cravo-de-defunto, do juiz esbofeteado no futebol, da transcendente, amorosa, emocionante cafajestice brasileira.

Nelson não era um simples satírico, um Mencken, um puro demolidor. Havia na sátira profunda um espantoso amor pelos pobres desgarrados da loucura nossa, os pobres-diabos que somos, dos quais ele não se excluía. Somos uma população de pés-rapados, isso ele mostrou. Nelson é o triunfo do óbvio na literatura. Nelson é a Semana de Arte Moderna do Rio, 20 anos depois. Só que não é fruto do dadaísmo (ele nem sabia o que era isso) ou da melhor voga européia de 1916. Ele nutriu seu estilo das beiras de calçada, das pedras filosofais de nossos calçamentos, da lancinante profundidade trágica dos nossos barnabés, nossa prontidão e outras bossas. Nelson é Noel, é Lamartine e tem uma profundidade democrática longe de qualquer populismo. Nelson leu Dostoievski, Eugene O'Neill em tradução de Portugal, Anatole France, Shakespeare depois, Eça, e algum Machado. E ouvia ópera pelas insônias afora. E sabia tudo. Tinha um avesso da erudição que precisa de estudos mais precisos dos que os dedicados a um Mallarmé. Porque atingia a transcendência dentro das coisas e não nas alusões, nos mistérios que estariam fora da literatura, no alto parnaso. O mistério de Nelson estava dentro das empadas, não além delas. A matéria da literatura de Nelson está nas palavras, na contigüidade entre elas, nos nomes dos personagens, na sonoridade tosca do português, no concretismo de cada objeto visto em dose, um por um, no imenso amor pelo coloquialismo revelador, inclusive pelo jogo proposital que ele fazia com a própria ignorância. Nelson é a maior denúncia risonha da máscara nacional, da pose tropical.

 

O assassinato da palavra

Um dia, me conta o Nelson: "O Zé Celso, que é inteligentíssimo, resolveu renovar o teatro e foi construir pontes no interior, teatro vivo, teatro. E construiu pontes, casas, o diabo. Um dia ele estava no teatro quando toca o telefone: 'É do Teatro Oficina?' 'É', diz o bom Zé Celso. 'O Zé Celso está?' 'É ele mesmo.' 'Oi Zé, aqui é de Inhaúma; tem um esgoto furado aqui, será que não dava para o Teatro Oficina vir aqui consertar?'"

Não é genial? E ele adorava o Zé, mas sacaneava.

Ou este trecho aqui sobre teatro:

"O teatro inteligente de São Paulo quer assassinar a palavra, a pauladas, como se ela fosse uma gata prenha. Portanto, não existe um único e escasso grego, um escasso Shakespeare. O teatro existe desde que o homem disse a primeira palavra. Esta tradição de milhões de anos os diretores paulistas querem liquidar como alguém que afasta uma barata seca com o pé... Cabe uma dúvida: querem acabar com a palavra, mas acabar com o que não existe? O teatro brasileiro ainda não chegou à sua palavra, não inventou sua língua. Primeiro vamos fazer a nossa Palavra, para depois assassiná-la com rútilas patadas!"

A estética do assaltante

— Alô — me ligou o Nelson já no fim da vida. — Você está terminando este filme aí, o Eu te amo; afinal, está bom ou não?

— Acho que vai ficar legal, Nelson...

— Mas, qual é a opinião do assaltante? — me pergunta ele.

— Que assaltante? — replico atônito.

— O assaltante, rapaz, o sujeito que bate a carteira na Cinelândia e pra fugir da polícia se esconde no cinema e assiste o filme. Se o assaltante gosta, o filme é bom; senão, é ruim. O assaltante é o melhor crítico.

Assim eu aprendia com ele, discutindo a originalidade autoral, a invenção. Ele dizia: "O assunto é o autor do autor..." E diante deste perpétuo culto do óbvio como defesa contra a babaquice, Nelson construiu sua profunda estética, olhando para o cotidiano como poesia febril.

Estou no táxi, indo com ele para a avenida Rio branco. O chofer do táxi: "É... seu Nelson... o mar não está para peixe..." Nelson sonhava nas palavras... "Veja, rapaz, que coisa linda... o mar não está para peixe..."

E assim ia, passando entre as coisas. A realidade era o delírio dele. Por isso está na sua obra o relato profundo do que nos define. Nunca deixou a literatura prevalecer sobre a magia das coisas. Como em Shakespeare, sempre um detalhe do mundo caricaturava a maior dor. No meio da tragédia vinha a gíria; no suicídio, o guaraná; no assassinato do botequim, a sardinha frita; na viuvez, o egoísmo; no velório, a piada.

"A grande dor parece falsa. Um dia vi um sujeito que perdeu as duas mãos na guilhotina de papel em um jornal. Ele gritava tanto que a dor parecia falsa. Outra vez, eu vi uma família inteira num hospital receber a notícia da morte do filho querido na UTT. Eu vi pelo vidro, não ouvi um som. O médico chegou e falou com a família. A família começou a se contorcer de desespero. Pai, mãe, tios pareciam dançar. Dançar um mambo. A grande dor dança mambo."

 

Os críticos inteligentes

A densidade não alusiva de Nelson precisa de um estudo novo. Ele não é para ser visto como um ignorante de talento como tendem a pensar vários críticos e diretores de teatro. Nelson não é para se fazer pacotes, pot-pourris interpretativos de suas peças. Nelson não é pretexto para diretor inteligente se expressar. Nelson é o homem mais visionário e inteligente que conheci. A realidade doía em seus olhos.

Nelson continua em estado de graça, esperando uma análise de sua obra. O que foi feito até agora se fez com a ajuda de conceitos externos ao mundo que ele materializou. Apelar para a psicanálise, lingüísticas, não explica o misterioso do que Nelson fez. Primeiro, se precisava fazer uma catalogação fenomenológica de seus inventos, para depois se explicar como este homem de subúrbio inventou o teatro do absurdo em 1940, com A mulher sem pecado prefigurando Fim de jogo de Beckett, Pinter e Bunuel, e colocou o deslizamento do significante no palco do Municipal em 1943, antes de Lacan.

"Me dá uma empadinha e um café bem carioquinha (fraco). Me dá um cigarro aí." "Não fuma, Nelson..." Nelson não responde. "Me dá uma água mineral", diz radiante.

Sinto que ele executa um ritual carioca à minha frente. "Água linda", diz ele, olhando o copo transparente.

E naquele copo ia muito mais que a água. Nelson meditava em cada detalhe do real. Nelson via através de três universos.

Depois Nelson morreu e parou de telefonar. Mas até hoje continuo conversando com ele.

 


O filme que Rimbaud fez antes do cinema

Anos depois que Rimbaud foi para a Abissínia, encontrou um conhecido numa encruzilhada. Falaram de negócios, até que o amigo lhe perguntou: "Et la poesie ?" Rimbaud foi seco: "Je ne m'occupe plus de ça..." (Não mexo mais com isso.) E voltou para o balcão de sua loja em Harar. Pegou a máquina fotográfica que recebera e silenciosamente fez a foto de um vendedor de café em frente a sua porta. E a foto resplende através das décadas como um fragmento-resumo de seus poemas e uma antevisão do cinema.

Façamos o découpage da cena.

A foto é minuciosamente vidente, fiel à poesia com a qual ele afirmara não mexer mais.

A fotografia é um flagrante, mas não de um fato ou ação; é o flagrante de uma imobilidade. Mas uma imobilidade que parece mover-se, ferver nas moléculas como um quadro de Van Gogh ou trecho de um travelling de Resnais. Não capta o movimento de algo precioso; apenas um homem no chão, parado. A foto quer sugar o inerte.

Há um leve desfoque na cabeça do abissínio, que indica que ele a moveu no instante exato do disparo.

O homem não viu Rimbaud, pois não há curiosidade ou pose (câmera consciousness) neste modelo desértico.

Diz-se que a foto foi tomada do balcão da loja em que o poeta trabalhava. Isto transforma a foto num contracampo, um espelho do mundo de Rimbaud, um avesso. De um lado, um europeu fugitivo com um aparelho moderno; de outro, o milênio.

Na hora da foto, Rimbaud está de respiração suspensa, captando este painel do Tempo à sua frente. Há uma linha direta entre ele e o vendedor de café. O vendedor de café está na parte baixa do quadro, sob um céu de colunas, e seu rosto se move um segundo (atraído por quê? Um grito no deserto? Música?)

O indício de que existe o Tempo é seu rosto em movimento. O cinema está ali no seu rosto; o resto é fotografia.

O enquadramento é perfeito, se bem que a figura principal, notem, não é o homem, mas a grande coluna a seu lado e a outra coluna mais ao fundo. É como se Rimbaud fotografasse uma pedra em silêncio, só uma pedra, porque o homem está ali como uma pedra, pequeno, parte integrante da matéria inerte (se bem que seu rosto se moveu e marcou a passagem de um segundo, como um relógio de sol).

Duas coisas lutam neste quadro: a) a tonelagem das duas colunas maciças (como sustentando um templo imenso), em contraste com b) a miséria rarefeita dos fragmentos que se espalham no chão em frente ao homem.

É grande a distância de escala entre a massa material das colunas e os miseráveis cacarecos amontoados. O homem parece ter desistido de duas coisas: de tentar a grandeza (subindo ao templo das colunas) e de cuidar de seus cacos, utensílios abandonados da prática da poesia ("Je ne m 'occupe plus de ça").

Os fragmentos à sua frente refratam a grandeza das colunas porque, por coincidência ou mistério, as duas ânforas, ou recipientes de guardar grãos de café, reproduzem em miniatura a imagem das duas colunas que sustentam o templo, o céu, sei lá.

As ânforas, apesar de pequenas, são bem maiores que os cacos à frente do mendigo, e estão para os ditos cacos, como as colunas estão para o mendigo.

Também esses dois recipientes lembram os dois pés humanos decepados de um ser que estaria andando mas sumiu, sendo, junto com o vento desfocado da cabeça do homem, outra sugestão de um passar de tempo.

Atrás do homem, as colunas e as paredes também parecem se carcomer em silêncio, denotando uma outra passagem do tempo, fazendo o reboco das colunas mudar como um campo de provas do inquietante fluir.  

Há duas portas ou entradas na foto; uma fechada a cadeado, outra, uma abertura para o céu, uma escada banhada de luz levando a uma esperança alada. Ambas não parecem ter serventia nem para o mendigo nem para Rimbaud.                                      

Os despojos à frente do vendedor estão abandonados, num desalento melancólico e, apesar de identificáveis (xícaras, sandálias, cajado), formam um conjunto semelhante a ossos, tíbias, objetos tumulares, que parecem fluir do homem como se fossem os restos de um despedaçamento, de uma amputação progressiva (as pernas do homem não são vistas). A imagem é de uma melancólica permissão para a dissolvência.

Por mais desatento que fosse o gesto de Rimbaud ao bater a foto, houve uma escolha ali de todos os elementos listados acima. Rimbaud escolheu de propósito um tema absolutamente não-espetacular, não-pitoresco, pois certamente ali em volta do quadro devia haver belas cenas da enfeitiçada Abissínia, tais como cavalos, mascates e mulheres coloridas.

A escolha destes despojos.foi proposital. Sua irrelevância fala de um nada, de um casual melancólico que encontraríamos em fotos de arte conceituai muitos anos mais tarde, tão banais como foi a escolha da Abissínia como pátria para o poeta.

Rimbaud refaz neste instantâneo toda a sua obra cheia de tíbias e colunas, concentradamente. Ex: "Aluguem-me este túmulo branco de cal, com as linhas do cimento em relevo, bem longe no fundo da terra. (...) acima de minha sala subterrânea, as casas se erguem; a lama é vermelha ou negra. (...) Em outro nível estão os esgotos; dos lados, a espessura do globo. Talvez abismos de azul, poços de fogo (...) Eu sou o senhor do silêncio. Mas, por que uma aparência de respiradouro empalidece no canto da abóbada?"

Há um forte suspense ali, como sentimos (décadas depois) na obra de Antonioni. No quadro vazio de Antonioni algo pode acontecer de repente. Ali também. Quem vai chegar, Verlaine ou algum fantasma?

A foto parece um fotograma, parece prefiguração do cinema. É extrema a modernidade do enquadramento, em plano geral (long shot), equalizando fundo e figura como se fosse o início de um travelling para a frente, como se a câmera fosse se mover lentamente até o close do mendigo ou até mais atrás, até um superclose do cadeado na porta (que dá para onde? Para o inferno, onde ele senta a beleza nos joelhos?).

De todo modo, Rimbaud não estava apenas testando uma câmera. A tensão inerte que há nesta foto diante da matéria eterna e intransponível (apesar da escada de luz) coloca o vendedor de café na posição que Rimbaud pode ter assumido na vida.

A escada de luz à esquerda pode ser para subir, mas o mendigo pode ter descido por ela, como Rimbaud também, até o fundo de seu tombeau três loin sous terre.

Por fim, o tempo não parou como queria Rimbaud naquela tarde de 1883, de seu balcão.

A máquina registrou a imagem. O homem moveu a cabeça e desfocou a imagem. Em seguida sua imagem despencou para dentro da câmera obscura do poeta. E a foto se fez.

E então o homem moveu a cabeça em direção ao outro lado, em direção ao balcão e viu Rimbaud. Seus olhos se encontraram. E as duas imagens começaram a se mover em lento travelling, uma para a outra. Até que os dois enquadramentos se ajustaram perfeitamente: Rimbaud e sua loja, o homem e as colunas. E um substituiu o outro. Rimbaud ocupou o lugar exato que seu olho via ao lado da coluna, pois ali, em Harar, Rimbaud fotografava a si mesmo. O homem é Rimbaud, e a foto é a sua vida.


A crise é a salvação de

muitos brasileiros

 

"Enquanto os fundos públicos são dissipados em festas de assistência, um sino fogo róseo soa nas nuvens"

Arthur Rimbaud

 

A crise dá a sensação de que algo está se movendo, quando nada se move.

A crise dá ao político uma allure de urgência, uma sensação de utilidade. A crise estimula os senadores e deputados.

A crise dá boa consciência ao congressista, dá a impressão de que ele está fazendo muito. A crise gera uma espécie de metatrabalho, um tremelique que parece esforço.

A crise dá ao político a sensação de que sua preocupação é útil.

A crise permite rostos graves, frontes preocupadas, que sempre impressionam os leitores.

A crise cria um suspense, a vida fica mais excitante.

A crise é um thriller.

A crise estimula a inteligência.

A crise é assunto. Todos escrevem sobre a crise, como se fosse uma musa, uma mulher.

A crise não é uma mulher. Se bem que a crise é boa para justificar broxadas: "Minha filha... desculpe... é a crise...”

A crise anseia por uma estética. Por uma estética da crise.              

A crise criou discursos, que se digladiam pelos louros do aceito. A saber:

DO discurso clamor à nação;

2) O apocalíptico clássico ou discreto-científico;

3) O apocalíptico barroco ou Sudene-tardio.


No primeiro, o orador pede a uma Razão secreta (que não está em nenhuma área da vida nacional) que desperte, tipo "Navio negreiro", de Castro Alves, tipo "Deus, onde estás que não respondes?" Tende para o religioso, para o sagrado horror, já que não há nenhuma Central da Razão que tome uma providência.

O discurso apocalíptico clássico é culto, mantém a calma acadêmica diante do caos e descreve nossa morte com minúcias sádicas.

É típico de discretos professores e altos sociólogos. É puro de alma e prova com lógica as impossibilidades de nossa salvação. Prevê o dia final com alegria científica. Este discurso pode pedir impeachment ou golpe com distanciamento brechtiano. É o inócuo com doutorado, o beco-sem-saída com PhD.

Já o apocalíptico barroco é mais para impressionar eleitor que para impressionar Campinas, mais sinfônico, saboroso como comida nordestina, faturando nossa desgraça com os mesmos adjetivos para conseguir um açude. Nestes, a crise é boa para fazer lobby para descolar verbas. A crise é boa para reeleição. A crise é boa para 1994.

A crise é uma eucaristia.

A crise limpa o autor dos discursos, os artigos. Todos são culpados, menos o orador, o ensaísta.

A crise tem esta serventia também: limpar pessoas.              

A crise lava pessoas como as Bahamas lavam dinheiro.

A crise é boa para limpar prestígios. Corrupto vira reformador moral.

A crise é uma eucaristia. A crise acostuma a população à impunidade e assim a conformiza, permitindo mais corrupção.                   

A impunidade é o marketing da impunidade.

A crise é boa para ex-presidentes que passam à História como bons governantes.

A crise dá um novo alento à esquerda, dando a ela a impressão de que velhas teses podem ser recauchutadas.

A crise dá meia-sola em Lênin. A crise substituiu a boa consciência perdida pelas esquerdas, tão deprimidas com a queda da URSS. A crise é a cocaína das esquerdas.

A crise pode vir a ser boa para os militares, que poderão sair de uma dormência povoada de doces taifeiros e voltar um dia às ruas, com seus velhos tanques da Segunda Guerra. A crise é boa para atualizar equipamentos.

A crise é boa para a sociedade civil, já que ninguém sabe onde está a sociedade civil. Onde está a sociedade civil? Vendo a Globo? No shopping center? No Fasano? Na Europa? A crise é boa para achar a sociedade civil.

A crise é boa para aumentar o contato com o absurdo, logo, com o mistério da vida. Neste sentido a crise é filosófica. Aumenta a profundidade dos políticos. Daí dizer-se: "É profunda a crise..."

A crise é boa para o messianismo. Pode fazer surgir salvadores da pátria, assim devolvendo um sentido épico à nossa existência. Pode restaurar utopias. Assim, acabar com a ópera seca da pós-modernidade. A crise é neoclássica, uma renascença.

A crise é democrática como a morte: ela poderá atingir a todos, com exceção dos políticos, claro, que ganham bem e podem ficar intocados pela adversidade. Assim, a crise é equalitária, fraternal.

 

O caos ou o pântano

A crise é boa para nos levar a uma definição. Por exemplo: quando começa o caos? Já começou? O que é o caos, onde é? A crise será boa para matar esta curiosidade. Temos um insano desejo de conhecer o caos.

A crise é generosa. Ela dá opções. Segundo o ministro Marcílio, não teremos o caos, teremos o pântano.

Segundo o Delfim, teremos a africanização. Isto nos dá um delicioso cardápio de possibilidades. Tem gente que prefere o caos, seus traços duros, a tragédia a pino. Já outros preferem o pântano, como os sapos. Creio mesmo que a tendência brasileira preferirá o pântano, o brejo, o brejal das almas, o bosteiro, porque além de ter mais a ver com nosso regionalismo, com nosso folclore, é mais administrável.

O pântano dura séculos: é melhor. Já o caos não combina tanto com nossa alma cordial. O caos é um negócio muito radical, meio anglo-saxão, meio eslavo. Já o doce pântano é mais Brasil... sapos coaxando no Congresso, uma greve ali, uma matança de flagelados e invasores acolá, a sudanização do Nordeste (que aliás permitirá ótimas fotografias como as da África: confira Photos, Zoom etc.), com os negros magérrimos, chiquérrimos, com grande dignidade na miséria. Altos visuais proletários.

A crise é boa para a art direction, neste sentido.

Uns preferem o pântano; outros a catástrofe. Pode pintar até um plebiscito. Em suma, temos de ver o que é mais politicamente correto.

Aliás, a crise tem o mérito de transformar a todos nós em politicamente corretos. Todos somos politicamente corretos, menos a crise.

O entendimento não vem porque todo mundo quer a crise só para si, só sua tese, para poder jogá-la no outro. A crise é sempre culpa do outro. Ninguém quer partilhar a crise. A crise é Carmem. A crise provoca ciúmes. A crise é um latifúndio improdutivo que ninguém quer dividir. Por isso, não há entendimento.

A crise é de identidade. Os políticos que nunca governaram estão com crise de identidade, como as debutantes.

A crise pode ser uma atração turística, uma marca nacional. Uns países têm o urso cinzento, como os Estados Unidos, outros, a nouvelle cuisine, outros as estações de esqui, nós temos o erro permanente, o destino-pastelão.

A crise demanda mais crise, como a heroína. A crise preenche nossas vidas. A crise é uma minissérie da Globo.

Já há um certo carinho moderno pela crise, pela verve, o frisson, o wit, o zest, o pep, o sucesso, o fervilhar da crise. O dia em que a crise for embora, o que faremos? O que será de nós, sem assunto, sem tremor, relegados a tarefas menores como, digamos... trabalhar? Teremos então um intenso tédio conjugal pela Pátria.

 


A riqueza oculta dos mendigos de rua

É infrutífera a viagem em busca de alguma riqueza no mundo da miséria. Encontrar algum grão de beleza humana nesta lagoa seca é uma esperança baldada. Muitos acham que a verdade está com os desgraçados, os loucos. Se ela estiver, está onde as perguntas não são respondidas, está onde a fotografia não mostra. Mandaram-me fazer uma reportagem sobre os mendigos. Lá fui eu.

Passei um dia em busca de transcendência e não encontrei nenhuma.

O mendigo não ajuda nada; isto é sua mensagem. Pedimos sentido e nos devolvem obtusidade; pedimos originalidade e respondem com os restos do nosso próprio discurso que encontraram no lixo: restos de frases da TV, pedaços de jornais que leram no chão.

Os mendigos são implacáveis. Vamos todos rebolativos entrevistá-los, e devolvem nosso próprio rosto num espelho sujo. Oferecemos mis-sangas, sorrisos, respeito humanista, e eles nos olham do chão com as feridas expostas e um sorriso misterioso. Eles são nossa caricatura e em vão pedimos a eles que nos salvem. Mas os mendigos não são generosos conosco. Queremos fazer uma reportagem boa e só nos devolvem risos idiotas, resmungos sem sentido, frases cifradas.

Os mendigos não têm ambição literária; os mendigos só gostam de clichês. Vivem repetindo lugares-comuns, iguais aos lugares onde vivem. Quando nos emocionam é com melodramas, tragédias banais sem grandeza grega nem shakespeariana. Notem que o grande bardo sempre usava os miseráveis em papéis metafóricos, espelhos côncavos onde se refletia a loucura dos reis.

Queremos roubar alguma coisa deles, mas eles tudo nos oferecem e nos ofendem com a opacidade de seus mundos sem luz. Eles nos cegam com luzes apagadas, nos obrigam a suportá-los como são. Eles nos obrigam a uma contemplação interior que não desejamos.

O mendigo ocupa um lugar de psicanalista, e nos devolve suja qualquer esperança que temos de beleza.

É espantosa a sovinice dos miseráveis deste pais. Vejam o trabalho dos zelosos repórteres de TV. Vão às piores palafitas, favelas, leprosários, e o que recebem em troca? Nada. Só lugares-comuns. Alguém já viu na TV alguma frase iluminadora, um momento de redenção pela miséria? Não. E olha que os mendigos vivem em contato com as barras mais pesadas. Não era justo que eles nos dessem um pouco desta riqueza de aventuras? Não. Positivamente, os pobres não cooperam com o jornalismo.

Com a crise do país, eles estão aumentando sem parar. Mas teimam em ostentar nenhuma originalidade seja no trajar seja no comportamento.

Samuel Beckett explorou-os, usando-os como metáfora de culta melancolia niilista. O mendigo não tem nada, mas não é niilista. Talvez, sei lá, mendigos irlandeses, belgas; aqui, não.

A reportagem contudo desconfiou que talvez alguma coisa profunda se escondesse por trás dos rostos sujos e conseguiu descobrir várias riquezas ocultas dos mendigos. Aqui vão algumas:

1. A vida dos mendigos é em close: a pedra, o chão, os pés dos passantes, a esmola, a garrafa de pinga, a faca. No mundo dos mendigos não existem pensamentos descortinados. Mendigos não gostam de idéias abstratas. Não se pode falar de opção com mendigos, ou de projeto. Mendigos não têm projeto abstrato. Só concreto. Ex: meu projeto é arranjar pinga.

2.  Os mendigos insistem no óbvio por sabedoria. Em todas as entrevistas cismaram em só repisar como importantes coisas como casa, dinheiro, reforma agrária. Qualquer tentativa de aprofundar esbarrava nesta teimosia. Seus rostos revelavam por outro lado uma sombra de ironia crítica. Tudo levou o repórter a crer que não acreditam em profundidade. Eles acham que o profundo é o superficial, que o aparente é o latente. Como em Nelson Rodrigues, o elogio do óbvio é um indício de sabedoria.

3.  Os mendigos são materialistas, mas jamais dialéticos. O apreço pelo prático-concreto ridiculariza as complexidades da vacilação pequeno-burguesa. Os mendigos odeiam idéias gerais, finalismos, futuros. São pragmáticos como os americanos.

4.  Muitos não falavam e se limitavam a nos olhar com uma expressão feita de descrença, de uma certa paz no sofrimento, que nos dava uma sensação de humilhação e até uma certa inveja. "Que sabe ele que eu não sei?" pensávamos.

O silêncio observado durante o jantar dos mendigos era impressionante. Durante o jantar, ninguém falou. E não era um silêncio feito só de melancolia. Eles chegaram até aquele silêncio. Diante daquele silêncio, tudo que dissemos parecia mentira. O silêncio dos mendigos critica a modernidade. Como já são 30 milhões no Brasil, são uma ameaça para a boa circulação de informações. Os mendigos não se comunicam. Os mendigos são de vanguarda. Talvez por isso a literatura os endeusa.

5. Para os mendigos também o conceito de tempo é diverso do nosso. Não têm segunda-feira, hora cio lanche, feriado, happy hour. Os mendigos evoluem num enormous present (Norman Mailer), um presente baldio, um tempo baldio. Isto nos é útil. O tempo-mendigo permite uma luz nova sobre o mundo. Mostra que a idéia de continuum é errônea, logo a lógica idem. Nos permite ver a historicidade das coisas. Exemplo: um país pode andar para trás, como o nosso. Ou observar absurdos como: "Em vez de fazer mil CIACS, perdoamos a dívida de três usineiros". Visto do ângulo-mendigo, isto é apenas um evento a mais como, digamos, 'fulano morreu na enchente' ou 'roubaram minha latinha'. A lógica-mendiga permite entender melhor o Brasil.

6. Os mendigos ensinam que o discurso complexo-abstrato pode ser mais alienado que o discurso-mendigo. À medida que o mendigo decai, ele evoluiu para o texto fragmentário, o stream of 'consciousness joyceano e daí para o silêncio. E aí está sua profunda forma de verdade: o silêncio. Com silêncio ele acusa nossa tagarelice. A verdadeira importância do mendigo é a socrática obtusidade. Exemplo: perguntamos a um mendigo por que o país ia mal. Ele respondeu com uma pergunta: "Mas... o país... vai mal, é?"

Descoberta: há muitos países no Brasil. Qual vai mal?

7.  Inspirado na célebre cena do filme de Fritz Lang, M, organizei uma entrevista com 50 mendigos, no Cetren: de uma hora e meia de fita gravada, consegui extrair as idéias aqui montadas.

 

Assembléia dos mendigos:

"Nós é que estamos pagando a conta do Brasil, estou jogado fora do meu país, antes ainda achava uns empreguinhos, agora depois do plano Collor nada, o futuro vai ser um matando o outro, cobra engolindo cobra, tenho um sonho que é casar, mas sem dente ninguém me quer, o Exterior vai tomar conta disto tudo, não vai ter mais nem país, não adianta ter presidente bom, pois tá no sangue do país não querer dar certo, a TV é igual cachaça pra esquecer, sonhei que ganhei na Loto e contratei as mulheres do Faustão pra dormir comigo, para ser presidente basta mentir, ele atirou com uma bala no rifle e acertou muitos passarinhos pobres, o futuro não está com nada, nosso destino é o lago de fogo com Satanás e os arcanjos, minha palavra não vale nada... sou um mendigo, por que o senhor está me entrevistando? É pro seu bem ou pro meu'"

 


Glauber Rocha aparece e faz clipe fantasma

A penúltima vez que vi Glauber Rocha foi na cama da agonia. Estava nu, tubos de borracha lhe entravam pelo nariz e ele parecia o Cristo de Mantegna visto de baixo, dos pés da cama, e lá em cima seu queixo se erguia tentando pegar os últimos goles de ar do seu Brasil. Na cama, nós lhe apertávamos a mão, os joelhos, querendo impedir que ele fosse embora, um barco que não queríamos que partisse. Com esse barco ia o mistério de um Brasil que acabava.

Mas a última vez que vi Glauber foi ontem, em meio a uma noite de insônia, mistura nevoenta de sonho e memória irreal como sempre, mais palpável que tantos fantasmas vivos, e de sua boca saía uma fita longa como um telex de imagens e palavras que eu fui psicografando como pude, restando ao fim um roteiro(?), profecia(?), entrevista póstuma sobre o país de hoje. Nas minhas mãos restou um trapo de roteiro dialético visionário, mix de Eisenstein e TV Globo, levemente tisnado de fogo.

 

Terra em transe 2 (Brasil 91)

Plano aéreo sobre o Amazonas. Travelling. Fezes de peruanos descem lentamente em direção a iracemas que se banham. Integração latino-americana. Amor em tempos do cólera.    

Voz de Glauber (off): "A América Latina comunica suas misérias. O interlocutor estrangeiro cultiva o sabor desta miséria, não como sintoma trágico, mas como dado de horror que reassegura sua situação de conforto".

Planos infinitos de florestas em chamas. Planos infinitos de caatingas secas. Close: olho de boi morto. Começa choro de Vila-Lobos.

(Que choro? pergunto. "Escreve, escreve", G.R. comanda. Vou escrevendo o jorro de palavras.)

Bocas, bocas de deputados rindo; bocas rindo de usineiros perdoados rindo. Cachorros famintos rondam.        

Floresta em chamas. Música Sting. Centenas de taxistas lincham negros e cafusos com paus, pedras e fogo. Sobrepõem-se música evangélica, gritos e hinos da Igreja Universal.

Estádios cheios de miseráveis sendo exorcizados por evangélicos de terno. Cardeais e bispos da CNBB reunidos, com roupas antigas de ouro e purpura.

("Quero o figurinista do Fellini: Scarfiotti o nome dele?" diz G.R.)

Em meio à fumaça de turíbulos, um cardeal sussurra aos outros:

Cardeal: "Precisamos renovar nossa imagem. Os evangélicos são o Silvio Santos e nós a TV Cultura. A Igreja precisa modernizar seu show".

Corta para milhões de fiéis mais miseráveis, como curdos, uivando para evangélicos. Milhões de coléricos batem na cabeça com pedras que crescem.

Voz de Glauber (.off): "É a islamização do Brasil que se aproxima. Os sinais estão em toda parte. O catolicismo não basta. A miséria total precisa de novo espetáculo".

Corta para o céu de anil. Um ponto cresce no céu. Um pássaro? Superman? Um super-herói vestido de roxo sulca o ar do Planalto. Desce atrás do palácio e já de terno escuro, sério, chega ao trabalho com passos de ganso.

Imagens de computadores da Previdência em chamas. O presidente senta na mesa.

Operários em greve lutam com a polícia. Presidente sozinho põe a cabeça entre as mãos. Close: Milhares de crianças abandonadas descem uma rampa sem fim que afunda na terra; crianças somem no chão.

Corta para anfiteatro de universidade. Intelectuais mudam o discurso de décadas. Teses são rasgadas, escondidas. Parafusos rolam no chão, ideais rolam no lixo. Disquetes novos são introduzidos em bocas. Novas palavras de ordem escritas às pressas em quadros negros. Professores com sorrisos amarelos. "Integração ao Primeiro Mundo", "mercado, mercado...", "fim das nacionalidades..."

Coita para sínodo de intelectuais. Todos com tiques nervosos. Cada um com uma tese nova no bolso. Todos tensos, inseguros. Um velho professor fala tristemente.

Velho professor: "Antes tudo aspirava a um projeto. Hoje tudo reflete uma desmontagem. Toda reflexão desativa e desconstrói o que pensávamos. O discurso totalizante apressado foi substituído pelo discurso liberal apressado. (Pausa dramática. Tremor na voz...) Todo programa ético-político é impossível diante da mesquinhez humana. Só o mercado subsiste".

(Choram todos.)

Corta para:

Soviética gorda come hambúrgueres em frente ao Kremlin. Longa fila de curdos na neve. Milhares de pIxotes correm pelos campos improdutivos dos usineiros perdoados. Presidente sai da depressão e corre pela rampa. Jovens, atletas, emigrantes, artistas, cineastas, todos correm em direção ao Primeiro Mundo. Coro: "Precisamos nos integrar ao Primeiro Mundo..."

Corta para:

Grande junta de banqueiros internacionais impecáveis, cool, clean. Hotel Plaza. Todos com gravatas estampadas com temas de florestas tropicais. No centro, Zélia, pálida. Os banqueiros com gravatas floridas formam semicírculo imenso, um jamboree, um luau intramuros. Fingem ouvir o discurso de Zélia. Depois recebem juros da dívida externa. Os brasileiros saem. Os sorrisos cessam. Os banqueiros todos arrancam as gravatas coloridas, violentamente.

Um maluco é retirado do plenário. Roupa de pobre, barba mal-feita (lembra vagamente o próprio Glauber). Sai carregado, gritando:

Maluco: "Não há história brasileira. Só houve espasmos de mudanças a cada empréstimo recebido. Cessou o dinheiro, parou a História. Tudo é ilusão. Somos filhos da dívida. Somos os espasmos dos empréstimos!"

Maluco é enfiado em viatura do FBI.

(O dia começa a clarear e Glauber a ficar transparente. Manda-me continuar a escrever... Escrevo sonado. Glauber rindo, vazado de luz. Olho meu amigo com saudade, querendo abraçá-lo, mas escrevo.)

Corta para salão da Fiesp. Empresários de terno cinza apertam mão de centenas de lideres sindicais. Empresários sorriem de lado para outros. Letreiro: Casa grande e senzala.

Luís Carlos Prestes entrevistado por Ziraldo na TV começa a morrer em cena, dizendo que a queda do socialismo é uma evolução do le-ninismo.

Estátua de Lênin cai na Polônia. Gorbatchov cai em Moscou. Yéltsin sobe no pódium.

Miseráveis como curdos, como esqueletos, começam a subir o mapa da América em direção ao Norte.

Barcos negros bóiam em direção á Europa, cheios de famintos.

Navio turístico bate em petroleiro, que se parte. Maior desastre ecológico do mundo. Eterno pelicano coberto de óleo se arrasta na praia.

Voz de Glauber (.off): "O Primeiro Mundo não nos receberá! Não nos clarão nada! Precisamos nos desenvolver em nossa escala possível, só isto!"

Jornais enrolam peixes. Jornais embrulham baleias mortas em petróleo e sangue.

Pelos buracos da camada de ozônio, os primeiros anjos do Apocalipse já se mostram. Trombetas, cavalos e esqueletos montados.

Nasceu o dia. Glauber sumiu quando baixei os olhos. Quando os ergui de novo havia um papel, preso por um paperclip em brasa. Nele estava escrita sua profecia póstuma:     

"Nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que essa fome, sendo sentida, não é compreendida. O problema da América Latina é um caso de mudança de colonizadores, sendo que uma libertação possível estará por muito tempo em função de uma nova dependência."

Embaixo uma data: abril de 1965. 

                                                           


Pornô-filme ilumina o Brasil

Nove telas coloridas de televisão mostram pedaços de corpo humano: paus, vaginas, coxas, rostos com bocas abertas, esperma caindo, gemidos, gritos, suspiros. Sinfonia de sexo explícito nas telinhas da sala grande e refrigerada. Diante delas, nove mocinhas pálidas e discretas batem as legendas em português num computador. Banquete de sexo na sala limpa e hi-tech. Homens e mulheres gritam orgasmos em inglês: "Oh yes// Oh! Yes! Ob, fuck me, shamelessly! Go, go, oh Jesus! Oh my God!... Go motherfucker, come, come!!! Oh fuck me you bitch !!!"

A mocinha de Vila Mariana (casada, dois filhos) escreve pálida e séria no computador: "Oh... me come seu filho da puta!!! Vai!!!" Estou na sala de legendação de um dos estúdios que traduzem e copiam milhares de vídeos-pornôs distribuídos no Brasil.

 

O mistério da carne

Há um mistério a ser decifrado, que está inscrito na carne, nesta carne que triunfa no Carnaval (carne-levare). Um mistério denso e negro, vital e mortal que clareie numa mesma semana a explosão de alegria do Carnaval e a descoberta do doce e sorridente vampiro do Rio, que matou e sugou o sangue de tantos meninos para irem ao céu. Alguma coisa se esconde nisto, nesta montagem de mulheres lindas no céu prateado do Rio e os anjos mortos nos matagais. O filme pornô pode ser uma pista dupla de vida e morte.

 

Nasce uma estrela

"Este aqui é bem típico dos filmes pornográficos. Ganhou prêmios.  Olha", me diz o tradutor, José Maria, magro, cor de cera ("Fiz letras na  USP... agora faço a semiologia da sacanagem..." sorri).

Na tela uma mulher morena, belíssima, podia ser estrela de Hollywood. "É a Jeanne Fine, a deusa pornô!"

Vejo que ele está apaixonado por ela. Jeanne Fine merece. Densa e romântica de rosto, abre uma gaveta num quarto de hotel. De dentro, ela tira enormes paus de borracha, vaginas de látex, grandes camisas-de-vênus em forma de língua, perucas, órgãos peludos, e diz: "Oh my god, this guy must be nuts". "Este cara deve ser muito louco", traduz a mocinha de Vila Mariana em silêncio.

Um homem surge na porta do quarto. "Oh... my... you scared me'" "Você me assustou!" O homem está seminu, corpo de atleta, uma peruca de mulher na cabeça e ligas, sapatos altos de verniz. Sem transição eles caem na cama. Toda a relação dos dois é feita com a preocupação permanente de garantir um máximo de visibilidade para cada detalhe dó corpo de cada um.

A mulher deslumbrante está com apenas uma calcinha de couro com tachas de metal aplicadas e com esta roupa hard ela roça na lingerie branca e fina do homem musculoso. Com os dentes, ela abre uma janela de renda na calcinha do homem, e começa o sexo oral. Um rosto juvenil romântico acaricia um imenso pênis grego de totem.

 

A galinha do rabo de ouro

O tradutor pálido me olha de lado. Estou trêmulo, com medo de perder a isenção analítica. As mocinhas sérias digitam em silêncio  Para disfarçar, racionalizo que nos filmes de arte há o desejo de nuançar o significado poético de cada cena, aqui só vemos o desejo de tudo ser absurdamente visível.

O tradutor José Maria se anima e aponta vários vídeos nos vários aparelhos. Parece um mestre de cerimônias:

— Aqui há uma amostragem boa. Ali temos Backdoor princess ( A rainha do rabo). É a nova onda do sexo anal, que é o que mais sai aqui no Brasil; ali temos um filme de lesbianismo Friendly pussies ( Xoxotas amigas? penso); ali adiante um filme de sadomasoquismo (o pálido moço fica mais corado), Leather pricks; ali, na tela da Maria Goretti é negócio de animal, mulher com cavalo, com jumento, mas isto ninguém mais está vendo. Aqui guardado temos um filme barra-pesada demais, com criancinhas pobres da índia, coisa para especialista, tá sabendo né, eu nem deixo as mocinhas verem este; e este é um filme brasileiro, que é pra o senhor comparar: A galinha do rabo de ouro, com a atriz Fernanda Glauber, imagine só...

— Qual é a diferença entre o filme pornô brasileiro e o americano? — pergunto.

O tradutor me olha:

— A fome!

A estética da fome!

 

A boca do lixo

Corro até o reduto do cinema pornô brasileiro. Diante de mim estão Sady Baby e Carlos Nascimento, que junto com Fauzi Mansur formam o trio de ouro do pornô verde-amarelo.

"Num filme a gente gasta mais ou menos dez mil dólares... porque a gente filma em três dias, monta no negativo, em dez dias tá tudo pronto. E reaproveita cenas de outro filme já feito. Sexo é tudo igual, xoxota monta com qualquer outra, pau é tudo igual... Uma atriz pornô ganha pouco aqui... 50 mil cruzeiros por dia... é... só... só dá pra isso... mas tem umas que fazem até de graça... elas querem ser a Sônia Braga...", me diz Carlos Nascimento, que já fez mais de cem filmes nos últimos dez anos.

"A diferença entre o pornô e o erótico é só uma: há ou não há penetração. As grandes estrelas do erótico, as pornochanchadas de antes, eram a Helena Ramos, a Aldine Muller, a Zaira Bueno, Zilda Mayo... sem penetração... boas donas-de-casa... gente fina... Já as pornô-estrelas são muitas... a Márcia Ferro era uma... se deu bem... a Makerley Sony filma muito ainda... mas a grande estrela foi Eliana Gabarron... linda... era um poema... hoje entrou para Testemunhas de Jeová... saudades dela...

 

Pornô rural versus pornô 2001

De noite, depois do expediente (onde estão as moças pálidas, com a família?) volto ao escritório da firma de vídeo. José Maria me preparou um festival completo. E com ele vou analisando a linguagem do filme de sacanagem.

Assistimos a trechos de Splendor in the ass, com Tori Welles (!) e Anus dourados I e II.

José me pergunta se eu já li Greimas (o lingüista francês). Digo que não. "Foi minha tese de mestrado..." E juntos vamos vendo sacanagens e falando de arte. Vemos também filmes brasileiros: Se a galinha é boa, o pinto não falha, O ônibus da suruba I e II, Furor uterino I, e encontramos diferenças entre o filme americano e o brasileiro.

O pornô americano fala de uma sociedade onde o sexo é um luxo aerodinâmico, um excesso de civilização. No pornô-Brasil, há uma triste humilhação das mulheres. Não há excesso; há carência, há sacrifício, tristes gemidos. O pornô brasileiro é rural (num deles estupram uma galinha). No pornô-LA (pressente-se a abundância lá fora) as mulheres são heroínas dominadoras. A mulher americana é de corpo inteiro. O ator, nem o vemos direito; só o pênis o representa. Enquanto a atriz vem completa, cabelos, seios, olhos, o ator americano é o agente do próprio pau.

O filme brasileiro fala da fome nos rostos e corpos tristes; no filme americano pressentimos supermercados, academias de ginástica. Os atores americanos trabalham por prazer perverso. Os brasileiros por um prato de comida. O pornô brasileiro é político. O pornô americano é existencial.

 

A estética pornô

Eu e José Maria continuamos nossa viagem pelo infinito fluir de objetos parciais, de pedaços de corpo, pênis, vaginas, anuses (?), numa viagem ginecológica que nos dá a impressão de que o universo é feito de carne. E vemos mais, vemos The bitch is back (A volta da puta), vemos Bom dia Saigon, com a grande Aja. E vamos fixando pontos estéticos na linguagem pornô, que tanto ilumina o mundo de hoje.

"Repare que o filme pornô não cuida do décor", me diz José Maria. Realmente, os filmes se passam em quartos neutros de hotéis ou apartamentos sem estilo. Estilo early nothing, como disse Gloria Grahame para Glenn Ford em Big heat, me fala José Maria. Olho impressionado e realmente vejo que aqueles quartos tristes, amarelos, denotam a melancolia dos autores. O cenário dos filmes de sacanagem é o cotidiano espionando tanto ardor exibicionista, a realidade desmentindo tanto tesão mágico. O cenário do pornô é a carne, um mundo infinito de corpos e de posições. Não há fundo; só há a figura. Só há o corpo, flutuando em quartos banais. O autor pornô não quer que haja mundo; só a pessoa. Filme pornô é em duas dimensões. Sempre parece que vai chegar o dono da casa no filme pornô. Quem mora ali?

 

O galã de 38 cm

José Maria me diz: "Agora um clássico, não o filme, mas o ator. É o John Holmes, o galã dos 38 cm, o Rambo dos falos". E realmente raia na tela uma espécie de monstro de ficção científica, uma serpente boitatá, um minhocão do futuro, diante de uma mulher que não esconde um riso de pavor.

E José: "Vê, no que tange a mise-en-scène, o filme pornô tende para o close". O minhocão flutua no vídeo. Olho: realmente a câmera pornô trabalha por esfacelamento dos corpos. Não há quase corpo inteiro, pessoa, o objeto total. Existem os pedaços de corpo, as paisagens micro, de panoramas. Lembro-me de Sade: "Criem um panorama de nádegas!" O horizonte pornô é um entrepernas, os montes de vênus, a serra dos órgãos, os obeliscos, as torres de pica, o sol se pondo entre vaginas, os rios de esperma, os gritos dos animais, as alegorias de línguas, dentes, lábios, sempre pedaços, nunca o conjunto. Tudo de pertinho como se fosse o ponto de vista de um recém-nascido querendo voltar para dentro. Pergunto a José Maria onde há para ir, depois de tanto close, quão perto podemos chegar de um órgão. José me diz muito sério: "A câmera pornô não procura belos ângulos; ela quer mostrar o impossível".

Penso que esta busca de uma visibilidade total da carne talvez seja a chave do mistério. Uma nova transcendência para a carne. A carne como alma. A fuga para dentro.

 

 

Hermafrodita I, o filme

Rola diante de nossos olhos já cansados outro clássico: Hermafrodita I (com o slogan: He comes from all the sides), e vendo aquele louco aleijão, aquele centauro de dois sexos, sinto que mais um indício se encaixa na minha angústia. Mas José está calmo, olhos mais vividos. "É Godard puro, o pornô-film... ", me diz, "ação desdramatizada, planos saturados... veja". É. O filme pornô não tem história, como os filmes de vanguarda; só que fazem sucesso de público... O filme pornô é contra o cinema psicológico. Quem evolui dramaticamente é o espectador. O filme pornô, mesmo quando finge uma ficção, é sempre documentário. O filme pornô não tem começo nem fim, só tem meio. O filme pornô recusa o simbolismo. Um pau não sugere um poder futuro ou o germinar da fertilidade. Um pau é um pau e é um pau.

Nem o contrário; um obelisco ao pôr-do-sol não sugere um pênis. Não. No filme pornô não há símbolos fálicos. Não há meios-tons. Nada é sugerido. Todo ator de filme pornô sabe que a regra de ouro do orgasmo é gozar fora. Todo contrato exige isto, para que vejamos o esperma fluindo nos corpos das atrizes. Ali está a prova naturalista. Nada é mentira e todo o é. Abole-se a metáfora. O gozo é gozo. Pau é pau, sem conversa.

 

A santa Linda Lovelace

Enquanto eu via outro filme, agora o Chocolate dreams, só com afro-pênis e afro-pussies, a imagem do Hermafrodita I como um Tirésias grego, autosuficiente, não me saía da cabeça. Ali está a luz para o mistério. Mas era cedo ainda para saber.

José Maria me pergunta, com voz triste:

"Para onde vão os atores depois de fazer um filme pornô? Onde moram? Com quem? Eles amam?"

Certamente, digo a ele, muitos têm família, filhos, namorados... "É... mas eles ostentam uma liberdade intolerável, que ninguém tem. A auto-suficiência dos atores de pornô é intolerável. Ninguém é tão livre!" me diz José Maria. O filme pornô quer nos enganar com a liberdade dos atores. Depois da excitação, ficamos tristes. Por quê? Por inveja? Por humilhação? Ou porque o filme pornô não deixa nada a desejar. A satisfação é tão completa que dá angústia de morte. Digo a José que os atores pornôs não querem iluminar nosso mundo; querem que nós entremos para o mundo deles. Eles nos mostraram tudo, até o interior de seus ânus e suas vaginas. Só não nos mostram suas fragilidades, seus medos. Mostram tudo, para não mostrar nada.

Ouvindo isso, José Maria me diz que, mesmo sob a luz de cozinha dos filmes pornôs, a fotografia com luz cirúrgica, mesmo ali, pintam muitos momentos de transcendência. E realmente, o frágil humano só aparece por acaso no filme pornô. Aparece num rosto juvenil, num tremor de medo, num lábio de atriz, num pau que fica à meia-bomba de um ator mais tímido. Na meia-bomba está toda a humanidade. A Arte sempre pinta no pornô-filme, quando menos se espera.

De repente, Linda Lovelace termina um felatio de dez minutos, com a garganta profunda tomada pelo maior pênis do mundo, e ergue o rosto livre para a câmera, coberta de lágrimas e esperma como uma heroína santificada. É dos grandes doses da história do cinema, lembra os primeiros planos da Paixão de Joana d'Arc de Dreyer, com uma Falconetti pornô na cruz de um pênis gigante.

De repente, a imensa beleza dos corpos juvenis também brilha além da ação; os corpos exibem uma vida mais bela que a performance que tanto os inflama. "Como a beleza de Jeanne Fine", diz baixo o José Maria.

De repente, explode na tela uma das maiores cenas que tenho visto no cinema. Um homem sozinho num motel ama uma boneca inflável, com todas as tonalidades do amor: com afeto, com carinho, com desespero, com ódio. A boneca responde a cada gesto seu, numa reação de espelho a cada tremor do homem. E ele fala com a boneca, grita com ela, bate nela, e o desamparo da boneca sem vida aumenta o desespero do sujeito que vai entrando em delírio e espancando a mulher de látex. E se ilumina uma necrofilia, se ilumina a brutal solidão do amor, num crescendo de desespero que termina com o orgasmo do homem sozinho que cai chorando no corpo inerte da mulher. Sem querer o símbolo invade a coisa e fica clara a luz de que a relação sexual total é impossível. O cinema pornô ilumina a solidão devastada de todos nós.

 

O snuff movie

O cinema pornô, como o mundo de hoje, quer mostrar que a coisa é a coisa mesma, como nos crimes decifrados. O filme pornô é uma viagem para dentro. O filme pornô é idealista. Porque quer provar que tudo é possível. O filme pornô quer nos cegar com tanta visibilidade. Assim está o mundo. Tudo tem que ter contornos claros, valor claro, como nos mercados. A pornografia está geral no mundo. O mundo moderno detesta a dúvida. A pornografia é muito mais profunda que a garganta de Linda. Após a penetração absoluta, o gozo absoluto, não resta mais espaço para nenhum desejo novo. Que resta?

José Maria me mostra palidamente um velho rolo de superoito. "Está aqui a resposta. Sabe o que é um snuff movie? Sim, eu sabia, e achei mais um elo da minha pobre pesquisa. No snuff movie (vários foram feitos) a atriz (sempre uma mulher, a vítima) é assassinada, sem saber, na frente da câmera. O snuff movie filma a morte real, o crime real. Estes filmes clandestinos eram disputados nos EUA. Eles são a resposta para o além-desejo.

A saciedade de todos os desejos chama-se morte. Não mais a morte iminente da guerra total, mas a morte inscrita em cada objeto, nesta imensa saciedade procurada, nesta crueza de fim de História, nesta busca do óbvio, da clareza total. "Gorbatchov é arte; Iéltsin é pornô", me diz José Maria, desligando os vídeos todos. E descemos o elevador do imenso conjunto. Será que o mundo quer ver a própria morte?


 

Política pornô

No elevador, o cabineiro com um jornal na mão puxa conversa. "Este país tá uma esculhambação, meu amigo, olha aqui, o negócio do INSS, o negócio dos aposentados. Tá uma miséria!..." E mostrava a folha do jornal, com cadáveres decapitados. Mais um elo se fechou. O Brasil estava para o mundo, como seus filmes pornô para os de Los Angeles. A pornografia brasileira vai muito além dos filmes das lojinhas. E no jornal apontávamos os filmes pornográficos dissimulados na política.

O filme pornô estende sua luz para ajudar a entender o Brasil. Faz-se um filme pornô com os mesmos motivos com que se faz uma maracutaia política. Os roteiros são os mesmos, mesmos os diálogos, mesmos os movimentos de câmera, mesmos os enredos. Come-se o Brasil como se comem as pornoatrizes. Como no filme pornô, não se esconde mais nada. O neocorrupto de hoje é explícito, se orgulha disso, na política ou na violência.

Saímos do prédio em silêncio. Parecia-me que alguma coisa fechava nisto tudo. Neste país que faz esta absurda exposição solar de uma pornografia social e política, começam os primeiros sinais de uma nova viagem para dentro da carne. O vampiro do Rio mata docemente os meninos e suga-lhes o sangue para transformá-los em anjos, com um sorriso de bondade. Antropofagia como uma eucaristia nova. Começa uma viagem para dentro da carne, como nos filmes pornôs. A carne como nova alma, já que a sociedade não abre caminhos. Com o socius sem saída, volta-se à carne, tanto no Carnaval quanto no crime religioso. Com a crescente desesperança surge a busca do óbvio, da coisa pela coisa, do sim pelo sim. Como nos filmes pornôs, nada é metáfora; pau é pau, coisa é coisa, morte é morte.

Despeço-me de José Maria na avenida 23 de Maio tarde da noite.

— Eu moro perto, vou a pé — diz ele. — E a Jeanne Fine, hein? — pisco para ele.

— É um sonho... — diz ele se afastando.

Enquanto busco o táxi, sei que estamos ligados pela mesma mulher.

 


Seca mostra que o nada é o Nordeste

O nada é o Nordeste. Tive esta sensação em 1963 no primeiro filme que fiz na vida, como assistente de Leon Hirszman, Maioria absoluta, sobre o analfabetismo e a fome. Tínhamos profunda atração pela miséria. A desgraça do Nordeste não nos atraía apenas por nosso humanismo crítico. Eu tinha fascinação por aquele mundo descarnado, feito de ossos e caveiras, onde alguma coisa de verdadeiro se passava, longe da vida gorda do Sul. A verdade é que tínhamos uma atração estética pela miséria e pelo deserto.

E vasculhávamos aqueles campos vazios com o suspense de estarmos num filme de Antonioni, como se penetrássemos a sinfonia seca de um Cage, como se estivéssemos no centro de um Malevitch, um branco sobre branco suprematista. O vazio sempre foi uma fascinação para a arte moderna. Quantas sugestões de fim de mundo, quanta metáfora floria daqueles desertos, como cactos maravilhosos denunciando a vergonha da vida burguesa! O Nordeste tinha um rigor formal elegante, evocando João Cabral, o Waste land de Eliot e, suprema preferência minha daquela época, Samuel Beckett, o escritor irlandês que eu amava por seus seres mutilados, perdidos em saaras metafísicos, mendigos filosóficos, metáforas de um nada que a Europa nos mandava com o teatro do absurdo, o elogio pessimista de uma pós-modernidade que se anunciava. Eu procurava Beckett no sertão e via em cada camponês a possibilidade de um Wladimir, de Esperando Godot, de um Lucky, um Murphy, um Hamm, um Nagg, seres sofisticados em seus vácuos. Tínhamos a dor da miséria, mas queríamos que a tragédia se expressasse num momento de agonia densa, num instante de triunfo do sentido, numa metáfora que englobasse a condição humana e o absurdo do sistema agrário asiático-feudal. Com a câmera na mão, andávamos por rasos e favelas em busca do essencial. E víamos a trip muito doida dos perdidos da caatinga, como hippies agrários, vestidos de branco puído ou de negro encardido, baços, mortiços. Mas, se de longe eles tinham a grandeza do Homem ou do Ser, de perto era diferente. De perto, surgia diante da câmera apenas o pobre homem, roubado de tudo, até da clareza de sua dor. E só conseguíamos filmar vagos resmungos sobre "Deus quis assim" ou "o governo pode ajudar" ou "minha rocinha" ou "meu pocinho seco".

 

Pobres sem charme

O nordestino não ajuda o entrevistador. Ele não coopera com a imprensa ou o cinema. Sua afasia não é épica, pensávamos, mesmo com os dois ou três mais politizados que repetiam slogans que a Liga Camponesa espalhara no sertão. O flagelado não é um humanista; ele não sabe da vida do lado de cá da câmera, pensava eu, ele não tem o contracampo do mundo, ele está em duas dimensões, e o céu branco é uma parede onde ele recorta sua figura chocha. Ele não sabe que sua vida é nosso horror. O flagelado não sabe que está perdendo. Para ele, o mundo é assim. De certa forma, eu sofria mais por ele mesmo. O flagelado estranha a nossa compaixão ingênua. Ele estranha que nos preocupemos com ele, pois sua ótica é magramente a mesma ótica do senhor de engenho, de que ele não vale nada. O flagelado não sabe por que gostamos dele. Nós, comunas dessa época, víamos no flagelado a suja bandeira do futuro, a ossada triste de onde ia se erguer a vingança, a nova vida. O flagelado era uma alegoria da injustiça. O flagelado era para nós uma metáfora de si mesmo, que renasceria com luta.

O flagelado era nossa salvação.

No entanto, diante da câmera não pintava nada. Só o vazio afásico do não, só os restos de um discurso humilde, puído, abobalhado.

Foi então que chegamos na rua do Sol. Com esse nome grandioso, a rua do Sol não era nem rua. Era um beco sujo no fundo de uma favela a duas horas de João Pessoa. E entramos numa casa pequena, entre porcos e crianças. E de repente tudo aconteceu como uma explosão de luz, tudo ao mesmo tempo, como uma máquina perfeita.            

 

Arte na miséria

Num canto da casa, um velho magro sem o braço direito tremia sentado num banco. Tinha barba branca, cor de tacho de cobre, cor de barro, e seus olhos eram duas brasas que nos fitavam. Ele falava sem parar algo como uma música indistinta, enquanto ao fundo uma velhinha ria, como uma boneca mecânica de parque de diversões; no meio da sala crianças nuas choravam, outras riam e uma mulher nova, morena, falava alto, com marcas de ferimentos no braço, como estilhaços que tivessem caído. A mulher gritava para nós que invadimos a casa com a câmera na mão: "Olha, olha lá no teto! Olha no teto os restos do menino! Ele explodiu e os restos dele bateu em meus braços e foi avoando para o teto, me molhou tudo, não foi mãe?" E a mãe ria, ria como bruxa de teatro infantil e o avô-sem-braço tremia e nós não entendíamos nada e eu sentia que alguma coisa maior surgia na sala, e a câmera rodava: "E o menino tinha a cabeça grande desde que nasceu e foi crescendo, crescendo, e ele ficava sempre deitado, ali no caixotinho, e a cabeça dele foi crescendo do tamanho de uma melancia, e só os dois olhinhos olhava a gente, e tinha um povo que vinha ver, que achava que era enviado de Deus, e até que ontem foi aquele estrondo forte, juro, quando eu olhei tava tudo molhado e até no teto tinha coisa grudada!" A velha no fundo do barraco ria sem parar, as crianças pulavam de excitação: "Avoou! Avoou!" E a câmera foi pegar o rosto da velha que ria. De um alto-falante perto começou a sair uma valsa vienense (o que fazia o Danúbio azul ali na ma do Sol?), e o clima foi um misto de arrepio de horror com precisão trágica.

Tudo compunha o quadro de perfeição: os gritos, os risos, os vôos da câmera para o teto da casa procurando pedaços, a valsa. A câmera foi para o velho que estava como que cantando uma melopéia, uma ladainha-de-arame, uma galáxia com som metálico, e ele apontava com o único braço para a câmera: "Retrato? Tira retrato de mim! Eu sou o bagaço do engenho!" Ele tremia, tremia. "Eu passei por dentro da engrenagem de engenho; meu braço ficou preso lá e depois eu peguei a tremer e tremer e já estou tremendo há 11 anos desde o dia que a mula do engenho deu um arranco e meu braço entrou na engrenagem e virou bagaço e a mula deu um arranco com força e caiu morta, ainda pendurada na vara da moenda, e a mula eles levaram morta embora e meu braço ficou lá no meio do melado e desde aí eu não tenho mais serventia e não sei por que eu não saio da vida. Em todo este sertão ninguém tem serventia. Tem que morrer tudo! Eu não morri não sei por quê. Eu queria ir atrás do meu braço!"

E a música tocava no alto-falante agudo (por que uma valsa?) e a máquina foi fechando, o palco foi se formando, o quadro foi formando (o quê, purer, Grünewald?), uma massa abstrata de vertigem se formava no ar (o quê, Kandinski?), e a filha do homem chegou gritando perto: "Tira o retrato da cabeça dele no teto!" (Beckett, talvez?) E a velha começou a rezar alto no fundo, e o velho gritava para nós, com sua voz de metal: "Vocês querem me ajudar? Por que vocês não me matam? Me mata pelo amor de Deus! Ela não quer me matar!" "Eu não, pai, cruz-credo!" E a filha dava gargalhadas. "Me mate, seu retratista, são 11 anos sentindo dor, eu quero ir atrás do meu braço!"

Eu não estava diante da tragédia clássica, onde a morte é a Moira temida; ali a vida era o medo máximo, ali a vida era uma morte falada. Não se tinha medo de sair da vida; o medo era ficar nela. O Nada viria como alívio. "Me mate meu companheiro!" dizia o velho, e no fundo a velha já cantava e a valsa metálica vinha de Viena, e estava aceso ali o drama em flor, ali surgia Beckett, Sófocles, ali estava Shakespeare, finalmente a arte no meio da miséria! Ohh...céu de Munch! Ohh... Goya entre os telhados! cantei como um pequeno-burguês. E saí com os olhos cheios d'agua, que secaram assim que cheguei na luz da rua do Sol. Por motivos marxistas ("muito absurdista", disseram), a cena não foi montada, mas até hoje guardo o horror puro na alma (Conrad?). Entre as gargalhadas e mortes, sob um céu de Francis Bacon, a cena era Beckett puro. Os intelectuais podem sossegar. O Nada é o Nordeste.

 

Os últimos dias de F. Collor

Collor planejou cuidadosamente seus erros

Coma um Napoleão digital, Collor expôs pelo excesso os vícios do '                                                     sistema político brasileiro.

Picasso mudou o olho humano. Collor mudou o modo de olhar o país. Há uma originalidade perversa no governo Collor. É mais uma instalation, uma performance, que um mandato. Toda a atividade do Collor, desde que subiu, foi desconstrutiva. O governo Sarney dava pânico pelo lado pantanoso, dormente. Sarney lembrava a morte letárgica. A crise com Collor é mais agitada, educativa.

Com Sarney íamos morrer sem saber nada; com Collor, nunca aprendemos tanto. Sarney era literatura; Collor é TV. Perto de Collor a esquerda fica realista-socialista, pois Collor é dada: ele acabou com a arte assim que tomou posse. Há dois anos que não fazemos outra coisa senão falar deste homem. O que tem ele que nos faz olhá-lo numa fascinação dolorida? Tudo ficou irrisório, não há mais notícias internacionais. Todos os brasileiros nos gastamos em observar seu neobonapartismo narcísico, e aprendemos na carne sua inviabilidade. Nunca mais o Brasil será o mesmo depois desta época.

 

Collor e a verdade

Collor não pode ser entendido à luz de conceitos clássicos de verdade. Nisso a imprensa se exaure, tentando criticá-lo com uma ética de bom senso, quando ele é movido por outra idéia de verdade. A CPI, a esquerda, todos estão tentando entender o Collor com instrumentos acadêmicos. É como querer ver um Kandinski por uma ótica figurativa. Collor é abstrato. Busca-se a lógica, mas Collor é movido por forças inconscientes e antagônicas. Eles é movido por um desejo de eficiência moderna com os pés imersos em alagoas de lama. Um homem como ACM, digamos, tem o clássico interesse político, tem a gula, o jeitinho etc. Collor não; ele tem um ideal-de-eu a um tempo ascético (ginástica, obstinação) e voraz, barroco (ilhas Seychelles, Morcego Negro). Disse o pai: "Este menino é um místico!" Os outros são apenas políticos. Collor acha que vê mais longe, acima da corrupção sem importância.

 

Collor é antiburguês

Collor é uma caricatura caligulesca da burguesia brasileira, e tem a missão inconsciente de desnudá-la, como quem desvenda um crime, cometendo-o.

Collor é a burguesia se auto-imolando. Tanta é a mística verdade de Collor, que ele mente mal, para ser apanhado.Tanto é o desejo de ser flagrado, que ele deixa as mais espantosas pistas.

Grande é a indignação dos corruptos clássicos quanto ao desprezo que Collor tem pelo mecanismo sagrado do ocultamento. A alma do negócio é o segredo, sempre ouvimos. Collor estraga a alma do negócio. Os corruptos tradicionais almejam três coisas: o silêncio, o anonimato, a segurança. Collor acabou com o sentimento de eternidade dos gatunos acadêmicos. Nunca mais a ladroagem será a mesma neste país.

Collor denuncia a corrupção sem querer, errando tanto que envelhece os métodos clássicos.

Desatento ao detalhe, permitiu que PC virasse uma espécie de vanguarda, um corte epistemológico no mundo da extorsão.

 

Collor não-linear

Collor está desorientando a direita e a esquerda. Ex: o rosto desesperado de Ricardo Fiúza na TV tentando dar lógica ao labirinto de erros. Ou o PT rindo do primarismo das pistas, quando talvez Collor esteja mais além, numa região não-linear onde o visível é uma camuflagem. Nada mais falso que o Collor de cabelo engomado passando o clima de estadista sereno. Queima uma luz de insânia em seus olhos que o fazem parecido com um Napoleão digitalizado. Collor é um biônico que fugiu do controle da direita. Collor começou acabando com a propriedade privada em um dia. Desconstruiu nossa noção de estabilidade, de sigilo, nosso sentido de harmonia bancária, de direitos naturais. Quando Collor gritava "Não me deixem só!" já estava ocultando aí o secreto desejo de ser abandonado. Ninguém está mais só do que quando mal acompanhado.

Collor escolheu os piores amigos, formando um exército brancaleone de corruptos que são a denúncia encarnada da fisiologia. A escolha de seu elenco de apoio não combina com seu culto à elegância. Nosso presidente mais galã se cercou de feios.

A obesidade dos Malta é a mais viva prova da necessidade da reforma agrária. PC é um figurante perfeito para o papel de capanga voraz. Collor quer ficar só.

 

Collor é didático

Collor causou um estrago na normalidade de um sistema político que escondia séculos de hipocrisia. Nisso ele é útil: pelo excesso expõe a nós mesmos. Nunca vimos tanto o país como hoje. Collor é Brecht, sem querer. Só um suicida didático deixaria o PC ter tanto poder assim. Só uma irresponsabilidade revolucionária poderia chegar a tal grau de desconstrução.

Perguntem a qualquer lobista se ele cometeria erros tão indecentes.

 

Collor e o martírio

Collor tem infinita atração pelo martírio. Talvez seja um perdedor disfarçado de vencedor. Collor é inteligente. Por que ele demarca com tanto cuidado seus erros, para que sejam descobertos pelo descamisado Eriberto?

Eleito por uma auxiliar de enfermagem, pode ser derrubado por um motorista.

Enquanto Getúlio foi deposto por causa de um popular do lado de dentro (Gregório Fortunato), Collor é ameaçado por um serviçal do lado de fora.

Collor se expõe à revolução proletária de Eriberto.

 

Collor e Nixon

Delleuze diz no Anti-Édipo que a máquina social cria anticorpos que a renovam pela auto-imolação. Collor é um anticorpo.

O Collorgate tem uma semelhança com o Watergate de Nixon.

Nixon foi o anticorpo que puniu os EUA pelo Vietnã e por anos de hipocrisia. Era necessário que o sistema americano incorporasse a contestação dos hippies & marginais e se purgasse, auto-implodisse. Os hippies estão para Nixon como os descamisados estão para o Collorgate.

 

Collor e a crise-show

Pelo acerto de seus erros inconscientes, Collor nos ensinou muito. Tanto que o povo não consegue odiá-lo integralmente e o Ibope revela uma fascinação pelo show desta crise dionisíaca. Esquecemos até a miséria diante do espetáculo. Já vimos outras renúncias. Esta não tem o clima trágico do tiro de Getúlio, nem a depressão da renúncia do Jânio, nem a paranóia militar de 1968. Esta crise é maníaca, veloz, cheia de efeitos especiais.

Antes, as crises eram provocadas por opositores. Hoje, Collor é quem faz a crise que pode matá-lo. Há um clima de novidade burlesca e didática neste impasse político.

Há um clima progressista nesta crise; não faz o país andar para trás. Se me entendem, Collor é um fator de progresso. Mudou a agenda, inclusive contra ele mesmo. É um agitprop do parlamentarismo.

 

Collor e o erro certo

Mas Collor quer ir mais longe. Collor denuncia a própria família com seus atos místicos. Ele é um homem dividido entre o desejo de acertar o tiro que o pai errou e a culpa de fazê-lo. Se acertar, erra; se errar, talvez se absolva dos crimes de sua classe. Às vezes ele é atirador, às vezes alvo. Ele sempre soube que o pai errou e tenta absolvê-lo por seus 'acertos que não dão certo'. Pedro também errou o tiro, mirando em PC.

Ninguém em sã consciência deixa tantas pistas óbvias para se incriminar, na copa, cozinha, jardins da Casa da Dinda. Planejou minuciosamente seus erros. Nunca renunciará. Ele quer ser deposto, como uma cruza de Getúlio e Jânio, neto do trabalhismo (Lindolfo) e casado com o latifúndio. Quando Collor sair, deposto ou não, haverá uma real fome de sanidade no país. Uma sanidade menos hipócrita. Analisando-o, o país se reviu.

 


O monstro do Mesmo contra-ataca mais uma vez

— Quem é você? — gritou o presidente.

— Eu sou o Mesmo! — respondeu a voz.

A voz partia de uma névoa escura, do fundo do infinito salão do Alvorada (o presidente morava lá agora, despejado da Casa da Dinda).

— É tarde da noite, não há ninguém! Quem é você?! — gritou o presidente para a grande nuvem.

— O Mesmo! O Mesmo! — respondeu a voz.

Perto da massa densa, o presidente parecia um pequeno homem. O presidente pensou que era um pesadelo. A voz adivinhou:

— Não sou um sonho. Sempre estive aqui. Esperando. Sou paciente. Sempre aqui.

A forma tinha vagos contornos humanos, rostos se substituíam informes, olhos, bigodes, corpos conhecidos brilhavam em viscosidades de gelatina.

— Você sempre esteve aí? — perguntou o presidente entre o pânico e a curiosidade.

— Sempre. Em 1961, eu já estava aqui... eu estava aqui quando Jânio via filmes de faroeste de porre no Alvorada... Eu era a luz do projetor, eu era a bruma que lhe anuviava a cabeça quando ele bebia demais, eu esperava com paciência que ele voltasse ao Mesmo, apesar de seus pés tortos, de suas vassouras. Jânio era o igual disfarçado de novo. Sua missão era fazer o Mesmo disfarçado sob o manto do escândalo.

 

O filhote de Getúlio

— Depois, fiquei calmo durante a agitação da legalidade para dar posse ao Jango, aquele afilhado do Getúlio... Eu vi com paciência (meu forte é a paciência) o Tancredo assumir com o parlamentarismo. Eu sabia que mais tarde eu o veria de novo.

— Você estava onde? — tremeu o presidente.

— O Jango traçava sua queda com bravatas, reformas... Eu estava nele. Mais no seu burro heroísmo brasileiro que em seu sábio conchavismo. Com tédio, vi a ridícula esperança dos jovens dos anos rebeldes fazendo a revolução de 64 chegar. Era natural.

— Mas, quem é você? O fantasma da direita?

— Não me dê nomes! Sou muito mais do que isso! Sou a soma de sentimentos profundos que estão há séculos aí. Sou o que está e o que não está!

 

O espírito de 64

A gelatina fantasma tremeu diante de Collor.

— Eu não estava na grandeza moral de Castelo Branco, por exemplo; eu estava na feiúra dele, no seu lado corcundinha, que o fragilizava e que o fez parir Costa e Silva! Eu não estava no lado humano e bonachão de Costa e Silva; eu estava na sua burrice infinita, eu estava mais na voracidade perua de Yolanda, sua mulher, eu estava sempre onde não me suspeitavam!

Collor deu um tapa na massa viscosa. Sua mão ficou presa. A voz parecia rir:

— Eu vi 68 preparar o ato 5. No Brasil, toda tentativa de me destruir me coloca no poder de novo, é curioso. Eu só esperava que acabassem as passeatas, pois sabia que seria convocado. Cheguei pronto para o arrasamento de desejos utópicos. Não sou o fascismo, venho antes dos nomes...

 

Os bons torturadores

Tentando soltar-se, Collor chuta a massa fantasma. Seu pé direito fica preso também. E a voz continuava:

— Eu não faço nada. Voltam sempre a mim, me habitam, desemboca em mim, entende?

Color arfava, ltando contra a bola de goma,. A voz vinha de dentro da bolha:

— Eu não estava na tortura, nunca torturei ninguém, isto é um arroubo enganoso de direitistas... não gosto de gritos e dentes rangendo. Sou parte da tortura, sou o lado bom pai dos torturadores, a crassa sensação de justiça que eles imaginam ter. Não estou na perversão, não estou na ejaculação que alguns têm com a dor, sou mais o torturador-bom-esposo, o que ama os filhos, estou aí...

 

Com Medici e Geisel

— Eu não estava na sinistra perversidade do Medici calculista; torcia pelo Flamengo com ele, era sua lógica de sentido, era o bem que ele esposava, isso era eu... Eu nunca me interessei por personagens complexos como Golbery por exemplo, busco a monomania... Eu ri do lado sério e patriota, o lado bom de Geisel, eu estava em sua honradez burra, que não ouvia ninguém, uma honradez que o fez contrair dívidas de 30 bilhões de dólares para as usinas de Angra. Eu estava na Westinghouse e guiei a mão cio contratante que nos fez aceitar cláusulas incondicionais, mas, for God's sake, não pense que sou o imperialismo...

A bolha soltou uma língua de gosma e aprisionou a mão esquerda do presidente. Na sua febre, Collor ouvia um mix de discursos parlamentares com sabadão sertanejo.

— Eu fiz Geisel pegar a fé das esquerdas no Estado populista do Jango e criar o Estado gigantesco dos conluios empresariais! — disse a bolha.

 

O micróbio de Tancredo

Collor arfou em sua luta:

— Você pôs o micróbio na barriga do Tancredo!!

— Não! Imagina se eu ia fazer uma coisa dessas... Eu era a inoperância do Hospital de Base, os equipamentos mal geridos, eu era o deslumbramento, o messianismo dos médicos. Eu era também a crença popular de que Tancredo ia ser diferente de Sarney. Eu embalei os corações de estudante, que achavam que somente hinos e desejos iam modificar a nacionalidade! Hoje estou entre os que acham que a CPI vai ser uma reforma moral, que vamos aprender para o futuro... Eu estimulo estas lendas...

— Você era o câncer do Funaro!

— Não! Eu era o sebastianismo, a utopia de Funaro. Eu esperava acabar a valentia, porque eu morava no bolso do jaquetão do Sarney. De lá, assisti extasiado à delirante distribuição de FMs e TVs sob as ordens do Centrão!

 

Eu era você

— E quando fui eleito? Onde estava você?

— Em você... confesso... para evitar o Lula... Depois, para ser evitado um você veio outro você. Eu posso me parir sucessivamente em mil filhotes. Realmente, você descobriu uma coisa nova: que só entrando na barriga da baleia você podia derrotá-la. Você quis roubar bandeiras populares e apunhalar por dentro a tua classe. Isso era moderno e popular, heróico e pragmático; durante um tempo, eu fiquei inquieto, meus canaviais não tremularam, os caranguejos do meu brejo fremiam menos, os tachos de melaço coalharam, saí do meu torpor e farejei o ar inquieto, temi por meu torpor, achei que alguém ia tirar-me dele. Depois, vi que te faltava o raro amor que te faria perigoso realmente, e então, olhei em volta, vi teus auxiliares, teus parentes, e voltei ao meu sono tranqüilo. Era só uma questão de tempo...

 

Eu sou a sopa

— Mas eles não conseguirão o impeachment. — gritou Collor, sentindo que era lentamente absorvido pela bolha, como um feto que reentrasse num ventre viscoso.

A voz veio lenta, quase um sussuro:

— Você já caiu, ficando. Se o Itamar viesse, daria à oposição um falso sabor de vitória, mas logo os dormentes olhos de Itamar e de sua turma me chamariam de volta... E o mais curioso é que eu nunca preciso fazer nada. Tudo cai no meu colo. Sou aquilo sem nome que transforma tudo que é público em privado, faço os heróicos desejos de mudança naufragarem na minha matéria morta e terrosa... E tudo é tão maravilhosamente harmônico que até o Brizola, lutando contra o teu impeachment, me ajuda a crescer... Ah... a ausência de programas das esquerdas... Eu sou mais puro. A inércia sempre vencerá. Volta agora à tua origem! — mugiu o fantasma de goma, feito do barro dos brejos coloniais. —Volta agora àquele magma que te pariu!

— Quem é você? — ainda uivou o presidente, sendo tragado por um útero gelatinoso, vendo passar do lado uma galeria de fetos úmidos que lembravam bancadas de políticos viscosos de ternos e bigodes. Quem é você??! — implorou.

A bolha respondeu, cava:

— Sou o orgulho de não ter sentimentos, sou a inércia primeva do Brasil, não sou a burguesia, nem a elite; sou a pasta essencial de que tudo é feito. Sou a história fixa do Brasil. Tenho a grandeza da vista curta, a beleza dos interesses mesquinhos, sou o feio, o que tem a sabedoria dos porcos, das toupeiras, cios roedores. Tenho esta sabedoria, enquanto vocês se gastam em esperanças. Não sou mosca na sopa. Sou a sopa.

 


Loucos somos nós

Maksoud, imprensa na expectativa. Aguardo a junta médica para saber se Pedro Collor é louco ou não. Enquanto espero, imagino o Pedro invadindo o consultório dos psiquiatras e gritando esguedelhado: "Quero saber se sou louco! Sou louco, doutor, sou louco?!" Em torno de seu rosto um vento de glória se desenha... Imagino os psiquiatras eufóricos, subitamente famosos: "O pessoal do Fantástico tá aí fora!" diz um com as pranchas dos testes. "Finalmente a besta do meu sogro vai me dar valor!" berra outro. Pelas fotos que vi, o sucesso de sua loucura é quase um orgasmo para Pedro. Pedro nunca sentiu tanta alegria. É como se tivesse tirado anos de peso de sua alma. Está leve, forte, seu rosto mal consegue esconder um sorriso de orgulho e um halo de glória se desenha em sua volta. O frisson da imprensa é total. Todo mundo quer saber se o homem é tantã ou não. Um câmeraman da Globo sussurra: "Dava um grande programa: Você divide: Pedro é louco ou não?" Ou: "Você denunciaria seu irmão presidente?"Boa, liga pro Boni, pode ser que ele te aumente!"

 

Ninguém viu o PC

Enquanto isso, penso. Quem é o PC? Ele é impalpável como um adjetivo, nunca está em lugar nenhum.  Nunca se viu este homem na TV, numa escassa declaração. Sua cara nas fotos é uma espécie de monumenlo de silente voracidade, uma fome imóvel, uma estátua de cinismo e prudência. Ele lembra um estômago, um estômago de gravata, devorando, armando, acumulando um poder sem propósito. Que poder de pequeno burguês é este tão almejado? Que poder atarracado quer este homem redondo, que nunca, nunca disse uma só palavra enquanto todos só falam nele? PC é nosso gangster oficial, que nos faz esquecer tantos outros. Que Napoleão quisesse o poder, entende-se, nem que fosse pelo infinito glamour do mal, ou para cruzar os Alpes, coroar-se imperador, mudar a Europa. Tudo bem. Mas o poder de PC e de outros PCs pelo Brasil afora não passam de um acúmulo de jatinhos (para onde vão tantos morcegos?), de lanchinhas, de amantezinhas, de churrasqueiras, de videolasers, de emissoras de FM, de caixas de uísque, tudo para terminar em gargalhadas boçais de sórdidas surubas ou em gritadas em restaurantes parisienses, sob o olhar constrangido de europeus.

 

O público e o privado

Sempre houve uma grande confusão entre público e privado no Brasil; mas agora há uma radicalização. O privado está se resumindo numa família, num grupo de alagoanos que apregoam a essência de suas privacidades sem atentar para a tradicional discrição com que os patriarcas disfarçavam em coisa pública, em bem comum, seus escusos jogos de interesses. Assim como o regime militar foi útil para vermos o fascismo de classe média, assim como Sarney foi bom para entendermos a flatulência ideológica do clientelismo lítero-nordestino, o governo Collor é um tratado sobre o charme histérico da burguesia e seus arabescos cafonas. O brasileiro só pensa em Collor e família 24 horas por dia. É o império do privado como sistema. O privado como público. Um governo que começou com a solidão do voluntarismo tinha que florir nesta girândola de familiares, nesta fogueira de vaidades.

 

Saudades da hipocrisia

Onde estão os homens graves que sabiam tão bem se travestir de instituição, que com severos discursos encobriam seus interesses mais rasteiros? Onde está a doce hipocrisia nacional? Onde está a linda arte do cinismo de uma UDN? Não. Até esta mentira recusam ao povo, até a delicadeza desta dissimulação nos negam. O público, a coisa pública, os mais altos interesses etc, só são invocados quando uma empreiteira tem de remendar uma fraude de esgoto superfaturado, quando um desmentido é lavrado em jornais. O bem público só é invocado quando se trata de encobrir um crime contra ele.

 

A piração revolucionária

A junta médica tardava. Eu pensava nestas coisas graves quando uma esperança me atravessou. E se tudo isto for um gesto revolucionário? E se Pedro for o harakiri da burguesia? Pedro Collor disse: "A família acabou!" Que família? A dele, a nossa, a família brasileira? Pedro é louco ou revolucionário?

De repente, fez-se a luz. Claro! pensei, Pedro é louco! Os médicos vão surgir já, e anões vão dar cambalhotas, focas vão bater palmas, macacos de bunda vermelha voarão em trapézios, chuva de papel higiênico cairá no Maksoud, e os três médicos, um de peruca amarela, outro de nariz de palhaço, e outro dando peidos de pó-de-arroz dirão: "Pedro Collor é doidão! Gente boa, o bicho é muito louco, pirou total!" E ele, às gargalhadas, cheirará uma fileira legal, sob os flashes da glória. Claro! pensei. O homem é revolucionário porque louco. Denuncia o Mal de sua classe consigo mesmo. Claro! Pedro é louco porque está quebrando as regras do jogo. Pedro é louco porque é de elite e denuncia as elites. Pedro é louco porque denuncia o eixo principal da estrutura brasileira: a ponte solidária entre poder e empreiteiros. Pedro é louco, pensei, porque fala de tudo que não podemos saber. Pedro é louco porque fala na frente dos empregados. E vejo os palhaços dançando mambo na charanga, Pedro soprando línguas-de-sogra, voando em trapézios de insânia. Claro, Pedro é louco, penso, feito os loucos de Shakespeare, os únicos que dizem a verdade. E já vejo a Fiesp, os bancos, os usineiros contratando pistoleiros para o silenciar. "Matem o traidor". Pedro é o Tiradentes dos otários, o Joaquim Silvério da burguesia. Pedro denuncia a casa-grande para a senzala. Pedro denuncia usineiros e é genro de usineiro. Pedro é Brecht; quer conscientizar o povo. Pedro é louco porque acha que a verdade está na fala, quando sabemos que a verdade está no silêncio dos não-inocentes. Pedro é louco porque acha que pode haver um poder puro, sem PCs, sem usineiros perdoados, sem canais da Maternidade. E Pedro, meu herói-louco, zurrava cercado de bufões.

 

A vitória da razão

De repente, cessa meu delírio. Entra a junta de médicos em cena, seguidos de Pedro e sua linda mulher (uma Sônia Braga). Repórteres se estapeiam entre flashes. Empalideço de decepção. O laudo absolve Pedro da loucura. Segundo os médicos, Pedro é são como um iluminista. E tudo correu numa santa paz jurídica. Pedro falou como o homem mais calmo do mundo, iluminado pelo sorriso da esposa. Era o império da razão. Voz tranqüila, pausas corretas, educação européia, suaves respostas, sorrisos civis, tudo uma desesperante aula de lógica. O que me parecera um sadio suicídio da burguesia se imolando era apenas uma dissensão entre empresas. Pedro é um lúcido empresário com interesses contrariados. E o escândalo da sociedade civil é o melhor lobby para salvar negócios contrariados. Um moralismo afável, um discreto charme educado, um tranqüilo amor à verdade, falava da desgraça do Brasil, da derrocada do processo como um acidente de percurso inevitável talvez na prevalência da verdade, e a verdade era e é a igualdade de oportunidades entre o grupo do PC e o grupo Gazeta. O que me parecera um louco era apenas um lúcido businessman. Claro que talvez Collor tenha cantado Tereza, claro que talvez ele seja o Palhares (o que não respeita nem as cunhadas). Claro que pode haver inveja, infância traumática, Édipo, Orestes, Esaú, Jacó, tudo. Mas sinto dizer que acho que Freud não explica. Milton Friedman explica, talvez. Ana Luiza Collor disse que o "Brasil não é Alagoas". E Alagoas sim. E todos nós moramos longe, nós, a imprensa, os leitores, os espectadores desse drama burguês. Nós não temos nada com isso; olímpicos senhores disputam impérios e nós idiotas somos a caixa de ressonância. Tudo é tão longe de nós, os anéis de ouro de Tereza, os canaviais dos Lira, os dividendos dos Collor. Tudo é longe.Tudo poderia se resolver se, por exemplo, Roberto Marinho garantisse que a repetidora da Globo em Alagoas seguiria sendo dos Collor. O vento se amainaria nos canaviais. A razão voltaria a reinar. É grande a decepção. Pedro não é louco. Nem PC. Nem Collor, nem ACM. Nem Odebrecht. Loucos somos nós.

 


2020 vê o último capítulo dos Anos de lama

Com reconstituição de época e pesquisa, Gilberto Braga, 77, faz daqui a 30 anos nosso retrato.

Rosineide surgiu atrás da cascata de camarões. Com a enorme cabeleira loura falsa, brincos pingentes de ouro e o vestido de tafetá rubi que imitava o da primeira-dama, ela avançou aflita no meio da multidão do baile no Grand-Hotel Jatiúca Plaza em Alagoas.

(Lembrar de fazer um travelling, anotou Gilberto.)

Ao lado de Rosineide passavam todas as figuras da República: gordos deputados, lobistas nervosos, cronistas sociais, ministros fritados, floridas usineiras, achacadores perfumados, burocratas eufóricos, coquetéis, patinhas de siri, até que, mais além do índio-estuprador de cocar e casaca que dava uma entrevista a um pastor evangélico da TV, Rosineide deu com os olhos no homem que procurava: Alberto Shitsplash, o grande empresário, o rei das barragens. Ele conversava com o homem do momento, o PC, com a careca e o bigode negro luzindo sob os óculos de ouro. PC sorria, porque nada havia sido provado. Todos os vínculos com o presidente (que a CPI tecia há quase três anos) haviam sido interrompidos. Só faltava um elo. Um único, que jamais seria achado. Ao lado de PC estava ele, o homem essencial como lhe dissera Genoíno Mercadante, o deputado do PT que ela amava.

Com a intimidade de secretária fiel, sentindo o sorriso grato de PC sobre ela, Rosineide se encostou provocantemente no braço do mega-empresário Alberto Shitsplash. Ele a comia com os olhos há meses. Ela sabia. Mas Rosineide foi tomada por um arrepio de medo. Como trair a confiança de seu querido patrão PC, como trair o homem que a tirou de recepcionista de uma sauna relax (Alagoas's Crazy Love) e a elevou à categoria de secretária pessoal? Mas a lembrança da imagem de Genuíno Mercadante, seu bigode negro viril, deu-lhe novas forças. Lembrou-se do que lhe prometera, de que dela dependia todo o futuro do Impeachment, da CPI que se arrastava há quase três anos, e com voz bem sexy segredou ao empresário: "Acho que vou aceitar tua carona no jatinho até Brasília..."

Gilberto Braga, 77, se ergueu do digitador de última geração e tentou lembrar do nome do jatinho de Shitsplash. Sua memória não estava tão boa mais. Morcego Negro era do PC; do outro ele não lembrava. Afinal, em 2020 tudo isso parecia tão longe... Mas ele tinha de entregar o último capítulo urgente até a noite. Boni, 88, e até mesmo dr. Roberto Marinho, 117, queriam ver o final da série Anos de lama que já tinha estreado no país.                                                                                                    

"Dane-se o nome do avião", pensou Gilberto. "Não corto agora para o jatinho. Primeiro vou para a CPI, onde o Genoíno espera Rosineide com a prova". Acendeu o cigarro (o médico mandou parar) e continuou: "Cena da CPI. Genoíno Mercadante espera Rosineide".                

Ao fundo os rostos cansados dos congressistas da CPI.

Está depondo a prima-irmã do faxineiro da Brasil Jet. Genoíno, com seu bigode negro desesperançado, olha o relógio. "Será que Rosineide terá coragem?" pensa.

Em off ouvimos a voz da prima-irmã do faxineiro: "Era ele que trocava todo dia o papel higiênico... O dr. PC só confiava nele. E ele ouviu o dr. PC falando pro seu Shitsplash lá na privada que o disquete do seu Shit (como ele chamava.) era sua única garantia! Meu primo Jefferson fugiu de medo, agora ele é travesti na Ceilândia, chama Lilibeth..."

Genoíno não agüentava mais estas confissões tediosas.     

Close em seu rosto.

A imagem se dissolve e temos o flashback de como ele conhecera Rosineide, ali mesmo naquela CPI, ela, a bela secretária de PC (vozes com eco para dar idéia de passado):

— Mas, dona Rosineide, a senhora nunca viu seu próprio motorista, que a levava todo dia ao palácio?

— Não, nunca olhei para o motorista...                 

— Nem lembra o nome dele

— Não lembro...

Genoíno fixa seus olhos na linda loura e sente um tremor, fascinado com sua bela capacidade de mentir... Sentindo-se olhada, Rosineide cruza as pernas do jeito que aprendeu com Tereza Conor. Os olhos de Genoíno percorrem seu corpo e vão até seus brincos-argolões de ouro. "Por que, pensa ele, sendo do PT, gosto tanto de perua rica?"

Mas a senhora nada tem a dizer? — Genoíno lembra da voz quente de Rosineide: "Talvez numa reunião secreta..."

Daí para a suíte imperial do motel JK-Paradise, as noites brancas de amor nas camas redondas com paredes de zebra, daí para as piscininhas quentes foi um pulo. E seu longo diálogo com Rosineide, os dois na piscininha de espuma do motel:

— Mas, Rosineide, você não pensa no povo?

— Que povo, meu amor, quero Miami, querido... você é bobinho... na pós-modernidade isso tudo acabou... quero é luxo, alegria, lanchas, lagostas, jatinhos, parabólicas, videolasers, todo este maravilhoso mundo brega-chique de eletrodomésticos, ouro, seda, Suíça e você... você...

A voz de Rosineide vai sumindo em fade-over sobre a imagem de Genoíno, que ainda lembra emocionado, enquanto ouve a voz real de Bisol na CPI, inquirindo a prima do faxineiro: "Mas PC ia muito ao banheiro?" Genoíno pensa: "Será que ela terá coragem?"

 

Corta para:

Interior do jatinho do empresário Alberto Shitsplash. O empresário está enlouquecido nos coxins do jatinho, todo decorado em tafetá verde-bandeira, com almofadas amarelas e de oncinha, inspirado no célebre modelo de Glorinha Pires que a primeira-dama usou no Japão.

Shitinho, como Rosineide o chama carinhosamente, se encharca de uísque e babuja no colo de Rosineide, semidespida. Ele beija as coxas de Rosineide e olha pela janela do avião.

Shitsplash: — Você é meu ideal de mulher... teu laquê perfumado, teu sutiã de tachinhas, tuas meias negras, deixa eu beijar teu sapato alto... eu sou o homem mais feliz do mundo, estou aqui contigo no Asa Branca...(Gilberto lembrou num sorriso o nome do jatinho)... acabo de vencer uma licitação para a barragem do Juruá, graças ao teu patrão PC... Veja lá embaixo, amor, florestas a conquistar com motosserras, toneladas de mogno a exportar, um mundo a abrir... estamos acima da fome, acima da miséria, nós dois aqui neste jato de felicidade...

Enquanto Shitsplash fala, imagens preto-e-branco de miséria, fome, desertos, espoucam na tela.

("Será que dr. Roberto, 117, deixará passar?" pensa Gilberto.)

Enquanto Shitinho fala, as mãos de Rosineide trabalham. Uma vai ao sutiã e o desprende. Salta um seio lindo. Close do seio empinado contra a queimada lá embaixo. Música... (Velhos discos de Wando, anota Gilberto.)

Close excitado de Shit.

— É teu! — diz Rosineide oferecendo o seio e pensando em Mercadante. Sua outra mão vai ao bolso do casaco de Shit e pega um disquete laranja. "É meu!" pensa Rosineide, com a prova na mão.

Corta para:            

Um longo travelling exaltado, com Rosineide chegando em Brasília e invadindo os corredores do Congresso; passam deputados, contínuos, seguranças tentando agarrá-la, mas Rosineide avança. Ouvindo o burburinho, Genoíno também se ergue e corre em outro travelling em sua direção. Ela entra na sala da CPI e cai nos braços do amante, em lágrimas, e entrega o disquete a Bisol.

Aqui está o elo que faltava para o impeachment do presidente. Um longo beijo entre ela e o deputado do PT.

Explodem imagens documentais na tela que relatam os fatos históricos que se sucederam: as imagens dos deputados correndo com a evidência para votar o impeachment, as imagens do presidente assustado, a correria de tropas do Exército para fazer valer a decisão do Congresso, a exaltada votação para conseguir os 2/3 do impeachment, antes de acabar o mandato de Collor e (suprema ironia que até hoje em 2020 faz Gilberto sorrir) o defeito no placar eletrônico do Senado, que emperrou na hora agá; deputados em pânico, relógios mostrando a hora, ponteiros atingindo a meia-noite do dia 14 de março de 1995, a euforia do presidente Collor rindo com o braço erguido, PC pulando como um sapo às gargalhadas, e finalmente o impeachment sendo aprovado sete minutos depois do fim do mandato.

Daí para a frente tudo era História: a posse de ACM, o período branco da hiperinflação, que ficou conhecido como os anos de merda, a reeleição de Collor em 1999 (que renunciou dois meses depois), a eleição de Pedro Collor para a nova República Nordestina em 2001, o sucesso de Tereza Collor como apresentadora do Fantástico ("Até hoje no ar", pensa Gilberto), PC condenado a 16 anos e cumprindo pena de um ano e meio; e, anos depois, PC em Genebra, com Magri, recebendo a visita de Genoíno e Rosineide, pois o tempo apaga as mágoas.

Gilberto pensa num final com Rosineide e Genoíno assim como anti-heróis, mergulhados também na pusilanimidade dos tempos. Mas escreve dois finais, sabedor dos grilos políticos da cadeia ABC-Globe-CNN, com medo de que TED Turner, 85, e seus sócios brasileiros não gostassem.

Assim foi. Dr. Roberto, 117, de dentro de sua câmara criônica, avisou que tinha de ter final positivo —full of redemption, disse Turner, ao lado de Jane Fonda, 84. E o final veio:

Rosineide, agora sem ouro, e vestida de cinza-Brecht, e Genoíno, rodam num mimeógrafo exemplares do jornal A Moral Nova. Vão para a porta de uma boate de Brasília distribuir os panfletos para os políticos e peruas que entram e saem entre faróis, Mercedes e brilhantes. Ao longe, botando o sobretudo de luxo, PC os olha. Eles, dignos, continuam a distribuir os panfletos. Atrás dos milionários, lacaios com malas cheias de dinheiro vão pagando os táxis e dando carrinhos de mão de gorjeta. Na manchete dos jornais lê-se: Hiper corrói povo. Ouve-se gargalhada off de perua loura: "Divine hyper!..."

 (Gilberto suspira e digita a palavra FIM.)

 

Morre PC sob as balas de um novo país

PC cai em luta com a polícia, como o final de filme de gangster, e lança luz sobre o sistema político.

Os holofotes da polícia azulavam as portas e janelas da casa de PC. Chegavam mais carros com seus alarmes ligados, como rubis piscando na noite clara. Ironicamente, nesta hora trágica havia uma lua imensa em Maceió. Eu olhava os cães inquietos, presos nas mãos dos sargentos, e chegava a ter um pouco de pena de PC. O pessoal da CPI já havia chegado, na limusine negra. Um cordão de isolamento segurava o povinho de Pajuçara. Entre luzes da TV (o Fantástico transmitia ao vivo) vi as secretárias de PC dando entrevistas, famosas. Só restava PC entrincheirado dentro da casa. Todos haviam partido. Jorge Bandeira fugira no jatinho, levando parte do dinheiro. Os irmãos Augusto e Luís traíram-no em troca de penas mais leves. Foi quando raiou a primeira rajada de metralhadora. PC gritava de dentro de seu quarto blindado: "Não adianta! Daqui só irei morto! Vocês querem acabar comigo porque não suportam a luz que eu lanço sobre o país!!"

Chapas de aço doadas por empreiteiras, o melhor cimento dos cartéis, faziam da casa de PC uma fortaleza difícil de invadir.

Me deu vontade de ver aquele homem acuado de perto. Sempre me interessei por homens trágicos, situações-limite. Lembrei de Scarface, com Paul Muni e a irmã indo até o fim. PC iria até o fim? Um tenente me mostrou Bisol com a arma. "Acho que faço o homem sair", falei ao homem cio PT, mostrando a carteira da imprensa. Mais uma rajada estilhaçou os vidros de uma viatura. Fernando Henrique acenou para Bisol. "Deixe-o tentar..."

PC gritava: "Eu sou o presente que ilumina o passado!!!" Senti que PC partira para a História. Ninguém era mais só que ele.

Atravessei a barreira de cães. O major da PM me deixou passar, enquanto ouvia PC gritando da janela: "Vocês não me conhecem! Só quem me conhece é o presidente! Ele hoje está no exílio, em Fernando de Noronha, mas eu vou até o fim!"

Pensei em Collor olhando as gaivotas com seu perfil de Napoleão. "Você está perdido PC, entregue-se!" gritou o Mário Covas pelo megafone. A seu lado, com olhar puro, Quércia vazava luz como um santo de vitral. "Você é um tolo!" respondeu PC de seu palacete. O luar recortava a parabólica branca contra o céu, dando ao cenário um clima de futuro. "Você é um idiota, Covas... vocês serão usados pelos normalistas." Quércia empalideceu. A voz de PC num alto-falante eletrônico era digital e lunar. "Só eu fiz o Brasil inteiro conhecer a verdade!... Os corruptos clássicos querem me destruir... Eles querem a normalização das instituições... Querem é a volta ao dia-a-dia do roubo pequeno, dos lobbies bem-feitos! Eu criei a 'corrupa' épica! Eles querem a normalidade... o país nunca foi normal!"

O general Agenor (estranho ele ali) gritou no ar: "Está entrando aí um repórter da Folha; quer lhe ajudar!..."

"Só como refém!" gritou PC.

Acenei ao general e acendendo outro cigarro entrei, com um frio no peito. Deslizei portão adentro, atravessei os fachos azuis da polícia, e pensei: "O perigo é mesmo a normalização. PC em tantos meses de CPI foi nos fazendo descobrir o Brasil. O Brasil está surgindo da lama como um corpo recuperado. A informação está ficando demais para o país, que agora quer silenciá-lo. Em todos os rincões da trama das classes dominantes está uma nota fiscal da EPC, uma rota de jatinho, um indício... PC a tudo desnuda com seu emaranhado de erros propositais. É necessário que sua obra continue aberta, provocando entendimento", pensei.

Um ruído de metralha me fez correr. Afundei por um labirinto de paredes de mármores falsos, lustres de cristal (queria ele também uma nova arte?). Chego ao quarto blindado de aço escovado. PC já me vira. De seus olhos saía uma luz de selvagem euforia: "Venha, venha ver o mapa que criei! O mapa do Brasil!"

PC sangrava. Uma bala pegara-lhe o braço, apertado num torniquete. Na mão esquerda uma submetralhadora de Israel (dera-lhe Odebrecht, que agora o renegava lá fora) e um papel branco com desenhos manchados de sangue. PC estava ferido, mas brilhava numa luz de heroísmo.

"Aqui está o novo mapa do Brasil!" Olhei o papel sangrento. Com a ponta da Uzi ele me mostrou: "Aqui está a burguesia rural! Veja, quem mostrou melhor o que são os usineiros do Nordeste, como são seus negócios? Quem desvendou a elite nordestina voraz? Quem? Gilberto Freyre? Não! Eu! Quem desvendou isto aqui (apontava-me um labirinto de traços), a trama da burocracia comprada? Quem, Raymundo Faoro, aquele puxa-saco do Max Weber? Não! Eu! Eu ensino. Eu escrevo com meu corpo! (Sorriu, gostou da frase.) Eu explico nos jornais! Quem mostrou como é a lavagem de dinheiro em Miami? Quem? A polícia? A CPI? Quem? Os donos de banco, que fazem isto o dia inteiro? Não! Eu! PC, o didata!"

Lá fora, a voz de ACM se fez ouvir no alto-falante: "Paulo César, aqui é o Antônio Carlos Magalhães, o presidente... Quero que você se acalme, homem de Deus... eu negociei uma saída jurídica para você... uma solução...você se entregue, meu amigo, tudo vai se normalizar!"

PC me olhou maligno como quem diz "Está vendo?" Sua resposta foi uma corrida à janela e mais uma rajada da Uzi. Sirenes e gritarias lá fora. Balas estilhaçaram o lustre de cristal e fomos cobertos por uma chuva de cacos brilhantes. "As estrelas caem...", sorriu filosófico o PC. Tive um aperto de emoção por aquele Ricardo III à minha frente, aquele alagoano-shakespeariano.

"Diga-me (ele fraquejava com a perda de sangue), diga-me, quem mostrou a ligação entre Estado e empresários como eu? Quem tornou arcaica toda a visão de mundo das esquerdas sobre o país? Achavam que bastava o eterno esquematismo das classes, da injustiça? Quem ensinou ao PT o caminho de Miami, do leasing, do money-washing, de Barbados, quem mostrou o que fazem os big people, comprando e vendendo títulos da dívida, quem? Fernando Henrique? Weffoit? Não! Este título ninguém me tira! E me chamam de canalha? Eu sou a luz..."

Eu tremia. Estava diante de uma mutação histórica. Pensei em Sérgio Buarque de Holanda e nas raízes do Brasil. Lembrei do homem cordial, o sinistro pai da corrupção amiga, e vi que PC era a subversão do conceito.

 

PC agora sussurrava com um travo de dor na voz. Ele emagrecera e suava muito; uma lente de seus óculos de ouro se partira numa teia de aranha de vidro. "Meu querido (por que a ternura com o jornalista?)...; ouça... eu provei a vocês que o sistema não serve (um pouco de sangue escorreu de seu lábio). Eu provoquei a falência do bonapartismo como um regime louco... Eu acessei aos jovens a contemplação de um teatro de absurdo insuspeitado antes... Eu introduzi a ilógica na visão social arcaica e positivista... eu modernizei a análise política... Eu acabei com o discurso linear dos moralistas acadêmicos. Sim, Collor ajudou, mas ele seria apenas um neo-udenista típico sem a contribuição milionária de todos os meus erros. E, mais que tudo, quem conseguiu o milagre de fazer o Congresso trabalhar? Olhe para mim... A moralidade não basta. Eu reformo a nacionalidade. Eu sou o pai do parlamentarismo!"

Eu percebi que era preciso que PC não morresse, para dar continuidade a sua obra! Fechar em alguma punição esta fecunda crise era um grande erro. Precisávamos beber desta sarjeta vital.

E enquanto PC carregava um novo pente de balas em sua arma, tentei convencê-lo a sair. "Saia para continuar sua obra! É preciso que o país conheça cada erro seu... cada cheque... É preciso!" Minhas mãos tremiam diante do grande homem. "A obra de V. Sa. é grande demais para ser perdida!"

E já afoito eu corria até a janela para negociar, mas PC me barrou com a arma. Sua voz vinha triste, quase doce: "Ouça, filho, você é romântico, metido a artista, ouça... vou lhe dizer por que não vou me entregar. Eles estão lá fora... eles querem me perdoar. Todo este aparato é encenação. Eu saindo, eles me prendem, me julgam, e depois me dão a pena com atenuantes. Em um ano estou livre e esquecido, para que tudo continue fluindo na paz dos dez por cento... Eles querem me explicar. Morto, continuo aberto como um grande Francis Bacon, parindo mistério..." Espantado com a cultura de PC e o sentido trágico de sua vida, entendi o que ele dissera antes, que 'o presente ilumina o passado'. Qual Gilberto Freyre... PC era nosso clássico do presente. A partir dele, o futuro se modificava.

"Minha família está em segurança em Paris. Vou até o fim. Veja aqui!"

PC abriu uma porta. Atrás dela, amarrado, amordaçado, Cláudio Vieira arquejava, olhos arregalados. "Você quis me superar em martírio, mas viverá! Viverá para ser perdoado, canalha!" gritou PC, fechando o armário. Eu, perplexo, ouvi então sua ordem doce: "Saia, filho, saia para ver. Vá com Deus".

Saí com uma mão negra no coração. Ainda o olhei do corredor, e PC me acenou com um sorriso triste.

Até hoje sinto a dor dos momentos que vi depois. Chegando às fileiras da imprensa, todos me assaltaram com perguntas. Não disse nada. Meu fundo silêncio os afastou. Foi quando tudo começou a acontecer, numa trágica câmera lenta. PC saiu atirando, como um Corisco.

ACM, Quércia, chefes de grandes cartéis, ainda tentaram segurar os cães e soldados. Mas tanta era a gana de PC que atirava ensangüentado na contraiu?., gritando: "The world is mine/" que as balas partiram.

Fui embora, enojado, melancólico, vendo na memória PC caindo lentamente com as mãos cheias de notas fiscais ensangüentadas, voando no vento dos holofotes, e os assessores da OAS, da Votorantim, da Andrade Gutierrez correndo na noite clara, disputando-as como se fossem dólares. Era tarde demais; PC virará História.


Presidente fica eterno no Alvorada

 

 

Na alma de um governante encurralado há formas de amor ao país mais complexas do que pensam seus inimigos.

"Eles virão me buscar. São três horas da manhã e eles virão me buscar um dia, eu sei. Não mais para me depor. Eles virão me chamar de volta. Eu sei. Eles conseguiram provar que eu estava errado. Tudo bem, eles estavam certos. Como era ingênuo este triunfo da verdade que eles celebraram. Mas hoje eu já vejo em seus olhos a sombra da dúvida. Durante meu processo de banimento, eu olhava para eles, os meus inimigos nos jornais, e via-os unidinhos, ah! ah! estalando de pureza moral. Eles não conhecem a beleza trágica da solidão. Que sabem eles da delícia dolorosa de tudo saber e nada sentir? Toscos políticos, eles moram no mundo do bem e do mal; eu moro numa terceira região. Dei a eles a sensação de utilidade pública. Mas eles não conhecem no próprio corpo o sabor do grande arrepio: saber que não há remissão. Não há remissão no populismo existencial de querer encontrar o outro, esta ilusão democrática. Não há encontro. Não há outro.

 

O novo martírio

"Eu escolhi a suprema coragem: passar incólume entre os homens. Jamais deixo-me aprisionar no amor dos outros. Simulo (sem fingir, sem mentir) que tenho patriotismo, sem tê-lo da forma comum, mas tendo-o mais além do óbvio. Eu não minto; meu não-sentir é verdade. Eu finjo mais completamente. Finjo que não é dor a dor que deveras não sinto... mais do que aquela bicha poeta...   

"Eu os vejo mais que eles a mim, pois eu me vejo vendo-os me verem. Eu sei que o Martílio me despreza, pensa que me esgota em sua cultura santiagodantina, mas eu vejo ele pensar. Eu sei que eles pensam que eu errei, mas eu planejei todos os meus erros. Não sou um idiota neurótico que erra sem querer. Eu trouxe ao país uma idéia nova de tragédia: a tragédia fria. Tivemos a tragédia populista de Getúlio (o tiro no coração entre crioulos bandidos e gritarias de oficiais da Aeronáutica), mas era tudo tão... arcaico, quase art déco... Agora, não; há uma idéia mais alta de martírio que eu inauguro.

"Que idéia é essa eu não sei exatamente, mas ela é feita de resistência! Ah, isso... uma coisa estóica, um ideal masculino de beleza, de estátua, um ideal de vazios. Resistência contra a feiúra do mundo, contra uma feiúra a que eu até me permiti aliar. Ou pensam que eu não vi a barriga dos Malta, que não suportei estoicamente o topete do Magri, ou as botinhas de minha mulher (onde andará ela, onde está meu irmão?). Pensam que sou ignorante do mundo da caricatura? Conheço Goya, Hogarth, Daumier. Mas este ideal meio grego de martírio me levou a uma experiência de amor!

 

O gozo supremo

"Eu, pela primeira vez, amei. Oh... doce frêmito, oh... a paixão que me deram as multidões desfilando contra mim na TV, eu me deitando com minha mulher, eu gemendo de prazer vendo as multidões gritar: "Fora! Fora!" Eu escondido vendo as passeatas, altas horas, me esvaindo de gozo... Os idiotas nunca perceberam o tesão que isso me dava... cada passeata aumentava meu amor por mim... Quem conseguiu isto antes? Mobilizar 35 milhões por mim, e depois 70 milhões contra mim, e eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, só eu, o tempo todo, ninguém sabe a superdelícia disso tudo... Oh... ninguém... Altas horas, eu sozinho no Alvorada... uma noite levei o CD do Leandro e Leonardo para o alto da torre de Brasília e via as luzes lá embaixo, e eu chorava, sentia a suprema alegria de "Pensem em mim, chorem por mim!" Isto não é pouco prazer, minha gente... Quanto mais me negam, mais eu existo. Nunca tive tanto prazer sensual na vida. Eu despertei a sociedade civil neste país, eu criei a união nacional, sou um herói nacional! Eu vos amo! Amo! Amo! Quem fez o plebiscito contra si mesmo? Eu não sou deposto; eu me deponho. Eu planejo minha própria imolação, como um Napoleão se descoroando! E eu gritava de prazer, me acariciando pelo Alvorada vazio: Eu desmascarei a burguesia por dentro! 

                        

Eu sou a união do país

"Eu não poderia renunciar, nem aceitar o impeachment. Isso esgotaria o martírio e ele é essencial, como uma eterna luz de exemplo. Não suportaria também a idéia do suicídio. Jamais me entregaria como um corpo mole sangrento às mãos de enfermeiros e sob flashes de sórdidos fotógrafos, enquanto tomasse posse a mole figura do mineiro substituto.

"Esta foi minha única dúvida, mas, hoje, creio que a resolvi a contento. Senti que era necessário que eu continuasse a ser o símbolo da união do país!... Oh Deus... eu tinha virado a síntese de tudo o que deve ser atacado... Oh, glória!... Congreguei como uma estrela implodindo todos os defeitos da nacionalidade, virei um totem com tudo grudado em mim como papel de moscas: rosanes, glorinhas, PCs, fantasmas, rosinetes, barrigas, confiscos, botos tucuxis, zélias, os arreglos uruguaios, nova noção de cinismo, o fim do populismo descamisado, os golpes de marketing, a vitória do mau gosto, a essência do crime provincial, jatinhos, morcegos, celitas, surubas fisiológicas, Stardust, angel's dust, a beleza elusiva do governante, o fim da arte, o pânico dos acadêmicos, a solidão infinita do corredor de cooper nos jardins coloridos da TV... ahh... como acertei, errando... como errei por amor a vocês... e por meu buraco negro o país se entendeu. Se eu me fosse, toda a luz se apagaria...

 

Digo que fico

"Eu tinha de ficar. Sem mim, tudo se fragmentaria em grupelhos políticos, em coalisões passageiras, que depois voltariam a se odiar. Eu sabia o que iria acontecer. Depois do triunfo contra mim, eles se veriam como inimigos de novo, todos nus, Lula nu, Quércia nu, dr. Ulisses nu, ah! ah! ah!... E todos sem programa político, apenas vagos detritos marxistas, fraseados nordestinos, baboseiras udenistas, e diante de todos o imenso estrume da dívida externa impagável, o Nada que o mundo neoliberal impunha ao país! Eu era o programa! Sem mim, eles não tinham o que fazer! Sem mim, voltaria uma normalidade que desfibraria o Brasil. 'Se eu sair, o povo pode se enganar', pensei. 'Se eu sair, o povo pode ter a ilusão de que está destituindo a classe dominante. Não! Eles estão aí, disfarçados de progressistas! Não, minha gente, eu denunciei esta classe encarnando em mim todos os seus defeitos, com uma visibilidade que nunca ninguém ostentou! Jânio tentou ser uma caricatura. Eu sou uma alegoria!'

 

A vitrina no Alvorada

"No início, quando foi decretado o impeachment, eles vieram com um comitê para me depor. Eu resisti. Como um Bruce Lee, ataquei-os e minha feroz solidão atemorizou-os. Eu os repeli com alguns golpes secos no ar e o frio brilho de meus olhos de ninja. Confabularam e viram que ficava feio para a imprensa internacional um presidente arrastado por soldados. Pensaram em me abater a tiros, mas a idéia de sangue aqui no branco do Alvorada também sairia nas revistas do mundo. Aos poucos, foram cedendo à minha idéia de solidão. Depois colocaram o vidro, as paredes divisórias de vidro no palácio. Isolaram-me (pensam eles), como numa vitrina. E me deixaram ficar aqui. Só me movo à noite, quando todos os turistas já se foram (só me incomodam os flashes nos olhos, que ferem minha imobilidade perfeita).

"À noite me banho, me alimento, me exercito. De dia, fico aqui, visível, eterno. E sinto que, a cada dia que passa, a cada desilusão que eles têm lá fora com os erros dos medíocres que me sucederam, aumentam as filas. Como tudo ficou triste depois que eu saí!... A imprensa sem assunto, os políticos sem charme, as ruas sem bandeiras... Sei que já estão com saudades de mim... Um dia, eles virão me buscar para um novo mandato.

"Amanhece. Fico imóvel. Vem uma nova leva de turistas. Olham-me, filmam-me, gravam-me, minha imagem está no mundo todo. Não mexerei a mão e, apesar desta mosca que passeia nela, ficarei imóvel; mas meus olhos vêem que as multidões aumentam, que elas saem daqui com uma nova idéia de solidão, do que é grandeza heróica. Eu ensino. Eu estou só como o Brasil!"

 

Fantasmas e sangue no dia do impeachment

Na agonia de um período histórico, o presidente foge dos políticos mortos e se confronta com o irmão Pedro.

Ele corria pelo Alvorada como por uma avenida infinita. Estava de calção, com a faixa presidencial sobre a camiseta e seus tênis de cooper gemiam como dois bichos esmagados. Fernando coma sem pressa. Ainda havia tempo. A votação do impeachment  durava dois dias, graças aos truques geniais de Roberto Jefferson, com sua cara de mulher de Fellini. A bancada evangélica já se retirara cantando "No céu, com sua mãe estarei!" pois o bispo Macedo pessoalmente garantia salvação eterna para quem votasse contra (fora os dólares, claro). Fernando, sozinho com seus tênis gementes e faixa presidencial, corria pelo Alvorada, ouvindo o walkman com a votação monótona que recomeçava sempre: "223... Questão de ordem!" gritava Odacir Soares, e tudo paralisava. Fernando sorria. Ele tinha dispensado todos os auxiliares e, tomado de uma inesperada euforia, corria pelos corredores do palácio. A voz do rádio lhe evocava fantasias antigas, e, como na infância mística, conversava com seus fantasmas. Via em cada porta, nos desvãos do Alvorada, os vultos de velhos fantasmas políticos. Todos os grandes estadistas já haviam morrido.     

 

Os espectros políticos

Tancredo, Jânio, Lacerda, Jango, JK, Getúlio, todos mortos. "Morreram para você, filho ingrato, pois estão vivos em meu coração!" segredou-lhe no ouvido o fantasma Alkimim. "Para mim também", gritou euforicamente Fernando, vendo surgir atrás de uma porta a careca luzidia de Tancredo Neves, olhando com inveja para a faixa de presidente que lhe tingia o peito ofegante, sobre a camiseta suada, onde se lia: Fuck you busters!

— Esta faixa ainda é minha! — gritou-lhe Fernando, ouvindo um deputado evangélico comprado berrar no radinho: "Deus é pai, Deus é vida, eu digo não", para desespero de José Genoíno que berrava em cima: "Satanás!"

— Você não fez bom uso da presidência, meu filho, você traiu o bom senso!...

— Dr. Tancredo, não me chame de meu filho; chame-me de presidente! Você não tomou posse; eu sim! E mais, que bom senso é este que você apregoa? Você acha que ia conseguir unir este país como eu uni?!

— Você não viu a campanha das diretas? — disse Tancredo. — Eu uniria este país!

— Uniria, um cacete! Você conseguiu união em cima de frases abstratas, você uniu uma classe média desinformada, que foi cantar nas ruas... Queria ver você conciliar os interesses da burguesia financeira de Minas com os usineiros de Alagoas em meio à fome de 35 milhões de crianças!                                                          

— Política é conciliação... meu fi... presidente...

— Isso! Presidente, até segunda ordem! — gargalhou alto o Fernando. — Conciliação de quê? Desta democracia normal que vocês administram há cem anos, com este revezamento que começou com a política do café-com-leite e continuou variando de um populismo cafajeste para um fascismo irracional, ora, me poupe!...

Tancredo, espectral, cor de gesso das paredes do Alvorada, sorriu para dentro. Fernando emendou:

— Não me faça esta cara de sabedoria mineira que conheço há décadas! Isto só é sabedoria como racionalização de impossibilidades. Conheço estes silêncios matreiros, esta cara de patriota ligado a interesses bancários, conheço esta honradez de Milton Campos, de UDN. Prefiro a sórdida verdade dos meus fisiológicos de plantão, eles mentem menos!

 

Jango e os militares

Atrás do vulto transparente de Tancredo já assomavam outros rostos. Fernando reconhecia cada um. Viu adiante o andar manquejante de Jango, e as dragonas fulgentes de Costa e Silva, Mediei e Castelo, que vinham olhar o discurso na penumbra do quarto. Fernando se animou com os novos espectadores.

— Vocês democratas...                                                        

— Sim, presidente! — ecoaram Medici e Costa e Silva...

— Não me refiro a vocês, milicos! Sou o presidente eleito, e agora... (no rádio ouviu-se a voz de Roberto Jefferson cantando "Bandeira branca, amor!" e Ibsen exigindo silêncio)... agora, estou sendo reeleito no terceiro turno!! Vocês, democratas — continuou Fernando —, partem de um falso princípio de racionalidade para o país, quando todos sabemos que isto não existe na realidade. No Brasil, só existe a loucura social e política; você era o louco do bom senso, Tancredo; assim como você era um Tancredo de farda, Castelo Branco! Fingiam acreditar que o Brasil era razoável. É crime partir do pressuposto de que o Brasil é são. O Brasil é louco, como eu! Enquanto houver tais níveis de miséria aqui, todos estamos errados. A miséria é a prova de nosso erro!

— Mas nós realizamos a loucura! Nós acabamos com esta sórdida democracia! Ele queria comunizar isto tudo! — gritaram os militares apontando o Jango, que olhava constrangido.                            

— Não vamos começar isso de novo! Esse negócio de comunismo já acabou! — disse Jango sorrindo para Fernando.

Castelo olhava feito um passarinho molhado. Fernando parecia mais calmo, olhando os milicos e Jango juntos, os três vazando luz.

— Vocês juntos são a cara do país, nossa eterna oscilação! Ou o populismo escrotinho ou o big stick dos milicos! Santo Deus! Vocês militares foram postos no poder para contrair a dívida externa, ou vocês acham que o capital internacional ia oferecer aquela grana toda para o Jango fazer a reforma agrária? Eles queriam projetos que dessem retorno, usinas nucleares, fábricas de carroças... Esse papo agora de democracia liberal só pintou porque não há mais dinheiro! Hoje somos um imenso descampado de projetos impossíveis, nós estamos espremidos entre uma formação política inviável e o capital externo clamando por uma modernização.

 

A valsa de Jânio e TK

— E por que você não fez esta ligação entre o arcaico e o moderno? — perguntou Castelo.

— Porque é impossível! Eu tentei no meu próprio corpo; e o arcaico vence sempre, porque o moderno ninguém sabe o que é. A classe dominante brasileira está inquieta porque a tragédia está chegando perto dela, porque a grana do mundo acabou, porque me elegeu e eu traí; eu servi mal aos meus financiadores, eu sou uma espécie de anti-UDN, um PSD auto-implodido, eu sou uma supernova. Enquanto o povo estava na sua muda tragédia, ninguém se tocava; agora que estão assaltando, começa a onda!

Ele começou a correr de novo, seus tênis miavam como gatos, em contraponto com a voz dos deputados votando: "Eu, em nome de Jeová, voto que não!"

Ao longe, no corredor, vinham mais três espectros. Jânio se aproximava na cadeira de rodas, e num longo rodopiar JK passou ventando por Fernando, valsando num louco giro de contos dos bosques de Viena. "Não me fale de corrupção!" gritou-lhe Collor, espantando o fantasma-valsante que tropeçou no caminho; "não me fale de jogadas de lobbies internacionais, você que fundou as empreiteiras do Brasil!"

— Eu não faço casas populares, eu faço Brasílias! — retrucou JK valsando cada vez para mais longe.            

— Quanto a você, canalha — gritou para Jânio —, você quis ser paródia, um precursor meu, mas não é; você nunca teve grandeza trágica, nunca se arriscou até a morte, como eu, você apenas errou, saia! — Babando, Jânio rolou a cadeira de rodas corredor abaixo.

O revólver de Getúlio

Fernando continuou correndo, quando se ouviu um tiro. Getúlio era visível pela f resta de um quarto como uma figura de trem-fantasma, atirando no peito continuadamente e sorrindo, sorrindo para Collor que parou ofegante.

Getúlio chamou-o, agonizante. Collor foi até ele. Getúlio segredou-lhe: "Gosto muito de seu avô. Você não pode se suicidar. Se eu fosse da tua idade, tinha ficado até o fim para desmascarar meus assassinos com meu martírio. Somos muito diferentes, mas você tem uma originalidade absurda que será muito útil a este país!" O pijama de Getúlio se embebia de sangue. Collor ouviu a voz do radinho: "301... a favor..."

Getúlio sorriu, num sopro triste: "Minha morte não adiantou nada; pode ser que tua loucura adiante. Você é corrupto como tantos do PMDB, você é mau como o ACM, você é louco como o Jânio; você não é o bode expiatório, você é a ovelha negra!" Collor tremia: "V. Exa. se matou no final de um processo. O tiro foi um ponto final. O senhor mostrou que não havia saída. Eu mostrei que não há início. Ninguém sabe por onde começar. Lendo os jornais dos últimos 30 anos, vê-se que a história do Brasil é uma sucessão de começos que param. Eu sou mais um início que parou". v Getúlio se aquietara num sorriso. Já soavam os gritos lá fora: "Getúlio morreu!" O general Caiado de Castro entra (o fantasma dele) e desmaia diante de Getúlio; outros gritos soavam, de Lourival Fontes, de dona Darcy Vargas; o radinho do Collor falava: "327... a favor".

Sem saber por quê, Collor pega o revólver de Getúlio e corre para a porta dos fundos do palácio. "A madrugada sangra como o peito do Getúlio", pensa Collor literariamente, enquanto corre em linha reta para a Casa da Dinda. Àquela hora ninguém o via, com a faixa verde-e-amarela no peito, revólver na cinta e o radinho falando: "329..."

Mergulhou na floresta tropical dos jardins da Casa da Dinda. A manhã raiou, enquanto Fernando subia por entre filodendros e gladíolos até o alto da cachoeira maior. Lindo aquele jardim: a água jorrando, ele no alto, só, vendo Brasília ao longe. Uma grande calma o tomou, com a arma de Getúlio na mão. Seria impeached ou não?

Foi quando um grito ecoou na paisagem. "Fernando! Sou eu! Quero te ver!" Fernando reconheceu a voz. Era Pedro, seu irmão, que surgia lá embaixo junto ao lago de carpas douradas.

Raiava a manhã. Os pássaros começavam a cantar quando o primeiro tiro ecoou. A casca da árvore atrás de Pedro voou em lascas. Pedro:

— Fernando, quero conversar! A votação está acabando! Você vai sair, vai ser deposto! Não atire!

Nos ouvidos de Collor, o walkman soou: "330..." Faltavam apenas seis votos para ele ser banido.

— Eu te disse que ia até o fim! Você quer meu perdão, mas não vai ter! Vai até o fim também, até o fim da vida como o traidor do irmão!

— Não quero perdão, quero te ajudar a sair dessa, depois que o impeachment for votado! Eu posso amenizar as acusações!

—Você acha que é melhor que eu? — respondeu Fernando. — Somos da mesma família, temos as mesmas taras. Você pensa que é sensato e eu sou louco? Somos dois lados de uma mesma moeda; eu sou o lado voraz, feroz da burguesia; você tenta ser diferente, mas é o lado cavalheiro do proprietário egoísta, você sempre quis ser o bom moço.

— Não é isso, Fernando — gritou Pedro —, não atire que eu estou com o revólver do papai... Eu te avisei do PC, eu fui ao palácio, eu pedi, você nunca me ouviu! Você queria destruir tua própria família!

— Nada disso! Eu sempre agi conforme minha classe. Só que eu sou exagerado. Eu continuei o destino óbvio de todo filho de classe alta. Eu dirigi carros em velocidade, eu quebrei bares, eu lutei caratê, eu fui arrogante. Você é que é o restaurador. Você quer fazer a burguesia voltar à prudência, você quer que o liberal-bom-mocismo seja possível num país perdido de miséria. Eu já fui longe demais, eu não posso voltar atrás, não tenho nada a levar a não ser o meu destino! — E ligou um controle remoto. — Vila-Lobos atroou nos jardins, vindo de caixas possantes.

— Lula não tem esse som! Ouça!                                                                     

O choro no. 10 de Vila transformou tudo num espaço trágico.

— Você não passa de um coadjuvante, um lago vestido de Otelo! Eu não! Eu entrei em túneis de dor que você não conhece! Você não sabe o que é ser amaldiçoado por uma nação; sua mãe em agonia e você chegando num hospital sob vaias! Você não sabe o que é isso! Você não sabe o que é a dor total de um mundo sem saída!

 

A família acabou

— Por que você escolheu isso? — gritou Pedro subindo a cachoeira.

—  Eu sou o cangaceiro de duas cabeças: uma que vê, a outra que desarruma! Meus amigos são os piores ratos da nação. Olho em volta e me espanto como pude criar este inferno trágico! Mas criei uma fase nova aqui, mais sangrenta! O país virou a família; a família é o país! Não há mais coisa pública; tudo é privado, Pedro! Você tem razão, nossa família acabou; acabou mais que isso, acabou a família política!

— Eu acabei com ela te denunciando! O impeachment vai ser votado e você cai! Eu tive a coragem pública de denunciar meu irmão! —gritou Pedro avançando na selva do Brasil's Garden.

— Ingênuo! Eu te ensinei tudo! Eu te apresentei a primeira fileira, eu te ensinei a fumar, eu te levei à primeira mulher! Você me obedeceu, eu convoquei você para acabar com nossa família! Nem essa honra eu vou te dar. Você não fica nem como meu traidor! Vai! Vai! Vai morar em Miami, importar frutinha, com aquela gata maravilhosa, vai! Aliás, isso... eu tenho de tirar o chapéu... grande gata!

— Pedro berra, desesperado:     

— Não fala nela! Não fala nela! — e atira em Fernando. Erra. A bala espatifa uma arara que voava e seu cadáver colorido se espedaça sobre a cabeça de Fernando, que fica parecendo uma iaô ensangüentada, com a faixa manchada de rubro.

— Veja! — gargalha Fernando. —Veja o sangue de nossa pátria! Esta é a beleza, Pedro, a beleza! — Como um enfeite de arte plumária, as penas multicoloridas da arara se espalhavam em suas mãos. —A beleza, Pedro... ela sim... ela é linda, ela é tudo o que você tem... Tereza... ela é o mistério disso tudo, ela é o espelho de Iracema, ela é o sorriso luminoso que poderia nos fazer repousar, ela seria a arte perdida... como está esquecida a arte, Pedro, ela me lembra a beleza de um país que poderia existir... — Fernando chora, coberto de penas e sangue. — Ela é o país, puro, belo, sensual... Ela é tudo o que nós perdemos, Pedro, eu perdi, você vai perder... Ela nunca te perdoará por ter me denunciado por amor a ela, ela nunca te perdoará por ter feito isso na frente do Brasil...

Vila-Lobos soava na floresta. No rádio a votação pelo impeachment estancara. Cresciam os votos contra o banimento. Perdidos em sua luta, os irmãos não ouviam. O walkman: "Contra o impeachment, l6l..." Pedro também chorava, pistola do pai na mão.

 

Morre, Pedro!

— Eu não vou te dar a honra nem de me derrubar, Pedro. Vou te fazer um favor, dê adeus a ela, Pedro! Com o revólver de Getúlio, Fernando atira. — Morre, Pedro! — erra. A bala se aloja na perna de Marcos Coimbra, que vinha correndo jardim adentro. Urrou com olhar espantado para Fernando e voltou manquejando para o heliporto, sob as pás de navalha do helicóptero. Etevaldo Dias engancha o corpo de Coimbra e levantam vôo, em fuga. Pedro chorava, os pássaros gritavam, o placar do impeachment soa nos ouvidos de Fernando: "164! Contra!"

— Você não passa de um homem de negócios, Pedro! Vai vender laranja em Miami! Eu sou mais! Você é um rapaz de família! Eu sou os anos rebeldes!

Pedro corre pela borda da cachoeira gritando:

— Se entrega, Fernando! — e atira de novo. Eua. A bala não bate em Fernando. Acerta no vidro do helicóptero, que se estilhaça e continua a voar trôpego de volta ao Congresso.

— Errou de novo! Idiota! Ninguém acerta nesta família! Só eu acerto, errando! Eu sei! Que será de você quando eu me for? Santo Deus, que vida te espera! Eu não, eu sou grego, eu sou trágico!

Pedro gritava de ódio, perseguindo o irmão que ria, pulando de pedra em pedra, com a agilidade de atleta. Novos tiros ecoaram. Pedro errara de novo.

 

Cooper para a história

De súbito, se ouve um grande rumor.

Além do muro da Casa da Dinda, uma nuvem de poeira surgiu, enquanto o rádio gritava: "168, contra! Votado 'não' ao impeachment!

A nuvem ululante era o tropel dos puxa-sacos que vinham saudar o presidente.                                                                                         

Fernando gritava, do alto de sua selva:

— Canalhas! Nem me derrubar conseguiram! Com tudo o que eu fiz, me dei de bandeja! Eu quis mudar este país, quis dar uma lição a todos e nem assim! Este país não tem vergonha mesmo!

A caravana se aproximava, buzinando; gritos, bandeiras, hino nacional. Rosane surge correndo, trazendo de volta as malas Vouiton com que fugira.

— Fernando, amor, eu voltei!

Pálido, o presidente olha com esgar de desprezo. Ela, cercada das gordas barrigas dos Malta.

A multidão se aproximava. Pedro olhava esgazeado Fernando ainda lhe falava:

—  Olha, Pedro, aprende mais esta lição. Eu não tenho volta, sou grande demais para ser perdoado por meia dúzia de evangélicos e ruralistas. Eu tenho um destino trágico que não posso negar. Eu não aspiro à familhinha feliz que você ama. Eu não posso botar um terninho amanhã e voltar ao dia-a-dia do Planalto. Eu sou mais!

E diante do olhar perplexo dos Malta e de Pedro, Fernando tirou um papel do calção e jogou para o alto.

— Eu nunca estou onde vocês pensam! Este país tem de aprender! Eu renuncio!

Rosane gritava:

— Não! Não! Não faça isso!

Pedro, com o terno imundo de lama, tentava pegar o papel da renúncia que voava para a caravana que invadira os jardins. Fernando ainda olhou o irmão.

— Pedro, vou fazer meu último gesto de presidente. Tenho imunidade. Morre, Pedro!

Atirou duas vezes. Errou de novo. As balas pegaram em Roberto Jefferson, que corria portão adentro. Olhou ensangüentado para seu chefe e caiu de bruços no lago das carpas, que começaram a devorar seus olhos.

Já corria entre os membros da multidão a notícia da renúncia. Fernando desceu da cachoeira e passou entre seus correligionários, que se afastavam, olhando sem entender. Cumprimentava a todos com um sorriso gelado. Aos poucos foi acelerando o passo entre os amigos que choravam e começou a correr para o cerrado, sob os acordes de Vila-Lobos. A distância, seu vulto se perdeu, fazendo um cooper em direção à História. Era feliz.

 


Brasil vota hoje para saber quem somos nós

Mais que o suspense do impeachment, o país vive o grande desejo de uma sociedade civil ativa.

Esta crise que tem desenlace hoje é uma crise boa. Não é o fim de uma esperança; é um começo. Mesmo que Collor ganhe, é um começo.

Há crises que são interrupções de processos; por exemplo, 64 interrompeu o processo de ilusões de esquerdas populistas. Uma ilusão barrou a outra. Queríamos um social-estatismo populista idílico e fomos barrados por um facismo-estatismo de igual loucura. Esta crise não. Ela culmina um período, e inicia outro. O Brasil começa a ter uma roupa. Já tentamos todas, nenhuma roupa serviu. Esta crise é a soma de todas as experiências passadas. Nossa roupa agora é feita com os trapos de tudo de errado que sobrou, é o patchwork de nossos inventos fracassados.

 

A crise progressista

Esta crise não é uma barragem. Esta crise é de avanço. Para além da punição de Collor, há uma fome de limpeza no ar. Não é uma crise reativa. O que chamo crise reativa? Seria uma simples reação a uma injustiça cometida, sem a criação aguda do novo. Seria a lamentação, o reclamo passivo. As Diretas-Já seriam um movimento reativo a 20 anos de ditadura, coroando uma abertura comandada, induzida pelos próprios militares. Nosso desejo despertou como uma decorrência da era Figueiredo. Depois, achamos que o voto, a liberdade bastariam. Adotamos a idílica democracia verbal. Hoje não; hoje recusamos a abstrata liberdade enganosa. Hoje sabemos que não basta a liberdade; é preciso a Lei. Esta é uma crise em busca de Lei. A secular desimportância da Lei na tradição brasileira começa a morrer. Nossos heróis macunaímicos morrem. Nossa dialética da malandragem agoniza, até como mitologia carioca. Estamos com uma convulsiva fome de organização.

O brasileiro não é mais uma vítima que reclama e que se une para reagir a um ataque, com atraso. Ele se une agora para atacar. Mesmo que se perca o impeachment, continuará o processo de aprendizagem, de política ativa. Esboça-se pela primeira vez um sopro de sociedade civil ativa. Parece que o brasileiro não espera mais alguém que faça por ele, nem um Napoleão, nem uma ideologia pronta.

 

O fim do perdão

Collor acabou com a crença no milagre brasileiro. Collor nos fez odiar séculos de fisiologismo e sebastianismo. Pelo excesso de delírio, começamos a amar a realidade. Sente-se o nascimento de uma coisa pública no país. Um público possível, não um público imaginário como no comício de 13 de março de 1964 ou nos cânticos do coração de estudante.

Levando a família a um paroxismo, Collor nos trouxe o horror ao privado, ao familiar. Tudo foi tão cruel, que acabou com nosso afável coração de bondade. Sempre perdoávamos, esquecíamos. Acho que o país terá mais memória daqui para a frente. A implacabilidade de Pedro Collor nos ensinou a não perdoar. Nossa opinião pública está mais cruel. Acabou o brasileiro cordial. Não tiveram pena nem da mãe de Collor. (Estranho país em que o Pai Tancredo morre no dia da posse e a Mãe, como um Getúlio fêmea, agoniza na hora da queda.)

 

Antes do abismo

Não há mais a idéia de que o Brasil está à beira do abismo. Não há mais abismo, sabemos. Já caímos nele. Collor foi a vivência do abismo. O país antes vivia na borda, vivia antes do dia D, antes da verdade. Collor nos trouxe seu método suicida: querer ver a verdade profunda, mesmo que nos enlouqueça. Com a radicalização da CPI e a busca da verdade sem limites inaugurou-se uma fase de não-planejamento das hipocrisias.

Collor foi símbolo sintético do erro total. Sua coragem de errar foi tanta que deixou um significance de radicalidade. O Congresso aprendeu a ser radical com ele. E a ser eficaz contra sua incompetência. O Congresso aprendeu que tem de governar e não se esvair em infindos conchavismos de eterna complacência.

 

O fim do grotesco

Com Collor e seu elenco de apoio esgotou-se o tempo da caricatura. Depois dos Malta, de Rosane, dos fantasmas, de PC e todo o circo bufo que se espaventou em cambalhotas e cordas bambas, só nós resta o enfrentamento da tragédia. Nunca se atingiu o sublime da caricatura como neste governo. Goya não acreditaria. Depois do período destes palhaços do Mal, não há mais do que rir. Esta crise é boa porque ela deu uma imensa visibilidade aos grotescos traços do país. Não há mais no país um semi-tom, um ton-sur-ton de cafajestismos. O sórdido tem cara de sórdido, o canalha é visualmente marcado.

A tropa de choque é incrivelmente bem escolhida pelos tipos. Existe elenco melhor para o papel de canalhas? Fiúza, Maranhão, Odacyr e o inefável, supremo, indescritível Roberto Jefferson, o gordo demônio de Bosch. Bornhausen saiu porque não tinha physique du rôle. A piada não basta; a gargalhada é pouco para nós.

 

A tragédia do quase

A tradição brasileira leva à vitória da lei de Murphy. Sempre a pior hipótese ganha. Nós ostentamos em nossa história fixa a eterna volta ao Mesmo. Sempre tivemos a grandeza da vista curta, a beleza dos interesses mesquinhos, sempre tivemos a sabedoria dos porcos, das toupeiras, dos roedores. O Brasil sempre foi o país do quase conseguiu. A Independência quase foi nossa, pois o interesse português a declarou. A Abolição veio tarde. Frei Caneca, Zumbi, todos morrem, todos fracassam. Só celebramos mártires. Não há heróis libertadores, como na América espanhola. O próprio dom Sebastião da mitologia portuguesa era um babaca que se jogou suicida em meio ás tropas mouras e sumiu massacrado. Getúlio quase termina o governo, Jango quase, as diretas quase passam, Tancredo quase toma posse, os planos quase dão certo, os cinco anos quase são barrados. Collor acabou com o quase. Ele radicalizou pelos maus caminhos e chegou à plenitude do erro. A única salvação de Collor hoje é a desmoralização do país. É extraordinário que tenha se chegado a esse ponto. Um país inteiro tem de cair para salvar um mandato. Só a derrota nacional salva Collor.

 

Quem somos nós?

O que distingue esta crise é que temos uma união ativa de forças que não se excluem; somam-se no que têm de melhor, suprapartidos. Não estamos unidos para chorar por termos sido banidos; estamos juntos para banir. Isto é novo no país. Se votarmos sim estaremos fazendo uma eleição ao contrário, escolhendo não um homem ou um carisma, mas uma idéia de país. Se houver o não, talvez as instituições não resistam.

Sinto que na opinião pública do país há pela primeira vez uma luta de não-salvação nacional. Claro que há o sentido punitivo, há o clima moralista, mas há também a busca de um cotidiano gradual não ideológico e sensato, a busca de um cotidiano político possível. Vivemos o grande suspense de saber se conseguiremos interromper nossa tradição de ratos. Nós não queremos a salvação. Queremos ter o direito a um começo.

Collor na sua estarrecedora vida pessoal é a história de um homem que fracassa de propósito para descobrir quem é. Mas muito mais que o banimento de Collor, o que o país quer é saber quem é.

Hoje não estamos votando somente contra ou a favor do impeachment. Estamos votando para saber quem somos nós.

 

Barraco verde e rosa flutua na luz da TV

Loucos de rua aumentam no Rio por conta dos acidentes e traumas provocados pela miséria crescente.

Casca de ovo com resto de clara, cigarro recém-atirado ainda soltando fumaça, sete (exatamente sete) palitos de chicabom, sacola de uma loja não identificável (ele não sabia ler) para poder ser transmitida com precisão (transmitiu apenas 'saco de loja de calcinha de mulher') e ainda outros objetos de menor importância, a saber: pente banguela, meia capa de revista, cocô de cachorro, volante de loteria esportiva, barbante sujo e enrolado feito uma minhoca, um sapato de bebê enlameado, 16 pedaços de papel picado, um band-aid velho e mais pó, sujeira e terra, tudo na calçada preta e branca ondulante de Copacabana. Anjenor transmitiu para os seus familiares (pelo rádio secreto) tudo o que via no chão, na trilha exata que seguia todo dia.

"Alô, alô barraco verde e rosa, papai está chegando, câmbio!" Anjenor transmitiu por seu rádio-espacial-mental, instalado atrás de sua língua (ele que nunca mais falara com ninguém desde aquele dia fatal), ali da rua cheia de Copacabana.

O caminho era sempre o mesmo. Anjenor sabia; e todo dia ele seguia as mesmas regras minuciosas, as mesmas instruções recebidas do alto para que tudo acabasse bem e ele pudesse descansar em paz.

Seguia os detalhes da calçada, cada minúcia do chão, enquanto ia em direção à vitrina das TVs. Na calçada, ele via a torrente de pés e sapatos e tudo ia transmitindo, em seu caminho perfeito: rodas dentadas de carrinho de bebê, tamancos medonhos, jacarés de solas pregueadas, sapatões altos, saltos de perfurantes agulhas, toque-toque de muleta de aleijado, ponte imóvel de perna de mendigo exposta ao público com chaga e gaze suja que ele pulou, sandálias japonesas dissimuladas, joanetes disformes de pés nus, roda de velocípede e macaco mecânico num carrinho batendo tambor de lata e que ao passar lhe lançou claro olhar de gozação. Outros olhares luziam sobre ele (ele conhecia), como se fosse um louco falando sozinho, pois ninguém sabia de seu rádio-espacial-mental instalado atrás de seu último molar, mantendo contato direto com sua família no barraco verde e rosa. "Aproxima-se a hora, pessoal, vitrina à vista! Câmbio!" transmitiu ele ali da calçada de Copacabana.

Anjenor sabia que teria de passar ainda em frente à eterna loja das TVs, muitas televisões brilhando como uma parede ladrilhada de luz, mudando todas as imagens ao mesmo tempo, num xadrez colorido. Sabia que cada vez que passava em frente à loja, quando ele punha o pé no limite exato da aresta esquerda da vitrina, neste momento preciso todas as televisões apagariam suas cores e uma nova imagem se acenderia em todas as telas. E ele nem olharia, pois já conhecia a imagem desde a primeira vez em que a viu (há mais de dois anos), quando passava ali e vira a notícia que o homem do noticiário dava, mostrando o topo do morro onde ele morava e os barracos pegando fogo e todo mundo correndo e os bombeiros tirando as maças brancas de um barraco que ainda pegava fogo e ele vendo os rostos das crianças e da mulher na maça e ele não sabia por que neste momento ele voou vitrina adentro, afundou-se na tela de TV e surgiu no alto do morro, gritando, gritando e vendo os bombeiros descer com as maças e os seus morro abaixo.                      

E desde esse momento, ele sabia (conforme instruções do alto, recebidas por seu rádio-espacial-mental) que teria de percorrer todo santo dia o mesmo caminho em frente à vitrina para que tudo pudesse ser mantido sob controle e todos os seus passassem bem.

Então, Anjenor pôs o pé na fimbria da onda negra desenhada na calçada junto à vitrina. Com seu retângulo pendurado nas costas, onde se lia Compra-se ouro (o patrão, lógico, não ele), mais parecia uma tartaruga que um homem-sanduíche, e olhou em volta a rua de Copacabana que, como de hábito, estava animada como um carnaval de arlequins. A rua toda dançava como uma gelatina e ficaria assim até ele cumprir o ritual diário obrigatório: o ônibus chacoalhava e batia a queixada do pára-choque, ameaçando-o com os olhos rodando dentro dos faróis; na marquise da academia de ginástica, o anúncio do homem musculoso mostrava o braço violento para ele; o neon da lanchonete já acendia o raio vermelho que ia fulminá-lo, sem contar os olhares dos passantes, que riam, riam, riam dele.

Mas tudo isso ia terminar em breve (ele sabia).                

Então, chegou a hora decisiva. Ele deslizou o pé com minúcia, seguindo a linha da onda negra desenhada no chão de pedra portuguesa. Equilibrou-se por sobre o traçado ondulante da calçada como se fosse um artista de circo num arame alto. Limpou cuidadosamente com o pé cada detrito no caminho (era necessário que o chão ficasse impecável); chutou cada ponta de cigarro, cada chiclete, cada pedrinha.

Anjenor nem olhava para a vitrina ao lado, pois caía de saber que o fogo se repetia sem parar nas telas das TVs com o barraco, os bombeiros, as maças; nem olhava para a rua, pois sabia do ônibus rindo dele, o halterofilista de neon ameaçando-o com o braço e o raio de morte da lanchonete fulgindo como um punhal de neon.

Confiante, Anjenor transmitia para os seus, pela rádio-mental:

"Calma, pessoal, dentro em pouco vocês vão estar salvos! Câmbio!..."

Anjenor conhecia cada milímetro de chão e sabia que, como fazia há meses, tinha de refazer exatamente tudo o que fizera no dia em que, passando, vira a terrível notícia na TV da vitrina. Só assim os seus podiam ser sempre salvos.

Já limpara o chão até a metade do caminho e estava chegando a hora de pensar aquele pensamento que ele estava tendo no dia em que vira o barraco pegando fogo; e aí, no segundo exato, pensou o pensamento. Agora, só faltava saltar a rachadura da calçada, evitar a pedrinha lascada, limpar com o pé ágil a última guimba de cigarro, pular com os pés juntos para a onda branca de pedra portuguesa e, então... olhar para a vitrina! E, como sempre, tudo se refez!

As imagens do barraco em fogo começaram a arder para trás, as maças andaram para trás (ele sabia e olhava ofegante e triunfante), e as imagens voltaram em marcha a ré, e o barraco luminoso e colorido se refez como trucagem de cinema, e as chamas se apagaram, e as maças sumiram e as crianças e a mulher reapareceram na porta e na janela e o barraco verde e rosa, cheio de luzes feito nave espacial, subiu no céu do morro, com os filhos e a mulher dentro!

E o ônibus parou de rir, o neon se apagou, o halterofilista se amansou e a rua inteira ficou calma, e ele ficou calmo, e pôde sentar no seu canto de calçada, feliz com a salvação da família, e pôde transmitir contente para a nave-espacial-barraco que flutuava nos céus das TVs, linda  como um comercial: "OK, papai já chegou... está tudo OK... durmam bem... até amanhã... câmbio!" Sentado no chão de Copacabana, Anjenor já podia descansar em paz.

 

O homem sem TV na noite de chuva

Quando ele chegou ao quarto, derreado, à beira de um ataque de nervos, depois de um dia terrível em que o patrão e os colegas desconsideraram seus mais finos anseios, depois de um engarrafamento pavoroso na Nove de Julho sob chuva que crescia, ele chegou correndo para o único alívio que tinha ainda depois da separação da mulher amada, que era apertar um botão e ver o Cid Moreira falando da Croácia ou de algum excitante seqüestro, ou de um épico desmoronamento ou do equipamento estragado de um hospital ou uma bela fraude, ou uma infinita escrotidão burocrática, e ele ficar com a cabeça no travesseiro, numa doce anestesia que apagava as humilhações do dia.

Aí o botão da TV não ligou. Só veio uma luz negra do fundo do tubo e mais nada. Ele foi tomado pelo terror da solidão completa e olhava em vão todos os canais onde outrora florescia aquela janela colorida, luminosa, amiga, que sempre o acompanhou nas noites dolorosas. Os canais emanavam uma luz esverdinhada, até que no SBT ele ouviu ao longe, como vindo de outro planeta, um ruído que ele identificou como talvez, sim, talvez, frases emitidas em ondas curtas por Gugu Liberato... Banhou-se durante alguns momentos naquela voz que o alimentava com frases sobre casas da Bahia, ouvira bem? falava Gugu da Bahia, e coqueiros se embalaram por segundos em sua mente, e ele pôde respirar um pouco, reuniu forças, e de súbito teve um lampejo e arrojou-se para o quarto da empregada em busca da 14 polegadas preto e-branco e derreou-se ao ver o quarto vazio de TV, que a Evangelina levara para divertir a mãe com dengue na enfermaria de Itaquaquecetuba; voltou ofegante e rodou mais o dial e conseguiu um outro lampejo tosco de imagem esgarçada, cor de fezes de bebê, sem som, onde um polvo comia um caranguejo que se torcia entre os tentáculos e o polvo e o fundo do mar foram para ele mais uma fonte de poesia fugaz e ele se imaginou em Bali, mas a turva imagem também se apagou. Em pânico, ele correu à janela, a chuva tinha piorado, agora a torrente passava arrastando dois carrinhos e um homem de terno gritava agaixado ao poste da avenida, as últimas forças do homem estavam se esvaindo e ele voltou à TV, e agora só lhe restava a tela fervente do poltergeist, preto-e-branco, como um mar de luz envenenada, e ele ainda tentou um pouco de imaginação e se pensou atravessando um espaço entre planetas, onde, após a barreira de grãos ferventes, chegaria finalmente à Globum, o planeta platinado, ou ao reino de Sylvium Sanct e seu sumo-sacerdote Jô, mas era tudo fugaz enquanto a noite chovia; pensou num livro, não havia nada em sua casa, há muitos anos ele não lia mais, e aí ele correu ao binóculo de corridas do pai morto, e correu à janela e esquadrinhou os detritos de lixo que a chuva enxurrava rua abaixo, e o homem que finalmente se largara do poste e estava em pé no teto de um Volks, e aí ele se acalmou e sua voz subiu grave: "Mais uma vez as chuvas vêm castigar a cidade, onde fica clara a falta de planejamento das galerias pluviais", e sua voz saía à Sergio Chapelin, que ele imitava tão bem, e então seu binóculo correu para as longínquas janelas de um edifício em frente, e enquadrou um casal rolando num sofá colorido se beijando na boca, e ele, solitário, dublou: "Sita. Williams, pode apostar, o seu é o melhor corpinho do Meio-Oeste!"... E dali correu para a cozinha, já saltando alegre, plim! plim! no intervalo comercial, e abriu a geladeira, corte colorido para os iogurtes variados na luz de comercial, e gritou: "Os novos Yofrutinhos vêm com polpa e tudo", e de colher na boca olhou o chão alvíssimo da cozinha, e seu pé visto do alto, ameaçador, distorcido, continuou o intervalo comercial, e sapateando de Yofrutinho na mão, como um selvagem vingador, começou a destroçar as baratas que se debatiam na luz branca do desespero, esmagando corpos, antenas e perninhas, enquanto berrava eufórico: "Não aceite imitações, nada de DDT, vá direto aos bichos escrotos com Kafka, o mata-baratas!" E pulava como um cossaco na cozinha, dando patadas rutilantes em todas as direções, beirando. Era feliz. E arrojando-se para a janela com o binóculo, ainda deu mais umflash de notícias comunicando que "As águas baixavam na avenida", e caiu na cama, de olhos fechados, com a moça da meteorologia sobre ele sussurrando "Tempo bom".

 

Zapping pela TV afora

Cid Moreira sorri e dá uma notícia ruim. Não é sempre que ele sincroniza rosto com conteúdo. Assim (sorri): "O IBGE constata que já há 60 milhões de pobres com menos de 18 anos no país!" (sorriso triunfante de recorde). Salve-me controle remoto! Zap! Pulo de canal. As anêmonas esticam seus braços envenenados na luta contra os baiacus! O pobre baiacu morre entre tentáculos lindos, penso no Bernardo Cabral, por quê? Zap! Aluízio Mercadante fala que o PT repensa formas de participação política. Com quem? Com os homens-gabirus que vejo no outro canal? Congresso de homens-gabirus de 1,30 cm, comandados por Nelson Ned, chefe do PG — Partido Gabiru. Zap. Linda americana fala de amor num sushi-bar de Los Angeles. Japonês faz sushi. De repente, zás! japonês com facão degola a americana, sangue jorra, espirra nos circunstantes, namorado da moça sem cabeça esmaga o rosto do japonês na chapa de fritar lulas, close do rosto de japonês ensangüentando chia na fervura entre camarões. Zap! Por que dr. Roberto Marinho era contra o controle remoto? Por que queria que só assistíssemos à Globo, com o japonês sendo frito? Zap! José Serra fala que não vamos sair da crise, zaspen! Japonês ainda chia, virando tempura, zusp! zaspion! "Mas dr. Fauzi, pega-se Aids com o contato puro entre o pênis e a vagina?" pergunta Renato Machado. "Well... se houver ulcerações na vagina infectada, poderá haver transmissão para o pênis, se nele houver feridas também..." Zastrás! Camponês no microfone: "Os meninos atacaram o caminhão que virou porque nunca tinham comido carne!" "A Comissão de Palestinos tem a declarar..." (Cid Moreira não usa calças às vezes, disse-me Walter Clark, só põe paletó e gravata e bermuda.) Imagino as pernas de Cid nuas, de chinelo embaixo da bancada, dizendo que a independência da Ucrânia com ogivas nucleares pode destruir o mundo. Seremos derretidos pelos ucranianos, quem diria, nunca vi um ucraniano, como serão as pernas de Cid, há 20 anos só vemos seu busto, será um homem-gabiru? E Chapelin, terá pernas lindas? Os ucranianos nos derreterão, zisp! O rosto de Freddy Krugger derrete no filme de terror, ficaremos assim pela Bomba Ucraniana? E Cid Moreira sem calças: "O mundo acabou!..." É fantástico!... Pulo mais adiante em busca de paz, um homem dirige um carro a mil, outro num carro da frente estoura-lhe o peito com uma bazooka, peito em câmera lenta se abre, carro bate em concreteira, concreteira derrama concreto em cima cio homem explodido, homem é concretado, com peito explodido, uivando. Deus, por que os americanos são tão maus? Zap em TV é uma associação livre, somos um clipe? Será que estamos virando cérebros-gabirus? Refém libertado em Damasco parece o Freddy Krugger, pálido: "Onde está minha esposa?" Ricardão levou? Será? "I love her!" São fiéis as mulheres dos seqüestrados, ou se dissipam em horrendas sacanagens? Será que ela é aquela mulher que o jap degolou? Zap! Deus! Bernardão Cabral diz para Amaury Jr. da diferença entre o boto comum e o boto tucuxi..."O tucuxi é maior, vermelho..." E sorri vaidoso.... "Queriam me mandar para a Iugoslávia mas fiquei na Zona Franca... Zuleide é uma mulher rara..." Seria fiel se Bernardão fosse seqüestrado na Iugoslávia? "Nem só os amazonenses são viris... há outros também pelo país afora", sorri modesto; fujo em busca do japonês do sushi pra ver se ele coita um boto tucuxi em fatias, mas o jap já zap! Fujo, um Papai Noel magro sai do helicóptero. Collor manda ninguém comprar no Natal, corta para a Quinta Avenida, Bush manda comprar muito. Revolta na prisão, colchão pega fogo, bebê anuncia fralda, hospital apodrecendo, Isaac Shamir, líder palestina deslumbrada (cuidado com Cabral), Gorbatchov fala de Cristo, imenso minhocão sai da areia do filme Duna, pânico, zap final. E penso que enlouqueci pois vejo Menem cantando e dançando com Xuxa em espanhol. Não! É verdade, clipe contra Aids, Xuxa e Menem dançam....

Desligo tudo. Silêncio no quarto. Uma nuvem branca toma meu cérebro-gabiru. E penso aliviado: "Deus é grande... minha última esperança é que Filipe Barreto recupere seu diploma de médico..."

 

Descendo pela Vênus Platinada

Dr. Roberto já tinha se despedido dos amigos, do deputado federal, do grande advogado, dos filhos que partiram em limusines negras, já se despedira cio ex-vice-presidente da República, do chefe-geral do lobby, e vendo-os no elevador, lembrou por um instante que tinha de pegar um papel na mesa e sorriu: "Vão descendo, que eu já vou." E voltou ao escritório.

Por um segundo, viu-se sozinho. Já caíra a noite, o Rio azulava lá embaixo pelo blindex, e não havia nenhum contínuo na sala, nem no corredor, nem na ante-sala, nem secretárias, nada. Dr. Roberto teve até um certo alívio, no alto do seu império, sem ninguém demandando ordens ou querendo servir, o que sempre cansa, sabem-no todos os poderosos. Pegou o papel, olhou em torno, feliz com o silêncio, suspirou confortado e voltou ao hall.

Foi quando tudo se apagou. Todas as luzes do alto edifício da emissora (Vênus Platinada) sumiram. Era um grande black-out, o grande apagão, o negror absoluto envolvendo o Rio de Janeiro. Dr. Roberto procurou em vão o botão do elevador. Só achou a parede fria de aço escovado. Olhou lá fora e não viu nem a noite azul do Jockey, Gávea e Rio, nada. Tudo jazia na mais absurda noite sem lua.

Dr. Roberto chamou com voz calma pelos assessores; ninguém respondeu. Seu chamado não traía medo ou ansiedade pois era homem que aos 18 anos já remava no Boqueirão, aos 70 fazia pesca submarina, aos 75 pulava de obstáculo na Hípica, homem que sempre viu a história do Brasil como uma extensão do seu desejo. Sua voz ecoava no hall do andar e ninguém respondia. Nem som, nem luz. Nada. Dr. Roberto pensou num fósforo, ou isqueiro, ou vela. Mas nada tinha, não fumava, claro. A escuridão começou a incomodá-lo e ele via que a contrariedade talvez fosse maior do que pensara. Controlou o nervosismo e resolveu tatear até a escada do prédio, já que o elevador sumira no buraco negro. Começou a descer as escadas, colocando os pés com cuidado, e aos poucos seus olhos se acostumavam com a escuridão. Não que ele estivesse vendo alguma coisa, pois nada havia para ver naquele vão que serpeava para baixo; é que aos poucos o negror absoluto da noite começou a dar lugar a um vazio mais penetrável, um escuro com várias gradações de negro, do vácuo sideral, passando pelo carvão, pelo nanquim, até um longínquo toque de cinzento no qual seus olhos se agarraram, enquanto ele descia pela Vênus Platinada, lentamente. A partir de um ponto, ganhara destreza, lembrava de famosos meros que desentocara, lembrava de noites de insônia em dias históricos, lembrava de uma queda do cavalo que lhe tirara os sentidos, lembrava do velho edifício de A Noite, o mais alto do Rio, escolhido por tantos suicidas. E aos poucos desistiu de chamar por ajuda, já que descia cada vez mais confortavelmente, pois o socorro, além de humilhante, já não parecia tão necessário. O térreo estaria próximo, ele sabia. A partir de certo ponto, parecia que os degraus se adoçavam, perdiam a angulosidade e davam-lhe a sensação de uma suavíssima rampa, onde, qual um esquiador noturno deslizasse em câmera lenta, como se estivesse numa noite muito escura em Gstaad, cidade tão amada por seus colunistas mundanos.

Subitamente, ouviu gritos de pessoas que o chamavam. Vozes de assessores (reconheceu também a voz de um filho) vindas de muitas direções. Ia responder com um "Aqui", ou "Aqui d'El Rei!" ou "Acudam", mas, movido ou por orgulho ou por uma grande saciedade, preferiu calar-se. Também, responder o quê? Ridiculamente: "Estou aqui em algum ponto do universo escuro!" riu para si. E enquanto os gritos se sucediam, dr. Roberto sentou-se na escada calmamente e encostou a cabeça na parede, tomado de uma paz novíssima para ele, que já conhecera todos os sentimentos possíveis. Ele via, como numa tela gigante de sua memória, os momentos fundamentais do país, onde ele estava sempre, sempre presente. E rostos de presidentes, de magnatas, de revolucionários, de artistas, tantos, tantos se somavam, um saindo de dentro do outro como uma trucagem genial do departamento de computer graphics, como ele vira há pouco tempo no clipe do Michael Jackson. Ali no escuro, uma grande alegria o possuiu. Era realmente um grande artista. Que criador havia moldado uma realidade como ele? Quem criara o infinito muro de maravilhas coloridas que ele acendia em 50 milhões de lares cada noite? Quem criara um mundo paralelo que existiria enquanto houvesse éter, substituindo a realidade como um plasma colorido? E, sem nenhuma onipotência, dr. Roberto sentiu o orgulho feito de uma humildade concreta, densa como a noite negra que o envolvia. E continuou a descer pelos degraus que mais doces ficavam. Fechando os olhos (para quê?) ouvia deliciado os ruídos somados de milhões de emissões de televisão que promovera em tantos anos, e tudo parecia uma imensa sinfonia, uma galáxia se parindo em luz como uma espécie de alma da realidade. Isto: ele criara uma espécie de alma para a realidade brasileira.

Agora os chamados cios amigos e contínuos não se ouviam mais. E também a nuvem luminosa de programas se esmaeceu porque ele ouviu um ruído concreto. Era um ruído como água, como o suave rolar de marolas. O próprio silêncio adquiria uma ressonância cava, ampliado pela presença líquida. Cuidadosamente, ele tateou a última pedra do degrau e logo a seguir seus sapatos foram encobertos por água. Água, como a água do clube de remo da juventude, água mansa e trêmula de borda de cais. Ele estranhou aquele chão líquido e pensou que o acidente com a emissora pudesse ser mais grave, talvez água de bombeiros inundando a garagem (incêndio?), talvez inundação do Rio (chovera?). Mas continuou andando em busca de uma saída, agora já com água pelas canelas, que lhe ensopava as calças do terno perfeito. Subitamente, surgiu à sua frente uma primeira imagem (uma imagem?), talvez menos que isso, talvez a idéia de uma imagem: uma fina lâmina menos negra, uma quase luz que lembrava, tão longe, os chuviscos das telas de TV quando acaba a programação e todos dormem para um novo dia. Apressou-se naquela direção (acima, abaixo, sul, norte?) fazendo ondas mais fortes. O ruído da água lembrava-lhe rios da sua infância. Uma alegria subia-lhe a garganta. Súbito, tropeçou numa beirada de madeira que interrompeu seus passos. Identificou num segundo uma quilha de canoa. E dentro dela sentiu alguém que tendia em sua ajuda. Era um negro (contínuo?) tão negro como a noite em volta e era iluminado pelos próprios olhos.

— Dr. Roberto? Por aqui... por favor...                                        

— Ó meu filho, que é isso, uma inundação? Que houve? Parece uma lagoa!

— É, doutor — disse o negro, ajudando-o a subir na canoa —, é uma lagoa.

Dr. Roberto aquietado, sentou-se:

— Trabalhas na casa, meu filho?

— Há muito tempo, doutor...

E os braços fortes do negro moveram o barco para a frente, que começava lentamente a atravessar a grande lagoa.

 

Os viados são a defesa contra a paranóia

Não sei se foi o Millor quem disse que quem escreve veado em vez de viado é viado.

Acho a melhor palavra para definir homossexual em português.

Por que gay, que é anglicismo, ou pejorativos como bichas, tias, perobos ou tantas palavras horrorosas no Aurélio?

Viado é Lima doce palavra brasileira e devia ser assumida como oficial. "Sexo, por favor?" "Viado", responde a santa.

Procurei a origem da palavra que tanto inquieta o macho brasileiro.

Telefonando para Antônio Houaiss, descubro que a origem vem do particípio passado do verbo venareem latim (que significa 'caçar'), ou seja, venatus, o 'caçado'. Esta palavra já descrevia o corço desde o século XIII, mas o sentido de pederasta passivo surge com o carioca do século XX, talvez, aventa o Houaiss, pelo fato de que o corço é seduzido pela corça, sendo portanto um macho passivo. Veado é a grafia certa, mas tira da palavra sua conotação sexual. Houaiss me autoriza a usar viado.

Esta palavra me transtorna desde pequeno. Lembro-me de que na rua da infância profunda do Rio escutei pela primeira vez: "Fulano é viado!" Senti que era um rótulo apavorante e antes mesmo de saber o que era aquilo, era necessário não ser viado.

Depois surgiram os viados. Era um garotinho que dava, atrás do muro, era um fremir de medo diante da violência do futebol de rua, era uma alvura de nádegas nos cantos de quintal, era o pecado nascente nos subúrbios dos anos 50.                                                                                  

Tudo era pecado, nessa época. Gravidez solteira era uma espécie de doença venérea.

Havia outros palavrões, claro, que íamos descobrindo. Puta, por exemplo, carregava uma pecha brutal, mas pelo menos tinha contornos visíveis. Puta era supergráfica. Uma mulher era puta ou não era. Qualquer uma podia ser, menos a mãe da gente. Viado, não. Viado tinha uma sombra de ambigüidade, um quê de duplo, uma inquietude desbalançada, um desequilíbrio que assustava.

Acho que aprendi da complexidade da vida com a palavra viado.

Viado dava medo porque nos fazia perder a identidade; não seríamos nem homem nem mulher. Viado era o mistério. Viado era o ser dividido.

O viado me ensinou que não havia apenas o pai e a mãe; havia uma terceira coisa mais além, mais perigosa. O viado nos ensinou que a vida não era tão simples assim, que podíamos cair no mundo terrível de Amélia, um mendigo que fazia trejeitos com os olhos, um viado que, diziam, tinha dado mijo à mãe que pedira água e Deus castigou.

O viado tinha de se esgueirar entre os dois mundos: o do macho e o da fêmea. Isso dava a ele a preferência das vielas, dos disfarces.

Ser viado nos anos 50 era uma permanente tarefa de ocultamento. Com os anos 60 foi que começou uma chuva de plumas, de alegria, de liberdade, onde o gay virou a celebração viva do complexo, do múltiplo, do alegre, primo-irmão do hippie. Ser gay era uma honra, que só acabou com a trágica chegada da Aids.

Nos anos 50 os viados eram um símbolo de perversão. Nos 60, 70 eram a alegria e a transgressão. Hoje carregam de novo a pecha da praga.

É um estranho indício de alguma mutação ter cabido aos viados trazerem o germe HPV, os germes do mundo dos pobres para o mundo dos ricos. Os marginais do sexo das metrópoles trouxeram no ventre a vingança dos marginais da fome do mundo.

Por que esta frente unida entre marginais: os negros que exportavam sangue (lembrem da Hemo Haiti Inc.), os negros que se cortavam e se inoculavam com o sangue dos macacos verdes, com o HIV das florestas, e iam depois comer por dinheiro os viados americanos que buscavam alegrias tropicais?

Por que esta estranha corrente: macaco, miséria, sangue negro, ânus branco, peste no mundo rico? Por que esta ponte entre ricos e pobres através dos ânus.

Por que esta associação de caçados: a caça da África e os caçados de Castro Street? Há aí uma pista para o mal do tempo.

Os viados carregam a lâmina das incertezas. Os viados são a prova de que o mundo não é dois. Os viados provam que as causas e os efeitos não se cruzam, de que é mentira o discurso oficial machista e de que é pouco o discurso feminista puro. O viado é mais. O viado tem uma missão lingüística, de Alcebíacles até o Clóvis Bornay.

Por que os viados aumentaram tanto em número?

Será ilusão ou estatística? Antes, havia três ou quatro viados no Brasil. Diziam: "Cauby é viado... Murilinho de Almeida é viado..." Mas todos eram suspeitos, tristes clandestinos de terno (lembro de Murilinho dando grana para os garotões de Copacabana — cantava em boate).

Pairava uma eterna pergunta jamais respondida: era Ivon Cury viado?

Tudo indica que havia menos viados. Hoje há muito mais. Por quê? Aumenta de ano para ano.

Uma amiga me disse: "Hoje só há três tipos de homem: os casados, os roubadas e os viados.

Minha tese é uma dedução do pensamento de Lacan.

O viado, segundo Lacan, não sai do mundo da mãe, não entra no mundo do pai. Fica no estágio mais seguro de um drama edípico não-realizado. Fica em casa (todo viado mora com a mãe). Não sai para a vida da Lei, do mundo real, da diferença sexual, da aceitação dos dois sexos. O mundo está virando uma barra tão pesada que a saída da casa (mãe) para a rua (pai) está cada vez mais apavorante. Como ser macho, como querer que uma pobre criança vire macho, se os exemplos de macheza são estes dados pela estupidez terrível dos homens do Poder? O sujeito olha o mundo lá fora, desmunheca e grita: "Nem morta!" Fica na saia da mãe.

A causa e o efeito caem por terra dia a dia. O mundo lógico fica cada vez mais difícil de aceitar.

Só a viadagem pode desenhar a multiconstelação polivalente do mundo de hoje, a nebulosa de sentidos, as mil caras das injustiças.

Os viados são cada vez mais os habitantes deste mundo árido e confuso. São menos lineares, mais coloridos.

Estudando o caso do dr. Schreber, Freud descobre que a paranóia é a defesa contra o homossexualismo latente. Hoje o mundo está terrivelmente duro e paranóico.

Portanto, se antes a paranóia era uma defesa contra a viadagem, a viadagem é hoje uma defesa contra a paranóia.

 

Em As meninas, Velazquez pinta o espectador

Obra máxima da pintura, As meninas, de Diego Velázquez, nos faz esquecer do nosso museu de feias artes.

O repórter entra no Museu do Prado, em Madrid, com fome de beleza. Só o extraordinário museu pode ser um bálsamo contra a chuva ácida do Brasil onde somente existe o erro. O repórter entra no Prado e é banhado por um rio maravilhoso de cores e luzes, rubro, azul, ouro, prata, verde, corpos divinos e cortesãos (toda a pintura foi feita para Deus e para os reis!) e esquece o triste país de onde vem, que virou um museu de feias artes. Talvez esteja se gestando aqui uma nova arte: a arte do erro.

O repórter já tinha visto As meninas de Diego Velázquez anos atrás. Muitos acham que é a obra máxima da história da arte, "a teologia da pintura", como disse Lucas Jordan.

O repórter evitava, no entanto, entrar na sala onde fulgia o enorme quadro de 1656. Queria ver os outros artistas antes de revê-lo, pois, como disse Carlo Justi, "não há quadro nenhum que nos faça esquecer este"; e o repórter queria provar isto. Queria também retardar a alegria de reencontrar sua clara lição de essência que a primeira visão lhe dera anos antes. E invadiu as cenas renascentes de Ticiano, e mergulhou entre as coxas da Vênus de Rubens, entre os azuis febris de Veronese, olhou nervoso os pálidos verdes e puros secos de El Greco, até que tomou coragem e peneirou com temor e esperança a sala onde estava o enorme quadro As meninas, de Diego Velázquez.

E de novo se deu o misterioso fenômeno....Como num ralo destampado, tudo começou a girar e ser tragado. Parecia que as pinturas todas do museu do Prado se fundiam num rio de tintas que jorravam para dentro de um poltergeist da arte que era o quadro de Velazquez. A tela mágica era um buraco negro que sugava a ficção suntuosa da poesia, o mistério triunfal das metáforas. Tudo se esvaía diante da essencialidade daquele quadro de Velasquez, daquele quadro que parecia estragar a feira de ilusões de todos os séculos. Mesmo as maiores obras-primas ficavam ingênuas diante daquele quadro monumental.

 

Enigma do quadro

As meninas foi pintado em 1656 e depois disso nunca mais a arte foi a mesma. Estava provada sua insuficiência diante do mistério do real. Estava provado que todos queríamos que a arte fosse um exaltante fascínio com o amor, o triunfo da imortal chama de um sonho sobre o nosso medo da morte, a nossa desesperada fome de eternidade. (Exceção feita à série negra de Goya, que pintou o Nada em Quinta do Sordo ao fim da vida.)

As meninas é um quadro que mostra o próprio Velásquez pintando um grande quadro. Seria talvez ele pintando o próprio rei Filipe IV e sua esposa dona Mariana, que são vistos (ao fundo) refletidos num espelho. Eles estariam fora do quadro, posando, onde estamos nós, os espectadores que olhamos a cena há 350 anos.

No centro, a infanta Margarida nos encara com petulância infantil. Suas duas damas de companhia (as meninas, como chamavam) cuidam dela com atenção. À direita do quadro, dois bufões da corte: a anã macrocéfala Maribarbola e o anão (parece um menino) Pertusato, que pisa no cachorro impassível.

Mais atrás, à direita, outra dama de companhia e um homem velado. Ao fundo, José Nieto, chefe das tapeçarias do rei, abre o ponto de fuga, a porta aberta para o infinito.

Por que este quadro é considerado obra máxima se ele trata de algo tão banal como criadas, anões, infante e cachorro olhando o trabalho de um pintor? Por que centenas de espectadores se acotovelam no Prado diante do quadro, eufóricos, aturdidos, falantes, nervosos, sem a contemplação piedosa e reverencial que se costuma ver em outras salas? O repórter acha que é porque o espectador (chusmas de japoneses olhavam o quadro com espelhinhos, riam e fotografavam) percebe que está diante de um radical desvio na arte, de um buraco no tempo.

 

Olhar de 350 anos

Nós não olhamos As meninas; somos olhados. O quadro olha o espectador. As figuras nos olham do fundo de 300 anos e um frêmito de nudez nos toma, nos toma um alegre pânico, ali na sala. Vemos que estamos no lugar dos reis, ínfimos reflexos no espelho (ao fundo), que, exilados, nos contemplam. Estaria Velázquez pintando os soberanos ou pintaria a nós, que o vemos? Somos tomados pela sensação de que as regras do jogo foram mudadas: fomos lá para ver e somos vistos. Fomos lá para projetar nosso ideal em deuses e ninfas e somos olhados com severo desdém pela anã-bufa Maribarbola, pela arrogância da Princezinha, pela mirada técnica implacável do próprio Velázquez. E por que somos olhados? Que crime cometemos? Terá sido o crime de buscar a ilusão da arte, de sentir a erótica exaltação da beleza? Théophile Gautier, quando viu As meninas em 1819, gritou: "Mas onde está o quadro?" Está onde estamos nós; nós pintados por Velázquez fora da moldura, num eterno travelling movente de espectadores que passam. O quadro quer sair do mundo simbólico e invadir nosso real. E nosso real está onde? Não na metáfora que se ilude em preenchê-lo; nosso real está no irretratável, no eterno vazio dentro de nós.

Neste quadro, Velázquez é um proto-impressionista que fura o tempo e chega até hoje. Prevê o impressionismo, mas vai muito além de captar o instante, o fugidio, o flagrante pré-fotográfico. (Notem que só a infanta e as meninas estão em foco absoluto. Os anões estão desfocados, um deles em movimento, e Velázquez e os outros em foco doce. Velázquez parece olhar por uma lente de cinema.)

Neste quadro, Velázquez instala o insignificante como lugar privilegiado de um sentido misterioso. Velázquez ri do museu inteiro, ri do ideal da arte de atingir um sentido maior, um ideal de reis e de papas (quanto de eclesiástico ou monárquico haverá nas regras da estética ocidental?). Velázquez faz um quadro laico e democrático.

Velázquez faz em 1652 a previsão de uma desistência que vemos hoje depois do fim da arte moderna. Velázquez rasga a fantasia dos artistas e nos joga no mundo dos conceitos; abre a obra como se faria 300 anos depois; prefigura Joyce, Brecht, criando uma metalinguagem que nos leva até mesmo à Rosa purpura do Cairo, com seus personagens querendo sair do mundo da nossa ilusão e entrar na quente realidade.

 

Arte sem respostas

Mas há mais. Aquele homem que nos olha com o pincel na mão não está ali. Ele estava aqui, onde nós estamos agora. Ele não podia se pintar pintando; não é um auto-retrato; é uma estrutura em abismo, de espelhos paralelos, logo infinitos.

Também nas fugas infinitas deste quadro está nossa vacilação entre mil pontos de vista, nossa morada em meio a deslocamentos, a relatividade dos tempos e espaços, a descrença de que haja um lugar só a chegar. Assim, esta insignificante cena suspensa no vacilante equilíbrio de um segundo nos fala do incessante e vasto universo que muda o tempo todo, aqui entre nós que o olhamos. Como um aleph ao contrário, as coisas infinitas olham dentro de nossos olhos. Sozinhos, desfilamos há 350 anos diante de Velázquez.

Na proposital gratuidade deste tema (infanta, criadas, anões e cachorro) um pintor nos ensina que não há respostas. Todas as esperanças religiosas se esvaem neste quadro. Velázquez nos deixa desamparados, em crise, e rimos de angústia diante do enigma kafkiano-borgiano que ele abriu.

E o repórter olha o quadro e lembra do museu de feias artes do Brasil. Porque Velázquez nos ensina mais ainda. Nos ensina que, para além das alegorias triunfais, das esperanças em salvação ou milagres, existe um olhar sobre nós mesmos. Na época pós-pós, o retrato As meninas nos remete a um nada metafórico. Só o insignificante é profundo. A lógica do universo não se atingiria pelo triunfo da beleza, mas pelos detritos do gratuito. Não significamos nada; somos o detrito cio big bang. Velázquez em vez da metáfora faz a suprema metonímia: desloca a arte sobre nossas cabeças. Nós somos o quadro.

 

A mão de Fidel era quente e macia

As meias brancas em tristes sapatos pretos em tornozelos grossos e brancos foram a primeira imagem que eu vi de um comunista. Ele era secretário regional e foi dar assistência a nossa base. Era um judeu cheio de espinhas e tinha um nariz cor-de-rosa. "Meu Deus", pensei, "por que ele é tão triste, com os tornozelos grossos e as meias brancas?" Chamava-se Marcos, aliás Jacques, aliás companheiro, e falava tristemente enquanto o rádio transmitia a cadeia da legalidade do Brizola que garantiria a posse de João Goulart. Eu era garoto ainda e meu olhar se fixava em detalhes irrelevantes, ou talvez, hoje penso, talvez não tão irrelevantes. Jango tomou posse para depois cair em 64.

Um ano antes, fizera meu primeiro filme como assistente do Leon Hirszman, em Recife, sobre a miséria. Para nós a miséria era irresistível. Como aos 20 anos resistir a esta sedução? Todos achávamos que liquidaríamos a miséria. Não havia cínicos nem desencantados, não havia clarks; havia alienados e engajados, assim era o mundo.

O infinito clima de amor que era Recife em 1963. Arrais era governador, o chefe de polícia era do partido, Liana Aureliano, mulata esguia, discursava na praça cheia de estrelas de Van Gogh e um perfume de euforia no ar. A vitória, vitória alada, estava perto, no cheiro dos rios, do mar. Nem era só política; o clima era quase sexual, Marx como psicólogo. Para entender hoje é preciso sentir, imaginar o ar pernambucano, a revolução como vertigem, quase uma droga, um mistério que abria o universo, era possível mudar a vida, como disse Rimbaud, é preciso mudar a vida, a vida, e neste perfume todos enlouqueciam. Como ceder, como botar gravata e ser pré-yuppie, com esta chance de ouro, mudar o país, não o governo, mas a vida. O amigo me dizia: "O marxismo supera a morte!" "Como?" disse eu espantado. "Claro, uma vez dissolvido no social, o indivíduo perde a ilusão de que existe como pessoa. Ele só existe como espécie. E não morre. O marxista não morre!" E eu, fascinado, sonhei com a vida eterna. O marxismo prometia a vida eterna.

A ilha de Cuba dançava em travellings dos filmes de Santiago Alvarez.

Como amávamos os operários!... Fazíamos o jornal dos estudantes nas oficinas do Diário de Notícias. Enquanto fechávamos o jornal, no chumbo, olhávamos os operários com fascinação até altas horas. Operários, agentes do futuro... Alguns ficavam desconfiados de tanto amor. "Serão bichas?" pensava o povo. Não; éramos apenas comunistas.

A coerência do mundo, a síntese, o futuro, o sentido, como era bom... Hoje temos de conviver com o vento do nada, mas não naquela época. Tudo bem, o povo era um pretexto para nos sentirmos bons, eles eram nossas vítimas para nosso aperfeiçoamento interno. A saudade da bondade.

O sofá-cama Drago do aparelho. Diante de mim, no conjugado mínimo, estava Rosa, companheira militante. Esperávamos os outros para a reunião da célula dos estudantes. Nada. Quando dei por mim, estava em cima de Rosa, beijando-a, traindo a revolução num infinito prazer culposo. Batem na porta. Em pânico, nos arrumamos. Entrou o chefe de nariz cor-de-rosa. Tudo para ele se explicava pelo imperialismo norte-americano. "Isso assim, assim, como faz?" perguntávamos. "Qual é a contradição principal? Não é o imperialismo norte-americano? Então a culpa é dele." Eu olhava Rosa. A culpa não era do imperialismo. Era nossa. No sofá-cama havia uma mancha úmida. Ninguém viu. Ao lado da mancha úmida, saía um chumaço de estopa da forração. Naquela mancha úmida havia uma vida nova para mim. No chumaço de estopa, eu vi que alguma coisa ia fracassar na revolução brasileira. Como salvar o país, com um chefe de nariz cor-de-rosa e um exército com sofás esfarrapados?

A UNE pegava fogo. 1964. Eu estava dentro quando os meninos ricos da PUC começaram a atirar bombas incendiadas. Fujo pelos fundos. Na frente, vários colegas de colégio ajudavam a destruir o casarão em chamas. Um me viu: "Vencemos, hein?" Tive a dignidade de não responder. Ao lado, outros comunas olhavam pálidos. Nas chamas da UNE, fui ficando adulto. O marxismo não tinha vida eterna.

O dirigente de nariz cor-de-rosa estava com o nariz branco, no mesmo aparelho do sofá e de Rosa (onde andará ela?). "Precisamos fazer a autocrítica...", disse trêmulo. Não havia uma arma para defender a legalidade. "Nem uma 32?" perguntei. O rosto do pobre homem era de vergonha. Nem uma 32. Fui embora. Anos depois cruzei com ele, que tinha feito uma plástica e seu nariz era agora arrebitado e pequeno. Vi no nariz falso, morto, artificial, o prenuncio da pós-modernidade. Tive saudades do nariz cor-de-rosa.

1967-1968: aceleração de imagens. Vladimir Palmeira fala para cem mil. "Pessoal", dizia, "calma, pessoal" Era gradualista. No meio da multidão admiro seu sentido político. A meu lado passa um grupo feroz gritando contra ele: "Só a luta armada derruba a ditadura". Vejo no meio sua mulher, loura, pequena, feroz, Aninha. Tremo. Aquela dissenção conjugal ameaçava o país. Tive o horror e a certeza de que o detalhe é tudo. Um país pode ser destruído pelo detalhe. Anos mais tarde Tancredo morreria destruído por um detalhe. A história do Brasil mudada por uma bactéria do intestino. Ali, em 1968, nascia a luta armada. Dia seguinte, o presidente Costa e Silva, populista, resolve atender os estudantes, para conciliar talvez. Outro pavor senti: o diálogo foi estragado porque os estudantes-líderes não quiseram botar paletó na porta do palácio. Por causa do paletó, não houve acordo. Até hoje sinto um arrepio.

Luta armada. Imagens rápidas. Stuart Angel morre em 1971 com a boca amarrada no cano de descarga de um jipe no Galeão, na frente da tropa. Um ano antes ele me dizia, ouvindo Chico Buarque, escondido na casa de minha namorada: "Se eu for preso, não digo nem o nome". Não disse. Dias depois levo-lhe num ponto marcado, em frente ao Jardim Zoológico de Vila Isabel, uma mala com instrumentos cirúrgicos. Sozinho, ele chegou, louro, sorriu. Nunca vi ninguém tão sozinho, tão absurdo. Quis perguntar: "Mas você acha possível vencer o Exército sozinho assim?" Não perguntei, pois ele não queria só vencer o Exército. Ele estava em busca de outra coisa, uma luz de loucura dizia isso. Despediu-se e foi andando em direção à morte, calmo. Estranho; eu tinha dois sentimentos por ele: admiração e desprezo.

1986. Estou em Cuba para o Festival de Cinema de Havana. Pensei em não ir, com medo de estragar meu sonho juvenil. Um amigo canadense disse: "Go. They have very good jazz and very good lobster”. Fui. Comi lagosta na casa do Dupont e ouvi o grande Arturo Sandoval. Uma noite estou num coquetel. A presença de Fidel era esperada. Suspense geral nos convidados. De repente, estou de costas para a porta e sinto um arrepio; senti a chegada do Comandante, cercado de seguranças, que entrou como um trem pela sala. Fidel foi cercado por todos, latinos, europeus, asiáticos. Uma amiga a meu lado: "Uniforme de tergal com este verde horrível. Impossível. Tinha de ser puro algodão e, sei lá, outro verde..." A crise do socialismo estampava-se naquele verde. Enfiei-me na multidão e cheguei bem perto de Fidel. "Comandante", falei com firmeza. Fidel me olhou, sorriu e me deu a mão. Arfante de emoção, agarrei a mão de Fidel e comecei a falar..."Soy de Brasil...y..." Mas o grupo de tietes era voraz e Fidel foi empurrado para o lado. Eu continuei agarrado em sua mão, enquanto ele respondia à pergunta de um anão maligno (quem seria?). O barco-Fidel jogava e eu grudado no Comandante. Sua mão é quente, larga, sua palma generosa e muito macia. Sua mão foi ficando confortável na minha, enquanto eu tentava lhe falar. "Comandante..." voltei emocionado, hand in hand. Fidel me olhou de novo, vagando naquele mar de gente e eu feito um náufrago da revolução agarrado na mão dele. E eu lhe sorria. Então, a mão de Fidel começou a sentir demais minha presença. Sua palma sentiu a minha e começou a tremer, começou a estranhar o contato. O que fora uma irmanação revolucionária, política, foi ficando íntima, física, com as duas peles se tocando. Uma finíssima camada de suor se desprendeu da palma do Comandante. E começou a se aproximar a fronteira entre o contato político e a fina fronteira do perigo homossexual: dois homens de mãos dadas. E a mão de Fidel começou a se contorcer sob o firme aperto da minha. Sua mão procurou sair pela direita, pela esquerda, se contorceu, úmida, se apinhou em dedos juntos e foi se desprendendo da minha, que insistia no aperto emocionado. Cada vez mais coleante, sinuosa, a mão de Fidel se apequenou e conseguiu afinal se libertar da minha, no exato instante em que um olhar espantado de Fidel cortou o meu olhar. "Seria um bicha infiltrado? um gay?" lampejou o Comandante. Não, não era um gay-, apenas um ex-comunista. Este foi meu último contato com o socialismo.

 

 Medo da miséria vai chocar o ovo da jibóia

Sobre a explosão social, a detenção é um filme americano; o arrastão do Rio é um filme brasileiro.

Qual é a relação entre a Casa de Detenção e o arrastão no Rio? Na Casa de Detenção, extermina-se o que a classe média deseja; o massacre responde a anseios captados pela PM para extirpar a miséria nem que seja como um tumor. No arrastão, a miséria se erige em uma revolução carnavalesca diferente. Em ambas, há o sentido de espetáculo. Se na Casa de Detenção assistimos a um show americano de massacre, a um filme de ação com oficiais se sentindo Rambos, no Rio, pela tradição da chanchada e do musical, vimos uma invasão de escola de samba. O massacre de São Paulo é um filme americano; o arrastão do Rio é um filme brasileiro. O filme do Rio é mais dionisíaco, mais leve, enquanto em São Paulo a barra é sem humor, desinfetante. Como disse Arthur Omar, o cineasta, no JB, do qual eu pego o mote: "O arrastão é uma contribuição brasileira à história da criminalidade".

No Rio, a favela é mais arejada, sobe em morros, canta, faz samba. O que choca em São Paulo é a favela acachapada, casa de ratos, sem paisagem, sem música. Em São Paulo, a miséria se oculta, não é comunidade. No Rio, ela respira, tem alguma vida própria.

Na favela de São Paulo ninguém existe; a favela do Rio tem desejos. A favela de São Paulo se esconde entre viadutos, envergonhada. No Rio, a favela se avulta, tem tradição, cresce no florescente mundo dos narcóticos e novas violências. Em São Paulo é em volta; no Rio é dentro. No Rio, a favela é em cima; em São Paulo é em baixo.

 

20 mil horas de morte

Do ponto de vista da classe média e da burguesia, estamos melhor em São Paulo. É mais fácil em São Paulo conter os avanços dos miseráveis. Do ponto de vista dos miseráveis, o Rio é melhor. Se eu fosse um miserável, preferiria morar no Rio.

O arrastão é vital, é planejado pelo sentido do espetáculo mais do que pela mera necessidade de assalto. A Zona Sul é a Califórnia da Zona Norte. Os jovens querem prazer. Eles "não querem só comida; eles querem diversão e arte". Eles vêem a Globo e suas 22 mil horas anuais de cenas de violência, como comprovou uma pesquisa. Já morei no subúrbio em minha infância profunda e me lembro de que víamos o pessoal da Zona Sul como um bando de babacas. Lembro-me dos meus sete anos no Rocha, no dia em que ia me mudar para a Zona Sul e meus colegas me olhavam como um desertor; mas me animavam: "Lá tudo é viado, só tem viado!" diziam. Eram os 'mauricinhos' da época, já olhados com inveja e raiva por nós.

 

Zona Sul versus Zona Norte

Hoje, o arrastão é um horror do ponto de vista da Zona Sul. Do ponto de vista dos trombadinhas, aquilo é uma grande farra mesclada com a guerra, é a liberdade com a necessidade, aquilo é uma luta heróica de marmanjos e pivetes sem nada, a não ser seus corpos que crescem sem motivo nem emprego, seus sexos, suas fomes. As favelas vão parindo milhares de corpos inúteis por ano. Eles são os caras-pintadas da Baixada, os anos rebeldes da favela, a versão brasileira de Los Angeles. Nenhum deles estava nas passeatas pró-impeachment. Eles estão eufóricos: viraram notícia, ganharam existência. Num estado sem infra-estrutura, você só existe na mídia. Eles agora trabalham na Globo; no departamento de figurantes do mal.

Dizer o que deles? Que a situação é de miséria, que a luta de classes é blá blá blá? Infelizmente, não há muito mais. O problema é que o Brasil está virando o país do óbvio permanente, dos diagnósticos expostos e incuráveis. Só o chavão sociológico explica este país.

Não adianta clamar aos céus. Como diria o Ibope, as classes C e D começaram a luta contra a A e B. Vão se danar os prédios gradeados; vai explodir o carnaval de sangue no país. O Rio é o trailer do Brasil.

 

Escola de samba do mal

O Rio já foi vanguarda cultural em outras épocas. Talvez o arrastão seja um renascimento.

Na Folha, Matinas Suzuki Jr. escreveu que o poder político virou uma espécie de parafuso espanado girando em vão na porca do poder social. Ou seja, a política virou uma ficção, um bale desconectado do processo social e cada vez mais incapaz de operar mudanças. Tanto é assim que a esperança de conter os arrastões futuros está em que os traficantes do morro tenham seus negócios atrapalhados e ponham freio nas passeatas sujas. Só a Falange Vermelha salva o Rio! Genial!

A irrealidade do poder público no país só poderia ter como espelho invertido as delirantes manifestações de um lumpesinato revoltado.

Capitalismo selvagem gera revolta primitiva.

Mas é possível que este espontaneísmo porra-louca dos pivetes, esta combustão espontânea de jovens pobres, obriguem o poder a olhar seu próprio nada no espelho.

Alguma forma de invenção política o país vai se obrigar a ter. Mas acho que virá mesmo o bom e velho fascismo. O ovinho da jibóia já se choca nos redutos das classes mais altas. O país é muito medíocre para parir algo mais original.

É impossível manter a população faminta e ainda querer silêncio e bom comportamento. Arrastão e detenção são o começo. No entanto, as soluções óbvias demoraram tanto tempo para pintar, que hoje não há mais jeito de se resolver nada. A política está ficando inútil. É o ovo da jibóia.

 

Piscininhas populistas

A sensação principal de um carioca é a de estar no centro do insolúvel. É impossível continuar apenas o lamento sociológico que fala em migração rural, em ausência de emprego etc. O Rio é um dos lugares mais absurdos do mundo. Uma solução para o Rio só viria pela originalidade, algo como um grande centro bancário, uma hong-konguização da cidade etc. Além disso, teríamos de considerar o Rio um problema nacional. O governo federal teria de separar bilhões de dólares e se concentrar no Rio. O óbvio nunca é considerado: acabar com as favelas, criar um cinturão produtivo, reforma agrária etc. Mas isso seria impossível, desagradar a UDR, ora céus... Logo, o Rio será engolido por uma multidão de desgraçados e ninguém fará nada, como ninguém fez nada quando Gomes de Almeida Fernandes, Sérgio Dourado e Marcos Tamoyo bombardearam a cidade por dez anos. Como ninguém fez nada diante de décadas de absurdo, diante dos vários populismos que passaram, desde o getulismo tardio do chaguismo, passando pelo cinismo corrupto do moreirismo e culminando no horrendo nada do brizolismo terminal.

Estas escolas de samba do mal (Arthur Omar) têm a virtude de mostrar a miséria administrativa de séculos. Falaram tanto em confronto social? Pronto; está aí, sem solução. Aliás, solução para quem? Para que a burguesia de Ipanema possa ir às butiques em paz, para que suas dondocas e idiotas possam posar sorrindo eternamente para as colunas sociais? Em breve estarão falando em extermínio. Já vão surgir as tropinhas burguesas se defendendo. Tudo bem, preparem-se, ponham seus uniformezinhos Adidas e vão à luta. O grande escândalo não são esses jovens loucos de fome de viver. O grande escândalo foi a vergonhosa sordidez da pior classe dominante cio mundo, evitando a miséria corno a uma gafe. E para chegar ao sublime, Brizola vem falar em piscininhas populistas na Baixada.

Os pelotões funk são a tampa final na inépcia de décadas. Isto é só o começo. Vai ser muito pior. E todos falam em achar uma solução.

Quem precisa de solução são os surfistas de trem e as hordas de miseráveis que estão invadindo tudo.

Eles não são o nosso problema. Nós é que somos o problema deles.


 

Todos vão ao Baile da Reforma Fiscal

A crise gera novos tipos políticos com soluções mágicas para driblar a tragédia social talvez inevitável.

Vieram todos eles para o grande Baile da Reforma Fiscal. Ali perto respirava como um elefante em agonia o corpo do Estado em extinção. Mas se extinguiria? Ou nele mamariam para sempre em canudinhos eternos os convidados do baile final, vivendo inclusive de sua necessidade de morrer? Os convidados floresciam. São novos personagens brotando feito musgo do muro das impossibilidades políticas. Lá estavam eles no Baile da Reforma Fiscal, filando os últimos docinhos, as mães-bentas, os brigadeiros, os últimos sanduíches de patê.

Onde estarão os tipos tão simples de outrora, quando o Brasil era dividido em ricos, pobres e classe média? Onde estão? pensava eu. Antes havia a nitidez de uma classe dirigente. Hoje até ela se espedaça em privilégios que anulam uns aos outros.

Explode a grande valsa. Passam ventando por mim os novos tipos gerados pela crise, como um dicionário político que se desfolhasse. Passa o empreiteiro sem obras, que sem verbas do Estado se afunda na desilusão do capitalismo frouxo. O empreiteiro sem obras leva atrás de si uma memória de barragens, um ferro-velho de escavadeiras, tem o rancor de cheques fantasmas doados em vão. O empreiteiro sem obras tem a nostalgia de Itaipus, de JKs, dos generais que ele lambia por usinas nucleares. O empreiteiro sem obras dança com a lobista loura fracassada, jóias falsas, cárie no dente. A lobista fracassada é hoje a alcoviteira de pequenas fraudes, a cafetina de pistolões medíocres e no máximo descolará para o empreiteiro sem obras o contrato de um canal de esgoto superfaturado para o Exército. Eis por que eles oferecem doces para outro tipo novo, o general sem inimigos. "O general vai comer um brigadeiro?" (A lobista não resiste à piada.) O general sem guerra sorri sem a antiga empáfia e nele se reconstitui milagrosamente uma aura de paisano; há um clima inofensivo e civil no ministro militar sem verbas. Ele é humilde porque tem "praças maltrapilhos com ranchos sem carne", tristes macarrões com feijão. O general se afasta comendo o brigadeiro.

 

Reféns do Congresso

E surge um grupo valsante: os sonhadores de soluções. São os tecnocratas transideológicos que vogam na crença de uma solução sem sangue para o país. São messiânicos light, que crêem na lógica milagrosa do mercado e que aceitam a infinita conciliação com os deputados e senadores e bebem a água de barrela do nada corporativista, que o parlamentar pós-CPI (que vem dançando) lhe deita goela abaixo. A queda de Collor nos fez a todos reféns de um arrogante Congresso. O parlamentar pós-CPI põe o dedo na cara do tecnocrata transideológico e grita: "Nada se aprovará sem consenso e, se consenso houver, tudo vira nada!" O parlamentar pós-CPI gargalha com senadores ruralistas e evangélicos, que se engasgam em reles salgadinhos com guaraná em copo plástico (onde estão as antigas cascatas de camarão? penso eu). Humilhado, o tecnocrata foi vomitar sobre os tinhorões.

Grave, vem andando outro tipo novo, o escandalizado de carteirinha. Este é o intelectual-crítico, que a cada horror contemplado aumenta sua beleza interior. Sabe todos os números de nossa tragédia. Declara com a boca cheia de quindins dourados: "50 milhões de criancinhas têm a massa cerebral diminuída por falta de proteína!" E de seus lábios escorre lenta a baba doce e amarela. O escandalizado de carteirinha grita de fronte alta: "Este país é uma bosta!" para um grupo extasiado de cretinos fundamentais que formam uma nova fauna: ex-ministras eróticas, burocratas em disponibilidade, ministros sem pasta, agentes do FMI em pânico, gringos corruptores ativos, consultores sem rumo. Acolá, a cortesã desempregada beija o empresário ingênuo, que foi corrompido pelo esquema PC, a quem deu dinheiro sem saber por quê. O empresário ingênuo sorri a todos para mostrar sua inocência, mas é contemplado com maligno olhar pelo jornalista implacável (serei eu um deles?) que critica o país inteiro a partir de uma vaga pasta de moralismo e ódio, uma geléia de indignação com oportunismo. Mais além, chegando em cadeira de rodas, vem o monetarista-humanista, que de olhos faiscantes tenta provar que esteve sempre certo, que seu antigo servilismo aos patrões internacionais escondia apenas um humanismo além de seu tempo. Do peito do monetarista-humanista saiu a culpa de ter endividado o país. Hoje rebola lampeiro com o jeito de "Eu não disse?" no rosto e com a boca florida de piadas sobre nosso negro futuro, boiando naturalmente sobre a grana guardada no passado. Gargalha como se tivesse a chave mágica do amanhã.

Perto do monetarista-humanista enxameiam os comunistas sem amanhã. Estes comunistas sem Mara buscam uma intimidade pós-Gorbi com os yuppies neoliberais. Os yuppies neoliberais (há governadores, senadores, todos de boas famílias) ostentam a face da síntese entre o social e o moderno, como se tudo fosse uma questão de racionalidade clean, como se não existissem os corporativos-camicazes dançando suados à sua frente. Os corporativos-camicazes morrem mas não largam as regalias, assim como os ruralistas da morte, os prefeitos do interior, os empata-fodas municipais, ou os ferozes burocratas do mal cujo olhar sombrio diz: "Nada passará!" E entre eles, servindo os croquetes frios, circulam garçons escolhidos do novo contingente dos puros duros. Os puros duros são aqueles pobres honestos que devolveram milhares de dólares achados no lixo, ou denunciaram corrupções. Há os motoristas-clones, os eribertos, que abrem portas de Mercedes e são olhados com respeito pelo time dos aristides ou os novos homens de bem. Os novos homens de bem vão desde procuradores da República Cós-aristides nunca deram um sorriso e falam entre dentes.) até os benitos deputados de CPI que não precisam fazer mais nada, pois se sentem anistiados até o fim dos tempos.

 

Sangue no horizonte

Perto, estão os tipos novos dos fisiológicos-2000, o neocínico heavy do tipo roubei sim e tudo-bem-vai-fazer-o quê? e junto dele o ladrão regenerado que agora ostenta uma dignidade moral que o outro lhe empresta como uma prótese siamesa. Um serve ao outro; o primeiro, legitimando pelo descaro a neomoralidade do segundo e este fazendo o primeiro ficar moderno por sua sinceridade neocínica. E rostos sorriam na multidão, os processados esquecidos, o topete do Magri, Alceni de guarda-chuva, juizes do INSS presos com mordomias, índios estupradores de cocar, exportadores de mogno, verdes, micos-leões-dourados nos lustres.

Junto ao bufê, comendo coxinhas compulsivas, barbudos petistas em transe tentam ensacar a social-democracia num programa de origem radical, e teorizam sobre como tolerar empresários avassalados que por sua vez os exploram, como governar sobre patrões, como criar uma luta de classes soft. Discutem animados com tucanos no poder, que formam o time dos competentes-impotentes que fraquejam diante da muralha das resistências burocráticas, representadas pelas secretárias orgulhosas, prostitutas-espiãs, cunhadas vingativas. E enquanto a orquestra atacava uma valsa-country, fui respirar lá fora e vi os cordões de isolamento feitos por militares em greve, e atrás dos cordões, o imenso mar dos eternos rostos dos miseráveis chatos: multidões monótonas de flagelados, meninos cheirando cola, desempregados, aposentados, doentes, mendigos, gabirus, e pensei: "Nada mais déjà vu do que a miséria!" Eles não cooperam com a feira de novidades de fórmulas pacíficas para melhorar suas vidas. Insistem em casa e comida. Os usineiros do amor e o grupo de rock rural UDR and Roses (que chegavam em limusines) jamais darão. A miséria não mudou e os interesses também não, penso. Com tédio vejo que a velha luta de classes renascerá, sem nenhum amor pela modernidade. A meu lado um menino cheira cola contra o sol que nasce. Haverá sangue no horizonte.

 

O crime real não cabe no horário nobre

Os assassinatos da realidade têm de ser reescritos para não estragar a nossa infinita fome de mentiras.

Há dois tipos de criminosos: os sujos e os limpos.

Os criminosos sujos (os pobres, os loucos) provam a obviedade de um sistema de miséria. Servem para alimentar uma sociologia da tragédia social do tipo: "A miséria leva à loucura que leva ao crime" (sociologia de esquerda). Servem também para a sociologia de direita: "Ohhh! Tem mais é que extirpar estes tumores!" ou "Tem de linchar! Sem pena de morte não dá!" como dizem tantos, liderados pelo Amaral Neto. (Amaral Neto é pela pena de morte para não ser enforcado, para deixar bem claro que nada tem a temer.)

Já os criminosos limpos atingem uma outra verdade mais oculta. São um estilete que fere parte intocada de nossa razão. O criminoso sujo mata por fome ou loucura. E útil para confirmarmos uma visão negativa do mundo onde não estamos. O sujo nos exclui; já o limpo nos inclui. O criminoso limpo nos provoca vertigem e crise. Mata por escolha. O criminoso sujo nos justifica e absolve. O criminoso limpo nos acusa. O criminoso sujo afirma nossa lógica. O criminoso limpo nos enlouquece.

 

Realidade paralela

O caso Guilherme de Pádua veio tocar no nervo do mais bem-cuidado tumor da nacionalidade: a anormalidade da vida normal, bem-sucedida, de hoje. Veio tocar na função máxima da Globo: manter uma normalidade integrativa da vida nacional, manter viva uma realidade paralela estável num país em derrocada. A Globo preserva a mistura de realidade com ilusão que se chama a vida branca nacional. Ela preserva o estilo de uma empada feita de violência contida e de superficialidade política. Nenhuma TV do mundo cria um estilo de vida. A Globo inventou um estilo, um ritmo. De que longínquos passados da família Marinho vieram esses cânones, esta moral, esta estética infalível? A Globo criou o Brazilian way of living com seu brilho barato e consumista. Criou esta vicia nacional com duas margens: a dos pobres que sofrem no Globo repórter e a dos limpos que têm desencontros amorosos nas novelas. Acontece que um lado contamina o outro. O gueto trágico que evitamos ver contamina nosso lado, transformando-nos em superficiais. Pagamos caro por esta negação de um lado do mundo. Nossos Monzas sangrentos, nossos terninhos sangrentos, nossas gargalhadinhas de negação do mundo custam caro. O criminoso limpo nos põe em contato com o outro lado do sanduíche da morte. De um lado está a tragédia; do outro, o ridículo. Guilherme expõe a nossa doença. Daí o horror que o criminoso limpo provoca nos colegas-atores. Tirou deles a proteção de habitarem a ficção. Mais que um criminoso, Guilherme traiu a confiança da Globo. Por uma falha do Departamento de Pessoal, invadiu com seu passado sujo o elenco dos limpos. Mais que criminoso, foi um impostor.

 

Paraíso e inferno

O furo que Guilherme de Pádua provoca é muito maior que o assassinato da menina Miriam. No horrendo caso Miriam, dizemos com pânico: "Céus! A que ponto a loucura da miséria leva! Deus! como este assassino é diferente de nós!" E, zás, agarramo-nos em nossos valores para esquecer. E fica tudo explicado, e continuamos a praticar este bolinho de chocolate moral feito de um pouquinho de humanismo cristão, uma colher de sociologia, uma pitada de psicanálise, uma cerejinha de pessimismo com o absurdo do mundo.

Guilherme de Pádua se ferrou porque mexeu em nossa única realidade: a ficção.

Guilherme rompeu as regras dramáticas de uma novela que se espraia para além da TV, que abrange todo um mar de ilusão que vai além do horário das oito. Guilherme põe a nu, com a lógica profunda de seu erro, o erro geral que o circunda. Ele estragou a regra do jogo e por isso será punido severamente, como poucos o foram até hoje. O outro caso em que o real da Globo foi invadido foi a tentativa de seqüestrar a Xuxa por dois garotos loucos. Foram rapidamente exterminados. Um na hora, morto à americana, estilhaçado na rua; o outro, morto à brasileira, exterminado no hospital sem testemunhas. E não se falou mais nisso. Tanta é a repressão ao anormal no Xou da Xuxa, aquele pesadelo de sinistra inocência povoado de lourinhos e baixinhos onde o Mal não entra, que o Mal se excita e invade o paraíso. Guilherme está sendo expulso do paraíso da ficção e jogado no inferno do real. O sistema da miséria onde ele entrou agora tem celas sujas, Aids, estupro, e o policial dizendo que ele dormirá no chão por não haver colchonete. A precariedade das prisões fica legitimada, como uma espécie de pré-punição social, antes cio julgamento.

 

Crime narrativo

A narrativa do mundo da TV tem a finalidade de expulsar o imprevisto dos roteiros. A novela tem de banir a sujeira do incontrolável para fora das telinhas. Toda a luta do cinema moderno foi pela inclusão do sujo, pela inclusão do não-linear na narrativa. A novela da Globo luta para manter a vicia excessiva fora do ar. Guilherme rompeu a estrutura dramática do texto. Guilherme invadiu a novela e fez dela uma paródia, uma peça de cinema moderno. Guilherme transformou a novela em metalinguagem. Um dos crimes de Guilherme foi invadir a vida virtual da Globo com a vida real. Seu crime acabou com a linearidade aristotélica. Tudo dá sempre certo nas novelas. Tudo tem princípio, meio e fim. Guilherme interrompeu o meio. A Globo não pode imitar a vida. A vida é que tem de imitar a Globo. Assim, a vida tem de ser reescrita. Mais que um julgamento, para além da ira justa, do clamor de vingança, estão todos reescrevendo o texto. Nem os advogados têm coragem de desafiar a narrativa do melodrama das oito. Ousem trazer novos fatos, mais contradições, que os dramaturgos reclamarão. "Não queremos mais realismo!" clamam todos: "O final já está escrito!" Todos sabemos o final.

 

O casal de anti-heróis

O problema do país não é jurídico, nem moral. É dramático. Guilherme foi a oportunidade de uma dramaturgia pós-godardiana na novela da Globo. Mas a direção artística não quer.

Guilherme e Paula são o outro dos personagens, o avesso dos heróis de TV. Eles são um casal maldito (que até nos anos 70 poderiam ter vida dramática de anti-heróis, pênis e vagina tatuados, marginais-heróis contra o mundo da caretice, etc). Guilherme e Paula são mais ainda. Guilherme foi leopardo, como o são os idílicos galãs-bofes da novela. Paula foi freqüentadora dos reais shows da galeria Alaska. Ambos são a face barde realista da caretice light e desidratada da ficção. A complexidade realista de Guilherme e Paula não é legível em horário nobre. Guilherme e Paula têm de ser tratados por filme de arte. Eles têm de ser castigados para a novela da vida ter um bom final.

Não importa que milhares de assassinos do mundo real não sejam punidos. Não importa que os assassinos do Carandiru fiquem impunes. Eles são tão desconhecidos quanto os 111 mortos. Eles são documentário, não ficção. Eles só atingiram a fama porque a visão dos corpos nus foi muito gráfica, naquele show de leopardos mortos com número no peito. Guilherme e Paula são a invasão do real no mundo do simbólico. Eles demonstram que a morte não é apenas uma endemia rural dos miseráveis. A morte está até mesmo debaixo do padrão Globo de qualidade, como um escorpião que tem de morrer para ninguém ver. 

Tudo vai bem na Globo, tudo sempre foi bem na Globo. Na pior ditadura, a Globo ia bem; na pior recessão a Globo vai bem. É nosso Olimpo. Quando a realidade invade a ficção, é necessário extirpá-la. A Globo é nossa reserva ecológica de felicidade.

 


Tragédia econômica já é ficção científica

O livro O colapso da modernização, de Robert Kurz, gera um quadro de ficção e terror do capitalismo futuro.

O presidente do Conselho das Empresas Transnacionais que formavam a nova ONU, o paquistanês Nabu Nabu Ding, gesticulava em frente aos telões que mostravam as várias partes do mundo ao vivo. As telas lembravam aqueles antigos filmes russos com as massas de São Petersburgo correndo em praças, derrubando estátuas e explodindo bombas sob metralhas de policiais superarmados como Dart Vaders em Guerra nas estrelas. Os telões em várias línguas criavam uma anti-sinfonia de ruídos divergentes e mostravam o mundo como uma grande rebelião de massas.

O que o presidente do Conselho falava não tinha muita importância, porque todos sabiam o conteúdo de seu discurso. Apesar das horrendas imagens de desespero e fome nos telões, sua voz se alçava: 'A normalidade somos nós! O liberalismo é a natureza!" E diante das imagens das Mega-Somalias (a Somália antiga era agora encarada como reles dieta para emagrecer), ele gritava, com seu sotaque anglo-paquistanês: "A fome auto-regula o mercado dos vivos, a fome controla a superpopulação!" (A compaixão era considerada um vício romântico e pequeno-burguês.)

A produção mundial se aperfeiçoara, programada por uma robótica cada vez mais fina. Assim, a cada progresso, aumentava o desemprego. O aperfeiçoamento da produtividade ia além da capacidade de absorção do sistema produtor de mercadorias. Os excedentes não eram mais as mercadorias; os excedentes eram os ex-consumidores.

 

Guerra civil mundial

Aumentava a massa de países excluídos e os 'dart vaders' gritavam do alto de pirâmides reluzentes: "O mercado se auto-regula! O capitalismo se auto-inventa sempre e tudo se normalizará!" Os presidentes dos guetos ricos (os OA's — oásis em robótica) sabiam que seus triunfos tecnológicos paradoxalmente destruíam a capacidade aquisitiva dos países pobres.

Há alguns anos, já estalara em toda parte a guerra civil mundial. Não de países, não de blocos, mas de surtos de violência cega, de seitas, de gangues, de raças, invasões de OA's, apagamento de fronteiras. Isto fez nascer a ONU-SWAT, convocada a cada canto do planeta para manter a lógica mercantil do mundo.

E a nova Polícia Planetária lutava contra os falsos vingadores dos deserdados. Estes vingadores, comandantes dos excluídos (seu fundador e supremo general era o saudoso Saddam Hussein, para sempre lembrado em bustos eternos.) espoucavam em todo o ex-Terceiro Mundo (hoje Exclusion Zones) e num patuá mesclado de socialismo do desespero e fundamentalismo, viraram a interface entre a miséria e os guetos de prosperidade. Ditadores luminosos nadavam em glória nos desertos e tinham acesso aos líderes do mundo rico. Tornaram-se as grandes novas indústrias da chantagem: lideravam grupos de terror que criavam impasses históricos. Isto fazia progredir as indústrias de armas de destruição rápida, bombas nucleares táticas etc... A indústria do extermínio florescia, como outrora as desratizadoras, os inseticidas.

 

Chantagem atômica

E o presidente da ONU, Nabu Nabu Ding, falava neste dia de pavor mundial. Perigo total: o ‘comando-interface' do complexo Líbano-Síria-Mesopotâmia (liderado pelo grande líbio, neto de Khadafi, o perigoso Al Khagafi), que sempre fora dócil aos conluios secretos, que sempre fizera suas provocações em consenso direto com os líderes da ONU, fugira do controle geral dos painéis, dos cenários hipotéticos dos computadores. "Loucura, ambição desmedida ou nova forma de chantagem?" gritavam os âncoras do mundo inteiro. Motivo: Al Khagafi ameaçava o mundo rico com bombas H, várias ogivas compradas a preço de banana na Ucrânia, vendidas por uma neta de Shakarov que bêbeda e faminta abrira os ex-arsenais soviéticos e fugira para Bagdad num velho Mig-15. Todos os códigos foram checados e todos deram que Al Khagafi estava jogando a sério.

"Como?!" gritavam os líderes mundiais? Era para valer? E a ONU-SWAT encheu o plenário com todas as corporações mundiais, o que justificava os discursos em cadeia traduzidos em 77 línguas e dialetos. Al Khagafi (e sua sinistra frente ampla com a Máfia, Leste europeu, guerrilhas africanas, partidos comunistas extintos) apontava as ogivas nucleares contra as poucas ilhas de bem-aventurados que ainda havia no mundo, com uma economia de mercado. "Não haverá na Terra quase lugar nenhum que não seja uma área de fugitivos. O novo estatismo que surgirá será apenas um estatismo do terror!" previra anos atrás o grande teórico alemão Roberto Kurz em seu livro O colapso da modernização, mas tinha sido apenas uma voz no deserto. Tudo foi como ele previra.

A ONU-SWAT era apenas o braço armado oculto do liberalismo terminal. As atividades dos Estados do terror só tinham duas vertentes: a distribuição de mercadorias e o extermínio de ex-consumidores. E as ogivas de Al Khagafi marchavam em contagem regressiva.

 

Operação Malthus

E Nueva Iorque tremia (como a chamavam os neoporto-riquenhos), como tremia Paris-Rive Droite, como tremia Madrid-Movida, como tremiam Berlim 1 e Berlim 2 (reconstruído o muro contra os turcos excluídos), como tremia White Los Angeles, como tremia Canadian Club, como tremiam Tokiorama, Sony-Land, Havay-Disney, Arizona Dream e tantas outras ilhas de consumo, sabendo que as ogivas vendidas pela prostituta Shakarov ao interface fundamentalista Al Khagafi partiriam a qualquer momento. Por isso, ardia em gritos a Assembléia Geral da ONU-Trade and Destruction Committee.

Mas o presidente do Conselho da ONU, o paquistanês Nabu Nabu Ding (oh, ardilosa escolha — um membro dos excluídos presidindo a assembléia dos ricos!), era hábil e conhecia bem o método de chantagem de seus consangüíneos. Seu dialeto mais remoto foi usado nas comunicações com os líderes do interface de Al Khagafi. E foi genial sua teatralização de radical teimosia nas negociações, quando foi levando propositalmente as conversações a um impasse que impedia qualquer salvação para a humanidade rica; foi genuíno seu ódio, quando ficou claro que o interface Khagafi enlouquecido iria decidir, em nome das pirâmides de famintos e do rancor secular, destruir o mundo rico. E foi genial a teatralização de desespero de Nabu Nabu (merecia o Oscar), quando as ogivas partiram e o terror se espalhou no mundo rico; e foi genial quando os foguetes mudaram suas rotas e começaram a atingir os pontos pobres do mapa-múndi ('Exclusion Zones' — cus do mundo, na gíria), inclusive a própria base de lançamento na Mesopotamia (Nabu Nabu ostentou surpresa e dor, enquanto Al Khagafi voava num Boieng 777 para o exílio em Canadian Club), e foi um alívio mal disfarçado nos oásis ricos do mundo, quando as bombas exterminaram nuclearmente os CEPO's (Centros Excedentes de População Ociosa), lugares como Safari Lands, New Bangladesh, Somalia Tours, Brazilian North-East, Soweto Africano, Soweto Malibu, Bósnia-Herzegovina, Poor Europe Portugal etc... O mercado mundial se auto-regulava com a extinção do excedente de excluídos, e o liberalismo podia então começar um novo ciclo. A Operação Malthus fora um sucesso!

"Quem disse que o capitalismo não se planeja?" foram as palavras sussuradas por Nabu Nabu, o paquistanês, em off enquanto on line ele berrava em lágrimas de desespero pela catástrofe que exterminou milhões. O mundo ouviu bem seu choro, quando as bombas caíam sobre os CEPO's. Robert Kurz tinha razão, em 1992.

 


Sexo renasce nas camisas-de-vênus em flor

A revista Colors da Benetton é um indício da tendência do mundo de hoje para a realidade virtual.

Camisa-de-vênus, no meu tempo, era palavrão. Hoje, chamam-na de camisinha, numa típica ruptura pós-pós com a beleza romântica do termo. Camisas-de-vênus, que eu conheci como sórdidos dejetos que flutuavam nas marolas da praia da Urca, eram provas pavorosas de um delito que eu ignorava.

As camisas-de-vênus amanheciam escandalosamente nas praias entre as mães e as criancinhas brincando: "Mamaêêê, olha a bola de encher que eu achei!" E aqueles moles gomos gosmentos boiavam como anêmonas ou nenúfares nas águas da Guanabara. Eram testemunhas do pecado, aquelas pequenas birutas que nos falavam de um mundo de homens e mulheres enrascados na noite. Camisa-de-vênus era uma metáfora lunar, com o poético nome de deusa do Olimpo. A exposição crua das camisinhas na TV acabara com o doce mistério do sexo. Os anúncios contra a Aids trouxeram o fim das ilusões revolucionárias do amor carnal. De metáfora que era (camisa-de-vênus), virou metonímia (camisinha). Numa espécie de castração ao contrário (some o homem e só fica o falo), a camisinha expõe o pau em sua solidão de alpinista diante do terrível monte-de-vênus a escalar ou dos buracos negros a mergulhar. A camisa-de-vênus deixava entrever o mistério profundo do sexo clandestino (todo sexo era clandestino), do que se passava de ininteligível entre o pau e a vagina, entre dois corpos luminosos nas madrugadas do mundo.

A camisinha exposta na TV nos castra ao contrário; só fica a função clônica de um pênis perigoso, em capa de chuva, encapotado em camisa-de-força (chemise anglaise) e que pode trazer a morte ou recebê-la de uma vagina-dentata que esteja na tocaia.

 

O sexo sem flores

Se a Aids trouxe o perigo para o sexo, a sua prevenção acabou com o mistério de sua metafórica busca de existência. Se a Aids trouxe a morte para o amor, sua prevenção artificializa o único ritual animal que nos restava, o único sacramento da natureza no cotidiano. Com a camisinha, o sexo ficou cirúrgico, medicinal. Hoje, somos todos vítimas de coito interrompido ou pela camisinha e sua brancura hospitalar ou pela culpa de sua ausência. Antes, a camisa-de-vênus era mais um crime de amor que uma proteção. Era um indício de pecado e não um aparelho ideológico do Estado.

A camisinha anunciada na TV é o fim da intimidade; é mais um avanço da vitória das coisas sobre o mundo da alma. Com a camisa-de-vênus de antigamente, éramos mais sacanas, éramos perversos; com a camisinha, somos desinfetados. Com a camisa-de-vênus, éramos mais nus que nunca: hoje, com a camisinha (presente ou ausente) nunca mais ficaremos nus. A nudez foi finalmente castigada. A Aids (e todo o mundo moderno) é a vitória da metonímia sobre a metáfora. Do parcial sobre o total.

O sexo era a metáfora de uma eterna possibilidade de mais-invenção. O mundo se reinventaria como pólen ao vento e o sexo seria uma recriação transcendente, um parto de futuro. Mas a superpopulação e a lógica de circulação de mercadorias não permitem esta índole romântica. Tudo foi tendo de se encaixar nos mapas do sonho programado.

 

Os pênis da esperança

O último número da revista Colors da Benetton traz uma linda matéria sobre as coloridas camisas-de-vênus de hoje. E elas tentam ser uma invenção de otimismo.

Benetton descobriu o marketing de tentar superar o descompasso da natureza com a cultura da parcialidade.

Com seus outdoors terríveis sobre a fome e miséria, denunciando a sociedade de consumo, a Benetton aumenta o consumo. Inventou a mercadoria com preocupação social, Marx fetichizado em mercadoria. Com suas fotos de tragédia sem produto aparente, Benetton inventou a publicidade excludente: o produto se oculta para ser mais visto. Criticando o mundo, ela o transforma na mercadoria que não deve ser comida. Não coma nada, só Benetton. Ele funda uma neo-hipocrisia sincera: a felicidade como negatividade, como excludência. "Você é feliz se não for albanês, se não for proletário, se não tiver Aids!" A Benetton entra como último abrigo; só vende para quem não está nas fotografias terríveis.

Nesta revista Colors, a Beneton faz florescer as novas camisinhas-de-vênus barrocas, que tentam ocultar a lembrança do atual sexo cirúrgico, a lembrança cio desértico sexo hospitalar de hoje. As lindas e novas camisinhas-show da revista da Benetton são como personagens de desenho animado. Há muitas.

Má as camisinhas feitas em forma de negros pênis pujantes (afro-pênis, retorno ao primitivo, jazz?), há as camisinhas em forma de ikebana, arranjos florais; há pênis verdes, ecológicos como palmeiras imperiais; pênis em forma de barra de chocolate, pênis-demônio com rostos de duendes na ponta, pênis-anêmonas, pênis-sushis, united colors of cocks. E por que não pênis brasileiros, pênis-pelé, pênis-cara-pintada, com grafites anti-Collor, pênis que inflem contra a inflação, pênis-inocêncios para o Congresso? Por que não pênis-nordeste de couro, com a cabeça chata dos Maltas, pênis-malvadeza na Bahia, pênis-fuscão-negro, pênis populares de borracha velha reciclada, pênis pé-de-boi baratos? Finalmente renasceria a camisa-de-vênus tropical e festiva, finalmente o Brasil ajudaria a reflorir com a metáfora o mundo seco da modernidade.

 

A epidemia do consenso

Este número da revista Colors é muito sintomático. Toda a revista Colors aponta para o império do desagregado, do mundo em pedaços. Tudo aponta para a transformação do corpo em coisa, dos sentimentos em programas, das emoções em objetos. Tudo aponta para um futuro sonho de pedra, onde nada é gasoso, nada tem a espiritualidade arcaica, tudo aponta para a virtualização do real.

Numa reportagem, os símbolos sexuais escolhidos numa enquete são: uma faca, um sushi, um computador, um monte de dólares, um trem na neve, um sapato alto, dois cubos de gelo, um saxofone, um prato de spagetti. Há um artigo sobre o sexo eletrônico, há o namoro cibernético pelos computadores da Minitel francesa, há em suma a tecnologia como caminho para a programação das emoções mais frouxas. Nada pode ficar fora do controle progressivo do cerco da estatística e da racionalidade das coisas. Toda a revista fala da inversão da mercadoria como compradora do corpo humano e não o contrário. Há um lindo artigo sobre quanto custa cada pedaço do corpo, quanto custa um fígado, quanto custam cabelos asiáticos, córneas, um baço, rins etc.

Contra toda essa virtualizaçâo do mundo, só poucas coisas resistem; a Aids é uma delas. A Aids resiste contra o quê? Resiste humilhando a ciência, resiste como enviada virótica do mundo da miséria pela via do pênis dos circuitos da negra pobreza africana e haitiana até o ânus e o sangue do Ocidente branco, resiste como "recusa à promiscuidade sexual total que seria o próprio sexo abolido em seu ímpeto assexuado", como disse Baudrillard. Há uma epidemia de consenso (Baudrillard) que ameaça transformar o mundo em branco mar unânime.

Estas serão as lutas do futuro. Contra a racionalidade das coisas, resistirão a Aids, a droga e o terrorismo de bolsões. Os três evitando que se feche o mundo unânime do Mesmo.

A esperança social de antes era que a racionalidade iluminista pudesse controlar a irrazão e programar a sociedade. Hoje, se desenha que a lógica cruel do capitalismo onipotente só terá como antídotos: a permanência do risco salvando o mistério sexual, a droga impedindo o fechamento da caretice letal e o crime político rompendo a epidemia de obediência.

A esperança renasce à sombra das camisas-de-vênus em flor.

 

 Elite do Nordeste acha seca natural

Carta de mineiro imaginário mostra a bela ligação entre os poços de Inocêncio e quatro séculos de poder feudal.

Sr. redator,

Quando Alexandre Costa e Inocêncio de Oliveira disseram que a escavação dos poços artesianos em terras de Inocêncio pelo DNOCS foi perfeitamente legal ("É normal... é natural"), quando eu vi a tranqüila verdade de seus rostos afirmando este direito de usar a coisa pública para o uso privado, quando eu vi que eles falavam com absoluta sinceridade e até com a surpresa de que um hábito tão secular nem ao menos fosse questionado, eu me senti tocado pela luz de uma revelação! "É natural... sempre foi assim... é natural!" eles disseram. Esta pequena frase devia ser o lema de nossa classe, pois eu falo por mim, usineiro, dono de terras, e por toda esta confraria de proprietários-compadres que ornam os campos e as cidades do Brasil, num link inquebrável de interessses eternos.

Os mudancistas que infestam esse país, (os jornalistas, os intelectuais), os que nada têm e não valorizam a tradição da posse, vivem querendo mudar o mundo e se esquecem da beleza das tradições, essa beleza que Inocêncio evoca quando diz: "É natural!" Temos a beleza dos acadêmicos resistindo à sanha de vanguardistas irresponsáveis. É a beleza da solidez do mundo. Quando eu faço uma piscina azul em minha casa no sertão de Pernambuco, ela brilha como um retângulo de esperança em meio à seca. Não é arrogância, mas solidez; não é crueldade, mas a manutenção da ordem do mundo. É preciso que alguém tenha piscina em Canapi para que a dor dos miseráveis seja suportável. Sua tragédia ganha um vértice que aponta para o céu. Eu fecho um triângulo entre a morte na caatinga, minha piscina e Deus. Eu não posso evitar o mal, mas posso minorá-lo. A vida do pobre ganha um sentido hierárquico: está embaixo, mas alguém vive feliz em cima. Eu acrescento ordem ao mundo com minhas motocicletas no Agreste, eu sei da beleza de passear de Harley Davidson com minha mulher loura e rechonchuda (chamo-a de minha potrinha); quero-a loura sempre, oxigenada, com um belo abrigo de Chanel, ou Vouitton, para que sua presença cause um "Ohhh!" nos despossuídos que nos olham das lavouras. Tenho o prazer de contemplar a ninhada de meus filhos (gordos também — é sinal de riqueza), olhando do alto a multidão dos fracos nas frentes de trabalho. Sei que nisto há um orgulho perdoável, mas grande é o prazer do poder herdado, o prazer de ver o fantasma de meu avô entre os canaviais flamejantes, o prazer de ver as mãos magras agarrando os chapéus e se curvando quando eu passo.

Eu olho feliz as alegres tradições country, como as cavalhadas, os churrascos eufóricos quando os filhos voltam da Europa, as ancas das mulheres risonhas e bem fornidas, as jóias de ouro tilintando em pescoços e pulsos, a macheza de nossos homens com seus chapéus texanos, sua sadia robustez de chefes, e vemos que alguma coisa de sólido existe neste Brasil. E ouço a voz doce de Alexandre Costa: "É natural... tudo natural...", falando com seu perfil de caveirinha (alguns riram da plástica que ele fez, mas... tudo bem). É doce ver os ternos novos que o Inocêncio fez para o novo posto. É doce saber que ele também vai aos USA, fala para gringos. Isto não tem um valor bem mais nosso do que um Fernando Henrique, doutrinado na Europa? Essas belezas agrestes servem de balsamo para essa febre de insatisfação de tantos, que acham que o Brasil não tem jeito, que piorou.

Muita coisa melhorou, sim. Vejam minha lancha ancorada no Capibaribe, vejam a parabólica em meu teto de fazenda, vejam os gritos alegres de meus filhos no Iate Clube, vejam o carro japonês rolando na poeira da fazenda, o Lexus na caatinga, o Eclipse negro lunar, o rubro Mitsubishi entre vacas magras, o aviãozinho passando sobre as caveiras de burro, aviãozinho comprado com incentivo da Sudene é claro, mas e daí? Não pensem que meu peito se confrange diante da palavra corrupa, não há corrupa em minha vida; o dinheiro é das famílias, o dinheiro sempre foi delas, tão eterna verdade quanto a eterna miséria que sempre haverá. O recente empréstimo a mim e aos outros usineiros de US$ 1 bilhão não é mais que obrigação a nós devida por 400 anos. É natural o empréstimo, tão natural como os poços de Inocêncio. Nossos peitos estão felizes em nossas jaquetas que vieram de Miami; isso, Boca Raton, sim, felizes, há um progresso enorme em nossas famílias e os pessimistas que só olham para as costelas dos famintos não chamam isso de progresso, por quê? Querem o quê? Que fiquemos magros também, que dividamos nossas conquistas com os que nada têm, querem socializar os problemas da miséria? Ademais, é impossível salvá-los. São 60 milhões de pobres. Foram chocados em quatro séculos de tradições. A única solução é variar o foco da atenção, virar o óculo para outra face da beleza, a beleza do poder no campo e também na cidade: a sólida felicidade de contemplar a cadeia de cartéis, a alegria de ver uma cidade inteira de carneiros ir para suas fábricas, ver os fulgurantes escritórios, a hábil tessitura de negócios interbancários, os finos conluios com o Estado, a ronda dos incentivos fiscais, a grande arte dos lucros fabulosos, as mandíbulas salivando a cada grande negócio fechado. Tudo isso é belo! "Tudo é muito natural... sempre foi assim", balbuciou Inocêncio de Oliveira. E muitos amigos e confrades pensam assim, amigos que conhecem a beleza superior deste imenso patrimônio espiritual que nós possuímos no Brasil, feito de amizades, famílias amplas, burocratas cooperativos. E nossa ideologia secular se espraia pelas cidades; homens como Maluf são do campo, Quércia, ACM são do campo, usineiros na alma, mesmo que se travistam de urbanos. Todos têm o quente sentimento de propriedade, na qual eles querem incluir mais e mais o país, como prótese de suas vidas privadas coroadas pelo êxito. É tão mais autêntico ter amor por seus bens reais do que o discurso abstrato de rancorosos intelectuais. Quem disse que o mundo é para mudar? Isto é, no mínimo, herança protestante de secos saxões. A classe dominante deste pais é uma grande família, unida por laços quase irracionais de amizade total, mesmo que definhe sob nossos pés a massa de escravos e seus escuros mundos. Será que não vêem esses profissionais do pessimismo outras formas de beleza? A beleza dos condomínios de luxo, o isolamento dos prédios elegantes, o eficiente banimento de invasores, as paisagens urbanas vistas através do blindex, as velozes paixões dos cartões de crédito, o eufórico alarido dos restaurantes, os roncos de jet-skis á beira-mar, os gemidos das amantes no cetim, o ronco dos jatos prateados, a euforia dos almoços de conchavos, a vitória de um interesse corporativo, tudo isto que doura o nosso progresso? Por que só olhar para o fracasso dos famintos?

Dentro de algum tempo, quando o país começar a definhar mais e mais por baixo das frágeis camadas do progresso, continuaremos a ver o que havia de natural em nossas vidas, o que era a continuidade da ordem do mundo; e a cada catástrofe (como eles chamam) adaptaremos (com incrível habilidade) nossa felicidade para os novos tempos. Sei que virá o  presidencialismo, contra a vontade desses intelectualóides da governabilidade, sei que depois teremos o tumulto social. Sei que depois a doce ditadura voltará, e nós estaremos nos adaptando; sempre estaremos bem, progredindo, cada vez mais honrando nosso passado de donatários I quando aumentarem as invasões e convulsões sociais, com os consequentes extermínios de massa (inevitáveis...), as matanças de menino, (saneadoras...), as esterilizações obrigatórias, as fogueiras de favelas, veremos nisso o que é "natural... tudo natural", uma natural survival for the fittest (sobrevivência do mais forte, acrescenta meu filho do MIT).

E quando a Somália virar uma ridícula lembrança perto das grandes secas futuras, veremos nisso a doce regra do mercado se auto-regulando, e quando a africanização do país todo se fizer, muitos iremos naturalmente para o exterior, com nossas fortunas naturais já enviadas antes, e ainda sentiremos no peito o orgulho de ver a linda tradição de séculos de civilização portuguesa atrás de mínimos detalhes, de ver nossa estirpe viva de pessoas finas e bem-alimentadas, mesmo em meio a um mundo de pobres-diabos. E teremos orgulho deste Brasil que se manteve tão sólido e imutável. E nos lembraremos com alegria das palavras ditas por nossos amigos e compadres, Inocêncio de Oliveira e Alexandre Costa: "Sempre foi assim, é natural... tudo é natural..."

Atenciosamente

 (assinatura ilegível)

 

Os canibais estão na sala de jantar

Novos códigos penais terão de ser escritos para um tempo onde o horror é normal e o crime compensa.

Jeffrey Dahmer, o canibal de Milwaukee, contemplava a decoração de seu apartamento com satisfação. Tudo bem-arrumado. No freezer novo estavam quatro cabeças em bom estado olhando-o com tranqüilidade, com Certo carinho até. Na geladeira, no gavetão de legumes, havia mais uma cabeça que ele havia fervido. No congelador da Frigidaire estavam partes de corpo humano bem-arrumadas, junto com os cubinhos de gelo bem distribuídos, dos quais Dahmer pegou dois para o uísque. Num grande barril azul de plástico jaziam braços, pernas, mãos, parecendo um depósito de escultor. Foram 17 assassinatos em pouco tempo.

Em Londres, em Cranley Gardens, Dennis Nilsen levou 15 rapazes para casa e matou-os com cuidadoso ritual. Estrangulava-os no sono, depois lavava-os, tratava os cadáveres como bebês, velava seu sono eterno e, como era difícil levá-los para fora sem chamar a atenção do porteiro, cortava-os em pedacinhos e transportava-os aos poucos para a rua.

 

Crimes do Norte e do Sul

No Brasil não há esse zelo. Matam-se 111 presos na Casa de Detenção, sem culpados, claro, mas vai demorar muito para chegarmos ao crime metafísico das sociedades ricas. Primeiro, temos de nos desenvolver. Nossos crimes são desorganizados como o país. No crime brasileiro o assassino busca alguma coisa que a vítima possui, o dinheiro, a mulher, ou um resgate. No caso do neocanibal americano, a vítima é o móvel do crime. O assassino quer a vítima, quer o corpo da vítima, não o que ela tem. Ele não mata para roubar algo. Mata para ter o cadáver. Nestes crimes, a vítima é desejada. Já a vítima brasileira é um estorvo que tem de morrer. A vítima americana dos canibais é a recompensa. As vítimas brasileiras são a sobra, não têm nenhum valor de troca, são desovadas em matagais, derretidas, afogadas, enterradas. No crime americano, o assassino quer ser reconhecido como sujeito. No crime brasileiro, tenta-se provar que não há sujeitos. A vítima brasileira não presta para nada. As vítimas dos canibais americanos ornamentam seus lares vazios.

Dennis Nilsen diz num artigo canibal-chique em Vanity Fair que tanto ele quanto Dahmer eram muito sozinhos e que as vítimas lhes faziam companhia, preenchiam suas vidas. Diz que matavam sem nenhum ódio, matavam por um estranho amor canibal e um erotismo necrófilo. Na árida sociedade rica os canibais têm fome do outro, fome do semelhante, fome de irmão. O que nos espanta é a novidade da presença dos mortos na sala de jantar, na geladeira: a domesticação do horror. Nada de vampiros, cavernas góticas, noites de tempestades. O morto está no living, como uma visita. Como disse Nilsen: "Só matei insignificantes como eu. Sempre achei que nunca iriam reclamar meu corpo se eu morresse. Somos tão insignificantes como os pedaços de cadáveres que enfeitaram minha casa." Os criminosos transformaram suas vítimas em artigos de um supermercado americano com prateleiras organizadas, rotuladas, registradas. Tudo pronto para a chegada da polícia. Os canibais americanos querem a chegada da Lei com ânsias, querem o conforto da polícia. Há pouco um foi enforcado dizendo: "Matem-me sim, matem-me senão eu continuo meus crimes!" Eles têm orgulho da América. Nilsen acumulou corpos na esperança de ser apanhado e libertado daquela horrenda solidão com seus amantes silenciosos. Ele descreve a chegada da polícia como "o dia em que veio o socorro" (."the day help arrived'1). A polícia o libertou de uma solidão alarmada e lhe dá a quente companhia da prisão. A polícia lhes dá a chance de falar sobre o país, por sua exposição de arte, seu vernissage de corpos que querem aperfeiçoar a vida americana. As casas de Dahmer e Nilsen são instalações, mausoléus de denúncias para que um dia alguém chegue e descubra aquele sinistro panteão de heróis caídos, como um antimonumento da vida americana.

 

Ex-monstros do mal

O que mais impressiona o público é que a crueldade está banida da coisa. Não há no relato desses assassinos o prazer com o pânico da vítima. Interessa a eles o silêncio de depois. Odeiam os urros, os medos. Nilsen diz que não foi cruel ao esquartejar os mortos: "Houve tragédia na hora que a vida se foi. Depois não; são como coisas." Não há neles o exibicionismo dos monstros malvados. O monstro malvado que ostenta a crueldade extrema faz o elogio do Bem. Tanto é seu demonismo que ele homenageia a Bondade. Já o neocrime é uma terceira coisa. É o crime que não é o contrário do bem; o mal que não é uma transgressão. O mal banal. Chama-se de 'mal' por falta de outro nome.

Os canibais americanos falam uma verdade profunda sobre a sociedade que todos teimamos em ignorar com nosso humanismo requentado: o fim da tragédia já aconteceu; os extermínios brancos (no Norte) e vermelhos (no Sul) já começaram. De um lado, temos os brancos crimes sem ódio, e de outro os Carandirus. (Vejam que ninguém foi indiciado — 111 mortos sem culpados.) De resto, a justiça militar contempla com tédio essa exigência arcaica da sociedade de pedir punição. "Que saco, esses bacanas metidos a humanistas... Vem pra cá!" É como se o extermínio na prática tenha virado uma necessidade social que só os chatos não compreenderam ainda, com sua literatura. Aumentam os crimes sem remorso. A frieza dos canibais-chiques e a dos exterminadores de massa se igualam. Milwaukee e Matupá. Não queremos reconhecer nossa crescente impiedade, nossa crueldade cool, e temos de disfarçá-la com um horror postiço, nós que somos criminosos sem crimes visíveis. Ou não é criminosa a ausência total de compaixão da classe dominante do Nordeste, por exemplo? Contemplamos coniventes o crime brasileiro com a mesma frieza que Dahmer organizou seu supermercado de corpos. Fingimos acreditar que haverá solução para o país, quando talvez tenhamos que planejar o futuro levando em conta o insolúvel.

 

Fim da compaixão

A sobrevivência moderna precisa do crime. A sobrevivência moderna precisa da aridez, da secura prática, do coração frio. Lembram, antes do Carandiru, daquele outro massacre, quando uns policiais torraram a 600 graus 35 presos numa cela sem ar, a ponto de só ficarem os tênis derretidos? Quem foi? Ninguém. É tudo documentário, tudo é Globo repórter, tudo termina no Documento especial Quando surge um crime de bom formato tradicional como o de Daniela, a justiça lambe os beiços orgulhosa de poder se exercer. Há um súbito e maravilhoso renascimento do velho mundo do bem e do mal.

A verdade é que os crimes frios são o prenuncio dos futuros extermínios de massas num planeta superpovoado. Todos os procedimentos jurídicos e morais se apóiam em uma antiga visão do humano. Como modernizar a legislação, como criar um Direito frio, um Direito sem esperança moral? Como ficou arcaica a idéia de compaixão, seremos cada vez mais tocados pela graça da frieza. Teremos de esfriar mais e mais o coração para viver no Brasil e sobreviver no meio da tragédia. A incurável sordidez política nacional nos levará a isso. Um dia chegaremos á perfeição tecnológica destes criminosos de vanguarda. O crime compensa.

O que mais fascina no papel genial de Anthony Hopkins em Silêncio dos inocentes é que ele parece estar mais além de uma moral antiga, e que contempla, do outro lado do Bem, uma nova realidade do mundo. Ele parece saber mais que nós, que vivemos ainda mergulhados em dúvidas morais. Anthony Hopkins, o canibal Hannibal Lecter, nos olha do futuro.

 

Havia um encontro marcado no pavilhão nove

Nas entrevistas com os soldados pode se reconstituir a razão mais funda para o show colorido do massacre.

"Quando entramos no pavilhão nove os presos vinham para cima de nós, todos com estiletes feito espadas molhadas em sangue de aidéticos, grilando, batendo com ferros no chão, nos corredores escuros cheios de fumaça dos colchões queimados, e aí a gente começou a atirar neles que. estavam alucinados e eles começaram a cair.

"Dava uma mistura de medo com alegria apertar o gatilho e ver que os homens seminus começavam Lima dança torta e caíam; era muito excitante ver o nosso poder de fogo, a gente comandando uma dança.

"Era fácil entender por que eles estavam revoltados e queriam nos matar, pois eles estavam presos naquele inferno sem saída. Eles estavam na lama das fezes, na urina, na Aids, sem mulher.

"Eles tinham razões para nos matar.

"Mas nós, por que nós estávamos atirando neles, se eles nem armas tinham? Por que queríamos tanto matá-los? Acho que nós fomos escalados por uma força oculta para inaugurar a idéia de extermínio no país. A idéia de extermínio cada dia mais se fixa como uma necessidade no mundo atual. Nós somos os precursores do que vai acontecer cada vez mais.

"Quando começamos a atirar, sentimos que preparávamos um grande noticiário. Já víamos as páginas das notícias populares, a capa da Manchete. Começava ali uma espécie de filme de ação com o sangue colorido espirrando no chão.

"Nós éramos o centro absoluto do país por uma hora. Vimos que havia um encontro marcado ali no pavilhão nove.

"Que encontro era este que estava marcado há tanto tempo e a que nós não podíamos faltar?

"O encontro começou a se passar, rodando como o demônio no vento. Ninguém entendia o que estava acontecendo, mas tinha de continuar atirando, porque nós cumpríamos ordens. Não eram ordens de oficiais-comandantes; cumpríamos ordens que vinham de mais alto, de mais longe, ordens de Deus ou do diabo?

"Atrás de nós e deles havia um país dividido em dois, e tudo ia se comprimindo como duas paredes que fossem nos esmagar no meio, feito uma estrela implodindo e ficando cada vez menor.

"Havia um comando louco no ar para que o horror se abatesse sobre nós. Nós tínhamos que encher a TV de cores, de sangue, de lágrimas de mulheres. A gente tinha de ir além e fazer um crime grande que o país estava pedindo. Há muitos anos o país pede esta explosão.

"A gente matava e pensava se ia adiantar. As pessoas vêem e se acostumam e depois não fazem nada e depois vão querer mais, coisas diferentes. O problema do espetáculo colorido e cheio de mortos é que as pessoas se acostumam com eles e querem mais. Um dia não haverá mais o que inventar. Como explodir mais os corpos, com novos efeitos especiais?

"E a gente ia matando e olhando os mortos. Nós éramos iguais a eles, os soldados e os presos eram uma irmandade da mesma carne. Ninguém tinha raiva de ninguém, ninguém ali era inimigo; a gente só tinha medo. Eles caindo com os tiros de metralhadora e nós fugindo das facas molhadas no sangue com Aids.

"E de repente ficou um silêncio cobrindo as pilhas de mortos no chão. Todos os presos vivos fugiram para as celas para não morrer.

"Aí, a gente começou a matar não mais por medo.

"Nós íamos de cela em cela e gritávamos para os presos ajoelhados e matávamos por sorteio: 'Um, dois; mata o quatro e o cinco!'

"Íamos debaixo do beliche e atirávamos por baixo dos colchões. E víamos a onda de sangue se formando.

"Mas se não matávamos mais por medo, matávamos por quê?

"Nós matávamos porque eles eram iguais a nós, moravam na mesma periferia, nos mesmos barracos, a gente matava neles a nossa vida miserável que nos fazia estar ali matando eles. Queríamos horrorizar as pessoas que não estavam ali, que diriam depois 'Que horror, que horror!' Ninguém sabe o que é o horror; nós sabemos.

"Nós éramos os atores principais; só existia a gente ali no Brasil naquela hora, a gente sabia que estava fazendo a coisa mais espetacular do momento.

"Era uma continuação do impeachment. Por que todo mundo de cara pintada podia tirar o Collor e a gente não podia também passar o Brasil a limpo e matar aquela putada toda que era o nosso espelho sujo?

"De repente todos os cadáveres estavam nus, e todos os presos tinham de tirar a roupa para ficarem diferentes de nós, e aquela porrada de homens nus, bonitos, parecia um inferninho, uma sauna gay enfumaçada.

"Os cachorros a gente botava em corredor polonês e eles atacavam o saco dos presos, e o sangue corria veloz e era um cheiro doce, e muitos escorregavam fugindo dos cães, e parecia um bando de surfistas; um campeonato de surfe no sangue, um mar vermelho no pavilhão nove.

"Mais tarde, nós veríamos os corpos nus dos homens costurados no peito, com número na coxa, e os paus tapados com uma manchinha preta, para diminuir a violência para o leitor. Por que o pau não aparecendo fica menos violento? Por que pode se mostrar o sangue em todos os jornais e não o pau? O pau é imoral e o sangue não é? O sexo lembra a vida e tem de ser oculto para não desejarmos os mortos. Homens lindos como um bale imóvel, como um show erótico parado. Os leopardos, a noite cios leopardos mortos. De que vai adiantar este show? Será que algum horror melhora o Brasil?

"O inferno é aqui e todo mundo tem de ver. Havia uma denúncia naquilo que fizemos. O Brasil não quer ver a miséria, não quer ver o sangue, mas tem de ver. Nós somos os testemunhos destes buracos negros de sangue.

"Queremos que todos vejam a imunda escultura de nossos detritos, o lixo colorido e ensangüentado de nossos trapos, o intestino podre da boca do boi (a latrina e pia batismal das celas, o esgoto e a sepultura das prisões.), a boca do boi onde se misturam as lágrimas e a merda. Nós somos a privada e a boca do boi do país. No lixo do massacre está o milagre brasileiro. Está tudo lá, tudo ensangüentado, o radinho de pilha, os cigarros, a camiseta United Colors of Benetton, a cara do Pato Donald na parede, a garota da Playboy, as sandálias havainas, as camisas assassinadas, os bonés sem dono, os punhais abandonados, o plástico, os cigarros esmagados, as canecas secas, as meias sem pés, o sangue nos ladrilhos, o sangue no vinil, o sangue no isopor, na escova de dentes, a morte como as sobras de uma sociedade abandonada. Shopping centers mortos e camelôs bombardeados, todo o país ressurecto naquele lixo que ninguém quer ver.

"Os oficiais mandavam a gente enfiar as baionetas nos corpos para ver se estavam mortos.

"E  nós obedecíamos. Cada vez era mais fácil.

"Quem era o criminoso? Os chefes? Quem, lá fora?

"A gente sabia que o país ia se dividir em opiniões, feito um jogo de futebol. Quem é contra, quem a favor? Mas ninguém sabe da verdade; a idade é uma terceira coisa compacta, o centro de um massacre, a verde e uma coisa sem nome, onde ninguém escolhe nada. A gente mata ou morre num inferno de irmãos carnais da mesma classe, peões de uma loucura de fora. Naquele dia o bem e o mal se juntaram numa massa sangrenta."

 

Ricos e famosos disputam piranha de ouro

Na revista Sexy Interview, socialites e artistas de TV competem em confissões explícitas sobre suas camas.

"O sexo é uma selva de epiléticos." Olho a revista Sexy e a frase que me vem à cabeça é esta de Nelson Rodrigues. Por que a revista nos inquieta? Porque há algo novo ali. Ali a sacanagem não é mostrada, como na tradicional revista erótica. Ela não mostra passivas mulheres desejáveis. Ela faz o sexo falar. As vulvas falam, os paus falam, cantam os ânus, assobiam vaginas e ventam pentelhos. Quem fala ali são os ricos e famosos que as classes médias olham fascinadas, assim como olham seus carros japoneses, suas bolsas Chanel, suas gargalhadas nas colunas. E eles revelam tudo de sua vida sexual. Outrora, o grande prazer vinha da ocultação, vinha da maravilhosa hipocrisia de poder posar de sério na sala e ser vicioso no banheiro. Não há mais o prazer infinito do crime. Tanto no sexo quanto na corrupta, há uma tendência para a explicitude que estraga a beleza do pecado, a delícia da traição, o frisson da liberdade. Os socialites, os atores e atrizes famosos gritam de fronte alta: "Eu sou uma puta, eu sou viado, eu transo nos banheiros de botequins!"

Sua intensidade erótica nos mata de inveja. Do fundo de nossa pobreza, olhamos os deuses da mídia exibindo seus vícios como ornamentos, já que as jóias não bastam. Mas alguma coisa nos deprime na Sexy Interview. Será a inveja de não estarmos na grande suruba irreal da mídia? Talvez, talvez, se fosse possível ter tudo aquilo e também uma poética qualquer. Ali não há poética, nem do corpo; há ali uma confissão sob holofotes. Na realidade, estamos sendo invadidos por um sistema de informação total, que nos obriga a tudo dizer. O exibicionismo, doce mecanismo de prazer que os séculos consagravam, não é o que move estas pessoas que dizem: "Eu dou assim, eu chupo, eu engulo". Estas entrevistas eróticas não são exibicionismo; são o cumprimento do dever. Há a confissão a um microfone geral e pós-catástrofe que a todos denuncia. A exibição sexual compulsiva é uma exigência de mercado. São os sexual climbers disputando o troféu Piranha de Ouro. A desobediência sexual, que já foi revolucionária, rompendo a barreira moral, hoje é apenas resposta a uma ordem geral de transparência de informação que rege tudo, a qualidade dos produtos, a luz geral e cegante dos supermercados, a total visibilidade, a negação da individualidade, de qualquer diferença que implique negatividade. Estamos no império louco da positividade, onde nada pode ser feio ou mau. Tudo tem de ser permitido, ou compreendido. No reino da ostensividade, nada pode ser escondido, nada pode ser desejado como gozo futuro, como utopia de prazer. Só prazer não-utópico, presente, sem segredos. Os segredos não agradam à sociedade ostensiva. Todas as conspirações acabaram. Quem diria que nossa prisão seria um campo aberto, que a verdadeira proibição não seria o stalinismo, ou 1984, e sim a ausência de proibição, ou melhor, a proibição de ausências?

Na revista Sexy, nós (voyeurs ou invejosos consumidores?) não vemos o elogio da transcendência ou da delícia; só há a louvação do funcionamento físico dos atos, de uma eficiência funcional. Há uma tecnologia do sexo, como se estivessem falando de carros, de lanchas, de liqüidificadores. Fala-se do desempenho de corpos como se fala de uma BMW por exemplo. Uma mulher tem mil cilindradas ou é um avião. A qualidade das transas e dos corpos é sempre medida pelo bom acabamento da carroceria, pelo melhor acoplamento de interfaces, pelo encaixe perfeito de peças de precisão. Tal pessoa é compatível com tais engates, tal mulher trepou com fulano que trepou com sicrano e com beltrano. Há na revista um gráfico que lembra as plantas baixas de usinas ou um mapa de circuitos impressos, de relays e transistores que desenham um labirinto de trepadas reveladas por atores famosos. Um rabo lubrificado A engata no penis B, que gira em engrenagens de vaginas dentadas B, que fazem explodir orgasmos eletrônicos em todas as direções. São mecanismos, órgãos sem corpo. Que compulsão é esta de tudo mostrar? Que sol, que neon, que luz fluorescente tem de apagar todas as sombras, todos os segredos, excluindo qualquer perspectiva de futuro ou passado?

A frase revolucionária 'É proibido proibir' foi cooptada pelo show permissivo burguês. Hoje a proibição da proibição é a liofílização da liberdade. Há uma liberdade de mercado que produz um mercado da liberdade que estimula o ato gratuito, nas áreas não-essenciais da produção, é claro.

Pela ilusão da desrepressão, temos uma grande prisão sem grades. O sexo que foi usado na luta contra a caretice da vida burguesa é hoje a glorificação de sua vitória. Lembro-me de uma expressão de Marcuse: "De-sublimação repressiva". Só há isso nos grã-finos em strip-tease. A perua-puta é conservadora. Com sua liberdade cheia de ouro, com sua evocação longínqua da realeza, com suas jóias e penteados, ela nos condena a um tesão sem requinte. Nada contra deliciosas perversões poéticas. Mas o explícito nega a perversão. Esse tesão nos brocha.

Por que a socialite tem inveja da puta? A puta e sua arte, a pornografia, eram gueto que servia a nosso desejo de democraticamente mergulhar na lama do alívio social. A pornografia era o antilar, o prostíbulo era a alternativa ao tédio familiar. Tão sem rumo estão os privilegiados que a socialite inveja até a pseudoliberdade que a mídia atribui á puta. Os ricos e famosos invejam a desfaçatez que os pornográficos exibem: a rapidez, a leveza, a aerodinâmica dos membros, o impudor, o mito do orgasmo fácil, o fast fuck ideal, a pretensa ausência de culpa. Mas o que a socialite realmente inveja na puta é mais que a liberdade; é seu lado mercadoria, é a facilidade de se oferecer numa mais-coisa, numa exibição de mais-valor, mais objeto. A grã-fina e a atriz famosa querem tirar da puta a eficácia técnica de satisfazer o freguês. Antes, as putas queriam ser grandes damas. Hoje as damas querem ser putas.

As milionárias que fazem de tudo parece o título de uma pornochanchada épica que no duro é apenas a voz do Mercado. Elas querem ser mais coisa que as coisas, mais úteis, mais consumíveis, querem ser máquinas desejáveis. Além disso, pela exibição de desinibições eróticas somem as fragilidades. Ninguém sai gritando: "Brochei!" Ninguém fala dos medos, das inibições. Nas entrevistas, só há heróis sexuais. E ficamos sabendo, no mercado persa do sexo, que o herói da novela é bem-dotado, a atriz engole, a outra cospe, o milionário gosta de dar, a melhor maneira de se iniciar no coito anal é passar xilocaína no rabo, e que é bom transar na rua, dentro do carro de madrugada, vendo os operários passar. Há uma banalização da liberdade com o próprio corpo que exclui um inconsciente cheio de problemas. Pela liberdade de uso do próprio corpo se chega à idéia: "Sou tão mais livre quanto mais usável". Uso o meu corpo como se fosse uma prótese, um outro que não eu, uma terceira coisa nas prateleiras do mercado erótico. E a idéia de angústia diminui se chegarmos ao ideal clônico de coisas. A verdade é esta: queremos ser coisas. As peruas invejam as putas porque as putas são objetos. Queremos a suprema felicidade das coisas. As coisas são úteis, as coisas são compradas, têm valor e, principalmente, as coisas não têm sofrimento. Nosso supremo ideal é sermos desejados como um bom eletrodoméstico. O humano é um resíduo descartável onde mora a dúvida, a morte. Não é verdade que estas pessoas querem ser livres. Seu desejo é serem consumidas, mais que consumirem. As antigas aristocracias frutam o prazer. Para isso, tinha de haver uma ética epicurista ao menos, uma estética, um sim e um não, um ritual. A desritualizaçâo do prazer acaba com o requinte dos perversos. O objeto artístico, aurático da sacanagem, deu lugar à suruba sem alma. E a sacanagem precisa da escolha, da estética, da dor. Não existe prazer sem angústia. A fome de transparência que se almeja hoje em dia leva ao deserto sexual, como diz Jean Baudrillard: "A verdadeira catástrofe seria a onipresença de todas as redes, a transparência total da informação. (...) Se a promiscuidade sexual se realizasse, seria o próprio sexo que se aboliria em seu ímpeto assexuado".

 

William Burroughs retrata o pacote final

Nem a visão apocalíptica do grande escritor drogado serve para descrever a crescente loucura do Brasil.

William Burroughs, o grande escritor americano, estava no Brasil naquele dia fatal de 1994. Seus olhos luziam diante da reportagem que fazia para um jornal de junkies. Seu mais louco sonho não se comparava a multidão em delírio que ele via ali, diante do Banco Central, em Brasília. Ele escrevia sobre o que a imprensa brasileira chamaria de o Dia da Revelação ou do Pacote Final. William Burroughs escrevia em seu caderninho, e eu a seu lado (ficara seu amigo) traduzia e explicava o país: "A inflação não caiu. Já se tentou tudo: novos choques ortodoxos, com confiscos de todas as contas, o plano Rezende 1, o plano Serra 2, o plano Milton Friedman (fora chamado a peso de ouro), mas, em dias, o dinheiro ressurgia misteriosamente; tentaram-se congelamentos com ameaça de morte, mas os comerciantes desafiavam a polícia; bois eram mortos nas praças de São Paulo e Rio; feijão e arroz eram queimados, a banha ardia em fogueiras altas, os supermercados viravam quartéis, pois os saques eram diários; hordas de famintos invadiam restaurantes gradeados e comiam tudo; surgiu o canibalismo em algumas regiões, com a venda de pivetes de rua como carne de segunda em açougues da periferia; no Nordeste, as multidões eram metralhadas com prazer por famílias tradicionais, como um novo esporte, a seca tinha sight seeing tours, pois o turismo já incluía miséria como parte das atrações naturais, também houve o..."

 

O comício monstro

William Burroughs me interrompe com seu sorriso sem esperança de suicida. "Você quer dizer que ninguém quer mudança no país. Por isso o apocalipse?" "Não", disse eu. "Todos afirmam querer mudança. Só que ela não vem. Diante da imutável inflação tudo mudou, menos ela. Foram surgindo tipos novos a cada dia no país", explico eu ao gênio, "ministros da Economia se substituíam sem parar." (Já estávamos no décimo nono). "Por que não conseguem?" pergunta-me WB. "Porque não se pode mexer no interesse de cada classe ou corporação", digo. "Só os miseráveis podem mudar. A própria miséria evoluiu. Atingimos níveis de morte realmente novos em termos de tragédia. Nenhum Sudão nos chega aos pés!", digo-lhe com certo orgulho. Burroughs me olha calado. "No entanto, William, eu acho que... há algo acontecendo mais misterioso, mais grandioso em nosso erro... Eu quero entender, WB, o que será que nos faz errar tanto?"

WB ouve com seu olhar de luz dos infernos. "Tioere must be an explanation..." "Pois é", digo-lhe eu. "O novo ministro resolveu fazer um ato monstro. O Banco Central nos prepara uma grande surpresa. Algum ato desesperado será feito. Ninguém agüenta mais. Vem aí o Pacote Final!"

 

Os novos tipos

E eu ia explicando ao grande escritor quem era a louca multidão que enxameava em volta do Banco Central. "O país não muda. Só os tipos políticos se multiplicam!" Avançamos por entre a muvuca, em volta do BC. Havia o empreiteiro sem obras, tentando descolar um canal de esgoto com o general sem guerra, ali perto de sete ministros sem verba. Todos queriam a desgraça do atual ministro da Economia, o superbicheiro Castor de Andrade. "Samba, dance, carnival!"cantei para William Burroughs, que não entendeu bem. Ministros conversavam com extelionatários, antigos ladrões perdoados pela justiça e com os burocratas do mal, os quintos-escalões (ex-quintas-colunas que mandavam nos ministérios). Os ministros puxavam-lhes o saco e eles nem olhavam, paquerando as secretárias poderosas, que garantiam a ineficácia dos burocratas do mal, cujo lema era: "Nada andará na burocracia revolucionária!" Cercando toda a cena estava a imensa multidão de miseráveis chatos, ou DV ("déjà vu pauvres"), um cognome delicioso inventado pela ex-ministra da Ação Social, agora colunista mundana, Margarida Procópio; os miseráveis chatos, ou eternos descontentes, eram alvo do olhar fascinado de Burroughs que, sempre ligado em peversões sexuais, se infiltrou entre os pivetes do amor, dubles de cheiradores de cola (WB adorou o superbonder) e prostitutos, bofes (boffs, eu traduzi), e ia esbarrando também nos aposentados de carteirinha, nos gabirus em expansão (novo partido do Piauí), nos sem-tetos, nos sem-terras, e nos SNMs (sem-merda-nenhuma — numerosíssimos), os lumpens-musicais (mais recente novidade em música country, composto de cegos-violinistas, flautistas famintos, rappers-grafiteiros) e desgraçados em geral. Sentindo que WB se excitava muito entre as feridas e farrapos, encaminhei-o de volta (agarrado num boff jovem que logo lhe bateu a carteira), e ele continuou anotando a lista de novos tipos que eu via e lhe explicava: estes são os neo-PCs — careca falsa e óculos de ouro —, novo tipo popular, e muitas lobistas-fracassadas, lourinhas que imitavam a futura governadora de Alagoas, Rosane Collor. Havia também os usineiros perdoados, havia os empresários separatistas nordestinos que queriam autonomia na exploração das secas, havia o clube de Juiz de Fora, cercando o ex-presidente (a renúncia de Itamar por irritação criara o clube de seus defensores, tão aguerrido como o novo clube de Verbas para Serra Talhada, que puxava o saco do novo presidente Inocêncio de Oliveira, com apenas duas semanas de mandato); havia os coléricos-subversivos, fugidos do lumpesinato, ejetando fezes e gases em todas as direções; havia os eco-chatos com hordas de micos-leões que voavam em trapézios e cagavam na cabeça de todos; havia os tecnocratas-milagreiros (esquerda neoliberal que acreditava em luta de classes soft, na revolução por consenso), dos quais a vertente de direita, por assim dizer, era o Economista-Evangélico, que com seu slogan "Só Cristo salva da Inflação" dominava milhões e ameaçava os dois candidatos, Maluf e Lula, com sua força de milagres (se bem que Lula e Maluf cada vez menos quisessem vencer, cada um fazendo campanhas mais fracas para perder e escapar da fria); havia amigos abraçados em grande união, os monetaristas-humanistas (ex-ministros da Economia que se acham donos da verdade) e marxistas sem Marx, enlaçados pelo mesmo paraíso liberal, como havia os heteros e oitos da economia, numa luta meio gay de arranhões e gritinhos; assim como havia duques-debutantes e marquesas do progresso vestidos à Luís XV, e havia finalmente a grande frente PFL-PDC-PDS-PL-PRN, os Fisiológicos Sim!, que custei a traduzir para o caderninho de WB, que me dizia: "Sinto que todos aqui estão esperando uma revelação, um novo Cristo! O Brasil quer a Hiper!" E WB tinha razão, como vi logo depois.

 

O pacote final

A hora do Dia D acabava de soar. O edifício negro do Banco Central explodiu com grande fragor. Do meio da grande nuvem de fumaça surgiu a grande alegoria, o Pacote Final, com a extinção de todos os mecanismos de controle financeiro. Chegara finalmente a grande centopéia, a maldita para uns, a esperada para tantos, a Hyper Hyper para os modernos, a Verdade para todos. O ministro-bicheiro sabia o que o país queria. Enquanto todos caíam de joelhos, entre os gritos de euforia "Hosana! Hosana!" pude ver as anotações no caderno de WB, um pouco distorcidas talvez pela cola que ele cheirava sem parar, agarrado a seu menino de rua, seu buff, como ele chamava:

"Hyper hyper inflated'"... centopéia negra se ergueu no centro de Brasília como um Cristo-falo, um pau divino, um orgasmo religioso... chuva de sangue abençoava os brasileiros... reel penis traces arabesques in the blue sky: hyper! (pênis vermelho traça a hiperinflação no céu!)... "Kneeling men thanked shitstorm"(homens de joelho gratos à chuva de bosta)... os homens de joelhos agradeciam aquela bênção. A Hyperinflation era o Pacote Final!... "Truth tuas our secret vice"... (a verdade era nosso vício secreto.)... chegara a verdade da morte que todos queremos: a hiperinflação!

E a última frase traduzo mal: "Christ's blood streams in the spermament" (o sangue de Cristo escorre do espermamento).

 

 Os presidentes não saem; eles têm alta

Perdidos na solidão do presidencialismo, governantes acabam usando o país para tratar de sitas neuroses.

O Brasil virou uma espécie de centro terapêutico para tratar presidentes da República de suas loucuras. Estar no governo é uma psicanálise de grupo onde o presidente é o cliente e nós somos os terapeutas. Collor fez sua descida ao mundo esquizoparanóide da regressão total, pagou a dívida com o pai, saiu de jeans e teve alta. Os presidentes não saem; eles têm alta.

Já tivemos no passado o Jânio Quadros, que largou o tratamento no início, com muitos milhões sempre. (Nenhum deles rasga dinheiro.) Tivemos o Figueiredo, que governava como se fosse um favor profundo que nos fazia. A presidência para ele era uma espécie de ofensa pessoal. Chamado de presidente, ele espetava o dedo na cara do sujeito e gritava: "Presidente é você!"

Agora, Itamar está no diva. Se Collor era o maníaco ele é o depressivo. Seu jeito zen-mineiro, tocado de uma discrição provincial que enternecia de tão Guimarães Rosa que era, parece que ele também foi tocado pela santa loucura dos presidentes. Um dia, os analistas do futuro poderão dizer, de fronte alta: "O Brasil piorou, mas os presidentes melhoraram muito". Que santa demência é essa?

 

Patrimonialismo da alma

A clemência da presidência, ou esquizogovernança, é uma espécie de endemia rural que nos atinge há séculos como o mal de Chagas, ou o bócio. Esta loucura faz parte da irracionalidade arcaica brasileira, é lama do nosso tacho imemorial. Uma das causas principais é o que podemos chamar de patrimonialismo da alma. Ou seja, é o privado regendo o público no mundo psíquico. É o lado espiritual do latifúndio, é a aura fina, a anima do fisiologismo mais sutil que nos habita. Quando um Malta bate na barriga e suspira "Canapi sou eu!" isto é o patrimonialismo da alma. No patrimonialismo da alma (tese que eu lanço agora) não é o país que tem um presidente da República; é o presidente da República que tem o país. Não falo de "l'État c'est mói!" ou de ditadura; o país é uma coisa que os políticos conquistam por mérito, como uma medalha. O país o enobrece; ele não precisa enobrecer o país. O país é o clímax de seu processo existencial, o auge de sua carreira, o orgulho da mamãe, um prêmio Molière.

O presidente traça um futuro ideal para o país e se este lhe falha ele se irrita ou fica carente, ou prende e arrebenta, ou fica abatido. O fracasso do país é a vergonha da mamãe.

Itamar varia do irritado para o abatido.

Tudo o que não é ele são forças ocultas. Os presidentes (e políticos) brasileiros não se sentem pessoas públicas; o país é que lhes atrapalha a vida privada. O país é que vira como que uma prótese de seus lares, de seus desquites, seus cornos, seus humores, sua sexualidade. Nós viramos um puxadinho de suas casas, viramos agregadinhos de suas cozinhas, como nos bons tempos das casas-grandes. Isto é o patrimonialismo da alma, ou o latifúndio do coração, ou a glândula colonial. E a culpa é do sistema secular de donatários.

 

Irritado ou abatido

A pior forma de solidão é a Presidência da República. Cento e vinte milhões te olham com fome de roubo ou de feijão. E nesta contemplação se esvai a imprensa, a opinião pública, todos nos esvaímos na expectativa de que tenhamos sorte e o "presidente seja bom!", como negros no algodoal, como mendigos do pátio, como fiéis da gruta de Fátima. O que o presidente come hoje? Quem o presidente comeu ontem? Estava com cocô mole ou duro? Só existe o presidente, nosso amor e rancor. Somos habitados pela caspa do Jânio, pela hérnia do Figueiredo, a diarréia do Collor, o terçol do Itamar. Nada nos protege da loucura dos governantes. No caso-Itamar, o Brasil tem de ter cuidado para não irritar o presidente. Tudo o irrita ou abate. A miséria o irrita. A fome o abate. A tragédia do país passa a ser seu problema existencial. Se o país não melhorar, ele fracassa. E já vejo os alagados em pânico, os sem-terras pálidos de reverência: "Chut!... chora baixo, baixo! Vai irritar o presidente!" Se o presidente erra, torrando o saco de dois ministros da Economia em meses, foram eles que cometeram o erro de sair. Erra e põe a culpa em nós. Erra e fica abatido, vítima de uma injustiça que cometeu contra si mesmo. Ele erra e põe óculos escuros, para que não o vejam, como as avestruzes.

Agora, o Itamar está carente. E o país, compungido. Nos botequins, os bêbedos comentam: "Ih... coitado do Itamar... vocês tão acabando com esse homem!"... Collor queria nos estuprar com a modernidade, vestir roupa espacial nos gabirus.

Itamar sofre porque o país não cabe no modelo agropastoril que ele tanto ama.

Collor sofria de ansiedade, Itamar de nostalgia.

 

Personalismo e Centrão

Mas este lírico abatimento de incompreendido esconde também um autoritarismo. Nem tanto dele, mas do país que o habita, desta democracia interior dele cozida em quatro séculos de mal-entendidos. Nosso discurso é sempre liberal, mas o interior é personalista. Dentro da cabeça mora um ditador, seja ele guimarãesrosiano ou 2001, e nos lábios (só nos lábios) rola o lero-lero liberal. Há um Fujimori em cada Afonso Arinos; somos liberais com um tédio mortal do nosso fingimento.

E não há saída deste terror pendular; se sai o autoritário, surge o fisiologismo, com o qual no Brasil o liberalismo se confunde. É sempre o eterno roteiro dos presidentes: entram botando banca e vão deslizando docemente para a gorda vala comum do Centrão. Assim foi Sarney, assim foi Collor, assim será Itamar. Entre o personalismo defensivo e o arromba-mento fisiológico o coração balança. No caso de Itamar, ele chega ao delírio de se dissociar do cargo que ocupa, como se ele fosse visto por um outro Itamar que está fora, um juiz de fora (perdão!). E um ataca o outro. Ele cria crises para si mesmo, criticando como povo seu outro como presidente. É a esquizogovernança. É um populismo contra si mesmo, um populismo masoquista, que não beneficia o demagogo, mas o destrói. Um anti-Ademar de Barros, um contra-Alkimim.

 

A tentação de Fujimori

Por que isso? Porque Itamar é mau, ou fascista, ou louco? Não; porque tanto ele (soft) como Collor (hard) encarnam a inviabilidade de um sistema político. Nada protege os presidentes da loucura do país. No topo de uma pirâmide insolúvel, feita de interesses imexíveis e contraditórios, fies são corroídos pela loucura de um país ingovernável. O poder virou apenas a ilusão de que ele existe. Um bale com função simbólica. No caso clínico Collor, a Casa-Grande assalta a Senzala e foge. No caso-Itamar, ele-Senzala critica-se como Casa-Grande. Há no Brasil hoje a utopia pós-pós de que a Senzala vai progredir e a Casa-Grande abrir seu coração, pela mágica do diálogo moderno. Oh, suave ilusão! A política pós-pós quer ignorar o obstáculo da luta de classes e resolver tudo pela racionalidade clean. Jamais. Jamais este país avançará se não houver forças para acabar com os quatro interesses do apocalipse: a oligarquia rural, os oligopólios industriais, as multinacionais ditando preços e o Estado inchado. Quem tem cacife?

E este impasse faz surgir a deliciosa tentação da ditadura. Dentro da alma, a ditadura começa. O ovo da serpente se choca no coração dos generais de pijama. A democracia está sendo desmoralizada. Vinte milhões vivem do adiamento da vida de cem milhões. Pode estar pintando um Fujimori no horizonte.

 

Nelson Rodrigues fala ao telefone intemporal

 

Em uma conversa de imaginação e verdade, frases inéditas deste intérprete do óbvio brasileiro.

— Alô? (digo eu, ouvindo a voz de Nelson Rodrigues.)

— Rapaz! Você atendendo ao próprio telefone, como contínuo de si mesmo!

— Que que eu vou fazer, Nelson... não sou rico como você...

— Rico nada, rapaz, se você vir um sujeito tocando acordeom na rua do Ouvidor pode dar esmola que sou eu...

— Imagina, Nelson... você está bem... (todos os nossos telefonemas começaram assim, sempre, quando Nelson era vivo. Ele continua igual.)

(Citando Eça) — E eu sou um pobre homem da Aldeia Campista. Você é que é rico. Você é o Cecil B. de Mille. Quanto você ganhou com o cinema?

(Eu citando Eça) — Ainda tenho um pouco de pão e manteiga para lhe barrar por cima... (como antes, conversávamos minutos só com frases do Eça de Queiroz, que ele lera muito.)

— Mas, afinal, teu último filme ficou bom ou não? Não tive tempo de ver...

— Acho que ficou razoável...

— Mas, qual é a opinião do assaltante?

— Que assaltante?

— O sujeito, rapaz, que assalta o outro na Cinelândia, foge da polícia e se esconde no cinema pra não ser preso. E vê o filme. Se ele gostar, o filme é bom; se não, é ruim. O assaltante é o grande crítico.

"Eu sempre escrevi para o assaltante. Uma vez prenderam vários assassinos que estavam com a luz acesa no esconderijo lendo A vida como ela é."

— Mas uns críticos dizem que sua obra empobreceu nos jornais. Só gostam das peças metafísicas...

— Em qualquer peça que escrevi está sempre a gíria ali presente. No meio da tragédia grega tem sempre a vizinha gorda e patusca. Acham que eu empobreci meus textos... umas bestas... se soubessem o esforço que eu faço para empobrecê-los. O problema do intelectual brasileiro é a pose. Todo sujeito quer ser estátua, o vendedor de chicabom quer ser medalha. O problema do literato no Brasil é que ele não sabe bater um escanteio. Disseram que minhas peças não são perfeitas.

— Ei';, eu não gosto do final do Beijo no asfalto, por exemplo.

—  Rapaz... que é isso? A obra de arte tem de ser imperfeita... o que estraga a obra de arte é a unidade.... O sujeito fica falando em forma; o assunto é o autor do autor!

— Mas a grande literatura... isso seria para a classe média...

— Que classe média, rapaz! O Homem é de classe média... O Shakespeare representava para carroceiros e prostitutas em terrenos baldios. Tinha sempre uma cabra vadia assistindo ao Hamlet. O Romeu e Julieta é uma fotonovela do Grande Hotel...

—  Isso é verdade... A maior cena de O casamento é quando o Xavier, o barnabé, mata a amante no escritório do senador Dantas no fim do expediente e, com a faca sangrando no bolso, sai na portaria e o zelador grita para ele: "Teu Fluminense vai mal, hein!" E ele diz: "Vai melhorar..." e sai chorando na noite do Rio.

— F. vai comer empadas no botequim...

— Teus artigos de jornal vão ser todos republicados em livros.

— Eu achei o livro do Ruy Castro bom á beca. Ele é uma cambaxirra doce... Mas ele me protegeu muito... Lendo o livro eu fiquei com a nostalgia profunda por mim mesmo. Ele disse quase tudo. Só uma coisa ele não disse: que o maior desejo do ser humano é morrer.

— Freud dizia isso...

— Dizia onde? Freud é uma besta... Ele achava que curava o ser humano. Só os neuróticos verão a Deus. Se você tirar o sentimento de culpa do homem, ele cai de quatro patas e começa a urrar no bosque. A culpa é a nossa salvação.

—  Mas se o homem não se livrar da culpa, ele não se liberta... porque o...

— Pronto, lá vem você com o marxismo... O marxismo nunca vai vencer a burrice, rapaz; a burrice é a pedra da Gávea, é uma força da natureza...

— Mas o comunismo acabou...

— Acabou? Na batata?

— É. Agora é a pós-modernidade...

— O que é isso?

— Bem... é... o fim das esperanças...

— Rapaz... o mundo sempre foi pós-moderno... vocês deviam se abaixar e beber na sarjeta da pós-modernidade... É a sua salvação... rapaz... a falta de esperança...

"As pessoas não sabem que o Marx era genial onde ninguém viu. Ele dava importância aos botequins da Alemanha, aos bifes, aos mortos de fome... Quiseram fazer dele um abstrato. Ele sempre foi pós-moderno.

"O brasileiro está agora livre do lero-lero, e pode ver melhor que sempre foi um pé-rapado. Se ele não reconhecer isto, está frito. O brasileiro tem de assumir a própria miséria, a própria lepra... Assumam a própria miséria, ela é a salvação."

— Pode ser um projeto...

— Que projeto, rapaz, não seja profundo; seja burro. O problema do brasileiro é que ele quer ser profundo. Uma vez veio um diretor de teatro aqui almoçar comigo. Queria montar a Dorotéia. Foi profundo... falou... falou... E na saída, rapaz, eu vi que ele roubou uma manga da sobremesa e botou no bolso pra levar para a mulher dele... rapaz... isto é o teatro brasileiro!

"Eu sou contra a pose. O brasileiro é o brasileiro, pronto. Se ele quiser ser húngaro ou japonês é uma tragédia. O pior é que o japonês está contente por ser japonês, o americano eufórico por ser americano. Só o brasileiro odeia a própria imagem, como um Narciso às avessas. Vejam o caso do Collor...."

— Você sabe disso?

— Eu acompanho, acompanho... Ele queria ser do Primeiro Mundo e o que aconteceu? Por causa da cunhada, e foi só por isso, pelo infinito ciúme do irmão, foi tirado do poder e agora está amarrado ao pé da mesa, bebendo água numa cuia de queijo Palmira. Ele quis ser o Churchill e acabou como o Palhares, o que não respeita nem as cunhadas. O que é isso? Quis deixar de ser brasileiro. Eu, quando passo além do Méier, já começo a sentir uma nostalgia brutal pelo Brasil.

— E o Brasil de hoje, Nelson?

— O país estava precisando de um banho de óbvio. Só os profetas enxergam o óbvio. E o óbvio está aí. Já é bom.

 

Carnaval traz utopia sexual de alegria

Antes, conquistávamos a festa anual do Carnaval; hoje, ele nos acontece como uma alegre calamidade obrigatória.

Há muitos anos, a terça-feira gorda no Rio era o dia do desfile das sociedades carnavalescas, com seus carros alegóricos. Tinham nomes góticos e românticos como Pierrôs da Caverna, Tenentes do Diabo, Fenianos, e meu pai me levava pela mão e eu olhava um imenso carro (seria imenso mesmo, na escala da minha infância?) que era um despotismo de cachos de banana com uma mulher morena seminua no alto. Os pais de família, as mulheres de família (todo mundo era de família), todos diziam, apontando: "Olha a Elvira Paga!... Olha a Elvira Paga!"

Naquele ano remoto, Elvira Paga queria provar alguma coisa. Ela não era apenas uma vedete de palco. Algumas como ela (Luz del Fuego e outras) transcendiam o palco e viravam o símbolo vivo de alguma loucura no ar, de algum desejo reprimido no coração das famílias. Eu olhava em volta e via nas mães a inveja infinita e escandalizada, e via no meu pai um olhar que eu não conhecia, o desejo por uma liberdade espantosa. Havia naquela nudez uma coragem que hoje não vejo mais.

 

As mulheres nuas

Hoje, vejo esta cornucopia de mulheres nuas nas escolas de samba, que não têm mais o que despir, e lembro de Elvira Paga como uma precursora de todas elas. Hoje elas travam uma competição delirante de bundas e coxas e seios. Que mostrarão no futuro? Onde se escondem durante o ano, com toda esta bravata de liberdade? Que querem elas provar do alto de sua imensa euforia? Que querem elas? Querem nos levar para o fundo do mar, como as sereias de Ulisses? Querem nos provar que o sexo resolverá os problemas do Brasil? São políticas ou decaídas? Querem nos comer até a morte? Querem que nos esvaiamos em sôfregas punhetas? Querem provar que nossas vidas são escuras e mesquinhas? Querem dizer que somos tristes? Querem humilhar nossas esposas, destruir nossos lares? Ou querem a imortalidade nua?

Há qualquer coisa de lancinante e agônico nessas mulheres nuas. Rosnarão alguns: "Está com inveja. Está querendo cair na gandaia e não pode. A mulher não deixa!" Talvez, talvez; mas não é só isso. As mulheres alegóricas de hoje se oferecem numa violência de curvas e volutas, numa desenfreada onda de rebolados, numa volúpia (lembrei de Eros Volúsia, outra pioneira) de vertigens, num excesso de oferta que inviabiliza qualquer sexo. Tanta é a oferta que cai a demanda. Há uma fartura de dádiva que, de alguma forma, torna impossível a satisfação. Há qualquer coisa de errado nesta oferta panorâmica de sexo. Lembro do marquês de Sade que, num êxtase saciado, gritava na Philosophie dans le boudoir. "Dressez-moi un panorame de fesses!" ("Montem-me um panorama de nádegas!")

 

O sexo via satélite

A conquista total de todas as barreiras tirou da nudez seu traço de liberdade. Há algo mais que alegria naqueles bacanais aéreos de tantos corpos nus. Tanta pletora acaba anulando a orgia. Tanta é a liberdade, que só podemos pensar em moral. Choca-me (ouso dizê-lo) fazer parte de um país cujo símbolo é o rabo das mulheres. Choca-me ver nossas filhas esfregando o sexo na lente das televisões. Que é isso? É o ato sexual virtual, via satélite? Não há francesas, italianas ou alemãs ou polacas fazendo este elogio mítico da sexualidade. Inclusive mentirosa, porque ninguém é tão sexy assim no mundo. Atenção: meu choque não é moral; é político. O que tentamos vender ao mundo? Que história é essa que se instalou no país que nossas mulheres são mais eróticas que as de lá, que nós viramos uma espécie de curiosa sodoma de subdesenvolvidos eróticos. Exportamos travestis e importamos turistas para se repastar em nossas mulatas? Só isto nos restou?

Mas não quero atacar este bordel luxuriante que o Brasil virou. O que interessa é que havia antes um Carnaval real e que hoje há um Carnaval virtual. Não; não é bem isso. O que interessa é que há um tal surphus de devassidão no país o ano inteiro, que quase se começa a desejar um Carnaval moralizado. Sou bem sem-vergonha, mas quase que os panoramas de nádegas se oferecendo viram uma redundância do país do ano todo. Que liberdade, que alegria é essa que ninguém tem durante o ano? Fascina-me pensar o que estas mulheres me prometem. Sexo infinito? Sexo total, êxtase absoluto?

 

Alegria ontem e hoje

O último grande momento da arte brasileira maior foi quando Joãozinho Trinta soltou os ratos e urubus na rua, com os mendigos e o Cristo embalsamado no lixo. Isso foi um momento épico de genialidade crítica, como o foi o seu outro momento do luxo paródico e desmesurado. Essas mulheres não estão fazendo manifesto político, como fez inconscientemente a Elvira Paga para o meu pai e meus olhos deslumbrados de volta ao futuro em 1950, sei lá eu.

O Carnaval de antes era o resultado de uma alegria que ia crescendo pouco a pouco. Alegria que começava a se formar com as cigarras de dezembro (ao menos no Rio), crescia com os flamboyants e o céu azul durante os meses do verão, ressoava nas marchinhas e sambas de enredo decorados em janeiro, se antevia nas avenidas sendo enfeitadas e acontecia de repente em fevereiro, numa debandada de perfumes e serpentinas. Havia uma alegria comemorável no país.

Antes, tínhamos a sensação de que se chegava a um Carnaval, que o Carnaval culminava alguma coisa. Construíamos um Carnaval; hoje o Carnaval chega pronto. O Carnaval era uma revelação, uma conquista; hoje, o Carnaval esconde qualquer coisa. Falta um certo minimalismo no Carnaval; perdeu-se a delicadeza do detalhe. Somos esmagados por uma avalancha de imagens e corpos nus, e vemos com espanto o desconforto das multidões nos blocos. Há qualquer coisa de calamidade pública no Carnaval de rua; há algo de desesperado em certas alegrias.

Há um grande silêncio antes e depois do Carnaval. Para onde vai tanto sexo? Para onde vai tanta alegria depois? Devia restar, sobrar um pouco mais. O Carnaval virou mais um grande espasmo de exorcismo de tragédia que uma genuína celebração.

E toda esta violenta massificação de alegria me faz lembrar que eu carrego na alma alguns momentos que amo (como a tarde de maio do poema de Drummond), alguns momentos que levo comigo como o sabor dos bolinhos madeleine de Proust, momentos como o súbito odor de lança-perfume que passava em debandada na chuva da avenida e, certamente, a lembrança do lindo corpo nu de Elvira Paga, que ia na proa de um navio cheio de luzes e música, sozinha, se oferecendo, singrando entre as multidões de classe média em direção a hoje.

 

O Brasil ainda tem muito a desaprender

Mais que avaliado por décadas boas ou más, o país precisa medir seus avanços pelo que sobra dos erros cometidos.

Janis Joplin chegou para mim no Bar Varanda em Salvador, Bahia, 1970, e me perguntou: "Where can we get some fun around here?" Olhei atordoado a grande musa que tremia à minha frente (ela tremia, a Janis Joplin parecia batida por um grande vento), e a seu lado um americanão forte me olhava, com um lenço tipo Cazuza na cabeça e uma bandagem de gaze no braço tapando a veia, onde uma mancha de sangue aflorava. Tinham se picado e queriam diversão. Eu balbuciei "música negra", "candomblé", e eles não queriam nada; queriam barras mais pesadas e eu acabei levando-os para o Meia-Três, o puteiro mais babilônico da Bahia, na ladeira da Montanha, e Janis Joplin bebeu cachaça pura a noite toda com as mulheres. O Meia-Três era realmente espantoso; com vários andares, pelas largas frestas se viam as mulheres e seus fregueses, e era tão grande a multidão de devassos que tudo aquilo parecia a ilustração de prostíbulos de guerra. Tudo era árido, desossado de amor e romantismo, e Janis Joplin caía de porre e cantava uns pontos de candomblé com uma putinha oxigenada e eu via entrar na minha vida a década de 70, que até hoje tem esse cheiro de romantismo com desespero, de sujeira com perigo. A propósito da reportagem sobre os Anos 70 publicada no caderno Mais! da Folha de São Paulo, acho que década não existe; existe é o rio de porradas entre ilusão e realidade.

Meses depois, estou em Vila Isabel ao lado de Stuart Angel Jones, que me diz dentro do carro onde o levo com dois outros guerrilheiros feridos e sangrando para um aparelho oculto (foi minha única ajuda à guerrilha urbana): "Se eu for preso, não digo nem meu nome!" Foi preso e não disse; morreu arrastado com o rosto amarrado no cano de descarga de um jipe, diante da tropa formada de um quartel.

 

LSD político

Aqui o 'hippismo' da década de 60 chegou mesclado com dor e política, machucado, como uma flor pisada. Aqui, a contracultura nunca teve o momento feliz de Londres ou San Francisco, porque a revolução de 64 já tinha estragado tudo. Aqui, só fomos aderir à contracultura como uma espécie de vingança masoquista frente à repressão militar de 68. Até lá nunca tivéramos a pureza floral dos hippies americanos. Caímos nas dunas da Gal em 1970 como uma retaliação ao racionalismo fracassado dos comunas que nos levou à repressão e tortura. Tomava-se LSD sem grandes esperanças metafísicas. Sempre achei arbitrária a divisão do Brasil em décadas. Isto é uma regra americana, pois estamos sempre meio atrasados. O Brasil sempre tentou acertar horas com o relógio alheio, jamais nos minutos ou dias, mas sempre nas famosas décadas. O que sempre deu errado.

 

Progresso e porrada

Sempre quisemos pateticamente caber nos 'hippismos' da vida, nos 'yuppismos' da vida, quando nosso mundo sempre foi outro. Enquanto John Lennon decretava que o sonho tinha acabado (o sonho de pureza psicodélica), o que acabava aqui era a vida do Stuart Angel Jones. De um lado, tínhamos a repressão sangrenta, e de outro o delirante progresso do milagre que criou o ABC, o Lula, entre outras coisas. Superlisérgico este início de década: progresso e porrada.

De modo que década não mede nada. O que sempre houve no país foi uma desmontagem contínua de ilusões históricas. Ilusões perdidas em marcha a ré. O Brasil parece ter uma história hegeliana de costas, evoluindo pelo que perde e não pelo que ganha. Sinto que o Brasil se descobrirá por subtração, não por soma. Chegaremos a uma idéia de país quando as desilusões chegarem a um ponto zero. Então, ao rés do chão, vazios, raspados de qualquer sonho, descobriremos que este mínimo, este resto somos nós. E não me refiro ã idéia de Roberto Schwarz de que importamos idéias. Não; são as realidades dos outros que nos tomam. Não importamos nada. E à força de tanto falir, faremos fortuna.

A resistência que temos hoje em dia em adotar a cartilha neoliberal talvez deixe no fundo do tacho a água de barrela do que devemos fazer, já que eu não falo de identidade, mas de programa. O mineirismo desconfiado de Itamar Franco e de Paulo Haddad talvez filtre o delírio da década atual e deixe só o que interessa a nós. Não acho que isso seja mim; é nosso destino de barrocos enganados. Sinto que estamos chegando agora a uma idéia mínima de Brasil que permite uma operacionalidade. Depois de uma década de erros (80 foi uma década inepta onde tentamos aprender a governar), alguns parâmetros ficaram claros. A França, ou Alemanha, sei lá, tem um diagrama de funcionamento social que permite uma operatividade qualquer. Diante da demanda histórica, estes aparelhos funcionais são testados; encaixam ou não. Nosso problema tem sido que nada encaixa, nada engrena, nada rola. Apesar disso, parece que estamos chegando a uni mínimo de eficácia funcional, mas o custo social disso é altíssimo. Quantos milhões de atrofiados (50 milhões?) nordestinos teremos de produzir para chegar à idéia de irrigação? Quantos séculos de mortos de fome para chegarmos à consciência de que a classe dirigente nordestina é a escória da humanidade? A lentidão pendular dos interesses conciliatórios, os ritmos patrimonialistas seculares nos obrigam a este imenso desperdício de tempo e de vidas. Por isso, quando a Janis Joplin morreu, pouco depois que eu estive com ela no puteiro mais famoso da Bahia, Stuart Angel morreu também e eu senti uma dor diferente. Stuart morreu por um nada que ele jamais atingiria; Joplin morreu por uma abundância recusada. Um morreu ansiando por um sistema. A outra morreu por recusa, por excesso. São mortes diferentes, mortes de décadas que não se casam. Morreram em dimensões diferentes, em dois mundos paralelos. Uma morreu num futuro odioso, outro no terrível presente do nada brasileiro. O tempo não é o mesmo num espaço de miséria e num espaço de riqueza. Time is money.

 

Sobras de nós mesmos

O mais apavorante é a sensação/certeza de que nos últimos 30 anos tudo que aconteceu de concreto no Brasil nasceu muito mais de determinismos econômicos externos do que de nossas idéias ou desejos políticos. Somos muito mais filhos do resultado que sobrou entre o invasivo e o desejado. Somos a sobra de nós mesmos.

Assim, só pode nos interessar o que fazemos do que fizeram conosco. Exemplo: o capital externo expandido dos anos 70 criou a dívida externa pavorosa, mas também o ABC de São Paulo. A estupidez geiseliana criou as usinas mortas de Angra, mas também permitiu a imensa originalidade política do Lula da primeira fase. Na cultura, o tropicalismo foi a mesma coisa; da invasão fez invenção. Ambos foram antropofágicos. Caetano foi o Lula do ABC da música. Ambos são bastardos legítimos de um progresso que não planejamos.

Seculares fisiológicos, patrimonialistas, escrotinhos, arrogantes, malandrinhos, ignorantes, megalôs, só nos resta pensar: o que falta desaprendermos para chegar à idéia de um país? Como faremos para chegar ao futuro de uma desilusão? Talvez nosso progresso pudesse ser medido não em décadas, mas sim em taxas referenciais de desilusões, TRDs do progresso, UFIRs do tempo, que nos levassem a medir o quanto conseguimos desaprender de tantas bobagens que cultivamos.

Mas vamos fazer uma última concessão às décadas.

Acho que nos anos 60 desaprendemos a fé numa revolução mágica e fácil.

Nos anos 70, desaprendemos o voluntarismo masoquista da contra-cultura, artística ou guerrilheira, que desmanchou no ar.     

Nos anos 80, desaprendemos nossa crença ingênua de que a simples democracia formal bastaria para nos salvar, quando um micróbio na barriga de Tancredo pôs tudo a perder. Que falta desaprender nos anos 90?

 

                                                                                            Arnaldo Jabor  

 

                      

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