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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS ESTRANHOS / Stephen King
OS ESTRANHOS / Stephen King

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS ESTRANHOS

 

Como acontece a muitas rimas de Mamãe Gansa, as estrofes sobre os Tom-myknockers são decepcionantemente simples. É difícil chegar-se à origem desta palavra. O Webster’s Unabridged diz que Tommyknockers tanto podem ser ogres vivendo em túneis, como fantasmas que infestam cavernas ou desertas galerias de minas. Uma vez que tommy é um termo arcaico de gíria britânica, referindo-se a reações do exército (o que tornou o termo tommies uma palavra usada para identificar recrutas britânicos, como em Kipling: “é Tommy isto, e Tommy aquilo...”), o Oxford Unabridged Dictionary, embora não identificando o termo em si, pelo menos sugere que Tommyknockers sejam os fantasmas de mineiros mortos por inanição, mas que continuam batendo por comida e resgate.

A primeira estrofe (“Bem tarde na noite passada e na noite anterior,” etc.) é comum o bastante para que eu e minha esposa a tivéssemos ouvido quando crianças, mesmo havendo sido criados em cidades diferentes, tendo crenças religiosas diferentes e possuindo diferente ascendência — ela, oriunda principalmente de franceses, eu de irlandeses-escoceses.

Todas as demais estrofes são produto da imaginação do autor.

Este escritor — eu, em outras palavras — deseja agradecer à esposa Tabitha, uma crítica inestimável, embora às vezes exasperante (quando nos enfurecemos com os críticos quase podemos ter certeza de que estão certos), ao editor Alan Williams, por sua gentil e cuidadosa atenção, a Phyllis Grann por sua paciência (este livro não foi apenas escrito, mas também expelido e, em particular, a George Everett McCutcheon, que leu cada um de meus livros e os analisou criteriosamente — antes de mais nada, por motivos ligados a armas e balística, mas também por sua atenção à continuidade. Mac faleceu enquanto este livro era reescrito. Aliás, eu fazia obedientemente as correções sugeridas em uma de suas notas quando soube que por fim sucumbira à leucemia, contra a qual vinha lutando por quase dois anos. Senti uma tremenda falta dele, não por ajudar-me a corrigir coisas, mas por fazer parte dos que moram em meu coração.

Devo ainda agradecimentos a outras pessoas, estas em maior número do que me seria possível mencionar: pilotos, dentistas, geólogos, colegas escritores, e inclusive meus filhos, que ouviram a leitura do livro. Também sou grato a Jay Gould. Embora ele torça pelos Yankees, não sendo, portanto inteiramente confiável, seus comentários sobre as possibilidades do que eu denominaria a “evolução dos mudos”, ajudaram a modelar o novo rascunho desta novela (O sorriso do flamingo, por exemplo).

Haven não é real. Os personagens não são reais. Esta é uma obra de ficção, com uma única exceção:

Os Tommyknockers são reais.

Se você pensa que estou brincando, é porque não ouviu os noticiários noturnos.

Stephen King

 

ROBERTA ANDERSON TROPEÇA

O reino foi perdido por falta de uma ferradura — é como diz o catecismo, quando o reduzimos à expressão mais simples. Por fim, podemos reduzir tudo a algo similar — ou assim pensou Roberta Anderson, bastante tempo mais tarde. Foi tudo uma casualidade... ou tudo obra do destino. Ela literalmente tropeçou em seu destino, na cidadezinha de Haven, no Maine, a 21 de junho de 1988. Esse tropeção foi a raiz do assunto; todo o resto se tornou história.

 

Naquele entardecer, Roberta havia saído com Peter, um velho cão beagle, agora cego de um olho. Jim Gardener lhe dera Peter em 1976. Roberta saíra da universidade no ano anterior, faltando apenas dois meses para diplomar-se, a fim de ir morar na propriedade do tio, em Haven. Não havia percebido o quanto estava solitária, senão quando Gard lhe trouxera o cão. Peter era um filhote, na época, e Roberta custara a crer que agora estivesse idoso — oitenta e quatro anos, na contagem de idade dos cães. Aliás, era uma forma de também mensurar sua própria idade. Mil novecentos e setenta e seis recuara. Sim, de fato. Quando temos vinte e cinco anos, ainda nos podemos dar o luxo de acreditar que, em nosso caso, envelhecer era um erro de transcrição que, eventualmente, seria corrigido. Ao acordarmos um belo dia e descobrirmos que nosso cão está com oitenta e quatro anos e nós com trinta e sete, essa é uma perspectiva que devia ser reexaminada. Sim, de fato.

Roberta procurava um lugar em que pudesse cortar um pouco de lenha. Já tinha quase duzentos pés cúbicos de lenha cortada, porém queria triplicar a quantidade, o que lhe permitiria atravessar todo o inverno. Havia cortado um bocado de lenha desde que Peter ainda era filhote, afiando os dentes em um chinelo velho (e molhando exageradamente todo o tapete da sala de refeições), porém ainda existia bastante madeira na propriedade. Aquelas terras (que após treze anos continuavam sendo identificadas, pela gente da cidade, como a fazenda de Frank Garrick) ficavam a apenas sessenta e um metros da Rota 9, porém os muros de pedra marcando os limites norte e sul estendiam-se em ângulos divergentes. Outro muro de pedras — este tão antigo que se degenerara em monturos isolados de pedras, cobertas de musgo — delimitava as divisas posteriores da propriedade, avançando, em cinco quilômetros de indisciplinada floresta contendo árvores de primeira e segunda geração. A área total dessa cunha em forma de torta era enorme. Além do muro na margem oeste da terra de Bobbi Anderson, havia quilômetros e quilômetros de florestas pertencentes à Companhia de Papel da Nova Inglaterra. No mapa, tinham o nome de Burning Woods. Floresta Ardente.

Em verdade, Roberta não tinha real necessidade de procurar algum local apropriado para cortar sua lenha. A terra que herdara do irmão de sua mãe era valiosa, porque a maioria das árvores ali existentes era de excelente madeira dura e relativamente intocada pela infestação da mariposa européia. Entretanto, aquele era um dia radioso e quente, após uma primavera chuvosa, o jardim fora semeado (com a maioria das plantas apodrecendo, graças às chuvas) e ainda não era hora de iniciar o novo livro. Assim, ela cobrira a máquina de escrever e perambulava com o velho e fiel Peter de um olho só.

Havia uma velha estrada de lenhadores atrás da fazenda, e Roberta seguiu quase dois quilômetros por ela, antes de desviar-se para a esquerda. Levava uma mochila (contendo um sanduíche e um livro para ela, biscoitos caninos para Peter e punhados de fita alaranjada que, atada à volta dos troncos das árvores que pretendia derrubar quando o calor de setembro fosse chegando a outubro) e um cantil. Tinha no bolso uma bússola Silva. Já se perdera dentro da propriedade uma vez, mas que fora o suficiente para Roberta não desejar ver repetida. Havia passado uma noite terrível na floresta, ao mesmo tempo incapaz de acreditar que estava mesmo perdida na propriedade que — pelo amor de Deus — lhe pertencia, e certa de que acabaria morrendo ali. Era uma possibilidade na época, porque apenas Jim daria por sua falta, mas Jim só aparecia quando não era esperado. Pela manhã, Peter a guiara a uma corrente e a corrente a levara de volta à Rota 9, onde borbulhava alegremente através de manilhas sob o asfalto, a apenas três quilômetros de casa. Atualmente, havia a probabilidade dela já conhecer o suficiente da floresta para encontrar o caminho de volta à estrada ou a um dos muros cercando sua terra, porém a palavra chave era probabilidade. Assim, Roberta levava uma bússola.

Por volta das três da tarde, encontrou um bom maciço de bordos. De fato, já havia passado vários ajuntamentos de boas árvores para o corte, porém este aqui ficava próximo de uma trilha conhecida, com largura suficiente para acomodar o Tomcat. Por volta de 20 de setembro mais ou menos — se alguém não explodisse o mundo, nesse meio tempo — ela engancharia seu trenó ao Tomcat, dirigiria até ali e cortaria alguma madeira. Por outro lado, já tinha caminhado o suficiente por um dia.

— Parecem boas, Pete?

Pete latiu fracamente e Roberta olhou para o beagle com tão profunda tristeza, que isso a surpreendeu e inquietou. Peter estava liquidado. Atualmente, era raro ele correr atrás de pássaros, esquilos, tâmias e uma marmota ocasional; a idéia de Peter afugentando uma corça era hilariante. Seria preciso fazer várias paradas para ele descansar, quando voltassem, mas houvera uma época, não muito distante (ou assim afirmava sua mente, com teimosia), quando Peter sempre se mantinha quinhentos metros à frente dela, esgoelando-se em latidos por entre as árvores. Roberta refletiu que podia chegar o dia em que decidiria ser o bastante; então, bateria no lado do passageiro de sua picape Chevrolet pela última vez e levaria Peter ao veterinário, em Augusta. Só que não neste verão, meu Deus, por favor! Nem neste outono ou inverno, por favor, Deus! Ou nunca, por favor, Deus!

Porque, sem Peter, ela estaria só. A exceção era Jim, porém Jim Gardener ficara ligeiramente distante no correr dos últimos três anos mais ou menos. Ainda um amigo, mas... distante.

— Gostei de você ter aprovado, Pete meu velho — disse ela, amarrando uma ou duas fitas em torno das árvores, mas sabendo perfeitamente que talvez preferisse cortar outro maciço, enquanto as fitas apodreceriam ali. — Seu gosto só é superado por sua boa aparência.

Sabendo o que era esperado de sua parte (Peter estava velho, porém não era burro), ele agitou o coto de cauda e latiu.

— Seja um vietcongue! — gritou Roberta.

Peter obedientemente caiu de lado — um leve gemido escapou dele — e rolou de costas, com as pernas escancaradas. Isso quase sempre divertia Roberta, mas agora, a visão de seu cachorro brincando de vietcongue (Peter também se fingia de morto às palavras hooch ou “My Lay”*) era demasiado aproximada daquilo em que estivera pensando. — Levante-se, Peter!

Peter levantou-se devagar, com o focinho ofegante. Seu focinho branco.

— Vamos embora! — Ela lhe jogou um biscoito canino, Pete procurou abocanhá-lo no ar, mas falhou. Farejou em busca do biscoito caído no chão, perdeu a pista, tomou a encontrá-lo. Comeu-o lentamente, sem grande satisfação. — Muito bem — acrescentou Roberta. — Andando!

 

O reino foi perdido por falta de uma ferradura... e, pela escotilha de uma trilha, a nave foi encontrada

Roberta Anderson já estivera ali antes, nos treze anos em que a Fazenda Garrick se tornara a Fazenda Anderson. Reconheceu a encosta da terra, um emaranhado de árvores caídas desnivelando o terreno, todas elas talvez mortas antes da guerra da Coréia, entre as quais um enorme pinheiro de topo fendido. Caminhara pelo lugar antes e não teria problemas para encontrar o caminho de volta à trilha que usaria com o Tomcat. Poderia ter passado uma, duas ou meia dúzia de vezes antes pelo local onde tropeçou, talvez a metros ou centímetros de distância.

Agora, no entanto, seguia Peter, que se tinha movido ligeiramente para a esquerda. Com a trilha à vista, uma de suas velhas botas de caminhar bateu em alguma coisa... bateu com força.

— Ei! — gritou.

Tarde demais, apesar dos braços que se agitavam. Caiu ao chão. O ramo baixo de um arbusto arranhou-a no rosto, com violência bastante para tirar sangue.

— Merda! — exclamou, e um gaio censurou-a.

Peter voltou, primeiro farejando, depois lambendo o nariz.

— Céus, não faça isso, seu bafo fede!

Peter abanou a cauda. Roberta sentou-se no chão. Esfregou a face esquerda, viu sangue na palma e dedos. Grunhiu.

— Que bela queda! — exclamou, olhando para ver em que havia tropeçado.

Provavelmente fora em um pedaço de tronco caído ou em alguma rocha destacando-se do solo. Há rochas em abundância no Maine. No entanto, o que viu foi um brilho metálico.

Ela o tocou, correndo o dedo ao longo da coisa de metal, depois soprando a terra negra da floresta que aderira.

— O que é isto? — perguntou a Peter.

Peter aproximou-se, farejou e então fez algo peculiar. O beagle recuou dois passos caninos, sentou-se e emitiu um único uivo roufenho.

— O que deu em você? — perguntou Roberta.

Peter apenas continuou onde estava. Roberta chegou mais perto, ainda sentada, deslizando sobre o fundilho dos jeans. Examinou o metal no solo.

Apenas uns sete centímetros emergiam da terra coberta de folhas mortas — o suficiente para fazê-la tropeçar. Ali havia uma ligeira elevação e talvez a água corrente das fortes chuvas da primavera houvesse carregado a terra. A primeira idéia de Roberta foi de que os arrastadores de troncos, os lenhadores que haviam trabalhado ali nos anos 20 e 30, deviam ter deixado no local um punhado de seus refugos — os restos de comida de três dias de trabalho, um “fim de semana de lenhadores”, conforme era chamado na época.

Deve ser uma lata, pensou ela. Uma lata de feijões B&M ou de sopa Campbell. Sacudiu a protuberância metálica, da maneira como se sacode uma lata, a fim de arrancá-la da terra. Então, ocorreu-lhe que ninguém, a não ser uma criança de tenra idade, seria capaz de tropeçar na borda saliente de uma lata e cair, o metal fincado na terra não se abalou. Era sólido como uma rocha maciça. Seria talvez alguma peça do antigo equipamento dos madeireiros?

Intrigada, examinou-a mais de perto, não percebendo que Peter se erguera, recuara mais quatro passos e sentara novamente.

O metal era de uma opaca tonalidade cinza — não a cor brilhante de urna lata ou de ferro, em absoluto. Também era mais espesso do que uma lata, tendo talvez uns seis milímetros no topo. Roberta pousou a ponta do indicador direito na borda e sentiu momentâneo e curioso formigamento, como uma vibração.

Afastou o dedo e olhou para ele, intrigada.

Tornou a pousá-lo na borda metálica.

Nada. Nenhuma vibração.

Segurando o metal entre o polegar e o indicador, tentou puxá-lo da terra, como puxaria da gengiva um dente frouxo. Nada aconteceu. Agarrava a saliência bem pelo meio. Ela se afundava na terra — ou foi a impressão que deu — em ambos os lados, em uma largura com menos de cinco centímetros. Mais tarde, contaria a Jim Gardener que podia ter caminhado ali três vezes ao dia, durante quarenta anos, sem nunca tropeçar naquilo.

Afastou a terra solta dos lados, expondo um pouco mais do metal. Com os dedos, escavou ao longo dele um canal com cerca de cinco centímetros de profundidade — o solo cedia com facilidade, de maneira como cede o solo das florestas... pelo menos, até chegarmos ao emaranhado das raízes. O metal continuava a aprofundar-se uniformemente, chão adentro. Pondo-se de joelhos, Roberta escavou ao longo dos dois lados. Tentou sacudir o metal novamente. Mais uma vez, nada aconteceu.

Escavou mais terra com os dedos e rapidamente expôs mais — agora via quinze centímetros de metal acinzentado, logo em seguida vinte, depois trinta.

É um carro, um caminhão ou um puxador de toras, pensou de súbito. Enterrado aqui, no meio de lugar nenhum. Talvez seja alguma espécie de estufa do tipo Hooverville. Certo, mas por que aqui?

Não conseguia encontrar um motivo; não havia qualquer razão para aquilo estar enterrado ali. De tempos em tempos, Roberta encontrava coisas na floresta — cartuchos detonados de rifles, latas de cerveja (das bem antigas, sem topos facilmente abertos com a mão, mas com buracos em forma de triângulo, feitos pelo que, nos longínquos dias dos anos 60, era conhecido como “chave de igreja”), envoltórios de balas e doces, objetos vários. Haven não se situava na direção das duas principais rotas turísticas do Maine, uma das quais cruza a região dos lagos e montanhas até o extremo oeste do estado, a outra subindo o litoral até o extremo leste, porém há muito e muito tempo deixara de ser a floresta primitiva. Certa vez, (ela cruzara o tombado muro de pedra nos fundos de sua terra, na época realmente invadindo os terrenos da Companhia de Papel da Nova Inglaterra) descobrira a desmantelada e enferrujada estrutura de um Hudson Hornet de fins dos anos 40, assentada no que outrora havia sido uma estranha madeireira, mas que agora, mais de vinte anos depois após ter sido interrompido o corte das árvores, se tornara um emaranhado matagal de segunda geração — o que os locais denominavam “madeira inútil”. Tampouco havia qualquer motivo para a presença da carcaça de um carro estar ali... porém era mais fácil de explicar, do que uma estufa, uma geladeira ou qualquer outra maldita coisa realmente enterrada no solo.

Roberta tinha escavado valas duplas com trinta centímetros de comprimento a cada lado do objeto, sem encontrar suas extremidades. Escavou quase trinta centímetros de profundidade, antes que seus dedos arranhassem rocha. Poderia ser capaz de arrancar aquela pedra — isso, pelos menos cedera um pouco — porém não havia motivo para tal. O objeto continuava mergulhado na terra, depois disso.

Peter ganiu.

Roberta olhou para o cão, depois ficou em pé. Seus joelhos bambearam. O pé esquerdo formigou com alfinetadas. Tirou o relógio de bolso das calças — antigo e empretecido, o relógio Simon era outra parte do legado do tio Frank — e ficou espantada, ao ver que passara muito tempo ali. Uma hora e quinze minutos, pelo menos. Já passava das quatro.

— Muito bem, Pete — disse. — Vamos dar o fora!

Peter tornou a ganir, porém não se moveu. E agora, com real inquietação, Roberta viu que seu velho beagle tremia inteiramente, como se estivesse com sezão. Ela ignorava se cães podiam sofrer de sezão, mas talvez os idosos pudessem. Recordou que a única vez que vira Peter tremer daquele jeito tinha sido no outono de 1975 (ou então de 76). Um gato-do-mato andara pela propriedade e durante umas nove noites, mais ou menos, o animal miara e se esgoelara, possivelmente devido a um cio não correspondido. A cada noite, Peter ia para a janela da sala de estar e saltava sobre um velho banco de igreja que Roberta colocara ali, junto da estante de livros. Ele jamais latia. Apenas ficava espiando para o escuro, de orelhas em pé, na direção daqueles guinchos extraterrenos e femininos. Suas narinas dilatavam-se e ele tremia de alto a baixo.

Roberta passou por cima de sua pequena escavação e aproximou-se de Peter. Ajoelhando-se, deslizou as mãos pelos lados da cara do cachorro, sentindo a tremura nas palmas.

— O que há de errado, garoto? — murmurou.

Não obstante, sabia o que estava errado. O olho sadio do cão passava além dela, fixo na coisa enterrada no solo. Voltava depois a fixar-se em sua dona. A súplica impressa na pupila não velada pela odiosa e leitosa catarata era tão clara como palavras: Vamos embora daqui, Bobbi, gosto tanto daquela coisa como gosto de sua irmã.

— Está bem — disse Roberta, apreensivamente.

Ocorreu-lhe, de repente, que não se recordava de jamais haver perdido a noção do tempo como acontecera nesse dia, naquele lugar.

Peter não gostou da coisa. Nem eu tampouco.

— Vamos!

Ela começou a subir a pequena encosta até a trilha. Peter a seguiu com alacridade. Estavam quase chegando lá quando, como a mulher de Ló, Roberta olhou para trás. Se não fosse esse último olhar, de fato poderia ter esquecido inteiramente o que ocorrera, desligar-se daquilo. Desde que abandonara a universidade, antes das provas finais — a despeito das lacrimosas súplicas da mãe e das furiosas recriminações e ultimatos da irmã — Roberta ficara perita em desligar-se das coisas.

O olhar para trás, daquela distância intermédia mostrou a ela duas coisas. Primeiro, a peça metálica não mergulhava na terra como imaginara a princípio. A língua de metal projetava-se do centro de uma declividade mais ou menos suave, não ampla, porém mais ou menos profunda, sem dúvida o resultado do degelo do inverno anterior e das fortes chuvas de primavera, vindas em seqüência. Assim, o solo em ambos os lados do metal protuberante era mais alto, a peça metálica simplesmente desaparecendo em seu interior. A primeira impressão de Roberta, havia sido de que a coisa no solo seria a quina de algo, porém isto não era verdade — ou não necessariamente verdade. Em segundo lugar, aquilo assemelhava-se a um prato — não um prato em que se coma, porém um prato ou placa de metal fosco, exibindo um dos lados ou...

Peter latiu.

— Está bem — disse Roberta. — Já ouvi sua chamada. Vamos!

Vamos... e deixemos isso pra lá!

Ela caminhou pelo centro da trilha, deixando Peter seguir à frente, em direção à estrada da floresta, em seu próprio passo cambaleante, apreciando a verdura exuberante do pico do verão... e aquele era o primeiro dia do verão, certo? O solstício. O dia mais longo do ano. Roberta deu um tapa no mosquito que pousara em sua pele e sorriu. O verão era uma boa época em Haven. A melhor de todas. E, se Haven não era o melhor dos lugares, situado bem acima de Augusta, naquela parte central do estado não trilhada pela maioria dos turistas — continuava sendo um bom lugar para se vir descansar. Houvera um tempo em que ela acreditara sinceramente ficar ali apenas alguns anos, os suficientes para recuperar-se dos traumas da adolescência, da irmã e de sua brusca e confusa saída da universidade (capitulação, como Anne afirmava). Os poucos anos, no entanto, transformaram-se em cinco, os cinco se tornaram dez, os dez chegaram a treze, e vejam só, Peter está velho e você com uma boa dose de fios grisalhos, exibindo-se em uma cabeleira que era tão negra como o Rio Estige (ela tentara um corte de cabelo bem curto, dois anos atrás, quase à maneira de um punk, tendo ficado horrorizada ao perceber que o grisalho ficava ainda mais visível. Desde então, voltara a deixá-lo crescer).

Atualmente, Roberta achava que passaria o resto da vida em Haven, com a única exceção da obrigatória viagem para visitar seu editor em Nova York, a cada um ou dois anos. A cidade a conquistara. A propriedade a conquistara. A terra a conquistara. E, afinal, isso não era tão ruim assim. Talvez fosse tão bom quanto qualquer outra coisa.

Como um prato. Um prato de metal.

Ela quebrou um pequeno galho bem provido de recentes folhas verdes e o agitou em torno da cabeça. Os mosquitos a tinham encontrado e pareciam determinados a extrair dela seu chá festivo. Mosquitos redemoinhando à volta de sua cabeça... e pensamentos como mosquitos, dentro da cabeça. Estes últimos ela não conseguia afugentar.

Aquilo vibrou por um segundo sob meu dedo. Eu senti. Como um diapasão. No entanto, parou quando o toquei. Será possível algo vibrar na terra desse jeito? É claro que não. Talvez...

Talvez houvesse sido uma vibração psíquica. Ela não descria de tais coisas, em absoluto. Talvez sua mente houvesse captado algo sobre aquele objeto enterrado e lhe falara a respeito, utilizando a única maneira possível, isto é, fornecendo uma impressão táctil: a da vibração. Sem dúvida, Peter captara algo sobre a coisa; o idoso beagle não quisera aproximar-se dela.

Esqueça. Ela esqueceu.

Por enquanto.

 

Nessa noite levantou-se uma brisa alta e suave, convidando-a a sair à varanda da frente da casa, a fim de fumar e ouvir o vento andar e falar. Em outras épocas — até mesmo no ano anterior — Peter teria saído com ela, porém agora permanecia na sala, enrodilhado sobre seu pequeno tapete de crochê ao lado da estufa, com o focinho junto da cauda.

Roberta percebeu que sua mente revia aquele último olhar para a chapa metálica despontando do solo e, mais tarde, passou a acreditar ter havido um momento — talvez ao jogar o toco do cigarro na entrada de cascalho — em que decidira ser preciso escavar aquilo e verificar o que era... embora então não identificasse conscientemente a decisão.

Sua mente inquieta remoia o que seria aquilo e, desta vez, permitiu que os pensamentos voassem — havia aprendido que quando a mente insiste em repisar um tema, pouco importando quanto se tente desviá-la disso, o melhor é deixá-la cogitar. Somente os obcecados preocupam-se com a obsessão.

Deve ser parte de alguma construção, aventurou sua mente, algo pré-fabricado. Não edificações pré-fabricadas, erguidas na floresta — por que levar para lá todo aquele metal, quando três homens poderiam levantar um telheiro em seis horas, com serrotes, machados e uma serra de lenhador? Tampouco podia ser um carro, porque então o metal exposto estaria coberto de ferrugem. Um bloco de motor parecia ligeiramente mais provável, mas por quê?

E agora, com a escuridão da noite baixando, a lembrança da vibração retornou, com indiscutível certeza. Se ela a sentira, devia ter sido uma vibração psíquica. Aquilo...

De repente, avolumou-se dentro dela uma fria e terrível certeza: alguém estava enterrado lá. Talvez houvesse descoberto a borda visível de um carro, uma velha geladeira ou mesmo algum tipo de cofre de aço, porém o que quer que aquilo houvesse sido em sua vida acima do solo, agora transformara-se em ataúde. Uma vítima de assassinato? Quem mais seria sepultado dessa maneira, em semelhante caixão? Indivíduos que casualmente perambulavam pelas matas durante a temporada de caça, e se perdiam por lá, não levavam consigo ataúdes de metal para se meterem neles quando morriam... e mesmo que tão absurda idéia fosse verdadeira, quem os cobriria de terra? Ora, vão plantar batatas, caras, como costumávamos dizer nos gloriosos dias de nossa juventude.

A vibração. Aquilo fora o chamado de ossos humanos.

Francamente, Bobbi... não seja tão idiota!

Ainda assim, ela foi tomada por um estremecimento. A idéia continha uma certa persuasão espectral, como um conto vitoriano de fantasmas, inteiramente deslocado, enquanto o mundo se precipitava pela Alameda Microchip, em direção às desconhecidas maravilhas e horrores do século XXI — mas mesmo assim produzindo o calafrio. Roberta podia ouvir Anne rindo e dizendo, você está ficando tão mole dos miolos como o tio Frank, Bobbi, mas é justamente o que merece, morando aí sozinha com seu cachorro fedorento. Certo. Febre de cabana. O complexo de ermitão. Chamem o médico, chamem a enfermeira, Bobbi está mal... e ficando pior

Fosse como fosse, de repente ela quis falar com Jim Gardener — precisava falar com ele. Entrou em casa, a fim de ligar para ele, que residia mais acima na estrada, em Unity. Chegou a discar quatro números, quando recordou que Jim estava fora, fazendo preleções — isto e os seminários de poesia eram os meios que o sustentavam. Para artistas itinerantes, o verão era a temporada ideal. Todas aquelas matronas imbecis na menopausa precisam encher seus verões de algum modo, ela podia ouvir Jim dizendo ironicamente, e eu preciso comer no inverno. Uma mão lava a outra. Você devia dar graças a Deus por ser poupada dessas palestras itinerantes afinal de contas, Bobbi.

Sim, ela fora poupada disso — embora achasse que Jim apreciasse mais o que fazia, do que deixava transparecer. Sem dúvida, aquilo produzia mulheres suficientes com quem ir para a cama.

Roberta recolocou o fone no gancho e olhou para a estante de livros, à esquerda da estufa. Não era uma bonita estante — seu forte não era a marcenaria e jamais seria — porém o móvel servia à finalidade. As duas últimas prateleiras de baixo estavam tomadas pela série de volumes Time-Life sobre o velho oeste. As duas de cima enchiam-se com uma mistura de ficção e fato sobre o mesmo tema; os antigos westerns de Brian Garfield disputavam espaço com o maciço Western Territories Examined, de Hubert Hamptort. A saga de Sackett, de Louis L’Amour, se colava às duas maravilhosas novelas de Richard Marius, The Coming of Rain e Bound for the Promised Land. Bloodletters and Badmen, de Jay R. Nash e Westward Expansion, de Richard F. K. Mudgett, uniam-se à confusão de livros de bolso sobre o faroeste, escritos por Ray Hogan, Archie Joceylen, Max Brand, Hernest Haycox e, naturalmente, Zane Grey — o exemplar de Riders of the Purple Sage, de Roberta, havia sido lido e relido até quase ficar em frangalhos.

Na prateleira de cima ficavam seus próprios livros, treze ao todo. Doze deles eram westerns, começando por Hangtown, publicado em 1975, e terminando com The Long Ride Back, publicado em 87. Massacre Canyon, o último seria publicado em setembro, como acontecera a todos os seus livros de faroeste, desde o começo. Recordava agora que tinha sido ali, em Haven, que recebera o seu primeiro exemplar de Hangtown, embora tivesse iniciado a novela em um sórdido apartamento em Cleaves Mills, utilizando uma antiga Underwood da safra dos anos 30, agonizando de velhice. Não obstante, viera terminá-la em Haven, e ali é que realmente tivera em mãos o primeiro exemplar do livro.

Ali, em Haven. Toda a sua carreira de escritora acontecera ali... exceto pelo primeiro livro.

Ela o pegou agora, fitou-o com curiosidade e percebeu que talvez houvesse decorrido cinco anos, desde que segurara o fino volume pela última vez. Não era apenas deprimente constatar a rapidez com que o tempo voava; era deprimente, pensar na freqüência com que se detinha em tal idéia ultimamente.

Este volume oferecia um total contraste com os outros, os quais possuíam capas exibindo mesas e montanhas isoladas de flancos abruptos, cavaleiros, vacas e empoeiradas cidadezinhas vaqueiras. A capa do que agora tinha nas mãos, era uma xilogravura de um veleiro aproximando-se de terra. Seus pretos e brancos inflexíveis eram surpreendentes, quase chocantes. Volta ao ponto de partida era o título impresso acima da xilogravura. E abaixo dela: Poemas de Roberta Anderson.

Ela abriu o livro, virou a página de rosto, demorou um instante olhando a data dos direitos autorais — 1968 — depois fez uma pausa na página da dedicatória. Era tão severa quanto a xilogravura. Este livro é dedicado a James Gardener. O homem para quem tentava telefonar, o segundo dos três únicos homens com quem já tivera sexo e o único que fora capaz de levá-la ao orgasmo. Não que ela desse muita importância a isso. Ou não importância demasiada, afinal. Ou assim pensava. Ou pensava que pensava. Ou qualquer coisa. Enfim, isso não importava; aqueles dias eram os velhos tempos.

Suspirando, Roberta tornou a colocar o livro na estante, sem olhar para os poemas. Somente um deles era muito bom, o que tinha sido escrito em março de 1967, um mês após seu avó ter morrido de câncer, os outros eram asneiras — o leitor desavisado podia ser enganado, porque ela era uma escritora talentosa... porém o âmago de seu talento estava posto em outra coisa mais. Ao publicar Hangtown, havia sido renegada por todo o círculo de escritores que conhecia. Todos, menos Jim, que, antes de mais nada, havia editado Volta ao ponto de partida.

Roberta enviara a Sherry Fenderson uma longa e amistosa carta, pouco tempo depois de chegar a Haven, recebendo em resposta um lacônico cartão-postal: Por favor, não escreva mais para mim. Não a conheço. A assinatura era um único e rasgado S, tão breve quanto a mensagem. Ficara sentada na varanda, chorando com o cartão na mão, quando Jim apareceu. Está chorando por causa do que pensa aquela mulher idiota? perguntara ele. Pretende mesmo confiar no julgamento de uma mulher que anda por aí gritando “Poder para o povo” e cheirando a Chanel Número Cinco?

Acontece que ela é uma excelente poetisa, fungara.

Jim fizera um gesto de impaciência.

Isso não a torna mais velha, ele havia dito, nem mais capaz para abjurar o que lhe ensinaram e depois ensinou a si mesma. Ponha a cabeça no lugar, Bobbi. Se quer continuar fazendo o que gosta, ponha essa merda de cabeça no lugar e pare com essa merda de choro. Essa merda de choro me deixa doente. Essa merda de choro me dá vontade de vomitar. Você não é fraca. Posso identificar um fraco, se estou com ele. Por que quer ser uma coisa que não é? Sua irmã? É isso? Bem, ela não está aqui e não é você. E não vai deixá-la interferir em sua vida, se não quiser. Não me venha mais com lamúrias sobre sua irmã. Cresça! Pare de choramingar!

Roberta recordava agora que tinha olhado para ele com espanto.

Há uma grande diferença entre ser boa no que você FAZ e ser inteligente sobre o que CONHECE, disse ele. Dê a Sherry algum tempo para ela crescer. Dê a si mesma algum tempo para crescer. E pare de ser seu próprio juiz! É tedioso. Não quero vê-la lamuriando-se. Lamúrias são para os tolos. Pare de ser tola!

Ela se percebera odiando-o, amando-o, querendo todo ele e nada dele. Jim havia dito que identificava um fraco, se estava com um? Poxa, ele devia saber. Tinha propensão para a fraqueza. Mesmo então, ela já sabia disso.

E agora, ele havia dito, você quer ir para a cama com um ex-editor ou vai gastar todas as suas lágrimas nesse cartão-postal idiota?

Roberta fora para a cama com ele. Não sabia então, como não sabia agora, se quisera ir para a cama com ele, mas tinha ido. E havia gritado quando gozara.

Isso tinha sido perto do fim.

Ela recordou também isso — como havia sido perto do fim. Ele se casara não muito depois, porém de qualquer modo teria sido perto do fim. Ele era fraco e tinha propensão à fraqueza.

Seja lá como for; pouco importa, pensou ela, dando a si mesma o velho e bom conselho: Deixa pra lá!

Era um conselho mais fácil de ser dado, do que seguido. Muito tempo passou, antes que Roberta pegasse no sono essa noite. Velhos fantasmas haviam despertado, quando pegara em seu livro com poemas abaixo da crítica... ou talvez aquele vento alto e suave, farfalhando entre a folhagem e assobiando nas árvores.

O sono começava a dominá-la, quando Peter a acordou. O cão gania dormindo.

Roberta pulou da cama, apressada e assustada — Peter fizera montes de ruídos anteriormente em seu sono (sem mencionar alguns peidos caninos incrivelmente mefíticos), porém jamais ganira assim. Era como despertar com o som de uma criança chorando, nas garras de um pesadelo.

Nua, calçada apenas em soquetes, chegou à sala e ajoelhou-se ao lado de Peter, que continuava em seu tapete ao lado da estufa.

— Pete... — murmurou. — Ei, Pete, acalme-se...

Alisou o cão. Peter tremia, e recuou quando ela o tocou. Mostrou os remanescentes cariados dos dentes e então abriu os olhos — o cego e o sadio — parecendo recomposto. Ganiu francamente e bateu no chão com o toco da cauda.

— Tudo bem com você? — perguntou ela.

Peter lambeu-lhe a mão.

— Muito bem, torne a deitar-se e pare de ganir. É tedioso. Pare com essa droga!

Peter se deitou, fechando os olhos. Ajoelhada, Roberta olhou para ele, tomada de preocupação.

Está sonhando com aquela coisa...

Sua mente racional rejeitou a idéia, porém a noite insistiu em seu próprio imperativo — era verdade, e ela sabia.

Finalmente voltou para a cama e o sono lhe chegou mais ou menos pelas duas da madrugada. Roberta teve um sonho peculiar. No sonho, tateava no escuro... não procurando encontrar algo, mas fugindo de algo. Estava no matagal. Ramos lhe batiam no rosto e espetavam-lhe os braços. Às vezes tropeçava em raízes e árvores caídas. Então, adiante dela, brilhou uma terrível luz verde, em um só raio da espessura de um lápis. Sonhando, pensou em O coração delator, de Poe, a lanterna do narrador louco encoberta, com exceção de um diminuto orifício, que ele usava para dirigir o facho de luz contra o olho maligno que, fantasiosamente, imaginava ser de seu idoso benfeitor.

Bobbi Anderson sentia todos os seus dentes caírem.

Soltaram-se das gengivas sem dor, todos eles. Os inferiores tombaram, alguns para fora, outros dentro da boca, sobre a língua ou debaixo dela, em duros montículos. Os superiores simplesmente caíram pela frente de sua blusa. Roberta sentiu um ficar preso em seu sutiã, que se abria na parte frontal, espetando-lhe a pele.

A luz. A luz verde. A luz...

 

... tinha algo errado.

Não era apenas que essa luz fosse cinza e perolada; esperava-se que um vento, como o que soprara à noite, provocasse uma mudança no tempo. Entretanto, Roberta sabia existir algo além de errado, ainda antes de espiar para o relógio na mesa de cabeceira. Tomou-o entre as mãos e o chegou perto do rosto, embora tivesse uma perfeita visão 20/20. Eram três e quinze da tarde. Tinha dormido tarde, claro. Contudo, por mais tarde que adormecesse, o hábito ou a necessidade de urinar sempre a acordava pelas nove, dez horas no máximo. No entanto, dormira doze horas a fio... e estava faminta.

Saiu para a sala de estar arrastando os pés, ainda usando apenas as meias curtas, e viu que Peter jazia flacidamente de lado, a cabeça para trás, com tocos amarelos de dente à mostra, as patas estiradas.

Está morto, pensou, com uma fria e absoluta certeza. Peter está morto. Morreu durante a noite.

Aproximou-se do cão, já antecipando o contato da carne fria e do pelame sem vida. Foi quando Peter emitiu um som roufenho que lhe estremeceu os beiços — um engrolado ronco canino. Roberta foi tomada do intenso alívio. Disse o nome do cão em voz alta, e Peter acordou, quase culpadamente, como que cônscio de haver dormido além da conta. Roberta imaginou que ele se sentisse culpado — cães parecem possuir uma noção de tempo agudamente desenvolvida.

— Dormimos demais, amigo — disse para ele.

Peter levantou-se, estirando primeiro uma pata traseira, depois a outra. Olhou em torno, com quase cômica perplexidade, depois encaminhou-se para a porta. Roberta a abriu. Peter ficou parado na soleira um instante, não gostando da chuva. Depois saiu para fazer suas necessidades.

Ela ficou parada na sala um pouco mais, ainda ruminando aquela certeza de que Peter havia morrido. Droga, afinal o que havia de errado com ela ultimamente? Tudo era fatídico e sombrio. Em seguida, tomou a direção da cozinha, a fim de preparar alguma coisa para comer... o que quer que se denominasse desjejum, às três horas da tarde.

No trajeto, desviou-se para o banheiro, a fim de fazer o que era preciso. Depois parou diante de seu reflexo, no espelho salpicado de pasta de dentes.

Uma mulher caminhando para os quarenta. Cabelos embranquecidos, porém não muito mais do que isso — ela não bebia demais, não fumava demais, passava a maior parte do tempo ao ar livre, quando não estava escrevendo. Negros cabelos irlandeses — para ela, nada das labaredas ruivas descritas nos romances — talvez um tanto compridos. Olhos cinza-azulados. De repente, ela exibiu os dentes, por um momento esperando ver apenas lisas gengivas rosadas.

Seus dentes estavam lá — todos eles. Graças à água fluoridificada de Utica, Nova Iorque, por isso. Roberta os tocou, deixou que os dedos transmitissem ao cérebro aquela óssea realidade.

Alguma coisa, contudo, não estava certa.

Umidade.

Havia umidade na parte superior de suas coxas.

Oh, não, oh, que merda, quase uma semana adiantada, ainda ontem troquei as roupas de cama...

Entretanto, após tomar uma ducha, colocou um absorvente em calcinhas limpas de algodão, vestiu-as até senti-las aconchegadas ao corpo, examinou os lençóis e viu que não tinham ficado manchados. Sua menstruação chegara antes do tempo mas, pelo menos, tivera consideração suficiente para esperar até que ela estivesse quase acordada. Não havia motivo para alarmar-se; era razoavelmente regular, porém de tempos em tempos seus períodos menstruais chegavam um pouco antes ou um pouco depois do período normal; talvez pela dieta, talvez por tensão subconsciente, talvez por algum relógio interno falhando um ou dois segundos. Roberta não ansiava envelhecer depressa, porém muitas vezes pensava no alívio que representaria deixar para trás toda aquela inconveniente trapalhada da menstruação.

A parte final de seu pesadelo evaporou-se, e Bobbi Anderson foi preparar seu muito atrasado desjejum.

 

ROBERTA ANDERSON ESCAVA

Durante os três dias seguintes, choveu persistentemente. Roberta perambulou inquieta pela casa, fez uma viagem até Augusta com Peter na picape, a fim de comprar mantimentos de que não estava precisando, bebericou cerveja e ouviu antigas músicas dos Beach Boys, enquanto fazia reparos dentro de casa. O problema era que, na realidade, não havia muitos reparos a serem feitos. No terceiro dia, ela já rodeava a máquina de escrever, pensando que talvez devesse iniciar o novo livro. Já sabia qual seria o enredo; uma jovem professora da escola elementar e um caçador de búfalos surpreendidos em uma guerra de rancheiros no Kansas, em inícios de 1850 — um período em que todos na parte central do país pareciam em preparativos para a Guerra Civil, quer soubessem ou não. Roberta achava que seria um bom livro, porém não se considerava ainda “no ponto”, o que quer que isso significasse (em sua mente despertou uma mímica sardônica, imitando a voz de um Orson Welles: Não escreveremos faroeste algum antes da hora). Ainda assim, a inquietação a possuiu e os indícios estavam todos à vista: certa impaciência com livros, com a música e consigo mesma. Certa tendência a distanciar-se... mas então se percebia olhando para a máquina de escrever, querendo despertá-la para algum sonho.

Peter também parecia desassossegado, arranhando a porta a fim de sair e tornando a arranhá-la cinco minutos mais tarde para entrar, vagando pela casa, deitando-se e logo voltando a levantar-se.

Barômetro baixo, pensou Roberta. Tinha que ser isso. Está deixando nós dois irrequietos, birutas.

E a maldita menstruação. Em geral, o fluxo era abundante, e então cessava de súbito. Como fechar uma torneira. Desta vez, no entanto, ela simplesmente continuou vazando. Mais lavagem de roupa, ha-ha, pensou, sem o menor senso de humor. Logo após o escurecer do segundo dia chuvoso, ela se viu sentada diante da máquina de escrever, com uma folha em branco enfiada no rolo. Começou a teclar, porém o que saiu foi apenas um punhado de Xs e Os, como um jogo-da-velha infantil, seguido por algo semelhante a uma equação matemática... o que era idiotice, pois sua última visão de matemática fora nas aulas de Álgebra II, ainda no ginásio. Agora, a letra X servia para eliminar a palavra errada, mais nada. Puxando a folha em branco, ela a jogou fora.

Depois do almoço no terceiro dia chuvoso, ligou para o Departamento de Inglês da universidade. Jim não lecionava mais lá, desde oito anos atrás, porém ainda tinha amigos na faculdade e permanecia em contato com eles. Muriel, que trabalhava no gabinete, geralmente sabia por onde ele andava.

Também sabia agora. Jim Gardener, informou ela a Roberta, estava fazendo uma palestra em Fall River essa noite, 24 de junho. Nas três noites seguintes, faria palestras e leituras em Providence e New Haven — tudo fazendo parte de algo denominado Caravana de Poesia da Nova Inglaterra. Devia ser idéia de Patrícia McCardle, pensou Roberta, sorrindo de leve.

— Então... quando ele estará de volta? Quatro de julho?

— Bem, eu não sei quando ele voltará, Bobbi — respondeu Muriel. — Sabe como é Jim. Sua última preleção será a 30 de junho. É tudo quanto posso dizer com certeza.

Roberta agradeceu, e desligou. Ficou olhando para o telefone, pensativa, enquanto evocava Muriel — mais uma descendente de irlandeses (porém, Muriel possuía os esperados cabelos ruivos), atingindo agora o ponto mais distante do apogeu da idade, de faces redondas, olhos verdes, seios fartos. Teria dormido com Jim? Provavelmente. Roberta sentiu uma pontada de ciúme — não mais do que uma pontada. Muriel era legal. Apenas falara com ela e já se sentia melhor. Afinal, Muriel sabia quem era ela, podia pensar nela como uma pessoa real, não apenas um freguês no outro lado do balcão em uma loja de ferragens em Augusta ou alguém a quem dizer como vai, por sobre a caixa de correspondência. Roberta era solitária por natureza, mas não monástica... e, às vezes, o mero contato humano tinha o dom de nutri-la, mesmo nem sabendo que precisava ser nutrida.

Imaginou saber agora, por que quisera estar em contato com Jim — falar com Muriel esclarecera isso, pelo menos. Aquela coisa na floresta lhe ficara na mente, e a idéia de ser alguma espécie de ataúde clandestino passara a ser certeza. Sua inquietude não era por escrever; era por escavar. Apenas, não sentia vontade de fazer isso sozinha.

— No entanto, parece que não há alternativa, Pete — falou, sentando-se na cadeira de balanço junto à janela do leste — sua cadeira de leitura.

Peter olhou para ela brevemente, como se dissesse, Você é quem manda, meu bem. Roberta inclinou-se para diante, de repente olhando para Pete — olhando realmente para ele. O cão devolveu-lhe o olhar alegremente, a cauda batendo no chão. Por um momento, parecia haver algo diferente nele... algo tão óbvio, que ela deveria estar vendo.

Se havia, Roberta não viu.

Tornou a recostar-se na cadeira e abriu o livro — uma tese de mestrado da Universidade de Nebraska, cujo título era a coisa mais excitante que possuía: A guerra entre rancheiros e a Guerra Civil. Recordou ter pensado, duas noites atrás, no que diria sua irmã Anne: Você está ficando tão mole dos miolos como o tio Frank, Bobbi. Bem... talvez estivesse mesmo.

Pouco depois, estava profundamente concentrada na tese, fazendo uma anotação casual no bloco de notas que tinha ao alcance. Lá fora, a chuva continuava a cair.

 

O dia seguinte amanheceu claro, radioso e sem mácula: um dia estival de cartão-postal, com vento apenas suficiente para manter os insetos à distância. Roberta zanzou ociosamente pela casa até quase dez horas, cônscia da crescente pressão em sua mente que a impelia para fora, a fim de resolver o que a inquietava, o quanto antes. Percebia-se repelindo tal ânsia conscientemente (Orson Welles de novo — Não desenterraremos nenhum corpo antes da... oh, cale-se, Orson!). Seus dias de apenas seguir o impulso do momento, um estilo de vida que certa vez fora inculcado pelo descarado lema “se isso a deixa sentindo-se bem, então faça-o”, estavam encerrados. Tal filosofia jamais funcionara com ela — de fato, cada coisa ruim que lhe acontecera, fora resultado de algum ato impulsivo. Roberta não condenava, em absoluto, aquelas que viviam segundo o impulso; talvez suas próprias intuições é que não houvessem sido das melhores.

Devorou um farto desjejum, acrescentou um ovo mexido à ração de Peter (ele comeu com mais apetite que o costumeiro, mas ela atribuiu o fato ao término daquele período chuvoso), e então lavou suas roupas.

Tudo estaria ótimo, se pelo menos sua menstruação parasse de gotejar. Bem, esqueça; não interromperemos nenhuma menstruação antes da hora. Certo, Orson? Você é uma merda, com M maiúsculo.

Saindo da casa, Bobbi enfiou na cabeça um velho chapéu vaqueiro de palha e passou a hora seguinte na horta. A situação ali parecia melhor do que era de esperar, em vista da chuva. As ervilhas brotavam e o milho se aprumava bem, como teria dito o tio Frank.

Parou às onze horas. Dane-se! Contornou a casa até o celeiro, apanhou uma pá de escavar e outra para remover terra solta, fez uma pausa e acrescentou uma alavanca. Ia saindo do galpão, quando voltou, pegou uma chave de fenda e uma chave inglesa ajustável, na caixa de ferramentas.

Peter a acompanhava como sempre, mas desta vez Roberta disse:

— Não, Peter!

Ela apontou para a casa. O cão parou, como que magoado. Deu um ganido e ensaiou um passo na direção da dona.

— Não, Peter!

Peter entregou os pontos e voltou para a casa, de cabeça baixa, a cauda encolhida contra o corpo. Roberta entristeceu-se ao vê-lo ir embora daquele jeito, mas a reação anterior do cão à placa enterrada no solo fora bem desagradável. Ficou mais um momento parada na trilha que a levaria à estrada da floresta, a pá em uma das mãos, a segunda pá e a alavanca na outra, espiando enquanto Peter subia os degraus dos fundos, focinhava a porta para abri-la e entrava na casa.

Havia alguma coisa diferente nele... pensou. Há uma diferença. O que será? Ela não sabia. No entanto, por um instante, quase subliminarmente, teve um vislumbre de seu sonho — aquela flecha de venenosa luz verde... e todos os seus dentes caindo das gengivas, sem dor.

A lembrança desapareceu. Ela começou a caminhar para o lugar em que jazia aquela singular coisa no solo, ouvindo os grilos emitirem seu firme som cri-cri-cri naquela pequena plantação dos fundos, que logo estada pronta para o primeiro corte.

 

Ás três daquela tarde, foi Peter quem a arrancou do semi-aturdimento em que estivera trabalhando, tornando-a cônscia de estar dupla e infernalmente próxima: infernalmente próxima de morrer de fome e infernalmente próxima da exaustão.

Peter estava uivando.

O som provocou arrepios nas costas e braços de Roberta. Soltando a pá com que trabalhava, ela recuou daquela coisa na terra — uma coisa que não era uma chapa, uma caixa ou qualquer coisa que se pudesse compreender. Sua única certeza, era de que estivera imersa em um estranho e desligado estado que não a agradava em absoluto. Desta vez, fora além de perder a noção do tempo; tinha a sensação de que também havia perdido a noção de si mesma. Era como se alguém houvesse penetrado em sua cabeça, da maneira como um homem entraria em uma máquina de terraplenagem ou ogiva nuclear, simplesmente pondo-a em movimento e começando a acionar as alavancas adequadas.

Peter uivou, agora apontando o focinho para o céu — eram longos, arrepiantes e lamuriosos sons.

— Pare com isso, Peter! — gritou ela.

Por sorte, ele parou. Mais um uivo daqueles, e ela seria capaz de dar meia volta e fugir dali. Entretanto, lutou para controlar-se. Recuou outro passo e soltou um grito, quando algo bateu frouxamente em suas costas. Ao ouvi-la gritar, Peter proferiu mais um breve e ululante som, depois tomando a silenciar.

Roberta agarrou o que quer que a tocara, imaginando que poderia ser — bem, não sabia ao certo o que seria, mas, ainda antes de sua mão tocá-lo, recordou de repente. Tinha uma vaga lembrança de haver feito algo, apenas o suficiente para pendurar a blusa em um arbusto. Ali estava ela.

Apanhou-a e tomou a vesti-la, abotoando a frente errado na primeira tentativa, de maneira que um lado ficou mais comprido do que o outro. Abotoou novamente, olhando para a vala que tinha começado, o início de escavação — e agora, essa palavra arqueológica parecia ajustar-se exatamente ao que estivera fazendo. Suas lembranças das quatro horas passadas em escavar o solo eram como aquela de pendurar a blusa no arbusto — vagas e fragmentadas. Não havia lembranças; havia fragmentos.

Agora, no entanto, ao olhar para o que tinha feito, sentiu admiração, no mesmo tempo que medo... e um crescente senso de excitamento.

O que quer que fosse aquilo, era imenso. Não apenas grande, mas imenso.

As duas pás e a alavanca jaziam em intervalos, ao longo da trincheira de cinco metros no solo da floresta. Ela havia feito pilhas regulares de terra negra e de pedras, a intervalos mais ou menos iguais. Despontando daquela vala, com aproximadamente um metro e meio de profundidade no ponto em que Roberta originalmente tropeçara em cinco ou sete centímetros de metal cinzento saliente, estava a borda de algum objeto titânico. Metal cinza... um objeto...

Em geral, tem-se o direito de esperar algo melhor e mais específico da parte de um escritor, pensou ela, passando o braço na testa para enxugar o suor. Entretanto, agora não tinha tanta certeza de que o metal fosse aço. Parecia mais ser uma liga exótica, berílio, magnésio, talvez — e, composição à parte, ela não fazia absolutamente qualquer idéia do que fosse o material.

Começou a desabotoar os jeans para poder enfiar a blusa para dentro, depois parou.

A parte das entrepernas do desbotado Levis, estava encharcada de sangue.

Jesus! Jesus Cristo! Isto não é uma menstruação! É as cataratas do Niágara!

Ficou momentaneamente amedrontada, de fato amedrontada, mas então disse a si mesma que parasse de ser infantil. Estivera mergulhada em uma espécie de alucinação, tendo feito um trabalho de escavação que deixaria orgulhoso um grupo de quatro homens robustos... ela, uma mulher pesando sessenta e dois quilos, sessenta e cinco no máximo! É claro que estava sangrando fortemente. Sentia-se muito bem — de fato, devia ser grata por não estar com cólicas e tampouco nauseada.

Minha nossa, como hoje estou poética, pensou, emitindo uma risadinha ríspida.

Sua necessidade primordial agora era a de limpar-se: uma ducha e roupas limpas teriam um efeito maravilhoso. Afinal, aquele jeans estava perfeito para o lixo ou o saco de trapos. Agora havia uma escolha a menos em um mundo perturbado e confuso, certo? Certo. Nada importante.

Tornou a abotoar as calças, mas sem enfiar a blusa pela cintura — não fazia sentido arruiná-la também, embora Deus bem soubesse que não era exatamente um original de Dior. A sensação de pegajosa umidade nos fundi-lhos, ao começar a andar, provocou-lhe uma careta. Céus, como ansiava estar limpa! Limpa o quanto antes!

No entanto, em vez de começar a subir a encosta para a trilha, tomou a aproximar-se daquela coisa na terra, atraída por ela. Peter uivou e os arrepios voltaram.

— Pelo amor de Deus, Peter; CALE essa boca!

Ela jamais gritara para Pete — gritara de verdade — mas o maldito cão começava a fazê-la sentir-se um paciente de comportamento estudado em psicologia. Arrepios quando o cão uivava, ao invés de saliva ao som da sineta, porém o princípio era o mesmo.

Parada junto ao seu achado, ela segurou Peter e ficou apenas olhando inquisitivamente para a coisa. Após alguns momentos, estendeu o braço e a tocou. De novo, houve o curioso senso de vibração — algo penetrando em sua mão e depois desaparecendo. Desta feita, pensou ter tocado uma carcaça, sob a qual mecanismos muito pesados estivessem em pleno funcionamento. Em si, o metal era tão liso, que possuía uma superfície quase oleosa — a gente esperava que parte da oleosidade aderisse às mãos.

Fechando a mão, Roberta bateu no metal com os nós dos dedos. O som foi opaco, como se houvesse batido em um grosso pedaço de mogno. Ficou parada mais um momento, depois tirou a chave de fenda do bolso traseiro, ergueu-a indecisamente por um instante e então, com estranha sensação de culpa — sentindo-se como um vândalo —, riscou o metal exposto com a lâmina da chave de fenda. Não apareceu qualquer arranhão.

Seus olhos sugeriram duas coisas mais, porém ambas poderiam ser uma ilusão de óptica. A primeira, era de que o metal parecia ficar ligeiramente mais espesso, ao afastar-se da borda em direção ao ponto onde desaparecia na terra. A segunda, era de ser aquela borda levemente encurvada. Estas duas coisas — as verdadeiras — sugeriram uma idéia que era, ao mesmo tempo, excitante, ridícula, aterradora, impossível... e possuindo uma certa e louca lógica.

Roberta deslizou a palma sobre o metal liso, depois recuou. Que diabo estava fazendo, afagando aquela maldita coisa, enquanto o sangue escorria por suas pernas abaixo? No entanto, a menstruação era a menor de suas preocupações, se o que começava a pensar pudesse ser verdade.

É melhor chamar alguém, Bobbi. Imediatamente.

Vou ligar para Jim. Quando ele voltar

Claro. Convoque um poeta. Grande Idéia! Depois pode convocar o Reverendo Moon. Talvez Edward Gorey e Gaban Wilson para fazerem ilustrações. Depois poderá contratar alguns conjuntos de rock e ter bem aqui um maldito Woodstock 1988. Falando sério, Bobbi chame a polícia estadual!

Não. Quero primeiro falar com Jim. Quero que ele veja isto. Quero falar com ele a respeito. Enquanto isso, irei escavando um pouco mais.

Pode ser perigoso.

Sem dúvida. Não apenas podia ser perigoso, como provavelmente o fosse — ela não havia percebido isso? Peter não percebera? Havia também uma outra coisa. Ao descer a encosta que vinha da trilha, esta manhã, Roberta encontrara uma marmota morta — quase tropeçara nela. E, ao inclinar-se para o animal, embora o cheiro lhe dissesse que devia estar morto há dois dias pelo menos, não houvera nenhum zumbido de moscas pan alertá-la. Não havia uma só mosca ao redor do pobre bicho, e Roberta não se lembrava de já ter visto coisa semelhante. Tampouco havia algum óbvio sinal do que o matara, mas acreditar que aquela coisa lá no solo tivesse algo a ver com isto, era a mais deslavada mentira. O pobre bicho certamente comera alguma isca envenenada de um fazendeiro e caíra ali para morrer.

Vá para casa. Troque suas calças. Você está ensangüentada e fedendo!

Roberta afastou-se da coisa, deu meia volta e subiu a encosta para a trilha, onde Peter se juntou desajeitadamente a ela, começando a lamber-lhe a mão com uma ansiedade que ficava um tanto patética. Ainda um ano antes, ele estaria tentando focinhar sua virilha, atraído pelo odor desprendido dali, mas não agora. Tudo quanto Peter conseguia fazer, era tremer.

— A culpa é toda sua — disse Bobbi, — Eu mandei você ficar em casa!

Ao mesmo tempo, alegrava-se por Peter ter vindo. Caso contrário, ela talvez ficasse trabalhando até o cair da noite... e a idéia de ver-se no escuro, com aquela coisa avolumando-se nas proximidades... Bem, era uma idéia que nada tinha de fascinante.

Da trilha, Roberta olhou para trás. A posição elevada permitia-lhe agora uma visão completa da coisa. Pôde ver que ela se projetava do solo em ligeiro ângulo. Tornou a achar que a borda mostrava uma ligeira curvatura.

Um prato, foi o que pensei; quando cavei a primeira vez em torno disso, com os dedos. Uma espécie de prato de aço, não um prato de comer como pensei, mas então havia tão pouco apontando do chão, que eu realmente pensava em um prato de comer ou em um disco.

Um maldito disco voador

 

Novamente em casa, ela tomou uma ducha e trocou de roupa, usando um dos absorventes tamanho grande, embora o forte fluxo menstrual já parecesse estar diminuindo. Depois preparou para si mesma um farto jantar de feijões assados enlatados e mocotó de porco. Entretanto, sentiu-se cansada demais para ir além de umas poucas garfadas. Colocou o resto — mais da metade — no prato de Peter, e foi sentar-se em sua cadeira de balanço junto a janela. A tese que estivera lendo continuava caída no chão, ao lado da cadeira, a folha marcada com uma usada e velha carteirinha de fósforos. O bloco de notas estava perto do livro. Roberta o pegou, virou uma nova página e começou a desenhar a coisa na floresta, conforme a vira ao dar-lhe aquele último olhar.

Não tinha grande jeito com uma pena, a menos que estivesse desenhando palavras, mas sempre havia um leve dom para dar uma idéia do que tinha em mente. Começou a desenhar muito devagar, não somente porque pretendia tornar a figura o mais exata possível, mas por estar demasiado cansada. Para piorar a situação, Peter aproximou-se e focinhou-lhe a mão, querendo ser afagado.

Roberta afagou aleatoriamente a cabeça do cão, apagando um rabisco que a focinhada dele colocara na linha do horizonte de seu croqui.

— Oh, mas você é um cão legal, um cão legal, por que não vai apanhar a correspondência?

Peter trotou através da sala de estar e abriu a porta telada com uma focinhada. Roberta voltou a trabalhar em seu desenho, erguendo os olhos uma vez, a fim de ver Peter executando seu mundialmente famoso truque canino de ir apanhar a correspondência. Ele ergueu a pata esquerda dianteira para a caixa de correspondência, presa a uma estaca, e então começou a manejar a portinhola. Joe Paulson, o carteiro, sabia da habilidade de Peter e sempre a deixava encostada. Peter conseguiu baixar a portinhola, mas então perdeu o equilíbrio, antes de puxar a correspondência para fora, usando a pata. Roberta pestanejou — até este ano, Peter jamais perdera o equilíbrio. Apanhar a correspondência, tinha sido sua piêce de résistance, melhor do que brincar de vietcongue morto e muito melhor do que qualquer coisa trivial, como sentar-se ou “falar”, pedindo um biscoito canino. O truque da correspondência deixava admirados todos que o viam fazê-lo, e Peter sabia disso... porém atualmente se tornara um ritual demasiado triste para ser assistido. Aquilo fez Roberta sentir-se como achava que se sentiria, se visse Fred Astaire e Ginger Roger na televisão, tentando repetir um de seus antigos espetáculos de dança.

O cão conseguiu erguer-se para a estaca novamente, desta feita conseguindo puxar a correspondência — um catálogo e uma carta (ou uma conta — sim, com o fim do mês chegando, era mais provável ser uma conta) — para fora da caixa, com o primeiro puxão da pata. As duas coisas caíram ao chão, Peter as recolheu e Roberta voltou ao seu croqui, dizendo a si mesmo que parasse de tanger os sinos fúnebres para Peter, a cada dois minutos. Em verdade, ele até parecia um tanto animado esta noite; recentemente houvera noites em que precisava equilibrar-se três ou quatro vezes nas patas traseiras, antes de conseguir recolher a correspondência — que em geral consistia em não mais de alguma amostra grátis de Procter & Gamble ou uma circular publicitária da firma K-mart.

Roberta examinou de perto seu croqui, sombreando alheadamente o tronco do enorme pinheiro com o topo fendido. Não ficara cem por cento preciso... mas estava bem aproximado. De qualquer modo, acertara no ângulo da coisa.

Desenhou uma caixa em torno dela, depois transformou a caixa em um cubo... como que para isolar a coisa. A curvatura ficara suficientemente óbvia em seu desenho, mas existiria de fato?

Sim. E aquilo que estivera classificando como uma chapa ou prato metálico — em realidade era uma carcaça, não? Uma carcaça sem rebites, lisa como vidro.

Está ficando com os parafusos frouxos, Bobbi... sabe disso, não?

Peter arranhou a porta telada, para que lhe fosse aberta. Ela caminhou até lá, ainda olhando para o desenho. Peter entrou e deixou cair a correspondência sobre uma cadeira no vestíbulo. Depois caminhou lentamente até a cozinha, sem dúvida para verificar se não esquecera alguma coisa de comer no prato de sua dona.

Pegando as duas peças de correspondência, Roberta as limpou na perna dos jeans, com uma pequena careta de desagrado. Era um bom truque, evidentemente, mas saliva canina molhando a correspondência jamais seria uma de suas coisas prediletas. O catálogo fora enviado pela Radio Shack — queriam vender-lhe um processador de palavras. A conta vinha da Central Elétrica do Maine, a fornecedora de energia elétrica. Isso a fez pensar brevemente em Jim Gardener outra vez. Jogou os dois envelopes na mesa do vestíbulo, retornou à sua cadeira, tornou a sentar-se, virou uma nova página do bloco e, rapidamente, copiou o croqui original.

Franziu a testa ante o suave arco, que provavelmente devia ser um pouquinho de extrapolação — como se houvesse escavado quatro ou cinco metros, em vez de apenas um e meio. Tudo bem, e daí? Uma pequena extrapolação não a preocupava; diabo, isso fazia parte da função de uma escritora de ficção, e quem pensasse que competia unicamente aos escritores de ficção-científica ou fantasia, jamais se vira às voltas com o problema de preencher espaços em branco, que nenhuma história poderia fornecer — por exemplo, coisas como o que acontecera aos colonizadores de Roanoke lsland, na costa da Carolina do Norte, os quais simplesmente desapareceram sem deixar vestígios além da inexplicável palavra CROATGAN, esculpida em uma árvore. Ou os monolitos da Ilha da Páscoa. Ou por que os moradores de uma cidadezinha do Utah, chamada Blessing (bênção), de repente haviam enlouquecido — ou assim parecia — todos no mesmo dia do verão de 1884. Quando não se tem certeza, nada há de mais em imaginar-se — a menos e até que se descubra a verdade.

Havia uma fórmula, pela qual a circunferência poderia ser determinada a partir de um arco, disto ela estava certa. O único problema é que havia esquecido a maldita fórmula. Entretanto, podia talvez ter uma idéia aproximada — sempre levando em conta sua impressão de quanto era acurada a curvatura da borda da coisa — através de uma estimativa do ponto central dessa coisa...

Retornando à mesa do vestíbulo, ela abriu a gaveta do meio, que era uma espécie de depósito geral. Suas mãos percorreram maços de cheques desalinhados e cancelados pilhas inúteis de 9 volts e outras categorias (por algum motivo, Bobbi jamais conseguira jogar fora pilhas gastas — o que a gente faz com elas é jogá-las em uma gaveta, só Deus sabe por que, era como se houvesse um Cemitério de Pilhas, ao invés daquele que se supõe seja prerrogativa dos elefantes), montes de fitas de borracha e de largos aros de borracha vermelha para alimentos em conserva, cartas de fãs não respondidas (era tão incapaz de jogar fora uma carta não respondida de fã, como uma bateria ou pilha gasta) e receitas anotadas em cartões de fichário. Bem no fundo da pequena gaveta, entre um amontoado de pequenos objetos, ela encontrou o que procurava — um compasso com um toco amarelo de lápis adaptado à armação.

Voltando a sentar-se na cadeira de balanço, Roberta virou outra folha do bloco e, pela terceira vez, desenhou a borda exposta da coisa sepultada na terra. Tentou mantê-la na escala, mas agora desenhou-a um pouco maior, não se preocupando com as árvores circundantes e somente sugerindo a vala escavada, em benefício da perspectiva.

— Muito bem, um trabalho de adivinhação — disse para si mesma.

Fincou a ponta metálica do compasso no bloco de folhas amarelas, abaixo da borda encurvada do desenho. Ajustou o arco do compasso, a fim de que riscasse aquela borda com razoável precisão — e depois o fez girar em torno de si mesmo, em um círculo completo. Olhou para o desenho e então enxugou a boca com o dorso da mão. Seus lábios subitamente haviam ficado demasiado soltos e demasiado molhados.

— Que exagero! — sussurrou.

Não havia exagero. A menos que sua estimativa da curvatura da borda e do ponto central fosse inteiramente enganosa, ela havia desencavado a borda de um objeto medindo pelo menos trezentos metros de circunferência.

Roberta largou o compasso e o bloco, que escorregaram para o chão, e espiou pela janela. Seu coração batia forte demais.

 

Enquanto o sol se punha, Roberta ficou sentada no alpendre dos fundos, olhando fixamente para a floresta através de sua horta e ouvindo as vozes que lhe povoavam a cabeça.

Em seu penúltimo ano da universidade, assistira a um seminário sobre criatividade, do Departamento de Psicologia. Ficara surpresa — e algo aliviada — ao descobrir que não estava encobrindo alguma neurose privada; quase todas as pessoas imaginativas ouviam vozes. Não apenas pensamentos, mas vozes reais dentro da cabeça, individualmente diferentes, cada uma definida com tanta clareza, como as vozes de um espetáculo radiofônico dos velhos tempos. Provinham do lado direito do cérebro, explicou o professor — o lado que é mais comumente associado a visões e telepatia, bem como a essa extraordinária aptidão humana de obter imagens através de comparações e fazendo metáforas.

Esse negócio de discos voadores não existe.

Oh, não? E quem pode afirmar?

A Força Aérea, antes de mais nada. Há vinte anos, eles encerraram os registros sobre discos voadores. Conseguiram explicar todas as visões verificadas, exceto três por cento, e afirmam que esses últimos três eram quase certamente provocados por condições atmosféricas efêmeras — coisas como parélios, turbulência em ar límpido, bolsões de eletricidade em céu sem nuvens. Diabo, as Luminosidades de Lubbock tinham sido notícia de primeira página, e tudo quanto resultaram ser era... bem havia aqueles montes e montes de mariposas itinerantes, entende? Então, a claridade dos postes de iluminação nas ruas de Lubbock bateu em suas asas e o reflexo de enormes formas móveis, luminosas e coloridas, foi projetado sobre a massa de nuvens baixas, que se mantinha estagnada sobre a cidade durante uma semana. A maioria do país levou aquela semana pensando que alguém trajado à maneira de Michael Rennie em O dia em que a terra parou, iria caminhar pela rua principal de Lubbock, com seu predileto robô Gort chacoalhando ao lado dele, exigindo ser levado ao nosso líder e tudo não passava de mariposas. Gosta disso? Não tem que gostar disso?

Esta voz tão nítida, que chegava a ser divertida, era a do Dr. Klingerman, que atuara no seminário. Essa voz dissertou para ela com o entusiasmo inabalável — embora um tanto esganiçado — do velho e bom Klingermanzinho. Roberta sorriu e acendeu um cigarro. Estava fumando além da conta esta noite, porém os malditos cigarros, afinal de contas, estavam ficando mofados.

Em 1947, um capitão da Força Aérea chamado Mantell, voou alto demais enquanto perseguia um disco voador — o que imaginou ser um disco voador. Ficou inconsciente. Seu avião espatifou-se, Mantell morreu. Havia perseguido um reflexo de Vênus sobre uma alta formação de nuvens — um parélio, em outras palavras. Assim, existem reflexos de mariposas, reflexos de Vênus e, provavelmente, reflexos também em um olho dourado Bobbi, porém não existem discos voadores.

Então, o que é aquilo no chão?

A voz do conferencista se calou. Ela não sabia. Portanto, substituindo-a surgiu a voz de Anne, dizendo a mesma coisa pela terceira vez, dizendo-lhe que estava ficando de miolos moles, biruta como o tio Frank, dizendo-lhe que em breve estariam tomando suas medidas para um daqueles casacos de lona que se usa de trás para diante; eles a internariam no asilo em Bangor ou naquele de Juniper Hill, onde ela poderia matutar sobre discos voadores enterrados nas florestas, enquanto tecia cestas. Era a voz de Sissy, claro; Roberta podia telefonar-lhe agora mesmo, contar-lhe o que acontecera e ouvir aquele sermão, com capítulo e versículo. Sabia disso perfeitamente.

Estava direito isso?

Não, não estava. Anne relacionaria a vida principalmente solitária da irmã com a loucura, pouco importando o que Roberta fizesse ou dissesse. E, bem, aquela idéia de que a coisa enterrada na terra pudesse ser alguma espécie de espaçonave, sem dúvida era loucura... mas seria loucura brincar com a possibilidade, pelo menos até que fosse descartada? Anne sem dúvida acharia que sim, mas Roberta achava que não. Nada havia de errado em manter a mente aberta.

Não obstante, a rapidez com que lhe ocorrera a possibilidade...

Levantando-se, entrou em casa. Da última vez que se envolvera com aquela coisa na floresta, dormira durante doze horas. Perguntou-se se deveria esperar uma maratona-sonífera semelhante esta noite. Sentia-se quase cansada o bastante para dormir doze horas, Deus sabia.

Esqueça isso, Bobbi. É perigoso.

No entanto, ela sabia que não esqueceria, foi o que pensou, enquanto tirava sua camiseta com o dístico OPUS FOR PRESIDENT. Não por enquanto.

Bobbi havia descoberto que o problema em viver sozinha — e o motivo pelo qual a maioria das pessoas suas conhecidas não gostava de ficar só, nem por algum tempo — eram aquelas vozes provenientes do lado direito do cérebro. Quanto mais tempo se vive só, mais alto e mais claramente elas falam. Enquanto as medidas de racionalidade começavam a encolher-se no silêncio, aquelas vozes do cérebro direito não apenas requeriam atenção: elas a exigiam. Era fácil ficar com medo delas, achar que, afinal de contas, significavam a loucura.

Anne certamente acha que significam, pensou Bobbi, enfiando-se na cama. O abajur lançava um nítido e aconchegante círculo de luz sobre a colcha, mas ela abandonara no chão a tese que estivera lendo. Ficara esperando as lúgubres cólicas, que costumavam acompanhar o início de seus ocasionais fluxos menstruais antecipados e abundantes, porém até então nada acontecera. Não que estivesse ansiosa para que aparecessem, compreendam.

Cruzando as mãos atrás da cabeça, ela olhou para o teto.

Não, você nada tem de louca Bobbi, pensou. Acha que Gard está ficando distante, mas está tudo bem com você — porém isto não será também um sinal de que está oscilando? Até existe um nome para isso... negação e substituição. “Estou perfeitamente bem, é o mundo que está louco.”

Verdade absoluta. No entanto, ela se sentia firmemente no controle de si mesma e segura de uma coisa: estava mais lúcida em Haven, do que estivera em Cleaves Mills, e muito mais lúcida do que estivera em Utica. Mais alguns anos em Utica, uns poucos anos por perto da sua irmã Anne, e ficaria tão louca quanto o chapeleiro. Roberta acreditava em Anne, de fato, encarava o ato de levar parentes próximos à loucura, como parte de seu... seu trabalho? Não, nada tão mundano. Como parte de sua sagrada missão na vida.

Ela sabia o que realmente a perturbava — não era a rapidez com que lhe tinha ocorrido a possibilidade do que seria a coisa. Era a sensação de certeza. Procuraria manter a mente aberta, porém a luta seria mantê-la aberta em favor do que Anne denominada “sanidade”. Sim, porque sabia o que tinha encontrado, e isso a enchia de medo e reverência, de inquieto e emocionado excitamento.

Entenda, Anne, a velha Bobbi não se mudou para Sticksville e ficou maluca; a velha Bobbi se mudou para lá e ficou lúcida. Insanidade significa possibilidades limitantes, Anne, dá para entender? Insanidade é recusar-se a descer por certas trilhas de especulação, mesmo que a lógica esteja lá... como uma ficha para o torniquete. Entende o que quero dizer? Não? É claro que não entende. Não entende e nem nunca entendeu. Portanto, caia fora, Anne, fique em Utica e rilhe os dentes no sono, até nada restar deles. Faça o que for insensato o bastante para ficar dentro do alcance de sua voz demente, fique à vontade, mas fora da minha cabeça.

A coisa na terra era uma nave do espaço.

Pronto. Tinha dito. Sem exagerar. Pouco importava Anne, pouco importava as Luminosidades de Lubbock ou o fato da Força Aérea haver encerrado sua pesquisa sobre discos voadores. Pouco importavam as carruagens dos deuses, o Triângulo das Bermudas ou a maneira como Elias fora arrebatado para o céu em uma roda de fogo. Nada disso importava — seu coração sabia o que seu coração sabia. Era uma nave, e tanto podia haver pousado, como ter-se espatifado no pouso, muito e muito tempo atrás — talvez milhões de anos atrás.

Céus!

Ela ficou quieta na cama, com as mãos atrás da cabeça. Estava suficientemente calma, porém o coração batia depressa, depressa, depressa.

Então outra voz, esta agora a de seu avô morto, repetia algo dito antes pela voz de Anne.

Esqueça isso, Bobbi. É perigoso.

Aquela vibração momentânea. Sua premonição inicial, asfixiante e positiva, de que encontrara a borda de algum esquisito ataúde de aço. A reação de Peter. Sua menstruação antecipada, pingando somente, se em sua casa, mas sangrando como um porco degolado, quando estava próxima da coisa. Perdendo a noção do tempo, dormindo horas e horas a fio. E não esqueça a pobre e velha marmota, o bichinho espargia cheiro de podridão, mas não havia moscas. Nem uma só mosca sobre seu corpo, eis a verdade.

Nada dessa merda faz sentido e nem se encaixa, Fico com a possibilidade de uma nave na terra, porque, não importa quanto isto pareça louco a princípio, a lógica continua presente. Contudo, não existe lógica no restante do assunto; tudo não passa de contas soltas de colar; rolando sobre a mesa. Enfiadas em um fio, eu talvez as aceite — seja como for; pensarei a respeito. Certo?

A voz do avô novamente, aquela voz pausada e autoritária, a única na casa que sempre fora capaz de reduzir Anne ao silêncio, quando criança.

Tudo isso aconteceu depois que você encontrou a coisa, Bobby. Aí está o seu fio.

Não. Não do bastante.

Era muito fácil agora responder a seu avô; o homem estava na sepultura desde dezesseis anos antes. Não obstante, foi a voz dele que a acompanhou quando adormeceu.

Esqueça isso, Bobbi. É perigoso.

— e você também sabe disso.

 

PETER VÊ A LUZ

Ela pensava ter visto algo diferente em Peter, mas não fora capaz de dizer exatamente o que era. Quando Roberta acordou na manhã seguinte (às perfeitamente normais nove horas), percebeu quase em seguida.

Estava em pé junto ao balcão da cozinha, despejando a ração de Peter no velho prato vermelho do cão. Como sempre, ele chegava trotando àquele som. A ração da marca Gravy Train era relativamente nova: até este ano, sempre havia sido Gaines Meal pela manhã, meia lata de ração para cães, da marca Rival, à noite, mais tudo quanto Pete pudesse conseguir na floresta, entre uma e outra refeição. Então, ele havia deixado de comer a Gaines Meal e Roberta levara quase um mês para perceber — Peter não estava enjoado do sabor; simplesmente, o que restava de seus dentes não conseguia mais mastigar os pedaços. Assim, ele passou para a nova ração Gravy Train... o equivalente, supunha ela, ao ovo pochê de um velho, à hora do desjejum.

Despejou água morna sobre os pedaços de Gravy Train, depois os mexeu com a velha colher que reservava para isso. Em pouco, os pedacinhos amolecidos flutuaram em um líquido lodoso que realmente parecia molho... ou então, pensou Roberta, algo tirado de uma fossa séptica fora de uso.

— Pronto, aqui está — disse ela, afastando-se da pia. Peter agora ocupava seu posto costumeiro sobre o linóleo — uma polida distância, a fim de que Roberta não tropeçasse nele, quando se virava — e abanando a cauda. — Espero que aprecie. Quanto a mim, acho que vomitaria as tri...

Foi então que se interrompeu, inclinada para Peter com o prato vermelho na mão direita, o cabelo caindo sobre um olho. Jogou-o para trás.

— Peter? — ouviu-se chamando.

Peter a fitou curiosamente por um instante e então ajeitou-se para saborear seu petisco matinal. Um instante mais tarde, sorvia a mistura com entusiasmo.

Roberta se ergueu, olhando para seu cão, bastante satisfeita por não poder mais ver-lhe a cara. Em sua cabeça, a voz do avô tornou a dizer-lhe que esquecesse aquilo, que era perigoso, e ela precisava de mais algum fio para suas contas?

Neste país, apenas, cerca de um milhão de pessoas viriam correndo, se tivessem a mais leve idéia sobre este tipo de perigo, pensou Roberta. Só Deus sabe quantas mais no mundo fariam o mesmo. E isso é tudo que aquilo faz? Pode imaginar como funcionaria no câncer?

Toda a força lhe fugiu subitamente das pernas. Tateou o caminho de volta, até tocar uma das cadeiras da cozinha. Sentou-se e ficou espiando Peter comer.

A catarata leitosa que cobria o olho esquerdo do cão, agora desaparecera pela metade.

 

— Não faço a menor idéia — disse o veterinário essa tarde.

Roberta sentou-se na única cadeira do consultório, enquanto Peter se postava obedientemente sobre a mesa de exames. Ela se viu recordando como temera a possibilidade de precisar trazê-lo ao veterinário esse verão... apenas, agora não havia a impressão de que, afinal, Peter teria que ser eliminado.

— Não será imaginação minha? — perguntou.

Achou que, em realidade, queria ouvir o Dr. Etheridge confirmar ou refutar a Anne em sua cabeça: É isto o que você merece, vivendo lá sozinha com seu cachorro fedorento...

— Em absoluto — disse Etheridge, — embora eu possa entender o seu aturdimento. Também estou um pouco aturdido. A catarata dele está em ativa remissão. Pode descer agora, Peter.

Peter desceu da mesa, pisando primeiro na banqueta do Dr. Etheridge e depois no chão, antes de ir para Roberta.

Ela pousou a mão na cabeça do cachorro e olhou fixamente para o veterinário, pensando: Você viu isso? Não queria fazer a pergunta em voz alta. Por um momento, os olhos de Etheridge encontraram os seus, e então ele desviou o rosto. Sim, eu vi, porém não vou admitir que vi, Peter havia descido cautelosamente, em um desempenho que ficava a quilômetros de distância do endiabrado filhote que fora um dia, porém tampouco havia sido a descida trêmula, sondante e desajeitada de uma semana atrás, ladeando a cabeça esquisitamente para a direita, a fim de poder ver para onde ia, o equilíbrio tão precário, que o coração de quem apreciasse a visão pararia de bater, enquanto ele não chegasse ao chão sem ossos quebrados. Peter desceu com a confiança conservadora, mas sólida do idoso estadista que havia sido dois ou três anos atrás. Em parte, supôs Roberta, o progresso de agora se devia ao fato da visão no olho esquerdo estar retornando — Etheridge confirmara isto, através de uns poucos simples testes de percepção. Entretanto, o olho não era tudo. O resto se traduzia em coordenação corporal totalmente melhorada. Simples assim. Louco, mas simples.

Além do mais, a catarata em desaparecimento não fizera os pêlos do focinho de Pete passarem de um branco quase total para um tom grisalho? Roberta notara o detalhe ainda na picape, quando rodavam para Augusta. Então, quase dirigira para fora da estrada.

Quanto disto Etheridge estava vendo, mas não se sentia preparado para admitir que via? Uma boa parte, supôs Roberta, mas a verdade é que Etheridge não era o Doutor Daggett.

Daggett vira Peter pelo menos duas vezes ao ano, durante os primeiros dez anos de vida do cão... e então houvera as coisas que iam surgindo, como da vez em que Peter se envolvera com um porco-espinho, por exemplo, e Daggett removera os espinhos, um por um, assobiando a música tema de A ponte sobre o rio Kwai, enquanto isso tranqüilizando o trêmulo cachorrinho de um ano de idade, com uma de suas mãos enormes e gentis. Em outra ocasião, Peter chegara mancando em casa, com um lado do corpo, mais para a traseira, repleto de chumbinho de abater pássaros. Aquilo fora o cruel presente de um caçador, imbecil demais para olhar antes de atirar ou talvez suficientemente sádico para desforrar-se em um cão, por não encontrar um pardal ou faisão em que infligir dor.

O Dr. Daggett teria visto todas as alterações em Peter e não seria capaz de negá-las, mesmo querendo. O Dr. Daggett teria removido seus óculos de aros rosados, limparia as lentes em sua bata branca e diria algo como: Precisamos descobrir por onde ele andou e em que se meteu, Roberta. Isto é sério. Cães não rejuvenescem sem mais nem menos, e é justamente o que parece estar acontecendo com Peter. Isso forçaria Roberta a responder: Eu sei por onde ele andou e tenho uma boa idéia sobre o que provocou isso. Semelhante diálogo faria desaparecer boa parte da pressão, certo? Entretanto, o velho Dr. Daggett vendera sua clínica a Etheridge — que se mostrava muito amistoso, mas continuava sendo mais ou menos um estranho — e então se aposentara, indo viver na Flórida. Etheridge tinha visto Peter com mais freqüência do que Daggett — de fato, quatro vezes no ano anterior — porque à medida que o cão envelhecia, ficava cada vez mais combalido. De qualquer modo, o novo veterinário não o vira tão freqüentemente como seu antecessor... e, segundo desconfiava ele, tampouco possuía nítidas percepções de quem substituíra. Ou a sua coragem.

Nos aposentos atrás deles, um pastor-alemão explodiu de repente em uma série de fortes latidos, semelhantes a uma fieira de pragas caninas. Outros cães fizeram coro. As orelhas de Peter viraram-se para diante e ele começou a tremer sob a mão de Roberta. Aparentemente, a passagem dos anos em nada contribuíra para a tranqüilidade do beagle, pensou ela. Certa época, durante as tempestades presenciadas quando filhote, Peter ficava tão abatido, que quase chegava à paralisia. Este tremor de agora, altamente nervoso, era coisa nova.

Etheridge ouvia os cães com a testa agora ligeiramente franzida — quase todos eles estavam latindo.

— Obrigada por receber-nos com tanta presteza — disse Roberta. Tinha que erguer a voz para ser ouvida. Um cão na sala de espera também começara a latir; os latidos rápidos e nervosos de um animal bem pequenino... um lulu ou um poodle, mais provavelmente. — Foi muita...

Sua voz extinguiu-se momentaneamente. Sentiu uma vibração sob as polpas dos dedos, e seu primeiro pensamento

(a nave)

foi sobre a coisa na floresta. Entretanto, sabia o que era esta vibração. Embora a tivesse sentido muito, muito raramente, não havia mistério a respeito.

Esta vibração estava vindo de Peter. Peter rosnava, muito baixo e muito fundo na garganta.

— ... gentileza sua, mas acho que agora devemos ir. Parece que se encontra diante de um motim...

Ela quis dar à frase um tom de piada, mas as palavras não soavam mais como piada. De repente, todo o pequeno complexo — o quadrado de concreto cinza que era a sala de espera e sala de tratamento de Etheridge, mais o quadrado anexo que era sua enfermaria e sala de operações — resumia-se em uma só balbúrdia. Todos os cães lá atrás latiam e, na sala de espera, o lulu tinha o coro de outros dois cães... e de uma cauda agitando-se, feminina, que era indiscutivelmente felina.

A Sra. Alden assomou, parecendo perturbada.

— Dr. Etheridge...

— Tudo bem — disse ele, parecendo constrangido. — Com sua licença. Srta. Anderson...

Saiu apressadamente, encaminhando-se primeiro para a enfermaria. Quando abriu a porta, o barulho produzido pelos cães pareceu duplicar-se — vão acabar roucos, pensou Roberta, e não houve tempo para pensar mais nada, porque Peter quase voou de baixo da sua mão. Aquele grunhido despreocupado e grave em sua garganta, de repente avolumou-se para um rosnado firme. Etheridge não ouviu, já correndo pelo corredor central da enfermaria, com os cães latindo à sua volta e a porta de vaivém fechando-se lentamente com seu mecanismo de ar comprimido, atrás dele; contudo, Roberta ouviu e, se não tivesse a sorte de aferrar a coleira de Peter, o beagle teria cruzado a sala como um petardo e invadiria a enfermaria, atrás do veterinário. O tremor e o grunhido profundo... não eram sintomas de medo, percebeu ela. Haviam sido de fúria era algo inexplicável, inteiramente em desacordo com a natureza de Peter, mas não tinha sido outra coisa.

O rosnado de Peter transformou-se em um som estrangulado — rau! — quando Roberta o puxou de volta, pela coleira. Ele virou a cabeça e, no olho direito do cão, girando e orlado de vermelho, ela viu o que mais tarde qualificaria apenas como fúria, por ser proibido de seguir o rumo que pretendia. Roberta podia aceitar a possibilidade de haver um disco voador com trezentos metros de diâmetro, a julgar pela borda exterior, enterrado em sua propriedade; a possibilidade de que alguma emanação ou vibração de tal nave houvesse matado uma marmota, cuja má sorte fora chegar perto demais, matando-a tão completa e desagradavelmente que até as moscas pareciam não querer parte do bicho morto; podia enfrentar um anômalo período menstrual, uma catarata canina em remissão, até mesmo a aparente certeza de que seu cão, de algum modo, estava rejuvenescendo.

Podia aceitar tudo isso, sim.

Entretanto, a idéia de ter visto um ódio insano por ela, por Bobbi Anderson, nos olhos de seu bom e velho cão Peter... não.

 

Aquele momento foi gratificantemente breve. A porta da enfermaria se fechou de todo, amortecendo a cacofonia. Parte da tensão de Peter pareceu acabar. Ele ainda tremia, mas pelo menos tornou a sentar-se.

— Venha, Peter, vamos sair daqui — disse ela.

Estava francamente abalada — muito mais do que admitiria posteriormente a Jim Gardener. Porque admitir isso, talvez a fizesse recordar o furioso vislumbre de ódio que vira no olho sadio de Peter.

Seus dedos embaralharam-se na correia pouco familiar que havia desligado da coleira de Peter, assim que entraram na sala de exames (a imposição de que cães deviam estar presos pela coleira, quando os donos os levavam ao veterinário, era algo que Roberta sempre achara irritante — até agora), quase a deixando cair. Por fim, conseguiu prendê-la à coleira de Peter.

Levou o cão até a porta da sala de espera e a abriu, empurrando-a com o pé. A barulheira ficara pior do que nunca. O cãozinho que latia esganiçadamente, era de fato um lulu, propriedade de uma mulher gorda vestindo berrantes slacks amarelos e corpete da mesma cor. A gorducha tentava aquietar o lulu, dizendo-lhe que “seja um bom menino, Eric, um bom menino para a mamãezinha”. Entre os braços volumosos e flácidos de mamãezinha, bem pouco era visível do cão, exceto os olhos brilhantes e, de algum modo, semelhantes aos de um rato.

— Senhorita Anderson... — começou a Sra. Alden.

Parecia aturdida e um tanto amedrontada — era uma mulher tentando seguir as normas costumeiras, em um lugar que subitamente se transformara em hospício. Roberta compreendia como ela se sentia.

O lulu avistou Peter — Roberta mais tarde juraria que foi isso que desencadeou tudo — e pareceu enlouquecer. Evidentemente, para ele não havia o menor problema em escolher um alvo. Afundou os dentes aguçados em um dos braços de mamãezinha.

— Filho da puta! — gritou mamãezinha, deixando o lulu cair ao chão.

O sangue começou a escorrer-lhe do braço. Ao mesmo tempo, Peter saltou para diante, latindo e rosnando, estirando-se no final da curta correia, o suficiente para arrastar Roberta para a frente. O braço direito dela ficou esticado em linha reta. Com seu penetrante olho mental de escritora, pôde ver exatamente o que aconteceria em seguida. Peter, o beagle e Eric, o lulu, iam atracar-se no meio da sala, como Davi e Golias. Com a diferença de que o lulu não tinha astúcia e muito menos uma funda. Peter racharia sua cabeça com apenas uma boa patada.

O desastre foi evitado por uma garota de uns onze anos, sentada à esquerda de mamãezinha, que segurava no colo uma caixa para transporte de animais. Dentro da caixa, uma enorme blacksnake, — a serpente negra não venenosa — exibia escamas que reluziam de exuberante saúde. Espichando uma perna envolta em jeans, a garota demonstrou os incríveis reflexos dos muito jovens, pisando com força na extremidade solta da correia do lulu. Eric executou uma cambalhota completa. A menina então segurou a correia do cãozinho. De longe, era a pessoa mais calma ali dentro.

— Será que o desgraçadinho me transmitiu raiva? — gritou mamãezinha, cruzando a sala em direção à Sra. Alden.

O sangue gotejava entre seus dedos apertando o braço mordido. Ao passar junto a Peter, o cão virou a cabeça para ela, mas Roberta o puxou para trás, encaminhando-se para a saída. Que se danasse o pequeno aviso no cubículo da Sra. Alden, alertando: É DE PRAXE O PAGAMENTO EM DINHEIRO POR SERVIÇOS PROFISSIONAIS, A MENOS QUE HAJA ENTENDIMENTOS ANTERIORES. Ela só pensava em sair dali, dirigir na velocidade limite o trajeto inteiro para casa e beber alguma coisa. Uma dose. Talvez dupla. Pensando melhor, talvez tripla.

Da esquerda, chegou até ela um som prolongado e baixo, virulento e sibilante. Virando-se para lá, Roberta viu um gato que bem poderia ter saído de uma decoração do Dia das Bruxas. Totalmente negro, com exceção de um pequeno toque branco na ponta da cauda, ele recuara o mais fundo que permitia sua caixa de transporte. Tinha o dorso arqueado, o pêlo inteiramente eriçado e os olhos verdes fixos sobre Peter, cintilando de maneira fantástica. A boca rosada repuxava-se para trás, mostrando as fileiras de dentes.

— Leve seu cachorro daqui, dona — disse a mulher do gato, em voz tão fria como uma arma sendo engatilhada. — Blacky não gosta dele.

Roberta gostaria de responder que pouco estava ligando se Blacky peidasse ou soprasse um apito de lata, porém só mais tarde pensaria nessa obscura expressão, mas de certo modo requintadamente apta — não tinha o costume de pensar, quando em situações acaloradas. Seus personagens sempre sabiam exatamente as coisas certas para dizer sendo raro ela ter que deliberar sobre as palavras adequadas — elas sempre despontavam, fáceis e naturalmente. Na vida real, contudo, isso quase nunca acontecia.

— Vá tomar banho! — foi o melhor que lhe ocorreu.

Falou em tão rouco murmúrio, no entanto, que duvidava se a dona de Blacky teria a mais remota idéia do que havia dito ou mesmo se dissera alguma coisa. Em realidade, agora estava puxando Peter, usando a correia para arrastar o cão e logo da maneira que odiava ver um cão ser puxado, sempre que via tal cena na rua. A garganta de Peter emitia ruídos de tosse e a saliva lhe escorria da língua, que pendia de um canto da boca. Ele encarou um boxer, cuja pata dianteira direita estava engessada. Um homem corpulento, vestindo um macacão azul de mecânico, segurava a corda da coleira do boxer com as duas mãos. De fato, havia enrolado duas vezes a corda em torno de um enorme pulso sujo de graxa e, mesmo assim, sentia dificuldade em segurar o cão, que teria liquidado Peter tão rapidamente, como o próprio Peter acabaria com o lulu. O boxer puxava vigorosamente pela corda, a despeito da pata quebrada, e Roberta confiava mais no controle da mão do mecânico do que na corda-coleira, que parecia estar se esfiapando.

Ela teve a sensação de que levou cem anos, manejando com a mão livre a maçaneta da porta de saída. Era como ter um pesadelo, em que as mãos se encontram inteiramente ocupadas e as calças começam a escorregar, lenta e inexoravelmente.

Peter conseguira isso. De algum modo.

Girando a maçaneta, ela deu um último e apressado olhar à sala de espera. Aquilo se tornara uma pequena e absurda terra de ninguém. Mamãezinha exigia primeiros-socorros da Sra. Alden (e parecia realmente precisar disso; agora, o sangue corria em um filete pelo braço, salpicando os slacks amarelos e os sapatos brancos); Blacky o gato, continuava sibilando; os gerbos do Dr. Etheridge estavam ficando loucos, no complicado labirinto de tubos e torres de plástico sobre a prateleira mais alta, onde tinham instalado seu lar; Eric, o lobo alucinado, espichava-se na extremidade de sua correia, latindo para Peter em voz estrangulada. E Peter respondia, em ameaçador rosnado.

Os olhos de Roberta pousaram na blacksnake da menina e viram que ela se erguera como uma cobra, dentro da sua caixa de transporte, também olhando para Peter, formando como que um bocejo com a boca sem presas, a língua rosada e estreita agitando-se no ar, em leves sacudidelas.

Blacksnakes não fazem isso. Nunca vi uma blacksnake agir assim em minha vida...

Agora, invadida por algo bem próximo do verdadeiro horror, Roberta quase correu, arrastando Peter atrás de si.

 

Pete começou e acalmar-se, quase assim que a porta se fechou atrás deles. Parou de tossir e estirar-se na correia, passando a caminhar ao lado de Roberta, olhando ocasionalmente para ela, como se dissesse, Detesto esta coleira e jamais gostarei dela, mas tudo bem, tudo bem, se é assim que você quer. Quando se viram dentro da picape, Peter já voltara inteiramente a ser como antes.

O mesmo não aconteceu a Roberta.

Suas mãos tremiam tanto, que precisou fazer três tentativas, antes de conseguir introduzir a chave na fenda da ignição. Então, pisou na embreagem e o motor afogou. A picape Chevrolet deu um violento solavanco e Peter caiu do assento no piso. Ele lançou a Roberta um reprovativo olhar de beagle (embora todos os cães sejam capazes de olhares reprovativos, somente os beagles parecem ter dominado aquela expressão de profundo sofrimento). Onde mesmo disse que tirou sua carteira de motorista, Bobbi? era o que parecia perguntar a expressão. Na Sears & Roebuck? Então ele tornou a subir de novo para o banco. Roberta já custava a crer que somente cinco minutos antes, Peter estivera grunhindo e rosnando, um cão de maus bofes que jamais vira na vida, parecendo prestes a morder qualquer coisa que se movesse, mostrando aquela expressão, aquela... mas sua mente se recusou a repisar o assunto, a prosseguir com isso.

Conseguiu ligar o motor novamente e começou a rodar para a saída do pátio de estacionamento. Passando ao lado do prédio — CLÍNICA VETERINÁRIA DE AUGUSTA, dizia o conciso letreiro — ela baixou o vidro da janela. Alguns latidos e ganidos. Nada fora do comum.

A coisa cessara.

Não apenas tudo aquilo cessaria, pensou. Embora sem certeza absoluta, achava que sua menstruação também terminara. Sendo assim, bons ventos levem o que não presta!

Apenas para cunhar uma frase.

 

Bobbi não quis esperar — ou não podia — até chegar em casa para tomar o drinque que prometera a si mesma. Logo depois do perímetro urbano de Augusta, havia um bar junto à estrada com o sugestivo nome “Bar e Restaurante Grande Fim de Semana Perdido” (Nossa especialidade: costeletas de porco tamanho gigante, ao som dos Nashville Kitty-Cats, nesta sexta e sábado).

Roberta estacionou entre uma velha camioneta e um trator John Deere, tendo na traseira uma grade suja de terra, cujas lâminas haviam sido viradas para cima. Mais abaixo havia um grande e velho Buick, ao qual fora adaptado um trailer para cavalos. Ela ficara distante do Buick propositadamente.

— Fique aí — disse para o cão.

Agora enrodilhado no banco, Peter dirigiu-lhe um olhar que parecia dizer, Por que eu quereria ir a algum lugar com você? Para que me sufocasse um pouco mais com sua estúpida coleira?

O Grande Fim de Semana Perdido estava penumbroso e quase deserto naquela tarde de quarta-feira, a pista de danças assemelhando-se a uma caverna fracamente iluminada. O lugar recendia a cerveja azeda. O barman atendente caminhou sem pressa até ela e disse:

— Como vai, bela senhorita? O chili é o prato especial. Também temos...

— Eu queria um Cutty Sarck — disse ela. — Duplo. Sem água.

— Sempre bebe como um homem?

— Geralmente usando um copo — replicou Roberta.

Era uma resposta que não fazia o menor sentido, mas ela se sentia demasiado cansada... e angustiada até os ossos. Foi ao toalete de senhoras trocar seu absorvente, agora introduzindo nas calcinhas um de tamanho pequeno, que tirou da bolsa, como medida de precaução... mas tudo se resumia em precaução, o que era um alívio. Parecia que suas regras só tornariam a aparecer no mês seguinte.

Voltou à sua banqueta com melhor humor do que quando a deixara, sentindo-se ainda melhor após ter metade do drinque dentro de si.

— Ouça, eu não tive a menor intenção de ofender — disse o barman. — Acontece que isto aqui fica muito solitário à tarde... Quando aparece um estranho, passo a falar demais.

— A culpa foi minha — respondeu ela. — Este não está sendo precisamente o melhor dia de minha vida.

Ao terminar o drinque, deixou escapar um suspiro.

— Mais um drinque, senhorita?

Acho que gostei mais do bela senhorita, pensou Roberta, e meneou a cabeça.

— Prefiro um copo de leite. Do contrário, vou ficar com azia a tarde inteira.

O homem trouxe o leite. Roberta bebericou-o, enquanto meditava no acontecido no veterinário. A resposta era rápida e simples: ela não sabia o que fora aquilo.

Pois eu lhe direi o que aconteceu, quando entrou com ele, pensou. Absolutamente nada.

Sua mente aferrou-se a isto. A sala de espera havia estado tão cheia ao chegar lá com Peter, como quando o arrastara para a rua, só que da primeira vez não houvera aquela cena infernal. A quietude era total — animais de tipos e espécies diferentes, muitos deles antigos e instintivos antagonistas, incapazes de criar um ambiente de biblioteca ao serem postos juntos — mas tudo transcorrera normalmente. Agora, com o álcool agindo em seu organismo, recordou o homem com macacão de mecânico, que continha os ímpetos do boxer. O cachorro dele olhara para Peter. Peter o olhara de volta, com brandura. Nenhuma confusão.

E daí?

E daí, beba seu leite, vá para casa e esqueça.

Certo. E quanto àquela coisa na floresta? Devo esquecê-la também?

Ao invés de uma resposta, ouviu a voz do avô: Por falar nisto, Bobbi, o que aquela coisa está fazendo a você já pensou nisso?

Ela não havia pensado.

E agora que pensava, sentiu vontade de pedir outro drinque... só que mais um, mesmo apenas uma dose, iria deixá-la bêbada. Desejaria mesmo ficar sentada naquele enorme celeiro, em um começo de tarde, embriagando-se sozinha, à espera do inevitável (talvez o próprio barman) aproximando-se para perguntar o que, um belo lugar como aquele, estava fazendo em uma garota como ela.

Deixou no balcão uma nota de cinco e o barman cumprimentou-a. A caminho da saída, avistou um telefone público. O catálogo estava ensebado e muito usado, cheirava a bourbon velho, mas pelo menos ainda existia. Roberta depositou vinte centavos, enganchou o fone entre o ombro e o ouvido enquanto folheava as letras V das Páginas Amarelas, e então discou o número da clínica de Etheridge. A voz da Sra. Alden parecia inteiramente controlada. Nos fundos, ouvia-se apenas o latido de um cão. De um.

— Não gostaria que me imaginasse tendo saído propositadamente sem pagar — disse para a mulher. — E amanhã mesmo remeterei a trela do cachorro pelo correio.

— Em absoluto, Senhorita Anderson! — respondeu ela. — Após tantos anos nos procurando, seria a última pessoa sobre quem eu faria uma má idéia! E quanto a trelas, aqui já temos de sobra.

— A situação parecia um pouco descontrolada por um momento.

— Não imagina quanto! Tivemos que pedir ajuda médica para a Sra. Perkins. Não creio que tenha sido coisa muito séria, ela terá que levar alguns pontos, naturalmente, mas muita gente precisando ser suturada procura o médico por conta própria. — Ela baixou a voz um pouco, oferecendo a Roberta uma confidência que talvez não ofereceria a um homem: — Felizmente, foi seu próprio cão que a mordeu. Ela é o tipo de mulher que começa a falar em processar, por dá cá aquela palha!

— Tem alguma idéia do que poderia ter causado tanto alvoroço?

— Nem de longe, e tampouco o Dr. Etheridge. Talvez seja o calor depois das chuvas. O Dr. Etheridge disse ter ouvido algo a respeito certa vez, em sua convenção. Uma veterinária da Califórnia comentou que todos os animais de sua clínica tiveram o que ela chamou de “acesso selvagem”, pouco antes do grande terremoto que houve por lá.

— E faz sentido?

— No ano passado houve um terremoto no Maine — disse a Sra. Alden. — Espero que não esteja para haver outro. Aquela usina nuclear em Wiscassett fica perto demais para o meu gosto.

Pergunta só a Gard, pensou Bobbi. Ela tornou a agradecer e desligou.

Voltou para a picape. Peter dormia. Abriu os olhos quando ela entrou, depois tornando a fechá-los. Seu focinho jazia sobre as partes. Os pêlos grisalhos de seu focinho estavam desaparecendo; não havia dúvidas a respeito.

Por falar nisto, Bobbi, o que essa coisa está fazendo a você?

Cale a boca, vovô!

Rodou para casa. Uma vez lá, após fortalecer-se com um segundo uísque — uma dose fraca — foi ao banheiro e ficou diante do espelho, primeiro examinando o rosto, depois correndo os dedos entre os cabelos, erguendo-os e tomando a deixá-los cair. Os fios grisalhos ainda estavam lá — que soubesse, todos os que possuía até então.

Roberta jamais havia pensado que ficaria tão satisfeita em ver cabelos grisalhos, mas a verdade é que ficou. Era uma certa espécie de satisfação.

 

Estava anoitecendo, quando nuvens escuras passaram a amontoar-se no oeste e, no escurecer, começaram as trovoadas. Parecia que a chuva ia voltar, pelo menos durante uma noite. Roberta sabia que seria impossível forçar Peter a sair aquela noite, a fim de fazer além do que apenas as mais urgentes necessidades caninas. Desde os tempos de filhote, o beagle sentia verdadeiro pavor de trovoadas.

Roberta sentou-se na cadeira de balanço, junto à janela. Supôs que, se alguém a visse, poderia imaginar que estaria lendo, em vez de queimar furiosamente as pestanas naquela tese A guerra entre rancheiros e a Guerra Civil. Era um texto árido como poeira, porém ela achava que lhe seria de enorme utilidade quando, por fim, começasse a escrever o novo livro... algo que teria de acontecer dentro em breve.

A cada vez que um trovão ribombava, Peter se chegava mais para perto da cadeira de balanço e de sua dona, quase parecendo sorrir envergonhadamente. Bem, eu sei que isso não vai me machucar, claro que sei, mas só quem ficar pertinho de você, está certo? E se houver uma trovoada das bravas, pulo para essa maldita cadeira de balanço com você, o que me diz? Você não se incomoda, não é mesmo, Bobbi?

A ameaça de tempestade prosseguiu até nove horas da noite, quando então Roberta podia jurar que teriam uma das boas — o que os moradores locais costumavam chamar de “baita temporal”. Foi até a cozinha, entrou no armário embutido que funcionava como despensa e, em uma prateleira alta, encontrou sua lanterna Coleman a gás. Peter seguiu em seus calcanhares, a cauda metida entre as pernas, o mesmo sorriso envergonhado na face. Roberta quase caiu em cima dele, ao se virar para sair do armário com a lanterna.

— Com licença, Peter?

Peter ofereceu-lhe um diminuto espaço... e então tornou a colar-se aos tornozelos da dona, quando um trovão estrugiu como um canhonaço, aterrador o suficiente para sacudir as janelas. Enquanto ela voltava para sua cadeira, um raio riscou o céu com luz branco-azulada e o telefone retiniu. O vento começou a aumentar, fazendo com que as árvores se sacudissem e suspirassem.

Peter acomodou-se bem junto da cadeira de balanço, erguendo para Roberta um olhar suplicante.

— Está bem — disse ela, com um suspiro. — Suba, seu covarde!

Peter não esperou segundo convite. Saltou para o colo de Roberta, acertando-lhe as virilhas com uma forte patada dianteira. Ele sempre parecia machucá-la ali ou em um seio; não fazia pontaria — era apenas uma dessas coisas misteriosas, como a maneira em que os elevadores invariavelmente param em todos os andares, quando a gente tem pressa. Se houvesse algum meio de defesa, Roberta ainda precisaria descobri-lo.

O fragor dos trovões enchia o céu. Peter aninhou-se contra ela. Seu cheiro — Eau de Beagle — inundou as narinas de Roberta.

— Por que não me contradiz com vontade e acaba logo com isso, Pete?

Ele exibiu seu sorriso envergonhado, como que dizendo, Certo, está bem, não precisa repetir!

O vento aumentou. As luzes começaram a piscar, indício seguro de que Roberta Anderson e a Central Elétrica do Maine estavam prestes a trocar um carinhoso adeus... pelo menos até três ou quatro da madrugada. Deixando a tese a um lado, ela passou o braço em torno do cão. Não ficava preocupada com uma ocasional tempestade de verão ou com as nevascas do inverno, pelo contrário. Até apreciava sua potência descomunal. Gostava de ver e ouvir aquela força funcionando sobre a terra, à sua maneira crua e cegamente positiva. Sentia uma compaixão insensata no trabalho desses temporais. Podia sentir este trabalhando em seu íntimo — os pêlos dos braços e da nuca se eriçavam e um raio estrondeando particularmente próximo a deixava sentido-se quase galvanizada de energia.

Recordou uma curiosa conversa que certa vez tivera com Jim Gardener. Gard tinha uma placa de metal no crânio, recordação de um acidente de esqui que quase o matara, à idade de dezessete anos. Gardener lhe contara que certa vez, quando trocava uma lâmpada, tinha levado um tremendo choque ao, inadvertidamente, enfiar o indicador no soquete. Isto nada tinha de incomum; a pane peculiar era que, durante a semana seguinte, ele ouvira música, anúncios e noticiários na cabeça. Disse que chegara a crer que estava ficando doido. Acrescentou que, no terceiro dia disto, pudera identificar as letras da sigla da estação que recebia: WZON, uma das três estações radiofônicas AM de Bangor. Anotara os nomes das três canções executadas em seqüência, depois ligando para a estação, a fim de saber se de fato as tinham tocado — aí incluindo os comerciais para o Restaurante Polinésio Sing’s, o Village Subaru e o Museu de Pássaros em Bar Harbor. Eles tinham.

No quinto dia, segundo ele, o sinal começou a fraquejar e, dois dias mais tarde, cessara de todo.

— Foi essa maldita placa no crânio — explicara ele, batendo suavemente com o punho na cicatriz, perto da têmpora esquerda. — Não tenho a menor dúvida sobre isso. Sei que milhares ririam da história, mas, pessoalmente, tenho a mais absoluta certeza.

Se outra pessoa lhe houvesse contado isso, Roberta pensaria que estavam tentando ludibriá-la, porém Jim falava sério — bastava ver os olhos dele e se sabia que não brincava.

Grandes tempestades têm grande poder.

Um relâmpago iluminou tudo em claridade azulada permitindo a Roberta um instantâneo do que passara a considerar — como os vizinhos — seu pátio junto à porta da entrada. Viu o caminhão, com as primeiras gotas de chuva no pára-brisa; a pequena pista de rolamento para o carro, em terra batida; a caixa de correspondência, com sua bandeirola arriada e firmemente presa contra a lateral de alumínio; as árvores contorcendo-se. O trovão explodiu quase que em seguida, e Peter saltou contra ela, ganindo. As luzes apagaram-se. Não se preocuparam em ficar mortiças, piscando ou embromando; apagaram-se ao mesmo tempo, completamente. Apagaram-se com autoridade.

Roberta estendeu a mão para a lanterna — e parou de repente.

Havia um ponto verde na parede oposta, logo à direita da cômoda galesa do tio Frank. Mostrou inesperadamente uns cinco centímetros, moveu-se para a esquerda, depois para a direita. Desapareceu por um momento, logo tornando a voltar. O sonho de Roberta lhe veio à mente, com todo o fantasmagórico poder do déjà vu. Tornou a pensar na lanterna da história de Poe, mas agora havia outra recordação misturada: A guerra dos mundos. O raio calorífico, chovendo morte verde sobre Hammersmith.

Virou-se para Peter, ouvindo os tendões de seu pescoço rangerem como gonzos emperrados, sabendo o que iria ver. A luz provinha do olho de Peter. De seu olho esquerdo. Ele brilhava com a verde luz enfeitiçante do fogo-de-santelmo, vagando acima de um pântano, após um dia parado e sufocante.

Não... não era o olho. Era a catarata que luzia... pelo menos, o que restara dela. Seu tamanho diminuíra perceptivelmente, mesmo a partir desta manhã, no consultório do veterinário. Aquele lado do rosto de Peter estava banhado em espectral luminosidade verde, fazendo-o parecer uma monstruosidade de histórias em quadrinhos.

O primeiro impulso dela foi afastar-se do cão, mergulhar para fora daquela cadeira e simplesmente correr...

...mas aquele era Peter, afinal de contas. E Peter já estava morto de pavor. Se o abandonasse, ele ficaria aterrorizado.

O trovão estrondeou no escuro. Desta vez, os dois saltaram de susto. Então a chuva caiu, como um enorme lençol de suspirante aguaceiro. Roberta tornou a olhar para a parede no outro lado da sala, para a mancha verde que lá oscilava, de um lado para outro. Recordou as vezes em que ficava na cama, quando criança, usando a pulseira de seu relógio Timex para jogar na parede uma luminosidade semelhante, ao mover o pulso.

E por falar nisso, o que essa coisa está fazendo a você, Bobbi?

Um fogo verde mergulhado no olho de Peter, removendo a catarata. Comendo-a. Tornou a olhar, precisando controlar-se a custo para não puxar a mão, quando Peter começou a lambê-la.

Nessa noite, Bobbi Anderson mal pregou os olhos.

 

PROSSEGUE A ESCAVAÇÃO

Quando Roberta finalmente acordou, eram quase dez da manhã e todas as luzes da casa estavam acesas — parecia que a Central Elétrica do Maine conseguira endireitar sua tralha. Caminhou pelos aposentos, de soquetes, apagando as luzes. Depois espiou pela janela da frente. Peter estava na varanda. Roberta o deixou entrar e examinou-lhe o olho com atenção. Podia recordar o terror sentido na noite anterior; mas agora de manhã, à brilhante claridade do dia estival, o terror fora suplantado pela fascinação. Qualquer um ficaria amedrontado pensou, vendo algo como aquilo no escuro, com a energia elétrica interrompida e trovões ribombantes no céu e na terra do lado de fora.

Por que, raios, Etheridge não viu isto?

A explicação era fácil. Os mostradores de rádio dos relógios luzem tanto de dia, como de noite; apenas não se pode perceber o brilho em luz forte. Estava um pouco surpresa, por não ter notado o brilho verde do olho de Peter nas noites anteriores, mas dificilmente espantada... afinal de contas, levara dois dias inteiros para perceber que a catarata se reduzia! No entanto... Etheridge estivera bem perto, não? Etheridge examinara de perto o olho do cão, com o velho oftalmoscópio.

E concordara com ela, sobre a catarata estar diminuindo... mas sem mencionar qualquer brilho, verde ou não.

Talvez ele o tenha visto e decidido não vê-lo. Como viu Peter parecendo rejuvenescido e decidiu que nada tinha visto. Porque não queria ver.

Uma parte dela não sentia a mais remota simpatia pelo novo veterinário; talvez isso acontecesse porque apreciara tanto o velho Dr. Daggett, a ponto de tolamente presumir (uma tolice parecendo inevitável) que ele ainda estaria ali, por todo o tempo em que ela e Peter estivessem. De qualquer modo, era um motivo ridículo para que sentisse hostilidade pelo substituto do idoso veterinário e, mesmo que Etheridge não tivesse visto (ou se recusasse a ver) a aparente regressão de idade de Peter, isto não alterava o fato dele parecer um profissional perfeitamente competente.

Uma catarata emitindo luz verde... Roberta não acreditava que ele tivesse ignorado um fato semelhante.

Isto a levava à conclusão de que o fulgor verde não estivera lá, para que Etheridge o visse.

Pelo menos, não naquele momento.

E, naquele momento, tampouco houvera qualquer gigantesca balbúrdia, certo? Não, quando ela e o cão tinham entrado. Não, durante o exame. Tudo acontecera quando já se dispunham a ir embora.

Teria o olho de Peter começado a luzir nesse instante?

Roberta despejou Gravy Train no prato de Peter e ficou com a mão esquerda estirada sob a torneira, esperando que a água amornasse, para então amolecer a ração. A espera se foi prolongando e prolongando. Seu aquecedor de água era vagaroso, empacador, tristemente obsoleto. Estivera querendo trocá-lo — de fato, era imperioso trocá-lo antes da chegada do tempo frio — porém o único bombeiro-encanador existente na cidade ou nas cidadezinhas rurais, logo ao norte ou sul de Haven, era um indivíduo sumamente desagradável, chamado Delbert Chiles, que costumava fitá-la como se soubesse precisamente qual a sua aparência sem roupas (não é grande coisa, diziam os olhos dele, mas acho que valeria a pena, em uma emergência) e sempre queria saber se ela estava “escrevendo novos livros ultimamente”. Chiles gostava de confidenciar-lhe que poderia ter sido um escritor dos melhores, porém tinha energia demais e “cola de menos no fundilho de minhas calças, entende?” A última vez que se vira forçada a chamá-lo, tinha sido quando os canos estouraram, no penúltimo inverno, em que uma onda gélida fizera a temperatura baixar a vinte graus negativos. Após consertar tudo, ele lhe perguntara se gostaria de “dar uma saída” alguma vez. Roberta declinara polidamente, sendo presenteada por Chiles com uma piscada de olho tendo aspirações a conhecimentos mundanos, mas que de fato mostrava uma quase informe vacuidade. “Não sabe o que está perdendo, doçura”, dissera ele. Tenho certeza absoluta de saber, daí a minha recusa lhe subira aos lábios, porém ela nada havia dito — por menos que o apreciasse, a verdade é que poderia precisar de Chiles novamente, a qualquer momento. Por que será que as respostas realmente apropriadas só surgem de súbito na mente, na vida real, quando não há possibilidade da gente usá-las?

Você poderia tomar uma providência sobre o seu aquecedor de água, Bobbi, disse uma voz em sua mente, a qual não conseguiu identificar. Uma voz de estranho em sua cabeça? Oh, céus, deveria chamar os tiras? É claro que poderia, insistiu a voz. Tudo que precisa fazer seria...

Foi quando a água começou a esquentar — a ficar tépida, pelo menos — e ela esqueceu o assunto do aquecedor. Mexeu a ração de Peter, depois colocou o prato no chão e ficou espiando, enquanto ele comia. Peter vinha demonstrando um apetite bem melhor estes dias.

Eu devia examinar-lhe os dentes, pensou. Talvez você possa voltar para a Gaines Meal. Vintém poupado é vintém ganho, e o público leitor americano não está exatamente abrindo uma trilha até sua porta, meu bem. Além disso...

Quando, precisamente, começara a balbúrdia na clínica?

Roberta meditou nisso cuidadosamente. Não tinha certeza plena, porém quanto mais pensava no assunto, mais lhe parecia que devia ter sido — não com certeza, mas talvez — logo depois que o Dr. Etheridge terminara de examinar a catarata de Peter e largara o oftalmoscópio.

Preste atenção, Watson, a voz de Sherlock Holmes falou subitamente, no compasso rápido, quase pressuroso da fala de Basil Rathbone. O olho reluz. Não... não o olho; a catarata reluz. Entretanto, Roberta Anderson nada repara, embora devesse. Etheridge não a observa e, definitivamente, deveria. Poderíamos afirmar que os animais na clínica veterinária só ficam perturbados, quando a catarata de Peter começa a luzir... somente, permitimo-nos teorizar um pouco mais, quando é reiniciado o processo de cura? Possivelmente. Que o brilho só é visto quando se torna seguro vê-lo? Ah, Watson, eis aqui uma suposição tão amedrontadora quando desautorizada. Porque isso indicaria alguma espécie de...

...alguma espécie de inteligência.

Roberta não gostou do rumo que aquilo estava tomando e tentou sufocá-lo com o velho e confiável conselho: deixe pra lá.

Funcionou desta vez.

Por enquanto.

 

Roberta queria sair e escavar um pouco mais. Seu cérebro anterior não gostou da idéia em absoluto.

Seu cérebro anterior achou que tal idéia era um fiasco.

Deixe isso pra lá, Bobbi. É perigoso.

Correto.

E por falar nisso, o que essa coisa está fazendo a você?

Nada que ela pudesse ver. Entretanto, também não podemos ver o que a fumaça do cigarro faz a nossos pulmões; daí o motivo das pessoas continuarem fumando. O fígado dela talvez estivesse desintegrando-se, as cavidades do coração poderiam estar atacadas pelo colesterol ou ainda seria possível que houvesse ficado estéril. Sem que soubesse, sua medula óssea bem poderia estar descontroladamente produzindo criminosos glóbulos brancos, naquele exato minuto. Por que preocupar-se com uma menstruação prematura, quando poderia ter algo realmente interessante como leucemia, Bobbi?

Não obstante, ela queria continuar escavando, de qualquer jeito.

Esta ânsia, simples e elementar, nada tinha a ver com seu cérebro anterior. Vinha sazonando de algum ponto interno mais profundo. Possuía todas as características de alguma ânsia física — ânsia por sal, por coca, heroína, cigarros ou café. Seu cérebro anterior fornecia a lógica; esta outra parte fornecia um imperativo quase incoerente: Escave, Bobbi, está tudo bem, escave a coisa, escave a coisa, merda, por que não escavá-la um pouco mais, você sabe que quer saber o que é aquilo, portanto, vá escavá-lo até ver o que é, escave, escave, escave...

Através de um esforço consciente, ela podia desligar a voz, mas quinze minutos depois percebia que voltava a ouvi-la, como se fosse um oráculo délfico.

Você precisa contar para alguém o que descobriu.

A quem? À polícia? Negativo. De maneira nenhuma. Então...

Então a quem?

Ela estava no jardim, trabalhando loucamente, um viciado sem a droga...

...então, a alguém investido de autoridade, terminou sua mente.

Seu cérebro direito forneceu a risada sarcástica de Anne, como já previa... porém o riso não teve toda a força que temera. Como uma boa parte de sua geração, Roberta não punha muita fé nisso de “deixe que as autoridades cuidem do assunto”. Sua desconfiança pela maneira como as autoridades manejavam as coisas começara quando tinha doze anos, em Utica. Estava sentada no sofá da sala de estar, com Anne a um lado e sua mãe no outro. Comia um hambúrguer e via a Polícia de Dallas escoltar Lee Harvey Oswald, através de um pátio de estacionamento no subsolo. Havia montes de policiais de Dallas. De fato, havia tantos, que o locutor de televisão, anunciando ao país que alguém tinha matado Oswald à bala, diante de todos aqueles policiais — todas aquelas pessoas investidas de autoridade — parecia não ter a mais vaga suspeita de que algo saíra errado e tampouco do que seria.

Que ela soubesse, os policiais de Dallas tinham desempenhado um trabalho tão espetacular, protegendo John E. Kennedy e Lee Harvey Oswald, que haviam sido incumbidos de cuidar dos distúrbios raciais no verão de dois anos mais tarde e, em seguida, da guerra no Vietnã. Seguiram-se outras incumbências: manejo do embargo do petróleo, dez anos após o assassinato de Kennedy, e negociações que garantissem a liberação de reféns americanos, na embaixada em Teerã. Então, ao ficar evidente que os nativos se recusavam a ouvir a voz da razão e da autoridade, Jimmy Carter enviara os policiais de Dallas para resgatar aqueles pobres sujeitos retidos no Irã — afinal de contas, autoridades que haviam manejado aquele caso da Universidade Estadual de Kent com tamanha segurança e sangue-frio, sem dúvida alguma infundiam confiança para executar o tipo de trabalho que tais indivíduos de Missão impossível efetuavam a cada semana. Bem, a Polícia de Dallas enfrentara certa má sorte neste último caso, mas, de um modo geral, eles tinham a situação sob controle. Tudo que se podia fazer era verificar como a situação mundial ficara infernalmente disciplinada naqueles anos, desde que um homem de camiseta e suspensórios, com Vitalis nos cabelos rareando e gordura de frango frito debaixo das unhas, estourara os miolos de um Presidente que ocupava o assento traseiro de um Cadillac, rodando rua abaixo em uma cidade vaqueira do Texas.

Contarei a Jim Gardener. Quando ele voltar. Gard saberá o que fazer; como manejar isto. Enfim, ele terá algumas idéias.

A voz de Anne: Você vai pedir conselho a um biruta qualificado. Formidável!

Ele não é biruta. Apenas um pouco esquisito.

Sem dúvida... Preso na última demonstração de Seabrook, com uma 45 carregada na mochila. Isso é ser esquisito, claro.

Cale a boca, Anne!

Ela prosseguiu cuidando da plantação. Fez isso ao sol quente de toda aquela manhã, as costas da camiseta molhadas de suor, o espantalho do ano anterior usando o chapéu que ela geralmente punha, a fim de resguardar-se do sol.

Até que finalmente se levantou, pegou a alavanca, as duas pás e partiu para a floresta. Fez uma parada no final de sua horta, a testa franzida e pensativa. Então voltou para pegar uma picareta. Peter estava no alpendre. Ergueu os olhos brevemente, porém não fez qualquer movimento para acompanhá-la.

Roberta não ficou realmente surpresa.

 

Assim, cerca de vinte minutos mais tarde viu-se na elevação, os olhos abaixados para a encosta coberta de mato até a vala que começara a escavar no solo, a fim de desenterrar o que agora acreditava ser uma diminuta seção de uma espaçonave extraterrestre. O vulto cinza daquilo era tão sólido como uma chave de fenda ou chave inglesa, negando sonhos, fantasias e suposições; estava ali. A terra que ela atirara a cada lado, úmida, negra e privativa da floresta, agora tinha um tom castanho-escuro — estava ainda molhada pela chuva da última noite.

Quando descia a encosta, pisou em algo que rangeu como papel de jornal. Não era jornal; era um pardal morto. Uns sete metros mais abaixo havia um corvo morto, os pés comicamente apontados para o céu, como uma ave morta de caricatura. Roberta parou, olhou em torno e viu os corpos de três outros pássaros — mais um corvo, um gaio e um sanhaço escarlate. Sem marcas. Apenas mortos. E sem moscas voejando em torno deles.

Ela chegou à vala e largou as ferramentas na margem. A vala estava lamacenta. Entrou nela assim mesmo, os sapatos de trabalho chapinhando na lama. Inclinando-se, podia ver o liso metal acinzentado que penetrava na terra, ao lado de uma poça.

O que é você?

Colocou a mão sobre aquilo. Uma vibração transmitiu-se à sua pele e, por um momento, pareceu percorrer-lhe o corpo inteiro. Depois cessou.

Virando-se, Roberta pousou a mão em sua pá, sentindo o cabo liso de madeira, ligeiramente aquecido pelo sol. Tinha uma vaga sensação de que não ouvia quaisquer ruídos da floresta, nenhum deles em absoluto... não ouvia pássaros cantando e nem animais movendo-se através do mato rasteiro, distanciando-se do cheiro de um ser humano. Tinha uma noção mais aguda dos cheiros: terra turfosa, agulhas de pinheiro, cascas de árvores e seiva.

Uma voz dentro dela — muito lá no fundo, não vindo da parte direita do cérebro, mas talvez das próprias raízes da mente — gritou de terror.

Está acontecendo alguma coisa, Bobbi, está acontecendo alguma coisa bem AGORA! Caia fora daqui marmota morta pássaros mortos Bobbi por favor por favor POR FAVOR...

Sua mão comprimiu o cabo da pá e tornou a ver exatamente o que desenhara — a borda acinzentada de algo titânico enfiado na terra.

Sua menstruação recomeçara, porém estava despreocupada; havia colocado um absorvente no fundilho das calcinhas, ainda antes de ir trabalhar na horta. Um absorvente tamanho grande. E havia mais meia dúzia em sua mochila, não havia? Ou seria cerca de uma dúzia?

Ela não sabia e nem interessava. Nada a perturbava, nem mesmo a descoberta de que uma parte sua sabia que acabaria ali, a despeito de quaisquer tolas concepções de livre arbítrio, que o resto de sua mente possuiria. Uma luminosa espécie de paz a invadira. Animais mortos... regras que paravam e recomeçavam... chegar preparada, mesmo depois de garantir a si mesma que ainda não fora tomada uma decisão... tudo coisas insignificantes, coisas mínimas, um monte de asneiras. Ela apenas escavaria por algum tempo, escavaria aquela “raiz”, verificaria se havia algo, além de metal de superfície lisa para ver. Porque tudo...

— Tudo está ótimo — disse Bobbi Anderson, em meio àquela quietude inatural.

Então começou a escavar.

 

GARDENER LEVA UMA QUEDA

Enquanto Bobbi Anderson traçava uma forma gigantesca com a ajuda de um compasso e pensava o impensável, com o cérebro mais entorpecido pela exaustão do que percebia, Jim Gardener fazia o único trabalho de que parecia ser capaz naqueles dias. Desta vez, atuava em Boston. A leitura de poesia em 25 de junho, era na Universidade de Boston. Tudo corria bem. O dia 26 seria de folga. Também foi o dia em que Gardener tropeçou — tropeçar, apenas, infelizmente não descrevia de fato o que aconteceu. Não se tratou de algo inconseqüente, como enganchar o pé debaixo de uma raiz, ao caminhar no mato. Foi uma queda que ele levou, uma longa e maldita queda, como levar um trambolhão quebra-ossos, sem despesas pagas, por um comprido lance de escadas abaixo. Escadas? Poxa, sua queda o lançou fora da face da terra.

A queda começou em seu quarto de hotel e foi terminar no quebramar de Arcadia Beach, New Hampshire, oito dias mais tarde.

Bobbi queria escavar (embora, pelo menos temporariamente, fosse afastada disso pelas coisas estranhas que estavam acontecendo à catarata de seu beagle); Gard despertou na manhã do dia 26 querendo beber.

Ele sabia que não existe tal coisa como um “alcoólatra parcialmente controlado”. O sujeito estava bebendo ou não. Ele não estava bebendo agora, o que era bom, mas sempre houvera prolongados períodos em que nem mesmo pensava na bebida. Meses, às vezes. Aparecia em uma reunião dos A.A, ficava pouco à vontade — da maneira como ficava ao derramar o sal e não atirar um punhado por cima do ombro, levantava-se e dizia, “Olá, meu nome é Jim e sou um alcoólatra”. Entretanto, quando a ânsia por bebida desaparecia, isto não soava como verdadeiro. Durante tais períodos, não ficava realmente a seco; Jim podia e tomara um drinque — drincava, em oposição a embriagar-se. Uns dois coquetéis por volta das cinco, caso estivesse em alguma reunião ou jantar da faculdade. Apenas isso, nada mais. Podia também ligar para Bobbi Anderson e convidá-la a sair para uns dois drinques, e tudo bem. Sem problemas.

Então, surgia uma manhã como esta, em que ele acordava querendo ingerir todo o álcool do mundo. Era como sentir uma sede real, uma coisa física — fazia-o evocar aquelas criaturas que Virgil Partch costumava desenhar para o Saturday Evening Post, aquelas em que algum velho e apavorado prospector está sempre cambaleando através do deserto, de língua pendurada em busca de um olho d’água.

Tudo quanto podia fazer quando a ânsia o tomava, era lutar contra ela — agüentar firme, tentar empatar a partida. Por vezes, de fato era melhor encontrar-se em um lugar como Boston, quando isso acontecia, já que teria de comparecer a uma reunião todas as noites — cada uma de quatro horas, tempo que demoravam. Após três ou quatro dias, tudo voltava ao normal.

Geralmente.

Decidiu que simplesmente esperaria a ânsia passar. Ficaria sentado em seu quarto, vendo filmes na TV por cabo, a despesa lançada na conta do hotel. Desde seu divórcio e separação da universidade do Maine, ele vivera aqueles oito anos como Poeta em Tempo Integral, isto significando que passara a viver em uma singular e pequena sub-sociedade, onde a permuta costumava ser mais importante do que dinheiro.

Havia permutado poemas por comida: em certa ocasião, um soneto de aniversário para a esposa de um fazendeiro, em troca de três sacolas de compras com batatas frescas. “É melhor que a maldita coisa também rime”, avisou o fazendeiro, verrumando Gardener com um olho acerado. “Poemas de verdade rimam.”

Gardener sabia aceitar unia sugestão (especialmente quando havia o envolvimento de seu estômago), e então compôs um soneto, tão recheado de exuberantes rimas masculinas, que explodiu em gargalhadas após examinar o segundo rascunho. Ligou para Bobbi, leu o soneto ao telefone e os dois escangalharam-se de tanto rir. A coisa ficava ainda melhor, quando lida em voz alta. Em voz alta, soava como uma carta de amor do Dr. Seuss. Contudo, não fora preciso Bobbi dizer-lhe que, mesmo assim, o soneto era um trabalho honesto, destemperado, mas não condescendente.

Em outra ocasião, uma pequena gráfica de West Minot acedeu em publicar um livro de seus poemas (isto havia sido em princípios de 1983, sendo de fato o último livro de poemas que Gardener publicara), oferecendo sessenta e quatro pés cúbicos de lenha. Gardener aceitara.

— Devia ter exigido oitenta e cinco pés cúbicos — disse-lhe Bobbi essa noite, os dois sentados diante da estufa dela, os pés pousados na grade protetora, fumando cigarros enquanto o vento atirava neve fresca sobre os campos e árvores. — Os poemas são bons. E também são muitos.

— Eu sei — replicou Gardener, — mas sentia frio. Sessenta e quatro pés cúbicos me chegam, até a primavera. — Ele lhe piscou um olho. — Além disso, o sujeito é do Connecticut. Não devia saber que a maioria era lenha de freixo.

Ela deixou os pés caírem ao chão e o encarou.

— Está brincando!

— De jeito nenhum!

Roberta começou a dar risadinhas contidas, ele a beijou com vontade e mais tarde a levou para a cama, tendo os dois dormido juntos, como colheres. Gardener recordava ter acordado uma vez e, ouvindo o vento, pensou em toda aquela escuridão, no frio cortante lá fora, em contraste com o calor daquela cama, impregnada da tranqüila quentura dos dois, abrigados sob dois edredons, e desejou que aquilo pudesse durar para sempre — porém nada era assim. Ele fora criado acreditando que Deus era amor, mas a gente se pergunta o quanto um Deus podia ser amoroso, se fazia homens e mulheres inteligentes o bastante para pousar na lua, mas idiotas o suficiente para precisarem aprender que não existia isso de para todo o sempre.

No dia seguinte, Bobbi tornara a oferecer-lhe dinheiro e ele recusara novamente. Gardener não estava nadando em ouro, mas dava para o gasto. Não pôde conter a pequena fagulha de raiva que sentiu, apesar do tom trivial que ela empregara.

— Não sabe quem se supõe deva receber dinheiro, após uma noite na cama? — perguntou.

Ela empinou o queixo.

— Está me chamando de prostituta?

Ele sorriu.

— Você precisa de um gigolô? Ouvi dizer que isso dá dinheiro.

— E você quer um desjejum, Gard, ou prefere me chatear?

— Que tal as duas coisas?

— Não!

Viu que Bobbi ficara realmente furiosa — céus, cada vez ele estava pior e pior em ver coisas assim, quando antes era tão fácil! Abraçou-a. Eu estava apenas brincando, ela não percebia? pensou. Ela sempre costumava saber quando eu estava brincando. Contudo, Bobbi não percebera que era brincadeira, porque ele não estava brincando. Se Gard pensava o contrário, apenas enganava a si mesmo. Estivera tentando feri-la, porque ela o constrangia Não que a oferta de Bobbi fosse idiota; idiota era o constrangimento dele. Havia mais ou menos escolhido a vida que vinha levando, não havia?

Afinal, não tivera intenção de ferir Bobbi, não tivera intenção de afugentá-la. A parte da cama era ótima, porém não a parte que realmente importava. O de fato importante, era Bobbi Anderson ser uma amiga, mas algo aterrador parecia vir acontecendo ultimamente. A rapidez com que ele ia perdendo amigos. Sem dúvida, algo bastante assustador.

Perdendo amigos? Ou afugentando-os? Como é isso, Gard?

A princípio, abraçá-la era como abraçar uma tábua de passar roupas, e Gard receou que Bobbi fosse rejeitá-lo, que ele cometesse o erro de insistir no abraço, mas por fim ela amoleceu.

— Quero o desjejum — falou, — e dizer que sinto muito.

— Tudo bem — respondeu ela, virando-se antes que ele lhe pudesse ver o rosto. A voz, no entanto, tinha aquela seca fragilidade, indicando que chorava ou estava à beira das lágrimas. — Sempre estou esquecendo que é descortesia oferecer dinheiro a ianques.

Bem, ele ignorava se era descortesia ou não, mas não aceitaria dinheiro de Bobbi. Nunca aceitara, jamais aceitaria.

A Caravana de Poesia da Nova Inglaterra, no entanto, era um outro assunto. Agarre essa galinha morta, teria dito Ron Cummings, que precisava de dinheiro tanto quanto o Papa precisa de um chapéu novo. Não a deixe fugir de sua porta!

A Caravana de Poesia da Nova Inglaterra pagava em dinheiro. Moeda do reino pela poesia — trezentos adiantados e trezentos no final da turnê. O verbo se fez carne, poder-se-ia dizer. Entretanto, ficava subentendido que dinheiro vivo era apenas parte do negócio.

O restante do negócio era A CONTA.

Quando a gente faz uma turnê, tira proveito de cada oportunidade que surge. Pede refeições no quarto ao serviço de copa, corta o cabelo na barbearia do hotel, caso exista uma, leva na viagem o par de sapatos extra (se tivermos algum) e esse par é colocado uma noite do lado de fora, em vez do par de uso regular, a fim de que o extra seja engraxado.

Também há os filmes assistidos no quarto, filmes que jamais se teria a chance de ver em um cinema, porque os cinemas insistem em querer dinheiro, por mais ou menos a mesma coisa que os poetas (inclusive os excelentes) por algum motivo, supostamente devam fornecer de graça ou quase de graça — três sacos de batatas = 1 (um) soneto, por exemplo. Evidentemente, o hóspede paga uma taxa pelos filmes, mas e daí? Nem se precisa anotá-los em A CONTA; algum computador faz isso automaticamente. Tudo quanto Gardener tinha a dizer sobre a questão, era: Deus abençoe e guarde A CONTA, e tragam essas merdas! Ele assistia a tudo, de Emmanuelle em Nova Iorque (achando particularmente artística a elevadora parte em que a garota faz sacanagem com o cara debaixo de uma mesa, no “Windows on the World”; de qualquer modo, a cena certamente elevou parte dele) a Indiana Jones e o templo da perdição e Rainbow Brite and the Star-Stealer.

Pois é justamente o que farei agora, pensou ele, esfregando a garganta e pensando no sabor do bom uísque envelhecido. EXATAMENTE o que vou fazer: Ficar aqui sentado e ver tudo aquilo de novo, inclusive Rainbow Brite. E, para o almoço, vou pedir três cheeseburguers com bacon e comer um deles frio, às três horas. Talvez troque Rainbow Brite por uma soneca. Fico no quarto esta noite. Vou cedo para a cama. E esse negócio acaba.

Bobbi Anderson tropeçou em sete centímetros de uma língua de metal que se projetava do solo.

Jim Gardener tropeçou em Ron Cummings.

Objetos diferentes, resultado idêntico.

Por falta de uma ferradura.

Ron apareceu mais ou menos à mesma hora em que, a uns trezentos e quarenta quilômetros de distância, Roberta e Peter finalmente chegavam em casa, voltando de sua viagem menos do que normal ao consultório do veterinário. Cummings sugeriu que descessem ao bar do hotel e tomassem um ou dez drinques.

— Ou então — prosseguiu Ron, radiosamente, — podemos poupar os preliminares e encher a cara.

Se houvesse exposto a questão mais delicadamente, Gard poderia ter encontrado uma saída. Em vez disso, viu-se no bar com Ron Cummings, levando aos lábios um esplêndido Jack Daniel’s e cochichando para si mesmo o velho dito sobre poder parar quando realmente quisesse.

Ron Cummings era um bom e sério poeta que, por acaso, tinha dinheiro praticamente lhe caindo do traseiro... ou era o que vivia dizendo aos outros. “Sou o meu próprio De Medici”, costumava alegar; “tenho dinheiro praticamente caindo do traseiro”. Sua família estivera no negócio têxtil por uns novecentos anos, sendo proprietária da maioria da parte sul de New Hampshire. Ron era considerado lunático, mas em vista de ser o segundo filho, e porque o primeiro não era lunático (isto é, interessava-se por têxteis), eles deixaram que Ron fizesse da vida o que bem quisesse, isto significando escrever poemas, ler poemas e beber quase constantemente. Era um homem magro, com jeito de tuberculoso, Gardener nunca o vira comer outra coisa além de salgadinhos para acompanhar bebida.

Em benefício de seu duvidoso crédito, Ron não tinha a menor idéia dos problemas pessoais de Gardener com o álcool... ou do fato de que ele quase chegara a matar a esposa, quando embriagado.

— Tudo bem — havia dito Gardener. — Eu topo. Vamos encher a cara!

Após alguns drinques no bar do hotel, Ron sugeriu que dois sujeitos espertos como eles, bem podiam encontrar algum lugar com uma diversão mais excitante do que a música transmitida pelos alto-falantes acima deles.

— Acho que meu coração agüenta — disse Ron. — Quero dizer, não tenho certeza, mas...

— ...Deus odeia covardes — completou Gardener.

Ron deu uma risadinha cacarejada, bateu-lhe nas costas e pediu A CONTA. Assinou com letra floreada e depois acrescentou uma generosa gorjeta de seu dinheiro pessoal.

— Vamos sacolejar o traseiro, meu velho — disse.

Lá foram eles. O sol de final de tarde verrumou os olhos de Gardener como lanças de vidro e, de repente, ele teve a impressão de que aquela podia ser uma má idéia.

— Escute, Ron — começou. — Acho que talvez eu apenas...

Cummings bateu em seu ombro, as faces anteriormente pálidas agora afogueadas, os olhos anteriormente de um azul-aguado agora cintilando para Gard, Cummings estava algo semelhante ao engambelador de Toad Hall, depois de comprar seu automóvel, e cantarolou, lisonjeador:

— Não me venha agora com essa, Jim! Boston jaz à nossa frente, uma cidade tão nova e variada, brilhando como a recente ejaculação da primeira polução noturna de um garoto...

Gardener foi tomado por incontidos acessos de riso.

— Agora já está mais parecido ao Gardener que todos conhecemos e amamos — disse Ron, também entre risadas.

— Deus odeia os covardes — disse Gardener. — Chame um táxi para nós, Ronnie.

Foi então que viu: o funil no céu. Grande, negro e chegando mais perto. Logo estaria em cima dele e o carregaria.

Não para Oz, entretanto.

Um táxi parou junto ao meio-fio. Os dois entraram. O motorista perguntou para onde queriam ir.

— Para Oz — murmurou Gardener.

Ron deu uma risada.

— Ele está querendo dizer, é algum lugar onde se beba depressa e dance ainda mais depressa. Pode dar um jeito nisso?

— Acho que sim — replicou o motorista, começando a rodar.

Gardener passou um braço pelos ombros de Ron e exclamou:

— Que comece a baderna!

— Eu beberei a isso — disse Ron.

Na manhã seguinte, Gardener acordou inteiramente vestido, dentro de uma banheira cheia de água fria. Suas melhores roupas — que tivera a infelicidade de estar usando, quando ele e Ron Cummings haviam partido na véspera — aderiram-se lentamente à pele. Olhou para os dedos e viu que estavam muito brancos e enrugados. Dedos de peixe. Aparentemente, ficara ali dentro um bom período. A água talvez até estivesse quente, quando entrara na banheira. Ele não se lembrava.

Puxou o tampão ralo. Viu uma garrafa de bourbon pousada sobre o tampo do vaso sanitário. Estava pela metade, a superfície pegajosa por algum tipo de oleosidade. Apanhou-a. A oleosidade tinha um vago cheiro de frango frito. Gardener, contudo, estava mais interessado no aroma que vinha de dentro da garrafa. Não faça isso, pensou, mas o bocal da garrafa já batia contra seus dentes, antes que o pensamento estivesse pela metade. Tomou alguns goles. Apagou novamente.

Quando voltou a si, estava em pé em seu quarto, nu e com o telefone encostado ao ouvido, tendo a vaga idéia de que acabara de discar um número. De quem? Só descobriu, quando Cummings atendeu. Cummings dava a impressão de estar ainda pior do que ele, embora Gardener quase jurasse ser algo impossível.

— Até onde foi o estrago? — Gardener se ouviu perguntar. Sempre era assim, quando o ciclone o capturava; mesmo estando consciente, tudo parecia ter a acinzentada e granulosa tessitura de uma foto de tablóide, e ele nunca parecia estar exatamente dentro de si mesmo. Na maior parte do tempo, era como se flutuasse acima da própria cabeça, como um prateado balão de gás de uma criança. — De que tamanho foi a enrascada em que nos metemos?

— Enrascada? — repetiu Cummings, em seguida silenciando. Pelo menos, Gardener achou que ele estava pensando. Esperou que estivesse pensando. Ou talvez temesse a idéia. Aguardou, com as mãos muito frias. — Oh, não houve enrascada nenhuma — disse Cummings por fim, e Gard relaxou um pouco. — Exceto por minha cabeça, quero dizer. Enfie a cabeça em um bocado de confusão. Que coisa!

— Tem certeza? Não aconteceu nada? Absolutamente nada?

Ele estava pensando em Nora.

Baleou sua esposa, bem? uma voz soou repentinamente em sua mente — a voz do comissário com o livro de histórias em quadrinhos. Uma baita enrascada, eh?

— Be-emm... — disse Cummings, pensativamente, depois parando.

A mão de Gardener tomou a se crispar apertadamente sobre o fone.

— Bem, o quê?

De repente, as luzes do quarto estavam ofuscantes. Como a claridade do sol, quando haviam saído do hotel, no final da tarde da véspera.

Você andou fazendo alguma coisa. Apagou estupidamente de novo e fez outra coisa estúpida. Ou coisa louca. Ou coisa terrível. Quando vai aprender a ter juízo? Ou será que aprende?

Um diálogo de filme antigo, chocalhou idiotamente em sua cabeça.

Bandido El Comandante: Amanhã, antes do amanhecer, estará morto, señor! Viu o sol pela última vez!

Corajoso americano: Cedo, mas você será careca pelo resto da vida!

— O que foi? — perguntou a Ron. — O que foi que eu fiz?

— Você começou a discutir com uns caras, em um lugar chamado “Bar e Restaurante The Stone Country” — disse Cummings. Ele riu um pouco. — Nossa! Quando a gente ri e sente dor, sabe que andou abusando. Você se lembra do The Stone Country e daqueles bons e velhos rapazes, James, meu caro?

Ele respondeu que não se lembrava. Esforçando-se bastante, conseguia recordar um estabelecimento chamado Irmãos Smith. O sol tinha acabado de afundar em um caldeirão de sangue e, estando-se em fins de junho, isto significava que deviam ser... quanto? Oito e meia? Quinze para as nove? Seriam umas cinco horas depois que ele e Ron haviam começado, um pouco mais, um pouco menos. Podia recordar que o cartaz do lado de fora mostrava a semelhança dos famosos irmãos das pílulas para tosse. Podia recordar que discutira acaloradamente sobre Wallace Stevens com Cummings, gritando para ser ouvido acima da vitrola automática, então estrondeando algo de John Fogarty. Era até onde chegavam as denteadas bordas das últimas lembranças.

— Era a casa com o adesivo WAYLON JENNINGS PARA PRESIDENTE, colado sobre o bar — disse Cummings. — Isto refresca sua velha cuca?

— Não — disse Gardener, com ar miserável.

— Bem, você começou a discutir com dois dos bons e velhos rapazes. Houve troca de palavras. Foram palavras que primeiro ficaram quentes, depois fervendo. Um soco entrou em cena.

— Dado por mim? — perguntou Gardener, em uma voz que agora era somente fosca.

— Por você — concordou Cummings alegremente. — A essa altura, nós voamos pelos ares com a maior facilidade e aterramos na calçada. Para ser franco, acho que pagamos até bem pouco. Você os deixou espumando pela boca, Jim.

— Foi sobre Seabrook ou Chernobyl?

— Porra, você se lembra!

— Se me lembrasse, não estava perguntando a você qual deles foi.

— Se quer mesmo saber, foram ambos. — Cummings vacilou. — Você se sente bem, Gard? Está soando como se estivesse por baixo.

Não diga! Pois a verdade, Ron, é que estou por cima. No alto do ciclone. Girando e girando, subindo e descendo, indo para onde, ninguém sabe!

— Estou legal!

— Isso é bom. Espero que saiba a quem deve agradecer por isso.

— A você, talvez?

— E a mais ninguém. Cara, eu aterrei naquela calçada, como uma criança aterrando na areia, da primeira vez que desce em um escorrega. É impossível ver meu traseiro no espelho, mas provavelmente deve estar roxo. Aposto como ficou parecido com um daqueles posters berrantes de 69, aqueles coloridos em tons shocking. Acontece que você queria entrar de novo e dizer como todas aquelas crianças nos arredores de Chernobyl iam morrer de leucemia em cinco anos. Você queria contar como alguns caras quase explodiram o Arkansas, procurando fios defeituosos com uma vela, em uma usina de energia nuclear. Você disse que eles botaram fogo no lugar inteiro. Pois eu aposto meu relógio — e é um Rolex — como eles eram sabotadores. A única maneira que encontrei para enfiar você em um táxi foi dizendo que íamos voltar mais tarde e quebrar cabeças. Consegui convencê-lo a ir para seu quarto e preparei a banheira para seu banho. Você disse que estava bem. Disse que ia tomar um banho e ligar para um cara chamado Bobby.

— O cara é uma garota — disse Gardener, com expressão ausente, enquanto esfregava a têmpora direita com a mão livre.

— Boa pinta?

— Interessante. Nada de extraordinário.

Um pensamento errante, disparatado, mas perfeitamente concreto — Bobbi está em apuros — cruzou sua mente, da maneira como uma bola errante de bilhar rola pelo feltro verde e vazio de uma mesa de sinuca. Depois desapareceu.

 

Ele caminhou lentamente até uma poltrona e sentou-se, agora massageando as duas têmporas. As armas nucleares. Claro que tinha sido isso. O que mais poderia ser? E se não fosse Chernobyl, seria Seabrook, e se não fosse Seabrook seria Three-Mile Island, e se não fosse Three-Mile Island, seria a Yankee do Maine, em Wiscasset — ou o que teria acontecido na Usina Hanford, no estado de Washington, se alguém não tivesse percebido, no último instante, que seu rejeito nuclear, estocado em uma vala sem forração, no lado de fora, estava prestes a explodir, em uma magnitude que chegaria ao alto do céu?

Quantos últimos instantes existiriam?

Varetas de combustível nuclear gastas, empilhadas em enormes pilhas perigosas. Eles achavam que a Praga do Rei Tutancâmon era maligna? Caramba! Pois esperem só que algum arqueólogo do século XXV escave uma boa porção desta merda! A gente tenta dizer às pessoas que a coisa toda é uma mentira, nada mais do que uma crua e deslavada mentira, que a energia de geração nuclear eventualmente matará milhões, tornando estéreis e impróprias para a vida vastas extensões de terra... mas o que recebe em troca é uma expressão fosca. Fala-se a pessoas que viveram durante um governo após outro, nos quais seus candidatos eleitos contaram uma mentira depois da outra, depois mentindo sobre as mentiras, e quando essas mentiras eram descobertas, os mentirosos alegavam: “Oh, poxa, eu esqueci, sinto muito” — mas já que tinham esquecido, seus eleitores agiam como cristãos e perdoavam. Era difícil a gente acreditar que tantos desses cretinos preferiam fazer isso, até recordarmos o que P.T. Barnum havia dito sobre a extraordinariamente alta taxa do nascimento de otários. Quando tentamos dizer-lhes a verdade, eles nos olham bem na cara e então nos informam de que estamos recheados de merda, que o governo americano não mente e que não mentir, foi o que tornou grande a América. Oh, caro Padre, estes são os fatos, fiz isso com a minha machadinha, não vou ficar calado só porque fui eu e, além do mais, não posso mentir. Ao tentar-se falar com eles, era como se estivéssemos balbuciando em língua estrangeira. Já fazia oito anos, desde que ele quase matara sua esposa, e três desde que fora detido com Bobbi em Seabrook; Bobbi, sob a acusação geral de demonstração ilegal, Gard, sob uma bem mais específica — posse de arma escondida e sem licença. Os outros pagaram uma multa e foram soltos. Gardener pegou dois meses. Segundo seu advogado, tivera muita sorte. Gardener perguntou a ele se sabia que estava sentado sobre uma bomba-relógio, coçando o saco. O advogado perguntou-lhe se já havia pensado em consultar um psiquiatra. Gardener perguntou-lhe se já havia pensado em tomar no rabo.

Não obstante, tivera senso bastante para não tomar parte em outras demonstrações de protesto. Ficou à distância. Elas o estavam envenenando. Quando se embriagava, no entanto, sua mente — ou o que quer que o álcool deixava na mente — voltava obsessivamente ao tema dos reatores, ao lixo nuclear, aos containers, à incapacidade de ser contido um descontrole, uma vez que o mesmo tivesse começado.

Em outras palavras, aos reatores nucleares.

Quando se embriagava, seu coração fervia. Os reatores nucleares. Os malditos reatores. Era algo simbólico, sim, sem dúvida, ninguém precisava ser Freud para perceber que, em realidade, Gardener protestava contra o reator em seu próprio coração. Quando se tratava da questão de coibição, ele possuía um péssimo sistema de contenção. Dentro dele existia uma espécie de técnico, que há muito devia ter sido demitido. Era um técnico que se punha a apertar todos os botões errados. Esse sujeito só ficaria de fato feliz quando Jim Gardener encarnasse a Síndrome da China.

Os malditos, fodidos reatores nucleares.

Esqueça-os.

Ele tentou. Para começar, procurou pensar na leitura dessa noite, na Universidade do Nordeste — um festejo pleno de divertimento, co-patrocinado pela universidade e um grupo que se autodenominava Amigos da Poesia, um nome que enchia Gardener de temor e tremor. Grupos com tais nomes, em geral eram compostos exclusivamente de mulheres que se consideravam damas (a maioria das ditas damas, com uma persuasão decididamente de cabeleiras azuladas). As damas do clube tendiam a uma familiaridade muito maior com os trabalhos de Rod McKuen, do que com os de John Berryman, Hart Crane, Ron Cummings ou daquele velho e bom bêbado fanfarrão e baleador-de-esposa, chamado James Eric Gardener.

Dê o fora daqui, Gard! Não ligue para a Caravana de Poesia da Nova Inglaterra. Não ligue para a Nordeste, os Amigos da Poesia ou a cretina da McCardle. Dê o fora daqui agora mesmo, antes que alguma coisa ruim aconteça. Alguma coisa muito ruim. Porque se você for ficar vai acontecer alguma coisa realmente ruim. Há sangue na lua!

Entretanto, amaldiçoado fosse ele, se ia fugir para o Maine com o rabo entre as pernas. Não ele!

Por outro lado, havia a cretina.

Chamava-se Patrícia McCardle e, se não era uma emproada cadela de primeira classe, então Gard jamais vira alguma.

Aquela mulher possuía um contrato, no qual estava estipulado que quem não trabalha não ganha.

— Céus! — suspirou ele.

Colocou a mão em cima dos olhos, procurando amenizar a crescente dor de cabeça e sabendo que só existia um tipo de remédio capaz disso, mas também sabendo ser exatamente aquele, o tipo de remédio capaz de produzir a coisa realmente ruim que temia.

E, sabendo ainda, que saber disso não lhe adiantaria coisa alguma. Só depois de algum tempo é que o álcool começava a fluir, desintegrando o ciclone.

No momento, Jim Gardener se via em queda livre.

 

Patrícia McCardle era a contribuinte principal da Caravana de Poesia da Nova Inglaterra e também seu capataz-chefe. Tinha pernas compridas, mas ossudas, o nariz aristocrático era demasiado afilado para que o considerassem atraente. Certa vez, Gard tentara imaginar-se beijando-a e se horrorizara ante a imagem não evocada, que lhe surgia na mente: o nariz dela não apenas deslizava por sua face, mas a cortava como uma navalha. Patrícia McCardle tinha testa alta, seios não-existentes e olhos tão frios como uma geladeira, em dia nublado. Segundo ela, sua ancestralidade alcançava o Mayflower.

Gardener já trabalhara antes para Patrícia McCardle, e antes houvera problemas. Era algo espantosa, a maneira como ele se tornara parte da Caravana de Poesia da Nova Inglaterra em 1988... porém, o motivo de sua abrupta inclusão não era mais ignorado no mundo da poesia do que no mundo do jazz ou do rock and roll. Patricia McCardle se vira com um buraco de última hora em sua anunciada programação, porque um dos seis poetas que haviam sido contratados para aquele feliz cruzeiro de verão enforcara-se com o cinto em seu armário.

— Como Phil Ochs — havia comentado Ron Cummings para Gardener, os dois sentados perto da traseira do ônibus, no primeiro dia da turnê. Falara com um risinho nervoso de garoto-bagunceiro-no-fundo-da-sala-de-aula. — Enfim, Bill Claughtsworth era um repulsivo filho da puta.

Patricia McCardle programara doze datas para leituras e conseguira adiantamentos financeiros razoavelmente bons, em um negócio que, se despido de toda a retórica bombástica, reduzia-se a seis poetas pelo preço de um. Em seguida ao suicídio de Claughtsworth, restavam-lhe somente três dias para encontrar um poeta editado, em uma temporada quando poetas com trabalhos na praça já estavam solidamente comprometidos (“Ou em férias permanentes, como Imbecil Billy Claughtsworth”, disse Cummings, rindo um tanto sem jeito.)

Poucos — se algum — dos grupos comprometidos rejeitariam o pagamento do honorário estipulado, apenas porque a Caravana terminara em falta de um poeta. Fazer isso seria de péssimo gosto, particularmente ao considerar-se o motivo pelo qual a Caravana ficara sem um poeta. Fosse como fosse, isto colocava Caravana & Cia. em uma posição de falha contratual pelo menos tecnicamente, e Patricia McCardle não era mulher para aceitar brechas.

Após tentar quatro poetas, cada um de categoria inferior ao último, e estando a menos de trinta e seis horas da primeira leitura, ela finalmente ligara para um Gardener.

— Você continua bebendo, Jimmy? — perguntara rudemente.

Jimmy — ele odiou isso. Era chamado de Jim pela maioria das pessoas. Jim era legal. Ninguém o chamava de Gard, exceto ele próprio... e Bobbi Anderson.

— Bebendo um pouco — respondeu ele. — Sem dar para cair.

— Estou duvidosa — disse ela com frieza.

— Você sempre esteve, Patty — replicou Gardener, sabendo que ela odiaria isso, ainda mais do que ele odiara o “Jimmy”. O sangue puritano de Patricia McCardle se rebelaria contra isso. — Fez a pergunta por estar em falta de uma garrafa ou existe algum motivo mais premente?

É claro que ele sabia, como era claro que ela sabia que ele sabia, e era claro que ela sabia que ele estava sorrindo e claro isso a deixava furiosa e, claro tudo isto o deixava francamente deliciado e, claro, ela sabia que ele também sabia disso, e era simplesmente o que o deixava encantado.

Altercaram por mais alguns minutos e então chegaram ao que não era um casamento de conveniência, mas por necessidade. Jim Gardener queria comprar uma boa fornalha usada que queimasse lenha, tendo em vista o próximo inverno; estava cansado de viver como um desmazelado, encolhido à frente de uma estufa de cozinha, enquanto o vento chocalhava contra o plástico pregado sobre as janelas; Patricia McCardle queria comprar um poeta. Contudo, não haveria qualquer acordo com aperto de mãos, não com Patricia McCardle. Ela rodara de Darry aquela tarde, levando um contrato (em três vias) e um tabelião. Gard ficara surpreso por ela não ter levado um segundo tabelião, apenas para o caso do primeiro talvez ser vitimado por um ataque das coronárias ou coisa assim.

Sentimentos e premonições à parte, em realidade não havia maneira alguma dele poder abandonar a turnê e conseguir a fornalha a lenha, por que, se abandonasse a turnê, jamais veria a segunda metade de seus honorários. Ela o levaria aos tribunais e gastaria mil dólares, tentando fazê-lo cuspir os trezentos que a Caravana & Cia. pagara adiantadamente. Era bem capaz disso. Gardener já fizera quase todas as leituras que lhe competiam, porém o contrato que assinara era cristalino a respeito: se fosse embora, por qualquer razão inaceitável à Coordenação da Turnê, todos e quaisquer honorários não pagos seriam declarados nulos e inexistentes, e todos e quaisquer honorários antecipadamente pagos deveriam ser devolvidos a Caravana & Cia., dentro de trinta (30) dias.

E ela o perseguiria. Patricia McCardle talvez se considerasse agindo assim por princípios, mas, em realidade, seria por ele a ter chamado de Patty em sua hora de necessidade.

Isso, entretanto, não significaria o fim de tudo. Se Gard fosse embora, ela trabalharia com incansável energia para colocá-lo na lista negra. Sem a menor dúvida, ele jamais faria leituras em outra turnê de poesia a que Patricia McCardle estivesse associada — isto significando uma boa quantidade de turnês de poesia. Havia ainda a melindrosa questão das subvenções. Falecido dez anos antes, o marido lhe deixara um bocado de dinheiro (embora Gard achasse que não se poderia dizer, como no caso de Ron Cummings, que ela tivesse dinheiro praticamente caindo do traseiro, pois não acreditava que Patricia McCardle possuísse algo tão vulgar como um ânus ou mesmo um reto — quando precisasse aliviar-se, provavelmente desempenharia um ato que ele imaginava sendo da Imaculada Excreção). Patricia McCardle reservara uma grande parte desse dinheiro para estabelecer inúmeras subvenções. Isto a tornava, simultaneamente, uma séria patrocinadora das artes e uma mulher de negócios extremamente sagaz, no relacionado ao repelente assunto do imposto de renda: as subvenções eram dedutíveis. Algumas delas financiavam poetas por períodos de tempo específico. Outras destinavam-se a prêmios em dinheiro por poesia ou à subscrição de revistas sobra poesia moderna e ficção. Cada subvenção era administrada por comitês. Por trás de cada um deles movia-se a mão de Patricia McCardle, para certificar-se de que se combinavam tão perfeitamente como um quebra-cabeças chinês... ou os fios de uma teia de aranha.

Ela podia infligir muito mais a ele, do que receber de volta suas sujas seiscentas pratas. Podia amordaçá-lo. E era bem possível — improvável, mas possível — que ele pudesse escrever mais alguns bons poemas, antes que os loucos que haviam enfiado o cano de uma arma no rabo do mundo decidissem puxar o gatilho.

Portanto, vá até o fim, pensou. Havia pedido ao serviço de copa uma garrafa de Johnny Walker (que Deus abençoe A CONTA, para todo o sempre, amém), e agora despejava o segundo drinque, com uma mão que se tornara curiosamente firme. Vá até o fim, eis tudo.

Entretanto, à medida que o dia passava, continuava pensando em pegar um ônibus Greyhound no terminal da Rua Stuart e, cinco horas depois, desembarcar diante da pequena e empoeirada drugstore de Unity. De lá em diante, seguiria de carona. Telefonaria para Bobbi Anderson, dizendo: Quase fui carregado por um ciclone, Bobbi, mas encontrei o abrigo contra tempestades na hora exata. Que sorte, não?

Merda para isso! A gente é que faz a própria sorte! Se você for forte, Gard, terá sorte. Vá até o fim, eis tudo. É o que tem a fazer

Vistoriou sua maleta de lona em busca das melhores roupas que lhe restavam, uma vez que as usadas para as leituras pareciam agora de todo imprestáveis. Retirou um jeans desbotado, uma camisa branca comum, um surrado par de mocassins e um par de meias, que jogou em cima da colcha estirada na cama (obrigado, senhora, mas não precisa arrumar o quarto, eu dormi na banheira). Vestiu-se, comeu alguns salgadinhos, bebeu um pouco, comeu mais salgadinhos, e então tornou a vistoriar a maleta, agora em busca de aspirinas. Encontrou-as e ingeriu algumas. Olhou para a garrafa. Desviou os olhos. A cadência da dor de cabeça estava pior. Sentou-se junto à janela com seu bloco de notas, tentando decidir o que leria essa noite.

À claridade daquela terrível e comprida tarde, todos os seus problemas pareciam escritos em púnico. Em vez de fazer algo positivo por sua dor de cabeça, a aspirina parecia até intensificá-la: bam, bum, baticum, bum. Sua cabeça estremecia a cada batida do coração. Era a mesma e velha dor de cabeça, aquela que parecia uma verruma de aço penetrando lentamente em seu cérebro, em um ponto ligeiramente acima e à esquerda do olho esquerdo. Ele levou as pontas dos dedos à esmaecida cicatriz que ali havia, alisando-a no sentido do comprimento. A placa de aço enterrada debaixo da pele era resultante de um acidente de esqui na adolescência. Evocou o médico dizendo Você talvez sofra de dores de cabeça volta e meia, filho. Quando elas chegarem, apenas agradeça a Deus por sentir alguma coisa Você teve sorte em ficar vivo.

Em momentos como estes, no entanto, ele duvidava.

Duvidava bastante, em momentos como este.

Deixou o bloco de notas a um lado, com a mão trêmula, e fechou os olhos.

Não vou conseguir ir até o fim.

Você pode ir.

Não posso. Há sangue na lua, eu o sinto, quase posso vê-lo.

Não me venha com uma de suas tolices irlandesas! Tome coragem, seu fodido mulherzinha! Coragem!

Vou tentar — murmurou ele, sem abrir os olhos. 

Não percebeu quando, quinze minutos mais tarde, seu nariz começou a sangrar. Tinha adormecido na poltrona.

 

Ele sempre tinha medo do palco antes das leituras, mesmo se o grupo fosse pequeno na platéia (e os grupos que costumavam ouvir recitais de poesia moderna não passavam disso). Na noite de 27 de junho, entretanto, o medo de palco de Jim Gardener foi intensificado por sua dor de cabeça. Quando despertou daquela soneca, na poltrona do quarto do hotel, os tremores e a agitação do estômago haviam desaparecido, mas a dor de cabeça estava pior ainda: era uma tortura absoluta nota 10, talvez a pior de todos os tempos.

Quando finalmente chegou a sua vez de ler, ele pareceu ouvir-se de uma enorme distância. Tinha a sensação de estar ouvindo uma gravação de si mesmo em uma irradiação radiofônica de ondas curtas, transmitida da Espanha ou Portugal. Então, uma onda de vertigem o percorreu e, por alguns momentos, pôde apenas simular que procurava um poema, talvez algum poema em particular, que ficara temporariamente fora de ordem. Folheou papéis com dedos entorpecidos e sem tato, pensando: Vou desmaiar, acho que vou. Bem aqui diante de todos. Cair contra este púlpito e arrastá-lo comigo até a primeira fila de cadeiras. Talvez possa aterrar em cima daquela cona de sangue azul e matá-la. Isso quase faria minha vida inteira valer a pena.

Vá até o fim, respondeu aquela implacável voz interior. Algumas vezes, essa voz parecia a de seu pai, porém com mais frequência assemelhava-se à de Bobbi Anderson. Vá até o fim, eis tudo. É o que tem a fazer.

Naquela noite, a platéia era maior que de costume, havia talvez umas cem pessoas, espremendo-se atrás das carteiras de um auditório da Nordeste. Os olhos dos ouvintes pareciam demasiado grandes. Que olhos grandes você tem, vovózinha! Era como se quisessem comê-los com os olhos. Sugar-lhe a alma, o seu ka, o seu o que quer que quisessem chamar. Ocorreu-lhe um fragmento do velho T. Rex: Garota, sou apenas um vampiro por seu amor... e vou SUGÁ-LA!

Claro que não havia mais T. Rex. Marc Bolan embrulhara seu carro-esporte em torno de uma árvore e tinha sorte por não estar vivo. Ponto para você, Marc! Sem dúvida, deu-se bem. Ou deu-se mal. Ou qualquer coisa. Um grupo chamado Power Station irá gravar sua música em 1986 e a coisa ficará realmente ruim, ela... ela...

Ele levou à testa uma mão vacilante, e um quieto murmúrio percorreu a platéia.

É melhor irem frente, Gard! Os nativos estão ficando inquietos.

Sim, era mesmo a voz de Bobbi, não havia dúvida.

As luzes fluorescentes, incrustadas em retângulos granulados acima de sua cabeça, pareciam pulsar em seu cérebro. Podia ver Patricia McCardle. Usava um vestidinho preto que certamente não custara um centavo além de trezentos dólares — artigo refugado de uma daquelas deselegantes lojinhas da Rua Newbury. O rosto dela era tão estreito, pálido e implacável, como o de qualquer de seus ancestrais Puritanos, aqueles maravilhosos sujeitos amantes de divertimentos, que ficavam mais do que felizes se jogavam alguém em uma cela fedorenta, caso alguém fosse visto saindo no dia de descanso, sem ter no bolso um lenço de assoar. Os olhos escuros de Patricia fixavam-se nele como pedras opacas, e Gard pensou: Ela percebe o que está acontecendo e não podia estar mais satisfeita. Olhem para sua cara. Espera que eu desmorone. E quando eu desmoronar, sabem o que ela estará pensando, não sabem?

Ele sabia, naturalmente.

Aí está o que merece por chamar-me de Patty, seu bêbado filho da mãe! Era isto o que ela estaria pensando. Ai está o que merece por chamar-me de Patty, aí está o que merece por ter feito tudo, exceto forçar-me a ficar de joelhos e suplicar. Portanto, vá em frente, Gardener! Talvez eu até permita que fique com o dinheiro do adiantamento. Trezentos dólares me parecem um preço até muito barato, pelo indescritível prazer de vê-lo explodir diante de toda esta gente. Vá em frente! Vá em frente e acabe logo com isso!

Alguns membros da platéia agora estavam ficando visivelmente inquietos — a demora entre poemas se estendera muito além do que seria considerado normal. O murmúrio se transformara em abafado zumbido. Gardener ouviu Ron Cummings pigarrear nervosamente, atrás dele.

Coragem! gritou novamente a voz de Bobbi, porém a voz agora diminuía de intensidade. Extinguia-se. Estava prestes a desaparecer. Gardener olhou para os rostos na platéia e viu apenas círculos opacos, de um pastoso pálido, cifras, enormes buracos brancos no universo.

O zumbido aumentava. Ele permaneceu em pé diante do púlpito, agora oscilando perceptivelmente, molhando os lábios, fitando os assistentes com uma espécie de aturdido terror. Então, de repente, em vez de ouvir Bobbi, Gardener realmente a viu. A imagem tinha a força de uma visão.

Bobbi estava lá, em Haven, neste momento em que a via. Gardener podia vê-la sentada na cadeira de balanço, usando shorts e um top sobre o que tinha de seios, que não era grande coisa. Os pés calçavam velhos e surrados mocassins e Peter estava enrodilhado diante deles, profundamente adormecido. Bobbi segurava um livro, mas não o lia, porque jazia aberto em seu colo, a capa virada para cima (este fragmento de visão era tão perfeito, que ele até conseguiu ler o título do livro — era Watchers, de Dean Koontz). Ela olhara para o escuro através da janela, ruminando os próprios pensamentos — pensamentos que tinham seqüência, um após o outro, seguindo-se de maneira tão lúcida e racional, como se desejaria que corresse um trem de pensamentos. Sem descarrilar; sem cargueiros atrasados; sem colisões. Bobbi sabia como dirigir uma ferrovia.

Gardener podia, inclusive, saber o que ela pensava, conforme descobriu nesse momento. Era sobre algo na floresta. Algo... alguma coisa que ela descobrira no meio do mato. Sim. Bobbi estava em Haven, tentando decidir o que seria aquela coisa e por que se sentia tão cansada. Não estava pensando em James Eric Gardener, o conhecido poeta que fazia demonstrações de protesto e baleava a esposa no Dia de Graças, que naquele instante se encontrava de pé em um salão de conferências na Universidade do Nordeste, debaixo daquelas luzes com mais de cinco outros poetas e um monte gordo de merda chamada Arberg, Arglebargle ou coisa assim, estando prestes a desmaiar. O Mestre do Desastre presidia aquele salão de conferências. Que Deus abençoe Bobbi, pois de algum modo conseguira manter-se lúcida, enquanto todos à sua volta endoidavam — Bobbi estava lá, em Haven, pensando da maneira como se supunha que as pessoas devessem pensar.

Não, não está. Ela não está fazendo nada disso.

Então, pela primeira vez, foi tomado por um pensamento que lhe chegou sem qualquer envoltório acústico a cercá-lo; chegou tão alto e urgente, como um toque de sinos alertando para um incêndio à noite: Bobbi está em apuros! Bobbi está em SÉRIOS APUROS!

Esta certeza o atingiu com a força de um direto no queixo e, de repente, a vertigem desaparecera. Gardener pareceu cair de volta dentro de si mesmo, com um baque seco que quase pareceu sentir os dentes chocalharem. Uma pontada nauseante de dor dilacerou sua cabeça, porém até isso foi bem-vindo — se sentia dor, é porque voltara para aquele lugar, estava ali, em vez de flutuar em torno de algum lugar no ozônio.

Então, por um intrigante momento, ele viu um novo quadro, muito breve, muito nítido e muito agourento: Bobbi estava na adega da casa que herdara do tio. Acocorava-se diante de alguma peça de maquinismo, trabalhava nela... ou o que fazia? A cena era muito sombreada, a coisa parecia difusa e, por outro lado, Bobbi não era grande coisa para lidar com mecanismos. No entanto, sem sombra de dúvida fazia algo, porque um fantasmagórico fogo azulado saltava e tremulava entre seus dedos, enquanto ela remexia no emaranhado de fios dentro... dentro... estava demasiado escuro para que pudesse ver o que era aquela coisa penumbrosa, de formato cilíndrico Parecia familiar, alguma coisa que ele já vira antes, mas...

De repente, pôde ouvir, tão bem quanto ver, embora o que ouvisse fosse ainda menos confortador do que o espectral fogo azulado. Era Peter. Peter uivava. Bobbi não dava importância, o que absolutamente não era do seu feitio. Ela apenas continuou manuseando os fios, remexendo neles para que fizessem alguma coisa, naquela adega escura, cheirando a raízes...

A visão se desfez, entre um crescente vozerio.

Os rostos que acompanhavam aquelas vozes não eram mais buracos brancos no universo, mas rostos de pessoas reais; alguns mostravam-se divertidos (mas não muitos), outros pareciam embaraçados, porém a maioria estava alarmada ou preocupada. Em outras palavras, a expressão da maior parte era como a oferecida por ele, se sua posição houvesse sido trocada com alguma daquelas pessoas. Teria sentido medo delas? Teria? E, se teria, por quê?

Somente Patricia Mccardle não se ajustava ao quadro. Ela o fitava com uma satisfação quieta e segura, que tivera o dom de fazê-lo cair em si completamente.

Gardener de súbito falou para a platéia, surpreso ao notar como sua voz soava natural e agradável.

— Eu sinto muito. Peço que me desculpem, por favor. Tenho aqui uma batelada de poemas novos e receio ter-me perdido entre eles.

Fez uma pausa. Sorriu. Agora podia ver que alguns rostos perdiam o ar preocupado, pareciam aliviados. Houve risos breves, mas de simpatia, de compreensão. Não obstante, Gardener podia perceber um surto de raiva subindo para as faces de Patricia McCardle, o que fez um mundo de bem à sua dor de cabeça.

— Em realidade — prosseguiu, — a verdade não é bem essa. De fato, eu tentava decidir se devia ou não ler parte deste novo material para vocês. Após uma furiosa arbitragem entre aqueles dois clamorosos pesos-pesados, o Orgulho do Autor e a Prudência, a Prudência ganhou por pontos, mas o Orgulho do Autor pretende apelar da decisão...

Mais risos, mais calorosos. Agora, as bochechas da velha Patty assemelhavam-se à estufa da cozinha dele, através de suas janelinhas de mica, em uma fria noite invernal. Ela estava de mãos entrelaçadas, os nós dos dedos muito brancos. Não arreganhava os dentes inteiramente, mas estava quase, quase chegando a isso, amigos e vizinhos.

— Nesse meio tempo, encerrarei com um ato perigoso: vou ler um poema razoavelmente longo de meu primeiro livro, Grimoire.

Deu uma piscadela na direção de Patricia McCardle e depois envolveu todos os assistentes em sua humorística confidência:

— Deus, no entanto, odeia os covardes, certo?

Ron começou a rir ruidosamente atrás dele, e então todos estavam rindo. Por um instante, Gardener realmente viu um relance dos dentes branco-perolados dela, por trás daqueles lábios distendidos e furiosos, e, poxa, cara, isso tinha sido tão bom quanto você queria, não?

Cuidado com ela, Gard. Você acha que agora tem a bota sobre o pescoço dela, e talvez tenha mesmo, por enquanto, mas cuidado com essa mulher! Ela não vai esquecer.

Nem perdoar.

Bem, isso ficava para mais tarde. Agora, ele abriu o surrado exemplar de seu primeiro livro de poemas. Não precisou procurar “Rua Leighton”, porque o livro se abriu sozinho naquela página. Seus olhos encontraram a dedicatória. À Bobbi, que primeiro descobriu a sabedoria em Nova Iorque.

“Rua Leighton” havia sido escrito no ano em que a conhecera, o ano em que tudo quanto ela sabia falar, era sobre a Rua Leighton. Naturalmente, era a rua de Utica em que Bobbi se criara, a rua de onde tivera que fugir, ainda antes de começar a ser o que pretendia — uma simples escritora de histórias simples. Bobbi podia fazer isso, escrevia com rapidez e facilidade. Gard soubera disso quase imediatamente. Mais tarde nesse ano, pressentira que ela seria capaz de mais: superar a descuidada e dissipadora facilidade com que escrevia e sem nenhum grande esforço, fazer um trabalho audacioso. Primeiro, no entanto, precisava sair da Rua Leighton. Não da real, mas da Rua Leighton que carregava na mente, uma geografia demoníaca, povoada por inquilinos obsessivos, por seu pai amado e doente, por sua mãe amada e fraca e por uma irmã, uma ovelha velha e desafiante, que governava todos eles como um demônio de poder interminável.

Naquele ano, certa vez ela pegara no sono durante a aula — Composição para Calouros, era o que tinha sido. Gardener se mostrara gentil com ela, pois já a amava um pouco e tinha percebido os enormes círculos abaixo de seus olhos.

— Venho tendo problemas para dormir à noite — aplicou, quando ele a reteve por um momento, terminada a aula. Ainda estava meio adormecida, pois do contrário nada diria além disso, a tal ponto era forte a influência de Anne sobre ela — que era a influência da Rua Leighton. Entretanto, Bobbi era como uma pessoa que foi drogada, e existe com uma perna caída a cada lado do escuro e pétreo muro do sono. — Mal pego no sono, começo a ouvi-la.

— Quem? — perguntou ele suavemente.

— Sissy... minha irmã Anne, quero dizer. Ela range os dentes e isso tem um som de os-os-os...

Ela queria dizer ossos, mas então despertou para um acesso de choro histérico, que o tinha deixado bastante amedrontado.

Anne.

Mais do que qualquer coisa, Anne era a Rua Leighton.

Anne havia sido.

(batidas à porta)

a mordaça sobre as carências e ambições de Bobbi.

Multo bem, pensou Gard. Por você, Bobbi. Somente por você. E começou a ler “Rua Leighton”, tão tranqüilamente, como se houvesse passado a tarde ensaiando o poema em seu quarto.

 

“Aquelas ruas começam onde as lajes

emergem no asfalto como as cabeças

de crianças mal sepultadas em suas tramas,

 

Gardener leu.

 

“Que lenda é esta?

perguntamos, porém

as crianças que jogam bola e

pulam carniça por ali, apenas riem.

Não há lenda, dizem todas, não há lenda,

apenas dizem todas, ei, bobão, por aqui

nada existe além da Rua Leighton,

nada existe além de casas pequeninas

de alpendres nos fundos, onde nossas mães

lavam coisas e passam o tempo.

 

Onde os dias ficam quentes

e elas ouvem rádio ao longo da Rua Leighton,

enquanto fluem pterodáctilos entre antenas de TV

sobre o teto, e todas dizem, ei, bobão, dizem todas,

Ei, bobão!

 

Não há lenda, dizem todas, não há lenda,

apenas dizem todas, ei, bobão, por aqui

nada existe além da Rua Leighton

 

Isto, dizem todas, é como você silencia em seu silêncio

de dias, Bobão.

 

Ao virarmos as costas àquelas estradas

ao norte do estado,

armazéns com fachadas de tijolos descorados,

ao dizermos, ‘Ó, mas eu cheguei ao fim

de tudo que conheço, porém ainda ouço rangendo,

rangendo dentro da noite...’ ”

 

Como fazia muito tempo desde a última vez que lera o poema, mesmo para si próprio, não apenas o “representou” (algo que, tinha descoberto, era quase impossível deixar de fazer, no final de uma turnê como aquela) — ele o redescobriu. A maioria dos presentes ao recital da Nordeste aquela noite — inclusive os que testemunharam a sórdida e repelente conclusão da noitada — concordou em que a leitura de “Rua Leighton”, por Gardener, havia sido o melhor do espetáculo. Muita gente afirmou ter sido aquilo o melhor que já ouvira.

Assim, posto ser essa a última leitura que Jim Gardener faria na vida talvez não tivesse sido uma forma mão ruim de afastar-se.

 

Ele levou quase vinte minutos para ler todo o poema e, ao terminar, ergueu os olhos incertamente, fixando-os em um profundo e perfeito poço de silêncio. Teve tempo para pensar que nunca havia lido realmente a maldita coisa, que tudo fora apenas uma vivida alucinação, um ou dois momentos antes de desmaiar.

Então, alguém se levantou, começando a bater palmas, firme e vigorosamente. Era um rapaz, com lágrimas nas faces. A moça ao lado dele se levantou também, batendo palmas. E também ela chorava. Em seguida, estavam todos de pé e aplaudindo, sim, ofereciam-lhe uma gigantesca e entusiástica ovação. No rosto daquelas pessoas, Gardener viu o que cada poeta ou futuro poeta espera ver, ao término de seu recital: a expressão de indivíduos subitamente despertados de um sonho, mais vivido do que qualquer realidade. Pareciam todos tão aturdidos como estivera Bobbi naquele dia, não muito certos de onde se encontravam.

Gardener viu, no entanto, que nem todos estavam de pé e aplaudiam; Patricia McCardle permanecia rígida e ereta em sua cadeira da terceira fila, as mãos entrelaçadas apertadamente no colo, sobre a pequena bolsa de noite. Os lábios estavam fechados. Não havia agora a menor insinuação dos velhos dentes branco-perolados; sua boca se tornara um pequeno corte incruento. Gard sentiu uma fatigada satisfação. No que lhe diz respeito, Patty a verdadeira ética puritana é de que ninguém sendo uma ovelha negra ousaria elevar-se acima de seu respectivo nível de mediocridade, correto? Entretanto, em seu contrato não existe cláusula sobre a mediocridade, existe?

— Obrigado — murmurou ele ao microfone.

Enquanto falava, ia juntando seus livros e papéis em uma pilha confusa, com mãos trêmulas — e então quase deixando tudo cair ao chão, no momento em que começou a afastar-se da tribuna. Arriou o corpo no assento ao lado de Ron Cummings, com um profundo suspiro.

— Meu Deus — sussurrou Ron, ainda aplaudindo. — Meu Deus!

— Pare de bater palmas, seu idiota — cochichou Gardener de volta.

— Uma merda que vou parar! Pouco me importa quando você o escreveu, mas esteve infernalmente brilhante — disse Cummings. — Mais tarde faço questão de lhe pagar um drinque.

— Esta noite não bebo nada mais forte do que club soda — disse Gardener, e sabia que era mentira.

Sua dor de cabeça já rastejava de volta. A aspirina não curaria isso, o Percodan tampouco ou um depressivo. Nada endireitaria sua cabeça, além de uma boa quantidade de álcool. Para alívio breve, rápido.

Os aplausos finalmente começaram a morrer. Patricia McCardle se mostrava gelidamente grata por isso.

 

O nome do monte gordo de merda que fora apresentado a cada poeta era Arberg (embora Gardener insistisse em chamá-lo Arglebargle). Tratava-se do professor-assistente de Inglês e chefiava o grupo patrocinador sendo a espécie de homem que seu pai teria denominado um “balofo filho da mãe”.

O balofo filho da puta daria uma festa em sua casa para a Caravana, os Amigos da Poesia e a maior parte do pessoal do Departamento de Inglês, após a leitura. A festa começou pelas onze horas. Um tanto formal no início, com homens e mulheres formando desconfortáveis grupinhos em pé, segurando copos e pratos de papel exibindo o tipo costumeiro da cautelosa conversa acadêmica. Quando lecionava, Gard considerara aquela espécie de hipocrisia uma idiota perda de tempo. Ainda pensava assim, porém agora havia algo de nostálgico e agradável em tais reuniões — embora de maneira melancólica.

Sua característica de Colosso da Festa lhe dizia que, formal ou não, aquela seria uma Festa com Possibilidades. Por volta de meia-noite, os estudos de Bach seriam quase certeiramente substituídos pelos Simuladores, cujas conversas sobre aulas, política e literatura passariam para tópicos mais interessantes — o desempenho esportivo dos Red Sox, quem andava bebendo além da conta na faculdade e o tema favorito de todos os tempos, quem estava trepando com quem.

Havia um grande bufê, para onde a maioria dos poetas rumava em linha reta, confiadamente seguindo a Primeira Norma para Poetas em Turnê, da autoria de Gardener: Se for grátis, agarre. Enquanto ele espiava, Ann Delaney, que escrevia secos e obsessivos poemas sobre a classe operária rural da Nova Inglaterra, escancarava os maxilares ao máximo e enfiava na boca o enorme sanduíche que segurava. Maionese da cor e tessitura de sêmen de touro escorreu por entre seus dedos, o que ela lambeu despreocupadamente. Deu uma piscadela para Gardener. À esquerda de Ann, o ganhador do Prêmio Hawthorne da Universidade de Boston, no ano anterior (por seu longo poema Harbor Dreams 1650-1980), entupia a boca de azeitonas verdes, em supersônica velocidade. Tal indivíduo, Jon Evard Symington de nome, fazia pausas apenas suficientes para enfiar punhados de rodinhas embrulhadas de queijo Bonbel em cada bolso do paletó-esporte de veludo cotelê (naturalmente, com reforços nos cotovelos), para então retornar às azeitonas.

Ron Cummings trotou para onde Gardener se encontrava de pé. Como sempre, não estava comendo. Tinha na mão um copo que parecia cheio de uísque puro. Fez um gesto de cabeça para o bufê.

— Comilança de primeira! Se você é um connoisseur de salsichão Kirschner’s e de alface batávia, está por dentro da situação, irmão.

— Esse Alglebargle sabe viver — disse Gardener.

No ato de beber, Cummings riu tão alto e forte, que seus olhos esbugalharam-se.

— Você está caminhando para a popularidade esta noite, Jim. Alglebargle. Céus!

Ele olhou para o copo na mão de Gardener. Continha vodca e tônica — uma dose fraca, mas já a segunda, o que era uma diferença.

— Água tônica? — perguntou Cummings, timidamente — Água tônica pura?

— Bem... a maioria.

Cummings tornou a rir, e afastou-se.

Quando alguém desligou Bach e passou para coisas mais triviais, Gard já ia pelo quarto drinque — neste, ele pediu ao barman, que estivera presente à leitura, que castigasse mais na vodca. Então, ele começara a repetir dois comentários que lhe pareciam tão mais sagazes, quando mais embriagado ficava: primeiro, que se você era um connoisseur de salsichão Kirschner’s e de alface batávia, está por dentro da situação, como este aqui, irmão, e segundo, que todos os professores-assistentes eram como os Práticos Personagens de T. S. Eliot, pelo menos em um modo: todos eles possuíam nomes secretos. Gardener confiou haver intuído o nome secreto de seu anfitrião: Alglebargle. Retornou para um quinto drinque e disse ao barman que apenas acenasse com a garrafa de tônica, diante da boa e velha dose em seu copo — isso seria ótimo. O barman meneou solenemente a garrafa de Schewppes diante do copo de vodca de Gardener. Gardener riu até as lágrimas lhe saltarem dos olhos e seu estômago doer. De fato, sentia-se excelente essa noite... e quem mereceria mais, senhoras e senhores? Lera um poema melhor do que havia lido em anos, talvez durante a vida inteira!

— Sabe de uma coisa? — disse ao barman, um pós-graduado necessitado, que havia sido contratado especialmente para a ocasião. — Todos os professores-assistentes são, em certo sentido, como os Práticos Personagens de T. S. Eliot.

— É mesmo, Sr. Gardener?

— Jim. Apenas Jim.

Entretanto, pela expressão nos olhos do rapazinho, Gardener percebeu que jamais seria apenas Jim para ele, que o vira brilhar essa noite. E, homens que brilham nunca podem ser algo tão mundano como apenas Jim.

— É isso aí — disse ao rapazinho. — Cada um deles tem um nome secreto. Eu intuí qual seria o de nosso anfitrião. É Alglebargle. Como o som que a gente faz, gargarejando com a velha Listerine. — Gardener fez uma pausa, refletindo. — Agora que pensei nisto, trata-se de algo de que o cavalheiro em questão poderia usar uma boa dose...

Gardener riu, bastante alto. Era uma excelente adição à confiança básica. Como adicionar ao capô de um belo carro um enfeite de bom gosto, pensou, tornando a rir. Desta vez, algumas pessoas olharam em torno, antes de retornarem à sua conversa.

Alto demais, pensou ele. — Baixe o controle de volume, Gard, meu velho. Sorriu largamente. Considerando que estava vivendo uma daquelas noitadas mágicas — inclusive seus malditos pensamentos eram divertidos naquela noite.

O barman também sorria, mas com certa preocupação.

— Devia tomar cuidado com o que diz sobre o Professor Arberg — aconselhou ele — ou a quem disser. Ele... bem, é um tanto truculento.

— Oh, é mesmo? — Gardener girou os olhos nas órbitas e movimentou energicamente as sobrancelhas, para cima e para baixo, como Groucho Marx. — Bem, ele tem corpulência para isso. Um balofo filho da mãe, não é mesmo? — Entretanto, ao dizer isso, tomou o cuidado de manter a voz baixa.

— Exato — disse o barman. Olhou em torno, depois inclinou-se sobre o balcão do bar improvisado, na direção de Gardener. — Há uma história de que ele ia passando perto da sala dos assistentes em pré-graduação, o ano passado, quando ouviu um deles dizer, em tom de piada, que sempre quisera estar ligado a uma escola onde Moby Dick não fosse apenas um clássico insosso, mas um real membro da faculdade. Esse cara era um dos mais promissores alunos de Inglês que a Nordeste já teve, segundo ouvi dizer. No entanto, teve que sair antes de terminado o semestre. Como tiveram que sair, todos os que riram da piada. Os que não riram, ficaram.

— Minha nossa! — exclamou Gardener.

Já ouvira histórias semelhantes antes — uma ou duas delas eram ainda piores — porém ficou desgostoso. Seguiu o olhar do barman e viu Alglebargle no bufê, em pé ao lado de Patrícia McCardle. Alglebargle tinha uma caneca de cerveja em uma das mãos e gesticulava com ela. Sua outra mão mergulhava batatas fritas em uma tigela de pasta de camarão e depois as passava para a boca, que continuava falando enquanto mastigava as batatas. Gardener não se lembrava de já ter visto algo tão absolutamente repulsivo. No entanto, a extasiada atenção da cadela McCardle sugeria que, a qualquer momento, ela poderia cair de joelhos e praticar felação no sujeito, por pura adoração. Gardener pensou, e o fodido balofo continuaria comendo tranqüilamente enquanto ela fazia isso, deixando cair migalhas de batata frita com glóbulos de pasta de camarão nos cabelos dela.

— Minhas tripas se revoltam — disse ele, despejando preguiçosamente na boca metade de sua vodca sem tônica. A bebida mal queimava... o que queimava era a primeira real hostilidade da noite — o primeiro batedor daquela fúria muda e inexplicável que o perseguia, quase desde que começava a beber. — Refresque isto aqui, está bem?

O barman despejou mais vodca no copo e disse, timidamente:

— Achei que sua leitura desta noite foi maravilhosa, Sr. Gardener.

Gardener ficou absurdamente comovido. “Rua Leighton” havia sido dedicado a Bobbi Anderson, e aquele rapazinho atrás do bar — mal tendo idade suficiente para beber legalmente — o fez recordar Bobbi, como ela era ao chegar à universidade.

— Obrigado.

— Tem que tomar certo cuidado com essa vodca — disse o barman. — Ela tem um jeito de enganar a gente.

— Estou no controle — disse Gardener, dando para ele uma piscadela tranqüilizadora. — Visibilidade de dez quilômetros ao infinito.

Afastou-se um pouco do balcão do bar, a fim de tornar a olhar para o balofo filho da mãe e a McCardle. Os olhos dela encontraram os seus e Patrícia o encarou fixamente, fria e sem sorrir, os olhos azuis parecendo pedras de gelo. Coce meu saco, sua putinha fingida, pensou ele, e ergueu seu drinque para ela, em um grosseiro cumprimento de botequim, enviando-lhe ao mesmo tempo um largo e insultante sorriso.

— Apenas tônica, certo? Tônica pura.

Gardener olhou em torno. Ron Cummings surgira ao seu lado, tão subitamente como o diabo. E seu sorriso era adequadamente diabólico.

— Não enche! — disse Gardener, e mais pessoas se viraram para olhar.

— Jim, meu velho...

— Já sei, já sei, baixe o controle do volume — murmurou.

No entanto, podia sentir aquela pulsação na cabeça ficando cada vez mais forte, mais insistente. Não era como as dores de cabeça preditas pelo médico, em seguida ao seu acidente; não provinha da frente da cabeça, mas de algum ponto profundo, atrás. E não doía.

Na verdade, chegava a ser agradável.

— Você conseguiu — disse Cummings, com um gesto quase imperceptível de cabeça para McCardle. — Ela está fula com você, Jim. Adoraria tirá-lo da turnê. Não lhe dê um motivo!

— Vá foder a cadela!

— Faça isso você — replicou Cummings. — Câncer, cirrose do fígado e danos cerebrais são resultados estatisticamente provados do excesso de bebida, de maneira que até posso esperá-los em meu futuro. Se uma dessas coisas me cair na cabeça, só posso culpar a mim mesmo. Em minha família há casos de diabetes, glaucoma e senilidade prematura... mas hipotermia do pênis? Oh, posso passar sem isso. Com sua licença.

Gardener ficou quieto um momento, intrigado, espiando Cummings afastar-se. Então, entendeu o espírito da coisa e se dobrou de rir. Desta vez, as lágrimas não lhe ficaram apenas nos olhos — de fato lhe rolaram pelas faces. Pela terceira vez naquela noite, os outros olhavam em sua direção — um homem grandalhão, em roupas um tanto surradas, com um copo repleto do que parecia suspeitosamente vodca pura, em pé sozinho e rindo com quantas forças tinha.

Tampe isso, pensou ele. Baixe o volume, pensou. Hipotermia do pênis, pensou, e tornou a gargalhar como louco.

Aos poucos, conseguiu recuperar o controle. Encaminhou-se para o estéreo, na outra sala — era onde geralmente podiam ser encontradas as pessoas mais interessantes em uma reunião. Pegou uns dois canapés em uma bandeja e os engoliu. Tinha a forte impressão de que Arglebargle e McCarglebargle continuavam a olhá-lo, e que McCarglebargle fornecia a Arglebargle uma ficha completa a seu respeito, em pequenas frases contidas, sem que aquele frio e enlouquecedor sorrisozinho lhe abandonasse o rosto. Você não sabia? É a pura verdade — ele a baleou. Bem no rosto. Ela lhe disse que não faria acusações se ele lhe desse um divórcio amigável. E quem sabe se foi a decisão acertada ou não? Ele não tornou a balear mulheres... pelo menos, ainda não. Entretanto, por melhor que tenha lido o poema esta noite após aquele lapso excêntrico, quero dizer — é um indivíduo instável e, como pode ver, não consegue controlar-se na bebida...

É bom ficar atento, Gard, pensou ele e, pela segunda vez naquela noite, chegou-lhe um pensamento em uma voz que era muito semelhante à de Bobbi. Sua paranóia está transparecendo. Pelo amor de Deus, eles não estão falando de você!

Chegando à porta, ele parou e olhou para trás.

Eles olhavam diretamente em sua direção.

Sentiu-se constrangido, foi percorrido por amedrontadora onda de choque... e então se forçou a outro largo e insultante sorriso, enquanto erguia o copo para os dois.

Vá embora daqui, Gard. Isto pode dar confusão. Você está bêbado! Estou no controle, não se preocupe. Ela quer me ver pelas costas, daí o motivo de ficar olhando para mim, daí o motivo de estar dizendo para aquele desgraçado tudo que sabe a meu respeito — que baleei minha esposa, que fui detido em Seabrook com uma arma carregada em minha mochila... Ela acha que manifestantes contra a energia nuclear, bêbados, simpatizantes dos comunistas e baleadores de esposas não devem ser o autor mais infernalmente grande da noite. Só que eu não esquento. Não há problema, meu bem. Eu apenas vou resistir, acabar com a aguardente, tomar algum café e ir cedo para casa. Não há problema.

E, embora ele não tomasse nenhum café, não fosse cedo para casa e, claro, não acabasse com a aguardente, ainda se manteve contido por uma hora ou coisa assim. Baixava o volume, sempre que se percebia começando a falar mais alto, e procurava conter-se, ao ouvir-se fazendo o que sua esposa tinha chamado de arengar. “Quando você fica bêbado, Jim,” dizia ela, “um dos seus problemas — não o menor — é uma tendência a parar de conversar e começar a arengar.”

Ficou a maior parte do tempo na sala de estar de Arberg, onde os reunidos eram mais jovens e não tão cautelosamente pomposos. A conversa deles era animada, alegre e inteligente. O pensamento dos reatores nucleares brotou na mente de Gardener — em horas semelhantes sempre acontecia isso, como um corpo em decomposição flutuando à superfície, em resposta ao fogo de artilharia. Em horas semelhantes — e, neste estágio de bebedeira, costumava emergir a certeza de que devia alertar aquela juventude, o problema traçava seu caminho no calor da raiva e da irracionalidade, como algas apodrecidas. Era sempre assim. Os últimos oito anos de sua vida haviam sido ruins e os últimos três tinham-se tornado uma fase de pesadelo, na qual ele ficara inexplicável para si mesmo e deixara atemorizados quase todos aqueles que de fato o conheciam bem. Quando Gardener bebia, essa fúria, esse terror e, principalmente sua incapacidade em explicar o que acontecia, inclusive a si mesmo — encontravam uma válvula de escape no tema dos reatores nucleares.

Esta noite, no entanto, mal havia tocado no assunto, quando Ron Cummings entrou na sala cambaleando, o rosto fino e emagrecido brilhando com uma tonalidade febril. Bêbado ou não, Cummings ainda era perfeitamente capaz de perceber como o vento soprava. Com sagacidade fez a conversa retornar à poesia. Gardener lhe ficou vagamente grato, porém também sentiu raiva. Era irracional, mas estava presente: sua tomada de posição lhe fora negada.

Assim, em parte graças ao severo controle que impusera a si mesmo e em parte devido à oportuna intervenção de Ron Cummings, Gardener evitou problemas até a festa de Arberg estar quase no fim. Mais uma meia hora e o problema seria inteiramente evitado... pelo menos, nessa noite.

Entretanto, quando Ron Cummings começou a arengar sobre os poetas beat, com sua costumeira e cortante inteligência, Gardener retornou à sala de refeições para outro drinque e talvez algo do bufê para mastigar. O que se seguiu, poderia ter sido programado pelo demônio, com um senso de humor particularmente maligno.

— Tão logo tenhamos a Iroquois totalmente equipada, vocês podem contar com o equivalente a três dúzias de bolsas de estudo integrais para distribuir — dizia uma voz, à esquerda de Gardener.

Ele olhou em torno tão subitamente, que quase entornou sua bebida. Na certa, devia ter imaginado aquela conversa — era coincidência demais para que fosse real.

Havia meia dúzia de pessoas agrupadas em uma extremidade do bufê — três homens e três mulheres. Um dos casais era a Mundialmente Famosa Dupla de Vaudeville, Arglebargle e McCarglebargle. O homem que falava assemelhava-se a um vendedor de carros, com melhor bom gosto nas roupas do que a maioria de seus colegas. Sua esposa estava ao lado. Era atraente, mas de uma forma fatigada, com os desbotados olhos azuis aumentados pelas lentes grossas dos óculos. Gardener viu uma coisa imediatamente. Ele podia ser um alcoólatra e obcecado por aquele tema único, mas sempre fora e ainda era um sagaz observador. Aquela mulher dos óculos de lentes grossas, percebia que seu marido estava fazendo exatamente aquilo que Nora acusara o próprio Gard de fazer nas festas, ao ficar bêbado: arengava. Ela queria afastá-lo dali, mas até então não descobrira como.

Gardener tornou a dar uma olhada e adivinhou que os dois tinham oito meses de casados. Talvez um ano, porém oito meses era uma suposição mais acertada.

O homem que falava, devia ser alguma espécie de figurão na companhia de energia elétrica, a Bay State Electric. Tinha que ser a Bay State, porque a Bay State possuía a mamata que era a usina de Iroquois. O sujeito a fazia parecer a maior coisa existente, desde o pão em fatias, e como parecia realmente acreditar no que dizia Gardener decidiu que seria um figurão de pequeno escalão, talvez até mesmo uma pequena roda na engrenagem ou inclusive um pneu sobressalente. Em sua opinião, era duvidoso que o pessoal da cúpula fosse tão fanático sobre a Iroquois. Mesmo deixando de lado a energia nuclear por um momento, restava o fato de que a Iroquois estava com um atraso de cinco anos em sua complementação, além do fato de que três cadeias de bancos interligados na Nova Inglaterra dependiam do que aconteceria, quando — e se — ela fosse completada. Estavam todos atolados até o peito em areias movediças radioativas e papelório comercial. Era como algum alucinado jogo de cadeiras musicais.

Naturalmente, os tribunais finalmente haviam concedido à companhia uma permissão para começar a colocar carga nos “bastões envenenados” um mês antes, e Gardener supôs que os desgraçados, com isso, respiravam um pouco mais aliviados.

Arberg ouvia, em solene respeito. Não era membro do conselho diretor da faculdade, mas qualquer um acima do cargo de instrutor saberia o suficiente para adular um emissário da Bay State Electric, mesmo sendo este um pneu sobressalente. Grandes entidades privadas, como a Bay State, podiam fazer muito por uma escola, se assim quisessem.

Aquele Kilowatt Vermelhão seria um Amigo da Poesia? Devia ser tanto quanto, suspeitava Gard, ele próprio era um Amigo da Bomba de Nêutrons. A esposa dele, no entanto — aquela de óculos grossos e de cansado rosto bonito — bem, ela parecia ser uma Amiga da Poesia.

Certo de que isso seria um terrível erro, Gardener vagou dali. Usava um agradável sorriso de festa-quase-no-fim-para-mim, porém a pulsação em sua cabeça era mais rápida, centralizando-se no lado esquerdo. A velha e incontida raiva crescia em uma onda vermelha. Você sabe o que está dizendo? era quase tudo que seu coração conseguia gritar. Havia argumentos lógicos contra usinas de energia nuclear, que ele poderia expor, mas em momentos como aquele, podia apenas encontrar o grito inarticulado de seu coração.

Você sabe o que está dizendo? Sabe quais são os riscos? Nenhum de vocês recorda o que aconteceu na Rússia, dois anos atrás? Eles lá não esqueceram; não podem esquecer: Estarão sepultando as vítimas do câncer, ainda no próximo século. Meu Deus do céu! Cara, enfie em seu traseiro um daqueles bastões de núcleo usados, durante meia hora ou coisa assim, e depois diga a todo mundo o quanto é segura a fodida energia nuclear, quando sua bosta começar a cintilar no escuro! Meu Deus! MEU DEUS! Vocês, seus idiotas, ficam aí parados, ouvindo esse homem fa1ar, como se ele fosse lúcido!

Ele ficou parado, de copo na mão, sorrindo agradavelmente, enquanto ouvia o pneu sobressalente cuspir suas mortíferas tolices.

O terceiro homem do grupo teria uns cinquenta anos e parecia um deão de universidade. Ele queria saber sobre a possibilidade de mais manifestações de protesto organizadas para o outono. Chamava o pneu sobressalente de Ted.

Ted, o Homem Energia, disse duvidar muito que houvesse preocupações a respeito. Seabrook tivera a sua época, e a instalação de Arrowhead, no Maine, também, mas desde que os juízes federais tinham começado a impor severas sentenças pelo que eles consideravam apenas agitação, as manifestações de protesto tinham declinado com rapidez.

— Esses grupos escolhem alvos quase tão depressa quanto escolhem conjuntos de rock — disse ele,

Arberg, McCardle e os outros riram — todos exceto a esposa de Ted, o Homem Energia. Seu sorriso apenas desgastou-se um pouco mais.

O sorriso agradável de Gardener permaneceu. Ele o sentia como que congelado sobre o rosto.

Ted, o Homem Energia, ficou mais expansivo. Disse já ser hora de mostrar aos árabes, de uma vez por todas, que a América e os americanos não precisavam deles. Disse que mesmo os mais modernos geradores tendo carvão como combustível eram sujos demais para que o Departamento de Proteção Ambiental os aceitasse. Disse também que a energia solar era excelente... “enquanto o sol brilhar”. Houve outro surto de risadas.

A cabeça de Gardener batia e estalava, estalava e batia. Os ouvidos, sintonizados a uma nota quase preternatural, captavam um fraco som crepitante, como de gelo rachando, e relaxou a mão um breve segundo, antes de tornar a crispá-la, com força suficiente para estilhaçar o copo.

Piscou várias vezes e viu que Arberg tinha a cabeça de um porco. A alucinação foi absolutamente completa e absolutamente perfeita, abrangendo até as cerdas no focinho do gorducho. O bufê estava em ruínas, mas Arberg o vasculhava, procurando liquidar os salgadinhos restantes, espetando uma fatia final de salame e um pedacinho de queijo no mesmo palito de plástico, arrematados com as últimas migalhas de batata frita. Tudo isso foi terminar em seu focinho farejante, e ele continuava assentindo todo o tempo, enquanto Ted, o Homem Energia, explicava que, em realidade, a última alternativa era a nuclear.

— Graças a Deus, o povo americano finalmente enquadrou aquele negócio de Chernobyl em alguma espécie de perspectiva — disse ele. — Trinta e duas pessoas mortas. É horrível, sem dúvida, mas faz apenas um mês, houve um desastre de aviação que matou cento e noventa e tantas. No entanto, vocês não ouviram ninguém gritar para o governo fechar as linhas aéreas ouviram? Trinta e dois mortos é terrível, porém muito longe do Apocalipse que esses adversários da energia nuclear querem fazer parecer. — Ele baixou um pouco a voz. — Eles são tão maníacos como a gente de LaRouche que vemos nos aeroportos mas, de certa forma, são ainda piores. Soam mais racionais. Entretanto, se lhes déssemos o que queriam, dariam meia volta um mês mais tarde e começariam a choramingar que não eram capazes de usar secadores de cabelo ou que seus eletrodomésticos não funcionavam, quando queriam preparar um bocado de comida macrobiótica.

A Gard, aquele sujeito não parecia mais um homem. A cabeça desgrenhada de um lobo emergia do colarinho de sua camisa branca, com a estreita gravata vermelha. Ele olhava em torno, a língua rosada pendurada, os olhos verde-amarelados cintilando. Arberg guinchou alguma espécie de aprovação e enfiou mais um monte de coisas em seu rosado focinho de porco. Patrícia McCardle agora tinha a cabeça lisa e esguia de um lebréu. O deão universitário e sua esposa eram doninhas. E a esposa do homem da companhia de eletricidade se tornara um coelho amedrontado, com olhos rosados girando atrás das lentes espessas.

Oh, Gard, não! gemeu sua mente.

Gardener tornou a piscar, e eles voltaram a ser apenas pessoas.

— E uma coisa que esses protestadores nunca se lembram de mencionar em suas manifestações, é apenas isto — encerrou Ted, o Homem Energia, olhando em redor como um advogado no tribunal, ao atingir o clímax de seu sumário. — Em trinta anos de pacífico desenvolvimento da energia nuclear, nunca houve uma só morte resultante da energia nuclear nos Estados Unidos da América!

Ele sorriu modestamente, e engoliu o resto de seu uísque.

— Estou certo de que todos descansaremos mais tranqüilos, sabendo disso — falou o homem que parecia deão de universidade. — Bem, acho que eu e minha esposa agora...

— Sabiam que Marie Curie morreu de contaminação radioativa? — intrometeu-se Gardener, em tom trivial. Cabeças se viraram. — Isso mesmo. Leucemia, induzida por exposição direta aos raios gama. Ela foi a primeira vítima, ao longo do desfile de mortes, com esse cara da usina elétrica no final. Ela fez um bocado de pesquisa e registrou tudo.

Gardener olhou à volta da sala repentinamente em silêncio.

— Suas anotações estão trancadas em uma caixa-forte — disse ele. — Uma caixa-forte em Paris. Forrada de chumbo. Os livros de anotações estão intatos, porém demasiado radioativos ao toque. Quanto a quem morreu aqui, em realidade não sabemos. A Comissão de Energia Atômica e o Departamento de Proteção Ambiental não se pronunciam a respeito. São um túmulo.

Patricia McCardle olhava para ele com a testa franzida. Estando o deão temporariamente esquecido, Arberg retornou à pesquisa na mesa desnuda do bufê.

— A 5 de outubro de 1966 — disse Gardener — aconteceu um vazamento parcial de radioatividade no reator reprodutor da Enrico Fermi, em Michigan.

— Nada aconteceu — disse Ted, o Homem Energia, estendendo as palmas para os membros do grupo, como se dissesse: Eu não falei?

— Sim — disse Gardener. — Nada aconteceu. Deus sabe por que, e suponho que mais ninguém saiba. A reação em cadeia parou por si mesma, sem que se descobrisse o motivo. Um dos engenheiros convocados para dar uma espiada, sorriu e disse: “Caras, vocês quase perderam Detroit!” Então, ele desmaiou.

— Oh, mas Sr. Gardener! Aquilo foi...

Gardener ergueu uma das mãos.

— Quando examinamos as estatísticas de morte por câncer, nas áreas circunjacentes a cada instalação de energia nuclear no país, encontramos anomalias, mortes que não se ajustam ao normal.

— Isso é totalmente inverídico e...

— Deixe-me terminar, por favor. Não acredito que os fatos façam qualquer diferença, mas permita-me terminar, assim mesmo. Muito antes de Chernobyl, os russos tiveram um acidente com um reator, em lugar chamado Kyshtym. Entretanto Khrushchev era o Premier na época, de maneira que os soviéticos ficaram de bico calado. Parece que eles estavam armazenando bastões nucleares usados, em fosso raso. Por que não? Como poderia ter dito Madame Curie, naquele tempo parecia uma boa idéia. Podemos fazer uma suposição aproximada de que o núcleo dos bastões oxidou-se, só que em vez de criar óxido ferroso — ou ferrugem — da maneira como acontece a bastões de aço, a ferrugem daqueles bastões foi plutônio puro. Mais ou menos como acender-se uma fogueira perto de um tanque de gás em baixa pressão, porém eles não sabiam disso. Presumiram que estava tudo bem. Presumiram. — Gardener podia ouvir a fúria impregnando sua voz e não conseguia contê-la.

— Eles presumiram, brincaram com as vidas de seres humanos, como se estes fossem... bem, meros bonecos... e adivinhem o que aconteceu?

A sala estava silenciosa. A boca de Patty era uma congelada fenda vermelha. Sua pele estava cor de leite, tal a raiva que sentia.

— Choveu — disse Gardener. — Choveu forte. E isso iniciou uma reação em cadeia, que provocou uma explosão. Foi como a erupção de um vulcão de lama. Milhares tiveram que ser evacuados. A cada mulher grávida, foi concedido um aborto. Não havia alternativa no caso. O equivalente a uma estrada de pedágio, na área de Kyshtym ficou fechado por quase um ano. Então, quando começou a vazar a notícia de que acontecera um grave acidente nas fronteiras da Sibéria, os russos tornaram a abrir a estrada. Entretanto, colocaram sinalizações realmente hilariantes. Eu vi as fotos. Não leio russo, mas pedi uma tradução a quatro ou cinco pessoas diferentes e todas coincidiram. Soava como uma perversa piada étnica. Imaginem-se dirigindo por uma auto-estrada americana — a I-95 ou a I-70, talvez — e avistando uma tabuleta sinalizadora avisando POR FAVOR, FECHEM TODAS AS JANELAS, DESLIGUEM TODOS OS ACESSÓRIOS DE VENTILAÇÃO E DIRIJAM O MAIS DEPRESSA QUE SEU CARRO PERMITIR NOS PRÓXIMOS TRINTA QUILÔMETROS.

— É pura tolice! — exclamou em voz alta Ted. O Homem Energia.

— As fotos são disponíveis, pela Lei da Liberdade de Informação — disse Gard. — Se este cara apenas estivesse mentindo, talvez eu até suportasse. No entanto, ele e o resto de gente como ele, estão fazendo algo pior. São como vendedores, dizendo ao público que os cigarros, além de não provocarem câncer pulmonar, estão impregnados de vitamina C e impedem que tenhamos resfriados.

— Está insinuando que...

— Trinta e dois em Chernobyl, a gente pode verificar. Diabo, talvez tenham sido somente trinta e dois mortos. Temos fotos tiradas por médicos americanos, sugerindo que já devem ser mais de duzentos, mas digamos trinta e dois. Isto não altera o que aprendemos sobre exposição à alta radioatividade. As mortes não acontecem imediatamente. Daí a situação enganosa. As mortes surgem em três ondas. Primeiro, as pessoas que foram fritas no acidente. Segundo, as vítimas de leucemia, principalmente crianças. Terceiro, a onda mais letal: câncer em adultos de mais de quarenta anos. São tantos os casos de câncer dos ossos, câncer do seio, câncer de fígado e os melanomas — em outras palavras, câncer da pele. Entretanto, você também pode ter seu câncer intestinal, seu câncer da bexiga, seus tumores cerebrais, seu...

— Pare! Por favor, quer parar? — gritou a esposa de Ted, com a histeria colocando um surpreendente vigor em sua voz.

— Eu pararia, se pudesse, minha cara — disse ele, gentilmente. — Só que não posso. Em 1964, a Comissão de Energia Atômica solicitou um estudo sobre um cenário de pior-caso, se um reator americano com um quinto do tamanho de Chernobyl explodisse. Os resultados foram tão assustadores que a CEA arquivou o relatório. Ele sugeria...

— Cale a boca, Gardener — disse Patty, em voz muito alta. — Você está bêbado!

Ele a ignorou, fixando os olhos na esposa do Homem Energia.

— Ele sugere que um acidente semelhante, em uma área relativamente rural dos EUA — por falar nisto, a área que escolheram foi a zona central da Pensilvânia, onde fica Three-Mile Island — mataria 45.000 habitantes, deixaria radioativo setenta por cento do estado e causaria prejuízo de dezessete milhões de dólares.

— Porra! — exclamou alguém. — Isso é uma merda de piada?

— Negativo — disse Gardener, sem afastar os olhos da mulher, que agora parecia hipnotizada pelo terror. — Se você multiplicar por cinco, terá 225.000 mortos e prejuízos no valor de oitenta e cinco milhões de dólares. — No silêncio tumular da sala, ele tornou a encher seu copo despreocupadamente, ergue-o na direção de Arberg e bebeu dois goles de vodca pura. Esperava-se que fosse não-contaminada. — Aí está! — terminou ele. — Estamos falando de quase um quarto de milhão de mortos, à altura em que se dissipar a terceira onda, por volta do ano 2040. — Ele piscou para Ted, o Homem Energia, cujos lábios repuxados agora exibiam os dentes. — Seria difícil liquidar toda essa gente, mesmo em um 767, não acha?

— Esses números saíram diretamente do seu traseiro! — exclamou Ted, o Homem Energia, tomado de fúria.

— Ted... — disse nervosamente a esposa dele.

Ela ficaria mortalmente pálida, com apenas duas pequenas manchas vermelhas ardendo acima dos malares.

— Espera que eu fique aqui parado, ouvindo essa... essa retórica de partido? — perguntou ele, aproximando-se de Gardener até ficarem peito contra peito. — Espera mesmo?

— Em Chernobyl, eles mataram as crianças — disse Gardener. — Será que não entende? Aquelas que tinham dez anos e as ainda in utero. Muitas talvez continuem vivas, porém agonizando neste exato momento, enquanto estamos aqui, segurando nossos drinques. Algumas ainda nem sabem ler. A maioria dos meninos jamais poderá dar um beijo apaixonado em uma garota. Exatamente agora, enquanto estamos aqui com nossos drinques na mão. Eles mataram as crianças!

Gardener olhou para a esposa de Ted, e então sua voz começou a tremer e elevar-se ligeiramente, como que em uma súplica.

— Nós ficamos sabendo com Hiroxima e Nagazaki, com os testes que fizemos em Trinity e Bikini. Eles mataram as próprias crianças, dá para entender o que digo? Em Pripyat há crianças de nove anos que vão morrer evacuando os intestinos! Eles mataram as crianças!

A esposa de Ted recuou um passo, os olhos arregalados atrás das lentes dos óculos, a boca torcida.

— Penso que todos concordamos, quanto ao Sr. Gardener ser um excelente poeta — disse Ted, o Homem Energia, passando um braço em torno da esposa e tornando a puxá-la para junto de si. Era como ver um vaqueiro laçando um bezerro. — Entretanto, ele não está bem informado sobre a energia nuclear. Em realidade, não fazemos idéia do que pode ou não ter acontecido em Kyshtym, e os números russos sobre as mortes em Chernobyl são...

— Corta essa! — exclamou Gardener. — Você sabe perfeitamente do que estou falando. A Bay State Electric tem todos estes dados em seus arquivos, juntamente com as elevadas taxas de câncer nas áreas circunvizinhas às instalações americanas de energia nuclear — a água contaminada pelo lixo nuclear, a água em profundos depósitos, a água com que as pessoas lavam as roupas, os pratos e elas próprias, a água que bebem. Você sabe. Você e qualquer outra companhia de energia na América, seja ela privada, municipal, estadual ou federal.

— Pare com isso, Gardener! — avisou McCardle, avançando um passo. Dirigiu um sorriso ultrabrilhante aos que estavam em redor. — Ele é um pouco...

— Ted, você sabia? — perguntou subitamente a esposa de Ted.

— Claro, tenho algumas estatísticas, mas...

Ele se interrompeu. O queixo bateu com tanta força ao fechar a boca, que quase se poderia ouvir. Não era grande coisa... mas fora o suficiente. De súbito, todos souberam — todos eles — que aquele homem omitira uma boa dose da escritura em seu sermão. Gardener experimentou um momento de amargo, inesperado triunfo.

Houve um instante de embaraçoso silêncio e então, de maneira visivelmente deliberada, a esposa de Ted afastou-se dele. Ted ficou vermelho. A Gard, pareceu um homem que tivesse acabado de dar uma martelada no polegar.

— Oh, nós temos todos os tipos de relatórios — disse ele. — Em sua maioria, não passam de um monte de mentiras — propaganda russa. Pessoas como este idiota ficam eufóricas quando engolem a isca, com anzol e tudo. Pelo que sabemos, Chernobyl talvez nem tenha sido um acidente, em absoluto, mas um esforço para impedir que nós...

— Céus, daqui a pouco, você nos estará dizendo que a terra é chata — disse Gardener. — Você viu as fotos dos caras do Exército, vestindo trajes contra a radiação e caminhando em torno de uma usina nuclear, a meia hora de carro de Harrisburg? Sabe como eles tentaram tamponear um dos vazamentos por lá? Enfiaram uma bola de basquete, envolta em fita isolante, mas então a pressão cuspiu a bola para fora e fez um buraco bem atrás da parede de contenção.

— Você sabe como soltar uma boa arenga de propaganda — disse Ted, sorrindo levemente. — Os russos adoram gente como você! Eles lhe pagam ou você faz isso de graça?

— Quem é que agora soa como um lunático de aeroporto? — perguntou Gardener, rindo um pouco. Deu um passo para mais perto de Ted. — Os reatores nucleares são mais bem estruturados do que Jane Fonda, certo?

— Que eu saiba, sim, no que se refira ao tamanho!

— Por favor! — pediu a esposa do deão, angustiada. — Vamos discutir, mas sem gritar, por favor! Afinal de contas, somos todos gente de universidade...

— É melhor que alguém comece a dar berros sobre isto! — bradou Gardener. Ela se encolheu, pestanejando, enquanto seu marido fitava Gardener com olhos que brilhavam como pedacinhos de gelo. Fitava-o como se o estivesse marcando para sempre. E Gard supôs que fosse isso mesmo.

—Você gritaria, se sua casa estivesse pegando fogo e fosse a única pessoa da família a acordar no meio da noite, e perceber o que estava acontecendo? Ou apenas sairia andando na ponta dos pés e sussurrando, porque é uma pessoa de universidade?

— Eu acho que isto já foi longe de...

Gardener ignorou-a, virou-se para o Sr. Bay State Electric e lhe piscou um olho confidencialmente.

— Diga-me uma coisa, Ted, a que distância fica a sua casa dessa nova e formidável instalação que vocês estão construindo?

— Não tenho que ficar aqui e...

— Não deve ser perto demais, hein? Exatamente como imaginei...

Gardener olhou para a Sra. Ted. Ela se esquivou ao seu olhar, agarrou-se ao braço do marido. Gard pensou, O que será que ela vê, para esquivar-se desse jeito de mim? O que, exatamente?

A voz do comissário leitor de histórias em quadrinhos e escarafunchador de nariz, chocalhou em dolorosa resposta: Atirou em sua esposa, hein? Uma baita enrascada...

— Está pretendendo ter filhos? — perguntou suavemente a ela. — Se está, espero que, em seu benefício e no de seu marido, de fato morem a uma distância segura da usina... compreenda, eles vivem dando mancadas. Como aconteceu em Three-Mile Island. Faltando pouco para acionarem a sucção, alguém descobriu que tinham ligado um tanque de 3.000 galões de lixo radioativo líquido nos bebedouros, em vez de aos canos de escoamento. De fato, descobriram o engano cerca de uma semana antes do lugar entrar em funcionamento. O que acha disto?

Ela chorava.

Ela chorava, mas ele não conseguia parar.

— Os caras que investigaram a coisa puseram em seu relatório que a ligação de canos para dejetos de resfriamento radioativo àqueles que alimentam bebedouros era “uma prática geralmente desaconselhada”. Se seu maridinho, aqui presente, convidá-la a uma excursão pela usina, eu lhe diria o mesmo que dizem para a gente fazer no México: não beba a água. E se seu maridinho a convidar depois que estiver grávida — ou até mesmo depois de achar que possa estar — diga a ele... — Gardener sorriu, primeiro para ela, depois para Ted. — Diga a ele que está com dor de cabeça — finalizou.

— Cale essa boca! — exclamou Ted.

A esposa dele começara a soluçar.

— Já basta! — disse Arberg. — Francamente, acho que já é hora de se calar, Sr. Gardener!

Gardener olhou para eles, e depois para os demais presentes que fitavam o quadro-vivo junto à mesa do bufê, de olhos arregalados e silenciosos, o jovem barman entre eles.

— Calar-me? — gritou Gardener. A dor enviou uma cintilante ferroada ao lado esquerdo de sua cabeça. — Oh, sim! Calar-me e deixar a maldita casa pegar fogo! Podem apostar que estes miseráveis donos de favelas estarão por perto, para mais tarde recolherem o seguro contra incêndio, depois que as cinzas esfriarem e for peneirado o que restar dos corpos! Eis o que querem todos esses sujeitos — que nos calemos! E se nós não nos calarmos por vontade própria, talvez sejamos calados, como Karen Silkwood...

— Pare, Gardener! — sibilou Patricia McCardle.

Não havia sibilantes nas palavras que disse, impossibilitando-a de sibilar — mas ela sibilou assim mesmo. Gardener inclinou-se para a esposa de Ted, cujas faces pálidas estavam agora molhadas de lágrimas.

— Você também poderá examinar as taxas de SMI — síndrome de morte de infantes, quero dizer. A proporção sobe alto, nas áreas das usinas. Defeitos de nascimento, como a Síndrome de Down — mongolismo, em outras palavras — e cegueira, e...

— Quero que saia da minha casa! — disse Arberg.

— Você está com batatas fritas no queixo — disse Gardener, e se virou para o Sr e Sra. Bay State Electric.

Sua voz vinha de cada vez mais fundo dentro dele. Era como ouvir uma voz brotando de um poço. Tudo atingia um ponto crítico. Linhas vermelhas surgiam por toda a parte superior do painel de controle.

— O nosso Ted, aqui, pode mentir sobre o quanto tudo isto foi exagerado, apenas uma pequena fogueira e muito combustível para as manchetes. Vocês todos, até talvez acreditem nele... mas o fato é que o ocorrido na usina nuclear de Chernobyl liberou mais dejetos radioativos na atmosfera deste planeta do que todas as bombas A disparadas acima do solo, desde Trinity.

— Chernobyl é coisa quente.

— E vai continuar assim por muito tempo. Quanto? Ninguém sabe ao certo, não é, Ted?

Apontou o copo para Ted e então passou os olhos pelos que o ouviam falar, todos agora calados e fitando-o, muitos parecendo tão consternados como a Sra. Ted.

— Pois tudo vai acontecer novamente. Talvez no estado de Washington. Eles estavam armazenando bastões de núcleos em valas sem isolamento, nos reatores de Hanford, exatamente como fizeram em Kyshtym. Na Califórnia, da próxima vez que houver um grande terremoto? Na França? Polônia? Talvez aqui mesmo, em Massachusetts, se o amigo aqui presente levar a melhor e a usina de Iroquois entrar em funcionamento na primavera. Basta que um cara aperte o botão errado na hora errada, e o próximo jogo dos Red Fox em Fenway, será por volta de 2075.

Patricia McCardle estava lívida como uma vela de cera... exceto pelos olhos, cuspindo fagulhas azuis que pareciam recém-escapadas de um aparelho de soldar. Arberg seguira o caminho oposto: estava vermelho e tão escuro como os tijolos de sua requintada e velha casa ancestral, em Back Bay. A Sra. Ted olhava de Gardener para o marido e do marido para Gardener, como se eles fossem dois cães que pudessem morder. Ted notou aquele olhar; sentiu que ela procurava fugir de seu braço, que a enlaçava e aprisionava. Gardener supôs que a reação dela ao que ele estivera dizendo é que provocara a escalação final. Sem dúvida, Ted fora instruído sobre como manejar histéricos da qualidade de Gardener; a companhia ensinava a seus Teds o que fazer, tão rotineiramente como as linhas aéreas ensinavam suas aeromoças a demonstrar o sistema de emergência de oxigênio nos jatos em que voavam.

Contudo, era tarde. A preleção bêbada, mas eloqüente de Gardener, havia explodido como um bolsão de temporal... e agora a mulher de Ted agia como se o marido fosse o Carniceiro de Riga.

— Céus, estou farto de caras como você e de sua afetação! Todos o vimos esta noite, lendo seus poemas incoerentes em um microfone que funciona com eletricidade, tendo sua voz roufenha amplificada por alto-falantes que funcionam com eletricidade, usando iluminação elétrica para enxergar... de onde é que vocês, reacionários, pensam que vem essa energia? Do Mago do Oz? Meu Deus!

— Já é tarde — disse McCardle, apressadamente — e todos nós...

— Leucemia — disse Gardener, falando diretamente e com amedrontador ar confiante para a esposa de Ted, que o fitava de olhos esbugalhados. — As crianças. As crianças são sempre as primeiras vítimas, após um vazamento radioativo. Há uma boa coisa nisto: se perdermos a Iroquois, a ocorrência manterá ocupados os fundos de socorro à infância.

— Ted? — gaguejou ela. — Ele está enganado, não está? Quero dizer...

Ela remexia na bolsa, em busca de um lenço de tecido ou de papel, mas acabou deixando-o cair. Houve um som de algo frágil se quebrando no interior.

— Pare! — disse Ted para Gardener. — Falaremos a respeito, se quiser, mas pare de perturbar minha esposa deliberadamente!

— Eu quero que ela fique perturbada — replicou Gardener. Estava agora inteiramente cercado pela escuridão. Pertencia a ela — como ela pertencia a ele e tudo estava formidável. — Parece haver muita coisa que sua esposa ignora. Coisas que devia saber. Considerando-se com quem está casada.

Gardener voltou para ela seu belo e alucinado sorriso. A mulher o encarou, agora sem encolher-se, hipnotizada como uma corça, diante de dois faróis aproximando-se.

— Bem, falemos de bastões de núcleos usados. Sabe para onde vão, quando não têm mais utilidade para a pilha — o reator nuclear? Ele lhe contou que a Fada dos Bastões de Núcleos os leva? Não é verdade. Os sujeitos da energia nuclear são como esquilos, gostam de estocá-los. Existem montanhas de perigosas pilhas de bastões de núcleo aqui, ali e acolá, depositados em asquerosas piscinas de águas rasas. São realmente perigosos, senhora! E vão continuar assim por muito tempo ainda!

— Quero que vá embora, Gardener! — repetiu Arberg.

Ignorando-o, Gardener prosseguiu, falando para a Sra. Ted e para ela apenas:

— Eles já andam esquecendo a localização de algumas dessas piscinas de bastões usados, sabia? Como crianças pequenas, que brincam o dia inteiro, vão para cama cansadas e acordam no dia seguinte sem lembrar aonde deixaram seus brinquedos. Então, temos o material que simplesmente se evapora. Haverá um Bombardeiro Louco final. Já desapareceu plutônio suficiente para explodir a costa leste dos Estados Unidos. No entanto, eu preciso ter um microfone para ler nele meus poemas incoerentes. Oh, Deus, eu devia ter levantado a v...

Arberg o agarrou subitamente. O homem era gordo e flácido, mas tinha bastante força. A camisa de Gardener escapou das calças. O copo escapou-lhe dos dedos e estilhaçou-se no chão. Em voz trovejante, autoritária — uma voz que talvez somente poderia ser produzida por um indignado professor que havia passado muitos anos em salas de conferências, Arberg anunciou a todos os presentes:

— Vou expulsar este cretino!

Sua declaração foi acolhida por um aplauso espontâneo. Nem todos ali aplaudiram — talvez nem mesmo metade. Entretanto, a esposa do Homem da Energia agora chorava francamente, apertava-se contra o marido, não mais tentando afastar-se; até Arberg agarrá-lo, Gardener agigantava-se acima dela, parecia ameaçá-la.

Gardener sentiu seus pés deslizarem no chão e depois perderem o contato inteiramente. Viu Patricia McCardle de relance, os lábios comprimidos, os olhos faiscando, as mãos aplaudindo, na furiosa aprovação que se recusara a conceder anteriormente a ele. Viu também Ron Cummings, parado à porta da biblioteca, tendo na mão um drinque monstruoso, o braço enlaçando uma bela garota loura e a mão firmemente pressionada contra o lado do seio dela. Cummings parecia preocupado, mas não exatamente surpreso. Afinal de contas, era apenas a discussão do Bar e Restaurante “Stone Country” que prosseguia em outra noite, certo?

Vai permitir que esse inchado saco de bosta o ponha para fora, como um gato de beco?

Gardener decidiu que não ia.

Moveu o braço esquerdo para trás, com quanta força teve. Acertou o peito de Arberg. Gardener pensou que seria a mesma sensação de enfiar o cotovelo em uma terrina cheia de gelatina muito firme.

Arberg soltou um grito estrangulado e o soltou. Gardener se virou, as mãos crispadas em punhos, pronto para esmurrar o dono da casa, se este tentasse agarrá-lo novamente, se até mesmo o tocasse. Esperava que Arglebargle quisesse lutar.

Entretanto, o balofo filho da mãe não mostrava sinais de querer lutar. Aliás, perdera por completo o interesse em expulsar Gardener. Estava aferrando o peito, como um ator canastrão preparando-se para cantar mal uma ária. A maioria da coloração-tijolo desaparecera de seu rosto, embora em cada face surgissem estrias avermelhadas. Os lábios grossos de Arberg flexionaram-se em um O; afrouxaram-se; flexionaram-se em O novamente; tornaram a afrouxar-se.

—  ...coração... — gemeu ele.

— Que coração — perguntou Gardener. — Está querendo dizer que tem um?

— ...ataque... — gaguejou Arberg.

— Ataque do coração uma ova! — exclamou Gardener. — A única coisa sendo atacada é o seu senso de decoro. E você bem merece, seu filho da puta!

Passou rente a Arberg, ainda petrificado naquela pose de prestes a cantar, as duas mãos aferradas ao lado esquerdo do peito, onde Gardener fincara o cotovelo. A porta entre a sala de refeições e o corredor estava entupida de gente, mas todos recuaram às pressas, quando Gardener aproximou-se e passou por eles, em direção à porta da frente.

Atrás dele, uma mulher gritou:

— Vá embora, ouviu? Vá embora, seu bastardo! Vá embora daqui! Nunca mais quero tornar a vê-lo!

Aquela vozinha histérica e esganiçada era tão diferente do costumeiro e distinto ronronar de Patricia McCardle (garras de aço escondidas em algum lugar; dentro de coxins de veludo), que Gardener parou. Deu meia volta... e foi sacudido por uma bofetada de arrancar água dos olhos. O rosto dela estava contorcido pela raiva.

— Eu devia saber! — ofegou. — Você não passa de um beberrão inútil —um ser humano nojento, obsessivo, fanfarrão e baderneiro! Oh, mas eu ajusto contas com você! Farei isso! Você sabe que posso!

— Ora, Patty, eu não sabia que se preocupava comigo — disse ele. — Quanta gentileza! Há anos espero que ajuste contas comigo. Devemos ir lá para cima ou presentear todo mundo com um ato no tapete?

Ron Cummings chegara mais perto do local da ação e riu. Patricia McCardle mostrou os dentes. Sua mão se moveu de novo, agora acertando a orelha de Gardener.

Ela falou em voz baixa, mas perfeitamente audível a todos na sala:

— Eu não esperava nada melhor, de um homem que baleou a própria esposa!

Gardener olhou em torno, avistou Cummings e disse:

— Com sua licença...

Tirou o copo que Cummings tinha na mão. Em um só gesto, rápido e firme, enganchou dois dedos no corpete do vestidinho preto de Patricia — era elástico, cedeu facilmente — e despejou lá dentro o uísque do copo.

— Saúde, meu bem! — exclamou, e se virou para a porta.

Decidiu que, nas circunstâncias, aquele era o melhor ato de saída que poderia desempenhar. Arberg continuava imóvel, com os punhos aferrados ao peito, a boca flexionando-se em um O e tornando a relaxar.

— ...coração... — gemeu novamente para Gardener ou quem quer que o ouvisse.

Na outra sala, Patricia McCardle gritava esganiçadamente:

— Está tudo bem comigo! Não me toquem! Deixem-me em paz! Está tudo bem comigo!

— Ei, você!

Gardener se virou na direção da voz. O punho de Ted atingiu-o no alto de uma bochecha. Gardener saiu aos tropeções pela maior parte do comprimento do corredor, precisando amparar-se na parede para não perder o equilíbrio de todo. Chocou-se no porta-guarda-chuvas, derrubou-o e foi colidir contra a porta da frente, com força bastante para fazer estremecer o vidro da bandeira semicircular.

Ted caminhava para ele, corredor abaixo, como um pistoleiro.

— Minha esposa está no banheiro, tendo um ataque histérico por sua causa! Se não cair fora daqui imediatamente, vou surrá-lo até deixá-lo caído no chão!

A escuridão explodiu, como tripas em decomposição, repletas de gás.

Gardener apanhou um dos guarda-chuvas. Era comprido, bem fechado e negro — um guarda-chuva de lorde inglês, caso tenha havido um. Correu para Ted, em direção àquele sujeito que sabia exatamente quais eram os riscos, mas ia em frente assim mesmo, por que não? Faltavam sete prestações do Datsun Z e dezoito da casa, mas por que não? Ted, que via um aumento de seiscentos por cento na leucemia apenas como um fato que podia perturbar sua esposa. Ted, o bom e velho Ted, e era muita sorte para o bom e velho Ted, que no final do corredor houvesse apenas guarda-chuvas, em vez de rifles de caça.

Ted ficou olhando para Gardener, os olhos dilatados, o queixo caído. A expressão de desorbitada raiva deu lugar à incerteza e ao medo — o medo que surge ao decidirmos que estamos lidando com um ser irracional.

—Ei!...

— Caramba, seu puto! — gritou Gardener.

Agitou o guarda-chuva e então o espetou na barriga de Ted, o Homem Energia.

— Ei! — ofegou Ted, encolhendo-se. — Pare com isso!

— Andale, andale! — berrou Gardener, agora começando a bater em Ted com o guarda-chuva — em um lado e no outro, em um lado e no outro, em um lado e no outro.

O prendedor que mantinha o guarda-chuva seguro na empunhadura afrouxou-se e o tecido também ficou frouxo, embora ainda preso, esvoaçando em torno do cabo.

— Arriba, arriba!

Ted estava demasiado intranqüilo para pensar em renovar o ataque, para pensar em outra coisa que não fosse fugir. Deu meia volta e correu. Gardener perseguiu-o, dando gargalhadas casquinadas, batendo-lhe atrás da cabeça e na nuca com o guarda-chuva. Dava risadas... mas nada era engraçado. Sua cabeça comprimia-se e palpitava. Que vitória havia em levar a melhor em uma discussão com semelhante homem, mesmo temporariamente? Ou fazer sua esposa chorar? Ou bater nele com um guarda-chuva fechado? Alguma dessas coisas impediria que a usina nuclear de Iroquois fosse ativada, no próximo mês de maio? Alguma dessas coisas salvaria o que sobrara de sua própria vida miserável ou mataria aquelas tênias dentro dele, que continuavam cavando, mastigando e crescendo, comendo tudo que lhe restara de lúcido nas entranhas?

Não, claro que não. Por ora, no entanto, o insensato movimento para diante era tudo o que importava... porque era tudo que restara.

— Arriba, seu bastardo! — gritou, perseguindo Ted na sala de refeições.

Ted erguera as mãos à altura da cabeça e as agitava perto das orelhas; parecia um homem perseguido por morcegos — e o guarda-chuva realmente parecia um pequeno morcego, subindo e descendo no ar.

— Ajudem-me! — guinchou Ted. — Socorro, este homem enlouqueceu!

O quadril de Ted se chocou contra uma quina do bufê. A mesa oscilou para diante e para trás, havia talheres escorregando pelo plano inclinado da toalha amarfanhada, pratos que caíam e se quebravam no chão. A poncheira Waterford, de Arberg, detonou como uma bomba, e uma mulher gritou. A mesa vacilou por um instante e então tombou.

— Socorro? Socorro? Socoooorro!

— Andale! — gritou Gardener.

Deixou o guarda-chuva cair sobre a cabeça de Ted, em uma pancada particularmente rude. O fecho funcionou de repente e o guarda-chuva se abriu por completo, com um oco puuushhh! Agora, Gardener assemelhava-se a uma louca Mary Poppins, perseguindo Ted, o Homem Energia, com um guarda-chuva em uma das mãos. Mais tarde, ocorreu a ele que abrir um guarda-chuva dentro de casa dava má sorte, segundo se dizia.

Mãos o agarraram por trás.

Ele girou, esperando que Arberg se houvesse recuperado de seu inadequado ataque e estivesse de volta, para tornar a enfrentá-lo.

Não era Arberg. Era Ron. Ele ainda parecia calmo — porém em seu rosto havia algo, algo amedrontador. Seria piedade? Sim, Gardener viu que era isso mesmo.

De repente, ele não quis mais o guarda-chuva. Jogou-o a um lado. A sala de refeições ficou absolutamente silenciosa por um momento, com exceção do ofegar de Gardener e dos arquejos ásperos e soluçantes de Ted. A mesa derrubada do bufê jazia em um amontoado de toalha, pratos quebrados e vidros estilhaçados. O cheiro do rum derramado da poncheira subia no ar como um fog, ardendo nos olhos.

— Patricia Mccardle está no telefone, chamando os tiras — disse Ron, — e em se tratando de Back Bay, eles aparecem rapidamente. É melhor dar o fora daqui, Jim.

Olhando em torno, Gardener viu grupinhos de convidados amontoados junto às paredes e portas, fitando-o com aqueles olhos arregalados e medrosos. Amanhã, eles não se lembrarão mais se o tema era energia nuclear, William Carlos Williams ou quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete, pensou ele. Uma metade dirá para a outra que eu me engracei com a esposa dele. Simplesmente, esse bom e velho Jim Gardener, baleador de esposa e amante de diversão, ficou louco e surrou de rijo um cara com um guarda-chuva. Também despejou uma garrafa de Chivas nos peitinhos de uma mulher que lhe arranjou um emprego, quando ele não tinha nenhum. Energia nuclear? O que uma coisa tem a ver com a outra?

— Que enrascada filha da mãe — murmurou ele roucamente para Ron.

— Porra, eles vão ter assunto para anos — respondeu Ron. — A melhor leitura que já ouviram, seguida pela festa mais movimentada que já viram. Muito bem, andando, cara! Mova seu traseiro para o Maine. Eu ligo depois.

Ted, o Homem Energia, com olhos dilatados e lacrimosos, quis avançar para ele. Dois rapazes — um deles o barman — conseguiram segurá-lo.

— Adeus — disse Gardener para os grupinhos de convidados. — Obrigado a todos, por momentos tão agradáveis!

Caminhou até a porta e de lá se virou.

— E se esquecerem tudo o mais, pelo menos lembrem-se da leucemia e das crianças. Lembrem-se...

O que eles recordariam, no entanto, era de vê-lo espancando Ted com um guarda-chuva. Gardener pôde ver isso no rosto deles.

Assentindo com a cabeça, ele desceu o corredor, passando por Arberg que continuava de mãos aferradas ao peito, os lábios se abrindo e fechando. Gardener não olhou para trás. Chutou para um lado o amontoado de guarda-chuvas, abriu a porta e saiu para a noite. Queria um drinque, como jamais quisera algo na vida, e supôs que devia ter encontrado um, porque isso foi quando caiu dentro do ventre do enorme peixe e a escuridão o envolveu.


 

GARDENER SOBRE AS PEDRAS

Não muito depois do amanhecer do dia 4 de julho de 1988, Gardener acordou ou voltou a si — perto do final do quebra-mar de pedras que avança pelo Atlântico, não muito distante do Parque de Diversões Arcadia, em Arcadia Beach, New Hampshire. Não que, nesse momento, ele soubesse onde se encontrava. Mal sabia alguma coisa além do próprio nome, do fato de estar no que parecia uma total agonia física e do fato um tanto menos importante de que, aparentemente, quase se afogara durante a noite.

Jazia de lado, com os pés enfiados na água. Imaginou que estivera sozinho ao valsar até ali na véspera, e parecia ter rolado durante o sono, deslizando por parte do inclinado lado norte do quebra-mar... e agora a maré estava subindo. Se acordasse meia hora mais tarde, deduziu que poderia perfeitamente ter boiado para fora das pedras do quebra-mar, assim como um navio encalhado pode flutuar e afastar-se de um banco de areia.

Um dos mocassins continuava no pé, mas agora enrugado e inútil. Gardener livrou-se dele e ficou olhando apaticamente, vendo-o flutuar e depois descer para esverdeadas profundezas. Alguma coisa para as lagostas encherem de merda, pensou, e sentou-se.

A pontada de dor que lhe varou a cabeça foi tão intensa que, por um momento, ele se julgou estar tendo um ataque cardíaco; que sobrevivera àquela noite no quebra-mar; apenas para morrer de embolia pela manhã.

A dor diminuiu um pouco e o mundo retornou da névoa cinzenta para onde recuara. Ele foi capaz de considerar o quanto era miserável. Seria o que Bobbi Anderson sem dúvida denominaria “a viagem integral do corpo” — Aprecie a viagem integral do corpo, fim. O que pode ser melhor do que a maneira como se sente, após uma noite no olho do ciclone?

Uma noite? Certa noite?

Não adianta, meu bem. Isto tinha sido um legítimo porre. Um verdadeiro e desgraçado porre

Seu estômago estava azedo e inchado. Sua garganta e sinus estavam entupidos de vômito antigo. Gardener olhou para a esquerda e, sem a menor dúvida, lá estava, um pouco acima dele, o que devia ter sido sua posição original, a assinatura do bêbado — uma grande, enorme poça de vômito ressequido

Céus, seu corpo doía de alto a baixo...

Gardener passou uma trêmula e suja mão direita abaixo do nariz, e viu coágulos de sangue seco. Tivera uma hemorragia nasal. Elas aconteciam de vez em quando, desde o acidente de esqui em Sunday River, quando estava com dezessete anos. Pelas hemorragias, quase podia contar as vezes em que estivera bebendo.

No final de todos os seus porres anteriores — e esta era a primeira vez que tivera uma orgia de bebedeira, em quase três anos — Gardener sentira o que sentia agora: uma náusea mais forte do que a cabeça latejante, o estômago embrulhado, parecendo uma esponja viva e encharcada de ácido, as dores, os músculos trêmulos. Aquela náusea intensa nem mesmo podia ser considerada depressão — era uma sensação de perdição absoluta.

Isto de agora era pior, ainda pior do que a depressão em seguida à Famosa Bebedeira do Dia de Ação de Graças de 1980, aquela que havia encerrado sua carreira de professor e seu casamento. Daquela vez, também estivera a ponto de encerrar a vida de Nora. E ele acabara na cadeia do condado, em Penobscot. Um comissário de polícia sentava-se do lado de fora de sua cela, lendo um exemplar da revista Crazy e esgaravatando o nariz. Mais tarde, Gardener ficou sabendo que todos os departamentos de polícia estavam a par de que bêbados contumazes freqüentemente despertavam do porre profundamente deprimidos. Assim, quando havia um homem disponível, ele ficava de olho no bêbado, apenas para certificar-se de que o sujeito não faria alguma besteira... pelo menos, até que fosse liberado e abandonasse a propriedade do condado.

— Onde estou? — perguntou Gardener, ao abrir os olhos.

— Onde pensa que está? — respondeu o comissário.

Enquanto falava, o homem olhou para a enorme meleca verde que acabara de extrair do nariz, transferiu-a para a sola do sapato, devagar e com aparente satisfação, em seguida esmagando-a ao longo do piso sujo do lugar. Gardener fora incapaz de afastar os olhos daquela operação; um ano mais tarde, escreveria um poema a respeito.

— O que foi que eu fiz?

Exceto por vislumbres ocasionais, os dois dias anteriores tinham sido absolutamente negros. Eram vislumbres dispersos, como punhados de nuvens que deixam passar salpicos de claridade solar, enquanto uma tempestade se aproxima. Ele havia levado um xícara de chá para Nora, e então começara a encher-lhe a paciência com os reatores. Oh, sim, os reatores nucleares. Viva os eternos reatores! Quando ele morresse, suas palavras finais sobre toda aquela fodida confusão não seriam Vão tomar no rabo, mas reatores. Recordava ter caído na entrada para carros, ao lado de sua casa. Carregava uma pizza e, estando tão bêbado, enormes filetes de queijo escorriam para dentro de sua camisa, queimando-lhe o peito. Também recordava que ligara para Bobbi. Tinha ligado e balbuciado algo para ela, alguma coisa terrível — e Nora estivera gritando? Gritando?

— O que foi que eu fiz? — perguntou, com mais ânsia.

O comissário encarou-o por um momento, com o mais perfeito desdém no olhar.

— Baleou sua esposa. Aí está o que fez. Uma baita enrascada, eh?

O comissário retornara à leitura de sua revista Crazy.

Aquilo havia sido ruim; isto agora era pior. Essa sensação vaga de desprezo por si mesmo, a pavorosa certeza de que você fez coisas ruins das quais não se lembra. Nada de alguns copos a mais de champanha na véspera do Ano-Novo, quando você coloca uma cúpula de abajur na cabeça e perambula pela sala com ela lhe caindo sobre os olhos, enquanto todos os presentes (com exceção de sua esposa) acham que jamais viram coisa tão divertida em suas vidas. Não saber que você fez coisas divertidas, como esmurrar chefes de departamentos de ensino. Ou balear sua esposa.

Desta vez havia sido pior.

Como era possível ser pior do que com Nora?

Alguma coisa. Durante alguns momentos, sua cabeça doeu demais, para pelo menos tentar reconstituir o último período de tempo ignorado.

Gardener baixou os olhos para a água, as ondas avolumando-se uniformemente na direção de onde se sentava, os antebraços sobre os joelhos, a cabeça pendida. Quando as ondas recuaram, ele viu crustáceos e esverdeadas algas melosas. Não... não eram algas realmente. Limo verde. Como melecas encatarradas.

Baleou sua esposa... uma baita enrascada, eh?

Gardener fechou os olhos contra os nauseantes latejamentos de dor, depois tornou a abri-los.

Pule, uma voz o engambelou docemente. Quero dizer, porra, você não vai mesmo precisar mais desta merda, vai? O jogo foi suspenso. Informalmente. Adiado pela chuva. Para ser reprogramado quando a Grande Roda do Carma girar para a próxima vida... ou a vida depois dessa, caso eu tenha que expiar essa próxima, sendo cocô de inseto ou coisa assim. Pendure as chuteiras, Gard. Pule. Em seu atual estado, suas duas pernas logo ficarão com cãibras e tudo terminará rapidamente. Seja como for, acabará ganhando um lençol em uma cela de cadeia. Vamos, salte!

Ele se levantou e ficou cambaleando em cima das pedras, olhando para a água. Apenas um grande passo, não precisaria mais nada. Ele poderia ter feito isto enquanto dormia. Merda, quase fizera!

Ainda não! Quero primeiro falar com Bobbi!

A parte de sua mente que continuava com uma leve vontade de viver, agarrou-se à idéia. Bobbi. Bobbi era a única parte de sua vida antiga que, de certo modo, persistia sendo íntegra e boa. Bobbi, que morava em Haven, escrevendo seus faroestes, que ainda era lúcida, ainda sua amiga, se não sua amante. O último amigo no mundo.

Quero primeiro falar com Bobbi, certo?

Por quê? Para ter uma última chance de enrascá-la também? Deus é testemunha do quanto você tentou. Por sua causa, ela agora tem uma ficha na polícia e, sem dúvida, também uma pasta no FBI. Deixe Bobbi fora disto, cara. Pule e deixe de armar confusões!

Ele oscilou para diante, quase obedecendo. Sua parte que ainda queria viver parecia não ter mais argumentos, nenhuma tática de protelação. Essa parte poderia alegar que ele permanecera sóbrio — mais ou menos — durante os últimos três anos, que não houvera amnésias, desde que fora preso com Bobbi em Seabrook, em 1985. Entretanto, tratava-se de um argumento vazio. Com exceção de Bobbi, Gardener agora estava completa-mente só. Sua cabeça era um torvelinho quase o tempo todo, a mente sempre e sempre insistindo — mesmo quando sóbrio — no tema dos reatores nucleares. Ele reconhecia que sua preocupação e raiva originais se tinham corrompido para obsessão... mas reconhecimento e reabilitação não eram a mesma coisa, de maneira alguma. Sua poesia deteriorara. Sua mente deteriorara. Pior do que tudo, quando não estava bebendo, ele desejava que estivesse. Acontece apenas, que a dor agora é o tempo todo. Sou como uma bomba, andando por aí e procurando um lugar para explodir. Chegou o momento de puxar o pino.

Tudo bem, então. Tudo bem. Ele fechou os olhos e preparou-se.

Ao fazer isso, uma singular certeza o dominou, uma intuição tão forte, que era quase precognição. Gardener sentiu que Bobbi precisava falar com ele, não o contrário. E isso não era nenhum truque de sua mente. Ela estava, de fato, em alguma espécie de enrascada. Séria enrascada.

Abrindo os olhos, ele olhou em torno, como um homem despertado de profundo transe. Encontraria um telefone e ligaria para ela. Não iria dizer-lhe “Ei, Bobbi, tive outro blackout” e tampouco diria “Não sei onde estou, Bobbi, mas desta vez nenhum comissário escarafunchador de nariz irá fazer-me parar.” Ele diria “Ei, Bobbi, como vai?” e quando ela respondesse que estava bem, que nunca estivera melhor, envolvida em um tiroteio com o bando de James em Northfield ou fugindo para os territórios em companhia de Butch Cassidy e do Sundance Kid — e por falar nisto, como está o seu péssimo eu? — Gard responderia que estava ótimo, escrevendo algum bom trabalho para variar, pensando em ir até Vermont por algum tempo, ver alguns amigos. Então, retornaria ao final do quebra-mar e pularia. Nada de floreios; apenas cairia de barriga, na zona além da imaginação. Isso parecia adequado; afinal de contas, era a maneira como atravessara a maioria da zona da realidade. O oceano permanecia ali desde um bilhão de anos ou coisa assim. Podia esperar mais cinco minutos, enquanto ele dava o telefonema.

Certo, mas nada de encher a paciência dela, ouviu bem? Prometa, Gard. Não vá amolecer e debulhar-se em lamúrias. Supõe-se que seja amigo de Bobbi não o equivalente masculino daquele balde de lodo que é a irmã dela. Não faça uma cagada dessas!

Deus sabia que ele já faltara a promessas em sua vida — alguns milhares delas, em relação a si mesmo. Esta, no entanto, iria manter.

Subiu desajeitadamente até o alto do quebra-mar. Era acidentado e rochoso, o lugar ideal para quebrar o tornozelo. Olhou em torno apalermadamente, procurando sua mala-mochila marrom, a que sempre carregava, ao viajar para fazer suas leituras ou quando apenas perambulava. Pensou que poderia estar enganchada em algum vão entre as pedras ou talvez caída por ali, em qualquer lugar. Não estava. Ela era uma antiga companheira de campanhas, coçada e velha, recuando aos últimos e perturbados anos de seu casamento, um objeto que conseguira reter, enquanto todas as coisas valiosas se perdiam. Bem, sua mala-mochila agora finalmente se fora também. E tudo o que continha: roupas, escova de dentes, um sabonete em uma saboneteira de plástico, um punhado de espetos para carne defumada (às vezes, Bobbi gostava de defumar carne em seu galpão), uma nota de vinte dólares, escondida sob o fundo da mochila... e todos os seus poemas não publicados, naturalmente.

Os poemas eram a última de suas preocupações. Aqueles escritos nos dois últimos anos e aos quais dera o admiravelmente sagaz e apropriado título de ¨DO Ciclo da Radiação¡¬, tinham sido apresentados a cinco editores diferentes e rejeitados por todos os cinco. Um editor anônimo garatujara:

“Poesia e política raramente se misturam; poesia e propaganda, jamais.” Esta pequena homilia era absolutamente verdadeira, ele sabia... e mesmo assim, fora incapaz de parar.

Bem, a maré conferira a eles o Lápis Vermelho Final. Vai e faze o mesmo a ti, pensou ele, e caminhou ao longo do quebra-mar, arrastada e lentamente em direção à praia, refletindo que sua caminhada para o lugar em que despertara devia ter sido melhor do que um ato circense de desafio à morte. Caminhou, com o sol do verão subindo vermelho e inchado do Atlântico às suas costas, tendo pela frente sua sombra alongada. Na praia, um menino de jeans e camiseta fez explodir uma fieira de bombinhas.

 

Um milagre: sua mala-mochila não se perdera, afinal. Jazia emborcada na praia, pouco acima do limite da maré alta, o zíper aberto, parecendo a Gardener uma enorme boca de couro mordendo a areia. Ele a recolheu e espiou no interior. Tudo se fora. Até mesmo sua surrada roupa de baixo. Ergueu o fundo em imitação de couro da mochila. Os vinte também haviam ido embora. Doce esperança, tão prontamente desfeita.

Gardener largou a mochila. Seus cadernos de notas, todos os três estavam um pouco além. Um repousava sobre as duas capas, arqueadas em forma de tenda outro jazia encharcado logo abaixo do limite da maré alta, inchado de umidade e mais parecendo um catálogo telefônico e o terceiro tinha as folhas viradas preguiçosamente pelo vento. Não se chateie, pensou. Não valiam merda nenhuma.

O menino com as bombinhas caminhou para ele... mas sem chegar muito perto. Quer ser capaz de dar o fora rapidamente, se eu me mostrar tão louco como devo estar parecendo, pensou Gardener. Garoto esperto...

— Isso é seu? — perguntou o menino.

A camiseta dele mostrava um sujeito explodindo seus mantimentos. VITIMA DO ALMOÇO ESCOLAR, dizia o dístico.

— Sim, é — respondeu Gardener.

Abaixando-se, ele recolheu o inchado caderno de notas, examinou-o por um momento e tornou a largá-lo. O garoto entregou-lhe os outros dois. O que ele poderia dizer? Não se incomode, garoto? Os poemas são uma porcaria, garoto? Poesia e política raramente se misturam, garoto, poesia e propaganda jamais?

— Obrigado — disse apenas.

— Tudo bem. — O menino segurou a mala-mochila, a fim de que Gardener deixasse cair dentro dela os dois cadernos de notas secos. — É incrível que tenha encontrado alguma coisa. Este lugar fica cheio de ladrões no verão. Por causa do parque, acho eu.

O menino apontou com o polegar, e Gardener avistou a montanha que se delineava contra o céu. O primeiro pensamento de Gard foi de que precisaria, de algum modo, fazer todo o trajeto para o norte até Old Orchard Beach, antes de desmoronar. Um segundo olhar modificou sua idéia. Não havia píer.

— Onde estou? — perguntou.

Sua mente recuou, com sobrenatural totalidade, à cela na cadeia e ao comissário limpando o nariz. Por um instante, teve a certeza de que o menino perguntaria: Onde pensa que está?

— Em Arcadia Beach. — O menino mostrava uma expressão entre divertida e desdenhosa. — Acho que esteve um bocado alto na noite passada, senhor.

— Na noite passada e na noite anterior — cantarolou Gardener, com voz um tanto roufenha, um tanto esquisita. — Tommyknockers, Tommyknockers, batendo à porta.

O menino piscou para Gardener, surpreso... e então o deliciou, acrescentando inesperadamente uma parelha de versos que Gardener nunca tinha ouvido:

— “Quero sair, não sei se posso, porque tenho pavor do homem Tommyknocker.”

Gardener sorriu... mas o sorriso transformou-se em um pestanejar de nova dor.

— Onde foi que ouviu isso, garoto?

— De minha mãe. Quando eu era criancinha.

— Eu também ouvi de minha mãe sobre os Tommyknockers — disse Gardener, — mas nunca essa parte.

O menino deu de ombros, como se o assunto tivesse perdido qualquer interesse marginal que talvez possuíra para ele.

— Ela costumava inventar todo tipo de coisas. — Ele avaliou o homem à sua frente. — Está sentindo dores?

— Garoto — disse Gardener inclinando-se solenemente para diante, — nas mortais palavras de Ed Sanders e Tuli Kupferberg, eu me sinto como um monte de merda.

— Está parecendo que bebeu por muito tempo.

— É mesmo? Como é que sabe?

— Por causa da minha mãe. Com ela, sempre eram coisas engraçadas como os Tommyknockers, ou então estava bêbada demais para conversar.

— Ela desistiu?

— Acabou. Acidente de carro — disse o menino.

Gardener foi repentinamente tomado de estremecimentos. O menino parecia não perceber; estudava o céu, seguindo a rota de uma gaivota. Ela cruzava um céu matinal, de um azul delicadamente forrado com escamas de cavalinha, ficando negra por um instante, quando voou diante do olho vermelho do sol que nascia. Pousou no quebra-mar, onde começou a bicar algo que gaivotas certamente achavam saboroso.

Gardener olhou da gaivota para o menino, sentindo-se desconcertado e estranho. Tudo aquilo estava, decididamente, assumindo tons agourentos. O menino estava a par dos lendários Tommyknockers. Quantos meninos no mundo sabiam sobre eles e quais as probabilidades de Gardener encontrar um que (a) soubesse sobre eles e (b) que tivesse perdido a mãe por causa da bebida?

Enfiando a mão no bolso, o menino tirou um pequeno emaranhado de bombinhas. O doce pássaro da juventude, pensou Gard, e sorriu.

— Quer soltar umas duas? Comemorar o Quatro de julho? Talvez ficasse mais alegre.

— Quatro de julho? Hoje é quatro de julho?

O menino ofereceu-lhe um sorriso seco.

— Não é o Dia da Árvore.

Vinte e seis de junho tinha sido... Gardener contou para trás. Santo Deus! Estava com oito dias pintados de negro. Bem... nem tanto. Isso até que seria melhor. Retalhos de luz, de maneira alguma bem-vindos, começavam a iluminar partes daquele negror. A idéia de que ferira alguém — novamente — surgiu em sua mente como uma certeza. Ele queria saber quem tinha sido

(arglebargle)

essa pessoa. E o que fizera — a ele ou a ela? Provavelmente fosse melhor não saber. O melhor era telefonar para Bobbi e acabar consigo mesmo, antes de recordar tudo.

— Como foi que arranjou essa cicatriz na testa, senhor?

— Colidi em uma árvore, quando esquiava.

— Deve ter doído um bocado.

— Sim, foi ainda pior do que isso, mas não muito. Sabe onde há um telefone público?

O menino apontou para um extravagante teto verde de presbitério, situado a talvez um quilômetro e meio, junto da praia. Erguia-se sobre um promontório granítico, que desmoronava e parecia a capa de uma novela gótica. Tinha que ser um balneário. Após um momento forçando a memória, Gard recordou o nome.

— É o Alhambra, não?

— Primeiro e único.

— Obrigado — disse ele, começando a andar.

— Senhor?

Gardener se virou.

— Não vai querer o último caderno? — o menino apontou para o caderno de notas molhado, que jazia na linha da maré alta. — Poderia tentar secá-lo.

Gardener abanou a cabeça.

— Garoto — disse ele. — Eu nem mesmo consigo secar-me...

— Tem certeza de que não quer soltar algumas bombinhas?

Gardener tornou a abanar a cabeça, sorrindo.

— Tome cuidado com elas, certo? As pessoas às vezes se machucam com coisas que explodem.

— Tá bem. — O menino sorriu, com certo acanhamento. — Minha mãe levou um tempão se machucando, antes de... o senhor sabe...

— Eu sei. Como é o seu nome?

— Jack. E o seu?

— Gard.

— Feliz Quatro de Julho, Gard.

— Feliz Quatro, Jack. E fique de olho nos Tommyknockers.

— Batendo à minha porta — acrescentou solenemente o menino, fitando Gardener com olhos que pareciam estranhamente conhecedores.

Por um momento, Gardener pareceu sentir uma segunda premonição (quem imaginaria que uma ressaca era tão conducente às emanações psíquicas do universo? perguntou em seu íntimo uma voz amargamente sarcástica). Ele não sabia exatamente qual era a premonição, porém ficou de novo ansioso em relação a Bobbi. Acenou para o menino e começou a caminhar. Seguiu pela praia em passos rápidos e firmes, embora a areia dificultasse a caminhada, aderindo aos pés, tolhendo-os. Logo seu coração disparava e a cabeça latejava tão forte, que até os olhos pareciam pulsar.

E sua impressão era de que o Alhambra não ficava mais tão próximo.

Diminua o passo ou terá um ataque do coração. Um infarto. Ou as duas coisas.

Caminhou mais devagar... mas então pensou no quanto isso era palpavelmente absurdo. Ali estava ele, planejando afogar-se dentro de quinze minutos mais ou menos, porém enquanto isso, preocupava-se com um ataque cardíaco. Era como a velha piada, sobre o condenado à morte que recusava o cigarro oferecido pelo chefe do pelotão de fuzilamento. “Estou tentando parar de fumar”, diz o sujeito.

Gardener recomeçou a andar depressa, e agora as pontadas de dor marcavam firmes batidas, como moedas retinindo ritmadamente:

 

Na noite passada e na noite anterior

Tommyknockers, Tommyknockers,

Batendo à porta.

Eu estava louco, Bobbi estava sã,

Porém Isso foi antes

De chegarem os Tommyknockers.

 

Ele parou de andar. Que merda é essa de Tommyknockers?

Em vez de uma resposta, ouviu aquela voz profunda, tão aterrorizante, mas também tão segura como o grasnido de um mergulhão, lamentando um lago vazio: Bobbi está em apuros.

Gardener começou de novo a caminhar, voltando ao passo lépido anterior... depois movendo-se ainda mais depressa. Quero sair, pensou. Não sei se posso, porque tenho pavor do homem Tommyknocker.

Estava subindo os degraus, embranquecidos pelo vento, que levavam da praia ao promontório de granito em que ficava o hotel, quando passou a mão debaixo do nariz e notou que ele sangrava novamente.

 

Gardener demorou exatamente onze segundos no saguão do Alhambra — tempo suficiente para o homem no balcão da portaria constatar que ele estava descalço. O homem fez um sinal de cabeça para um robusto empregado quando Gardener começou a protestar e, juntos, eles o expulsaram dali.

Teriam me posto para fora, mesmo que eu estivesse de sapatos, refletiu Gard. Merda, eu mesmo me poria para fora!

Tinha dado uma boa espiada em sua figura, no vidro da porta do saguão. Uma espiada até boa demais. Conseguira limpar a maioria do sangue no rosto com a manga, porém ainda havia traços. Seus olhos estavam injetados e arregalados. A barba de uma semana dava-lhe uma aparência de porco-espinho, umas seis semanas após ser tosquiado. Aos olhos do afetado mundo veranista do Alhambra, onde homens eram homens e mulheres usavam saiotes de tênis, ele parecia um mendigo catador de papéis.

Como por ali só estavam os mais madrugadores, o empregado robusto perdeu algum tempo comunicando-lhe que havia um telefone público no posto de gasolina da Mobil.

— Fica no cruzamento da US 1 e da Rota 26. Agora, caia fora daqui e vá para o inferno, antes que eu chame os tiras!

Se houvesse necessidade de ele saber mais sobre si mesmo do que já sabia, bastava ver os olhos desdenhosos do corpulento empregado.

Gardener desceu lentamente a colina, em direção ao posto. Suas meias adejavam e batiam no asfalto. Seu coração pulsava como um lamentoso motor de Modelo T, que já experimentara viagens demasiado acidentadas e insuficiente manutenção. Podia sentir a dor de cabeça movendo-se para a esquerda, onde eventualmente se centralizaria em brilhante ponta de alfinete... se ele pretendesse viver até lá, claro. Então, de repente, Gardener estava de novo com dezessete anos.

Tinha dezessete anos, e sua obsessão não eram reatores, mas sexo. O nome da garota era Annmarie. Gard achava que logo estaria levando a melhor com ela, desde que não perdesse as estribeiras. Se tivesse paciência. Talvez ainda essa noite. No entanto, uma parte de manter a linha era sair-se bem nesse dia. Nesse dia, bem ali — ali sendo Straight Arrow, uma pista intermediária de esqui na montanha Victory, em Vermont. Ele estava olhando para seus esquis, revisando mentalmente os passos necessários para a manobra básica de conseguir frear a descida, quando chegasse ao final, da mesma forma como revisava a matéria para uma prova no colégio, querendo ser aprovado, sabendo que ainda era bastante novato nisto, ao contrário de Annmarie. Não queria encerrar sua descida parecendo um boneco de neve, em seu primeiro dia nas pistas de principiantes, porque então ela talvez não topasse sua idéia. Não se importava de parecer um pouco inexperiente, desde que não parecesse um idiota completo e, por isso, tinha ficado olhando imbecilmente para os pés, em vez de vigiar para onde ia — e estava indo direto para um velho e encarquilhado pinheiro, com a tira vermelha de aviso pintada no tronco. Os únicos sons eram do vento em seus ouvidos e da neve deslizando secamente sob os esquis, e ambos tinham o mesmo som brando e mitigante: Shhhhh...

Foram os versos que irromperam em sua memória, fazendo-o parar perto do posto da Mobil. Os versos surgiram e ficaram, marcando compasso com seu coração e a cabeça latejante. Na noite passada e na noite anterior, Tommyknockers, Tommyknockers, batendo à porta.

Gard escarrou, sentiu o desagradável sabor de cobre do próprio sangue, e sua cusparada foi uma matéria sanguinolenta, na terra entulhada de lixo do acostamento. Recordou ter perguntado à mãe quem ou o que eram Tommyknockers. Não conseguiu lembrar o que ela respondera — se é que respondera alguma coisa — porém sabia que sempre os imaginara como assaltantes, ladrões que roubavam à claridade da lua, matavam na sombra e sepultavam na parte mais escura da noite. E não passara ele uma torturante e interminável meia hora na escuridão de seu quarto, antes que o sono finalmente decidisse ser misericordioso e reclamá-lo, pensando que eles poderiam ser canibais, além de ladrões? Que, em vez de enterrarem as vítimas, no escuro da noite, bem poderiam cozinhá-las e... hum...

Gardener cruzou os braços magros (parecia não haver restaurantes, no alto do ciclone) em torno do peito e estremeceu.

Cruzou para o posto da Mobil, que estava embandeirado, mas ainda fechado. Os avisos na fachada diziam SUPER SEM MISTURA. 89, DEUS ABENÇOE A AMÉRICA e NÓS AMAMOS BEBERRÕES! O telefone público ficava a um lado do prédio. Gardener alegrou-se ao constatar que era um dos modernos, permitindo ligações interurbanas sem depositar qualquer dinheiro. Pelo menos, isto lhe poupava a indignidade de gastar parte de sua última manhã na terra pedindo dinheiro a estranhos.

Apertou o zero, depois teve que parar. Sua mão tremia loucamente, era difícil firmá-la. Enganchou o fone entre a cabeça e o ombro, deixando livres as duas mãos. Depois aferrou o pulso direito com a mão esquerda, a fim de mantê-lo firme... o mais firme possível, afinal. Então, mirando como um atirador diante de um alvo, usou o indicador para pressionar as teclas, com lenta e horrível deliberação. A voz robotizada lhe disse que pressionasse o número de seu cartão de crédito (tarefa que Gard decidiu ser incapaz totalmente de desempenhar, ainda que possuísse tal cartão) ou o zero, que correspondia à telefonista. Gardener apertou o zero.

— Olá, feliz feriado, aqui é Eileen! — trinou vivamente uma voz. — Quer me dar o seu número, por favor?

— Olá, Eileen, feliz feriado para você também — respondeu Gard. — Eu gostaria que fosse uma chamada a cobrar, da parte de Jim Gardener.

— Tudo bem, Jim.

— Obrigado — disse ele, acrescentando subitamente: — Não, mude isso. Diga a ela que é Gard chamando.

Enquanto o telefone de Bobbi começava a tocar, lá em Haven, Gardener se virou e olhou para o sol que nascia. Estava ainda mais vermelho do que antes, subindo para o apertado monte de nuvens semelhantes a escamas de cavalinha, como uma enorme bolha redonda no céu. O conjunto de sol e nuvens trouxe-lhe à mente outra rima da infância: De noite, vermelho o céu, pro marinheiro é pitéu. De manhã, vermelho o céu, pro marinheiro é escarcéu. Gard ignorava a respeito de céu vermelho de manhã ou de noite, mas sabia que aquelas nuvens em forma de delicadas escamas eram um confiável prognóstico de chuva.

Que droga, são rimas demais para a última manhã de um homem sobre a terra, pensou irritadamente, e depois: Vou acordar você Bobbi, vou acordar você, mas prometo que nunca mais farei isso.

Entretanto, não havia nenhuma Bobbi para ele acordar. O telefone simplesmente continuou tocando. Ring... e ring...e ring...

— A pessoa que chamou não atende — informou a telefonista, como se ele fosse surdo ou talvez houvesse esquecido o que fazia durante alguns segundos, segurando o fone contra o traseiro, em vez do ouvido. — Não prefere tentar novamente mais tarde?

Sim, talvez. Só que teria de ser através do tabuleiro Ouija, Eileen.

— Certo — respondeu. — Tenha um bom dia.

— Obrigada, Gard!

Ele afastou o fone do ouvido, como se houvesse levado uma dentada. Ficou olhando para o objeto em sua mão. Por um momento, ela soara tão semelhante a Bobbi... tão infernalmente semelhante...

Tornou a levar o fone ao ouvido.

— O que foi que você...

Então se calou, percebendo que a alegre Eileen havia desligado.

Eileen. Ela era Eileen, não Bobbi Só que...

Ela o chamara de Gard. Bobbi era a única pessoa que...

Não, mude isso. Diga a ela que é Gard chamando.

Pronto. Uma explicação perfeitamente razoável.

Então, porque não parecia assim?

Gardener desligou lentamente. Ficou parado ao lado do posto da Mobil, com suas meias molhadas, as calças amarfanhadas e as abas da camisa soltas para fora, a sombra muito e muito comprida. Um grupo de motociclistas passou pela Rota 1, a caminho do Maine.

Bobbi está em apuros.

Por favor, quer parar de insistir nisso? É besteira, como diria a própria Bobbi. Besteira! Alguém lhe disse que o único feriado quando se vai em casa é no Natal? Ela voltou a Utica para o Glorioso Quatro de Julho, eis tudo.

Sim. Claro. Era tanta a probabilidade de Bobbi voltar a Utica, em comemoração ao Quatro de Julho, quanto a dele em candidatar-se como estagiário na nova central atômica de Bay State. Anne sem dúvida comemoraria o feriado cravando alguns foguetões na cona de Bobbi e disparando-os.

Bem, talvez ela tenha sido convidada para ser comissária da parada — ou xerife-comissária, ba-ba — em uma daquelas cidadezinhas vaqueiras sobre as quais vive escrevendo. Deadwood, Abilene, Dodge City, algum lugar desses. Você Já fez o que pôde. Agora, termine o que começou!

Sua mente não fez qualquer esforço para argumentar; ele poderia enfrentar isso. Pelo contrário, apenas insistiu em sua tese original: Bobbi está em apuros.

Isto não passa de uma desculpa, seu galinha covarde!

Ele não pensava assim. A intuição solidificava-se em certeza. E se fosse ou não besteira, aquela voz continuava insistindo que Bobbi se metera em alguma enrascada. Enquanto não tivesse certeza absoluta a respeito, ele supôs que poderia adiar sua questão pessoal. Conforme tinha dito para si mesmo, não muito tempo antes, o oceano não iria a lugar nenhum.

— Talvez os Tommyknockers a tenham apanhado — disse em voz alta.

Depois riu — uma risada assustada, breve, de garganta seca. Ele estava ficando louco, sem dúvida.

 

GARDENER CHEGA

Shushhhhh...

Ele está de cabeça baixa, contemplando seus esquis, duas ripas lisas de madeira castanha que deslizam sobre a neve. Começara a observá-los, apenas para certificar-se de que os mantinha em boa posição e paralelos, não querendo parecer um exibicionista, que nada tivesse a fazer ali. Agora, está quase hipnotizado pela líquida velocidade dos esquis, pelo brilho de cristal da neve, passando entre eles em uniforme faixa branca de uns quinze centímetros de largura. Só percebe seu estado de semi-hipnose, quando Annmarie grita: “Cuidado, Gard! Cuidado!”

É como ser despertado de um transe brando. Apenas então, repara que esteve em um semitranse, que ficou tempo demais olhando para baixo, para aquela brilhante e fluida faixa nevada.

Annmarie grita: “Stem christie!* Gard! Stem Christie!”

Ela torna a gritar agora para ele cair, simplesmente cair? Ora, a gente pode quebrar uma perna fazendo isso,

Naqueles últimos segundos anteriores ao impacto da colisão, ele ainda não entende como a coisa ficou séria tão depressa.

De algum modo, começara a desviar-se para além do lado esquerdo da trilha. Pinheiros e abetos, os galhos cinza-azulados pesados de neve, desfilam como um borrão, a menos de três metros dele. Avista uma rocha que se projeta da neve; seu esqui esquerdo a perdeu por centímetros.

Com gélido terror ele sente que perdeu inteiramente o controle, que esqueceu tudo quanto Annmarie lhe ensinara, manobras que pareciam tão fáceis, quando feitas nas trilhas de descida para crianças.

E agora está indo... a quanto? Trinta quilômetros à hora? Cinqüenta? Sessenta? O ar frio bate cortante em seu rosto, e ele avista a linha de árvores marginando a trilha Straight Arrow — Flecha Direta — ficando cada vez mais perto. Sua própria flecha direta se tornou uma leve diagonal. Leve, mas suficiente para ser fatal, de qualquer modo. Ele vê que seu rumo logo o tirará completamente da trilha. Então, fará alto, sem dúvida, poderá parar com rapidez

Annmarie torna a gritar esganiçadamente, e ele pensa: Stem christie?

Foi isso mesmo que ela disse? Bolas! Nem ao menos sei fazer um snowplow* e ela ainda quer que eu faça um stem christie?

Ele tenta virar para a direita, porém os esquis permanecem teimosamente no mesmo rumo. Agora, já pode ver a árvore em que colidirá, um enorme, venerável pinheiro antigo. Uma tira vermelha foi pintada em redor de seu tronco engelhado — um aviso de perigo, inteiramente desnecessário.

Tenta desviar-se novamente, porém esqueceu como fazê-lo.

A árvore se agiganta, parecendo correr em sua direção, enquanto ele próprio permanece imóvel; pode perceber nós denteados, galhos desfolhados e afiados, nos quais poderá empalar-se, vê entalhes no tronco vetusto, vê gotejamentos onde a tinta vermelha escorreu.

Annmarie torna a gritar agudamente e ele percebe que também está gritando.

Shusshhhhhh...

 

— Ei, você! Está se sentindo mal?

Gardener se ergueu subitamente, assustado, esperando pagar pelo movimento com uma devastadora pontada de dor varando-lhe a cabeça. Nada disso aconteceu. Por um momento, ele sentiu a nauseante vertigem que podia ser resultante da fome, porém a cabeça estava clara. A dor de cabeça havia passado, à sua maneira súbita, enquanto ele dormia — talvez até enquanto sonhava com seu acidente.

— Estou bem — respondeu, olhando em torno.

Sua cabeça estonteou agora — mas ao bater contra um tambor. Uma jovem vestindo um jeans de denim, cujas pernas tinham sido recortadas para transformá-lo em bermuda, começou a rir.

— Supõe-se que aí a gente deva usar baquetas, cara, não a sua cabeça. Você estava resmungando no sono.

Ele viu que se encontrava em um furgão — e então tudo se encaixou no lugar.

— Estava?

— No duro. E parecia agoniado.

— Não tive um bom sonho — disse Gardener.

— Dê uma tragadinha — ofereceu a jovem, estendendo-lhe um baseado. O pregador que segurava a pequena guimba era dourado e antigo, com a figura de Richard Nixon de terno azul, os dedos erguidos formando o característico V duplo, um gesto que provavelmente nem o mais velho dos outros cinco ocupantes daquele furgão recordaria. — É garantida para a cura de qualquer sonho ruim — acrescentou a jovem solenemente.

Era o que me diziam sobre o álcool, gentil senhorita. Entretanto, às vezes eles mentem. Pode crer às vezes eles mentem.

Gardener deu uma leve tragada na guimba, apenas por polidez, mas sentiu que sua cabeça começava a marear quase imediatamente. Devolveu o baseado à jovem, que se sentava contra a porta corrediça do furgão.

— Eu preferiria comer alguma coisa — disse.

— Temos uma caixa de biscoitos — disse o motorista, estendendo-a para trás. — Comemos tudo o mais que havia. Beaver comeu até as malditas ameixas secas. Sinto muito.

— Beaver come qualquer coisa — disse a jovem de bermudas.

O rapazinho sentado no banco do passageiro olhou para trás. Era rechonchudo, de rosto largo e simpático.

— Inverdade! — declarou. — Inverdade. Nunca comi minha mãe!

Ao ouvi-lo, todos começaram a rir como loucos, Gardener inclusive. Quando conseguiu falar, ele disse:

— Os biscoitos estão ótimos. Falo sério.

E estavam mesmo. A princípio ele comeu devagar, tenteante, alerta a quaisquer sinais de rebelião do organismo. Nada acontecendo, passou a comer cada vez mais depressa, até ver-se enfiando os biscoitos aos punhados na boca, com o estômago roncando e se abrindo para recebê-los.

Quando comera pela última vez? Não sabia dizer. Tudo ficara perdido no negrume daqueles últimos dias. Por experiências anteriores, Gardener estava a par de que nunca comia muito, ao ocupar-se em tentar beber o mundo — e grande parte do que tentava comer terminava em seu colo ou pela camisa abaixo. Aquilo o fez pensar na grande e gordurosa pizza que comera — tentara comer — na noite do Dia de Graças, em 1980. A noite em que baleara Nora no rosto.

...ora, você poderia ter-lhe seccionado um ou os dois nervos ópticos! gritou furiosamente o advogado de Nora para ele, dentro de sua cabeça. Seria a cegueira parcial ou total! A paralisia! A morte! Tudo quanto essa bala precisava fazer, era estilhaçar um dente, que sairia voando em qualquer direção, qualquer maldita direção, entendeu? Bastava um! E não fique aí sentado, arquitetando alguma asneira, como não ter tido a intenção de matá-la. Você baleou uma pessoa na cabeça, o que mais estaria querendo fazer?

A depressão começou a aproximar-se — grande, negra, com um quilômetro de altura. Devia ter-se matado, Gard. Não devia ter esperado.

Bobbi está em apuros.

Bem, talvez esteja. Entretanto, receber ajuda de um sujeito como você, é como contratar um piromaníaco para consertar um motor de carro que queima óleo em excesso.

Cale-se!

Você está liquidado, Gard. Frito. O que aquele garoto lá da praia chamaria de queimado.

— Tem certeza de que está bem, amigo? — perguntou a jovem.

Os cabelos dela eram ruivos, cortados bem curtos, à moda punk. As pernas lhe chegavam aproximadamente ao queixo.

— Está tudo bem comigo — disse ele. — Dou outra impressão?

— Por um minuto, parecia aterrorizado — respondeu ela, em tom grave.

Aquilo o fez sorrir — não o que ela dissera, mas a solenidade com que havia falado — e a jovem sorriu também, aliviada.

Espiando pela janela, ele percebeu que rumavam para o norte, pela estrada de pedágio do Maine — e os marcadores da rodovia indicavam trinta e seis milhas, de modo que não devia ter dormido tanto tempo. As penugentas escamas de cavalinha, que o céu mostrara duas horas atrás, começavam a fundir-se em um cinza fosco, prometendo chuva à tarde — antes dele chegar a Haven. Provavelmente já seria noite e estaria encharcado.

Após desligar o telefone no posto de gasolina, tirara as meias e as jogara na lata de lixo instalada em uma das ilhas onde ficavam as bombas do combustível. Depois caminhara pela Rota 1, em direção ao norte, descalço, até parar em um acostamento, com a velha mala-mochila na mão e o polegar da outra erguido, mostrando o norte.

Vinte minutos mais tarde passara este furgão — um Dodge Caravel razoavelmente novo, com chapas do Delaware. Nas laterais estavam pintadas duas guitarras elétricas, os braços dos instrumentos cruzados no alto, como espadas, e mais o nome do grupo que viajava no veículo: BANDA DE EDDIE PARKER. O furgão parou e Gardener correu para ele, ofegando, a mochila batendo na perna, a dor de cabeça pulsando de dor lancinante em sua têmpora esquerda. Apesar da dor, achara divertido o slogan cuidadosamente pintado através das portas traseiras do furgão: SE EDDIE ESTIVER ROCKANDO, NÃO BATA NEM VÁ ENTRANDO.

Agora, sentado no piso à traseira e forçando-se a lembrar que não devia girar rapidamente e bater contra a caixa do tambor, Gardener viu que se aproximava a saída para Old Orchard. Ao mesmo tempo, as primeiras gotas de chuva bateram no pára-brisa.

— Ouça — disse Eddie, freando. — Não gosto de deixar você na estrada com esse tempo. Está começando a chover e não tem um maldito sapato nos pés!

— Não se incomode comigo. Tudo vai dar certo.

— Você não me parece muito legal — disse suavemente a jovem de bermudas.

Eddie tirou seu boné (NÃO JOGUEM A CULPA EM MIM, EU VOTEI EM HOWARD, O PATO, estava escrito na viseira) e disse:

— Vocês aí, caras, comecem a soltar algum!

Surgiram carteiras de notas; moedas tilintaram em bolsos de jeans.

— Não! Ei, obrigado, mas não é preciso!

Gardener sentiu o sangue subir ao rosto e ficar queimando nas faces. Não de constrangimento, mas de pura vergonha. Em algum lugar dentro dele, sentiu um forte e doloroso baque — não chocalhou seus dentes ou ossos. Devia ser, pensou, sua alma, levando alguma queda final. Isso soava infernalmente melodramático. Quanto ao que sentia... bem, era apenas real.

Aí estava a parte horrível da coisa. Apenas... real. Tudo bem, pensou. Tem de ser assim mesmo. A vida inteira você ouviu gente falando sobre chegar ao fundo do poço — a sensação é esta. Nada mais, nada menos. James Gardener, que pretendia ser o Ezra Pound de sua geração, recebendo uns trocados de uma banda que atua nos bares do Delaware.

— Falo sério... não...

Eddie Parker continuou passando o boné, assim mesmo. Nele havia um punhado de moedas e algumas notas de um dólar. Beaver foi o último a contribuir. Deixou cair duas moedas de vinte e cinco centavos.

— Escutem — disse Gardener, — sou muito grato a vocês, mas...

— Como é, Beaver? — disse Eddie. — Esqueça a sovinice agora!

— É verdade, tenho amigos em Portland! Basta ligar para alguns e... bem, acho que deixei meu talão de cheques com um cara que conheci em Falmouth — acrescentou Gardener insensatamente.

— Bea-ver é um sovina — começou a cantarolar alegremente a jovem de bermudas. — Bea-ver é um sovi-na, Bea-ver é um sovi-na!

Os outros começaram a cantarolar também, até que Beaver, entre risadas e trejeitos dos olhos girando nas órbitas, acrescentou outra moeda de vinte e cinco centavos, mais um bilhete da Loteria de Nova Iorque.

— Pronto, fiquei duro — disse ele. — A menos que queiram esperar por aí, até que as ameixas secas apareçam!

Os rapazes da banda e a jovem de bermudas recomeçaram a dar risadas como loucos. Olhando resignadamente para Gardener, como se dissesse, Vê só com que imbecis tenho de andar? Dá pra entender?, Beaver estendeu o boné para Gardener, que se viu na obrigação de aceitá-lo; se não o apanhasse, as moedas teriam rolado por todo o piso do furgão.

— Francamente — disse, tentando devolver o boné a Beaver. — Estou perfeitamente bem...

— Não está — replicou Eddie Parker. — Portanto, pare de dizer bobagens. O que vai dizer agora?

— Acho que vou dizer obrigado — falou Gardener. — No momento, não consigo pensar em outra coisa.

— Bem, não é o suficiente para que tenha de declarar em seu imposto de renda — disse Eddie, — mas dá para comprar alguns hambúrgeres e um par daquelas sandálias de borracha.

A jovem fez deslizar a porta lateral do Caravel.

— Cuide-se, entendeu? — disse ela. Então, antes que ele pudesse dizer alguma coisa, ela o abraçou e beijou, a boca úmida, amistosa, entreaberta e exalando maconha. — Cuide-se bem, grandalhão.

— Vou tentar. — Já prestes a descer, ele de repente a abraçou também, apertadamente. — Obrigado. Obrigado a todos vocês!

Ficou parado na faixa divisória da rampa, a chuva agora caindo um pouco mais forte, espiando enquanto a porta corrediça do furgão era puxada de novo. A jovem acenou. Gardener acenou em resposta, e então o furgão começava a descer a rampa, ganhando velocidade, para finalmente entrar na faixa que o levaria a seu destino. Gardener ficou olhando, uma das mãos ainda erguida em um aceno, para o caso deles olharem para trás. As lágrimas agora lhe corriam livremente pelo rosto, misturados à chuva.

 

Ele não teve oportunidade de comprar um par de sandálias de borracha, mas chegou a Haven antes do escurecer e não precisou caminhar os últimos quinze quilômetros mais ou menos até a casa de Bobbi, como havia pensado; poder-se-ia pensar que as pessoas tendem mais a recolher um sujeito pedindo carona na chuva, porém o mais provável é que sigam em frente sem parar. Quem desejaria uma poça humana no banco do passageiro?

Entretanto, ele conseguiu uma carona nos arredores de Augusta, com um fazendeiro que se queixou constante e amargamente do governo, durante todo o trajeto até a periferia urbana de China, onde Gard desembarcou. Caminhou uns três quilômetros, fazendo sinal para os carros que passavam, perguntando-se se seus pés iam virar pedras de gelo ou era apenas sua imaginação. Foi quando um caminhão madeireiro parou ruidosamente ao seu lado.

Gardener içou-se para a boléia o mais depressa que pôde. O recinto cheirava a lascas velhas de lenha e suor azedo de madeireiros... porém estava aquecido.

— Obrigado — disse.

— Não foi nada — disse o motorista. — Sou Freeman Moss.

Estendeu a mão. Não fazendo a mais remota idéia de que iria encontrar este homem no futuro não-muito-distante e sob condições bem menos agradáveis. Gardener apertou-lhe a mão.

— Jim Gardener. Obrigado mais uma vez.

— Não tem que agradecer. Como disse, não foi nada — respondeu Freeman Moss.

O caminhão começou a rodar. Estremeceu ao longo da margem da estrada, ganhando velocidade, pensou Gard, não apenas com má vontade, mas sentindo dor real. Tudo balançava. A junta universal gemeu abaixo deles, como uma bruxa em um canto de lareira. A escova de dentes mais antiga do mundo, cujas cerdas erodidas estavam de graxa empregada para seduzir ao movimento alguns dentes sujos e coagulados da transmissão ou cremalheira, chilreou ao longo do painel de instrumento, à sua passagem produzindo o velho refrigério que produzida uma mulher nua, de seios abundantes, Moss pisou o pedal da embreagem, conseguiu encontrar a segunda, após um tempo interminável rilhando marchas, e entrou em luta com o caminhão madeireiro, a fim de fazê-lo retornar à estrada.

— Você parece quase afogado. Tenho meia garrafa térmica de café, sobra do meu jantar no “Drunken Donuts”, em Augusta... vai querer?

Gardener bebeu o café, agradecidamente. Era forte, estava quente e muito doce. Também aceitou um cigarro do motorista. Tragou fundo a fumaça, com prazer, embora lhe ardesse na garganta, que cada vez ficava mais dolorida.

Moss o deixou precisamente nos limites urbanos de Haven, faltando quinze minutos para as sete. A chuva cessara e o céu iluminava-se no lado oeste.

— Acho que Deus vai permitir um pôr-do-sol — disse o motorista. —Diabo, eu gostaria de arranjar-lhe um par de sapatos, chefe — em geral trago comigo um par de tênis velhos atrás do assento, mas hoje chovia tanto, que vim apenas com minhas botas de borracha.

— Obrigado, mas não há problema. Minha amiga mora a menos de um quilômetro e meio, estrada acima.

Em realidade, Bobbi morava a uns cinco quilômetros dali, mas ele nada disse ao motorista, porque então Moss insistiria em levá-lo até lá. Gardener estava cansado, cada vez mais febril, ainda com as roupas úmidas, mesmo depois de quarenta e cinco minutos das rajadas secas do aquecedor... porém naquele dia não podia suportar mais gentilezas. Em seu estado mental do momento, isso poderia deixá-lo fora de si.

— Tudo bem. Boa sorte!

— Obrigado.

Gardener desceu e acenou, quando o caminhão desviou-se para uma estrada lateral e continuou sacolejando a caminho de casa.

Mesmo depois de Moss e seu caminhão peça de museu terem desaparecido, Gardener permaneceu ali um pouco mais, a mala-mochila molhada em uma das mãos, os pés descalços, pálido como lírios da Páscoa, em pé no solo macio do acostamento, olhando para o poste indicador, plantado uns seis metros antes do ponto em que se achava. O lar é o lugar onde, quando chegamos lá, eles têm de acolher-nos, havia dito Frost. Entretanto, para ele era melhor lembrar que não estava em casa. Talvez o pior erro que um homem pudesse cometer, seria imaginar que a casa de um amigo era sua, especialmente esse amigo sendo uma mulher, cuja cama ele um dia partilhara.

Não havia lar algum — mas ele estava em Haven.

Começou a caminhar, subindo a estrada em direção à casa de Bobbi.

 

Uns quinze minutos mais tarde, quando as nuvens no oeste finalmente se abriram e deixaram visível o sol que se punha, algo estranho aconteceu: pela cabeça de Gardener passou um jato de música, alto, nítido e breve.

Ele parou, olhando na direção do sol, cuja claridade banhava ondulados quilômetros de florestas molhadas e campos de feno no oeste, cintilando como os dramáticos raios solares em um épico bíblico de DeMille. A Rota 9 começava a elevar-se naquele ponto, permitindo a visão de um longo, maravilhoso e solene panorama no lado oeste, a luminosidade do anoitecer possuindo algo de inglês e pastoral, em sua límpida beleza. A chuva emprestara à paisagem uma aparência lustrosa e lavada, de cores mais acentuadas, como se preenchesse a tessitura das coisas. De repente, Gardener ficou muito satisfeito por não se ter suicidado — não de alguma forma piegas à Art Linkletter, mas porque lhe fora permitido este momento de beleza e maravilha perceptivas. Ali parado, agora já quase no final de suas energias, febril e indisposto, ele sentiu o êxtase puro de uma criança.

Tudo estava parado e silencioso, naquela claridade final do pré-anoitecer. Não havia qualquer sinal de indústria ou tecnologia. De humanidade, sim: um grande celeiro vermelho junto a uma casa branca de fazenda, galpões, um ou dois trailers, mas era tudo.

A luminosidade. Aquela luminosidade é que o impressionara com tanta força.

Sua doce claridade, tão antiga e profunda — aqueles raios diagonais de sol, projetando-se quase horizontalmente através das nuvens desemaranhadas, enquanto aquele longo, confuso e exaustivo dia aproximava-se do fim. Aquela luz imemorial parecia negar o próprio tempo, e Gardener quase esperou ouvir um caçador soprando sua trompa, anunciando “Todos Montados”. Ele ouviria cães, patas de cavalos e...

...e foi então que a música, dissonante e moderna, estrondeou através de sua cabeça, dispersando qualquer pensamento. Suas mãos voaram às têmporas, em um gesto espantado. O jorro musical durou pelo menos cinco segundos, talvez prolongando-se a dez, e o que ele ouviu foi perfeitamente identificável; era Dr. Hook, cantando “Baby Makes Her Blue Jeans Talk”.

A letra era metálica, mas suficientemente nítida — como se a ouvisse em um pequeno rádio transistorizado, do tipo que as pessoas costumavam levar para a praia, antes que o grupo de punk-rock “Walkman and the Ghetto-Blasters” tivesse tomado conta do mundo. Entretanto, a melodia não lhe penetrava pelos ouvidos; ela vinha da frente de sua cabeça... do lugar onde os médicos haviam tapado um buraco em seu crânio com um pedaço de metal.

 

“A rainha dos notívagos,

Uma artista no escuro,

Calada, não diz palavra,

Mas meu bem faz seu blue jeans falar.”

 

O volume era tão alto, que se tornava quase insuportável. Acontecera com ele antes, essa música dentro da cabeça, depois que enfiara o dedo em um soquete de luz — e estava bêbado daquela vez? Meu caro, um cachorro mija no hidrante?

Ele havia descoberto que tais visitas musicais não eram alucinatórias e nem assim tão raras — pessoas haviam captado transmissões de rádio nos flamingos que enfeitavam seus gramados; em obturações dentárias, nos aros de aço de seus óculos... Em 1957, durante uma semana e meia, uma família residente em Charlotte, Carolina do Norte, recebera sinais de uma estação de música clássica, da Flórida. Primeiro as ouviram emitidas do copo d‘água no banheiro. Em breve, outros copos da casa passaram também a captar o som. Antes que a coisa terminasse, a casa inteira se enchia com a fantasmagórica sonoridade dos copos irradiando Bach e Beethoven, a música apenas interrompida ocasionalmente para informarem as horas. Por fim, com uma dúzia de violinos sustendo uma nota aguda e prolongada, quase todos os copos da casa estilhaçaram-se espontaneamente, assim cessando o fenômeno.

Gardener, portanto, sabia que não estava só e tivera certeza de que não estava enlouquecendo — porém isso não era grande consolo e jamais ouvira algo assim tão alto, depois do incidente com o soquete da luz.

O som de Dr. Hook desapareceu tão rapidamente quanto surgiu. Gardener ficou tenso, esperando que voltasse. Não voltou. Em vez disso, o que chegou, mais alto e mais insistente do que antes, foi uma repetição daquilo que o pusera em movimento, antes de mais nada! Bobbi está em apuros!

Virando as costas para a paisagem do lado oeste, ele recomeçou a subir a Rota 9. E, embora febril e muito cansado, caminhou depressa — de fato, em pouco tempo estava quase correndo.

 

Eram sete e meia, quando ele finalmente chegou à casa de Bobbi — o que os moradores locais continuavam chamando propriedade do velho Garrick, mesmo após aqueles anos. Gardener chegou cambaleando pela estrada, ofegante, com o rosto mostrando uma vermelhidão doentia. Ali estava a caixa de correspondência rural, a portinhola ligeiramente aberta, da maneira como Bobbi e Joe Paulson, o carteiro, costumavam deixar, a fim de Peter poder abri-la mais facilmente com a pata. Ali estava o caminho para carros, com a picape azul de Bobbi estacionada nele. O que poderia estar na carroceria, tinha sido coberto com uma lona, ficando protegido da chuva. E ali estava a casa em si, com uma luz brilhando na janela que dava para o leste, junto da qual Bobbi tinha a cadeira de balanço e costumava ler.

Tudo parecia correto; não havia uma só nota destoante. Cinco anos antes — talvez três — Peter teria latido ante a presença de um estranho no lado de fora, porém o cachorro envelhecera. Diabo, todos eles tinham de envelhecer.

Parado ali fora, ele percebia que a moradia de Bobbi guardava a mesma espécie de agradável e pastoral quietude que sentira ao contemplar a vista do oeste, nos limites da cidade — aquele lugar representava todas as coisas que Gardener gostaria de possuir. Um senso de paz, talvez apenas um senso de lugar onde morar. Certamente, nada via de estranho enquanto permanecia ali, junto da caixa de correspondência. Tudo parecia — dava a sensação — da residência de uma pessoa satisfeita consigo mesma. Alguém não inteiramente relegado ao repouso, precisamente, não aposentado ou isolado das preocupações mundanas... mas alguém firme em suas raízes. Aquela era a casa de uma mulher saudável e relativamente feliz. Não havia sido construída no raio de ação do ciclone.

De qualquer modo, alguma coisa estava errada.

Ele continuou parado, um estranho lá fora, no escuro,

(ora, mas eu não sou um estranho, sou um amigo, um amigo dela, um amigo de Bobbi... não sou?)

e dentro dele cresceu um súbito, amedrontador impulso: ir embora. Apenas dar meia volta sobre os pés descalços e sumir dali. Porque, de repente, Gardener não sabia se queria descobrir o que estava acontecendo no interior daquela casa, em que espécie de apuros Bobbi se metera.

(Tommyknockers, Gard eis o que amáveis Tommyknockers)

Ele estremeceu.

(tarde na noite passada e na noite anterior Tommyknockers, Tommyknockers à porta de Bobbi e não sei se você pode)

Pare com isso.

(porque Gard tem muito medo do homem Tommyknocker)

Ele passou a língua pelos lábios, tentando dizer para si mesmo que se sentia tão ressequido somente por causa da febre.

Vá embora, Gard! Sangue na lua!

O medo agora era muito, muito profundo e, se fosse outra pessoa que não Bobbi — alguém que não a última pessoa verdadeiramente amiga — ele se teria desintegrado. A casa parecia rústica e agradável, a luz escapando da janela do leste era aconchegante, tudo parecia bem... mas as tábuas e vidraças, as pedras na entrada de carros, o próprio ar que lhe pressionava o rosto... todas estas coisas gritavam para que partisse, fosse embora dali, que as coisas dentro daquela casa eram ruins, perigosas, talvez até mesmo malignas.

(Tommyknockers)

Entretanto, Bobbi estava ali, apesar do que quer que também estivesse na casa. Ele não viajara todos aqueles quilômetros, a maioria deles debaixo de chuva, para dar meia volta e fugir no último segundo. Assim, a despeito do medo, Gardener afastou-se da caixa de correspondência e começou a caminhar pela entrada de carros, movendo-se lentamente, pestanejando com as pedrinhas aguçadas que lhe espetavam a sola dos pés.

Então, a porta da frente escancarou-se, assustando-o a tal ponto, que seu coração foi parar na garganta em um único salto. Ele pensou, É um deles, um dos Tommyknockers, vai correr para mim, agarrar-me a comer-me! Gardener mal conseguiu sufocar um grito.

A silhueta à porta era magra — magra demais, pensou ele, para ser Bobbi Anderson, que nunca fora gorda, mas tinha uma sólida estrutura, agradavelmente arredondada nos lugares certos. A voz, no entanto, embora aguda e oscilante, era indiscutivelmente de Bobbi... e ele relaxou um pouco, pois o pavor dela parecia ainda maior do que o seu, enquanto permanecia parado, não muito distante da caixa de correspondência e olhando para a casa.

— Quem é? Quem está aí?

— Sou eu, Bobbi. Gard!

Houve uma longa pausa. Soaram pisadas na varanda. Depois a voz cautelosa:

— Gard? É você mesmo?

— Sim, sou eu. — Ele recomeçou a caminhar sobre as pedrinhas duras e cortantes da entrada de carros, até chegar ao gramado. Então fez a pergunta que o levara até ali, a pergunta que o induzira a adiar o suicídio: — Você está bem, Bobbi?

O tremor desapareceu da voz de Bobbi, mas Gardener ainda não podia vê-la claramente — o sol há muito se escondera atrás das árvores e as sombras eram espessas. Ele se perguntou onde estaria Peter.

— Estou ótima.

Bobbi disse isso, como se sempre houvesse sido tão terrivelmente magra, como se sempre acolhesse os que surgiam à sua porta, com aquela voz aguda, cheia de medo.

Ela desceu os degraus da varanda, saindo da sombra projetada pelo teto. Foi quando Gardener conseguiu vê-la melhor, à claridade fosca do crepúsculo. Sentiu-se tomado de horror e espanto.

Bobbi caminhava para ele, sorrindo, obviamente deliciada em vê-lo. Seus jeans oscilavam e flutuavam à volta dela, o mesmo acontecendo com a blusa. O rosto estava encovado, os olhos fundos nas órbitas, a testa pálida, de certo modo grande demais, a pele retesada e brilhante. Os cabelos despenteados aninhavam-se contra a nuca e jaziam sobre os ombros como algas lançadas a uma praia. A blusa tinha sido abotoada errado. A braguilha do jeans mostrava o zíper fechado em apenas um quarto do comprimento.

Ela exalava um cheiro de sujeira, suor e... bem, como se houvesse tido algum acidente com as calças, depois tendo esquecido de trocá-las.

Um quadro surgiu repentinamente na mente de Gardener: uma foto de Karen Carpenter, tirada pouco antes de sua morte que, alegadamente, resultara de anorexia nervosa. A ele, parecera a foto de uma mulher já morta, porém de certo modo viva, uma mulher que mostrava os dentes inteiramente em um sorriso, com terríveis olhos febris. Bobbi estava semelhante a ela, agora.

Seguramente, ela não havia perdido mais de dez quilos — era tudo quanto conseguiria perder e ainda manter-se sobre os pés — porém a chocada mente de Gard continuava insistindo que a perda fora mais provavelmente de uns quinze quilos, tinha de ser.

Ela parecia encontrar-se nos últimos estágios da pura exaustão. Seus olhos, como os daquela pobre mulher perdida, na capa da revista, estavam enormes e brilhantes seu sorriso era como o imenso e atoleimado sorriso de um pugilista nocauteado, pouco antes dos joelhos se dobrarem,

— Última! — repetiu aquele trôpego, sujo e vacilante esqueleto, e quando Bobbi chegou mais perto, Gardener captou de novo o tremor em sua voz — não de medo, como pensara, mas de total exaustão, — Pensei que me tinha esquecido! É bom ver você, cara!

— Bobbi... Bobbi, meu Deus, o que...?

Bobbi estendia a mão para que ele apertasse. Os dedos tremeram visivelmente no ar, e Gardener viu como o braço de Bobbi Anderson ficara fino, espantosa e incrivelmente magro.

— Há um bocado de coisas acontecendo — gaguejou ela, em sua voz trêmula. — Muito trabalho já feito, muito ainda por fazer, mas eu chego lá, ora se chego, você verá...

— Bobbi, o que...?

— Ótima, eu estou ótima — repetiu ela e caiu para diante, semiconsciente, nos braços de Gardener.

Ainda tentou dizer algo, mas apenas um gorgolejar incoerente e um pouquinho de saliva saíram de sua boca. Os seios eram pequenos e frouxos acolchoados contra o antebraço dele.

Gardener a ergueu nos braços, espantado ao sentir o quanto estava leve. Sim, deviam ter sido quinze quilos, no mínimo quinze quilos. Era incrível mas, desgraçadamente, inegável. Ele reconheceu algo que tanto tinha de chocante, como de infeliz: Isto não é Bobbi, de maneira nenhuma... Sou eu. Eu, no fim de uma bebedeira.

Com Bobbi nos braços, ele subiu rapidamente os degraus da varanda e entrou na casa.

 

MODIFICAÇÕES

Depositando Bobbi no sofá, ele se dirigiu pressuroso para o telefone. Ergueu o fone, decidido a discar 0 e perguntar à telefonista que número discaria para falar com a mais próxima unidade de pronto-socorro. Bobbi teria que ir imediatamente para o Hospital de Derry. Gardener achava que ela sofrera um colapso (embora a verdade é que estava tão confuso, que mal conseguia concatenar os pensamentos). Devia ser alguma espécie de colapso. Bobbi parecia a última pessoa no mundo a “passar para o outro lado”, porém tudo indicava que tal havia acontecido.

Ela disse qualquer coisa, no sofá. Gardener não entendeu a princípio; a voz de Bobbi era pouco mais do que um murmúrio roufenho.

— O que é, Bobbi?

— Não ligue para ninguém — disse ela. Conseguiu falar mais alto desta vez, porém mesmo esse esforço quase parecia exauri-la. Suas faces estavam afogueadas, mas o resto do rosto mostrava profunda palidez e os olhos brilhavam, estavam tão febris e faiscantes como duas pedras azuis lapidadas — diamantes ou safiras, talvez. — Não... Gard, ninguém!

Roberta arriou contra o sofá novamente, ofegando com rapidez. Ele desligou o telefone e aproximou-se, alarmado. Bobbi precisava de um médico, isso era óbvio. Gardener queria conseguir-lhe um... porém agora a visível agitação dela era mais importante.

— Ficarei aqui com você — disse, tomando-lhe a mão, — se é isso que a preocupa. Deus sabe que já estava comigo através de suficiente mer...

Ela, no entanto, estivera sacudindo a cabeça, com crescente veemência.

— Só preciso dormir — sussurrou. — Dormir... e comer de manhã. O sono é o principal. Não tenho dormido nada... há três dias. Talvez quatro.

Gardener tornou a fitá-la, novamente chocado. Somou o que acabara de ouvir, com a aparência dela.

— Em que foguete andou voando? — e por quê? acrescentou a mente dele. — Benzedrina? Maconha?

Pensou em cocaína, mas rejeitou a idéia. Evidentemente, Bobbi tinha dinheiro para comprar coca, se quisesse, porém Gardener não acreditava que isso manteria um homem ou uma mulher sem dormir por três ou quatro dias, e também derretendo uns quinze quilos de peso. Quinze quilos a menos em — ele calculou o tempo, desde que a vira pela última vez — não mais de três semanas.

— Nenhuma droga — disse Bobbi. — Nada disso.

Os olhos dela giraram e cintilaram nas órbitas. A saliva escorria pelos cantos da boca e Bobbi a sugou de volta. Por um instante, Gardener viu em seu rosto uma expressão que não lhe agradou... que o amedrontou um pouco. Era uma expressão de Anne. Velha e astuta. Então, as pálpebras de Bobbi desceram lentamente, fechos reveladores, contrastando com a delicada tonalidade purpúrea da exaustão total. Quando ela tornou a abrir os olhos, era apenas Bobbi jazendo ali... e Bobbi precisava de ajuda.

— Vou telefonar pedindo uma ambulância — disse Gardener, tornando a levantar-se. — Francamente, você não me parece nada bem, B...

A mão fina de Bobbi se moveu e agarrou o pulso dele, quando já se virava para o telefone. Segurou-o com surpreendente força. Gardener olhou para ela e, embora ainda lhe parecesse terrivelmente cansada e quase desesperadamente exaurida, aquele brilho febril desaparecera dos olhos. Agora, as pupilas o fitavam diretamente, claras e saudáveis.

— Se você chamar alguém — disse Bobbi, com voz ainda algo trêmula, porém quase normal, — nossa amizade estará encerrada para sempre, Gard. Falo sério. Ligue para o pronto-socorro, para o Hospital de Derry ou mesmo para o velho Dr. Warwick, na cidade, e será o fim da linha para nós... Você nunca mais tornará a entrar em minha casa. A porta estará fechada para você!

Gardener olhou para ela com crescente desânimo e horror. Se pudesse convencer-se de que, naquele momento Bobbi delirava, faria a ligação com prazer... porém era evidente que estava muito lúcida.

— Bobbi, você...

... sabe o que está dizendo? Bem, ela sabia e aí estava o horror da situação. Bobbi ameaçava terminar com a amizade deles, se Gardener não lhe fizesse a vontade. Usava a amizade de ambos como um trunfo, pela primeira vez em todos os anos desde que a conhecia. E havia algo mais nos olhos de Bobbi Anderson: o conhecimento de que sua amizade talvez fosse a última coisa na terra a que ele desse valor.

Faria muita diferença, se eu lhe dissesse o quanto parece com sua irmã, Bobbi?

Não — ele viu no rosto dela que nada faria qualquer diferença.

— ...não sabe o quanto parece mal — terminou ele, de modo pouco convincente.

— É, não sei — concordou ela, com um fantasma de sorriso perpassando-lhe o rosto. — Contudo, faço uma idéia, pode crer. Seu rosto... é melhor do que qualquer espelho. Enfim, Gard, sono é tudo de que preciso. Preciso dormir e... — Seus olhos se fecharam novamente, mas ele tornou a abri-los, com visível esforço. — Desjejum — completou. — Dormir e desjejum.

— Isso não é tudo de que precisa, Bobbi.

— Eu sei. — A mão dela não largara o pulso de Gardener e agora apertou-o de novo. — Também preciso de você. Eu o chamei. Com a mente. E você ouviu, não ouviu?

— Sim, ouvi — respondeu ele, pouco à vontade. — Acho que ouvi.

— Gard... — A voz dela extinguiu-se; Gard esperou, a mente em torvelinho. Bobbi precisava de socorro médico... mas o que havia dito sobre terminar a amizade deles, se Gardener chamasse alguém... O beijo suave que ela lhe depositou na palma suja de terra o surpreendeu. Olhou com espanto para os olhos dilatados de Bobbi. O brilho da febre os abandonara e tudo quanto Gard viu neles foi uma súplica.

— Espere até amanhã — pediu ela. — Se amanhã eu não me sentir melhor... mil vezes melhor... irei ao médico. Certo?

— Bobbi...

— Está bem assim? — A pressão da mão aumentou, exigindo a confirmação dele.

— Está bem... acho que está...

— Quero que me prometa.

— Eu prometo.

Talvez, acrescentou Gardener mentalmente. — Se você não dormir e começar a respirar esquisito. Se quando eu vier observá-la pela meia-noite, você não estiver mais com esses lábios dando a impressão de que andou contendo uvas-do-monte. E se não estiver desmaiada.

Isto era idiotice. Uma idiotice perigosa, covarde... mas idiotice acima de tudo. Ele escapara do grande ciclone negro, convencido de que matar-se seria a melhor maneira de liquidar toda a sua infelicidade e garantir que não causaria mais infelicidade aos outros. Sua intenção era séria; sabia que era. Estivera prestes a saltar para aquela água fria. Então, surgira a intuição de que Bobbi estava em apuros

(Eu o chamei e você ouviu, não ouviu?)

e agora ele estava ali. Muito bem, senhoras e senhores, ele parecia ouvir Allen Ludden dizer, com sua voz rápida e leve de mestre em testes, aqui está a sua questão decisiva. Dez pontos, se puderem me dizer por que fim Gardner se preocupa com a ameaça de Bobbi Anderson em terminar a amizade de ambos, quando o próprio Gardener pretendia encerrá-la, suicidando-se. Como? Ninguém sabe? Pois aqui está uma surpresa! Eu também não sei!

— Tudo bem — dizia Bobbi. — Tudo bem, ótimo.

A agitação que quase havia sido terror, dissipou-se — o arquejar rápido da respiração diminuiu e um pouco do afogueamento sumiu de suas faces. Então, pelo menos a promessa valera alguma coisa.

— Durma, Bobbi. — Ele ficaria ali sentado, vigiando qualquer mudança. Estava cansado, mas tomaria café (e também um ou dois do que quer que Bobbi estivesse tomando, se os encontrasse). Devia a ela uma noite de vigilância. Houvera noites em que ela o ficara vigiando. — Durma agora.

Gardener soltou delicadamente o pulso que a mão dela prendia. Ela sorriu, um sorriso tão doce, que Gardener começou a amá-la novamente. Bobbi tinha esse poder sobre ele.

— Será apenas... como nos velhos tempos, Gard.

— Certo, Bobbi. Como nos velhos tempos.

— Eu... amo você...

— Também amo você. Durma.

A respiração dela ficou mais profunda. Gardener sentou-se perto de Bobbi por três minutos, depois cinco, contemplando aquele sorriso de madona, cada vez mais convencido de que ela dormia. Então, muito lentamente, com grande esforço, os olhos dela se abriram de novo.

— Fabuloso — sussurrou.

— Como? — perguntou Gardener, inclinando-se para adiante, pois não ouvira bem o que ela havia dito.

— O que aquilo é... o que aquilo pode fazer... o que aquilo fará...

Ela fala dormindo, pensou Gardener, mas tornou a arrepiar-se. Aquela expressão astuta retornara ao rosto de Bobbi. Não sobre o rosto, mas no rosto, como se houvesse crescido por baixo da pele.

— Você devia tê-lo descoberto... Acho que era para você, Gard...

— De que está falando?

— Dê uma espiada pela casa — disse Bobbi, a voz extinguindo-se. — Você verá como a coisa resolve os... problemas... todos os problemas...

Gardener precisava inclinar-se bem para diante, a fim de ouvir alguma coisa.

— De que está falando, Bobbi? — repetiu.

— Olhe pela casa — insistiu ela.

A última palavra apagou-se, enrouquecida, tornou-se um ressonar. Bobbi tinha adormecido.

 

Gardener quase retornou ao telefone. Ficava perto dele. Levantou-se, mas chegando ao meio da sala de estar, mudou de rumo e caminhou para a cadeira de balanço de Bobbi. Ficaria vigilante durante algum tempo, pensou. Vigiaria por algum tempo, e tentaria pensar no que tudo aquilo significava.

Engoliu em seco e pestanejou com a dor na garganta. Estava febril e desconfiava que sua febre não era nenhum caso de primeiro grau tampouco. Sentia-se mais do que indisposto; sentia-se irreal.

Fabuloso... O que aquilo é... o que aquilo pode fazer...

Ficaria sentado ali algum tempo e pensaria um pouco mais. Então, prepararia um bule de café forte e desmancharia seis aspirinas dentro dele. Isso cuidaria das dores e da febre, pelo menos temporariamente. Talvez também ajudasse a mantê-lo acordado.

o que aquilo fará...

Gard fechou os olhos, entrando em sonolência. Tudo bem, poderia cochilar, mas não por muito tempo. Nunca conseguiria dormir sentado. E Peter estaria para aparecer a qualquer momento; veria seu velho amigo Gard, saltaria em seu colo e lhe machucaria os colhões. Sempre era assim. Quando se tratava de pular na cadeira, no colo de Gard e colidir em seus colhões, Peter nunca falhava. Que diabo de despertador, se por acaso ele estivesse dormindo quando da chegada de Peter... Cinco minutos, nada mais do que isso. Quarenta piscadelas. Não faria mal algum.

Você devia tê-lo descoberto. Acho que era para você...

Ele cochilou e seu cochilo aprofundou-se rapidamente para o sono, um sono tão forte que se aproximava do coma.

 

Shusshhhhh...

Ele está de cabeça baixa, contemplando seus esquis, duas ripas lisas de madeira castanha deslizando sobre a neve, hipnotizado por sua líquida velocidade. Só percebe seu estado de quase hipnose, quando uma voz à sua esquerda diz: “Uma coisa que vocês, bastardos, nunca se lembram de mencionar em seus desgraçados comícios comunistas contra a energia nuclear é apenas isto: em trinta anos de desenvolvimento pacífico de energia nuclear, não fomos apanhados uma só vez.”

Ted está usando um suéter de pele de rena sobre jeans desbotados. Ele esquia depressa e bem. Por outro lado, Gardener está inteiramente sem controle.

“Você vai bater!” diz uma voz à sua direita. Ele espia, e é Arglebargle. Arglebargle começou a decompor-se. Sua cara gorda, que estivera corada pelo álcool na noite da festa, agora mostra um amarelo-cinza de cortinas velhas, penduradas em janelas sujas. Sua carne pende para baixo, pesando e fendendo-se. Arglebargle nota seu espanto e terror Os lábios acinzentados se distendem em um sorriso.

“É isso ai!” diz ele. “Estou morto. Foi mesmo um ataque do coração. Nada de indigestão, nada de vesícula. Tive um colapso, cinco minutos depois de sua saída. Chamaram uma ambulância, e o rapazinho que contratei para cuidar do bar fez meu coração voltar a bater, com um ressuscitamento cardiopulmonar, porém morri de vez na ambulância.”

O sorriso estira-se; fica tão atoleimado, como o sorriso de uma truta morta, jazendo na praia deserta de um lago envenenado.

“Morri em um sinal de trânsito vermelho, na Storrow Drive”, diz Arglebargle.

“Não”, sussurra Gardener. Isto... Isto é o que sempre temeu. O ato embriagado, final e irrevogável.

“Sim”, insiste o homem morto, enquanto descem velozmente a encosta, desviando-se para mais perto das árvores. “Convidei-o à minha casa, dei-lhe comida e bebida, mas você retribuiu matando-me em uma discussão de bêbado.”

“Por favor... eu...”

“Você o quê? Você o quê?” a voz vem novamente de sua esquerda. A pele de rena da suéter de Ted desapareceu, sendo substituída pelos símbolos amarelos de aviso sobre radiação. “Você não tem nada para dizer, eis a verdade! De onde pensam vocês, os Reacionários do último dia, que vem toda essa energia?”

“Você me matou!” troveja Arberg à sua direita, “mas vai pagar. Você vai sofrer um acidente, Gardener.”

“Pensam que a conseguimos com o Mago de Oz?” grita Ted.

Em seu rosto irrompem subitamente úlceras purulentas. Surgem bolhas em seus lábios, os quais descascam, racham e começam a supurar. Um de seus olhos cintila com um leitoso de catarata. Com crescente horror, Gardener percebe que olha para um rosto exibindo sintomas de um homem nos últimos estágios avançados da contaminação radioativa.

Os símbolos da radiação, na camisa de Ted, estão empretecendo.

“Pode apostar que vai acidentar-se”, berra Arglebargle. “Bater!”

Ele agora está chorando de terror, como chorou depois de balear a esposa, de ouvir a incrível informação sobre a arma que tinha na mão, de ver como ela recuava aos tropeções contra o balcão da cozinha, uma das mãos colada ao rosto, como uma mulher proferindo um chocado “Oh, Deus! NUNCA PENSEI!” E então, o sangue começou a escorrer-lhe por entre os dedos, enquanto a mente dele fazia um último e desesperado esforço para negar tudo aquilo, pensando, É catchup, relaxe, é apenas catchup. Em seguida, começou a chorar, como chorava agora.

“No que diz respeito a vocês, caras, toda a sua responsabilidade termina na placa da parede onde ligam a tomada. “O pus agora escorre e pinga pelo rosto de Ted. Seu cabelo caiu. As úlceras cobrem-lhe o crânio. Sua boca se distende em um sorriso tão atoleimado quanto o de Arberg. Agora, no paroxismo do terror, Gardener percebe que está esquiando sem controle, descendo a Straight Arrow, flanqueado por homens mortos. “Contudo, vocês nunca nos deterão e sabem disso. Ninguém será capaz compreenda, o reator está fora de controle. Esteve assim desde... oh, por volta de 1939, admito. Atingimos a massa crítica em 1965, aproximadamente. Está fora de controle. Breve haverá a explosão.”

“Não... não...”

“Você andou voando muito alto, mas para os que voam mais alto, pior é a queda”, estrondeia Arberg. “Assassinar um anfitrião é o pior homicídio de todos. Você vai bater... vai bater... bater!”

Quanto havia de verdade nisto! Ele tenta virar, porém seus esquis permanecem teimosamente no mesmo rumo. Agora pode ver o pinheiro, gigantesco, velho, engelhado. Arglebargle e Ted, o Homem Energia, desapareceram. Ele pensa! Eles seriam Tommyknockers, Bobbi?

Ele pode ver uma tira vermelha de tinta em volta do rugoso tronco do pinheiro... e então repara que começa a lascar-se e partir-se. Enquanto desliza irremediavelmente para a árvore, observa que ela ficou viva, que se abriu para engoli-lo. A árvore bocejante aumenta e incha, parece correr para ele, cria tentáculos e há uma horrível escuridão apodrecida em seu centro, contornada por tinta vermelha, como o batom de alguma sinistra prostituta. Então, ele ouve ventos sombrios uivando naquele negrume, naquela boca escancarada e ele não acorda então, tanto quanto parecia ter acordado — todos sabem que mesmo os sonhos mais extravagantes parecem reais, que inclusive podem ter sua própria lógica espúria, porém este não é real, não pode ser. Ele simplesmente trocou um sonho por outro. É algo que acontece o tempo todo.

Este sonho, foi sobre seu antigo acidente de esquis — pela segunda vez nesse dia, dá para alguém acreditar? Só que desta vez, a árvore com a qual colidiu, aquela que quase o matou, ganha uma boca apodrecida, como um bocejante nó na madeira. Ele acorda sobressaltado e se vê sentado na cadeira de balanço de Bobbi, aliviado demais por apenas acordar, para incomodar-se com o corpo todo rígido, a garganta agora tão dolorida, que dá a impressão de forrada com arame farpado.

Ele pensa: Vou levantar e preparar para mim uma dose de café e aspirina. Não era o que eu ia fazer antes? Começa a levantar-se, e então Bobbi abre os olhos. Também é quando Gard sabe que está sonhando, deve estar sonhando, porque raios de luz verde partem dos olhos de Bobbi — ele recorda a visão de raio X do Super-homem, nas revistas de histórias em quadrinhos, da maneira como o artista sempre a desenhou, em raios de tonalidade esverdeada. Entretanto, a luz que parte dos olhos de Bobbi dá uma sensação de pantanosa, de algo terrível... existe qualquer coisa de putrefata naquilo, como o luzir saltitante do fogo-de-santelmo em um pântano, durante uma noite quente.

Bobbi se senta lentamente e olha em torno... olha para Gardener Ele tenta lhe dizer que não... Por favor não ponha essa luz sobre mim.

Nem uma só palavra lhe sai da boca e, quando aquela luz verde o atinge, pode ver que os olhos de Bobbi cintilam com ela — na fonte, a luz é verde como esmeralda, brilhante como o fogo solar. Ele não pode encará-la, precisa desviar os olhos. Tenta erguer um braço para proteger o rosto, mas não pode, o braço pesa demais. Vai queimar-se, pensa Gard, vai queimar-se, e então, dentro de alguns dias, surgirão as primeiras bolhas, a princípio dando a impressão de serem espinhas, porque essa é a aparência da doença da radiação quando tudo começa, apenas um punhado de espinhas, com a diferença de que estas espinhas nunca saram, só vão ficando pior... e pior...

Gardener ouve a voz de Arberg, um remanescente descorporificado do sonho anterior, e agora parece haver triunfo em sua voz que estrondeia: “Eu sabia que você ia acidentar-se, Gardener.”

A luz o toca... banha-o por inteiro. Mesmo com os olhos fechados apertadamente, ela ilumina a escuridão de verde, como mostradores de rádio dos relógios. Entretanto, nos sonhos não existe dor real, e aqui nada existe. A brilhante luz verde não é quente nem fria. Não é nada. Exceto que...

Sua garganta.

Sua garganta não está doendo mais.

E ele ouve isto, clara e indiscutivelmente: “...por cento de desconto! Este é o tipo de baixa de preços que jamais poderá ser repetido! TODOS têm crédito! Cadeiras reclináveis! Colchões d’água! Móveis para sala de estar...”

A placa em seu crânio, falando novamente. A voz desapareceu quase logo após começar.

Como sua garganta dolorida.

E aquela luz verde também desapareceu.

Gardener abre os olhos... cautelosamente.

Bobby está deitada no sofá, de olhos fechados, profundamente adormecida... exato como antes. Afinal, que história foi esta sobre raios disparando dos olhos? Santo Deus!

Ele torna a sentar-se na cadeira de balanço. Engole. Não sente dor. A febre também baixou um bocado.

Café e aspirina, pensa. Você ia levantar-se, preparar café e aspirina, lembra-se?

Claro, pensa ele, ajeitando-se mais confortavelmente na cadeira de balanço e fechando os olhos. Só que ninguém prepara café e aspirina em um sonho. Farei isso assim que acordar.

Gard, você está acordado.

Oh, mas é claro que não pode ser isso. No mundo de vigília, as pessoas não emitem faixas verdes dos olhos, luzes que curam febres e gargantas doloridas. Em sonhos, sim, na realidade, não.

Ele cruza os braços sobre o peito e vagueia para longe. Durante o resto daquela noite nada mais sabe — seja dormindo ou acordado.

 

Quando Gardener acordou, uma viva claridade banhava seu rosto, penetrando pela janela do oeste. Suas costas doíam como o diabo e, ao levantar-se, seu pescoço produziu um esquisito rangido artrítico, que o fez pestanejar. Faltavam quinze para as nove da manhã.

Olhando para Bobbi, sentiu um relance de asfixiante medo — naquele momento, teve certeza de que ela havia morrido. Então, percebeu que apenas se encontrava profundamente adormecida, em um sono tão imóvel, que dava uma boa impressão de estar morta. Era um erro que qualquer um poderia cometer. O peito de Bobbi elevava-se em movimentos lentos e regulares, com pausas longas, mas também regulares entre cada respiração. Fazendo uma avaliação, Gardener viu que ela não respirava mais de seis vezes por minuto.

Entretanto, a aparência dela era melhor esta manhã — não muita coisa, porém bem melhor do que o fantasmagórico espantalho que havia saído da casa para recebê-lo na noite anterior.

Duvido que minha aparência fosse muito melhor, pensou ele, caminhando para o banheiro de Bobbi, a fim de fazer a barba.

O rosto que o espiou do espelho não estava tão ruim como temera, porém notou, com certa apreensão, que seu nariz havia sangrado novamente no correr da noite — não muito, porém o bastante para sujar as narinas e a maioria do lábio superior. Tirou uma toalha do armário à direita da pia a abriu a torneira da água quente, a fim de molhá-la.

Deixou a água correndo da torneira quente na toalha, com todo o alheamento de um longo hábito — com o aquecedor de água de Bobbi, tinha-se tempo para uma xícara de café e um cigarro, antes de conseguir-se uma água morna — e isso era o fim do m...

— Aiii!

Gardener puxou a mão para fora da água quente, que estava soltando fumaça. Muito bem, aí estava o que tinha ganho, ao presumir que Bobbi ia continuar seguindo a estrada da vida, sem se dar ao trabalho de mandar consertar o maldito aquecedor de água.

Ele levou à boca a palma escaldada, enquanto olhava para a água escorrendo da torneira. Já tinha empanado a borda inferior do espelho de fazer a barba, nas costas do armário de remédios. Estendendo a mão, encontrou a torneira quase quente demais para ser tocada e usou a toalha a fim de fechá-la. Depois colocou o tampão, deixou cair um pouco mais de água quente — com todo cuidado! — e acrescentou uma generosa porção de água fria. A parte carnuda sob o polegar esquerdo ficara um pouco avermelhada.

Abrindo o armário de remédios, Gardener remexeu entre as coisas que ali estavam, até encontrar o frasco receitado de Valium, com seu próprio nome no rótulo. Se essa coisa melhora com a idade, deve estar formidável, pensou. O frasco permanecia quase cheio. Bem, o que estava esperando? Evidentemente, Bobbi estivera tomando seu remédio — o dela — e fosse lá o que fosse, tão certo como o demônio, devia ter sido o oposto do Valium.

Gardener também não o queria. O que procurava devia estar atrás daquele frasco, se estivesse...

Ah! Achei!

Tirou um aparelho de barbear de lado duplo e um pacote de lâminas.

Olhou com certa tristeza para a camada de poeira no barbeador — fazia muito tempo desde a última vez que se barbeara pela manhã, ali na casa de Bobbi — e o limpou com água. Pelo menos, ela não o jogou fora, pensou. Isso seria ainda pior do que a poeira acumulada...

Barbear-se, certamente o deixaria sentindo-se melhor. Concentrou-se nisso e começou a barbear-se, enquanto seus pensamentos seguiam o próprio curso.

Terminou, recolocou os apetrechos de barba atrás do frasco de Valium e limpou a pia. Depois olhou pensativamente para a torneira com o Q impresso no alto e decidiu ir ao porão, verificar que magnífico aquecedor de água Bobbi lá instalara. A única outra coisa a fazer era vigiar o sono de sua amiga, porém tudo indicava que ela estava se saindo perfeitamente bem sozinha.

Entrou na cozinha, pensando que de fato se sentia bem, em particular agora, quando as dores provenientes de uma noite na cadeira de balanço de Bobbi começavam a desaparecer de suas costas e pescoço. Você é o tal cara que jamais conseguiu dormir sentado, certo? zombou suavemente de si mesmo. Desabar em quebra-mares faz mais o seu estilo, certo? Esta zombaria, no entanto, nada tinha do autodesprezo rude e quase incoerente do dia anterior. A única coisa que Gard sempre esquecia, quando no auge da bebedeira e nas terríveis depressões de ressaca, era aquele senso de regeneração, que às vezes chegava mais tarde. A pessoa pode acordar um belo dia, percebendo que não introduziu veneno algum no organismo na noite anterior... na semana anterior... talvez em todo o mês anterior... e sentir-se realmente bem.

Quanto ao que estivera receando como talvez um início de gripe, até mesmo pneumonia — também tinha desaparecido. Não sentia mais a garganta dolorida. Não sentia mais o nariz entupido. Não tinha mais febre. Deus sabia que ele havia sido o alvo perfeito para um vírus, após oito dias de bebedeira, de dormir mal e finalmente voltar para o Maine, de carona e descalço, durante uma tempestade. Entretanto, tudo acabara no correr da noite. Às vezes, Deus era bondoso.

Gard fez alto no meio da cozinha, seu sorriso diluindo-se em uma expressão momentânea de surpresa e certa inquietude. Um fragmento de seu sonho — ou sonhos — insistia em retornar

(comerciais pelo rádio durante a... terão algo a ver com o fato de sentir-me bem esta manhã?)

e depois tornar a desaparecer. Rejeitou a idéia, satisfeito com o fato de que se sentia bem e que Bobbi parecia bem — melhor, enfim. Se ela não acordasse lá pelas dez da manhã, dez e meia no máximo, ele a despertaria. E se estivesse se sentindo melhor e falando racionalmente, ótimo. Poderiam discutir o que quer que tivesse acontecido a ela (ALGO certamente aconteceu, pensou Gardener, perguntando-se alheadamente se não teriam sido notícias terríveis de casa... um boletim que, indubitavelmente a irmã Anne fornecera). Baseariam-se nisso. Se, mesmo remotamente, ainda se assemelhasse à Bobbi Anderson dopada e arrepiante que o recebera na noite anterior, Gardener chamaria um médico, querendo ela ou não.

Abriu a porta que levava ao porão e tateou em busca do antiquado interruptor da parede. Encontrou-o. O interruptor era o mesmo. A luz é que não era. Em vez da claridade mortiça emitida por duas lâmpadas de sessenta watts — única iluminação no porão-adega de Bobbi, desde que se lembrava — o recinto ficou banhado por um vivo clarão branco. Parecia tão iluminado como se, ali embaixo, houvesse uma seção de loja de departamentos. Gardener começou a descer, a mão procurando o velho corrimão desconjuntado. Em vez dele, encontrou outro, forte, sólido e novo. Havia sido firmemente preso à parede com novos prendedores de latão. Alguns dos degraus da escada, que tinham sido decididamente nauseantes, também estavam substituídos.

Gardener chegou ao fim da escada e parou, olhando em torno, a surpresa agora beirando uma emoção mais forte — era quase choque. O cheiro ligeiramente mofado daquele porão, também se fora.

Ela parecia uma mulher perdida no tempo, sem brincadeira. Em posição absolutamente crítica. Nem mesmo conseguia lembrar por quantos dias ficara sem dormir. Não é de admitir. Ela falou em melhorias na casa, porém isto aqui é ridículo. Bobbi não poderia ter feito tudo sozinha, creio eu. Ou poderia? Não, é claro que não.

Gardener, no entanto, desconfiava que, de algum modo, tudo aquilo tinha sido obra dela.

Se tivesse despertado ali, em vez de no quebra-mar em Arcádia Point, sem qualquer lembrança do passado imediato, jamais saberia que se encontrava na adega de Bobbi, embora já houvesse estado ali vezes incontáveis antes. O único indício a dar-lhe certeza disso agora, era ter chegado à adega vindo diretamente da cozinha de Bobbi.

Aquele cheiro bolorento não desaparecera por completo, porém estava diminuído. O piso de terra do porão havia sido inteiramente aplainado — não, não apenas aplainado, ele podia ver isso. A terra de um porão-adega fica velha e rançosa após algum tempo; se a gente está pretendendo passar muito tempo no subsolo, tem que fazer algo a respeito. Aparentemente, Roberta colocara ali uma nova carga de terra e a espalhara para secar, antes de aplainá-la com um ancinho. Gardener supôs que, por isso, o ambiente do lugar ficara suavizado.

Lâmpadas fluorescentes haviam sido instaladas em fileiras no teto, cada uma delas pendendo das vigas antigas por correntes e mais prendedores de latão. Espargiam um clarão uniforme, muito branco. Todas as instalações consistiam de lâmpadas simples em tubos, exceto as que ficavam acima da mesa de trabalho; ali, cada pendente tinha um par de lâmpadas, de maneira a emitir tão brilhante luminosidade, que o fez lembrar uma sala de cirurgia. Caminhou até a mesa de trabalho. A nova mesa de trabalho de Bobbi.

Antes, ela utilizava uma mesa comum de cozinha, coberta com um sujo papel contact. A iluminação provinha de um abajur de estúdio com haste flexível e a mesa vivia exibindo algumas ferramentas, a maioria delas em condição não muito boa, além de várias caixas de plástico com pregos, parafusos, porcas, coisas assim. Era a bancada para pequenos reparos, pertencente a uma mulher não muito boa e nem muito interessada em pequenos reparos.

A velha mesa de cozinha se fora, agora substituída por três mesas compridas e leves, do tipo onde são expostos os artigos à venda, especial-mente os bolos, nos bazares da igreja. Haviam sido colocadas extremidade contra extremidade, ao longo do lado esquerdo do porão, formando uma só mesa comprida. Estavam entulhadas de ferragens, ferramentas, rolos de fio encapado, grossos e finos, latas de café cheias de pregos sem cabeça, grampos, prendedores... dúzias de outros itens. Ou centenas.

Havia também as pilhas.

Gardener viu uma caixa de papelão delas debaixo da mesa, uma enorme coleção variada de pilhas e baterias de longa duração, ainda em suas embalagens de plástico duro: pilhas tipo C, D, A-duplo, A-triplo, de nove volta. Aí deve haver uns duzentos dólares de pilhas, pensou Gardener, sem contar as que estão pela mesa. Diabo, mas o que...?

Confuso, ele caminhou ao longo das mesas, como um homem verificando a mercadoria e decidindo se deve ou não comprá-la. Parecia que Bobbi andava fazendo várias coisas diferentes ao mesmo tempo... e Gardener não podia afirmar, com segurança, o que seria uma delas. Ali, no meio do sentido do comprimento das mesas estava uma grande caixa quadrada, com o painel frontal corrido para um lado, revelando dezoito botões diferentes. Ao lado de cada botão, havia o título de uma canção popular: “Raindrops Keep Fallin’ on My Head”, “New York, New York”, “Laras Theme”, etc., etc. Ao lado, uma folha de instruções, perfeitamente pregada à mesa com tachinhas, identificava o aparelho como a primeira e única Campainha Digital para Portas Sineta de Prata (Made in Taiwan).

Gardener não conseguia imaginar para que Bobbi desejaria uma campainha em sua porta, com um microchip embutido, permitindo que o usuário programasse uma canção diferente, sempre que quisesse — ela pensaria que Joe Paulson apreciasse o “Tema de Lara”, quando chegasse à porta com uma encomenda vinda pelo correio? Enfim, isso não era tudo. Gardener compreenderia, pelo menos, o uso da Campainha Digital para Portas Sineta de Prata, se não a motivação de Bobbi em instalar uma. Não obstante, ela parecia em vias de modificar o artefato de algum modo — de fato, acoplando-o à aparelhagem de uma caixa de rádio com antena, do tamanho de uma pequena mala de viagens.

Meia dúzia de fios — quatro finos e dois moderadamente grossos enrodilhavam-se entre o rádio (cuja folha de instruções também fora perfeitamente pregada a percevejos sobre a mesa) e as entranhas abertas da Sineta de Prata.

Gardener contemplou aquilo por algum tempo e passou adiante.

Colapso. Ela teve uma espécie muito singular de colapso mental. Do tipo que Pat Summerall adoraria.

Bem, ali estava algo mais que identificou — um acessório para estufa, chamado respiradouro secundário. É adaptado ao fumeiro e presume-se que recircule algum do calor que normalmente ficaria perdido. O tipo de apetrecho que Bobbi veria em um catálogo, talvez na loja de Ferragens “Confiança”, de Augusta, e falaria em comprá-lo. Na verdade, jamais o compraria, porque então precisaria instalá-lo.

Só que, agora, ela aparentemente o comprara e instalara.

Não se pode dizer que ela esteja tendo um colapso e “isso é tudo“, porque quando alguém realmente criativo supera isso, raramente existe um caso de “isso é tudo”, Colapsos nervosos talvez nunca sejam interessantes, mas quando alguém como Bobbi tropeça, pode tornar-se algo espantoso, Basta olhar para esta bosta aqui.

Alguém acreditaria?

Bem, eu acredito. Não pretendo dizer que pessoas criativas são de certo modo mais refinadas ou mais sensíveis, desta maneira tendo colapsos nervosos mais refinados e sensíveis — quem quiser que poupe toda essa besteira para os adoradores de Sylvia Plath. Acontece apenas, que pessoas criativas têm colapsos criativos. Para quem não acreditar, eu repito: vejam só esta bosta aqui.

Acima dali estava o aquecedor de água, um volume branco e cilíndrico, à direita da parte baixa da porta para o porão. Parecia o mesmo, mas no entanto...

Gardener subiu até lá, querendo ver como Bobbi o “envenenara” de maneira tão radical.

Ela atravessou uma louca fase de melhoramentos domésticos. E a coisa mais curiosa, é que parece não ter diferenciado coisas como consertar o aquecedor de água e modificar campainhas de portas. Corrimão de escada novo. Terra nova, trazida para cá e espalhada no piso do porão. E só mais Deus sabe o quê. Não é de admirar que esteja exausta. E, por falar nisto, Gard, exatamente onde Bobbi adquiriu o know-how para mexer em todas essas coisas? Se foi em um curso por correspondência da Mecânica Popular deve ter virado noites estudando.

Sua primeira surpresa difusa, ao chegar até aquela louca bancada de trabalho no porão de Bobbi, se tornava cada vez mais uma forte inquietude. Não era apenas a evidência de um comportamento obsessivo que tinha visto ao longo daquela mesa — montes de equipamento excessivamente ordenados, todos os quatro cantos das folhas de instrução pregados com esmero — que o preocupava. Tampouco a evidência da mania, no aparente fracasso de Bobbi para discriminar entre as renovações convenientes e as inúteis (aparentemente inúteis, emendou Gardener).

O que o deixava com arrepios, era pensar — tentar pensar — nas imensas, pródigas quantidades de energia que tinham sido gastas ali. Para dar andamento apenas às coisas que ele vira até então, Bobbi devia ter trabalhado como louca. Havia projetos já completados, como o da iluminação fluorescente. Havia aqueles ainda pendentes. Havia as viagens a Augusta, necessárias para a compra de todo o equipamento, ferragens e pilhas. Além da terra fresca para substituir a bolorenta. Não esqueça isto!

O que a teria impelido a isso?

Gardener não sabia, não gostava de imaginar Bobbi ali correndo de um lado para outra trabalhando em dois, cinco ou dez projetos “faça-você-mesmo”, tudo de uma só vez. A imagem era demasiado clara. Bobbi com as mangas da blusa arregaçadas, abertos os três botões do alto do decote, gotas de suor escorrendo por entre os seios, os cabelos repuxados para trás em tosco rabo-de-cavalo os olhos queimando, o rosto pálido, exceto por duas febricitantes manchas vermelhas em cada face. Bobbi seria como uma Sra. Mago enlouquecida, ficando mais e mais insana, à medida que ia apertando parafusos, torcendo porcas, soldando fios, jogando terra fresca no piso e subindo em sua escada de mão, onde ficaria inclinada para trás como dançarina de balé, o suor correndo pelo rosto, os tendões salientando-se no pescoço, enquanto pendurava a nova iluminação. Oh, e já que falamos no assunto, não esqueçamos Bobbi colocando a nova fiação e consertando o tanque do aquecedor de água.

Gardener tocou o lado esmaltado do tanque e tirou a mão rapidamente. Parecia o mesmo, porém não era. Estava quente como o inferno. Agachando-se, ele abriu o postigo, na parte inferior do tanque.

Foi quando Gardener se sentiu, realmente, catapultado no espaço.

 

Anteriormente, o aquecedor de água funcionava com gás de baixa pressão. Os tubos de cobre de pequeno diâmetro que levavam o gás até o queimador do tanque provinham de bujões afixados atrás da casa. O caminhão de entregas da Companhia de Gás Dead River, em Derry, aparecia uma vez por mês e substituía os bujões que precisavam ser trocados — em geral precisavam, porque estavam tão vazios quanto ineficientes... duas coisas que em geral andavam juntas, agora que Gard pensava nisso. A primeira coisa em que reparou, foi a ausência dos canos de cobre que chegavam ao tanque. Agora pendiam livres atrás dele, suas pontas entupidas com pano.

Minha nossa, como estará ela esquentando água? pensou ele, e então espiou dentro do postigo. Por um momento, ficou inteiramente gélido.

Sua mente parecia clara o suficiente, sem dúvida, mas retornara a velha sensação de desligamento, flutuante — o senso de separação. O velho Gard subia de novo, como um balão prateado de gás para criança. Ele se sabia com receio, porém tal conhecimento era mínimo, mal importava, se comparado à lúgubre sensação de estar desligado de si mesmo. Não, Gard, céus! exclamou uma voz soturna, muito fundo dentro dele.

Gardener recordou uma vez que tinha ido à feira de Fryeburg, ainda menino, com não mais que dez anos. Entrara no labirinto dos espelhos com a mãe, os dois acabaram separando-se. Foi a primeira vez quando experimentou essa singular noção de desligamento de si mesmo, de vagar para longe — ou para cima — uma separação do corpo físico e (se tal coisa existisse) da mente física. Ele podia enxergar sua mãe, claro que podia — cinco mães, uma dúzia, cem mães, umas baixas, outras altas, algumas escanifradas. Ao mesmo tempo, via cinco uma dúzia, cem Gards. Em certas ocasiões avistava um reflexo seu, juntando-se a um dos dela. Então estendia a mão, quase alheadamente, esperando tocar os slacks da mãe, mas encontrava apenas o ar vazio... ou outro espelho.

Ficara muito tempo perambulando lá dentro e supôs que sentira pânico, porém o que sentia não se assemelhava a pânico e, até onde podia recordar, ninguém teria representado como ele (caso houvesse pânico), ao finalmente descobrir o caminho da saída. Tinha levado uns quinze minutos no labirinto, dobrando esquinas, virando, retornando e colidindo com barreiras de vidros transparentes. Sua mãe havia franzido ligeiramente a testa por um momento, depois voltara ao normal. Isso tinha sido tudo. No entanto, ele havia sentido pânico, da maneira como também o sentia agora: aquela impressão de sentir a mente desgarrar-se de si mesmo, como uma peça de mecanismo se soltando, em zero-g.

Isso vem... mas vai. Espere, Gard. Apenas espere que termine.

Assim, permaneceu agachado de cócoras, espiando pelo postigo aberto na base do tanque de água de Bobbi. Esperou que aquilo terminasse, como um dia esperara que seus pés o conduzissem pelo trajeto certo e para fora daquele terrível labirinto dos espelhos, na feira de Fryeburg.

A remoção da instalação do gás deixara na base do tanque uma área côncava e arredondada. Esta área havia sido preenchida com um desorden-do novelo de fios elétricos — verdes, vermelhos, azuis e amarelos. No centro do emaranhado havia uma caixa de papelão para acondicionar ovos. FAZENDAS HILLCREST, dizia um letreiro impresso em azul. TIPO GRANDE. Assentada em cada compartimento para os ovos, ele viu uma pilha Eveready alcalina, elemento D, com o terminal positivo para cima. Uma pequena engenhoca em forma de funil encapava os terminais e todos os fios tanto pareciam começar como terminar naquelas cápsulas. Enquanto observava melhor, em um estado que não dava precisamente a impressão de pânico,

Gardener notou que a idéia original — a de que os fios compunham um monte desordenado — não era mais verdadeira do que sua idéia original sobre a confusão do material amontoado na bancada de trabalho de Bobbi. Não, havia ordem na maneira como os fios entravam ou saíam daquelas doze cápsulas em forma de funil — enquanto um mínimo de dois fios entravam ou saíam de algumas, um máximo de seis entravam ou saíam de outras. Havia ordem, inclusive no formato que compunham — era um pequeno arco. Alguns fios retornavam aos funis encapadores acima de outras pilhas, porém a maioria se dirige até placas de circuito, escoradas contra os lados do compartimento aquecedor do tanque d‘água. Gardener supôs que fossem originárias de brinquedos eletrônicos fabricados na Coréia — placas de compensado muito baratas, com soldas prateadas sobre a superfície corrugada. Tudo aquilo compunha um estranho conglomerado... porém aquele estranho conglomerado de componentes estava executando algo. Oh, sim! Antes de mais nada, aquecia água com rapidez suficiente para provocar bolhas na pele.

No centro do compartimento, diretamente acima da embalagem de papelão para ovos, no arco formado pelos fios, cintilava uma brilhante bola de luz, não maior do que uma moeda de vinte e cinco centavos, porém aparentemente tão brilhante quanto o sol.

Gardener erguera automaticamente o punho para bloquear aquele brilho ofuscante a selvagem, o qual emergia do postigo em uma sólida barra branca de luz, lançando a sombra dele comprida e para trás, contra o piso de terra do porão. Só conseguia fitar aquela claridade, apertando os olhos em duas fendas estreitíssimas e então afastando ligeiramente os dedos.

Tão brilhante quanto o sol.

Isso mesmo — só que, em vez de amarela, sua tonalidade era de ofuscante branco-azulado, como uma safira. Seu brilho pulsava e desviava-se ligeiramente, depois permanecia constante, tornando a pulsar e desviar-se em seguida: era um ciclo.

E onde está o calor? pensou Gardener, e isso começou a fazê-lo cair em si. Onde está o calor?

Erguendo uma das mãos, tornou a puxá-la sobre a lateral lisa e esmaltada do tanque — mas apenas por um segundo. Puxou-a de volta, recordando a maneira como a água saíra fumegando, na torneira do banheiro. Havia água quente no tanque, sem qualquer sombra de dúvida, e bastante — para estar fervendo a ponto de explodir fumaça e explodir o tanque de Bobbi Anderson, atirando fragmentos por todo o porão. Obviamente, contudo, nada disso acontecia, o que era um mistério... porém um mistério secundário, se comparado ao fato de que ele não sentia qualquer calor escapando pelo postigo — absolutamente calor algum. Devia ter queimado os dedos na pequena maçaneta de abrir o postigo e, depois que o abrisse, aquele sol do tamanho de uma moeda deveria ter-lhe queimado inteiramente a pele do rosto. No entanto...?

Muito devagar, hesitando, Gardener estendeu a mão esquerda para a abertura, mantendo o punho direito à frente dos olhos, para bloquear o pior do brilho. Sua boca se repuxara em uma careta, pois já antecipava uma queimadura.

Seus dedos unidos e afunilados deslizaram pela abertura do postigo... e então colidiram em algo que impedia a passagem. Mais tarde, refletiu que era mais ou menos como empurrar os dedos em uma meia de náilon espichada — com a diferença de que isto no aquecedor cedia um pouco e então parava. Os dedos nunca se afundavam, como afundariam empurrando-os em uma meia de náilon.

Só que não havia barreira alguma. Pelo menos, nenhuma que ele pudesse ver.

Parou de pressionar e a membrana invisível empurrou suavemente seus dedos, fazendo-os cair pela abertura do postigo. Gardener olhou para os dedos e viu que tremiam.

É um campo de força, daí o motivo de não me ter queimado. Alguma espécie de campo de força, que abafa o calor, Santo Deus, penetrei em uma estória de ficção científica, extraída de Histórias Chocantes. Acho que foi por volta de 1947. Terei eu feito a capa? E se fiz, quem me forçou? Virgil Finlay? Hannes Bok?

Sua mão estava começando a tremer com mais força. Ele tateou pelo postigo, falhou, tornou a encontrá-lo e o bateu bruscamente cortando aquele ofuscante fluxo de luz branca. Baixou lentamente a mão direita, porém ainda podia ver uma pós-imagem daquele sol diminuto, da maneira como vemos uma lâmpada, depois dela nos ser afastada do rosto. Entretanto, Gardener via somente um grande punho verde flutuando no ar, com um vivo azul ectoplásmico entre os dedos.

A pós-imagem desapareceu. Os tremores, não.

Gardener nunca desejara tanto um drinque na vida.

 

Encontrou um na cozinha de Roberta.

Bobbi não era de beber muito, mas guardava o que chamava “gêneros de primeira necessidade” em um armário, por trás das panelas: garrafa de gim, garrafa de uísque, garrafa de bourbon, garrafa de vodca. Gardener puxou a de bourbon — a marca não era das melhores, porém quem precisa não pode ser exigente — despejou uns três centímetros em um copo plástico e o bebeu de um gole.

É bom ficar de olho no que faz, Gard. Está tentando O destino!

Não estava, entretanto. Naquele exato momento, quase teria abençoado uma bebedeira, porém o ciclone fora soprar em qualquer outro lugar... pelo menos por enquanto. Despejou mais uma dose de seis centímetros de bourbon no copo, contemplou a bebida por um momento, e então entornou a maioria na pia. Tornou a colocar a garrafa no lugar e acrescentou água e cubos de gelo, transformando o que fora dinamite líquida em um drinque civilizado.

Refletiu que o menino da praia teria aprovado.

Supôs que a calma sonhadora que o envolvera ao sair do labirinto dos espelhos — a mesma que tornava a sentir agora — fosse uma defesa contra ficar deitado no chão e gritar até perder a consciência. Quanto à calma, tudo bem. O que o assustava, era a rapidez com que sua mente começara a tentar convencê-lo de que nada disso era verdade — que tudo aquilo havia sido uma alucinação. Incrivelmente, a sugestão era de que, ao abrir o postigo na base do aquecedor, o que tinha visto era uma lâmpada de grande potência — uma lâmpada de duzentos watts, digamos.

Não era uma lâmpada e não era alucinação. Era alguma coisa como um sol, muito pequenino, quente e brilhante,flutuando em um arco de fios, acima de uma caixa de papelão para ovos, cheia de pilhas. Agora, fique biruta se quiser, vomite, embriague-se, mas você viu justamente o que viu, portanto, nada de dourar a pílula, certo? Certo.

Foi dar uma espiada em Bobbi e constatou que continuava dormindo como uma pedra. Decidiu acordá-la por volta das dez e meia, se antes não houvesse acordado por si mesma. Olhou para seu relógio e ficou surpreso, ao constatar que eram apenas nove e vinte. Estivera no porão por menos tempo do que imaginava.

Ao pensar no porão, evocou a visão surreal daquele sol em miniatura, pendendo suspenso em seu arco de fios, cintilando como uma bola de tênis superquente... e, com isso, ele ficou novamente cônscio da desagradável sensação de que sua mente se decompunha. Procurou expulsar a idéia. Ela se recusou a largá-lo. Esforçou-se mais, dizendo para si mesmo que simplesmente não pensaria mais nisso, enquanto Bobbi não acordasse e lhe contasse o que vinha acontecendo por ali.

Olhou para seus braços e reparou que estava suando.

 

Gardener levou seu drinque para o exterior, onde descobriu mais evidências do surto de atividade quase sobrenatural de Bobbi.

O trator Tomcat, de propriedade dela, estava parado diante do espaçoso galpão à esquerda do jardim — nada havia de incomum quanto a isto, pois era ali que ela costumava deixá-lo, quando o meteorologista anunciava que o tempo não seria chuvoso. Entretanto, mesmo a seis metros de distância, Gardener já podia notar que Roberta fizera algo radical no motor do Tomcat.

Não. Agora chega. Esqueça esta merda. Gard. Vá para casa!

Nada havia de sonhador nem desligado sobre essa voz — era ríspida, vitalizada pelo pânico e assustada aflição. Por um momento, Gard viu-se tentado a ouvi-la... e então pensou que traição abismal seria isso — uma traição a Bobbi, a si mesmo. Refletiu que Bobbi o impedira de suicidar-se, ainda na véspera. E, não se matando, ele achava que a impedira de fazer a mesma coisa. Os chineses têm um provérbio: “Quando você salva uma vida, torna-se responsável por ela.” Contudo, se Bobbi precisasse de ajuda, de que maneira ele poderia fornecê-la? Descobrir essa maneira, não começaria por tentar verificar o que estivera acontecendo ali?

Bebeu o restante do drinque, deixou o copo vazio no degrau mais alto da varanda e caminhou para o Tomcat. Tinha uma vaga noção dos grilos cricrilando no capim alto. Não estava bêbado, não empilecado, até onde poderia dizer; o álcool parecia ter feito uma passagem expressa por todo o seu sistema nervoso. Ignore a tolice, como dizem os ingleses.

(à maneira dos leprechauns cujos sapatos fazem plóc-plóc-plócplóc-plóc enquanto o sapateiro dorme)

Só que Bobbi não havia dormido, havia? Ela havia sido impelida até cair — literalmente cair — nos braços de Gardener.

(plóc-plóc-plóc-plóc-plóc tóc-tóc-tóc-tóc-tóc bem tarde na noite passada e na noite anterior antes que os Tommyknockers Tommyknockers batessem à porta)

Em pé junto ao Tomcat, espiando o interior aberto do compartimento do motor, Gardener não apenas estremeceu — ele tiritou como um homem morrendo de frio, os dentes superiores encravando-se no lábio inferior, o rosto pálido, as têmporas e a testa cobertas de suor.

(eles consertaram o aquecedor de água e também no Tomcat há montes de coisas que os Tommyknockers fazem)

O Tomcat era um pequeno veículo para trabalho, que se tornaria quase inútil em uma grande extensão de terras, nas quais a lavoura fosse a atividade principal. Era maior do que um cortador de grama motorizado, porém menor do que o menor trator já fabricado pela Deere ou Farmall, sendo do tipo exato para alguém com uma horta apenas um pouco grande demais para ser chamada de quintal — como era o caso aqui. A horta de Bobbi tinha mais de meio hectare — feijões, ervilhas, milho, pepinos, rabanetes e batatas. Nada de cenouras, repolhos, abóboras ou abobrinhas. “Não planto o que detesto,” havia dito ela a Gardener certa vez. “A vida é curta demais.”

O Tomcat era razoavelmente versátil; tinha que ser — até mesmo um cavalheiro agricultor e bem de vida, teria problemas para justificar a compra de um minitrator de 2.500 dólares, tendo por base uma plantação com menos de meio hectare. Aquele veículo podia arar, aparar grama através de um acessório e cortar feno adaptando-se um outro; conseguia puxar carga pesada em terreno acidentado (ela o usara para puxar toras no outono e, que Gardener soubesse, Bobbi ficara atolada apenas uma vez) e, quando no inverno, acoplado a um limpa-neve, permitia que ela limpasse seu trecho de estrada em meia hora. Era impulsionado por um robusto motor de quatro cavalos.

Ou tinha sido.

O motor continuava ali, mas agora surgia adornado com a mais estranha coleção imaginável de dispositivos e acessórios — Gardener viu-se pensando naquele misto de campainha/rádio sobre a mesa de Bobbi, no porão, e perguntou-se se ela pretenderia instalar aquilo no Tomcat, dentro em breve... talvez como uma espécie de radar ou coisa assim. De sua garganta escapou apenas uma risada solitária e casquinada, cheia de perplexidade.

Um vidro de maionese projetava-se a um lado do motor. Continha um fluido demasiado incolor para ser gasolina, estando aparafusado a um fixador de latão, no cabeçote do motor. Assentado sobre a cobertura removível do motor, ele viu algo que ficaria mais adequado em um Chevrolet Nova ou SuperSport: o carburador, especial para uma máquina alimentada com mistura muito rica.

O velho e modesto carburador tinha sido substituído por algum “contrabandeado” carburador de quatro difusores. Bobbi precisara fazer um buraco através da cobertura do motor, a fim de conseguir espaço para ele.

Havia ainda a fiação — fios por todo o canto, serpenteando para dentro e para fora, para cima e para baixo, contornando, estabelecendo conexões que não faziam o menor sentido... pelo menos, não que Gardener pudesse entender.

Ele olhou para o rudimentar painel de instrumentos do Tomcat, ia virando o rosto... mas então tornou a olhar rapidamente, arregalando os olhos.

O Tomcat possuía alavanca de mudança e o esquema para engatá-las tinha sido impresso sobre um quadrado de metal, aparafusado ao painel, acima do indicador de pressão do óleo. Gardener já vira aquele quadrado metálico por vezes mais do que suficientes; ele próprio dirigira o Tomcat com freqüência, no correr dos anos. Antes, o esquema sempre havia sido:

 

1          3

         N     4

2               R

 

Agora, contudo, algo novo fora acrescentado — algo que era simples o bastante para ser amedrontador:

 

1          3     SUBIR

         N     4

2               R

 

Não está acreditando nisso, está?

Não sei.

Ora, vamos, Gard — tratores voadores? Corta essa!

Ela colocou um sol em miniatura no aquecedor de água.

Tolice. Acho que poderia ter sido uma lâmpada, uma lâmpada potente, com uns duzentos watts... 

Aquilo não era uma lâmpada!

Certo, tudo bem, fique frio. Isto apenas soa como uma publicidade para alguma paródia de E.T, nada mais. “Você acreditará que um trator pode voar.”

Cale a boca.

Ou “John Deere, ligue para casa”. O que me diz?

Novamente parado na cozinha de Roberta, ele ficou olhando ansiosamente para o armário em que estava a bebida. Desviou os olhos — não era fácil, porque era como se tivessem adquirido peso — e caminhou de volta à sala de estar. Viu que Bobbi mudara de posição e que sua respiração tinha agora um ritmo mais rápido. Primeiros sinais de despertar. Tornando a consultar seu relógio, Gardener viu que eram quase dez horas. Foi até a estante de livros de Bobbi, querendo encontrar algo para ler até que ela acordasse, algo que lhe deixasse a mente afastada de tudo aquilo, durante alguns momentos.

O que viu na secretária de Bobbi, ao lado da surrada e antiga máquina de escrever, de certo modo foi o pior choque de todos. De qualquer forma, um choque suficiente para que mal percebesse outra mudança: um rolo de papel perfurado para computador, pendendo da parede, mais acima e atrás da secretária com a máquina de escrever, como um gigantesco rolo de toalhas de papel.

 

OS GUERREIROS DO BÚFALO

Novela de Roberta Anderson

 

Gardener deixou a folha-título a um lado, com a face para baixo, e viu seu próprio nome — ou, antes, o diminutivo que somente ele e Bobbi usavam.

 

A Gard, que sempre estava perto quando precisei dele.

 

Outro estremecimento percorreu-lhe o corpo. Gardener deixou a segunda folha de lado, com a face voltada sobre a primeira.

 

Naqueles tempos, pouco antes do Kansas começar a sangrar, os búfalos ainda abundavam em manadas nas pradarias — de qualquer modo, em quantidade bastante para que os pobres, tanto brancos como índios, fossem antes sepultados em couros de búfalo, do que em ataúdes.

“No dia em que você provar carne de búfalo, nunca mais vai querer comer carne de vaca”, diziam os veteranos, e certamente acreditavam no que diziam, pois esses caçadores das pradarias, esses guerreiros dos búfalos, pareciam habitar um mundo de peludos fantasmas de dorsos arqueados — eles carregavam consigo a lembrança do búfalo, o cheiro do búfalo — o cheiro, sim, porque muitos espalhavam sebo de búfalo no pescoço, rosto e mãos, para impedir que o sol da pradaria os queimasse e enegrecesse. Usavam dentes de búfalo em colares no pescoço, algumas vezes também nas orelhas; fabricavam seus calçados com couro de búfalo — e numerosos desses nômades levavam consigo um pênis de búfalo, como amuleto de boa sorte ou garantia de permanente potência.

Fantasmas eles próprios, seguiam as manadas que cruzavam a relva curta e áspera, como as grandes nuvens cobrindo a pradaria com suas sombras; as nuvens permaneceram, mas as grandes manadas desapareceram... e com elas os guerreiros do búfalo, insanos das grandes vastidões, que até então jamais haviam conhecido uma cerca, homens que surgiam de nenhures e retomavam a esses mesmos lugares, homens com mocassins de couro de búfalo nos pés e ossos tilintando à volta dos pescoços; fantasmas retardatários, vindos de um lugar que existira pouco antes do país inteiro começar a sangrar.

À tarde de 24 de agosto de 1848 ia avançada, quando Robert Howell, que perderia a vida em Gettysburg menos de quinze anos depois, acampou perto de um pequeno riacho nos confins do enclave do Nebraska, naquela soturna região conhecida como Sand Hill Country O riacho era insignificante em tamanho, mas a água sabia bem ao paladar...

 

Gardener já se adiantara quarenta páginas na história e estava profundamente entretido na leitura, quando ouviu Bobby Anderson chamar, em voz sonolenta:

— Gard? Ainda está por aqui, Gard?

— Estou aqui, Bobbi — disse ele, e levantou-se.

Temia o que aconteceria em seguida e já quase acreditava que havia ficado insano. Só podia ser isso, claro. Não existia nenhum sol pequenino no fundo do tanque de água quente de Bobbi, muito menos uma nova marcha em seu Tomcat, que sugerisse levitação... mas teria sido mais fácil para ele acreditar nessas duas coisas, do que acreditar que Bobbi escrevera uma novela de quatrocentas páginas, intitulada Os guerreiros do búfalo, naquelas três semanas aproximadamente, desde que a vira pela última vez — uma novela que, apenas incidentalmente, era a melhor coisa que ela já escrevera. Impossível, sim. Era mais fácil — diabo, mais lúcido — acreditar que ele ficara biruta de todo, e simplesmente deixar as coisas como estavam.

Isso, se pudesse.

 

ROBERTA PRODUZ UMA HISTÓRIA

Bobbi saía lentamente do sofá, pestanejando, como uma mulher de idade.

— Bobbi... — começou Gardener.

— Oh, céus... Todo o corpo me dói! — lamentou-se ela. — E preciso trocar meu... Não vem ao caso. Quanto tempo dormi?

Gardener consultou seu relógio.

— Umas quatorze horas, creio. Acho que um pouco mais. Escute, Bobbi, seu novo livro...

— Certo. Aguarde com isso um pouquinho, até eu voltar.

Caminhou devagar em direção ao banheiro, desabotoando a blusa com que tinha dormido. Enquanto a via cambalear para lá, Gardener pôde espiar bem — de fato, espiou melhor do que pretendia — e avaliou quanto peso Bobbi perdera. Ela estava magérrima, chegara ao ponto de emaciação.

Roberta parou, como se adivinhasse que era observada e, sem olhar para trás, disse:

— Eu posso explicar tudo, você sabe.

— Pode mesmo? — perguntou ele.

 

Roberta ficou muito tempo no banheiro — demorou mais do que o necessário para servir-se do vaso e trocar o absorvente — Gardener tinha quase certeza de ser isso o que ela havia ido fazer. O rosto de Bobbi tinha aquela exata expressão de estou-com-a-peste. Procurou ouvir ruído de água da ducha e, nada ouvindo, começou a ficar inquieto. Bobbi lhe parecera perfeitamente lúcida ao acordar, mas isso significava, necessariamente, que estava? Começou a ter desconfortáveis visões dela espremendo-se pela janela do banheiro e depois correndo para a floresta, usando apenas seus blue jeans, gargalhando desatinadamente.

Levou a mão direita ao lado esquerdo da testa, onde ficava a cicatriz. Sua cabeça começara a latejar um pouco. Esperou mais um ou dois minutos e então, levantando-se, caminhou para a porta do banheiro, esforçando-se para pisar em silêncio, uma idéia não de todo inconsciente. Visões de Bobbi fugindo pela janela do banheiro para evitar explicações tinham sido substituídas por outra em que ela cortava tranqüilamente a garganta com uma das lâminas de barbear do próprio Gard, desta maneira evitando explicações para todo o sempre.

Ele decidiu apenas ouvir. Se captasse ruídos normais de movimentação, continuaria até a cozinha, coaria café e talvez fritasse alguns ovos. Se não ouvisse nada...

Sua preocupação foi desnecessária. A porta do banheiro não havia sido trancada quando Bobbi entrara e, esquecendo-se as outras melhorias existentes por ali, as portas sem tranca daquela casa, aparentemente continuavam com o velho costume de deixar uma fresta. Ela talvez tivesse que colocar cunhas em todo o norte da casa para tal conserto. É possível que seja o projeto da semana que vem, pensou Gardener.

A porta se abrira o suficiente para permitir-lhe ver Bobbi em pé diante do espelho, onde ele próprio estivera, não muito tempo antes. Ela estava com a escova de dentes em uma das mãos e um tubo de dentifrício na outra... porém ainda não destampara o tubo. Olhava para o espelho, com uma intensidade quase hipnótica. Havia arreganhado os lábios, deixando os dentes expostos.

Bobbi captou movimento pelo espelho e se virou, sem fazer qualquer esforço particular para cobrir os seios nus.

— Gard, você acha que meus dentes estão direitos?

Gardener olhou para eles. Pareciam-lhe do jeito de sempre, embora não recordasse algum dia tê-los visto tão expostos — e isso o fez lembrar-se novamente daquela terrível foto de Karen Carpenter.

— Claro que sim. — Gardener procurava não olhar para as costelas salientes sob a pele, a dolorosa projeção dos ossos pélvicos acima da cintura do jeans — as calças escorregavam, apesar do cinto afivelado tão apertada-mente, que mais parecia um pedaço de fio de varal, amarrado à cintura de um maltrapilho. — Bem, é o que acho. — Ele sorriu cautelosamente. — Enfim, não há cáries.

Roberta tentou retribuir o sorriso, com os lábios ainda repuxados sobre as gengivas; o resultado da experiência foi algo mais ou menos grotesco. Ela colocou um indicador contra um molar e fez pressão.

— Ee aança cango aho iho?

— O quê?

— Ele balança quando faço isso?

— Não. Pelo menos, não que eu perceba. Por quê?

— É apenas um sonho que venho tendo. Ele... — Ela baixou os olhos para si mesma. — Saia daqui, Gard. Não estou composta.

Não se incomode, Bobbi. Eu não pretendia saltar sobre seu esqueleto. Principalmente porque seria bastante aproximado do que eu realmente faria.

— Desculpe — disse ele. — A porta estava aberta. Pensei que você tinha saído.

Gardener fechou a porta, agora com o trinco. Através da porta fechada, ela disse claramente:

— Sei o que está intrigando você.

Ele ficou calado — apenas continuou parado ali. No entanto, tinha o pressentimento de que Bobbi sabia — sabia — de sua presença ainda no mesmo lugar. Como se pudesse enxergar através da porta.

— Você está querendo saber se perdi o juízo.

— Não — respondeu ele então. — Não é nada disso. Bobbi, mas...

— Estou tão lúcida quanto você — replicou ela, através da porta. — Sinto o corpo tão enrijecido que mal consigo andar, tenho uma atadura enrolada em torno do joelho direito, por algum motivo que não consigo lembrar, estou faminta como um urso e sei que perdi muito peso... mas estou saudável, Gard. E antes do dia terminar, você talvez às vezes se perguntará se está em seu juízo perfeito. A resposta é: ambos estamos.

— O que está acontecendo por aqui, Bobbi? — perguntou Gardener, em um tom que soava impregnado de incompreensão.

— Preciso tirar a maldita atadura e ver o que existe debaixo dela — respondeu Bobbi, do outro lado da porta. — Tenho a impressão de haver dado uma joelhada das boas. Lá na floresta, provavelmente. Depois vou tomar uma ducha quente e vestir roupas limpas. Enquanto faço isso, você podia ir preparando um desjejum para nós. Então, eu lhe contarei tudo.

— Contará mesmo?

— Contarei.

— Está bem, Bobbi.

— Fico contente por você estar aqui, Gard — disse ela. — Tive um mau pressentimento, uma ou duas vezes. Como se você talvez não estivesse se saindo muito bem.

Gardener sentiu a visão duplicar-se, triplicar-se e depois desfazer-se na distância, em primas. Passou um braço pelo rosto.

— O que os olhos não vêem, o coração não sente — falou. — Tudo bem, vou preparar o desjejum.

— Obrigada, Gard.

Gardener afastou-se então, mas precisou caminhar devagar, porque por mais que enxugasse os olhos, sua visão continuava insistindo em voltar.

 

Parou assim que entrou na cozinha, para então retornar à porta fechada do banheiro, ao ocorrer-lhe um novo pensamento. Agora, ouviu o ruído de água correndo lá dentro.

— Onde está Peter, Bobbi?

— O quê? — perguntou ela, acima da água tamborilante da ducha.

— Eu perguntei, onde está Peter? — ele gritou agora.

— Morto! — gritou Bobbi em resposta, a fim de ser ouvida. — Eu chorei, Gard, mas ele estava... você sabe...

— Velho — murmurou Gardener. Então se lembrou e ergueu a voz novamente. — Quer dizer que foi velhice?

— Foi! — gritou ela, acima do barulho da água.

Gardener ainda ficou ali um momento e depois retornou à cozinha, perguntando-se por que achava que Bobbi mentia sobre Peter e como o cão havia morrido.

 

Gard preparou seis ovos mexidos e bacon frito na grelha de Bobbi. Percebeu que fora instalado um forno de microondas acima do convencional, após sua última passagem pela casa. Havia também uma sucessão de luzes acima das áreas principais de trabalho e da mesa da cozinha, onde ela costumava fazer a maioria das refeições — em geral com um livro na mão livre.

Preparou café bem forte e começava a levar tudo para a mesa, quando Bobbi chegou, usando calças limpas em tecido canelado e uma camiseta ilustrada por um mosquito borrachudo e a legenda AVE DO ESTADO DO MAINE. Os cabelos molhados estavam envoltos em uma toalha.

Ela supervisionou a mesa.

— Sem torradas? — perguntou.

— Faça você mesma suas queridas torradas — disse Gardener, em tom amistoso. — Não pedi carona por trezentos quilômetros, para vir bancar o mordomo em seu café da manhã.

Ela o encarou fixamente.

— Você fez o quê? Ontem? Naquela chuva?

— Isso mesmo.

— Pelo amor de Deus, o que aconteceu? Muriel disse que você estava fazendo uma turnê de leituras e que sua última aparição seria a 30 de junho!

— Você telefonou para Muriel? — Ele ficou absurdamente emocionado. — Quando?

Ela fez um gesto vago de mão, como se aquilo não importasse — e provavelmente não importava.

— O que aconteceu? — perguntou de novo.

Gardener pensou em contar-lhe — queria contar-lhe, percebeu com aflição. Era para isso que ela servia, então? Bobbi Anderson, em realidade, não seria mais do que o muro em que ele se lamentava? Hesitou, querendo contar a ela... mas não contou. Isso podia ficar para mais tarde.

Talvez.

— Depois eu conto — falou. — Agora, quero saber o que tem acontecido por aqui.

— Primeiro o desjejum — disse Roberta, — e isto é uma ordem!

 

Gard passou para ela a maioria dos ovos e do bacon. Bobbi não se fez de rogada — avançou neles, como alguém que houvesse levado muito tempo sem comer. Vendo-a devorar tudo, Gardener recordou uma biografia de Thomas Edison, que havia lido quando ainda muito novo — não teria mais do que dez ou onze anos. Edison se vira envolvido em um turbilhão de trabalho, no qual uma idéia seguia outra idéia, uma invenção seguia outra invenção. Durante tais momentos, havia ignorado esposa, filhos, banhos e até mesmo comida. Se a esposa não lhe tivesse levado as refeições em uma bandeja, o homem poderia ter literalmente morrido de fome, entre a lâmpada e o fonógrafo. O livro mostrava uma foto dele, com as mãos enfiadas na cabeleira em terrível desalinho — como se quisesse chegar ao cérebro por baixo dos cabelos e do crânio, o cérebro que não o deixava descansar — e Gardener recordava ter pensado que o homem parecia totalmente louco.

Além disso, pensou, tocando o lado direito da testa, Edison havia sofrido de enxaquecas. Enxaquecas e fortes depressões.

Em Bobbi, contudo, não notou qualquer sinal de depressão. Ela devorou os ovos, comeu sete ou oito tiras de bacon enroladas em uma fatia de pão com manteiga e bebeu dois copos duplos de suco de laranja. Quando terminou, deixou escapar um sonoro arroto.

— Falta de educação, Bobbi.

— Em Portugal, um bom arroto é considerado um cumprimento ao cozinheiro.

— E o que fazem eles, depois de uma boa trepada? Peidam?

Roberta jogou a cabeça para trás e deu enormes gargalhadas. A toalha lhe caiu da cabeça e, imediatamente, Gard sentiu vontade de levá-la para a cama, estivesse ela um saco de ossos ou não.

Sorrindo um pouco, ele disse:

— Certo, esta foi uma boa. Obrigado. A qualquer domingo eu lhe prepararei alguns elegantes ovos Benedict. Agora, solte tudo.

Roberta esticou a mão atrás dele e pegou um maço de Camels pela metade. Acendeu um cigarro e empurrou o maço para Gardener.

— Não, obrigado. É o único vício que já consegui abandonar.

No entanto, antes que Bobbi terminasse de falar, Gardener havia fumado quatro deles.

 

— Você espiou por aí — disse Roberta. — Recordo ter-lhe dito para fazer isso — é uma lembrança vaga — mas sei que andou espiando. Sua expressão está como a minha, depois que encontrei a coisa na floresta.

— Que coisa?

— Se lhe contar agora, vai pensar que fiquei louca. Mais tarde eu lhe mostrarei mas, neste momento, acho que seria melhor apenas conversarmos. Diga-me o que viu pela casa. Que mudanças notou.

Gardener começou a enumerar: as melhorias no porão, os retalhos de projetos, o peculiar solzinho no aquecedor da água. As estranhas alterações no motor do Tomcat. Ele vacilou um instante, pensando no acréscimo feito no diagrama da mudança de marcha, e deixou passar. De qualquer modo, supôs que Bobbi estada por dentro, sabia que ele já vira.

— E em algum momento, no meio de tudo isso — prosseguiu, — você ainda encontrou tempo para escrever outro livro. Um livro volumoso. Estive lendo as primeiras trinta ou quarenta páginas, enquanto a esperava acordar, e achei que tanto tem de bom, quanto de longo. A melhor novela que já escreveu, provavelmente... e note-se que tem escrito ótimas.

Ela assentia, envaidecida.

— Obrigada. Eu também achei. — Apontou para a última fatia de bacon na travessa. — Você quer?

— Não.

— Não quer mesmo?

— Não.

Ela pegou a fatia e a devorou em dois tempos.

— Quanto tempo levou escrevendo o livro?

— Não sei bem ao certo — disse Roberta. — Talvez três dias. Seja como for, não mais de uma semana. Escrevi a maioria durante o sono.

Gard sorriu.

— Não estou brincando, fique certo — disse ela.

Ele parou de sorrir.

— Minha noção de tempo está uma merda — admitiu ela. — Sei que não trabalhava no livro no dia 27. Foi o último dia em que o tempo — tempo seqüencial — me pareceu totalmente claro. Você chegou aqui, à noite passada, 4 de julho, e ele estava pronto. Portanto... uma semana, no máximo. Entretanto, em realidade penso que não levei nele mais de três dias.

Gardener ficou boquiaberto. O rosto dela mostrava a mais absoluta calma, enquanto limpava os dedos em um guardanapo.

— Bobbi, isso é impossível! — exclamou ele, finalmente.

— Se você acha que é, então deixou de examinar minha máquina de escrever.

Gardener olhara de relance para a antiga máquina de Bobbi no momento em que se sentara, porém isso fora tudo — sua atenção havia sido atraída imediatamente pelo livro terminado. Já vira a velha e preta Underwood milhares de vezes. O manuscrito, por outro lado, era coisa recente.

— Se observasse melhor, veria o rolo de papel para computador, afixado na parede atrás dela. E mais outro daqueles acessórios, também atrás da máquina. Embalagens para ovos, pilhas potentes e tudo. E então? Aceita um?

Empurrou o maço de cigarros para ele, que tirou um.

— Não sei como funciona, e a verdade é que não sei mesmo como qualquer deles funciona — incluindo aquele dispositivo que produz toda a claridade aqui dentro. — Ela sorriu, ao ver a expressão de Gardener. — Estou fora das garras da Central Elétrica do Maine, Gard. Larguei as tetas. Pedi que interrompessem o fornecimento de energia... é como eles dizem, como se soubessem perfeitamente a ânsia em que iremos querê-la de volta, antes de muito tempo. Isso foi... vejamos... há quatro dias. Que me lembre.

— Bobbi...

— Na caixa de ligação, nos fundos da casa, há um dispositivo como a coisa no aquecedor de água e o colocado atrás da máquina de escrever, mas esse é o vovô de todos os demais. — Roberta riu — era o riso de uma mulher tomada por agradáveis reminiscências. — Nesse de que falo, há vinte ou trinta elementos D. Acho que Poley Andrews, do supermercado Cooder’s, pensa que fiquei biruta de vez. Comprei todas as pilhas e baterias que ele tinha no estoque e depois fui a Augusta comprar mais.

Com a testa franzida, ela perguntou, como que a si mesma:

— Terá sido esse o dia em que providenciei a terra para o porão? — O rosto desanuviou-se em seguida. — Sim, acho que foi. A Corrida Histórica pelas Pilhas, de 1988, abrangeu sete casas de comércio diferentes. Voltei com centenas de pilhas e baterias; fiz uma parada em Albion e negociei um caminhão de terra argilosa, para melhorar o piso do porão. Tenho quase certeza absoluta de haver feito as duas coisas no mesmo dia.

O cenho franzido retornou e, por um momento, Gardener pensou que ela parecia novamente assustada e exaurida — é claro que continuava esgotada. Um esgotamento do tipo que ele vira na noite anterior, chegava até os ossos. Uma única noite de sono, pouco importando o quanto esse sono fosse demorado e profundo, não apagaria aqueles sinais. Havia ainda aquela conversa louca, alucinatória — livros escritos enquanto ela dormia; toda a energia elétrica de corrente alternada, na casa, funcionando à base de pilhas tipo D, idas a Augusta para providências incomuns...

Exceto que a prova estava ali, bem em torno dela. Gardener a tinha visto.

— ...e aquilo — disse Roberta, rindo.

— O que, Bobbi?

— Já lhe disse que tive uma trabalheira infernal, instalando a engenhoca que gera o fluxo aqui na casa e também lá, na escavação.

— Que escavação? Está falando na coisa na floresta, que pretende mostrar-me?

— Exatamente. Dentro em breve. Dê-me apenas mais alguns minutos. — O rosto dela tornou a assumir aquela expressão de prazer em contar, e Gardener pensou subitamente que devia ser a mesma expressão no rosto de todos com histórias que não apenas querem contar, mas que devem contar — precisam contar — desde o maçante de sala de conferências, que tomou parte em uma expedição à Antártida em 1937 e ainda tem seus desbotados slides para prová-lo, a Ishmael, o Marinheiro, único sobrevivente do infortunado Pequod, que encerra seu relato com uma frase semelhante a um grito de desespero, mal e superficialmente disfarçado como informação: “Sobrei apenas eu para contar-lhes.” Seria desespero e demência, que detectava abaixo das animadas e desconexas recordações de Bobbi sobre os Dez Alucinados Dias em Haven? Era o que Gardener achava... o que sabia ser. Quem estaria melhor apetrechado para receber os indícios? O que quer que Bobbi tivesse enfrentado ali, enquanto ele lia poesia para matronas obesas e seus maridos entediados, por pouco não danificara a mente dela.

Roberta acendeu outro cigarro com mão que tremia ligeiramente, fazendo com que a chama do fósforo vacilasse de leve. Era o tipo de coisa que alguém só perceberia se estivesse atento a qualquer anormalidade.

— A essa altura, eu estava sem embalagens para ovos, e o negócio ia exigir pilhas demais, para contar com apenas uma ou duas caixas vazias. Assim, peguei uma das caixas de charuto do tio Frank — deve existir uma dúzia de antigas caixas de madeira no sótão; provavelmente, até mesmo Mabel Noyes, do “Junque-a-Torium”, pagaria alguns dólares por elas, e você sabe o quanto ela é mão fechada — e recheei-as de papel sanitário, tentando formar ninhos no papel, a fim de que as pilhas ficassem em pé. Está entendendo como? Ninhos para as pilhas...?

Ela fez gestos de furar algo com o indicador direito e depois fitou Gard com olhos brilhantes, querendo adivinhar se ele entendera. Gardener assentiu. Aquela sensação de irrealidade voltava, a sensação de que sua mente se preparava para escapar pelo alto do crânio e flutuar até o teto. Um drinque daria um jeito nisso, pensou, e a pulsação na cabeça aumentou.

— A questão é que as pilhas continuavam caindo e escorregando. — Ela esmagou a ponta do cigarro e imediatamente acendeu outro. — Eles estavam agitados, simplesmente agitados. Eu também. Então, tive uma idéia.

Eles?

— Fui até onde mora Chip McCausland. Fica mais abaixo, na Estrada de Dugout. Sabe onde é?

Gardener meneou a cabeça. Nunca tinha ido à Estrada de Dugout.

— Bem, ele vive lá com uma mulher e uns dez filhos. Parece que não são casados. Cara, ela é a imagem do desmazelo... aquela sujeira no pescoço, Gard ... você só conseguiria limpá-la, usando um britador primeiro. Acho que ele foi casado antes e... ora, não vem ao caso... apenas... eu não tinha ninguém com quem falar... quero dizer, eles não falam, não são como a maioria dos... e aqui estou eu, misturando coisas que não importam, com coisas realmente importantes e...

As palavras de Roberta começaram a sair depressa, cada vez mais depressa, até que agora umas quase atropelavam as outras. Ela está aumentando a velocidade, pensou Gardener, com certo alarme, e logo irá começar a gritar ou chorar. Ele não sabia o que mais temia e tomou a pensar em Ishmael, Ishmael perambulando pelas ruas de Bedford, Massachusetts, cheirando mais a loucura do que a óleo de baleia, para finalmente deter algum infortunado transeunte e gritar: Escute! Sou o único fodido que sobrou para contar-lhe, portanto é melhor que me ouçam, raios! É melhor que me ouça, se não quiser usar este arpão como um fodido supositório! Eu tenho uma história para conta, é sobre a tal fodida baleia branca e VOCÊ VAI TER QUE OUVIR!

Estendeu o braço sobre a mesa e tocou-lhe a mão.

— Você pode contar em qualquer velha maneira que quiser. Estou aqui e vou ouvir. Temos tempo; como você disse, este é o seu dia de folga. Portanto, fale com calma. Se eu pegar no sono, saberá que foi muito além do assunto principal. Certo?

Ela sorriu e relaxou visivelmente. Gardener sentiu vontade de tornar a perguntar o que estava acontecendo na floresta. Mais do que isso; gostaria de saber quem eram eles. Entretanto, achou melhor esperar. Todas as coisas ruins chegam àquele que espera, pensou. Bobbi prosseguiu, após uma pausa para coordenar os pensamentos:

— Chip McCausland tem três ou quatro galinheiros, aí está o que eu pretendia dizer. Por umas duas pratas, consegui todas as embalagens de papelão para ovos que quis... até mesmo algumas das folhas grandes de embalar. Cada uma delas tem dez dúzias de “caminhas”.

Roberta riu animadamente, acrescentando algo que deixou Gardener com a pele arrepiada:

— Ainda não usei nenhuma destas, mas quando fizer isso, imagino que conseguiremos energia bastante para que a cidade de Haven inteira se desligue das tetas da Central Elétrica do Maine. E ainda sobrará o suficiente para Albion e a maior parte de Troy!

Afinal, consegui instalar a energia aqui... céus, eu já me perdia em devaneios novamente... Adaptara a engenhoca à máquina de escrever e... realmente dormi... cochilei, afinal... e foi aí que paramos, não?

Gardener assentiu. Ainda tentava digerir a idéia de que tanto podia ser fato como alucinação, a casual afirmativa de Bobbi sobre ser capaz de fabricar uma “engenhoca” que forneceria energia elétrica a três cidades, partindo de uma fonte que consistia de cento e vinte pilhas do tipo D.

— O que o dispositivo preso à máquina de escrever faz, é... — Ela franziu o cenho. Bandeou ligeiramente a cabeça, quase como se ouvisse uma voz. — Acho que seria mais fácil uma demonstração a você. Vá até lá e coloque uma folha de papel no rolo da máquina, está bem?

— Certo. — Ele se encaminhou para a porta que dava para a sala de estar, depois se virou e fitou Bobbi. — Você não vem?

Ela sorriu.

— Vou ficar aqui — disse.

Gardener entendeu. Entendeu e, inclusive compreendeu, em certo nível mental onde era permitida apenas a lógica pura, que assim poderia ser — não havia o próprio imortal Holmes dito que, eliminado o impossível, temos que acreditar no que restou, pouco importando o quanto seja improvável? E existia uma nova novela, repousando na mesa, ao lado do que Bobbi às vezes chamava de seu acordeão de palavras.

Sim, exceto que máquinas de escrever não redigem livros sozinhos, Gard, meu velho. Sabe o que provavelmente diria o imortal Holmes? Ele diria que o fato de haver uma novela ao lado da máquina de escrever de Bobbi, mais o fato adicional de ser ela uma novela nunca antes vista por você, não significam que o livro seja novo. Holmes diria que Bobbi o escreveu em algum tempo qualquer do passado. Então, enquanto você esteve fora e ela ia ficando de parafusos frouxos, Bobbi colocou a novela junto da máquina de escrever. Inclusive, pode até estar acreditando no que lhe diz, porém isto não torna o fato verdadeiro.

Gardener aproximou-se do entulhado canto da sala de estar, que funcionava como gabinete de trabalho de Bobbi. A estante de livros ficava ao alcance, de modo que bastava ela inclinar-se para trás, sobre as pernas da cadeira, e apanharia quase tudo quanto quisesse. É boa demais para ser uma novela guardada no baú.

Ele também sabia o que o imortal Holmes diria sobre isso: Holmes concordaria na improbabilidade de Os guerreiros do búfalo ser uma obra que ficara no baú; no entanto, argumentaria que escrever um livro em três dias — e não permanecendo o tempo inteiro à máquina de escrever, mas enquanto a autora tirava cochilos, entre repetidos acessos de atividade — era im-diabolicamente-possível.

Exceto que a novela não saíra de baú nenhum. Gardener podia afirmar isso, porque conhecia Bobbi. Ela seria tão incapaz de conservar no baú um livro bom como aquele, como ele era incapaz de permanecer racional, em uma discussão sobre o tema da energia nuclear.

Dane-se, Sherlock, e dane-se a carruagem de aluguel que você e o Dr. W. utilizam. Céus, eu quero um drinque!

A ânsia — a necessidade — de beber, retornara com total e aterradora força.

— Está aí, Gard? — perguntou Roberta.

Desta vez, ele viu conscientemente o rolo de papel para computador. Pendia frouxamente para baixo. Olhou atrás da máquina e, de fato, encontrou outra das “engenhocas” de Bobbi. Esta aqui era menor — meia embalagem de ovos, com as duas últimas concavidades vazias. Havia pilhas tipo D nas outras quatro concavidades, cada uma encimada por um daqueles pequeninos funis (observando-os melhor agora, Gard decidiu que eram pedacinhos de lata de flandres, recortados cuidadosamente, tendo furos diminutos ao centro), e de cada uma saindo um fio que passava pelo funil, acima do sinal +... Um fio vermelho, um azul, um amarelo e um verde. Os fios dirigiam-se para outro painel de circuito. Este agora dava a impressão de ter vindo de um rádio, sendo mantido na vertical por dois pedaços curtos e achatados de madeira, colados à mesa, com o painel imprensado entre ambos. Aquelas peças de madeira, cada uma assemelhava-se ao repositório do giz, ao pé de um quadro-negro, eram tão absurdamente familiares a Gardener que, por um momento, foi incapaz de identificá-las. Então recordou. Eram os repositórios de fichas em que são colocadas as letras, quando se está jogando Scrabble, a brincadeira em que se compõe palavras sobre um tabuleiro quadriculado, usando-se letras impressas em fichas de madeira.

Um único fio elétrico, quase tão grosso como um fio de corrente alternada, ia do painel de circuito à máquina de escrever, na qual penetrava.

— Coloque papel no rolo! — gritou Roberta. Ela riu. — Foi essa a parte que quase esqueci, não é uma burrice? Folhas comuns não faziam efeito e quase arranquei os cabelos, antes de adivinhar a solução. Estava no banheiro um dia, sentada no vaso, desejando finalmente ter um daqueles processadores de palavras, mas então, quando estendi a mão para o rolo de papel... eureka! Poxa, cheguei a ficar tonta! Basta enrolar uma ponta, Gard!

Nada disso. Vou dar o fora daqui agora mesmo, pegar uma carona até o Purple Cow, em Hampden, e ficar tão fodidamente empilecado, que vou esquecer tudo isto. Nem mesmo quero saber quem ¨Deles¡¬ são!

Não obstante, girou o rolo da máquina, fez deslizar sob ele a extremidade perfurada da primeira folha e girou novamente a maçaneta, no lado da antiquada máquina, até ajeitar o papel no lugar. Seu coração batia depressa e forte.

— Pronto! — gritou para Bobbi. — Quer que eu... hum.. ligue alguma coisa? Ainda não vira qualquer botão mas, mesmo que tivesse visto, não desejaria tocar nele.

— Não é preciso! — gritou ela de volta.

Gardener ouviu um clique. O clique foi seguido por um zumbido — o som do transformador de um trem elétrico de criança. Uma luminosidade esverdeada começou a brotar da máquina de escrever de Roberta.

Gardener deu um trêmulo e involuntário passo atrás, sobre pernas rígidas como madeira. Aquela luminosidade vinha de entre as teclas, em jatos esquisitos e divergentes. Havia painéis de vidro instalados nas laterais de Underwood, que agora cintilavam como as paredes de um aquário.

De repente, as teclas da máquina começaram a mover-se, cedendo por si mesmas, para cima e para baixo, como as teclas de um piano automático. O carro se movia rapidamente e as letras foram sendo impressas através da página:

 

Meu pai jaz a cinco braças completas

 

Ding! Bang!

O carro da máquina retornou.

Não. Eu não estou vendo isto. Não acredito que estou vendo isto.

 

Essas são pérolas que foram seus olhos.

 

A doentia luz verde espargia-se através do teclado e sobre as palavras, como rádio.

Ding! Bang!

 

Minha cerveja é Rhinegold, a cerveja seca

 

A linha escrita surgiu no espaço de um segundo, assim parecia. As teclas martelavam a tal velocidade, que mal eram vistas. Era como ver um teleimpressor do noticiário.

 

Pense em Rhinegold onde quer que compre cerveja!

 

Santo Deus, estará ele realmente fazendo isto? Ou é um truque?

Com a mente vacilando de novo, à vista desta nova maravilha, ele começou a apegar-se ansiosamente a Sherlock Holmes — um truque, claro que era algum truque, tudo aquilo uma parte do colapso da pobre Bobbi... de seu colapso nervoso tão criativo.

Ding! Bang! O carro da máquina tornou a voltar.

 

Não há nenhum truque, Gard.

 

O carro voltou de novo e as teclas martelantes datilografaram isto, diante de seus olhos fixos e esbugalhados:

 

Você acertou da primeira vez. Estou fazendo isto da cozinha. A engenhoca atrás da máquina de escrever é sensível ao pensamento, da maneira como uma célula fotoelétrica é sensível à luz. Esta coisa parece captar meus pensamentos claramente, até uma distância de oito quilômetros. Se me afastar mais do que isso, as coisas começam a ficar embaralhadas. Além de quinze quilômetros, aproximadamente, não funciona em absoluto.

 

Ding! Bang! A grande alavanca cromada, à esquerda do carro da máquina, funcionou sozinha duas vezes, girando o papel no rolo por algumas linhas — um papel que agora exibia três mensagens perfeitamente datilografadas. Depois, as teclas recomeçaram a trabalhar.

 

Como pode ver não precisei ficar sentada à máquina de escrever para trabalhar em minha novela — veja, cara, sem usar as mãos! Esta pobre e velha Underwood correu como uma bastarda por aqueles dois ou três dias, Gard, e durante todo esse tempo em que ela trabalhava, eu estava na floresta, trabalhando em coisas diversas na casa ou então no porão. Contudo, como disse, na maior parte do tempo eu dormia. É engraçado... mesmo que alguém me tivesse convencido da existência de tal engenhoca, eu não acreditaria que ela funcionaria comigo, porque sempre fui péssima para ditar. Tenho que escrever minhas cartas, foi o que sempre disse, porque preciso ver as palavras no papel. Para mim, era impossível imaginar como alguém conseguiria ditar um livro inteiro para um gravador, por exemplo, embora pareça que certos escritores façam isso. No entanto, isto aqui não é como ditar, Gard — é como uma ligação direta ao subconsciente, mais sonhando do que escrevendo... porém o que resulta é diferente dos sonhos, que com freqüência são irreais e desconectados. Isto aí não é mais uma máquina de escrever, em absoluto. É uma máquina de sonhos. Uma máquina que sonha racionalmente. Existe algo de cosmicamente curioso, quanto a eles me darem isso, a fim de que eu escrevesse Os guerreiros do búfalo. Você está certo, é de fato a melhor coisa que já escrevi, porém continua sendo o mesmo folhetim básico. É como inventar o moto-perpétuo, a fim de que seu filhinho deixe de chateá-lo para que lhe troque as pilhas do carro de brinquedo! Já imaginou quais seriam os resultados, se F. Scott Fitzgerald tivesse tido uma dessas engenhocas? Ou Hemingway? Faulkner? Salinger?

 

Após cada interrogação, a máquina silenciava momentaneamente e então explodia com outro nome. Parou por completo, após escrever Salinger. Gardener ia lendo, à medida que as palavras surgiam, porém de maneira automática, quase sem digeri-las. Seus olhos voltaram ao início do escrito. Eu pensava que fosse truque, que Bobbi podia ter armado a máquina de escrever de algum modo, a fim de que escrevesse aqueles dois fragmentos de verso. E a máquina escreveu...

A máquina havia escrito: Não há truque nenhum, Gard.

Ele pensou de repente: Você consegue ler minha mente. Bobbi?

Ding! Bang! O carro voltou subitamente, assustando-o a ponto de quase fazê-lo dar um salto e gritar.

 

Posso, mas somente um pouco.

 

O que fizemos no 4 de julho do ano em que parei de lecionar?

 

Fomos de carro até Derry. Você disse conhecer um sujeito que nos venderia alguns fogos de segunda mão. Ele nos vendeu os fogos, mas todos estavam defeituosos, não prestavam. Você estava completamente bêbado. Quis voltar lá para acabar com a raça do sujeito. Não consegui dissuadi-lo, e então fomos. Encontramos a maldita casa do cara pegando fogo. Ele guardava um bocado de mercadoria em bom estado no porão, e deixou cair um toco de cigarro dentro de uma caixa de bombas. Quando você viu o incêndio e os carros de bombeiros, teve um ataque de riso tão forte, que caiu sentado na rua.

 

Aquela sensação de irrealidade jamais havia sido tão forte como agora. Gardener lutou contra ela, procurando mantê-la à distância, enquanto seus olhos vasculhavam as passagens anteriores, em busca de algo mais. Encontrou o que queria, após um ou dois segundos: Existe algo de cosmicamente curioso quanto a eles me darem isso...

E, anteriormente, Bobbi tinha dito: As pilhas continuavam caindo e escorregando, eles estavam agitados, simplesmente agitados...

Suas faces estavam quentes e afogueadas, como se com febre, porém a testa permanecia tão fria como uma compressa gelada — até o firme latejamento de dor acima de seu olho esquerdo parecia frio... pontadas rasas, repetindo-se com uma regularidade de metrônomo.

Olhando para a máquina de escrever, banhada naquela luz esverdeada e algo espectral, Gardener pensou: Bobbi, quem são “eles”?

Ding! Bang!

As teclas movimentaram-se em ímpeto chocalhante, as letras formando palavras, as palavras formando uma parelha de vemos infantis:

 

Na noite passada e na noite anterior

Tommyknockers, Tommyknockers, batendo à porta.

 

Jim Gardener gritou.

 

Suas mãos finalmente pararam de tremer — o suficiente para que pudesse levar o café quente à boca, sem derramá-lo inteiramente sobre si mesmo, assim encerrando as lunáticas festividades da manhã com mais algumas queimaduras.

Roberta o espiava do outro lado da mesa da cozinha, com olhos preocupados. Ela guardava uma garrafa de excelente brandy nas mais escuras entranhas da despensa, bem longe dos “gêneros alcoólicos de primeira necessidade”, e oferecera misturar um pouco no café de Gard. Ele recusara não apenas com tristeza, mas verdadeira dor. Precisava daquele brandy — a bebida amorteceria a dor em sua cabeça, talvez a liquidasse por completo. Mais importante ainda, ela faria sua mente retornar ao foco. Desapareceria aquela sensação de acabei-de-ser-catapultado-do-mundo.

O único problema era: ele finalmente atingira “aquele” ponto, não é mesmo? Correto. Aquele ponto onde nada cessaria com uma simples dose de brandy no café. Houvera demasiado “input”, desde que abrira o postigo na parte inferior do aquecedor de água de Bobbi e depois subira para um gole de uísque. Então, havia sido seguro; agora, no entanto, o ar estava daquela espécie instável, propiciando ciclones.

Em vista disto, nada mais de drinques. Nada além de um adoçante irlandês no café, até ficar a par do que estava acontecendo ali. Incluindo-se o que acontecia a Bobbi. Isso, acima de tudo.

— Lamento aquela última parte — disse Roberta, — mas não sei se conseguiria detê-la. Eu lhe disse que essa era uma máquina de sonhos; pois é também uma máquina subconsciente. Na verdade, estou captando muito pouco de seus pensamentos, Gard. Experimentei com outras pessoas e, na maioria dos casos, é tão fácil como fincar o polegar em bosta recente. A gente pode penetrar todo o trajeto até o que, imagino, você chamaria o id... embora seja terrível nessas profundezas, é tudo cheio das mais monstruosas... poderiam até ser chamadas de idéias... imagens, creio ser o que você diria. Simples como garatujas de crianças, mas a verdade é que são vivas. Como aqueles peixes encontrados muito fundo no oceano, os que explodem, quando trazidos à superfície. — Bobbi estremeceu de repente. — Elas estão vivas — repetiu.

Por um segundo, o único som foi o dos pássaros trinando lá fora.

— Seja como for, tudo quanto capto de você são coisas superficiais, a maioria delas sem sentido, confusas. Se você fosse como as outras pessoas, eu saberia o que está indo em seu íntimo, por que parece tão esquisito...

— Obrigado, Bobbi. Eu sabia que existia um motivo para a minha vinda aqui. Como não se trata da culinária, deve ser a lisonja.

Gardener sorriu, mas era um sorriso nervoso — e acendeu outro cigarro.

— Acontece — prosseguiu Bobbi, como se ele não tivesse falado, — que posso fazer algumas corteses deduções, baseando-me no que lhe aconteceu antes, mas você teria que fornecer os detalhes... Eu não conseguiria espionar, mesmo querendo. Não sei se poderia captar uma idéia nítida, ainda que você empurrasse tudo para a frente da mente e colocasse um tapetinho de boas-vindas. Entretanto, quando perguntou quem eram “eles”, aqueles versinhos sobre os Tommyknockers subiram e flutuaram como uma bolha gigantesca. Então, a máquina começou a escrevê-los.

— Tudo bem — disse Gardener, embora nada estivesse bem... absolutamente nada, — mas quem são eles, além dos Tommyknockers? Serão duendes? Leprechauns? Grem...

— Falei a você que desse uma espiada em torno, porque queria que fizesse uma idéia do quanto tudo isto é grande — disse Roberta. — Com as implicações têm um longo alcance.

— Eu percebi isso, claro — disse Gardener, com um sorriso apenas emergindo nos cantos da boca. — Com somente um pouco mais de implicações de longo alcance, estarei pronto para a camisa-de-força.

— Seus Tommyknockers vieram do espaço — disse Roberta, — como acho que, a esta altura, já deve ter deduzido.

Gardener supôs que o pensamento tivesse feito algo mais do que cruzar sua mente — mas sentia a boca seca, as mãos geladas em torno da xícara de café.

— Eles estão por aí? — perguntou.

Sua voz parecia vir de longe, muito longe. De repente, ele sentiu medo de virar-se, medo de poder ver alguma coisa retorcida, com três olhos e um chifre onde deveria ser a boca, um ser que saísse valsando da despensa, algo pertencente apenas a um filme de cinema, talvez a um épico de Guerra nas estrelas.

— Acredito que eles — os reais eles físicos — têm estado mortos por muito tempo — disse Roberta calmamente. — É provável que houvessem morrido muito antes de existirem seres humanos na terra. Seja como for... Caruso está morto, porém continua cantando através de discos, como o diabo, não é mesmo?

— Bobbi — disse Gardener —, conte-me o que aconteceu. Quero que comece do começo e termine dizendo: “Então, você surgiu na estrada, exatamente em tempo de agarrar-me, quando desmaiei.” Pode fazer isso?

— Não inteiramente — disse ela, e sorriu, — mas farei o melhor que puder.

 

Roberta falou durante muito tempo. Quando terminou, já passava do meio-dia. Sentado do outro lado da mesa da cozinha e fumando, Gard escusou-se apenas uma vez para ir ao banheiro, onde tomou mais três aspirinas.

Roberta começou com seu tropeção, depois contou que voltara à floresta e começara a cavar mais em torno da nave — o suficiente para perceber que encontrara algo absolutamente único — então voltando lá uma terceira vez. Não falou a Gardener sobre a marmota, o animal morto sobre o qual não havia moscas voejantes; não mencionou o retraimento da catarata de Peter e tampouco falou sobre sua visita a Etheridge, o veterinário. Passou tais detalhes por alto, tranqüilamente, dizendo apenas que ao voltar para casa, após o primeiro dia inteiro trabalhando na floresta, encontrara o cão morto na varanda da frente.

— Foi como se ele estivesse dormindo — disse.

Em sua voz havia uma nota de exagerada sentimentalidade, tão imprópria da Bobbi sua conhecida, que Gardener ergueu bruscamente os olhos... e então tomou a baixá-los para suas mãos. Roberta chorava de leve.

Após alguns momentos, ele perguntou:

— E depois?

— Depois, você surgiu na estrada, exatamente em tempo de agarrar-me, quando desmaiei — disse ela, sorrindo.

— Não entendo o que quer dizer.

— Peter morreu a 28 de junho — disse Roberta. Nunca fora muito boa em mentiras, mas esperava que a de agora soasse tranqüila e natural. — É o último dia de que me lembro, com clareza e seqüencialmente.

Ao falar, ela sorriu para Gardener, aberta e francamente, porém isto era também uma mentira. Suas lembranças claras, seqüenciais e desemaranhadas, terminavam no dia anterior, 27 de junho, quando ficara em pé na encosta, olhando para aquela coisa titânica enterrada no solo, a mão aferrada ao cabo da pá. As lembranças terminavam quando ela sussurrara “Tudo está ótimo” e então começara a escavar. Havia mais coisas para contar naturalmente, todos os tipos de coisas mais, porém ela não conseguia recordá-las seqüencialmente e o que podia recordar teria que ser analisado... cuidadosamente analisado. Por exemplo, não poderia contar a Gard a verdade sobre Peter. Ainda não. Eles lhe tinham dito para não contar, mas quanto a isto, a advertência era desnecessária.

Também lhe tinham dito que um Gardener teria que ser vigiado, muito, muito de perto. Não por muito tempo, claro — em breve Gard se tomaria.

(parte de nós)

da equipe. Sim. E seria formidável tê-lo na equipe, porque se havia alguém no mundo que Roberta amava, era Jim Gardener.

Bobbi, quem são “eles”?

Os Tommyknockers. Essa palavra, que emergira da bizarra opacidade na mente de Gard, como uma bolha prateada, era um nome tão bom como outro qualquer, não? Sem dúvida. Melhor do que alguns.

— E agora? — perguntou Gardener, acendendo o último cigarro dela. Tinha uma expressão ao mesmo tempo aturdida e circunspecta. — Não digo que consegui engolir tudo isto... — Ele riu, um tanto aloucadamente. — Aliás, talvez seja porque minha garganta não tem largura suficiente para permitir que tudo desça imediatamente.

— Eu compreendo — disse Roberta. — Acho que o principal motivo de me lembrar tão pouco sobre a última semana ou coisa assim, é por tudo ter sido tão... singular. É como ter-se a mente presa a um trenó-foguete.

Ela não gostava de mentir para Gard, pois isso a deixava pouco à vontade. Entretanto, todas as mentiras em breve seriam esclarecidas. Ele se tornaria... se tornaria...

Bem... persuadido.

Quando visse a nave. Quando sentisse a nave.

— Não importa quanto eu acredito ou não, acho que sou forçado a acreditar na maioria do que contou.

— Quando removemos o impossível, o que quer que permaneça é a verdade, por mais improvável que pareça.

— Também captou isso?

— Apenas a forma. Eu talvez nem mesmo soubesse o que era, se não o tivesse ouvido dizendo isso, uma ou duas vezes.

Gardener assentiu.

— Bem, creio que isso define a situação que temos aqui. Se eu não acreditar na evidência de meus sentidos, terei de acreditar que estou louco. Aliás, Deus é testemunha de que no mundo há gente de sobra que ficaria feliz em afirmar que não sou outra coisa.

— Você não está louco, Gard.

Roberta falou suavemente e pousou a mão sobre a dele. Gardener virou a mão e apertou a dela.

— Bem, sabe como é... um homem que baleou a esposa... Certas pessoas diriam ser uma evidência bastante convincente de insanidade, sabia?

— Ora, Gard, isso foi há oito anos atrás!

— Certo. E o sujeito em quem dei uma cotovelada na maminha, bem isso foi há oito dias atrás. Também persegui um cara pelo corredor da casa de Arberg e sua sala de estar, atacando-o com um guarda-chuva, já lhe contei? Meu comportamento nestes últimos oito dias foi cada vez mais autodestrutivo...

— Olá, pessoal! Sejam todos bem-vindos, uma vez mais, à Hora Nacional da Autopiedade! — cantarolou Bobbi Anderson alegremente. — O convidado desta noite é...

— Eu pretendia matar-me ontem de manhã — disse Gardener, em voz sumida. — Se não houvesse captado essas vibrações — vibrações realmente fortes — de que você estava em apuros, a estas horas já seria comida de peixe.

Roberta encarou-o fixamente. Sua mão apertada pela dele estava doendo.

— Está mesmo falando sério? Cristo!

— É claro que estou. Quer saber a que ponto a situação ficou arruinada? Pareceu-me a coisa mais lúcida a fazer, em vista das circunstâncias.

— Não acredito!

— É a verdade. Então me surgiu aquela idéia. A idéia de que você estava em apuros. Assim, adiei o suicídio, até ligar para você. Só que não a encontrei em casa.

— É provável que estivesse na floresta — disse Roberta. — E então, você veio correndo. — Ela levou a mão dele à boca e a beijou delicadamente. — Se toda essa loucura nada mais significa, pelo menos quer dizer que você está vivo, seu cretino.

— Como sempre, fico impressionado pelo alcance quase gaulês de seus cumprimentos, Bobbi.

— Se isso o impressiona tanto, farei com que seja escrito em sua sepultura, Gard. CRETINO, em letras esculpidas com profundidade suficiente para não se gastarem, pelo menos durante um século.

— De qualquer modo, obrigado — disse Gardener. — Porém não precisará preocupar-se com isso por algum tempo. Porque continuo na mesma.

— Como assim?

— Ainda com aquela sensação de que você está em apuros.

Ela tentou desviar os olhos, tentou puxar a mão.

— Olhe para mim, Bobbi, raios!

Por fim, com relutância, Roberta olhou para ele, o lábio inferior ligeira-mente espichado para fora, naquela expressão de teimosia que Gardener conhecia tão bem — só que não parecera um tanto sem jeito? Ele achava que sim.

— Tudo isto parece tão maravilhoso — a casa inteira com eletricidade fornecida por pilhas tipo D, livros que se escrevem sozinhos. Deus sabe o que mais... Então, por que eu deveria sentir que você está em apuros?

— Não sei — disse ela maciamente.

Então, levantando-se, foi lavar os pratos.

 

— É claro que trabalhei como uma condenada, até quase cair de exaustão — disse Roberta. Estava agora de costas para ele, e Gardener tinha a impressão de que ela achava isso ótimo. Os pratos chocalhavam na água quente e espumosa de sabão. — E eu não diria apenas: “Alienígenas vindos do espaço, mediocridades, energia elétrica boa e barata, telepatia, um grande negócio”, sabe como é. Meu carteiro está enganando a esposa, eu sei — e não quero ficar sabendo, droga, não fico espionando, mas a coisa estava lá, Gard, bem na frente da cabeça dele! Não enxergá-la seria como não enxergar um anúncio de néon com trinta metros de altura. Cristo, eu estive balançando e girando!

— Entendo — disse ele, e pensou: Ela não está dizendo a verdade, pelo menos não toda, mas talvez nem saiba disso. — Resta a pergunta: o que faremos agora?

— Não sei. — Ela se virou, mas viu as sobrancelhas erguidas de Gard e acrescentou: — Pensou que eu lhe daria a resposta em um claro e pequeno ensaio, de quinhentas palavras ou menos? Não posso. Tenho tido algumas idéias, mas só isso. Talvez nem mesmo sejam aproveitáveis. Creio que a primeira providência é levá-lo até lá, a fim de que possa

(ser persuadido)

dar uma olhada na coisa. Depois então... bem...

Gardener ficou olhando para ela por um longo momento. Bobbi não desviou os olhos desta vez; manteve-os bem abertos e francos. Não obstante, ali havia algo errado, havia uma nota falsa e desafinada. Como aquela falsa nota de enternecimento na voz, quando ela mencionara Peter. Talvez as lágrimas houvessem sido reais, porém esse tom... aquele tom... estavam inteiramente deslocados.

— Está bem. Daremos uma espiada em sua nave na terra.

— Oh, primeiro vamos almoçar — disse ela, placidamente.

— Está com fome novamente?

— Claro. Você não?

— Céus, não!

— Então, comerei por nós dois — disse Roberta.

E foi exatamente o que fez.


 

GARDENER DECIDE

— Santo Deus!

Gardener sentou-se pesadamente sobre um montículo fresco de terra. Ali, a questão era sentar-se ou cair. A sensação era de ter sido duramente esmurrado no estômago. Não; era mais estranho e mais radical do que isso. A impressão foi de que alguém lhe enfiasse na boca a mangueira de um aspirador de pó industrial e o ligasse, de maneira a sugar todo o ar de seus pulmões em um segundo.

— Santo Deus! — repetiu ele, em voz sumida e sem fôlego, como se isso fosse tudo quanto pudesse fazer.

— É um negócio e tanto, não acha?

Estavam na metade da encosta, não muito longe de onde Roberta encontrara o cadáver da marmota. Antes, a encosta havia sido profusamente coberta de vegetação. Agora fora aberta uma alameda entre as árvores, a fim de permitir a passagem de um estranho veículo, que Gardener quase reconheceu. Estava parado na borda da escavação de Roberta, seu tamanho minimizado pela própria escavação e a coisa que estava sendo desenterrada.

No momento, a trincheira tinha uns setenta metros de comprimento e uns sete de largura, em cada extremidade. O corte chegava a dez metros aproximadamente de largura, por talvez quatorze metros de comprimento total da fenda — o desenho assemelhava-se aos quadris de uma mulher, visto silhuetado. A borda acinzentada da nave, com sua curvatura agora triunfalmente revelada, erguia-se daquela fenda como a beirada de um gigantesco pires de chá metálico.

— Santo Deus! — Gardener ofegou novamente. — Olhe só para essa coisa!

— Eu tenho olhado — disse Bobbi com um pequeno sorriso distante, brincando em seus lábios. — Durante mais de uma semana, não venho fazendo outra coisa. Jamais vi nada mais lindo. E irá resolver um bocado de problemas, Gard. “Chegou um cavaleiro cavalgando e cavalgando...”

Isso varou o nevoeiro. Gardener se virou e olhou para Roberta, que bem podia ter estado à deriva nos lugares escuros de onde tinha vindo aquela coisa incrível. A expressão no rosto dela o deixou gelado. Os olhos de Bobbi não estavam perdidos na distância. Eram como janelas vazias.

— O que quer dizer?

— Humm? — Ela olhou em torno, como que saindo de profundo transe.

— O que quis dizer com isso de cavaleiro?

— Quis dizer você, Gard. Quis dizer eu. Contudo, acho que... acho que me referi principalmente a você. Vamos descer até lá e dar uma espiada.

Ela começou a descer rapidamente a encosta, com a graça casual da experiência anterior. Talvez houvesse descido uns quatro metros, antes de perceber que Gardener não a acompanhava. Olhou para trás. Ele se levantara do montículo, mas era tudo.

— Essa coisa não irá mordê-lo — disse Roberta.

— Não? E o que fará comigo, Bobbi?

— Nada! Eles estão mortos, Gard! Seus Tommyknockers eram suficientemente reais, porém também eram mortais, e esta nave deve ter estado aqui pelo menos cinqüenta milhões de anos. A geleira se rompeu em torno dela! Cobriu-a, mas não podia movê-la. Nem mesmo todas aquelas toneladas de gelo foram capazes de movê-la! Assim, a geleira se fendeu em torno dela. A gente pode espiar dentro da escavação e vê-la, como uma onda congelada. O Dr. Borns, da universidade, ficaria babando de euforia com este negócio... mas eles estão bem mortos, Gard.

— Você já esteve lá dentro? — perguntou ele, ainda imóvel.

— Não. O postigo — eu acho, sinto que existe algum — ainda está enterrado. Entretanto, isso não altera o que eu sei. Eles estão mortos, Gard. Mortos!

Eles estão mortos, você ainda não entrou na nave, mas esteve inventando coisas em um acesso de velocidade, como Thomas Edison, e consegue ler mentes. Portanto, eu repito; o que essa coisa irá fazer a mim?

Então, ela lhe disse a maior mentira de todas — disse-a calmamente, sem qualquer remorso.

— Nada que você não queira que lhe faça, Gard.

Após falar, ela recomeçou a descida, sem olhar para trás, a fim de ver se ele a seguia.

Gardener vacilou, a cabeça latejando miseravelmente, e então começou a descer atrás dela.

 

O veículo junto à trincheira era o velho caminhão de Bobbi — só que, antes disso, ele havia sido uma camioneta Country Squire. Roberta rodara nela de Nova Iorque ao Maine, quando tinha vindo para a universidade. Isso acontecera treze anos antes, a camioneta ainda era nova. Roberta viajara em sua camioneta pelas estradas até 1984, quando até mesmo Elt Barker, do posto Shell — único posto de gasolina e garagem de Haven — não se preocupava mais em aplicar um selo de inspeção no veículo. Então, em um fim de semana de trabalho frenético — eles haviam estado bêbados a maior parte do tempo, e Gardener ainda considerava uma espécie de milagre, o fato de ambos não terem ido pelos ares por causa da velha aparelhagem do maçarico de Frank Garrick — os dois recortaram o teto da camioneta, partindo da retaguarda do assento dianteiro e dali para trás, desta maneira transformando o veículo em um estropiado e mal planejado caminhãozinho.

—Veja só, Gard-velho-Gard! — proclamara solenemente Bobbi Anderson, contemplando o que restara da camionete. — Nós dois conseguimos fabricar um verdadeiro bombardeiro de campanha!

Em seguida, inclinando-se para diante, ela vomitara. Gardener a tomara nos braços e carregara para a varanda (com Peter cruzando ansiosamente por entre seus pés, o tempo todo). Ao chegar com Bobbi na varanda, ela havia desmaiado. Gardener a depositara cuidadosamente no chão, e depois também perdera os sentidos.

O dilapidado veículo, velho e grandalhão produto das fábricas de Detroit, havia sido um osso duro de roer durante seu resto de vida ativa, mas finalmente entregara os pontos. Roberta o colocara à venda, em um canto do jardim, alegando que ninguém desejaria comprá-lo, nem mesmo as peças. Gardener achava que ela apenas se mostrara sentimental a respeito.

Agora, o pequeno “caminhão” ressuscitara — embora mal exibisse alguma semelhança com o veículo, exceto pela tinta azul e pelos remanescentes laterais de madeira falsa que haviam sido uma das características comerciais do Country Squire. A porta do motorista e a maioria da extremidade dianteira tinham desaparecido por completo. Esta última, havia sido substituída por um estranho aglomerado de equipamento para cavar e remover terra. Aos olhos perturbados de Gardener, o caminhão de Roberta agora assemelhava-se a uma desordenada máquina de terraplenagem de criança. Algo com a aparência de uma gigantesca lâmina de chave de fenda, projetava-se do lugar onde estivera o radiador. O motor parecia ter sido inteiramente arrancado do bojo de um velho Caterpillar D-9.

Onde foi que arranjou esse motor, Bobbi? Como conseguiu removê-lo de onde estava, para onde se encontra agora? Minha nossa!

Tudo isto, no entanto, por mais extraordinário que fosse, foi incapaz de reter sua atenção por mais de um ou dois momentos. Ele caminhou através da terra removida até onde estava Bobbi, em pé e com as mãos nos bolsos, espiando a fenda feita no solo.

— O que acha disto, Gard?

Ele não sabia o que achar e, por outro lado, estava sem fala.

A escavação chegava a uma profundidade realmente surpreendente: dez a quinze metros, supôs Gardener. Se o ângulo do sol não estivesse precisamente reto, seria impossível avistar o fundo da trincheira. Havia um espaço de cerca de um metro, entre o lado da escavação e o volume liso da nave. A superfície metálica era absolutamente uniforme, sem fendas. Não existiam números, símbolos, figuras ou hieróglifos sobre ela.

No fundo da escavação, a coisa desaparecia na terra. Gardener meneou a cabeça. De boca aberta, ainda sem encontrar palavras, tornou a fechá-la.

A parte do casco em que Roberta havia tropeçado e depois tentara mover com a mão — imaginando que fosse uma lata ali esquecida, após um fim de semana de lenhadores — agora ficava diretamente à frente do nariz de Gardener. Ele poderia tê-la tocado sem dificuldade, através daquele espaço de um metro, como a própria Roberta havia feito, apenas duas semanas atrás... com uma diferença: quando ela tocara a borda da nave pela primeira vez, estava ajoelhada no chão. Gardener estava em pé. Ele havia notado vagamente a transformação que houvera naquela encosta — terra acidentada e lodosa, árvores que tinham sido cortadas e removidas dali, troncos arrancados como dentes apodrecidos — porém além dessa observação momentânea, passara a pensar em outras coisas. Teria observado melhor, se Roberta lhe houvesse dito quanto da encosta tinha escavado. A elevação do terreno naquele ponto, dificultava a escavação... e então ela simplesmente removera metade do lado da elevação, para facilitar sua tarefa.

Disco voador, pensou Gardener fracamente, e então: Eu dei o salto. Isto é uma fantasia da morte. A qualquer segundo recuperarei os sentidos e me verei tentando respirar água salgada. A qualquer segundo. Apenas um velho segundo.

Exceto que nada disso aconteceu ou aconteceria, porque tudo ali era real. Aquilo era um disco voador.

E isso, de certo modo, era o pior. Não se tratava de uma espaçonave, de alguma nave alienígena ou de veículo extraterrestre. Era um disco voador. Eles haviam sido rejeitados pela Força Aérea, por cientistas racionais, por psicólogos. Nenhum escritor de ficção científica que se prezasse colocaria um em sua história e, se o colocasse, nenhum editor que se prezasse poria tal publicação no mercado. Os discos voadores haviam saído de moda, mais ou menos ao mesmo tempo que Edgar Rice Burroughs e Otis Adelbert Kline. Eram a mais velha piada existente. Discos voadores se tinham tornado passé; em si, a idéia era uma anedota, naqueles dias alcançando espaço mental apenas entre criaturas extravagantes, religiosos excêntricos e, naturalmente, os jornais tablóides, onde qualquer provisão semanal de notícias tinha que incluir pelo menos uma história de discos, como FILHA DE SEIS ANOS ENGRAVIDADA POR ALIENÍGENA DE DISCO VOADOR, REVELA MÃE EM LÁGRIMAS.

Por alguma singular razão, tais histórias sempre pareciam originar-se do Brasil ou New Hampshire.

No entanto, ali estava uma dessas coisas — estivera ali o tempo todo, enquanto séculos passavam acima de seu casco com minutos. Subitamente ocorreu-lhe uma linha do Gênese, fazendo-o estremecer, como se ao seu lado houvesse passado uma rajada de vento gélido: Naqueles dias havia gigantes na terra.

Ele se virou para Roberta, com olhos quase suplicantes.

— Isto é real? — perguntou, em não mais do que um sussurro.

— Sim, é real. Toque-o.

Ela bateu no casco com os nós nos dedos, novamente produzindo aquele som cavo de dedos contra mogno. Gardener esticou o braço... mas tornou a puxá-lo de volta. Uma expressão aborrecida surgiu no rosto de Roberta, passando como uma sombra.

— Eu já lhe disse, Gard, isso não irá mordê-lo.

— Não me fará nada que eu não queira que faça.

— Exatamente!

Gardener refletiu — tanto quanto lhe era possível refletir, em seu atual estado de candente confusão — que um dia acreditava nisso, com relação à bebida. E já que pensava no assunto, tinha ouvido pessoas dizerem — a maioria delas seus alunos de faculdade, em inícios dos anos 70 — a mesma coisa sobre várias drogas. Muitas haviam terminado em clínicas ou sessões de orientação sobre drogas, com sérios problemas no nariz.

Diga-me uma coisa, Bobbi: você pretendia trabalhar até cair? Desejava tanto perder peso, a ponto de parecer uma anoréxica? Acho que tudo quanto realmente quero saber é: você agiu por impulso próprio ou foi impulsionada? Por que mentiu sobre Peter? Por que não ouço pássaros nestas árvores?

—Vamos — disse Roberta, pacientemente. — Já conversamos um pouco e teremos que tomar sérias decisões. Não quero vê-lo indo embora a meio caminho, alegando ter decidido que tudo não passava de alucinação, escapada de uma garrafa de bebida.

— É asqueroso falar dessa maneira.

— Também é asqueroso a maioria das coisas que as pessoas realmente têm a dizer. Você já teve delirium tremens antes. Sabe disso tanto quanto eu.

Sim, mas a Bobbi de antigamente jamais abordaria isso... ou, pelo menos, não dessa maneira.

— Toque a coisa e acreditará. É tudo quanto posso dizer.

— Fala de um jeito que isso parece importante para você.

Roberta mudou o peso do corpo para o outro pé, inquietamente.

— Tudo bem — disse Gardener. — Tudo bem, Bobbi.

Tornou a esticar o braço e aferrou a borda da nave, mais ou menos como fizera Roberta, naquele primeiro dia. Ficou cônscio — demasiado cônscio — da expressão de pura ansiedade que se espalhou sobre o rosto dela. Era o rosto de alguém esperando a explosão de um artefato pirotécnico. Aconteceram várias coisas, quase simultaneamente.

A primeira foi um senso de vibração que penetrava por sua mão — a espécie de vibração que se poderia sentir, ao colocarmos a mão sobre um poste de energia que sustente fios de alta-voltagem. Por um momento, ele teve a sensação de que sua carne entorpecida, como se a vibração se movesse a uma velocidade incrivelmente alta. Depois a sensação passou. Enquanto isso, a cabeça de Gardener se encheu de música, porém tão alta, que mais pareciam gritos do que notas musicais. Em comparação, o que tinha ouvido na noite anterior era como um sussurro — agora, a impressão era de encontrar-se dentro de um alto-falante estéreo, com o volume ligado ao máximo.

 

O dia me entedia, mas acho que não ligo,

Trabalhar em escritório não me leva aonde quero.

Quando possível, vou em casa pr...

 

Ele estava abrindo a boca para gritar, quando o ruído cessou de todo, abruptamente. Gardener conhecia a canção, muito popular quando ainda estava no curso primário. Mais tarde, ele cantaria o trecho que ouvira, marcando no relógio enquanto isso. A seqüência parecia ter durado um ou dois segundos, em vibração de alta velocidade; um jato de música ensurdecedora, mal durando doze segundos; depois, o nariz sangrando.

Dizer que o ruído quase lhe explodira os tímpanos, era errado. Ele quase lhe explodira a cabeça. Não o captara através dos ouvidos, em absoluto. Ele penetrara em sua cabeça como uma flecha, partindo da maldita placa metálica em sua testa.

Viu que Roberta recuava em passos incertos, as mãos abertas em um gesto que parecia alertá-lo. Sua expressão de ansiedade passou para uma de surpreso medo, perplexidade e dor.

A última coisa, foi que a dor de cabeça dele parou.

De maneira absoluta e total.

Seu nariz, entretanto, não estava apenas sangrando: jorrava sangue.

 

— Vamos, pegue. Pelo amor de Deus, Gard, você está bem?

— Logo estarei ótimo — respondeu ele, a voz ligeiramente amortecida pelo lenço dela, que havia dobrado e colocado sobre o nariz, pressionando com firmeza. Jogou a cabeça para trás e o sabor limoso do sangue começou a encher-lhe a garganta. — Já tive piores do que isto.

Claro que tivera... mas fora há muito tempo.

Os dois haviam-se afastado cerca de dez passos da borda da escavação e estavam sentados sobre um tronco caído. Bobbi olhava para ele, ansiosa.

— Por Deus, Gard, eu não sabia que ia acontecer uma coisa assim. Acredita em mim, não?

— Claro — respondeu ele. Ignorava o que, precisamente, Bobbi estivera esperando... porém não era aquilo. — Você ouviu a música?

— Não a ouvi, propriamente — disse ela. — Captei-a de sua cabeça, em segunda mão. Quase me rompeu os ouvidos.

— É mesmo?

— É. — Bobbi riu, um tanto trêmula. — Quando estou entre várias pessoas, eu as desligo e...

— Você pode fazer isso?

Gardener tirou o lenço de sobre o nariz. Estava encharcado de sangue — poderia ser torcido entre os dedos e expeliria sangue, em um pequeno filete. O fluxo, no entanto, finalmente começava a diminuir... graças a Deus. Ele largou o lenço e rasgou um pedaço da fralda da camisa.

— Posso — disse Roberta. — Bem... não de todo. Não consigo desligar os pensamentos completamente, mas posso baixar-lhes o volume, de maneira a se tornarem como... bem, como um fraco murmúrio no fundo de minha mente.

— Isso é incrível!

— Isso é necessário — disse ela, em tom seco. — Se não conseguisse fazer isso, acho que nunca mais sairia desta maldita casa. Estive em Augusta, no sábado, e abri a mente, para ver como seria.

— E descobriu.

— Sim, descobri. Era como ter um furacão dentro da cabeça. E, o pior da coisa, era a dificuldade para tornar a fechar a porta.

— Essa... barreira... seja o que for... como é que a constrói?

Roberta meneou a cabeça.

— Não sei explicar, da mesma forma como um sujeito capaz de mexer as orelhas não saberia explicar como faz isso.

Ela pigarreou e baixou os olhos para os pés por um momento — pés calçados em lamacentas botas de trabalho, como Gardener pôde ver. Pareciam não ter deixado os pés dela por muito tempo, nas duas últimas semanas.

Bobbi sorriu de leve. Era um sorriso constrangido e dolorosamente humorista ao mesmo tempo — e, naquele momento, assemelhava-se em tudo à velha Bobbi. Aquela que continuara sua amiga, depois que ninguém mais queria sê-lo. Era a expressão tímida de Bobbi — Gardener a tinha visto assim que a conhecera, quando Bobbi era aluna caloura de Inglês e Gardener um professor calouro de Inglês, esforçando-se pateticamente em uma tese para PhD que, sem dúvida, talvez já soubesse que jamais a terminaria. De ressaca e sentindo-se irritável, Gardener perguntara a seu bando de novos calouros qual era o caso dativo. Ninguém respondeu, e Gardener já se preparava para ter o maior prazer deixando-os em apuros, quando Anderson, Roberta, 5ª fileira, 3º assento, ergueu a mão e acabou com a alegria dele. Sua resposta foi hesitante... mas correta. Não surpreendentemente, ela se revelou a única da turma que tivera Latim no ginásio. O mesmo sorriso tímido que ele via agora, estivera então no rosto de Bobbi, e Gard sentiu uma onda de afeição impregná-lo. Merda, Bobbi havia passado um mau pedaço... mas esta era Bobbi. Não havia dúvidas quanto a isso.

— Mantenho as barreiras erguidas a maior parte do tempo, afinal — ela estava dizendo. — Caso contrário, seria como espionar em janelas. Lembra-se de eu lhe ter dito que meu carteiro, Paulson, estava tendo um caso com alguém?

Gardener assentiu.

— Aí está algo que não me interessa saber. Tampouco me interessa se alguma pobre coitada é cleptomaníaca ou se algum cara costuma beber às escondidas... como vai seu nariz?

— O sangramento parou — Gardener havia jogado o pedaço ensangüentado de camisa ao lado do lenço dela. — Então, você mantém os bloqueios levantados, hein?

— Isso mesmo. Prefiro mantê-los assim, sejam quais forem os motivos —morais, éticos ou apenas para não encher minha cabeça com o maldito barulho. Com você não me dou a esse trabalho, porque captava mal, mesmo me esforçando. Tentei umas duas vezes e posso compreender se ficar zangado, mas foi apenas curiosidade, já que ninguém mais é... em branco... desse jeito.

— Ninguém mais?

— Isso mesmo. Deve existir algum motivo para isso, qualquer coisa como ter um tipo de sangue muito raro. Aliás, talvez seja isso.

— Lamento, mas sou tipo O.

Roberta riu e levantou-se.

— Sente-se bem para voltarmos, Gard?

É a placa em minha cabeça, Bobbi. Ele quase disse isto, mas então, por algum motivo, resolveu ficar calado. A placa em minha cabeça impede que você leia meus pensamentos. Não sei como descobri isso, mas tenho certeza.

— Sim, agora estou ótimo — respondeu. — Eu podia tomar

(um drinque)

uma xícara de café, eis tudo.

— Prometido. Vamos indo!

 

Enquanto uma parte dela estivera reagindo a Gard com o calor e sincera afeição que sempre dedicara a ele, mesmo durante os piores momentos, outra parte (aquela que, estritamente falando, não era mais Bobbi Anderson) permanecia de lado com frieza, vigiando tudo cautelosamente. Avaliando. Questionando. E a primeira pergunta era se

(eles)

ela realmente desejava Gardener por perto. Ela

(eles)

achara (acharam) a princípio que todos os seus problemas estavam resolvidos, que Gard tomaria parte na escavação. Assim, ela não teria mais que fazer aquilo... bem, esta parte inicial... sozinha. Gard tinha razão em uma coisa: tentar fazer tudo aquilo sozinha, quase e matara. Entretanto, a mudança que esperara ver nele não havia acontecido. Somente aquele assustador sangramento nasal.

Se a coisa fizer seu nariz sangrar dessa maneira, ele não tornará a tocá-la. Não vai querer tocá-la e certamente não quererá entrar lá.

Talvez não haja necessidade. Afinal, Peter nunca a tocou. Não queria nem chegar perto, mas seu olho... e a reversão de idade...

Não é a mesma coisa. Gard é um homem, não um idoso cão beagle. E, enfrente isto, Bobbi, com exceção do sangramento do nariz e daquele jato de música, não houve qualquer mudança, em absoluto.

Nenhuma mudança imediata.

Será por causa da placa de aço em seu crânio?

Talvez... mas por que algo assim faria alguma diferença?

Aquela frígida parte de Bobbi não sabia; imaginava apenas que podia ser uma probabilidade. A própria nave irradiava alguma espécie de força, tremenda e quase animada; o que quer que existisse dentro dela estava morto, Roberta tinha certeza de que não mentira sobre isso, mas a nave em si estava quase viva, irradiando aquele gigantesco padrão energético através de sua pele metálica... e, quanto a isto não havia dúvidas, a área transmissora aumentava seu leque aos poucos, à medida que cada centímetro de superfície ia ficando livre na escavação. Essa energia se tinha comunicado a Gard. Só que então ela havia — o quê?

Havia sido convertida, de algum modo. Primeiro convertida, depois transmitida em uma curta, mas ferozmente potente irradiação radiofônica.

E agora, o que faço?

Ela ignorava, mas sabia que não importava.

Eles lhe diriam o que fizer.

Chegada a hora, eles lhe diriam.

Nesse meio tempo, ficaria à espreita, valia a pena vigiá-lo. Se pelo menos pudesse lê-lo! Seria tão mais simples, se pudesse lê-lo!

Uma voz respondeu friamente: Embebede-o. Então, conseguirá lê-lo. Então, conseguirá lê-lo perfeitamente bem.

 

Eles tinham ido no Tomcat, que não voava em absoluto, mas rodava pelo solo como sempre fizera — só que, em vez do chocalhar anterior e do ronco do motor, ele agora rodava em um silêncio tão completo, que chegava a ser sobrenatural.

Saíram das matas e seguiram ao longo da borda da horta. Roberta estacionou o Tomcat no lugar em que estivera parado pela manhã.

Gardener ergueu os olhos para o céu, que começava a ficar novamente nublado.

— É melhor colocá-lo no galpão, Bobbi — aconselhou.

— Ele ficará bem aqui — replicou ela, lacônica.

Guardando a chave no bolso, começou a caminhar para a casa. Gardener relanceou os olhos na direção do galpão, acompanhou Bobbi e então olhou para trás. Havia um enorme cadeado Kreig na porta do galpão.

Aquilo era mais uma nova adição. E a floresta, sem brincadeira, já parecia cheia delas.

O que você guarda lá dentro? Uma máquina do tempo, também funcionando à base de pilhas e baterias? O que a Nova e Melhorada Bobbi tinha lá dentro?

 

Quando ele entrou na casa, Bobbi remexia na geladeira. Tirou de lá duas cervejas.

— Falava sério sobre o café ou prefere uma destas?

— Que tal uma Coca? — perguntou Gardener. — Discos voadores combinam melhor com Coca, eis o meu lema — acrescentou, rindo um tanto intempestivamente.

— Tudo bem — disse Bobbi, mas então parou, quando ia guardar as latas de cervejas e pegar duas de Coca. — Eu fiz, não fiz?

— O quê?

— Levei você lá e lhe mostrei. A nave. Não foi?

Jesus, pensou Gardener. Jesus Cristo!

Durante um momento, parada junto à geladeira com as latas nas mãos, ela percebeu alguém com a doença de Alzheimer.

— Sim — disse Gardener, sentindo a pele gelar. — Você levou.

— Que bom! — exclamou ela, aliviada. — Eu achava que tinha levado.

— Bobbi... você está bem?

— Claro — respondeu ela, para acrescentar descuidadamente, como se fosse algo de pouca ou nenhuma importância: — Acontece apenas que não recordo grande coisa, desde que saímos de casa até agora. Enfim, acho que isso não importa muito, certo? Tome, aqui tem sua Coca. Façamos um brinde à vida em outros mundos, o que me diz?

 

Assim, eles beberam à vida em outros mundos e então Roberta perguntou-lhe o que deveriam fazer com a espaçonave em que havia tropeçado, no seio da floresta aos fundos da casa.

— Nós não vamos fazer nada. Você é que fará alguma coisa.

— Já estou fazendo, Gard — disse ela suavemente.

— É claro que está — replicou ele, algo teimosamente, — mas eu me refiro a alguma decisão final. Terei prazer em dar-lhe todos os conselhos que quiser — nós, os bêbados poetas arruinados, somos ótimos para aconselhar — mas no fim, você irá ter que fazer alguma coisa. Algo de alcance um pouco maior do que apenas continuar escavando. Porque aquilo lá é seu. Está enterrado em sua terra, portanto, é seu.

Roberta pareceu chocada.

— Você não está realmente pensando que aquela coisa pertence a alguém, está? Ora, só porque o tio Frank me legou sua propriedade por testamento? Porque ele tinha um título de posse legítimo, recuando até parte de terras da coroa que o Rei George III surrupiou dos franceses, depois que os franceses as surrupiaram dos índios? Santo Deus, Gard, aquela coisa tinha cinqüenta milhões de anos de idade, quando os antepassados de toda a maldita raça humana ficavam acocorados em suas cavernas e esgaravatavam o nariz!

— Estou certo de que essa é a mais pura verdade — declarou Gardener secamente, — porém não modifica a lei. E, por outro lado, pretende ficar aí sentada e me dizer que não se sente dona daquilo?

Roberta pareceu perturbada e pensativa ao mesmo tempo.

— Dona? Bem... eu não diria isso. Sinto-me com responsabilidade sobre aquilo, não possessividade.

— Seja lá como for. No entanto, já que pediu minha opinião, eu a darei. Ligue para a Base Aérea em Limestone. Diga a quem atender, que você encontrou um objeto não identificado enterrado em sua terra, aparentando ser uma avançada máquina voadora de alguma espécie. É possível que enfrente algum problema inicial, mas conseguirá convencê-los. Em seguida...

Bobbi Anderson riu. Riu com vontade, forte e ruidosamente. Eram risadas sinceras, nada havendo de mesquinho a respeito, mas mesmo assim.

Gardener ficou muito pouco à vontade. Ela riu, até as lágrimas lhe descerem pelas faces. Quanto a ele, acabou ficando tenso com aquilo.

— Sinto muito — disse Roberta, vendo a expressão dele. — Apenas... custo a crer que esteja ouvindo isto, logo de você. Compreende... para mim é... — Ela recomeçou a rir. — Bem, é um choque. Como ouvir um pregador batista, dizendo que beber é ótimo para conter a luxúria.

— Não entendo o que quer dizer.

— É claro que está. Estarei ouvindo o sujeito que foi preso em Seabrook com uma arma na mochila, o sujeito que acha que o governo só ficará realmente feliz quando todos cintilarmos no escuro como mostradores de rádio dos relógios, dizer-me que ligue para a Força Aérea, a fim de que eles venham aqui e tomem posse de uma espaçonave interestelar?

— A terra é sua...

— Ora, merda, Gard! Minha terra é tão vulnerável ao domínio eminente do governo dos Estados Unidos como a de qualquer outra pessoa. É o domínio eminente que providencia a construção das estradas de pedágio.

— E, algumas vezes, de reatores nucleares.

Bobbi ficou olhando para ele em silêncio.

— Reflita no que está dizendo — falou pouco depois. — Três dias após eu ter feito semelhante ligação, nem a terra e nem a nave seriam mais “meus”. Seis dias depois, eles teriam cercado com arame farpado a propriedade inteira e colocariam sentinelas a cada quinze metros. Seis semanas mais tarde, você provavelmente descobriria que oitenta por cento da população de Haven vendeu o que tinha, foi expulsa... ou simplesmente desapareceu. Eles fariam isso, Gard. Você sabe que podem fazer. E então eu pergunto ainda quer que eu pegue o telefone e chame a Polícia de Dallas?

— Bobbi...

— Sim, tudo se resume nisto. Descobri urna espaçonave alienígena e você quer que eu a transfira à Polícia de Dallas. Acredita que eles viriam aqui e diriam: “Por favor, acompanhe-nos a Washington, Srta. Anderson. Os chefes do estado-maior estão sumamente ansiosos em ouvir o que tem a dizer sobre a questão, não apenas porque é proprietária — bem, era proprietária — da terra em que se encontra a coisa, mas porque os chefes do estado-maior sempre consultam escritores de faroeste antes de decidirem o que fazer sobre tais assuntos. Além disso, o Presidente a quer na Casa Branca, a fim de saber o que pensa. Em adição, ele pretende dizer-lhe o quanto gostou de ler Rimfire Christimas”. Acredita mesmo nisso?

Roberta jogou a cabeça para trás e, desta vez, suas gargalhadas foram desatinadas, histéricas, francamente assustadoras. Gardener, contudo, mal prestou atenção. Teria mesmo pensado que eles iriam ali e seriam polidos? Tendo em jogo algo tão potencialmente gigantesco como este? A resposta era não. Eles se apoderariam da terra. Ele e Bobbi seriam amordaçados, impedidos de falar... mas isso talvez não fosse suficiente para eles se sentirem à vontade. Talvez até arquitetassem algum local que fosse uma singular mistura de gulag russo e refinado balneário Club Méditerranée. Onde tudo é de graça, havendo um único embargo: você nunca sai de lá.

Era bem possível que nem isso bastasse... portanto, presentes ao velório, omitam as flores. Então — e só então — os novos zeladores da nave dormiriam tranqüilos à noite.

Afinal de contas, o achado não era precisamente um artefato, como um vaso etrusco ou uma galeria de explosivos escavada do solo, no local de alguma batalha muito longínqua da Guerra Civil, certo? A mulher que encontrara a nave, posteriormente conseguira eletrificar toda a sua casa com pilhas tipo D... e ele estava agora pronto a crer que, embora a nova marcha do Tomcat ainda não estivesse funcionando, em breve o estaria.

E o que, exatamente, a faria funcionar? Microchips? Semicondutores? Não. Bobbi era o ingrediente extra adicionado, a Nova e Melhorada Bobbi Anderson. Bobbi. Ou talvez fosse alguém que estivesse próximo da coisa. E não se poderia permitir que... bem, que um cidadão comum ficasse de posse daquilo, certo?

— O que quer que seja aquilo — murmurou ele, — a maldita coisa deve ser um infernal dinamizador do cérebro. Ela a transformou em gênio.

— Não — disse Roberta calmamente. — Em idiot savant.

— O quê?

— Idiot savant. Há talvez uma meia dúzia deles em Pineland — é a instituição do estado para os seriamente retardados. Trabalhei lá dois verões, em um programa de estudo-trabalho, quando estava na universidade.

Havia um cara que podia multiplicar, de cabeça, dois números de seis dígitos, dando a resposta certa em menos de cinco segundos... ao mesmo tempo em que tanto era capaz de urinar nas calças ou não, enquanto fazia Isso.

Havia ainda um garoto de doze anos, com hidrocefalia. Sua cabeça era tão grande como uma abóbora premiada. No entanto, datilografava com perfeição, escrevendo uma média de cento e sessenta palavras por minuto. Não falava, não lia, não pensava, mas datilografava como um ciclone.

Roberta tirou um cigarro do maço e o acendeu. Destacando-se no rosto afilado e desfigurado, seus olhos concentraram-se fixamente em Gardener.

— Eis aí o que sou. Um idiot savant. É tudo quanto sou, e eles sabem disso. Essas coisas — aperfeiçoar a máquina de escrever, consertar o aquecedor de água — só me lembro delas em trechos fragmentados. Quando as estou fazendo, tudo parece claro como água. Mais tarde, no entanto... — Ela fitou Gardener com ar suplicante. — Você entendeu?

Ele assentiu.

— As instruções vêm da nave, como transmissões de rádio, emitidas por uma torre transmissora. Contudo, só porque um rádio consegue captar transmissões e enviá-las a um ouvido humano, isto não significa que esteja falando. O governo ficaria eufórico se me detivesse, trancasse em algum lugar e depois me picasse em pedacinhos, para verificar se houvera mudanças físicas... tão depressa quanto um infortunado acidente comigo daria a eles motivo para uma autópsia, sem mais nem menos.

— Tem certeza de que não está lendo minha mente, Bobbi?

— Tenho. Entretanto, acha mesmo que eles teriam escrúpulos, designando algumas pessoas para estudar uma coisa destas?

Gardener meneou a cabeça lentamente,

— Então, aceitar seu conselho se resumiria nisto — disse ela. — Primeiro, chamar a Polícia de Dallas; segundo, ser posta em custódia pela Polícia de Dallas; e terceiro, ser morta pela Polícia de Dallas.

Gard olhou para ela, perturbado, e depois disse:

— Tudo bem, entrego os pontos. No entanto, qual a alternativa? Terá que fazer alguma coisa. Cristo, esse negócio está acabando com você!

— Quê?

— Você perdeu quinze quilos — que tal, para começar?

— Quin... — Ela pareceu sobressaltada e inquieta. — Oh, não, de maneira nenhuma, Gard! Uns sete ou oito, talvez, mas afinal eu já estava ficando com culotes e...

— Pois então, pese-se — disse Gardener. — Se conseguir levar o ponteiro além das quarenta e oito, mesmo calçada e vestida, eu como a balança. Você adoecerá, caso perca mais alguns quilos! No estado em que se encontra, poderia apresentar um quadro de arritmia e morrer em dois dias.

— Eu precisava emagrecer. E estava...

— ...ocupada demais para comer, não era o que ia dizer?

— Bem, não exatamente nessas pal...

— Quando a vi ontem à noite, você parecia um sobrevivente da marcha da morte de Bataan. Sabia quem eu era... mas nada mais. E ainda não está andando nos trilhos. Cinco minutos depois de voltarmos para casa, depois de termos visitado seu realmente espantoso achado, você me perguntava se já havia me levado lá.

Os olhos dela continuavam pousados na mesa, porém ele podia ver-lhe a expressão: era dura e carrancuda. Gardener a tocou delicadamente.

— Tudo quanto lhe digo é: pouco importa o quão maravilhosa seja aquela coisa na floresta, porque ela tem feito coisas no seu corpo e mente, coisas que estão sendo terríveis para você.

Bobbi recuou, afastando-se dele.

— Se está querendo dizer que sou louca...

— Não, pelo amor de Deus, não estou dizendo isso! Entretanto, você poderá enlouquecer, se não diminuir o ritmo. Nega que tem tido períodos de amnésia?

— Isto é um interrogatório, Gard.

— Bem, para uma mulher que me pedia conselho há quinze minutos, você está sendo uma testemunha infernalmente hostil.

Os dois encararam-se com dureza por sobre a mesa, durante um momento. Ela cedeu primeiro.

— Amnésia não é a palavra correta. Não tente comparar o que lhe acontece ao beber demais, com o que vem acontecendo comigo. Não são a mesma coisa.

— Não vou discutir semântica com você, Bobbi. Está fugindo ao assunto e sabe disso. Aquele negócio lá no mato é perigoso. Para mim, apenas isso importa.

Roberta olhou para ele, com expressão impenetrável.

— Você acha que é — disse ela, suas palavras não sendo interrogativas nem afirmativas saíram absolutamente monótonas, sem inflexão.

— Você não apenas tem tido ou recebido idéias — disse Gardener. — Está sendo impulsionada

— Impulsionada.

A expressão dela não se modificou. Gardener esfregou a testa.

— Sim, impulsionada. Impulsionada da mesma forma que um homem ruim e idiota impulsionaria um cavalo, até ele cair morto... depois chicoteando-lhe a carcaça, porque o maldito animal teve a coragem de morrer. Um homem assim é perigoso para os cavalos, e o que quer que haja naquela nave... acho que representa perigo para Bobbi Anderson. Se eu não tivesse aparecido aqui...

— O quê? Se você não tivesse aparecido aqui, o que aconteceria?

— Penso que você continuaria fazendo o mesmo, trabalhando dia e noite, sem comer... e que, no fim de semana, estaria morta.

— Acho que não — disse Bobbi friamente, — mas apenas por amor à discussão, digamos que você está certo. Bem, estou nos trilhos agora.

— Você não está nos trilhos novamente, como não está bem.

Aquele ar distante voltam ao rosto dela, um olhar sugerindo que Gard dizia bobagens, as quais não mereciam ser ouvidas.

— Escute aqui — disse Gardener. — Estou com você em pelo menos uma coisa, sem tirar uma vírgula. Este é o maior, mais importante e totalmente espantoso negócio que já aconteceu. Quando for tornado público, as manchetes do Times de Nova Iorque vão fazê-lo parecer o National Enquirer. As pessoas irão trocar suas drogas de religião por causa disto, sabia?

— Claro.

— Isto não é um barril de pólvora; é a própria bomba A. Certo?

— Certo — concordou ela.

— Pois então, tira do rosto essa expressão ofendida. Se vamos falar a respeito da coisa, droga, vamos falar a respeito dela!

Roberta suspirou.

— Sim. Tudo bem. Sinto muito.

— Admito que errei, quanto a chamar a Força Aérea.

Eles conversaram juntos, riram juntos, e isso foi bom. Ainda sorrindo, Gard disse;

— Alguma coisa tem de ser feita.

— Também acho — disse Roberta.

— Ora, Bobbi, santo Deus! Fui reprovado em química e mal passei da física elementar. Não sei exatamente como será, mas posso dizer que... bem... vai ser desalentador ou coisa assim.

— Precisamos de alguns entendimentos.

— Isso! — exclamou Gardener, apegando-se à idéia. — Peritos!

— Gard... todos os peritos fazem trabalho forense para a Polícia de Dallas...

Gardener ergueu as mãos, desalentado.

— Agora que você está aqui — disse ela, — eu estarei bem. Tenho certeza.

— O contrário é mais provável. A primeira coisa a acontecer é que eu começarei tendo períodos de amnésia.

— Acho que o risco valeria a pena — disse Roberta.

— Você já tinha decidido, não é mesmo?

— Eu decidi o que quero fazer, claro. E o que quero fazer é ficar quieta a respeito, terminando a escavação. Nem mesmo será preciso escavar tudo, até o fim. Creio que tão logo eu — tão logo nós, espero — escavarmos a coisa até uma profundidade de mais quinze ou vinte metros, poderemos encontrar um postigo. Se conseguirmos entrar...

Os olhos de Bobbi cintilaram e Gardener sentiu um excitamento crescer dentro de si, em resposta à idéia. Todas as dúvidas do mundo não seriam capazes de anular tal excitamento.

— Se conseguirmos entrar? — repetiu ele.

— Se conseguirmos entrar, poderemos chegar aos controles. Então, farei aquela tralha voar, sair do solo.

— Acha que pode fazer isso?

— Sei que posso.

— E depois?

— Depois... não sei — disse Bobbi, encolhendo os ombros. Foi a melhor e mais eficiente mentira já dita até então... mas Gardener achou que era uma mentira. — Sei apenas que acontecerá o que tiver de acontecer.

— Bem, você disse que a decisão seria minha.

— Sim, é isso aí. No relacionado ao mundo exterior, tudo quanto posso fazer é continuar não dizendo. Se você decidir que vai contar, bem, o que eu poderia fazer para detê-lo? Baleá-lo com a espingarda do tio Frank? Eu não poderia. Talvez um personagem de um livro meu pudesse, mas não eu. Infelizmente, esta é a vida real, onde não há respostas reais. Creio que, na vida real, eu apenas ficaria aqui, de braços cruzados, vendo você ir.

— Entretanto, seja quem for que você chamar, Gard — cientistas da universidade lá de Orono, biólogos dos Laboratórios Jennings, físicos do MIT — quem quer que você chame, em realidade estará chamando a Polícia da Dallas. Você verá gente vindo para cá, em caminhões lotados de arame farpado e de homens armados. — Ela sorriu de leve. Pelo menos, eu não iria sozinha para aquele Clube Méditerranée da polícia estadual.

— Não?

— Não. Você também está metido nisto. Quando me levarem para lá, você estará bem ao meu lado, no assento vizinho. — O sorriso esmaecido ampliou-se, porém não havia muito humor nele. — Bem-vindo à jaula dos macacos, meu amigo. Está satisfeito por ter vindo?

— Encantado — disse Gardener e, de repente, os dois estavam gargalhando.

 

Cessada a hilaridade, Gardener percebeu que o ambiente na cozinha de Bobbi melhorara consideravelmente. Roberta perguntou;

— O que pensa que será da nave, caso a Polícia de Dallas se aposse dela?

— Já ouviu falar do Hangar 18? — perguntou Gard.

— Nunca.

— Segundo contam, supõe-se que o Hangar 18 seja parte da base da Força Aérea, nos arredores de Dayton. Ou de Dearborn. Ou de qualquer outro lugar. Algum lugar nos EUA. É onde se imagina que estejam os corpos de cerca de cinco homenzinhos, com feições de peixe e guelras no pescoço. Tripulantes de disco voador. É apenas uma daquelas histórias que se ouve contar, mais ou menos sobre como alguém encontrou uma cabeça de rato no hambúrguer do almoço ou como existem crocodilos nos esgotos de Nova Iorque. Somente agora, no entanto, eu me pergunto se isso é um conto de fadas. Seja como for, creio que seria o fim.

— Quer ouvir um daqueles contos de fadas modernos, Gard?

— Pode soltar.

— Já ouviu aquele — perguntou ela — sobre o sujeito que inventou uma pílula para substituir a gasolina?

 

O sol descia no poente, em meio a vivos clarões de tons avermelhados, amarelos e purpúreos. Gardener sentou-se em um grande toco de árvore no quintal de Bobbi Anderson, vendo-o ir-se embora. Haviam conversado pela maior parte da tarde, às vezes discutindo, em outras raciocinando ou argumentando. Bobbi encerrara a falação, declarando-se novamente faminta. Fez uma enorme panela de macarrão e fritou algumas grossas costeletas de porco. Gardener a acompanhara à cozinha, querendo continuar a discussão — os pensamentos rolavam em sua mente, como bolas em uma mesa de bilhar. Ela não quis. Ofereceu-lhe uma bebida, que Gardener, após uma longa e reflexiva pausa aceitou. O uísque desceu bem, o sabor era agradável, porém ele parecia necessitar de uma segunda dose — bem, não era uma necessidade forte. Agora, sentado ali após ter comido e bebido, olhando para o céu, ele supôs que Bobbi tinha razão. Haviam tido toda a conversa construtiva que era para terem.

Chegara o momento da decisão.

Bobbi comera até não poder mais.

— Vai acabar vomitando, Bobbi — disse Gardener, em tom sério, mas sem poder deixar de rir.

— Negativo — replicou ela placidamente. — Nunca me senti melhor. —Arrotou. — Em Portugal, isto é um cumprimento ao cozinheiro.

— E depois de uma boa trepada...

Gard levantou uma perna e peidou. Bobbi riu gostosamente.

Os dois lavaram os pratos. (Ainda não inventou nada que faça este serviço, Bobbi? — Inventarei, dê-me tempo.). Foram para a sala de estar, pequena e sem vida, não tendo mudado muito desde os tempos do tio dela, a fim de verem o jornal da noite. Nada ia bem. O Oriente médio fumegava de novo, com Israel lançando ataques aéreos contras as forças de terra sírias, no Líbano (e casualmente atingindo uma escola — Gardener pestanejou, vendo as crianças queimadas e chorosas), os russos atacavam fortes dos rebeldes afegãos nas montanhas, houvera um golpe de estado na América do Sul.

Em Washington, a NRC* elaborara uma lista de noventa instalações nucleares em trinta e sete estados, que apresentavam problemas de segurança indo de “moderados a sérios”.

Moderados a sérios, formidável, pensou Gardener, sentindo a velha e imponente raiva despertar e retorcer-se, ferindo-o como ácido. Se perdermos Topeka, serão moderados. Se perdermos Nova Iorque, serão sérios...

Percebeu que Bobbi o fitava com tristeza.

— A mesma história de sempre, não é? — disse ela.

— Sem tirar nem pôr.

Terminado o noticiário, ela anunciou que ia para a cama.

— Às sete e meia?

— Ainda estou enfraquecida — respondeu ela, e parecia mesmo.

— Tudo bem. Também logo irei dormir. Como vê, estou cansado. Foram dois dias loucos, mas com tanta coisa zumbindo em minha cabeça, não sei se conseguirei pegar no sono.

— Quer um Valium?

Gardener sorriu.

— Já vi que continuam lá. Não, obrigado. Você é que podia ter tomado um ou dois tranqüilizantes, nestas duas últimas semanas.

O preço do Estado do Maine por concordar com a decisão de Nora, quanto a não forçar as acusações, foi de que Gardener tomasse parte em um programa de aconselhamento profissional. O programa durara seis meses; o Valium, aparentemente, duraria para sempre. Em realidade, Gardener não tomara nenhum em quase três anos, mas de vez em quando — em geral quando viajava — mandava aviar uma receita. Caso contrário, algum computador podia arrotar seu nome, e um psicólogo, recebendo algumas pratas extras como cortesia do Estado do Maine, poderia dar as caras, a fim de certificar-se de que sua cabeça permaneceria reduzida a um tamanho conveniente.

Depois que ela foi para a cama, Gardener desligou a televisão e sentou-se durante algum tempo na cadeira de balanço, lendo Os guerreiros do búfalo. Dentro em pouco, podia ouvir Bobbi roncando. Gardener imaginou que aqueles roncos também fossem parte de uma conspiração para mantê-lo acordado, mas no fundo não se incomodava — Bobbi sempre roncara, aquilo era o resultado de um desvio de septo. Os roncos sempre o tinham irritado mas, na última noite, Gardener descobriu que certas coisas eram piores. O silêncio espectral em que ela dormira no sofá, por exemplo. Isso era muito pior.

Ele assomara com a cabeça por um instante, vira Bobbi em uma postura adormecida muito mais típica de Bobbi Anderson, vestindo apenas a parte de baixo do pijama, os pequeninos seios nus, os lençóis enrolados em desalinho entre suas pernas, uma das mãos enrodilhada sob a bochecha, a outra junto do rosto, o polegar quase enfiado na boca. Bobbi estava bem.

Em vista disto, ele saíra da casa para tomar sua decisão.

A horta de Bobbi daria uma bela produção — Gardener jamais vira pés de milho mais altos, em sua vinda de Arcádia Beach para o norte, e os tomates mereceriam o primeiro prêmio em uma exposição. Alguns tomateiros chegavam aos joelhos de um homem caminhando entre as fileiras plantadas. No meio deles havia um maciço de girassóis gigantes, agourentos como trífidos, assentindo à brisa ligeira.

Quando Bobbi lhe perguntara se já ouvira falar na chamada “pílula de gasolina”, ele sorrira, assentindo. Tudo bem, mais contos de fadas do século XX. Ela então havia perguntado se ele acreditava nisso. Ainda sorrindo, ele respondera que não. Bobbi recordou-lhe o caso do Hangar 18.

— Está dizendo que acredita na existência dessa pílula? Que ela existe? Uma coisa que bastava você deixar cair no tanque de gasolina, para rodar o dia inteiro com seu carro?

— Não — respondeu Bobbi placidamente. — Nada que já tenha lido sugeriu a possibilidade de uma tal pílula. — Ela se inclinou para diante, com os antebraços pousados sobre as coxas. — Entretanto, eu lhe direi em que acredito: se essa pílula existisse, não estaria no mercado. Algum grande cartel ou talvez o próprio governo logo a compraria... ou roubaria.

— Sim — concordou Gard.

Várias vezes ele já meditara nas loucas ironias inerentes em todo status quo: abrir as fronteiras dos Estados Unidos e deixar sem trabalho todo o pessoal das alfândegas? Legalizar a droga e destruir o DEA*? Seria como tentar lançar o homem à lua, com uma esfera de rolamento.

Gard começou a rir. Bobbi olhou para ele, intrigada, mas também rindo um pouco.

— O que foi? Também quero saber.

— Eu só estava pensando que, se houvesse uma pílula assim, a Polícia de Dallas fuzilaria seu inventor e depois o colocaria ao lado dos sujeitos verdes do Hangar 18.

— Não se falando em toda a família dela — concordou Bobbi.

Gard não riu desta vez. Ele agora não parecia tão divertido.

— Visto sob o mesmo prisma — havia dito ela. — olha para o que fiz aqui. Nem ao menos sou boa em trabalhos manuais e muito menos cientista de alguma coisa; a força que trabalhou através de mim produzido um punhado de engenhocas mais semelhantes aos diagramas da revista Boy’s Life, do que a qualquer outra coisa — por falar nisto, construído por um garoto razoavelmente incompetente.

— Engenhocas que funcionam — replicou Gard.

Roberta concordara. Sim, elas funcionavam. Bobbi tinha uma vaga noção da maneira como funcionavam — seria através de um princípio que poderia ser denominado “fusão de moléculas esvaziadas”. Era algo não-atômico, inteiramente inócuo. A máquina de escrever telepática, explicara, dependia da fusão de moléculas esvaziadas como fluxo, porém o verdadeiro princípio da coisa era muito diferente, ela não o entendia. Havia uma unidade de alimentação interna, que ganhava vida como demolidora de partículas finas mas, além disso, ela nada mais sabia adiantar.

— Se você trouxer para cá um bando de cientistas, sejam eles do escalão superior ou do inferior, provavelmente terão apreendido tudo isto com perfeição, dentro de seis horas — disse Roberta. — Eles irão de um lado para outro, como se alguém lhes tivesse chutado os colhões, perguntando uns aos outros como, diabo, deixaram escapar tais conceitos elementares por tanto tempo. E sabe o que acontecerá em seguida?

Gardener refletiu bastante na pergunta, de cabeça baixa, uma das mãos apertando a lata de cerveja que Bobbi lhe dera, a outra apertando a testa. De repente, recuou àquela festa hedionda e ouviu Ted, o Homem Energia, defendendo a central de Iroquois que, ainda agora, estava acondicionando bastões de núcleo: Se déssemos a esses maníacos opositores da energia nuclear o que eles querem, fariam meia volta um mês mais tarde e começariam e choramingar que não eram capazes de usar seus secadores de cabelo ou que seus eletrodomésticos não funcionavam, quando queriam preparar um bocado de comida macrobiótica. Ele se viu acompanhando Ted, o Homem Energia, até o bufê de Arberg — viu a cena tão claramente, como se tivesse acontecido... merda, como se estivesse acontecendo, nesse minuto. Sobre a mesa, entre as batatas fritas e a travessa de vegetais crus, estava um dos dispositivos de Bobbi. As pilhas eram conectadas a um painel de circuito; este, por seu turno, era ligado a um interruptor comum de parede, do tipo encontrado em qualquer loja de ferragens, por cerca de um dólar Gardener se viu ligando aquele interruptor e, de repente, tudo em cima da mesa — batatas fritas, vegetais crus, a mesinha rotativa sustentando suas cinco espécies diferentes de molho, os restos de carnes frias picadas e a carcaça da galinha, os cinzeiros, os drinques — tudo aquilo se ergueu por cinco centímetros no ar e simplesmente ficou imóvel em levitação, suas sombras formando decorosas manchas debaixo deles, em cima do atoalhado branco. Ted, o Homem Energia, olhou para o quadro por um momento, um tanto irritado. Então, arrancou o dispositivo de sobre a mesa. Os fios se soltaram. Pilhas rolaram para cá e para lá. Tudo voltou a cair em cima da mesa com ruído, copos entornaram, cinzeiros viraram, espalhando tocos de cigarro. Ted despiu seu paletó esporte e cobriu os remanescentes do dispositivo, da maneira como se cobre o cadáver de um animal atropelado e morto na estrada. Feito isto, tornou a virar-se para sua pequena platéia cativa e recomeçou a falar. Estas pessoas acham que podem continuar tendo seu bolo, que comerão dele eternamente. Estas pessoas presumem que sempre haverá uma posição de dependência. Estão enganadas. Não existe posição de dependência. É tudo muito simples: os reatores ou nada! Gardener ouviu-se gritar, em uma fúria inteiramente sóbria, para variar: E quanto à coisa que você acabou de quebrar? O que me diz disso? Ted se inclinara e recolhera o paletó esporte, tão graciosamente como um mágico exibindo a capa, diante de uma platéia embevecida. Nada havia no chão abaixo, exceto algumas batatas fritas. Nenhum sinal do dispositivo, de engenhoca. O menor sinal. De que coisa está falando? perguntou Ted, o Homem Energia, encarando Gardener com uma expressão de simpatia, em que havia de mistura uma boa dose de irritação. Ele se voltou para seus ouvintes. Alguém aqui viu alguma coisa?... Não, responderam todos em uníssono, como crianças recitando: Arberg, Patricia McCardle e todo o resto; até Ron Cummings e o jovem barman se juntaram ao coro. Não, nós não vimos nada, não vimos absolutamente nada, Ted, nada mesmo, você tem razão, Ted, são os reatores ou nada. Ted sorria. Se querem saber, a próxima coisa que ele nos dirá é aquela velha piada sobre a tal pílula que se pode colocar no tanque da gasolina e rodar um dia inteiro com o carro. Ted, o Homem Energia, começou a rir. Todos os outros riram também. Estavam todos rindo dele, Gardener.

Erguendo a cabeça, Gardener pousou em Bobbi um olhar agoniado.

— Você acha que eles fariam... o quê? Declarariam tudo isto oficialmente secreto?

— Você acha que não? — Após um momento, em voz muito suave, ela insistiu: — Então, Gard?

— Sim — respondeu ele após algum tempo e, por um instante, sentiu-se bem de perto das lágrimas. — Eles fariam isso. Tenho certeza de que fariam.

 

Agora, sentado em um toco de árvore no quintal de Bobbi, ele não tinha a menor idéia de que havia uma espingarda carregada, apontada para seu crânio.

Estava sentado ali, pensando em seu replay mental da festa. Era tão horrendo e tão absolutamente óbvio, que supôs poder ser perdoado pelo tempo que demorara a ver o quadro e captá-lo. A nave na terra não poderia ser encarada tendo em vista apenas o bem-estar de Bobbi ou o bem-estar de Haven. Pouco importando o que fosse, o que estivesse provocando em Bobbi ou mais alguém nas circunvizinhanças, o destino definitivo daquela espaçonave na terra teria que ser decidido tendo como base o bem-estar do mundo. Gardener trabalhara em dúzias de comitês, cujos objetivos iam do possível ao irrefletidamente insano. Fizera marchas de protesto; contribuíra com mais do que podia, para ajudar a pagar anúncios em jornais, relacionados a duas fracassadas campanhas para o fechamento da Yankee do Maine, por plebiscito; como estudante universitário, marchara em protesto contra o envolvimento dos Estados Unidos no Vietnã; pertencia ao Greenpeace; apoiava entidades ecológicas do país. Em meia dúzia de confusas maneiras, tentara trabalhar pelo bem-estar mundial, mas seus esforços, embora nascidos do pensamento individual, sempre haviam sido expressos como parte de um grupo. E agora...

Compete a você, Gard-velho-Gard. Apenas a você. Ele suspirou, e foi como que um soluço. Deixe de lado aquelas mudanças emocionais, garoto branco... isso mesmo. Só que, primeiro, pergunte a si mesmo quem quer que o mundo mude. Os desnutridos, os necessitados, os sem-teto, certo? Os pais daquelas crianças na África, de barriga inchada e olhos moribundos. Os negros da África do Sul. A OLP, Ted, o Homem Energia, desejará um bom punhado de mudanças emocionais? Morda a língua! Não Ted, não o Politburo russo, não o Knesset, o parlamento israelense, não o Presidente dos Estados Unidos, não Sete irmãs, não a Xerox, não Barry Manilow

Oh, não, não os que ocupam a cúpula, não aqueles com o poder verdadeiro, aqueles que dirigem a Máquina do Status Quo. O moto deles era: “Os medrosos caiam fora.”

Houve uma época em que ele não vacilaria um momento, e essa época não era um passado tão distante. Bobbi não precisaria de argumentos; o próprio Gard seria o sujeito chicoteando o cavalo, até o coração do animal explodir... com a diferença de que ele também estaria galopando ao lado e com arreios. Aqui, pelo menos, havia uma fonte de energia não prejudicial, tão abundante e de fácil produção, que poderia perfeitamente ser tornada grátis. Dentro de seis meses, cada reator nuclear nos Estados Unidos seria condenado a parar de estalo. Dentro de um ano, aconteceria o mesmo a cada reator no mundo. Energia barata. Transporte barato. Viagem a outros planetas, inclusive a outros sistemas estelares... sim, parecia possível — afinal de contas, a espaçonave de Bobbi não chegara a Haven, no Maine, trazida pela bondosa nave espacial Pirulito. Ela era, de fato — que rufem os tambores para nós, maestro, por favor! — A RESPOSTA PARA TUDO.

Você acha que a bordo dessa nave existem armas?

Ele começa a fazer tal pergunta a Bobbi, porém algo lhe fechara a boca. Armas? Era possível. Então, se Bobbi conseguia receber o suficiente daquela “força” residual para criar uma máquina de escrever telepática, não poderia também criar uma arma paralisante, tipo Flash Gordon, que realmente funcionasse? Um desintegrador? Um trator movido a laser? Alguma coisa que, em vez de apenas fazer Brmmmmmmmmmm ou Rá-tá-tá-tá-tá, de fato transformasse pessoas em pilhas de cinza fumegante? Possivelmente. E, se não, alguns dos hipotéticos cientistas de Bobbi não teriam condições para adaptar coisas, como aquela engenhoca do aquecedor de água ou o motor alterado do Tomcat, assim criando algo que se tornaria um sofrimento radical para as pessoas? Sem dúvida. Afinal de contas, muito antes de se pensar em torradeiras, secadores de cabelo e aquecedores de ambiente, o Estado de Nova Iorque já utilizava a eletricidade para torrar assassinos na penitenciária de Sing-Sing.

O que sobressaltava Gardener, era o fato de que as armas possuíam certa dose de atração. Uma parte dessa atração, segundo supunha, era apenas interesse próprio. Se viesse uma ordem para colocarem um paletó esporte sobre a trapalhada, então ele e Bobbi, sem a menor dúvida, seriam uma parte do que ficaria coberto. Além disso, no entanto, havia outras possibilidades. Uma delas, alucinante, mas não sem atrativos, era a de que ele e Bobbi estariam em situação de chutar um bocado de traseiros que mereciam pontapés. A idéia de desejar boa-viagem para a Zona Fantasmal a indivíduos como o Aiatolá, era tão deliciosa, que quase o fez rir para si mesmo. Por que esperar que israelitas e árabes resolvessem seus problemas? E, para os terroristas de quaisquer ideologias... adeus, amigos! Até nunca!

Formidável, Gard! Estou adorando isto! Será tudo televisado em cadeia! Vai ser melhor do que Miami Vice! Em vez de dois intemeratos perseguidores de narcotraficantes, teremos Gard e Bobbi cruzando os ares do planeta em seu disco voador! Alguém me arranje um telefone! Preciso ligar para a CBS!

Você não está sendo nada engraçado, pensou Gardener.

E é para achar graça? Não está falando exatamente isso? Você e Bobbi brincando de Zorro e Tonto?

E daí, se for mesmo? Quanto tempo passará, antes que essa opção comece a parecer boa? Quantas mulheres mortas a tiros em toaletes de embaixada? Quantas crianças mortas? Até quando permitiremos que isso continue?

Adorei a tirada, Gard, — Muito bem, que todos no Planeta Terra cantem em coro com Gard e Bobbi — basta que sigam o compasso da festa: “A respooosta, meu amigo, está ecoaaando pelos ares...”

Você é irritante.

E você está começando a parecer sumamente perigoso. Lembra-se de como ficou assustado, quando aquele policial encontrou a pistola em sua mochila? Como ficou apavorado, porque nem ao menos se lembrava de tê-la colocado lá? Pois está tudo começando de novo. A única diferença é que agora está falando de um calibre maior. Santo Deus, como é que pode?

Quando era mais novo, tais perguntas nunca lhe tinham ocorrido... e se tinham, ele simplesmente as enxotava para um lado. Aparentemente, Bobbi já pensara nessas perguntas. Fora ela, afinal de contas, que mencionara o cavaleiro.

O que quer dizer, quando fala de um cavaleiro?

Quero dizer nós, Gard, mas acho que penso... penso referir-me principalmente a você.

Quando eu tinha vinte e cinco anos, Bobbi, ficava inflamado o tempo todo. Aos trinta, inflamava-me por algum tempo. Entretanto, o oxigênio por aqui deve estar ficando rarefeito, porque agora só fico inflamado quando estou bêbado. Tenho medo de montar esse cavalo, Bobbi. Se a história já me ensinou alguma coisa, foi que cavalos gostam de desembestar.

Ele remexeu o corpo sobre o toco da árvore, e a espingarda o seguiu. Roberta estava na cozinha, sentada em uma banqueta, e movia ligeiramente os canos da espingarda, pousados no peitoril da janela, em cada movimento de Gardener. Estava captando muito pouco dos pensamentos dele, o que era frustrante, enlouquecedor. Não obstante, captava o suficiente para perceber que ele se aproximava de uma decisão... e quando a tomasse, ela achava que conseguiria saber qual seria.

Se fosse a decisão errada, explodiria o crânio dele, pela parte de trás, depois enterrando o corpo na terra macia, ao pé da horta. Odiava fazer isso, mas se fosse preciso, não vacilaria.

Roberta esperava calmamente pelo momento, sua mente sintonizada ao vago correr dos pensamentos de Gardener, estabelecendo a tênue conexão.

Agora não ia demorar muito.

 

O que de fato o assusta, é a chance de atuar de uma posição de força, pela primeira vez em sua confusa e miserável vida.

Ele se sentou mais ereto, com uma expressão desalentada no rosto. Isto não era verdade, era? Certamente que não.

Oh, Gard, pois é sim! Você, inclusive, torce para times de beisebol que são cataclísmicos perdedores. Assim, nunca terá de se preocupar sobre ficar deprimido, caso um deles seja o lanterninha na Série Mundial. O mesmo acontece com os candidatos e causas que apóia, não é mesmo? Porque se seus políticos nunca tiveram a chance de ser postos à prova, você não se preocupará em descobrir que o novo chefe é igualzinho ao velho chefe, concorda?

Não estou assustado. Não com isto.

Uma ova que não está! Cavaleiro? Você? Cara, é para morrer de rir! Você teria um ataque do coração, se alguém lhe pedisse que montasse um triciclo. Sua própria vida pessoal, nada mais tem sido além de um permanente esforço para destruir cada base de poder que possui. Veja seu casamento. Nora era rija, você precisou baleá-la para livrar-se dela, mas se a situação ficava precária, não vacilava, certo? Em seu favor, admito que seja um homem capaz de nivelar-se a cada ocasião. Conseguiu ser demitido como professor, assim eliminando outra base de poder. Levou doze anos despejando álcool na fagulha de talento que Deus lhe deu, em quantidades suficientes para exterminá-la. Agora, isto! Acho melhor dar no pé, Gard.

Isso não é justo! Francamente, não é!

Não? Nisto não há verdade bastante para que receba um merecido castigo?

Talvez. Talvez houvesse. Fosse como fosse, ele descobriu que a decisão já tinha sido tomada. Ficaria com Bobbi, pelo menos por algum tempo, agindo à maneira dela.

As satisfeitas afirmativas de Bobbi quanto a tudo estar correndo otimamente, não combinavam muito bem com sua exaustão e perda de peso. O que a nave enterrada na terra podia fazer a Bobbi, provavelmente faria a ele. O que hoje acontecera — ou deixara de acontecer — nada provava; ele não esperava que todas as mudanças surgissem imediatamente. No entanto, a nave — e qualquer que fosse a força emanando dela — tinha uma grande capacidade para fazer o bem. Esta era a questão principal e... bem, que se fodesse o homem Tommyknocker.

Levantando-se, Gardener caminhou para a casa. O sol já se pusera e o crepúsculo se tornava acinzentado. Suas costas doíam. Espreguiçou-se. Na ponta dos pés, fazendo uma careta ao ouvir a espinha estalar. Na penumbra, olhou para o vulto escuro e silencioso do Tomcat e depois para a porta do galpão, com seu novo cadeado. Pensou em ir até lá, dar uma espiada através de uma de suas janelas sujas e embaciadas... mas decidiu pelo contrário. Talvez receasse que algum rosto pálido surgisse do outro lado da janela obscura, seu sorriso mostrando uma fileira de dentes canibalescos, em mortal sucessão. Olá, Gard, quer conhecer alguns legítimos Tommyknockers? Entre! Há um bando de nós aqui!

Gardener estremeceu — quase podia ouvir dedos finos e malignos arranhando as vidraças. Neste dia e no anterior já tinham acontecido coisas demais. Sua imaginação se exaurira. Esta noite ela caminharia e falaria. Ele ignorava se podia esperar pelo sono ou se este ficaria à distância.

 

Quando se viu dentro de casa, sua inquietude começou a desaparecer. Com ela, desapareceu também parte da ânsia por bebida. Tirou a camisa e depois espiou o quarto de Roberta. Bobbi continuava da maneira como estivera antes, os lençóis presos entre as pernas terrivelmente finas, uma das mãos estirada ao acaso, roncando.

Nem ao menos se moveu. Cristo, ela deve estar mesmo cansada!

Tomou uma ducha demorada, abrindo a água o mais quente que pôde suportar (com o novo aquecedor de água de Bobbi, isto significava mal girar a torneira cinco graus a oeste da temperatura absolutamente fria). Ao ver que a pele começava a avermelhar-se, saiu para um banheiro tão nebuloso como Londres, no auge de um fog Sherlockiano. Enxugou-se com a toalha, escovou os dentes com um dedo — preciso trazer alguns sortimentos para cá, pensou — e foi para a cama.

Uma vez deitado, seu pensamento vagou novamente para a última coisa que Bobbi havia dito, durante sua discussão. Ela acreditava que a espaçonave na terra começara a afetar os moradores da cidade. Quando ele quis saber mais, ela se tornou vaga, depois mudando de assunto. Gardener supôs que, se tão aloucada situação, tudo seria possível. Embora a propriedade do velho Frank se situasse em área remota e pouco povoada, ficava quase exatamente no centro geográfico da municipalidade. Havia uma pequena cidade — Havem Village — mas localizada oito quilômetros ao norte.

— Você deixa a impressão de que a nave estaria expelindo algum gás venenoso — havia dito ele, esperando não deixar transparecer sua inquietude. — Paraquat*oriundo do Espaço. Eles vêm do Agente laranja.

— Gás venenoso? — repetira Bobbi. Parecia novamente alheada. O rosto, agora tão afilado, se mostrava fechado e distante. — Não, nada de gás venenoso. Chame de emanações, se quiser chamá-lo de algo. Contudo, é mais do que apenas a vibração, quando a pessoa toca a nave.

Gardener nada disse, não querendo interrompê-la.

— Emanações? Não é isso também, mas gosto de emanações. Se o Departamento de Proteção Ambiental aparecer aqui com farejadores, duvido que eles descubram qualquer poluente. Se no ar existe qualquer resíduo real e físico da nave, será além do mais ínfimo traço.

— Acredita em tal possibilidade, Bobbi? — perguntara Gardener, em voz muito baixa.

— Acredito. Não estou lhe dizendo que sei o que acontece, porque a verdade é que não sei. Não tenho qualquer informação de dentro. Contudo, acho que uma camada muito exígua do casco da nave — e quando falo em exígua, quero dizer talvez não mais de uma ou duas moléculas de espessura — poderia estar-se oxidando, à medida que a vou descobrindo e que o ar a toca. Isto quer dizer que recebi a primeira e mais pesada... e depois tudo seria carregado pelo vento, com precipitação radioativa. Os moradores da cidade receberiam a maior parte disso... porém “maior parte” seria, de fato, “infernalmente pouco”, neste caso.

Bobbi remexeu-se na cadeira de balanço e deixou a mão direita pender. Era um gesto que Gardener presenciara muitas vezes antes, e seu coração abraçou aquela amiga, ao ver a expressão de tristeza cruzar o rosto dela. Bobbi tomou a pousar a mão no colo.

— Entretanto, compreenda, não tenho certeza, em absoluto, do que está acontecendo. Há uma novela de um homem chamado Peter Straub, intitulada FIoating Dragon — já a leu?

Gardener meneara a cabeça.

— Bem, ela postula algo similar ao seu Agente Laranja vindo do Espaço ou Paraquat dos Deuses — ou qualquer nome que lhe queira dar.

Gardener sorrira.

— Na história, um produto químico é sugado para a atmosfera e cai sobre um trecho suburbano do Connecticut. Esse material é realmente venenoso — uma espécie de gás da insanidade. As pessoas envolvem-se em lutas sem motivo algum, um sujeito resolve pintar a casa inteira — incluindo as janelas — de vermelho-vivo, uma mulher faz jogging até cair morta por um ataque coronariano maciço, e assim por diante.

— Existe um outro livro, este chamado Brain Wave, da autoria de... — Roberta franziu a testa, procurando lembrar. Sua mão tornou a pender pelo lado direito da cadeira de balanço, depois voltou ao colo. — Ele tem o mesmo sobrenome que eu. Anderson. Paul Anderson. Nesse livro, a terra passa através da cauda de um cometa e parte da precipitação radioativa torna os animais mais inteligentes. O livro começa com um coelho literalmente raciocinando qual a maneira de escapar de uma armadilha.

— Mais inteligentes — repetira Gardener.

— Exato. Quem possuía um QI de 120, antes da terra passar através do cometa, depois ficava com um QI de 180. Entendeu?

— Inteligência perfeita, simétrica?

— Isso mesmo.

— No entanto, o termo que usou antes, foi idiot savant. Trata-se do oposto exato de uma inteligência simétrica não? É uma espécie de... de excrescência.

Roberta não ligou para o comentário.

— Não vem ao caso — disse.

Agora, deitado na cama, a caminho do sono, Gardener sentia-se curioso.

 

Nessa noite ele teve um sonho. Era bastante simples. Estava em pé no escuro, ao lado do galpão, entre a casa de moradia e a horta. A sua esquerda, o Tomcat era uma forma escura. Gardener pensava exatamente o que estivera pensando horas antes — que iria até lá, dar uma espiada pela janela. E o que veria? Bem, os Tommyknockers, é claro. Entretanto, não tinha medo. Em vez de amedrontado, estava deliciado, cheio de alegria. Porque os Tommyknockers não eram monstros, nem canibais; eram como os duendes, naquela história sobre o bondoso sapateiro. Ele espiaria pela janela suja do galpão, como uma criança deliciada espiando pela janela de um quarto, em uma ilustração de “A véspera do Natal” (e o que era Papai Noel, aquele velho e alegre duende, senão um grandalhão e velho Tommyknocker em um traje vermelho?). Então, poderia vê-los, rindo e conversando, sentados a uma comprida mesa, montando geradores de energia, skates que levitavam e televisões que apresentavam filmes de mente, em vez dos tradicionais.

Vagou para junto do galpão e, de repente, a construção foi iluminada pela mesma claridade que vira irradiar-se da máquina de escrever modificada de Bobbi — era como se o galpão virasse um singular jack-o’-lantern, a lanterna feita de uma abóbora, recortada como um rosto humano, com a diferença única de que esta luz não tinha um cálido tom amarelo, mas uma horrível e ordinária cor verde. Ela brotava por entre as tábuas: atirava raios através dos nós da madeira e tatuava malignos olhos de gato no solo, além de inundar as janelas. E agora ele sentia medo, porque amistosos e pequeninos alienígenas, vindos do espaço, jamais produziriam uma cor semelhante; se o câncer tivesse cor, seria aquela brotando de cada tenda, cada buraco, nó oco de madeira e janela do galpão de Bobbi Anderson.

Ainda assim, ele se aproximou mais, pois nos sonhos, nem sempre agimos conforme queremos. Chegou mais perto e não tinha vontade de espiar, era como o garoto que não desejaria olhar pela janela de seu quarto e ver Papai Noel, na véspera do Natal, dando passadas pelo teto inclinado e coberto de neve da casa, tendo em cada mão enluvada uma cabeça degolada, o sangue dos pescoços em frangalhos fumegando no frio.

Por favor, não, por favor; não...

Ainda assim, aproximou-se e, quando penetrou naquele halo esverdeado, sua cabeça se encheu de música de rock, em um fluxo paralisante e devastador. Eram George Thorogood e os Destroyers. E ele sabia que, quando George começava a tocar aquela lustrosa guitarra, seu crânio vibraria por um momento em letal harmonia, para então simplesmente explodir, como explodiram os copos d‘água da casa sobre a qual certa vez falara a Bobbi.

Nada disso importava. O que importava era o medo, nada mais — o medo dos Tommyknockers, no galpão de Bobbi. Ele os pressentiu, quase podia farejá-los, sentia um cheiro intenso e elétrico, como de ozônio e sangue.

E... havia os sons espectrais, líquidos e chapinhantes. Era possível ouvi-los, ainda acima da música em sua cabeça. Soavam como uma antiquada máquina de lavar, exceto que o som não era de água, que o som estava errado, errado, errado.

Enquanto se punha na ponta dos pés para ver o interior do galpão, o rosto tão verde como o de um cadáver retirado de areias movediças, George Thorogood começou a tocar langorosamente aquela guitarra lustrosa e Gardener se pôs a gritar de dor — e então foi quando sua cabeça explodiu e ele acordou, sentando-se de um salto na velha cama de casal do quarto de hóspedes, o peito inundado de suor, as mãos tremendo.

Gardener se deitou novamente, pensando: Cristo! Se você vai ter pesadelos sobre isso, espere o amanhã. Dê folga à sua mente!

Ele havia esperado pesadelos, em decorrência de sua decisão. Ficou deitado, pensando que este seria apenas o primeiro. Entretanto, por aquela noite não houve mais sonhos.

Aquela noite.

No dia seguinte, ele se juntou a Bobbi na escavação.

 

HISTÓRIAS DE HAVEN

 

O terrorista ficou chumbado!

O Presidente ficou dopado!

A Segurança estava tonta!

O Serviço Secreto meio grogue!

E todos estão de porre,

Todos estão drogados,

E nada irá mudar isto,

Porque todos estão de porre,

Todos estão drogados,

Todos bebem no emprego.

 “Drinkin’ on the Job”

THE RAINMAKERS

 

Então, ele foi para a cidade correndo e gritando

“A coisa veio do céu!”

 “It Came Out of the Sky”

CREEDENCE CLEARWATER REVIVAL

 

A CIDADE

Antes de tornar-se Haven, a cidade possuíra quatro nomes.

Sua existência municipal tivera início em 1816, como Plantação Montville, e pertencia inteiramente a um homem chamado Hugh Crane. Ele a tinha comprado do Commonwealth de Massachusetts, do qual o Maine era então uma província, no ano de 1813. Crane havia sido tenente na Guerra da Independência.

O nome Plantação Montville era uma chacota. O pai de Crane jamais se aventurara a leste de Dover em sua vida, tendo permanecido um leal tory, um sincero conservador, quando do rompimento com as colônias. Terminou a vida como par do reino, décimo-segundo conde de Montville. Sendo o filho mais velho, Hugh Crane se tomaria o décimo-terceiro conde de Montville, mas seu pai enfurecido o tinha deserdado. Não ligando nem um pouco para tal fato, Crane continuou sua vida prazerosamente, dando a si mesmo o nome de primeiro Conde do Maine Central e, às vezes, o de Duque de Nenhures.

A área de terra que Crane denominava Plantação Montville, abrangia cerca de vinte e dois mil acres. Quando ele apresentou a petição e obteve o status de emancipação, a Plantação Montville passou a ser a centésima-nonagésima-terceira cidade a ser assim incorporada à província do Maine, Massachusetts. Crane adquiriu a terra, porque era rica em boa madeira e, além disso, Derry — de onde os troncos poderiam flutuar rio abaixo até o mar — ficava a apenas trinta quilômetros de distância.

Que preço havia custado a área de terra que, com o tempo, seria chamada de Haven?

Hugh Crane comprara tudo aquilo pelo equivalente a mil e oitocentas libras.

Naturalmente, naqueles tempos uma libra valia um bocado.

 

Quando Hugh Crane faleceu, em 1826, havia cento e três habitantes na Plantação Montville. Os lenhadores duplicavam essa população durante seis a sete meses do ano, porém eles não contavam de fato, uma vez que levavam seu dinheirinho para Derry e era lá que geralmente se radicavam, ao ficarem velhos demais para o trabalho nas florestas. Naquela época, a expressão “velhos demais para o trabalho nas florestas” significava, em geral, aproximadamente vinte e cinco anos de idade.

Não obstante, por volta de 1826, a colônia que mais tarde viria a chamar-se Haven Village, começava a expandir-se ao longo da estrada lamacenta que seguia para o norte, na direção de Derry e Bangor.

Qualquer que fosse o nome dado a ela (com o tempo, passou a ser apenas a simples e velha Rota 9, exceto na lembrança dos veteranos idosos, como Dave Rutledge), essa estrada era a única que os lenhadores tinham de seguir, quando iam a Derry no fim de cada mês, gastar seu pagamento em bebida e bordéis. Eles reservavam os gastos maiores para a cidade grande, porém a maioria gostava de fazer alto na Taberna e Pousada de Cooder, a caminho de Derry, para assentar a poeira com uma ou duas cervejas. Isto não era muito, mas bastava para propiciar ao estabelecimento um pequeno e lucrativo comércio. O Mercantil Geral, do outro lado da estrada (pertencente ao sobrinho de Hiram Cooder e dirigido por ele), era menos bem-sucedido, mas mesmo assim fazia proveitosos negócios marginalmente. Em 1828, foi inaugurada a Barbearia e Pequenas Cirurgias (pertencente ao primo de Hiram Cooder e dirigida por ele), ao lado do Mercantil Geral. Naqueles tempos, não era incomum alguém entrar naquele movimentado e progressista estabelecimento, e ver um lenhador reclinado em uma das três cadeiras, enquanto lhe cortavam os cabelos, costuravam um cone no braço e tinha repousando, acima de cada olho fechado, duas grandes sanguessugas tiradas do pote ao lado da caixa de charutos, passando de cinzentas a vermelhas ao mesmo tempo em que inchavam, simultaneamente protegendo contra qualquer infecção do corte e fazendo desaparecer a doença então conhecida como “dor nos miolos”. Em 1830, abriu-se na extremidade sul do vilarejo uma hospedaria e casa de refeições (pertencente a George, irmão de Hiram Cooder e dirigida por ele).

Em 1831, Plantação Montville passou a chamar-se Coodersville.

Ninguém ficou muito surpreso com isso.

O nome Coodersville permaneceu até 1864, quando foi mudado para Montgomery em homenagem a Ellis Montgomery, um rapaz do lugar que havia caído na Batalha de Gettysburg, onde, dizem alguns, o 20º do Maine preservou a União, lutando sozinho. A mudança de nome pareceu uma ótima idéia. Afinal de contas, o único Cooder remanescente da cidade, o velho e louco Albion, tinha ficado arruinado e suicidara-se, dois anos antes.

Nos anos seguintes à Guerra Civil, o estado foi varrido por uma mania, tão inexplicável como a maioria das manias. Esta mania não era por saias-balão ou costeletas; era uma mania de que nomes clássicos fossem dados às pequenas cidades. Daí, existe uma Sparta (Esparta), no Maine; uma Carthage (Cartago); uma Athens (Atenas) e, naturalmente, havia Troy (Tróia), bem próxima. Em 1878, os moradores da cidade votaram pela mudança do nome da cidade, novamente, desta vez de Montgomery para Ilium (Ílio). Isto provocou, na assembléia da cidade, uma lacrimosa tirada da mãe de Ellis Montgomery. Em verdade, a tirada era mais senil do que lúcida, uma vez que a mãe do herói já estava carregada de anos — setenta e cinco deles, para ser exato. Segundo a legenda da cidade, os moradores ouviram pacientemente, com certo senso de culpa, e a decisão poderia ter sido anulada (alguns achavam que a Sra. Montgomery tinha toda razão, ao dizer que quatorze anos dificilmente significariam a “homenagem imortal” que fora prometida a seu filho morto, quando das cerimônias de mudança de nome, acontecidas em 4 de julho de 1864), se a bexiga da boa senhora não escolhesse aquele particular momento para afrouxar. Ela foi retirada do salão em que tinha lugar a assembléia de moradores, ainda vociferando sobre os ignorantes ingratos que se arrependeriam daquele dia.

Mesmo assim, Montgomery se tornou Ilium.

Passaram-se vinte e dois anos.

 

Um belo dia, aportou em Ilium um pregador de oratória convincente e dedicado ao reavivamento da fé. Por algum motivo, ele se desviara de Derry e escolhera Ilium para erguer sua tenda. Atendia pelo nome de Colson, mas Mirtle Duplissey, autodesignada historiadora de Haven, eventualmente ficou convencida de que o nome verdadeiro dele era Condes sendo filho ilegítimo de Albion Cooder.

Quem quer que fosse ele, arrebanhou a maioria dos cristãos da cidade para a sua própria e animada versão da fé, à época em que o milho estava pronto para ser colhido — com grande desespero do Sr. Hartley que ministrava religião aos metodistas de Ilium e Troy, e do Sr. Crowell, que cuidava do bem-estar espiritual dos batistas em Ilium, Troy, Etna e Unity (naqueles tempos, a piada era que o presbitério de Emory Crowell pertencia à cidade de Troy, mas que suas hemorróidas pertenciam a Deus). Fosse como fosse, as exortações dos dois eram vozes clamando no deserto. A congregação do pregador Colson continuou aumentando, até chegar à conclusão no quase perfeito verão de 1900. Dizer que as colheitas daquele ano tinham sido “abundantes”, seria menosprezá-las; o solo ralo do norte da Nova Inglaterra, geralmente tão sovina como um Scrooge, nesse ano demonstrou uma munificência que parecia nunca terminar, O Sr. Crowell, o batista cujas hemorróidas pertenciam a Deus, ficou cada vez mais deprimido e silencioso, até que três anos mais tarde, enforcou-se no porão do presbitério de Troy.

O Sr. Hartley ministro metodista, ficou cada vez mais alarmado, ao presenciar o fervor evangélico que se abatera sobre Ilium como uma epidemia de cólera. Talvez isto acontecesse porque os metodistas, em circunstâncias ordinárias, são os menos demonstrativos adoradores de Deus; eles não ouvem sermões, mas “mensagens”, geralmente oram em decoroso silêncio, e consideram que os únicos e apropriados améns falados pela congregação são aqueles no final do Pai-nosso e dos poucos hinos não cantados pelo coro.

No entanto, tais pessoas anteriormente nada demonstrativas, agora estavam fazendo tudo, desde falar em idiomas a contorções beatificas. Segundo o Sr. Hartley, em seguida elas estariam manuseando serpentes. As reuniões na tenda de reavivamento religioso, ao lado da Estrada de Derry programadas para as terças, quintas e domingos, se foram tornando cada vez mais francamente barulhentas, arrebatadas e mais emocionalmente explosivas.

— Se isso estivesse acontecendo em uma tenda de parque de diversões, seria chamado de histeria — disse o Sr. Hartley a Fred Perry, diácono da igreja e seu único amigo íntimo, certa noite em que conversavam entre copos de sherry, na reitoria da igreja. — Como acontece em uma tenda de reavivamento religioso, eles podem continuar com a coisa, chamando-a de Fogo Pentecostal,

As suspeitas do Reverendo Hartley a respeito de Colson, ficaram amplamente justificadas no correr do tempo, mas antes disso Colson fugiu, tendo feito uma excelente colheita de dinheiro sonante e de ardentes mulheres, em vez de abóboras-morangas e batatas. Só que, ainda antes disso, ele apôs seu duradouro carimbo na cidade, trocando-lhe o nome pela derradeira vez.

Naquela quente noite de agosto, seu sermão começou pelo tema da colheita como símbolo da grande recompensa de Deus, em seguida passando para o tema daquela precisa cidade. A essa altura, Colson já havia tirado a sobrecasaca. Os cabelos molhados de suor lhe caíam nos olhos. As irmãs começavam a reunir-se no canto em que eram entoados os améns, embora ainda demorasse um pouco o início da falação em idiomas e das santas contorções.

— Considero santificada esta cidade! — disse Colson para seus ouvintes, as mãos enormes aferradas aos lados do púlpito — ele poderia considerá-la santificada por algum outro motivo, além do fato de seu honorável eu a ter escolhido como local onde espalhar sua tenda (não se falando em sua semente), porém se assim foi, não o disse. — Eu a considero um porto-seguro*! Sim! Aqui descobri um refúgio que me faz recordar meu refúgio-natal, uma terra adorável, não muito diferente daquela que Adão e Eva conheceram, antes de colherem o fruto daquela árvore em que não deveriam tocar. — Santificada! — bradou o Pregador Colson.

Anos mais tarde, membros de sua congregação ainda comentavam com admiração, a maneira daquele homem gritar por Jesus, fosse ele ou não um salafrário.

— Amém! — entoou a congregação.

A noite, apesar de quente, talvez não fosse quente o bastante para explicar inteiramente os rubores em tantas faces e cenhos femininos; tais rubores se tinham tornado comuns, desde que o Pregador Colson chegara à cidade.

— Esta cidade é, antes de tudo, uma glória para Deus!

— Aleluia! — gritou a congregação jubilosamente.

Peitos se inflaram. Olhos cintilaram. Línguas se moveram, molhando os lábios.

— Esta cidade obteve uma promessa! — bradou o Pregador Colson, agora andando rapidamente de um lado para outro, de vez em quando atirando para trás da testa os negros anéis dos cabelos, em um gesto brusco que exibia vantajosamente o pescoço forte. — Esta cidade obteve uma promessa e essa promessa é a abundância da colheita, uma promessa que deve ser cumprida!

— Louvado seja Jesus!

Colson retornou ao púlpito, aferrou-o e encarou os ouvintes assustadoramente.

— Então, irmãos, por que querem ter uma cidade que promete a colheita de Deus e o porto-seguro de Deus — por que querem ter uma cidade que fala destas coisas, mas com um nome homenageando alguma coisa latina, está além do que consigo imaginar. Posso apenas deduzir que deve ter sido obra do demônio, trabalhando em alguma época na última geração!

Já no dia seguinte, começaram os comentários sobre a mudança do nome da cidade, de Ilium para Haven. O Reverendo Sr Crowell esboçou alguns protestos, mas o Reverendo Sr. Hartley protestou com bastante vigor. Os membros do conselho municipal de Ilium mostraram-se neutros, exceto na questão de apontarem que a cidade teria de pagar vinte dólares pela mudança dos Documentos de Incorporação, arquivados em Augusta, e provavelmente mais vinte pela troca de nomes nas placas sinalizadoras das estradas municipais, não se falando nos timbres impressos dos documentos e papelada burocrática da cidade.

Muito antes da assembléia da cidade em março, para discussão e votação do Artigo 14 — “Verificar se a cidade aprovará a mudança do nome da Cidade nº 193 Incorporada ao Maine, de ILIUM para HAVEN” — o Pregador Colson já havia desmontado sua tenda, literalmente, e fugido no meio da noite. O desmonte e a fuga aconteceram na noite de 7 de setembro, em seguida ao que Colson havia denominado, durante semanas, a Campanha Local da Colheita de 1900. No correr de um mês, pelo menos, estivera deixando bem claro tê-la considerado a mais importante assembléia que faria esse ano na cidade; talvez a mais importante assembléia que jamais fizera e faria, mesmo que se radicasse ali, algo que sentia ser cada vez mais a vontade de Deus em relação a ele — e semelhante notícia não era para deixar o coração das damas batendo aceleradamente? Segundo ele, seria uma grande oferenda de amor a um amoroso Deus, que concedera à cidade uma estação propícia a tão maravilhoso crescimento das Lavouras e espetacular colheita.

Colson também fez algumas colheitas pessoais. Começou lisonjeando as freqüentadoras, bajulando-as para que dessem a maior “oferenda-amorosa” por sua permanência na cidade, e terminou arando e plantando em não duas, não quatro, mas seis jovens donzelas, no campo atrás da tenda, depois da assembléia.

— Os homens gostam de falar empolado, mas acho que a maioria deles enfia derringers nas calças, pouco importando o quão empolado eles falam — comentou o velho Duke Barfield na barbearia, certo anoitecer. Se fizessem um concurso de Homem mais fedorento da cidade, o velho Duke ganharia disparado. Ele fedia como um ovo de picles que houvesse passado todo um mês em uma poça de lama. Também era ouvido, mas à distância e contra o vento, se houvesse vento para tomar isto possível. — Ouvi falar de homens com armas de cano duplo nas calças, mas confesso que só de vez em quando. Uma vez, até ouvi dizer que um sujeito tinha uma pistola de três tiros, mas aquele fodido do Colson é o único a andar com um de seis tiros, segundo dizem por ai.

Três das conquistas do Pregador Colson eram virgens, antes da invasão do pica-pau pentecostal.

A oferenda de amor, naquela noite de final do verão de 1900 foi deveras generosa, embora as fofocas no barbeiro divergissem apenas em quanto fora generosa a parte monetária da mesma. Todos concordavam em que, ainda antes do grande Reavivamento Local da Colheita, quando a pregação continuara até às dez, o canto evangélico até meia-noite e a trepada-campal até bem depois de duas da madrugada, houvera uma grande afluência de dinheiro sonante. Alguns também apontavam que Colson tampouco tivera muitas despesas durante sua permanência ali. As mulheres praticamente disputavam o privilégio de trazer-lhe refeições, o sujeito que agora era dono da hospedaria emprestara-lhe uma charrete a longo prazo... e, naturalmente, ninguém em absoluto lhe cobrava por seus divertimentos noturnos.

Na manhã de 8 de setembro, tenda e pregador haviam desaparecido. Ele fizera uma boa colheita... e semeara com igual sucesso. Entre 1º de janeiro e a reunião da cidade, em fins de março de 1901, na área nasceram nove bebês ilegítimos, três meninas e seis meninos. Todos esses nove “filhos do amor” apresentavam notável semelhança física entre si — seis tinham olhos azuis e todos haviam nascido com exuberantes mechas de cabelos negros. As fofocas na barbearia (e nenhum grupo de homens sobre a terra seria capaz de casar tão bem a lógica e a lubricidade como aqueles ociosos, peidando em cadeiras de vime, enquanto enrolavam cigarros ou acertavam balas marrons de tabaco mascado em escarradeiras de lata) também apontavam que um bom número de mulheres casadas do lugar tinham tido filhos entre janeiro e março. Sobre estas mulheres, quem podia ter certeza? As fofocas na barbearia, entretanto, diziam do que acontecera em 29 de março, depois que Faith Clarendon dera à luz um robusto menino de quatro quilos. Um forte e molhado vento norte assobiava nos beirais da casa Clarendon, despejando a última grande carga de neve até novembro. Cora Simard, a parteira que aparara o bebê, estivera meio cochilando junto à estufa da cozinha, à espera do marido Irwin chegar em meio à tormenta, a fim de levá-la para casa. Ela viu Paul Clarendon aproximar-se do berço em que jazia seu novo filho — o berço ficava do outro lado da estufa, no canto que era mais quente — e ficar cerca de uma hora, olhando fixamente o recém-nascido. Cora cometeu o terrível engano de considerar o olhar fixo de Paul Clarendon como sendo de admiração e amor. Os olhos dela se fecharam. Quando despertou de seu cochilo, Paul Clarendon estava parado junto ao berço, com a navalha de barba na mão. Ele suspendeu o bebê pelas espessas mechas de cabelos negro-azulados e, antes que Cora pudesse soltar o grito preso na garganta, Paul cortava a garganta do recém-nascido. Depois saiu dali, sem uma palavra. Um momento mais tarde, ela ouviu molhados sons gorgolejantes que vinham do quarto. Quando um aterrorizado Irwin Simard finalmente ganhou coragem para entrar no quarto dos Clarendon, encontrou marido e mulher em cima da cama, de mãos dadas. Clarendon havia degolado a esposa, deitado ao lado dela, tomado a mão direita da mulher em sua esquerda e então cortara a própria garganta. Tudo isto aconteceu dois dias depois da cidade ter votado para a mudança de seu nome.

 

O Reverendo Sr. Hartley se opôs obstinadamente à mudança do nome da cidade para aquele sugerido por um homem que se revelara um ladrão, fornicador, falso profeta e uma serpente traiçoeira. Muitas destas coisas ele havia dito de seu púlpito, tendo observado os assentimentos dos paroquianos com um prazer soturno e quase vingativo, bastante contrário ao seu temperamento. Compareceu à reunião da cidade, a 27 de março de 1901, certo de que o Artigo 14 receberia ressoantes votos contrários. Nem mesmo ficou surpreso com a brevidade da discussão, entre a leitura do artigo pelo amanuense municipal e o lacônico, “Qual é a sua vontade, senhores?” do chefe do Conselho Municipal, Luther Ruvall. Se tivesse a menor desconfiança, Hartley teria falado veementemente, até furiosamente, talvez pela única vez na vida. Entretanto, jamais tivera a mais leve suspeita.

— Aqueles a favor, pronunciem-se dizendo “aye” — pediu Luther Ruvall.

Ao ouvir o sólido — se não muito apaixonado — Aye! que fez estremecer as vigas do teto, Hartley teve a sensação de que lhe tinham esmurrado o estômago. Olhou aturdidamente em torno, porém era tarde demais. O vigor do Aye! o pegara inteiramente desprevenido e não fazia idéia de quantos membros de sua congregação o tinham traído, votando da outra maneira.

— Um momento... — falou, em uma voz estrangulada que ninguém ouviu.

— Quem é contra?

Houve alguns dispersos e esporádicos Nays. Hartley tentou gritar o seu, mas o único som a escapar de sua garganta foi uma sílaba sem sentido — Nik!

— A moção foi aprovada — disse Luther Ruvall. — Agora, passemos ao Artigo 15...

O Reverendo Hartley de repente sentiu calor — demasiado calor. Em verdade, teve a sensação de que ia desmaiar. Abriu caminho por entre grupos de homens em pé, vestindo camisas quadriculadas em preto e branco e sujas calças de flanela, através de nuvens de fumaça acre, apelidas de cachimbos de sabugo de milho e charutos baratos. Ainda se sentia fraco, porém agora achava que também poderia vomitar, antes de perder os sentidos. Uma semana depois, não era capaz de entender que a profundidade de um choque tão forte era realmente horror. Um ano depois, nem mesmo entendia que houvesse sentido tamanha emoção.

Ficou no alto da escada da sede da municipalidade, aspirando alentados haustos de ar a uma temperatura de quatro graus, aferrado ao corrimão da grade com mortal pressão, e espiou para a neve em degelo, através dos campos. Em alguns lugares, ela já derretera o suficiente para mostrar a terra lamacenta de baixo. Com uma mórbida crueza, também avessa ao seu feitio, pensou que os campos pareciam salpicos de merda sobre a barra de uma camisola de dormir. Pela primeira e única vez, ele sentiu uma inveja amarga de Bradley Colson — ou Cooder, se esse fosse seu nome verdadeiro. Colson fugira de Ilium... oh, perdão, de Haven. Fugira, e agora Donald Hartley viu-se desejando fazer o mesmo. Por que eles agiram assim? Por quê? Eles sabiam quem era esse sujeito, eles sabiam! Então, por que...

Uma mão forte e cálida caiu sobre suas costas. Virando-se, ele viu seu bom amigo Fred Perry O rosto comprido e modesto de Fred parecia angustiado e preocupado, e Hartley sentiu um sorriso cruzar-lhe a face.

— Você está bem, Don? — perguntou Fred Perry

— Sim, estou. Houve um momento, lá dentro, em que me senti tonto. Foi a votação. Eu não esperava por isso.

— Nem eu — respondeu Fred.

— Meus paroquianos foram parte disto — falou Hartley — Só podiam ter sido. Foi uma aprovação em que todos gritaram muito alto e eles devem ter tido sua parte, você não acha?

— Bem...

O Reverendo Sr. Hartley sorriu de leve.

— Aparentemente, não conheço tão bem a natureza humana como pensava que conhecesse.

— Entre de novo, Don. Eles agora vão votar a pavimentação da Ridge Road.

— Creio que ficarei aqui fora mais algum tempo — disse Hartley, — meditando na natureza humana. — Fez uma pausa e, quando Fred Perry já se virava para entrar, ele perguntou, quase em um apelo: — Você compreende, Fred? Compreende por que eles fizeram isso? É quase dez anos mais velho do que eu. Você compreende?

Fred Perry que havia gritado seu próprio Aye! por trás da mão fechada, meneou a cabeça e disse que não; não compreendia, em absoluto. Ele gostava do Reverendo Sr. Hartley. Respeitava o Reverendo Sr. Hartley. No entanto, a despeito de tais coisas (ou talvez — apenas talvez — por causa delas), sentira um mesquinho e desdenhoso prazer ao votar por um nome que Colson sugerira: Colson, o falso profeta, Colson, o vigarista, Colson, o ladrão, Colson, o sedutor.

 

‘BECKA PAULSON

Rebecca Bouchard Paulson era casada com Joe Paulson, um dos dois carteiros de Haven e a terça parte da equipe postal da cidade. Joe estava traindo a esposa, algo que Bobbi Anderson já sabia. Agora, também ‘Becka Paulson ficara sabendo. Tomara conhecimento da traição naqueles três últimos dias. Nos últimos três dias, mais ou menos, Jesus lhe contara as coisas mais espantosas, terríveis e contristadoras. Eram coisas que a deixaram passando mal, destruíam seu sono e estavam destruindo sua sanidade... mas também não tinham o seu lado maravilhoso? Poxa, e como! E ela parava de ouvir, talvez pusesse Jesus deitado sobre Sua própria face, gritava para Ele calar a boca? Absolutamente não. Em primeiro lugar, havia uma espécie de mórbida compulsão em saber o que Jesus tinha para contar-lhe. Em segundo, Ele era o Salvador.

Jesus estava em cima da televisão Sony dos Paulson. Fazia seis anos que permanecia ali. Antes disso, já estivera em cima de duas Zenith. ‘Becka achava que Jesus levara quase dezesseis anos mais ou menos no mesmo lugar. Era uma representação natural, em 3-D. Corinne, irmã mais velha de ‘Becka e residente em Portsmouth, dera-lhe o quadro como presente de casamento. Quando Joe comentou que a cunhada tinha predileção por coisas baratas, ‘Becka lhe disse para calar a boca. Não que ela ficasse demasiado surpresa; não se podia esperar que um homem como Joe entendesse o fato de ser impossível colocar-se uma etiqueta de preço na verdadeira beleza.

No quadro, Jesus vestia uma túnica branca e simples, tendo na mão um bordão de pastor. O Cristo sobre a televisão de ‘Becka penteava os cabelos mais ou menos como Elvis, ao sair do Exército. Sim, ele até parecia bastante com Elvis, em G.I. Blues. Tinha olhos castanhos e doces. Por trás Dele, em perspectiva perfeita, ovelhas tão brancas como as roupas apresentadas nos comerciais televisados de sabão em pó, afastavam-se e caminhavam até o horizonte. ‘Becka e Corinne tinham sido criadas em uma fazenda de carneiros, em New Gloucester, e ela sabia, por experiência própria, que ovelhas jamais seriam tão brancas e de lanugem tão uniforme, como pequenas nuvens de tempo bom, caídas à terra. Entretanto, raciocinava ela, se Jesus pudera transformar água em vinho e trazer mortos de volta à vida, nada O impedia de fazer desaparecer toda a bosta amontoada em torno de um bando de carneiros saltitantes, se esta fosse a Sua vontade.

Por duas vezes, Joe tentara retirar aquele quadro de cima da televisão e agora ela imaginava saber por que, oh, como não? Poxa, e como! Joe, naturalmente, tinha suas justificativas arquitetadas.

— Não me parece direito termos Jesus em cima da televisão, enquanto estamos vendo Magnum ou Miami Vice — ele dizia. Por que não colocá-lo em cima de sua cômoda, ‘Becka? Ou... tive uma idéia! Por que não colocá-lo em sua cômoda até o domingo? Depois o traria para cá, enquanto estiver vendo Jimmy Swaggart e Jack van Impe! Aposto que Jesus prefere Jimmy Swaggart, muito mais do que Miami Vice.

Ela recusou a sugestão. De outra feita, Joe disse:

— Os rapazes não gostam disso, quando é a minha vez de jogar pôquer nas noites de quinta-feira. Aliás, ninguém gosta de ter Jesus Cristo espiando, quando compra cartas para uma seqüência sigilosa.

— Talvez eles não se sintam bem, porque sabem que o jogo é obra do demônio — retrucou ‘Becka.

Joe, um bom jogador de pôquer, pegou a deixa:

— Então, foi a obra do demônio que lhe comprou seu secador de cabelos e aquele anel com sinete de que gosta tanto... É melhor devolvê-los à loja e entregar ao Exército da Salvação o dinheiro que receber de volta. Acho que tenho ainda os recibos em minha secretária.

Em vista disso, ela permitiu que Joe virasse de costas o retrato de Jesus em 3-D, na única noite de quinta-feira por mês, em que ele trazia para jogar pôquer os amigos que diziam palavrões e derramavam cerveja por toda parte... mas isso foi tudo.

Agora, contudo, ela sabia que o verdadeiro motivo de Joe querer livrar-se do retrato era outro. Ele devia ter tido a idéia ao considerar que aquele podia ser um retrato mágico. Oh, ela supunha que sagrado fosse uma palavra melhor, a magia era para pagãos, caçadores de cabeças, canibais, católicos e pessoas similares, mas todos eram mais ou menos a mesma coisa, não? De qualquer modo, Joe devia ter pressentido que o retrato era especial, que seria o meio através do qual seu pecado ficaria a descoberto.

Oh, ‘Becka supunha saber que algo estava acontecendo. Joe nunca mais a procurara à noite e, embora isso significasse alívio (sexo era justamente o que sua mãe lhe dissera, repugnante, brutal, às vezes doloroso, sempre humilhante), ela também sentia cheiro de perfume nos colarinhos dele de vez em quando, e isso não constituía nenhum alívio. ‘Becka achava que talvez ignorasse indefinidamente a conexão — o fato de terem cessado as investidas sexuais, ao mesmo tempo em que o cheiro ocasional de perfume começam a surgir nos colarinhos dele — se o quadro de Jesus, em cima da Sony, não tivesse começado a falar, no dia 7 de julho. Ela poderia, inclusive, ter ignorado um terceiro fator: mais ou menos quando haviam terminado as investidas sexuais e começado os cheiros de perfume, o velho Charlie Estabrooke pedira aposentadoria da agência postal, e uma mulher chamada Nancy Voss viera dos correios de Augusta para ficar em seu lugar. ‘Becka imaginava que a tal Voss (sobre quem agora pensava apenas como A Desavergonhada) teria uns cinco anos a mais do que ela e Joe, o que a deixaria por volta dos cinqüenta, embora fosse uma cinqüentona esbelta, bem conservada e atraente. ‘Becka admitia que engordara um pouco durante o casamento, passando de sessenta e três para cento e dois quilos, a maioria deles adquirida depois que Byron, único filho do casal, fora embora de casa.

Ela teria ignorado isso, ignoraria isso, talvez até mesmo tolerasse a situação com alívio; se A Desavergonhada apreciava o canibalismo do congresso sexual, com seus grunhidos, estocadas e aquele esguicho final de coisa pegajosa, cheirando levemente a bacalhau e parecendo detergente barato para pratos, então isso apenas provava que A Desavergonhada não passava, ela própria, de um animal. Além do mais, isso livrava ‘Becka de uma obrigação enfadonha, mesmo sendo ocasional. Ela teria ignorado isso, de fato, se o retrato de Jesus não houvesse falado a respeito.

Aconteceu pela primeira vez, pouco depois de três da tarde de quinta-feira. ‘Becka vinha da cozinha para a sala de estar trazendo um lanche ligeiro (meio bolo de café e uma caneca de cerveja cheia de refresco de cereja), a fim de ver Hospital Geral. Não estava mais acreditando que Luke e Laura voltassem, porém não perdera inteiramente a esperança.

Estava inclinada para ligar a televisão, quando Jesus disse:

— ‘Becka, Joe está transando com aquela Desavergonhada no toalete, em cada folga para o almoço e às vezes também depois de encerrado o expediente. Uma vez estava tão fogoso, que transou com ela quando devia estar ajudando-a a separar a correspondência. E sabe de uma coisa? Ela nem mesmo disse: “Pelo menos, espere até eu separar as cartas registradas.”

— E ainda não é tudo — prosseguiu Jesus. Ele caminhou por metade do quadro, Sua túnica flutuando à volta dos tornozelos, indo sentar-se em uma rocha que aflorava do solo. Segurou o bordão entre os joelhos e olhou gravemente para ela. — Há muita coisa acontecendo em Haven. Você não acreditaria na metade disso!

‘Becka deu um grito e caiu de joelhos.

— Senhor! — bradou, esganiçadamente.

Um de seus joelhos aterrou diretamente sobre o pedaço de bolo de café (que tinha mais ou menos o tamanho e espessura da Bíblia da família), esguichando framboesa do recheio na cara de Ozzie, o gato, que rastejara de baixo da estufa para ver o que acontecia.

— Senhor, meu Senhor! — tornou a guinchar ‘Becka.

Ozzie correu para a cozinha, bufando, onde tornou a rastejar para baixo da estufa, com o recheio vermelho gotejando de seus bigodes. Permaneceu li o resto do dia.

— Bem, nenhum dos Paulson jamais foi grande coisa — disse Jesus. Uma ovelha aproximou-se Dele, mas Ele a afugentou com Seu cajado, mostrando uma alheada impaciência que fez ‘Becka recordar seu falecido pai. A ovelha se foi, tremulando ligeiramente, por causa do efeito tridimensional. Ela desapareceu, parecendo de fato encurvar-se, quando sumiu na borda do quadro... mas isso era apenas uma ilusão de óptica, ‘Becka tinha certeza. — Não, senhor! — exclamou Jesus. — O tio-avô de Joe foi um assassino, como bem sabe, ‘Becka. Assassinou o filho, a esposa, e depois matou-se. E quando ele veio para cá, sabe o que Nós dissemos? “Não há lugar!” foi isso que Nós dissemos. — Jesus inclinou-se para diante, apoiado no bordão. — “Vá procurar o Sr. Splitfoot, lá embaixo,” Nós dissemos. — “Você terá seu lar em Haven, tudo bem, mas o novo senhorio pedirá um diabo de aluguel alto e nunca diminui o aquecimento”, foi o que Nós dissemos.

Incrivelmente, Jesus piscou para ela... e foi então que ‘Becka saiu de casa, correndo e gritando agudamente.

 

Ela parou no pátio dos fundos, ofegando, os desalinhados cabelos louros pendendo sobre o rosto, o coração batendo tão depressa, que a deixou amedrontada. Ninguém ouvira seus gritos e alvoroços, graças ao Senhor; ela e Joe viviam distantes da Estrada de Nista, tendo como vizinhos mais próximos os Brodsky que moravam em um trailer desconjuntado. Os Brodsky viviam a quase um quilômetro dali. Isso era bom. Se alguém a tivesse ouvido, pensaria que havia uma louca na casa dos Paulson.

E há mesmo, não há? Quem achar que aquele quadro começou a falar, ora, só pode estar louco. Meu pai me deixaria com três vergões arroxeados por dizer tal coisa — um por mentir, outro por acreditar nisso e um terceiro por gritar. Retratos não falam, ‘Becka.

Não... e nem ele falou, disse uma voz subitamente. Aquela voz saiu de sua própria cabeça, ‘Becka. Não sei como isso pode acontecer... e nem como você saberia tais coisas... mas foi o que aconteceu. Você fez aquele quadro de Jesus falar por seu próprio eu, da maneira como Edgar Bergen costumava fazer Charlie McCarthy falar, no Ed Sullivan Show.

De algum modo, tal idéia parecia ainda mais aterradora, mais absolutamente louca, do que a idéia de que o quadro falara. Ela se recusava a permitir espaço mental a isso. Afinal de contas, milagres aconteciam todos os dias. Havia aquele sujeito mexicano que encontrara um retrato da Virgem Maria, dentro de uma enchillada ou coisa assim. Havia aqueles milagres em Lourdes. Para não falar naquelas crianças que tinham sido manchetes em um tablóide — elas choravam pedras. Eram milagres de boa fé (o das crianças que choravam pedras, decididamente, era um bocado forte), todos tão elevadores como um sermão de Pat Robertson. Ouvir vozes era birutice.

Pois foi o que aconteceu. E você já vem ouvindo vozes há um certo tempo, não? Você vem ouvindo a voz dele. De Joe. Dele é que vem a voz. Não de Jesus, mas de Joe...

— Não — disse ‘Becka, trêmula. — Não tenho ouvido vozes em minha cabeça!

Ficou parada perto do varal de roupas, no pátio dos fundos, espiando alheadamente para a floresta, no outro lado da Estrada de Nista. O calor tornava as árvores nebulosas. A pouco mais de quinhentos metros, no seio daquela floresta, em linha reta, Bobbi Anderson e Jim Gardener desenterravam firmemente mais e mais de um titânico fóssil no solo.

Você ficou louca, tangeu implacavelmente em sua cabeça, a voz do pai falecido. Enlouqueceu com o calor. Venha até aqui, ‘Becka Boucbard, e vou deixá-la com três vergões roxos, por sua falação maluca!

— Não tenho ouvido vozes em minha cabeça — gemeu ‘Becka. — Aquele quadro falou mesmo, eu juro, não sei fazer ventriloquismo!

Melhor que fosse o quadro. Se fosse o quadro, era um milagre, e milagres vinham de Deus. Um milagre pode deixar a pessoa maluca — e o bom Deus era testemunha de que ela parecia estar ficando maluca ainda agora — mas isto não significava que alguém fosse louco, para começar. Ouvir vozes na cabeça, contudo, ou acreditar que se pudesse ouvir os pensamentos de outra pessoa...

‘Becka olhou para baixo e viu sangue pingando de seu joelho esquerdo. Tornou a gritar agudamente e entrou em casa de novo, pensando em ligar para o médico, para o pronto-socorro, alguém, alguma coisa. Estava outra vez na sala, discando um número e com o fone no ouvido, quando Jesus disse:

— Isso aí é apenas o recheio de framboesa do seu bolo de café, ‘Becka. Por que não se acalma um pouco, antes de ter um ataque do coração?

Ela olhou para a Sony, deixando o fone cair sobre a mesa, com um baque seco, Jesus continuava sentado na pedra que aflorava do chão. Agora parecia ter cruzado as pernas. De fato, era surpreendente a semelhança Dele com seu pai... apenas Ele não parecia autoritário, pronto para enfurecer-se a qualquer momento. Olhava para ela com uma espécie de exasperada paciência.

— Experimente e veja se não tenho razão — disse Jesus.

Ela tocou o joelho delicadamente, piscando, antecipando a dor. Não sentiu nenhuma. Viu as sementes do recheio vermelho e relaxou. Lambeu o recheio de framboesa que lhe ficara nos dedos.

— Além disso — prosseguiu Jesus, — precisa tirar da cabeça essas idéias sobre ouvir vozes e ficar maluca. Quem está falando sou Eu, e posso falar com quem quiser, de qualquer maneira que escolher.

— Porque tu és o Salvador — sussurrou ‘Becka.

— Correto — disse Jesus. Olhou para baixo. Na tela, abaixo Dele, duas animadas tigelas de salada estavam dançando, ansiosas pelo Tempero Rancho do Vale Escondido, que em breve receberiam. — E se quiser agradar-me, por favor, desligue essa droga. Caso não se importe. Não podemos conversar com esse negócio ligado. Além disso, faz cócegas em Meus pés.

‘Becka aproximou-se da Sony e desligou a televisão.

— Meu Senhor! — sussurrou.

 

Na tarde do domingo seguinte, Joe Paulson tinha ferrado no sono, escarrapachado na rede do pátio dos fundos, com Ozzie, o gato, enrodilhado sobre seu amplo estômago. ‘Becka permanecia na sala de estar, com a cortina da janela puxada para um lado, espiando o marido lá fora. Joe, dormindo na rede. Sonhando com sua Desavergonhada, sem dúvida — sonhando que a jogava sobre uma grande pilha de catálogos e circulares de propaganda, para então — como diriam ele e seus asquerosos companheiros de pôquer? “malhar a boneca”.

Ela erguia a cortina com a mão esquerda, porque com a direita segurava um punhado de baterias quadradas, de 9 volts. Levou as baterias para a cozinha, onde estava montando algo sobre a mesa. Jesus lhe dissera para fazer aquilo. Ela havia respondido que não sabia fazer tais coisas, era muito desajeitada, seu pai sempre lhe dissera isso. Pensou em acrescentar como, às vezes, ele Lhe dizia ficar surpreso por ela conseguir limpar a própria bunda sem um manual de instruções, mas então decidiu que este não era o tipo de coisas que se comentasse com o Salvador.

Jesus lhe disse para deixar de ser tola, que, se seguisse uma receita, conseguiria montar essa coisinha de nada. ‘Becka ficou deliciada, ao descobrir que Ele tinha razão. Não apenas era fácil, como também divertido! Sem dúvida, mais divertido do que cozinhar, porque para isto também nunca tivera jeito. Seus bolos solavam e seus pães nunca cresciam. Começara a montar esta coisinha na véspera, usando a torradeira, o motor de seu velho liquidificador Hamilton Beach e uma curiosa placa cheia de coisas eletrônicas, uma placa que havia sido as costas de um velho rádio, agora guardado no galpão. ‘Becka achava que teria tudo pronto bem antes de Joe acordar, para ver o jogo dos Red Sox na televisão, às duas horas.

Pegou o pequeno maçarico dele e o acendeu com perícia, usando um fósforo da cozinha. Uma semana antes, acharia graça se alguém lhe dissesse que agora estaria trabalhando com um maçarico de propano. No entanto, era fácil. Jesus lhe dissera exatamente como fazer, e onde soldar os fios ao painel eletrônico do velho rádio.

Isto não era tudo quanto Jesus lhe havia dito, no decorrer daqueles três últimos dias. Ele contara coisas que lhe tinham liquidado o sono, coisas que a faziam ter medo de ir à cidade para as compras do entardecer de sexta-feira, por recear que seu rosto demonstrasse tudo quanto sabia agora (Sempre sei quando você fez algo errado, ‘Becka, costumava dizer seu pai, porque tem um rosto que não sabe guardar um segredo); pela primeira vez na vida, isso a tinha feito perder o apetite. Inteiramente voltado para seu trabalho, os Red Sox e sua Desavergonhada, Joe nem daria por algo fora do normal... embora tivesse visto ‘Becka roendo as unhas na noite anterior, quando viam Hill Street Blues — e roer unhas era algo que ela jamais fizera antes. De fato, era uma das coisas que censurava nele. Joe Paulson considerou o fato, por todos os doze segundos antes de tornar a olhar para a televisão Sony, e perder-se em sonhos com os generosos seios alvos de Nancy Voss.

Entre outras coisas, estas eram algumas das que Jesus contara a ela, fazendo com que seu sono fosse irregular e levando-a a roer unhas, à avançada idade de quarenta e cinco anos:

Em 1973, Moss Harlingen, um dos parceiros de pôquer de Joe, tinha assassinado o pai. Eles caçavam gamos em Greenville e tudo fora considerado um daqueles trágicos acidentes, mas os tiros que mataram Abel Harlingen nada tiveram de acidentais. Moss simplesmente se agachara atrás de uma árvore caída, com seu rifle, e lá ficara esperando, até seu pai cruzar um pequeno riacho, a uns cinqüenta metros de onde ele se escondia. Abatera o pai tão facilmente, como um pato de cerâmica, em uma barraca de tiro na feira. Moss achava que havia matado o pai por dinheiro. Seu ramo de negócios, a firma Big Dich Construction, devia duas notas promissórias a dois diferentes bancos e teria que pagá-las dentro de seis semanas. Uma não podia ter o pagamento adiado por causa da outra. Ele procurou o pai, que se recusou a ajudá-lo, embora podendo. Assim, Moss matou o pai e herdou um monte de dinheiro, depois que o legista do condado deu seu veredicto de morte acidental. As dívidas foram pagas e Moss Harlingen realmente acreditava (exceto, talvez, em seus sonhos mais profundos), que cometera um homicídio por lucro. O motivo real era bem outro. Muito atrás no passado, quando Moss tinha dez anos e seu irmão Emory sete, a mãe deles viajou para Rhode Island e lá ficou todo um inverno. O irmão dela havia falecido subitamente, e sua esposa precisava de ajuda, a fim de firmar-se nos próprios pés. Enquanto durou a ausência da mãe, em casa dos Harlingen ocorreram vários incidentes de sodomia. Tais incidentes cessaram quando a Sra. Harlingen voltou para casa, nunca mais se repetindo. Moss havia esquecido tudo a esse respeito. Não recordava como tinha ficado acordado no escuro, tomado de mortal terror e vigiando a porta, à espera de que surgisse nela o vulto do pai. Não tinha qualquer lembrança, em absoluto, da maneira como apertava a boca contra o antebraço, com lágrimas salgadas de vergonha e ódio brotando dos olhos febris e percorrendo o rosto gélido até os lábios, enquanto Abel Harlingen untava o pau com gordura e depois o fazia penetrar a “porta traseira” do filho, com um grunhido e um suspiro. Tudo isso deixara tão pouca impressão em Moss, que ele esquecera como mordia o braço até sangrar, para assim não gritar. Tampouco era capaz de lembrar o choro fraco e ofegante de Emory na cama vizinha — “Por favor, papai, não, papai, esta noite, comigo não, por favor, papai!” Crianças esquecem com muita facilidade, claro. Entretanto, alguma lembrança certamente persistira, porque quando Moss Harlingen realmente puxara o gatilho para alvejar o pederasta filho da puta, enquanto os ecos primeiro rolaram para longe e depois rolaram para trás, até finalmente desaparecerem no profundo silêncio florestal daquela agreste parte superior do Maine, Moss sussurrou:

“Esta noite não será você, Em.”

Alice Kimball, que lecionava na Escola Primária de Haven, era lésbica. Jesus contou isto a ‘Becka na sexta-feira, não muito depois que a dama em questão, parecendo grandalhona, sólida e respeitável em um terninho verde, havia parado em sua casa, recolhendo donativos para a Sociedade Americana do Câncer.

Darla Gaines, a bela jovem de dezessete anos que trazia o jornal do domingo, tinha quinze gramas de “maconha de primeira” entre o colchão e o estrado de molas de sua cama. Jesus contou isto a ‘Becka, pouco depois de Darla aparecer no sábado, a fim de cobrar os jornais das últimas cinco semanas (três dólares, mais uma gorjeta de cinqüenta centavos, que agora ‘Becka se arrependia de ter dado). Ele também contou que Darla e seu namorado fumavam a maconha na cama dela, antes de terem sexo, e que os dois consideravam ter sexo “dançar jazz na horizontal”. Eles fumavam maconha e “dançavam jazz na horizontal” quase todos os dias, de duas e meia até mais ou menos três da tarde. Os pais de Darla trabalhavam na sapataria Splendid Choe, em Derry, só chegando em casa bem depois das quatro.

Hank Buck, outro parceiro de pôquer de Joe, trabalhava em um grande supermercado de Bangor. Sentia tanto ódio do patrão, que no ano anterior despejara meia caixa de Ex-Lax no shake de chocolate do homem, quando este o mandara apanhar seu lanche no McDonald’s, certo dia. O patrão de Hank tivera mais do que uma espetacular diarréia; às três e quinze daquele dia, fizera nas calças algo equivalente a uma bomba-A de merda. A bomba-A — ou bomba-M, se alguém preferir — havia sido acionada quando ele cortava fatias de carne para o almoço, na lanchonete de Paul, a Down-East SuperMarket. Hank conseguir manter a seriedade até a hora de deixar o trabalho, mas quando entrou no carro, de volta a casa, ria tanto, que quase borrou as próprias calças. E continuou rindo tão desbragadamente, que por duas vezes precisou parar o carro.

— Deu gargalhadas — Jesus contou a ‘Becka. — O que acha disso?

‘Becka achou que era uma brincadeira de muito mau gosto, além de baixa. Aliás, parecia que tais coisas eram apenas o começo. Jesus estava a par de algo desagradável ou perturbador sobre todo mundo que ela conhecia, segundo tudo indicava.

Era impossível viver com tão terrível dilúvio de informação.

Tampouco era impossível viver sem aquilo.

Uma coisa era certa; ela precisava fazer algo a respeito.

— E vai fazer — disse Jesus.

Ela estava de costas quando Ele falou, de seu quadro em cima da Sony. É claro que Ele havia falado. A idéia de que a voz Dele vinha do interior de sua própria cabeça — de que ela estava... bem... de algum modo lendo os pensamentos dos outros... isso era apenas uma terrível e passageira ilusão. Só podia ser. A alternativa era terrível.

Satã. Feitiçaria.

— Em verdade — disse Jesus, confirmando Sua existência com aquela voz seca e não-absurda, tão semelhante à de seu pai, — você já quase acabou com esta parte. Basta soldar aquele fio vermelho nesse ponto à esquerda do troço comprido... não, ali, não... aqui. Boa garota! Nada de exagero na solda, lembre-se! Isso é como Brylcreem, ‘Becka. Um tiquinho dá pro gasto.

Que estranho, ouvir Jesus Cristo falar em Brylcreem!

 

Joe acordou às quinze para as duas da tarde, empurrou Ozzie para fora de sua barriga, caminhou até o final do gramado, limpando pêlos de gato aderidos à sua camiseta, e urinou confortavelmente na hera venenosa que crescia ali. Depois caminhou para a casa. Yankees e Red Sox. Um jogo e tanto. Abriu a geladeira, olhando de relance para os pedacinhos de fio elétrico em cima do balcão e perguntando-se que diabo significava o que a imbecil da ‘Becka estivera preparando. Logo esqueceu. Agora pensava em Nancy Voss. Gostaria de saber o que sentiria, gozando entre os seios dela. Talvez fosse possível descobrir na segunda-feira. Tinha discutido com ela; céus, às vezes brigavam como cão e gato, no calor de agosto. Isso parecia não acontecer apenas com eles dois; ultimamente, tinha-se a impressão de que todos estavam com pavio curto. Entretanto, quando o negócio era trepar... sai de baixo! Ele não se sentia tão fogoso desde que tinha dezoito anos e com ela era a mesma coisa. Como se nenhum dos dois se sentisse saciado. Ele havia até gozado duas vezes à noite. Como se estivesse novamente com dezesseis anos. Pegando uma cerveja, encaminhou-se para a sala de estar. Era quase certo que Boston hoje vencesse. Seu palpite era de oito contra cinco. Ultimamente parecia ter uma espantosa cabeça para palpites. Havia um sujeito em Augusta que fazia apostas, e Joe já ganhara quase quinhentas pratas nas últimas três semanas... mas não que isto fosse do conhecimento de ‘Becka. O dinheiro estava bem escondido. Acontecia algo curioso: ele sabia exatamente quem ia ganhar e por quê, mas quando descia a Augusta, esquecia o por que, lembrava-se apenas do quem. Ora, afinal, isto era o que importava, não? Da última vez, o sujeito de Augusta não gostara, pagando três por um, em uma aposta de vinte dólares. Era o jogo dos Mets contra os Piratas. Com Gooden na pequena elevação, parecia café pequeno para os Mets, mas Joe escolhera os Piratas e eles haviam ganho, 5-2. Joe não sabia por quanto tempo mais o sujeito de Augusta aceitaria suas apostas mas, se ele recusasse, e daí? Sempre havia Portland. Lá encontraria dois ou três bookmakers. Parecia que ultimamente ficava com dor de cabeça sempre que deixava Haven — talvez precisasse de óculos — porém quando a gente está ganhando uma grana firme, uma dorzinha de cabeça era um pequeno preço a pagar. Quando juntasse dinheiro suficiente, eles dois poderiam dar o fora. Deixar ‘Becka com Jesus. Afinal, era com quem ela gostaria de estar casada.

Fria como gelo, assim era ela. E quanto a Nancy? Que fogueira! E inteligente, além disso! Ainda hoje, ela o tinha levado à agência dos correios, a fim de mostrar-lhe algo.

— Veja! Veja só o que inventei! Acho que deveria patentear meu invento, Joe! Acho mesmo!

— Qual foi a idéia? — perguntou Joe.

A verdade é que estava irritado com ela. A verdade é que estava mais interessado em suas tetas do que em suas idéias e, nesse momento, começava a sentir tesão. De fato, era como ser adolescente outra vez. Não obstante, o que ela lhe mostrou foi suficiente para fazê-lo esquecer tudo sobre o desejo que o consumia. Pelo menos, por uns quatro minutos.

Nancy Voss havia tomado um transformador de trem Lionel, para crianças, e de algum modo o conectara a um punhado de pilhas tipo D. O dispositivo fora ligado a sete peneiras de trigo, cujas telas haviam sido retiradas. As peneiras jaziam sobre os lados. Quando Nancy ligou o transformador, vários fios com filamento de diâmetro mínimo, conectados a algo semelhante a um liquidificador, começaram a selecionar cartas registradas de uma pilha e as lançavam no chão, dentro das peneiras, aparentemente ao acaso.

— O que isso está fazendo? — perguntou Joe.

— Separando as cartas registradas — disse ela. Apontou para uma das peneiras, depois para outra. — Para esta vão as cartas da cidade... e para aquela as da RFD 1, a Estrada de Derry, você sabe... ali ficam as da Estrada de Hidge... aqui as da Estrada de Nista... e lá...

A principio ele não acreditou. Imaginou que fosse alguma piada e perguntou-se o que ela diria, se lhe desse um tapa na cabeça. Por que você faria isso? ela gemeria. Alguns homens não entendem uma piada, responderia ele, como Sylvester Stallone naquele filme Cobra, mas não sou um deles. Exceto que, então, viu a coisa funcionando realmente. Era uma perfeita engenhoca, sem tirar nem pôr, mas eficiente. O som daqueles fios arranhando o chão, no entanto, era um pouco arrepiante. Eles chiavam e raspavam, como as patas de enormes e velhas aranhas. O negócio funcionava, é verdade; ele não saberia dizer como, diabo, mas funcionava.

Viu um dos fios selecionar uma carta para Roscoe Thibault e empurrá-la para a peneira certa — RDF 2, que era a estrada de Hammer Cut — embora erroneamente endereçada para Haven Village.

Quis perguntar a ela como aquilo funcionava, mas não desejando parecer imbecil, em vez disto perguntou apenas onde conseguira os fios.

— Eram daqueles telefones que comprei na loja Rádio Shack — disse ela. — A que fica no Bangor Mall. Estavam em liquidação! Aí também há mais material dos telefones. Tive que fazer uma modificação completa, mas foi fácil. Foi apenas... sabe como é... uma idéia que me deu. Entende?

— Hum-hum — disse Joe lentamente, pensando na cara dos bookmakers, quando ele fora receber suas sessenta pratas, depois que os Piratas derrotaram Gooden e os Mets. — Nada mau... para uma mulher.

Por um momento, Nancy franziu o cenho e ele pensou: Você quer dizer alguma coisa? Quer brigar? Vá em frente. Tudo bem. Será uma briga igual às outras.

O rosto dela então voltou ao normal. Sorriu.

— Agora, podemos fazer aquilo demorar ainda mais. — Seus dedos deslizaram sobre o volume endurecido nas calças dele. — Está querendo agora, não está, Joe?

Joe queria. Os dois abaixaram-se para o chão e ele esqueceu tudo sobre estar irritado com ela, esqueceu como, de repente, parecia capaz de intuir as probabilidades em tudo, de jogos de beisebol a corridas de cavalo e partidas de golfe, num piscar de olhos. Deslizou para dentro dela, Nancy gemeu e Joe esqueceu também o tenebroso som roçagante produzido por aqueles fios, separando as cartas registradas e jogando-as na fila de peneiras de trigo.

 

Quando Joe entrou na sala de estar, ‘Becka estava sentada em sua cadeira de balanço, fingindo ler o último exemplar de The Upper Room. Apenas dez minutos antes dele chegar, ela terminara o acoplamento da engenhoca que Jesus lhe mostrara como montar, à parte traseira da televisão Sony. ‘Becka seguiu as instruções Dele ao pé da letra, porque Ele avisou que é preciso tomar-se cuidado, quando mexemos nas entranhas de uma televisão.

— Você pode torrar-se — advertiu Ele. — Mesmo com o aparelho desligado, aí dentro há mais perigo do que em um depósito de drogas.

A televisão agora estava desligada, e Joe disse, irritado:

— Pensei que você tivesse aquecido isto para mim.

— Acho que você sabe como ligar a maldita televisão — disse ‘Becka, falando a seu marido pela última vez.

Joe ergueu as sobrancelhas. Maldita era uma palavra danada de estranha, vindo de ‘Becka. Pensou em chamar-lhe a atenção sobre isso, mas resolveu deixar o barco correr. Talvez, dentro em breve, houvesse uma velha e gorda mula vivendo sozinha naquela casa.

— Sim, penso que sei — disse Joe, falando a sua esposa pela última vez.

Ele apertou o botão que ligava a Sony. Então, mais de dois mil volts de corrente invadiram seu corpo — a tensão de corrente contínua, que havia sido elevada, convertida na letal corrente alternada, e a carga do circuito elétrico foi novamente intensificada. Os olhos dele esbugalharam-se e então rebentaram, como uvas em um microondas. Joe começara a colocar a cerveja em cima da televisão, perto de Jesus. Quando a eletricidade o atingiu, sua mão se crispou com força suficiente para quebrar a garrafa. Farpas de vidro marrom penetraram-lhe nos dedos e na palma. A cerveja espumou e escorreu. Espalhou-se no topo da televisão (a caixa de plástico já formava bolhas) e transformou-se em vapor, com cheiro de levedo.

— IIIIOOOOOARRRRHMMMMMM! — gritou Joe Paulson.

Seu rosto começou a ficar negro. Por seus cabelos e ouvidos escapava uma fumaça azulada. Seu dedo ficara preso ao botão “On” da Sony.

Uma imagem brotou na tela da televisão. Era Dwight Gooden, fazendo a jogada que deixaria Joe Paulson quarenta dólares mais rico. A imagem foi cortada e surgiu outra, mostrando ele e Nancy transando no chão da agência postal, em meio a uma profusão de catálogos e Congressional Newsletters, entre propagandas de companhias de seguro dizendo que você teria toda a cobertura necessária, mesmo já tendo passado dos sessenta e cinco, nenhum vendedor bateria à sua porta, não seria exigido qualquer exame médico e seus entes queridos estariam protegidos, ao custo de apenas alguns pennies por dia.

— Não! — gritou ‘Becka, e a imagem tornou a desaparecer.

Ela agora via Moos Harlingen, postado atrás de um pinheiro caído, apontando seu .30-.30 para o pai e murmurando Esta noite não será você, Em. A imagem foi substituída pela de um homem e uma mulher escavando o solo na floresta, ela atrás dos controles de algo um pouco parecido a uma ogiva nuclear e um pouco parecido a uma caricatura feita por Rube Goldberg, o homem enrolando uma corrente à volta de um tronco. Além deles, um gigantesco objeto em forma de disco projetava-se da terra. Era prateado, mas fosco; o sol batia em alguns pontos de sua superfície, porém não emitia reflexos.

As roupas de Joe Paulson irromperam em chamas.

A sala de estar ficou impregnada com o cheiro de eletricidade e cerveja cozida. O quadro em 3-D de Jesus sacolejou-se um pouco e então explodiu.

‘Becka deu um grito estridente, compreendendo que, gostando ou não, havia sido obra dela o tempo todo, dela, dela, dela, e que ela estava assassinando seu marido.

Correu para ele, agarrou-lhe a mão que se agitava, espasmódica... e foi também, ela própria, galvanizada.

Oh, Jesus, Jesus, salve-o! Salve-me! Salve nós dois! ela pensou, enquanto a corrente penetrava em seu corpo, erguendo-a na ponta dos pés, a mais pesada bailarina do mundo, en pointe. Então uma voz insana e cacarejante, a voz de seu pai, brotou-lhe no cérebro: Enganei você, ‘Becka, não foi? Enganei direitinho! Vou ensinar você a mentir! Ensinar de uma vez por todas!

O fundo da televisão, que ela tornara a aparafusar no lugar, depois de acrescentar suas modificações, voou contra a parede, em um ofuscante jato de luz azul. ‘Becka desabou no tapete, puxando Joe consigo. Ele já estava morto.

Quando o chamejante papel de parede atrás da televisão propagou o fogo às cortinas de chintz, ‘Becka Paulson também estava morta.

 

HILLY BROWN

O dia em que Hillman Brown produziu o truque mais espetacular de sua carreira como mágico amador — o único truque espetacular, em realidade, de sua carreira como mágico amador — foi um domingo, 17 de julho, exatamente uma semana antes da explosão na sede da municipalidade de Haven. O fato de Hillman Brown nunca ter antes encenado um truque verdadeiramente espetacular, nada tinha de surpreendente. Afinal de contas, ele estava com dez anos apenas.

Seu nome havia sido o sobrenome de solteira de sua mãe. Tinha havido Hillmans em Haven, recuando à época em que o lugar se chamava Montgomery e, embora Marie Hillman não se arrependesse por ter-se tornado Marie Brown — afinal, ela amava o sujeito! — quisera preservar o nome e Bryant concordara. O recém-nascido ainda não passara uma semana inteira em casa, quando todos começaram a chamá-lo de Hilly.

Hilly cresceu nervoso. Ev, o pai de Marie, dizia que ele tinha bigodes de gato como nervos e que levaria a vida inteira em franca atividade. Não era um comentário que Bryant e Marie Brown desejassem ouvir, mas após seu primeiro ano com Hilly, isso deixou de ser novidade, tornando-se apenas um fato da vida. Alguns bebês procuram consolar-se balançando-se em seus berços ou caminhas; outros, chupando o polegar. Hilly balançava-se no berço quase constantemente (chorando irado ao mesmo tempo, isto acontecendo quase sempre) e chupava os dois polegares — chupava-os com tanto vigor, que aos oito meses de idade tinha dolorosas bolhas em ambos.

— Ele agora irá parar com isso — disse-lhes confiantemente o Dr. Lester, em Derry após examinar as feias bolhas orlando os polegares da criança.

Marie havia chorado por aquelas bolhas, como se fossem suas. No entanto, Hilly não parou. Sua necessidade de consolo era, aparentemente, maior do que qualquer dor que sentisse nos polegares. Com o tempo, as bolhas se transformaram em calos duros.

— Ele sempre será muito ativo — profetizava o avô do garoto, quando alguém lhe perguntava (e mesmo quando ninguém perguntava; aos sessenta e três anos, Ev Hillman era um tagarela-tendendo-a-enfadonho). — Ele tem bigodes de gato por nervos, se tem! Esse Hilly viverá dando surpresas ao pai e à mãe!

Hilly não se fartava de surpreendê-los, certamente. Havia cepos de árvores marginando os dois lados da entrada de carros na residência dos Brown, ali postos por Bryant, a instâncias de Marie. Sobre cada cepo ela colocou um vaso e, em cada vaso, havia uma diferente espécie de planta ou apanhado de flores. Quando Hilly tinha três anos, certo dia escapou da caminha de grades, onde se presumia que estivesse tirando uma soneca (“Por que preciso de uma soneca, mãe?” — perguntava Hilly. “Porque eu preciso de descanso, Hilly,” — respondia sua exaurida mãe), arrastou-se sobre o peitoril da janela e foi para fora. Então, derrubou todos os doze vasos, com cepos e tudo. Quando Marie viu o que Hilly havia feito, chorou tão inconsolavelmente como havia chorado pelos pobres polegares do menino. Vendo-a chorar, Hilly também debulhou-se em lágrimas (ao redor dos polegares, pois tentava chupar os dois ao mesmo tempo). Não havia derrubado os cepos e vasos por ser um menino mau; apenas lhe parecera uma boa idéia, naquele momento.

— Você esqueceu o quanto eles custaram, Hilly — disse seu pai, nessa ocasião.

Ele repetiria isso muitas vezes, antes daquele domingo, 17 de julho de 1988.

Aos cinco anos de idade, Hilly montou em seu trenó e deslizou em disparada pela entrada de carros dos Brown, coberta de gelo nesse dezembro, indo parar na estrada. Mais tarde, disse para sua mãe, cujo rosto ficara acinzentado de pânico, que nunca lhe ocorrera a idéia de que alguém poderia estar vindo pela estrada para Derry; ao levantar-se, vira a camada de gelo que caíra e seu único pensamento era descobrir se seu trenó “Voador Flexível” desceria pela entrada de carros. Marie o tinha visto, como também vira o caminhão-tanque de combustível descendo a Rota 9. Gritou o nome do filho tão alto, que nos dois dias seguintes mal conseguia falar acima de um sussurro. Nessa noite, tremendo nos braços de Bryant, contou-lhe que vira lousa da sepultura do menino em Homeland — que realmente vira isto: Hillman Richard Brown, 1978-1983, Levado de nós cedo demais.

— Hiiillyyyyyy!

A cabeça de Hilly se virou, ao grito da mãe, para ele soando tão alto como um avião a jato. Em resultado, caiu do trenó pouco antes deste chegar ao pé da entrada de carros. A entrada de carros era asfaltada, a camada de gelo ainda estava muito fina, e Hilly Brown jamais teve o dom com que um Deus benévolo abençoa a maioria das crianças ativas e traquinas — o dom de cair com sorte. Ele fraturou o braço esquerdo pouco acima do cotovelo e recebeu tal pancada na cabeça, que perdeu os sentidos.

Seu “Voador Flexível” disparou para a estrada. O motorista do caminhão-tanque reagiu, ainda antes de poder ver que não havia ninguém no trenó. Girou o volante, e o caminhão-tanque dançou para uma margem da estrada, em direção a uma camada baixa de neve, com a graça volumosa dos elefantes dançarinos de balé em Fantasia. Só conseguiu parar quando aterrou na vala marginal, alarmantemente inclinado para um lado. Menos de cinco minutos depois, o motorista esgueirou-se para fora pela porta do passageiro e correu para Marie Brown. Tombado sobre um lado, o caminhão ficou sobre a grama gelada como um mastodonte morto, enquanto o dispendioso óleo combustível nº 2 escapava em gorgolejos por seus três respiradouros.

Marie corria estrada abaixo com o filho inconsciente nos braços, gritando sem parar. Em seu terror e confusão, tinha certeza de que Hilly devia ter sido atropelado, mesmo tendo visto claramente quando ele escorregou para fora do trenó, no final da entrada de carros.

— Ele está morto? — gritou o motorista do caminhão-tanque. Seus olhos estavam arregalados, o rosto branco como papel, os cabelos em pé. Havia uma mancha escura espalhando-se nas entrepernas das calças. — Oh, misericordioso Jesus, ele está morto, dona?

— Eu acho que sim — chorou Marie. — Acho que está, oh, acho que ele está morto!

— Quem está morto? — perguntou Hilly, abrindo os olhos.

— Oh, Hilly, graças a Deus! — bradou Marie, abraçando-o.

Hilly gritou de volta, com grande entusiasmo. No abraço, ela apertava as extremidades lascadas do osso quebrado no braço esquerdo do menino.

Hilly ficou os três dias seguintes no Hospital de Derry.

— Isso pelo menos irá acalmá-lo — disse Bryant Brown na noite seguinte, durante um jantar de feijões cozidos e cachorros-quentes.

Ev Hillman casualmente jantava com eles naquela noite, como fazia de vez em quando, desde que sua esposa falecera. Eram cinco jantares em média, por semana.

— Quer apostar como não? — disse Ev, dando uma risadinha enquanto mastigava um pedaço de pão de milho.

Bryant fitou o sogro de soslaio, com ar carrancudo, e não disse nada.

Como sempre, Ev tinha razão — este era um dos motivos que deixavam Bryant tão freqüentemente irritado com ele. Em sua segunda noite no hospital, muito depois que as outras crianças da seção de Pediatria estavam dormindo, Hilly decidiu sair em exploração. Como conseguiu passar pela enfermeira de plantão, foi um mistério, mas passou. As três da madrugada, deram por falta dele. Uma busca inicial na enfermaria pediátrica resultou em nada. Tampouco uma busca por todo aquele andar. A segurança foi acionada. Montou-se então uma busca por todo o hospital — administradores que a princípio tinham ficado apenas um tanto preocupados, agora se mostravam nervosos — e nada foi descoberto. Os pais de Hilly foram chamados e compareceram em seguida, parecendo em estado de choque. Marie chorava, mas devido à laringe inchada, emitia apenas um ronco resfolegante.

— Achamos que talvez ele tenha saído do edifício, de algum modo — disse-lhes o chefe dos Serviços Administrativos.

— Como, diabo, um garotinho de cinco anos pode simplesmente sair do edifício? — gritou Bryant. — Que tipo de lugar vocês dirigem aqui?

— Bem... bem... tente compreender, Sr. Brown. Isto aqui nada tem de uma prisão e...

Marie interrompeu os dois.

—Vocês têm de encontrá-lo! — falou em um sussurro. — A temperatura lá fora é de seis graus negativos. Hilly estava de pijama. Ele pode estar... estar...

— Oh, Sra. Brown, sinceramente, acredito que tais preocupações são prematuras — disse o chefe dos Serviços Administrativos, com um sorriso franco.

A verdade é que ele não as achava prematuras, em absoluto. Sua primeira providência, após presumir que o menino poderia ter deixado o hospital desde a checagem das onze horas nos leitos, tinha sido verificar qual a temperatura durante a noite. A informação resultou em uma ligação ocasional para o Dr. Elfman, especialista em casos de hipotermia — e houvera muitos casos semelhantes, nos invernos do Maine. O prognóstico do Dr. Elfman foi grave.

— Se ele saiu, provavelmente está morto — declarou.

Outra ampla busca pelo hospital, esta agora aumentada pela polícia e bombeiros de Derry resultou em nada. Marie Brown foi sedada e posta na cama. As únicas boas notícias eram de natureza negativa; até então, ninguém encontrara o cadáver de Hillman, vestido de pijama e congelado. Evidentemente, pensou o chefe dos Serviços Administrativos, o Rio Penobscot ficava perto do hospital. Sua superfície estava congelada. Era bem possível que o menino houvesse tentado cruzar o gelo e afundara. Oh, como ele desejava que os Brown, de Haven, houvessem levado sua pestinha para o Eastern Maine Medical!

As duas daquela tarde, Bryant Brown sentou-se entorpecidamente em uma cadeira, ao lado da esposa adormecida, perguntando-se como diria a ela que o filho único de ambos estava morto, caso isto fosse necessário. Mais ou menos à mesma hora, um servente que estava no porão, verificando os boilers da lavanderia, viu à sua frente um quadro espantoso: um garotinho, usando apenas calças de pijama e tendo um braço engessado, caminhava despreocupadamente entre duas das gigantescas fornalhas do hospital.

— Ei! — gritou o servente. — Ei, garoto!

— Olá — disse Hilly, aproximando-se. Seus pés estavam negros de sujeira, os fundilhos do pijama mostravam manchas de graxa. — Poxa, cara, como este lugar é grande! Acho que me perdi.

O servente conduziu Hilly aos pavimentos superiores, diretamente para o gabinete da administração. O Chefe fez Hilly sentar-se em uma grande poltrona (após forrá-la prudentemente com páginas duplas do Daily News de Bangor) e pediu a sua secretária que trouxesse uma Pepsi-Cola e um saco de balas para o pestinha. Em outras circunstâncias, ele próprio teria ido buscá-los, assim impressionando o menino com sua solicitude de avô. Em outras circunstâncias — e com isto quero dizer, pensou taciturnamente o Chefe, se também o menino fosse outro. Ele receava deixar Hilly sozinho.

Quando a secretária voltou com as balas e o refrigerante, o Chefe tornou a dar-lhe outra incumbência... agora a de avisar Bryant Brown. Bryant era um homem forte, mas ao ver Hilly sentado na cadeira de braços do Chefe; com os pés sujos pendurados a dez centímetros do tapete e as folhas de jornal estalando sob seu fundilho, enquanto ele chupava as balas e bebia Pepsi, foi incapaz de reter as lágrimas de alívio e gratidão. Isto, naturalmente, levou Hilly — que nunca em sua vida tinha feito alguma coisa conscientemente por maldade — a também desandar no choro.

— Meu Deus, Hilly, por onde foi que andou?

Hilly contou a história o melhor que pôde, deixando Bryant e o Chefe extraírem dela a verdade objetiva, o melhor que ambos podiam. Ele se tinha perdido, ficara perambulando no porão (“Eu estava seguindo um duende”, Hilly contou a eles), e então tinha rastejado para baixo de uma das fornalhas, a fim de dormir. Lá estava tão quente, contou ele, tão quente, que havia tirado a blusa do pijama, passando-a cuidadosamente sobre o braço engessado.

— Também gostei dos cachorrinhos — disse ele. — Podemos ter um cachorrinho, papai?

O servente que encontrara Hilly, encontrou também sua camisa do pijama, debaixo da fornalha nº 2. Quando puxou a camisa para fora, chegou a igualmente ver os “cachorrinhos”, embora estes houvessem fugido da claridade de sua lanterna. Não os mencionou ao Sr. e Sra. Brown, que simplesmente poderiam ter um colapso, se defrontados com mais um choque. O servente, um homem que tinha consideração pelos semelhantes, pensou que para eles seria muito melhor ignorarem que seu filho passara a noite com um bando de ratos de porão, alguns deles realmente parecendo tão grandes como cachorrinhos, quando fugiram do facho de sua lanterna.

 

Se interrogado a respeito de suas percepções sobre tais coisas — e incidentes similares (embora menos espetaculares) que ocorreram nos cinco anos seguintes de sua vida — Hilly teria dado de ombros, dizendo:

— Acho que estou sempre me metendo em enrascadas.

Com isto, ele quereria dizer que tinha propensão a acidentes, porém ninguém ainda lhe ensinara tão valiosa frase.

Quando estava com oito anos — dois após o nascimento de David — ele trouxe para casa um bilhete da Sra. Underhill, sua professora do terceiro grau, solicitando a presença do Sr. e Sra. Brown para uma breve conferência. Os Brown compareceram, não sem certa trepidação. Ficaram sabendo que, na semana anterior, os alunos do terceiro grau de Haven haviam sido submetidos a testes para avaliação do QI. Bryant estava secretamente convencido de que a Sra. Underhill lhes comunicaria ser o coeficiente de inteligência de Hilly muito abaixo do normal e os aconselharia a colocarem o filho em aulas de recuperação. Marie estava convencida (também secretamente) de que Hilly era disléxico. Nem ela nem o marido haviam dormido direito aquela noite.

O que a Sra. Underhill lhes explicou, foi que Hilly estava inteiramente fora da escala — em poucas palavras, o menino era um gênio.

— Deverão levá-lo a Bangor e fazer com ele o Teste Wechsler, se realmente quiserem saber até onde chega seu QI — aconselhou a Sra. Underhill. — Fazer Hilly passar pelo Teste Tompall de QI é como tentar-se determinar um QI humano através de um teste de inteligência destinado a cabras.

Marie e Bryant discutiram o assunto... e resolveram encerrá-lo por ali mesmo. Em verdade, não queriam saber o quão inteligente era seu filho Hilly. Bastava saberem que não era mentalmente deficiente... e, como Marie comentou essa noite, na cama, isso explicava muita coisa: a intensa atividade de Hilly, sua aparente incapacidade para dormir além de seis horas por noite, seus ardentes interesses que surgiam como ciclones, depois extinguindo-se com idêntica rapidez. Certo dia, quando Hilly estava com nove anos, ela fora ao correio com David, ainda bebê, e ao voltar encontrara a cozinha imaculada, quando partira quinze minutos antes, na mais absoluta desordem. A pia estava cheia de tigelas sujas de trigo. Havia uma poça de manteiga derretida sobre o balcão. E alguma coisa estava sendo assada no forno. Marie largou rapidamente David em seu cercadinho e abriu a porta do forno, esperando ser recebida por nuvens de fumaça e cheiro de queimado. Em vez disto, encontrou um tabuleiro cheio de biscoitos de preparo rápido que, embora malformados, estavam bastante gostosos. Os biscoitos foram saboreadas no jantar daquela noite... mas antes disso, Marie dera algumas palmadas no traseiro de Hilly e o mandara, chorando desculpas, ficar em seu quarto. Então, sentada à mesa da cozinha, ela havia chorado e terminara rindo, enquanto David — um bebê plácido e despreocupado, que era um ensolarado Taiti, em comparação ao Cabo das Tormentas de Hilly — em pé dentro de seu cercadinho e firmando-se nas grades, olhava comicamente para ela.

Um ponto muito favorável para Hilly era seu sincero amor pelo irmão. E, embora Marie e Bryant hesitassem em deixá-lo segurar o novo bebê ou até deixá-lo sozinho no mesmo aposento com David por mais de, digamos, trinta segundos seguidos, aos poucos foram relaxando.

— Diabo, vocês poderiam mandar Hilly e David para uma temporada no acampamento lá em Allagash, e os dois voltariam ótimos — disse Ev Hillman. — Ele adora a irmãozinho. E é bom para o pequenino.

Tais palavras se revelaram verdadeiras. A maioria — se não quase todas — das “enrascadas” de HilIy, tanto provinha de um honesto desejo de ajudar os pais, como de melhorar-se. Apenas, tudo quanto ele fizesse dava errado. Com David, no entanto, que adorava o chão que o irmão mais velho pisava, Hilly sempre acertava...

Até o dia 17 de julho, isto é, quando Hilly fez o truque.

 

O Sr. Robertson Davies (que sua morte seja adiada por mil anos) sugeriu em sua Deptford TriIogy, que nossa atitude em relação à mágica e aos mágicos em grande parte indica nossa atitude em relação à realidade, e que nossas atitudes sobre a questão da realidade indicam nossas atitudes em relação ao inteiro mundo de maravilhas em que nos encontramos — somos crianças na floresta, mesmo o mais idoso de nós (deve-se crer que inclusive o Sr. Davies), onde algumas das árvores mordem e outras conferem grandes favores místicos — uma propriedade existente em suas cascas, sem dúvida.

Hilly Brown acreditava firmemente que existia em um mundo de maravilhas. Esta sempre fora a sua atitude e jamais mudou, pouco importando em quantas “enrascadas” se metesse. O mundo era tão misticamente belo, como as bolas de vidro que sua mãe e seu pai penduravam na árvore de Natal todos os anos (Hilly adoraria também pendurar algumas, porém a experiência já lhe ensinara — como ensinara a seus pais — que se pusesse as mãos em algumas delas, seria a morte certa daquela bola de vidro). Para ele, o mundo era tão espetacularmente intrigante como o Cubo de Rubik que ganhara em seu nono aniversário (o cubo permanecera espetacularmente intrigante por duas semanas, enfim, depois do que Hilly passou a solucioná-lo como coisa rotineira). Sua atitude no tocante à mágica, portanto, já era previsível — adorava-a. A mágica tinha sido feita para Hilly Brown. Infelizmente, como Dunstable Ramse, na Deptford Trilogy de Davies, Hilly Brown não tinha sido feito para a mágica.

Por ocasião do décimo aniversário de Hilly, Bryant Brown teve que passar pelo centro comercial de Derry a fim de escolher outro presente para o filho. Marie lhe havia telefonado, durante a folga do café.

— Meu pai esqueceu de comprar alguma coisa para Hilly, Bryant. Ele queria saber se você poderia dar uma chegada no centro comercial e comprar-lhe algum brinquedo ou coisa assim. Disse que pagará a você, assim que seu cheque chegar.

— Claro — respondeu Bryant, pensando: E quando porcos voarem em cabos de vassouras.

— Obrigada, meu bem — disse ela, agradecida.

Marie sabia perfeitamente que seu pai — agora jantando com eles seis ou sete noites por semana, em vez das cinco anteriores — era a pedra no sapato de seu marido. Entretanto, Bryant nunca se queixara e, por causa disto, ela o amava ainda mais.

— E o que ele acha que Hilly gostaria?

— Papai disse que confia em sua escolha — responde Marie.

Bem típico dele, pensou Bryant. Assim, naquela tarde, ele se viu pesquisando nas duas lojas de brinquedos do centro comercial, olhando os jogos, bonecos (os bonecos para meninos, apresentados pelo eufemismo de “figuras de ação”), modelos e kits (Bryant viu um grande conjunto de química, pensou em Hilly misturando coisas em tubos de ensaio, e estremeceu). Nada parecia adequado; aos dez anos, seu filho mais velho atingira uma idade em que era velho demais para brinquedos de bebês e jovem demais para artigos tão sofisticados como papagaios de empinar com estrutura em forma de caixa ou modelos de aviões movidos a gasolina. Nada parecia adequado e ele tinha pouco tempo disponível. A festa do aniversário de Hilly tinha sido programada para as cinco da tarde e agora já eram quatro e quinze. Mal teria tempo de chegar em casa.

Pegou o conjunto de mágica quase ao acaso. Trinta novos truques! anunciava a caixa. Ótimo. Horas de divertimento para o jovem prestidigitador! anunciava a caixa. Também ótimo. Idades: 8-12, anunciava a caixa. Excelente. Segurança garantida para o jovem mágico, anunciava a caixa, e isto era o melhor de tudo. Bryant a comprou e entrou com ela em casa, escondida debaixo do paletó, enquanto Ev Hillman ensaiava Hilly, David e três amigos de Hilly em um barulhento e desafinado coro de “Sweet Betsy from Pike”.

— Chegou bem na hora para o bolo de aniversário — disse Marie, beijando-o.

— Quer embrulhar isto primeiro? — Ele lhe entregou o conjunto de mágica. Ela deu um rápido olhar à caixa e assentiu. — Como vai indo tudo?

— Perfeito — disse ela. — Quando chegou a vez de Hilly pregar a cauda do jumento, ele tropeçou em um pé da mesa e espetou o alfinete no braço de Stanley Jernigan, mas foi só, até agora.

Bryant alegrou-se imediatamente. As coisas de fato estavam correndo bem. No ano anterior, durante uma brincadeira de esconde-esconde, ao contorcer-se para entrar no esconderijo que Hilly preferia o tempo todo, Eddie Golden lacerara a perna em um pedaço de arame farpado enferrujado. Hilly nunca fora ferido por aquele arame e, de fato, nunca reparara nele. Eddie precisou ir ao médico, que lhe fez três suturas e aplicou uma antitetânica. O pobre Eddie tivera uma péssima reação à injeção e passara os dois dias após o nono aniversário de Hilly, confinado no hospital.

Agora, Marie sorriu e tornou a beijar Bryant.

— Papai agradece a você — disse ela. — E eu também.

Hilly abriu todos os seus presentes com prazer, mas sua alegria não teve limites, quando chegou a vez da caixa de mágicas. Correu para o avô (que a esta altura já conseguira devorar metade do bolo de chocolate do aniversariante e cortava mais uma fatia para si mesmo) e o abraçou, eufórico.

— Obrigado, vovô! Obrigado! Era justamente o que eu queria! Como foi que adivinhou?

Ev Hillman sorriu calorosamente para o neto.

— Acho que ainda não esqueci tudo sobre ser um menino — disse.

— É um barato, vovô! Poxa! Veja, Stanley! Trinta e quatro truques! Veja, Barney...

Girando para mostrar seu presente a Barney Applegate, Hilly esbarrou com a quina da caixa na xícara de café de Marie, quebrando-a. O café entornou-se e escaldou o braço de Barney, que gritou.

— Oh, desculpe, Barney! — exclamou Hilly, ainda saltitante. Seus olhos brilhavam tanto, que quase pareciam em fogo. — Bem, agora veja isto! Não é legal? Que chocante!

Bryant e Marie haviam economizado para comprar os três ou quatro presentes que ainda seguravam, tendo-os encomendado pelo correio com grande antecipação, a fim de que chegassem em tempo para o aniversário. Agora, no entanto, ante a alegria de Hilly com o presente do avô, viam-se relegados à posição de portadores de lanças, em um épico da selva. Os dois esposos trocaram um olhar telepático.

Oh, meu bem, eu sinto muito, disseram os olhos dela.

Bem, que diabo... esta é a vida com Hilly, replicaram os dele.

Os dois desataram a rir.

Os que estavam mais perto se viraram para fitá-los por um momento — Marie jamais esqueceu os olhos redondos e solenes de David — e então tornaram a concentrar-se em Hilly, que abria seu conjunto de mágicas.

— Eu gostaria de saber se sobrou um pouco do sorvete de nozes e bordo — perguntou Ev, em voz alta.

Naquela tarde considerando seu avô o maior homem sobre a terra, Hilly correu para trazer-lhe o sorvete.

 

Em sua Deptford Trilogy, o Sr. Robertson Davies também sugeriu que o mesmo grande truísmo aplicável a escrever, pintar, escolher cavalos na pista e contar mentiras de uma forma sinceramente crível, é igualmente aplicável à mágica: algumas pessoas têm talento para ela, outras não. Hilly não tinha.

Em Fifth Business, o primeiro dos livros Deptford de Davies, o narrador, fascinado pela mágica (é um menino tendo aproximadamente a idade de Hilly), faz vários truques — mal — para uma platéia aprovadora e não-crítica de uma só pessoa (um menino bem mais novo, com mais ou menos a idade de David), conseguindo este irônico resultado: o menino mais velho descobre que o mais novo possui o grande talento natural para a prestidigitação que lhe falta. Este menino mais novo deixa o narrador totalmente envergonhado, de fato, logo na primeira vez que tenta empalmar um xelim.

Neste último ponto, a similaridade não existe: David Brown não possuía mais talento para a mágica do que Hilly Brown. Não obstante, David adorava o irmão e permaneceria sentado, em paciente, atento e amoroso silêncio se, em vez de fazer os valetes fugirem da casa em chamas ou fazer Victor, o gato da família, saltar de sua cartola de mágico (a dita cartola foi jogada fora em junho, quando Victor fez suas necessidades nela), Hilly lhe fizesse uma preleção sobre a termodinâmica do vapor ou lesse para ele toda a genealogia de Jesus Cristo, do Evangelho Segundo Mateus.

Não que Hilly fosse um total fracasso como mágico; de maneira alguma. Aliás, o PRIMEIRO GRANDE ESPETÁCULO DE MÁGICAS DE HILLY BROWN, acontecido no gramado do pátio dos fundos, em casa dos Brown, no dia em que um Gardener partiu de Troy para juntar-se à Caravana de Poesia da Nova Inglaterra, foi considerado um grande sucesso. Umas doze crianças — a maioria composta de amigos de Hilly, mas incluídos alguns coleguinhas de David na escola maternal, como medida de segurança — mais quatro ou cinco adultos, estavam presentes para ver Hilly executando quase doze truques, aceitos com tolerância. A maioria de tais truques funcionou, não devido a qualquer talento ou real habilidade, mas em resultado da férrea determinação com que o menino havia treinado. Nem toda a inteligência e determinação do mundo podem criar a arte sem haver uma pitada de talento, porém inteligência e determinação podem criar algumas grandes contrafações.

Por outro lado, algo deve ser dito sobre o conjunto de mágicas que Bryant escolhera quase ao acaso: seus criadores, sabendo que a maioria dos aspirantes a mágicos em cujas mãos caísse sua criação, provavelmente seria de desajeitados e sem talento, tinham-se baseado principalmente em dispositivos mecânicos. A pessoa precisava esforçar-se para atarraxar as Moedas Multiplicantes, por exemplo. O mesmo era válido para a Guilhotina Mágica, um modelo diminuto (tendo em sua base de plástico discretamente impressos os dizeres MADE IN TAIWAN) que funcionava com uma lâmina de barbear. Quando um nervoso membro da platéia (ou um David perfeitamente blasé) colocava o dedo na concavidade da guilhotina, acima de um orifício que sustinha um cigarro, Hilly deixava a lâmina despencar, cortava o cigarro em dois... mas deixava o dedo miraculosamente intato.

Nem todos os truques dependiam de dispositivos mecânicos para seu efeito. Hilly ficou horas praticando para embaralhar cartas com as duas mãos, o que lhe permitia fazer “flutuar” uma carta do fundo do baralho para o topo. De fato, ficou bastante bom nisto, ignorando que uma hábil “flutuação” de cartas era muito mais útil para um trapaceiro em jogos, como “Pits” Barfield, do que para um mágico. Em uma platéia de mais de vinte pessoas, fica perdido o ambiente de intimidade da sala de estar, em geral falhando até o efeito do mais espetacular truque com cartas. A platéia de Hilly, contudo, era pequena o bastante para que ele pudesse fasciná-la — tanto adultos, como crianças — quando, despreocupadamente, tirava do topo do baralho cartas que tinham estado inseridas no meio, ao fazer Rosalie Skehan encontrar em sua bolsa uma carta que ela havia escolhido e depois devolvido ao baralho e, naturalmente, fazendo com que os valetes corressem da casa em chamas, este talvez sendo o melhor truque de baralho já inventado.

Houve falhas, naturalmente. Nessa noite, na cama, Bryant comentou que Hilly sem gafes seria como o McDonald’s sem hambúrgueres. Quando ele tentou despejar um jarro de água em um lenço que pedira a Joe Paulson, o carteiro que seria eletrocutado cerca de um mês mais tarde, conseguiu apenas molhar o lenço e a frente de suas calças. Victor recusou-se a saltar da cartola. Mais embaraçoso ainda, as Moedas Desaparecidas, um truque que Hilly suara sangue para dominar, fora um fiasco. Ele fez as moedas desaparecerem (na realidade, rodinhas de chocolate envoltas em papel de estanho dourado e vendidas sob o nome comercial de Munchie Money — Dinheiro Comível) sem qualquer problema, mas quando se virava, todas elas escaparam de sua manga, para hilaridade geral e enlouquecedores aplausos de seus amigos.

Ainda assim, o coro de palmas no final do espetáculo de Hilly foi legítimo. Todos concordaram que Hilly Brown era um perfeito mágico, “levando-se em conta que só tinha dez anos”. Apenas três pessoas discordaram de tal julgamento: Marie Brown, Bryant Brown e o próprio Hilly.

— Ele ainda não descobriu o quê, não é mesmo? — perguntou Marie essa noite ao marido, quando estavam na cama.

Os dois compreendiam que o quê significava aquilo que Deus reservara para Hilly fazer, usando o holofote que lhe colocara no cérebro.

— Não, não descobriu — disse Bryant, após uma longa e reflexiva pausa.

— Penso que não. Enfim, ele se esforçou ao máximo, não? Praticou e trabalhou como um burro de carga.

— Sim — disse ela. — Fiquei contente em vê-lo atuando. É bom saber que Hilly pode fazer algo, em vez de apenas ficar pulando de uma coisa para outra. Entretanto, isto também me entristeceu um pouco. Ele treinou para aprender aqueles truques, da maneira como um aluno de universidade estuda para as provas finais.

— Eu sei.

Marie suspirou.

— Ele teve o seu espetáculo. Suponho que agora o deixará de mão e se interessará por qualquer outra coisa. Eventualmente, ele descobrirá o quê.

 

A princípio, pareceu que Marie estava certa, que o interesse de Hilly pela mágica se dissiparia, da mesma forma que o interesse dele por viveiros de formigas, rochas da lua e ventriloquismo. A caixa do conjunto de mágicas foi removida de baixo de sua cama, onde ficava mais ao alcance, caso ele acordasse no meio da noite com alguma idéia, para cima de sua entulhada mesa de estudo. Marie reconheceu isto como a cena de abertura de uma velha peça. O último ato aconteceria, quando a caixa de mágicas fosse finalmente relegada aos poeirentos recessos do sótão.

A mente de Hilly, entretanto, não havia desistido — a coisa não era assim tão simples. As duas semanas seguintes ao seu espetáculo de mágico foram períodos de depressão razoavelmente profunda para ele. Isto foi algo que seus pais não perceberam e nunca souberam. David sabia, porque aos quatro anos, nada mais havia que ele pudesse fazer, além de esperar que Hilly se animasse.

Hilly Brown tentava enfrentar a idéia de que, pela primeira vez na vida, falhara em algo que realmente queria fazer tinha ficado satisfeito com os aplausos e congratulações, e não era tão autocensurável a ponto de tornar como polidez um elogio sincero... porém havia uma parte inflexível dele — a parte que, em outras circunstâncias, poderia torná-lo um artista de qualidade — que não se satisfazia com o elogio sincero. Essa parte inflexível insistia em que elogios sinceros eram aquilo que incompetentes despejavam na cabeça dos que mal eram competentes.

Resumindo, o elogio sincero não bastava.

Hilly não refletia nisto tudo em termos tão adultos, evidentemente... mas era como pensava. Se sua mãe pudesse conhecer-lhe os pensamentos, teria ficado bastante zangada com ele por seu orgulho... algo que, conforme a Bíblia ensinara a ele, precedia uma queda. Sem dúvida, ficaria ainda mais zangada com ele, do que na época em que Hilly quase deslizara para a estrada à frente do caminhão-tanque de combustível ou do que quando tentara dar em Victor um banho de bolhas, no bojo do vaso sanitário. O que você quer, Hilly? teria perguntado, erguendo as mãos. Elogios falsos?

Ev, que via muito, e David, que via ainda mais, poderiam ter dito a ele:

Ele queria deixar os olhos da platéia tão arregalados, como se fossem pular fora. Ele queria fazer as meninas gritarem e os meninos berrarem. Ele queria fazer todo mundo rir; quando Victor saísse da cartola com uma fita no rabo e uma moeda de chocolate na boca. Ele trocaria todos os elogios sinceros e legítimos aplausos do mundo por apenas um grito, uma gostosa gargalhada, uma mulher desmaiando, como o folheto diz que aconteceu com elas, quando Harry Houdini fez sua famosa escapada do latão de leite. Isto porque, elogios sinceros apenas significam que a atuação foi boa. Se as pessoas gritam, dão gargalhadas e desmaiam, isto significa que a atuação foi formidável.

Entretanto, ele desconfiava — não, ele sabia — que jamais chegaria a ser formidável, que tudo quanto queria no mundo não modificaria tal fato.

Era um golpe amargo. Não tanto do fracasso em si, mas de saber que isso não podia ser modificada de certa maneira, era como o fim de Papai Noel.

Assim, enquanto seus pais imaginavam que ele houvesse perdido o interesse, levado por outro desvio no caprichoso vento de primavera que sopra através da maioria das infâncias, isto era, de fato, a primeira conclusão adulta de Hilly: se nunca chegaria a ser um grande mágico, devia deixar aquele brinquedo de lado. Não adiantava tê-lo por perto e limitar-se a fazer um truque de vez em quando, como passatempo. Seu fracasso doera demais para isso. Era uma equação ruim. Seria melhor apagar tudo e começar de novo com outra coisa.

Se os adultos pudessem rejeitar suas obsessões com a mesma firmeza, certamente o mundo seria um lugar melhor. Robertson Davies não disse isto em sua Deptford Trilogy... mas deu fortes indicações a respeito.

 

Foi no dia 4 de julho que, ao entrar no quarto de Hilly, David o viu mexendo outra vez em seu conjunto de mágicas. Ele espalhara um bom punhado de truques à frente... e também mais alguma coisa. Pilhas. David achou que eram as pilhas do rádio grande do papai.

— O que você tá fazendo, Hilly? — perguntou David, amistosamente.

Hilly franziu o cenho. Ficou em pé de repente e empurrou o irmão para fora do quarto, com tanta força, que David ficou surpreso demais para chorar.

— Fora daqui! — gritou Hilly. — Não pode ficar olhando os novos truques! Os príncipes Médici costumavam executar as pessoas que eram apanhadas espiando truques de seus mágicos favoritos!

Tendo feito tal pronunciamento, Hilly bateu a porta na cara de David. O menino gritou para que ele o deixasse entrar, mas de nada adiantou. Tão desacostumada intransigência por parte de seu estouvado, mas geralmente agradável irmão, era a tal ponto incomum, que David voltou para o térreo, ligou a televisão e chorou até dormir, diante da Vila Sésamo.

 

O interesse de Hilly pela mágica se reacendera abruptamente, mais ou menos à época em que o quadro de Jesus começara a falar com ‘Becka Paulson.

Um único e poderoso pensamento invadira sua mente: os truques mecânicos, como a Multiplicação das Moedas, eram os melhores que podia fazer, então inventaria seus próprios truques mecânicos. Os melhores que alguém já vira! Faria algo superior ao mecanismo de Thurston ou aos espelhos articulados de Blackstone! Se o necessário para produzir olhos esbugalhados, gritos e gargalhadas estrondosas era antes a invenção do que a manipulação, assim seria.

Ultimamente, ele se sentia capaz de inventar coisas.

Ultimamente, sua cabeça parecia entulhada de idéias para invenções.

Esta era a primeira vez que a idéia de inventar lhe passava pela mente, porque suas idéias anteriores haviam sido vagas, motivadas mais por devaneios do que princípios científicos — espaçonaves feitas de caixas de papelão, armas disparadoras de raios, suspeitosamente parecidas a pequenos galhos de árvore, feitas com pedaços de isopor para embalagens introduzidos nos canos, coisas assim. Ele havia tido boas idéias de quando em quando, idéias que quase eram práticas, mas sempre as deixara de lado, por não saber como realizá-las — Hilly era capaz de pregar um prego sem entortar e serrar uma tábua, porém era tudo.

Agora, entretanto, as maneiras de fazer pareciam claras como água.

Grandes Truques, pensou, montando fiação, pregando e aparafusando coisas entre si. Quando sua mãe lhe disse, a 8 de julho, que ia a Augusta fazer compras (ela falava um tanto alheadamente; mais ou menos durante a última semana, Marie vinha tendo dores de cabeça, e a notícia de que Joe e ‘Becka Paulson haviam morrido em uma casa incendiada, em nada contribuía para melhorá-las), Hilly pediu a ela que passasse pela loja Rádio Shack, na Capitol Mall, e lhe comprasse algumas coisinhas. Entregou-lhe a lista que tinha feito e os oito dólares restantes do dinheiro ganho em seu aniversário, perguntando se ela podia “por favor, emprestar-lhe” o resto.

 

Dez (10) pontos de contato tipo mola a $ 0.70 cada (N°1334567)

Três (3) contatos “T” (tipo mola) a $1.00 cada (N°1334709)

Um (1) plugue com “isolante” para cabo coaxial $2.40 (N°19776-C)

 

Se não fosse por sua dor de cabeça e uma apatia geral, Marie sem dúvida gostaria de saber para que era aquele material. Sem dúvida, gostaria de saber como Hilly conseguiria aquela informação tão exatamente — chegando aos números de relação — sem ter feito uma ligação interurbana para a loja Rádio Shack, em Augusta. Inclusive, poderia ter desconfiado que Hilly finalmente encontrara o quê.

Em um terrível sentido, era precisamente isto que acontecera.

No entanto, ela apenas concordou em comprar o material e “fazer o favor de emprestar-lhe” os aproximadamente quatro dólares a mais.

Quando ela e David retornaram de Augusta, tinham-lhe ocorrido algumas de tais perguntas. A viagem a deixara sentindo-se bem melhor; sua dor de cabeça desaparecera por completo. E David, que havia permanecido calado e introspectivo desde que Hilly o expulsara de seu quarto — não mais o garotinho saltitante, tagarela e borbulhante — também parecia ter-se animado. Falava pelos cotovelos e foi através dele que Marie ficou a par de uma coisa: Hilly havia programado seu SEGUNDO GRANDE ESPETÁCULO DE MÁGICA, no pátio dos fundos da casa, para dentro de nove dias.

— Ele vai fazer montes de truques novos — disse David, parecendo deprimido.

— Vai mesmo?

— Vai — respondeu David.

— Você acha que serão truques bons?

— Não sei — disse o menino, pensando na maneira como o irmão o expulsara do quarto.

Estava à beira das lágrimas, porém Marie não percebeu. Dez minutos antes haviam passado por Albion, agora chegavam a Haven e sua dor de cabeça retornava... e com ela, aquela impressão anterior — agora um pouco mais forte — de que não tinha mais os pensamentos sob controle, como antes. Pareciam demasiados, antes de mais nada. Por outro lado, nem ao menos sabia dizer o que significava um punhado deles. Era como — ela pensou cuidadosamente e, por fim, encontrou uma similitude. No ginásio, fizera parte da sociedade dramática (Marie achava que Hilly herdara dela muito de seu gosto pelo drama), e os pensamentos em sua mente agora eram como o murmúrio de uma platéia, ouvido através do pano de boca do palco, antes de iniciado o espetáculo. Não se sabia o que diziam as pessoas, porém sabia-se que elas estavam lá.

— Não sei se serão tão bons como ele diz — falou David por fim.

Estava olhando pela janela do carro e, de repente, seus olhos pareciam os de um prisioneiro, solitários e confinados. Ele avistou Justin Hurd em sua plantação, rastelando o solo com o trator. Rastelando, embora aquela já fosse a segunda semana de julho. Por um momento, a mente de Justin Hurd, com quarenta e dois anos de idade, ficou inteiramente aberta para David, com quatro anos, e o menino compreendeu que o homem estava acabando com sua plantação, derrubando o milho ainda não amadurecido, dilacerando a área reservada às ervilhas, transformando em polpa os novos melões, esmagados sob as rodas do trator. Justin Hurd pensava que era maio. Maio de 1951, mais precisamente. Justin Hurd tinha ficado louco.

— Não sei se serão tão bons como ele diz — repetiu David.

 

Havia umas vinte pessoas presentes ao PRIMEIRO GRANDE ESPETÁCULO DE MÁGICA de Hilly. No segundo, havia apenas sete: sua mãe, seu pai, seu avô, David, Barney Applegate (que, como Hilly, tinha dez anos), a Sra. Crenshaw, moradora na cidade (ela tinha ido à casa de Marie, na zona rural, esperando vender-lhe algum produto Avon) e o próprio Hilly. Tal queda drástica de presença não era o único contraste com o espetáculo anterior.

Da primeira vez, a platéia estivera animada — até um tanto atrevida (como por ocasião dos sarcásticos aplausos dirigidos ao Dinheiro Comível quando caíra da manga de Hilly, por exemplo). Nesta segunda vez, os presentes mostravam-se taciturnos e apáticos, parecendo manequins de loja de departamentos, sentados nas cadeiras dobráveis que Hilly e seu “assistente” (um pálido e silencioso David) tinham arrumado. O pai de Hilly, que tinha rido, aplaudido e dado gargalhadas no espetáculo anterior, interrompeu o discurso de abertura de Hilly sobre “os mistérios do Oriente”, dizendo que não podia dedicar muito de seu tempo àqueles mistérios, se Hilly não se incomodasse; acabara de cortar a grama e de semear na horta, agora estando louco por um chuveiro e uma cerveja.

O tempo também havia mudado. O dia do PRIMEIRO GRANDE ESPETÁCULO DE MÁGICA estivera límpido, cálido e verdejante, o mais esplêndido dia de final de primavera que o norte da Nova Inglaterra pode oferecer. Este dia de julho estava tórrido e insociavelmente úmido, com um sol quente em um céu cor de cromo. A Sra. Crenshaw estava sentada e abanando-se com seus próprios catálogos da Avon, ansiosa pelo término daquilo. Uma pessoa até podia desmaiar, sentada ali fora ao sol quente. E aquele garotinho trepado em um palco feito de caixotes de laranja, com roupas pretas e um bigode pintado com polidor de sapatos... mimado... exibido... De repente, a Sra. Crenshaw sentiu vontade de matá-lo.

Desta vez, as mágicas eram muito melhores — de fato, admiráveis — porém Hilly se sentia aturdido e furioso, ao constatar que, ainda assim, sua platéia se mostrava francamente entediada. Podia ver o pai remexendo-se na cadeira, pronto para ir embora dali. Isso deixou Hilly frenético, porque queria impressionar o pai, mais do que quaisquer outros.

Bem, o que mais eles querem? perguntou-se iradamente, suando sob seu terno preto de domingo, com tanta liberalidade como a Sra. Crenshaw. — Estou sendo formidável — até mesmo melhor do que Houdini — mas eles não gritam, não riem nem ficam de boca aberta. Por que não? Droga, o que há de errado?

No centro do palco de caixotes de laranja de Hilly, havia uma pequena plataforma (outro caixote de laranja, este coberto com um lençol). Escondido em seu interior estava um dispositivo que Hilly inventara, usando as pilhas que David vira em seu quarto e as entranhas de uma calculadora Texas Instrument, que ele havia roubado (sem o menor constrangimento) do fundo da secretária de sua mãe, no vestíbulo perto da entrada. O lençol cobrindo o caixote de laranja caída em dobras nas bordas e, escondido em uma dessas dobras, encontrava-se outro dos insolentes furtos de Hilly — o pedal do motor da máquina de costura Singer de sua mãe. Hilly conectara o pedal ao dispositivo que montara. Para isso, utilizara dois dos conectadores de mola que sua mãe lhe comprara na loja Rádio Shack, em Augusta.

O dispositivo que ele inventara fazia as coisas desaparecerem e depois as trazia de volta.

Hilly considerou isto espetacular, intrigante. A reação de sua platéia, no entanto, começara baixa e só diminuiu, daí por diante.

— Como meu primeiro truque, teremos o Tomate Desaparecido! — anunciou com voz ostentórea. Pegou um tomate em sua caixa de “suprimentos mágicos” e o ergueu para mostrá-lo. — Eu gostaria de um voluntário da platéia, a fim de verificar se isto é um tomate verdadeiro e não uma falsificação ou coisa assim. O senhor aí! Obrigado!

Hilly apontou para o pai, que apenas tinha acenado cansadamente.

— É um tomate, Hilly — disse ele. — Posso ver que é.

— Muito bem! Agora, vejam só os Mistérios do Oriente... atenção!

Hilly inclinou-se, colocou o tomate no centro do lençol branco que cobria o caixote e depois o cobriu com uma das echarpes de seda de sua mãe. Acenou com sua varinha mágica, acima do montículo circular debaixo da echarpe azul.

— Abracadabra! — gritou.

Ao mesmo tempo, pisou disfarçadamente no escondido pedal da máquina de costura. Houve um breve e suave zumbido. O volume sob a echarpe desapareceu, deixando-a achatada em cima do lençol. Hilly a ergueu, a fim de mostrar que o topo da plataforma estava limpo, e então esperou complacentemente pelas aclamações e gritos de espanto. O que recebeu foram aplausos.

Aplausos polidos, nada mais.

Claramente, isto brotou da mente da Sra. Crenshaw: Um alçapão. Nada mais do que isso. Não posso acreditar que estou sentada aqui fora, debaixo do sol, vendo esse pestinha mimado passar tomates por alçapões, apenas para que eu possa vender um frasco de perfume para sua mãe. Francamente!

Hilly começou a ficar danado da vida.

— Agora, outro Mistério do Oriente! A Volta do Tomate Desaparecido! —Ele olhou para a Sra. Crenshaw, com expressão formidável. — E para aqueles imaginando algo idiota como alçapões, bem, acho que mesmo pessoas idiotas fariam um tomate descer por um alçapão, mas elas teriam que suar um bocado, tentando fazê-lo subir, não acham?

A Sra. Crenshaw limitou-se a continuar sentada, as nádegas sobrando nas bordas da cadeira de jardim que ela ia lentamente afundando no solo, sorrindo prazerosamente. Seus pensamentos haviam desaparecido da cabeça de Hilly, como um sinal de rádio ruim.

Ele tornou a colocar a echarpe sobre a plataforma. Agitou sua varinha. Pisou no pedal. A echarpe azul inchou em uma esfera. Hilly a ergueu triunfalmente, para revelar o tomate outra vez.

— Aí está! — gritou.

Agora, surgiriam gritos e bocas abertas.

Mais aplausos polidos.

Barney Applegate bocejou.

Hilly teria dado um tiro nele, alegremente.

Havia planejado sua atuação, começando com o truque do tomate até seu Grande Final, e tudo indicava que seria uma boa idéia. Contudo, não durou o bastante. Em seu perdoável excitamento por ter inventado uma máquina que realmente fazia coisas desaparecerem (ele pensara em talvez doá-la ao Pentágono ou algo similar, após ter seu retrato na capa de Newsweek, como o maior mágico da história), Hilly passara dois pontos por alto. Primeiro, que apenas criancinhas e imbecis, em qualquer espetáculo de mágica, acreditam que os truques são reais; segundo, que fazia essencialmente o mesmo truque, uma vez após outra. Cada novo exemplo diferia do último apenas em grau.

Após o Tomate Desaparecido e a Volta do Tomate Desaparecido, Hilly aplicou-se implacavelmente ao Rádio Desaparecido (o rádio de seu pai, agora bastante mais leve, sem suas oito pilhas tipo D, que estavam nas entranhas da engenhoca debaixo da plataforma) e à Volta do Mesmo.

Polidos aplausos.

A Cadeira de Jardim Desaparecida, foi seguida pela Volta do Já-se-sabe-o-Quê.

Sua platéia permanecia apática, como atordoada pelo sol... ou talvez atordoada pelo que quer que agora havia no ar de Haven. Se existia alguma coisa oxidando-se no casco da espaçonave e penetrando na atmosfera, certamente estava bem forte nesse dia, em que não corria a mais leve brisa.

Preciso fazer alguma coisa, pensou Hilly, em pânico.

No ímpeto do momento, decidiu omitir a Estante de Livros Desaparecida, a Bicicleta Ergométrica Desaparecida (de mamãe) e a Motocicleta Desaparecida (de papai, mas no presente estado de espírito em que via seu pai, Hilly duvidava muito que ele se oferecesse para levar a moto até o alto da plataforma). Passou direto para o Grande final:

O Irmãozinho Desaparecido.

— E agora...

— Hilly, eu sinto muito, mas... — começou o pai.

— Farei o meu truque final! — acrescentou Hilly rapidamente, e viu o pai tornar a recostar-se na cadeira, relutante. — Preciso de um voluntário de assistência. Vem cá, David!

David adiantou-se, tendo no rosto uma expressão em que medo e conformação estavam perfeitamente equilibrados. Embora não lhe tivesse sido dito em detalhes, David sabia qual era o truque final. Sabia demasiado bem.

— Eu não quero — disse para Hilly.

— Você vai querer — disse Hilly, com ar severo.

— Eu tô com medo, Hilly! — insistiu David, com ar suplicante, os olhos cheios de lágrimas. — E se eu não voltar?

— Você voltará — sussurrou Hilly. — As outras coisas voltaram, todas elas, não voltaram?

— Eu sei, mas você não fez desaparecer nada que fosse vivo — gemeu David, agora com as lágrimas escorrendo pelo rosto.

Olhando para o irmão a quem tanto tinha amado e com tamanho sucesso (ele fora mais bem-sucedido em amar David, do que em fazer qualquer outra coisa em que pusera as mãos, incluindo-se a mágica), Hilly sentiu um instante de terrível dúvida. Era como despertar temporariamente de um pesadelo, antes de ser outra vez sugado por ele. Você não vai fazer uma coisa destas, não é mesmo? Não o lançaria em uma rua movimentada, pois acabou de pensar que nem todos os carros parariam em tempo, certo? Você nem ao menos sabe para onde vão estas coisas, quando não estão mais aqui!

Então, Hilly olhou para a platéia — entediada e desatenta, o único parecendo meio vivo sendo Barney Applegate, ocupado em cuidadosamente extirpar a casca de um arranhão no cotovelo — e seu ressentimento voltou a crescer. Deixou de ver as lágrimas amedrontadas nos olhos de David

— Suba na plataforma, David! — sussurrou autoritariamente para o irmão.

O rostinho de David começou a tremer... mas ele caminhou para a plataforma. Nunca desobedecera a Hilly, pois o tinha idolatrado em todos os mil quinhentos e tantos dias de sua vida. Não iria desobedecer agora. Não obstante, suas pernas gorduchas mal o sustentavam, quando subiu para o caixote de laranja coberto pelo lençol, debaixo do qual estava a máquina biruta.

David encarou a platéia, um garotinho rechonchudo, de shorts azuis e uma camiseta desbotada, ostentando o letreiro: ELES ME CHAMAM DE DR. AMOR. As lágrimas pingavam de seu rostinho.

— Sorria, droga! — sibilou Hilly, colocando o pé sobre o pedal da máquina de costura.

Embora chorasse ainda mais, David conseguiu esboçar uma horrenda paródia de sorriso. Marie Brown não viu as lágrimas do filho mais novo, nem o seu terror. A Sra. Crenshaw trocara de assentos (metade das pernas de alumínio da cadeira que ocupava, agora havia submergido no gramado, e agora preparava-se para ir embora. Pouco estava ligando se venderia algum Avon para aquela cretina idiota ou não. Esta tortura não valia o trabalho).

— E AGORA! — bradou Hilly para sua alheada assistência. — O maior segredo entre todos do Oriente! Conhecido de poucos e praticado por ainda menos! O Humano Desaparecido! Prestem a máxima atenção!

Jogou o lençol sobre a forma trêmula de David. Enquanto o tecido ia caindo nos pés do garotinho, um audível soluço escapou de sob o pano. Hilly sentiu outro estremecimento do que poderia ter sido o medo ou a sanidade, lutando fracamente para se reafirmarem.

— Hilly, por favor... por favor, tô com medo...

Ao ouvir o amortecido sussurro que vinha de baixo do lençol, Hilly hesitou. Então, de repente pensou: Pare com isso! Saiba que você pode! Porque aprendeu este truque... com o Homem Tommyknocker!

Foi pouco depois disso, que Hilly Brown real e verdadeiramente perdeu sua mente.

— Abracadabra! — gritou ele.

Agitou sua varinha para a trêmula forma coberta pelo lençol sobre a plataforma — David — e pisou no pedal.

Hummmmmmmmmmmmmmmmmmmmm..

O lençol foi baixando preguiçosamente, como quando um homem ou mulher o joga sobre uma cama, deixando-o assentar-se.

Hilly o puxou para um lado.

— Aí está! — gritou, esganiçadamente.

Sentia-se meio delirante com uma mescla de triunfo e medo, ambos perfeitamente equilibrados no momento, como crianças do mesmo peso sentadas em uma gangorra.

David tinha desaparecido.

 

Por um momento, foi rompida a apatia geral. Barney Applegate parou de escarafunchar sua cicatriz. Bryant Brown sentou-se empertigado na cadeira, boquiaberto. Marie e a Sra. Crenshaw interromperam sua sussurrada conversa, enquanto Ev Hillman franzia a testa, parecendo preocupado... embora tal expressão não fosse exatamente nova. Já fazia alguns dias que Ev parecia e se sentia preocupado.

Ahhh! pensou Hilly, e bálsamo fluiu sobre sua alma. Sucesso!

Tanto o interesse da platéia como o triunfo de Hilly foram de curta duração. Truques envolvendo pessoas são sempre mais interessantes do que aqueles envolvendo coisas ou animais (tirar um coelho de uma cartola está perfeitamente bem, mas nenhum mágico merecedor do nome já decidiu, baseando-se nisto, que uma platéia preferiria ver um cavalo serrado ao meio, em vez de uma bela jovem, de formas generosas e roupas justas)... mas afinal de contas, ainda assim, o truque é o mesmo. Os aplausos foram mais altos desta vez (e Barney Applegate soltou um eufórico Aíííí, Hilly), mas que logo morreu. Hilly reparou que sua mãe voltava a cochichar com a Sra. Crenshaw. Seu pai levantou-se.

— Vou tomar uma ducha, Hilly — sussurrou. — Foi um espetáculo muito bom.

— Sim, mas...

Soou uma buzinada na entrada de carros.

— É minha mãe! — disse Barney, saltando da cadeira tão depressa, que quase derrubou a Sra. Crenshaw. — Chau, Hilly! Grande truque!

— Ora, mas... — começou Hilly, sentindo as lágrimas arderem nos olhos.

Barney caiu de joelhos e acenou, como que para baixo da plataforma.

— Chau, David! Bom trabalho!

— Droga, ele não está aí embaixo! — gritou Hilly

Barney, entretanto, já se afastava correndo. A mãe de Hilly e a Sra. Crenshaw caminhavam para a porta dos fundos, examinando um catálogo Avon. Tudo estava acontecendo muito depressa.

— Cuidado com a linguagem, Hilly — advertiu sua mãe, sem olhar para trás. — E faça David lavar as mãos, quando entrarem em casa. Está sujo aí embaixo.

Restou apenas Ev Hillman, o avô de David. Ev olhava para Hilly, com a mesma expressão preocupada.

— Por que não vai embora também? — perguntou-lhe Hilly, com furiosa amargura, toldada apenas pela voz algo indistinta.

— Se seu irmão não está aí embaixo, Hilly — disse Ev, em um tom inteiramente diverso do costumeiro —, então onde é que ele está?

Eu não sei, pensou Hilly, e foi quando a gangorra começou a desequilibrar-se. A raiva foi para baixo. Até o fim. E o medo foi subindo, subindo até o alto. Com o medo, chegou a culpa. Um instantâneo de David chorando e aterrorizado. Um instantâneo de seu próprio rosto (cortesia de uma boa imaginação), parecendo zangado e quase enfurecido — fanfarrão e tirânico, sem dúvida. Sorria, droga! David tentando sorrir, em meio às lágrimas.

— Oh, ele está aí debaixo, claro! — disse Hilly. Prorrompeu em ruidosos soluços e sentou-se em seu palco, de joelhos levantados, o rosto quente encostado neles. — Lógico que está aí debaixo, todo mundo adivinhou meus truques e ninguém gostou deles, eu odeio mágica, se quer saber gostaria que nunca tivesse me dado esse idiota conjunto de mágica...

— Hilly... — Ev inclinou-se para diante, parecendo agora tão angustiado quanto preocupado. Ali havia algo errado... ali e em toda Haven. Ele podia senti-lo. — O que há de errado?

— Vá embora daqui! — soluçou Hilly. — Eu odeio você! ODEIO você!

Avôs são tão sujeitos à dor, vergonha e confusão, como qualquer outra pessoa. Ev Hillman sentia os três agora. Doía-lhe ouvir Hilly dizer que o odiava — doía-lhe, embora fosse evidente que o menino estava emocionalmente exaurido. Ev envergonhou-se por ter sido seu presente que provocara as lágrimas do neto... pouco importando se a caixa de mágica tivesse sido escolha de seu genro; Ev o considerara um presente seu, quando ele encantara Hilly; supôs que devia também considerá-lo como seu agora, embora fizesse o menino chorar, com o rosto contra os joelhos sujos. Sentia-se confuso, porque algo mais estava acontecendo ali... porém, o quê? Não saberia dizer. Sua única certeza era de que começara a acostumar-se à idéia de estar ficando senil — oh, os efeitos ainda eram muito pequenos, mas a condição acelerava-se um pouquinho a cada ano — e no transcorrer do verão de agora. E, neste verão, todos pareciam estar ficando senis... mas exatamente o que ele queria significar com isso? Uma expressão nos olhos? Curiosos lapsos, esquecendo nomes que deviam ser lembrados rápida e facilmente? Sim, eram essas coisas. No entanto, havia mais. Apenas, ele não podia colocar o dedo sobre o que mais podia ser.

Esta confusão, tão contrária à vacuidade afligindo os outros que tinham assistido ao SEGUNDO GRANDE ESPETÁCULO DE MÁGICA, fez com que Ev Hillman, a única pessoa ali cuja mentis era realmente compos*(naqueles dias, em suma, era ele a única pessoa em Haven cuja mentis era de fato compos — Jim Gardener também era relativamente não afetado pela nave na terra, mas por volta do dia 17, ele voltara com firmeza à bebida), tornasse uma decisão que mais tarde lamentou amargamente. Ao invés de agachar-se sobre os joelhos artríticos e rangentes para espiar debaixo do palco improvisado de Hilly, a fim de ver se David Brown verdadeiramente estava ali, saiu de cena, retraiu-se. Retraiu-se, tanto da idéia de seu presente de aniversário ter causado a atual angústia de Hilly, como de tudo o mais. Deixou o neto sozinho, pensando em retornar “quando o menino estivesse mais controlado”.

 

Enquanto via o avô afastar-se em passos arrastados, Hilly sentiu-se duplamente culpado e infeliz... e então ficou trêmulo. Esperou até que Ev se fosse, para então levantar-se e retornar à plataforma. Pousou o pé sobre o pedal escondido da máquina de costura e pressionou.

Hummmmmmmmmmm.

Esperou que o lençol se inflasse, na forma de David. Então, arrancaria o lençol de sobre ele e diria, Pronto, bebezinho, viu só? Isso não foi NADA, foi? Poderia, inclusive, dar um bom safanão em David, por amedrontá-lo e deixá-lo sentindo-se tão cretino. Ou, talvez, apenas...

Nada estava acontecendo.

O medo começou a inchar a garganta de Hilly. Começou... ou teria estado lá o tempo todo? O tempo todo, pensou ele. Só que agora estava... inchando, sim era a palavra correta. Inchando dentro dele, como se alguém lhe houvesse enfiado um balão de gás pela garganta abaixo e agora começasse a enchê-lo. Este novo medo fez com que, em comparação, a infelicidade parecesse boa e a culpa absolutamente doce. Ele tentou engolir, porém não conseguiu empurrar uma só gota de saliva por aquela inchação.

— David? — sussurrou, tornando a pisar o pedal.

Hummmmmmmmmmm.

Hilly decidiu que não daria um safanão em David. Ele abraçaria o irmão. Quando David voltasse, Hilly cairia de joelhos e o abraçaria, diria a ele que podia ficar com todos os seus soldadinhos, todos os G. I. Joe durante uma semana inteira (exceto, talvez, Olhos de Serpente e Bola de Cristal).

Nada estava acontecendo ainda.

O lençol que havia coberto David jazia amarfanhado sobre aquele cobrindo o caixote, em cima de sua máquina. Não se inflava, absolutamente, em uma forma-David. Hilly permaneceu inteiramente só no pátio dos fundos de sua casa, com o quente sol de julho caindo sobre ele, seu coração batendo cada vez mais rápido no peito, aquele balão inchando na garganta. Quando ele finalmente ficar bastante grande para estourar, pensou, acho que vou gritar!

Pare com isso! Ele voltará! Claro que voltará! O tomate voltou, também o rádio e a cadeira de jardim. E todas aquelas coisas que experimentei em meu quarto, todas voltaram. Ele... ele...

— Você e David, entrem para lavar-se, Hilly! — gritou sua mãe.

— Sim, mamãe! — gritou Hilly de volta, em uma voz trêmula, insanamente alegre. — Daqui a pouquinho!

E pensou: Por favor; Deus, faça ele voltar! Sinto muito, Deus. Farei qualquer coisa, ele pode ficar com todos os G.I. Joe para sempre, juro que pode, ele pode ficar com o Batmóvel e até mesmo a Cúpula do Terror; mas Deus, meu bom Deus, POR FAVOR, FAÇA ISTO FUNCIONAR DESTA VEZ E DEIXE ELE VOLTAR!

Hilly tornou a apertar o pedal.

Hummmmmmmmmmm...

Ele olhou para o lençol amarfanhado, através de lágrimas que empanavam a visão. Por um instante, pensou que alguma coisa estava acontecendo, mas foi apenas uma ligeira rajada de vento, movendo o pano enrugado.

Um pânico tão cintilante como lâminas de metal passou a contorcer-se na mente de Hilly. Dentro em pouco começaria a gritar, arrastando sua mãe da cozinha e o pai do banheiro, ainda gotejante, com uma toalha à volta da cintura e xampu escorrendo pelo rosto, os dois perguntando-se o que ele teria feito desta vez. O pânico seria misericordioso, em um sentido: quando se instalasse, obliteraria o pensamento.

As coisas, contudo, ainda não tinham chegado tão longe, infelizmente. Dois pensamentos ocorreram a Hilly, em rápida sucessão.

O primeiro: Nunca fiz desaparecer nada que fosse vivo. Até o tomate foi colhido, e papai disse uma vez que, quando colhemos alguma coisa, ela não está mais viva de verdade.

O segundo pensamento: E se David não puder respirar; onde quer que esteja? E se ele não puder RESPIRAR?

Hilly se preocupara bem pouco sobre o que acontecia às coisas que fazia “desaparecer”, até então. Agora, contudo...

Seu último pensamento coerente, antes que o pânico o cobrisse como uma mortalha — ou um véu lutuoso — foi, em realidade, uma imagem mental. Viu David jazendo no meio de uma paisagem estranha e inamistosa.

Parecia a superfície de um mundo rude e morto. A terra acinzentada era seca e fria; havia fendas que se abriam como bocas mortas reptilianas, ziquezagueando em todas as direções. No alto, havia um céu mais negro do que veludo de joalheria, e um bilhão de estrelas causava a mais viva impressão a quem estivesse abaixo — eram mais brilhantes do que quaisquer estrelas que alguém já tivesse visto da superfície da terra, porque o lugar para onde Hilly espiava, com o olho dilatado e horrorizado da imaginação, era quase ou inteiramente sem atmosfera.

E, no meio daquela desolação alienígena, jazia seu rechonchudo irmão de quatro anos, vestindo shorts e uma camiseta com um dístico, dizendo ELES ME CHAMAM DR. AMOR. David aferrava a garganta, tentando respirar o ar inexistente de um mundo que talvez ficasse a um trilhão de anos-luz do seu lar. David ofegava, estava ficando roxo. O frio intenso traçava padrões mortais através de seus lábios e unhas. Ele...

Ah, mas então, o pânico misericordioso finalmente suplantou tudo.

Ele puxou com violência o lençol que usara para cobrir David e virou o caixote que havia escondido a máquina. Pisou o pedal da máquina de costura uma vez após outra, então começando a gritar. Só quando sua mãe apareceu, percebeu que ele não estava apenas gritando, que em toda aquela gritaria também havia palavras.

— Todos os G. I. Joes! — guinchava Hilly. — Todos os G. I. Joes! Todos os G. I. Joes! Para sempre e sempre! Todos os G. I. Joes!

E depois, em voz infinitamente aguda:

— Volte, David! Volte, David! Volte!

— Santo Deus, o que ele quer dizer com isto? — exclamou Marie.

Bryant segurou o filho pelos ombros e o fez virar-se, a fim de ficarem cara a cara.

— Onde está David? Para onde ele foi?

Hilly, entretanto, tinha desmaiado e, em realidade, nunca voltou a si. Não muito depois disto, mais de cem homens e mulheres, Bobbi e Gard entre eles, internavam-se na floresta do outro lado da estrada, vasculhando a mata em busca de David, o irmão de Hilly

Se pudessem interrogá-lo, Hilly lhes teria dito que, em sua opinião, estavam procurando muito perto de sua casa.

Perto demais.

 

BENT E JINGLES

Ao anoitecer de 24 de julho, uma semana após o desaparecimento de David Brown, o policial Benton Rhodes dirigia uma viatura da polícia por volta de oito e meia, saindo de Haven. Peter Gabbons, conhecido pelos colegas policiais como “Jingles”, ocupava o banco do passageiro. O crepúsculo dava lugar à noite, desfazendo-se em cinzas. Eram cinzas metafóricas, naturalmente, ao contrário daquelas nas mãos dos dois tiras estaduais. Estas eram reais. A mente de Rhodes voltava incessantemente para o braço e a mão desunidos do corpo, bem como para o fato de que soubera instantaneamente a quem tinham pertencido. Jesus!

Pare de pensar nisso! ordenou à sua mente.

Está bem, concordou a mente, continuando a pensar nisso.

— Tente o rádio novamente — disse ele. — Aposto que estamos tendo interferência daquela maldita antena parabólica que puseram lá em Troy.

— Certo — Jingles pegou o microfone. — Aqui, Unidade 16 para Base. Está ouvindo, Tug? Desligo.

Ele soltou o botão e os dois ficaram ouvindo. O que ouviam era uma gritante e peculiar estática, com vozes fantasmagóricas sepultadas bem fundo em seu seio.

— Quer que eu tente outra vez? — perguntou Jingles.

— Não. Logo estaremos ouvindo com nitidez.

Bent rodava com os pisca-alerta ligados, fazendo cento e dez ao longo da Rota 3, em direção a Derry. Onde, diabo, estavam as unidades de reforço? Não houvera problema de comunicações para e de Haven Village; as transmissões pelo rádio eram tão claras, que quase pareciam fantasmagóricas. Aliás, o rádio não tinha sido a única coisa fantasmagórica sobre Haven, essa noite.

Certo! concordou sua mente. E, por falar nisto, você identificou o anel imediatamente, não foi? Ninguém se engana quanto ao anel de um policial, mesmo no dedo de uma mulher, hein? E reparou na maneira como os tendões dela pendiam em tiras? Como um pedaço de carne cortada em um açougue, não? Um pernil de carneiro ou coisa assim. O braço dela arrancado! O braço...

Pare com isso, já falei! Porra, pare com isso! ESQUEÇA!

Certo, certo, tudo bem. Esqueça, por um segundo, que não deseja pensar a respeito. Aquela carne tostada, hein? E todo aquele sangue!

Pare, por favor, pare, gemeu ele.

Está bem, certo, sei que vou acabar maluco se ficar pensando nisso, mas acho que penso assim mesmo, porque, simplesmente, não consigo parar.

A mão dela, seu braço, estavam horríveis, piores do que em qualquer acidente de trânsito que já vi, mas e quanto aquelas outras coisas? As cabeças arrancadas? Os olhos, os pés? Poxa, deve ter sido uma baita explosão de fornalha, sim, senhor!

— Onde está nosso reforço? — perguntou Jingles, inquieto.

— Não sei.

Entretanto, quando visse os reforços, poderia praticamente tropeçar neles, não?

Tenho um quebra-cabeças para vocês, diria. Nunca irão solucioná-lo. Como é possível haver corpos espalhados por todo um lugar; após uma explosão, mas com somente um morto? E, por falar nisso, como é possível que o único dano produzido por uma explosão de fornalha fosse derrubar a torre da sede da municipalidade? E já que estamos no assunto, como é que o chefe do conselho municipal, aquele tal Berringer não foi capaz de identificar o corpo, quando até mesmo eu sabia de quem era? Desistiram, caras?

Ele havia coberto o braço com uma manta. Nada podia ser feito acerca de todas as demais partes do corpo e, afinal, supôs que isso não importava. Entretanto, cobrira o braço de Ruth.

Fizera isso na calçada da praça, em Haven Village. Fizera isso, enquanto o imbecil chefe dos bombeiros voluntários, Allison, ficava sorrindo, como se aquilo houvesse sido uma sopa de feijões, em vez de uma explosão que matara uma excelente mulher. Era tudo loucura. Loucura máxima.

Peter Gabbons tinha o apelido de Jingles, por causa de sua voz cascalhante de Andy Devine — Jingles era um personagem que Devine representara em um antigo seriado de faroeste na televisão. Quando Gabbons chegara da Georgia, Tug Ellender, o despachante, começara a chamá-lo assim, e o apelido pegara. Agora, falando em uma voz aguda e estrangulada, completamente diversa de sua costumeira voz de Jingles, Gabbons disse:

— Pare o carro, Bent! Estou passando mal!

Rhodes freou apressadamente, bem na borda de um plano inclinado, que quase fez o veículo entrar na vala à beira da estrada. Pelo menos, Gabbons tinha sido o primeiro a falar; já era alguma coisa.

Jingles deslizou do banco da viatura policial pela direita. Bent Rhodes fez o mesmo pela esquerda. À luz azulada do giroscópio da viatura da polícia estadual, os dois vomitaram tudo que tinham no estômago. Bent cambaleou de volta e recostou-se na lataria do carro, limpando a boca com uma das mãos e ouvindo os ruídos de vômito que continuavam brotando dentre o mato rasteiro, além da margem da estrada. Virou a cabeça para o céu, vagamente grato pela brisa.

— Já estou melhor — disse Jingles finalmente. — Obrigado, Bent.

Bent se virou para o parceiro. Os olhos de Jingles eram dois furos chocados e sombrios no rosto. Tinha a expressão do homem que está processando todos os seus dados, sem chegar a qualquer conclusão racional.

— O que foi que aconteceu lá? — perguntou Bent.

— Você ficou cego? A torre da sede da municipalidade voou como um foguete.

— Como é que uma explosão de fornalha podia arrancar a torre?

— Sei lá!

— Pois eu cuspo nisso. — Bent tentou cuspir. Não conseguiu. — Você acreditou? Uma explosão de fornalha em julho, que explode a torre da sede da municipalidade?

— Não. Esse negócio cheira mal.

— Certo, cara. E o fedor sobe aos céus. — Bent fez uma pausa. — O que você achou, Jingles? Sentiu alguma coisa esquisita por lá?

Jingles respondeu, cauteloso:

— Talvez. Talvez eu tenha sentido alguma coisa.

— O quê?

— Não sei — respondeu Jingles. Sua voz começou a esganiçar-se, a ganhar aquelas inflexões irregulares e trinadas de uma criança pequena à beira das lágrimas. Acima deles, brilhava uma galáxia de estrelas. Grilos cricrilavam, em flagrante silêncio de verão. — Só sei dizer que estou danado de satisfeito por ter saído de...

Então Jingles, sabendo que provavelmente estaria de volta a Haven no dia seguinte, a fim de dar assistência à sindicância e investigação, começou a chorar.

 

Após alguns momentos, eles continuaram rodando. Do céu desaparecera qualquer remanescente da luz do dia. Bent ficou satisfeito. De fato, não queria olhar para Jingles... e, de fato, não queria que Jingles olhasse para ele.

Por falar nisso, Bent, falou agora sua mente, foi um negócio francamente espantoso, não? Infernalmente espantoso. As cabeças soltas e as pernas com os sapatinhos ainda na maioria dos pezinhos... E aqueles torsos! Você reparou neles? O olho! Aquele único olho azul! Você viu? Só pode ter notado! Chutou-o para a sarjeta, quando se abaixou para recolher o braço de Ruth Mccausland. Todos aqueles braços, pernas, cabeças e torsos decepados, mas Ruth foi a única pessoa que morreu. Sem dúvida, um enigma para um campeonato de enigmas!

A visão das partes dos corpos havia sido horrível. Os dilacerados restos dos morcegos — uma quantidade incrível deles — também. No entanto, nada havia sido tão terrível como o braço de Ruth, tendo no terceiro dedo da mão direita o anel do marido, porque a mão e o braço dela tinham sido reais.

As cabeças, pernas e torsos decepados, a princípio tinham-lhe dado um tremendo choque — por um atordoado instante, perguntara a si mesmo, sendo ou não férias de verão, se alguma turma de alunos estivera excursionando pela sede da municipalidade, quando a mesma explodira. Então, sua mente aturdida percebeu que nem mesmo criancinhas do jardim da infância teriam membros tão pequeninos e que criança alguma possuía braços e pernas que não sangravam, quando arrancados de seus corpos.

Ao olhar em torno, vira Jingles segurando uma pequena e enfumaçada cabeça em uma das mãos e, na outra, uma perna parcialmente derretida.

— Bonecas — Jingles havia dito. — Fodidas bonecas. De onde vieram todas estas malditas bonecas, Bent?

Ele ia responder, dizer que não sabia (embora mesmo então alguma coisa sobre aquelas bonecas lhe tivesse surgido na mente; acabaria lembrando de tudo, com o tempo), quando percebeu que ainda havia pessoas comendo, no Haven Lunch. Pessoas continuavam fazendo compras no supermercado. Um gélido frio lhe tocara o coração, como um dedo feito de gelo. Aquela havia sido uma mulher que a maioria deles tinha conhecido a vida inteira — conhecido, respeitado e, em muitos casos, amado — mas todos continuavam cuidando da própria vida.

Cuidando da própria vida, como se nada houvesse acontecido.

Fora nesse momento que Bent Rhodes começara a desejar — a seriamente desejar — estar fora de Haven.

Agora, baixando o volume do rádio, que continuava emitindo apenas estática sem sentido, Bent recordou o que lhe tinha espicaçado a mente mais cedo.

— Ela, a Sra. McCausland, tinha bonecas.

Ruth, pensou Bent. Eu gostaria de tê-la conhecido o suficiente, para chamá-la de Ruth, como Monstro. Aliás, como ele a chamava. Todos gostavam dela, que eu saiba. Dai por que me pareceu tão esquisito ver todos eles ocupados em cuidar da própria vida...

— Acho que já ouvi falar nisso — disse Jingles. — Era um hobby dela, não? Penso que ouvi falarem no Haven Lunch. Ou talvez no Cooders, quando bati um papo com os moradores mais antigos.

O mais provável é que tenha sido uma cerveja com os moradores mais antigos, pensou Rhodes, porém apenas assentiu.

— Sim, era um hobby dela. Aquelas eram as suas bonecas, naturalmente. Na primavera passada, eu conversava certo dia sobre a Sra. McCausland com o Monstro, e...

— Monstro? — interrompeu Jingles. — Monstro conhecia a Sra. McCausland?

— Acho que bastante bem. Antes do marido dela morrer, Monstro e ele eram parceiros. Bem, afinal, ele me disse que ela tinha umas cem, talvez duzentas bonecas. Eram apenas um hobby da Sra. McCausland e já tinham sido exibidas em Augusta, uma vez. Segundo Monstro, ela ficara tão orgulhosa daquela exibição, como de qualquer das coisas que já fizera pela cidade — e parece que foram muitas, em benefício de Haven.

Eu gostaria de ter podido chamá-la de Ruth, tornou a pensar.

— Monstro disse que, com exceção das bonecas, ela trabalhava o tempo todo. — Bent considerou isto, depois acrescentou: — Da maneira como ele falava, fiquei com a impressão de que... hum, era caído por ela. — Isto soava tão malditamente ultrapassado como um faroeste de Roy Rogers, porém assim é que Butch Monstro Douglas sempre se mostrara sobre Ruth McCausland. — O mais provável é que não seja você o cara que irá dar a notícia a ele, mas se for, ouça um conselho: não banque o engraçadinho.

— Certo, certo, está devidamente anotado. Era só o que faltava, eu ter Monstro Dugan me caindo na pele para encerrar o dia!

Bent sorriu sem humor.

— Era a coleção de bonecas — disse Jingles. Assentiu. — Eu logo vi que era. — Notou o olhar enviesado de Bent e sorriu de leve. — Certo, por um segundo ou dois, quando cheguei lá... bem, logo percebi a maneira como o sol brilhava em cima delas e, não havendo sangue, adivinhei o que eram. Só não podia imaginar como haveria tantas.

—Você ainda não sabia disso. Disso ou de muito mais. Ignoramos o que elas faziam lá. Diabos, e que ela fazia lá?

Jingles tinha um ar infeliz.

— Quem a teria matado, Bent? Era uma mulher tão fina. Droga!

— Acho que ela foi assassinada — disse Bent. Em seus ouvidos, sua voz tinha um som de gravetos partidos. — Pareceu um acidente a você?

— Não. Aquilo não foi nenhuma explosão de fornalha. E os vapores que nos impediram de descer ao porão — aquilo lhe cheirava a óleo?

Bent meneou a cabeça. Fosse o que fosse, jamais sentira antes um cheiro como aquele. Talvez o único em que o idiota do Berringer tivera razão, havia sido ao opinar que respirar aqueles vapores podia ser perigoso, sendo melhor ficarem nos andares de cima, até que o ar do porão da sede da municipalidade se limpasse. Agora, contudo, ele se perguntava se não tinham sido mantidos distanciados de propósito — talvez para não verem uma fornalha que permanecia intata.

— Depois que fizermos nossos relatórios sobre esta merda — disse Jingles — os caras locais vão ter que dar um bocado de explicações... Allison

Berringer, aqueles sujeitos. E talvez tenham que fazer isso diretamente a Dugan.

Bent assentiu pensativamente.

— Toda essa maldita coisa foi uma loucura. O lugar parecia insano. Quero dizer, cheguei realmente a ficar estonteado. E você?

— Aqueles vapores... — começou Jingles, dubitativo.

— Fodam-se os vapores! Fiquei tonto, mas na rua!

— As bonecas dela, Bent. O que as bonecas estariam fazendo lá?

— Como vou saber?

— Também não sei. Entretanto, é outra coisa que não combina. Veja isto: se alguém a odiava o suficiente para matá-la, talvez a odiasse o suficiente para explodir suas bonecas com ela. Não acha?

— Talvez — disse Benton Rhodes.

— Ora, poderia ter sido assim — disse Jingles, como se assim falando, provasse sua teoria.

Bent começava a compreender que seu parceiro esforçava-se em extrair sanidade da insanidade. Disse-lhe que tentasse o rádio de novo.

A recepção revelou-se um pouco melhor, porém nada que merecesse aplausos. Bent não se lembrava de antes já ter captado tão forte interferência de antena parabólica de Troy, estando tão perto de Derry.

 

Segundo as testemunhas com quem falaram, a explosão acontecera às 3:05 da tarde, mais meio ou menos meio minuto. Como sempre, o relógio na torre da sede da municipalidade batera às três horas. Uns cinco minutos mais tarde, CA-BOUMMM! E agora, rodando de volta a Derry em meio ao anoitecer, um quadro estranhamente persuasivo ocorria a Benton Rhodes, deixando-lhe todo o corpo arrepiado. Viu o relógio da torre marcando três horas e quatro minutos, naquela quente tarde sem ventos de fins de julho. E, de súbito, um olhar passava entre aqueles que se encontravam no Haven Lunch. Entre os que estavam no supermercado Cooders. Entre os na Loja de Ferragens de Haven; entre as senhoras no “Junque-A-Torium”; entre as crianças nos balanços ou, no calor do verão, pendendo apaticamente das barras de ginástica no pátio de recreio, ao lado da escola; entre obesas parceiras jogando tênis em duplas, na quadra atrás da sede da municipalidade, um olhar que depois elas dirigiam às suas também obesas oponentes, no outro lado da rede. A bola continua rolando lentamente para um canto distante da quadra, enquanto as quatro mulheres se deitam e colocam as mãos sobre os ouvidos... esperando. Esperando pela explosão.

Todos na cidade, deitados e esperando que aquele CABOUMMM ecoasse na quietude do dia, como a pancada de um martelo de forja sobre madeira grossa.

Atrás do volante da viatura policial, Bent estremeceu de repente.

As moças das caixas-registradoras no Cooders. Os compradores nos corredores. As pessoas no Haven Lunch, ao lado das banquetas ou atrás do balcão. As 3:04 da tarde, deitavam-se todos, o bando inteiro. Depois, às 3:06, levantavam.-se e continuavam as tarefas interrompidas. Todos eles, exceto os Debilóides Reconhecidos. Também Allison e Berringer, que espalharam para todo mundo ser aquilo uma explosão de fornalha, o que não era, e que não sabiam quem tinha sido a vítima, algo que sabiam perfeitamente.

Não está mesmo acreditando que todos soubessem o que ia acontecer, está?

Uma parte dele acreditava justamente nisso. Porque se os bons moradores de Haven não soubessem, como era possível que as únicas baixas fossem Ruth McCausland e suas bonecas? Como era possível não ter havido um só braço cortado, quando um chuveiro de vidro fora lançado através da Rua Principal, a uma velocidade aproximada de cento e oitenta quilômetros por hora?

— Acho que já estamos fora da interferência daquela maldita parabólica — disse Bent. — Tente outra vez.

Jingles pegou o microfone.

— Ainda não consigo imaginar por onde andam os malditos reforços.

— Talvez tenha acontecido alguma coisa em outro lugar. Nunca chove...

— Claro que chove! Pernas e braços de bonecas, entre outras coisas!

Quando Jingles pressionou o botão do microfone, Bent manobrou a viatura através de uma curva. Os faróis e luzes do giroscópio bateram sobre uma camionete que estava atravessada diagonalmente, no meio da estrada.

— Jesus Cris...

Então, os reflexos entraram em cena e ele pisou no freio. A borracha dos pneus gritou e soltou fumaça, enquanto Bent achava, por um momento, que não ia conseguir. Em seguida, a viatura policial parou, com o nariz a três metros do corpo do híbrido veículo parado silenciosamente na estrada.

— Passe-me o papel sanitário, por favor — disse Jingles, em voz baixa e trêmula.

Os dois saíram do carro, ambos aproximando automaticamente as mãos da coronha de suas armas. O cheiro de borracha queimada pairava no ar de verão.

— O que significa esta merda? — exclamou Jingles.

Bent pensou: Ele também está sentindo. Isto está errado, isto é parte do que estava acontecendo naquela cidadezinha horripilante, e ele também sente isto.

A brisa aumentou. Bent ouviu um som de lona movimentando-se rigidamente por um instante, e um encerado deslizou para fora de algo que se encontrava na carroceria da camioneta, com um ruído seco de chocalho de cascavel. Bent sentiu os colhões encolherem-se bruscamente. Aquilo parecia o cano de uma bazuca. Começava a agachar-se, quando percebeu, espantado, que a bazuca era apenas um pedaço de cano de esgoto corrugado, em alguma espécie de cavalete. Nada de meter medo. No entanto, ele tinha medo. Estava aterrorizado.

— Vi essa camioneta lá em Haven, Bent. Parada diante do restaurante.

— Quem está aí? — gritou Bent.

Ninguém respondeu.

Ele olhou para Jingles. De olhos escuros e arregalados em seu rosto branco, Jingles também olhou para ele.

Bent pensou de repente: Interferência de microondas? O que, de fato, estava prejudicando nosso rádio?

— Se há alguém nessa camioneta, é melhor dizer logo! —vociferou Bent.

— Você...

Um agudo e louco risinho sufocado veio do piso da carroceria da camioneta, depois tudo recaiu em silêncio.

— Por Deus, não estou gostando disto — gemeu Jingles Gabbon.

Bent começou a aproximar-se, levantou sua arma, e então o mundo se encheu de luminosidade verde.

 

RUTH McCAUSLAND

Ruth Arlene Merrill McCausland tinha cinqüenta anos, mas parecia ter dez a menos — ou quinze, em um dia favorável. Em Haven todos concordavam que, mulher ou não, ela era simplesmente o melhor chefe de polícia que a cidade já tivera. Uns diziam que era por seu marido haver sido um policial estadual. Outros diziam que era apenas porque Ruth era Ruth. De qualquer modo, concordavam em que Haven tinha sorte em contar com ela. Era uma mulher firme, mas justa. Sabia manter o controle em uma emergência. Os moradores de Haven comentavam tais coisas sobre ela e ainda mais. Em uma cidadezinha do Maine, dirigida por homens desde que houvera uma cidade para ser governada, esses testemunhos tinham o seu valor. E havia justiça nisto; Ruth era uma mulher notável.

Nascera em Haven e ali se criara; de fato, era sobrinha-neta do Reverendo Sr. Donald Hartley, aquele que fora tão cruelmente surpreendido pela votação da cidade para troca de seu nome, em 1901. Em 1955, ela havia sido precocemente aceita pela Universidade do Maine — a terceira aluna (terceira mulher) na história da universidade a quem foi concedido o status de estudante em tempo integral, à tenra idade de dezessete anos. Ela se matriculou no programa universitário pré-jurídico.

No ano seguinte, apaixonou-se por Ralph McCausland, também um aluno do pré-jurídico. Ele era alto; com um metro e noventa e três, era ainda oito centímetros mais baixo do que seu amigo Anthony Dugan (conhecido como “Butch” pelos amigos, e como “Monstro” somente por dois ou três amigos íntimos), porém trinta centímetros inteiros mais alto do que Ruth. Era singularmente — quase absurdamente — gracioso de movimentos para um homem tão grande, de temperamento amável. Queria ser policial estadual. Quando Ruth lhe perguntou o motivo, respondeu que era porque seu pai havia sido um. Explicou a ela que não precisava de curso universitário para juntar-se ao bando; um policial estadual precisava apenas de instrução secundária, boa visão, bons reflexos e ficha limpa. Entretanto, Ralph Mccausland quisera algo mais do que a honra de seguir os passos do pai.

— Qualquer homem que exerça uma função sem pretender progredir, deve ser louco ou preguiçoso — disse a Ruth certa noite, quando tomavam algumas Cocas no Bear’s Den.

O que não lhe confessou, por ser tímido sobre sua ambição, era que esperava ser um chefe de polícia no Maine, algum dia. Naturalmente, ela imaginava isso.

Ruth aceitou o pedido de casamento de Ralph no ano seguinte, sob a condição de que ele esperaria até que ela se formasse. Alegou que não pretendia trabalhar como advogada, mas queria ajudá-lo em tudo quanto pudesse. Ralph concordou. Qualquer homem sensato concordaria, diante dos olhos francos e da beleza inteligente de Ruth Merrill. Quando se casaram, em 1959, ela era advogada.

Ruth chegou virgem ao leito nupcial. Sentira certa preocupação a respeito, embora somente uma parte profunda de sua mente — sobre a qual não conseguia exercer o costumeiro e férreo controle — ousava interrogar-se, de maneira obscura, se aquela parte de Ralph seria tão grande quanto o resto dele; tratava-se de algo que por vezes podia ser sentido, quando eles dançavam ou acariciavam-se. Ralph, contudo, foi delicado e houve apenas um desconforto momentâneo, rapidamente transformado em prazer.

— Faça-me grávida — sussurrou ao ouvido dele, quando Ralph começou a mover-se acima dela, nela.

— Com o maior prazer, madame — respondeu ele, algo sem fôlego.

Ruth, no entanto, jamais engravidou.

Filha única de John e Holly Merrill, ela havia herdado uma razoável soma em dinheiro e uma casa antiga e fina em Haven Village, pela morte do pai, em 1962. Ela e Ralph venderam sua pequena casa com terreno do pós-guerra, em Derry, mudando-se para Haven em 1963. Contudo, embora nenhum dos dois admitisse para o outro que entre eles nada mais reinava além de uma felicidade perfeita, ambos percebiam a existência de demasiados quartos vazios, na vetusta casa vitoriana. De quando em quando, Ruth refletia que a felicidade perfeita talvez às vezes ocorresse apenas em um contexto de pequenas discordâncias: o ruidoso estilhaçar de um vaso ou aquário derrubado, um grito exultante e risonho, justamente quando se vai mergulhando em um agradável cochilo de fim de tarde, a criança que engravida com doces do Dia das Bruxas* e, forçosamente, deve dar à luz um pesadelo nas primeiras horas da madrugada de 1º de novembro. Em seus momentos de melancolia (ela se empenhava em que fossem os menos possíveis), por vezes Ruth pensava nos tecedores de tapetes maometanos, que sempre incluem um erro proposital em seu trabalho, em honra à Deidade perfeita que os fez, eles, criaturas mais falíveis. Por algumas vezes, ocorreu-lhe que, na tapeçaria de uma vida plena e honestamente vivida, um filho garantia tal erro respeitoso.

Na maior parte, entretanto, eles eram felizes. Preparavam juntos os casos mais difíceis de Ralph e, no tribunal, o testemunho dele era sempre tranqüilo, respeitoso e devastador. Pouco importava se o indivíduo fosse um motorista embriagado, um incendiário ou alguém que quebrara uma garrafa de cerveja na cabeça de outro sujeito bêbado, em uma discussão etílica de bar de beira de estrada. As chances da pessoa detida por Ralph McCausland, quanto a levar a melhor da história, eram aproximadamente as mesmas de um sujeito receber apenas ferimentos secundários, se postado no raio de ação de um teste nuclear.

Durante os anos em que Ralph estivera escalando, lenta, mas firmemente, os degraus da escada burocrática da polícia estadual do Maine, Ruth iniciara sua carreira de servidora da cidade — não que ela jamais imaginasse isso como uma “carreira” e, sem dúvida, nunca a situou no contexto de “política”. Não se tratava de política da cidade, mas de serviço prestado à cidade. Aí havia uma pequena, mas crucial diferença. Ruth não era tão tranqüilamente feliz sobre seu trabalho, como aparentava ser às pessoas por quem trabalhava. Seria preciso um filho, para que se sentisse plenamente realizada. Nada havia de surpreendente nem de exigente nisto. Afinal de contas, ela era uma filha de sua própria época, e mesmo os mais inteligentes não são imunes a uma firme barragem de propaganda. Ela e o marido haviam consultado um médico em Boston e, após extensivos exames, ele lhes garantiu que ambos eram férteis. Seu conselho foi para que relaxassem. De certo modo, esta havia sido uma cruel notícia. Se algum deles se tivesse revelado estéril, o casal teria adotado uma criança. Da maneira em que fora posta a situação, decidiram esperar um pouco e aceitar o conselho do médico... ou tentar aceitá-lo. E, embora nenhum dos dois soubesse ou mesmo intuísse isso, Ralph não teria mais muito tempo de vida, na época em que voltaram a discutir uma adoção.

Naqueles últimos anos de seu casamento, Ruth fizera uma espécie de adoção pessoal, apenas sua — adotara Haven.

A biblioteca, por exemplo. A residência paroquial metodista estivera repleta de livros desde tempos imemoriais — alguns eram detetivescos, do Clube do Livro, e Livros Condensados do Readers Digest, dos quais se evolava um cheiro de mofo, quando abertos; outros haviam inchado ao tamanho de um catálogo telefônico, quando os canos do presbitério rebentaram, em 1947, porém a maioria estava em condições surpreendentemente boas. Ruth dedicou-se pacientemente a uma seleção, ficando com os bons, vendendo os ruins para serem novamente transformados em polpa e jogando fora os que não tinham mais qualquer utilidade. A Biblioteca Comunitária de Haven foi inaugurada oficialmente no presbitério metodista, repintado e remobiliado, em dezembro de 1968, tendo Ruth McCausland como bibliotecária voluntária, um posto que ela ocupou até 1973. No dia em que se afastou, os membros do conselho diretor penduraram uma fotografia dela acima da lareira, na sala de leitura. Ruth protestou, mas depois entregou os pontos, ao compreender que pretendiam homenageá-la, quisesse ela a homenagem ou não. Sentiu que poderia ferir os sentimentos deles, mas não modificar a decisão que tinham tomado. Eles precisavam homenageá-la. Em 1972, a biblioteca que ela iniciara sozinha, sentada no chão do frio presbitério, agasalhada em um dos velhos blusões de caça em xadrez vermelho de Ralph, a respiração saindo da boca e nariz em jatos enfumaçados, enquanto separava pacientemente livros contidos em caixas e caixas, até ficar com as mãos entorpecidas, essa mesma biblioteca foi, em votação, considerada a Biblioteca do Ano das Cidades Pequenas do Maine.

Em outras circunstâncias, ela pelo menos sentiria algum prazer com isto, porém durante os anos de 1972 e 73, pouco prazer sentia em alguma coisa. 1972 foi o ano em que Ralph McCausland morreu. No final da primavera, ele começou a queixar-se de terríveis dores de cabeça. Em junho, surgiu em seu olho direito uma grande mancha vermelha. As radiografias revelaram um tumor cerebral. Ele faleceu em outubro, faltando dois dias para completar trinta e sete anos.

Na capela funerária, Ruth ficou olhando fixamente para o ataúde aberto do marido, durante um longo tempo. Havia chorado quase sem parar durante a semana anterior e desconfiava que havia mais lágrimas a derramar — talvez oceanos — nas semanas e meses seguintes. Entretanto, chorar em público, seria como exibir-se nua. Para aqueles que olhavam (e eles eram quase todos, infernalmente), mostrou-se tão suavemente composta como sempre.

— Adeus, querido — disse por fim, e lhe beijou o canto da boca.

Depois retirou-lhe o anel de policial do terceiro dedo da mão direita e o colocou no terceiro dedo da sua. No dia seguinte, dirigiu até a firma C.M. Pollocks, em Bangor, que reduziu o aro do anel para o diâmetro de seu dedo. Usou-o até o dia em que morreu e, embora na violência de sua morte e do braço lhe ter sido arrancado do ombro, nem Bent ou Jingles tiveram qualquer problema em identificar aquele anel.

 

A biblioteca não era o único serviço que Ruth prestava à cidade. A cada outono, recolhia donativos para a Sociedade do Câncer e, em cada um dos sete anos em que se dedicou a isto, recolheu a maior soma total de donativos na categoria de cidade pequena, para a Sociedade do Câncer do Maine. O segredo de seu sucesso era simples: Ruth ia a todo canto. Dirigia-se em tons agradáveis e sem medo aos moradores de cenho franzido e olhos fundos das estradas rurais, criaturas que muitas vezes pareciam quase tão híbridas como os cães rosnantes que mantinham nos pátios dos fundos, entulhados de carrocerias mortas e enferrujadas de carros velhos, bem como de implementos agrícolas. E, na maioria dos casos, conseguia um donativo. Talvez, alguns eram induzidos ao donativo simplesmente pela surpresa, já que há muito e muito tempo não recebiam visitantes.

Foi mordida por cão apenas uma vez. Entretanto, aconteceu em uma ocasião memorável. O cão em si não era grande, mas tinha abundância de dentes.

MORAN, anunciava a caixa da correspondência. Não havia ninguém em casa, além do cão. Ele contornou a edificação, rosnando, enquanto ela batia à porta principal, sem pintura. Ruth estendeu uma das mãos para o animal, e o cão do Sr. Moran imediatamente a mordeu, então afastando-se dela e urinando no piso da varanda, em seu excitamento. Ruth desceu os degraus, tirando um lenço da bolsa, o qual enrolou em torno da mão que sangrava. O cão saltou atrás dela e tornou a mordê-la, agora na perna. Ela o chutou e o animal recuou mas, enquanto Ruth mancava para seu Dart, ele se aproximou por trás e a mordeu uma terceira vez. Esta foi a única mordida séria. O cão do Sr. Moran removeu um bom pedaço de carne da barriga da perna esquerda de Ruth (ela usava uma saia nesse dia; nunca mais tornou a usar uma, quando saía para coletar donativos destinados à Sociedade do Câncer), e então recuou para o centro do maltratado gramado fronteiro da casa do Sr. Moran, onde se sentou, rosnando e babando, com o sangue dela gotejando da língua pendurada. Ao invés de sentar-se no volante do carro, Ruth abriu o porta-malas do Dart. Não agia com pressa. Achava que, ao mostrar-se apressada, o cão certamente tornaria a atacá-la. Tirou de lá o Remington .30-06 que possuía desde os dezesseis anos. Disparou contra o cão e o matou, quando ele já começava a trotar em sua direção. Recolhendo o corpo do animal, depositou-o sobre jornais espalhados no piso do porta-malas e o levou ao Dr. Daggett, o veterinário de Augusta que havia cuidado de Peter, o cão de Bobbi, antes de vender sua clínica e mudar-se para a Flórida.

— Se este animal estiver raivoso, eu me meti em boa enrascada — disse para Daggett.

O veterinário olhou o cão, que havia sido baleado diretamente entre os olhos vidrados, pouco restando de sua cabeça, para Ruth McCausland que, embora mordida e sangrando, mostrava-se tão cordial como sempre.

— Sei que não deixei tanto do cérebro para exame, como o senhor talvez desejasse — acrescentou — mas foi inevitável. Poderia dar uma espiada em minha perna, doutor?

Ele lhe disse que ela precisaria ver um médico; os ferimentos teriam que ser desinfetados e haveria necessidade de pontos. Daggett ficou tão confuso ao ouvi-la, que nem sabia ao certo o que dizer. Ruth simplesmente replicou que o considerava muito capaz de limpar e desinfetar seus ferimentos. Quanto ao que denominava “a costura”, iria ao pronto-socorro do Hospital de Derry, assim que desse alguns telefonemas. Pediu-lhe que trabalhasse no cão enquanto fazia as ligações e perguntou se podia usar seu consultório particular, a fim de não assustar os clientes. Uma mulher tinha gritado, quando ela entrou, o que não era de admirar. Uma perna de Ruth sangrava e mostrava um enorme ferimento. Nos braços sujos de sangue, ela carregava o cadáver do cão de Moran, embrulhado em uma manta e começando a enrijecer. Daggett respondeu-lhe que usasse seu telefone à vontade. Ela assim fez (dando-se ao cuidado de fazer uma chamada a cobrar, da primeira vez, e endereçando a conta para o telefone de sua casa, da segunda; de certo modo, duvidava que o Sr. Moran aceitasse uma chamada a cobrar). Ralph encontrava-se em casa de Monstro Dugan, examinando fotos de crime, para um iminente julgamento por homicídio culposo. A esposa de Monstro nada captou de anormal na voz de Ruth e tampouco Ralph; ele lhe diria mais tarde que ela poderia ter sido uma grande criminosa. Ruth explicou a ele que ia atrasar-se, em seu recolhimento de donativos para a Sociedade do Câncer; que se chegasse em casa antes dela, deveria esquentar a carne e preparar para si mesmo um pouco daqueles vegetais de que gostava, precisando apenas colocá-los em uma panela e mexer; havia seis ou sete embalagens no freezer. Acrescentou que havia bolo de café na caixa do pão, caso desejasse alguma coisa doce. A esta altura, Daggett tinha entrado no consultório, desinfetava-lhe os ferimentos e ela estava muito pálida. Ralph quis saber por que ela se atrasaria; Ruth respondeu que contaria, quando chegasse em casa. Ralph disse que estava ansioso por isso e que a amava. Ruth replicou que sentia o mesmo por ele. Então, enquanto Daggett cuidava de seu ferimento atrás do joelho (já lhe tinha desinfetado a mão, durante o telefonema para Ralph) e depois se dedicava ao fundo ferimento na barriga da perna (Ruth chegava realmente a sentir a carne dilacerada e ferida encolhendo-se, a fim de fugir ao contato do álcool), ela ligou para o Sr. Moran. Explicou que o cão dele a havia mordido três vezes, porém que uma apenas era mais do que suficiente, de maneira que disparara contra o animal e o matara. Acrescentou que deixara em sua caixa de correspondência um cartão para o donativo e que a Sociedade Americana do Câncer ficaria muito grata por qualquer soma doada. Houve um breve silêncio. Por fim, o Sr. Moran começou a falar. Logo estava gritando. Em seguida, vociferava. Estava tão furioso, que chegou a um ponto de vulgar fluência de expressão, a qual se aproximava não apenas da poesia, mas dos versos Homéricos. Ele jamais conseguiria repetir a façanha em sua vida, embora quando às vezes experimentava e falhava, recordasse aquela conversa com uma triste e quase doce nostalgia. Ela tivera o dom de extrair o melhor dele, não podia negar isso. O Sr. Moran declarou-lhe que podia esperar ser processada e que o indenizaria com todos os dólares da cidade em seu poder e também os de algumas regiões mais, na barganha. Afirmou que apelaria para a lei e que era parceiro de pôquer do melhor advogado do condado. Em sua opinião, ela acharia a bala que usara para matar seu bom e velho cão a mais dispendiosa que já utilizara em seu antiquado rifle de exterminar búfalos. Disse mais o Sr. Moran, que quando acabasse com ela, ela amaldiçoaria sua mãe, por um dia ter aberto as pernas para seu pai. E que, embora a mãe dela tivesse sido estúpida o bastante para fazer isso, ele podia ter certeza, só em dirigir-se a ela, que a melhor parte dela havia esguichado do indiscutivelmente insignificante pau de seu pai e escorrido pela tira de toucinho que sua mãe considerara uma coxa. Ele lhe fez saber que, embora a Sra. Emproada e Arrogante Ruth Mccausland pudesse atualmente considerar-se a Rainha Merda do Monte de Bosta, dentro em pouco descobriria era apenas uma merdinha a mais, flutuando na Grande Privada da Vida. O Sr. Moran acrescentou que, neste caso em particular, estava com a mão sobre o botão de uma grande unidade para remoção de coisas imprestáveis e que tinha toda intenção de apertá-lo. Ele disse ainda muito mais. O Sr. Moran foi além do que apenas falar; ele fez um sermão. O Pregador Colson (ou seria Cooder?) no apogeu de seus poderes, não se teria nivelado a Moran nesse dia. Ruth esperou pacientemente, até que ele começasse, pelo menos por algum tempo, a procurar novas palavras. Então, expressando-se em voz baixa e agradável, nem de longe deixando adivinhar que sua barriga da perna agora era como uma fornalha em pleno funcionamento, disse ao Sr. Moran que, embora a lei não fosse de todo clara a respeito, as indenizações haviam sido freqüentemente outorgadas ao visitante, mesmo sendo este indesejável, em vez de ao proprietário, nos casos de ataque animal. A real questão era se ou não o proprietário do animal houvera tomado o razoável cuidado de assegurar...

— De que merda está falando — berrou Moran.

— Estou tentando dizer-lhe que os tribunais não fazem fé em um homem que deixa seu cão solto, a fim de que possa morder uma mulher solicitando donativos para uma organização benemerente, como é a Sociedade Americana do Câncer. Em outras palavras, procuro fazê-lo entender que, em um tribunal, eles o farão pagar por agir como um cretino.

Houve um profundo silêncio na outra extremidade do fio. A musa do Sr. Moran desaparecera para sempre.

Ruth fez uma breve pausa e lutou contra uma onda de desfalecimento, quando Daggett encerrou o processo de desinfecção e colocou uma leve atadura esterilizada sobre o ferimento.

— Se me levar aos tribunais, Sr. Moran, meu advogado encontraria alguém para testemunhar que seu cão já mordeu alguém antes?

O silêncio do outro lado persistiu.

— Talvez dois alguéns?

Mais silêncio.

— Talvez três...

— Foda-se, sua cona metida a besta! — bradou Moran subitamente.

— Muito bem — disse Ruth. — Não posso afirmar que foi agradável falar com o senhor, mas certamente foi instrutivo ouvi-lo expor seus pontos de vista. Uma pessoa às vezes acredita que já enxergou até o fundo do poço, em se tratando de imbecilidade humana, de maneira que volta e meia é bom um lembrete de que o poço aparentemente não tem fundo. Lamento, mas vou ter que desligar agora. Eu esperava visitar mais seis casas hoje, porém receio ter que adiar isso. Infelizmente, terei que ir ao Hospital Geral de Derry para receber alguns pontos.

— Desejo sinceramente que eles a matem! — explodiu Moran.

— Eu compreendo. Entretanto, se lhe for possível, tente ajudar a Sociedade do Câncer. Precisamos de toda a ajuda que pudermos conseguir, se quisermos deter o câncer ainda enquanto vivemos. Acho que mesmo filhos da puta rabugentos, desbocados, reles e debilóides como o senhor podem contribuir com a sua parte.

O Sr. Moran não a processou. Uma semana mais tarde, Ruth recebeu dele um cartão de donativo para a Sociedade do Câncer. Não o havia selado e ela imaginou que fosse propositadamente, a fim de que fosse entregue com o selo a cobrar. No interior, havia um pedaço de papel e uma nota de um dólar com uma grande mancha castanha. LIMPEI A BUNDA COM ISTO, SUA CADELA! estava escrito triunfantemente no papel. O recado fora desenhado nas grandes e desiguais letras de um aluno do primeiro grau, com problemas de controle motor. Ruth pegou a nota pelo canto e a colocou com o resto das roupas que seriam lavadas nessa manhã. Terminada a lavagem (a nota estava limpa; entre as muitas coisas que o Sr. Moran parecia ignorar, era que merda desaparece durante uma lavagem), Ruth a passou a ferro. Então, a nota de um dólar não apenas ficou limpa, como também estalante — parecia ter saído do Banco ainda na véspera. Depositou-a na sacola de lona em que guardava todo o seu dinheiro coletado. Em seu livro de registros, anotou: 8. Moran, Soma Contribuída: $1,00.

 

A Biblioteca da Cidade de Haven. A Sociedade do Câncer. A Conferência das Cidades Pequenas da Nova Inglaterra. Em Haven, Ruth trabalhou em todas estas organizações. Também era ativa na igreja metodista, sendo rara uma ceia na igreja em que não houvesse uma caçarola Ruth McCausland ou uma venda de bolos em que não houvesse uma torta ou pão de passas feita por Ruth McCausland. Ela também fizera parte da diretoria da escola e do comitê de livros didáticos para a escola.

As pessoas diziam não saber como ela tinha tempo para tanta coisa. Quando interrogada diretamente, Ruth sorria, dizendo acreditar que mãos ocupadas eram mãos felizes. Com tudo isto acontecendo em sua vida, alguém poderia imaginar que não sobrara a ela tempo para hobbies... mas a verdade é que Ruth tinha dois passatempos. Ela adorava ler (gostava particularmente dos faroestes de Bobbi Anderson e possuía todos eles, cada um dos quais autografado) e colecionava bonecas.

Um psiquiatra explicaria a coleção de bonecas de Ruth como seu desejo não satisfeito por filhos. Embora não ligando muito para psiquiatras, Ruth teria concordado. Até certo nível, entretanto. Seja qual for o motivo, as bonecas me deixam feliz, ela poderia ter dito, se este ponto psiquiátrico fosse levado ao seu conhecimento. E acredito que felicidade é o oposto exato de tristeza, amargura e ódio; a felicidade deveria permanecer a salvo de exames, pelo maior tempo possível.

Nos primeiros anos em Haven, ela e Ralph partilharam um estúdio na andar de cima da casa. O prédio era grande bastante para que cada um deles tivesse um para si só, mas os dois gostavam de ficar juntos ao anoitecer. O grande estúdio havia sido dois aposentos, antes de Ralph demolir a parede entre ambos, criando um espaço ainda maior do que a sala de estar no andar térreo. Ralph tinha um canto, onde colocara sua coleção de caixas de fósforos, uma estante para livros ocupando toda uma parede (os livros dele não eram de ficção, mas principalmente de história militar) e uma velha secretária de topo deslizante, que a própria Ruth envernizara. Para si mesma, ela fizera o que chamava de “sala de aula”.

Cerca de dois anos antes das dores de cabeça começarem, Ralph notara que Ruth ia rapidamente ficando sem espaço para suas bonecas (então, havia uma fileira delas acima da secretária de Ruth, que de vez em quando caíam, quando ela usava a máquina de escrever). Estavam sentadas na banqueta do canto, ficavam com as perninhas despreocupadamente penduradas dos peitoris das janelas e, por fim, os visitantes precisavam geralmente ficar com três ou quatro no colo, quando ocupavam uma poltrona. Aliás, Ruth recebia muitas visitas: ela também era tabeliã e sempre havia gente chegando para que autenticasse uma fatura de venda ou rubricasse uma nota promissória.

Assim, para o Natal daquele ano, Ralph construíra uma dúzia de pequenas carteiras para as bonecas da esposa, semelhantes a bancos de igreja. Ruth ficou encantada. Os banquinhos a faziam recordar a escola de uma sala única, que freqüentara na esquina da Rua Crosman. Dispôs os bancos em fileiras regulares e colocou neles as bonecas. Depois disto, aquela parte do estúdio de Ruth ficou sendo chamada de sala de aula.

No Natal seguinte — o último de Ralph, embora ele ainda se sentisse com excelente disposição e o tumor cerebral que iria matá-lo não passasse de um ponto microscópico em sua cabeça — ele lhe deu mais quatro bancos, três novas bonecas e um quadro-negro na escala dos bancos. Era o quanto bastava, para completar a agradável ilusão de uma sala de aula.

No quadro-negro estavam escritas as palavras:

“Querida professora, eu a amo sinceramente — UM ADMIRADOR SECRETO.”

Os adultos ficavam fascinados com a sala de aula de Ruth. A maioria das crianças também se encantava e Ruth sempre ficava feliz, se as via brincando com as bonecas — fossem meninas ou meninos — embora algumas delas fossem de grande valor e muitas das antigas de confecção delicada. Certos pais ficavam extremamente nervosos, ao verem seus filhos brincando com uma boneca da China pré-comunista ou outra que pertencera à filha de John Marshall, o presidente do Supremo Tribunal. Ruth era uma mulher gentil; se percebia que um pai ou mãe ficava realmente inquieto ao ver um filho divertindo-se com uma daquelas bonecas, ela a trocava por um casal Barbie-Ken, que guardava para tais ocasiões. As crianças então brincavam com estas duas últimas, porém sem o mesmo fascínio anterior, como se percebessem que as bonecas de fato boas tinham sido postas fora de seu alcance. Se, no entanto, Ruth notava que um pai ou mãe dizia “não”, por achar de certo modo descortês seus filhos brincarem com as bonecas de uma senhora adulta, ela deixava claro que não se incomodava, em absoluto.

— Não receia que alguma criança quebre um punhado delas? — perguntara-lhe Mabel Noyes certa vez.

A loja “Junque-A-Torium”, de Mabel Noyes, era bem suprida de avisos como: LINDO PARA OLHAR, DELICIOSO PARA SEGURAR, MAS SE VOCÊ O QUEBRAR, CONSIDERE-O VENDIDO. Mabel sabia que a boneca que pertencera à filhinha de presidente do Supremo devia valer pelo menos seiscentos dólares — ela mostrara uma foto da boneca a um negociante de bonecas raras em Boston, e ele a avaliara em quatrocentos, de maneira que Mabel considerara seiscentos um preço justo. Havia ainda uma boneca que tinha pertencido a Anna Roosevelt... uma legítima boneca de vodu haitiano... e Deus sabia mais o que, sentadas face contra face e coxa contra coxa com bonecas tão comuns como as Bonecas de Trapo Ann e Andy.

— Nem um pouquinho — respondera Ruth. Achava a atitude de Mabel tão intrigante, quanto Mabel achava a dela. — Se Deus quiser que uma dessas bonecas seja quebrada, poderá quebrá-la Ele mesmo ou então enviar uma criança para isso, só que, até agora, nenhuma criança já quebrou alguma. Oh, algumas cabeças já rolaram e Joe Pell fez qualquer coisa ao aro-de-puxar, nas costas da Sra. Beasley, de maneira que a gravação interna dela agora diz algo como “Você quer tomar uma ducha?”, mas este foi o prejuízo total até agora.

— Bem, você me desculpe, mas continuo achando um risco alto demais para brinquedos tão frágeis e insubstituíveis — disse Mabel. Ela fungou. — Às vezes, penso que aprendi apenas uma coisa, a vida inteira, isto é, que crianças quebram coisas.

— Talvez eu tenha tido sorte. No entanto, compreenda, as crianças são cuidadosas com elas. Acho que é porque as amam. — Ruth fez uma pausa, franzindo ligeiramente a testa. — A maioria delas, pelo menos — emendou, após um momento.

O fato de que nem todos os pequeninos quisessem brincar com “as crianças na sala de aula” — alguns deles realmente parecendo temê-las — era algo que a intrigava e entristecia. A pequenina Edwina Thurlow, por exemplo. Edwina prorrompera em estridente acesso de gritos, quando a mãe a tomara pela mão e realmente a empurrara para as bonecas, sentadinhas em seus bancos enfileirados, olhando atentamente para o quadro-negro. Na opinião da Sra. Thurlow, as bonecas de Ruth eram as coisinhas mais lindas deste mundo, aconchegantes como um gato ronronando, doces com uma pitada de creme; se existissem outros clichês para fascinantes, a Sra. Thurlow certamente os aplicaria as bonecas de Ruth. Assim, era incapaz de acreditar no medo que sua filha mostrava delas. Achava que Edwina estava “apenas sendo tímida”. Ruth, que vira o brilho indiscutível de medo nos olhos da menina, fora incapaz de dissuadir a mãe (em sua opinião, uma mulher burra e teimosa), para que ela não empurrasse a filha quase fisicamente para as bonecas.

Assim, Norma Thurlow arrastara a pequena Edwina para a sala de aula e os gritos da menina haviam sido tão altos, que chamaram a atenção de Ralph no porão, onde estivera empalhando cadeiras. Foram precisos quase vinte minutos de agrados para Edwina cessar com sua histeria e, naturalmente, precisou ser levada para o térreo, longe das bonecas. Norma Thurlow não sabia como esconder seu constrangimento e, a cada vez que lançava um taciturno olhar para Edwina, a criança era novamente tomada por histérica choradeira.

Mais tarde, nesse anoitecer, Ruth foi ao andar de cima e contemplou melancolicamente sua sala de aula cheia de crianças silenciosas (as “crianças” incluíam figuras avoengas, como a Sra. Beasley e a Vovó do Chapeuzinho Vermelho que, quando virada de cabeça para baixo e ligeiramente rearranjada, transformava-se no Grande Lobo Mau), perguntando-se como poderiam ter assustado Edwina daquela maneira. Edwina, sem dúvida, não tinha sido capaz de explicar; até mesmo a pergunta mais suave, provocava novos guinchos de terror.

— Vocês deixaram aquela criança realmente infeliz — disse Ruth por fim, falando com doçura para as bonecas. — O que fizeram a ela?

As bonecas apenas a fitaram de volta, com seus olhinhos de vidro, de botões ou bordados.

— Também Hilly Brown não quis chegar perto delas, daquela vez que sua mãe subiu para você autenticar aquela nota de venda — disse Ralph atrás dela.

Ruth se virou, sobressaltada, depois sorriu para ele.

— Sim, Hilly também — disse.

Também houvera outras crianças. Não muitas, mas em número suficiente para perturbá-la.

— Andem com isso! — disse Ralph, passando um braço pela cintura da esposa. — Vocês aí, contem! Quem foi que assustou a garotinha?

As bonecas continuaram a fitá-lo silenciosamente.

E, por um momento... apenas um momento... Ruth sentiu um toque de medo trepidar em seu estômago e subir pela espinha, chocalhando cada vértebra como um xilofone ósseo... e então desapareceu.

— Não se preocupe com isso, Ruthie — disse Ralph, apertando-a um pouco mais.

Como sempre, o cheiro que se desprendia do marido a deixou atordoada. Ralph a beijou forte, com dureza. Aliás, além da do beijo, Ruth sentiu uma outra dureza no corpo dele, nesse momento.

— Por favor! — pediu, algo sem fôlego, interrompendo o beijo. — Não na frente das crianças!

Ele riu e a tomou nos braços.

— Que tal em frente das obras completas de Henri Steele Commager?

— Maravilhoso! — ofegou ela, percebendo que já estava metade... não, três-quartos... não, quatro-quintos... fora de seu vestido.

Ralph fez amor com ela ansiosamente, havendo tremenda satisfação para as partes. Para todas as partes envolvidas. O breve arrepio de medo tinha sido esquecido.

Este ano, contudo, ela o recordaria, na noite de 19 de julho. O quadro de Jesus começara a falar com ‘Becka Paulson a 7 de julho. A 19 de julho, as bonecas de Ruth McCausland começaram a falar com ela.

 

Os moradores da cidadezinha ficaram surpresos, mas satisfeitos, quando dois anos após a morte de Ralph McCausland, em 1972, sua viúva candidatou-se ao posto de chefe de polícia de Haven. Seu adversário foi um homem ainda novo, chamado Mumphry. A maioria das pessoas achou isso uma tolice da parte dele, mas também concordava em que Mumphry nada podia fazer a respeito; era novo na cidade e, provavelmente, ignorava como comportar-se. Os que discutiram o assunto no Haven Lunch, consideravam o candidato mais digno de pena do que de antipatia. Ele concorreu como partidário dos Democratas e o ponto alto de sua plataforma na campanha parecia ser o de que, quando eleito chefe de polícia, teria que prender bêbados, motoristas dirigindo em excesso de velocidade e arruaceiros; inclusive, de vez em quando poderia ter que deter algum criminoso perigoso e conduzi-lo à cadeia do condado. Os cidadãos de Haven certamente não podiam eleger uma mulher para tal posto, fosse ela ou não doutora em leis, podiam?

Eles podiam e elegeram. Ruth McCausland teve 407 votos e Mumphry 9. Destes nove votos, seria justo presumir-se que recebera o da esposa, de seu irmão, de seu filho de vinte e três anos e o dele próprio. Sobravam cinco votos incógnitos. Ninguém imaginava de quem seriam, mas Ruth sempre desconfiava que o Sr. Moran, residente na extremidade sul da cidade, devia ter quatro amigos cuja existência ela ignorava. Três semanas após a eleição, Mumphry e a esposa foram embora da cidade. O filho deles, um rapaz bastante simpático chamado John, preferiu ficar. No entanto, mesmo depois de residir quatorze anos em Haven, freqüentemente referiam-se a ele como “o novo sujeito”, em frases semelhantes a “Aquele novo sujeito, o Mumphry, veio cortar o cabelo hoje de manhã; lembram-se quando seu pai concorreu à eleição com Ruth e levou uma derrota dos diabos?” A partir de então, Ruth nunca mais teve oponentes.

Os moradores de Haven encararam sua candidatura como um anúncio público de que seu período de luto terminara. Uma das coisas (entre muitas outras) que o infortunado Mumphry não percebera, era que a votação desigual havia sido, pelo menos em parte, a maneira da cidade gritar: “Hurra, Ruth! Bem-vinda por voltar!”

A morte de Ralph havia sido tão repentina e chocante, que quase chegara a matar a parte dela que era extrovertida e prestimosa. Esta parte suavizava e complementava o lado dominante de sua personalidade, ela mesma sentia isso. O lado dominante era inteligente, esperto, lógico e — embora odiando admitir este último, Ruth sabia ser verdadeiro — às vezes impiedoso.

Passara a sentir que, se este seu lado extrovertido e prestimoso entrasse em colapso, seria algo como matar Ralph uma segunda vez. Assim, ela retornou a Haven. Retornou para servir.

Em uma cidadezinha, tal pessoa pode, inclusive, fazer uma diferença crucial na maneira como são as coisas e, naquilo que os adeptos do jargão gostam de denominar “a qualidade de vida”, de fato essa pessoa pode tornar-se algo bem semelhante ao âmago da cidade. Ruth estivera bem avançada no caminho de tornar-se semelhante pessoa, quando seu marido morreu. No entanto, dois anos depois — após o que parecia ter sido, quando evocado, uma longa e depressiva temporada no inferno — ela redescobrira essa pessoa inestimável, como alguém poderia redescobrir algo moderada-mente maravilhoso em um canto escuro do sótão — um artigo de vidro adquirido em uma feira ou uma cadeira de balanço em madeira encurvada, ainda capaz de ser utilizada. Ela ergueu o achado contra a luz, certificou-se de que não estava quebrado, limpou-o da poeira, poliu-o e então o devolveu à sua vida. Concorrer para chefe de polícia da cidade havia sido apenas o primeiro passo. Ela talvez não dissesse por que isto parecia tão acertado, mas foi — parecia-lhe a maneira perfeita de ao mesmo tempo recordar Ralph e enfrentar a tarefa de ser ela própria. Imaginou que poderia achar o posto tedioso e desagradável... mas tinha pensado o mesmo sobre solicitar donativos para a Sociedade do Câncer e trabalhar no Comitê de Seleção do Livro Didático. Uma tarefa tediosa e desagradável não significava que fosse infrutífera, um fato que bastantes pessoas pareciam não saber ou que ignoravam voluntariamente. Disse para si mesma que, se de fato não gostasse do cargo, lei nenhuma poderia forçá-la a uma reeleição. Ela queria servir, não martirizar-se. Se não gostasse, deixaria que Mumphry ou mais alguém tivesse vez.

Ruth, no entanto, descobriu que gostava do cargo. Entre outras coisas, deu-lhe a chance de pôr fim a certas asquerosas ocorrências que o velho John Harley deixara continuar... e aumentar.

Del Cullum, por exemplo. Os Cullum residiam em Haven desde tempos imemoriais, e Delbert — um mecânico de sobrancelhas espessas que trabalhava no posto Shell de Elt Barker — provavelmente não era o primeiro deles a ter relações sexuais com as filhas. A linhagem dos Cullum era incrivelmente retorcida e híbrida; havia pelo menos dois Cullum cataclismicamente retardados em Pineland, sobre os quais ela tinha conhecimento. Segundo as fofocas da cidade, um deles nascera com membranas unindo os dedos dos pés e das mãos.

O incesto é uma daquelas tradições rurais honradas pelo tempo, sobre o que raramente escrevem os poetas românticos. Seu aspecto tradicional talvez fosse o motivo que levou John Harley a nunca tentar seriamente pôr um fim naquilo, mas a idéia de “tradição” em assunto tão grotesco, não fazia o gênero de Ruth. Ela foi à residência dos Cullum. Houve gritos. Albion Thurlow os ouviu claramente, embora morasse a quinhentos metros estrada abaixo e fosse surdo de um ouvido. Em seguida aos gritos, houve o som de uma serra de cadeia posta em movimento, seguido por um tiro e um grito. Então, a serra de cadeia parou de funcionar e Albion, agora em pé no meio da estrada, com uma das mãos em pala sobre os olhos, enquanto espiava na direção da casa dos Cullum, ouviu vozes femininas (Delbert havia sido amaldiçoado com filhas, seis ao todo e, naturalmente, elas eram de fato a maldição dele, e ele a delas), vozes que gritavam de aflição.

Mais tarde, no Haven Lunch, quando repetia sua história a uma fascinada platéia, o velho Albion disse que pensou em voltar para casa e telefonar para o chefe de polícia... mas então percebeu que provavelmente o chefe de polícia é que tinha dado o tiro.

Assim, ele se limitou a ficar ao lado de sua caixa de correspondência, aguardando o desenrolar dos acontecimentos. Cerca de cinco minutos após ter cessado o som da serra de cadeia, Ruth McCausLand dirigia seu carro de volta à cidade. Cinco minutos mais tarde, Del Cullum passou por ele, em sua picape. A exaurida esposa dele ocupava o assento do passageiro. Um colchão e algumas caixas de papelão cheias de roupas e louças seguiam no piso da carroceria. Delbert e Maggie Cullum não foram mais vistos em Haven. As três mocinhas Cullum com mais de dezoito anos foram trabalhar em Derry e Bangor. As três menores foram colocadas em lares adotivos. Em sua maioria, Haven ficou satisfeita ao ver a família Cullum separada. Seus membros haviam proliferado no final da Estrada de Ridge como uma erupção de cogumelos venenosos crescendo em um porão escuro. As pessoas especulavam sobre o que Ruth havia feito e como, porém ela jamais explicou.

Os Cullum não foram os únicos a quem Ruth McCausland — os cabelos já ficando grisalhos, esguia, com um metro e meio de altura e sessenta e dois quilos — expulsou da cidade ou botou na cadeia, no correr dos anos. Por exemplo, houve os hippies fumadores de maconha, que se instalaram dois quilômetros a leste da propriedade do velho Frank Garrick. Aqueles arremedos de seres humanos, inúteis e vermelhos como caranguejos, chegaram em um mês e se foram no dia seguinte, chutados pela elegante biqueira dos sapatos número trinta e cinco de Ruth. A sobrinha de Frank, a que escrevia aqueles livros, provavelmente fumasse alguma maconha de quando em quando, segundo imaginavam os moradores da cidade (eles achavam que todo escritor devia fumar maconha, beber demais ou passar a noite tendo sexo em posições extravagantes), porém ela não a vendia — e os hippies instalados a dois quilômetros dela, estavam fazendo justamente isso.

Houve também os Jorgenson, residentes na Estrada de Miller Bog. Benny Jorgenson havia falecido de um ataque cardíaco e sua viúva tornou a casar-se três anos mais tarde, tornando-se Iva Haney. Não muito tempo depois, seu filho de sete anos e a filha de cinco começaram a sofrer acidentes em casa. O menino levou uma queda, quando saía da banheira; a menina queimou o braço na estufa. Depois, o menino escorregou no piso da cozinha e quebrou o braço, tendo a menina pisado em um ancinho meio enterrado entre folhas caídas, cujo cabo lhe bateu com força no lado da cabeça. Por fim, mas dificilmente a última vez, o menino rolou nos degraus do porão, quando ia buscar gravetos, e fraturou o crânio. Por algum tempo, pareceu que ele não se recuperaria. Sem dúvida, aquele fora realmente um período de muito azar.

Ruth decidiu que já houvera azar suficiente na casa dos Haney

Foi até lá, dirigindo seu velho Dodge Dart, e encontrou Elmer Haney sentado no alpendre, bebendo um litro de Miller Lite, escarafunchando o nariz e lendo a revista Soldier of Fortune. Ruth sugeriu a Elmer Haney que ele era a urucubaca, a má sorte na casa de Iva, particularmente para Bethie e Richard Jorgenson. Ela disse ter reparado que certos padrastos davam muita má sorte aos enteados. Acrescentou que, em sua opinião, a sorte deles poderia melhorar, se Elmer Haney fosse embora da cidade. Bem depressa. Antes do fim da semana.

— Você não me mete medo — replicou Elmer Haney serenamente. — Esta casa agora é minha! E vá dando o fora daqui, antes que eu lhe estoure os miolos com uma acha de lenha, sua cadela intrometida!

— Reflita no que lhe falei — disse Ruth, sorrindo.

Joe Paulson estivera estacionado junto à caixa de correspondência, nesse momento. Ouviu tudo. Elmer Haney falara em tom ligeiramente alto e nada havia de errado com a audição de Joe. A maneira como relatou os fatos no Haven Lunch, mais tarde nesse dia, foi que esteve entregando correspondência, enquanto os dois discutiam o assunto. Acrescentou que parecia não conseguir separar as cartas, senão quando aquela conversa terminou.

— E como soube que ela estava sorrindo? — perguntou Elt Barker.

— Notei pelo tom de sua voz — replicou Joe.

Mais tarde, nesse mesmo dia, Ruth fora de carro até a sede da polícia estadual, em Derry e falou com Butch “Monstro” Dugan. Com dois metros de altura e cento e quarenta quilos de peso, Monstro era o maior polícia estadual da Nova Inglaterra. E Monstro faria qualquer coisa pela viúva de Ralph, exceto matar (talvez até isso também).

Dois dias depois, eles voltaram à casa de Haney. Era o dia de folga de Monstro e ele se vestia à paisana. Iva Haney estava no trabalho. Bethie fora para a escola. Richard, naturalmente, continuava no hospital. E Elmer Haney que, naturalmente, continuava desempregado, encontrava-se no alpendre, com um litro de Miller Lite em uma das mãos e o último exemplar de Hot talk na outra. A visita de Ruth e Monstro Dugan a ele durou aproximadamente uma hora, durante a qual Elmer Haney teve uma impressionante má sorte. Aqueles que o viram deixando a cidade essa noite, disseram que parecia ter passado através das grades de um colhedor de batatas, porém o único com coragem bastante para perguntar o que acontecera, foi o velho John Harley.

— Bem, nem eu mesma acredito... — disse Ruth sorrindo. — Foi a coisa mais incrível que já vi. Enquanto procurávamos convencê-lo de que seus enteados viveriam com mais sorte se ele fosse embora, Haney resolveu tomar uma ducha. Justamente quando conversávamos com ele! Pois não é que o homem caiu na banheira? Depois queimou o braço na estufa e escorregou no linóleo da cozinha, quando se afastava da estufa! Em seguida, achou que precisava tomar um pouco de ar fresco, saiu de casa e pisou no mesmo ancinho em que Bethie Jorgenson pisou há dois meses. Foi quando decidiu que o melhor era arrumar suas coisas e ir embora. Acho que tinha esse direito, pobre homem! Viverá com mais sorte em outro lugar qualquer.

 

De fato, ela foi a pessoa que mais se aproximou de tornar-se o núcleo da cidade, talvez sendo por isso a primeira a sentir a mudança.

Tudo começou com uma dor de cabeça e pesadelos.

A dor de cabeça chegou com o mês de julho. Às vezes, era tão leve, que Ruth mal a percebia. Então, de repente, aumentava para uma forte e insistente palpitação atrás da testa. Piorou tanto na noite de 4 de julho, que ela ligou para Christina McKeen, com quem havia combinado ir a Bangor para apreciar os fogos de artifício, e disse que a dispensasse.

Foi para a cama esse anoitecer com claridade ainda pairando no céu, mas já estava escuro quando finalmente conseguiu pegar no sono. Imaginou que o calor e a umidade a mantivessem desperta — admitia que isso manteria toda a Nova Inglaterra acordada aquela noite, e esta não era a primeira a ser deste jeito. Aquele tinha sido um dos verões mais pesados e quentes de que se lembrava.

Ruth sonhou com fogos de artifício.

A diferença era que estes fogos de artifício não eram vermelhos, brancos e fulgurantemente alaranjados; eram todos de uma fosca e terrível tonalidade verde. Explodiam no céu em jatos estrelados de luz... mas em vez de se expandirem na imensidão, as formas estreladas no céu esvaíam-se juntas e formavam enormes ulcerações.

Olhando em torno, ela via pessoas com quem convivera a vida inteira — os Harley e Crenshaw, os Brown e Duplissey, os Anderson e Clarendon — olhando para o céu, seus rostos parecendo decompostos àquela claridade verdejante de fogo dos pântanos. As pessoas estavam diante da agência dos correios, da farmácia, da loja Junque-A-Torim, do Haven Lunch e do Northen National Bank; estavam diante da escola e do posto Shell, os olhos inundados de fogo verde, as bocas pendendo idiotamente abertas.

Seus dentes estavam caindo.

Justin Hurd se virou para ela e sorriu, os lábios repuxados para trás mostrando gengivas rosadas e nuas. A luminosidade insana do sonho, a saliva escorrendo daquelas gengivas parecia catarro.

— Eu me sinto muito bem — ciciou Justin.

E ela pensou: Saiam daqui! Todos eles têm que sair daqui, imediatamente! Se não forem embora, vão morrer da mesma maneira que Ralph!

Agora, Justin caminhava em sua direção e, com crescente horror, Ruth notou que o rosto dele se franzia e mudava — tornava-se o rosto volumoso e bordado de Lumpkin, sua boneca-espantalho. Olhou alucinadamente para os lados e viu que todos eles se tinham transformado em bonecas. Mabel Noyes se virou e a fitou. Os olhos azuis de Mabel eram tão calculistas e avarentos como sempre, mas seus lábios haviam-se intumescido no sorriso arco-de-cupido de uma boneca de porcelana.

— Tommyknockers — ciciou Mabel, em uma voz que bimbalhava e ecoava.

Ruth acordou de repente, sobressaltada, de olhos arregalados no escuro. Sua dor de cabeça desaparecera, pelo menos por enquanto. Saíra do sonho diretamente para a vigília, com o pensamento: Ruth, você tem que ir embora agora, já! Nem mesmo se demore arrumando uma mala — apenas vista algumas roupas, entre no Dart e VÁ!

Só que ela não poderia fazer isso.

Tornou a ajeitar-se na cama. Após muito tempo, voltou a dormir.

 

Quando chegou a notícia de que a casa dos Paulson estava pegando fogo, o Departamento de Bombeiros Voluntários de Haven apresentou-se... mas eles foram surpreendentemente lentos a respeito. Ruth chegou lá dez minutos antes de surgir o primeiro bombeiro. Seria capaz de arrancar fora a cabeça de Dick Allison quando ele finalmente apareceu, caso já não soubesse que os dois Paulson estavam mortos... e, claro está, Dick Allison também sabia. Daí por que ele não tivera muita pressa, porém isso não deixou Ruth se sentindo nem um pouco melhor. Muito pelo contrário.

O fato dele já saber... O que exatamente era isso?

Ela ignorava o que fosse.

A própria compreensão do fato desse conhecimento era quase impossível. No dia em que a casa dos Paulson pegou fogo, Ruth percebeu que estivera sabendo de coisas que não tinha o direito de saber, desde uma semana antes ou coisa assim. No entanto, parecia tão natural! A coisa não era anunciada com sinos e clarins. O conhecimento fazia tanta parte dela — agora de todos em Haven — como as batidas de seu coração. Assim, não pensava nisso, como tampouco pensava nas batidas cardíacas que soavam macia e firmemente em seus ouvidos.

A respeito disto, no entanto, tinha que pensar, não tinha? Porque era algo que estava mudando Haven... e as mudanças não eram boas.

 

Alguns dias antes do desaparecimento de David Brown, Ruth percebeu, com um começo de vago desalento, que a cidade a relegara ao ostracismo. Não que alguém cuspisse à sua passagem, quando descia a rua de manhã, a caminho do gabinete que ocupava, na sede da municipalidade... não que lhe atirassem pedras... pois captava muito da antiga gentileza no pensamento das pessoas, mas sabia que todos se viravam para espiá-la, enquanto caminhava. Ruth seguia em frente de queixo erguido e feições calmas, parecendo não sentir a cabeça que latejava e palpitava como um dente apodrecido — como se não tivesse passado a noite (e a penúltima, a antepenúltima, a...) virando-se e revirando-se na cama, depois mergulhando naqueles sonhos horríveis e recordados a meio, para então rastejar novamente para fora deles.

As pessoas a espiavam... espiavam e esperavam...

O quê?

Ela, no entanto, sabia: esperavam que se “transformasse”.

 

Na semana entre o incêndio na casa dos Paulson e o SEGUNDO GRANDE ESPETÁCULO DE MÁGICA de Hilly, as coisas começaram a andar errado para Ruth.

A correspondência, por exemplo. Aí estava uma das coisas.

Ela continuava recebendo contas, circulares e catálogos, mas não havia cartas. Nenhuma correspondência pessoal de qualquer espécie. Após três dias assim, ela deu uma passada na agência dos correios. Nancy Voss limitou-se a permanecer atrás do balcão, como uma excrescência, fitando-a inexpressivamente. Quanto Ruth terminou de falar, refletiu que podia realmente sentir o peso do olhar fixo daquela mulher. Os olhos dela eram como duas pequenas e foscas pedras negras jazendo sobre seu rosto.

Em meio ao silêncio, pôde ouvir algo no gabinete, zumbindo e emitindo ruídos arranhados, como de uma aranha. Não tinha idéia do que fosse aquilo

(exceto que separa a correspondência para ela)

mas não gostou do som que ouvia. Como também não gostou de estar ali com aquela mulher, pois ela estivera dormindo com Joe Paulson, além de odiar ‘Becka e...

Estava quente no exterior e ainda mais quente ali dentro. Ruth sentiu o suor escorrer-lhe pelo corpo.

— Terá de preencher um formulário de queixa sobre correspondência — disse Nancy Voss, de maneira lenta e sem inflexões. Fez deslizar um cartão branco sobre o balcão. — Aí está, Ruth — acrescentou, repuxando os lábios em um sorriso vago.

Ruth viu que a mulher havia perdido os dentes.

De trás delas, ouvia-se no silêncio: Scratch-scratch, scritch-scratch, scratch-scratch, scritch-scratch

Ruth começou a preencher o formulário. O suor desenhava enormes círculos escuros em torno das axilas de seu vestido. Lá fora, o sol batia em cheio sobre o pátio de estacionamento do correio. Fazia trinta e dois graus à sombra, tinha que fazer, não havia o mais leve toque de brisa, e Ruth sabia que a pavimentação naquele pátio ficaria tão mole, que se poderia arrancar um pedaço com os dedos, caso alguém quisesse, e começar a mascá-lo...

Declare a natureza de seu problema, dizia o formulário.

Estou ficando louca, pensou ela, essa é a natureza de meu problema. Além disso, estou tendo meu primeiro período menstrual em três anos.

Com mão firme, começou a escrever que não vinha recebendo correspondência registrada durante uma semana e queria que o assunto fosse examinado.

Scratch-scratch, scritch-scratch...

— Que barulho é esse? — perguntou ela, sem erguer os olhos do formulário. Receava olhar para Nancy Voss.

— Uma aparelhagem para separar correspondência — respondeu a mulher monotonamente. — Eu que idealizei. — Fez uma pausa. — Ora, mas você já sabia, não é mesmo, Ruth?

— Como eu poderia saber, a menos que você me dissesse? — replicou Ruth, esforçando-se ao máximo para sua voz soar agradável.

A caneta que estava usando tremeu e ela borrou o formulário — não que isso importasse; sua correspondência não vinha, porque Nancy Voss a jogava fora. Isso era também parte do conhecimento. Ruth, no entanto, era teimosa; seu rosto permaneceu límpido e firme. Fitou Nancy diretamente nos olhos, embora receasse aquele olhar de pupilas negras e embaçadas, embora receasse o seu peso.

Vá em frente, seja franca! dizia o olhar de Ruth. Não tenho medo de gente distinta como você. Fale francamente... mas se espera que vou fugir guinchando como um rato, prepare-se para uma surpresa.

O olhar de Nancy vacilou e ela baixou o rosto. Virou-se.

— E só avisar, quando terminar de preencher o formulário — disse. —Tenho trabalho demais para fazer e não posso ficar aqui, aproveitando a vida. Depois que Joe morreu, o trabalho acumulou-se demais. Talvez por isso não esteja recebendo sua correspondência

(VÁ EMBORA DA CIDADE SUA CADELA VÁ EMBORA ENQUANTO AINDA A DEIXAMOS IR)

em dia, Sra. McCausland.

— Você acha que o motivo seja esse?

Manter a voz em tom leve e agradável, agora exigia um esforço sobre-humano. O último pensamento de Nancy a tinha atingido como um uppercut. Havia sido tão brilhante e claro como um raio. Baixando os olhos para o formulário de queixa, viu um enorme e negro

(tumor)

borrão, espalhando-se sobre ele. Amassou o formulário e o jogou fora.

Nancy não tinha respondido ao que lhe perguntara. Certamente, fingia não ter ouvido, pensou Ruth. Só que a ouvira perfeitamente.

Scritch-scritch-scratch...

A porta se abriu atrás dela. Virando-se, Ruth viu Bobbi Anderson entrar.

— Olá, Bobbi — disse.

— Olá, Ruth.

(ande ela está certa vá embora enquanto ainda pode enquanto ainda tem permissão para ir, por favor Ruth eu nós a maioria de nós não sente nenhum rancor por você)

— Está trabalhando em alguma nova novela, Bobbi?

Ruth mal conseguia falar sem que a voz lhe tremesse. Ouvir pensamentos era ruim — faz a pessoa imaginar que está insana e tem alucinações. Ouvir tal coisa vindo de Bobbi Anderson

(enquanto ainda tem permissão)

entre tanta gente, Bobbi Anderson, que era simplesmente a mais gentil...

Não ouvi nada semelhante, pensou ela, aferrando-se à idéia com uma espécie de cansada ansiedade. Foi um engano, nada mais.

Bobbi abriu sua caixa postal e tirou dela um monte de correspondência. Quando olhou para Ruth e sorriu, deixou ver que havia perdido um molar inferior esquerdo e um canino superior direito.

— Será melhor ir agora, Ruth — disse, com suavidade. — Apenas, entre em seu carro e vá. Não concorda?

Ruth então sentiu-se firme — a despeito do medo e da cabeça latejante, permaneceu firme.

— Nunca! — falou. — Esta é a minha cidade. E se você sabe o que está acontecendo, diga aos outros que sabem o que está acontecendo, para não me pressionarem. Tenho amigos fora de Haven, amigos que acreditarão em mim, pouco importando o quão louco pareça o que eu lhes disser. Eles ouviriam, em consideração a meu falecido marido, se não em consideração a mim. Quanto a você, devia envergonhar-se de si mesma. Esta é também a sua cidade. Pelo menos, costumava ser!

Por um momento, achou que Bobbi parecia confusa e um tanto envergonhada. Então, ela sorriu radiosamente e, naquele sorriso juvenil, com falhas de dentes, havia algo que deixou Ruth mais assustada do que nunca. Era um sorriso tão humano, quanto o sorriso de uma truta. Ela viu Bobbi nos olhos desta mulher e certamente a sentira em seus pensamentos... porém nada havia de Bobbi naquele sorriso.

— Seja como quiser, Ruth — disse Bobbi. — Todos em Haven a amam, compreenda. Creio que em uma ou duas semanas... três, no máximo... você deixará de lutar. Pensei apenas em oferecer-lhe a opção. Se decidir ficar, entretanto, tudo bem. Em pouco tempo você estará... simplesmente ótima.

 

Ruth fez alto no Cooder’s, a fim de comprar Tampax. Não havia nenhum. Nada de Tampax, de Modess, de Sempre-Livre maxis ou minis, nada de absorventes ou tampões genéricos.

Um aviso escrito à mão, dizia: NOVO SORTIMENTO ESPERADO AMANHÃ. LAMENTAMOS QUALQUER ESTORVO.

 

A 15 de julho, uma sexta-feira, ela começou a ter problemas com o telefone de seu gabinete.

Pela manhã, era apenas um zumbido alto e irritante, fazendo com que ela e seu interlocutor tivessem que gritar para serem ouvidos. Por volta de meio-dia, fora adicionado um barulho crepitante. Às duas horas da tarde, a situação piorara tanto, que o telefone ficou inútil.

Chegando em casa, constatou que seu telefone particular não emitia qualquer ruído, em absoluto. Estava simples e completamente mudo. Dirigiu-se à casa dos Fannin, seus vizinhos do lado, para discar o número de consertos da companhia telefônica. Wendy Fannin fazia pão na cozinha, sovando um pouco de massa, enquanto a batedeira se incumbia da parte restante.

Com maçante falta de surpresa, Ruth percebeu que a batedeira não estava ligada à tomada da parede, mas ao que parecia um jogo eletrônico, sem a cobertura. O aparelho gerava um forte clarão, enquanto Wendy misturava seu pão.

— Certo, pode usar o telefone — disse Wendy. — Você sabe

(vá embora Ruth vá embora de Haven)

onde fica, não sabe?

— Sim, eu sei — disse ela. Começou a caminhar para o corredor e então parou. — Estive no supermercado. Precisava de absorventes, mas estão em falta.

— Eu sei. — Wendy sorriu, mostrando três falhas em um sorriso que havia sido impecável uma semana atrás. — Comprei a penúltima caixa. Isso logo vai acabar. Quando nos “transformarmos” um pouco mais, essa parte acabará.

— É mesmo? — perguntou Ruth.

— Oh, sem dúvida! — disse Wendy, retornando ao seu pão.

O telefone dos Fannin funcionava perfeitamente bem, o que não foi surpresa para Ruth. A atendente na New England Contel disse que mandariam um homem em seguida. Ruth agradeceu e, antes de sair, agradeceu também e Wendy Fannin.

— Não foi nada — disse Wendy, sorrindo. — Está à sua disposição sempre que quiser, Ruth. Sabe que todos em Haven a estimam.

Ruth estremeceu, a despeito do calor.

A equipe de reparos telefônicos chegou e fez algo à conexão, no lado da casa de Ruth. Testaram a linha. O telefone funcionava perfeitamente. Então, foram embora. Uma hora mais tarde, o telefone deixava de funcionar de novo.

Na rua, nesse anoitecer, ela sentiu um crescente sussurro de vozes em seu cérebro — pensamentos tão sutis, como folhas movidas por uma leve brisa de outubro.

(nossa Ruth nós a estimamos Haven em peso a estima)

(mas vá se tem de ir ou mude)

(se você ficar ninguém quer magoá-la Ruth portanto vá embora ou fique)

(sim vá embora ou fique mas nos deixe)

(sim deixe-nos em paz Ruth não interfira deixe que nós sejamos nós)

(vamos “transformar-nos” sim deixe que nos “transformemos” deixe-nos em paz para que nos “transformemos”)

Ela caminhou lentamente, a cabeça palpitante de vozes.

Deu uma espiada ao interior do Haven Lunch. Beach Jernigan, o cozinheiro de refeições rápidas, acenou para ela. Ruth acenou em troca. E viu a boca de Beach se movendo, formando claramente as palavras Lá vai ela. Vários homens, sentados ao balcão do bar, se viraram e acenaram. Sorriram. Ruth viu espaços vazios onde houvera dentes, não muito tempo antes. Passou pelo supermercado Cooders. Passou pela Igreja Metodista Unida. À frente dela, elevava-se agora a sede da municipalidade, com sua torre quadrada de tijolos, tendo no topo um relógio. Os ponteiros marcavam 7:15 — 7:15 de uma noite de verão — e todos os homens em Haven estariam abrindo cervejas geladas e ligando rádios que transmitiam a voz de Joe Costiglione e o som de Red Sox Warmup. Ela podia ver Bobby Tremam e Stephanie Colson caminhando lentamente para a orla da cidade, pela Rota 9, de mãos dadas. Fazia quatro anos que eles saíam juntos, e, em verdade, era de admirar que Stephanie ainda não estivesse grávida, pensou Ruth.

Apenas um anoitecer de julho, com o crepúsculo adensando-se — tudo normal.

Nada estava normal.

Hilly Brown e Barney Applegate saíam da biblioteca, com David, o irmãozinho de Hilly, trotando atrás deles como a rabiola de uma pipa. Ela lhes pediu para mostrarem que livros haviam apanhado e os dois meninos imediatamente obedeceram. Somente nos olhos do pequeno David Brown, notou um hesitante reconhecimento do pânico que ela sentia... e pôde senti-lo na mente dele. O fato de ter captado o medo de David e nada ter feito quanto a isso, foi o principal motivo de dedicar-se com tanto empenho, ao ser informada do desaparecimento do garotinho, dois dias mais tarde. Outra pessoa poderia ter-se justificado, poderia ter dito: Ouçam, eu já tinha o suficiente em meu prato, para preocupar-me com o que havia no de David Brown! Entretanto, ela não pertencia ao tipo de mulher capaz de encontrar algum consolo, defendendo-se com tanto vigor. Havia sentido o intenso terror do menino. Pior ainda, havia sentido a resignação dele — a certeza de que nada deteria os acontecimentos — que estes simplesmente se desenrolariam, seguindo um rumo pré-ordenado, de mal para pior. E, como para provar que ele estava certo, ei, rápido! David sumira. E também, como o avô do menino, Ruth arcara com seu quinhão de culpa.

Na sede da municipalidade, ela deu meia volta e tomou a direção de casa, mantendo o rosto agradável, apesar da torturante dor de cabeça, apesar de seu desalento. Os pensamentos giravam, turbilhonavam e dançavam.

(amamos você Ruth)

(podemos esperar Ruth)

(shhhh shhhh vá dormir)

(sim vá dormir e sonhe)

(sonhe com coisas sonhe com maneiras,)

(de “transformar-se” maneiras de “transformar-se” maneiras de)

Ela entrou em casa, trancou a porta, subiu para o andar de cima e pressionou o rosto contra o travesseiro.

Sonhe com maneiras de “transformar-se”

Oh, Deus, ela gostaria de saber, exatamente, o que isso significava!

Se você for irá se você ficar mudará.

Ela desejou saber, porque — o que quer que aquilo significasse, quisesse ou não — estava acontecendo. Acontecendo com ela. Pouco importava o quanto resistisse, também ela se estava “transformando”.

(sim Ruth sim,)

(durma... sonhe... pense... “transforme-se”)

(sim Ruth sim)

Tais pensamentos, rogaçantes e alienados, acompanharam-na no sono e então se fundiram em escuridão. Ela jazeu atravessada na cama de casal, inteiramente vestida, profundamente adormecida.

Quando acordou, seu corpo estava rígido, mas a mente clareara e se revigorara. A dor de cabeça tinha desaparecido como fumaça. A menstruação, tão estranhamente indigna e vergonhosa, após ela ter achado que isso finalmente terminara para sempre, havia cessado. Pela primeira vez, em quase duas semanas, sentia-se ela própria. Decidiu tomar uma demorada ducha fria e então preparar-se para chegar ao fundo daquilo. Se a situação requeresse ajuda externa, muito bem. Se tinha que ficar alguns dias ou semanas com pessoas achando que estava frouxa dos miolos, que fosse. Levara uma vida inteira construindo uma reputação de lucidez e honestidade. De que adiantaria tal reputação, se não convencesse as pessoas a levarem-na a sério, quando dava a impressão de insana?

Quando começou a despir o vestido amarrotado pelo sono, seus dedos subitamente se congelaram sobre os botões.

Sua língua encontrara uma falha na fileira dos últimos dentes — havia um dor fosca e distante naquele local. Seus olhos pousaram na coberta da cama. Sobre ela, onde sua cabeça repousara, viu o dente que caíra durante a noite. De repente, nada mais parecia simples — absolutamente nada.

Ruth percebeu que sua dor de cabeça voltara.

 

Havia tempo ainda mais quente reservado para Haven — em agosto, teriam uma semana em que as temperaturas ultrapassariam a marca dos trinta e sete graus a cada dia — mas nesse ínterim, o período de quente-e-úmido em julho, indo do dia doze ao dezenove, foi mais do que suficiente para todos na cidade, obrigado.

As ruas tremulavam com o calor. As folhas das árvores pendiam flácidas e poeirentas. Os sons transmitiam-se no ar parado; o velho caminhão de Bobbi Anderson, agora adaptado como máquina escavadora, podia ser ouvido claramente em Haven Village, a oito quilômetros de distância, durante a maioria daqueles oito dias de intenso calor. As pessoas sabiam que algo importante estava em andamento na propriedade do velho Frank Garrick — importante para a cidade inteira — porém ninguém comentava o fato em voz alta, como tampouco era comentado que aquilo enlouquecera Justin Hurd, o vizinho mais próximo de Bobbi. Justin estava montando coisas — era parte de sua ¨Dtransformação¡¬ — mas como ficara louco, algumas das coisas que montava eram potencialmente perigosas. Uma delas, era algo que produzia ondas harmônicas na crosta da terra — ondas que poderiam possivelmente desencadear um terremoto, violento o bastante para rasgar o estado de alto a baixo e enviar sua parte leste deslizando para o Atlântico.

Justin havia montado a máquina de ondas harmônicas para arrancar de suas tocas os malditos coelhos e toupeiras. Eles estavam devorando todas as suas malditas alfaces. Vou sacudir os pequenos cretinos para fora, pensou ele.

Beach Jernigan foi à propriedade de Justin certo dia, enquanto ele estava fora, rastelando as plantações no campo oeste (já tinha arado doze acres de milho aquele dia, suando profusamente, os lábios repuxados em uma permanente careta maníaca, enquanto se preocupava em salvar três fileiras de alfaces) e desmontou a engenhoca, que consistia de componentes adaptados de estéreo. Quando Justin voltasse e descobrisse que sua máquina se fora, talvez presumisse que os malditos coelhos e toupeiras a tivessem roubado e possivelmente se dedicasse a reconstruí-la... hipótese em que Beach ou outra pessoa tornaria a desmantelá-la. Ou, se tivessem sorte, talvez ele se sentisse incumbido de montar algo menos perigoso.

A cada dia, o sol se levantava em um céu cor de porcelana pálida e então parecia ficar pendurado no teto do mundo. Atrás do Haven Lunch, uma fileira de cães aproveitava a escassa sombra do beiral mais acima, ofegando e acalorados demais até para coçar pulgas. Em sua maioria, as ruas ficavam desertas. De vez em quando, alguém cruzava Haven, em viagem de ida ou volta para Derry e Bangor. Não havia grande movimento de carros, contudo, porque a auto-estrada de pedágio era muito mais rápida.

Aqueles que cruzavam a cidadezinha, percebiam uma súbita e singular melhora na recepção radiofônica — um espantado motorista de caminhão, rodando pela estrada 9, porque se entediara da I-95, havia decidido que uma mudança de trajeto valeria a hora extra na estrada, e sintonizara uma estação de rock que, conforme descobriu, transmitia de Chicago. Duas pessoas de idade que se dirigiam a Bar Harbor, ouviram uma estação da Flórida, transmitindo música clássica. Tal recepção extraordinária, com uma limpidez de toques de sino, esmaeceu quando elas se viram novamente fora de Haven.

Alguns viajantes que cruzavam Haven, experimentaram efeitos colaterais mais desagradáveis: dores de cabeça e náuseas, em maioria — por vezes uma náusea severa. Isto era comumente atribuído à alimentação de beira de estrada, que devia ter-se deteriorado com o calor.

Um garotinho de Quebec, indo para Old Orchard Beach com os pais, perdeu quatro dentes de leite, nos dez minutos em que a camionete da família atravessou Haven, de ponta a ponta. A mãe do garotinho jurou, em francês, que jamais vira algo semelhante na vida. Nessa noite, em um motel de Old Orchard Beach, a fada-dos-dentes os levou (e, segundo declaração da mãe, apenas um daqueles dentinhos estava frouxo) e os substituiu por um dólar.

Um matemático do ITM, que se dirigia à Universidade de Orono para uma conferência de dois dias sobre números semilógicos, percebeu de repente que estava a ponto de captar uma forma inteiramente nova de considerar a matemática e a filosofia da matemática. Seu rosto ficou cinza e a transpiração sobre a pele se tornou subitamente fria, quando ele compreendeu, com perfeita clareza, como tal conceito poderia rapidamente fornecer prova de que cada número par acima de dois é a soma de dois números primos; como o conceito poderia ser usado para a trissecção do ângulo; como ele poderia...

Ele freou o carro, saiu e vomitou na vala da margem. Ficou parado junto da sujeira, trêmulo e de joelhos bambos (uma sujeira contendo um de seus caninos, embora então ele estivesse excitado demais para reparar que tinha perdido um dente), os dedos ardendo por segurarem um pedaço de giz, a fim de cobrir um quadro-negro com senos e co-senos. Visões do prêmio Nobel turbilhonaram em seu cérebro superaquecido. Tornando a entrar no carro, recomeçou a dirigir para Orono, acelerando seu enferrujado Subaru até cento e dez horários. Quando alcançou Hampden, sua gloriosa visão se tinha turvado e, chegando a Orono, nada mais restara além de um vislumbre. Ele supôs que houvesse sido uma insolação momentânea. Somente o vômito tinha sido real; podia sentir o cheiro nas roupas. Durante o primeiro dia de conferências permaneceu silencioso e pálido, oferecendo pouco e carpindo sua gloriosa, efêmera visão.

Aquela também foi a manhã em que Mabel Noyes se tornou uma não-pessoa, enquanto trabalhava indolentemente e ao acaso, no porão da loja “Junque-A-Torium”. Não seria correto afirmar que ela “se matou acidentalmente” ou “que faleceu por casualidade”. Nada disto exprimiria com veracidade o que lhe aconteceu. Mabel não meteu uma bala na cabeça enquanto limpava uma arma e nem enfiou o dedo em alguma tomada elétrica; ela simplesmente esvaziou suas moléculas e deixou de existir. Foi tudo rápido e sem confusão ou sujeira. Houve um jato de luz azul, e ela havia desaparecido. Nada restou, além de uma alça fumegante de sutiã e uma engenhoca semelhante a um polidor de prata. De fato, era exatamente esta a finalidade da engenhoca. Mabel achou que ela tornaria um trabalho sujo e cansativo muito mais fácil, perguntando-se por que nunca montara um dispositivo como aquele antes — ou por que, pelo amor de Deus, não havia lugares onde fosse possível comprá-los, se sua confecção era absolutamente fácil e aqueles amarelos da Coréia talvez conseguissem fabricá-los às toneladas. Deus era testemunha de que os amarelos da Coréia fabricavam outras coisas às toneladas, embora ela supusesse que até devia ser grata por isso, uma vez que os amarelos japoneses tinham, aparentemente, ficado esnobes demais para fabricar coisas pequeninas. Mabel começara a ver todo o tipo de coisas que poderia fazer, partindo dos eletrodomésticos usados em sua loja. Coisas maravilhosas! ficava examinando os catálogos e espantava-se ao ver que tais artigos não eram anunciados. Santo Deus, pensava, acho que vou ficar rica! No entanto, ela terminara fazendo uma espécie de conexão cruzada sobre o polidor de prata, e suas minipartículas, desintegradas, foram lançadas à Zona Crepuscular em menos de seis décimos-milésimos de um nanossegundo.

Em verdade, sua falta não foi muito sentida em Haven.

A cidade jazia morosa, no fundo de uma bacia de ar estagnado. Da mata atrás da propriedade Garrick, vinham os sons de máquinas, enquanto Bobbi e Gardener prosseguiam na escavação.

Fora isso, a cidade inteira parecia dormitar.

 

Ruth não dormitava naquela tarde.

Pensava nos sons que provinham da propriedade de Bobbi Anderson (ela, pelo menos, há muito não pensava naquele lugar como sendo a fazenda Garrick) e na própria Bobbi Anderson.

Agora existia um poço comunal de conhecimento na cidade, uma lagoa de pensamento por todos partilhada. Um mês antes, Ruth consideraria uma tal idéia como insana. Agora, era um fato inegável. Como as crescentes e sussurrantes vozes, o conhecimento estava lá.

Parte desse conhecimento, era saber que Bobbi começara tudo aquilo.

Havia sido inadvertidamente, porém ela o pusera em movimento. Agora, Bobbi e seu amigo (o amigo era uma figura inteiramente difusa para Ruth; sabia de sua existência, apenas porque o vira lá algumas vezes, ao anoitecer, sentado na varanda com Bobbi) estavam trabalhando doze a quatorze horas por dia, piorando a situação ainda mais. Ruth não achava que o amigo de Bobbi tivesse qualquer idéia real do que estava fazendo. De algum modo, ele se encontrava fora da rede comunal.

Como é que pioravam a situação?

Ela não sabia, nem mesmo tinha certeza do que eles faziam. Isto também fora bloqueado, não apenas para Ruth, como para todos em Haven. Eles ficariam sabendo, no momento oportuno; o conhecimento não verteria para eles — eles é que se converteriam em conhecimento, tão certo, como a menstruação de cada mulher, na cidade inteira, entre as idades de aproximadamente oito e sessenta anos, ter cessado quase que ao mesmo tempo. Isto tinha algo a ver com escavação; era tudo quanto Ruth poderia dizer. Certa tarde, cochilando brevemente, sonhou que Bobbi e seu amigo de Troy estavam desenterrando um grande cilindro prateado, com uns setenta metros de diâmetro. À medida que desenterravam mais e mais daquilo, ela podia ver um cilindro muito menor, este de aço, talvez com três metros de diâmetro e um metro e meio de altura, projetando-se, como um mamilo, do centro da coisa. Gravado neste mamilo havia um símbolo ± e, quando acordou, ela compreendeu: havia sonhado com uma gigantesca pilha alcalina, sepultada na terra e granito das terras atrás da residência de Bobbi, uma pilha elétrica maior do que o estábulo de vacas leiteiras de Frank Spruce.

Ruth ficou então sabendo que, fosse o que fosse que Bobbi e seu amigo desenterravam na floresta, certamente não seria uma gigantesca pilha Eveready de tipo C, com longa duração. Exceto que... em um sentido, ela imaginou que fosse exatamente isso. Bobbi descobrira alguma fonte monumental de energia e a mantinha sua prisioneira. Essa mesma força estava, ao mesmo tempo, galvanizando e aprisionando a cidade inteira. Uma força que estava se tomando cada vez mais potente.

Seu cérebro sussurrou Você tem que largar isso de mão. Apenas viva sua vida e deixe que o resto siga seu curso. Essa gente lhe tem dedicado estima, Ruth; é algo que não pode negar. Ouviu as vozes das pessoas em sua cabeça, como um vento erguendo folhas de outubro, não apenas movendo-as e depois as deixando cair, mas sacudindo-as para um ciclone; ouviu suas vozes mentais e, embora às vezes surjam engroladas e confusas, não acredito que possam mentir. E quando essas vozes crescentes dizem que os moradores da cidade a estimavam, que eles ainda a estimam, estão dizendo a verdade. Entretanto, se intrometer-se no que está acontecendo aqui, creio que eles matarão você, Ruth. Não o amigo de Bobbi — de certo modo, ele é imune. Não ouve as vozes. Não se “transforma”. Exceto em bêbado. Eis o que diz a voz de Bobbi: “Gard transforma-se em bêbado.” No entanto, o resto deles... se interferir em seus negócios... eles a matarão, Ruth. Suavemente. Com amor. Portanto, não se meta. Deixe que aconteça.

No entanto, se agisse assim, sua cidade seria destruída... não mudada, do jeito como seu nome tinha sido mudado vezes sem conta, não prejudicada, como a prejudicara aquele pregador de palavras macias, mas destruída. E ela seria destruída com a cidade, porque a força já se insinuara em seu âmago. Podia senti-la.

Tudo bem, então... o que vai fazer?

Por enquanto, nada. As coisas poderiam melhorar por si mesmas. Nesse meio tempo, havia algum meio dela poder ocultar seus pensamentos?

Ruth começou a experimentar com quebra-línguas, palavras de repetição difícil: A sessão cessou sem sessenta sessentões ceceosos. Pedro Pereira Petronilbo prepara parte de pratos perfeitos. Plique-Plaque emplacou o plato-cloreto placável. Com um pouco de prática, descobriu que podia manter um deles brincando constantemente no fundo do cérebro. Caminhou até o mercado, no centro da cidade, comprou um pouco de carne moída e duas espigas de milho verde para seu jantar. Conversou amavelmente com Madge Tilletts, no balcão, e com Dave Ruthledge, sentado em seu lugar costumeiro à frente do estabelecimento, empalhando uma cadeira lentamente, com suas mãos idosas, encarquilhadas e artríticas. Contudo, o velho Dave não parecia tão velho como antes. De maneira nenhuma.

Os dois olharam para ela, cautelosos, surpresos... intrigados.

Eles me ouvem... mas não muito bem. Consegui embrulhá-los! Consegui mesmo!

Não sabia a que ponto tivera êxito e não confiava muito em sua capacidade para despistar — mas funcionara. Evidentemente, eles poderiam ler seus pensamentos, caso um bom número de pessoas se unisse em rede, conjuntamente, espreitando-lhe o cérebro. Ela intuiu que isto seria possível. Entretanto, pelo menos já podia contar com algo, havia uma flecha em sua aljava anteriormente vazia.

Nessa noite, a noite de sábado, Ruth decidiu que esperaria até meio-dia de terça-feira — sessenta horas, aproximadamente. Se a situação continuasse a deteriorar-se, iria até a sede da polícia estadual, em Derry, procuraria algum dos velhos amigos de seu marido — Monstro Dugan, por exemplo — e contaria o que vinha acontecendo a mais ou menos sessenta e cinco quilômetros de lá, descendo pela Rota 9.

Talvez não fosse o melhor dos planos, mas assim seria feito. Ruth McCausland adormeceu.

E sonhou com pilhas elétricas na terra.

 

RUTH McCAUSLAND, CONCLUSÃO

O desaparecimento de David Brown tornou o plano de Ruth obsoleto. Depois que o garotinho sumiu, ela se viu incapaz de deixar a cidade, porque David desaparecera e todos eles sabiam... mas também sabiam que ele continuava em Haven, de certa forma.

Durante a transformação, sempre havia um período que podia ter sido descrito como “a dança da inverdade”. Para Haven, este período iniciou-se com o desaparecimento de David Brown, desenrolando-se no transcorrer da busca subseqüente.

Ruth acabara de sentar-se para ouvir o noticiário local, quando o telefone tocou. Marie Brown estava histérica, mal se fazia entender.

— Acalme-se, Marie — disse Ruth.

Pensou que fora uma boa idéia ter jantado antes do costume, pois talvez ficasse algum tempo sem outra chance de alimentar-se. A princípio, o único detalhe claro que conseguiu extrair de Marie foi de que seu filho David se metera em algum tipo de enrascada, algo que começara no espetáculo de mágica no pátio dos fundos, e que Hilly ficara histérico...

— Passe o fone para Bryant — pediu Ruth.

— Sim, mas você virá, não é? — chorou Marie. — Por favor, Ruth, antes que fique escuro. Ainda podemos encontrá-lo, sei que podemos!

— É claro que irei — respondeu Ruth. — Agora, quero falar com Bryant.

Bryant estava atordoado, mas capaz de fornecer um quadro mais claro do ocorrido. Ainda parecia loucura, mas afinal, seria isto novidade em Haven, nos últimos tempos? Depois do espetáculo de mágica, as pessoas presentes tinham ido para dentro da casa, deixando Hilly e David para arrumarem o pátio. Agora, David desaparecera. Hilly tinha desmaiado e não recordava em absoluto o que acontecera aquela tarde. Tudo de que tinha certeza era de que quando visse David, precisaria dar para ele todos os G.I. Joes que lhe pertenciam. Só que não sabia por que motivo.

— É melhor vir o mais depressa que puder — pediu Bryant.

Quando saiu, ela fez uma pausa a caminho de seu Dart e contemplou a rua principal de Haven Village com verdadeiro ódio. O que você fez agora? pensou. Maldita seja, o que foi que fez agora?

 

Restando apenas duas horas da boa claridade diurna, Ruth não perdeu tempo. No pátio dos fundos da casa dos Brown, ela reuniu Bryant, Ev Hillman, John Golden, que morava pouco abaixo junto à estrada, e Henry Applegate, pai de Barney. Marie queria juntar-se ao grupo de busca, porém Ruth insistiu para que ficasse com Hilly. Em seu atual estado de ânimo, Marie seria mais um estorvo do que ajuda. Eles já haviam feito uma busca, é claro, mas de maneira atordoada e meio tola. Eventualmente, quando os pais do menino convenceram-se de que ele devia ter perambulado através da estrada e penetrado na floresta, em realidade haviam interrompido a busca, embora continuassem a mover-se estonteadamente por ali.

Ruth extraiu alguma coisa do que eles contaram; um pouco mais da maneira curiosamente perturbada e curiosamente amedrontada em que se mostravam; a maioria, de suas mentes.

Suas duas mentes: a humana e a alienígena. Sempre surgia um ponto em que a “transformação” podia degenerar em loucura — a loucura da esquizofrenia, enquanto as mentes em mira tentavam combater a mente grupal alienígena que as fundia... e depois as eclipsava. Este era o momento da verdadeira aceitação. Assim, era o momento da dança da inverdade.

Mabel Noyes poderia ter desencadeado isto, porém não era estimada o suficiente para fazer as pessoas dançarem. Ao contrário dos Hillman e dos Brown. Estas duas famílias remontavam à história da Haven primordial, eram estimadas e respeitadas.

E, naturalmente, David Brown não passava de um garotinho.

A rede de mentes humanas, sua “mente-Ruth”, caso assim se pudesse chamar, pensava: Ele poderia ter vagado por entre a relva alta do terreno atrás da casa dos Brown e pegado no sono. Isto é mais provável do que a idéia de Marie, sobre ele ter-se internado na floresta — David teria que ter atravessado a estrada para isso, mas era um menino bem comportado. Marie e Bryant confirmaram isso. Mais importante: os outros também. Repetiram-lhe vezes sem conta que nunca poderia cruzar a estrada sem estar com um adulto, de maneira que a floresta não me parece o lugar provável.

— Vamos cobrir o gramado e o terreno dos fundos, seção por seção — disse Ruth. — E não vamos apenas caminhar a esmo; nós vamos olhar.

— E se não o encontrarmos? — perguntou Bryant, com ar assustado e suplicante. — Se não o encontrarmos, Ruth?

Ela não precisava dizer realmente a ele; bastava pensar e seus pensamentos seriam captados. Se não encontrassem David bem depressa, Ruth começaria a dar telefonemas. Haveria um grupo de busca muito maior — homens com luzes e trompas, movimentando-se por entre a floresta. Se David não fosse encontrado até a manhã, ela ligaria para Orval Davidson, em Unity e lhe pediria para trazer seus sabujos. Era um procedimento familiar à maioria deles. Todos ali sabiam sobre grupos de busca e grande parte já integrara algum deles antes; eram muito comuns na temporada de caça, quando as florestas se enchiam de visitantes de fora do estado, levando armas de grosso calibre e usando suas novas roupas de flanela laranja, adquiridas em L.L. Bean’s. Em geral, os perdidos eram encontrados vivos, sofrendo apenas de uma branda exposição ao tempo e profundo constrangimento.

Às vezes, no entanto, eram encontrados mortos.

Em outras, jamais chegavam a ser encontrados.

Eles não encontrariam David Brown e sabiam disso, muito antes de iniciada a busca. Suas mentes haviam entrado em cadeia, assim que Ruth chegou. Este fora um ato instintivo, tão involuntário quanto um piscar de olhos. Eles uniram as mentes e procuraram por David. Suas vozes mentais entraram em um coro tão forte, que se David houvesse estado em um raio de cento e dez quilômetros, levaria as mãos à cabeça e gritaria de dor. O garotinho teria ouvido e saberia que o procuravam, mesmo estando a cinco vezes essa distância.

Não, David Brown não se havia perdido. Ele apenas estava... não-ali.

Entretanto, como era a mente-Tommyknocker que sabia disto, e porque eles continuavam a considerar-se “seres humanos”, iniciaram a dança da inverdade.

A transformação exigia muitas mentiras.

E esta, aquela que contavam a si mesmos, aquela insistindo em que continuavam sendo os mesmos de antes, era a mentira mais importante de todas.

Eles sabiam disto também. Inclusive Ruth McCausland.

 

Por volta de oito e meia com o crepúsculo tão denso que não se diferenciava muito da noite, os cinco buscadores tinham aumentado para doze. As notícias viajavam rapidamente — um tanto rapidamente demais, para ser normal. Eles vasculharam todos os pátios e campos ao lado da residência dos Brown, começando pelo palco de Hilly (a própria Ruth engatinhara para baixo dele com uma potente lanterna elétrica, pensando que se David estivesse em algum lugar próximo, devia ser ali, profundamente adormecido — porém encontrou apenas relva amassada e um singular odor elétrico que a fez franzir o nariz) e dali expandindo a busca em forma de leque.

— Acredita que ele esteja na floresta, Ruth? — perguntou Casey Tremam.

— Só pode estar lá — respondeu ela, cansadamente.

Sua cabeça voltara a doer. David tanto estava

(não-ali)

na floresta, quanto o Presidente dos Estados Unidos. Dava tudo no mesmo, não fazia diferença...

No fundo de sua mente, frases quebra-língua perseguiam-se tão incansavelmente, como esquilos correndo sobre rodas aramadas de exercício.

O crepúsculo, contudo, não era tão espesso que a impedisse de ver Bryant Brown levar uma das mãos ao rosto e virar-se contra os outros. Houve um momento de constrangido silêncio, que Ruth finalmente rompeu.

— Precisamos de mais homens.

— Tiras estaduais, Ruth? — perguntou Casey.

Viu que todas aquelas pessoas a fitavam, os rostos imóveis e sérios.

(não Ruth não)

(estranhos não nada de estranhos nós cuidaremos)

(cuidaremos deste caso não precisamos de estranhos enquanto)

(enquanto nos desfazemos de nossas peles velhas trocadas por peles novas enquanto)

(nos “transformamos”)

(se ele estiver na floresta nós o ouviremos chamar)

(chamar com sua mente)

(nada de estranhos Ruth shhhh shhhh por sua vida Ruth nós)

(nós a estimamos mas nada de estranhos aqui)

Estas vozes cresciam em sua mente, cresciam na escuridão úmida e quieta; ela olhou e viu apenas formas escuras e rostos brancos, formas e rostos que, por um momento, mal pareciam humanos. Quantos de vocês ainda têm seus dentes? pensou Ruth McCausland, histericamente.

Abriu a boca, achando que ia gritar, mas sua voz soou — pelo menos aos seus ouvidos — normal e natural. Em sua mente, as frases quebra-língua

(o coreógrafo no garfo grava o autógrafo apócrifo brinda a dinda de Belinda uma gringa grande)

surgiam mais depressa do que nunca.

— Penso que, por enquanto, ainda não vamos precisar deles, Casey. O que acha?

Casey olhou para ela, um tanto intrigado.

— Bem, eu acho que compete a você, Ruth.

— Ótimo — disse ela. — Henry... John... os outros também! Façam algumas ligações. Quero cinqüenta homens e mulheres conhecedores da floresta, aqui, antes de prosseguirmos. Todos que forem à casa dos Brown deverão ter uma lanterna, porque do contrário nem se aproximarão das matas. Estamos com um garotinho perdido; não queremos ter de procurar também nenhum homem ou mulher crescidos.

Enquanto falava, a autoridade ganhou altura em sua voz, o medo tremente diminuiu. Eles a fitaram respeitosamente.

— Vou ligar para Adley McKeen e Dick Allison. Bryant, volte para casa e diga a Marie para fazer bastante café. Esta vai ser uma longa noite!

Todos começaram a mover-se em direções diferentes. Os homens que iam dar telefonemas, encaminharam-se para a casa de Henry Applegate. A residência dos Brown era mais próxima, porém a situação piorara e ninguém desejava ir até lá nesse momento. Não, enquanto Bryant contava à esposa que Ruth Mccausland decidira que seu filho de quatro anos de idade provavelmente estava perdido

(não-ali)

na grande floresta, afinal.

Ruth se sentia dominada pelo cansaço. Gostaria de crer que apenas estava ficando louca; se pudesse acreditar nisso, tudo seria mais fácil.

— Ruth?

Ela ergueu os olhos. Ev Hillman estava parado perto dela, os cabelos ralos e brancos esvoaçando em torno do crânio. Tinha uma expressão perturbada e amedrontada.

— Hilly “embarcou” de novo. Está de olhos abertos, mas...

O velho deu de ombros.

— Eu sinto muito — disse Ruth.

— Vou levá-lo para Derry. Bryant e Marie preferem ficar aqui, naturalmente.

— Por que não o leva ao Dr. Warwick, antes disso?

— Não. Acho que Derry é uma idéia melhor.

Ev olhou fixamente para Ruth, sem piscar. Seus olhos eram os de um velho, orlados de vermelho, cheios de reuma, o azul tão desbotado, que se tornara quase incolor. Olhos aguados, porém não estúpidos. E, de repente, com uma onda de excitamento que quase lhe arrancou a cabeça do pescoço, Ruth percebeu que mal conseguia lê-lo! Como o amigo de Bobbi, Ev estava imune ao que quer que estivesse acontecendo ali, em Haven. A mudança se desenrolava à volta dele, ele sabia a respeito — alguma coisa — mas não fazia parte do quadro.

Ruth sentiu um excitamento que foi seguido por amarga inveja.

— Acho que ele ficará melhor fora da cidade. Não é, Ruthie?

— Sim — disse ela lentamente. Pensou naquelas vozes crescentes; pela última vez, pensou em como David podia estar não ali, mas então rejeitou para sempre tão lunática idéia. É claro que ele estava. Eles não eram humanos? Sem dúvida. Eram. Só que... — Bem, acho que ficará — acrescentou.

— Você poderia vir conosco, Ruthie.

Ela o fitou demoradamente.

— Hilly fez alguma coisa, Ev? Consigo ver o nome dele em sua cabeça, porém nada mais — apenas isso. Piscando como um anúncio de neon.

Ev Hillman olhou para ela, aparentemente não surpreso pela tácita admissão de que aquela mulher — a sensata Ruth McCausland — estaria lendo ou acreditando que lia sua mente.

— É possível. Ele age como se tivesse feito. Esse... esse meio aturdimento em que... se é mesmo aturdimento... poderia ser motivado por algo que fez e agora lamenta. Em caso afirmativo, ele não teve culpa, Ruthie. Seja o que for que esteja acontecendo aqui, em Haven... bem, foi isso que realmente fez algo.

Uma porta telada bateu. Ruth olhou na direção da casa dos Applegate e viu vários homens retornando. Ev espiou em torno, depois tornou a fixar-se em Ruth.

—Venha conosco, Ruth!

— E abandonar a minha cidade? Ev, eu não posso!

— Tudo bem. E se Hilly recordar alguma coisa...

— Entre em contato comigo — disse ela.

— Se eu conseguir — murmurou Ev. — Eles podem dificultar as coisas, Ruthie.

— Sim — concordou ela. — Sei que podem.

— Eles estão vindo para cá, Ruth — anunciou Henry Applegate, e fitou Ev Hillman com expressão fria e avaliadora. — Um punhado de boa gente.

— Ótimo — respondeu Ruth

Ev encarou Applegate fixamente por um momento e depois afastou-se. Mais ou menos uma hora depois, enquanto Ruth organizava as buscas e preparava os batedores do terreno para a procura inicial, avistou o velho Valiant de Ev descer em marcha a ré a entrada de carros dos Brown e tomar a direção de Bangor. Uma pequena forma escura — Hilly — seguia no assento do passageiro, parecendo um manequim de loja de departamentos.

Boa sorte para os dois, pensou Ruth. Ela desejou — doloridamente! — também estar a caminho, fugindo daquele febricitante pesadelo.

Quando o carro do velho desapareceu no alto da primeira colina, Ruth olhou em torno e viu uns vinte e cinco homens e meia dúzia de mulheres, alguns em seu lado da estrada, outros na margem oposta. Estavam todos imóveis, apenas

(amando-a)

fitando-a. De novo, ela pensou que as formas deles mudavam, contorciam-se, tornavam-se inumanas; aquela gente estava transformando-se, claro, estavam todos transformando-se em algo que Ruth nem ousava imaginar o que fosse... e ela também.

— O que fazem aí parados? — gritou, em voz demasiado estridente. —Vamos! Temos que encontrar David Brown!

 

Não o encontraram naquela noite e nem na segunda-feira, que foi um dia calorento e sufocante. Bobbi Anderson e seu amigo tomaram parte na busca; o rugido das máquinas de escavação, nos fundos da propriedade do velho Garrick, havia cessado por algum tempo. Gardener, o amigo, parecia pálido, abatido e de ressaca. Ruth tinha dúvidas de que ele pudesse agüentar-se durante o dia, quando o viu pela primeira vez. Se o notasse dando sinais de fraquejar em seu posto, durante a busca, deixando uma vaga que talvez fizesse os outros esquecerem o menino perdido, ela o enviaria de volta à casa de Bobbi, sem pensar duas vezes... porém ele agüentou, com ressaca ou não.

A esta altura, ela própria já sofrera um pequeno colapso, trabalhando sob a dupla tensão de tentar encontrar David e resistir às furtivas modificações em sua mente.

Conseguira tirar duas horas de sono inquieto, antes do amanhecer da segunda-feira, para depois retornar, bebendo xícara após xícara de café e consumindo um número de cigarros cada vez maior. Em sua mente, não bailava a idéia de trazer ajuda de fora da cidade. Se fizesse isso, os estranhos logo perceberiam — dentro de horas, pensou ela — que Haven trocara seu nome para Fantasmal. O estilo de vida em Haven — por assim dizer — mais do que o menino desaparecido, rapidamente se tornaria a fonte da atenção de forasteiros. E então, David estaria perdido para sempre.

O calor prosseguiu, até bem depois do pôr-do-sol. Havia trovoadas distantes, mas nenhuma brisa, nenhuma chuva. Relâmpagos provocados pelo calorão sufocante riscavam o céu de quando em quando. Entre os arbustos, moitas de pequeno porte e matagal rasteiro, os mosquitos enxameavam e zumbiam. Galhos estalavam. Homens praguejavam, quando levavam tombos em lugares molhados ou tropeçavam em troncos caídos. Fachos de lanternas ziquezagueavam a esmo. Havia um senso de urgência, mas não de cooperação; de fato, houve várias brigas a socos, antes da meia-noite de segunda-feira. A comunicação mental não produziria um senso de paz e harmonia em Haven; na verdade, parecia ter acontecido justamente o contrário. Ruth procurou manter aquelas pessoas em movimento, o melhor que pôde.

Então, pouco depois da meia-noite — já madrugada de quarta-feira — o mundo simplesmente desapareceu para ela. Foi tudo muito rápido, como um grande peixe que parece indolente, até rabear vigorosamente e desaparecer. Viu a lanterna cair-lhe dos dedos. Era como ver algo acontecendo em um filme. Sentiu o suor quente em suas faces e testa passar de repente para gelado. A terrível, cada vez mais forte dor de cabeça que sentira o dia inteiro, interrompeu-se com um dique súbito e indolor. Ela ouviu isto, como se, no centro de seu cérebro, alguém houvesse ligado uma matraca. Por um momento, pôde realmente ver serpentinas de papel crepom, vivamente coloridas, desfilando através dos retorcidos canais cinzentos de seu cérebro. Então, seus joelhos se dobraram. Ruth caiu para diante, sobre um emaranhado de vegetação. Chegou a ver espinhos, à luz movente da lanterna caindo, espinhos compridos e de aparência ameaçadora, porém as folhas do mato rasteiro pareceram tão confortáveis como travesseiros de penas de ganso.

Tentou gritar por alguém, mas não conseguiu. Mesmo assim, eles a ouviram.

Pés aproximaram-se. Fachos de lanterna entrecruzavam-se. Alguém

(Jud Tarkington)

colidiu com mais alguém

(Hank Buck)

e entre eles eclodiu uma expressão momentânea de ódio,

(fique fora do meu caminho, seu pé mole)

(dou-lhe uma porretada com esta lanterna juro por Deus que dou)

depois do que os pensamentos concentraram-se nela, com real e indiscutível

(todos nós a amamos Ruth)

doçura — mas, oh, era uma doçura pegajosa, que a deixou aterrada. Mãos a tocavam, faziam-na virar-se e

(todos nós a amamos e a ajudaremos a “transformar-se”)

a erguiam suavemente.

(Eu também amo vocês... mas agora, por favor encontrem o menino. Concentrem-se nisso, concentrem-se em David Brown. Não briguem nem discutam!)

(nós todos a amamos Ruth...)

Ela reparou que alguns deles choravam, da mesma forma como notou (mesmo não querendo) que outros resmungavam, erguendo os lábios e tornando a deixá-los cair, depois erguendo-os novamente, como cães prestes a engalfinhar-se.

 

Ad McKeen a levou para casa e Hazel McCready a botou na cama. Ruth mergulhou em sonhos loucos e confusos. Quando acordou na manhã da quarta-feira, conseguia recordar apenas um deles: a imagem de David Brown, ofegando nos últimos estertores de vida, em um abismo quase sem ventilação — estava jazendo sobre um solo de terra nega, abaixo de um céu negro e pontilhado de estrelas luzentes, o chão era duro, incrustado e achado. Ela viu sangue jorrando das membranas da boca e nariz do menino, viu seus olhos se esbugalharem, e foi então que acordou, para sentar-se na cama, arquejante.

Ligou para a sede da municipalidade. Hazel atendeu. Informou a ela que praticamente todos os homens e mulheres capazes da cidade estavam na floresta, procurando David Brown. Entretanto se não o encontrassem até o dia seguinte... Hazel não terminou a frase.

Ruth se juntou à busca, que agora acontecia a quinze quilômetros, em pleno seio da floresta, às dez horas da manhã de quarta-feira.

Newt Berringer deu uma olhada para ela, e disse:

— Você compreendeu

(não adianta tirar o corpo fora, Ruth)

e sabe disso — completou em voz alta.

— Eu cuido da minha vida, Newt — disse ela, com uma rudeza desacostumada. — Agora, deixe-me em paz para resolver meus problemas.

Permaneceu com eles por toda aquela tarde longa e asfixiante, gritando pelo nome do menino perdido, até ficar enrouquecida demais para falar. Quando o crepúsculo começou a baixar novamente, deixou que Beach Jernigan lhe desse uma carona de volta à cidade. Havia qualquer coisa debaixo de um oleado, no piso da carroceria da camionete de Beach. Ela não imaginava o que fosse e tampouco queria saber. Desejava ansiosamente continuar na floresta, porém sua força declinava, Fazendo-a recear que, se tornasse a desmaiar, eles não a deixariam voltar. Em casa, obrigar-se-ia a comer um pouco e depois dormida umas seis horas seguidas.

Preparou um sanduíche de presunto e coou o café de que necessitava para um copo de leite. Subiu até a sala de aula, sentou-se e colocou a pequena refeição sobre sua secretária. Ficou olhando para as bonecas. Elas lhe devolveram o olhar, com seus olhinhos vidrados.

Chega de risos e brincadeiras, pensou. Começou a reunião quaker. Se vocês mostrarem os dentes ou a língua...

Ruth começou a devanear.

Pestanejou — não para despertar, precisamente, mas voltando à realidade — algum tempo depois e consultou seu relógio. Arregalou os olhos. Havia trazido sua leve refeição para cima, quando eram oito e meia. Estava tudo ainda ali, ao alcance, porém agora eram onze e quinze da noite.

E...

algumas bonecas se tinham movido de seus lugares.

O garoto alemão, vestindo shorts e lederbosen alpinos, estava reclinado contra a boneca-dama de Effanbee, em vez de sentado entre a boneca japonesa, em seu quimono, e a indiana, em seu sári. Ruth levantou-se com o coração batendo depressa e com força. A boneca índia hopi sentava-se no colo de uma boneca de vodu haitiana, feita de estopa, com olhos formados por cruzes brancas. E o salteador russo jazia no chão, fitando o teto, a cabeça torcida para um lado, como a de um cadáver na força.

Quem esteve mexendo em minhas bonecas? Quem andou por aqui?

Olhou em tomo afobadamente e, por um instante, sua mente confusa e amedrontada esperou ver Elmer Haney, o espancador de crianças, parado no espaço penumbroso da grande sala do andar de cima, onde havia sido o estúdio de Ralph, exibindo seu sorriso cínico e idiota. Eu lhe disse, mulher você não passa de uma cona intrometida.

Nada. Ninguém.

Quem esteve aqui? Quem mexeu em minhas...

Nós é que nos movemos, querida.

Uma vozinha fina, um risinho sufocado.

Ela levou a mão à boca. Seus olhos dilataram-se. Então, viu as letras vacilantes, espalhando-se e subindo diagonalmente pelo quadro-negro. Haviam sido escritas com tanta força, que o giz se quebrara várias vezes; seus pedaços desiguais jaziam na canaleta para o giz.

 

DAVID BROWN ESTÁ EM ALTAIR - 4

 

O quê? O quê? O que isso sig...

Isso significa que ele foi para muito longe, disse a boneca índia e, subitamente, uma luz verde pareceu brotar de seus poros de choupo. Enquanto olhava para ela, transida de horror, Ruth viu seu rosto de madeira se fender em um sinistro e bocejante riso. Um grilo morto caiu daquela boca, batendo no chão com um dique surdo e solitário. Foi para muito longe, muito longe, muito longe...

— Não, eu não acredito nisso! — gritou Ruth.

A cidade inteira, Ruth ... foi para muito longe... muito longe... muito longe...

Não!

Perdida... perdida...

Os olhos de papier maché da boneca de Greiner, encheram-se repentinamente daquele líquido fogo verde.

Você também está perdida, disse ela. Está tão louca quanto o resto, agora. David Brown é apenas uma desculpa para você ficar aqui...

Não...

Todas as suas bonecas, contudo, agora pareciam despertar, com aquele fogo verde se movendo de uma para outra, até sua sala de aula ficar inundada daquela luminosidade. A claridade aumentava e diminuía e, com repugnado horror, Ruth pensou que era como estar no âmago de alguma fantasmagórica esmeralda.

As bonecas a fitavam com seus olhos vitrificados e, por fim, ela compreendeu por que haviam aterrorizado Edwina Thurlow tão intensamente.

Agora, as vozes de suas bonecas subiam para um torvelinho de folhas de outono, sussurrando timidamente, chocalhando entre si mesmas, chocalhando para ela... mas estas eram também as vozes da cidade, e Ruth McCausland sabia disso.

Refletiu que talvez fossem o último resquício de lucidez da cidade... e dela própria.

Alguma coisa precisa ser feita, Ruth. Era a voz da boneca de biscuit, com fogo gotejando-se da boca; era a voz de Beach Jernigan.

Você precisa avisar alguém. Era a poupeé francesa, com seu corpo emborrachado de guta-percha; era a voz de Hazel Mccready.

Só que eles jamais permitirão que você vá agora, Ruth. Era a boneca Nixon, com os dedos recheados erguidos em Vs duplos, falando na voz de John Enders, quando no curso primário. Eles permitiriam, mas isso seria errado.

Eles a amam, Ruth, mas se você tentar ir embora agora, serão capazes de matá-la. Sabe disso, não sabe? Sua boneca Kewpie, de 1910, com a cabeça de borracha semelhante a uma lágrima invertida: esta voz era a de Justin Hurd.

Tem que enviar um sinal.

Um sinal, Ruth, isso, e você sabe como...

Use-nos, podemos mostrar-lhe como, nós sabemos...

Ela deu um trôpego passo para trás, as mãos subindo para os ouvidos, como se pudesse expulsar as vozes dessa maneira. Sua boca contorceu-se. Estava aterrorizada, e o que mais a amedrontava era como fora capaz de enganar-se com aquelas vozes, aceitando suas contorcidas verdades como lucidez. Toda a loucura concentrada de Haven agora estava ali, nesse exato momento.

Dê um sinal, use-nos, podemos mostrar-lhe como, nós sabemos, e você QUER saber, a sede da municipalidade, Ruth, a torre do relógio...

As vozes rogaçantes uniram-se em coro: A sede da municipalidade, Ruth! Sim! Sim, é isso mesmo! A sede da municipalidade! A sede da municipalidade! Sim!

— Parem! gritou ela. — Parem com isso, parem com isso, oh, por favor não pretendem...

E então, pela primeira vez desde os onze anos, quando tinha vencido a Corrida da Milha para Meninas e desmaiado em seguida, no Piquenique de Verão da igreja metodista, Ruth McCausland perdeu inteiramente os sentidos.

 

Em algum momento do começo da noite, ela recuperou uma vaga noção de consciência e desceu tropegamente a escada, a caminho de seu quarto, sem olhar para trás. Na verdade, tinha medo de olhar para trás. Tinha uma remota sensação de que sua cabeça latejava, como havia acontecido nas poucas ocasiões em que bebera demais e despertara com ressaca. Também tinha consciência de que a velha casa vitoriana oscilava e estalava, como uma antiga escuna em meio ao mau tempo. Enquanto ela jazera sem sentidos no piso da sala de aula, terríveis tempestades com trovões assolaram as partes central e leste do Maine. Um frio do meio-oeste finalmente abrira caminho até a Nova Inglaterra, fazendo desaparecer o poço imóvel de calor e umidade que cobrira a área, durante a última semana e meia. A mudança do tempo se fizera acompanhar de terríveis tempestades em algumas regiões e Haven fora poupada das piores, porém a energia elétrica ficara interrompida novamente e assim permaneceria por vários dias, desta vez.

A interrupção no fornecimento de eletricidade, contudo, não era a coisa importante; Haven agora possuía suas fontes únicas de energia. A coisa importante era que, simplesmente, o tempo havia mudado. E quando isso aconteceu, Ruth não foi um exemplo isolado de, na cidade, acordar com uma terrível dor de cabeça semelhante à produzida pela ressaca.

Em Haven, do mais velho ao mais novo, todos acordaram sentindo-se da mesma forma, enquanto os ventos fortes sopravam o ar estagnado para leste, lançando-o sobre o oceano, fragmentando-o em farrapos inofensivos.

 

Ruth dormiu até uma hora da tarde na quarta-feira. Levantou-se ainda com um remanescente da dor de cabeça, mas dois Anacin resolveram o caso. As cinco da tarde sentia-se melhor do que já se sentira, em muito tempo. Seu corpo doía e os músculos estavam entorpecidos, porém eram questões secundárias, comparadas às coisas que a tinham perturbado desde o começo de julho, de maneira que não tolhiam em nada seu senso de bem-estar. Mesmo o receio pela sorte de David Brown era incapaz de estragá-lo inteiramente.

Na Rua Principal, todos por quem passava mostravam uma peculiar expressão de aturdimento, como se houvessem acabado de despertar do feitiço lançado por alguma bruxa de conto de fadas.

Ruth foi para seu gabinete na sede da municipalidade, saboreando a maneira como o vento lhe erguia os cabelos nas têmporas, a maneira como as nuvens se moviam através de um céu de profundo e límpido azul: um céu que quase parecia outonal. Avistou dois meninos empinando um papagaio em forma de caixa, no grande campo nos fundos da escola primária e, de fato, chegou a rir abertamente.

Mais tarde, entretanto, não houve risos, quando se dirigiu ao pequeno grupo que rapidamente reunira — três membros do conselho municipal, o administrador da cidade e, naturalmente, Bryant e Marie Brown. Começou desculpando-se por não ter convocado a polícia estadual e superintendentes até então e por tampouco haver comunicado o desaparecimento do menino. Disse ter acreditado que encontrariam David dentro em pouco, provavelmente na primeira noite, o mais tardar no dia seguinte. Sabia que isto não era justificativa, sendo responsabilidade sua a ocorrência de tais fatos. Afirmou ter sido o pior erro que já cometera em seus anos como chefe de polícia de Haven e que, se David Brown tivesse ficado prejudicado de algum modo por isso... ela jamais se perdoaria.

Bryant apenas assentiu, aturdido, alheado, com ar doentio. Marie, contudo, estendeu o braço sobre a mesa e tomou-lhe a mão.

Não deve sentir-se culpada — disse suavemente. — Houve outras circunstâncias. Todos sabemos disso.

Os outros assentiram.

Não consigo mais ouvir suas mentes, percebeu Ruth de súbito, e sua mente respondeu: E já chegou a ouvi-las Ruth? De fato? Ou tudo foi apenas uma alucinação, resultante de sua preocupação com David Brown?

Sim, sim, talvez tenha sido.

Seria mais fácil acreditar em alucinação, porém a verdade não era esta. E, compreendendo isto, Ruth percebeu algo mais: ainda podia ouvi-las. Era como ouvir um longínquo rugido em uma grande concha, aquele som que as crianças acreditavam ser do mar. Não fazia idéia de quais eram os pensamentos deles, porém continuava a ouvi-los. E eles, conseguiriam ouvi-la também?

VOCÊ AINDA ESTÁ LÁ? gritou mentalmente, o mais alto que pôde.

Marie levou a mão à têmpora, como se houvesse sentido uma súbita pontada de dor. Newt Berringer franziu profundamente o cenho. Hazel McCready, que estivera tamborilando os dedos no bloco de papel à sua frente, ergueu os olhos como se Ruth tivesse falado em voz alta.

Oh, sim, eles ainda me ouvem...

— O que quer que aconteceu, certo ou errado, agora está feito — disse ela.

— Chegou a hora — aliás, já me atrasei nisto — de entrar em contato com a policia estadual, a respeito de David. Todos aprovam esta providência minha?

Em circunstâncias normais, nunca lhe passaria pela cabeça fazer a eles semelhante pergunta. Afinal, pagavam-lhe uma insignificância de salário para responder perguntas, não para fazê-las.

A situação em Haven, no entanto, agora era diferente. Com brisa fresca e ar renovado ou não, agora as coisas em Haven estavam diferentes.

Eles a encararam, entre surpresos e algo chocados.

Agora, as vozes foram captadas por ela com clareza: Não...Ruth, não...nada de estranhos aqui... nós cuidaremos de tudo...não precisamos de estranhos na cidade, enquanto nos “transformamos” ... shhh... por sua vida, Ruth... Shhh...

Lá fora, o vento enviou uma rajada particularmente forte, estremecendo as janelas do gabinete de Ruth. Adley McKeen olhou na direção do som ... todos eles olharam. Então, Adley esboçou um ligeiro sorriso, enigmático e peculiar.

— Naturalmente, Ruth — disse ele. — Se julga ser chegado o momento de notificar os estaduais, tem que ir em frente. Confiamos em seu julgamento, não?

Os outros concordaram.

O tempo havia mudado, o vento soprava e, pela tarde de quarta-feira, a busca de David Brown havia sido passada para a policia estadual. Nessa noite, sua foto foi exibida a todo o estado durante o noticiário e indicado um número especial a ser ligado por pessoas que o tivessem visto.

 

Na sexta-feira, Ruth McCausland compreendeu que a quarta e quinta-feiras tinham constituído uma suspeita trégua, durante um processo em andamento. Ela estava sendo firmemente impelida para alguma estranha insanidade.

Uma reduzida parte de sua mente reconhecia o fato e o lamentava, porém... era incapaz de interrompê-lo, esperando apenas que as vozes das bonecas contivessem alguma verdade, assim como loucura.

Observando como se estivesse fora de si mesma, Ruth viu quando suas mãos apanharam a faca de cozinha mais amolada que possuía — a que usava para desossar peixe — na gaveta em que era guardada. Levou-a para o andar de cima, para a sala de aula.

Inundada por aquela doentia luz verde, a sala de aula cintilava com a luminosidade Tommyknocker. Era este o nome que todos na cidade agora lhe davam — e era um bom nome, não? Claro. Tão bom quanto qualquer outro. Os Tommyknockers.

Envie um sinal. É tudo quanto pode fazer agora. Eles querem livrar-se de você, Ruth. Eles a amam, porém seu amor se tornou homicida. Suponho que possa encontrar uma pervertida espécie de respeito nisso. Porque eles ainda a temem. Mesmo agora, quando está quase tão biruta quanto todos os outros, eles ainda sentem medo de você. Talvez alguém consiga ouvir o sinal, ouvi-lo... vê-lo... compreendê-lo!

 

Em seu quadro-negro, agora havia o trêmulo desenho da torre do relógio da sede da municipalidade... a obra garatujada de um aluno do primeiro grau.

Ruth não suportava trabalhar em suas bonecas na saia de aula... não, banhada por aquela terrível luz que aumentava e diminuía. Levou as bonecas, uma a uma, para o estúdio de seu marido. Lá, também de uma a uma, abriu-lhes os ventres como um cirurgião — a madame francesa, o palhaço do século dezenove, a Kewpie, todas elas. Depois, dentro de cada uma, colocou um pequeno dispositivo montado com pilhas tipo C, fios, painéis de circuito de calculadoras eletrônicas e os cilindros de papelão de seu papel sanitário. Costurou rapidamente as incisões, usando um forte fio de linha preta. Quando a fileira de bonecas nuas aumentou, sobre a secretária de seu marido, elas começaram a parecer crianças mortas, vítimas de algum espantoso envenenamento em massa, talvez, que houvessem sido despidas e violadas após a morte.

Cada incisão costurada deixava uma brecha no meio, a fim de que um dos rolos de papel sanitário se projetasse por ela, como o tubo de algum estranho telescópio. Sendo apenas de papelão, os rolos serviam, mesmo assim, para canalizar a força, quando esta fosse gerada. Ruth ignorava como sabia disto ou, antes de mais nada, como soubera montar os dispositivos... através de um conhecimento que parecia permear o ar, vibrando para fora dele. O mesmo ar dentro do qual David Brown

(está em Altair-4)

havia desaparecido.

Enquanto afundava a faca nos corpos rechonchudos e indefesos, a luz verde brotou de dentro deles.

Estou

(enviando um sinal)

assassinando os únicos filhos que já tive.

O sinal. Tinha que pensar no sinal, não em filhos.

Ruth utilizou fios elétricos comuns para prender as bonecas, unindo-as em uma cadeia. Havia desencapado os últimos oito centímetros dos fios e fizera o cobre reluzente deslizar para dentro de uma bomba M-16, que havia confiscado de Hump — o Corcunda — (assim chamado, porque tinha um ombro ligeiramente mais alto do que o outro), filho de Beach Jernigan, de — quatorze anos, cerca de uma semana antes de começar toda aquela loucura. Olhou para trás, vacilando por um momento, contemplando sua sala de aula, agora com os bancos vazios. Através da arcada, escoava-se claridade suficiente para que visse o desenho que tinha feito, mostrando a torre do relógio da sede da municipalidade. Ruth fizera o desenho durante um daqueles períodos amnésicos, que pareciam cada vez prolongar-se mais,

Os ponteiros do relógio desenhado marcavam três horas.

Ela deixou o trabalho de lado e foi para a cama. Adormeceu, porém seu sono não foi fácil nem cômodo; revirava-se, mexia-se e gemia. Mesmo adormecida, as vozes percorriam-lhe a cabeça — pensamentos de vingança premeditada, de bolos a serem assados, fantasias sexuais, preocupações sobre coisas irregulares, idéias para engenhocas e máquinas singulares, sonhos de poder. E, por sob todos eles, uma diluída e irracional lamúria, como uma torrente poluída — pensamentos

vindos da cabeça de seus concidadãos, mas não pensamentos humanos. Em seu sono de pesadelo, aquela parte de Ruth que se apegava teimosamente à sanidade, conheceu a verdade: aquelas não eram as vozes das pessoas com quem tinha convivido durante tantos anos, mas sim de estranhos. Eram as vozes dos Tommyknockers.

 

Na quinta-feira, Ruth compreendeu, por volta do meio-dia, que a mudança no tempo não resolvera coisa alguma.

A polícia estadual chegou, mas seus componentes não estabeleceram uma busca em grande escala: o relatório de Ruth, detalhado e completo como sempre, deixou claro que David Brown, de 4 anos de idade, dificilmente teria ultrapassado sua área de busca, a menos que houvesse sido raptado — uma possibilidade que eles agora deveriam considerar. Seu relatório acompanhou-se de mapas topográficos. Os mapas continham anotações em sua letra firme e cuidadosa, não deixando dúvidas de que conduzira a busca minuciosamente.

— Você foi cautelosa e minuciosa, Ruthie — disse-lhe Monstro Dugan nesse anoitecer. Ele franzira a testa a tal ponto, que cada linha assemelhava-se a uma fenda de terremoto. — Sempre foi. No entanto, eu ignorava que fosse capaz de uma façanha tipo John Wayne como esta.

— Sinto muito, Butch.

— Hum... bem... — Ele deu de ombros. — O que está feito, está feito, não?

— Sim — disse ela, e sorriu apagadamente, pois aquele fora um dos ditos prediletos de Ralph.

Butch fez uma batelada de perguntas, porém não a que ela precisava responder: Ruth, o que está andando errado em Haven? Os ventos fortes haviam purificado a atmosfera da cidade; os que moravam fora não pressentiam que algo estivesse errado.

Os ventos, no entanto, não tinham encerrado o problema. Continuava em andamento a mágica ruim. Fosse ela o que fosse, parecia prosseguir por si mesma, depois de um certo ponto. Ruth adivinhava que esse ponto já havia sido alcançado, e perguntou-se o que descobriria uma equipe médica, promovendo exames físicos em massa na cidade. Deficiência de ferro nas mulheres? Homens começando subitamente a ficar calvos? Intensificação da acuidade visual (em particular quanto à visão periférica), ao mesmo tempo que uma curiosamente alta perda de dentes? Pessoas tão inteligentes que pareciam sobrenaturais, tão em sintonia com você, que era como se estivessem — ha-ha! — lendo seu pensamento?

Na noite de quarta-feira, a própria Ruth perdera mais dois dentes. Encontrou um deles sobre o travesseiro, na manhã de quinta-feira, uma grotesca oferta de meia-idade à fada dos dentes. Não descobriu o outro em lugar algum. Imaginou que o tivesse engolido. Não que isso importasse.

 

A compulsão pra explodir a sede da municipalidade transformou-se em exasperante hera venenosa mental, ardendo em seu cérebro todo o tempo. As vozes das bonecas sussurravam sem cessar. Na quinta-feira, ela fez um esforço final para salvar-se.

Decidiu deixar a cidade — aquela não era mais a sua cidade, afinal de contas. Adivinhava que permanecer ali por tanto tempo tinha sido uma das armadilhas dos Tommyknockers, preparada para ela — e, como na armadilha de David Brown, acabara caindo nela, tão confusa como um coelho em um laço.

Pensou que seu velho Dodge não funcionaria. Eles poderiam tê-lo “ajeitado”. Funcionou.

Pensou então que não lhe seria permitido sair de Haven Village, que eles a deteriam, sorrindo como lunáticos e transmitindo seus intermináveis e farfalhantes pensamentos de todos-nós-a-amamos-Ruth.

Rodou pela Main Street abaixo e chegou à zona rural, sentada empertigada ao volante, com os nós dos dedos brancos, um sorriso esculpido no rosto, frases quebra-língua

(Pedra trepou no pedregulho pertencente ao perfeito prefeito)

voando através de sua cabeça. Sentiu o olhar sendo atraído para a torre do relógio na sede da municipalidade

(um sinal Ruth envie)

(sim a explosão a admirável)

(explosão despachará a torre até Altair-4 Ruth)

e resistiu com quanta energia encontrou. Esta compulsão para explodir a sede da municipalidade, a fim de chamar a atenção para o que acontecia ali, era algo insano. Como botar fogo na casa para assar um frango.

Ruth sentiu-se melhor, quando a torre de tijolos desapareceu de vista.

Uma vez na estrada para Derry, precisou controlar-se a fim de não acelerar o Dart ao máximo (o que, considerando a idade do carro, era uma velocidade bastante alta). Sentiu-se como um felizardo escapando da cova dos leões — alguém que conseguira escapar mais por sorte do que por bom senso. À medida que Haven foi ficando para trás e aquelas vozes regaçantes começaram a diminuir, ela passou a imaginar que alguém devia estar vindo em sua perseguição.

Olhou insistentemente pelo retrovisor, esperando ver veículos atrás do seu, querendo levá-la de volta. Eles insistiriam em que voltasse.

Eles a amavam demais, para que a deixassem ir embora. Entretanto, a estrada parecia solitária. Não viu nenhum Dick Allison ligando sirenes atrás dela, em uma das três viaturas contra incêndios que a cidade possuía. Nenhum Newt Berringer em seu grande e antigo Oldsmobile-88, verde-hortelã. Nenhum Bobby Tremam em seu Dodge Challenger amarelo.

Ao aproximar-se da linha demarcatória Haven-Albion, Ruth aumentou a velocidade do Dart para oitenta. Quanto mais se aproximava dos limites da cidade — um ponto que começara a considerar, corretamente ou não, como aquele em que sua fuga se tornaria irrevogável, mais achava que as duas últimas semanas pareciam algum sombrio e maligno pesadelo.

Não posso voltar. Não posso!

Seu pé no acelerador do Dart começou a pisar mais fundo.

No final, alguma coisa a tinha avisado — talvez fosse algo que as vozes houvessem dito e seu subconsciente arquivara. Afinal de contas, ela estava recebendo todo tipo de informação agora, quer estivesse dormindo ou acordada. Quando avistou o demarcador indicando o limite da cidade...

 

A

L

B

I

O

N

 

...seu pé deslocou-se do acelerador do Dart para o freio. O pedal cedeu sem oferecer resistência, indo até o fundo, como vinha acontecendo mais ou menos nos últimos quatro anos. Ruth deixou o carro rodar para fora do asfalto, até o acostamento. Branca e seca como ração de ossos, a poeira levantou-se atrás dela. O vento tinha morrido. O ar de Haven estava absolutamente parado novamente. Ruth considerou que aquela poeira levantada agora, ainda ficaria pairando no ar por bastante tempo.

Permaneceu sentada, as mãos firmemente aferradas ao volante, interrogando-se por que havia parado.

Perguntando-se. Quase sabendo. Começando

(a “transformar-se”)

a saber. Ou a adivinhar.

Uma barreira? É isto que está pensando? Que eles colocaram alguma barreira? Que conseguiram transformar Haven inteira em um... um viveiro de formigas ou coisa semelhante, debaixo de um bolo? Ora, Ruth, isso é ridículo!

Então era assim, não apenas segundo a lógica e a experiência, porém segundo a evidência de seus sentidos. Enquanto permanecia atrás do volante, ouvindo o rádio (música suave de jazz, transmitida por uma emissora universitária de baixa potência em Bergenfield, Nova Jersey), um caminhão carregado de galinhas passou barulhentamente por ela, sem dúvida dirigindo-se para Derry. Segundos depois, um Chevrolet Vega surgiu em direção contrária. Nancy Voss estava ao volante. O adesivo no pára-choque traseiro dizia: FUNCIONÁRIOS DOS CORREIOS TRABALHAM COM CORRESPONDÊNCIA EXPRESSA.

Nancy Voss não olhou para Ruth, simplesmente prosseguiu em seu caminho — que, neste caso, talvez significasse Augusta.

Viu só? Nada os deteve, pensou Ruth.

Não, sussurrou sua mente de volta. Não é para eles, Ruth. Só para você. A barreira a deteria, como deteria o amigo de Bobbi Anderson e talvez um ou dois outros. Continue! Se não acredita, dirija a oitenta quilômetros aproximadamente! Nós todos a amamos e detestaríamos ver o que aconteceria a você... mas nós não — não poderíamos — impedir que isso acontecesse.

Em vez de continuar dirigindo, ela saiu do carro e caminhou até a linha de limites Haven-Albion. Sua sombra espichou-se atrás dela; o ardente sol de julho batia enviezadamente em sua cabeça. Ruth podia ouvir o rumor surdo, mas contínuo de mecanismos, vindo da floresta aos fundos da propriedade de Bobbi. Escavando novamente. Encerrada a folga para a busca de David Brown. Ela sentiu que aqueles dois estavam aproximando-se de... bem, de alguma coisa. Isto provocou-lhe um vago senso de pânico e urgência.

Aproximou-se do demarcador... passou por ele... continuou caminhando... e começou a sentir uma louca e crescente esperança. Estava fora de Haven. Estava em Albion. Em mais um momento, estaria correndo, gritando, até a casa mais próxima, ao telefone mais próximo. Ela — diminuiu o passo.

Uma expressão intrigada ganhou seu rosto... depois aprofundando-se em um começo de horrorizada certeza.

Estava ficando difícil caminhar. O ar se tomava pesado, molejado. Podia senti-lo estirando suas faces, a pele da testa; podia senti-lo achatando-lhe os seios.

Baixando a cabeça, ela continuou a caminhar, a boca repuxada em uma careta de esforço, os tendões salientando-se no pescoço. Parecia uma mulher tentando caminhar contra um vento com a potência de um vendaval, embora as árvores aos lados da estrada mal movessem as folhas. A imagem que agora aflorava em sua mente e a que surgira na mente de Gardener, quando ele tentara introduzir a mão no fundo do adaptado aquecedor de água de Roberta, eram exatamente as mesmas; diferiam apenas em grau. Ruth experimentou a sensação de que a estrada inteira havia sido bloqueada por uma meia invisível de náilon, uma meia larga o suficiente para ser usada por alguma mulher Titã. Já ouvi falar sobre meias que parecem invisíveis, pensou ela, histericamente, mas isto é de fato ridículo.

Seus seios começaram a doer, devido à pressão que sofriam. E, de repente, seus pés passaram a escorregar no chão. O pânico a invadiu. Havia alcançado e depois ultrapassado o ponto em que sua aptidão de gerar movimento para diante conseguia empurrar a elasticidade da barreira invisível. Agora, essa elasticidade atingira o máximo da resistência e a impelia para trás.

Lutou para virar-se, para sair dali por conta própria antes que continuasse sendo empurrada, mas perdia pé, era rudemente enviada de volta ao ponto de partida, os pés deslizando pelo chão, os olhos esbugalhados e chocados. Era como ser empurrada pelo lado em expansão de um enorme balão de borracha.

Por um momento, seus pés perderam inteiramente o contato com o solo. Então, ela aterrou sobre os joelhos, arranhando-os seriamente e lacerando o vestido. Levantou-se e caminhou de volta ao carro, chorando um pouco devido à dor.

Durante quase vinte minutos, ficou sentada ao volante do carro, esperando que o latejamento nos joelhos diminuísse. Carros e caminhões passavam ocasionalmente pela Estrada de Derry nas duas direções e, em dado momento, enquanto continuava ali, Ashley Ruvall passou em sua bicicleta. Estava com uma vara de pescar. Ao vê-la, ergueu a mão e acenou.

— Olá, Dona McCaussland! — cumprimentou, ciciante, depois sorrindo. Não era de surpreender que ciciasse, pensou Ruth, desanimada, levando-se em conta que os dentes do rapaz tinham desaparecido. Não apenas alguns, mas todos.

Ainda assim, sentiu uma friagem dominar-lhe todo o corpo, quando Ashley falou, sem parar de pedalar:

— Todoss nóss a amamoss, Dona McCaussland...

Após bastante tempo, Ruth fez o Dart recuar e depois efetuar uma curva em U, então voltando para o quente silêncio de Haven Village. Enquanto dirigia na Main Street, indo para sua casa, teve a impressão de que muita gente olhava para ela, com olhos cheios de um conhecimento mais sonso do que sério.

Olhando pelo retrovisor, ela viu a torre do relógio, na outra extremidade da curta rua principal da cidadezinha.

Os ponteiros aproximavam-se das três da tarde.

Ruth parou diante do Fannin’s, uma roda subindo descuidadamente na calçada. O motor afogou, mas ela não se preocupou em desligar a chave. Limitou-se a ficar sentada diante do volante, com as luzes do painel de instrumentos emitindo um clarão avermelhado, olhando pelo espelho retrovisor, enquanto devaneava, a mente longe, desligada. Quando caiu em si novamente, o relógio da torre da sede da municipalidade badalava as seis da tarde. Ela havia perdido três horas... e outro dente. As horas jamais seriam encontradas em algum lugar, porém o dente, um incisivo, jazia no colo de seu vestido.

 

Durante aquela noite inteira, as bonecas falaram com ela. Ruth refletiu que nada do que elas diziam era precisamente uma mentira... e aí estava o mais terrível de tudo. Sentada em meio à influência doentia e esverdeada das bonecas, ficou ouvindo suas lunáticas histórias de fadas.

Elas lhe disseram que tinha razão em crer que estava enlouquecendo; aliás, uma radiografia de seu cérebro ou do de qualquer outra pessoa em Haven faria o radiologista fugir correndo para lugar seguro. Seu cérebro estava mudando. Estava... “transformando-se”.

Seu cérebro, seus dentes — oh, perdão, digamos ex-dentes — estavam “transformando-se”. E quanto aos olhos... estavam mudando de cor, não estavam?

Sim. Seu tom castanho-escuro desbotava para uma tonalidade avelã... e ainda dias antes, no Haven Lunch, não pudera perceber que os vivos olhos azuis de Beach Jernigan também estavam mudando de cor? Escurecendo para uma tonalidade avelã?

Olhos cor de avelã. ... sem dentes... oh, meu Deus, o que estará acontecendo conosco?

As bonecas a fitaram vitreamente e sorriram.

Não se preocupe, Ruth, é apenas a invasão vinda do espaço, sobre o que foram feitos filmes baratos no correr dos anos. Dá para entender isto, não dá? A Invasão dos Tommyknockers. Se quiser ver os invasores do espaço que sempre estão sendo mostrados nos filmes de segunda classe e histórias de ficção científica, observe os olhos de Beach Jernigan. Ou os de Wendy. Ou os seus próprios.

— O que pretendem dizer é que estou sendo consumida — sussurrou ela na escuridão do verão, quando a noite de sexta-feira se tomou a madrugada do sábado.

Ora, Ruth! O que imaginou que seria “transformar-se”? riram as bonecas.

Misericordiosamente, a mente de Ruth tornou a desligar-se, voou para longe.

 

Quando ela acordou na manhã do sábado, o sol ia alto, o vacilante desenho infantil da torre do relógio na sede da municipalidade estava no quadro-negro da sala de aula e havia mais de duas dúzias de calculadoras sobre a superfície encapada da secretária, no estúdio de Ralph. Encontravam-se todas dentro da bolsa de lona a tiracolo, que ela usava quando saía para coletar donativos destinados à Sociedade do Câncer. Algumas das calculadoras exibiam etiquetas com nomes. BERRINGER. HAZEL MCCREADY. GABINETE DOS CONSELHEIROS MUNICIPAIS — NÃO A REMOVA. DEP. DE IMPOSTOS. Afinal de contas, ela não tinha ido dormir. Em vez disto, mergulhara em um daqueles períodos amnésicos e, enquanto isso, parecia ter surrupiado as calculadoras de todo o funcionalismo da cidade.

Por quê?

Não tem que fazer perguntas, Ruth, sussurraram as bonecas.

Ela começava a compreender, cada vez mais dia a dia, cada vez mais minuto a minuto e segundo a segundo, por que a pequena Edwina Thurlow havia ficado tão assustada.

O que lhe compete fazer é enviar um sinal... e morrer. Até que ponto essa idéia é minha? perguntou-se ela. E até que ponto é delas, impelindo-me?

Não faz diferença, Ruth. Como irá acontecer de qualquer maneira, faça a coisa o mais depressa, mais enérgico e mais cedo que puder. Não fique pensando. Deixe que tudo aconteça... porque parte de você quer que aconteça, não é mesmo?

Sim. A maior parte dela, de fato. E não para enviar algum sinal ao mundo exterior ou qualquer tolice semelhante; isso era apenas o glacê saudável de um saboroso bolo de irracionalidade.

Ruth queria ser uma parte daquilo, quando tudo subisse.

Os tubos de papelão canalizariam a força, enviando-a para o alto da torre do relógio em um rutilante rio de energia destrutiva, e a torre voaria como um foguete; a onda de choque martelaria a rua daquela ensandecida Haven, enchendo-a de destruição — e destruição era o que ela queria. Este desejo fazia parte de sua “transformação”.

 

Nessa noite, Butch Dugan ligou para ela, a fim de atualizar-se sobre o caso David Brown. Havia detalhes incomuns na seqüência desse caso. Hillman, o irmão do garotinho, estava no hospital, em uma condição que se assemelhava de perto à catatonia. O avô dele não parecia muito melhor. Começara a dizer a todos que David Brown não estava apenas perdido, ele desaparecera realmente. Em outras palavras, o truque de mágica tinha sido real. E, segundo Butch, o velho contava para quem quisesse ouvir, que metade da população de Haven estava perdendo a razão e que o restante já a tinha perdido.

— Ele foi a Bangor e conversou com um sujeito chamado Bright, no News — informou Monstro. — Eles queriam algo de interesse humano mas, em vez disso, conseguiram sandices. O velho está virando uma atração, Ruth,

— É melhor dizer a ele para não se meter nisto — disse Ruth. — Eles o deixariam entrar, mas jamais tornaria a sair.

— Como? — gritou Monstro. Sua voz ficara subitamente distante. — Esta ligação está ficando uma droga, Ruth!

— Eu disse que amanhã talvez haja alguma novidade. Ainda não perdi a esperança. — Ela friccionou as têmporas com força e olhou para as bonecas, enfileiradas sobre a secretária de Ralph e ligadas por um fio elétrico, como uma bomba de terrorista. — Procure um sinal amanhã.

— O quê?

A voz de Monstro ficou quase perdida, em meio ao crescente ruído da ligação se deteriorando.

— Adeus, Butch. Você é um grande sujeito. Aguce os ouvidos. Poderá ouvir, aí mesmo em Derry, segundo creio. Às três em ponto!

— Ruth, mal consigo ouvi-la... tornarei a ligar... breve...

Ela desligou o telefone inútil, olhou para suas bonecas, ouviu as vozes que aumentavam e esperou que chegasse a hora.

 

No Maine, aquele domingo foi um dia de verão típico para álbum de fotografias; límpido, brilhante e quente. Faltando quinze minutos para uma da tarde, Ruth McCausland vestiu um belo traje azul de verão e deixou sua casa pela última vez. Trancou a porta da frente e ficou na ponta dos pés para pendurar a chave no pequeno gancho que havia ali. Ralph argumentara que qualquer ladrão digno do nome procuraria uma chave naquele lugar, antes de mais nada, porém Ruth continuara a agir da mesma forma, e a casa jamais fora assaltada. No fundo, supunha que isto se devesse à confiança... e Haven jamais lhe falhara. Havia colocado as bonecas na velha e comprida sacola de lona que pertencera a Ralph, fechada por cordéis. Arrastou-a pelos degraus da varanda.

Bobby Tremain passava na rua nesse instante, assobiando.

— Quer que a ajude com isso, Sra. McCausland?

— Não é preciso, Bobby, obrigada.

— Tudo bem. — Ele lhe sorriu. Restavam alguns dentes em seu sorriso — não muitos, mas alguns, como as últimas ripas remanescentes no gradil em torno de uma casa assombrada. — Nós todos a amamos.

— Sim... — disse ela, puxando a sacola para o assento do passageiro. Uma pontada de dor lhe varou a cabeça. — Sei disso muito bem...

(o que está pensando Ruth para onde está indo)

(a sessão cessou sem sessenta sessentões ceceosos)

(conte para nós Ruth o que as bonecas lhe disseram para fazer)

(Plique-plaque emplacou o platocloreto placável)

(vamos Ruth é o que queremos ou você tem outras idéias)

(você não gostaria de conhecer Pedro Pereira Petronilho Pedro)

(é o que queremos, não é? não há mudanças, há?)

Ela fitou Bobby por um momento, e então sorriu. O sorriso dele vacilou ligeiramente.

(amam-me? sim... mas ainda sentem algum medo de mim, e têm razão quanto a isso)

— Pode ir, Bobby — disse ela suavemente, e ele se foi.

Bobby olhou por sobre o ombro uma vez, a perturbação visível em seu rosto jovem, misturada a desconfiança.

Ruth rodou em seu carro para a sede da municipalidade.

Reinava um silêncio dominical dentro do prédio, era uma empoeirada igreja de administração. Suas pisadas faziam ruído e ecoavam A sacola estava pesada demais para ser carregada, de maneira que ela a arrastou ao longo do piso encerado do corredor, emitindo um seco som sibilante, como se produzido por uma serpente. Ruth subiu com ela os três lances de escada, intercalando-os com paradas, as mãos em torno do cordel que fechava a boca da sacola. Sua cabeça latejava e doía. Mordeu o lábio, e dois dentes rolaram pelos lados, soltando-se das gengivas suavemente, como que apodrecidos. Ela os cuspiu fora. Sua respiração era como uma lixa na garganta. Um raio de sol empoeirado passou pelas janelas altas do terceiro pavimento.

Ruth arrastou a sacola pelo curto e explosivamente quente corredor... havia apenas duas salas ali, uma a cada lado. Era onde ficavam arquivados todos os registros da cidade. Se a sede da municipalidade era o cérebro de Haven, ali, naquele sótão em que o ar era parado e sufocante, ficava guardada a papelada documental de sua memória, recuando aos tempos em que a cidade tinha sido Ilium, Montgomery, Coodersville, Plantação Montville.

As vozes sussurravam e farfalhavam à volta dela.

Por um momento, espiou para fora pela última janela, contemplou a breve extensão de Main Street, a rua principal de Haven. Havia talvez uns quinze carros parados diante do supermercado Cooders, que aos domingos ficava aberto de meio-dia às seis da tarde — com isto fazendo um grande negócio. As pessoas entravam no Haven Lunch para um café. Alguns carros passavam para cá e para lá.

Parece tão normal ... tudo parece tão infernalrnente normal!

Sentiu um repentino momento de dúvida... e então Moose Richardson olhou para cima e acenou, como se pudesse vê-la lá no alto, espiando para a rua pela suja janela daquele terceiro andar.

Aliás, Moose não foi o único. Muitos deles olhavam para ela.

Ruth recuou alguns passos, virou-se e apanhou a viga de batente que ficava no canto oposto, onde terminava o corredor. Usou a viga para enganchá-la em um anel no centro do teto e puxar para baixo a escada dobrável. Feito isto, deixou a viga a um lado e inclinou-se para trás, a fim de espiar o interior elevado da torre. Podia ouvir o chocalhar mecânico e o zumbido das engrenagens do relógio. Abaixo destes sons, captava o leve rogaçar de morcegos adormecidos. Havia um bocado deles no alto da torre. A cidade devia ter-se livrado deles anos atrás, porém a fumigação tinha um cheiro desagradável... e era demasiado cara. Quando o mecanismo do relógio tornasse a enguiçar, os morcegos teriam que ser despejados de lá, antes que o montassem de novo. Isto, certamente, aconteceria dentro em breve. No que dizia respeito aos membros do conselho municipal, tudo estada bem, desde que outras pessoas ocupassem seus postos, quando o relógio badalasse meio-dia certa noite, às três da madrugada, para então parar de funcionar.

Ruth enrolou o cordel de algodão da sacola três vezes em torno do braço, antes de começar a subir lentamente os degraus da escada, arrastando a sacola entre as pernas. Ela se chocava nos degraus e subia aos arrancos, como um cadáver em um saco de lona. O cordel enterrava-se em seu braço, cada vez mais fundo, de maneira que logo sua mão ficou arroxeada e dormente. Ruth respirava em longos e dolorosos arquejos, que machucavam algo muito fundo dentro de seu peito.

Por fim, ficou envolta pelas sombras. Saiu da escada e penetrou no verdadeiro sótão da sede da municipalidade. Puxou a sacola para cima, usando as mãos alternadamente. Estava difusamente cônscia de que suas gengivas e ouvidos tinham começado a sangrar, que sua boca se enchia do gosto acre e de cobre do sangue.

Em toda a sua volta, podia sentir o fedor de cripta de tijolos velhos, evolando-se ao seco, escuro e acumulado calor do verão. À esquerda, ficava um vasto e difuso círculo; era o lado posterior do relógio, cuja face dava para a Main Street. Em uma cidade mais próspera, certamente todos os quatro lados da torre ostentariam um mostrador; a sede da municipalidade de Haven possuía um relógio de apenas uma face. O mostrador tinha quatro metros de diâmetro. Atrás dele, em penumbra ainda maior, ela podia vislumbrar rodas e engrenagens que giravam lentamente. Podia distinguir onde o martelo desceria, a fim de tanger o sino. Ali, a mossa era funda e antiga. O mecanismo do relógio fazia uma barulheira, enquanto trabalhava.

Agindo rapidamente, aos safanões — ela própria agora era também um relógio, um relógio cuja corda chegava ao fim, e seu campanário certamente estava pejado de morcegos, não? — ela desenrolou o cordel em redor do braço, de fato arrancando-o e deixando um profundo sulco espiralado na carne. Abriu a boca da sacola. Começou a tirar as bonecas, uma por uma, o mais depressa que podia. Arrumou-as em círculo, as pernas abertas, a fim de que os pés mantivessem contato à volta da circunferência inteira, as mãos da mesma forma. Na escuridão, pareciam bonecas conduzindo uma sessão espírita.

Acoplou a bomba M-16 ao centro do local em que ficava a mossa do grande sino do relógio. Quando a hora soasse e o martelo caísse...

Buuum!

Basta eu ficar sentada aqui, pensou ela. Sentada aqui, esperando que o martelo bata.

Um lânguido cansaço apossou-se dela subitamente. Ruth desligou-se da realidade, começou a devanear.

 

Caiu em si lentamente. A princípio, imaginou que devia estar na cama, em casa, com o rosto pressionado contra o travesseiro. Estava na cama e tudo isto havia sido apenas um terrível pesadelo. Exceto que seu travesseiro não era assim tão áspero, tão quente; suas cobertas não pulsavam nem respiravam.

Erguendo as mãos, tocou um corpo quente e coriáceo, de ossos cobertos por carne escassa. O morcego havia pousado pouco acima de seu seio direito, na concavidade do ombro... e ela percebeu, de repente, que o tinha chamado... que de certo modo chamara todos eles. Podia ouvir-lhes a mente rodentícia e obscena, seus pensamentos tenebrosos, instintuais e insanos. Eles pensavam apenas em sangue, insetos e travessia em cega escuridão.

— Oh, Deus, não! — gritou ela... não podendo suportar o enlouquecedor rastejar dos pensamentos encrespados e estranhos daqueles animais. — Oh, não, oh, Deus, por favor, não...!

Crispou as mãos, inconsciente do que fazia, e os ossos papiráceos das asas do morcego estalaram sob seus dedos. Ele guinchou, e Ruth sentiu uma dor brusca e alfinetante na face, quando foi mordida.

Agora, estavam todos guinchando, todos, e ela percebeu que havia dúzias deles sobre seu corpo — talvez centenas. Sobre seu outro ombro, sobre os sapatos, nos cabelos. Enquanto olhava, a barra de seu vestido começou a mover-se e contorcer-se.

— Oh, não! — tornou a gritar, agudamente, na penumbra poeirenta da torre do relógio. Havia morcegos voando por toda a sua volta. Eles guinchavam. O sussurro de suas asas era um suave trovão que ganhava volume, como o sussurro ascendente das vozes de Haven. — Oh, não! Oh, não! Oh, não!

Um morcego ficou enganchado em seus cabelos, batendo as asas e chiando.

Outro voou contra seu rosto, e o hálito que desprendeu tinha o fedor de um galinheiro abandonado.

O mundo girou e torvelinhou. De algum modo, ela conseguiu firmar-se sobre os pés. Bateu na cabeça com as mãos, mas os morcegos estavam em toda parte, envolvendo-a em uma nuvem negra, e agora não havia nenhuma diferença entre a suave explosão do adejar de suas asas e as vozes

(todos nós a amamos Ruth)

as vozes

(nós a odiamos Ruth não se intrometa não ouse intrometer-se)

as vozes de Haven.

Ela havia esquecido onde estava. Havia esquecido o alçapão da escada, que se abria em uma goela bocejante quase aos seus pés e, quando cambaleou em direção a ele, ouviu o relógio badalar — porém o som era amortecido, anormal, pois o martelo batera sobre seu detonador e —

— e nada estava acontecendo.

Virou-se, com morcegos esvoaçando em toda a sua volta, e agora seus olhos incrédulos também sangravam. Ainda assim, através de uma névoa avermelhada, viu o martelo bater outra vez, mais uma terceira... e o mundo persistia.

Falhou, pensou Ruth McCausland. Uma bomba deteriorada.

Então, caiu através do alçapão.

Os morcegos voejaram de seu corpo, o vestido voejou de seu corpo, um mocassim voou de seu pé. Ela se chocou contra a escada, virou-se a meio e aterrou sobre o lado esquerdo, com um impacto que lhe fraturou todas as costelas.

Esforçou-se para mudar de posição e, de algum modo, conseguiu virar-se. A maioria dos morcegos encontrara o caminho de volta, através do alçapão, tendo retornado para a penumbra acolhedora da torre do relógio, porém uma meia dúzia deles continuava revoluteando confusamente, abaixo do teto do corredor do terceiro andar. Aquele som de suas vozes, tão estranho e semelhante ao de insetos, tão enxameante e excitado de insanidade... Aquelas eram as vozes que ela estivera ouvindo dentro da cabeça, desde mais ou menos 4 de julho. A cidade não estava apenas enlouquecendo. Isso teria sido ruim, mas isto aqui era pior... oh, Deus, era muito, muitíssimo pior.

E tudo isso por nada! A M-16 de Hump Hernigan, afinal, não passava de uma bomba que não chegara a detonar. Ela desfaleceu e voltou a si uns quatro minutos mais tarde, com um morcego empoleirado na ponte de seu nariz, bebendo lágrimas sangrentas em sua face.

— Não, seu MERDA nojento! — gritou.

Partiu-o em dois, agoniada de repugnância. O som foi como se estivesse rasgando papel grosso. As entranhas quentes do animal gotejaram sobre o rosto dela, virado para cima e coberto de teias de aranha. Ruth não podia abrir a boca para gritar — Deixe-me morrer meu Deus, por favor! E não permita que eu fique como eles, não permita que eu me “transforme”! — porque o corpo agonizante do morcego penetraria em sua boca, e foi então que a M-16 de Hump explodiu sob o percutor com um bang molhado e sem dramaticidade. Uma luminosidade verde inundou primeiro o quadrado do alçapão... e depois o mundo inteiro. Por um breve instante, Ruth pôde ver os ossos dos morcegos, destacando-se claramente, como em uma chapa radiográfica.

Em seguida, todo o verde se tomou negro.

Eram 3:05 da tarde.

 

Em toda Haven, as pessoas estavam agachadas. Algumas tinham ido para suas adegas, com uma vaga noção de ser aquele um bom momento para apanhar vidros de conservas, outras apenas tendo uma idéia de que lá estaria mais fresco. Beach Jernigan encolhia-se atrás do balcão do Haven Lunch, com as mãos entrelaçadas na nuca. Pensava na coisa na traseira de sua camionete, na coisa debaixo do oleado.

Às três e cinco da tarde, a base da torre do relógio explodiu, lançando tijolos pulverizados para todos os lados. Um gigantesco, explosivo estrondo rolou através dos campos e lavouras; quebrou quase todas as vidraças de janelas em Haven e uma boa quantidade delas também em Troy e Albion.

Um fogo verde brotou das fendas denteadas nos tijolos, e a torre da sede da municipalidade começou a subir, um surrealista míssil de tijolos, um foguete com um relógio implantado em um lado. Ascendeu sobre um pilar de gelado fogo verde — gelado, sem dúvida, pois do contrário, as bonecas teriam sido consumidas e também o braço de Ruth McCausland... e, por falar nisto, a cidadezinha inteira.

A torre do relógio elevou-se sobre essa tocha verde, seus lados agora começando a inchar para fora — mas mesmo assim, a ilusão persistiu por um instante: um foguete de tijolos, ascendendo no céu da tarde... e através do rugido da explosão, era possível ouvir-se o relógio, badalando hora após hora. Na décima-segunda pancada — meio-dia? Meia-noite? — ele explodiu como o malfadado Challenger. Voaram tijolos por toda parte — Benton Rhodes mais tarde veria uma certa porção de estragos, porém os danos maiores foram rapidamente encobertos.

Tijolos volantes bateram contra paredes de casas, janelas de adegas e ripas de gradis. Tijolos caíram do céu como bombas. O ponteiro maior do relógio, em ferro forjado semelhante a um rendado, disparou através do ar como um bumerangue fatal, indo enterrar-se em um dos vetustos carvalhos diante da Biblioteca de Haven.

Reboco e tábuas estilhaçadas caíram na terra com estrondo.

Depois, o silêncio.

Após um momento, em toda Haven as pessoas começaram a ficar cautelosamente em pé, a olhar em torno... começaram a varrer cacos de vidro ou verificar prejuízos. A destruição se espalhara pela cidade, porém ninguém tinha sido ferido. E, em toda a cidade, somente uma pessoa chegara realmente a ver aquele foguete de tijolos subindo no ar, como o sonho grandioso de algum louco.

Essa pessoa foi Jim Gardener. Bobbi estava tirando um breve cochilo — ele a convencera a dormir um pouco. De nada adiantava trabalharem em meio ao calorão da tarde — em particular Bobbi. Ela saíra um pouco daquele terrível estado em que Gardener a encontrara, porém continuava a exigir demais de si mesma e, de repente, voltara a menstruar profusamente.

Eu me pergunto, pensou ele com morbidez, quando ela irá precisar de uma transfusão de sangue, em vez de apenas duas pílulas a mais de ferro ao dia. Não obstante, Gardener sabia que isso era improvável. Sua ex-esposa padecera de terríveis problemas menstruais, talvez porque sua mãe lhe havia ministrado a droga conhecida como DES. Desta maneira, Gardener fizera um curso rudimentar sobre uma função biológica que seu organismo jamais executaria, sabendo que a idéia do leigo sobre menstruação — um fluxo sangüíneo mensal expelido pela vagina — simplesmente não era verdadeira. A maioria do material de que consistia uma menstruação não se tratava de sangue, em absoluto, mas de tecido inútil. A menstruação era um eficiente processo para remoção de matéria imprestável, em beneficio de uma mulher capaz de gerar filhos, mas que no momento não estivesse ocupada nisto.

Não, ele duvidava que Bobbi sangrasse até a morte... provocando uma ruptura uterina. Era algo francamente improvável.

Tolices. Na situação atual, você ignora o que é provável e o que é improvável.

Tudo bem. Correto. De qualquer modo, ele sabia que as mulheres não tinham sido feitas para menstruar dia após dia e semana após semana. Afinal de contas, sangue e tecido eram a mesma coisa: a matéria da qual Bobbi Anderson fora feita. Assemelhava-se a canibalismo, porém...

Não. Nada disso. Era como se alguém houvesse girado o termostato dela até o final do mostrador, forçando-a a consumir-se. Bobbi quase entrara em colapso umas duas vezes, durante a fase de calorão da semana anterior e, embora parecesse grotesco, Gardener sabia que a busca ao garotinho Brown significara, em realidade, uma pausa de descanso para Bobbi Anderson.

No fundo, ele não acreditava que pudesse induzi-la a um cochilo. Então, por volta de quinze para as três da tarde, ela havia dito que estava um pouco cansada e que talvez tirasse uma soneca. Perguntou a Gardener se não pretendia também tirar uma hora de folga para dormir.

— É o que farei — disse ele, — mas primeiro vou sentar na varanda e ler um pouco.

E terminar esta orgiazinha de bebedeira, já que a comecei, pensou.

Entretanto, demorara o suficiente, espichando a bebida, de maneira que ainda estava lá, quando o estrondo cruzou os campos e colinas entre aquela propriedade e a cidade — uns oito quilômetros mais ou menos.

— Porra! O que...

O estrondo ganhou intensidade... e de repente ele viu, era algo extraído de um pesadelo, era puro delirium tremens, tinha que ser, que merda, tinha que ser! O que via não era nenhuma máquina de escrever telepática ou aquecedor de água vindo do espaço — aquilo era um fodido foguete de tijolos, subindo de Haven Village, não podia ser outra coisa, todos para fora da piscina, amigos e vizinhos, porque fundi a cuca!

Pouco antes do “foguete” explodir, inundando o céu de fogo verde, Gardener identificou o que era e sabia não ser nenhuma alucinação.

estava o poder de Bobbi Anderson; lá estava o que eles iriam utilizar para deter os foguetes nucleares, a corrida armamentista, a sangrenta maré da insanidade mundial, lá estava esse poder, elevando-se no céu sobre uma coluna de fogo: um dos malucos na cidade, de certo modo colocara um detonador sob a sede da municipalidade. Um rastilho de pólvora. Depois, acendera um fósforo e a torre do relógio de Haven fora apelida para o céu, como um maldito fogo de artifício.

— Minha nossa! — sussurrou ele, em voz sumida e aterrorizada.

Aí está, Gard! Contemple o futuro! Não é o que deseja? Porque a mulher envolvida nisto está ficando demente, você sabe... os indícios são demasiado claros. Quer colocar essa espécie de poder nas mãos dela? Quer?

Ela não está demente, respondeu Gardener, assustado. Não está louca em absoluto, e acha que a equação mudará, por causa do que acabou de ver? De maneira nenhuma, isso apenas a acentua. Se não formos eu e Bobbi, quem será? A Polícia de Dallas, eis a verdade. Tudo vai dar certo. Ficarei de olho nela, estarei sempre atento e...

Oh, você está se saindo muito bem nisso, seu beberrão fodido, muito bem mesmo!

Aquela coisa incrível no céu explodiu, lançando fogo verde para todos os lados. Gardener protegeu os olhos. Agora, estava em pé.

Roberta chegou à varanda correndo.

— Diabo, o que foi isso? — perguntou.

Não obstante, ela já sabia... sabia e, com fria, súbita certeza, Gardener soube que ela sabia. Então, ergueu uma barreira mental — tinha aprendido a fazer isso com pleno sucesso, nas duas últimas semanas. A barreira nada mais era do que o recitativo ao acaso de endereços antigos, trechos de seus poemas, linhas de canções... mas funcionava. Ele descobrira não ser difícil dominar a arte de provocar essa interferência para despistamento; era mais ou menos semelhante ao fio casual de pensamentos que, em geral, passa pela cabeça da maioria das pessoas (talvez houvesse mudado de idéia, se estivesse a par dos torturados esforços de Ruth McCausland para ocultar seus pensamentos — Gardener não imaginava quantos problemas lhe poupava a placa que tinha na cabeça). Vira Bobbi fitando-o de maneira curiosa e intrigada umas duas vezes e, embora desviasse os olhos ao perceber que ele a observava, Gardener sabia que ela tentava ler seus pensamentos... esforçava-se ... mas continuava olhando.

Agora, usou a barreira para encobrir sua primeira mentira a Bobbi, desde que a encontrara no dia 5 de julho, quase três semanas atrás.

— Não sei ao certo — respondeu. — Cochilei na cadeira. Ouvi uma explosão e vi um enorme clarão de luz. Parecia uma luminosidade verde. Isso é tudo.

Os olhos de Bobbi perscrutaram-lhe o rosto, e então ela assentiu.

— Bem, acho melhor darmos um pulo até a cidade e verificar.

Gardener relaxou ligeiramente. Não sabia bem por que mentira, somente achava que lhe parecera mais seguro... e Bobbi acreditara nele. Neste momento, receou perturbar aquela crença.

— Não se incomodaria de ir sozinha? Bem, se quiser companhia...

— Não, tudo bem — disse ela, quase ansiosamente.

Bobbi partiu para a cidade. Retornando à varanda, após ver o caminhão descendo a estrada, ele tropeçou em seu copo. A bebida começava a fugir do controle e era tempo de parar. Sim, porque algo realmente singular estava acontecendo ali. Valia a pena observar o que seria — e quando a pessoa fica bêbada, também fica cega.

Era uma promessa que ele havia feito antes. Por vezes, até funcionava durante algum tempo. Desta vez, não adiantou. Quando Bobbi voltou essa noite, encontrou-o bêbado e dormindo na varanda.

Não obstante, o sinal de Ruth havia sido captado. O captador tinha a mente perturbada, estava comprometido com o projeto de Bobbi, porém ficara inquieto o bastante para embriagar-se mais e mais. No entanto, o sinal tinha sido recebido e, pelo menos, parcialmente compreendido: a mentira de Gardener era uma indicação disso, afinal. Entretanto, Ruth talvez tivesse sido mais feliz com sua outra façanha.

Ouvindo vozes ou não, a dama havia morrido lúcida.

 

BEACH JERNIGAN E DICK ALLISON

Ninguém em Haven ficou mais contente com a “transformação”, do que Beach Jernigan. Se os Tommyknockers de Gardener houvessem aparecido em pessoa para Beach, carregando armas nucleares e propondo a instalação delas em cada uma das sete maiores cidades do mundo, ele imediatamente começaria a telefonar, reservando passagens aéreas. Mesmo em Haven, onde um calado fanatismo começava a tornar-se um estilo de vida, o partidarismo de Beach era extremo. Se houvesse tido qualquer idéia sobre as crescentes dúvidas de Gardener, não hesitaria em removê-lo. Permanentemente. E já, se não antes.

Havia um bom motivo para os sentimentos de Beach. Em maio — de fato, não muito depois do aniversário de Hilly Brown — ele pegou uma tosse convulsiva que não queria abandoná-lo. Era algo perturbador, porque não estava acompanhada de febre ou coriza. A coisa ficou mais preocupante, quando ele começou a tossir um pouco de sangue. Se alguém dirige um restaurante, não deseja tossir, de maneira nenhuma. Os clientes não gostam disso. É algo que os deixa nervosos. Cedo ou tarde, alguém comunica o fato ao Departamento de Saúde e talvez eles fechem o restaurante por cerca de uma semana, enquanto aguardam o resultado de um exame médico. O Haven Lunch era um negócio que não dava polpudos lucros (Beach trabalhava doze horas diárias com refeições rápidas, a fim de ficar com sessenta e cinco dólares semanais — se o imóvel não lhe pertencesse, ele passaria fome), de modo que não poderia ficar fechado uma semana inteira no verão. Ainda não estavam no verão, porém não demoraria muito. Assim, ele procurou o velho Dr. Warwick, que o enviou ao Hospital de Derry para uma radiografia do tórax. Ao recebê-la, o Dr. Warwick estudou-a por vinte segundos inteiros, e então ligou para Beach. Quando Beach chegou, o médico lhe disse:

— Tenho más notícias para você, Beach. Sente-se.

Beach sentou-se. Sua sensação foi de que se ali não houvesse uma cadeira, ele cairia no chão. Toda a energia lhe fugira das pernas. Em maio ainda não havia telepatia rotineiramente em Haven — não mais do que o tipo corriqueiro que as pessoas utilizam o tempo todo, enfim — porém Beach não precisava de nada mais, além daquela do tipo corriqueiro. Adivinhava o que o Dr. Warwick ia dizer-lhe, antes mesmo dele abrir a boca. Não seria tuberculose pulmonar, mas algo com C maiúsculo. Câncer. Câncer no pulmão.

Bem, isso fora em maio. Agora era julho e Beach estava afinado como um violino. Segundo o Dr. Warwick, era possível que estivesse de volta ao hospital mais ou menos a 15 de julho, porém Beach estava comendo como um cavalo, tinha a energia de um urso a maior parte do tempo e quase apostava que venceria Bobby Tremain em uma corrida a pé. Não voltara ao hospital para novas radiografias toráxicas. Ele não precisava de uma, para saber que a enorme mancha negra em seu pulmão esquerdo havia desaparecido.

Aliás, se quisesse uma radiografia, bastaria tirar uma tarde de folga do trabalho e ele próprio montaria um aparelho de raios X. Beach sabia como montá-lo.

Agora, no entanto, na esteira da explosão, havia outras coisas a montar, outras coisas a fazer... e rapidamente.

Combinaram reunir-se. Todos da cidade. Não que fossem ficar todos juntos, como em alguma reunião da cidade, pois isto era totalmente desnecessário. Beach continuou fritando hambúrgueres no Haven Lunch, Nancy Voss continuou separando correspondência na agência dos correios (agora que Joe estava morto, pelo menos era um lugar aonde ir, fosse ou não domingo), Bobbi Tremaine permaneceu debaixo de seu Challenger, instalando um respiradouro de retorno para refluxo, uma peça que lhe permitira rodar aproximadamente cem quilômetros com um galão de combustível. Não era ainda a pílula de gasolina de Roberta Anderson — não de todo — mas estava bem perto disso. Newt Berringer, sabendo muitíssimo bem que não havia tempo a perder, rodava ao encontro de Applegate, o mais velozmente que podia. Entretanto, pouco importando o que estivessem fazendo ou onde se encontrassem, eles estavam juntos, em uma rede de vozes silenciosas — as vozes que tanto tinham deixado Ruth amedrontada.

Menos de quarenta e cinco minutos após a explosão, havia umas setenta pessoas reunidas com Henry Applegate. Henry era dono da maior e mais bem equipada oficina mecânica da cidade, agora que o posto Shell praticamente não se ocupava mais com reparos em motores e retifica. Christina Lindley, que embora tendo apenas quinze anos tirara o segundo lugar no Décimo quarto Concurso Anual de Fotografia do Estado do Maine, no ano anterior, retornou quase duas horas mais tarde, assustada e afogueada (além de sentindo-se bastante sexy, verdade seja dita), após vir da cidade com Bobby Tremain, em velocidades que às vezes chegavam a cento e setenta. Quando Bobby fazia o Dodge dar o máximo, a visão do carro era apenas como um rastro amarelo disparando pelas estradas.

Ela havia sido incumbida de bater duas fotos da torre do relógio. Era uma trabalho delicado, pois com a torre agora reduzida a pedaços dispersos de tijolos, reboco e mecanismos de relojoaria, era como tirar a foto de uma foto.

Trabalhando depressa, Christina folheara um álbum de fotografias da cidade. Newt lhe dissera mentalmente onde encontrá-lo — no próprio gabinete de trabalho de Ruth McCausland. Ela rejeitou duas fotos, porque embora fossem bastante boas, ambas eram em preto e branco. A intenção era construir uma ilusão — uma torre de relógio para a qual as pessoas pudessem espiar... mas através da qual pudesse passar um avião, se fosse o caso.

Em outras palavras, eles pretendiam projetar no céu um gigantesco slide de lanterna mágica.

Um bom truque.

Um dia, Hilly Brown teria sentido inveja.

Quando Christine já começava a perder as esperanças, encontrou a foto que desejava: uma vista admirável da sede da municipalidade de Haven, com a torre em primeiro plano... e de um ângulo que mostrava dois lados nitidamente. Formidável! Isto forneceria a profundidade de campo de que eles precisavam. A cuidadosa anotação de Ruth, abaixo da foto, dizia que fora extraída da revista Yankee, em maio de 87.

Precisamos ir embora, Chris, havia dito Bobby, falando com ela, sem se preocupar em usar a boca. Ele deslocava impacientemente o peso do corpo de um pé para o outro, como um garotinho precisando ir ao banheiro.

Sim, tudo bem. Isto aqui vai...

Ela interrompeu-se.

Oh, disse. Essa não!

Bobby Tremain aproximou-se rapidamente. Diabo, o que há de errado?

Christina apontou para a foto.

— Oh, MERDA! — exclamou Bobby Tremain em voz alta, e Christina assentiu.

 

Por volta de sete horas daquele anoitecer, trabalhando rápida e silenciosa-mente (excetuando-se um ocasional resmungo irritado de quem imaginasse que alguém mais não agia com a rapidez suficiente), eles haviam construído um dispositivo semelhante a um enorme projetor de slides, no topo de um aspirador de pó industrial.

Eles o testaram. Um rosto de mulher, enorme e muito sério, surgiu no terreiro de Henry. As pessoas ali reunidas contemplaram o estereótipo da avó de Henry

Applegate, em silêncio e aprovadoramente. O aparelho funcionava. Agora, assim que a garota trouxesse a foto — as fotos, melhor dizendo, porque o que pretendiam criar era, claro, exatamente uma imagem estereóptica da sede da municipalidade, desta maneira podendo...

Então a voz dela, fraca, mas reforçada pela mente de Bobby Tremain, chegou até eles.

Eram más notícias.

— O que foi? — perguntou Kyle Archinbourg a Newt. — Não entendi bem.

— Porra, você é surdo? — rosnou Andy Baker. — Poxa, os moradores de três condados ouviram o estrondo, quando a cadela explodiu o teto! Por dois centavos... — Ele crispou os punhos.

— Parem com isso, vocês dois! — exclamou Hazel McCready, virando-se então para Kyle. — Aquela garota fez um trabalho danado de bom!

Ela estava projetando deliberadamente, com toda a energia que era possível, esperando alcançar Christine Lindley e, ao mesmo tempo, explicar a situação a Kyle Archinbourg... a fim de encorajar a garota. Christine havia

(pensado)

soado desanimada, quase histérica e, desta maneira, não faria bem algum a eles. Em tal estado, certamente se atrapalharia toda, e eles não podiam perder tempo com atrapalhações.

— Não é culpa dela, poder-se ver o relógio na foto.

— O que quer dizer? — perguntou Kyle.

— Ela encontrou uma foto colorida, em um ângulo que não poderia ser mais perfeito explicou Hazel. — Está absolutamente correto, se visto da igreja e do cemitério, ficando apenas um pouco distorcido, se visto da estrada. Precisaremos impedir que estranhos cheguem pelos fundos, durante uns dois dias, até Chris encontrar um ângulo com um ajuste aproximado. Enfim, uma vez que eles ficarão interessados na fornalha... e em Ruth... acho que podemos ir em frente com isso. Bloquear algumas estradas? — acrescentou ela, olhando para Newt.

— Reparos na rede de esgotos — disse ele prontamente. — Nada tão fácil...

— Ainda não entendi a natureza do problema — disse Kyle.

— Já devia ter entendido, debilóide! — exclamou Andy Baker.

Kyle avançou truculentamente para o mecânico e Newt bradou:

— Parem com isso, vocês dois! — Depois explicou a Kyle: — O problema é que Ruth explodiu a torre da sede da municipalidade às 3:05 desta tarde. Na única foto boa que Christine encontrou, pode-se ver o mostrador do relógio.

— E está marcando quinze para as dez.

— Oh! — disse Kyle. O suor deixou seu rosto repentinamente oleoso. Pegando o lenço, ele o enxugou. — Oh, merda! O que faremos agora?

— Improvisação — disse Hazel calmamente.

— Filha da puta! — exclamou Andy. — Eu a mataria, se ela já não estivesse morta!

— Todos na cidade a amavam e sabe disso muito bem, Andy — replicou Hazel.

— Sim... e espero que o demônio a esteja tostando em um comprido forçado, lá no inferno!

Andy desligou a máquina e a avó de Henry desapareceu. Hazel ficou aliviada. Havia algo de fantasmagórico, em ver aquele rosto pétreo de mulher flutuando em perfeita visão tridimensional, acima do terreiro de Henry, com as vacas — que já deviam ter sido levadas há muito para o curral — às vezes perambulando através dela, enquanto pastavam, ou desaparecendo casualmente através do grande e antiquado broche que a mulher usava na gola alta do vestido.

— Vai ficar excelente — disse Bobbi Anderson de súbito, em meio à quietude reinante.

Então, todos a ouviram — inclusive Christina Lindley, ainda na cidade — e ficaram aliviados.

 

— Leve-me para casa — disse ela para Bobby Tremain. — Depressa. Já sei o que vou fazer.

— Considere-se lá — respondeu ele, tomando-lhe o braço e puxando-a para a porta.

— Espere um momento — disse Christina.

— Quê?

— Não acha melhor eu

levar a foto? terminou ela.

Poxa vida! exclamou Bobby, dando um tapa na testa.

 

Nesse ínterim, Dick Allison, chefe dos Bombeiros Voluntários de Haven, estava sentado em seu gabinete e suando profusamente, apesar do ar-condicionado, enquanto atendia a ligações telefônicas. A primeira tinha sido do comissário de polícia de Troy, a segunda do chefe de polícia de Unity, a terceira da polícia estadual e a quarta da AP.

Ele talvez suasse de qualquer maneira, mas um dos motivos pelos quais de pouco adiantava o ar condicionado, era porque a força da explosão arrancara a porta do gabinete pelas dobradiças. A maioria do reboco despencara das paredes, revelando ripados semelhantes a costelas em deterioração. Sentado em meio aos destroços, informava a quem telefonava que sem dúvida fora um diabo de explosão e que provavelmente fizera uma vítima, mas que a coisa não havia sido, em absoluto, tão ruim quanto devia ter parecido. Enquanto soltava essa cascata para um sujeito chamado John Leandro, que telefonava em nome do Daily News de Bangor, um painel de cortiça desabou do teto e caiu em sua cabeça. Dick o jogou para um lado, com um rugido, ouviu, riu e explicou que havia sido apenas o quadro de avisos. A maldita coisa despencara mais uma vez da parede. Era do tipo com ventosas na parte traseira, você compreende, enfim, o que se compra barato nunca presta, era o que sua mãe sempre dizia e...

Allison levou mais cinco minutos falando, até finalmente ver-se livre do tal Leandro. Ao recolocar o fone no gancho, a maioria do teto do corredor caiu, com um crrrrummpp! que ergueu espessa nuvem de poeira.

— PORRA, MERDA, FILHO DA PUUUTAAA! — berrou Dick Allison.

Esmurrou o tampo da mesa com toda a força que pôde. Embora fraturasse todos os quatro dedos, nem mesmo percebeu isso, tal a fúria que o dominava. Se, nesse momento, alguém entrasse no gabinete, Allison esganaria o intruso, encheria a boca de sangue quente e depois o cuspiria de volta no rosto da pessoa morta. Gritou e praguejou, chegando a ponto de sapatear no chão como uma criança fazendo birra, ao ser-lhe negada qualquer coisa.

Ele parecia infantil.

Também parecia extremamente perigoso.

Tommyknockers, Tommyknockers, batendo à porta.

 

Entre um e outro telefonema, Dick foi ao gabinete de Hazel, encontrou um frasco de analgésicos na gaveta e tomou seis. Em seguida, enrolou apertadamente um lenço na mão que latejava e inchava, logo a esquecendo. Se ele ainda fosse humano, isto teria sido impossível; uma pessoa simplesmente não esquece quatro dedos quebrados. Contudo, desde então, já tivera tempo de “transformar-se”. E uma das coisas que acompanhavam a “transformação” era a faculdade de exercer vontade consciente sobre a dor.

Uma faculdade bastante oportuna.

No intervalo entre suas conversas com o exterior — e às vezes durante elas — Dick se comunicava com os homens e mulheres trabalhando furiosamente na propriedade de Henry Applegate. Disse a eles que esperava uns dois agentes estaduais por volta de quatro e meia da tarde, cinco horas o mais tardar. Será que então já teriam aprontado o projetor de slides? Quando Hazel explicou o problema, Allison teve outro acesso de fúria, agora misturado a medo. Quando Hazel explicou o que Christina Lindley pretendia fazer, ele se acalmou... um pouco. Christina tinha um quarto-escuro em casa. Lá, prepararia cuidadosamente um negativo da foto da revista Yankee e o ampliaria de leve, não que a ampliação tivesse de ser maior para que o dispositivo projetor de slides funcionasse (uma ampliação exagerada deixaria a torre do relógio com uma aparência singular e granulada), mas sim porque ela precisava de uma imagem ligeiramente maior, na qual trabalhar.

Christina vai obter um negativo, disse Hazel na mente dele, para depois remover os ponteiros do mostrador do relógio, apagando-os com um jato de pistola de ar comprimido. Bobby Tremain colocará os ponteiros de volta, com uma faca de contato elétrico, a fim de que marquem 3:05. Ele tem mão firme e algum talento. Neste momento, uma mão firme parece mais importante.

Pensei que quando se obtivesse um negativo de um positivo, ele saísse embaçado, disse Dick Allison. Especialmente se o positivo for colorido.

Ela aperfeiçoou seu equipamento de revelação, disse Hazel. Não precisou acrescentar que Christina Lindley, agora com dezessete anos, dispunha no momento do que talvez fosse o quarto-escuro mais moderno do mundo.

E quanto tempo vai demorar?

Ela acha que estará pronto à meia-noite, disse Hazel.

Porca miséria! bradou Dick mentalmente, com energia bastante para que as pessoas no terreiro de Henry pestanejassem.

Vamos precisar de trinta pilhas elétricas tipo D, interrompeu a voz de Bobbi Anderson calmamente. Seja bonzinho e providencie isso, Dick. Concordamos, a respeito da polícia. Despiste os caras, entendeu?

Ele fez uma pausa. Certo, disse. Uma brincadeira de gato e rato.

Exatamente. E detenha-os. Minha preocupação maior não é com eles, mas com seu rádio — será enviada apenas uma unidade, duas no máximo, imagino. Entretanto, se eles virem... se seu rádio captar...

Houve um murmúrio de assentimento, como o som do mar ouvido em uma concha marinha.

Existe alguma forma de você prejudicar as transmissões deles, daqui para fo-ra? — perguntou Bobbi.

Eu...

Andy Baker interrompeu-o subitamente, satisfeito: Tive uma idéia melhor. Faça Buck Peters mover seu traseiro gordo até o posto de gasolina, imediatamente.

Isso! Bobbi interveio então, seu pensamento tornado estridente pela excitação. Formidável! Ótimo! E quando eles deixarem a cidade, então alguém... creio que Beach...

Beach sentiu-se honrado por ser escolhido.

 

Bent Rhodes e Jingles Gabbons, da polícia estadual do Maine, chegaram em Haven às cinco e quinze da tarde. Esperavam encontrar o desinteressante e enfumaçado remanescente de uma explosão de fornalha — um velho caminhão-pipa estacionado ociosamente junto ao meio-fio, vinte ou trinta espectadores parados na calçada. Em vez disso, encontraram a torre do relógio da sede da municipalidade de Haven inteiramente destroçada, como um pistolão de artifício. Tijolos juncavam a rua, havia vidraças quebradas, bonecas desmembradas por todos os lados... e um número exagerado de pessoas cuidando da própria vida.

Dick Allison acolheu-os com estranha cordialidade, como se aquilo fosse uma ceia do Partido Republicano, em vez do que agora assemelhava-se a um desastre de real magnitude.

— Meu Deus, cara, o que aconteceu por aqui? — perguntou-lhe Bent.

— Bem, acho que foi um pouco pior do que dei a entender pelo telefone — respondeu Dick, espiando avaliadoramente a rua salpicada de tijolos e depois oferecendo aos dois policiais um sorriso de não-sou-um-mau-menino? — No momento, achei que alguém só acreditaria vendo.

— Pois eu estou vendo e não acredito — murmurou Jingles.

Ambos haviam imaginado Dick Allison como um bobalhão de cidadezinha, talvez até meio biruta. Até ai, tudo bem. Allison ficou atrás deles, vendo-os enquanto contemplavam os destroços. O sorriso desapareceu gradualmente de seu rosto e a expressão se tornou fria.

Rhodes localizou o braço humano entre todos os pequeninos membros faz-de-conta. Ao voltar-se para Dick, seu rosto estava mais branco do que antes e ele parecia consideravelmente mais jovem.

— Onde está a Sra. McCausland? — perguntou, a voz elevando-se descontroladamente e quebrando-se na última sílaba.

— Bem, tente compreender, creio que isso pode ser parte de nosso problema — começou Dick. — Veja bem...

 

Dick os deteve na cidade o máximo que lhe foi possível, sem despertar suspeitas. Faltavam quinze minutos para as oito quando os dois partiram e, a essa altura, o crepúsculo começava a adensar-se. Além disso, Dick sabia que se eles não fossem embora logo, começariam a perguntar-se por que ainda não chegara nenhuma das unidades de reforço que haviam solicitado.

Ambos haviam falado, pelo rádio da viatura, com a base em Derry, e ambos tornaram a pendurar o microfone parecendo intrigados e perturbados. As respostas que obtinham do outro lado eram corretas; a voz é que lhes parecera algo estranha. Entretanto, nenhum dos dois ficaria preocupado com uma questão de tão pouca importância, pelo menos por enquanto. Havia muitas outras coisas a resolver. A magnitude do acidente, antes de mais nada. O fato de conhecerem a vítima, em segundo lugar. E, em terceiro, tentarem compor o quadro de um caso potencialmente grande, sem cometerem nenhuma das tolices processuais que turvariam esse quadro.

Além disso, começavam a sentir os efeitos da permanência em Haven.

Eram como homens tentando aplicar sinteco no assoalho de madeira de um enorme aposento, sem qualquer tipo de ventilação; ficando dopados e nem sabendo disso. Não estavam ouvindo pensamentos — ainda era cedo demais para tanto e teriam ido embora antes que isso acontecesse — porém sentiam-se muito estranhos. Trabalhavam com lentidão, de maneira que a rotina costumeira lhes parecia uma tarefa gigantesca, exigindo uma energia anormal.

Dick Allison captou tudo isso das mentes dos dois, enquanto permanecia sentado no Haven Lunch, no outro lado da rua, tomando uma xícara de café. Sim, ambos estavam muito ocupados e demasiado confusos para raciocinarem sobre o fato de que

(Tug Ellender)

a voz de seu despachante não havia soado como dele próprio, este anoitecer. O motivo era muito simples. Não estavam falando com Tug Ellender, mas com Buck Peters; suas transmissões de rádio não iam para Derry e nem vinham de lá, elas iam para a garagem do posto Shell de Elt Barker e vinham de lá, onde Buck Peters se debruçava sobre um microfone, suando e tendo Andy Baker ao seu lado. Buch enviava novas instruções e dados pelo rádio de Andy (uma coisinha que ele havia montado em seus momentos de lazer, uma coisinha que poderia ter entrado em contato com a vida em Urano, caso lá em cima houvesse alguns sujeitos camaradas que respondessem efusivamente). Vários moradores da cidade concentravam-se com firmeza nas mentes de Bent Rhodes e Jingles Gabbons. Eles transmitiam para Buck tudo que conseguiam captar sobre Ellender, o homem de quem os tiras esperavam ter informações. Buck Peters tinha certo dom para imitador (era um grande sucesso, imitando quem quer que fosse o Presidente esse ano, mais alguns favoritos como Jimmy Cagney e John Wayne, durante o anual Palco Espetacular de Grange). Ele não era Rich Little — e jamais seria — mas quando imitava alguém, os ouvintes adivinhavam quem era. Geralmente.

Mais importante: os ouvintes conseguiam transmitir para Buck a maneira como ele deveria responder a cada transmissão, pois quase todo locutor sabe, mentalmente, que resposta espera receber de suas perguntas ou declarações. Se Bent e Jingles foram enganados pela imitação — e realmente foram, em grande parte — não se deveu tanto aos dons de Buck, mas às suas próprias expectativas, satisfeitas nas respostas de “Tug”. Andy conseguira ainda turvar a voz de Buck, sobrepondo a ela um pouco de estática — não tanta quanto eles chegariam a ouvir na volta para Derry, mas o suficiente para que a voz de “Tug” ficasse ligeiramente distorcida, sempre que a desconfiança

(Céus isto nem de longe parece a voz de Tug e imagino que deva estar resfriado)

emergia em suas mentes.

Às sete e quinze daquele anoitecer, quando Beach lhe trouxe uma nova xícara de café, Dick perguntou:

— Está preparado?

— Pode apostar.

— E tem certeza de que essa engenhoca vai funcionar?

— Ela funciona às mil maravilhas... quer ver? — sugeriu Beach, em tom quase bajulador.

— Não. Agora não há tempo. E quanto ao cervo? Tudo certo?

— Certíssimo. Bill Elderly o matou e Dave Rutledge o ajeitou.

— Boas novas. Siga em frente.

— Certo, Dick. Beach

Beach tirou o avental e o pendurou em um prego atrás do balcão. Virou — de ABERTO para FECHADO — o indicador pendurado acima da porta da entrada. Em geral, o indicador apenas ficaria pendurado lá, mas esta noite, uma vez que o vidro fora quebrado, ele se movia e agitava à brisa fraca.

Beach fez uma parada e olhou para Dick, com raiva surda e concentrada.

— Esperava-se que ela não fizesse uma coisa dessas — comentou.

Dick deu de ombros. Não importava agora; estava feito.

— Ela se foi, isso é que importa. Os garotos estão fazendo um excelente trabalho com aquela foto. E quanto a Ruth... não há mais ninguém como ela na cidade.

— Esqueceu aquele sujeito, na propriedade do velho Garrick.

— Está embriagado o tempo todo. E ele quer escavar. Vá em frente, Beach. Eles logo estarão indo embora e queremos que a coisa aconteça o mais longe da cidade como você possa fazer acontecer.

— Certo, Dick. Seja cuidadoso.

Dick sorriu.

— Todos agora teremos que ser cuidadosos. A coisa é delicada.

Ele ficou espiando Beach entrar em sua picape e sair de ré do espaço que, nos últimos doze anos, fora ocupado pelo velho Chevrolet, diante do Haven Lunch. Enquanto a picape subia a rua, com Beach dirigindo lentamente e ziguezagueando para evitar os restos de vidros quebrados espalhados no chão, Dick pôde ver a forma debaixo do oleado, no piso da carroceria e, perto da traseira, algo mais, envolto em uma folha de plástico grosso. Aquele tinha sido o maior cervo que Bill Elderly conseguira matar, em tempo tão limitado. E, durante julho, caçar cervos era decididamente contra a lei, no Estado do Maine.

Quando Beach desapareceu de vista (com os adesivos no pára-choques traseiro dizendo FAÇA AMOR E NÃO A GUERRA ESTAMOS PRONTOS PARA AMBOS ARN), Dick se virou para o balcão do bar e ergueu sua xícara de café. Como sempre, o café de Beach era forte e gostoso. Ele estava precisando disso. Dick se sentia mais do que cansado; estava exaurido. Embora ainda sobrasse uma boa claridade diurna no céu e embora ele fosse o tipo de pessoa que achava impossível dormir, enquanto o Hino Nacional não tivesse sido tocado no último canal de televisão disponível, tudo quando desejava agora era ir para a cama. Aquele havia sido um dia tenso e amedrontador, assim continuando até que Beach desse notícias. A confusão que Ruth McCausland tivera êxito em promover, não ficaria encerrada após liquidados aqueles dois tiras. O pessoal da cidade poderia esconder um bocado de coisas, mas não o simples fato de que os dois tiras estavam voltando de Haven, onde outro tira (apenas uma chefe de polícia de cidadezinha, claro, mas um tira era um tira, e a morta havia sido casada com um policial estadual, apenas para complicar mais a situação) fora apagado da equação.

Tudo isto, portanto, significando que a brincadeira apenas começava.

— Se é que alguém pode considerar isto uma brincadeira — murmurou Dick irritadamente, para ninguém em particular. — Raios me partam, se essa for minha opinião!

O café começou a queimar em seu estômago, com ácida digestão. Ele continuou a bebê-lo, mesmo assim.

Lá fora, soou o rugido de um potente motor. Girando em sua banqueta, Dick viu os tiras partindo da cidade, com as luzes intermitentes no topo da viatura lançando claridade azulada e sombra negra nos destroços.

 

Christina Lindley e Bobby Tremain estavam em pé lado a lado, observando a folha opaca no banho revelador, ambos contendo a respiração, enquanto aguardavam que a imagem surgisse ou não.

Aos poucos, ela se foi delineando.

Lá estava a torre do relógio da sede da municipalidade de Haven. Em cores nítidas, reais. E os ponteiros do relógio marcavam 3:05.

Bobby soltou a respiração, em uma fraca e lenta exalação. Perfeito, disse ele.

Nem tanto, disse Christina. Falta mais uma coisa.

Ele se virou para ela, apreensivo. O quê? O que há de errado?

Nada. Está tudo certo. Apenas há uma coisa mais que precisamos fazer.

Ela não era feia, mas como usava óculos e tinha os cabelos em uma tonalidade castanho-acinzentada, sempre se considerara feia. Já fizera dezessete anos e nunca saíra com um rapaz. Não que isso parecesse ter importância. Puxou o zíper da saia e a deixou cair, juntamente com a anágua e as calcinhas de algodão, ambas compradas na loja de preços baixos, em Derry. Saiu para fora delas e apanhou cuidadosamente a foto molhada, no banho de revelação. Ficou na ponta dos pés para pendurá-la, flexionando as nádegas lisas. Então se virou para ele, abrindo as pernas.

Eu preciso disso.

Ele a tomou ali mesmo, em pé. Contra a parede. Quando o hímem se rompeu, Christina mordeu o ombro dele, com força suficiente para também fazê-lo sangrar. E quando sentiram prazer juntos, rosnaram e arranharam-se, sendo tudo muito bom, bom demais.

Bem como nos velhos tempos, pensou Bobby, dirigindo o carro que os levaria à propriedade de Applegate. Então, perguntou-se o que estaria querendo dizer com isso, mas logo em seguida decidiu que, em realidade, o fato não tinha a menor importância.

 

Beach forçou sua picape Chevrolet para que chegasse a cento e poucos rangentes quilômetros — era o máximo que conseguiria. Uma das coisas que ainda não pudera fazer, com seu novo e fantástico conhecimento, era um bom serviço mecânico naquela banheira sacolejante. No entanto, esperava que a picape o conduzisse até onde pretendia ir esta noite, que o velho calhambeque não lhe falhasse, uma vez mais.

Após cruzar os limites da cidadezinha de Troy, sem ouvi-los nem ver qualquer indício da sinaleira intermitente da viatura policial, reduziu a velocidade para noventa (com algum alívio; aquela lata velha estivera à beira do superaquecimento), e quando entrou em Newport, retornou aos setenta. A esta altura, a escuridão já era bem densa.

Beach chegava à linha divisória de Derry e começava a preocupar-se, imaginando que os malditos tiras tivessem voltado por outro caminho — algo improvável, uma vez que este era o mais rápido, porém, céus, por onde andavam eles? — quando captou o murmúrio surdo dos pensamentos dos dois.

Freou e ficou quieto por um momento, a cabeça de banda, os olhos semicerrados, ouvindo, tendo certeza. Sua boca, singularmente murcha e vacilante, sem a maioria dos dentes, era a de um homem muito mais velho.

Era algo sobre

(sardas)

Ruth. Afinal, lá vinham eles! O pensamento ficou mais nítido

(a gente podia ver as sardas, em meio a todo aquele sangue)

e Beach assentiu. Lá vinham eles! Agora rodavam depressa. Haveria tempo, desde que se apressasse.

Dirigiu estrada acima por mais meio quilômetro, fez uma curva e avistou o longo trecho da Rota 3, entre aquele ponto e Derry. Virou a picape de banda, bloqueando a estrada. Depois retirou o oleado que cobria a coisa semelhante a um rifle, na carroceria, os dedos remexendo nervosamente os nós da corda, enquanto as vozes deles ficavam mais fortes, mais fortes, mais fortes em sua cabeça.

Quando os faróis da viatura policial iluminaram as árvores deste lado da curva, Beach abaixou a cabeça. Estendeu a mão para os transformadores de fogão elétrico — seis ao todo — que havia pregado sobre um painel (e o painel fora aparafusado ao piso da picape, para que não deslizasse), e os ligou, um após o outro. Ouviu o zumbido, enquanto eles ganhavam potência ... e então esse som, cada som, ficou perdido entre o rangido de freios e pneus. Agora, a claridade que era muito branca, entremeada de jatos azulados de luz, banhou o piso da carroceria da picape e Beach apertou-se contra o fundo, as mãos entrelaçadas acima da cabeça, pensando que havia estragado tudo, que estacionara perto demais de uma curva fechada e que eles iriam colidir contra sua picape. Então, ficariam apenas feridos, mas ele perderia a vida. Os tiras encontrariam os destroços de seu “rifle” e perguntariam: Ora, mas o que é isto? E... e...

Você desgraçou tudo, Beach, eles salvaram sua vida e você desgraçou tudo... oh, maldito seja... maldito seja... maldito seja...

Então, o chiado dos pneus cessou. O cheiro de borracha queimada era forte e nauseante, porém a colisão que ele temera não aconteceu. As luzes azuis piscaram. O microfone expeliu estática.

Vagamente, ele ouviu a voz rouca do tira, perguntando:

— O que significa esta merda?

Trêmulo, Beach executou uma flexão de corpo, à maneira de uma garota, erguendo-se ligeiramente para espiar acima da borda do piso da carroceria, apenas com os olhos. Viu que o carro policial fizera alto no final de um comprido par de marcas negras de derrapagem. Mesmo à claridade das estrelas, as marcas eram claramente visíveis. A viatura havia parado em ângulo fechado, a não mais de três metros de distância. Se eles estivessem rodando oito quilômetros horários mais depressa...

Sim, mas não estavam.

Sons. A batida dupla das portas se fechando, quando eles saíam de seu carro. O débil, apagado zumbido dos transformadores que energizavam sua engenhoca — uma engenhoca não inteiramente diversa daquelas que Ruth introduzira no ventre de suas bonecas. E um som obscuro de zumbido. Moscas. Farejavam o sangue, debaixo da folha de plástico, mas não podiam chegar até o corpo do cervo.

Logo terão sua chance, pensou Beach, e sorriu. Pena que não possam provar aqueles velhos camaradas lá fora.

— Vi essa camioneta lá em Haven, Bent — disse o sujeito da voz rouca. — Parada diante do restaurante.

Beach girou ligeiramente o cano de esgoto em seu eixo. Olhando através dele, podia ver os dois policiais. E se um deles se movesse para fora do eixo-de-força real da engenhoca, tudo bem; haveria um leve efeito luminoso.

Afastem-se do carro, rapazes, pensou Beach, apanhando a cigarra de porta da Western Auto e pousando nela um polegar. Seu sorriso revelou gengivas rosadas. Não quero que aconteça alguma coisa com o carro. Afastem-se, está bem?

— Quem está aí? — gritou o outro tira.

Tommyknockers aqui, batendo à sua porta, seu idiota intrometido, pensou ele, começando a dar risadinhas sufocadas. Era impossível conter-se. Tentou estancá-las, o melhor que pôde.

— Se há alguém nessa camioneta, é melhor dizer logo!

As risadinhas de Beach ficaram mais altas; ele não conseguia controlar-se. Talvez até fosse melhor assim, porque os dois entreolharam-se e começaram a caminhar para a picape, empunhando as armas. Aproximando-se da picape e afastando-se de sua viatura.

Beach esperou, até ter certeza de que a viatura não seria tocada pelo clarão — eles lhe tinham dito para não danificar o carro da polícia, portanto, não era sua intenção arrancar a menor lasca do cromado do pára-choques. Quando os tiras ficaram distanciados o suficiente, Beach apertou a cigarra. Avon chama, imbecis, pensou, e desta vez não apenas deu risadinhas contidas; ele gargalhou. Um espesso facho de fogo verde brotou no escuro da noite, alcançando os dois policiais e envolvendo-os. Beach distinguiu várias fagulhas de um tom amarelo-vivo, dentro daquele clarão verde, e compreendeu que um dos policiais apertava o gatilho de sua arma uma vez após a outra.

De onde estava, podia sentir o forte cheiro desprendido pelo transformador de fogão elétrico. Houve um súbito plop! e um deles expeliu um chuveiro de contorcidas faíscas. Algumas delas lhe caíram no braço, picando-o, e ele as sacudiu para longe. O fogo verde que brotava do final do cano tremulou. Os policiais tinham desaparecido. Bem... quase desaparecido.

Beach saltou por cima do gradil traseiro da picape, movendo-se o mais depressa que podia. Claro, aquela não era uma estrada de trânsito firme, e ninguém da zona rural se dirigiria a Derry para fazer compras em hora tão tardia, porém alguém acabaria passando por ali, cedo ou tarde. Ele tinha que...

No piso da estrada havia um único sapato fumegante. Beach o pegou, quase o deixando cair. Não esperava que fosse tão pesado. Olhando o interior, descobriu o motivo. Um pé calçado de meia continuava dentro do sapato.

Beach retornou à sua picape e jogou o sapato na cabine. Quando retornasse a Haven daria um jeito nele. Não precisaria enterrá-lo; existiam meios mais eficientes para as pessoas se livrarem das coisas naquela cidade.

Se a Máfia soubesse o que nós, os caipiras ianques, descobrimos aqui, certamente desejaria comprar a franchise, pensou Beach, tornando a dar sua risadinha sufocada.

Ele puxou os fechos da traseira da carroceria, cujo gradil se abriu com um ruído enferrujado. Em seguida, agarrou a carcaça do cervo, embrulhada no plástico. De quem teria sido aquela idéia? perguntou-se. Do velho Dave? Enfim, não importava. Em Haven, agora todas as idéias se estavam tornando uma só.

O volume embrulhado no plástico era pesado e desajeitado. Beach passou os braços à volta das patas traseiras do animal e puxou. O cervo morto deslizou para fora da carroceria da picape, a cabeça produzindo um baque surdo ao chocar-se contra o asfalto da estrada. Olhando em torno à procura de faróis iluminando os horizontes a cada lado, Beach nada avistou, e então arrastou o cervo através da estrada, tão depressa quanto pôde. Com um grunhido, deixou-o cair ao chão e virou a carcaça, a fim de retirar o plástico que a envolvia. Então, ergueu o cervo nos dois braços, levantando do solo o animal cujas entranhas já haviam sido removidas. No pescoço de Beach, os tendões projetavam-se como cabos; seus lábios finos e encovados teriam mostrado os dentes, se ainda lhe houvesse sobrado algum nas gengivas. A cabeça do cervo, com a galhada em meio crescimento, pendeu abaixo de seu antebraço direito. Os olhos embaciados do animal fitavam a noite.

Beach cambaleou três passos, descendo o acostamento em curva e jogou o corpo do cervo na vala, onde aterrou com um ruído surdo. Recuando, ele recolheu o plástico e, voltando à picape, atirou-o embrulhado no assento do passageiro. Gostaria de deixá-lo na carroceria — estava fedendo — mas sempre havia a possibilidade de voar para fora e ser encontrado. Deu a volta apressadamente para o lado do motorista, enquanto isso, afastando do peito, com uma ligeira careta, a camisa úmida de sangue. Mudaria uma limpa, assim que chegasse em casa.

Entrou e ligou o motor. Deu marcha à ré e manobrou até embicar na direção de Haven, mas fez então uma ligeira pausa, apenas um momento, a fim de observar a cena, verificando se o local contaria a história que devia ser contada. Achou que ficara tudo certo. Ali estava uma viatura policial, parada e de motor desligado, no meio da estrada e no final de uma longa derrapagem.

Motor desligado, mas com o pisca-pisca funcionando. Havia a carcaça sem entranhas de um cervo de bom tamanho, dentro da vala. Isso não ficaria despercebido por muito tempo, não em julho.

Haveria em toda essa história alguma coisa que sussurrasse Haven?

Beach decidiu que não. Esta história seria a de dois tiras retornando à base, após investigarem um acidente com uma única vítima. Casualmente, encontraram um bando de homens, caçadores noturnos, que haviam capturado um cervo. O que aconteceu aos tiras? Ah, essa era a pergunta, não era? Bem, as respostas possíveis ficariam cada vez mais sinistras, à medida que os dias passassem. Havia caçadores noturnos e furtivos na história, infratores que talvez houvessem entrado em pânico, matando dois tiras e depois enterrando-os na floresta. E quanto a Haven? Na opinião de Beach, todos a considerariam uma história inteiramente diversa, de maneira alguma tão interessante.

Agora, pelo espelho retrovisor, ele podia ver faróis aproximando-se. Rodou para diante em baixa velocidade e contornou a viatura policial. As luzes intermitentes do teto o banharam em meia dúzia de impulsos azulados, depois o veículo ficou para trás. Olhando para a direita, Beach viu o sapato preto de uso regulamentar da polícia, com sua borda de meia azul regulamentar assomando como uma rabiola de pipa, e deu uma risadinha casquinada. Aposto que quando calçou esse sapato hoje de manhã, Sr. tira espertinho, não tinha idéia de onde ele terminaria esta noite...

Beach Jernigan tornou a dar sua risadinha casquinada e passou a marcha para segunda, com um gesto brusco e um solavanco. Estava indo para casa e jamais se sentira tão infernalmente bem, em toda a sua vida.

 

EV HILLMAN

Reportagem principal, Daily News de Bangor, 25 de julho de 1988:

 

DESAPARECEM EM DERRY DOIS POLICIAIS ESTADUAIS

Iniciada caçada humana em grande escala

por David Bright

 

O encontro de uma viatura abandonada da polícia estadual em Derry, à noite passada, pouco depois das 9:30, desencadeou a segunda grande busca do verão, na zona central e leste do Maine. A primeira envolveu David Brown, de 4 anos de idade, residente em Haven, que continua desaparecido. Ironicamente, os agentes Benton Rhodes e Peter Gabbons voltavam da mesma cidade, à hora de seu desaparecimento, após terem completado uma investigação preliminar sobre uma explosão de fornalha que fez uma vítima (ver nesta página a história relacionada).

A marcha dos acontecimentos, que um informante de dentro da polícia descreveu como “a pior notícia possível que poderíamos ter no momento”, revelou haver sido encontrado o corpo de um cervo, estripado e limpo, nas proximidades da viatura. O fato induz à especulação de que...

 

— Ei, veja isto aqui! — disse Beach a Dick Allison e Newt Berringer, durante o café da manhã seguinte.

Os três estavam no Haven Lunch, e olharam para o jornal que acabara de chegar.

— Todos havíamos pensado que ninguém faria uma conexão, merda!

— Relaxe — disse Newt, e Dick assentiu. — Ninguém irá relacionar o desaparecimento de um menino de quatro anos, que provavelmente se embrenhou na floresta ou foi raptado e levado para longe por algum maníaco sexual com o desaparecimento de dois corpulentos e fortes tiras estaduais. Certo, Dick?

— Certíssimo.

 

Erradíssimo.

 

Página 1 do Daily News de Bangor, metade inferior:

 

CHEFE DE POLÍCIA DE HAVEN PERDE A VIDA

EM SINGULAR ACIDENTE

Era líder da comunidade

por John Leandro

 

Ruth McCausland, uma das três únicas mulheres chefes de polícia no Maine, faleceu ontem, no Haven, sua cidade natal. Tinha cinqüenta anos. Segundo Richard Allison, chefe do Corpo de Bombeiros Voluntários de Haven, a Sra. McCausland parece ter sido morta por vapores de óleo que se acumularam no porão da sede da municipalidade, em decorrência da ignição de uma válvula defeituosa. Afirmou Allison que a iluminação do porão, onde fica arquivada boa parte dos registros da cidade, não é muito boa. “Ela talvez tenha acendido um fósforo,” sugeriu ele. “Pelo menos, é a teoria que por enquanto estamos seguindo.”

Ao lhe ser perguntado se fora encontrada qualquer evidência de crime, Allison respondeu negativamente, mas admitiu que o desaparecimento dos dois polícias estaduais para investigar o fato (ver reportagem acima) dificultou ainda mais essa evidência. “Uma vez que nenhum dos agentes investigadores chegou a fazer um relatório, imagino que o inspetor estadual de incêndios apareça por aqui. No momento, estou mais interessado em que os agentes investigadores apareçam sãos e salvos.”

Newton Berringer, chefe do conselho municipal, declarou que a cidade em peso lamentava profundamente a morte da Sra. McCausland. “Era uma grande mulher”, afirmou Berringer, “e todos nós a estimávamos.” Outros moradores de Haven partilhavam esse sentimento e muitos deles choraram, quando falavam sobre a Sra. McCausland.

Seu serviço público na pequena cidade de Haven começou em...

 

Naturalmente, foi Ev, o avô de Hilly, quem estabeleceu a conexão. Ev Hillman, que com todo direito podia ser considerado o exilado da cidade, Ev Hillman, que retornara da Segunda Grande Guerra com duas pequenas placas metálicas na cabeça, em decorrência da explosão de uma granada de mão alemã perto dele, durante a Batalha do Bulge.

Ele havia passado a manhã da segunda-feira, após o explosivo domingo de Haven, onde passara todas as suas manhãs: no quarto 371 do Hospital Geral de Derry, vigiando Hilly. Tinha alugado um quarto mobiliado na parte baixa da Rua Principal e lá passava as noites — suas noites geralmente insones — depois que as enfermeiras finalmente o mandavam embora.

Às vezes ficava deitado no escuro e pensava ouvir ruídos de risadinhas, fluindo dos canos de esgoto. Então pensava, Você está ficando biruta, velhote. Só que não estava. Havia momentos em que desejaria estar.

Ev tentara contar para algumas enfermeiras o que acreditava ter acontecido a David — o que sabia ter acontecido a David. Elas sentiam pena dele. A princípio, Ev não percebera aquela piedade; seus olhos só se abriram, após ter cometido o erro de falar com o repórter. Isso lhe abrira os olhos. Achava que as enfermeiras o admiravam por sua lealdade a Hilly e o lamentavam porque o menino parecia caminhar para o fim... porém elas também o imaginavam louco. Garotinhos não desaparecem durante espetáculos de mágica, acontecidos em quintais. Ninguém precisava cursar a escola de enfermagem para saber disso.

Após ficar algum tempo solitário em Derry, com metade da mente preocupada com Hilly e David, além de irritada pelo que agora via como covardia de sua parte, ele também temia por Ruth McCausland e os demais em Haven. Então, Ev bebera alguns drinques no barzinho a meio caminho para o quarto onde dormia. No decurso de uma conversa com o atendente, ficou sabendo do caso de um sujeito chamado John Smith, que lecionara durante algum tempo na cidadezinha próxima de Cleaves Mills. Smith permanecera em coma vários anos, tendo despertado com uma espécie de dom psíquico. Perdera a razão alguns anos antes — tentara assassinar um indivíduo chamado Stillson, deputado federal por New Hampshire.

— Não sei se havia mesmo alguma verdade quanto à parte psíquica da história — disse o atendente, empurrando uma nova cerveja para Ev. — Acho mais que isso é pura lorota. No entanto, se você tem alguma história fora do comum para contar — Ev insinuara que sua história faria O horror de Amityville parecer conto de fadas — então, o sujeito a procurar é Bright, do Daily News de Bangor. Foi ele quem fez a reportagem desse tal Smith para o jornal. Aparece aqui de vez em quando para uma cerveja e, se quer saber, amigo, ele acreditava que Smith tinha o dom psíquico.

Ev tomara três cervejas rapidamente, uma depois da outra — melhor dizendo, as suficientes para acreditar na possibilidade de soluções simples. Foi ao tele-fone público, depositou seus trocados na prateleira e discara o número do Daily News de Bangor. David Bright estava lá, e Ev falou com ele. Não lhe contou a história, não ao telefone, mas disse que tinha algo para contar, algo cujo significado não compreendia, mas que, em sua opinião, os outros deviam ficar a par, e depressa.

Bright pareceu interessado. Ainda mais, pareceu compreensivo. Perguntou a Ev quando ele poderia ir a Bangor (o fato de Bright não falar em ir a Derry para entrevistá-lo devia ter insinuado ao velho que poderia perfeitamente ter superestimado a crença e compreensão do repórter), e Ev lhe perguntara se achava conveniente essa mesma noite.

— Bem, ainda ficarei aqui por umas duas horas — respondeu o repórter. — Poderia chegar antes da meia-noite, Sr. Hillman?

— Sem a menor dúvida — disse o velho, e desligou.

Quando saiu do Wally’Spa, na parte baixa da Rua Principal, havia fogo em seus olhos e elasticidade nos passos. Parecia vinte anos mais novo do que o homem que ali entrara arrastando os pés.

Entretanto, eram quarenta quilômetros até Bangor e as três cervejas perderam o efeito. Quando Ev chegou ao prédio do News, estava novamente sóbrio. Pior ainda, sua cabeça estava aturdida e confusa. Percebeu que alinhavara mal sua história, que fizera rodeios incessantes, retornando sempre ao espetáculo de mágica, à aparência de Hilly, à sua certeza de que David Brown realmente desaparecera.

Finalmente parou... porém não fora bem uma parada, mas o estancamento em seco de um fluxo de palavras cada vez mais lento e apático.

Bright tamborilava um lápis contra o lado de sua mesa de trabalho, sem olhar para Ev.

— Nunca chegou a espiar debaixo do palco, Sr. Hillman?

— Não... não... mas...

Bright então olhou para ele e tinha uma expressão gentil, mas nela Ev percebeu aquilo que lhe abrira os olhos — o homem o julgava tão ensandecido quanto uma lebre em março.

— Tudo isto é muito interessante, Sr. Hillman...

— Não se incomode — disse Ev, levantando-se. A cadeira em que estivera sentado foi empurrada tão depressa, que quase caiu. Ele estivera vagamente cônscio do funcionamento do processador de palavras, dos telefones tocando, de pessoas indo de um lado para outro ali dentro, com papéis nas mãos. Estava mais cônscio de já ser meia-noite, de que se sentia cansado e abatido pelo medo, e aquele sujeito o considerava doido. — Não se incomode, já é tarde, deve estar querendo voltar para casa, para junto da família, imagino.

— Se apenas encarasse os fatos por minha perspectiva, Sr. Hillman, compreenderia que...

— Eu vejo as coisas pelo seu lado — respondeu Ev. — Acho que pela primeira vez. Também preciso ir embora, Sr. Bright. Tenho um longo trajeto a rodar pela frente, e as horas de visita começam às nove. Lamento tê-lo feito perder seu tempo.

Saiu do jornal depressa, recordando furiosamente a si mesmo que, antes de mais nada, não havia tolo pior do que um velho tolo. Supunha que sua façanha desta noite simplesmente o exibira como o maior de todos os tolos. Bem, era no que dava, por tentar dizer aos outros o que acontecia em Haven. Ele era um velho, mas raios o partissem, se tornasse a enfrentar outro olhar como o daquele sujeito.

Nunca mais na vida!

 

Sua resolução durou exatamente cinqüenta e seis horas — até pôr os olhos nas manchetes dos jornais da segunda-feira. Ao vê-las, desejou ir ao encontro do homem encarregado de investigar o desaparecimento dos dois agentes estaduais. O News dizia que se chamava Dugan, mencionando que ele também conhecera Ruth McCausland de perto — de fato, tiraria algum tempo de folga de um caso extremamente importante em que trabalhava, a fim de pronunciar algumas palavras durante o funeral da senhora em questão. Ev ficou com a impressão de que ele devia tê-la conhecido muitíssimo bem.

Entretanto, quando apelou por algo do fogo e excitamento da noite anterior, encontrou apenas um medo rançoso e desesperança. As duas reportagens da primeira página haviam roubado a maioria da coragem que lhe restara. Haven se tornou um ninho de serpentes e agora elas começaram a picar. Preciso convencer alguém disso, mas como agir? Como convencer alguém de que há telepatia acontecendo naquela cidade e sabe Deus mais o quê? Como, se mal consigo recordar como eu sabia de coisas que estavam acontecendo? Como, quando na verdade jamais vi alguma coisa? Como? Principalmente, como devo agir, se toda a maldita coisa está olhando frente a frente para eles e nem mesmo a vêem? Há uma cidade inteira ficando biruta no fim da estrada, sem que ninguém faça a mais ligeira idéia do que ocorre por lá!

Retornou à página do obituário. Os olhos claros de Ruth o fitaram de uma daquelas estranhas fotos de jornal, que nada mais são além de pontos densamente acumulados. Os olhos dela, tão claros, francos e belos, encaravam-no calmamente. Ev imaginou que houvera um mínimo de cinco e pelo menos uns doze homens em Haven apaixonados por aquela mulher, sem que ela jamais ficasse sabendo. Os olhos de Ruth pareciam negar a própria idéia de morte, declará-la ridícula. Contudo, estava morta.

Ev recordou o momento em que apanhara Hilly, enquanto o grupo de busca era organizado.

Você poderia vir conosco, Ruthie.

Eu não posso, Ev... Fique em contato comigo.

Ele tentara apenas uma vez, pensando que se Ruth fosse ao seu encontro, em Derry, estaria fora de perigo... então podendo confirmar sua história. No estado de confusão e infelicidade que se encontrava e, sim, sentindo saudades de casa, Ev nem mesmo tinha certeza do que era mais importante para ele. No fim, pouco importava. Fizera três tentativas em uma ligação direta para Haven, a última após falar com Bright, mas nenhum dos telefonemas funcionou. Tentou uma vez, com ajuda da telefonista, e ela lhe disse que certamente havia defeito nas linhas. Gosta-ria de tentar mais tarde? Ev disse que ligaria novamente, porém não ligou. Em vez disto, ficou deitado no escuro, ouvindo as risadinhas dos encanamentos.

Agora, menos de três dias mais tarde, Ruth entrara em contato com ele. Via seção do obituário.

Ev olhou para o neto. Hilly dormia. Os médicos recusavam-se a chamar aquilo de coma — seus padrões cerebrais não eram os de um paciente comatoso, afirmaram, mas os de uma pessoa em sono profundo. Ev não se incomodou com a denominação que preferissem. Sabia que Hilly estava indo embora aos poucos e, se o menino deslizava para um estado chamado autismo — Ev não entendia o significado da palavra, mas ouvira quando os médicos a murmuravam entre si, embora não estivesse interessado em ouvi-los — ou para um estado chamado coma, isso não fazia a menor diferença. Eram apenas palavras. Fosse lá o que fosse, Hilly estava indo embora e, isto sim, era o pior que podia acontecer.

Quando viajavam para Derry, o menino agira como uma pessoa em profundo estado de choque. Ev tinha uma vaga noção de que a situação melhoraria se o tirasse de Haven e, em sua frenética preocupação por David, nem Bryant ou Marie pareciam notar o quanto seu filho mais velho parecia estranho.

Sair de Haven de nada adiantara. A consciência e coerência de Hilly continuaram declinando. No primeiro dia de permanência no hospital, ele havia dormido onze horas em vinte e quatro. Podia responder a perguntas simples, porém as mais complexas o confundiam. Queixou-se de dor de cabeça. Nada recordava do espetáculo de mágica e parecia pensar que seu aniversário tinha sido apenas na semana anterior. Nessa noite, profundamente adormecido, ele pronunciara uma frase com absoluta clareza: “Todos os G. I. Joes.” As costas de Ev arrepiaram-se. Era o que o menino estivera gritando incessantemente, quando todos eles haviam saído da casa às carreiras e deram com o quadro: David desaparecido e Hilly histérico.

No dia seguinte de hospital, Hilly dormira quatorze horas, parecendo ainda mais confuso mentalmente, durante o tempo em que permaneceu em um aturdido estado de vigília. Quando a psicóloga infantil designada para seu caso perguntou qual o seu nome do meio, ele respondeu: “Jonathan.” Era o nome do meio de David.

Agora, para qualquer objetivo prático, ele dormia vinte e quatro horas por dia. Às vezes abria os olhos, parecia até estar fitando Ev ou uma das enfermeiras, mas quando falavam com ele, Hilly apenas exibia seu doce sorriso-Hilly-Brown e deslizava novamente para aquele estranho sono.

Indo embora aos poucos. Ele jazia como um menino encantado em um castelo de conto de fadas, a ilusão sendo perturbada apenas pelo frasco de medicamento intravenoso suspenso acima de sua cabeça e as ocasionais chamadas de alto-falantes, no corredor do hospital.

A princípio, houvera muito excitamento no setor neurológico; uma sombra escura e não específica, na área do córtex cerebral de Hilly, sugerira que o singular aturdimento do menino podia ter sido causado por um tumor no cérebro. Entretanto, quando tornaram a radiografá-lo, dois dias mais tarde (suas radiografias tinham sido submetidas a um demorado estudo, explicou a Ev o técnico radiologista, porque ninguém espera encontrar um tumor cerebral na cabeça de uma criança de dez anos e não houvera sintomas anteriores, sugerindo que fosse este o caso), a sombra havia desaparecido. O neurologista tivera uma conferência com o radiologista e, pela atuação defensiva deste último, Ev deduziu que devia ter havido uma séria discussão entre os dois. O neurologista informou que seria batida mais uma série de radiografias, mas Ev intuía que todas seriam negativas. Falou que a primeira série certamente saíra defeituosa.

— Eu desconfiava que houvesse algo aloucado — disse ele a Ev.

— Por quê?

O neurologista, um homenzarrão de barba vivamente ruiva, sorriu.

— Porque aquela sombra era imensa. Em poucas palavras, uma criança com um tumor cerebral tão grande, sem a menor dúvida teria sido extremamente doente e por muitíssimo tempo... se é que ainda estaria viva.

— Entendo. Quer dizer que ainda não sabe o que há de errado com Hilly.

— Estamos trabalhando em duas ou três linhas de investigação — respondeu o neurologista.

Seu sorriso, no entanto, foi ficando vago, os olhos desviaram-se dos de Ev e, no dia seguinte, a psicóloga infantil tornou a aparecer. Era uma mulher muito gorda, de cabelos escuríssimos. Queria saber onde estavam os pais de Hilly.

— Tentando encontrar o outro filho — disse Ev, esperando que isso a reduzisse ao silêncio.

Enganou-se.

— Ligue para eles e diga-lhes que eu gostaria de alguma ajuda para encontrar este aqui.

Bryant e Marie foram ao hospital, porém não puderam prestar nenhuma ajuda. Estavam mudados; estavam estranhos. A psicóloga infantil também percebeu isto e, após sua série inicial de perguntas, começou a afastar-se deles — Ev podia realmente senti-la fazendo isso. Ele próprio precisava esforçar-se, a fim de não ir embora do aposento. Não queria sentir os estranhos olhos dos dois pousados nele: aquele olhar dava-lhe a sensação de haver sido marcado por alguma coisa. A mulher de blusa singela e desbotadas calças jeans havia sido sua filha, ainda parecia a sua filha, porém não o era, não mais. A maior parte de Marie estava morta, e o que restara dela estava morrendo rapidamente.

A psicóloga infantil não tornou a mencioná-los.

Desde então, ela estivera lá duas vezes, examinando Hilly. A segunda vez tinha sido na tarde do sábado, véspera da explosão na sede da municipalidade de Haven.

— Que alimentação davam a ele? — perguntou ela abruptamente.

Ev estava sentado junto à janela, o sol caindo sobre ele, quase cochilando. A pergunta da mulher gorda o chamou à realidade, despertando-o com um sobressalto.

— Como disse?

— Que alimentação davam a ele?

— Ora, a alimentação normal — respondeu Ev.

— Duvido muito!

— Não precisa duvidar — disse ele. — Fiz refeições suficientes com os pais de meu neto, para afirmar com segurança. Por que pergunta?

— Porque dez dos dentes dele caíram — replicou ela, concisamente.

 

Ev crispou um punho apertadamente, apesar da surda palpitação da artrite, e esmurrou uma perna com força.

O que vai fazer, velho? David se foi e seria mais fácil você convencer-se de que ele está realmente morto, não acha?

Claro. Isto deixaria tudo mais simples. Mais triste, porém mais simples. Entretanto, ele não podia acreditar nisso. Parte dele continuava certa de que David ainda vivia. Talvez fosse apenas um desejo ansioso, porém Ev não pensava assim. Era uma forte e pulsante intuição em sua mente: David está vivo. Ficou perdido e corre o risco de morrer, oh, é quase certo... mas ainda pode ser salvo. Se. Se você puder arquitetar algo para fazer. E o que imaginar para fazer, será a coisa certa. Uma demorada façanha para um peido velho como você, que mija uma mancha escura nas calças estes dias, quando não consegue chegar à privada em tempo. Uma longa, muito demorada façanha.

Tarde da noite, na segunda-feira, ele despertara de um cochilo, tremendo no quarto de hospital de Hilly — as enfermeiras freqüentemente fechavam caridosa-mente um olho, permitindo-lhe ficar lá depois das horas regulamentares de visita. Ele havia tido um terrível pesadelo. Sonhara que estava em algum lugar escuro e pedregoso — montanhas de picos agudos e serrilhados elevavam-se contra um céu negro e pontilhado de estrelas frias, enquanto um vento gélido como agulhas de gelo escoava-se por estreitos e rochosos desfiladeiros. Abaixo dele, podia ver uma imensa planície achatada, à claridade das estrelas. Parecia seca, fria e estéril. Enormes fendas ziguezagueavam por ela, emprestando-lhe uma semelhança de in-sana pavimentação. E, de algum ponto, podia ouvir a voz de David: “Ajude-me, vovô, aqui dói quando respiro! Ajude-me, vovô, aqui dói quando respiro! Ajude-me! Estou com medo! Eu não queria fazer o truque, mas Hilly me obrigou e agora não sei voltar para casa!"

Ele ficou sentado, olhando para Hilly, com o corpo lavado de suor. A transpiração escorria-lhe como lágrimas pelo rosto.

Levantando-se, caminhou até a cama do neto e debruçou-se acima dele.

— Hilly — chamou, não pela primeira vez. — Onde está seu irmão? Onde está David?

Somente desta vez, os olhos de Hilly se abriram. Foi um olhar aquoso e cego, que deixou Ev gelado — era o olhar de uma sibila cega.

— Em Altair-4 — disse Hilly calmamente, com perfeita nitidez. — David está em Altair-4 e há Tommyknockers batendo à porta.

As pálpebras de novo se fecharam e ele voltou a dormir profundamente.

Ev continuou debruçado para ele, perfeitamente imóvel, sua pele com a cor de massa de vidraceiro.

Um momento depois, ele começava a estremecer.

 

Ev era a cidade no exílio.

Se Ruth McCausland tinha sido o coração e consciência de Haven, então Ev Hillman, aos setenta e três anos (e nem por sombras tão senil como vinham temendo ultimamente), era a sua memória. Em sua longa vida na cidade de Haven, ele vira muito do lugar, tendo ouvido ainda mais, pois sempre fora bom ouvinte.

Naquela noite de segunda-feira, ao deixar o hospital, deu uma passada pela loja Mr. Paperback, de Derry, onde investiu nove dólares em um Atlas do Maine — um compêndio de grandes mapas, mostrando o estado em peças bem-feitas, cada um daqueles pedaços abrangendo 1.500 quilômetros quadrados. Folheando até a página 23, encontrou a cidade de Haven. No mesmo estabelecimento para a venda de livros e revistas, comprou um compasso e então, sem saber ao certo por que fazia isso, desenhou um círculo ao redor da cidade. Naturalmente, não espetou a ponta seca do compasso em Haven Village para fazer isto, porque a cidadezinha ficava situada na borda da municipalidade.

David está em Altair-4.

David está em Altair-4 e há Tommyknockers, Tommyknockers batendo à porta.

Ev ficou de cenho franzido, contemplando o mapa e o círculo que tinha desenhado, perguntando-se se o que Hilly dissera teria algum significado.

Devia ter arranjado um lápis vermelho, velho. Haven agora teria que ser um lugar circundado em vermelho. Neste mapa... em todos os mapas.

Olhou mais de perto. Sua visão para longe continuava tão perfeita, que ele poderia distinguir um grão de feijão de um de milho, se colocados em um moirão a quarenta metros de distância, porém a visão para perto agora vinha diminuindo depressa como o diabo, e seus óculos para ler haviam ficado na casa de Marie e Bryant — e Ev tinha a impressão de que, se voltasse para apanhá-los, talvez acabasse tendo mais com que preocupar-se, do que com a leitura de letras miúdas. Por enquanto, era melhor — mais seguro — ir passando sem eles.

Com o nariz quase enfiado na página, examinou o lugar em que ficara a ponta do compasso. Era diretamente sobre a Estrada de Derry, somente um pouco ao norte de Preston Stream e um pouco a leste do que ele e seus amigos conheciam como Floresta do Big Injun, quando crianças. Agora, este mapa a identificava como Floresta Ardente, um nome que Ev também ouvira uma ou duas vezes.

Fechou o compasso para um quarto do raio de que precisara para fazer um círculo em torno de toda Haven, e então desenhou um segundo círculo.

Viu que a casa de Bryant e Marie ficava precisamente dentro deste novo círculo. Para oeste estava o curto trecho da Estrada de Nista, que partia da Rota 9 — a Estrada de Derry — até o beco sem saída em uma pedreira, na orla daquela mesma floresta — fosse seu nome Floresta do Big Injun ou Floresta Ardente, dava tudo na mesma.

Estrada de Nista... Estrada de Nista... havia qualquer coisa sobre a Estrada de Nista, mas o quê? Algo acontecera lá, antes mesmo dele nascer, mas fora algo que merecera ser comentado durante anos e anos...

Ev fechou os olhos e deu a impressão de estar cochilando sentado, um velho magricela, quase careca, de camisa e calças cáqui muito asseadas, com vincos bem feitos nas pernas.

Recordou em breve e, ao recordar, admirou-se do quanto demorara a chegar lá. Os Clarendon. Os Clarendon, naturalmente! Tinham morado no cruzamento da Estrada de Nista e da Estrada Velha de Derry. Paul e Faith Clarendon. Faith, que tivera uma queda por aquele pregador de fala macia e que pusera no mundo um bebê de cabelos negros e doces olhos azuis, cerca de nove meses depois do prega-dor desaparecer da cidade. Paul Clarendon, que observara o bebê que jazia em seu berço, para em seguida ir apanhar sua navalha de barba.

Algumas pessoas tinham abanado a cabeça e culpado o pregador — Colson, era este o nome dele. Pelo menos, era o que ele havia dito.

Algumas pessoas tinham abanado a cabeça e culpado Paul Clarendon; diziam que ele sempre fora maluco, que Faith jamais deveria ter-se casado com semelhante homem.

Algumas pessoas, naturalmente, tinham culpado Faith. Ev recordava a conversa de alguns velhos na barbearia — isto havia sido anos depois, nas cidadezinhas como Haven têm memória comprida — durante a qual a chamavam de “nada mais que uma vagabundinha peituda, que nascera para criar problemas”.

E algumas pessoas — baixando a voz, naturalmente — tinham culpado a floresta.

Os olhos de Ev abriram-se subitamente.

Sim, sim, era isso! Sua mãe dizia que tais pessoas eram ignorantes e supersticiosas, mas seu pai apenas meneava a cabeça lentamente, chupava o cachimbo e dizia que, às vezes, histórias antigas continham uma ou duas pitadas de verdade, sendo melhor não arriscar-se. Daí por que, havia dito ele, costumava benzer-se, sempre que um gato preto cruzava seu caminho.

— Hum! — bufara a mãe de Ev — e ele recordava agora que, na ocasião, teria uns nove anos de idade.

— Também acho ser por isso que sua mãe atira um pouco de sal por sobre o ombro, quando derruba o saleiro — disse-lhe brandamente seu pai.

— Hum! — ela tornou a bufar.

Depois entrou em casa, deixando o marido fumando no alpendre, com o filho sentado ao lado, ouvindo atentamente o que ele falava. Ev sempre havia sido um bom ouvinte... exceto naquele crucial momento em que alguém precisara tão desesperadamente ser ouvido, o momento irrecuperável, quando permitira que as lágrimas de Hilly o fizessem afastar-se, confuso.

Ev agora ouvia. Ouvia sua memória... a memória da cidade.

 

Ela fora denominada Floresta do Big Injun (Floresta do Grande Índio), porque lá é que morrera o Chefe Atlântico. Os brancos é que costumavam chamá-lo assim, porque seu correto nome micmac era Wahwayvokah, que significa “junto de águas altas”. Chefe Atlântico havia sido uma desdenhosa tradução disto. Originalmente, a tribo ocupara muito do que era agora do Condado de Penobscot; grandes tribos centralizavam-se em Oldtown, Skowhegan e na Grande Floresta, a qual começava em Ludlow — e foi em Ludlow que eles sepultaram seus mortos, dizimados pela influenza na década de 80 do século passado. Depois vagaram para o sul com Wahwayvokah, que presidira durante seu posterior declínio. Ao falecer em 1885, em seu leito de morte Wahwayvokah declarou que a floresta para a qual trouxera seu povo estava amaldiçoada. Isto foi sabido e relatado por dois homens brancos presentes durante sua morte — um antropólogo do Boston College e outro do Smithsonian Institute — ambos tendo viajado até aquela região à procura de artefatos índios das tribos do noroeste, pois estas degeneravam rapidamente e em breve teriam desaparecido. Não houve muita certeza se o Chefe Atlântico estava ele próprio amaldiçoando a floresta ou apenas fazendo uma observação sobre uma condição já existente.

De um jeito ou de outro, seu único monumento foi o nome Floresta do Big Injun — inclusive, o lugar de sua sepultura não era mais conhecido. O nome para aquela grande extensão de floresta era, até onde Ev soubesse, ainda o usado costumeiramente em Haven e nas outras cidades que se situavam na mesma região, mas agora ele compreendia como os cartógrafos responsáveis pelo Atlas do Maine talvez não tivessem desejado colocar uma palavra como “Injun” em seu livro de mapas. As pessoas haviam ficado suscetíveis sobre tais casuais pronúncias ininteligíveis.

Histórias antigas às vezes tinham uma pitada de verdade, havia dito seu pai... Ev, que também se persignava quando gatos pretos cruzavam seu caminho (e, verdade seja dita, quando havia a possibilidade de algum cruzá-lo, para maior segurança), pensou que seu pai tinha razão, que essa pitada geralmente estava lá. Seja como for, amaldiçoada ou não, a Floresta do Big Injun jamais tivera muita sorte.

Não dera sorte a Wahwayvokah, como não dera sorte aos Clarendon. Tampouco dera muita sorte aos caçadores que tentavam andar por lá, recordou ele. No decorrer dos anos houvera dois... não, três... espere um momento...

Os olhos de Ev dilataram-se e ele assobiou silenciosamente, ao folhear no cérebro uma ficha de arquivo mental, etiquetada ACIDENTES DE CAÇA, HAVEN. De imediato, ele recordava uma dúzia de acidentes, a maioria deles por disparos de armas, todos tendo ocorrido na Floresta do Big Injun. Uma dúzia de caçadores havia sido arrastada de lá, sangrando e praguejando, sangrando e sem sentidos ou alguns simplesmente mortos. Outros tinham provocado a própria morte, usando rifles carregados como muletas, para ajudá-los a passar sobre árvores caídas, quando não caíam delas ou acontecia qualquer outra maldita coisa. Uma das mortes fora garantida como suicídio. Entretanto, Ev agora recordava homicídios em duas ocasiões, na Floresta do Big Injun, durante novembro — ambos a sangue frio, um assassinato provocado por um jogo de cartas no acampamento de alguém, o outro por causa de uma discussão entre dois amigos, a respeito da bala de qual deles abatera um cervo de corpulência recorde.

Além disso, havia caçadores que se perdiam por lá. Cristo! E como! A cada ano, parecia haver pelo menos um grupo de busca à procura de algum pobre e assustado pateta de Massachusetts, Nova Jersey ou da Cidade de Nova Iorque, em certos anos, dois ou três grupos de busca. Nem todas as pessoas perdidas eram encontradas.

Em sua maioria, eram gente da cidade que, em primeiro lugar, nada tinha que fazer em uma floresta. Entretanto, nem sempre era este o caso. Caçadores veteranos diziam que as bússolas funcionavam mal ou não funcionavam de maneira alguma, quando na Floresta do Big Injun. O pai de Ev dizia acreditar na existência de um danado montão de rochas magnéticas enterradas em algum lugar por lá, isto deixando louca a agulha da bússola e desorientando as pessoas. A diferença entre a gente da cidade e os veteranos da floresta era que os da cidade aprendiam o funcionamento de uma bússola pelos livros, assim confiando inteiramente no que ela indicasse. Então, quando ela empacava e apontava o leste, a verdadeira indicação era o norte, o leste transformando-se em oeste. Se a agulha ficava girando feito doida, eles eram como homens sentados em uma privada, com diarréia e sem sabugos de milho. Homens mais sensatos amaldiçoavam simplesmente suas bússolas, jogavam-nas fora e tentavam outra das meia dúzia de maneiras para orientar-se. Faltando tudo o mais, procurava-se um curso d’água, qualquer regato, que os tirasse de lá. Cedo ou tarde, com a pessoa mantendo um curso reto, acabaria chegando em uma estrada ou um conjunto de torres da companhia de eletricidade.

Não obstante, Ev conhecera alguns sujeitos que, embora morassem no Maine e lá caçassem a vida inteira, ainda precisavam ser trazidos das florestas por um grupo de busca ou que finalmente encontravam sozinhos a maneira de sair de lá, por pura sorte. Delbert McCready, conhecido de Ev desde a infância, não havia sido um destes casos. Del entrara na Floresta do Big Injun levando sua espingarda de caça de doze calibres, na terça-feira, 10 de novembro de 1947. Passadas quarenta e oito horas sem que ele aparecesse, a Sra. McCready ligara para Alf Tremain, que era o chefe de polícia naqueles tempos. Um grupo de busca entrou na floresta, onde a Estrada de Nista sumia aos poucos na Pedreira Diamante e, pelo final da semana, já contava com duzentos homens.

Estavam todos prontos a dar Del por perdido — cuja filha era, naturalmente, Hazel McCready — quando ele saiu cambaleando da floresta, ao longo do curso do riacho Preston, pálido, aturdido e dez quilos mais leve do que quando entrara lá.

Ev foi visitá-lo no hospital.

— Como foi que isso aconteceu, Del? A noite era clara. Havia estrelas. Você sabe ler as estrelas, não sabe?

— Claro que sei. — Del parecia profundamente envergonhado. — Pelo menos, sempre soube.

— E o musgo... Foi você quem me ensinou a encontrar o norte, observando o musgo nas árvores, quando éramos crianças.

— Hum-hum — respondeu Del.

Nada mais disse. Ev deu-lhe tempo, depois insistiu.

— E então, o que aconteceu?

Del ficou muito tempo calado. Depois, em uma voz quase inaudível, falou:

— Eu fiquei mudado.

Ev deixou o silêncio prolongar-se, sem digerir o que ouvira.

— Tudo estava indo bem por algum tempo — resumiu Del finalmente. — Cacei durante a maior parte da manhã, sempre à procura do que abater e sempre sem encontrar rastros frescos. Então, sentei-me e comi meu almoço, com uma garrafa da cerveja de minha mãe. Isso me deixou sonolento e dormi. Tive alguns sonhos engraçados... não recordo como eram, mas sei que pareciam esquisitos. E, veja bem! Isto aconteceu enquanto eu dormia.

Del McCready erguera o lábio superior e mostrara a Ev uma falha de dente naquele lugar.

— Perdeu um dente?

— Hum-hum... estava caído na braguilha de minhas calças, quando acordei. Caiu enquanto eu dormia, imagino, mas era difícil ter problemas com os dentes, pelo menos, não depois que um dente sizo ficou impactado e quase me matou. A essa altura, no entanto, já escurecia...

— Escurecia?

— Sei o que isso pode parecer, não se preocupe — disse Del, constrangido, mas era o constrangimento de alguém profundamente envergonhado. — Eu apenas dormi durante a tarde inteira e, quando me levantei, Ev...

Seus olhos giraram e encontraram os de Ev durante um mísero segundo, desviando-se logo após, como se não pudesse encarar seu velho amigo por mais de um segundo.

— Foi com se alguma coisa me tivesse roubado os miolos. A fada dos dentes, talvez.

Del riu, mas não havia muito humor em seu riso.

— Perambulei durante algum tempo — continuou ele, — pensando que seguia a estrela Polar, mas quando vi que mais ou menos às nove horas ainda não tinha chegado à Estrada Hammer Cut, dei uma esfregadela nos olhos e percebi que não era a Polar coisa nenhuma, e sim um dos planetas — Marte ou Saturno, sei lá. Resolvi me deitar para dormir e, até aparecer seguindo o riacho Preston, uma semana mais tarde, só me lembro de um trechinho aqui e outro acolá.

— Bem... — Ev interrompeu-se. Aquilo era algo inteiramente diverso do Del que ele conhecia, cuja cabeça sempre fora tão equilibrada como um nível de carpinteiro. — Você entrou em pânico, Del?

Del girou os olhos para tornar a encontrar os de Ev. Ainda mostravam uma expressão envergonhada, porém neles agora também havia uma ponta de verdadeiro humor.

— Um homem não pode permanecer em pânico uma semana inteira. Eu não acredito que seja possível — respondeu secamente. — É cansativo demais.

— Então, você apenas...

— Eu apenas andei por lá — concordou Del, — mas ignoro o que fazia. Sei que quando acordei daquele cochilo, meus pés e meu traseiro estavam com cãibras, entorpecidos. Também sei que em um daqueles sonhos, pareceu-me ouvir alguma coisa zumbindo — entenda, da maneira com se pode ouvir linhas de alta tensão zumbindo em um dia parado — e foi tudo. Esqueci toda a minha prática e fiquei rodando pela floresta, como alguém que nunca a tivesse visto antes. Quando encontrei o riacho Preston, sabia o suficiente para segui-lo e vim acordar aqui. Acho que agora sou o motivo de riso da cidade inteira, mas estou grato por continuar vivo. Grato à misericórdia divina.

— Você não é motivo de riso de lugar nenhum, Del — disse Ev.

Era mentira, claro está, já que Del estava sendo exatamente isso. Esforçou-se para ignorar as piadinhas durante quase cinco anos, e quando ficou certo de que os piadistas da barbearia nunca o deixariam em paz, mudou-se para East Eddington e lá abriu uma combinação de garagem e pequena oficina mecânica. Ev ainda aparecia para visitá-lo de vez em quando, porém Del não tomou a aparecer em Haven muitas vezes. Ev adivinhava saber por quê.

 

Sentado em seu quarto alugado, Ev fechou o compasso o mais apertadamente que pôde e desenhou o menor círculo possível, o menor que o compasso poderia fazer. Havia apenas uma casa no interior desse círculo diminuto, fazendo-o pensar: Essa é a casa mais próxima do centro de Haven. Curioso é que nunca tenha pensado nela antes.

Tratava-se da propriedade do velho Garrick, situada junto à Estrada de Derry, com a Floresta Big Injun ampliando-se atrás dela.

Este último círculo devia ter sido desenhado em vermelho, se não em outra cor...

Bobbi Anderson, sobrinha de Frank, era quem agora morava na propriedade Garrick — não que vivesse da agricultura, claro; ela escrevia livros. Ev nunca havia trocado muitas palavras com ela, porém sabia que tinha boa reputação na cidade. Pagava as contas pontualmente, diziam todos, não se envolvia em mexericos. Além disso, escrevia boas histórias do velho oeste que podiam ser lidas atentamente, em vez de cheias de monstros faz-de-conta e uma montoeira de palavras indecentes, como os livros daquele sujeito que vivia lá em Bangor. Todos diziam que os livros dela eram faroestes danados de bom.

Especialmente se escritos por uma moça.

O pessoal de Haven apreciava Bobbi Anderson mas, naturalmente, ela só vivera treze anos na cidade, e ainda se teria que esperar para ver no que dava. A maioria concordava em que o velho Garrick havia sido doido varrido. Sempre cultivara uma boa horta, porém isso não modificara seu estado mental. Vivia tentando contar seus sonhos a alguém. Eram sonhos geralmente sobre a Segunda Vinda. Após algum tempo, até mesmo Arlene Cullum, uma vendedora que tinha o zelo de uma mártir cristã, procurava escapulir, quando via o caminhão de Frank Garrick (cujo pára-choques era cheio de adesivos dizendo coisas como SE O ARREBATAMENTO FOR HOJE, ALGUÉM ASSUMA O MEU VOLANTE) descendo a rua principal da cidadezinha.

Em fins dos anos 60, o velho ficara maníaco sobre discos voadores. Dizia algo sobre Elias ter visto uma roda dentro de outra roda, tendo sido carregado para o céu por anjos dirigindo carruagens de fogo, impulsionadas por eletromagnetismo. Frank Garrick estava de miolo mole e morrera de um ataque do coração, em 1975.

Antes dele morrer, no entanto, pensou Ev, com um frio crescente, perdeu todos os dentes. Eu notei o fato e me lembro de Justin Hurd, morador da beira da estrada, também ter comentado a respeito e... e agora Justin é o mais próximo no pequeno círculo, exceto pela própria Bobbi, claro, e Justin não era o que se poderia chamar de modelo de sanidade e juízo. Nas poucas vezes em que o vi, antes de vir para cá, pareceu-me estar vendo o velho Frank.

Era curioso, pensou ele a princípio, que nunca houvesse relacionado o rumo das coisas peculiares que tinham acontecido dentro daqueles dois círculos interiores. Nem ele e nem ninguém. Um raciocínio mais prolongado o fez decidir que, afinal de contas, isso não era assim tão estranho. Uma vida — em especial quando longa — era composta de milhões de eventos; estes formavam uma espessa tapeçaria, entretecida em muitos padrões. Um padrão como este — as mortes, assassinatos, caçadores perdidos, o doido Frank Garrick, talvez até mesmo aquele singular incêndio na casa dos Paulson — só saltava aos olhos, se alguém o estivesse procurando. Depois de percebido, era o caso da pessoa perguntar-se como é que não o percebera antes. Entretanto, se a pessoa não estivesse...

Neste momento, surgiu-lhe um novo pensamento: talvez Bobbi Anderson não estivesse perfeitamente bem. Recordou que, desde o começo de julho, talvez mesmo antes, houvera sons de maquinaria pesada em funcionamento, vindo da Floresta do Big Injun. Ev ouvira os sons e não lhes dera importância — o Maine era espessamente coberto de florestas, de maneira que os sons tinham uma natureza bastante familiar. A idéia mais provável era de que a Companhia de Papel da Nova Inglaterra estivesse abrindo mais uma área para o trabalho dos madeireiros, dentro de suas terras.

Agora que pensava nisso, contudo — agora que já percebera o padrão — Ev recordou que os sons não vinham de uma distância suficiente para provirem das terras da CPNI. Aqueles sons provinham da propriedade Garrick. Recordou também que os sons anteriores — o zumbido lamentoso e cíclico de uma serra de cadeia, o estalido e tombo de árvores caindo, o rugido tossido de um martelete movido a gasolina — haviam sido substituídos por outros que ele não associava ao trabalho madeireiro, de maneira alguma. Estes últimos sons tinham sido... o quê? Bem, talvez de mecanismos removendo terra.

Depois que se captava o padrão, as coisas ajustavam-se no lugar, como a última dúzia de peças encaixando-se sem dificuldade, em um gigantesco quebra-cabeças.

Ev ficou olhando o mapa e os círculos. Um terror escuro e entorpecedor pareceu estar enchendo-lhe as veias, congelando-se de dentro para fora.

Uma vez percebido o padrão, era impossível deixar de vê-lo.

Ev fechou o atlas com força e foi para a cama.

 

Onde foi incapaz de dormir.

O que estarão eles fazendo lá na floresta, esta noite? Construindo coisas? Dando sumiço a pessoas? O quê?

A cada vez que quase pegava no sono, surgia uma imagem: a de todos em Haven Village parados na Rua Principal, com expressões drogadas e sonhadoras, todos olhando para o sudoeste, na direção daqueles sons, como mulçumanos voltados para Meca, a fim de orarem.

Maquinaria pesada... maquinaria para mover terra.

À medida que as peças se encaixam no quebra-cabeças, começamos a ver o quadro, mesmo não havendo uma ilustração na caixa para auxiliar-nos. Deitado em sua cama estreita, não muito longe de onde Hilly jazia em coma, Ev Hillman pensou ter captado muito bem o quadro. Não todo ele, claro, porém uma boa parte. Viu-o e soube, perfeitamente bem, que ninguém lhe daria crédito. Não sem uma prova. E ele não ousava voltar, não ousava colocar-se ao alcance deles. Porque não lhe permitiriam sair uma segunda vez.

Alguma coisa. Alguma coisa, lá na Floresta do Big Injun. Alguma coisa no solo, alguma coisa na terra que Frank Garrick legara à sobrinha, a moça que escrevia aqueles livros de faroeste. Alguma coisa que enlouquecia bússolas e aturdia mentes humanas, quando alguém chegava perto demais. Que Ev soubesse, poderiam existir tais depósitos estranhos espalhados pelo mundo inteiro. Pelo menos, isso talvez explicasse por que, em determinados lugares, as pessoas pareciam tão infernalmente fulas da vida o tempo todo. Tinha que ser alguma coisa ruim. Assombrada. Possivelmente amaldiçoada.

Ev remexeu-se inquietamente, virou de um lado para outro na cama, contemplou o teto.

Tinha que haver algo na terra. Bobbi Anderson descobrira isso e agora escavava, ela e aquele sujeito que estava em sua propriedade. Um sujeito chamado... chamado...

Ev esforçou-se, mas não conseguiu recordar. Lembrava-se da maneira como Beach Jernigan comprimira os lábios, quando um dia, no Haven Lunch, o nome desse cara surgira na conversa. Os freqüentadores habituais do estabelecimento tinham acabado de ver o homem saindo do mercado com um saco de mantimentos. Segundo Beach, ele morava em Troy; tinha uma casinha arruinada, com estufa de lenha e plástico substituindo vidraças.

Alguém comentou que o sujeito era instruído.

Beach respondeu que instrução apenas não bastava para uma pessoa ser levada em alta conta.

Ev recordava que ninguém, no Lunch, discutira este ponto.

Nancy Voss se mostrara igualmente desaprovadora. Disse que o amigo de Bobbi havia baleado a esposa, mas fora solto por ser um professor universitário.

— Se você tiver um pergaminho escrito com palavras latinas, neste país, pode levar a melhor em qualquer coisa — comentava ela.

Todos ficaram espiando o sujeito entrar no caminhãozinho de Bobbi e começar a dirigir, retornando à propriedade do velho Garrick.

— Ouvi dizer que ele tem mestrado em bebedeira — disse o velho Dave Ruthledge, sentado na última banqueta, que era o seu lugar especial. — Quem vem de lá, conta que o cara está sempre bêbado como um gambá.

Os que o ouviram explodiram em risos mesquinhos e mexeriqueiros, típicos de gente de interior. Eles não haviam simpatizado com o amigo de Bobbi. Por quê? Porque ele baleara a esposa? Porque bebia? Porque vivia com uma mulher com quem não era casado? Ev sabia melhor. Naquele dia, no Lunch estavam homens que não apenas surravam as esposas, mas que as forjavam em modelos inteiramente novos. Ali, isto fazia parte do código: um sujeito era obrigado a virar sua velha esposa pelo avesso, se ela não “fosse boazinha”. Ali, havia homens que viviam bebendo cerveja das onze da manhã às seis da noite, e das seis da noite à meia-noite, uísque ordinário e barato. Eles eram capazes de consumir a aguardente “Velho Madeireiro”, coada em um lenço esfiapado, se não tivessem dinheiro para o uísque. Aqueles homens tinham vida sexuais de coelhos, pulando de toca em toca. E como mesmo ele se chamava?

Ev deslizou para o sono. Viu-os em pé nas calçadas, na grama da biblioteca pública, junto ao pequeno parque, olhando sonhadoramente na direção daqueles sons. Acordou bruscamente outra vez.

O que você descobriu, Ruth? Por que eles a mataram?

Ev se virou sobre o lado esquerdo.

David está vivo... mas para trazê-lo de volta, tenho de começar em Haven.

Virou-se novamente, agora para o lado direito.

Eles me matarão, se eu voltar. Houve um tempo em que quase fui tão estimado por lá, como a própria Ruth... pelo menos, era como eu gostava de pensar. Agora eles me odeiam. Vi nos olhos deles, na noite em que começaram a procurar David. Tirei Hilly de lá, porque ele estava doente e precisando de um médico, sim... mas foi danado de bom ter um motivo para vir embora. Talvez só me tivessem deixado sair, porque estavam preocupados com David. Talvez apenas quisessem ficar livres de mim. De um modo ou de outro, tive sorte em sair. Eu jamais conseguiria sair de novo. Então, como posso voltar lá? Não, eu não posso voltar.

Ev remexeu-se e virou-se na cama, encurralado por dois imperativos — teria que voltar a Haven, se quisesse salvar David, antes que o garotinho morresse, mas se voltasse a Haven, seria morto e rapidamente enterrado no campo dos fundos da casa de alguém.

Um pouco antes da meia-noite, ele mergulhou em um cochilo perturbado, que rapidamente ganhou a profundidade de um sono sem sonhos, originado pela profunda exaustão que sentia.

 

Acordou mais tarde do que costumava, em anos, abrindo os olhos na manhã de terça-feira, quando já eram dez e quinze. Sentiu-se revigorado e saudável, pela primeira vez em muito tempo. O sono também lhe havia proporcionado mais uma coisa positiva: enquanto dormia, pensara na maneira de conseguir voltar a Haven e tornar a sair de lá. Talvez. Em benefício de David e de Hilly, era um risco que ia enfrentar.

Sua idéia era de que poderia entrar e sair de Haven no dia do funeral de Ruth McCausland.

 

Butch “Monstro” Dugan era o maior homem que Ev já vira. Sempre achara que o qualificativo caberia a Henry, o pai de Justin Hurd, sem exagero — Henry medira um e noventa e cinco, pesando cento e noventa quilos, com ombros tão largos, que precisava passar de banda pela maioria das portas — mas agora pensou que este sujeito era um pouquinho mais alto. Uns dez ou quinze quilos mais leve, talvez, porém isso era tudo.

Quando Ev apertou-lhe a mão, viu que notícias a seu respeito já estavam no ar. O rosto de Dugan dizia isso.

— Sente-se, Sr. Hillman — disse Dugan, sentando-se ele próprio em uma cadeira giratória que dava a impressão de haver-se originado de um gigantesco carvalho. — O que posso fazer pelo senhor?

Ele espera que eu comece a enfurecer-me, pensou Ev calmamente, da maneira como sempre esperávamos que Frank Garrick fizesse, quando detinha algum de nós na rua. Bem, acho que não o desapontarei. Entretanto se pisar com cautela, Ev, talvez consiga levar a melhor. Afinal, você agora sabe aonde quer chegar.

— Já que perguntou, talvez possa fazer alguma coisa — disse Ev. Pelo menos, não estivera bebendo; fora um erro tentar falar com o repórter depois daquelas cervejas. — Segundo o jornal, você irá ao funeral de Ruth McCausland amanhã.

Dugan assentiu.

— Sem dúvida. Ruth era uma amiga pessoal.

— Outros do quartel de Derry também irão? Diz o jornal que o marido dela foi um policial, e ela própria também trabalhava na polícia — oh, bem sei que ser chefe de polícia de uma cidadezinha não é lá essas coisas, mas entende o que quero dizer, não? Haverá outros, não haverá?

Dugan agora franzia o cenho e tinha um bocado de testa para franzir.

— Não entendo bem o que pretende, Sr. Hillman — disse Dugan. Seu rosto acrescentou: Além disso, estou muito ocupado esta manhã, caso não saiba. Estou com dois policiais desaparecidos, começa aparecer, cada vez mais, que eles enfrentaram alguns caçadores furtivos que abateram um cervo, que os caçadores entraram em pânico e os mataram; estou a todo vapor trabalhando nisto e, ainda por cima, minha velha amiga Ruth McCausland morreu. Não tenho tempo nem paciência para tolices.

— Sei que não entende, mas vai entender. Ela teria outros amigos que irão ao sepultamento?

— Sim. Uma meia dúzia ou mais. Também estarei lá, chegando um pouco mais cedo, a fim de falar com algumas pessoas sobre um caso relacionado.

Ev assentiu.

— Sei sobre o caso relacionado — disse, — como acho que sabe a meu respeito. Pelo menos, acho que sabe.

— Sr. Hillman...

— Estive falando tolamente e para as pessoas erradas, nos momentos errados — afirmou Ev, com a mesma voz tranqüila. — Em outras circunstâncias, isso não teria acontecido, mas tenho andado muito confuso. Um de meus netos está desaparecido. O outro se encontra era uma espécie de coma.

— Sim, eu sei.

— Meu estado de confusão tem sido tal, que na verdade eu nem sabia se estava indo ou vindo. Assim, dei com a língua nos dentes para as enfermeiras e depois fui a Bangor, falar com um repórter. Bright. Tenho uma idéia de que você sabe da maioria das coisas que tive de dizer a ele.

— Pelo que entendi, o senhor acha que houve alguma espécie de... de conspiração, no assunto do desaparecimento de David Brown e...

Ev precisou conter-se para não rir. A palavra tanto tinha de bizarra, como de apta. Jamais havia pensado nela. Oh, claro que havia uma conspiração em anda-mento! Um inferno de conspiração!

— Perfeitamente — disse ele. — Acredito que houve uma conspiração e penso que tem nas mãos três casos muito mais interligados do que imagina — o desaparecimento de meu neto, o desaparecimento daqueles dois policiais e a morte de Ruth McCausland — minha amiga, tanto quanto sua.

Dugan pareceu algo sobressaltado... e, pela primeira vez, aquele ar de rejeição sumiu de seus olhos. Pela primeira vez, Ev sentiu que Dugan o via realmente, via-o como Everett Hillman, não apenas um velho caduco e doido, que aparecera ali para estragar-lhe parte da manhã.

— Talvez seja melhor ir dando indicações daquilo em que acredite — disse Dugan, apanhando um bloco de papel.

— Não. Pode esquecer seu bloco de notas.

Dugan encarou-o em silêncio por um momento. Não largou o bloco, mas deixou o lápis de lado.

— Bright pensou que eu fosse maluco... e não lhe contei nem metade do que pretendia — disse Ev, — de maneira que também não direi nada a você. Entretanto, existe a questão — acho que David ainda está vivo. Ignoro se o menino continua em Haven, mas penso que, se voltar lá, é possível ter uma idéia de onde ele se encontra. Ora, tenho motivos — creio que excelentes motivos — para crer que não sou desejado em Haven. Tenho motivos para pensar que, se voltar lá, sob a maioria das circunstâncias, o mais provável é que desapareça com David Brown. Ou que sofra um acidente, como Ruth.

O rosto de Butch Dugan modificou-se.

— Preciso pedir-lhe que se explique, Sr. Hillman — disse.

— Não vou explicar-me. Não posso. Sei o que sei e acredito no que acredito, mas não tenho uma migalha de prova. Sei o quanto posso parecer doido, mas se olhar bem no meu rosto, pelo menos descobrirá uma coisa: eu acredito no que estou dizendo.

Dugan suspirou.

— Se trabalhasse neste ramo, Sr. Hillman, saberia como parece sincera a maioria dos mentirosos. — Ev começou a dizer algo, porém Dugan meneou a cabeça. — Esqueça isso. Não vai adiantar. Só tive seis horas de sono, desde a noite de domingo. Também estou ficando velho para essas maratonas. O fato é: acredito que seja sincero. Entretanto, o senhor apenas produziu sons agourentos, falando em rodeios. Às vezes, as pessoas agem assim quanto têm medo, porém em geral é por nada mais terem a dizer. Seja como for, não disponho de tempo para ficar insistindo com o senhor. Já respondi ao que perguntou; talvez fosse melhor dizer o que pretende.

— Com prazer. Vim aqui por dois motivos, agente Dugan. Primeiro, queria certificar-me de que amanhã haverá muitos policiais em Haven. Quando há uma boa concentração de policiais em algum lugar, há menos probabilidades de que aconteçam coisas, concorda?

Dugan nada disse, apenas fitou Ev inexpressivamente.

— Em segundo lugar, vim aqui para dizer-lhe que também estarei em Haven amanhã. Não para comparecer ao funeral de Ruth. Vou levar comigo uma pistola Very e, se durante aquele funeral você ou algum de seus homens avistar no céu o disparo de uma grande e velha granada sinaleira, ficará sabendo que me meti em dificuldades com alguma dessa loucura em que ninguém acredita. Estou me fazendo entender?

— O senhor disse que voltar a Haven poderia ser... hum... prejudicial à sua saúde.

O rosto de Dugan continuava inexpressivo, porém não importava; Ev sabia que ele retornara à idéia original: seu interlocutor, afinal de contas, era um velhote louco.

— Sob a maioria das circunstâncias, foi o que eu disse. Nas circunstâncias atuais, creio que talvez possa sair-me bem. Ruth era altamente querida em Haven, um fato que nem preciso dizer-lhe. A maioria da cidade comparecerá ao sepultamento. Não sei se aquela gente continuava a querê-la quando ela morreu, mas isso não vem ao caso — quase todos estarão lá.

— Como pode ter certeza? — perguntou Dugan. — Ou será outra daquelas coisas sobre a qual não pode falar?

— Oh, eu posso falar sobre isto. Acontece que, se os moradores de Haven não forem ao funeral, isto pareceria errado.

— Para quem?

— Para você. Para os outros policiais que foram amigos dela e de seu marido. Para os políticos do Comitê Democrata do Condado de Penobscot. Olhe, não seria surpresa para mim se o congressista Brennan enviasse alguém de Augusta para representá-lo — ela trabalhou duramente na campanha dele, quando se candidatou ao posto em Washington. Ruth não era apenas uma figura local, compreenda, e isto é parte do que eles terão de enfrentar. São como pessoas que não querem dar uma festa e são forçadas a dá-la mesmo assim. Espero que estejam tão ocupados, fazendo com que tudo pareça adequado — eles têm que promover um bom espetáculo — que só fiquem sabendo da minha presença em Haven depois que eu for embora de lá.

Butch Dugan cruzou os braços sobre o peito. Ev estivera próximo da verdade — a princípio, Dugan começara a crer que David Bright, em geral tão acurado intérprete do comportamento humano, desta vez houvesse errado; Hillman era tão lúcido quanto ele. Agora, ele se sentia um tanto perturbado, não porque Hillman finalmente se revelara maluco, mas por ser realmente maluco. No entanto... havia algo curiosamente persuasivo na voz calma e racional do velho, na firmeza de seu olhar.

— Da maneira como fala, parece que todos em Haven estavam envolvidos em algo — disse Dugan, — o que acredito ser impossível. Quero que saiba disto.

— Sim, é o que diria qualquer pessoa normal. Daí por que eles conseguiram levar a melhor por tanto tempo. Há cinqüenta anos, todos julgavam que a bomba atômica era impossível, ririam à idéia de uma TV e mais ainda da de um videocassete. O mundo não mudou muito, agente Dugan. Em geral, as pessoas enxergam no máximo até o horizonte, e basta. Se alguém falar que existe algo acima dele, elas não ouvem.

Ev ficou em pé e estendeu a mão acima da mesa de Dugan, como se tivesse todo o direito do mundo de esperar que um policial a apertasse.

Surpreso, Butch fez justamente isso.

— Bem, sei que desde o início achou que eu fosse frouxo dos miolos — disse Ev, com um leve sorriso entristecido, — e acho que falei o suficiente para duplicar a idéia. Entretanto, Fiquei sabendo o que queria saber e falei o que precisava falar. Faça um favor a um velho e, de vez em quando, dê uma espiada no céu. Caso aviste a explosão de uma granada sinaleira púrpura...

— A floresta está seca este verão — disse Dugan.

As palavras ainda lhe saíam da boca, e ele já as considerava inúteis, singularmente sem importância, eram quase frívolas. Ao mesmo tempo, percebeu que era induzido inapelavelmente a tornar a acreditar.

Pigarreando, ele falou por fim:

— Se realmente possui uma arma que dispare foguetes sinalizadores, ao usá-la poderia dar início a um incêndio infernal na floresta. Se não tem licença para usar tal coisa — e, droga, sei muito bem que não tem — isso poderia levá-lo à cadeia.

O sorriso de Ev aumentou um pouco, porém ainda não havia humor nele.

— Se avistar o clarão do foguete sinalizador — disse ele, — penso que ser trancafiado em Bangor será a menor de minhas preocupações. Bom-dia, agente Dugan.

Ev saiu da sala e fechou tranqüilamente a porta atrás de si. Dugan ficou parado a um instante, tão perplexo e inquieto como jamais estivera na vida. Deixe-o ir embora, pensou, então começando a mover-se.

Alguma coisa estivera perturbando Butch Dugan. O desaparecimento de dois agentes, a quem conhecia e estimava, o deixara temporariamente fora de seu estado normal. A visita de Hillman trouxera o assunto de volta, e era isso que o enviava atrás do velho.

Recordava sua última conversa com Ruth. Ficara preocupado com ela desde então; a maneira como manejara a busca a David Brown, nada tinha a ver com o modo de agir da Ruth McCausland que conhecia. Que se lembrasse, fora a única vez em que ela agira de maneira não profissional.

Então, na noite antes dela morrer, ele lhe havia telefonado sobre a investigação, queria obter e dar informações; resumindo, trocar palpites. Sabia que nenhum deles possuía alguma pista, porém às vezes é possível obter-se algo de pura e simples especulação, algo como descobrir um veio de ouro. Durante a conversa, surgira à baila o assunto do avô do menino. A esta altura, Butch havia falado com David Bright, do News — em verdade, tomara uma cerveja com ele — e comentara com Ruth a idéia de Ev, sobre a cidade inteira ter ficado insana, de alguma estranha maneira.

Ruth não tinha rido da história e nem tagarelara sobre a caduquice de Ev Hillman, como ele havia esperado. Dugan não tinha bem certeza do que Ruth lhe dissera, porque logo em seguida a ligação começara a deteriorar-se — não que nisto houvesse algo incomum; a maioria das linhas indo para cidadezinhas como Haven ainda era sobre postes, de maneira que as conexões iam regularmente para o inferno — bastava um vento forte, para que uma pessoa e seu interlocutor tivessem a sensação de falar através de latas vazias de sopa de tomate, interligadas por uma extensão de barbante encerado.

É melhor dizer a ele para não se meter nisto. Ruth havia dito — este aí, Dugan tinha certeza do que ouvira. Então, pouco antes de parar inteiramente de ouvi-la, teve a impressão de que ela dissera algo sobre — curiosamente — meias de náilon. Devia ter ouvido mal, sem dúvida, porém não poderia enganar-se sobre o tom — tristeza e grande exaustão, como se seu fracasso em encontrar David Brown a houvesse derrubado. Um momento depois, a ligação interrompia-se em definitivo. Não se preocupara em ligar outra vez, porque já fornecera a ela todas as informações que possuía... em realidade, bem poucas.

No dia seguinte, Ruth estava morta.

É melhor dizer a ele para não se meter nisto. Era até onde ele tinha certeza.

Ora, eu tenho motivos... para crer que não sou desejado em Haven.

Dizer a ele para não se meter nisto.

O mais provável é que desapareça como David Brown.

Não se meter nisto.

Ou que sofra um acidente, como Ruth McCausland.

Não se meter.

Alcançou o velho no pátio de estacionamento.

 

Hillman tinha um velho Valiant púrpura, com a parte inferior das portas já bastante enferrujada. Ergueu os olhos, ainda com a porta do motorista aberta, quando Dugan surgiu acima dele.

— Eu vou com o senhor amanhã.

Os olhos de Ev arregalaram-se.

— Você nem mesmo sabe aonde vou!

— Certo, não sei. Contudo, estando em sua companhia, não precisarei preocupar-me com a possibilidade de que incendeie metade das florestas do leste do Maine, tentando enviar-me uma mensagem, como 007.

Ev fitou-o avaliadoramente, depois abanou a cabeça.

— Eu me sentiria melhor tendo companhia — disse, — em especial um sujeito grandalhão com porte de arma. Entretanto, eles não são idiotas lá em Haven, agente Dugan. Nunca foram, e tenho a intuição de que, nestes últimos tempos, ficaram ainda mais espertos. Esperam vê-lo no funeral dela. Se não o virem, começarão a desconfiar.

— Céus! Eu gostaria de saber como, diabos, o senhor consegue ficar aí, tagarelando toda essa baboseira e ainda parecer tão infernalmente lúcido!

— Talvez porque também saiba — disse Ev. — Saiba o quanto isto é curioso. Como é singular, todas estas coisas se terem iniciado em Haven. — Então, com uma presciência que era espantosa, ele acrescentou: — Ou talvez conhecesse Ruth o suficiente para perceber que ela não se encontrava em seu estado normal.

Os dois homens ficaram entreolhando-se no pátio de estacionamento, forrado de cascalhos, do quartel de Derry, o sol caindo sobre eles, com suas sombras, nítidas e negras, claramente enviesadas às duas da tarde.

— Esta noite, deixarei correr a notícia de que estou doente — disse Dugan. — Problemas de estômago. A notícia percorrerá o quartel. O que acha da idéia?

Ev assentiu com súbito alívio — um alívio tão grande, que chegava a ser chocante. A idéia de penetrar furtivamente em Haven o amedrontara mais do que queria admitir, em especial para si mesmo. Conseguira mais ou menos convencer este tira grandalhão de que algo podia estar acontecendo por lá; podia ler isto em seu rosto. Convencer a meio talvez não fosse grande coisa, porém já era um passo gigantesco, comparado à situação anterior. E, naturalmente, não conseguira isso sozinho; Ruth McCausland ajudara.

— Tudo bem — disse, — mas escute uma coisa, agente Dugan, e escute bem, porque nossas vidas podem depender disto amanhã. Não ligue para nenhum dos homens que irão ao funeral amanhã e conte que o motivo de sua ausência lá é outro que não uma indisposição. Telefone para algumas pessoas esta noite e explique que, de fato, está tão mal que quase não se agüenta em pé, que espera ser capaz de ir ao funeral, mas não tem certeza.

Dugan franziu a testa.

— Ora, por que eu deveria dizer...

De repente ele soube, e ficou de boca aberta. O velho continuou a encará-lo, sem perder a calma.

— Deus do céu! Está querendo dizer que, em sua opinião, as pessoas em Haven lêem pensamentos? Que se meus homens souberem que em realidade não estou passando mal, os moradores da cidade captarão o fato diretamente de suas cabeças?

— Eu não lhe disse coisa alguma, agente Dugan — respondeu Ev. — Você é que me disse.

— Sr. Hillman, sinceramente, acho que está imaginando...

— Quando vim procurá-lo, não esperava que quisesse ir comigo. Aliás, tampouco pretendia convencê-lo a ir. No máximo, esperava que ficasse atento e visse meu sinalizador, caso eu tivesse problemas, que mantivesse o fogo baixo naquele ninho de víboras, por algum tempo mais. Entretanto, se oferece mais a um homem, esse homem quer mais. Confie em mim um pouquinho mais. Por favor. Por Ruth... se foi isso que o convenceu a vir comigo, estou querendo aceitar sua oferta. Mais uma coisa: seja como for, irá sentir algumas coisas peculiares amanhã.

— Já senti algumas bastante peculiares hoje — respondeu Dugan.

— Hum-hum — disse Ev, esperando que ele se decidisse.

— Tem algum lugar de fato em mente? — perguntou o policial, depois de um instante. — Ou pretende apenas perambular à volta da cidade, até ficar cansado?

— Tenho um lugar em mente — disse Ev com suavidade.

E pensou: Oh, sim. Sim, senhor! Nos fundos da propriedade do velho Garrick, na orla da Floresta do Big Injun, onde o funcionamento de uma bússola nunca valeu uma latinha de bosta em uma mina de ouro. E acredito que encontraremos um caminho muito bom através da floresta até lá — o que quer que seja “lá” — porque um equipamento como o que tem sido usado por Bobbi Anderson e seu amigo, deixa uma trilha tão larga como uma auto-estrada. Não, não creio que haja o menor problema em encontrá-la.

— Tudo bem. Dê-me o seu endereço em Derry e irei apanhá-lo às nove horas, em meu carro pessoal. Chegaremos em Haven mais ou menos à hora em que começará a cerimônia.

— O carro é comigo — disse Ev, em sua voz calma. — Não este aqui, porque já o conhecem em Haven. Alugarei outro. E seria melhor que aparecesse às oito, porque teremos que rodar um bocado de estradas secundárias...

— Posso chegar a Haven, sem ter que passar pela cidade — disse Dugan. Não precisa preocupar-se com isso.

— Não me preocupo. Entretanto, prefiro que contornemos a cidade inteira, entrando pelo lado de Albion. Acho que sei justamente como fazer tal manobra.

— Ora, diabo, por que tem de ser pelo final da cidade?

— Porque é o ponto mais distante de onde eles estarão e por aí é que quero voltar a Haven. O mais longe possível deles.

— Está mesmo com medo, não?

Ev assentiu.

— Por que um carro alugado?

— Poxa! Não faça tantas perguntas! — exclamou Ev, girando os olhos de maneira tão cômica, que Butch Dugan sorriu.

— É o meu trabalho — disse ele. — Por que o senhor quer ir lá em um carro alugado? Ninguém em Haven identificará meu carro pessoal. — Ele fez uma pausa, pensando. — Pelo menos, não agora, com Ruth morta...

— Por causa da minha obsessão — disse Ev Hillman. Seu rosto subitamente se franziu em um sorriso de extraordinária doçura. — E uma pessoa que tem que pagar o preço da própria obsessão.

— Está bem — disse Butch. — Eu desisto! Oito horas. Seu trajeto, seu carro, sua obsessão! Devo estar maluco. Sem a menor dúvida!

— Amanhã a esta hora, creio que irá ter uma idéia muito melhor sobre o que seja maluquice — disse Ev.

Em seguida, entrou para seu velho Valiant púrpura, antes que Dugan pudesse fazer-lhe qualquer outra pergunta mais.

Na verdade, Butch não tinha mais perguntas a fazer. Sentia-se deprimido, como se houvesse comprado a Ponte de Brooklyn em seu primeiro dia na Cidade de Nova Iorque, desfazendo-se de seu dinheiro, embora soubesse que uma coisa tão grande provavelmente não estaria à venda. Ninguém é forçado a fazer o que não quer, pensou. Ele trabalhara no Departamento de Defraudações em Augusta durante três anos, sendo essa a primeira coisa que eles ensinavam. O velho havia sido singularmente persuasivo, mas Butch Dugan sabia que não fora persuadido a envolver-se nisto. Envolvera-se porque assim quisera. Porque amara Ruth McCausland e, dentro de cerca de um ano, teria reunido coragem suficiente para pedi-la em casamento. Porque quando alguém a quem amamos morre, em nosso coração surge um buraco negro, e uma forma de tapar tal buraco é recusando-nos a admitir que ele ou ela nos foi tomado por causa de um maldito acaso. Melhor ainda é podermos acreditar — ainda que por pouco tempo — que podemos descobrir quem ou que coisa foi o responsável por aquela morte. Isto torna o buraco um pouco menor. Até um tolo sabe disto.

Suspirando, sentindo-se muito mais velho do que na realidade, Dugan começou a caminhar de volta ao quartel.

Ev foi ao hospital e ficou ao lado de Hilly, a maior parte do restante daquele dia. Por volta das três horas, escreveu duas notas. Deixou uma delas sobre a mesa de cabeceira de Hilly, decorada por um vasinho de flores contra a brisa brincalhona, que ocasionalmente entrava pela janela aberta. A outra era mais comprida e, após terminá-la, dobrou-a e a colocou no bolso. Em seguida, deixou o hospital.

Dirigiu até uma pequena edificação no Parque Industrial de Derry. SUPRI-MENTOS MÉDICOS DO MAINE, anunciava o letreiro acima da estrada. Mais abaixo, isto: Especialidade em equipamentos para respiração e terapia respiratória desde 1946.

Declarou ao atendente o que queria. O homem disse que talvez fosse melhor ir até Bangor e falar com o pessoal da Downeast ScubaDive, uma firma especializada em mergulho em águas profundas. Ev explicou que um tanque para mergulho era a última coisa que desejava; estava interessado em algo que fosse o mais portátil possível, para uso em terra seca. Os dois falaram por mais algum tempo, e Ev foi embora, após assinar um recibo de aluguel por trinta e seis horas, referente a uma peça de equipamento especializada. O atendente da Suprimentos médicos do Maine ficou parado à porta, coçando a cabeça enquanto o via afastar-se.

 

A enfermeira leu a nota, ao lado da cama de Hilly.

Hilly,

Talvez eu demore um pouco a tornar a vê-lo, portanto, queria dizer-lhe da minha certeza de que você irá superar este mau pedaço e que, se puder ajudá-lo nisto, serei o avô mais feliz do mundo. Acredito que David continua vivo e, antes de mais nada, não acho que você tenha tido qualquer culpa no desaparecimento dele. Amo você, Hilly, e espero vê-lo em breve.

Vovô

Entretanto, ele nunca mais tornou a ver Hilly Brown.


 

O FUNERAL

A partir das nove da manhã, os moradores de fora da cidade que tinham conhecido Ruth McCausland ou trabalhado com ela começaram a chegar a Haven Village. Em pouco tempo, quase todo o espaço de estacionamento ao longo de Main Street, a rua principal, já estava ocupado. O Haven Lunch estava em franca atividade. Beach não parava de servir refeições ligeiras com ovos, bacon, salsichas e batatas fritas. O café era coado um bule atrás do outro. O congressista Brennan não tinha ido, mas enviou um assessor para representá-lo. Devia ter vindo pessoalmente, Joe, pensou Beach, com um sorrisinho encovado. Então, poderia conseguir um punhado de novas idéias sobre como governar.

O dia amanheceu límpido e puro, mais parecido a fins de setembro do que fins de julho. O céu era de um azul vivo, a temperatura de moderados vinte e dois graus, o vento do oeste soprando a uns trinta quilômetros horários. Mais uma vez havia gente de fora em Haven e, mais uma vez Haven podia oferecer-lhes um bom tempo. Um tempo com sorte. Entretanto, em pouco deixaria de importar se os estranhos estavam ou não com sorte, diziam os moradores da cidade entre si, sem necessidade de palavras; em pouco, os de fora é que cuidariam da própria sorte.

Um belo dia, poder-se-ia dizer, o melhor tipo de dia de verão na Nova Inglaterra, da espécie que os turistas procuravam. Um dia para estimular o apetite, abri-lo inteiramente. Os que chegavam, vindos de fora de Haven, encomendavam fartos desjejuns, como costumam fazer as pessoas com vigoroso apetite. Beach, contudo, reparava que a maioria daqueles desjejuns era consumido apenas pela metade. Os recém-chegados perdiam rapidamente a fome; a luz desaparecia de seus olhos e eles começavam a parecer, em boa maioria, pálidos e um tanto indispostos.

O Lunch estava apinhado de gente, mas a conversa esmorecia.

Talvez o ar de nossa cidadezinha não combine bem com vocês, pessoal, pensou Beach. Imaginou-se indo à despensa, onde estava a engenhoca que usara para livrar-se dos dois tiras abelhudos, escondida debaixo de uma pilha de toalhas de mesa. Imaginou-se trazendo-a para ali, uma enorme e mortífera bazuca, e simplesmente limpando seu estabelecimento de todos aqueles forasteiros, com um purificante jato de luz verde.

Não; agora, não. Ainda não. Logo não faria diferença. No próximo mês. Por ora, entretanto...

Baixando os olhos para o prato que limpava, ele viu o dente de alguém, misturado a ovos mexidos.

Os Tommyknockers estão chegando, meus amigos, pensou Beach. Entretanto, quando eles finalmente chegarem aqui, não creio que se dêem ao trabalho de bater; acho que simplesmente explodirão a maldita porta, sem perda de tempo.

O sorriso de Beach alargou-se. Raspou o dente que estava naquele prato, misturado ao resto dos ovos mexidos, jogando tudo no lixo.

 

Dugan sabia ficar calado quando queria e, nesta manhã, era justamente esse o seu desejo. Aparentemente, também era o desejo do velho. Dugan chegara ao prédio de apartamentos em que Ev Hillman estava morando, na parte baixa da rua principal, pontualmente às oito da manhã. Lá encontrara um jipe Cherokee, estacionado junto ao meio-fio, atrás do Valiant do velho.

Havia um enorme saco de aniagem no banco traseiro, a boca amarrada com barbante.

— Alugou isto em Bangor?

— Não. Na Associação de Automóveis de Darry — disse Ev.

— Deve ter pago uma nota.

— Não foi caro demais.

Isso encerrou a conversa. Uma hora e quarenta minutos mais tarde, eles estavam perto da linha divisória Albion-Haven. Teremos que rodar por um bocado de estradas secundárias, havia dito o velho, e isso não fora uma clássica afirmação, Butch podia perceber agora. Levara quase vinte anos dirigindo por aquela parte do Maine e sempre julgara conhecer a região como a palma da mão. Agora, contudo, sabia melhor. Hillman é que a conhecia com a palma da mão; em comparação, Butch Dugan tinha apenas um conhecimento geral da área, nada mais.

Tinham mudado da estrada de pedágio para a Rota 69; da 69 para uma estrada asfaltada de duas pistas; depois para uma estrada de cascalho, na zona oeste de Troy; em seguida para uma estradinha de terra batida; depois para outra estradinha com mato crescendo entre os sulcos formados pelas rodas; finalmente, passaram para uma trilha de madeireiros, invadida pelo mato e com aparência de ter sido seriamente utilizada por volta de 1950.

— Tem mesmo certeza de saber para onde, diabos, está indo? — gritou Butch, enquanto o Cherokee irrompia através de madeira apodrecida.

O jipe atolou-se, mas conseguiu safar-se, o motor rugindo, todas as quatro rodas espargindo lama e pedaços mastigados de pau. Ev limitou-se a assentir, aferrado ao grande volante do Cherokee, como um macaco velho e careca.

Uma estrada de madeireiro levou a outra e finalmente vararam um telão de folhagem, chegando a uma estrada de terra que Butch identificou como a Rota 5, da cidade de Albion. Butch achara a façanha impossível, mas o velho havia feito exatamente o prometido: conduzira-os por todo o trajeto ao redor de Haven, sem entrar lá uma única vez.

Agora, Ev freou o Cherokee, parando a apenas uns três metros de distância do indicador anunciando o limite da cidade de Haven. Desligou o motor e baixou o vidro de sua janela. Não havia outro som além do tiquetaqueado do motor. Também não ouviram pios de aves, o que Butch estranhou.

— O que tem dentro do saco de aniagem aí atrás? — perguntou.

— Todo tipo de coisas — disse Ev. — Não se preocupe com isso agora.

— O que estamos esperando?

— Sinos de igreja — respondeu Ev.

 

Às quinze para as dez daquela manhã, não foram os sinos da igreja metodista, na qual Ev fora criado e esperava ouvir, que tangeram convocando os que pranteavam Ruth — tanto os sinceros, como os preparados para derramar copiosas lágrimas de crocodilo — à igreja metodista, onde seria representado o primeiro dos três atos das festividades programadas (2º Ato: Cerimônias ao lado da sepultura; 3º Ato: Refrescos na biblioteca da cidade).

O Reverendo Goohringer, um homem tímido, que em geral não tinha coragem bastante para dizer “chô” a um ganso, algumas semanas atrás andara pela cidade, dizendo a todos que estava ficando cansado com toda aquela gongada.

— Então, por que não faz alguma coisa a respeito, Gooey? — perguntou-lhe Pamela Sargent.

Em toda a sua vida, o Rev. Lester Goohringer jamais havia sido chamado Gooey*, porém mal percebeu o detalhe, em seu atual estado de rancor.

— Talvez eu faça mesmo — respondeu ele, fitando-a taciturnamente através dos óculos de lentes grossas. — É bem provável que faça.

— Tem alguma idéia?

— Pode ser que tenha — disse ele, matreiramente. — O tempo dirá, não é mesmo?

— O tempo sempre diz, Gooey — replicou ela. — Sempre diz.

De fato, o Reverendo Goohringer tinha uma excelente idéia sobre aqueles sinos — mal podia acreditar que nunca lhe houvesse ocorrido antes, que fosse tão simples e bela. E o melhor sobre isso, era que não precisaria contar com os diáconos ou com a Assistência das Senhoras (uma organização que, aparentemente, atraía apenas dois tipos de mulheres — gordas, palermas, com seios do tamanho de barriletes, e desmazeladas de traseiros e bustos achatados, como Pamela Sargent, com sua piteira em imitação de marfim e uma tosse irritante de fumante), sem falar nos poucos membros bem de vida, em sua congregação... porque apelar para eles o deixava uma semana inteira com indigestão ácida. Ele não gostava de pedir. E não pediria porque isto de agora era algo que o Rev. Lester Coohringer poderia fazer completamente sozinho — e assim faria. Que todos eles se danassem, se sabiam entender uma piada!

— Quanto a você, Pam — sussurrara ele, enquanto ajeitava a fiação na caixa de fusíveis do porão da igreja, a fim de que agüentassem a alta voltagem necessária à sua idéia, — se tornar a me chamar de Gooey, eu a levo para o toalete público do presbitério e enterro em sua cona um desentupidor rotativo de canos que lhe extrairá os miolos... caso você mesma não os tenha mijado!

Ele deu uma risadinha cacarejada e continuou com sua fiação. O Rev. Lester Goohringer jamais tivera pensamentos tão grosseiros e nem pronunciara tais coisas grosseiras na vida, mas agora achava a experiência liberadora, estimulante. De fato, estava disposto a dizer a todos em Haven que, se não gostassem de seu novo carrilhão, que se fodessem em uma rosquinha giratória.

Entretanto, todos na cidade tinham achado a mudança magnífica. E assim era, de fato. Portanto, hoje o Rev. Goohinger sentia um orgulho de inflar o coração, enquanto apertava o novo interruptor colocado na sacristia e o som dos sinos flutuava acima de Haven, executando um potpourri de hinos sacros. Era um carrilhão programável, e o Rev. Lester Goohringer escolheu os hinos que tinham sido os prediletos de Ruth. Entre eles, havia alguns infalíveis e antigos, tanto metodistas como batistas: “Que amigo nós temos em Jesus” e “Este é o mundo de meu pai”.

O Rev. Goohringer recuou, esfregando as mãos de contentamento e espiando, quando as pessoas começaram a mover-se em direção à igreja, formando grupos de duas e três, atraídas pelos sinos, os sinos, o chamado dos sinos.

— Um barato! — exclamou o Rev. Goohringer.

Jamais se sentira melhor na vida e pretendia despachar Ruth McCausland para o além em grande estilo. Também era sua intenção pregar um panegírico espetacular.

Afinal de contas, todos eles a tinham amado.

 

Os sinos.

Dave Ruthledge, o mais velho cidadão de Haven, bandeou um ouvido para eles e sorriu desdentadamente — mesmo que os sinos houvessem soado com discordância, ele ainda sorriria, porque podia ouvi-los. Até princípios de julho, Dave havia sido quase completamente surdo, com os membros inferiores sempre frios e lívidos, porque sua circulação falhava continuamente. Afinal de contas, estava com noventa anos, idade que o tornava um cachorro idoso. Este mês, no entanto, sua audição e a circulação tinham melhorado de uma maneira mágica. Os outros lhe diziam que tinha uma aparência dez anos mais nova e, por Deus, ele se sentia vinte anos mais jovem. E, oh, isto não era o som daqueles sinos, tocando a coisa mais doce deste mundo? Levantando-se, Dave começou a caminhar para a igreja.

 

O chamado dos sinos.

Em janeiro, o assessor que o deputado federal Brennan enviara a Haven para representá-lo, estivera em Washington (capital) e lá conhecera uma bela jovem chamada Annabelle. Neste verão, ela viera ao Maine para estar com ele e, nesta manhã, acompanhava-o a Haven. Ele lhe prometera que pernoitariam em Bar Harbor, antes de voltarem para Augusta. A princípio, ela considerou que fora uma má idéia, porque começou a sentir-se um pouco enjoada no restaurante e não fora capaz de terminar o desjejum. Antes de mais nada, o cozinheiro de refeições ligeiras parecia uma versão mais gorda e mais idosa de Charles Manson. Ele exibia continuamente um leve sorriso, muito estranho e astuto, quando achava que ninguém estivesse olhando — um sorriso suficiente para fazer o freguês perguntar-se se o indivíduo temperara os ovos mexidos com arsênico. Entretanto, o som dos sinos, badalando hinos que ela não ouvia desde a sua infância no Nebraska, foi de molde a deixá-la maravilhada.

— Santo Deus, Marty, como é possível uma cidadezinha de beira de estrada como esta ter dinheiro bastante para possuir um carrilhão tão espetacular?

— Talvez algum rico turista de verão morresse e o doasse à cidade — respondeu Marty vagamente.

Ele não estava interessado no carrilhão. Sentia uma dor de cabeça terrível, desde que tinham chegado ali, que piorava com o passar do tempo. Além disso, uma de suas gengivas sangrava. Em sua família houvera muitos casos de piorréia, mas sua esperança era de que fosse outra coisa.

— Venha — chamou a companheira. — Vamos para a igreja.

Assim, acabamos logo com isto, pensou, iremos para Bar Harbor e transaremos tudo que pudermos transar. Céus, que cidadezinha arrepiante!

Os dois cruzaram a rua juntos, ela vestindo um costume escuro (mas já lhe contara maliciosamente, durante a vinda, que as roupas íntimas eram de seda branca... e de tamanho mínimo), ele um terno governamental cinza-carvão. Os moradores de Haven caminhavam ao lado deles, envergando suas melhores roupas sóbrias. Marty viu um número surpreendente de uniformes azul-pólvora, da polícia estadual.

— Olhe, Marty! O relógio!

Ela apontava para a torre da sede da municipalidade. Era em bom e sólido tijolo vermelho mas, por um momento, pareceu boiar e oscilar diante dos olhos de Marty. Sua dor de cabeça piorou imediatamente. Talvez fosse tensão ocular. Ele fizera um check-up três meses atrás e o sujeito lhe dissera que sua visão era boa o suficiente para pilotar um jato-bombardeiro, porém talvez estivesse enganado. Metade dos profissionais liberais da América usava coca, atualmente. Ele lera a respeito no Time... ora, afinal de contas, por que estava devaneando dessa maneira? Eram os sinos. Pareciam ecoar e multiplicar-se dentro de sua cabeça. Dez, cem, mil, um milhão, todos tocando “Quando nos encontrarmos aos pés de Jesus”.

— O que tem o relógio? — perguntou irritadamente.

— Os ponteiros estão gozados — disse ela — Quase parecem... desenhados

 

O chamado dos sinos.

Eddie Stampnell, do quartel de Derry, cruzou a rua com Andy Rideout, de Orono — ambos haviam conhecido Ruth e gostavam dela.

— Bonito, não acha? — perguntou Eddie, dubitativamente.

— Talvez — disse Andy. — Sabe? Não paro de pensar em Bente e Jingles, estourados por uma dupla de caipiras idiotas daqui, provavelmente enterrados na plantação de batatas de alguém. Isso está me cheirando muito mal. É como se, agora, Haven desse má sorte. Sei que é idiotice, mas é o que sinto.

— Deu má sorte para a minha cabeça — replicou Eddie. — Está doendo como o diabo!

— Bem, assim que a cerimônia terminar, a gente dá o fora daqui — disse Andy. — Ela era uma excelente mulher, mas morreu. E, cá para nós, estou pouco ligando se nunca mais ficarmos quinze minutos em Haven, agora que ela se foi.

Os dois entraram juntos na igreja metodista, sem olhar para o Rev. Lester Goohringer, que permanecia em pé junto ao botão que controlava seu amado carrilhão, sorrindo e esfregando as mãos secas, enquanto aceitava os cumprimentos de todos em geral.

 

O dobrar dos sinos.

Bobbi Anderson saiu de sua picape Chevrolet azul, bateu a porta, alisou o vestido azul-escuro sobre as ancas e verificou a maquilagem no espelho lateral do veículo, antes de começar a caminhar lentamente pela calçada, em direção à igreja. Seguia de cabeça baixa, os ombros encurvados. Tentava firmemente conseguir o descanso necessário para prosseguir, e Gard contribuíra para colocar um freio em sua obsessão,

(e isso não passa mesmo de uma obsessão, não adianta querer enganar-se)

porém Gard era um freio que se desgastava lentamente. Ele não comparecera ao funeral, porque cozinhava uma monumental bebedeira na propriedade, o rosto lívido e exaurido aninhado em um braço, a respiração formando uma nuvem azeda à sua volta. Roberta estava cansada, sem dúvida, porém isto era mais do que cansaço — esta manhã, sentia-se invadir por um enorme e vago pesar. Era parcialmente por causa de Ruth, parcialmente por causa de David Brown e parcialmente pela cidade inteira. A maior parte do pesar, no entanto, ela desconfiava ser por si mesma. A “transformação” ia em andamento — para todos em Haven, exceto Gard, aliás — e isto era bom, mas ela começava a carpir sua identidade única, que agora se desfazia como uma bruma matinal. Bobbi sabia, neste momento, que Os guerreiros do búfalo seria seu último livro... e a ironia era, também neste momento, a suspeita de que os Tommyknockers haviam escrito a maior parte dele.

 

Os sinos, sinos, sinos.

Haven respondera a eles. Era o 1o ato de uma charada intitulada O enterro de Ruth McCausland ou Como nós amamos essa mulher. Nancy Voss tinha fechado a agência dos correios para comparecer. O governo não teria aprovado sua decisão, mas o que o governo ignorava, não o prejudicava. Bem depressa eles tomariam pleno conhecimento, pensou ela. O pessoal do governo receberia uma volumosa carta expressa de Haven, dentro em pouco. Eles e todos os demais governos desta bola de lama voadora.

Frank Spruce, o mais importante pecuarista de Haven, obedeceu aos sinos. John Mumphry, cujo pai fora o adversário político de Ruth na eleição para chefe de polícia, também obedeceu. Ashley Ruvall, que cruzara por ela junto aos limites da cidade, dois dias antes de sua morte, compareceu com os pais. Ashley chorava. O Doutor Warwick estava lá, assim como Jud Tarkington; Adley McKeen chegou com Hazel McCready pelo braço; Newt Berringer e Dick Allison estavam presentes, caminhando lentamente e amparando entre eles o antecessor de Ruth, John Harley. John estava muito fraco, quase transparente. Maggie, sua esposa, não se sentira bem o suficiente para ir ao funeral.

Eles chegaram, atendendo ao dobrar dos sinos — Tremains e Thurlows, Applegates e Goldmans, Duplisseys e Archinbourgs. Boa gente do Maine, era o que qualquer um diria, todos originários de uma saudável cepa que era francesa, irlandesa, escocesa e canadense, em sua maioria. Entretanto, eles agora estavam diferentes; quando se reuniram na igreja, suas mentes também se juntaram e tornaram-se uma só mente, vigiando os forasteiros, atentos à menor nota errada nos pensamentos deles... Uniam-se todos, todos ouviam e os sinos tangiam em seu sangue estranho.

 

Sentado ao volante do Cherokee, Ev Hillman arregalou os olhos ao captar o som longínquo do carrilhão.

— Diabo, o que...?

— São sinos de igreja. O que mais poderiam ser? — disse Dugan. — Produzem um som muito bonito. Suponho que estejam prontos para iniciar o funeral.

Eles estão sepultando Ruth lá na cidade... o que, em nome de Deus, estou fazendo aqui, nos limites da municipalidade, ao lado deste velho maluco?

Butch Dugan não tinha certeza, porém agora era tarde demais para modificar sua decisão.

— Os sinos da igreja metodista nunca produziram um som como este, no meu tempo — comentou Ev. — Alguém os mudou.

— E daí?

— E daí, nada. E daí, tudo! Sei lá! Vamos, agente Dugan!

Ev girou a chave e o motor do Cherokee rugiu.

— Vou perguntar mais uma vez — disse Dugan, com o que considerava uma paciência extraordinária. — O que estamos procurando?

— Não sei bem ao certo. — O Cherokee cruzou a linha demarcatória da cidade. Haviam deixado Albion e agora entravam em Haven. Ev teve uma súbita e nauseante premonição de que, apesar de todas as suas precauções e cuidados, nunca mais tornaria a ir embora dali. — Ficaremos sabendo, assim que virmos.

Dugan não respondeu, apenas procurou manter-se no assento, com todos aqueles solavancos, tornando a perguntar-se como é que pudera envolver-se nisto — devia ser tão biruta quanto o velhote que lhe fazia companhia, talvez até mais. Ergueu uma mão para a testa e começou a esfregar, logo acima das sobrancelhas.

Naquele ponto, começava a sentir uma dor de cabeça.

 

Houve fungadelas, olhos vermelhos e alguns soluços, enquanto o Rev. Goo-hringer, com a cabeça calva reluzindo difusamente e em suave variedade de tons, cortesia da claridade do verão passando pelas janelas de vitrais, atirava-se em seu panegírico do funeral, seguindo-se um hino, uma prece, outro hino, uma leitura da escritura favorita de Ruth (as Beatitudes) e mais um hino. Abaixo dele, formando um semicírculo em torno do púlpito, havia enormes apanhados de flores estivais. Embora com as janelas superiores da igreja inteiramente abertas, deixando penetrar uma boa brisa, o cheiro daquelas flores era sufocantemente doce.

— Estamos aqui reunidos para orar por Ruth McCausland e celebrar seu passamento — começou Goohringer.

Os moradores da cidade mantinham as mãos entrelaçadas ou aferradas a lenços; seus olhos — molhados, em grande maioria — fitavam Goohringer com sóbria e avaliadora atenção. Eram pessoas de aparência saudável — tinham boa cor, a pele da maioria não apresentava manchas. Mesmo quem nunca houvesse estado em Haven antes, teria visto que a congregação se dividia naturalmente em dois grupos. Os que tinham vindo de fora não pareciam saudáveis. Estavam pálidos. Tinham um olhar esgazeado. Por duas vezes, durante o panegírico, pessoas levantaram-se precipitadamente, caminharam a toda pressa para a quina da igreja e lá ficaram, silenciosas em sua náusea. Para outras, a náusea era uma queixa menor — um revolver inquieto de intestinos, mas não sério a ponto de forçar uma saída da igreja. Era apenas algo que persistia no mesmo tom.

Vários forasteiros perderiam dentes, antes que aquele dia terminasse.

Vários deles tiveram dores de cabeça que se dissolveriam, quase assim que deixassem a cidade — finalmente a aspirina fazendo efeito, era o que presumiriam.

E, enquanto permaneciam sentados nos bancos duros, ouvindo o Rev. Goo-hringer fazer o panegírico de Ruth McCausland, vários deles tiveram as mais espantosas idéias. Em alguns casos, tais idéias surgiam tão subitamente, pareciam tão imensas, tão fundamentais, que as pessoas a quem ocorriam tinham a sensação de haverem levado um tiro na cabeça. Essas pessoas precisaram lutar contra a ânsia de disparar de seus bancos e correr para a rua, gritando “Eureca!” a plenos pulmões.

Os moradores de Haven viam isto acontecendo e divertiam-se. De repente, as feições apáticas e desanimadas de alguém sofriam uma transformação total. Os olhos arregalavam-se, a boca ficava aberta e os locais reconheciam a expressão de quem desperta para a Grande Idéia.

Eddie Stampnell, do quartel de Derry, por exemplo, concebeu a idéia de uma faixa de rádio policial de alcance nacional, através da qual cada policial do país pudesse comunicar-se. E ele entreviu como uma capa ou manto podia ser facilmente lançado sobre tal faixa; todos os ruidosos civis, com seus rádios e de faixa policial, não teriam qualquer oportunidade. Ramificações e modificações brotaram em sua mente, mais depressa do que ele era capaz de digeri-las; se idéias fossem água, ele certamente se teria afogado. Vou ficar famoso por isto, pensou febrilmente. O Rev. Goohringer foi esquecido; Andy Rideout, seu parceiro, foi esquecido; sua antipatia por aquela cidadezinha asquerosa foi esquecida; Ruth foi esquecida. A idéia havia engolfado sua mente. Vou ficar famoso e revolucionar o trabalho policial na América ... talvez no mundo inteiro. Minha nossa! Hurra!

Os moradores de Haven, sabendo que a grande idéia de Eddie estaria turva ao meio-dia e desaparecida às três da tarde, sorriam, ouviam e esperavam. Esperavam que tudo terminasse, a fim de que pudessem retornar às suas verdadeiras atividades.

A fim de que voltassem a “transformar-se”.

 

Eles rodaram pela estradinha de terra — a Rota da Cidade nº 5, em Albion, que em Haven se tornava a Rota do Fogo n°l6. Por duas vezes estradas com leitos de troncos internaram-se na floresta e, a cada vez que uma delas surgiu, Dugan procurou firmar-se no assento, preparando-se para um trajeto ainda mais cheio de solavancos. Entretanto, Hillman ignorou as duas. Chegou à Rota 8 e manobrou pa-ra a direita. Fez o Cherokee esforçar-se até oitenta, internando-se ainda mais fundo nas terras de Haven.

Dugan estava inquieto, sem saber ao certo por quê. O velho era maluco claro; a idéia de que Haven se tornara um ninho de víboras, era paranóia pura. Ao mesmo tempo, Monstro sentia um firme e latejante nervosismo crescendo em seu íntimo. Era algo vago, um fogo baixo queimando-lhe os nervos.

— Você não pára de esfregar a testa — disse Hillman.

— Fiquei com dor de cabeça.

— Acho que a dor seria muito pior, se o vento não estivesse soprando.

Mais uma absurda tolice. O que, em nome de Deus, estava ele fazendo ali? E por que se sentia tão infernalmente sobressaltado?

— Eu me sinto como se alguém houvesse colocado duas anfetaminas em meu café.

— Hum-hum.

Dugan olhou para o velho.

— No entanto, o senhor parece que nada sente, hein? Está frio como um maldito pepino!

— Estou com medo, mas não sinto tremedeira e nem dor de cabeça.

— Por que teria uma dor de cabeça? — perguntou Dugan, irritado. A conversa tinha decididamente ficado algo semelhante a Alice no país das maravilhas. — Dores de cabeça não são contagiosas.

— Se você e mais seis sujeitos estiverem pintando uma sala fechada, é provável que todos acabem com dor de cabeça. Tal fato não é verdadeiro?

— Sim, acho que sim, mas isto não...

— Não. Não é a mesma coisa. E estamos de sorte com o vento. Penso que essa coisa está emitindo um cheiro fortíssimo, porque você pode senti-lo. Vejo que está sentindo. — Hillman fez uma pausa, para então soltar algo mais de Alice no país das maravilhas: — Ainda não teve idéias formidáveis, policial?

— O que está querendo dizer?

Hillman assentiu, satisfeito.

— Ótimo! Se tiver alguma, conte-me. Tenho uma coisa naquele saco para você.

— Isto é loucura! — exclamou Dugan, em voz não inteiramente firme. — Quero dizer, inteiramente sem sentido. Dê meia volta nesta coisa, amigo. Eu quero voltar!

Ev subitamente focalizou uma frase única na mente, o mais vigorosa e claramente que pôde. Em seus três últimos dias em Haven, sabia que Bryant, Hilly e David estavam lendo rotineiramente os pensamentos uns dos outros. Podia perceber isso, embora não pudesse captá-los. Nesse mesmo espaço de tempo, descobrira que eles não penetravam em sua cabeça, a menos que os deixasse entrar. Começara a perguntar-se se o fato não teria algo a ver com a placa de aço em seu crânio, uma recordação daquela granada alemã. Pudera ver a granada com terrível, indiscutível nitidez, uma coisa negro-acinzentada, girando na neve. Havia pensado, Bem, estou morto. Chegou a minha vez. Não se lembrava de mais nada depois disso, até acordar em um hospital francês. Recordou como sua cabeça doera; recordou a enfermeira que o tinha beijado, como o hálito dela cheirava a aniz e como falara com ele, modulando as palavras enquanto repetia, como se falasse a uma criança muito pequena: “Je t’aime, mon amour. La guerre est finie.Je t’aime. J’aime les États Unis.”  

La guerre est finie, pensou ele agora. La guerra est finie.

— O que é? — perguntou bruscamente o Dugan.

— De que está fa...

Ev manobrou o Cherokee para o lado da estrada, com isto levantando uma onda de poeira. Já haviam coberto dois quilômetros e meio depois da linha divisória da cidade; faltavam uns cinco ou seis quilômetros mais até as terras do velho Garrick.

— Não pense, não fale — diga apenas o que eu estava pensando.

— Tout finie, era o que pensava. La guerre est finie, mas o senhor deve estar louco. As pessoas não podem ler pensamentos, ela n...

Dugan interrompeu-se. Girou a cabeça lentamente e encarou Ev. O velho podia ver os tendões salientando-se na cavidade do pescoço do policial. Os olhos dele estavam arregalados.

— La guerre est finie — sussurrou. — Era o que estava pensando, e que ela cheirava licor...

— A aniz — disse Ev, e riu, recordando.

Ela possuía coxas tão alvas, uma cona tão apertada...

— ...e vi uma granada na neve. Oh, céus, o que está havendo?

Ev mentalizou um velho trator vermelho.

— E agora?

— Trator — sussurrou Dugan. — Um trator Farmall, mas colocou nele os pneus errados. Meu pai tinha um Farmall. Esses são pneus Dixie Field-Boss. Não se encaixam em um Far...

Dugan se virou subitamente, girou a maçaneta da porta do Cherokee, inclinou-se para fora e vomitou.

 

— Certa vez, Ruth me pediu que lesse as Beatitudes em seu funeral, na hipótese de que coubesse presidi-lo — dizia o Rev. Goohringer, em melodiosa voz metodista que o Rev. Donald Warley teria aprovado completamente — e satisfiz seus desejos. Não obstante...

(la guerre estava pensando la guerre est)

Goohringer fez uma pausa, enquanto uma ligeira expressão de surpresa e preocupação lhe tocava o rosto. Um observador mais atento, pensaria que uma pequena quantidade de gás borbulhara para o alto e que ele se interrompera para sufocar um inoportuno arroto.

— ...creio existir um outro conjunto de versículos que ela merecia. Eles...

(trator Farmall trator)

Houve outra breve interrupção na fala de Goohringer e aquela expressão tornou a surgir em seu rosto.

— ...não são, suponho, o tipo de versículos que uma mulher cristã ousaria solicitar, sabendo que uma cristã precisa antes merecê-los. Ouçam-nos, enquanto os leio no Livro dos Provérbios e reflitam se vocês, que a conheciam, também não concordam em que seja este o caso de Ruth McCausland.

(esses são pneus Dixie Field-Boss)

Dixie Allison relanceou os olhos para a esquerda e captou o olhar de Newt, através do corredor. Newt parecia apalermado. A boca de John Harley pendia aberta; seus olhos azuis desbotados iam de um lado para outro, cheios de perplexidade.

Goohringer encontrou o trecho, perdeu-o, quase deixou sua Bíblia cair. De repente, estava afogueado, não era mais o mestre-de-cerimônia, mas um estudante de teologia, com pavor do palco. Ninguém, entretanto, chegou a perceber o que ocorria; o pessoal de fora ocupava-se com a própria indisposição física ou idéias mirabolantes. Os moradores de Haven, no entanto, uniram-se como se tivessem ouvido um alarme disparar, o toque saltando de uma mente para outra, até todas as cabeças soarem em uníssono — este era um novo carrilhão, de toques discordantes.

(alguém está espiando)

(o que não deve espiar)

Bobby Tremain tomou a mão de Stephanie Colson e a apertou fortemente. Ela retribuiu o aperto, fitando-o com dilatados olhos castanhos — eram os olhos alarmados de uma corça, que ouve o estalido do gatilho na arma de um caçador.

(lá na Rota 9)

(perto demais da nave)

(um deles é tira)

(sim, um tira, mas um tira especial — o tira de Ruth, ele amou)

Ruth teria identificado o som dessas vozes. E agora, até mesmo alguns forasteiros começavam a senti-la, embora houvessem estado pouco expostos à infecção de Haven. Alguns deles olharam em torno, como pessoas saindo de ligeiros transes. Uma destas pessoas era a amiga do assessor de Brennan. Parecia que ela estivera a quilômetros de distância dali — era apenas um burocrata de baixo escalão em Washington, porém tinha acabado de conceber um sistema de arquivamento que poderia perfeitamente render-lhe uma gorda promoção. Então, um pensamento ao acaso, um pensamento que juraria não ter sido seu

(alguém precisa detê-los rapidamente!)

cruzou sua mente como um relâmpago e ela espiou em torno, a fim de ver se alguém falara alto na igreja.

Entretanto, tudo estava quieto, com exceção do pregador, que tornara a encontrar o trecho que lia. Olhou para Marty, porém ele permanecia com o olhar vidrado, contemplando uma das janelas com vitrais, dando a impressão de profundamente hipnotizado. Ela atribuiu isto ao tédio e retornou a seus próprios pensa-mentos.

— “Mulher virtuosa quem a achará?” — leu Goohringer, com voz um tanto ir-regular. Hesitou nos lugares errados e tropeçou algumas vezes. — seu valor muito excede o de rubins. O coração de seu marido está nele confiado, e a ele nenhuma fazenda faltará. Ela lhe faz bem, e não mal, todos os dias da sua vida. Busca lã...

Agora, outro jato daqueles pensamentos alienígenas chegou ao único e sensitivo ouvido na igreja:

(peço que me desculpe por isso, mas foi impossível)

(...)

(o quê?)

(...)

(minha nossa, mas isso é Wheeling! como...)

(...)

Há duas vozes falando, porém ouvimos apenas uma, pensou a rede de mentes, enquanto os olhos começavam a concentrar-se em Bobbi. Em Haven, existia apenas uma pessoa capaz de tornar a mente opaca a eles, uma pessoa que agora não estava ali. Duas vozes — aquela que não ouvimos será a de seu amigo bêbado?

Bobbi levantou-se subitamente e abriu caminhou ao longo do banco, terrivelmente cônscia de que todos a fitavam. Goohringer, aquele jumento, tornou a fazer uma pausa.

— Com licença — murmurou Bobbi. — Com licença... com licença...

Por fim, conseguiu chegar ao vestíbulo e à rua. Outras pessoas — entre elas Bobby Tremain, Newt, Dick e Bryant Brown — começaram a segui-la. Nenhum dos de fora percebeu. Todos haviam mergulhado novamente em seus sonhos estranhos.

 

— Peço que me desculpe por isso — disse Butch Dugan. Tornou a fechar a porta do veículo, tirou um lenço do bolso traseiro e limpou a boca, — mas foi impossível conter-me. Agora já me sinto melhor.

Ev assentiu.

— Não vou explicar nada! Não há tempo agora, mas quero que ouça uma coisa.

— O quê?

Ev ligou o rádio do Cherokee e fez o ponteiro deslizar pelo mostrador de faixas. Dugan arregalou os olhos. Jamais ouvira tantas estações, nem mesmo à noite, quando uma atropelava a outra, indo e vindo, oscilando em um mar de vozes. Agora, não havia oscilação alguma; as estações soavam com impressionante nitidez.

Ev parou em um estação C&W. Uma canção dos Judds chegava ao final. Quando terminou, houve uma identificação da estação. Butch Dugan mal acreditava no que ouvia.

— Doubleya-Doubleya-Vee-AYYY! — entoou um animado coral de garotas, com acompanhamento de banjos e rabecas.

— Minha nossa, mas isso é Weeling! — exclamou Dugan. — Como...

Ev desligou o rádio.

— Agora, quero que ouça minha cabeça.

Dugan o fitou por um momento, totalmente atarantado. Nem mesmo em Alice no país das maravilhas houvera tanta doidice.

— Em nome de Deus, do que está falando?

— Não discuta comigo, apenas ouça. — Ev virou o rosto e mostrou a Dugan a parte traseira de sua cabeça. — Tenho duas placas de aço na cabeça. Lembranças de guerra. A maior delas fica aí atrás. Vê o lugar em que o cabelo não cresce?

—Vejo, mas...

— O tempo voa! Chegue o ouvido bem perto dessa cicatriz e ouça!

Dugan assim fez... e sentiu que a irrealidade o dominava. A parte traseira da cabeça do velho tocava música. Era baixinho e distante, porém perfeitamente identificável. Frank Sinatra, cantando New York, New York

Butch Dugan começou a dar risinhos contidos. Logo estava rindo com vontade. Depois gargalhava ruidosamente, os braços cruzados sobre o estômago. Ali estava ele, em um lugar que parecia o fim do mundo, com um velho cuja cabeça acabara de transformar-se em caixinha de música. Por Deus, isto era ainda melhor do que o Acredite se quiser, de Ripley.

Butch deu risadas, engasgou-se, chorou, gargalhou e...

A palma calosa do velho caiu em cheio sobre o seu rosto. O choque de ser esbofeteado como uma criancinha surpreendeu Butch e encerrou sua histeria, tanto quanto a dor da pancada. Ele piscou para Ev, levando uma das mãos à face.

— Isto começou uma semana e meia antes de eu ir embora da cidade —comentou Ev soturnamente. — Jatos de música em minha cabeça. Ficaram mais fortes, quando tomei este caminho. Devia ter pensado nisto antes, mas não pensei. Estão mais fortes agora. Tudo está. Portanto, não vou perder tempo com seus zurros escandalosos. Acha que ficará bem agora?

O rubor espalhou-se pelo rosto de Dugan, escondendo a marca vermelha feita pela mão de Ev. Zurros escandalosos. A expressão acertada. Primeiro vomitara, depois aquele acesso histérico, como se fosse um adolescente. O velho não apenas lhe apontava o caminho; ultrapassava-o em segunda marcha.

— Estarei ótimo — respondeu.

— Acredita agora que está acontecendo alguma coisa por aqui? Que em Haven alguma coisa mudou?

— Sim. Eu... — Ele engoliu em seco. — Acredito — terminou.

— Muito bem. — Ev pisou no acelerador e o Cherokee rugiu novamente para a estrada. — Esta... coisa... está modificando todo mundo na cidade, agente Dugan. Todos, exceto eu. Ouço música na cabeça, mas é tudo. Não leio mentes... e não tenho idéias.

— O que quer dizer com “idéias”? Que tipo de idéias?

— Oh, idéias de todo jeito. — O velocímetro do Cherokee tocou os noventa e cinco, depois começando a ultrapassá-los. — A questão é que não tenho nenhuma prova do que vem acontecendo. Absolutamente nenhuma. Estava pensando que eu estava de miolos totalmente frouxos, não foi?

Dugan assentiu. Ele se aferrava com força ao painel à sua frente. Começava a sentir novamente o estômago enjoado. O sol era demasiado brilhante, deixava-o ofuscado com os reflexos no pára-brisa e cromados.

— Aquele repórter e as enfermeiras pensaram a mesma coisa. No entanto, há qualquer coisa nesta floresta e vou descobrir o que é. Vou encher potes dessa coisa, vou levá-lo para fora daqui, vamos pôr a boca no trombone e talvez descubramos uma forma de recuperar meu neto David. Talvez não descubramos, mas, de qualquer modo, precisamos estar certos de que acabaremos com o que quer que esteja ocorrendo aqui, antes que seja tarde demais. Precisamos? Nós temos que acabar!

A agulha do velocímetro agora estava pouco abaixo de cento e dez.

— Até onde iremos? — conseguiu perguntar Dugan, por entre os dentes cerrados.

Ele tinha certeza de que logo estaria vomitando de novo, mas esperava poder conter-se, até chegarem aonde tinham que ir.

— A propriedade do velho Garrick — disse Ev. — Falta menos de quilômetro e meio.

Graças a Deus, pensou Dugan.

 

— Não se trata de Gard — disse Bobbi. — Ele ficou desmaiado na varanda da casa.

— Como é que sabe? — perguntou Adley McKeen. — Você não consegue ler a mente dele.

— Acontece que posso — replicou Bobbi. — Um pouquinho mais a cada dia. Ele continua na varanda, posso afirmar. Sonha que está esquiando.

Eles fitaram Bobbi em silêncio por um momento — eram uns doze homens, parados diante do Haven Lunch, na calçada fronteira à igreja metodista.

— Então, quem é? — perguntou Joe Summerfield por fim.

— Não sei — respondeu Bobbi. — Sei apenas que não é Gard. — Ela oscilava ligeiramente sobre os pés. Seu rosto era o de uma mulher com cinqüenta anos, em vez de trinta e sete. Havia círculos castanhos de exaustão sob seus olhos. Os homens pareciam nada perceber.

Na igreja, elevaram-se vozes em “Santo, santo, nós te adoramos”.

— Eu sei quem é — disse Dick Allison subitamente. Seus olhos tinham ficado estranhos e foscos de ódio. — Só poderia ser um outra pessoa.

Conheço apenas mais alguém nesta cidade com metal na cabeça.

— Ev Hillman! — exclamou Newt. — Céus!

— Temos que nos mexer — disse Jud Tarkington. — Os bastardos estão chegando perto. Adley, traga algumas armas do depósito da loja de ferragens!

— Certo!

— Tragam as armas, mas não as usem — disse Bobbi, passando os olhos de homem a homem. — Não em Hillman, se for ele, tampouco no tira. Principalmente, não no tira! Não podemos nos dar o luxo de mais uma confusão em Haven. Não antes

(da “transformação”)

de tudo terminar

— Levarei meu tubo — disse Beach, com olhos brilhando de ansiedade.

Bobbi o agarrou pelo ombro.

— Não, não irá levá-lo — disse ela. — Nenhuma confusão mais, inclui nenhum desaparecimento de mais tiras!

Ela tornou a fitá-los, depois fixou-se em Dick Allison, que assentiu.

— Hillman terá que desaparecer — disse ele. — Não temos alternativas, mas talvez isso seja o melhor. Ev é louco. Um velhote doido pode resolver fazer qualquer coisa. Um velhote doido pode simplesmente largar tudo e ir para Zion, Utah ou Grand Forks, no Idaho, a fim de lá esperar o fim do mundo. O tira quererá armar barulho, mas irá armá-lo em Derry, e será um escândalo que todos compreenderão. Ninguém mais vai jogar merda no nosso ninho. Vá, Jud. Traga as armas. Bobbi, traga sua picape em marcha a ré até o Haven Lunch. Newt, Adley e Joe, vocês vão comigo. Jud, você vai com Bobbi. Os outros, sigam no Cadillac de Kyle. Em frente, companheiros!

Eles começaram a mover-se.

 

Shushhhhh...

Era o mesmo sonho antigo, com algumas rugas novas. Rugas muito estranhas. A neve ficaria vermelha. Era como se estivesse ensopada de sangue. Seria sangue saindo dele? Infernos! Quem diria quanto sangue o velho pote rachado tinha dentro de si?

Estavam esquiando na descida intermediária. Ele sabe que devia ter continuado nas descidas para principiantes, pelo menos durante mais uma temporada; esta aqui é demasiado rápida para ele e, além do mais, toda esta neve ensangüentada desvia demais a atenção, em particular quando tudo é sangue seu.

Agora, ele olha para cima, enviando uma agulhada de dor que lhe vara a cabeça — e seus olhos se dilatam. Há um jipe na maldita descida!

Annmarie grita: “Stem Bobbi, Gard! STEM BOBBI!”

Ora, ele não precisaria fazer nada disso, porque tudo não passa de um sonho, um sonho que se tornou um velho amigo nas últimas semanas, como os jatos erráticos de música em sua cabeça; isto é um sonho e aquilo não é um jipe. Aliás, esta não é a descida Flecha Direita, e sim... — manobrando para entrada de carros de Bobbi.

Isto será um sonho? Ou é real?

Não, percebeu ele; essa era a pergunta errada. Uma pergunta melhor seria: Quanto disto é real?

Os cromados cintilaram, enviando flechas ofuscantes de luz aos olhos de Gardener. Ele piscou e aferrou-se

(aos bastões de esquiar? não, não é um sonho, é verão e você está em Haven)

ao gradil da varada. Podia recordar quase tudo. O quadro era nevoento, mas podia recordar. Não houvera períodos de amnésia, desde que tinha vindo para a casa de Bobbi. Havia música em sua cabeça, mas nenhum black-out. Bobbi tinha ido a um funeral. Mais tarde, ela voltaria e eles recomeçariam a escavar. Ele se lembrava de tudo, como podia se lembrar da maneira como a torre do relógio da sede da municipalidade se elevara no céu do entardecer, como um pássaro de enorme traseiro. Tudo ficara registrado muito bem em sua mente, sim, senhor. Exceto isto.

Permaneceu apoiado com as mãos no gradil da varanda, de olhos remelosos e injetados, olhando o jipe, a despeito dos brilhos que o ofuscavam. Sabia que devia assemelhar-se a um refugiado do Bowery, a zona de Nova Iorque de má reputação, freqüentada sobretudo por alcoólatras, desempregados crônicos, etc. Graças a Deus, ainda existe alguma verdade na propaganda — é assim que me sinto.

Então, o homem no banco do passageiro virou a cabeça e viu Gard. Era um homem tão grandalhão, que parecia um ser de conto de fadas. Usava óculos escuros, de maneira que Gardener não soube se os olhos de ambos encontraram-se ou não. Talvez sim; pelo menos era o que achava. Fosse como fosse, não tinha importância. Já conhecia a aparência. Como veterano de meia centena de filas de piquete, conhecia-a muito bem. Também a conhecia como bêbado, despertando na cadeia em mais de uma vez.

A Polícia de Dallas chegou finalmente, pensou. O pensamento trazia em si sentimentos de raiva e pesar... porém o que mais sentiu foi alívio. Pelo menos, naquele momento.

Ele é um tira... mas o que faz em um jipe? Céus, o tamanho de seu rosto... é tão grande como uma maldita casa! Deve ser um sonho. Só pode ser um sonho.

O jipe não parou; continuou rodando pela entrada de carros e desapareceu de vista. Agora, Gardener ouvia apenas o rugido do motor.

Manobrou para os fundos. Vão entrar na floresta, aqueles dois. Eles sabem, tudo bem. Oh, Cristo, se o governo meter as mãos neste negó...

Toda a sua melancolia anterior ferveu como bílis; a vaga sensação de alívio desapareceu como fumaça. Gard viu Ted, o Homem Energia, atirando o paletó sobre os escangalhados remanescentes da máquina de levitar e dizendo: Que engenhoca?

A melancolia foi substituída pela velha e nauseante fúria.

EI BOBBI MOVA SEU TRASEIRO ATÉ AQUI! berrou com estridência na mente, o mais alto e nítido que pôde.

Sangue fresco escapou de seu nariz e ele cambaleou para trás fracamente, careteando de irritação e procurando pegar o lenço. O que importa, afinal de contas? Que eles fiquem com a coisa. Seja como for, de um jeito ou de outro, ela é infernal, você sabe disto. Então, que diferença faz se a Polícia de Dallas ficar com ela? Aquele troço está tornando Bobbi e todos na cidade, a Polícia de Dallas. Em particular os companheiros dela. Aqueles que traz para cá noite alta, quando pensa que estou dormindo. Aqueles que leva para o galpão.

Isto havia acontecido duas vezes, ambas por volta de três da madrugada. Bobbi pensava que Gard estivesse profundamente adormecido — uma combinação de trabalho árduo, bebida demais e Valium. O nível das pílulas no frasco de Valium estava descendo com regularidade, claro, mas não porque Gard as estivesse tomando. A cada noite, a pílula era realmente despachada na descarga da privada.

Por que essa atuação furtiva? Ele ignorava, como tampouco sabia por que mentira a Bobbi sobre o que tinha visto na tarde do domingo. Dar descarga sobre uma pílula de Valium a cada noite, não era de fato mentir, porque Bobbi nunca lhe perguntara diretamente se vinha tomando o remédio. Ela apenas vira o nível decrescente do frasco e chegara a uma errônea conclusão, que ele não se preocupara em desmentir.

Da mesma forma, Gard não se preocupara em desmentir a idéia dela de que ele dormia profundamente. Na verdade, era perseguido pela insônia. Nenhuma quantidade de bebida parecia deixá-lo fora de combate durante muito tempo. O resultado era uma espécie de constante e turva percepção, através da qual diáfanos véus cinzentos de sono às vezes eram arrastados, como meias por lavar.

Da primeira vez que vira luzes batendo na parede do quarto de hóspedes, às primeiras horas da madrugada, espiara para fora e tinha visto um enorme Cadillac subindo pela entrada de carros. Consultando o relógio, pensou: Deve ser a Máfia... Quem mais surgiria em uma propriedade nos arredores de uma floresta, em um Cadillac, às três da madrugada?

Entretanto, quando a luz da varanda foi acesa, pôde divisar a chapa com o nome do proprietário: KYLE-1. Então, começou a duvidar, achando que a Máfia não apelaria para chapas com nomes pessoais.

Bobbi se juntara aos quatro homens e uma mulher que tinham descido do carro. Bobbi estava vestida, mas descalça. Gardener conhecia dois daqueles homens: Dick Allison, o chefe do departamento de bombeiros voluntários local e Kyle Archinbourg, um corretor de imóveis da cidade, que dirigia um monumental Cadillac. Os outros dois eram vagamente familiares. A mulher era Hazel McCready.

Momentos depois, Bobbi os conduzira ao seu galpão nos fundos da casa. Aquele que tinha o enorme cadeado Kreig na porta.

Gardener pensou: Talvez eu devesse ir lá fora. Ver o que está acontecendo. Em vez disto, no entanto, tornou a deitar-se. Não queria chegar perto do galpão. Tinha medo dele. Ou do que pudesse haver lá.

Gard cochilou novamente.

Na manhã seguinte, não havia mais Cadillac, nenhum sinal dos visitantes de Bobbi. De fato, ela parecia mais animada, mais semelhante à velha Bobbi do que em qualquer momento após o retorno de Gard. Ele acabou convencido de que fora um sonho, talvez alguma coisa — não exatamente o delirium tremens, mas perto disso — que rastejara para fora de uma garrafa. Então, uma das quatro noites atrás, KYLE-1 voltara. As mesmas pessoas de antes saíram do carro, encontraram-se com Bobbi e foram até o galpão.

Gard arriou na cadeira de balanço de Bobbi e tateou, em busca da garrafa de uísque que levara para lá, essa manhã. Encontrou a garrafa. Ergueu-a lentamente, bebeu e sentiu o líquido incendiar seu estômago, o ardor expandindo-se em seguida. O som do jipe agora diminuía, como algo em um sonho. Possivelmente, tudo não passara de sonho. Tudo agora parecia um sonho. Como era aquela linha, na canção de Paul Simon? O Michigan agora me parece um sonho. Sim, senhor. O Michigan, singulares naves enterradas no chão, jipes Cherokees e Cadillacs no meio da noite. Beba o suficiente, e tudo se diluirá em um sonho.

Exceto que não é sonho. Eles são os encarregados, aquelas pessoas que chegam no Cadillac com as chapas KYLE-1. Exatamente como a Polícia de Dallas. Exatamente como o bom e velho Ted, com seus reatores. Que tipo de injeção está dando neles, Bobbi? Está dando a eles mais alimentação do que ao restante de gênios residentes? A velha Bobbi não se envolveria em uma merda dessas, porém a Nova e Melhorada Bobbi, sim. E qual a resposta a todas essas coisas? Haverá alguma?

— Demônios em todos os lados! — exclamou Gardener majestaticamente.

Sorveu o último resto do uísque e atirou a garrafa vazia por cima da balaustrada da varanda, no meio dos arbustos lá fora.

— Demônios por todos os lados! — repetiu ele, e desmaiou.

 

— Aquele sujeito nos viu — disse Butch, quando o jipe cruzou a horta de Roberta em diagonal, derrubando enormes pés de milho e girassóis mais altos do que o topo do Cherokee.

— Estou pouco ligando — replicou Ev, forcejando com o volante. Emergiram da horta em seu lado mais distante. As rodas do Cherokee giraram sobre uma porção de abóboras atingindo o pleno crescimento, em uma época ainda espantosamente cedo para amadurecerem. Os lados tinham uma estranha palidez e, ao explodirem, elas exibiam desagradáveis interiores em rosa — do tom de carne. — Se a esta altura eles ainda não sabem que estamos na cidade, então estou enganado sobre tudo... veja! Eu não lhe disse?

Uma estrada larga, marcada por pneus, entrando na floresta. Ev manobrou para ela.

— Havia sangue no rosto dele. — Dugan engoliu em seco. A visão tinha sido terrível. Sua cabeça agora doía como mil demônios e todas as obturações em seus dentes pareciam vibrar muito depressa. Sentia o estômago contorcendo-se nova-mente. — E a camisa dele... Parecia que alguém o tinha enfiado na... Pare aí! Estou passando mal de novo!

Ev pisou no freio. Dugan abriu a porta, inclinou-se para fora e vomitou uma rala torrente amarelada sobre a terra, depois fechando os olhos por um momento. O mundo balançava e girava.

Vozes sussurravam em sua cabeça. Um número considerável de vozes.

(Gard os viu e está gritando por ajuda)

(quantos)

(dois em um Cherokee tomando a direção)

Escute — Butch ouviu-se dizer, como que a grande distância — não quero estragar a festa, Hillman, porém estou passando mal. Muito mal!

— Imaginei que estivesse. — A voz do velho descia por um comprido e ecoante corredor. De alguma forma, Butch conseguiu içar-se novamente para o assento do passageiro, mas nem tinha forças suficientes para fechar a porta do jipe. Sentia-se fraco como um gatinho. — Você ainda não teve tempo para acumular resistência, e estamos precisamente no local em que a coisa fica mais forte. Espere um segundo. Tenho algo que o aliviará. Pelo menos, acho que sim.

Ev apertou o botão que baixava eletricamente a janela traseira do Cherokee, saiu, baixou a parte traseira móvel do veículo e puxou o saco de aniagem. Arrastou-o de volta ao jipe e depois o içou para o assento. Olhou para Dugan e não gostou do que viu. O rosto do policial estava lívido como cera. Tinha os olhos fechados, as pálpebras arroxeadas. A boca pendia meio aberta e ele respirava em arquejos rápidos e curtos. Ev encontrou um momento para perguntar-se como fosse-lá-o-que-fosse podia fazer aquilo com Dugan, quando ele próprio nada sentia, absolutamente nada.

— Agüente firme, amigo — disse, usando o canivete para cortar o cordel que prendia a boca do saco.

— ...mal... — fungou Dugan, e vomitou um líquido acastanhado.

Ev viu que havia três dentes no vômito. Retirou do saco um tanque de oxigênio em plástico leve — denominado “mochila-chata” pelo atendente da firma Suprimentos Médicos do Maine. Liberou o círculo dourado fechando a extremidade do tubo que saía da mochila-chata, revelando um conector fêmea de aço inoxidável.

Depois pegou um copo de plástico de cor dourada da espécie com que são equipados os aviões a jato. Um tubo segmentado em plástico branco estava acoplado ao copo, tendo em sua extremidade um conector macho em plástico branco — uma válvula.

Se isto não funcionar da maneira como disse aquele sujeito, acho que este cara vai acabar morrendo em cima de mim.

Apertou o conector macho da máscara contra o conector fêmea do suprimento de oxigênio — uma violenta cópula que, conforme ele esperava, seria a salvação de Dugan naquela situação. Ouviu o oxigênio sibilando suavemente para dentro do copo dourado. Tudo bem. Até ali, bom demais. Inclinando-se, colocou o copo sobre a boca e o nariz de Dugan, usando as correias de plástico. Depois esperou ansiosamente pelo que aconteceria. Se Dugan não melhorasse em trinta ou quarenta segundos, as coisas ficariam pretas. David desaparecera e Hilly estava doente, mas nem uma coisa nem outra lhe davam o direito de assassinar Dugan, que ignorava em que tipo de encrenca se metera.

Vinte segundos passaram. Depois trinta.

Ev pôs o Cherokee em marcha à ré, pretendendo manobrar para a orla da horta de Roberta, quando Dugan ofegou repentinamente, estremeceu e abriu os olhos. Pareceram enormes, muito azuis e espantados, acima da borda do copo dourado. Um pouco de cor começava a voltar às faces.

— Que diabo... — começou a dizer, levando as mãos ao copo.

— Deixe isso no lugar — disse Ev, colocando sobre uma das mãos de Butch a sua mão, enorme, enrugada e entortada pela artrite. — Foi o ar envenenado do exterior que o deixou mal. Sente necessidade de outra dose?

Butch deixou o copo em paz, que ficou bamboleando sobre seu rosto, enquanto ele perguntava:

— Quanto tempo este negócio vai durar?

— A carga é para vinte e cinco minutos mais ou menos, foi o que o sujeito me disse. Tem uma válvula que fecha o suprimento. De vez em quando você pode retirar a máscara. Quando começar a sentir-se estonteado novamente, torne a colocá-la. Quero seguir em frente, se acha que pode. Acho que o que procuro está por perto... e gostaria de saber o que é.

Butch Dugan assentiu.

O Cherokee saltou para diante outra vez. Dugan espiou a floresta em torno deles. Silenciosa. Sem pássaros. Sem animais. Nada. Aquilo era muito errado. Muito ruim e infernalmente errado.

Ele se virou para Ev.

— Afinal de contas, que merda está acontecendo por aqui?

— É o que quero descobrir.

Sem afastar os olhos da estrada irregular e acidentada, Ev remexeu em seu saco de aniagem. Dugan pestanejou, quando o Cherokee passou com o chassi arranhando ruidosamente um tronco serrado, um pouco mais alto do que os outros.

Ev tirou uma enorme .45 do saco. Parecia uma arma de idade suficiente para o dono tê-la carregado na Primeira Guerra Mundial.

— É sua? — perguntou Dugan, admirado pela rapidez com que o oxigênio o fazia voltar ao normal.

— É. Eles lhe ensinaram a usar estas coisas, não?

— Claro — respondeu Dugan, embora a arma de Hillman parecesse uma antigüidade.

— Talvez precise usá-la hoje — disse Ev, entregando-a

— O que...

— Tome cuidado. Está carregada.

À frente deles, o terreno apresentava uma súbita descida. Através das árvores, surgiu um gigantesco reflexo: o sol batia em cheio contra um imenso objeto de metal.

Ev pisou no freio, subitamente aterrorizado, até o mais profundo coração.

— Diabo, o quê...? — murmurou Dugan ao seu lado.

Ev abriu a porta e saiu. Assim que seus pés tocaram o solo, percebeu que a terra estava entrecruzada por pequenas fendas e que vibrava com incrível rapidez. No momento seguinte, uma música tão alta que chegava a ser ensurdecedora, inundou sua cabeça com a força de um furacão. Durou uns trinta segundos, porém suficientes para que a dor fosse lancinante e parecesse eterna. Por fim, simplesmente extinguiu-se.

Viu Dugan parado diante do Cherokee, com a máscara de oxigênio agora pendurada debaixo do queixo. Segurava a mochila-chata pelas correias em uma das mãos e tinha a .45 na outra. Olhava apreensivamente para Ev.

— Estou bem — disse Ev.

— É mesmo? Seu nariz está sangrando. Como aquele sujeito por quem passamos, na casa da propriedade.

Ev limpou o nariz com o dedo e observou o sangue. Depois enxugou o dedo nas calças e assentiu para Dugan.

— Lembre-se de colocar a máscara, quando começar a ficar estonteado.

— Oh, não se preocupe.

Ev inclinou-se para o interior do jipe e tornou a remexer em seu saco de mágicas. Pegou lá uma Kodak disc-câmera e algo que parecia uma mistura de pistola e secador de cabelos.

— Sua pistola sinalizadora? — perguntou Dugan, sorrindo de leve.

— Exato. Ponha a máscara novamente, policial. Está ficando pálido.

Dugan assim fez, e os dois homens começaram a caminhar para aquela coisa que cintilava na floresta. A quinze metros do Cherokee, Ev parou. Aquilo era mais do que enorme; era titânico, uma coisa talvez grande bastante para sobrepujar um transatlântico, após inteiramente desobstruída.

— Dê-me sua mão — disse roucamente a Dugan.

Dugan fez o que ele pediu, mas quis saber o motivo.

— Porque estou borrado de medo — respondeu Ev.

Dugan apertou-lhe a mão. A artrite de Ev gemeu, porém ele devolveu o aperto, mesmo assim. Após um momento, os dois recomeçaram a avançar.

 

Bobbi e Jud apanharam as armas no depósito da loja de ferragens e as colocaram na traseira da picape. O carregamento não demorara muito, porém Dick e os outros já tinham ganho uma boa dianteira, de modo que Bobbi forçou a picape ao máximo, a fim de alcançá-los. A sombra do veículo, encurtando-se enquanto o dia se aproximava do meio-dia, corria ao lado deles.

Bobbi empertigou-se de súbito, atrás do volante.

— Você ouviu?

— Ouvi alguma coisa — disse Jud. — Foi seu amigo, não foi?

Bobbi assentiu.

— Gard os viu e está gritando por ajuda.

— Quantos?

— Dois. Em um jipe. Estão tomando a direção da nave.

Jud desceu o punho fechado sobre uma perna.

— Os fodidos! Malditos e sujos fodidos!

— Nós os alcançaremos — disse Bobbi. — Não se preocupe.

Chegaram à propriedade quinze minutos mais tarde. Bobbi freou a picape atrás do Nova de Allison e o Cadillac de Archinbourg. Olhou para o grupo de homens e pensou, como nas noites em que tinham encontrado ali, que isto era... que eles seriam os tornados

(primeiro “transformados”)

especialmente fortes. Entretanto, Hazel não estava ali, mas sim Beach; Joe Summerfield e Adley McKeen também nunca haviam entrado no galpão.

— Peguem as armas — disse ela para Jud. — Vá ajudá-lo, Joe. E, lembrem-se: nada de tiros, a menos que sejam obrigados. E não atirem no policial, haja o que houver!

Olhando para a varanda, viu Gard lá, deitado de costas. Ele tinha a boca aberta e respirava em lentos e sonoros roncos. Os olhos de Bobbi suavizaram-se.

Muita gente em Haven — Dick Allison e Newt Berringer talvez sendo os principais — achava que ela há muito devia ter-se livrado de Gard. Nada fora dito em palavras, porém em Haven não se precisava mais empregar palavras. Bobbi sabia que se metesse uma bala na cabeça de Gard, uma hora depois haveria um pelotão de solícitos trabalhadores para ajudar a sepultá-lo. Eles não gostavam de Gard, porque a chapa metálica em sua cabeça o deixava imune à “transformação”. Além do mais, dificultava a leitura de seus pensamentos. Gard, entretanto, era o seu freio. Bem, havia uma ilusão nisto. A verdade pura e simples era que Bobbi ainda o amava. Ela continuava humana o suficiente para isso.

Aliás, todos teriam de admitir que, bêbado ou não, quando haviam precisado de um aviso, Gard o dera.

Jud e Joe Summerfield retornaram com os rifles. Eram seis, de calibres variados. Bobbi fez com que cinco ficassem entregues a pessoas nas quais confiava plenamente. Entregou o sexto, um .22, a Beach, pois ele se queixaria, caso não recebesse uma arma de fogo.

Ocupados com o ritual das armas, nenhum deles viu que Gardener entreabira os olhos injetados e os espiava. Ninguém ouviu seus pensamentos; ele aprendera a bloquear o que pensava.

— Vamos — disse Bobbi. — E, não esqueçam: eu quero aquele tira!

Começaram a mover-se todos, formando um só grupo.

 

Ev e Butch pararam bem afastados da borda do que agora era um tortuoso boqueirão, com mais de trezentos metros da direita para a esquerda e uma goela bocejante de dezoito metros de largura, em seu ponto mais amplo. O velho caminhãozinho de Roberta estava parado a um lado, parecendo cansado e usado. Perto dele estava a escavadeira de motor envenenado, com seu gigantesco focinho em forma de chave de fenda. Havia mais ferramentas em um galpão feito de troncos sem casca. Ev viu uma serra de cadeia a um lado, um martelete do outro. Havia uma enorme pilha de serragem empapada debaixo do cano de despejo do martelete. Havia latas de gasolina no galpão e um tambor preto, rotulado DIESEL. Quando Ev ouvira pela primeira vez aqueles ruídos na floresta, havia pensado que a Companhia de Papel da Nova Inglaterra estivesse fazendo alguma derrubada de árvores, porém isto que ele via agora nada tinha a ver com aquilo. Isto era uma escavação.

E aquele disco. O monstruoso disco reluzindo ao sol...

Seus olhos não conseguiam desviar-se; eram atraídos para o monstro metálico, sempre e sempre. Gardener e Bobbi tinham removido mais uma boa parte da encosta da elevação. Vinte e sete metros de polido metal cinza-prateado agora emergiam do solo, exibindo-se à luz verde-dourada do sol. Se os dois recém-chegados tivessem espiado dentro da fenda, teriam visto mais uns doze metros do disco.

Entretanto, nenhum deles aproximou-se o suficiente para espiar.

— Deus do céu! — exclamou Dugan roucamente. O copo dourado oscilava sobre seu rosto e, acima da borda, surgiam seus olhos azuis, muito arregalados. — Deus do céu, isto é uma espaçonave! Deve ser nossa ou dos russos, o que você acha? Deus onipotente, a coisa é tão grande quanto o Queen Mary, isso não pode ser russo, não pode... não pode...

Ele se calou novamente. A despeito do oxigênio, sua dor de cabeça estava voltando.

Ev ergueu a máquina fotográfica e bateu sete fotos, com a velocidade possível em que seu dedo apertava o botão. Depois se moveu uns seis metros para a esquerda e tirou mais cinco instantâneos, parado junto à escavadeira.

— Mova-se para a direita! — disse ele a Dugan.

— Quê?

— Para a direita! Quero você nestes últimos três, para perspectiva.

— Esqueça, vovô!

Na voz de Dugan havia um toque estridente de histeria, perceptível mesmo abafado pelo copo que lhe cobria a boca.

— Quatro passos seriam suficientes.

Dugan se moveu quatro passos bem pequenos para a direita. Ev ergueu a máquina fotográfica novamente — um presente do Dia dos Pais, ganho de Bryant e Marie — batendo então os três últimos instantâneos. Dugan era um homem muito grande, mas aquela nave na terra o reduzia ao tamanho de um pigmeu.

— Tudo bem — disse Ev.

Dugan voltou rapidamente para onde estivera. Caminhou em passos miúdos e vacilantes, olhando para o imenso objeto redondo ao afastar-se. Ev perguntou-se se as fotos não estariam embaçadas. Suas mãos tremiam, no momento de batê-las. E quanto à nave — porque certamente aquilo era alguma espécie de nave espacial — poderia estar emitindo alguma radiação, capaz de inutilizar o filme.

Mesmo que as fotos saiam nítidas, quem irá acreditar? Quem, em um mundo onde crianças vão ao cinema todos os malditos sábados e vêem coisas como Guerra nas estrelas?

— Quero ir embora daqui — disse Dugan.

Ev olhou para a nave um pouco mais, perguntando-se se David estaria lá, aprisionado, perambulando por corredores desconhecidos ou passando por aberturas não destinadas a serem humanos, passando fome na escuridão.

Não... se ele estivesse lá dentro, já teria morrido de fome há muito tempo. Morrido de fome ou de sede.

Ev enfiou a pequena máquina fotográfica no bolso da calça, caminhou para junto de Dugan e recolheu a pistola sinalizadora.

— Certo, acho que...

Interrompeu-se, olhando na direção do Cherokee. Havia uma fileira de homens — e uma mulher — todos parados junto das árvores, alguns armados. Ev reconheceu todos... e nenhum deles.

 

Bobbi começou a descer a encosta, na direção dos dois homens. Os outros a seguiram.

— Olá, Ev — disse ela, em tom suficientemente amistoso.

Dugan ergueu a .45, ansiando amargamente pelo toque familiar de seu 357 regulamentar.

— Parem! — ordenou. Não gostava da maneira como o copo dourado amortecia a palavra, roubando-lhe autoridade. Puxou a máscara para baixo. — Todos vocês! Os que estiverem com rifles, deponham as armas! Estão todos detidos!

— Somos em maior número, Butch — disse Newt Berringer, com ar satisfeito.

— Maldita piada! — resmungou Beach, e Dick Allison franziu a testa ao ouvi-lo.

— É melhor colocar sua máscara de novo, Butch — disse Adley McKeen, com um sorriso lento e debochado. — Acho que vai precisar.

Butch se sentira aturdido, assim que retirara a máscara. Ouvir o firme fluxo sussurrado dos pensamentos deles, ainda piorava a situação. Colocou-a no rosto, perguntando-se quanto ar ainda restaria na mochila-chata.

— Largue essa arma — disse Bobbi. — E você, Ev, largue sua pistola sinalizadora. Ninguém quer machucar vocês dois.

— Onde está David? — perguntou Ev, em voz rouca. — Eu quero meu neto, sua cadela!

— Ele está em Altair-4, com Robby, o robô e o Dr. Mobius — disse Kyle

Archinbourg, com uma risadinha sufocada. — Está fazendo piquenique entre os bancos de memória dos Krell!

— Cale-se! — ordenou Bobbi.

De repente, ela se sentia confusa, envergonhada de si mesma, insegura. Cadela? Era disso que o velho a tinha chamado? Cadela? Viu-se querendo dizer a ele que estava enganado, que a cadela não era ela, mas sua irmã Anne. Uma súbita e confusa imagem surgiu-lhe na cabeça — a angústia do velho, a angústia de Gard e mesmo a sua própria, tudo misturado. Tais idéias desviaram-lhe a atenção. Enquanto isso, Ev Hillman ergueu a pistola sinalizadora e disparou. Se Dugan houvesse feito isso, eles lhe teriam lido a intenção ainda antes dele poder agir, porém com o velho era diferente.

Houve um surdo fuuuddd! e um chiado. Beach Jernigan explodiu em uma chama branca e cambaleou para trás, enquanto o .22 lhe voava das mãos. Seus olhos ficaram embaciados, lacrimosos e depois explodiram, ao se encherem de fósforo ardente. Suas faces começaram a diluir-se. Ele abriu a boca e começou a agarrar o tórax, quando o ar superaquecido que aspirara se expandia, rompendo-lhe os pulmões. Tudo isto aconteceu em segundos.

A fileira de homens desordenou-se e perdeu coerência, enquanto todos recuavam aos tropeções, os rostos lívidos de terror. Estavam ouvindo Beach Jernigan morrer, dentro de suas cabeças.

— Vamos! — gritou agudamente Ev para Dugan, correndo em direção ao Cherokee.

Jud Tarkington moveu-se atropeladamente para detê-lo. Ev fez o cano aquecido da pistola sinalizadora raspar-lhe o rosto. Jud ficou com as faces arranhadas e o nariz fraturado. Começou a recuar agitando os braços, caiu sobre os próprios pés e estirou-se no chão, esparramado.

Beach ardia no solo estorricado e lodoso. Ainda aferrava frouxamente a garganta com uma das mãos, enclavinhada como garra. Então, estremeceu por um instante e depois ficou imóvel.

Dugan entrou em movimento, correndo atrás do velho, que agora agarrava a maçaneta da porta do motorista.

Bobbi ouviu os pensamentos de Beach extinguirem-se, pestanejou e se virou vendo então que o velho e o tira estavam a ponto de fugir dali.

— Jesus, vocês aí, detenham os dois!

Seu grito interrompeu a paralisia dos homens, porém ela se movimentou primeiro. Correu para Ev e bateu com a coronha de seu rifle na nuca do velho. O rosto de Ev bateu contra o topo da porta do jipe. O sangue esguichou de seu nariz e ele caiu de joelhos, atordoado. Bobbi ergueu a coronha da arma para tornar a agredi-lo, quando Dugan, em pé no outro lado do Cherokee, disparou a .45 do velho, através da janela do passageiro.

Bobbi sentiu a gigantesca e quente estocada penetrar seu corpo, pouco abaixo do ombro direito. Seu braço foi fortemente impelido para cima e ela soltou a arma. A bala recebida entorpeceu-lhe a carne por um momento, e então o calor voltou, uma ardente fornalha que se expandia, torrando-a de dentro para fora.

Foi jogada para trás, a mão direita subindo para o lugar onde a bala a alcançara, esperando encontrar sangue e não encontrando nenhum — pelo menos, ainda não — mas somente um buraco na blusa e, através dele, a carne mais abaixo. O buraco tinha bordas doloridas, estava quente e latejante. O sangue escorria-lhe pelas costas, era um bocado de sangue, porém o choque a aturdira e, por enquanto, ainda não sentia muita dor. Sua mão esquerda encontrou o pequeno orifício de entrada; o orifício de saída tinha o tamanho do punho de uma criança.

Ela viu Dick Allison, com o rosto pálido e tomado de pânico.

Isto não está marchando como devia, por Deus, de maneira nenhuma, pegue ele antes que ele nos pegue, oh, seu maldito imbecil, maldito imbecil, MALDITO IMBECIL.

— Não atirem nele! — gritou Bobbi.

A dor explodiu através dela. O sangue lhe voou da boca em um jato fino. A bala atingira seu pulmão direito.

Allison vacilou. Antes que Dugan pudesse tornar a erguer a arma, Newt e Joe Summerfield já se tinham aproximado. Dugan se virou para eles, mas então Newt usou a coronha de seu rifle como um taco, descendo-a sobre a mão que segurava a .45. O segundo tiro de Dugan enterrou-se no chão.

— Pare, policial, pare ou será morto! — gritou John Enders, o diretor da escola primária. — Há quatro armas apontadas para você!

Dugan olhou em torno. Viu quatro homens com rifles. E Allison, ainda de olhos arregalados, mas somente a um pequeno passo de entrar em ação, parecia pronto a disparar, no momento em que um esquilo peidasse..

Eles vão matá-lo de qualquer modo. Poderia muito bem agora dar uma de John Wayne. Porra, estão todos loucos!

— Não — disse Bobbi. Agora estava reclinada contra o capô do jipe. O sangue escorria sem cessar de sua boca e as costas da blusa estavam ficando ensopadas. — Não estamos loucos. Não vamos matá-lo. Pode sondar-me.

Dugan sondou desajeitadamente os pensamentos de Bobbi Anderson e viu que ela dissera a verdade... mas havia um bloqueio em algum ponto, algo que poderia ter captado, se não fosse tão inexperiente naquele singular truque de ler mentes. Era como a parte escrita em letras minúsculas, no esperto contrato de vendas de algum vendedor de carros. Ele pensaria a respeito mais tarde. Aqueles sujeitos eram amadores, talvez ainda houvesse uma chance de escapar dali. Se...

De repente, Adley McKeen puxou a máscara dourada de seu rosto. Butch sentiu uma onda de vertigem quase imediatamente.

— Gosto mais de vê-lo assim — disse Adley. — Não ficará pensando tanto em dar o fora, com seu maldito ar engarrafado desligado.

Butch lutou contra a tonteira e olhou para Bobbi Anderson. Acho que ela vai morrer.

Pense o que quiser.

Ele endireitou o corpo e recuou um passo quando esse pensamento inesperado lhe encheu a cabeça. Observou-a com mais atenção.

— E quanto ao velho? — perguntou em voz inexpressiva.

— Não... — Bobbi tossiu, espargindo mais sangue. Bolhas se formaram em suas narinas. Kyle e Newt caminharam para ela. Bobbi fez um gesto para que se afastassem. — Não é da sua conta. Nós dois vamos entrar no jipe. Você dirige. No banco traseiro irão três homens armados, para o caso de querer bancar o esperto.

— Quero saber o que vai acontecer ao velho — repetiu Butch.

Bobbi ergueu sua arma com enorme esforço. Afastou dos olhos os cabelos suados, usando a mão esquerda. A direita pendia inútil ao lado do corpo. Era como se quisesse que Dugan a visse bem nitidamente, que a avaliasse. Foi o que ele fez. A frieza que viu nos olhos dela era real.

— Não quero matá-lo — disse ela, em voz suave. — Você sabe disso. Entretanto, se disser mais uma palavra, farei com que estes homens o executem, aqui mesmo. Será sepultado ao lado de Beach e correremos o risco.

Ev Hillman lutava para ficar em pé. Parecia atordoado, sem saber onde estava. Passou o braço na testa, limpando o sangue como limparia suor.

Butch sentiu outra onda de vertigem e teve um pensamento de infinito conforto: Isto é um sonho. Nada mais que um sonho.

Bobbi sorriu sem humor.

— Pense o que quiser — disse. — Agora, entre no jipe.

Butch entrou, deslizando para trás do volante. Bobbi começou a subir para o lado do passageiro, mas foi tomada por novo ataque de tosse, o sangue saiu em golfadas de sua boca e os joelhos baquearam. Dois dos outros homens precisaram ajudá-la.

Os pensamentos que se danem. Eu sei que ela vai morrer.

Bobbi virou a cabeça e encarou-o. Aquela nítida voz mental

(pense o que quiser)

tornou a encher a cabeça dele.

Archinbourg, Summerfield e McKeen apertaram-se no banco traseiro do Cherokee.

— Dirija — sussurrou Bobbi. — Devagar.

Butch começou a dar marcha à ré. Veria Ev Hillman uma vez mais, porém não se lembraria — mais tarde, a maioria da mente de Butch seria apagada, como escrita de giz em quadro-negro. O velho ficou lá parado, banhado pela claridade do sol, tendo às costas aquela forma estupenda de disco metálico. Estava cercado por cinco homens fortes e, metro e meio à sua esquerda, havia algo no chão, semelhante a um tronco carbonizado.

Você não se saiu tão mal, velho. No seu tempo, deve ter sido um elemento de valor... e, diabo, nada tinha de doido.

Hillman ergueu os olhos e deu de ombros, como se dissesse: Bem, nós tentamos!

Mais vertigem. Butch sentiu sua visão aturdir-se.

— Não sei se vou poder dirigir — falou, sua voz parecendo escoar-lhe nos ouvidos, como se vindo de grande distância. — Aquela coisa... deixa-me tonto.

— Ainda resta algum ar no aparelhinho dele, Adley? — sussurrou Bobbi.

Seu rosto estava acinzentado. Em comparação, o sangue sobre os lábios parecia extraordinariamente vermelho.

— A máscara do rosto ainda assobia um pouco.

— Coloque-a nele.

Um momento mais tarde, após ter sido firmemente afivelada contra a boca e o nariz de Butch, ele começou a melhorar.

— Aproveite enquanto pode — sussurrou Bobbi, e então desmaiou.

 

— Cinzas às cinzas... o pó ao pó... Assim entregamos o corpo de nossa amiga Ruth McCausland à terra e sua alma a um Deus amoroso.

Os presentes ao funeral tinham-se movido para o belo e pequeno cemitério sobre a colina a oeste da cidadezinha. Estavam reunidos ao acaso, em torno de uma sepultura aberta. O ataúde de Ruth estava suspenso acima dela, ainda seguro nas roldanas. Ali havia bem menos gente do que na igreja; muitos que não eram da cidade, fosse por dor de cabeça, náuseas ou uma febricitante torrente de novas e estranhas idéias, tinham aproveitado o breve período de transição entre os atos e foram embora.

As flores à cabeceira da sepultura agitaram-se brandamente a uma nova e pequena rajada da brisa de verão. Quando o Rev. Goohringer ergueu a cabeça, viu uma rosa vividamente amarela sair rolando pela encosta gramada da colina. Mais além abaixo do gradil branco do cemitério, com suas ripas crestadas pelo vento, ele podia avistar a torre do relógio da sede da municipalidade. Ela oscilava ligeiramente no ar límpido, como algo visto através dos vapores do calor. Ainda assim, pensou Goohringer, continuava a ser uma ilusão danada de boa. Aqueles forasteiros na cidade tinham apreciado o melhor slide de lanterna-mágica da história e nem sabiam disso.

Seus olhos encontraram os de Frank Spruce por apenas um instante — ele leu alívio claramente nos olhos de Frank e imaginou que seus próprios olhos também podiam ser lidos e mostrar o mesmo alívio. Muitos dos forasteiros retornariam a seus lugares de origem e contariam para os amigos que a morte de Ruth abalara até os alicerces da pequena comunidade; afinal de contas, mal pareciam ter estado lá. O que nenhum deles sabia, refletiu Goohringer, era que os moradores haviam seguido os eventos nas proximidades da nave com o máximo de atenção. Por alguns momentos, a situação por lá tinha andado na corda bamba. Agora estava tudo novamente sob controle, mas Bobbi Anderson poderia morrer, se não conseguissem levá-la para o galpão em tempo. E isso era ruim, muito ruim.

Ainda assim, a situação estava sob controle. A “transformação” prosseguiria. Este era o único ponto realmente importante.

Goohringer segurou a Bíblia aberta em uma das mãos. As páginas agitaram-se um pouco ao vento. Agora, ele ergueu a outra mão no ar. Aqueles reunidos em torno da sepultura de Ruth baixaram a cabeça.

— Que o Senhor os abençoe e os guarde; possa o Senhor erguer a Sua face e fazê-la brilhar sobre vocês e dar-lhes a paz. Amém.

Todos ergueram a cabeça novamente. Goohringer sorriu.

— Haverá refrescos na biblioteca, para aqueles que desejarem parar lá um momento e recordar Ruth — anunciou ele.

O 2º ato terminara.

 

Kyle enfiou suavemente a mão no bolso das calças de Bobbi e tateou, até encontrar o molho de chaves. Manuseou-o, procurou entre as chaves e encontrou a que abria o cadeado da porta do galpão. Inseriu a chave no cadeado, porém não a girou.

Adley e Joe Summerfield vigiavam Dugan, que continuava atrás do volante do jipe. Butch tinha cada vez mais dificuldade em aspirar ar pela máscara. A agulha no mostrador de suprimento já tinha agora cinco minutos no vermelho. Kyle foi ao encontro deles.

— Vá checar o bêbado — disse para Joe Summerfiel. — Parece que continua sem sentidos, mas não confio nem um pouco naquele fodido.

Joe cruzou o pátio lateral, subiu à varanda e examinou Gardener cuidadosamente, pestanejando ante seu hálito azedo. Desta vez não havia o menor fingimento; Gardener pegara uma nova garrafa de uísque e embebedara-se até o esquecimento.

Enquanto os outros dois homens esperavam a volta de Joe, Kyle disse:

— É bastante provável que Bobbi morra. Se ela morrer, minha primeira providência será livrar-me desse cretino.

Joe retornou.

— Ele “apagou” — disse.

Kyle assentiu e girou a chave no cadeado do galpão, enquanto Joe se juntava a Adley na vigilância do policial. Kyle retirou o cadeado e empurrou a porta ligeiramente. Uma ofuscante luz verde escapou para o exterior era tão vivida, que eclipsava a luz do sol. Havia um estranho e líquido som revolvente, quase (mas não inteiramente) como o de maquinismos.

Kyle deu um involuntário passo para trás, seu rosto contraindo-se momentaneamente em uma expressão de terror, repulsa e temor. Apenas o cheiro — espesso, fétido e orgânico — estava infernalmente próximo o bastante para derrubar um homem. Kyle compreendia — todos eles compreendiam — que a natureza de dupla sensibilidade dos Tommyknockers agora se unia em uma só, cada vez mais depressa. A dança do engano estava quase terminada.

Líquidos sons revolventes, aquele cheiro... e então outro som. Algo vago e gorgolejante latido de um cão afogando-se.

Kyle estivera no galpão duas vezes antes, mas pouco recordava a respeito. Naturalmente, sabia que era um lugar importante, um lugar refinado, que tinha acelerado sua própria “transformação”. Entretanto, a parte humana dele ainda sentia um medo quase supersticioso daquele recinto.

Ele voltou para junto de Adley e Joe.

— Não podemos esperar pelos outros. Temos que deixar Bobbi lá dentro imediatamente, se é que ainda existe alguma chance de salvá-la.

Kyle viu que o policial retirara a máscara, agora jazendo inútil no assento ao lado dele. Isso era bom. Conforme havia dito Adley na floresta, sem seu ar enlatado, ele pensaria menos em fugir.

— Mantenha sua arma apontada para o tira — disse Kyle. — Joe, ajude-me com Bobbi.

— Quer que o ajude a levá-la para o galpão?

— Não. Ajude-me a levá-la para o Zoológico de Rumford, para que possa ver o fodido leão! — bradou kyle. — É claro que para o galpão!

— Eu não... Bem, acho que não quero entrar lá. Não agora — Joe olhou daquela luz esverdeada para Kyle, mostrando nos lábios um sorriso envergonhado, ligeiramente repugnado.

— Eu ajudo — disse Adley suavemente. — Bobbi é uma grande praça. Seria uma vergonha ela pifar agora, antes de chegarmos ao final disto.

— Está bem — assentiu Kyle. — Vigie o tira — ordenou Joe. — E se alguma coisa der errado, juro por Deus que mato você!

— Vai dar tudo certo, Kyle — replicou Joe, ainda com o sorriso contrafeito nos lábios, mas mostrando um indiscutível alívio no olhar. — Vou ficar de olho. O tempo todo.

— Espero que sim — disse Bobbi fracamente, assustando todos eles.

Kyle olhou para ela, depois para Joe. Este encolheu-se, ante a fúria desnuda no olhar do companheiro... mas evitou fitar o galpão, fitar aquela luz, não querendo aproximar-se daqueles sons revolventes e borbulhantes.

— Vamos, Adley — disse Kyle por fim. — Vamos levar Bobbi para lá. Quanto mais cedo fizermos isto, mais cedo terminaremos.

Cinqüentão, careca e atarracado, Adley McKeen vacilou por apenas um momento.

— É tão... — Adley passou a língua pelos lábios. — Kyle, é assim tão terrível? Lá dentro?

— Não me lembro direito como é — disse Kyle. — Sei apenas que me senti maravilhosamente bem, quando saí de lá. Como se soubesse mais. Como se pudesse fazer mais.

— Oh! — murmurou Adley, de maneira quase inaudível.

— Você será um de nós, Adley — disse Bobbi, naquele mesmo fio de voz.

Embora ainda amedrontado, o rosto de Adley ganhou nova firmeza.

— Está bem — disse.

— Tentaremos não machucá-la — avisou Kyle.

Os dois transportaram Bobbi para o galpão. Summerfield desviou a atenção brevemente de Dugan, a fim de ver os dois companheiros desaparecerem naquele clarão — a impressão era mais de que haviam desaparecido, do que apenas entrado no galpão; era como ver-se objetos desaparecendo em um halo ofuscante.

Seu lapso foi breve, mas tudo o que o velho Butch Dugan precisava. Naquele exato momento viu a oportunidade, porém sentia-se incapaz de usá-la. Não tinha forças nas pernas. Em seu estômago havia uma náusea redemoinhante. Sua cabeça doía e latejava.

Não quero ir lá para dentro.

Contudo, nada poderia fazer, se os outros decidissem levá-lo para aquele galpão. Dugan sentia-se fraco como um gatinho.

Começou a devanear.

Após um instante, ouviu vozes e ergueu a cabeça. Precisou esforçar-se em tão leve movimento, porque era como se alguém houvesse despejado cimento por um de seus ouvidos, até encher-lhe a cabeça. Os homens restantes do grupo inicial, agora emergiam por entre o emaranhado de vegetação em que se tornara a horta de Bobbi. Empurravam rudemente o velho entre eles. Os pés de Hillman se prenderam nas raízes e ele caiu. Um dos homens — Tarkington — deu-lhe um pontapé para que se levantasse. Butch captou o fio dos pensamentos de Tarkington, com nítida clareza: ele estava enfurecido, por recordar o assassinato de Beach Jernigan.

Hillman caminhou aos tropeções para o Cherokee. A porta do galpão se abriu nesse momento. Kyle Archinbourg e Adley McKeen saíram de lá. McKeen não parecia mais atemorizado — seus olhos luziam e um enorme sorriso desdentado distendia-lhe os lábios. Entretanto, isso não era tudo. Havia algo mais...

Butch percebeu, de repente.

Nos poucos minutos de demora dos dois homens no galpão, uma vasta porção dos cabelos de Adley McKeen parecia ter sumido.

— Eu irei a qualquer momento, Kyle — dizia ele. — Não há problema.

Ainda havia mais alguma coisa, porém agora tudo parecia dispersar-se novamente. Butch entregou os pontos.

O mundo foi apagando, até nada mais restar além daqueles desagradáveis sons revolventes e a pós-imagem de luz verde sobre suas pálpebras.

 

3º ato.

Estavam todos reunidos na biblioteca da cidade — o nome seria mudado para Biblioteca Ruth McCausland, por concordância geral. Eles beberam café, chá gelado, Coca-Cola e ginger ale. Não havia nenhuma bebida alcoólica. Não no funeral de Ruth. Comeram minúsculos sanduíches triangulares de atum, comeram sanduíches similares recheados com pasta de queijo cremoso e azeitonas, comeram sanduíches de queijo cremoso e pimentão. Comeram fatias de carne fria e uma salada de gelatina com fragmentos de cenoura suspensos em seu interior, como fósseis em âmbar.

Falaram bastante, porém a sala estava silenciosa, em sua maioria — se alguém a houvesse grampeado, esperando ouvir conversas clandestinas, sem dúvida ficaria decepcionado. A tensão que distendera muitos rostos na igreja, quando a situação na floresta correu o risco de quase ficar fora de controle, agora estava superada. Bobbi encontrava-se no galpão. Aquele velho abelhudo também fora levado para lá. Por fim, o policial abelhudo fora igualmente levado ao galpão.

A mente grupal perdia contato com aquelas pessoas, quando elas penetravam no espesso clarão daquela luz verde.

Eles comeram, beberam, ouviram e falaram, sem que ninguém pronunciasse a menor palavra inadequada; o último forasteiro deixara a cidade após a bênção de Goohringer junto à sepultura. Agora, eles tinham Haven novamente para si.

(daqui em diante tudo estará bem)

(sim eles compreenderão sobre Dugan)

(você tem certeza)

(sim, eles compreenderão; pensarão que compreendem)

O tiquetaquear do relógio Seth Thomas, na platibanda da lareira, doado pela escola primária após o piquenique da primavera do ano anterior, era o som mais alto na sala. Ocasionalmente, ouvia-se o decoroso tilintar de uma xícara de porcelana. Fracamente, além das janelas abertas e teladas, chegava até eles o ruído do motor de um avião distante.

Não havia trinado de pássaros.

Ninguém sentia falta disto.

Eles comeram e beberam, tendo ficado sabendo quando Dugan foi escoltado para fora do galpão de Bobbi, por volta de uma e meia daquela tarde. Todos se levantaram dos assentos e agora falaram, falaram realmente, começaram a tagarelar ao mesmo tempo. Tigelas de plástico foram tampadas. Sanduíches não comidos foram colocados em sacolas de plástico transparente. Claudette Ruvall, mãe de Ashley, passou uma folha de papel de alumínio por cima dos remanescentes da caça-rola que havia trazido. Saíram todos para a rua e tomaram o rumo de suas casas, sorrindo e conversando.

O 3º ato terminara.

 

Gardener voltou a si mais ou menos ao pôr-do-sol, com uma dor de cabeça proveniente da ressaca e a sensação de terem acontecido coisas, das quais não se lembrava muito bem.

Finalmente conseguiu, Gard, pensou. Finalmente teve outro black-out. Satisfeito?

Deu um jeito de sair da varanda e dobrou tremulamente a quina da casa, ficando fora da vista de quem passasse na estrada. Então, vomitou. Viu sangue no vômito, mas isto não o surpreendeu. Não era aquela a primeira vez, embora agora houvesse mais sangue do que nunca.

Sonhos... Céus, ele tivera pesadelos bem estranhos, com ou sem black-out. Pesadelos com pessoas andando por ali, indo e vindo, tanta gente, que a eles faltava era uma banda marcial e a Polícia

(de Dallas, a Polícia de Dallas esteve aqui esta manhã e você embriagou-se para não ver os tiras, seu fodido covarde)

Garotas em trajes de vaqueiro. Pesadelos, nada mais que isso.

Afastou-se da poça de vômito entre seus pés. O mundo entrava e saía de foco a cada batida de seu coração e, de repente, Gardener compreendeu que estivera bem perto da morte. Afinal de contas, estava suicidando-se... com a diferença de que era um suicídio lento. Encostou o braço à parede da casa e a testa nesse braço.

— O senhor está bem, Sr. Gardener?

— Hã? — exclamou ele, endireitando o corpo com um sobressalto.

Seu coração deu duas violentas pancadas, parou por um lapso que parecia eterno e então recomeçou a pulsar tão rapidamente, que ele mal podia distinguir as batidas individuais. A dor de cabeça ficou subitamente quase insuportável. Ele girou.

Bobby Tremain estava ali parado, com ar surpreso, parecendo até um pouco divertido... mas sem realmente lamentar o susto que dera em Gard.

— Poxa, eu não tinha intenção de assustá-lo, Sr. Gardener...

Seu cretino, não era outra a sua intenção e eu sei disso muito bem!

O jovem Tremain piscou rapidamente, várias vezes. Gardener percebeu que ele conseguira captar algo do que tinha pensado. Descobriu que pouco estava ligando.

— Onde está Bobbi? — perguntou.

— Eu sei quem você é. Sei onde você está. Bem na minha frente. Onde está Bobbi?

— Bem, eu já lhe digo — respondeu Bobby Tremain.

Seu rosto se tornou muito franco, de olhos bem abertos, expressando grande sinceridade, e Gardener recordou de repente, quase sem querer, seus tempos de professor. Aquela era a mesma expressão dos alunos que haviam passado um longo fim de semana invernal esquiando, transando e bebendo, quando começavam a explicar que não podiam entregar agora os trabalhos de pesquisa do dever de casa, porque suas mães tinham morrido no sábado.

— Pois não, então diga — falou Gardener.

Recostou-se no revestimento de ripas daquele lado da casa, fitando o adolescente ao clarão avermelhado do pôr-do-sol. Por cima do ombro dele, podia ver o galpão, trancado a cadeado, as janelas pregadas com tábuas.

Recordou que o galpão estivera no sonho.

Sonho? Ou, seja lá o que for, você não quer admitir que foi real?

Por um momento, o rapazinho pareceu francamente desconcertado pela ex-pressão clínica de Gardener.

— A Srta. Anderson sofreu um ataque de insolação. Alguns homens a encontraram perto da nave e a levaram para o Hospital Geral de Derry. O senhor estava desmaiado.

Gardener endireitou o corpo rapidamente.

— E ela está bem?

— Não sei. Eles ainda estão com ela. Ninguém telefonou para cá. Não, desde as três da tarde, mais ou menos. Foi quando cheguei aqui. Gardener afastou-se da parede e começou a dar volta à casa, de cabeça baixa, lutando contra a ressaca. Esperava que o rapazinho mentisse e talvez ele mentira sobre a natureza do que tinha acontecido a Bobbi, mas Gardener pressentia certa verdade no que ele havia dito: Bobbi estava doente, machucada, alguma coisa. Isto explicava aquelas idas e vindas de que se lembrava, como se fossem um sonho. Supôs que Bobbi o tivesse chamado mentalmente. Claro. Chamara-o em sua mente, o melhor truque da semana. Algo que ocorria somente em Haven, senhoras e micróbios...

— Para onde vai? — perguntou Tremain, em voz subitamente cortante.

— Para Derry.

Gardener havia chegado ao final da entrada para carros. A picape de Bobbi estava parada ali. O enorme Dodge Challenger amarelo de Tremain fora estacionado perto dela. Gardener se virou para o rapazinho. O sol havia pintado fortes reflexos vermelhos e sombras negras no rosto dele, dando-lhe uma aparência de índio. Observando-o melhor, Gardener percebeu que não iria a lugar algum. Aquele adolescente, com seu carro veloz e ombros de herói de futebol, não fora deixado ali apenas para dar-lhe as más notícias, assim que emergisse da bebedeira o suficiente para juntar-se ao mundo dos vivos.

Compete-me acreditar que Bobbi estava na floresta, escavando como louca, até ser derrubada pela insolação, enquanto seu parceiro de horários irregulares estava caído na varanda, bêbado como um gambá? É isso? Bem não deixa de ser um bom truque, porque se presumia que ela estivesse no funeral daquela McCausland. Bobbi foi para a cidade e eu fiquei aqui sozinho, tendo começado a pensar no que vi no domingo... Comecei a pensar e então comecei a beber, porque esta é a maneira que geralmente funciona, em se tratando de mim. Claro que Bobbi podia ter ido ao funeral voltado para cá, trocado de roupa e ido trabalhar na floresta, quando então sofreu o ataque de insolação... exceto que não foi como aconteceu. O garotão está mentindo. Vejo tudo escrito em seu rosto e, de repente, fico danado de contente, porque ele não pode ler meus pensamentos.

— Acho que a Srta. Anderson preferiria que o senhor ficasse aqui e continuasse com o trabalho — disse Bobby Tremain, com ar tranqüilo.

— Você acha?

— Bem, é o que todos achamos.

O rapazinho pareceu momentaneamente mais desconcertado do que nunca — circunspecto, um pouco vacilante sobre os pés. Certamente, ele não esperava que o bêbado de estimação de Bobbi ainda tivesse dentes ou garras. Tal pensamento provocou outro, muito mais singular, e ele observou o rapazinho mais perto, à claridade que agora se diluía em laranja e rosa acinzentado. Ombros de herói de futebol, um rosto atraente de covinha no queixo, que poderia ter sido desenhado por Alex Gordon ou Berni Wrightson, tórax largo, cintura estreita. Bobby Tremain, um americano-cem-por-cento. Não era de admirar que a jovem Colson fosse louca por ele. Não obstante, aquela boca funda, de aparência doentia, dissociava-se estranhamente do resto, pensou Gardener. Eram eles que perdiam dentes, não Gardener.

Tudo bem — para que ele está aqui?

Para vigiar-me. Certificar-se de que não saio daqui. Haja o que houver.

— Está certo — disse para Tremain, em voz mais suave e conciliatória. — Se é o que vocês todos acham...

Tremain relaxou um pouco.

— É isso aí.

— Bem, vamos entrar e fazer café. Eu gostaria de beber uma xícara. Minha cabeça está doendo. Aliás, vamos ter que levantar cedo amanhã... — Parou e encarou Tremain. — Você vai ajudar, não vai? É parte disto, não?

— Hum... sim, é, sim, senhor.

Gardener assentiu. Olhou para o galpão por um instante e, à claridade que esmaecia, pôde notar vivas tatuagens verdes, nos pequenos espaços entre as tábuas. Por um momento, seu sonho quase ficou ao alcance — sapateiros implacáveis, martelando dispositivos desconhecidos, naquela luminosidade verde. Ele jamais vira o clarão tão vivido como agora, tendo reparado que, quando Tremain olhava naquela direção, seus olhos desviavam-se prontamente, inquietos.

A letra de uma antiga canção flutuou na mente de Gardener, não inteiramente ao acaso, depois tornando a escapar:

Não sei o que eles estão fazendo, mas riem bastante, atrás da porta verde... porta verde, que segredo você esconde?

E havia um som. Fraco... cíclico... não de todo identificável... porém, desagradável de algum modo.

Eles dois haviam vacilado. Agora, Gardener começou a mover-se para a casa. Tremain o seguiu, aliviado.

— Bem — disse Gardener, como se a conversa nunca tivesse sido interrompida. — Vou precisar de alguma ajuda. Bobbi achava que, em umas duas semanas, estaríamos chegando a alguma espécie de escotilha... capaz de permitir nossa entrada.

— Sim, eu sei — respondeu Tremain, sem hesitação.

— Só que isso era com nós dois trabalhando.

— Oh, sempre haverá mais alguém com você — disse Tremain, e sorriu abertamente.

Um arrepio percorreu a espinha de Gardener.

— É mesmo?

— Claro! Pode apostar!

— Até Bobbi voltar.

— Até lá — concordou Tremain.

Exceto que ele não acredita na volta de Bobbi. Nunca mais.

— Vamos — disse Gardener. — Hora do café. Depois podemos comer alguma coisa.

— Acho uma boa idéia.

Os dois entraram na casa, deixando que o galpão emitisse ruídos e murmurasse para si mesmo, na escuridão que se intensificava lá fora. Quando o sol apareceu, as manchas verdes nas fendas ficaram cada vez mais brilhantes. Um grilo saltou para a marca luminosa que uma daquelas fendas enviava para o chão, em um facho comprido, e caiu morto.

 

UM REGISTRO DIÁRIO — A CIDADE, CONCLUSÃO

Quinta-feira, 28 de julho:

Butch Dugan acordou em sua cama, em Derry, exatamente às três e cinco da madrugada. Empurrou as cobertas para um lado e girou os pés para o chão. Seus olhos estavam dilatados e esgazeados, o rosto intumescido de sono. As roupas que usara na viagem a Haven com o velho, no dia anterior, estavam sobre a cadeira, diante de sua pequena mesa de trabalho. Havia uma caneta no bolso do peito da camisa. Ele queria aquela caneta. Este parecia ser o único pensamento que sua mente admitia com clareza.

Levantando-se, foi até a cadeira, apanhou a caneta, jogou a camisa para o chão, sentou-se e apenas ficou quieto por vários momentos, fitando a escuridão, à espera do novo pensamento.

Butch havia sido levado ao galpão de Roberta, porém bem pouco dele saíra de lá. Parecia ter encolhido, diminuído. Não tinha lembranças nítidas de coisa alguma. Não seria capaz de dizer a um interrogador qual o seu nome do meio, como não se lembrava, em absoluto, de ter ido no Cherokee que Hillman alugara, até a linha limítrofe entre as cidades de Haven e Troy. Também não recordava que deslizara por trás do volante, depois que Adley Mckeen tinha saído e caminhado de volta ao Cadillac de Kyle Archinbourg. Da mesma forma, esquecera que havia dirigido até Derry. No entanto, todas estas coisas haviam acontecido.

Butch estacionara o Cherokee diante do prédio de apartamentos em que o velho estava morando, trancara a porta e então entrara em seu próprio carro. Dois quarteirões adiante, fizera alto apenas pelo tempo suficiente para jogar as chaves do jipe em um bueiro.

Foi diretamente para a cama e dormiu até ser acordado pelo despertador plantado em sua mente.

Agora, um novo botão era acionado. Butch piscou uma ou duas vezes, abriu uma gaveta e retirou dela um bloco de notas. Escreveu:

Eu disse a todos, na noite de terça-feira, que não poderia comparecer ao funeral dela porque não me sentia bem. Foi verdade. Entretanto, meu mal nada tinha a ver com o estômago. Eu pretendia pedi-la em casamento, mas estava sempre adiando. Temia que ela não me aceitasse. Se não tivesse sido tão receoso, ela agora pode-ria estar viva. Com ela morta, creio que a vida nada mais tem para oferecer-me.

Lamento toda esta confusão.

Estudou a nota por um momento, e depois assinou seu nome no final: Anthony F. Dugan.

Largou a caneta e a nota a um lado, tornando a sentar-se empertigado na cadeira, olhando pela janela para o exterior.

Por fim, outro relé foi acionado.

O último relé.

Levantando-se, ele foi até o armário-embutido. Girou a combinação do cofre de parede no fundo do armário e de lá tirou seu .357 regulamentar. Passou o coldre pelo ombro, voltou à mesa e sentou-se.

Ficou pensativo um instante, de cenho franzido, depois levantou-se, apagou a luz do armário, fechou a porta, voltou para a mesa, tornou a sentar-se, tirou o .357 do coldre, encostou o cano da arma firmemente contra sua pálpebra esquerda e puxou o gatilho. A cadeira tombou e bateu no chão com um baque surdo e normal de madeira — o som de um alçapão de patíbulo se abrindo.

 

Primeira página do Daily News de Bangor, sexta-feira, 29 de julho:

APARENTE SUICÍDIO DE POLICIAL ESTADUAL DE DERRY

Chefiava a investigação do desaparecimento de agentes

por John Leandro

 

O Cabo Anthony “Butch” Dugan, lotado no quartel da polícia estadual de Derry, aparentemente suicidou-se na madrugada de quinta-feira, com um tiro de seu revólver de serviço. Sua morte abalou o quartel de Derry, já duramente transtornado na semana passada pelo desaparecimento de dois agentes...

 

Sábado, 30 de julho:

Gardener sentou-se em um cepo de árvore na floresta, sem camisa, comendo um sanduíche de atum com ovo e bebendo café gelado, traçado com brandy. A sua frente, sentado em outro cepo, estava John Enders, o diretor da escola. Enders não tinha físico para o trabalho duro e, embora fosse apenas meio-dia, exibia uma aparência cansada e acalorada, como que à beira da exaustão total.

Gardener assentiu na direção dele.

— Nada mau — comentou. — De qualquer modo, foi melhor do que com Tremain. O garotão evapora a água, tentando fervê-la.

Enders sorriu apagadamente.

— Obrigado.

Gardener olhou além dele, observando a grande forma circular que se projetava do solo. A vala escavada continuava aumentando e, a cada vez tinham que usar mais e mais daquela rede prateada que, de algum modo a impedia de desmoronar. Ele não tinha idéia de como os outros a haviam feito, sabia apenas que o grande sortimento do porão já quase terminara. Na véspera, entretanto, duas mulheres da cidade tinham chegado em um furgão trazendo novo suprimento, tão bem dobrado como cortinas passadas recentemente a ferro. Estavam precisando de mais rede, porque continuavam cavando firmemente a encosta da elevação... e a “coisa” ainda tinha muito mais volume encravado na terra. Agora, a casa inteira de Bobbi caberia em sua sombra.

Ele tornou a olhar para Enders. O outro fitava o gigantesco objeto metálico com uma expressão de reverente temor religioso — como se ele fosse um caipira druida, sendo aquela a sua primeira viagem, vindo do interior para visitar Stonehenge.

Gardener levantou-se, cambaleando ligeiramente.

— Vamos — disse. — Temos que preparar algumas explosões.

Ele e Bobbi haviam atingido um ponto, semana antes, em que a nave se encontrava mergulhada em um leito rochoso, como um pedaço de aço enfiado em cimento. O leito rochoso não danificara a nave; não havia o menor arranhão em seu casco cinza-perolado e muito menos uma mossa ou amassadura. Entretanto, estava firmemente presa ali. As rochas teriam que ser removidas por explosão. Aquele seria um trabalho para uma equipe de construção que soubesse como usar o explosivo — um bocado de dinamite — se fossem outras as circunstâncias.

Naqueles dias, entretanto, em Haven havia explosivos disponíveis, de uma natureza que tornavam a dinamite obsoleta. Gardener ainda não sabia o que havia sido a explosão em Haven Village e não tinha muita certeza de querer saber. Era um ponto discutível, de qualquer modo, porque ninguém estava falando. O que quer que tivesse sido, ele estava certo de que alguma enorme coisa feita de tijolos subira nos ares como um foguete, nisto estando envolvidos alguns daqueles Novos e Melhorados Explosivos. Ele podia recordar uma época em que realmente perderia tempo, especulando se o superalimento cerebral que o artefato de Bobbi colocava no ar podia ou não produzir armas. Essa época parecia agora incrivelmente distante, e aquele Jim Gardener incrivelmente ingênuo.

— Acha que pode conseguir, Johnny? — perguntou ao diretor da escola.

Enders levantou-se, pestanejando, levando as mãos à parte inferior das costas. Parecia desesperadamente fatigado, porém conseguiu esboçar um ligeiro sorriso. Olhar para a nave parecia revigorá-lo. Não obstante, havia sangue gotejando de um canto de seu olho — uma única lágrima vermelha. Ali houvera ruptura de alguma coisa. É por estar perto demais da nave, pensou Gard. Nos dois primeiros dias em que Bobby Tremain o “ajudara”, cuspira seus últimos poucos dentes, como cartuchos de metralhadora, assim que chegaram lá.

Gardener pensou em dizer a Enders que algo vazava de seu olho direito, mas depois resolveu deixar que ele próprio descobrisse. O sujeito estaria bem. Provavelmente. Se passasse mal, Gardener não tinha muita certeza se isso o preocuparia... e isto, mais do que qualquer outra coisa, era um detalhe que o chocava.

Por que preocupar-me? Está querendo enganar-se, achando que esses caras ainda são humanos? Se está, é melhor ficar mais espertinho, Gard, velho Gard.

Tomou a direção da encosta, parando junto ao último cepo de árvore, antes que o solo pedregoso fosse substituído pelas lascas do leito rochoso, que escorriam como um regato. Apanhou um rádio barato de transistores, feito de plástico amarelo de alto impacto. Parecia-se com Snoopy. Acoplado a ele havia o painel de uma calculadora Sharp. E, naturalmente, pilhas.

Cantarolando, Gardener começou a descer para a borda da escavação. Ali, a música estancou e ele ficou calado, apenas fitando o gigantesco flanco cinzento da nave. A visão não o revigorou, mas inspirou-lhe um profundo temor, com toques de um firme e sombrio medo.

Sim, mas você ainda tem esperanças também. Seria um mentiroso se negasse isto. A chave talvez ainda esteja aqui... em algum lugar.

Não obstante, à medida que crescia o medo, diminuía a esperança. Gard achava que em breve não a teria mais.

A escavação na encosta da elevação agora deixava o flanco da nave demasiado longe para ser tocado — não que Gard desejasse tocá-lo; não gostara da sensação de ficar com a cabeça transformada em um alto-falante gigantesco. Isso doía. Ele agora raramente sangrava quando tocava o casco da nave (e, tocá-lo, por vezes era inevitável), porém sempre surgia o jato de transmissão radiofônica, por vezes provocando forte sangramento de seu nariz ou ouvidos, em uma quantidade tal, que o deixava preocupado. De passagem, Gard perguntou-se por quanto tempo emprestado estava vivendo agora, porém essa pergunta era também discutível. Desde a manhã em que despertara naquele quebra-mar de New Hampshire, tudo se tornara tempo emprestado, uma sobrevida. Era um homem doente e tinha consciência disto, porém não tão mal para deixar de avaliar a ironia da situação em que se encontrava: após escavar como louco a terra em torno daquela coisa infernal, utilizando uma variedade de ferramentas que pareciam ter saído do Catálogo Universal e Geral Hugo Gernsback, após lazer o que o resto deles provavelmente não teria conseguido sem um esforço sobre-humano, em uma espécie de transe hipnótico, talvez não chegasse a entrar na nave, quando e se encontrassem a escotilha que Bobbi presumia existir. Entretanto, ele queria experimentar, tentar. Quem duvidasse, podia apostar o relógio e a corrente.

Agora, ele pousou a bota em um estribo de corda, apertou o nó e colocou o rádio Snoopy na camisa.

— Pode me descer, Johnny!

Enders começou a girar um molinete e Gardener começou a ser descido para o fundo da escavação. A seu lado, o liso casco uniforme da nave ia deslizando cada vez mais para o alto.

Se os outros quisessem livrar-se dele, Gard supunha que este seria um meio tão bom quanto qualquer um. Bastaria uma ordem telepática para Enders: Solte a roda, John. Já estamos cheios dele! Então, ele despencaria seriam doze metros de altura até o sólido leito rochoso do fundo, com a corda solta balançando mais acima. Esmagado.

Fosse como fosse, estava à mercê deles... e imaginou que reconheciam sua utilidade, embora com relutância. O garotão Tremain era jovem, forte como um touro, mas entregara os pontos em dois dias. Enders provavelmente não passaria do dia presente, mas Gardener apostaria seu relógio e a corrente (que relógio e corrente, ha-ha?), como no dia seguinte apareceria outro para mantê-lo sob vigilância.

Bobbi estava bem.

Uma ova que estava — se você não tivesse voltado, a esta altura ela já se teria matado!

Não obstante, ela continuara ali, melhor que Enders ou aquele garotão Tremain...

O pensamento retornou, inexorável: Bobbi entrava no galpão com os outros. Tremain e Enders nunca haviam entrado... pelo menos, que você visse. Talvez aí esteja a diferença.

Então, o que havia lá dentro? Dez mil anjos dançando na cabeça de um alfinete? O fantasma de James Dean? O sudário de Turim? O quê?

Ele não sabia.

Seu pé tocou o fundo.

— Cheguei! — gritou.

O rosto de Enders, parecendo muito pequenino, surgiu na borda da escavação. Mais além, Gardener podia ver uma nesga minúscula do céu azul. Uma nesga mínima. A claustrofobia sussurrou em seu ouvido — uma voz tão áspera como papel de lixa.

O espaço entre o costado da nave e a muralha coberta por aquela rede prateada era muito estreito ali em baixo. Gardener precisava mover-se com extremo cuidado, para não tocar o casco da nave e evitar uma daquelas explosões radiofônicas.

O leito rochoso mergulhava em escuridão. Agachando-se, Gard deslizou os dedos sobre ele. Ficaram molhados. A partir da última semana, a cada dia ficavam um pouco mais molhados.

Nessa manhã, ele havia aberto um pequeno furo de dez centímetros de lado por trinta de profundidade no leito rochoso, usando um dispositivo que anterior-mente fora um secador de cabelos. Agora, abrindo o kit de ferramentas, pegou uma lanterna e fez o facho de luz incidir no buraco.

Havia água dentro dele.

Levantando-se, gritou:

— Desça a mangueira!

— ...o quê?...

A voz do outro desceu ondulante até ele. Enders parecia pedindo desculpas. Gardener suspirou, perguntando-se quanto tempo mais poderia resistir ao firme peso da exaustão. Todo aquele equipamento Universal e Geral Hugo Gernsback, e ninguém se lembrara de instalar um intercomunicador ligando o fundo da escavação com a superfície mais acima. Em vez disto, eles tinham que berrar a plenos pulmões.

Oh mas nenhuma das inteligentes idéias deles segue esse curso, você sabe disto. Por que pensariam em intercomunicadores, quando lêem pensamentos? Você é o único imbecil no grupo, não eles.

— A mangueira! — gritou esganiçadamente. — Desça a filha da mãe da mangueira, cabeça oca!

— ...cer...to...!

Gardener ficou esperando que a mangueira descesse, desejando miseramente que estivesse em qualquer outra parte do mundo que não aquela, ansiando poder convencer-se de que tudo aquilo era apenas um pesadelo.

Não adiantava. A espaçonave era insanamente exótica, porém esta realidade também era demasiado prosaica para ser um sonho: o cheiro acre do suor de John Enders, o cheiro ligeiramente alcoólico do seu próprio, o aperto da laçada da corda em seu pé, quando ia sendo descido para o fundo da escavação, a sensação do leito rochoso, áspero e úmido debaixo dos seus dedos...

Onde está Bobbi, Gard? Terá morrido?

Não. Gard não acreditava que ela estivesse morta, mas ficara convencido de que se encontrava desesperadamente enferma. Alguma coisa tinha acontecido a todos eles na quarta-feira. Ele não conseguia focalizar muito bem as lembranças, porém sabia que não houvera nenhuma amnésia real e nem pesadelos de delirium tremens. Aliás, seria bem melhor que tivesse havido. Na última quarta-feira acontecera alguma espécie de despistamento — uma grande correria. E, no decorrer da mesma, ele acreditava que Bobbi tivesse sido ferida... adoecido... qualquer coisa.

No entanto, eles nada falam a respeito.

Bobby Tremain: Bobbi? Poxa, Sr. Gardener, não há nada errado com ela — foi apenas uma insolaçãozinha. Não vai demorar muito e já estará de volta. Bobbi pode aproveitar este descanso! Penso que sabe melhor do que ninguém como ela andava esfalfada!

Bonitas palavras. Tão grandiosas, que quase se poderia imaginar que o garotão Tremain acreditava no que dizia, mas até a gente olhar bem para seus estranhos olhos.

Gard podia ver-se abordando aqueles que começavam a chamar de Pessoal do Galpão, exigindo saber o que acontecera com ela.

Newt Berringer: Quero dizer uma coisa a vocês: ele tenta dizer-nos que nós somos a Polícia de Dallas.

E, claro, certamente todos eles começariam a dar gargalhadas, certo? Eles, a Polícia de Dallas? Oh, mas isso era muito divertido. De fato, era para morrer de rir. Para dar gritos.

Talvez seja porque sinto tanta vontade de fazer isso, pensou ele. Quero dizer, dar gritos.

E agora, ali estava ele no fundo daquela fenda que o homem produzira no solo, contendo uma imensurável espaçonave alienígena, enquanto esperava que a mangueira fosse descida até lá. De repente, em sua cabeça ecoou a terrível e final passagem de George Orwel, em Animal Farm, como que um grito de morte. Era curioso, a gente descobrir que sabe coisas de cor. “Os olhos envelhecidos de Clover moveram-se rapidamente, de uma face para outra. E enquanto os animais no exterior olhavam de porco para homem, de homem para porco e novamente de porco para homem, pareceu que alguma coisa estranha estava acontecendo. Era impossível dizer qual era qual.”

Céus, Gard, corta essa!

Finalmente, lá vinha a mangueira, uma mangueira de vinte e um metros procedente do departamento de bombeiros voluntários. Claro que ela servia para espargir água, não para sugá-la, mas uma bomba de vácuo invertera facilmente o problema.

Enders a atirou desajeitadamente para baixo. A extremidade da mangueira balançava de um lado para outro, por vezes batendo no casco da nave. Sempre que isto acontecia, ouvia-se um som difuso, surdo, mas curiosamente penetrante. Gardener não gostou disto e, rapidamente, passou a antecipar cada pancada.

Cristo, eu gostaria que ele não deixasse essa coisa balançando!

Bum... bum... bum... Por que o casco não emite um som metálico? Por que tem que produzir esse outro som insistentemente, como o de terra sendo jogada com pás sobre um caixão?

Bum... bum... bum...

Poxa, eu devia ter saltado, quando tive oportunidade. Bastaria um pulo, naquele fodido quebra-mar em Arcádia Beach. Dia 4 de julho, certo? Droga, eu teria sido um Yankee Doodle Cadáver...*

Muito bem, então continue! Quando voltar para casa esta noite, engula todo aquele Valium do armário de remédios. Mate-se, caso não tenha peito para ver esta coisa marchando até o final ou para fazê-la terminar. A boa gente de Haven certa-mente dará uma festa sobre seu cadáver. Acredita que eles o querem aqui? Se ainda não houvesse no quadro algo da antiga e não-aperfeiçoada Bobbi, acho que você já teria desaparecido. Se não houvesse ela entre você e eles...

Bum... bum... bum...

Estaria Bobbi entre ele e o restante de Haven? Claro. Entretanto, se ela morresse, quanto tempo levaria, antes que ele fosse apagado da equação?

Muito pouco, chapa. Aliás, pouquíssimo. Uns quinze minutos, talvez.

Bum... bum... bum...

Piscando, de dentes cerrados contra aquele som opaco e fatídico, Gard saltou e agarrou o focinho de cobre da mangueira, antes que ele tornasse a colidir contra o lado da nave. Puxou-a para baixo, ajoelhou-se sobe ela e espichou a cabeça, espiando para o pequeno rosto de Enders lá no alto.

— Comece a bombear! — gritou.

— ...o quê?...

Era só o que faltava, pensou Gardener.

— Ponha essa mangueira filha da puta em funcionamento! — berrou esganiçadamente, em realidade sentindo a cabeça dividir-se em dois doloridos pedaços. Fechou os olhos.

— ...cer... to...!

Quando tornou a espiar para cima, Enders havia desaparecido.

Gardener enfiou a extremidade da mangueira no buraco de verificação que havia praticado na rocha aquela manhã. A água começou a borbulhar lentamente, de maneira quase contemplativa. Era frígida no início, porém suas mãos rapidamente ficaram entorpecidas. Embora a trincheira onde se encontrava medisse apenas doze metros de profundidade, eles haviam removido toda a encosta da elevação, no processo de formarem uma base nivelada, disto resultando que o lugar em que ele se agachava agora, provavelmente houvesse estado vinte e sete metros abaixo do solo, até finais de junho. Poderia ter um número exato se medisse a superfície livre da nave, porém Gardener pouco estava ligando para tal. O simples fato era que pareciam ter quase alcançado o aqüífero — rocha esponjosa, saturada de água. Aparentemente, a metade da nave ou seus dois terços inferiores flutuavam em um imenso lago subterrâneo. Suas mãos estavam agora tão entorpecidas, que haviam esquecido o que eram.

—Vamos, porra! — murmurou.

Como que em resposta, a mangueira começou a vibrar e contorcer-se. Ele não podia ouvir o motor da bomba, de onde estava, mas nem era preciso. Quando o nível da água no buraco de verificação baixou, Gardener pôde ver novamente suas mãos avermelhadas e gotejantes. Viu que o nível da água continuava a cair.

Se atingirmos o aqüífero, isto irá atrasar-nos.

Certo. Poderíamos perder um dia inteiro, enquanto eles idealizam alguma espécie de superbomba. Poderia haver um atraso, porém nada irá pará-los, Gard. Ainda não sabia disso?

A mangueira começou a emitir o som de um gigantesco canudo de refresco, em um copo gigantesco de Coca. O buraco de verificação estava vazio.

— Desligue! — bradou.

Enders limitou-se a continuar olhando para ele, no fundo da vala. Gardener suspirou e deu um forte puxão na mangueira. O outro pareceu assustar-se, depois fez para Gardener um pequeno círculo com o polegar e o indicador. Desapareceu de vista. Segundos mais tarde, a mangueira parou de vibrar. Em seguida começou a subir, à medida que Enders a enrolava. Gardener certificou-se de que a extremidade da mangueira estava perfeitamente imóvel e não balançaria, antes de soltá-la de vez.

Agora, tirou o rádio da camisa e o ligou. Um dispositivo interno permitia um retardamento de dez minutos. Colocou o rádio no fundo do buraco de verificação e depois o cobriu com calhaus de pedra. Uma enormidade de potência explosiva seria canalizada pata cima, mesmo assim, porém este era um negócio poderoso, qualquer que fosse o material — com força suficiente para talvez esmigalhar em pedacinhos um metro vertical de leito rochoso. Os detritos seriam rapidamente carregados em uma caçamba e içados para a superfície. A nave não seria prejudicada. Aparentemente, nada poderia fazer isso.

Gardener enfiou o pé no estribo e gritou:

— Puxe-me para cima!

Nada aconteceu.

— PUXE-ME PARA CIMA, JOHNNY! — bradou.

De novo, aquela sensação de que sua cabeça se dividia, como se alguma costura apodrecida houvesse rompido.

Nada ainda.

O fato dele ter mergulhado fundo o punho na água gelada, fizera sua temperatura corporal ter baixado talvez dois graus completos. Entretanto, um suor úmido e desagradavelmente pegajoso brotou de repente em sua testa. Ele olhou para o relógio de pulso. Dois minutos já tinham passado, desde que ligara o rádio Snoopy. Do relógio, seus olhos se moveram para a pilha frouxa de calhaus de granito, enchendo o buraco de verificação. Havia tempo de sobra para arrancar aqueles pedaços de pedra do buraco e desligar o rádio.

Exceto que, desligar o rádio, não interromperia o que quer que estivesse acontecendo dentro dele. Gardener sabia disso, de algum modo.

Olhou para cima, porém não viu Enders por lá.

É assim que eles se livrarão de você, Gard.

Uma gota de suor escorreu e penetrou em seu olho. Ele a enxugou com o dorso da mão.

— ENDERS! EI, JOHNNY!

Suba pela corda, Gard.

Doze metros? Devo estar sonhando. No colégio, talvez. Não, acho que nem mesmo lá...

Olhou para o relógio. Três minutos.

Claro, vai ser assim. Puf! Tudo desaparecido. Um sacrifício à Grande Nave. Uma coisinha para aplacar os Tommyknockers.

— ...ainda não começou a funcionar?

Ele olhou para cima, tão rapidamente que seu pescoço estalou, o medo crescente transformando-se logo em raiva.

— Já começou há quase cinco minutos, seu maldito filho da mãe! Tire-me daqui, antes que este negócio exploda e me atire ao céu!

A boca de Enders se abriu em um O que era quase cômico. Tornou a desaparecer e Gardener ficou espiando para o relógio de pulso, por entre o que começava a tornar-se uma névoa de suor.

Então, a laçada em torno de seu pé sacudiu-se e, um momento depois, ele começava a subir. Fechando os olhos, Gardener aferrou-se à corda.

Aparentemente, ainda não estava tão perto de abotoar o paletó como imaginara Talvez, saber disso não fosse tão ruim.

Chegou ao alto da escavação, saiu, afrouxou a laçada em torno do pé e caminhou para onde se encontrava Enders.

— Sinto muito — disse Enders, sorrindo timidamente. — Pensei termos combinado que você gritaria por mim, antes de...

Gardener esmurrou-o. A coisa estava feia e Enders caído no chão, os óculos pendendo de uma orelha e a boca sangrando, antes mesmo de Gardener ter plena consciência do que pretendia fazer. E, embora não sendo telepata, pensou poder sentir cada cabeça em Haven subitamente voltada para aquele lugar, todos atentos e ouvindo.

— Você me deixou lá em baixo com aquela coisa funcionando, cretino! — exclamou. — Se você — ou qualquer outro desta cidade — tornar a fazer isto, é melhor que me deixem logo lá no fundo. Ouviu bem?

A raiva assomou aos olhos de Enders. Ele ajeitou os óculos no lugar, o melhor que pôde, e ficou em pé. Havia terra aderida em sua calva.

— Talvez não saiba com quem está falando!

— Sei mais do que você imagina — respondeu Gardener. — Escute aqui, Johnny. E o resto de vocês, se estiverem ouvindo isto — e acredito que também estejam — ouçam todos também. Quero um intercomunicador lá em baixo! Exijo o mínimo de uma maldita consideração! Tenho jogado limpo com vocês; sou o único nesta cidade que não precisa ter o cérebro vasculhado para agir corretamente, além disso. Exijo o mínimo de uma maldita consideração! Vocês ouviram?

Enders olhou para ele, porém Gardener achou que ele também estivesse ouvindo. Ouvindo outras vozes. Esperou a decisão deles. Estava furioso demais para se preocupar muito.

— Tudo bem — disse Enders suavemente, apertando as costas da mão contra a boca sangrenta. — Você fez seu ponto. Colocaremos um intercomunicador e providenciaremos para que receba um pouco mais de... como foi que falou?

Um leve e desdenhoso sorriso tocou seus lábios. Era um sorriso com o qual Gardener estava extremamente familiarizado. Era a maneira como os Arberg e McCardles deste mundo sorriam. Era a maneira como sorriam os caras que dirigiam ogivas nucleares, quando falavam sobre instalações de energia atômica.

— A palavra foi consideração. Vai precisar recordá-la, mas sujeitos inteligentes podem aprender, não é mesmo, Johnny? Há um dicionário lá na casa. Será que precisa dele, cretino? — Deu um passo à frente e teve a satisfação de ver o homem recuar dois, o sorriso debochado desaparecendo, substituído por um ar de nervosa apreensão. — Consideração, Johnny. Você se lembrará. Todos vocês se lembrarão. Se não por mim, então por Bobbi!

Estavam agora parados junto ao telheiro onde era guardado o equipamento. Os olhos de Enders, pequenos e nervosos, os de Gardener, arregalados, injetados de sangue e ainda irritados.

E se Bobbi morrer, sua idéia sobre consideração pode cobrir todo o caminho para uma morte rápida e indolor. Isto resume tudo, acertei? Você diria que descreve exatamente a topografia desta situação, seu fodidozinbo careca?

— Eu... nós... apreciamos suas palavras claras e diretas — disse Enders

Sem dentes para apoiá-los, os lábios oscilavam para dentro e para fora nervosamente.

— Aposto que sim.

— Talvez algumas palavras claras e diretas entre nós também valham a pena agora. — Ele tirou os óculos, começou a limpá-los com a suada frente da camisa (uma coisa que, pensou Gardener, só contribuiria para deixá-los ainda mais embaçados) e Gardener notou um brilho furioso e ameaçador em seus olhos. — Não precisará... agredir novamente desta maneira, Jim. Estou avisando — todos avisamos — para nunca mais fazer isso. Há... hum... certas mudanças... sim, mudanças... acontecendo em Haven...

— Deixe de histórias!

— E algumas dessas mudanças têm tornado as pessoas... hum... de pavio curto. Portanto, uma agressão física como essa, poderia ser... bem, um perigoso erro.

— Estrondos repentinos o preocupam? — perguntou Gardener.

Enders pareceu cauteloso.

— Não entendo o que quer di...

— Porque se o timer daquele rádio for bom, logo estará ouvindo uma baita explosão.

Caminhou para trás do telheiro, não correndo, mas tampouco caminhando devagar. Enders lançou um assustado olhar para a nave, e então correu atrás dele. Tropeçou em uma pá e caiu esparramado no chão, onde ficou agarrando a canela e careteando. Um momento depois, um rugido alto e surdo sacudiu a terra. Houve uma série daqueles sons opacos, mas penetrantes, quando estilhaços de rocha batiam contra o costado da nave. Outros foram atirados ao ar, depois caindo na borda da escavação ou tornando a cair em seu interior. Gardener viu um ricochetear no corpo da nave e ser atirado a espantosa distância.

— Seu filho da puta mesquinho, fazendo brincadeiras de mau gosto! — gritou Enders, ainda no chão e ainda apertando a canela da perna.

— Mesquinho, o diabo! — replicou Gardener. — Você me deixou lá no buraco!

Enders encarou-o fixamente, cheio de raiva.

Gardener ficou um momento parado onde estava, depois caminhou até ele e estendeu a mão.

— Vamos, Johnny. É hora de esquecermos o que houve. Se Stalin e Roosevelt conseguiram aliar-se o suficiente para derrotar Hitler, acredito que possamos aliar-nos o suficiente para desenterrar este negócio do chão. O que me diz?

Enders nada disse, mas após um instante, aceitou a mão de Gardener e levantou-se. Limpou as roupas taciturnamente, de quando em quando dirigindo a Gardener um olhar quase felino de antipatia.

— Não quer ver se já escavamos nosso poço? — perguntou Gardener.

Sentia-se melhor do que já se sentira em dias — de fato, em meses, talvez anos. Explodir com Enders, fizera-lhe um bem imenso.

— O que quer dizer?

— Não importa — respondeu Gardener.

Caminhou sozinho até a borda da escavação. Olhou para baixo, à procura de água, tentando ouvir gorgolejos de líquido fluindo. Nada viu nem ouviu. Parecia que não haviam tido sorte, novamente.

De repente, ocorreu-lhe que estava ali em pé, com as mãos apoiadas na parte superior das coxas, inclinado para um buraco de doze metros de profundidade tendo em algum lugar mais atrás um homem a quem acabara de dar um soco na boca. Se Enders quisesse, podia dar uma corrida até onde estou e jogar-me neste buraco com um forte empurrão, pensou, e ouviu o outro dizendo: Uma agressão física como essa, poderia ser um perigoso erro.

Entretanto, não se virou para olhar, permanecendo aquele senso de bem-estar, absurdamente fora de lugar ou não. Encontrava-se em uma situação crítica, e prender à cabeça um espelho retrovisor para permitir-lhe ver o que acontecia à retaguarda não iria livrá-lo do que estivesse para ocorrer.

Quando finalmente se virou, Enders continuava parado junto ao telheiro, fitando-o com aquela carrancuda expressão de gato espancado. Gardener desconfiou que ele estivera novamente na linha grupal com seus companheiros mutantes.

— O que acha? — exclamou Gardener, com um toque de amabilidade na voz. — Há um bocado de rocha partida lá no fundo. Voltamos a trabalhar ou resolvemos mais algumas diferenças pessoais?

Enders entrou no telheiro, pegou a mochila de levitação que utilizavam para mover as rochas maiores e caminhou para Gardener com ela. Estendeu-a. Gardener colocou a mochila no ombro. Começou a andar para a corda de descida, depois olhou na direção de Enders.

— Não esqueça de suspender-me, quando eu gritar.

— Não esquecerei.

Os olhos de Enders — ou talvez fossem apenas as lentes de seus óculos — estavam embaciados. Gardener descobriu que, em realidade, não se importava muito com isso. Colocou o pé no estribo da corda e o apertou, enquanto Enders retornava para junto do molinete.

— Lembre-se, Johnny. Consideração! Esta é a palavra para hoje! John Enders o desceu ao fundo da escavação, sem dizer nada.

 

Domingo, 31 de julho:

Henry Buck, que os amigos conheciam como Hank, cometeu o último ato de absoluta loucura irracional a ter lugar em Haven, às onze e quinze daquela manhã de domingo.

As pessoas em Haven estão com o pavio curto, dissera Enders a Gard. Ruth McCausland testemunhara esse mesmo fato durante a busca a David Brown: palavras acaloradas, rixas, um ou dois socos. Ironicamente, sempre havia sido a própria Ruth — ela e o nítido moral imperativo que costumava representar na vida daquelas pessoas — quem evitara que a busca se transformasse em disputa generalizada.

Pavio curto? “Loucura” provavelmente fosse uma palavra melhor.

No choque da “transformação”, a cidade inteira se tornara uma espécie de aposento cheio de gás, esperando apenas que alguém acendesse um fósforo... ou fizesse qualquer coisa ainda mais casual, mas igualmente fatal, pois a explosão de um aposento impregnado de gás pode ser provocada por um inocente garoto de entregas, apertando a campainha da porta e gerando uma faísca.

Essa faísca nunca ocorreu. Parte disto era obra de Ruth. Outra parte, obra de Bobbi. Assim, após as visitas ao galpão, um grupo de meia dúzia de homens e uma mulher começava a agir, como os guias hippies das viagens de LSD nos anos 60, ajudando Haven a percorrer o primeiro difícil estágio da “transformação”.

Foi bom para os moradores de Haven que o big bang*jamais acontecesse, bom para os habitantes do Maine, Nova Inglaterra, talvez para todo o continente ou o planeta inteiro. Não sou ninguém para afirmar que pelo universo inexistiam planetas compostos apenas de enormes escórias mortas flutuando no espaço, porque uma guerra sobre quem estava ou não monopolizando demasiadas secadoras na Laundromat local, aumentou progressivamente sua atividade belicosa em Doomsville**. Ninguém saberá jamais, de fato, onde as coisas terminarão — ou se terminarão. E, em fins de junho, houvera um período em que o mundo inteiro poderia ter despertado para descobrir que um terrível conflito, capaz de estraçalhar o mundo, acontecia em uma obscura cidadezinha do Maine — uma altercação começada por algo tão imensuravelmente importante, como a quem caberia pagar o café na hora da folga, no Haven Lunch.

Claro está que podemos explodir nosso mundo algum dia, sem necessidade de qualquer ajuda externa e por motivos igualmente tão triviais, se observados sob uma perspectiva de anos-luz; em decorrência, passaríamos a girar em um ponto longínquo sobre algum raio da Via Láctea, na Pequena Nuvem de Magalhães*** — se ou não os russos invadissem os campos e petrolíferos iranianos ou se a OTAN decidisse instalar mísseis Cruise, de fabricação americana, na Alemanha Ocidental, fatos estes parecendo tão importantes, como quem pagaria a conta de cinco cafés e outros tantos salgadinhos. Talvez tudo resultasse na mesma coisa, encaradas as ocorrências sob um ponto de vista galáctico.

Seja como for, o tenso período em Haven terminou realmente no mês de julho a esta altura, quase todos na cidade haviam perdido os dentes e, para vários outros, tinham começado estranhas mutações. Aquelas sete pessoas que visitavam o galpão de Bobbi, confraternizando com o que esperava no clarão esverdeado, haviam começado a experimentar tais mutações uns dez dias mais cedo, porém as tinham mantido em segredo.

Considerando-se a natureza das mudanças, provavelmente isso fosse prudente.

Porque a vingança de Hank Buck contra Albert “Pits”* Barfield, de fato foi o último ato de abusiva loucura em Haven e, vistas as coisas nesta luz, talvez o caso mereça uma breve menção. Hank e Pits Barfield faziam parte do círculo de pôquer das noites de quinta-feira, ao qual Joe Paulson também pertencera. Por volta de 31 de julho, os jogos de pôquer haviam terminado, mas não porque a cretina da ‘Becka Paulson havia enlouquecido e torrado o marido. Os jogos tinham parado, porque ninguém podia blefar no pôquer, quando todos os jogadores são telepatas.

Ainda assim, Hank tinha uma conta a acertar com Pits Barfield e, quanto mais pensava nisto, mais crescia o rancor em sua mente. Durante todos aqueles anos, Pits havia trapaceado no jogo. Vários dos outros desconfiavam disto — Hank recordava uma noite, no quarto dos fundos da casa de Kyle Archinbourg (devia ser há uns sete anos), quando jogava sinuca com Moos Harlingen.

— Ele tem estado trapaceando, tão certo como você ter nascido, Hank. Bola seis na caçapa lateral. — Vapt! A bola seis foi parar obedientemente na caçapa lateral. — A questão é que o filho da mãe tem classe para trapacear. Se, pelo menos ele fosse um pouco mais lento, garanto que eu o pegaria em flagrante.

— Se é o que você acha, devia abandonar o jogo.

— Merda! Nesse jogo, todo mundo é tão honesto, quanto o dia é comprido. A verdade é que posso jogar melhor do que a maioria deles. Bola nove. Caçapa do canto. — Vapt! — O cretinozinho é rápido e nunca abusa da trapaça — apenas trapaceia um pouquinho, quando começa a perder. Já reparou como ele sai, cada noite de quinta-feira? Mais ou menos empatado?

Hank tinha reparado. Ainda assim, havia pensado que tudo aquilo tosse um pouco de despeito na cabeça de Moss. Moss era um bom jogador pôquer e não gostava quando deixava de ganhar o dinheiro de alguém. No entanto, outros parceiros tinham emitido uma suspeita similar no correr daqueles anos, sendo que vários deles — e alguns excelentes sujeitos também, com os quais Hank sentira verdadeiro prazer em tomar algumas cervejas e jogar algumas rodadas — haviam parado de jogar. Tinham agido caladamente, sem confusão ou briga, e a possibilidade de que Pits Barfield pudesse ser o responsável por isto jamais fora aventada. Acontecia que os desistentes finalmente tinham entrado para a liga de boliche das noites de segunda-feira, em Bangor, e suas esposas não gostavam que chegassem tarde em casa duas noites por semana. Podia também acontecer que seus horários de trabalho houvessem mudado, sendo impossível continuarem jogando até tarde da noite. Ou então, o inverno vinha chegando (embora fosse apenas maio) e precisavam fazer algum reparo em seus limpa-neves motorizados.

Assim, eles foram indo embora, restando apenas o pequeno núcleo de três ou quatro jogadores permanentes, o que de certo modo piorava a situação. Os novos jogadores captavam ou farejavam a trapaça tão nitidamente, como se podia sentir o cheiro de selva que se desprendia do corpo sem lavar de Barfield, a maioria do tempo. Eles haviam captado a coisa. Ele, Kyle e Joe Paulson tinham sido passados para trás. Tinham sido passados para trás todos aqueles anos.

Depois que a “transformação” começou a funcionar realmente bem, Hank havia descoberto a verdade, de uma vez por todas. Pits não apenas fizera pequenas trapaças naquela sala do porão, mas de quando em quando também se entregara a uma discreta marcação de cartas. Havia aperfeiçoado as suas “especialidades” durante as longas e monótonas horas de plantão em um repple-depple*de Berlim, nos meses em seguida ao fim da Segunda Guerra Mundial. Em algumas daquelas quentes e pegajosas noites de julho, Hank jazia acordado na cama, de cabeça doendo, imaginando Pits sentado em uma boa e aquecida casa de fazenda, sem camisa e descalço, fedendo como um gambá e tendo nos lábios um largo sorriso de antegozo, enquanto praticava trapaças e sonhava com os otários que depenaria, ao voltar para casa.

Hank suportou tais sonhos e dores de cabeça por duas semanas... e então, certa noite, chegou a resposta. Ele simplesmente enviaria o velho Pits de volta ao repple-depple, era o que faria. Enfim, qualquer repple-depple. Um repple-depple localizado talvez a cinqüenta anos-luz de distância, quinhentos ou cinco milhões. Um repple-depple na zona Além da Imaginação. E Hank sabia muito bem como fazê-lo.

Sentou-se de chofre na cama, exibindo um enorme sorriso. Sua dor de cabeça cessara, finalmente.

— Sim, mas afinal, que diabo é um repple-depple? — murmurou.

Decidiu em seguida que este era o menor de seus problemas. Saiu da cama e começou imediatamente a trabalhar, às três da madrugada.

Encontrou Pits uma semana depois que tivera a idéia. Pits estava diante do supermercado de Cooder, sentado em uma cadeira que se amparava nas pernas traseiras, o encosto contra a parede. Olhava para as fotos de uma revista Galery. Contemplar fotos de mulheres nuas, trapacear e tresandar fedor de repples-depples — tais eram as especialidades de Pits Barfield, segundo decidiu Hank.

Era um domingo, nublado e quente. As pessoas viram Hank caminhando ara onde estava Albert “Pits” Barfield, equilibrado em sua cadeira, as botas de trabalho pousadas nas travessas que firmavam as pernas dianteiras da cadeira deliciando-se com todas aquelas Garotas da Casa ao Lado; elas sentiram/ouviram o único pensamento que palpitava fixamente

(reppledepplereppledepplereppledepple)

no cérebro de Hank, viram o enorme rádio-gravador portátil que levava pela alça viram a pistola enfiada na frente de suas calças e afastaram-se dali rapidamente.

Pits estava profundamente absorvido pelo pôster central da Gallery. Mostrava uma grande extensão de uma jovem chamada Candi (cujos passatempos, segundo a revista, incluíam “velejar e homens com mãos fortes e delicadas ao mesmo tempo”) e ao erguer os olhos, era tarde demais para fazer algo construtivo em benefício próprio. Considerado o tamanho da pistola que Hank levava, as pessoas opinaram durante o jantar daquela noite (geralmente sem mesmo abrir a boca, exceto para colocar nela mais comida), que provavelmente já era tarde demais para o pobre Pits, quando se levantara da cama naquela manhã de domingo.

A cadeira de Pits voltou à posição normal com um baque.

—Ei, Hank! O que...

Hank empunhou a arma — era uma lembrança de seu próprio serviço no Exército. Tinha cumprido o seu tempo na Coréia, não em algum reppledepple.

— Você vai ficar sentadinho aí — disse Hank — ou então suas tripas vão escorrer por aquela vitrine, seu trapaceiro filho da mãe!

— Hank... Hank... o que...

Hank enfiou a mão dentro da camisa e tirou um pequeno par de fones de ouvidos Borg. Ligou os fones ao enorme rádio, depois ligou o rádio e atirou os fones na direção de Pits.

— Coloque-os, Pits. Vejamos se leva a melhor nisto aqui!

— Hank... por favor...!

— Não vou ficar de papo com você agora, Pits — disse Hank, com a maior sinceridade. — Contarei até cinco para que coloque nos ouvidos, para então fazer-lhe uma operação de sinusite.

— Céus, Hank, era um maldito jogo de pôquer com apostas máximas de vinte e cinco centavos! — gritou Pits.

O suor escorreu por seu rosto, manchando a camisa cáqui. O cheiro desprendido de Pits era forte, avinagrado, francamente repugnante.

—Um... dois...

Pits olhou em torno, alucinadamente. Não havia ninguém ali. A rua se esvaziara como que por mágica. Não se via um só carro em movimento na Rua Principal, embora houvesse muitos estacionados diante do supermercado. O silêncio era absoluto. Nele, tanto Pits como Hank podiam ouvir a música saindo dos fones de ouvido — Los Lobos, perguntando-se se o lobo sobreviveria.

— Era um sujo joguinho de pôquer, com três aumentos de aposta e limite de vinte e cinco centavos! Além disso, eu praticamente não trapaceava! — gritou Pits, em voz esganiçada. — Pelo amor de Deus, alguém faça este cara parar com isto!

— ...três...

Então, com um final e ridículo desafio, Pits gritou:

— E ele é um fodido, um inconformado perdedor!

— Quatro! — exclamou Hank, e ergueu sua pistola de serviço.

Agora com a camisa inteira quase negra pelas manchas de suor, os olhos girando e todo ele fedendo como um monte de esterco recém-queimado por napalm, Pits entregou os pontos.

— Está bem! Está bem! Está bem! — gritou e apanhou os fones de ouvido. — Estou fazendo o que você queria, viu? Estou fazendo!

Colocou os fones. Ainda apontando a pistola para ele, Hank inclinou-se para o rádio-gravador que tanto aceitava fitas gravadas, como recebia estações AM e FM. O botão Play, abaixo do porta-cassetes, havia sido coberto por uma fita adesiva. Nesta fita fora escrita uma palavra algo sinistra: Despachar.

Hank apertou o botão.

Pits começou a gritar. Então, os gritos foram extinguindo-se, como se alguém dentro dele estivesse diminuindo seu volume. Ao mesmo tempo, alguém parecia estar diminuindo sua vividez, sua coerência física... seu não-ali. Pits Barfield desbotou como uma fotografia. Agora, sua boca se movia sem emitir som, sua pele era leitosa.

Um pequeno pedaço de realidade — um pedaço de realidade mais ou menos do tamanho da metade inferior de uma porta — parecia abrir-se atrás dele. Havia a sensação de que a realidade — a realidade de Haven — girara sobre algum eixo ignorado, como uma falsa estante de livros em uma casa assombrada, girando para mostrar uma passagem secreta. Atrás de Pits, agora havia uma paisagem espectral, em tons negro-arroxeados.

Os cabelos de Hank começaram a esvoaçar em torno dos ouvidos; a gola da camisa gaguejou, com um som semelhante ao de uma arma automática com silenciador; os detritos sobre o asfalto — envoltórios de doces, maços amassados de cigarro, dois sacos plásticos de batatas fritas — dispararam através da pavimentação e penetraram naquele buraco. Foram levados pela corrente de ar que fluía para dentro daquele outro lugar quase rarefeito. Parte dos detritos passou por entre as pernas de Pits. E alguns deles, como pensou Hank, pareciam passar bem através delas.

Então, subitamente, como se ele próprio houvesse ficado tão leve como os detritos que haviam estado na calçada do supermercado, Pits foi sugado para aquele buraco. Sua revista Gallery foi atrás dele, as páginas farfalhando morcegos em vôo. Que bom para você, cara de bosta, pensou Hank, agora encontrou alguma coisa para ler no repple-depple. A cadeira em que Pits estivera sentado tombou, deslizou através do asfalto e alojou-se naquela metade dentro e metade fora. Um túnel de ar agora trabalhava em torno de Hank. Ele se inclinou para o rádio, o dedo começando a pousar no botão Stop.

Pouco antes de pressioná-lo, ouviu um pequeno grito agudo, vindo daquele outro lugar. Ergueu os olhos, pensando: Isso não é de Pits.

O pequeno grito repetiu-se.

— ...hilly...

Hank franziu o cenho. Era a voz fraca de uma criança. Uma voz de criança, e nela havia algo de familiar. Alguma coisa...

— ...ainda não acabou? Eu quero ir pra caaasa ...

Houve um vivido e átono tinido, quando a vitrine do supermercado de Cooder, que havia explodido para o interior, devido à explosão na sede da municipalidade, no domingo anterior, agora era sugada para o exterior. Uma chuva de vidro voou em torno de Hank, deixando-o miraculosamente intocado.

— ...por favor, não consigo respirar direeeeeeito...

Agora, as latas de Favas B & M, artigo em promoção, formando uma pirâmide na vitrine frontal do supermercado, começaram a voar ao redor de Hank, sendo sugadas pela porta da realidade que ele abrira de algum modo. Sacos de adubo para jardim, pesando dois quilos e meio, e sacos de cinco quilos contendo carvão, arrastaram-se pela calçada, emitindo secos sons de lixa arranhando.

Tenho que fechar esse aspirador, pensou Hank e, como que confirmando sua decisão, uma lata de favas colidiu em sua cabeça, saltou alto no ar e depois precipitou-se para aquele buraco negro-arroxeado.

— Hilleeeee...

Hank pressionou o botão Stop. A entrada para aquele lugar desconhecido desapareceu imediatamente. Houve um estalar de madeira, quando a cadeira que se enganchara na abertura foi cortada em duas partes, em diagonal quase perfeita. Metade da cadeira caiu no asfalto. A outra metade não era vista em lugar algum.

Randy Kroger, o alemão dono do Cooder’s desde fins dos anos 50, agarrou Hank pelo braço e o fez dar meia volta.

— Você vai pagar o prejuízo desta vitrine, Butch — disse.

— Claro, Randy, nem precisa falar — concordou Hank, esfregando furiosa-mente o calombo que crescia na parte de trás de sua cabeça.

Kroger apontou para a estranha cadeira partida enviezadamente, jazendo na calçada.

— Também vai pagar pela cadeira — anunciou, e tornou a entrar.

Foi assim que julho terminou.

 

Segunda-feira, 1º de agosto:

John Leandro terminou de falar, bebeu o resto de sua cerveja e perguntou a David Brighton:

— E então, o que acha que ele dirá?

Bright pensou por um momento. Ele e Leandro estavam na Taverna Bounty, um pub de Bangor, superdecorado de maneira desregrada, que tinha a seu favor apenas dois pontos: ficava quase diretamente em frente à redação do Daily News de Bangor e, às segundas-feiras, podia-se tomar uma cerveja Heineken por um dólar e vinte e cinco a garrafa.

— Em minha opinião, ele começará dizendo a você que corra para Derry e termine o restante do Calendário da Comunidade — disse Bright. Depois, talvez lhe pergunte se já pensou em consultar um psiquiatra. Leandro pareceu absurdamente desanimado. Tinha apenas vinte e quatro anos e as duas últimas reportagens que cobrira — o desaparecimento (leia-se: presumível assassinato) dos dois polícias estaduais e o suicídio de um terceiro — tinham aguçado seu apetite pelo material de alta voltagem. Comparar a participação em uma soturna caçada à meia-noite, em busca dos corpos de dois policiais estaduais, a uma reportagem sobre a ceia dos Veteranos da Segunda Guerra Mundial, em Derry, não fazia o menor sentido para ele. Leandro não queria que o material pesado terminasse. O homem à sua frente quase sentia pena daquele pequeno imbecil — o problema é que Leandro era um imbecil. Ser imbecil aos vinte e quatro anos ainda passava. No entanto, Bright tinha certeza de que Johnny Leandro continuaria sendo um imbecil aos quarenta e quatro... sessenta e quatro... e oitenta e quatro anos, se chegasse a viver tanto.

Um imbecil de oitenta e quatro anos, era uma idéia ligeiramente aterradora e inteiramente amedrontadora. Bright decidiu, afinal, pedir outra cerveja.

— Foi apenas uma brincadeira — disse.

— Então, acha que ele me deixará ir em frente?

— Não.

— Ora, mas você acabou de dizer...

— Eu estava brincando sobre a consulta ao psiquiatra — replicou Bright pacientemente. — Isso é que foi brincadeira.

“Ele” queria dizer Peter Reynault, o editor da cidade. Há vários e bons anos atrás, Bright aprendera que editores de cidade tinham algo em comum com o Próprio Deus, e desconfiava que Johnny Leandro estava prestes a aprender o mesmo pessoalmente, dentro em muito breve. Repórteres podiam propor, porém eram editores de cidade, como Peter Reynault, que eventualmente dispunham.

— Sim, mas...

— Não existe nada para você “ir em frente” — disse Bright.

Se o círculo interno de Haven — aqueles que tinham entrado no galpão de Bobbi Anderson — ouvissem o que Leandro disse em seguida, a expectativa de vida dele poderia perfeitamente reduzir-se a dias... talvez a meras horas apenas.

— Tenho Haven para seguir em frente — foi o que ele disse, consumindo o resto de sua Heineken Escura em três longos goles. — Tudo começa lá. O menino desaparece em Haven, a mulher morre em Haven, Rhodes e Gabbons estão voltando de Haven, Dugan suicida-se. Por quê? Porque ele amava a McCausland, conforme disse. E a McCausland morava em Haven.

— Não esqueça o encantador e velho vovô — disse Bright. — Ele anda por aí dizendo que o desaparecimento de seu neto foi uma conspiração. Por mim continuo esperando que ele comece a cochichar sobre Fu Manchu e escravidão branca.

— E o que significa isso? — perguntou Leandro dramaticamente. — O que está acontecendo em Haven?

— É o insidioso doutor — disse Bright.

Sua cerveja chegou. Ele não a queria mais. Queria apenas ir embora dali. Mencionar o encantador e velho vovô fora um erro. Pensar no encantador e velho vovô o fazia sentir-se algo inquieto. O velho certamente estava com os miolos frouxos, porém houvera algo em seus olhos...

— O quê?

— O Dr. Fu Manchu. Se encontrar Nayland Smith batendo pernas por aí, creio que conseguiu a história do século. — Bright inclinou-se para diante e cochichou roucamente: — Escravidão branca. Lembre-se de quem lhe deu a dica, quando receber a ligação do Times de Nova Iorque.

— O que diz não tem a menor graça, David.

Uma imbecil de oitenta e quatro anos, tornou a pensar Bright. Era só o que faltava!

— Pois aqui vai outra dica — disse Bright. — Homenzinhos verdes. A invasão da terra já está em andamento, compreenda, apenas ninguém sabe disso.. E... T-CHAN-TCHAN-TCHAN-TCHAN! Ninguém acreditará neste heróico e agressivo jovem do News! Robert Redford personificará John Leandro nesta intrigante saga de...

O atendente chegou até eles e disse:

— Quer baixar o volume?

Leandro ficou em pé, com as feições tensas. Deixou três notas de um dólar caírem sobre o balcão do bar.

— Seu senso de humor é adolescente, David — disse.

— Pode também tentar isto — falou Bright, com ar sonhador. — É tanto Fu Manchu, como homens verdes do espaço. Uma aliança formada no inferno. E ninguém mais está a par, além de você, Johnny. Klaatu barada nictu!

— Bem, pouco estou ligando, se Reynault me deixar ou não ir em frente — disse Leandro, e Bright viu que talvez o houvesse cutucado com demasiada força; o imbecil estava furioso. — Minhas férias começam na próxima sexta-feira. Posso perfeitamente ir até Haven. Seguir a pista em meu próprio tempo.

— Claro! — exclamou Bright, excitado. Sabia que era preciso concordar — em pouco, Leandro provavelmente tentaria esmurrar-lhe a boca — e o sujeito insistia em dar oportunidades. — Sem dúvida, isso fará parte da coisa!

Redfort jamais aceitaria o papel, a menos que fosse em frente sozinho o Lobo Solitário! Klaatu barada nictu! Uau! Apenas, lembre-se de usar seu relógio especial, quando for até lá.

— Que relógio? — perguntou Leandro, com expressão ainda zangada

É claro que estava danado da vida, mas continuava insistindo em seus pontos de vista, sempre de cabeça erguida.

— Você sabe, aquele que emite um sinal ultra-sônico, um sinal que somente o Super-homem pode ouvir, ao puxar-se uma antena — disse o outro, demonstrando com seu próprio relógio (e entornando boa quantidade de cerveja na braguilha). — Ela faz ziiiiiii...

Não dou a mínima para o que Peter Reynault pensa, com também não dou a mínima para suas piadinhas idiotas — disse Leandro. É bem possível que vocês dois tenham uma grande surpresa.

Ele começou a caminhar para a saída, depois se virou.

— E fique sabendo de uma coisa: acho você um cínico desmiolado, sem a menor imaginação!

Tendo feito seu discurso, Johnny Leandro girou sobre os calcanhares e saiu majestaticamente do bar.

Bright ergueu o copo na direção do atendente.

— Bebamos aos cínicos desmiolados deste mundo — disse. — Não temos imaginação, porém somos extraordinariamente resistentes à imbecilidade!

— Você é quem sabe — replicou o atendente.

O homem acreditava já ter visto tudo aquilo antes... mas acontece que nunca trabalhara em algum bar de Haven.

 

Terça-feira, 2 de agosto:

Eram seis, os que se reuniram no final da tarde, no gabinete de Newt Berringer. Já eram cinco horas, porém o relógio da torre — uma torre que parecia real, mas através da qual um pássaro poderia voar sem dificuldades, caso ainda houvesse pássaros em Haven Village — continuava marcando três e cinco. Todos os seis tinham passado algum tempo no galpão de Bobbi; Adley McKeen era a mais recente adição ao seu número. Os outros eram Newt, Dick, Allison, Kyle, Hazel e Frank Spruce.

Juntos, discutiram as poucas coisas que tinham a discutir, sem necessidade de palavras.

Frank Spruce perguntou como estava Bobbi.

Ainda viva, respondeu Newt; ninguém sabia mais nada. Ela poderia tornar a sair do galpão. O mais provável era que não saísse. De um modo ou de outro, fica-riam sabendo quando isso acontecesse.

A discussão abordou brevemente o que Hank Buck havia feito no dia anterior e o que ele dissera ter ouvido, brotando daquele outro mundo.

Nenhum deles parecia muito preocupado com o falecido e não tão grande Barfield. Talvez o castigo tivesse sido adequado ao crime; talvez tivesse exagerado. Não importava. Era assunto encerrado. Nada acontecera a HANK em resultado de sua atitude; ele entregara a Randy Kroger um cheque pessoal cobrindo o custo da vitrine destruída e das mercadorias sugadas através do buraco que convertera em realidade. Kroger telefonou para o Northern National, em Bangor, para saber se o cheque tinha fundos. Estava coberto e isto era tudo com que ele se importava.

Pouco havia que pudessem fazer em relação a Hank, mesmo que tivessem alguma intenção neste sentido; a única cela da cadeia da cidade ficava no porão da sede da municipalidade, um depósito adaptado, onde Ruth deixara detidos alguns bêbados de fim de semana, mas que só conseguiria deter Hank Buck por um máximo de dez minutos. Um garoto robusto de quatorze anos, poderia escapar de lá sem dificuldade. Por outro lado, eles jamais enviariam Hank para a cadeia do condado, pois a acusação pareceria demasiadamente singular. As alternativas que lhes restavam eram simples — deixá-lo em paz ou despachá-lo para Altair-4. Por sorte, eram capazes de observar intimamente o cérebro e motivações de Hank. Viram que a raiva e confusão dele estavam diminuindo, como acontecia na cidade inteira. Hank não era passível de tornar a cometer outra coisa tão radical, de maneira que lhe tomaram seu rádio transformado, disseram-lhe que não fizesse outro e passaram ao tema que os preocupava um pouco mais... a voz que ele alegava ter ouvido.

Era de David Brown, claro, disse agora Frank Spruce. Alguém tinha dúvidas?

Ninguém tinha.

David Brown estava em Altair-4.

Ninguém sabia exatamente onde ficava Altair-4 ou o que podia ser. Aliás, o detalhe era insignificante. Em si, as palavras tinham vindo de algum filme antigo, não significando mais do que o nome Tommyknockers, originário de algum velho poema. O importante (mas nem tanto assim) era o fato de Altair-4 ser uma espécie de depósito cósmico, um lugar onde todo o tipo de coisa era estocado. Hank enviara Pits para lá, mas primeiro fizera o fedorento filho da mãe sofrer algum meio louco processo de desintegração.

Aparentemente, não fora este o caso com David Brown.

Hazel perguntou se conseguiriam trazê-lo de volta.

Houve um longo e reflexivo silêncio.

(sim provavelmente sim)

Este último não era atribuído a alguma pessoa em particular, sendo um pensamento grupal, como de uma colméia, e completo em si mesmo.

(mas porque nos preocuparmos)

Os reunidos entreolharam-se, sem qualquer emoção. Podiam sentir emoção, mas não relacionada a um tema secundário como aquele.

Trazê-lo de volta, disse Hazel, indiferentemente. Seria agradável para Bryant Mane. E Ruth. Ela teria gostado. E nós todos a amávamos, como sabem. O pensa-mento de Hazel tinha o tom de uma mulher sugerindo que uma amiga comprara um refrigerante para o filho, como prêmio por ter sido bonzinho.

Não, disse Adley, e todos olharam em sua direção. Era a primeira vez ele intervinha na conversa. Pareceu embaraçado, mas continuou com a idéia. Cada jornal e estação de televisão do estado estariam presentes em Haven querendo obter um relato do “miraculoso retorno”. Todos já consideravam o menino morto; tinha apenas quatro anos e já fazia duas semanas que desaparecera. Se aparecer agora, isso causará muito alvoroço.

Os outros agora assentiam.

E o que ele diria? falou Newt. Quando lhe perguntassem onde estivera, o que o garotinho responderia?

Hazel aventou que poderiam torná-lo desmemoriado. Isso não teria problema algum e o pessoal da imprensa aceitaria a amnésia como perfeitamente natural. Naquelas circunstâncias.

(certo mas o problema não é esse)

Agora, eram novamente as muitas vozes, como se fosse uma só. Surgiram juntas, em uma estranha combinação de palavras e imagens. O problema era que as coisas agora já tinham ido longe demais, para permitirem que alguém na cidade, exceto a maioria dos transeuntes viajantes que cortassem a região de uma a outra extremidade... e mesmo a maioria deles, fosse desestimulada por falsos avisos de estrada em construção e desvios. As últimas pessoas desejadas em Haven, seriam um bando de repórteres e equipes de câmeras de TV. Por outro lado, o relógio da torre não apareceria em filmes; era um slide mental, em realidade, nada mais do que uma alucinação. Nada disso; era melhor deixarem David Brown em paz, consideradas todas as circunstâncias. Ele estaria bem lá, por mais algum tempo. Os reunidos pouco sabiam sobre Altair-4, porém tinham conhecimento de que o tempo lá corria em velocidade diferente — em Altair-4, menos de um ano havia passado, desde que a terra tinha sido lançada para longe do sol. Portanto, na verdade David Brown mal havia chegado lá. É claro que ele ainda poderia morrer; era possível que estranhos micróbios invadissem seu organismo, que algum estranho rato de armazém, existente em Altair-4, pudesse devorá-lo. Ele também poderia perder a vida, simplesmente em decorrência do choque. Fosse como fosse, o mais provável era que não morresse, mas se isto acontecesse, em realidade não tinha muita importância.

Tenho a impressão de que o garoto poderia ser conveniente para nós, disse Kyle.

(de que maneira)

Como um despistamento.

(o que quer dizer com isto)

Kyle não sabia exatamente o que quisera dizer. Era apenas a impressão de que, se as atenções acabassem concentrando-se novamente em Haven — da maneira como Ruth tentara fazer, com sua maldita explosão das bonecas, algo que funcionara muitíssimo melhor do que a intenção original — talvez pudessem trazer David Brown de volta, deixando-o em qualquer outro lugar. Se isso fosse feito de maneira correta, eles poderiam ganhar mais um pouco de tempo ali. O tempo sempre constituía um problema. Tempo para a “transformação”.

Kyle não expressou tais idéias de qualquer modo coerente, porém os outros assentiram, seguindo o fio de seus pensamentos. Seria bom manterem David Brown aguardando nos bastidores, por assim dizer, durante algum tempo mais

(não deixem Marie ficar sabendo — ela ainda não progrediu o suficiente na “transformação” — devem esconder isto de Marie por algum tempo mais)

Todos os seis olharam em torno, de olhos esbugalhados. Aquela voz, voz fraca, mas nítida, não pertencia a nenhum deles. Viera de Bobbi Anderson.

Bobbi! exclamou Hazel, soerguendo-se da cadeira. Você está bem, Bobbi?

Como se sente?

Não houve resposta.

Bobbi se fora — nem mesmo a sensação dela restara no ar. Os reunidos entreolharam-se cautelosamente, cada um testando a impressão dos demais sobre aquele pensamento, querendo uma confirmação de que proviera realmente de Bobbi. E cada um sabia que, se estivesse sozinho, sem qualquer confirmação disponível, rejeitaria a idéia como sendo uma alucinação incrivelmente poderosa.

Como mantermos segredo de Marie? perguntou Dick Allison, quase irada-mente. Não podemos esconder nada de mais alguém!

Sim, replicou Newt. Nós podemos. Não somos ainda muito bons nisto, talvez, mas podemos obscurecer um pouco nossos pensamentos. Torná-los de leitura difícil. Porque...

(porque nós estivemos)

(estivemos lá)

(estivemos no galpão)

(no galpão de Bobbi)

(nós usamos os fones de ouvido no galpão de Bobbi)

(e comemos comemos para “transformar-nos”)

(tomai e comei isto em memória de mim)

Um suspiro correu suavemente através deles.

Nós teremos que voltar, disse Adley McKeen. Não é?

— Sim — disse Kyle. — Nós voltaremos.

Esta foi a única vez em que alguém falou em voz alta durante toda a reunião, e marcou o seu término.

 

Quarta-feira, 3 de agosto:

Andy Bozeman, que havia sido o único corretor imobiliário de Haven até semanas atrás, quando simplesmente fechara seu escritório, havia descoberto que a leitura mental era algo que um indivíduo bem depressa se acostumava. Não tinha percebido o quanto rapidamente isto acontecia e nem quanto passara a depender da telepatia, até chegar a sua vez de ir para a propriedade de Bobbi e ficar de olho no bêbado.

Parte de seu problema — ele já sabia que seria um problema, depois de falar com Enders e o jovem Tremain — consistia em ficar tão próximo da nave. Era como estar nas proximidades do mais potente gerador de energia do mundo; os constantes fluxos e contracorrentes de sua peculiar força corriam-lhe pela pele como estridentes demônios de areia no deserto. Por vezes, idéias grandiosas flutuavam sonhadoramente em seu cérebro, impossibilitando-o de concentrar-se no que fazia. Em outras, acontecia precisamente o contrário: o pensamento interrompia-se por completo, como uma transmissão de microondas, interrompida por um fluxo de raios ultravioletas. Na maioria do tempo, entretanto, tratava-se apenas do fato físico da nave jazendo ali, como algo extraído de um sonho. Era revigorante, atemorizante aterrador, maravilhoso. Bozeman pensou que agora compreendia como deviam ter-se sentido os israelitas, transportando a Arca da Aliança através do deserto. Em um de seus sermões, o Rev. Goohringer havia dito que um indivíduo aventurara-se a assomar lá com a cabeça, querendo apenas ver o que gerava tanto falatório, mas caíra morto instantaneamente.

Porque o que existia lá era Deus.

Talvez houvesse também alguma espécie de Deus naquela nave, pensou Andy. E, mesmo que Deus houvesse escapado dali, deixara algum resíduo... alguma coisa de Si Mesmo... e quando pensava em tudo isto, ele tinha dificuldade em concentrar-se no trabalho a fazer.

Ainda por cima, havia aquela inquietante opacidade de Gardener. A pessoa permanecia colidindo contra ela, como se fosse uma porta fechada que deveria estar aberta. Não adiantava gritar para que ele entregasse alguma coisa ao alcance; o indivíduo continuava tranqüilamente com o que estava fazendo.

Simplesmente... não havia resposta. Ao mesmo tempo, entrando-se em sintonização com ele — apenas uma espécie de seguir seu fio de pensamentos, como pegar um telefone em uma linha comunitária, a fim de saber-se quem estava falando, não havia ninguém do outro lado. Ninguém, absolutamente ninguém. Nada além de uma linha morta.

Houve um zumbido do intercomunicador, pregado à parede interna do telheiro. Seu fio corria através do chão acidentado e lamacento, penetrando na escavação de onde a nave brotava.

Bozeman deslizou o pino até “Falar”.

— Estou ouvindo — disse.

— A carga foi colocada — informou Gardener. — Pode me içar!

Ele parecia cansado, muito cansado. Tivera uma razoável sessão de bebedeira aquela noite, pensou Bozeman, a julgar pelo som de vômitos que ouvira no alpendre dos fundos, por volta da meia-noite. E, ao examinar o quarto de Gardener, pela manhã, Bozeman vira sangue no travesseiro.

— É prá já! — respondeu.

O episódio com Enders, ensinara a todos eles que quando Gardener pedia para ser içado, não se devia perder tempo.

Chegou até o molinete e começou a girá-lo. Era um esforço desgraçado girar aquilo manualmente, porém estavam de novo sofrendo com escassez de pilhas elétricas. Mais uma semana, e tudo ali estaria funcionando como um mecanismo de relógio exceto que Bozeman não acreditava que estaria ali para ver. Ficar perto da nave era exaustivo. Ficar perto de Gardener também era exaustivo, mas de modo diferente — era como estar ao lado de uma arma carregada e de gatilho sensível. A maneira como ele esmurrara o pobre John Enders... E o único motivo de John não adivinhar o que estava para acontecer-lhe, era o fato de Gardener ser tão deslavadamente opaco. De vez em quando — de maneira parcial ou total — uma borbulha de pensamento chegava à superfície de sua mente, tão legível como uma manchete de jornal, porém era tudo. Talvez Enders pudesse ter previsto — Bozeman sabia que ele não seria tão idiota para querer ficar soterrado no fundo de uma escavação, com um daqueles rádios explosivos. Entretanto, não era esta a questão. A questão é que Johnny fora incapaz de perceber o que ia acontecer. Gardener faria alguma coisa, a qualquer momento, mas sem que alguém pudesse detê-lo, porque ninguém podia captar o que estava por vir.

Andy Bozeman quase desejou que Bobbi morresse, a fim de que pudessem livrar-se dele. Seria mais difícil, com apenas os moradores de Haven trabalhando no projeto. Claro que isto os atrasaria, porém quase valia a pena.

A maneira como ele agia, a fim de levar a melhor, era francamente inquietante.

Esta manhã, por exemplo. Na folga para o café. Bozeman sentava-se em um cepo de árvore, comendo alguns dos pequenos sanduíches de pasta de-amendo-im-com-biscoitos-cracker e bebendo café gelado de sua garrafa térmica. Sempre preferira café quente ao frio, mesmo fazendo calor, porém desde que perdera os dentes, as bebidas muito quentes o incomodavam.

Gardener se sentava de pernas cruzadas sobre um pedaço sujo de oleado, à maneira de um daqueles mestres de ioga, comendo uma maçã e bebendo uma cerveja. Bozeman nunca vira ninguém capaz de comer uma maça e beber cerveja ao mesmo tempo, em particular pela manhã, mas era o que Gardener fazia. De onde estava, Bozeman podia ver a cicatriz medindo cerca de três centímetros, acima da sobrancelha esquerda de Gardener. A placa de aço devia estar debaixo daquela cicatriz. Ela...

Gardener virara a cabeça e surpreendera Bozeman olhando para ele. Bozeman ficou vermelho, imaginando se Gardener não começaria a gritar e agredir. Talvez se aproximasse e tentasse esmurrá-lo, como fizera com Johnny Enders. Ele que tente, pensou Bozeman, crispando os punhos, e verá que não sou nenhum otário!

Em vez disto, no entanto, Gardener começara a falar, em voz clara e arrebatadora — havia um leve sorriso cínico em seus lábios, enquanto falava. Após um momento, Bozeman compreendeu que o outro não apenas falava, estava declamando. O sujeito estava ali, no meio da floresta, sentado de pernas cruzadas sobre um oleado sujo, com a mente limpa de qualquer bebedeira, o corpo fulgurante da nave na terra lançando ondulações móveis de reflexos em sua face, e recitava como um estudante — o cara estava danadamente estável, era bem este o termo que Bozeman empregaria para contar ao mundo. Com toda sinceridade, ele desejava Gardener morto.

— “Tom abandonou o pincel, com relutância na face, mas alacridade no coração” — disse Gardener, os olhos semicerrados, o rosto erguido para o cálido sol matinal. Aquele pequeno sorriso não saia de seus lábios. — “E enquanto o vapor atrasado, o Big Missouri, trabalhava e suava ao sol, o artista aposentado sentou-se em um barril, a sombra próxima, ficou de pernas penduradas, mascou sua maçã e planejou o massacre de mais inocentes.”

— O que... — começou Andy.

O sorriso de Gardener, no entanto, agora espalhando-se em um legítimo — mais ainda assim cínico — riso, cortou suas palavras.

— “Não havia falta de material; surgiam garotos de quando em quando; vinham para fazer chacota, mas permaneciam para a caiação. Na ocasião em que Ben foi dispensado, Tom barganhara a prestação de serviços seguinte com Billy Fisher, em troca de um papagaio de empinar, em bom estado; e quando ele se desincumbiu da tarefa, Johnny Miller ofereceu-se, em troca de um rato morto e um barbante com que girá-lo...”

Gardener bebeu o resto de sua cerveja, arrotou e espreguiçou-se.

— Vocês nunca me deram um rato morto com um barbante para girá-lo, mas ganhei um intercomunicador, Bozie. Acho que já e um começo, não?

— Não sei do que esta falando — respondeu Andy Bozeman lentamente.

Ele fizera apenas dois anos de universidade, administração de empresas, mas tivera que abandonar os estudos para trabalhar. Seu pai sofria do coração e pressão alta crônica. Indivíduos de vôos mais altos, como este a sua frente, sempre o deixavam nervoso e zangado. Bancarem o lorde diante de sujeitos comuns, como quando eram capazes de repetir algo escrito por alguém que já morrera muitos e muitos anos antes, fazia com que sua bosta tivesse cheiro melhor do que a dos outros.

— Tudo bem — disse Gardener. — E do capítulo dois de Tom Sawyer. Quando Bobbi ainda era garota, lá em Utica, no sétimo grau, eles promoviam esse negócio chamado Exibição Junior. Era um concurso de declamação. Bobbi não queria tomar parte, porém sua irmã Anne decidiu o contrário, disse que seria bom para ela ou qualquer coisa assim. E quando a irmã Anne decidia alguma coisa, irmão, estava decidido. Na época, Anne era uma criatura de fato intratável, Bozie, e hoje continua sendo intratável. Pelo menos, é o que imagino. Há muito tempo não a vejo, mais é assim, oh-oh, uh-uh, que prefiro. De qualquer modo, creio acertado dizer que ela continua a mesma. As pessoas como Anne raramente mudam.

— Não me chame de Bozie — disse Andy, esperando soar mais perigoso do que se sentia. — Eu não gosto.

— Quando tive Bobbi na classe de composição dos calouros, certa vez ela escreveu sobre como ficava apavorada, tentando recitar Tom Sawyer. Eu mal resisti. — Levantando-se, Gardener começou a andar para Andy, uma seqüência que o ex-corretor de imóveis encarou com vivo alarme. — Falei com ela depois da aula do dia seguinte e perguntei-lhe se ainda recordava como era “Caiando o gradil”. Ela recordava. Isso não me deixou nem um pouco surpreso. Há coisas que a gente nunca esquece, como quando nossa irmã ou nossa mãe nos obriga a tomar parte em algum espetáculo de horror, do tipo exibição Júnior. A gente pode esquecer a peça, quando em pé diante de todas aquelas pessoas. Ou então, é capaz de recitá-la até no leito de morte.

— Escute — disse Andy, — devíamos voltar a trabalhar e...

— Eu a deixei dizer quatro frases e então me juntei a ela. Bobbi ficou boquiaberta, o queixo caído até quase os joelhos. Depois começou a sorrir, e continuamos declamando juntos, palavra por palavra. Nada havia de muito estranho nisto. Ambos tínhamos sido crianças tímidas, eu e Bobbi. A irmã dela era o dragão diante de sua caverna, minha mãe era o dragão diante da minha. Gente assim, costuma ter a curiosa idéia de que a maneira de curar uma criança tímida é colocando-a na situação que ela mais teme — algo como a Exibição Junior. Não chegava a ser grande coincidência, o fato de ambos sabermos de cor essa historia da caiação. A única peça mais popular para recitativos é “O coração delator”.

Gardener respirou fundo, para depois gritar:

— “Parem, espíritos malignos! não dissimulem mais! Arranquem as tábuas do assoalho! Aqui! Aqui! Esta é a batida do hediondo coração dele!”

Andy havia proferido um tímido guincho. Deixou a garrafa térmica escapar da mão e metade da xícara de café frio lhe manchou a braguilha.

— Uh-oh, Bozie! — exclamou Gardener, com familiaridade. — Manchas assim nunca saem dessas calcas de poliéster. — Depois continuou: — A única diferença entre nós dois é que eu não fiquei congelado de medo. Aliás, até ganhei a fita do segundo lugar. Entretanto, isso não curou meu pavor de falar para multidões... apenas o fez piorar. Sempre que me via pronto para declamar poesias diante de um grupo, olhava para todos aqueles olhos famintos... e pensava em “Caiando o gradil”. Enfim, também costumo pensar em Bobbi. Às vezes, é suficiente para empurrar-me. Seja como for, isto nos tornou amigos.

— Não vejo qual a relação disso tudo com o trabalho que temos pela frente! — exclamou Andy em voz forte, bastante imprópria dele.

Seu coração, no entanto, batia demasiado rápido. Por um momento, quando Gardener havia gritado, chegou a acreditar que o homem ficara insano.

— Você não vê a relação disto com a caiação do gradil? — perguntou Gardener, e depois riu. — então, você deve ser cego, Bozie.

Mostrou a nave que apontava em direção ao céu, formando um perfeito ângulo de quarenta e cinco graus, ao brotar da ampla escavação.

— Nós a estamos desenterrando, em vez de caiá-la, porém isto não altera o princípio nem um tiquinho. Eu esfalfei Bobby Tremain e John Enders. Se você estiver de volta ao posto amanhã, comerei seus filhotes de cachorro. O negócio é que pareço nunca merecer qualquer prêmio por isto. Diga a quem quer que venha trabalhar aqui amanhã, que estou desejando um rato morto, com um barbante para girá-lo, Bozie... ou uma bolinha de gude olho-de-boi, pelo menos.

Gardener havia parado, a meio caminho da escavação. Virou-se e olhou para Andy. Este jamais se sentira tão pouco à vontade como agora, em vista de sua in-capacidade de ler a mente daquele homenzarrão de ombros caídos, com o indistinto rosto fatigado.

— Melhor ainda, Bozie — disse Gardener, em voz tão sussurrante, que Andy mal conseguiu ouvi-la, — traga Bobbi aqui amanhã. Eu gostaria de saber se a Nova e Melhorada Bobbi ainda sabe como recitar “Caiando o gradil”, de Tom Sawyer.

Então, sem dizer nada mais, enfiou o pé no estribo da linga e esperou que Andy o baixasse para o fundo do buraco.

Se aquilo tudo não significava que Gardener levara a melhor, escapando pela tangente, então Andy não sabia o que era. E, enquanto girava o molinete, acrescentou para si mesmo que aquela havia sido apenas a primeira cerveja de Gardener no dia. Ele irá entornar mais cinco ou seis durante o almoço e realmente ficara pirado de vez!

Gardener agora oscilava no topo da escavação, retornando e fazendo Andy sentir vontade de soltar a manivela do molinete. Resolveria o problema por conta própria.

Só que não podia fazer isso — Gardener pertencia a Bobbi Anderson e, enquanto ela não morresse ou saísse do galpão, as coisas tinham que continuar exatamente como eram.

— Vamos indo, Bozie. Algumas daquelas pedras soltas voam longe!

Gardener começou a caminhar de volta ao telheiro. Andy correu ao seu lado, esforçando-se por emparelhar com ele.

— Eu já lhe disse para não me chamar de Bozie! — tornou a avisar.

Gardener dedicou-lhe um olhar curiosamente indiferente.

— Eu sei — respondeu.

Os dois deram a volta ao telheiro. Cerca de três minutos depois, da trincheira. Um chuveiro de pedras subiu alto no céu e caiu, matraqueando no casco da nave, com pancadas secas e foscas.

— Bem, agora vamos... — começou Bozeman.

Gardener agarrou-lhe o braço. Tinha a cabeça de banda, o rosto atento, os olhos escuros e vivos.

— Pssst!

Andy libertou o braço com um puxão.

— Diabo, o que há de errado com você?

— Não ouviu?

— Não ou...

Então, ouviu. Um som sibilante, como o chiado de uma gigantesca panela de pressão, estava brotando da escavação. Um som que aumentava. Andy foi subitamente tomado de louco excitamento, no qual havia mais do que uma ponta de terror.

— São eles! — sussurrou, virando-se para Gard. Seus olhos eram do tamanho de maçanetas, os lábios reluziam de saliva e tremiam. — Eles não estavam mortos, nós os acordamos... eles estão saindo!

— Jesus está chegando e parece danado da vida — comentou Gardener, nem um pouco impressionado.

O assobio ficou mais forte. Agora houve outro ruído — surdo e rangente. Não era o de uma explosão, mas sim o de alguma coisa pesada, desmoronando. Um pouco mais, algo mais desmoronava: Andy. A força lhe fugira das pernas e ele havia caído de joelhos.

— São eles, são eles, são eles! — gaguejou.

Gardener enganchou uma das mãos na axila do homem, piscando um pouco ante a quente e emaranhada umidade naquele lugar. Depois o puxou para cima, erguendo-o sobre os pés.

— Não são os Tommyknockers — falou. — É água!

— Quê? — Bozeman olhou para ele, com esgazeada incompreensão.

— Água! — gritou Gardener, sacudindo-o de leve. — Acabamos de produzir nossa piscina, Bozie!

— O que...

O silvo explodiu subitamente em suave e uniforme rugido. A água esguichou da escavação e subiu para o céu, formando um largo leque. Não era uma coluna d’água, mas sim dando a impressão de que uma criança gigantesca apenas pressionara o dedo contra uma torneira colossal, a fim de ver a água esguichar por todo canto. No fundo da escavação, a água saía igualmente em jatos uniformes, por quantas fissuras houvesse.

— Água? — perguntou Andy, em voz fraca.

Era evidente que não conseguia digerir bem a idéia. Gardener não respondeu. Arco-íris dançavam na água, que escorria pelo casco liso da nave em regatos, deixando gotas para trás... e, enquanto espiava, ele viu aquelas gotas começarem a chiar, da maneira como chia e salta a água borrifada na gordura quente de uma frigideira no fogo. Apenas, aquilo ali não acontecia ao acaso. As gotas alinhavam-se, como que obedecendo a linhas de força que riscassem o casco da nave, como as linhas de longitudes em um globo terrestre.

Consigo vê-la, pensou Gardener. Vejo a força irradiando-se da pele da nave, através daquelas gotas. Meu Deus...

Soou outro rangido. Gardener pareceu sentir a terra realmente afundar um pouco sob seus pés. No fundo da escavação, a pressão da água finalizava a obra iniciada pela explosão — alargava fissuras e buracos, expulsando as rochas esboroáveis. Mais água começou a escapar, agora com maior facilidade. Os esguichos em leque baixaram. Um último e difuso arco-íris oscilou no ar e desapareceu.

Gardener viu a nave deslocar-se, enquanto a rocha consolidada, que por tanto tempo a aprisionara, começava a esboroar-se. Deslocou-se tão sutilmente, que poderia ter sido apenas imaginação, porém não se tratava disso. Naquele breve movimento, ele pode visualizar como seria a aparência dela, escapando do solo — pode ver-lhe a sombra ondulando lentamente sobre o solo, a medida que emergia e subi-a, pôde ouvir o gemido sobrenatural de seu casco, arranhando as arestas do leito rochoso, pôde sentir como todos em Haven olhariam naquela direção enquanto ela se elevava no céu quente e fulgente, uma monstruosa moeda de prata lentamente tomando uma posição horizontal, pela primeira vez em milênios, flutuando mudamente no céu, flutuando livre...

Ele queria isso. Céus! Certo ou errado, Gardener desejava isso desesperada-mente.

Sacudiu a cabeça de leve, como que para arejá-la.

— Vamos — disse. — Vamos dar uma espiada.

Sem esperar, caminhou até a escavação e espiou. Ouvia água correndo mas era difícil enxergar. Então, acoplou uma das enormes lâmpadas Klieg* que usavam para o trabalho noturno, ao estribo do cabo de descida para o fundo da escavação, baixando-a uns três metros. Foi o bastante; se tivesse baixado mais três, ela ficaria submersa. Não havia dúvidas e não era piada: eles haviam perfurado um lago. A escavação se enchia rapidamente.

Após um momento, Andy se juntou a ele. Tinha o rosto tenso.

— Depois de toda a trabalheira! — exclamou ele.

— Trouxe sua prancha, Bozie? Teremos natação grátis as quintas ou sex...

— Cale-se! — gritou Andy Bozeman para ele. — Cale essa boca, eu o odeio!

Gardener se sentiu tomado por uma louca histeria. Cambaleou até um cepo de árvore e sentou-se, pensando se a maldita coisa permanecera estanque por todos aqueles anos, pensando em qual seria o preço correto do mercado para um disco voador danificado pela água. Começou a rir. Mesmo quando Andy Bozeman caminhou para ele e o esmurrou em um lado do rosto, derrubando-o ao chão, Jim Gardener não conseguiu parar de rir.

 

Quinta-feira, 4 de agosto:

Quando o relógio marcou quinze para as nove da manhã, sem que ainda ninguém aparecesse, Gardener começou a imaginar se eles não estariam desistindo. Brincou com a idéia, sentado na cadeira de balanço de Bobbi, na varanda, enquanto alisava a grande e inchada equimose no lado do rosto, onde Bozeman o tinha esmurrado.

Depois da meia-noite, um punhado deles tornara a aparecer, no Cadillac de Archinbourg. Eram praticamente os mesmos de antes. Mais uma Reunião à Meia-noite no galpão. Gardener se erguera sobre um cotovelo e espiara o grupo pela janela do quarto de hóspedes, perguntando-se quem levaria os salgadinhos e patês para aqueles soirées. Eram apenas sombras, agrupadas em torno da comprida parte dianteira do Coupe DeVille. Ficaram ali um instante, depois foram para o galpão. Quando abriram a porta, aquela mórbida luz ofuscante projetou-se em enorme poça que iluminou todo o pátio dos fundos e o próprio quarto de hóspedes, com um doentio fulgor de mostrador de relógios em rádios. Entraram todos no galpão. O fulgor desbotou para uma espessa barra vertical, sem desaparecer por completo. Eles haviam deixado a porta encostada. Os oradores daquela cidadezinha rural do Maine eram agora as pessoas mais inteligentes da terra, mas parecia que nem mesmo eles tinham sido capazes de imaginar como trancar a cadeado uma porta pelo exterior e nem haviam pensado em colocar outro no interior.

Agora, sentado na varanda e olhando na direção da cidade, Gardener pensou: Quando entram lá, eles talvez fiquem exaltados demais, para imaginarem coisas tão mundanas como cadeados e trancas.

Levou uma das mãos aos olhos, formando pala. Um caminhão vinha chegando. Um grande e velho caminhão madeireiro, vagamente familiar. Havia um oleado cobrindo algo na traseira, com as abas agitando-se ao vento. Gardener sabia o que estava para acontecer. Claro esta que eles não tinham desistido.

Acordei esta noite na cama do quarto de hóspedes e vi o pessoal entrando no galpão dos Tommyknockers. Poderia ter espiado, mas não arranjei coragem; não quero saber o que acontece lá dentro.

De certo modo, ele não havia pensado no que os juízes da competição dos Jovens Poetas de Yale achariam disto. Contudo, pensou Gardener, Isto é Onde Jim Gardener Está Agora, como dizem eles. Mais tarde, talvez, diriam que foi a minha Fase Tommyknocker. Ou meu Período do galpão. Ou...

O caminhão trocou de marcha e entrou gemendo no pátio fronteiro de Bobbi. O motor morreu com um lamento. O homem de camiseta sem mangas que desceu da boleia, era o mesmo que lhe havia dado carona até os limites da cidade de Haven, no 4 de julho. Gardener o reconheceu imediatamente. Café, pensou. Você me deu café muito açucarado. Estava ótimo. O homem parecia um extra da novela de James Dickey, sobre aqueles rapazes da cidade e seu fim de semana descendo o Cahoolawassee em canoa. Entretanto, Gardener achava que o homem não era de Haven — ele não lhe falara em Albion?

O negócio esta se espalhando, pensou. Bem, por que não? E precipitação radioativa, certo? E o vento corre na direção de Albion...

Ei, você aí! — disse o motorista do caminhão. — Acho que não se lembra de mim.

Seu tom, contudo, acrescentava: não me faça de otário, Fred.

Pois eu acho que sim — respondeu Gard, e o nome surgiu magicamente em seu cérebro, mesmo depois de tudo que vinha acontecendo — um único mês mais parecendo dez anos, com todos aqueles estranhos eventos. — Freeman, Moss. Você me deu uma carona. Eu vinha visitar Bobbi, mas acho que já sabe disso.

Moss foi até a carroceria do caminhão e começou a puxar nos corredios e desatar cordas.

— Quer me dar uma ajuda com isto?

Gardener começou a descer os degraus, depois parou, sorrindo um pouco. Primeiro Tremain, depois Enders e então Bozeman, com aquelas lamentáveis calças de poliéster amarelo-pálido.

— Claro — respondeu. — Diga-me apenas uma coisa.

— O que quer saber? — disse Moss, manejando as cordas. Conseguiu retirar o oleado, e Gardener viu o que já imaginava: um estranho conglomerado de equipamento. Tanques, mangueiras e três baterias de carro, pregadas a uma tábua. Uma Nova e Melhorada Bomba. — Bem, se for do meu conhecimento...

Gardener sorriu sem muito senso de humor.

— Você me trouxe um rato morto, com um barbante para girá-lo?

 

Sexta-feira, 5 de agosto:

Não houvera tráfego aéreo sobrevoando Haven em base regular desde fins de 1960, quando a Base da Força Aérea Dow, em Bangor, havia sido fechada. Se alguém houvesse desenterrado a espaçonave naquela época poderiam ter surgido problemas; houvera aviões de caça da Força aérea sobrevoando a região quatro a cinco vezes por dia, chocalhando janelas e ás vezes quebrando vidraças, quando rompiam a barreira do som. Presumia-se que os booms sônicos não deviam ser praticados sobre a extensão continental dos Estados Unidos, a menos que absoluta-mente necessários, porém os importantes sujeitos que pilotavam os F-4, a maioria deles ainda com acne adolescente desbotando na testa e faces, às vezes transbordavam de exuberância. Os jatos faziam os Mustangs e Chargers, que aqueles meninos grandes dirigiam apenas um ano antes, parecerem incrivelmente insípidos. Quando a Dow fechou, ainda houve alguns vôos da Guarda aérea Nacional, porém os roteiros eram para o norte, em direção a Loring, em Limestone.

Após alguma agitação, a base foi transformada em aeroporto comercial, denominado Aeroporto Internacional de Bangor. Alguns achavam o nome um tanto grandioso para um aeroporto utilizado apenas em alguns vôos resfolegantes da Northeast Airlines para Boston, diariamente, e por um punhado de anacrônicos Pipers, rumando para Augusta e Portland. Entretanto, o tráfego aéreo eventualmente aumentou e, por volta de 1983, o AIB se havia tornado um florescente terminal aéreo. Além de servir a duas linhas aéreas comerciais, também era um ponto de reabastecimento para muitos aviões internacionais de transporte e, desta maneira, final-mente mereceu seu pomposo nome.

Durante algum tempo, houve linhas aéreas comerciais sobrevoando Haven — isto aconteceu em inícios dos anos 70. Entretanto, pilotos e navegadores relatavam regularmente problemas com radar na área codificada como Quadrante G-3, um quadrado que abrangia a maior parte de Haven, toda Albion e a região dos lagos China. Tal desfavorável ocorrência, conhecida como “pipoca”, “eco de nevoeiro” ou, ainda mais coloridamente, “bosta de fantasma”, também é relatada regularmente acima do Triângulo das Bermudas. As bússolas enlouqueciam. Por vezes, surgiam estrambóticos e curiosos problemas elétricos no equipamento.

Em 1973 um jato da Delta que rumava para o sul, por pouco não se chocou com um jato da TWA que vinha de Londres para Chicago. Nas duas aeronaves, bebidas foram derramadas; uma aeromoça da TWA foi escaldada por café quente. além das tripulações dos dois aviões, ninguém mais soube que tinham escapado por um triz. O co-piloto da Delta produziu um explosivo comunicado de entrega rápida, dentro das calças, levou o restante do vôo em gargalhadas histéricas até Boston e, dois dias depois, desistiu para sempre de voar.

Em 1974, um charter da Big Sky, lotado de alegres jogadores voando de Bangor e das Marítimas Canadenses* para Las Vegas, perdeu a potência de um motor acima de Haven e precisou retornar a Bangor. Uma vez em terra, quando o motor foi novamente acionado, funcionou a perfeição.

Quase houve outro desastre em 1975. Em 1979, todo o trafego aéreo comercial foi escalado para fora da área. Quem interrogasse um controlador do Departamento Federal de Aviação, receberia em resposta apenas um encolher de ombros. Aquilo era chamado de “dragão”, uma palavra que eles usavam. Existiam lugares semelhantes aqui e ali; ninguém sabia explicar o motivo. Era mais fácil desviar a rota dos aviões e esquecer o assunto.

Em 1982, o trafego aéreo particular estava também sendo rotineiramente desviado para fora do G-3 por controladores de vôo em Augusta, Waterville e Bangor. Desta maneira, piloto algum vira o grande e lustroso objeto que tremeluzia no centro exato do quadrado G-3, no Mapa ECUS-2 do Departamento Federal de aviação.

Não, até que Peter Bailey o viu, na tarde de 5 de agosto.

Baily era um piloto particular, tendo a seu favor duzentas horas de vôo. Pilotava um Cessna Hawk XP, e teria sido o primeiro a contar para quem quisesse ouvir, que o avião lhe custara algumas cascas de banana. Era o termo que Peter Bailey empregava para dinheiro. Ele o achava hilariante. O Hawk navegava a cento e cinquenta milhas horárias, possuindo excelente desempenho em grande altitude: 17.000 pés, sem forçar a respiração. O pack de navegação de Cessna tornava difícil a sua perda (a antena de navegação opcional também havia custado algumas boas cascas de banana). Resumindo, era um bom avião, do tipo que quase voava sozinho — apenas nada tinha a ver com um bom piloto como ele, manobrando os controles.

Se Peter Bailey tinha uma aversão, era ao maldito seguro. Aquilo era um assalto a mão armada, e ele enchia de tédio seus parceiros de golfe, ao insistir no atentado que lhe impingiam as companhias seguradoras.

Bailey tinha amigos que voavam, assegurava taciturnamente aos parceiros, um bom número deles. E um punhado tendo em suas licenças horas de vôo do que ele, pagava aos selvagens das seguradoras uma soma bem menor do que as muitas cascas de banana que o faziam soltar . Alguns eram sujeitos com os quais não voaria, nem que fossem donos do último avião sobre a terra e sua esposa estivesse em Denver, morrendo de hemorragia cerebral. E a quantia não era a maior humilhação de todas. A humilhação de todas era que ele, Peter Bailey, ele, um conceituado neurocirurgião fazendo muito mais de trezentas mil cascas de banana por ano, tinha que aceitar a cobertura total de riscos, se quisesse voar. Bem, explicava à sua platéia cativa (com que freqüência desejava ardentemente ter disputado apenas os primeiros nove buracos ou, melhor ainda, ter ficado no bar encharcando-se em algum Bloody Mary), cobertura total de riscos era uma cobertura de riscos específicos, do tipo que adolescentes e bêbados condenados tinham que levar em seus carros. Merda! Se aquilo não era uma desgraçada discriminação, ele não tinha idéia do que seria. E, se não fosse um homem tão ocupado, soltaria em cima dos bastardos uma ação judicial movida pela classe médica — e também venceria.

Muitos parceiros de golfe de Bailey eram advogados, a maioria sabendo que aquilo era conversa fiada. A cobertura de risco baseava-se em tabelas atuariais e a questão consistia em que Peter Bailey não era apenas um neurocirurgião; ele era um médico, e os médicos tem o pior recorde como pilotos particulares, entre qualquer grupo profissional no mundo.

Após escapar de um daqueles jogos em grupo, um dos golfistas comentou que Bailey se encaminhara para a sede do clube ainda resmungando. “Eu nem mesmo iria de carro para Denver com o grande filho da mãe, ainda que minha esposa estivesse morrendo de hemorragia cerebral!”

Peter Bailey era exatamente o tipo de aviador para quem as estatísticas tinham sido inventadas. Sem dúvidas, havia médicos por toda a América que eram pilotos exemplares. Bailey, entretanto, não se contava entre eles. Rápido e determinado na sala de cirurgia, quando um paciente jazia à sua frente, tendo no crânio uma abertura revelando o cinza-rosado tecido cerebral, tão delicado como um dançarino, ao manejar o escalpelo e o bisturi a laser, ele era um piloto rude no trabalho com as mãos constantemente violando altitudes especificadas, regulamentos de segurança do DFA e suas próprias normas de vôo em sua licença, nem espichando-se a imaginação, poderia ser considerado um velho piloto. Sua classificação como um risco específico somente confirmava o antigo dito: um piloto pode ser uma coisa ou a outra, porém nenhum piloto é as duas.

Naquele dia, voava sozinho de Teeterboro, fora de Nova Iorque, para Bangor. Em Bangor, alugaria um carro e seguiria para o Hospital Geral de Derry. Fora convidado para uma consulta no caso do menino Hillman Brown. Sendo o caso interessante e o preço aceitável (além de ter ouvido boas coisas sobre o campo de golfe em Orono), havia concordado.

O tempo tinha estado límpido por todo o trajeto, o vento suave. Bailey apreciara tremendamente a viagem. Como sempre, seu diário de navegação estava emendado, perdera inteiramente um sinal V.O.R.* e decidira que outro podia estar desarranjado (ele havia batido com o cotovelo no mostrador do de freqüência), tinha seguido ao léu, abandonando sua altitude designada de 11.000 pés, para elevar-se até 15000 e baixar até 6.000. Mais uma vez, evitara por pouco matar alguém.. uma benção que, infelizmente, ele era imbecil demais para avaliar.

Também vagueou lateralmente para bem longe de sua rota de vôo, desta maneira acontecendo que sobrevoou Haven, onde um grande reflexo luminoso subitamente bateu em seu olho; era como se alguém acabasse de dirigir-lhe o reflexo da tampa da maior lata de cerveja do mundo.

— O que, com mil demônios...

Olhando para baixo, viu um hipnotizante fulgor daquela intensa luminosidade. Poderia tê-lo esquecido, seguir em frente e sobreviver para lutar por mais um dia (ou talvez colidir com um avião de carreira inteiramente lotado), mas tinha tempo de sobra e ficara intrigado. Manobrou o Hawk e voltou atrás.

— E agora, onde é...

Houve um novo reflexo, brilhante o suficiente para deixar um crescente azulado em seus olhos, como pós-imagem. Trêmulos de luz percorreram o teto da cabine do piloto.

— M-eu Deus!

Lá, abaixo dele, em uma clareira entre o arvoredo verde-acinzentado, havia um imenso objeto prateado. Bailey pouco poderia dizer a respeito da coisa avistada, pois logo desapareceria sob a asa de bombordo.

A 6.000 pés de altitude, pela segunda vez naquele dia, ele tornou a dar a volta. Sua cabeça começara a doer — Bailey percebeu isto, mas atribuiu ao excita-mento. Seu primeiro pensamento tinha sido o de ser aquilo uma torre de água, porém ninguém construiria uma torre de água tão grande no meio de uma floresta.

Tornou a sobrevoar o objeto, agora a 4.000 pés. Diminuiu a velocidade do Hawk o mais que ousou (que já era um exagero para a ousadia de qualquer piloto de maior experiência, mas o Hawk era um bom aparelho e perdoou seu dono).

Artefato, pensou Bailey agora, quase doente de excitamento. Um grande arte-fato na terra, em forma de disco... ou alguma coisa do governo? Entretanto, se pertencia ao governo, por que não estava coberto por uma rede de camuflagem? E o solo em torno havia sido escavado — dali, a vala cortada na terra era perfeitamente nítida.

Bailey decidiu sobrevoar novamente — diabo, faria um vôo rasante! — quando seus olhos caíram nos instrumentos de controle do avião. Seu coração eu um salto inquieto. A bússola girava em grandes círculos idiotas, os indicadores dos tanques de combustível cintilavam no vermelho. O altímetro subiu de repente para 22.000 pés, parou ligeiramente e depois caiu para zero.

O robusto motor de 195 cavalos de força do Hawk funcionou aos arrancos. O nariz mergulhou. O coração de Bailey fez o mesmo. Sua cabeça latejava. Diante de seus olhos esbugalhados, agulhas giravam, luzes piscavam de verde para vermelho, como sinais de transito pigmeus, enquanto o “bip” de alerta da altitude, cuja suposta função era dizer a um bestificado piloto Acorde, bobalhão, você está prestes a bater em um grande objeto imóvel chamado mãe Terra, começou a soar, embora tal só devesse acontecer depois que o avião descesse a quinhentos pés. No entanto, os olhos de Bailey lhe diziam que ainda estava a quatro mil pés, talvez um pouco mais. Olhou para o termômetro digital que registrava a temperatura do ar no exterior. Ele piscou de 47 para 58, depois foi para 5. Parou lá um instante e indicou 999. Os dígitos vermelhos ficaram pulsando freneticamente, e então o termômetro apagou-se.

— Pelo amor de Deus, o que esta acontecendo aqui? — gritou Bailey e ficou abestalhado de espanto, ao ver que um de seus dentes frontais lhe voava da boca, ricocheteava no indicador da velocidade do ar e caia ao chão.

O motor tossiu novamente.

— Foda-se! — sussurrou ele.

Bailey estava doente de medo. O sangue escapando do alvéolo em que estivera o dente, escorria-lhe pelo queixo. Uma gota caiu em sua camisa Lacoste.

A coisa cintilante na terra tornou a passar sob suas asas.

O motor do Hawk voltou a tossir e morreu. O avião começou a perder altitude. Esquecendo todo o seu treinamento, Bailey puxou o manche com todas as forças, porém o aparelho silencioso não respondeu, não podia responder. A cabeça de Bailey doía e latejava. O Cessna caiu para 4.000 pés... 3.500... 3.000. Estendendo uma das mãos, como um homem cego, Bailey pressionou o botão ARRANQUE DE EMERGÊNCIA. A gasolina de alto ponto de ignição, própria para aviões, retumbou cavernosamente nos carburadores do Hawk. A hélice ganhou vida, depois tornou a parar. Agora, o Cessna havia escorregado para 2.500 pés. Passou acima da Estrada Velha de Derry, baixo o suficiente para Bailey conseguir ver o quadro de avisos, em frente da igreja metodista.

— Merda! — sussurrou ele. — Vou morrer!

Puxou o afogador até o fim e tornou a apertar o botão de arranque de emergência. O motor tossiu, funcionou por alguns momentos, depois começou a engasgar.

— Não! — gritou Bailey.

Um de seus olhos se rompeu, enchendo-se de sangue. O sangue escorreu cobrindo-lhe a face esquerda com uma fina camada líquida. Em seu pânico, aterrorizado, ele nem mesmo percebeu. Tornou a acionar o afogador.

— Não! Você não vai estourar! Avião de merda! — berrou.

O motor rugiu; a hélice girou, a velocidade deu-lhe invisibilidade, varada pela luz do sol, refletida como uma cunha. Bailey forçou o manche mais uma vez. O sobrecarregado Hawk começou a sacolejar.

— Avião de merda! Avião de merda! Avião de merda! — bradou ele.

Seu olho esquerdo estava agora inundado de sangue e, de certa maneira, ele tinha consciência de que o mundo parecia ter assumido um curioso aspecto rosado. Entretanto, se tivesse tempo ou disposição para refletir nisto, atribuiria o fato a nada mais do que fúria, devido a sua idiótica situação.

Bailey forçou o manche; ganhando permissão para subir, em um ângulo quase lúcido, o Hawk saltou para diante, a fim de executar o seu trabalho. Haven Village passou abaixo do avião, e Bailey percebeu vagamente as pessoas de rosto erguido, olhando para ele. Voava tão baixo que, se alguém quisesse, poderia anotar o seu número.

Vamos! pensou sinistramente. Vamos em frente, porque quando eu terminar com a Cessna Corporation, cada maldito acionista vai ficar em pé de tanga! Vou processar aqueles negligentes filhos da mãe, pagarão caro por cada casca de banana que me extorquiram!

O Cessna agora elevava-se regularmente, o motor trabalhando ritmada e docemente. A cabeça de Bailey parecia querer soltar-se de seus ombros, mas uma i-déia ocorreu-lhe de repente — uma idéia de tão aparvalhante simplicidade, com ramificações de tal maneira extraordinárias, que tudo o mais desapareceu de sua mente. Ele aprendeu, nada mais nada menos do que a base fisiológica do bicameralismo no cérebro humano. Isto levou a uma compreensão instantânea da memória racial, não como um enevoado conceito Jungiano, e sim como uma função do ADN recombinado e da impressão biológica. E, com tudo isto, surgiu a compreensão do que realmente significava a capacidade geradora crescente do corpus callosum*, em miliergs, durante períodos também crescentes na atividade das glândulas endócrinas, algo que há trinta anos vinha desnorteando os estudantes do cérebro humano.

Subitamente, Peter Bailey percebeu que a viagem no tempo — a real viagem no tempo — estava ao seu alcance.

No mesmo instante, uma grande porção de seu próprio cérebro explodiu. Uma luz branca cintilou em sua cabeça — luz branca exatamente igual aquele imenso reflexo que piscara para ele, vindo daquele objeto no seio da floresta.

Se houvesse caído para diante, empurrando o manche em resultado, os habitantes de Haven estariam novamente com um problema nas mãos. Em vez disso, ele caiu para trás, a cabeça pendendo do pescoço, o sangue escorrendo dos ouvidos. Bailey fitou o teto do compartimento do piloto com uma expressão de estupenda e terminal surpresa impressa no rosto.

Se o piloto automático do Cessna tivesse sido ligado, certamente o avião continuaria voando serenamente, até ficar sem combustível. As condições do tempo eram excelentes e coisas assim já tinham acontecido antes. Nas circunstâncias atuais, ele voou em nível quase normal, a 5.500 pés de altitude pelo menos durante cinco minutos. O rádio soou com estridência para o neurocirurgião morto, dizendo-lhe que levantasse o traseiro até sua altitude especificada, imediatamente.

Acima de Derry, uma corrente de vento lançou o avião em uma curva suave. Ele descreveu um longo arco em loop na direção de Newport. A curva ficou mais fechada, transformou-se em espiral. A espiral se tornou um parafuso. Um menino que pescava de uma ponte na Rota 7 olhou para cima e viu um avião caindo do céu, rodopiando como um saca-rolhas. Ficou espiando, boquiaberto, enquanto o aparelho caia na plantação norte de Ezra Dockery, depois explodindo em um pilar de chamas.

— Santo Deeeeus! — gritou o menino.

Largando o caniço, ele correu para o posto de gasolina Newport Mobil, mais acima na estrada, a fim de chamar os bombeiros. Pouco depois dele sair dali, um peixe abocanhou sua minhoca e puxou o caniço para a água. O menino jamais encontrou o caniço, porém no excitamento de ver extinto o fogo que grassava na lavoura de Dockery e da retirada do corpo carbonizado do piloto, preso nos destroços do Cessna, ele nem deu por isso.

 

Sábado, 6 de agosto:

Newt e Dick estavam sentados no Haven Lunch, com um jornal entre ambos. O artigo principal falava sobre outra deflagração de hostilidades no Oriente Médio; o que mais interessava a eles, nessa manhã, estava na metade inferior do jornal. NEUROCIRURGIÃO MORTO EM ACIDENTE DE PEQUENO AVIÃO, dizia o título. Havia uma foto do avião. Nada identificável permanecera do um dia belo Cessna Hawk, exceto sua cauda.

O desjejum dos dois fora empurrado para um lado, a maior parte intocada. Agora que Beach estava morto, quem cozinhava era Molly Fenderson, sobrinha dele. Molly era uma excelente garota, porém seus ovos fritos pareciam solas queimadas de sapato. Dick pensou que também tinham o mesmo gosto, embora jamais houvesse comido uma sola de sapato, torrada ou de qualquer outra maneira.

Poderia ter, disse Newt.

Dick olhou para ele, de sobrancelhas erguidas.

Eles colocam praticamente qualquer coisa em cachorros-quentes. Pelo menos, foi o que li certa vez.

As tripas de Dick revolveram-se. Disse a Newt que fechasse sua maldita matraca.

Newt fez uma pausa, depois disse: Talvez umas vinte ou trinta pessoas devem ter visto esse avião cruzar a cidade, voando baixo.

A cidade inteira? perguntou Dick.

Exato.

Então, não temos problema, temos?

Não, acho que não, replicou Newt, bebericando o café. Pelo menos, se não acontecer outra vez.

Dick meneou a cabeça. Não vai acontecer. Segundo o jornal, ele se desviara da rota.

Sim, foi o que disse o jornal. Vamos indo?

Vamos.

Os dois saíram sem pagar. O dinheiro deixara de ter grande sentido para os moradores de Haven. No porão de Dick Allison havia dinheiro sonante em várias e grandes caixas de papelão, descuidadamente enfiadas no antigo deposito de carvão — contendo, em sua maioria, notas de vinte, dez e um dólar. Haven era uma cidade pequena. Se alguém precisava de dinheiro para qualquer coisa, ia até lá e apanhava algum. As portas da casa não ficavam trancadas. Além de máquinas de escrever telepáticas e aquecedores de água funcionando com a energia de moléculas desintegradas, Haven descobrira uma forma quase perfeita de coletivismo.

Na calçada do Lunch, os dois contemplaram a sede da municipalidade. A torre de tijolos do relógio oscilava inquietamente. Em um momento estava lá, sólida como o Taj Mahal, se não tão bela. No momento seguinte, havia apenas céu azul, acima das ruínas denteadas da base da torre. Em seguida, ela retornava ao lugar. Sua comprida sombra matinal tremulava, como a sombra de uma cortina de janela, agitada por uma brisa intermitente. Newt considerou não ser particularmente perturbador, o fato de por vezes a sombra da torre do relógio estar lá, quando a torre em si não estava.

Céus! Se eu ficasse olhando demais para esse logro, acabaria borrado, disse Dick.

Newt perguntou se alguém estava cuidando da deterioração.

Dick respondeu que Tommy Jacklin e Hester Brookline haviam tido que ir a Derry, com a incumbência de visitarem uns cinco postos de gasolina, além de lojas de autopeças. Droga, entreguei a eles quase setecentas pratas, falei para voltarem com umas vinte baterias de carro, se fosse possível. Teriam que comprar em estabelecimentos diferentes. Em algumas cidades vizinhas, já andam comentando que o pessoal de Haven ficou maníaco por baterias.

Tommy Jacklin e Hester Brookline? perguntou Newt, dubitativamente. Céus, são apenas duas crianças! Tommy já tem licença para dirigir?

Não, respondeu Dick, com relutância. Enfim, já fez quinze anos, obteve uma permissão e dirige com muita segurança. Sem falar que é grandalhão. Parece ser mais velho do que é. Estará tudo bem com eles.

Poxa, mas isso é um risco desgraçado!

também acho, mas...

Eles comungavam em pensamentos que eram mais imagens do que palavras; isto acontecia cada vez mais em Haven, à medida que os moradores da cidade iam dominando esta estranha e nova linguagem-pensamento. Apesar de toda a sua preocupação, Newt compreendia o problema básico que fizera Dick enviar dois menores a Derry, na picape dos Fannin. Eles precisavam de baterias, necessitavam delas, porém cada vez ficava mais difícil para as pessoas que viviam em Haven saírem de Haven. Se um amalucado como Dave Ruthledge ou um velho simplório como John Harley tentassem sair, eles morreriam — e provavelmente apodreceriam — antes de alcançarem os limites da cidade de Derry. Homens mais jovens, como Newt e Dick demorariam um tempo ligeiramente maior, mas também se iriam... e provavelmente em agonia, devido às modificações físicas iniciadas no galpão de Bobbi. Os dois não se surpreendiam por Hilly Brown estar em coma e, no entanto, o menino partira dali quando as coisas estavam apenas começando a acontecer de fato. Tommy Jacklin tinha quinze anos e Hester Brookline era uma bem desenvolvida garota de treze. Pelo menos, tinham a juventude a seu favor, havia esperanças de ir e voltar vivos, sem terem que usar o equivalente aos trajes espaciais da NASA para protegê-los da que, agora, era uma atmosfera alienígena e inimiga. E, mesmo possuindo tal equipamento, a idéia estava fora de questão. Eles provavelmente conseguiriam produzir alguma coisa, mas se duas pessoas aparecessem na casa de autopeças Napa, em Derry usando trajes para viagens a Lua, provocariam algumas perguntas. Ou mais do que algumas.

Não estou gostando disso, replicou Newt finalmente.

Diabo, nem eu tampouco, disse Dick. não terei um minuto de sossego, enquanto eles não voltarem. Deixei o velho Doutor Warwick estacionado junto aos limites de Haven-Troy, a fim de cuidar dos dois tão logo eles...

Se eles...

Certo... se. Acho que voltarão, mas talvez com problemas.

Que tipo de problemas você imagina?

Dick meneou a cabeça. Ele não sabia, e o Doutor Warwick se recusara inclusive a insinuar... exceto para perguntar a Dick, em rabugento diálogo mental, o que ele, Dick, imaginava que aconteceria a um salmão, se o peixe resolvesse subir um rio correnteza acima, pedalando uma bicicleta até os locais de desova, ao invés de ir nadando.

Bem... disse Newt, pensativamente.

Bem, uma ova, replicou Dick. Não podemos deixar essa coisa — e apontou com a cabeça para a oscilante torre do relógio — do jeito como está.

Newt replicou: Estamos quase chegando a escotilha, agora. Penso que pode-ríamos deixar a torre como está.

Talvez sim. Talvez não. Enfim, precisamos de baterias para outras coisas, e você sabe disto. E temos que continuar sendo cautelosos. você também sabe disto.

Não venha ensinar a missa ao vigário, Dick.

(Fo)

Foda-se tudo isso, era o que Newt estivera prestes a dizer, mas voltou atrás, embora sentisse cada vez maior antipatia por Dick Allison, a cada dia que passava. A verdade é que Haven agora funcionava à custa de pilhas e baterias, como qualquer carrinho incrementado de brinquedo para crianças. E eles continuavam precisando de mais baterias, ainda maiores. Os pedido por reembolso postal, além de lentos, eram o tipo de coisa capaz de acenar uma bandeira de alerta para alguém, em algum lugar. Nunca se podia saber.

Fosse o que fosse, Newt era um homem preocupado. Tinham sobrevivido ao acidente com o avião; se acontecesse algo a Tommy e Hester, como sobreviveriam a isso?

Ele não sabia. Sabia apenas que não teria muita paz até que os dois jovens estivessem de volta a Haven, lugar a que pertenciam.

 

Domingo, 7 de agosto:

Gardener estava perto da nave, olhando para ela e novamente tentando decidir se algum bem poderia ser extraído daquela estranha mixórdia... e, em caso contrário, se havia alguma forma de escapar dela. Tinha ouvido o aviãozinho, dois dias antes, embora se encontrasse dentro de casa e, ao sair, já fosse um momento tarde demais para vê-lo em sua terceira passagem. Três passagens já compreendiam duas além da conta; ele ficara certo de que o piloto localizara a nave e a escavação. Tal idéia encheu Gardener de estranho, amargo alivio. Então, na véspera, lera a história no jornal. Ninguém precisava ter cursado uma universidade para enxergar a conexão. O pobre Dr. Bailey se desviara de sua rota, e aquela sobra da esquadra espacial de Ming, o Implacável, dera cabo dele.

Isso o transformava — ele, Jim Gardener — em acessório para assassinato? Era possível e, baleador de esposa ou não, Gard pouco estava ligando para tal.

Freeman Moss, o sério madeireiro de Albion, não aparecera esta manhã — Gard supôs que a nave lhe houvesse queimado os fusíveis, como fizera aos outros antes dele. Desde o desaparecimento de Bobbi, pela primeira vez estava sozinho. Superficialmente, o detalhe parecia esclarecer um pouco a situação. No entanto, quando se olhava mais fundo, permaneciam as mesmas e velhas charadas.

A história do neurocirurgião morto e do avião destroçado havia sido ruim mas, para a mente de Gard, aquela na parte superior do jornal — a que Newt e Dick tinham ignorado — era muito pior. O Oriente Médio preparava-se para explodir novamente e, se desta vez houvesse tiros, alguns deles poderiam ser nucleares. O Sindicato dos Cientistas Preocupados, aqueles felizes sujeitos que mantinham o relógio Negro, no dia anterior avançara os ponteiros do relógio para dois minutos antes da meia-noite nuclear, dizia o jornal. Certo, dias felizes retornavam. Talvez a nave acabasse com tudo isso... mas seria este o desejo de Freeman Moss, Kyle Archinbourg, o velho Bozie e todo o resto deles? Por vezes, Gard sentia uma revoltante certeza de que resfriar o barril de pólvora em que o planeta estava sentado, era a última coisa preocupando a Nova e Melhorada Haven. E então?

Ele ignorava. Às vezes, ser um zero telepático era bastante desconfortante.

Seus olhos se moveram para as máquinas de bombear, instaladas no lamaçal á borda da escavação. Anteriormente, trabalhar na nave tinha sido uma questão de poeira, terra, pedras e toras, que só se resolvia quando a pessoa estivesse quase louca de frustração. Agora, tratava-se de trabalho molhado — bastante molhado, aliás. Nas últimas duas noites, ele voltara para casa com argila molhada nos cabelos, entre os dedos dos pés e entre as nádegas. A lama era ruim, mas a argila era pior. A argila aderia.

O equipamento para bombear a água era a aglomeração mais estranha e mais feia, porém funcionava. Também pesava toneladas, porém o geralmente silencioso Freeman Moss o transportara sozinho, desde a porta de Bobbi... o que lhe tomara a maior parte da quinta-feira e esgotara quinhentas baterias. No entanto, ele cumprira a tarefa, um trabalho que ocuparia a equipe rotineira de uma construção durante uma semana ou mais.

Moss utilizara uma engenhoca semelhante a um detector de metal, a fim de guiar cada componente até seu lugar de repouso definitivo — primeiro retirando-o do caminhão, depois conduzindo-o através da horta e, em seguida, pela trilha muito usada que levava à escavação. Os componentes flutuavam serenamente no cálido ar do verão, as respectivas sombras fazendo o mesmo trajeto, abaixo deles. Em uma das mãos, Moss carregava a coisa que um dia fora um detector de metal e, na outra, algo semelhante a um walkie-talkie. Quando suspendia a encurvada antena de aço inoxidável, na extremidade do detector, o motor ou bomba elevava-se no ar. Ao movê-las para a esquerda, cada peça de componente tomava a mesma direção. Espiando aquilo com o aturdimento de um bebedor inveterado (e, sem dúvida, ninguém via coisas tão estranhas quanto aquelas), Gard pensava que Moss parecia um escrofuloso treinador de animais, conduzindo elefantes mecânicos por entre as matas, até o local de algum circo inimaginável.

Ele já presenciara o laborioso transporte de suficiente equipamento pesado, para concluir que este dispositivo revolucionaria as técnicas de construção. Tais coisas situavam-se além de seu conhecimento prático, porém ele intuía que uma única engenhoca como aquela que Moss utilizara na quinta-feira, com tão despreocupada facilidade, cortaria em vinte e cinco por cento ou mais o custo de um projeto do tamanho da represa de Assuan.

Não obstante, em um sentido pelo menos, aquilo era como a ilusão sendo mantida na sede da municipalidade — requeria um bocado de energia.

— Tome — disse Moss, estendendo para ele uma pesada mochila. — Coloque isto.

Gard pestanejou, ao passar as correias pelos ombros. Moss percebeu e sorriu de leve.

— Irá ficando mais leve, à medida que passarem as horas — disse. — Não se preocupe com isso.

Após falar, ligou a tomada de um fone de ouvido transistorizado ao lado do rádio-controlador e colocou o fone no ouvido.

— O que há na mochila? — perguntou Gardener.

— Pilhas. Vamos indo.

Moss tinha ligado a engenhoca, pareceu ouvir, assentiu e depois apontou a antena encurvada para o primeiro motor. Ele se elevou no ar e lá ficou parado. Segurando o controlador em uma das mãos e o adaptado detector de metal na outra, Moss caminhou para o motor. A cada passo seu, o motor recuava uma distância similar. Gardener cobriu a retaguarda.

Moss fez o motor mover-se entre a casa e o galpão, impeliu-o em torno do Tomcat e depois à frente dele, através da horta de Bobbi. Uma trilha de boa largura acabara se formando até os fundos da horta, mas em ambas as margens as plantas continuavam exibindo seu fenomenal crescimento e exuberância. Alguns girassóis agora tinham três metros e meio de altura. Faziam Gardener recordar uma novela de ficção cientifica chamada The Day of the Triffids, que lera quando menino. Uma noite, cerca de uma semana atrás despertara de um terrível pesadelo. No sonho, os girassóis da horta se desenraizavam do chão e começavam a caminhar, enquanto uma luz espectral brotava de seus centros e iluminava o solo, como os fachos de lanternas com lentes verdes.

Na horta, havia abóboras de verão tão grandes como torpedos de submarino. Tomates do tamanho de bolas de basquete. Alguns pés de milho chegavam a altura dos girassóis. Curioso, Gardener colhera uma espiga; ela teria, tranquilamente, meio metro de comprimento. Uma só espiga, se tivesse bom sabor, alimentaria dois homens famintos. Gard, no entanto, cuspira fora o único punhado de grãos dourados que abocanhara, careteando e limpando a boca. O gosto era carnoso e hediondo. Bobbi estava cultivando uma horta cheia de plantas gigantescas, porém o produto era incomível... talvez até venenoso.

O motor se tinha movido serenamente a frente deles e ao longo da trilha, os pés de milho rogaçando-se e inclinando-se nas duas margens, à medida que o motor avançava. Gardener viu manchas e restos de óleo para motor e graxa em algumas das folhas militarmente verdes, semelhantes a espadas. No lado mais distante da horta, o motor começou a oscilar. Moss abaixou a antena e o motor assentou-se na terra, com um baque suave.

— O que foi? — perguntou Gardener.

Moss apenas grunhiu e pegou uma moedinha. Enfiou-a na base de seu monitor, girou-a e retirou seis pilhas Duracell, tamanho A-duplo, que estavam no compartimento de pilhas. Atirou-as indiferentemente ao solo.

— Dê-me outras — pediu.

Gardener abaixou a mochila dos ombros e desafivelou as correias. Ao erguer a aba, viu o que, a um primeiro olhar, parecia um milhão de pilhas A-duplo; era como se alguém houvesse tirado o prêmio maior em um caça-níqueis de Atlantic City, e a máquina pagasse em pilhas, ao invés de dólares.

— Meu Deus!

— Eu não sou Ele — replicou Moss. — Dê-me meia dúzia dessas otárias.

Desta vez, Gardener não sentiu a menor inclinação para piadas. Entregou as seis pilhas e ficou espiando, enquanto Moss as colocava no lugar. Depois ele recolocou a tampa do compartimento de pilhas, aparafusou-o, tornou a colocar o fone no ouvido e disse:

— Vamos.

Quarenta metros mais adiante, já na floresta, houve outra troca de pilhas. Sessenta metros depois, nova troca. A flutuação do motor exigiu menos energia na descida da encosta, porém quando finalmente Moss instalou o enorme bloco de motor na beira da escavação, haviam gasto quarenta e duas pilhas.

Ida e volta, ida e volta; uma a uma, eles levaram as peças do mecanismo de bombear, desde o caminhão de Freeman Moss até a borda da escavação. A mochila às costas de Gardener foi ficando cada vez mais leve.

Na quarta viagem, Gard perguntou a Moss se o deixava experimentar. Uma grande bomba industrial, cuja raison d’être antes daquela singular excursãozinha secundária provavelmente tinha sido o bombeamento de imundícies em fossas sépticas obstruídas, ficara pousada em angulo inclinado, a uns cem metros da escavação. Moss estava trocando pilhas novamente. Agora, havia pilhas A-duplo jazendo ao longo de toda a trilha, perdida a sua serventia, fazendo Gard recordar, com curiosa intensidade, o menino da praia, em Arcadia Beach. O menino com as bombinhas de artifício. O menino cuja mãe desistira de beber... e de tudo o mais. O menino que soubera sobre os Tommyknockers.

— Bem, fique a vontade — disse Moss, estendendo-lhe a engenhoca. Eu bem que gostaria de alguma ajuda e não me envergonho de confessar... Erguer no ar todas essas coisas, deixa um homem exaurido. — Notando a expressão de Gardener, acrescentou: — Oh, claro, também faço parte disso; esta é a minha contribuição. Você pode experimentar, mas não acredito que tenha muita sorte. Não é como nós.

— Já notei. Sou o sujeito que não terá de comprar um par de dentaduras na Sears & Roebuck, quando tudo isto terminar.

Moss olhou taciturnamente para ele e nada disse.

Gard usou seu lenço para limpar a camada de cera castanha que Moss deixara no fone de ouvido, depois o ajeitou na orelha. Ouviu um som distante, como aquele que percebemos, se levamos uma concha marinha ao ouvido. Apontou a antena para a bomba, como tinha visto Moss fazer, depois a puxou cautelosamente para cima. A qualidade do vago rumor de ondas batendo na praia, modificou-se em seu ouvido. A bomba moveu-se ligeiramente — ele tinha certeza de que não fora apenas imaginação sua. Porém, um instante mais tarde, aconteciam duas outras coisas. Sentiu sangue quente, brotando do nariz e escorrendo no rosto, ao mesmo tempo em que sua cabeça era inundada pelo som de uma voz ostentória. “ATAPETE SEU ESTÚDIO OU SUA CASA INTEIRA POR MENOS!” gritou algum locutor de rádio, subitamente sentado bem no meio da cabeça de Gardener e parecendo berrar por um megafone, “E, CLARO, ESTAMOS COM UMA NOVA QUANTIDADE DE TAPETES EM OFERTA! O ÚLTIMO LOTE FOI VENDIDO DA NOITE PARA O DIA, PORTANTO, ASSEGURE A SUA COMPRA E...”

— Nossa, pare com isso! — gritou Gardener.

Largando o walkie-talkie, ele levou as mãos a cabeça. Arrancou o fone de ouvido e a ostentórea propaganda interrompeu-se. Sobrou-lhe um nariz escorrendo sangue e uma cabeça que retinia como um sino. Espantado, Freeman Moss esqueceu o ar taciturno e o fitou com olhos arregalados.

— Em nome de Deus, o que significa isso? — perguntou.

— Isso — respondeu Gardener, em voz fraca, — era a estação WZON, Onde só colocamos Rock and Roll no ar, Porque é Assim que Você Gosta. Importa-se, se eu me sentar por um minuto, Moss? Mal me agüento em pé!

— Seu nariz também esta sangrando.

— Não diga, Sherlock!

— Bem depois disto, acho que seria melhor você deixar que eu use o elevador — disse Moss.

Gardener acedeu com satisfação. Levaram o restante do dia transportando todo o equipamento até a escavação. Moss estava tão cansado quando a última peça chegou, que Gardener praticamente o carregou de volta ao caminhão dele.

— A impressão que tenho, é de haver cortado trezentos pés cúbicos de lenha e explodido os miolos enquanto fazia isso — ofegou o homem mais velho.

Depois disso, Gardener ficou sem saber se ele voltaria. Entretanto, no dia seguinte Moss apareceu pontualmente, as sete da manhã. Chegou dirigindo um deteriorado Pontiac de radiador dividido ao meio, em vez de seu caminhão. Ao descer do Pontiac, ele trazia uma marmita na mão, oscilando contra sua perna.

— E então, vamos?

Gardener sentia mais respeito por Moss, do que pelos outros três “ajudantes” juntos. Na verdade... simpatizava com ele.

Moss o fitou, enquanto caminhavam para a nave, com o orvalho da manhã de sexta-feira umedecendo-lhes a bainha das calças.

— “Pesquei” esse — grunhiu ele. — também vou com a sua cara.

Aquilo foi tudo que o Sr. Freeman Moss teve a dizer-lhe nesse dia.

Juntos, baixaram uma rede de mangueiras na escavação e montaram outras — estas para escoamento — as quais dirigiriam a água bombeada colina abaixo, em uma ladeira que corria um pouco a sudoeste da propriedade de Bobbi. Estas “mangueiras de descarrego”, como Moss as chamava, eram grandes, de amplo diâmetro interno, fabricadas com lonas superpostas que, segundo imaginou Gardener, deviam ter sido surrupiadas do Corpo de Bombeiros Voluntários.

— Certo. Arranjei algumas lá e outras em vários lugares — disse Moss, sem maiores explicações sobre o assunto.

Antes de começarem a bombear, elas vão começar a saltar e contorcer-se, jogando água para todos os lados. Quem já viu uma mangueira de bombeiro fora de controle, sabe que alguém pode sair machucado. Afinal, não temos homens suficientes que fiquem por ai, firmando um punhado de malditas mangueiras o dia inteiro.

— E nem havia voluntários fazendo fila, certo?

Freeman Moss olhou para ele em silêncio, sem dizer nada por enquanto, depois grunhiu:

— Finque bem esses grampos. Mesmo assim vamos ter que parar a todo instante, para tornar a pô-los no lugar. Eles ficam frouxos.

— Não dá para você controlar a saída da água? Assim não precisaria se preocupar com essa merda de ganchos.

Moss revirou os olhos, impaciente com a ignorância dele.

— Claro — respondeu, — mas há uma quantidade desgraçada de água naquele buraco e não quero ficar esvaziando até o Dia do Juízo. Imagino que você pense a mesma coisa.

Gardener estendeu as mãos, quase rindo.

— Ei, eu só estava perguntando — disse. — Nada tenho contra.

O homem apenas grunhiu, em seu inimitável estilo Freeman Moss. Por volta das nove e meia, a água corria ladeira abaixo e distanciando-se da nave, em grandes proporções. Era fria, cristalina e tão pura quanto a água pode ser — água doce de fato, como poderá atestar quem quer que possua um bom poço. Ao meio-dia, eles haviam criado um riacho, novo em folha. Teria uns dois metros de largura, era raso, mas mesmo assim ruidoso carregando agulhas de pinheiro, terra negra do solo e matinho rasteiro. Não havia muita coisa para os dois homens fazerem. Assim, ficavam por ali certificando-se de que nenhuma das rechonchudas e tensas mangueiras de descarrego se soltasse e começasse a saltitar, espargindo água como hidrantes abertos. Moss desligava as bombas com regularidade, em seqüência, a fim de que pudessem encravar novamente no solo os grampos frouxos ou transferi-los para um novo lugar ao longo da mangueira, caso o chão ficasse demasiadamente fofo, no ponto em que tinham estado. Pelas três da tarde, o riacho levava pequenos arbustos corrente abaixo. Pouco antes das cinco horas, Gardener ouviu o ruído de uma arvore maior, caindo ao solo. Levantando-se, espichou o pescoço, mas isso acontecera muito abaixo, no curso do novo riacho, para que pudesse ver.

— Parecia um pinheiro — disse Moss.

Foi a vez de Gardener olhar para ele e nada dizer.

— Talvez tenha sido um abeto — emendou Moss.

Embora o rosto do homem permanecesse absolutamente sério, Gardener achou que ele poderia ter dito uma piada. Uma pequena piada, mas uma piada, assim mesmo.

— Você acha que esta água chegará até a estrada?

— Oh, sim, acho que chegará.

— E não a destruirá?

— De maneira nenhuma. A equipe da cidade já está colocando nela uma nova manilha. De grande diâmetro. Imagino que precisem desviar o tráfego por uns dois dias, enquanto quebram o asfalto. Seja como for, o trânsito agora é bem menor do que antes.

— Eu reparei — disse Gardener.

— Se quer saber, foi uma coisa danada de boa! Os veranistas são sempre uma pedra no sapato da gente. Escute aqui, Gardener — vou reduzir o fluxo da água escoada por estas bombas mas, mesmo assim, elas vão continuar bombeando talvez dezesseis galões por minuto, no correr da noite. Com quatro bombas em funcionamento, são três mil e oitocentos galões por hora, a noite inteira. Nada mau, sendo tudo automático! Bem, vamos andando. Aquela nave é uma beleza mas perturba a minha pressão. Se me convidar, posso beber uma cerveja sua antes de voltar para a patroa, que me espera lá em casa.

No dia seguinte, sábado, Moss tornara a aparecer em seu antigo Pontiac e imediatamente pusera as bombas funcionando em plena capacidade — trinta e cinco galões por minuto cada uma, oito mil e quatrocentos galões por hora.

Na manhã de hoje, domingo, nada de Freeman Moss. Como os outros, ele finalmente pulara fora, deixando Gardener a considerar as mesmas velhas opções.

Primeira opção: Deixar tudo continuar como estava.

Segunda opção: Fugir, como que perseguido pelo demônio. Ele já chegara a conclusão de que, se Bobbi morresse, logo depois seria vitimado por algum acidente fatal. Talvez nem demorasse meia hora para o acidente acontecer. Se fugisse, será que eles saberiam com antecedência? Gardener achava que não. Ele e o resto de Haven continuavam jogando pôquer à moda antiga: com todas as cartas viradas para baixo. Oh, e por falar nisto, minha gente — até onde teria que fugir, para escapar deles e de suas engenhocas a Buck Rogers?

Em realidade, Gard achava que não precisaria chegar muito longe. Derry, Bangor, inclusive Augusta... bem, talvez todos estes lugares ficassem demasiado perto. E quanto a Portland? Talvez. Provavelmente. Por causa do que ele imaginava como Analogia do Cigarro.

Quando um garoto começa a fumar, tem muita sorte se chegar a metade de um cigarro, sem vomitar as tripas ou quase desmaiar. Após seis meses de experiência, talvez chegue a cinco ou dez cigarros por dia. Se dermos três anos a um jovenzinho, teremos um candidato ao câncer pulmonar, fumando dois maços e meio diários.

Tentemos de outro modo. Digamos a um garoto que acabou de fumar o primeiro cigarro e vagueia sufocado, de rosto esverdeado, que ele tem de parar de fumar. Provavelmente, o jovenzinho cairá de joelhos e nos beijará o traseiro. Se já estiver na base dos cinco ou dez cigarros ao dia, talvez não ligue muito para uma ou outra coisa... mesmo que, se habituado a esse nível, possivelmente se descubra comendo doces demais e ansiando por uma tragada, caso fique entediado ou nervoso.

Ah, pensou Gardener, façamos a prova com um fumante veterano... Digamos a ele que precisa arrancar os pregos de seu caixão, e o indivíduo aferra o peito, como um homem tendo um ataque cardíaco... com a diferença de que ele apenas está protegendo o maço, no bolso do peito da camisa. Através da experiência pessoal, em seus esforços geralmente vitoriosos para largar o hábito ou pelo menos diminuí-los a um vício menos letal, Gardener sabia que o ato de fumar é uma adição física. Na primeira semana sem cigarros os fumantes sentem tremedeiras, dor de cabeça, espasmos musculares. Os médicos receitam B-12 para acalmar o pior de tais sintomas, porém sabem que não existem pílulas para combater o sentimento de perda e a depressão do ex-fumante, naqueles seis meses iniciados no instante em que ele amassou sua última guimba de cigarro e começou a solitária viagem fora do vicio.

E Haven é como um aposento cheio de fumaça, pensou Gardener agora, colocando as bombas em funcionamento a todo vapor. A princípio eles se sentiram mal... eram como um bando de crianças, aprendendo a fumar medas de milho atrás do celeiro. Agora, no entanto, gostavam do ar no aposento, e por que não? Eles se tornaram, definitivamente, os fumantes inveterados. A coisa está no ar que respiram, e só Deus sabe que tipos de mudanças fisiológicas estão acontecendo em seus cérebros e corpos. Segmentos do pulmão de uma pessoa que fumou apenas durante dezoito, meses já mostram formações de células singulares, no tecido pulmonar. Existe urna alta incidência de tumores cerebrais em cidades onde há forte poluição, proveniente do funcionamento de fabricas ou — Deus nos proteja! — reatores nucleares. Assim, o que estará isto fazendo a eles?

Gardener não sabia — não observara quaisquer alterações superficiais e visíveis, com exceção da perda de dentes e do crescente estado de ânimo irritadiço, pronto a explodir. Entretanto, fugindo dali, ele não acreditava que fossem caçá-lo muito longe. Talvez iniciassem a perseguição com o ardor de um grupo de busca, em um faroeste da República, mas seria provável perderem o interesse bem depressa... tão logo começassem a experimentar os sintomas da retirada do vício.

Ele colocou todas as quatro bombas funcionando a toda velocidade, o que inchou o riacho para uma grossa torrente, quase que imediatamente. Em seguida, iniciou o trabalho diário de checar os grampos em U, que mantinham as mangueiras imobilizadas.

Se fugisse dali, Gardener teria duas alternativas: ficar calado ou botar a boca no trombone. Ele sabia que, por inúmeros motivos, provavelmente ficaria calado. O que significava, simplesmente, haver-se consigo mesmo — apagar o último mês de trabalho esfalfante, apagar toda chance de mudar o curso suicida da política mundial em uma só pernada e, acima de tudo, apagar da mente sua boa amiga e antiga amante Bobbi Anderson que, agora, já se encontrava ausente pela maior parte de duas semanas.

Terceira opção: Acabar com aquilo. Explodir tudo. Destruir. Tornar aquela situação apenas outro vago rumor, como o relacionado aos supostos alienígenas no Hangar 18.

A despeito de sua obtusa fúria pela insanidade da força nuclear e dos sujos tecnocratas embriagados-de-energia que a tinham criado, subscrito e se recusado a enxergar seus perigos, mesmo na esteira de Chernobyl, a despeito de sua depressão ante a telefoto da AP, mostrando os cientistas quando avançavam o relógio Negro para dois minutos antes da meia-noite, e reconhecia plenamente que sua melhor atitude possível seria a destruição da nave. A oxidação de fosse o que fosse que estivera impregnado na superfície de seu casco (deliberadamente, ele não tinha dúvidas) gerara uma cornucópia de engenhocas espetaculares, ali em Haven; só Deus sabia que coisas estariam à espera, no interior da espaçonave. Não obstante, havia o outro lado, não havia? O neurocirurgião naquele avião carbonizado, aquele velho e o policial estadual grandalhão, talvez a chefe de polícia, Sra. MacCausland talvez os outros dois agentes policiais que tinham desaparecido, até mesmo o garotinho Brown... quanto disto poderia ser atribuído à coisa para a qual olhava, aquilo que se projetava do solo como a extremidade do traseiro da maior baleia branca jamais imaginada? Alguma coisa? Todas elas? Nenhuma das mencionadas?

Gardener tinha certeza de uma coisa — aquilo ainda não terminara.

Era inegável o fato de que a nave encravada na terra fosse uma fonte de criação... porém ela era também o aparelho soçobrado de uma espécie desconhecida, oriunda de algum lugar longínquo da escuridão — criaturas cujas mentes poderiam ser tão distintas das dos seres humanos, como o eram as mentes dos humanos das mentes das aranhas. Aquele era um artefato maravilhoso e improvável, reluzindo a enevoada luminosidade solar daquela manhã de domingo... mas era também uma casa assombrada onde demônios talvez ainda vagassem entre as paredes e nos lugares ocos. Havia vezes em que ele fitava a nave e sentia a garganta encher-se de singularidade, como se fosse observado por olhos malignos, espiando-o da Terra.

E como livrar-se da nave? Como explodi-la? Mesmo supondo-se que fosse este o seu desejo, como realizá-lo? As cargas que haviam usado para destrocar o leito rochoso que prendia a nave eram mais poderosas do que dinamite, mas nem ao menos tinham arranhado o casco da coisa. Teria ele que ir até a Base da Força aérea em Limestone e surrupiar uma bomba-A, movendo-se com a sedosa, incrível maciez de Dirk Pitt, em uma novela de Clive Cussler? E não seria engraçado, não seria de fato a última gargalhada, se realmente conseguisse arranjar uma ogiva e a armasse, apenas para descobrir que, em verdade, apenas libertara a nave de um só golpe, ainda singularmente ilesa e sem arranhões?

Tais eram as suas opções, a terceira delas nem chegando a ser de fato uma opção... e, aparentemente, as mãos dele sabiam mais do que o cérebro, porque enquanto ruminava todos esses pensamentos, continuou tranquilamente a executar o trabalho da manhã — ligar as bombas na capacidade máxima e certificar-se de que os grampos prendendo as mangueiras estavam solidamente cravados no chão. Agora, estava de volta à escavação, checando as mangueiras de sucção e o nível da água. Ficou feliz em perceber que precisava de uma potente lanterna para enxergar a água — o nível baixava rapidamente. Imaginou que a explosões e escavações poderiam ser reiniciadas na quarta-feira, quinta ou mais tarde... e, uma vez recomeçada, tudo prosseguiria depressa. As rochas de um aqüífero eram as e de poros largos. Não precisariam perder tempo escavando buracos para a colocação de explosivos; haveria suficientes pontos naturais, não apenas para rádios explosivos, mas também cargas em sacolas. A fase seguinte seria como passar de uma massa, densa e pegajosa para massa, recém-fermentada.

Gard ficou inclinado para a escavação durante algum tempo, apontando a potente luz da lanterna para as negras profundidades. Depois desligou-a com in-tenção de retornar a inspecionar os grampos. Contudo, eram apenas oito e meia da manhã, e ele já queria um drinque.

Deu meia volta.

Bobbi estava parada lá.

Gardener ficou de boca aberta. Fechou-a com um estalo, após um momento de espanto. Então, começou a caminhar para ela, absolutamente certo de que essa alucinação iria ficando transparente, até desaparecer. Não obstante, Bobbi permaneceu sólida, e Gard percebeu que ela havia perdido uma boa parte dos cabelos — sua testa, de um branco pálido e brilhante estendia-se para trás até quase a metade do crânio, deixando no meio o maior bico-de-viúva do mundo. Ela não apresentava apenas aquelas novas partes expostas de crânio como seus únicos locais pálidos; sua aparência era a de alguém que atravessara um enfermidade terrivelmente debilitante. O braço direito estava em uma tipóia. E...

...e ela esta usando maquilagem. Maquilagem Pan-Cake. Tenho certeza disto — Bobbi aplicou uma forte camada, exatamente como faz uma mulher querendo cobrir uma equimose. No entanto, é ela... Bobbi... não estou sonhando...

Seus olhos se encheram subitamente de lágrimas. Bobbi duplicou-se, depois triplicou-se. Foi só então — nesse momento — que ele percebeu o quanto estivera assustado. E solitário.

— Bobbi? — perguntou roucamente. — É mesmo você?

Ela sorriu, aquele doce e velho sorriso que Gard tanto amava, o mesmo que o salvara tão frequentemente de seu próprio eu idiota. Era Bobbi. Era Bobbi, e ele a amava.

Caminhou para ela, abraçou-a, descansou o rosto cansado contra o pescoço dela. Também já havia feito isto antes.

— Olá, Gard — disse ela, e começou a chorar.

Ele chorava também. Beijou-a. Beijou-a. Beijou-a.

As mãos de Gard deslizaram repentinamente por toda ela; a mão livre de Bobbi estava nele.

Não, disse ele, ainda beijando. Não, você não pode...

Psst... Eu tenho que poder. É a minha última chance, Gard. Nossa última chance.

Beijaram-se. Beijaram-se. Oh, como se beijaram, e agora a blusa dela estava desabotoada e aquele não era o corpo de uma deusa do sexo, era um corpo branco e doentio, com músculos flácidos, seios pendidos, mas ele o amava, ele a beijou, beijou, e as lágrimas de um molhavam inteiramente o rosto do outro.

Gard, meu querido, meu sempre

pssst

Oh por favor eu o amo

Bobbi eu amo

amo

beije-me

beije

sim

Agulhas de pinheiro sob eles. Doçura. Lágrimas dela. Lágrimas dele. Os dois se beijaram, beijaram, beijaram. E, quando entrou nela, Gard percebeu duas coisas ao mesmo tempo: como sentira saudades dela, e que não havia um só pássaro trinando. A floresta estava morta.

Beijaram-se.

 

Gard usou sua camisa, que aliás já não estava muito limpa, para retirar manchas de maquilagem castanha em seu corpo despido. Teria ela vindo até ali esperando fazer amor com ele? Enfim, o melhor era nem pensar a respeito. Pelo menos, não agora.

Embora ambos pudessem ter sido um banquete de Dia de Graças para os mosquitos, maruins e moscas, escorrendo suor como haviam estado, Gardener não fora picado uma só vez. Aliás, ele achava que o mesmo acontecera a Bobbi. Essa coisa não é apenas uma vacina contra insetos, pensou, olhando para a nave, ela contém cada repelente de insetos que o mercado possa produzir.

Jogou a camisa para um lado e tocou o rosto de Bobbi, correndo um dedo por sua face, retirando um pouco mais de maquilagem. A maioria desta, no entanto, já fora desmanchada pelo suor... ou diluída pelas lágrimas.

— Eu a machuquei — disse ele.

Você me amou, respondeu ela.

— O quê?

Você me ouviu, Gard. Sei que ouviu.

— Está zangada? — perguntou ele, cônscio de que as barreiras estavam sendo novamente erguidas, cônscio de que voltava a representar, cônscio de que aquilo terminara, de que finalmente haviam terminado todas as coisas que tinham possuído. Estar cônscio de tudo isto era lamentável. — Não quer falar comigo? — Gard fez uma pausa. — Eu não a censuraria. No correr dos anos, você tirou um bocado de merda de cima de mim, mulher.

— Eu estava falando com você. — Embora lamentasse estar mentindo para ela, após tê-la amado, Gard gostou de sentir-lhe a dúvida. — Com a minha mente.

Eu não ouvi.

— Você ouvia antes. Ouvia... e respondia. Nós conversávamos, Gard.

— Estávamos mais próximos de... disso — falou ele, estendendo o braço para a nave.

Ela sorriu apagadamente para ele e encostou a face em seu ombro. Agora, desaparecida a maioria da maquilagem, a carne de Bobbi mostrava uma inquietante diafaneidade, algo que não poderia ser atribuído a sua doença, fosse esta qual fosse.

— E então? Eu a machuquei?

— Não. Sim. Um pouquinho. — Ela sorriu. Era aquele velho sorriso Bobbi Anderson de vá-para-o-inferno mas, ainda assim, uma lágrima final escorreu-lhe face abaixo. — Valeu a pena. Reservamos o melhor para o fim Gard.

Ele a beijou suavemente, mas agora os lábios dela eram diferentes. Eram os lábios da Nova e Melhorada Roberta Anderson.

— Princípio, meio ou fim, a verdade é que eu não tinha nada que fazer amor com você, como você não tem nada a fazer por aqui.

— Sei que pareço cansada — disse Bobbi, — e estou usando um bocado de maquilagem, como já deve ter percebido. Você tinha razão — permiti-me ficar exaurida e tive algo como um total colapso físico.

Cascata, pensou Gardener, mas encobriu o pensamento com ruídos brancos, a fim de que Bobbi não o lesse — fez isto, mal tendo uma idéia consciente do que fazia. O truque agora se tornava uma segunda natureza para ele.

— O tratamento foi... radical. Resultou em alguns problemas superficiais de pele e certa perda de cabelo. Enfim, ele tornara a crescer.

— Oh, claro — disse Gardener, pensando: você não está mentindo em troca de nada, Bobbi. — Fico feliz por você estar bem, mas acho que seria bom ter mais uns dois dias de folga, firmar-se bem nas pernas...

— Não — disse ela, em voz calma e baixa. — Chegou o momento do esforço final, Gard. Estamos quase chegando lá. Nós começamos isto, eu e você...

— De maneira nenhuma — replicou ele. — Você começou, Bobbi. Você literalmente tropeçou nisto. No tempo em que Peter ainda vivia. Lembra-se?

Gard viu sofrimento nos olhos de Bobbi, ao mencionar Peter. Depois, o sentimento desapareceu. Ela rejeitou a correção de Gardener.

— Você apareceu aqui cedo o bastante. Salvou a minha vida. Eu não estaria aqui agora, se não fosse você. Portanto, nós agimos juntos, Gard. Posso apostar que não temos mais de oito metros, até aquela escotilha.

Gard tinha um forte pressentimento de que ela estava certa mas, de repente, não teve vontade de admiti-lo. Havia algo pontiagudo girando e girando em seu co-ração, sendo a dor pior do que qualquer dor de cabeça de ressaca que já tivera.

— Se você acha, acredito no que diz.

— O que me responde, Gard? Um último esforço. Eu e você.

Ele ficou olhando pensativamente para Bobbi, tornando a perceber quanto a floresta parecia maligna, sem nenhum pio ou trinado de aves.

É assim que seria — é assim que será — quando uma de suas malditas centrais atômicas sofrer a fusão do núcleo. As pessoas serão espertas o bastante para fugir — quero dizer, se forem alertadas a tempo, se a central nuclear em questão e a NRC* tiverem coragem bastante para dizer a elas — mas ninguém pode dizer a uma coruja ou a um pica-pau que precisam evacuar a área. Não se pode dizer a um tangara escarlate que evite olhar para a bola de fogo. Então, seus olhos se fundirão e eles ficarão batendo asas de um lado para outro, cegos como morcegos chocando-se contra árvores e paredes de prédios, até morrerem de fome ou quebrarem o pescoço. Será isto uma espaçonave, Bobbi? Ou será um gigantesco container, que já esta vazando? Porque está vazando, não está? Daí o motivo desta floresta se encontrar tão silenciosa, daí o motivo daquele Pássaro Neurologista Vestido em poliéster ter caído do céu na sexta-feira, não e mesmo?

— O que me diz, Gard? Mais um esforço?

Então onde se acha a boa solução? Onde está a paz com honra? A gente foge? A gente passa a coisa para a Polícia de Dallas americana, afim de que eles a usem contra a Polícia de Dallas soviética? O quê? Tem mais algumas idéias novas, Gard?

Então subitamente, ele teve uma idéia... ou o vislumbre de uma.

Um vislumbre, afinal, era melhor do que nada.

Cutucou Bobbi com um braço.

— Tudo bem. Um esforço mais.

O sorriso dela começou a aumentar... mas então se tornou uma expressão de curiosa surpresa.

— Quantos ela lhe deixou, Gard?

— Quantos me deixou, quem?

— A Fada dos Dentes — disse Bobbi. — Você finalmente perdeu um. Bem aí na frente.

Assustado e algo temeroso, Gard levou a mão à boca. Sim, era verdade, havia uma falha no lugar onde, na véspera, estivera um incisivo. Então, a coisa já começara. Após um mês trabalhando a sombra da nave, ele tolamente se julgara imune. Só que não era. Já havia começado e, agora, estava a caminho de tornar-se Novo e Melhorado.

A caminho de “transformar-se”.

Forçou um sorriso em resposta.

— Nem havia percebido ainda — falou.

— Sente-se diferente de algum modo?

— Não — respondeu ele, e era sincero. — Pelo menos, ainda não. O que dizia? Quer fazer algum trabalho?

— Farei o que puder — disse Bobbi. — Com este braço...

— Poderá checar as mangueiras e me avisar se alguma delas começa a ficar frouxa. Poderá também falar comigo. — Olhou para Bobbi com um sorriso desajeitado. — Poxa, nenhum daqueles outros sujeitos sabia conversar. Quero dizer, eram sinceros mas... — Deu de ombros. — Você compreende, não?

Bobbi sorriu de volta, e Gardener teve outro brilhante e genuíno relance da velha Bobbi, da mulher que tinha amado. Recordou a segura e sombria enseada do pescoço dela, e aquele parafuso em seu coração tornou a revolver-se.

— Acho que sim — disse ela, — e vou falar pelos cotovelos com você se é o que deseja. Também tenho estado solitária.

Ficaram juntos, sorrindo um para o outro, e era quase como nos velhos tempos, porém a floresta permanecia silenciosa, sem qualquer canto de pássaro povoando-a.

O amor acabou, pensou ele. Agora, é o mesmo velho jogo de pôquer exceto que a Fada dos Dentes veio ontem à noite e acho que tornara a voltar esta noite. Provavelmente, trazendo um primo e um cunhado. E quando começarem a ver minhas cartas, talvez expondo aquele vislumbre de idéias como um trunfo de reserva, será o fim. De certa maneira, e até gozado. Sempre presumimos que os alienígenas teriam que pelo menos estar vivos, para a invasão. Nem mesmo H. G. Wells imaginou uma invasão de fantasmas.

— Quero dar uma espiada na escavação — disse Bobbi.

— Tudo bem. Vai gostar da maneira como está escoando.

Caminharam juntos e chegaram a sombra lançada pela nave.

 

Segunda-feira, 8 de agosto:

O calor tinha voltado.

Ao lado da janela da cozinha de Newt Berringer, a temperatura era de vinte e sete graus as sete e quinze daquela manhã de segunda-feira, mas Newt não se encontrava na cozinha para lê-la; estava em pé no banheiro, vestindo apenas as calças do pijama, aplicando desajeitadamente ao rosto a maquilagem de sua falecida esposa e amaldiçoando a maneira como o suor fazia o Pan-Cake aglutinar-se. Ele sempre considerara a maquilagem um puro exibicionismo inofensivo das mulheres, mas agora, ao tentar usá-la segundo sua finalidade original — não para acentuar o bom, mas esconder o ruim (ou, pelo menos, o chocante) — descobriu que, aplicar maquilagem, equivalia a cortar o cabelo de alguém. Desgraçadamente, algo muito mais difícil do que parecia.

Newt tentava ocultar o fato de que, no correr de mais ou menos a última semana, a pele de suas faces e testa começara a desbotar. Evidentemente, sabia que isso tinha a ver com as idas dele e dos outros ao galpão de Bobbi — idas sobre as quais depois não se lembrava; ele tinha consciência apenas de que haviam sido amedrontadoras, porém muito mais revigorantes; de que nas três vezes em que saíra de lá, sentia-se com três metros de altura disposto a ter sexo na lama com um pelotão de mulheres praticante de luta-livre. Também sabia o suficiente para associar o galpão ao que vinha acontecendo, mas no início pensara tratar-se apenas de uma perda do bronzeado costumeiro de verão. Nos anos anteriores àquela gélida tarde de inverno e ao caminhão de pão que derrapara, tirando-lhe a vida, sua esposa Elinor costumava brincar, dizendo que bastava Newt ficar sob um raio de sol, após primeiro de maio, para ficar tão queimado como um índio.

Entretanto, pela tarde da última sexta-feira, ele não conseguia mais iludir-se sobre o que acontecia. Podia discernir as veias, artérias e capilares em suas faces exatamente como era possível vê-los naquele modelo que dera ao sobrinho Michael, dois Natais atrás — O Maravilhoso Homem Visível, era este o nome. Uma coisa danada de inquietante. Não se tratava apenas do fato de poder vê-los em si mesmo; quando pressionava os dedos contra as faces, os ossos faciais pareciam decidida-mente moles. Era como se estivessem... bem... dissolvendo-se.

Não posso sair de casa desse jeito, pensou. Céus, não!

No sábado, contudo, ao olhar-se no espelho e perceber, após certa reflexão e muitos exames entortando os olhos, que a sombra acinzentada vista através do lado do rosto era sua própria língua, Newt quase voara para a casa de Dick Allison.

Dick lhe abriu a porta, parecendo tão normal que, durante alguns terríveis momentos, Newt acreditou que o fenômeno estava acontecendo com ele apenas. Então, o pensamento firme e claro de Dick lhe encheu a cabeça, deixando-o fraco de alivio: céus, você não pode andar por aí com essa aparência, Newt. Vai assustar as pessoas! Venha cá. Vou ligar para Hazel.

(Em realidade, o telefone era dispensável, mas velhos hábitos demoram a desaparecer.)

Na cozinha de Dick, sob as lâmpadas fluorescentes do teto, Newt pudera ver claramente que Dick usava maquilagem. Hazel se prontificara a ensinar-lhe como aplicá-la, explicou Dick. Sim, aquilo vinha acontecendo a todos os outros, exceto Adley, que entrara no galpão pela primeira vez, somente duas semanas antes.

Aonde vai terminar tudo isto, Dick? perguntara Newt, pouco à vontade. O espelho do corredor de Dick o atraía como imã e olhou para sua imagem refletida, vendo a própria língua atrás e através dos lábios lívidos, também vendo um emaranhado de pequenos e pulsantes capilares na testa. Apertou as pontas dos dedos contra o osso acima das sobrancelhas, apertou com força, e viu leves afundamentos ao afastar a mão — eram como marcas de dedos em cara dura, deixando impressos discerníveis redemoinhos e alças de impressões digitais vazados na pele pálida. Ao ver aquilo, ele se sentiu nauseado.

Não sei, respondera Dick. Estava falando com Hazel ao telefone, enquanto isso. Afinal, isso não tem maior importância. Terminará acontecendo a todos, eventualmente. Como tudo o mais, você sabe o que quero dizer.

Ele sabia, sem dúvida. As primeiras mudanças, pensou Newt, olhando-se ao espelho no naquela quente manhã de segunda-feira, haviam sido piores em vários sentidos, tornando-se ainda mais escabrosas porque eram... bem, tão íntimas.

De qualquer modo, terminaria acostumando-se com aquilo, isto só vindo provar, supunha ele, que uma pessoa finalmente acostuma-se a tudo, desde que lhe dêem tempo suficiente.

Agora, parado diante do espelho, ouvia vagamente o locutor no rádio informar à sua audiência que uma massa de ar quente, vinda do sul e penetrando na área, indicava que podiam esperar por pelo menos três dias ou talvez uma semana de mormaço, com temperaturas variando de vinte e oito a trinta e dois graus. Newt amaldiçoou a chegada do tempo úmido — como sempre, deixaria suas hemorróidas coçando e ardendo — e continuou tentando maquilar as faces, testa, nariz e pescoço cada vez mais transparentes, usando o Pan-Cake Max Fator de Elinor. Enquanto xingava o tempo e prosseguia com a maquilagem, sem jamais interromper o monólogo não tinha a menor idéia de que o produto usado no rosto ficava velho e esfarinhado após um período suficientemente longo (e aquele pote, em particular havia permanecido no fundo de uma gaveta do banheiro, desde bem antes da morte de Elinor, em fevereiro de 1984).

De qualquer modo, ele supôs que terminaria acostumando a aplicar aquele disfarce... até a época em que não fosse mais necessário, em absoluto. Uma pessoa pode acostumar-se a quase tudo. Um tentáculo, branco na extremidade, depois matizando-se para rosa e finalmente para um tom vermelho-sangue escuro, ao engrossar na direção de sua base invisível escapou pela braguilha das calças do pijama. Quase como que para provar sua tese, Newt Berringer apenas o empurrou alheadamente de volta e continuou a tentativa de espalhar uniformemente a maquilagem da falecida esposa em seu rosto que se esfumava.

 

Terça-feira, 9 de agosto:

O velho Doutor Warwick puxou lentamente o lençol acima de Tommy Jacklin e o deixou cair. O tecido inflou-se ligeiramente, depois assentou-se. O formato do nariz de Tommy ficou nitidamente definido. Havia sido um jovem atraente, mas de nariz grande, igual ao do pai.

O pai dele, pensou Bobbi Anderson languidamente. Alguém vai ter que contar a seu pai, e adivinhem quem será escolhido? Ela sabia que tais coisas não deviam preocupá-la mais — coisas como a morte do jovem Jacklin, coisas como saber que teria de livrar-se de Gard ao alcançarem a escotilha da nave — porém, às vezes ainda preocupavam.

Imaginou que isso desapareceria com o tempo.

Mais algumas idas ao galpão. Era tudo de que precisaria.

Limpou distraidamente a blusa e espirrou.

Exceto pelo som do espirro e da respiração estertorante de Hester Brookline, na outra cama da pequena clínica improvisada que o médico havia instalado em sua sala de espera/exames, houve apenas um chocado silêncio por um momento.

Kyle: Ele esta realmente morto?

Não. Às vezes, eu os cubro dessa maneira como piada, respondeu Warwick mal-humoradamente. Que merda, homem! Eu sabia que ele ia às quatro horas. Dai por que chamei todos vocês aqui. Afinal de contas, são agora os pais da cidade, não são?

Por um momento, seus olhos se fixaram em Hazel e Bobbi.

Perdoem-me. Há também duas mães da cidade.

Bobbi sorriu sem humor. Em breve haveria apenas um sexo em Haven. Nada de mães, nada de pais. Apenas mais uma sinalização rodoviária, poder-se-ia dizer, na Grande Estrada da “Transformação”.

Ela olhou de Kyle para Dick, em seguida para Newt e Hazel, reparando que estavam sentindo o mesmo choque. Então, graças a Deus não estava sozinha. Tommy e Hester haviam voltado — de fato, até antes do programado, pois quando ele passara a sentir-se realmente mal, apenas três horas depois que os dois tinham saído da área Haven-Troy, ele começara a apressar as coisas, movendo-se o mais depressa que podia.

O danado do garoto foi realmente um herói, pensou Bobbi. Suponho que o melhor que podemos fazer por ele seja uma sepultura no cemitério de sua terra natal, mas, ainda assim, ele foi um herói.

Ela olhou para onde jazia Hester, pálida como um camafeu de cera, respirando secamente, de olhos fechados. Os dois poderiam ter voltado — deviam ter voltado, talvez — quando sentiram a dor de cabeça chegando, quando as gengivas começaram a sangrar, mas nem mesmo discutiram isso. E não se tratava apenas das gengivas. Hester, que estivera menstruando ligeiramente durante toda a “transformação” (ao contrário das mulheres mais velhas, a menstruação das jovens nem parecia cessar... ou, de qualquer modo, ainda não havia cessado), fez Tommy parar na loja de departamentos de Troy, para comprar absorventes sanitários mais consistentes. Seu fluxo se tornara copioso. A hora em que tinham comprado três baterias de automóvel e uma boa bateria usada de caminhão, na Loja de Autopeças na divisória Newport-Derry, à margem da Rota 7, ela já encharcara quatro absorventes Sempre Livre Super.

A cabeça dos dois começou a doer, Tommy sofrendo mais do que Hester. Quando já tinham conseguido meia dúzia de baterias Allstate na loja Sears e mais ou menos cem pilhas C, D, A-duplo e A-triplo na loja de ferragens Tru-Value, em Derry (que acabara de receber um novo sortimento), ambos sabiam que precisavam voltar... e depressa. Tommy começara a ter alucinações; enquanto dirigia pela Rua Wentworth, julgou ver um palhaço sorrindo para ele, de um bueiro aberto de esgotos — um palhaço cujos olhos eram cintilantes dólares de prata e segurava balões de gás na mão enluvada de branco.

Uns doze quilômetros mais ou menos depois de Derry, retornando a Haven pela Rota 9, o reto de Tommy começou a sangrar. Ele parou o carro e, com o rosto vermelho de constrangimento, pediu a Hester para arranjar-lhe um de seus absorventes. Conseguiu explicar-lhe o motivo pedido, mas sem olhar para ela enquanto isso. Hester entregou um punhado, e ele foi até o meio de alguns arbustos, por um minuto.

Retornou ao carro andando tropegamente como um bêbado, uma das — estendidas para diante.

— Você vai ter que dirigir, Hester — disse. — Não me sinto em condições.

Quando finalmente chegaram a linha limítrofe da cidade o banco fronteiro do carro estava cheio de sangue derramado e coagulado. Tommy havia perdido os sentidos. A esta altura, a própria Hester só conseguia enxergar através de uma cortina escura; ela sabia que eram quatro horas de uma tarde cheia de sol, mas o Doutor Warwick pareceu ir ao seu encontro por entre um tempestuoso e sombrio crepúsculo. Hester percebeu que ele abria a porta, tocava-lhe as mãos e dizia, Está tudo bem, minha querida vocês voltaram, pode largar o volante agora, já chegaram em Haven. Ela conseguiu prestar um relato mais ou menos coerente da tarde dos dois enquanto jazia no círculo protetor dos braços de Hazel McCready, porém se juntara a Tommy na inconsciência muito antes de chegarem a clínica improvisada do médico, embora ele dirigisse a inaudita velocidade de quase cem quilômetros, com os cabelos brancos agitando-se ao vento.

Adley Mckeen sussurrou: E quanto à garota?

Bem, sua pressão está caindo, disse Warwick. O sangramento cessou. Ela é jovem e forte. Boa cepa do campo... Conheci seus pais e seus avós. Hester escapará desta.

O médico olhou taciturnamente para os outros, seus aguados olhos azuis não iludidos pela maquilagem que usavam, um detalhe que, àquela claridade, dava-lhes uma aparência de seis palhaços espectralmente bronzeados.

De qualquer modo, não creio que ela recupere a visão.

Houve um perturbado silêncio. Bobbi o rompeu:

Não será tanto assim.

O Doutor Warwick se virou para fitá-la.

Hester tornará a enxergar, disse Bobbi. Quando a “transformação” terminar, ela voltara a ver. Então, todos estaremos enxergando com um olho.

Warwick encarou-a por um instante, depois baixou o rosto.

Sim, disse ele. Imagino que sim. Entretanto, seja como for, é uma maldita vergonha.

Bobbi concordou, sem entusiasmo. Ruim para ela. Pior para Tommy. Não será um mar de rosas para os pais dele. Preciso ir vê-los. E gostaria que alguém fosse comigo.

Olhou para os outros, mas eles foram desviando o rosto, um de cada vez, seus pensamentos confundidos em um zumbido uniforme.

Tudo bem, disse Bobbi. Acho que posso dar um jeito.

Adley McKeen falou então, humildemente. Se quiser, eu poderia ir com você, Bobbi. Faria companhia.

Bobbi endereçou-lhe um sorriso cansado, mas mesmo assim satisfeito, e apertou-lhe o ombro. Obrigada, Ad. Pela segunda vez, obrigada.

Os dois saíram. Os outros ficaram espiando e, quando a camionete de Bobbi deu partida, viraram-se para onde jazia Hester Brooline, inconsciente, presa a um sofisticado aparelho de suporte de vida, cujas partes componentes originavam-se de dois rádios, um toca-discos, o dispositivo de sintonização automática da nova televisão Sony do médico...

...e naturalmente, montes de pilhas elétricas.

 

Quarta-feira 10 de agosto:

A despeito de seu cansaço, sua confusão, sua incapacidade de parar de representar Hamlet e — pior de tudo — a persistente sensação de que as coisas em Haven pioravam o tempo todo, Jim Gardener havia podido controlar a bebida satisfatoriamente, desde o dia em que Bobbi voltara e os dois se tinham deitado juntos, sobre as fragrantes agulhas de pinheiro. Parte do motivo disto era puro interesse pessoal. Sangramentos nasais demasiados e demasiadas dores de cabeça. Outra parte era, sem dúvida, originária de influência da nave, segundo pensava ele — não tinha esquecido o que já experimentara, após Bobbi ter insistido vivamente para que tocassem o casco da espaçonave, quando então sentira aquela rápida e entorpecente vibração — porém era sensato o bastante para perceber que sua persistente bebedeira também contribuía para a situação. Não houvera períodos de amnésia, porém dias em que seu nariz sangrara de três a quatro vezes. Gardener sempre tivera tendência a hipertensão e, por várias vezes, já lhe tinham dito que beber permanentemente poderia piorar o que era uma condição controlável.

Assim, ele ia se saindo razoavelmente bem, até ouvir o espirro de Bobbi.

Aquele som, tão terrivelmente familiar, evocou um lote de lembranças, quando então uma súbita e terrível idéia explodiu em sua mente como uma bomba.

Ele foi à cozinha, ergueu a tampa de um grande cesto e olhou para um vestido — aquele que Bobbi usara ao anoitecer da véspera. Ela não viu sua inspeção; estava dormindo. Havia espirrado adormecida.

Bobbi tinha saído naquele anoitecer da véspera, sem qualquer explicação — Gardener achou-a nervosa e preocupada; embora ambos houvessem trabalhado duro o dia inteiro, ela quase não havia jantado. Então, já anoitecendo, tomara banho, trocara as roupas por aquele vestido e saíra dirigindo, em meio ao anoitecer quente, sossegado e suarento. Gardener a ouvira voltar perto da meia-noite e vira o brilhante clarão das luzes, quando Bobbi fora ao galpão. Achava que ela entrara em casa já quase amanhecendo, porém não tinha certeza.

Reparou que Bobbi passara o dia inteiro indolente, falando apenas quando era preciso, mas apenas por monossílabos. Os desajeitados esforços de Gardener para alegrá-la não haviam tido êxito. Bobbi tornara a rejeitar o jantar esta noite, meneando a cabeça quando Gardener sugeriu algumas rodadas de jogo de cartas na varanda, como nós velhos tempos.

Espiando por entre aquela estranha camada de maquilagem cor de carne, os olhos dela haviam parecido sombrios e molhados. Ainda no momento em que reparava isto, Bobbi pegara um punhado de lenços de papel, sobre a mesa atrás dela, e espirrara neles duas ou três vezes, sucessivamente.

— Acho que peguei um resfriado de verão. Será melhor ir direto para a cama. Lamento ser desmancha-prazeres, Gard, mas estou arrasada.

Tudo bem — disse ele.

Alguma coisa — aquela relembrada familiaridade — estivera espicaçando-o, e agora estava ali parado, com o vestido dela nas mãos, um leve vestidinho de algodão sem mangas, para o verão. Nos velhos tempos seria lavado ainda esta manhã, pendurado no varal dos fundos para secar, passado a ferro depois do jantar e guardado cuidadosamente no armário, muito antes dela ir dormir. Contudo, estes não eram os velhos tempos; agora eram os Novos e Melhorados Dias, quando eles só lavavam roupas havendo absoluta necessidade; afinal, tinham coisas mais importantes a fazer, não?

Como que confirmando sua idéia, Bobbi espirrou duas vezes, sem acordar.

— Não — sussurrou Gard. — Por favor!

Deixou o vestido cair na cesta, não querendo mais tocá-lo. Bateu a tampa e permaneceu em pé, rígido, esperando para ver se o som despertara Bobbi.

Ela pegou a picape. Foi fazer algo que não era do seu desejo. Algo que a perturbava. Algo formal o bastante para exigir um vestido. Voltou tarde e foi diretamente para o galpão. Não veio em casa para trocar de roupa. Entrou lá, como se tivesse necessidade disso. Imediatamente. Por que?

A resposta, no entanto, acrescida dos espirros e do que ele havia encontrado no vestido dela, parecia inevitável.

Consolo.

E quando Bobbi, que morava sozinha, precisava de consolo, quem sempre estivera ali para dá-lo? Gard? Ora, não me façam rir, amigos! Gard só aparecia para ser consolado, não para consolar.

Ele desejava estar embriagado. Desejava isso mais do que nunca, desde que esta loucura havia começado.

Esqueça. Quando se virou para sair da cozinha, onde Bobbi guardava as bebidas alcoólicas e tinha o cesto para roupas sujas, algo caiu ao chão, com um ruído de ricochete.

Inclinando-se, ele pegou o que caíra, examinou-o e o girou pensativamente na mão. Era um dente, claro. O Grande Número Dois. Colocou um dedo na boca, sentiu o novo alvéolo, viu a mancha sanguinolenta na ponta desse dedo. Foi até a porta da cozinha e aguçou os ouvidos. Bobbi ressonava sonoramente no quarto. Dava a impressão de estar com as narinas inteiramente obstruídas.

Resfriado de verão, foi o que ela disse. É possível. Talvez seja isso mesmo.

Entretanto, recordava a maneira como Peter às vezes saltava para o colo dela, quando Bobbi estava sentada em sua velha cadeira de balanço perto das janelas, para ler, ou quando ficava na varanda. Ela costumava dizer que Peter preferia dar seus saltos destruidores de seios quando o tempo era instável, da mesma forma como tinha mais probabilidades de provocar-lhe um de seus ataques alérgicos, se o tempo era quente e instável. É como se ele soubesse, havia dito certa vez, afagando o cão atrás das orelhas. Você SABE, Pete? Sabe mesmo? Você GOSTA de me fazer espirrar? A infelicidade gosta de companhia, não é isso? E Pete parecera rir dela, a sua maneira canina.

Gardener recordou que, quando Bobbi voltara na noite anterior, o tinha despertado ligeiramente (a volta dela e aquele clarão de luz verde), quando então ouvira um distante e inexpressivo trovão, provocado pela onda de calor.

Agora, recordava que Pete às vezes também precisava de um pouco de consolo. Em especial quando trovejava. Ele tinha um medo mortal daquele estrondo. O estrondo da trovoada.

Santo Deus, teria ela levado Peter para aquele galpão? E se levou, POR QUE, afinal?

Ele encontrara manchas de curiosa baba verde no vestido de Bobbi.

E pêlos.

Pêlos castanhos e brancos, muito familiares. Peter estava no galpão, estivera lá o tempo todo. Bobbi mentira, ao dizer que ele havia morrido. Só Deus sabia sobre quantas outras coisas mais ela mentira... mas por que isto?

Por quê?

Gardener não sabia.

Mudando de rumo, ele se dirigiu em linha reta para o armário debaixo da pia, inclinou-se, tirou uma nova garrafa de uísque e rompeu o selo.

Erguendo a garrafa, disse:

— Ao melhor amigo do homem!

Depois bebeu pelo gargalo, gargarejou violentamente e engoliu.

O primeiro gole.

Peter... Diabo, o que você fez com Peter, Bobbi?

Ele queria embebedar-se.

Ficar muito bêbado.

E depressa.

 

OS TOMMYKNOCKERS

 

Conheça o novo chefe. É igual ao chefe antigo.

 “Won’t Get Fooled Again”

THE WHO

 

Além do topo da montanha:

trovão, mágico espumejar,

deixa todos verem o meu saber,

enche a terra de fumaça,

corre através da selva...

não olhem para trás.

 “Run Through the Jungle”

CREEDENCE CLEARWATER REVIWAL

 

Eu dormi e tive um sonho. Desta vez, não havia disfarces em parte alguma. Eu era a maliciosa figura ananicada macho-fêmea, o princípio da alegria-em-destrui-ção; e Saul era a minha contraparte, macho-fêmea, meu irmão e minha irmã, e estávamos dançando em algum espaço aberto, sob enormes edifícios brancos; cheios de maquinismos negros, hediondos e ameaçadores, que guardavam a destruição em si. No sonho, entretanto, ele e eu ou ela e eu — éramos amistosos, não havia hostilidade entre nós, estávamos juntos em despeitada malícia. No sonho havia uma terrível nostalgia ansiosa, a ânsia pela morte. Unimo-nos e nos beijamos, em amor. Foi terrível e, mesmo no sonho, eu sabia disso. Porque, no sonho, reconheci aqueles outros sonhos que todos temos, quando a essência do amor, da ternura, está concentrada em um beijo ou carícia, só que agora era a carícia de duas criaturas semi-humanas, comemorando a destruição.

— DORIS LESSING, The Golden Notebook

 

SISSY

— Espero que tenha apreciado a viagem — disse a aeromoça, parada junto à saída do avião, para a mulher quarentona que desembarcava do vôo 230 da Delta, juntamente com alguns poucos passageiros, todos tendo feito a viagem completa até Bangor, ponto terminal do 230.

Anne a irmã de Bobbi Anderson, contava apenas quarenta anos, porém pensava como se tivesse cinqüenta e também aparentava essa idade (Bobbi dizia durante os pouco freqüentes momentos em que se embebedava — que a irmã Anne havia pensado como mulher de cinqüenta, desde mais ou menos os treze anos de idade). Ao ouvir a aeromoça, fez alto e fixou nela um olhar que teria parado um relógio.

— Pois bem, eu lhe direi, mocinha — falou ela. — Estou morrendo de calor. Meus sovacos fedem, porque o avião demorou a sair de La Garbage e demorou ainda mais em deixar Logan. O ar estava turbulento e odeio viajar de avião. O estagiário que mandaram de volta para onde viajam animais, derramou em cima de mim o screwdriver*de alguém, e fiquei com suco de laranja escorrendo por todo o meu braço, em uma camada pegajosa. Minhas calcinhas estão coladas no meio da bunda e esta cidadezinha mais parece uma espinha pustulenta, no cacete da Nova Inglaterra. Mais perguntas?

— Não, senhora — conseguiu balbuciar a aeromoça.

Seus olhos estavam vidrados e havia a sensação de ter enfrentado três rounds com Mancini Bum-Bum, em um dia em que Mancini estava de mal com o mundo. Este era um efeito que Anne Anderson produzia freqüentemente nas pessoas.

— Que bom para você, meu bem.

Anne passou por ela e saiu do avião, balançando uma bolsa em berrante tom púrpura em uma das mãos. A aeromoça nem mesmo teve tempo de desejar-lhe uma agradável permanência em Bangor. Então, decidiu que seria tempo perdido. A dama dava a impressão de jamais haver tido uma permanência agradável em algum lugar. Caminhava empertigada, porém parecia andar assim apesar de alguma dor em algum lugar — como a pequena sereia, que continuava caminhando, embora cada passo fosse como punhalada nos pés.

Enfim, pensou a aeromoça, se essa megera tem um Verdadeiro Amor enfurnado em algum lugar, peço a Deus que ele saiba sobre os hábitos de acasalamento da aranha que depois devora o macho...

 

A atendente da agência Avis, disse a Anne que não dispunha de carros para alugar; que se não fizera reserva antecipada, estava sem sorte, ela sentia muito. Era verão no Maine, de maneira que os carros para alugar eram escassos.

Isto foi um engano da parte da atendente. Triste engano.

Anne sorriu com perversidade, cuspiu mentalmente nas mãos e começou a trabalhar. Situações como esta, eram uma sopa para a irmã Anne, que cuidara pai até ele ter tido uma morte miserável a primeiro de agosto, oito dias atrás. Ela se recusara a interná-lo em um hospital, em vez disto preferindo lavá-lo, medicar suas úlceras provocadas pela longa permanência na cama, trocar suas fraldas sujas e dar-lhe suas pílulas durante a noite, tudo isto pessoalmente. Claro está que ela o impelira ao ataque cardíaco final, por azucriná-lo constantemente sobre a venda da casa da Rua Leighton (ele não queria vender; Anne estava decidida a forçá-lo; o ataque monstro derradeiro, ocorrido após três outros menores em intervalos de dois anos, tivera lugar três dias após a casa ser posta a venda), porém Anne, além de não admitir que sabia disto, tampouco admitia o fato de acreditar que o conceito de Deus era pura cascata, embora houvesse freqüentado a igreja de são Bartolomeu, em Utica, desde a mais tenra infância sendo ainda uma das principais leigas daquele belo templo. Aos dezoito anos, já havia moldado a mãe à sua vontade e, agora, destruíra o pai, vira a terra ser jogada sobre o caixão dele. Nenhum frágil atendente da Avis poderia dizer não para Sissy*. Anne levou uns dez minutos para dissuadir a outra, porém rejeitou a oferta de um carro compacto, que a Avis costumava deixar de reserva para as ocasionais — muito ocasionais — celebridades passando por Bangor, e continuou pressionando, pois farejava o crescente medo da jovem atendente, de maneira tão clara, como um carnívoro faminto fareja sangue. Vinte minutos após a oferta do compacto, Anne saia do International de Bangor, dirigindo serenamente um Cutlass Supreme, reservado para um homem de negócio que deveria chegar no vôo das 18:15. A essa hora, a atendente já teria encerrado seu turno de trabalho — e, além disso, ficara tão nervosa com a firme insistência de Anne, que pouco estava ligando se o Cutlass houvesse sido reservado para o Presidente dos Estados Unidos. Trêmula, foi para a sala interna, trancou a porta, colocou uma cadeira debaixo da maçaneta e fumou um baseado, ganho de um dos mecânicos. Depois, prorrompeu em lágrimas.

Anne Anderson tinha um efeito similar sobre muitas pessoas.

 

Seriam três da tarde, quando a atendente entregou os pontos. Anne poderia ter rodado diretamente para Haven — o mapa recolhido no balcão da Avis indicava uma quilometragem abaixo de cinqüenta — mas ela desejava estar absolutamente repousada para o confronto com Roberta.

Havia um policial no cruzamento em X das ruas Hammond e Union — uma lâmpada de iluminação pública tinha que ser trocada, algo que ela julgou bem típico daquela cidadezinha ordinária — e então freou no meio do cruzamento, a fim de pedir a ele o endereço do melhor hotel ou motel do lugar. O tira pretendeu admoestá-la por interromper o trânsito com um pedido de orientação, mas a expressão nos olhos dela — as duas pupilas pareciam um ferro em brasa enterrado no cérebro, pronto a chamejar a qualquer momento — o fez decidir que seria menos problemático orientá-la e livrar-se daquela mulher.

Aquela dama assemelhava-se a um cão que ele conhecera em criança, um cão que achava divertidíssimo rasgar os fundilhos dos meninos a caminho da escola. Ele dispensava tal tipo de tropeço, em um dia no qual a temperatura e sua úlcera pegavam fogo. Indicou-lhe o Cityscape Hotel, a margem da Rota 7, sentindo-se feliz ao vê-la pelas costas, indo embora.

 

O Cityscape Hotel estava cheio.

Isso, contudo, não foi problema para a irmã Anne.

Ela conseguiu um quarto para casal, depois forçou o apoquentado gerente a dar-lhe outro, porque o ar-condicionado do primeiro chocalhava. Além disso, reclamou ela, o colorido da televisão era tão ruim, que todos os atores pareciam ter acabado de comer merda, estando prestes a morrer.

Ela desfez as malas, masturbou-se até alcançar um penoso e melancólico clímax, usando um vibrador quase do tamanho de uma das cenouras mutantes da horta de Bobbi (os únicos orgasmos que alcançava eram do tipo penoso e melancólico; Anne jamais fora para a cama com um homem e jamais pretendia ir), tomou uma ducha, tirou uma soneca e então foi jantar. Inspecionou o cardápio de cenho franzido, depois mostrou os dentes em um sorriso desdenhoso ao garçom que aguardava seu pedido.

— Traga-me um monte de verduras. Verduras cruas, folhudas.

— Madame deseja uma sal...

— Madame deseja um monte de verduras cruas e folhudas. Estou pouco me lixando para o nome que se dá a elas. Apenas, lave-as primeiro, para retirar os malditos vermes. E traga-me um sombrero, imediatamente!

— Pois não, madame — disse o garçom, passando a língua pelos lábios.

Os outros olhavam para eles. Alguns sorriram... mas os que receberam um daqueles olhares de Anne Anderson logo pararam. O garçom começou a afastar quando ela o chamou de volta, em tom alto, firme, incontestável.

— Um sombreiro — explicou, — contém Kahlua*e creme. Creme! Se me trouxer um sombrero com leite, meu chapa, vai usar o filho da mãe como xampu!

O pomo de Adão do garçom subiu e desceu, como um macaco em um galho. Tentou apelar para a espécie de sorriso aristocrático e penalizado, que é a arma principal do bom garçom contra clientes vulgares. A dar-lhe crédito, conseguiu um início muito bom de seu sorriso — mas então, os lábios de Anne se encurvaram em um semi-sorriso que o deixou gelado como um morto. Não havia a menor simpatia naquela quase careta. Nela, existia algo semelhante a assassinato.

— Estou falando sério, meu chapa — disse a irmã Anne, suavemente.

O garçom acreditou plenamente no que ouvia.

 

Às sete e meia, ela estava de volta ao seu quarto. Despiu-se e vestiu um roupão. Depois ficou olhando pela janela daquele quarto pavimento. Apesar do seu nome, o Cityscape Hotel ficava, de fato, na periferia de Bangor. A vista que Anne tinha, com exceção das luzes no pequeno pátio de estacionamento, era de quase total escuridão. Aliás, era exatamente o tipo de vista que ela apreciava.

Em sua bolsa havia cápsulas de anfetamina. Anne pegou uma delas abriu-a, despejou o pó branco sobre o espelho do seu estojo de pó compacto, fez uma linha com uma unha sensatamente curta e aspirou metade do pó. Seu coração começou imediatamente a saltitar como coelho, no peito estreito. Um toque de cor surgiu em seu rosto pálido. Anne reservou o resto para a manhã do dia seguinte. Começara a usar anfetaminas desta forma, logo depois do primeiro ataque cardíaco do pai. Agora, percebia que era impossível pegar no sono sem cheirar aquela coisa, que era o oposto diametral de um sedativo. Quando era pequena — uma garota muito pequena — sua mãe certa vez gritara para ela, tomada de exasperação:

— Vocês são tão diferentes como água e vinho!

Anne supunha que já fosse verdade naquela época, como o era agora... embora sua mãe não ousasse mais dizer isso, é claro.

Ela olhou para o telefone por um rápido instante. Só em olhar para ele, começava a recordar Bobbi, a maneira como ela se recusara a comparecer ao funeral do pai — não em palavras, mas de uma forma covarde que era bem típica, simplesmente deixando de atender aos esforços cada vez mais urgentes de Anne em comunicar-se com ela. Tinha ligado para Bobbi duas vezes, durante as vinte e quatro horas seguintes ao ataque do velho bastardo, quando ficou evidente que ele não escaparia. O telefone ficou mudo nas duas vezes.

Tornou a ligar após a morte do pai — sendo então 1:04 da madrugada de 2 de agosto. Algum bêbado havia atendido.

— Por favor, eu gostaria de falar com Roberta Anderson — disse Anne empertigada rigidamente diante do telefone público, no saguão do Hospital dos Soldados, em Utica. Sentada em uma poltrona de plástico ali perto, cercada por intermináveis irmãos e intermináveis irmãs, com suas intermináveis faces de batata irlandesa, sua mãe chorava, chorava e chorava. — Imediatamente!

— Bobbi? — respondeu a voz do bêbado no outro lado. — Quer falar com a antiga chefe ou com a Nova e Melhorada Chefe?

— Poupe-me de suas baboseiras, Gardener. O pai dela...

— Não vai poder falar com Bobbi agora — interrompeu o bêbado. Era Gardener, ela reconhecia a voz. Anne fechou os olhos. No tocante a boas maneiras ao telefone, só havia algo que ela odiava mais do que ser interrompida quando falava. — Ela esta lá fora, no galpão, com a Polícia de Dallas. Todos eles estão ficando mais Novos e mais Melhorados.

— Pois diga a ela, que sua irmã Anne...

Clique!

Uma fúria seca transformou os lados da garganta de Anne em flanela aquecida. Esticando o fone, ficou olhando para ele, da maneira como uma mulher olharia para a serpente que acabara de picá-la. Suas unhas estavam mudando de branco para violáceo.

No tocante das boas maneiras ao telefone, o que ela mais odiava era que desligassem quando estava falando.

 

Anne tornou a discar imediatamente, mas agora, após uma prolongada pausa, o telefone começou a produzir estranhos sons de sirene em seu ouvido. Desligando, ela voltou para junto da mãe lacrimosa e de seus parentes irlandeses.

— Conseguiu falar com ela, Sissy? — perguntou sua mãe.

— Consegui.

— E o que ela disse? — Os olhos dela ansiavam por boas notícias. — Prometeu vir em casa para o funeral?

— Não obtive nenhuma resposta, de um jeito ou de outro — respondeu Anne e, de repente, toda a sua fúria contra Roberta, Roberta que tivera a temeridade de tentar escapar, explodiu subitamente em seu coração — mas não em estridência. Anne jamais ficaria calada ou falando esganiçadamente. Aquele sorriso trapaceiro pairou em seu rosto. Os parentes murmurantes silenciaram e olharam para ela, inquietos. Duas das senhoras idosas aferraram seus rosários. — Ela disse que estava feliz pela morte do velho bastardo. Depois riu. E depois desligou.

Houve um momento de petrificado silêncio. Então, Paula Anderson tapou os ouvidos com as mãos e começou a gritar agudamente.

 

Anne não duvidara — pelo menos no começo — de que Bobbi viria ao funeral. Anne exigira sua presença, portanto, ela estaria lá. Anne sempre conseguia o que queria; isso tornava o mundo interessante para ela, e era assim que as coisas deviam ser. Quando Roberta chegasse enfrentaria a mentira que Anne contara — provavelmente não seria interpelada pela mãe que ficaria pateticamente feliz em revê-la, para querer mencionar a coisa (ou mesmo até recordar), mas sem dúvida algum dos tios irlandeses a chamaria as falas. Bobbi negaria, de maneira que o tio irlandês com certeza deixaria o detalhe de lado — a menos que o tio irlandês estivesse demasiado bêbado, algo que sempre era uma boa possibilidade, em se tratando dos irmãos de sua mãe — mas todos eles recordariam a declaração de Anne, não a negativa de Bobbi.

Aquilo era bom. De fato, era ótimo. Contudo, não ainda suficiente. Já era hora — mais do que hora — de Roberta vir para casa. Não apenas para o funeral, mas para sempre.

Ela daria um jeito nisso. Sissy sabia fazer as coisas.

 

Naquela noite em Cityscape, o sono não chegou fácil para Anne. Em parte, por estar deitada em uma cama estranha; outra parte, por causa do distante som das televisões nos outros quartos e do senso de estar cercada por outras pessoas, ser apenas outra abelha tentando dormir em apenas outra câmara daquela colméia, onde os alvéolos eram quadrados, em vez de hexagonais; uma terceira parte, era por saber que o dia seguinte seria extremamente movimentado, porém a maioria, era ainda continuar francamente furiosa por ter sido ludibriada. Era a coisa que mais detestava no mundo — algo que reduzia tudo o mais a meras insignificâncias. Bobbi a ludibriara. Ludibriara-a de maneira tão absoluta e completa, que a obrigava a esta viagem estúpida, durante o que as previsões do tempo denominavam de mais forte onda de calor atingindo a Nova Inglaterra, desde 1974.

Uma hora depois da mentira envolvendo Bobbi, uma mentira anunciada a sua mãe e aos tios e tias irlandeses, ela tentara telefonar novamente, agora da funerária (sua mãe há muito voltara para casa, onde Anne podia imaginá-la em companhia daquela cona que era a tia Betty, as duas bebericando aquele clarete nojento que apreciavam, choramingando pelo homem morto, enquanto iam ficar bêbadas). O telefone voltou a devolver-lhe aquele som de sirene. Anne ligou para a telefonista e comunicou que havia problemas com a linha.

— Quero que você faca uma verificação, localize o problema e providencie para que seja reparado — disse Anne. — Houve uma morte na família preciso entrar em contato com minha irmã o quanto antes.

— Pois não, madame. Se me der o número de onde está falando...

— Estou falando da funerária — respondeu Anne. — Vim escolher caixão para o meu pai e depois vou dormir. Tornarei a ligar de manhã. Desejo que, até lá, você já me tenha conseguido uma linha, meu bem.

Desligando, ela olhou para o agente funerário.

— Um caixão de pinho — disse. — Do mais barato que tiver!

— Srta Anderson... talvez seja melhor pensar a respeito...

— Não quero pensar em nada! — bradou Anne. Podia perceber os sinais prenunciadores de uma de suas freqüentes enxaquecas. — Só quero que me venda seu caixão de pinho, para poder cair fora daqui. Este lugar cheira a defunto!

— Ora... — O homem agora estava estupefato. — Não desejaria examinar...

— Examinarei o caixão, quando o morto estiver nele — disse Anne, tirando o talão de cheques da bolsa. — Quanto é?

 

Na manhã seguinte, o telefone de Bobbi funcionava, mas ninguém atendeu E assim permaneceu durante o dia inteiro. Anne foi ficando mais enfurecida a cada momento. Por volta de quatro da tarde, com o velório no aposento vizinho em plena marcha, ela ligou para a telefonista de auxílio do Maine e disse que queria o número do Departamento de Polícia de Haven.

— Bem... lá não existe exatamente um departamento de polícia, mas posso fornecer o número do chefe de polícia de Haven. Servirá?

— Perfeitamente. Diga o número.

A telefonista de auxílio forneceu o número. Anne ligou. O telefone tocou... tocou... tocou... O som do toque era exatamente igual ao do obtido, quando discava para a casa onde se escondera sua irmã de caráter fraco, durante os últimos treze anos mais ou menos. Quase se podia acreditar que o telefone era o mesmo.

Ela realmente analisou a idéia por um momento, antes de deixá-la de lado. Entretanto, dar a tal pensamento tão paranóico pelo menos o espaço de um momento, era algo fora do seu feitio e a deixou ainda mais irritada. Os toques soavam iguais, porque a mesma companhia de merda naquela cidadezinha perdida na floresta vendia e fazia a manutenção de todo o equipamento telefônico no vilarejo, nada mais que isso.

— Conseguiu falar com ela? — perguntou Paula timidamente, assomando a porta.

— Não. Ela não atende, o chefe de polícia da cidade não atende, e acho que a maldita cidadezinha foi em peso para as Bermudas. Céus! — exclamou Anne, afastando um anel de cabelo da testa suada.

— Talvez, se ligasse para um dos amigos dela...

— Que amigos? O beberrão com quem ela se envolveu?

— Sissy! Você não sabe...

— Sei perfeitamente quem atendeu o telefone, da única vez que consegui completar a ligação — replicou ela, taciturnamente. — Depois de viver nesta família, fica muito fácil para mim saber, pela voz, quando um homem está embriagado.

Sua mãe nada disse; havia sido reduzida a um trêmulo silêncio de olhos lacrimejantes, uma das mãos remexendo na gola do vestido de luto — e era assim que Anne a queria.

— É claro que ele esta lá, os dois sabem que estou tentando entrar em contato e por que motivo. Pois vão lamentar me deixarem fodida deste jeito!

— Sissy... Eu gostaria tanto que não usasse essa ling...

— Cale a boca! — gritou Anne.

Sua mãe obedeceu, naturalmente. Ela tornou a pegar o fone. Desta quando ligou para a telefonista de auxílio, pediu o número do prefeito de Haven. Eles também não possuíam prefeito. Havia algo considerado administrador da cidade, o que quer que fosse essa bosta.

Houve pequenos cliques, como garras de ratos sobre vidro, enquanto a telefonista fazia verificações na tela de seu computador. A mãe de Anne desaparecera de vista. Do outro aposento chegavam os teatralmente expansivos soluços e gemidos de pesar irlandês. Como um foguete V-2, pensou Anne, um velório irlandês era movido a combustível líquido e, em ambos os casos, o líquido era o mesmo. Ela fechou os olhos. Sua cabeça latejava. Rangeu os dentes — produziram um gosto amargo, metálico. De olhos fechados, imaginou como seria bom, como seria maravilhoso, executar com as unhas uma pequena cirurgia no rosto de Bobbi.

— Ainda está na linha, meu bem — perguntou, sem abrir os olhos, — ou precisou correr de repente para o banheiro?

— Sim, já consegui um...

— Pode dizer.

A telefonista se fora. Um robô recitou um número, em estranha cadência saltitante. Anne o discou. Já tinha plena certeza de não receber resposta, quando alguém atendeu prontamente.

— Conselho municipal. Newt Berringer falando.

— Bem, é ótimo saber que alguém está aí. Meu nome é Anne Anderson. Estou ligando de  Utica, Nova Iorque. Tentei ligar para seu chefe de polícia, mas parece que ele foi pescar.

A voz de Berringer soou calma.

— Ele é ela, Srta. Anderson. Faleceu inesperadamente no mês passado. O posto ainda não foi preenchido e provavelmente só o será por ocasião da próxima assembléia da cidade.

Isto fez Anne parar, por apenas um instante. Logo ela se concentrou em algo que lhe interessava mais.

— Srta. Anderson? Como sabia que eu era senhorita, Berringer?

Não houve qualquer pausa. Berringer respondeu:

— Não é a irmã de Bobbi? Se for e se estivesse casada, não seria Anderson, correto?

— Então, quer dizer que conhece Bobbi?

— Todos em Haven conhecem Bobbi, Srta. Anderson. Ela é a nossa celebridade residente. Sentimos grande orgulho dela.

Isto atravessou a matéria do cérebro de Anne como um estilhaço a de vidro. Nossa celebridade residente. Oh, coração de Jesus!

— Bom trabalho, Sherlock. Estive tentando entrar em contato com ela, por tudo que é telefone daí, no Condado de Moosepaw, a fim de comunicar que seu pai faleceu ontem e será sepultado amanhã.

Anne esperava as condolências convencionais desse funcionário sem rosto — afinal de contas, ele conhecia Bobbi — porém não ouviu nenhuma.

— Oh, tivemos alguns problemas com os telefones na área em que ela reside — foi tudo o que Berringer disse.

Anne ficou de novo momentaneamente desconcertada (apenas momentaneamente, porque ninguém a desconcertava por muito tempo). A conversa não marchava como havia esperado. As respostas do homem eram um tanto estranhas reservadas demais, mesmo para um ianque. Tentou retratá-lo, mas não pode. Havia algo muito esquisito na voz dele.

— Poderia fazer com que ela ligasse para mim? A mãe dela está chorando desesperadamente na sala ao lado, prestes a ter um colapso, e se Roberta não chegar aqui em tempo para o funeral, creio que ela irá ter realmente um colapso.

— Bem, eu não posso fazer com que ela lhe telefone, Srta. Anderson, posso? — replicou Berringer, com enfurecedora e arrastada lentidão. — Ela é uma mulher adulta. De qualquer modo, eu darei seu recado.

— Talvez fosse melhor eu dar-lhe o número — disse Anne, por entre os dentes cerrados. — Quero dizer, continuamos morando no mesmo velho endereço, mas atualmente ela custa tanto a telefonar, que poderia ter esquecido. O numero é...

— Não é preciso — cortou Berringer. — Se ela o esqueceu ou não o tem anotado, sempre existe o catálogo telefônico, não é mesmo? Penso que foi como a senhorita conseguiu o meu número.

Anne odiou o telefone, porque permitia que transparecesse apenas uma fração da plena e inesgotável força de sua personalidade. Achou que nunca o odiara tanto como agora.

— Ouça! — gritou. — Acho que não está compreendendo...

— Pois eu acho que estou — replicou Berringer, interrompendo-a pela segunda vez, quando a conversa não durara nem três minutos. — Vou desligar, antes que vá jantar e passar mal depois. Obrigado por telefonar, Srta. Anderson.

— Escute...

Antes que ela pudesse terminar, ele fez a coisa que Anne mais odiava.

Ela desligou, pensando que bem podia aguardar tranqüilamente, até que o imbecil com quem acabara de falar fosse devorado vivo por cães selvagens.

O tempo todo, Anne estivera rangendo alucinadamente os dentes.

 

Bobbi não telefonou para Anne nessa tarde. Nem ao anoitecer, quando o V-2 do velório entrava na bebedosfera. Nem quando ficou noite e ele entrou em órbita. Nem duas horas após a meia-noite, quando os últimos dos presentes ao velório se encaminharam em trôpegos passos embriagados para seus carros, com os quais ameaçariam outros motoristas, a caminho de casa.

Anne ficou acordada e espichada na cama a maior parte da noite, excitada como uma bomba em uma maleta, alternadamente rangendo os dentes e enterrando as unhas nas palmas, enquanto planejava vingança.

Você voltará, Bobbi! Oh, sim, voltará! E quando voltar...

Como, no dia seguinte ela ainda não telefonara, Anne colocou o funeral em marcha, a despeito dos fracos protestos da mãe, sobre tal atitude não ser correta. Finalmente, Anne virou para ela e rosnou:

— Eu decido o que é ou não correto! O correto é que aquela putinha devia estar aqui, mas nem se deu ao trabalho de telefonar! Agora, deixe-me em paz!

Sua mãe encolheu-se e afastou-se.

Nessa noite, Anne tentou primeiro o número de Bobbi, depois o do gabinete do conselho. No primeiro número, o som ululante de sirene continuou. No segundo, obteve uma mensagem gravada. Esperou pacientemente pelo “bip”, para então dizer:

— É a irmã de Bobbi novamente, Sr. Berringer, desejando cordialmente que o senhor fique sifilítico e a doença só seja diagnosticada depois de seu nariz cair e seus colhões ficarem pretos.

Ligou para a telefonista de auxílio e solicitou três números de Haven — o número de Newt Berringer, o de um Smith (“Qualquer Smith, minha querida, em Haven eles são todos aparentados”) e um Brown (o número recebido em resposta a este último pedido foi o de Bryant, em vista da ordem alfabética). Em cada número que discou, ouviu o mesmo uivo de sirene.

— Merda! — gritou Anne, e jogou o telefone na parede.

No andar de cima, deitada na cama, sua mãe agachava-se e esperava que Bobbi não viesse para casa... pelo menos, até Anne ficar com melhor disposição de ânimo.

 

Ela havia adiado o velório e o sepultamento por mais um dia. Os parentes começaram a resmungar, porém Anne se manteve a altura dos acontecimentos e da parentada, obrigado. O dirigente do funeral olhou de soslaio para ela e decidiu que o velho irlandês podia apodrecer em seu caixão de pinho, porque ele estava pouco ligando e nem queria envolver-se. Anne, que passara o dia inteiro pendurada ao telefone, seria capaz de felicitá-lo por tão prudente decisão. Sua fúria ultrapassava rapidamente todos os limites anteriores. Agora, todos os telefones de Haven pareciam avariados.

Era impossível adiar o sepultamento por mais um dia, e ela sabia disso. Bobbi vencera esta batalha; muito bem, que assim fosse. Entretanto, faltava ser ganha a guerra. Oh, não! Se era o que pensava a cadelinha, ainda faltava muitas coisas por vir — e todas seriam dolorosas.

Anne comprou as passagens de avião, irritada, mas confiante — uma da parte norte de Nova Iorque para Bangor... e duas voltas.

 

Ela teria voado para Bangor no dia seguinte — aquele marcado na passagem — mas sua imbecil progenitora levou uma queda na escada dos fundos e fraturou a bacia. Sean O’Casey havia dito certa vez, que quando se vive com os irlandeses, desfilamos em uma parada de néscios e, oh! Como estava certo! Os gritos da mãe a tiraram do pátio traseiro, onde Anne espichava-se em uma espreguiçadeira, tomando um pouco de sol e ruminando a estratégia para manter Bobbi em Utica, tão logo a trouxesse para ali. Encontrou a mãe esparramada no final da estreita escada, encurvada em ângulo hediondo. O primeiro pensamento de Anne foi de que seria bem melhor deixar a idiota cadela velha caída ali, até começarem a passar os efeitos anestésicos do clarete. A recente viúva cheirava tanto quanto um estabelecimento vinícola.

Naquele irado e desalentado momento, Anne percebeu que todos os seus planos teriam que ser refeitos e chegou a pensar que a mãe delas teria feito tudo aquilo deliberadamente — embebedar-se para ganhar coragem, depois disto não tendo apenas caído, mas saltado para o andar de baixo. Por quê? Para mantê-la longe de Bobbi, certamente.

Pois não vai ser assim, havia pensado Anne, dirigindo-se ao telefone. Você não levará a melhor; se quero uma coisa, se quero de fato uma coisa, assim será; vou a Haven e lá causarei a maior sensação. Trarei Bobbi de volta e eles se lembrarão de mim por muito tempo. Especialmente aquele caipira imbecil que desligou na minha cara!

Tirando o fone do gancho, ela pressionou as teclas do número da Medix — estivera colado ao telefone desde o primeiro ataque de seu pai — com espetadelas rápidas e irritadas do indicador. Anne estava rangendo os dentes.

 

Desta maneira, somente a nove de agosto ela finalmente pôde viajar. Nesse ínterim, não houve qualquer telefonema de Bobbi. Anne tampouco tentou entrar em contato com ela de novo, nem com o idiota administrador da cidade ou com o amante bêbado da irmã. Aparentemente, ele se mudara para a casa de Bobbi, a fim de trepar com ela em tempo integral. Tudo bem. Que os dois aproveitassem a calmaria. Isso seria ótimo.

Agora, ali estava ela, no Cityscape Hotel de Bangor, sem conseguir dormir direito... e rangendo os dentes.

Anne sempre rangera os dentes. Por vezes, os rangidos eram tão altos, que acordavam sua mãe durante a noite... e em algumas ocasiões até mesmo seu pai, que dormia como um tronco. A mãe mencionou o fato ao médico da família, quando Anne tinha três anos. O médico, um venerável clínico da região norte do Estado de Nova Iorque, com quem o Dr. Warwick se sentiria inteiramente a vontade, pareceu surpreso. Pensou por um momento, depois disse:

— Acho que deve estar imaginando isso, Sra. Anderson.

— Se estou, então deve ser contagioso, — havia dito Paula, porque meu marido também ouve.

Eles olharam para Anne, que construía uma oscilante torre de cubo superpostos. Estava concentrada nisto, séria e taciturna. Quando adicionou um sexto cubo, a torre desmoronou... e, ao recomeçar a levantá-la todos ouviram o som ósseo e soturno que a menina fazia, rangendo os dentinhos de leite.

— Ela também faz isso dormindo? — perguntou o médico.

Paula assentiu.

— Bem, provavelmente o hábito irá desaparecendo — observou ele. — É algo inofensivo, não a prejudicará em nada.

O fato é que o hábito não desapareceu e nem era inofensivo —, tratava-se de bricomania, uma doença que, juntamente com ataques cardíacos, infartos e úlceras, freqüentemente aflige pessoas autoritárias, competitivas. O primeiro dente de leite de Anne que caiu, mostrava nítidos sinais de erosão. Seus pais comentaram o fato... e depois o esqueceram. A esta altura, a personalidade de Anne começara a cimentar-se, em modos mais ostensivos e singulares. Aos seis anos e meio, ela já dirigia a família Anderson de maneira peculiar, algo que nunca era possível explicar-se acertadamente. Por outro lado, todos já se tinham acostumado àquele débil e um tanto incomodo sussurro dos dentes da menina, rangendo durante a noite.

O dentista da família percebeu que o problema, ao invés de desaparecer, havia piorado quando Anne chegou aos nove anos. Entretanto, só aos quinze ele começou a ser tratado, pois começava a causar-lhe dor real. Então, ela havia desgastado os dentes até alcançar os nervos dos mesmos. O dentista preparou-lhe um aparelho de borracha, feito segundo um molde dos dentes e, mais tarde, um outro de acrílico. Anne usou tais aparelhos chamados de “guardas-noturnos”, ao ir para a cama, todas as noites. Aos dezoito anos, a maioria de seus dentes, superiores e inferiores, precisou receber coroas metálicas. Os Anderson não podiam custear esse tratamento, porém ela insistiu. Eles haviam deixado o problema correr, mas ela não pretendia permitir que o pai unha-de-fome a enfrentasse aos vinte e um anos, dizendo, “você agora é uma adulta, Anne; o problema é seu. Se quer coroas no dentes, você que pague as contas.”

Ela queria ouro mas, de fato, o preço ficava além do que os pais poderiam pagar.

Durante vários anos depois disso, os raros sorrisos de Anne tinham uma aparência brilhante e mecanizada, que era extremamente curiosa. Era freqüente as pessoas recuarem ante seu sorriso. Ela extraiu uma sinistra satisfação de tais reações e, ao ver o vilão dos dentes metálicos em um dos últimos filmes de James Bond, riu até pensar que ia desintegrar-se — tão desacostumado acesso de hilaridade a deixara estonteada e sentindo-se mal. No entanto, compreendia exatamente por que, quando aquele imenso homem mostrara os dentes de aço pela primeira vez, em um sorriso de tubarão, as pessoas atemorizavam-se com ela. Quase desejou, que finalmente, não houvesse mandado colocar porcelana sobre as coroas metálicas. Não obstante, pensou, talvez fosse melhor não se mostrar tão claramente — talvez fosse tão insensato exibir a personalidade a todo instante, como a coração. Talvez fosse melhor não parecer capaz de abrir caminho a dentadas, através de uma porta tábuas de carvalho, a fim de alcançar algo desejado, mas saber que poderia fazer isso.

Além da bricomania, Anne também precisara fazer várias obturações nos dentes, tanto em criança como já adulta, apesar da água fluorizada de Utica e de seu estrito regime pessoal de higiene oral (era freqüente ela escovar os dentes até as gengivas sangrarem). Isto também se devia em grande parte, mais a sua personalidade, do que sua fisiologia. A competitividade e a ânsia de dominar, tanto aflige as partes mais tenras do corpo humano — o estômago e órgãos vitais — como as mais duras, os dentes. Anne sofria de uma crônica secura na boca. Sua língua era quase branca. Os dentes, pequenas ilhas secas. Sem um fluxo uniforme de saliva para diluir migalhas de alimentos, as cáries começaram rapidamente. Nesta noite, quando jazia dormindo inquietamente em Bangor, Anne tinha mais de trezentos e cinqüenta gramas de obturações com amálgama de prata na boca — em oportunidades não muito freqüentes, já fizera soar os detectores de metal em aeroportos.

Nos dois últimos anos, Anne começara a perder dentes, apesar de seus fanáticos esforços em preservá-los: dois no lado superior direito e três no inferior esquerdo. Em ambos os casos, fizera um trabalho odontológico de pontes, tendo optado pelo mais dispendioso — precisara viajar até a cidade de Nova Iorque, para o tratamento dentário. O cirurgião-dentista removera as raízes imprestáveis daqueles dentes, abrira-lhe as gengivas até ficar exposta a fosca alvura do osso do maxilar e implantara diminutos parafusos de titânio. As gengivas foram suturadas no lugar, tendo tido uma excelente cicatrização — algumas pessoas rejeitam implantes de metal no osso, porém Anne Anderson não teve o menor problema em aceitar todos eles — sendo deixadas pequeninas hastes de titânio emergindo da carne. A prótese odontológica foi afixada sobre as âncoras de metal, depois que a carne à volta delas cicatrizara.

Ela não possuía tanto metal na cabeça quanto Gard (a placa metálica de Gard sempre disparava os detectores de metal), mas tinha uma boa porção.

Assim, Anne dormiu ignorando ser membro de um clube extremamente exclusivo: o daquelas pessoas que podiam entrar em Haven, como se encontrava agora, com uma pequena chance de sobrevivência.

 

Às oito horas da manhã seguinte, Anne partiu para Haven, dirigindo seu carro alugado. Não houve nenhum erro de orientação durante todo o trajeto mas, ainda assim, só chegou a linha limítrofe das cidades de Troy e Haven às nove e meia mais ou menos.

Havia despertado sentindo-se tão nervosa e ansiosa como um puro-sangue, em agitada dança a caminho dos boxes do starting gate. A certa altura entretanto, nos últimos vinte e cinco ou trinta quilômetros antes da linha divisória de Haven — a terra à volta dela se mostrava quase vazia, sonhadoramente sazonada em meio ao quieto calor do verão — aquela extasiante sensação de antecipação e nervosa disposição se tinha dissipado. Sua cabeça começara a doer. A princípio, fora apenas um latejamento inconsequente, mas que rapidamente evoluiu para as familiares pontadas de uma de suas quase-enxaquecas.

Anne cruzou a linha divisória e entrou em Haven.

Quando por fim chegou a Haven Village, conseguia manter a postura pela força de vontade e não muito mais. A dor de cabeça ia e vinha em ondas nauseantes. Em dado momento, tinha ouvido um jato de música hediondamente distorcida escapando-lhe da boca, porém devia ter sido pura imaginação, algo provocado pela dor de cabeça. Anne mal tinha consciência das pessoas nas ruas da cidadezinha, também não percebendo a maneira como todos se viravam para fitá-la... olhavam para ela e depois entreolhavam-se.

Podia ouvir um rumor de maquinaria pulsando em algum ponto da floresta — era um som distante e sonhador.

O Cutlass começou a rodar pela estrada deserta, indo e vindo. As imagens duplicavam-se, triplicavam-se, uniam-se com relutância, logo em seguida começando a duplicar-se e triplicar-se novamente.

O sangue escorreu dos cantos de sua boca em filetes, não percebidos.

Ela se ateve com firmeza a um pensamento: A estrada é esta, a Rota 9, o nome dela tem que estar na caixa de correspondência. A estrada é esta, a Rota 9, o nome dela tem que estar na caixa de correspondência. A estrada é esta...

A estrada estava misericordiosamente deserta. Haven dormia ao sol da manhã. Noventa por cento do trânsito fora da cidade agora havia sido desviado o que era uma boa coisa para Anne, cujo carro ziquezagueava loucamente, as rodas do lado esquerdo ora espumando terra de uma das margens, as rodas do lado direito espumando terra da outra margem apenas momentos depois. Ela derrubou um sinalizador indicando uma curva, sem mesmo ter consciência disto.

O jovem Ashley Ruvall a viu chegando e puxou sua bicicleta para distância prudente fora da estrada, permanecendo sentado no selim, na pastagem norte de Justin Hurd, até o carro de Anne passar.

(uma senhora é uma senhora e não posso ouvi-la, com exceção de sua dor)

Cem vozes responderam, acalmando-o.

(sabemos que Ashley está bem... shhh... shhh)

Ashley sorriu, mostrando suas gengivas rosadas e lisas como as de um bebê.

 

O estômago dela revolveu-se.

De algum modo, Anne conseguiu frear o carro e desligar o motor, antes que o desjejum subisse e fosse expulso, um momento depois que pôde abrir a porta do lado do motorista. Por alguns instantes, limitou-se a ficar ali parada com os braços apoiados na janela aberta da porta meio empurrada, debruçando-se desajeitadamente para fora, a consciência mantida ao nível de débil fagulha, que apenas a pura determinação impedia de apagar-se. Por fim, foi capaz de endireitar o corpo e fechar a porta.

De maneira vaga e confusa, ela deduziu que devia ter sido o desjejum — já estava acostumada a dores de cabeça, mas quase nunca vomitava. Um desjejum feito no restaurante daquele saco de pulgas, que se presumia ser o melhor hotel de Bangor. Os filhos da mãe a tinham envenenado.

Talvez eu esteja morrendo... oh, Deus, sim, tenho a impressão de que posso estar morrendo. No entanto, se não estiver, vou processá-los, daqui até os degraus do Supremo Tribunal do país. Se viver, farei os malditos desejarem que suas mães nunca houvessem conhecido seus pais!

Provavelmente foi a firme qualidade deste pensamento, que a deixou forte o bastante para tornar a pôr o carro em movimento. Rodou vagarosamente a cinquenta quilômetros, procurando uma caixa de correspondência que ostentasse o nome ANDERSON escrito nela. Ocorreu-lhe uma terrível idéia. E se Bobbi houvesse apagado a tinta o nome na caixa? Não era algo assim tão louco, pensando bem. Bobbi podia suspeitar perfeitamente que a irmãzinha poderia aparecer por ali, e aquela cadelinha covarde sempre tivera medo dela. Anne não estava em condições de parar em cada propriedade ao longo do trajeto, perguntando por Bobbi (embora o jumento com quem falara ao telefone, pudesse dar uma boa indicação de que não conseguiria muita ajuda dos caipiras vizinhos de sua irmã), e...

Contudo, lá estava: R. ANDERSON. E, mais atrás, uma casa que tinha visto apenas em fotografias. A casa do tio Frank. A fazenda do velho Garrick. Havia uma camionete azul parada na entrada de carros. A propriedade estava correta, sem dúvida, mas a claridade estava errada. Anne percebeu isto claramente, pela primeira vez, ao aproximar-se da entrada de carros. Em vez experimentar o triunfo esperado para este momento — o triunfo do predador, que finalmente teve êxito em encurralar a presa — sentiu confusão, incerteza e, embora nem mesmo percebesse, por nada ter de familiar, também a primeira e vaga espetadela do medo.

A claridade.

A claridade estava errada.

Tal percepção provocou outras, em rápida sucessão. Seu pescoço rijo. Os círculos de suor, escurecendo-lhe o vestido debaixo dos braços. E...

Sua mão voou para as virilhas. Havia uma ligeira umidade naquele lugar, agora secando, embora Anne isolasse um vago cheiro de amoníaco no carro. Uma umidade que já estaria ali por algum tempo, mas que sua percepção só agora registrava.

Eu me mijei. Mijei-me e estive neste fodido carro quase o tempo suficiente para que me secasse...

(e a claridade, Anne)

A claridade estava errada. Era a claridade do pôr-do-sol.

Oh, não... são apenas nove e meia da...

Contudo, era claridade do pôr-do-sol. Impossível negá-lo. Ela se sentira melhor depois de vomitar, claro... e de repente, entendia por que. O conhecimento estivera ali o tempo todo, claro, apenas esperando ser percebido, como as manchas de suor nas axilas do vestido ou o cheiro fraco de urina secando. Ela se sentira melhor, porque o período entre fechar a porta do carro e realmente ligar o motor outra vez, não consistira de segundos nem minutos mas de horas — havia passado todo aquele dia brutalmente quente de verão confinada na estufa que era o carro. Permanecera em um estupor semelhante à morte e, se estivesse usando o ar-condicionado do Cutlass, como todos os vidros fechados, no momento em que parara o carro, terminaria assada como um peru do Dia de Graças. Entretanto, seus sinos eram quase tão ruins como seus dentes, ficando irritados com o ar-condicionado produzido pelas fábricas de automóveis. Este problema físico, percebeu Anne de repente, fitando a velha propriedade com olhos arregalados e injetados, provavelmente lhe salvara a vida. Estivera rodando com todas as quatro vidraças arriadas. Caso contrário...

Isto levou a outro pensamento. Havia passado o dia inteiro em um estupor igual ao da morte, estacionada ao lado da estrada, sem que ninguém parasse para saber o que havia com ela. O fato de ninguém ter passado por uma via principal, como a Rota 9, durante todas aquelas horas desde as nove e meia, era algo que ela simplesmente não podia aceitar. Nem mesmo em terra de caipiras. E, se caipiras viam alguém em apuros na Caipirolandia, eles não se limitavam a pisar fundo no acelerador e seguir em frente, como os novaiorquinos quando atropelavam um bêbado.

Afinal, que espécie de cidade é esta?

Aquela desacostumada espetadela novamente, como ácido quente em seu estômago.

Desta vez, Anne identificou o sentimento como medo, avaliou-o, torceu-lhe o pescoço... e o matou. Sentimentos irmãos poderiam surgir mais tarde, mas então ela os mataria também, como mataria todos os subseqüentes.

Rodou com o carro para o jardim.

 

Anne só estivera com Jim Gardener duas vezes antes, porém jamais esquecia um rosto. Ainda assim, mal identificou o Grande Poeta, mesmo acreditando que poderia tê-lo farejado a quarenta metros, com o vento ou até uma brisa moderada a seu favor. Ele estava sentado na varanda, vestia uma camiseta sem mangas, blue jeans, e tinha uma garrafa aberta de uísque em uma das mãos. Sua barba não havia sido feita nos três ou quatro últimos dias, e grande parte já era grisalha. Os olhos estavam injetados de sangue. Embora Anne não soubesse — e nem teria ligado — Gardener permanecera em tal estado mais ou menos durante os últimos dois dias. Todas as nobres resoluções dele tinham voado pelos ares, desde que encontrara os pelos do cachorro no vestido de Bobbi.

Ele espiou o carro parar no portão (deixando de colidir com a caixa de correspondência por meros centímetros), mostrando a falta de surpresa de um bêbado de olhos remelosos. Viu a mulher sair, cambalear e firmar-se na porta aberta do carro, por um minuto.

Oh, uau! pensou Gardener. É um pássaro, é um avião, é a Supercadela! Mais rápida do que uma carta-expressa de ódio, capaz de passar por cima dos encolhidos membros da família em um só pulo.

Anne bateu a porta do carro. Ficou ali parada por um momento, lançando uma comprida sombra, e Gardener sentiu uma estranha familiaridade no quadro. Ela parecia Ron Cummings, quando Ron havia bebido o máximo que podia agüentar e tentava decidir se conseguiria cruzar o aposento.

Anne transpôs o portão, deixando a mão deslizar ao longo da camionete de Bobbi, como ponto de apoio. Após passar pela camionete, imediatamente procurou o gradil da varanda. Ergueu os olhos e, à enviesada claridade das sete horas, Gardener achou que a mulher tanto parecia envelhecida, como de idade indefinida, i-memorial. também parecia maligna, segundo ele concluiu — esverdeada e negro-amarelada, com uma pesada carga de maldade que a desgastava e consumia ao mesmo tempo.

Erguendo a garrafa, ele bebeu um gole de uísque e engasgou-se ao sentir o ardor queimá-lo. Depois apontou o gargalo para ela.

— Olá, Sissy! Bem-vinda a Haven! Após ter falado tanto, agora insisto com você que vá embora tão depressa quanto puder.

 

Ela subiu corretamente os dois primeiros degraus, depois tropeçou e caiu sobre um joelho. Gardener estendeu-lhe a mão. Anne ignorou-a.

— Onde esta Bobbi?

— Você não me parece muito bem — disse Gard. — Aliás, Haven produz esse efeito nas pessoas, atualmente.

— Sinto-me ótima — replicou ela, finalmente subindo até a varanda. — Pairou acima dele ofegando — onde está ela?

Gardener inclinou a cabeça para a casa. Um chiado uniforme de água correndo saia por uma janela aberta.

— Tomando uma ducha. Estivemos trabalhando na floresta o dia inteiro, e estava ess... extremamente quente. Bobbi acha que banhos de chuveiro removem a sujeira. — Gardener tornou a erguer a garrafa. — Eu acredito mais em simples-mente desinfetar. É mais rápido e agradável.

— Você fede como um porco morto — comentou Anne, começando a passar por ele, em direção à porta da casa.

— Embora meu nariz não seja, de maneira nenhuma, tão sutil quanto o seu, minha querida, você tem um odor pessoal delicado, mas bastante perceptível — disse Gard. — Que nome dão os franceses a esse perfume em particular? Eau de xixi?

Anne se virou para ele, sobressaltada e careteando. As pessoas — pelo menos, as pessoas de Utica — não falavam com ela desse jeito. Nunca. No entanto, é claro que a conheciam bem. O Grande Poeta a julgara indubitavelmente, tendo por base o próprio receptáculo de esperma: a celebridade residente de Haven. Além disto, estava bêbado.

— Bem, disse Gardener, divertido, mas também um pouco desconcertado, sob o olhar turvo de Anne, — foi você quem puxou o assunto do aroma.

— Sim, fui eu — disse ela lentamente.

— Talvez devêssemos recomeçar tudo de novo — replicou ele, com embriagada cortesia.

— Recomeçar o que? Você é o Grande Poeta. Você é o bêbado que baleou a esposa. Nada tenho para dizer-lhe. Eu vim ver Bobbi.

Boa jogada, o negócio sobre a esposa. Anne viu o rosto dele ficar tenso, viu a mão apertar-se no gargalo da garrafa. Gard ficou imóvel, como se, pelo menos temporariamente, tivesse esquecido de onde se encontrava. Anne ofereceu-lhe um sorriso doce. Aquela piadinha nojenta sobre a Eau de Xixi acertara o alvo mas, passando mal ou não, ela deduziu que ainda estava vencendo por pontos.

No interior, cessou o ruído do chuveiro. E — talvez fosse apenas um palpite — Gardener teve uma nítida impressão de que Bobbi estava ouvindo.

— Você sempre gostou de operar sem anestesia. Creio que, antes disso, nunca fui submetido a algo mais além de uma cirurgia exploratória, certo?

— É possível.

— Por que agora? Após todos estes anos, por que você tinha que aparecer agora?

— Não é da sua conta.

— Bobbi é da minha conta.

Os dois encararam-se. Ela procurou verrumá-lo com o olhar. Esperou que Gard desviasse os olhos. Nada aconteceu. De repente, ocorreu a Anne que, se começasse a entrar na casa sem dizer mais alguma coisa, aquele homem talvez tentasse detê-la. Não adiantaria nada para ele, mas possivelmente fosse melhor responder ao que lhe perguntara. Que diferença fazia?

— Vim levá-la para casa.

Silencio novamente.

não há grilos.

— Permita-me dar-lhe um pequeno conselho, irmã Anne.

— Inaceitável. Não aceite doces de estranhos e nem conselhos de bêbados.

— Faça exatamente o que eu lhe disse, quando saiu do carro. Vá embora. Agora. Já. No momento, este não é um bom lugar para ficar.

Havia algo nós olhos dele, algo desesperadamente sincero, provocando nela a repetição do arrepio anterior e daquela desacostumada confusão. Havia sido deixada em seu carro o dia inteiro, a beira da estrada, enquanto ficara desmaiada. Que tipo de gente fazia isso?

Então, cada pedacinho da velha Anne sobrepujou tudo e ela esmagou tais dúvidas insignificantes. Quando queria uma coisa, quando queria realmente uma coisa, essa coisa seria sua; assim havia sido sempre e continuaria sendo, aleluia! Amém!

— Tudo bem, Chapinha — disse ela. — já que me deu seu conselho, também lhe darei o meu. Vou entrar nessa cabana e, dois minutos depois, um bom bocado de merda vai ser jogado no ventilador. Sugiro que dê uma voltinha por aí, se não quiser receber as sobras. Sente-se em uma pedra, em algum lugar, espie o sol esconder-se e, enquanto isso, masturbe-se, pense em rimas ou faça seja lá o que for que fazem os Grandes Poetas, quando contemplam o pôr-do-sol. Entretanto, isole-se do que estiver acontecendo nesta casa, pouco importando o que vai acontecer. A coisa é entre nós duas! Bobbi e eu. Se você se meter no meu caminho, acabo com a sua raça! Eu o estraçalho!

— Em Haven, é mais provável que você seja o estraçalhado do que o estraçalhador.

— Bem, eis aí alguma coisa que preciso ver pessoalmente, embora eu não seja do Missouri — disse Anne, começando a caminhar para a porta.

— Anne... Sissy... Bobbi não é mais a mesma. Ela...

— Vá dar um passeio por aí, homenzinho — replicou Anne, e entrou.

 

As janelas estavam abertas mas, por algum motivo, as persianas haviam sido descidas. De vez em quando, uma rajada fraca de brisa despertava, sugando um pouco as persianas pelas aberturas. Quando isso acontecia, elas pareciam as velas de um veleiro em calmaria, dando o máximo de si e não tendo êxito. Anne fungou e franziu o nariz. Irrk! A casa cheirava como uma jaula de macacos. Ela poderia esperar isso do Grande Poeta, porém sua irmã tivera melhor criação. Aquele lugar era um chiqueiro.

— Olá, Sissy.

Ela se virou. Por um momento, Bobbi foi apenas uma sombra, e Anne sentiu o coração subir à garganta, porque havia algo estranho naquela forma, algo inteiramente errado...

Então, viu o borrão branco do robe da irmã, ouviu o chapinhar da água e compreendeu que ela acabara de sair do chuveiro. Bobbi não estava nua. Ótimo. Entretanto, seu prazer não foi tão grande como devia ter sido. A inquietação permaneceu e também aquela sensação de haver algo errado na forma parada na soleira.

No momento, este não é um bom lugar para ficar.

— Papai está morto — anunciou ela, apertando os olhos para ver melhor.

Ainda assim, Bobbi continuou sendo apenas uma figura difusa de comunicação com a sala de estar e — presumiu Anne o banheiro.

— Eu sei. Newt Berringer ligou e me disse.

Havia qualquer coisa na voz dela. Algo ainda mais diferente do que a vaga insinuação em sua forma. Então, de repente, Anne entendeu. A percepção provocou um choque desagradável e intensificou o medo. Bobbi parecia não sentir medo. Pela primeira vez na vida, Bobbi parecia não ter medo dela

— Nós o enterramos sem sua presença. Sua mãe morreu um pouco, quando você não foi em casa, Bobbi.

Anne esperou que Bobbi se defendesse. Houve apenas silêncio.

Pelo amor de Deus, chegue até onde eu possa vê-la, sua covardezinha!

Anne... Bobbi não e mais a mesma...

— Ela caiu na escada há quatro dias e fraturou a bacia.

— É mesmo? — perguntou Bobbi, indiferentemente.

— Você vai voltar para casa comigo, Bobbi!

Anne queria colocar força na frase, mas ficou aparvalhada pela fraca estridência de sua voz.

— Foram os seus dentes que a deixaram entrar — disse Bobbi. — É claro! Eu devia ter pensado nisso!

— Bobbi, saia daí para que eu possa vê-la!

— Você quer mesmo? — A voz de Bobbi tinha um toque estranho, desafiante. — É isso que quer?

— Pare de me encher o saco, Bobbi! — exclamou Anne, elevando a voz desordenadamente.

— Ora, vejam só! — disse Bobbi. — Pensei que jamais ouviria algo semelhante de você, Anne. Afinal de contas, a vida inteira foi você quem me encheu o saco... quem encheu o saco de todos nós! Enfim, está bem. Já que insiste... Se está insistindo, ótimo. Muitíssimo bem!

Ela não quis ver. De repente, Anne quis apenas fugir dali e continuar fugindo, até se ver bem longe daquele lugar penumbroso e daquela cidade onde deixavam uma pessoa sem sentidos, o dia inteiro, a beira de uma estrada. Entretanto, agora era tarde demais. Viu o difuso movimento da mão de sua irmã mais nova e as luzes foram acesas, no mesmo instante em que robe caiu, com um rogaçar macio.

O chuveiro havia diluído a maquilagem. Toda a cabeça e o pescoço de Bobbi estavam transparentes e tinham uma aparência gelatinosa. Seus seios intumesciam-se bulbosamente para a frente e pareciam ter-se fundido em uma única excrescência de carne, sem mamilo. Anne podia ver esfumados órgãos no estômago de Bobbi, em nada semelhantes a órgãos humanos — havia fluido circulando neles, porém parecia verde.

Atrás da testa de Bobbi, ela podia ver o trêmulo saco que era a mente dela.

Bobbi sorriu desdentadamente para Anne.

— Bem-vinda a Haven, Anne — disse.

Anne sentiu-se recuando alguns passos, em um sonho esponjoso. Queria gritar, porém não havia ar em seus pulmões.

Nas virilhas de Bobbi, uma grotesca cabeleira de tentáculos, parecendo algas marinhas pendia oscilante de sua vagina... pelo menos, do lugar em que tivera vagina. Anne não podia imaginar se ainda haveria alguma ou não, porém isso pouco importava. O fundo vale que lhe substituíra aquelas partes já era suficiente. Isso... e a maneira como os tentáculos pareciam apontar para ela... querendo alcançá-la.

Nua, Bobbi começou a caminhar na direção da irmã. Anne procurou recuar, mas tropeçou em uma banqueta.

— Não...! — sussurrou ela, agitando os braços e ainda tentando recuar. — Não... Bobbi... não!

— É bom ter você aqui — disse Bobbi, ainda sorrindo. — Eu não havia contado com você... nem por sombras... mas acho que podemos encontrar-lhe um trabalho. Como se costuma dizer, ainda há vagas disponíveis.

— Bobbi...

Anne conseguiu emitir um final e aterrorizado sussurro, mas então sentiu os tentáculos, movendo-se levemente por seu corpo. Sobressaltou-se, tentou fugir dali... mas eles se enrolaram em seus pulsos. Os quadris de Bobbi deram uma estocada para diante, em um movimento que era como que uma obscena paródia de cópula.


 

GARDENER DÁ UM PASSEIO

Gardener seguiu o conselho de Anne e deu um passeio. De fato, ele fez todo o trajeto até a nave na floresta. Aquela era a primeira vez que ia até lá sozinho, conforme percebeu, e logo estaria totalmente escuro. Sentiu um medo vago, como o de uma criança passando nos arredores de alguma casa assombrada. Haverá fantasmas lá? Os fantasmas de Tommyknockers do Passado? Ou estarão ainda lá dentro os Tommyknockers reais, talvez em animação suspensa, seres como pó de café congelado, esperando pelo descongelamento? E, afinal, como serão eles?

Sentou-se no chão, perto do telheiro, e ficou espiando a nave. Após algum tempo, a lua nasceu e iluminou a superfície metálica, tornando-a de um prateado ainda mais espectral. Era algo estranho, mas muito bonito ao mesmo tempo.

O que está acontecendo por aqui?

Não quero saber.

O que acontece ainda não está bem claro...

Não quero saber.

Ora, deixe disso, qualquer um sabe o que está...

Erguendo a garrafa, ele sorveu um prolongado gole. Deixou-a de lado, estirou-se no chão e descansou nos braços a cabeça latejante. Adormeceu assim, na floresta, parte da graciosa protuberância circular da espaçonave.

Dormiu lá a noite inteira.

Pela manhã, havia dois dentes caídos no chão.

É o que recebo por dormir tão perto disso aí, pensou foscamente, mas havia uma compensação, pelo menos — não sentia a menor dor de cabeça, embora tivesse ingerido quase um quinto da garrafa de uísque. Antes disto, Gardener já percebera que a nave, excetuando-se todos os seus demais atributos, parecia anular uma ressaca, quando a pequena distância — ela ou a mudança que gerava na atmosfera.

Não quis deixar seus dentes simplesmente jazendo ali. Impelido por uma obscura urgência, jogou terra sobre eles. Ao agir desta maneira, tornou a pensar: Você não pode continuar dando-se ao luxo de representar Hamlet, Gard. Caso não se decida por uma ou outra alternativa muito breve — amanhã ou coisa assim, imagino — só lhe restará seguir a marcha dos acontecimentos, juntamente com o restante deles.

Olhou para a nave, pensou na profunda ravina que se estendia debaixo de sua superfície lisa e sem marcas. A idéia tornou a ocorrer-lhe: Logo estaremos alcançando a escotilha, se é que existe uma... e depois?

Em vez de esforçar-se por uma resposta, começou a caminhar para casa.

 

O Cutlass não estava mais lá.

— Onde foi que esteve esta noite? — perguntou-lhe Bobbi.

— Dormi na floresta.

— Ficou embriagado de verdade? — tornou a perguntar ela, com surpreendente gentileza.

O rosto de Bobbi estava novamente encoberto pela maquilagem. Nos últimos dias, ela estivera usando camisas que pareciam curiosamente largas e frouxas; esta manhã, ele achou que entendia o motivo. O peito dela começava a espessar-se. Os seios começavam a parecer um só, em vez de duas coisas separadas. Isto fez Gardener pensar em sujeitos que trabalhavam com ferro.

— Não muito. Bastaram um ou dois goles... e embarquei. Nada de ressaca esta manhã. E nada de picadas de insetos. — Ergueu os braços, muito bronzeados na parte superior, mas brancos e estranhamente vulneráveis na inferior. — Em qualquer outro verão, a gente acordaria na manhã seguinte tão maltratado pelos insetos, que nem conseguiria abrir os olhos. Agora, no entanto, eles sumiram. Junta-mente com os pássaros. E os animais. Aliás, Roberta, aquela coisa parece repelir tudo, exceto tolos como nós.

— Você mudou de idéia, Gard?

— Já reparou que vive me perguntando isto?

Bobbi não respondeu.

— Ouviu o noticiário pelo rádio, ontem? — Gard sabia que ela não ouvira. Bobbi nada via, ouvia ou pensava em outra coisa que não fosse a nave. Portanto, seu gesto negativo de cabeça não foi surpresa para ele. — Há concentração de tropas na Líbia. Mais lutas no Líbano. Movimentos de tropas americanas. Os russos ficando mais e mais insistentes sobre a difusão de sua ideologia. Continuamos sentados sobre um barril de pólvora. A situação não se alterou nem um pouco, desde 1945 mais ou menos. Então, você descobre um deus ex machina*no seu quintal, e agora insiste em querer saber se mudei de idéia sobre usá-lo.

— Você mudou?

— Não — respondeu Gardener.

Ele ignorava se mentia ou não — porém ficou muito satisfeito porque Bobbi não conseguia ler seus pensamentos.

Oh, ela não consegue? Eu acho que consegue. Não muito, porém já é mais do que conseguia, um mês atrás... mais e mais a cada dia. Sim porque você agora também está se “transformando”. Se mudou de idéia? Ora, que piada! Diabo, você nem ao menos toma uma decisão!

Bobbi esqueceu o assunto, ou assim pareceu. Ela se virou para o monte de ferramentas de mão, empilhadas a um canto da varanda. Deixara de maquilar um ponto logo abaixo da orelha direita, conforme Gardener viu era o mesmo local que muitos homens não viam, quando se barbeavam. Com uma nauseante falta de surpresa, ele percebeu que podia ver dentro de Bobbi — a pele dela mudara, tornara-se uma espécie de gelatina semitransparente. Ela também ficara mais espessa, mais atarracada nos dois últimos dias — e a mudança acelerava-se.

Santo Deus, pensou ele, horrorizado e amargamente divertido, é isto que acontece, quando a gente se torna um Tommyknocker? Começamos a parecer alguém apanhado em cheio por uma grande e desordenada fusão atômica?

Bobbi estivera inclinada para as ferramentas e, recolhendo-as nos braços, virou-se rapidamente e o fitou, com ar desconfiado.

— O quê?

Eu disse, vamos trabalhar, seus preguiçosos, transmitiu Gardener claramente. A expressão desconfiada e perplexa se tornou um sorriso relutante.

— Tudo bem. Vamos, ajude-me com isto aqui!

Não, é claro que vítimas da alta radiação gama não ficam transparentes, como Claude Raines em O homem invisível. Elas não começam a perder centímetros, enquanto seus corpos se retorcem e engrossam. Entretanto, são capazes de perder dentes e cabelo — em outras palavras, havia uma espécie de “transformação” física nos dois casos.

Ele tornou a pensar: Conheça o novo chefe. É igual ao chefe antigo.

Bobbi agora o fitava por entre os olhos semicerrados.

Tudo bem, estou ficando com falta de espaço para manobras. E depressa.

— O que você disse, Gard?

— Eu disse “vamos indo, chefe”.

Após um longo momento, Bobbi assentiu.

— Certo — falou. — A luz do dia logo termina.

 

Os dois seguiram para a escavação no Tomcat. O veículo não voava, da maneira como a bicicleta do garoto voara, no filme E.T.: o trator de Bobbi jamais se elevaria cinematograficamente contra a lua, a muitos metros de altura, acima dos tetos. Não obstante, movia-se silenciosa e habilmente a meio metro do solo, as enormes rodas girando lentamente, como propulsores em agonia. O Tomcat era danado de bom para suavizar a trajetória. Gard dirigia. Bobbi seguia em pé no estribo.

— Sua irmã foi embora? — perguntou Gard.

Não era preciso gritar. O ruído do motor do Tomcat era um ronronado suave e distante.

— Exatamente — respondeu Bobbi. — Foi embora.

Você não sabe mentir direito, Bobbi. E eu acho — realmente acho — que a ouvi gritar. Pouco antes de chegar à trilha que se interna na floresta, creio que a ouvi gritar. O que seria tão ruim para fazer uma empertigada, pérfida e nojenta cadela como Sissy dar um grito? A que ponto teria de ser ruim?

A resposta a tal pergunta seria fácil: muitíssimo ruim.

— Ela nunca fez o tipo que vai embora cortesmente — disse Bobbi. — Tampouco permitiria que alguém fosse cortês, se estivesse ao seu alcance. Compreenda, ela veio aqui, querendo me levar para casa... cuidado com aquele tronco partido, Gard, é muito alto.

Gardener puxou o controle de nível para cima, em toda a extensão. O Tomcat elevou-se mais dez centímetros, passou quase roçando a extremidade do tronco. Logo em seguida, Gard relaxou a mão, e o Tomcat baixou para a altitude anterior, meio metro acima do solo.

— Sim, ela chegou com o cabresto e o chicote — disse Bobbi, parecendo vagamente admirada. — Houve uma época em que conseguiria domar-me. Do jeito em que agora andam as coisas, no entanto, jamais teria uma chance.

Gardener sentiu frio. Eram inúmeras as maneiras pelas quais uma pessoa interpretaria semelhante comentário, não?

— Ainda fico surpreso por bastar uma noite a você para conviver com ela — disse Gardener. — Pensei que Patrícia McCardle fosse maligna, porém, sua irmã faz a velha Patty parecer Annette Funicallo.

— Bastou eu retirar parte desta maquilagem. Quando ela viu o que havia por baixo, gritou e foi embora tão depressa, que dava a impressão de ter foguete nos calcanhares. De fato, até que foi engraçado.

Uma explicação plausível. Tão plausível, que a tentação de acreditar era quase insuperável. A menos que fosse ignorado o simples fato de que a dama em questão não iria a lugar algum e com tanta pressa, sem ser ajudada. A dama pratica-mente não conseguia caminhar sem ajuda.

Não, pensou Gardener. Ela nunca foi embora. O único problema é se você a matou ou se ela está lá fora, no maldito galpão, com Peter.

— Por quanto tempo as modificações físicas continuam, Bobbi? — perguntou ele.

— Não falta muito mais — respondeu ela, e Gardener tornou a pensar que Bobbi jamais soubera mentir convincentemente. — Bem, chegamos! Estacione perto do telheiro.

 

Eles suspenderam o trabalho mais cedo, no final do entardecer do dia seguinte — ainda fazia muito calor e nenhum deles se sentia capaz de continuar até que terminasse a última claridade do dia. Voltaram para casa, puseram comida nos pratos, chegaram mesmo a comer uma parte. Lavados os pratos, Gardener disse que pretendia dar uma caminhada.

— É mesmo? — Bobbi o fitava com aquela expressão cautelosa que se tornara um de seus hábitos principais. — Pensei que já tivesse feito exercício suficiente por hoje...

— O sol agora está baixo — respondeu Gardener, com ar despreocupado. — Refrescou mais. Não há insetos. E... — Ele encarou Bobbi francamente. — Se eu for para a varanda, vou levar uma garrafa. Se levar uma garrafa, vou ficar bêbado. Então, se der uma boa caminhada e voltar cansado, talvez caia na cama sóbrio, por uma noite.

Tudo aquilo era verdadeiro... porém havia outra verdade aninhada na explicação, como uma caixa chinesa dentro de outra. Gardener olhou para Bobbi e esperou, querendo ver se ela continuaria buscando aquela caixa interior.

Bobbi não fez isso.

— Tudo bem — disse ela, — mas sabe muito bem que não ligo para o quanto você beber, Gard. Sou sua amiga, não sua esposa.

Não, claro que não liga para o quanto eu beber — você até facilita as coisas, a fim de que eu beba tudo o que quiser. Porque a bebida me neutraliza.

Gardener caminhou ao longo da Rota 9, passou pela propriedade de Justin Hurd e, chegando à estrada de Nista, dobrou para a esquerda, movimentando-se em passos lépidos, os braços balançando com facilidade. Os trabalhos do último mês o tinham enrijecido mais do que imaginava — não muito tempo atrás, uma caminhada de três quilômetros como aquela o deixaria de pernas bambas e estonteado.

Não obstante, o ambiente era estranho. Nenhum bacurau dava boas-vindas ao crepúsculo; nenhum cão latia para ele. Em sua maioria, as casas estavam às escuras. Não havia reflexos intermitentes de televisão ligada, nas poucas janelas iluminadas por que passou.

Quem precisa de reprise de Barney Miller se, em vez disto, pode “transformar-se”? pensou Gardener.

Quando alcançou a tabuleta sinalizadora avisando FIM DA ESTRADA A 200 METROS, já escurecera quase por completo, mas a lua estava nascendo e a noite era muito brilhante. No final da estrada, ele chegou a uma grossa corrente, pendurada entre dois postes baixos. Gard passou por sobre a corrente, continuou caminhando e logo chegava a uma pedreira abandonada. O luar, em suas margens cobertas de vegetação rasteira, era alvacento como um osso. O silêncio deixou arrepiado seu couro cabeludo.

O que o levara até ali? Supôs que fosse sua própria “transformação” — algo que captara da mente de Bobbi, sem mesmo ter consciência disto. Não podia ser outra coisa, pois o que quer que o conduzira até aquele lugar, havia sido muito mais forte do que um mero palpite.

Para a esquerda, havia uma grande cicatriz triangular, contra a brancura da pedreira imperturbada. Aquela parte tinha sido remexida. Gardener caminhou por ali, os sapatos rangendo no solo de pedrinhas soltas. Escavou no cascalho mais recente, não encontrou nada, mudou de posição, escavou outro buraco, nada encontrou, movimentou-se, escavou um terceiro, sem descobrir coisa alguma...

Oh, ei! Um momento!

Seus dedos tocaram algo, liso demais para ser uma pedra. Inclinando-se, o coração em disparada, nada conseguiu ver. Desejou ter trazido uma lanterna, porém isso provavelmente tornaria Bobbi ainda mais desconfiada. Cavou mais, deixando a terra correr e cascalhar encosta abaixo.

Então, viu que havia deixado descoberto um farol de carro.

Olhou para ele, tomado de um soturno, esquelético divertimento. É isto que se sente, ao encontrarmos alguma coisa na terra, pensou. Encontrarmos um artefato estranho. Só que não precisei tropeçar nele, certo? Eu já sabia aonde procurar.

Gardener cavou mais depressa, subindo a ladeira e jogando terra para trás, por entre as pernas, como um cachorro escavando por um osso. Ignorou a cabeça latejando, ignorou as mãos, que primeiro ficaram arranhadas, depois esfoladas, então começando a sangrar.

Conseguiu limpar um espaço nivelado sobre o capô do Cutlass, exatamente acima dos faróis do lado direito, no qual poderia ajeitar-se, e então, o trabalho andou mais depressa. Bobbi e sua turma haviam feito um trabalho casual daquele sepultamento, no máximo. Gardener puxou braçadas de cascalho solto, que depois empurrou de cima do carro. As pedrinhas rangiam metalicamente, arranhando a lataria do veículo. Gardener sentiu a boca seca. Abria caminho até o pára-brisa e, sinceramente, não sabia o que seria melhor — ver alguma coisa... ou nada.

Seus dedos tocaram novamente uma lisura uniforme. Sem se conceder tempo de parar e pensar — o silêncio fantasmagórico do local já podia tê-lo envolvido; a esta altura, era bem capaz de dar meia volta e correr — limpou um espaço sobre o pára-brisa e espiou o interior, colocando as mão em concha contra o vidro, a fim de cortar a claridade da lua.

Nada.

O automóvel alugado de Anne Anderson estava vazio.

Eles poderiam tê-la colocado no porta-malas. A verdade é que você ainda não tem certeza de nada.

Não obstante, achou que tinha. A lógica lhe dizia que o corpo de Anne não podia estar no porta-malas do carro. Por que eles atrairiam problemas? Alguém que encontrasse um carro novo em folha, sepultado em uma pedreira abandonada, sem dúvida acharia aquilo suspeito o bastante para investigar o porta-malas... ou chamar a polícia, que faria isso.

Em Haven, ninguém faria uma coisa ou outra. Eles têm preocupações mais prementes do que carros enterrados em pedreiras, no momento atual. E, se alguém da cidade descobrir o Cutlass, chamar a polícia seria a última coisa a fazer. A pessoa então teria que ser de fora mas, neste verão, não estamos querendo forasteiros em Haven, estamos? Nem pensar!

Portanto, ela não estava no porta-malas. Simples lógica. Q.E.D.*

Talvez a pessoa que fez isto não tenha seus excelentes poderes de lógica meu velho.

Isso era também um monte de bosta. Se ele podia ver uma coisa e partir de três ângulos, o Enigma de Haven podia ser visto de vinte e três. Eles eram capazes de todas as proezas.

Gardener recuou até a extremidade do capô, sobre os joelhos, e dali saltou para o chão. Agora, tinha consciência das mãos cortadas e ardendo. Teria que tomar umas duas aspirinas ao voltar e, pela manhã, tentar esconder as mãos, para que Bobbi não as visse — luvas de trabalho estariam na ordem do dia. Do dia inteiro.

Anne não se encontrava no carro. Onde estaria? No galpão, é claro; no galpão. De repente, Gardener entendeu por que fora até ali — não apenas para confirmar um pensamento captado da cabeça de Bobbi (se é que fizera isso; seu sub-consciente poderia, simplesmente, ter indicado aquele lugar como o mais prático para um carro grande ser escondido a toda pressa), mas por precisar certificar-se sobre o galpão. Ele tinha necessidade desta certeza. Isto porque havia uma decisão a tomar, e sabia agora que, nem mesmo vendo Bobbi tornar-se algo não-humano, fora suficiente para forçá-lo a decidir-se — tão grande era a parte dele ainda querendo desenterrar a nave, desenterrá-la e pô-la em uso — demais, demasiadamente.

Antes de tomar a decisão, ele tinha que ver o que havia no galpão de Bobbi.

 

A meio caminho da volta, ele parou em meio ao frígido e ardiloso luar, ao ocorrer-lhe uma súbita pergunta: por que eles se tinham dado ao trabalho de esconder o carro? Porque a agência de aluguel daria parte do desaparecimento e mais policiais surgiriam em Haven? Não. O pessoal da Hertz ou da Avis levariam dias para perceber o desaparecimento do carro, demorando ainda mais tempo para os tiras descobrirem a conexão familiar de Anne naquele lugar. Tudo levaria cerca de uma semana, mais provavelmente duas. E Gardener sabia que, até lá, Haven teria deixado de preocupar-se para sempre com interferências externas, de uma ou de outra forma.

Isto posto, porque o carro fora escondido?

Por sua causa, Gard. Eles o esconderam por sua causa. Ainda não querem que saibam do que são capazes, quando precisam proteger-se. Eles o esconderam, e Bobbi lhe contou que Anne tinha ido embora.

Gardener reiniciou a caminhada de volta, avaliando mentalmente em tão precioso segredo, como se o mesmo fosse uma pedra preciosa.

 

A ESCOTILHA

Aconteceu dois dias mais tarde, quando Haven se espraiava e aquecia ao sol sob o calor de agosto. Os “dias de cão”* haviam chegado, excetuando-se, claro está, que não restavam cães em Haven — a menos que talvez houvesse um no galpão de Bobbi Anderson.

Gard e Bobbi estavam no fundo de um corte que tinha agora praticamente sessenta metros de profundidade — o casco da nave formava um lado desta escavação, enquanto que o outro, por trás da rede prateada que o cobria, mostrava uma visão fatiada de terra fina, argila, xisto, granito e aqüífero esponjoso. Um geólogo teria adorado aquilo. Estavam usando jeans e blusas de atletismo. Fazia um calor sufocante na superfície mas, ali, a temperatura era gélida — Gardener se sentia como um besouro, arrastando-se pelo lado de um bebedouro de água gelada. Tinha na cabeça um capacete e, acoplado a ele, uma lanterna presa com fita adesiva. Bobbi o aconselhara a usar a luz o menos possível — o suprimento de pilhas elétricas era limitado. Seus ouvidos estavam protegidos com algodão. Ele usava uma britadeira a ar comprimido, a fim de arrancar pedaços grandes de pedra. Bobbi estava no outro lado da escavação, fazendo tarefa idêntica.

Pela manhã, Gardener perguntara a ela por que tinham que britar.

— Prefiro mais os explosivos com rádio, Bobbi, garota — dissera ele. — Causa menos dor e menos tensão no cérebro americano, entende?

Bobbi não sorrira. Parecia estar perdendo o senso de humor, juntamente com o cabelo.

— Estamos muito perto agora — respondera. — Um explosivo poderia danificar algo e quero que tudo saia perfeito.

— Está falando da escotilha?

— Da escotilha?

Os ombros de Gardener doíam, como também doía a placa em sua cabeça — devia ser algo mental, aço não podia doer, mas a verdade é que sempre parecia doer, quando ele se via ali, naquele lugar — e esperava ansiosamente que Bobbi logo desse o sinal da folga para o almoço.

Deixou a britadeira tagarelar e abrir caminhos a mordidas, novamente em direção à nave, não se preocupando muito em arranhar aquela fosca superfície prateada. Seu único cuidado era não deixar a ponta da britadeira ir contra o costado com demasiada força, algo que acabara descobrindo por experiência própria; a britadeira podia ricochetear e dilacerar-lhe o pé, se não fosse cauteloso. A nave em si, era tão invulnerável ao áspero beijo da britadeira, como havia sido com os explosivos colocados por ele e seu desfile de ajudantes. Ali, pelo menos, não havia o risco de danificar a mercadoria.

A britadeira tocou a superfície da nave — e, subitamente, seu ronco ritmado de metralhadora transformou-se em um guincho agudo. Ele julgou ter visto fumaça espirrando do pulsante borrão que era a ponta da broca. Houve um estalo. Algo passou voando ao lado de sua cabeça. Tudo isto aconteceu em menos de um segundo. Gardener desligou a britadeira e viu que a broca desaparecera quase por completo. Sobrara apenas um toco denteado.

Virando-se, Gardener viu o pedaço alado de metal embebido profundamente na rocha da escavação. Havia dilacerado limpamente em dois um dos cabos da rede protetora da nave. O choque retardado o atingiu, fazendo seus joelhos quererem desconjuntar-se e derrubá-lo ao chão.

Passou raspando pela minha cabeça. Nem mais, nem menos. Céus!

Tentou puxar a broca quebrada que se encravara na rocha e, inicialmente, pensou que não conseguiria. Então, sacudiu de um lado para o outro. Como arrancar um dente da gengiva, pensou, e um risinho histérico escapou de sua garganta.

O pedaço da broca ficou livre. Tinha o tamanho de um balaço 45, talvez um pouco maior.

De repente, ele ficou a ponto de desmaiar. Descansou um braço na confusa parede da escavação e encostou a cabeça nele. De olhos fechados, esperou que o mundo fosse embora ou retornasse. Percebeu vagamente que a britadeira de Bobbi também fora desligada.

O mundo começou a voltar... e Bobbi o sacudia.

— Gard! Gard! O que aconteceu?

Havia preocupação real na voz dela. Ao sentir isto, Gardener sentiu uma vontade absurda de chorar. Naturalmente, estava muito cansado.

— Quase fui baleado na cabeça por um pedaço de broca calibre 45 — explicou. — Pensando melhor, acho que seria de uma Magnum 357.

— De que está falando?

Gardener estendeu-lhe o fragmento que arrancara da parede. Bobbi olhou para o pedaço de metal e assobiou.

— Jesus!

— Penso que nossas conexões estão desencontradas, a minha com a Dele. Esta é a segunda vez que quase perco a vida, dentro deste buraco de merda. A primeira, foi quando seu amigo Enders quase esqueceu de baixar a corda para eu subir, após ter colocado um daqueles explosivos a rádio.

— Ele não é meu amigo — replicou Bobbi, alheadamente. — Na minha opinião, ele é um imbecil... Gard, o que foi que você atingiu? O que fez isto acontecer?

— O que quer dizer? Ora, claro que atingi uma rocha, bolas! O que mais existe para atingir-se neste buraco?

— Você estava perto da nave?

De repente, Bobbi parecia excitada. Não, mais do que isso. Estava quase febril.

— Sim, mas já atingi a nave com a broca antes. A britadeira apenas ricocheteia e...

Bobbi, entretanto, não o ouvia mais. Estava ao lado da nave, de joelhos, escavando as pedras soltas com os dedos.

A britadeira parecia fumegar, pensou Gardener. Ela...

Está aqui, Gard! Finalmente aqui!

Gardener se juntara a Bobbi, antes de perceber que ela não expressara em palavras o que pensava; ele a ouvira em sua cabeça.

 

Alguma coisa, tudo bem, pensou Gardener.

Empurrando para um lado a rocha que a britadeira de Gardener estivera destroçando, pouco antes da explosão, Bobbi havia finalmente revelado uma linha na superfície da nave — uma única linha, em toda aquela imensa expansão descaracterizada. Ao ver aquilo, Gardener compreendeu o excitamento de Bobbi. Estendeu a mão, querendo tocar.

— É melhor não — disse Bobbi firmemente. — Lembre-se do que aconteceu antes!

— Deixe-me em paz! — replicou ele.

Empurrou a mão de Bobbi para um lado e tocou aquela fenda. Havia música em sua cabeça, porém amortecida, logo desaparecendo. Ele pensou que podia perceber os dentes vibrando rapidamente nos alvéolos e desconfiou que perderia mais alguns esta noite. Não importava. Queria tocar aquilo; ia tocá-lo. Ali estava a via de entrada; era o mais próximo que haviam chegado dos Tommyknockers e seus segredos, o primeiro sinal real deles, de que esta coisa ridícula não era sólida indefinidamente (a idéia tinha ocorrido a ele; que piada cósmica teria sido aquilo). Tocá-la, era como tocar a claridade das estrelas, solidificada.

— É a escotilha — disse Bobbi. — Eu sabia que estava aqui!

Gardener sorriu para ela.

— Nós conseguimos. Graças a Deus você voltou, Gard!

Bobbi abraçou-o... e quando Gardener sentiu o movimento gelatinoso dos seios e torso dela, foi invadido por doentia repulsa. Claridade das estrelas? Talvez a estrela é que o estivessem tocando, neste exato momento.

Ele foi rápido em dissimular tal pensamento, e achou que o tinha dissimulado, que Bobbi não conseguira captá-lo.

Um ponto para mim, pensou.

— De que tamanho imagina que seja?

— Não tenho certeza. Creio que podemos deixar a escotilha a descoberto ainda hoje. É melhor fazermos isso. O tempo está ficando curto, Gard.

— O que quer dizer?

— O ar acima de Haven mudou. Obra disto aqui — disse Bobbi.

Ela bateu com os nós dos dedos no casco da nave. Houve uma nota vaga como a de uma sineta.

— Eu sei.

— E deixa passando mal as pessoas que entram em Haven. Você viu como Anne estava.

— Sim.

— Até certo ponto, ela foi protegida por sua prótese dentária. Sei que parece loucura, mas é verdade. Ainda assim, Anne foi embora com a maior pressa.

É mesmo? Foi?

— Se isso fosse tudo — o ar envenenando as pessoas que vêm à cidade — já seria bastante ruim... Entretanto, nós não podemos mais partir, Gard.

— Não podemos?

— Não. Acho que você poderia. Talvez ficasse indisposto por alguns dias, mas poderia ir embora. No meu caso, eu morreria, e bem rapidamente. Ainda há algo mais: temos tido uma longa temporada de tempo quente e parado. Se o tempo mudar — se o vento soprar com suficiente força — levará nossa biosfera diretamente para cima do Oceano Atlântico. Somos como um bando de peixes tropicais, logo depois que alguém puxou o tampão do tanque e desligou o aparelho de oxigenação. Nós morreremos.

Gard meneou a cabeça.

— Lembro-me de que o tempo mudou, no dia em que você foi ao funeral daquela mulher, Bobbi. Estava límpido e havia brisa. Daí, ser tão estranho você sofrer uma insolação, após toda aquela temperatura quente e úmida.

— As coisas mudaram. A “transformação” acelerou-se.

Todos eles morreriam? perguntou-se Gardener. TODOS eles? Ou apenas você e seus amigos especiais, Bobbi? Aqueles que agora precisam usar maquilagem?

— Ouvi dúvida em sua cabeça, Gard — disse Bobbi, parecendo entre exasperada e divertida.

— A minha dúvida é sobre alguma coisa disto chegar a acontecer, afinal — disse Gardener. — Bolas! Vamos, garota, cavemos!

 

Eles se revezaram com uma picareta. Um deles a usava por quinze minutos, aproximadamente, depois ambos limpavam os detritos. Por volta das três da tarde, Gard viu uma fenda circular que parecia ter uns dois metros de diâmetro. Parecia a cobertura de uma escotilha. E ali, pelo menos, havia um símbolo. Gard contemplou-o, inquisitivamente, por fim sentiu necessidade de tocá-lo. O jato de música em sua cabeça foi mais forte desta vez, como que em cansado protesto ou em cansado aviso — um aviso para que se afastasse daquela coisa, antes que sua proteção falhasse inteiramente. Entretanto, ele precisava tocar, confirmar o que via.

Correndo os dedos sobre aquele símbolo quase chinês, ele pensou: Uma criatura que viveu sob o clarão de um sol diferente, concebeu esta marca. O que significará? ENTRADA PROIBIDA? VIEMOS EM PAZ? OU talvez seja um símbolo de maldição, uma versão alienígena de ABANDONEM A ESPERANÇA, TODOS AQUELES QUE ENTRAREM AQUI?

O símbolo havia sido impresso no metal da nave, como um baixo-relevo. O mero toque evocou uma espécie de medo supersticioso que ele jamais sentira antes; seis semanas atrás, até acharia graça, caso alguém falasse que se sentia dessa maneira — como um homem das cavernas presenciando um eclipse do sol ou um camponês medieval vendo a chegada do que, eventualmente, ficaria conhecido como cometa de Halley.

Uma criatura que viveu sob o clarão de um sol diferente, concebeu esta marca. Eu, James Eric Gardener, nascido em Portland, Maine, Estados Unidos da América, Hemisfério Ocidental do Mundo, estou tocando um símbolo, feito e gravado por só Deus sabe quem seria este tipo de ser, através de uma negra distância em anos-luz. Meu Deus, meu Deus, estou tocando uma mente diferente!

Claro está que, desde algum tempo atrás, ele vinha tocando mentes diferentes. Isto agora, no entanto, não era a mesma coisa... não era, de maneira nenhuma.

Iremos realmente entrar aí? Ele tinha consciência de que seu nariz sangrava novamente, mas nem mesmo isso o fez afastar a mão daquele símbolo; deslizou a polpa dos dedos, incansavelmente, de um lado para outro, naquela superfície lisa e desconhecida.

Mais precisamente, você vai tentar entrar aí? E o que pretende, mesmo sabendo que esta coisa pode matá-lo, que provavelmente o matará? Sempre leva um choque, a cada vez que a toca; o que acontecerá, se for tolo o bastante para entrar no interior? Provavelmente a nave produzirá uma vibração harmônica nessa sua maldita placa de aço, o que terminará rachando a sua cabeça ao meio, como uma banana de dinamite em um nabo podre.

Parece preocupado demais com meu bem-estar, sendo você um homem que estava à beira do suicídio, não faz muito tempo, não é mesmo, meu velho? pensou ele, e terminou sorrindo, a despeito de si mesmo. Afastou os dedos de cima do símbolo gravado, sacudindo-os alheadamente para livrar-se do formigamento, como um homem tentando sacudir uma meleca de bom tamanho. Siga em frente e faça o que pretende. Que diabo, se sua intenção é dar o fora, ter o cérebro destruído por uma vibração, dentro de um disco voador, é um modo mais exótico de ir, do que a maioria.

Gard deu uma risada. Era um som estranho, no fundo daquela profunda escavação no solo.

— Qual é a graça? — perguntou Bobbi, tranqüila. — Qual é a graça, Gard?

Rindo mais forte, ele respondeu:

— Tudo. Isto é... qualquer coisa! Penso que o caso é para rir ou enlouquecer. Morou?

Bobbi ficou olhando para ele, obviamente sem entender.

É lógico que ela não entende, pensou Gardener. Bobbi aderiu à outra opção. Não ri, porque ficou louca.

Ele deu gargalhadas até as lágrimas lhe rolarem pelas faces. Algumas lágrimas eram sangrentas, mas não as percebeu. Bobbi, sim, mas não se preocupou em contar-lhe.

 

Eles levaram outras duas horas descobrindo inteiramente a escotilha. Quando terminaram, Bobbi estendeu uma mão suja, estriada de maquilagem, na direção de Gard.

— E então? — exclamou Gardener, sacudindo-a.

— Tudo feito. — respondeu Bobbi. — Terminamos a escavação. Conseguimos, Gard!

— É mesmo?

— Claro. Amanhã entraremos aí, Gard.

Gard a fitou sem dizer nada. Estava com a boca seca.

— Isso mesmo — disse ela, assentindo, como se ele houvesse questionado o assunto. — Entraremos aí amanhã. Às vezes, parece que comecei isto há um milhão de anos. Em outras, tenho a sensação de que foi apenas ontem. Tropecei na coisa, vi-a no chão, passei o dedo sobre ela e afastei a terra em volta. Foi o começo. Um dedo enterrado na terra. Isto agora é o fim!

— No começo, era uma Bobbi diferente — disse Gardener.

— Certo — concordou ela, meditativamente. Ergueu o rosto e seus olhos mostravam um brilho de humor no fundo. — E também um Gard diferente.

— Sim, sim... Deve saber que provavelmente serei morto, entrando aí... mas estou pouco ligando, entende?

— A nave não o matará — disse Bobbi.

— Não?

— Não. Agora, vamos sair daqui. Tenho muito o que fazer. Estarei no galpão esta noite.

Gardener olhou agudamente para ela, porém Bobbi tinha o rosto erguido para o alto, enquanto o estribo motorizado de subida baixava seus cabos.

— Tenho estado construindo coisas lá dentro — disse Bobbi, em tom sonha-dor. — Eu e alguns outros. Preparando-nos para amanhã.

— Eles se reunirão com você esta noite — disse Gardener.

Não era uma pergunta.

— Sim, mas primeiro quero trazê-los aqui, para que vejam a escotilha. Eles... eles também estiveram esperando por este dia, Gard.

— Aposto que sim — respondeu Gardener.

O estribo da subida chegou. Bobbi se virou e o encarou com olhos semicerrados.

— O que está querendo dizer com isto, Gard?

— Nada. Absolutamente nada!

Os olhos de ambos encontraram-se. Gardener pôde senti-la claramente agora, esquadrinhando sua mente, tentando penetrá-la e, de novo, ele teve aquele senso de seu conhecimento secreto e de suas dúvidas secretas, girando e girando como uma perigosa pedra preciosa.

Pensou, deliberadamente.

(saia de minha cabeça Bobbi você não é bem-vinda aqui)

Ela encolheu-se, como se houvesse sido esbofeteada — porém havia também em seu rosto uma leve vergonha. Como se Gardener a tivesse surpreendido espionando onde não devia. Portanto, ainda restara nela uma certa porção humana. Era algo consolador.

— Pois bem, traga-os aqui — disse Gard. — Entretanto, sobre abrir a escotilha, Bobbi, seremos apenas nós dois, você e eu. Nós a encontramos e nós é que seremos os primeiros a entrar. Concorda?

— Está bem — disse Bobbi. — Nós dois entramos primeiro. Sem banda de música e sem paradas.

— E sem Polícia de Dallas!

Bobbi sorriu fracamente.

— E sem eles, claro. — Estendeu o estribo. — Quer subir na frente?

— Não. Vá você primeiro. Parece que tem uma programação e tanto à sua espera.

— E tenho mesmo. — Ela se aferrou ao estribo, apertou um botão e começou a subir. — Mais uma vez, obrigada, Gard.

— Não tem de quê — disse ele, espichando o pescoço para seguir o progresso da subida de Bobbi.

— E você se sentirá melhor sobre tudo isto...

(quando se “transformar” quando terminar sua própria “transformação”)

Bobbi foi subindo, subindo, até desaparecer de vista.

 

O GALPÃO

Era 14 de agosto. Um cálculo rápido, disse a Gardener que ficara quarenta e um dias com Bobbi — quase exatamente um período bíblico, um espaço de tempo confuso ou ignorado, como em “ele vagou no deserto por quarenta dias e quarenta noites”. Parecia mais tempo. Havia a sensação de que passara ali a vida inteira.

Ele e Bobbi apenas beliscaram a pizza congelada que Gardener aquecera para a ceia de ambos.

— Estou com vontade de beber uma cerveja — disse Bobbi, caminhando para a geladeira. — E você? Quer uma, Gard?

— Não me apetece, obrigado.

Bobbi ergueu as sobrancelhas, porém nada disse. Pegou a cerveja, foi para a varanda, e Gardener ouviu o assento da velha cadeira de balanço ranger, quando ela acomodou-se. Um momento depois, encheu um copo com água da torneira, saiu e sentou-se ao lado de Bobbi. Ficaram ali pelo que pareceu um longo período, sem falar, apenas contemplando a enevoada quietude do início do anoitecer.

— Foi um bocado de tempo — disse ele. — Eu e você, Bobbi.

— Sim. Muito tempo. É um estranho final.

— É o que isto significa? — perguntou Gardener, girando na cadeira para encarar Bobbi. — O fim?

Ela deu de ombros, despreocupadamente. Seus olhos desviaram-se dos dele.

— Bem, sabe como é... Foi o fim de uma fase. E agora? Ficou melhor?

— Se for le most juste, então não pode ser melhor, nem mesmo o excepcional — apenas o único mot que importa. Não foi o que ensinei a você?

Bobbi riu.

— Sim, foi. Naquele maldito primeiro ano! Que loucura! Ingleses... e professores de inglês!

— Sim...

— Sim.

Ela bebericou sua cerveja e tornou a perscrutar a Estrada Velha de Derry. Impaciente pela chegada deles, pensou Gardener. Se eles dois tinham realmente dito tudo que havia para dizer, após todos aqueles anos, ele quase desejou jamais ter cedido ao impulso de voltar, pouco importando quais os motivos ou eventual desfecho. Um final tão medíocre para um relacionamento que em sua época, abrangera amor, sexo, amizade, um período de tensa détente, preocupação e inclusive medo, parecia ridicularizar a coisa global — a dor, o sofrimento, o esforço.

— Eu sempre o amei, Gard — disse Bobbi, suave e reflexivamente, sem olhar para ele. E, pouco importando como isto venha a se tornar, lembre-se de que ainda o amo. — Agora olhou para Gardener, seu rosto assemelhando-se à curiosa paródia de um rosto, debaixo da espessa maquilagem — seguramente, aquela criatura era uma excêntrica irremediável que, por acaso, parecia-se um pouco com Bobbi. — E, também espero que se lembre de que nunca pedi para tropeçar na maldita coisa. O livre arbítrio aqui não constituiu um fator, como certamente disse alguém metido a sabichão ou coisa assim.

— No entanto, você decidiu desenterrá-la — disse Gardener.

Sua voz era tão suave quanto a dela, mas Gardener sentiu um novo terror aprofundar-se em seu coração. Seria aquela cascata sobre livre arbítrio, o circunlóquio de uma justificativa para o iminente assassinato dele?

Pare com isso, Gard! Pare de temer fantasmas!

O carro enterrado no final da Estrada de Nista é um fantasma? retorquiu sua mente no mesmo instante.

Bobbi riu baixinho.

— Cara, a idéia de desenterrar ou não uma coisa como aquela, jamais pode-ria ser uma função do livre arbítrio... enfie isso na cabeça de um garoto ginasiano durante um debate, mas nós estamos aqui, na varanda, Gard! Sinceramente, você acha mesmo que alguém pode decidir sobre uma coisa destas, acha? Acredita que as pessoas podem decidir jogar fora qualquer conhecimento, após ter tido algum vislumbre dele?

— Baseado em tal suposição, é que fiz piquetes em usinas nucleares — disse Gardener lentamente.

Bobbi fez um gesto vago com a mão.

— As sociedades podem decidir não implementar idéias — em realidade, até duvido disso, porém, em benefício da discussão, digamos que seja assim — mas, pessoas comuns? Não, sinto muito. Quando pessoas comuns descobrem algo projetando-se do solo, elas começam a escavá-lo. E escavam, porque a coisa pode ser um tesouro.

— E você não teve a mais vaga idéia de que haveria... — O que lhe veio à mente foi precipitação radioativa, mas pensou que Bobbi não apreciaria o termo. — ...conseqüências?

Bobbi sorriu abertamente.

— Nem por uma fração de segundo.

— Acredito, mas Peter não gostou disso.

— Não. Peter não gostou. Entretanto, não foi isso que o matou, Gard.

Tenho certeza absoluta de que não foi.

— Peter morreu de causas naturais. Estava velho. Aquela coisa na floresta é uma nave de outro mundo. Não uma caixa de Pandora, não uma macieira divina. Não ouvi nenhuma voz celestial dizendo: Se comeres desta nave, morrerás!

Gard sorriu ligeiramente.

— No entanto, é uma nave de conhecimento, certo?

— Certo. Quero dizer, acho que seja.

Bobbi tornava a olhar a estrada, obviamente querendo encerrar aquele assunto.

— Para quando os espera? — perguntou Gardener.

Em vez de responder, ela fez um gesto de cabeça para a estrada. O Cadillac de Kyle Archinbourg vinha chegando, seguido pelo velho Ford de Adley McKeen.

— Acho que vou entrar e tirar uma soneca — disse Gard, levantando-se.

— Se quiser ir até a nave conosco, será bem-vindo, Gard.

— Com você, talvez. Com eles? — Gardener apontou um polegar para os carros aproximando-se. — Pensam que sou maluco. Aliás, sentem um tremendo ódio de mim, porque não conseguem ler minha mente.

— Se eu disser que você vai, terão de aceitá-lo!

— Acho que dispenso a honra — disse Gardener, espreguiçando-se. — Na verdade, também não gosto deles. Deixam-me nervoso.

— Sinto muito.

— Oh, bobagem minha... Iremos... amanhã. Apenas nós dois, Bobbi. Certo?

— Certo.

— Dê-lhes lembranças minhas. E faça-os recordar que eu ajudei, com ou sem placa de aço na minha cabeça.

— Farei isso. É claro que farei.

Os olhos de Bobbi, no entanto, tornaram a desviar-se dos dele, e Gardener não gostou disso. Não gostou nem um pouco.

 

Imaginou que eles fossem antes ao galpão, mas não foram. Ficaram por ali, fora da casa, falando durante algum tempo — Bobbi, Frank, Dick Allison, Newt, Hazel e os outros — depois então tomando a direção da floresta, em um grupo unido. A claridade do dia agora se tornava purpúrea e a maioria deles levava lanternas na mão.

Enquanto os espiava, Gardener sentiu que seu último verdadeiro momento com Bobbi viera e se fora. Agora, nada mais restava, senão entrar no galpão e ver o que havia lá dentro. Precisava decidir-se, de uma vez por todas.

Vi um globo ocular espreitando através de uma nuvem enfumaçada, atrás da porta verde...

Gardener cruzou a casa e foi até a cozinha, em tempo de ver o grupo embrenhando-se na exuberante horta de Bobbi. Contou os narizes rapidamente, certificando-se de que estavam todos lá, e em seguida foi até o porão, onde Bobbi guardava um molho de chaves de reserva.

Abriu a porta do porão e parou uma última vez.

Você quer mesmo fazer isto?

Não; não, ele não queria. No entanto, precisava fazer. E descobriu que, maior do que seu medo, era o grande senso de solidão. Literalmente, não existia mais ninguém a quem pedir ajuda. Estivera com Bobbi no deserto, quarenta dias e quarenta noites; agora estava no deserto sozinho. Que Deus o ajudasse!

Ao diabo com isso, pensou. Como se presumia que houvesse dito o velho sargento de pelotão, na Primeira Guerra Mundial: E então, caras, vocês aí, querem viver para sempre?

Gardener desceu ao porão, em busca do molho de chaves de Bobbi.

 

Estava lá, pendurando em seu prego, com cada chave devidamente etiquetada. O único problema, era que a chave do galpão sumira. Ela estivera ali, Gardener tinha absoluta certeza. Quando é que a vira pela última vez no molho? Tentou recordar, mas não pôde. Estaria Bobbi tomando precauções?

Possivelmente.

Ficou parado no meio da Nova e Melhorada oficina, com suor na testa e nos colhões. Nada de chave. Que interessante! Em vista disto, o que mais lhe competia fazer? Pegar o machado de Bobbi e imitar Jack Nicholson em The Shining? Podia visualizar a cena. Pam, pam, plaft! Lá vai GARDENER! Exceto que podia ser um bocado difícil encobrir tudo, antes que os peregrinos retornassem da Visita à Sacra escotilha.

Na oficina de trabalho de Bobbi, Gardener percebia o tempo voando, sentia-se Velho e Não-melhorado. Quanto tempo os outros ficariam lá, afinal? Não era possível prever, era? De maneira nenhuma.

Muito bem, onde é que as pessoas colocam chaves? Sempre presumindo que Bobbi estivesse apenas tomando precauções e não apenas escondendo-a de você?

Uma idéia brotou com tanta força em sua cabeça, que ele chegou a dar um tapa na testa. Bobbi não havia apanhado a chave. Tampouco alguém tentara escondê-la. A chave desaparecera quando Bobbi, supostamente, estaria no Hospital de Derry, recuperando-se da insolação. Gardener tinha quase plena certeza disso, e o que a memória não supria ou não podia suprir, a lógica respondia.

Bobbi não estivera naquele hospital, mas no galpão. Teria um dos outros apanhado a chave de reserva, a fim de cuidar de Bobbi, quando ela precisasse de cuidados? Teriam cópias, todos eles? Por que preocupar-se? Em Haven, ultima-mente, não havia furtos; estavam todos “transformando-se”. O único motivo para o galpão ser mantido trancado, era impedir que ele, Gardener, entrasse lá. Assim, eles podiam ter, simplesmente...

Gardener recordou a vez em que os vira chegando, em uma das ocasiões após o “algo” ter acontecido a Bobbi... um “algo” muito mais sério do que prostração pelo calor.

Fechando os olhos, viu o Cadillac. Kyle-1. Eles saíram do carro e...

... e Archinbourg afastou-se dos outros, por um ou dois momentos. Você está apoiado em um cotovelo, espiando pela janela, vendo o grupo. Rememorando a cena, talvez pensasse que ele se afastara para esvaziar a bexiga. Só que não foi nada disso. Ele foi apanhar a chave. Claro, foi justamente o que fez. Foi apanhar a chave.

Não era muita coisa, mas bastava para pô-lo em movimento. Subiu correndo os degraus do porão, encaminhou-se para a porta, de lá rumou em direção ao banheiro. Ali havia um antigo par de óculos escuros, no topo do armário de remédios — tinha ido parar ali, com a finalidade obtida por objetos triviais somente nos aposentos de um homem ou mulher solteiros (como a maquilagem que pertencera à esposa de Newt Berringer). Gardener pegou os óculos, soprou das lentes de uma espessa camada de poeira, limpou-as cuidadosamente, depois dobrou as hastes e os colocou no bolso do peito da camisa. Então, dirigiu-se ao galpão.

 

Ficou um momento junto à porta de tábuas trancada a cadeado, espiando a trilha que conduzia à escavação. O crepúsculo se adensara bastante, de maneira que a floresta além da horta era apenas um maciço cinza-azulado, sem detalhes. Não avistou nenhuma fileira vacilante de lanternas acesas, voltando para casa.

Bem, eles podem voltar. A qualquer momento, podem voltar a surpreender você com a boca na botija.

Acho que ficarão um bom tempo por lá, admirando a coisa. Contam com as luzes klieg.

Ora, você não tem certeza de nada!

Não. Certeza não havia.

Gardener tornou a concentrar-se na porta de tábuas. Nas fendas entre uma e outra tábua, podia divisar aquela luz verde, como também podia ouvir um rumor vago e desagradável, como o de uma velha máquina de lavar, entulhada de roupas e água espumosa de sabão.

Não — não era apenas uma máquina de lavar; parecia mais uma fila inteira delas, não muito sincronizadas entre si.

Aquela luz pulsava em ritmo com o sussurrante som de algo sendo chupado.

Não quero entrar aí.

Havia também um cheiro. Mesmo isso, pensou Gardener, era ligeiramente espumoso, brando, com um leve toque rançoso. Sabão velho. Sabão empastado.

Só que não se trata de um punhado de máquinas de lavar. Esse som e vivo. Aí dentro não há máquinas de escrever telepáticas, nem Novos e Melhorados aquecedores de água, é alguma coisa viva, e eu não quero ver.

No entanto, ia entrar, ia ver. Afinal de contas, não tinha voltado dos mortos apenas para olhar o interior do galpão de Bobbi e surpreender os Tommyknockers em suas estranhas bancadinhas? Ele supunha que sim.

Gard caminhou até o lado extremo do galpão. Ali, pendurada em um prego enferrujado, debaixo do beiral, estava a chave. Ergueu uma mão trêmula e a pegou. Tentou engolir. A princípio, foi impossível. Sua garganta parecia forrada de flanela seca e aquecida.

Um drinque. Um apenas. Vou até em casa e me demoro somente o bastante para um drinque, um pequeno gole. Então, estarei disposto.

Ótimo. Parecia uma excelente idéia. Só que não ia fazer isso, sabia que não ia. A parte relativa à bebida estava encerrada. Como encerrada estava a parte dos adiamentos. Segurando a chave na mão suada, Gardener aproximou- se da porta. Pensou: Não quero entrar. Nem mesmo sei se vou conseguir. Sim, porque estou com tanto medo, que...

Pare com isso! Deixe essa parte encerrar-se também. A sua Fase Tommyk-nocker!

Gardener tornou a olhar em volta, quase desejando ver a fileira de lanternas acesas saindo da floresta — ou ouvir as vozes deles.

Ora, você não os ouviria; eles falam mentalmente entre si!

Nada de lanternas. Nada de movimentos. Nada de grilos. Nada de trinados de aves. O único som era o das máquinas de lavar, o som de batidas cardíacas amplificadas, gotejantes: Slisshb-slisshhh-slisshhh...

Gardener olhou para a palpitante luz verde, abrindo caminho por entre as fendas das tábuas, como dedos luminosos. Enfiou a mão no bolso, apanhou os velhos óculos escuros e os colocou.

Fazia muito tempo que não rezava, mas rezou agora. Foi uma prece curta, mas uma prece por tudo aquilo, uma prece, ainda assim.

— Oh, Deus, ajude-me! — sussurrou Jim Gardener, em meio ao denso crepúsculo estival.

Então, introduziu a chave no cadeado.

 

Esperou que um jato de música radiofônica explodisse em sua cabeça, porém nada aconteceu. Nesse meio tempo, entretanto, ele nem percebera que estava com o estômago tenso e chupado, como um homem esperando levar um choque elétrico.

Passando a língua pelos lábios, girou a chave.

Houve um pequeno ruído, quase imperceptível acima dos lentos rumores sacolejantes que partiam do galpão: clique!

A argola do cadeado saltou ligeiramente de seu encaixe. Gardener a tocou, parecia que seu braço pesava como chumbo, quando ergueu a mão. Libertou a ar-gola, retirou o cadeado e o colocou, novamente fechado e ainda com a chave, dentro do bolso esquerdo. Era como se estivesse sonhando. E o sonho nada tinha de bom.

O ar aí dentro tem que ser bom — bem, talvez não excelente; talvez nenhum ar em Haven fosse mais precisamente excelente. Gard pensou, no entanto, que devia ser mais ou menos como o ar exterior, uma vez que aquele galpão tinha fendas por toda parte, era como uma peneira. Se existisse algo como uma pura biosfera Tommyknocker, não seria ali dentro. Pelo menos, era o que ele imaginava.

Fosse como fosse, queria arriscar-se o menos possível. Tomou uma respiração funda, reteve-a e disse a si mesmo para contar seus passos: Três. Você não dará mais de três passos ao entrar. Só por precaução. Passe os olhos em torno e saia. A toda pressa.

É o que você espera fazer.

Sim, o que eu espero.

Lançou um último olhar à trilha, não viu nada, virou-se para o galpão e abriu a porta.

O clarão verde, ofuscante mesmo através dos óculos escuros, envolveu-o por completo, como pútrida luz solar.

 

A princípio, ele nada conseguiu ver. A luz era demasiado ofuscante. Gardener sabia que, em outras ocasiões, fora ainda mais brilhante do que agora, porém nunca tinha chegado tão perto dela. Perto? Deus, ele estava nela! Alguém que parasse diante da porta aberta e olhasse para ela, dificilmente conseguiria enxergá-lo.

Semicerrou os olhos contra aquela verdejante radiosidade e deu um passo à frente, arrastando o pé no chão... depois mais outro... em seguida a um terceiro. Mantinha as mãos estendidas à frente do corpo, como um homem cego e tateante. E Gardener não era outra coisa; droga, até pusera os óculos escuros para confirmá-lo.

O rumor era mais forte. Slisb-Slissshh-Slisshhb... vindo da esquerda. Gardener virou-se naquela direção, porém sem avançar mais. Receava avançar, receava o que poderia tocar.

Agora, seus olhos começavam a adaptar-se. Divisou formas escuras dentro do verde. Uma bancada... porém sem nenhum Tommyknocker nela; fora apenas empurrada contra a parede, tirada do caminho e...

Céus, é uma máquina de lavar! É mesmo uma!

Exatamente, era uma daquelas máquinas de lavar antiquadas, tendo no topo os rolos de espremer a água da roupa, porém não era dali que partia o curioso rumor. Ela também fora empurrada contra a parede. Estava no processo de sofrer alguma modificação; alguém estivera trabalhando nela, no melhor estilo Tommy-knocker, porém, neste momento, não se encontrava funcionando.

Perto dela, Gardener viu um aspirador de pó Electrolux... um daqueles antigos, com rodinhas, o corpo baixo e rente ao chão, como um dachshund mecânico. Uma serra de cadeia, montada sobre rodas. Montes de detectores de fumaça, adquiridos na loja “Radio Shack”, a maioria ainda nas embalagens. Inúmeros tambores de querosene, também sobre rodas, com mangueiras adaptadas a eles e coisas semelhantes a braços...

Braços! É claro que sim, eles são robôs, fodidos robôs em desenvolvimento e nenhum deles parecendo exatamente a pomba branca da paz, não é mesmo, Gard? E...

Slisshh-slisshh-slisshhh.

Mais à esquerda. A fonte do clarão vinha dali.

Gard ouviu um curioso, dolorido ruído escapar dele. A respiração que vinha retendo, escapou fracamente, como o ar de um balão de gás, espetado por alfinete. A força lhe fugiu das pernas, precisamente da mesma maneira. Estendeu a mão às cegas, encontrou uma banqueta e não se sentou nela, simplesmente deixou o corpo cair. Era incapaz de afastar os olhos do canto esquerdo nos fundos do galpão, onde Ev Hillman, Anne Anderson e Peter, o bom e velho cão beagle de Bobbi, de algum modo pendiam de postes, em dois antigos gabinetes para banhos de chuveiro, em aço galvanizado, cujas portas tinham sido removidas. Estavam pendurados lá dentro, como postas de carne em ganchos de açougue. No entanto, estavam vivos, Gard podia ver... de alguma forma, algum jeito, ainda vivos.

Um grosso cabo preto, parecendo ser de alta voltagem ou um fio coaxial muito grande, partia do centro da testa de Anne Anderson. Um cabo similar partia do olho direito do velho. E o topo inteiro do crânio do cão havia sido removido; dúzias de fios menores partiam do cérebro exposto e pulsante de Peter.

Os olhos de Peter, livres de cataratas, viraram-se para Gard. O cachorro ganiu.

Jesus... oh, meu Jesus... oh, meu Jesus Cristo!

Gardener tentou levantar-se da banqueta. Não conseguiu.

Reparou que porções do crânio do velho e do crânio de Anne também tinham sido removidas. As portas haviam sido retiradas das cabines de banho, porém elas continuavam cheias de um líquido claro — um líquido retido ali da mesma forma que aquele pequenino sol, retido no aquecedor de água de Bobbi, segundo imaginou ele. Se tentasse entrar em uma daquelas cabines, sentiria uma firme tensão. Cedendo bastante... mas sem permitir o acesso ao interior.

Querer entrar? Eu só quero sair!

Então, sua mente retornou à escritura anterior:

Jesus... querido Jesus... oh, meu Jesus, olhe para eles...

Eu não quero olhar para eles.

Não. Entretanto, era impossível afastar os olhos.

O líquido era claro, mas em um tom verde-esmeralda. Estava em movimento — produzia aquele rumor sussurrante, de espuma espessa. Contudo, apesar de sua limpidez, Gardener imaginou que deveria ser bastante xaroposo, talvez da consistência de detergente líquido para lavar pratos.

Como eles conseguem respirar ali? Como podem continuar vivos? Talvez não estejam vivos; talvez seja apenas o movimento do líquido, dando a ilusão de que vivam. É possível que seja somente uma ilusão; por favor meu Deus, que seja somente uma ilusão!

E Peter... você o ouviu ganir...

Negativo. É parte da ilusão. Apenas isso. Ele está pendurado em um gancho, dentro de uma cabine de chuveiro, cheia de equivalente interestelar detergente para louças Joy, não poderia ganir em absoluto, porque isto provocaria bolhas de sabão e você está apenas tendo alucinações. Exatamente isto, apenas uma visitinha ao Rei da Alucinação.

Exceto que ele não estava tendo alucinações e sabia disto. Como também sabia que não ouvira o ganido de Peter com seus ouvidos.

Aquele ganido impotente, dorido, proviera do mesmo lugar de onde provinha a música radiofônica: o centro de seu cérebro.

Anne Anderson abriu os olhos.

Tire-me daqui! gritou ela. Tire-me daqui, eu a deixarei em paz, não consigo sentir mais nada, exceto que eles provocam dor, provocam dor, provocam doooorr...

Gardener tentou levantar-se novamente. Teve a vaga percepção de que produzia um som. Apenas um velho som. O som, que produzia, provavelmente era bastante parecido ao som de uma marmota sendo atropelada na estrada, deduziu.

O líquido movente e esverdeado emprestou ao rosto de Sissy uma aparência fantasmagórica de cadáver intumescido. O azul de seus olhos desbotara. A língua flutuava como alguma carnuda planta submarina. Os dedos, franzidos e encarquilhados, oscilavam incertos.

Nada consigo sentir, exceto quando eles provocam doooorr! Gemeu Anne, e ele não pôde calar-lhe a voz, não pôde enfiar os dedos nos ouvidos para deixar de ouvi-la, porque aquela voz vinha de dentro de sua cabeça.

Slisshhh-slisshhh-slisshhh.

Havia tubulações de cobre passando pelos topos das cabines de chuveiro, fazendo-os parecer uma hilariante combinação de câmaras Buck Rogers de animação suspensa e alambiques clandestinos de L’il Abner*.

Havia clareiras nuas no pelame de Peter. Seus traseiros pareciam encolhidos contra si mesmos. Ele movia as patas através do líquido, em longas e preguiçosas passadas, como se sonhasse que fugia.

Quando eles provocam doooorr!

O velho abriu seu único olho.

O menino.

Foi um pensamento nitidamente claro; inquestionável. E Gardener se viu respondendo a ele.

Que menino?

A resposta foi imediata, sobressaltante por um momento, depois inquestionável.

David. David Brown.

Aquele único olho fixou-se nele, uma firme safira, de matizes esmeraldinos.

Salve o menino.

O menino David. David Brown. Seria ele, de algum modo, uma parte disto, o garotinho que haviam procurado durante tantos e exaustivos dias de calor sufocante? Claro que era. Talvez não diretamente, mas parte disto.

Onde está ele? perguntou Gardener mentalmente ao velho, que flutuava em sua pálida solução esverdeada.

Slisshhh-slisshbh-slisshhh.

Em Altair-4, respondeu finalmente o velho. David está em Altair-4. Salve-o... e depois mate-nos. Isto é... é ruim. Muito ruim. Não se pode morrer. Já tentei. Todos tentamos. Inclusive

(acadelacadela)

ela. Isto é como estar no inferno. Use o transformador para salvar David. Depois desligue as tomadas. Corte os fios. Queime a casa. Você ouviu?

Pela terceira vez, Gardener tentou levantar-se, mas tornou a arriar flacidamente na banqueta. Percebeu que havia vários e grossos fios espalhados por todo o piso, e isso lhe trouxe a enevoada recordação de sua banda musical que o tinha recolhido na estrada, quando voltava de New Hampshire. A lembrança o deixou confuso, mas então percebeu a conexão. O piso parecia um palco de concertos, pouco antes de um grupo de rock começar a tocar. Um palco, ou o estúdio de tele-visão em uma cidade grande. Os cabos serpenteavam para um grande caixote, cheio de painéis de circuito e um monte de gravadores de videocassete. Estavam todos ligados pela fiação. Gardener procurou um transformador de corrente contínua e, não vendo nenhum, pensou: É claro que não há necessidade, idiota. Pilhas elétricas já são corrente contínua.

Os gravadores tinham sido ligados a uma mescla de computadores domésticos — Ataris, Apple II e III, TRS-80, Commodores... Piscando em uma tela acesa, havia a palavra

PROGRAMA?

Por trás dos computadores modificados, havia mais painéis de circuito — centenas deles. Toda aquela coisa produzia um grave e sonolento zumbido — um som que ele associou a um

(use o transformador)

enorme equipamento elétrico.

A luz espargia-se para fora do caixote e dos computadores colocados desordenadamente perto dele, produzindo um vasto clarão verde — porém essa luz não era absolutamente firme. Estava pulsando. A pulsação da luz e sua relação aos sons sugantes, vindos das cabines de chuveiro, era muito nítida.

Eis o centro, pensou ele, com um fraco excitamento de inválido. Eis o nexo da nave! Eles entram no galpão para usá-lo. É um transformador e daqui extraem seu poder.

Use o transformador para salvar David.

Seria o mesmo que pedir-me para pilotar o avião do Presidente. Peça-me alguma coisa fácil, vovô. Se eu pudesse trazê-lo de onde quer que esteja recitando Mark Twain — até mesmo Poe — faria uma tentativa. No entanto usar essa coisa? Isto aqui mais parece uma explosão em um depósito de equipamento eletrônico.

Sim, mas... o menino.

Que idade teria? Quatro anos? Cinco?

E onde, em nome de Deus, eles o tinham posto? Literalmente, o céu era o limite.

Salve o menino. Use o transformador.

Evidentemente, não havia tempo bastante para examinar de perto toda aquela maldita confusão. Os outros estariam voltando. Ainda assim, ele fixou os olhos no único terminal de vídeo iluminado, com hipnótica intensidade.

PROGRAMA?

E se eu datilografar Altair-4 no teclado? perguntou-se, mas então reparou que não existia teclado. No mesmo segundo, as letras da tela mudaram.

ALTAIR-4

diziam agora.

Não! gritou sua mente, sentido-se culpado por intrusão. Não, Jesus, não!

As letras encresparam-se.

NÃO JESUS NÃO

Suando, Gardener pensou: Cancelar! Cancelar!

CANCELAR CANCELAR

Aquelas letras piscando, acendendo e apagando... acendendo e apagando. Gardener ficou olhando para elas, horrorizado. E então:

PROGRAMA?

Ele fez um esforço para escutar seus pensamentos e tentou pôr-se novamente em pé. Conseguiu agora. Outros fios partiam do transformador. Estes eram mais finos. Havia... ele contou. Sim. Oito fios. Terminando em fones de ouvido.

Fones de ouvido. Freeman Moss. O treinador de animais, conduzindo elefantes mecânicos. Aqui havia mais fones de ouvido. De um modo aloucado, aquilo o fez recordar um laboratório de idiomas no ginásio.

Estarão eles aprendendo algum outro idioma aqui?

Sim. Não. Estão aprendendo a “transformar-se”. A máquina ensina como. Entretanto, onde estão as pilhas? Não vejo nenhuma. Aqui, precisaria de baterias de carros. Umas dez ou doze grandes e velhas Delco, ligadas a essa coisa. Apenas uma carga de manutenção para tudo funcionar. Deveria haver...

Aturdido, ele tornou a erguer os olhos para as cabines de banho.

Olhou para o cabo coaxial partindo da testa da mulher e do olho do velho. Viu as patas de Peter movendo-se naquelas enormes passadas de sonho e perguntou-se como Bobbi pudera ficar com os pêlos do cão no vestido — estivera dando a Peter o equivalente a uma troca de óleo interestelar? Teria ela sido tomada, talvez, por uma mera emoção humana? Amor? Remorso? Culpa? Teria ela afagado seu cão, antes de tornar a encher de óleo aquela cabine?

Existem as baterias. Delco orgânicas e EverReady, poder-se-ia dizer. Eles as estão secando. Sugando-as como vampiros.

Uma nova emoção penetrou em seu medo, sua perplexidade e sua repulsa. Era fúria, e Gardener gostou de senti-la.

Eles provocam dooorr... provocam doorr... provocam dooorr...

A voz da mulher interrompeu-se abruptamente. O monótono zumbido do transformador mudou de tom; passou a pulsar ainda mais baixo. A luz que vinha do caixote diminuiu um pouco. Gardener julgou que ela ficara inconsciente, desta maneira reduzindo o output total da máquina a um número x de... de quê? Volta? Dynes? Ohms? Quem, raios, poderia dizer?

Acabe com isto, filho! Salve meu neto e depois acabe com isto!

Por um instante, a voz do velho inundou sua cabeça, perfeitamente nítida e perfeitamente lúcida. Depois sumiu. O olho dele se fechou.

A luz verde que provinha da máquina, ficou ainda mais pálida.

Eles acordaram quando entrei, pensou Gardener febrilmente. A fúria ainda sacudia sua mente e a verrumava. Ele cuspiu um dente, mal percebendo o que fazia. Até Peter acordou um pouco. Agora, voltaram todos a seja qual for o estado em que se encontravam... antes de minha chegada. Dormem? Não. Não é sono. Deve ser outra coisa. Manutenção em frio orgânico.

Baterias provocam sonhos em sono elétrico? pensou, dando uma risadinha saltitante.

Gardener recuou, afastando-se do transformador,

(o que exatamente ele transforma como por quê)

afastando-se dos boxes de ducha, dos cabos. Seus olhos pousaram na profusão de engenhocas, encostadas à parede contrária. O espremedor da máquina de lavar, exibia algo em seu topo, semelhante às antenas de televisão no formato de bumerangue, às vezes vistas na traseira de grandes limusines. Atrás e à esquerda da máquina de lavar, ele viu uma ultrapassada máquina de costura e pedal, com um funil de vidro montado sobre sua roda lateral. Tambores de querosene, com mangueiras e braços de aço... e uma faca de açougueiro, notou Gardener, presa na extremidade de um daqueles braços.

Cristo, o que significará todo este negócio? E para que será?

Uma voz sussurrou: Talvez seja como medida de proteção, Gard. Para o caso da chegada inoportuna da Polícia de Dallas. Aqui está o Exército Tommyknocker de Objetos de Segunda Mão. Antigas máquinas de lavar, providas de antenas celulares, aspiradores de pó Electrolux, serras de cadeia sobre rodas. Diga um nome e terá o que procura, meu bem.

Gardener sentiu sua lucidez vacilar. Seus olhos eram inapelavelmente atraídos para Peter, Peter com a maioria do crânio removida, Peter com um punhado de fios ligados ao que sobrara de sua cabeça. O cérebro do cão assemelhava-se a um pálido pedaço de vitela assada, espetado por uma porção de sondas de temperatura.

Peter, com suas patas correndo sonhadoramente através daquele líquido, como se estivesse fugindo.

Bobbi, pensou, desesperado e enfurecido, como pôde fazer isto com Peter? Santo Deus! Com as pessoas, havia sido ruim, terrível, mas com Peter fora algo pior. Era uma praga, empilhada no alto de uma obscenidade. Peter, de pernas em incessante movimento, como se sonhando que fugia.

Baterias. Baterias vivas.

Gardener tropeçou em alguma coisa. Houve um choque seco e metálico, virando-se, viu outro boxe para banho, sem a porta frontal, com pequenas flores de ferrugem nas laterais. Nos fundos, haviam feito buracos, por alguns dos quais passavam fios; estes agora pendiam flácidos, com enormes tomadas de aço nas extremidades.

Para você, Gard! tonitruou seu cérebro. Esta tomada é para você, como dizem os comerciais de cerveja! Eles abrirão o posterior de seu crânio, talvez primeiro anulem seus centros de controle motor, a fim de que não possa mover-se, e então verrumarão em busca do lugar de onde extraem energias. Esta tomada é para você, por tudo quanto fez... está pronta e esperando! Uau! Que barato!

Procurou controlar os pensamentos, agora espessando-se em histérica espiral, e conseguiu a custo. Aquela cabine não era para ele; pelo menos, não original-mente. Aquela já havia sido usada. Subsistia o odor vago, suave e espumoso. Ele viu estrias de matéria seca nas paredes internas — os últimos traços daquele grosso líquido verde. Parecido ao sêmen do Mágico de Oz, pensou ele.

Está querendo dizer que Bobbi colocou a irmã flutuando em um grande banco de esperma?

Gardener deixou escapar novamente aquele singular risinho cacarejado. Apertou a palma da mão contra a boca, apertou com força, procurando sufocar o riso.

Olhando para baixo, viu um par de sapatos castanho-amarelados, atirado junto ao boxe do chuveiro. Pegou um e o viu salpicado de sangue.

De Bobbi. Seu único par de sapatos bons. Seus sapatos de “sair”. Eram os que usava, quando foi ao funeral naquele dia.

O outro sapato também continha manchas de sangue.

Não queria tocar a blusa, porém a forma debaixo dela era demasiado clara. Levantou apenas uma pequena parte, segurou a pontinha do tecido e afastou a blusa de cima da bonita saia cor de carvão de Bobbi.

Debaixo da blusa havia uma arma. Era a maior e mais antiga arma que ele já vira, exceto em fotos de livros. Após um momento, apanhou a arma e girou o tambor. Ainda continha quatro balas. Faltavam duas. Gardener quase apostava que um daqueles balaços fora disparado contra Bobbi.

Recolocou o tambor no lugar e enfiou a arma no cinto. Imediatamente uma voz falou em seu cérebro. Baleou a esposa... Uma baita enrascada.

Não importava. A arma podia ser oportuna.

Quando derem por falta dela, irão à sua procura, Gard. Pensei que já tivesse chegado a essa conclusão.

Não; aí estava uma coisa que, pensava, não o preocuparia. Eles perceberiam as palavras mudadas na tela do computador, mas aquelas roupas não haviam sido tocadas desde que Bobbi as despira (ou desde que a tinham despido, o que era bem mais provável).

Sem dúvida, estarão eufóricos demais quando entrarem aqui, para se preocuparem com assuntos domésticos, pensou. Enfim, é danado de bom não haver mais moscas por aqui.

Seus dedos tocaram a arma novamente. Desta vez, a voz em sua cabeça silenciou. Talvez já houvesse decidido que ali não existiam esposas que dessem preocupação.

Acha que terá coragem, se for preciso balear Bobbi?

Aí estava uma pergunta que ele não soube responder.

Slisshhh-slisshhh-slisshhh.

Há quanto tempo Bobbi e seu grupo haviam partido? Ele não sabia; não fazia a menor idéia. Ali, o tempo perdia o significado; o velho tinha razão. Isto era o inferno. E, quanto a Peter, ainda reagia aos afagos de sua estranha dona, quando ela entrava no galpão?

Seu estômago estava à beira da revulsão.

Era preciso sair dali — imediatamente. Gardener se sentia um personagem de conto de fadas, a esposa de Barba-Azul no quarto secreto, João surrupiando a pilha do ouro do gigante, após ter escalado o gigantesco pé de feijão. Sentia-se prestes a ser descoberto. No entanto, segurou diante de si a peça de roupa rija e ensangüentada, como se congelado. Não como se; ele estava congelado.

Onde está Bobbi?

Ela teve um ataque de insolação.

Um diabo de ataque de insolação, capaz de encharcar-lhe a blusa de sangue daquele jeito! Gardener mantivera um mórbido e doentio interesse por armas de fogo e pelo dano que podiam causar ao corpo humano. Se ela houvesse sido baleada pela grande e antiga arma agora em seu cinto, era impossível continuar viva — mesmo que a levassem rapidamente a um hospital especializado no tratamento de emergência de ferimentos por armas de fogo. O mais provável é que tivesse morrido.

Eles me trouxeram para aqui, quando fui dilacerada, mas os Tommyknockers fizeram um trabalho e tanto para mim.

Não era para ele. O velho boxe de chuveiro não era para ele. Gardener intuía que seria retirado de circulação mais decididamente. O boxe do chuveiro havia sido para Bobbi.

Eles a haviam transportado para ali, e... então?

Bem, havia sido ligada à bateria deles, claro. Não a Anne; então, ela ainda não estava ali. Contudo, estavam Peter... e Hillman.

Ele deixou a blusa cair... depois obrigou-se a recolhê-la novamente e deixá-la em cima da saia. Ignorava quanto do mundo real eles percebiam quando entravam ali (imaginava que não muito), mas não queria arriscar-se desnecessariamente.

Olhou para os furos no fundo do boxe, para os fios pendentes, com tomadas de aço nas extremidades.

A luz verde recomeçou a pulsar com mais brilho e maior rapidez. Gardener virou-se. Os olhos de Anne estavam novamente abertos. Seu cabelo curto flutuava à volta da cabeça. Ainda era possível ver aquele ódio interminável em seus olhos, um ódio agora mesclado a horror e crescente estranheza.

Agora havia bolhas.

Bolhas flutuantes, saindo de sua boca, em breve e espessa torrente.

Ela estava gritando.

Gardener fugiu dali.

 

O terror real é, entre todas as emoções, a mais debilitante fisicamente. Perturba as glândulas endócrinas, lança no sangue drogas orgânicas que deixam os músculos tensos, faz o coração disparar, fadiga a mente. Jim Gardener saiu aos tropeções do galpão de Bobbi Anderson, caminhando com pernas que pareciam de borracha, olhos esbugalhados, a boca estupidamente aberta (a língua encolhida a um canto, como coisa morta), os intestinos quentes e cheios, o estômago em cãibras.

Era difícil raciocinar, com a mente povoada pelas cruas e poderosas imagens que iam e vinham, semelhantes a tubos acesos de neon: aqueles corpos pendurados em ganchos, empalados, como besouros empatados em alfinetes por crianças más e entediadas; as patas de Peter, movendo-se incessantemente; a blusa ensangüentada e mostrando um furo de bala; as tomadas; a antiquada máquina de lavar, encimada pela antena em forma de bumerangue. A mais forte de todas, era a imagem daquela curta e espessa torrente de bolhas emergindo da boca de Anne Anderson, enquanto ela lhe gritava dentro da cabeça.

Gardener entrou na casa, correu ao banheiro e ajoelhou-se diante do vaso sanitário, apenas para descobrir que não podia vomitar. Queria vomitar. Pensou em cachorros-quentes pululando em sua superfície. Finalmente, enfiou dois dedos na garganta. Isto apenas provocou contrações do estômago, nada mais. Era impossível vomitar. Nada tão simples.

Se não vomitar, vou ficar louco.

Ótimo, fique louco, se não tem alternativa. Só que, antes disso, faça o que tem de fazer. Mantenha isto em mente. E, já que estamos no assunto, Gard, você ainda tem mais dúvidas sobre o que deverá fazer?

Não, não havia mais dúvidas. As patas de Peter, em seu movimento incessante, o tinham convencido. Aquela torrente de bolhas o tinha convencido. Perguntou-se como levara hesitando tanto tempo, diante de um poder que era tão obviamente corruptor, tão obviamente sinistro.

Porque você estava biruta, respondeu a si mesmo. Gard assentiu. Era isso. Não precisava de mais explicações. Estivera biruta — e não somente no último mês aproximadamente. Era tarde para recuperar a lucidez, oh, sim, muito tarde, porém antes tarde do que nunca.

O som... Slissbh-slisshhh-slisshhh.

O cheiro. Suave e carnoso. Um cheiro que sua mente insistia em associar a carne crua de vitela, estragando-se lentamente em leite.

Seu estômago revoltou-se. Um arroto ardente e ácido lhe queimou a garganta. Gardener gemeu.

A idéia — aquele vislumbre — retornou a ele, e Gardener aferrou-se a ela. Tanto poderia ser possível abortar tudo isto... como, pelo menos, atrasá-lo durante muito, muito tempo. Sim, talvez fosse possível.

Tem que deixar o mundo ir para o inferno à própria custa, Gard, faltando ou não dois minutos para meia-noite.

Pensou novamente em Ted, o Homem Energia, pensou em loucas organizações militares, comerciando entre si armas cada vez mais sofisticadas, e aquela parte obcecada, furiosa e inarticulada de sua mente, tentou calar a lucidez, uma última vez.

Cale-se! Gardener disse a ela.

Foi ao quarto de hóspedes e tirou a camisa. Espiou pela janela e agora via cintilações luminosas emergindo da floresta. A noite chegara. Eles voltavam. Iriam para o galpão e talvez tivessem lá uma pequena sessão. Uma reunião de mentes, em torno dos boxes de chuveiro. Camaradagem, em meio ao familiar clarão verde de mentes violadas.

Divirtam-se, pensou Gardener. Colocou o .45 debaixo do colchão, aos pés da cama, depois desafivelou o cinto. Talvez fosse a última vez, portanto...

Baixou os olhos para a camisa. Apontando para fora do bolso, havia um aro de metal. Era o cadeado, claro. O cadeado que trancava a porta do galpão.

 

Por um momento, que provavelmente pareceu muito mais longo do que real-mente era, Gardener foi incapaz do menor movimento. Aquela irreal sensação de terror de conto de fadas, tornou a invadir seu cansado coração. Viu-se reduzido a um horrorizado espectador, espiando aquelas luzes que se moviam regularmente ao longo da trilha. Logo, o grupo estaria chegando à horta fenomenal. Atravessariam a plantação. Cruzariam o portão do pátio. Chegariam ao galpão. Dariam por falta do cadeado. Entrariam na casa e matariam Jim Gardener ou então enviariam seus átomos desincorporados para Altair-4, aonde quer que houvesse tal lugar.

Seu primeiro pensamento coerente foi o simples pânico, gritando em altos brados: Fuja! Vá embora daqui!

O segundo pensamento foi a trêmula reemergência da razão. Resguarde seus pensamentos! Se já os resguardou antes, resguarde-os agora!

Ele estava em pé sem camisa, com os jeans de cinto desafivelado e zíper arriado, frouxo em torno dos quadris, olhando para o cadeado no bolso da camisa.

Saia daqui imediatamente e vá colocá-lo no lugar. JÁ!

Não... não há mais tempo... Oh, Deus, não há mais tempo! Eles estão na horta...

Dará tempo. Será o tempo exato, se parar de contemplar seu bolso da camisa e entrar em ação!

Gardener conseguiu interromper aquela paralisia com um duro esforço final da vontade, inclinou-se, pegou o cadeado com a chave ainda inserida e correu, puxando o zíper da calça enquanto isso. Esgueirou-se pela porta dos fundos, fez alto apenas por um momento, quando as duas últimas lanternas internaram-se na horta e desapareceram, depois correu em disparada para o galpão.

Fraca e vagamente, podia ouvir as vozes deles em sua mente — vozes tomadas de reverência, admiração e júbilo.

Expulsou aquelas vozes.

A luz verde escapava em leque pela porta do galpão, que ficara entreaberta.

Meu Deus, Gard, como você pôde ser tão idiota? recriminou furiosamente sua mente contida, porém ele sabia como acontecera aquilo. Era fácil esquecer coisas tão mundanas, como tornar a trancar portas, após ver-se duas pessoas pendendo de estacas, com cabos coaxiais partindo de suas cabeças.

Podia ouvi-los agora na horta — podia ouvir o rogaçar dos inúteis e gigantescos pés de milho.

Quando tocou a argola do cadeado, recordou que a fechara, antes de deixá-lo cair no bolso. Sua mão tremeu ao pensar nisso e deixou a maldita coisa cair. Gardener ouviu o baque contra o solo. Procurou o cadeado, sem que a princípio enxergasse alguma coisa.

Sim... lá estava ele, logo depois do estreito leque de pulsante luz verde. Era o cadeado, sim, porém já sem a chave. A chave caíra, com o estremecimento da pancada no chão.

Deus meu Deus meu Deus, soluçou sua mente. Gardener tinha agora o corpo inteiro coberto de pegajoso suor. O cabelo lhe caía nos olhos. Pensou que devia estar fedendo como um macaco rançoso.

Podia ouvir pés de milho e folhagens rogaçando mais alto. Alguém riu tranquilamente — um som chocantemente próximo. Eles estariam emergindo da horta em segundos — Gardener sentia aqueles segundos atropelando-se, como auto-importantes homens de negócios, com ventres bojudos e pastas de executivo. Ficou de joelhos, pegou o cadeado e começou a passar a mão de um lado para outro sobre o chão, tentando encontrar a chave.

Oh sua filha da mãe onde está você? Oh sua filha da mãe onde está você? Oh sua filha da mãe! Onde está você?

Mesmo agora, sentido todo aquele pânico, ele percebia que colocara uma espécie de biombo em torno de seus pensamentos. Funcionaria? Era difícil saber. E, se não encontrasse a chave, isso não iria adiantar nada, iria?

Oh sua filha da mãe onde está você?

Viu uma fosca cintilação prateada, além do ponto onde passava a mão — a chave fora cair muito mais longe do que teria acreditado. Avistá-la fora uma questão de pura sorte... como Bobbi, tropeçando naquela pequena borda metálica que se projetava do solo, dois meses antes, supôs ele.

Agarrou a chave e ficou em pé de um salto. A esquina da casa o deixaria escondido deles apenas um momento mais, porém era tudo que agora lhe restava. Outra mancada — mesmo pequena — significaria o seu fim, talvez nem mesmo houvesse tempo suficiente de executar cada uma das pequeninas e mundanas operações para trancar perfeitamente uma porta com cadeado.

O destino do mundo agora talvez dependa de se um homem consegue trancar uma porta de galpão na primeira tentativa, pensou alvoroçadamente. A vida moderna é tão desafiante!

Por um momento, achou que nem mesmo conseguiria enfiar a chave na fechadura. Ela chocalhou em torno da fenda e não se inseria, estava aprisionada em sua mão trêmula. Então, quando pensou que tudo estava perdido, a chave penetrou. Gardener a girou, soltando a argola do cadeado. Fechou a porta, passou a argola do cadeado através do fecho, depois apertou, com um clique final. Retirou a chave, apertando-a dentro da mão suada. Depois deslizou pela esquina do galpão, como óleo. No exato momento em que desaparecia de vista, os homens e mulheres que haviam ido ver a nave, surgiam junto ao portão do pátio, movendo-se em fila indiana.

Gardener ergueu o braço, a fim de pendurar a chave no prego onde a encontrara. Por um momento de pesadelo, pensou que tornaria a deixá-la cair, que teria de procurá-la entre o mato rasteiro que crescia naquele lado do galpão. Quando pendurou a chave no prego, sua respiração escapou dos pulmões, em trêmulo su-piro.

Parte dele não queria mover-se, apenas ficar ali, congelada. Então, decidiu que seria melhor não correr o risco. Afinal, ele não sabia se Bobbi estava com a chave dela.

Continuou a deslizar ao longo do lado do galpão. Seu tornozelo esquerdo bateu contra o cabo de um ancinho abandonado, que enferrujava entre o mato rasteiro, obrigando-o a trincar os dentes para não soltar um grito de dor. Passou por cima do ancinho e esgueirou-se em torno de outra esquina. Agora, estava na parte dos fundos do galpão.

Ali atrás, aquele som sugante era enlouquecedoramente alto.

Estou bem na traseira dos malditos boxes de chuveiro, pensou. Eles flutuam a centímetros de mim... literalmente centímetros!

Um farfalhar de folhagens. Um quase imperceptível ruído metálico. Gardener sentiu vontade de rir e guinchar ao mesmo tempo. Eles não tinham a chave de Bobbi. Alguém acabara de chegar à lateral do galpão e apanhara a chave que ele pendurara apenas segundos antes — talvez a própria Bobbi.

Ainda quente da minha mão, Bobbi, você percebeu?

Ficou imóvel nos fundos do galpão, pressionado contra a madeira áspera, os braços ligeiramente abertos, as palmas abertas sobre as tábuas.

Você percebeu? E você me ouviu? Algum de vocês me ouve? Irá alguém — Allison, Archinbourg ou Berringer — assomar repentinamente com a cabeça e gritar “Pique, Gard, nós o viiimos?” Minha proteção ainda estará funcionando?

Gardener ficou ali e esperou que o surpreendessem.

Nada aconteceu. Em uma noite normal de verão, ele provavelmente não seria capaz de ouvir o chocalhar metálico, quando a porta foi destrancada o ruído seria suplantado pelo alto cricrilar dos grilos. Agora, no entanto, não havia mais grilos. Pôde ouvir o cadeado sendo aberto; ouviu o rangido das dobradiças ao empurrarem a porta; tornou a ouvir o rangido, quando eles a fecharam. Agora, estavam lá dentro.

Quase imediatamente, as pulsações da luz escapando pelas fendas começaram a acelerar-se, ficaram mais brilhantes e sua mente foi sacudida por um grito de agonia:

Dói! Isso dóóóóiii...

Afastando-se do galpão, ele tomou a direção da casa.

 

Ficou acordado por muito tempo, esperando que eles tornassem a sair do galpão, esperando para ver se havia sido descoberto.

Certo, posso tentar interromper a “transformação”, pensou. Entretanto, isso só dará certo, se eu realmente puder entrar na nave. Serei capaz de entrar lá?

Ele não sabia. Bobbi parecia não ter problemas nesse sentido, porém ela e os outros agora estavam diferentes. Oh, ele também estava passando pela “transformação”; a perda de dentes era uma prova, a capacidade de ouvir pensamentos, outra prova. Mudara as palavras na tela do computador, apenas ao pensar nelas. Entretanto, não adiantava querer enganar-se; estava muito atrasado na competição. Se Bobbi sobrevivesse à entrada na nave e seu velho chapa Gard caísse morto, será que alguns deles, inclusive ela própria, derramaria uma lágrima? Gardener duvidava muito.

Talvez seja tudo que eles querem. Mesmo a própria Bobbi. Esperem que você entre na nave e simplesmente morra, com o cérebro explodindo em uma grande e harmônica transmissão de rádio. Isto pouparia a Bobbi o sofrimento moral de dar cabo de você ela mesma, em um sentido. Assassinato sem lágrimas.

Que eles pretendiam tirá-lo de circulação, Gardener não duvidava mais. Não obstante, achava que talvez Bobbi — a velha Bobbi — o deixasse viver o suficiente para ver o interior da estranha coisa em que tinham levado tanto tempo para desenterrar. No mínimo, seria o correto. E, afinal, pouca diferença fazia. Se o que Bobbi planejava era assassinato, não existia defesa real, existia? Ele tinha que entrar na espaçonave. A menos que entrasse lá, sua idéia mesmo sendo pura loucura, não tinha a menor chance de funcionar, em absoluto.

Você tem que tentar, Gard!

Sua intenção era tentar, tão logo se vissem dentro da nave, algo que provavelmente aconteceria na manhã do dia seguinte. Agora, Gardener achava que talvez devesse pressionar sua sorte um pouco mais. Colocando em execução a esfarrapada idéia que, supunha, devia ser denominada o “plano original”, não haveria meios de fazer alguma coisa por aquele garotinho. O menino teria que vir primeiro.

Ele provavelmente já está morto, Gard!

É possível. No entanto, o velho pensava o contrário; o velho achava que ainda havia um garotinho a ser salvo. Uma criança não importa — não, em face de tudo isto. Aliás, você sabe que é verdade — Haven é como um grande reator nuclear, que está prestes a chegar à linha vermelha. A contenção se derrete. Para criar uma frase.

Era lógico, porém era a lógica de um croupier. Definitivamente, a lógica de um matador. Ted, o Homem Energia e sua Lógica. Se ele quisesse disputar o jogo dessa maneira, por que preocupar-se?

O menino importa, do contrário, nada importa.

Desta maneira, talvez ele até pudesse salvar Bobbi. Contudo, era difícil pensar em tal possibilidade; Gardener achava que ela já fora longe demais para ser salva. Mesmo assim, tentaria.

Tudo muito improvável, Gard, velho Gard.

Certo. O relógio marca um minuto para a meia-noite... agora, estamos reduzidos a contar os segundos.

Assim pensando, ele deslizou para a anulação que era o sono. Um sono acompanhado por pesadelos, nos quais ele flutuava em um límpido banho verde, amarrado por grossos cabos coaxiais. Queria gritar e não podia, porque os cabos saíam de sua boca.

 

O FURO DE REPORTAGEM

Confinado nos fundos excessivamente decorados da Bounty Tavern, bebendo cervejas Heineken a um dólar a garrafa e ridicularizado por David Bright, que descera a vulgares profundidades de humor — chegando mesmo a comparar John Leandro a Jimmy Olson, o amigo do Super-homem — Leandro tinha vacilado. Não adiantava dizer o contrário a si mesmo. De fato, ele tinha vacilado. Entretanto, homens de visão sempre tiveram que aturar as farpas do ridículo, um bocado deles tendo sido queimados, crucificados ou aumentados artificialmente de altura, em dez ou quinze centímetros, nos instrumentos de tortura da Inquisição, por causa de suas visões. Ouvir David perguntar-lhe, durante as cervejas na Bounty, se seu Relógio de Pulso Secreto estava funcionando bem, dificilmente seria a pior coisa capaz de acontecer-lhe.

Não obstante, droga, aquilo doía fundo.

John Leandro decidira que David Bright — e todos aqueles a quem Bright relatara as idéias de Johnny Biruta, sobre Algo Grande Acontecendo em Haven — terminariam rindo amarelo. Porque, de fato, algo grande estava acontecendo lá. Ele podia sentir isso, em cada osso do corpo. Havia dias, quando o vento soprava do suleste, que quase julgava ser capaz de farejá-lo.

Suas férias tinham começado na sexta-feira anterior. Ele esperava ir a Haven nesse mesmo dia. No entanto, morava com a mãe viúva, e ela estivera contando tanto com o filho para levá-la a Nova Scotia, em visita à irmã... Assim disse a ele, mas se John tinha compromissos, bem, ela compreendia; afinal de contas, era velha e, certamente, deixara de ser uma companhia divertida; era apenas alguém que lhe cozinhava as refeições, lavava suas roupas de baixo, mas tudo bem, vá em frente, Johnny, vá em frente e cace seu furo; eu me conformo em falar com Megan pelo telefone, talvez dentro de uma ou duas semanas, seu primo Alfie a traga aqui para visitar-me, Alfie é um filho tão dedicado, etcetera, etcetera, o mesmo, o mesmo, ad infinitum, ad infinitum.

Na sexta-feira, Leandro levou a mãe a Nova Scotia. Naturalmente, tiveram que pernoitar lá e, quando retornaram a Bangor, o sábado já ia avançado. O domingo era um dia impróprio para iniciar alguma coisa, em vista de sua aula na escola dominical para crianças do primeiro e segundo graus, às nove da manhã, comparecimento ao culto às dez e reunião dos Jovens por Cristo na reitoria meto-dista, às cinco da tarde. Na reunião dos Jovens por Cristo, um orador especial proporcionou-lhes uma mostra de slides sobre o Armagedon. Enquanto falava a eles como os pecadores impenitentes seriam castigados com pústulas, ulcerações e doenças nas vísceras e intestinos, Georgina Leandro e outras filiadas à Assistência das Senhoras passavam copos de papel com refrigerante e biscoitos de aveia. E, durante o anoitecer, no porão da igreja sempre havia um coral festivo por Cristo.

Os domingos sempre o deixavam sentindo-se exaltado. E esfalfado.

 

Desta maneira, somente na segunda-feira, 15 de agosto, Leandro finalmente jogou no assento dianteiro de seu Dodge usado os blocos de apontamentos, seu gravador Sony, sua Nikon e uma sacola especial com filmes e lentes diversas, dispondo-se a partir para Haven... e ao encontro do que esperava fosse a glória jornalística. Ele não ficaria amedrontado, se soubesse que se aproximava do ponto focal do que brevemente se tornaria a maior história, desde a crucificação de Jesus Cristo.

O dia estava calmo, azul e doce — bastante quente, mas não ferozmente tórrido e úmido como nos últimos dias. Era um dia que todos na Terra marcariam para sempre na memória. Johnny Leandro quisera uma história, mas nunca tinha ouvido o antigo provérbio que diz: “Deus disse, tome o que quiseres... mas pagarás por isso.”

Ele sabia apenas que tropeçara na borda de algo, e quando tentara arrancá-lo, esse algo permanecera firme... isto significando que talvez fosse maior do que se pensaria a princípio. De maneira alguma ele pensava em desistir; pretendia desenterrar seu assunto. Nem todos os David Bright do mundo, com suas piadinhas idiotas sobre relógios de pulso de Jimmy Olson e Fu Manchu, seriam capazes de dissuadi-lo.

Ligou o motor do Dodge e começou a afastar-se do meio-fio.

— Não esqueça seu almoço, Johnny! — gritou sua mãe.

Ela desceu apressadamente até a calçada, ofegando, com um saco de papel manilha em uma das mãos. Grandes manchas engorduradas já se formavam no papel acastanhado; desde o curso primário, o sanduíche favorito de Leandro era o feito com salsicha bologna, rodelas de cebola e óleo.

— Obrigado, mãe — disse ele, inclinando-se para pegar o saco e deixá-lo no piso do carro. — De qualquer modo, não era preciso fazer isso. Eu poderia comer um hambúrguer em qualquer lugar...

— Já lhe disse mil e uma vezes — replicou ela —, que não deve fazer refeições nessas lanchonetes de beira de estrada, Johnny. A gente nunca sabe se a cozinha é limpa ou suja. Micróbios — acrescentou ela agourentamente, inclinando-se para diante.

— Mãe, eu preciso ir e...

— Não conseguimos enxergar os micróbios, aí está! — prosseguiu a Sra. Leandro, só pretendendo interromper o tema, após ter dito o que era preciso.

— Certo, mãe — disse Leandro, resignado.

— Alguns desses lugares são um paraíso para os micróbios — disse ela.

— Entenda, os cozinheiros talvez não sejam limpos. Talvez não lavem as mãos, quando saem do banheiro. Talvez tenham sujeira e até mesmo fezes debaixo das unhas. Isto não é uma coisa que me agrade discutir, compreenda, mas uma mãe, às vezes, precisa instruir seu filho. Comer em lugares assim, pode deixar uma pessoa muito, muito doente.

— Mãe...

Ela deu uma risadinha sofrida e passou momentaneamente o avental no canto do olho.

— Oh, bem sei que sua mãe é tola, apenas uma velha tola, com a cabeça cheia de esquisitas idéias antiquadas e, provavelmente devia aprender a ficar de boca fechada.

Leandro identificou o truque manipulativo mas, ainda assim, aquilo o deixava sentindo-se mal, culpado, como se tivesse oito anos de idade.

— Não, mãe — falou. — Não acho que seja nada disso.

— Só estou querendo dizer que você é o grande jornalista, enquanto que eu apenas fico em casa, arrumo sua cama, lavo suas roupas e arejo seu quarto, quando você fica com gases por beber cerveja demais.

Leandro baixou a cabeça e ficou em silêncio, esperando ser liberado.

— Faça isto por mim. Afaste-se das lanchonetes de beira de estrada, Johnny, porque pode adoecer. Devido aos micróbios.

— Eu prometo, mãe.

Satisfeita por haver arrancado uma promessa do filho, ela agora queria deixá-lo ir.

— Estará em casa para jantar?

— Claro que sim — respondeu Leandro, na falta de outra resposta.

— Às seis horas? — insistiu ela.

— Sim! Sim!

— Eu sei, eu sei, sou apenas uma velha tola...

— Até logo, mãe! — disse ele apressadamente, e o carro afastou-se do meio-fio.

Olhando pelo retrovisor viu a mãe parada na calçada, acenando. Acenou de volta, depois baixou a mão, desejando que ela tornasse a entrar em casa... e mais esclarecida. Quando finalmente dobrou uma rua, dois quarteirões abaixo, com sua mãe já fora de vista, Leandro sentiu uma vaga, mas indiscutível, leveza no coração. Certo ou errado, ele sempre se sentia assim, quando por fim perdia a mãe de vista.

 

Em Haven, Bobbi Anderson mostrava a Jim Gardener um aparelho respiratório modificado. Ev Hillman o teria identificado; os respiradores eram bem parecidos àquele que entregara ao policial Butch Dugan. Aquele, no entanto, tinha a função de proteger Dugan do ar de Haven; os respiradores que Bobbi mostrava, tinham reservas precisamente disso — era ao ar de Haven que eles estavam acostumados, portanto, seria o ar de Haven que respirariam, se entrassem na nave dos Tommyknockers. Eram nove e meia.

Nesse mesmo momento, em Derry, John Leandro havia parado ao lado da estrada, não muito longe do lugar onde tinham sido encontrados o cervo esquartejado e a viatura dos agentes Rhodes e Gabbons. Abrindo o porta-luvas, ele checou o Smith & Wesson .38, que havia recolhido em Bangor, uma semana antes. Tirou-o por um instante, nem mesmo aproximando o indicador do gatilho, embora soubesse que a arma estava descarregada. Gostava da maneira compacta como ela se ajustava à sua palma, gostava do peso e da sensação de puro poder que, de algum modo, ela lhe transmitia. Entretanto, também o deixava sentindo-se algo receoso, com se ele talvez houvesse tirado de alguma coisa um pedaço grande demais para que pudesse mastigá-lo.

Um pedaço de quê?

Ele não tinha bem certeza. Um pedaço de alguma carne estranha.

Micróbios, disse a voz de sua mãe em sua mente. Comer em lugares assim, pode deixar uma pessoa muito, muito doente.

Olhou no porta-luvas, certificando-se de que a caixa de balas continuava lá, depois tornou a guardar a arma. Imaginava que transportar uma arma de fogo no porta-luvas de um veículo motorizado devia ser contra a lei (tornou a pensar na mãe, agora sem mesmo aperceber-se disso). Podia visualizar um tira mandando-o parar por algo rotineiro, pedindo seus documentos e tendo um vislumbre do .38, quando ele abrisse o porta-luvas. Era assim que os assassinos sempre eram apanhados, no Alfred Hitchcock apresenta, que ele e a mãe viam todas as noites de sábado, na televisão por cabo que apresentava o filme. Esse também seria um furo de espécie diferente: REPÓRTER DO “DAILY NEWS” DE BANGOR PRESO POR PORTE ILEGAL DE ARMA.

Pois bem, se está tão preocupado, tire os documentos do porta-luvas e os coloque em sua carteira.

Só que não ia fazer isso. Havia perfeito sentido na idéia, porém também assemelhava-se a comprar problemas... e a voz da razão soava demasiadamente parecida à voz de sua mãe, alertando-o sobre micróbios ou instruindo-o (como fazia quando ele era criança) sobre os horrores que podiam resultar, caso ele esquecesse de colocar papel por todo o assento do vaso sanitário público, antes de sentar-se nele.

Leandro continuou a rodar, cônscio de que seu coração batia um pouco mais depressa, de que suava um pouco além do que explicaria o calor daquele dia.

Alguma coisa grande... há dias em que quase consigo farejá-la.

Sim. Havia alguma coisa acontecendo por lá, sem dúvida. A morte da Sra. McCausland (uma explosão de fornalha em julho? É mesmo?); o desaparecimento dos dois agentes investigadores; o suicídio do policial que, supostamente, estivera apaixonado por ela. E, antes de tudo isto, houvera ainda o desaparecimento do garotinho. David Bright dissera que o avô de David Brown andara soltando um monte de absurdas tolices sobre telepatia e truques de mágica que realmente funcionavam.

Eu só desejaria que me tivesse procurado, em vez de Bright, Sr. Hillman pensou Leandro, talvez pela quinquagésima vez.

Exceto que, agora, Hillman desaparecera. Não aparecera em seu quarto alugado, nas duas últimas semanas. Não voltara ao Hospital de Derry para visitar o neto, quando as enfermeiras quase precisavam expulsá-lo de lá, noites antes. A linha oficial da polícia estadual era a de que Ev Hillman não estava desaparecido. Isto, contudo, era uma inversão, pois aos olhos da lei, um adulto legal não podia desaparecer, até que outro adulto legal desse parte do desaparecimento, para tanto preenchendo os adequados formulários. Desta maneira, aos olhos de John Leandro, tudo estava longe de ser perfeito. A senhoria de Hillman, em Derry, informara que o velho lhe devia sessenta pratas — e, até onde Leandro pudera descobrir, aquela era a primeira conta que o velho deixara de pagar, em toda a sua vida.

Algo grande... carne estranha.

E, nestes dias, aquelas não eram todas as singularidades emanando de Haven. Um incêndio, também em julho, matara um casal na Estrada de Nista. No mês em curso, um médico que pilotava um pequeno avião, batera no chão com seu aparelho e este se incendiara. Isso havia acontecido em Newport, é verdade, porém o controlador do Departamento Federal de Aviação, no Aeroporto Internacional de Bangor, confirmara que o infortunado médico tinha sobrevoado Haven, e em altitude ilegalmente baixa. O serviço telefônico de Haven passara a transmitir ruídos esquisitos. Às vezes, conseguia-se uma ligação, em outras, isso era impossível. Ele solicitara ao Departamento de Impostos de Augusta uma lista dos eleitores de Haven (pagando a taxa requerida de seis dólares, a fim de obter as nove folhas computadorizadas), e conseguira descobrir parentes de quase sessenta moradores de Haven — parentes que residiam em Bangor, Derry e áreas vizinhas — em seus momentos de lazer.

Não encontrara nenhum — nem um apenas — que tivesse visto seus parentes de Haven, desde mais ou menos 10 de julho... cerca de um mês antes. Nem um só.

Claro está que muitos dos entrevistados nada viram de estranho nisto. Alguns deles não mantinham boas relações com os parentes de Haven, pouco ligando se, nos últimos seis meses, os tivessem visto ou tido notícias deles. Outros ficaram surpresos a princípio, depois pensativos, quando Leandro frisou a duração de tempo sobre o que falavam. Naturalmente, o verão era uma estação ativa, para a maioria da pessoas. O tempo se escoava com uma leve despreocupação, desconhecida no inverno. E, claro, eles tinham falado uma ou duas vezes com a tia Mary ou o irmão Bill ao telefone — às vezes não se conseguia ligação, mas em geral era possível.

Houve outras suspeitas similaridades no testemunho das pessoas a quem Leandro entrevistou, similaridades que tinham deixado suas narinas arfando, diante do cheiro de algo decididamente singular:

Ricky Berringer era pintor de paredes em Bangor. Newt, seu irmão mais velho, era empreiteiro-carpinteiro, sendo também membro do conselho municipal de

Haven. “Convidamos Newt para almoçar, perto de fins de julho”, disse Ricky, “mas ele falou que estava gripado”.

Don Blue era um corretor de imóveis em Derry. Sua tia Sylvia, residente em Haven, tinha o hábito de almoçar com ele e a esposa, quase todo domingo. Nos últimos três domingos, ela se desculpara por não poder vir ©¤ em um deles, por estar gripada (parece estar havendo uma epidemia de gripe em Haven), pensou Leandro, mas em nenhum outro lugar, compreenda-se — apenas em Haven), nas outras vezes, por fazer tanto calor, que ela não sentia disposição para viajar. Após mais algumas perguntas, Blue percebeu que haviam sido mais ou menos cinco domingos em que sua tia deixara de aparecer — aliás, talvez fossem seis.

Bill Spruce tinha uma manada de vacas leiteiras em Cleaves Mills. Seu irmão Frank possuía uma manada em Haven. A cada uma ou duas semanas, os dois costumavam reunir-se, mesclando suas famílias extremamente grandes durante algumas horas — o clã Spruce consumia toneladas de churrasco e galões de cerveja a Pepsi-Cola; Frank e Bill sentavam-se à mesa de piquenique, no pátio traseiro da casa de Frank, ou na varanda da frente da casa de Bill, onde ficavam comparando notas sobre o que, simplesmente, chamavam de Os Negócios. Bill admitia que há coisa de mais ou menos um mês não via Bill — seu irmão primeiro alegara um problema com o fornecedor de rações e depois com os fiscais do leite. Nesse meio tempo, Bill também enfrentara problemas. Durante a última onda de forte calor, perdera meia dúzia de vacas Holstein. Depois acrescentou que, além disso, sua esposa sofrerá um ataque cardíaco. Neste verão, ele e o irmão não haviam tido muito tempo para visitas... mas, ainda assim, o homem demonstrara uma legítima surpresa, quando Leandro pegou seu calendário de bolso e ambos constataram quanto tempo havia passado: os dois irmãos não haviam estado juntos desde 30 de junho. Spruce assobiou, empurrando o boné para trás da cabeça.

— Caramba, é um bocado de tempo! — exclamou. — Acho que vou até Haven para ver Frank, agora que a minha Evelyn está convalescendo.

Leandro nada disse, porém outros testemunhos reunidos nas duas últimas semanas o faziam prever que Bill Spruce bem poderia descobrir que aquela viagem talvez lhe prejudicasse a saúde.

— Tenho a sensação de que comi fora — disse Alvin Rutledge a Leandro.

— Como assim? — perguntou Leandro.

Alvin Rutledge olhou astutamente para o jovem repórter.

— Mais uma cervejinha, até que descia bem — disse. Os dois estavam na Taberna de Nan. — É engraçado, como falar deixa a gente com a garganta seca, meu chapa.

— Sem dúvida — replicou Leandro.

Fez sinal à garçonete para trazer mais duas. Rutledge bebeu um longo gole quando a cerveja chegou, limpou a espuma do lábio superior com o dorso da mão, e disse:

— O coração me batia muito depressa. Tive dor de cabeça. Sentia vontade de vomitar as tripas. E, por falar nisto, vomitei mesmo. Mal deu tempo. Baixei a janela e foi como vomitar diante do ventilador, se foi!

— Uau! — disse Leandro, só para dizer alguma coisa.

A imagem de Rutledge “vomitando diante do ventilador” surgiu brevemente em sua cabeça. Expulsou a idéia. Pelo menos, tentou.

— E, veja isto aqui.

Rutledge ergueu o lábio superior, revelando o remanescente de seus dentes.

— ‘stá hendo uma halha na ente? — perguntou.

Leandro viu muitas falhas na frente, mas achou que não seria polido dizer isso. Simplesmente assentiu. Rutledge afirmou com a cabeça e deixou o lábio ao lugar. Foi um alívio e tanto.

— Nunca tive dentes muito bons — disse Rutledge, indiferentemente. — Quando arranjar trabalho de novo e puder comprar um bom par de dentaduras, mando arrancar tudo. Que se fodam! A questão é que tinha os dois dentes da frente no lugar, antes de ir a Haven faz duas semanas, ver seu avô. Diabo, eles nem mesmo estavam frouxos!

— Caíram quando começou a aproximar-se de Haven?

— Eles não caíram — disse Rutledge, terminando sua cerveja. Foram vomitados.

— Oh! — exclamou Leandro fracamente.

— Sabe de uma coisa? Outra cerveja até que descia bem. Falar...

— Deixa a garganta seca, eu sei — disse Leandro, fazendo sinal para a garçonete.

Já bebera o seu limite, mas concluiu que também poderia beber uma outra.

 

Alvin Rutledge não foi a única pessoa que tentara visitar um parente ou amigo em Haven durante julho, nem a única que passou mal e deu meia volta. Utilizando a lista de eleitores e catálogos telefônicos da área como ponto de partida, Leandro encontrou três pessoas com histórias similares às de Rutledge. Descobriu um quarto incidente por pura — ou quase pura — coincidência. Sua mãe sabia que ele “rastreava” certo aspecto de sua “grande história” e, por acaso, mencionou que sua amiga Eileen Pulsifer tinha uma amiga residente em Haven.

Eileen era quinze anos mais velha do que a mãe de Leandro, o que a deixava perto dos setenta. Durante o chá e mascando bolinhos de gengibre, ela contou uma história semelhante às que ele já ouvira.

A amiga da Sra. Pulsifer era Mary Jacklin (cujo neto era Tommy Jacklin). As duas haviam retribuído visitas durante mais de quarenta anos e era freqüente tomarem parte em torneios locais de bridge. Neste verão, contudo, ela não tinha visto Mary. Nem uma só vez. Tinham-se falado por telefone e ela parecia estar muito bem; suas escusas sempre pareciam críveis... mas, ainda assim, logo sobre elas não pareciam muito coerente: ela estava com uma forte dor de cabeça, havia coisas demais para assar, a família decidira, de uma hora para outra, ir até Kennebunk e visitar o Museu dos Bondes.

— Vistos isoladamente, cada pretexto tinha consistência, mas se reunidos, careciam bastante estranhos, se é que me entende. — Ela passou a travessa de bolinhos. — Mais um?

— Não, obrigado — disse Leandro.

— Oh, não faça cerimônia! Sei como são vocês, garotos! Sua mãe ensinou-lhe a ser polido, mas ainda está por nascer um menino que recuse um bolinho de gengibre! Pois bem, vá em frente e apanhe o que deseja!

Sorrindo obedientemente, Leandro apanhou outro bolinho.

Recostando-se na cadeira e dobrando as mãos sobre o ventre firme e arredondado, a Sra. Pulsifer prosseguiu:

— Comecei a pensar que alguma coisa podia estar errada... continuo pensando assim, para ser franca. A primeira idéia a me passar pela cabeça, foi que talvez Mary não quisesse mais ser minha amiga... que eu poderia ter dito ou feito algo que a ofendesse. Entretanto, disse para mim mesma que não era possível, que se eu tivesse feito algo, certamente ela me diria. Após quarenta anos de amizade, creio que diria. Por outro lado, Mary não parecia distante comigo, compreenda...

— Sim, mas parecia diferente.

Eileen Pulsifer assentiu com firmeza.

— Exatamente. E isso me deixou pensando que ela talvez estivesse doente, que talvez — Deus nos perdoe — seu médico tivesse descoberto um câncer ou algo semelhante dentro dela... e que Mary não desejava contar isso aos velhos amigos. Assim, liguei para Vera e disse: “Vamos até Haven, Vera, visitar Mary. Não diremos a ela que vamos, porque assim não telefonará para cá, cancelando a visita. Apronte-se, Vera”, falei para ela, “porque estarei em sua casa às dez horas. Se ainda não estiver pronta, irei sem você.”

— Vera é...

— Vera Anderson, de Derry. A minha melhor amiga neste mundo, John, tirando-se Mary e sua mãe. Acontece que, naquela semana, sua mãe tinha ido a Monmouth, visitar a irmã.

Leandro recordava bem: uma semana da tanta paz e quietude, era uma semana jamais esquecida.

— Então, as duas foram para lá.

— Certo.

— E a senhora sentiu-se mal.

— Mal? Eu pensei que fosse morrer. Meu coração! Ela aferrou dramaticamente a mão sobre um dos seios. — Batia tão depressa! Minha cabeça começou a doer, deitei sangue pelo nariz, e Vera ficou assustada. Ela disse: “Dê meia volta imediatamente, Eileen, você tem que ir para o hospital, agora mesmo!”

“Pois bem, consegui dar a meia volta — mal me lembro como, porque o mundo girava em torno de mim — mas então minha boca sangrava e dois dentes me caíram da boca. Simplesmente, caíram! Já ouviu falar em uma coisa assim?

— Não — mentiu ele, pensando em Alvin Rutledge. — Onde foi que isso aconteceu?

— Bem, eu lhe disse — íamos visitar Mary Jacklin...

— Eu sei, mas já estavam em Haven, quando a senhora adoeceu? E por que estrada seguiam?

— Oh, entendo! Não, ainda não estávamos lá. Estávamos indo pela Estrada Velha de Derry. Em Troy.

— Perto de Haven, então.

— Oh, faltando mais ou menos quilômetro e meio para os limites da cidade. Fazia um certo tempo que eu não me sentia muito bem — tonteiras, compreenda — mas não queria dizer a Vera. Achei que acabaria ficando melhor.

Vera Anderson nada havia sentido, o que deixou Leandro confuso. Era algo que não se encaixava. Ela não sangrara pelo nariz e nem perdera dentes.

— Não, ela não passou mal, em absoluto — disse a Sra. Pulsifer. — Apenas ficou apavorada. Acho que seu mal foi o medo. Por minha causa... e também por causa dela, imagino.

— Como assim?

— Bem, aquela estrada é terrivelmente deserta. Ela pensou que eu fosse desmaiar. Aliás, quase desmaiei. Talvez passassem quinze, vinte minutos, antes que aparecesse alguém por lá.

— Ela não poderia ter dirigido o carro para a senhora?

— Nem pensar, John! Há anos que Vera tem distrofia muscular e, por isso, usa enormes reforços de metal nas pernas — coisas de aparência cruel, sem dúvida, como algo que se esperaria ver em uma câmara de tortura. Às vezes, quando vejo aquilo, até choro com pena dela.

 

Faltando quinze para as dez da manhã de 15 de agosto, Leandro entrou na área da cidade de Troy. Sentia o estômago tenso pela expectativa e — falando sério, amigos — também uma ponta de medo. Sua pele estava fria.

Talvez eu passe mal. Talvez passe mal e, neste caso, vou deixar trinta metros de borracha impressos no asfalto, quando manobrar para sair da área. Morou?

Morei, chefe, respondeu a si mesmo. Morei, claro que morei!

Você também pode ficar sem alguns dentes, advertiu-se.

A perda de alguns dentes, no entanto, parecia um preço pequeno a pagar por uma história que talvez lhe conferisse o Prêmio Pulitzer... e, também muito importante, isso deixaria David Bright verde de inveja, sem a menor dúvida.

Cruzou a cidadezinha de Troy, onde tudo parecia excelente... embora mais lento do que o costumeiro. A primeira falha na marcha normal da situação, surgiu a cerca de quilômetro e meio ao sul, de uma direção que ele não teria esperado. Leandro estivera ouvindo a WZON, de Bangor, no rádio do carro. De repente, o sinal AM normalmente forte, começou a oscilar e tremular. Leandro podia ouvir uma... não, duas... não, três... estações mais, misturadas àquele sinal. Franziu a testa. Isto às vezes acontecia à noite, quando o resfriamento radiante rarefazia a atmosfera e permitia que os sinais de rádio atingissem maiores distâncias. Contudo, jamais vira tal coisa ocorrer em uma faixa AM, pela manhã, nem mesmo durante aqueles períodos de ótimas condições rádio transmissoras, que radioamadores licenciados chamam de skip.

Ele moveu o ponteiro do rádio do Dodge e ficou espantado com o fluxo de transmissões conflitantes que escapavam dos alto-falantes — todas superpostas. Em algum lugar, como fundo, ele podia ouvir Paul Harvey exaltando o estilo americano de vida. Girou o ponteiro um pouco mais e captou uma transmissão momentaneamente límpida, tão surpreendente, que freou o carro. Ficou imóvel, fitando o rádio com olhos esbugalhados.

A transmissão era em japonês.

Quieto, ele aguardou o inevitável esclarecimento: “Esta aula de japonês para principiantes, foi levada até você sob o patrocínio de seu vendedor local das tintas Kyanize”, ou algo semelhante. O locutor terminou o que dizia. Em seguida, foi a vez dos Beach Boys, cantando “Be True to Your School”. Em japonês.

Leandro continuou sintonizando a faixa KHZ, com mão trêmula. Era tudo mais ou menos a mesma coisa. Conforme acontecia à noite, o emaranhado de vozes e música piorou, ao sintonizar para freqüências mais altas. Por fim, a confusão ficou tão séria, que começou a assustá-lo — era o equivalente de audiência a uma massa silvante de serpentes. Desligando o rádio, ficou sentado ao volante, de olhos muito abertos, o corpo zumbindo ligeiramente, como um homem dirigindo em baixa velocidade.

O que significa isto?

Era tolice especular, quando a resposta jazia a não mais de dez quilômetros adiante... sempre presumindo que conseguisse descobri-la, claro está.

Oh, eu acho que vou descobrir o que é. Você talvez não goste do que irá descobrir mas, claro, acho que descobrirá, sem o menor problema.

Leandro olhou em torno. O feno, no campo à sua direita, estava longo e pendente. Demasiado longo e pendente para agosto. Não houvera nenhum primeiro corte, em princípios de julho. De algum modo, ele pensou que tampouco haveria qualquer corte em agosto. Olhando para a esquerda, avistou um celeiro em ruínas, cercado por peças enferrujadas de carros. O cadáver de um Studebaker 57 apodrecia na goela do celeiro. As janelas pareciam espiar para ele. Não havia pessoas por lá, pelo menos que ele visse.

Uma voz quieta, uma vozinha muito polida, falou dentro dele. Era a voz de uma criança bem-comportada, presente a um chá que se tornara decididamente assustador:

Por favor, eu queria ir para casa!

Sim. Ir para casa, para Mamãe. Ir para casa, em tempo de ver as novelas da tarde com ela. Sua mãe ficaria satisfeita em vê-lo de volta com seu furo de reportagem, talvez ainda mais, ao vê-lo voltar sem ele. Os dois comeriam biscoitos e bebe-riam café. Conversariam. Ela conversaria, preferentemente enquanto ele ouvia. Sempre fora assim e, em realidade, não havia sido ruim. Sua mãe podia ser uma criatura irritante às vezes, mas era...

Segurança.

Havia segurança com ela, claro. Exatamente. Segurança. E o que quer que estivesse acontecendo ao sul de Troy, naquela sonolenta tarde de verão não continha segurança alguma.

Por favor, eu queria ir para casa!

Certo. Provavelmente houvera ocasiões para Woodward e Bernstein sentirem algo semelhante, quando os rapazes de Nixon pressionavam de fato. Bernard Fali com certeza se sentira assim, ao descer do avião em Saigon pela última vez. Quando a gente vê os correspondentes na televisão, falando de lugares problemáticos, como o Líbano ou Teerã, eles apenas mostravam uma aparência de calma, frieza, despreocupação. Os telespectadores jamais tinham a chance de vistoriar-lhes as cuecas.

A história está aí e vou persegui-la. Depois, quando receber meu Prêmio Pulitzer, poderei dizer que devo tudo isso a David Bright... e ao meu secreto relógio de pulso Super-homem.

Ligando novamente o motor do Dodge, Leandro tomou a direção de Haven.

 

Ainda não tinha rodado dois quilômetros, quando começou a sentir-se ligeiramente indisposto. Imaginou que fosse algum sintoma físico, proveniente de seu medo, e procurou ignorá-lo. Então, como aquilo foi piorando, perguntou-se o que poderia ter comido (como geralmente todos fazem, se não desaparece a náusea pousada no estômago, como pequena nuvem negra). Nada havia de errado por aí. Ao levantar-se pela manhã, não estava sentindo medo, porém estivera expectante, ansiosamente tenso; em resultado, rejeitara o costumeiro bacon com ovos fritos, ficando no chá com torradas secas. E isso fora tudo.

Eu queria ir para casa! A voz agora era mais estridente.

Leandro seguiu em frente, trincando os dentes com firmeza. O furo de reportagem estava em Haven. Se não pudesse entrar lá, não haveria furo algum. Era imperioso que fosse. Ponto final.

A menos de quilômetro e meio da linha de limites da cidade — o dia tinha uma natureza sobrenatural, absolutamente silenciosa — do banco traseiro do carro partiu uma série de bips, bops e zumbidos, assustando-o a tal ponto, que ele soltou um grito e tornou a parar o carro, à margem da estrada.

Quando olhou para trás, inicialmente foi incapaz de acreditar no que via. Deduziu que só podia ser alucinação, produzida pela crescente náusea que o atacava.

No fim de semana anterior, quando estivera com a mãe em Halifax, ele levara o sobrinho Tony a uma festividade para eleição da Rainha dos Laticínios. Tony (considerado privadamente por Leandro um pestinha sem educação), ocupara o banco traseiro do carro e ficara distraindo-se com um brinquedo um pouco semelhante ao suporte de um telefone. O brinquedo tinha o nome de “Merlin” e funcionava à base de um chip de computador. Apresentava quatro ou cinco jogos simples, os quais exigiam também simples façanhas de memorização ou a aptidão em identificar uma série matemática simples Leandro recordava que o brinquedo também apresentava o “jogo-da-velha”.

Tony certamente acabara esquecendo o brinquedo no banco traseiro e, agora, ele parecia ter enlouquecido, com suas luzes vermelhas faiscando e piscando em padrões desencontrados (seriam mesmo? Ou talvez a intermitência luminosa fosse apenas um pouco rápida demais para que a captasse?), enquanto emitia sua série simples de sons, incessantemente. Estava funcionando por si mesmo.

Não... não! Devo ter passado por alguma depressão na estrada ou coisa assim. Nada mais que isso. O solavanco fez com que ele se ligasse por si mesmo. E começou a funcionar.

No entanto, podia ver a pequena alavanca preta no lado do brinquedo. Continuava em Off, mas Merlin insistia em seus bips, bops e zumbidos. Fez com que ele recordasse um caça-níqueis de Las Vegas, despachando o prêmio máximo.

A caixa plástica da coisa começou a fumegar. O plástico em si, estava afundando... encolhendo... enrugando-se inteiramente. As luzes piscavam mais depressa... mais e mais depressa... De repente, acenderam-se todas ao mesmo tempo, em tom vermelho-vivo, e a engenhoca emitiu um zumbido sufocado. O envoltório plástico se abriu, rachando-se. Houve um chuveiro de farpas plásticas. O estofamento do banco começou a derreter sob o brinquedo.

Ignorando seu estômago, Leandro ficou de joelhos e jogou aquela coisa ao chão. Havia uma área estorricada no assento, onde Merlin estivera pousado.

O que significa isto?

A resposta foi irrelevante, quase um grito:

POR FAVOR, QUERO IR AGORA PARA CASA!

“A aptidão de isolar uma série matemática simples.” Terei pensado isso? O John Leandro que levou “bomba” em matemática geral, no ginásio? Está mesmo falando sério?

Isto agora não vem ao caso; apenas DÊ O FORA!

Não!

Ligando o motor do Dodge, recomeçou a rodar. Tinha avançado menos de vinte metros, quando pensou de repente, com louca euforia:

A aptidão de isolar uma série matemática simples indica a existência de um caso geral, certo? E, por falar nisto, podemos expressar a questão da seguinte maneira:

ax[2] + bxy = cy[2] + dx + ey + f = 0.

Claro. Funcionará, desde que a, b, c, d e f sejam constantes. Imagino. Oh, pode apostar, é isso mesmo. Entretanto, não se poderia permitir que a b ou c fossem 0 — isso transtornaria tudo, sem dúvida! E f, que cuide de si mesmo! Ha!

Leandro sentiu vontade de vomitar, mas ainda proferiu uma aguda e triunfante risada. De repente, houve a sensação de que seu cérebro havia decolado, escapando pelo topo do crânio. Embora não sabendo (pois em geral havia cochilado bastante, nas aulas daquela parte da Matemática Careta), ele reinventara a equação quadrada geral em duas variáveis que, de fato pode ser empregada para isolar-se componentes, em uma série matemática simples. Isso fez sua mente explodir.

Um momento mais tarde, o sangue corria de seu nariz, em espantoso fluxo.

Isto encerrou o primeiro esforço de John Leandro para entrar em Haven. Fez a mudança para marcha à ré e recuou irregularmente estrada acima, oscilando de uma margem para a outra, o braço direito enganchado acima do encosto do banco dianteiro, o sangue jorrando sobre o ombro da camisa, enquanto espiava pela janela traseira, com olhos lacrimosos.

Seguiu em marcha à ré por cerca de quilômetro e meio, depois manobrou em uma pista de rolamento. Baixou os olhos para si mesmo. Sua camisa estava encharcada de sangue. No entanto, sentia-se melhor. Um pouco melhor, emendou.

Ainda assim, não perdeu tempo; rodou para a cidadezinha de Troy e estacionou diante do magazine geral.

Entrou na loja, já esperando que o grupo costumeiro de velhos olhasse para sua camisa sangrenta, em silenciosa surpresa ianque. No entanto, apenas o atendente estava lá e não pareceu nem um pouco surpreso — fosse em relação ao sangue ou à pergunta de Leandro sobre que camisas a loja possuía em estoque.

— Parece que seu nariz esteve sangrando — disse o atendente com suavidade, mostrando a Leandro uma seleção de camisetas.

Era uma variedade bastante grande para um estabelecimento pequeno como aquele, pensou Leandro. Aos poucos, recomeçava a controlar-se, embora a cabeça ainda doesse e o estômago continuasse ácido e revolto. A hemorragia nasal o deixara muitíssimo assustado.

— Tem toda razão — respondeu Leandro.

Deixou que o velho selecionasse a camisa para ele, porque havia sangue seco aderido em suas duas mãos. As peças tinham os tamanhos S, M, L e LX.

Algumas exibiam o letreiro DIABO, ONDE FICA TROY, MAINE? Em outras, via-se uma lagosta e o slogan o MELHOR RABO QUE JÁ PEGUEI FOI EM TROY, MAINE. Em outras ainda, havia um enorme borrachudo, mais parecendo um monstro do espaço exterior. Seu letreiro proclamava: PÁSSARO SÍMBOLO DO ESTADO DO MAINE.

— O senhor tem aqui um bocado de camisas — disse Leandro, apontando para a pilha DIABO, ONDE FICA, em tamanho M.

Tinha achado divertida a que mostrava a lagosta, porém decidiu que sua mãe abominaria o dístico relacionado a ela.

— Hum-hum — respondeu o atendente. — Tenho uma boa porção. Vendo camisetas a valer.

— Turistas?

A mente de Leandro já corria à frente, tentando imaginar o que viria em seguida. Havia pensado que perseguia um assunto importante; agora, achava que tal assunto era bem maior do que poderia imaginar.

— Apenas alguns — respondeu o homem, — porém não tem aparecido muitos neste verão. Em geral, vendo para pessoas como o senhor.

— Como eu?

— Hum-hum. Pessoas deitando sangue pelo nariz.

Leandro fitou o velho, boquiaberto.

— Os narizes sangram, eles ficam com a camisa estragada — disse o atendente. — Do mesmo jeito como estragou a sua. Querem uma camisa nova e, se forem gente daqui — como imagino que também seja — não vão mais longe e nem fazem trocas. Assim, param na primeira loja que encontram e compram uma camisa nova. Não os censuro. Porque um sujeito dirigindo por aí, com uma camisa ensangüentada como a sua, bem, dá vontade de vomitar. Enfim, já tive senhoras aqui, neste verão — e muitas de ótima aparência, vestindo trajes elegantes — fedendo como tripas em um barril.

O velho deu uma risadinha casquinada, mostrando uma boca absolutamente desdentada.

— Acho que não entendi direito — disse Leandro lentamente. Outras pessoas já voltaram de Haven sangrando pelo nariz? Eu não fui um caso apenas?

— Só o senhor? Droga, não! Nem imagina! No dia em que sepultaram Ruth McCausland, vendi quinze camisas! Tudo isto em um só dia! O lucro foi tal, que já pensava em aposentar-me e ir para a Flórida!

O homem tornou a dar a risadinha casquinada.

— Eram todos gente de fora da cidade — disse ele, como se isto explicasse tudo — e talvez, em sua mente, assim fosse. — Dois deles ainda sangravam no nariz, quando entraram aqui. Pareciam um chafariz! Também há casos de ouvidos sangrando. Que coisa!

— E ninguém sabe de nada sobre isto?

O velho fitou Leandro com olhos sábios.

— Você sabe, filho — disse.

 

DENTRO DA NAVE

— Está pronto, Gard?

Gardener estava sentado na varanda da frente, espiando para a Rota 9. A voz veio de suas costas e o tom era dócil — dócil demais — fazendo-o prontamente evocar uma centena de espalhafatosas cenas de filmes sobre presídios, nas quais o diretor chega para escoltar o homem condenado, ao longo do Corredor da Morte. Tais cenas sempre começavam, claro, o diretor resmungando, Está pronto, Rocky?

Pronto para isto? Você deve estar brincando!

Ficou em pé, virou-se, viu o equipamento nos braços de Bobbi e depois o leve sorriso no rosto dela. Naquele sorriso, havia algo deliberado, que ele não gostou.

— O que há de engraçado? — perguntou.

— Eu ouvi. Ouvi você, Gard. Estava pensando sobre antigos filmes em prisões — disse Bobbi. — Depois pensou, “Pronto para isto? Você deve estar brincando!” Captei o pensamento inteiro, o que é muito raro... a menos que esteja transmitindo propositadamente. Daí eu estar sorrindo.

— Você esteve espionando!

— Estive. E está ficando mais fácil a cada dia — respondeu Bobbi, ainda sorrindo.

De trás do seu alquebrado escudo mental, Gardener pensou: Eu agora tenho uma arma, Bobbi. Está debaixo da minha cama. Apanhei-a na Primeira Igreja Reformada dos Tommyknockers. Era perigoso... mas seria ainda mais perigoso, ignorar até que profundidade ia agora a aptidão de Bobbi em “espionar”.

O sorriso dela vacilou de leve.

— O que foi agora? — perguntou.

— Diga você — falou ele, e quando o sorriso dela começou a transformar-se em expressão desconfiada, acrescentou, despreocupadamente: — Ora, vamos, Bobbi... Eu estava somente mexendo com você. Perguntava apenas o que tem aí.

Bobbi mostrou o equipamento. Havia dois bocais de borracha para mergulho, acoplados a tanques e reguladores adaptados.

— Vamos usá-los — disse ela. — Quando entrarmos lá.

Lá dentro.

Apenas pensar nisto, foi o bastante para acender uma quente fagulha no estômago de Gardener e desencadear todo tipo de emoções conflitantes — medo, terror, antecipação, curiosidade, tensão, reverência. Parte dele assemelhava-se a um nativo supersticioso, preparando-se para caminhar em solo tabu; a parte restante era de uma criança, na manha do dia de Natal.

— Então, o ar lá dentro é diferente — disse Gardener.

— Não tão diferente — respondeu Bobbi.

Esta manhã, ela havia aplicado sua maquilagem sem maiores cuidados, talvez tendo decidido que não havia mais necessidade de esconder as aceleradas modificações físicas aos olhos de Gardener. Ele reparou que podia ver a língua de Bobbi movendo-se dentro da cabeça dela, quando falava alguma coisa... com a diferença de que não tinha mais uma aparência de língua. Também as pupilas dos olhos de Bobbi pareciam maiores, de certo modo desiguais e oscilantes, como se o estivessem espiando de dentro d’água. De uma água com leve tonalidade esverdeada. Ele sentiu o estômago revirar-se.

— Não tão diferente — repetiu ela. — Apenas... decomposta.

— Decomposta?

— A nave ficou selada por mais de vinte e cinco mil séculos — explicou ela, pacientemente. — Inteiramente vedada. Nós seríamos mortos pelo bafo de ar ruim, assim que abríssemos a escotilha. Portanto, estaremos usando os tanques de ar.

— O que há neles?

©¤ Nada mais além do bom e velho ar de Haven. Os tanques são pequenos, contendo uns quarenta, talvez cinqüenta minutos de ar. Prenderá o seu ao cinto, desta maneira, entende?

©¤ Entendo.

Bobbi entregou-lhe um dos aparelhos. Gard prendeu o tanque ao cinto. Precisou levantar a camiseta para isto, e ficou satisfeito por ter resolvido deixar, por enquanto, o .45 debaixo do colchão.

— Comece a usar o ar do tanque, pouco antes da escotilha ser aberta — disse Bobbi. — Oh, já ia esquecendo! Tome. Apenas para o caso de você esquecer.

Entregou a Gardener um par de plugues nasais, que ele guardou em um bolso do jeans.

— Muito bem! — exclamou Bobbi, animadamente. — Está pronto, então?

— Vamos mesmo entrar lá?

— É claro que vamos — disse Bobbi, quase ternamente.

Gardener deu uma risada trêmula. Suas mãos e pés estavam frios.

— Estou louco de excitamento — disse.

Bobbi sorriu.

— Eu também.

— Além disso, estou assustado.

Naquela mesma voz terna, Bobbi respondeu:

— Não deve assustar-se, Gard. Tudo vai dar certo.

Algo naquele tom, fez Gardener ficar ainda mais assustado do que nunca.

 

Os dois embarcaram no Tomcat e cruzaram silenciosamente a floresta desolada, o único som ouvido sendo o zumbido mortiço das baterias. Nenhum deles falou.

Bobbi estacionou o Tomcat perto do telheiro e os dois ficaram por um momento contemplando o disco prateado que se elevava da escavação. O sol matinal brilhava sobre ele, em uma puríssima e crescente cunha luminosa.

Lá dentro, tornou a pensar Gardener.

— Está pronto? — tornou a perguntar Bobbi. Vamos, Rocky, será apenas um estremeção — um grande choque, você nem chegará a sentir.

— Sim, estou ótimo — disse ele, em voz algo rouca.

Bobbi o fitava inescrutavelmente com seus olhos mutantes — aquelas pupilas flutuantes, que aumentavam. Ele sentiu dedos mentais borboleteando acima de seus pensamentos, tentando extraí-los.

— Entrar lá poderia matá-lo, compreenda — disse Bobbi por fim. — Não por causa do ar — esta parte esta resolvida. — Ela sorriu. — Sabe que é engraçado? Cinco minutos de uso desses bocais deixaria alguém do exterior inconsciente, meia hora bastaria para matá-lo. Entretanto, isso nos manterá vivos. Não acha curioso, Gard?

— Sim — respondeu ele, contemplando a nave e fazendo-se as mesmas perguntas de sempre: De onde foi que você veio? E quanto tempo levou cruzando a noite para chegar até aqui? — É muito curioso.

— Eu acho que tudo estará bem com você mas, procure entender — disse Bobbi, dando de ombros. — Sua cabeça... essa placa de aço interage de certo modo com o...

— Eu conheço o risco.

— Então, assim que quiser...

Bobbi se virou e caminhou para a escavação. Gardener ficou parado no mesmo lugar por um instante, vendo-a afastar-se.

Sei bem que risco representa a placa. O que não sei tanto, é sobre o risco que você representa, Bobbi. Será o ar de Haven que estarei respirando, quando tiver que usar a máscara, ou algo semelhante a um pesticida?

Bolas, isso não importava, certo? Ele havia lançado os dados. E nada o impediria de ver o interior daquela nave, se lhe fosse possível — nem David Brown e nem o mundo inteiro.

Bobbi chegou a borda da escavação. Virou-se e olhou para trás, o rosto maquilado assemelhando-se a uma máscara fosca à claridade da manhã, que chegava até ali angularmente, por entre os velhos pinheiros e abetos circundando o lugar.

— Você não vem?

— Estou indo — disse ele, começando a caminhar para a nave.

 

A descida se revelou inesperadamente difícil. Por ironia, subir era o mais fácil. O botão no fundo ficava bem ao alcance, de fato, não passava de um O, sobre um suporte antigo de telefone. Na superfície, o botão era um interruptor elétrico convencional, instalado em um dos postes que suportavam o telheiro. Isto ficava a quinze metros da borda da escavação. Pela primeira vez, Gardener percebeu a maneira como funcionavam as subidas e descidas no buraco; até agora, nenhum deles se preocupara com o fato de seus braços possuírem algo menos de quinze metros de comprimento.

Haviam estado usando aquela espécie de linga para içar fardos, já fazia um bocado de tempo, o bastante para confiarem em seu funcionamento. Parados à borda da trincheira, repararam que nunca haviam descido juntos. O que ambos perceberam também, sem que nenhum falasse, era que podiam ter descido um de cada vez; havendo alguém para manobrar o botão do fundo, tudo corria bem. Nenhum deles fez comentários, porque ficara entendido entre ambos que, desta vez — e somente desta vez — deviam descer juntos, perfeitamente juntos, os dois com um só pé no estribo apropriado para uma pessoa apenas, os braços em torno da cintura um do outro, como amantes em um balanço descendente. Era idiota; simplesmente idiota, idiota demais para ser a única maneira.

Os dois entreolharam-se em silêncio — mas dois pensamentos voaram e se cruzaram no ar.

(aqui temos dois universitários)

(Bobbi onde deixei minha chave inglesa para canhotos)

A nova e estranha boca de Bobbi estremeceu. Ela se virou e bufou com desdém. Por um momento, Gardener sentiu o antigo calor tocar-lhe o coração. Era a última vez que realmente via a antiga e não-melhorada Bobbi Anderson.

— Bem, você pode improvisar uma unidade portátil para mover a linga?

— Posso, mas levaria tempo. Tive outra idéia.

Seus olhos pousaram no rosto que ele não soube interpretar corretamente. Em seguida, Bobbi caminhou para o telheiro.

Gardener a seguiu por parte do trajeto e viu Bobbi abrir uma enorme caixa metálica verde, que havia sido montada sobre uma estaca. Ela remexeu entre as ferramentas e peças variadas dentro da caixa, depois retornando com um rádio transistorizado. Era menor do que os transformados pelos ajudantes dele em Novas e Melhoradas cargas explosivas, durante o tempo em que Bobbi se recuperava. Gard nunca vira antes aquele particular rádio portátil. Era muito pequeno.

Um deles o trouxe para cá ontem à noite, pensou ele.

Bobbi puxou a antena embutida do rádio, inseriu uma tomada no envoltório plástico e o plugue no ouvido. Gard imediatamente se lembrou de Freeman Moss, movendo o equipamento de sucção da água, como um treinador de elefantes movendo os gigantescos animais em torno da arena central.

— Não vai demorar muito.

Bobbi apontou a antena na direção de sua casa. Gardener pareceu ouvir um forte, potente zumbido — não no ar, mas dentro do ar, de algum modo.

Por um rápido instante, sua mente se encheu de musica sussurrante e ele sentiu uma espécie de dor de cabeça no meio da testa, como se houvesse bebido demasiada água gelada, depressa demais.

— E agora?

— Esperamos — disse Bobbi. Repetiu: — Não vai demorar muito. Seu olhar especulativo perscrutou novamente o rosto de Gardener e, desta vez ele pensou ter compreendido o significado. É algo que ela quer que eu veja. E agora chegou a chance de mostrar-me.

Sentando-se à borda da escavação, ele descobriu um maço de cigarros muito velho, dentro do bolso da camisa. Ainda havia dois. Um dos cigarros estava partido, o outro entortado, mas inteiro. Gardener acendeu-o e fumou pensativamente, de maneira alguma lamentando aquela demora. Assim, teve chance de analisar seus planos outra vez. Evidentemente, se caísse morto assim que passasse por aquela escotilha redonda, o fato anularia inteiramente quaisquer planos.

— Oh, aqui estamos nós! — exclamou Bobbi, levantando-se.

Gard levantou-se também. Olhou em torno, porém nada viu.

— Lá, Gard! Na trilha! — disse Bobbi, com o orgulho de uma criança mostrando seu primeiro carrinho de rolimãs.

Gardener finalmente viu o que era, e começou a rir. Não que pretendesse rir, apenas era impossível conter-se. Quando pensava já estar acostumado a superciência do bravo mundo novo de Haven, surgia alguma nova e estranha combinação que o deixava ainda mais surpreso, de queixo caído. Como agora.

Bobbi sorria, mas de leve, vagamente, como se o riso de Gardener pouco ou nada significasse, em qualquer sentido.

— A aparência é um tanto estranha, porém isso resolvera a situação. Acredite.

Era o Electrolux que ele vira no galpão. Não rodava pelo chão, mas pouco acima dele, as rodinhas girando inutilmente. Sua sombra corria placidamente a um lado, como um dachshund na coleira. Na parte traseira, onde estaria presa a mangueira de aspiração, em um mundo lúcido, ele viu dois fios fibrosos e finos, projetando-se em forma de V. A antena, pensou Gardener.

O aparelho agora aterrava, caso se pudesse dar tal designação a um pouso de dez centímetros de altitude, logo começando a rodar para o telheiro, sobre a terra batida da área da escavação. Deixava trilhas estreitas atrás de si. Parou abaixo da caixa de interruptores que controlava o dispositivo para descida no buraco.

— Veja isto — disse Bobbi, naquela mesma voz satisfeita de exibir-meu-car-rinho-de-rolimãs.

Houve um clique. Um zumbido. Em seguida, uma fina corda negra começou a elevar-se do lado do aspirador de pó, como uma corda subindo da cesta de vime, no truque indiano da corda. Gardener então percebeu que não se tratava de uma corda, mas de um cabo coaxial.

O cabo elevou-se no ar... subindo... subindo... Tocou a lateral da caixa de interruptores e deslizou para a parte dianteira. Gardener sentiu-se retorcer de repulsa. Era como ver algo semelhante a um morcego — uma coisa cega, dispondo de algum tipo de radar. Uma coisa cega que podia... podia esquadrinhar.

A ponta do cabo encontrou os botões — um preto, que fazia a linga subir ou descer, um vermelho, que a detinha. Então, pressionou o interruptor preto — e o cabo ficou subitamente rígido. O interruptor foi acionado com precisão. Atrás do telheiro, o motor começou a funcionar. Simultaneamente, a linga começou a deslizar na escavação.

O cabo perdeu a tensão. Deslizou para o botão vermelho, enrijeceu-se, pressionou-o. Quando o motor parou de funcionar — inclinando-se, Gardener podia ver a linga oscilando contra a parede da escavação, a uns três metros e meio mais abaixo — o cabo elevou-se e tornou a apertar o botão preto. O motor entrou novamente em funcionamento. A linga subiu. Quando chegou a borda da escavação, o motor deslizou-se automaticamente.

Bobbi se virou para ele. Sorria, mas os olhos eram vigilantes.

— Viu só? — exclamou. — Funciona perfeitamente!

— Inacreditável! — comentou Gardener.

Seus olhos se tinham movido, o tempo todo, entre Bobbi e o Electrolux, enquanto o cabo manuseava os botões. Bobbi não ficara movendo o rádio, como ele vira Freeman Moss fazer com o walkie-talkie, mas Gardener a vira de cenho ligeiramente franzido em concentração e vira também a maneira como os olhos dela tinham baixado, apenas um instante antes do cabo coaxial deslizar, passando do interruptor preto para o vermelho.

O negócio parece um dachshund mecânico, algo saído daquelas pinturas tão engenhosas de Kelly Freas sobre ficção científica. É o que parece, mas não se trata de um robô, em absoluto. Essa coisa não tem cérebro, Bobbi é o seu cérebro... e ela quer que eu saiba disto.

E, no galpão, havia uma boa quantidade daqueles eletrodomésticos modificados, encostados à parede. O que persistia em sua mente, era a máquina de lavar, com a antena em forma de bumerangue montada em seu topo.

O galpão. Isso provocou uma pergunta infernalmente interessante. Gard abriu a boca para fazê-la... mas tornou a fechá-la, ao mesmo tempo procurando espessar o escudo protetor de seus pensamentos, o máximo que pode. Sentiu-se como um homem que quase despencara pela borda de um abismo de trezentos metros de profundidade, enquanto caminhava despreocupadamente, contemplando um belo pôr-do-sol.

Não havia ninguém na casa — pelo menos que me conste — e o galpão é fechado a cadeado pelo exterior. Então, como é que Fido, o Aspirador de Pó, conseguiu sair?

Ele estivera a ponto de fazer a pergunta, quando percebeu que Bobbi não havia dito de onde o Electrolux tinha vindo. De repente, Gardener sentiu o próprio suor, azedo e maligno.

Olhou para Bobbi e a viu observando-o com o leve e irritado sorriso de quem sabia que ele pensava... mas não o que pensava.

— Afinal, de onde saiu essa coisa? — perguntou ele.

— Oh... estava por aí — Bobbi fez um gesto vago com a mão. — O importante é que funciona. Bem, acho que já perdemos tempo demais. Vamos em frente?

— Boa idéia. Só espero que as pilhas dessa coisa não se extingam, enquanto estivermos lá no fundo.

— Eu sou a pilha dela — disse Bobbi. — Enquanto eu estiver bem, você poderá subir de novo, Gard. Certo?

Sua apólice de seguro. Sim, acho que entendi.

— Certo — respondeu ele.

Caminharam para a escavação. Bobbi desceu primeiro, enquanto o cabo que se elevava da lateral do Electrolux manuseava os botões. A linga tornou a subir e Gardener enfiou o pé no estribo, segurando-se a corda quando ela começou a descer de novo.

Ele lançou um último olhar ao surrado o antigo aspirador de pó, tornando a pensar: Diabo, como é que conseguiu sair de lá?

Então, começou a internar-se na penumbra da escavação, aspirando o úmido cheiro mineral de rochas molhadas e vendo a lisa superfície da nave elevar-se mais e mais à sua esquerda, como o lado de um arranha-céu sem janelas.

 

Gard chegou ao fundo e tirou o pé do estribo. Ele e Bobbi ficaram ombro a ombro diante da fenda circular da escotilha, cujo formato era o de uma grande vigia. Gardener achou quase impossível afastar os olhos do símbolo gravado sobre ela. Viu-se recordando algo da época em que ainda era muito pequenino. Houvera uma epidemia de difteria no subúrbio de Portland, onde fora criado. Duas crianças tinham morrido, e os funcionários da saúde publica decretaram a quarentena. Recordou uma caminhada para a biblioteca, a mão seguramente presa pela da mãe, passando a frente de casas em cujas portas fora pregado um aviso, todos contendo a mesma palavra em grossas letras pretas, na parte superior. Perguntara à mãe que palavra era aquela e ela lhe dissera. Perguntou-lhe o que significava. Ela respondeu que significava haver doença na casa. Era uma boa palavra, disse sua mãe, porque avisava as pessoas para não entrarem. Se entrassem em uma daquelas casas, podiam pegar a doença e espalhá-la.

— Você está pronto? — perguntou Bobbi, interrompendo-lhe os pensamentos.

— O que significa isso? — indagou ele, apontando para o símbolo impresso na escotilha.

— Eu sei lá! — Bobbi não sorria. — Está?

— Não... mas estou quase pronto. E não vou passar disto.

Olhou para o tanque preso ao cinto e tornou a perguntar-se se iria aspirar algum veneno que lhe explodiria os pulmões a primeira respiração. No fundo, achava que não. Supostamente, aquela era a sua recompensa. Uma visita ao Templo Sagrado antes de ser apagado da equação, de uma vez por todas.

— Tudo bem. — disse Bobbi. — Vou abrir a...

— Você vai pensar e ela se abre — disse Gardener, olhando para o plugue no ouvido de Bobbi.

— Certo — respondeu ela, despreocupadamente, como se dissesse E daí? — Será aberta como por mágica. Haverá um jato explosivo de ar estagnado e maléfico saindo... mas quando digo maléfico, quero dizer realmente maléfico. Como estão suas mãos?

— Como assim?

— Tem cortes?

— Nada que já não esteja cicatrizado — disse ele, estendendo as mãos como um garotinho, submetendo-se a inspeção materna de antes do jantar.

— Muito bem — disse Bobbi. Tirou do bolso traseiro um par de luvas de trabalho, em algodão, que entregou a ele. Acrescentou, ante o olhar inquisitivo de Gard: — Está com duas raízes de unha em mau estado. Talvez isto não tenha importância — mas poderia ter. Assim que a escotilha começar a abrir-se, feche os olhos, Gard. Respire o ar do tanque. Se aspirar o que sair da nave, morrerá tão depressa como se levasse um tiro.

— Estou convencido — disse Gard.

Enfiou o bocal na boca e usou os plugues para as narinas. Bobbi fez o mesmo. Gardener podia ouvir/sentir a pulsação nas têmporas, latejando muito depressa, como alguém batendo rapidamente com um dedo sobre um tambor amortecido.

Este é o momento... finalmente o grande momento!

— Pronto? — perguntou Bobbi, uma última vez. Sufocada pelo bocal, a voz dela pareceu emitir outra palavra: Onto?

Gardener assentiu.

— Lembra-se de tudo? Em-asse e udo?

Ele tornou a assentiu.

Pelo amor de Deus, Bobbi, vamos logo com isso!

Ela assentiu também.

Certo. Prepare-se.

Antes que Gardener perguntasse “preparar-me para que?” aquele símbolo começou subitamente a desunir-se em curvas e, com um profundo e quase nauseado excitamento, Gardener percebeu que a escotilha se abria lentamente. Houve um som baixo, sibilante e gritante, como se algo enferrujado e confinado por muito tempo entrasse de novo em movimento... mas com grande relutância.

Bobbi girou a válvula do tanque preso ao cinto, e ele fez o mesmo. Então, fechou os olhos. Um momento depois, sentiu uma brisa suave batendo-lhe no rosto, afastando o cabelo caído na testa. Gardener pensou: A morte. Isto é a morte. A morte passando por mim, enchendo esta escavação, como se fosse cloro. Neste segundo, cada micróbio sobre minha pele está morrendo.

Seu coração disparava loucamente e, de fato, ele começava a indagar a si mesmo se o ar saído do tanque (como o bafo de gás escapando de um ataúde, chocalhou sua mente assustadiça), de um modo ou de outro também, não teria a finalidade de matá-lo, e então percebeu que estivera contendo a respiração.

Aspirou no bocal. Esperou, a fim de ver se o ar que respirara o mataria. Não matou. Tinha um sabor seco e mofado, porém era perfeitamente respirável.

Quarenta, talvez cinquenta minutos de ar.

Vá com calma, Gard. Lentamente. Faça-o durar. Não resfolegue.

Ele foi com calma.

Pelo menos, tentou.

Então, aquele ruído agudo e gritante cessou. O escape de ar ficou mais suave contra seu rosto, até parar por completo. Em seguida, Gardener permaneceu uma eternidade no escuro, encarando a escotilha aberta com o silvo do ar através do regulador de demanda do tanque. Sua boca já tinha um sabor de borracha e os dentes se haviam cravado com demasiada força nos pinos de borracha, dentro do bocal de mergulho. Forçou-se a ficar calmo e despreocupar-se.

Por fim, a eternidade terminou. O pensamento cristalino de Bobbi encheu sua mente:

Tudo bem... acho que tudo está bem... já pode abrir seus olhos azuis de bebê, Gard.

Como uma criança, em uma festa surpresa, ela faz exatamente isso.

 

Estava olhando para um corredor.

Era perfeitamente redondo, exceto por uma passarela que se projetava do meio de um lado. A posição parecia totalmente errada. Por um alucinado momento, ele visualizou os Tommyknockers como pavorosas e inteligentes moscas, rastejando ao longo daquela passarela com pés viscosos. Então, a lógica reafirmou-se. A passarela estava inclinada, tudo estava inclinado porque a nave estava de banda.

Uma luz suave brotava das paredes redondas e sem características. Não há baterias gastas aqui, pensou Gardener. Este é um trabalho de duração realmente perene. Olhou pelo corredor. Além da escotilha, com um enorme e profundo senso de admiração. Ele está vivo. Mesmo depois de todos estes anos. Continua vivo!

Vou entrar, Gard. Vem comigo?

Posso tentar, Bobbi.

Ela entrou, agachando a cabeça para que não batesse na curva superior da escotilha. Gardener vacilou um momento, tornando a morder os pinos de borracha da mascara, então a seguiu.

 

Houve um momento de transcendente agonia — ele mais sentia do que ouvia as transmissões de rádio enchendo-lhe a cabeça. Não era apenas uma; sua impressão era de que cada estação radiotransmissora do mundo estridulava momentaneamente dentro de seu cérebro.

Então desapareceu — simplesmente, desapareceu tudo. Gardener recordou a maneira como as transmissões radiofônicas esmoreciam, quando passamos pelo interior de um túnel. Havia entrado na nave e todas as transmissões externas haviam descido a nada. Tampouco havia transmissões internas, como logo descobriu. Bobbi olhava para ele, obviamente transmitindo algum pensamento — Tudo bem com você? foi o que ele achou mais aproximado, porém não passou de uma adivinhação. Não conseguia mais ouvi-la em sua cabeça.

Curioso, enviou um pensamento de volta: Estou ótimo, em frente!

A expressão questionante de Bobbi não mudou — ela se encontrava muito mais avançada em telepatia do que ele, porém tampouco estava captando alguma coisa. Gard fez um gesto para ela prosseguir. Após um momento, Bobbi assentiu e começou a avançar.

 

Caminhavam vinte passos, subindo o corredor. Bobbi se movia sem hesitação e também não hesitou quando chegaram a uma escotilha redonda interior, encravada na superfície da plana passarela à esquerda deles. Esta outra escotilha, com cerca de um metro de diâmetro, estava aberta. Sem espiar para Gardener, vindo mais atrás, ela passou pela escotilha.

Ele fez uma pausa, enquanto espiava para o corredor suavemente iluminado. A escotilha para o exterior ficava lá atrás, um buraco redondo, abrindo-se para a penumbra da escavação. Então, seguiu Bobbi.

Havia uma escada de mão afixada ao novo corredor, o qual era quase pequeno o bastante em diâmetro, para ser considerado um túnel. Gardener e Bobbi dispensaram a escada; a posição inclinada da nave tornara o corredor quase horizontal. Caminharam de gatinhas, com a escada às vezes arranhando-lhes as costas.

Aquela escada deixou Gardener inquieto. A distância entre os degraus era de quase um metro e meio, antes de mais nada. Um homem — mesmo que tivesse pernas muito longas — teria tido dificuldade em usá-la. A outra peculiaridade sobre os degraus, era ainda mais inquietante: uma pronunciada depressão semicircular, quase um entalhe, no centro de cada um.

Então, os Tommyknockers tinham arcadas realmente mal estruturadas, pensou, ouvindo o chiado da própria respiração. Que coisa, Gard!

O quadro que lhe veio à mente, contudo, não foi de pés chatos ou arcadas mal estruturadas; o quadro que visualizou, com simples e indiscutível força, apesar de suave, era o de alguma criatura ignota escalando aqueles degraus, uma criatura com uma única e espessa garra em cada pé, uma garra que se ajustava perfeita-mente a cada uma daquelas depressões, a medida que ela fosse subindo...

De repente, as paredes arredondadas e vagamente iluminadas pareceram pressioná-lo, obrigando-o a lutar contra uma terrível onda de claustrofobia. Os Tommyknockers estavam ali, certo, e ainda vivos. A qualquer momento, poderia sentir uma mão grossa e inumana se fechar a volta de seu tornozelo...

O suor lhe correu para dentro do olho, ardendo.

Ele virou a cabeça, espiando por sobre o ombro.

Nada. Não há nada, Gard. Procure controlar-se.

Entretanto, eles estavam ali. Talvez mortos — mas de certo modo vivos, o que dava no mesmo. Vivos em Bobbi, antes de mais nada. Contudo...

Contudo, você tem que ver, Gard. Agora, AVANCE!

Recomeçou a engatinhar. Estava deixando leves impressões de mãos suadas sobre o metal, como podia ver. Impressões de mãos humanas, dentro daquela coisa que só Deus sabia de onde viera.

Bobbi chegou a boca da passagem, virou-se sobre o estômago e desapareceu de vista. Gard a seguiu, parando no final daquela passagem, a fim de espiar. Ali havia um vasto espaço aberto, de forma hexagonal, como um gigantesco alvéolo em uma gigantesca colméia. Também apresentavam-se em um ângulo torto, como em algum labirinto das gargalhadas em parques de diversões, em virtude da queda tombada da espaçonave. As paredes luziam com uma suave claridade incolor. Um espesso cabo partia de uma gaxeta no piso; depois, dividia-se em meia dúzia de fios mais finos, cada um destes terminando em um conjunto de coisas semelhantes a fones de ouvido, com centros bulbosos.

Bobbi não espiava para lá. Seus olhos estavam fixos em um canto. Gardener seguiu-lhe o olhar e sentiu o estômago ganhar peso. Sua cabeça girou vertiginosa-mente; o coração bateu irregularmente.

Eles haviam estado reunidos em torno de seu volante telepático ou que diabo fosse aquilo, quando da queda da nave. Talvez houvessem tentado escapar ao mergulho no último instante, porém nada adiantara. E agora, ali estavam, dois ou três deles, pelo menos, caídos em um canto distante. Era difícil dizer qual a sua aparência — estavam enovelados juntos. A nave batera, e eles haviam sido jogados naquele final do recinto. E continuavam lá.

Aterragem interestelar desastrosa, pensou Gardener, nauseando. Tudo se resume nisto, Alfie?

Bobbi não se aproximou daqueles vultos acastanhados, empilhados no ângulo mais baixo daquele estranho e despido recinto. Ficou apenas espiando abrindo e fechando as mãos. Gardener tentou entender o que ela pensava e sentia, mas não pode. Girando o corpo, ele deslizou cautelosamente para baixo, passando acima da borda da abertura. Juntou-se a Bobbi, caminhando com cuidado pelo piso inclinado. Ela o fitou com seus estranhos olhos novos — Com que aparência me estará vendo, através desses novos olhos? perguntou-se ele — depois tornando a fitar os emaranhados despojos no canto. Bobbi continuava abrindo e fechando as mãos.

Gardener caminhou para eles. Bobbi aferrou-lhe o braço. Ele se livrou dela, sem mesmo pensar no que fazia. Precisava olhar para “eles”. Sentia-se como uma criança, atraída para uma sepultura aberta, cheia de medo, mas compelida a ir, mesmo assim. Precisava ver.

Criado na região sul do Maine, Gardener cruzou o que ele acreditava ser — apesar daquela nudez — a sala de controles de uma espaçonave interestelar. O piso debaixo de seus pés era liso como vidro, porém os tênis que calçava mantinham a aderência sem dificuldade. O único som ouvido era o de sua respiração sibilante, o único cheiro, o do ar empoeirado de Haven. Caminhou pelo piso adernado até os corpos, e olhou para eles.

Estes são os Tommyknockers, pensou. Bobbi e os outros não ficarão exatamente parecidos com eles, após encerrada a “transformação”, talvez devido ao ambiente ou talvez porque a estrutura fisiológica original do — que nome se daria? Grupo-alvo? — resulte em uma aparência ligeiramente diversa, a cada vez que isto acontece. Entretanto, existe uma familiaridade na semelhança, claro. Talvez estes não sejam os originais... mas estejam bastante próximos. Horrendos.

Sentiu temor... horror... e uma repulsa que chegava ao mais profundo do sangue circulando no corpo.

Na noite passada e na noite anterior, cantou em sua mente uma voz hesitante. Tommyknockers, Tommyknockers, batendo à porta.

A princípio, julgou que fossem cinco, porém eram apenas quatro — um deles fora partido ao meio. Nenhum tinha a aparência de serenidade na hora da morte. Eles — elas — as coisas — pareciam ter tido um final difícil. Seus rostos eram hediondos, de narizes compridos. Os olhos estavam velados, com a alvura de cataratas. Os lábios repuxavam-se para trás, em rosnados uniformes.

Tinham peles escamosas, mas transparentes — Gardener podia ver os músculos congelados, em padrões entrecruzados ao redor de mandíbulas, têmporas e pescoços.

Não possuíam dentes.

 

Bobbi se juntou a ele. Gard viu temor em seu rosto, mas nenhuma repulsa.

Estes agora são os seus deuses, e uma pessoa nunca — ou raramente — sente repulsa pelos próprios deuses, pensou Gardener. Estes agora são os seus deuses e, por que não? Foram eles que a fizeram o que é hoje.

Gardener apontou para cada um deles, deliberadamente, como um instrutor. Estavam nus e seus ferimentos eram claros. Sim, uma colisão de nave interespacial com a terra. Entretanto, não acreditava que tivesse havido alguma falha mecânica. Aqueles corpos fantásticos e escamosos estavam retalhados, marcados de cortes. Uma mão de seis dedos ainda empunhava o cabo de algo semelhante a uma faca, de lâmina circular.

Olhe para eles, Bobbi, pensou Gardener, embora sabendo que, ali, ela não poderia captar seus pensamentos, mesmo que lhe oferecesse total abertura mental. Apontou, aqui, para uma boca aberta, enterrada na garganta de outra criatura; ali, para um enorme ferimento, aberto em um tórax espesso e inumano; mais além, para uma faca, ainda apertada em uma mão.

Olhe para eles, Bobbi. Ninguém precisa ser Sherlock Holmes, para perceber que lutavam. Houve uma boa dose de facadas e pancadarias aqui, na velha sala de controles. Nada daquela de “vamos-raciocinar-juntos” para os seus deuses. Aqui dentro, a coisa foi feia e pesada. Talvez tudo tenha começado com uma discussão sobre aterragem aqui ou não; talvez fosse sobre deverem ter dobrado ou não para a esquerda, em Alpha Centauri. De qualquer modo, os resultados foram os mesmos. Lembra-se de como sempre presumimos que seriam uma raça de seres tecnologicamente avançados, caso chegassem a entrar em contato conosco? Imaginávamos que fossem tão inteligentes como o Mágico e sábios como Robert Young, na série “Papai sabe-tudo”. Bem, eis a verdade, Bobbi. A nave sofreu um acidente, porque eles estavam lutando. E onde estão as armas do raio-da-morte? Os desintegradores? A sala de transportação? Eu vejo uma faca. O resto, eles devem ter feito com cacos de espelhos... ou as mãos nuas... ou essas enormes garras.

Bobbi desviou os olhos, franzindo a testa persistentemente — uma aluna que não queria aprender a lição, uma aluna que, de fato, estava decidida a não aprendê-la. Começou a afastar-se. Gard a segurou pelo braço e a puxou de volta. Apontou para os pés.

Se Bruce Lee tivesse um pé assim, mataria mil pessoas em uma semana, Bobbi.

As pernas dos Tommyknockers eram grotescamente compridas — fizeram Gardener pensar naqueles sujeitos que andam em pernas de pau, usando roupas de Tio Sam e desfilando nas paradas do Quatro de Julho. Os músculos abaixo da pele semitransparente eram longos, encordoados, cinzentos. Os pés eram estreitos, não dispondo precisamente de artelhos. Em vez disso, cada pé encurvava-se naquela garra única, espessa e quitinosa, como o esporão de um pássaro. Um pássaro que tivesse o tamanho de um abutre gigantesco.

Gardener pensou nas depressões dos degraus da escada. Estremeceu. Olhe Bobbi. Veja como as garras são escuras. Isso é sangue ou seja o que for que eles tiverem dentro de si. Está nas garras, porque o dano maior foi produzido com elas. Este lugar, sem a menor dúvida, não tinha qualquer semelhança com a ponte da espaçonave Enterprise, antes de acidentar-se. Pouco antes da colisão, provavelmente seria mais parecido a um picadeiro para briga de gaios, franqueado a todos, atrás do celeiro de algum trabalhador rural. Isto é progresso, Bobbi? Comparado a estes caras, Ted, o Homem Energia, assemelha-se a Gandhi.

De cenho franzido, Bobbi tentou libertar o braço. Deixe-me em paz, diziam seus olhos.

Bobbi, será que não entende, não vê...

Ela deu meia volta. Não estava interessada em ver.

Gardener continuou junto aos corpos desidratados, vendo-a escalar a coberta, como uma mulher subindo uma íngreme ladeira lisa. Bobbi não escorregou em momento algum. Encaminhou-se para uma parede oposta, na qual havia outra abertura arredondada. Enfiou-se nela e, por um momento, Gardener viu suas pernas e as solas dos tênis sujas de terra. Então, Bobbi desapareceu.

Gard escalou a inclinação e parou um momento perto do centro do recinto, olhando para o solitário cabo que emergia do piso, depois para os fones de ouvido que se dividiam a partir dele. A semelhança com a instalação no galpão de Bobbi era perfeitamente clara. Do contrário...

Ele olhou em torno. Um salão hexagonal. Nu. Sem cadeiras. Sem fotos das Cataratas do Niágara — ou das Cataratas de Cygnus-B*, por falar sem mapas de astronavegação, sem equipamento para Laboratórios Loucos. Todos os grandes produtores da ficção científica e homens de efeitos especiais ficariam decepcionados por este vazio, pensou Gardener. Nada além de fones de ouvido, jazendo emaranhados no piso. E dos corpos, perfeitamente preservados, mas talvez, a esta altura tão leves como folhas de outono. Fones de ouvido e despojos como envoltórios secos, empilhados naquele canto distante, onde a gravidade os lançara. Nada muito interessante a respeito. Nada muito inteligente. Isso encaixava. Porque os moradores de Haven estavam fazendo montes de coisas, mas nenhuma elas era muito inteligente, quando analisadas em profundidade.

O que ele mais sentia, não era tanto desapontamento, mas uma estúpida justeza. Não honestidade — Deus sabia que nada havia de honesto relação a isto — mas justeza, como se uma parte dele sempre soubesse que seria desta maneira, quando e se eles entrassem ali. Nenhum sentimentalismo Disneylandiano; somente uma lúgubre espécie de inexpressividade. Ele se viu recordando o poema de W. H. Auden sobre fugir: cedo ou tarde, a gente sempre termina em um aposento, abaixo de uma lâmpada pendurada em um fio, jogando paciência às três da manhã. Segundo parecia, a Terra do Amanhã terminava sendo um lugar vazio, onde pessoas com inteligência bastante para capturar as estrelas perdiam a razão e dilaceravam-se entre si, com as garras que tinham nos pés.

É demais para Robert Heinlein, pensou Gard, e seguiu Bobbi.

 

Gardener subiu penosamente a superfície inclinada do piso, percebendo que perdera por completo a noção de qual seria sua posição, em relação ao mundo lá fora. Era mais fácil não matutar a respeito. Usou os degraus para ajudar sua avançada. Chegou a uma abertura retangular e espiou através dela, vendo algo que poderia ter sido uma sala de máquinas — grandes blocos metálicos, quadrados em uma extremidade e arredondados na outra, posicionavam-se em fila dupla. Canos, grossos e de um fosco tom prateado, projetavam-se das extremidades quadradas daqueles blocos, partindo dali em ângulos estranhos e tortos.

Como tudo, saindo do calhambeque de um garoto, pensou Gard. Ficou cônscio do líquido morno sobre a pele, acima de sua boca. Dividia-se em dois e escorria-lhe pelo queixo. Seu nariz sangrava de novo... lentamente, mas como se fosse permanecer assim por algum tempo.

Estará a luz mais brilhante aqui, agora?

Parando, ele olhou em torno.

Sim, estava. Também ouvia um fraco zumbido ou seria imaginação?

Ladeou a cabeça. Não; não era imaginação. Maquinaria. Alguma coisa começara a funcionar.

Isso não começou a funcionar, simplesmente, e você sabe. Nós desencadeamos o funcionamento. Com a nossa intrusão.

Mordeu o bocal da máscara com força. Queria ir embora dali. Queria levar Bobbi para fora. A nave estava viva; de maneira singular, ele supôs que ela fosse o Tommyknocker Derradeiro. Aulindo. Isto era também a coisa mais terrível de todas.

Uma criatura senciente... O quê? Havia despertado, é claro. Gard a queria adormecida. De repente, ele se sentiu muito parecido a Joãozinho-do-pé-de-feijão, bisbilhotando no castelo, enquanto o gigante dormia. Eles tinham que sair dali. Gardener começou a rastejar mais depressa. Então, um novo pensamento nasceu em sua mente, fazendo-o parar de chofre.

E se isto não nos deixar sair?

Rejeitando a idéia, começou a mover-se de novo.

 

O corredor ramificava-se em um Y, o braço esquerdo continuando em ângulo para o alto, o direito inclinando-se fortemente para baixo. Procurou captar sons e ouviu Bobbi rastejando para a esquerda. Tomou aquela direção e chegou a outra escotilha. Encontrou-se ali, parada. Bobbi se virou para Gardener brevemente, fitando-o com olhos arregalados e amedrontados. Depois tornou a olhar para diante.

Gardener passou uma perna sobre a borda da escotilha, mas parou. Não pretendia entrar ali, de maneira nenhuma.

O aposento tinha a forma de um losango. Estava repleto de redes, suspensas em estruturas metálicas — havia centenas delas. Todas se encontravam bebadamente inclinadas para o alto e para a esquerda; o recinto assemelhava-se ao instantâneo de um beliche de veleiro, batido precisamente quando a embarcação adernava na depressão entre duas ondas. Todas as redes tinham ocupantes, narizes semelhantes a focinhos de cachorro, olhos leitosos e mortos.

De cada cabeça escamada e triangular partia um cabo.

Não apenas presos em correias, pensou Gardener. Estão ACORRENTADOS. Eram eles que faziam a nave mover-se, não eram, Bobbi? Se isto é o futuro, então chegou a hora de dar no pé. Eles são escravos condenados a trabalhos forçados, mortos.

Suas bocas pareciam rosnar, mas Gardener viu que algumas estavam desfiguradas a meio, porque várias cabeças davam a impressão de ter explodido — como se, com o choque da colisão, algum gigantesco fluxo invertido de energia lhes houvesse, literalmente, arrebentado os cérebros.

Todos mortos. Presos para sempre em suas redes, de cabeças pendidas, os focinhos franzidos em rosnados eternos. Todos mortos, naquele aposento em inclinação.

Mais perto, outro motor entrou em funcionamento — chocalhando enferrujadamente a princípio, depois entrando em ritmo uniforme. Um momento mais tarde, ventiladores ganharam vida — ele supôs que o motor recém-trabalhando os pusera em movimento. Sentiu ar batendo-lhe no rosto — se era ou não fresco, tratava-se de algo que não pretendia inspecionar pessoalmente.

Talvez a abertura da escotilha exterior tenha animado esta coisa, mas não acredito. Fomos nós. O que irá trabalhar em seguida, Bobbi?

Supondo-se que eles fossem os próximos — os próprios Tommyknokers? Supondo-se que suas mãos acinzentado-transparentes, de seis dedos, começassem a abrir e fechar, como faziam as de Bobbi, enquanto ela fitava os cadáveres na despida sala de controle? E se aqueles pés de esporões começassem a estremecer? Ou, supondo-se que aquelas cabeças começassem a virar, que aquelas pupilas leitosas olhassem para eles?

Quero sair. Aqui, os fantasmas estão muito animados e quero sair.

Gardener tocou o ombro de Bobbi. Ela saltou. Ele olhou para o pulso, mas não havia relógio — apenas uma forma branca desbotando, no pulso bronzeado de sol. Havia sido um Timex, um velho e resistente relógio barato, que o acompanhara em inúmeras façanhas e escapara incólume. Entretanto, dois dias trabalhando na escavação tinham sido suficientes para liquidá-lo. Eis aí que John Cameron Swayze nunca testou, naqueles antigos comerciais de TV, pensou ele.

Bobbi acertou a questão. Apontou para o tanque de ar preso ao seu cinto e ergueu as sobrancelhas para Gardener. Quanto tempo já passou?

Ele ignorava e nem se importava. Queria sair dali, antes que toda a maldita nave despertasse e fizesse só-Deus-sabia-o-quê.

Em resposta, virou-se e apontou para a passagem. Tempo suficiente. Vamos dar o fora daqui.

Um ruído casquinado, espesso e oleoso, começou a soar na parede próxima a Gardener. Ele se encolheu, fugindo ao contato. Gotas de sangue, escorrendo lentamente do nariz, salpicaram a parede. Seu coração batia doidamente.

Pare com isso, é apenas algum tipo de bomba...

O ruído oleoso começou a normalizar-se... e então algo deu errado. Houve uma estridência de metal rangendo e uma serie rápida de sufocadas explosões. Gardener sentiu a parede vibrar e, por um momento, a claridade emitida por ela pareceu piscar e diminuir.

Será que encontraremos o caminho de saída, no escuro, caso as luzes se apaguem? Acho que a piada foi sua, senhor.

A bomba recomeçou a funcionar. Houve um prolongado grito metálico, que deixou Gardener mordendo com força a borracha de seu bocal. Ouviram em seguida um alto e prolongado matraquear, como um canudo de plástico em um copo de bebida vazio. Depois, nada.

Nem tudo duraria todo aquele tempo sem avarias, pensou Gardener, e descobriu que a idéia era francamente aliviadora.

Bobbi estava apontando: Vamos, Gard.

Antes dele começar a mover-se, viu Bobbi fazer uma pausa e olhar uma vez para trás, para as filas dos seres mortos nas redes. Aquela expressão amedrontada retornara ao rosto dela.

Em seguida, Gard começou a engatinhar de volta, procurando manter um ritmo firme e uniforme, enquanto a claustrofobia voltava a envolvê-lo.

 

Na sala de controles, uma das paredes se transformara em gigantesca janela panorâmica, com quinze metros de largura e seis de altura.

Gardener parou, boquiaberto, contemplando o céu azul do Maine e a orla de pinheiros, abetos e bordos a volta da escavação. No canto inferior direito, pode ver o teto de galhos do telheiro onde ficava o equipamento. Levou vários segundos olhando — tempo suficiente para ver enormes nuvens alvas de verão vagando através do céu azul — antes de perceber que aquilo não podia ser uma janela. Estavam situados mais ou menos no centro da nave e também enterrados fundo da terra. Uma janela naquela parede mostraria apenas mais nave. Ainda que estivessem próximos do casco, o que não acontecia, teriam visão apenas de uma parede rochosa coberta de detritos, com talvez uma fatia de céu azul, muito no alto.

É uma imagem de televisão de alguma espécie. Algo como uma imagem de televisão, pelo menos.

Entretanto, não havia linhas. A ilusão era perfeita.

Diante daquela poderosa e nova fascinação, Gardener esqueceu a claustrofóbica necessidade de sair dali e caminhou lentamente para a parede. O ângulo deu-lhe uma perversa sensação de voar — o efeito era como escorregar para trás dos controles de um aparelho de treinamento de vôo e manobrar os falsos controles, em inclinada subida. O céu brilhava tanto, que ele pestanejou, semicerrando os olhos.

Continuou fitando a parede, da maneira como alguém esperaria ver uma tela de cinema através da imagem, a medida que chegasse mais perto dela. No entanto, a parede era como se não existisse. Os pinheiros tinham uma genuína tonalidade verde-clara, e somente o fato de não poder sentir qualquer brisa ou o cheiro da floresta anulava a sensação ilusória de olhar através de uma janela aberta.

Gardener chegou mais perto, sem tirar os olhos da parede.

Só pode ser uma câmera — montada sobre a borda externa da nave, talvez até fazendo parte da porção em que Bobbi tropeçou. O ângulo confirma isso. No entanto, céus! É tão infernalmente real! Se o pessoal da Kodak ou da Polaroid visse isto, ficaria absolutamente aluc...

Seu braço foi agarrado — agarrado com força — e o terror o invadiu dos pés a cabeça. Gardener virou-se, esperando ver um deles, uma coisa sorridente com cabeça de cachorro, tendo na mão um fio com uma tomada na extremidade: É só abaixar-se, Sr. Gardener; isto não dói nem um pouco.

Era Bobbi. Ela apontou para a parede. Estendeu as mãos e braços, sacudindo-os rapidamente, em alguma espécie de charada. Então, tornou a apontar para a parede-janela. Após um momento, Gardener entendeu. De maneira soturna, quase era engraçado. Bobbi estivera fazendo a mímica de uma eletrocução, dando a entender que, tocar a parede-janela, talvez fosse mais ou menos como tocar o terceiro trilho de um trem subterrâneo.

Gardener assentiu, depois apontando para a passagem mais ampla, pela qual tinham entrado ali. Ela assentiu em resposta, deu meia volta e caminhou naquela direção.

Enquanto Gardener se recompunha, julgou ouvir um chocalhar semelhante ao de uma folha seca e se virou, sentindo o terror sonhado de uma criança quase penetrar-lhe na mente. Imaginou que deviam ser eles, aqueles cadáveres no canto; eles, erguendo-se lentamente sobre os pés em garra, como zumbis.

Entretanto, eles continuavam jazendo naquela emaranhada confusão de estranhos braços e pernas. A ampla, clara visão do céu e das árvores sobre a parede (ou através dela) estava desbotando, perdendo realidade e definição. Gardener fez meia volta e arrastou-se atrás de Bobbi, o mais depressa que pode.

 

O FURO DE REPORTAGEM,

CONTINUAÇÃO

Sabe muito bem que você é um louco, disse John Leandro para si mesmo, ao estacionar exatamente no mesmo lugar usado por Everett Hillman, menos de três semanas antes. Claro está que Leandro ignorava tal detalhe. E, provavelmente, assim até fosse melhor.

Você é um louco, repetiu para si mesmo. Sangrou como um porco, tem dois dentes a menos na boca e, mesmo assim, pretende voltar lá. Ficou louco varrido! Tudo bem, pensou, saindo do velho carro. Estou com vinte e quatro anos, solteiro, ficando barrigudo e, se enlouqueci, foi porque descobri isto, eu descobri, eu, tropecei neste caso. E coisa grande e coisa minha. A minha história. Não, fale do outro jeito. É antiquado, mas quem está ligando — trata-se do termo correto. Meu furo de reportagem. Não permitirei que me mate, mas vou cavalgá-lo até que me jogue ao chão!

Leandro chegou ao pátio de estacionamento, quando era uma e quinze da tarde de um dia que rapidamente se tornava o mais longo de sua vida (e também seria o último, a despeito de todos os seus propósitos em contrário) e pensou: Último para você. Irá cavalgá-lo até que ele o jogue ao chão. Provavelmente, Robert Capa e Ernie Pyla pensavam o mesmo, de vez em quando.

Sensato. Sarcástico, mas sensato. Não obstante, a parte mais profunda de sua mente parecia Além de tal sensatez. Minha história, insistia sua mente, com teimosia. Meu furo de reportagem!

Agora envergando uma camiseta com o dístico DIABO, ONDE FICA TROY, MAINE? (David Bright provavelmente teria uma hemorragia de tanto rir, se visse isso), John Leandro cruzou o pequeno pátio de estacionamento da casa Suprimentos Médicos do Maine (“Especialidade em equipamentos para respiração e terapia respiratória desde 1946”) e entrou no prédio.

 

— Não acha que trinta pratas são um depósito exagerado por uma máscara de respiração? — perguntou Leandro ao atendente, enquanto folheava as notas com o polegar. Achava que tinha os trinta dólares, porém isso ia deixá-lo com apenas um e cinqüenta. — Ninguém poderia imaginar que fosse um artigo importante no mercado negro.

— Não costumamos exigir depósito — explicou o atendente, quando conhecemos o cliente ou a organização, compreenda. Entretanto, acabei perdendo duas máscaras, faz três semanas. Chegou um velho aqui, dizendo que ia precisar de oxigênio. Imaginei que pretendia mergulhar — bem, era velho, mas parecia ainda rijo para isso — e então comecei a falar-lhe sobre o Downeast Scubadive, em Bangor. Ele disse que não, não era bem isso; estava interessado em equipamento portátil, para uso acima do solo. Então, aluguei-lhe o equipamento. Nunca o recebi de volta. Uma mochila-chata Bell, nova em folha. Uma peça de equipamento no valor de duzentos dólares.

Leandro olhou para o outro, quase doente de excitamento. Sentia-se como um homem seguindo flechas indicadoras, aprofundando-se cada vez mais em uma caverna amedrontadora, mas fabulosa e totalmente inexplorada.

— Você alugou esta máscara? Pessoalmente?

— Bem, era uma mochila-chata, em realidade, mas fui eu mesmo. A casa é dirigida por meu pai e por mim. Ele estava fazendo uma entrega de garrafas de oxigênio, lá em Augusta. Quando ficou sabendo, disse-me o diabo! Não sei se me permitiria alugar outra Bell, depois do que houve, mas se fizer o depósito, acho que tudo fica bem.

— Poderia descrever-me o homem?

— Ei, amigo, está se sentindo bem? Parece um pouco pálido em redor da...

— Estou ótimo. Poderia descrever-me o homem que alugou a mochila-chata?

— Era velho. Queimado de sol. Quase careca de todo. Era magro... mas tinha músculos, se é que me entende. Como falei, pareceu-me rijo. — O atendente pensou um pouco. — Dirigia um Valiant.

— Poderia checar em que dia ele alugou a mochila-chata?

— Você é tira?

— Repórter. Do Daily News, de Bangor. — Leandro mostrou seu cartão de imprensa ao atendente.

Agora, o outro é que também começava a ficar excitado.

— Ele andou fazendo alguma coisa mais? Além de surrupiar nossa mochila- chata?

— Poderia verificar o nome e a data para mim?

— Claro.

O atendente folheou seu livro de arrendamentos. Encontrou o registro e virou o livro, a fim de que Leandro pudesse ler. A data era 26 de julho. O nome havia sido garatujado, mas estava ainda legível. Everett Hillman.

— Você não deu parte da perda do equipamento à polícia.

Não era uma pergunta. Se uma queixa de furto houvesse sido feita contra o velhote, complementando o desgosto compreensível de sua senhoria, ao ficar sem duas semanas de aluguel, os tiras poderiam ter mostrado maior interesse pela maneira como ou por que Hillman havia desaparecido... ou por onde desaparecera.

— Não, meu velho não se deu ao trabalho. Entenda, nosso seguro não cobre o furto de equipamento alugado e... bem, é esse o motivo.

O atendente deu de ombros e sorriu, mas o encolher de ombros pareceu ligeiramente constrangido, o sorriso ligeiramente contrafeito, e isto, somado, contou muito a Leandro. Ele poderia ser um imbecil terminal, como temia David Bright, porém não era idiota. Se eles tivessem dado parte do furto ou desaparecimento da mochila-chata, a companhia de seguros não cobriria a perda, o prejuízo. Entretanto, o pai deste sujeito conhecia alguma outra forma de impingir aquilo à companhia de seguros. Por ora, no entanto, tudo isto não passava de considerações bastante secundárias.

— Bem, obrigado por sua ajuda — disse Leandro, tornando a virar o livro para o atendente. — E agora, voltando ao que me trouxe aqui...

— Claro, claro — disse o outro, obviamente feliz por deixar de lado a questão do seguro. — E... bem, poderia falar primeiro com meu pai, antes de colocar qualquer coisa no jornal?

— Sem dúvida — disse Leandro, com tão cálida sinceridade, que o próprio P.T. Barnum teria admirado. — E quanto ao acordo? Posso assiná-lo agora?

— Naturalmente. Contudo, antes disso preciso ver alguma identidade sua. Se quer saber, não pedi a identidade do velho e, por causa disso, também ouvi poucas e boas do meu pai.

— Acabei de mostrar-lhe meu cartão de imprensa.

— Certo, mas talvez fosse melhor eu ver alguma identificação real.

Com um suspiro, Leandro empurrou sua licença de motorista através do balcão.

 

— Vá com calma, Johnny — disse David Bright.

Entretanto, Leandro estava em uma cabine de telefone público, ao lado do pátio de estacionamento de um restaurante com serviço direto nos carros. Ouviu os começos de excitamento na voz de Bright. Ele acredita em mim. Filho da mãe, acho que finalmente acredita em mim!

À medida que ia rodando novamente para Haven e afastando-se da loja Suprimentos Médicos do Maine, o excitamento e tensão de Leandro tinham crescido, a um ponto que ele se julgou capaz de explodir, se não falasse com alguém. Aliás, tinha que falar; reconhecia que, como responsabilidade, aquilo superava o desejo de conseguir seu furo de reportagem sozinho. Tinha que falar, porque ia voltar lá, onde algo poderia acontecer-lhe facilmente; se acontecesse, Leandro queria ter certeza de que alguém conhecia seu paradeiro e no que estava envolvido. E Bright, por mais insuportável que fosse, pelo menos era inteiramente honesto; ele não o trairia.

Irei com calma, certo, é preciso.

Passou o fone para o outro ouvido. O sol da tarde lhe queimava o pescoço, porém não chegava a incomodar. Iniciou seu relato com a corrida até Haven; o incrível embaralhamento de estações no rádio; a violenta náusea; o nariz escorrendo sangue; a perda dos dentes. Contou a ele a conversa tida com o velho, na loja onde comprara a camisa, disse como o lugar estava deserto, como a área inteira poderia estar exibindo um enorme cartaz de aviso, dizendo: TODOS PESCANDO. Não mencionou seus insights matemáticos, porque mal recordava que os tivera. Acontecera algo, porém agora tudo se tornara vago e difuso em sua mente.

Em vez disto, falou a Bright sobre sua idéia de que o ar de Haven havia sido envenenado de algum modo — que talvez houvesse acontecido algum vazamento de produto químico ou o escapamento de um gás natural do seio da terra, mas de efeitos mortais.

— Um gás que melhora transmissões de rádio, Johnny?

Sim, ele sabia ser improvável, sabia que todas as peças ainda não se ajustavam, mas estivera lá e tinha certeza de que seu mal-estar havia sido causado pelo ar. Assim, decidira adquirir algum suprimento portátil de oxigênio e voltar a Haven.

Relatou a coincidência de sua descoberta sobre Everett Hillman, a quem o próprio Bright rejeitara como um velho maluco. Pois o velho maluco tinha estado lá antes dele, com exatamente sua mesma intenção.

— E agora, o que você acha? — perguntou finalmente.

Houve uma pausa momentânea, e então Bright disse o que Leandro considerou as palavras mais doces que já ouvira na vida.

— Acho que você tinha razão o tempo todo, Johnny. Alguma coisa muito estranha anda acontecendo por lá, e eu o aconselho seriamente a manter-se afastado disso.

Leandro fechou os olhos por um momento e recostou a cabeça na lateral do aparelho telefônico. Sorria. Era um grande e beatífico sorriso. Tinha razão. Tinha razão o tempo todo. Ah, eram boas palavras; excelentes palavras; palavras balsâmicas e tranqüilizantes. Tinha razão o tempo todo.

— John? Johnny? Ainda esta ouvindo?

Continuando de olhos fechados, continuando a sorrir, Leandro disse

— Estou ouvindo.

Apenas saboreando a coisa, David, meu velho, porque acho que esperei a vida inteira que alguém dissesse que eu tinha razão o tempo todo. Sobre alguma coisa. Sobre qualquer coisa.

— Fique longe disso. Chame os tiras estaduais.

— Você chamaria?

— Porra, não!

Leandro riu.

— Obrigado pela franqueza. Estarei bem. Vou levando oxigên...

— De acordo com o cara da tal loja de equipamentos médicos, Hillman também fez isso. E desapareceu.

— Vou para lá — repetiu Leandro. — Seja o que for que estiver acontecendo em Haven, serei o primeiro a ver... e tirar fotos.

— Não estou gostando disso.

— Que horas são?

O relógio de pulso de Leandro havia parado, o que era curioso. Ele tinha quase certeza que lhe dera corda, ao levantar-se nessa manhã.

— Quase duas.

— Tudo bem. Ligarei por volta das quatro. Depois, novamente as seis. E etcetera, até chegar em casa, são e salvo. Se você ou alguém dai não tiver notícias minhas a cada duas horas, chame os tiras.

— Johnny, você parece uma criança, brincando com fósforos e dizendo para o pai que, se pegar fogo, papaizinho tem permissão para arrancá-lo das chamas.

— Você não é meu pai — disse Leandro bruscamente.

Bright suspirou.

— Escute aqui, Johnny. Se faz alguma diferença, sinto muito tê-lo chamado de fodido Jimmy Olson. Você estava certo, não basta? Fique longe de Haven!

— Duas horas. Eu quero duas horas, David. Mereço duas horas, afinal de contas!

Leandro desligou o telefone. Começou a caminhar de volta ao carro... mas então deu meia volta e seguiu desafiadoramente até o balcão de pedidos. Pediu dois cheeseburgers, com tudo a que tinham direito. Era a primeira vez na vida que ia comer em um daqueles lugares que sua mãe chamava de lanchonetes de beira de estrada. Apenas, quando ela pronunciava as palavras, fazia com que tais lugares parecessem os mais negros infernos de horror, como em A coisa veio da lanchonete de beira de estrada ou A Terra contra os micróbios-monstros.

Quando chegaram, os cheeseburgers estavam quentes e embrulhados em folhas de papel encerado, manchadas de gordura, inteiramente cobertas pelas maravilhosas palavras impressas DERRY BURGER RANCH. Leandro já havia devorado o primeiro, antes de retornar a seu Dodge.

— Maravilhoso! — falou, a palavra abafada para algo semelhante a aavioso. — Maravilhoso, maravilhoso!

Os micróbios fazem as piores coisas à gente! Pensou ele, com uma ousadia quase embriagada, ao manobrar para a Rota 9. Naturalmente, ignorava que a situação agora estava mudando com toda rapidez em Haven, o que vinha acontecendo desde o meio-dia; em jargão nuclear, as coisas em Haven estavam críticas. De fato, aquele lugar se tornara uma região em separado, com as fronteiras agora policiadas.

Não sabendo disto, Leandro continuou rodando, enquanto comia vorazmente o segundo cheeseburger, lamentando apenas não ter pedido um shake de baunilha para acompanhá-lo.

 

Quando passava diante do magazine geral, em Troy, Leandro deixara de sentir-se eufórico e aquele surdo nervosismo anterior havia retornado — acima dele, o céu era de límpido azul, onde flutuavam alguns fiapos brancos de nuvens, porém seus nervos se sentiam como se houvesse uma tempestade a caminho. Olhou de relance para a mochila-chata no banco ao lado, o copo dourado coberto por um envoltório de celofane, no qual estava escrito SELO SANITÁRIO PARA SUA PROTEÇÃO. Em outras palavras, pensou Leandro, isento de micróbios.

Não havia um só carro na estrada. Nenhum trator nos campos plantados.

Nenhum garoto descalço caminhando pela beira da estrada, com vara de pescar ao ombro. Troy dormia em silêncio (e desdentada, pensou ele) sob o sol de agosto.

Manteve o rádio ligado na WZON e, ao passar pela igreja batista, começou a perder o sinal radiofônico, em meio a um crescente murmúrio de outras vozes. Não muito depois disso, seus cheeseburgers primeiro começaram a passear-lhe inquietamente pelo estômago, depois passando a dar pulos. Leandro podia imaginá-los esguichando gordura, enquanto isso. Estava bem perto do lugar em que tinha parado, quando do primeiro esforço para entrar em Haven. Parou novamente agora, sem perda de tempo, não querendo que os sintomas ficassem piores. Aqueles cheeseburgers tinham sido infernalmente deliciosos, para perdê-los sem mais nem menos.

 

Com a máscara de oxigênio colocada, a indisposição terminou quase que imediatamente. Aquele senso de surdo e agoniante nervosismo, entretanto, não o abandonou. Leandro teve um vislumbre de si mesmo no retrovisor, o copo dourado tapando-lhe a boca e o nariz. Sentiu um toque de medo — seria mesmo ele? Os olhos daquele homem pareciam tão graves, tão intensos... eram como os olhos do piloto de um caça à jato. Leandro não queria que gente como David Bright o julgas-se um imbecil, porém não estava bem certo de querer parecer tão sério como agora.

Bem, é tarde demais. Já está metido nisto.

O rádio borbulhou em uma centena de vozes, talvez mil. Leandro desligou-o. E lá, mais adiante, estava a linha divisória da cidade de Haven. Nada sabendo, em absoluto, sobre meias de náilon invisíveis, rodou até o marcador de limites... passou por ele e entrou em Haven, sem o menor problema.

Embora a situação referente a pilhas e baterias agora estivesse chegando novamente ao ponto crítico, em Haven, eles ainda podiam estabelecer campos de força, ao longo da maioria das estradas que conduziam à cidade. Entretanto, na aterradora confusão sobre os eventos em desenvolvimento pela manhã, Dick Allison e Newt haviam tomado uma diretriz que afetaria diretamente John Leandro. Eles queriam Haven confinada, mas não que alguém esbarrasse em uma barreira inexplicável no meio do que parecia ar rarefeito, para então dar meia volta e ir contar a historia às pessoas erradas...

... isto agora significando todos os habitantes da Terra.

Não acredito que alguém chegasse tão perto, disse Newt.

Ele e Dick estavam na camionete deste último, faziam parte de um desfile de veículos encaminhando-se para a propriedade de Bobbi Anderson.

Era o que eu costumava achar, replicou Dick, mas isso foi antes de Hillman... e da irmã de Bobbi. Não, alguém poderá entrar... mas se entrar, nunca mais sairá daqui.

Tudo bem, ótimo. Você é a Rainha por um Dia. Agora, pode dirigir esta merda mais depressa?

A tessitura dos pensamentos dos dois homens — dos pensamentos de todos os demais a volta deles — era de aflição e furiosa. Naquele momento, a possível incursão de forasteiros em Haven parecia o menor de seus aborrecimentos.

— Eu sabia que devíamos ter-nos livrado daquele maldito bêbado! — exclamou Dick, batendo com força o punho no painel de instrumentos.

Hoje, ele não estava usando maquilagem. Sua pele, além de ficar cada vez mais transparente, também começara a tornar-se áspera. O centro de seu rosto — do rosto de Newt e de todos os outros que tinham permanecido algum tempo no galpão de Bobbi — estava ficando intumescido. A aparência era de que se formava algo semelhante a um focinho.

 

Evidentemente, John Leandro ignorava tudo isto — sabia tão somente que o ar a sua volta era venenoso — mais venenoso do que ele jamais imaginaria. Puxara o copo dourado para baixo, apenas pelo tempo suficiente de uma só respiração ligeira, e o mundo imediatamente começara a esmaecer. Devolveu rapidamente o copo ao lugar, o coração disparando, as mãos gélidas.

Uns duzentos metros após o marco dos limites da cidade, o motor de seu Dodge simplesmente morreu. A maioria dos automóveis e caminhões de Haven havia sido adaptada, de maneira a que todos os veículos ficassem imunes ao crescente e firme campo eletromagnético que a espaçonave expelira para a terra, no decorrer dos aproximadamente dois últimos meses (grande parte do trabalho de adaptação dos motores havia sido feita no posto Shell de Elt Barker), mas o carro de Leandro não fora submetido ao mesmo tratamento.

Ficou sentado um momento atrás do volante, contemplando idiotamente as luzes vermelhas dos instrumentos no painel. Passou a transmissão para Park e girou a chave. O motor ficou mudo. Diabo, o solenóide nem ao menos fez um clique!

Talvez os cabos da bateria estejam soltos.

Não se tratava disso. Se fosse, as luzes em OIL e AMP não estariam cintilando. Isto, porém, era o de menos. Para começar, ele sabia que nada havia com os cabos da bateria, simplesmente porque sabia.

Naquele ponto, havia árvores marginando a estrada. O sol passando por suas folhas em movimento, criava padrões salpicados sobre o asfalto e a terra alva das margens. Subitamente, Leandro sentiu que, de trás das árvores, olhos espiavam para ele. Era tolice, mas mesmo assim, a idéia era poderosíssima.

Muito bem, agora você tem que sair e ver se consegue escapar do cinturão de veneno, antes que seu oxigênio acabe. Os riscos aumentam a cada segundo que ficar aí sentado e tremendo de medo.

Tentou mais uma vez a chave da ignição. Nada ainda.

Pegou a maquina fotográfica, passou a correia pelo ombro e saiu do carro. Ficou parado, olhando inquietamente para o matagal no lado direito da estrada. Julgou ouvir algo as suas costas — um som rastejante — e girou a toda pressa, os lábios repuxados em uma careta seca de medo.

Nada... nada que pudesse ver.

A floresta é maravilhosa, escura e densa...

Ponha-se em movimento. Não fique aí parado, gastando seu ar!

Tornou a abrir a porta, inclinou-se e tirou a arma que estava no porta-luvas. Carregou-a, depois tentou enfiá-la no bolso direito da frente. Era grande demais. Teve medo dela cair e disparar, se a deixasse ali. Puxou para cima a camiseta nova, enfiou a arma no cinto e tornou a baixar a camiseta sobre ela.

Olhou novamente para o matagal, depois para o carro, com amargura. Imaginou que poderia bater fotos, mas o que elas mostrariam? Nada, exceto uma estrada rural deserta. Eram vistas por todo o estado, mesmo no auge da temporada turística do verão. As fotos não mostrariam a falta de sons entre as árvores; não revelariam que o ar tinha sido envenenado.

Lá se vai o seu furo de reportagem, Johnny. Oh, você escreverá um monte de histórias a respeito e tenho a impressão de que irá dizer a um punhado de equipes de jornal televisado qual o seu ângulo favorável, porém... e o retrato na capa de Newsweek? O Prêmio Pulitzer? Esqueça!

Parte dele — uma parte mais adulta — insistia em que tudo aquilo era tolice, que meia fatia era melhor do que nenhuma, que a maioria dos repórteres do mundo inteiro se mataria para obter apenas um pedacinho desta fatia, o que quer que ela fosse.

John Leandro, no entanto, era um homem mais jovem do que seus vinte e quatro anos. Quando David Bright acreditou ter visto uma generosa porção de imbecilidade nele, não alterara o fato. Ele se sentia como um jogador novato, participando de um jogo profissional importante e que, em seu primeiro lançamento, punha para fora três jogadores do campo adversário. Nada mau... mas uma voz gritava em seu coração: Ei, Deus, se Você queria me dar uma chance pela metade, por que não a deu inteira?

Haven Village ficava a menos de quilômetro e meio dali. Poderia chegar até lá em quinze minutos, andando... porém sabia que jamais conseguiria sair do cinturão venenoso, antes que o ar da mochila chata acabasse.

Se pelo menos, tivesse trazido duas destas malditas coisas... Mesmo que pensasse em trazê-las, não tinha dinheiro bastante para cobrir o maldito depósito de duas. A questão é a seguinte, Johnny: você quer morrer ou não por seu furo de reportagem?

Ele não queria. Se sua foto ia sair na capa de Newsweek, Leandro não queria vê-la contornada por uma tarja negra.

Começou a caminhar de volta, em direção a linha divisória da cidade de Troy. Deu cinco dúzias de passos, antes de perceber que podia ouvir barulho de motores — muitos motores, ainda na distância.

Alguma coisa está acontecendo no outro lado da cidade.

Seria o mesmo que estar acontecendo algo no lado oculto da lua. Esqueça!

Lançando outro olhar inquieto para a floresta, ele recomeçou a andar. Deu mais doze passos e percebeu que podia ouvir outro som: um zumbido baixo às suas costas, aproximando-se.

Virou-se. Ficou boquiaberto. Em Haven, a maioria de julho havia sido o Mês Municipal da Engenhoca. À medida que a “transformação” avançava, a maioria dos residentes em Haven perdera o interesse em tais coisas... porém as engenhocas continuavam lá, estranhos elefantes brancos, como aqueles que Gardener vira no galpão de Bobbi. Inúmeras de tais engenhocas tinham sido destinadas ao serviço de guardas fronteiriços. Sentada em seu escritório na sede da municipalidade, diante de uma bancada de fones de ouvido, Hazel McCready os fiscalizava brevemente, um por um. Estava enfurecida ao ser deixada para trás, incumbida daquele plantão, enquanto o futuro de tudo pendia da balança na fazenda de Bobbi. Só que agora... alguém finalmente entrara na cidade.

Satisfeita por aquela interrupção da monotonia, Hazel entrou em ação, a fim de cuidar do intruso.

 

Era a máquina de Coca que estivera em frente do supermercado de Cooder. Leandro ficou petrificado de espanto, vendo-a aproximar-se: um alegre retângulo vermelho e branco, com dois metros e vinte de altura por setenta centímetros de largura. Cortava o ar rapidamente na direção dele, a parte inferior a um meio metro acima do solo da estrada.

Fui inserido em um anúncio, pensou Leandro. Alguma esquisita espécie de anúncio. Em um ou dois segundos, a porta dessa coisa se abrirá e O.J. Simpson sairá voando de lá.

Era uma idéia hilariante. Leandro começou a rir. E enquanto ainda ria, ocorreu-lhe que ali estava a foto... oh, céus, ali estava a foto, ali estava uma máquina automática para a venda de Coca-Cola, flutuando acima do trecho asfaltado e negro de uma estrada rural de duas faixas!

Estendeu a mão para a Nikon. A máquina de Coca, zumbindo para si mesma, contornou o carro “afogado” de Leandro e avançou. Parecia uma alucinação de louco, porém a frente da máquina proclamava que, por mais que se julgasse o contrário, isto era A COISA REAL.

Ainda rindo, Leandro reparou que a máquina não estava parando — aliás, até aumentava a velocidade. E, em realidade, o que era uma máquina automática para a venda de refrigerantes? Uma geladeira, com anúncios impressos na lataria. Por outro lado, geladeiras eram pesadas. A máquina de Coca, um míssil dirigido vermelho e branco deslizou através do ar na direção dele. O vento produzia um leve ruído oco e uivante, na fenda para moedas.

Leandro esqueceu a foto. Saltou para a esquerda. A máquina de Coca colidiu em sua canela direita e a quebrou. Por um momento, a perna dele foi apenas um dilacerante aguilhão de intensa dor. Ele gritou dentro do copo dourado, enquanto caia sobre o estômago na beira da estrada, rasgando a camiseta. A Nikon deslizou com a correia e bateu na margem de cascalhos, emitindo um som de esmigalha-mento.

Oh, sua filha da puta, essa máquina custou quatrocentos dólares!

Ficando de joelhos, ele se virou, com a camisa rasgada, o peito sangrando, a perna ululando.

A máquina de Coca dera a volta e retornava. Pendeu no ar por um momento, a parte da frente girando para diante e para trás, em pequenos arcos que fizeram Leandro recordar as varreduras em uma tela de radar. O sol arrancou faíscas em sua porta de vidro. Ele pode ver garrafas de Coca e Fanta no interior.

De repente, a máquina se virou para ele — e acelerou em sua direção.

Ela me achou, oh, Cristo...

Levantando-se, ele tentou aproximar-se do carro, pulando com o pé esquerdo. A máquina de refrigerantes voou para o homem, a fenda das moedas ululando soturnamente.

Com um grito agudo, Leandro atirou-se para diante e rolou. A máquina de Coca deixou de tocá-lo, por talvez dez centímetros. Ele aterrou na estrada. A dor subiu uivante pela perna quebrada, arrancando-lhe novos gritos de agonia.

A máquina deu meia volta, fez uma pausa, encontrou-o e tornou a arremeter contra ele.

Leandro tateou pela arma que tinha no cinto e a empunhou. Disparou quatro vezes, equilibrado sobre os joelhos. Acertou cada tiro. O terceiro estilhaçou a porta de vidro da máquina.

A última coisa que ele viu, antes que a máquina — cujo peso chegava a pouco mais de trezentos quilos — o atingisse, foram várias garrafas de gargalo estilhaçado por suas balas, com a bebida que continham espumando e escorrendo.

Garrafas de gargalo partido, vindo atacá-lo a sessenta e cinco quilômetros por hora.

Mama! guinchou a mente de Leandro, enquanto erguia os braços e os cruzava diante do rosto.

Ele não precisava ter-se preocupado com garrafas de gargalo quebrado, em absoluto, ou tampouco com os micróbios que poderiam conter os cheeseburgers do Burger Ranch. Uma das maiores verdades da vida é esta: quando alguém esta prestes a ser atropelado por uma acelerada máquina de Coca automática, pesando trezentos quilos, não tem motivos para preocupar-se com mais nada.

Houve um som seco e rangente. A frente do crânio de Leandro espatifou-se como um vaso Ming, atirado ao chão. Uma fração de segundo mais tarde, sua espinha estalou. A máquina o arrastou por um momento, preso a ela como um grande inseto preso ao pára-brisa de um carro em grande velocidade. As pernas desconjuntadas varreram a estrada, com a linha divisória branca desenovelando-se entre ambas. As biqueiras de seus mocassins erodiram-se com o atrito, transformando-se em nódulos de borracha fumegante. Um deles lhe saiu do pé.

Então, deslizou pela frente da máquina automática abaixo, caindo na estrada pesadamente, como um trapo.

A máquina de Coca iniciou a trajeto de volta para Haven Village. Seu repositório de moedas emperrara, no choque contra Leandro e, a medida que ela se deslocava rapidamente através do ar, sempre zumbindo, um firme fluxo de moedas de cinco, dez e vinte e cinco centavos ia escapando pela fenda da devolução de moedas, em seguida começando a rodar pela estrada.

 

GARD E BOBBI

Gardener sabia que Bobbi em breve tomaria a iniciativa — a antiga Bobbi cumprira o que a Nova e Melhorada Bobbi via como sua última obrigação para o bom e velho Jim Gardener, aquele que chegara para salvar uma amiga e acabara ficando para caiar um diabo de estranho gradil.

De fato, ele chegara a pensar que tudo aconteceria na linga — que Bobbi quisera subir primeiro para, uma vez no alto, simplesmente não tornar a enviá-la para baixo, a fim dele também subir. Então, lá permaneceria ele, no fundo da escavação e ao lado da escotilha, para morrer naquele lugar, perto do estranho símbolo gravado. Bobbi nem mesmo teria de envolver-se com a suja realidade de um assassinato; não precisaria pensar no bom e velho Gard, morrendo lenta e miseravelmente de fome, tampouco. O bom e velho Gard teria morte rápida, provocada por múltiplas hemorragias.

No entanto, Bobbi insistira para Gard subir primeiro. A sardônica expressão de seus olhos dissera a Gard que sabia exatamente o que ele estivera pensando... sem mesmo precisar ler-lhe a mente para adivinhar.

A linga elevou-se no ar e Gardener apertou-se firmemente contra o cabo, lutando contra a vontade de vomitar — uma vontade, pensou ele, que rapidamente seria impossível negar. No entanto, Bobbi lhe enviara um pensamento, transmitido alto e claro, assim que rastejavam novamente para sair pela escotilha: Só tire a máscara quando chegar lá em cima. Estariam os pensamentos de Bobbi mais nítidos, ou era imaginação dele? Não. Nada de imaginação. Ambos haviam tido outra sobrealimentação, dentro da nave. O nariz dele sangrava e o sangue ensopava-lhe a camisa; a máscara de ar começava a encher-se. Sem comparação, aquela era a pior hemorragia que sofria, desde que Bobbi o trouxera até ali pela primeira vez.

Por quê? Transmitira ele de volta, tentando ser cauteloso ao máximo e enviando apenas aquele pensamento de superfície — nada mais abaixo disto.

A maioria das máquinas que ouvimos envolve renovadores de ar. Respirar agora o que a escavação contém faria em você o mesmo efeito que se respirasse o que havia dentro da nave, quando a abrimos pela primeira vez. As duas atmosferas não se nivelarão pelo restante do dia, talvez isso até demore mais.

Não era a espécie de pensamento que em geral seria esperado de uma mulher que nos quer matar — mas aquela expressão continuava nos olhos dela, e o senso da mesma coloria todos os pensamentos de Bobbi.

Aferrando-se desesperadamente ao cabo, fincando os dentes no bocal da máscara, Gardener lutou para não expulsar o que tinha no estômago.

A linga chegou ao alto. Afastou-se como um ébrio, com pernas que pareciam feitas de tiras de borracha e clipes de papel, mal vendo a Electrolux seu cabo manipulando os botões. Conte até dez, pensou. Conte até dez, afaste-se da escavação o mais que puder, para então tirar a máscara e enfrentar o que está por vir. Seja como for, acho que prefiro morrer a sentir tudo isto novamente.

Sua contagem chegou a cinco e não foi além. Loucas imagens dançavam-lhe diante dos olhos: derramando bebida pelo decote de Patrícia McCardle, vendo Bobbi destacar-se da varanda para recebê-lo, quando finalmente chegara; o homenzarrão com o copo dourado sobre a boca e o nariz, virando-se na janela do passageiro para espiá-lo, rodando em um tração-nas-quatro-rodas, enquanto ele jazia embriagado na varanda.

Se eu tivesse cavucado em alguns lugares diferentes, naquela pedreira, bem, acho que poderia ter encontrado também aquele cara! pensou, e foi quando seu estômago finalmente rebelou-se.

Puxou a máscara e o bocal, depois vomitou. Em seguida, cambaleou até um pinheiro na orla da clareira, ao qual aferrou como apoio.

Tornou a vomitar e percebeu que jamais acontecera algo semelhante, em toda a sua vida. Não obstante, havia lido a respeito. Estava ejetando substância — em sua maioria sanguinolenta — em jatos que voavam como balas. E, de fato, eram quase balas. Gard estava tendo um acesso de vômito em jato. Nos círculos médicos, isto não era considerado um sinal de boa saúde.

Véus cinzentos obscureceram-lhe a visão. Seus joelhos se dobraram. Oh, merda, estou morrendo, pensou, mas sem que a idéia possuísse qualquer coloração emocional. Era uma noticia aterradora, nem mais, nem menos. Sentiu as mãos deslizarem pelo tronco áspero do pinheiro abaixo. Sentiu a seiva, semelhante a alcatrão. Fracamente, teve consciência de que o ar tinha um odor esquisito e sulfúrico — o cheiro desprendido por uma fábrica de papel, após uma semana de tempo encoberto e parado. Não se incomodou. Quer houvesse Campos Elíseos ou apenas um grande e negro nada, nenhum dos dois teria tal fedor. Então, afinal ele terminasse ganhando aquela parada. Era melhor não ligar, entregar os pontos. Apenas...

Não! Não, você não vai entregar os pontos! Você voltou para salvar Bobbi e ela talvez já estivesse além da salvação, mas existe aquele garotinho em algum lugar, é possível que ainda seja salvo. Por favor, Gard, tente, ao menos!

— Não permita que isto aconteça por nada! — exclamou, em voz vacilante e quebrada. — Jesus Cristo, por favor, não deixe que isto aconteça por nada!

As acinzentadas névoas oscilantes clareavam um pouco. O vômito cessou. Levou uma das mãos ao rosto e, ao tirá-la, trouxe com ela uma porção de sangue.

Enquanto fazia isto, sentiu uma mão tocar-lhe a nuca e toda a sua pele arrepiou-se. Uma mão... a mão de Bobbi... porém não uma mão humana, não mais.

— Gard, você está bem?

— Estou — respondeu em voz alta, lutando para ficar em pé.

O mundo balançou, depois entrou em foco. A primeira coisa a ver nele foi Bobbi. A expressão no rosto dela era de frio e indiferente calculismo. Gard não leu amor naquela expressão, nem mesmo um simulacro de preocupação. Bobbi se tornara imune a tais coisas.

— Vamos embora — disse ele, em voz rouca. — Você dirige. Estou me sentindo... — Cambaleou e precisou apoiar-se no estranho e franzino ombro de Bobbi, a fim de não cair. — ...um pouco fora de forma.

 

Quando finalmente chegaram em casa, Gardener estava melhor. O sangra-mento do nariz agora era apenas um filete. Havia engolido um bocado de sangue, enquanto usava a máscara, muito do qual devia ter sido expelido com o vômito. Pelo menos, era o que esperava.

Ao todo, tinha perdido nove dentes.

— Quero trocar a camisa — disse a Bobbi.

Ela assentiu, sem grande interesse.

— Depois, venha até a cozinha — disse ela. — Precisamos conversar.

— Sim, acho que precisamos.

No quarto de hóspedes, Gardener tirou a camiseta que estivera usando e vestiu uma limpa. Deixou-a solta sobre o cinto. Foi até os pés da cama, ergueu o colchão e apanhou o .45. Enfiou-o nas calças. A camiseta estava grande demais; ele havia perdido um bocado de peso. O contorno da arma dificilmente seria notado, se encolhesse a barriga. Esperou um momento mais, perguntando-se se estava preparado para isto. Concluiu que não havia meios de afirmar semelhante coisa antecipadamente. Uma dor de cabeça imprecisa corroia-lhe as têmporas e o mundo parecia entrar e sair de foco, em ciclos lentos, aturdidos. Sua boca doía e o nariz estava recheado de sangue ressequido.

Era isto; cartas na mesa, como jamais Bobbi escrevera em seus faroestes. Meio-dia em ponto, no centro do Maine. Faça seu jogo, parceiro.

Uma sombra de sorriso tocou-lhe os lábios. Todos aqueles bombásticos filósofos de dois-por-um-centavo, diziam que a vida era uma estranha proposição, mas isto, em realidade, era ultrajante.

Gard foi para a cozinha.

Bobbi estava sentada à mesa da cozinha e olhava para ele. Um estranho fluido verde, vislumbrado a meio, circulava sob a superfície de seu rosto transparente. Os olhos — agora maiores, com as pupilas de formato curioso — fixavam-se sombriamente em Gardener.

Em cima da mesa havia um rádio de caixa-propulsora. Dick Allison o trouxera para Bobbi, três dias atrás, a pedido dela. Era o mesmo usado por Hank Buck para enviar Pits Barfield aquele repple-depple — espécie de posto de movimentação de recrutas — no céu. Bobbi levara menos de vinte minutos para ligar seus circuitos à pistola de brinquedo com fótons, que apontava para Gardener.

Havia ainda duas cervejas e um frasco de pílulas em cima da mesa. Gardener identificou o frasco. Bobbi devia ter ido apanhá-lo no banheiro, enquanto ele mudava de camisa. Era o seu Valium.

— Sente-se, Gard — disse Bobbi.

 

Gardener havia colocado sua armadura mental, assim que se vira fora da nave. A questão agora, era saber quanto dela ainda persistia.

Cruzou a cozinha lentamente e sentou-se à mesa. Sentiu o .45, afundando em seu estômago e virilhas; também o sentiu encravando-se fundo em sua mente, jazendo pesadamente contra o que quer que sobrara daquela armadura.

— São para mim? — perguntou ele, indicando as pílulas.

— Pensei que poderíamos tomar uma ou duas cervejas — disse ela, com ar tranqüilo —, como fazem os amigos. O que acha? E, enquanto conversamos, você pode tomar pílulas. Achei que seria a maneira mais gentil.

— Gentil... — murmurou Gardener, sentindo a primeira e leve pontada de raiva.

Não se deixe iludir novamente, dizia a canção, porém o hábito pode ser terrivelmente duro para romper. Ele próprio iludira-se fartamente. Certo, mas então, pensou, talvez você seja uma exceção da regra, Gard, velho Gard.

— As pílulas para mim e, para Peter, aquele sinistro aquário no galpão. Sua definição de gentileza, Bobbi, sofreu uma porra de mudança radical, desde os tempos em que chorava, se Peter trouxesse um pássaro morto para casa. Lembra-se daqueles tempos? Moramos aqui juntos, mantivemos sua irmã à distância quando ela apareceu e nunca precisamos prendê-la em um boxe de chuveiro para eliminá-la. Apenas lhe demos um bom pontapé no traseiro. — Gardener olhou soturnamente para ela. — Lembra-se, Bobbi? Isso aconteceu quando éramos amantes, além de amigos. Pensei que você poderia ter esquecido. Eu morreria por você, garota. E morreria sem você. Lembra-se? Lembra-se de nós?

Bobbi baixou os olhos para as mãos. Teria ele visto lágrimas naqueles olhos estranhos? Provavelmente, tudo quanto viu foi um resultado de sua ânsia.

— Quando foi que esteve no galpão?

— A noite passada.

— E em que você tocou?

— Eu costumava tocar em você — murmurou Gardener. — E você me tocava. Sem que nenhum de nós se incomodasse. Lembra-se?

— Em que você tocou? — gritou ela estridentemente.

E, quando ergueu os olhos, ele não viu Bobbi, mas apenas um monstro enfurecido.

— Em nada — disse ele. — Não toquei em nada.

A raiva em seu rosto devia ter sido mais convincente do que qualquer protesto, porque Bobbi pareceu acalmar-se. Sorveu delicadamente sua cerveja.

— Não importa. De qualquer modo, você não teria prejudicado coisa nenhuma lá dentro.

— Como pode fazer aquilo com Peter? Sinceramente, aí está algo que não me sai da cabeça. O velho, eu não conhecia. Quanto a Anne, entrou sem pedir licença. No entanto, eu conhecia Peter. Também ele teria morrido por você. Como pode fazer aquilo? Em nome de Deus!

— Ele me manteve viva, quando você não estava aqui — disse Bobbi. Em sua voz havia apenas uma remota nota defensiva, vagamente inquieta. — Quando eu trabalhava vinte e quatro horas por dia. Ele foi o único motivo de você ter encontrado um resto para salvar, quando chegou aqui.

— Sua fodida vampira!

Bobbi olhou para ele, depois desviou o rosto.

— Santo Deus, você fez uma coisa destas e eu tomei parte nisto! Avalia o quanto dói? Eu tomei parte! Via o que estava acontecendo com você... em menor grau, via o que estava acontecendo aos outros, mas no entanto, continuei tomando parte! Porque estava fora de mim. Claro, você sabia disso, não sabia? Usou-me, da mesma maneira como usou Peter, mas acho que não cheguei a ser tão esperto como um velho cachorro beagle, porque inclusive você não precisou colocar-me no galpão e nem pregar em minha cabeça um daqueles sujos, nojentos e fedorentos cabos. Você apenas me manteve de conserva em álcool. Entregou-me uma pá e disse: “Tome aqui, Gard, vamos desenterrar esta coisinha e deter a Polícia de Dallas.” Exceto que você é a Polícia de Dallas. E eu tomei parte nisto!

— Beba sua cerveja — disse Bobbi, seu rosto novamente frio.

— E se eu não quiser beber?

— Então, vou ligar este rádio — replicou Bobbi, — abrir um buraco na realidade e mandar você... para algum lugar.

— Para Altair-4? — perguntou Gardener.

Ele procurava manter naturalidade na voz, enquanto reforçava a proteção mental

(armadura-armadura-armadura-armadura)

erigindo aquela barreira em sua mente. Uma leve ruga tornou a surgir na testa de Bobbi, e Gardener sentiu aqueles dedos mentais sondando de novo, vasculhando, procurando descobrir o que ele sabia, quanto... e como.

— Andou bisbilhotando um bocado, não foi? — perguntou ela.

— Só quando percebi o quanto você estava mentindo para mim.

E, de repente, ficou sabendo. Ele havia entrado no galpão ainda ignorando tudo.

— Você disse para si mesmo a maioria das mentiras, Gard.

— É mesmo? E sobre o garoto que morreu? Ou o que está cego?

— Como e que ficou sab...

— O galpão. É aonde vão, para ficarem espertos, não?

Ela não respondeu.

— Você enviou aqueles dois para trazerem baterias. Matou um e cegou outro apenas para conseguir baterias! Deus do céu, Bobbi, como puderam ser tão tapados?

— Somos mais inteligentes do que você jamais imag...

— Quem está falando em inteligência? — gritou ele, enfurecidamente. — Estou falando em esperteza! O fodido senso-comum! As linhas da Central Elétrica do Maine passam bem nos fundos de sua casa! Por que não fizeram uma puxada delas, por que não as grampearam?

— Sem dúvida. — Bobbi sorriu com sua boca estranha. — Uma idéia muito inteligente — perdão, muito esperta. E, tão logo algum técnico, trabalhando na subestação de Augusta, desse pela evasão de energia em seus mostradores...

— Vocês estão fazendo quase tudo funcionar com pilhas e baterias C, D e A-duplo — disse Gard. — Isso é uma gota d’água! Um sujeito usando a corrente doméstica para fazer funcionar uma grande serra de fita, faria aquelas agulhas marcarem uma carga bem maior!

Ela pareceu momentaneamente confusa. Dava a impressão de ouvir — não alguém mais, porém a própria voz interior.

— As baterias utilizam corrente contínua, Gard. As linhas de energia em corrente alternada não teriam o menor valor para...

Ela bateu nas têmporas com os punhos e bradou!

— Será que nunca viu um maldito transformador de corrente contínua? Pode comprá-lo na loja “Rádio Shack” por três pratas! Está mesmo tentando me dizer que não conseguiria fabricar um simples transformador de corrente contínua, quando pode fazer seu trator voar e sua máquina de escrever funcionar por telepatia? Esta querendo me...

— Ninguém se lembrou disso! — gritou ela subitamente.

Houve um momento de silêncio. Bobbi parecia aturdida, como que pelo som da própria voz.

— Ninguém se lembrou disso — repetiu ele. — Certo. Então, enviaram aquele casal de crianças, os dois decididos a cumprir a tarefa ou morrer pelo bem da velha Haven... Só que, agora, um deles está morto e o outro sem enxergar. Pura merda, Bobbi. Não me interessa quem ou o que se apoderou de você — parte sua tem que estar dentro de algum lugar. Uma parte sua tem que perceber que sua gente não vem fazendo absolutamente nada de criativo. Muito pelo contrário. Estiveram tomando pílulas de burrice e felicitando uns aos outros por como tudo isto e maravilhoso. O doido fui eu. Fiquei repetindo para mim mesmo que tudo ia acabar dando certo, ainda depois de ficar mais a par das coisas. Só que continuam sendo a mesma e velha merda, sempre foi assim. Vocês podem desintegrar pessoas, podem teletransportá-las para algum lugar, como segurança, enterrá-las, seja o que for, porém são tão ignorantes como uma criança, com uma pistola carregada.

— Acho que é melhor calar-se agora, Gard.

— Vocês esqueceram uma coisa — disse ele, suavemente. — Francamente, Bobbi! Como pode suportar olhar para sua imagem em um espelho? Você, qualquer um dos outros?

— Eu disse que acho...

— Idiot savant, foi o que disse certa vez. Acho que é pior. É como ver-se um bando de crianças preparando-se para explodir o mundo com planos ingênuos. Vocês nem mesmo chegam a ser maus. São ignorantes, mas não maus.

— Gard...

— Não passam de um bando de patetas com chaves de fenda.

Gardener deu uma risada.

— Cale a bocal — ordenou ela, em voz aguda.

— Céus! — exclamou Gard. — Terei realmente pensado que Sissy estava morta? Foi o que pensei?

Bobbi estava tremendo.

Gardener apontou para a arma de fótons.

— Quer dizer que, se eu não beber a cerveja e tomar as pílulas, você me despacha para Altair-4, certo? Serei baba de David Brown, até nós dois morrermos de asfixia, inanição ou envenenamento por raios cósmicos.

Ela estava sinistramente fria agora, e isso doía — mais do que ele poderia acreditar — mas, pelo menos, não tentava ler-lhe a mente. Tomada pela raiva, Bobbi havia esquecido isso.

Da mesma forma como haviam esquecido quanto era simples ligar à tomada da parede um gravador de pilhas, desde que existindo um transformador de corrente contínua entre o aparelho e a fonte de energia elétrica.

— Em realidade, não existe um Altair-4, como tampouco existem Tommyknockers. Não há nomes para certas coisas — elas apenas são. Alguém afixa um nome nessas coisas em um lugar, enquanto outros lhes dão nomes diferentes em um diferente lugar. Nunca é um nome muito adequado, mas isto não vem ao caso. Você, Gard, voltou de New Hampshire falando em Tommyknockers, portanto, é isso que somos aqui. Temos sido chamados de outras coisas, em outros lugares. O mesmo acontece com Altair-4. Trata-se apenas de um lugar onde coisas ficam estocadas. Em geral, não coisas vivas. Porões podem ser lugares frios e escuros.

— Foi de onde vocês vieram? O seu povo?

Bobbi — ou o que quer que tivesse certa semelhança com ela — sorriu quase delicadamente.

— Nós não somos um “povo”, Gard. Nem uma “raça”. Tampouco uma “espécie”. Klaatu não vai aparecer e dizer: “Levem-me ao seu chefe!” Não, nós não somos de Altair-4.

Ela o encarou, ainda sorrindo levemente. Havia recuperado quase toda a equanimidade... e, por enquanto, parecia ter esquecido as pílulas.

— Se você sabe sobre Altair-4, eu me pergunto se não achou algo estranha a existência da nave.

Gardener olhava apenas para ela.

— Não acredito que tenha tido tempo suficiente para perguntar-se por que uma raça, com acesso à tecnologia da teleportação — Bobbi meneou ligeiramente a pistola de plástico — chegaria a preocupar-se em perambular por aí, em uma nave física.

Gardener ergueu as sobrancelhas. Não, ele não tinha considerado isto, mas agora que Bobbi tocava no assunto, recordou um colega universitário certa vez perguntando-se em voz alta, por que Kirk, Spock & Cia. preocupavam-se tanto com a nave estelar Enterprise, já que teria sido bem mais simples eles se irradiarem pelo universo.

— Mais pílulas de ignorância — replicou.

— De maneira alguma! — disse ela. — É como o rádio. Existem comprimentos de ondas. No entanto, quando a coisa passa além disso, não a entendemos muito bem. É algo verdadeiro sobre nós, no tocante à maioria das coisas, Gard. Somos construtores, não entendedores.

“Mesmo assim, conseguimos isolar cerca de noventa mil comprimentos de onda ‘livres’ — quero dizer, direções pró-lineares, capazes de duas coisas: evitar o paradoxo binário que impede a reintegração do tecido vivo e da matéria desagregada, e, realmente, parecerem ir para algum lugar. Contudo, na maioria dos casos, não se trata de algum lugar para onde alguém quisesse ir.

— Seria como ganhar uma viagem a Utica, com todas as despesas pagas, não?

— Muito pior. Há um lugar que parece ter extrema semelhança com a superfície de Júpiter. Se você abrir uma porta para esse lugar, a diferença de pressão é tão intensa, que desencadeia um furacão na soleira, o qual rapidamente assume uma carga elétrica extraordinariamente alta, explodindo a porta, deixando-a cada vez mais escancarada e escancarada... como se dilacerasse um ferimento. A gravidade então se torna tão forte, que começa a sugar a terra do mundo invasivo, da maneira como um saca-rolhas puxa uma rolha. Se essa particular “estação” ficar sintonizada por muito tempo, ela provocaria uma falha gravônica na órbita do planeta, presumindo-se que tenha uma massa similar à da Terra. Ou, dependendo da composição do planeta, este poderia simplesmente desintegrar-se.

— Alguma coisa semelhante esta para acontecer aqui?

Gard fez a pergunta e sentiu os lábios entorpecidos. Tal possibilidade, faria Chernobyl parecer tão importante como um peido em uma cabine telefônica. E você tomou parte disso, Gard! gritou sua mente. Ajudou a escavar a nave!

— Não, embora algumas pessoas tivessem que ser convencidas a não bisbilhotarem demais nas linhas de transmissão/transmatéria. — Ela sorriu. — Não obstante, aconteceu em um outro lugar que visitamos.

— O que aconteceu?

— Eles conseguiram fechar a porta antes do Dia da Desintegração, porém muita gente foi cozida, quando a órbita mudou — explicou ela, parecendo entediada com o assunto.

— Todas elas? — sussurrou Gardener.

— Negativo. Ainda há nove ou dez mil vivas, em um dos pólos — replicou Bobbi. — Pelo menos, é o que imagino.

— Céus! Meu Deus, Bobbi!

— Ha outros canais que se abrem para rochas. Apenas rochas. O interior de algum lugar. A maioria, contudo, se abre para o espaço profundo. Nunca fomos capazes de mapear uma só de tais localizações, valendo-nos de nossos mapas estelares. Pense nisto, Gard! Cada lugar tem sido um cenário estranho para nós... mesmo para nós — e somos grandes viajantes siderais!

Inclinando-se para diante, ela sorveu um pouco mais da cerveja. A pistola de brinquedo, que deixara de ser um brinquedo, não se moveu do peito de Gardener.

— Aí esta a teleportação. Uma grande coisa, não? Algumas rochas, um monte de buracos, um porão cósmico. Algum dia, talvez alguém abra um comprimento de onda no coração de um sol e, em um piscar de olhos, fritará um planeta inteiro.

Bobbi riu, como se houvesse dito uma excelente piada. No entanto, a arma continuou apontada para o peito de Gard. Ficando novamente séria, ela acrescentou:

— Só que isso não é tudo, Gard. Quando você liga um rádio, pensa que esta sintonizando uma estação. Uma faixa, no entanto — de onda curta, em megahertz, quilohertz, seja o que for — não compreende apenas estações. Ela possui também todos os espaços vagos entre estações. Aliás, algumas faixas constam principalmente dessa maioria de espaços vazios. Está me seguindo?

— Estou.

— Este é um circunlóquio meu, a fim de convencê-lo a tomar as pílulas. Não quero enviá-lo para o lugar a que chama de Altair-4, Gard — lá, sei que você morreria lenta e dolorosamente.

— Da maneira como David Brown está morrendo?

— Não tive nada a ver com aquilo — replicou ela rapidamente. — Foi obra apenas do irmão dele.

— Como em Nuremberg, não é mesmo, Bobbi? Em realidade, nada foi culpa de alguém.

— Seu idiota! — exclamou ela. — Não percebe que, às vezes, essa é a verdade? É tão covarde que não pode aceitar a idéia de uma ocorrência casual?

— Claro que posso aceitá-la. No entanto, também acredito na aptidão do indivíduo para inverter um comportamento irracional — disse ele.

— É mesmo? Você jamais faria isso.

Baleou sua esposa, ele ouviu falar o comissário que tirava melecas. Uma baita enrascada, eh?

Certas pessoas talvez comecem a Expiação Melequenta um pouco tarde demais, pensou ele, baixando os olhos para as mãos.

Os olhos de Bobbi pousaram perscrutadoramente em seu rosto. Ela havia captado parte daquilo. Ele tentou reforçar a armadura — uma emaranhada cadeia de pensamentos desconexos, como um ruído de muitas freqüências e número aproximadamente igual de energias.

— Em que esta pensando, Gard?

— Em nada que você precise saber — respondeu ele, sorrindo vagamente. — Imagine como... bem, digamos, um cadeado em uma porta de galpão.

Os lábios dela repuxaram-se sobre as gengivas por um momento... depois relaxando-se novamente naquele estranho sorriso.

— Não importa — respondeu. — De qualquer modo, eu talvez não entendesse mesmo. Como já disse, não temos sido bons entendedores. Não somos uma raça de super-Einstein. Acho que o mais aproximado seria Thomas Edison Espacial. Deixe para lá. Não vou enviá-lo para um lugar onde tenha uma morte lenta e miserável. A minha maneira, ainda o amo, Gard, e se tenho de enviá-lo para algum lugar, prefiro enviá-lo para... nenhures.

Ela deu de ombros.

— Provavelmente será como tomar éter... mas talvez fosse penoso. Inclusive, agoniante. De um modo ou de outro, o diabo que conhecemos sempre é melhor do que aquele que desconhecemos.

Gardener prorrompeu em lagrimas, de repente.

— Bobbi... Poderia ter-me poupado o seu pesar, se me recordasse disso mais cedo...

— Tome as pílulas, Gard. Enfrente o diabo que conhece. Da maneira como está agora, duzentos miligramas de Valium cuidarão rapidamente de você. Não me faça despachá-lo como uma carta, endereçada a nenhures.

— Fale-me um pouco mais sobre os Tommyknockers — pediu ele, limpando o rosto com as mãos.

Bobbi sorriu.

— As pílulas, Gard. Se começar a tomá-las, eu lhe direi tudo o que quiser saber. Caso contrário...

Ela ergueu a pistola de fótons. Gardener desenroscou a tampa do frasco de Valium, sacudiu para fora meia dúzia das pílulas azuis, com a forma de coração no centro (Cartões de Dia dos Namorados, enviados do Vale do Torpor, pensou), jogou-as na boca, pegou a cerveja e engoliu-as. Lá se iam sessenta miligramas, em queda livre. Talvez pudesse ter escondido uma debaixo da língua, mas seis? Ora, vamos, cara, seja realista. Agora não demorará muito. Vomitei quase as tripas, um bocado de sangue, não venho tomando essa bosta, de maneira que perdi a tolerância a ela, e estou com uns quinze quilos a menos do que tinha, quando recebi a primeira receita médica. Se não me livrar desta merda depressa, será como se fosse atropelado por um trem expresso a toda velocidade.

— Fale-me sobre os Tommyknockers — sugeriu ele novamente.

Uma de suas mãos escorregou para o colo, abaixo da mesa, e tocou a coronha

(armadura-armadura-armadura-armadura)

da arma. Quanto tempo a coisa levaria para fazer efeito? Vinte minutos? Ele não conseguia lembrar. Aliás, ninguém jamais lhe falara sobre superdoses de Valium. Bobbi apontou a arma para as pílulas.

— Tome mais algumas, Gard. Como Jacqueline Susan pode ter dito certa vez, seis apenas não bastam.

Ele sacudiu mais quatro pílulas do frasco, porém as deixou sobre a toalha de oleado da mesa.

— Você estava morta de medo lá, não estava? — perguntou ele. — Vi o pavor no seu rosto, Bobbi. Era como se pensasse que todos eles se levantariam e começariam a andar. Dia dos Mortos.

Os olhos da Nova e Melhorada Bobbi cintilaram... porém sua voz permaneceu suave.

— Só que nós estamos caminhando e falando, Gard. Nós voltamos.

Gard pegou os quatro Valiuns, balançou-os na palma da mão.

— Quero que você me diga apenas uma coisa, e então tomarei estas.

— Sim.

Aquela coisa apenas, de certa maneira responderia a todas as outras perguntas — as que nunca teria chance de fazer. Talvez fosse por isto que ainda não tentara a arma em Bobbi. Porque era isto o que realmente precisava saber. Apenas esta coisa.

— Quero saber quem vocês são — disse Gardener. — Diga-me quem são vocês!

 

— Responderei ao que quer saber — ou pelo menos tentarei — disse Bobbi, — se você tomar as pílulas que está balançando agora na mão. Caso contrário, será adeus, Gard! Você tem algo em mente. Não consegui captar direito — é como vislumbrar uma forma, através de um véu. Só que isso esta me deixando extremamente nervosa.

Gardener levou as pílulas a boca e engoliu-as.

— Mais!

Ele tirou mais quatro do frasco e as tomou. Agora, a dosagem chegava a 140 miligramas. Direto para a lua. Bobbi pareceu relaxar.

— Eu disse que uma comparação com Thomas Edison, seria mais aproximada do que com Albert Einstein, sendo esta uma forma de explicar a coisa, tão válida como qualquer outra — disse Bobbi. — Suponho que aqui em Haven haja detalhes que deixariam Albert atônito, mas Einstein sabia o que significava E=mc2. Ele entendia a relatividade. Ele sabia coisas. E nós... nós fazemos coisas. Montamos coisas. Não teorizamos. Construímos. Somos criaturas faz-tudo.

— Vocês aperfeiçoam coisas — disse Gardener.

Engoliu. Quando o Valium começava a fazer efeito nele, sua garganta ia ficando seca. Podia recordar este detalhe. Quando a secura começasse, teria que entrar em ação. Imaginou que talvez já houvesse tomado uma dose letal — e no frasco ainda sobravam pelo menos doze pílulas.

Bobbi parecia mais alegre.

— Aperfeiçoamos! Exatamente! E isso que fazemos. Da maneira como eles — nós — aperfeiçoamos Haven. Você testemunhou o potencial, assim que voltou. Não termos mais que mamar nas tetas da central elétrica! eventualmente, vai ser possível converter inteiramente para... hum... fontes de baterias orgânicas estocadas. São renováveis e de longa duração.

— Você está falando de pessoas.

— Não apenas de pessoas, embora as espécies superiores pareçam produzir energia de mais longa duração do que as inferiores — talvez seja antes uma função de espiritualidade do que de inteligência. A palavra latina para isto, esse, talvez seja a melhor. Contudo, o próprio Peter durou um tempo extremamente longo, produziu uma enorme quantidade de energia, e é apenas um cão.

— Talvez devido ao espírito dele — disse Gardener. — Talvez porque a amasse.

Ele tirou a arma para fora do cinto. Segurou-a.

(armadura-armadura-armadura-armadura)

contra a parte interna da coxa esquerda.

— Isto foge á questão — disse Bobbi, rejeitando o tema sobre o amor ou a espiritualidade de Peter. — Por algum motivo, você decidiu que é inaceitável a moralidade do que estamos fazendo — mas então, o espectro do que imagina como moral-mente aceitável, em termos de comportamento, é bastante estreito. Não importa; logo você estará dormindo.

“Nos não temos história, seja escrita ou oral. Quando você disse que a nave caiu aqui porque, com efeito, seus tripulantes disputavam a maneira de conduzi-la, senti que havia nisto um elemento de verdade... mas também senti que talvez o ocorrido tivesse um significado, estaria predestinado a acontecer. Os telepatas, afinal, são precognitivos em certo grau, Gard, e precognitivos são mais aptos a deixar-se guiar pelas correntes que fluem através do universo, sejam grandes ou pequenas. ‘Deus’ é o nome que algumas pessoas dão a tais correntes, porém Deus é apenas uma palavra, como Tommyknockers ou Altair-4.

“O que pretendo dizer é que, sem dúvida, há muito estaríamos extintos, se não tivéssemos confiado nessas correntes. Sim, porque sempre fomos de pavio curto, prontos para explodir, prontos para disputar ou lutar. Entretanto, ‘lutar’ é também uma palavra genérica. Nós... nós...

Os olhos de Bobbi cintilaram subitamente em um forte e amedrontador tom de verde. Os lábios dela distenderam-se em um sorriso desdentado. A mão direita de Gardener aferrou a arma com uma palma suada.

— Nós altercamos! — exclamou Bobbi. — Le mot juste, Gard!

— Que bom para vocês — disse Gardener, e engoliu.

Ouviu um clique. A secura não fora começando aos poucos — de repente, instalara-se em sua garganta.

— Sim, nós altercamos, estamos sempre altercando. Como crianças, é o que se poderia dizer. — Bobbi sorriu. — Somos muito infantis. Esse é o nosso lado bom.

— Está sendo agora?

Uma imagem monstruosa encheu repentinamente a cabeça de Gardener: crianças da escola primária, indo para as aulas armadas de livros, Uzis, lancheiras Smurf, M-16 e maçãs para os professores de quem gostavam e granadas de fragmentação para aqueles que detestavam. E, oh, céus, cada uma das meninas era parecida com Patrícia McCardle e cada um dos meninos era parecido com Ted, o Homem Energia. Ted, o Homem Energia, com olhos cintilando em verde, que explicavam toda a lamentável e infernal bagunça, desde as Cruzadas e balistas, aos satélites providos de mísseis, de Reagan.

Nós altercamos. De vez em quando, até lutamos um pouco. Somos adultos — suponho — mas, mesmo assim, continuamos geniosos como crianças e também gostamos de divertir-nos, como fazem as crianças, de maneira que satisfazemos as duas carências montando todas estas alinhadas atiradeiras nucleares, e de vez em quando largamos algumas por aí, para os outros pegarem e, sabe de uma coisa? Eles sempre pegam. São pessoas como Ted, inteiramente dispostas a matar, para que nenhuma mulher em Braintree, com meios para comprar um secador de cabelos, pense em eletricidade para fazê-lo funcionar. Pessoas como você, Gard, que vêem apenas inconvenientes mínimos, na idéia de matar pela paz.

Seria um mundo enfadonho, sem armas e alterações, não acha?

Gardener percebeu que estava ficando sonolento.

— Como crianças — repetiu ela. — Nós brigamos... mas também podemos ser muito generosos. Como temos sido aqui.

— Sim, vocês tem sido muito generosos com Haven — disse Gardener, e seus maxilares estalaram abruptamente, em um bocejo enorme, espichando tendões.

Bobbi sorriu.

— Seja como for, talvez tenhamos sofrido o acidente, porque era “tempo de acidente”, segundo aquelas correntes que mencionei. A nave não foi danificada, claro. E quando comecei a desenterrá-la, nós... voltamos.

— Há mais de vocês lá?

Ela deu de ombros.

— Não sei.

E pouco estou ligando, dizia aquele encolher de ombros. Nós estamos aqui. Existem aperfeiçoamentos que precisam ser feitos. Isso basta.

— É realmente tudo o que vocês são? — Ele queria ter certeza; assegurar-se de que nada mais havia. Sentia um medo terrível de estar perdendo muito, muitíssimo tempo... mas tinha que saber. — Isso é tudo?

— O que quer dizer com tudo? Será tão pouco o que somos?

— Francamente, sim — disse Gard. Compreenda, estive procurando o demônio fora de minha vida o tempo todo, porque aquele de dentro era infernalmente difícil de agarrar. É duro levar uma vida inteira pensando que somos... Homero... — Ele tornou a bocejar, enormemente. Suas pálpebras pesavam com chumbo. ... e descobrir que fomos... o Capitão Ahab sempre e sempre...

Por fim, pela última vez, com uma espécie de desespero, ele perguntou:

— Isso e tudo que vocês são? Apenas pessoas que consertam coisas?

— Creio que sim — respondeu ela. — Sinto muito, se isso foi uma decepção para v...

Gardener ergueu a arma debaixo da mesa e, no mesmo instante, percebeu que a droga finalmente o traíra: sua armadura mental caiu.

Os olhos de Bobbi cintilaram — não, desta vez, eles chamejaram. A voz dela, um berro mental, varou a cabeça de Gardener como um cutelo de açougueiro

(ARMA ELE TEM UMA ARMA ELE TEM UMA)

dando golpes, através do nevoeiro que se erguia.

Ela tentou mover-se. Ao mesmo tempo, procurou apontar contra ele a pistola de fótons. Debaixo da mesa, Gardener apontou o 45 para Bobbi e puxou o gatilho. Houve apenas um clique seco. A bala falhara.

 

O FURO DE REPORTAGEM,

CONCLUSÃO

John Leandro morreu. Seu furo de reportagem, não.

David Bright prometera a ele aguardar até as quatro horas e pretendia manter a palavra — porque era uma atitude decente, claro, mas também por não estar muito certo de querer meter a mão naquela história. Tudo podia resultar em uma debulhadora, em vez de uma matéria para jornal. Não obstante, jamais duvidaria de que Johnny Leandro contara a verdade — ou o que imaginava ser verdade — por mais alucinada que sua história parecesse. Johnny era um imbecil, às vezes saltava a conclusões, em outras deixava-as inteiramente para trás, porém não era mentiroso (e mesmo que fosse, Bright não o considerava esperto o bastante para elaborar aquela encenação).

Por volta de duas e meia da tarde, Bright começou repentinamente a pensar em outro Johnny — o pobre, infeliz Johnny Smith, que as vezes tocava objetos e captava “sensações” ligadas a eles. Aquilo também havia sido loucura, porém Bright tinha acreditado em Johnny Smith, acreditara no que ele dizia ser capaz de fazer. Era impossível fitar os olhos obcecados do sujeito e não acreditar. Bright não estava tocando nada que pertencesse a John Leandro, mas podia ver a mesa de trabalho dele, no fim da sala, a capa cobrindo cuidadosamente o terminal de seu processador de palavras, e então começou a ter uma impressão... uma impressão muito vaga. Bright tinha a impressão de que Johnny Leandro podia estar morto.

Chamou a si mesmo de velhota caduca, porém a impressão persistiu. Pensou na voz de Leandro, desesperada e tomada de excitamento. Esta é a minha história, não vou desistir dela sem mais nem menos! Pensou nos olhos sombrios de Johnny Smith, em sua mania de esfregar constantemente o lado esquerdo da testa. Os olhos de Bright foram de novo atraídos para o processador de palavras de Leandro, oculto pela capa.

Conseguiu controlar-se até as três da tarde. A esta altura, a impressão se tornara uma doentia certeza. Leandro estava morto. Não havia lugar para um talvez, em sua intuição. Podia nunca ter tido antes outra premonição verdadeira na vida, mas estava tendo uma agora. Leandro não estava louco, ferido ou desaparecido. Estava morto.

Bright tirou o telefone do gancho e, embora o número que discasse tivesse uma conexão com Cleaves Mills, tanto Bobbi como Gard saberiam que se tratava realmente de longa-distância; cinqüenta e cinco dias após Bobbi Anderson ter levado um tropeção na floresta, alguém finalmente chamava a Polícia de Dallas.

 

O homem com quem Bright falou, no quartel da policia estadual em Cleaves Mills, era Andy Torgeson. Bright o conhecera desde os tempos de estudante e podia falar com ele sem sentir que tinha as palavras BISBILHOTEIRO DE JORNAL, escritas na testa em vivas letras vermelhas. Torgeson ouviu pacientemente, falando pouco enquanto Bright lhe contava tudo, começando pela indicação de Leandro pa-ra a história dos policiais desaparecidos.

— Seu nariz sangrou, os dentes caíram, teve acessos de vômito e estava convencido de que tudo isto provinha do ar?

— Exatamente — disse Bright.

— Além do que, essa qualquer coisa no ar melhorou a merda irradiada pelo rádio do carro.

— Certo.

— E agora, você acha que ele se meteu em uma baita enrascada.

— Certo novamente.

— Também acho que ele poderia estar em uma baita enrascada, Dave — tudo isto dá a impressão de que o cara é neurótico.

— Sei que impressão dá. Apenas não creio que seja assim.

— David — disse Torgeson, em um tom de externa paciência — isso poderia acontecer — pelo menos em um filme. Uma cidadezinha envenenada, de algum modo. Entretanto, há uma auto-estrada que corta essa cidadezinha. Lá também há pessoas. E telefones. Acha mesmo que alguém poderia envenenar uma cidade inteira ou isolá-la do mundo exterior, sem que ninguém percebesse?

— A Estrada Velha de Derry não é realmente uma auto-estrada — indicou Bright. — Pelo menos, desde que foi terminado o trecho da I-95 entre Bangor e Newport, há coisa de trinta anos. A partir de então, a Estrada Velha de Derry se tornou algo como uma enorme tira deserta de terreno, com uma linha amarela riscando seu meio.

— Não está querendo me dizer que ninguém a tem usado ultimamente, está?

— Não. Não estou querendo dizer a você algo de espantoso... mas Johnny disse ter descoberto algumas pessoas que há dois meses não viam os parentes que residem em Haven. E que quando algumas dessas pessoas tentavam visitar os parentes, passaram mal e tiveram que ir embora apressadamente. A maioria atribuiu a indisposição a comida estragada ou outra qualquer coisa. Ele também mencionou uma loja em Troy, onde um velhote esperto fazia um negócio da china vendendo camisetas, porque pessoas chegavam de Haven com hemorragias nasais... e a coisa está durando há semanas.

— Conversa fiada — disse Torgeson.

Olhando através da sala de comunicações do quartel, ele viu o despachante sentar-se abruptamente e passar para a mão esquerda o fone que tinha na direita, a fim de poder escrever. Alguma coisa acontecera em alguma parte e, pela expressão assustada do despachante, não se tratava de choque de pára-lamas ou roubo de bolsas. Naturalmente, sendo as pessoas como são, alguma coisa sempre acontecia. E, por menos que ele gostasse de admitir, também podia estar acontecendo al-go em Haven. A coisa toda soava tão louca como o chá do chapeleiro em Alice, mas David nunca lhe parecera um membro da brigada de excêntricos-e-birutas. Pelo menos, não que saltasse aos olhos, emendou.

— Talvez seja — Bright estava dizendo, — mas essa conversa fiada pode ser provada ou desaprovada por uma rápida viagem de um de seus homens até Haven. — Ele fez uma pausa. — Estou pedindo como amigo; não sou um dos maiores fãs de Johnny, mas estou preocupado com ele.

Torgeson ainda olhava para a sala do despachante, onde Smokey Dwason movia os maxilares a um quilômetro por minuto, falando sem parar. Erguendo os olhos, Smokey viu Torgeson espiando e então ergueu uma das mãos, com todos os dedos abertos. Espere, dizia o gesto. Algo grande.

— Farei com que alguém vá até lá, antes do fim do dia — respondeu Torgeson ao telefone. — Eu mesmo iria, se pudesse, mas...

— Se eu tiver que ir a Derry, você me daria carona?

— Ligo para você mais tarde — disse Torgenson. — Alguma coisa está acontecendo por aqui. Dawson parece que vai ter um ataque cardíaco.

— Estarei aqui — indicou Bright. — Estou francamente preocupado, Andy.

— Eu compreendo — disse Torgenson — não houvera nem sombra de interesse da parte de Bright, quando ele mencionara que alguma coisa seria parecia estar acontecendo, e isso não era do feitio dele. — Ligo para você.

Dawson saiu da sala do despachante. Estavam no auge do verão e, com exceção de Torgenson, que estava de plantão, todos os outros policiais estavam de ser-viço nas estradas. Eles dois tinham o pequeno quartel para si mesmos.

— Meu Deus, Andy — disse Dawson, — não sei o que fazer com isto!

— De que está falando?

Torgeson sentiu o velho e forte excitamento crescendo no peito — de vez em quando tinha suas intuições e sempre se mostravam precisas, dentro da estreita faixa da profissão que escolhera. Alguma coisa grande, sem dúvida. Dawson parecia ter levado uma tijolada na cabeça. Aquele velho e forte excitamento... a maior parte dele detestava a sensação, porém uma parte menor ansiava por ela. E agora, esta última parte fazia uma repentina, estimulante conexão — era irracional, mas também irrefutável. Isto tinha algo a ver com o que Bright acabara de falar. Alguém encontrou o Rato do Campo e o Chapeleiro Louco, enfiando o Rato do Campo no bule de chá, pensou. Acho que a festa está começando.

— Está lavrando um incêndio florestal em Haven — disse Dawson. — Deve ser um incêndio florestal. A comunicação diz que provavelmente e na Floresta Big Injun.

— Provavelmente? Que merda de provavelmente é está?

— O comunicado veio de um posto de vigia de incêndios em China Lakes — informou Dawson. — Eles localizaram fumaça há coisa de uma hora. Por volta das duas da tarde. Chamaram o Alerta de Incêndios em Derry e o Posto Três de Rangers, em Newport. Já mandaram viaturas de Newport, Unity, China, Woolwich...

— Troy? Albion? O que há sobre elas? Cristo, ambas fazem limites com a cidade!

— Troy e Albion não comunicaram.

— E Haven?

— Os telefones de lá estão mudos.

— Ora, vamos, Smokey! Não encha meu saco! Quais telefones?

— Todos eles. — Dawson olhou para Torgeson e engoliu em seco. — Bem, não fiz uma verificação pessoal. Contudo, isto não é a parte mais esquisita. Quero dizer, é tudo muito louco, mas...

— Desembuche de uma vez!

Dawson desembuchou. E quando terminou, Torgeson tinha a boca seca. O Posto Três de Rangers era encarregado do controle de incêndios no Condado de Penobscot, pelo menos enquanto um incêndio florestal não alcançasse uma frente realmente ampla. A primeira tarefa era vigilância; a segunda, localização; a terceira, verificar o local com precisão. Parecia fácil. Não era. Neste caso, a situação estava pior do que nunca, porque o fogo havia sido comunicado de trinta quilômetros de distância. O Posto Três acionara as viaturas contra incêndio convencionais, porque ainda era tecnicamente possível que tivessem alguma utilidade: fora impossível a comunicação com alguém de Haven, que lhes pudesse informar uma ou outra coisa. Até onde sabiam os vigilantes de incêndio do Três, o fogo poderia ser nas pastagens do leste de Frank Spruce ou a dois quilômetros, no seio da floresta. Eles também tinham enviado três equipes de dois homens cada, pertencentes a sua corpo-ração, em veículos de tração nas quatro rodas e munidos de mapas topográficos, bem como um avião-localizador. Dawson a chamara de Floresta Big Injun, mas o Chefe Wahwayvokah desaparecera havia muito, e hoje, o novo e não-racista nome que constava dos mapas topográficos parecia mais adequado: Floresta Ardente.

As viaturas contra incêndio de Unity chegaram primeiro... infelizmente para seus ocupantes. Cinco ou seis quilômetros depois da linha divisória de Haven, com a crescente cortina de fumaça a pelo menos treze quilômetros de distância, os homens do carro-tanque começaram a sentir-se mal. Não apenas um ou dois; toda a equipe de sete membros. O motorista insistiu... até repentinamente perder os sentidos, atrás do volante. O tanque saiu da Estrada Velha da Escola de Unity e se chocou com as árvores da floresta, ainda a três quilômetros de Haven. Três homens morreram no desastre; dois esvaíram-se em sangue até a morte. Os dois sobreviventes literalmente rastejaram para fora da área, engatinhando e vomitando enquanto isso.

— Eles disseram que era como se estivessem envenenados por gás — informou Dawson.

— Foram eles que telefonaram?

— Céus, não! Os dois ainda vivos, estão do Hospital de Derry, em ambulância. A informação foi do Posto Três. Estão tentando relacionar os fatos, mas no momento, parece que há um diabo de coisas mais acontecendo em Haven, além de um incêndio florestal. E tudo indica que o fogo se alastra e ficará fora de controle; o Serviço de Meteorologia diz que ao cair da noite haverá um vento leste. Duvido muito que alguém consiga extinguir o incêndio!

— O que mais eles sabem?

— Porra! — exclamou Smokey Dawson, como se pessoalmente ofendido. — As pessoas que se aproximam de Haven passam mal. Quanto mais perto se chega, pior a indisposição. É tudo quanto se sabe, além de haver algo acontecendo, pegando fogo por lá.

Nem uma só unidade de incêndio entrara em Haven. As de China e Woolwich tinha chegado mais perto. Torgeson aproximou-se do anemômetro de parede e julgou adivinhar o motivo. Aquelas unidades estavam contra o vento. Se o ar em Haven estava envenenado, o vento soprava do lado contrário.

Santo Deus, e se for algo radioativo?

Se fosse, era diferente de qualquer espécie de radiação. Torgeson já sabia — as unidades de Woolwich comunicaram cem por cento de avarias nos motores, ao se aproximarem da linha da cidade de Haven. China enviara um carro-bombeador e um carro-tanque. O bombeador afastou-se, mas o tanque continuou rodando e o motorista por fim conseguiu manobrar para fora da zona de perigo, com homens vomitando dentro da cabine, aferrados aos pára-choques e esparramados no topo do tanque. A maioria teve sangramentos nasais; alguns sangraram pelos ouvidos; um deles teve ruptura de um olho.

E todos haviam perdido dentes.

Que espécie de fodida radiação é ESSA?

Dawson olhou para a central telefônica do despachante e viu que todas as suas luzes de chegada estavam acesas.

— Andy, a situação continua a desenvolver-se. Eu tenho que...

— Já sei — cortou Torgeson. — Você tem que falar com gente biruta. E eu tenho que falar com o escritório do procurador-geral, em Augusta. Vou ter também que falar com outras pessoas birutas. Jim Tierney é o melhor procurador-geral que já tivemos no Maine, desde que vesti este uniforme — e sabe onde ele está neste dia tão alegre, Smokey?

— Não.

— Em férias! — exclamou Torgenson, dando uma gargalhada que era quase lunática. — As primeiras, desde que está no cargo. O único homem no governo que seria capaz de entender esta loucura, está acampando com a família em Utah. No fodido Utah! Lindo, não?

— É lindo.

— Que merda pode estar acontecendo?

— Juro que não sei.

— Mais alguma baixa?

— Um guarda-florestal de Newport morreu — disse Dawson, com relutância.

— Quem?

— Henry Amberson.

— O quê? Henry? Oh, meu Deus!

Torgeson teve a sensação de haver levado um soco na boca do estômago. Há vinte anos conhecia Henry Amberson — não que os dois fossem os melhores amigos do mundo, nada parecido, mas tinham jogado cartas juntos, quando a calmaria no serviço permitia, tinham pescado com caniços. E suas famílias haviam almoçado juntas.

Henry, Deus do céu, Henry Amberson! E Tierney, acampando no fodido Utah!

— Henry estava em algum dos jipes que eles mandaram?

— Estava. Entenda, ele tinha um marca-passo e...

— E então? E então? — Torgeson deu um passo para Smokey, como se fosse sacudi-lo. — E então?

— Parece que o motorista do jipe enviou um rádio para o Três, dizendo que o marca-passo explodiu no peito de Amberson.

— Oh, meu Jesus Cristo!

— Não há certeza ainda — disse Dawson rapidamente. — Nada é certo. A situação continua em desenvolvimento.

— Como um marca-passo poderia explodir? — perguntou Torgeson suavemente.

— Eu não sei.

— Deve ser piada — disse Torgeson, em voz sem inflexão. — Só pode ser uma piada suja ou algo parecido aquele programa de rádio de tempos passados. A guerra dos mundos.

Smokey disse, timidamente:

— Não acho que tenha sido piada... ou uma farsa.

— Eu também não.

Torgeson caminhou para seu gabinete e o telefone.

— No fodido Utah... — disse baixinho.

Deixou Smokey Dawson às voltas com um crescente e inacreditável volume de informação, toda ela vindo da área em cujo centro ficava a propriedade de Bobbi Anderson.

 

Torgeson teria ligado para o gabinete do procurador-geral, se Jim Tierney não estivesse no fodido Utah. Já que ele estava, adiou o telefonema pelo tempo de fazer uma rápida ligação para David Bright, no Daily News de Bangor.

— David? Aqui é Andy. Escute, eu...

— Recebemos informações de que há um incêndio em Haven, Andy. Talvez de grande porte. Já esta a par?

— Sim, estamos, David, mas não vou poder levá-lo para lá. Contudo, os dados que me deu conferem com os que tenho aqui. As turmas de combate ao fogo e o pessoal de reconhecimento não conseguiram entrar na cidade. Todos passaram mal. Perdemos um guarda-florestal. Um sujeito que eu conhecia. Fiquei sabendo que... — Ele abanou a cabeça. — Esqueça o que me disseram. É loucura demais para ser verdadeira.

A voz de Bright estava cheia de excitamento.

— O que foi?

— Já disse para esquecer.

— Sim, mas você falou que bombeiros e pessoal de resgate passaram mal, não?

— Pessoal de reconhecimento. Ainda não sabemos se alguém precisa ou não ser resgatado. Bem, há essa bosta sobre as viaturas dos bombeiros e os jipes. Parece que veículos param de funcionar, quando chegam perto de Haven ou entram lá...

— Quer dizer que é como a pulsação?

— Pulsação? Que pulsação?

Torgeson tinha uma louca idéia de que Bright falava a respeito do marca-passo de Henry, que já estaria a par desse detalhe.

— É um fenômeno que se supõe um seguimento das grandes explosões nucleares. Os motores dos carros deixam de funcionar.

— Cristo! E quanto aos rádios?

— Eles também emudecem.

— No entanto, seu amigo disse...

— Que a faixa estava cheia de estações. Centenas delas. Escute, posso pelo menos citar seu nome, a respeito dos bombeiros e pessoal de reconhecimento que passaram mal? Sobre os veículos parados?

— Sim. Como “Minha Fonte”. “Minha Fonte de Informações”.

— Quando é que ficou sabendo de...

— Não tenho tempo para uma entrevista na Playboy, David. O seu Leandro esteve na “Suprimentos Médicos do Maine”, querendo oxigênio?

— Exatamente.

— Ele pensava que fosse o ar — disse Torgeson, mais para si mesmo, do que para Bright. — Foi o que pensou...

— Andy... sabe o que mais é capaz de parar motores de veículos, segundo relatos que recebemos de tempos em tempos?

— O que é?

— OVNIS. Não ria; é verdade. Pessoas que viram discos voadores a pequena distância, quando em seus carros ou aviões, quase sempre afirmam que os motores simplesmente morreram, até a coisa ir embora. — Ele fez uma pausa. — Lembra-se do médico que se estatelou com seu avião em Newport, há umas duas semanas atrás?

A guerra dos mundos, pensou Torgeson novamente. Que monte de bosta!

No entanto, o marca-passo de Amberson havia... o que? Explodido? Isso poderia realmente ser verdade?

Para ele, seria questão de honra descobrir isso; quem quisesse, poderia apostar!

— Ligo mais tarde para você, Davey — disse, e desligou.

Eram 3:15 da tarde. Em Haven, o fogo iniciado na propriedade do velho Frank Garrick já estivera lavrando por mais de uma hora, agora expandindo-se na direção da nave, em forma de um crescente que cada vez ganhava mais amplitude.

 

Torgeson ligou para Augusta as 3:17. A esta altura, dois sedãs levando seis investigadores, já rumavam para o norte, pela I-95; o Posto Três de Controle de Incêndios, ligara para o gabinete do procurador-geral às 2:26 da tarde e para o quartel da polícia estadual de Derry às 2:49. O comunicado a Derry incluía os primeiros dados conhecidos — a colisão do carro-tanque de Unity e a morte de um guarda-florestal, que parecia haver sido baleado pelo próprio marca-passo. Era 1:30, hora da montanha*, quando uma viatura da polícia estadual de Utah chegou ao acampamento em que Jim Tierney e sua família passavam as férias. O policial informou a ele que havia uma emergência em seu estado-sede. Que espécie de emergência? Tinham dito ao policial que essa informação só poderia ser comunicada pessoalmente. Tierney poderia ter chamado Derry, mas Torgeson, em Cleaves Mills, era um sujeito que ele conhecia e em que confiava.

E, neste exato momento, o que mais desejava era falar com alguém em quem confiasse. Sentia um lento terror apoderando-se de suas entranhas, uma impressão de que tinha de ser a Yankee do Maine, só podia ser algo relacionado à única usina nuclear do estado, tinha que ser, somente uma coisa de tal transcendência provo-caria esse tipo de efeito, à distância de quase o país inteiro. O policial efetuou as conexões necessárias. Torgeson ficou deliciado e aliviado ao mesmo tempo, quando ouviu a voz de Tierney.

Era 1:37 da tarde, hora da montanha, quando Tierney acomodou-se no banco do passageiro da viatura e perguntou:

— A que velocidade isto roda?

— Senhor! Este veículo chega a duzentos quilômetros por hora, e eu sou mórmon, senhor, não tenho medo de dirigir a essa velocidade, senhor, porque confio em que evitarei o inferno! Senhor!

— Pois então, prove — disse Tierney.

Às 2:03 da tarde, hora da montanha, Tierney embarcava em um jato Lear, sem outra identificação além da bandeira americana na cauda. O jato ficara à sua espera em um pequeno campo de pouso particular, perto de Cottonwoods... a cidade descrita por Zane Gery em Riders of the Purpple Sage, o livro que fora o predileto de Roberta Anderson na juventude, talvez aquele que orientava definitivamente seu rumo como escritora de faroestes.

O piloto estava à paisana.

— Você é do Departamento de Defesa? — perguntou Tierney.

O piloto olhou inexpressivamente para ele, de trás dos óculos escuros.

— Da Loja*.

Foi o único que disse, antes, durante ou depois do vôo.

Desta maneira é que a Polícia de Dallas entrou no jogo.

 

Haven nunca passara de um amplo vilarejo incrustado na estrada, levando a vida sonhadoramente, com o conforto de situar-se fora das principais vias turísticas do Maine. Agora, no entanto, tinha sido notada. Agora, as pessoas dirigiam-se para lá em bandos. Como todos ignoravam as anomalias que eram comunicadas, em números sempre crescentes, no início eram atraídos apenas pela nuvem de fumaça que se ampliava no horizonte, como se fossem mariposas atraídas pela chama de uma vela. Seriam quase sete horas daquele anoitecer, quando a polícia estadual, com a ajuda da unidade local da Guarda Nacional, finalmente conseguiu bloquear todas as estradas para a área — não só as menores, como também as maiores. Pela manhã, o fogo se tornaria o maior incêndio florestal na história do Maine. Um esperto vento leste chegou exatamente conforme o programado e, depois disso, não haveria mais possibilidade de deter-se a corrida das chamas. A percepção deste fato não surgiu para todos imediatamente, mas terminou surgindo: o fogo se teria alastrado, mesmo que o dia fosse de total calmaria. Não se pode fazer muito contra um incêndio, quando é impossível aproximar-se dele, e os esforços neste sentido haviam produzido desagradáveis resultados.

O avião-localizador estatelou-se no solo.

Um ônibus lotado de homens da Guarda Nacional de Bangor saiu da estrada, chocou-se contra uma árvore e explodiu, quando o cérebro do motorista simples-mente estourou, como um tomate contendo uma bomba desintegradora. Todos os setenta guerreiros de fim de semana morreram, mas talvez apenas metade deles no desastre; os restantes perderam a vida no esforço inútil de se arrastarem para fora do cinturão venenoso.

Infelizmente, o vento soprava do lado errado... como bem poderia Torgeson ter dito a eles.

O fogo na floresta, que havia começado na Floresta Ardente, tostara metade de Newport, antes que os soldados do fogo pudessem começar a trabalhar adequadamente... mas então eram muito poucos para algum resultado efetivo, já que a linha de fogo estava com quase dez quilômetros de comprimento.

Às sete horas daquele anoitecer, centenas de pessoas — algumas delas autonomeadas soldados do fogo, a maioria pertencendo a comum variedade dos jardins, conhecida como Homo abelhudus — afluíram àquela área. Entretanto, quase todas retornaram rapidamente, de rostos lívidos, olhos esbugalhados, narizes e ouvidos deitando sangue. Algumas apertavam na mão os dentes perdidos, como pérolas soltas. E um bom punhado delas morreu... não se incluindo aí os cem ou mais indefesos moradores da região leste de Newport, que receberam uma súbita dose de Haven, quando o vento ficou mais esperto. A maioria morreu dentro de casa. Os que se apalermaram e ficaram para serem asfixiados pelo ar pútrido foram encontrados nas estradas e suas margens, enrodilhados em posição fetal, as mãos aferrando o estômago. Conforme disse um soldado mais tarde, ao Washington Post (sob a estrita condição de não ser identificado), a maioria daquelas pessoas parecia uma sangrenta vírgula humana.

Tal não foi a sina de Lester Moran, um vendedor de livros didáticos, que morava em um subúrbio de Boston e passava a maior parte de seus dias rodando pelas auto-estradas ao norte da Nova Inglaterra.

Lester retornava de sua viagem de vendas anual de fim de verão, período em que visitava as escolas nos DAE (distritos administrativos de escolas), no condado de Aroostook, quando avistou a fumaça — uma intensa fumaceira — erguendo-se no horizonte. Isto foi por volta de 4:15 da tarde. Imediatamente, Lester mudou de rumo. Sendo solteiro e sem planos definidos para as duas semanas seguintes mais ou menos, não tinha pressa em voltar para casa, porém mudaria de rumo mesmo que a conferência de vendas nacional houvesse sido programada para começar no dia seguinte, sendo ele o orador principal e com o discurso ainda por escrever. Lester sentia intensa atração por fogo, era algo que não podia controlar. Sempre fora assim, desde a mais tenra infância. Apesar de ter passado os últimos cinco dias na estrada, apesar de um traseiro mais achatado do que uma tábua e de rins que mais pareciam tijolos, após os constantes solavancos de seu carro em esburacadas estradinhas de lugarejos tão insignificantes que, em sua maioria, tinham coordenadas de mapas por nome, Lester não pensou duas vezes. Sua fadiga esvaiu-se; seus olhos luziram com aquele brilho preternatural conhecido e temido por dirigentes de bombeiros, de Manhattan a Moscou: o malévolo excitamento do maníaco nato por fogo.

Não obstante, eles são o tipo de pessoa que os dirigentes de bombeiros utilizam... quando fora de si. Cinco minutos antes, Lester Moran, que aos vinte e um anos se apresentara ao Corpo de Bombeiros, em Boston, sendo rejeitado por ter uma placa de aço no crânio, sentia-se como um cão espancado. Agora, no entanto, sentia-se como um homem nas alturas, à custa de anfetaminas. Agora, era um homem que cuidaria alegremente de uma bomba com água, pesando quase metade de seu próprio peso, poderia carregá-la nas costas a noite inteira, respirando fumaça, da maneira como alguns homens aspiram o perfume na nuca de uma bela mulher, combatendo as chamas até a pele de seu rosto ficar crestada e cheia de bolhas, até suas sobrancelhas serem inteiramente queimadas.

Manobrou para a saída da auto-estrada em Newport e queimou borracha dos pneus na estrada que levava a Haven.

A placa em sua cabeça, era o resultado de um hediondo acidente, ocorrido quando ele tinha doze anos, estava no ginásio e fora designado aluno-patrulheiro. Um carro o apanhara, lançando-o a nove metros de distância, onde seu vôo foi interrompido pela inexorável parede de tijolos de um depósito de móveis. Havia recebido os últimos sacramentos; o cirurgião que o operou, declarou aos chorosos pais que seu filho provavelmente morreria dentro de seis horas ou permaneceria em coma por vários dias, semanas talvez, antes de sucumbir. Em vez disso, o menino tinha despertado e pedido sorvete, antes que o dia terminasse.

— Para mim, foi um milagre! — exclamou a soluçante mãe do menino. — Um milagre de Deus!

— Para mim também — disse o cirurgião que operara Lester Moran e espiara para o cérebro do menino, através de um enorme buraco no crânio fraturado do pobrezinho.

Agora, aproximando-se daquela deliciosa fumaceira, Lester começou a sentir-se um pouco mal do estômago, porém atribuiu isso ao excitamento e logo esqueceu tudo. Afinal de contas, a placa em sua cabeça tinha quase o dobro do tamanho da de Jim Gardener. A ausência de veículos policiais, dos bombeiros ou da Guarda Florestal engarrafando a estrada, foi para ele extraordinária e estimulante ao mesmo tempo. Então, ao fazer uma curva fechada, viu um Plymouth cor de bronze capotado na faixa contrária, com as luzes do painel de instrumentos ainda pulsando. Na lataria lateral estava escrito DERRY C.B.

Lester estacionou sua velha camionete Ford, saiu e trotou para o veículo acidentado. Havia sangue no volante, no assento e no tapete do lado do motorista. Havia também sangue salpicado no pára-brisa.

Em resumo, um bocado de sangue. Lester olhou para aquilo, horrorizado, depois olhou na direção de Haven. Na base da fumaça, agora havia uma coloração baça de vermelho, e ele percebeu que podia realmente ouvir o crepitar monótono de madeira queimando. Era como estar perto da porta aberta da maior fornalha do mundo... ou como se a maior fornalha aberta do mundo houvesse produzido pernas e se aproximasse lentamente dele.

Comparado àquele som, comparado a visão daquele fulgor vermelho, titânico, apesar de baço, o carro capotado do chefe do Corpo de Bombeiros de Derry, com suas manchas de sangue, pareceu bem menos importante. Lester voltou para sua camionete, teve uma breve batalha com sua consciência e venceu, ao prometer a si mesmo que faria alto no primeiro telefone público que encontrasse e dele ligaria para a polícia estadual em Cleaves Mills... não, para a polícia de Derry. Como a maioria dos bons vendedores, Lester Moran tinha na cabeça um mapa detalhado de seu território e, após consultá-lo, decidiu que Derry ficava mais perto.

Precisou resistir ao agoniante desejo de forçar a camionete a velocidade máxima... que andava pelos noventa e cinco, naquela época. A cada curva da estrada, esperava vê-la bloqueada por cavaletes, uma confusão de veículos estacionados aloucadamente, o som de rádios na faixa do cidadão guinchando mensagens no máximo de volume e homens berrando, com capacetes e capas de borracha.

Nada disto aconteceu. Ao invés de cavaletes e de um fervilhante ninho de atividade, ele avistou o capotado carro-bomba de Unity, a cabine desprendida do chassi, o tanque ainda espargindo o restante de seu conteúdo. Lester, que agora respirava fumaça, assim como um ar que mataria quase qualquer outra pessoa na terra, ficou parado junto ao acostamento, hipnotizado pelo flácido braço alvo que pendia da janela, na cabine amputada do carro-bomba. Filetes de sangue coagulando, formavam cursos erráticos pelo lado inferior daquele braço, branco e vulnerável.

Há alguma coisa errada por aqui. Alguma coisa muito mais errada do que apenas um incêndio florestal. Você tem que cair fora, Les.

Contudo, em vez disto, ele tornou a fitar o fogo e estava perdido de vez.

O gosto de fumaça no ar era mais forte. O som de queimado deixara de ser um crepitar, era trovejante. A verdade daquilo caiu subitamente em cima dele, como um balde de cimento: Não há ninguém combatendo este incêndio. Absolutamente ninguém! Por algum motivo que Lester não entendia, eles não haviam sido capazes de entrar na área ou sua entrada não fora permitida. Em resultado, o fogo lavrara descontroladamente e, como o vento vivificante ajudando, ganhava ímpeto e tamanho como um monstro radioativo, em filme de horror.

A idéia o deixou nauseando de terror... de excitamento... e de uma sinistra, doentia euforia. Não era bom sentir uma coisa como esta última, porém ela estava presente, era impossível negar. Por outro lado, não era o único a experimentar tal sensação. A mesma alegria sinistra parecia ser parte de cada soldado do fogo a quem já pagara um drinque (e eles eram praticamente todos quantos conhecera, desde que fora reprovado no exame de aptidão física, no Corpo de Bombeiros de Boston).

Retornou a seu carro em passos trôpegos, deu partida com alguma dificuldade (imaginando que, em seu excitamento, sem dúvida quase afogara o maldito dinossauro), ligou o ar-condicionado ao máximo e recomeçou a rodar em direção a Haven. Percebia que sua atitude era da mais pura imbecilidade — afinal, não era nenhum Super-homem, mas um vendedor de livros didáticos com quarenta e cinco anos, ficando calvo e ainda solteirão, por ser tímido demais para marcar encontros com mulheres. Seu comportamento, aliás, não era apenas imbecil. Por mais duro que fosse, o julgamento continuava sendo uma racionalização. Na verdade, estava se portando como um lunático. Só que, mesmo assim, era-lhe impossível voltar atrás, da mesma forma como um viciado não conseguiria voltar atrás, ao ver sua droga esquentando na colher.

Lester não podia extinguir o fogo...

... mas ainda podia ir vê-lo.

E, de fato, aquilo era realmente algo para se ver, não? pensou ele. O suor já lhe rolava rosto abaixo, como que em antecipação do calor mais adiante. Sim, algo para se ver! Um incêndio florestal que, por algum motivo, tinha liberdade para alastrar-se decididamente fora de controle, como havia sido milhões de anos atrás, quando os homens não passavam de uma pequena tribo de macacos sem pelos, encolhidos nos berços gêmeos do Nilo e do Eufrates. Então, os grandes incêndios eram provocados por combustão espontânea, quedas de raios ou de meteoros, em vez de por caçadores embriagados, que pouco ligavam para o que faziam com seus tocos de cigarro. Seria uma brilhante fornalha alaranjada, uma muralha de fogo com trinta metros de altura, no seio da floresta; através das clareiras, jardins e campos de feno, ele avançaria como um incêndio de pradaria no Kansas, por volta dos anos 40 do século passado, engolindo casas tão rapidamente, que elas implodi-riam com a súbita mudança na pressão do ar, a maneira das casas e fábricas sub-metidas ao fogo dos bombardeios na Segunda Guerra Mundial. Ele seria capaz de ver a estrada em que rodava, esta mesma estrada, desaparecendo dentro daquela fornalha, como uma auto-estrada no meio do inferno.

O próprio alcatrão da pavimentação, pensou ele, primeiro começaria a derreter, correndo em pequenos filetes pegajosos... depois incendiando-se. Pisou mais fundo no acelerador, enquanto pensava: como você deixaria de prosseguir? Tendo uma chance — uma única chance em uma vida inteira — de ver algo semelhante, como voltar atrás?

 

— O que não sei, é como vou explicar tudo isto a meu pai! — exclamou o atendente da “Suprimentos Médicos do Maine”.

Antes de mais nada, arrependia-se de sua argumentação de quatro anos atrás, para expandirem o negócio com a inclusão de artigos alugados. Seu pai lhe jogara isto em rosto, depois que o velho alugara a mochila-chata e não a devolvera. Agora, todo o inferno corria a solta em Haven — o rádio informava que era um incêndio na floresta, para depois acrescentar que coisas ainda mais singulares podiam estar acontecendo lá. Ele apostava que tampouco tornaria a ver a mochila-chata que alugara esta manhã para o repórter de óculos de lentes grossas. E agora, ali estavam mais dois caras, nada menos que policiais estaduais, exigindo não apenas uma mochila-chata, mas seis delas.

— Pode dizer para seu pai que nos as requisitamos — disse Torgeson. — Quero dizer, vocês fornecem equipamento para respiração a bombeiros não é mesmo?

— Sim, mas...

— E há um incêndio florestal em Haven, certo?

— Certo, mas...

— Então, vá buscar o que pedi. Não tenho tempo a perder em conversa fiada!

— Meu pai me matará! — gemeu o rapaz. — São todas as que temos!

Torgeson ia saindo do pátio de estacionamento, no momento em que Claudell Weems chegava. Claudell Weems, o único policial estadual negro no Maine, era bem alto — não tanto quanto o falecido “Monstro” Dugan, mas com um respeitável um e noventa. Weems tinha um dente de ouro na frente da boca e, se chegava muito perto das pessoas — suspeitos, por exemplo, ou um relutante atendente de balcão — dava um sorriso, revelando aquele cintilante incisivo de ouro, deixando-as extremamente nervosas. Certa vez, Torgeson lhe perguntara por que isso acontecia e Claudell Weems respondera que creditava ser resultado da véia magia negra. Então, dera gargalhadas, até as vidraças das janelas do pequeno quartel parecerem tremer nas molduras.

Agora, Weems inclinava-se para bem perto do atendente e empregava a véia magia negra de tão bão resurtado.

Ao saírem da “Suprimentos Médicos” levando as mochilas chatas, deixaram o atendente sem saber direito o que acontecera... exceto que o cara negro tinha o maior dente de ouro que ele já vira na vida.

 

O velho desdentado que vendera a camiseta para Leandro estava parado à entrada de sua loja, quando viu a viatura de Torgeson passar a toda velocidade. Acompanhou-a com um olhar inexpressivo e depois entrou, para discar um número de telefone que estava fora do alcance da maioria das pessoas; se elas o discassem, ouviriam o ululante som de sirene que deixara Anne Anderson deitando espuma pela boca. Entretanto, havia uma engenhoca na traseira do telefone do lojista, de maneira que logo ele estava falando com uma atarantada Hazel McCready.

 

— Poxa! — exclamou Claudell Weems alegremente, após espichar o pescoço para verificar o velocímetro. — Vejo que estamos rodando há pouco mais de cento e quarenta e cinco por hora! E, segundo o consenso de que você é, provavelmente, o pior operador de veículos em toda a polícia estadual do Maine...

— Que merda de consenso é essa? — interrompeu Torgeson.

— A minha merda de consenso — respondeu Claudell Weems. — Seja como for, isto leva a uma dedução. A dedução e que morrerei dentro em breve. Não sei se você acredita nessa besteira de atender ao último pedido de um condenado, mas se acredita, talvez pudesse me contar o que quer dizer tudo isto. Se puder, antes de recebermos nossos implantes de bloco do motor, claro.

Andy abriu a boca, depois tornou a fechá-la.

— Não — respondeu, — Não sei dizer. É tudo uma baita loucura. E nada mais posso falar. Bem, talvez você comece a sentir-se mal. Então, é bom servir-se imediatamente desse ar enlatado.

— Oh, Cristo! — suspirou Weems. — O ar de Haven está sendo envenenado?

— Não sei. Acho que está.

— Oh, Cristo! — repetiu Weems. — Quem deu com a língua nos dentes?

Andy apenas meneou a cabeça.

— Então, é por isso que ninguém está apagando o incêndio!

A fumaça subia fervilhante do horizonte, em uma fileira que se alargava — até então, esbranquiçada em sua maioria, graças a Deus.

— Eu não sei. Talvez seja. Ligue uma das faixas do rádio.

Weems pestanejou, como se pensasse que Torgeson ficara biruta.

— Que faixa?

— Qualquer uma.

Weems começou a experimentar a faixa da polícia, a princípio nada conseguindo além do confuso — e começando a ficar amedrontador — tagarelar de tiras e bombeiros que queriam combater um incêndio mas, de alguma forma, não conseguiam chegar até ele. Então, mais abaixo, ouviram um pedido de unidades de reforço para o cenário de um roubo em loja de bebidas. O endereço fornecido era Avenida Mística, 117, em Medford.

Weems olhou para Andy.

— Caramba, Andy, eu não sabia que houvesse alguma Avenida Mística em Medford — aliás, nunca pensei que houvesse avenidas, em toda Medford. Umas duas ruelas, talvez.

— Se não me engano — disse Andy, e a voz parecia chegar-lhe aos ouvidos vinda de muito, muito longe, — esse pedido que ouvimos está vindo de Medford, Massachusetts.

 

Duzentos metros depois da linha limítrofe da cidade de Haven, o motor de Lester Moran morreu. Não tossiu; não sacolejou; não cuspiu faíscas. Simplesmente morreu, quietamente e sem fanfarras. Ele saiu da camionete, sem se preocupar em desligar a chave.

O rugente crepitar do incêndio parecia encher o mundo inteiro. A temperatura ambiente subira pelo menos vinte graus. O vento carregava a fumaça na direção dele, mas elevando-a, de maneira que o ar era respirável mas, ainda assim, tinha um sabor quente e acre.

Naquele lugar, havia vastos campos de lavoura a direita e a esquerda — terras de Clarendon à direita, terras de Ruvall a esquerda. O terreno elevava-se em uma comprida e ondulante encosta até a floresta. Entre aquelas árvores, Lester podia ver firmes e vividos relances luminosos em vermelho e laranja; a fumaça brotava deles em uma torrente que cada vez se tornava mais escura. Ele podia ouvir as ruidosas explosões de árvores ocas, implodindo quando o fogo sugava o oxigênio de dentro delas, como tutano de ossos velhos. O vento não lhe batia direto no rosto, mas chegava bastante perto; o fogo ia irromper da floresta e chegar aos campos em minutos... segundos, talvez. Sua corrida até onde se encontrava, de rosto vermelho e escorrendo de suor, podia ser letalmente rápida. Lester funcionaria, claro que sim, um bom e velho motor que até então nunca o deixara na mão — para então aumentar a distância entre ele e aquela besta escarlate, iminente.

Pois então, vá! Vá logo, por Deus! Já viu o que queria, portanto, agora VÁ EM-BORA!

A questão era que, em realidade, ele ainda não vira. Sentia o calor do fogo, via-o piscar os olhos e soltar fumaça por suas narinas de dragão... mas a verdade e que não tinha visto o fogo.

Foi então que o viu.

Saiu do campo oeste de Luther Ruvall, inesperadamente. A frente principal do incêndio situava-se na floresta Big Injun, mas este lado agora se destacava de lá. As árvores amontoadas na extremidade mais distante do campo, não ofereceram problemas para o animal vermelho. Elas pareceram ficar momentaneamente mais negras, quando a luz a retaguarda mudou de tom — de amarelo para laranja, de laranja para vermelho-vivo. Então, simplesmente foram presa das chamas. Aconteceu em um instante. Por um segundo, ele ainda viu seus topos, mas logo depois, também estes eram consumidos. Era como o ato de algum fabuloso prestidigitador, o tipo de mágico que um dia Hilly Brown quisera ser, de corpo e alma.

A linha de frente do fogo estava diante dele, com dois e meio de altura e comendo árvores, enquanto Lester Moran olhava, hipnotizado e boquiaberto. As chamas começaram a descer a encosta do campo plantado. Agora, a fumaça se enrolava a volta dele, mais espessa, asfixiante, provocando-lhe tosse.

Vá embora! Pelo amor de Deus, vá embora!

Sim, agora ele iria; agora já podia ir. Tinha visto o incêndio, era tão espetacular quanto imaginara que fosse. Entretanto, era também uma fera. É o que um homem sensato fazia, se confrontando com uma fera, era fugir. Fugir tão depressa e para tão longe quanto pudesse. Todas as coisas vivas faziam isso. Todas as coisas vivas...

Lester recuou para seu carro e então, a meio caminho, parou.

Todas as coisas vivas.

Exatamente. Todas as coisas vivas fugiam, ante um incêndio florestal. Os velhos padrões ficavam suspensos. O coiote corria ao lado do coelho. Entretanto, não havia coelhos nem coiotes fugindo pela encosta daquele campo; não havia aves, no céu de coloração negro-azulada.

Ali não havia nenhum outro ser vivo, Além dele.

Se aves ou animais não fugiam do fogo, isto significava que não havia nenhum na floresta.

O carro dos bombeiros capotado, o sangue por toda parte.

O carro-bomba que se chocara com as árvores da floresta. O braço ensangüentado.

O que está havendo por aqui? — gritou sua mente.

Ele não sabia... mas sabia que enfiara nos pés aquelas botas de sete léguas de conto de fadas. Abriu a porta do carro — e então olhou para trás uma última vez.

O que viu, subindo para fora daquele gigantesco pilar de fumaça, arrancou um grito de sua garganta. Aspirou fumaça, tossiu, gritou de novo.

Uma coisa — urna coisa gigantesca — elevava-se do seio da fumaça, como se fosse a maior baleia existente na criação, saltando lentamente para fora da água.

Enevoada pela fumaça, a claridade do sol refletiu-se foscamente em um lado daquela coisa — mas ele continuou subindo, subindo, subindo... e não se ouvia nenhum outro som, Além daquele estrondejar irregular do fogo, avançando em largas passadas.

A coisa subia... e subia... e subia...

Lester esticou o pescoço, a fim de acompanhar o lento e impossível progresso da coisa, assim nunca chegando a ver aquela outra coisa, pequena e curiosa, que brotava da fumaça, trotando vivamente estrada abaixo, na direção dele. Era um carrinho de carga vermelho, semelhante a uma carroceria de caminhão em miniatura. Um brinquedo que pertencera ao pequeno Billy Fannin, no início do verão. No centro do carrinho havia uma plataforma e, sobre ela, uma segadora Bensohn — pouco mais do que uma lâmina motorizada, na extremidade de um comprido cabo. Um controle de pressão manual manobrava essa lâmina. No topo do cabo, ainda flutuava uma etiqueta de venda, com o letreiro ESTRAÇALHE UM TEMPORAL COM A SUA BENSOHN! A segadora assentava-se sobre uma suspensão móvel, assemelhando- se um pouco a proa sacolejante de um navio absurdo.

Lester ainda se comprimia contra seu carro e olhava para o alto do céu, quando o sensor-eletroencefalográfico da engenhoca — que iniciara a vida como uma sonda digital para carnes — acionou o starter eletrônico da segadora (uma modificação que os projetistas da Bensohn jamais haviam considerado). A lâmina despertou para a vida com um guincho estridente, seu pequeno motor a gasolina ululando como um gato ferido.

Virando-se, Lester viu algo parecido a uma vara de pescar, provida de dentes, avançando em sua direção. Deu um grito e correu, agachado, buscando proteção na traseira do carro.

O que está acontecendo por aqui? gritou sua mente. O que está acontecendo, O que está acontecendo, O que está acontecendo, O que está...

A segadora girou sobre sua suspensão, procurando Lester, seguindo suas ondas cerebrais, captadas por ela como nítidos e pequenos impulsos, não muito diferentes de bips de radar. A segadora não era muito inteligente (seu cérebro provinha de um brinquedo programável, chamado O Terrível Tanque Rastreador), mas tinha inteligência suficiente para sintonizar-se a baixa saída elétrica do próprio cérebro de Lester Moran. Sintonizava-se à bateria dele, por assim dizer.

— Fora daqui! — gritou Lester, enquanto o carrinho de Billy Fannin rodava pa-ra ele. — Vá embora! Vá embooooooora!

Em vez disso, o carrinho pareceu saltar para ele. Com o coração disparando loucamente no peito, Lester Moran desviou-se em um ziguezague. A segadora ziguezagueou com ele. Lester Moran tentou repetir a manobra — e então uma sombra enorme, movendo-se lentamente, caiu sobre ele, fazendo-o olhar para cima, a despeito de si mesmo... era algo que não conseguia evitar. Seus pés atropelaram-se um ao outro, e a segadora atacou. Sua lâmina rotativa achou a cabeça de Lester. E ainda trabalhava nele, quando o fogo engolfou os dois, a segadora e sua vítima.

 

Torgeson e Weems avistaram o corpo na estrada ao mesmo tempo. Estavam ambos respirando ar engarrafado, naquele momento; a náusea os dominara rapidamente, com uma potência aterradora, mas desapareceu por completo, quando afixaram as máscaras ao rosto. Leandro estava certo. O ar. Havia qualquer coisa naquele ar.

Claudell Weems parara de fazer perguntas, depois que haviam sintonizado o apelo na faixa da polícia, vindo de Massachusetts. Limitara-se a ficar sentado, com as mãos no colo, os olhos movendo-se firme e cautelosamente. Verificações posteriores no rádio tinham trazido até eles comunicados de ações policiais em lugares tão interessantes como Friday, Dakota do Norte, e Arnette, no Texas.

Torgeson freou e os dois saíram. Weems fez uma pausa, depois apanhou o revólver para motins, guardado debaixo do painel. Torgeson assentiu. As coisas começavam a ficar claras. Não lúcidas, mas claras. Gabbons e Rhodes haviam desaparecido, quando voltavam desta cidade. E “Monstro” estivera lá, um dia antes de suicidar-se. Como era mesmo aquela canção de Phil Collins, aquela com os fantasmagóricos tambores? Posso senti-lo no ar, esta noite...

Correto — estava no ar.

Delicadamente, Torgeson virou o homem que acreditava ser quem, finalmente, dera o apito de alerta sobre toda aquela demência.

Já havia despejado uma boa porção de horrível material na estrada, mas a visão daquilo ainda lhe provocou uma careta de repulsa e o fez virar o rosto.

— Cristo, o que foi que o atingiu? — perguntou Weems.

A máscara amortecia suas palavras, mas o tom de espanto foi bem alto e nítido. Torgeson não sabia. Certa vez, vira o homem que fora apanhado por um limpa-neve. O sujeito ficara um pouco parecido com este agora. Era a comparação mais aproximada.

O morto sangrara do alto do que havia sido sua cabeça, até a altura da cintura. A fivela do cinto enterrara-se fundo no corpo.

— Céus, cara, eu sinto muito — murmurou ele, deixando o cadáver pousar suavemente no asfalto.

Podia examinar-lhe a carteira, porém nada mais queria fazer com aquele corpo esmagado. Caminhou para o carro. Weems alcançou-o, a arma empunhada enviezadamente contra o peito. Na distância, para o lado oeste, a fumaça ia ficando mais espessa a cada momento, mas ali havia apenas um leve e acre cheiro de madeira.

— Isto é uma merda de loucura — disse Weems, através da máscara.

— Sem dúvida.

— Não gosto de estar aqui. Tenho um mau pressentimento.

— Eu também.

— Acho que devíamos dar o fora desta área o quan...

Houve um som estalante atrás deles e, por um momento, Torgeson pensou que poderia ser o fogo — estava muito distante, relativamente falando, mas podia ter focos também por ali. Perfeitamente aceitável! Quando se tomava parte no chá do Chapeleiro Maluco, tudo era aceitável. Virando-se, ele percebeu que o som não era de galhos sendo queimados, mas quebrados.

— Minha nossa! — exclamou Weems.

O queixo de Torgeson caiu.

A máquina de Coca, obtusa, mas confiável, entrou em cena novamente. Desta vez, destacara-se do matagal na beira da estrada. O vidro de sua parte frontal estava quebrado. Havia arranhões nas laterais da grande caixa retangular. E, na parte metálica frontal da máquina, Torgeson viu uma forma terrivelmente sugestiva, aderida tão fundo, que quase parecia esculpida.

Assemelhava-se à metade de uma cabeça.

A máquina de Coca moveu-se flutuando acima da estrada e pairou ali por um momento, como um ataúde pintado de cores incongruentemente alegres. Pelo menos, eram alegres até ser percebido o sangue que da cabeça gotejara e escorrera, já começando a secar em placas castanhas.

Torgeson podia ouvir um fraco zumbido e um som estalante — Como relés, pensou. Talvez esteja avariada. Talvez, mas ainda...

A máquina de Coca disparou subitamente, em linha reta para eles.

— Puta que PARIU! — gritou Weems — havia susto e terror em sua voz, mas também uma espécie de alucinado riso.

— Atire nela, atire nela! — gritou Torgeson, e saltou para a direita.

Weems recuou um passo e em seguida caiu sobre o corpo de Leandro.

Foi uma coisa extremamente idiota — mas também de extraordinária sorte. A máquina de Coca deixou de acertá-lo por uma questão de centímetros. Enquanto ela se inclinava lateralmente para atacar de novo, Weems se sentou e disparou três rápidos balaços contra a lataria. O metal explodiu para dentro, formando margaridas metálicas de centros negros. A máquina começou a zumbir forte. Parou, balançando-se no ar para diante e para trás, como um homem atacado de dança-de-são-vito.

Torgeson empunhou sua pistola de serviço e disparou quatro vezes. A má-quina de Coca se virou para ele, mas agora parecia letárgica, incapaz de adquirir qualquer velocidade. Parou com um solavanco, avançou com outro solavanco, tornou a parar, saltou novamente para diante. Balançava-se embriagadamente de um lado para outro. O zumbido ficou mais forte. Correntes de refrigerante escapavam pela portinhola de acesso, em grossos filetes.

Quando a máquina avançou para ele, Torgeson desviou-se dela sem dificuldade.

— Para o chão, Andy — gritou Weems.

Torgeson jogou-se ao chão. Claudell Weems disparou mais três vezes contra a máquina de Coca, apertando o gatilho o mais depressa que pode, após cada coice da arma. No terceiro tiro, finalmente algo explodiu dentro da máquina. Uma lateral foi lambida por um jato de fogo, acompanhado por um breve arroto de fumaça negra.

Fogo verde, foi o que Torgeson viu. Verde.

A máquina de Coca cambaleou pela estrada, a uns seis metros do corpo de Leandro. Sacudiu-se e depois caiu para diante, com um baque surdo. Houve um tilintar de vidros partidos. Depois, seguiram-se três segundos de silêncio, rompidos então por um prolongado som gargarejante e metálico. O som cessou. A máquina de Coca-Cola jazia sem vida, atravessada sobre a linha amarela, no centro da Rota 9. Sua epiderme vermelha-e-branca estava cheia de buracos de bala. A fumaça escapava por eles.

— Eu simplesmente puxei minha arma e matei uma máquina de Coca, senhor — disse Claudell Weems em tom cavernoso, dentro de sua máscara.

Andy Torgeson se virou para ele.

— E você nem mesmo ordenou a ela que parasse, não disparou um tiro como aviso! Provavelmente ganhará uma suspensão, seu cretino!

Os dois entreolharam-se, acima das máscaras, e começaram a rir. Claudell Weems gargalhava tanto, que quase se dobrava ao meio.

Verde, pensou Torgeson e, embora ainda estivesse rindo, dentro dele nada achava a menor graça. O fogo que saiu daquela bosta era verde!

— Não disparei um tiro como aviso! — exclamou Weems, quase sem fôlego enquanto ria. — Não, não disparei... Não disparei...!

— Violou os fodidos direitos civis daquele troco — disse Torgeson.

— Terá que haver uma investigação! — gargalhou Weems. — Pelo que eu fiz, cara! Quero dizer... quero dizer...

Weems balançou-se sobre os pés e havia um bocado em Claudell Weems para balançar. Subitamente, Torgeson percebeu que ele também se sentia estonteado. Os dois estavam respirando oxigênio puro... estavam hiperventilados.

— Pare de rir! — gritou, e sua voz parecia provir de uma longa distância. — Claudell, pare de rir!

De algum modo, conseguiu cruzar a distância, até onde Weems oscilava aturdidamente sobre os pés. A distância pareceu enorme. Quando quase chegava, tropeçou. Weems conseguiu agarrá-lo antes que caísse e, por um momento, os dois ficaram balançando-se ebriamente, abraçados, como Rocky Balboa e Apollo Creed, no final da primeira luta.

— Está me puxando para baixo, seu filho da mãe — murmurou Weems.

— Foda-se, você é que começou!

O mundo entrou em foco, oscilou, firmou-se. Respirar lentamente, disse Torgeson para si mesmo. Respirar fundo e lentamente, com calma. Fique quieto, meu coração em disparada! Este último deu-lhe novamente vontade de rir, mas conseguiu conter-se.

Os dois começaram a caminhar tropegamente de volta à viatura, os braços passados pela cintura um do outro.

— O corpo — disse Weems.

— Esqueça-o por enquanto. O cara esta morto. Nós, não. Ainda.

— Veja! — exclamou Weems, quando passaram junto aos despojos de Leandro. — As maminhas! Estão apagadas!

As sinaleiras azuis do teto da viatura, chamadas de bolhas ou maminhas pelos policiais, estavam desligadas e escuras. Não deviam estar assim — era costume inveterado deixarem as sinaleiras acesas, no cenário de um acidente.

— Foi você que... — começou Torgeson, e então parou.

Algo na paisagem havia mudado. O dia escurecera, como acontece quando uma nuvem de grande tamanho obscurece a claridade do sol ou no início de um eclipse. Os dois entreolharam-se, depois se viraram. Foi Torgeson quem viu primeiro, uma imensa forma prateada, emergindo do turbilhão de fumaça. Sua gigantesca borda inclinada brilhava.

— Deus Todo-Poderoso! — quase guinchou Weems.

Sua manopla castanha encontrou o braço de Torgeson e apertou com força. Torgeson mal sentiu o aperto, embora no dia seguinte houvesse equimoses na forma da mão de seu companheiro.

Aquilo surgiu... e subiu... e subiu... Enevoados pela fumaça, os raios do sol bateram em sua superfície de metal prateado. Elevava-se em um ângulo de mais ou menos quarenta graus. Parecia estar oscilando ligeiramente, embora isso pudesse ser uma ilusão ou provocado pelos vapores do calor.

Naturalmente, tudo aquilo, aquela coisa, era uma ilusão — tinha de ser. Não podia ser real, de maneira alguma, pensou Torgeson; era o êxtase provocado pelo excesso de oxigênio.

Ora, mas como ambos podemos estar tendo a mesma alucinação?

— Meu Deus do céu! — gorgolejou Weems. — É um disco voador, Andy! Um fodido disco voador!

Para Torgeson, no entanto, aquilo não parecia um disco voador. Era mais semelhante à parte inferior de um prato de metal, no rancho do exército — o maldito maior prato existente no mundo. Estava subindo e subindo; qualquer um pensaria que ele ia terminar, que devia aparecer uma nesga enfumaçada de céu entre ele e os rolos de fumaça, porém continuava emergindo, ananicando as árvores, ananicando toda a paisagem. Fazia a fumaça da floresta parecer a que escapava de dois tocos de cigarro, consumindo-se em um cinzeiro. Cada vez ele enchia mais o céu, esmaecendo o horizonte, elevando-se, oh! alguma coisa subia da floresta do Big Injun, alguma coisa sepulcralmente silenciosa — não havia som, nenhum som em absoluto.

Os dois ficaram espiando aquilo, e então Weems agarrou-se a Torgeson e Torgeson agarrou-se a Weems, permaneceram os dois abraçados como crianças em pânico. E Torgeson pensou: Oh, se cair em cima de nós...

No entanto, a coisa continuava a subir do meio da fumaça e do fogo, e subir, como se jamais tivesse fim.

 

Ao cair da noite, Haven havia sido isolada do mundo exterior pela Guarda Nacional. A região foi circundada pelos membros da Guarda e, aqueles postados contra o vento, usavam tanques de oxigênio para respirar. Torgeson e Weems conseguiram sair de lá — mas não em sua viatura, que estava tão morta quanto John Wilkies Booth*. Saíram a pé. Ao terminarem de gastar o oxigênio da última mochila-chata, usando-o a intervalos, já se encontravam bem dentro de Troy e foram capazes de utilizar o ar exterior — felizmente, o vento os abandonara, comentou Claudell Weems mais tarde. Afastaram-se do que em breve seria mencionado como “a zona de poluição” em relatórios altamente secretos do governo, e partiram dele as primeiras palavras oficiais sobre o que estava acontecendo em Haven. A esta altura, no entanto, havia centenas de relatos não-oficiais sobre a qualidade letal do ar naquela área, bem como milhares de comunicados sobre um OVNI gigantesco, visto elevando-se da fumaça, na floresta do Big Injun.

Weems escapou de lá com hemorragia nasal. Torgeson perdeu meia dúzia de dentes. Ambos consideraram-se com muita sorte.

Entre as horas 7:00 do anoitecer e 1:00 da madrugada, o NORAD* permaneceu em DEFCON-2**. A bordo do Looking Glass***, o Presidente sobrevoava o Meio-Oeste a vinte mil metros de altitude, mascando cinco e seis gomas de mascar Tum ao mesmo tempo.

O FBI entrou em cena às 6:00 da manhã e a CIA às 7:15. Por volta das 8:00, ambos discutiam vigorosamente sobre jurisdição. Às 9:15, um apavorado e enraivecido agente da CIA, chamado Spacklin, baleou um agente do FBI chamado Richardson. O incidente foi abafado, mas tanto Gardener como Bobbi teriam compreendido perfeitamente — a Polícia de Dallas estava no cenário e com total controle da situação.

 

TOMMYKNOCKERS,

BATENDO A PORTA

Houve um momento de petrificado silêncio na cozinha de Bobbi, em seguida ao falho disparo do velho .45 de Ev Hillman, um silêncio que tanto foi mental quanto físico. Os imensos olhos azuis de Gard fixaram-se nos verdes de Bobbi.

—Você tentou... — comentou Bobbi, e sua mente

(tentou!)

produziu um eco na cabeça de Gardener. O momento pareceu longuíssimo. E, quando se rompeu, foi como vidro estilhaçado.

Em sua surpresa, Bobbi baixara a pistola de fótons ao lado do corpo. Agora, tornava a erguê-la. Não poderia haver uma segunda tentativa. Em sua agitação, deixara a mente completamente aberta para Gardener e ele pode sentir-lhe o choque, ante a oportunidade que havia proporcionado. Ela não ia permitir que houvesse mais uma. Nada havia que ele pudesse fazer com a mão direita, que estava debaixo da mesa. Antes que Bobbi pudesse apontar a pistola de fótons na direção dele, Gardener pousou a mão esquerda na borda da mesa e, sem pensar, empurrou-a com quanta força encontrou. As pernas da mesa rangeram agudamente sobre o piso, à medida que se moviam. A mesa se chocou contra o peito abaulado e mal-formado de Bobbi. No mesmo instante, um raio de brilhante luminosidade verde brotou do cano da arma de brinquedo, acoplada ao grande rádio-gravador de Hank Buck. Ao invés de atingir o tórax de Gardener, o raio dirigiu-se diagonalmente para o alto, passando acima do ombro dele — de fato, mais de quarenta centímetros acima — porém ele ainda sentiu a pele do ombro formigar desagradavelmente sob a camisa, como se as moléculas superficiais estivessem dançando, a maneira de gotas d’água em uma frigideira quente.

Gard torceu o corpo para a direita e agachou-se, a fim de escapar ao raio do que parecia luz. Suas costelas bateram na mesa, colidiram com força, e a mesa tornou a se chocar contra Bobbi, desta vez com ainda maior brutalidade. A cadeira dela oscilou para trás nas pernas traseiras, balançou-se, e então ambas caíram estrondosamente. O raio de luz verde dirigiu-se para cima e, momentaneamente, Gardener recordou aqueles sujeitos que ficam à noite na pista dos aeroportos, usando poderosas lanternas que orientam os aviões para suas respectivas posições.

Ouviu um estremecer surdo, rangente, como de madeira compensada estilhaçando-se, que vinha do alto. Olhando para cima, viu que a pistola de fótons havia aberto uma comprida fenda no teto da cozinha. Cambaleando, ele conseguiu ficar em pé. Incrivelmente, seus maxilares estalaram e se abriram em mais um enorme bocejo. Sua cabeça badalou e ecoou com o terrível alarme de incêndio dos pensamentos de Bobbi.

(arma ele tinha uma arma o bastardo tentou matar-me o bastardo tentou matar-me a arma ele tinha)

e então procurou escudar-se, antes que enlouquecesse. Não conseguiu. Bobbi gritava dentro de sua cabeça e, enquanto jazia no chão, espremida momentaneamente entre a mesa e a cadeira virada, ela tentava manobrar a pistola, a fim de atingi-lo com mais um jato daquela luz.

Gardener levantou o pé e empurrou a mesa de novo, com uma careta. A mesa tombou, com cervejas, pílulas e a caixa do rádio deslizando para fora dela. A maioria daquilo caiu em cima de Bobbi. A cerveja inundou-lhe o rosto e escorreu, chiando e espumando sobre a sua Nova e Melhorada pele transparente. O rádio caiu em seu pescoço e depois no chão, aterrando em cima de uma rasa poça de cerveja.

Brilhe, miserável! gritou Gardener para o rádio. Exploda! Destrua-se! Exploda, coisa maldita, ex...

O rádio fez mais do que isso. Pareceu inchar e então, com um som semelhante ao de uma peça de roupa, rasgando-se nas costuras, estilhaçou-se, atirando fragmentos em todas as direções, arrotando pequenas fitas de fogo verde, como relâmpagos engarrafados. Bobbi gritou. O que ele ouviu com os ouvidos foi ruim; o som ouvido dentro da cabeça foi infinitamente pior.

Gardener gritou com ela, não podendo conter-se. Viu que a blusa de Bobbi estava em chamas.

Caminhou para ela, sem pensar no que fazia. Deixou o .45 cair de sua mão enquanto isso, também sem perceber. Desta vez, a arma funcionou, disparando uma bala que atingiu o tornozelo de Jim Gardener, estraçalhando-o. A dor lancinante lhe varou o cérebro, como um vendaval ardente. Ele tornou a gritar. Deu um passo trôpego para diante, a cabeça tilintando com os horríveis gritos mentais de Bobbi. Eram brados angustiantes, que o deixariam louco a qualquer momento. Em verdade, tal idéia chegava a ser um alívio. Quando ele finalmente enlouquecesse, nada desta merda teria mais importância.

Então, por um segundo, Gard viu a sua Bobbi pela última vez.

Achou que ela estava tentando sorrir, talvez.

Em seguida, recomeçaram os gritos de agonia. Bobbi gritava e tentava abafar as chamas que começavam a fritar a gordura de seu torso, e aqueles gritos eram muito, muitíssimo altos, inacreditavelmente altos; eram insuportáveis. Para ambos, pensou ele. Inclinando-se encontrou no chão o revolver três vezes maldito e o pegou. Precisou usar os dois polegares para engatilhá-lo. A dor em seu tornozelo era intensa — ele sabia disso — mas, no momento parecia perdida, sufocada pelos estridentes gritos de agonia de Bobbi. Gardener apontou a arma de Hillman para a cabeça dela.

Funcione, coisa amaldiçoada, oh, por favor, funcione, funcione...

Bem, mas e se a arma funcionasse e ele errasse? Talvez não houvesse mais nenhum cartucho no tambor.

Suas mãos, filhas da mãe, não paravam de tremer.

Caiu de joelhos, como um homem atingido por súbita e violenta necessidade de rezar. Rastejou para Bobbi, que jazia gritando esganiçadamente, rolando e estorricando-se no chão. Podia sentir o cheiro que provinha dela; via os negros estilhaços de plástico da caixa de rádio, incrustados na pele de Bobbi, derretendo-se e mergulhando mais fundo ainda. Quase perdeu o equilíbrio, quase caiu em cima dela. Então, pressionando o .45 contra o pescoço de Bobbi, ele puxou o gatilho.

Outro clique seco.

E ela, gritando e gritando. Gritando dentro da cabeça dele. Tentou engatilhar a arma novamente. Quase conseguiu. A guia deslizou, escorregou. Snick!

Oh, Deus, por favor, deixa-me ser amigo dela, por esta última vez!

Agora, ele conseguiu puxar a guia inteiramente para trás. Tornou a apertar o gatilho. Desta vez, a arma disparou.

O grito subitamente se tornou um zumbido alto, na cabeça de Gardener. Ele adivinhou que estava ouvindo o som mental de um mortal desligamento. Virou a cabeça para cima. Uma fúlgida tira de sol, passando pelo teto rasgado, caiu sobre seu rosto, dividindo-o. Gardener guinchou.

De repente, o zumbido parou e houve silêncio.

Bobbi Anderson — ou o que quer que ela se tornara — estava tão morta como os cadáveres semelhantes a folhas de outono, empilhados na sala de controle da nave, tão morta quanto os escravos que tinham dirigido a nave. Estava morta, e Gardener morreria, então, satisfeito... porém aquilo não terminara ainda.

Ainda não.

 

Kyle Archinbourg tomava uma pepsi no Cooder’s, quando os gritos começaram a soar em sua cabeça. A garrafa lhe caiu da mão e espatifou-se no solo, quando ele levou as duas mãos às têmporas. Dave Rutledge, cochilando no lado de fora do supermercado em uma cadeira que ele mesmo empalhara, reclinava-se contra o prédio e sonhava esquisitos sonhos, em cores alienígenas. Seus olhos abriram-se de súbito e sentou-se ereto, como se alguém o houvesse tocado com um fio elétrico, desencapado e ligado, os tendões raquíticos salientando-se na garganta. A cadeira escorregou de sob ele e, quando sua cabeça bateu contra a parede de madeira do supermercado, o pescoço estilhaçou-se como vidro. Estava morto, antes de atingir o asfalto. Hazel McCready preparava uma xícara de chá. Quando os gritos começaram, suas mãos ficaram trêmulas. A que segurava o bule, derramou água fervendo sobre o dorso da que segurava a xícara, escaldando-o seriamente. Ela jogou o bule no outro lado do aposento, gritando de dor e de medo. Ashley Ruvall passava pedalando sua bicicleta diante da sede da municipalidade e levou um tombo. Ficou caído na rua, atordoado. Dick Allison e Newt Berringer jogavam cartas na casa deste último, um divertimento bastante idiota, uma vez que cada um sabia que jogo o outro tinha na mão. Enfim Newt não possuía um tabuleiro de gamão e, por outro lado, estavam apenas passando tempo, esperando que o telefone tocasse, esperando que Bobbi lhes comunicasse que o bêbado estava morto, que a próxima fase do trabalho agora podia começar. Newt dava as cartas, que subitamente deixou cair, espalhadas a esmo em cima da mesa e no chão. Dick ficou bruscamente em pé, com olhos alucinados, os cabelos arrepiados. Correu para a porta. No entanto, chocou-se contra a parede, um metro à esquerda da porta, e caiu esparramado no chão. O Doutor Warwick estava em seu estúdio, revendo antigos registros. O grito o atingiu como uma parede de blocos de cimento, rolando em viva velocidade ao lado de uma ferrovia. Seu organismo lançou adrenalina no coração em doses letais, que explodiu como um pneu. Ad Mckenn rodava em sua camionete, a caminho da casa de Newt. Perdeu a direção, saiu da estrada e se chocou contra a abandonada casa de cachorros-quentes, de Pooch Bailey. Seu rosto bateu no volante. Ele ficou momentaneamente atordoado, porém a coisa não passou disto, já que vinha dirigindo devagar. Ainda estonteado e aturdido, ficou olhando em torno, sem saber o que acontecera. Wendy Fannin saia do porão, com dois potes de pêssego em conserva. Após começada a sua “transformação”, ela pouco mais comera além disso. Nas últimas quatro semanas, consumira sozinha mais de noventa potes de pêssego em conserva. Deixando escapar um agudo gemido, jogou aqueles dois potes no ar, como um espasmódico malabarista. Quando eles desceram, caíram nos degraus e e-patifaram-se. Pêssegos e calda grossa escorreram dos estilhaços, gotejantes. Bobbi, pensou ela, atordoadamente, Bobbi Anderson esta pegando fogo! Nancy Voss estava em pé, diante da janela dos fundos, espiando para fora sem ver e pensando em Joe. Sentia falta dele, muita falta dele. Imaginava que a “transformação” eventualmente eliminaria sua ânsia — a cada dia era menos intensa — mas, embora doesse, sentir falta de Joe, ela não queria que a dor cessasse. Não fazia sentido, mas assim era. Então, os gritos angustiantes começaram a ecoar em sua cabeça e, sobressaltada, seu corpo balançou para diante tão subitamente, que quebrou com a testa três vidraças da janela.

 

Os gritos de Bobbi cobriram Haven, como uma sirene de alarme antiaéreo. Tudo e todos pararam por completo... e então os modificados moradores de Haven afluíram para as ruas da cidadezinha. Suas expressões eram todas idênticas: aflição, dor e horror no princípio... depois raiva.

Eles sabiam quem causara aqueles gritos agudos de agonia.

Enquanto iam para as ruas, nenhuma outra voz mental podia ser ouvida e a única coisa que alguém poderia fazer, era ouvir os gritos.

Então, chegou até eles um moribundo e zumbido chocalhar, depois um silêncio tão absoluto, que só podia significar morte.

Momentos mais tarde, houve a baixa pulsação da mente de Dick Allison. Estava trêmula pela emoção, mas era nítida o suficiente em seu tom de comando.

Para a propriedade dela. Todos. Detenham-no, antes que ele faça mais alguma coisa.

A voz de Hazel captou o pensamento e o reforçou — o efeito foi o de uma segunda voz, juntando-se a uma primeira em um dueto.

Para a propriedade de Bobbi. Vão para lá. Todos.

O ritmado da voz mental de Kyle transformou aquilo em trio. O raio de ação da voz começou a ganhar forca, à medida que se expandia.

Todos. Detenham-no...

A voz de Adley. A voz de Newt Berringer.

... antes que ele faça mais alguma coisa.

Aqueles que Gardener considerava como o pessoal do Galpão, consolidavam-se em uma só voz de comando, clara e rejeitando negação... embora ninguém em Haven nem por sobras pensasse em rejeitá-la.

Detenham-no, antes que possa fazer algo à nave. Detenham-no, antes que possa fazer algo à nave.

Rosalie Skehan abandonou a pia de sua cozinha sem mesmo ter a preocupação de fechar a torneira, cuja água escorria sobre o bacalhau que estivera preparando para o jantar. Reuniu-se ao marido, que minutos antes cortava lenha no pátio dos fundos, por pouco deixando de amputar os dedos de um pé, quando começaram os gritos de Bobbi. Sem uma palavra, os dois caminharam para seu carro, entraram e partiram para a propriedade de Bobbi, a seis quilômetros dali. Quando saiam de sua entrada para a garagem, quase bateram em Elt Barker, que vinha de seu posto de gasolina, dirigindo a antiga Harley que possuía. Freeman Moss dirigia seu caminhão madeireiro. Sentia um vago remorso — chegara a simpatizar com Gardener. Gardener era o que o velho de Freeman chamava de “peitudo” — mas isso não o impediria de arrancar as tripas daquele filho da mãe. Andy Bozeman dirigia seu Oldsmobile Delta 88, tendo a esposa sentada ao lado, as mãos dela dobradas caprichosamente sobre a bolsa no colo. Naquela bolsa havia um excitador molecular, capaz de aumentar em cerca de mil graus, em quinze segundos, o calor local de qualquer coisa com cinco centímetros de diâmetro. Ela esperava ferver Gardener, como uma lagosta. Deixem-me apenas chegar a metro e meio dele, pensava sem cessar. Apenas metro e meio, é tudo quanto peço! A uma distância maior, a engenhoca não era confiável. Ela sabia que poderia ter-lhe melhorado a eficácia para até 800 metros — e agora desejaria tê-lo feito — mas Andy ficava uma fera, se não tivesse no armário pelo menos seis camisas limpas. Quanto a Bozeman, estampava-se em seu rosto uma gélida careta de fúria, o lábios repuxados para trás dos poucos dentes remanescentes, como um sorriso rosnado, seco, sem saliva. Vou caiar o seu gradil, assim que puser as mãos em você, filho da puta, pensou ele, acelerando o Oldsmobile para cento e quarenta, com isto ultrapassando uma fileira de carros mais lentos, todos rodando para a propriedade de Bobbi. Todos tinham captado a Voz de Comando, que agora era uma martelante litania: DETENHAM-NO, ANTES QUE POSSA FAZER ALGUMA COISA À NAVE, DETENHAM-NO, ANTES QUE POSSA FAZER ALGUMA COISA À NAVE, DETENHAM-NO, DETENHAM-NO, DETENHAM-NO!

 

Gardener debruçou-se para o cadáver de Bobbi, meio alucinado pela dor, pelo pesar e pelo choque... e subitamente seus maxilares se abriram em outro bocejo, amplo, distendendo tendões. Encaminhou-se para a pia, tentando saltar sobre o calcanhar ileso, mas não se saindo muito bem nisto, devido à carga de droga que tinha ingerido. A cada vez que se apoiava no calcanhar baleado, era como se houvesse uma garra de metal dentro dele, encravando-se inexoravelmente. A secura na garganta estava muito pior agora. As pernas pesavam como chumbo. Os pensa-mentos perdiam a agudeza anterior; pareciam... espalhar-se, como gemas rompidas de ovos. Chegando à pia, tornou a bocejar desmedidamente e, de propósito, deu um passo sobre o calcanhar dilacerado. A dor disparou através da névoa, como um furador de carne enterrado fundo.

Mal conseguiu abrir a torneira marcada Q e encher um copo de água morna — quase quente. Remexeu no armário de parede mais acima, derrubando uma caixa de cereal e um frasco de xarope de bordo no chão. Sua mão se fechou em torno da caixa de papelão fino contendo sal, com a figura da garotinha na parte da frente. Quando chove, ele jorra, pensou Gard, enevoadamente. Isso é a pura verdade. Manuseou a biqueira pela qual o sal jorraria, durante o que lhe pareceu pelo menos um ano, então conseguindo derramar no copo a quantidade bastante para deixar a água turva. Mexeu-a com um dedo. Bebeu tudo, de uma só vez. O sabor deu-lhe a sensação de afogar-se.

Forçou o vômito e pôs para fora toda a água salgada, tingida de azul. Viu também pedacinhos não dissolvidos das pílulas azuis, em meio ao vomito. Algumas pareciam mais ou menos intatas. Quantas ela me fez tomar?

Depois vomitou de novo... de novo... de novo. Era uma atuação semelhante a da floresta, quando vomitara em jatos — algum circuito sobrecarregado em seu cérebro, desencadeando persistentemente o reflexo do vômito, um maldito soluço que podia matar.

Por fim, o vômito diminuiu, depois cessou.

Pílulas na pia. Água azulada na pia.

Sangue na pia. Uma quantidade.

Gardener cambaleou para trás, tropeçou sobre o calcanhar ferido, gritou, caiu no chão. Viu-se espiando para um dos olhos vidrados de Bobbi, ao longo da área acidentada do linóleo, coberta de detritos. Fechou os seus. Imediatamente, sua mente começou a diluir-se... mas havia vozes naquele negror. Não — muitas vozes, fundidas em uma. Ele pode identificar. Era a voz do pessoal do galpão.

Estavam vindo pegá-lo, como achava sempre ter sabido que eles viriam... no momento certo.

Detenham-no... detenham-no... detenham-no!

Comece a mover-se ou eles não precisarão detê-lo. Eles o matarão a balaços, eles o desintegrarão ou seja lá o que for que preferirem, enquanto você estiver cochilando no chão.

Ficou de joelhos, depois conseguiu levantar-se, agarrando-se ao balcão da pia. Pensou que haveria uma caixa de analgésicos no pequeno armário do banheiro, mas duvidava que seu estômago retivesse mais alguma coisa, depois do último insulto a que fora submetido. Em outras circunstâncias, valeria a pena experimentar, mas Gardener receava que, se começasse novamente a vomitar em jatos, não parasse mais.

Basta conservar-se em movimento. Se a coisa ficar mesmo feia, dê alguns passos sobre o calcanhar ferido. Isso o fará apressar-se.

Faria mesmo? Ele não sabia. Sabia apenas que precisava começar a mover-se depressa, imediatamente, mas não tinha certeza se seria capaz de mover-se por muito tempo.

Saltitou tropegamente para a porta da cozinha e olhou para trás, uma última vez. Bobbi, que o salvara de seus demônios vezes sem conta, agora era pouco mais do que um volume. Sua saia ainda fumegava. No fim, ele fora capaz de salvá-la dos dela. Colocando-a fora do alcance daqueles demônios.

Baleou sua melhor amiga. Uma baita enrascada, eh?

Pressionou o dorso da mão contra a boca. Seu estômago resmungava. Gardener fechou os olhos e forçou o vômito a descer, antes que pudesse começar.

Virou-se, tornou a abri-los e começou a cruzar a sala de estar. A idéia era procurar algo sólido, apanhá-lo e depois apoiar-se nele. Sua mente insistia em querer ser aquele balão prateado em que se tornara, pouco antes dele ser arrastado pelo grande furacão negro. Lutou contra isso o mais que pode, assinalava coisas e apoiava-se nelas. Se houvesse um Deus, e se Ele fosse bondoso, talvez tudo aquilo poderia suportar seu peso, ele conseguiria cruzar este aposento aparentemente interminável, como Moisés e seu povo na travessia do deserto.

Gardener sabia que o pessoal do galpão logo estaria ali. Como sabia que, se eles ainda o encontrassem na casa, seu traseiro não seria apenas cozido, mas desintegrado. Aquela gente receava que ele pudesse fazer algo à nave. Pois muito bem! Já que tinham tocado no assunto, isso era parte do que ele tinha em mente, além de saber que, lá, estaria mais seguro.

Gardener sabia também que não podia ir para lá. Ainda não.

Primeiro, tinha coisas a fazer no galpão.

Conseguiu chegar à varanda, onde ele e Bobbi haviam ficado sentados até bem tarde, em tantas noites de verão, com Peter dormitando sobre as tábuas do piso, entre eles. Ficavam apenas sentados ali, bebendo cerveja, ouvindo uma partida noturna dos Red Sox, com seus nove homens, jogando em Fenway, em Comiskey Park ou qualquer maldito lugar, mas jogando principalmente dentro do rádio de Bobbi; pequeninos jogadores de beisebol atuando entre válvulas e circuitos. Sentados ali, com latas de cerveja dentro de um balde de água bem gelada. Falando sobre a vida, a morte, Deus, política, amor, literatura... Uma ou duas vezes, até mesmo sobre a possibilidade de vida em outro planetas. Gardener parecia recordar essas uma ou duas conversas, mas talvez isso fosse apenas sua mente cansada, zombando dele. Haviam sido felizes ali. Só que parecia ter sido há muito, muitíssimo tempo.

Foi em Peter, que sua mente cansada se fixou. Em realidade, Peter era o primeiro alvo, o primeiro móvel em que tinha de apoiar-se. Isto não era exatamente verdadeiro — o tentado resgate de David Brown não oferecia o emocional ponto de pulsação que ele requeria; nunca tinha visto o garotinho, em toda a sua vida. Com Peter era diferente.

— O bom e velho Peter — comentou para a tarde ainda quente.

A tarde ainda ia em meio? Por Deus, ia mesmo! Gardener chegou aos degraus da varanda, e então aconteceu o desastre. O equilíbrio abandonou-o subitamente. Seu peso recaiu sobre o tornozelo ferido. Desta vez, quase pode ver as extremidades lascadas dos ossos, encravando-se umas nas outras. Soltou um grito uivante, esganiçado — não o grito de uma mulher, mas o de uma menina muito pequena, em desesperado apuro. Procurou aferrar-se ao corrimão do gradil da varanda, enquanto tombava de banda.

Durante seu frenético período de princípios de julho, Bobbi consertara o corrimão entre a cozinha e o porão, mas não se preocupara com aquele da varanda. Estivera bambo por anos, de maneira que quando Gardener apoiou seu peso nele, os dois pilares verticais cederam. Uma poeira de madeira antiga jorrou para a claridade do verão... juntamente com as cabeças de alguns assustados cupins. Gardener foi cuspido para fora da varanda, gritando angustiadamente, até cair junto à entrada para o jardim, com um sólido baque de carne contra o solo. Tentou levantar-se, em seguida interrogando-se por que tentava. O mundo balançava diante de seus olhos. Ele primeiro viu duas caixas de correspondência, depois três. Decidiu esquecer aquela coisa inteira e entregar-se ao sono. Fechou os olhos.

 

Naquele longo, estranho e doloroso sonho que ele estava tendo, Ev Hillman sentiu/viu a queda de Gardener, como lhe ouviu o pensamento

(esqueça tudo e durma)

claramente. Então, o sonho pareceu acabar, e isso foi bom, era difícil sonhar. Isso fazia todo o seu corpo sofrer, deixava-o dolorido. E também era difícil lutar contra a luz verde. Quando a claridade do sol era muito forte

(ele recordou um pouco da luz do sol)

a gente podia fechar os olhos, mas a luz verde era interior, sempre interior — um terceiro olho que via e uma luz verde que queimava. Ali havia outras mentes. Uma pertencia A MULHER, a outra AO POUCAMENTE que um dia fora Peter. Agora, O POUCAMENTE só podia uivar. Ele às vezes uivava para que BOBBI viesse e o libertasse da luz verde... mas em geral, ele uivava apenas quando ardia, no tormento da drenagem. A MULHER também gritava por liberação, mas por vezes seus pensamentos eram em ciclos de estarrecedoras imagens de ódio, que Ev mal podia suportar. Portanto: sim. Era melhor

(melhor)

entregar-se ao sono

(mais fácil)

e não ligar para nada...

...porém, havia David.

David estava morrendo. E seus pensamentos — que Ev tinha recebido claramente a princípio — já estavam caindo em uma espiral que se aprofundava que primeiro terminaria em inconsciência e depois, rapidamente, na morte.

Assim, Ev lutou contra a escuridão.

Lutou contra ela e começou a chamar:

Levante-se! Levante-se! você esta aí, na luz do sol! Eu me lembro da luz do sol! David Brown merece seu tempo de luz do sol! Portanto, levante-se! Levante-se! levante-se!

 

LEVANTE-SE, LEVANTE-SE, LEVANTE-SE!

O pensamento era uma batida ritmada, na cabeça de Gardener. Não, não era uma batida. Era algo semelhante a um carro, exceto que as rodas eram de vidro, estavam cortando-lhe o cérebro, à medida que o motorista o ia cruzando lentamente.

Merece seu tempo de luz do sol David Brown LEVANTE-SE David LEVANTE David SE David Brown! LEVANTE-SE! DAVID BROWN! LEVANTE-SE! LEVANTE-SE, DROGA!

— Está bem! — murmurou Gardener, através de uma boca que estava cheia de sangue. Está bem, já ouvi, deixe-me em paz!

Conseguiu ficar de joelhos. Tentou levantar-se. O mundo acinzentou-se. Nada bom aquilo. Por fim, a voz cortante, insistente em sua cabeça amenizara um pouco... ele sentiu que o dono daquela voz, de algum modo, enxergava através dos seus olhos, usando-os como janelas embaçadas,

(sonhando através delas)

vendo parte do que ele via.

Esforçou-se novamente para ficar em pé e, novamente não conseguiu.

— Meu quociente de traseiro ainda é muito alto — grunhiu.

Cuspiu dois dentes e começou a engatinhar pelo chão do jardim, na direção do galpão.

 

Haven vinha atrás de Jim Gardener.

Eles chegaram em carros. Chegaram em picapes. Chegaram em tratores. Chegaram em motocicletas. A Sra. Eileen Creensaw, a vendedora Avon que ficara tão entediada no SEGUNDO GRANDE ESPETÁCULO DE MÁGICA de Hilly Brown, chegou dirigindo o buggy de seu filho Galen. O Reverendo Goohringer rodava atrás dela, os remanescentes de seus cabelos grisalhos agitando-se na cabeça queimada de sol. Ven Jernigan chegou em um carro fúnebre que estivera tentando adaptar em trailer para acampar, antes que a “transformação” começasse a trabalhar nele, em alta velocidade. Eles encheram as estradas. Ashley Ruvall desviava-se dos que seguiam a pé , como um corredor de slalom, pedalando sua bicicleta como um louco. Voltara em casa apenas pelo tempo suficiente de apanhar algo a que chamava de Pistola Zap. Nesta primavera, havia sido apenas um brinquedo esquecido, juntando poeira no sótão. Agora, equipado com uma pilha de 9 volts e o painel de circuito do “Fale e Soletre” de seu irmãozinho, tornara-se uma arma que o pentágono acharia interessante. Ela fazia buracos em coisas. Enormes buracos. Estava presa por correias ao bagageiro de sua bicicleta, onde um dia ele carregava jornais para entrega a domicílio. Eles chegaram em nervosa pressa e houve alguns acidentes.

Duas pessoas morreram, quando o Volkswagen de Early Hutchinson colidiu com a camionete do Fannin, porém uma coisa de tão pouca importância não deteve ninguém. A cantoria mental deles enchia os espaços vagos no ar, com um grito persistente e ritmado: Antes que ele possa fazer alguma coisa a nave! Antes que ele possa fazer alguma coisa à nave! Era um belo dia de verão, um belo dia para uma caçada e morte final e, se alguém tinha de morrer, era James Eric Gardener. Então, eles chegaram, mais de quinhentos ao todo, boa gente do campo, que tinha aprendido alguns novos truques. Chegaram. E levaram consigo suas novas armas.

 

Quando Gardener cobriu metade do trajeto até o galpão, começou a sentir-se melhor — talvez estivesse ganhando um segundo fôlego. O mais provável, segundo supôs, era a possibilidade de que realmente se tivesse livrado de quase todo o Valium, agora começando a superar o efeito do restante.

Também era possível que o velho estivesse, de algum modo, alimentando-o com sua força.

Fosse o que fosse, a situação permitiu-lhe ficar novamente em pé e, desta maneira, pode iniciar uma caminhada, em saltos, até o galpão. Aferrou-se à porta por um instante, o coração galopando loucamente no peito. Ao olhar casualmente para baixo, viu um buraco na porta. Era redondo. As bordas projetavam-se para fora, em denteado bracelete de estilhas brancas. Aquele buraco tinha uma aparência de mastigado.

O aspirador de pó que manipulava os botões. Foi assim que ele escapou daqui. possuía acoplada uma Nova e Melhorada peça de corte. Céus, esta gente é mesmo doida!

Gardener deu volta ao galpão com dificuldade, sentindo uma fria certeza: a chave teria desaparecido.

Por Deus, Gard, seja menos pessimista! Por que ela...

Ele tinha razão. A chave se fora. O prego de onde pendera, agora estava vazio.

Gardener recostou-se a parede lateral do galpão, exaurido e trêmulo, o corpo molhado de suor. Baixou os olhos e o sol cintilou sobre algo no chão — a chave. O prego se entortara um pouco. Ao colocar a chave nele, estava com pressa, provavelmente inclinara o prego um pouco para baixo e a madeira macia cedera. Assim, a chave simplesmente escorregara e caíra.

Inclinando-se com dificuldade, apanhou-a e começou novamente a dar a volta resfolegante para a parte fronteira do galpão. Tinha uma singular percepção de como o tempo voava. Eles logo chegariam; como seria possível conseguir tempo pa-ra fazer no galpão o que tinha de ser feito e depois alcançar a nave, antes daquela gente? Bem, já que era impossível, o melhor seria ignorá-lo.

Quando alcançou a porta do galpão, pode ouvir o fraco rumor de motores. Enfiou a chave na fechadura, sem conseguir introduzi-la direito. O sol estava brilhante, a sombra de Gardener era pouco mais que uma poça, pendendo de seus calcanhares. Nova tentativa. Desta vez acertou. Girou a chave, abriu a porta e arrastou-se para o interior do galpão.

A luz verde o envolveu.

Era forte — mais forte do que na última vez em que estivera ali. Aquela enorme peça remendada de equipamento

(o transformador)

reluzia vivamente. O brilho era cíclico, como antes, porém os ciclos agora eram mais rápidos. Um delgado fogo verde percorria os prateados mapas rodoviários dos painéis de circuito.

Gardener olhou em torno. Flutuando em seu banho verde, o velho o fitava com seu único olho são. Era um olhar torturado... mas lúcido.

Use o transformador para salvar David.

— Ouça, velho, eles estão vindo atrás de mim — disse Gardener, em voz alquebrada. — Meu tempo é curto.

O canto, o canto mais distante.

Olhando, ele viu algo semelhante a uma antena de televisão, semelhante a um grande cabide suspenso para casacos e também semelhante àqueles dispositivos de pátio dos fundos, onde as mulheres penduram roupas, girando-os enquanto isso.

— Aquilo?

Leve-o para fora, até a porta do pátio.

Gardener não discutiu. Não havia tempo. A coisa se firmava sobre uma pequena plataforma quadrada. Ele supôs que os circuitos e pilhas estivessem nessa plataforma. Observando mais de perto, reparou que as coisas parecidas aos braços abaixados de uma antena de televisão, na realidade eram estreitos tubos de aço. Pegou a haste central. A engenhoca não era pesada, mas desajeitada. Ele teria que colocar algum peso sobre o pé ferido, quisesse ou não.

Tornou a olhar para o tanque em que Ev Hillman flutuava.

Tem certeza de que e isto, veterano?

No entanto, quem respondeu foi a mulher. Ela abriu os olhos, fitá-los, era como espiar o interior do caldeirão das feiticeiras, em Macbeth. Por um momento, Gard esqueceu toda a sua dor, cansaço e mal-estar. Ficara fascinado por aquele olhar envenenado. Nesse instante, compreendeu toda a verdade, todo o poder da terrível a quem Bobbi chamara de Sissy. Compreendeu o motivo de Bobbi ter fugido dela, como de um espírito maligno. Ela era um espírito maligno. Ela era uma feiticeira. E mesmo agora, em sua medonha agonia, continuava sentindo ódio.

Leve-o, sujeito idiota! Eu o farei funcionar!

Gardener pousou no chão o pé ferido e gritou, quando uma mão selvagem estirou-se toda a distância desde seu tornozelo, para apertar a macia bolsa dupla de seus testículos.

O velho:

espere espere

A engenhoca se ergueu por si mesma. Não muito; apenas três ou cinco centímetros. Aquela claridade verde-pantonosa cintilou ainda mais.

Você terá de guiá-lo, filho.

Isto, ele podia fazer. A engenhoca bamboleou, enquanto cruzava o galpão verdejante, como o esqueleto de um fantástico guarda-sol de praia, assentindo e oscilando, lançando espectrais sombras alongadas sobre as paredes e o piso. Gardener coxeou desajeitadamente mais atrás, não querendo, não ousando virar o rosto e fitar os olhos insanos da mulher. Com insistência, de sua mente brotava um único pensamento! A irmã de Bobbi era uma feiticeira... uma feiticeira... uma feiticeira...

Ele guiou o bamboleante guarda-sol para a luz do dia.

 

Freeman Moss foi o primeiro a chegar. Estacionou o caminhão madeireiro, em que Gard certa vez pegara uma carona até a porta de Bobbi, e pulou da boleia quase antes que o cansado e matraqueante motor morresse. E, por Deus, minha gente, o filho da puta está bem ali, todo inteiro, segurando um negócio parecido a um cabide giratório de roupas femininas. Dava uma impressão de corredor com fôlego curto. Tinha um dos pés — o esquerdo — levantado, como um cachorro com um espinho na pata. O tênis daquele pé estava manchado de vermelho-vivo, gotejava sangue.

Parece que Bobbi finalmente fez uma boa com você, seu serpente!

O homicida amiguinho dela pareceu ouvir o pensamento. Ergueu os olhos e sorriu, com ar cansado. Ainda segurava aquela espécie de armação de guarda-chuva, com a plataforma de apoio na base. Aliás, procurava amparar-se nela.

Freeman caminhou para ele, deixando aberta a porta do motorista do velho caminhão. Havia algo de infantil e desafiante no sorriso do outro homem. Freeman logo percebeu o que era: com as falhas de dentes, era o sorriso de um garotinho, na abóbora oca e iluminada do Dia das Bruxas.

Céus, eu até simpatizava com você... por que tinha que armar tanta confusão?

— O que faz aqui, Freeman? — perguntou Gardener. — Devia estar em casa. Vendo o jogo dos Red Sox. O gradil já está todo caiado.

Seu cretino filho da mãe!

Moss usava um colete surrado, mas sem camisa por baixo; na pressa em sair de casa, o colete fora a primeira coisa ao alcance. Agora, empurrando-o de lado, revelou, não um artefato ou engenhoca, nas um Colt Woodsman. Empunhou-o. Gardener ficou olhando para ele, apoiado a haste central da armação giratória, com o pé erguido.

Feche os olhos. Será rápido. Pelo menos, posso fazer isso.

 

(AGACHE-SE CRETINO AGACHE-SE OU PERDERÁ A CABEÇA QUANDO O CARA PERDER A DELE ESTOU POUCO LIGANDO PARA QUEM TIVER DE MORRER PORTANTO AGACHE-SE SE QUISER VIVER)

No tanque, os olhos de Anne Anderson cintilaram de pura fúria, do ódio mais cru; havia perdido os dentes, mas as gengivas nuas rilharam uma contra a outra, rilharam e rilharam, produzindo uma fieira de pequenas bolhas, que flutuaram até a superfície.

A luz pulsou mais depressa, como um carrossel ganhando velocidade.

Tornou-se estroboscópica. O zumbido elevou-se para um grave gemido elétrico, e o ar do galpão ficou impregnado de forte cheiro de ozônio.

Sobre a tela iluminada do monitor, a palavra

PROGRAMA?

Havia sido substituída por

DESTRUIR

Ela começou a piscar rapidamente, sem cessar.

(AGACHE-SE CRETINO OU FIQUE MESMO EM PÉ ESTOU POUCO LIGANDO PARA)

 

Gardener agachou-se, como em um mergulho. Seu pé ferido bateu no chão. A dor tornou a saltar perna acima. Ele se deixou cair no solo, sobre as mãos e joelhos.

Acima de sua cabeça, a armação de guarda-sol começou a girar, primeiro lentamente. Moss ficou olhando para aquilo, a arma pendendo frouxamente em sua mão, por um momento. A percepção cruzou seu rosto, durante o último instante que ele ainda teve. Então, os esguios canos começaram a cuspir fogo verde para o portão do pátio. Por um instante, a ilusão de guarda-sol de praia foi perfeita e completa. A engenhoca assemelhava-se exatamente a um enorme guarda-sol verde, que fora abaixado a meio, com sua orla circular tocando o chão. Este guarda-sol, no entanto, era feito de fogo, e Gard encolheu-se debaixo dele, os olhos apertados, uma mão diante do rosto, careteando como que pelo forte calor... porém não havia calor, pelo menos não ali, sob o cogumelo venenoso de Sissy.

Freeman Moss estava em posição superior a do guarda-sol. Primeiro foram suas calças que entraram em combustão, depois o colete. As chamas permaneceram verdes por um momento, depois tornando-se amareladas.

Ele gritou e recuou aos tropeções, deixando a arma cair. Acima da cabeça de Gardener, o guarda-sol girou mais rápido. Os braços metálicos da armação, que haviam caído comicamente para baixo, agora iam ficando cada vez mais eretos, pe-la força centrífuga. A orla de fogo do guarda-sol ganhou maior raio de ação, agora envolvendo os ombros e rosto de Moss em altas chamas, enquanto ele ia recuando. Aqueles hediondos uivos mentais recomeçaram, na cabeça de Gard. Ele tentou expulsá-los, mas não conseguiu — era impossível, simplesmente. Teve um oscilante vislumbre de um rosto que se derretia como chocolate quente, mas então tapou os olhos para não ver, como uma criança assistindo a um filme amedrontador.

As chamas contornaram o portão do pátio de Bobbi, girando em círculos cada vez maiores e formando uma negra espiral na terra abaixo do portão, a qual foi fundida em uma espécie de vidro quebradiço. O caminhão madeireiro de Moss e a picape azul de Bobbi situavam-se dentro do alcance final daquela circunferência. O galpão ficava pouco além, embora seu vulto dançasse como um demônio, ante os vapores do calor. Estava muito quente na orla do círculo, mas não onde Gard se agachava. Quanto a isto, não havia dúvidas.

A pintura no capo do caminhão de Moss e nas laterais da picape de Bobbi, primeiro ferveu em bolhas, depois enegreceu e então irrompeu em chamas, queimando até deixar o aço da estrutura inteiramente limpo e reluzente. Os detritos de cascas de árvore, serragem e lascas de madeira, existentes na carroceria do caminhão, incendiaram-se como gravetos secos em uma estufa a lenha. Os dois enormes recipientes para lixo, na picape de Bobbi, feitos de gipsita fortemente prensada, também pegaram fogo e queimaram como candelabros. O círculo escuro na orla de alcance do fogo do guarda-sol, assumiu um formato de pires. Um cobertor do exército, encobrindo o estofamento rasgado do banco na cabine do caminhão, transformou- se em uma só chama, o fogo em seguida propagando-se para o forramento do assento, mais abaixo, e depois para o acolchoado; agora, toda a cabine era uma ofuscante fornalha alaranjada, com os esqueletos das molas espiando por entre o clarão.

Freeman Moss cambaleou para trás, retorcendo-se e virando-se, parecendo um dublê de filme, que esqueceu de vestir o traje a prova de fogo. Ele caiu final-mente.

 

Superando inclusive os gritos moribundos de Moss, surgiam os gritos mentais de Anne Anderson:

Coma merda e morra! Coma merda e m...

Então, subitamente, algo cedeu no que quer que restasse dela — houve um jato final de ofuscante luz verde, uma pulsação sustida que durou quase dois segundos. O forte zumbido do transformador elevou-se um grau, e cada tábua no galpão o captou, chocalhando em correspondente vibração.

A seguir, o zumbido retornou ao sonolento zunzum anterior; a cabeça de Anne descambou para diante no líquido, seus cabelos flutuando como os de uma mulher afogada. Na tela do computador,

DESTRUIR

apagou-se como uma vela soprada e se tornou

PROGRAMA?

novamente.

 

O guarda-sol ardente oscilou, depois desapareceu. Seu esqueleto metálico, que estivera girando em alucinante velocidade, começou a desacelerar, guinchando ritmadamente, como um portão destrancado, balançando-se em uma brisa leve. Os canos se dobraram em seu ângulo anterior. A engenhoca ainda guinchou uma vez mais, depois então emudeceu.

O tanque de gasolina da picape de Bobbi explodiu de repente. Uma nova fornalha de chamas amarelas subiu ao céu. Gard sentiu um pedaço de metal passar sibilando ao seu lado.

Ergueu a cabeça e ficou olhando idiotamente para a picape em fogo, enquanto pensava: Eu e Bobbi usamos essa picape para ir algumas vezes ao Drive-in Starlite, lá em Derry. Acho até que transamos ali dentro uma vez, durante um filme chato de Ryan O’ Neal. O que aconteceu? Meu Deus, o que aconteceu?

Em sua mente, a voz do velho, quase esgotada, mas de certo modo imperativa:

Depressa! Posso fazer o transformador funcionar quando os restantes chegarem, mas você tem que agir depressa! O menino! David! Depressa, homem!

Não resta muito tempo, pensou Gardener cansadamente. Jesus, nunca houve tempo sobrando...

Começou a caminhar para a porta aberta do galpão, suando, as faces pálidas como cera. Parou diante daquele escuro anel carbonizado no solo e então saltou sobre ele, desajeitadamente. De certo modo, não queria tocá-lo. Oscilou, quase perdendo o equilíbrio, mas conseguiu controlar-se. E, enquanto retornava ao galpão, os dois tanques de gasolina do caminhão de Moss explodiram, em furioso rugido. A cabine desprendeu-se do chassi. O caminhão tombou para um lado, como se fosse de brinquedo. Fragmentos em chamas, da cobertura e acolchoado do assento, começaram a ser expelidos através da janela aberta do passageiro e flutuaram para o alto, como penas ardentes. A maioria caiu no pátio, apagando-se em seguida. Alguns, entretanto, conseguiram chegar até a varanda, e três ou quatro cruzaram a porta aberta, impelidos por uma fraca rajada do vento leste, que em breve ficaria mais forte. Um daquele tufos ardentes de algodão pousou sobre uma novela que Gardener estivera lendo e deixara sobre a mesa, ao lado da porta, uma semana atrás. As capas da brochura pegaram fogo.

Na sala de estar, outro fragmento aceso de estofamento inflamou um tapete de tiras de pano que a Sra. Anderson montara em seu quarto, tendo enviado dissimuladamente para Bobbi, um dia em que Anne se ausentara.

Quando Jim Gardener tornou a sair do galpão, a casa inteira estava em chamas.

 

A luz no galpão estava em um nível mais baixo do que nunca — tinha uma desbotada tonalidade verde-água, da cor da água estagnada em uma poça.

Gardener olhou cautelosamente para Anne, receando aqueles olhos fuzilantes. Entretanto, nada havia do que ter medo. Ela meramente flutuava, a cabeça inclinada para diante, como que imersa em profundos pensamentos, os cabelos flutuando desgarrados para o alto.

Ela está morta, filho. Se pretende resgatar o menino, tem de ser agora. Não sei por quanto tempo posso fornecer energia. Tampouco posso ficar dividido, com uma metade vigiando-os e outra metade impulsionando o transformador.

Ele fixou o olho em Gardener, e Gardener sentiu uma profunda piedade... assim como admiração pela imensa coragem do velho bastardo. Teria feito metade daquilo, seria capaz de chegar até meio caminho do que ele conseguira, se suas posições fossem invertidas? Duvidava muito.

Está sentindo muita dor, não está?

Não estou exatamente em um mar de rosas, filho, se é o que quer saber, mas posso agüentar... se você for em frente, entende?

Ir em frente. Sim. Ele já havia demorado demais. Muitíssimo.

Sua boca se abriu em outro estalante bocejo. Então, aproximou-se do equipamento que ficava dentro e a volta daquele caixote alaranjado — o que o velho chamava de transformador.

PROGRAMA?

solicitou a tela do computador sem teclado.

Hillman podia ter dito a Gardener o que fazer, mas ele não precisava que lhe dissessem. Gardener sabia. Também recordava a hemorragia nasal e o fortíssimo jato de som recebido, como resultado de sua única experiência com a engenhoca de levitação de Moss. Isto aqui, fazia aquilo assemelhar-se a uma caixa de cubos para montar.

Oh, droga, filho, pegue o fone, temos visitas.

Então, uma voz mais forte sobrepujou a de Hillman, uma voz que Gardener reconheceu vagamente, sem que pudesse dar-lhe um nome.

(PAREM PAREM MANTENHAM SUAS POSIÇÕES TODOS VOCÊS)

Acho que é apenas um, mas talvez sejam dois. Era novamente a exaurida voz mental do velho. Gardener percebeu que sua concentração dirigia-se a engenhoca em forma de guarda-sol, na entrada do pátio. No galpão, a luz começou a adquirir brilho de novo, começando também aquelas letais pulsações.

 

Dick Allison e Newt Berringer ainda estavam a uns três quilômetros da propriedade de Bobbi, quando começaram os estridentes brados mentais de Freeman Moss. Momentos antes, eles haviam passado por Elt Barker. Agora, espiando pelo retrovisor, Dick viu a moto Harley de Elt ziguezaguear através da estrada e saltar em pleno ar. Por um instante, ele pareceu Evelknievel, com ou sem cabelos brancos. Depois foi lançado fora da moto e estatelou-se no chão.

Newt pisou no freio com os dois pés, e seu caminhão guinchou, enquanto parava abruptamente no meio da estrada. Virou-se para Dick com olhos esbugalhados, cheios de medo e de fúria.

O filho da puta está com uma engenhoca!

Sim. Fogo. Alguma espécie de...

Subitamente, Dick elevou sua voz mental para um grito. Newt captou-o, amplificou-o. No Cadillac, Kyle Archinbourg e Hazel McCready fizeram coro.

(PAREM PAREM MANTENHAM SUAS POSIÇÕES TODOS VOCÊS)

Eles pararam, mantendo suas posições. Em geral, aqueles Tommyknockers não eram dos melhores em acatar ordens, porém os brados de Moss, hediondos e agora diminuindo, foram fortes persuasivos. Todos pararam, exceto um Oldsmobile Delta 88, azul, com um adesivo de pára-choque traseiro, anunciando que CORRETORES IMOBILIÁRIOS VENDEM POR ACRES.

Quando chegou a ordem de pararem e manterem posições, Andy Bozeman já estava à vista da propriedade Anderson. Seu ódio avolumara-se exponencialmente — ele não conseguia pensar em mais nada, além de Gardener jazendo ensangüentado e morto. Manobrou deslizando para a entrada da garagem de Bobbi, em uma curva de potência máxima do motor. A traseira do antigo Oldsmobile se soltou, quando Bozeman pisou no freio até o fundo; o enorme carro quase capotou.

Vou caiar o seu gradil, seu filho da puta ordinário — darei a você um rato morto e um cordão para girá-lo, oh, sim, seu cretino!

Sua esposa tirou da bolsa o excitador-molecular. Assemelhava-se a um lança-chamas de Buck Rogers, criado por um lunático razoavelmente brilhante. Sua estrutura um dia fora parte de um utensílio de jardinagem, comercializado sob a marca registrada de “Comedor de ervas daninhas”. Inclinando-se na janela do carro, ela puxou o gatilho, inteiramente ao acaso. A extremidade leste da casa de Bobbi explodiu em um caldeirão de fogo. Ida Bozeman exibiu um satisfeito e reptiliano sorriso.

Quando os Bozeman começaram a sair do Oldsmobile, a engenhoca em forma de guarda-sol também começou a girar. Um momento mais tarde, o verde guarda-sol de chamas foi ganhando volume. Ida Bozeman tentou apontar o que chamava de seu “disco-molecular” para aquilo, mas tarde demais. Se seu primeiro disparo houvesse atingido o guarda-sol, em vez da casa, tudo poderia ser diferente... mas não foi o que aconteceu.

Os dois foram envoltos em chamas, como pinheiros incendiados. Um momento depois, o Oldsmobile explodia, com ainda três pagamentos por saldar.

 

Agora, com os gritos de Freeman Moss apenas começando a desaparecer de suas mentes, eles captavam os de Andy e Ida Bozeman. Newt e Dick esperaram que se extinguissem, ambos fazendo caretas.

Por fim, os gritos cessaram.

Mais adiante, Dick Allison podia ver outros veículos, estacionados nas duas margens da Rota 9 e no meio. Frank Spruce inclinava-se de cabine de seu enorme caminhão, olhando para Newt e Dick com ânsia. Ele/eles tinham captado os outros — todos os outros — rodando nesta estrada e também em outras; alguns estavam parados nos campos que cruzavam. Todos esperavam alguma coisa — uma decisão.

Dick se virou para Newt.

Incêndio.

Sim. Um incêndio.

Podemos debelá-lo?

Houve um breve silêncio mental, enquanto Newt pensava a respeito; Dick podia senti-lo querendo simplesmente deixar aquilo de lado e irem todos ao encontro de Gardener, onde quer que ele estivesse. O que Dick desejava não era complicado: queria arrancar as tripas de Jim Gardener. Entretanto, esta não era a solução e ambos sabiam — todo o pessoal do galpão, até mesmo Adley, sabia disso. Os riscos agora eram maiores. E Dick esperava que Jim Gardener terminasse perdendo as tripas, de um modo ou de outro.

Trair os Tommyknockers fora péssima idéia. Isto os deixara fora de si. Era uma verdade que muitas raças, em outros mundos, haviam descoberto muito antes das atuais festividades em Haven.

Ele e Newton olharam para o campo marginado de árvores, onde Elt Barker tinha caído. A relva e a folhagem das árvores agitavam-se — não intensamente, mas agitavam-se com nitidez, em um vento que soprava de leste para oeste. Não havia ainda brisa suficiente para ser qualificada como uma rajada de vento... mas Dick achava que tinha indícios de aumentar.

Sim, podemos acabar com o fogo, respondeu Newt finalmente. Acabar com o fogo e com o bêbado também? Podemos ter certeza?

Houve outra longa e reflexiva pausa, até Newt responder o que Dick já imaginava.

Não sei se poderemos fazer as duas coisas. Podemos resolver uma ou outra, mas não sei se daremos jeito nas duas.

Então, vamos deixar que o incêndio lavre por enquanto, nós vamos deixá-lo lavrar, sim, isso, mesmo.

A nave estará em segurança, a nave

não será danificada, e o vento, na direção em que esta soprando.

Os dois entreolharam-se, sorrindo, enquanto seus pensamentos rimavam, em um momento de total e bimbalhante harmonia — uma voz, uma mente.

O fogo ficará entre ele e a nave. Ele não conseguirá chegar até a nave!

Nas estradas e nos campos, as pessoas que estavam ouvindo nesta espécie de linha comunitária ficaram levemente relaxadas. Ele não conseguira chegar até a nave.

Ele continua no galpão?

Continua.

Newt virou para Dick um rosto perplexo, perturbado.

Diabo, que merda ele está fazendo lá? Estará montando alguma coisa?

Alguma coisa para danificar a nave?

Houve uma pausa; depois a voz de Dick, não apenas para New Beringer, mas para todo o pessoal do galpão, clara e imperativa:

CONECTEM SUAS MENTES. CONECTEM SUAS MENTES COM AS NOSSAS. TODOS OS QUE PUDEREM CONECTAR SUAS MENTES COM AS NOSSAS E OUVIR. OUÇAM POR GARDENER. OUÇAM.

Eles ouviram. No silêncio do quente verão, naquelas primeiras horas da tarde, eles ficaram ouvindo. Dois ou três cômoros além, as primeiras estrias de fumaça subiram para o céu.

 

Gardener sentiu que eles procuravam ouvi-lo. Havia uma medonha sensação de rastejante sondagem nas superfícies de seu cérebro. Era ridículo, mas estava acontecendo. Ele pensou: Agora posso imaginar o que deve sentir uma lâmpada de iluminação pública, com um bando de mariposas revoluteando à sua volta.

O velho moveu-se em seu tanque, tentando captar o olhar de Gardener. Não conseguiu captar o olhar, mas a mente. Gardener ergueu o rosto.

Não se incomode, filho — eles querem saber o que você está pretendendo, mas esqueça. Não fará mal se descobrirem. Pode até ser proveitoso, porque os atrasará. Alivie suas mentes. Eles não se preocupam com David, somente com sua maldita nave. Em frente, filho! Em frente!

Gardener estava parado junto ao transformador, com um dos fones de ouvido na mão. Não queria colocá-lo. Sentia-se como o homem que levou um choque brutal em uma certa placa de interruptor, sendo forçado a tocar novamente aquela mesma placa.

Terei mesmo que usar esta droga? Já consegui modificar a tela apenas com o pensamento.

Terá que usá-la, e tudo quanto pode fazer. Sinto muito, filho, mas não há outro jeito.

Inacreditavelmente, as pálpebras de Gardener voltavam a ficar pesadas. Precisava esforçar-se, a fim de mantê-las abertas.

Tenho medo que isto me mate, pensou ele, transmitindo para o velho.

Então esperou, querendo que Hillman o contradissesse. Não houve nada — apenas aquele dolorido olho que o fitava e o sutil slissh-slisbhhslishhh do equipa-mento.

Bem, esta coisa pode matar-me e ele sabe perfeitamente disso.

No exterior, vagamente, ele podia ouvir o crepitar do fogo.

A sensação de borboleteante sondagem ao longo das superfícies de sua mente cessou. As mariposas tinham ido embora.

Com relutância, Gardener colocou o fone no ouvido.

 

Kyle e Hazel relaxaram. Entreolharam-se. Havia uma expressão idêntica — e muito humana — nos olhos de ambos. Era a expressão de quem descobre alguma coisa, boa demais para ser verdadeira.

David Brown? Pensou Kyle com incredulidade, transmitindo para Hazel, Foi o que você

captou, sim, ele esta tentando salvar o menino,

querendo trazê-lo de volta

de volta de Altair-4

Então, por um momento ignorando a rede mental, surgiu a voz de Dick Allison, excitada, tomada de ácido triunfo:

PORRA! EU SABIA que esse garoto ainda nos seria valioso!

 

Durante um momento, Gardener não sentiu absolutamente nada. Começou a ficar relaxado, já quase cochilando de novo. Então, atingido pela dor em um único e lancinante ataque, como um martelete destrutivo, capaz de estilhaçar-lhe a cabeça.

— Não! — bradou. Levou as mãos às têmporas, bateu nelas. — Não, oh, Deus, não, isto dói demais! Santo Deus, não!

Tente suportar, filho, procure suportar!

— Não posso, não posso, OH, CRISTO, FAÇA ISTO PARAR!

A dor era tamanha que, em comparação, a de seu tornozelo baleado parecia picada de mosquito. Gardener tinha uma vaga noção de que seu nariz sangrava e de que a boca estava cheia de sangue.

SUPORTE, FILHO!

A dor amenizou ligeiramente. Foi substituída por outra sensação. Esta nova sensação era horrível, terrível e terrificante.

Certa vez, quando na universidade, ele participara de algo chamado A Grande Comilança McDonald. Cinco fraternidades universitárias apresentaram seus “campeões de comilança”. Gard havia sido o “campeão” da fraternidade Delta Tau Delta.

Estava comendo seu sexto Big Mac — nem mesmo próximo do eventual ganhador da prova — e, de repente, ficou subitamente cônscio de que estava à beira de uma total sobrecarga física. Jamais sentira algo semelhante na vida. De certo modo, chegava a ser interessante. A parte central de seu corpo trovejava ameaçadoramente com o excesso de comida. Não havia vontade de vomitar; nauseado, não seria bem o termo para descrever o que era. Ele via seu estômago como um imenso dirigível imóvel, jazendo no ar parado da metade de seu corpo. Pensou que podia sentir luzes vermelhas piscando em algum Centro de Controle da Missão, mental, enquanto vários sistemas procuravam manejar aquela insana carga de carne, pão e molho. Gard não vomitou. Livrou-se daquilo caminhando. Bem devagar, caminhou e liberou-se. Durante horas, sentira-se como aqueles desenhos de Tweedledum e Tweedledee*, seu estômago dilatado e esticado, por pouco não explodindo.

Agora, era sua mente que se sentia assim. Jim Gardener compreendeu, tão fria e racionalmente como um trapezista atuando sem rede, que estava sobre a lâmina de uma faca, a caminho da morte. Havia, no entanto, outra sensação, esta sem ligação com coisa alguma e, pela primeira vez, ele compreendeu o que eram os Tommyknockers, em toda parte — o que os impelia; o que os empurrava para diante.

A despeito da dor, que apenas recuara, mas não sumira, a despeito daquela terrível sensação de empanzinamento, como uma píton que engoliu uma criança, parte dele divertia-se com aquilo. Era como uma droga — uma droga de inacreditável potência. Seu cérebro parecia o motor do maldito e maior Chrysler já fabricado, ronronando quietamente com gasolina de alta octanagem, esperando que ele pusesse o carro em movimento e disparasse.

Disparasse para onde?

Para qualquer lugar.

Para as estrelas, se quisesse.

Filho, estou perdendo você

Era o velho, soando mais exaurido do que nunca. Gardener retornou ao que tinha de fazer — o primeiro móvel em que teria de apoiar-se. Oh, esta sensação era ebriamente maravilhosa, mas clandestina. Forçou a pensar novamente naquelas formas semelhantes a folhas marrons, trancadas em todas aquelas redes. Escravos, seres em trabalho forçado. O velho o energizava; ele bebia o velho, como um vampiro bebia sangue. Há quanto tempo vinha agindo como vampiro? Um vampiro igual a eles?

Pensou para Hillman: Estou com você, velhote.

Ev Hillman fechou seu único olho bom, em aliviado silêncio. Gard se virou para a tela do monitor, tocando alheadamente o fone no ouvido, como um noticiarista ao vivo e na escuta, ouvindo a pergunta feita pelo “âncora”, o coordenador que ficava no estúdio mais além.

No apertado espaço do galpão de Bobbi, a luz recomeçou a brilhar em ciclos.

 

ouçam

Todos eles ouviram; participavam de uma linha comunitária que cobria toda Haven, partindo de um centro, a cerca de três quilômetros daquela nuvem de fumaça ainda rala. Estavam todos em cadeia e todos ouviam. Não aceitavam nenhuma servidão absoluta; Tommyknockers era um nome a que aquiesciam tão casualmente quanto a qualquer outro, mas de fato eram ciganos interestelares, sem qualquer espécie de rei. Neste momento, contudo, quando viviam uma crise em seu período de regeneração — um período em que ficavam tão vulneráveis — procuravam aceitar as vozes daqueles a quem Gardener chamava de pessoal do galpão. Afinal de contas, estes eram a distilação mais apurada entre todos os demais.

chegou o momento de fecharmos as fronteiras

Houve um suspiro universal de concordância — um som mental que Ruth McCausland teria reconhecido: um som como o de folhas outonais, movidas por um vento de novembro.

Por algum tempo, pelo menos, o pessoal do galpão perdera todo o contato com Gardener. Estavam satisfeitos por ele ocupar-se de uma outra coisa. Se pretendia ir até a nave deles, o fogo logo lhe barraria a passagem.

A voz unificada explicou a rota a ser seguida — alguns de tais planos haviam sido feitos, vagamente, semanas antes — e a planificação fora ficando mais concreta, à medida que o pessoal do galpão se ia “transformando”.

Tinha construído engenhocas — a esmo, assim parecia. No entanto, aves voando para o sul, ante a aproximação do inverno, podem parecer acidentais; inclusive, ela próprias assim consideram sua migração — apenas uma forma tão boa quanto qualquer outra de passarem os meses de inverno. Quer ir para a Carolina do Norte, meu bem? Claro, meu amor; que idéia maravilhosa!

Assim eles haviam construído seus brinquedos novos (por vezes matando uns aos outros com esses brinquedos). Em outras ocasiões, davam uma engenhoca por terminada, olhavam dubitativamente para elas e as guardavam em algum lugar fora de vista, posto que não seriam de qualquer ajuda óbvia na rotina diária. Entretanto, havia certos artefatos que tinham transportado para os limites de Haven, geralmente em porta-malas de carros ou na carroceria de caminhões, cobertos por oleados. Um desses artefatos fora a máquina de Coca que assassinara John Leandro; havia sido “adaptada” pelo falecido Dave Rutledge, que um dia se valera de tais máquinas para prover o sustento próprio. Outra engenhoca era a segadeira Bensohn, que desencadeara um furacão contra Lester Moran. Havia televisores modificados que disparavam tiros; havia detectores de fumaça (Gardener vira alguns, mas não todos, em sua primeira visita ao galpão) que voavam pelos ares como Frisbees, emitindo ondas assassinas de ultra-som; em vários lugares, havia barreiras formadas por tais artefatos. Quase todos eles podiam ser mentalmente ativados, com a ajuda de simples dispositivos eletrônicos, casualmente apelidados de “Chamadores”, não muito diferentes do dispositivo usado por Freeman Moss para conduzir, flutuando, o equipamento de bombear até a floresta.

Ninguém pensava demais, sobre o motivo dessas engenhocas deverem ser dispostas em um perímetro mais ou menos cercando a cidade, como aves também não pensam sobre o motivo de voarem para o sul, como uma lagarta não reflete sobre tecer um casulo. Naturalmente, contudo, esse momento sempre chegou — aquele momento em que as fronteiras tinham que ser fechadas. Foi um momento que chegou antecipadamente... mas, segundo parecia, não com demasiada antecipação.

O Pessoal do Galpão também sugeriu que um certo número de Tommyknockers retornasse à cidadezinha. Hazel McCready foi designada para acompanhá-los — seria a representante dos Tommyknockers mais avançados. A proteção nos limites funcionaria perfeitamente, sem grande supervisão, até as pilhas e baterias se gastarem. Na pequena cidade havia engenhocas mais caprichosas, que podiam ser enviadas à floresta como rede protetora em torno da nave, caso o bêbado encontrasse alguma brecha para chegar até lá.

Havia ainda uma outra engenhoca, esta muito importante, que precisava ser protegida do risco de alguém — qualquer pessoa — invadir o lugar. Este artefato estava no pátio dos fundos da casa de Hazel McCready, a maneira de um circo de um só picadeiro, debaixo de uma grande tenda capaz de abrigar cinco pessoas. Era a rede de segurança. Ela fazia muito do que podia fazer o transformador no galpão — em dois sentidos. Os tubos de alumínio galvanizado que, um dia, tinham conduzido aos ventiladores nos vários aposentos da residência dos McCready, agora apontavam todos para o céu. Havia vinte e quatro baterias de caminhão, ligadas a esta Nova e Melhorada Fornalha, em cima de duas rampas de madeira compensada e protegidas dos elementos por mais daquela rede prateada que cobria a escavação em que jazia a nave. Quando esta engenhoca fosse ligada, fabricaria ar.

Ar Tommyknocker.

Assim que esta pequena manufatora de atmosfera estivesse em funcionamento, eles não ficariam mais à mercê dos ventos e do tempo — mesmo na possibilidade de um furacão, o transmutador de ar, que havia sido circundado por campos de força, protegeria a maioria deles, se ficassem reunidos na cidadezinha.

A sugestão para fechamento das fronteiras, chegou quando Gardener colocava no ouvido um dos fones do transformador. Cinco minutos mais tarde, Hazel e mais quarenta outros haviam-se desligado da rede comunitária de comunicação mental e encaminhavam-se para a cidade — alguns, dirigindo-se à sede da municipalidade, de onde fiscalizariam as fronteiras e protegeriam a nave com outras engenhocas; outros, certificando-se de que a manufatora de atmosfera ficaria protegida, em caso de acidente... ou se a reação do mundo exterior fosse mais rápida, mais informada e mais bem organizada do que esperavam. Todas essas coisas já tinham ocorrido antes, com situações geralmente concluídas de modo satisfatório, mas a “transformação” nem sempre tinha um final feliz.

Durante os dez minutos entre a ordem para fechamento das fronteiras e a partida do grupo de Hazel, o volume e forma da fumaça elevando-se ao céu não se modificaram apreciavelmente. O vento continuava brando... pelo menos, até então. Isto era bom, porque a atenção do mundo exterior se voltaria para eles com mais lentidão. Também era ruim, porque Gardener não seria impedido de alcançar a nave com a pressa requerida.

Ainda assim... Newt/Dick/Adley/Kyle achavam que Gardener estava prestes a concluir o que pretendia. Eles ainda retiveram os restantes Tommyknockers por ali durante cinco minutos, aguardando a notícia mental de que os artefatos ao longo dos limites estavam despertando, preparando-se para executar suas tarefas.

A resposta chegou até eles como um crescente zumbido.

Newt olhou para Dick. Dick assentiu. Os dois desligaram-se da rede comunitária e tornaram a concentrar-se no galpão. Gardener — que um dia fora de difícil captação mental até mesmo para Bobbi — continuava um osso duro de roer. Não obstante, eles eram capazes de ler o transformador, sem a menor dificuldade; os pulsos firmes e pesados de energia do transformador, eram “ouvidos” por eles com tanta facilidade quanto à interferência de uma radiofreqüência em um aparelho de televisão ou rádio, oriunda do pequeno motor de uma batedeira elétrica.

O transformador, no entanto, mal passava de um sussurro — praticamente, o distante som do mar dentro de uma concha.

Newt tornou a olhar para Dick, amedrontado.

Céus, ele se foi, o filho da mãe

Dick sorriu. Não acreditava que Gardener, ainda mal conseguindo ler pensa-mentos ou transmiti-los, pudesse ter realizado sua intenção com tal rapidez... Caso fosse possível tê-la realizado. A presença daquele homem ali e a perversa afeição de Bobbi por ele haviam sido um aborrecimento... um problema que Dick agora acreditava estar chegando ao fim.

Piscou para Newt um de seus estranhos olhos. Essa curiosa mistura de humano e alienígena era hedionda e hilariante ao mesmo tempo.

Não se foi, Newt. O ordinário está MORTO.

Newt olhou pensativamente para ele por um momento, depois começou a sorrir.

Começaram a mover-se, todos eles juntos, seguindo para a casa de Bobbi como se fossem um nó corredio, apertando-se pouco a pouco.

 

Carregando uma cabeça pesada.

A frase bimbalhava constantemente no fundo do cérebro de Gard, no momento em que se virou para a tela do monitor — uma frase que parecia ter permanecido ali por muito tempo. Um dia, e para um Jim Gardener que não existia mais, seus poemas se haviam formado em torno de tais linhas, como pérolas em torno de fragmentos de saibro.

Carregando uma cabeça pesada agora, chefe.

Seria uma frase de algum filme seriado de gângster, como Coll Hand Luke? Sim. Devia ser uma canção. Algo que parecia singularmente misturado em sua mente, algo dos anos 60 da Costa Oeste, um filho-da-flor psicodélico, com cara de enjeitado, usando um blusão dos Hell’s Angels e carregando uma corrente de bicicleta, enrolada em torno de uma pequena e delicada mão de violinista...

Sua mente, Gard, aconteceu alguma coisa com sua mente...

Certo, você está danado de certo, paizão, estou carregando uma cabeça pesada, é isso aí, nasci para ser absurdo, fiquei preso no trânsito engarrafado da cidade e, se disserem que nunca o amei, saiba que estão mentindo. Carregando uma cabeça pesada. Posso sentir cada veia, artéria e capilar dessa cabeça, inchando, intumescendo, salientando-se, da maneira como ficavam as veias em nossas mãos quando éramos crianças e enrolávamos doze tiras de borracha à volta dos pulsos, deixando-as lá para ver o que ia acontecer.

Carregando uma cabeça pesada. Se me olhasse em um espelho agora, neste momento, sei o que veria — luz verde brotando de minhas pupilas, como os fachos de uma lanterna elétrica, da finura de um lápis. Cabeça pesada — e, se você a sacudir, ela explodirá. Certo. Portanto, tome cuidado, Gard. Tome

cuidado, filho

Certo, velho. Certo.

David

Certo.

Aquela sensação de afundar, de cair no abismo. Ele recordava o filme noticioso sobre Karl Wallenda, aquele excelente e velho acrobata, caindo do arame, em Porto Rico — estendo as mãos para o arame, encontrando-o, segurando-o por um minuto — para então despencar.

Gardener afastou tal idéia da mente. Tentou expulsar tudo que havia em sua mente e preparou-se para ser um herói. Ou morrer na tentativa.

 

PROGRAMA?

Gard empurrou bem fundo o fone no ouvido e franziu o cenho para a tela. Concentrou nela toda a intensidade de seus pensamentos. Sentiu a dor espraiar-se; sentiu inchar um pouco mais aquele balão que era seu cérebro. A dor desapareceu; a sensação de crescente intumescimento permaneceu. Ele olhou fixamente para a tela.

ALTAIR-4

Muito bem... e em seguida, o que seria? Tentou ouvir o que o velho lhe dizia, mas não houve nada. Seu elo mental com o transformador certamente excluíra Hillman — ou, então, o velho não sabia o que dizer. E isso agora importava muito? De maneira alguma!

Gard olhou para a tela.

FAZER CONTATO COM...

A tela se encheu subitamente de 9s, de alto a baixo e de lado a lado. Gardener encarou-a com desalento, pensando: Oh, céus, eu a estraguei! Os números sumiram. Por apenas um momento,

OH CÉUS EU A ESTRAGUEI

cintilou na tela, como um fantasma. Em seguida, a tela mostrou!

CONTATO PREPARADO

Gard relaxou um pouco. A máquina estava perfeita. Seu cérebro, no entanto, distendera-se à capacidade máxima, e ele sabia disso. Se aquela máquina, que estava sendo energizada pelo velho e pelo que tivesse sobrado de Peter, trouxesse o menino de volta, ele realmente poderia ir embora, andando... ou mancando, em vista do estado de seu tornozelo. Entretanto, se a geringonça ia tentar drená-lo também, seu cérebro estouraria, como matraca de festa.

Ora, este não era bem o momento para pensar nisso, era?

Passando a língua entorpecida pelos lábios, ele fitou a tela.

FAZER CONTATO COM DAVID BROWN

Mais 9s através da tela.

Dígitos 9, significando eternidade.

CONTATO EFETUADO

Tudo bem. Ótimo. E agora? Gardener deu de ombros. Sabia o que estava tentando fazer; por que vacilar?

TRAZER DAVID BROWN DE ALTAIR-4

Mais 9s através da tela. Duas eternidades, desta vez. Então, surgiu uma mensagem na tela, tão lógica, mas ao mesmo tempo tão demente, que Gard teria dado estrondosas gargalhadas, se não soubesse que isso queimaria cada circuito funcionando que lhe restara.

AONDE QUER QUE O COLOQUE?

A vontade de gargalhar passou. A pergunta precisava ser respondida. Sim, aonde? No centro do Estádio dos Yanquees? Em Piccadilly Circus? Sobre o quebra-mar que se projetava da praia, em frente do Hotel Alhambra? Nenhum desses lugares, claro — mas tampouco ali, em Haven. Céus, não! Ainda que o ar não o matasse, e provavelmente mataria, seus pais estavam transformando-se em monstros.

Então, aonde?

Ergueu os olhos para o velho, e o velho o fitava também, com tamanha ânsia, que de repente ele soube a resposta — havia de fato um lugar onde colocá-lo, somente um, não havia?

Ele disse para a máquina.

Esperou que ela solicitasse maiores esclarecimentos, que dissesse ser impossível fazer aquilo ou sugerisse um sistema de ordens, que ele seria incapaz de executar. Em vez disso, surgiram mais dígitos 9. Desta vez, ficaram para sempre na tela. A pulsação verde do transformador ficou tão ofuscante, que era penoso olhar para ele.

Gard fechou os olhos e, na esverdeada escuridão de mar profundo, por trás de suas pálpebras cerradas, teve a impressão de ouvir, muito fracamente, o velho gritando.

Então, a energia que lhe enchera a mente acabou. Puft! Desaparecera. Assim mesmo. Gardener cambaleou para trás, o fone saltou de seu ouvido e caiu no chão. Seu nariz ainda sangrava e ele havia encharcado uma camisa limpa. Quantos litros de sangue havia no corpo humano? E o que tinha acontecido? Não houvera nenhuma mensagem de

TRANSFERÊNCIA BEM-SUCEDIDA

ou

TRANSFERÊNCIA MALSUCEDIDA

ou mesmo

UM TOMMYKNOCKER ALTO E MORENO SURGIRÁ EM SUA VIDA

Afinal, para que tinha sido tudo aquilo? Melancolicamente, compreendeu que jamais ficaria sabendo. Ocorreram-lhe duas linhas de Edwin Arlington Robinson: então, trabalhamos e esperamos pela luz, /E continuamos sem a carne, e amaldiçoamos o pão...

Não há luz, chefe; não há luz. E, se ficar esperando, eles o queimarão sem vacilar; e há um gradil com mais de metade para caiar.

Não havia luz; apenas uma tela fosca e em branco. Olhou para o velho; estava pendendo para diante, de cabeça baixa, exausto.

Gardener chorava um pouco. Suas lágrimas misturavam-se a sangue. Uma dor fosca irradiava-se da placa em sua cabeça, porém havia desaparecido aquela sensação de inchaço, de prestes-a-explodir. Também desaparecera o senso de poder. Descobriu que sentia falta disto. Uma parte sua ansiava pela volta de tal senso de poder, pouco importando as conseqüências.

Vá em frente, Gard.

Sim, tudo bem. Ele havia feito o que podia por David Brown. Talvez acontecesse alguma coisa; talvez nada. Talvez tivesse matado o menino; talvez David Brown, que provavelmente brincara com as figuras móveis de Guerra nas Estrelas e desejara poder conhecer um E.T., como tinha acontecido com Elliot no filme, fosse agora apenas uma nuvem de átomos dissipando-se, em algum ponto do espaço profundo entre Altair-4 e aqui. Se assim fosse, ele não ficaria sabendo. Entretanto, já alcançara esta peça de mobiliário, já se amparara nela o suficiente — talvez até demais. Gardener sabia que era hora de ir andando.

O velho ergueu a cabeça.

Você sabe, velho?

Se ele está bem? Não, mas você fez o melhor que pode, filho. Eu lhe sou grato. E agora por favor filho por favor por favor

Extinguindo-se... a voz mental do velho extinguia-se

por favor livre-me disto

ao longo de um comprido corredor e

espie em uma daquelas prateleiras lá no fundo

Agora, Gardener tinha dificuldade em ouvir

por fav oh POR FA

Muito fraco, um mero sussurro; a cabeça do velho tombou para diante, restos de ralo cabelo branco flutuaram em verde infusão.

As patas de Peter moveram-se sonhadoramente, enquanto caçava coelhos em seu sono confuso... ou procurava por Bobbi, sua querida.

Gard mancou para as prateleiras do fundo. Estavam escuras, empoeiradas, gordurosas. Ali, haviam sido esquecidos fusíveis Buss e uma lata repleta de parafusos, pregadores de roupa, dobradiças e chaves em fechaduras, cujo destino e propósito há muito tinham sido olvidados.

Em uma daquelas prateleiras, ele viu uma pistola espacial de jato, transco-Sonic. Outro brinquedo de criança. Havia um interruptor em um lado da arma. Gardener supôs que a criança, ganhadora do brinquedo em seu aniversário, utilizara-o para fazê-lo ulular em diferentes freqüências.

O que fazia aquilo agora?

Merda, quem se importa? Pensou Gardener, cansadamente. Toda esta bosta é uma grande e maldita chateação.

Chateação ou não, ele enfiou a pistola no cinto e recomeçou a mancar, através do galpão. Na porta, olhou para trás, para o velho.

Obrigado, chapa.

Fraco, mais fraco, fraquíssimo — um farfalhar de folhas secas:

tire-me disto filho

Sim. Eu tirarei, você e Peter. Pode apostar.

Mancou até o exterior e olhou em torno. Ninguém mais chegara ainda. Isso era ótimo, mas sua sorte não podia durar muito. Eles estavam por perto; sua mente tocava a deles, como um casal que valsasse com a cautela de desconhecidos. Podia senti-los conectados em uma

(rede)

consciência única. Não o estavam ouvindo... não o buscavam... o que quer que estivessem fazendo. Fosse por utilizar o transformador ou apenas permanecer no galpão, sua mente fora desligada da deles. Não obstante, logo ficariam sabendo que ele, como Elvis — gordo, castigado, mas genial e transmitindo cegamente sua música, como antes — havia retornado.

A claridade do sol era ofuscante. O ar estava quente, impregnado do cheiro de queimado. A casa de Bobbi ardia como um monte de gravetos secos em uma lareira. Enquanto ele olhava, metade do teto despencou. Fagulhas quase incolores, ante a forte claridade do dia declinado, elevaram-se para o céu em uma nuvem. Dick, Newt e os outros não tinham percebido muita fumaça, porque o fogo ardia quente e descolorido. A maioria da fumaça que tinham visto desprendia-se dos veículos incendiados ao lado da casa.

Gard parou um instante, sustentando-se na perna sã, à porta do galpão. Dali, mancou até a estranha armação de guarda-sol. Cobriu metade do trajeto, em seguida estirando-se no chão, em todo o comprimento. Ao fazer isto, pensou na pistola sônica em seu cinto. Um brinquedo de criança. Não existem travas de segurança em brinquedos. Se o gatinho fosse pressionado, o Gardener essencial poderia ser drasticamente reduzido, e de repente. O Plano Tommyknocker para perda de peso. Tirou o brinquedo do cinto, manejando-o como se fosse uma mina ativada. Engatinhou o resto do trajeto até o guarda-sol, então pondo-se em pé.

A doze metros dali, a outra metade do teto da casa de Bobbi afundou. Fagulhas quentes rodopiaram na direção da horta e da floresta além. Gard se virou para o galpão e pensou novamente, com a maior intensidade que pode: Obrigado, meu amigo!

Imaginou que houvera uma resposta — alguma débil e exaurida resposta.

Apontando o brinquedo para o galpão, ele puxou o gatilho. Um fino raio verde, não mais volumoso do que o grafite de um lápis, brotou do cano. Houve um som, semelhante ao de bacon fritando em uma frigideira. Durante um momento, o facho verde espalhou-se de lado a lado do galpão, como a água espargida de uma mangueira, e então as tábuas irromperam em chamas. Mais trabalho fervente,pensou Gardener, cansado. Smokey, o Urso, não manjaria nada disto.

Começou a manquejar para os fundos da casa, com a pistola sônica empunhada. Suor e lágrimas sangrentas escorriam-lhe pelo rosto. Acho que Winston Churchill teria gostado de mim, pensou, e começou a gargalhar. Viu o Tomcat... e então seus maxilares se abriram em outro gigantesco bocejo. Ocorreu-lhe que, possivelmente, Bobbi lhe salvara a vida, sem mesmo saber disto. De fato, era mais do que possível; era provável. O Valium podia tê-lo protegido da força total daquela inimaginável carga energética contida no transformador. Talvez tivesse sido o Valium que...

Algo no interior da casa em chamas — uma das engenhocas de Bobbi — explodiu com o fragor de uma granada de artilharia. Gard baixou a cabeça instintivamente. Metade da casa pareceu elevar-se de súbito. Felizmente para Gardener, foi o lado oposto da construção que subiu. Espiando para o céu, ele sentiu que um segundo bocejo não chegara a completar-se — sua boca ficara aberta, o queixo caído, em uma expressão idiotizada.

Lá se vai a Underwood de Bobbi!

A máquina de escrever voou e subiu, cada vez mais alto no céu, espiralando e rodopiando.

Gard recomeçou sua coxeante avançada. Chegou ao Tomcat. A chave estava na ignição. Isso era bom. Já tivera problemas suficientes com chaves pelo resto de sua vida — pelo pouco resto que sobrava.

Içou-se para o assento. Atrás dele, veículos aproximavam-se e viravam na entrada para a garagem. Gardener não se voltou para olhar. O Tomcat estava parado perto demais da casa. Se não começasse a mover-se imediatamente, logo seria assado como uma maçã.

Girou a chave. O motor do Tomcat não emitiu qualquer som, porém isto não o preocupou. Estava vibrando fracamente. Algo mais explodiu no interior da casa. Fagulhas voaram para baixo, picando-lhe a pele. Mais veículos entrando no jardim. A mente dos Tommyknockers recém-chegados se voltava para o galpão, e eles pensavam

maçã assada ele é uma

assada dentro do galpão

morto precisamente no galpão sim.

Ótimo. Que eles pensassem isso. O Novo e Melhorado Tomcat não lhes forneceria uma pista. Era tão barulhento quanto um ninja. E ele precisava ir em frente; a horta já estava em fogo, os girassóis gigantescos e os imensos pés de milho, com suas espigas incomíveis, tudo ardia. Entretanto, ainda era viável a trilha que cortava o meio da horta.

Ei! Ei! EI, ELE ESTÁ NOS FUNDOS DA CASA! ELE ESTÁ VIVO! ELE AINDA ESTÁ...

Gardener olhou para a direita, desalentado, e viu Nancy Voss rugindo, através do campo pedregoso que jazia entre as terras de Bobbi e o muro de pedra, na orla da propriedade Hurd. A mulher montava uma moto Yamaha para terreno acidentado. Seus cabelos tinham sido presos em tranças, que agora voavam atrás dela. Seu rosto tinha uma expressão de megera... embora ainda se assemelhasse mais a Rebecca, da Fazenda Sunnybrok, do que a Sissy, pensou Gardener.

EI! AQUI NOS FUNDOS! AQUI NOS FUNDOS!

Oh, sua filha da mãe, pensou Gardener, e empunhou a pistola sônica espacial.

 

Vinte ou trinta deles haviam entrado no pátio. Adley e Kyle contavam-se entre eles; também lá estavam Frank Spruce, os Golden, Rosalie Skehan e Pop Cooder. Newt e Dick tinham voltado para junto da estrada, procurando manter a ordem.

Todos eles se viraram para

AQUI! AQUI NOS FUNDOS! VIVO! O FILHO DA MÃE AINDA ESTÁ

os gritos de Nancy Voss. Viram-na cruzando o campo sobre a moto, semelhante a um jóquei montado em um cavalo à galope, enquanto o vigoroso sistema de suspensão da Yamaha a sacudia para cima e para baixo. Todos viram o disparo verde, fino como um lápis, partindo dos fundos da casa incendiada e envolvendo a mulher.

Contudo, nenhum deles viu quando a “armação de guarda-sol” começou a girar novamente.

 

Um lado inteiro do galpão estava em chamas. Parte do teto havia desabado para o interior. As fagulhas redemoinhavam em um gorda espiral. Uma delas caiu sobre um monte de trapos sujos de graxa e eles desabrocharam em rosas ígneas.

A liberação, pensou Ev Hillman. A última coisa de todas. A última coisa...

O transformador começou a pulsar uma ofuscante luz verde pela última vez, durante um ou dois momentos, rivalizando com o fogo.

 

Dick Allison ouviu o rangido do “guarda-sol”. Sua mente estava impregnada de fúria, houvera um hediondo grito de raiva, ao perceber que Gardener continuava vivo. Tudo aconteceu depressa; muito depressa. Nancy Voss se tornou uma chamejante boneca de trapos, no campo à direita da casa de Bobbi. Sua Yamaha rodou por vinte metros, chocou-se em uma pedra e deu uma enorme cambalhota para trás.

Dick viu os montes queimados que eram a caminhonete de Bobbi, o caminhão de Moos e o Oldsmobile de Bozeman — depois disso é que viu a armação rodopiante, em forma de guarda-sol.

AFASTEM-SE DESSA COISA! AFASTEM-SE! AFASTEM

Não houve a menor chance. Dick se desligara da rede mental e não conseguiu sobrepujar os dois pensamentos que tamborilavam como um primitivo toque de rock-and-roll;

Ainda vivo! atrás da casa! Ainda vivo! atrás da casa!

Mais gente vinha chegando. Cruzavam o portão do jardim como maré enchente, ignorando a casa em chamas, o galpão envolto em fogo, os veículos fumegantes, carbonizados.

NÃO! MALDITOS IDIOTAS! NÃO! VENHAM! AFASTEM-SE DAÍ!

Hipnotizado, Newt olhava para o inferno em que a casa se tornara, ignorando a armação giratória que rodopiava cada vez mais rápido. Naquele momento, Dick o mataria alegremente. No entanto, ainda precisava dele, de maneira que se contentou em puxá-lo rudemente para o chão e cair em cima do seu corpo.

Um momento mais tarde, o guarda-sol verde espargiu sua delicada teia sobre o pátio novamente.

 

Garden ouviu os gritos — uma multidão deles, desta vez — e procurou expulsá-los da cabeça o melhor que pode. Eram gritos que não importavam. Aliás, nada mais importava, exceto chegar a última estação da linha.

Não fazia sentido colocar o Tomcat para flutuar no ar. Engatou-o em primeira e começou a rodar, internando-se na monstruosa e inútil horta de Bobbi, agora incendiando-se.

Houve um momento em que começou a crer que seria impossível conseguir atravessá-la; o fogo se apoderara mais rapidamente das ervas daninhas e exagerada plantação, do que poderia imaginar. O calor tórrido, tremendo. Logo, seus pulmões estariam fervendo. Ouviu surdos ruídos de explosão, como gordos nós de pinheiro estourando em uma lareira; olhou e viu abóboras e porongas que explodiam escandalosamente. O volante do Tomcat fervia com o altíssimo calor, produzindo bolhas em suas mãos.

Sentiu um calor intenso na cabeça. Tocou-a. Seus cabelos pegavam fogo.

 

Todo o interior do galpão agora estava tomado pelas chamas. Lá dentro, o transformador aumentava e diminuía o ritmo, aumentava e diminuía, era um pulsante olho de gato no meio do inferno.

Peter tombou de lado, suas patas finalmente paradas. Ev Hillman olhava para o transformador, com esgotante concentração. O fluido em que estava confinado começava a ficar quente, quente demais. Não fazia diferença; a dor era inexistente, pelo menos no sentido físico. O isolamento do cabo principal, conectando-o ao transformador, agora começava a derreter e fundir-se. Entretanto, a conexão continuou firme. Ainda resistiu por um momento, no galpão ardente, e Ev Hillman pensou:

A última coisa. Que ele tenha uma chance de escapar. A última coisa...

ÚLTIMA COISA

cintilou a tela do computador.

ÚLTIMA COISA ÚLTIMA COISA ÚLTIMA COISA

em seguida, encheu-se de 9s.

 

A destruição no pátio de Bobbi Anderson era indescritível.

Dick e Newt ficaram olhando, fascinados, quase incrédulos. Como acontecera na floresta, naquele dia do encontro com o velho e o tira, Dick se perguntava como era possível que as coisas dessem tão errado. Eles dois — eles e todos os outros que ainda não tinham chegado — postavam-se bem além do perímetro mortífero do guarda-sol, porém Dick ainda não se levantara do chão. Não estava muito certo de conseguir ficar em pé.

No pátio, havia pessoas incendiando-se como espantalhos secos. Algumas corriam, debatendo-se, contorcendo-se e bradando, com as vozes e mentes. Um pequeno número — alguns felizardos — conseguiu afastar-se a tempo. Frank Spruce caminhou lentamente, passando por onde Dick e Newt jaziam, com metade do rosto consumida pelo fogo, de maneira que o maxilar aparecia naquele lado, em um meio sorriso. Houve explosões súbitas e candentes, quando as armas conduzidas por alguns deles se fundiram e autodestruiram-se.

Os olhos de Dick encontraram os de Newt.

Enviá-los em cerco! Flanqueando o sujeito! Temos que

Sim, eu compreendo, mas, por Deus, há uns dez ou vinte de nós em chamas

PARE DE CHORAMINGAR, MERDA!

Newt encolheu-se, os lábios repuxados em um rosnado desdentado. Dick ignorou-o. A rede mental desfizera-se, mas agora ele se faria ouvir.

Façam o cerco! Façam o cerco! Peguem-no! Peguem o bêbado! Não o deixem escapar!

 

A tela do computador implodiu. Houve uma explosão tossida, como se um gigante pigarreasse, tendo a garganta entupida de catarro. O espesso fluido verde vazou da cabine de chuveiro em que Ev Hillman havia sido mantido prisioneiro. O fluido encontrou o fogo e a mistura produziu uma letal espuma verde. Misericordiosamente morto afinal, Ev escapou para fora, como um peixe irrompendo de um aquário quebrado. Um momento mais tarde, Peter o seguia. Anne Anderson foi a última, ainda com as mãos mortas crispadas em garras.

 

O fogo disparado pelo guarda-sol morreu. Agora, os únicos sons eram os gritos dos agonizantes e a voz insistente de Dick. O dia de verão se transformara em inferno. O pátio de Bobbi era um charco de terra, pontilhado de ilhas de fogo. Os Tommyknockers, no entanto, sempre conseguiam extinguir um incêndio, costumavam fazer isso rapidamente.

A voz de Newt se juntou a de Dick. Kyle estava morto e Adley gravemente queimado. Não obstante, Adley uniu a deles sua voz ferida de morte:

Peguem-no, antes que ele chegue à nave! Ele ainda está vivo! Peguem-no, antes que chegue à nave! Antes que chegue à nave!

Os Tommyknockers tinham sofrido um sério revés. Os quinze deles que se haviam estorricado no pátio de Bobbi não eram muito importantes. Entretanto, Bobbi estava morta; Kyle estava morto; Adley logo morreria, e o transformador havia sido destruído, justamente quando o fechamento de fronteiras tornara crítica a necessidade dele. Quanto a Gardener, ainda estava vivo. Inacreditavelmente, Gardener continuava vivo.

Pior de tudo, talvez, fosse o vento aumentando.

 

Peguem-no, e que seja depressa!

Formada a rede novamente; os Tommyknockers conectavam-se a ela.

Chegaram através dos campos de plantação; vinham na direção do fogo que se alastrava.

DEPRESSA!

Dick Allison se virou na direção da cidade, e a rede virou-se com ele, como um prato de radar. Ele captou o estarrecido espanto de Hazel, ante a reviravolta dos acontecimentos.

Ele

(a rede)

deixaram isso de lado.

Seja o que quer que você tenha naquela direção, Hazel: mande atrás dele!

Dick se virou para Newt.

Você não precisava empurrar-me com tanta brutalidade, disse Newt carrancudamente, limpando uma gota de sangue que escorria no queixo.

— Dane-se! — replicou Dick, deliberadamente. — E agora, vamos pegar aquele filho da puta!

 

Agora imobilizado, o guarda-sol dera origem a um incêndio que se alastrava da casa de Bobbi em forma de leque — um leque de fogo. A antiga residência de Bobbi, agora apenas ossos negros reluzindo em uma vermelha coluna de fogo, situava-se no ponto de origem. As alas espalhavam-se através da horta obscenamente superdesenvolvida e, quando as plantas mutantes pegaram fogo, as chamas produzidas eram verdes.

Jim Gardener estava passando por entre as chamas, coroado pelos cabelos em fogo. Sua camisa ardia; uma das mangas soltou fumaça, em seguida irrompendo em chamas. Gardener bateu nelas, tentando apagá-las. Sentia vontade de gritar, mas estava cansado demais, sonolento demais.

Fui utilizado erroneamente, pensou ele, mas ninguém tem culpa disso, apenas eu mesmo.

Chegou à orla oposta da horta. O Tomcat saltou para diante, rodou por uma encosta branda e entrou na floresta. O matagal rasteiro das margens da trilha estava em fogo e fieiras baixas de chamas já se internavam na floresta do Big Injun. Gard estava pouco ligando. A sensação de que assaria como em um forno de microondas começava a passar. Batia repetidamente na cabeça. Seus cabelos exalavam um cheiro horrível —como o de comida frita por uma criança.

Um fogo verde sibilou acima de seu ombro direito, quando o Tomcat entrou na floresta.

Gard manobrou para a esquerda e agachou-se. Quando olhou para trás, viu que se tratava de Hank Buck, com sua Pistola Zap. Hank viera dirigindo uma moto até a propriedade, tinha levado um tombo no mesmo campo em que Nancy Voss encontrara a morte, ficara em pé e começara a correr.

Gardener se virou no assento, e empunhou a pistola sônica espacial com a mão direita, firmando o punho com a esquerda. Apertou o gatilho. O fino jato mortal varou o ar e, mais por um golpe de sorte do que qualquer perícia de atirador, acertou Hank no alto do tórax, do lado esquerdo. Houve um som de bacon fritando. O fogo verde alastrou-se pelo rosto de Hank, e ele caiu.

Virando-se de novo para diante, Gardener viu que o Tomcat se movia direto para um enorme abeto em chamas, desenvolvendo uma complacente velocidade de oito quilômetros horários. Girou o volante com as duas mãos em bolhas, no tempo exato de evitar uma colisão frontal. Um dos pneus do Tomcat raspou o tronco da árvore e, por um momento, Gardener viu-se expulsando flagrantes e chamejantes brotos de abeto, como um homem abrindo caminho através de uma cortina de fogo. O pequeno trator adernou perigosamente, balançou... depois tornou a assentar-se na posição normal. Gardener pisou o acelerador ate o fundo e assim permaneceu, enquanto o Tomcat abria caminho na trilha da floresta.

 

Eles chegaram. Os Tommyknockers chegaram. Chegaram ao longo das bordas cada vez mais ampliadas do hediondo leque de fogo, e Dick Allison começou a sentir uma espécie de furioso desespero, porque não iam agarrar sua presa. Gardener conseguira usar a trilha; isto fazia toda a diferença. Três minutos depois — talvez até um — e ele teria sido realmente assado. Quatro Tommyknockers (a Sra. Eileen Crenshaw e o Reverendo Goohringer, entre eles) tentaram seguir o mesmo trajeto, e foram queimados vivos. Dois dos gigantes pés de milho, em chamas, caíram sobre Eileen, que começou a gritar estridentemente e largou o volante do Buggy. Imediatamente, o buggy rodou por si mesmo para as profundezas da horta chamejante. Seus pneus explodiram como bombas. Segundos depois, o fogo apoderava-se da trilha inteira.

A frustração de Dick atingiu-o fundo. A “transformação” já se atrofiara e fora sufocada antes — não com freqüência, mas tinha acontecido — porém sempre em resultado de alguma intervenção natural... da forma como toda uma geração de larvas de mosquito, desenvolvendo-se em um quieto charco de águas estagnadas, pode ser eliminada pela queda de um raio, em uma tempestade de verão. Isto, contudo, não era nenhuma tempestade, nenhuma ocorrência natural; isto era um homem, alguém a quem todos eles haviam olhado com a cautelosa raiva, reservada a um cão imbecil, que pode morder; isto era um único homem, que passara a maior parte de sua convivência com Bobbi em estupor alcoólico, um único homem que, de algum modo a iludira e matara, que se recusava a morrer, não importando o que eles fizessem. Não seremos detidos por um homem apenas, pensou Dick, freneticamente. NÃO seremos! No entanto, haveria alguma forma efetiva de impedirem o que podia acontecer? A frente de fogo agora alastrava-se com demasiada rapidez, para que pudessem agarrá-lo. Gardener conseguira avançar pelo centro de um caminho de fogo, mas seria o único. Hank Buck o alvejara,.. mas, de algum modo, o maldito filho da mãe conseguira disparar em resposta, e o liquidara.

Dick vivia um perfeito êxtase de fúria (Newt podia perceber isso e mantinha distância — Dick era dez quilos mais pesado do que ele e dez anos mais novo), mas no seio de sua raiva havia terror, como um frio coalho de creme azedo, no meio de um chocolate envenenado.

Bobbi havia dito a Gardener que os Tommyknockers eram grandes viajantes siderais. Isto era verdade. Contudo, nunca, em lugar algum, tinham encontrado alguém semelhante a este homem, que continuava em frente, mesmo com o tornozelo estraçalhado, sua grande perda de sangue e a ingestão de uma droga que o deixaria inconsciente quinze minutos atrás, apesar da boa quantidade no vômito.

Era impossível — mas estava acontecendo.

De algum modo, o incêndio que, presumivelmente, impediria Gardener de chegar a nave, agora se tornara a proteção dele.

No momento presente, havia apenas os monitores automatizados — as engenhocas.

— Elas o pegarão — sussurrou Dick

Ele e Newt estavam parados sobre um outeiro à direita da casa, como dois generais, olhando as pessoas que fluíam para dentro da floresta... mas fazendo isto em um par de enfurecidos ângulos oblíquos. Dick abria as mãos; fechava-as; tornava a abri-las; fechava-as de novo. Em seu pescoço, era visível a pulsação de sangue verde.

— Elas o pegarão — repetiu, — elas o deterão, ele não vai chegar à nave, ele não vai, não vai!

Newt Berringer mantinha-se em prudente silencio.

 

O detector de fumaça, em si muito semelhante a um disco-voador,

deslizava silenciosamente através da floresta, com a luz vermelha de seu sensor, na parte inferior, pulsando erraticamente. A própria Hazel McCready controlava esta gracinha. Ela havia captado a onda de fúria, desespero e medo de Dick Allison, estando decidida a dar cabo de Gardener sem nenhuma ajuda dos outros — apenas por meio do controle remoto, como se diria. Antes de mais nada, destacara Pauline Goudge — em que tinha a maior confiança — para cuidar de outro assunto; feito isto, dirigia-se a seu gabinete, fechara a porta e a trancara a chave.

Da gaveta inferior de seu fichário, ela retirou um potente rádio-gravador, embora algo menor do que a unidade descartadora do falecido Hank Buck. Colocando-o sobre sua mesa, ligou-o, pegou um fone de ouvido na caixa ao lado, marcada por “Documentos a expedir”, e o pôs no ouvido.

Estava sentada e de olhos fechados, mas podia ver a vegetação farfalhando aos lados do detector de fumaça, à medida que ele sibilava quietamente através da floresta, a cerca de um metro e oitenta do solo. Gardener forçosamente recordaria a seqüência em O retorno de Jedi, quando mocinhos perseguem bandidos através de uma floresta aparentemente interminável em estonteante velocidade, utilizando al-go semelhante a motocicletas aéreas.

Hazel, contudo, não dispunha de tempo para metáforas — nem chegaria a dispor, caso se safassem disto; por outro lado, Tommyknockers não eram muito chegados a metáforas.

Parte dela — o detector de fumaça dividia-se para o lado mecânico da interface de cyborg que ela montara — queria que ele cumprisse sua função original e soasse, porque a floresta estava impregnada de fumaça. Era similar à sensação experimentada, quando um espirro explode, à maneira de uma súbita pancada de chuva.

O detector de fumaça bandeava-se regularmente, de um lado para outro, deslizando por entre as árvores, elevando-se em outeiros e em seguida disparando para baixo, como o menor pulverizador de culturas do mundo.

Em sua mesa, Hanzel inclinava-se para diante, o fone enterrado no ouvido com firmeza, concentrando-se com a maior intensidade que podia. Impelia o pequeno detector de fumaça através da floresta, em velocidade maior a oito inteiros quilômetros de distância da nave. Ela precisava alcançar Gardener, e o tempo era curto.

O detector de fumaça balançou para um lado, deixando de colidir com um pinheiro por meros oito centímetros. Por um triz, aquilo. No entanto... lá estava o homem e lá estava a nave, lançando seus ecos de luz, tatuando sobre as árvores seus dançantes salpicos de sol.

O detector de fumaça pairou imóvel, acima do espesso tapete de agulhas de pinheiro, caídas no solo da floresta. Foi apenas um momento... e então partiu como uma flecha na direção de Gardener. Hazel preparou-se para ligar o acoplamento ultrassônico, que transformaria os ossos de Gardener em fragmentos esmigalhados, dentro de seu corpo.

 

Ei, Gard! À sua esquerda!

A voz era inacreditável. E também inconfundível. Era a voz de Bobbi Anderson. A velha e não Bobbi. Gardener não teve tempo para pensar nisso. Olhou à direita e viu algo que disparava para fora da floresta, vindo em sua direção. Era acastanhado. Uma luz vermelha piscava em sua parte de baixo. Foi tudo quanto teve tempo de ver.

Ergueu a pistola sônica espacial, perguntando-se como — de que maneira — esperava atingir aquela coisa e, ao mesmo tempo, um alucinante guincho, como se cada mosquito do mundo uivasse em perfeita harmonia, preencheu seus ouvidos... sua cabeça... seu corpo. Sim, aquele som estava dentro dele; tudo dentro dele começava a vibrar.

Então, foi como se mãos firmassem seu pulso — primeiro o firmando, depois girando-o. Ele disparou. O fogo verde varou a claridade do dia. O detector de fumaça explodiu. Vários fragmentos denteados de plásticos voaram perto da sua cabeça, deixando de atingi-lo por escassos centímetros.

 

Hazel deu um grito e ficou repentinamente ereta em sua velha cadeira gira-tória. Um tremendo refluxo de energia brotou do fone de ouvido. Ergueu a mão enclavinhada para puxá-lo — e errou. O fone estava no ouvido esquerdo. Do direito, nasceu abruptamente um esguicho de líquido esverdeado e xaroposo. Parecia mingau de aveia radioativo. Por um momento, seu cérebro continuou a esguichar do interior do crânio por aquele ouvido, e então a pressão ficou forte demais. O lado direito de sua cabeça se abriu como uma estranha flor desabrochando, e a massa cerebral atingiu seu calendário de parada Currier & Ives, com uma bofetada líquida.

Hazel tombou flacidamente para diante, sobre sua mesa, as mãos com os dedos muito abertos, os olhos vidrados olhando incredulamente para nada.

O potente rádio-gravador ainda zumbiu por um momento, e depois parou definitivamente.

 

Bobbi? Pensou Gardener, olhando desvairadamente em torno.

Dane-se, velho cavalão, retornou uma voz divertida. Essa foi toda a ajuda que pode receber — afinal de contas, eu estou morta, lembra-se?

Eu me lembro Bobbi.

Apenas um conselho: cuidado com aspiradores de pó enfurecidos.

Em seguida ela se foi, se é que chegara a estar ali. De trás dele, chegou o ruído rangente, cortante, de uma árvore tombando. Entre aquele ponto e a casa da propriedade, a floresta começara a soar com uma enorme lareira crepitante. Agora, Gardener conseguia ouvir vozes às suas costas, tanto mentais, como gritadas em voz alta. Vozes Tommyknockers.

Entretanto, Bobbi se fora.

Você é que imaginou tudo, Gard. Uma parte sua que sente falta dela — da qual Bobbi — está tentando recriá-la, nada mais.

Certo, mas e quanto à mão? A mão em cima da minha? Fui eu que inventei? Jamais teria conseguido alvejar aquela coisa sozinho! A própria Annie Oakley* não atingiria sem ajuda.

As vozes, no entanto — aquelas no ar e as outras dentro de sua cabeça — estavam ficando mais próximas. Também o fogo. Gardener inalou uma boa dose de fumaça, colocou o Tomcat em movimento e seguiu em frente. Neste exato momento, não havia tempo para debates.

Tomou a direção da nave. Cinco minutos mais tarde, chegava à clareira.

 

— Hazel? — exclamou Newt, com uma espécie de temor religioso — Hazel? Hazel?

Sim, Hazel! gritou Dick Allison para ele, furiosamente, não se contendo mais. Saltou sobre Newt. Seu idiota estúpido!

Filho da puta! cuspiu Newt de volta.

Os dois rolaram no chão, olhos verdes faiscando, um aferrando a garganta do outro. Em vista das circunstâncias, nada daquilo tinha lógica, mas qualquer semelhança entre os Tommyknockers e outros como o Dr. Spock, era pura coincidência.

As mãos de Dick encontraram as entrelaçadas dobras de garganta de Newt e começaram a apertar. Seus dedos afundaram na carne e ficaram manchadas de verde, quando o sangue passou a jorrar, borbulhante. Ele começou a levantar Newt e tornar a baixá-lo com força contra o chão. Os esforços de Newt foram diminuindo... diminuindo... diminuindo. Dick continuou a apertar-lhe a garganta, até ele morrer, asfixiando.

Feito isto, Dick descobriu que se sentia um pouco melhor.

 

Gard desembarcou do Tomcat, cambaleou, perdeu o equilíbrio e caiu. No mesmo instante, um rasante e rosnante projétil disparou pelo ar, passando pelo ponto em que ele havia estado, apenas um momento antes. Gardener olhou idiotamente para o aspirador de pó Electrolux, que quase lhe arrancara a cabeça dos ombros.

O aspirador varou a clareira como um torpedo, virou e atacou novamente. Havia qualquer coisa em uma extremidade, que distorcia o ar, formando ondulações prateadas — algo semelhante a uma hélice.

Gardener recordou aquele buraco redondo e mastigado, na parte inferior da porta do galpão, e toda a saliva em sua boca secou.

Cuidado com...

O aspirador mergulhou para ele como um bombardeiro, aquele dispositivo de corte gemendo e zumbindo, como o motor de um avião de caça de brinquedo, movido à gasolina. As rodinhas, que se supunha tornarem mais fácil o pesado trabalho da dona-de-casa, enquanto arrastava seu fiel aspirador de pó mais atrás, de cômodo em cômodo, giravam ociosamente no ar. O orifício em que deviam ser afixados tubos diversificados resfolegava como uma boca aberta.

Gardener simulou um mergulho para a direita, e então manteve a posição um instante mais — se saltasse precipitadamente, o aspirador o acompanharia no salto e rasgaria suas entranhas, tão facilmente como mastigara sua saída pela porta do galpão, quando Bobbi o convocara.

Ele esperou, agora simulou um mergulho para a esquerda, e então se jogou para a direita, no último momento. Bateu dolorosamente contra o chão. Os ossos de seu tornozelo estraçalhado acusaram a pancada. Gardener soltou um grito lancinante.

O Electrolux colidiu com o solo. A hélice comeu terra. Então elevou-se, como um avião ganhando altura, após tocar o chão com muita severidade, em uma pista de pouso. O aspirador sibilou na direção do gigantesco disco inclinado da nave, deu meia volta e se dispôs a outro ataque contra Gardener. Agora, o cabo que tinha u-sado para manipular os botões emergia do buraco em que eram afixados os tubos. O cabo assobiava no ar — um silvo seco, como o de uma serpente, que ele mal conseguia ouvir, acima do intenso rugido do fogo. O cabo relinchou e, por um momento, Gardener recordou um rodeio do oeste selvagem a que sua mãe o levara certa vez (naquela ruidosa e excitante cidadezinha boiadeira de Portland, no Maine). Lá havia um caubói com um chapéu branco, fazendo truques com a corda. Em um dos truques, ele girava um enorme laço a altura do tornozelo, saltando para dentro e fora do laço, enquanto tocava “Minha garota Sal” em uma gaita. O cabo girando do bocal do aspirador parecia-se com aquela corda.

Gard, velho Gard, esse aspirador fodido pode arrancar sua cabeça, tão facilmente como uma cagada de galinha.

O Electrolux sibilou para ele, a sombra acompanhando-o mais abaixo, correndo no solo.

De joelhos, Gardener ergueu a pistola sônica espacial e atirou. O aspirador de pó desviou-se, enquanto ele mirava, mas Gardener o acompanhou na guinada. Um estilhaço de cromado, acima de uma rodinha traseira, voou pelos ares. O cabo desenhou uma linha oscilante, através do solo.

pegue-o

sim pegue-o antes

antes dele poder danificar a nave

Mais perto. As vozes estavam mais perto. Ele precisava acabar com isto.

O aspirador circundou uma árvore e voltou. Inclinou-se para cima, elevou-se e depois despencou em um mergulho com a força de um Kamikaze, as lâminas cortantes girando cada vez mais rápido.

Gardener procurou controlar-se, pensando em Ted, o Homem Energia.

Teddy, garotão, você devia dar uma espiada nesta merda, pensou aloucada-mente. Ficaria fascinado! É melhor viver aproveitando a eletricidade!

Acionou o gatilho da arma de brinquedo, viu o esguio facho verde acertar o focinho do aspirador de pó, e então lançou para diante, aterrando nos dois pés e pouco ligando para o tornozelo em frangalhos. O Electrolux bateu contra o chão, atrás do Tomcat, enterrando-se um metro na terra. Uma golfada de fumaça negra foi expelida da extremidade protuberante, em uma pequena nuvem compacta e espessa. Houve um forte ruído de peido e a máquina morreu.

Gardener levantou-se, amparado ao Tomcat para aguentar-se em pé, a pistola sônica espacial pendendo de sua mão direita. Viu que o cano de plástico estava parcialmente derretido. Não teria mais utilidade total dentro em pouco. O mesmo era indubitavelmente válido para ele.

O aspirador de pó estava liquidado — liquidado e projetando-se do chão como uma bomba que não detonou. Entretanto, havia um bocado de outras engenhocas a caminho, umas voando, outras varando entusiasticamente a floresta, sobre rodas adaptadas. Ele não podia esperar para ver.

O que o velho estivera pensando no final? A última coisa... e então... liberação...

— Uma boa palavra — disse Gardener roucamente. — Liberação. Uma grande palavra!

Também era, recordou, o título de uma novela. A novela de um poeta. James Dickey. Uma novela sobre homens da cidade, que tiveram de ser embriagados, assaltados e violentados, antes de descobrirem que, afinal de contas, eram bons e velhos rapazes. Entretanto, naquele livro havia uma linha... um dos homens olhava para outro e lhe dizia calmamente: “As máquinas terminarão fracassando, Lewis.”

Gardener esperava convictamente por isso.

Pulando com a perna sã, Gardener foi até o telheiro e acionou o botão que fazia a linga descer. Sua descida pelo cabo seria empregando as mãos. Uma estupidez, mas assim era a tecnologia Tommyknocker. O motor começou a uivar. O cabo começou a descer. Sempre pulando em uma só perna, Gardener chegou à borda da escavação e olhou para baixo. Se pudesse realmente chegar até o fundo, estaria salvo.

Salvo, entre os Tommyknockers mortos.

O motor parou. Ele mal conseguia divisar a linga inútil, no fundo da escavação. As vozes estavam mais perto, o fogo estava mais perto, e ele pressentia o cerco de um bando de traiçoeiras engenhocas. Não importava. Fosse como fosse, ele fechara as vias de acesso, subira as escadas e, de algum modo, alcançara a linha de chegada antes do outros.

Parabéns, Sr. Gardener! Ganhou um disco voador! Vai desistir ou aceita a viagem de férias, com todas as despesas pagas, no espaço profundo?

— Foda-se — grunhiu Gardener, jogando a um lado a arma de brinquedo derretida a meio. — Acabemos logo com isto!

Isso também tinha reverberações.

Agarrando o cabo, passou o corpo pela borda da escavação. Ao fazer isso, recordou de súbito. Claro! Gary Gilmore! Era o que Gary Gilmore havia dito, pouco antes de enfrentar o pelotão de fuzilamento, em Utah.

 

Estava na metade da descida, quando percebeu que esgotara o último de sua força física. Se não fizesse alguma coisa, e depressa, cairia no fundo da escavação.

Passou a descer mais rápido, xingando a impensada decisão deles, ao colocarem os controles do motor tão distante da escavação. Gotas quentes de suor ardente penetraram em seus olhos. Seus músculos saltavam e tremiam. O estômago começava a dar longos e preguiçosos piparotes de novo. As mãos escorregavam... firmavam-se... tornavam a escorregar. Então, de repente, o cabo estava deslizando entre suas mãos como manteiga quente. Gardener apertou-o, gritando de dor com a fricção que aumentava. Um fio de aço, que saltara de um dos miolos do cabo, penetrou em sua palma.

— Deus! — bradou Gardener. — Oh, meu Deus!

Caiu limpamente sobre a linga descida, com o peso do corpo sobre o pé machucado. A dor rugiu por perna acima, chegou ao estômago, foi até o pescoço. Pareceu estilhaçar-lhe o topo da cabeça. Seu joelho se dobrou, batendo contra o lado da nave. A rótula deslocou-se, como uma tampa de garrafa.

Gardener sentiu a vista turva e lutou contra isso. Viu a escotilha. Continuava aberta. Os renovadores de ar ainda troavam.

Sua perna esquerda era uma gélida muralha de dor. Quando espiou para baixo, viu que ela se tornara magicamente mais curta do que a direita. E parecia... bem, parecia entortada, como um velho charuto barato que permaneceu muito tempo no bolso de alguém.

— Cristo, estou ficando em pedaços — sussurrou.

Então, surpreendendo a si mesmo, ele riu. Aquilo tinha isto a seu crédito: era infernalmente mais interessante do que apenas pular de um quebra-mar, estando de ressaca.

Ouviu um som agudo e suave, zumbindo no alto. Qualquer coisa mais havia chegado. Gardener não esperou para ver o que seria. Em vez disso, içou-se para a escotilha e começou a subida rastejada pelo corredor arredondado. A luz, fluindo das paredes, reluzia maciamente sobre os planos de seu rosto desfigurado, e aquela luz — branca, não verde — era suave. Se alguém visse Gardener àquela luz, quase acreditaria que ele não estava morrendo.

Quase.

 

Na noite passada e na noite anterior,

(acima das montanhas e por entre as florestas)

Tommyknockers, Tommyknockers, batendo à porta

(vamos para a casa da vovó)

Eles parecem tão quietos, mas não estão de todo mortos,

(o cavalo conhece o caminho para levar o trenó)

você pegou aquela gripe de cabeça Tommyknocker!

(por sobre os gélidos campos nevados)

Com os versos de pé quebrado bimbalhando em sua cabeça, Gardener rastejou corredor acima, parando uma vez para virar a cabeça e vomitar. O ar ali dentro continuava infernalmente rançoso. Ele pensou que um canário de mineiro já estaria agonizando no piso da gaiola, ainda vivo, mas apenas por acaso.

Bem, mas os motores, Gard... está ouvindo? Percebeu como funcionam muito mais alto, depois que você entrou?

Exato. Mais alto, mas confiantes. Não se tratava apenas dos renovadores de ar. No âmago da nave, havia outros mecanismos zumbindo para a vida. As luzes aumentavam de brilho. A nave realimentava-se do que quer que sobrava dele. Que foss!

Alcançou a primeira escotilha interna. Olhou para trás. Franziu o cenho para a escotilha de saída na escavação. Muito breve eles estariam chegando à clareira; talvez até já houvessem chegado. Poderiam tentar segui-lo até ali. A julgar pelas temerosas reações de seus “ajudantes” (até mesmo o cabeça dura do Freeman Moss não fora inteiramente imune), ele pensava que não fariam isso... mas era bom não esquecer o quanto estavam desesperados. Gardener queria ter certeza de que os birutas estariam fora de sua vida, de uma vez por todas. Deus sabia que não lhe sobrava muita; não seria necessário aqueles fodidos estragarem o pouco que houvesse.

Uma dor súbita desabrochou em sua cabeça, fazendo seus olhos aguarem, sacudindo-lhe o cérebro como um peixe no anzol. Era ruim, mas em nada comparável a dor em seu tornozelo e na perna. Não ficou surpreso, ao ver que a escotilha principal se fechara. Poderia abri-la novamente, caso desejasse? De certa forma, Gardener duvidava. Estava trancado na nave agora... trancado nela com os Tommyknockers mortos.

Mortos? Tem certeza de que estão mortos?

Não; pelo contrário. Ele tinha certeza de que não estavam. Haviam sido animados o suficiente para começar tudo aquilo novamente. Animados o bastante para transformarem Haven em uma fantasmagórica fábrica de munições. Mortos?

— In-fodidamente-provável — cacarejou Gardener.

Impeliu-se através de outra escotilha, passando para o corredor seguinte. Motores martelavam e roncavam nas entranhas da nave; quando tocava a parede luzente e encurvada, podia sentir a vibração.

Mortos? Oh, não! Você está rastejando no interior da mais antiga casa assombrada do universo, Gard, velho Gard!

Pensou ter ouvido um ruído e virou-se rapidamente, o coração acelerando, as glândulas salivares esguichando líquido amargo em sua boca. Nada havia ali, claro. Exceto que havia. Tive um motivo perfeitamente bom para causar toda esta confusão; conheci os Tommyknockers e eles eram nós.

— Ajude-me, oh, Deus! — disse Gardener.

Jogou para fora dos olhos o cabelo fedendo a queimado. Acima dele, estava a escada com seus degraus muito espaçados, fina como teia de aranha... cada degrau com aquela funda e inquietante concavidade no centro. Uma escada que giraria para a posição vertical, quando... se... a nave chegasse a retomar sua adequada posição horizontal de vôo.

Aqui há um cheiro peculiar, agora. Um cheiro, com renovadores de ar ou não! Acho que é cheiro de morte. De morte antiga. E de insanidade.

— Por favor, Deus, apenas uma ajudazinha, certo? Tudo que peço é apenas uma chancezinha para o garoto, tá legal?

Ainda conversando com Deus, Gardener seguiu em frente. Em pouco, alcançava a sala de controles e descia seu corpo pela escotilha, a fim de entrar ali.

 

Parados na borda da clareira, os Tommyknockers olhavam para Dick. A cada minuto surgiam mais. Eles chegavam — depois ficavam parados, como meros dispositivos de computador, cujas poucas funções programadas já haviam sido desempenhadas.

Olhavam para o plano inclinado que era a nave... para Dick... para a nave... para Dick novamente. Eram como uma multidão de sonâmbulos, em uma partida de tênis. Dick podia sentir os outros, aqueles que tinham retornado à cidadezinha para monitorar as defesas dos limites, também simplesmente esperando... espiando pelos olhos daqueles que estavam realmente ali.

Atrás deles, chegando mais perto, ganhando ímpeto, vinha o fogo. A clareira já começava e encher-se de fiapos de fumaça. Algumas pessoas tossiram... Mas todas continuaram imóveis.

Dick se virou para elas, perplexo. O que, exatamente, toda aquela gente que-ria dele? Então, entendeu. Era o último membro do pessoal do galpão. Todos os outros tinham desaparecido e, direta ou indiretamente, a morte de cada um fora culpa de Gardener. Era algo realmente inexplicável, mais do que apenas um pouco amedrontador. Dick ficava cada vez mais convencido de que nada semelhante já acontecera, em toda a longa, longuíssima, experiência dos Tommyknockers.

Eles olham para mim, porque sou o último. Presume-se que deva dizer-lhes o que farão em seguida.

Entretanto, nada havia que pudessem fazer. Houvera uma corrida, e Gardener deveria ser derrotado, mas de algum modo chegara primeiro e, agora, o jeito era esperar. Vigiar, aguardar e ter esperanças de que a nave terminasse liquidando-o de alguma forma, antes que ele pudesse fazer algo. Antes que...

Uma mão enorme alcançou subitamente a cabeça de Dick Allison e espremeu a substância de seu cérebro. Ele levou as mãos às têmporas, com dedos abertos em rígidas e galvânicas formas aracnóides. Tentou gritar, mas foi impossível. Tinha uma vaga percepção de que na clareira, abaixo dele, pessoas caíam de joelhos, por fileiras, como peregrinos testemunhando um milagre ou visitação divina.

A nave começara a vibrar — o som enchia o ar, com um zumbido espesso, subaural.

Dick tinha percepção disto... e então, quando seus olhos explodiram para fo-ra da cabeça, como pedaços meio congelados de gelatina bolorenta, não percebeu mais nada. Naquele momento e nunca mais.

 

Uma pequena ajuda, Deus, negócio fechado?

Gardener estava sentado no centro da inclinada sala hexagonal, tendo espichada a frente do corpo a perna quebrada e retorcida (entortada, esta palavra persistia, sua perna havia sido entortada), perto de onde o grosso cabo-mestre brotava da gaxeta no piso.

Uma pequena ajuda para o garoto! Sei que não sou grande coisa, que baleei minha esposa, o que foi uma baita enrascada, que baleei minha melhor amiga, outra baita enrascada, uma Nova e Melhorada Baita Enrascada, poder-se-ia dizer mas, por favor, meu Deus, estou precisando de uma ajuda, neste exato momento!

Não era exagero. Gardener precisava demais de uma pequena ajuda. O grosso cabo que emergia do piso subdividia-se em seis cabos mais finos, cada um deles terminando, não em fone de ouvido, mas em um conjunto de fones. Se estivera jogando roleta-russa no galpão de Bobbi, isto aqui era como enfiar a cabeça na boca de um canhão e pedir a alguém que puxasse o cordão de disparo.

Não obstante, tinha que ser feito.

Pegou um dos conjuntos de fones, tornando a reparar como os centros avolumavam-se para dentro, e então se virou para o enovelado de corpos castanhos, dos seres da mesma espécie, no canto mais distante dali.

Tommyknockers? Tolice idiota ou não, este ainda era um nome demasiado bom para eles. Aquelas criaturas não haviam passado de homens espaciais das cavernas. Longas garras, operando mecanismos que fabricavam, mas nem mesmo tentavam compreender. Artelhos como esporões de gados de briga. Esta coisa era um tumor maligno, que precisava ser rapidamente extirpado.

Por favor, Deus, que minha pequena idéia esteja correta!

Seria possível a conexão com todos eles? Aí estava, de fato a pergunta de 64.000 dólares, não? Se a “transformação” fosse um sistema fechado — algo no casco da nave, simplesmente biodegradando-se na atmosfera — provavelmente a resposta seria não. Entretanto, Gardener havia pensado — ou talvez apenas esperado — que fosse algo mais, que fosse um sistema aberto, em que a nave nutria os humanos, fazendo com que se “transformassem”, e os humanos nutriam a nave, a fim de que ela pudesse... o quê? Ganhar vida novamente, claro. Seria possível usar-se a palavra ressurreição? Lamento, mas não. Era demasiado nobre. Se ele estava correto em suas deduções, isto era uma espécie de partenogênese de monstruosidades de circo, cujo lugar mais adequado era sob os focos vistosos de feiras e em tablóides baratos, jamais em mitos ou credos religiosos imperecíveis. Um sistema aberto... um sistema escravo... um sistema indecente, no sentido mais literal.

Por Favor, Deus! Uma pequena ajuda, agora!

Gardener colocou os fones de ouvido.

Aconteceu instantaneamente. Desta vez, não houve qualquer sensação de dor, mas apenas uma ofuscante radiância branca. Na sala de controles, as luzes acenderam-se em sua potência máxima. Uma das paredes transformou-se nova-mente em janela panorâmica, mostrando o céu enfumaçado e uma orla de árvores. Então, outra das seis paredes da sala ficou transparente... mais outra... outra mais... Em segundos, Gardener parecia estar sentado em um espaço aberto, com o céu acima dele e, aos lados, a escavação coberta por sua rede prateada. A nave como que desaparecera. Ele tinha agora uma visão de 360 graus.

Os motores cumpriram sua parte, funcionando a toda, em plena culminância de marcha.

Um sino soou em algum lugar. Gigantescos reles entraram surdamente em funcionamento, um por um, fazendo com que o convés de metal estremecesse sob ele.

A sensação de potencia era indescritível; Gardener tinha a impressão de que o Mississipi jorrava através de sua cabeça, em nível de inundação. Percebeu que aquilo o estava matando, mas tudo bem, era como tinha de ser.

Fiz conexão com todos eles, pensou fracamente Oh, meu Deus, obrigado! Fiz conexão com todos eles! Deu certo!

A espaçonave começou a tremer. A vibrar. A vibração transformou-se em espasmos de violentos tremores. A hora havia soado.

Exibindo seus últimos e poucos dentes, Gardener preparou-se para ir fundo e dar tudo de si.

 

Gardener havia feito conexão com todos eles, mas foram Dick Allison — em vista de sua maior evolução — e os cerca de quarenta vigilantes de fronteira de Hazel, sediados na cidade, que suportaram o impacto do processo de energização da espaçonave. Estes últimos encontravam-se estreitamente unidos em uma só teia, de maneira que a nave simplesmente penetrou nela.

Eles tombaram, com sangue espirrando dos olhos e ouvidos. Morreram, enquanto a nave lhes sugava os cérebros.

A nave também extraiu força dos Tommyknockers na floresta e, entre os mais velhos, vários morreram; a maioria, no entanto, sentiu apenas uma dor lancinante na cabeça, tão forte, que os obrigava a cair de joelhos ou estirar-se no chão, meio desmaiados, em torno do perímetro de clareira. Alguns compreenderam que o fogo agora estava muito perto. À medida que o vento ganhava força, aquele ardente leque espraiava-se... e espraiava-se. A fumaça inundou a clareira, em espessas nuvens cinza-esbranquiçadas. O fogo crepitava e rugia.

 

Agora, pensou Gardener.

Sentia algo em sua mente, deslizando, enganchando, deslizando... e enganchando com firmeza. Era como uma alavanca de mudanças. Agora havia dor, porém suportável.

ELES estão sentindo a maioria da dor, pensou debilmente.

Os lados da trincheira pareceram mover-se. A princípio, apenas um pouco. Depois, um pouco mais. Havia um som rangente, guinchante.

Gardener inclinou-se, o cenho tremendamente franzido, os olhos transformados em fendas.

A rede prateada foi passando diante dele, lenta, mas regularmente. Não que ela se movesse, em absoluto. Era a nave que se movia, aquele som rangente era produzido pelo casco, libertando-se do leito rochoso que o mantivera tanto tempo aprisionado.

Subindo, pensou incoerentemente. Lingerie para senhoras, artigos de malha, aviamentos para costura... e não deixem de visitar nosso departamento favorito...

A nave ia ganhando velocidade, as paredes da escavação começaram a passar mais rapidamente aos lados. O céu ampliou-se no alto — tinha uma fosca tonalidade negro-azulada. Fagulhas turbilhonavam nas proximidades, como formações de pequenos pássaros ígneos.

Ele transbordava de exaltação.

Gardener pensou que era como olhar pela janela do metrô, enquanto o trem deixava a estação, lentamente a princípio, depois começando a acelerar — as paredes ladrilhadas pareciam desenrolar-se para trás, como a tira de papel em uma pianola, os anúncios publicitários lidos ao passarem da esquerda para a direita — Annie, A Chorus Line, These Times Demand The Times, Touch the Velvet. Então, penetrava-se na escuridão, onde havia apenas movimento e uma vaga sensação de paredes negras, desfilando velozmente.

Estou indo. Sim, indo agora, indo...

Uma buzina soou três vezes, quase o ensurdecendo, fazendo-o dar um grito agudo; sangue fresco espalhou-se em seu colo. A nave estremeceu, troou, guinchou e arrancou-se da cripta da terra; levou-se entre faixas de fumaça espessando-se e enevoada luz do sol, seu flanco polido brotando da escavação, para fora e para fora, para cima e para cima, uma parede movente de metal. Quem estivesse perto daquela insana visão, talvez se visse tentado a crer que a terra criava uma montanha de aço inoxidável ou injetava uma muralha de titânio no ar.

À medida que o arco de orla ia ficando mais e mais amplo, a nave chegou as bordas da escavação que Bobbi e Gardener haviam tornado cada vez mais largas — dilacerando o solo com suas idiotas-espertas ferramentas, como pessoas fracas de cabeça, tentando praticar uma operação cesariana.

Para cima e para fora, para fora e para cima. Rochas estalavam. A terra gemia. De escavação, subiram poeira e fumaça da fricção. Era bem aproximada a ilusão de uma montanha ou muralhas emergindo, mas mesmo a curta distância da orla da clareira, ficava revelado o formato circular daquela coisa — a forma titânica do disco, agora surgindo da terra como um grande engenho. Era silencioso, mas a clareira se encheu com o rude fragor de rocha despedaçando-se. Para cima e para fora foi a máquina, alargando cada vez mais a escavação, sua sombra cobrindo gradualmente toda a escavação e a floresta em chamas.

Sua borda superior — aquela em que Bobbi havia tropeçado — amputou o topo do mais alto abeto da floresta e o derrubou ao chão com estrondo. Ainda assim, a nave continuava a nascer do útero que a confinara durante tanto tempo; continuava nascendo, até cobrir o céu inteiro e renascer.

Então, parou de esboroar a escavação, de alargá-la; um momento depois, havia realmente um vazio, entre as bordas da escavação e a nave emergente. Seu centro finalmente chegava àquele ponto e o deixava para trás.

A nave ribombou para fora da escavação enfumaçada, emergindo para a claridade do sol que a fumaça turvava. Por fim, cessaram os sons rangentes e atroadores, a luz do dia surgiu entre o solo e a nave.

Ela havia saído inteiramente.

Elevou-se em ângulo torto e inclinado, depois ficou na horizontal, esmagando árvores com seu peso desconhecido e inconhecível, abrindo-lhes os troncos. A seiva espargia-se no ar, em finos véus ambarinos.

Ela se movia com lenta e laboriosa elegância através do dia ardente, decepando sua passagem ao longo do topo das árvores, como uma tesoura aparando uma sebe. Então pairou, como se esperasse alguma coisa.

 

Agora, o piso abaixo de Gardener também ficara transparente; ele parecia estar sentado em pleno ar, espiando para os vagalhões de fumaça que, sob seus pés, surgiam da orla da floresta e enchiam o ar.

A nave estava agora plenamente vivificada — porém ele se diluía com rapidez.

As mãos de Gardener subiram para os fones de ouvido.

Vamos, escoteiro, pensou, dê-me velocidade em força total. Nós iremos explodir este disco!

Ele se voltou com firmeza para dentro de sua mente e, desta vez a dor foi espessa, fibrosa e nauseante.

Fusão, pensou debilmente, é assim que deve ser uma fusão.

Houve uma sensação de tremenda velocidade. Uma mão caiu sobre ele, lançando estatelado ao convés, embora sem qualquer impressão de força multi-g; aparentemente, os Tommyknockers haviam encontrado uma forma de eliminá-la.

A nave não oscilou; simplesmente, elevou-se no ar em linha reta. Ao invés de apagar o céu inteiro, apagou-o apenas em três quartos, depois metade. Foi ficando indistinta na fumaça, a realidade de sua rígida borda de liga metálica foi esmaecendo cada vez mais, até tornar-se quase invisível.

Então, desapareceu na fumaça, deixando para trás os estonteados e drenados Tommyknockers, que teriam de firmar-se nos pés antes do fogo sobrepujá-los. Deixou para trás os Tommyknockers, a clareira, o telheiro... e a escavação, como um negro alvéolo, do qual fora arrancado um venenoso canino.

 

Gard ficou estirado no piso da sala de controles, olhando para cima. Enquanto olhava, a aparência fumacenta e cromada do céu desapareceu, tornando-se novamente azul — o azul mais límpido e vívido que já vira.

Esplêndido, tentou dizer, mas nenhuma palavra lhe saiu — nem mesmo um ruído gutural.

Engoliu em seco e tossiu, jamais desviando os olhos daquele céu radioso. O azul forte aprofundou-se para índigo... depois para violeta.

Por favor, não pare agora, por favor...

De violeta para negro.

E agora, em meio aquele negror, ele divisou os primeiros e fortes brilhos das estrelas.

A buzina soou novamente. Gardener sentiu mais uma onda de dor, enquanto a nave o ia drenando, houve uma sensação de velocidade intensificada, quando ele deslizou para uma aceleração maior.

Para onde estaremos indo? Pensou ele incoerentemente. Então, foi envolvido por completo pelo negror, enquanto a espaçonave voava para o alto e para longe, escapando ao invólucro da atmosfera terrestre, tão facilmente, como escapara do solo que a mantivera presa por tanto tempo. Para onde estaremos...?

Para cima e para cima, para longe e para longe... elevava-se a nave, e Jim Gardener, nascido em Portland, no Maine, seguia com ela.

Vagou por entre negros níveis de inconsciência e, pouco antes do começar o vômito final — um vômito que nem mesmo percebeu — ele teve um sonho. Foi um sonho tão real, que Gardener sorriu, enquanto jazia no seio da escuridão, circundado pelo espaço, com a terra abaixo dele assemelhando-se a uma gigantesca bola de gude cinza-azulada.

Havia passado através daquilo — de algum modo, conseguira atravessá-lo. Patrícia MacCardle tentara derrubá-lo, mas em momento algum foram plenamente capazes disso. Agora, ele estava de volta a Haven, e lá se encontrava Bobbi, descendo os degraus da varanda e cruzando o portão do jardim, a fim de recebê-lo, e Peter latia, abanava a cauda, e Gard agarrava Bobbi e a abraçava, porque era bom estar com amigos, era bom estar no lugar a que pertencia... era bom ter um haven* para onde ir.

Jazendo sobre o piso transparente da sala de controles, já a uma distância de mais de cem mil quilômetros espaço a fora, Jim Gardener estirava-se em uma crescente poça de seu próprio sangue... e sorria.

 

O fogo matou a maioria deles.

Nem todos tiveram esse destino; uns cem ou mais nunca chegaram a alcançar a clareira, antes da nave arrancar-se do solo e desaparecer no céu. Alguns, como Elt Barker, cuja motocicleta o lançou pelos ares, não a alcançaram porque fo-ram feridos ou mortos a caminho... acasos da guerra. Outros, como Ashley Ruvall ou a velha Srta. Timms, bibliotecária da cidade às terças e quintas, simplesmente chegaram atrasados ou foram demasiado lentos.

Tampouco morreram todos os que chegaram à clareira. A nave tinha desaparecido no céu, e aquela terrível força drenadora que os envolvera foi diminuindo para nada, antes que o fogo alcançasse o local (embora a esta altura houvesse fagulhas descendo e ardessem muitas árvores menores, na orla leste). Alguns deles conseguiram caminhar aos tropeções e internar-se na floresta em passos trôpegos, à frente daquele ardente leque de chamas que se ampliava. Naturalmente, uma caminhada direta para oeste não fez bem aqueles poucos (Rosalie Skehan estava entre eles, assim como Frank Spruce e Rudy Barfield, irmão do falecido e bem pouco lamentado Pits), porque eventualmente ficariam com escassez de ar respirável, a despeito dos ventos predominantes. Assim, foi necessário que primeiro fossem para o oeste, depois dobrando para o norte ou sul, em um esforço de contornarem à frente do incêndio... um jogo desesperado, em que a penalidade pelo fracasso não era ficarem sem a bola, mas serem tostados até as cinzas, na floresta do Big Injun. Uns poucos — não todos, apenas raros — realmente puderam ter êxito na manobra.

A maioria, contudo, pereceu na clareira onde Bobbi e Jim Gardener tanto e tão duramente haviam trabalhado — perderam a vida a poucos metros daquele alvéolo vazio, onde algo havia sido sepultado e depois extraído de lá.

Eles haviam sido usados grosseiramente, por uma força muito maior do que poderia ser manejada pela prematura e experimental condição de sua “transformação”. A nave se estendera à rede de suas mentes, captara-a e a empregara para obedecer ao fraco, mas indiscutível comando do Controlador, que havia sido expresso como VELOCIDADE EM FORÇA TOTAL aos circuitos orgânico-cibernéticos que ela possuía. As palavras VELOCIDADE EM FORÇA TOTAL não constavam do vocabulário da espaçonave, porém o conceito era claro.

Os vivos permaneciam no solo, a maioria sem sentidos, alguns profundamente aturdidos. Uns poucos se sentaram, segurando a cabeça e gemendo, esquecidos das fagulhas que desciam à volta deles. Outros, percebendo o perigo que vinha do leste, tentaram levantar-se e tornaram a cair.

Um entre os que não tornaram a cair foi Chip McCausland, que vivia na Estrada de Dugout, morando com uma concubina e cerca de dez filhos; dois meses e um milhão de anos atrás, Bobbi Anderson havia procurado Chip, em busca de mais embalagens de papelão para ovos, a fim de nelas acondicionar sua crescente coleção de pilhas elétricas. Chip cruzou metade da clareira aos tropeções, como um velho embriagado, e caiu na escavação vazia. Despencou entre gritos estridentes até o fundo, onde morreu com o pescoço quebrado e o crânio esmagado.

Outros que perceberam o perigo do fogo e talvez pudessem escapar, preferiram continuar ali. A “transformação” chegava ao fim. Terminara ante a partida da nave. O propósito de suas vidas havia sido cancelado. Em vista disto, continuaram sentados e esperaram que o fogo cuidasse do que sobrara deles.

 

Ao cair da noite, em Haven restavam vivas menos de duzentas pessoas. A maior parte da metade oeste da municipalidade, coberta de forte vegetação, já fora incendiada ou ainda era presa das chamas. O vento ganhou mais força ainda. O ar começou a mudar. Ofegantes e de rostos lívidos, os Tommyknockers sobreviventes juntaram-se no pátio dos fundos da casa de Hazel McCready. Phil Golden e Bryant Brown puseram em funcionamento o enorme transformador de ar. Acotovelados ao redor da engenhoca, aquelas criaturas faziam o que podiam ter feito os colonos de muitos anos atrás, reunidos em torno de uma estufa, em uma noite de frio cortante. Suas torturadas respirações foram melhorando pouco a pouco.

Bryant olhou para Phil.

Que tempo fará amanhã?

Céu claro, ventos amainando.

Marie estava parada ao lado, e Bryant a viu relaxar-se.

Que bom é saber disso.

E assim seria... por algum tempo. Os ventos, contudo, não iriam continuar calmos pelo resto de suas vidas. E agora, perdida a nave, restavam-lhes apenas aquela engenhoca e as vinte e quatro baterias de caminhão, separando-os da eventual asfixia.

Quanto tempo? Perguntou Bryant, mas ninguém respondeu. Havia apenas o fulgor baço de seus olhos amedrontados e inumanos, em meio à noite quebrada pelos incêndios.

 

Na manhã seguinte, eram vinte a menos. No decorrer da noite, a história de John Leandro ganhava o mundo inteiro, com a força de um canhonaço. Os Departamentos do Estado e da Defesa negaram tudo, mas dúzias de pessoas haviam batido fotos, enquanto a nave subia. Tais fotos eram convincentes... e ninguém conseguiria estancar o fluxo de vazamentos das “fontes bem informadas”, constituídas pelos amedrontados moradores das cidades circunvizinhas e dos primeiros membros da Guarda Nacional que tinham chegado ao local de perigo.

As barreiras nas fronteiras de Haven conseguiram ser mantidas, pelo menos durante algum tempo. À frente de fogo havia avançado para Newport, onde as chamas finalmente ficaram sob controle.

Durante a noite, explodiram os cérebros de vários Tommyknockers.

Poley Andrews tomou uma superdose de Dran-O.

Ao acordar, Phil Golden descobriu que Queenie, sua esposa de vinte anos, havia saltado dentro do poço seco de Hazel McCready.

Nesse dia, houve apenas quatro suicídios, mas as noites... as noites eram piores.

Quando o exército finalmente irrompeu em Haven, no final daquela semana, como desajeitados gatunos arrombando uma caixa-forte, restavam menos de oitenta Tommyknockers.

Justin Hurd matou o gordo sargento do exército, com um rifle de ar comprimido Daisy, para crianças, de cujo cano espirrava fogo verde. O gordo sargento explodiu. Um assustado soldado, na viatura que então passava rugindo diante do supermercado de Cooder, girou a calibre .50, atrás da qual se sentava, dirigindo-a para Justin Hurd, que estava parada à frente da loja de ferragens, usando apenas ceroulas amareladas e seus sapatos de trabalho cor de laranja.

— Vou acabar com vocês, seus idiotas! — gritava Justin. — Vou acabar com vocês todos, seus grandes fodidos, seus...

Então, ele foi atingido por uns vinte balaços calibre .50. Justin quase explodiu também.

O soldado vomitou em sua máscara contra gás e quase ficou sufocado na mistura, até alguém colocar-lhe outra máscara no rosto.

— Alguém recolha aquela arma! — gritou um major, usando um megafone. — Recolham-na, mas com o máximo cuidado! Peguem pelo cano! Repito, tenham o máximo cuidado! Não a apontem para ninguém!

Como teria dito Gardener, “apontar para alguém” sempre vem por último.

 

Mais de doze Tommyknockers foram abatidos a bala no primeiro dia da invasão, por soldados amedrontados e rápidos de gatilho, a maioria deles ainda rapazolas, perseguindo a presa de casa em casa. Passado um certo tempo, o medo de alguns invasores foi desaparecendo. Pela tarde, eles até achavam divertido — eram como homens perseguindo coelhos em um trigal. Outras dúzias foram mortos, antes que os médicos do exército e os especialistas do pentágono percebessem que o ar existente fora de Haven era letal para aquelas aberrações humanas, criaturas que um dia haviam sido americanos pagadores de impostos. O fato de os invasores não conseguirem respirar o ar dentro de Haven, parecia tornar mais evidente a inversão, porém com todo aquele excitamento, ninguém conseguia raciocinar direito (um detalhe que não deixaria Gard muito surpreso).

Agora, restavam apenas uns quarenta sobreviventes, em sua maioria insanos; os lúcidos nada diriam. Na área conhecida como praça da cidade, em Haven Village, foi erguida uma paliçada improvisada — logo abaixo e à direita da sede sem torre da municipalidade. Ali foram mantidos os Tommyknockers por outra semana, durante a qual morreram mais quatorze.

Foram feitas analises do ar modificado; a máquina que o fabricava foi cuidadosamente estudada, sendo substituídas as baterias que iam perdendo a carga. Como havia insinuado Bobbi, os especialistas não demoraram a entender a mecânica do artefato, cujos princípios subjacentes já estavam sendo estudados no Instituto Tecnológico de Massachusetts, na Tecnológica da Califórnia, nos Laboratórios da Bell e na “Loja”, na Virgínia, por cientistas que praticamente babavam de excitamento.

Os vinte e seis Tommyknockers restantes, parecendo os sobreviventes abatidos e devastados pela varíola da última tribo apache em existência, foram embarcados no compartimento de carga de um Starlifter C-140, dotado de controle ambiental, e despachados para uma instalação do governo na Virgínia. Esta instalação, que um dia havia sido queimada até os alicerces por uma criança, era a “Lojá”. Lá, eles foram estudados... e lá, eles foram morrendo, um por um.

O último sobrevivente foi Alice Kimball, a professora que era lésbica (um detalhe que ‘Becka Paulson ficara sabendo através de Jesus, em certo calorento dia de julho). Ela morreu no dia 31 de outubro... O Dia das Bruxas.

 

Mais ou menos no momento em que Queenie Golden subia à borda do poço seco de Hazel e se preparava para saltar dentro dele, uma enfermeira entrou no quarto do Hilly Brown, a fim de observar o menino, que nos últimos dois dias vinha mostrando alguns fracos indícios de retorno à consciência.

Ela olhou para a cama e franziu o cenho. Não podia estar vendo o que via — devia ser algum tipo de ilusão, aquela sombra dupla lançada na parede, pela luz que provinha do corredor...

Pressionou o interruptor da parede e chegou um pouco mais perto. Seu queixo caiu. Não tinha sido ilusão. Havia duas sombras na parede, porque havia dois meninos na cama. Ambos dormiam, um abraçado ao outro.

— O que...?

Ela deu mais um passo a frente, levando inconscientemente a mão ao crucifixo que tinha à volta do pescoço.

Um deles, naturalmente, era Hilly Brown, de rosto fino e abatido, os braços aparentemente não mais grossos que gravetos, a pele quase tão branca quanto sua camisola de hospital.

Ela não conhecia o outro menino, que ainda era muito novinho. Ele usava shorts azuis e uma camiseta como dístico ELES ME CHAMAM DE DR. AMOR. Seus pés estavam negros, sujos de terra... e alguma coisa sobre aquela terra pareceu antinatural para ela.

— O que...? — tornou a sussurrar.

Então, o menininho remexeu-se em seu sono e abraçou-se mais apertada-mente ao pescoço de Hilly. Sua bochecha repousava contra o ombro de Hilly e, com algo semelhante ao terror, a enfermeira reparou que os dois meninos eram muito parecidos.

Decidiu que precisava falar ao Dr. Greenleaf a respeito. Imediatamente. Virou-se para sair, o coração pulsando depressa, a mão ainda aferrando o crucifixo... quando viu algo que era absolutamente impossível.

— O que...? — sussurrou, pela terceira e última vez, com os olhos muito abertos.

Ali havia mais daquela curiosa terra negra. No chão. Pegadas no chão. Levando à cama. O menininho havia caminhado até a cama e subira nela. A semelhança facial dos dois, sugeriu-lhe que aquele era o irmão desaparecido de Hilly — e há muito tempo considerado morto.

As pegadas não vinham do corredor. Elas começavam no meio do piso do quarto.

Como se o garotinho tivesse vindo de lugar nenhum.

A enfermeira disparou para fora do quarto, gritando pelo Dr. Greenleaf.

 

Hilly Brown abriu os olhos.

— David?

— Cala a boca, Hilly. Tô com sono...

Hilly sorriu, sem estar certo de onde se encontrava, sem estar certo de quando se encontrava, certo apenas de que tinham acontecido muitas coisas erradas — só que não importava mais que coisas seriam, porque agora estava tudo bem. David estava ali, cálido e sólido contra ele.

— Eu também — disse Hilly. — Amanhã temos que trocar soldadinhos.

— Por quê?

— Não sei. Só sei que temos de trocar. Eu prometi.

— Quando?

— Não sei.

— Desde que eu fique com o Bola de Cristal... — murmurou David, aninhando-se com mais firmeza na dobra do braço de Hilly.

— Hum... Tudo bem...

Silêncio... Havia uma indistinta comoção no posto das enfermeiras, no fundo do corredor, mas ali reinava o silêncio e o doce calor dos meninos.

— Hilly?

— O que foi? — murmurou Hilly.

— Fazia frio onde eu estava.

— Fazia?

— Fazia.

— E agora, está melhor?

— Melhor. Eu amo você, Hilly.

— Também amo você, David. Me desculpe.

— Por quê?

— Não sei.

— Oh...

A mãozinha de David tateou pelo cobertor, encontrou-o e o puxou para cima. A cento e cinqüenta milhões de quilômetros do sol e a cem parsecs do eixo-pólo da galáxia, Hilly e David Brown dormiam nos braços um do outro.

 

                                                                              Stephen King

 



* Técnica específica para o esquiador desviar, diminuir ou frear sua descida. (N. da T.)

* Nuclear Regulatory Commission -Agência do Governo, incumbida de inspecionar o programa nuclear americano. (N da T).

* Drug Enforcement Administration - organismo governamental que, nos Estados Unidos, cuida do cumprimento das leis antidrogas. (N. T.)

 

* Haven, no original inglês, significando abrigo, refúgio, porto seguro etc. (N. da T.)

*Mentis compos (latim) = mente (entendimento) livre (liberto). (N. da T.)

* Halloween - Nos E.U.A. comemorado na véspera do Dia de Todos os Santos. (N. da T.)

** No original inglês, palavra formada por doom (condenação, ruína, final, Juízo final etc.) e ville (povoação, cidadezinha). Assim, Doomsville teria o sentido de Cidade do Juízo Final, Cidade Condenada etc. (N. da T.)

***Pequeno universo extragaláctico, visível no céu austral. A Grande e a Pequena Nuvem de Magalhães são os universos mais próximos da nossa galáxia (cerca de 150.000 anos-luz), da qual parecem satélites (N. da T.)

* Nome de Anton e John Klieg, inventores americanos. Trata-se de uma lâmpada de arco, muito brilhante, usada em estúdios de cinema e TV (N. da T.)

* Very High Frequency Omnidlrectional Range. Sistema de navegação aéreo, que dá a posição de um móvel em relação a um ponto de referência fixo (N. da T.)

* Nuclear Regulatory Commission - Agência do Governo, encarregada da inspeção do Programa nu-clear americano (N. da T.)

* Bebida feita com vodca e suco de laranja (N. da T.)

*um deus (baixado) por uma máquina. Expressão que designa a intervenção, em uma peça dramática, de um ser sobrenatural baixado ao palco por intermédio de uma máquina. Em sentido figurado, significa o desenlace de uma situação trágica, mais feliz do que verossímil (N. da T.)

* Quod erat demonstrandum (latim: o que precisaria ser demonstrado.) (N. da T.)

* No original, dog-days = dias de canícula, de calor intenso. (N. da T.)

*Constelação boreal, cujas estrelas principais desenham uma grande cruz, em plena Via Láctea (N. da T.)

* Hora Padrão da Montanha, isto é, a hora legal do 3o fuso dos EUA, correspondendo ao meridiano 105°. O estado do Maine, por sua vez, está situado no 1o fuso horário dos EUA correspondendo ao meridiano 75° (N. da T.)

* Comando de Defesa Aeroespacial da América do Norte. Q.G. acionado em situações de ataque ou guerra nuclear, situado no centro do país (N. da T.)

***Avião de construção especial, para uso do Presidente dos EUA, em casos de ataque ou guerra nuclear, dirigidos contra o país. (N. da T.)

*Mantido no original. Com maiúscula, Haven seria o nome da cidade. Aqui, tem o sentido de abrigo, refúgio, porto seguro, etc. (N. da T.)

 

 

                      

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