Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS DESASTRES DE SOFIA / Condessa de Ségur
OS DESASTRES DE SOFIA / Condessa de Ségur

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS DESASTRES DE SOFIA

 

                   A boneca de cera

- Venha depressa, venha depressa -dizia um dia Sofia, entrando, a correr, no quarto da criada-, venha abrir uma caixa que o papá me mandou de Paris; creio que é a boneca de cera que me tinha prometido.

CRIADA - Onde está a caixa?

SOFIA - Está lá dentro, venha depressa, por amor de Deus!

A criada pousou a costura em que trabalhava, e seguiu Sofia. Uma caixa de madeira branca estava pousada numa cadeira; a criada abriu-a. Dentro via-se a cabeça loira e encaracolada de uma linda boneca de cera. Sofia soltou um grito de alegria. Quis logo pegar na boneca, ainda envolta em papéis.

CRIADA - Tome cuidado! Não puxe, por enquanto, vai partir tudo. Olhe que a boneca está ainda presa por cordões.

SOFIA - Parta-os, arranque- os; depressa, quero a minha boneca.

A criada, em vez de arrancar os cordões, pegou numa tesoura e cortou-os, depois desembrulhou os papéis, e Sofia pôde pegar na mais linda boneca que já vira. Tinha as faces rosadas, com duas covinhas; os olhos azuis e brilhantes; o pescoço, o peito e os braços de cera, rechonchudos, encantadores. O seu vestido era simples, de cambraia recortada, com um cinto azul; calçava meias brancas e sapatinhos de verniz preto.

Sofia beijou-a mais de vinte vezes, pegou nela ao colo e pôs-se a dançar e a cantar. Seu primo Paulo, que tinha cinco anos e estava de visita em casa de Sofia, acorreu ao ouvir-lhe os gritos de alegria.

-Paulo, olha que linda boneca me mandou o papá! -exclamou Sofia.

PAULO - Dá-ma, para eu a ver melhor.

SOFIA - Não, és capaz de a partir.

PAULO-Não parto, está descansada. Dou-ta já.

Sofia deu-lhe a boneca, recomendando-lhe mais de uma vez muito cuidado, não a deixasse cair. Paulo mirou-a e remirou-a por todos os lados; depois entregou-a a Sofia, abanando a cabeça.

SOFIA - Porque abanas a cabeça?

PAULO - Porque não é uma boneca sóli da. Receio muito que dês cabo dela em pouco tempo.

SOFIA - Oh! estás enganado! Hei-de ter tanto, tanto cuidado com ela, que nunca a partirei. Vou pedir à mamã que convide a Camila e a Madalena para merendarem connosco. Quero que elas vejam a minha linda boneca.

PAULO - E elas partem-ta.

SOFIA - Não partem, são muito boazinhas. Não iam dar-me esse desgosto.

No dia seguinte, Sofia penteou e vestiu a boneca, e pôs-se à espera das suas amigas. Fitando a boneca, pareceu-lhe um tanto pálida. Talvez, disse ela, ténha frio; tem os pés gelados. Vou pô-la ao sol, para que as minhas amigas vejam o cuidado que tenho com a minha boneca, e como a trago quentinha. E Sofia foi pôr a boneca ao sol, à janela da sala.

- Que estás tu a fazer à janela, Sofia?perguntou-lhe a mamã.

SOFIA - Estou a aquecer a minha boneca, mamã. Tinha muito frio.

MAMÃ - Toma cuidado. Olha que ela derrete-se.

SOFIA - Oh mamã, não tenha medo! é dura como pedra.

MAMÃ - Mas o calor fá-la mole. Vais estragá-la, previno-te.

Sofia não fez caso, e deixou a boneca exposta ao sol, nesse dia quentíssimo.

Nesse instante ouviu as rodas de um carro: eram as amigas que chegavam. Correu ao encontro delas; Paulo já as esperava ao portão. Entraram a correr e a falar todas ao mesmo tempo. Apesar da impaciência de verem a boneca, começaram por cumprimentar a Sr. a Rean, mãe de Sofia; em seguida aproximaram-se de Sofia, com a boneca ao colo, para a qual olhava consternada.

MADALENA (olhando a boneca)- A boneca é cega, não tem olhos.

CAMILA - Que pena! Era tão bonita!

MADALENA - Mas como foi que isso aconteceu? Havia de ter olhos com certeza!

Sofia não dizia palavra; chorava, de olhos postos na boneca.

  1. A REAN - Eu bem te tinha dito, Sofia, que aconteceria uma desgraça à boneca, se a deixasses ao sol. Felizmente, a cabeça e os braços não tiveram tempo de se derreter. Vamos, não chores mais; eu sou um bom médico, e vou arranjar-lhe os olhos.

SOFIA (chorando) - É impossível, mamã. Pois se eles desapareceram!

A Sr. a Rean pegou na boneca, sorrindo, e sacudiu-a; qualquer coisa lhe chocalhou na cabeça.

-São os olhos que fazem este barulho, ouves? - disse a Sr. a Rean. - A cera derreteu-se em volta dos olhos, e eles caíram. Vou ver se os consigo arranjar. Dispam a boneca, minhas filhas, enquanto eu preparo o que é preciso!

Paulo e as meninas precipitaram-se sobre a boneca, para despi-la. Sofia já não chorava; esperava, impaciente, o que ia acontecer.

Quando a mamã voltou, pegou na tesoura e descoseu o corpo da boneca; os olhos caíram-lhe no regaço; ela pegou-lhes com

uma pinça, colocou-os no seu lugar, e, para que não voltassem a cair, deitou-lhes umas gotas de cera derretida que trouxera numa caçarola. Quando a cera estava dura, coseu o corpo da boneca.

As pequenas não se tinham mexido. Sofia olhava, receosa, todas estas operações, com medo do resultado; mas quando viu a boneca consertada, tão bonita como dantes, saltou ao pescoço da mamã, beijando-a mil vezes.

- Muito obrigada, minha querida mamã - dizia ela -, obrigada: para a outra vez ouvirei com atenção o que me disser.

Vestiram rapidamente a boneca, e, sentando-a numa cadeirinha, levaram-na em triunfo, cantando:

Viva a mamã!

Quero-a beijar, beijar. . Viva a mamã!

O anjo bom do lar.

A boneca viveu muito tempo, querida e bem tratada; mas pouco a pouco foi perdendo a graça. Vejamos como.

Um dia, Sofia pensou que se as crianças tomam banho, as bonecas também o devem tomar; arranjou água, uma esponja, sabão e pôs-se a lavar a boneca com tanto entusiasmo, que a deixou sem cor: as faces e os lábios ficaram descorados, como de uma menina doente. Sofia chorou, mas a boneca ficou pálida para sempre.

De outra vez, Sofia lembrou-se de frisar os cabelos da boneca; foi buscar um ferro e pô-lo a aquecer, para que ficassem bem frisados. Mas o ferro aqueceu de mais. Quando o levantou da cabeça da boneca, os cabelos vieram-lhe agarrados. Sofia queimara os cabelos da boneca. A pobre estava calva. Sofia chorou, mas a boneca ficou careca.

Outro dia ainda, Sofia, que se preocupava muito com a educação da sua boneca, quis ensinar-Lhe ginástica. Suspendeu-a pelos braços a uma guita; a boneca, que não estava bem segura, caiu e quebrou um braço. A mamã consertou-o; mas, como faltavam bocados, o braço ficou mais curto do que o outro. Sofia chorou; a boneca, porém, ficou maneta.

De outra vez, Sofia pensou que banhos aos pés deviam fazer bem à boneca, visto as pessoas também os lavarem. Deitou água a ferver numa banheira e mergulhou nela os pés da boneca. Quando os retirou estavam derretidos. Sofia chorou, mas a boneca ficou sem pés.

Depois de tantas desgraças, Sofia deixou de gostar da boneca, que estava medonha, e era alvo da troça de todas as amigas. Por fim, um dia, Sofia quis ensinar a boneca a subir às árvores: fê-la subir a um ramo e sentar-se; mas a boneca, que não estava bem segura, caiu; a cabeça bateu numa pedra e fez-se em mil bocados. Sofia, desta vez, não chorou, e convidou as suas amigas a virem enterrar a boneca.

 

                   Enterro

Camila e Madalena vieram de manhã para enterrar a boneca: estavam encantadas com a brincadeira. Paulo e Sofia não se sentiam menos satisfeitos.

SOFIA - Venham depressa, meninas, estávamos à vossa espera para enterrar a boneca.

CAMILA - Onde a meteremos?

SOFIA - Eu tinha uma caixa velha, e a minha criada forrou-a com seda cor-de-rosa. Está muito bonita, venham ver.

As meninas correram ao quarto da Sr. a Rean onde a criada acabava o colchão e o travesseiro para porem na caixa. As meninas admiraram essa obra de arte, e quando tudo estava pronto meteram a boneca na caixa. Para se não ver a cabeça partida, os pés derretidos e o braço aleijado, cobriram-na com uma colcha de seda, também cor-de-rosa.

Puseram a caixa num andor que a Sr. a Rean mandara fazer. Todas o queriam levar, coisa impossível, pois só havia lugar para duas pessoas. Depois de alguns empurrões e discussões decidiram que seriam Sofia e Paulo, os mais pequenos, quem levaria o andor. Camila e Madalena iriam, uma à frente, outra atrás, com ramos de flores, para deitarem na cova.

Quando a procissão chegou ao jardim de Sofia, pousaram no chão o andor com os restos da infeliz boneca. Fizeram uma cova dentro da qual depuseram a caixa, cobrindo-a de flores e, em seguida, com a terra que dela tinham tirado; depois de tudo arranjado, plantaram um lilás em cima. Para terminar a festa correram ao tanque a encher os seus regadores, e regaram o lilás. Deu isso lugar a novas brincadeiras e gargalhadas, pois regavam as pernas uns aos outros. Havia gritos e correrias. Nunca se tinha visto um enterro tão alegre! É verdade que a morta era uma pobre boneca, desbotada, sem cabelos, sem pés e sem cabeça, que ninguém chorava. O dia terminou alegremente. Quando Camila e Madalena se foram embora, pediram a Paulo e Sofia que quebrassem outra boneca, para fazerem novo enterro, tão divertido como aquele.

 

                   A cal

Sofia não era obediente. A sua mamã tinha-a proibido de ir sozinha ao pátio, onde os pedreiros construíam uma capoeira para as galinhas, os pavões e os galinhos da Índia. Sofia divertia-se a ver trabalhar os pedreiros; quando a mamã lá tinha de ir, levava-a sempre consigo, mas recomendava-Lhe que não se afastasse dela. Sofia, que gostava de andar à solta, perguntou-lhe um dia:

Porque não quer a mamã que eu vá ver os pedreiros, sozinha? Porque é que me obriga a estar sempre ao pé de si?

MAMÃ - Porque podes apanhar com alguma pedra ou algum tijolo. Além disso há por lá cal e areia, onde podes escorregar e magoar-te.

SOFIA - Oh mamã! Eu tenho muito cuidado. E a areia e a cal não fazem mal nenhum.

MAMÃ - Assim o julgas porque ainda és pequena, mas eu sei muito bem que a cal queima.

SOFIA - Mas, mamã...

MAMÃ (interrompendo-a) - Vamos, cala-te; não respondas tanto. Sei melhor do que tu o que te pode fazer mal. Não quero que

vás ao pátio sem mim.

Sofia baixou a cabeça, sem dizer palavra, mas ficou amuada e a pensar consigo mesma:

Hei-de ir, divirto-me lá, hei-de ir! Não tardou que tivesse ocasião de ser desobediente.

Uma hora depois, o jardineiro veio chamar a Sr. a Rean para ver uns gerânios que lhe queriam vender. Sofia, ao ver-se só, olhou para todos os lados, a verificar se alguma das criadas a podia ver. Não sentindo ninguém, correu à porta, que abriu, e fugiu para o pátio; os pedreiros, entretidos com o seu trabalho, não deram por ela. Sofia pôs-se a vê-los trabalhar e a mexer em tudo. Foi assim que se aproximou de uma cova cheia de cal branquinha e densa, como se fosse nata.

Que branca é a cal! Que linda disse ela, de si para consigo. Nunca a tinha visto tão de perto; a mamã nunca me deixa aproximar dela. É tão lisinha! Deve ser tão bom passear por cima dela! Vou atravessar a cova a escorregar, como se fosse gelo.

E Sofia, supondo a cal sólida, pôs-lhe um pé em cima. O pé enterrou-se; para não cair, pousou o outro e enterrou-se até aos joelhos. Um pedreiro, que a ouviu gritar, correu para ela e tirou-a do atoleiro, exclamando:

- Tire depressa os sapatos e as meias, menina; olhe que já estão todos queimados. Se os não tira depressa a cal queima-lhe as pernas.

Sofia olhou para os pés e viu que, apesar da cal ainda agarrada, sapatos e meias estavam já a ficar negros. Então, ainda mais gritou. A cal começava a queimar-lhe as pernas. A criada, que felizmente não estava longe, acudiu aos seus gritos. Vendo o que tinha sucedido, tirou-lhe rapidamente os sapatos e as meias, limpou-lhe as pernas e os pés ao avental, e, pegando nela ao colo, levou-a para casa.

No momento em que entravam chegava a Sr. a Rean em busca de dinheiro para pagar as flores.

- Que aconteceu? - perguntou ela, in quieta. -Magoaste-te? Porque estás descalça?

Sofia, envergonhada, não respondia. A criada contou então à Sr. a Rean o que acontecera. Felizmente chegara a tempo de evitar que Sofia queimasse as pernas com a cal.

- Se eu não estivesse tão perto do pátio, não tinha chegado a tempo. A esta hora a menina estava aí com as pernas no estado em que eu tenho o avental. Olhe para ele, minha senhora; todo ele é buracos.

A Sr. a Rean olhou o avental da criada todo inutilizado. Voltando-se para Sofia disse-lhe:

- Devia dar-lhe açoites, menina, pela sua desobediência; mas Deus já a castigou. Bom susto lhe pregou! O castigo que lhe dou é entregar-me o dinheiro que lhe tinha dado para os seus brinquedos; será para comprar um avental novo à sua criada.

De nada serviu a Sofia chorar e pedir misericórdia; a mamã tirou-Lhe o dinheiro e deu-o à criada. Sofia, por entre lágrimas, prometeu a si própria nunca mais desobedecer à mamã.

 

                   Os peixinhos

Sofia era estouvada; muitas vezes procedia mal, irreflectidamente. Eis o que lhe aconteceu um dia:

A sua mamã tinha uns peixinhos de que gostava muito, viviam numa taça cheia de água com areia e pedrinhas no fundo, para se poderem esconder. Todas as manhãs a Sr.a Rean lhes dava pão; Sofia entretinha-se a vê-los devorar as migalhas, que entre si disputavam.

Um dia, o seu papá deu-lhe uma faquinha de madrepérola. Sofia, encantada com a sua faquinha, cortava com ela o pão, as maçãs, os biscoitos, as flores, tudo, enfim.

Certa manhã, Sofia brincava; a criada tinha-lhe dado pão, que ela cortara em fatias, amêndoas, que fizera em bocados, e folhas de alface; pedira à criada vinagre e azeite para fazer uma salada.

- Não - respondera a criada -; dou-lhe sal, mas não azeite nem vinagre. Pode sujar o vestido.

Sofia deitou o sal na salada, mas não o gastou todo.

Que hei-de eu salgar?, pensava ela. Não posso salgar o pão. Precisava de carne ou de peixe... Ah! uma ideia! Vou salgar os peixinhos da mamã. Corto uns às postas com a minha faquinha, e salgo os outros inteiros. Que bela ideia! Que lindo prato eu vou fazer!

E Sofia, sem pensar que ia privar a sua mamã dos peixinhos de que tanto gostava e que os pobrezinhos iam sofrer, salgados vivos e feitos em postas, correu à sala onde eles estavam. Aproximou-se da taça e pescou-os um a um. Pô-los, depois, num prato das bonecas; voltou à mesa do seu quarto. A alguns dos pobres peixinhos estendeu-os num prato. Mas os peixes, que não podem viver fora de água, mexiam-se e remexiam-se sem parar.

Para os aquietar, Sofia cobriu-os de sal. Com efeito, ficaram imóveis; os pobrezinhos tinham morrido. Quando o prato estava cheio, pegou nos outros e cortou-os às postas. Ao primeiro corte, os desgraçados estorceram-se, desesperadamente; iam morrendo, um a um. Sofia percebeu então que os matava ao cortá-los aos pedaços. Olhou, inquieta, os que estavam salgados. Como eles não se mexessem, examinou-os com atenção. Foi então que se apercebeu de que todos estavam mortos.

Fez-se vermelha como uma cereja: Que dirá a mamã Valha-me Deus Como hei-de esconder isto?

Depois de ter pensado um bocado, o rosto

iluminou-se-Lhe; tinha achado um meio excelente para que a sua mamã nada descobrisse.

Meteu rapidamente, num prato, os peixes salgados e cortados, e saiu, devagar, do quarto. Correu a deitá-los na taça.

A mamã vai julgar assim que foram eles que bulharam e se mataram uns aos outros. Vou limpar os meus pratinhos e a faca, e deitar fora o sal. Ainda bem que a criada não me viu ir buscar os peixes. Estava a costurar, não deu por nada.

Sofia voltou, cautelosamente, para o quarto, sentou-se à mesa e começou a brincar com os pratinhos. Momentos depois, levantou-se e foi buscar um livro de estampas, que se pôs a ver. Mas estava inquieta: mal dava atenção ao livro, sempre à espera de ver entrar a mãe.

De repente, estremeceu, corando; ouvira a voz da mamã. Chamava os criados. Ouviu-a falar alto, como se ralhasse.

Os criados iam e vinham. Sofia pôs-se a tremer, lembrando-se de que a pudessem chamar ou à criada. Mas tudo caiu no silêncio.

A criada, que também ouvira barulho, curiosa, deixou o trabalho e foi ver do que se tratava.

Momentos depois voltou.

- Que bom - disse ela a Sofia - não termos saído do quarto! Imagine que a sua mamã acaba de encontrar todos os peixinhos mortos, uns inteiros, outros cortados às postas. Chamou todos os criados para saber quem fora o malvado que tal fizera. Mas nada conseguiu saber ainda. Perguntou-me se a menina estivera na sala; felizmente pude dizer-lhe que não tinha saído daqui, entretida a fazer um jantarinho.

- Pois - disse ela - ia apostar em como tinha sido a menina. Oh minha senhora - respondi-lhe eu -, a menina Sofia não era capaz de fazer uma maldade dessas.

- Ainda bem - disse a sua mamã-, porque castigá-la-ia severamente. Ainda bem que me pode garantir não a ter deixado um só instante: Tenho de acreditar que não foi ela quem matou os meus pobres peixinhos.

- Oh! por esse lado, minha senhora, pode estar certa - disse-lhe eu.

Sofia não dizia nada, imóvel, muito vermelha, a cabeça baixa, os olhos cheios de lágrimas. Durante um momento teve vontade de confessar à criada o que fizera, mas faltou-lhe coragem. A criada ao vê-la triste imaginava ser a morte dos peixinhos que a afligia.

- Logo vi que a menina ia ficar triste, como a sua mamã, com a desgraça que sucedeu aos peixinhos. Mas lembre-se de que eles não eram felizes na sua prisão. Que, afinal, a taça era uma prisão para eles. Agora, que estão mortos, já não sofrem mais. Não pense mais nisso e venha cá para eu a arranjar. Daqui a pouco são horas de almoçar.

Sofia deixou-se lavar e pentear sem proferir palavra. Quando entrou na sala, já lá estava a mamã.

- A tua criada disse-te o que aconteceu aos meus peixinhos? - perguntou ela à Sofia.

SOFIA - Disse, mamã.

SR.a REAN - Se a tua criada não me dissesse que tinhas estado sempre com ela no quarto, pensaria que havias sido tu. Os criados dizem todos que não foram eles. Mas desconfio que foi o Simão, encarregado de mudar todas as manhãs a água e a areia da taça, que se quis desembaraçar dessa tarefa. Vou mandá-lo embora amanhã.

SOFIA (assustada) - Oh! mamã, pobre homem! Que vai ser dele, da mulher e dos filhos?

SR.a REAN - A culpa é só dele; para que matou os meus peixinhos que nenhum mal lhe tinham feito? E que maldade, cortá-los aos bocados!

SOFIA - Mas não foi ele, mamã! Asseguro-lhe que não foi ele!

SR.a REAN - Como é que sabes que não

foi ele? Eu tenho quase a certeza de que foi.

Amanhã despeço-o.

SOFIA (chorando e erguendo as mãos),            Oh! não, mamã! Não faça isso. Fui eu que

tirei os peixinhos e que os matei.

SR.a REAN (com surpresa) - Tu... que tolice! Tu que gostavas tanto dos peixinhos, não os terias feito sofrer e morrer! Bem vejo que dizes isso para desculpar o Simão...

SOFIA - Não, mamã, pode crer que fui

  1. Não os queria matar, queria apenas salgá-los, e imaginava que o sal não lhes fazia mal.

E julgava também que não lhes fazia mal,

cortando-os. Eles não gritavam! Mas quando

os vi mortos, deitei-os outra vez na taça. A

criada, que estava a coser, não me viu sair

nem entrar.

A Sr. a Rean ficou, por momentos, tão surpreendida com a confissão de Sofia, que não pôde falar. Sofia levantou, timidamente, os olhos e viu os da mãe fitos nela, sem cólera

nem severidade.

- Sofia - disse, por fim, a mãe -, se eu tivesse sabido por acaso o que me acabas de contar, ter-te- ia castigado sem piedade. Mas o bom sentimento que te fez confessar, para desculpar o Simão, merece que te perdoe. Não te ralharei, porque estou certa de que sentes quanto foste cruel para os pobres peixinhos. Não reflectiste que é impossível cortar um animal, seja ele qual for, sem o matar e sem o fazer sofrer.

Vendo que Sofia chorava, acrescentou: Não chores, Sofia, e não te esqueças de que, sempre que confesses as tuas faltas, serás perdoada.

Sofia enxugou os olhos, agradecendo à mamã. Mas todo o dia ficou triste por ter sido a causa da morte dos seus amigos peixinhos.

 

                   O frango preto

Sofia ia todas as manhãs com a mamã à capoeira onde havia galinhas de todas as cores e de belas raças. A Sr. a Rean tinha posto no choco uns ovos de que haviam de sair soberbas galinhas de poupa. Ia todos os dias com a Sofia ver se os pintainhos já tinham saído dos ovos. Sofia levava um cestinho com pão para dar às galinhas. Assim que chegavam todos os galos e galinhas corriam ao encontro dela, saracoteando-se e picando-lhe o pão das mãos e do cesto. Sofia ria, corria de um lado para o outro, e as galinhas sempre atrás dela. Divertia-se muito.

Entretanto a mamã penetrava numa grande galeria onde estavam as galinhas chocas. Tinham casa e tratamento de princesas! Quando Sofia acabava de distribuir o pão, ia ter com a mamã, para ver os pintainhos saídos dos ovos, ainda muito pequeninos para correrem pelo campo. Uma manhã viu que a mamã tinha na palma da mão um magnífico pintainho, saído da casca, com certeza, não havia uma hora.

SOFIA- Que lindo, mamã! Tem as penas tão pretas como as dos corvos!

  1. A REAN - Olha que linda poupa! Vai

ser um belo frango!

Dizendo isto, a Sr. a Rean colocou-o de novo junto da galinha choca. Mal o pousou junto dela, a galinha deu-lhe uma grande bicada. A Sr. a Rean bateu, ao de leve, no bico da galinha, levantou o pintainho, que caíra, e piava desesperadamente, e voltou a pô-lo junto da galinha. Desta vez, a galinha, furiosa, cobriu-o de bicadas e correu com ele. A Sr. a Rean socorreu o pintainho que a mãe teria morto, se a deixassem, e fê-lo engolir umas gotas de água, para o reanimar.

- Que havemos de fazer deste pinto?disse ela. - Se o deixo com a mãe, mata-o. E ele é tão bonito, que gostava de o criar.

SOFIA - Ouça, mamã, ponha-o num cesto no quarto onde estão os meus brinquedos: dá-se-lhe de comer até ser grande e então vem para a capoeira.

SR.a REAN - Creio que tens razão; leva-o no teu cesto. Depois se lhe arranja um ninho.

SOFIA - Oh mamã! Olhe para o pescoço e para as costas dele. Estão cheios de sangue.

SR.a REAN - Foram as bicadas da gali nha; quando chegares a casa pede à tua criada tintura e põe-lha nas feridas.

Sofia não estava satisfeita por ver o pintai nho ferido, mas a ideia de lhe pôr tintura encantava-a. Correu a mostrar à criada o frango e a pedir-lhe tintura, com que pintou as feridas. Em seguida foi preparar-lhe uma papa, que lhe levou bem uma hora a fazer. O pintainho sofria, muito triste, e não queria comer; apenas bebeu água fresca várias vezes.

Passados três dias as feridas estavam cicatrizadas, e o pintainho já passeava no jardim. Um mês depois estava muito lindo e muito grande para a idade; dir-se-ia de três meses, pelo menos. As penas eram de um negro azulado, muito raro, e tão macias e brilhantes como se acabassem de sair da água. Tinha na cabeça uma grande poupa de penas pretas, amarelas, azuis, vermelhas e brancas. O bico e as patas eram cor-de-rosa; o andar altivo, os olhos vivos e brilhantes; nunca se vira um frango tão bonito!

Era Sofia quem o tratava. Dava-lhe de comer e olhava por ele quando o levava a passear no jardim. Dentro de poucos dias iria para a capoeira; começava a ser difícil guardá-lo. Muitas vezes Sofia era obrigada a grandes correrias para o apanhar. Uma vez ele ia-se afogando, pois caíra num tanque cheio de água, quando fugia de Sofia.

Tentaram atar-lhe uma fita a uma perna, mas ele resistiu. Lutou de tal maneira que tiveram de lha tirar, com medo de que ele se magoasse.

A mamã, então, fechou-o no galinheiro.

-Andam por aí muitos milhafres. Se o apanham... era uma vez um pintainho. Deixá-lo crescer. Depois lhe daremos liberdade.

Mas Sofia, que não era obediente, continuava a deixá-lo sair, às escondidas da mamã.

Um dia, sabendo-a entretida a escrever, levou o frango para o jardim. Enquanto ele procurava mosquitos e bichinhos na erva, Sofia, ali perto, penteava a sua boneca, atenta nele, para o não deixar afastar muito. A certa altura levantou os olhos e viu, com surpresa, um grande pássaro, de bico adunco, pousado a três passos do frango, a olhá-lo feroz; mas receoso de Sofia. O frango não se mexia. Agachara-se, muito trémulo.

Que pássaro tão esquisito!, pensou Sofia.

Lá bonito é ele! mas tem um ar tão estranho! Parece ter medo de mim. Mas que olhos ele deita ao frango Ah Ah! Ah! que engraçado!

Nesse instante o pássaro soltou um guincho agudo e selvagem e atirou-se ao frango, que despediu um pio lamentoso. Ferrou-lhe o bico e desapareceu, num voo rápido.

Sofia ficara estupefacta. A mamã, que ouvira o guincho do pássaro, correra a perguntar a Sofia o que se tinha passado. Sofia explicou-lhe que o pássaro levara o frango. Que não sabia o que aquilo significava.

- Isto significa que a menina é uma desobediente, e que o pássaro era um milhafre. Por sua causa levou ele o meu lindo frango, que vai ser morto e devorado por esse grande velhaco, e a menina vai para o seu quarto, onde almoçará e ficará até à noite, para aprender a ser obediente, de futuro.

Sofia baixou a cabeça e partiu, muito triste, para o quarto. Comeu sopa e um prato de carne, que a criada, muito sua amiga, que chorava por vê-la chorár, lhe levou. Durante muito tempo Sofia chorou o seu lindo frango.

 

                   A abelha

Um dia, Sofia e o primo Paulo brincavam no quarto. Entretinham-se a apanhar moscas nos vidros da janela. À medida que as apanhavam metiam- nas numa caixa de papel que Lhes tinha feito o pai de Sofia.

Quando já tinham apanhado muitas, Paulo quis ver o que elas faziam.

- Dá-me a caixa - disse ele a Sofia -; vamos ver o que elas estão a fazer.

Sofia deu-lha, e ele abriu uma gretinha, por onde espreitou, exclamando:

- Ah! que engraçado! Como elas mexem! Andam à bulha; olha aquela arrancou a pata à outra. Como elas estão furiosas. Olha, todas à bulha! Lá caíram aquelas! Levantam-se outra vez.

- Deixa-me ver, também, Paulo - disse Sofia.

Paulo não respondeu. Continuou a espreitar e a contar o que via. Sofia impacientava-se; puxou, devagarinho, um canto da caixa; Paulo, por sua vez, fez o mesmo. Sofia, zangada, puxou com mais força; Paulo puxou mais ainda. Sofia deu-Lhe um safanão -a caixa rasgou-se. As moscas fugiram e foram pousar nos olhos, no nariz e nas faces de Paulo e Sofia, que as enxotavam com grandes palmadas em si mesmos.

- Tu é que tiveste a culpa - dizia Sofia a Paulo. -Se fosses mais condescendente, tinhas-me dado a caixa e não a teríamos rasgado.

- Não, tu é que foste a culpada - respondia Paulo -; se não fosses tão impaciente terias esperado. Ainda agora teríamos a caixa.

SOFIA - És um egoísta; só pensas em ti.

PAULO - E tu por qualquer coisa pões-te furiosa como os perus da quinta.

SOFIA - Eu não estou furiosa; você é que é muito mau.

PAULO - Eu não sou mau, menina; estou-lhe a dizer a verdade. Por isso a menina está vermelha como a crista dos perus.

SOFIA - Não quero mais brincar com um rapaz tão mau como você.

PAULO - Nem eu, tão-pouco, com uma menina tão má como tu.

E, amuados, cada um foi para o seu canto.

Sofia depressa se aborreceu, mas quis convencer Paulo de que estava muito divertida. Pôs-se a cantar e a apanhar moscas; mas havia muito poucas e as que havia não se deixavam agarrar. De repente, viu, cheia de alegria, uma abelha pousada a um canto da janela. Sofia sabia que as abelhas picam; por isso não tentou agarrá-la com os dedos; tirou o lenço do bolso do bibe, pousou-o devagar sobre a abelha e agarrou-a antes que o pobre insecto tivesse tempo de fugir. Paulo, que, por sua vez, também se aborrecia, via Sofia apanhar a abelha.

-Que vais tu fazer desse bichinho?         perguntou-lhe ele.

SOFIA (com mau modo) - Não tem nada com isso, seu mau. Deixe-me em paz.

PAULO (com ironia) - Perdão, menina fúria; peço-lhe perdão de lhe ter falado; esquecia-me de que é malcriada e impertinente.

SOFIA (numa reverência irónica) - Direi à mamã que o senhor me acha mal educada; como foi ela que me educou, deve ficar muito contente.

PAULO (inquieto) Não, Sofia, não digas nada; ela ralha-me.

SOFIA - Digo, sim; e, se te ralhar, melhor. Fico toda contente.

PAULO - Má! Nunca mais te digo nada.

E Paulo virou a cadeira, para não ver Sofia, que estava encantada por lhe ter metido medo. Sofia virou-se para a sua abelha. Levantou, devagarinho, uma ponta do lenço, e apertou-a, para a impedir de voar.

Tirou do bolso a sua faquinha.

Vou cortar-lhe a cabeça para castigo de todas as picadas que me tem dado.

Com efeito, pousando a abelha no chão, sempre segura no lenço, decepou-lhe a cabeça de um golpe. Depois, porque lhe pareceu divertido, continuou a cortá-la em bocadinhos.

Tão entretida estava, que não ouviu entrar a mamã, a qual, vendo-a de joelhos e quase imóvel, se aproximou, devagarinho, para ver o que ela estava a fazer. Ainda a viu cortar a última pata da abelha.

Indignada com a crueldade de Sofia, a Sr. A Rean puxou-lhe uma orelha com força!

Sofia deu um grito, e levantou-se, de um salto, toda trémula, diante da mãe.

A menina é muito má. Apesar do que eu lhe disse quando salgou e fez em postas os meus pobres peixinhos, voltou à mesma. Pobre abelha!

SOFIA - Tinha-me esquecido, acredite, mamã.

  1. A REAN - Pois, para lho recordar, dê cá a sua faquinha. Só a tornará a ver daqui a um ano. Vai passar a trazer ao pescoço, enfiados num cordão, todos os pedaços da abelha. Sofia chorou e suplicou muito à mamã que

a não fizesse usar o colar da abelha; mas esta chamou a criada, a quem pediu um cordão preto. Enfiou nele os bocados da abelha e atou-lhe as pontas ao pescoço de Sofia; Paulo, muito triste, não ousava falar. Quando Sofia ficou só, chorando, envergonhada, com o colar ao pescoço, Paulo procurou consolá-la por todas as formas; beijou-a, pediu-Lhe perdão por lhe ter dito coisas desagradáveis, e quis convencê-la de que as cores amarela, alaranjada, azul e preta da abelha faziam um efeito lindo. Parecia um colar de azeviche e pedras

preciosas. Sofia agradeceu-lhe a sua bondade. Sentiu-se amparada pela amizade do primo, mas sempre desgostosa com o colar. Os pedaços da abelha conservaram-se intactos uma semana. Um dia; Paulo, que brincava com ela, deixou o colar reduzido ao fio; os bocados da abelha tinham-se desfeito. Correu a prevenir a tia, que deu ordem para a Sofia o tirar. E desde então nunca mais ela foi má para os animais.

 

                   Os cabelos molhados

Sofia era vaidosa, gostava de andar bem vestida e que a achassem bonita. Todavia, não o era lá muito; tinha rosto largo, fresco e alegre, olhos cinzentos, nariz um pouco arrebitado e grosso, boca grande e sorridente, cabelos loiros e lisos, cortados como os de um rapaz. Gostava de andar bem vestida, mas não andava: vestido de percal branco, decotado e sem mangas, tanto de Inverno como de Verão, meias grossas e sapatos pretos. Nunca usava chapéu nem luvas. A mãe achava que era bom habituá-la ao vento e à chuva, ao sol e ao frio.

Mas Sofia morria por ter cabelos encaracolados. Ouvira, um dia, admirar os lindos cabelos loiros, muito anelados, de uma das suas amigas, Camila Fleurville, e desde então tentara sempre encaracolar os seus. Entre outras invenções suas, eis aqui a mais desastrada de todas.

Uma tarde, chovia muito, mas havia calor. Portas e janelas estavam abertas. Como a mãe a não deixava sair, Sofia pôs-se à porta e, de tempos a tempos, estendia um braço para sentir a chuva. A certa altura estendeu o pescoço para apanhar algumas gotas na cabeça. Ao pôr a cabeça de fora viu que a caleira jorrava muita água. Ao mesmo tempo lembrou-se de que os cabelos de Camila se anelavam mais quando estavam molhados.

Se eu molhasse os meus, pensou ela,   talvez também se encaracolassem!

Se bem o pensou, melhor o fez. Apesar da chuva, pôs a cabeça debaixo da caleira e recebeu, cheia de alegria, toda a água que dela jorrava, na cabeça, no pescoço, nos braços, nas costas. Quando se sentiu bem molhada entrou em casa e pôs-se a enxugar a cabeça com o lenço, sem se esquecer de arrepiar os cabelos, para que ficassem encaracolados. O lenço ficou logo ensopado. Sofia correu ao quarto a pedir outro à criada, mas deu de cara com a mamã. Toda molhada, os cabelos eriçados, o ar apressado, parou, a tremer. A mãe ficou pasmada primeiro, mas logo lhe achou uma cara tão cómica, que desatou a rir.

- Ora aí está uma bela ideia, menina disse ela. - Se a menina visse a sua cara, riria de si mesma, como eu. Tinha-a proibido de sair. Desobedeceu, como é costume. Para seu castigo vai jantar como está: os cabelos no ar e o vestido encharcado. Quero que o seu papá e o seu primo Paulo vejam as suas belas invenções. Tome esta toalha; limpe essa cara, esse pescoço e esses braços.

Nesse momento entravam Paulo e o Sr. Rean. Pararam ambos, estupefactos, diante de Sofia, vermelha, envergonhada, desolada e ridícula. Por fim, o Sr. Rean perguntou o que significava tal mascarada. Estariam em Domingo Gordo?

SR A REAN - É uma nova invenção para frisar cabelos. Sofia quer tê-los absolutamente iguais aos de Camila, que molha os dela para se encaracolarem mais. Sofia pensou que lhe sucederia a mesma coisa.

  1. REAN - O que é ser vaidosa! Quer uma pessoa tornar-se bonita, e fica de meter medo.

PAULO - Minha pobre Sofia! Vai depressa enxugar-te, pentear-te e mudar de vestido. Se soubesses como estás patusca, não ficavas assim nem um minuto.

SR.a REAN - Não, ela vai jantar com esse lindo penteado, e com o vestido molhado e cheio de areia...

PAULO (interrompendo-a, com pena) - Oh! minha tia, peço-lhe, perdoe-lhe e deixe-a ir pentear-se e mudar de vestido. Coitada, está com uma cara tão infeliz!

  1. REAN - Sou da opinião de Paulo, minha querida. Perdão por esta vez. Se ela voltar, então castigá-la-ás.

SOFIA (chorando) - Prometo-Lhe, papá, que não tornarei.

SR.a REAN -Bem, para satisfazer o papá, dou-Lhe licença de se ir despir, mas não jantará connosco. Só virá para a sala depois de termos saído da mesa.

PAULO - Oh! minha tia, peço-lhe.

SR A REAN - Não, Paulo, não peças mais nada: há-de ser como eu disse. Vá, menina, acrescentou, dirigindo-se a Sofia.

Sofia jantou no quarto, depois de se lavar e pentear. Paulo veio buscá-la em seguida ao jantar, para irem brincar para o quarto dos brinquedos. Desde então, nunca mais Sofia pôs a cabeça à chuva para frisar os cabelos.

 

                   As sobrancelhas rapadas

Outra coisa que Sofia muito desejava era ter as sobrancelhas espessas. Ouvira, um dia, dizer que a Luisinha Berg seria bonita se tivesse mais sobrancelhas. As de Sofia eram ralas e loiras, de forma que mal se viam.

Ora, ela sabia que, cortando muitas vezes os cabelos, estes se tornavam mais fortes.

Um dia que Sofia se viu ao espelho reparou na escassez das suas sobrancelhas.

Visto que os cabelos se tornam mais fortes quando se cortam", pensou ela, às sobrancelhas, que são cabelos pequeninos, deve suceder-lhes o mesmo. Vou cortar as minhas sobrancelhas.

E eis que Sofia pega numa tesoura e corta

as sobrancelhas o mais rente possível. Mirando-se em seguida ao espelho, achou-se com uma cara tão cómica, que não teve coragem de entrar na sala.

Espero que sirvam o jantar, pensou ela;

enquanto se sentam à mesa não pensam em mim.

Mas a sua mamã, não a vendo, disse ao

Paulo que a fosse procurar.

- Sofia, Sofia, onde estás gritou Paulo,

entrando no quarto. - Que estás a fazer? Vamos jantar.

- Já vou, já vou - respondeu Sofia, de costas, para que Paulo não lhe visse a cara. Depois, empurrou a porta e entrou na sala; uma gargalhada explodiu em volta da mesa.

- Que cara! - disse o Sr. Rean.

- Rapou as sobrancelhas! - exclamou a Sr. a Rean.

- Que cara tão patusca!, que cara tão patusca! - murmurava Paulo.

-É extraordinário como as sobrancelhas rapadas a tornam diferente - observou o Sr. Aubert, pai de Paulo.

- Nunca vi cara mais pândega! - exclamou a Sr. a Aubert.

Sofia estacara, de cabeça baixa e braços pendentes, sem saber onde meter-se. Por isso quase sentiu contentamento quando a mamã lhe disse:

- Vá para o seu quarto, menina; não faz senão tolices. Desapareça da minha vista; que eu a não torne a ver esta noite.

Sofia retirou-se; a criada, por sua vez, pôs-se a rir quando viu aquela cara bochechuda, muito vermelha e sem sobrancelhas. Por mais que Sofia se zangasse, todos que a viam desatavam a rir, aconselhando-a a que pintasse as sobrancelhas com carvão.

Um dia, Paulo trouxe-lhe um pequeno embrulho, muito bem atado e lacrado.

- Olha, Sofia, toma lá um presente que te manda o meu papá - disse ele, com ar malicioso.

- Que é? - perguntou Sofia, pegando no embrulho com curiosidade.

Abriu-o: dentro vinham duas enormes sobrancelhas, muito pretas, muito espessas.

- É para que as coles no lugar das tuasdisse Paulo.

Sofia corou, zangou-se e atirou-as à cara de Paulo, que fugiu, a rir, a rir.

As sobrancelhas levaram mais de seis meses a crescer e não vieram tão espessas como Sofia desejava; desde esse dia nunca mais Sofia procurou embelezar as suas sobrancelhas.

 

                   O pão dos cavalos

Sofia era gulosa. Sua mamã sabia que comer demais é prejudicial à saúde. Por isso proibia a filha de comer entre as refeições. Mas Sofia, que tinha sempre apetite, comia tudo quanto encontrava.

A Sr. a Rean ia todos os dias, depois do almoço, por volta das duas horas, dar de comer aos cavalos do Sr. Rean, que eram muitos.

Sofia acompanhava-a e levava um cestinho cheio de pedaços de pão de rala, que ia distribuindo pelos animais. Mas a Sr. a Rean proibira-a, expressamente, de comer esse pão escuro e mal cozido, que Lhe faria, por certo, mal ao estômago.

Acabavam sempre a visita pela cavalariça dos póneis. Sofia tinha um pónei só dela, que lhe dera o papá: era um cavalinho preto, pou co maior do que um burro pequeno. Sofia tinha licença para ser ela a dar o pão ao seu pónei. Muitas vezes dava-lhe uma dentada antes de lho dar.

Um dia em que lhe apetecia muito daquele pão, pegou nele na ponta dos dedos, na esperança de que o cavalo só comesse um bocadito. Assim ela comeria o resto.

Mas o animal, quando Sofia lhe apresentou o pão, deitou-lhe os dentes ao pão e aos dedos, que trincou com toda a força. Sofia teve coragem de não gritar, mas a dor fê-la largar o pão, que caiu por terra. O cavalo baixou o pescoço e apanhou-o.

O dedo de Sofia deitava tanto sangue que escorria pelo chão. Tirou o lenço e embrulhou a mão nele, apertando bem o dedo. Assim estancou o sangue. Mas como o lenço ficasse sujo, escondeu a mão, para que a mamã a não visse. Quando se sentaram à mesa, para jantar, foi preciso tirar o lenço. Nessa altura o sangue começou de novo a jorrar.

Ao pegar na colher, no copo, no pão, tudo ficou manchado de sangue.

- Que tens tu na mão, Sofia? - perguntou a mãe, ao ver sangue por toda a parte.

-Está tudo sujo de sangue à roda do teu prato.

Sofia não respondeu.

SR A REAN - Não ouves o que te pergunto? De que é esse sangue.

SOFIA - Mamã... é... do meu dedo.

SR A REAN - Mas que tens tu no dedo? Quando te feriste?

SOFIA - Esta manhã, mamã. Foi o meu pónei que me mordeu.

  1. REAN - Como é que o teu pónei, tão manso, te mordeu?

SOFIA - Foi quando lhe dei o pão, mamã.

SRa REAN - Então não puseste o pão na palma da mão, como te tenho recomendado sempre?

SOFIA - Não, mamã. Tinha-o entre os dedos.

  1. REAN - Pois, já que és tola, nunca mais darás pão ao teu cavalo.

Sofia não respondeu. Pensou que, como continuaria a levar o ceSto com os bocados de pão, sempre poderia comer algum.

No dia seguinte, quando acompanhou a mãe às cavalariças, enquanto lhe ia dando os pedaços de pão, tirou um, que escondeu no bolso do bibe. Quando viu a mãe de costas, meteu-o na boca.

Ao chegarem ao último cavalo, não havia pão para ele. O moço de estrebaria garantiu que tinha posto no cesto tantos bocados de pão quantos os cavalos. A Sr. a Rean fez-lhe ver que faltava um. Mas, entretanto, olhou para Sofia, que, com a boca cheia, tentava engolir, à pressa, o último bocado. Por mais que se apressasse a engolir, sem mastigar, a mãe viu, perfeitamente, que ela estava a comer. Não poderia ser senão o pedaço de pão que faltava; o cavalo, impaciente, relinchava e escarvava o chão.

- Menina gulosa - disse a Sr. a Rean -, não tem vergonha de roubar os pobres cavalos, desobedecendo-me? Quantas vezes a tenho proibido de comer desse pão! Vá para o seu quarto; nunca mais virá comigo dar pão aos cavalos. Já que gosta tanto de pão, só terá para jantar sopa de pão e pão seco.

Sofia baixou, tristemente, a cabeça e voltou, a passos lentos, para casa, e depois para o seu quarto.

- Mau, mau! - disse-Lhe a criada. - Lá vem outra vez de cara triste. Que novo disparate fez? Está outra vez de castigo?

- Eu só comi o pão dos cavalos - respondeu Sofia, em lágrimas. -Gosto tanto! E o cesto estava tão cheio, que imaginei que a mamã não desse pela falta. Hoje, para jantar, só tenho sopa de pão e pão seco - acrescentou ela, chorando cada vez mais.

A criada fitou-a com dó e suspirou. Amimava Sofia; achava que a Sr. a Rean era, por vezes, demasiado severa. Costumava consolá-la e tornar-lhe os castigos mais brandos. Assim, quando o criado veio trazer a sopa, o bocado de pão e o copo de água, todo o jantar de Sofia, pegou- lhes com mau modo e, pousando tudo na mesa, abriu um armário, donde tirou um pedaço de queijo e um boião de doce. Depois, disse a Sofia:

- Tome, coma primeiro o queijo com pão e depois o doce. - Ao ver que Sofia hesitava, acrescentou: - A sua mamã mandou-lhe apenas pão mas não me proibiu de lhe pôr alguma coisa dentro.

SOFIA - Mas se a mamã me perguntar se me deram mais alguma coisa com o pão tenho de dizer a verdade...

CRIADA - Diga-lhe que dei queijo e doce. Depois eu me arranjarei. Dir-lhe-ei que não lhe quis dar pão seco, porque faz mal ao estômago. Até aos presos se dá mais qualquer coisa do que pão.

A criada procedia mal em aconselhar Sofia a comer às escondidas da mamã. Mas Sofia, que era ainda muito pequena e lhe apetecia muito queijo e doce, obedeceu. Teve um belo jantar! A criada juntou umas gotas de vinho à água, e, como sobremesa, deu-lhe um copo de água com vinho e açúcar, em que Sofia molhou o resto do pão.

- Sabe o que deve fazer para a outra vez, quando for castigada ou tiver vontade de comer? Venha ter comigo; sempre arranjarei alguma coisa melhor do que o pão dos cavalos para lhe dar.

Sofia prometeu não se esquecer da sua recomendação sempre que tivesse vontade de qualquer coisa boa.

 

                   A nata e o pão quente

Já dissemos que Sofia era muito gulosa.

Como é natural não se esqueceu da recomendação da criada. Um dia que vira a caseira trazer-lhe um presente, foi dizer-lhe que tinha fome.

- Vem em boa ocasião! - respondeu-lhe

a criada. - A caseira trouxe-me de presente

uma grande taça de nata e um pão de rala ainda quente. Vai comer e ver como é bom!

E colocou em cima da mesa uma taça quase cheia de nata fresquinha e um grande pão morno. Sofia atirou-se àquilo, como se estivesse esfomeada. Quando a criada lhe vinha

dizer que não comesse de mais, ouviu a Sr. a Rean a chamá-la.

- Lúcia! Lúcia! (Era o nome da criada). Lúcia correu, imediatamente, a saber o que lhe queria a senhora; era para lhe dizer que começasse um trabalho para ensinar a Sofia.

- Está quase a fazer quatro anos- disse a Sr. a Rean. - É tempo de aprender a coser.

CRIADA-Mas que trabalho há- de ser, minha senhora, para uma criança tão pequena?

SR.a REAN - Arranje um lenço ou um guardanapo para embainhar.

A criada não respondeu e saiu da sala, de mau humor.

Quando chegou ao quarto viu que Sofia ainda estava a comer.

- Ah, meu Deus! - exclamou ela, enquanto preparava a bainha que Sofia ia fazer.

- Vai-lhe fazer mal, com certeza! Pois a menina conseguiu devorar tudo isso!? Que dirá a sua mamã, se a menina fica doente? Ainda vai fazer com que me ralhem!

SOFIA - Não tenhas medo. Estava com muita fome. Não faz mal. Que bom a nata e o pão quente!

CRIADA - Sim, mas muito indigestos. Meu Deus, que grande bocado de pão que a menina comeu! Tenho medo, muito medo, de que a menina adoeça.

SOFIA (beijando-a) - Não tenhas medo, querida Lúcia, está descansada, sinto-me muito bem.

A criada deu-lhe um lenço para embainhar e disse-lhe que fosse para junto da mamã, que a queria ver trabalhar.

Sofia correu à sala, onde a mãe a esperava. Ela ensinou-Lhe como devia meter e tirar a agulha. De princípio foi bastante mal, mas pareceu-lhe muito divertido.

- Mamã, dá licença que vá mostrar o meu trabalho à Lúcia? - disse ela, daí a pouco.

- Podes ir, e depois vem arrumar as tuas coisas e brincar.

Sofia correu para junto da criada, que ficou admirada por achar a bainha muito bem feita, e quase pronta. Perguntou-lhe, inquieta, se não se sentia mal do estômago.

- Não, não sinto nada. Só não tenho fome.

- Pudera, depois do que a menina comeu! Mas volte para junto da sua mamã, senão ela pode ralhar.

Sofia voltou para a sala, arrumou as suas coisas e pôs-se a brincar. Mas, pouco a pouco, começou a sentir-se mal-disposta; a nata e o pão pesavam-lhe no estômago; doía-lhe a cabeça; sentou-se numa cadeirinha baixa e ficou muito quieta, de olhos fechados.

A mamã, não sentindo barulho, voltou-se e viu Sofia pálida, com aspecto de quem está doente.

- Que tens tu, Sofia? - perguntou ela, inquieta. - Estás doente?

- Estou mal disposta, mamã - respondeu Sofia. - Dói-me a cabeça.

- Desde quando?

- Desde que arrumei o meu trabalho.

- Comeste alguma coisa?

Sofia hesitou e respondeu baixo:

- Não, mamã, não comi nada.

- Bem vejo que estás a mentir; vou perguntar à tua criada, que me dirá a verdade.

A Sr. a Rean saiu, demorando-se alguns minutos. Quando voltou, vinha com cara de zangada.

- A menina mentiu; a sua criada acaba de me confessar que lhe deu pão quente e nata, que a menina comeu como uma glutona. O mal é seu. Visto estar doente, não pode ir amanhã a casa da sua tia visitar o seu primo Paulo. Vão lá Camila e Madalena Fleurville. Em lugar de se divertir, a correr pela mata e a apanhar morangos, ficará sozinha em casa, a caldos.

A Sr. a Rean pegou na mão de Sofia, que escaldava, e foi, imediatamente, deitá-la.

- Proíbo-a - disse ela à criada - de dar seja o que for à menina até amanhã. Dê-lhe água fervida ou chá de laranja; se repete o que fez esta manhã, mando-a, imediatamente, embora.

A criada, sentindo-se culpada, não respondeu. Sofia, que estava muito incomodada, deixou-se meter na cama sem dizer palavra. Passou uma noite muito mal, com dores de cabeça e de estômago.

Só de madrugada conseguiu adormecer. Quando acordou, ainda lhe doía a cabeça, mas o ar fresco fez-lhe bem. Passou o dia, tristemente, a lembrar-se de quanto se teria divertido em casa da tia.

Esteve doente ainda dois dias. E ficou com tal horror à nata e ao pão quente, que nunca mais os pôde ver.

Depois, quando ia com o primo e as amigas a casa dos caseiros da vizinhança, e todos se deliciavam a comer pão e nata, Sofia nem lhes tocava. À vista do belo creme, muito espesso e espumoso, e do pão grosseiro, vinha-lhe à ideia o que tinha sofrido por ter comido de mais e sentia o estômago toldado. Desde esse dia não tornou a dar ouvidos à criada, a qual pouco tempo mais esteve ao seu serviço. A Sr. a Rean, não tendo confiança nela, contratou outra, muito boa, mas que nunca permitia que Sofia fizesse o que a mamã lhe proibia.

 

                   O esquilo

Um dia passeava Sofia com o primo Paulo numa pequena mata de carvalhos, perto de casa, à procura de bolotas para fazer cestinhos, tamancos e barcos, quando, de repente, sentiu uma bolota cair-lhe nas costas. Baixou-se para apanhá-la, mas logo outra lhe caiu numa orelha.

- Paulo, Paulo - disse ela -, olha como estas bolotas que caíram em cima de mim estão todas roídas. Quem seria que as roeu, lá tão alto? Os ratos não sobem às árvores e os pássaros não comem bolotas...

Paulo pegou nas bolotas, examinou-as e, levantando a cabeça, exclamou:

- É um esquilo; lá está ele no cimo da árvore, a olhar para nós, como a fazer troça.

Sofia olhou para cima e viu um lindo esquilozinho, com uma soberba cauda levantada como um penacho. Limpava o focinho com as patitas dianteiras. De tempos a tempos olhava para baixo e dava um salto para outro ramo.

- Gostava tanto de ter um esquilo!disse Sofia. -É tão engraçado! Entretinha-me a brincar com ele, a dar-lhe de comer, a passeá-lo.

PAULO -Não era muito dificil apanhá-lo; mas os esquilos cheiram bastante mal e roem tudo.

SOFIA - Mas eu não o deixava roer, porque fechava todas as minhas coisas. Limpava-lhe a gaiola duas vezes por dia, para que não cheirasse mal. Como o apanhavas tu?

PAULO - Arranjava uma gaiola grande, metia-Lhe nozes e amêndoas dentro, e punha a gaiola junto do carvalho, com a porta aberta. Depois atava um cordel à porta, escondia- me perto da árvore e, quando o esquilo entrasse na gaiola para comer o que lá estivesse, puxava o cordel, a porta fechava-se e o esquilo ficava preso.

SOFIA - Mas se o esquilo não quisesse entrar na gaiola? Podia ter medo.

PAULO - Oh! não havia perigo; os esquilos são gulosos. Não resistia às amêndoas e às nozes.

SOFIA - Então apanha-o, meu querido Paulo. Ficaria tão contente!

PAULO - E se a tua mamã não quer?

SOFIA - Quer sim; pedir-lhe-emos tanto, que há-de dar licença.

As duas crianças correram a casa; Paulo encarregou-se de explicar tudo à Sr. a Rean, que começou por dizer que não, mas acabou por consentir, dizendo a Sofia:

-Previno-te de que em breve te vais aborrecer desse esquilo: começa a trepar acima de tudo, a roer os teus livros e os teus brinquedos. Há-de cheirar mal e tornar-se insuportável.

SOFIA - Não, mamã! Prometo-lhe guardá-lo muito bem; não deixo estragar nada.

SR.a REAN - Mas, olha, não o quero na sala nem no meu quarto. Tens de o ter sempre no teu.

SOFIA - Está bem, mamã, estará sempre no meu quarto, excepto quando o leve a passear.

Sofia e Paulo foram, muito contentes, procurar uma gaiola: acharam uma no sótão, que tinha servido em tempos a um esquilo. Levaram-na, e, com a ajuda da criada, limparam- na e puseram-lhe dentro amêndoas, nozes e avelãs.

SOFIA - Vamos agora depressa pôr a gaiola ao pé do carvalho. Oxalá que o esquilo ainda lá esteja!

PAULO - Espera, é preciso atar uma guita à porta. Tenho de a passar por entre as grades para que se feche quando eu puxar.

SOFIA - Tenho medo de que o esquilo já lá não esteja.

PAULO - Não, deve estar ali perto até ao anoitecer. Pronto... Está pronto! Puxa a guita para ver se corre bem...

Sofia puxou, e a porta fechou-se imediatamente. Os meninos, encantados, foram pôr a gaiola na mata; quando chegaram junto do carvalho espreitaram, a ver se o esquilo ainda lá estava, mas não viram nada; nem sequer as folhas da árvore se mexiam. Desolados, iam procurar noutra árvore, quando Sofia apanhou na testa com uma bolota roída, exactamente como as de que falámos há pouco.

- Lá está, lá está! - exclamou ela.

Olha: vejo-lhe a ponta da cauda a sair por entre aqueles ramos.

Com efeito, o esquilo, ouvindo falar, estendeu a cabeça para ver o que se passava.

- Bem, meu caro amigo - disse Paulo. Estás aqui, estás na prisão. Toma, olha as

belas coisas que te trazemos; sê guloso, amiguinho, sê guloso; verás como se castigam os gulosos.

O pobre esquilo, que não esperava ser preso, olhava, com ar de troça, abanando a cabeça para um lado e para outro. Viu a gaiola que Paulo pousara no chão, lançou um ar de cobiça às amêndoas e às nozes. Quando os meninos se esconderam atrás do tronco de um carvalho, desceu dois ou três ramos, e parou, a olhar para todos os lados; desceu um bocadinho mais, e continuou assim, até chegar à gaiola. Passou uma pata através das grades, depois outra. Mas como não conseguiu apanhar coisa alguma e as amêndoas lhe pareciam cada vez mais apetitosas, procurou maneira de entrar na gaiola. Não levou muito tempo a dar com a porta. Parou à entrada, olhou, desconfiado para o cordel, estendeu uma pata, mas, não conseguindo chegar às nozes nem às avelãs, aventurou-se a entrar. Logo que o viram lá dentro, os meninos, que o tinham estado a espreitar pelo canto do olho, o coração aos pulos, puxaram o cordel, e o esquilo ficou na gaiola. O medo fez-lhe deitar fora a amêndoa que começara a comer: pôs-se a dar voltas na gaiola, para fugir. Mas, coitado! Devia pagar caro a sua gulodice! Estava preso! Os pequenos precipitaram-se sobre a gaiola. Paulo fechou, cuidadosamente, a porta. E vá de a levar para o quarto de Sofia, que corria, à frente, triunfante, para chamar a criada e fazer-lhe admirar o seu novo amigo.

A criada, porém, não ficou nada contente com o novo pupilo.

- Que havemos de fazer deste animal?disse ela. - Vai decerto morder-nos e fazer um barulho insuportável. Que ideia a menina teve de nos vir atrapalhar com um bicho tão feio!

SOFIA - Em primeiro lugar, ele não é nada feio; o esquilo é até um animal muito bonito. E, depois, não fará barulho nem morderá. Sou eu que trato dele.

CRIADA - Sério? Pobre animal! Vai deixá-lo morrer de fome, com certeza.

SOFIA (indignada) - Morrer de fome! Que dizes? Dar-lhe-ei avelãs, amêndoas, pão, açúcar e vinho.

CRIADA (com ar de troça) - Ora aí está um esquilo bem alimentado! O açúcar vai estragar-lhe os dentes, o vinho embebedá-lo.

PAULO (rindo) - Ah! Ah! Ah! um esquilo bêbado! Há-de ser muito divertido.

SOFIA - Nada disso, senhor. O meu esquilo não há-de ser bêbado. Será ajuizado.

CRIADA - Veremos isso. Vou-lhe buscar palha para ele se deitar. Está assustado. Não me parece nada contente por se ter deixado apanhar.

SOFIA - Vou fazer-lhe festas para o habituar a mim e para ele ver que Lhe não faremos mal nenhum.

Sofia passou as mãos pelas grades: o esquilo, assustado, fugiu para um canto. Quando ela tentou, de novo, agarrá-lo, mordeu-lhe um dedo. Sofia gritou e retirou a mão, precipitadamente, da gaiola. A porta ficara aberta, o esquilo fugiu, pondo-se a correr pelo quarto.

A criada e Paulo corriam atrás dele, mas quando julgavam tê-lo seguro, ele dava um salto, escapava-se, e continuava a correr. Sofia, esquecendo o dedo, que sangrava, quis ajudá-los. Continuaram a caçada durante cerca de meia hora; o esquilo começava a estar fatigado; iam apanhá-lo, quando ele viu a janela aberta. Deu imediatamente um salto para o parapeito. Subiu pela parede exterior e achou-se no telhado.

Sofia, Paulo e a criada coreram ao jardim; no telhado, lá estava o esquilo, morto de fadiga e de medo.

- Que havemos de fazer? - exclamou Sofia.

- Temos de o deixar- disse a criada. A menina bem vê que ele já a mordeu.

SOFIA - Era porque ainda não me conhecia; mas, quando vir que lhe dou de comer, gostará de mim.

PAULO - Parece-me que já é muito velho para se acostumar à gaiola. Era preciso que fosse um esquilo ainda pequeno.

SOFIA - Oh! Paulo, atira-lhe com qualquer coisa, para o obrigares a descer. Depois apanhamo-lo e tornamos a metê-lo na gaiola.

PAULO - Vou experimentar, mas não me parece que ele caia na tolice de descer.

Paulo foi buscar uma grande bola e atirou-a ao esquilo com tão boa pontaria, que acertou na cabeça do pobre bicho. A bola rolou e caiu. Atrás dela veio o esquilo. A bola, ao chegar ao chão, saltou e tornou a saltar, mas o pobre animal, ao bater no solo, ficou imóvel, com a cabeça ensanguentada e as patas quebradas. Sofia e Paulo correram a apanhá-lo. Ante o pobre esquilo morto ficaram atónitos.

SOFIA - Feio Paulo, mataste o meu esquilo.

PAULO - A culpa foi tua; porque me pediste que lhe atirasse com a bola?

SOFIA - Era só para o assustar, sem matar.

PAULO - Eu não o quis matar; a bola apanhou-o em cheio. Nunca supus ter tão boa pontaria.

SOFIA - Não tens nada boa pontaria, és muito mau! Vai-te embora, não gosto de ti.

PAULO - E eu detesto-te. És mais tola do que o esquilo. Estou contentíssimo por lhe ter poupado os tormentos que lhe ias dar.

SOFIA - O menino é uma peste. Nunca mais brinco consigo; nunca mais lhe pedirei nada.

PAULO - Ainda bem, menina: ao menos estarei sossegado, sem ter de dar voltas ao miolo para a ajudar nas suas tolices.

CRIADA - Vamos, meus meninos, em vez de questionarem, confessem que ambos, sem reflectir, foram causadores da morte do esquilo. Pobre animal! Foi mais feliz do que se ainda vivesse, pois já não sofre mais. Vou chamar alguém para o apanhar e deitá-lo ao fosso. A menina vá para o seu quarto e mergulhe o dedo em água, que eu vou já ter consigo.

Sofia retirou-se, seguida de Paulo, que era bom rapazinho e que, em vez de estar amuado, a ajudou a deitar água na bacia e a mergulhar a mão. Quando a criada chegou, embrulhou-lhe o dedo em gaze e envolveu-o num trapo, depois de ter desinfectado a ferida. Ambos se sentiam envergonhados, ao entrarem na sala, por terem de contar a aventura do esquilo.

Os papás e as mamãs riram-se deles, a gaiola do esquilo voltou para o sótão. O dedo de Sofia doeu-lhe durante alguns dias; depois nunca mais pensou no esquilo senão para di zer que jamais quereria outro.

 

                   O chá

Estava-se no dia 14 de Julho, aniversário de Sofia, que fazia quatro anos. A mamã dava-lhe sempre um lindo presente nesse dia, mas sem lhe dizer antecipadamente o quê. Sofia levantava-se mais cedo do que de costume e vestia-se apressadamente para ir receber o presente da mamã.

-Depressa, depressa- dizia ela à criada -, tenho tanta vontade de saber o que me dá a mamã!

CRIADA - Mas deixe-me penteá-la. Não pode ir assim esguedelhada como está. Que linda maneira de começar os seus quatro anos. Esteja quieta, não se mexa tanto!

SOFIA - Ai! Ai! que me arrancas os cabelos.

CRIADA - Pois a menina vira a cabeça para todos os lados! Outra vez! Como hei-de eu adivinhar para que lado lhe apetece voltar-se?

Por fim, Sofia, lavada e penteada, pôde correr ao quarto da mamã.

- Levantaste-te hoje muito cedo - disse-lhe ela, sorrindo. -Vejo que te não esqueceste dos teus anos e do presente que te dou. Toma, aqui tens um livro; encontrarás nele com que te divertires.

Sofia agradeceu, embaraçada, e pegou no livro encadernado em marroquim vermelho.

De que me serve este livro, pensava ela.

Não sei ler.

A mamã ria-se.

- Parece que não ficaste muito contente com o meu presente - disse ela. - Mas olha que é muito bonito; tem escrito na capa Artes. Estou certa de que te vais divertir muito com ele.

SOFIA - Não sei, mamã.

MAMÃ - Abre-o e verás.

Sofia quis abrir o livro, mas, com grande surpresa, não pôde. Admirava-a sobretudo o barulho que o livro fazia quando o voltava. Olhou para a mamã com uma cara muito espantada. A Sr. a Rean, rindo ainda mais, disse-lhe:

- É um livro extraordinário. Não é como os outros livros, que se abrem por si. Este só se abre carregando no meio das folhas.

E, dizendo isso, apoiou nele o polegar; a parte de cima abriu-se, e Sofia, toda satisfeita, viu que não era um livro, mas uma encantadora caixa de tintas, com pincéis, tigelinhas e doze caderninhos, cheios de bonecos para colorir.

- Oh, muito obrigada, mamã! – exclamou Sofia. - Que lindo que é! Estou tão contente!

MAMÃ - Estavas um pouco atrapalhada há pouco, imaginando que te dava um livro; mas eu não te fazia tal partida. Podes-te divertir todo o dia com o teu primo Paulo e as tuas amigas Camila e Madalena, que convidei para passarem o dia contigo. Estão aí às duas horas. A tua tia encarregou-me de te dar, em seu nome, este serviço de chá. Só poderá vir depois das três horas, mas quis que tivesses logo de manhã o presente dela.

A feliz Sofia pegou na bandeja, com seis chávenas, bule, leiteira e açucareiro. Pediu licença para fazer chá a valer para as suas amigas.

- Não - disse a Sr. a Rean. - Sujavam-se com a manteiga e podiam queimar-se com o chá. Finjam que o tomam e divertir-se-ão na mesma.

Sofia nada disse, mas não ficou contente. De que me serve um serviço se não tenho que lhe deitar? As minhas amigas vão fazer troça de mim. Hei-de arranjar qualquer coisa para lhe pôr dentro. Vou pedir à minha criada.

Sofia disse à mamã que ia mostrar os presentes à criada. Pegou no serviço e na caixa e correu ao quarto.

SOFIA - Olha as lindas coisas que me deram a mamã e a minha tia.

CRIADA - Que lindo serviço! Vai entreter-se muito com ele. Do livro é que eu não gosto. Se a menina não sabe ler, para que Lhe serve um livro?

SOFIA - Bravo, caiu como eu! Não é um livro, é uma caixa de tintas.

E Sofia abriu a caixa que a criada achou linda. Depois de ter conversado sobre o que faria durante o dia, Sofia contou que queria dar chá às suas amigas, mas que a mamã não lhe dava licença.

- Que hei-de eu pôr no bule, no açucareiro e na leiteira? És capaz de me arranjar qualquer coisa que eu possa comer e dar às minhas amigas?

- Não, minha querida menina -respondeu a criada- é impossível. Lembre-se de que a sua mamã me disse que me despediria se lhe desse qualquer coisa a comer que ela proibisse.

Sofia suspirou e ficou pensativa; pouco a pouco, porém, o rosto iluminou-se-lhe: tivera uma ideia. Sofia brincou até ao almoço; depois foi dar um passeio com a mamã. À volta foi preparar tudo para receber as suas amigas. Pôs a caixa sobre uma mesinha. Noutra mesa dispôs as seis chávenas, e, no meio, o bule, o açucareiro e a leiteira.

Agora, disse ela, vou fazer chá. Pegou no bule, foi ao jardim, colheu folhas de trevo e deitou-lhas dentro. Depois foi à taça do cão e despejou água no bule.

Pronto, já temos chá, exclamou, satisfeitíssima agora só falta o leite. Foi buscar cré de limpar as pratas, deitou-o na leiteira e encheu-a com a água do cão. Mexeu bem; quando a água ficou branca pôs a leiteira de novo na mesa. Só faltava encher o açucareiro; foi buscar mais cré e pô-lo no açucareiro, que colocou sobre a mesa, mirando tudo, encantada.

Bravo!, disse, a esfregar as mãos, que belo chá! Muito esperta sou! Aposto que nem o Paulo nem nenhuma das minhas amigas eram capazes de tão linda invenção.

Sofia teve de esperar ainda meia hora pelas suas amigas, mas não se aborreceu com isso; estava tão contente com o seu chá, que não arredava pé dali. À volta da mesa mirava e remirava tudo com satisfação. Esfregando as mãos, dizia:

Mas que esperta sou!

Finalmente, chegaram Paulo e as amigas. Sofia correu para eles. Beijou as amigas e levou-as logo ao quarto, para lhes mostrar as suas lindas prendas. A caixa de tinta enganou-as como enganara Sofia e a criada.

Acharam o serviço muito engraçado e quiseram tomar chá imediatamente. Sofia pediu-lhes que esperassem até às três horas. Foram colorir estampas. Cada um tinha o seu livrinho. Depois de brincarem muito, arrumaram tudo novamente. Então, Paulo exclamou:

- Agora vamos tomar chá.

- Sim, sim, vamos tomar chá - responderam as meninas.

CAMILA - Vamos. Sofia, faz as honras da casa.

SOFIA - Sentem-se em volta da mesa... Assim... está bem... Dêem-me as chávenas para eu lhe pôr açúcar. Agora o chá. Querem leite? Podem beber.

MADALENA - Que estranho: o açúcar não se derrete!

SOFIA - Mexam bem que se derrete.

PAULO - O meu chá está frio.

SOFIA - É porque já está feito há muito tempo.

CAMILA (prova o chá e põe-no de lado com repugnância) - Oh! que horror! Que é isto?! Isto não é chá!

MADALENA (pondo-o também de parte)É detestável; sabe a cré.

PAULO (cuspindo) - Que nos deste tu, Sofia? Isto é horrível, repugnante!

SOFIA (atrapalhada) - Acham?

PAULO - Se achamos?! Não nos devias fazer uma partida assim. Merecias que te obrigassem a beber o teu horrível chá.

SOFIA (zangando-se) - Vocês são tão exigentes, que nada acham bom.

CAMILA (sorrindo) - Confessa, Sofia, que não é preciso sermos exigentes para acharmos o teu chá detestável.

MADALENA - Creio que nunca provei coisa tão mal saborosa.

PAULO (pegando no bule) - Bebe tu, anda, bebe e depois diz se somos exigentes.

SOFIA (debatendo-se) - Deixa- me, não sejas maçador.

PAULO - Ah! somos exigentes! Então achas o teu chá bom! Hás-de bebê-lo, e o leite também.

E Paulo, agarrando Sofia, deitou-lhe o chá pela boca abaixo. Ia fazer o mesmo ao leite quando Camila e Madalena, que eram muito boas, tiveram pena dela e se precipitaram sobre Paulo, para lhe tirar a leiteira. Paulo, que estava furioso, empurrou-as; Sofia então caiu-lhe em cima, aos murros. Camila e Madalena tentaram segurar Sofia. Paulo berrava, Sofia gritava, Camila e Madalena pediam socorro. As mamãs acorreram, assustadas. Ao verem-nas, todos ficaram imóveis.

- Que foi isto? - perguntou a Sr.a Rean, com modo severo e inquieto.

Ninguém respondeu.

  1. A FLEURVILLE - Camila, que bulha foi esta?

CAMILA - Mamã, Madalena e eu não bulhámos.

SR.a FLEURVILLE - Como não bulhavam? Tu seguravas o braço da Sofia, e Madalena tinha o Paulo preso por uma perna.

CAMILA - Era para os impedir de. de. brincarem com muita força.

SRA FLEURVILLE (com um sorriso furtivo) - Ah! Tu chamas a isso brincar?!

SR.a REAN - Já vejo que foi Sofia e Paulo que bulharam como de costume. Camila e Madalena quiseram apartá-los. Adivinhei, não é verdade, Camila?

CAMILA (baixo e corando) - É, sim, minha senhora.

SR AUBERT - Não tem vergonha, Paulo, de se portar desta maneira? Por um nada se zanga e trata logo de bater.

PAULO - Não foi por um nada, mamã; Sofia quis-nos obrigar a beber um chá tão horrível, que íamos vomitando. Quando lho dissemos, respondeu-nos que éramos muito exigentes.

A Sr. a Rean pegou na leiteira, cheirou-a e provou. Fez uma careta. Perguntou à Sofia:

- Onde arranjou este horrível leite, menina?

SOFIA (de cabeça baixa e envergonhada)Fi-lo eu, mamã.

SR.a REAN - Fizeste-o?! Com quê? Responda...

SOFIA - Com cré e água do cão.

SR.a REAN - E o chá, que era?

SOFIA - Folhas de trevo e também água do cão.

SR.a REAN (examinando o açucareiro)Sim, senhora! Um lindo chá para dar às suas amigas! Água suja e cré. Começa bem os seus quatro anos, menina. Principia por desobedecer porque lhe disse que não fizesse chá; depois pretende fazer tomar um chá, repugnante às suas amigas. E ainda por cima bulha com o seu primo. Vou guardar-lhe o serviço para que isto não se repita. Se não fossem as suas amigas, que são muito boazinhas e que ficariam tristes, mandava-a para o seu quarto imediatamente.

As mamãs retiraram-se, rindo do ridículo banquete inventado por Sofia. As crianças ficaram sós. Paulo e Sofia, envergonhados de terem bulhado, não ousavam olhar um para o outro. Camila e Madalena abraçaram- nos, procurando reconciliá-los. Sofia beijou Paulo; pediu perdão a todos, e tudo esqueceu. Foram para o jardim, onde apanharam oito lindas borboletas, que Paulo pôs dentro de uma caixa que tinha a tampa de vidro. Passaram o resto da tarde a arranjar a caixa, para que as borboletas ficassem bem instaladas. Puseram lá dentro erva, flores, umas gotas de água açucarada e morangos.

À noite, quando todos se retiraram, Paulo levou a caixa das borboletas. Sofia, Camila e Madalena obrigaram-no a isso, pois todas viam que ele assim o desejava.

 

                   Os lobos

Sofia não era obediente. Já devia estar emendada com tantos disparates, mas não estava; por isso muitos outros desastres lhe sucederam.

No dia seguinte ao do aniversário, a mamã chamou-a e disse-lhe:

- Prometi-te que logo que fizesses quatro anos passarias a acompanhar-me nos meus passeios, todas as tardes. Vou a Svitine e tenho de passar pela floresta. Vem comigo, mas é preciso cuidado. Não fiques para trás. Sabes bem que ando depressa; se paras, podes perder-te sem eu dar por isso.

Sofia, muito contente por dar um grande passeio, prometeu ir juntinha à mamã e não se perder. Paulo, que acabava de chegar, pediu para as acompanhar, o que deu grande alegria a Sofia.

Durante certo tempo tiveram muito juízo, sempre atrás da Sr. a Rean. Entretinham-se a ver correr e saltar os grandes cães que ela levava sempre consigo.

Quando chegaram à floresta, puseram-se a apanhar flores no caminho, mas sempre a andar. Eis senão quando Sofia vê perto do caminho morangueiros carregados de frutos.

- Olha, que belos morangos! -exclamou ela. - Que pena não os podermos apanhar!

A Sr. a Rean ouviu a exclamação e, voltando-se, recomendou-lhes que não parassem.

Sofia suspirou e olhou, cobiçosa, os lindos morangos.

-Não olhes para eles -disse-lhe Paulo. - É a maneira de te esqueceres mais depressa.

SOFIA - Estão tão vermelhinhos, tão bonitos, tão maduros! Devem ser uma delícia!

PAULO - Quanto mais olhares para eles, mais vontade terás de os comer. Se a tia te proibiu de os apanhares, para que hás-de estar a namorá-los?

SOFIA - Queria apanhar só um. É um instante. Fica comigo, comeremos ambos.

PAULO - Não quero desobedecer à tia e tenho medo de me perder.

SOFIA - Não há perigo nenhum. Bem sabes que foi para nos meter medo que a mamã disse aquilo. Se ficássemos para trás, saberíamos bem dar com o caminho.

PAULO - Qual sabíamos! A mata é muito fechada.

SOFIA - Faz como quizeres, poltrão; a primeira vez que encontrarmos morangos, hei-de apanhá-los.

PAULO - Eu não sou poltrão, mas a menina é uma desobediente e uma gulosa. Perca-se na floresta, se quiser. Eu prefiro obedecer à minha tia.

E Paulo continuou a seguir a Sr. a Rean, que andava muito depressa e sem se voltar. Os cães iam junto dela, uns atrás, outros adiante. Sofia bem depressa encontrou novos morangos, tão bons como os primeiros; comeu um que achou delicioso, e a seguir outro, e outro. Baixou-se para os apanhar mais à vontade e mais depressa. De tempos a tempos deitava uma olhadela para a mãe e para Paulo, que se afastavam cada vez mais. Os cães começaram a ficar desassossegados. Iam até à mata e voltavam. Acabaram por se aproximar

tanto da Sr. a Rean que ela parou a ver qual a causa de tamanha inquietação. Através das árvores, viu luzir olhos ferozes. Ao mesmo tempo ouviu barulho de ramos partidos e de folhas secas. Voltou-se, para recomendar aos meninos que andassem na frente, mas ficou aterrada. Só viu Paulo!

- Onde está Sofia? - exclamou ela.

PAULO - Quis ficar para trás a apanhar morangos, minha tia.

  1. A REAN - Desgraçada criança! O que ela foi fazer! Os lobos vêm atrás de nós. Voltemos para a salvar, se ainda for tempo!

A Sr. a Rean pôs-se a correr, seguida de Paulo, aterrorizado, e dos cães, em busca de Sofia. Viu-a de longe, sentada no chão, a comer morangos, tranquilamente. De repente, os cães soltaram um uivo e correram para Sofia. Um lobo enorme, de olhos faiscantes, a boca aberta, espreitava, cautelosamente, do matagal. Ao ver os cães, hesitou um momento. Mas como se pensasse ter tempo de saltar sobre Sofia para a levar para a floresta onde a devoraria, deu um salto prodigioso e fincou-a. Os cães, ante o perigo que corria a sua dona pequenina, e excitados pelos gritos de pavor da Sr. a Rean e de Paulo, caíram sobre o lobo no momento em que ele fincava Sofia pelas saias, para a arrastar para a floresta. O lobo, ao sentir-se mordido, largou Sofia. Então travou-se entre ele e os cães uma luta encarniçada. Daí a pouco chegaram mais dois lobos, que vinham na cola da senhora e dos meninos. Os cães hesitaram. Mas com tal ímpeto se lhes atiraram, que os três lobos deram às de vila-diogo. Cobertos de sangue os cães vieram lamber as mãos da Sr. a Rean e das crianças, que tinham assistido ao combate, trémulas de medo. A Sr. a Rean afagou-os e pôs-se a caminho, com os pequenos pela mão, ladeada pelos seus corajosos defensores.

A Sr. a Rean nada dissera a Sofia, que mal se podia ter nas pernas. O pobre Paulo estava quase tão pálido e tão trémulo como ela. Por fim chegaram ao extremo da mata. Havia ali um regato.

- Paremos aqui - disse a Sr. a Rean -; vamos beber água para nos reanimarmos.

A Sr. a Rean curvou-se sobre o regato e bebeu duas ou três goladas. Depois borrifou o rosto e as mãos. Os meninos fizeram o mesmo. Ficaram todos menos trémulos e mais

animados.

Os cães, coitados, tinham-se atirado à água. Bebiam e lavavam as feridas, revolvendo-se no regato. Quando saíram de lá vinham limpos e frescos.

Passado um quarto de hora, a Sr. a Rean levantou-se para partir. Os petizes caminhavam a seu lado.

- Sofia - disse a mãe -, viste porque é que eu não queria que parasses?

SOFIA - Vi, sim, mamã. Perdoe-me por lhe ter desobedecido. E tu também, Paulo, perdoa-me por te ter chamado poltrão.

SR.a REAN - Poltrão! Mas tu chamaste-lhe poltrão? Fica sabendo que era ele quem corria à frente, quando te fomos acudir! Quando os outros lobos vieram em socorro do companheiro, não o viste com um pau em punho, à frente deles, para os não deixar passar? Tive de o agarrar por um braço; queria ir socorrer os cães. E não reparaste como durante o combate esteve sempre à frente de nós, para que os lobos não nos tocassem? Aí está como Paulo é poltrão!

Sofia saltou ao pescoço de Paulo, cobriu-o de beijos, e disse-Lhe:

-Obrigada, meu bom Paulo, hei- de ser sempre muito tua amiga.

Quando chegaram, todos pasmaram por vê-los tão pálidos e o vestido de Sofia rasgado pelos dentes do lobo. A Sr. a Rean contou a terrível aventura. Todos elogiaram Paulo pela sua obediência e coragem, e censuraram Sofia por ser desobediente e gulosa. A valentia dos cães, que tiveram nesse dia um excelente jantar de carne e ossos, foi muito louvada.

No dia seguinte a Sr. a Rean deu a Paulo um uniforme completo de zuavo. Paulo, doido de alegria, vestiu-o imediatamente. Sofia, quando o viu, deu um grito de pavor, julgando-se diante de um turco, de turbante, sabre na mão e pistolas à cinta. Paulo desatou a rir e a saltar, e a prima, reconhecendo-o, achou que o uniforme Lhe ficava a matar.

Sofia não foi castigada pela sua desobediência.

A mamã pensava ser castigo suficiente o susto que ela apanhara. Tinha a certeza de que não repetiria a proeza.

 

                   A cara arranhada

Sofia tinha mau génio, defeito de que ainda não havíamos falado.

Um dia entretinha-se a colorir um dos caderninhos da caixa de tintas, enquanto Paulo recortava cartões para fazer cestos, mesas e bancos. Estavam ambos sentados a uma mesinha, em frente um do outro. Paulo balouçava as pernas e fazia tremer a mesa.

- Tem cuidado - disse Sofia, com impaciência. - Estremeces a mesa. Assim não posso pintar.

Paulo reprimiu-se logo; depois, esquecido, continuou.

- És insuportável - exclamou Sofia. - Já te disse que assim não posso pintar.

PAULO - Ora! Pelas lindas coisas que tu fazes não vale a pena a gente incomodar-se.

SOFIA - Eu bem sei que nunca te preocupas com os outros. Mas como me estás a incomodar, peço-te que estejas quieto com as pernas.

PAULO - Mas se as minhas pernas não querem estar quietas... Mexem sem eu querer.

SOFIA (zangada) - Pois eu ato-as com uma corda; e, se continuas, ponho-te lá fora.

PAULO - Experimenta! Verás como trabalham os pés que estão agarrados às pernas!

SOFIA - Eras capaz de me dar pontapés?

PAULO - Ai, não! Se me bates, já sabes.

Sofia, furiosa, atirou água à cara de Paulo. Ele zangou-se e deu um pontapé na mesa. Tudo o que lá estava se entornou. Sofia, então, atirou-se a Paulo. Arranhou-lhe a cara: o sangue começou a escorrer das arranhadelas. Paulo gritava, mas, Sofia, de cabeça perdida, continuava a dar-lhe murros e socos. Paulo, que não queria bater-lhe, acabou por fugir. Foi fechar-se num quarto. Sofia bateu, bateu à porta, mas Paulo não a abriu. Pouco a pouco, Sofia foi-se acalmando e acabou por se arrepender do que havia feito. Lembrou-se de que Paulo tinha arriscado a vida para a defender dos lobos.

Coitado do Paulo, pensava ela. Que má que eu fui! Que hei-de fazer para que fique de bem comigo? Eu não quero pedir-lhe perdão. É tão aborrecido ter de dizer: - Perdoa-me... Mas, acrescentou ela, depois de ter reflectido um instante, ainda é pior ser-se má! E como há-de o Paulo perdoar-me se eu não lhe peço perdão?

Esteve indecisa um bocado; depois foi bater à porta do quarto onde Paulo se fechara, mas devagarinho, sem murros furiosos, chamando com voz doce e humilde: Paulo! Paulo! Paulo não respondeu. Paulo!, continuou ela, sempre com voz amiga. Perdoa-me, Paulo, fui muito má, mas podes ter a certeza de que não torno.

A porta abriu-se, devagar; a cabeça de Paulo apareceu, fita em Sofia, com desconfiança:

- Já não estás zangada? Sério? - disse ele.

- Não, sério, meu querido Paulo - respondeu Sofia -; estou muito arreliada por ser tão má.

A porta abriu-se completamente e Sofia, encarando com Paulo, viu-lhe a cara toda arranhada. Soltou um grito e atirou-se-lhe ao pescoço.

-Oh! Paulo!, o que eu te fiz! Como te arranhei! E agora que havemos de fazer para te curar?

- Isto não é nada - respondeu Paulo. Passa num instante. Vou-me lavar. Depois de lavado o sangue, fico bom.

Sofia correu com Paulo para a casa de banho, mas, por mais que ele se lavasse, as arranhadelas ficavam na mesma. Sofia estava desolada.

- Que dirá a mamã? Com certeza zanga-se e vai castigar-me.

Paulo, que era muito bom, também estava apoquentado; não sabia o que havia de inventar para que Sofia não fosse castigada.

-Não posso dizer que caí nas silvasdisse ele - porque não é verdade. Mas. espera: já vais ver.

E deitou a correr. Sofia seguiu-o. Foram ter a uma pequena mata que havia perto de casa; Paulo dirigiu-se para um silvado, onde se deixou cair; depois, tanto se rebolou nele que ficou com a cara toda em sangue. Quando Sofia o viu assim, desatou a chorar.

- Fui eu que tive a culpa de tudo isto - dizia ela. - Foi para que não me castigassem e para que se não visse o que eu fiz que te arranhaste assim. Oh! meu querido Paulo, que bom que tu és! Sou tão tua amiga!

- Vamos depressa para casa para eu me lavar outra vez - disse Paulo. - Não estejas triste. Isto não me dói nada e amanhã já estou bom. O que te peço é que não digas nada. Se disseres fico zangado contigo e de nada serve ter-me arranhado nas silvas. Prometes?

- Sim - disse Sofia, beijando-o. - Faço tudo que quiseres.

Foram para casa lavar mais uma vez a cara de Paulo.

- Como fizeste isso, rapaz? - perguntou a Sr. a Aubert. - Meu pobre Paulo, parece que te andaste a rolar nas silvas.

PAULO - Foi o que me aconteceu, mamã. Caí, quando ia a correr, num silvado, e ao tentar levantar-me arranhei-me todo.

  1. A AUBERT - És muito desastrado. Devias levantar-te com muito jeito para não te arranhares assim.

SRa REAN - E onde estavas tu, Sofia, que não o ajudaste a levantar- se?

PAULO - Ela vinha a correr atrás de mim, minha tia, e não chegou a tempo de me ajudar. Quando se aproximou, já eu estava de pé.

A Sr. a Aubert levou Paulo, para lhe tratar das arranhadelas.

Sofia ficou junto da mãe, que a examinava atentamente.

SR.a REAN - Porque estás tão triste

Sofia?

SOFIA (corando) - Eu não estou triste, mamã.

SRa REAN - Estás, sim, e inquieta, como se tivesses alguma coisa que te afligisse.

SOFIA (com as lágrimas nos olhos) - Não tenho nada, mamã, não tenho nada.

SR A REAN - Tu bem vês que estás quase a chorar, ao dizeres isso.

SOFIA (desatando em soluços) - Eu não posso. dizer-Lhe. prometi ao Paulo.

SRA REAN (puxando Sofia para si) - Ouve, Sofia, se Paulo fez alguma maldade, deves dizê-lo, apesar da tua promessa. Prometo-te que não lhe ralharei nem direi nada à sua mamã; mas quero saber porque estás tão triste e chorosa.

Sofia escondera a cara nos joelhos da mãe e soluçava tanto, que não podia falar. A Sr. a Rean procurava sossegá-la. Por fim Sofia pôde dizer:

-Paulo não fez nenhuma maldade, pelo contrário: é muito bom. Eu é que sou sempre má, e foi para que não me ralhassem e castigassem que ele se rebolou nas silvas.

A Sr. a Rean, cada vez mais surpreendida pôs-se a interrogar Sofia, que acabou por lhe contar tudo quanto se passara.

- Que belo rapazinho! - exclamou a Sr. a Rean. - Que belo coração o seu! Que coragem! Que bondade E que diferença entre ti e o teu primo, minha pobre Sofia! Tu que estás sempre a zangar-te com ele, a ser ingrata, e ele, tão teu amigo, sempre a perdoar-te e a esquecer as tuas injustiças. Vê como ele foi generoso contigo!

SOFIA - Eu bem sei tudo isso, mamã, e de hoje para o futuro nunca mais me zangarei com o Paulo.

SRa REAN - Não te repreendo nem te castigo, pois vejo que os teus remorsos bastam para te castigar. E, depois, foste sincera, e confessaste o que poderias ter ocultado: fizeste muito bem.

 

                   Isabel

Sofia estava um dia sentada na sua cadeirinha, sem fazer nada, pensativa.

- Em que pensas? - perguntou-lhe a mãe.

SOFIA - Estava a pensar na Isabel Chéneau, mamã.

SRa REAN - E a que propósito pensavas nela?

SOFIA - É que reparei que ela ontem tinha um grande arranhão no braço. Quando lhe perguntei como se havia arranhado, corou, e, escondendo o braço, disse: -Não digas nada! foi para me castigar. - Estava a pensar no que ela tinha querido dizer com aquilo.

SR A REAN - Eu explico-te, se quiseres, porque também reparei nesse arranhão, e a sua mamã contou-me como tinha sido feito. Escuta, pois é uma lição.

Sofia, encantada por ouvir uma história, aproximou mais a sua cadeira da da mãe.

SR.a REAN - Sabes, a Isabel é muito boa menina mas tem um defeito: mau génio (Sofia baixou a cabeça). Até já tem batido na criada. Depois, arrepende-se, quando o mal está feito. Anteontem passava a ferro os vestidos das suas bonecas: a criada era quem arranjava os ferros, com medo de que ela se queimasse. Isabel estava contrariada por não ser ela a fazer tudo. Mas a criada não a deixava e por várias vezes a agarrou quando ela se aproximava do lume, às escondidas. Por fim conseguiu chegar à chaminé. Ia a pôr lá o ferro quando a criada a viu. Tirou-lho, e disse:

- Já que a menina não quer fazer o que lhe digo, não passará mais a ferro. -E pegou nos ferros e fechou-os num armário.

-Quero os meus ferros! -gritava Isabel -; quero os meus ferros!

- Não, menina, não lhos dou.

-Dá-me os meus ferros, grande má - tornou Isabel, furiosa.

-Não dou. Já estão fechados -disse a criada, tirando a chave do armário.

Isabel, enraivecida, quis tirar-lhe a chave, mas, como não o conseguisse, arranhou-a com tanta força, que a deixou a escorrer sangue. Mas ao ver o que tinha feito, sentiu- se desolada. Pediu perdão à criada, beijou-lhe o braço, lavou-lho com água. A criada, boa mulher, vendo-a tão aflita, garantiu-lhe que não sentia nada.

- Não acredito - disse Isabel, chorosa. Mereço sofrer tanto como te fiz sofrer. Arranha-me também.

Como calculas, a criada não fez o que Isabel lhe pedia e ela acabou por não insistir mais. Mostrou-se muito dócil o resto do dia e foi-se deitar com muito juízo. No dia seguinte, quando a criada lhe foi fazer a cama, viu sangue nos lençóis e olhando-lhe para o braço viu-o horrivelmente arranhado.

- Que foi isso, menina? - exclamou ela.

- Fui eu, para me castigar de ontem te ter arranhado.

A criada, comovida, beijou Isabel, que lhe prometeu ter muito juízo de futuro. Compreendes agora porque Isabel corou?

SOFIA - Compreendo, mamã. Foi muito bonito o que Isabel fez. E agora tenho a certeza de que nunca mais terá mau génio, porque sabe que é muito feio.

SRa REAN (sorrindo) - Tu nunca fazes aquilo que sabes que é feio?

SOFIA (atrapalhada) - Eu sou mais nova, tenho só quatro anos. Isabel tem cinco.

SR.a REAN - A diferença não é muito grande; lembra-te da tua zanga há oito dias, com o Paulo, que tão teu amigo é.

SOFIA - É verdade, mamã, mas creio que nunca mais tornarei, porque sei agora que é muito feio.

  1. REAN - Gostaria muito que assim fosse, mas toma cuidado, não te suponhas melhor do que és. A isso chama-se vaidade, o que é um grande defeito.

Sofia não respondeu, mas sorriu com ar satisfeito, o que queria dizer estar certa de ter sempre juízo.

A pobre Sofia foi bem castigada, pois eis o que aconteceu dois dias depois.

 

                   As frutas cristalizadas

Sofia voltava de um passeio com o seu primo Paulo. No vestíbulo estava um homem que devia ser moço de fretes, com um embrulho.

- Por quem espera o senhor? -perguntou Paulo, delicadamente.

HOMEM - Espero pela Sr. a Rean. Tenho uma encomenda para lhe entregar.

SOFIA - Da parte de quem?

HOMEM - Não sei, menina: apenas lhe posso dizer que vem de Paris.

SOFIA - E que traz o embrulho?

HOMEM - Julgo que devem ser frutas cristalizadas. Pelo menos é o que diz o registo.

Os olhos de Sofia brilharam; lambeu os beiços.

- Vamos depressa avisar a mamã - disse ela a Paulo.

E partiu a correr. Instantes depois chegava a Sr. a Rean.

Pagou ao homem e levou o embrulho para a sala. Paulo e Sofia seguiram-na. Mas ficaram muito desapontados quando a viram pousar o embrulho numa cadeira e voltar para a secretária onde estava a escrever. Sofia e Paulo entreolhavam-se, desconsolados.

- Pede à mamã para o abrir - disse Sofia, baixinho, a Paulo.

PAULO (baixo também) - Nessa não caio eu. A tia não gosta que sejamos impacientes e curiosos.

SOFIA (baixo) - Pergunta-lhe se quer que a gente abra o embrulho, para ela não ter esse trabalho.

SRa REAN - Ouço muito bem o que estás a dizer, Sofia. É muito feio ser-se hipócrita, fingindo-se prestável apenas por curiosidade. Se tivesses dito francamente: - Mamã, gostava de ver as frutas cristalizadas, dê-me licença de abrir o embrulho -tinha-te dado licença para isso. Agora proíbo-te que lhe mexas.

Sofia, envergonhada e descontente, saiu do quarto, seguida de Paulo, que comentou:

- Ora aí tens para que te serviu quereres ser prestável. És sempre assim. Sabes muito bem que a tua mãe detesta pessoas falsas.

SOFIA - E tu porque não pediste logo o que eu te disse? Queres sempre ser muito ajuizado e só fazes tolices.

PAULO - Em primeiro lugar eu não faço só tolices e depois não quero passar sempre por ajuizado. Tu dizes isso, porque estás furiosa por não teres provado as frutas cristalizadas.

SOFIA - Engana-se, meu senhor, eu apenas estou furiosa consigo, porque faz sempre com que me ralhem.

PAULO - Mesmo no dia em que me arranhaste?

Sofia corou, envergonhada, e calou-se. Ficaram algum tempo sem falar. Sofia tinha vontade de pedir perdão a Paulo, mas a isso se opunha o seu amor-próprio. Paulo, que era bom rapazinho, não estava zangado com Sofia, mas não sabia como dirigir-lhe a palavra. Por fim descobriu um meio engenhoso: balançou-se na cadeira, e tanto se inclinou para trás que acabou por cair. Sofia correu a ajudá-lo a levantar-se.

- Coitado, magoaste-te, Paulo? - perguntou ela.

PAULO - Não, pelo contrário.

SOFIA (rindo-se) - Ah! pelo contrário! Essa é boa.

PAULO - Então não vês que com a minha queda se acabou a nossa zanga?

SOFIA (beijando-o) - Meu Paulo. Que bom que tu és! Então foi de propósito que caíste? Podias ter-te magoado.

PAULO - Ora, como querias tu que eu me magoasse caindo de uma cadeira tão baixa? E agora, que já não estamos zangados, vamos brincar.

E desataram a correr. Quando atravessaram a sala viram o embrulho, ainda atado. Paulo arrastou consigo Sofia, que queria parar, e não mais pensaram no caso.

Depois de almoçar, a Sr. a Rean disse para os pequenos:

- Vamos abrir o famoso embrulho, e provar as frutas. Paulo, vai-me buscar uma faca para cortar o cordel.

Paulo partiu, como um relâmpago. No mesmo instante estava de volta com a faca, que entregou à tia. A Sr. a Rean cortou o cordel, retirou os papéis do embrulho: dentro estavam doze caixas de frutas cristalizadas e de marmelada de abrunhos.     

- Vamos provar os doces, para ver se são bons - disse ela, abrindo uma das caixas. Tira dois, Sofia; escolhe os de que mais gostares. Tens aqui peras, abrunhos, ameixas, figos.   

Sofia hesitou uns instantes; estava a ver quais seriam os maiores. Por fim decidiu-se por uma pêra e um abrunho. Paulo escolhe     uma ameixa e um figo. Depois de todos terem            provado, a mamã fechou a caixa, ainda quase          meia, e foi pô-la numa prateleira do seu quarto. Sofia seguiu-a até à porta.

Quando voltou, a Sr. a Rean disse aos dois pequenos que não os podia levar a passear porque tinha de fazer uma visita.     

- Divirtam-se, meus filhos. Podem passear ou ficar em casa. Como queiram.

Beijando-os, subiu para a carruagem com o     Sr. Rean e os pais de Paulo.

Os pequenos brincaram durante algum tempo em frente da casa. Sofia falava constantemente nas frutas cristalizadas.

- Tenho pena - dizia ela - de não ter provado os figos e as ameixas. Devem ser  muito bons.

- Sim, são bons - respondia Paulo -, mas podes comê-los amanhã. Não penses mais nisso e vamos brincar.

Continuaram com a brincadeira, invenção de Paulo. Tinham feito uma cova, que enchiam de água; mas era preciso estar sempre a regá-la, pois a terra bebia quanta lhe deitavam. A certa altura Paulo escorregou na terra elameada e entornou um regador pelas pernas.

-Ai! Ai! a água está gelada: estou encharcado. Tenho de mudar de meias, de sapatos, de calças. Espera-me aqui, que eu não me demoro.

Sofia ficou junto da cova, mas com o pensamento longe. Em que pensaria ela? Pensava no doce de frutas, nos figos, nas ameixas. Lamentava não poder comer mais, não ter provado de tudo.

Amanhã, pensava, a mamã torna-me a dar; mas não terei tempo de escolher. Se eu as pudesse ver hoje, escolheria as que hei-de comer amanhã. E porque não hei-de eu olhar para elas? Basta abrir a caixa.

E Sofia, muito contente com a sua ideia, correu ao quarto da mamã, onde procurou chegar à prateleira. Mas por mais que saltasse e estendesse o braço, não conseguiu chegar à caixa. Não sabia que fazer; procurava um pau, uma tenaz, qualquer coisa que lhe servisse, quando, de repente, deu uma palmada na testa, exclamando:

Sempre sou muito tola! Arrasto aquela poltrona, e pronto: subo acima dela!

Sofia puxou uma poltrona muito pesada para junto da prateleira, trepou acima dela, agarrou a caixa e abriu-a. Os seus olhos devoraram as belas frutas.

Qual hei-de eu escolher amanhã?, pensou ela. Não podia decidir-se. Ora lhe ficavam os olhos numa, ora noutra. O tempo passava. Paulo devia estar a chegar.

Que diria ele, se me visse aqui?, pensava Sofia. <<Imaginaria que eu estava a roubar as frutas cristalizadas, o que não é verdade. Só estou a olhar para elas... Tenho uma boa ideia: se eu desse uma dentadinha em cada uma, ficaria a conhecer o gosto de todas. E ninguém daria por isso: eu dava uma dentada tão pequenina, que não se conheceria.

E Sofia mordeu um figo, depois uma ameixa, em seguida um abrunho, uma pêra, mas não se decidia por nenhuma.

Tenho de voltar ao princípio, murmurou ela.

E voltou a morder uma por uma. Tantas vezes o fez, que a caixa ficou quase vazia. Quando se apercebeu disso, ficou apavorada.

Meu Deus, o que eu fui fazer!, exclamou ela. Só queria provar e comi quase tudo. A mamã vai descobrir isso logo que abra a caixa. Verá que fui eu. Que hei-de fazer?... Podia dizer que não fui eu, mas a mamã não acreditaria. Se eu dissesse que foram os ratos? Ainda ontem vi um no corredor! Direi que foi uma ratazana, porque é maior do que um rato. Come mais. Como eu comi quase tudo, mais vale dizer que foi uma ratazana.

E Sofia, encantada com a sua esperteza, fechou a caixa, pô-la no seu lugar e saltou da poltrona. Voltou a correr para o jardim; acabava de pegar na pá quando chegou o Paulo.

PAULO - Demorei-me muito, não é verdade? Não encontrava os sapatos; tinham-nos levado para engraxar. Procurei por toda a parte antes de perguntar ao Baptista. Que fizeste tu durante todo este tempo?

SOFIA - Nada; estive à tua espera, a brincar com a água.

PAULO - Mas deixaste secar o nosso tanque; não tem nem uma gota de água. Dá-me a pá. Vou bater o fundo para ficar mais duro. Tu vais buscar água com o regador.

Sofia foi buscar água enquanto Paulo arranjava a cova. Quando voltou, Paulo entregou-lhe a pá, dizendo:

- A tua pá está toda peganhenta. Pega-se aos dedos. Que lhe puseste tu?

- Nada - disse Sofia. - Não sei que é isso.

E Sofia mergulhou, precipitadamente,   as mãos no regador cheio de água. Vira nesse momento que elas estavam lambuzadas.

- Porque mergulhaste as mãos no regador? - perguntou Paulo.

SOFIA (atrapalhada) - Para ver se a água

está fria.

PAULO (rindo) - Que cara tu tens desde

que eu voltei! Parece que fizeste alguma maldade.

SOFIA (perturbada) - Que maldade querias que eu fizesse?! Podes crer: não fiz mal nenhum. Não sei porque dizes isso; tens sempre ideias disparatadas.

PAULO - Já estás zangada! Foi por brincadeira que te disse isto. Está bem! Acredito que não fizeste nada de mal; podes estar descansada. Escusas de me deitar uns olhos tão maus.

Sofia encolheu os ombros, e, pegando no regador, despejou a água na cova. Brincaram assim até às oito horas; a criada veio buscá-los, porque eram horas de jantar.

Sofia passou a noite agitada; sonhou estar perto de um jardim de que a separava uma cancela. Esse jardim estava cheio de flores e frutas, que pareciam deliciosas. Ela queria entrar, mas o seu anjo da guarda puxava-a para trás, dizendo, em voz triste: -Não entres, Sofia, não proves dessas frutas que te parecem tão boas e que são amargas e envenenadas. Esse jardim é o jardim do mal. Deixa que eu te leve para o jardim do bem.

- Mas, replicou Sofia, o caminho é mau, está cheio de pedras. O outro é coberto de areia fina e macia.

- É verdade, redarguiu o anjo. Mas o caminho pedregoso leva-te ao jardim das delícias. O outro levar-te-á a um lugar de sofrimento e tristeza. Tudo lá é mau: os seres que o habitam são maus e cruéis. Em vez de te consolarem, rir-se-ão do teu sofrimento, e atormentar-te-ão.

Sofia hesitava. Olhou para o belo jardim coberto de frutas e flores, com ruas areadas e cheias de sombras; depois relanceou os olhos para o caminho pedregoso e árido, que parecia não ter fim. Voltando-se para a cancela aberta escapou-se das mãos do anjo e entrou no jardim. O anjo gritou-lhe: Volta, Sofia, eu espero-te aqui até à hora da tua morte. Se voltares, levar-te-ei ao jardim das delícias pelo caminho pedregoso, que se irá tornando macio à medida que fores avançando nele.

Sofia não deu ouvidos ao anjo: crianças muito lindas chamavam-na, e ela correu para elas, que a rodeavam, rindo. Mas puseram-se a beliscá-la, a empurrá-la, a deitar-lhe areia nos olhos.

Sofia fugiu delas a custo. Depois colheu uma flor. Mal a cheirou, arremessou-a fora, com repugnância. Tinha um cheiro nauseabundo. Seguiu em frente. Adiante havia uma árvore carregada de frutos de linda aparência. Colheu um, que provou, mas logo o deitou fora, como fizera à flor. Tinha um gosto amargo, detestável. Sofia, já triste, continuou a andar, mas por toda a parte flores e frutos eram a mesma coisa. Passado algum tempo nesse jardim em que tudo era mau, Sofia lembrou-se do anjo. Apesar de todas as promessas e de todos os gritos que a seguiam, correu à cancela, onde o anjo lhe estendia os braços. Sacudiu os meninos maus e lançou-se nos braços do anjo, que a levou pelo caminho pedregoso. Os primeiros passos foram difíceis, mas, à medida que ia andando, o caminho tornava-se suave e a região fresca e agradável. Ia a entrar no jardim do bem, quando acordou, sobressaltada e coberta de suor. Depois ficou muito tempo a pensar no sonho. Havia de pedir à mamã que lho explicasse. Por fim adormeceu e dormiu até ao dia seguinte.

Quando entrou no quarto da Sr. a Rean achou-a com cara carrancuda. Mas o sonho fizera-Lhe esquecer as frutas cristalizadas. Começou logo a contá-lo à mãe.

MAMÃ - Sabes o que ele significa, Sofia? Que Deus, sabendo que não tens juízo, te previne, por meio desse sonho, de que terás desgostos e não alegrias, se continuares a fazer só o que te dá prazer. Esse jardim enganador é o Inferno; o jardim do bem, o Paraíso. Chega-se lá por um caminho pedregoso, isto é, privando-nos de coisas agradáveis, mas proibidas. O caminho torna-se suave à medida que vamos andando por ele; isto é, à força de sermos obedientes, de sermos dóceis, de sermos boas, de tal modo nos habituaremos que nada nos custará obedecer e sermos bons, nem nada nos custará renunciar a todos os nossos desejos.

Sofia agitava-se na cadeira. Corava, olhava para a mãe. Queria falar, mas não podia. Por fim, ante a sua agitação, a Sr. a Rean veio em auxílio de Sofia. Disse-lhe:

- Queres confessar alguma coisa, mas não tens coragem, porque custa sempre confessar uma falta. É esse, precisamente, o caminho pedregoso para que te chama o teu anjo da

guarda. Vamos, Sofia, ouve-o e salta, corajosamente, por sobre as asperezas do caminho que ele te aponta.

Sofia corou ainda mais, escondeu o rosto nas mãos e, em voz trémula, contou à mamã que tinha comido, na véspera, quase todas as frutas cristalizadas que estavam na caixa.

MAMÃ - E como procuravas tu ocultar-mo?

SOFIA - Dizendo à mamã que tinham sido os ratos.

SR.a REAN - Eu nunca teria acreditado nisso, como deves calcular, porque os ratos não podiam levantar a tampa da caixa e torná-la a fechar. Os ratos teriam começado por roer a caixa antes de chegarem às frutas. E, depois, os ratos não teriam precisão de umapoltrona para chegarem à prateleira.

SOFIA (com surpresa) - Como sabe a mamã que eu arrastei a poltrona?

SRa REAN - Porque te esqueceste de a arrumar e foi a primeira coisa que vi quando entrei no quarto. Logo calculei que tivesses sido tu, sobretudo quando vi a caixa quase

vazia. Bem vês que fizeste bem em confessar a tua falta. As tuas mentiras não fariam senão aumentar o teu castigo. Ter- te-ia punido severamente. Para recompensar o esforço que fizeste confessando tudo, terás apenas como castigo não voltares a comer doce enquanto ele durar.

Sofia beijou a mão da mãe, que a abraçou. Voltou, em seguida, para o quarto, onde Paulo a esperava.

PAULO - Que tens tu, Sofia? Tens os olhos tão vermelhos.

SOFIA - Foi porque estive a chorar.

PAULO - Porquê? A tia ralhou-te?

SOFIA - Não, mas eu estava com vergonha de Lhe contar uma maldade que fiz ontem.

PAULO - Que maldade foi? Eu não vi nada.

SOFIA - Porque me escondi de ti. E Sofia contou a Paulo como tinha comido as frutas cristalizadas quando quizera apenas vê-las e escolher as melhores para o dia seguinte.

Paulo elogiou muito Sofia por ter confessado à mãe.

- Que coragem tiveste! - exclamou ele.

Sofia contou-lhe o seu sonho e como a mamã lho tinha explicado. Desde então Sofia e Paulo falam muitas vezes no sonho, que os ajudou a serem obedientes e bons.

 

                   O gato e o pisco

Sofia e Paulo voltavam, certo dia, com a criada, da casa de uma pobre mulher a quem tinham ido levar uma esmola. Caminhavam devagar, ora tentando subir às árvores, ora atravessando as sebes, ora escondendo-se nas moitas. Sofia estava escondida, e Paulo procurava-a, quando ouviu um miau muito débil, muito lamentoso. Sofia teve medo e fugiu.

- Paulo - exclamou ela -, chama a criada. Ouvi um gritinho, como que o miar de um gato, perto de mim, ali na moita.

PAULO - Então é preciso chamar a criada por causa disso? Vamos nós ver o que é.

SOFIA - Oh! Não! Tenho medo.

PAULO (rindo) - Medo de quê? Não foste tu que disseste que era um gritinho? Então não pode ser um grande animal.

SOFIA - Sei lá: pode ser uma serpente ou um lobo pequenino.

PAULO (rindo) - Ah Ah Ah Uma serpente a gritar! Isso é novidade! E um lobo pequeno a dar um uivo tão fraquinho, que eu, ao pé de ti, não o ouvi.

SOFIA - Ouves? Lá está o mesmo grito. Paulo escutou e ouviu, com efeito, um fraco miar que saía de uma moita. Correu para lá, apesar dos protestos de Sofia.

- É um pobre gatinho que parece doente

- disse ele, depois de ter procurado alguns instantes. - Vem ver como ele está, coitadinho.

Sofia foi ver: um gatinho branco, todo molhado de orvalho e sujo de lama, estava estendido perto do sítio onde ela se havia escondido.

- É preciso chamar a criada, para o lavar. Coitadinho, como está a tremer!

- Tão magro, já reparaste? - disse Paulo. Chamaram a criada, que os seguia de longe. Quando ela chegou mostraram-lhe o gatinho e pediram-lhe que o levasse.

CRIADA - Mas como o hei-de eu levar?

O pobrezinho está tão molhado e tão sujo que não lhe posso pegar com as mãos.

SOFIA - Olha, embrulha-o com folhas.

PAULO - Num lenço é melhor. Aqui tem o meu!

SOFIA - Isso mesmo! Vamos limpá-lo com o meu lenço e depois embrulha-se no teu e a criada leva-o.

A criada ajudou-os a arranjar o gatinho, sem forças para se mexer; depois de bem embrulhado no lenço, a criada pegou-lhe e partiram para casa apressadamente, para Lhe darem leite quente.

Como não estavam longe de casa, depressa chegaram. Sofia e Paulo correram à cozinha.

- Dê-nos, depressa, uma chávena de leite quente - disse Sofia ao cozinheiro João.

- Para quê, menina! - perguntou o João.

- Para um pobre gatinho que encontrámos numa moita e que está quase morto de fome. Olhe: a criada trá-lo num lenço.

A criada pousou o gatito no chão: o cozinheiro trouxe um pires cheio de leite quente; o gatinho atirou-se a ele e não deixou nem uma gota.

- Parece-me que deve estar contente; bebeu mais de dois copos de leite - disse a criada.

SOFIA - Olha, já se levantou! Está a lamber o pêlo.

PAULO - E se o levássemos para o nosso quarto?

COZINHEIRO - Eu, meninos, aconselho-os a deixarem-no na cozinha. Aqui vai secar mais depressa. E depois terá aqui quanta comida quiser. E não é só isso: na cozinha poderá sair quando lhe for preciso. Habitua-se a ser asseado.

PAULO - Tem razão. Vamos deixá-lo na cozinha, Sofia.

SOFIA - Mas podemos vir vê-lo sempre que nos apetecer, não é verdade? Será sempre nosso.

COZINHEIRO - Decerto, menina; virá vê-lo quando quiser. Será seu da mesma maneira.

Pegou no gato e colocou-o debaixo do forno. As crianças deixaram-no a dormir, recomendando ao cozinheiro que lhe pusesse leite perto, para que ele o pudesse beber quando lhe apetecesse.

SOFIA - Que nome lhe poremos?

PAULO - Querido.

SOFIA - Oh! não. É já tão vulgar! Vamos chamar-lhe Encantador.

PAULO - E se quando ele crescer for feio?

SOFIA - É verdade. Então como é que lhe havemos de chamar? Tem de ter um nome.

PAULO - Sabes um nome que seria muito bonito? Beau-Minon.

SOFIA - Ah É verdade Como nos contos de Blodine. Pois, sim; chamemos-lhe Beau-Minon.

E os pequenos foram contar tudo à Sr. a Rean e pedir-lhe uma coleira. A mamã foi ver o gato e tomar-lhe a medida do pescoço.

-Não sei se este pobre gato arribarádisse ela. - Está tão magrinho, coitado, que mal se pode ter nas pernas.

PAULO - Como teria ele ido parar à moita? Os gatos não vivem nas matas.

SR A REAN - Foram talvez meninos maus que o levaram para lá para brincarem com ele, depois abandonaram-no, julgando que ele voltaria para casa sozinho.

SOFIA - E porque não voltou ele? Afinal foi por culpa dele que estava naquele estado.

SR A REAN - É ainda muito pequeno para dar com o caminho. E pode ser muito longe. Se uns homens maus te levassem para muito longe e te deixassem a um canto de uma mata, que fazias tu?

SOFIA - Eu não me atrapalhava! Ia andando até encontrar alguém ou até ver uma casa. Então diria o meu nome e pediria que me trouxessem a casa.

MAMÃ - Primeiramente podias encontrar pessoas más, que não se quisessem incomodar por tua causa. E depois tu podes falar, mas o pobre gato, quem é que o compreendia? Tê-lo-iam enxotado, batido, e quem sabe se não o teriam matado.

SOFIA - Mas porque se tinha ele escondido naquela moita quase a morrer de fome?

SR A REAN - Talvez os meninos maus o atirassem para lá depois de lhe terem batido. De resto, ele fez bem em ali se deixar estar, porque vocês passaram e salvaram-no.

PAULO - Quanto a isso, minha tia, ele não podia adivinhar que nós passaríamos por lá.

  1. REAN - Ele, não; mas Deus que tudo sabe, assim o quis, para vos dar esta ocasião de ser caridosos, mesmo para com um animal.

Sofia e Paulo estavam impacientes por voltarem a ver o gato; não disseram mais nada e foram à cozinha, onde encontraram Beau-Minon a dormir. O cozinheiro pusera junto

dele um pires com leite. Nada havia, pois, a fazer e as crianças foram brincar para o jardim.

Beau-Minon não morreu; fez-se, em poucos dias, um gato forte, saudável e alegre. À medida que crescia tornava-se ainda mais bonito; tinha os pêlos muito compridos e sedosos; grandes olhos escuros, brilhantes como o Sol; um narizito rosado, que lhe dava um ar gentil e travesso. Era um verdadeiro gato angora, da melhor raça. Sofia gostava muito dele; Paulo, que vinha frequentes vezes passar dias com Sofia, também o adorava. Beau-Minon era o mais feliz dos gatos. Tinha um único defeito, o que desolava Sofia: era cruel com os passarinhos. Subia às árvores para procurar os ninhos e comer os pequeninos que lá encontrava. Algumas vezes até comera as pobres mães que procuravam defender os filhos da crueldade de Beau-Minon. Quando Sofia e Paulo o viam subir às árvores, obrigavam-no, como podiam, a descer. Mas Beau-Minon fugia-lhes e continuava a trepar e a comer os passarinhos. Ouvia-se então um cuic, cuic, lamentoso.

Quando Beau-Minon descia da árvore, Sofia batia- lhe com uma verdasca: mas ele achava maneira de fugir ao castigo. TantO tempo ficava em cima da árvore, que Sofia e Paulo,

aborrecidos, iam-se embora. Outras vezes, aí ao meio da árvore, dava um salto e fugia a sete pés antes que Sofia o pudesse agarrar.

- Tem cuidado, Beau-Minon - diziam-lhe os pequenos -, Deus há-de castigar a tua maldade. Qualquer dia acontece uma desgraça.

Mas Beau-Minon não os queria ouvir. Um dia a Sr. a Rean trouxe para a sala um lindo passarinho numa gaiola doirada.

- Vejam, meus filhos, que lindo pisco me mandou um amigo. Canta admiravelmente.

SOFIA e PAULO (ao mesmo tempo) - Oh! Gostava tanto de ouvir!

SRa REAN - Vou ver se consigo fazê-lo cantar. Mas não se aproximem muito para não o assustar. - Pequenino, pequenino - fez a Sr. a Rean, dirigindo-se ao pisco- canta, meu amigo; canta pequenino, canta!

O pisco começou a balançar a cabecita de um lado para o outro e depois pôs-se a assobiar lindas áreas.

Os pequenitos ouviram-no, quase sem respirar, com receio de o assustar. Quando ele acabou, Paulo exclamou:

-Que bem que ele assobia, minha tia! Que lindo chilrear! Ficaria a ouvi-lo toda a vida!

- Depois de jantar veremos se ele continua - disse a Sr. a Rean. - Agora está cansado da viagem; é preciso dar-Lhe de comer. Vão ao jardim e tragam-me um bocadinho de murrião. Peçam ao jardineiro que lhes diga onde o devem apanhar.

Os pequenos foram a correr e trouxeram tal quantidade, que nem sequer caberia na gaiola. A mamã disse-lhes que para a outra vez colhessem apenas um punhado, e pôs um bocadinho na gaiola do pisco, que logo começou a debicar nele.

- Agora, vamos jantar, meus filhos - disse a Sr. a Rean -; os vossos papás já estão à espera.

Durante o jantar falaram muito do pisco.

- Que linda cabecinha preta que ele tem - exclamou Sofia.

-E que lindo papo vermelho! -exclamou Paulo.

- E que bem que ele canta! - exclamou a Sr. a Rean.

- É preciso fazer-lhe cantar tudo que ele sabe - disse o Sr. Rean.

Assim que acabaram de jantar voltaram para a sala; os pequenos corriam à frente. Quando iam a entrar, a Sr. a Rean ouviu um

grito estridente; correu, os meninos estavam imóveis de terror, apontando para a gaiola do pisco. Algumas grades estavam torcidas, outras quebradas. De dentro da gaiola saltava, nesse instante, Beau-Minon, com o pisco na boca. A Sr. a Rean gritou também e precipitou-se sobre ele para o fazer largar a presa. Beau-Minon fugiu para debaixo de uma poltrona. O Sr. Rean, que entrara nesse momento, pegou numa tenaz para bater no Beau-Minon, mas o gato fugiu pela porta que ficara entreaberta. O Sr. Rean continuou a persegui-lo, de quarto em quarto, de corredor em corredor. O pobre passarito já não piava, nem se debatia. Por fim, o Sr. Rean conseguiu atingir o Beau-Minon com a tenaz. Tão forte foi a pancada, que a boca do gato se abriu e deixou cair o pássaro. Mas enquanto o pássaro caía para um lado, Beau-Minon caía para o outro. Após duas ou três convulsões, não se mexeu mais. A tenaz tinha- Lhe acertado na cabeça; estava morto.

A Sr. a Rean e os pequeninos, que corriam atrás do Sr. Rean, chegaram no momento em que Beau-Minon tinha a última convulsão.

-Beau-Minon, meu pobre Beau-Minon!exclamou Sofia.

- Pobre pisco! - exclamou Paulo.

- Meu amigo, que fizeste? - exclamou a Sr. a Rean.

- Puni o culpado, mas não pude salvar o inocente - respondeu o Sr. Rean. - O pisco morreu estrangulado pelo Beau-Minon. Mas garanto-te que não matará mais nenhum pássaro. Sem querer, matei-o.

Sofia não ousava falar, mas chorava amargamente o seu querido gato, de quem tanto gostava, apesar dos seus defeitos.

- Eu bem lhe tinha dito - disse ela a Paulo - que Deus o castigaria pela sua maldade para com os passarinhos. Pobre Beau-MinoN! Morreste por tua própria cabeça!

 

                   A caixa de costura

Quando Sofia via alguma coisa de que gostava, pedia-a logo. Se a sua mamã não lha dava, tornava a pedi-la uma, duas e três vezes, até a mamã se aborrecer e mandá-la para o quarto. Então, em vez de não pensar mais nisso, cada vez cismava mais. E repetia:

- Que hei-de eu fazer para me darem o que quero? Gostava tanto! Mas hei-de consegui-lo por força!

Muitas vezes, quando assim teimava para obter o que queria, era castigada, mas não tinha emenda.

Um dia a mamã chamou-a para lhe mostrar uma linda caixa de costura que o Sr. Rean lhe mandara de Paris. A caixa era de tartaruga, com incrustações de prata; por dentro era forrada de veludo azul; tinha tudo quanto era preciso para trabalhar, tudo de prata: um dedal, uma tesoura, um agulheiro, uma pinça, carrinhos com linhas, uma faca, um canivete, uma enfiadeira. Noutro compartimento tinha uma caixa com agulhas, outra com alfinetes dourados, e muitas meadas de seda, de várias cores e grossuras, cordões, fitas, etc. Sofia ficou extasiada diante da caixa.

- Que bonita que é! - disse ela - e que bom deve ser ter estas lindas coisas para trabalhar! - Para quem é esta caixa, mamã?acrescentou, sorrindo, como se esperasse que a Sr. a Rean lhe dissesse: É para ti.

- Foi para mim que o teu papá a mandou

- respondeu a Sr. a Rean.

SOFIA - Que pena! Gostava tanto dela.

SRa REAN - Sim, senhora. Muito obrigada! Então tens pena que seja para mim a caixa! És egoísta.

SOFIA - Oh! mamã, dê-ma, peço-lhe.

SRa REAN - Tu ainda trabalhas muito mal para teres uma caixa tão bonita. E depois és desastrada. Em pouco tempo perderias todas as coisas, o que era pena.

SOFIA - Oh! mamã, asseguro-lhe que não. Teria muito cuidado.

SR.a REAN - Não, Sofia, não penses nisso; ainda és muito pequena.

SOFIA - Mas já começo a trabalhar muito bem, mamã. E gosto tanto de coser!

  1. A REAN - Sério?! Então porque ficas sempre tão aborrecida quando te obrigo a coser?

SOFIA (atrapalhada) - É. é. porque não tenho as coisas necessárias. Mas se tivesse essa caixa, trabalharia com tanto gosto!

  1. A REAN - Então trata de começares a trabalhar com gosto. Será a forma de conseguires uma.

SOFIA - Oh! mamã, peço-lhe!

SR.a REAN - Já me estás a aborrecer. Não penses mais na caixa.

Sofia calou-se; mas continuou a olhar para a caixa e tornou a pedi-la à mamã mais de dez vezes. A mamã perdeu a paciência e mandou-a para o jardim.

Sofia não brincou nem passeou: ficou sentada num banco, a pensar na caixa e a arquitectar maneiras de a conseguir.

Se eu soubesse escrever, escrevia ao papá a pedir-lhe que me mandasse uma igual. Mas. não sei escrever. E se eu ditasse a carta à mamã, ela ralhava-me e não escrevia... Podia esperar que o papá voltasse; mas ainda falta muito tempo, e eu queria a caixa já...

Sofia ficou a magicar muito tempo; por fim, deu um salto, esfregou as mãos de contente, e exclamou:

Achei, achei. A caixa vai ser minha. E eis que Sofia se dirige para a sala onde a caixa ficara em cima de uma mesa; a mamã já lá não estava. Sofia aproximou-se com precaução, abriu a caixa e tirou de dentro todos os objectos que ela continha. Batia-lhe o coração, pois estava a cometer um roubo como os gatunos que se metem na cadeia. Só tinha medo de que entrasse alguém antes de ter acabado. Mas não veio ninguém. Sofia pôde tirar tudo quanto estava na caixa. Depois fechou-a cuidadosamente, pô-la no meio da mesa e foi para o quarto onde tinha os seus brinquedos; abriu a gaveta de uma mesinha e guardou lá, cuidadosamente, tudo quanto tirara.

Quando a mamã vir a caixa vazia, pensava ela, não a quer, e dá-ma; então ponho tudo lá dentro outra vez e a linda caixa será para mim!

Sofia, encantada com tal esperança, não pensou sequer na feia acção que cometera.

Não perguntou sequer a si mesma: Que dirá a mamã? Quem acusará ela de ter roubado as coisas? Que responderei, se me perguntar se fui eu? Sofia apenas pensava na alegria de ter a caixa.

Passou-se a manhã sem que a mãe de Sofia se apercebesse do roubo. Mas antes do almoço, quando todos se reuniram na sala, a Sr.a Rean disse às visitas que tinha nesse dia para almoçar que lhes ia mostrar uma linda caixa de costura que o Sr. Rean lhe enviara de Paris.

- Verão como é completa - disse ela. Tem tudo quanto é preciso para coser. Reparem primeiro na caixa; não é bonita?

- É um encanto! - exclamaram todos. Um encanto!

A Sr. a Rean abriu-a. Grande foi, porém, a sua surpresa e a das pessoas que a rodeavam, ao verem-na vazia!

- Que significa isto? - disse ela. - Esta manhã deixei lá ficar tudo, e nunca mais Lhe toquei.

- Deixou-a na sala? - perguntou uma das senhoras convidadas.

SRa REAN - Deixei, e perfeitamente descansada. Todos os meus criados são honestos, incapazes de um roubo.

SENHORA - No entanto, a caixa está vazia, minha querida senhora. Não há dúvida de que alguém a esvaziou.

O coração de Sofia batia com violência; escondida atrás de todos, estava vermelha como um rabanete e toda trémula.

A Sr. a Rean procurou-a com os olhos; não a vendo, chamou-a: Sofia, Sofia, onde estás?

Como Sofia não respondesse, as senhoras, atrás de quem ela estava, afastaram-se e Sofia apareceu num estado de rubor e perturbação, que todos adivinharam quem tinha sido o ladrão.

- Anda cá, Sofia - disse a Sr.a Rean.

Sofia aproximou-se, a passos lentos; as pernas tremiam-lhe.

SR.a REAN - Onde puseste as coisas que estavam na caixa de costura?

SOFIA (tremendo) - Não tirei nada, mamã, não escondi nada.

SR.a REAN - É inútil mentir, menina; vá buscar tudo imediatamente, se não quer ser castigada como merece.

SOFIA (chorando) -Mas mamã, pode crer que não tirei nada.

SR A REAN - Venha cá, menina.

E como Sofia não se mexesse, pegou-lhe na mão; apesar da sua resistência, levou-a ao quarto dos brinquedos. Pôs-se a procurar por toda a parte, nas gavetas de uma cómoda, no armário das bonecas, etc. Não achou nada; começava a recear ter sido injusta com Sofia quando se lembrou da gaveta da mesinha, que abriu: lá estavam todos os objectos que Sofia escondera.

Sem dizer palavra, pegou em Sofia e deu-lhe açoites como ela nunca apanhara. Sofia bem gritava e pedia perdão, mas a mamã castigou-a conforme ela merecia.

A Sr. a Rean despejou a gaveta e levou tudo para tornar a pôr na caixa e Sofia ficou a chorar sozinha no quarto.

Estava tão envergonhada, que não se atreveu a voltar para a sala; e fez bem, porque a mamã deu ordem à criada para a levar para o quarto, de onde não devia sair. Sofia chorou muito; a criada, apesar de habitualmente a amimar, indignada, chamou-lhe ladra.

- Tenho de ter tudo fechado à chave - dizia ela - porque tenho medo de que a menina me roube. Se alguma coisa desaparecer cá em casa, já sabemos onde havemos de procurar o ladrão; iremos logo revistar as gavetas.

No dia seguinte a Sr. a Rean mandou chamar a Sofia.

- Ouça, menina - disse-lhe ela -; ouça o que me escreveu seu pai quando me mandou a caixa de costura.

Minha querida amiga, acabo de comprar uma caixa de costura, que te envio. É para a Sofia, mas não lhe digas nada nem lha dês por enquanto. Quero que seja a recompensa de oito dias sem maldades. Mostra-lhe a caixa sem lhe dizeres que a comprei para ela. Não quero que seja ajuizada por interesse; quero que o seja pelo prazer de ser boa.

- Como vês - continuou a Sr. a Rean - roubando-me, a menina roubou-se a si própria. Depois da sua acção, mesmo que não fizesse maldades durante meses, a caixa nunca seria para si. Espero que o castigo lhe sirva de lição e que nunca mais volte a praticar uma acção tão feia e vergonhosa.

Sofia chorou e pediu-lhe, então, que lhe perdoasse. A mamã acabou por perdoar-lhe; mas nunca Lhe deu a caixa. Mais tarde fez presente dela a Isabel.

Quando o bom e honesto Paulo soube o que Sofia tinha feito, ficou tão indignado, que durante oito dias não a quis ver. Mas, quando soube que Sofia estava arrependida e envergonhada por ter roubado, ficou com muita pena dela. Foi vê-la, e em vez de lhe ralhar, consolou-a, dizendo-lhe:

- Sabes o que deves fazer de futuro, para que esqueçam o teu roubo? Seres tão honesta, que nunca se possa desconfiar de ti.

Sofia prometeu-Lhe e cumpriu a sua palavra.

 

                   O burro

Havia quinze dias que Sofia se portava muito bem; não fizera uma única maldade. Paulo dizia que ela já não tinha fúrias; a criada achava-a obediente. A mamã dizia que ela deixara de ser gulosa, mentirosa e preguiçosa; queria recompensá-la, mas não sabia como.

Um dia em que costurava junto da janela aberta, ouviu uma conversa entre Paulo e Sofia, que brincavam em frente da casa. Por aí veio a saber o que mais desejava.

PAULO (enxugando a cara) - Que calor eu tenho! Estou alagado.

SOFIA (limpando-se também) - E eu! E olha que pouca coisa fizemos!

PAULO - Os nossos carrinhos são tão pequenos!

SOFIA - Se fôssemos buscar os carros grandes da horta seria mais depressa.

PAULO - Não tínhamos força para os empurrar; quis um dia brincar com um e não só me custou muito a levantá-lo como, quando o quis empurrar, não pude; caí e entornei a terra toda.

SOFIA - Nunca mais acabamos o nosso jardim. Antes de o cavarmos e de o plantarmos temos que acarretar muitos carrinhos de terra. Fica tão longe o sítio onde a vamos buscar!

PAULO - Que se há-de fazer? Custará muito, mas sempre se há-de acabar.

SOFIA - Se nós tivéssemos um burro, como a Camila e a Madalena Fleurville! E uma carrocinha! Ah! Então era um instante.

PAULO - É verdade! Mas não temos. E não há remédio senão fazermos nós o serviço do burro.

SOFIA - Ouve, Paulo, tenho uma ideia.

PAULO (rindo) -Mau, se tens uma ideia, é disparate certo. As tuas ideias não são lá muito famosas.

SOFIA (com impaciência) - Ouve, antes de troçares de mim. A minha ideia é excelente. Quanto te dá a tia por semana?

PAULO - Dez escudos mas é também para dar aos pobres, não é só para brinquedos.

SOFIA - Bem! Eu também tenho dez escudos; são, pois, vinte escudos por semana. Em vez de gastarmos esse dinheiro, vamos guardá-lo, até que chegue para comprar um burro e uma carroça.

PAULO - A tua ideia era óptima se em lugar de vinte escudos tivéssemos duzentos: assim, só com vinte escudos, não poderíamos dar nada aos pobres, o que era muito mal feito, e teríamos de esperar muitos anos antes de termos dinheiro que chegasse para comprar um burro e uma carroça.

SOFIA - Vinte escudos por semana, quanto é num mês?

PAULO - Não sei, mas calculo que é muito pouco.

SOFIA (reflectindo) - Olha! Uma outra ideia. Se nós pedíssemos à mamã e à tia que nos dessem já o dinheiro que gastam com as prendas de Natal?

PAULO - É o dás...

SOFIA - Experimenta-se.

PAULO - Pede tu, se quiseres, eu prefiro ver, primeiro, o que diz a tia. Se ela disser que sim, então também peço.

Sofia correu ao quarto da mãe, que fingiu nada ter ouvido.

- Mamã - disse ela -, quer dar-me já o meu presente de Natal?

SRa REAN - O teu presente? Mas não o posso comprar aqui.

SOFIA - Oh! mamã, era o dinheiro que eu queria! Precisava dele.

SR.a REAN - Para que precisas tu de tanto dinheiro? Se é para dar aos pobres, diz; sabes bem que não recuso nada para os pobres.

SOFIA (atrapalhada) - Não era para os pobres, mamã; era... era para comprar um burro.

SRa REAN - Um burro para quê?

SOFIA - Oh! mamã, eu e o Paulo precisávamos tanto de um burro! Veja como estou a suar! E o Paulo ainda mais do que eu. Foi por acarretarmos carros de terra para o nosso jardim.

SRa REAN (rindo) - E imaginas que o burro poderá puxar os vossos carrinhos em vez de vocês?

SOFIA - Mas, mamã, bem sei que um burro não pode acarretar carrinhos de mão. É que eu ainda não lhe disse que, além do burro, precisamos de uma carroça. Atrelar-Lhe-emos o burro, e então acarretaremos a terra sem nos cansarmos.

SRa REAN - Não é má a tua ideia.

SOFIA (batendo as palmas) - Ah!, eu bem sabia que era boa! Paulo, Paulo! -exclamou ela, debruçando-se à janela.

  1. A REAN - Espera, não faças a festa antes do tempo. A tua ideia é boa, mas eu não te dou o dinheiro do teu presente de Natal.

SOFIA (muito triste) - Então... que havemos de fazer?.

SRa REAN - Precisas de andar com muito juízo e de te portar muito bem para mereceres o burro e a carroça, que mandarei comprar o mais breve possível.

SOFIA (saltando de alegria e beijando a sua mamã) - Que bom! Que bom! Paulo, Paulo! Temos um burro e uma carroça. Vem depressa!

PAULO (entrando a correr) - Onde está o burro? E a carroça?

SOFIA - A mamã vai mandá-los comprar.

SR.a REAN - Sim, dou-os a ambos; a ti, Paulo, para te recompensar de seres bondoso, obediente e ajuizado; e a ti, Sofia, para te encorajar a imitares o teu primo e a seres sempre meiga, obediente e trabalhadora, como tens sido estes quinze dias. Vamos ter com o Lambert; explicar-lhe-emos o que desejamos e ele se encarregará de vos comprar o burro e a carroça.

Os pequenos não esperaram que lhes dissessem segunda vez; sairam, numa correria, em procura do caseiro. Encontraram-no no pátio a medir aveia, que acabara de comprar.

Os pequenos puseram-se a explicar-lhe tão precipitadamente o que queriam, que o pobre Lambert não percebia nada. Foi preciso a Sr.a

Rean intervir e dizer-lhe do que se tratava.

SOFIA - Vá depressa, Lambert, peço-lhe; precisamos do burro imediatamente, antes do jantar.

LAMBERT (rindo) - Um burro não se acha assim do pé para a mão, menina. É preciso que eu indague se há algum para vender.

É importante que não morda, nem dê coices.

É bom também que não seja teimoso, e nem muito velho nem muito novo.

SOFIA - Meu Deus! Tanta coisa por causa de um burro! Compre o primeiro que Lhe apareça e será muito mais depressa.

LAMBERT - Não pode ser, menina; podia ter manhas e arriscavam-se a ser mordidos por ele, ou a apanhar algum coice.

SOFIA - Ora, o Paulo saberia muito bem amansá- lo.

PAULO - Enganas-te; eu não quero um burro que morda e dê coices.

SR.a REAN - Deixem o Lambert fazer como entender, meus filhos. Verão que se sai bem do recado. É bom entendedor e não se poupa a trabalhos.

PAULO - E a carroça, minha tia? Como havemos nós de arranjar uma tão pequena, que se lhe possa atrelar o burro?

LAMBERT - Não se apoquente, menino Paulo. Enquanto o carpinteiro Lhe faz uma eu empresto-lhe a minha carrocinha dos cães. Podem tê-la o tempo que quiserem.

PAULO - Muito obrigado, Lambert; que bela ideia!

SOFIA - E, agora, vá-se embora, Lambert, vá depressa.

SRa REAN - Dêem-lhe tempo para guardar a aveia. Se a deixasse no meio do pátio, as galinhas e os pássaros comê-la-iam toda.

Lambert guardou os sacos de aveia no fundo do celeiro e, ante a impaciência das crianças, partiu logo à procura de um burro pelos arredores.

Paulo e Sofia, imaginando que ele voltaria no mesmo instante, puseram-se à espera. De tempos a tempos iam ver à estrada se ele já lá vinha. Ao fim de uma hora começaram a achar muito aborrecido estarem à espera, em vez de irem brincar.

PAULO (bocejando) - Olha lá, Sofia, se fôssemos brincar para o nosso jardim?

SOFIA (bocejando) - Então não nos divertimos aqui?

PAULO (bocejando) - Parece-me que não.

Eu, pelo menos, não me divirto nada.   

SOFIA - Se o Lambert chega com o carro, não o vemos.      

PAULO - Está-me a parecer que ele não volta tão cedo.      

SOFIA - Pois eu parece-me que ele deve estar a chegar. PAULO - Esperemos, se queres... Mas...

(bocejando) é muito aborrecido.

SOFIA - Se te aborreces tanto, vai-te embora; não te peço que fiques, estarei muito bem sozinha.

PAULO (depois de hesitar um momento)Está bem! Então vou-me embora. É um disparate perder uma tarde toda à espera. E para quê? Se o Lambert trouxer o burro, sabê-lo-emos imediatamente. E se o não trouxer, escusamos de nos aborrecer em vão.

SOFIA - Pois vá-se embora. Quem o prende?

PAULO - Ah! tu amuas sem razão. Adeus, menina resmungona; até ao jantar.

SOFIA - Adeus, senhor mal educado, maçador, impertinente.

PAULO (com gesto irónico) - Adeus meiga, paciente e amável Sofia!

Sofia correu atrás dele para Lhe bater, mas Paulo, prevendo isso, tinha fugido a sete pés. Voltando-se para ver se Sofia o perseguia, viu-a correr com um pau na mão. Paulo correu com mais força e foi-se esconder no bosque. Sofia, não o vendo, voltou para defronte da casa.

Ainda bem que Paulo fugiu, pensava ela, e que não o apanhei. Ter-lhe-ia batido com o pau e decerto que o magoaria. A mamã, se o soubesse, já não me dava o burro e a carroça. Quando Paulo voltar, dou-lhe um abraço... Paulo é muito bom... Mas gosta de me arreliar.

Sofia continuou à espera de Lambert até que tocaram a campainha para o jantar.

Voltou para casa toda zangada, por ter esperado tanto tempo em vão. Paulo, que estava no quarto, perguntou-lhe, com cara de troça, se ela se tinha divertido muito.

Não. Aborreci-me bastante. Tu é que tiveste juízo em vires-te embora. O Lambert nunca mais vem. Que aborrecido!

PAULO - Eu bem te tinha dito.

SOFIA - Sim; tu bem me disseste, mas nem por isso deixa de ser aborrecido!

Bateram à porta. A criada disse: Entre. A porta abriu-se: era Lambert. Paulo e Sofia soltaram um grito de alegria.

- O burro, onde está o burro? - perguntaram eles.

LAMBERT - Não há nenhum burro para vender aqui nas redondezas, meninos. Andei de um lado para outro, desde que os deixei. Procurei por toda a parte um burro e não o consegui encontrar.

SOFIA (choramingando) - Que pouca sorte, meu Deus! Que pouca sorte!

LAMBERT - Mas não chore, menina. Arranjaremos um, com certeza.

PAULO - E quanto tempo será preciso?

LAMBERT - Talvez uma semana, talvez quinze dias: conforme. Amanhã irei à feira à cidade. Talvez lá consiga um jerico.

PAULO - Um jerico? O que é um jerico?

LAMBERT - Então o menino, que sabe tanta coisa, não sabe o que é um jerico? Um jerico é um burro.

SOFIA - Tem graça: um jerico! Eu também não sabia que se chamava assim.

LAMBERT-Ora vê a menina, quanto mais se cresce mais se aprende. Vou falar com a sua mamã para lhe dizer que amanhã muito cedinho tenho de ir à feira ver se encontro um jerico. Adeus, meninos.

E Lambert foi-se embora; os pequenos estavam contrariados por ainda não terem o burro.

- Teremos ainda de esperar muito tempo!

- disseram eles, num suspiro.

A manhã do dia seguinte passou-se à espera do burro. Em vão a Sr.a Rean lhes dizia que é sempre assim na vida. É absolutamente impossível termos o que queremos no mesmo instante em que o desejamos. É preciso habituarmo-nos a esperar. Os pequenos respondiam:

- Pois é - mas nem por isso suspiravam menos e olhavam com menos impaciência a estrada por onde Lambert e o burro deviam vir.

Por fim, Paulo, que estava à janela, ouviu muito ao longe um ih-han ih-han que só podia ser de um burro.

- Sofia, Sofia! - exclamou ele. – Ouves um burro a zurrar? Deve ser o Lambert.

SR REAN - Talvez seja algum burro cá da terra ou de alguém que vá a passar na estrada.

SOFIA - Oh! mamã, deixe-me ir ver se é o Lambert que vem com o jerico.          

SR.a A REAN - O jerico?  

Que maneira é essa de falar? Só a gente do campo é que chama jerico a um burro.

PAULO - Foi o Lambert que nos disse que se chamava jerico a um burro, minha tia.   

SR.a REAN - O Lambert fala como a     gente do campo, mas vocês, que vivem num meio mais instruído devem falar de outra maneira.

SOFIA - Oh! mamã, eu continuo a ouvir o ih-han! do burro. Deixe-nos ir ver!

SR.a REAN - Vão, vão, meus filhos. Mas não cheguem à estrada nacional; não passem da cancela.

Paulo e Sofia partiram como duas setas. Atravessaram o bosque para chegarem mais depressa. A Sr. a Rean gritava-lhes:

- Não vão por cima da relva, que está húmida; tenham cuidado com as silvas, que se podem ferir.

Eles nada ouviam: corriam e saltavam como cabritinhos. Em breve chegaram à cancela. A primeira coisa que viram foi o Lambert com o burro pela arreata, um burro soberbo, sem ser muito grande.

- Um burro, um burro! Obrigado, Lambert, obrigado! Que bom! Que bom! -gritavam ambos.

-Que bonito que ele é! -exclamou Paulo.

- E parece ser muito manso! -acorreu Sofia. - Vamos depressa dizer à mamã.

LAMBERT- Olhe, menino Paulo, monte-o. A menina Sofia irá atrás de si. Eu levo-o pela arreata.

SOFIA - E se caímos?

LAMBERT - Ah! não há perigo, eu vou aqui ao pé. E, de resto, garantiram-me que é um jerico muito manso.

Lambert ajudou Paulo e Sofia a subirem para o burro. Depois pôs-se ao lado deles.

Assim chegaram ao pé da janela da Sr. a Rean, que desceu para ver melhor o burro.

Depois levaram-no para a estrebaria. Paulo e Sofia deram-lhe aveia. Lambert fez-lhe uma cama com palha. Os pequenos gostariam de estar ali a vê-lo comer, mas a hora do jantar  aproximava-se e era preciso lavarem as mãos e pentearem-se. Assim, o burro ficou com os cavalos até ao outro dia.

Nos dias seguintes o burro foi atrelado à carroça dos cães, enquanto o carpinteiro fazia um lindo carrinho para os meninos passearem e uma carrocinha para acarretarem terra, vasos de flores, areia e tudo o que quisessem levar para o seu jardim. Paulo aprendeu a atrelar e a desatrelar o burro, a escová-lo e penteá-lo, a fazer-lhe a cama, a dar-lhe de comer e de beber. Sofia ajudava-o, quase tão desembaraçada como ele.

A Sr. a Rean comprara uma albarda e um lindo selim, para poderem montar o burro.

Nos primeiros tempos, a criada acompanhava-os sempre, mas, quando viu que o burro era manso como um cordeiro, a Sr. A Rean deu-lhes licença para andarem sozinhos, com a condição de não saírem do parque.

Certo dia, Sofia montara o burro e Paulo tocava-o às chicotadas. Sofia disse-lhe:

- Não lhe batas, podes magoá-lo.

PAULO - Mas, quando deixo de lhe bater, ele não quer andar. E a minha chibata é tão fina, que não lhe deve doer.

SOFIA - Tenho uma ideia! E se, em vez de lhe bater, eu o picasse com uma espora?

PAULO - Que rica ideia, não há dúvida. Primeiro, não tens esporas; depois, a pele do burro é tão dura, que não a sentiria.

SOFIA - Deixá-lo. Vamos experimentar. Se não Lhe fizer mal, melhor.

PAULO - E onde queres tu que eu vá arranjar uma espora?

SOFIA - Vamos fazer uma com um alfinete grosso. Espetamo-lo no meu sapato; a cabeça do alfinete para dentro e a ponta para fora.

PAULO - Bela ideia, sim senhora. E tens o alfinete?

SOFIA - Não, mas voltamos a casa e eu peço um à cozinheira, que tem sempre alfinetes grossos.

Paulo subiu para a garupa do burro; chegaram a casa a galope. A cozinheira deu-lhes dois alfinetes, imaginando que Sofia tivesse precisão deles para pregar no vestido. Sofia não arranjou a espora defronte de casa, pois bem via que era uma tolice, e que, se a mamã visse, lhe ralharia.        

-É melhor arranjarmos isto no bosque; sentamo-nos na relva e o burro vai pastando enquanto trabalhamos. Pareceremos dois viajantes em descanso.

Chegados ao bosque, Paulo e Sofia apearam-se. O burro, contente por se ver livre, pôs-se a comer a erva que por ali havia. Sofia e Paulo sentaram-se no chão e meteram mãos à obra. O primeiro alfinete entrou no sapato, mas ficou tão torto, que não podia servir. Felizmente tinham outro, e esse entrou facilmente, visto o buraco já estar aberto. Sofia calcou-o. Paulo agarrou o burro, para a ajudar a montar, mas assim que ela se apanhou em cima do burro, começou a bater-Lhe com o salto do sapato, para o picar com o alfinete. O burro partiu a trote. Sofia, muito contente, picou-o mais e o burro pôs-se a galopar de tal forma, que Sofia se assustou e agarrou-se às rédeas com quantas forças tinha. Ao mesmo tempo, apertava os calcanhares contra a barriga do burro, que cada vez se sentia mais picado. Por isso, desesperado, se pôs a escoucear e a dar pulos; projectada a distância, Sofia, ficou imóvel, atordoada pela queda. Paulo, que ficara para trás, correu, assustado. Ajudou Sofia a levantar-se. As mãos e o nariz de Sofia estavam todos arranhados.

- Que dirá a mamã? -dizia ela a Paulo. -Que Lhe diremos quando me perguntar como caí?

PAULO - Dizemos-lhe a verdade.

SOFIA - Oh! Paulo, não. Não fales no alfinete.

PAULO - Que queres que diga, então?

SOFIA - Diz que o burro se pôs aos coices e que eu caí.

PAULO - Mas o burro é tão manso, que nunca teria feito isso sem esse maldito alfinete.

SOFIA - Se falas no alfinete, a mamã ralhará comigo e é capaz de nos tirar o burro.

PAULO - Eu acho que sempre é melhor dizer a verdade. Todas as vezes que tens querido esconder qualquer coisa à tia, ela acaba sempre por saber, e és ainda mais castigada.

SOFIA - Mas para que queres tu que eu fale no alfinete? Eu não vou mentir. Digo que o burro começou aos coices e que caí.

PAULO - Faz como quiseres; mas acho que fazes disparate.

SOFIA - Mas tu não digas nada. Vê lá se vais falar no alfinete.

PAULO - Podes estar sossegada. Bem sabes que não gosto que te ralhem.

Sofia e Paulo foram a procura do burro, que não devia estar longe, mas não o encontraram.

- É porque voltou para casa - disse Paulo. Sofia e Paulo voltaram para casa. Ainda iam no bosque, já ouviam chamar por eles. As duas mamãs vinham ao seu encontro.

- Que aconteceu, meus filhos? Estão feridos? Vimos chegar o burro a galope e com a cilha partida. Parecia assustado. Custou a apanhar. Estávamos com receio de que tivesse havido um acidente.

SOFIA - Não, mamã, não sucedeu nada; apenas eu é que caí.

SRa REAN - Caíste? Mas como?

SOFIA - Estava montada no burro e não sei porquê ele começou a saltar e a escoucear e atirou comigo ao chão. Ainda arranhei o nariz e as mãos, mas não foi nada.

SR.a AUBERT - Mas porque foi que o burro começou aos coices? Parece tão manso.

PAULO (atrapalhado) - Não sei, mamã, não era eu que estava em cima dele.

SRa AUBERT Sei isso muito bem! Mas porque razão teria ele começado a dar coices?

SOFIA - Oh! minha tia. É porque tinha vontade de o fazer.

  1. A AUBERT-Isso calculo eu que não seria por vontade de estar quieto. Mas é estranho.

Voltaram para casa. Sofia foi ao quarto lavar-se e mudar de vestido, todo sujo de areia. A Sr. a Rean entrou no quarto quando ela se acabava de despir e examinou o vestido.

- É preciso que tenhas dado um grande trambolhão para que o teu vestido ficasse nesse estado.

- Ui! - exclamou a criada.

  1. REAN- Que foi? Magoou-se?

CRIADA - Ah! Que bela ideia! Ah! Ah!

Ah! Mas que lembrança! Olhe, minha senhora.           

E mostrou à Sr. a Rean o alfinete em que se acabara de picar, e de que a Sofia se tinha esquecido no sapato.          

SRa REAN - O que é isto? Como foi este alfinete parar ao teu sapato?    

CRIADA - Com certèza não foi ele que se espetou, porque o cabedal é bastante duro.

SRa REAN - Fala, Sofia; diz-me como se encontra aqui este alfinete.

SOFIA (muito atrapalhada) - Não sei, mamã, não sei.

SR.a REAN - Como, não sabes? Então calçaste os sapatos sem dares por isso?

SOFIA - Sim, mamã, não dei por nada.

CRIADA - Ah!; isso não é verdade, menina Sofia, isso não é verdade. Fui eu que lhe calcei os sapatos e sei muito bem que não tinham nenhum alfinete. A sua mamã pode pensar que sou uma descuidada! Não, isso não é bonito, menina.

Sofia não respondeu. Estava cada vez mais vermelha e atrapalhada. A Sr. a Rean ordenou-lhe que falasse.

- Se não confessar a verdade, menina, irei perguntar ao Paulo, que nunca mente.

Sofia desatou a soluçar, mas teimando em nada confessar. A Sr.a Rean foi ao quarto da irmã, onde estava Paulo, e perguntou-lhe o que queria dizer o alfinete espetado no sapato.

Paulo, pensando que Sofia confessara, e que a tia estava muito zangada, respondeu:

- Era para fazer de espora, minha tia.

SRa REAN - E para que era a espora?

PAULO - Para fazer galopar o burro.

SR.A REAN - Ah! Agora compreendo porque o burro escouceou e atirou com a Sofia ao chão. O alfinete picava o pobre animal, que tratou de se desembaraçar do que o incomodava conforme pôde.

A Sr. a Rean voltou para junto de Sofia.

- Já sei tudo, menina - disse ela. – A menina é uma mentirosa. Se me tivesse dito a verdade, ter-Lhe-ia ralhado mas não a castigava. Assim, vai estar um mês sem montar no burro, para aprender a não mentir.            

A Sr. a Rean deixou Sofia a chorar. Quando o Paulo chegou junto dela não pôde deixar de lhe dizer:           

- Vês, Sofia? Eu bem te tinha avisado; se tivesses dito a verdade continuaríamos a montar o burro e não estarias agora toda triste.

A Sr. a Rean manteve a sua palavra, e não consentiu que se montasse no burro, apesar dos pedidos de Sofia.

 

                   O carrinho

Sofia, vendo que a sua mamã não a deixava montar o burro, disse um dia a Paulo:

- Já que não podemos andar de burro, podíamos atrelá-lo ao carrinho e guiávamos cada um por sua vez.

PAULO - Quem dera! Mas a tia deixará?

SOFIA - Vai pedir-lhe; eu não me atrevo.

Paulo correu a pedir a sua tia licença para atrelar o burro.

A Sr. a Rean consentiu, mas com a condição de que a criada iria também. Quando Paulo disse isto a Sofia, ela resmungou.

- Que aborrecido ir com a criada - disse ela. - Tem medo de tudo; não nos deixará ir a galope.

PAULO - Mas tu bem sabes que a tia não quer que vamos a galope.

Sofia não respondeu e amuou. Paulo correu a chamar a criada e a mandar atrelar o burro. Meia hora depois o animal estava à porta com o carrinho.

Sofia subiu para ele, mas sempre amuada: todo o passeio se mostrou aborrecida, apesar de Paulo fazer tudo para a alegrar. Por fim, disse-Lhe:

És uma aborrecida, com os teus amuos! Volto para casa: já estou cansado de falar sozinho e da tua cara mal-humorada.

E Paulo guiou o burro para os lados de casa. Sofia continuava amuada. Quando chegaram e ela ia a descer, prendeu o pé no estribo e caiu. O bom Paulo desceu imediatamente para a ajudar a levantar-se. Sofia não se tinha magoado, mas a bondade de Paulo comoveu-a e desatou a chorar.

- Magoaste-te, minha pobre Sofia? -dizia Paulo, beijando-a. - Encosta-te a mim; não tenhas medo, que eu posso contigo.

-Não me magoei, meu querido Paulo; choro porque estou arrependida de ter sido má para ti, que és sempre tão bom.

- Não chores por isso, Sofia. Que importância tem eu ser bom para ti? Se o sou, é por ser muito teu amigo.

Sofia lançou-se-lhe ao pescoço, desfeita em lágrimas. Paulo não sabia como havia de consolá-la. Disse-lhe:

- Olha, Sofia, se continuas a chorar, eu também choro; não te posso ver assim.

Sofia enxugou os olhos:

-Deixa-me chorar, Paulo, faz-me bem: parece que fico menos má.

Mas quando viu os olhos de Paulo começarem a arrasar-se de lágrimas, enxugou os seus e fez o possível por arranjar um ar alegre. Foram ambos para o quarto dos brinquedos, onde passaram a tarde, até à hora de jantar.

No dia seguinte Sofia propôs novo passeio. A criada disse-lhe que a não podia acompanhar, porque tinha roupa para lavar. A mamã e a tia tinham de ir fazer uma visita à Sr. a Fleurville.

-Então como há-de ser? -disse Sofia com uma cara desolada.

- Se eu tivesse a certeza de que vocês ambos teriam muito juízo - disse a Sr. a Rean - deixava-os ir sozinhos; mas tenho muito medo das tuas ideias, Sofia, que são sempre desastrosas.

SOFIA - Não, mamã! Pode ficar tranquila! Não terei nenhuma ideia, pode estar certa. Deixe-nos ir sozinhos: o burro é tão manso!

SR.a REAN - O burro é manso quando não o atormentam; se te pões a picá-lo, como fizeste no outro dia, é capaz de virar o carrinho.

PAULO - Oh! minha tia, Sofia não tornará a fazer outra... Nem eu tão-pouco. Porque eu também tive culpa: ajudei a furar o sapato.

SR.a REAN - Está bem, mas com a condição de não saírem do jardim; não vão para a estrada, nem andem muito depressa.

- Obrigada, mamã, obrigada, minha tiaexclamaram os pequenos, que correram à cocheira a mandar atrelar o burro.

Estava tudo pronto quando viram chegar os dois pequenos do caseiro, que voltavam da escola.

- Vomecês vão passear de carro? -perguntou o mais velho, que se chamava André.

PAULO - Vamos; queres vir connosco?

ANDRÉ - Eu ia... mas não posso deixar o meu irmão.

PAULO - Traz o teu irmão contigo.

ANDRÉ - Muito obrigado, menino. Então vou.

SOFIA - Vamos lá; quem sobe para a almofada, para guiar?

PAULO - Sobe tu; aqui tens o chicote.

SOFIA - Não, prefiro guiar mais tarde, quando o burro já estiver cansado.

Os quatro pequenos subiram para o carrinho; passearam durante duas horas, umas vezes a passo, outras a trote; guiavam cada um por sua vez, mas o burro começava a cansar-se. Mal sentia o chicotito com que os pequenos o tocavam, de sorte que cada vez andava mais devagar, apesar das chicotadas e dos hip hip de Sofia, que o conduzia.

ANDRÉ - Olhe, menina, se quer que ele ande mais depressa, vou buscar um ramo de azevinho. Batendo-lhe com ele, já anda.

- Tens uma boa ideia. Vamos fazer andar este preguiçoso.

Parou; André foi cortar um grande ramo de azevinho.

- Tem cuidado, Sofia - disse Paulo. Lembra-te de que a tia proibiu que picasses o burro.

SOFIA - Imaginas que o azevinho o vai picar como o alfinete? Nem sequer o sentirá.

PAULO - Então para que deixaste o André ir buscá- lo?

SOFIA - Porque é mais grosso do que o nosso chicote.

E Sofia fustigou o burro, que partiu a trote; Sofia, encantada de ter sido tão bem sucedida, deu uma segunda pancada, e logo terceira. O burro trotava cada vez mais depressa. Paulo, inquieto, receava que acontecesse qualquer coisa e que Sofia fosse castigada. Chegaram a uma descida bastante íngreme. Sofia continuou a bater no burro. Ele impacientou-se e desatou num galope furioso. Sofia quis detê-lo, mas já era muito tarde. O burro, furioso, corria cada vez mais. Os pequenos gritavam, e ele mais se assustava. Por fim chegaram a um sítio onde havia um monte de areia e o carrinho virou-se. Os pequenos ficaram estendidos no chão e o burro continuou à desfilada, com o carro de rastos, até o despedaçar completamente.

Como o carrinho era baixo, os pequenos não se feriram, mas esfolaram a cara e as mãos. Levantaram-se muito tristes; os pequenos do caseiro voltaram para a quinta; Paulo e Sofia para casa. Sofia estava envergonhada e inquieta; Paulo, triste. Depois de andarem algum tempo sem falar, Sofia disse a Paulo: - Tenho tanto medo da mamã! que vai ela dizer?

PAULO (com ar triste) - Quando pegaste no azevinho, logo vi que ía suceder uma desgraça. Devia ter teimado contigo. Talvez me tivesses ouvido.

SOFIA - Não, Paulo, não te tinha dado atenção, porque imaginava que o burro não sentiria os picos do azevinho. Mas que dirá a mamã?

PAULO - E tu, Sofia, por que és desobediente? Se o não fosses, serias menos vezes castigada.

SOFIA - Vou ver se me corrijo. Farei todos os possíveis. Mas é tão aborrecido obedecer!

PAULO - Mais aborrecido é ser-se castigado. E depois só nos proíbem de fazer as coisas que são perigosas. Quando as fazemos, acontece sempre algumas desgraça.

SOFIA - É verdade! Ah! Meu Deus! Lá vem a mamã e a tia! Ouves o carro? Corramos a ver se conseguimos chegar antes delas.

Mas, por mais que corressem, o carro andava mais depressa do que eles. Chegaram ao mesmo tempo ao portão.

As Sr.as Rean e Aubert viram imediatamente os arranhões.

- Pronto! Mais um desastre - exclamou a Sr. a Rean. - Que aconteceu?

SOFIA - Mamã, foi o burro.

SRa REAN - Já esperava isso. Estive sempre em desassossego enquanto me ausentei. Mas que tem o burro? Que fez ele para que vocês estejam arranhados desta forma?

SOFIA - Virou o carrinho, mamã, e creio que o partiu todo, porque depois de o virar, continuou a correr.

SRa AUBERT - Tenho a certeza de que puseste em prática mais alguma invenção.

Sofia baixou a cabeça e não disse nada.

- Sofia - disse a Sr. a Rean -, vejo, pelas vossas caras, que a tua tia adivinhou. Diz a verdade e conta o que aconteceu.

Sofia hesitou um momento; depois resolveu dizer a verdade e contou tudo.

-Meus queridos filhos -disse a Sr. a Rean - desde que se comprou o burro é que acontecem desgraças todos os dias. Sofia tem, continuamente, ideias insensatas. Vou mandar vender o burro, causa de tantos disparates.

PAULO e SOFIA (ao mesmo tempo) - Oh! Mamã. Oh! Minha tia. Não faça isso. Não o venda e nunca mais faremos disparates.

  1. A REAN - Sim, não tornarão a fazer os mesmos, mas a Sofia encarregar-se-á de inventar outros novos, e talvez ainda mais perigosos.

SOFIA - Não, mamã, pode estar descansada. Agora serei sempre obediente.

SRa REAN - Consinto em esperar mais uns dias. Mas ficam prevenidos; ao primeiro disparate de Sofia, mando-o imediatamente vender.

Os pequenos agradeceram à Sr. a Rean, que lhes perguntou onde estava o burro. Lembraram-se então de que ele continuara a correr com o carrinho voltado.

A Sr. a Rean mandou chamar Lambert e contou-lhe o que acontecera, dizendo-lhe que fosse ver se encontrava o burro. Lambert obedeceu. Passada uma hora voltou. Os pequenos aguardavam-no.

- Então, Lambert? - exclamaram ao mesmo tempo.

LAMBERT - Então, meninos... aconteceu uma desgraça ao vosso burrinho!

PAULO e SOFIA - Uma desgraça? Que foi?

LAMBERT - O pobre animal ia doido de medo e pôs-se a correr ao longo da barreira, do lado da estrada. A certa altura havia um barranco, e ele precipitou-se na estrada. Uma grande carroça passava nesse momento. O condutor não teve tempo de parar e o pobre burro ficou debaixo dela, que por pouco se não voltava. Quando conseguiram tirar o burro, estava morto.

Aos gritos dos pequenos acudiram as mamãs e os criados: Lambert contou de novo a desgraça que sucedera ao pobre burro. As senhoras procuraram consolar Paulo e Sofia; mas os pobres pequenos estavam deveras apoquentados. Sofia acusava- se de ter sido a causadora da morte do burro e Paulo de ter deixado Sofia fazer a tolice. O dia acabou tristemente. Durante muito tempo, sempre que via um burro parecido com o seu, Sofia punha-se a chorar. Jurou nunca mais ter nenhum, no que fazia muito bem, pois a sua mamã nunca lho consentiria.

 

                   A tartaruga

Sofia gostava de animais: já tinha tido um frango, um esquilo, um gato e um burro. Sua mamã não queria dar-lhe um cão, com receio de que ele fosse atacado de raiva, o que acontece muitas vezes.

- Que bicho posso eu ter, mamã? - perguntou ela, um dia, à mãe. - Queria um que não fizesse mal, nem fugisse, e que não precisasse de muitos cuidados.

SR.a REAN (rindo) - Nesse caso só conheço um: a tartaruga.

SOFIA - É verdade! São tão engraçadas as tartarugas! E não há perigo de que fujam.

SR A REAN (rindo) - E se ela quisesse fugir, tinhas tempo de a agarrar.

SOFIA - Compre-me uma tartaruga, mamã; compre-me uma tartaruga.

SR A REAN - Tu estás maluca! Foi a brincar que te falei na tartaruga, que é um bicho feio, pesado e aborrecido. Não podes querer um animal assim.

SOFIA - Oh! mamã, peço-lhe que ma compre: Divertir-me-ia tanto com uma tartaruga! Vou ter muito juízo para que a mamã ma compre.

SRa REAN - Já que queres um animal tão feio, dou-to; mas com duas condições: a primeira, que o não deixarás morrer à fome. A segunda, que, à primeira asneira que faças, ficas sem ele.

SOFIA - Aceito as condições, mamã. Quando terei a tartaruga?

SRa REAN - Depois de amanhã. Vou escrever hoje a teu pai e peço-lhe que me compre uma. Manda-a ainda hoje pelo caminho de ferro e depois de amanhã já cá a tens.

SOFIA - Mil vezes obrigada, mamã. Calha bem. Amanhã vem o Paulo, para estar quinze dias connosco. Terá tempo de brincar com ela.

Paulo chegou no dia seguinte, com grande contentamento de Sofia. Quando ela lhe anunciou a vinda da tartaruga, Paulo riu-se e perguntou-lhe o que faria ela de animal tão feio.

- Damos-lhe de comer e levamo-la a passear na relva; havemos de nos divertir, podes ter a certeza.

No outro dia chegou a tartaruga; era do tamanho de um prato, muito escura, e tinha uma concha muito grossa, dentro da qual estavam metidas a cabeça e as patas.

- Meu Deus, que bicho tão feio! - exclamou Paulo.

- Eu acho-o bem bonito - respondeu Sofia, um tanto zangada.

PAULO (trocista) - O que ela tem é um lindo sorriso!

SOFIA - Deixa-nos em paz. Fazes troça de tudo.

PAULO (continuando) - Do que eu mais gosto é do seu andar elegante e porte airoso.

SOFIA (deveras zangada) - Cala-te, já te disse: vou levar a minha tartaruga, se continuas a troçar.

PAULO - Podes levá-la. Até me fazes um favor. Certamente não me fará falta o seu espírito.

Sofia tinha muita vontade de bater em Paulo, mas lembrou-se da promessa e da ameaça da mãe e contentou-se em deitar a Paulo um olhar furioso. Quis pegar na tartaruga para a levar para o jardim; mas ela era muito pesada. Não pôde com ela e deixou-a cair. Paulo, arrependido por ter arreliado Sofia, correu a ajudá-la. Lembrou-se de que podiam pôr a tartaruga num pano e levá-la os dois. Sofia, que se assustara com a queda da tartaruga, aceitou o auxílio de Paulo.

Quando a tartaruga sentiu a erva fresca deitou as patas e a cabeça de fora, e pôs-se a passear. Os pequenos olharam para ela.

- Vês tu - disse Sofia - que a minha tartaruga não é tão estúpida nem tão aborrecida, como parecia?

- Não, é verdade - respondeu Paulo -; mas olha que é muito feia.

- Lá isso é - disse Sofia. - Confesso que tem uma cabeça medonha.

- E as patas horríveis - acrescentou Paulo. Os pequenos continuaram a tratar da tartaruga. Dez dias passaram sem que nada de extraordinário acontecesse.

Mas um dia Sofia teve uma ideia; pensou que a tartaruga tivesse calor e, por isso, necessidade de se refrescar. Um banho no tanque devia fazer-lhe bem. Chamou Paulo e propôs-lhe darem banho à tartaruga.

PAULO - Dar-lhe banho? Onde?

SOFIA - No tanque da horta; a água lá é muito fresca e clara.

Foram buscar a tartaruga, que se aquecia sossegadamente ao sol, em cima da relva. Levaram-na para o tanque e mergulharam-na na água. Assim que a tartaruga sentiu a água, deitou de fora a cabeça e as patas para fugir, mas como as patas tocassem nas mãos de Paulo e Sofia, eles largaram-na e a tartaruga foi parar ao fundo do tanque.

Os pequenos, assustados, correram à procura do jardineiro, para Lhe pedirem que procurasse a tartaruga. O homem correu para o tanque; como ele era pouco fundo, depois de descalçar os sapatos e as meias e arregaçar as calças, o jardineiro meteu-se lá dentro e tirou a tartaruga que, de concha para baixo, se debatia no fundo. Depois levou-a para ao pé do lume para secar; o pobre animal tinha escondido as patas e a cabeça e não se mexia. Quando a viram bem quente, os pequenos quiseram levá-la para a relva, para o sol.

- Esperem aí, meninos, que eu levo-adisse o jardineiro. - Parece-me que ela não está bem - acrescentou.

PAULO - Parece-lhe que ela está doente?

JARDINEIRO - Creio bem que sim.

- Ah, meu Deus! - exclamou Sofia.

PAULO (baixo) - Não te assustes; ele não sabe o que diz. Imagina que as tartarugas são como os gatos, que detestam a água.

Puseram a tartaruga sobre a relva; o jardineiro voltou à sua vida. Os pequenos ficaram junto da tartaruga, mas sempre que olhavam para ela viam-na imóvel, com a cabeça e as patas escondidas. Sofia estava inquieta; Paulo tranquilizava-a.

-É preciso deixá-la à vontade -disse ele - amanhã já comerá.

Ao anoitecer levaram-na para casa e puseram-na na sua cama, tendo o cuidado de lhe deixarem de comer. No dia seguinte, quando a foram ver, a comida estava intacta; a tartaruga não lhe tinha tocado.

- É estranho - disse Sofia. - Costuma comer tudo durante a noite.

- Vamos levá-la para a relva - respondeu Paulo -; talvez esteja aborrecida.

Paulo estava inquieto, mas não queria assustar Sofia; examinava, atentamente, a tartaruga, que continuava a não se mexer.

- Deixemo-la - disse ele -; o sol vai aquecê-la e fazer-lhe bem.

SOFIA - Parece-te que ela esteja doente?

PAULO - Creio que sim. Não queria dizer-te, mas julgo que está morta, como principiava a recear.

Durante dois dias os pequenos continuaram a levar a tartaruga para cima da relva, mas ela não se mexia; encontravam-na sempre no mesmo sítio em que a deixavam. A comida que lhe punham todas as noites estava intacta no dia seguinte. Por fim, um dia que a levaram para a relva, notaram que cheirava mal.

- Está morta - disse Paulo -; já cheira mal.

Ficaram os dois junto da tartaruga, desolados, e sem saberem o que lhe fazer, quando apareceu a Sr. a Rean ao pé deles.

-Que estão a fazer aqui, meus filhos? Porque estão imóveis como estátuas junto da tartaruga, tão imóvel como vocês? - acrescentou, baixando-se para lhe pegar. Mas, ao pegar-lhe, viu que cheirava mal.

- Mas... está morta - exclamou ela, pondo-a no chão. - Já cheira mal.

PAULO - Está sim, minha tia, está morta.

SR.a REAN - De que morreria ela? Não foi de fome, porque vocês todos os dias lhe davam de comer. É estranho que tenha morrido sem sabermos porquê.

SOFIA - Creio que foi a queda no tanque.

SRa REAN - Que queda? Quem foi que se lembrou de a levar para o tanque?

SOFIA (envergonhada) - Fui eu, mamã; dei-lhe banho no tanque da horta; ela caiu ao fundo e, como nós a não pudemos apanhar, foi o jardineiro que a tirou. Ela esteve muito tempo dentro de água de patas para cima.

  1. A REAN - Ah! foi uma das tuas ideias. Afinal castigaste-te a ti própria. Não tenho que te ralhar. Mas, de futuro, nunca mais terás nenhum animal para criar ou tratar. Vocês matam-nos ou deixam-nos morrer a todos. É preciso enterrar esta tartaruga. Lambert, venha buscar este animal e enterre-o em qualquer parte.

Assim acabou a pobre tartaruga, que foi o último animal que Sofia teve. Alguns dias depois pediu à sua mamã uns porquinhos da Índia muito engraçados que havia na quinta; mas a Sr. a Rean opôs-se. Houve que obedecer, e, desde então, o único companheiro de Sofia foi seu primo Paulo, que vinha muitas vezes passar dias com ela.

 

                    A partida

- Paulo - disse um dia Sofia -, porque será que a mamã e a tia andam sempre a falar baixinho e choram ambas; sabes porque é?

PAULO - Não, não sei, mas ouvi outro dia a mamã dizer à tia: -Vai ser horrível abandonar os nossos parentes, os nossos amigos, o nosso país. -E a tia respondeu: - E de mais a mais por um país como a América.

SOFIA - Que quererá isso dizer?

PAULO - Creio que quer dizer que a mamã e a tia têm de ir para a América.

SOFIA - Mas isso não é nada terrivel, pelo contrário. Será muito divertido: na América deve haver muitas tartarugas.

PAULO - E pássaros lindos, corvos vermelhos, cor de laranja e azuis, roxos, cor-de-rosa; enfim, muito diferentes dos nossos horríveis corvos, todos pretos.

SOFIA - E papagaios e colibris. A mamã diz que há muitos na América.

PAULO - E índios vermelhos.

SOFIA - Ai! Lá dos índios tenho eu medo!

PAULO - Mas nós não vamos morar para junto deles. Só os veríamos quando viessem à cidade.

SOFIA - Mas porque iremos nós à América? Estávamos aqui tão bem!

PAULO - Decerto. Aqui vejo-te muitas vezes, a nossa casa é perto da tua. O que seria bom é que na América morássemos juntos. Oh!, então gostava muito de ir para a América.

SOFIA - Olha, lá estão a mamã e a tia a chorar, juntas. Faz-me tanta pena vê-las chorar!... Sentaram-se naquele banco. Vamos consolá-las.

PAULO - Como havemos de as consolar? SOFIA - Não sei, mas vamos tentar.

Os pequenos correram para junto das suas mães.

- Querida mamã, porque estás a chorar?

- perguntou Sofia.

  1. A REAN - Por uma coisa que me desgosta e que tu não podes compreender, minha pequena.

SOFIA - Engana-se, mamã. Compreendo muito bem que Lhe dê desgosto ir para a América, porque julga que ficarei muito triste com isso. Mas até será uma alegria para nós; primeiro, porque a tia e o Paulo irão connosco e, depois, porque eu gosto imenso da América, que é uma terra muito bonita.

A Sr. a Rean olhou, admirada, para a sua irmã e não pode deixar de sorrir ao ouvir Sofia a falar assim da América, que nunca tinha visto.

SRa REAN - Quem te disse que íamos para a América? E porque julgas tu que é isso que nOs causa tanto desgosto?

PAULO - É que eu oùvi-as falar em irem para a América e a tia estava a chorar; pode crer que eu e a Sofia ficaremos sempre contentes desde que estejamos juntos.

SR.a REAN - Adivinharam, meus filhos. Realmente, temos de ir para a América.

PAULO - Porquê, mamã?

SRa REAN - Porque morreu um amigo nosso, que lá vivia. Era muito rico, não tinha família, e deixou-nos toda a sua fortuna. Teu pai e o pai de Sofia são obrigados a tomar conta desses bens. Tua tia e eu não os queremos deixar ir sozinhos, e por isso estamos muito tristes por ter de deixar os nossos amigos, os nossos parentes e a nossa terra.

SOFIA - Mas não é para sempre, pois não?

SR A REAN - Não, por um ano ou dois.

SOFIA - Então, mamã, não vale a pena chorar por isso. Pense que a tia e o Paulo estarão connosco esse tempo todo. E depois o papá e o tio devem ficar muito contentes por não irem sozinhos.

As Sr. as Rean e Aubert abraçaram os filhos.

-Os pequenos têm razão! -disseram elas. - Estaremos juntas, e dois anos passam depressa.

Desde esse dia não tornaram a chorar.

- Vês - disse Sofia a Paulo - como nós as consolámos?! Já reparei que os filhos consolam, facilmente, as mamãs.

- É porque elas gostam muito deles.

Poucos dias depois os pequenos foram com as suas mamãs fazer uma visita de despedida às suas amiguinhas Camila e Madalena Fleurville, que ficaram muito admiradas quando souberam que Sofia e Paulo iam para a América.

- Quanto tempo estarão vocês lá? - perguntou Camila.

SOFIA - Creio que dois anos. É tão longe!

PAULO - Quando voltarmos, a Sofia terá seis anos e eu oito.

MADALENA - E eu também terei oito anos, e Camila nove.

SOFIA - Nove anos! Que velha que tu estarás, Camila!

CAMILA - Tragam-nos coisas bonitas lá da América.

SOFIA - Queres que te traga uma tartaruga?

MADALENA - Que horror! Uma tartaruga! Um animal tão estúpido e feio!

Paulo desatou a rir.

- Porque te ris, Paulo? -perguntou Camila.

PAULO - Porque Sofia tinha uma tartaruga e um dia zangou-se comigo por Lhe dizer exactamente o que disseste agora.

CAMILA - E que foi feito da tartaruga?

PAULO - Morreu por causa de uma queda no tanque.

CAMILA - Pobre animal! Lamento não o ter conhecido.

Sofia, que não gostava que se falasse na tartaruga, propôs irem colher flores ao campo. Camila lembrou-lhes que talvez ainda fosse mais divertido ir apanhar morangos. Aceitaram todos a ideia com prazer. Foram. Acharam muitos, que iam colhendo e comendo. Estiveram entretidos durante duas horas; depois foi preciso separarem-se. Sofia e Paulo prometeram trazer coisas bonitas que encontrassem para vender.

No dia seguinte continuaram a fazer visitas de despedida, depois começaram a fazer as malas. Os Srs. Rean e Aubert esperavam em Paris as senhoras e os pequenos.

O dia da partida foi muito triste. Sofia e Paulo choraram ao deixar a quinta, os criados e as pessoas da aldeia.

Talvez, pensavam eles, nunca mais voltemos!

Toda a gente estava triste, porque tinha o mesmo pensamento.

Por fim as mamãs e os pequenos subiram para uma carruagem: as duas criadas iam com eles.

Pararam no caminho para almoçar e chegaram a Paris à hora do jantar. Deviam demorar-se em Paris oito dias para comprarem o necessário para a viagem até a América.

Durante esses oito dias os pequenos divertiram-se muito. Foram com as mamãs passear para o Bosque de Bolonha, para as Tulherias, para o Jardim Zoológico, etc. Compraram, também, muitas coisas: fatos, chapéus, sapatos, luvas, livros de histórias e brinquedos. Sofia desejava todos os animais que via à venda: chegou a pedir à sua mamã que lhe comprasse uma girafa que estava no Jardim Zoológico. Paulo, por sua vontade, compraria todos os livros de histórias e de estampas. Compraram a cada um deles uma malinha de mão, para as suas coisas, e brinquedos, jogos, etc.

Chegou, finalmente, o tão desejado dia da partida para o Havre, onde deviam tomar o navio que os conduziria à América. Quando chegaram ao Havre souberam que o navio, que se chamava Sibila, não podia partir antes de três dias. Aproveitaram-nos para ver a cidade: o barulho, o movimento das ruas, as enseadas cheias de barcos, os cais com muitos vendedores de papagaios, de macacos, e de toda a sorte de coisas vindas da América divertiam muito os pequenos. Se a Sr. a Rean tivesse dado ouvidos à Sofia, ter-lhe-ia comprado uma dúzia de macacos, outra de piriquitos e papagaios. Mas fez ouvidos de mercador.

Os três dias passaram como tinham passado os oito em Paris, como tinham passado os quatro anos de Sofia, e os seis anos de Paulo: passaram para nunca mais voltar. As Sr.as Rean e Aubert choravam por deixar a sua querida França. Os Srs. Rean e Aubert estavam tristes e procuravam consolar as esposas, prometendo-lhes voltar o mais breve possível. Sofia e Paulo pareciam encantados: o seu único desgosto era ver as mamãs chorar. Entraram para o navio que os devia levar tão longe, por entre tempestades e perigos do mar. Horas depois estavam instalados nos seus camarotes, que eram pequenos quartos, cada um com duas camas, as malas e o indispensável para a toilette. Sofia e Paulo dormiam com suas mamãs. Os dois papás ocupavam o outro camarote. Comiam todos à mesa do capitão, que gostava muito de Sofia, por lhe fazer lembrar uma filha, que ficara em França, chamada Margarida. O capitão brincava muito com Paulo e Sofia e explicava-lhes tudo aquilo que no navio lhes despertava curiosidade, como andava sobre a água, e muitas coisas mais.

Paulo dizia sempre:

- Quando eu for grande quero ser marinheiro; hei-de viajar com o capitão.

- Não quero - dizia Sofia. - Não quero que sejas marinheiro: quero que fiques sempre comigo.

PAULO - Mas porque não virás também?

SOFIA - Porque não quero deixar a mamã. Viverei sempre com ela e tu ficarás comigo, percebes?

PAULO - Percebo. Pois sim, farei o que quiseres.

A viagem foi longa: durou muitos dias, mas valeu a pena. Sofia e Paulo viram muitas coisas novas e aprenderam outros costumes e outro modo de vida.

 

                                                                                Condessa de Ségur  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

           Voltar à Página do Autor