Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS DEVANEIOS DE SORCHA / Hannah Howell
OS DEVANEIOS DE SORCHA / Hannah Howell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Lady Sorcha Hay fica arrasada ao descobrir que soldados ingleses capturaram seu irmão mais novo. Sem dinheiro, a única maneira de pagar pela liberdade dele será tomar um refém para pedir o resgate. Seu prisioneiro, um cavaleiro ferido no campo de batalha, fica furioso ao ser capturado por uma mulher. Mas nada impedirá Sorcha de manter sir Ruari Kerr aprisionado, mesmo que a visão do corpo bronzeado deixe sua mente girando e seus sentidos em fogo...

Ruari encontrou tudo o que procurava em uma mulher na figura de Sorcha, uma jovem linda e encantadora de cabelos escuros. Enquanto ela trata de seus ferimentos, ele luta contra a intensa atração que o incendeia a cada toque daquela mulher. Mas Ruari não pode permitir-se perder o coração para sua irresistível captora. Quando ele finalmente é resgatado por seus homens, Sorcha pagará caro pela traição... e a amar poderá arriscar a vida de ambos...

 

 

 

 

Fronteira da Escócia Verão de 1388

- Por Deus, Sorcha, não posso descer até lá.

Sorcha Hay entendeu a hesitação da prima Margaret ante o horror da cena. Na base da pequena colina ventosa, estavam caídos os homens vencidos na última batalha entre sir James Douglas e o lorde inglês Hotspur Percy, de Northumberland. Fora uma luta sangrenta devida ao roubo de uma bandeira pelos escoceses durante um ataque à Inglaterra, em que Hotspur jurara consegui-la de volta. Dizia-se que os escoceses haviam vencido e capturado Hotspur, mas isso lhes custara a vida de sir James Douglas. Sorcha duvidou que muitos dos homens espalhados no solo rochoso abaixo tivessem se sentido vitoriosos antes de dar o último suspiro.

Uma rajada de vento fez uma madeixa de cabelos castanhos cobrir seu rosto, e Sorcha bendisse a falta de visão momentânea. Era doloroso ver tantos mortos empilhados, e apavorava-a imaginar que um deles pudesse ser seu irmão Dougal. Suspirou e amarrou os cabelos escuros para trás com uma tira de couro. Não podia ceder aos próprios receios, Tinha de ser forte.

Segurou a mão da tímida e roliça Margaret, que estava com os olhos arregalados, e começou a descer a encosta rochosa. Na outra mão, levava as rédeas desgastadas de Bansith, seu robusto pônei das Terras Altas. Rezou para que sua montaria não precisasse carregar para Dunweare o corpo de Dougal.

Os carniceiros humanos já se aproximavam dos mortos, e seria preciso encontrar Dougal, se ele estivesse ali e vivo, antes que outros o fizessem. Os moribundos teriam as gargantas cortadas enquanto os bolsos eram esvaziados, pois os homens e as mulheres que percorriam os campos de batalha não queriam testemunhas para seus roubos horripilantes. Sorcha esperava que ela e Margaret pudessem imitar a habilidade de agir de maneira tão desprezível como os violadores de cadáveres.

Tocou no arco e nas flechas que carregava nas costas. Ela e Margaret também portavam espadas e adagas feitas especialmente para elas por Robert, o mestre armeiro. Não estavam indefesas.

- Aqueles abutres nos matarão - Margaret sussurrou e envolveu melhor o corpo voluptuoso com a capa marrom.

- Não o farão, se nos juntarmos a eles - retrucou Sorcha.

- Se eles cortam as gargantas dos infelizes que estão morrendo, por que não nos matariam?

- Não digo que não sejam perigosos, mas se vasculharmos os cadáveres como se estivéssemos acostumadas a fazê-lo, eles provavelmente vão nos ignorar. - Sorcha parou ao lado do corpo de um jovem e pensou na tristeza de uma vida tão curta.

- Não posso tocá-lo, Sorcha.

- Então segure as rédeas de Bansith e fique atenta à turba.

Margaret obedeceu. Sorcha agachou-se ao lado do morto, pronunciou uma prece por sua alma e, furtivamente, para não ser flagrada num ato de bondade, fechou-lhe os olhos. Pegou a espada, a adaga e tudo mais que era valioso, prometendo em silêncio que faria o possível para devolver os pertences aos parentes do rapaz. Prestou atenção à aparência dele, único indício de sua identidade, antes de guardar os objetos na albardilha pendurada nas costas do pônei. Relutante e lutando contra a náusea, caminhou até a próxima vítima.

Em sua procura por Dougal, não se abaixava diante de cada cadáver, e o fez apenas o suficiente para não despertar suspeita entre os ladrões desumanos. Quando se agachou diante do quinto homem que seria obrigada a roubar, sentia-se mal. Embora aliviada por não ter encontrado o irmão entre os mortos, preocupava-se com o destino dele. Seria uma crueldade macular sua alma com o crime de roubar mortos, e ter de sair de lá sem saber o que acontecera a Dougal.

- Este homem está muito bem-vestido - sussurrou e deteve a mão sobre a fivela da bainha da arma, observando o peito largo subir e descer com a respiração.

- Toque nessa espada, abutre, e eu a mandarei para o inferno! - o homem disse com a voz rouca de dor.

Sorcha mal conseguiu evitar um grito de alarme quando ele segurou seu pulso com a mão grande, machucando-lhe a pele com a malha metálica da luva.

Margaret, atenta aos malfeitores, não percebeu seu apuro. Sorcha tentou esconder o receio e fitou os olhos verdes enevoados pelo sofrimento.

- Nobre cavaleiro, não terá forças para matar todos os que estão pilhando o campo coberto de sangue - ela murmurou.

- Antes de morrer, darei um jeito para que alguns não possam saquear mais nenhum cadáver.

- Com certeza, morrerá assim que descobrirem que está vivo. Mas se seguir meu conselho, poderá deixar com vida este maldito campo.

- Sorcha, com quem está falando? - Margaret perguntou.

- Prima, se conversar comigo nos momentos apropriados, talvez os outros acreditem que estou falando com você.

- Esse homem está vivo?

- Por enquanto. - Sorcha fitou a prima rapidamente e depois se voltou para o cavaleiro. - A primeira coisa que deve fazer é deixar que eu me ocupe com a nefanda tarefa de roubá-lo.

- Ah, é? Assim poderá levar com mais facilidade tudo o que me pertence antes de cortar minha garganta?

- Claro que não. É apenas para os outros não saberem que está vivo. Nós todos poderemos ser assassinados assim que descobrirem que, Margaret e eu não somos o que fingimos ser. - Sorcha não se intimidou com o olhar severo do homem. - É melhor decidir depressa. Eles logo desconfiarão da minha demora aqui.

Apesar da tensão do momento, Sorcha quase sorriu ao escutar Margaret rezingar contra Dougal pela insistência dele em juntar-se às batalhas sem fim contra os ingleses.

- Por que essa menina está resmungando? - ele indagou.

- Para que os outros não imaginem que você ainda tem fôlego para falar - Sorcha respondeu. - Sabemos que eles nos observam e, como supõem que está morto, tenho de fingir que falo com outra pessoa.

- Se não estão aqui para roubar os mortos, o que pretendem?

- Minha prima e eu estamos procurando sir Dougal Hay, lorde de Dunweare.

- Não o encontrará aqui. Os ingleses o levaram.

- Pensei que os ingleses tivessem perdido a batalha.

- Sim, mas conseguiram levar alguns de nossos homens.

Sorcha proferiu uma imprecação e ignorou o olhar espantado do homem.

- Acha que alguém mais sobreviveu neste campo?

- Talvez um ou dois homens, mas logo não estarão respirando. O que os ingleses não conseguiram fazer, os ladrões farão, sejam as vítimas ingleses ou escoceses.

- Quer que eu percorra o campo para ver se encontro outro sobrevivente? - Margaret perguntou.

- Somente se quiser, prima - respondeu Sorcha resistindo à vontade de esfregar o pulso que o homem soltara.

- Acho que devo, depois de nos depararmos com um homem vivo.

- Não demonstre o que está pretendendo, e é melhor que não leve o cavalo - Sorcha advertiu-a.

- Como poderei ajudar alguém se não conseguir movimentá-lo?

- Se encontrar alguém com vida, pensaremos no que fazer. - Sorcha sacudiu a cabeça enquanto cortava e guardava a bolsa do homem. - Tente fazer a pessoa se esconder. Preciso de tempo para pensar como faremos para sair daqui com este homem ou com qualquer outro. - Sorriu ao ouvir Margaret blasfemar brandamente. - Cuidado. - Assim que a prima se afastou, indagou ao ferido: - Quem é você?

- Sir Ruari Kerr, lorde de Gartmhor. Lutei com os Douglas.

- E eles mostraram muita gratidão, deixando-o para trás. Por que os ingleses não o levaram como refém?

- Eu caí enquanto os ingleses fugiam, com nossos homens rosnando atrás deles. - Ele fechou os olhos. - Quando os saxões imundos pararem de correr, pedirão resgate pelos homens que capturaram.

Sorcha estremeceu, sentindo um calafrio. Aquilo não demoraria muito para acontecer, pois a batalha se desenrolara no lado inglês das colinas Cheviot. Os ingleses não teriam de correr muito para ficar em segurança e contabilizar as perdas. Fora uma tola ao pensar que seus problemas haviam terminado simplesmente porque o lado escolhido por seu irmão vencera a disputa. Era evidente que os ingleses exigiriam um resgate. Esse era o único motivo para manter cativos os soldados de boa estirpe. O que os ingleses não sabiam era que não adiantaria pedir regaste por Dougal. Ele podia ser um lorde e vestir-se tão bem quanto os Douglas, mas não tinha fortuna.

Dougal estava condenado, ela refletiu, com o coração apertado e um forte sentimento de culpa. Nesse instante, fitou Ruari Kerr. Conhecia o nome e as terras que ele possuía. Ao contrário de Dougal, era possível confiar na riqueza da indumentária de Ruari. Embora odiasse considerar a possibilidade de manter o belo cavaleiro como refém, não pôde descartar a ideia. Seria a única maneira de conseguir dinheiro para comprar de volta a vida de Dougal.

- Ouvi dizer que os escoceses capturaram Hotspur - comentou.

- É verdade. - Ruari entreabriu os olhos e a fitou.

- Então os escoceses presos não serão devolvidos a nós em troca dele?

- Somente os que forem solicitados. Se seu irmão for bem conhecido do clã Douglas...

- Ele não é.

- Então provavelmente você terá de comprá-lo de volta.

- E como os ingleses sofreram uma derrota estrondosa, pedirão um resgate substancial na tentativa de salvar um pouco de seu orgulho ferido.

- Com certeza.

- Prima - Margaret sussurrou, aproximando-se de Sorcha -, encontrei um rapaz vivo.

- Onde ele está?

- À direita do campo, a meio caminho entre este ponto e as árvores ao longe, num matagal.

- Ele está naquela mata?

- Agora sim. Usei minhas saias e a capa para disfarçar seus movimentos, enquanto ele rastejava até as árvores. Já pensou em uma maneira de ajudar esses homens a fugir?

- Como ele está vestido?

- Não tão bem quanto este cavaleiro, e o traje dele está rasgado e sujo de sangue e lama.

- Diremos que este é nosso parente e que pretendemos levar o corpo embora.

- Ninguém acreditará que nós, com um parente tão ricamente vestido, precisamos roubar dos mortos.

- Tem razão. - Sorcha franziu o cenho para Ruari e deu um sorriso torto ao idealizar um plano. - Diremos que ele deve ser importante por estar bem trajado e que vamos levá-lo aos parentes dele para receber uma recompensa. Os dois homens deverão fingir-se de mortos.

O olhar de Ruari deixou claro que ele entendera.

- Não podemos carregar os dois em um cavalo tão pequeno.

- É verdade. Teremos de improvisar uma padiola. Vá buscar o que é necessário, Margaret. Não ouso deixar o pônei nem sir Ruari.

- Sorcha, você não tratou dos ferimentos dele.

- Prima, estamos fingindo que ele está morto. Cuidaremos disso assim que nos afastarmos desses carniceiros.

Sorcha passou a explicar para Margaret do que precisariam para fazer uma padiola.

Ruari, disfarçadamente, analisou as duas jovens. Margaret era uma beldade loira, roliça, de olhos azuis e covinhas. No entanto, foi Sorcha quem despertou sua atenção, o que era curioso, pois Margaret era mais adequada ao seu gosto. Os olhos castanhos e enormes de Sorcha eram seu maior atrativo, e refletiam inteligência, força e determinação, qualidades que nunca considerara lisonjeiras numa mulher. Tinha o rosto pequeno e estrutura óssea delicada. Suspeitou que, se ela sorrisse com os lábios carnudos e tentadores, não se veria sinal de covinhas. Os cabelos espessos chegavam à cintura, e os raios de sol os deixavam com reflexos avermelhados.

Reconheceu a forte atração que sentiu por Sorcha, apesar da dor e da fraqueza. Ela parecia ainda menor no vestido cinza sem vida que lhe moldava as formas. Busto pequeno e alto, cintura estreita e quadris não pronunciados nunca haviam despertado sua atenção, mas teve de admirar a graça com que ela se movimentava.

O que o perturbava mais do que isso, porém, era o fato de aquela moça miúda e delicada estar salvando sua vida, o que provocaria brincadeiras de seus parentes. O louvado e honrado sir Ruari Kerr seria salvo graças uma garota insignificante de um pequeno ramo do clã Hay. Estremeceu ao imaginar as risadas dos homens de seu clã.

O som de passos afastou-o de seus pensamentos. Um dos carniceiros se aproximava de suas salvadoras. Rapidamente fingiu-se de morto, esperando manter a respiração superficial e imperceptível. Amaldiçoou o ferimento e a perda de sangue, que provocava uma fraqueza que não lhe permitia lutar. Gostaria de pelo menos atingir seus algozes antes de eles cortarem sua garganta. Só lhe restava ficar imóvel e rezar para que Sorcha Hay fosse tão inteligente como parecia ser.

Com cautela, Sorcha observou o homem alto e magro que parou diante dela. Não gostava do sinal de interesse por parte dos saqueadores de campos de batalha, nem do atraso que a intrusão provocaria. Após descobrir o destino de Dougal, queria afastar-se o mais depressa possível daquele monte de mortos sem confissão e dos humanos traiçoeiros que se aproveitavam daquela miséria.

- Vi a padiola que fizeram - o homem disse com voz fria e o olhar fixo em Sorcha. - Alguma de vocês se feriu?

- Não, mas agradeço sua preocupação. - Sorcha segurou a espada sob a capa. - Precisamos dela para carregar dois corpos.

- Dois? Por que deseja tirar os mortos daqui?

- Não todos, apenas dois.

- Não queira bancar a esperta, moça. - Apontou para ela o dedo longo, magro e sujo. - Será melhor contar o que quero saber ou você e sua bela amiga poderão se juntar aos mortos.

- Minha prima achou um de nossos parentes e desejamos levá-lo para casa. Pretendemos levar também este homem.

- E quer que eu acredite que ele é um parente?

- Claro que não. Ele está ricamente vestido e pensei que levá-lo até seu clã me renderia algumas moedas.

- Sabe quem ele é? - O sujeito fitou Ruari com o cenho franzido.

- As marcas na bainha da espada e o emblema do clã me levaram a concluir que ele pertence aos Kerr de Gartmhor.

- É um clã muito rico. - O homem acariciou a espada.

- É verdade, mas não acho que eles pagarão tanto pelo corpo, a ponto de valer a pena que você morra por isso. - Sorcha abriu a capa e mostrou a espada.

Margaret aproximou-se da prima, também com a mão na espada, e o homem ergueu os braços num gesto conciliatório.

- Calma... Respeito seus direitos de recolher os despojos - ele disse e se afastou.

- Margaret - Sorcha falou quando ele estava longe -, leve Bansith e traga para cá o rapaz que você encontrou. Depois atiraremos este grandalhão na padiola.

- Vamos sair daqui agora? - Margaret segurou as rédeas do pônei.

- O mais depressa que pudermos. O brilho no olhar daquela víbora não me agradou.

- Mas ele disse que honraria nosso direito aos despojos.

- Aquele sujeito desprezaria a honra à menor oportunidade. Vá, Margaret, e tome muito cuidado.

- Você não vai ajudá-la? - Ruari perguntou depois de Margaret afastar-se.

Sorcha fitou-o, imaginando como ele podia, ao mesmo tempo, fingir-se de morto e falar de tal maneira que a deixava desconfortável.

- O homem reconheceu seu valor. Será melhor que eu não o deixe sozinho. - Observando o grupo de pessoas, ela tentava falar sem mover os lábios.

- Acha que ele se intimidará com uma mulher do seu tamanho?

- Sim, ele é um covarde. Enquanto ele precisar lutar para ganhar o que deseja, eu terei vantagem. Todavia, não conseguirei recuperar o que ele já tiver tomado. Portanto, o plano mais sensato e seguro será não soltar o que tenho em mãos.

- Acha que sua prima poderá fazer o mesmo?

- Sim, e muito bem. Margaret entende quando está em perigo e foi bem treinada para se defender.

Ruari não teve tempo de responder, pois Margaret retornou. Ele ficou abismado com a rapidez com que ela executara a tarefa, e ainda mais ao reconhecer o jovem ferido amarrado no pônei. Era seu primo Beatham, que desobedecera às ordens de não lutar contra os ingleses. Rezou para que os ferimentos do rapaz não fossem graves, mas nada disse.

Margaret e Sorcha o arrastaram e, embora o fizessem com gentileza, a dor violenta o impediu de raciocinar. Precisou de toda a força de vontade para não gritar e, apesar de seus esforços, um gemido escapou quando elas o largaram sobre a padiola.

- Shh! - Sorcha ordenou, tirando a capa para envolvê-lo.

- Ele está suando muito - Margaret sussurrou. - Mortos não suam.

- Então será melhor pararem de falar com este morto - Ruari avisou-as, com voz entrecortada.

- Sim - concordou Sorcha. - E é melhor eu cobrir sua pobre face cadavérica.

Ruari fechou os olhos, e ela jogou o capuz sobre seu rosto. Quando o pônei começou a se mover, arrastando a padiola no chão desnivelado, a dor aumentou. Seria fácil ceder à escuridão que ameaçava sua mente, mas ele se esforçou para não desfalecer. Ainda não estavam fora de perigo, e queria estar desperto se fossem ameaçados.

- Aquele homem vem atrás de nós - Margaret falou, olhando por sobre o ombro - e parece estar encorajando os companheiros a segui-lo.

- Maldito! - Sorcha parou e pôs uma flecha no arco. - Creio que terei, de lembrá-lo de sua própria covardia.

- Você não vai matá-lo, vai?

- Não, embora eu não me lembre de ninguém que mereça morrer mais do que ele. Apenas mostrarei que posso matá-lo, se eu quiser.

Sorcha sorriu de leve e atirou a flecha, que atingiu a terra aos pés do homem, fazendo-o parar. Ele olhou para o chão e depois para ela. Quando deu mais um passo à frente, Sorcha atirou a segunda flecha, que de novo se fincou no chão a centímetros dos pés dele. O sujeito recuou, e seus companheiros o abandonaram, voltando para a tarefa mais segura de roubar dos mortos. Um pouco depois, ele os acompanhou.

- Acha que ele vai nos deixar em paz agora? - Margaret indagou.

- Penso que sim, mas é melhor não descuidar da retaguarda. Vamos. - Sem deixar de espiar para trás, ela seguiu a prima, que puxava o pônei. - Precisamos nos distanciar o máximo possível deste lugar lúgubre. Estamos muito próximos desses abutres e dos ingleses. Acho até que estamos na Inglaterra.

- Você não sabe onde estamos?

- Sei, sim. Só não posso garantir a quem o território pertence este ano. - Ela riu ao ver a expressão confusa e receosa de Margaret. - Não se preocupe, prima. Posso não saber exatamente nas terras de quem estamos, mas sei como voltar a Dunweare. Estaremos em casa amanhã. Temos de alcançar um local seguro e cuidar dos ferimentos que esses dois tolos conseguiram nessa guerra sem fim contra a Inglaterra.

Ruari gritou, abriu os olhos e só viu escuridão. Demorou alguns segundos para perceber que ainda estava sob a capa de Sorcha. Durante a trajetória lenta e tortuosa, ele perdera a consciência. Sentindo-se sufocado, esforçou-se para mover o braço direito ferido e tirar a coberta do rosto. Inspirou fundo e deparou-se com o rosto de Sorcha.

- Vamos parar durante a noite - ela o avisou. - Assim que o acampamento estiver pronto, cuidarei de seus ferimentos.

- E o rapaz?

- Ele não foi gravemente ferido. Quando nos afastamos o suficiente do campo de batalha, ele se sentou no pônei. Decerto levou uma pancada na cabeça e, por ter caído, foi deixado para trás.

Ruari virou a cabeça devagar, pois o menor movimento lhe causava dor, e viu seu primo Beatham. Apesar da raiva pela desobediência do jovem, teve de concordar com Sorcha. Ele estava bem e até flertava com Margaret.

Viu Sorcha preparar uma fogueira e admirou a escolha do local para descansarem. Havia árvores e vegetação suficientes para ocultá-los, mas não para impedir que vissem o inimigo se aproximar. Tratava-se de uma elevação que permitia uma boa visão circunvizinha. Curioso, imaginou quem teria treinado tão bem aquela jovem.

Toda a curiosidade pela eficiência dela desapareceu diante da dor quando foi levado da padiola para um lugar mais confortável perto do fogo. Seus ferimentos eram graves e haviam piorado por causa das longas horas sem atendimento. Quando as mulheres tiraram sua armadura e a vestimenta, teve de usar a pouca energia que lhe restava para não desfalecer de sofrimento. Ainda não confiava totalmente em suas salvadoras.

- Você aliviaria nossa angústia se pudesse desmaiar - Sorcha murmurou enquanto lavava o sangue e a sujeira do corpo de Ruari.

- Sua angústia? - ele indagou por entre os dentes. Até mesmo o toque delicado da garota era uma tortura. - Sou eu quem está com dores. Por que isso a angustiaria?

- Sempre achei perturbadora essa bravata teimosa. Sei que se agarra à consciência como se estivesse segurando o Santo Graal e eu fosse uma pagã tentando arrancá-lo de suas mãos. Sofre à toa, e isso, cavaleiro, é uma tolice.

- Ele está padecendo muito - Margaret interferiu. - É maldade insultá-lo.

- Os insultos são merecidos.

- Poupe-me, mulher - Ruari pediu.

- Fique quieto, seu tolo. Deixe para queixar-se de minha impudência mais tarde. Agora morda isto. - Sorcha enfiou um pedaço de couro entre os dentes dele. - Tem três feridas profundas, que precisam ser costuradas. Uma no braço direito, outra no abdômen, que por pouco não lhe custou as vísceras, e outra na perna esquerda. Ou foi atacado por uma horda de ingleses ou foi muito tolo para não cair depois de receber o primeiro ferimento grave.

- É um milagre que ele não tenha sangrado até morrer - Margaret murmurou.

Sorcha concordava com a prima, mas ficou em silêncio, concentrando-se em fechar a pior das chagas. Procurou não escutar os gemidos guturais e, apesar de odiar contribuir para a agonia do homem, consolou-se sabendo que não havia escolha. No momento em que deu o último ponto, fitou o rosto dele. Os olhos embaciados haviam perdido o brilho, e a tez muito pálida era sinal de que ele quase perdera a consciência. Apressou Margaret a ir cuidar das feridas menores do jovem enquanto punha as ataduras em Ruari.

Após terminar a pior parte do tratamento, Sorcha deu vazão a um interesse perturbador. Ruari era um homem alto e forte, mas não corpulento. Tinha a força elegante de um animal selvagem. A pele era lisa, firme, e mais morena que a dela. Enquanto amarrava as tiras de tecido limpo sobre as suturas, resistiu à vontade de acariciar a pele para ver se era sedosa como parecia. Os pelos escuros e encaracolados começavam abaixo do umbigo, iam até a virilha, onde protegiam a masculinidade, e se difundiam em uma leve camada pelas pernas bem formadas. Era um homem de aparência extraordinária.

Amaldiçoando intimamente sua fraqueza, terminou de enrolar as bandagens e cobriu-o com sua capa. Por sorte, ele ainda estava imerso na dor ou teria notado os olhares cobiçosos dignos de uma rameira. Afastou os cabelos negros e úmidos do rosto dele, sentindo-se culpada por demorar na tarefa.

- Terminou de me maltratar, mulher? - Ruari indagou com voz fraca.

- Sim. - Sorcha respondeu. - E você vai sobreviver.

- Ele vai sarar mesmo? - o jovem perguntou enquanto Margaret o ajudava a caminhar até a fogueira.

- Está nas mãos de Deus - murmurou Sorcha, enquanto começava a preparar uma refeição de mingau de aveia e pão de cevada. - Contudo, ele sobreviveu por várias horas sem ajuda. Um homem tão teimoso passava a reagir depois de estar limpo e tratado.

- Ele está acordado? - O rapaz olhou para o rosto pálido de Ruari.

- Estou - Ruari respondeu, com a voz se fortalecendo conforme a dor diminuía.

- Fico contente em ver que está melhor.

- Não ficará tão feliz, garoto, quando eu estiver mais forte.

- Ora, primo...

- Primo? - Sorcha espantou-se.

- Sou Beatham Kerr - o rapaz explicou -, primo de sir Ruari.

- Que deveria ter ficado em Gartmhor - Ruari resmungou.

- Primo, como me tornarei um cavaleiro, se sou sempre deixado para trás com as mulheres e as crianças?

- Há muitos homens guardando as muralhas de Gartmhor que não gostarão de ser chamados de mulheres ou crianças.

- Ruari, tenho vinte anos e não deveria ser tão mimado.

- Pedir para cuidar da proteção de minha fortaleza não é mimá-lo.

- Basta! - Sorcha aproximou-se de Ruari. - Nenhum dos dois está em condições de discutir. - Ignorou os olhares fulminantes dos dois homens enquanto ajudava Ruari a erguer-se um pouco e beber do odre que ela segurava em seus lábios.

- Isto não é vinho - ele se queixou.

- Não, é uma sidra especial. Vinho é muito forte, e não imaginei que teria convidados.

- Você tem uma língua afiada, não?

- Sempre me dizem isso. Precisa descansar, e esse é um fato, quer eu lhe peça ou ordene. Temos um longo caminho a vencer amanhã em solo irregular e talvez mais ainda no dia seguinte. Isso dependerá da vagareza com que teremos de viajar por sua causa.

- Nós já andamos bastante.

- Sim, mas não fomos tão longe como eu gostaria.

- Você deve morar bem perto da fronteira com a Inglaterra.

- Algumas vezes, perto demais, mas Dunweare é uma fortaleza difícil de tomar, como verá. Ela foi construída pensando na defesa. - Sorcha voltou para perto da fogueira e do alimento que estava preparando. - E agora estou aqui falando com você como se fôssemos convidados de um banquete. Fique quieto, seu tolo.

- E por falar em tolos, como seus parentes permitem que duas jovens viajem por este território perigoso? - Ruari estremeceu ao tentar mover-se para uma posição mais confortável.

- Nós não somos meninas ingênuas e indefesas. Margaret e eu sabemos nos defender. Deixamos Dunweare quando descobrimos que meu irmão tinha vindo para a batalha, e queríamos ajudá-lo, por ele ter saído sozinho. Às vezes meu irmão esquece as responsabilidades.

- Não há nada de errado em lutar contra os ingleses. Seu irmão poderá trazer grande honra a seu clã.

- Às vezes um clã pode precisar mais do homem do que necessita de sua honra. Agora fique quieto. Não sei onde consegue força para falar, nem por que está tão ansioso para fazê-lo.

- Deve ser por ter ficado tantas horas deitado sozinho, incapaz de me mexer e com pouca esperança de receber auxílio - Ruari sussurrou e fechou os olhos, espantado por ter falado com tanta honestidade. Concluiu que Sorcha estava certa, ele precisava descansar.

- É mesmo igual a todos os homens. Importunam uma jovem até ela ter vontade de gritar, e quando é preciso que fiquem acordados, adormecem.

As palavras ditas em voz suave e rouca o impediram de mergulhar no sono. O comentário dela assumiu uma conotação sexual em sua mente, e ele se repreendeu por tais pensamentos. Ao descerrar as pálpebras, Ruari notou o brilho matreiro nos olhos escuros.

- É preciso escolher as palavras com mais cuidado, minha jovem, ou alguém poderá interpretá-las de forma incorreta.

- Acho que não. Eu tenho o hábito de falar francamente. Margaret, venha levantá-lo para que eu possa dar-lhe comida.

Embora estivesse recostado nas formas arredondadas de Margaret e comendo uma saborosa refeição, Ruari descobriu que lhe faltava energia para apreciar qualquer uma das coisas. Uma grande força de vontade o mantivera ligado à vida e à consciência. Enquanto não fora tratado, temera que a escuridão da inconsciência o levasse à morte. Naquele momento, porém, seu corpo maltratado pedia para dormir, e até a simples tarefa de se alimentar era fatigante.

- Chega. - Ruari virou a cabeça para evitar a colher que Sorcha segurava junto a seus lábios.

- Está bem - ela concordou. - Você comeu bem para um homem tão próximo da morte. Parece que o alimento afastou sua teimosia, e o fez reconhecer a necessidade de descansar.

- É verdade, preciso recuperar minhas forças. - Fechou os olhos. - Existem pelo menos duas pessoas que eu devo disciplinar.

Sorcha sorriu ao ver a expressão alarmada de Beatham. Apesar de não conhecer bem Ruari, desconfiou que o rapaz não tinha muito a temer, não se surpreenderia que o castigo se limitasse a um sermão, seguido pela obrigatoriedade de realizar algumas tarefas menos dignas de um cavaleiro. Era provável que Ruari, em relação à família e aos amigos, mais esbravejasse do que punisse. Como em Dunweare seus instintos eram notórios pela acuidade, Sorcha não se incomodou em ser a segunda pessoa que ele desejava disciplinar. No entanto, preocupava-se com a reação dele quando soubesse que ficaria preso até que um resgate fosse pago.

Suspirou, sentou-se de pernas cruzadas diante da fogueira e começou a comer. Ruari ficaria furioso quando ela lhe dissesse que o manteria cativo. O fato de ele ter abandonado a desconfiança inicial desencadearia um furor ainda maior quando fosse informado que seu clã teria de pagar para tê-lo de volta. Sorcha espantou-se com a própria tristeza ao considerar a raiva de Ruari, que passaria a considerá-la uma inimiga.

Inquieta, tentou distrair-se observando Margaret e Beatham, que estavam sentados do outro lado da fogueira. Margaret parecia gostar das atenções do jovem loiro, bonito e de olhos azuis, e notava-se forte afinidade entre ambos. Era como se fizesse muito tempo que os dois se conheciam, e o flerte poderia perder depressa a ingenuidade. Teria de conversar seriamente com Margaret e esperava que a prima entendesse. Beatham e Ruari eram prisioneiros. Mesmo que o rapaz perdoasse a situação, seu primo com certeza não o faria.

- Margaret - Sorcha interrompeu com gentileza uma confidencia murmurada entre os dois. - Creio que Beatham precisa descansar. - Virou-se para ele. - Pode dormir ao lado de seu primo. Margaret e eu dormiremos por turnos, para poder cuidar dele.

- Posso ajudar a vigiar o acampamento - Beatham ofereceu-se.

- Não, seus ferimentos...

- Não são graves.

- Sim, mas eles o enfraqueceram, e ficaram sem cuidados durante muito tempo. Suas forças ainda não foram recuperadas, mas serão suficientes para atender seu primo, se for preciso.

- E essa será uma grande ajuda, Beatham - confirmou Margaret. - Afinal, se tivermos de fazer vigília e ainda cuidar de sir Kerr, não dormiremos nem um pouco.

Sorcha fez uma careta imperceptível ao escutar Beatham considerar a grande honra de servir a tão belas mulheres. Ela limpou e guardou as vasilhas, disse a Margaret para ajudar Beatham a estender a manta ao lado de Ruari e pegou o cobertor que elas usariam. O pônei focinhou-a, e ela tratou de dar-lhe água.

- Quer que eu faça o primeiro turno? - Margaret perguntou, cocando a orelha de Bansith.

- Não, obrigada. - Sorcha deu-lhe o cobertor. - Ponha-o perto da fogueira e mantenha as armas à mão.

- Está bem. - Margaret olhou para a prima. - Está preocupada com alguma coisa?

Sorcha hesitou, mas decidiu-se pela franqueza usual.

- Creio que será mais sensato não fazer muita amizade com Beatham.

- Por quê? Ele parece ser um bom rapaz. Um doce de menino.

- Menino? Ele tem a sua idade.

- Certo, mas ele tem aparência de menino. E não importa como eu me sinto a respeito dele. Estou tentando impedir que você perca o coração para um homem que não poderá ser seu. Ele logo irá se considerar seu inimigo.

- Por quê?

- Nós manteremos sir Ruari e Beatham conosco para obter resgate.

- Não entendi.

Sorcha certificou-se de que Beatham se afastara.

- Dougal é prisioneiro dos ingleses, que pedirão resgate por ele. Você sabe muito bem que nada temos para comprar essa liberdade. Os Kerr de Gartmhor são muito ricos. Assim que eu souber o que os ingleses querem pela vida de Dougal, pedirei o mesmo aos Kerr. - Ao ver o olhar desconsolado da prima, acrescentou:

- Não existe alternativa.

- Mas Beatham tem sido tão cortês, mesmo sabendo...

- Ele ainda não sabe que é um prisioneiro. - Sorcha esfregou as têmporas para afastar uma incipiente dor de cabeça. Maldisse Dougal por sua impetuosidade em busca da glória que custaria sofrimento à família. - Eu nada disse a ele nem a sir Ruari.

- Por que não? Eles têm o direito de saber que não somos as salvadoras que eles imaginam que somos.

- Detesto decepcioná-los, mas é assim que terá de ser. Eles não devem saber de nosso plano até estarmos nos portões de Dunweare. Somos apenas duas jovens, apesar de eles estarem feridos e de sabermos lutar. Se eles souberem o que pretendo, tentarão escapar, e não preciso falar dos problemas que isso causaria.

- Não. - Margaret suspirou e fitou Beatham com tristeza. - Ele é um homem bonito e doce, e eu gostei dele.

- Eu sei, e por isso resolvi adverti-la.

- Talvez Beatham entenda e nos perdoe.

- Mesmo assim, Ruari é seu lorde e jamais nos perdoará.

- Tem razão, o que é uma pena.

- Sinto muito, prima.

- A culpa não é sua, mas de Dougal. Ele se pôs em perigo, e embora possa agir como um tolo, nosso clã precisa dele e teremos de fazer o possível para tê-lo de volta. E também não é culpa sua que eu me sinta atraída por Beatham.

- O que estou pedindo agora vai apenas apressar o fim desse flerte.

- O que quer dizer com isso? Acha que eu não posso conquistar o coração de um homem como Beatham?

- Claro que pode, e acho até que ele faria um pedido de casamento antes de chegarmos a Dunweare. E então ele conheceria nossos parentes. - Sorcha sorriu ao ver a transformação do rosto bonito de Margaret.

- Ah, eles...

- Isso mesmo. Talvez você encontre consolo no fato de que minhas ações a pouparão desse confronto. Eles se reuniriam em Dunweare, se houvesse um casamento. Beatham parece ser amável e bondoso, mas até mesmo ele poderia esquivar-se de assumir as sete irmãs na família.

- E elas são uma pequena parte do problema. Amo muito minha família, mas às vezes eu gostaria de ter nascido em outro clã.

Sorcha riu.

- Vá descansar, Margaret. Farei o primeiro turno de vigília.

- Tem certeza de que precisamos ficar tão atentas? Você deve estar tão cansada quanto eu.

- Estamos em terras reivindicadas tanto pela Escócia como pela Inglaterra, embora não administradas por nenhum dos dois países. Esta é uma região onde enxa-meiam patifes, ladrões e homens banidos de ambos os lados. Nossa família tem sofrido por viver justamente no limite desta terra selvagem. Sim, teremos de vigiar o acampamento. Abafe o fogo para que seja suficiente para manter à distância os animais, mas não para atrair os vilões que fazem desta terra seu lar.

Margaret anuiu e estendeu a manta ao lado da fogueira. Sorcha suspirou, conferiu as armas e entrou na mata que rodeava o acampamento, pensando em fazer uma guarda circular, fora do campo de visão do local. Ao ver sua sombra refletida pelo luar que brilhava por entre as árvores, considerou-se um obstáculo pequeno para qualquer rufião que desejasse atacá-los. Sua perícia com as flechas, a espada e a adaga era boa, mas isso jamais compensaria sua falta de tamanho e força. Tratou de esquecer o breve ataque de medo e começou a andar ao redor do acampamento.

A cada passo, maldizia o irmão. Ele sabia que era imprescindível para dar continuidade à linhagem. Embora ela pudesse assumir a posição de comando de Dunweare, e qualquer marido que ela escolhesse a representaria na corte ou na batalha, não seria a mesma coisa. A genealogia poderia enfraquecer se não passasse de pai para filho, e o sobrenome Hay acabaria perdido.

Dougal ainda não tivera herdeiros, nem mesmo se casara. Era dever dele assegurar a continuidade da linhagem antes de jogar fora sua vida num campo de batalha. Apesar de saber disso desde a infância, ele continuamente se afastava de sua responsabilidade. Dessa vez, a inconsequência, mesmo não sendo fatal, afetara seriamente Margaret e a ela. Se Ruari fosse uma pessoa vingativa, isso poderia afetar todo o clã. E ninguém conseguia convencer Dougal a ser razoável.

- Talvez eu devesse abrir aquela cabeça oca para enfiar um pouco de juízo dentro - Sorcha murmurou e olhou ao redor ao perceber que sua voz soara alta no silêncio da noite.

Suspirou, chutou uma pedra e praguejou ao sentir que o couro macio não tinha sido proteção suficiente para seus dedos. Admitiu que parte de sua raiva de Dougal devia-se a Ruari. Não entendia por que se sentia tão atraída por ele, nem por que seus sentimentos tinham se tornado fortes em tão pouco tempo. Por causa do ato insano do irmão, era forçada a fazer de Ruari um inimigo. Isso a deixava furiosa e triste ao mesmo tempo. Teria de permitir que os acontecimentos seguissem seu curso e rezar para que Ruari não transformasse todo o incidente em uma batalha longa e sangrenta.

 

- Prisioneiro?

Sorcha surpreendeu-se diante do grito furioso de Ruari, que parecia pronto a pular da padiola para machucá-la. Teria ela dado a notícia cedo demais? Estavam a poucos metros dos pesados portões de Dunweare, uma visão agradável depois de três longos dias de viagem. Porém, a pequena distância ainda poderia representar problemas.

- Sim, para obtenção de resgate - Sorcha respondeu e fez sinal para Margaret puxar o pônei mais depressa. - Pretendo pedir pagamento ao seu clã para devolver você e seu primo. Meu irmão está preso, e preciso de dinheiro para libertá-lo.

Ruari proferiu uma imprecação e procurou sentar-se. Sorcha pôs um de seus pés pequenos e calçados sobre o peito dele e deitou-o de novo. Ter conseguido fazê-lo era uma prova de como o homem estava fraco, e o olhar dele por entre os cabelos negros emaranhados revelava o quanto isso o enfurecia.

Ela retirou o pé depressa, satisfeita por estarem perto da fortaleza. As pessoas de dentro das muralhas imponentes de Dunweare já se apressavam em saudá-los.

Beatham, enfraquecido pela viagem, montava Bansith e parecia mais taciturno do que irritado, mas não fez menção de escapar. Para fugir, teria de ferir uma das duas, o que certamente não faria.

Gritos de boas-vindas do lado interno das muralhas chamaram a atenção de Sorcha. Não seria fácil levar seus familiares a compreender por que estava fazendo algo que a maioria deles considerava um crime. Não era costume em seu clã lançar mão de seqüestro para obter resgate. E diante da indignação de Ruari, esperava que os parentes tivessem energia para mantê-lo preso até que conseguissem o dinheiro.

Ruari mexeu-se com cuidado para dar uma boa espiada em Dunweare antes de ser arrastado para dentro, e praguejou. Seria praticamente possível escapar da fortaleza.

Dunweare situava-se sobre uma colina rochosa, e o caminho para atingi-la era estreito e sinuoso. A muralha alta e espessa parecia crescer das rochas. Musgos e cardos que brotavam ao redor não esconderiam um atacante ou quem quisesse deixar as torres escuras do castelo. Onde a inclinação se suavizava e se tornava mais verde, na base da colina, o círculo de cabanas era uma excelente primeira linha de defesa. Os moradores certamente dificultariam a passagem de quem pretendesse cruzar o fosso que abrangia os dois lados da colina que não faziam limite com o rio. Os Hay haviam escolhido o melhor lugar para viver, em uma das regiões mais perigosas da Escócia.

Ao ser carregado por entre os enormes portões de madeira e ferro, Ruari considerou que a construção daquela fortaleza devia ter sido dispendiosa. Decerto, Sorcha mentira ao tentar justificar seus atos pela pobreza, e ele se incomodava mais com a desonestidade do que com a atitude dela em si.

Minutos depois, chamou-lhe a atenção o número de pessoas que se aglomeravam ao redor deles quando entraram no pátio. Mexeu-se de maneira desconfortável diante dos que os observavam e reparou que os curiosos eram, em sua maioria, muito jovens, ou idosos, ou mulheres. No entanto, os poucos homens armados não deveriam ser subestimados. Sobre a muralha havia mais alguns guerreiros. Dougal Hay partira sozinho para a batalha, e Ruari espantou-se com a escassez de soldados. Olhou ao redor, esperando que alguém dissesse algo que esclarecesse algumas de suas dúvidas.

Sorcha fez uma careta e então sorriu quando quatro das cinco tias que viviam em Dunweare se apressaram a abraçá-la. Todas falavam ao mesmo tempo, misturando saudações e perguntas num tagarelar incompreensível. Ela suspirou, aliviada, quando Robert, o armeiro, abriu caminho por entre o povo. Ele parou diante dos recém-chegados com as enormes mãos na cintura, olhou para Beatham, para Ruari e finalmente para ela.

- Onde está Dougal? - Robert indagou, e sua voz autoritária e profunda fez com que todos se calassem.

- Vivo. - Sorcha esperou cessarem os murmúrios de graças. - Mas foi feito prisioneiro pelos ingleses.

- Maldita tolice daquele menino! Deus certamente compensou o rosto bonito com a falta de esperteza. E por quanto tempo ele continuará vivo? Nós não temos nada com que comprar a liberdade dele.

Grizel Hay, a penúltima das sete tias de Sorcha, aproximou-se de Robert.

- Se tentarmos com afinco e todos colaborarem, poderíamos juntar uma quantia para um pequeno resgate. Não podemos deixar o pobre Dougal entregue a seu destino.

Sorcha sorriu para a tia pequena e gorducha, notando que os grandes olhos castanhos conservavam a suave expressão de doce otimismo e que os cabelos da mesma cor estavam soltos como sempre.

- Receio, tia, que um pequeno resgate não seja suficiente. Os ingleses perderam a batalha, e sir Henry Hotspur Percy foi capturado. Eles pedirão uma quantia alta para acalmar o orgulho ferido e tentar recuperar algo do que perderão quando tentarem reaver seus próprios homens.

- Então Dougal está perdido - Bethia Hay, a tia solteirona, magra e vestida de marrom, lamuriou-se.

- Odeio concordar - disse Robert -, mas acho que ela está certa. Quando os ingleses descobrirem que não podemos resgatar Dougal, eles não o mandarão para casa por causa da bondade em seus corações.

- Sei disso, Robert, mas creio que tenho a resposta para nossos problemas. - Sorcha acenou para Beatham e Ruari, e as atenções se voltaram para os prisioneiros.

- Bem, você trouxe alguns companheiros consigo, e sua bondade ao ajudar os pobres rapazes confere-lhe honra, mas não vejo como eles podem nos ajudar.

- Não foi apenas clemência que me fez arrastar essas duas carcaças para fora do campo de batalha.

-Você não teria noção de bondade mesmo se ela cuspisse em seu olho - resmungou Ruari.

Robert deu um pontapé na padiola, fazendo Ruari praguejar por causa da dor.

- Não fale assim com nossa lady Sorcha! Sorcha tocou no braço musculoso de Robert.

- Meu bom amigo, deixe-o desabafar. Eu mereço.

- Você? Nunca!

- Sim, eu. - Sorcha apontou os dois prisioneiros e apresentou-os. - Este é sir Ruari Kerr de Gartmhor, e este é seu primo, Beatham. Eu os trouxe para pedir resgate. - Aguardou que o choque nas expressões se transformasse em ponderação, mesclada a relutância.

- É triste aprisionar um homem para pedir resgate - declarou Robert, e várias pessoas murmuraram em concordância.

- Fico feliz que pense assim - Ruari apressou-se a dizer. - Talvez possa incutir juízo na cabeça dessa jovem.

- Sendo apenas um armeiro, não posso repreendê-la. - Robert deu um leve sorriso diante da surpresa de Ruari. - Contudo, tomo essa liberdade de vez em quando.

- Mais do que isso - Sorcha resmungou, mas Robert ignorou-a, fitando Ruari.

- Desta vez, sir Ruari, tenho de curvar-me aos desejos dela. Nenhum de nós gosta de fazer um prisioneiro para pedir resgate. Era uma prática comum no passado, mas desde os tempos do avô de Sorcha, os Hay de Dunweare aboliram esse hábito.

- E agora pretende ignorar os desejos deles e enlamear sua memória.

- Sim, e acredito que eles aprovariam essa atitude. Dougal deve retornar em segurança para Dunweare. - Robert começou a desamarrar a padiola do pônei. - Cuidaremos bem do senhor e de seu primo. Nada receie.

- Tudo correu bem, Robert? - Sorcha perguntou enquanto ele e outros homens ajudavam a levar Ruari e Beatham para dentro da fortaleza. - É estranho, mas toda vez que deixo Dunweare por mais de algumas horas, tenho a impressão de que algo aqui exige minha atenção.

- E desta vez você está certa. Creio que a pequena Euphemia logo se tornará mulher.

Sorcha praguejou, e um rápido olhar para Margaret a fez entender que a prima se perturbara com a notícia. As pessoas tinham dificuldade de aceitar as diversas estranhezas entre os membros de sua família, mas elas eram o menor de seus problemas no momento. A transição de Euphemia de menina a mulher traria à baila todos os motivos pelos quais os Hay haviam escolhido viver num local tão distante. Sorcha rezou para que Ruari e Beatham fossem resgatados logo e não descobrissem todos os segredos sombrios de Dunweare.

- Isso já se tornou um grande problema? - ela perguntou a Robert de maneira velada para que Ruari e Beatham não compreendessem o que estava sendo discutido.

- Está apenas começando, mas foi mais repentino e mais forte do que posso me lembrar nos outros casos. - Robert sacudiu a cabeça, ajudando o mestre da estrebaria a carregar a padiola de Ruari para cima da escada estreita da torre. - Desconfio que dessa vez será difícil.

- Euphemia notou?

- Sim, e antes que pergunte, ela ainda não abandonou suas noções peculiares.

Enquanto ajudava a prima a amparar Beatham, Sorcha perguntou-se o que faria. Sua primeira idéia foi confinar Ruari e Beatham num quarto fechado, mas logo percebeu que seria uma tolice. As complicações que ameaçavam Dunweare como uma nuvem de tempestade não poderiam ser trancadas. O instinto a avisou de que Ruari acabaria por descobrir a praga que assolava Dunweare. Disse a si mesma que isso não importava, mesmo sabendo que mentia.

 

Ruari reprimiu um grito quando foi colocado na cama. Imaginou como conseguira suportar a batalha, a longa viagem e o sofrimento de ser transportado da padiola para a cama, em uma agonia que parecia ser fatal. Era injusto que, no momento, já não temendo tanto pela sua vida, encontrasse dificuldade em desmaiar e escapar da dor.

- Para onde levaram Beatham? - ele perguntou quando olhou ao redor e não viu o primo.

- Para um quarto próximo a este. - Sorcha colocou uma bacia de água perto da cama e começou a lavar o corpo de Ruari. - Você está muito suado.

- É um trabalho pesado ser carregado por aí.

Ela ignorou o sarcasmo e virou-se para Robert, que permanecera a seu lado. Os demais estavam ajudando Margaret a acomodar Beatham.

- Onde está Neil?

- Virá logo - Robert respondeu.

- Ah, sim, eu preferiria ser atendido por um homem. - Ruari franziu a testa quando Sorcha e Robert apenas sorriram.

Ruari não chegou a perguntar o que os divertia, pois, nesse instante, a porta do quarto foi aberta com tanto ímpeto que bateu na parede. Espantado, ele se deparou com a mulher mais alta que já vira. Devia ter mais de um metro e oitenta, e era obviamente forte. Quando ela parou ao lado da cama com as mãos nos quadris arredondados, ele avaliou o corpo voluptuoso. Surpreendeu-se com os olhos verde-claros, que contrastavam com a cor castanha comum em Dunweare, mas sua atenção concentrou-se na massa de cabelos vermelhos que lhe chegava à cintura.

- Ah, tia, fico muito contente que esteja aqui para ajudar - disse Sorcha. - Este é sir Ruari Kerr. - Ela sorrir ao ver-lhe o olhar ainda atônito. - Sir Ruari, esta é minha tia, Neil Hay.

- Você disse "Neil"? - indagou Ruari, livrando-se da fascinação pela mulher.

- Sim - Neil respondeu, franzindo o cenho para Ruari. - Sou a caçula das sete irmãs, e papai já não tinha idéia para nomes femininos. Deve ter tido a esperança de que um nome masculino me transformasse no rapaz que ele tanto desejava.

- Neil - Ruari murmurou, mas ninguém lhe deu atenção.

- Você acha mesmo que esse pedaço de carne estropiada lhe dará dinheiro suficiente para resgatar o tolo do meu sobrinho? - Neil perguntou a Sorcha.

- Sim - respondeu ela. - Os Kerr de Gartmhor são bastante ricos e facilmente poderão dispor de um ou dois sacos de moedas para ter de volta seu lorde e o primo. Esperaremos até os ingleses pedirem o preço por Dougal, para então estabelecermos o resgate dos dois.

- Não vejo nenhum lucro nisso.

- Tia, não estou fazendo isso por lucro, mas sim por necessidade.

- Você fala em necessidade, mas eu não vejo nenhuma - Ruari interveio. - Esta é uma bela fortaleza, bem maior e mais protegida do que as que eu já vi, exceto, talvez, a minha. Sua construção deve ter custado muito dinheiro.

- Sim, além de muitas vidas - Sorcha retrucou. - A riqueza do nosso clã foi gasta nesta fortaleza, antes de meu pai nascer. Viver na beira de uma faixa de terra sem lei tão próxima da Inglaterra requer um castelo sólido e seguro. Uma edificação dessas exige muito dinheiro, e meus antepassados sabiam como ganhá-lo. Era raro o dia em que não se via uma pobre alma vagando pelos corredores de Dunweare, esperando seus parentes e o resgate que eles trariam. E foram feitos na Inglaterra muitos ataques, que custaram a vida de nossos homens.

- E agora você revela que o sangue sujo deles corre em suas veias. - Ruari surpreendeu-se quando viu que Neil pretendia dar-lhe um soco, que Robert deteve a tempo, segurando-a pelo pulso. - Vejo que o temperamento combina com os cabelos - murmurou, enquanto ela se desvencilhava do armeiro.

- Talvez não tenhamos aprendido a aceitar insultos tão bem quanto você - Sorcha comentou e o viu corar de leve. - Durante a infância de meu pai, o verdadeiro, custo deste castelo tornou-se penosamente claro. Nós havíamos acabado com a população masculina de Dunweare.

- Sorcha, não sei se deveria contar tais coisas para esse homem - Neil repreendeu-a.

- Tia, ele e o primo ficarão aqui durante algum tempo, e teriam de ser cegos para não enxergar a verdade. E acredito que sir Ruari é guerreiro suficiente para ter percebido que Dunweare pode ser protegido com sucesso por uma porção de bebês.

- Sim, é verdade - Ruari admitiu, relutante. - E notei também a falta de homens armados. Achei que eles tivessem ido para a guerra, mas depois me lembrei de que Dougal foi sozinho.

- Dougal sabia que nenhum homem o acompanharia nem permitiria que fosse, se ele revelasse seus planos. - Sorcha pegou um cobertor de uma arca sob a janela.

- Dependemos dele para repor a parcela masculina de Dunweare, para restituir o sangue, de nossos antepassados, derramado em tantos campos de batalha. - Com a ajuda de Neil, cobriu Ruari. - Não temos escolha. Você terá de ficar aqui para obtermos o dinheiro. Por quase cinqüenta anos, nosso pequeno clã não usou o jogo do resgate, considerado justo por muitos, e até mesmo honrado.

- Mas você o jogará agora.

- Sim, sir Ruari, e não pense que o faremos de maneira desastrada, só porque nosso exército é formado por idosos, jovens, aleijados e mulheres. - Enquanto falava, puxava o cobertor sobre o peito de Ruari, inclinando-se sobre ele. - Será bem tratado, com bondade e respeito, como é seu direito, mas não confunda isso com fraqueza. Se tentar escapar, nós o impediremos. Se ultrapassar nossas muralhas, nós o perseguiremos. É nosso prisioneiro, e embora pense em fazer pouco de seus captores, não permita que essa arrogância o faça agir de maneira tola. Eu lhe prometo que nós o faremos arrepender-se disso.

Sorcha percebeu de repente que estava fitando a boca tentadora de Ruari, o que a surpreendeu. Rapidamente levantou o olhar e encarou-o. A curiosidade nos olhos verdes advertiu-a de que seu deslize fora notado. Endireitou-se.

- Espero ter sido clara. - Sorcha agradeceu a Deus pela firmeza de sua voz.

- Muito - disse ele.

- Ótimo. Se minha tia não tiver objeções, eu o deixarei sob os cuidados dela.

- Pode ir, Sorcha, ele ficará em boas mãos - Neil assegurou. - Converse um pouco com Robert. Ele tem algo para lhe dizer.

- Sobre Euphemia.

- Sim, a pequena Effie. Suponho que teremos alguns problemas nos meses que nos aguardam.

Embora temendo o que iria ouvir, Sorcha anuiu e saiu com Robert, relutante em deixar Ruari. Ele estivera sob seus cuidados por quase três dias, mas ela sabia que esse não era o motivo de sua hesitação. Apesar da raiva que ele sentia, apreciara a companhia. Era a primeira vez, desde que o encontrara, que sairia do lado dele. A extensão de seu desassossego era uma preocupação real, pois parecia não ser suficiente que dissesse a si mesma que não havia esperança de qualquer tipo de ligação entre eles. Precisava afastar-se para superar a fascinação que sentia por Ruari, concentrando-se nos problemas de Dunweare.

- Agora pode falar abertamente sobre Effie - Sorcha pediu a Robert enquanto eles se dirigiam ao salão nobre.

- Tudo começou algumas horas após você e Margaret saírem atrás de Dougal.

- Não houve indícios do ataque?

- Não, e por isso sinto que vamos sofrer por um longo e desordenado período. Os espíritos baixaram, e com uma vingança maldita. Todos sabiam que Effie estava se aproximando da idade e esperavam o início dos problemas, mas até as que já enfrentaram a situação acharam que o primeiro ataque foi muito violento, e isso nos causou apreensão.

- Acha que alguém poderá sair ferido desta vez?

- É o que receio, apesar de provavelmente já ter sido ruim antes, e eu nunca ter ouvido falar de algum prejuízo.

- É verdade. E como Effie está reagindo?

- Ela se recusa a acreditar que isso esteja acontecendo porque em breve se tornará mulher.

- Bem, eu também não quis acreditar quando aconteceu comigo, É difícil deixar a meninice pra trás, mas quando se tem de encarar a mudança com espíritos malignos atirando coisas e tornando-se um terrível transtorno, a provação é penosa. E ainda temos a considerar as fantasias de Effie. Ela está convencida de que é uma criança trocada, que foi abandonada pelas fadas, e deve achar que as fadas não sofrem as aflições de mulheres mortais.

Sorcha considerou o que deveria dizer a Effie na tentativa de fazê-la aceitar o amadurecimento com tranqüilidade. A calma era a melhor coisa, e a única verdade que os familiares tinham descoberto sobre a maldição que os perseguia. Quanto mais tranqüila estivesse a mocinha, menos violenta era a atividade dos espíritos. Os ruídos eram mais brandos, objetos menores eram atirados, ou roubados e escondidos, e os outros aborrecimentos se tornavam mais fáceis de suportar. Havia uma bebida de ervas que sua avó fizera para manter a menina sossegada, até mesmo alegre por algumas horas, mas Sorcha não gostava da idéia de usá-la.

Robert empurrou a pesada porta do salão nobre. Sorcha entrou e parou tão de repente que ele lhe deu um encontrão e praguejou. O salão estava em completa desordem. Duas mulheres nervosas recolhiam candelabros, pratos e canecas espalhados, além de endireitar bancos virados. Tinha-se a impressão de que uma diversão selvagem estivera em curso. Um escudo pendurado sobre a enorme lareira de pedra caiu no chão com estrondo. As duas criadas gritaram, respiraram fundo e continuaram a recolher as peças. Robert foi até onde estava o escudo. Sorcha seguiu-o e arrastou um banco alto para que ele pendurasse a peça no lugar.

- Muito ruim - ela murmurou, segurando o banco de três pernas para Robert subir.

- Isso tem sido constante e implacável para minha paz interior. Os espíritos estão muito agitados desta vez.

- Talvez a transição de Euphemia de criança a mulher seja rápida. - Observou-o pular do banco para o chão. - A esperança é a última que morre.

- Tenha quanta esperança quiser, mas antes precisamos acabar com essa desordem. Talvez se você falasse com seus próprios espíritos, um deles poderia saber como parar com isso.

- Eu já lhes perguntei antes, e eles não sabem. Na verdade, meus fantasmas não parecem saber muita coisa, e eu preferia que se mantivessem afastados por enquanto. Posso ser capaz de explicar coisas que caem ou barulhos noturnos, mas duvido que eu consiga explicar um fantasma ou, como Ruari não é capaz de ver meu espírito, o fato de eu estar falando com um ser invisível.

- Eu não havia pensado nisso.

- Todas as histórias sussurradas e os medos que forçaram nosso clã a vir para este local desolado desapareceram. Se sir Ruari e seu primo descobrirem nossos segredos, aquelas histórias tenebrosas poderão recomeçar. Não temos outro local para onde correr, Robert.

- Então, o que poderemos fazer?

- Rezar para que sir Ruari saia daqui pensando que somos um bando de loucos.

 

Ruari estremeceu ao acordar. Com o corpo dolorido, abriu cuidadosamente os olhos e não ficou surpreso ao encontrar alguém ao lado de sua cama. Sentira que estava sendo observado. Desde que chegara a Dunweare, três dias atrás, não fora deixado sozinho. Surpreendia-o que os Hay tivessem deixado uma jovem tão esguia e delicada como sua guardiã e enfermeira. A menina magra e miúda que o observava ainda não devia ter alcançado a plena feminilidade. Mexeu-se sob o olhar azul e intenso da garota e franziu o cenho.

- Não acho que você deveria estar aqui, menina - Ruari fechou ainda mais a carranca quando ela afastou uma madeixa loira do rosto angelical e anuiu.

- O senhor está apreensivo, o que é natural - ela disse com voz suave e melódica. - A maioria dos mortais que conheci fica inquieta por causa das fadas.

- Fadas? - Ruari sentiu sede e sentou-se devagar. A caneca e a jarra com água não estavam mais na mesa de cabeceira.

- Sim, sou Euphemia, uma fada, e fui trocada ao nascer. As fadas levaram a verdadeira Euphemia no dia em que ela nasceu e me deixaram no berço. Esse pobre povo enganado me criou como se eu fosse um deles. Não me deram atenção quando tentei lhes contar a verdade.

- Tentar fazer com que a escutem pode ser uma tarefa cansativa. - Ruari imaginou se havia insanidade no sangue dos Hay.

Refletindo sobre os eventos dos últimos três dias, talvez isso fosse verdade. Ouvira barulhos estranhos durante a noite, choros, gemidos, e até uma risada que provocava calafrios. E, para finalizar, aquela conversa sobre fadas. Aliás, com os cabelos soltos, o vestido leve e esvoaçante, e uma guirlanda de hera na cabeça, a menina parecia uma delas.

Fitou-a com cautela e se perguntou se ela não seria a responsável pelos ruídos noturnos, ou se era perigosa. Perturbava-o imaginar se não seria morto em seu leito de enfermo por uma menina pequena, pálida e maluca.

- Por acaso viu minha água? - ele perguntou, esperando chamar a atenção dela para assuntos mais terrenos.

- Acho que os espíritos a levaram. Eles estão muito perturbados ultimamente. Sorcha diz que isso acontece porque em breve me tornarei mulher, o que é uma bobagem. Sou do povo das fadas e, sabendo disso, os espíritos não me perseguiriam. - Enquanto falava, ela sentou-se na beirada da cama.

- De que espíritos está falando?

- Eles talvez não o tenham incomodado, mas com certeza o senhor ouviu barulhos à noite.

- Sim, ouvi. - Ruari alarmou-se quando a menina montou sobre ele. - Achei que algum de seus parentes tivesse a mente perturbada.

- Não... Essa é uma maldição que ronda as mulheres Hay e foi lançada por uma velha feiticeira dos pictos. - Ela se inclinou e apoiou as mãos na cabeceira da cama, uma de cada lado de Ruari. - Sempre que uma jovem desse clã se aproxima da fase de transição, os espíritos vêm nos atormentar. É um aborrecimento, mas nem sei se acredito em maldições. Se fosse verdade, alguém já poderia ter descoberto uma maneira de acabar com isso. - Aproximou o rosto do dele. - Há muito poucos homens em Dunweare.

- Foi o que notei. - Espantado, Ruari concluiu que a menina tentava seduzi-lo, e ele não tinha espaço para se movimentar. - Estou com sede. Será que você poderia ver o que aconteceu com meu hidromel?

Euphemia ignorou o pedido, mantendo o olhar fixo em sua boca.

- Talvez Sorcha esteja certa ao afirmar que eu sou uma Hay, que logo me tornarei mulher e que, quando as fadas me abandonaram, deixei de ser uma delas. Se ela tiver razão, a falta de homens em Dunweare se tornará perturbadora.

- Bem, não pense em me usar para resolver esse problema. - Ruari tentou agarrar os braços dela e afastá-la, o que lhe causou fortes dores.

- Por que não? O senhor é um homem, e eu sou mais mulher do que criança.

- Pode ser, mas eu tenho vinte e oito anos e poderia ser seu pai. Seria melhor concentrar seus interesses em outra coisa. - Ele ergueu o braço direito e, procurando esquecer a dor de seus ferimentos, tentou empurrá-la, mas foi incapaz de deslocá-la.

- O senhor é mais velho que o ideal, mas não há muita escolha em Dunweare.

Antes que Ruari pudesse responder, ela segurou sua cabeça entre as mãos e beijou-o. Ele não chegou a se recuperar do choque. O som de uma batida no piso chamou sua atenção. Certo de que alguém entrara no quarto e fizera uma idéia errada da cena, afastou a garota e maldisse a dor aguda que o atravessou como uma faca. Franziu a testa ao não ver ninguém além de Euphemia.

- Pensei que alguém tivesse entrado - murmurou e praguejou ao ver a gamela e a jarra de água das abluções sendo atiradas no chão. Quando se virou para tentar proteger a menina, ela ficou em pé na cama.

- Chega! Estou cansada desses acessos de fúria! - ela gritou e sacudiu os pequenos punhos fechados em direção a uma arca, que foi afastada da parede.

Incapaz de abaixar a garota ou de tirá-la da frente, Ruari se contorceu para evitar os objetos atirados no quarto. Euphemia se desviava deles e amaldiçoava o ar. Ele escutou batidas na porta. Não estava trancada, mas a pessoa do outro lado não conseguia abri-la,

- Maldição, deixe-me entrar! - Sorcha gritou.

- Ninguém está impedindo você de fazer isso! - Ruari respondeu no mesmo tom.

- Euphemia esta aí? Pensei ter ouvido a voz dela.

- Sim, está.

Sorcha lutou para abrir a porta que uma mão invisível segurava. Isso e os ruídos vindos do quarto lhe deram a certeza de que os espíritos haviam aparecido para Ruari. O que a inquietava era a presença de Euphemia naquele aposento depois de receber ordens para se manter afastada dos prisioneiros. Jurando que faria a garota arrepender-se da desobediência, tropeçou para dentro do quarto quando a porta foi aberta de repente. Ao se equilibrar e retomar o fôlego, olhou ao redor e, notando que o distúrbio terminara, voltou-se para Euphemia.

- O que está fazendo aqui? - Sorcha caminhou até a cama e tirou a garota dali.

- Vim visitar nosso prisioneiro. - Euphemia tentou soltar-se de Sorcha enquanto era arrastada até a porta.

- Você foi avisada para se manter afastada deste quarto.

- Você não tem o direito de mandar em mim.

- Mais tarde eu lhe mostrarei quanto direito eu tenho, e com certeza sua mãe ficará feliz em repetir a lição! - Ela empurrou a prima para fora do quarto. - E não adianta se esconder, pois eu a encontrarei!

- Sorcha, sei que está querendo ficar com ele só para você - Euphemia queixou-se ao tropeçar no corredor.

- Não seja idiota.

Sorcha bateu a porta, deixando-a para fora. Apesar da afeição que nutria pela garota, admitiu que ela precisava de disciplina. Começando a arrumar o quarto, pensou nas palavras de Euphemia e ficou desconfiada. Recentemente, Neil se queixara que a menina só pensava em rapazes e que lastimava a escassez deles em Dunweare. Por isso a prima desobedecera às ordens para não entrar no quarto.

- O que estava fazendo com aquela criança? - Sorcha esperava que o ataque distraísse Ruari das perguntas que ele pretendia fazer.

- Nada. Essa garota maluca entrou aqui, dizendo tolices sobre fadas e espíritos, e decidiu que eu estava aqui para diverti-la. - Ele estremeceu ao buscar uma posição mais confortável.

- E por certo nunca lhe ocorreu tentar usar a tolice dela para esquivar-se. - Apesar das palavras duras, Sorcha apressou-se em ajudá-lo.

- Não tive tempo para ser tão esperto. Essa menina doida concluiu que fui trazido aqui a fim de ajudá-la na transformação de menina em mulher. E de repente ela fez coisas voar pelo quarto. Foi quando você chegou. - Ruari observou-a enquanto ela verificava seus ferimentos. - Exijo uma explicação. Que jogo é esse?

- Jogo? - Sorcha franziu a testa ao ver que ele nada tinha para beber. - O que aconteceu com o hidromel?

- Desapareceu. Estou falando dos barulhos que ninguém explica e de tudo o que aconteceu aqui. A garota falou sobre espíritos, mas não sou tão tolo.

- Talvez não, mas sei que está com sede. - Sorcha foi até a porta, abriu-a e viu Bethia, a quem pediu comida e bebida para ele.

- Estou cansado disso - Ruari resmungou quando Sorcha voltou para o lado da cama. Segurou-a pelo pulso. - E exijo respostas.

- É um cavaleiro muito exigente.

- E estou começando a pensar que você e os Hay são todos malucos. Aquela mulher, Neil, é tão grande quanto um homem, e muitas vezes age como tal. Há também uma mulher miúda que está em toda parte e que fala sem parar, embora nada diga.

- Minha tia Bethia.

- EIa mesma. E depois vi outra, que não diz nada e treme quando eu pisco.

- Tia Eirie. Ela é muito tímida.

- Como um cachorrinho que apanhou muito. E não podemos esquecer a menina que esteve aqui e falou de espíritos, e de ter sido abandonada ao nascer, e de ter virado fada, ou coisa parecida. Pelo pouco que eu vi de Robert, ele me pareceu uma pessoa sensível, exceto por prestar atenção demais ao que todas vocês falam. Ah, isso sem mencionar a maldição a que a garota se referiu!

- Ela contou tudo, não é?

Ruari não chegou a responder, pois nesse instante Bethia entrou correndo no quarto e fitou-o com nervosismo. Deixou na mesa de cabeceira uma jarra com hidromel, uma pequena travessa com pão e queijo e uma caneca. Parou ao ver que Ruari segurava Sorcha, mas saiu correndo quando a sobrinha sacudiu a cabeça.

- Estou aqui há poucos dias, mas começo a entender o receio dela.

Sorcha soltou-se e, ignorando a carranca de Ruari, serviu-lhe a bebida. Estendeu a caneca, satisfeita ao ver que ele não precisava de ajuda para beber. Enquanto cortava o queijo e o pão, debatia consigo mesma como deveria responder às questões persistentes. Ele já suspeitava que os Hay eram malucos e, por isso, decidiu contar-lhe a verdade, independentemente do que ele pudesse pensar.

- O que é essa conversa sobre espíritos e maldição? - Ruari começou a comer o queijo e o pão que Sorcha pusera diante dele.

- Dizem que, nas brumas do passado, uma das mulheres Hay despertou fortes ciúmes em uma feiticeira dos pictos. A bruxa amaldiçoou não só a ela, mas todas que viessem depois. Sempre que uma Hay está para se tornar mulher, ela deve sofrer os tormentos infligidos pelos espíritos mal-humorados. Foram esses que escudou à noite, sir Ruari. Foram eles que tomaram sua bebida e deixaram seu quarto nessa desordem. Eles também gostam de esconder coisas.

- E você acredita nesse absurdo?

- E por que eu não acreditaria? Os problemas têm início toda vez que uma garota de Dunweare começa a se transformar em mulher. Nós todas sofremos com isso, e agora é a vez de Euphemia.

Ruari tomou um gole de hidromel.

- Eu achei que você fosse dotada de alguma inteligência, mas vejo que é tão desmiolada quanto o resto do clã.

- Você duvida do que estou lhe contando, não é? Ruari riu e estremeceu por causa da dor.

- Já que acha tão divertido, posso lhe contar o resto.

- Ainda tem mais?

Sorcha aborreceu-se mais do que deveria com o escárnio dele.

- As mulheres do meu clã freqüentemente são abençoadas com dons especiais.

- Excesso de imaginação? Ela desconsiderou a zombaria.

- Posso ver os espíritos que vagueiam na Terra e falar com eles.

- Então por que não tem uma conversa séria com os que jogam suas coisas por aí?

- Esses eu não posso ver nem ouvir, e aqueles com quem eu falo pouco podem fazer com os turbulentos. Nenhuma das Hay com o dom é capaz de alcançá-los e argumentar com eles.

- Muito inconveniente. Diga-me, você é capaz de invocar qualquer espírito?

Mais uma vez, a zombaria a magoou. Sorcha gostaria que Ruari acreditasse nela e a aceitasse, o que poderia ser perigoso. O esforço para proteger seus sentimentos e seu coração vinha se revelando patético. Por isso fizera o possível para evitá-lo desde a chegada deles a Dunweare, e sua família estava ficando cada vez mais curiosa em relação à sua atitude. Revelar a Ruari a verdade sobre si mesma poderia alarmá-lo a ponto de ele matar com palavras a crescente fascinação que sentia por ele. Sorcha apenas desejava que isso não a fizesse sofrer.

- Não posso invocar quem eu desejo, Preciso me ater aos que decidem aparecer para mim. Minha avó podia alcançar outros, mas eu nunca tentei. Para mim, são suficientes os que vejo e escuto. - Cruzou os braços na altura do peito. - Pelo visto, está achando engraçado...

- E por que não? Isso nada mais é do que uma brincadeira.

- Por acaso não viu o que aconteceu aqui?

- Sim, e pretendo descobrir como os Hay fazem isso. Não conseguirá me assustar.

- E por que eu desejaria assustá-lo?

- Quem entende como funciona a cabeça de uma mulher? Opiniões como essa podem lhe causar problemas em Dunweare.

- E idéias como as suas podem provocar problemas em geral.

De repente, Ruari ficou com raiva e, para seu espanto, receou por ela. Segurou-a pelo braço e puxou-a. A proximidade provou ser uma distração. Ele se deu conta do cheiro de limpeza e do aroma de lavanda que emanava dos cabelos e das roupas. A trança grossa e escura descansava no peito, e ele podia antevê-la desmanchada, as madeixas sedosas acariciando sua pele. Ao perceber que estava com o olhar fixo nos lábios carnudos, desejando saboreá-los, forçou-se a voltar depressa ao tópico anterior. Não podia acreditar que ela fosse louca ou simplória. Portanto, devia estar iludida com as histórias absurdas contadas pelos parentes. Estava na hora de alguém alertá-la a respeito de como tais ilusões poderiam ser letais em uma região repleta de superstições.

- Estou consciente de que meus dons não são largamente aceitos - Sorcha murmurou.

- Essa é uma maneira muito gentil de falar, ainda mais para uma jovem que provou ter a língua afiada. Suas idéias podem matá-la, sua menina tola. Você fala de coisas que as pessoas não compreendem, e das quais têm medo. Essas histórias podem evocar rumores sobre o demônio, e creio que você sabe a que destino elas podem conduzi-la.

- Sim... à morte.

- Nesse caso, por que continua falando?

- Eu raramente me refiro a essas coisas. Senti que você merecia a verdade, uma vez que se viu enredado em nossos problemas, mesmo sem desejar. Também não acho que ver fantasmas desperte o medo das pessoas, a ponto de levá-las a matar. É mais provável que desencadeie inquietação, boatos sombrios e aborrecimentos.

- Então pare de se referir a essas porcarias.

- Isso não é porcaria. É a mais pura verdade, e não posso mudar nada. Sou o que sou.

Ruari fitou os grandes olhos castanhos e nada viu de loucura ou brincadeira. Sorcha acreditava no que dizia. E, depois do que acabara de acontecer, ele descobriu que parte de si acreditava nela, porém, logo se reprimiu. Já ouvira falar daqueles que enxergavam na escuridão temida por muitos, mas sempre fizera pouco dessas histórias. E se recusava a abandonar seu ceticismo.

Tornava-se cada vez mais ciente de como era sedutor aquele rosto pequeno em formato de coração. Ser tentado por Sorcha era preferível a ouvi-la falar de fantasmas e espíritos malignos. Decidiu que o melhor a fazer seria ignorar aquelas palavras, nem as ridicularizando nem as aceitando. Gostaria também de conseguir ignorá-la.

- Talvez essa conversa com os espíritos se deva à sua solidão - Ruari disse com voz gentil, acariciando-lhe a trança.

- Solidão? Dunweare ferve com tantos parentes que eu tenho.

A proximidade a assustava, mas ela foi incapaz de se afastar. Mantinha o olhar fixo na boca de Ruari, e cada movimento dos lábios acelerava sua pulsação. Em Dunweare havia poucos homens, e até o momento ela não soubera como alguns podiam ser tentadores, tanto física quanto emocionalmente. Sorcha preferia ter sido mantida na ignorância. A fascinação exercida por Ruari era intensa e assustadora.

- Você é solitária em relação a um homem, minha doce Sorcha. Quantos anos tem?

- Vinte - ela sussurrou, seduzida pela suave carícia da voz profunda e aveludada.

- Já passou da idade de se casar. Talvez, minha bela garota, sua ansiedade por um homem seja tão grande que tenha invocado um em sua mente.

- E você diz que eu falo coisas absurdas - ela murmurou, e seu lampejo de irritação foi rapidamente apagado pelo sorriso repentino de Ruari.

O homem ficava tão atraente quando sorria que só podia ser pecado.

- Moças podem ficar tão solitárias quanto qualquer homem. Sua prima Euphemia é uma prova disso.

- Minha prima precisa de um tapa naquela cabeça vazia.

- E do que você precisa, Sorcha Hay? - Ruari moveu-se com cuidado por causa da dor e acariciou-lhe, com a ponta dos dedos, os contornos do rosto. - Seus olhos são poços profundos de desejo.

Foi difícil para Sorcha não corar. Ruari enxergava demais. Rezou para que ele não descobrisse que seu desejo não era por qualquer homem, e sim por ele. Os sentimentos intensos que a acometiam eram excitantes, assustadores e confusos. O toque de Ruari e a maneira como os dedos levemente calosos a acariciavam deixavam-na com vontade de se aproximar e de se afastar ao mesmo tempo. Seu desejo era dividido, ansiava por descobrir o que ele poderia fazê-la sentir, mas também queria fugir dele e esquecê-lo, assim como as emoções conflitantes que ele desencadeava.

- Solte-me antes que eu reabra suas feridas. - Sorcha sabia que sua ameaça era destituída de energia. Sua voz era baixa e rouca, sem a dureza que deveria acompanhar uma advertência.

- Não posso, pois está escondida em histórias e imaginação, evitando o contato com um homem, você está fugindo do que realmente precisa. - Ele passou os dedos pelos cabelos sedosos e puxou o rosto dela para baixo. - O calor da paixão em suas veias queimará todas as inverdades que a perseguem.

Ruari roçou os lábios nos de Sorcha, e todos os pensamentos abandonaram sua mente. Quando ele mordiscou seu lábio com gentileza, ela estremeceu e apoiou-se na cama para se afastar, mas não teve força para completar o movimento.

- Estranha donzela - Ruari murmurou enquanto distribuía pequenos beijos em seus lábios. - Pueril em alguns aspectos, enlouquecedora em outros, mas irresistível-mente tentadora. Acho que chega de brincar. - Ele a beijou.

Sorcha emitiu um gemido suave diante do beijo profundo e entreabriu os lábios quando ele os provocou com a língua. As investidas lentas e quentes da língua dele fizeram-na estremecer pela força do desejo que a percorria.

De repente, ela entrou em pânico. Afastou-se de Ruari, fitou-o com a boca aberta pelo choque e saiu do quarto sem dizer nada. Ele demonstrara como podia fazê-la se sentir. Se um beijo a inflamara, não tinha certeza de querer descobrir mais nada. Porém, enquanto fugia, lutava contra o desejo de voltar para ele, para seus beijos e seu toque.

Ruari fitou a porta que se fechou atrás de Sorcha. Tocou os lábios, ainda quentes e úmidos, e saboreou o gosto doce que permanecera em sua língua. Sorcha Hay, apesar de bem-nascida, era tudo o que ele considerava inadequado para uma esposa, além de ter uma sanidade duvidosa. Contudo, fazia muito tempo que uma mulher não o incendiava daquela maneira com um simples beijo. A permanência em Dunweare poderia ter seus benefícios, afinal.

 

- Você lhe disse o quê?

Sorcha fez uma careta diante do berro de Robert. Ela correra direto do quarto de Ruari até a oficina do armeiro. Nervosa, tinha tagarelado palavras sem nexo por alguns minutos, enquanto andava de um lado para outro, fingindo observar os últimos acabamentos que ele fazia na bainha da espada de Dougal. Por fim, Robert praguejara e exigira saber por que ela o perturbava. Sem poder explicar que apenas um beijo a fizera desejar deitar-se com Ruari, acabara contando que tinha revelado a ele os enigmas de Dunweare e que estava preocupada com isso.

- Contei-lhe nossos segredos, pelos menos, os concernentes aos espíritos. Euphemia foi ao quarto de Ruari, e ele presenciou o pior de nossa maldição. Nem consegui abrir a porta, que os espíritos mantinham fechada.

- Poderia ter dito que estava emperrada.

- Robert, passamos os últimos três dias mentindo. Ele ouviu os gemidos e os ruídos das coisas atiradas, e todos os outros barulhos que nos atormentam durante a noite. Quando Effie decidiu entrar no quarto de Ruari e bancar a jovem rameira, os espíritos dela se enraiveceram. - Sorcha suspirou e sentou-se em um banco feito de um tronco velho. - Não haveria mentira grande o suficiente para explicar tudo o que ele viu.

- Pode ser, mas não tenho certeza de que foi muito sensato contar a verdade. - Robert alimentou a fogueira da forja.

- Ele não acreditou em mim.

- O que não deveria surpreendê-la.

- Não, mas eu gostaria que ele acreditasse, pois agora pensará que somos malucos. Ainda mais depois de Effie ter-lhe dito que foi uma criança abandonada entre os mortais pelas fadas. - Ela deu um sorriso pálido quando Robert encostou-se na parede de taipa da oficina e começou a rir. - Não vejo qual é a graça.

- Mas veria, se não estivesse tão magoada com ele.

- Não estou magoada com Ruari Kerr. - Ela se levantou.

- Está, sim. - Robert sorriu. - Por isso tem se escondido dele desde quê o trouxe para cá. Por isso também correu até aqui para se esconder agora, parecendo uma jovem que acabou de ser beijada. Se ele ultrapassou os limites, pode me contar. Vocês dois podem fazer o jogo que quiserem, mas eu não permitirei que um homem se aproveite de você ou que a force a fazer o que não deseja.

Sorcha praguejou e chutou uma pedra, que rolou até a porta.

- Ele será capaz de pensar que o trouxemos até aqui para bancar o garanhão em uma pastagem lotada de éguas no cio. - Ela ignorou a gargalhada de Robert. - Ele me atrai, e isso é muito perigoso.

- Perigoso, por quê? Os dois pertencem a uma boa linhagem, - Ele se recostou no batente da porta.

- Ele tem uma posição mais alta que a minha.

- Não muito.

- Ele é muito mais rico que eu, que nem tenho dote.

- Isso é verdade.

- E ele acha que somos malucos.

- Ele pode mudar de opinião.

- Sim, ou ele pode até mesmo ser um homem que encontra encantos em uma jovem com uma pitada de demência. - Os dois sorriram. - Seja como for, eu fiz dele um prisioneiro para conseguir um resgate.

- E, a menos que ele tenha uma grande capacidade de perdoar, isso pode jogar água na fogueira do coração dele.

- Sim. Não creio que sir Kerr esquecerá com facilidade essa questão do resgate. Tenho certeza de que ser aprisionado por duas jovens deve ter ferido muito seu orgulho.

- Acha que ele voltará a Dunweare armado para uma batalha?

- Não - Sorcha respondeu, confiante. - Ele não levantará sua espada contra nós por causa disso. Creio que um pouco de sua raiva é dirigida a si mesmo. Embora tenha me conhecido num campo de batalha saqueando os mortos, ele confiou em mim.

- E, em vez de resgatá-lo, você o aprisionou. O que o fez pensar que foi um tolo, reação que não agrada a um homem. Por isso está lutando contra o seu interesse nele?

- Não estou interessada nele, pelo menos não da maneira como está supondo.

Robert riu com desdém, mas Sorcha não teve tempo de responder, pois nesse momento Iain, o filho dele, aproximou-se correndo.

- O que será que aconteceu? - ela perguntou.

- Acho que temos visitas. - Robert adiantou-se para saudar o filho.

- Pai! - Iain gritou e parou para recuperar o fôlego. - Três homens estão do lado de fora dos nossos portões. São ingleses e querem falar a respeito de sir Dougal.

- O pedido de resgate - Sorcha murmurou. - Dê-me alguns instantes, Robert, e depois leve-os ao salão nobre. Tente fazer com que não percebam nossa fraqueza.

- Está bem, mas se eles perceberem nossa fragilidade, também notarão nossas forças. Não se preocupe com isso. Apenas pense em conseguir trazer aquele tolo do Dougal de volta.

Sorcha anuiu a apressou-se para o castelo, vociferando contra o irmão. Temia tratar com aqueles homens que certamente zombariam ao perceber que teriam de negociar o resgate com uma mulher. Era preciso ser forte e fazê-los entender que ela enfrentava a tarefa como qualquer homem.

No salão nobre, encontrou as tias sentadas em círculo ao redor da grande lareira de pedra, discutindo com a recém-chegada Annot sobre a cor do fio de seda que ficaria melhor para os cabelos do pai delas na tapeçaria que estavam bordando. Sorcha apressou-se em pedir-lhes ajuda. Embora os ingleses pudessem desprezar uma pequena mulher, confrontar-se com sete desencorajaria qualquer um. Na verdade, a nervosa Bethia e a tímida Eirie não eram mulheres fortes, mas postas ombro a ombro com suas irmãs mais determinadas, sabiam simular energia.

- Os ingleses vieram pedir o resgate por Dougal - ela disse, aproximando-se de Neil.

- E você quer que saiamos - murmurou Annot, alta e de cabelos prateados, a mais velha das sete irmãs.

- Não. Eu quero que todas se sentem à mesa principal comigo, e depressa. - Sorcha liderou o caminho até a longa mesa de carvalho situada na plataforma em uma das extremidades do salão. - Acho que até mesmo um inglês arrogante ficará surpreso ao se defrontar com sete mulheres de boa estirpe.

- Você quer que pareçamos severas e ameaçadoras. - Grizel, gorducha e mais baixa, sentou-se à esquerda da cadeira de carvalho de espaldar alto sempre ocupada por Dougal.

- Exatamente. - Sorcha ocupou o lugar do irmão e sorriu quando as tias se alinharam à sua esquerda e à sua direita.

- Quer nossa ajuda na negociação? - perguntou Neil, acomodando-se à direita de Sorcha.

- Tia Neil, você poderá dizer algumas palavras - respondeu Sorcha. - Não pretendo ser descortês - disse para as outras tias.

- Nem pensamos nisso, minha querida - Bethia assegurou. - Há muito aprendi como sabemos ser imponentes quando nos unimos contra alguém ou alguma coisa. Mas Neil é a única que demonstra energia quando fala. Receio que nós, outras, comecemos a tremer.

- Eles vêm vindo - Annot sussurrou. Cruzou as mãos diante de si e assumiu uma feição pétrea.

Os três ingleses entraram no salão, seguidos por Robert e pelo filho, e vacilaram por um instante ao ver as sete mulheres que os encaravam. Sorcha notou Robert disfarçar um sorriso e soube que ele entendia seu jogo. Mais dois homens bem-armados postaram-se ao lado da porta larga. Robert deixou seu filho atrás dos três ingleses e foi para a direita de Sorcha, onde se conservou em pé. Ela se sentiu feliz pela presença do amigo, ao fitar os olhos cinzentos e frios como aço do mais alto dos três ingleses.

- Sou sir Simon Treacher, e estes são meus homens, Thomas e William - ele anunciou com voz tão fria quanto o olhar. - Estou aqui para discutir o resgate de sir Dougal Hay. Ele é seu suserano?

- É - Sorcha respondeu, esforçando-se para não demonstrar o nervosismo. - Quais são suas condições?

- Acha que vou discutir esse assunto com uma mulher?

- Sim, se quiser nosso dinheiro. Sou a parenta mais próxima de sir Dougal, sua única irmã.

- Ah, a senhora é lady Sorcha Hay.

- Sou.

- Ele disse que eu teria de tratar com milady, mas achei que fosse uma brincadeira. Na Inglaterra, não permitimos que mulheres comandem a fortaleza, nem que participem de assuntos masculinos.

- Talvez seja por isso que seu amaldiçoado país esteja tão desorganizado - Neil murmurou, fitando os oponentes com um olhar feroz.

Simon a ignorou, mas seu rosto comprido tornou-se mais tenso.

- Sir Dougal também mencionou Neil Hay - ele resmungou. - Eu preferia discutir o acordo de resgate com um homem.

- Pois sinto desapontá-lo - Sorcha disse e apontou Neil. - Esta é Neil Hay, tia de Dougal. Bem, o senhor prefere discutir o assunto com a tia ou com a irmã dele?

- Com a irmã. - Ele fez uma curvatura eivada com desprezo. - Milady, podemos começar?

Sorcha anuiu, divertida com a irritação dele. Pediu a um servo para providenciar um banco para eles se sentarem e tomarem vinho. Sua diversão durou até Treacher anunciar a grande soma que desejava pela vida de Dougal. Discutiram com polidez durante uma hora, sem chegar a um acordo. A certa altura, Neil levantou-se, irada, e bateu com o punho na mesa. Vários canecos tremeram, e os três ingleses fitaram a cena, boquiabertos. Sorcha aproveitou-se do espanto, mas conseguiu apenas um pequeno decréscimo na quantia pedida.

Com o prosseguimento das negociações, sua inquietação cresceu. Treacher afastou o olhar dela uma só vez, quando Neil se levantou em sua fúria gloriosa. Ele na certa tentava usar seu poder de intimidação para fazer Sorcha ceder às exigências. E mais, o brilho de interesse que permeava os olhos cinzentos deixou-a arrepiada. Gostaria de poder ceder à pressão, só para vê-lo partir, e o cenho franzido de Robert revelava que o olhar libidinoso não era imaginação sua.

Por fim, a negociação terminou com o acordo do preço e do local da transação, e Sorcha levantou-se. Estendeu a mão à aproximação de Treacher, pois ignorá-lo poderia custar a vida de Dougal. Ele levou os dedos dela à boca e beijou-os. Não houve nenhuma ofensa naquela atitude, mas Sorcha não pôde afastar a impressão de que ele cometera um avanço indevido. Depois de que ele saiu, ela se serviu de hidromel para restaurar as forças.

- Sinto como se eu acabasse de presenciar uma sedução - Robert murmurou e também se serviu do vinho doce de mel.

- É verdade. - Neil franziu o cenho. - Aquele saxão entrou aqui como uma víbora pronta para enrolar-se ao redor de nossa Sorcha.

- Uma descrição primorosa, tia Neil. - Sorcha suspirou, afundou-se na cadeira e começou a tamborilar os dedos no braço entalhado. - Entre seus olhares e seu toque, eu me senti quase violada.

- Talvez outra pessoa devesse ir ao encontro para pagar o resgate de Dougal.

- Não, tia, eu tenho de ir. Os ingleses podem zombar da idéia de uma mulher se imiscuir nos negócios de homens, mas sabem que estou agindo no lugar de Dougal. E poderão considerar um insulto se eu mandar um subalterno. Se não virem o emissário que esperam, poderão pensar que se trata de uma armadilha, o que poria em risco a vida de Dougal.

- E nós não podemos nos permitir insultar os ingleses. Eles não precisam de novos motivos para nos atacar - Robert declarou, olhando para Sorcha. - Mas aquele homem parecia muito ansioso para conquistá-la. Você irá a esse encontro com pelo menos quatro homens, além de lady Neil. Não será um grupo tão grande a ponto de causar alarme àqueles ingleses amaldiçoados, mas suficiente para fazer sir Simon Treacher pensar bem antes de fazer uma tentativa de satisfazer suas miseráveis ânsias.

- Não posso tirar-lhe a razão, mas não gosto da idéia de afastar homens de Dunweare.

- Podemos ficar sem eles. Agora será melhor preparar a mensagem que deseja enviar aos Kerr de Gartmhor.

- Terei grande prazer em estrangular meu irmão da próxima vez em que o vir.

- Sorcha, não consigo encontrar Beatham. - Margaret entrou correndo no salão e parou diante da mesa.

- Não acho que ele tenha fugido - Sorcha falou enquanto Neil entregava uma caneca de hidromel para Margaret, que estava desgrenhada.

- Onde ele pode estar, se não o encontrei no quarto?

- Eu o vi esta manhã - Neil afirmou - fazendo muitas perguntas a respeito de sir Ruari.

- Margaret, você olhou no quarto de sir Ruari? - indagou Sorcha.

- Não. - Margaret tomou o hidromel e se apressou em sair de lá.

- Se não o encontrar lá - Sorcha gritou para a prima -, iniciaremos uma busca!

- Por que não vai com ela? - Robert sugeriu.

- Assim que eu resolver o que escrever para os Kerr, verei o que nossos prisioneiros estão fazendo. - Sorcha sacudiu a cabeça. - Eles devem estar planejando, uma fuga. O bom Deus certamente acha que meus problemas não são suficientes.

 

- Não acho que esteja tão bem a ponto de pensar numa fuga, primo. - Beatham ajudou Ruari a tomar um bom gole de sidra.

- Mas ficarei ótimo em um ou dois dias. - Ele estremeceu ao sentar-se. - A dor já diminuiu bastante, e os ferimentos estão começando a fechar.

- Sim, mas ainda está muito fraco. - Beatham sentou-se na cama.

- Não vai demorar muito até eu ter força para rastejar para fora desse ninho de abutres.

- Ah, primo, isso aqui não é tão ruim. Sei que ficar detido por causa de um resgate não é uma boa coisa, mas as mulheres são muito agradáveis.

- Todos aqui são malucos.

- Margaret não é louca.

- Ela não tem cabeça nem para isso.

- Primo, não deveria falar dela de maneira tão desdenhosa.

- Pare de agir como um pretendente ultrajado, seu grande tolo, e corte para mim um pouco de pão e queijo.

- Está bem, mas não é certo ofendê-la - Beatham resmungou enquanto obedecia à ordem.

Ruari notou a expressão amuada de Beatham. O rapaz tinha bom coração, mas sua boa aparência superava a inteligência. O problema de cortejar Margaret era mais grave do que ter ido para a guerra sem autorização. Enquanto mastigava o pão e o queijo, observou-o retomar seu lugar.

- Pode parar de cortejá-la - Ruari disse com secura, e suas suspeitas se confirmaram ao ver o primo corar.

- Ela é tão bem-nascida quanto eu - Beatham protestou -, e não dispensou minhas atenções.

- Não me importa. Você não vai se enredar com uma Hay.

- E por que não?

- Esqueceu que ela é uma de nossas captoras?

- A idéia foi de Sorcha, e Margaret teve de obedecer à prima, assim como eu lhe obedeço.

- E é o que você tem feito muito bem. - Ruari ergueu a mão para evitar o protesto de Beatham. - Você ter desobedecido às minhas ordens de ficar em Gartmhor é a menor das minhas preocupações. Precisa parar de cortejar Margaret Hay por vários motivos. Ela é pobre, e sua família não permitirá que você se case apenas por amor ou paixão. O fato de elas terem nos aprisionado e exigido dinheiro por nossas vidas destruiu toda e qualquer chance de se casarem com um Kerr. E o coração dela com certeza esfriará quando eu executar minha vingança por esse insulto.

- Não pretende iniciar uma batalha com os Hay, não é? - Ele empalideceu.

- Não, mas tentarei outra coisa. Não posso permitir que essa afronta passe sem alguma vingança.

- Mas primo... - Beatham deu um pulo quando a porta foi aberta. - Margaret!

- Você não deveria estar aqui. - Ela franziu a testa e segurou o braço de Beatham. - Fiquei muito preocupada quando não o encontrei em seu quarto.

- Por acaso pensou que sua bolsa recheada havia fugido? - Ruari indagou e notou o olhar irritado do primo.

- Ele não está bem para sair da cama. Beatham levou um golpe na cabeça e pode desmaiar com facilidade. - Margaret começou a empurrá-lo em direção à porta. - Não deveria permitir que ele ficasse aqui, sir Ruari. É muita falta de consideração de sua parte. É preciso condoer-se dos ferimentos dele.

- Eu... na verdade, Margaret, vim aqui por minha vontade - Beatham afirmou.

- Então ele deveria ter bondade e juízo para mandá-lo de volta à sua cama.

Beatham ainda conseguiu despedir-se do primo antes de sair. Ruari fitou por um bom tempo a porta que se fechou atrás dos dois e sacudiu a cabeça. Era uma pena que ela fosse pobre e que pertencesse à família Hay. A moça e Beatham formavam um casal perfeito. Eles teriam os filhos mais belos e menos espertos de toda a Escócia.

Ruari terminava de tomar a sidra quando Sorcha apareceu. Ela segurou a porta aberta com o ombro, entrou com a bandeja e fechou a porta com um pontapé. Ele a observou trocar a jarra vazia por outra cheia e, apesar dos esforços em contrário, lembrou-se do beijo e desejou outro.

- Então seu primo veio visitá-lo, não é? - Sorcha pegou uma bacia com água, uma toalha e bandagens para limpar e enfaixar de novo as feridas dele.

- Sim. Sua prima o arrastou para fora há menos de uma hora. - Ele evitou gemer quando ela tirou as ataduras. - Algum sinal de infecção?

- Não, tudo está sarando bem e rapidamente. - Ela procurou agir com delicadeza, mas sabia que era impossível não causar sofrimento enquanto banhava as feridas. - Dentro de alguns dias as suturas poderão ser removidas. - Suspirou e sacudiu a cabeça. - Ficarão cicatrizes, mas meus pontos são pequenos, e elas se tornarão menos visíveis com o tempo.

- Sua habilidade em tratar de feridos é digna de admiração.

- Obrigada - ela murmurou, embora o tom de Ruari demonstrasse que ele admirava poucas coisas nela.

- Logo estarei de volta à minha antiga forma.

Assim que Sorcha terminou de fazer os curativos, ele quis sentar-se e aceitou ajuda com relutância.

- Será o momento em que tentará escapar. - Ela serviu-lhe uma caneca com sidra. - Era isso o que discutia com Beatham?

- Não. - Ele deu um leve sorriso. - Não tivemos tempo. Sua prima chegou para levá-lo embora antes que pudéssemos fazer os planos. Mas eu o preveni para não sucumbir aos encantos dela.

- Verdade? E eu a avisei para se manter forte contra as tentativas dele de seduzi-la. - Sorcha gostou de ver que sua crítica a Beatham o aborrecia tanto quanto o insulto a Margaret a ofendera. - Não deveria desperdiçar sua energia tentando arquitetar uma fuga, pois não ficará aqui por muito tempo.

- Você finalmente recuperou o juízo e decidiu parar com esse jogo perigoso?

- Se eu fizesse isso, estaria condenando meu irmão à morte.

Supondo que Sorcha não iria lutar com ele por receio de abrir as feridas, ele a agarrou pelo braço e puxou-a para perto. Quando ela soubesse que ele já se encontrava melhor, não conseguiria segurá-la com tanta facilidade, e pretendia aproveitar aquela vantagem enquanto a tivesse. O aborrecimento que ela demonstrou o fez sorrir, pois sabia que, por trás daquilo, estava a paixão que ele saboreara brevemente.

- É perigoso ficar perto de você - ela murmurou, tentando soltar-se com cuidado.

- Será ainda mais perigoso se subir nesta cama. - Segurou-a pela cintura e tentou puxar o corpo delgado para cima do dele, mas Sorcha se retesou, o que tornou dolorosa sua movimentação.

- Muito perigoso, especialmente para um homem com tantos pontos como em uma tapeçaria.

Ruari riu, agarrou-lhe a trança e puxou o rosto de encontro ao seu. Roçou a boca sobre a dela e seu corpo refletiu os leves tremores que a acometiam. Sorcha era uma mulher ardente, e o calor dela era semelhante ao seu, o que o fez querer experimentar aquele fogo em toda a sua glória. Por enquanto, teria de satisfazer seu desejo com alguns beijos roubados.

Sorcha não lutou quando Ruari a beijou com ferocidade, e saboreou o calor que a invadia. Levada por ele, percorreu uma trilha perigosa, sabendo que ele não a provocaria ao extremo. Quando o beijo terminou, ela permaneceu nos braços fortes, procurando recuperar a respiração enquanto ele traçava as linhas de seu rosto com beijos minúsculos.

- Estou surpresa em constatar que deseje beijar uma maluca - ela sussurrou. - Não tem medo de se infectar com minha loucura?

- Não, eu não tenho medo de sucumbir às suas ilusões. Mas não posso deixar de supor se não é esse toque de insanidade que dá a seus beijos essa calorosa suavidade. - Ruari sugou-lhe o lábio inferior. - Ah, como eu gostaria de não estar ferido para podermos passar a noite juntos!

Sorcha soltou-se dele e livrou-se da névoa que os beijos provocavam. Parou ao lado da cama, dividida entre a vontade de bater nele pelo insulto e a de aceitar o convite rude. Ruari fitou-a como se adivinhasse seus pensamentos, e ela se irritou. Resistiu à tentação de derrubar a jarra de sidra sobre a cabeça dele, saiu do quarto jurando que lutaria contra aquela sedução e silenciou a voz em sua mente que ria, zombeteira.

 

- Isso não é bom - Neil murmurou, aproximando-se de Sorcha no pátio interno.

Sorcha fez uma careta e esfregou os braços por causa do vento frio. Fazia vinte minutos que Margaret e Beatham, absortos um no outro, brincavam com quatro cachorrinhos em frente à estrebaria, sem notar que eram observados.

Ela advertira a prima várias vezes, a última dois dias atrás, após deixar os braços de Ruari e entender a profundidade da própria fraqueza. Assim como seu coração não aceitava os avisos, Margaret também não levava os conselhos em consideração. Sorcha a entendia. Beatham era um jovem atraente e agradável. E era evidente que, ao contrário do que acontecia com Ruari, a paixão que ele nutria por Margaret não era apenas carnal. Era difícil saber o que fazer.

- Avisei Margaret várias vezes. - Sorcha notou a carranca da tia.

- E eu também. Até mesmo Bethia, que não tem a mente tão ágil, chamou-a para uma pequena conversa. - Neil sacudiu a cabeça. - Margaret sorri, assegura que sabe o que pretendemos, agradece por nossa preocupação e continua fazendo o que quer. Ou ela é ainda menos inteligente do que eu supunha que fosse, ou está sendo cortês. Ela é muito bondosa e doce, e não dirá para nos preocuparmos com nossos assuntos.

- É um pouco de cada, e Beatham também não ajuda. Ele é doce e tolo como Margaret. Acho que os dois acreditam que ficarão juntos, apesar de tudo o que aconteceu.

- Talvez você possa falar com sir Ruari. Ele pode ser capaz de enfiar um pouco de juízo na cabeça do rapaz.

- Tenho certeza de que ele já tentou fazer isso.

- Não sei o que lhe dá essa certeza, se não se aproxima dele há dois dias.

- Estive muito ocupada e sem tempo para mimá-lo. - Ela franziu a testa quando a tia fez um som de zombaria.

- Você não sabe mentir, querida. - Neil a encarou. - Você vem se escondendo de sir Ruari desde que ele chegou aqui.

- Isso não é verdade.

- Sei. Se fôssemos animais, ele poderia ser o lobo, e você, a lebre assustada. Você nunca teve de ser cautelosa com seus sentimentos, portanto não pode saber de repente como escondê-los.

Sorcha considerou a hipótese de negar energicamente o que Neil e os outros pensavam, mas, com um suspiro de resignação, desistiu da idéia. A tia estava certa. Sua franqueza habitual não permitia que escondesse as emoções com sucesso. Talvez uma conversa sincera pudesse ajudá-la.

- O que quer que eu faça? Que exponha a todos meus sentimentos, anunciando minha estupidez?

Neil riu, mas ficou séria quando Sorcha a fitou com raiva.

- Claro que não. O fato de seu coração seguir em uma direção que não a agrada não quer dizer que você seja uma tola. Quando eu era jovem, sofri de uma febre do coração.

- Verdade? - Sorcha arrependeu-se de se mostrar surpresa, com receio de ferir os sentimentos de Neil.

- Sim. Posso parecer uma mulher dura, mas, como afirmei, eu era jovem.

- Não é velha agora. Está com vinte e três anos.

- Eu tinha dezesseis quando perdi a cabeça. O homem não era aceitável, mas meu coração não enxergava isso. A razão me prevenia para ser cuidadosa, mas eu estava muito ansiosa para aceitar quaisquer conselhos, fosse da razão ou dos outros. Ele era alto, forte e bonito. Acho que não conheci um homem mais atraente.

- Acho que Ruari tem um rosto bonito - Sorcha murmurou.

- Ah, sim, é bastante agradável - Neil afirmou, sorrindo. - Para encurtar a história, amei o patife com todo o calor que uma jovem pode congregar. Meu próprio bom-senso e os conselhos de todos, estavam certos. Ele não ficou comigo por muito tempo. Fizemos um contrato de casamento, mas isso foi apenas para que ele pudesse dormir comigo sem ser ameaçado de morte por nossos parentes. Em poucos meses, ele sumiu e nunca mais foi visto.

- Como eu nunca fiquei sabendo disso?

- Eu estava em Stirling com minha irmã Fenella. Quando me dei conta de que ele não voltaria, vim para cá. Ninguém falou no assunto para não reabrir feridas, mas agora que lhe contei, percebi que elas cicatrizaram.

- Sinto muito, Neil.

- Não tenha pena de mim. Quando o sofrimento passou, compreendi que não me restara arrependimento. O tempo foi maravilhoso enquanto o patife esteve a meu lado. É verdade que eu partiria a cabeça do verme em dois se o visse de novo, mas agora posso me lembrar do que foi bom, das doces memórias.

- Não entendo o que está querendo dizer. - Sorcha estremeceu e se abraçou por causa do frio.

- Estou tentando dizer que deveria fazer o que deseja. - Neil pôs a mão no ombro da sobrinha e caminhou em direção à fortaleza. - Será melhor entrarmos, pois está ficando úmido e frio. Ficar olhando aqueles dois de nada adiantará. Tudo depende deles. E, Sorcha, o seu destino está nas suas mãos.

- Em breve, Ruari irá embora - ela afirmou, andando ao lado da tia.

- Nossos rapazes não chegarão a Gartmhor até amanhã ou depois de amanhã. Em seguida, discutirão o resgate, e os Kerr precisarão de uns três dias para chegar até aqui. Portanto, sir Ruari vai levar uma semana ou mais para partir. Você não conseguirá resgatar Dougal antes de uns doze dias. Suponho que você poderá se esconder, e seu problema acabará em pouco tempo.

- Ou?

- Isso é com você, Sorcha. Acho que Ruari jamais poderá ser seu, mas você deve se perguntar o que lamentará mais. Seguir seu coração e ter uma pequenina chance de ser feliz por pouco tempo, ou continuar a se esconder e nunca tentar agarrar o que deseja.

- Decisão difícil.

- Concordo, mas nunca deve se sentir culpada por qualquer caminho que escolher.

- Obrigada pelo conforto, tia Neil. Talvez eu devesse subir ao quarto dele e ver como está passando. Outra visita ao tolo arrogante talvez seja tudo de que eu preciso. Mas primeiro quero saber se você viu Effie.

- Ela está no salão nobre. Esta manhã, foi banida da cozinha e se recusa a entender o motivo - Neil retrucou, entrando no castelo.

Sorcha suspirou e caminhou até o salão. Desde que voltara a Dunweare, falara com Euphemia pelo menos uma vez por dia, mas a garota não se mostrava interessada em escutar. Eirie, a mãe dela, chorara na véspera de pura frustração, por temer pela sanidade da filha. Ela achara que Euphemia pararia de falar que fora abandonada quando estivesse se transformando em mulher.

Sorcha encontrou a jovem prima num banco próximo às janelas estreitas que rodeavam o salão nobre. Euphemia parecia tão infeliz que ela ficou penalizada.

Mas era preciso agir com firmeza. Talvez tivesse havido muita bondade e pouca autoridade, e a garota fosse mimada demais.

- Então resolveu vir até aqui para desfrutar de seu mau humor. - Sorcha sentou-se no parapeito da janela.

- Estou aqui porque não tenho vontade de falar com ninguém - Euphemia resmungou, olhando para as mãos e fazendo beicinho.

- O que você quer pouco importa no momento. - Quase riu diante do olhar chocado da garota. - Está na hora de parar de ter pena de si mesma e pensar um pouco nos outros.

- E por que devo pensar neles, se me mandam embora?

- Eles não a mandam embora, apenas não querem os espíritos que a rodeiam.

- Eles não são espíritos! - ela gritou, ficando em pé e fechando as mãos delicadas em punhos.

- Sente-se - Sorcha ordenou, e surpreendeu-se ao ser obedecida. Fitando-a, identificou medo nos grandes olhos azuis da prima, disfarçado pela postura infantil de desafio. - É muito estranho que acredite em fadas e não em espíritos.

- Acredito nos seus espíritos.

- Euphemia, se há espíritos bem-comportados, que só aparecem para conversar, por que não pode haver os malignos, que fazem barulho, roubam objetos ou os atiram no chão?

- Bem, eles podem ir embora perturbar outra pessoa.

- Isso seria ótimo, mas é algo que eles não farão. Você está se transformando em mulher...

- Não estou!

- Effie, não adianta gritar e bater os pés. Logo você será uma mulher.

- Isso não acontece com fadas!

Sorcha olhou para ela por um momento, começando a compreender as ilusões de Euphemia.

- Suponho que as fadas experienciem problemas semelhantes. Afinal, de tempos em tempos devem surgir fadas novas, ou elas desapareceriam. - Sorcha aproximou-se e segurou a mão da garota. - Effie, tornar-se mulher pode não ser agradável, e talvez até ser um pouco assustador, mas negar o fato não mudará nada. Pelo contrário, os espíritos perturbadores se tornarão mais barulhentos.

- Por que eles têm de estar aqui? - A menina irritou-se quando o escudo sobre a lareira caiu de novo sobre o piso coberto de junco. - Vão embora!

- Se parasse de brigar contra a verdade, você ouviria menos barulhos. Quanto mais aborrecida e irritada você ficar, mais aborrecidos e irritados eles se tornarão. É como se eles fossem criados das suas emoções e, quanto mais enérgicos seus sentimentos, mais fortes eles ficam.

- Quer dizer que, se eu permanecer quieta e pacífica, eles irão embora?

- Eles não a abandonarão por completo, mas serão menos perturbadores. Quando você se tornar mulher, eles desaparecerão gradualmente. Você tem de aceitar o que as Hay anteriores já enfrentaram. Deus decidiu que meninas têm de se transformar em mulheres, e não se pode mudar os planos d'Ele. Não sei quem ou o quê resolveu que deveríamos passar por isso com esses espíritos ao redor, piorando a situação, mas isso também não pode ser mudado. Talvez algum dia uma das Hay descubra o segredo para bani-los, mas até lá teremos de aceitá-los.

- Parece que as Hay arcam com muitas responsabilidades. - Ela franziu a testa e voltou-se para Sorcha. - Acha que, ao me tornar mulher, receberei um dom especial, como aconteceu com você?

- Pode ser. Muitas Hay o têm. Ainda mais que você atraiu os espíritos com tanta rapidez e intensidade. Sabia, Effie, que minha avó fazia uma poção calmante?

- Não quero tomar nenhuma poção.

- Eu não disse que você precisa tomar. Porém, talvez fique tão exausta desses espíritos que deseje um momento de paz, e isso a poção poderá proporcionar. Eu só queria que você soubesse que ela existe. - Sorcha levantou-se, beijou Euphemia no rosto e ajeitou as saias. - Agora tenho de ver como está passando sir Ruari, nosso prisioneiro.

- Sorcha, você poderia dizer para sir Ruari que sinto muito pela maneira idiota como agi quando fui ao quarto dele?

- Eu direi, mas você hão deveria se preocupar muito com o que ele possa pensar a seu respeito. Ele na certa acha que se tratou do capricho de uma jovem e já esqueceu o fato. - Piscou para a prima e ficou satisfeita ao vê-la sorrir.

Sorcha subiu a escada rumo ao aposento de Ruari, sentindo os pés pesados pela relutância em vê-lo. Contudo, esconder-se de nada resolvera, pois continuava pensando nele e corava ao lembrar-se dos beijos que haviam compartilhado. Abriu a porta do quarto e desejou ardentemente encontrar uma solução para o tumulto que a agitava antes de fazer algo de que pudesse se arrepender.

Ruari sentou-se assim que Sorcha entrou no quarto e sorriu para ela. Começara a pensar que a tinha assustado. Não lhe agradava descobrir que sentia falta dela e, relutante, aceitou a verdade. Ela era magra demais, conhecia muito a respeito do universo masculino e tinha idéias estranhas, mas ele não podia evitar a fascinação crescente que sentia por ela.

- Finalmente decidiu conceder-me a graça de sua companhia por alguns momentos? - ele indagou.

- Sim, se você se comportar. - Sorcha pegou uma bacia com água, um tecido e bandagens limpas.

- Acha mesmo que isso é necessário?

- É o que veremos. - Ela removeu as ataduras e ficou espantada com a condição das feridas, que se curavam com uma rapidez miraculosa. - Acho que as bandagens já podem ser dispensadas. Os ferimentos vão cicatrizar mais depressa se puderem respirar. Sua capacidade de cicatrização é enorme - ela murmurou enquanto lavava e secava os ferimentos. - Nunca vi nada sarar tão depressa.

- Sempre fui assim.

- Eu não ficaria surpresa em descobrir que esses cortes começaram a cicatrizar antes mesmo que a espada tivesse sido retirada. Você disse que minha conversa a respeito de espíritos era passível de me causar problemas. Pois bem, suspeito que essa cicatrização rápida também tenha provocado algumas questões.

Ruari franziu o cenho. Não gostava de ser lembrado de como era estranha sua capacidade de cicatrização. O fato lhe causara diversos momentos de constrangimento.

Atribuía isso à sua própria força, mas outros imaginavam se era uma dádiva divina, ou até do demônio. Enquanto muitos tinham as feridas infectadas, morriam ou ficavam aleijados, sua boa saúde, independentemente da gravidade dos ferimentos, nem sempre era vista como a bênção de Deus, que ele considerava ser.

- Fui ferido há uma semana. Não tive febre, nem as feridas infectaram. Por isso não vejo grande milagre no fato de eu continuar me recuperando.

- Vejo que praticou bastante essa resposta. - Ela guardou as bandagens.

- É a pura verdade. - Ele franziu a testa ao perceber que ela não o escutava.

Sorcha praguejou ao ver uma sombra familiar no canto do quarto. Era uma hora inconveniente para um de seus companheiros espirituais aparecer. Tornou a praguejar quando a sombra clareou. Era Crayton, o espírito que surgia com freqüência. O fato de a imagem estar tão distinta, apenas ligeiramente esmaecida abaixo dos joelhos, era sinal de que ele não estava para brincadeiras. O cenho franzido de seu rosto jovem e bonito deixou-a inquieta. Ele estava de mau humor.

- Não é necessário mimar tanto o infeliz - disse Crayton.

Sorcha relanceou os olhos para Ruari, confirmando que ele não enxergava nem ouvia nada. Ela nunca tinha certeza se Crayton falava alto como os mortais ou se ela o ouvia com a mente. No momento, desejava apenas que ele fosse embora. Ficou tensa quando Crayton se aproximou da cama e fitou Ruari com ferocidade.

- Vá embora - ela sussurrou e fez uma careta quando Ruari a olhou com desconfiança.

- Eu gostaria de atendê-la, mas fizeram-me acreditar que eu era um prisioneiro - Ruari respondeu.

- Eu não estava falando com você. - Irritada, ela se sentou na beira da cama e encarou Crayton. - Embora não acredite em uma palavra que lhe digo a respeito de espíritos e fantasmas, um deles veio me aborrecer.

Ruari olhou ao redor, mas logo se perguntou por que se importava. Será que procurava uma prova de que ela não era vítima de estranhos delírios? A alegação de Sorcha quanto a ser capaz de falar com fantasmas não era tão inquietante quanto o fato de ela fazer mesmo isso.

- Não vejo ninguém. - Ruari a analisou com cautela e imaginou se a loucura dela seria inofensiva.

- Claro que não. Se estivesse vendo, não estaria me olhando como se de repente eu fosse começar a babar, balbuciar e arrancar os cabelos. Se estiver achando que sou uma mulher deplorável e confusa, não me importa no momento. Tudo o que posso dizer é que digo a verdade ao afirmar que há um fantasma neste quarto. Não! - ela gritou quando Ruari se levantou, resmungando.

Sorcha não conseguiu se mover depressa o suficiente para impedir Ruari de atravessar Crayton, mas o agarrou quando ele perdeu o equilíbrio e começou a cair. O sorriso do fantasma a aborreceu, Acenou para que ele saísse do caminho enquanto ajudava Ruari a voltar para a cama.

- Devo ter me levantado muito depressa - Ruari murmurou, deitando-se.

- Esse pode ser um dos seus problemas - Sorcha concordou -, mas sua tontura pode ser conseqüência de ter atravessado um fantasma.

- Eu passei por ele? Ele não foi cavalheiro o suficiente para sair do meu caminho?

- Não foi, mas também não precisa ser tão mordaz. - Ela serviu-lhe sidra. - Não acredita em fantasmas?

- Eu não acredito em nada que eu não possa ver ou ouvir.

- Ah, então já falou com Deus e o viu?

- Não seja impertinente. Isso é diferente. E, por falar em Deus, por que Ele permite que os espíritos vagueiem pela Terra, quando existem tantos lugares para o descanso das almas?

- Eu não cometeria a blasfêmia de tentar explicar os caminhos de Deus.

- Muito sábia. E você teria alguma explicação para o fato de os espíritos perambularem pela Terra e escolherem conversar com uma garota miúda como você?

- O idiota acha que você é alguma fonte inesgotável de sabedoria? - Crayton se irritou.

- Quieto, Crayton! Por que não vai conversar com tia Neil?

- Ela não consegue me escutar. Apenas sabe que estou por perto e fala comigo.

- Então espere por mim no meu quarto. Você deveria ter mais consideração com sir Ruari. Ele foi ferido lutando contra os ingleses.

- Acha que ele viu o homem que estou procurando? - Crayton se aproximou da cama de novo.

- Claro que não. Você foi assassinado quando minha avó era criança. Seu assassino está morto há muito tempo e deve estar assando no inferno. Não sei por que não me escuta quando lhe digo isso. - Sorcha suspirou quando Crayton a fitou com raiva e saiu, sumindo através da parede. Virou-se. Ruari a fitava com intensidade. - Ele já se foi.

- Ainda não respondeu à minha pergunta. Por que existem fantasmas e por que eles aparecem para você?

- Não sei por que esses espíritos permanecem no mundo. Minha mãe acreditava que eles deixavam algo por fazer e, até resolverem o assunto, vagueavam pela Terra. Pelo que eu sei, minhas parentas nunca encontraram um espírito que tivesse morrido pacificamente, com um padre ao lado da cama. O espírito que passou muitos anos com minha mãe era uma jovem chamada Mary, que foi cruelmente assassinada pelo marido. Levou muito tempo para a verdade ser descoberta e o marido ser punido pelo crime. A partir de então, minha mãe deixou de vê-la.

- Você disse que Crayton foi assassinado. - Ruari admitiu que estava interessado, embora tentasse se convencer de que apenas admirava uma boa história.

- Sim. Ele e Elspeth, a amada, foram atacados por ingleses. A pobre moça foi violentada e assassinada diante de seus olhos, e depois ele também foi morto. Isso aconteceu há muito tempo, e os responsáveis já devem ter morrido, mas Crayton permanece vagando, à espera de alguém para punir.

- Ele não encontrará muitos ingleses por aqui.

- Não, mas ele foi morto perto desta região, e acho que está preso aqui. E, a propósito, por que está fazendo tantas perguntas, se acha que sou louca?

- Talvez eu esteja tentando ver a razão atrás de seus delírios.

- Ou talvez esteja entediado. - Sorcha se levantou e foi até a porta. - Terá de procurar entretenimento em outro lugar. Não gosto de ser a fonte de seu divertimento.

- Você não pode esperar que todos acreditem sem questionar.

- Não peço isso a ninguém, mas não espero ser considerada maluca ou ridícula.

Ruari estremeceu quando Sorcha saiu, batendo a porta. Não tivera intenção de ofendê-la nem de deixá-la com raiva. Quando ela aparecera, após dois dias de ausência, tinha pensado em roubar outro beijo e, quem sabe, algo mais. Porém, ela começara a falar de fantasmas e a conversar com alguém que não estava ali. Ele, por sua vez, se comportara como se ela estivesse espumando e girando uma acha de armas ensangüentada. Ou seja, nada que tornasse possível seduzi-la.

Muitas pessoas acreditavam em fantasmas. Mesmo sem nunca ter conhecido alguém que pudesse falar com eles, não tinha o direito de zombar das crenças de Sorcha. Ela estava certa em ficar tão irritada. Olhou a porta e imaginou por quanto tempo ela se esconderia dessa vez.

Capítulo II

- Você não consegue dormir porque não está na cama desejada.

Sorcha praguejou quando a voz familiar ecoou em sua mente. Bateu no travesseiro, suspirou, sentou-se e acendeu a vela na mesa de cabeceira. Era como preferia, apesar de saber que a iluminação não importava para Crayton nem fazia diferença em sua capacidade de vê-lo ou de ouvi-lo. Naquela noite ela podia ver-lhe apenas a cabeça e os ombros, o que não era uma de suas manifestações favoritas.

- Precisa ter mais respeito pelo horário - repreendeu-o.

- Se gosta daquele homem, por que não vai procurá-lo? Foi o que minha Elspeth fez.

- E foi isso que a matou. - Fez uma careta. - Perdoe-me pela crueldade.

- É verdade. E aquele lorde está aqui há quase uma quinzena. Seus parentes virão buscá-lo a qualquer hora.

- E meus problemas terminarão.

- Não. Você ficará chorosa.

- Nunca fui sentimental - Sorcha falou com rispidez e apagou a vela. - Se não se incomoda, eu estava tentando dormir - ela resmungou, deitando-se.

- Sei muito bem que não consegue dormir, e por isso estou aqui. Há mais de uma hora eu a observo virar-se de um lado para outro.

- O que torna evidente sua falta de respeito pela privacidade das pessoas.

- Vá para a cama dele. Você sabe que deseja isso.

- Sim, eu nada mais queria a não ser tornar-me a rameira de Ruari por uma ou duas noites. - Ao sentir um frio no ombro, soube que Crayton a tocara.

- Você jamais se tornará a rameira dele, e os dois sabem disso.

- E como sabe o que sir Ruari pensa? Ele não o viu e muito menos falou com você.

- Sou homem.

- É um fantasma, e muito intrometido.

Sorcha cobriu a cabeça com o travesseiro, mesmo sabendo que isso não afastaria Crayton. Ele precisava parar de falar, pois estava dizendo tudo o que ela pensava. Seu coração queria que se deitasse com Ruari e aproveitasse a paixão que ele poderia lhe proporcionar. A razão a aconselhava a afastar-se para preservar a honra e a virtude. E essa razão, que a mantivera longe dele e dos beijos tentadores, custara a ela muitas noites insones. Mesmo quando conseguia dormir, sonhava com todas as coisas contra as quais vinha lutando com afinco.

- Estou afirmando apenas o que sua tia Neil lhe disse, e o que as outras tias não têm coragem de dizer na sua frente.

- Elas andam discutindo às minhas costas?

- Suas tias a amam. E isso é algo a respeito de seu clã que me assombra. Vocês gostam uns dos outros, até mesmo daquele irresponsável e desmiolado do seu irmão. Suas parentas só querem a sua felicidade, assim como eu, que tenho certa experiência nesses assuntos. Vi muitas jovens em Dunweare ansiar por um rapaz, e vários deles foram apanhados pelo desejo.

- Ah, não é grande coisa ver um homem arrebatado pelo desejo, pois é algo que aflige a maioria dos homens. O inglês com que eu tive de negociar também me olhou com cobiça. Na verdade, o olhar de sir Treacher era tão libidinoso que me senti suja quando ele foi embora. - Sorcha gritou, surpresa, quando o rosto de Crayton apareceu de repente à sua direita. - Pare com isso! Estou acostumada com fantasmas, mas eu me assusto quando vejo uma cabeça sem corpo ao meu lado. - Franziu a testa ao ver a expressão de fúria no rosto dele.

- Disse que o inglês se chamava Treacher?

-Sim, sir Simon Treacher. Ele veio a Dunweare para discutir o resgate do meu irmão.

- Você se encontrou com o meu assassino.

- Isso é impossível, Crayton. Mesmo, que você e Elspeth tivessem vivido por muito tempo, ele já teria sido comido pelos vermes.

- Então esse sujeito deve ser filho dele, seu sangue. Você tem de fazê-lo pagar pelos crimes do pai.

- Esse inglês deve ser o neto dele. É mais velho que eu, mas bem mais novo que meus pais. - Sorcha supôs que Crayton estivesse andando de um lado para outro, pelos movimentos de ida e vinda da cabeça e dos ombros. - Mesmo ele me parecendo uma pessoa desprezível, não concordo em fazer alguém pagar pelos crimes dos antepassados. Ele pode também não ser parente de seu assassino e ter apenas o mesmo nome.

- Os olhos dele parecem o aço de uma adaga?

- Sim.

- E a voz é fria como o gelo de um lago no final de uma noite de inverno?

- Sim mas...

- Posso apostar que ele tem um rosto fino, traços duros e cabelos pretos ralos.

- Sim! Então ele é mesmo parente de seu assassino. Sinto muito, Crayton, mas eu seria incapaz de punir quem não cometeu o crime. E como explicar minha informação sobre o que ocorreu? Contarei ter ouvido de um fantasma que um antepassado o matou e que por isso ele terá de morrer? Eu seria tomada por louca.

- Então não me ajudará a conquistar minha vingança, ou melhor, a justiça pela qual tenho esperado há tanto tempo?

- Eu só disse que não poderia matar um homem cujo pai ou avô cometeu um crime contra você. Por outro lado, pode haver uma boa razão para matá-lo. Ele é um dos homens que está pedindo resgate pelo meu irmão e, se algo acontecer com Dougal, eu mesma procurarei a vingança.

- Muito justo. - Crayton a analisou por um momento. - Então, vai ou não para a cama de sir Ruari?

- Você não desiste, mesmo. Não vou, não quero bancar uma rameira.

- Então não se importará quando não o encontrar pela manhã.

Sorcha sentou-se na cama, tensa.

- O que está querendo dizer com isso?

- Ele e o primo estão descendo a colina.

- Por que não falou antes?! - Sorcha gritou, saindo da cama.

- Estou falando agora, não estou?

- Eles já estão longe?

- Não muito, desde a última vez em que os vi.

- Por que, não vai espiar de novo enquanto me visto?

Sorcha resmungou depois que Crayton desapareceu do quarto. As brincadeiras dos espíritos muitas vezes eram irritantes. Crayton sabia que a tentativa de fuga de Ruari a interessaria, e segurara a informação até o último momento. Enquanto se vestia, rezava para que a notícia não tivesse sido dada tarde demais. Gritou, surpresa, quando a cabeça do fantasma apareceu de novo diante dela.

- Quer parar de fazer isso? Ficarei velha antes do tempo.

Ele ignorou a queixa.

- Ruari e o rapaz logo cruzarão o fosso ao sul de Dunweare. Nenhum dos guardas da muralha os viu.

- Acordarei Robert e seu filho. Se passarmos depressa pela gruta, pegaremos os dois antes que alcancem o outro lado do fosso, isto é, se não morrerem afogados antes.

Sorcha pôs a capa, saiu correndo do quarto e amaldiçoou o escuro no caminho para a estrebaria. Uma vez lá dentro, foi até o mezanino onde Robert e seu filho costumavam dormir nos meses mais quentes. Em segundos, Robert apareceu, desgrenhado, no alto de uma escada de mão.

- Aconteceu alguma coisa? - ele perguntou, pegando a espada. - Não escutei nada.

- Sir Ruari e o primo estão fugindo - Sorcha respondeu e andou de um lado a outro até Robert e o filho descerem. - Crayton disse que estão quase cruzando o fosso no lado sul.

- Podemos atravessar a gruta e os apanharemos em tempo.

- Foi o que eu pensei, Robert. Por favor, pegue uma boa lamparina. Não quero atravessar aquele túnel úmido no escuro.

- Não se preocupe, nós o traremos de volta.

- Espero que esteja certo, ou perderemos o resgate de Dougal.

 

Ruari praguejou ao experimentar com os dedos a água do fosso que ainda estava gelada, apesar do calor do verão. Embora os ferimentos estivessem quase cicatrizados, o exercício para sair de Dunweare o deixara arquejante. Duvidava que nadar na água gelada fosse fazê-lo sentir-se melhor.

- Primo, estamos quase livres - disse Beatham, agachado na beira do fosso.

- Quase. Não deixe que a esperança o faça de tolo. Ainda podemos ser pegos em qualquer lugar daqui até nossa casa.

- Uma vez do outro lado do fosso, poderemos correr para a mata e nos esconder.

- Talvez dentro da floresta eu me sinta mais seguro, mas neste momento só posso enxergar um extenso campo aberto e muitas chances de sermos apanhados.

- Tem certeza de que está em condições de suportar o esforço? - Beatham indagou. - Sei que sua cicatrização é miraculosa, mas faz apenas quinze dias que foi gravemente ferido.

- Estou ótimo para sair deste lugar amaldiçoado. Pare de usar meus ferimentos como desculpa pára voltar a Dunweare e para Margaret Hay. Entre na água e tente atravessá-la em silêncio. - Ruari cerrou os dentes ao entrar na água, sentindo dor.

- Pelo menos a água é limpa - Beatham comentou, batendo o queixo.

- Como pode saber disso no escuro?

- Não senti nenhum cheiro estranho.

Ruari inspirou fundo e deu razão ao primo. Apesar do frio, a tensão do corpo cedeu um pouco ao supor onde estava nadando. Assim que saiu do outro lado, ajudou Beatham a fazer o mesmo. Ambos tremiam, e Ruari rezou para que a noite não esfriasse muito, ou eles adoeceriam.

Notou uma luz fraca às suas costas, e seu estômago contraiu-se de fúria ao entender o que aquilo significava. Haviam falhado.

- Para onde pensam que vão? - A voz suave era inconfundível.

Sorcha sacudiu a cabeça quando os dois homens se viraram. Não precisava da luz das lanternas para ver como eles estavam molhados e com frio. Podia ouvir os dentes dele bater.

- Achamos que já tínhamos abusado de sua hospitalidade - Ruari respondeu.

- É muita consideração, mas não havia necessidade de saírem daqui como ladrões. Nós teremos o maior prazer em ficar com vocês até que seus parentes venham buscá-los. Cavalheiros! - Sorcha chamou os quatro homens armados que a acompanhavam, inclusive Robert e o filho. - Por favor, escoltem nossos hóspedes de volta a seus aposentos. Não queremos que se resfriem enquanto estiverem sob nossos cuidados.

Ruari, levado de volta aos portões imponentes de Dunweare e escoltado por dois soldados corpulentos, escutou a ponte levadiça ser abaixada e olhou para Sorcha, que caminhava à sua frente.

- Como nos encontrou? Não ouvi gritos e não vi nenhuma mudança de atitude sobre as muralhas nem nas cabanas por onde passamos.

- Nem todos os nossos guardas são visíveis - ela retrucou, e sorriu quando Robert e os outros homens de Dunweare riram discretamente.

- O que isso significa?

- Crayton, meu fantasma, me contou que vocês estavam descendo a colina.

- Quer me fazer acreditar que minha fuga foi frustrada por causa de um espírito?

- Não me importo se acredita ou não. Foi assim que aconteceu.

Beatham anuiu.

- Margaret disse...

- Primo. - Ruari interrompeu-o com rudeza -, não vai me dizer que acredita em todo esse absurdo?

Sorcha sorriu ao ver, mesmo no escuro, Beatham corar e encará-la com nervosismo.

- Sir Ruari, não é certo exigir que o rapaz faça uma afirmação tão categórica de crença ou descrença. Ele teme sua ira se disser "sim" e receia ofendê-lo dizendo "não". Conceda-lhe o direito de manter a opinião para si mesmo.

Os quatro Hay tropeçaram em um desnível da estrada, e Ruari não chegou a responder para Sorcha. Aproveitando a distração momentânea dos homens, bateu no braço de Beatham para que o seguisse e disparou para a floresta. Não tinha muita confiança na chance de escapar, mas odiava a idéia de voltar a Dunweare com a docilidade de um cordeiro. Não considerou a hipótese de correr perigo. Os Hay precisavam deles vivos e sãos para conseguir o resgate. Sorriu ao ouvir os gritos enfurecidos de Sorcha e dos soldados. Era um prazer dar trabalho para os Hay conseguirem a recompensa.

A proteção da floresta encontrava-se a poucos passos deles, mas Ruari experimentou uma sensação que conhecera uma única vez. Um frio intenso passou por seu corpo gelado, desorientando-o. Tonto e incapaz de manter-se em pé, caiu. Recusava-se a acreditar, como Sorcha já lhe dissera, que havia atravessado um fantasma. Em todo caso, maldisse a entidade invisível.

- Obrigada, Crayton. - Sorcha caminhou até Ruari e observou Robert levantá-lo. Sorriu levemente para a silhueta pouco visível de Crayton. - Eu não imaginava que você podia alcançar essa distância.

- Se ele tivesse dado mais alguns passos, eu teria sido incapaz de ajudar. - Crayton fitou a mata. - Às vezes sou atraído até a floresta contra a minha vontade, mas nunca vou até lá por iniciativa própria.

- Foi onde ocorreu sua tragédia?

- Sim - ele sussurrou e desapareceu.

- Acho que Ruari caiu por ainda estar enfraquecido - Beatham conjeturou, enquanto ele e o primo eram escoltados firmemente de volta a Dunweare por Robert e seus homens. - Você disse que se tratava de seu fantasma?

- Absurdo - Ruari resmungou ao recobrar o equilíbrio e caminhar com mais segurança.

- Você não está bem. - Beatham depressa amparou o primo, que se desvencilhou dele.

- Estou ótimo, e também não caí por causa de um espírito insolente - Ruari disse com brusquidez, olhando Sorcha com raiva.

- Então você tropeçou, não foi? - Sorcha evitou sorrir diante da teimosia dele em acreditar em Crayton.

- Sim, isso serve como justificativa.

- Fico feliz por ser capaz de lhe dar alguma satisfação.

Sorcha corou diante do olhar firme de Ruari. Mesmo no escuro, foi possível ler em sua expressão o que, por cortesia, ele não falava diante dos outros. Como não era tão reticente quando estavam a sós, era fácil supor o que ele poderia ter dito. Embora manter a distância a tivesse salvado dos efeitos dos beijos acalorados, não evitara a sedução constante de suas palavras. Ruari sabia que ela o desejava, e por isso a provocava. Forçou-se a dar um sorriso breve e se concentrou em levar os Kerr para dentro de Dunweare.

No trajeto para os aposentos deles, Margaret se aproximou, e Sorcha suspirou com um misto de aborrecimento e resignação. A prima vestia uma camisola branca e volumosa, e os cabelos loiros caíam às costas. O olhar de encantamento de Beatham fez Sorcha supor que o romance entre os dois já estava além do ponto de ser impedido, e a carranca de Ruari revelava que ele estava tão insatisfeito quanto ela com a situação.

- Aonde você foi? - Margaret interpelou Beatham, sem disfarçar a mágoa e a raiva.

- Ruari e eu tentamos fugir - Beatham respondeu com voz fraca. - Era nosso dever.

- Seu dever é preocupar-me desse jeito?

- Nós estávamos seguros.

Sorcha resolveu interromper a conversa antes que os dois revelassem aos outros detalhes desnecessários, embora o romance não fosse um segredo.

- Margaret, por favor, leve Beatham ao quarto dele e providencie para que ele se seque e se aqueça.

Margaret apertou o braço de Beatham e praticamente o arrastou, repreendendo-o a cada passo. Sorcha não escutou a defesa do rapaz, mas, pelo tom dele, era de se supor que tentava acalmá-la.

- Robert, tomarei conta deste tolo. - Sorcha segurou o braço de Ruari. - Nossos prisioneiros devem ter entendido a insensatez de uma tentativa de fuga.

- Tem certeza de que não será necessária minha ajuda para domar esse garanhão? - Robert fitou Ruari com evidente desconfiança.

Sorcha notou a expressão do amigo. Os problemas dela com Ruari não eram segredo, apesar de suas negativas. Embora fosse reconfortante saber que podia contar com Robert para apoiá-la ou defendê-la, gostaria que ele ignorasse o que se passava entre ela e Ruari. Era perturbador que tantas pessoas soubessem de seus assuntos particulares. Isso significava que a maioria da população de Dunweare saberia qual a decisão por ela tomada em relação a Ruari. Adorava seus parentes, mas havia ocasiões em que apreciaria um pouco mais de privacidade.

- Creio que sou capaz de fazer isso.

- Bem, primeiro, meu filho o ajudará a se trocar. Milorde já não é mais um homem ferido. Vá, Iain. Leve-o para o quarto, seque-o e aqueça-o.

Ruari praguejou intimamente. Precisaria de ajuda para tirar as roupas molhadas, mas esperara que Sorcha o ajudasse. Seria a primeira boa oportunidade em dias de roubar outro beijo, de abastecer o fogo que ardia entre eles até uma altura que enfraquecesse a resistência dela. Suspirando, teve de aceitar a ajuda de Iain.

Pareceu-lhe estranho passar tão depressa do desapontamento de uma fuga frustrada à ânsia de ter Sorcha novamente em seus braços. Em um instante, ele não via a hora de escapar de Dunweare, e no seguinte, desejava a mulher que o mantinha prisioneiro. Imaginou se a loucura de Dunweare não o estaria contaminando.

- Nós todos gostamos muito de lady Sorcha - Iain disse de repente para Ruari, que estava deitado, usando apenas ceroulas. - Ela tem muito mais juízo do que sir Dougal.

- Ela fala com o ar, e todos aceitam sua loucura - Ruari comentou com rispidez.

- O fato de milorde não acreditar não a torna uma louca. Foram idéias semelhantes a essa que forçaram nossa mudança para cá. Ou o senhor pensa que escolhemos viver aqui, em meio a bandidos e proscritos, e tão perto dos malditos ingleses? - Ele deu de ombros. - Muitos povos acreditam em anjos e santos, plantam sorveiras para afastar as bruxas, temem o demônio e seus pupilos invisíveis, mas nem por isso são chamados de loucos.

- Os ensinamentos da Igreja alimentam essas crenças, mas não falam de fantasmas.

- Não, mas a Igreja fala da alma e do espírito das pessoas. Não importa. Se milorde não acredita, pouco posso fazer para mudar sua mente. Só desejo avisá-lo que o menor sofrimento causado à nossa Sorcha não repercutirá bem com nenhum dos Hay.

- Nisso eu acredito, e poderia facilmente julgar por mim mesmo. - Ruari estremeceu e passou a mão na ferida recém-cicatrizada do abdômen. - Por favor, diga a lady Sorcha que talvez meus ferimentos tenham sido afetados. - Sorriu ante a fisionomia desgostosa de Iain e, depois que o garoto saiu, esperou, tenso, imaginando se ela reagiria à sua manobra.

- Ele não quer que acreditemos nisso, não é? - Robert resmungou quando Iain relatou a queixa de Ruari a respeito dos ferimentos. Fitando Sorcha com o cenho franzido, indagou: - Não está pensando em ir ao quarto dele, está?

Sorcha suspirou e esfregou as têmporas.

- Robert, eu amo você e sei que pensa apenas no meu bem-estar. Mas estou com vinte anos. Durante toda a vida, fui muito cuidadosa e ciosa dos meus deveres. Aprendi todas as lições e aceitei o encargo de ser a senhora de Dunweare. Em meus poucos anos como adulta, tentei evitar que a imprudência de Dougal prejudicasse Dunweare. Ajudo minhas tias, minhas primas e as pessoas que dependem dos Hay. E posso continuar falando até que você adormeça de tédio. Talvez, Robert, esteja mais do que na hora de eu ser um pouco ousada.

- Sim, está - Iain afirmou, pegando o pai pelo braço e levando-o embora.

Embora Robert parecesse espantado, e depois aborrecido, permitiu que o filho o afastasse. Sorcha fitou a porta dos aposentos de Ruari. Inspirou fundo e pôs a mão no trinco. Sabia que, no momento em que entrasse no quarto, estaria tomando uma decisão.

Ruari sentou-se e sorriu ao ver Sorcha abrir a porta. Então, lembrando-se de sua queixa, fingiu estremecer e alisou a cicatriz. Ela parou ao lado da cama com as mãos nos quadris, a expressão revelando que ela não se deixava enganar por suas artimanhas. Ele sentiu a esperança aumentar, apesar da possibilidade de ela ter ido até ali para confirmar as próprias suspeitas, e não para cair em seus braços.

- Acho que um dos cortes abriu - murmurou, tentando parecer atormentado, mas sabendo, pelo olhar desgostoso de Sorcha, que estava falhando.

- Está se divertindo à minha custa ou, no mínimo, tentando conquistar minha simpatia - ela resmungou enquanto examinava os ferimentos. - Sua cicatrização é extraordinária. - Deu um grito de surpresa quando ele a segurou pela cintura e a puxou para cima dele. - E não é somente curar-se o que faz com rapidez.

- Rapidez? - Ele a enlaçou com o outro braço e a segurou com firmeza. - Nós nos conhecemos há semanas.

- Não tantas que lhe permitam atenções lúbricas a meu respeito.

- Quase me convenceu de que está se sentindo ultrajada.

- Mas não acredita no que eu disse... Ruari a beijou suavemente no rosto corado.

- Não. - Tocou-a na face. - Mesmo vestida de freira, brilhando com a luz da piedade e da inocência ao entoar negativas poéticas e comoventes, não poderia mudar o fato de que sua paixão se iguala à minha.

A arrogância de Ruari e a consciência de que ele estava certo a aborreciam na mesma medida em que os beijos suaves a inflamavam. Poderia fazer um belo discurso sobre o que era correto e digno, dizendo que ele ameaçava uma virgem bem-nascida, mas as palavras soariam vazias. Queria sentir o corpo forte, os beijos e os toques de Ruari. Suas negativas e exigências para que a soltasse nasciam do orgulho e da honra remanescentes, mas, por trás disso, havia hipocrisia.

Na verdade, honra, orgulho e senso de decoro não eram as causas das recusas constantes, que se originavam do medo de sofrer. Queria experimentar a paixão que lhe era oferecida, embora soubesse que ficaria com o coração partido. Não tinha certeza de que desejava arriscar-se tanto no que parecia ser uma causa perdida: o amor de Ruari.

- Deve ter esquecido quem é o prisioneiro aqui, sir Kerr. - Sorcha esperava que a lembrança da humilhação o enfurecesse e o fizesse soltá-la, evitando que tivesse de tomar decisões difíceis.

- Oh, não. - Ruari beijou-a atrás da orelha e sorriu ao senti-la estremecer. - Você deve saber que, de alguma forma, eu a farei pagar por isso. Contudo, as chamas que ardem entre nós nada têm a ver com o seqüestro. Elas nos igualam, por manter cativos a ambos.

- Mas também pode usá-las para se vingar de mim. - Sorcha arrepiou-se ao mencionar a possibilidade.

- Nunca. Como já afirmei, nossa paixão independe de todo o resto que existe entre nós. Não sou um homem que use a paixão para fins desonestos ou que prometa algo só para conseguir o que deseja de uma mulher. Detesto esses jogos.

- E suspeito de que não precise lançar mão deles

- Sorcha murmurou, fitando os olhos verdes repletos de desejo.

- Eu prefiro o celibato a enredar-me com tais mentiras e manobras.

- Então sua preocupação não recai sobre os sentimentos de uma moça, mas sim sobre a necessidade de proteger-se de mulheres queixosas quanto a promessas não cumpridas.

- Não tem muita fé nos homens, não é?

- Por que eu deveria confiar num homem que afirma querer se vingar de mim?

- Por minha sinceridade.

Aquilo fazia sentido, Sorcha pensou, inclinando a cabeça para dar-lhe acesso ao seu pescoço. Se pudesse confiar na palavra de Ruari, seria mais aceitável tornar-se amante dele. Pelo menos pareceria tola só por tentar prender um homem que afirmava desejar unicamente sua paixão, mas não se tornaria alvo de piedade por ter sido seduzida com lisonjas e falsas promessas.

Era cada vez mais difícil raciocinar, pois ele deslizava as mãos por seu corpo, roçando os polegares nas curvas laterais dos seios. Tinha certeza somente de desejá-lo, lembrava-se apenas dos conselhos para que agarrasse o que lhe era oferecido, ou se arrependeria.

- Adorarei dar uma surra em meu irmão quando ele voltar - ela resmungou.

- O que ele tem a ver com tudo isso? - Ruari mordiscou-a no lábio e a beijou.

- Por causa dele você está aqui. Se ele não tivesse ido para aquela batalha e não tivesse sido capturado pelos ingleses, eu nunca o teria achado. De repente, ocorreu a ela que, se não tivesse encontrado Ruari, ele poderia estar morto. Arrepiou-se e notou que ele também pensara nisso. Porém, com certeza, nada suavizaria sua sede de vingança.

Era uma esperança vã tentar conquistar seu amor. Deveria soltar-se dos braços musculosos, sair do quarto e se manter fora de alcance até que os parentes dele chegassem para pagar o resgate. No entanto, deu um suspiro de prazer e resignação quando Ruari a beijou intensamente. Entrelaçou os dedos em seus cabelos e correspondeu ao beijo ardente. Sabendo como eram desoladoras as chances de encontrar um marido ou amante, não poderia virar as costas às delícias que lhe eram oferecidas. Aquela poderia ser a única oportunidade de prová-las.

- Sorcha, se pretende manter-se casta, será melhor deixar esse quarto agora - ele a advertiu com a voz rouca de desejo.

Ela o fitou. As linhas do rosto de Ruari estavam retesadas, e as faces, coradas. O olhar escurecido a atingia no íntimo e desencadeava emoções novas. Ela saiu da cama e sorriu quando ele deu início a um protesto, do qual logo desistiu. Ruari mostrava cortesia, o que deveria custar-lhe muito. Aquele gesto apressou sua decisão. Ela foi até a porta, trancou-a e se voltou para encará-lo. A frustração que ameaçava Ruari foi afastada por um fluxo de desejo ardente. Uma anuência simples não teria o poder do gesto eloqüente de Sorcha. Sentou-se devagar enquanto ela soltava a tira de couro dos cabelos e os deixava cair sobre os ombros. Ele nunca ansiara tanto por uma mulher, nem jamais vira uma tão singela e sensual. Precisou de todo o seu controle para não dar um pulo, tomá-la nos braços e deitá-la na cama. Queria que ela fosse até ele por vontade própria e que não houvesse dúvida de que o desejava como amante.

Ruari cerrou os punhos quando ela se aproximou. Embora sentisse a firmeza da decisão de Sorcha, não queria fazer nenhum movimento súbito que a levasse a vacilar. Não restava muito tempo antes que o resgate fosse pago e ele retornasse para Gartmhor. Algumas noites, no máximo. Queria passar cada uma daquelas poucas horas envolto no calor suave da paixão.

Pensou por um instante em sua alegação de que os problemas que havia entre eles, por conta de seu aprisionamento, e a emoção que os corroía eram coisas independentes. Não era bem verdade. Ainda que sua raiva e a necessidade de vingança não diminuíssem o desejo por Sorcha, influenciavam o que poderia ou não acontecer entre eles, além da atração que os impelia para os braços um do outro. Não via a si mesmo desejando mais do que paixão de Sorcha, pois ela não era seu ideal de esposa, mas sabia que a menor suavidade emocional que passasse a sentir depararia com a raiva, o orgulho ferido e a necessidade de vingança.

Sorcha parou ao lado da cama, e as pernas dela quase encostaram nas suas. Pela nuvem de incerteza que pairava naquele Olhar, Ruari entendeu que seu silêncio e sua quase imobilidade tinham sido mal interpretados e segurou-a pela mão.

- Sorcha, apesar de sua anuência eloqüente, tem certeza do que deseja? - Ele se espantou com a própria pergunta. - Estou oferecendo a você apenas paixão.

- Sei disso. - Ela enrubesceu. - E eu pedi algo mais?

- Não, mas a maioria das virgens de boa estirpe pediria.

- Sir Kerr, está em Dunweare por tempo suficiente para saber que não sou como a maioria das donzelas bem-nascidas. - Sorriu de leve ao vê-lo rir, - Tenho vinte anos e não sou mais criança. Estou na idade de saber o que quero, o que pretendo arriscar e o preço que terei de pagar por meus atos. Sim, acho que tenho discernimento suficiente para ter certeza disso também.

Ruari puxou-a mais para perto.

- Doçura, algumas vezes acho que seu discernimento é maior do que deveria ser. Assim mesmo, quis saber de sua certeza, apesar de meus instintos me dizerem para segurar minha língua e aceitar o que me é oferecido. Não haverá volta, e eu não quero ser despertado após algumas horas de paixão intensa e encontrar uma donzela ofendida ou seus parentes exigindo que eu cumpra promessas que não fiz. Não estou em posição de lidar com todos esses absurdos.

- Entendo. Tem receio de ser preso em uma armadilha, de tornar-se prisioneiro de uma situação da qual não poderá ser resgatado.

Sorcha gostaria que ele parasse de falar e fizesse logo amor com ela. Considerava um insulto a insinuação de que ele poderia ser arrastado para um casamento. O desejo que a levara a trancar a porta começou a ser solapado por uma irritação crescente. Talvez suspeitando disso, Ruari estreitou os olhos e a segurou com mais força.

- Eu não a julgaria capaz de tamanha dissimulação. - Ele a deitou na cama. - Acho que já falamos demais.

- Milorde principalmente.

Ruari sorriu, e Sorcha sentiu o coração dar um pulo. O sorriso irresistível dele a fazia acreditar que poderiam ser amantes e que a paixão que compartilhavam seria independente daquilo que os separava. Ah, como desejava que assim fosse! Mesmo sem esperança de que o desejo dele se transformasse num amor profundo, esperava que tudo fosse sincero, sem mal-entendidos.

Com beijos lentos e suaves, ele delineou os traços de seu rosto enquanto desamarrava seu corpete. Apesar do calor que a percorria, ela corou quando Ruari tirou seu vestido, deixando-a somente com a camisa. Não tivera tempo de se vestir adequadamente antes de sair correndo para capturá-lo. Mais algumas peças de roupa teriam proporcionado tempo para que sua paixão se fortalecesse, afastando o recato remanescente.

Ruari acariciou-a nos braços.

- Vê-la corada, milady, é uma delícia.

- Eu deveria estar queimando em razão da timidez. - Ela encontrava dificuldade para falar e pensar enquanto ele passava os dedos levemente calosos em seus quadris sob a camisa.

- Não, eu a quero queimando com uma emoção diferente.

Sorcha não respondeu, pois Ruari a beijou. Rendida, entreabriu os lábios com a primeira intrusão da língua dele. Inflamada pelo contato ardente, mal notou que sua camisa era retirada. Estremeceu ao sentir a pele dele na sua, e o calor de Ruari percorreu-lhe as veias com uma velocidade estonteante. Uma ponta de receio a invadiu quando ele a virou, colocando-a sob o corpo forte. Sentindo-se observada, abriu os olhos. A tentativa de cobrir a nudez foi impedida por Ruari, que a segurou pelos pulsos e os prendeu na cama.

- Acha que faremos amor no escuro ou com os olhos fechados? - ele murmurou antes de beijá-la nos seios.

- Não, mas não pensei que eu seria a única a ficar sem roupa. - A mordacidade que ela pretendera imprimir às palavras foi enfraquecida pela rouquidão de sua voz.

Ruari sorriu, sentou-se e tirou as ceroulas. Ela não mais se importou que ele a estivesse analisando, pois ficou fascinada ao vê-lo nu. Apesar de assustar-se um pouco com a virilidade ereta, achou-o lindo. A pele era macia, morena, convidativa. Quando o tratara, ele estava ferido, precisando de ajuda, o que diminuíra seu interesse. Naquele momento, apesar das marcas, Ruari despertava nela um forte desejo. Com dedos trêmulos, acariciou a cicatriz no abdômen.

- Temo que ainda esteja feia - ele disse baixinho.

- Eu acabei de pensar em como sua pele deve ser espessa. - Sorcha encontrou o olhar quente e sorriu.

Ruari deitou-se sobre ela. Sorcha estremeceu, e quando ele tomou um seio na mão e passou o polegar sobre o mamilo endurecido teve certeza de que nunca sentira nada melhor. Com a intensidade do prazer, deu um grito sufocado e agarrou-se aos ombros largos. Ele a beijou, e ela correspondeu ao ardor que ele demonstrava. Entrelaçou os dedos nos cabelos fartos e, cautelosa, imitou os movimentos que ele fazia com a língua. O gemido baixo e profundo de Ruari baniu sua incerteza, e ela se tornou mais arrojada.

Ele se afastou um pouco, ofegante, e Sorcha notou que ela também arfava. Inclinou a cabeça para trás, e ele a beijou no pescoço. A força do desejo eliminava seu recato e hesitação. Perdeu a capacidade de pensar ao senti-lo tomar os mamilos entre os lábios. Ele os sugou, fazendo-a sentir um anseio tão grande que chegava a ser doloroso.

Ela percorreu-lhe o corpo com as mãos, contorcendo-se com as carícias cada vez mais ousadas. Ruari murmurava palavras elogiosas enquanto a beijava no ventre, mas ela nada entendia. Conseguia apenas perceber a boca deliciosa, a língua e a respiração quente que tocava sua pele. As sensações foram brevemente interrompidas por um choque quando ele passou a mão entre suas coxas. Sorcha sufocou um grito e estremeceu com a força das sensações que a carícia tão íntima evocava.

Um beijo suave na parte interna de cada uma das pernas foi a recompensa quando ela as entreabriu para o toque de Ruari. Ele cobriu de beijos o ventre e as coxas enquanto a afagava até ela temer romper-se com a força do desejo que conquistara seu corpo e seus sentidos. Quando ele substituiu a mão pelos lábios, ela emitiu um grito inarticulado, mas ele a impediu de fechar as pernas diante da invasão e, com alguns movimentos da língua, venceu toda a sua resistência.

Apesar da voz interior fraca e distante que protestava, ela se arqueou, abandonando-se às carícias. Sua mente não registrava o significado das palavras de estímulo que ele murmurava, mas o tom de voz era suficiente para alimentar sua intrepidez. Sorcha tentou alcançá-lo para retribuir algumas de suas cadeias, mas gritou, frustrada, quando não conseguiu. E de repente ele estava ali, deixando uma trilha de beijos ferventes sobre seu corpo ao retornar para seus braços. Sorcha rapidamente o enlaçou e o beijou no pescoço vigoroso.

- Sorcha do céu, nunca imaginei que encontraria tanto fogo em seu corpo! - Ruari falou com voz trêmula.

- Eu me sinto tão ardente que temo incendiar e virar cinzas nesta cama. - Segurou o rosto dele e o beijou apaixonadamente.

- Por favor, querida, não se incendeie ainda - ele disse ao terminar o beijo. - Quero que esse fogo nos ajude a superar o próximo passo com a menor dor possível.

- Sei que haverá um pouco de sofrimento. - Tendo dificuldade para falar, ela esperava que suas palavras fossem coerentes. - Não tema, não recuarei.

Ela duvidava de que tivesse vontade de recuar, independentemente do desconforto. Seu corpo exigia a união que estava por vir, e saber que o ato significava mais para ela do que para ele não a fez hesitar.

- Estou tão inflamado que receio ficar surdo a qualquer negativa de sua parte - ele murmurou contra a curva de seu busto -, e não tenho desejo de me tornar um violador.

A única resposta de Sorcha foi um gemido de prazer ao senti-lo sugar seu mamilo. Por um momento, teve a vaga consciência de que Ruari se posicionava para penetrá-la. E quando ele começou a se insinuar, todas as suas sensações se concentraram no lugar onde os corpos se uniam aos poucos.

Envolveu-o com as pernas e cerrou as pálpebras quando ele iniciou a penetração. Uma dor repentina e aguda empanou por instantes sua paixão, e ela se agarrou com tanta força aos ombros de Ruari que suas unhas rasgaram-lhe a pele. Ele ficou imóvel, acariciando-a enquanto ela se acostumava a tê-lo dentro de si.

O desejo de Sorcha retornou, mas mesmo assim ele não se moveu. Com os olhos fechados, Ruari se continha ao máximo. Devagar, ela arqueou-se, murmurando com deleite quando ele a penetrou ainda mais.

Ruari deu um gemido profundo, mas Sorcha não se assustou. Emitiu um som suave de boas-vindas quando ele começou a se movimentar, segurando-a de encontro a si em um encorajamento silencioso. Os movimentos dele se intensificaram, e ela acompanhou seu ritmo.

Um lampejo de receio a atingiu através da névoa que envolvia sua mente quando as sensações começaram a se tornar assustadoramente intensas. Porém, sua paixão provou ser muito forte, afastando a apreensão no momento em que algo em seu interior pareceu se romper. Gritou o nome de Ruari ao atingir o êxtase. Parte de sua mente nublada rejubilou-se ao escutá-lo gritar seu nome enquanto a acompanhava no intenso prazer. Depois ele se largou em seus braços, e ela se surpreendeu por ainda ter forças para segurá-lo.

A bruma começou á ceder, e Sorcha o fitou. Viu-o erguer a cabeça que repousava em seus seios e sorrir. Retribuiu o sorriso, mas não evitou um suspiro diante do problema que ora se apresentava.

A paixão que haviam partilhado era estonteante e superava qualquer Sonho que pudesse ter em sua vida. E isso se dera porque, ao contrário de Ruari, entregara muito mais do que o corpo quando tinham feito amor. Jamais se arrependeria de ter se tornado amante dele, mas teria um preço a pagar por isso. Ela o amava e sabia que ele dificilmente retribuiria seu amor.

Ruari se espreguiçou, olhou para a porta e imaginou quando Sorcha voltaria à cama deles. Durante dois dias, tinham aproveitado cada momento disponível para fazer amor. A ânsia por ela o surpreendia e alarmava. Pensara que, uma vez tendo-a conhecido intimamente, seu interesse começaria a diminuir. Em vez disso, o sentimento tornava-se mais forte, assim como a necessidade da doce paixão que partilhavam. Mais uma vez, ignorou a voz da precaução, que lhe dizia para recuar. Em breve, retornaria a Gartmhor e haveria de curar-se, ainda mais se começasse a procurar uma esposa com mais afinco do que empregara no passado. Uma vez tendo uma mulher todas as noites em sua cama, esqueceria Sorcha. Poderia até encontrar uma paixão que se equiparasse à atual, pensou, sem dar atenção à risada zombeteira que ecoava em sua mente.

A porta do quarto foi aberta, e Ruari sentou-se, tenso e ansioso, para em seguida largar-se na cama com uma imprecação ao ver o primo entrar.

- O que você quer? - Franziu o cenho ao ver Beatham parar aos pés da cama e olhar para ele com uma solenidade que não combinava com o rosto bonito e juvenil.

- Alguém precisa falar-lhe seriamente, primo.

- Ah, é? E o que o faz pensar que você é a pessoa mais indicada?

- Apenas eu estou aqui. Sou somente um escudeiro, e lhe devo obediência. Contudo, seus atos afetam todos os Kerr, e por isso acho-me no direito de opinar acerca de seu comportamento.

- Eu deveria dar-lhe uma bofetada por sua imprudência.

Beatham ignorou a ameaça.

- Sorcha Hay é uma dama bem-nascida e era virgem, sem dúvida.

- Era. - Ruari cruzou os braços atrás da cabeça e avaliou o rapaz, impressionado com a ousadia, embora aborrecido pela interferência em seus assuntos pessoais.

- Não deveria tê-la atraído para sua cama. Tratou-se de uma atitude descortês, digna de um patife.

- Patife, eu? Você está ficando muito atrevido.

- Vai se casar com ela?

- Claro que não. Elas nos aprisionou, fala com espíritos e tem uma horda de parentes malucos. Essas não são qualidades que eu procuro em uma esposa.

- Então por que se deitou com ela?

- Porque ela me deixa em chamas.

Beatham bufou, aborrecido.

- Na sua idade, já deveria ter aprendido a controlar seus impulsos.

- Na minha idade? - Ruari sentou-se e lançou um olhar feroz para o primo. - Escute aqui, menino descarado, eu não a atraí para a minha cama. Ela sente por mim a mesma atração que sinto por ela, e por isso tomou a decisão.

- Ela é uma dama. Você lhe prometeu casamento ou mentiu a respeito de amor?

- Não me tem em alta conta, não é, rapaz?

- A melhor, mas também sei quais os truques que um homem usa para atrair uma mulher.

- Pois bem, nunca os usei. Eu disse a Sorcha exatamente o que procurava, a paixão que não conseguíamos esconder, nem mais nem menos. Ela sabe que não a pedirei em casamento, que não a amo e que um dia eu a farei pagar por nos ter usado como reféns.

- E, mesmo assim, ela veio para sua cama? - Beatham mostrou-se chocado.

- Sim, ansiosa e por vontade própria.

- É difícil de acreditar. Margaret sempre fala tão bem da prima... - Ele suspirou e sacudiu a cabeça. - Agora estou em dificuldade. Margaret vai querer saber o que conversamos e não posso dizer-lhe que a prima é uma rameira.

Ruari agiu sem pensar, e nem mesmo o grito de susto de Beatham penetrou na névoa de ira que empanou sua mente. Ficou em pé, agarrou o primo pela frente do gibão e desferiu um soco no rosto dele. Só entendeu o que tinha feito ao vê-lo caído a seus pés. Inspirando fundo e abrindo e fechando os punhos, viu o olhar arregalado do rapaz.

- Isso foi bem estranho - Beatham murmurou quando Ruari o ajudou a se levantar.

- Foi.

Muito estranho, Ruari refletiu, passando os dedos nos cabelos. Serviu sidra em dois canecos, enquanto considerava seus atos. Por que ficara com tanto ódio diante de um insulto a Sorcha, se não a amava, não pretendia casar-se com ela e pensava em vingança? Uma simples repreensão teria sido suficiente, essa forte reação era perturbadora. Isso remetia a um comprometimento mais profundo do que desejava. Entregou um caneco para Beatham e decidiu que o melhor seria sair de Dunweare o quanto antes.

- Sorcha Hay não é uma rameira - Ruari falou depois de tomar um gole da sidra forte. - Ela vem carregando a responsabilidade de Dunweare por tanto tempo que deve pensar como um homem. Pela maneira como ela e Margaret manejam as armas, acho que foram educadas como garotos.

- Elas tiveram de ser preparadas para ajudar na defesa de Dunweare - Beatham considerou. - Há poucos mancebos aqui.

- Sim, muito poucos, e é isso que torna essas mulheres diferentes. Não se pode julgá-la como uma dama da corte. Elas não foram mimadas nem protegidas. Sorcha considerou o assunto como um homem faria e decidiu-se. Ela sabe das conseqüências de ter um amante e as assumiu.

- Acho isso muito confuso. Como pôde deitar-se com uma mulher da qual pretende se vingar, e como ela aceitou isso conhecendo suas intenções?

- Porque concordamos que nossa paixão é um fator à parte.

- Se a paixão é tão forte, por que não se casa com ela?

- Pode imaginar Sorcha Hay na Corte? Eu a apresentarei ao nosso rei, ela fará uma reverência e começará a falar com o espírito que sobrevoa seu ombro. - Ruari sorriu ao ver o primo rir com relutância. - Tenho de procurar uma esposa condizente com minha posição, ou que eventualmente possa até melhorá-la. E você tem a mesma responsabilidade. - Aproveitou o momento para adverti-lo de que Margaret também não era uma esposa adequada.

Beatham resmungou algo e saiu. Ruari praguejou e serviu-se outra vez de sidra. Beatham não tentava conter seus sentimentos em relação a Margaret e acabaria com o coração partido. Ruari sabia que nem ele nem a família do primo aceitariam tal casamento. Margaret não tinha dinheiro nem a posição social que Beatham precisava procurar em uma esposa. Se ele, um lorde, tinha de se curvar diante do peso das responsabilidades, seu jovem parente poderia fazer o mesmo.

Ruari olhou a porta com irritação e imaginou onde Sorcha estaria.

 

- Sorcha? - Neil chamou, entrando na cozinha.

Sorcha sorriu e pôs o pão na bandeja que pretendia levar para Ruari. Suas tarefas haviam tomado mais de seu tempo do que o planejado, embora várias pessoas tivessem se admirado com a rapidez de seu trabalho. Estava ansiosa para encontrar-se com Ruari, pois não queria perder preciosos minutos do pouco tempo que lhe restava. Esperava que Neil não fosse pedir nada urgente.

- Está tudo bem? - perguntou e franziu a testa ao ver que as duas criadas saíam correndo da cozinha. - Por que a pressa delas?

- Eu as mandei embora. - Neil sentou-se à mesa. - Sente-se. - Apontou o banco em frente a Sorcha e esperou a sobrinha se acomodar. - Precisamos conversar.

- Você foi coagida pelas outras para me repreender?

- Ninguém pretende censurá-la. Estamos apenas preocupadas e não queremos vê-la sofrer.

- Isso é muita bondade, mas sabe, mais do que as outras, que não pode me impedir de fazer o que desejo.

- Sim, mas nenhuma de nós quer ficar quieta e depois ser atormentada pela culpa, se puder ajudar. Eu me sentiria a mais culpada de todas por ter lhe dito para se arriscar.

Sorcha pôs o braço por cima da mesa e deu um tapinha carinhoso na mão de Neil.

- Você disse que eu era livre para tomar minhas decisões sem medo de ser recriminada e também me contou a história do amor que teve no passado. Sei que percebeu minha perturbação e falou tudo aquilo para me ajudar a decidir, e foi o que eu fiz.

- Sim, mas será que você está em pleno uso da razão quando se encontra perto daquele tratante?

- Pleno, não, mas o suficiente. Na verdade, tomei minha decisão quando estava longe dele. Não corri para seus braços sem refletir. Pode ter sido um erro, contudo ele não me ofereceu casamento nem amor, apenas paixão, mas foi um engano consciente, com plena compreensão do que eu estava arriscando. Eu precisava de um pouco de imprudência.

- Sim, e você está certa. Porém, isso será breve, talvez mais do que você imaginava.

- O que quer dizer? - Sorcha perguntou, subitamente receosa.

- Um de nossos mensageiros chegou há uma hora. O povo de sir Kerr está se encaminhando para cá e traz o dinheiro do resgate. - Neil segurou a mão de Sorcha ao vê-la empalidecer. - Eles estarão aqui amanhã.

- Tão cedo... - Ela estremeceu. Acabava a pequena esperança de fazer Ruari amá-la. - Talvez se eu tivesse me decidido mais cedo... - murmurou.

- O quê?

- Nada, tia. Não sei por que estou tão chocada pela vinda dos Kerr. Eu sabia que eles viriam, e um pouco a mais de tempo em nada me ajudaria.

- Tem certeza de que ele nutre somente paixão por você?

- Quem pode ter certeza a respeito do que um homem sente ou pensa? Sei apenas o que ele disse, e que seu desejo se iguala ao meu. Além disso... - Sorcha deu de ombros.

- Você planejava fazer-se amada?

- Eu tinha uma leve esperança, talvez maior do que eu pensava, pois a resolução apressada me deixou aflita.

- Se quiser acabar com isso agora, posso cuidar dele até os Kerr chegarem.

- E de que adiantaria? Já comprometi minha virgindade e passei a maior parte dos últimos dois dias nos braços dele. Recuar agora de nada me serviria, nem atenuaria a dor da partida. - Ela se levantou e pegou a bandeja. - Quero esta última noite com ele. Meu coração terá de sobreviver com as lembranças. Portanto será melhor que eu as tenha em abundância.

 

Ruari ficou tenso quando a porta foi aberta, e então sorriu ao ver Sorcha entrar carregando uma bandeja pesada. Tirou-a das mãos dela e a deixou na mesa de cabeceira enquanto Sorcha trancava a porta. Surpreendeu-sé por ficar tão feliz ao vê-la, mas também se irritou.

Tinha um plano, claro, preciso e sensato, que não estava funcionando.

Um homem deveria ser capaz de desfrutar uma mulher e ir embora levando apenas algumas, lembranças. Centenas de pessoas, inclusive ele, haviam feito isso. Mas com Sorcha não era assim. Virou-se para ela, ressentido, e a viu sorrir com timidez. Sem querer, riu, sentindo o aborrecimento diminuir. Caminhou até ela, tomou-a nos braços, colocou-a na cama e estendeu-se sobre ela, mas Sorcha saiu de baixo dele.

- Venha aqui, garota. - Ele tentou alcançá-la.

- Chamar-me de "garota" não é a melhor forma de me atrair para sua cama. - Sorcha pôs hidromel na caneca e o serviu com uma mesura. - Não deixe sua comida aí por muito tempo, ou ela perderá o sabor.

- O único sabor que me interessa é o seu.

Ele riu ao vê-la corar e sentou-se para comer o pão, as frutas e as carnes frias.

- Sente-se aqui comigo, querida. Ainda não comeu, não é?

- Não. - Ela se acomodou na cama, pôs a bandeja entre eles e afofou os travesseiros nas costas. - A refeição não deve estar grande coisa. Nossa cozinheira adoeceu.

- Espero que não seja por causa da própria comida.

- Não, é um resfriado.

Enquanto comiam, Ruari a observava. Sentiu falta do sorriso franco, dos comentários ácidos, da vivacidade. Ela estava mais quieta, quase triste. Admitiu que gostaria de alegrá-la e de fazer desaparecer o que a acabrunhava.

- Alguma doença se abateu sobre Dunweare? - Ele pôs a bandeja vazia de lado e tomou Sorcha nos braços.

- Por que pergunta isso?

- Porque está com a fisionomia muito solene.

Ela se recostou no peito de Ruari, procurando conforto nas batidas fortes de seu coração. Não conseguira ocultar a tristeza. Não quisera falar sobre a chegada iminente dos Kerr, para não deixar transparecer sua mágoa. Porém, nada poderia inventar, pois não sabia mentir. Resolveu contar tudo de uma vez.

- Seus parentes estarão aqui pela manhã.

Sorcha sentiu que ele ficava tenso e esperou, ansiosa, para ver o que ele faria. Ruari segurou-lhe o queixo e fez com que ela o encarasse.

- Esta será nossa última noite juntos.

Ela não encontrou na fisionomia dele nenhum indício do que estaria sentindo.

- O resgate será pago, e você poderá voltar a Gartmhor. Não tem nada a dizer?

- Essa conversa está consumindo o pouco tempo que temos. - Começou a desmanchar a trança de Sorcha. - Então é a minha partida que a deixa triste.

- Não sei por que pensa isso.

- Ah, então foi a preocupação com a doença da cozinheira que trouxe sombras aos seus olhos.

- Sim, foi isso.

Sorcha não gostou do sorriso arrogante no rosto dele e resolveu distraí-lo. Se ele continuasse fazendo perguntas e provocando-a, acabaria revelando demais. Ruari não desejava seu amor, e ela não tinha a intenção de permitir que ele adivinhasse o estado de suas emoções. Não desnudaria a alma só para alimentar o orgulho e a vaidade masculinos. Ele procurava paixão, e era o que teria.

Sorrindo sedutoramente, soltou-se dos braços dele, abriu-lhe a camisa e beijou a pele nua. Sentiu o coração de Ruari bater acelerado e desejou ter mais experiência para satisfazer um homem. Queria que aquela noite fosse inesquecível para ele. Atirou a camisa para o lado e removeu devagar o calção. O que não tinha em perícia, compensaria com boa vontade.

Ruari se manteve imóvel, apesar do desejo crescente. Queria ver até onde chegaria a ousadia de Sorcha. Na expressão dela, notou um misto de malícia, determinação e sensualidade.

Sentando-se sobre suas pernas, de frente para ele, ela começou a tirar o vestido. Sua respiração tornou-se irregular ao vê-la despir-se devagar. Sabia que ela era inocente, que não conhecera outro homem além dele, e ainda assim tinha certeza de que nunca vira uma mulher desnudar-se com tanta doçura e lubricidade. Para não tocá-la, cerrou os punhos com tanta força que sentiu as unhas ferir as palmas. Não conseguiu conter um gemido quando Sorcha ficou nua, e abraçou-a quando ela se inclinou para beijá-lo. O beijo foi audacioso e faminto, inflamando-o. Ele precisou de toda sua força de vontade para não segurá-la quando ela parou de beijar sua boca e começou a descer pelo pescoço e peito, acariciando cada centímetro de pele com as mãos, os lábios, a língua, e até com o próprio corpo macio. Estremeceu ao senti-la beijar suas coxas enquanto terminava de despi-lo.

Sorcha afagava suas pernas, e roçava com os cabelos sua virilha. A provocação era torturante. Quando ela pôs os lábios em sua ereção, ele gritou, assustando-a.

Rapidamente impediu-a de se afastar, envolvendo os dedos nos cabelos sedosos e mantendo-a com gentileza o lugar enquanto ela continuava com as carícias íntimas. Em silêncio, com movimentos sutis do corpo, pediu que ela desse o último passo e gritou outra vez, deliciado, ao ser aprisionado no calor de sua boca. Ruari apertou os dentes até o queixo doer para controlar seu desejo devastador. Queria aproveitar as sensações extraordinárias o máximo possível, mas logo teve de ceder à necessidade implacável que o assolava. Puxando-a pelos braços, fez com que ela se deitasse sobre ele, estremecendo ao ver o olhar sensual e escurecido.

Sorcha se esquivou da tentativa de Ruari de controlar o ato de amor. Liderar a dança íntima era uma experiência rica e intensa, da qual ela não pretendia desistir. Ruari arfava, e as faces contraídas pela força da paixão estavam coradas. Saber que causara aquilo era inebriante. Ele mal a tocara, mas sua excitação era tão grande quanto a dele.

Sorrindo e roçando um beijo em seus lábios, ela uniu os corpos devagar, e todo o controle que quisera manter desvaneceu quando Ruari a penetrou. Ele a segurou pelos quadris, mas Sorcha não precisou de orientação. Perdida na profundidade do desejo, ela os conduziu à altura que ambos almejavam, e seus gritos de prazer fundiram-se harmoniosamente.

Após ficar algum tempo largada sobre o corpo de Ruari, Sorcha considerou o que acabara de fazer. Não sentiu nele tensão nem hesitação enquanto ele a acariciava. Isso, todavia, não sufocou por completo sua insegurança crescente. Homens eram criaturas estranhas, que adoravam interlúdios apaixonados, mas condenavam as mulheres que se entregavam a eles. Sem coragem de fitá-lo, sentiu a mão que a segurava pelo queixo e virava seu rosto. Ruari beijou-a na ponta do nariz, e o sorriso dele não demonstrava desgosto nem reprovação.

- Tenho de admitir sua capacidade de levar um homem à loucura - ele afirmou com reverência.

- Eu o prefiro são. Está satisfeito? - indagou, sem se conter. - Uma pergunta tola.

Ruari a segurou e virou-se, deitando-a sob ele.

- Muito tola. - Ele a beijou no pescoço com lentidão.

Sorcha sentiu o primeiro sinal do desejo renovado de Ruari em sua perna.

- Não precisa descansar, Ruari?

- Não temos tempo.

Ele observou no olhar de Sorcha a mesma tristeza anterior, e não se surpreendeu ao sentir uma onda de pesar depois de um prazer tão maravilhoso. Começava a aceitar que ela era capaz de despertar sentimentos bastante inconvenientes em seu coração. No dia seguinte, quando o resgate fosse pago, iria embora sem hesitar, e a raiva retornaria. Não deveria pensar nisso. Queria perder-se na suavidade da paixão de Sorcha e embeber-se com seu cheiro.

- Doce e bela Sorcha... - murmurou e mordiscou-lhe o lábio. - Até o amanhecer, eu a deixarei esgotada.

Ela sorriu, e Ruari a beijou com um ardor que não tentou esconder, procurando não se lembrar de que aquela seria a última vez.

Sorcha vestiu-se, observando Ruari, que dormia de costas, e desejou deitar-se outra vez. Seus olhos estavam inchados e cocavam pela exaustão, e tinha o corpo moído pela noite de amor. Deixaria o quarto antes que ele acordasse, pois não queria que o assunto do resgate maculasse o prazer que haviam experimentado durante a noite.

Saiu sem fazer ruído e quase tropeçou em Margaret no corredor. Pôs a mão na boca para conter um grito de surpresa. Então, agarrando a prima pelo braço, arrastou-a para longe do aposento de Ruari.

- Você quase me mata de susto - repreendeu-a.

- Por que esse silêncio todo? - Margaret desvencilhou-se de Sorcha.

- Eu não queria acordá-lo.

- Por que não? Ele vai embora hoje. - Margaret não escondeu o tom de raiva e ressentimento,

Sorcha estremeceu. Não dera muita atenção à prima, e Ruari não seria o único a partir naquele dia. Margaret continuara o romance com Beatham, apesar dos conselhos e das advertências. Os dois, na certa, acreditavam que o amor deles conquistaria todos e que a boa sorte os ajudaria, impedindo a separação. Com o coração confrangido pela iminente partida de Ruari. Sorcha não estava com disposição para consolar Margaret.

- Sim, não era segredo para ninguém que este dia chegaria. - Sorcha começou a descer a escada estreita de pedra que levava ao salão nobre.

- Como você tem coragem de mandar Beatham embora, sabendo como gostamos um do outro? - Margaret perguntou, seguindo-a. - Por que não elaborou outro plano?

- Qual é a sugestão? Resgatar somente Ruari, e manter Beatham como refém? Pense bem. Se ficássemos com um dos membros dos Kerr, desencadearíamos uma guerra longa e sangrenta.

- Beatham não seria prisioneiro. Ele ficaria, comigo.

- O clã dele pode não entender isso e exigiria a volta dele diante de nossas muralhas. E o que eu diria? Sinto muito, gentis senhores, mas minha prima Margaret quer ficar com ele.

- Não precisa fazer com que eu pareça uma idiota.

Sorcha parou quando alcançaram o fim da escada e suspirou. Odiava discutir o assunto. Queria endurecer o coração, clarear a mente e encarar a partida de Ruari com a maior dignidade possível. Porém, seria impossível, e até mesmo perigoso, ignorar Margaret. Não havia garantias de que a prima emotiva faria o que precisava ser feito. Ela precisava ser lembrada do que estava em risco.

- Sinto muito por ter sido indelicada. Preciso de toda a minha energia para enfrentar o dia de hoje, mantendo pelo menos uma calma aparente. Você acha que eu quero que Ruari vá embora?

- Oh, não. Nem pensei nisso. Talvez... Sorcha ergueu a mão, interrompendo-a.

- Sem argumentações ou possibilidades a considerar. Nada dará certo. Fizemos um trato com os Kerr e temos de honrá-lo.

- Então vamos pôr um fim a esse jogo miserável. Não desejo os Kerr como nossos inimigos, nem que Beatham vá embora.

- Quer realmente impedi-lo de ir à custa da vida de Dougal? - Ao vê-la empalidecer, Sorcha percebeu que a prima se lembrara da importância de devolver os prisioneiros. - Beatham e Ruari nem estariam aqui se não precisássemos do dinheiro do resgate. Dougal será morto se não pagarmos os ingleses. Se tentarmos ficar com Beatham e soltarmos apenas Ruari, os Kerr vão declarar guerra. Mais vidas serão perdidas dos dois lados.

- Eu deveria ter escutado os conselhos de todos - Margaret murmurou com lágrimas nos olhos.

- Eu também deveria ter controlado, minhas emoções. Mas nem sempre se pode dar ordens ao coração. E agora devemos encarar a perda, como inúmeras mulheres já fizeram.

- Espero ter o espírito forte como o seu, e nunca mais vou falar com Dougal. - A promessa de Margaret terminou numa lamúria, e ela subiu correndo a escada.

- É uma pena. - Neil aproximou-se de Sorcha. - Eles combinam muito bem.

- Sim.

- E como você está, Sorcha?

- Não tema, não morrerei dessa ferida.

- De vez em quando você desejará o contrário.

- Eu sei, mas vai sarar. O que me preocupa é como terei forças para enfrentar este dia sem fazer papel de tola, com o orgulho intacto e sem revelar nenhum sentimento.

- Tem certeza de que o homem deseja isso, ou ele espera algo além da paixão?

- Tia, ele foi muito claro e não demonstrou ter mudado de idéia. - Com um sorriso triste, ela piscou para Neil. - Mas eu creio que deixei uma marca profunda em sua memória. Sir Ruari Kerr se lembrará durante muito tempo de sua estada em Dunweare.

 

Pela janela estreita, Ruari tinha o olhar fixo na faixa de terra que se estendia para além dos portões. Era meio-dia, e ele estava ansioso para ver seus homens. Acordara na cama vazia e se rendera a uma crise de mau humor que não o acometia fazia muito tempo. Não via a hora de sair de Dunweare e deixar a estranha Sorcha para trás.

O ruído da porta que se abria chamou sua atenção. Praguejou ao perceber que estava tenso e ansioso por mais um momento a sós com Sorcha. Ao ver Beatham entrar, praguejou outra vez, irritado com o próprio desapontamento.

- Disseram-me para esperar aqui - Beatham anunciou em voz baixa e nervosa ao ver a expressão sombria de Ruari. - Um cavaleiro chegou com a notícia de que nossos homens estão a menos de uma hora daqui.

- Ótimo. Logo deixaremos este maldito lugar. - Ele serviu-se de uma caneca de sidra e tomou um grande gole, mas seu humor não melhorou.

- Não sei por que falar com tanto desprezo de Dunweare, considerando que passou as últimas três noites na cama com lady Sorcha.

- O que foi a única coisa boa nesse episódio infeliz. Boa demais - Ruari comentou, ignorando o olhar penetrante do primo.

- Eu preferiria ficar aqui.

- O que não é de admirar. Mas Sorcha Hay não permitirá. Ela precisa do dinheiro do seu resgate.

- Acredita, agora, que ela precisa disso? - Beatham também se serviu de sidra enquanto Ruari voltava à janela.

- Acredito que ela esteja convencida de que sim. Mas não acho certo que meus bolsos sejam esvaziados para trazer Dougal Hay de volta a este castelo. Ele nem parece ser um bom lorde, de qualquer forma.

- Bom ou não, é o lorde deles. Nosso povo não hesitou em comprá-lo de volta, e Sorcha fará o mesmo pelo irmão. O dever exige que ela faça tudo o que puder para salvar a vida de sir Dougal.

- Não é a tentativa dela que me aborrece, mas o seu sucesso - Ruari admitiu com relutância. - Ela pagará caro por isso.

- Esqueceu que Margaret e Sorcha também salvaram nossas vidas?

- Não, e isso talvez sirva para amenizar os meios de vingança, mas não os evitará.

- Tem certeza de que já não teve sua desforra? Afinal, levou-a para a cama por três noites e agora irá abandoná-la. O bom nome de lady Sorcha foi denegrido.

- O que se passou entre nós na cama não tem nada a ver com o resto. Talvez você possa esquecer que foi tomado como refém, mas eu não posso. Ela vai recuperar o tolo do irmão usando meu dinheiro, e pretendo reaver até o último centavo.

Beatham sacudiu a cabeça e sentou-se na cama.

- Ainda não entendi por que não pode ser mais clemente. Elas salvaram nossas vidas, Sorcha fez o que era seu dever, e milorde não ficará pobre nem passará fome após pagar o resgate.

- Sei disso, mas não posso perdoar ser negociado por uma jovenzinha de vinte anos, nem suporto a idéia de que meu dinheiro arduamente conseguido seja gasto com o irmão dela. Sei por que está discutindo comigo. Quer me comover para que eu abençoe sua união com Margaret.

- Nós nos amamos e queremos nos casar. O que há de errado?

- Nada, mas seria uma estupidez pensar nisso. Não sou o único que você teria de convencer. Na verdade, eu seria persuadido com mais facilidade que os demais. Sua família se oporá categoricamente ao casamento. Nem você nem Margaret têm dinheiro ou terras. Do que pretendem viver? De ar? Esperança? Amor? Isso não matará a fome de vocês nem a de seus filhos. Tente pensar pelo menos uma vez na sua vida, rapaz. Mesmo desconsiderando os últimos acontecimentos entre os Hay e os Kerr, o enlace seria mais do que inadequado.

- Eu terei Margaret.

- Fique com ela, mas não se case. - Ruari sacudiu a cabeça. - Lavo minhas mãos e não quero mais ouvir falar no assunto. Case-se com sua preciosa Margaret, mas não venha me procurar quando tiver de morar num casebre com sua família, sem roupas nem comida.

O mau humor de Beatham se intensificou, e Ruari não quis mais discutir. Serviu-se de outra dose de sidra e voltou para a janela. Para seu alívio, o primo não disse mais nada.

Escolher livremente uma companheira deveria ser muito agradável, mas homens de sua estirpe não podiam fazê-lo. Era preciso considerar alianças, terras e dinheiro. Um lorde tinha muitas responsabilidades, bocas para alimentar e homens para armar. A propriedade do pai de Beatham era pequena e pobre, pouco mais do que uma torre velha e um outeiro rochoso. Para mantê-la, seria necessário um bom casamento. Na verdade, Ruari queria que o rapaz escolhesse uma noiva rica. Assim não teria mais de sustentar Beatham e a família.

A conversa a respeito de um enlace por amor e escolha mexeu numa ferida exposta. Ruari adiara o próprio matrimônio e a procriação de herdeiros por tempo demais. Sabia que a fria negociação envolvida era o que o detinha. Gostaria muito de poder escolher uma esposa, mas o dever ordenava o inverso.

Pensar em casamento trouxe à tona a imagem ardente de Sorcha, e ele se irritou. Pouco depois viu, com alívio, a aproximação de seus homens. A estadia em Dunweare mexera com sua mente, e quanto antes fosse embora, melhor.

 

Sorcha fitou o homem enorme sobre o garanhão cinzento e malhado. Para descrevê-lo, seria preciso utilizar uma gama de tons de vermelho. Os cabelos brilhantes eram um pouco mais claros do que a barba, e as sardas espalhadas pelo rosto largo, um pouco mais escuras. O gibão e o calção eram castanho-avermelhados, e ela pensou que ele deveria escolher uma cor diferente. Ficou aliviada ao vê-lo desmontar. Embora ele fosse ainda mais alto do que Ruari, ela não precisava inclinar muito a cabeça para encará-lo àquela distância.

- Sou Rosse, primo mais próximo de Ruari Kerr, e o homem que protege sua retaguarda - ele se apresentou com voz profunda e fez uma mesura.

- Sir Ruari estava sozinho quando eu o encontrei. - Sorcha achou também que ele não deveria corar.

- Eu ainda me recuperava de um ferimento quando ele foi para Otterburn, e tive de mandar um subalterno em meu lugar. Na batalha, o soldado perdeu o cavalo e, ainda que não tenha fugido, esqueceu milorde no calor da vitória.

- Espero que o sujeito tenha o bom-senso de se esconder por algum tempo quando sir Ruari retornar, pois ele está muito desgostoso com tudo isso. - Ela teve certeza de ver um leve sorriso sob a barba espessa antes de fazer uma ligeira cortesia. - Sou lady Sorcha Hay.

- Ouvi falar muito a seu respeito, milady. É preciso ser um grande adversário para derrotar o lorde de Gartmhor.

Sorcha não precisou ouvir os risinhos abafados dos homens nem ver que Rosse mirava um ponto atrás de seus ombros, para saber que Ruari e Beatham estavam ali. Sentira a presença de Ruari assim que ele saíra do castelo. Os pelos arrepiados em sua nuca davam-lhe a certeza de que era observada por ele, e certamente não com bondade. E quando ele se aproximou, pôde comprovar, pela expressão no belo rosto, que toda a raiva retornara. Sentiu o toque gelado das esperanças despedaçadas e esforçou-se para esconder a dor. Ruari Kerr não perdoaria.

- Está tudo concluído? - Ruari perguntou a Rosse.

- Milorde, ainda não entreguei o resgate ao seu poderoso captor. - Rosse estendeu para Sorcha um saco pesado.

- Cuidado, Rosse - Ruari resmungou. - Não estou para brincadeiras.

Sorcha sorriu de leve, tomando o saco com o dinheiro nas mãos. Sabia que Rosse caçoava do primo e, em outras circunstâncias, até poderia achar graça. No momento, porém, não havia motivo para rir. Rosse provocava a raiva, o ressentimento e o orgulho ferido de Ruari. A cada brincadeira, o abismo entre eles aumentava, e suas esperanças murchavam.

- Milady não quer contar? - Ruari a fitou com olhar feroz.

- Não. Tenho certeza de que posso confiar em sir Rosse - ela respondeu com falsa doçura.

- Onde estão minha espada e meu escudo?

- Como espólios de guerra, seriam meus por direito - ela o lembrou e fez um sinal para Iain -, mas já tenho aqui o que desejo. - Ela chocalhou o saco enquanto Iain entregava as armas para Ruari e Beatham. - É de dinheiro, e não de armas, que preciso para trazer meu irmão para casa.

- Começo a pensar que milady serviria melhor a Dunweare - disse Ruari, embainhando a espada - se ficasse com o dinheiro e deixasse seu irmão desmiolado cuidar da própria cabeça. - Antes que ela pudesse responder ao insulto, ele se virou para Beatham, que se despedia de Margaret. - Estamos partindo agora, rapaz.

- Ah, ele sempre fez sucesso com as moças! - Rosse comentou e fez um gesto para que seus homens trouxessem os cavalos para Beatham e Ruari.

- Esse foi um flerte irrefletido, mas muito do que houve aqui também foi. - Ruari fitou Sorcha com um olhar penetrante.

As palavras primeiramente a magoaram e depois a irritaram. Não havia necessidade de que ele a insultasse antes de ir embora. Ele não teria feito isso se tivesse sido aprisionado por um homem. Mesmo que a ira e o ressentimento fermentassem em seu coração, ele trataria o oponente com dignidade.

- Tem razão, sir Kerr. Milorde pode partir agora, apesar de seus homens serem bem-vindos para ficar mais um pouco e matar a fome e a sede. O senhor, no entanto, já teve a sua parcela dá hospitalidade de Dunweare.

Ao vê-lo estreitar os olhos, Sorcha teve certeza de que ele não apreciara suas palavras. Ele seria um tolo se acreditasse na sutil insinuação de que não fora apenas a paixão que a levara até a cama dele. Porém, ela sabia que os homens se confundiam facilmente sobre os motivos que levavam as mulheres a se deitar com eles. Seria ótimo que o arrogante sir Kerr tivesse algumas dúvidas. Mesmo um pouco chocada com a idéia que lhe ocorreu, decidiu falar, motivada pela dor e pela raiva.

- Quem sabe o seu pequeno esforço possa ajudar na restauração da parca população masculina de Dunweare - ela cochichou para que ninguém mais a ouvisse.

Viu-o arregalar os olhos, que adquiriram um brilho de fúria.

- Está tentando dizer que me usou como reprodutor? - ele disparou.

- Não tentei dizer. Eu disse. E com bastante clareza, eu acho. - Sorcha achou a fúria de Ruari curiosa. Se ele declarara ter interesse apenas em sua paixão, não deveria se importar com a forma como ela utilizaria aquilo. - Por que está se demorando, sir Kerr? Há semanas, o senhor vem deixando bem claro que estava ansioso para ser libertado. Está livre. Vá!

- Ainda vai ouvir falar de mim, Sorcha Hay.

- Se voltar a Dunweare, será como prisioneiro novamente, e o valor do seu resgate será muito mais alto. Foi muito custoso cuidar do senhor.

- Pode ter certa, milady, de que haverá um pagamento, mas de sua parte. E eu lhe asseguro que será bem caro. Beatham! - ele gritou enquanto montava no cavalo.

Sorcha observou Beatham correr para a montaria, ouviu um soluço às suas costas e alguém voltando ao castelo. Margaret alcançara o limite das próprias forças. Enquanto os Kerr se afastavam, ela admitiu que a energia para parecer calma e digna estava se esgotando. Queria que a última visão de Ruari fosse a de uma mulher que se apegava apenas a uma barganha de paixão. Mais alguns instantes, e ele decerto teria sido capaz de perceber a dor que a consumia. Assustou-se ao ser abraçada pelos ombros. Era Neil.

- Como você está? - ela perguntou.

- Vou sobreviver. - Sorcha fitou os portões por onde saíam os homens de Gartmhor. - Isso se eu ficar bem longe de sir Ruari Kerr.

- Ele a ameaçou, não é? Não o leve tão a sério, querida. Ele estava com raiva.

- Eu sei, mas a ameaça foi séria. Se eu o vir de novo, creio que vou ignorar meu coração e correrei na direção oposta.

 

Ruari rangeu os dentes, tentando se controlar. As brincadeiras de seus homens tinham se tornado insuportáveis. Carrancudo, decidiu que estava na hora de lembrá-los de quem era o lorde.

- Basta! - vociferou, satisfazendo-se com o silêncio imediato. Um pouco desse prazer esmoreceu ao virar-se para Rosse, que cavalgava a seu lado, e notar a expressão divertida no olhar do primo. - O que está achando tão engraçado?

- Você. Será que passou essas semanas em Dunweare agindo como se tivesse um cardo em suas ceroulas? - Rosse perguntou. - Não creio, ou aquela dama com olhos de corça teria entregado uma arca cheia de ouro para que o levássemos embora. No entanto, ela pareceu ficar com raiva depois que você apareceu. Até então, ela tinha se comportado como uma jovem doce, que me repreendeu com gentileza por não tê-lo protegido. Você a ameaçou, não foi?

- Parece preocupado demais com a garota que esvaziou nossos cofres.

- Nem de longe, embora Malcom, aquele projeto de homem, tenha cacarejado como uma galinha choca a cada moeda que contávamos. Pelo que ouvi dizer, a moça tem a seu encargo um irmão tolo, e essa foi apenas mais uma atitude que ela teve de tomar para salvar sua maldita pele. Ela negociou honestamente.

- Pode ser, mas ela pegou meu dinheiro depois de ter me enganado, bancado minha salvadora para aquietar minhas suspeitas. Sorcha Hay pagará por esses crimes. Não sei como nem quando, mas reaverei meu dinheiro e ensinarei a ela a não se envolver em jogos masculinos.

 

- Tudo dará certo, Robert - Sorcha assegurou ao armeiro, que estava com o semblante carregado, enquanto montava.

Ela ajustou as rédeas nas mãos e preparou-se para a missão que a aguardava. Após os dois dias longos e sofridos desde que Ruari saíra de sua vida, finalmente poderia ocupar a mente com algo além dele. O resgate de Dougal exigiria toda a concentração e perícia. Esperava que Robert não se preocupasse tanto e a deixasse concluir o acordo.

- Não me agrada a idéia de deixá-la ir ao encontro daqueles canalhas ingleses - disse Robert. - Ainda mais ao alcance de sir Treacher. Não o perca de vista por nenhum instante, garota. Ele não é confiável, e imagino que até desconheça o significado da honra.

- Concordo. Ele é um biltre e, segundo Crayton, esse caráter é uma herança familiar. Foi um ancestral dele que matou Crayton e Elspeth, sua amante. Não tema, velho amigo, ficarei atenta àquele monstro.

- Eu também - Neil garantiu ao lado de Sorcha. - Robert, veja se consegue alegrar Margaret. Há dois dias ela não para de chorar e, se continuar assim, os globos oculares acabarão por saltar daquela cabeça oca. - Ela incitou o cavalo a um trote e atravessou os portões de Dunweare.

Sorcha sorriu para Robert e acompanhou a tia. Os quatro homens armados que a seguiam inspiravam-lhe alguma confiança. Nunca fizera nada tão sério ou importante, e a responsabilidade da missão a assustava ainda mais do que encarar os ingleses, eternos inimigos que, com relutância, a haviam aceitado como negociadora. Pretendia agir de maneira tão contundente que baniria para sempre o desprezo deles.

- Isso será bom para você. - Neil recuou o grande capão branco para cavalgar ao lado de Sorcha.

Foi difícil não sorrir para a tia. Mesmo vestida como homem, sua feminilidade era indiscutível, desde a trança grossa até as curvas generosas que moldavam o gibão acolchoado e a cota de malha. Os ingleses não a esqueceriam.

- Na verdade, eu estava pensando que será uma espécie de provação para mim - Sorcha retrucou. - Pela maneira como sir Treacher agiu, é possível inferir que os ingleses consideram a maior imbecilidade negociar com uma mulher. Quero mostrar a eles que posso tratar de assuntos masculinos com a argúcia, a coragem e a inteligência de um homem.

- Sei que poderá fazer isso, Sorcha. Claro que não conseguirá convencer a todos, mas, eu não me preocuparia com o que pensam aqueles patifes. O que eu pretendia dizer é que a importância do caso fará com que esqueça um pouco de sir Ruari Kerr.

- Eu já o esqueci.

- Oh, não. Você não tem chorado a cântaros como Margaret, mas sei que sente falta dele. Não a culpo. Ruari é muito atraente e capaz de fazer qualquer jovem perder a cabeça.

- Tem razão. Talvez eu sinta a ausência, embora faça apenas dois dias que ele partiu. Mas não tema. Eu não ficarei me remoendo pelo que poderia ou deveria ter feito. Estou preocupada com Margaret.

- Aquela tolinha está sofrendo por um exército de viúvas.

- Ela exagera um pouco, mas perdeu mais do que eu. Ela foi correspondida. Beatham é um belo rapaz, de coração bondoso, que a ama e a teria desposado de boa vontade. Em vez disso, ele está em Gartmhor, e parece que não há mais esperanças de um casamento. Eu gostaria que ela não sofresse e posso entendê-la, além de me sentir culpada. Creio que afastei dela qualquer chance de felicidade.

- Não. Foi aquele arrogante sir Ruari que se interpôs entre Margaret e o homem que ela deseja. Ruari transpira orgulho e teimosia, e não esquece nem perdoa.

- No entanto, ele poderia no mínimo perdoar Margaret. Para piorar, ele me deixou furiosa, e eu retruquei com palavras que o deixarão irado por muito tempo. - Sorcha contou para tia o que dissera a Ruari pouco antes de ele partir.

Neil a encarou, chocada.

- Você disse a ele que o usou como reprodutor?

- Sim.

- Não é à toa que ele foi embora cuspindo fogo.

- Ele não ficou tão furioso quando descobriu que não fora salvo, mas sim capturado. - Sorcha sorriu quando a tia começou a rir. - É curioso, mas ele pareceu insultado.

- Nem poderia ser de outra forma. Ele imaginou que você havia se entregado movida pela paixão e descobriu que fora escolhido como um garanhão. Homens costumam usar mulheres como reprodutoras, mas detestam ser usados da mesma maneira. Mas, apesar de tê-lo irritado tanto, você não deve se sentir culpada em relação a Margaret. Não foi apenas a fúria de sir Ruari que impediu o matrimônio, mas a própria família do rapaz. Eles não gostariam de vê-lo casado com uma jovem bonita, porém desmiolada e pobre.

- Eu sei, mas espero que o sofrimento de Margaret não dure muito, e que seu amor não seja insubstituível.

- Foi assim para você?

- Foi, mas Sorcha jamais admitiria isso, depois de passar dois dias negando o fato para si mesma.

- Não quero falar nem pensar sobre isso agora.

- Entendo. Bem, será melhor incitarmos os cavalos a galopar mais rápido. Dougal deve estar ansioso por nossa chegada.

- Eu não vejo a hora de trocar algumas palavras com meu irmão - Sorcha murmurou e acelerou o animal.

- O acampamento saxão está logo à frente - Ronald, o mais corpulento e mais velho dos guardas, anunciou depois de uma inspeção de reconhecimento.

Sorcha endireitou os ombros e tentou afastar a fadiga de quase dois dias de viagem a cavalo.

- Ronald, precisamos parar um pouco para eu me arrumar. Os ingleses podem conhecer a distância de Dunweare até aqui, mas será melhor que eu não pareça tão cansada.

- Tem razão. Será bom apresentar-se da melhor forma possível.

Com a ajuda de Neil, Sorcha encontrou um lugar abrigado para se trocar. Escolheu um vestido limpo e arrumou os cabelos, mesmo sem lavá-los. Ainda que costume inglês fosse as mulheres não portarem armas, seria perigoso apresentar-se sem proteção diante do inimigo. Tomou um gole de sidra que Neil lhe ofereceu.

- Se quiser, podemos ficar aqui mais um pouco, minha querida.

- Não. - Sorcha espiou o céu que escurecia. - No outono, os dias ficam mais curtos. Quando escurecer, quero estar quilômetros longe dos ingleses.

- Certo. A paga da maioria dos resgates transcorre sem problemas, mas é preciso sempre se precaver para a traição.

Meia hora mais tarde, quando o grupo entrou no acampamento dos ingleses, Sorcha espiou sir Simon Treacher e pensou em traição. Esquecera como o aspecto dele era asqueroso e estremeceu quando ele se aproximou para segurar as rédeas e ajudá-la a desmontar. Relutante, aceitou a mão estendida para não ofendê-lo. Com uma ponta de melindre, pensou que ninguém repararia nela, pois todos os olhos se voltavam para Neil.

Um homem alto e grisalho trouxe Dougal para a frente. Sorcha analisou o irmão, mais velho do que ela cinco anos, mas que agia muitas vezes como um jovem imberbe. Alto e magro, era quase bonito, com feições bem delineadas, pele lisa e cabelos loiro-avermelhados. Ela se perguntou se a ânsia de empunhar a espada não seria uma maneira de provar sua masculinidade. No olhar castanho-dourado notava-se uma ponta de súplica que Sorcha ignorou.

- Milady trouxe a soma combinada? - o homem alto perguntou.

- Sim. - Sorcha estendeu o saco de moedas. - A quem a estou entregando?

O homem corou ao ser lembrado da falta de cortesia por não se ter apresentado e fez uma mesura antes de pegar o saco de dinheiro:

- Lorde Matthew Selkirk, às suas ordens, lady Hay. Como pode constatar, seu irmão goza de boa saúde.

- Sim. - Apesar das roupas muito estragadas, ela pensou. - As armas dele?

- Meu soldado acaba de entregá-las ao... - Ele hesitou, olhando Neil de revés.

- Minha tia, Neil Hay. - Sorcha evitou sorrir ao perceber o esforço que ele fazia para não dizer nada que pudesse ser considerado um insulto.

- Estão convidados a matar a sede e descansar os cavalos - Matthew acrescentou ao estender o dinheiro para que um homem magro e calvo o contasse.

- Agradeço sua hospitalidade, milorde, mas não tenho como aceitá-la. A volta para Dunweare será árdua, e precisamos aproveitar a pouca luminosidade que ainda nos resta.

Após alguns minutos, entregaram o cavalo para Dougal. Sorcha pretendia contar a ele o quanto custara resgatar, além dele, o cavalo e as armas. Arrepiou-se ao sentir o olhar de Treacher às suas costas e montou. Despediu-se com poucas palavras e liderou o pequeno grupo para sair do acampamento. Sentiu que o desprezo deles diminuíra, mas, assim mesmo, queria se afastar logo dos ingleses.

- Onde foi que conseguiu tanto dinheiro? - Dougal perguntou ao se aproximar.

Sorcha ficou satisfeita ao ver o olhar chocado do irmão quando lhe contou exatamente o que acontecera. Havia uma pequena chance de ele se sentir responsável. Nenhuma mulher poderia ser forçada a assumir tal situação. Aquela era a competência de um lorde, e ela sabia que Dougal não perdera totalmente o senso de dever. Talvez aquele incidente o fizesse sentir-se envergonhado pelo erro que cometera.

- Quanto sobrou do resgate de sir Kerr? - ele perguntou.

- Nada. Pedi apenas o necessário para comprar sua liberdade.

- Ele é muito rico. Você poderia ter conseguido para nós uma pequena fortuna. - Dougal se afastou um pouco para o lado quando Sorcha o fitou com olhar feroz.

- Sim, poderíamos ter conseguido isso se são tivéssemos de resgatar sua carcaça inútil.

- Está bem, Sorcha, você fez o que era correto. Eu não pretendia insultá-la.

- Estava certa, milady - disse Ronald, aproximando-se. - Os ingleses estão nos seguindo.

- Quantos são?

- Não consegui contar, mas nos excedem em número. Dougal puxou a espada.

- Então temos uma traição em marcha. Nós os faremos pagar caro por isso.

- Quer fazer o favor de esquecer a idéia? - Sorcha surpreendeu-se ao vê-lo obedecer.

- Quer que fujamos dos saxões com o rabo entre as pernas?

- Sim, se for preciso. Dougal, somos duas mulheres e cinco homens. Ronald disse que os ingleses nos superam em número, e não creio que eles pretendam nos escoltar pacificamente a Dunweare. Eu não fiz tudo isso por você para vê-lo morrer momentos após ser libertado.

- Você sabia que isso aconteceria.

- Eu suspeitava. Sir Simon Treacher tem pensamentos libidinosos a meu respeito. - Sorcha irritou-se com o olhar de surpresa de Dougal. - Não precisa acreditar em mim. Pode perguntar a qualquer um dos outros.

- Não. Eu acredito em você. Está ficando escuro, e não será fácil despistá-los.

- A escuridão também será impedimento para eles.

- E logo estaremos em terras que nos são familiares - Ronald acrescentou.

- O que acha, tia? - Dougal perguntou a Neil.

- Acho que você é um idiota. - Ignorou o olhar dele e as risadinhas dos homens. - Creio que será melhor iniciarmos logo nossa incursão à segurança, pois Treacher não nos seguirá para dentro da Escócia. Ele provavelmente está com apenas uma pequena parte de sua tropa.

- Eu os vigiarei e virei para avisar quando retrocederem. - Ronald afastou-se antes de alguém pensar em agradecer.

Dougal não chegou a argumentar. Sorcha emparelhou-se com Neil, e as duas saíram a galope. Ela escutou o irmão praguejar e seguir os demais. Sorcha temia aquela noite, após dois dias sobre uma sela.

Havia escurecido quando Ronald voltou para avisá-los de que os ingleses estavam acampando. Dougal não protestou quando todos decidiram prosseguir, mesmo isso significando puxar os cavalos cansados na maior parte do trajeto. Eles só pararam para descansar quando a madrugada raiou. Sorcha acompanhou os gemidos de exaustão dos demais quando o grupo se reuniu ao redor de uma pequena fogueira.

- Aquele homem parece determinado a possuí-la. - Dougal sentou-se ao lado da irmã e tomou um gole de vinho do odre, passando-o em seguida para ela.

- Ele está - disse Neil, do outro lado de Sorcha.

- Você teria certeza disso se o tivesse visto olhar para sua irmã enquanto negociávamos o resgate.

- Isso não pode ter a aprovação de lorde Selkirk. Ele honra as tradições do resgate. - Dougal franziu o cenho e olhou ao redor. - Uma vez de volta a Dunweare, Sorcha, você estará a salvo.

- Eu gostaria de acreditar nisso - ela murmurou.

- Ele quebra todas as regras ao nos perseguir. Talvez recue dessa vez, o que não significa que desistirá.

- Tem razão - Neil concordou. - Este foi um salto impensado em direção à presa que ele busca. Escapamos de suas garras, mas agora Treacher vai planejar as próximas investidas. Uma coisa a nosso favor é o inverno que se aproxima. Uma estadia longa e gelada em alguma fortaleza esfriará seu ardor.

- Não acha que está exagerando? - Dougal perguntou. - Treacher se arriscaria muito ao vir para a Escócia atrás de Sorcha. Isso não faz sentido. Na Inglaterra, existem muitas mulheres que podem esfriar seu ardor.

- Você não conheceu uma grande paixão, rapaz, e por isso não pode entender.

- Não sou um garoto inocente, tia.

- Nem foi o que eu quis dizer. Eu me referi ao desejo cego que nos torna irracionais, e que ainda não o afetou. Melhor assim. Você age com pouco senso, mesmo sem estar apaixonado.

Sorcha escutou os dois continuar a discutir. Neil o insultava, e ele, irritado, se defendia. Era uma briga antiga. Os dois se adoravam, mas Neil desejava que Dougal se transformasse num lorde responsável, e ele sentia a necessidade intensa de defender suas idéias e seus atos.

Voltou a pensar em Ruari e suspirou. Era mesmo uma falta de sorte que Treacher viesse atrás dela em território inimigo, enquanto o homem a quem amava correra para Gartmhor, sem pretensões de voltar. Ela mal tinha olhado para Treacher, que a perseguia como um animal atrás de uma fêmea no cio, enquanto Ruari a descartara depois de três noites de amor maravilhoso. O destino tinha um senso de humor muito cruel.

Enquanto comia, deu-se conta de que boa parte de sua tristeza se devia ao fato de ela e Ruari terem se despedido com insultos e ameaças. Pretendera deixar lembranças doces para trazê-lo de volta, o que fora impossível.

- Pare com isso - Neil sussurrou e cutucou-a com força.

Sorcha viu que Dougal se afastava, irritado.

- Parar o quê? - ela perguntou à tia, sabendo que o ar de inocência confusa não a enganaria.

- De pensar naquele homem. Sei que é difícil, pois não se passou nem uma semana da partida dele, mas quanto antes você parar de remoer o caso, mais depressa a dor vai cessar.

- Eu não estava remoendo nada. Apenas pensava por que o homem a quem detesto me persegue, enquanto aquele a quem amo foge correndo. Não me parece justo.

- Não é, mas não se pode sempre esperar justiça para não ficar desapontada. Não tema. Dougal não saberá o que se passou entre você e sir Ruari.

- Muitas pessoas sabem o que aconteceu.

- Sim, mas ninguém dirá nada. Confie em mim, querida. Na verdade, Dougal poderá até suspeitar de algo, mas, por nosso intermédio, ele nada saberá, a menos que você lhe conte.

- Fico agradecida, embora não ache correto esconder segredos de Dougal. Ele é meu irmão e, mais importante, meu lorde. - Antes que Neil argumentasse, ela prosseguiu: - Porém, será mesmo mais conveniente manter segredo. Dougal poderia agir sem pensar. Já existem problemas suficientes entre os Hay e os Kerr, e eu certamente contribuí para isso. Não precisamos que Dougal os aumente.

- Claro que não. Dougal tem a capacidade de tornar ruins as coisas boas, e de piorar as ruins. - Neil piscou para Sorcha. - Apesar disso, é bom ver o tolo vivo e bem.

- É verdade. Seria ainda melhor se o episódio o ensinasse a ser mais prudente. Eu mesma aprendi a difícil lição de não ansiar por algo que não se pode ter.

Neil abraçou-a pelos ombros e beijou-a no alto da cabeça.

- Não perca completamente as esperanças, minha querida. Isso poderá deixá-la com o coração frio e oco. Ah, veja, Ronald retornou.

Sorcha franziu a testa ao ver o semblante sombrio de Ronald, que se agachou perto dela.

- Eles ainda estão nos seguindo?

Dougal se aproximou, e ela o fitou de relance.

- Não. Eles despertaram de um sono prolongado e retornarão à Inglaterra. O homem tem com ele batedores de pouca habilidade. Eles passaram por mim várias vezes e disseram a sir Treacher que desaparecemos, e que não seria possível encontrar nossos vestígios.

- Então ele desistiu. - Sorcha não chegou a dar um suspiro de alívio, pois viu Ronald sacudir a cabeça.

- Não. Ele apenas retorna à Inglaterra, mas está espumando de raiva porque milady escapou. Ele praguejava e ameaçava seus homens pelo fracasso. Pretende procurá-la na primavera, com mais homens experientes.

- A primavera vai demorar alguns meses. Tempo suficiente para Treacher mudar de idéia. - Pela expressão dos outros, Sorcha concluiu que, assim como ela, ninguém acreditava nisso.

 

- Neve. Bom - Rosse resmungou ao entrar no salão nobre de Gartmhor e sacudir a neve das roupas.

Ruari levantou o olhar de sua taça de vinho. Estavam no final de dezembro, e fazia três meses que deixara Dunweare e Sorcha Hay. O que mais o irritava era admitir que se tornava impossível esquecê-la. O anúncio feito por Rosse de que o inverno chegara não melhorava seu mau humor.

- Desde quando gosta de neve? - perguntou, enquanto Rosse se acomodava a seu lado à mesa principal e servia-se de vinho.

- Desde que isso significa o fim da entrada e saída de donzelas frágeis e tolas, corando e dando risinhos, com as quais você pensa que deseja se casar. Pelo menos agora tenho um intervalo em que não precisarei observar o esforço delas para chamar sua atenção, enquanto você não se interessa por nenhuma, nem nunca o fará.

- Preciso me casar e ter um herdeiro.

- Mas não precisa de nenhuma daquelas crianças, e sabe bem disso. Nenhuma delas é o que você deseja ou o que precisa. É apenas teimoso demais para admitir que foi um plano mal concebido, ou para esquecer sua raiva e o orgulho ferido.

O fato de Rosse ter razão o aborrecia ainda mais. Planejara sua vida com cuidado, assim como a espécie de esposa de que precisava, e o fracasso não o agradava nem um pouco. Rosse deveria ajudá-lo, em vez de ridicularizá-lo.

- Suponho que você iria sorrir e perdoar ao ser tomado por tolo, ser feito refém e ter pagado um resgate.

- Sim, se isso tiver sido feito por uma bela jovem como Sorcha Hay.

- Talvez esteja na hora de você escutar algumas verdades a respeito da bela jovem.

- Não creio que haja coisas ruins a serem ditas de uma criatura com um rosto tão doce e os olhos mais bonitos que já vi.

- Bem, ela tem lindos olhos. - Ruari nunca admitiria para ninguém que procurara olhos iguais ao de Sorcha na longa procissão de candidatas a esposa que tinham vindo a Gartmhor nos últimos meses. - Sim, Sorcha Hay é muito bonita. Se eu procurasse em uma esposa apenas um belo rosto, ela seria a mulher ideal. Contudo, tudo mais a respeito dela e de sua família é completamente inaceitável.

Ruari contou a Rosse tudo sobre os Hay, sobre Euphemia e suas fantasias estranhas, sobre as tias e suas esquisitices. Falou a respeito dos espíritos irados, da maldição e da crença de Sorcha de que podia ver e falar com espíritos. Relatou as estranhezas que ele mesmo ouvira e vira. Esclareceu que não acreditava em nada daquilo, mas admirou-se ao não ver o mesmo olhar de descrença na expressão de Rosse.

- Você não acredita nessas tolices, não é? - Ruari perguntou.

Rosse deu de ombros.

- Muitas pessoas acreditam nessas coisas. É um pouco estranho que tantas pessoas na mesma família creiam nisso, e essa unidade me faria examinar melhor o caso.

- E como tais idéias seriam vistas na corte, quer me agradem ou não?

- Provavelmente com menos problemas do que está imaginando. Mesmo sem acreditar nas histórias, você aceitou o fato de ela crer. Não acha mais que ela seja maluca, não é?

- Não de todo - Ruari respondeu, sombrio. - Para Gartmhor continuar a crescer e prosperar, preciso me casar pensando em dinheiro, terras e posição. Sorcha é bem-nascida, mas seu clã tem pouco poder. Ela não tem dinheiro nem terras, e o histórico familiar é de muitas filhas.

- O que não importa, se forem como a tia ruiva e robusta. - Rosse deu um sorriso enviesado, mas ficou sério quando Ruari o encarou. - Acho que está cego na procura de uma esposa. Moças tímidas e tolas poderão causar mais malefícios a Gartmhor do que uma jovem sem dote e que fala com fantasmas.

- Não sei por que estamos discutindo a respeito de Sorcha, como se ela fosse uma candidata - Ruari comentou com rispidez. Tornou a encher a taça e tomou um grande gole de vinho para se acalmar, o que foi difícil, pois seu humor não melhorava ante a idéia tentadora de Sorcha ser sua esposa.

- Sorcha Hay é mais adequada do que qualquer outra, e você a deseja.

- Fisicamente, sim - Ruari concordou. - Mas esse não é um bom motivo para um enlace.

- É tão bom quanto qualquer um dos que foram enunciados.

- Estamos perdendo tempo. Eu não me casaria com Sorcha Hay, mesmo que ela tivesse todos os requisitos para ser uma boa esposa. Ela me usou como refém e tirou uma boa quantia dos cofres de Gartmhor. Também me fez acreditar que me salvava e só me informou que eu era prisioneiro nos portões de Dunweare.

- O que me faz supor que ela é inteligente. Ela e a prima não poderiam ter lutado contra você.

Rosse tinha razão, mas Ruari não admitiria.

- Digamos que eu possa perdoar e esquecer a traição, suas crenças estranhas e a maneira como fala com o ar. Isso não faria diferença. Ela não me quer.

- A moça se deitou com você. Por que ela não se casaria com o homem a quem aceitou como amante?

Ruari gostaria de não ter contado aquilo para Rosse. Sabia que era por isso que o homem não parava de alfinetá-lo em relação a Sorcha. Num momento de embriaguez, revelara a paixão perdida, da qual sentia muita falta, dando-lhe motivos para provocá-lo. E para impedir que Rosse continuasse a atormentá-lo, teria de confessar algo doloroso e constrangedor. Sua vida nunca fora tão complicada emocionalmente, e tudo por culpa de Sorcha.

- Ela não me quer, nem para amante nem para marido.

- Pelo que me disse, não é o que parece.

- Não lhe contei tudo, embora obviamente eu tenha falado demais. Antes da minha partida, Sorcha deixou bem claro que só me usou como reprodutor.

- O quê? - Rosse espantou-se.

- Ela disse: "Quem sabe o seu pequeno esforço possa ajudar na restauração da parca população, masculina de Dunweare". Eu perguntei se ela estava tentando dizer que fui usado como um reprodutor, e a resposta foi: "Não tentei dizer. Eu disse. E com bastante clareza, eu acho".

Ruari notou que Rosse sacudia os ombros e olhava para a mesa, tentando esconder o riso.

- Está rindo? - indagou, ofendido.

- Sim. - Rosse caiu na gargalhada.

Foi difícil para Ruari controlar a vontade de bater nele, mas sabia que aquilo de nada adiantaria, e que Rosse não merecia a agressão. Estava desconcertado e aborrecido porque o homem a quem considerava como um irmão ria com gosto do insulto que recebera. Esperara simpatia e conseguira hilaridade. Fitou com raiva o amigo, que enxugava as lágrimas de tanto rir.

- Fico feliz em lhe proporcionar tamanho divertimento - Ruari falou com frieza.

- Ora, vamos, Ruari, não levou a sério as palavras da moça, não é? - Rosse indagou, atônito.

- E como eu deveria encará-las?

- Como uma resposta raivosa à altura do que deve ter dito a ela. Pense. O que disse antes de Sorcha admitir que era apenas um reprodutor?

Ruari se lembrou da conversa e sentiu-se inquieto.

- Talvez eu tenha sido indelicado.

- O que foi que disse?

- Bem, devo ter comentado que o tempo que passamos juntos foi fruto de uma irreflexão.

- Suspeito que você deixou isso bem, claro. Ora, primo, o que esperava que uma jovem com orgulho fizesse? Agradecer-lhe por ter roubado sua virgindade e depois desprezar tal presente?

- Você não entende. Sim, nós fomos amantes - Ruari tentou encontrar palavras certas para explicar -, mas não pudemos seguir as regras aceitas pela maioria dos amantes.

- Isso é fácil de ver. - Rosse sacudiu a cabeça. - Estou começando a duvidar de que você consiga enxergar um palmo adiante do nariz.

- E agora se acha no direito de me insultar também? Primeiro foi minha amante, depois você e aquele tolo do Beatham. Bem, com a chegada do inverno, aquele rapaz mal-humorado não ficará pelos cantos a me olhar com reprovação. - Ruari ficou tenso ao ver Rosse tossir. - Beatham foi para casa, não foi?

- Não. Ele não fala com os pais, que se negaram a aceitar Margaret como nora. Ele está aqui.

- Alguém precisa ter uma conversa séria com esse menino. Já tentei, mas ele se recusa a falar comigo e me encara com raiva.

- Estou surpreso com a tenacidade do rapaz. É admirável. Ele, pelo menos, sabe exatamente o que deseja.

Ruari bateu a taça na mesa e se levantou.

- Estou ficando cansado desse assunto. Eu agirei de forma correta para Gartmhor e farei Sorcha Hay pagar por ter feito o jogo de um soldado.

Ruari terminou o vinho e saiu do salão. Não admitiria para Rosse que estava contente com a chegada do inverno, que interromperia a procura por uma esposa. Nenhuma das moças que conhecera o agradara. E irritava-se ao comparar cada uma com Sorcha, em aparência e personalidade. Precisava apenas de tempo para esquecer as três noites gloriosas que haviam passado juntos. Não era de surpreender que uma paixão tão forte e doce perdurasse em sua mente. Uma vez liberto daquelas lembranças, seria capaz de escolher uma esposa. Dirigiu-se ao pequeno gabinete onde Malcom mantinha os registros de Gartmhor e maldisse Sorcha. Desejou que ela também estivesse sofrendo para esquecê-lo.

 

Sorcha entrou no salão e viu o semblante contraído de Dougal, que estava sentado à mesa principal. Considerou a idéia de fugir, mas endireitou os ombros e caminhou até seu lugar à direita do irmão. Fazia três meses que o vinha evitando, desde a partida de Ruari, e estava na hora de acabar com a covardia.

- Decidiu me dar a honra de sua presença, Sorcha? - Dougal a fitou com um misto de raiva e curiosidade.

- Está me acusando de evitá-lo? - Sorcha serviu-se de carne assada e legumes. Ignorou o riso sarcástico de Dougal e aceitou a sidra oferecida pelo pajem.

- Talvez minha suspeita tenha origem na certeza de que todos em Dunweare estão guardando um segredo de mim.

- E o que eles poderiam esconder de seu lorde?

- A verdade sobre o que aconteceu durante a presença dos Kerr.

- Ora, eles ficaram presos por várias semanas, um resgate foi pago e os dois voltaram a Gartmhor. O que mais poderia ser? - Sorcha assustou-se quando Dougal bateu a caneca no tampo de madeira da mesa.

- Algo que trouxe ao seu olhar uma tristeza nunca vista e que transformou a alegre Margaret em uma sombra pálida e chorosa. Embora ela não seja muito inteligente, costumava ser uma agradável companhia. Agora, deve-se temer as poucas vezes em que deixa o quarto, pois ela lança uma névoa úmida ao redor de si.

Sorcha mastigou um pedaço de pão enquanto considerava a resposta. Dougal suspeitara de algum acontecimento envolvendo os Kerr e estava determinado a saber a verdade. Talvez se lhe contasse parte do que ocorrera, ele desistisse. A primeira neve do inverno começava a cair, e ela não gostava da idéia de ficar isolada naquele castelo com a curiosidade do irmão.

- Margaret enamorou-se de Beatham Kerr.

- Eles foram amantes? - A intenção de Dougal de pedir uma reparação pelo insulto a uma parenta tornou-se evidente em sua voz.

- Não, mas se a situação fosse diferente, eles poderiam se casar, pois Beatham corresponde aos sentimentos dela. Contudo, os Kerr não desejam uma união com um clã que manteve o lorde deles prisioneiro. Além disso, Beatham é pobre como Margaret e também não possui terras.

- Seria um casamento pouco conveniente. É uma pena. Se Margaret tivesse dinheiro ou uma pequena propriedade, poderíamos casá-la com Beatham e assegurar a paz com os Kerr. Mas ela não tem dote, e nós não temos meios de lhe fornecer um. - Dougal fitou a irmã com intensidade. - E você perdeu o coração para sir Ruari Kerr? Por isso anda tão melancólica?

- Está insinuando que não sou mais uma companhia agradável?

- Eu não a vejo com freqüência para saber, e não tente desviar minha atenção fingindo-se melindrada.

- Peço perdão se estou mal-humorada. Eu me aborreci muito com a história do resgate. Talvez a presença de dois homens atraentes e de boa linhagem tenha me deixado mais ciente da escassa quantidade de pretendentes por aqui e das poucas chances que terei de me casar.

Douglas corou.

- Você seria uma ótima esposa para qualquer homem.

- Muito boa, mas pobre e sem terras. Pensei ter aceitado meu quinhão, mas isso não é fácil. Não se culpe, Dougal. Nossos cofres foram esvaziados bem antes do seu nascimento.

- Sei disso, mas eu também repus o que foi perdido. - Dougal passou os dedos nos cabelos. - Achei que a maneira de ganhar dinheiro fosse ir para a guerra. Muitos homens ganham terras, dinheiro e poder nos campos de batalha, mas não foi o que aconteceu comigo.

- Se considerarmos a quantidade de homens que vão para a guerra, e com que freqüência o fazem, veremos que o número dos que acumulam lucros com essa atividade é muito pequeno. Além disso, a maioria dos recompensados tem grande amizade com o homem que ocupa a mais alta posição social ou é seu parente.

Pela expressão de Dougal, Sorcha concluiu que ele ainda não pensara nisso. De certa forma, era reconfortante saber que a fixação dele por batalhas não se devia apenas à conquista da honra, mas também às tentativas de recuperar a fortuna perdida de Dunweare. Sorcha esperava que o irmão agora compreendesse que se tratava de algo que não valia a pena.

- Parece que você conseguiu enfiar algum juízo na cabeça desse tolo. - A voz de Crayton, próxima à orelha de Sorcha, assustou-a.

Ela deu um suspiro profundo e olhou por sobre o ombro. Crayton era visível só até a cintura e parecia estar debruçado no espaldar da cadeira.

- Você deixará meus cabelos brancos antes que eu complete vinte e cinco anos.

Crayton ignorou a queixa, descansou a mão no ombro de Dougal e deu um sorriso ao vê-lo estremecer e dar um pulo.

- Os homens de seu clã nunca tiveram o dom, não é?

- Não, e não o provoque.

- Esse é o maldito Crayton, não é?

- Sim. - Sorcha repreendeu Crayton com o olhar. - Ele o deixará em paz para que você possa terminar de comer.

- Obrigado. - Dougal olhou para trás com raiva e prosseguiu na refeição.

- Parece deliciada em estragar meu prazer - resmungou Crayton. - Ele merece ser atormentado. Se ficar bem infeliz, talvez pare para pensar.

Como Dougal estava sentado a seu lado, Sorcha decidiu não responder ao insulto.

- Por que está aqui? Você raramente entra no salão nobre na hora das refeições.

- E por que eu faria isso? Olhar para tudo como um faminto e não poder comer? Eu gostava muito de sidra. - Ele fitou a caneca com tristeza.

- Se não gosta de ficar aqui, por que apareceu? Está tentando dar alguma notícia importante? Sonho com freqüência que você conhece alguém que está à espreita para me matar, mas nada diz até minha cabeça descansar sobre a lança do inimigo.

- Eu não permitiria que ninguém espetasse sua cabeça com uma lança.

Sorcha franziu a testa ao perceber que ele não dissera que impediria o assassinato.

- O que deseja, Crayton?

- Você sabe que estão espionando Dunweare?

- Não ouvi dizer nada. - Sorcha cutucou Dougal. - Alguém lhe disse que estão espionando a fortaleza?

- Não, por quê? Esse fantasma idiota disse que viu alguma coisa?

- Se eu fosse milorde, teria cuidado com quem chama de idiota. - Crayton fitou Dougal com ferocidade e começou a se balançar na direção dele, sendo detido por um olhar igualmente feroz de Sorcha.

- Quem é o espião? - indagou ela.

- Um homem está postado na mais alta das árvores atrás dos campos - Crayton. falou. - Trata-se de um dos canalhas ingleses.

- Como soube disso?

- Por causa dos arreios do cavalo, dos trajes do sujeito e da maneira como amaldiçoava Simon Treacher enquanto se esforçava para subir nas árvores.

Sorcha sentiu um frio na espinha enquanto transmitia a informação para Dougal. Treacher mandar um espião até Dunweare era um péssimo sinal. Dougal chamou um soldado para encontrar o espião, mas quando Crayton sacudiu a cabeça, Sorcha pediu ao irmão que esperasse o final do relato.

- Está vendo os problemas que nos causa por não dizer tudo o mais depressa possível? Por que Dougal não deve sair à caça do homem?

- Porque provavelmente ele já deve ter alcançado a Inglaterra, mancando.

Sorcha massageou as têmporas enquanto lutava contra a vontade de gritar.

- Por favor, conte toda a história, do começo ao fim.

- Vi o homem na mata depois de eu ter sido guiado até lá. Reconheci-o como um dos asseclas de Treacher e resolvi observá-lo. Ele subiu numa árvore de onde podia avistar Dunweare. Talvez você devesse desbastar a mata.

- Crayton, como é que ele desceu da árvore e voltou mancando para a Inglaterra?

- Bem, acho que ele machucou a perna quando caiu da árvore.

Sorcha suspirou, resignada com o fato de Crayton não relatar as notícias de maneira clara e objetiva.

- Você o empurrou?

- Não, mas o assustei. Sabe que posso me apresentar mesmo aos que não possuem o dom de me enxergar.

- Não imaginou que seria muito mais proveitoso se pudéssemos falar com ele?

- Sei, mas não consegui evitar. Ele era um homem de Treacher.

- Entendo, mas enquanto o assustava, ele pode ter deixado escapar por que nos espionava, não é?

- Enquanto ele se arrastava atrás do cavalo que fugia...

- Também assustou o cavalo?

- Sim. Por que ele deveria retornar para a Inglaterra com conforto? Apesar de ele provavelmente já ter apanhado o animal. Ele disse apenas uma coisa várias vezes, e de diversas maneiras.

- E o que era?

- Que nenhuma rameira escocesa valia aquele tormento. Palavras dele, não minhas.

- Eu sei.

Sorcha contou a história para Dougal, que decidiu verificar com mais alguns homens se o invasor havia partido. Crayton foi com eles, incapaz de resistir à menor oportunidade de assustar mais uma vez o sequaz de Treacher.

Sorcha bebeu mais um pouco de sidra, sentindo um princípio de dor de cabeça. Sua vida transcorrera com relativa calma até encontrar Ruari Kerr no campo de batalha. A pior de suas provas tinha sido resolver as dificuldades em que seu atrapalhado irmão se metera. Então ela se apaixonara e perdera seu amor, fizera um homem refém, negociara com os ingleses, fora desprovida de sua virgindade e inspirara desejo em um inglês com cara de fuinha. Tudo por culpa de Ruari. Se o visse de novo, ainda planejaria fugir, mas não sem antes lhe desferir um soco na boca.

Capítulo III

- Ah, finalmente a encontrei! - Dougal gritou para Sorcha, que trabalhava na horta em função do plantio da primavera.

Ela se levantou, esfregou a parte baixa das costas e sorriu para o irmão. Durante o inverno, Dougal se tornara mais maduro, e a amizade entre os dois se estreitara. Ele ainda agia por impulso, mas se mostrava bem mais acessível aos conselhos. Ela esperava que essas mudanças fossem duradouras, e não apenas o resultado dos efeitos calmantes de um inverno longo e frio.

Sorcha fitou o céu, incrivelmente claro e azul para o começo de abril, e sorriu. A dor do vazio que se instalara em seu coração não resistia aos fluidos milagrosos da primavera. Podia até imaginar-se tendo uma existência feliz sem Ruari a seu lado. Tratou de dar atenção a Dougal, antes que ele notasse sua distração.

- Em que posso ajudá-lo? - Sorcha limpou as mãos no avental.

- Você já faz muito mais do que deveria. Vim perguntar se deseja ir à feira hoje em Dunburn. Se sairmos logo, passaremos apenas uma noite na estrada.

- Eu gostaria muito, mas acha que é seguro?

- A menos que Crayton esteja mantendo segredos de nós, nenhum homem de Treacher é visto há quase um mês. Não haverá perigo. Iremos com Robert, Iain, as tias Neil, Bethia, Grizel e Eirie, além de vários soldados bem armados. A feira estará cheia de gente, e nenhum inglês se aventuraria a passar por perto. Se você conseguir convencer Margaret a ir conosco, isso talvez possa alegrá-la.

- Tentarei falar com ela. E Effie? Ela gosta muito de feiras.

- Sim, mas eu a avisei que, desta vez, ela não pode ir. Os espíritos ainda estão perturbando muito.

- Não creio que eles a seguiriam.

- Como não tenho certeza, decidi não arriscar. Prometi levá-la a uma feira assim que os problemas terminarem.

Sorcha não discutiu, embora sentisse muita pena de Euphemia. Dougal estava certo. Não deveriam arriscar-se a revelar os absurdos cometidos pelos espíritos em uma feira lotada. Tirou o avental e foi procurar Margaret. Não ficou surpresa, apenas aborrecida, ao encontrá-la estendida na cama, olhando o teto. Margaret continuava imersa em melancolia. Nada parecia alegrá-la, e ninguém a persuadia a mudar de atitude. Mesmo sabendo que a prima recusaria o convite, estava determinada a convencê-la. Antes de tudo, Margaret precisava de ar fresco.

- Você está com um péssimo aspecto - ela disse, sentando-se na beirada da cama. - Se continuar assim, acabará doente.

- Como você pode estar tão feliz? - Margaret a fitou com olhar triste. - Pensei que amasse Ruari.

- Amo, como uma tola. Não estou exatamente feliz, mas eu me recuso a cair de joelhos por um homem. Não se deve morrer de amor.

- Tentei, mas não consegui.

- Margaret!

- Não se preocupe, não acho que isso seja possível. Meu primeiro pensamento foi me entregar à morte, mas sou muito saudável e sinto fome. Ninguém pode definhar se continua se alimentando.

Apesar da inquietação por Margaret ter considerado a idéia de morte, Sorcha achou graça em como ela reclamava do próprio fracasso e teve de conter um sorriso.

- Não. A morte vem pela inanição.

- Eu não posso ficar sem comer. A fome não é muito agradável. Também não posso dormir até morrer, porque continuo acordando. Então, é claro, torno a comer. Pensei em ir para um convento, mas também não daria certo. As freiras se vestem pobremente, vivem em locais úmidos e comem mal. Falhei em todas as coisas que uma jovem de coração partido faria. Creio que não me esforcei o suficiente, então comecei a imaginar se amo Beatham de verdade.

- Claro que ama, e ele nunca a culparia por sobreviver à separação forçada. Como tenho certeza de que ele está vivo, sua morte o faria sofrer muito.

- Foi o que pensei.

- Ótimo. E eu vim aqui para levá-la a uma feira. Margaret sentou-se e franziu o cenho.

- Você não pode esperar que eu me entregue a frivolidades quando meu coração está partido, não é?

- Não espero que você dance, cante ou flerte. Mas insisto para que deixe este aposento, o que você raramente fez no inverno. Trancar-se aqui não vai melhorar seu coração nem trazer Beatham de volta.

- Ir a uma feira também não.

- Não, mas pelo menos você continuará vivendo, em vez de ficar enrodilhada no quarto, imaginando por que não pode morrer.

Com muito custo, Sorcha por fim a convenceu a sair. A prima não seria uma boa companhia, mas ficar algum tempo longe de Dunweare faria bem à garota.

Ao sair do quarto de Margaret, Sorcha deparou com Euphemia.

- Sinto muito que não possa vir conosco, Effie, mas haverá outras feiras.

- Eu sei. Não vim discutir a decisão de Dougal. Sinto que você não deveria ir, Sorcha. - A menina agarrou-a pela manga.

- Se eu não tivesse convencido Margaret a ir, eu ficaria para lhe fazer companhia. Mas terei de ir com ela.

- Você não entendeu. Algo me diz que você não deve ir.

- Teve alguma visão? Você imaginava se teria algum dom, e talvez seja esse.

- Na verdade, não foi uma visão. Apenas sei que você enfrentará problemas na feira e que seria melhor não ir.

- Não há sinal dos ingleses, e não temos inimigos entre os escoceses que costumam ir a essa feira. Está insinuando que minha vida correria perigo? - Sorcha desejou que tivesse capacidade de ajudar Euphemia a compreender as premonições.

A garota franziu a testa e sacudiu a cabeça.

- Não, sua vida não está em perigo, Apenas pressenti problemas.

- Agradeço pelo aviso e ficarei atenta, mas isso não é suficiente para eu ficar. Tenho de ir, ou Margaret não irá, e creio que a feira fará com que ela se anime.

- Ah, sim, o passeio deixará Margaret feliz - Euphemia declarou antes de se afastar.

Sorcha duvidou da previsão de Euphemia quando Margaret reuniu-se ao grupo no pátio interno. Ela parecia estar sendo arrastada para o funeral de alguém a quem não apreciava, e com certeza não colaboraria com os esforços de todos para alegrá-la.

- Prevejo nuvens negras - Neil murmurou ao subir no cavalo e aproximar-se de Sorcha, que montava uma égua malhada.

- Pelo menos, ela está fora daquele quarto - disse Sorcha.

- Claro, mas ela age como se tivesse sido torturada para vir.

- Essa é a próxima coisa que tentarei. - Sorcha sorriu diante da risada da tia e incitou o cavalo para, seguir Dougal, que atravessava os portões.

- Nunca pensei que ela fosse ficar tão aborrecida.

- Achou que o amor dela não passasse de fogo de palha?

- Sim. Margaret nunca demonstrou teimosia ou tenacidade. Não imaginei que ela e Beatham combinassem tanto, nem que o coração dela ficasse partido por tantos meses.

- Isso me leva a acreditar que Beatham sofre como ela.

- Tendo a pensar que sim, talvez por conta dessa inesperada fidelidade de Margaret. Se ela se apaixonou, por que o mesmo não poderia acontecer com ele?

- Sim, por que não? Eu não espero que esta viagem a cure, mas é possível que seja um passo para que ela deixe o pior do sofrimento para trás.

- Assim como você fez? - Neil indagou em voz baixa.

- Sim. - Sorcha desconfiou que a tia não acreditava nela. - Como eu disse para Margaret, não posso afirmar que serei feliz, mas tenho certeza de que sobreviverei. Às vezes, em dias lindos como ode hoje, chego a acreditar que no futuro encontrarei um novo amor. Isso quando esqueço a carência de homens em Dunweare.

Neil deu uma risadinha e anuiu.

- Eles são tão escassos quando úberes em um touro. É bom ouvi-la falar desse jeito. Isso é sinal de que seu coração está se recompondo. - Neil piscou. - E quem poderá garantir que a feira não estará coalhada de mancebos?

Sorridente, Sorcha anuiu e entrou na brincadeira de Neil, que falava de um verdadeiro exército de homens ricos e solteiros infestando Dunburn à procura de esposas. Percebeu, então, que tinham sido seus parentes que a haviam salvado de mergulhar na escuridão após a partida de Ruari. Talvez eles a ajudassem a banir o fantasma dele de seu coração e de sua mente. Rindo com as tolices da tia, decidiu aproveitar a feira e tentar esquecer Ruari.

 

- Esse menino irá à feira nem que eu tenha de amarrá-lo ao cavalo - Ruari falou com rispidez, andando de um lado para outro no pátio interno. - Tragam o idiota! - ordenou a um de seus homens.

Ruari viu o homem correr para o castelo. O sol de abril era quente e agradável após o longo frio de inverno, mas, por culpa de Beatham, ele não o apreciava mais. Apesar da insistência do rapaz de não falar com ele nem com os pais, fizera tentativas de tirá-lo daquele mau humor. De nada adiantara, e Ruari ficava mais irritado diante de cada fracasso.

- Poderíamos deixar o garoto aqui - Rosse sugeriu, aproximando-se de Ruari depois de beijar Annie, a esposa eternamente grávida.

- Não, a situação se prolongou em demasia. Ele passou o inverno deitado na cama, suspirando, pesaroso. Fez intervalos apenas para me seguir com olhares acusadores. Beatham precisa de distração. Apesar de pobre e sem terras, poderia escolher qualquer moça. Uma viagem à feira com todas aquelas jovens bonitas dispostas a um flerte o fará esquecer a tolice dessa languidez.

- Nós nunca fomos a essa feira, pois é longe, e o trajeto é difícil. Parece-me muito sacrifício apenas para tirar Beatham de sua melancolia e, se quer saber, acho que não vai adiantar. O rapaz só se interessa por Margaret Hay.

- Pois está mais do que na hora de entender que não poderá tê-la. Além disso, não vamos só por causa dele. Malcom acredita que poderá haver uma nova fonte de negócios na feira. - Ruari fitou o magérrimo Malcom, desajeitado sobre a mais velha e mansa das éguas da estrebaria de Gartmhor. - Sei que conhece o pavor que Malcom tem de cavalos, e foi preciso muito para fazê-lo subir em um deles.

- Ele deveria ir na carroça.

- Foi o que sugeri, mas o orgulho não lhe permitiria viajar com as mulheres. - Ruari notou Beatham saindo do castelo. - Finalmente. Já demoramos demais para sair.

- Ele está contrariado - Rosse comentou. - Eu não imaginava que o belo rosto de Beatham pudesse ostentar uma expressão tão fúnebre.

- Ele pretende nos deixar deprimidos, mas não conseguirá. - Ruari montou. - Malcom me assegurou de que encontrarei uma maneira de encher meus cofres nessa feira, e a cara fechada de Beatham não frustrará a alegria que o fato me trará.

Dougal deteve a montaria no alto de uma pequena elevação, olhou a cidade movimentada e sorriu para Sorcha, a seu lado.

- Parece ainda maior que no ano passado. - Dougal fitou a carroça na qual a prima se encontrava. - Tem de haver algo nessa feira que faça Margaret sorrir.

- Assim espero. Mas não se aborreça se ela não melhorar de humor. Margaret está determinada em sua melancolia.

- Na verdade, nem sei como conseguirei alegrá-la, quando as mulheres, que entendem disso mais do que eu, nada conseguiram.

- Entender não significa conhecer o remédio para a cura. Margaret é a única que pode sarar seu coração. Nosso dever é apenas ajudar.

- O amor é um negócio problemático - Dougal murmurou, incitando o cavalo para a frente. - Eu farei o possível para evitá-lo.

Sorcha seguiu-o ladeira abaixo e desejou que fosse assim tão simples. Descobrira como o coração era independente, e surdo ao bom-senso e à disciplina. Os homens pareciam ter rédeas mais apertadas em suas emoções, embora muitos deles achassem difícil controlar o coração. Esperava que seu irmão não tivesse de sofrer muito quando descobrisse isso.

Ela escutou o barulho da feira quando deixaram os cavalos na estrebaria às margens da cidade, e o excesso de pessoas prometia muito movimento. Até mesmo Margaret se interessou pelo som dos risos e gritos dos vendedores.

- Acho que acompanharei minhas irmãs - avisou Neil, quando as outras foram em direção às barracas com produtos à venda, que lotavam as ruas.

- Vá, ficarei com Margaret. - Virou-se para a prima e passou o braço no dela. - Vamos ver se há algum tecido que possa ser comprado com nossas poucas moedas.

- Um vestido novo até que não seria má idéia - ela disse, acompanhando Sorcha.

- As paredes do seu quarto também apreciariam uma mudança.

- Não precisa me ridicularizar. Não tenho culpa se estou triste.

- Sei disso, e não acho ridículo. Só estava provocando você. Saiba que ninguém quer vê-la triste e apática. Será que não poderia pensar um pouco em nós? Tente alegrar-se, pelo menos hoje. Pense nisso como um favor para Dougal, que esperava tanto da feira.

- Tem razão. Na verdade, eu deveria ser repreendida por não dar importância aos sentimentos dos outros. Passei o inverno todo enrolada num manto de sofrimento, o que foi injusto para todos. - Segurando a mão de Sorcha, levou-a até a prateleira de tecidos vistosos. - Poderíamos começar escolhendo panos para fazer vestidos. Apesar do peso que carrego no coração, eu gostaria de ter uma roupa nova.

- Fico feliz ao ouvi-la dizer isso. Mas temos de ser parcimoniosas em nossas escolhas.

- Esse é um assunto que não ignoro. - Margaret olhou por sobre o ombro, e viu Dougal e os outros homens na estalagem. - Pelo menos um deles não deveria estar nos vigiando?

- Tenho certeza de que estamos sendo observadas - Sorcha respondeu sem muita convicção ao notar o modo como eles olhavam a criada gorducha que lhes servia a cerveja. - Nunca estivemos em perigo aqui, e não me lembro de nenhuma maldade cometida contra um parente nesta feira.

- Bem, vamos deixar que eles se divirtam. Sou mesmo uma tola, vendo sombras e perigos onde não existem.

- Talvez não seja bem assim. Euphemia advertiu-me a respeito de problemas antes de virmos para cá.

- Você contou para Dougal?

- Não. Ela não apontou perigos para nossa vida, apenas disse que haveria problemas.

- Nesse caso, não devemos nos atormentar, apenas ficar atentas.

- Espero que Euphemia logo ganhe o dom de ser mais clara nas advertências. Seria interessante saber exatamente o que deveríamos observar.

- Acha que ela possui o dom da predição?

- Se ela possuir, hoje o dia será muito agradável para você.

- Como assim?

- Ela afirmou que a feira a deixará muito feliz.

- Não sei como isso seria possível, mas será interessante descobrir se ela está certa.

Sorcha também não sabia. Um dia na feira não apagaria a tristeza de Margaret, embora fosse provável que ela ficasse menos desanimada. Quais seriam os problemas a que Euphemia se referira? Inquietava-a saber que algo poderia dar errado, mesmo ignorando quando e como. Momentos depois, decidiu que isso não importava e voltou sua atenção para os belos tecidos que Margaret segurava. Se algo as ameaçasse, Dougal as acudiria.

 

- Veja, rapaz, uma taverna - Ruari comentou, tentando ignorar que Beatham ainda se mostrava taciturno e silencioso. - Eu gostaria de tomar uma cerveja após esse trajeto longo e poeirento. - Segurou o primo pelo braço é o puxou em direção ao local. - Decerto encontraremos algumas criadas, que regalarão nossa vista enquanto matamos a sede.

- Não creio que o rapaz esteja prestando muita atenção - Rosse murmurou, andando ao lado de Ruari. - É como se você estivesse falando sozinho.

- Ou batendo a cabeça na parede. Mas ele não é o único que sabe ser teimoso.

- Não. Você prova ser muito persistente às vezes. Mas nem sempre quando está certo. - Rosse o fitou com um sorriso.

- E o que se faz com um tolo que passa mais de seis meses aborrecido?

- Deixe-o ficar aborrecido, se isso o faz feliz.

Ao olhar de novo para a taverna, a resposta de Ruari morreu em sua garganta. Ordenou aos dois homens que ficassem quietos e os empurrou para trás de uma barraca na qual uma mulher vendia peças de renda. Espiou através dos rolos de tecido e praguejou. O segundo olhar confirmara a suspeita.

- Os Hay estão aqui. - Ruari segurou o braço de Beatham quando o rapaz quis se mover. - Eu não disse que sua amada está aqui. Vi apenas o idiota do lorde deles, Dougal Hay, parado diante da taverna.

- Um belo rapaz. - Rosse deu de ombros quando Ruari o fitou como se ele fosse um traidor. - É verdade.

- O belo rapaz está bebendo cerveja com meu dinheiro.

- Não. Todo o dinheiro foi usado para resgatá-lo - Beatham protestou, procurando por uma pessoa em particular.

- Ah, então o tolo não perdeu completamente o uso da voz - Ruari disse e voltou-se para Rosse. - Se ele está aqui, outros de seu clã também podem estar.

- Está pensando em raptar um dos Hay, não é? - Rosse sacudiu a cabeça. - Não poderá simplesmente agarrar um Hay no meio da feira.

- E por que não?

- Nossos homens estão espalhados.

- Eles se reunirão depressa se dermos o grito de guerra, ou se esconderão até ter certeza de que poderão ir embora em segurança.

- Margaret... - Beatham sussurrou, saindo do esconderijo antes que Ruari pudesse detê-lo.

Ruari observou o local para onde Beatham se dirigia e sorriu. Ao lado de Margaret, caminhava uma jovem esguia de cabelos castanhos.

- Malcom estava certo - disse para Rosse. - Esta feira me proporcionará os meios para preencher meus cofres. - Ignorando os protestos do amigo, correu atrás de Beatham.

- Margaret!

Sorcha tentou manter o equilíbrio quando Margaret soltou-se abruptamente e olhou para trás.

- Beatham... - Margaret sussurrou, pressionando as mãos ao peito.

Sorcha voltou a segurar a prima pelo braço para impedi-la de atender ao chamado. Beatham acenava freneticamente enquanto abria caminho por entre a multidão. Sorcha olhou na direção da taverna e notou que Dougal e os homens estavam alheios ao desastre iminente. Quando tornou a olhar para Beatham, praguejou intimamente. O último homem no mundo que ela desejava ver caminhava a passos largos atrás do rapaz.

- Vamos embora, Margaret. - Sorcha a empurrou, tentando abrir caminho por entre as pessoas enquanto impedia a prima de escapar. - Quer parar de lutar comigo? Precisamos alcançar Dougal ou encontrar um local para nos escondermos.

- Mas é Beatham!

- Sim, e perto dele está sir Ruari Kerr. Acha que ele está nos procurando para dizer o quanto sentiu nossa falta?

- Claro que não, mas eu preciso ver Beatham!

- Você o verá em breve, mas não hoje.

Sorcha continuou conduzindo a prima por entre a aglomeração, mas quando chegou a um lugar mais vazio, descobriu que Beatham, Ruari e seus homens estavam entre ela e a taverna onde Dougal se encontrava. Não viu Neil e, decidida a esconder-se, agarrou de novo Margaret, que insistia em ir até Beatham.

- Talvez devêssemos pedir ajuda - Margaret sugeriu enquanto era puxada por Sorcha pela rua movimentada.

- Se nenhum de nossos homens ouviu aquele idiota berrar seu nome, como acha que nos escutarão? - Sorcha abaixou-se atrás de uma carroça coberta, onde um homem vendia bolos e pães.

- Beatham não é um idiota. Ah, Sorcha, deixe-me falar com ele. Era isso a que Euphemia se referia. Ela sabia que eu ficaria feliz se me encontrasse com ele.

- Não esqueça que ela também prenunciou problemas. E isso tem a ver com o cavaleiro de cabelos negros atrás de Beatham.

- O que ele pode fazer contra nós? Não existem leis que protegem as pessoas que vêm a uma feira?

- Talvez não leis, mas o costume estipula que não se deve importuná-las. Contudo, ele jurou fazer os Hay pagar pelo resgate, e tenho certeza de que ele nos persegue por vingança. Eu gostaria de saber o que ele planeja fazer quando nos agarrar.

- Beatham não permitirá que ele nos faça nenhum mal.

- Também não acredito que Ruari pretenda isso, embora haja muitas maneiras de se vingar. Ele poderia nos raptar para obter um resgate, e para onde isso nos levaria?

- Eu ficaria com Beatham.

- Ótimo para você. Ficar com seu amado poderia custar a Dunweare muito mais do que se poderia despender, e o que seria de mim? Como acha que meu pobre coração ferido se comportaria se eu caísse nas mãos de um homem que deseja apenas paixão de mim?

- Ah, isso seria terrível para você.

- Seria. - Ela os viu por detrás da carroça. - Não fale mais, eles estão se aproximando.

Sorcha sentiu-se aliviada quando Margaret ficou em silêncio e imóvel a seu lado. Devia ser muito difícil para ela ignorar o chamado de Beatham. Apesar de saber que Ruari estava ansioso por uma vingança, era terrível para Sorcha esconder-se dele. Sob seu forte instinto de sobrevivência, havia uma enorme vontade de correr para o homem que amava. Ficou tensa ao ver três pares de botas passar na retaguarda da cortina. O dono da carroça atrás da qual as duas estavam agachadas resolveu tomar o partido das damas e, embora não soubesse o motivo de elas se esconderem daqueles três cavaleiros bem-vestidos, negou que as tivesse visto. Sorcha ficou inquieta ao notar o tom de descrença na voz de Ruari.

No instante seguinte, viu uma mão enluvada puxar a cortina e soube que seriam descobertas. Praguejou e, agachada, saiu de sob a carroça, atingindo os joelhos de Ruari, que tombou de costas. Sem equilíbrio por causa do ataque, Sorcha quase caiu em cima dele. Margaret segurou-a pelo braço e a ajudou a ficar em pé. Sem uma - palavra, as duas começaram a correr.

- Pegue-as! - Ruari gritou quando Rosse, rindo, ajudou-o a se levantar.

- Não sei por que Margaret está fugindo de mim - Beatham lamentou-se, enquanto dois dos homens de Ruari saíram correndo atrás delas.

- Talvez a garota não seja tão desmiolada quanto pensei que fosse - Ruari resmungou, limpando as roupas e olhando com ferocidade para as pessoas que riam dele.

- Não deveria falar dessa maneira da minha amada - Beatham repreendeu e retomou a perseguição.

- Eu gostaria que me escutasse, velho amigo - disse Rosse, seguindo Ruari. - Está apavorado por nada.

- Nada? Você está querendo raptar uma jovem de nobre estirpe...

- Duas.

- ...de uma feira - Rosse continuou, ríspido. - Você pode não estar desobedecendo a nenhuma lei escrita, que nem sei se existe, mas com certeza está infringindo costumes. Isso ofenderá um grande número de pessoas e poderá até gerar um protesto, que chegará aos ouvidos do rei.

- Não duvido, mas o protesto logo se restringirá a alguns murmúrios quando eu contar minha história e explicar por que sinto a necessidade de violar os costumes.

- Violar? Você os romperá com tanto estardalhaço que o mesmo poderá ser ouvido em Londres. Muitas pessoas não verão no que elas cometeram um crime tão grave quanto você pensa que é.

- Qualquer homem que se orgulhe de seu nome achará isso difícil de engolir. Ah, ali estão elas! - gritou, movendo-se mais depressa por entre as pessoas.

Ruari entendia a preocupação de Rosse, mas não tinha intenção de ouvi-lo. Era possível que raptar Margaret e Sorcha em uma feira causasse certo alarido, mas confiava que poderia se manter acima do pequeno escândalo. Não pretendia causar-lhes nenhum sofrimento, nem forçá-las ao matrimônio, Queria apenas seu dinheiro de volta. Pelo que podia notar, ele e Dougal Hay eram os homens de posição mais alta entre os que estavam na feira. Não pretendia fazer alarde do que aconteceria, e achava que Dougal também gostaria de manter o caso em sigilo. A preocupação de Rosse se justificaria se as circunstâncias fossem outras. Sua ânsia de vingar-se era tão poderosa que não o abalava a possibilidade de ser levado à presença do rei para se desculpar. A oportunidade com que sonhava havia meses caíra em suas mãos, e ele pretendia agarrá-la.

- Sorcha, ele está se aproximando - Margaret sussurrou.

Pelo tom de voz da prima, Sorcha entendeu que não se tratava de Beatham. Procurou freneticamente por um novo local para se esconder ou por algum aliado que as protegesse. Em vão. Só viu os homens de Ruari.

Entre duas casas em uma ruela estreita, ela viu um pequeno monte de lenha. Correu até lá, pegou um pedaço grosso de madeira e virou-se no momento em que Ruari a alcançava. Com um resmungo, atingiu-o no ombro com o pedaço de pau, fazendo-o bater na lateral de uma das casas, e atirou a arma improvisada de encontro aos homens que o haviam seguido. Eles recuaram, apesar dos gritos de Ruari para que a agarrassem. Seguida por Margaret, Sorcha correu para a outra extremidade do beco.

- Não agüento mais correr - Margaret declarou, arfante. - Estamos perto da taverna onde Dougal se encontra?

- Não sei onde estamos. - Olhando por sobre o ombro, viu que Ruari e os soldados saíam da travessa. - Precisamos encontrar um lugar para nos esconder e recuperar o fôlego, ou eles nos apanharão.

- Que estranho... Beatham desapareceu.

Aquilo agradou a Sorcha. Toda vez que Margaret via Beatham, perdia o pouco juízo que tinha. Estavam pouco à frente de Ruari, e qualquer vacilação poria tudo a perder. No momento em que Sorcha começava a pensar na derrota, virou uma esquina e encontrou um local para se esconder. Agarrou Margaret pelo braço e levou-a até um pequeno galpão, espremido sob uma minúscula cabana de taipa coberta de colmo. Empurrou-a para dentro, seguiu-a, e as duas se esconderam dentro de uma pilha de feno. Assim que a respiração começou a se normalizar, Sorcha notou o mau cheiro que o esconderijo exalava. Pelos grunhidos suaves de Margaret, a prima devia estar achando aquilo ainda pior do que ela.

- Nós vamos acabar fedendo como um monte de esterco - Margaret murmurou, tentando se afastar do mau cheiro.

- Isso seria ótimo para que Ruari ficasse bem longe de nós. Fique quieta. Eles podem nos alcançar a qualquer momento.

- Nem os melhores cães da Escócia poderão nos farejar.

- Shh! - Sorcha escutou passos. - Alguém está aqui.

Ela se encostou em Margaret e tateou até encontrar-lhe a boca. A jovem teria de ser silenciada à força.

- Tenho certeza de que elas estão aqui. - A voz de Ruari era inconfundível.

- Em caso de você estar errado, o que raramente acontece, mandei alguns homens procurar nas ruas transversais.

Sorcha mordeu o interior da bochecha para não rir ante o tom de sarcasmo de quem falara. Por mais que não quisesse admitir, o fato de alguém sentir-se tão à vontade com seu lorde, a ponto de se dirigir a ele daquela forma, revelava algo bom a respeito de Ruari. Porém, naquele instante, com a palha e o mau cheiro incomodando-a, não queria saber de nenhuma qualidade do homem que a obrigara a esconder-se ali.

- Em vez de se queixar, Rosse, seria melhor se me ajudasse a procurá-las.

- E como eu faria isso? A cabana é tão pequena que nós dois não caberíamos ali dentro.

Um barulho no feno fez o coração de Sorcha dar um pulo, e ela apertou a mão sobre a boca de Margaret, temerosa de que a prima gritasse. Em sua mente, podia ver Ruari alerta com o leve ruído da palha que o pequeno movimento provocara.

Poucos segundos depois, a fina camada de feno que as cobria foi afastada, e a pouca luz revelou os dentes arreganhados de Ruari. Sorcha não acreditou que pudesse ter considerado aquele um sorriso encantador, e não soube o que era pior: a derrota ou o escárnio dele.

Ruari a puxou para que ficasse em pé, e ela teve certeza de que não poderia aceitar o fracasso com facilidade. Fechou o punho e esmurrou-lhe o queixo com tanta força que sentiu o reflexo no ombro.

Com um grito, ele a soltou. Sorcha segurou a mão da prima e arrastou-a para fora da cabana. Rosse não as impediu de fugir e, tentando controlar o riso, ajudou Ruari a se levantar.

- Não acredito que você o atingiu! - Margaret olhou por sobre o ombro e viu Ruari, que saía da cabana aos tropeções, gritando impropérios.

- Melhor isso do que arrancar aquele maldito sorriso do rosto dele com a minha espada.

Elas viraram uma esquina, e Sorcha descobriu que não haviam escapado. Diante delas, estavam vários homens de Ruari, com as montarias seladas. Às suas costas, escutou Ruari correr. Um olhar para a direita revelou Beatham e mais dois homens se aproximando. A esquerda havia um rio de águas borbulhantes. Ela resmungou uma praga quando Ruari agarrou-a por trás e um dos soldados tirou-lhe a espada e a adaga. Em seguida, Beatham segurou Margaret, que não resistiu, e deixou-a mais à vontade assim que ela foi desarmada.

- Que mau cheiro! - Ruari segurou o braço de Sorcha com força.

- Se milorde me soltar, tomarei um banho para não ofender sua delicada sensibilidade - ela retrucou e tentou lhe dar um pontapé, mas Ruari se esquivou.

- Tivemos de nos esconder num lugar fedorento - Margaret explicou a Beatham.

- Pobrezinha - Beatham se condoeu. Sorcha não chegou a fazer um comentário mordaz, pois nesse instante um grito de guerra cortou o ar. Ela riu e olhou na direção de onde o som viera. Neil corria na direção deles, com as saias acima dos joelhos e a espada em riste. Era uma pena que a tia estivesse sozinha e um pouco distante.

- Ponha as mulheres sobre os cavalos - Ruari ordenou, segurando Sorcha sob o braço como se ela fosse um pacote.

- Por que correr? É apenas uma mulher - um dos homens comentou ao montar.

- Ela não nos deixará levar as sobrinhas sem resistência e lutará como um homem. Não quero machucá-la.

Sorcha maldisse a previdência de Ruari ao segurá-la de costas. Nessa posição, seus socos não poderiam atingir o rosto dele, mas mesmo assim ela desferiu golpes até perder o fôlego, até que Ruari a jogou por cima do cavalo e montou rapidamente. Ele pretendia levá-la para Gartmhor como se ela fosse um saco de grãos, Sorcha jurou para si mesma que, se sobrevivesse, faria o impossível para transformar a vida dele num inferno.

Quando Ruari virou o cavalo, pronto para galopar, notou que Malcom não se movia. Boquiaberto e com as rédeas nas mãos, ele fitava Neil, que se aproximava. Por um instante, pensou que seu contador estivesse paralisado de medo, mas pelo olhar de Malcom, deduziu que o homenzinho estava encantado.

- Droga! Rosse, pegue aquele tolo do Malcom - Ruari ordenou. - Ele perdeu o juízo.

Rosse abaixou-se, levantou o homem e o pôs na sela. Depois, deu um tapa no traseiro do cavalo de Malcom para que o animal seguisse os outros e esporeou a própria montaria a um galope. Confiante em que seus homens alcançariam Gartmhor em segurança, Ruari incitou seu cavalo no instante em que Neil o alcançava e o atingia com a espada. O corte maior foi no calção, e a coxa mal foi atingida.

- Volte e lute como homem, ladrão bastardo! - Neil gritou enquanto os homens se afastavam.

- Avise Dougal! - Sorcha berrou e gemeu quando Ruari deu-lhe um tapa no traseiro.

- Estaremos no meio do caminho para Gartmhor antes que o tolo do seu irmão possa selar o cavalo - ele a provocou.

- Dougal o matará.

- Ele não terá tempo para isso, pois estará muito ocupado conseguindo o dinheiro para resgatá-la. Você deve saber qual é a quantia que pedirei.

Sorcha usou o fôlego que lhe restava para amaldiçoar não apenas Ruari, mas todos os seus ancestrais. Ele riu. Fazia meses que não se sentia tão animado, e atribuiu o sentimento à caça excitante e à satisfação da vitória. Não deu ouvidos à voz interior que caçoava dele por não admitir a verdade. Era a mulher miúda e furiosa jogada sobre sua sela que o fazia sentir-se bem. Conseguiria o dinheiro de volta, salvara o orgulho ferido e talvez pudesse desfrutar mais alguns momentos de paixão com Sorcha. Era o suficiente para animar qualquer espírito masculino.

Neil praguejou e voltou para a estalagem onde Dougal estava. Sua raiva por não ter podido salvar Sorcha não era tão grande quanto a que sentia dele. Em vez de evitar que a irmã fosse raptada, ele bebia cerveja e se divertia com as criadas. Encontrou-o na hospedaria, sentado em um banco, com uma moça rechonchuda no colo. Convencida de que o sobrinho era o maior idiota de toda a Escócia, aproximou-se e afastou a garota.

- O que deu em você? - Dougal indagou, e só então notou como Neil estava descomposta. - Algo errado?

- Ah, finalmente o rapaz consegue enxergar algo além do busto avantajado de uma rameira.

Os homens de Dougal começaram a rir, e a moça pensou em protestar, mas o olhar de Neil foi suficiente para calar a todos.

- Não precisa insultar ninguém.

- Não? Diga-me, quando viu sua irmã ou Margaret pela última vez?

A maneira assustada como ele olhou ao redor e empalideceu acalmou um pouco a fúria de Neil.

- O que houve com elas?

- Ruari Kerr as raptou e está galopando a toda velocidade para Gartmhor.

Dougal ordenou aos homens que selassem os cavalos.

- A que distância eles se encontram de nós?

- Aposto minha espada como eles já não podem ser alcançados.

Ele praguejou e bateu com o punho fechado na mesa.

- Aquele homem não tem honra? Nas feiras sempre houve um armistício implícito.

- Mas não é a primeira vez que o acordo é rompido, e não será a última.

- Kerr pretende pedir um resgate, não é?

- Ele provavelmente vai querer a quantia que tiramos dele.

- Não conseguirei juntar tanto dinheiro.

- Duvido que ele esteja disposto a negociar, Dougal.

- Então teremos de raptá-las de volta. - Ele pulou na sela quando os homens voltaram com os cavalos. - Alugue quartos na estalagem. Retornarei assim que puder.

Neil observou os homens se afastar com o sobrinho. Não conseguiria trazer Sorcha e Margaret de volta. Os Hay não tinham belas montarias como os Kerr. A perseguição infrutífera serviria apenas para atenuar a culpa de Dougal.

Ela embainhou a espada, alisou as saias e foi à procura das irmãs, que deixara sem avisar quando vira Beatham. Embora confiante de que Ruari nada faria contra as reféns, estava preocupada. Margaret se apaixonaria ainda mais, se é que isso era possível, e ficaria desesperada ao ter de partir. Sorcha passaria algum tempo perto do homem a quem amava, mas que não retribuía seu amor. Era uma situação terrível, e Neil revoltou-se contra o orgulho masculino. Enquanto Dougal e Ruari se preocupavam com resgates e dinheiro, Sorcha e Margaret pagariam o maior preço por isso.

 

Sorcha não conteve uma imprecação ao desmontar. Apenas após quilômetros de um trajeto difícil, ela fora sentada sobre a sela, e ainda tivera de suportar muitas horas de cavalgada. Tinha a impressão de que seu corpo todo estava machucado. Ruari a levou até uma árvore, sob a qual a sentou, e ela teve de morder a língua para não amaldiçoá-lo. Ele pareceu divertir-se, o que era difícil de suportar.

Enquanto Ruari cuidava do cavalo, Sorcha observou Margaret. Beatham cuidava dela com carinho, um contraste doloroso com a forma como Ruari a tratava. Ficou preocupada, pois a prima tinha começado a se livrar da melancolia a que se entregara após a partida de Beatham. Vê-lo de novo e assegurar-se de seu amor seria a pior coisa que poderia lhe acontecer, pois nada se modificara. Margaret e Beatham podiam formar o par ideal, mas nunca se casariam.

Uma tosse tímida chamou sua atenção, e ela olhou para cima. Em pé diante dela, estava um homenzinho estranho, bem mais baixo que os demais Kerr, muito magro e com ralos cabelos castanhos. Não podia ser um soldado, pois não seria capaz de erguer um montante.

- Lady Hay, sou Malcom Kerr, primo de Ruari, e zelo pelas finanças de Gartmhor. - Ele fez uma mesura.

A voz dele também era fina e pareceu tremer, revelando nervosismo.

- O senhor entenderá se eu não for capaz de dizer que estou encantada em conhecê-lo.

- Claro, milady, mas desejo lhe fazer uma pergunta.

- Ele hesitou, torcendo os dedos longos e finos.

- O que deseja saber?

- Quem é a mulher que tentou resgatá-la?

- Ah, minha tia Neil Hay.

- Neil - ele repetiu em tom reverente. - Um nome bom, forte e digno de orgulho.

- Sim. O pai dela esperava que viesse um menino - Sorcha murmurou, espantada com a reação incomum ao nome da tia.

- Ela é casada ou comprometida?

A ansiedade de Malcom revelava seu interesse, e Sorcha evitou o riso ao pensar que o homenzinho estava enamorado de Neil.

- Não. Minha tia não é casada nem tem amantes.

Malcom não chegou a responder, porque Ruari se aproximou, bateu nas costas do primo e o apoiou quando ele quase caiu.

- Sua previsão estava correta, Malcom - disse ele, sorrindo para Sorcha. - Esta viagem para a feira foi mesmo muito profícua.

- Bem, eu não a considerei desta forma. - Malcom fitou Sorcha como quem se justificasse. - Não foi minha a idéia desse rapto.

- Você também vai me repreender por causa disso? - Ruari franziu o cenho. - Tive de suportar a irritação de Rosse desde a hora em que vi Sorcha, e já estou cansado disso. Ela foi o motivo do esvaziamento de nosso cofre e ela será o meio de recuperá-lo.

- Eu jamais o repreenderia, Ruari. Você normalmente sabe o que faz. Bem, vou buscar um pouco de água e comida para lady Sorcha, está bem? - Ele se afastou sem esperar resposta.

- Você não estava tentando amaciar o pobre rapaz para que ele a ajude, não é? - Ruari indagou.

- Não seja mais tolo do que já é. Ele estava apenas perguntando a respeito de tia Neil. Creio que se encantou com ela.

- Eu notei isso. Ele quase se deixou capturar, ou pior, ser atingido pela espada que sua tia Neil brandia.

- Ela jamais mataria um homem desarmado.

- Não se pode confiar em uma mulher que empunha uma espada.

- Não sei por que você fica tentando me enraivecer. Será difícil me deixar ainda mais furiosa. Eu ficaria muito feliz se esse insulto, esse descaso aviltante dos costumes, o depreciasse e o classificasse como o fora da lei que você é. - Assim que pronunciou as palavras, Sorcha percebeu que, a despeito de sua raiva, não desejava uma penalidade tão terrível para Ruari.

- Fora da lei? - Malcom assustou-se ao voltar com comida e água para Sorcha. - Existe a possibilidade de milorde ser declarado um bandido?

- Não, Malcom, não se preocupe. Ela está apenas dando vazão à raiva, pois não admite a derrota, e isso a deixa irritada.

- Você é quem me irrita. - Sorcha agradeceu a Malcom, antes de ele se reunir com os outros ao redor de uma fogueira, e fitou Ruari com um olhar fulminante. - Poderei ter alguns minutos de privacidade para tirar a sujeira e o pó da viagem?

- Se quiser ir para trás da árvore, não se esqueça de que a estou vigiando e de que tenho ouvidos apurados.

Sorcha rodeou o tronco largo e considerou a tentativa de escapar. Não sabia onde se encontrava, nem como voltar para a cidade ou para Dunweare. Depois daquela longa viagem, estava exausta e não conseguiria ir longe. Tampouco poderia fugir e deixar Margaret para trás, mesmo sabendo que a prima estaria feliz.

Fez o possível para se limpar com a pouca água que Malcom providenciara. Remover um pouco de pó e do mau cheiro da pele e das roupas era melhor do que não fazer nada. Assim que chegasse a Gartmhor, exigiria um banho quente, e os mesmos confortos que propiciara a Ruari em Dunweare.

Exceto um. Ele estava muito enganado se achava que dormiria com ela outra vez. Isso faria dela quase uma rameira. Dessa vez, antes de permitir que ele a tocasse, seria preciso mais do que desejo e palavras doces. Em Dunweare, acreditara que ficaria com ele alguns dias e que nunca mais o veria. Mas tudo mudara, e Ruari descobriria que as regras para compartilhar sua cama também haviam se modificado.

Mais refrescada, embora não totalmente limpa, saiu de trás da árvore e sentou-se para comer.

- Tenho de ficar afastada dos outros?

- Por enquanto, sim. - Ruari sentou-se diante dela. - Será melhor não falar com sua prima até chegarmos a Gartmhor.

- Não acha que Beatham é algema suficiente para segurar Margaret? - Sorcha apontou para o jovem casal, que sussurrava e sorria.

- Talvez, mas você já a obrigou a fugir dele uma vez. É evidente que conhece os meios de fazê-la considerar os deveres para com o clã acima dos desejos do coração. Será difícil separá-los, mas isso terá de ser feito. A menos, é claro, que Margaret tenha ganhado uma fortuna e propriedades durante o inverno.

- Só se isso tivesse caído do céu no dia de São Miguel.

- A língua continua ferina.

- Comentários tolos merecem respostas à altura. - Sorcha tomou um gole de sidra do odre que Malcom deixara com ela. - Margaret sofrerá ainda mais, e isso aumentará a fúria do meu irmão.

- Estou morrendo de medo.

- Bastardo arrogante! Dougal esteve muito perto de pegá-lo várias vezes hoje. - Ela não podia deixar de orgulhar-se da caçada árdua em que Dougal se empenhara.

- Ser quase pego não quer dizer nada. Ainda estou com vocês duas, e ele deve voltar a Dunweare para esperar meu pedido de resgate.

- O que será algo completamente sem sentido. Acha que eu menti quando lhe disse que somos pobres? Bem, não tardará em descobrir que pedir um resgate por um Hay de Dunweare é o mesmo que alcançar a lua.

Ruari levantou-se e limpou a roupa. Irritava-o começar a acreditar na penúria dos Hay. Mesmo sem dizer nada a ela, teve de admitir que Dougal se esmerara na perseguição, e que nada conseguira somente por causa dos cavalos. Os animais eram robustos, mas não dignos de um cavaleiro com dinheiro no bolso. Se isso provava a impossibilidade de Dougal levantar a quantia que pretendia exigir, um problema difícil se apresentava. Resolveu esquecer a dúvida e a hesitação, e decidiu enfrentar o dilema quando, e se, ele adviesse.

- Mandarei Rosse vigiá-la enquanto faço a refeição - Ruari avisou, fazendo sinal para o primo. - Não tente nenhum de seus truques femininos com ele.

Sorcha teve vontade de jogar o prato em Ruari enquanto ele se afastava. A expressão de Rosse, que se sentou diante dela, a fez supor que ele adivinhara suas intenções. Ela também sorriu e voltou a comer. Pareceu-lhe estranho não se irritar com a diversão de Rosse, mas irritar-se ao extremo com Ruari.

Na certa, isso se devia à arrogância dele, refletiu, fitando-o com raiva. Seu mau humor piorava ao ver a maneira espalhafatosa como ele se regozijava com a desgraça alheia. Desejou de coração que Dougal pudesse reunir a quantia do resgate em horas e buscá-la em Gartmhor, pois estava certa de que uma estada longa com Ruari cantando vitória seria extremamente difícil de suportar. Uma espiada para Beatham e Margaret a advertiu de que não seria apenas a arrogância de Ruari que a aborreceria.

Suspirou e deixou de lado o prato vazio. Não adiantaria lamentar-se diante do período complicado que a aguardava. Seria melhor estar preparada para as provações antes de chegar a Gartmhor. Exausta, recostou-se na árvore e rezou para que Dougal voltasse são e salvo para Dunweare.

 

Neil se levantou ao ver os cavaleiros voltar extenuados para a cidade. Depois de acomodar as irmãs nos quartos, ela permanecera do lado de fora da estalagem. Dormir teria sido impossível. Precisava saber se Dougal fora bem-sucedido e se estava a salvo. A maneira desolada como ele desmontou deixava evidente que falhara em resgatar Sorcha. No momento, o importante era todos terem regressado sem ferimentos.

- Não sou bem-sucedido em nada do que faço - Dougal se Lamentou enquanto os homens levavam os cavalos exaustos para a estrebaria.

Preparada para aquele humor tenebroso, Neil o fez sentar-se e ofereceu-lhe uma caneca com cerveja.

- Você fez o melhor que pôde - assegurou, acomodando-se ao lado dele.

- Se isso fosse verdade, elas jamais teriam sido levadas.

- Creio que sir Ruari vem planejando esse pequeno ato de vingança há tempos. Deveríamos ter dado mais atenção às suas ameaças.

- E por que não fui avisado dessas ameaças?

- Porque achávamos que a raiva dele cederia, e que ele esqueceria as promessas de vingança.

- Se ele está com raiva, pode machucar Sorcha ou Margaret.

- Nunca - Neil afirmou com segurança.

- Nem mesmo se eu não conseguir a quantia que Ruari exigirá?

- Não. Antes de tudo, ele sabe que deve a vida às duas.

- Então por que as raptou? Essa é uma maneira estranha de demonstrar gratidão.

- Ele estava furioso por causa do dinheiro. Ressentiu-se da quantia que entrou em nossos bolsos e a quer de volta.

- Entendo, mas o que me preocupa é o que ele fará quando souber que não consegui o que ele deseja.

- Confie em mim, rapaz. Ruari nada fará de mal contra nossas meninas. Mas eu gostaria de tratar do caso pessoalmente com ele.

- Por quê? A distância entre Gartmhor e Dunweare é grande, e o trajeto é difícil.

- Sei disso, mas quero ir. Sir Ruari e eu nos conhecemos bem. Não quero ofendê-lo, Dougal, mas como Sorcha teve de salvar sua vida, ele não deve tê-lo em alta conta. - Neil observou a raiva nas feições bonitas do sobrinho. - Ninguém mais o culpou. Bem, não muito.

Dougal riu com amargura.

- Às vezes você é sincera demais.

- Pode ser. E muitas vezes você é um pouco esquentado. Isso não ajudará a resgatá-las.

- Está bem, pode negociar com os Kerr no meu lugar. Mas devo deixar bem claro que, se alguma coisa acontecer com minha irmã ou com minha prima, irei atrás dele e terei grande prazer em matá-lo.

- Você terá de ser rápido, ou eu certamente lhe roubarei o privilégio.

 

Sorcha estremeceu e achou que poderia facilmente passar a odiar cavalos. Embora tivesse dormido ao acamparem, ainda estava cansada, e sentiu-se quase aliviada quando Ruari apontou Gartmhor a distância. Por fim, sairia da sela sobre a qual cavalgava fazia dois dias.

A visão do castelo a inquietou. Tratava-se de uma fortaleza enorme, com muralhas altas, sobre uma colina rochosa. Embora não parecesse inexpugnável como Dunweare, fugir dali seria difícil, se não impossível.

Sentiu um calafrio ao passar pelos grandes portões de madeira e ferro. Esperava que não fosse uma premonição. Nem lhe ocorrera que Margaret e ela pudessem sofrer algum dano físico, e não gostaria de ter se enganado.

- O que achou de Gartmhor? - Ruari perguntou quando deteve o cavalo no pátio interno e a ajudou a apear.

Sorcha detectou o orgulho em sua voz e desejou encontrar algum defeito naquele castelo, mas nada achou para dizer. Desvencilhou-se dele e olhou ao redor. Por toda parte, havia sinais da riqueza de Ruari, desde o grande número de homens bem armados até as roupas caras que usavam. Sentiu a raiva retornar. Ruari faria o pobre Dougal rastejar para arrumar um dinheiro do qual não precisava.

- Posso ver como empobreceu com o resgate que pedimos. - Dougal estava certo ao dizer que ela deveria ter exigido mais.

- O fato de eu ter dinheiro não quer dizer que preciso aceitar que outros se locupletem com ele. O dinheiro é meu, e trabalhei duro para consegui-lo.

- Realmente, você parece exausto de tanto trabalhar. - Sorcha sabia que não era justo fazer a fortuna dele parecer criminosa, mas estava irritada demais para se preocupar com justiça.

Ruari agarrou-a pelo braço e a levou até o castelo.

- Eu lhe mostrarei seus aposentos...

- Minha prisão.

Ele a ignorou, completando:

- ...onde poderá tomar o banho de que tanto necessita.

- Por favor, bondoso senhor, aceite minhas mais profundas desculpas se ofendi seu grande nariz. Não tive tempo suficiente para aprontar-me para o meu seqüestro.

- Você sabe como irritar um homem.

Ela não chegou a responder, pois foram impedidos de prosseguir por uma mulher gorducha e grisalha que, nervosa, hesitava em falar, enquanto olhava para as portas fechadas do salão nobre.

- O que houve, sra. Duncan? - Ruari indagou. - A senhora nunca teve receio de falar.

- Temos visitas, milorde - ela respondeu, torcendo as mãos.

- Está bem, providencie comida e acomodações adequadas para todos. Em breve falarei com eles. - Ruari adiantou-se em direção da escada estreita e franziu o cenho quando a sra. Duncan o deteve, agarrando-o pelo braço. - Algo mais?

- As visitas são sir Brodie, a esposa e a filha Anne, que vieram discutir a possibilidade do casamento de milorde com a moça - ela o lembrou diante da expressão confusa de Ruari.

Sorcha sentiu a raiva arrefecer, sendo substituída por um calafrio. Enquanto ela lutava para dominar a dor de amá-lo e perdê-lo, Ruari passava o tempo avaliando as jovens bem-nascidas da região para encontrar uma esposa. Apesar de dizer que procurava apenas paixão sem envolvimentos emocionais, ele tinha intenção de se casar.

Sentiu-se insultada. Ruari não a desejava como esposa. Ela servia para os prazeres da cama, mas não para o casamento. Certamente, Anne Brodie preenchia todos os requisitos usualmente exigidos. Devia ter boa estirpe, ser bem-educada, possuidora de terras, dinheiro e parentes poderosos. Ah, como desejava ficar sozinha!

- Por favor, milorde, leve-me até meus aposentos - Sorcha pediu com frieza para esconder as emoções fortes e conflitantes. - Preciso tomar um banho.

Ruari ordenou à sra. Duncan que preparasse banhos para Sorcha e Margaret, e levou Sorcha para cima. Ele se sentia pouco à vontade, quase embaraçado, mas não tinha certeza do motivo. Não mentira nem a seduzira com falsas promessas. Além disso, ela devia saber que não se enquadrava no que se costumava exigir de uma esposa.

A despeito de tudo parecer razoável, ele ainda sentia uma culpa desconfortável e um forte impulso de se explicar. Isso o irritava, mas ao parar diante do quarto que escolhera para ela, convenceu-se de que não poderia descontar a raiva em Sorcha. Havia em seu olhar um brilho gélido que ele nunca vira antes, e ansiava por apagá-lo, para devolver a vida aos belos olhos. Porém, não sabia como.

- Seu banho logo estará pronto, e mandarei as mulheres trazer roupas limpas.

- É muita gentileza sua. Agora, se me dá licença, estou muito cansada.

Sorcha entrou no quarto e fechou a porta. Ruari suspirou e desceu a escada rumo ao salão nobre para saudar os visitantes que não desejava encontrar. Suas esperanças tinham sido despedaçadas por um simples fechar de porta.

Sorcha suspirou, deitada na cama, olhando o teto de seu quarto. Desde que chegara a Gartmhor, no dia anterior, vira apenas a sra. Duncan e uma criada tímida. Recusara a visita de Ruari, que batera na porta várias vezes. Margaret, que estava ocupada com Beatham, provavelmente nem sentira a sua falta.

O impacto de saber que Ruari procurava uma esposa começara a diluir-se após algumas horas. Desde então, ela se debatia entre a dor, a raiva e o ultraje. No momento, afligia-a um desagradável e estranho sentimento de derrota.

- Você é a figura mais triste que vi nos últimos tempos.

Ela ficou tensa quando a voz profunda ecoou em sua mente. Sabia do que se tratava, mas não queria ver quem resolvera assombrá-la agora. Não gostaria que Ruari, descrente dos espíritos de Dunweare, descobrisse que ela conversava com um deles em Gartmhor. Porém, após o esforço fracassado de ignorar a forte presença no quarto, olhou ao redor.

Aos pés da enorme cama entalhada, flutuava a aparição quase completa de um homem. Era alto, de cabelos negros e muito bonito, e ela teve certeza de que se tratava de um parente de Ruari. Suspirou de novo. Preferia alguém menos próximo a ele. Ruari certamente a ridicularizaria se ficasse sabendo que ela se comunicava com um de seus parentes falecidos.

- Será que não poderia falar com outra pessoa? - ela indagou. - Já tenho problemas suficientes.

- Aqui não há ninguém que possa me ver ou falar comigo - o homem respondeu com melancolia. - Tenho vagado por esses malditos corredores há mais de dez anos, tentando chamar a atenção de alguém. Você é a primeira pessoa que tomou conhecimento de mim.

Sorcha sentou-se, decidindo que seria melhor falar com um espírito do que ser atormentada por seus próprios pensamentos.

- Quem é você?

- Sou sir Ivor Kerr. - Ele fez uma mesura. - Tio do atual lorde.

- Parece-se mesmo com ele.

- Sua maneira de falar não me pareceu elogiosa.

- Eu não pretendia que parecesse. E como foi que morreu antes de estar preparado?

- Como sabe que eu não estava pronto para encontrar o Criador? - Ele se aproximou da lateral da cama.

- Nunca encontrei um espírito preparado. Suponho que tenha sido cruelmente assassinado.

- Você já está acostumada conosco, não é?

- Sim.

Ele começou a andar de um lado a outro.

- Confesso que eu tinha uma fraqueza pelas jovens, e aqui havia uma criada muito bonita chamada Mary. Nós nos dávamos muito bem sob os lençóis, e muitas vezes nem nos importávamos com uma cama.

- Não faço questão de ouvir detalhes sórdidos.

- Não eram tão sórdidos. Uma noite, o marido dela nos surpreendeu. Eu não queria matar o imbecil. Por isso, ficamos lutando no quarto da torre oeste. Temendo que um de nós fosse morto, Mary entrou na briga. Na confusão que se seguiu, fui atingido com um forte golpe na cabeça. Temendo ser enforcados, eles tentaram esconder o fato. Fui ensopado com cerveja e jogado pela janela. Os demais acreditaram que eu, bêbado, tinha caído.

Sorcha quase sorriu diante da ponta de ultraje que permeava suas palavras. Perturbava-o a idéia de que todos houvessem rotulado sua morte como ignominiosa. O homem, com certeza, era tão orgulhoso quanto o sobrinho.

- Então deseja fazê-los pagar pelo crime? - Sorcha sentia que ele não procurava vingança, como Crayton.

- Na verdade, não, embora eu não tenha me alegrado ao descobrir que algumas horas de prazer com uma mulher custaram a minha vida. Não, eu só quero que eles admitam o que fizeram, para limpar meu nome.

- E considera que ser morto acidentalmente por um marido enraivecido limparia seu nome?

- Acho muito melhor do que ser lembrado como um bêbado idiota que tropeçou na janela do castelo em que nasceu e foi criado.

- Não sei se poderei ajudá-lo, mas vou considerar o assunto. Eu não sou uma convidada, e sim uma prisioneira à espera de resgate.

- Ouvi algumas pessoas comentando. É por isso que está tão triste?

- É um dos motivos. - Sorcha fez um breve relato do que se passara entre ela e Ruari.

- Então vocês se tornaram amantes.

- Eu não disse isso.

- Nem precisava. Conheço meu sobrinho. Ele não deixaria de cortejá-la. Além disso, você pronuncia o nome dele de uma maneira especial. Tem fortes sentimentos pelo rapaz, e ele está sendo um tolo.

- Concordo com sua última opinião. Enquanto me corteja, ele procura uma mulher adequada para ser sua esposa.

Sorcha arregalou os olhos quando Ivor praguejou.

- Esse jovem ainda continua com essa busca infrutífera? - ele perguntou.

- Ele fazia isso quando você ainda estava vivo?

- Ah, sim. O menino enfiou na cabeça que, como um homem de fortuna, poder e posição, ele precisaria de um tipo especial de esposa, e mantém-se fiel aos requisitos. Enquanto procura entre as garotas tolas, que choram, dão risadinhas e desmaiam, ele não enxerga que precisa de uma mulher determinada e inteligente.

O espírito, muito cooperativo, era uma boa fonte de informações sobre Ruari. Sorcha não sabia exatamente como isso poderia ajudá-la. No entanto, as lembranças de Ivor poderiam conter os indícios necessários para que alcançasse uma solução para os problemas entre ela e Ruari.

- A refeição noturna será servida logo mais no salão nobre - a sra. Duncan anunciou depois de entreabrir a porta.

- Ótimo. - Sorcha procurou não sorrir diante do espanto da mulher por causa de sua mudança de humor. - Estou com muita fome. - Deu uma última espiada no vestido azul que usava e saiu do quarto na frente da sra. Duncan. - Os convidados de sir Ruari ainda estão em Gartmhor?

- Sim, milady. Eles foram avisados de que a senhora e lady Margaret não são nem convidadas nem prisioneiras, e que estão aqui até que um pequeno desentendimento entre seu irmão e nosso lorde seja resolvido.

- Pequeno desentendimento? - Sorcha riu, mas logo tratou de acalmar a boa senhora. - Não se preocupe, farei o jogo de sir Ruari.

A sra. Duncan deixou-a do lado de fora das portas fechadas do salão nobre, e Sorcha se deteve um momento para restaurar a coragem que oscilava. Embora lvor tivesse lhe fornecido uma torrente de informações interessantes, não havia entre elas nenhuma grande revelação, algo que a fizesse de imediato ou desistir de Ruari ou esforçar-se para demonstrar a ele que eram perfeitos um para o outro. Todavia ela percebera que valeria a pena lutar por Ruari. Não pretendia humilhar-se nem deixar seu orgulho de lado, mas estava determinada a fazer o máximo para conquistar seu amor.

Hesitou ao entrar no salão e vê-lo inclinando a cabeça na direção de Anne Brodie. Porém, endireitou as costas e caminhou até a mesa principal para sentar-se à esquerda dele, parando apenas para cumprimentar Margaret.

Uma de suas estratégias para conquistá-lo seria mostrar que ele, na realidade, não desejava se casar com unia daquelas moças frágeis e afetadas que vinha cortejando com tanta assiduidade.

Ao notar que Ruari finalmente a olhava, dirigiu-lhe um sorriso brilhante e sentou-se. A expressão dele, incerta e cautelosa, quase a fez rir. Conseguira perturbá-lo, o que era favorável para ela.

- Fico satisfeito que milady tenha se recuperado da viagem para nos fazer companhia no jantar - Ruari murmurou e apresentou-a aos Brodie.

- Melhorei muito, embora meu estômago ainda esteja ferido por eu ter feito o trajeto jogada sobre o cavalo como um saco de grãos. - Sorcha ficou satisfeita ao vê-lo corar.

- Não precisamos atormentar os Brodie com nossos problemas particulares - Ruari comentou enquanto enchia a taça de Sorcha com hidromel.

- Claro que não.

Ela enfrentou com calma o olhar faiscante e começou a servir-se com a ajuda dos pequenos pajens que rodeavam a mesa principal. Fizera aquele comentário não apenas para testar o humor de Ruari, mas para descobrir que tipo de jovem era Anne Brodie. Não demorou para perceber que a moça era acanhada e que se intimidava na presença de Ruari. Isso era algo que poderia aproveitar.

No decorrer da refeição, Sorcha atiçou o temperamento forte de Ruari sussurrando-lhe apartes ásperos e fazendo comentários mais sutis em voz alta. No momento em que ele não conseguia mais disfarçar a irritação, Anne tornou-se mais quieta e passou a fitá-lo com receio. Ao notar que a jovem se preparava para deixar a mesa, Sorcha agradeceu pela refeição deliciosa e pediu licença para se retirar. Conforme esperava, foi seguida por Ruari.

- Qual é o jogo que está fazendo agora? - ele perguntou assim que a porta foi fechada.

- Jogo? - Serena fitou-o com inocência.

- Você não perdeu nenhuma oportunidade de me insultar nem de se referir a seu rapto, ainda que tenha sido cautelosa ao fazer com que tais referências fossem de difícil compreensão para os demais.

- E milorde, como é muito inteligente, compreendeu tudo.

- Exatamente como você esperava. - Ele a agarrou pelo braço e a sacudiu de leve. - Tome cuidado, Sorcha. Não permitirei que interfira nisso.

- Está se referindo ao fato de fazer tantas jovens solteiras se exibirem diante de você?

- Droga, você faz com que pareça que estou procurando uma rameira. Estou apenas buscando uma mulher adequada à minha posição. Isso é o que todos os homens devem fazer.

- Ivor me disse que tentaria explicar seus atos dessa maneira.

Sorcha esperou pacientemente que o significado de suas palavras assentasse na mente de Ruari. Talvez fosse injusto usar seu dom para provocá-lo, mas essa era a única coisa que o levaria a perder o controle. Ele poderia ter se convencido a aceitar tais coisas em Dunweare, com certeza, não as permitiria em Gartmhor. Sorcha podia ver Anne espiando pela porta que se abrira, e desejou que a jovem observasse o temperamento dele em toda sua glória.

- Oh, não... não! - ele gritou. Agarrou-a pelos ombros e a chacoalhou. - Você não vai se entregar a essas idiotices em Gartmhor.

Um pouco zonza, ela não teve de fingir desequilíbrio quando Ruari parou de sacudi-la. Tirou uma mecha de cabelos dos olhos e o encarou. Sutilmente, com um olhar de soslaio, notou a expressão horrorizada da garota.

- Sir Ruari, isso não é algo que possa ordenar.

- Cuidado, Sorcha. Se for necessário, eu a trancarei no buraco mais escuro que encontrar até que você recobre o juízo.

Sorcha sabia que a ameaça era vã, mas a palidez de Anne revelava que ela ignorava isso. A moça desapareceu por um instante enquanto Ruari, praguejando, virou-se para voltar ao salão. Sorcha fingiu alisar os cabelos e o vestido enquanto esperava que a garota surgisse. Poucos minutos depois de Ruari sumir, Anne apareceu no corredor, esbaforida.

- Boa noite, lady Brodie. - Sorcha esforçou-se para dar um sorriso trêmulo.

- Está tudo bem, milady?

- Sim, por quê?

- Estive observando a senhora e sir Ruari discutirem. Ele fica assim furioso com freqüência?

- Ah, ele não estava tão bravo. Eu o tenho visto em explosões muito piores.

- Piores? - Anne sussurrou, aterrorizada.

Sorcha continuou, como se não percebesse o pavor da outra.

- Ah, sim. Isso foi uma leve reprimenda. Eu o vi quase matar um homem que lhe serviu um vegetal que não foi preparado ao gosto dele. O que houve hoje não foi nada.

- Ele ameaçou jogá-la na masmorra.

- Sim, mas não é tão ruim quanto imagina - Sorcha assegurou, insinuando que já fora mantida presa. - Quando milady se casar com ele, aprenderá como falar e o que fazer para não irritá-lo.

- Jamais me casarei com esse homem.

- Imaginei que seus pais fossem favoráveis ao matrimônio.

- Eles são, mas não me forçarão a nada. Falarei com eles esta noite, antes de irem dormir. Quero sair daqui amanhã. Um bondoso senhor de Sterling já expressou interesse em mim. Tentarei fugir daqui o mais depressa possível. Lady Sorcha, se o que houve hoje não passou de uma leve reprimenda, sua vida pode estar correndo perigo.

Sorcha agradeceu pelo aviso e observou a moça subir correndo a escada rumo aos aposentos que ocupava. Não se permitiu nenhuma culpa. Ela amava Ruari, Anne, não. E, no final, se Ruari não a escolhesse, seria melhor que encontrasse uma esposa de quem gostasse e que também gostasse dele.

No momento em que começava a subir a escada, Beatham e Margaret saíram do salão nobre. Espiou os dois rir, sussurrar e, de braço dado, ir até o pátio iluminado pelo luar. Embora os achasse melosos demais, não podia deixar de invejá-los. O amor compartilhado era o que ela mais desejava e, sinceramente, preferia ter escolhido um homem mais fácil de conquistar. Seria preciso muito trabalho, e talvez até um milagre, para fazer Ruari fitá-la com algo além de desejo.

Ao entrar no quarto, vislumbrou seu novo companheiro espiritual e achou melhor aguardar um pouco para trocar de roupa. Pelo que Ivor lhe contara, não sabia se podia esperar que ele fosse um cavalheiro e respeitasse sua privacidade. Afinal, ele admitira ter uma fraqueza pelas jovens.

- Sei que está aqui, sir Ivor. Se desejar ajuda para descobrir seus assassinos e encontrar a paz pela qual anseia, creio que terá de obedecer a algumas regras. - Sorcha sorriu enquanto ele lentamente se tornava visível.

- Esta noite você preparou uma surpresa desagradável para meu sobrinho teimoso. Aquela garota tímida já está empacotando suas coisas - Ivor comentou, sorridente.

- Duvido que ela seja a última com quem eu tenha de lidar.

- Infelizmente é verdade. Você por acaso avistou a desclassificada da Mary, de quem lhe falei?

- Não, mas eu estava ocupada tentando resolver meus problemas. Agora, vai ouvir minhas regras, e será melhor que as obedeça, ou terá de procurar outra pessoa para ajudá-lo.

Sorcha demorou para sentir-se segura de que Ivor compreendera seus desejos e os honraria. Quando, por fim, se deitou, esperando uma boa noite de sono, Ruari entrou no quarto. Obviamente irritado, ele examinou o aposento, e ela percebeu que ele procurava por Ivor,

- Seu tio não está mais aqui. Eu o avisarei que você esteve procurando por ele. Agora eu agradeceria muito se as visitas não convidadas me deixassem em paz para eu poder dormir. - Sorcha ficou tensa quando Ruari se aproximou, mas o encarou com calma.

- Você não contará a ninguém seu delírio de estar falando com tio Ivor. Ele foi um estorvo, e é melhor que permaneça enterrado.

- Eu não o desenterrei, apenas falei com seu espírito inquieto,

- Chega! - Ruari segurou-lhe o queixo. - É possível que o longo inverno sem um homem para aquecer sua cama a tenha deixado propensa a agarrá-los no ar.

Sorcha precisou de toda força de vontade para não bater nele.

- Sua postura arrogante é suplantada apenas por sua ignorância e teimosia. Pretendo manter essas visitas em segredo, mas você não tem o direito nem o poder de me dizer no que devo ou não acreditar. Agora, como eu já disse, estou cansada.

- Sorcha Hay, sei que está fazendo um jogo comigo, e prometo que vou descobrir do que se trata.

Sorcha estremeceu quando ele bateu a porta ao sair. A última coisa que desejava era que Ruari descobrisse seus planos. Se isso ocorresse, seus sentimentos ficariam expostos, o que não deveria acontecer, pelo menos até ela ter certeza de que era correspondida.

Acomodando-se melhor, pensou que em breve precisaria decidir se permitiria ou não que Ruari voltasse para sua cama. Ele a ameaçara e falara com irritação, mas no instante em que se aproximara, Sorcha tinha notado em seu olhar o brilho da paixão que bem conhecia. Ele logo tentaria seduzi-la, mas dessa vez ela não aceitaria nada provisório. Se voltasse para os braços de Ruari, pretendia fazer o possível para não mais sair.

- Não acredito nisso. Essa é a terceira moça que foge do castelo em menos de uma semana - Ruari murmurou para Rosse. Os dois estavam nas muralhas de Gartmhor, observando a partida de outra possível noiva. - Não posso provar nada, mas tenho certeza de que a mão de Sorcha Hay está por trás disso. Primeiro, a moça e os pais discutem alegremente o provável enlace, e depois saem correndo, como se tivessem visto o demônio no castelo.

- Lembre-se de que algumas pessoas pensam em seu tio Ivor como o demônio personificado, ou pelo menos como um de seus lacaios. - Rosse fitou o amigo, o qual desfiava um rosário de imprecações.

- Tio Ivor não está vagando por esses corredores!

- Diversas pessoas suspeitam há muito tempo que ele assombra o castelo.

- E agora todos resolveram escutar as histórias de uma mocinha estranha de Dunweare.

- Bem, não. Ela não diz nada, a menos que lhe perguntem diretamente.

- Isso é péssimo. Eu a avisei para manter em segredo a crença de que está falando com aquele velho tolo.

- E esperava que ela se curvasse, sorrisse com doçura e obedecesse às suas ordens? Creio que a conhece o suficiente para saber que isso não aconteceria. - Rosse levantou a mão para impedir Ruari de argumentar. - Eu não afirmei que acredito que o velho Ivor esteja pairando por aqui e contando histórias para Sorcha. Mas eu não a chamaria de mentirosa nem de louca.

- E, pior do que tudo, acho que ela se tornou uma trapaceira - Ruari resmungou e apontou os visitantes que se afastavam. - Tenho certeza de que ela está por trás disso.

- Por que ela se preocuparia em interferir nos seus planos? Você deixou claro que não a considera como possível noiva, e ela se recusou a ser sua amante outra vez.

- Ela não recusou.

- Você não está na cama dela.

- Ela chegou aqui demonstrando tanta frieza que teria sido inútil tentar. Não quero bater a cabeça em uma porta fechada. - Ruari não confessou que tinha vontade de derrubar aquela maldita porta.

Rosse sacudiu a cabeça e começou a descer a escada estreita que conduzia ao pátio.

- Você a deseja, e no entanto a insulta, demonstra o quanto ela é inaceitável, e depois se queixa de que ela não o quer. Meu amigo, talvez não seja Sorcha que esteja afastando as possíveis noivas.

- Está brincando. Sou jovem e saudável, tenho fortuna e uma bela fortaleza. O que mais elas poderiam querer?

- Alguém que as trate como algo mais importante do que uma cadeira.

Já no pátio, Ruari fitou o amigo com ferocidade.

- Por acaso eu pedi seu conselho? Faço isso por Gartmhor.

- Não. Começo a pensar que faz isso por si mesmo. O desejo por Sorcha Hay o consome, prejudicando tanto seu humor quanto sua capacidade de enxergar as coisas. Acho que você se apega ao objetivo de escolher uma noiva que tenha terras e dote para não poder considerá-la uma possível companheira. Como Sorcha não tem as qualificações que exige, não se casará com ela e ficará seguro.

- O que quer dizer com isso?

- O que eu disse: seguro. Não pensar, nem sentir. Sorcha Hay não afeta apenas o que você tem entre as pernas, e você luta contra esse sentimento com mais vigor do que emprega nas batalhas contra os ingleses. Não sei por quê, mas tem medo das emoções que Sorcha desperta em seu íntimo.

- Isso é uma grande bobagem.

- Sei que não dará atenção ao que digo, pois não consegue nem mesmo escutar o que diz o seu coração. Só espero que quando abrir os olhos não seja tarde demais. Caso contrário, um dia terá a esposa, os filhos, o poder e a fortuna, mas perceberá que existe um imenso vazio dentro de você que nunca poderá ser preenchido. - Rosse afastou-se antes que ele pensasse em uma resposta.

Irritado pelo excesso de avisos e críticas, Ruari voltou ao salão. Nem mesmo Rosse, que o conhecia desde o berço, podia saber o que ele pensava e sentia.

Sentou-se para terminar a refeição que sua ex-provável noiva interrompera com a fuga, e as palavras de Rosse começaram a martelar em sua mente. Não o agradava pensar que uma pequena moça de olhos castanhos poderia assustá-lo, e tentou encontrar uma réplica para a teoria do amigo. Porém, nada lhe ocorreu, exceto uma leve aceitação, que ele lutava para evitar.

Com um suspiro, misto de resignação e fúria, encostou os cotovelos na mesa e passou os dedos nos cabelos. Sorcha era o inverso do protótipo de esposa ideal que havia imposto a si mesmo. Ela e a família proporcionariam a qualquer homem uma vida cheia de problemas e preocupações. Porém, admitiu que jamais encontraria nos braços de outra mulher a paixão perfeita que partilhava com ela. Esse era um forte argumento a favor de Sorcha.

Havia, entretanto, aspectos desfavoráveis que pesavam na balança. Ela era pobre, não tinha terras, lutava como um homem e insistia em falar com fantasmas. Ele procurava mais elementos para adicionar à lista quando escutou o som de passos. Levantou a cabeça e viu a perdição de sua existência, Sorcha Hay, fitando-o com curiosidade. Teve de admitir mais um ponto a favor dela: os belos olhos castanhos.

Sorcha estava parada diante dele usando um vestido cinza emprestado que na certa pertencera a uma mulher mais alta e mais gorda. Trazia os cabelos amarrados com uma tira negra de couro, e mechas caíam sobre os ombros e o peito. Apesar da estatura baixa, era linda, e todas as partes de seu corpo ansiavam por ela. Ele não sabia se ria ou praguejava, e, mesmo que Rosse tivesse razão, ele não tinha idéia de como agir.

Sorcha ficou imóvel sob o escrutínio de Ruari. Os olhos dele demonstravam, ao mesmo tempo, raiva, diversão e um traço de acusação. Nervosa, imaginou se ele desconfiava ter sido ela a responsável pela retirada abrupta das noivas. Não pensara nas conseqüências de ser apanhada nesse jogo. Seria difícil encontrar uma explicação razoável sem expor o próprio coração.

- Onde estão seus convidados? - indagou, decidindo-se por uma abordagem direta.

- Como antes, a jovem assustou-se subitamente e voltou para casa.

- Estranho - ela murmurou, sentando-se e servindo-se de sidra.

- Muito, em especial porque cada uma delas expressava grande interesse nas bodas. E o mais curioso foi eu ter me perguntado se você teria algo a ver com isso. - Ruari recostou-se na cadeira e tomou um gole de vinho.

- Eu? O que eu poderia ter feito com suas noivas assustadiças?

- Nada, suponho.

- Exatamente, nada. Mesmo que eu falasse com elas, o que eu diria para que fugissem de você e de um casamento que qualquer jovem tentaria agarrar?

- É mesmo, o que poderia ter dito? Bem, foi apenas um pensamento passageiro. - Ruari se esticou na cadeira. - E como tem sido a vida em Gartmhor?

- Muito boa, e eu lhe agradeço. Tenho sido tratada com toda a cortesia reservada aos hóspedes. Ah, gostaria de fazer uma pergunta. Existe aqui uma criada chamada Mary?

- Metade das mulheres da Escócia e da Inglaterra se chama Mary.

- Eu sei, mas poderia haver aqui apenas uma, o que seria muita sorte.

- Por que a pergunta? - Ruari endireitou-se ao vê-la desviar o rosto com um olhar de culpa. - Isso não tem nada a ver com espíritos, tem?

- Você me avisou para nunca mais falar nisso - ela o lembrou.

- Todos em Gartmhor comentam. Portanto, pode esquecer a ordem.

- Certo. - Sorcha pegou um pedaço de pão e espalhou mel por cima.

- Então é o fantasma. Por que meu tio Ivor estaria interessado em uma criada chamada Mary? - Ruari escutou um leve grito e olhou para um canto mais afastado, onde uma moça se escondia. - O que você quer, Mary?

- Nada, milorde. Mandaram-me limpar a mesa, e estou esperando que termine.

- Espere em outro lugar, por favor.

Sorcha observou a criada sair correndo e imaginou se o destino acabava de revelar a moça que procurava. Ela correspondia à descrição de Ivor, embora não fosse mais tão jovem, e o medo em seu olhar a intrigou.

- Não precisa olhar para a mulher com tanta dureza, Sorcha. Ela se chama Mary, mas não dê atenção a algo que pensa ter ouvido de tio Ivor. Ela é uma moça muito tímida, que nada teve a ver com Ivor, pois é apaixonada por David, o marido, e muito fiel a ele.

Sorcha refletiu que não poderia haver liame mais forte entre duas pessoas do que a responsabilidade compartilhada na morte de outra, mesmo não sendo intencional. A jovem citada por Ivor também tinha um marido chamado David. Era muita coincidência, e, na primeira oportunidade, falaria com a tímida Mary.

- Claro que não. Uma mulher como ela não se interessaria por seu tio, que é muito franco e extrovertido.

- Não me parece um comentário sincero. Por favor, não a perturbe, ela é uma ótima criada.

- Está bem. Já teve notícias de meus parentes?

- Não, mas creio que eles não demorarão a se manifestar. - Ruari a fitou, intrigado. - Não vai repetir que estou perdendo tempo, que os Hay não têm o dinheiro pedido e que provavelmente não o conseguirão?

- Eu já lhe disse isso centenas de vezes, e repisar outras tantas seria um desperdício de fôlego. Não sou a favor de bater em um cavalo morto. Você logo perceberá a verdade do que afirmei.

- Se está me dizendo que não serei pago...

- É exatamente isso. Não se pode tirar moedas de uma bolsa vazia.

- No último verão, a bolsa de seu irmão estava lotada com meu dinheiro. Só quero o que me pertence.

- É um homem desagradavelmente obstinado, sir Ruari Kerr.

- Já estou acostumado com esse tipo de insulto.

Sorcha pensava em algo que ó ofendesse, quando Rosse entrou no salão.

- Alguém de Dunweare está se aproximando.

- Que bom! - Ela tentou levantar-se, mas foi contida por Ruari. - Não vai permitir que eu veja minha família?

- Seria insensato deixá-la aproximar-se de outro membro de seu clã. Sempre há problemas quando dois ou mais Hay se juntam. Rosse, por favor, acompanhe nossa hóspede aos aposentos dela.

Sorcha lançou um olhar feroz para Ruari antes que Rosse a tirasse do salão. Não sabia que tipo de plano poderia arquitetar durante um breve encontro com um de seus parentes dentro das muralhas de Gartmhor, mas ficou irritada por ele não dar-lhe a mínima chance de tentar. Agora ela teria de usar Ivor como espião, para descobrir o que acontecia entre Ruari e o enviado de Dunweare. Estava ansiosa para saber quem seria o mediador. Ao fechar a porta do quarto, chamou por Ivor. Seria muito agradável contar com um fantasma no qual Ruari se recusava a acreditar para decifrar segredos que ele se empenhava em esconder dela.

Ruari não ocultou a surpresa quando Neil entrou no salão nobre, a passos largos. Ele não esperava negociar com uma mulher. Isso diminuiria sua satisfação, pois um arraigado senso de cortesia não permitiria que ele se vangloriasse como desejava.

Depois de Neil estar sentada e ter sido servida de hidromel, Malcom entrou, carregando alguns papéis. Ruari divertiu-se ao ver o olhar apaixonado do homenzinho, que tropeçou várias vezes no trajeto até ocupar o lugar a seu lado. Nunca imaginara que Malcom pudesse gostar de uma mulher tão diferente dele. Sentiu pena do primo, pois não queria que ele sofresse.

- Lady Neil Hay, este é meu primo, Malcom Kerr - Ruari os apresentou e observou Malcom estender a mão trêmula, que Neil segurou e sacudiu com firmeza.

- Ele cuida dos negócios e das finanças de Gartmhor.

- Será melhor não perdermos tempo - Neil disse. - Não há como conseguir dinheiro dos Hay. Talvez meu sobrinho tenha o suficiente para convidá-lo a tomar uma cerveja na taverna, mas nada mais do que isso.

- Esta é uma negociação muito vazia, - Ruari afirmou. - Estou com suas sobrinhas. Milady deveria ao menos perguntar o que desejo, antes de dizer que não tem nada para me oferecer.

- Sei exatamente o que deseja. Milorde quer seu próprio resgate. A única maneira de conseguir isso é tomar o dinheiro de volta dos ingleses.

Malcom pigarreou e o nervosismo deixou sua voz mais aguda do que o habitual.

- Milady está dizendo que os Hay são indigentes?

- Exatamente, homenzinho. - Neil fitou Ruari. - E seu lorde sabe disso muito bem.

- Eu só tenho a palavra dos Hay - Ruari se defendeu.

- Que é tão confiável quanto a sua.

Quando Neil terminou a bebida, Malcom levantou-se depressa e quase derrubou a jarra na pressa de servi-la. Ela sorriu, agradecida, e o fitou com cautela. Ruari por pouco não riu.

Contudo o interlúdio engraçado não foi o suficiente para aplacar sua raiva. Todos afirmavam que os Hay não tinham dinheiro nem possibilidade de consegui-lo, e ele começava a acreditar nisso. O que o deixava em uma situação muito precária. Como suspender a negociação e devolver as reféns sem exigir dinheiro por elas, e ainda salvaguardar o próprio orgulho? Irritava-o não ver uma maneira de fazer isso. Ele se encurralara em um canto apertado e teria de se contorcer muito para sair da situação sem parecer um idiota completo. Mas até encontrar um desfecho precisaria agir como se não acreditasse na pobreza dos Hay, ou não se importasse com isso.

- Lady Neil, diga a Dougal Hay que ele terá a irmã e a prima de volta quando devolver o dinheiro que tomou de mim. Essa é a minha oferta pela vida delas, e não recuarei.

- Então pode continuar seu jogo idiota. Se for necessário, terei força suficiente para fazer o trajeto de ida e volta uma centena de vezes. - Levantou-se devagar. - Agora eu gostaria de ver minhas sobrinhas.

- Receio não poder atender seu pedido. Passei várias semanas em Dunweare e logo aprendi o risco de deixar dois Hay juntos, principalmente se forem mulheres.

- Ruari Kerr, será melhor não fazer nenhum mal a nenhuma delas. Se algo lhes acontecer, eu o encontrarei e o retalharei, como se faz com um porco. Saiba, milorde, que não se trata de uma promessa vã.

- Ah, eu conheço o valor de suas ameaças, Neil Hay. Pode confiar na minha palavra. Elas não sofrerão danos nem nos fios dos cabelos.

- Eu não me refiro apenas a danos físicos, milorde. - Neil assentiu quando ele franziu a testa, entendendo o que ela queria dizer. - Não tema, não o culparei pelo que acontecer entre Margaret e Beatham. Não posso esperar que milorde controle essa tolice melhor do que nós fizemos... e nós pouco pudemos fazer. Estou me referindo à minha Sorcha. Trate-a com muito cuidado, meu rapaz.

- Está se preocupando à toa. Sorcha sabe tomar conta de si mesma.

- Sei disso, mas não pense que ela é mais forte do que na verdade é. Agora tenho de voltar a Dunweare. Não gosto de passar muitas noites dormindo no chão duro.

Malcom levantou-se tão depressa que tropeçou no pequeno banco no qual estivera sentado.

- Milady, permita-me acompanhá-la até sua montaria. - Ele se aproximou de Neil e ofereceu-lhe o braço magro.

Ruari arregalou os olhos ao ver Neil sorrir, fazer uma mesura e passar o braço no de Malcom. Sua surpresa aumentou muito quando notou a leve afeição com que ela fitava o alto da cabeça de seu primo. Murmurou um adeus quando a mulher partiu, atônito demais para falar, e ainda rememorava o incidente quando Rosse sentou-se na cadeira à sua esquerda e serviu-se de hidromel.

- Ela já foi?

- Sim. Sabia que ela veio sozinha? - perguntou Rosse.

- Não, e isso me parece muito perigoso.

- Nosso Malcom foi da mesma opinião e insistiu para ela ser escoltada, ao menos enquanto estivesse nas terras de Gartmhor.

- Foi Malcom quem deu ordens para que meus homens a acompanhassem?

- Ele ordenou a um deles que seguisse com ela, e ofereceu-se como segundo acompanhante. - Rosse sorriu quando Ruari o fitou boquiaberto por alguns segundos, antes de cair na gargalhada.

 

Impaciente, Sorcha batia o pé no chão enquanto esperava Ivor parar de rir. Não sabia o que ele achara tão engraçado, pois o fantasma não chegara a concluir a sentença antes de gargalhar. Pelo que pudera deduzir, a comicidade se devia a algo acontecido com Neil e Malcom, o tímido contador de Ruari.

- Ah, você deveria ter visto aquilo - Ivor disse, com a voz rouca de tanto rir.

- Não permitiram que eu saísse do meu quarto. Por isso, pedi que fosse até o salão. Estou esperando para saber o que aconteceu.

- Pois eu lhe disse.

- Disse apenas que minha tia é uma mulher gloriosa, que Malcom é um idiota apaixonado, e depois começou a dar risadas. Isso não esclarece nada.

- Não fique irritada, moça. Eu relatarei em detalhes o que se passou entre sua tia e o teimoso do meu sobrinho.

Para seu alívio, Ivor era capaz de contar uma história do começo ao fim, ao contrário de Crayton. Quando falou sobre Neil e Malcom, ela entendeu o motivo da diversão. Porém, somente ficaria sabendo o que acontecera fora do salão nobre quando falasse com a tia. Esperança vã, pois Ruari a manteria afastada dos parentes durante a estada cm Gartmhor.

- Então ele continua a exigir um dinheiro que meu clã não tem - Sorcha murmurou, sentando-se na cama.

- Ruari não pode fazer muita coisa. - Ivor aproximou-se dela. - Ele tomou você e sua prima como reféns para pedir um resgate. Agora não pode simplesmente pedir desculpas, dizer que foi um engano e devolvê-las a Dunweare.

- Talvez não, mas ele tem de acreditar que os Hay não têm dinheiro. Por que insistir nesse ponto?

- Creio que Ruari está ganhando tempo até pensar em uma maneira de resolver a situação, mantendo o orgulho intacto. Ele não quer parecer um tolo.

- Ele já perdeu essa batalha. - Sorcha sorriu de leve quando Ivor riu. - Acho que vi a Mary de quem me falou. Ela está mais velha, é claro, mas ainda é parecida com a sua descrição. E também ficou muita constrangida quando eu contei a Ruari que você havia perguntado a respeito de uma moça chamada Mary.

- Ela é casada com David?

- Sim, e devotada a ele, segundo Ruari. Podem estar unidos na culpa. Preciso encontrar-me a sós com ela, o que pode levar um tempo, pois Mary está com medo de mim.

- Cuidado, moça. Se eles realmente acreditarem que está falando com meu espírito, poderão se tornar perigosos. Eles me mataram.

- Nem eu nem você acreditamos que se tratou de um assassinato. Está apenas raivoso por eles não terem dado uma explicação honrada para sua morte.

- Isso é verdade. Eles deveriam ter pensado em uma história que não fizesse meus parentes me julgar um estorvo.

- Calma, sir Ivor. Farei o possível para limpar seu nome.

- Sei disso, e jamais serei capaz de retribuir o favor. Uma maneira de demonstrar a profundidade da minha gratidão será mantê-la informada de tudo o que acontece nesta fortaleza. Esteja preparada para a visita do meu sobrinho.

- Por que ele viria me procurar? - Sorcha não gostou do sorriso libidinoso de Ivor. - Ah, Ruari espera que eu aqueça a cama dele durante minha estada no castelo.

Ivor ficou sério.

- Acho que é um pouco mais do que isso. Estive seguindo Ruari. Vi Rosse tentando abrir-lhe os olhos e acho que ele está começando a prestar atenção às palavras do amigo.

- O que quer dizer com isso?

- Não se apresse em mandá-lo embora.

Ele desapareceu antes que Sorcha pudesse pedir mais explicações. Pensou no aviso vago e tentou evitar ter esperanças. Embora Ivor fosse mais claro e específico do que Crayton, ainda era sutil. Tivera a impressão de que ele dissera que Ruari finalmente a via como algo além de um objeto de paixão. No entanto, não ousava confiar nesse julgamento. Seu coração e sua felicidade estavam em jogo. Nunca se recuperaria do ferimento, se Ruari apenas a usasse e a abandonasse dessa vez.

Parado diante da porta do quarto de Sorcha, Ruari estava nervoso. Não gostava da incerteza que ela o fazia sentir. Mais uma prova de que Rosse estava certo. Fugia de Sorcha por causa das emoções que ela despertava nele. Fora esse indício de covardia que o impulsionara a ir confrontá-la, além disso, não suportava pensar que o medo poderia fazê-lo destruir a própria felicidade. Respirou fundo e bateu na porta.

Escutou os leves passos se aproximar e pensou no que diria. Não poderia revelar que estava ali para tentar compreender os emaranhados sentimentos que o afligiam. Tampouco queria dar a impressão de estar em busca de uma agradável relação física, e nada mais.

Sempre fora confiante com as mulheres, sabendo o que dizer e como agradá-las. Nada disso funcionaria com Sorcha, pois ele não queria se dedicar a nenhum tipo de jogo com ela. Gostava da honestidade do relacionamento deles, embora no momento isso envolvesse raiva e insultos. Quando ela abriu a porta e o fitou com cautela, Ruari decidiu que a ocasião pedia a mais pura sinceridade mesmo se, para isso, tivesse de confessar que estava confuso a respeito do que sentia e queria. Rezou para que Sorcha fosse igualmente honesta e para que as verdades que ela dissesse fossem as que ele queria ouvir.

- Milorde - Sorcha murmurou ao permitir que ele entrasse no quarto. - A que devo a honra de sua presença?

- Achei que quisesse saber o que se passou entre mim e sua parenta.

Sorcha hesitou antes de fechar a porta.

- É bondade sua considerar meu interesse, mas já obtive um relatório do encontro. Não gostará de saber, mas seu tio Ivor esteve lá.

- Sorcha - ele não escondeu a irritação -, vim até aqui procurar uma forma de paz entre nós, e sua mania de falar sobre espíritos pode comprometer minha intenção. - Sacudiu a cabeça, andou de um lado a outro e parou diante dela. - Por Deus, se pretende falar com um espírito em Gartmhor, não poderia escolher alguém de quem sentimos falta ou com quem desejamos conversar? Por que tem de falar com um bêbado que caiu da janela com as ceroulas flutuando atrás dele?

Um vento forte e gelado passou pelo quarto, bateu nas costas de Ruari, fazendo-o cambalear, e parou tão subitamente como começara. Ele lutou contra a vontade de olhar ao redor para procurar o tio e fitou a seteira, que era a única janela de Sorcha.

- Parece que o tempo virou - ele murmurou e voltou-se no instante em que Sorcha revirava os olhos e alisava os cabelos revoltos pelo vento.

- Em Gartmhor é comum um pequeno vendaval passar por uma janela tão estreita e circular pelo quarto?

- O que pretende insinuar, Sorcha?

- Você insultou Ivor, e é evidente que ele está perto o suficiente para escutá-lo. Como fantasma, ele não pode agredi-lo pela ofensa, portanto, demonstra seu desagrado de outras maneiras.

- Se o espírito dele está aqui, deve estar enrijecido contra injúrias. A morte ignominiosa de tio Ivor é objeto freqüente de pilhérias.

Ruari deu um pulo quando a tampa da pesada arca de roupas foi fechada sem que ninguém nela encostasse. Inquietou-se. A crença de Sorcha nos espíritos o estava influenciando a ponto de ele não conseguir simplesmente ignorar essas ocorrências estranhas. Foi até a mesa de cabeceira, serviu-se de sidra e tomou um grande gole antes de encará-la. Sorcha o fitava como se adivinhasse seus pensamentos.

- Alguns truques inteligentes não vão mudar meu modo de pensar - Ruari afirmou. - Bem, eu vim até aqui para discutir o assunto do resgate, e não o velho tolo do meu tio. - Uma cadeira foi virada e jogada no chão. - Ele sempre foi um bastardo mal-humorado - murmurou, e não se surpreendeu quando uma rajada de vento gelado soprou novamente no quarto.

- Talvez não devêssemos mencioná-lo mais - disse Sorcha em voz baixa e imaginou se Ruari se daria conta de que acabava de agir e falar como se acreditasse no sobrenatural. - Milorde o deixou irritado. Fale-me a respeito de minha tia e Malcom. Disseram-me que ele se interessou por Neil.

Ruari riu e sacudiu a cabeça.

- Ele está tão apaixonado que tropeça nos próprios pés. Malcom nunca foi muito ágil, mas quando sua tia está por perto ele é capaz de se machucar de tanta falta de jeito.

- Oh, Deus!

- Oh, Deus, mesmo. No começo tive de me conter para não rir e ofender os sentimentos de Malcom, mas, quando sua tia saiu, comecei a pensar...

- O quê? - Sorcha o pressionou diante da hesitação.

- Bem, não sou um bom juiz nesses assuntos, mas me pareceu que ela também se interessou por Malcom. Sua tia Neil sorriu e olhou-o com ternura. Trata-se de um casal estranho, e não me lembro de duas pessoas tão diferentes como Malcom e ela.

- Eles formam uma dupla curiosa, mas também é possível que estejam cientes de coisas que não podemos ver. Minha tia não gosta de homens que tentam atrair seu interesse, mas aceitou as tentativas de Malcom em cortejá-la.

Ruari sentou-se na cama e observou Sorcha enquanto ela também se servia de uma caneca de sidra. Sentiu o corpo se contrair de desejo, porém sabia que não conseguiria tomá-la nos braços de novo, a menos que lhe oferecesse mais do que paixão. Sorcha não fizera exigências, mas o instinto o advertia de que ela continuaria a recusá-lo se ele estivesse apenas procurando um amor fortuito por algumas noites ou durante a estadia dela. Decidiu ser direto.

- E o que é preciso para cortejá-la, Sorcha Hay?

- Mais do que sangue quente e um belo par de olhos. - Sorcha encarou-o e ficou tensa ao sentir que ele planejava falar-lhe abertamente. Não tinha certeza do quanto deveria exigir ou do quanto estava disposta a ser paciente.

- Espera votos de amor imorredouro e promessas de casamento? - Ruari perguntou, incapaz de eliminar o sarcasmo da voz.

- Espero ser tratada com mais consideração do que um mero objeto de prazer sob os lençóis.

- Ah, você sempre foi mais do que isso.

- Por que está me perguntando essas coisas?

- É possível que eu queira saber qual o caminho que deverei trilhar para voltar à sua cama.

- Não pode esperar que, eu me deite todas as noites com um homem que passa os dias procurando por uma esposa. - Aproximou-se para analisar melhor cada mudança de expressão dele.

- Na verdade, cheguei ao final da lista no momento. A última noiva que eu tinha para considerar foi embora tão depressa quanto as duas anteriores. - Fitou-a especulativamente. - Tem certeza de que nada teve a ver com isso?

Sorcha levaria muito tempo para confessar que pusera as moças para correr, ou talvez nunca d fizesse.

- Por que eu haveria de interferir em sua busca por uma noiva?

- Eu tinha esperança de que confessasse ter feito isso por não querer que eu escolhesse nenhuma delas.

- O que faria bem para a sua vaidade, não é?

- E também me ajudaria a decidir o que falar em seguida. - Ruari fez uma careta. - Talvez eu devesse dizer logo o que está na minha cabeça e no meu coração.

- Isso certamente simplificaria as coisas. Do contrário, podemos passar horas tentando conversar, fazendo perguntas cautelosas e dando respostas vagas.

- É verdade. Não posso ler sua mente, e você não pode ler a minha. - Ele franziu o cenho. - Não pode fazer isso, não é?

Sorcha riu e sacudiu a cabeça.

- Não, claro que não.

- No momento nem adiantaria, pois meus pensamentos giram tanto que nem eu mesmo posso decifrá-los. Há apenas uma coisa da qual tenho certeza, e nada mudará esse fato. Eu a desejo em minha cama - ele sorriu -, ou na sua. Ou em qualquer outro lugar.

- Creio que entendo. Eu também o desejo, e nunca fiz segredo disso. Quando esteve em Dunweare e achei que, ao partir, eu nunca mais o veria, a paixão foi o suficiente. Eu não quis perder a oportunidade de experimentar algo que eu sabia que seria muito bom. Bem, eu provei e, embora ainda anseie por isso, agora tenho um pouco mais de discernimento. Não preciso me vender tão barato.

- Nem mesmo para recuperar o plantel masculino de Dunweare? - Ruari criticou a si mesmo pelo toque sombrio de sua voz.

Sorcha deu uma risada, mas o olhar firme de Ruari a fez ficar séria.

- Você não acreditou nisso, não é? Seria uma espécie de insulto para mim se tivesse acreditado.

- Não me senti exatamente lisonjeado ao escutar que fui usado como reprodutor.

- Mereceu aquelas palavras ao dizer que o que houve entre nós foi irrefletido. Tive a impressão de que se referiu a um crime terrível, que lamentaria pelo resto de seus dias.

Ruari passou os dedos pelos cabelos.

- Trocamos palavras ásperas, que não eram verdadeiras. Vamos esquecê-las e fazer as pazes.

- Muito justo, mas não é o suficiente, meu nobre cavaleiro.

- Está se referindo ao resgate?

- Eu gostaria de considerar que esse é um assunto entre você e meu irmão. Mesmo quando era eu quem o mantinha refém, isso sempre disse respeito a Dougal. Como você sugeriu da última vez, vamos manter o resgate como um assunto à parte. Já deixei claro meu ponto de vista sobre a virada do jogo e não tenho mais nada a dizer.

- Nem eu. - Ruari não acrescentou que desejaria poder esquecer tudo aquilo. - Então o que deseja?

- Mais do que paixão, e não posso ser mais específica. Não pedirei que me diga coisas que não sente e não o forçarei a aceitar um casamento que não quer. Mas quero mais do que deixá-lo excitado quando estou por perto.

Ruari fitou-a por um momento e notou a sinceridade cm seus belos olhos. Ela não exigiria dele mais do que estivesse disposto a dar, nem usaria de armadilhas para levá-lo ao altar. Com ela, poderia usar da mesma franqueza que usava com amigos e parentes. Sorcha pedia apenas um preço mais alto por sua paixão e, embora não oferecesse mais pela dele, Ruari sabia instintivamente que havia algo além. Por isso hesitava em voltar a ser sua amante.

- Sorcha, eu lhe garanto que meus sentimentos excedem a paixão, embora eu não saiba dizer do que se trata. Sua imagem tem me perseguido desde que deixei Dunweare, e em todas as candidatas a noiva, tenho procurado seus olhos, sua inteligência e vivacidade. - Ruari a puxou pela cintura. - Às vezes, acho que isso me deixa bastante irritado com você.

Sorcha sorriu e passou os dedos nos cabelos dele.

- Sim, há ocasiões em que eu também o amaldiçoo. Ela se surpreendeu que Ruari não escutasse seu coração disparar. O pouco que ele dissera suplantara suas expectativas. A semente plantada em Dunweare ainda era uma planta tenra, mas com chance de se fortalecer. Deduzira, pelas palavras de Ruari, que o coração dele fora atingido e pretendia fazer bom uso da situação.

O que não era, porém, suficiente para que desnudasse sua alma e revelasse o quanto o amava. Ele nada pedira, e era provável que, além de suspeitar desse amor, soubesse que a força do sentimento a deixava relutante em tornar-se amante dele mais uma vez. Por isso decidiu que retribuiria na mesma medida o que ele podia lhe entregar. Se ele quisesse mais, teria de doar mais.

- Embora relute em admitir - Ruari começou -, sabia que entre nós havia algo mais profundo que paixão. Se houvesse apenas isso, por melhor que fosse, eu teria sido capaz de encontrar um unguento para a dor que venho carregando como se fosse uma cicatriz de guerra. Mas desde que deixei Dunweare, ninguém mais esteve em minha cama, porque eu sei que nenhuma mulher além de você conseguiria me satisfazer.

- Quer dizer que se manteve celibatário durante todo esse tempo?

- Sim, embora eu tenha dito de uma forma mais bonita.

- Ah, sim, foi muito bonito. - Sorcha sorriu e imaginou se ele tinha noção de quanto aquela revelação significava para ela.

- Presumo que também tenha permanecido sozinha, não?

- Não, uma verdadeira horda de homens passou pelo meu quarto. - Sorcha conteve o riso ao ver o olhar sombrio de Ruari. - Que tolo, é claro que sim!

- Deve tomar cuidado com as brincadeiras, querida. Existem coisas que um homem pode não achar divertidas. - Ele a fitou. - Então eu lhe concedi o esperado?

- Sim... - Sorcha beijou-o nos lábios. - Mas acho que ainda tem muito trabalho pela frente.

Ruari desamarrou a tira de couro e acariciou-lhe os cabelos soltos.

- Muito trabalho, é?

- Oh, sim. Poderia facilmente levar a noite toda.

Ruari riu e deitou-se de costas na cama, segurando-a. Os cabelos dela caíram para a frente, e ele meneou o rosto, inspirando fundo para saborear a sensação e o cheiro das madeixas. Gostaria de rasgar o vestido de Sorcha e de possuí-la, mas também queria mover-se devagar para desfrutá-la plenamente. Enquanto desatava o corpete, ele rezava para encontrar um meio-termo.

Beijou-a com ardor, ajudando-a a tirar o vestido. No momento em que a viu despida, deteve-se na contemplação do corpo esguio enquanto se livrava das próprias roupas. E quando por fim se abraçaram, nus, após tantos meses, ele admitiu que nenhuma palavra seria capaz de descrever como sentira falta de Sorcha.

Virou-se na cama para que ela ficasse sob ele. Beijou e acariciou com reverência cada centímetro do corpo macio, e a maneira como ela se contorcia, gemia e o tocava o inflamou a ponto de fazê-lo perder o controle.

Quando Sorcha gritou por ele, trêmula de ansiedade, Ruari a penetrou lentamente e estremeceu com a força do prazer que o inundava. Uma sensação de familiaridade, de estar no lugar ao qual pertencia, acometeu-o quando ela o envolveu com braços e pernas. Gemendo o nome dela, começou a se mover, conduzindo-os rapidamente à culminância cega da paixão. Ao largar-se nos braços dela, saboreou a maneira musical como os nomes deles se mesclavam quando ambos gritavam com a intensidade do êxtase. Estavam em perfeita harmonia, e Ruari rezou para que nada interrompesse aquele vínculo.

Sorcha espreguiçou-se e olhou para Ruari, deitado de bruços a seu lado. As primeiras luzes da aurora começavam a penetrar no quarto. Deslizou os dedos pela coluna dele e pensou em como a noite passara depressa. A união de seus corpos fora doce e quente, e ela odiava pensar que isso acabaria. Sabia que poderiam saborear o prazer do amor a qualquer hora, mas o entendimento que haviam conseguido após a longa separação acrescentara algo que ela não conseguia descrever nem nomear.

Acariciou as nádegas firmes e ele se mexeu sob o toque, sendo lentamente despertado pela paixão. Inclinou-se, beijou-lhe as costas e sorriu ao escutá-lo murmurar seu nome.

Ele se virou e tentou puxá-la, mas Sorcha se negou a obedecer. Os sons que Ruari emitia enquanto ela o beijava ao longo do corpo eram uma mescla de prazer e protesto pelo fato de não poder retribuir as carícias. Quando ela alcançou com os lábios sua ereção, ele entrelaçou os dedos nos cabelos dela e direcionou os beijos íntimos.

Emitindo um grito rouco, Ruari a segurou pelos braços e puxou-a para cima. Sorcha riu suavemente ao senti-lo dentro de si. Por um instante, ficou imóvel, saboreando o enorme prazer de ser preenchida por sua masculinidade, mas então Ruari a segurou pelos quadris e a incitou a se mover. Sorcha depressa assumiu o controle, levando-os ao êxtase que haviam experimentado diversas vezes nas últimas horas.

Sorcha espreguiçou-se com languidez e se aconchegou a ele. Ainda não tivera o que desejava, mas estava esperançosa após tudo o que Ruari dissera e fizera durante a noite.

- Ficarei o dia todo cambaleante, exausto para cumprir minhas tarefas - ele disse e a beijou no alto da cabeça.

Sorcha sorriu e imaginou que os homens dele desconfiariam do que acontecera ao vê-lo com as pálpebras pesadas e de bom humor.

- Espero que seus homens não se excedam nas brincadeiras e provocações. Não pretendo passar o dia todo escondendo meu rubor.

- Eles provavelmente a encherão de elogios e presentes porque sofreram com meu mau humor durante muitos meses.

- Ah, o celibato não o deixa alegre nem caridoso. Ruari riu e sacudiu a cabeça.

- Não. Eu rosnava para tudo e para todos como um cão raivoso.

- Confesso que eu também não fui a melhor das companhias.

Ele estava prestes a responder quando Sorcha deu um gritinho e cobriu-se até o queixo. Ruari não demorou a perceber que ela acreditava que um de seus espíritos estava no quarto. Surpreendeu-se por não se aborrecer e olhou ao redor, mas nada viu.

- Algum de seus espíritos está no quarto? - Ruari a abraçou e puxou-a para mais perto.

- Ivor veio nos visitar - Sorcha respondeu, olhando para o canto mais afastado. - Pensei que tivesse concordado em respeitar minha privacidade.

- Acabei de chegar. - Ivor aproximou-se do pé da cama e franziu o cenho para Ruari. - Espero que ele não a tenha seduzido de volta para a cama dele.

- Ele não fez isso, e não sei por que você parece tão desconfiado e irritado. Foi você quem me disse que eu deveria escutar Ruari.

- Então ele confessou que a amava?

- Não exatamente, e isso não é da sua conta. Lembra-se do que conversamos sobre a invasão da minha vida íntima? Poderia retirar-se agora?

- Não sei por que está tão chocada, uma vez que já se cobriu.

- Sim, mas estou na cama com um homem - ela afirmou, corando. - Não quero que veja isso.

- Quanto recato! - Ele ergueu a mão, impedindo-a de responder. - Não me repreenda, já estou de saída. Trate de se vestir.

- Por quê? Mal amanheceu.

- Alguns dos homens de Ruari estão prontos para acordá-lo. Se não o encontrarem no quarto dele, logo saberão onde ele está.

- Vá embora, velho libertino - Ruari gritou, irritado por ela estar falando com outro homem. - Ele já foi? - perguntou depois de uns instantes.

- Sim, ele desapareceu - respondeu Sorcha antes de se desvencilhar de Ruari e começar a se vestir.

- Então por que saiu da cama e está se vestindo? Nenhuma tarefa a aguarda.

- Não, mas Ivor disse que alguns de seus homens logo estarão aqui à sua procura.

Ruari levantou-se e enfiou as ceroulas. Ele gritara com um fantasma que não podia ver nem ouvir e o mandara sair. Disse uma imprecação em voz baixa enquanto se vestia e imaginou quando começara a acreditar nas afirmações de Sorcha a respeito dos espíritos.

Não teve a chance de queixar-se sobre como ela o estava fazendo crer em coisas das quais não tinha provas, pois logo foram ouvidas batidas na porta. Ele deu um pulo. Ivor dissera que seus homens viriam e, ao ouvir Rosse chamá-lo do corredor, Ruari sentiu-se mais perto de acreditar.

- Milorde, será melhor que venha conosco.

- Por quê? - Ruari abriu a porta.

- Pegamos alguns Hay esgueirando-se para dentro do pátio interno ontem à noite - Rosse explicou e anuiu para Sorcha quando ela se aproximou de Ruari.

- Meus parentes estão aqui? - ela perguntou. - Vocês não os feriram, não é?

- Não, embora possa ter havido alguns arranhões e hematomas quando foram apanhados.

- Como eles chegaram tão perto? - Ruari perguntou. - Eles deveriam ter sido vistos antes de entrar pelos portões.

- Os homens nas muralhas, inclusive eu, foram distraídos por uma senhora que se lamentava ao lado dos portões. Ela gritava que havia perdido as crianças e que precisava de cães e dos olhos atilados dos homens de Gartmhor para encontrá-las. Isso poderia ter funcionado, exceto que estávamos perturbados pelo fato de nunca termos visto a mulher. Nossa hesitação em decidir o que fazer foi quase o suficiente.

- Descobriram quem era ela? - Sorcha perguntou.

- Parece que se chama Eirie. Alguns dos Hay escaparam, e a chamaram ao desaparecer no escuro. Fiquei surpreso ao ver a rapidez com que ela sumiu com eles.

- O que fizeram com os que foram apanhados? - Ruari acabou de amarrar o gibão.

- Nós os prendemos na masmorra.

- Na masmorra?! - Sorcha gritou.

- Nada tema, querida - Ruari disse com voz calma e beijou-a na ponta do nariz. - Eu os manterei lá por um dia e uma noite, e depois os mandarei embora, com uma mensagem para seu irmão.

- Posso visitar os prisioneiros?

- Não. Ainda acredito que colocar dois Hay juntos significa problemas. Fique aqui, não demorarei. Preciso apenas fazê-los entender que serão libertados se jurarem não tentar mais capturá-la.

- Não será fácil conseguir isso.

- Não se preocupe. Eu juro que eles não ficarão por muito tempo naquele lugar imundo e escuro.

Sorcha suspirou e fechou a porta depois que Ruari saiu com Rosse. Embora cansada, não teve vontade de voltar para a cama vazia. Sorriu. Ela se lavaria e faria uma lauta refeição. Uma noite de amor a deixara faminta.

Estava terminando de trançar os cabelos quando bateram de novo na porta. Arregalou os olhos ao ver Mary entrar, muito agitada. Cautelosa, Sorcha fechou a porta e observou a mulher andar de um lado a outro antes de encará-la.

- Milady andou falando com Ivor, não foi? - Ela torcia as mãos na frente do avental.

- Sim, eu vi o espírito de Ivor e falei com ele.

- Santo Deus! - Mary gemeu e sentou-se na cama, escondendo o rosto entre as mãos. - Ele quer que sejamos enforcados por nossos crimes.

- Não é isso. - Percebendo que ela não acreditava, Sorcha a segurou pelos ombros. - Sossegue. Ivor não quer a morte de ninguém.

- Então por que ele anda assombrando o castelo? Algumas vezes posso senti-lo, e tenho certeza de que me observa.

- Ele quer apenas que alguém diga a verdade. Vocês não lhe deram uma morte respeitável.

- Se eu disser a verdade, serei enforcada junto com meu marido. Não posso espalhar que nós matamos o tio de milorde. Se o que aconteceu naquela noite tiver de ser mantido em segredo para sempre, eu o farei, pois pelo menos permanecerei viva.

- Não se tratou de assassinato. Você ou seu marido planejaram matar sir Ivor?

- Não, mas sua morte foi causada por nossa luta com ele.

- Não, isso aconteceu por ele ter dormido com a mulher de outro homem. - Sorcha sorriu ao ver Mary enrubescer. - Nem você nem seu marido serão enforcados pelo que não passou de um trágico acidente.

- Se é nisso que Ivor acredita, por que ele continua assombrando o castelo?

- Seu espírito não encontra descanso enquanto todos zombam dele. Ivor é um homem orgulhoso e não suporta que o rotulem como um bêbado que tropeçou para fora de uma janela. Suponho que tenha sido o marido da mulher que, com raiva, atirou as ceroulas dele pela janela atrás do corpo.

- Sim, foi David quem fez isso. Tem certeza de que não seremos enforcados? Isso tem me atormentado há anos, e eu gostaria de procurar a absolvição.

- Você nem ao menos pediu absolvição ao sacerdote?

- Não, ele é um Kerr e poderia contar a alguém.

- Bem, agora você revelará o que houve, em vez de continuar a se atormentar. Por que não se lembra do pobre Ivor se precisa de energia para encarar Ruari? Imagine como ele tem sofrido, preso aqui, sem poder terminar a jornada. Pense em como ele se atormenta, sabendo que o clã se envergonha de sua morte, e que esse desprezo nasceu de uma mentira. - Sorcha segurou a mão de Mary e levou-a para fora do quarto. - Falará com Ruari agora.

Mary permitiu que Sorcha a levasse até o pequeno recinto ao lado do salão nobre, onde Ruari e Malcom passavam horas examinando os livros de contabilidade e tentando encontrar maneiras de aumentar a fortuna de Gartmhor. Sorcha se aborrecera quando Ruari não retornara, mas tinha sido avisada de que a presença dele fora requisitada por Malcom.

- Eu deveria primeiro falar com meu marido - Mary tentou protestar quando Sorcha abriu a porta e a empurrou para dentro do aposento.

- Não, ele tentará impedi-la de fazer isso, e estou ficando cansada de resolver os assuntos de Ivor, quando tenho problemas suficientes para solucionar.

Ruari e Malcom se ergueram para saudá-las ao vê-las entrar.

- Sorcha, aconteceu algo de errado?

- Não. Esta mulher trêmula tem algo para lhe dizer. Ela mantém um segredo no coração há anos. Já está na hora de todos saberem a verdade sobre Ivor.

Mary começou a gaguejar, mas depois contou toda a história. Quando Ruari mandou chamar David, Sorcha saiu do gabinete. Ela se deteve apenas para conseguir uma promessa sussurrada de que o casal não seria enforcado, embora pudesse sofrer algum castigo pelas mentiras e por difamar Ivor. Ela agora o avisaria de que ele poderia descansar em paz.

Voltando aos seus aposentos, Sorcha sentou-se na cama e olhou ao redor. Não viu Ivor, mas sabia que ele estava perto. Não era fácil deixar que os espíritos partissem depois que se tornavam amigos. Sentia saudades deles, mas seria crueldade retê-los.

- Sei que está aqui, Ivor, e desde que Mary veio confessar.

- Não ouvi Mary dizer que revelaria tudo diante de mais alguém - retrucou Ivor, ainda muito escurecido para que Sorcha o visse.

- Ela já falou com Ruari. Tinham mandado chamar o marido quando saí.

- O que meu sobrinho disse?

- Ele ficou irritado por terem permitido que seu nome fosse manchado e por terem mantido o segredo por tanto tempo. Você está numa posição melhor, embora ele ainda veja o fato como a perda estúpida de um parente.

- Concordo com ele, mas agora é tarde. Então está feito.

- Sim - Sorcha assegurou. - Vá, Ivor.

- Tenho receio do lugar para onde vou.

- Você cumpriu uma penitência ao ser forçado a permanecer aqui. Creio que a partir de agora será bastante feliz.

- Tem certeza de que ela não será enforcada?

- Absoluta. Ruari prometeu.

Um longo momento se passou, e Sorcha começou a pensar que ele se fora, quando ouviu um murmúrio junto ao ouvido.

- Obrigado. Não deixe meu sobrinho escapar. Ele a quer e precisa de você.

Sorcha rezou para que ele estivesse certo. Permaneceu sentada por quase uma hora na cama antes de aceitar o fato de que Ivor a deixara. Quando Ruari entrou no quarto, com um olhar sombrio, temeu que ele tivesse determinado o enforcamento.

- O que decidiu sobre Mary e David? Ruari sentou-se a seu lado e segurou sua mão.

- Ainda não pensei em uma punição pelas mentiras deles, mas logo o farei. A história de David sobre os acontecimentos daquela noite combina com o que Mary contou e, portanto, eles estão dizendo a verdade.

- A versão deles também é igual à de Ivor.

- Ivor está sabendo que a verdade foi revelada?

- Sim, eu disse a ele. Ivor já foi embora.

- Embora para onde?

- Não posso responder porque também não sei.

- Sentirá falta dele?

- Sinto falta de meus espíritos quando eles vão embora.

Ruari a abraçou, deitou-se na cama com ela e sorriu diante de seu espanto.

- Sinto que é meu dever aliviar sua tristeza. Sorcha o aperto nos braços e sorriu.

- Jamais dirão que Sorcha Hay impediu sir Ruari Kerr de cumprir seus deveres.

Ela deixou escapar um gemido de prazer quando Ruari a beijou. Achava fácil acreditar que o conquistaria quando ele a beijava com carinho. Esperava que não estivesse se iludindo. Segurou o rosto de Ruari, beijou-o e decidiu que a melhor maneira para acabar com aquele tormento seria saborear a paixão que compartilhavam.

Capítulo IV

- Outros Hay? - Ruari resmungou e franziu o cenho para Sorcha quando ela riu. Sorcha amava a família, que, na semana anterior, armara uma grande confusão. Gostaria de ter permissão para encontrar-se com algum deles e dizer que não precisavam empenhar-se tanto em salvar Margaret e a ela, mas desconfiava de que isso pouco adiantaria. Todos sabiam que Ruari e Beatham jamais fariam algum mal a elas. O único propósito desses atos era libertá-las para que nenhum resgate fosse pago. Fazia cinco dias que ela se tornara outra vez amante de Ruari, e tinham sido cinco as tentativas de resgate. A perseverança a surpreendia.

- Até onde eles chegaram dessa vez? - Ruari perguntou a Rosse.

- A ajudante de cozinha os encontrou andando na ponta dos pés na horta - respondeu Rosse.

- Eles quase entraram no castelo? Que artimanha usaram para distrair os que deveriam estar de prontidão?

- Uma jovem muito bonita, de cabelos longos e vestido solto, que parecia flutuar ao vento. Era um anjo, e até eu fiquei fascinado. Ela nos manteve interessados em uma história incrível a respeito de como ela fora levada pelas fadas, de como escapara e de como, no momento, precisava de nossa ajuda para encontrar seus parentes.

- Deve ser Euphemia - Sorcha falou, chocada pelo fato de os parentes terem usado a menina, mas admitindo que ela fora uma distração perfeita.

- Começo a pensar que todo o seu clã está saltitando em minhas terras - Ruari resmungou e, em seguida, voltou-se para Rosse. - Você não capturou essa jovem, não é?

- Não. A criada deu o alarme, e nós corremos para ver do que se tratava. A jovem embrenhou-se na floresta.

- Foi o que pensei. Esta semana, os Hay provaram ser muito ardilosos. Como é que conseguem vencer as muralhas?

- Eles as escalam.

- Escalam ?

- Sim. Parece que a maioria pode galgar as pedras mais lisas, e o fazem como gatos.

- Isso mesmo. Nada representa um empecilho para nós - Sorcha disse, mas tratou de ficar quieta diante do olhar feroz de Ruari.

Ela esperou em silêncio enquanto os dois discutiam a respeito dos homens capturados. Quando Ruari deu a mesma ordem que já dera outras vezes naquela semana, e Rosse saiu para levar os últimos prisioneiros para a masmorra por um dia e uma noite antes de soltá-los, ela comentou:

- Não posso entender de onde vem tanta gente. Dunweare deve estar vazio.

- Acho que esses dois homens são os mesmos que capturamos há dois dias e que já foram soltos.

- Mas eles juraram que não voltariam a tentar. Não acredito que um Hay tenha faltado com a palavra.

- Pensando bem, eles sempre prometeram não tentar resgatá-las de novo daquela maneira. Preciso descobrir uma promessa que não permita que eles nos rodeiem de novo.

Sorcha não teve como não rir.

- Neil deve ser a responsável por esses trocadilhos. Ela sempre foi perita nisso. Ela virá aqui pela terceira vez em um ou dois dias. Eu poderia apenas acenar-lhe da porta?

- Pensarei nisso. Bem, hoje é um belo dia, e acho que talvez se interesse por um passeio por minhas terras.

O que acha?

- Eu gostaria muito. Quando vamos?

- Assim que estiver pronta.

Sorcha correu para o quarto. Não tinha muitos vestidos, e a maioria era grande, mas decidiu usar o azul com lindas mangas bordadas. Queria dar uma boa impressão ao povo de Gartmhor, mesmo com roupa emprestada.

Hesitou um momento antes de afivelar o cinto da espada e enfiar a adaga na bota. Ruari concordara em deixá-la andar com as armas depois de ela prometer que não as usaria para tentar escapar nem para ajudar os parentes a resgatá-la. Pensou nos últimos cinco dias que passara com ele. Ruari perdera muito de sua reserva habitual, e, mesmo sem ter dito as três palavras pelas quais ela ansiava, deixava transparecer que gostava dela. Não escondia a ternura e o apreço. Tecia elogios, que ela não duvidava de que fossem sinceros. E não houvera mais visitas de possíveis noivas.

O que mais a perturbava era a falta de conversas sobre o futuro e sobre o que aconteceria quando, ou se, Margaret e ela voltassem a Dunweare. Ruari ainda não encontrara uma maneira de desistir do resgate sem ficar com o orgulho ferido. No entanto, se ele pretendia um futuro para ambos, deveria ao menos tocar no assunto.

O futuro de Margaret também era incerto, embora ela e Beatham se comportassem como se houvessem conseguido tudo o que desejavam. A família do rapaz estava furiosa com o fato de Margaret se encontrar em Gartmhor. Ruari recebia mensagens iradas e tentava acalmar os parentes. Nenhuma das partes queria ceder. Beatham não desistiria de Margaret, e os pais dele se recusavam a aceitar o casamento. Um comentário de Malcom a fizera pensar que Ruari estava se esforçando para encontrar um jeito de estabelecer um compromisso, mas primeiro seria preciso fazer os pais de Beatham ao menos considerarem o caso.

Sorcha sacudiu a cabeça e apressou-se até a estrebaria. Os únicos satisfeitos e esperançosos eram Neil e Malcom. Para espanto de todos, florescia um romance entre eles, e os dois eram livres para decidir o que fazer: porque Neil era a sétima filha de um lorde empobrecido, e Malcom, um parente pobre de Ruari.

Ao chegar à estrebaria, viu Ruari falando jovialmente com vários de seus homens. Quando olhava para ele, muitas vezes imaginava se não estaria almejando um degrau alto demais, de onde a queda seria dura. Ele não apenas era muito atraente e cobiçado pelas mulheres, como também era saudável, forte, rico e possuidor de algumas das terras mais férteis da região. Ele poderia escolher a mulher que quisesse, e às vezes parecia-lhe irracional a possibilidade de conquistar o seu coração.

Sorcha tratou de afastar as dúvidas, pois também tinha muito a oferecer a um homem. A única desvantagem difícil de aceitar era o fato de sua família gerar muito mais filhas. No entanto, havia muitos Kerr, primos próximos e distantes de Ruari. O nome dele não corria o risco de desaparecer como o dela. Se conseguisse conquistar-lhe o coração, ele seria capaz de aceitar a hipótese de ter apenas filhas e até mesmo de apostar que ela era uma das poucas Hay capazes de gerar filhos.

- Aí está você, querida. - Ruari estendeu a mão, sorriu ao segurar a dela, e fitou a espada que ela trazia. - Acha que vai precisar disso?

- Não me sinto segura que cavalguemos sozinhos sem estar armada.

- Temo que não possamos ir sozinhos. Teremos uma pequena escolta.

- Muito bom. - Sorcha piscou. - Afinal, alguém poderá tentar raptá-lo. - Sorriu quando os homens riram, entendendo que o rapto de Ruari não mais era considerado crime, nem mesmo por ele. - Onde está Rosse? Ele não é o responsável por sua segurança?

- É, mas a esposa dele está prestes a dar à luz, e ele gosta de estar perto quando os filhos nascem. Como não estou me dirigindo a nenhuma batalha, não é preciso exigir que nos acompanhe.

- Claro que não - Sorcha concordou ao montar uma robusta égua castanha. - Então formaremos um grupo de doze - murmurou, observando os outros montar.

- Não será o passeio particular que eu havia imaginado, mas nesta época do ano os ataques são um perigo real. Prefiro ter homens para protegê-la a perdê-la só porque eu desejava um passeio privativo.

- Sou da mesma opinião. Já me encontrei com os ingleses e não tenho vontade de repetir a. dose. - Sorcha estremeceu ao lembrar-se de Simon Treacher, um homem que ela pensara ter banido da mente.

- Houve problemas durante as negociações para libertar Dougal? - Ruari perguntou ao ver a sombra que toldava a expressão de Sorcha.

Enquanto atravessavam os portões, ela começou a contar-lhe o que acontecera com Treacher, mesmo considerando que o inglês não representava mais uma ameaça, nem poderia encontrá-la em Gartmhor. Ruari ficou furioso, e a extensão dessa ira provavelmente era um indício da força de seus sentimentos. Se ele não gostasse dela, não se importaria que outro homem a olhasse com lascívia.

- Por que acha que ele não a perseguirá mais? - Ruari procurava controlar a raiva.

- Os espiões que ele mandava a Dunweare desapareceram. Concluímos que seus interesses se desviaram para outra mulher.

- Ou talvez os espiões que ele manda sejam melhores e não tenham sido notados por ninguém, nem mesmo por Crayton.

Sorcha sentiu um arrepio de medo e de alegria. Receava pensar que Treacher não desistira dela, mas alegrava-a saber que Ruari considerava Crayton uma realidade. Esse e outros deslizes que ele cometera a faziam supor que ele começara a crer, embora muito lentamente. Nunca exigiria que Ruari acreditasse nas mesmas coisas que ela, mas um pouco de crença com certeza tornaria sua vida mais fácil se ficasse ao lado dele. Nada comentou a respeito e concentrou-se na possibilidade de ainda contar com a ameaça inglesa.

- Se houvesse sinais de Treacher em Dunweare, Neil decerto, teria mencionado isso a você e pedido para que me contasse.

- Sorcha, nos dois lados da fronteira proliferam espiões e homens altamente especializados em conseguir informações. Posso dizer, quase com certeza, quantas cabeças de gado lorde Selkirk tem na Inglaterra, e suspeito que ele saiba o mesmo a meu respeito. Há pouco espaço para segredos.

- Isso é alarmante.

- É o que acontece quando duas nações vizinhas têm lutado uma contra a outra desde que o primeiro Graeme pulou a muralha dos romanos. A lição fundamental de um soldado é tentar conhecer tudo o que puder sobre o inimigo. Confie era mim. Se o interesse de Treacher não diminuiu, ele sabe de tudo que está se passando.

- Então por que pegamos tantos espiões dele ou os mandamos correndo de volta para a Inglaterra?

- Pode ser arrogância da parte de Treacher. Ele não deve acreditar que tenha de usar os melhores homens para vigiar uma escocesa franzina de um clã pobre da fronteira.

- Eu gostaria que dissesse isso a tia Neil quando ela voltar. Dunweare precisa saber que pode haver um espião ou um traidor nas proximidades.

Ruari anuiu e tocou sua mão com afeto.

- Considere-se em segurança, minha querida. Mesmo se ele souber de sua presença em Gartmhor, ainda está para nascer o inglês que se apossará do local.

Sorcha gostaria de sentir a mesma confiança. Gartmhor poderia nunca ter sido tomada pelos ingleses, mas Treacher não precisaria atacar a fortaleza para raptá-la. Ele poderia simplesmente se esconder e esperar que ela saísse. Como naquele momento.

Nervosa, Sorcha olhou ao redor. Apesar dos esforços para esquecer os temores, não podia afastar a noção de que o passeio pelas terras de Gartmhor fora precipitado. À medida que se afastavam do castelo, a inquietação crescia, mas ela relutava em pedir para Ruari voltar. Ele acharia que a conversa sobre espiões a assustara, ou pior, que ela não confiava na capacidade dele em protegê-la. E ela não pretendia insultá-lo.

Inspirou fundo para se acalmar e sorriu para Ruari quando ele apontou o gado pastando na encosta. Quase sentiu inveja das belas pastagens de Gartmhor. As terras rochosas que rodeavam Dunweare eram cobertas por cerrado ralo e musgo que não suportava muitas vacas, ovelhas e carneiros. E houvera invernos de pouca fartura em Dunweare, coisa que certamente não acontecia em Gartmhor.

Não era apenas a falta de dote que a separava de Ruari. Cada aspecto da vida dele, desde a comida na mesa até o número de soldados nas altas muralhas de Gartmhor, acentuava as diferenças. Sorcha começou a achar que os sinais constantes da riqueza de Ruari eram deprimentes. Apesar da quase igualdade do nascimento deles, era penosamente claro que ele teria de rebaixar-se para se casar com uma Hay. E ela não estava muito confiante de ter dado a ele razões suficientes para fazer isso.

- Você foi contemplado com terras boas e férteis - Sorcha murmurou quando eles pararam ao lado de um regato para os cavalos beberem água.

- É verdade, fui abençoado. - Ruari desmontou e ajudou-a a fazer o mesmo.

Sorcha não conseguiu prestar atenção nos planos que ele fazia para Gartmhor, nem no modo como esperava aumentar sua fortuna e melhorar a vida de seu povo. Não conseguia tirar os olhos da mata fechada que rodeava a clareira onde eles se encontravam. Estava certa de que aquilo não se devia apenas à grande beleza das árvores. Era impossível afastar o receio. Havia algo que os ameaçava. Consciente de que Ruari não acreditaria no que não pudesse ver, continuou a mirar a floresta sombreada. Seus olhos começaram a arder pelo esforço de captar algum sinal que pudesse chamar a atenção de Ruari.

- A mulher pode nos ver - Thomas advertiu, hesitando em seu avanço e esperando instruções de Simon Treacher.

Treacher parou e, através das árvores, contemplou o prêmio com o qual tanto sonhava. Sorcha Hay estava olhando na direção dele e com preocupação no semblante adorável. Tenso, esperou que ela desse um grito de alerta.

- Não, ela não pode nos ver - retrucou, avançando devagar e sinalizando para que seus homens fizessem o mesmo.

- Mas logo ela nos descobrirá.

- Então será tarde demais.

- Para nós, milorde.

- Se é tão covarde a ponto de temer alguns escoceses, pode montar e voltar para a Inglaterra. - Treacher anuiu quando Thomas corou e se adiantou. - Lembrem-se todos de que a mulher não deve ser ferida e que sir Kerr é meu. - Ele fitou o pequeno contingente e esperou até todos concordarem. - Ele pagará caro por tomar o que me pertence.

- Por que não está escutando, Sorcha? - Ruari murmurou, segurando-a pelo braço. - Talvez isso desperte seu interesse. É importante para mim que aprenda a respeito das minhas terras, do meu povo, e que conheça os planos que tenho para ambos - afirmou com seriedade, puxando-a na direção das árvores.

- Não! - Sorcha gritou, lutando para não ir. Amaldiçoou os meandros do destino, pois sabia que Ruari se preparava para falar do futuro, talvez até de um porvir compartilhado, no momento em que ela não podia deixar os desejos de seu coração dominar a razão. Algo estava muito errado, e era preciso avisá-lo. - Precisamos sair daqui.

- Sorcha, o que houve?

- Temos de sair daqui... agora. - Ela espiou a floresta. - Precisamos nos afastar dessas malditas árvores.

- Elas a estão assustando?

- Não! - Sorcha se desvencilhou, agarrou-o pelos braços e desejou que ele fosse menor para conseguir sacudi-lo. - Não há tempo para discutir. Chame isso de um capricho de mulher e diga a seus homens que perdi o juízo ou que o sol afetou meu pobre cérebro feminino. Não me importo! Diga a todos que montem e se apressem de volta a Gartmhor. - O leve tinido dos arreios de um cavalo chegou a seus ouvidos, e ela tornou a inspecionar a floresta. - Tarde demais.

Ruari olhou para a mata a tempo de ver o primeiro cavaleiro sair das sombras.

- Saxões bastardos!

Não havia tempo de montar e enfrentar o inimigo no dorso de um cavalo. Ruari puxou Sorcha e correu na direção de seus homens, distribuindo ordens. Todos agarraram os elmos e os escudos que estavam nos cavalos e deram tapas nos traseiros dos animais, que galoparam rumo aos ingleses que avançavam. No instante de confusão que se seguiu, Ruari e seus homens correram para o campo aberto e formaram um círculo apertado. Apesar dos protestos de Sorcha, que desejava lutar contra os ingleses, ele a empurrou para dentro da barreira de proteção.

- Fique aqui, Sorcha. Preciso da mente e do coração concentrados para lutar contra aquela corja. Não poderei fazer isso se souber que ficou ao alcance deles. Eles terão de passar por cima de mim para pegá-la.

Nesse instante, foi feita a primeira investida contra eles. Com os escudos e os montantes, Ruari e seus soldados evitaram o assalto dos ingleses. Algumas imprecações em voz baixa dos homens de Gartmhor foram sinal de que o ataque lhes rendera algumas gotas de sangue, mas nenhum deles cambaleou ou caiu quando os ingleses recuaram e tornaram a atacar.

O segundo ataque custou aos ingleses dois homens, que foram derrubados e mortos pelos escoceses. Um dos homens de Ruari caiu de joelhos, inconsciente pelo golpe de um mangual, e logo foi levantado pelos outros, que o rodearam. Limpou o sangue dos olhos e, depois de cambalear um pouco, ficou em pé.

Sorcha espantou-se ao ver os ingleses se reagrupar para um terceiro ataque, em uma péssima escolha de tática. Em dois assaltos, não haviam conseguido romper o círculo de Ruari, e ainda tinham perdido dois homens. Apesar de eles estarem com quase trinta homens, e Ruari com apenas doze, era uma perda inaceitável. Não havia muita chance de sucesso, pois os cavalos ficavam assustadiços quando chegavam perto do grupo coeso de escoceses protegidos por escudos.

Mais dois ingleses caíram nessa investida. Os homens de Ruari os desmontaram e abriram o círculo apenas o suficiente para o golpe derradeiro. No instante em que um dos cavaleiros ingleses parou para tentar, em vão, golpear um dos soldados de Ruari, Sorcha reconheceu o inimigo. Treacher a encontrara.

- É Simon Treacher! - ela gritou. - Você estava certo. Ele tem bons espiões.

- Imagino o quanto deve ter lhe custado admitir isso, querida - ele retrucou, ao mesmo tempo que aparava um golpe dirigido à sua cabeça.

Sorcha não chegou a perguntar como ele podia brincar numa hora dessas, pois os ingleses investiram de novo. Eles haviam perdido quatro homens, mas acabavam de reduzir a onze os de Ruari. Um dos escoceses gritou quando um inglês atingiu-lhe o braço direito com a espada. Ele foi rapidamente puxado para dentro do círculo e os companheiros cerraram a fileira ao redor dele.

Sorcha avaliou que ele sobreviveria, embora não pudesse mais lutar. Rasgou uma faixa da anágua e amarrou-a ao redor da ferida para evitar o sangramento. Uma rápida espiada para os ingleses revelou que eles estavam desmontando. Não seria fácil resistir ao dobro de homens em iguais condições. Ignorando os protestos do ferido, tirou o elmo da cabeça dele, enfiou-o na sua e pegou o escudo. Passou o braço pelas alças e constatou que era uma peça pesada, mas achou que conseguiria segurá-la o quanto fosse necessário. Inspirou fundo, abriu lugar no círculo ao lado de Ruari e preparou-se tanto para o ataque seguinte quanto para a reprimenda dele.

- Volte para dentro do círculo! - Ruari gritou depois de fitá-la com espanto.

- Não. Estamos lutando contra o meu inimigo. - Sorcha ergueu a espada.

- Você não pode enfrentar homens usando um escudo que é quase do seu tamanho.

- Não é tão grande... e também, se for, significa que me protegerá mais.

- Sorcha, o inimigo não quer feri-la, ele a deseja viva. Não tem de se arriscar.

- Prefiro me arriscar a acabar nos braços dele. - Fitou Ruari e suspirou, aliviada, quando ele anuiu.

- Faça-me o favor de não morrer antes de mim - Ruari ordenou com voz rouca.

- Farei o possível para que nada aconteça a nenhum de nós dois.

Sorcha se preparou para enfrentar o inimigo e surpreendeu-se ao perceber que, apesar do perigo que estavam correndo, as palavras que ele pronunciara num tom emocionado tinham feito seu coração vibrar de alegria e esperança. Estava certa de que Ruari gostava dela. Ao primeiro entrechoque de espadas escocesas e inglesas que ecoou na pequena clareira, Sorcha rezou para que ambos sobrevivessem ao ataque de Treacher. Assim poderia descobrir o quanto ele gostava dela.

 

- Esperem! - Dougal gritou, acenando para o pequeno grupo de dez homens, duas mulheres e uma menina esbelta. - Escutaram isso?

- O quê? - Neil aproximou-se do sobrinho, puxando o cavalo exausto.

- Parece o som do choque de espadas. - Ele avançou um pouco mais. - Está sendo travada uma batalha logo adiante.

Neil praguejou quando Dougal correu em direção ao som, sem se importar com o barulho que estava fazendo ou com o perigo que o aguardava. Fez sinal para que os outros se mantivessem em silêncio e correu para alcançar o sobrinho. Agarrou-o pelo braço, deteve-o e não se importou com o olhar feroz.

- Quer fazer o favor de pensar um pouco? - ela o repreendeu. - Você não sabe o que está acontecendo, quem está lutando ou quem está vencendo. Precisa se aproximar com um pouco mais de cautela.

- Está certo, mas fiquei com medo que Sorcha pudesse estar em perigo. Afinal, foi naquela direção que você a viu cavalgar com sir Kerr.

- Pode ser que Sorcha esteja em apuros, mas você não a ajudará se cair nos braços do inimigo, não é?

- Tem razão. - Dougal franziu o cenho com um olhar meio aborrecido, meio divertido. - Seria bom que não tivesse razão com tanta freqüência. Isso fere a vaidade de um homem.

- A sua não sofrerá nada se for um pouco abalada. Neil sorriu ao vê-lo prosseguir em silêncio. O som de uma, contenda tornava-se mais claro à medida que avançavam. Quando, por fim, descobriram do que se tratava, Neil murmurou uma imprecação e abaixou-se ao lado de Dougal.

- É sir Simon Treacher, aquele inglês canalha - Dougal sussurrou. - Ele encontrou Sorcha. Como o maldito descobriu onde ela estava? Fiz o possível para manter o assunto apenas entre os Kerr e os Hay.

- Você sabe tão bem quanto eu que espiões e traidores pululam dos dois lados da fronteira. Deveriam estar observando Sorcha há meses, e até mesmo podem ter descoberto o que aconteceu na feira.

- É, eu sei. - Ele esfregou o queixo, pensativo, enquanto observava os Kerr lutar contra os ingleses que tinham o dobro de homens.

- Bem, vamos ajudá-los um pouco. - Neil fitou Dougal com raiva quando ele a agarrou pelo braço, impedindo-a de prosseguir. - Que tolice é essa?

- Poderíamos esperar e deixar os ingleses lutar com os Kerr por nós.

- Você teria coragem de ficar agachado aqui e permitir que aqueles saxões patifes matem escoceses diante dos nossos olhos?

- Não desejo arriscar minha vida por um Kerr.

- E quanto à nossa Sorcha?

- Sir Simon não a quer ferida.

- Ela está no meio da luta. O que Treacher deseja pode ser facilmente esquecido no ardor da batalha. E o que faremos se ela sobreviver depois de todos os Kerr terem sido massacrados?

- Nós a tomaremos dos ingleses.

- Ah, e vamos atrás deles com estes cavalos? - Ao vê-lo corar, prosseguiu: - Os ingleses ainda poderão nos exceder em número, mesmo após a batalha com os Kerr. Se ajudarmos sir Ruari agora, haverá um equilíbrio maior, com a vantagem de que o inimigo ficará encurralado entre os dois grupos. É um trunfo muito bom para ser desprezado só por que você não gosta dos Kerr.

Neil ignorou as pragas de Dougal quando se desvencilhou dele. Ordenou a Euphemia e a Eirie que se escondessem com os cavalos e desembainhou a espada. Ao ouvir os companheiros fazer o mesmo, ficou ainda mais determinada. Ergueu-se, levantou a saia acima dos joelhos e disparou na direção dos ingleses com o grito de guerra dos Hay nos lábios, seguida de perto por Dougal e pelos guerreiros.

Sorcha acabara de se defender de um poderoso golpe de espada quando o grito familiar cortou o ar. Atrás de si, sentiu a surpresa de Ruari. Eles haviam acabado de costas um para o outro quando a contenda se deteriorara, transformando-se em uma escaramuça onde os Kerr faziam o possível para salvar as próprias vidas, ou pelo menos para fazer os ingleses pagar caro antes de morrer. À medida que os homens de Ruari caíam, a esperança de Sorcha quanto à sobrevivência deles diminuía. Com o grito de Neil ainda ecoando no ar, sentiu uma renovada energia em seus braços doloridos.

- É minha tia que veio para nos salvar! - Sorcha gritou, aproveitando o breve intervalo na luta quando os inimigos, chocados e confusos, depararam com uma ameaça inesperada.

- Sim, e seu irmão. Agradeço a Deus por ter-nos mandado a ajuda de que tanto precisamos, mas eu gostaria muito que Ele houvesse escolhido outros salvadores.

- Eles são ótimos lutadores - Sorcha os defendeu, sem entender o sentido da frase de Ruari.

- Claro, e não duvido de que agora vamos mandar os ingleses correndo para casa. Mas eu preferiria poder evitar o confronto que se dará após a vitória.

Sorcha resmungou ao compreender o que ele dissera. Na certa haveria problemas quando a luta terminasse. Tinha a impressão de que o que ela desejava não seria a primeira preocupação nem de seu irmão nem de seu amante quando os dois se enfrentassem. E o momento não seria propício para reivindicações. Ao observar Dougal derrotar rapidamente um inglês, compartilhou os sentimentos de gratidão e receio experimentados por Ruari.

Nesse instante, Treacher abriu caminho entre seus homens. Alguns, ainda lutavam, outros fugiam. Ele parava para ameaçá-los ou empurrá-los de volta para a batalha, mas era inútil. Uma retirada estava em formação.

Quando o inglês se aproximou deles e estendeu a mão enluvada para Sorcha, Ruari agarrou-a pelo braço e a colocou atrás do corpo. Ela decidiu permanecer ali, embora mantivesse a espada de prontidão.

- Pagará um preço alto por tomar o que me pertence - Treacher afirmou ao se confrontar com Ruari.

- Pertence? - Sorcha gritou, mas eles não lhe deram atenção.

- Lady Sorcha nunca foi sua, Treacher - Ruari retrucou. - Você mal a viu e, com a cobiça característica dos saxões, decidiu tomá-la.

- Tanta justiça pela boca de um homem que a raptou de uma feira - Treacher resmungou enquanto eles se rodeavam, calculando a força um do outro. - Kerr, você não passa de um canalha abjeto.

- É mesmo? E quem é que invade as terras de outro homem para roubar suas mulheres?

Sorcha não protestou quando Neil e Dougal a afastaram dali. Percebeu que os ingleses tinham sido desbaratados, que havia mortos e que feridos incapazes de montar fugiam pelos campos, deixando seu lorde entregue à própria sorte. Não ousava tirar os olhos de Ruari. Os dois homens começaram a disputa, e ela se assustou com o primeiro clangor das espadas. Tensa, observou a luta enquanto Neil a segurava pelos ombros, oferecendo um apoio sutil.

Pareceu-lhe que o confronto se arrastava durante horas. Os oponentes se equiparavam em habilidade e força, a despeito de Treacher ser bem mais magro. Ainda que não desejasse a morte de ninguém, nem mesmo daquele homem, sentiu alívio quando notou sinais de cansaço no inglês. Ruari continuava forte, calmo, com movimentos elegantes e uma boa vantagem.

No momento em que Ruari desfechou o golpe final em Treacher, atingindo-o no coração, Sorcha não teve a sensação de vitória, apenas de serenidade. Somente no calor da batalha, quando sua própria vida estava em perigo, ela conseguia esquecer o horror de tirar a vida de um homem. Tentou aproximar-se de Ruari, que se virou para encará-la, mas Dougal a conteve, segurando-a pelo braço.

Tentou protestar, mas viu que Neil sacudia a cabeça. A mensagem era clara: não discutir. Foi difícil, mas Sorcha decidiu acatar a sabedoria da mulher. Tentou demonstrar o desapontamento quando fitou Ruari e, pelo sorriso torto que recebeu, soube que ele entendera. Queria dizer e fazer tantas coisas, mas aquele não era o momento certo. A julgar pela tensão dos Hay e dos Kerr que não se haviam ferido, falar abertamente só pioraria a situação.

- Verifiquei seus homens, sir Ruari - Neil quebrou o silêncio. - Dois estão mortos, um poderá morrer, perto da metade está ferida, mas sobreviverá se for tratada.

- É o que acontecerá. Obrigado, Neil. - Ruari voltou-se para Dougal com um olhar sombrio. - Nós os levaremos para Gartmhor o mais depressa possível. - Tentou alcançar Sorcha, mas Dougal a afastou, mantendo na outra mão a espada ainda suja de sangue. - Creio que está com minha prisioneira.

Sorcha fitou Neil de revés e a viu revirar os olhos. Dougal, enfurecido, segurou seu braço com mais força. Ela não entendia por que Ruari dissera uma coisa tão tola nem por que ele tentava enraivecer Dougal, em vez de acalmá-lo. Devia ser algo que apenas os homens compreendiam. Não podia acreditar que Ruari agisse deliberadamente para forçar seu irmão, através do orgulho ou da raiva, a levá-la embora.

- E eu creio que salvei essa sua vida inútil, embora tenha me irritado muito fazê-lo - Dougal respondeu.

Os Kerr resmungaram ameaçadoramente, os Hay se encolerizaram, e todos levaram as mãos às espadas. Neil estava certa. Sorcha não deveria meter-se no meio daquela disputa masculina. Quando tivesse oportunidade de falar outra vez com Ruari, pretendia repreendê-lo.

- Eu estava considerando o resgate um fato à parte disso que aconteceu - disse Ruari.

- Não pode ser à parte - Dougal retrucou com rispidez. - Eu jamais estaria aqui se você não tivesse roubado minha irmã da feira. Nem Treacher a teria seguido até sua propriedade.

- Ele teria ido a Dunweare.

- Nós seríamos capazes de protegê-la e não a levaríamos para fora da fortaleza, onde aquele amaldiçoado inglês pudesse pegá-la.

- Dougal - Sorcha protestou - temos de ser justos com Ruari. Ele nada sabia a respeito de sir Simon até eu informá-lo disso há poucas horas.

Os dois homens a fitaram com raiva, aborrecidos com a interrupção. Ela não chegou a dizer que eles eram dois idiotas, pois Neil afastou-a do local. Sorcha olhou para ela, considerando-a a pior das traidoras, enquanto Ruari e Dougal continuavam a discussão acalorada.

- Seria melhor bater a cabeça de um na do outro - Sorcha murmurou, sem conseguir soltar-se de Neil.

- Concordo, mas não no momento. - Essa é uma espécie de estupidez masculina que precisa ser tratada com cautela. Você só vai piorar as coisas ao revelar como eles são tolos ou ao dizer que não estão agindo com lógica, em especial quando ainda estão agitados com o calor da batalha. Por pior que seja, minha querida, deixe isso como está.

- Mas eu serei levada de volta a Dunweare.

- Assim como Margaret e eu. E quando os ânimos estiverem arrefecidos, poderemos resolver o assunto lá.

- Ruari começou a gostar de mim. Eu não posso partir agora.

- Pode e deve. Acho que ele gosta de você há muito tempo, mas para um homem às vezes é difícil entender o próprio coração. Você não o deixará por vontade própria. Se ele começou a reconhecer o que sente, essas emoções não serão destruídas porque você o deixou durante um pequeno período.

Sorcha reconhecia a veracidade da afirmativa de Neil. Ruari não deixaria de gostar dela só porque era obrigada a voltar para casa. Por outro lado, apavorava-a deixar Gartmhor quando começava a chegar ao coração dele. Lembrou-se então de que não seria a única a se separar de seu amor se Dougal e Ruari não chegassem a um acordo.

- Pobre Margaret - ela murmurou e olhou para Neil. - E você também.

- Margaret é quem me preocupa. Teremos de suportar mais choradeiras e melancolia.

- É verdade. - Sorcha franziu o cenho sem ver uma solução rápida e fácil, exceto para Neil. - Mas você não terá de deixar Malcom, se quiser ficar com ele. - Embora não entendesse aquele romance, não disse nada.

- Eu irei. Meu homenzinho esperará por mim. Não poderei resolver minha situação, sabendo que você e Margaret continuam atormentadas.

Sorcha pensou em dizer à tia que o sacrifício seria inútil, quando uma mudança de tom na discussão entre Ruari e Dougal chamou sua atenção. A ira e a tensão estavam presentes, mas Ruari parecia menos combativo. Logo foi possível entender o motivo.

- Tem comigo uma dívida de sangue, Kerr, que supera em valor o resgate de minha irmã, minha prima e os dois homens que aprisionou esta manhã.

- Então considere o resgate pago. Leve sua sobrinha e seus homens, mas deixe Sorcha comigo.

- Está pedindo que eu deixe minha irmã para servir-lhe como uma rameira?

- Não, peço que a deixe como minha esposa.

As palavras ecoaram na mente de Sorcha, que tentava acreditar no que ouvira. Surpresos, todos fitavam Ruari, mas ninguém estava mais atônito que ela. O choque de Dougal transformou-se em fúria gelada, e ela deu dois passos na direção de Ruari. Confusa, não sabia o que se escondia atrás da proposta, mas precisava alcançá-lo antes que seu irmão reagisse. Porém, Dougal ordenou que dois soldados a detivessem. Eles a arrastaram até um cavalo, ignorando suas imprecações e pontapés.

- Amarrem-na, se for preciso. - Dougal olhou para Ruari. - Não quero nenhum Kerr como parente. Você tem uma dívida de sangue comigo, e ambos sabemos que essa dívida não pode ser desprezada. Não quero que se aproxime de minha irmã num raio de quinze quilômetros. Mande minha prima para casa junto com meus dois homens. - Dirigiu-se aos cavalos que haviam tomado dos ingleses.

- Tem mais uma coisa - Ruari falou, seguindo Dougal.

Ele virou-se, com a mão na espada.

- Nada mais temos para dizer um ao outro.

- Tenho de falar com Sorcha. - Ignorando a pose ameaçadora de Dougal, ele a chamou. - E quanto a Crayton?

Ela parou de espernear e fitou-o.

- Direi a ele que seu inimigo está morto.

- Talvez não seja o suficiente. Leve o corpo do inglês. Assim Crayton não terá dúvidas e poderá descansar, assim como aconteceu com meu tio.

Sorcha assentiu, emocionada. Ruari podia não acreditar em espíritos, mas finalmente aceitara sua crença. Sem pensar, ela deu um passo adiante, mas foi contida pelos guardas. Os homens tiveram de lutar por algum tempo até conseguir colocá-la sobre a sela. Insultados e feridos pelos golpes que ela desferia, perderam a relutância em tratá-la com rudeza.

Levantando a cabeça, ela viu Ruari, que abria e fechava os punhos sem parar em sinal de angústia, enquanto observava Dougal levá-la embora. Ele tinha no rosto a expressão remota que adotava quando desejava esconder algo. Sorcha gostaria de ter uma idéia do que ele estava sentindo, pois essa poderia ser a última vez que o via. Ruari teria apreciado saber que ela não era a única com o coração despedaçado.

Ruari observou os Hay se afastar até a poeira levantada pelos cavalos sumir. Estremeceu, e a tensão começou a abandoná-lo, deixando no lugar uma dor que corroía suas entranhas. Ao ver Sorcha ser levada embora, percebeu que a amava, o que seria preferível ignorar.

Praguejou e pôs-se a ajudar os homens a preparar o retorno para Gartmhor. Se descobrir o quanto precisava de Sorcha no momento em que a levavam dele fosse uma forma de punição, a pena de longe ultrapassava seus crimes. Preso por uma dívida de sangue, a única maneira de tê-la seria com o consentimento de Dougal, algo que dificilmente aconteceria. O que mais o torturava era saber que tivera inúmeras chances de entender o que sentia por ela, de amá-la e desposá-la, e desperdiçara todas.

Pouco restara a ser tomado dos ingleses. Os Hay haviam limpado o inimigo e levado os prisioneiros. Ruari procurou fixar os pensamentos em seus homens, muitos dos quais precisariam de ajuda para voltar para casa. Concentrar-se nisso permitiu que ele dominasse por algum tempo o remoinho em sua mente e em seu coração. Ao chegar a Gartmhor, cuidou de dar às viúvas dos homens que haviam perecido no confronto a triste notícia.

Por fim, exausto e com o coração partido, ansiava por ir para seus aposentos, mas os pais de Beatham, que haviam acabado de chegar, o esperavam no salão nobre. Eles ainda não tinham visto o filho, que se trancara no quarto quando Margaret fora levada embora, aos gritos e esperneando, pelos parentes. Ruari foi até a mesa principal e, ao notar os olhares de espanto, explicou o motivo de sua aparência desalinhada enquanto se servia de vinho.

- Esperávamos que milorde persuadisse Beatham a falar conosco - manifestou-se Lilith, a mãe do rapaz. - Decidimos ceder aos desejos dele.

- Temo que sua rendição tenha chegado tarde demais. E isso parece ser algo comum aos Kerr - Ruari acrescentou, distraído.

- Não entendo.

- Sir Dougal jurou que não haverá casamento entre os Hay e os Kerr.

- Então nosso filho voltará a falar conosco, pois não é culpa nossa que ele não possa se casar com a moça.

- Ele pensa de outra forma.

Ruari demorou a convencê-los de que seria melhor não insistirem em conversar com Beatham no momento. Quando o casal finalmente se retirou para descansar, antes do retorno para casa, ele se serviu de mais vinho. Pouco depois, com a chegada de Rosse, precisou explicar ao amigo tudo o que acontecera, e o relato fez emergir o sofrimento que ele lutava para manter submerso.

- Você demorou um pouco para enxergar a verdade - Rosse comentou ao término da história.

- Na certa dirá que a viu antes de mim - Ruari arrastou as palavras.

- Em geral, para quem está de fora, é mais fácil observar os fatos.

- Não importa quem viu ou deixou de ver, pois essa agora é uma verdade inútil.

- Talvez.

- Rosse, estou falando de uma dívida de sangue. Não posso ir contra os desejos de Dougal Hay. Por Sorcha, eu estaria disposto a manchar minha honra, mas fazer algo contra o irmão dela agora me deixaria sem honra nenhuma. Eu seria um prescrito, assim como Sorcha, se ela se casasse comigo. Não, minha única esperança, mesmo que frágil, é que a fúria dele se aplaque, e que ele entenda que eu serei um bom partido para ela e para Dunweare.

- Não esqueça que Sorcha é muito inteligente. Ela poderá encontrar uma maneira de desatar esse nó.

Ruari sentiu um lampejo de esperança romper o desalento que rodeava seu coração. Se Sorcha entendesse por que ele não podia agir, tentaria resolver o impasse entre os dois clãs? Por nunca terem falado abertamente sobre seus sentimentos, ele não conhecia a profundidade das emoções dela, e o mesmo acontecia com Sorcha. Ela poderia até duvidar de que seria bem recebida se encontrasse um meio de voltar para Gartmhor.

- É uma situação muito difícil, Rosse - Ruari murmurou. - E não foi apenas Dougal Hay quem ajudou a complicá-la.

 

Sorcha fez uma careta quando entraram em Dunweare, e as pessoas se reuniram para ver os prêmios trazidos da batalha. Dougal não a mantivera amarrada à sela por muito tempo, mas a observara de perto. Margaret se unira a eles, chorando muito, e ainda soluçava. Ela e Sorcha haviam passado o longo trajeto recriminando Dougal, exigindo que ele mudasse de opinião a respeito dos Kerr e tentando atraí-lo para o lado delas. Nada funcionara, e Sorcha ficara tão frustrada que estava com o maxilar dolorido de tanto ranger os dentes.

Seu primeiro pensamento fora livrar-se do irmão e voltar para os braços de Ruari, mas com a ajuda de Neil, compreendera que a atitude seria equivocada. Ruari ficara preso a uma dívida de sangue. Se a rompesse, perderia a honra e seria levado à corte, e não apenas ele sofreria, mas também seu povo e Gartmhor. A única solução seria convencer Dougal a concordar com o casamento. Porém, depois de falar com ele durante todo o caminho, Sorcha não via a possibilidade de isso ocorrer.

Ao desmontar, viu o brilho de uma figura indistinta nas sombras ao lado do portão e reconheceu Crayton. Consolou-se um pouco ao pensar que poderia proporcionar-lhe a paz que ele buscava. Pelo menos algo bom resultará daquele dia tumultuado.

- Crayton, seu inimigo está morto - Sorcha anunciou.

- Tem certeza? Você disse que ele já deveria ter morrido de velhice.

- Sim, quem matou você partiu há muito tempo, mas não ficará satisfeito em saber que um dos descendentes dele foi morto por uma espada escocesa?

- A de um Hay?

- Não, mas foi a chegada dos Hay no campo de batalha que desencadeou a morte dele... - Sorcha baixou a voz. - E quem o matou foi o amante de uma Hay.

- Muito bem. Estranho, eu confio em sua palavra, mas...

- Não tenha receio de me ofender, meu caro amigo. Esperou muito por este dia, e apenas palavras não bastam. - Ela foi até a padiola onde estava o corpo de Treacher e ergueu o lençol. - Veja.

A sombra de Crayton tornou-se mais distinta quando ele olhou o cadáver. No momento em que Sorcha abaixou o lençol, Crayton estava completamente visível. A tristeza a invadiu por saber que ele a deixaria, mas também se sentiu feliz por ele.

- Crayton - uma voz doce e feminina o chamou. Sorcha notou que ele olhava ao longe. Tentou ver o que provocara a intensa alegria no rosto dele, e uma luz surgiu aos poucos, tornando-se maior e mais brilhante até revelar nas profundezas a imagem de uma jovem e bela mulher, que sorriu e estendeu a mão.

- Elspeth... - Crayton sussurrou, e a emoção em sua voz fez Sorcha estremecer.

Ele se voltou, e um traço de medo e relutância ofuscou brevemente a felicidade em seu rosto.

- Sentirei sua falta, Crayton - Sorcha falou. - Vá. Ela está esperando você há muito tempo. Sua missão aqui terminou.

Sorcha cruzou os braços enquanto o via mover-se na direção da mulher. Por um instante, sentiu o calafrio provocado pelo afastamento dele, seguido por um calor intenso. Compreendeu que fora tocada pela alegria e pela emoção que ele experimentara ao segurar a mão de Elspeth. O casal se abraçou e, num piscar de olhos, desapareceu.

Ela suspirou, cansada, e fitou Dougal com raiva. Por causa dele estava sozinha, mas prometeu a si mesma que o irmão não a manteria afastada de Ruari. Se não conseguisse fazê-lo mudar de ideia, encontraria outra solução. Se Elspeth e Crayton haviam se unido após terem sido separados pela morte, devia haver uma forma de salvar o orgulho e a honra de ambos os lados, e ainda ficar com Ruari.

 

- Não, nunca, e essa é minha decisão final! - Dougal gritou.

Sorcha resmungou, com raiva do irmão obstinado que deixava o salão. Duas semanas de controvérsias haviam se passado desde que ela fora levada de volta a Dunweare, e ele se recusava a ceder. Começava a ficar receosa, apesar de Neil afirmar repetidas vezes que, se Ruari a amasse, o sentimento não deixaria de existir mesmo que demorassem algum tempo para se reencontrar. Neil e Margaret não se cansavam de louvar as declarações de amor de seus parceiros. Porém, tudo o que restava a Sorcha eram a paixão, os olhares e algumas palavras promissoras, além da manifestação de que ele a desejava como esposa. Nem mesmo tinha certeza se, com tempo para refletir, Ruari mudaria de idéia.

- Dougal é um grande idiota - ela murmurou, servindo-se de sidra.

- É verdade - uma voz suave concordou bem ao lado de seu ombro.

Sorcha deu um grito de surpresa e franziu a testa para Euphemia, que se sentou a seu lado. A garota andava muito quieta, assustando as pessoas. Já não era tão criança e, com o passar dos dias, sua silhueta delgada tornava-se mais feminina. Até a petulância sumira do rosto bonito.

- Você vai me fazer envelhecer antes do tempo. - Sorcha sorriu.

- Perdão, prima. Eu apenas concordei que Dougal é um idiota. Antes de tudo, ele deveria pensar nas vantagens do seu casamento com Ruari. Os Kerr têm riquezas e terras férteis.

- O tipo de homem que poucas Hay podem encontrar.

- Exatamente. Ruari Kerr poderia melhorar a vida em Dunweare.

- Dougal não mudará de opinião. Raramente o vi tão furioso e determinado. Por um lado, é bom que ele tenha adquirido esse vigor. Eu só queria que meu irmão não tivesse escolhido este momento em particular para comportar-se dessa maneira. Já estou com dor de cabeça de tanto discutir com ele.

- Tia Neil se diz contente por Dougal estar agindo como um lorde, mas ela gostaria que ele tivesse uma leve recaída de irresponsabilidade, para você ter uma chance de mudar a opinião dele.

- Eu sei, mas desconfio que Dougal finalmente tenha decidido tornar-se um homem.

- Pode ser, mas isso não resolveria o problema.

Sorcha fitou a prima, querendo decifrar o tom diferente na voz doce. O trilho nos grandes olhos azuis não lhe era estranho. Se a garota não tivera um pressentimento, na certa se tratava de intuição. Teve medo de perguntar. O que faria se Euphemia lhe dissesse que não havia esperança para ela e Ruari?

- Você teve algum sonho? - Sorcha indagou, relutante.

- Não tenho sonhos nem visões... pelo menos por enquanto. Apenas sei as coisas. Algo na minha cabeça e no meu coração diz como elas têm de ser, e o que precisa ser feito.

- E você teve uma dessas... mensagens?

- Creio que sim. Ainda estou incerta e não posso explicar o que eu sinto, portanto alguém tem de me ajudar.

- Diga-me qual a mensagem, e verei se posso decifrá-la.

- Foi uma bem curta. Você tem de devolver o poder a Ruari.

- Que poder? Euphemia deu de ombros.

- Não sei. Sempre que penso em você, Neil, Margaret e os Kerr, essa frase vem à minha cabeça. Você tem de devolver o poder a Ruari.

Durante uma hora, elas tentaram decifrar as palavras, sem encontrar respostas. Euphemia era muito jovem, e Sorcha estava muito cansada. Depois de sugerir que a garota fosse cuidar das crianças, Sorcha amaldiçoou em silêncio as Parcas. Elas haviam conferido a Euphemia um dom, mas não a possibilidade de decifrar as mensagens. Terminou a sidra e resolveu retomar suas tarefas. Saiu do castelo para cuidar da horta e rezou para Ruari ter alguma idéia antes do final da semana, caso ela não tivesse.

 

- Ruari? - Malcom chamou timidamente ao entrar nos aposentos de seu lorde.

Por um instante, Ruari fitou o primo e perguntou-se como ele podia estar tão calmo e diligente após ter perdido a chance de se casar com Neil. Endireitou-se na cadeira. Passava horas ali, largado, olhando pela janela estreita na direção de Dunweare e bebendo. Seria uma distração falar com Malcom, se ele pretendia dar mais uma de suas longas explicações a respeito de como encher ainda mais os cofres.

- Sente-se, Malcom. - Apontou uma cadeira do outro lado da pequena mesa, onde deixara uma garrafa e taças. - Vinho?

- Oh, não. Um pouco só me deixa confuso, e eu preciso de mente clara. - Malcom sentou-se e colocou alguns papéis sobre a mesa. - Milorde, creio que encontrei algo que pode acabar com a desaprovação do casamento entre Beatham e Margaret Hay.

- A única maneira de os dois se casarem é com a autorização de sir Dougal. Lembra-se de que ele jurou que nenhuma Hay se casaria com um Kerr?

- Como eu poderia esquecer? Isso me custou muito.

- Claro, perdoe-me pela amargura. Mas, se sabe disso, por que veio com essa novidade?

- Espero que minha Neil ou Sorcha, que é uma jovem inteligente, pensem em uma maneira de resolver o problema. Afinal, elas conhecem Dougal mais do que qualquer um de nós. O que descobri pode aliviar o problema que virá depois de sir Dougal ser convencido que deve atenuar sua posição contra nós. Qual tem sido a principal objeção ao matrimônio de Beatham e Margaret?

- O fato de os dois não terem um vintém.

- Exatamente. E nós podemos mudar isso. Seu tio Ivor deixou-lhe uma torre fortificada na fronteira, a menos de um dia de viagem ao sul. É pequena, mas possui terras férteis, e o homem que cuida da propriedade é idoso e não tem filhos,

- E ele provavelmente veria com bons olhos um descanso e um rapaz para treinar e tomar conta do lugar - Ruari concluiu. - Bem pensado, Malcom. Não é muito, mas seria suficiente para eles e para agradar às duas famílias. - O contentamento causado pela solução durou até ele voltar a pensar no problema que precisaria ser resolvido antes. - Esperemos que possa fazer-lhes essa doação antes que eles fiquem velhos demais.

- Eu o farei, primo.

Ruari achou difícil partilhar daquele otimismo. Até mesmo Beatham tinha mais esperanças para o futuro do que ele. Os dois homens pareciam pensar que Neil ou Sorcha encontrariam uma solução para o problema de todos. Mesmo admitindo a inteligência de Sorcha, duvidava de que ela conseguisse elaborar um plano, quando ele mesmo, que não pensava em outra coisa, nada concluíra naquela quinzena longa e solitária desde que a vira pela última vez.

Olhou para o caneco em sua mão. Embora não houvesse respostas no vinho, a bebida servia para amenizar a dor e permitia que dormisse sem ser atormentado pelas lembranças. Grande parte de seu sofrimento devia-se a certeza de que seu orgulho e sua arrogância haviam provocado não apenas a sua perda, mas também a de Malcom.

- Sinto muito, Malcom. Se não fosse por mim, você poderia estar com Neil.

- Eu poderia estar com minha Neil, apesar de milorde, mas ela me disse que precisava ficar em Dunweare com as sobrinhas. Elas, mais do que eu, precisam dessa ajuda.

- Isso poderá demorar muito tempo.

- Não. Ela, Margaret e Sorcha voltarão logo.

- Espero que esteja certo, primo. - Ruari olhou para o vinho que se tornara um companheiro inseparável. - Espero mesmo.

 

- Consegui! - Sorcha gritou ao entrar no quarto de Neil. - Ainda bem que você está aqui, Margaret. Isso é também de seu interesse.

Sorcha mal podia conter a felicidade. Sentou-se na cama ao lado da prima, sem se dar conta do tecido que elas haviam estendido ali para confeccionar um vestido novo para Margaret. Em outra situação, ela se ofereceria para ajudar, mas tinha coisas mais importantes em mente. Arrancava ervas daninhas da horta quando, de repente, compreendera a mensagem de Euphemia e começara a conceber um plano. Sem limpar as mãos ou o vestido, correra para encontrar Neil.

- O que exatamente você conseguiu - Neil franziu a testa -, além de sujar minha cama?

- Euphemia recebeu uma mensagem - ela explicou, ignorando a queixa.

- Ela encontrou uma forma de voltarmos a Gartmhor? - quis saber Margaret.

- Não. Euphemia não tem visões. Eu as chamo de mensagens, e é preciso decifrá-las.

- O que nossa pequena Effie disse? - Neil afastou o tecido e sentou-se na cama-

- Ela afirmou que eu tenho de devolver o poder a Ruari.

- E o que isso quer dizer?

- Quando fui para a horta, achei que não conseguiria interpretar mais uma de suas mensagens intrincadas. Mas, de repente, compreendi claramente. É muito simples.

- Você tem de devolver o poder a Ruari - Neil murmurou. - Não entendo. Ruari já tem muito poder.

- Tem, em Gartmhor, e não é a esse poder que a mensagem se refere. Precisamos devolver a ele o poder perdido no dia em que ele matou Simon Treacher. Até o momento em que Dougal chegou para salvar Ruari e seus homens, os dois podiam encarar-se como iguais. Depois disso, Ruari perdeu terreno, pois meu irmão o amarrou a uma dívida de sangue da qual não se pode escapar.

- Sei que todos dizem isso, mas continuo sem entender - Margaret disse. -Dougal fez a coisa certa ao salvar Ruari. Por que devemos sofrer por ele ter agido com dignidade? Como pode haver uma dívida tão grande, sendo que Dougal não poderia ter feito outra coisa?

- É verdade. Isso deveria ser um favor que não precisaria de retribuição - Sorcha concordou. - Mesmo que nos pareça estranho, homens em guerra têm costumes e regras que devem ser seguidos. Claro que Dougal não poderia ter agido de Outra forma, mas a dívida existe. Ele disse que nenhuma Hay se casaria com um Kerr, e Ruari teve de se curvar à vontade dele. Agir de outra forma mancharia a honra de Ruari para sempre. Isso poderia levar à perda de muito mais, de poder, do lugar na corte e talvez até de riqueza. Ele não pode fazer absolutamente nada para nos levar de volta a Gartmhor.

- Então como poderemos voltar?

- Devemos dar o primeiro passo. Temos de fazer algo que obrigue Ruari a agir para não ser considerado um tolo. Um Hay terá de ser o primeiro a quebrar esse vínculo.

- E como planeja fazer isso? - indagou Neil.

- Vamos raptar um Kerr. - Sorcha sorriu ao ver o espanto das duas.

- Essa é a sua concepção de "simples"?

- Sim. Será que não enxergam? Recomeçaremos o jogo. Se raptarmos um Kerr para exigir um resgate, voltaremos ao ponto de partida.

- Não, começaremos todo o absurdo de novo. Ruari terá de pagar um resgate...

- Ele não terá de fazer isso, pois nos deixaremos apanhar.

Sorcha não gostou do olhar de Neil, que a fitava como se ela tivesse enlouquecido. Margaret apenas se mostrava confusa. E tudo lhe parecera tão trivial! Era uma maneira perfeita de devolver o poder a Ruari. Elas pegariam o primeiro Kerr que pudessem, seriam capturadas durante a ação, e Dougal se veria forçado a negociar de novo com Ruari.

- Você ficou louca - murmurou Neil. - Mas a loucura pode funcionar.

- O pior que pode acontecer é falharmos, Dougal descobrir nossos planos e ficar furioso conosco.

- Ele já está furioso, de tanto o importunarmos para ele mudar de idéia - Margaret opinou.

- Isso mesmo - concordou Sorcha. - Então, na pior das hipóteses, nada mudará.

- E como conseguiremos agarrar um Kerr? - Neil perguntou.

- Essa é a única fragilidade do meu plano.

- A única?

- Só me ocorre essa. Teremos de espreitar Gartmhor até um deles sair de trás das muralhas.

Sorcha esperou com paciência que a tia parasse de rir. Entendia que ela se divertisse, pois na verdade era uma grande fragilidade. Mas fora a única idéia que surgira nos últimos quinze dias, e tinha certeza de que Neil a aceitaria.

- Esse ê um dos piores planos que já ouvi - ela disse por fim, ainda rindo. - Mas você está certa a respeito de urna coisa. Se falharmos, teremos apenas de suportar a fúria de Dougal. Eu estou disposta a me arriscar.

- Porque sabe que, se eu tiver sucesso, devolverei o poder às mãos de Ruari.

- Sim. Mas precisaremos de mais algumas pessoas.

- É verdade. Pensei em alguns dos homens mais velhos, além de Robert.

- Não. Ele e os outros homens mais velhos prestaram um juramento de fidelidade a seu pai e fizeram o mesmo com Dougal quando ele se tornou lorde. Por mais que eles queiram ajudá-la, achando que seu irmão está sendo irracional, você os estaria forçando a quebrar um juramento que eles carregaram durante á vida toda. Eu escolherei alguns dos mais jovens, os que ainda não se tornaram cavaleiros ou os que, por serem muito novos, poderão ser perdoados por um erro de julgamento. Tudo o que peço a você é que dê mais uma chance a Dougal.

Sorcha discutiu um pouco, mas acabou cedendo à vontade de Neil. No entanto, ela teria de munir-se de paciência. Nenhum argumento fizera seu irmão vacilar, e agora que tinha um plano, queria logo colocá-lo em ação. Em sua opinião, insistir em demover Dougal de sua teimosia seria uma perda de tempo.

Com os dentes cerrados, Sorcha encarava o irmão. Descera ao salão para fazer o desjejum com ele, e o encontrara de péssimo humor.

- Dougal, precisamos conversar. - Ela não se surpreendeu ao ouvir uma imprecação.

- Você não tem feito nada além de falar, desde que voltamos a Dunweare.

- Sim, e você nem ao menos tem tentado escutar. Não chego a completar uma frase antes de você começar a gritar e me largar sozinha.

Para sua surpresa, Dougal nada disse e a fitou por alguns instantes. A fisionomia ficou menos tensa, e ele pareceu disposto a ouvir, mas ela não se animou demais. Escutá-la não significava concordar.

- Sei o que vai me dizer - defendeu-se.

- É possível que saiba, mas poderia fazer a cortesia de me deixar falar.

- Então fale logo e acabe com isso.

- Se é assim que pretende agir, não preciso escolher belas palavras. É errado que mantenha Neil, Margaret e a mim afastadas dos homens que amamos, e que também nos amam.

- Como seu lorde, é meu direito decidir com quem devem se casar.

- Os Hay não têm sido tão rigorosos desde tempos anteriores ao de nosso avô.

- Decerto não tiveram bons motivos para isso. Os Hay não se unirão aos Kerr, nem pelo sangue nem pelo casamento.

- Nem mesmo se essa união for o que sua irmã, tia e prima desejam mais do que tudo no mundo?

- Não. Vocês ainda são muito jovens e logo se curarão desse amor que dizem sentir. Ruari Kerr humilhou os Hay, e não posso agir como se isso nada significasse.

Sorcha deu um suspiro profundo e decidiu tentar um dos melhores argumentos que elas possuíam e que ainda não tinha sido usado em todo seu potencial. Falar sobre o amor que sentia por Ruari não convenceria Dougal, pois ele nunca, amara. Ele não podia entender do que se tratava, e por isso falava como se fosse um ferimento passível de cura.

- Não haverá oportunidade melhor para que os Hay se beneficiem com o casamento. Somos pobres, sem dote e sem terras. A união com os Kerr traria de volta muito do que nossos antepassados perderam. Através deles, poderíamos obter uma posição mais favorável na corte e melhorar a condição financeira. Você realmente quer que Dunweare continue atulhada de mulheres que não conseguem encontrar maridos porque não têm dote e de viúvas tão pobres que não conseguem sobreviver sozinhas? - Sorcha deduziu, pela ligeira elevação de uma das sobrancelhas, que ele se interessara pelo que dizia. - Antes de tudo, uma ligação com os Kerr oferecerá às mulheres que abundam em Dunweare mais possibilidades de escolher maridos.

- Devo reconhecer que você é ótima, Sorcha - Dougal murmurou, afastando a travessa vazia. - Sabe o que dizer para atrair meu interesse. Não importa. Você me acha idiota a ponto de não saber que o dinheiro, o poder e as terras de Kerr propiciariam uma união promissora com qualquer uma das mulheres da minha casa? Tenho pensado nisso, mas os ganhos não superam o que será perdido diante de homem que me fez de tolo e que cometeu um grave insulto aos Hay quando a raptou naquela feira.

- Bem, você é mesmo um tolo. -- Ela foi incapaz de disfarçar a irritação. - E não precisa de Ruari Kerr para lhe mostrar isso.

- Você faz questão de me irritar, Sorcha - ele gritou, levantando-se. - Não quero mais ouvir falar dos Kerr nesta casa. A próxima pessoa que sussurrar esse nome vai se arrepender.

Aborrecida, Sorcha observou-o sair do recinto. Ele a escutara, mas não mudara de opinião. Fora uma completa perda de tempo, assim como um grande desgaste emocional. Não gostava de se desentender corri o irmão. No passado, apesar das fraquezas dele, tinham sido próximos. Agora, sentia como se uma muralha tivesse sido erguida entre eles, Apesar disso, faria o que estivesse ao seu alcance para ter Ruari de volta, e esperava que a união com o homem a quem amava não lhe custasse o amor de seu irmão.

- Não me agrada ter de dizer "eu hão falei?" - Sorcha manifestou-se quando Neil entrou em seu quarto, horas mais tarde.

- Mas vai fazer isso, de qualquer forma. - Neil sentou-se na cama de Sorcha, com Margaret a seu lado. - Eu também não estava muito esperançosa, mas senti que era nosso dever dar ao rapaz mais uma chance. Agora posso me opor aos desejos de Dougal sem sentir muita culpa, pois ele demonstrou que não cederá nem mesmo para considerar os sentimentos de três mulheres de sua família. Então o idiota afirmou que nós poderíamos nos curar desse amor?

- Sim, mas não posso culpá-lo. Se ele nunca amou, como pode entender como nos sentimos?

- É verdade. Além disso, ele é homem e, portanto, não é muito esperto em assuntos do coração. Bem, Dougal logo saberá que estávamos falando a sério, ainda que eu me surpreenda que as lágrimas e a melancolia não o tenham feito enxergar.

- Talvez ele ache que se trata de um mal das mulheres - murmurou Margaret.

- Nós não o criamos direito - Neil comentou, trocando um rápido sorriso com Sorcha.

- Você conseguiu alguns homens para nos acompanhar? - perguntou Sorcha, ansiosa para pôr o plano em prática.

- Sim, lain e mais alguns jovens. Eles estão encarando a missão como uma aventura, e ainda não perderam o romantismo dos mais novos. Precisamos deles como uma proteção extra na viagem a Gartmhor, e talvez pára nos ajudar a dominar o Kerr que conseguirmos pegar. Iain disse que o plano é maluco e que tem muitas falhas, mas, por estranho que pareça, acho que isso o faz achá-lo tentador.

- Eles devem estar certos de que não se defrontarão com nenhum perigo.

- Isso também. Estão ansiosos para participar do jogo e curiosos para ver o resultado.

- Quando partiremos para Gartmhor?

- Tentaremos escapar esta noite. Hoje à tarde, Iain e três dos rapazes usarão a desculpa de uma pequena caçada. Você, Margaret, eu e os outros três sairemos uma hora mais tarde.

- E o que diremos?

- Que vamos procurar ervas medicinais para repor nosso estoque - Neil respondeu. - Algumas devem ser colhidas à tarde. Poucos homens saberão o que perguntar ou se estamos mentindo.

- Uma vez fora de Dunweare, encontraremos os outros e iremos para Gartmhor - Sorcha concluiu.

- Quando escurecer e nós não voltarmos, eles se preocuparão conosco, e isso é uma maldade - Margaret falou,

- A atitude de Dougal é muito pior.

- Ele logo perceberá o que pretendemos - afirmou Neil. - Assim que der por nossa falta, saberá que fomos para Gartmhor. E, se não ele, Robert desconfiará. Eu não ficaria surpresa se ele já não estiver sabendo o que planejamos.

- Iain não diria ao pai - Sorcha afirmou.

- Nem precisaria - emendou Neil.

- É verdade. Robert sempre teve um bom faro para qualquer problema que os Hay estejam enfrentando. Ele não nos impediria, não é?

- Não. Robert também acha que Dougal está se comportando como um tolo teimoso. Não concorda com a postura dele, embora admita admirar a maneira como ele está se mantendo firme, o que não é comum.

- É verdade. Eu me sentiria orgulhosa se ele tivesse escolhido outra coisa a respeito da qual se posicionar. Dougal finalmente se tornou o que todos desejavam que ele fosse, mas na hora errada. - Sorcha riu com Neil e Margaret. - A única coisa que me preocupa - ela disse, ficando séria - é ele nunca me perdoar por isso. Eu odiaria que houvesse um abismo entre nós.

- Isso não acontecerá, Sorcha - Neil opinou. - Dougal pode se irritar, mas ele não rejeitaria a irmã só porque ela não faz o que ele deseja.

- Espero que esteja certa, porque eu não voltarei atrás, mesmo temendo uma ruptura entre nós.

- Nenhuma de nós deseja isso, querida. Agora é melhor irmos buscar o que será necessário para a viagem. Terá de ser pouca coisa, e tudo deverá ficar escondido entre os materiais necessários para pegar plantas medicinais.

Sorcha anuiu e, assim que as duas saíram, fez um pequeno pacote. Não seria uma jornada agradável, pois somente o estritamente necessário poderia ser levado. Se carregassem muitos embrulhos na sela, poderiam despertar desconfiança, e talvez nem chegassem a ultrapassar os portões. Dougal estava sempre alerta para algo suspeito, preocupado que elas tentassem voltar para Gartmhor. Ainda que não as mantivesse trancadas em seus aposentos ou confinadas atrás das muralhas, ele as vigiava de perto. Nada do que fizessem poderia sugerir que partiam para uma longa viagem. Deixando a sacola de lado, foi verificar se Margaret entendera o que significava levar "pouca coisa".

Sorcha viu Iain e seus amigos esperando um pouco adiante e olhou para trás. Quase não se via Dunweare. Ainda tinham algumas horas de claridade para cavalgar antes que alguém desconfiasse do que estava acontecendo. Isso lhes daria uma boa distância à frente de Dougal quando ele saísse para persegui-las.

- O começo foi auspicioso - Sorcha comentou quando Neil aproximou dela o cavalo.

- Essa foi a parte mais simples.

- Você não pretende agourar insucessos a toda hora, não é?

- Não, só quero que tenhamos cautela. Se quisermos sair vitoriosas, teremos de tomar cuidado.

- Pois é o que pretendo fazer. Essa é a missão mais importante em que já estive. Se falharmos, sair de Dunwear se tornará infinitamente mais difícil. Dougal poderá nos trancar na masmorra, como ameaçou várias vezes na última quinzena.

- Ele está enganado se pensa que poderá nos impedir ou nos silenciar.

- Sim - Iain concordou ao chegar do outro lado de Sorcha. Observando à marcha cuidadosa das mulheres, comentou: - Eu não me preocuparia com o barulho dos cavalos. Se este plano maluco funcionar, Dougal ouvirá os risos das muralhas de Gartmhor até os quartos de Dunweare.

- Talvez este não tenha sido o plano mais inteligente no qual já pensei - Sorcha murmurou ao espiar por entre as árvores as muralhas altas e imponentes de Gartmhor.

Neil deu um tapinha carinhoso em suas costas.

- Margaret e eu o achamos muito ardiloso, não é, Margaret?

- Muito - Margaret concordou -, embora eu não esteja certa de sua eficácia.

- Também não estou muito convencida, mas seria tolice pedir opinião a vocês duas. Margaret quer Beatham, e você quer Malcom, não é, tia Neil? - Sorcha pensou no homenzinho magro e tímido. - Tem certeza de que gosta daquele homem?

- Sei que ele é um projeto de gente, desde os cabelos ralos até os pés pequenos, mas tem um grande trunfo a seu favor. Ele idolatra o chão em que eu piso com meus pés grandes. No passado, amei um homem que faria qualquer mulher cair de joelhos, e descobri que se tratava de uma concha vazia. Malcom pode não ter presença, mas seu olhar transmite honestidade e vida. É verdade que treme à visão de sua própria sombra, mas não tenho dúvida de que ele daria a vida para salvar a minha. Ele pode não dizer palavras que façam o coração de uma mulher disparar nem ter uma voz profunda que aqueça seu sangue, mas se disser uma lisonja ou fizer uma promessa, tenho certeza de que as palavras virão do fundo da alma. Ele me amará, honrará e jamais me deixará. E, mesmo sendo pequeno, me dará os filhos pelos quais tanto anseio.

- Esse é um elogio que qualquer homem ficaria honrado em ouvir.

- Ah, e é claro, ele precisa muito de quem lute por ele. - Neil sorriu. - O que faremos agora, Sorcha?

- Espero que nos apressemos - Iain murmurou, aproximando-se. - Meu pai vai querer me estrangular por isso, e eu gostaria de ter feito alguma coisa antes de enfrentar meu destino.

Sorcha sorriu de leve e bateu nas costas do rapaz.

- Aposto, Bansith, que seu pai sabe exatamente onde nos encontramos e o que estamos fazendo.

- Ele lhe disse?

- Não. Ninguém precisa dizer a Robert no que os Hay estão se metendo. Ele sempre sabe o que pretendemos fazer. No momento em que descobrir nossa ausência, saberá para onde fomos. Tenho certeza de que ele nos ajudaria, se não tivesse de se opor aos desejos de Dougal.

- Isso não quer dizer que ele não se sentirá inclinado a me castigar. - Iain franziu o cenho. - O que vamos fazer agora?

- Esperaremos até ver alguém que possamos capturar.

- Só isso?

- Bem, também rezaremos para que esse alguém apareça antes que Dougal chegue para nos arrastar de volta a Dunweare. - Sorcha deu de ombros. - Este é um plano arriscado de ser levado adiante. Se não conseguirmos pegar ninguém, só nos resta orar para que tenhamos outra oportunidade e mais outra até podermos agarrar um Kerr.

- E então sermos apanhados. - Iain disse uma imprecação. - Eu devia estar louco para concordar com isso. - Levantou a mão para evitar o protesto de Sorcha. - Não leve em consideração minhas queixas. Eu só gostaria que esse plano tivesse sido elaborado com mais cuidado.

- Agora não há muito a fazer. Não temos como saber quando e onde encontrar um Kerr e capturá-lo. - Sorcha fitou com semblante sombrio o enorme portão de madeira e ferro. - E não posso pedir a um Kerr para me ajudar. Para salvar sua honra, Ruari não pode fazer nada, nem ser suspeito de nos ajudar. A única maneira de romper o juramento que ele fez a Dougal será quando eu, ou qualquer Hay, lhe devolver a vantagem.

- Veja! - exclamou Neil. - Alguém se prepara para sair.

- Estou vendo. - Sorcha ficou tensa. - E tentam impedi-lo - ela murmurou ao ver vários homens tentando fazer o cavaleiro voltar.

- É Beatham. - Margaret se adiantou, e Neil agarrou-lhe o braço. - Desculpe, esqueci que temos de ficar escondidos.

- Tente lembrar-se de que não queremos ser descobertos até depois de termos um prisioneiro - Sorcha ironizou. - Droga, ele saiu e vem vindo para cá com dois homens armados.

- Deveríamos ter suposto que, em um clã tão rico, a família do lorde saia com guardas - disse Neil. - Em especial depois que nós os lembramos do perigo de não agir assim.

Sorcha tentou encontrar uma maneira de capturar Beatham sem que houvesse feridos. Os homens que o acompanhavam pareciam preparados para revidar qualquer ataque. Se percebessem uma ameaça, responderiam à altura. Não poderia arriscar a vida de nenhum de seus companheiros.

Os guardas certamente veriam qualquer homem como uma ameaça, mas hesitariam em matar uma mulher com a mesma facilidade. Ela se virou devagar e fitou Margaret. Beatham reconheceria sua amada mesmo de longe, e Sorcha não acreditava que a prima correria perigo.

- Tive uma idéia - murmurou.

Neil seguiu o olhar da sobrinha e sorriu.

- Sim, e acho que dará certo.

- Por que estão olhando para, mim? - Margaret indagou, temerosa.

- Você vai nos ajudar a capturar Beatham - respondeu Sorcha.

- O que espera que eu faça? Que o golpeie e o arranque da montaria?

- Estar apaixonada a deixou insolente - Neil comentou.

- Margaret, sabemos que Beatham a enxerga de longe, e que você é uma boa corredora. Por isso pensei, por que não corre adiante dos homens...

- Eles estão a cavalo!

- Mas não vem muito depressa. Esconda-se entre as árvores. Não será bom se eles a virem antes da hora. Assim que você estiver a uma boa distância, na frente deles, sairá correndo e permitirá que a vejam.

- Então serei capturada.

- Não, porque estaremos de prontidão, perto o suficiente para ajudá-la, mas não tão perto para sermos notados quando a virem. Você terá de julgar o momento certo para aparecer diante deles. Se quiser, poderá acenar, desmaiar ou fazer outra coisa que a agrade. E então vou contar com algo que vocês parecem gostar de fazer, que é dizer em voz alta o nome um do outro e correr para se abraçar.

- Não precisa fazer com que pareça uma tolice. Nós estamos apaixonados.

- Eu não pretendia fazer pouco-caso. E isso agora nos será muito útil.

- Sim - Neil concordou. - Quando Beatham a vir, ele a chamará e tentará alcançá-la. Isso atrairá a atenção dos dois guardas e permitirá que os rodeemos.

- No entanto, Margaret, há algo difícil que você precisará fazer - Sorcha continuou. - Se Beatham a alcançar antes de conseguirmos pegá-lo junto com os guardas, você terá de desembainhar a espada e mantê-lo cativo.

- Apontar minha espada para Beatham? - Margaret sussurrou chocada.

- Não estou pedindo que o decapite. Apenas encoste a espada nele para que os guardas hesitem em agir. Eles podem até duvidar que você represente uma ameaça, mas não ousarão fazer nada enquanto estiver com a arma apontada para ele. Entendeu?

- Acho que sim. Terei de correr e atrair a atenção deles para que vocês possam agarrá-los.

- Isso mesmo. Vá! Lembre-se: fique escondida até o momento certo e mantenha a cabeça no lugar quando avistar Beatham. Não esqueça que, depois disso, haverá uma maior chance de se casar com ele, enquanto, por ora, não há nenhuma. - Sorcha apertou-lhe a mão, desejando boa sorte. - Vá e corra o máximo que puder. - Assim que a prima se afastou, virou-se para os demais. - Não temos muito tempo antes de Margaret aparecer. Atenção, é preciso deixar que os guardas de Beatham escapem. Afinal, esse plano falhará se ninguém souber que o raptamos, ou se Dougal nos encontrar primeiro.

Todos anuíram e se posicionaram em silêncio. No momento em que Margaret apareceu, Sorcha e os outros se adiantaram. Conforme o previsto, Beatham reconheceu Margaret imediatamente, gritou o nome dela e disparou em sua direção. Os guardas, tentando impedi-lo de cair em uma cilada, não chegaram a perceber a armadilha que os cercava.

Enquanto avançavam, Sorcha percebeu que seriam bem-sucedidos demais. Se um dos guardas de Beatham não reagisse logo, capturariam os três, e ninguém voltaria para avisar o povo de Gartmhor. Por isso, antes de agarrar o mais velho e mais troncudo dos Kerr, ela soltou o grito de guerra dos Hay.

O homem praguejou, surpreso. Fitou rapidamente Beatham, o outro guarda, os Hay que avançavam, e agiu como Sorcha esperava. Virou o cavalo e galopou de volta ao castelo. O jovem soldado que se preparava para defender Beatham ficou confuso ao reconhecer Sorcha e Neil, e relaxou a postura de combate.

- O que está acontecendo aqui? - Beatham perguntou a Neil, que tomava as espadas dele e do guarda. - Por que está nos desarmando? Não somos inimigos.

- Calma, querido, - Margaret o acariciou no braço. - Sorcha elaborou um plano que pode nos ajudar.

- Não estão pensando em me raptar de novo, não é?

- Por pouco tempo - disse Sorcha, observando o guarda desaparecer no interior das muralhas. - Quanto tempo seu primo Ruari levará para montar e vir trás de nós depois que o homem der o alarme?

- Alguns minutos.

- Ótimo. Então é melhor estarmos prontos. Iain, por favor, você e Gordon peguem nossas montadas. Caminharemos na direção sul até que vocês consigam nos alcançar.

- Não vão montar? - Beatham perguntou enquanto Iain e Gordon se afastavam. - Como esperam escapar comigo e Artur? - Arregalou os olhos ao entender o que Sorcha pretendia. - Vocês não vão fugir.

- Beatham, meu querido, por que teríamos o trabalho de raptá-lo e nos deixarmos capturar? - Sorcha piscou para Neil ao ver a surpresa do rapaz. - Agora andaremos um pouco mais depressa. Não queremos dar a impressão de sermos presas fáceis. - Ela sorriu quando Beatham praguejou, pediu perdão a Margaret e passou a mão pelos cabelos.

 

- Milorde, estamos com problemas!

Ruari levantou os olhos dos papéis que Malcom espalhara na sua frente quando George, um de seus melhores guerreiros, irrompeu no salão. A agitação do homem indicava acontecimentos graves. Ainda que não desejasse mal a ninguém, Ruari bendisse a notícia. Precisava da diversão de uma batalha ou de uma perseguição para evitar por algum tempo pensar em Sorcha.

- Estamos sendo atacados pelos ingleses de novo?

- Não, são os Hay.

- Está me dizendo que os Hay estão em Gartmhor?! - Ruari lutou para conter as esperanças.

- Sim, vieram lady Sorcha, lady Margaret, lady Neil e uma porção de homens. Margaret apareceu na nossa frente e, é claro, Beatham correu para ela.

- É claro. - Ruari começou a ter uma idéia do plano de Sorcha, sem acreditar que ela pudesse ter encontrado uma solução para o problema deles. - Elas a usaram como isca.

- E poderosa. Artur e eu tentamos impedir o rapaz de alcançar lady Margaret e fomos cercados. - George passou a mão no queixo barbado. - É estranho, mas Artur e eu não vimos os outros, e não os teríamos visto se lady Sorcha não tivesse subitamente dado o grito de guerra dos Hay.

- O que evitou que você fosse capturado. Por isso, pôde correr até aqui e me contar o que aconteceu.

George anuiu e, após alguns instantes, disse: - Não se tratou de armadilha nem de rapto, mas de um jogo delas, não é?

- É bem provável que sim, embora eu esteja correndo o risco de deixar minhas esperanças nublar meu raciocínio. - Ruari deu um tapa amigável nas costas do guerreiro. - Vamos subir nas muralhas. Quero ver onde aconteceu o rapto.

Em cima das muralhas, Ruari notou que a maioria dos soldados olhava para o Sul. Não havia tensão de alerta ou perigo, apenas confusão e curiosidade. Olhando na mesma direção, ele entendeu o que fazia seus homens conversar, despreocupados, em detrimento de suas obrigações. Os raptores de Artur e Beatham vagueavam em campo aberto, como se fossem viajantes admirando a região rural em um raro dia de sol. Quando os cavalos lhes foram entregues, eles montaram sem pressa. Ruari começou a rir ao ver que vários membros do grupo se viravam para trás, olhando a fortaleza.

- Eles já deveriam estar a quilômetros de distância - murmurou George.

- É verdade - concordou Rosse, postando-se ao lado de Ruari. - Nesse passo, eles acabarão vindo para cá.

- Acho que isso é a única coisa que eles não farão - Ruari disse.

- Vamos persegui-los?

- Esperaremos mais um pouco. Quero ver o que eles farão se acharem que não sairemos para resgatar Beatham.

- Aqueles tolos não estão fazendo nada - Neil lamentou com o semblante sério, enquanto montava em seu cavalo.

- Eles têm de agir - Sorcha protestou ao montar Bansith. - Sabem que estamos com Beatham e não vão querer participar desse jogo até serem obrigados a pagar um resgate.

- Ruari certamente não permitiria isso, e meu pequeno Malcom ficaria muito triste se fosse obrigado a contabilizar outro prejuízo. - Neil virou a montaria para Gartmhor. - Talvez eles precisem de alguém que lhes abra os olhos.

- Você não vai até lá, vai? - Sorcha perguntou, mas a tia já galopava rumo ao castelo. - Agora Ruari vai pensar que todos os Hay são malucos.

- Bem, de qualquer forma, não seria um rapto verdadeiro - disse Iain, aproximando-se. - Posso entender o aborrecimento dela. Se tivemos todo esse trabalho para capturar um Kerr e para depois sermos pegos, sir Kerr deveria ao menos ter a cortesia de seguir nossas regras. - Ele sorriu ao ver Sorcha dar risada.

- Ah, sim, Ruari certamente dirá que isso é uma prova de que todos perdemos o juízo.

 

- Aquela é a minha Neil! - Malcom gritou.

Ruari achou o fato de seu contador ter subido nas muralhas tão surpreendente quanto a aproximação rápida de Neil. Todos sabiam que Malcom tinha pavor de altura. Branco como um lençol, ele tremeu ainda mais ao se aproximar da beira. O amor por Neil dera a ele a determinação que sempre lhe faltara. Ruari sacudiu a cabeça e observou Neil parar na base da muralha bem debaixo dele.

- Malcom, está aí em cima?

- Sim, minha amada. - Ele perdeu um pouco o equilíbrio ao olhar para baixo.

- Então saia daí antes que desmaie e quebre o pescoço. - Ela deu um sorriso largo. - Se o seu desmiolado lorde mover as pernas e fizer o que deve ser feito, logo estaremos juntos.

- Estarei esperando no pátio. - Malcom olhou os degraus que levavam ao solo, e um dos homens correu para dar-lhe a mão.

- Veio para me insultar, lady Neil? - Ruari esforçou-se para não rir.

- É evidente que milorde precisa de um pequeno empurrão. Ou está pretendendo doar para nós mais um pouco do seu precioso dinheiro?

- Oh, não. Mas não leve o jogo tão a sério, pois estivemos em uma caçada ontem à tarde, e nossos cavalos estão cansados. - Ruari deu risada quando Neil acenou e voltou até onde estavam seus companheiros.

- Isso é uma loucura - George murmurou enquanto ele e Rosse seguiam Ruari, que descia a escada estreita até o pátio.

- Não, é muito inteligente - retrucou Rosse, rindo e sacudindo a cabeça. - Ruari prometeu ficar longe de Sorcha, por uma dívida de sangue que não podia ser rompida. Agora ela não vale mais, pois os Hay a quebraram. O rapto de Beatham e Artur liberou Ruari de sua promessa. Ninguém espera que um homem assista, impassível, ao rapto de seus parentes.

- Agora Dougal terá de vir falar comigo - disse Ruari, com uma satisfação indiscutível.

- Conseguiu alguma coisa? - Sorcha perguntou a Neil quando a tia parou o cavalo a seu lado.

- Sim. - Ela sorriu quando cerca de doze cavaleiros saíram pelos portões pesados de Gartmhor e galoparam na direção delas. - Creio que devemos deixar que nos persigam por algum tempo.

- Isso poderá dar alguma veracidade ao episódio, embora eu duvide que seja possível.

Sorcha incitou Bansith a um galope, sabendo que seu pônei seria vencido pelo menor e mais velho cavalo dos Kerr. Os outros, que montavam animais um pouco mais rápidos, se adiantaram. Ela sorriu quando Ruari se aproximou e tomou as rédeas de suas mãos. Enquanto os guerreiros dele passavam para alcançar os outros Hay, ele a beijou na boca.

- Seja bem-vinda, milady.

- Dougal ficará enfurecido - ela declarou com calma.

- Com certeza. Minha querida, espero que me perdoe por eu achar graça em tudo isso.

- Está perdoado, pois eu também estou achando engraçado. Dougal se tornou tão teimoso quanto milorde. - Sorcha piscou para ele.

Ruari riu, tirou-a da sela e a colocou diante dele.

- Precisamos esperar pelos outros? - Ruari perguntou com voz rouca, abraçando-a.

Sorcha reconheceu de imediato o brilho no olhar de Ruari, o que logo despertou seu desejo. Envolveu-o com os braços e o beijou no pescoço, saboreando o murmúrio de prazer que ele deixou escapar.

- Eles poderão encontrar sozinhos o caminho para Gartmhor, e nós não temos muito tempo antes de Dougal chegar.

- Então será melhor pararmos de conversar. Eu sei de coisas muito melhores para fazer com a minha boca.

- Eu também.

Ele incitou o cavalo a um galope, e Sorcha rezou para que Dougal tivesse grande dificuldade em descobrir o que ela fizera e para encontrar o caminho de Gartmhor.

Ruari espreguiçou-se e sorriu para a mulher em seus braços. Não sabia o que acontecera aos outros depois que Sorcha e ele haviam corrido para dentro das muralhas de Gartmhor, e não se importava. Beatham e Margaret deviam estar se entreolhando e murmurando palavras de amor. Não tinha certeza se queria saber o que Neil e Malcom estavam fazendo. Dougal logo chegaria aos portões de Gartmhor, e seria preciso levantar-se para falar com ele. Porém, no momento, recusava-se a pensar em qualquer outra coisa além do prazer de estar de novo com Sorcha.

Ela se apoiou no cotovelo e sorriu.

- Eu me preocupei com a recepção que teria, mas agora estou tranqüila.

- Eu pretendo recepcioná-la várias vezes antes de seu irmão chegar aos meus portões.

Sorcha sorriu.

- Espero que ele não fique muito furioso e irracional.

- Dougal com certeza ficará uma fera, mas ele não é um tolo, e verá como se pode facilmente resolver o problema. Ele sofrerá apenas uma pequena perda e terá muito a ganhar.

- Por exemplo?

- A irmã dele fará um belo casamento.

- Com quem? - Sorcha riu ao ver a carranca de Ruari.

- Não acho que eu seja pouco recomendável para marido.

- Não, a não ser que pergunte àquelas candidatas que fugiram como se tivessem visto o demônio.

Ruari olhou-a com suspeita.

- Você está prestes a confessar que teve alguma coisa a ver com aquilo?

- Eu? - Sorcha fitou-o com ar de grande inocência.

- Sim, senhora.

Pela expressão de Ruari, ela concluiu que não sofreria penalidades pela interferência. Seria melhor confessar o que fizera. Eles se casariam e, apesar da procura da noiva ainda incomodá-la, ela conseguia ver o lado engraçado do que acontecera.

- Está bem, suponho que se deva começar um casamento com a alma limpa. Sim, eu as fiz fugir.

- Eu estava certo disso, mas não imaginava como. - Ruari virou-se, e Sorcha ficou sob ele. A carranca que ele tentava fazer transformou-se num sorriso ao ver a malícia nos olhos adoráveis. - O que fez com elas?

- Bem, eu as observava para descobrir se eram nervosas e deixava claro que milorde era dominador e que não estava no melhor dos humores. A maioria se assustou com seu temperamento.

- Por isso é que vivia me provocando?

- Mais ou menos, Houve ocasiões em que você me irritava, e eu me sentia no direito de retribuir. Houve apenas uma moça que precisou de uma persuasão especial, e as razões disso não são muito elogiosas.

- Não tente confortar minha pobre vaidade. Não tenho ilusões em relação ao motivo que levou aquelas jovens a se deixarem examinar como frutas maduras. Sou um bom partido.

- Concordo, apesar de você não ter de soar tão orgulhoso a respeito disso. A moça a quem me refiro estava ansiosa para desfrutar de tudo o que o tornava um bom partido, especialmente de seu dinheiro e de sua posição na corte. Tive um trabalho extra para fazê-la desistir, e Ivor me ajudou.

- Meu tio Ivor a ajudou? Ele nunca teve uma natureza caridosa.

- Eu sei, mas ele achou que seria engraçado. Não sei exatamente o que ele fez, mas posso dizer que se divertiu. Aquela jovem podia ambicionar seu bolso e sua posição, mas não queria enfrentar fantasmas.

Ruari riu.

- Eu deveria castigá-la por interferir em minha vida, mas só posso lhe agradecer por evitar que eu fizesse uma escolha inadequada. Rosse tentou esclarecer o quanto eu estava errado, mas eu não quis aceitar a opinião dele.

- Você ficou ligado a uma idéia durante muito tempo. Não é fácil perceber que algo que se estabelece como objetivo pode não ser a coisa mais acertada a fazer.

- E casar-me com você é a coisa mais acertada a fazer? - Ruari sorriu para assegurar que a estava provocando.

- Claro. - Sorcha ficou séria por um momento. - Eu tinha decidido, mesmo antes de começar o jogo, que, ainda que não se casasse comigo, eu não poderia permitir que desposasse aquelas outras moças. Elas não serviam para você e, por elas terem dote e um bom nascimento, você não as estava analisando com atenção.

Ruari pensou por um instante e depois anuiu.

- Confesso que eu me esquecia de seus rostos assim que elas iam embora.

- Viu só? Eu o salvei de passar o resto da vida perguntando às pessoas quem era a mulher sentada à cabeceira da mesa.

- Sua danada.

Sorcha acariciou-o nos quadris e piscou. Gostaria de fazer a ele várias perguntas, inclusive a respeito do motivo que o levava a desejá-la como esposa. Porém, como nada lhe garantia que as respostas seriam de seu agrado, tratou de esquecer as indagações para não estragar o prazer do reencontro.

Também não queria que as respostas dele a fizessem hesitar em relação ao enlace. Poderia apegar-se às esperanças e à felicidade no momento, e encarar as conseqüências dessa cegueira mais tarde. Mesmo que ele não a amasse como ela o amava, tinha certeza de que Ruari lhe dispensava muito carinho, o que seria suficiente. Se fosse necessário, passaria a vida toda tentando conquistar o coração dele. Afastou o temor de fracassar, pois seria ainda mais assustador imaginar um futuro solitário sem ele. Era preferível contar com pouco do que com nada.

- Sabia que você nunca me pediu em casamento? Apenas disse a Dougal, e agora me informou. - Sorcha sorriu diante da surpresa dele.

- Sou mesmo um tolo. Eu pretendia fazer-lhe o pedido quando retornássemos, mas a chegada de Treacher e depois de Dougal estragou meus planos. - Ele a beijou nos lábios com suavidade e perguntou solenemente: - Quer se casar comigo, Sorcha Hay?

- Sim, lorde Kerr, ficarei honrada em me casar com o senhor.

Sorcha entregou-se ao beijo ávido. A reação dele à sua aceitação era promissora. Esse não seria um acordo frio. Ruari queria casar-se com ela, apesar da falta de dote e de terras. Ele vira outras possibilidades, mas decidira que desejava passar a vida a seu lado. Ela tentou se convencer de que seria o suficiente.

 

Dougal esbravejou, mexeu-se na sela e limpou a poeira da testa com a manga. Anuiu para Robert quando o homem parou a seu lado. A viagem até Gartmhor fora longa e cansativa. Não haviam conseguido pegar Sorcha e o pequeno bando de traidores. Amaldiçoou o insucesso ao ver a fortaleza.

- Não posso acreditar que Sorcha me trairia dessa maneira - ele murmurou.

- Ela não o traiu - Robert atalhou. - Estou cansado de vê-lo falar de Sorcha e dos demais como se eles o houvessem vendido aos ingleses ou como se tivessem invadido seus aposentos e cortado sua garganta para ficar com o pouco que possui.

- Só diz isso porque um dos companheiros dela é seu filho.

- Na verdade, eu digo isso porque você os condena por um crime hediondo, quando tudo o que eles fizeram foi desobedecer às suas ordens.

- Eles têm de obedecer a seu lorde.

- Sim, e eles o farão, se lhes der comandos racionais. Você tornou impossível que eles fizessem algo além de desobedecer.

- Se todos resolvessem aceitar ou rejeitar minhas ordens como lhes conviesse, Dunweare seria um caos.

- Você tomou a decisão sem levar em conta os sentimentos das três mulheres por quem é responsável e que o ajudaram no passado. Lembra-se de quem o resgatou? Durante duas semanas, elas tentaram lhe dizer como se sentiam, mas você se recusou a ouvi-las.

- Expliquei a elas por que não poderiam casar-se com um Kerr, e elas não me deram atenção. - Dougal fitou Gartmhor com semblante fechado. - Elas preferiram os amantes a mim.

- Forçou-as a isso. A intransigência não permite que compreenda o coração das mulheres de sua casa. Elas amam os Kerr, assim como o amam. Nenhuma delas queria ser forçada a escolher entre você e o homem amado, mas você não lhes deixou uma solução conciliatória.

- Unir minha família a Ruari Kerr depois de tudo o que ele fez me tornaria um tolo. Pior. Faria com que eu parecesse o tipo de homem que engole a honra e o orgulho só para trazer bons casamentos para suas parentas.

- Então é isso que o preocupa?

- Não de todo. Apenas não entendo por que elas não podem fazer o que eu lhes peço. Há muitos homens na Escócia, e elas encontrarão outros amores.

Robert praguejou e sacudiu a cabeça.

- Você precisa se apaixonar. É evidente que há grandes lições na vida que ainda não aprendeu. Algumas mulheres podem deixar de lado um amante para logo encontrar outro. Mas não as nossas. Na verdade, de todas as mulheres que conheci em minha longa vida em Dunweare, nenhuma era leviana em suas afeições.

Dougal franziu o cenho e olhou para Gartmhor de novo. Robert tinha razão em um ponto. Ele não entendia de amor. Não compreendia por que Neil e Sorcha andavam tão tristonhas, nem por que Margaret chorava à toa. As outras mulheres de Dunweare tinham passado a fitá-lo como se ele fosse uma fera sem coração. Permanecer firme em sua posição fora extremamente cansativo.

- Bem, não podemos ficar aqui olhando esse enorme monumento de pedra até o final do dia - Dougal resmungou. - Vamos ver o preço que aquele bastardo arrogante vai exigir pela estupidez de minhas parentas.

Robert murmurou uma praga e seguiu Dougal em direção às muralhas da fortaleza.

- Dougal Hay, tente controlar seu temperamento. De nada adiantará fazer exigências como se fosse o rei da Escócia.

- Só pretendo que esse canalha me entregue as mulheres que ele roubou novamente de mim.

 

Ruari levou para Sorcha uma caneca de sidra e sentou-se na beira da cama grande. Observou-a beber e tornou a imaginar como ela se tornara a única mulher que ele desejava. Mesmo sendo completamente diferente das outras que chegara a considerar, era dela que precisava. Sorcha poderia nunca lhe dar um herdeiro, não tinha um dote, e a casa dela era repleta das pessoas mais estranhas que já conhecera. Assim mesmo, estava feliz com a idéia de casar-se com ela. Gostaria apenas de ouvir mais do que uma simples aceitação de seu pedido.

Desejava amor, com todas as implicações. Ele a amava e queria demais ser amado por ela. Somente a paixão e fragmentos de emoções não o satisfariam por completo. Poderia perguntar-lhe diretamente se ela o amava, mas era um covarde. Não estava satisfeito em não saber, mas tinha pavor de ouvi-la dizer que não, que apenas gostava dele e do amor que faziam.

- Por que me olha com tanta seriedade? - Sorcha murmurou, deixando a caneca na mesa de cabeceira.

- Estou tentando me convencer de que de fato está aqui.

- Deite-se, meu nobre cavaleiro, e logo verá que estou aqui. - Ela riu quando ele se apressou em obedecer. - Aí está um anseio que qualquer jovem pode apreciar. Porém, como estamos para nos casar, imaginei que poderíamos ficar celibatários por algum tempo.

- Depois de passar duas longas semanas sozinho nesta cama? De jeito nenhum.

- Nem mesmo para tornar nossa noite de núpcias um acontecimento especial? - Sorcha acariciou com os pés as panturrilhas de Ruari, sentindo sob as solas os músculos rijos e a leve camada de pelos.

- Como eu planejo me casar com você assim que arrancarmos uma bênção de seu obstinado irmão, nossa noite de núpcias será especial, pois ainda haverá a voracidade provocada pela longa ausência.

- Se continuarmos alimentando nossa avidez no passo que estamos fazendo agora, poderemos estar exaustos após a cerimônia.

Ruari abraçou-a, deitou-se sobre ela e a beijou.

- Isso levará muito tempo para acontecer comigo. Mas, se não quiser encarar o desafio...

Sorcha riu ao ver a Ruari arquear a sobrancelha, desafiando-a a aceitar a provocação. Tomou-lhe o rosto entre as mãos e beijou-o devagar, profundamente. A maneira como a respiração dele se tornou acelerada revelou como ela podia despertar seu desejo. A sensação era inebriante, mas ela sabia que isso jamais substituiria o amor pelo qual ansiava. Apesar da intensidade e das delícias da paixão, sempre sentia um traço de tristeza quando o ardor arrefecia. Temia que essa lacuna crescesse com o passar do tempo, mas não tinha idéia de como afastar esse sentimento sem o amor de Ruari.

- Ruari - ela murmurou, estirando-se com prazer sob as carícias dele -, é possível que eu nunca possa lhe dar um herdeiro.

Sorcha imaginou por que resolvera citar as desvantagens de tê-la como esposa. Algo a compelia a reiterar tudo o que não a capacitava para essa posição, para ouvi-lo dizer que já refletira sobre cada um dos motivos que antes o levara a rejeitá-la. Precisava ter certeza de que Ruari não hesitava e de que não se desapontaria. Ele afastou alguns fios de cabelos de sua testa.

- Não direi que não quero um filho. Todo homem deseja um. Contudo, se Deus escolher nos dar apenas filhas, não me atormentarei. Já existem muitos Kerr. Tenho uma verdadeira horda de primos, e não preciso ter medo de que meu nome se perca.

- Não tenho dinheiro. - A voz de Sorcha enfraqueceu quando Ruari a beijou no pescoço.

- Eu tenho o suficiente, e já a vi demonstrar maestria em obter dinheiro quando foi necessário. - Ruari sorriu quando Sorcha, fingindo-se ofendida, deu um grito suave, bateu-lhe no braço e riu.

- Não tenho terras. - Ela se arqueou de encontro à boca de Ruari, que lhe provocava os seios.

- Não preciso de mais terras. Tenho tantas que nem sentirei falta se der um pedaço para Beatham.

- Vai dar terras a Beatham? - A surpresa interrompeu suas próprias preocupações, e a névoa de paixão que invadia sua mente.

Ele estava prestes a explicar que fizera isso para facilitar o casamento do rapaz com Margaret, quando ouviu uma forte batida na porta.

- Vá embora! - Ruari berrou e depois riu com Sorcha.

- Eu não queria incomodá-lo - a voz de Rosse era bem clara apesar da espessura da porta -, mas há um homem nos portões que não vai arredar pé, ainda mais se souber o que o você está fazendo aí.

- É Dougal! - Sorcha gritou. - Ele chegou muito antes do que eu esperava.

- Como está o humor dele? - Ruari indagou.

- Se ele pudesse, creio que arrancaria os portões - Rosse retrucou,

- Oh, Deus... - ela murmurou. - A viagem até aqui não acalmou sua raiva.

Ruari admirou os seios pequenos e firmes, os mamilos rijos e convidativos, e suspirou.

- Querida, desta vez ele não a obrigará a deixar Gartmhor. - Ele começou a se vestir. - Talvez o encontro seja difícil, e é possível que eu leve muito tempo para persuadi-lo a concordar com nosso casamento e com o dos outros, mas ele cederá.

- Tem certeza? - Ela também passou a se vestir.

- Sim. Eu a manterei segura dentro dessas muralhas. A ele só restará gritar e ordenar que eu a devolva. Quando ele se cansar ou a voz falhar, nós nos sentaremos para conversar.

- O que faço agora? - Rosse perguntou.

- Desarme-o e leve-o, junto com um guerreiro da escolha dele, para o salão nobre. Se ele se exaltar à mesa, jogue água fria nele.

Ruari ouviu a risada de Rosse diminuir de volume à medida que o homem se afastava e lamentou a fúria de Dougal. Poderia levar muito tempo para convencê-lo a dar sua bênção para o matrimônio, e elas seriam dadas com má vontade, o que aborreceria Sorcha. Rezou para conseguir o que queria sem causar um rompimento entre os irmãos e virou-se para Sorcha, que terminava de trançar os cabelos.

- Se quiser, falarei com ele sozinho.

- Não, eu irei. Agi contra a vontade dele. Não posso me esconder como uma criança. - Ela sacudiu a cabeça quando Ruari a tomou pela mão para levá-la ao salão. - Eu não queria essa desarmonia entre nós, porém não posso lhe obedecer. Isso deixaria a mim, Neil e Margaret muito infelizes.

- Não creio que eu, Malcom ou Beatham nos sentiríamos muito melhor. Não tema, querida. Não conheço bem seu irmão, mas sei que, apesar do temperamento difícil e da teimosia, ele é um homem inteligente. Teremos de esfriar a fúria de seu coração e de sua mente para ele enxergar que essas uniões, especialmente a nossa, beneficiarão os dois clãs.

Quando eles entraram no salão, Sorcha teve vontade de fugir. Dougal andava de um lado para o outro diante da mesa principal, e Robert, carrancudo, estava de guarda. No momento em que o irmão a viu, tentou adiantar-se, mas foi contido por Robert, que o agarrou pelo braço. Sorcha percebeu que o armeiro não estava de prontidão contra os Kerr, mas para impedir que Dougal fizesse uma tolice. Ela e Ruari se encaminharam para a mesa principal, e Robert fez seu irmão sentar-se. Sorcha viu Margaret grudada em Beatham em um canto, e Neil encostada na parede junto "com Malcom, que aparentava nervosismo.

Ruari a sentou ao lado dele, e Sorcha sentiu-se constrangida sob o olhar fulminante de Dougal enquanto eram servidos vinho, sidra e um leve repasto. Dougal mostrava-se ainda mais irritado por Ruari agir como se estivesse entretendo o mais amistoso dos convidados, e ela desconfiou que se tratava de uma artimanha. Sob seu ponto de vista, aquela não era a melhor maneira de apaziguar os ânimos entre os Hay e os Kerr, mas não poderia culpar Ruari por fazer isso. Dougal tornara a vida deles um inferno naqueles quinze dias e merecia algum tormento. Após alguns momentos respondendo se preferia vinho ou sidra, manteiga ou mel, o irmão pareceu perder a fúria que o levara a correr para Gartmhor. Aos poucos, ele se tornava apenas impaciente.

- Vamos parar com esse jogo? - Dougal indagou com rispidez após tomar um longo gole de vinho. - Estive cavalgando por quase dois dias e não estou com disposição para tolerar essas brincadeiras.

- Você deve ter saído poucas horas depois de nós - Sorcha comentou, surpresa.

- Sim, eu quase fiz como você planejou: esperar até escurecer antes de imaginar para onde você teria ido. Por sorte e alguns comentários a respeito da falta de necessidade de mais ervas, entendi que seu destino era Gartmhor. Não consegui alcançá-la porque você escolheu os melhores cavalos. Agora trate de montar novamente e voltar para Dunweare comigo.

- Não, Dougal. Não posso e não quero fazer isso - ela afirmou com calma e firmeza.

- Antes que isso continue, há algo que precisa escutar, sir Dougal - Ruari disse. - Não raptei essas mulheres, e elas não entraram em Gartmhor por conta própria. Elas e seus companheiros tentaram raptar Beatham e Artur, um de meus guerreiros. Nós capturamos todos quando tentavam fugir com os prisioneiros.

Sorcha não foi capaz de calcular o que Dougal pensava, pois sua expressão chocada escondia qualquer outras emoções. Robert olhava para a mesa e, pelo leve sacudir de ombros, foi possível supor que ele ria. Ruari fez a gentileza de não sorrir nem de parecer presunçoso, mas seu olhar não escondia um brilho de diversão enquanto aguardava uma resposta.

- Você tentou raptar Beatham? - Dougal por fim perguntou, olhando para Sorcha. - O que estava pensando? Que poderia levá-lo para casa e entregá-lo para Margaret?

- Claro que não - respondeu Sorcha. - Na verdade, não pensávamos em raptar Beatham. Acontece que ele foi o primeiro a sair do castelo.

Sob o escrutínio do irmão, cujo semblante passou de chocado a confuso antes de revelar compreensão, ela experimentou uma sensação de culpa e nervosismo, incerta a respeito de como ele reagiria.

- Tudo isso não passou de uma conspiração - Dougal concluiu, com tom de espanto e aborrecimento. - Você não pretendia raptar ninguém, apenas queria ser apanhada raptando alguém.

- E por que eu faria isso? - Sorcha detestou o traço de timidez em sua voz.

- Você é inteligente demais para uma mulher - o irmão resmungou, sacudindo a cabeça. - É uma bênção que não use essa inteligência para praticar logros ou desonestidades. Por que faria esse jogo? O que você ganharia sendo apanhada no ato de cometer um crime?

- Euphemia disse que eu deveria devolver o poder a Ruari, se pretendesse solucionar as dificuldades que nos fizeram discutir durante duas semanas. - Sorcha inspirou fundo antes de continuar: - Dois lordes presos pelo orgulho. - Ignorou os protestos murmurados de ambos. - Orgulho, raiva e regras estritas de honra. Mas ninguém se importou com o que Margaret, Neil ou eu queremos. Ou mesmo com Beatham e Malcom. Ruari estava em Gartmhor, amarrado pelas regras da honra, e você, meu querido irmão, permitiu que o orgulho tomasse conta de sua mente e de seu coração. Então decidi que estava na hora de acabar com isso. Arquitetei um plano que permitisse a Ruari agir sem manchar sua honra, e a você, largar um preceito irracional que não traz felicidade a ninguém.

- E que também me permite pedir um resgate. - Ruari sorriu quando Sorcha e Dougal o olharam, espantados.

- Na verdade, isso não faz parte do meu plano - Sorcha sussurrou, sem saber o que ele pretendia.

- Bem, querida, não pode decidir tudo ou se tornará muito vaidosa. - Impedindo-a de responder, ele fitou Dougal. - Pelo resgate delas, peço sua bênção para os casamentos de Margaret e Beatham, Neil e Malcom e, é claro, o meu com Sorcha.

Dougal olhou de um para outro e, de repente, começou a rir.

- Isso não é um resgate, meu amigo, é um presente maravilhoso para mim. Fique com as três. Elas se tornarão parte da família Kerr, e que Deus o ajude.

- Está arrependida?

Sorcha franziu o cenho para o irmão, que estava ao seu lado na extremidade da pequena capela de pedra de Gartmhor. Não tinha certeza se o perdoara pela maneira como ele as largara em cima de Ruari com as palavras "que Deus o ajude". Os risos dos homens tinham aumentado ainda mais sua irritação. Na semana que se passara desde aquele dia, Dougal se comportara com doçura e jovialidade, e era como se ele se desculpasse. Ela olhou para o altar, onde Ruari falava com o sacerdote e perguntou a si mesma se deveria responder com honestidade à pergunta de Dougal.

- Na verdade, não - ela disse, alisando nervosamente a saia do vestido azul bordado. - Quero me casar com ele.

- Você o ama?

- Sim.

- Ele a ama?

Sorcha deu de ombros.

- Ele quer se casar comigo.

- Quer dizer que fez todo essa confusão sem ter certeza de que ele a ama? - ele indagou, surpreso.

- Dizem que o amor não é necessário para que se construa uma união forte. Ruari deve sentir algo por mim ou não me teria pedido em casamento. Ele não ganhará nada com isso, e ninguém o está forçando a dar esse passo.

- É verdade. - Ele franziu o cenho e passou a mão no queixo. - Sabe o que deveria fazer?

- Não, mas você me dirá, mesmo que eu não queira escutá-lo, não é?

- Sim. Você deveria revelar a ele seus sentimentos.

- Dougal, não sei por que eu deveria desnudar minha alma, se não tenho certeza de que Ruari fará o mesmo. E há homens que não gostam de ser onerados com declarações emocionais.

- Realmente. Alguns homens acham que esses sentimentos são desnecessários e irritantes. Também há uma espécie de homem que gostaria de saber se a jovem com quem vai se casar o ama, mesmo que ele não sinta essa emoção profunda. E é claro, sempre há a possibilidade de ele não falar de amor até ter certeza de que será correspondido.

Sorcha olhou para o irmão por um bom tempo.

- Ah... - ela sussurrou.

- Pois é, e eu fico surpreso que uma garota tão inteligente não tenha considerado essa possibilidade. Alguém deve dar o primeiro passo e, justo ou não, provavelmente terá de ser você.

Sorcha sabia que ele estava certo.

- Devo dominar meus receios porque ele não vencerá os dele, é isso?

- Sim. Ele poderá prosseguir em relativa felicidade, mesmo se você não falar de amor, mas acho que seu caminho será doloroso, minha irmã, se você nunca o ouvir dizer que a ama.

- Pode ser, mas eu preciso de mais tempo para ganhar coragem.

- Bem, se você falar de amor esta noite e ele não retribuir, restará a desculpa de que foi apanhada nas fortes emoções das núpcias. Ele acreditará nisso e esquecerá o incidente. Será a única vez que poderá usar essa desculpa a seu favor.

Não houve tempo para maiores discussões, pois Ruari acenou para que ela fosse até o altar posicionar-se diante do sacerdote. Margaret e Neil ficaram ao lado de Beatham e Malcom, e Sorcha deu um beijo no rosto de Dougal antes de subir o degrau e aceitar a mão estendida de Ruari.

Ao vê-lo sorrir, ela retribuiu, embora sentisse o coração na garganta. De gibão preto bordado, Ruari demonstrava o que era. Um lorde poderoso e rico. O que ela poderia oferecer a um homem como esse?

Os seis se ajoelharam diante do sacerdote, e ela espiou a tia e a prima. As duas estavam radiantes e calmas, confiantes no amor de seus homens. Elas repetiram os votos e trocaram olhares ternos com os noivos. Sorcha evitou um acesso de inveja e concentrou a atenção no sacerdote. Queria transmitir a mesma confiança e alegria aos Hay e aos Kerr que lotavam a pequena-capela.

O banquete no salão nobre se prolongou por várias horas. Em determinado momento, Sorcha viu Beatham e Margaret se retirar discretamente. Pela manhã, o jovem casal iria para o novo lar, a torre que fora um generoso presente de Ruari. Neil e Malcom viajariam para Dunweare, onde ficariam por tempo suficiente para descobrir se ele poderia ajudar a propriedade a prosperar. Depois se instalariam em uma pequena cabana na aldeia ao lado de Gartmhor.

Sorcha entendeu que, após aquela noite, ficaria sozinha com o marido e sentiu um pequeno calafrio de medo. Desde o dia em que conhecera Ruari, sempre tivera pelo menos um membro da família por perto. Ficaria a sós com o homem a quem amava profundamente, sem saber se ele a amava. A proximidade da família evitara que se detivesse muito no assunto. O que faria sem as palavras de conforto e de encorajamento ou da capacidade dos parentes de evitar que tivesse pena de si mesma?

Neil aproximou-se, pronta para sair com o esposo, sorrindo e respondendo à altura aos comentários irreverentes que lhe eram dirigidos. Sorcha desejou ter a mesma disposição de espírito quando ela e Ruari deixassem o salão. Beijou a tia no rosto e sorriu.

- Espero que esteja feliz, tia Neil - disse em voz baixa.

- Estou, e você também deveria tentar ser - Neil respondeu no mesmo tom para que Ruari, que ria com Rosse, não escutasse.

- Estou muito feliz, tia Neil. - Sorcha franziu a testa diante do som de descrédito de Neil. - De verdade.

- Talvez no fundo do seu coração, mas o que vejo em seu olhar é medo e tristeza. Não se preocupe tanto, minha querida. Ele é um bom homem.

- Eu sei.

- Você poderia saber mais algumas coisas, se deixasse o orgulho e o receio de lado e falasse com Ruari. Você provavelmente não sabe o que ele sente a seu respeito porque ele está esperando que você se manifeste quanto ao que sente por ele.

- Foi o que Dougal disse.

- Parece que o rapaz finalmente está usando a inteligência que tem debaixo da bela cabeleira. Sorcha, abra seu coração para Ruari. Sei que é um risco, mas também pode ser uma grande recompensa.

Sorcha observou a tia se afastar. Teve de sorrir quando Neil agarrou a mão de Malcom e o arrastou para fora do salão, despertando risos e comentários jocosos. Malcom sorria, exultante, desde a cerimônia. O orgulho de ter Neil como esposa afastou toda sua timidez.

- Esse é um casal que despertará admiração em toda Escócia - Ruari murmurou, tomando a mão de Sorcha e levando-a aos lábios. - Nós também poderíamos nos retirar.

Sorcha anuiu e corou sob o olhar cálido de Ruari. Apesar dos protestos dele, não haviam mais dormido juntos. Não lhe agradara a idéia de sair da cama dele pela manhã, casar-se e voltar para a cama. Isso teria feito da cerimônia de casamento e do juramento matrimonial pouco mais do que um dever extra que teriam de cumprir. Queria ter pelo menos um traço de antecipação na noite de núpcias.

- Não creio que os convidados serão corteses e bondosos e nos permitirão sair em paz. - Sorcha fez uma careta, pensando nos comentários maliciosos que teria de suportar.

- Eu também não. Vamos agora?

- Sim - ela murmurou quando Ruari se levantou e a fez ficar em pé, despertando a atenção de todos. - Afinal, não podemos apenas correr até os nossos aposentos.

- Por que não?

Sorcha deu um grito de surpresa quando Ruari a ergueu e jogou-a por sobre o ombro. Escutou as gargalhadas dos parentes e convidados, bem como as grosserias gritadas por alguns, enquanto Ruari disparava, mas não se importou, pois estava mais preocupada com o modo como balançava no ombro dele. Estavam no meio do caminho quando ela teve forças para se queixar e bater os punhos nas costas largas para chamar-lhe a atenção, mas Ruari apenas diminuiu a velocidade.

Ele entrou no quarto e a colocou na cama. Sorcha não pôde repreendê-lo de imediato, pois teve de recuperar o fôlego primeiro. Logo notou que estava deitada sobre pétalas de rosas, que haviam sido espalhadas sobre a colcha, e não evitou um grito de alegria. Sentou-se, pegou um punhado de pétalas para jogar em Ruari e quedou-se, boquiaberta. Ele havia tirado toda a roupa.

Fitou-o enquanto ele começava a tirar-lhe o vestido, caçoando por ela ser tão vagarosa. Ruari era alto, forte e atraente de tirar o fôlego. Tinha numerosas cicatrizes de batalha, mas elas não tiravam a maciez da pele morena. Pensou em suas qualidades, o humor, a perícia na batalha, a preocupação com o povo de Gartmhor, assim como em seu orgulho, sua arrogância, seu temperamento, e concluiu que Ruari era perfeitamente imperfeito. Ele tirou a última peça do traje de casamento e estendeu-se sobre ela. Sorcha o envolveu com os braços e sorriu.

- Por que não diz nada, apenas me olha e sorri? - Ruari murmurou e a beijou na face afogueada.

- Está curioso?

- Sim, uma atmosfera estranha a rodeia. No que está pensando?

- Eu estava avaliando o quanto o amo - ela disse em um fio de voz. - Provavelmente mais do que seria sensato.

Sorcha imaginou se havia errado ao senti-lo ficar tenso em seus braços. Um brilho diferente iluminou os olhos verdes, e as linhas do rosto de Ruari se retesaram. Quando abriu a boca para explicar a repentina declaração de amor, ele a beijou ferozmente. Ele a amou com ardor e, apesar de não conseguir decifrar a expressão dele, Sorcha concluiu que ele não se encontrava irritado ou desgostoso. Seu último pensamento racional antes de sucumbir à paixão que ele lhe despertava, foi imaginar que Ruari apreciara o fato de ela estar apaixonada, mesmo que não a amasse. Já era um começo.

Ruari fitou a delicada esposa, que acomodou em seus braços. Ela parecia exausta e tinha várias marcas vermelhas no corpo, resultantes de seu amor incontrolável. Ficou envergonhado e receoso de tê-la machucado. Quando ela falara suavemente do amor que sentia, ele fora incapaz de raciocinar. Só pensara em fazer amor com ela, sabendo que era o único. Ouvir aquelas palavras dera-lhe tanto prazer que, em sua paixão, perdera o comedimento. Embora temesse a resposta, obrigou-se a perguntar:

- Está tudo bem, querida? Eu a machuquei? Sorcha entreabriu os olhos, espreguiçou-se e sorriu.

- Não, mas eu concluí que não é sensato deixá-lo dormir sozinho por tanto tempo, pois isso aumenta muito seu apetite.

Ruari sorriu e a beijou na ponta do nariz.

- Não foi ficar sozinho na cama por três semanas com apenas uma tarde de amor, que me fez agir como um louco.

- Não? - Sorcha o acariciou nas costas.

- Não. Foi o que você disse antes que eu perdesse o controle.

Ruari ficou inquieto diante do silêncio de Sorcha. Desde o momento em que se dera conta de seu amor por ela, ansiara ouvi-la dizer que correspondia a seus sentimentos. Começava a pensar que a entendera mal, que ela não confessara amá-lo.

- E o que foi que eu disse? - ela perguntou.

O olhar inocente o fez suspeitar de que ela estivesse fazendo um jogo. Por um momento, pensou em mentir sobre o que ouvira, ainda mais por sua confiança quanto às palavras exatas estar abalada no momento, mas decidiu que estava na hora de assumir riscos. Sorcha fizera isso quando se tornara sua amante. Praguejou em silêncio, decidindo que o amor era uma emoção complicada, irritante e problemática.

- Você disse: "Eu estava avaliando o quanto eu o amo. Provavelmente mais do que seria sensato".

- Eu disse isso?

- Sorcha...

Ela evitou rir. Ruari, em uma confusão de expressões, parecia incerto. A confissão de que o relacionamento feroz fora inspirado pela declaração de amor deu-lhe esperanças, assim como o interesse dele em seus sentimentos. Ele teria de sentir algo profundo por ela, ou não se importaria tanto com seu coração.

- Sim, eu disse e estava certa. Isso não é sensato... - Ela deu um pequeno grito de surpresa quando ele a apertou entre os braços. - Essas palavras são arriscadas. Primeiro sou devorada de amor, depois sou apertada até perder o fôlego.

- Peço perdão. Achei suas palavras de amor muito comoventes.

- Por quê?

- Pergunta estranha. Por que um homem quer escutar que é amado?

- Para alimentar seu orgulho. Para ter certeza de que a esposa está presa a ele por mais do que paixão e o juramento feito diante do sacerdote. - Sorcha deu de ombros. - Há muitas outras razões, mas estou contente que não tenha achado a declaração inconveniente ou um fardo com o qual preferia não se preocupar. - Ela achou interessante a expressão atônita de Ruari.

- Se essa é sua opinião, por que dizer aquilo para mim?

- Embora eu esteja me contendo há muito tempo, achei que era algo que você deveria saber. Depois dos conselhos de Dougal e Neil, entendi que guardar os sentimentos por temer a aceitação deles seria um tormento pior do que abrir meu coração e ficar sabendo o que você pensa.

Ruari deitou-se de costas esfregou as têmporas e voltou a cabeça para Sorcha.

- Você é uma moça muito peculiar.

- Sou? - Sorcha virou-se de lado, apoiou a cabeça em uma das mãos e acariciou o peito do marido. - Por quê?

- Além do fato de ver fantasmas e falar com eles?

- Sim, fora disso.

- Depois de uma confissão de amor que saiu do fundo do coração, age como se tivesse apenas feito um comentário sobre a qualidade do vinho. Não pede nada de mim.

- Você nada me pediu, exceto paixão, e não deve ser preocupação sua se os meus sentimentos vão além. E de que serviria uma emoção se ela não for espontânea e livre? Sinto muito se eu o fiz sentir-se culpado. Não foi essa minha intenção.

Ruari passou os dedos nos cabelos.

- Não me senti culpado, apenas surpreso. Não fiz nada para merecer seu amor.

- É verdade. - Sorcha riu diante da fingida expressão sombria, ficou séria e deu-lhe um beijo terno. - Nem poderia, pois o amor não nasce de um merecimento. É uma emoção ingovernável.

- Tem razão - Ruari concordou com voz rouca. - Por isso muitos homens procuram não se apaixonar. O amor é visto por muitos como uma fraqueza.

- E é? - ela murmurou.

No olhar de Ruari, havia um sentimento profundo. Ele falava dos homens em geral, mas Sorcha tinha certeza de que ele se referia a si mesmo. Recriminou-se por deixar as esperanças se altearem a cada vislumbre de afeto por parte de Ruari, mas não pôde evitar a antecipação que tornava difícil respirar.

- Sim. Nenhum homem deseja que seu coração e sua alma sejam presos por outra pessoa. - Ruari abraçou-a e então os dois ficaram frente a frente. - Uma vez que isso acontece, um homem pode temer ser governado pelos caprichos da mulher. Depois vem o suplício da incerteza. Ele sucumbiu ao amor, mas e ela? Deveria ele contar o que sente? Ela p consideraria um tolo?

Enquanto falava, Ruari a acariciava lentamente, beijando-lhe o rosto, o pescoço e os lábios. A paixão começou a toldar a mente de Sorcha, embora ela lutasse para escutar com clareza tudo o que ele dizia. Quando Ruari a fez passar a perna pelo quadril dele e pôs a mão entre suas coxas, ela entendeu que perdia a luta. Sentiu fraqueza e calor quando o desejo a atingiu.

- Se está interessado em que eu o ouça, não deveria fazer isso - Sorcha falou com voz rouca.

- Talvez eu não queira que pense muito no que eu digo ou que ouça as palavras com clareza. - Devagar, Ruari uniu seus corpos.

Sorcha demorou alguns instantes para conseguir falar diante do prazer que a envolvia.

- Se não quer que eu ouça ou pense a respeito, por que está dizendo isso?

- Porque era o que precisava ser dito. - Segurou-a de encontro a si e começou a se mover, acariciando-a intimamente a cada impulso de seu corpo. - Talvez eu seja um pouco covarde - ele sussurrou e tocou os lábios de Sorcha com os seus. - É possível que eu use a paixão que nos cega para me proteger quando minha alma for desnudada.

- É o que planeja fazer? - Sorcha sussurrou.

- Sim, e isso não é fácil para um homem.

Ruari beijou-a lentamente, e o ritmo de sua língua acompanhou as investidas de seu corpo. A paixão quente e selvagem de Sorcha a impedia de formar perguntas coerentes. Quando ela percebeu seu corpo retesar-se a ponto de doer, a segundos do êxtase, sentiu a boca de Ruari em sua orelha.

- Eu te amo, Sorcha...

Aquelas palavras tiveram nela o efeito da mais íntima carícia. A respiração quente de Ruari em seu ouvido desencadeou a onda final de prazer que tomou seu corpo. Disse o nome dele e apertou-o com braços e pernas, tentando fazer com que ele a penetrasse ainda mais, enquanto estremecia com a intensidade das sensações. No momento em que perdia totalmente a capacidade de pensar, escutou Ruari chamá-la quando se uniu a ela no momento mais doce de paixão.

Seria difícil saber quanto tempo se passou antes que Sorcha conseguisse pensar com clareza sobre o que Ruari dissera e fizera. Estendido ao seu lado, ele a acariciava com vagar, e ela imaginou que aqueles carinhos logo reacenderiam seu desejo. Deu um leve sorriso e admitiu que, às vezes, ela era insaciável.

Ruari pronunciara as palavras pelas quais ansiava havia tanto tempo. Lembrou-se da própria relutância em abrir o coração e entendeu por que ele esperara até ela estar quase cega e surda de paixão antes de sussurrar aquela afirmativa. No momento, ele se mostrava reticente, e nem mesmo a olhava. Decidiu que, se conseguira falar abertamente sobre o assunto, ele também poderia fazer isso. Deu um cutucão nas costelas de Ruari, sorrindo quando ele a olhou confuso.

- Sir Kerr, esses seus jogos...

- São divertidos, não? Deixe-me retomar as forças e lhe ensinarei mais alguns.

- Eu não falei dos jogos do amor. Eu me referi à maneira inteligente com que esperou para expor seu coração até eu estar tão arrebatada pelo desejo...

- Arrebatada, é?

Ela ignorou a interrupção.

- ...que seu coração passou a não ser a parte de seu corpo com a qual eu estava mais preocupada. - Ela sorriu ao vê-lo rir, mas logo ficou séria. - Meu nobre cavaleiro, a afirmativa terá de ser mais convincente. Passei muitos meses atormentada, amando-o em silêncio, temendo que nunca fosse correspondida. Por vezes incontáveis cheguei a chorar imaginando minha tolice ao acreditar que chegaria a ser amada.

- E por que eu não a amaria?

- Por muitos motivos. Não esqueça que já me tomou por maluca.

- Um pouco só - Ruari murmurou e sorriu. - Assim como todos os seus parentes. - Com a ponta dos dedos, ele acariciou-lhe o contorno do rosto. - Há muitos motivos para eu amá-la, e fui um tolo tentando evitar que isso acontecesse. Admiro sua energia, seu espírito, sua beleza e os mais lindos olhos castanhos de toda a Escócia. - Beijou-a no rosto ao vê-la corar. - Eu a olho e lembro-me das urzes, que podem enfeitar com cores suaves as mais improdutivas das nossas colinas. Você é bela, selvagem e delicada na aparência, mas resistente como aquelas flores. Não tem dote, nem terras e fala com espíritos. E mesmo depois da partida de Ivor, imagino que aparecerão mais fantasmas no futuro. Não importa. Eu desejo a formosa dama - acariciou-a na face - e preciso muito dela.

- Eu também preciso do meu nobre cavaleiro. - Sorcha abraçou-o pela nuca e beijou-o.

- Quando descobriu que me amava e que precisava de mim?

- Eu suspeitava disso há muito tempo, mas como estava certa de que não poderíamos nos casar, lutei contra o amor que crescia dentro de mim, assim como contra a paixão que eu não podia conter. Não consegui abafar nenhuma dessas emoções depois da primeira noite em que fui para sua cama. No momento em que nossos corpos se uniram, entendi que o amava.

- Eu gostaria que tivesse sido assim fácil para mim. - Ruari beijou-lhe a testa.

- Um guerreiro treinado não se entrega facilmente. Os dois riram.

- Também havia a considerar a minha idéia arraigada sobre uma esposa. Eu relutava em abandonar essa noção, por mais que Rosse me aconselhasse a fazê-lo.

- Afastou alguns fios de cabelos do rosto de Sorcha.

- Além disso, eu sentia raiva, por causa de meu orgulho ferido.

-Não faz mal. Alguns dos obstáculos no nosso caminho foram por nós criados, mas os superamos. Daqui para a frente, só teremos de cuidar do nosso amor para que ele ainda esteja forte quando envelhecermos.

Ruari abraçou-a e traçou um caminho de pequenos beijos no rosto de Sorcha.

- Diga tudo de novo, meu amor. Estou faminto por aquelas palavras.

- Eu te amo, Ruari Kerr.

- Eu também a amo Sorcha, minha esposa. Embora eu seja um guerreiro e entenda pouco de ternura, não encontrarei dificuldade para acalentar esse presente valioso que partilhamos.

- Estarei ao seu lado para ajudar a guardar esse amor que é nosso maior tesouro. - Sorcha retribuiu calorosamente os beijos do marido. - Eu gostaria que Crayton e Ivor ainda estivessem aqui para contar-lhes o que houve. Os dois se preocupavam muito com o que o futuro nos reservava.

- Tenho certeza de que eles sabem. Bem, agora tenho planos em mente que não incluem muita conversa, principalmente a respeito de seus espíritos. Na verdade, prefiro a ausência deles, e espero que isso continue por um bom tempo.

Sorcha abraçou-o quando ele tornou a beijá-la e decidiu que aquele não era o momento certo para falar a respeito da jovem de olhos tristes que aparecera ao lado do sacerdote para observar a cerimônia com semblante melancólico. Naquele instante, a paixão de Ruari era a força por trás de seu beijo, e sua ânsia era fácil de sentir. Ela não podia imaginar melhor forma de intensificar as doces palavras que haviam trocado do que fazendo amor. E com os corações e as mentes libertos de receios e dúvidas, com certeza esse momento de intimidade e paixão seria lembrado para sempre.

Epílogo

Sorcha sorriu para a jovem criada que a ajudara a se lavar e a vestir uma camisola limpa. Acomodou o corpo dolorido nos lençóis que haviam sido trocados e observou as duas outras mulheres deitadas no mesmo quarto. À direita, Neil, calmamente reclinada, demonstrava que recuperaria as forças antes de uma hora se passar. A esquerda estava Margaret, exausta e um pouco chocada com a confusão e com a falta de privacidade. Sorcha mexeu-se na cama e olhou os três bebês enrolados no cueiro, que dormiam em seus berços.

Apesar de Ruari ter pensado que elas fossem malucas ou que houvessem sido atacadas por algum estranho desejo que afligia as grávidas, fizera tudo o que ela pedira. Um quarto fora preparado para receber as três que dariam à luz juntas, como Euphemia as aconselhara algumas semanas após o casamento. No entanto, nem ela, nem a tia ou a prima haviam revelado aos maridos o restante da predição da garota. Cada uma delas daria ao marido sete filhos fortes. A promessa de acabar com a aparente incapacidade de produzir varões fora suficiente para que as três seguissem cada detalhe da profecia sucinta, mas bem-vinda.

Ela tornou a sorrir ao escutar as vozes dos maridos impacientes para ver as esposas e os filhos recém-nascidos. A impaciência fora fortalecida pelas mulheres que entravam e saíam do quarto sem fornecer informações. Eles não sabiam que cada uma das parteiras fora ameaçada com um castigo alarmante caso falassem alguma coisa, principalmente que os recém-nascidos eram meninos.

- Será melhor deixar aqueles tolos entrarem - Neil disse, puxando a trança grossa por cima do ombro e acenando para as criadas saírem. - Sorria, menina - ordenou a Margaret. - Esse seu desânimo vai acabar assustando o pobre Beatham.

- Não posso aparentar outra coisa se estou abatida - Margaret resmungou, mas sentou-se recostada nos travesseiros e tentou mostrar alegria. - A profecia de Euphemia não me deixou muito animada. Não sei se terei forças para suportar isso mais seis vezes.

- Bem, isso lhe dará apenas os sete filhos homens que Effie predisse - Sorcha comentou. - Você poderá ter ainda mais uma ou duas meninas.

Sorcha e Neil ainda riam da expressão de horror de Margaret, quando Ruari, Beatham e Malcom entraram no quarto sem fazer barulho. Sorcha concentrou a atenção em Ruari, que se aproximou, olhou-a intensamente por alguns instantes e a beijou. Ela adorou que o marido lhe concedesse as primeiras atenções para assegurar-se de que ela sobrevivera à difícil prova, antes de perguntar pelo bebê ansiosamente esperado.

- Nosso bebê está no berço do meio - Sorcha disse e observou-o pegar a criança no colo e sentar-se na beira de sua cama.

- Ela tem cabelos negros - ele sussurrou, sorrindo com orgulho ao deitar a criança na cama para desenrolar o cueiro.

Sem tirar os olhos de Ruari, Sorcha percebeu, de viés, Beatham e Malcom fazerem o mesmo com os filhos. Sorriu quando seu marido retirou a última faixa e constatou tratar-se de um menino. O murmúrio de surpresa dele teve eco nos outros dois pais.

- Tenho um filho homem - Ruari falou com voz rouca e olhou para Sorcha.

- Espero que esteja contente. - Ela riu diante do olhar aborrecido e franziu a testa quando ele pareceu indeciso.

- Sorcha, eu teria ficado feliz de qualquer maneira, fosse menino ou menina.

Ela pôs um dedo nos lábios dele para impedi-lo de continuar.

- Não precisa se desculpar por sua felicidade em ter um filho. Eu não duvido que teria amado igualmente uma menina. Aproveite a alegria que está sentindo por ter o filho que todo homem deseja e não tema que eu possa ver algo de errado nisso.

Ruari colocou o bebê de volta no berço, voltou até a cama, tomou Sorcha nos braços e beijou-a com tanta ternura que ela sentiu lágrimas nos olhos. O silêncio no quarto era sinal de que Beatham e Malcom também haviam se emocionado. Sorcha deu um rápido olhar para os berços e notou que Caroline, a inglesa de olhos tristes que vira pela primeira vez em seu casamento, estava de guarda. Sorriu. Sabia que seu filho seria bem protegido até que a mulher finalmente encontrasse a paz que procurava nos corredores de Gartmhor.

- Ela está aí, não é? - Ruari murmurou e relanceou um olhar ao redor.

- Sim, Caroline vigia nosso filho. Ruari suspirou e sorriu.

- Eu te amo, Sorcha, minha pequena flor de urze silvestre. Com espíritos e tudo.

- E eu te amo, meu nobre cavaleiro de olhos verdes. E te amarei até que toda a luz de minha alma se extinguir.

- Ótimo, porque se o seu amor diminuir depois de eu responder ao chamado de Deus, pode ter certeza de que eu voltarei para assombrá-la.

- Meu amor jamais morrerá - Sorcha sussurrou e sorriu. - E Deus não haverá de permitir que eu o perca. Mas, se isso acontecer, por favor, volte para me assombrar. Ficarei esperando.

Ruari riu e beijou-a de novo.

- Eu lhe agradeço por meu filho - ele falou com voz emocionada. - Uma mulher não pode dar maior prova de amor a um homem, e eu humildemente a aceito, prometendo cuidar da criança como sempre cuidarei da mãe.

Sorcha relaxou junto ao peito largo. As palavras ternas dele aliviaram a dor residual do parto. Mais tarde, ela diria a Ruari que ele teria muitos filhos de quem cuidar no futuro, pois poderia contar com mais seis...

 

 

                                                                  Hannah Howell

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades