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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS FAVORITOS DA FORTUNA / Colleen McCullough
OS FAVORITOS DA FORTUNA / Colleen McCullough

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

                 CRÔNICA DOS ACONTECIMENTOS ENTRE 86 a.C. E 83 a.C.

Ajustando-se satisfatoriamente à nova situação, Cina assumiu o controlo de um Senado particularmente reduzido; de todas as leis de Sila, revogou apenas algumas e, por outro lado, o Senado pôde continuar a existir. Sob a égide de Cina, o Senado retirou formalmente a Sila o comando da guerra contra o rei Mitridates e autorizou o outro cônsul, Flaco, a levar quatro legiões para o Oriente e a substituir Sila. O legado sénior de Flaco nesta empresa era Fímbria, um homem selvático e indisciplinado que, no entanto, era muito querido pelos seus soldados.

Porém, quando Flaco e Fímbria chegaram à Macedónia Central, decidiram não seguir para sul, ou seja, para a Grécia (onde Sila estava instalado com o seu exército); em vez disso, continuaram a marchar através da Macedónia, na direcção do Helesponto e da Ásia Menor. Absolutamente incapaz de controlar Fímbria, Flaco viu-se na posição de subordinado em relação ao seu próprio subordinado. Quando chegaram a Bizâncio, Flaco e Fímbria eram já dois inimigos declarados. A última e fatal desavença ocorreu precisamente em Bizâncio. Flaco foi assassinado e Fímbria assumiu o comando. Atravessou a Ásia Menor e encetou — com muito êxito — a guerra contra o rei Mitridates.

Sila tinha ficado paralisado na Grécia, que recebera de braços abertos os generais e os exércitos de Mitridates e que agora albergava uma gigantesca força ao serviço do rei. A cidade de Atenas passara para o partido do inimigo: Sila cercou-a. Atenas acabou por cair após uma trágica resistência. Sila obteve então duas vitórias espantosas na região do lago Orcómeno, na Beócia.

O legado de Sila, Lúculo, tinha entretanto reunido uma esquadra e infligido também várias derrotas às forças do Ponto. A certa altura, Fímbria conseguiu cercar Mitridates em Pítane e pediu a Lúculo que o ajudasse a capturar o rei, bloqueando o porto. Lúculo, orgulhosamente, recusou-se a colaborar com um romano que, do seu ponto de vista, não fora legalmente nomeado. Por isso, Mitridates conseguiu fugir por via marítima.

No Verão de 85 a.C., Sila tinha já expulso os exércitos pônticos da Europa e ele próprio entrara já na Ásia Menor. A 5 de Agosto (Sextilis), o rei do Ponto aceitou o Tratado de Dárdano, que o obrigava a retirar para as suas próprias fronteiras e a não sair de lá. Posteriormente, Sila lançou-se no encalço de Fímbria, até que este, desesperado, se suicidou; proibindo as tropas de Fímbria de regressar a Itália, Sila incorporou-as num exército que operaria de forma permanente na Província da Ásia e na Cilícia.

Sila tinha perfeita consciência de que o rei Mitridates não estava de forma nenhuma acabado quando, pelo Tratado de Dárdano, se viu obrigado a retirar para o seu país. Contudo, estava também consciente de que se permanecesse muito mais tempo no Oriente, perderia todas as hipóteses de recuperar a posição a que, segundo ele, tinha direito em Roma. A sua mulher, Dalmática, e a filha, Cornélia Sila, tinham sido obrigadas a fugir e a juntar-se a ele, sob a escolta de Mamerco; a casa de Sila havia sido saqueada e incendiada; os seus bens tinham sido confiscados (no entanto, Mamerco conseguira esconder em local seguro a maior parte desses bens); e o seu estatuto era agora o de um prescrito destituído da cidadania romana e sob interdição. O mesmo se aplicava aos seus adeptos; muitos dos membros do Senado tinham também fugido de Roma a fim de se juntarem a Sila, pois não estavam dispostos a viver sob a administração de Cina. Entre os refugiados, encontravam-se Ápio Cláudio Fulcro, Públio Servílio Vátia e Marco Licínio Crasso, este último vindo da Hispânia.

Assim, Sila não tinha outra alternativa senão virar costas a Mitridates e regressar a Roma; projectava fazê-lo em 84 a.C., mas uma doença grave obrigou-o a permanecer na Grécia durante mais um ano, atormentado com o facto de uma tão longa ausência proporcionar a Cina e aos seus adeptos mais tempo para prepararem a guerra. A Itália não era suficientemente grande para conter duas facções que se opunham tão ferozmente. Por isso, a guerra era inevitável: nenhuma dessas facções estava disposta a perdoar e a esquecer para que a paz fosse preservada.

Cina e a Roma dessa época compreenderam também que a guerra contra Sila era inevitável. Quando Cina teve conhecimento da morte do seu colega no consulado, Valério Flaco, escolheu, para preencher o cargo, um homem muito mais forte que o seu antecessor: Cneu Papírio Carbão. Cina e Carbão, contando com o apoio do dócil Senado, decidiram que teriam de lutar contra Sila antes que este chegasse a Itália, ainda exausta com a recente Guerra Italiana. com o objectivo de deter Sila na Macedónia Ocidental, antes que ele pudesse atravessar o mar Adriático, Cina e Carbão começaram a recrutar um vasto exército, que enviaram para a Ilíria, a norte da Macedónia Ocidental.

Porém, o recrutamento era lento, em particular no feudo do falecido Pompeu Estrabão, Piceno. Considerando que a sua presença atrairia mais voluntários, Cina viajou até Ancona a fim de supervisionar o alistamento. O filho de Pompeu Estrabão, Pompeu, foi então visitar Cina, aparentemente brincando com a ideia de se alistar no seu exército. Contudo, não chegou a alistar-se. Pouco tempo depois, Cina morreu em Ancona em circunstâncias envoltas em raistério. Carbão apossou-se então das rédeas do governo de Roma e do Senado, mas decidiu que Sila teria de ser autorizado a desembarcar em Itália. A guerra contra ele teria de ser travada em solo italiano. As tropas regressaram então da Ilíria e Carbão elaborou os seus planos. Depois de garantir a eleição de dois cônsules inofensivos, Cipião Asiágeno e Caio Norbano, Carbão foi governar a Gália Italiana e instalou-se, com o seu exército, na cidade portuária de Arimino.

A cena estava já devidamente montada. Vejamos agora o que sucedeu...

 

 

 

 

Erguia-se sobre o cabelo espetado, como que vigilante. Os olhos azuis, também vigilantes, inspeccionavam a mulher. Assim era Pompeu: de um momento para o outro, passava de um estado de morte aparente a uma vigilância inexcedível. Hábitos de soldado. — Que foi? — perguntou de novo.

— Uma mensagem urgente. Esperam-te no átrio.

Não tinha ainda Antístia terminado a frase e já Pompeu estava de pé, calçando as sandálias e deixando cair a túnica, descuidadamente, por sobre os ombros sardentos. E num instante se foi, deixando a porta aberta.

Por um momento, Antístia ficou onde estava, sem saber o que fazer. O marido não levara a vela — ele via na escuridão tão bem como um gato — e, por isso, não havia nada que a impedisse de o seguir, a não ser o facto de saber que, provavelmente, ele não gostaria que ela procedesse assim. Pois bem, tanto fazia que ele gostasse como não gostasse! com certeza que as esposas tinham o direito de partilhar com os maridos as notícias importantes, e esta só podia ser importante, pois tinham-no acordado de propósito! Num instante, levantou-se, saiu do quarto e, com o pequeno castiçal na mão, avançou pelo imenso corredor de pedra, mal distinguindo o caminho, pois a luz era muito fraca. Uma esquina primeiro, depois um lanço de escadas e, de súbito, Antístia estava já fora da agreste fortaleza gaulesa e penetrava na civilizada villa romana, com as suas belas paredes rebocadas e pintadas.

Luzes brilhavam por todo o lado; o trabalho dos escravos tinha produzido algum efeito. E ali estava Pompeu, vestido apenas com uma túnica, apesar de mais parecer a personificação de Marte — ah, ele era um homem maravilhoso!

Era até possível que ele viesse a contar-lhe o que se passava, já que o olhar dele parecia significar que aceitava a sua presença. Porém, nesse mesmo momento, surgiu Varrão, esbaforido, e Antístia percebeu que era demasiado tarde para poder partilhar com o marido as razões de tamanha excitação.

— Varrão! Varrão — exclamou Pompeu. Depois, soltou um grito de alegria, um grito penetrante, estranho e misterioso, sem nada de romano; um grito idêntico ao que os Gauleses davam, muitos anos antes, quando se espalharam pelos Alpes e conquistaram vastas regiões de Itália, incluindo o Piceno, a terra de Pompeu.

Antístia assustou-se, arrepiou-se. Tal como Varrão, reparou ela.

Que aconteceu?

Sila desembarcou em Brindísio!

Brindísio! Como é que sabes?

Mas que importância é que isso tem? — perguntou Pompeu, atravessando o chão de mosaicos para apertar o pequeno Varrão pelos ombros, abanando-o dos pés à cabeça. — Ei-la, Varrão! A aventura começou!

Aventura? — retorquiu Varrão, embasbacado. — Ora, Magno,

vê se cresces! Não é uma aventura, é uma guerra civil — e uma vez mais em solo italiano!

— Estou-me marimbando! — exclamou Pompeu. — Para mim, é uma aventura. Ah, Varrão, se tu soubesses o quanto eu desejava essas notícias! Desde que Sila partiu que a Itália tem estado tão sossegada e dócil como um cãozinho de estimação de uma virgem vestal!

— E o cerco de Roma? — perguntou Varrão, ainda boquiaberto de espanto.

Toda a feliz excitação que até então mostrara desapareceu num instante do rosto de Pompeu; os seus braços caíram; recuou e lançou um olhar sombrio a Varrão.

— Daria tudo para esquecer o cerco de Roma! — atirou-lhe. — Arrastaram o corpo nu do meu pai, preso a um burro, por aquelas ruas malditas!

O pobre Varrão enrubesceu tanto que o vermelho das faces lhe subiu ao crânio calvo.

— Oh, Magno, perdoa-me! Eu não... eu não queria... afinal sou teu convidado... por favor, perdoa-me!

Mas o momento de mau humor tinha já passado. Pompeu desatou a rir e, amigavelmente, bateu nas costas de Varrão.

— Ah, sim, eu sei que tu não tiveste nada a ver com aquilo! A vasta sala estava gelada; Varrão apertava os braços contra o corpo.

— O melhor será eu ir para Roma imediatamente. Pompeu fitou-o.

— Para Roma? Tu não vais nada para Roma, tu vais comigo! Que achas tu que vai acontecer em Roma? Uma quantidade de ovelhas a balir, as velhas do Senado discutindo durante dias a fio — vem comigo, será muito mais divertido!

— E para onde é que tu estás a pensar ir?
— É claro que vou ter com Sila.

— Para isso não precisas de mim, Magno. Monta o teu cavalo e põe-te a caminho. Sila dar-te-á de bom grado um lugar entre os seus tribunos militares júniores. Disso estou eu certo. Tu és um homem de acção, já tens muita experiência nesse campo.

— Oh, Varrão! — As mãos nervosas de Pompeu denunciavam a sua exasperação. — Eu não vou ter com Sila para ser um tribuno militar júnior! Euvou levar-lhe mais três legiões! Eu, lacaio de Sila? Nunca! Tenciono ser seu parceiro a cem por cento nesta empresa.

Esta surpreendente notícia deixou a esposa de Pompeu tão estarrecida como o seu amigo e convidado; Antístia quase deixava que o seu choque se exprimisse, mas sufocou a tempo o grito. Por isso, correu para um sítio onde Pompeu a não pudesse ver. Ele já se tinha esquecido da sua presença e ela queria ouvir. Precisava de ouvir.

Durante os dois anos e meio que tinha sido sua esposa, Pompeu estivera longe dela não mais que um dia e apenas numa ocasião. Ah, que bom que isso era, que maravilha! Todas as atenções do marido iam para ela! Ele mimava-a e ralhava-lhe como a uma criança, e deixava-a toda em desalinho, a roupa amarrotada, o cabelo despenteado, e estreitava-a nos seus braços, e mordiscava-a, e dava-lhe palmadas e fazia-a cair com ele no chão... Sim, aquilo era como um sonho. Quem poderia alguma vez ter imaginado uma coisa assim? Ela, a filha de um senador que tinha uma posição apenas média e uma fortuna sofrível, casada com Cneu Pompeu, que a si próprio dera o cognome de Magno! Rico o bastante para casar com quem muito bem entendesse, o senhor de meia Úmbria e Piceno, tão belo e atraente que toda a gente o achava uma reincarnação de Alexandre, o Grande — ah, que marido tinha o pai encontrado para ela! E depois de muitos anos de desespero, de muitos anos em que ela pensara que nunca encontraria um marido interessante, pois tão pequeno era o seu dote.

Claro que ela sabia por que motivos Pompeu casara com ela; Pompeu precisara de um grande favor do pai dela. Este, de facto, fora o juiz que presidira ao julgamento de Pompeu. É evidente que toda aquela história tinha sido inventada, fabricada — toda a Roma o sabia. Mas Cina precisava desesperadamente de avultadas somas para financiar a sua campanha de recrutamento e a fortuna do jovem Pompeu constituiria uma óptima fonte de financiamento. Foi por isso que o jovem Pompeu acabou por ser indiciado na base de acusações que, na realidade, deveriam ter sido dirigidas ao pai, Pompeu Estrabão — acusações de que se tinha apropriado ilegalmente de parte dos despejos da cidade de Ásculo Picentino. Designadamente, uma rede de caça e uma quantidade de livros. Enfim, ninharias. O que estava em causa não era a magnitude da ofensa, mas sim a multa; se Pompeu fosse considerado culpado, os agentes de Cina escolhidos para decidirem o castigo estavam à vontade para lhe aplicar uma multa capaz de o deixar sem um sestércio.

Um homem mais romano teria tratado de disputar o caso em tribunal e, se necessário, teria subornado o júri; mas Pompeu — cujo rosto proclamava claramente a Gália que havia no seu ser — preferira casar-se com a filha do juiz. O casamento ocorrera em Outubro. Novembro e Dezembro foram passando e o pai de Antístia foi conduzindo o julgamento com uma inércia inexcedível. Na realidade, o julgamento do genro nunca chegou a realizar-se, sempre adiado por presságios funestos, por acusações de jurados corruptos, por assembleias do Senado, por sezões e pestes. Daí resultou que, em Janeiro, o cônsul Carbão tratou de convencer Cina a procurar noutras paragens o dinheiro de que desesperadamente precisavam. A ameaça à fortuna de Pompeu eclipsara-se.

Antístia não fizera ainda os 18 anos quando acompanhou aquele fascinante troféu marital até às suas terras do Nordeste da península itálica. Aí, na assustadora fortaleza de Pompeu, nesse bloco imenso de pedra negra, Antístia mergulhou apaixonadamente nas delícias de ser a esposa de Pompeu. Afortunadamente, era uma jovem bonita, bem feita de curvas, com covinhas no rosto, e na idade perfeita para os jogos de cama. Por isso, a sua felicidade permaneceu intacta durante um longo período. E quando as ferroadas da inquietação começaram a intrometer-se nessa felicidade, não eram do seu adorado Magno que provinham, mas sim dos seus fiéis assistentes, criados e armeiros, que não só a desprezavam como pareciam sentir-se perfeitamente à vontade para manifestar esse desprezo. De qualquer modo, não era nada que ela não conseguisse suportar — desde que Pompeu estivesse por perto, desde que, todas as noites, pudesse estar com ela. Agora, porém, ele dizia que ia para a guerra, que ia formar legiões, que ia aliar-se à causa de Sila! Que iria ela fazer sem o seu adorado Magno para a proteger do desdém daquela gente?

Pompeu estava ainda a tentar convencer Varrão de que a melhor alternativa era acompanhá-lo, mas Varrão, o afectado e pedante Varrão — um homem com uma mente tão velha quando afinal não tinha estado no Senado mais do que dois anos! — continuava a resistir.

— Quantos soldados tem Sila? — perguntou Varrão.

— Cinco legiões de veteranos, seis mil soldados de cavalaria, alguns voluntários da Macedónia e do Peloponeso, e cinco coortes de Hispânicos que pertencem àquele intrujão que dá pelo nome de Marco Crasso. À volta de trinta e nove mil homens, no total.

Uma resposta que provocou em Varrão um gesto largo e irado.

— Repito o que disse, Magno: vê se cresces, vê se cresces! — exclamou. — Eu acabo de chegar de Arimino, onde Carbão se instalou com oito legiões e uma impressionante força de cavalaria — e isso é só o princípio! Só na Campânia há mais dezasseis legiões! Cina e Carbão andaram a reunir tropas durante três anos — há cento e cinqüenta mil homens armados na Itália e na Gália Italiana! Como poderá Sila enfrentar tantos soldados?

— Sila vai dar cabo deles — retorquiu Pompeu, muito pouco impressionado. — Além disso, euvou levar-lhe três legiões de veteranos do meu pai, gente que a guerra endureceu. Os soldados de Carbão não passam de crianças.

— Vais realmente constituir o teu próprio exército?

— Claro que vou.

— Magno, tu só tens vinte e dois anos! Não estás por certo à espera que os veteranos do teu pai se alistem num exército teu!

— E porque não? — perguntou Pompeu, sinceramente espantado.

— Em primeiro lugar, porque te faltam oito anos para poderes entrar no Senado. Para poderes ser cônsul, faltam-te vinte anos. E mesmo que os soldados do teu pai aceitassem combater sob a tua chefia, propor-lhes isso é absolutamente ilegal. Tu és um cidadão privado e os cidadãos privados não constituem exércitos.

— Há mais de três anos que o governo de Roma é ilegal! — contrapôs Pompeu. — Cina foi já cônsul por quatro vezes, Carbão duas, Marco Gratidiano foi duas vezes pretor urbano, quase metade dos senadores foram prescritos, Ápio Cláudio foi banido com o seu império intacto, Fímbria andou pela Ásia Menor a fazer negócios com o rei Mitridates — ora, tudo isto não passa de uma grande brincadeira! Uma anedota! Uma anedota é o que isto é!

Varrão pôs um ar que fazia lembrar o de uma mula pomposamente arreada — o que não era difícil para um Sabino da rosea rura, onde as mulas abundavam.

O problema tem de ser resolvido constitucionalmente — retorquiu.

Pompeu soltou uma franca gargalhada.

— Oh, Varrão! Eu gosto muito de ti, mas não há dúvida que tu podes ser tudo menos realista! Se este problema pudesse ser resolvido constitucionalmente, por que raio é que haveria agora, na Itália e na Gália Italiana, cento e cinqüenta mil soldados?

Varrão fez de novo um gesto largo, só que desta feita era um gesto de derrota.

— Pois muito bem! Irei contigo!

Pompeu sorriu com todos os dentes, pôs o braço à volta dos ombros de Varrão e conduziu-o na direcção do corredor que dava acesso aos seus aposentos.

— Magnífico! Magnífico! Vais poder escrever a história das minhas primeiras campanhas — tu és melhor estilista que o teu amigo Sisena. Eu sou o homem mais importante da nossa época: mereço ter o meu próprio historiador a meu lado.

Mas Varrão tinha a última palavra.

— Tu tens de ser importante! Caso contrário, como é que justificadas o cognome de Magno? — perguntou, rindo a bom rir. — O Grande! Aos vinte e dois anos, o Grande! Se pensarmos que o teu pai só conseguiu que lhe chamassem Vesgo!

Pompeu ignorou o chiste, pois já estava ocupado com o chefe dos criados e o armeiro, dando-lhes um sem-número de instruções.

Só então é que o átrio, vividamente pintado e adornado, ficou vazio de gente. Só lá estavam Pompeu e Antístia. Pompeu foi ter com ela.

— Minha gatinha tonta, vais ficar constipada! — ralhou-lhe, dando-lhe um beijo terno. — Volta para a cama, meu bolinho de mel.

— Não queres que te ajude a preparar as coisas? — perguntou ela num tom desolado.

— Os meus homens farão isso por mim, mas podes ficar a ver.

Desta feita, o caminho foi iluminado por um criado que segurava um castiçal cheio de velas; encostando-se a Pompeu, Antístia (segurando ainda o seu pequeno castiçal) acompanhou-o à sala onde se encontravam todos os seus atavios de guerra. Uma colecção imponente. Dez armaduras diferentes suspensas de armações de madeira, em forma de T, armaduras em ouro, prata, aço, e também em couro, presas com phalerae — e espadas e capacetes pendurados em pregos, e saiotes de correias de couro e vários tipos de roupa interior acolchoada.

— Agora fica aqui muito sossegadinha — disse Pompeu, erguendo a mulher como se fosse uma pena e sentando-a em cima de um baú enorme, tão alto que os seus pés não chegavam ao chão.

E Antístia para ali ficou, esquecida. Pompeu e os seus criados passaram em revista todos os atavios — seria esta peça de alguma utilidade, seria estoutra necessária? Quando acabou de revistar todos os outros baús espalhados pela sala, Pompeu conduziu descuidadamente a mulher para outro poiso, a fim de examinar o conteúdo do baú em que ela estivera sentada. E lá continuou a atirar os mais variados adereços para os escravos que permaneciam à espera, enquanto ia falando consigo mesmo com tanta alegria que Antístia bem podia perder as ilusões de que ele sentiria saudades da esposa, do lar ou da vida civil. Claro que ela sempre soubera que ele se considerava, acima de tudo, um soldado, que ele desprezava as actividades mais rotineiras dos seus pares — retórica, leis, governo, assembleias, as intrigas e manobras da política. Quantas vezes não o tinha ouvido dizer que havia de chegar à cadeira de marfim de cônsul pelos seus feitos guerreiros e não pelas belas palavras ou pelas frases vazias? E agora, ei-lo que punha em prática o que até então alardeara, a vaidade de um soldado, filho de outro soldado, prestes a ir para a guerra.

Quando o último dos escravos se arrastou para fora da sala, dobrado por uma pesada carga de equipamentos militares, Antístia desceu do baú e postou-se em frente do marido.

— Antes de te ires embora, Magno, tenho de falar contigo — disse ela.

Era claro que Pompeu considerava aquilo como uma pura perda de tempo. Apesar disso, parou.

— Pois bem, que se passa?

— Quanto tempo vais estar fora?

Não faço a menor ideia — retorquiu ele, muito alegre.

— Meses? Um ano?

— Meses, provavelmente. Sila vai dar cabo de Carbão.

Nesse caso, gostaria de voltar para Roma e de ir viver para casa do meu pai enquanto estiveres fora.

Ele abanou a cabeça, visivelmente espantado com tal proposta.

— Nem pensar! — disse. — Eu nãovou permitir que a minha mulher se passeie pela Roma de Carbão enquanto eu estiver com Sila, no campo de batalha, combatendo esse mesmo Carbão. Tu vais ficar aqui.

— Os teus criados não gostam de mim. Ninguém gosta de mim, aqui.vou passar tormentos, se não estiveres por perto.

— Disparate! — disse ele, virando-lhe as costas.

Ela deteve-o, postando-se em frente dele uma vez mais.

— Por favor, marido, dá-me apenas uns escassos segundos do teu tempo! Eu sei que o teu tempo é algo de muito valioso, mas a verdade é que eu sou a tua esposa!

Ele suspirou.

— Está bem, está bem! Mas depressa, Antístia!

— Eu não posso ficar aqui!

— Podes ficar e vais ficar — retorquiu ele, balançando-se, impaciente, nas pernas.

— Quando estás ausente — nem que seja por umas breves horas — a tua gente trata-me mal. Nunca me queixei porque tu sempre foste bom para mim e também porque só te ausentaste quando foste ver Cina em Ancona. Mas agora... Não há mais nenhuma mulher nesta casa. A minha solidão vai ser total. Seria melhor se eu voltasse para casa do meu pai enquanto durasse a guerra.

— Isso está fora de questão. O teu pai é apoiante de Carbão.

— Não, não é. O meu pai não é apoiante de ninguém a não ser de si mesmo.

Era a primeira vez que Antístia se opunha aos desejos do marido, a primeira vez que mostrava alguma resistência. Pompeu começava a perder a paciência.

— Ouve, Antístia: eu tenho coisas mais importantes para fazer do que ficar aqui a discutir contigo. Tu és a minha esposa e isso significa que vais ficar na minha casa.

— Na tua casa, onde o chefe dos criados me trata com desdém e me deixa na escuridão, onde eu não tenho criados meus e ninguém que me faça companhia — disse ela, tentando mostrar-se calma e razoável, ainda que, no fundo, começasse a sentir-se em pânico.

— Isso é o mais puro disparate!

— Não é, Magno. Não é! Não percebo porque é que todos me tratam com desprezo, mas essa é a pura verdade.

— Pois bem, não admira que tratem! — retorquiu ele, surpreendido com a pouca perspicácia da mulher.

Os olhos dela abriram-se de espanto.

— Não admira que tratem?! Que queres dizer com isso? Ele encolheu os ombros.

— A minha mãe era uma Lucília. Tal como a minha avó. E tu, o que és?

— Ora aí está uma boa pergunta. O que é que eu sou?

A ira dela deixava-o furioso. Mulheres! Ali estava ele prestes a participar na sua primeira guerra importante e aquela criatura insignificante atravessava-se no seu caminho, decidida a pôr em cena o seu próprio drama! Mas não teriam as mulheres nem uma réstia de bom senso?

— Tu és a minha primeira mulher — disse ele.

— Primeira?

— Sim. Trata-se de uma medida temporária.

— Ah, já percebi! — retorquiu ela, parecendo pensar antes de escolher as palavras. — Uma medida temporária. A filha do juiz... é isso, não é?

— Sempre soubeste que era isso.

— Mas já foi há tanto tempo, pensei que era um facto passado, pensei que me amavas. A minha família é uma família senatorial, eu não sou uma esposa inadequada para ti.

— Para um homem vulgar, serás uma boa esposa. Mas não estás à minha altura.

— Onde foste buscar esse conceito, Magno? É por isso que nunca deixaste o teu sêmen dentro de mim? Por eu não estar à altura de criar os teus filhos?

Sim! — gritou ele, preparando-se para deixar a sala.

Antístia foi atrás dele com o seu pequeno castiçal, demasiado irada agora para se preocupar com quem a pudesse ouvir.

Mas estive à tua altura quando foi preciso livrar-te de apuros! Quando Cina queria o teu dinheiro!

Esse é um assunto morto e enterrado — retorquiu ele,

apressando-se.

— Nesse caso, ainda bem para ti que Cina está morto!

— Ainda bem para Roma e para todos os bons romanos!

— Foste tu quem mandou assassinar Cina!

As palavras ecoaram pelo corredor de pedra, tão grande que por ele podia passar um exército. Pompeu parou.

— Cina morreu numa rixa de bêbedos com uns soldados que não gostavam dele.

— Em Ancona! Na tua cidade, Magno! Na tua cidade! E pouco depois de o teres visitado! — gritou ela.

Num ápice, Pompeu encostou-a à parede, com as mãos à volta do pescoço dela. Não lhe apertava o pescoço. Envolvia-lho com as mãos, apenas.

— Nunca mais voltes a dizer isso, mulher — disse ele, num tom sumido.

— É o que o meu pai diz! — conseguiu ela dizer, com a boca seca.

As mãos apertaram um pouco mais.

— O teu pai não gostava muito de Cina. Mas não está nada desagradado com Carbão e por esse motivo terei grande prazer em matá-lo. Mas não me dará prazer nenhum matar-te a ti. Eu não mato mulheres. Encolhe essa língua, Antístia. A morte de Cina não teve nada a ver comigo. Foi um simples acidente.

— Quero ir para casa dos meus pais! Quero ir para Roma! Pompeu libertou-a e deu-lhe um empurrão.

— A resposta é não. Agora deixa-me em paz!

E foi-se embora, chamando pelo chefe dos criados; Antístia ainda conseguiu ouvi-lo dizer àquele abominável homem que a senhora estava proibida de deixar a fortaleza enquanto ele estivesse na guerra. Tremendo, Antístia regressou lentamente ao quarto que partilhara com Pompeu durante dois anos e meio, na qualidade de sua primeira mulher — um expediente provisório. Não estava à altura de criar os filhos dele. Por que razão não suspeitara de nada, se ele, quando fazia amor, ejaculava sempre fora dela, deixando-lhe no ventre uma poça viscosa que ela se apressava a limpar?

As lágrimas ameaçavam rebentar. Num instante ela começaria a chorar e depois choraria durante horas e horas. A desilusão, antes de o amor ter perdido todos os seus encantos, é sempre terrível.

Ao longe, ouviu-se mais um daqueles gritos de alegria, bárbaros e aterradores, e, logo a seguir, a voz de Pompeu:

—vou partir para a guerra,vou partir para a guerra! Sila desembarcou em Itália! A guerra vai começar!

Não tinha o dia ainda nascido quando Pompeu, vestido com uma reluzente armadura de prata e ladeado pelo irmão, um jovem de 18 anos, e por Varrão, conduziu um pequeno grupo de assistentes e escribas até ao mercado de Auximo. Aí chegado, cravou o estandarte do pai no meio daquele vasto espaço aberto e aguardou, com indisfarçável impaciência, que o seu secretariado se reunisse atrás de uma série de mesas desmontáveis, distribuísse folhas de papel, aguçasse as penas de cana e dissolvesse os torrões de tinta em pesados tinteiros de pedra.

Quando os funcionários de Pompeu terminaram estes preparativos, já uma vasta multidão se tinha juntado à sua volta, tão vasta que se espalhava para lá da praça, pelos caminhos e ruas que davam acesso ao mercado. Ágil e leve, Pompeu saltou para um pódio improvisado, instalado sob o estandarte com a imagem de um pica-pau que pertencera a seu pai.

— Chegou a hora! — gritou. — Lúcio Cornélio Sila desembarcou em Brindísio e vai reivindicar aquilo que, por direito, lhe pertence — um império ininterrupto, um triunfo, o privilégio de colocar os seus louros aos pés de Júpiter Optimus Maximus, dentro do Capitólio de Roma! Por esta altura, o ano passado, o outro Lúcio Cornélio, que se cognominara de Cina, estava relativamente perto desta cidade, tentando convencer os veteranos do meu pai a aderirem à sua causa. Não teve êxito. Pelo contrário: encontrou a morte. Hoje, é a mim que vêem. E hoje estou a ver muitos dos veteranos do meu pai aqui à minha frente. Eu sou o herdeiro do meu pai! Os homens dele são os meus homens. O seu passado é o meu futuro.

Eu vou a Brindísio lutar pela causa de Sila, porque a causa dele é justa. Quantos de vocês irão comigo?

Curto e simples, pensou Varrão, maravilhado. Talvez aquele jovem tivesse razão quando dizia que ganharia a cadeira curul de cônsul pelos seus feitos guerreiros e não pela força das palavras. Nenhum dos rostos que conseguia distinguir entre a multidão dava mostras de achar falhas ou deficiências no discurso de Pompeu. Mal ele acabou de falar, as mulheres começaram a dispersar, comentando agitadamente a iminente ausência dos maridos e dos filhos, algumas torcendo as mãos de desespero, outras ocupadas já com coisas práticas, como encher as mochilas de mudas de roupa, em particular túnicas e meias, outras ainda de olhos postos no chão para esconderem sorrisos maliciosos. Afastando do seu caminho as crianças mais excitadas com ameaças de bofetões ou pontapés, os homens foram-se reunindo à volta das mesas portáteis. Poucos momentos depois, já os funcionários de Pompeu escrevinhavam energicamente.

Varrão foi sentar-se no alto da escadaria do velho templo de Pico, de onde podia ter uma vasta visão de todas as actividades. Ter-se-iam aqueles homens oferecido tão despreocupadamente para as campanhas do vesgo Pompeu Estrabão?, perguntou para si mesmo. Provavelmente não. Pompeu Estrabão fora um senhor, um homem duro mas um óptimo comandante; tê-lo-iam servido de bom grado, mas com expressões sóbrias. No caso do filho, tudo era diferente. Estou a assistir a um fenômeno, pensou Varrão. Os Mirmidões não se teriam oferecido com mais alegria para lutar por Aquiles, nem os Macedónios para lutar por Alexandre, o Grande. Eles amavam aquele homem! Ele era o mais que tudo daqueles homens, a sua mascote, o seu filho e, ao mesmo tempo, o seu pai.

Uma corpulenta massa sentou-se nesse momento ao lado dele. Varrão virou a cabeça e deu de caras com um rosto muito corado, encimado por um cabelo ruivo; um par de inteligentes olhos azuis examinava-o atentamente, o que não admirava, pois ele era o único estranho ali presente.

— Qual é a sua graça, meu amigo? — perguntou-lhe o rosado gigante.

— O meu nome é Marco Terêncio Varrão e sou um Sabino.

— Como nós, ha? bom, quer dizer, há muito, muito tempo — disse o homem, agitando depois a mão calejada na direcção de Pompeu. — Olhe-me só para ele! Ah, o que nós esperámos por este dia, Marco Terêncio Varrão, o Sabino! Não é mesmo o pote de mel da Deusa, aquele homem? Varrão sorriu.

— Não estou certo de que poria a coisa nesses termos, mas percebo o que quer dizer.

— Ah! O meu amigo não é apenas um cavalheiro com três nomes, também é um cavalheiro letrado! Não me diga que é amigo dele?!

— Sou capaz de ser.

— E o que é que o amigo faz na vida?

— Em Roma, sou um senador. Mas em Reate, crio éguas.

— Ah sim? Não cria mulas?

— É melhor criar éguas do que as mulas que elas possam parir. Tenho uma pequena porção da rosea rura e alguns burros garanhões.

— E que idade tem o meu amigo?

— Trinta e dois — retorquiu Varrão, extremamente divertido com o diálogo.

Porém, de repente, as perguntas cessaram; o interlocutor de Varrão instalou-se mais confortavelmente, descansando um cotovelo no degrau superior e estirando um par de pernas hercúleas para depois as cruzar pelos tornozelos. Fascinado, o minúsculo Varrão reparou nos imundos dedos dos pés do homem, quase tão grandes cômodos seus próprios dedos das mãos.

— E qual é a sua graça, já agora? — perguntou, usando a mesma linguagem do outro.

— Quinto Escápcio.

— E já se alistou?

— Nem todos os elefantes de Aníbal chegavam para me deter!

— É um veterano, ora não?

— Alistei-me no exército do paizinho dele quando tinha dezassete anos. Isso foi há oito anos, mas já servi em doze campanhas, de maneira que já não tenho de me alistar em mais nenhum exército, a menos que queira — retorquiu Quinto Escápcio.

— Mas pelos vistos quis.

— Nem os elefantes de Aníbal, Marco Terêncio, nem os elefantes de Aníbal!

— Já chegou ao posto de centurião, não é verdade?

— Sou capaz de chegar, nesta campanha.

Enquanto conversavam, Varrão e Escápcio mantinham os olhos fixos em Pompeu, que estava mesmo diante da mesa do meio, saudando alegremente este ou aquele homem no meio da multidão.

— Ele diz que a marcha vai começar antes de esta lua chegar ao seu termo — observou Varrão. — Mas não estou a ver como. Admito que nenhum destes homens que aqui estão hoje precisará de muito treino. Mas onde é que ele vai arranjar armas e armaduras para tanta gente? E animais de carga? E carros e bois? E comida? E como arranjará ele o dinheiro para manter este grande empreendimento durante o tempo que for preciso?

Escápcio deu uma espécie de grunhido, o que, aparentemente, indicava que um tal comentário o divertia.

— Ele não precisa de se preocupar com essas coisas! O paizinho dele deu a cada um de nós armas e armaduras logo que começou a guerra contra os Italianos; depois de o paizinho morrer, o rapaz disse-nos para não nos separarmos delas. Cada um de nós tem uma mula e os centuriões têm carros e bois. De maneira que vamos ficar prontos num instante. Ninguém apanha desprevenido um Pompeu! Há trigo que chegue nos nossos celeiros e montanhas de outros alimentos nas nossas despensas. As nossas mulheres e os nossos filhos não vão passar fome por nós comermos bem na campanha.

— E quanto ao dinheiro? — perguntou delicadamente Varrão.

— Dinheiro? — atirou Escápcio, menosprezando a questão com uma fungadela de desdém. — Nós servimos o paizinho dele e não vimos muito dinheiro, essa é que é essa. Mas naqueles tempos também não havia dinheiro para ver. Se ele tiver dinheiro, dá-nos. Se não tiver, nós passamos bem sem o dinheiro. Ele é um bom amo.

— Estou a ver.

Remetendo-se ao silêncio, Varrão estudou Pompeu com renovado interesse. Toda a gente contava histórias sobre a lendária independência de Pompeu Estrabão durante a Guerra Italiana: como tinha mantido as suas legiões durante muito tempo depois de ter recebido ordens para as desmantelar, e como alterara directamente o curso dos acontecimentos em Roma, precisamente por não as ter desmantelado. Cina, quando investigara os livros do Tesouro, após a morte de Caio Mário, não encontrara grandes contas relacionadas com os soldos das tropas de Estrabão. Agora Varrão sabia porquê. Pompeu Estrabão não se tinha preocupado em pagar às suas tropas. E por que razão havia de pagar, se, na prática, era dono de toda aquela gente?

Nesse momento, Pompeu deixou o seu posto e encaminhou-se para os degraus do templo de Pico.

—vou procurar um terreno para acamparmos — disse ele para Varrão, após o que saudou o Hércules que estava ao lado com um sorriso arreganhado. — Estou a ver que vieste cedo, Escápcio!

Escápcio levantou-se pesadamente.

— É verdade, Magno. O melhor é eu ir até casa procurar as minhas coisas, não é?

Ah, afinal toda a gente o tratava por Magno! Varrão também se levantou.

— Euvou contigo, Magno.

A multidão estava a diminuir e as mulheres começavam a regressar ao mercado; uns quantos mercadores, até então impedidos de trabalhar, andavam já numa azáfama, instalando as suas tendas, enquanto os escravos se apressavam a enchê-las de artigos variados. Uma grande quantidade de roupa suja espalhava-se já pelo pavimento à volta da enorme fonte em frente do santuário local aos Lares, e uma ou duas raparigas puxaram as saias para cima a fim de se meterem na água baixa. Que cidade tão típica!, pensou Varrão, caminhando ligeiramente atrás de Pompeu: sol e poeira, umas quantas árvores sumbrosas, o constante zumbido dos insectos, a sensação de se viver fora do tempo, as maçãs de Inverno muito enrugadas, um povo trabalhador em que todos sabem demasiado acerca uns dos outros. Aqui em Auximo não há segredos!

— Estes homens são gente valente — disse ele para Pompeu quando deixaram o mercado e procuravam os cavalos.

— São Sabinos, Sabinos como tu, Varrão — retorquiu Pompeu. — Apesar de terem vindo do outro lado dos Apeninos há séculos atrás. — bom, não são precisamente como eu! — comentou Varrão, enquanto um dos criados de Pompeu o ajudava a subir para a sela. — Eu posso ser um Sabino, mas não sou um soldado, nem por natureza nem por treino.

— com certeza que fizeste alguma coisa na Guerra Italiana...

— Sim, claro que fiz. E fiz as minhas dez campanhas. E quão depressa as fiz, durante essa conflagração! Porém, desde que a Guerra Italiana acabou, nunca mais pensei em espadas nem em cotas de malha.

Pompeu riu-se.

— Pareces mesmo o meu amigo Cícero.

— Marco Túlio Cícero? O prodígio em leis?

— Esse mesmo. Cícero odiava a guerra. Não tinha queda nenhuma para a guerra e o meu pai não compreendia isso. Mas mesmo assim era um bom tipo. Gostava das tarefas que eu detestava. De maneira que encobríamo-nos um ao outro e, assim, o meu pai ficava todo satisfeito com o nosso trabalho. — Pompeu suspirou. — Depois da queda de Ásculo Picentino, Cícero quis ir servir sob as ordens de Sila, na Campânia. Ah, a falta que ele me fez!

Passaram dois mercados, ou seja, dois intervalos de oito dias, e Pompeu já tinha as suas três legiões de veteranos voluntários instaladas num campo fortificado, a poucos quilômetros de Auximo, nas margens de um afluente do rio Ésis. As instalações sanitárias do acampamento eram impecáveis: a sua manutenção e limpeza era rigidamente policiada. Pompeu Estrabão fora um produto mais típico das suas origens rurais. Conhecia apenas uma forma de lidar com nascentes, fossas, latrinas, recolha de lixos, drenagem: quando o fedor se tornava insuportável, mudava de sítio. E fora por isso mesmo que ele morrera de febre, diante da Porta Colina de Roma, e que o povo do Quirinal e do Viminal, vendo as suas nascentes poluídas pelo lixo dos soldados de Estrabão, infligira um tratamento tão insultuoso ao seu cadáver.

Cada vez mais fascinado, Varrão observava a evolução do exército do seu jovem amigo, e maravilhava-se com o génio absoluto de Pompeu nos domínios da organização e da logística. Nenhum pormenor era descuidado; e, simultaneamente, aquelas obras imensas eram executadas com a velocidade que só uma eficiência notável permitia. Faço parte de um reduzido círculo de pessoas que tem o privilégio de acompanhar um verdadeiro fenômeno, pensou Varrão: ele vai mudar a forma como o nosso mundo se apresenta, ele vai mudar a forma como vemos o nosso mundo. Não há nele resquício de medo, a sua autoconfiança é total.

Contudo, recordava Varrão, também outros se agüentaram tão bem como ele antes de os vendavais começarem. Como se comportará ele quando o seu empreendimento tiver já avançado, quando a oposição o cercar, quando tiver de enfrentar, não homens como Carbão ou Sertório, mas um homem como Sila? Esse é que vai ser o verdadeiro teste! Do mesmo lado da barricada, ou em lados opostos, a relação entre o velho touro e o jovem touro decidirá o futuro do jovem touro. Será que ele se vai curvar? Poderá ele curvar-se? Que reservará o futuro a uma criatura tão jovem, tão segura de si mesma? Haverá no mundo alguma força ou algum homem capaz de o vergar?

Definitivamente, Pompeu achava que não havia. Embora não fosse um místico, criara uma atmosfera espiritual para si mesmo, uma atmosfera que se coadunava com certas características instintivas da sua natureza que muito apreciava. Por exemplo, havia qualidades que ele sabia que dominava, mais do que possuía — invencibilidade, invulnerabilidade, inviolabilidade —, pois, se essas qualidades existiam tanto nele como fora dele, domínio parecia uma palava mais adequada do que posse. Era como se um licore divino corresse nas suas veias e, ao mesmo tempo, um miasma divino o envolvesse. Praticamente desde a infância, Pompeu sonhava acordado os sonhos mais colossais que se possa imaginar; na sua mente, comandara dez mil batalhas, conduzira a antiga quadriga de vencedor, celebrando uma centena de triunfos, fora, vezes sem conta, como um Júpiter vindo à terra enquanto Roma se curvava para o idolatrar a ele, o maior homem que alguma vez existira ao cimo da terra.

Onde Pompeu, o sonhador, diferia de todos os sonhadores dessa espécie, era na qualidade do seu contacto com a realidade — ele via o mundo real com apuradíssima acuidade, nunca deixava escapar uma possibilidade ou probabilidade, a sua mente absorvia como uma sanguessuga todos os factos, tanto os mais importantes como os mais ínfimos. Por isso, os seus sonhos colossais acabavam por ser uma bigorna mental em que modelava a forma dos seus dias reais, em que os temperava e enrijecia, enquadrando-os na moldura concreta da sua existência efectiva.

E assim organizava os seus homens dentro das centúrias, das coortes, das legiões; treinava-os e inspeccionava os seus equipamentos; punha de lado os animais de carga mais velhos e, no que toca aos carros, verificava a resistência dos eixos, fazia-os balançar, punha os seus homens a conduzi-los a boa velocidade pelos terrenos pedregosos que havia junto ao acampamento. Tudo teria de ser perfeito porque ele não permitiria que nenhum pormenor da sua obra desse dele uma imagem de menos perfeição.

Doze dias depois de Pompeu ter começado a reunir as suas tropas, chegaram notícias de Brindísio. Sila subia a Via Ápia no meio de histéricas cenas de boas-vindas em todos os lugares, aldeias, vilas ou cidades. Mas antes de se pôr em marcha — acrescentou o mensageiro de Pompeu —, Sila reuniu todos os seus homens e pediu-lhes que lhe jurassem fidelidade. Se os de Roma tinham alguma vez duvidado da determinação de Sila em furtar-se a toda e qualquer ameaça de futuras perseguições por alta traição, o facto de o seu exército lhe ter jurado fidelidade — inclusivamente contra o governo de Roma — significava que a guerra era agora inevitável.

Então, acrescentou o mensageiro de Pompeu, os soldados de Sila foram ter com ele e ofereceram-lhe todo o seu dinheiro, a fim de que ele pudesse pagar todo o trigo, todos os legumes e toda a fruta que fosse preciso consumir enquanto avançavam pelo interior da Calábria e da Apúlia; não perturbariam o sucesso do seu general com expressões sombrias, não destruiriam colheitas, não matariam pastores, não violariam mulheres, não condenariam à fome as crianças. Tudo se passaria como Sila muito bem entendesse; ele podia pagar-lhes mais tarde quando fosse o senhor de toda a Itália e, naturalmente, de Roma.

A notícia de que as regiões do Sul da península tinham recebido Sila jubilosamente não agradou nada a Pompeu, pois Pompeu esperava que, quando se encontrasse com Sila, este estivesse numa situação suficientemente precária para precisar dele. Contudo, era evidente que isso não aconteceria; a reacção de Pompeu foi encolher os ombros e tratar de adaptar os seus planos à situação que lhe fora descrita.

— Desceremos junto à nossa costa até Buca, depois rumaremos para o interior, na direcção de Benevento — disse ele aos três centuriões-chefes, que comandavam as legiões. Mandavam as leis que esses postos fossem atribuídos a tribunos militares de família ilustre, que Pompeu poderia encontrar caso tivesse feito alguma coisa nesse sentido. Porém, os tribunos militares de famílias ilustres teriam questionado o direito de Pompeu a dirigir o seu exército, e por isso Pompeu preferira escolher os seus subordinados entre a sua própria gente, ainda que alguns romanos de famílias ilustres deplorassem por certo tal atitude, se por acaso tivessem sabido do sucedido.

— Quando avançamos? — perguntou Varrão, já que mais ninguém perguntava.

— Oito dias antes do fim de Abril — respondeu Pompeu.

Foi então que Carbão entrou em cena. Pompeu teve uma vez mais de alterar os seus planos.

A linha recta da Via Emília seccionava a Gália Italiana desde os Alpes Ocidentais até Arimino, porto do mar Adriático; a partir de Arimino, outra excelente estrada acompanhava a costa até Fano Fortunas, cidade onde começava a Via Flamínia, que era um dos acessos a Roma. Por isso, Arimino gozava de uma importância estratégica apenas igualada por Arécio, que dominava os acessos a Roma a oeste dos Apeninos.

Era portanto lógico que Cneu Papírio Carbão — duas vezes cônsul de Roma e agora governador da Gália Italiana — instalasse as suas oito legiões e a sua cavalaria nos arredores de Arimino. A partir desta base, podia movimentar-se em três direcções: ao longo da Via Emília, através da Gália Italiana, na direcção dos Alpes Ocidentais; ao longo da costa adriática, na direcção de Brindísio; e ao longo da Via Flamínia, na direcção de Roma.

Há dezoito meses que Carbão sabia que Sila regressaria e que o local escolhido para o seu regresso seria, evidentemente, Brindísio. Porém, em Roma, permaneciam ainda muitos homens que, quando chegasse o momento decisivo, podiam escolher o partido de Sila, ainda que se declarassem completamente neutrais; e todos eles tinham suficiente influência política para derrubar o governo, facto que transformava Roma num alvo óbvio. Carbão sabia também que Metelo Pio, o Bacorinho, se tinha refugiado na Ligúria, junto aos Alpes Ocidentais da Gália Italiana; Metelo Pio tinha duas legiões que trouxera da Província de África depois de os partidários de Carbão o terem expulso de África. Carbão tinha a certeza de que o Bacorinho iria ter com Sila mal soubesse do seu desembarque e isso também contribuía para a vulnerabilidade da Gália Italiana.

Claro que havia as dezasseis legiões instaladas na Campânia, legiões que estavam muito mais próximas de Brindísio do que as tropas de Carbão; mas até que ponto poderia ele confiar nos cônsules daquele ano, Norbano e Cipião Asiágeno? Carbão não tinha uma resposta certa a esta questão, tanto mais que, agora, a sua vontade de ferro não se fazia sentir em Roma. No final do ano anterior, ficara convencido de duas coisas: Sila viria na Primavera e Roma sentir-se-ia mais inclinada a opor-se a Sila se ele, Carbão, se ausentasse de Roma. Por isso, garantira a eleição de dois partidários fiéis, Norbano e Cipião Asiágeno, e atribuíra a si mesmo o governo da Gália Italiana, a fim de poder vigiar os acontecimentos e de assegurar uma posição que lhe permitisse actuar logo que fosse necessário. A sua escolha dos cônsules fora correcta — pelo menos teoricamente —, pois nem Norbano nem Cipião Asiágeno poderiam ter esperanças de misericórdia por parte de Sila. Norbano era um cliente de Caio Mário e Cipião Asiágeno disfarçara-se de escravo para poder fugir de Esérnia durante a Guerra Italiana, uma acção que repugnara a Sila. No entanto, seriam eles suficientemente fortes? Usariam as suas dezasseis legiões como generais natos, ou deitariam tudo a perder? O problema de Carbão é que não sabia.

Havia uma coisa com que Carbão não tinha contado. De facto, nunca lhe passara pela cabeça que o herdeiro de Pompeu Estrabão, não mais que um rapazola, pudesse ter a audácia de juntar três legiões de veteranos do pai e de marchar com elas ao encontro de Sila! Não que Carbão levasse o jovem a sério, nada disso. Aquilo que o preocupava eram as três legiões de veteranos. Logo que pudesse dispor delas, Sila usá-la-ias brilhantemente.

Foi o questor de Carbão, o excelente Caio Verres, quem lhe deu a notícia da projectada expedição de Pompeu.

— Vamos ter de deter o rapaz antes que ele comece — disse Carbão, de sobrolho franzido. — Mas que aborrecimento! Só espero que Metelo Pio fique quieto na Ligúria enquanto eu trato do jovem Pompeu, e que os cônsules consigam agüentar Sila.

— Para tratar do jovem Pompeu não vai ser preciso muito tempo — comentou Caio Verres num tom confiante.

— Concordo, mas nem por isso deixa de ser aborrecido — disse Carbão. — Agora agradecia que chamasses os meus legados.

Não foi nada fácil encontrar os legados de Carbão; Verres fartou-se de procurar no vasto acampamento e estava já a demorar demasiado tempo, coisa que sabia não agradar a Carbão. Enquanto procurava os legados, a sua mente andava ocupada com muitas outras coisas, nenhuma das quais relacionada com as actividades do herdeiro de Pompeu Estrabão. Era essencialmente em Sila que Caio Verres pensava. Embora nunca se tivesse encontrado com Sila (não havia razão para tal, já que o seu pai não passava de um humilde senador e que ele próprio, durante a Guerra Italiana, estivera ao serviço de Caio Mário e, posteriormente, de Cina, lembrava-se de o ter visto no desfile a quando da sua tomada de posse como cônsul. Lembrava-se claramente da expressão de Sila, uma expressão que o impressionara profundamente. Como não era, por natureza, um guerreiro, Verres nunca se lembrara de participar na expedição de Sila ao Oriente, nem tão pouco achara a Roma de Cina e Carbão um local insuportável. Verres gostava de estar onde houvesse dinheiro, pois tinha gostos caros em arte e ambições tremendas. Agora, contudo, enquanto procurava os legados séniores de Carbão, começava a perguntar-se se não seria altura de mudar de partido.

Para sermos rigorosos, Caio Verres não era questor, mas sim proquestor; o seu mandato oficial como questor terminara no final do ano. O facto de ainda estar em funções devia-se a Carbão, que o nomeara pessoalmente e que ficara tão satisfeito com o seu trabalho que não pôde deixar de levá-lo para a Gália Italiana. E como a função do questor consistia em gerir o dinheiro e as contas do seu superior, Caio Verres requerera e recebera do Tesouro, em nome de Carbão, a soma de 2 235 417 sestércios; este estipêndio, calculado com o máximo rigor até ao mais ínfimo sestércio (bastaria pensar nos 417 sestércios referidos!), serviria para pagar as despesas de Carbão — para pagar às suas legiões, para as alimentar, para garantir um estilo de vida digno do próprio Carbão, aos seus legados, criados e questor, e para custear mil e uma coisas inclassificáveis nas rubricas anteriores.

Embora o mês de Abril não tivesse ainda chegado ao fim, mais de um milhão e meio de sestércios tinham já sido consumidos, o que significava que, muito em breve, Carbão teria de pedir mais dinheiro ao Tesouro. Os seus legados viviam extremamente bem e o próprio Carbão há muito que estava acostumado a dispor dos recursos públicos de Roma como muito bem lhe aprouvesse. Isto para não falar de Caio Verres; também nele o dinheiro exercia uma atracção avassaladora. Limitara-se até então a discretos desvios de fundos. Agora, porém, verificando que a sua posição naquele quadro se alterara, concluiu que já não havia motivos para tanta discrição! Mal Carbão virasse costas para ir combater Pompeu, Caio Verres partiria. Era tempo de mudar de partido.

E de facto Caio Verres partiu. Carbão reuniu quatro das suas legiões — nenhuma cavalaria — aos primeiros alvores da manhã e com elas seguiu para a guerra contra o herdeiro de Pompeu Estrabão. Não ia o Sol ainda muito alto quando Caio Verres partiu. Acompanhavam-no apenas os seus próprios criados e não seguiu Carbão para sul; tomou a direcção de Arimino, onde os fundos de Carbão se encontravam nos cofres de um banqueiro local. Apenas duas pessoas tinham autoridade para o retirar: o governador, Carbão, e o seu questor, Verres. Depois de alugar vinte mulas, Verres levantou um total de quarenta e oito sacas de couro, cada uma pesando meio talento, e com elas carregou as mulas. Não teve sequer de apresentar uma desculpa; a notícia do desembarque de Sila chegara a Arimino mais depressa que uma tempestade de Verão e o banqueiro sabia que Carbão se tinha posto em marcha com metade da sua infantaria.

Muito antes do meio-dia, Caio Verres deixara já as cercanias de Arimino com seiscentos mil sestércios do estipêndio oficial de Carbão. Usando sempre as estradas secundárias, dirigiu-se primeiro às suas terras do vale do Tibre e, depois, já aliviado de vinte e quatro talentos de moedas de prata, foi em busca de Sila.

Ignorando que o seu questor havia desertado, Carbão foi descendo a costa adriática, na direcção da posição de Pompeu perto do Ésis. Estava com uma disposição tão optimista que não só avançou a um ritmo lento, como também não tomou qualquer precaução para ocultar a sua marcha. Aquele ia ser um bom exercício para as suas tropas, em grande parte sem experiência de guerra. Não mais do que isso: um bom exercício. Por muito assustadoras que as três legiões de veteranos de Pompeu Estrabão pudessem ser, Carbão tinha experiência suficiente para compreender que o comportamento de um exército depende essencialmente do seu general. E o general deles era uma criança! Combater contra eles seria, portanto, uma brincadeira de crianças.

Quando lhe deram a notícia de que Carbão se aproximava, Pompeu deu um dos seus costumeiros gritos de alegria e reuniu de imediato os soldados.

Nem sequer temos de deixar as nossas terras para travar a primeira batalha! — gritou-lhes Pompeu. — É o próprio Carbão que vem ter connosco! E já perdeu a batalha! Porquê? Porque sabe que sou eu quem está no comando! Por vocês, ele sente respeito. Mas por mim, não sente respeito nenhum. Carbão devia ter percebido que o filho do Carniceiro também sabe partir ossos e cortar carne, mas qual quê! Carbão é um pateta! Ele pensa que o filho do Carniceiro é um rapaz demasiado bonito e afectado para sujar de sangue as suas mãos, para seguir as pisadas do pai! Pois está enganado! Vocês sabem que ele está enganado. E eu também sei. Portanto, vamos dar-lhe uma lição!

E de facto deram-lhe uma lição. As quatro legiões de Carbão desceram até ao Ésis numa formação bastante ordenada e aguardaram disciplinadamente que os batedores atravessassem primeiro o rio, agora mais cheio por causa do degelo da Primavera nos Apeninos. Não muito longe do vau, Carbão sabia que Pompeu continuava no seu acampamento, mas era tal o seu desdém que nunca lhe ocorreu que Pompeu pudesse estar a um passo dali.

Tendo dividido os seus soldados e mandado que metade deles atravessasse o Ésis muito antes da chegada de Carbão, Pompeu atacou o adversário no momento em que duas das legiões deste tinham acabado de atravessar o rio, enquanto as outras duas se preparavam para fazê-lo. As duas pontas da sua tenaz apertaram simultaneamente. De facto, os soldados de Pompeu, escondidos atrás das árvores, nas duas margens do rio, precipitaram-se no mesmo momento sobre o inimigo, levando tudo à sua frente. Combateram com a ideia de provar uma coisa: que o filho do Carniceiro sabia dos negócios da guerra ainda mais que o pai. Forçado pelo seu cargo de general a permanecer na margem sul do rio, Pompeu não pôde fazer aquilo por que mais ansiava — ir ele próprio atrás de Carbão. Os generais, como o pai lhe dissera muitas vezes, nunca deviam afastar-se muito da base, pois a batalha podia não correr como se previa, tornando-se necessário proceder a uma retirada rápida. Por isso, Pompeu teve de limitar-se a observar Carbão e o seu legado Lúcio Quíncio enquanto estes reuniam as duas legiões que tinham ficado na outra margem do Ésis e fugiam na direcção de Arimino. Dos que chegaram à margem de Pompeu, nenhum ficou vivo. Não havia dúvida que o filho do Carniceiro conhecia bem o ofício do pai. Por isso, foi com o maior júbilo que cantou vitória.

Agora era tempo de ir ter com Sila!

Dois dias depois, cavalgando um corpulento cavalo branco que, segundo ele, era o Cavalo Público da família Pompeu — assim denominado porque era o Estado que o dava à família —, Pompeu encaminhou as suas três legiões para terras que, poucos anos antes, se tinham mostrado ferozmente anti-romanas. Picentinos do sul, Vestinos, Marrucinos, Frentanos: todos estes povos tinham lutado para libertar os Aliados Italianos da sua longa sujeição a Roma. O facto de terem sido derrotados devia-se largamente ao homem com quem Pompeu se ia encontrar — Lúcio Cornélio Sila. No entanto, ninguém tentou impedir o avanço do exército; de facto, houve mesmo homens que se ofereceram como voluntários. A notícia da derrota de Carbão impulsionara fortemente o prestígio de Pompeu e aqueles povos gostavam da guerra. Se a batalha pela Itália estava perdida, havia outras causas; aparentemente, o sentimento geral era de que seria preferível apoiar Sila a combater por Carbão.

Era muito elevado o moral do pequeno exército quando deixou a costa, em Buca, e seguiu por uma estrada muito razoável na direcção de Larino, na Apúlia Central. Dois períodos entre mercados, de oito dias cada, tinham passado, quando os dezoito mil veteranos de Pompeu chegaram a Larino, uma próspera cidadezinha no meio de uma rica região agrícola e pecuária. Não faltava nenhum dos notáveis da cidade na delegação que deu as boas-vindas a Pompeu — e que o despachou com subtil premência.

A batalha seguinte esperava-o a menos de cinco quilômetros daquela cidade. Carbão não perdera tempo e enviara já uma mensagem a Roma, advertindo para o perigo constituído pelo filho do Carniceiro e as suas três legiões de veteranos. Roma também não perdeu tempo e tratou de impedir a junção de Pompeu a Sila. Duas das legiões da Campânia, sob o comando de Caio Álbio Carrinas, foram enviadas para bloquear o avanço de Pompeu. Os dois exércitos encontraram-se em plena marcha. O confronto foi violento, feroz, e absolutamente decisivo; Carrinas ficou apenas o tempo necessário para ver que não tinha qualquer hipótese de vencer, lançando-se depois numa retirada apressada com os seus homens razoavelmente intactos — e com mais respeito pelo filho do Carniceiro.

Por esta altura, os soldados de Pompeu sentiam-se tão seguros e determinados que as suas caligae de grossas solas ferradas palmilhavam quilômetros e quilômetros como se esse fosse um esforço trivial; tinham ultrapassado os quatrocentos e cinqüenta quilômetros de marcha com um ou dois goles de vinho fraco para comemorar o acontecimento. Pouco depois chegavam a Sepino, uma cidade mais pequena que Larino, e Pompeu recebeu a notícia de que Sila já não estava longe. De facto, o seu acampamento encontrava-se instalado nos arredores de Benevento, na Via Ápia.

Antes, porém, Pompeu teria de travar outra batalha. Lúcio Júnio Bruto Damasipo, irmão do legado sénior e velho amigo de Pompeu Estrabão, tentou emboscar o filho deste numa pequena extensão de terreno escarpado, entre Sepino e Sirpio. A orgulhosa confiança de Pompeu nas suas capacidades parecia ter razão de ser; os seus batedores descobriram onde Bruto Damasipo e as suas duas legiões se tinham escondido e foi Pompeu que atacou Bruto Damasipo sem que este esperasse. Várias centenas de soldados de Bruto Damasipo morreram antes que ele conseguisse retirar de uma posição difícil e fugir na direcção de Boviano.

No final de cada uma destas três batalhas, Pompeu não fizera qualquer tentativa para perseguir os seus inimigos. Mas as razões que o levavam a ter esse comportamento não eram as que Varrão e os três centuriões primus pilus pensavam. O facto de Pompeu desconhecer a geografia local, ou o facto de não saber se aqueles combates não passariam de diversões para o atrair aos braços de uma força mais poderosa, não pesavam especialmente nos seus pensamentos. Na realidade, a mente de Pompeu estava obcecada com uma única coisa: o seu próximo encontro com Lúcio Cornélio Sila.

Perante os seus olhos cegos e sonhadores, desfilavam visões desse encontro como se fossem quadros vivos — dois homens tão poderosos como os deuses, de cabelos resplandecentes e fisionomias simultaneamente fortes e belas, desciam das suas selas com a graça e o poder de gigantescos gatos e, com passos cadenciados, imponentes, encaminhavam-se na direcção um do outro, no meio de uma estrada vazia, enquanto, nas bermas, se aglomeravam todos os viajantes e habitantes da região. Atrás de cada um desses homens magníficos, havia um exército, e todos os olhos se fixavam neles. Zeus caminhando ao encontro de Júpiter. Ares caminhando ao encontro de Marte. Hércules caminhando ao encontro de Milão. Aquiles caminhando ao encontro de Heitor. Sim, aquele encontro seria celebrado ao longo dos séculos, e daria origem a tantos cânticos e poemas que Eneias e Turno, ao pé daqueles dois, se sentiriam apoucados! O primeiro encontro entre os dois colossos daquele mundo, os dois sóis do céu do mundo — e embora o Sol posto fosse ainda quente e forte, a verdade é que o seu percurso se estava a aproximar do fim. Ah! Mas o Sol nascente! Quente e forte já, e com toda a sublime abóbada à sua frente, a abóbada em que se tornaria cada vez mais quente, cada vez mais forte. O Sol de Sila está a pôr-se!, pensava, exultante, Pompeu. Ao passo que o meu, pensava ainda, acaba de espreitar no Oriente.

Pompeu mandou Varrão à frente, com a missão de apresentar cumprimentos a Sila e de lhe descrever os seus progressos a partir de Auximo, incluindo o cômputo das baixas que provocara e os nomes dos generais que derrotara. Varrão deveria ainda pedir a Sila que se fizesse à estrada a fim de se encontrar com o seu aliado, de forma a que toda a gente pudesse testemunhar que Pompeu vinha em paz oferecer os seus préstimos e as suas tropas ao maior homem da sua era. Pompeu não pediu a Varrão que acrescentasse ”ou de qualquer outra era” — isso é que ele não estava preparado para admitir, mesmo que numa saudação mais ornamentada.

Pompeu tinha fantasiado vezes sem conta todos os pormenores deste encontro, incluindo aquilo que deveria ou não deveria vestir. Nas primeiras mil e uma fantasias, vira-se vestido de ouro dos pés à cabeça; depois, as dúvidas começaram a apoquentá-lo e acabou por decidir que uma armadura de ouro seria ostentação a mais, algo que os outros poderiam achar grosseiro. Por isso, nas mil e uma fantasias seguintes, viu-se vestido com uma simples toga branca, sem qualquer símbolo militar e com a estreita faixa púrpura de cavaleiro descendo do ombro direito da túnica; depois, as dúvidas voltaram a persegui-lo e começou a preocupar-se com o facto de que uma toga branca sobre um cavalo branco resultaria numa imagem algo amorfa. Nas últimas fantasias, Pompeu vestia a armadura de prata que o pai lhe oferecera após o cerco de Ásculo Picentino; as dúvidas não o apoquentavam agora e por isso, de todas as imagens que fantasiara para si, essa era a que mais lhe agradava.

No entanto, quando o palafreneiro o ajudou a subir para a sela do seu Cavalo Público, Cneu Pompeu (Magno) envergava a mais vulgar das armaduras de aço, as correias de couro do seu saiote não tinham nenhum ornamento e o capacete era igual, sem tirar nem pôr, ao dos seus soldados. O cavalo é que acabou por apresentar-se engalanado, já que Pompeu era um cavaleiro das dezoito centúrias originais da Primeira Classe e há muitas gerações que a sua família era premiada com o Cavalo Público. Por isso, o cavalo envergava todos os atavios e adornos que se pudesse imaginar: botões e medalhões de prata, arreios de couro escarlate com incrustações de prata, uma manta bordada sob uma sela cheia de ornamentações, uma miscelânea de berloques de prata que tilintavam a cada movimento do animal. Pompeu, enquanto avançava pelo meio da estrada vazia, com o exército em fila atrás dele, congratulou-se com a imagem que escolhera para si: parecia um soldado, um genuíno soldado, sério e compenetrado, um trabalhador, um profissional. O cavalo que proclamasse a glória do cavaleiro!

Benevento ficava do outro lado do rio Calor, no local onde a Via Ápia se cruzava com a Via Minúcia, vindas das costas da Apúlia e da Calábria. O sol estava no pino quando Pompeu e as suas legiões chegaram ao cimo de um pequeno monte e avistaram o leito do Calor. E lá estava ele, Lúcio Cornélio Sila, na margem de cá do rio, esperando no meio da estrada, montado numa indescritível azêmola. Acompanhado apenas por Varrão. A populaça local! Onde é que estava a populaça? Onde é que estavam os legados de Sila, as suas tropas? Onde estavam os viajantes?

Instintivamente, Pompeu virou a cabeça e gritou para o porta-estandarte da primeira legião que mandasse os soldados parar. Depois, horrivelmente só, desceu a encosta na direcção de Sila, o rosto transformado numa máscara tão sólida que parecia tê-lo mergulhado em gesso. Quando Pompeu estava a cerca de cem passos de Sila, este desequilibrou-se e quase caía redondo no chão. Conseguiu aguentar-se de pé porque lançou um braço em volta do pescoço da velha mula, enquanto que, com a outra mão, se agarrava à orelha suja de lama do animal. Depois de se endireitar, encaminhou-se na direcção de Pompeu, com um andar tão escancarado como o de qualquer marinheiro.

Pompeu saltou do seu tilintante Cavalo Público, sem ter bem a certeza de que se agüentaria nas pernas; mas aguentou-se. Ao menos que um de nós faça isto decentemente, pensou, avançando para Sila.

Mesmo a alguma distância, tinha-se apercebido de que este Sila não tinha qualquer semelhança com o Sila de que se lembrava. Porém, à medida que se foi aproximando, Pompeu começou a discernir a devastação que o tempo e horrendas afecções tinham produzido em Sila. Não com compreensão ou compaixão, mas com horror e estupefacção, uma reacção física tão violenta que, por momentos, chegou a pensar que ia vomitar.

Em primeiro lugar, Sila estava bêbedo. Isso, Pompeu poderia ter perdoado, caso aquele Sila fosse o Sila que permanecera na sua memória, o Sila que vira no dia da sua tomada de posse como cônsul. Porém, daquele homem belo e fascinante nada restava, nem mesmo a dignidade de uma cabeleira grisalha ou embranquecida pelo tempo. Este Sila usava uma peruca para cobrir o crânio calvo, uma horrenda peruca arruivada toda encaracolada, sob a qual espreitavam duas patilhas cor de prata. Já não tinha dentes, e a ausência de dentes alongara-lhe o queixo fendido por uma covinha e transformara a boca numa fresta franzida sob aquele inconfundível nariz com uma ligeira prega na ponta. A pele do rosto parecia esfolada: a maior parte era de um carmim-vivo, sangüíneo, embora alguns sítios exibissem ainda a brancura original. E ainda que agora estivesse quase esquelético, adivinhava-se que, num passado não muito distante, devia ter engordado de uma maneira descomunal, pois a carne do rosto caía-lhe enrugada e grandes papadas transformavam-lhe o pescoço numa espécie de papo de abutre.

— Ah, mas como poderei eu brilhar ao lado deste destroço humano, deste resto estropiado? — chorava-se Pompeu, lutando para sufocar as sentidas lágrimas da decepção.

Estavam já muito perto um do outro. Pompeu esticou o braço direito, os dedos estendidos, a palma da mão vertical.

— Imperador! — gritou.

Sila deixou escapar um risinho, mas, graças a um esforço imenso, fez também a saudação do general.

— Imperador! — gritou ele numa pressa. Depois, foi cair contra Pompeu, colando a armadura de couro húmida e suja, fedendo horrendamente a vinho e vomitado, ao corpo do outro.

Varrão, num ápice, correu para Sila; ele e Pompeu ajudaram-no a caminhar até à miserável mula e a subir para o dorso nu e sujo do animal, onde Sila se escarrapachou.

— Ele insistiu em vir ter contigo tal e qual como tu lhe tinhas pedido — disse Varrão baixinho. — Nada do que eu pudesse dizer o deteria.

Montado no seu Cavalo Público, Pompeu virou-se e deu ordem de marcha às suas tropas. com Sila ao meio, ladeado por Pompeu e Varrão, seguiram os três para Benevento.

— Não acredito! — exclamou Pompeu, em conversa com Varrão, depois de terem deixado um quase insensível Sila entregue aos cuidados dos seus criados.

— Ele passou muito mal a noite — retorquiu Varrão, incapaz de avaliar a natureza das emoções de Pompeu porque nunca tivera acesso às fantasias dele.

— Passou mal a noite? Que queres dizer?

— É por causa da pele, coitado do homem. Quando adoeceu gravemente, tão gravemente que os médicos chegaram a perder as esperanças, mandaram-no para Edepso, uma pequena cidade termal perto de Caleis Eubeia. Os físicos do templo são considerados os melhores de toda a Grécia. E salvaram-no, lá isso é verdade! Não tocava em fruta madura, mel, pão, bolos ou vinho. O pior foram os banhos termais. Ficou com a pele do rosto toda esfarelada. Logo nos primeiros dias começou a ter acessos de comichão, uma comichão terrível que nunca mais lhe passou. Por isso ficou com uma cara que mais parece um naco de carne crua e cheia de sangue. Continua a não comer fruta, nem mel, nem pão, nem bolos. Mas o vinho alivia-o da comichão e é por isso que ele bebe. — Varrão suspirou. — Ah, e o que ele bebe!

— E porquê só o rosto? Porque é que a doença não lhe afectou os braços ou as pernas? — perguntou Pompeu, sem acreditar totalmente naquela história.

— Porque se expôs demasiado ao sol e ficou com queimaduras. Não te lembras que ele usava um chapéu de palha sempre que estava ao sol? Porém, certo dia, houve uma cerimónia de boas-vindas num sítio qualquer e ele insistiu em não pôr o chapéu apesar da sua doença. Por mera vaidade, pôs um capacete. Julgo que as queimaduras solares contribuíram de forma decisiva para que a pele ficasse naquele estado — disse Varrão, que se sentia tão fascinado quanto Pompeu estava revoltado. — Aquela cabeça mais parece uma amora pintalgada de farinha! Extraordinário!

— Pareces tal e qual um daqueles melífluos físicos gregos — comentou Pompeu, sentindo que o seu rosto abandonava finalmente a máscara de gesso. — Onde é que estamos hospedados? É longe? E os meus homens?

— Creio que Metelo Pio conduziu já os teus homens ao acampamento. Quanto a nós, estamos hospedados numa bela casa não muito longe desta rua. Depois de comeres qualquer coisa, podíamos ir ter com os teus homens. — Varrão levou ternamente a sua mão ao braço forte e sardento de Pompeu, intrigado com o que se passaria na cabeça do amigo. Que não havia compaixão na natureza de Pompeu, isso já ele tinha compreendido; nesse caso, por que razão o desgosto o consumia agora?

Nessa noite, Sila ofereceu um banquete em honra dos dois recém-chegados, para que pudessem travar conhecimento com os outros legados. Espalhara-se já pelas cercanias de Benevento a notícia da chegada de Pompeu — e muito se falava da sua juventude, da sua beleza, das suas tropas, que o adoravam. E os legados de Sila estavam muito apagados, pensou Varrão, divertido, enquanto atentava nas suas expressões. Estavam com o aspecto de crianças a quem as amas-secas tivessem cruelmente arrancado um delicioso favo de mel prestes a ser lambido. E quando Sila conduziu Pompeu ao locus consularis do seu próprio divã e não pôs ninguém entre os dois, aquelas expressões tornaram-se assassinas. Não que Pompeu se preocupasse com isso! Pelo contrário: com um prazer despudorado, tratou de se instalar confortavelmente e começou a falar com Sila como se mais ninguém estivesse presente.

Sila estava sóbrio e, aparentemente, sem comichão. A pele do rosto tinha ganho alguma crosta desde a manhã, mostrava-se calmo e amável, e obviamente fascinado com Pompeu. Se Sila se sente fascinado, então é porque não estou enganado acerca de Pompeu, pensou Varrão.

Considerando que era mais sensato manter o seu olhar concentrado nos vizinhos mais próximos, em vez de inspeccionar sucessivamente todos os presentes, Varrão sorriu para o seu companheiro de divã, Ápio Cláudio Fulcro. Um homem de que gostava e que estimava.

— Sila ainda é capaz de nos chefiar? — perguntou.

— Continua tão brilhante como dantes — retorquiu Ápio Cláudio. — Se conseguirmos mantê-lo sóbrio, é garantido que dará cabo de Carbão, por muitos soldados que este consiga reunir. — Ápio Cláudio estremeceu e fez um esgar. — Varrão, não sentes vibrações más nesta sala? Emanações negativas?

— Absolutamente — respondeu Varrão, embora achasse que as emanações em que estava a pensar eram muito mais reais do que as de Ápio Cláudio.

— Tenho estudado um pouco este assunto nos templos e cultos de Delfos — explicou Ápio Cláudio. — Há dedos poderosos à nossa volta, por todo o lado — invisíveis, é claro. A maior parte das pessoas não tem consciência disto, mas há homens como tu e eu, Varrão, que são hipersensíveis a emanações vindas de outras paragens.

— Que paragens? — perguntou Varrão, alarmado.

— Debaixo de nós. Por cima de nós. Enfim, por todo o lado — retorquiu Ápio Cláudio num tom sepulcral. — Dedos poderosos! Não sei de que outro modo poderei explicar-te o que quero dizer. Como pode uma pessoa descrever coisas invisíveis, coisas a que só os hipersensíveis podem ter acesso? Claro que não estou a falar dos deuses, nem do Olimpo, tão pouco dos numina...

Mas os outros homens presentes na sala acabaram por atrair as atenções de Varrão, levando-o a esquecer-se um pouco do pobre Ápio Cláudio, que, todo contente, continuou a debitar o seu discurso, enquanto Varrão avaliava os legados de Sila.

Filipe e Cetego, os grandes tergiversadores. Sempre que a deusa Fortuna favorecia um novo grupo de homens, Filipe e Cetego mudavam de partido, desejosos de servir os novos senhores de Roma; há trinta anos que o faziam. Filipe era o menos desonesto dos dois. Fora cônsul depois de várias tentativas infrutíferas e chegara mesmo a censor, o zénite de uma carreira política, durante o consulado de Cina e Carbão. Ao passo que Cetego — um patrício Cornélio com uma remota relação de parentesco com Sila — permanecera nos bastidores, preferindo exercer o seu poder através da manipulação dos senadores com menor peso no Senado. Estavam os dois no mesmo divã, falando muito alto e ignorando todos os outros.

Havia também um grupo de três jovens que ignorava todos os demais — mas que belo trio! Verres, Catilina e Ofela. Todos gente ruim, disso estava certo Varrão, ainda que Ofela se preocupasse mais com a sua dignitas do que com futuros proveitos. Quanto a Verres e Catilina, não podia haver a mínima dúvida; eram os proveitos futuros que comandavam todos os seus actos.

Num outro divã, encontravam-se três homens estimáveis e honrados — Mamerco, Metelo Pio e Varrão Lúculo (um Varrão adoptado, aliás irmão do mais leal adepto de Sila, Lúculo). Era evidente que não gostavam de Pompeu e não faziam qualquer tentativa para esconder o que sentiam.

Mamerco era genro de Sila, um homem tranqüilo e sério que salvara a fortuna de Sila e que conseguira levar a sua família para a Grécia em total segurança.

Metelo Pio, o Bacorinho, e o seu questor, Varrão Lúculo, tinham deixado a Ligúria, rumo a Putéolos, em meados de Abril, marchando em seguida através da Campânia, a fim de se juntarem a Sila, imediatamente antes de o Senado de Carbão ter mobilizado as tropas que poderiam tê-los detido. Antes do aparecimento de Pompeu, tinham gozado do sol radioso que era o grato beneplácito de Sila, pois haviam-lhe levado duas legiões constituídas por soldados endurecidos por muitas guerras. Contudo, a sua atitude em relação a Pompeu baseava-se essencialmente na pessoa deste e não no que ele representava ou mesmo nas razões que o tinham levado até ali. Um Pompeu do Norte do Piceno? Um novo-rico, um tipo que subiu de repente na vida. Um não romano. O pai, que tinha a alcunha de Carniceiro por causa da forma como conduzia as suas batalhas, podia ter chegado a cônsul e alcançado um forte poder político, mas nada, rigorosamente nada, podia aproximá-lo, ou ao seu filho, de Metelo Pio ou Varrão Lúculo. Nenhum romano genuíno, de família senatorial ou não, teria, com a idade de 22 anos, tomado a decisão — de forma absolutamente ilegal! — de levar um exército ao grande aristocrata patrício Lúcio Cornélio Sila e de lhe pedir, depois, que o aceitasse como seu parceiro na guerra. O exército que Metelo Pio e Varrão Lúculo trouxeram a Sila tornava-se automaticamente um exército de Sila, um exército que ele dirigiria como muito bem entendesse; se Sila tivesse aceite e agradecido as tropas e mandado embora depois Metelo Pio e Varrão Lúculo, estes teriam ficado provavelmente furiosos, mas ter-se-iam ido embora imediatamente. Rigoristas implacáveis, tanto um como o outro, pensou Varrão. Estavam os dois no mesmo divã, lançando ferozes olhares a Pompeu porque este usara as suas tropas para obter um comando que nem a sua idade, nem os seus antecedentes, permitiam. Sim, não havia dúvida: aquele Pompeu seqüestrara Sila e exigira um resgate.

De todos eles, contudo, aquele que mais intrigava Varrão era Marco Licínio Crasso. No Outono do ano anterior, tinha chegado à Grécia e oferecera a Sila dois mil e quinhentos bons soldados hispânicos, tendo recebido apenas como paga uma recepção quase tão fria como a que Metelo Pio lhe proporcionara, em África, durante o Verão.

Esta fria recepção devera-se, em grande parte, ao dramático fracasso de um plano de enriquecimento rápido que ele e um seu amigo mais jovem, Tito Pompónio, tinham maquinado e proposto aos investidores da Roma de Cina. O caso sucedera no final do primeiro ano do consulado de Cina e Carbão, altura em que o dinheiro reapareceu, ainda que de forma muito tímida. Chegara a Roma a notícia de que a ameaça do rei Mitridates deixara de existir, pois Sila negociara com ele o Tratado de Dárdano. Aproveitando um súbito surto de optimismo, Crasso e Tito Pompónio ofereceram ao mercado acções num novo negócio especulativo na Província da Ásia. O desastre sobreveio quando se soube que Sila tinha reorganizado por completo as finanças da Província da Ásia e que, em conseqüência disso, a mina da colecta de impostos estava exaurida.

Em vez de ficarem em Roma, onde teriam de enfrentar hordas de irados credores, Crasso e Tito Pompónio puseram-se em fuga. Na realidade, tinham um único sítio para onde ir e um único homem para conquistar: Sila. Tito Pompónio apercebera-se disso imediatamente e fora para Atenas com a sua enorme fortuna intacta. Educado, urbano, com algo de diletante literário, pessoalmente encantador, com o único senão de ter uma inclinação excessiva para rapazinhos, Tito Pompónio depressa chegou a um entendimento com Sila; porém, como adorava a atmosfera e o estilo de vida de Atenas, optou por ficar nessa cidade, dando a si próprio o cognome de Ático — homem de Atenas.

Crasso não era um homem tão seguro de si mesmo e só se apercebeu de que Sila era a sua única alternativa muito mais tarde que Ático.

Circunstâncias diversas tinham conspirado para que Marco Licínio Crasso ficasse à frente da sua família — e empobrecido. O único dinheiro que havia pertencia a Áxia, viúva não só do irmão mais velho de Crasso, mas também do irmão do meio. Um dote substancial não era o único factor que a tornava atraente; além disso, Áxia era uma mulher bonita, cheia de vida, bondosa, encantadora. Tal como a mãe de Crasso, Vinuleia, Áxia era uma sabina, nascida em Reate, e por isso mesmo dava-se bastante bem com a sogra. A riqueza de Áxia vinha da rosea rura, as melhores pastagens de toda a Itália, onde cresciam os fabulosos burros de cobrição que eram vendidos por somas avultadíssimas — sessenta mil sestércios não era um preço invulgar para esses animais, potenciais progenitores de robustas mulas destinadas ao exército.

Áxia viu-se viúva pela primeira vez — e grávida — quando o filho mais velho dos Crassos, Públio, foi morto nas cercanias de Grumento, durante a Guerra Italiana. Para aquela família modesta e muito unida, parecia haver uma única solução; no final dos dez meses de luto, Áxia casou-se com Lúcio, o segundo filho dos Crassos, de quem não teve filhos. Nova viuvez esperava Áxia. com efeito, Lúcio acabou por ser assassinado por Fímbria à porta da sua casa. Vinuleia também ficou viúva, pois o pai Crasso, vendo o filho esfaqueado até à morte e sabendo o que o destino lhe reservava, cometeu imediatamente suicídio.

Na altura, Marco, o mais novo dos filhos dos Crassos, tinha 29 anos. Era ele que o pai (que fora cônsul e censor) tinha escolhido para salvaguardar o nome e a linhagem da família. Todos os bens dos Crassos, incluindo os bens pessoais de Vinuleia, foram confiscados. Mas a família de Áxia mantinha excelentes relações com Cina e, por isso, o seu dote não foi minimamente afectado. Quando o segundo luto de Áxia terminou, Marco Licínio Crasso casou com ela e adoptou o sobrinho, Públio. Sucessivamente casada com três irmãos, Áxia passou a ser conhecida, desde então, como Tertula — um diminutivo de tertia, ”terceira”. A mudança de nome resultará de uma sugestão sua; Áxia tinha um som demasiado áspero, sem nada de latino, ao passo que Tertula apresentava uma pronúncia de uma suavidade extrema.

O glorioso plano que Crasso e Ático tinham maquinado — e que teria tido um êxito impressionante se por acaso Sila não tivesse feito o que ninguém esperava no domínio das finanças da Ásia — foi por água abaixo no preciso momento em que a riqueza da família Crasso começava de novo a aumentar. O fracasso do projecto levou-o a fugir com uma bagatela na bolsa e todas as esperanças destruídas. Em Roma, deixava duas mulheres sem nenhum homem a protegê-las: a mãe e a mulher. Tertula dava-lhe um filho, Marco, dois meses depois da sua partida.

Mas para onde ir? Para a Hispânia, decidiu Crasso. Na Hispânia, jazia uma relíquia da passada riqueza dos Crasso. Anos antes, o pai de Crasso viajara até às ilhas do Estanho, as Cassitérides, e negociara um contrato exclusivo tendo em vista o transporte do estanho desde as Cassitérides até aos portos do Mediterrâneo, passando pelo Norte da Hispânia. A guerra civil em Itália tinha destruído esse negócio, mas Crasso não tinha nada a perder; fugiu para a Hispânia Citerior, onde um cliente do pai, um tal Víbio Paciano, o escondeu numa gruta até Crasso ter a certeza de que as conseqüências das suas manobras fiscais não iam persegui-lo em paragens tão distantes. Retomou então a sua vida normal e tratou de reinstaurar o monopólio do estanho, após o que adquiriu algumas posições nas minas de chumbo e prata do Sul da Hispânia.

Tudo corria muito bem, mas a verdade é que estas actividades só podiam prosperar se as instituições financeiras e comerciais de Roma lhe abrissem de novo as suas portas. O que significava que ele precisava de um aliado mais poderoso do que todas as pessoas que conhecia: precisava de Sila. Mas para convencer Sila (e como lhe faltavam o encanto e a erudição que sobravam a Tito Pompónio Ático), teria de oferecer-lhe um presente. E o único presente que lhe podia oferecer era um exército. Exército que formou recorrendo aos antigos clientes do pai: um total de apenas cinco coortes, mas cinco coortes bem treinadas e equipadas.

A sua primeira escala, depois de ter deixado a Hispânia, foi em Útica, na Província de África, onde ficou a saber que Quinto Cecílio Metelo Pio, aquele a quem Caio Mário cognominara de o Bacorinho, lutava ainda para tentar manter a sua posição de governador. Avistou-se com o Bacorinho no princípio do Verão, mas Metelo Pio — um pilar de rectidão romana — não se mostrou nada divertido com as suas actividades comerciais. Deixando o Bacorinho a tratar da sua vida quando o governo de África caiu, Crasso seguiu para a Grécia, e Sila, depois de ter aceite a oferta de cinco coortes hispânicas, condenou-o a um tratamento muito pouco caloroso.

E agora ali estava ele sentado, com os seus pequenos olhos cinzentos dolorosamente fixados em Sila, esperando por um sinal de aprovação, um sinal qualquer, e obviamente muito triste por ver Sila interessado unicamente em Pompeu. O cognome de Crasso existia na famosa família dos Licínios há muitas gerações, mas, pensou Varrão, os actuais Licínios continuavam a merecer tal epíteto; Crasso significava ”atarracado” (ainda que, no caso do primeiro Licínio, cognominado de Crasso, talvez significasse ”estúpido”). Mais alto do que parecia, Crasso tinha a constituição maciça de um touro e alguma da placidez impassível desse animal num rosto muito inexpressivo.

Varrão lançou um último olhar àquela assembleia e suspirou. Sim, havia de facto razões para dedicar quase todos os seus pensamentos a Crasso. Todos eles eram ambiciosos, quase todos eram, provavelmente, homens capazes, alguns deles eram tão cruéis como amorais, mas — deixando de fora Pompeu e Sila, evidentemente — Marco Crasso era o homem a ter em conta no futuro.

No regresso a casa, acompanhado por um Pompeu completamente sóbrio, Varrão verificou que estava muito satisfeito por ter cedido às exortações de Pompeu e se ter interessado desde logo por aquela campanha.

— De que falaram vocês, tu e Sila? — perguntou.

— De nada de muito importante — respondeu Pompeu.

— Mas olha que falaram muito baixo.

— Falámos, não falámos? — Varrão não viu o sorriso malicioso de Pompeu, mas sentiu-o. — Sila não é parvo nenhum, embora já não seja o mesmo homem de outros tempos. Se aquela assembleia de amuados não conseguiu ouvir o que nós dizíamos, como é que eles sabem que não falámos deles?

— Sila concordou ser teu parceiro nesta empresa?

— Eu mantive o comando das minhas legiões. Era tudo o que queria. Ele sabe que eu não lhe dei as legiões, nem mesmo de empréstimo.

— E isso foi discutido abertamente?

— Já te disse que o homem não é nenhum parvo — retorquiu laconicamente Pompeu. — Não dissemos nada de especial. Nada de muito importante. Dessa forma, não há nenhum acordo entre nós e ele assim não ficou obrigado a nada.

— E estás satisfeito com isso?

— É claro que estou! É que ele também sabe que precisa de mim. — replicou Pompeu.

Sila estava a pé ao alvorecer e, uma hora depois, conduzia o seu exército em direcção a Cápua. Já estava habituado ao facto de os seus problemas de pele coincidirem com momentos de maior actividade, pois a sensação de comichão não era perpétua; pelo contrário, tendia a ser cíclica. Tendo acabado de passar por mais um surto e pela subsequente bebedeira, sabia que, durante uns dias, teria direito a alguma paz — desde que não fizesse nada que pudesse provocar um novo ciclo. Para tal, necessitava de policiar rigorosamente as suas mãos: estava proibido de mexer na cara fosse por que motivo fosse. Só depois de um homem se ver submetido a uma tal provação é que podia compreender quantas vezes mexia na cara sem intervenção da vontade, de uma forma absolutamente inconsciente. E ali estava ele agora, sentindo as húmidas vesículas endurecendo, lutando pela cicatrização, sentindo todos os pruridos, todos os formigueiros, todos os minúsculos movimentos da pele que o processo de cicatrização implicava. Era mais fácil no primeiro dia, ou seja, naquele dia, mas, à medida que os dias iam passando, ele tinha tendência a esquecer-se e acabava por levar a mão ao nariz ou ao queixo, para se coçar de uma comichão perfeitamente natural — e então, todo aquele horror podia recomeçar. Recomeçaria. Por isso, tinha-se disciplinado de forma a garantir o máximo possível de cicatrização, antes que surgisse o próximo surto, para o qual só encontraria um remédio, o vinho, a embriaguez que o deixava completamente insensível.

Ah, mas era difícil! Tanto que fazer, tanto que tinha de fazer, e não passava afinal de uma sombra do homem que fora. Nunca realizara nada sem ter de superar obstáculos gigantescos, mas desde que a doença se declarara, um ano antes, na Grécia, dava consigo a todo o momento a perguntar-se por que razão teimava em continuar. Como Pompeu tinha claramente reparado, Sila não era parvo nenhum; ele sabia que já não lhe restava muito tempo de vida.

É claro que num dia como aquele, em que acabava de vencer mais um surto, Sila compreendia porque é que teimava em continuar: porque era o maior homem de um mundo que não queria admitir isso. O Nabopolassar tinha-o visto nas margens do rio Eufrates e nem mesmo os deuses podiam alterar as visões de um adivinho caldeu. Num dia como aquele, Sila compreendia perfeitamente que ser maior do que todos os outros homens implicava também um grau de sofrimento muito maior. Tentou não sorrir (um sorriso podia perturbar o processo de cicatrização), ao pensar no seu companheiro de divã da noite anterior; ora ali estava alguém que não tinha a mínima noção do que fazia a grandeza de um homem!

Pompeu, o Grande. Claro que Sila já tinha descoberto por que nome Pompeu era conhecido entre o seu povo. Um jovem que pensava que a grandeza não exigia esforço, que a grandeza lhe tinha sido dada pelo nascimento e que o acompanharia por toda a vida. Desejo de todo o coração, Pompeu Magnus, pensou Sila, que possa viver o tempo suficiente para ver quem e o que te deitará por terra! No entanto, tratava-se de um indivíduo fascinante. Sem dúvida um prodígio. Não tinha as características que fazem um subordinado leal, de modo nenhum. Não, Pompeu, o Grande, era um rival. E via-se a si mesmo como um rival. Desde já. Aos 22 anos. Sila sabia como usar as tropas veteranas que Pompeu trouxera consigo; mas qual seria a melhor maneira de usar Pompeu, o Grande? Dar-lhe rédea solta, a rédea toda, sim, essa era a melhor maneira de o usar. Fazer com que não lhe dessem uma tarefa que não pudesse cumprir. Lisonjeá-lo, exaltá-lo, não beliscar nunca a sua monumental vaidade. Levá-lo a pensar que é ele quem usa, e nunca o deixar perceber que é ele que é usado. Morrerei muito antes de o derrubarem, porque, enquanto eu for vivo, obstarei a que o derrubem. Ele é demasiado útil. Demasiado... valioso.

A mula em que Sila seguia relinchou e deu à cabeça como que aprovando os pensamentos do dono. Mas Sila não se esquecia dos cuidados que o seu rosto exigia e, por isso, não sorriu da sagacidade do animal. Sila esperava. Esperava por um frasco de unguento e por uma receita a partir da qual fosse possível encher mais e mais frascos de unguento. Há cerca de dez anos que tinha sentido pela primeira vez as manifestações daquela doença da pele. No regresso do Eufrates. Ah, sim, essa expedição, quão satisfatória ela fora!

Nessa expedição, o filho estava com ele, o filho de Julila, que, na sua adolescência, se revelara o amigo e confidente que Sila nunca tinha tido. O participante perfeito numa relação perfeita. O que eles falavam! De tudo e de nada. O jovem fora capaz de perdoar ao pai tantas coisas que Sila nunca conseguira perdoar a si mesmo — ah, não, não os assassínios e outros actos práticos e necessários, isso eram coisas que a vida de um homem o obrigava a fazer. Mas os erros emocionais, fraquezas da mente ditadas por desejos e inclinações que a razão taxava de estúpidos e fúteis. com quanta gravidade o jovem Sila o escutara, com quanta clareza aquele jovem, pouco mais que um menino, o compreendera. E confortara. E inventara desculpas que, na altura, tinham até parecido lógicas, fundamentadas. E o tão estéril mundo de Sila tinha renascido, tinha-se expandido, tinha anunciado uma profundidade e uma dimensão que só o seu querido filho lhe podia dar. Então, na segurança do lar, depois da jornada para lá do Eufrates, para lá da mera e estreita vivência romana, o jovem Sila morreu. Sem mais nem menos. Em dois brevíssimos e insignificantes dias. Morria o amigo, morria o confidente. Morria o amado filho.

As lágrimas ameaçavam, concentravam-se — não, isso não! Não podia chorar, não devia chorar! Bastava que uma gota lhe caísse pela face e logo o tormento recomeçaria. Unguento. Tinha de se concentrar na ideia do unguento. Morsimo tinha encontrado o unguento numa aldeia perdida, perto do rio Píramo, na Cilícia Pedia, o unguento que lhe aliviava as dores, que lhe cicatrizava a pele.

Seis meses antes, mandara uma mensagem a Morsimo, agora etnarcâ em Tarso, pedindo-lhe que encontrasse esse unguento, mesmo que, para isso, tivesse de revolver todas as aldeias da Cilícia Pedia. Se Morsimo voltasse a encontrá-lo — e, mais importante, se descobrisse a receita — a pele de Sila voltaria ao normal. Entretanto, esperava. Sofria. E, com o sofrimento, aumentava a sua grandeza. Cada vez mais. Ouviste, Pompeu, o Grande? Cada vez mais!

Virou-se na sua sela e acenou para Metelo Pio, o Bacorinho, e Marco Crasso (Pompeu, o Grande, seguia na retaguarda, à frente das suas três legiões).

— Estou com um problema — disse ele quando Metelo Pio e Crasso se juntaram a ele.

— Quem? — perguntou o Bacorinho maliciosamente.

— Ah, muito bem perguntado! O nosso estimado Filipe — retorquiu Sila, sem que nenhuma expressão lhe perturbasse a placidez do rosto.

— bom, mesmo que não tivéssemos Ápio Cláudio connosco, Lúcio Filipe já representaria, por si só, um problema — disse Crasso, fazendo um esforço para juntar os factos. — Mas não há dúvida que Ápio Cláudio torna as coisas ainda piores. Qualquer pessoa esperaria que o facto de Filipe ser sobrinho de Ápio Cláudio o teria influenciado no sentido de não expulsar o tio do Senado. Mas a verdade é que ele expulsou o tio.

— Provavelmente porque o sobrinho é mais velho que o tio — retorquiu Sila, divertido com aquela opinião.

— Mas o que é que tu pretendes fazer com o problema? — perguntou Metelo Pio, que não queria que os seus companheiros se perdessem nas complexidades das relações de parentesco da classe dominante romana.

— Eu sei o que gostaria de fazer, mas depende de ti, Crasso, que isso venha ou não a tornar-se possível — disse Sila.

Crasso pestanejou.

— E de que modo é que isso poderia afectar-me? Fazendo recuar um pouco o chapéu de palha, Sila fitou o seu legado com um olhar um pouco mais caloroso do que era costume; e Crasso, involuntariamente, respirou fundo de satisfação. Sila mostrava finalmente alguma simpatia por ele!

— Está muito bem que compremos cereais e outros alimentos aos agricultores locais ao longo da nossa marcha — principiou Sila, as palavras algo indistintas por causa da falta de dentes. — Porém, no final do Verão, vamos precisar de uma colheita que seja possível transportar a partir de determinado sítio. Não terá de ser uma colheita tão grande como a da Sicília ou a de África, mas terá de ser suficientemente grande para abastecer o meu exército de géneros básicos. E estou confiante em que o meu exército continue a crescer à medida que o tempo for avançando.

— com certeza que no Outono teremos todos os cereais de que precisamos — disse Metelo Pio cuidadosamente. — Mas serão os cereais da Sicília e de África. No Outono, já teremos conquistado Roma.

— Duvido.

— Porquê? Roma está podre por dentro!

Sila suspirou, fazendo tremer ligeiramente os lábios.

— Meu caro Bacorinho, se eu quero ajudar Roma a recuperar, terei de dar a Roma a oportunidade de se pôr do meu lado pacificamente.

Ora isso não vai poder acontecer no Outono. Por isso, não posso mostrar-me demasiado ameaçador, não posso marchar a toda a pressa pela Via Latina acima e atacar Roma como Cina e Mário atacaram depois de eu ter partido para o Oriente. Quando marchei sobre Roma a primeira vez, tinha a surpresa a meu favor. Ninguém acreditava que eu fizesse isso. Por isso ninguém se opôs à minha arremetida, a não ser alguns escravos e mercenários pertencentes a Caio Mário. Mas desta feita é diferente. Toda a gente está à espera que eu marche sobre Roma. E se fizer isso demasiado depressa, não vencerei. Ah sim, Roma acabaria por cair! Mas todos os insurrectos, toda a oposição, teriam de enfrentar muitas provações. Se seguisse essa via para dominar a resistência, acabaria por morrer antes de alcançar os meus desígnios. Não tenho meios para agüentar tanto tempo, nem tanto esforço. Por isso, avançarei muito devagar na direcção de Roma.

Metelo Pio digeriu esta exposição e percebeu que, de facto, fazia sentido. De repente, viu-se-lhe a alegria estampada nos olhos glaciais. A inteligência não era qualidade que associasse aos nobres romanos; os nobres romanos tinham um pensamento demasiado político para poderem ser inteligentes. Tudo era decidido no momento, tudo era previsto a curto prazo. Mesmo Escauro Princeps Senatus, apesar de toda a sua experiência e vasta auctoritas, não fora um homem inteligente. Tal como o não fora o seu próprio pai, Metelo Numídico. Corajoso. Indómito. Determinado. Incorruptível fios princípios. Mas nunca inteligente. Era por isso que o Bacorinho sentia uma alegria imensa por seguir pela longa estrada que conduzia a Roma na companhia de um homem inteligente, já que ele era um Cecílio Metelo e tinha um pé em ambos os campos, apesar de, pessoalmente, haver escolhido Sila. Se havia algum aspecto daquela empresa que o fazia estremecer, esse era, sem dúvida, o conhecimento de que — por muito que tentasse ignorá-lo — acabaria inevitavelmente por arruinar uma boa parte dos seus familiares ou das suas relações maritais. Por isso, apreciava a inteligência de que Sila dava provas ao decidir avançar lentamente sobre Roma; alguns dos Cecílios Metelos que, naquela altura, ainda apoiavam Carbão, teriam ainda tempo para se aperceber de que as suas posições estavam erradas. Antes que fosse demasiado tarde.

Claro que Sila sabia com exactidão de que forma trabalhava a cabeça do Bacorinho e, por isso, deixou-o concluir em paz os seus pensamentos. Quanto aos seus próprios pensamentos, estavam concentrados na missão que tinha pela frente, enquanto os seus olhos fixavam o melancólico balouçar das orelhas da mula. Estou de regresso a Itália e em breve chegarei à Campânia, essa cornucópia de todas as coisas boas que há na terra — verde, suavemente montanhosa, abundante em água. E se excluir deliberadamente Roma do meu olhar interior, Roma apoquentar-me-á menos que esta comichão. Roma será minha. Mas, apesar de todos os meus crimes, que foram muitos, e da nenhuma contrição que demonstrei, nunca gostei muito da ideia de saque. Uma submissão voluntária de Roma será, de longe, preferível ao saque...

— Deves ter reparado que, desde que desembarquei em Brindísio, tenho mandado cartas a todos os dirigentes dos velhos Aliados Italianos, prometendo-lhes que farei com que todos os italianos sejam devidamente registados como cidadãos de Roma, de acordo com as leis e os tratados negociados no final da Guerra Italiana. Farei mesmo com que sejam distribuídos por todo o leque das trinta e cinco tribos. Acredita no que te digo, Bacorinho: vergar-me-ei como um fio de teia de aranha se verga à força do vento, antes de atacar Roma!

— Que têm os Italianos a ver com Roma? — perguntou Metelo Pio, que nunca fora a favor da concessão da cidadania romana aos Italianos e que, secretamente, aplaudira os censores Filipe e Perperna, porque eles tinham precisamente evitado o registo dos Italianos como cidadãos romanos.

— Pompeu e eu atravessámos já uma grande parte do território que lutou contra Roma e nenhum de nós encontrou qualquer resistência. Pelo contrário: encontrámos cerimónias de boas-vindas e talvez a esperança de que eu mudarei a situação em Roma no que respeita ao problema da cidadania. O apoio italiano ajudar-me-á a convencer Roma de que deve render-se pacificamente.

— Duvido — retorquiu o obstinado Metelo Pio. — Mas atrevo-me a dizer que tu sabes o que estás a fazer. Regressemos ao assunto chamado Filipe que, pelos vistos, é um problema.

— Certamente! — disse Sila, os olhos de súbito numa roda viva.

— Que tem Filipe a ver comigo? — perguntou Crasso, achando que já era tempo de se intrometer naquilo que se transformara num dueto.

— Preciso de me ver livre dele, Marco Crasso. Mas da forma menos dolorosa possível, dado que ele conseguiu, não sei como, mas conseguiu, transformar-se numa venerável instituição romana.

— Isso foi porque ele se tornou o ideal de todos os contorcionistas políticos — comentou o Bacorinho com um sorriso malicioso.

— A descrição não está mal — disse Sila, acenando em vez de sorrir. — Pois bem, meu grande e ostensivamente plácido amigo Marco Crasso,vou fazer-te uma pergunta. Exijo uma resposta honesta. Tendo em conta a tua triste reputação, serás capaz de me dar uma resposta honesta?

Este chiste não pareceu perturbar minimamente a compostura taurina de Crasso.

— Farei o meu melhor, Lúcio Cornélio.

— Tens uma ligação, digamos, apaixonada, pelas tuas tropas hispânicas?

— Considerando que tu me manténs todo o tempo a tratar do abastecimento delas, a minha resposta só pode ser negativa — replicou Crasso.

— Óptimo! Serias capaz de te separares delas?

— Se achas que podemos passar sem elas, sim.

— Óptimo! Então, meu caro Marco, com o teu consentimento, expresso de um modo magnificamente fleumático, matarei vários coelhos com uma mesma cajadada. É minha intenção dar os teus hispânicos a Filipe — ele poderá apossar-se da Sardenha em meu nome. Quando as colheitas da Sardenha estiverem concluídas, ele poderá enviar-me todos os alimentos de que precisamos — disse Sila. Procurou o odre de vinho amargo e descorado que estava atado ao arção da sela, ergueu-o e, com destreza, esguichou algum líquido para dentro da boca desdentada; nem uma única gota se espalhou pela face.

— Filipe recusará ir para a Sardenha — atirou-lhe Metelo Pio.

— Não, não recusará. Ele adorará a comissão — retorquiu Sila, tapando o gargalo bojudo do odre. — Ele será o senhor incontestado de todas aquelas terras e os bandidos sardos saudá-lo-ão como se saúda um irmão. Ao pé dele, todos os bandidos da Sardenha parecerão homens virtuosos.

As dúvidas começaram a apoquentar Crasso, que rosnava pigarreios mas não falava.

— Estás a pensar no que irás fazer sem tropas para comandar?

Não andas longe — respondeu Crasso, cautelosamente.

Podias ser-me muito útil — disse Sila, num tom descontraído.

— De que forma?

A tua mãe e a tua esposa vêm de importantes famílias

sabinas. Que me dizes se te propuser que vás a Reate recrutar soldados para as minhas tropas? Podias começar com os Sabinos e terminar com os Marsos. — Sila estendeu a mão e apertou o pulso forte de Crasso. — Acredita em mim, Marco Crasso. Na próxima Primavera, haverá muito trabalho militar para ti. E terás boas tropas para comandar — italianas, ou mesmo romanas.

— Isso convém-me — disse Crasso. — Negócio feito.

— Ah, que bom que era se todas as coisas pudessem ser resolvidas tão facilmente e tão a contento de todos! — exclamou Sila, procurando uma vez mais o odre.

Crasso e Metelo Pio trocaram um breve olhar, enquanto Sila baixava a cabeça, coberta com aquela absurda cabeleira encaracolada; ele podia dizer que bebia para aliviar a comichão, mas a verdade é que Sila já não conseguia passar muito tempo sem molhar o bico. No meio do pesadelo dos seus tormentos físicos, Sila abraçara o seu paliativo com um amor constante e duradouro. Mas teria ele consciência disso? Ou não?

Se Crasso e Metelo Pio tivessem tido a coragem de lho perguntar, Sila ter-lhes-ia respondido sem hesitação. Sim, ele tinha consciência do que se passava. E não se preocupava com o facto de os outros se aperceberem do seu vício ou saberem que aquele vinho de aspecto fraco era, afinal, muito alcoólico. Proibido o pão, o mel, a fruta e os bolos, havia, na sua dieta, poucas coisas de que gostasse verdadeiramente. Os físicos de Edepso tinham feito bem em retirar todas essas coisas saborosas do seu regime alimentar: disso não tinha ele a mínima dúvida. Quando fora ter com eles, sabia que estava a morrer. Primeiro, sentira um apetite insaciável por coisas doces e farináceos e engordara tanto que até mesmo a sua mula se queixava da carga que tinha de transportar; depois, começou a sentir um adormecimento e um formigueiro nos pés, e também dores e ardores à medida que o tempo foi passando, de tal modo que, quando se deitava na cama para dormir, os infortunados pés se recusavam a acalmar. As sensações subiam-lhe pelos tornozelos e pelas barrigas das pernas e o sono nunca mais vinha. Até que um dia, deu consigo a suar, e suava e suava, até ficar ofegante. A partir desse dia, começou a perder peso, e a um ritmo tal, que quase podia ver-se a si mesmo a desaparecer. Bebia rios de água e, mesmo assim, continuava com sede. Mas o mais aterrador daquilo tudo foi que os seus olhos começaram a falhar.

Quase todos estes problemas desapareceram, ou diminuíram muito de intensidade, depois de ter ido para Edepso. No seu rosto nem queria pensar, ele que fora tão belo na sua juventude, tão belo que enlouquecia os homens, e que fora tão belo depois de atingir a maturidade que poucas mulheres lhe resistiam. Mas uma coisa que não desaparecera fora a sua necessidade de beber. Rendendo-se ao inevitável, os físicos-sacerdotes de Edepso convenceram-no a trocar o vinho doce pelos vinhos mais amargos que houvesse no mercado e, muitos meses depois, Sila já preferia aquele vinho seco e áspero. Apesar disso, sempre que o bebia, não conseguia evitar uma careta. Quando o prurido não o afectava, conseguia controlar a quantidade que bebia e, por isso, não deixava que o vinho interferisse nos seus processos mentais. Bebia apenas o suficiente para os melhorar — pelo menos era o que dizia para si mesmo.

—vou manter Ofela e Catilina comigo — disse ele a Crasso e Metelo Pio, arrolhando de novo o odre. — Contudo, Verres é aquilo que o seu nome indica — um varrão insaciável e sôfrego. Creio que ovou mandar de volta para Benevento, pelo menos para já. Poderá organizar abastecimentos e ficar de olho na nossa retaguarda.

O Bacorinho deu uma risadinha.

— O queridinho é capaz de gostar disso!

Crasso não pôde evitar um sorriso franco, ainda que breve.

— E quanto ao longínquo Cetego? — perguntou, sentindo dores nas pernas, muito pesadas e sem qualquer ponto de apoio, e mudando um pouco de posição.

—vou ficar com ele, por ora — retorquiu Sila. A sua mão agitou-se à procura do vinho mas, no último instante, recuou. — Cetego pode ficar a vigiar as coisas na Campânia.

Pouco antes de o seu exército ter atravessado o rio Volturno, perto da cidade de Casilino, Sila enviou seis emissários para negociarem com Caio Norbano, o mais capaz dos dois cônsules que Carbão impusera. Norbano levara oito legiões e organizara-se para defender Cápua, mas, quando os emissários de Sila apareceram com a bandeira da paz, ordenou a sua prisão sem sequer os ouvir. Instalou então as suas legiões na planície capuana, no sopé do monte Tifata. Irritado com a forma muito pouco ética como Norbano tratara os seus emissários, Sila decidiu dar-lhe uma lição que ele nunca mais pudesse esquecer. Assim, subiu ao monte Tifata e, conduzindo as suas tropas a boa velocidade, desceu as encostas e apanhou Norbano desprevenido. Derrotado antes de a batalha ter efectivamente começado, Norbano retirou-se para Cápua, onde, depois de ter organizado os seus soldados, naturalmente em pânico, enviou duas legiões para defenderem o porto de Nápoles, e preparou-se para agüentar o cerco.

Graças à perspicácia de um tribuno da plebe, Marco Júnio Bruto, Cápua fora levada a afeiçoar-se ao governo que então existia em Roma; no início desse ano, Bruto tinha promulgado uma lei dando a Cápua o estatuto de cidade romana. Uma tal medida, depois de séculos de insurreições e de subsequentes punições, agradara fortemente a Cápua. Norbano não precisava portanto de se preocupar, pois Cápua não se cansaria de lhe dar hospedagem a ele e ao seu exército. Cápua estava habituada a albergar legiões romanas.

— Temos Putéolos, portanto não precisamos de Nápoles — disse Sila a Pompeu e a Metelo Pio, quando seguiam na direcção de Teano Sidicino. — E passamos bem sem Cápua porque controlamos Benevento. Devo ter tido um pressentimento quando mandei Caio Verres para Benevento. — Parou por um momento, pensou em qualquer coisa e fez um gesto como que para responder a esse pensamento. — Cetego pode vir a ter um novo trabalho. Legado encarregado de todas as minhas colunas de abastecimento. Isso vai pôr à prova a sua diplomacia!

— Esta guerra — disse Pompeu, descontente — é uma guerra muito lenta. Por que razão não marchamos sobre Roma?

Sila, dadas as suas limitações expressivas, fitou-o com uma expressão simpática.

— Paciência, Pompeu! No que toca às artes da guerra, não precisas de instrução nenhuma. Mas no que toca às artes da política, precisas de toda a instrução deste mundo. Se o resto deste ano não te ensinar mais nada, pelo menos que sirva para aprenderes o que é manipulação política. Antes de pensarmos em marchar sobre Roma, temos de mostrar a Roma que ela, com o governo que tem neste momento, não pode vencer. Depois, se ela se revelar uma senhora sensata, virá ter connosco e oferecer-se-nos-á livremente.

— E se não se oferecer? — perguntou Pompeu, sem saber que Sila já tinha discutido o problema com Metelo Pio e Crasso.

— O tempo o dirá — e foi tudo o que Sila lhe respondeu. Tinham passado já por Cápua como se Norbano, entrincheirado

na cidade, não existisse, e seguiram na direcção do segundo dos exércitos consulares de Roma, chefiado por Cipião Asiágeno e pelo seu legado sénior, Quinto Sertório. As pequenas e muito prósperas cidades campanianas receberam Sila de braços abertos, pois conheciam-no bem; Sila comandara os exércitos de Roma instalados naquela região, durante a maior parte da Guerra Italiana.

Cipião Asiágeno encontrava-se acampado entre Teano Sidicino e Cales, no local onde um pequeno afluente do Volturno, alimentado por nascentes, fornecia uma água ligeiramente efervescente; mesmo no Verão, era deliciosa a suave tepidez dessas águas.

— Este é um sítio excelente para um acampamento de Inverno! — disse Sila e logo decidiu instalar o seu exército na margem oposta do rio. A cavalaria foi mandada de volta para Benevento, sob a chefia de Cetego, enquanto Sila dava a um novo grupo de emissários instruções explícitas tendo em vista a negociação de tréguas com Cipião Asiágeno.

— Cipião não é um antigo cliente de Caio Mário e por isso será muito mais fácil negociar com ele do que com Norbano — disse Sila a Metelo Pio e Pompeu. Tinha a pele do rosto ainda em convalescença e o seu consumo de vinho era agora menor do que durante a viagem de Benevento. Estava por isso com uma óptima disposição e com a cabeça muito desanuviada.

— Talvez — disse o Bacorinho, com um ar dubitativo. — Se se tratasse apenas de Cipião, concordaria inteiramente. Mas ele tem Quinto Sertório ao seu lado e tu sabes o que isso significa, Lúcio Cornélio.

— Significa problemas — retorquiu Sila, aparentemente despreocupado.

— Não devias pensar na melhor maneira de reduzir Sertório à total impotência?

— Nãovou precisar de fazer isso, meu caro Bacorinho. Cipião fá-lo-á por mim. — Pegando numa vara, apontou para um local do percurso do rio onde havia uma curva mais acentuada; era esse precisamente o sítio onde os dois acampamentos inimigos estavam mais próximos. — Cneu Pompeu, os teus veteranos sabem escavar?

Pompeu pestanejou, surpreso.

— Escavar?! Ora se sabem!

— Óptimo. Então, enquanto o resto do exército conclui as fortificações de Inverno, os teus homens podem escavar à saída da nossa muralha e fazer uma piscina enorme — disse calmamente Sila.

— Ora aí está uma ideia magnífica! — disse Pompeu com igual serenidade e um sorriso franco. — Euvou mandá-los fazer isso imediatamente. — Depois de uma pausa, tirou a vara a Sila e apontou-a para a outra margem. — Se estiveres de acordo, General Sila, deito abaixo aquela margem e trato de alargar o rio em vez de fazer uma piscina separada. E creio que será muito agradável para o nosso pessoal, se tapar pelo menos uma parte da água do rio — é que assim, quando vier o Inverno, a sensação de frio será muito menor.

— Bem pensado! Faz isso então — retorquiu cordialmente Sila, ficando depois a observar Pompeu que se afastava com uma passada decidida.

— Mas que raio de conversa foi essa? — perguntou Metelo Pio, de sobrolho franzido; detestava ver Sila tão afável com aquele jovem presunçoso!

— Ele sabia — disse Sila, enigmaticamente.

— Pois bem: eu não sei! — replicou, irritado, o Bacorinho. — Esclarece-me!

— Confraternização, meu caro Bacorinho! Achas que os homens de Cipião vão resistir às termas de Inverno de Pompeu? Mesmo no Verão? No fim de contas, os nossos homens também são soldados romanos. Não há como uma actividade colectiva verdadeiramente agradável para fomentar a amizade. Quando a piscina de Pompeu estiver acabada, haverá tantos homens deles como nossos a desfrutar dos prazeres de um bom banho termal. E, ao fim de pouco tempo, já todos conversarão animadamente — as mesmas piadas, as mesmas queixas, o mesmo tipo de vida. Aposto que não vamos precisar de travar nenhuma batalha.

— E ele compreendeu isso do pouco que disseste?

— Absolutamente.

— Surpreende-me que ele tenha concordado em ajudar-te! Afinal o que ele quer é guerra.

— É verdade. Mas ele já apanhou o meu ritmo, Pio, e sabe perfeitamente que não vai ter batalha nenhuma nestes meses da Primavera. Sabes, na estratégia de Pompeu não há qualquer propósito de me aborrecer. Ele precisa de mim tanto como eu preciso dele — disse Sila, e riu-se baixinho para dentro, sem mexer um palmo do rosto.

— Quer-me parecer que ele é muito capaz de decidir que não precisa de ti mais cedo do que pensas.

— Então estás enganado acerca dele.

Três dias depois, Sila e Cipião Asiágeno mantiveram conversações na estrada entre Teano e Cales, e concordaram em firmar um armistício. Por essa altura, já Pompeu tinha concluído a sua piscina. Tipicamente metódico, só abriu a piscina à recreação das tropas depois de ter publicado um regulamento para o uso da mesma, o qual dava espaço suficiente aos invasores vindos do outro lado do rio. Passados dois dias, as movimentações entre os dois campos eram já tão intensas que Quinto Sertório se viu forçado a dizer ao seu comandante:

— O melhor, já agora, é desistir da pretensão de que estamos em campos opostos.

Cipião Asiágeno pareceu surpreendido com aquela observação.

— Mas que mal é que aquilo faz? — perguntou num tom afável.

O único olho que restava a Sertório ergueu-se para o céu. O seu corpulento físico, por volta dos trinta e tal anos, ganhara a sua forma definitiva — em particular o pescoço rijo e largo, como o de um touro, formidável. E, sob um certo ponto de vista, era pena que ele tivesse aquele pescoço e aquele carão, já que lhe dava um ar bovino, em tudo contrário ao poder e qualidade do seu intelecto. Sertório era primo de Caio Mário e herdara o brilhantismo pessoal e militar de Mário, muito mais do que, por exemplo, o próprio filho de Mário. Perdera um olho numa escaramuça, pouco tempo antes do cerco de Roma, mas como ficara com o olho esquerdo e era canhoto, aquela perda não lhe afectara as capacidades guerreiras. A cicatriz transformara o seu rosto agradável em algo que roçava a caricatura, pois se o lado direito ganhara em beleza, o esquerdo impunha ao todo uma horrível contradição.

Cipião subestimava-o e não o respeitava nem compreendia. E agora, fitava-o surpreendido.

Sertório fez mais um esforço para o convencer dos seus pontos

de vista.

— Asiágeno, pensa um pouco! Crês que os nossos homens combaterão por nós se lhes permitirmos que mantenham relações de amizade com o inimigo?

— Combaterão porque receberão ordens para combater.

— Não estou de acordo. Porque achas que Sila mandou construir aquela piscina, senão para atrair as nossas tropas? Não foi a pensar nos homens dele que Sila mandou fazer aquilo! É uma armadilha e tu estás a cair nela!

— Estamos em tréguas e o outro lado é tão romano como o nosso — teimou Cipião Asiágeno.

— O outro lado é conduzido por um homem que tu devias temer tanto como se ele e o seu exército tivessem sido cuspidos da boca do dragão! Asiágeno, tu não podes ceder nem um milímetro! Se o fizeres, ele acabará por apossar-se de todas as terras que nos separam de Roma!

— Exageras — disse Cipião, inflexível.

— Não passas de um idiota! — atirou-lhe Sertório, incapaz de conter as palavras.

Mas Cipião não ficou nada impressionado com aquela explosão de mau-humor. Bocejou, coçou o queixo, fitou as unhas esmeradamente tratadas. Depois olhou para Sertório, que estava praticamente debruçado sobre ele, e fez-lhe um sorriso cheio de doçura.

— Desaparece! — atirou-lhe.

— Desapareço e é já! — retorquiu-lhe Sertório. — Pode ser que Caio Norbano consiga fazer-te ver as coisas!

— Dá-lhe cumprimentos! — gritou-lhe Cipião, retomando imediatamente o exame das unhas.

Assim, Quinto Sertório partiu a bom galope para Cápua, onde encontrou um homem muito mais próximo dele que Cipião Asiágeno. Norbano, o mais leal dos amigos de Mário, não era um defensor fanático de Carbão; depois da morte de Cina, limitara-se a manter a sua atitude de obediência unicamente porque detestava muito mais Sila que Carbão.

— Quer dizer então que aquele prodígio de cobardia da classe aristocrática concluiu um armistício com Sila? — perguntou Norbano, com um agudo na voz ao proferir o odiado nome.

— Isso mesmo. E permite que os nossos soldados confraternizem com os do inimigo — disse o inabalável Sertório.

— Mas por que raio é que eu tive de emparelhar com um colega tão estúpido? — queixou-se Norbano, encolhendo depois os ombros. — bom, é a isto que a nossa Roma está reduzida, Quinto Sertório. Eu vou-lhe mandar uma mensagem muito desagradável que ele vai obviamente ignorar. Mas sugiro-te que não voltes para ele. Repugna-me a ideia de que acabarás por ser mais um prisioneiro de Sila. Sila arranjaria maneira de te matar. Trata de fazer qualquer coisa que possa perturbar os planos de Sila.

— Ora aí está o que é bom senso — disse Sertório, com um suspiro. —vou atiçar o fogo contra Sila nas cidades da Campânia. Os habitantes das cidades declararam-se a favor de Sila, mas há muitos homens que não gostam dele. — Sertório tinha um ar enojado. — As mulheres, Caio Norbano! As mulheres! Basta-lhes ouvir o nome de Sila para ficarem em êxtase, tontas de êxtase! Foram as mulheres, e não os homens, quem decidiu que partido as cidades da Campânia haviam de apoiar.

— Então seria melhor que lhe olhassem bem para a cara — disse Norbano, com um esgar. — Julgo que ele tem tudo menos um ar humano.

- Pior do que eu?

— Muito pior. Pelo menos é o que dizem. Sertório franziu a testa.

— Já me chegaram alguns desses boatos, mas a verdade é que Cipião não me incluiu no grupo que negociou o tratado e por isso não pude vê-lo. Aliás, Cipião também não fez qualquer referência à sua fisionomia — disse Sertório e, com um riso soturno, acrescentou: — Ah, aposto que isso o deixa muito magoado, àquele lindo mentula! Que vaidoso que ele era! Tal e qual uma mulher.

Norbano sorriu maliciosamente.

— Não és grande apreciador de sexo, pois não?

— As mulheres são boas para um tipo se vir. Mas para esposa, muito obrigado mas não quero nenhuma! A minha mãe é a única mulher da minha vida. Essa sim, essa é que é uma mulher como deve ser! Não se mete nos assuntos dos homens, não se põe a cantar de galo, não usa a sua cunnus como uma arma. — Pegou no capacete e enfiou-o na cabeça. — Vou-me embora, Caio. Desejo-te boa sorte. Precisas muito dela se quiseres convencer Cipião de que está errado. Verpa!

Após alguma reflexão, Sertório decidiu seguir de Cápua para o litoral da Campânia, onde a pequena e bela cidade de Sinuessa Aurunca devia estar já madura para se rebelar contra Sila. As estradas da Campânia estavam sossegadas; Sila não procedera a nenhum bloqueio, a não ser no caso de um ataque formal contra Nápoles. Sem dúvida que, em breve, instalaria uma força nas cercanias de Cápua, de modo a que Norbano não pudesse sair, mas não havia o mínimo sinal de cerco quando Sertório o visitou. Mesmo assim, Sertório achou que seria melhor afastar-se das estradas principais. Gostava da sensação de viver uma vida de fugitivo; essa sensação dava uma outra dimensão à vida real; fazia-o lembrar-se dos tempos em que se disfarçara de guerreiro celtibero de uma tribo estrangeira a fim de poder espiar entre os Germanos. Ah sim, isso é que era viver! Não ter de agüentar os prodígios de cobardia da aristocracia romana! Acção constante, mulheres que sabiam qual era o seu lugar. Até tinha tido uma mulher germânica e fizera-lhe um filho e nunca sentira que ela ou o filho lhe tivessem tolhido os movimentos. Viviam agora na Hispânia Citerior, na fortaleza da montanha de Osca, e o rapaz já devia ser — ah, como o tempo voava — um homem. Não que Quinto Sertório sentisse a falta deles ou ansiasse voltar a ver o seu único filho. Só sentia falta de uma coisa — de viver. Da liberdade, pois a liberdade era o único factor verdadeiramente importante, pois só em liberdade é que um homem podia ser realmente um guerreiro. Sim, que belos tempos aqueles...

Como era seu hábito, Sertório viajava sem escolta: nem sequer um escravo levava. Tal como o primo, Caio Mário, acreditava que um soldado devia ser capaz de cuidar de si sem a ajuda de ninguém. Claro que as suas coisas tinham ficado no acampamento de Cipião Asiágeno, mas ele não voltaria lá para as ir buscar — ou voltaria? Pensando bem, havia umas quantas coisas que lhe faziam realmente falta: a espada que normalmente usava, uma cota de malha que trouxera da Gália Ulterior e que era de uma leveza e perfeição que nenhum ferreiro em Itália conseguiria igualar, as botas de Inverno da Ligúria. Sim, voltaria ao acampamento. Passariam ainda alguns dias antes que Cipião caísse.

E assim, Sertório deu meia-volta e rumou a nordeste, tencionando contornar o acampamento de Sila. A certa altura, descobriu que, na sua retaguarda, a alguma distância, vinha um pequeno grupo. Quatro homens e três mulheres. Ah, mulheres! Por pouco não mudava de direcção. Porém, no último momento, decidiu abeirar-se deles. No fim de contas, o grupo seguia na direcção do mar, ao passo que ele ia para as montanhas.

Porém, à medida que se ia aproximando, o seu sobrolho franzia-se mais e mais. O homem que vinha à frente não era seu conhecido? Um verdadeiro gigante, com o cabelo cor de linho e músculos maciços, tal e qual como milhares de germanos que conhecera — Burgundo! Por todos os deuses, era mesmo Burgundo! E atrás dele vinham Lúcio Decúmio e os seus dois filhos!

Burgundo tinha-o reconhecido; os dois homens espicaçaram os cavalos e assim correram ao encontro um do outro, enquanto o pequeno Lúcio Decúmio açoitava o seu animal para os apanhar. Ah sim, Lúcio Decúmio nunca perdia palavra de nenhuma conversa!

— Mas que raio é que vocês estão a fazer aqui? — perguntou Sertório depois dos cumprimentos e das palmadas nas costas.

— Estamos perdidos: é isso o que estamos a fazer aqui — disse Lúcio Decúmio, lançando um olhar de raiva e censura a Burgundo. — Este monte de merda germânico jurou que conhecia o caminho! Mas Será que conhece? Pois bem: não conhece! Não conhece nada!

Ao fim de muitos anos a ouvir as enxurradas de insultos (aliás, bem intencionados) de Lúcio Decúmio, Burgundo acabara por acostumar-se. Por isso, suportava-os agora com a paciência usual, limitando-se a fitar o pequeno romano com os olhos com que um touro olharia para um mosquito.

— Andámos à procura das terras de Quinto Pédio — disse Burgundo no seu latim muito lento, sorrindo para Sertório com uma afeição que reservava a poucos homens. — A senhora Aurélia vai levar a filha para Roma.

E ali vinha ela, montando uma robusta mula, muito direita sobre a sela, a cabeleira irrepreensivelmente penteada, o traje de viagem castanho-claro sem sinal de poeira. com ela, vinha a sua corpulenta criada gaulesa, Cardixa, e uma outra criada que Sertório não conhecia.

Quinto Sertório — disse ela, juntando-se a eles e de certo modo assumindo o comando.

Aquela é que era uma mulher! Sertório dissera a Norbano que, de todas as mulheres, apenas prezava a sua mãe, mas não havia dúvida que se tinha esquecido de Aurélia. Não sabia como é que ela conseguia ser bela e, ao mesmo tempo, sensata; o que ele sabia era que ela, entre todas as mulheres do mundo, era a única que conseguia ser bela e sensata. Além do que era tão honrada como qualquer homem, não mentia, não chorava nem se queixava, trabalhava duramente e não se metia onde não era chamada. Tinham praticamente a mesma idade — quarenta anos — e conheciam-se desde o casamento de Aurélia com Caio Júlio César, mais de vinte anos antes.

— Tens visto a minha mãe? — perguntou Sertório, enquanto ela conduzia a sua mula de modo a que os dois pudessem afastar-se um pouco do resto do grupo.

— Não a vejo deste os ludi romani do ano passado, portanto deve-la ter visto depois disso. Mas ela vai estar connosco outra vez este ano, por altura dos Jogos. As visitas dela tornaram-se um hábito.

— Aquela velha teimosa nunca há-de querer ficar em minha casa — disse ele.

— Sente-se sozinha, Quinto Sertório. A tua casa é um local tão solitário...! A nossa casa é uma barafunda e ela gosta disso. Não digo que gostasse de ficar mais tempo do que aquele que os Jogos duram, mas é bom para ela estar naquele ambiente pelo menos uma vez por ano.

Satisfeito no que tocava às notícias de sua mãe, que adorava, Sertório abordou o problema que preocupava Aurélia.

— Estão mesmo perdidos? — perguntou. Aurélia acenou que sim e suspirou.

— Receio bem que sim. Espera até o meu filho saber disto! Não me vai perdoar! Mas como ele é flamen Dialis, não pode ausentar-se de Roma e, por isso, tive de confiar em Burgundo. — Aurélia parecia arrependida. — Cardixa diz que ele é capaz de se perder entre o Fórum e Subura, mas confesso que sempre pensei que Cardixa era demasiado pessimista. Agora é que vejo que ela não exagerava rigorosamente nada!

— E Lúcio Decúmio e os filhos também não te podiam ajudar.

— Fora das muralhas da cidade, não conhecem nada de nada — disse ela, acrescentando logo, para fazer justiça a Decúmio: — Mas a verdade é que não podia ter uma escolta mais forte e atenta e, agora que te encontrei, tenho a certeza de que chegaremos às terras de Quinto Pédio num instante.

— Num instante, por certo que não. Mas posso indicar-lhes o caminho certo. — O seu único olho examinou-a atentamente. — Vais levar a miúda de volta para casa?

Aurélia enrubesceu.

— Não propriamente. Quinto Pédio escreveu-me a pedir que viesse. Parece que Cipião e Sila estão acampados nos limites das suas terras e ele achou que seria mais seguro para Lia ir para outro sítio. O problema é que ela se recusou a partir!

— Uma César típica — comentou Sertório com um sorriso. — Obstinada.

— Tens toda a razão! O irmão é que devia ter vindo buscá-la. Quando ele diz às irmãs que têm de fazer seja lá o que for, elas ficam cheias de medo e fazem mesmo! Mas Quinto Pédio, pelos vistos, acha que euvou conseguir. A minha tarefa não consiste em levar a miúda de volta para casa, mas sim em convencê-la a voltar para casa.

— Vais conseguir. Os Césares podem ser obstinados, mas não foi aos Césares que o teu filho foi buscar a sua autoridade. A autoridade, foi buscá-la a ti! — disse Sertório. De súbito, tinha um ar mais animado. — Vais compreender quando te disser que estou com alguma pressa.vou acompanhá-los durante uma parte do caminho, mas não poderei escoltá-los até à porta de Quinto Pédio. Infelizmente. Para isso, terás de pedir ajuda a Sila. O acampamento dele fica a meio caminho entre o sítio em que estamos agora e a casa de Quinto Pédio.

— E tu vais ter com Cipião, não é? — disse ela.

— De facto não era essa a minha intenção inicial — retorquiu ele com toda a franqueza. — Só que, a dado momento, apercebi-me de que deixara no acampamento coisas de que não gostaria de me separar.

Os grandes olhos cor de púrpura de Aurélia atentaram nele tranqüilamente.

— Ah, estou a ver! Cipião não está à altura.

— Alguma vez pensaste que poderia estar?

— Não, nunca.

Fez-se um breve silêncio. Seguiam agora pelo mesmo caminho de onde tinham vindo. O resto do grupo de Aurélia ficara para trás.

Que vais tu fazer, Quinto Sertório?

—vou causar a Sila o máximo de problemas que puder. Em Sinuessa, creio eu. Mas só depois de ir buscar as minhas coisas ao acampamento de Cipião. — Sertório pigarreou e logo acrescentou: — Posso levar-te até Sila. Num caso destes, ele nunca tentaria deter-me.

— Não. Leva-nos apenas até um sítio a partir do qual possamos encontrar o acampamento sem nos perdermos outra vez. — Aurélia soltou um suspiro de prazer. — Ah, que bom voltar a ver Lúcio Cornélio! Esteve em Roma pela última vez há quatro anos. Ele visitava-me sempre antes de partir e logo que chegava. Uma espécie de tradição. Agora vou ter de quebrar a tradição, e tudo por causa de uma filha teimosa. Mas não importa. O que importa é que eu e Lúcio Cornélio vamos voltar a ver-nos. Tenho tido imensas saudades das suas visitas.

Sertório quase abria a boca para a advertir. Mas não chegou a dizer-lhe nada. O que sabia sobre o estado de saúde de Sila não passava de boatos; ao passo que, o que sabia sobre Aurélia eram factos claros. Sabia que ela preferia fazer as suas próprias descobertas, disso estava certo.

Assim, quando as muralhas de terra e madeira do acampamento de Sila começaram a desenhar-se no horizonte, Quinto Sertório despediu-se gravemente da prima (por afinidade, já que casara com um primo seu), apressou o cavalo e partiu.

Uma nova estrada atravessava os campos na direcção das muralhas, uma estrada já gasta pelo movimento constante das carroças do abastecimento e dos cascos dos cavalos. Agora não podia haver qualquer razão para se perderem.

— Devemos ter passado por aqui e não demos por nada — disse Lúcio Decúmio, carrancudo. — E não demos por nada porque o teu rabo nos tapava a vista, Burgundo!

— Então?! — interveio calmamente Aurélia. — Parem com as discussões!

E as discussões, de facto, acabaram. Uma hora depois, o pequeno grupo chegou ao portão da fortaleza e Lúcio Decúmio pediu que os levassem ao general. Aurélia, que nunca tinha visto um acampamento de tropas, nem de perto nem de longe, penetrava assim num universo que para ela era muito estranho e rigorosamente novo. Muitos foram os olhos que a miraram, à medida que o grupo avançava pela estrada, uma recta perfeita, que conduzia à pequena abertura de um outro portão, situado muito longe. A cerca de cinco quilômetros do primeiro portão, calculou ela, surpreendida.

A meio da Via Principalis, via-se a única elevação que havia no campo; uma elevação obviamente artificial, sobre a qual fora construída uma grande casa de pedra. A enorme bandeira vermelha do general ondeava ao vento, sinal de que o general estava nos seus aposentos. O oficial de serviço, um jovem ruivo, sentado à sua mesa debaixo de um toldo, levantou-se desajeitadamente quando reparou que a visita do general era uma mulher. Lúcio Decúmio e os filhos, Burgundo, Cardixa e a outra criada ficaram junto dos cavalos, enquanto Aurélia avançou tranqüilamente até ao oficial de serviço e as sentinelas que o ladeavam.

Porque Aurélia estava inteiramente envolvida por uma volumosa túnica de lã castanho-clara, o máximo que o jovem Marco Valério Messala Rufo pôde ver foi a cara dela. Mas isso, pensou ele, recuperando da surpresa, já era o bastante! com a idade da mãe dele e, no entanto, a mais bela de todas as mulheres! Helena de Tróia também já não era nova quando deu que falar de si. Os anos não tinham afectado a magia que havia em Aurélia; ainda agora todas as cabeças se viravam para vê-la, sempre que saía à rua.

— Por favor, gostaria de falar com Lúcio Cornélio Sila. Messala Rufo não lhe perguntou o nome, nem pensou em avisar Sila da sua chegada; limitou-se a fazer-lhe uma vénia e a apontar-lhe a porta. Aurélia entrou, com um sorriso de agradecimento.

Embora as ripas das persianas fossem estreitas para que o ar pudesse entrar em abundância, a sala estava mergulhada na sombra, em especial no canto onde um homem sentado a uma secretária escrevia atarefadamente, sob a luz de um grande castiçal.

Aquela voz só podia ser de Aurélia:

— Lúcio Cornélio?

Algo de muito especial aconteceu então. Os ombros curvados endireitaram-se, sobressaltaram-se como que para se defenderem de um murro tremendo, e a pena e o papel deslizaram pela secretária, com tal violência que acabaram no chão. Porém, depois deste sobressalto inicial, Sila ficou muito quieto na sua cadeira, os olhos postos nela.

Aurélia avançou alguns passos.

— Lúcio Cornélio?

Nenhuma resposta. No entanto, os olhos dela começavam a habituar-se à escuridão. Reparou numa cabeleira que não pertencia a Lúcio Cornélio Sila. Pequenos caracóis ruivos, perfeitamente ridículos.

Depois, ele ergueu-se nervosamente, como que percorrido por espasmos, e Aurélia não teve mais dúvidas de que era realmente Lúcio Cornélio Sila que ali estava porque aqueles olhos que a fitavam só poderiam ser os olhos de Lúcio Cornélio Sila. Uns olhos inconfundíveis.

Por todos os deuses! Como posso ter-lhe feito uma coisa destas?! Mas eu não sabia! Se soubesse, não haveria nada deste mundo capaz de me arrastar até aqui! Será que ele descortina alguma coisa na minha expressão?

— Ah, Lúcio Cornélio, que bom voltar a ver-te! — disse ela, no tom que convinha, avançou na direcção da secretária e beijou-o nas faces cobertas de cicatrizes. Depois, sentou-se numa cadeira que estava ao pé da secretária, juntou as mãos sobre o colo, sorriu para ele sem qualquer constrangimento e esperou.

— Tencionava nunca mais te voltar a ver, Aurélia — disse ele, sem desviar os olhos dos olhos dela. — Não podias esperar até que eu chegasse a Roma? Isto que fizeste é uma alteração aos nossos hábitos, uma alteração de que não estava de modo nenhum à espera.

— Pelos vistos, só chegarás a Roma depois de uma difícil experiência. com um exército atrás de ti. Ou talvez eu pressentisse que esta seria a primeira vez que não me visitarias. Mas não é nada disso, Lúcio Cornélio, eu não estou aqui por nenhuma razão evidente. Vim ter contigo porque me perdi.

— Perdeste-te?

— Sim. Pretendo encontrar a casa de Quinto Pédio. A tonta da minha filha não quer ir para Roma e Quinto Pédio — é o segundo marido dela, isso tu não podias saber — não quer que ela permaneça num sítio onde estão acampados dois exércitos inimigos — explicou Aurélia, dizendo para si mesma que tinha conseguido manter um tom despreocupado e convincente. Ele vai ficar mais à vontade agora, pensou.

Mas aquele homem chamava-se Sila. Por isso retorquiu:

— Ficaste chocada, não foi? Aurélia não procurou disfarçar

— Sim, de certo modo. A cabeleira, sobretudo. Ficaste calvo, não é?

— Fiquei sem cabelo e sem dentes — respondeu Sila, mostrando as gengivas como um macaco. — bom, todos nós chegamos a isso se vivermos o tempo suficiente.

— Agora já não quererias que eu te beijasse como te beijei há alguns anos, pois não?

Aurélia inclinou levemente a cabeça, sorriu.

— Nem mesmo então quis que me beijasses daquela maneira. Apesar de realmente ter gostado. Mas era um perigo demasiado grande para a minha paz de espírito. Ah, o que tu me odiaste então!

— De que estavas à espera? Rejeitaste-me. Não gosto que as mulheres me rejeitem.

— Recordo-me perfeitamente!

— Eu recordo-me das uvas.

— Também eu.

Sila respirou fundo, comprimiu as pálpebras.

— Ah, quem me dera ser capaz de chorar!

— Ainda bem que não és capaz, meu amigo — disse ela, ternamente.

— Naquela altura, choraste por mim.

— Sim, chorei. Mas nãovou chorar por ti agora. Seria chorar uma imagem que há muito desapareceu das águas do rio. O que interessa é que estás aqui. Fico contente por isso.

Ele levantou-se finalmente. Um homem velho e cansado.

— Um copo de vinho?

— De bom grado.

Aurélia reparou que, ao servir o vinho, Sila usava duas garrafas.

— Não gostarias da urina que sou forçado a beber. É tão seca e amarga como eu próprio.

— Olha que eu também sou bastante seca e amarga, mas nãovou insistir em provar o teu vinho, já que não mo recomendas. — Aurélia pegou no copo que ele lhe estendia e bebeu com agrado o vinho. — Obrigado, é muito agradável depois de uma jornada tão longa e cansativa.

— Que se passa com o teu marido para te deixar fazer o que lhe competia? Está outra vez fora? — perguntou Sila, sentando-se mais descontraidamente.

Os olhos luminosos de Aurélia ganharam uma gravidade vítrea.

— Há dois anos que sou viúva, Lúcio Cornélio. Esta notícia deixou-o espantado.

— Caio Júlio morto?! Mas ele estava tão bem como um rapaz! Foi morto nalguma batalha?

— Não. Morreu de repente.

— E eu aqui estou, mil anos mais velho que Caio Júlio, e ainda agarrado à vida — disse Sila num tom amargo.

— Tu és o Cavalo de Outubro, ao passo que ele ficou sempre numa posição intermédia. Era um homem bom e eu gostei de estar casada com ele. Mas nunca pensei nele como um homem que precisava de se agarrar à vida — disse Aurélia.

— Talvez tivesse sido bom para ele. Partindo do princípio que conquistarei Roma, as coisas poderiam ficar feias para ele, caso fosse vivo. Julgo que ele teria optado por apoiar Carbão.

— Ele apoiou Cina, por respeito a Caio Mário. Mas Carbão? Não sei se o apoiaria. — Aurélia mudou de assunto, menos chocada agora com o aspecto daquele que fora tão belo como Apolo. — Como está a tua mulher, Lúcio Cornélio? Bem?

— Sim, segundo as últimas notícias que tive dela. Continua em Atenas. Deu-me dois gémeos o ano passado. Um rapaz e uma rapariga. — Soltou uma risadinha e prosseguiu: — Ela tem medo que se venham a parecer com o tio, o Bacorinho.

— Ah, coitadinhos! Mas é bom, ter filhos. Nunca pensas nos teus outros gémeos, os filhos da tua esposa germânica? Já devem estar uns homens.

— Ah, os jovens Queruscos! Devem ter andado por aí a escalpar e a queimar romanos vivos em aulas de vime!

Tudo ia ficar bem: ele estava mais calmo agora, menos atormentado. Aurélia pensara em muitos destinos possíveis para Sila. Mas a perda daquela atracção única e tão especial não estava nas suas previsões. E, no entanto, ele continuava a ser Sila. Provavelmente, pensou Aurélia, a mulher dele continua a amá-lo como quando ele era a imagem de Apolo.

Conversaram ainda durante algum tempo, passando em revista os anos passados à medida que iam trocando notícias sobre muitas e variadas pessoas; Aurélia reparou que ele gostava de falar do seu protegido, Lúculo, e Sila apercebeu-se de que ela gostava de falar do seu único filho varão, que agora se chamava César.

- Se bem me lembro, o jovem César era um verdadeiro erudito. O cargo de flamen Dialis deverá assentar-lhe bem.

Aurélia hesitou, pareceu ir dizer qualquer coisa, mas acabou por dizer algo aparentemente diverso do que tinha pensado:

— Ele tem feito um esforço tremendo para ser um bom sacerdote.

Franzindo o sobrolho, Sila olhou pela janela mais próxima.

— O sol está já a caminhar para o ocaso, é por isso que está tão escuro aqui dentro. São horas de te pores a caminho.vou arranjar-te alguns guias — a casa de Quinto Pédio não fica muito longe do meu acampamento. E podes dizer à tua filha que será muito estúpida se ficar. Os meus homens não são propriamente uns selvagens, mas uma verdadeira Júlia, como julgo que ela é, constitui sempre uma tentação a que é muito difícil resistir, e nós não podemos impedir os soldados de beber, para mais quando estão presos num acampamento. Leva-a para Roma imediatamente. Arranjo-te uma escolta que te acompanhará até Farentino depois de amanhã. Desse modo, poderás fazer a tua viagem em segurança, longe das garras dos exércitos que aqui estão acampados.

Aurélia levantou-se.

— Eu trouxe comigo Burgundo e Lúcio Decúmio, tal como os filhos deste. Mas se realmente podes dispor dos homens, aceitarei de bom grado a escolta. Não há nenhuma batalha iminente entre as tuas tropas e as de Cipião?

Ah, que triste, nunca mais voltar a ver aquele belo sorriso! O máximo que ele podia fazer agora era um risinho grunhido, algo que não perturbava as crostas e cicatrizes do seu rosto.

— com as tropas daquele imbecil? Não, não estou a prever nenhuma batalha — disse ele, no vão da porta. Depois, empurrou-a ligeiramente. — Agora vai, Aurélia. E não esperes que eu te visite em Roma.

Aurélia foi ter com a sua escolta enquanto Sila dava já instruções a Messala Rufo. E, poucos instantes depois, seguiam já pela Via Pretória, na direcção de outro dos quatro portões do vasto acampamento de Sila.

Os companheiros de viagem de Aurélia olharam para ela, mas não se sentiram encorajados a dirigir-lhe a palavra. Assim, Aurélia pôde dispor da paz necessária para mergulhar nos seus pensamentos até ao final da jornada.

Sempre gostei dele, apesar de ele se ter tornado nosso inimigo. Apesar de ele não ser um homem bom. O meu marido era genuinamente uma boa pessoa, e eu amava-o, e fui-lhe fiel de corpo e alma. No entanto — e isto, sei-o agora, só agora — houve uma pequena porção de mim mesma que dei a Lúcio Cornélio Sila. A parte que o meu marido não queria, a parte com que o meu marido não teria sabido o que fazer. Lúcio Cornélio e eu só nos beijámos uma vez. Mas foi um beijo tão belo quanto sinistro. Uma lama apaixonante e envolvente. Eu não cedi. Mas os deuses sabem o quanto eu desejava ceder! De certo modo, foi uma batalha que venci. No entanto... não terei por acaso perdido uma guerra?

Sempre que ele penetrava no meu confortável e ordenado mundo, trazia consigo um vendaval; se ele era Apolo, também era Éolo, e governava os ventos do meu espírito, a tal ponto que a lira que havia no fundo de mim mesma dedilhava uma melodia que o meu marido nunca por nunca ouviu... Ah, isto é pior que a dor do luto e da separação derradeira! Estive perante os destroços de um sonho, de um sonho que era tanto meu como dele, e ele sabe-o, pobre Lúcio Cornélio. Mas quanta coragem! Um homem mais fraco teria caído sobre a sua espada. Quanta dor, quanta dor! Mas por que motivo sinto isto? Eu sou uma mulher de acção, uma mulher prática que não se perde nos labirintos da imaginação. Tenho uma vida organizada e muito satisfatória. Mas agora compreendo que parte de mim mesma pertenceu sempre a Sila; a parte do pássaro, da ave que poderia ter subido pelos ares, fazendo espirais a grande altura, dando voz às melodias do seu coração, enquanto que, lá em baixo, toda a terra se incendiava por um nada. Mas não, não estou triste por ter mantido os meus pés bem presos à terra, por nunca ter voado naquelas altas paragens. É algo que se ajusta à minha pessoa. Eu e Sila nunca teríamos tido um momento de paz. Ah, mas sofro por ele! Sim, sofro por ele e choro...

E como Aurélia seguia à frente de todos, excepto dos oficiais romanos que os guiavam, nenhum dos membros da sua comitiva pôde ver as lágrimas que lhe corriam pelo rosto. Tal como não puderam ver os destroços de um sonho que se chamava Lúcio Cornélio Sila.

A paciente carta de protesto que Caio Norbano enviou a Cipião Asiágeno em nada contribuiu para impedir o desastre que Cipião a si próprio infligiu; no entanto, ninguém ficou mais surpreendido que Cipião quando, após ter finalmente decidido que combateria, descobriu que as suas tropas não lutariam por ele. Pelo contrário: as suas oito legiões desertaram em massa para o inimigo.

De facto, mesmo depois de Sila lhe ter retirado as insígnias consulares e lhe ter ordenado que partisse sob a escolta de um esquadrão de cavalaria, Cipião Asiágeno continuou sem perceber que Roma estava de facto numa situação muito difícil. Tranqüila e complacentemente, dirigiu-se para a Etrúria, onde começou a recrutar outro exército, recorrendo aos inúmeros clientes de Caio Mário que aí viviam. Caio Mário podia estar morto, mas a sua memória nunca se esbateria. Ao passo que Cipião Asiágeno não passava de uma presença transitória.

— Ele nem sequer compreende que, dessa forma, está a desrespeitar um solene acordo de tréguas — comentou Sila, perplexo. — Eu bem sei que os Cipiões estão muito por baixo, mas este abusa! Não merece o nome de Cornélio Cipião. Se conquistar Roma, mandarei executá-lo.

— Devias tê-lo executado quando o tiveste na mão — disse o Bacorinho, um tanto irritadiço. — Aquele homem só nos vai trazer chatices.

— Nada disso. Cipião é o cataplasma que euvou aplicar no furúnculo da Etrúria — retorquiu Sila. — com esse cataplasma, retiro o veneno enquanto há apenas um furúnculo para tratar. Desse modo, os furúnculos não se alastram e não se tornam malignos.

De novo a sabedoria de Sila, pensou Metelo Pio com um sorriso malicioso.

— Mas que bela metáfora! — comentou.

Embora se estivesse ainda em Quinctilis e o Verão se encontrasse, portanto, longe do fim, Sila não viria a abandonar aquele acampamento durante todo o ano. Após a partida de Cipião, os dois acampamentos juntaram-se e os experimentados centuriões de Sila começaram a treinar os soldados, jovens e pouco conhecedores da guerra, que haviam pertencido à Roma de Carbão. O medo e o respeito que sentiam pelos veteranos de Sila tinham tido mais efeito sobre esses soldados do que a amistosa confraternização; em poucos dias, tinham ficado a conhecer um tipo de soldado que desconheciam em absoluto — duro, resistente, inteiramente profissional. O tipo de militar que nenhum recruta recente conseguiria vencer num campo de batalha. A deserção parecia ter sido, de facto, a melhor alternativa.

A defecção de Sinuessa Aurunca, sob a influência de Quinto Sertório, não passava de um mero acidente de percurso; Sila acabou por atacar a cidade, mas apenas para que o exército de Cipião pudesse treinar, e não para que a cidade morresse à fome ou visse destruídas as suas formidáveis muralhas. Sila não estava interessado em lançar, nesse ano, operações susceptíveis de causarem pesadas baixas em vidas humanas. A grande utilidade do cerco a Sinuessa consistia no facto de constituir uma prisão para Quinto Sertório, um homem extremamente capaz do ponto de vista militar. Isolado em Sinuessa, Quinto Sertório era uma pedra inútil no jogo de Carbão, que poderia tê-lo utilizado de uma forma incomparavelmente melhor.

Entretanto, chegaram notícias da Sardenha segundo as quais Filipe e as suas coortes hispânicas tinham tomado facilmente o poder. Filipe estaria em condições de enviar todo o produto das colheitas da ilha: e, de facto, no tempo previsto, sem qualquer oposição de navios de guerra ou de piratas, os navios do transporte de cereais chegaram a Putéolos e descarregaram tudo aquilo de que Sila precisava.

O Inverno, naquele ano, começou cedo e foi invulgarmente severo. A fim de melhor distribuir as suas tropas, que entretanto tinham aumentado para mais do dobro, Sila enviou algumas coortes atacar Cápua, Sinuessa e Nápoles, obrigando assim outras zonas da Campânia, para além de Teano, a contribuírem para o sustento das suas tropas. Verres e Cetego revelaram-se notáveis abastecedores, chegando mesmo a inventar um método de conservação do peixe do Adriático em recipientes cheios de neve comprimida; os soldados de Sila, que adoravam peixe mas nunca tinham bastante peixe fresco à sua disposição, deleitaram-se com este inesperado banquete, de tal modo que os cirurgiões do exército não tiveram mãos a medir para extrair espinhas das gargantas mais ávidas.

Nada disto tinha a mínima importância para Sila, que tinha arrancado algumas das crostas do rosto e que, por isso, suportava agora mais um surto de comichão. Toda a gente lhe suplicara que deixasse cair as crostas naturalmente, mas aquele temperamento inquieto não era capaz de esperar; arrancava as crostas mal elas começavam a dar de si.

Aquele foi um surto terrível e que (talvez por causa do frio, pensava Varrão, que agora assistia Sila por ter revelado curiosidade científica) o importunou sem cessar durante três meses. Três meses em que Sila viveu embrutecido pelo álcool, um Sila perfeitamente desvairado que gemia e se arranhava, que berrava e bebia. A certa altura, Varrão atou-lhe as mãos para que ele não tocasse na cara, e embora Sila (como Ulisses atado ao mastro enquanto as Sereias cantavam) desejasse aquela prisão, ao mesmo tempo implorava que o libertassem. Até que acabou por conseguir libertar-se sozinho. E por coçar e arranhar a pele do rosto.

Estava o ano quase no fim quando Varrão, sentindo-se desesperado, advertiu Metelo Pio e Pompeu de que duvidava que Sila estivesse recuperado na Primavera.

— Chegou uma carta para ele, vinda de Tarso — disse Metelo Pio, que se resignara a ter Pompeu por companhia ao longo de todo o Inverno; Crasso estava entre os Marsos e Ápio Cláudio e Mamerco comandavam cercos noutros locais.

— De Tarso? — perguntou Varrão, com súbito interesse. — Isso mesmo. Do etnarca Mórsimo.

— E não mandou nenhum frasco?

” — Não, apenas uma carta. Ele está em condições de lê-la?

— Não, de modo nenhum.

— Então o melhor é seres tu a lê-la, Varrão — disse Pompeu. Metelo Pio fitou Pompeu escandalizado.

— Francamente, Pompeu!

— Ora, Bacorinho, deixa-te de falsos formalismos! — retorquiu Pompeu, entediado. — Nós sabemos que ele não pensa noutra coisa senão no unguento mágico que o há-de curar. Sabemos também que tinha encarregado Mórsimo de descobrir esse unguento. E agora vêm notícias de Mórsimo, mas ele não está em condições de ler. Não achas — pelo menos para o bem de Sila. — que Varrão devia ler o que Mórsimo tem para nos dizer?

Perante tais argumentos, Metelo Pio autorizou Varrão a ler a carta de Mórsimo.

Aqui vai a receita, meu caro Lúcio Cornélio, meu amigo e patrono: é o máximo que posso fazer por ti. Parece que o unguento tem de ser preparado de fresco mais vezes do que a extensão de uma jornada desde o rio Píramo, na Cilícia Pedia, até Roma, permitiria. Por isso, terás de ser tu a procurar os ingredientes e a preparar a pomada. Afortunadamente, nenhum dos ingredientes é exótico, embora muitos deles sejam difíceis de extrair.

O curativo obtém-se a partir de uma ou muitas ovelhas. Em primeiro lugar, tens de ter um tosão de lã rigorosamente não tratada. Depois, mandas alguém raspar as fibras com um instrumento aguçado o suficiente para as alisar, mas não para as cortar. Verificarás que, na ponta do strigilis, começará a formar-se uma substância — particularmente oleosa, mas com a consistência do coalho do queijo. É preciso raspar a lã até se obter uma grande quantidade desta substância — segundo a minha fonte, são necessários muitos velos. Depois, deitas a substância assim obtida em água lépida: tépida, não quente! O melhor teste é meter um dedo na água — tens de sentir que está quente, mas de modo nenhum insuportável. A substância dissolver-se-á parcialmente numa camada que flutua no topo. Essa camada é a parte que interessa: terás de ter um copo grande cheio dela.

Posteriormente, pegas num tosão com o couro, certificando-te de que fica agarrada alguma gordura às costas do couro — o animal tem de ser morto no momento, aliás, todos os animais têm de ser mortos no momento —, e pões esse tosão a cozer.

A gordura de uma ovelha, assim me disse a minha fonte, precisa também de uma gordura especial que existe dentro do animal, porque a gordura das ovelhas é muito dura: mesmo num quarto quente, não derrete. A minha fonte — a velha mais fedorenta e detestável que existe ao cimo da terra e por certo a mais gananciosa de todas as criaturas! — disse que esta gordura interna tem de ser retirada da porção mais dura de gordura que existe ao cimo dos rins da ovelha e depois esmagada. Em seguida, tem de ser dissolvida em água tépida, tal e qual como se faz com a substância obtida a partir da raspagem da lã. A camada que se forma ao cimo da água tem de encher dois terços de um copo alto. A isto, junta um terço de um copo de bílis retirada da vesícula biliar da ovelha imediatamente após a matança.

Finalmente, misturas todos os ingredientes de uma maneira suave mas eficaz. O unguento é bastante duro, mas não tão duro como a gordura logo após a sua extracção. Aplica-o pelo menos quatro vezes ao dia. Aviso-te, meu caro Lúcio Cornélio, de que deita um fedor atroz. Mas a minha fonte insiste que o unguento tem de ser usado sem qualquer mistura de perfumes, fragrâncias ou resinas.

Informa-me, por favor, sobre os resultados! A velhaca da velha jura que foi ela quem fabricou o unguento que te causou melhoras temporárias, embora eu tenha algumas dúvidas.

Vale de Mórsimo.

Varrão tratou imediatamente de reunir um pequeno exército de escravos, a quem mandou procurar um rebanho. Depois, numa pequena casa situada perto do edifício onde Sila vivia, lançou-se ao trabalho, girando nervosamente entre os caldeirões e os homens que, afanosamente, raspavam a lã, insistindo em inspeccionar pessoalmente todas as carcaças e todos os rins, insistindo em testar pessoalmente a temperatura da água, medindo meticulosamente todas as quantidades necessárias e exasperando os criados com as suas críticas, com o seu espalhafato, com os seus ”tch”. Uma hora antes de a sua fábrica de unguentos ter começado a laborar, fez o maior alvoroço por causa do tamanho do copo; uma hora passada, apercebeu-se do que realmente interessava para o caso e desatou a rir a bandeiras despregadas. De facto, se os copos fossem todos do mesmo tamanho, que interessava o pormenor do tamanho?

Uma centena de ovelhas depois (para a bílis e a gordura derretida tinham sido precisas apenas duas ovelhas, mas a pequena porção de gordura no topo dos rins e a substância extraída da lã exigiram muito mais animais), Varrão tinha à sua frente um jarro de pórfiro, bastante grande, cheio de unguento. Quanto aos exaustos escravos, tinham à sua frente uma centena de carcaças quase intactas e davam por bem empregue tanto labor, pois iam encher a barriga de carne assada.

Era já uma hora tardia, e Sila, conforme o seu ordenança segredou a Varrão, dormia num divã da sala de jantar.

— Bêbedo — disse Varrão.

— Sim, Marco Terêncio.

— Bem, creio que é melhor que ele esteja bêbedo. Entrou então no edifício em bicos de pés e, por um momento,

atentou naquela pobre e torturada criatura em que Sila se tinha transformado. A peruca caíra-lhe da cabeça e jazia agora no chão exibindo o seu interior; muitos milhares de cabelos tinham sido gastos na sua manufactura e cada um desses cabelos fora esmeradamente aplicado na base de gaze. E pensar que esta peruca demorou mais tempo a fazer que o meu unguento!, pensou Varrão, suspirando e abanando a cabeça. Depois, muito delicadamente, aplicou os dedos ensopados em unguento na sangrenta desordem que era o rosto de Sila.

Os olhos abriram-se imediatamente. Apesar da turvação que o vinho produzira, o terror e o sofrimento eram visíveis nos seus olhos. A boca abriu-se, os lábios esticaram-se, exibindo as gengivas nuas e a língua. Mas nenhum som saiu daquela boca.

— É o unguento, Lúcio Cornélio — murmurou Varrão. — Fi-lo a partir da receita. Consegues suportar mais algum?

As lágrimas assomaram-lhe aos olhos, mas não desciam pelo rosto porque ele estava deitado de costas. Antes que pudessem escorrer pelos cantos, Varrão secou-as com o mais suave dos tecidos. Mas as lágrimas persistiam. E Varrão também.

— Não deves chorar, Lúcio Cornélio. O unguento tem de ser aplicado na pele seca. Agora está quieto e fecha os olhos.

E Sila deixou-se ficar quieto, os olhos cerrados. Depois de alguns movimentos abruptos e reflexos porque lhe estavam a mexer no rosto, Sila não mais protestou e, lentamente, foi-se libertando de toda a tensão.

Varrão deu por concluído o seu trabalho, pegou num castiçal com cinco velas e aproximou-o de Sila para apreciar os resultados. Gotas de um fluido claro, aquoso, começavam a sair nos sítios onde a pele fora afectada, mas a camada de unguento parecia ter controlado a sangria.

— Tens de fazer o possível por não coçar. Tens comichão? — perguntou Varrão.

Os olhos permaneceram fechados.

— Sim, tenho. Mas já passei por muito pior. Ata-me as mãos. Varrão assim fez.

— Eu volto cá pelo alvorecer e ponho-te mais unguento. Quem sabe, Lúcio Cornélio? Pode ser que, ao alvorecer, a comichão já tenha desaparecido — disse ele, afastando-se nos bicos dos pés.

Ao alvorecer, Sila continuava a sentir comichão, mas, aos olhos clinicamente distanciados de Varrão, a pele de Sila parecia — como dizer? — mais calma. Tratou então de aplicar mais unguento; e Sila voltou a pedir que lhe atasse as mãos. Porém, ao cair da noite, ao fim de três aplicações, anunciou que resistiria à vontade de se coçar se Varrão lhe desatasse as mãos. E quatro dias depois, disse a Varrão que a comichão tinha desaparecido.

— Isto dá mesmo resultado! — exclamou Varrão para Pompeu e o Bacorinho, com a mesma satisfação inebriante que teria um físico, apesar de ele não o ser e não desejar vir a sê-lo.

— Estará em condições de comandar as nossas tropas na Primavera? — perguntou Pompeu.

— Se o unguento continuar a dar o mesmo resultado que até agora ele estará em condições de comandar as tropas muito antes da Primavera — disse Varrão, afastando-se a toda a pressa com o seu jarro de pórfiro para o guardar na neve. Mantido no frio, durará mais tempo, embora as mãos de Varrão fedessem àquilo que suspeitava ser a versão rançosa do unguento.

— Não há dúvida que Sila é Felix. — disse Sila para si mesmo; queria dizer, evidentemente, que Sila tinha a fortuna pelo seu lado.

Quando os primeiros dias desse Inverno gelado e prematuro trouxeram neve às ruas de Roma, muitos dos seus habitantes viram no frio intenso um mau augúrio. Norbano e Cipião Asiágeno não tinham regressado após as respectivas derrotas e, por outro lado, não havia qualquer notícia encorajadora das suas actividades subsequentes; Norbano encontrava-se em Cápua, sob um cerco que se arrastava sem qualquer evolução, enquanto Cipião deambulava pela Etrúria recrutando soldados.

Por volta do final do ano, o Senado achou por bem debater o que o futuro lhe reservava a si — e a Roma. Do número razoavelmente vasto de senadores que Sila em tempos promulgara, restava agora cerca de um terço: muitos tinham corrido a juntar-se a Sila quando este se encontrava ainda na Grécia, outros tinham aderido celeremente à sua causa depois de ele ter desembarcado em Itália. De facto, apesar dos protestos de um grupo de senadores, que insistiam em considerar-se neutrais, toda a gente em Roma, desde as classes mais altas às mais baixas, sabia perfeitamente que os dados estavam lançados e os campos definidos. Apesar da sua vastidão, nem todo o território da Itália e da Gália Italiana chegava para albergar Sila e Carbão num regime de coexistência pacífica; Sila e Carbão defendiam valores opostos, sistemas de governo contrários, idéias diversas quanto aos caminhos que Roma havia de trilhar. Sila defendia a mos maiorum, os costumes e tradições com séculos de idade que davam aos aristocratas fundiários a chefia de Roma tanto na paz como na guerra, ao passo que Carbão defendia os dirigentes comerciais e mercantis — os cavaleiros e os tribuni aerarü. Como nenhum destes grupos concordaria em partilhar equitativamente o poder, um dos dois teria de alcançar o domínio do país através de mais uma guerra civil.

O facto de o Senado pôr a hipótese de uma reunião devia-se apenas ao regresso de Carbão da Gália Italiana, onde fora chamado pelo tribuno da plebe Marco Júnio Bruto, o mesmo que legislara o estatuto de cidade romana para Cápua. Os senadores reuniram-se na casa de Bruto, no Palatino, um local que Cneu Papírio Carbão conhecia muito bem; ele e Bruto eram amigos há muitos anos. Além disso, era uma residência mais discreta do que a casa de Carbão, onde (assim rezavam os boatos) até mesmo o rapaz que despejava os bacios tinha sido subornado para revelar quais seriam os próximos passos de Carbão.

O facto de a casa de Bruto estar livre de criados corruptos devia-se inteiramente à acção da mulher de Bruto, Servília, que dirigia o seu lar con muito mais severidade que a demonstrada por Cipião Asiágeno no comando do seu exército. Servília não tolerava qualquer procedimento menos correcto, parecia ter tanto olhos na cabeça como Argo e tantos ouvidos como uma colônia de morcegos.

Não existia criado que pudesse competir com ela em astúcia ou capacidade de chefia e quanto àqueles que não a temiam poucos dias permaneciam na sua casa.

Deste modo, Bruto e Carbão podiam reunir-se à vontade na casa do primeiro e manter as conversas mais privadas em total segurança. Esta regra tinha uma única excepção: a própria Servília, como seria de esperar. Tinha de estar a par de tudo o que acontecia ou era dito na sua casa. A conversa que nos interessa, por muito privada que fosse, não escaparia aos seus ouvidos: ela tomara providências nesse sentido. Os dois homens estavam no gabinete de Bruto, com a porta fechada, mas Servília tinha-se agachado lá fora sobre a colunata, debaixo da única janela aberta. Um lugar frio e desconfortável para um bisbilhoteiro, mas Servília considerava que isso era muito pouco importante, se comparado com o provável teor da conversa que decorreria naquele confortável gabinete.

E a conversa começou com coisas de somenos importância.

— Como é que está o meu pai? — perguntou Bruto.

— Está bem. Manda-te cumprimentos.

— Surpreende-me que consigas agüentá-lo! — atirou-lhe Bruto, que logo se deteve, obviamente chocado com o que acabara de dizer. — Desculpa. Não queria dar a impressão de que estou irado. Porque de facto não estou.

— Só um pouco confuso com o facto de eu conseguir agüentá-lo?

— Sim.

— Ele é teu pai — disse Carbão, num tom conciliador. — Além disso, está velho. Compreendo que possas considerá-lo um problema. Mas a verdade é que, para mim, não o é. Tão simples quanto isso: não é. De qualquer forma, depois de Verres se ter escapado com o que restava do meu estipêndio de governador, eu tinha de encontrar alguém que o substituísse no cargo de questor. Como muito bem sabes, eu e o teu pai somos amigos desde que ele regressou com Mário do exílio. — Carbão fez uma pausa, provavelmente para dar uma palmadinha no braço de Bruto, pensou, cinicamente, a bisbilhoteira; ela conhecia bem as artimanhas de Carbão para manipular o marido. Mas logo prosseguiu. — Quando tu te casaste, ele comprou-te esta casa porque não queria tornar-se um empecilho para ti. Aquilo com que não contava era que viesse a sentir-se tão sozinho. Não lhe foi fácil aceitar a solidão depois de vocês terem vivido durante tanto tempo como... digamos... como dois celibatários. Imagino que se deve ter tornado um importuno e que muito provavelmente acabou por incomodar a tua mulher. Por isso, quando lhe escrevi a propor-lhe que fosse o meu novo proquestor, aceitou com o maior júbilo. Não vejo nenhum motivo para que te sintas culpado, Bruto. Ele está feliz assim como está.

— Obrigado — disse Bruto com um suspiro.

— bom, mas agora diz-me: o que é que há de tão urgente para eu ter de regressar a Roma?

— As eleições. Desde que Filipe, o amigo de toda a gente, desertou, o moral de Roma foi por água abaixo. Ninguém quer assumir a chefia, ninguém tem coragem para tal. Foi por isso que achei que devias estar em Roma, pelo menos até à conclusão das eleições. Entre todos os homens que possuem as qualificações necessárias, não consigo encontrar nenhum que queira ser cônsul! Aliás, nenhum dos homens qualificados quer assumir uma posição importante, seja ela qual for — disse Bruto nervosamente; Bruto era um homem nervoso.

— E Sertório?

— Sertório é um rigorista, sabes bem que assim é. Escrevi-lhe para Sinuessa, pedindo que disputasse o consulado, mas ele rejeitou a proposta. Por duas razões, embora eu estivesse à espera apenas de uma — o facto de ele ainda ser pretor, o que significa que teria de esperar os habituais dois anos antes de se tornar cônsul. Esperava poder convencê-lo a ignorar esse obstáculo e tê-lo-ia convencido provavelmente, caso não houvesse outra razão. Mas essa segunda razão deitou por terra todas as minhas esperanças.

— E que razão era essa?

— Ele disse que Roma estava acabada e que se recusava a ser cônsul num sítio cheio de cobardes e oportunistas.

— Que formulação mais elegante!

— E acrescentou que seria governador da Hispânia Citerior e que para lá partiria imediatamente.

— Fellator! — rosnou Carbão.

Bruto, que não gostava de obscenidades, nada lhe respondeu e, aparentemente, ficou sem nada para lhe dizer, pois, durante algum tempo, os dois amigos não trocaram palavra.

Exasperada, a bisbilhoteira espreitou pelas gelosias ornamentadas e viu Carbão e o marido sentados à secretária de Bruto, cada um do seu lado. Podiam ser irmãos, pensou ela, divagando: ambos muito morenos, ambos pouco atraentes de feições, nenhum deles particularmente alto ou bem constituído.

Quantas vezes Servília tinha perguntado para si mesma por que razão a deusa Fortuna não lhe dera um marido fisicamente mais atraente e com um futuro político mais prometedor! No que toca à carreira militar, as esperanças de Servília tinham-se desvanecido demasiado cedo. Por isso, só poderia pensar em termos de uma carreira política. Mas o máximo que Bruto era capaz de fazer era legislar no sentido de dar a Cápua o estatuto de cidade romana. Não fora uma má ideia — e por certo tinha salvo o seu tribunato da plebe da mais absoluta banalidade! —, mas a verdade é que ele nunca seria lembrado como um dos grandes tribunos da plebe. Ao contrário do que sucedera com Druso, o tio de Servília.

Bruto fora escolhido pelo tio Mamerco, ainda que Mamerco fosse, de corpo e alma, um homem de Sila, e tivesse estado na Grécia com Sila no momento em que se tornara necessário encontrar um marido para o mais velho dos seus seis pupilos, Servília. Viviam ainda os seis em Roma, sob a protecção de uma parente pobre, Cneia, e da mãe desta, Pórcia Liciniana — uma mulher aterradora! Nenhum tutor, por muito longe que estivesse dos seus pupilos, precisaria de se preocupar com a virtude e a moral de uma criança educada sob a autoridade de Pórcia Liciniana! Até mesmo a filha dela, Cneia, à medida que os anos iam passando, se ia tornando cada vez mais feia, desinteressante e solteirona.

Deste modo, fora Pórcia Liciniana quem recebera os pretendentes à mão de Servília, por volta do décimo oitavo aniversário da rapariga, e fora ela quem transmitira ao tio Mamerco as principais informações sobre os diversos candidatos. Informações acompanhadas de penetrantes comentários sobre a virtude, a moralidade, a prudência, a temperança e todas as outras qualidades que considerava desejáveis num marido. E embora Pórcia Liciniana não tivesse nunca cometido a grosseira asneira de expressar uma preferência clara, a verdade é que os seus penetrantes comentários não deixaram de penetrar na mente do tio Mamerco. No fim de contas, Servília tinha um dote muito apreciável e a felicidade de possuir um velho e esplêndido nome patrício, para além de, conforme Pórcia Liciniana garantia a Mamerco, não ser destituída de atractivos pessoais.

Desta forma, o tio Mamerco acabou por tomar o caminho mais fácil; escolheu o homem que, através de meras sugestões, Pórcia Liciniana mais vivamente aconselhara. Marco Júnio Bruto. Bruto era um senador na casa dos trinta, logo demasiado velho para se sentir atraído pelas loucuras e imprudências da juventude; além disso, seria o chefe do seu ramo da família quando o velho Bruto morresse (e, segundo Pórcia Liciniana, isso estaria para breve); finalmente, era um homem abastado e com uma linhagem impecável (ainda que plebéia).

Servília não conhecia Bruto e, mesmo depois de Pórcia Liciniana a ter informado de que o casamento estava para breve, só no próprio dia do casamento foi autorizada a conhecê-lo. O facto de este antiquíssimo costume lhe ter sido imposto não era da responsabilidade da terrífica Pórcia Liciniana; era, isso sim, a conseqüência directa de um castigo de infância. Porque servira de espia do pai (que entretanto a abandonara) em casa do tio Druso, este condenara-a a uma espécie de prisão doméstica: nunca seria autorizada a ter o seu próprio quarto nem o mínimo vestígio de privacidade dentro daquela casa, e só poderia sair de casa se acompanhada por pessoas que vigiassem todos os seus passos e expressões. E isso sucedera muitos anos antes de ter chegado à idade de casar. Entretanto, todos os seus familiares adultos mais chegados — mãe, pai, tia, tio, avó, padrasto — tinham morrido. Mesmo assim, a pena a que a condenara Druso continuou a ser aplicada.

Não será portanto exagero dizer que Servília estava tão ansiosa por se casar e abandonar a casa do tio Druso, que pouco se preocuparia com o marido que lhe caberia em sorte. Um marido, para ela, acabava por representar a libertação de um regime que abominava. Porém, ao ter conhecimento do seu nome, fechou os olhos e suspirou de alívio. Tratava-se de um homem da sua classe e educação e não de um qualquer rústico, como temia, e com razão, pois o tio Druso ameaçara-a, mais do que uma vez, de que lhe daria por marido um agricultor. Afortunadamente, o tio Mamerco não via qualquer vantagem em casar a sobrinha com um homem de uma classe inferior — nem ele, nem Pórcia Liciniana.

Firmado o casamento, a noiva, muito grata a todos os deuses, foi viver para casa de Marco Júnio Bruto, levando consigo um fabuloso dote de duzentos talentos — cinco milhões de sestércios. Para mais, esse dote permaneceria na sua posse. O tio Mamerco tinha-o investido convenientemente, de forma a garantir à sobrinha um bom rendimento, e estabelecera que, por morte dela, todo o dinheiro acumulado iria parar às mãos dos filhos do sexo feminino. Como a Bruto não lhe faltava dinheiro, o acordo relativo ao dote da mulher não lhe tinha desagradado. Aliás, esse acordo significava para ele que tinha obtido uma esposa da mais alta aristocracia patrícia, a qual, além do mais, teria dinheiro suficiente para se sustentar a si própria — para pagar os seus escravos, as suas roupas, jóias, casas, ou outras despesas que fizesse. Significava que o dinheiro dele estaria em total segurança!

Excepto no que toca à liberdade de movimentos e relacionamentos, o casamento, para Servília, acabou por revelar-se um estado singularmente triste. O marido fora celibatário durante demasiado tempo e, na sua casa, há muito que não se via uma mulher; tinha uma vida perfeitamente definida e organizada, uma vida que não contemplava a ideia de ter uma esposa. Não partilhava nada com ela — nem mesmo, assim sentia Servília, o seu corpo. Se convidava amigos para jantar, dizia-lhe que não aparecesse na sala de jantar; o gabinete dele estava-lhe interdito; nunca a procurava para discutir fosse o que fosse; nunca lhe mostrava nada que tivesse comprado; nunca a convidava a acompanhá-lo quando ia para alguma das suas villae no campo. No que se refere ao corpo dele — bom, o corpo dele era apenas uma coisa que, de vez em quando, a ia visitar ao seu quarto e que não lhe proporcionava o mínimo prazer. Quanto à privacidade, descobriu de súbito que tinha muito mais do que seria de desejar, apesar de ter passado tantos anos sem a mínima privacidade. Como o marido gostava de dormir sozinho, nem no cubículo onde dormia tinha o direito a ter companhia. A sua única companhia, à noite, era o silêncio, o horror do silêncio.

Por isso, o casamento acabou por ser, para ela, apenas uma variação sobre o tema que, desde a infância, a atormentava: ela não era importante para ninguém, não tinha qualquer peso na vida de quem quer que fosse. O único modo que encontrara para se tornar notada consistia em ser má, rancorosa, perversa, e este seu lado era bem conhecido e temido por todos os seus criados. Porém, ao marido, Servília nunca mostrava o seu lado mau, porque sabia que ele não a amava e que, portanto, o divórcio seria sempre uma hipótese provável. Perante Bruto, era sempre um encanto. Perante os criados, era sempre uma megera.

No entanto, Bruto cumpria o seu dever. Ao fim de dois anos de casamento, Servília ficou grávida. Tal como a mãe, tinha uma constituição parideira e nada sofreu com a gravidez ou o parto. O trabalho de parto nada teve da negra agonia em que fora levada a acreditar; deu à luz um rapaz ao fim de sete horas de trabalho de parto, numa noite gelada de Março, e, quando lho trouxeram, lavado e bem cheiroso, ficou maravilhada.

Não é pois de espantar que a criança tenha acabado por preencher todo o vazio de uma vida sequiosa de amor. E de tal modo que Servília não permitiu que mais nenhuma mulher o amamentasse, além de se ter encarregado de prestar ao bebê todos os cuidados e atenções de que ele precisava, chegando mesmo ao ponto de pôr o berço no cubículo onde dormia. Servília passou a devotar toda a sua vida ao bebê, excluindo dela todos os demais.

Nesse caso, por que razão se dava ela ao trabalho de escutar a conversa entre Bruto e Carbão, sob a janela do gabinete do marido, naquele dia gelado de Novembro? Não era certamente por lhe interessarem as actividades políticas do marido. Servília escutava porque ele era o pai do seu amado filho e ela tinha feito o voto de que defenderia a todo o custo a herança, a reputação e o bem-estar futuro do filho. O que implicava que ela se mantivesse informada acerca de tudo. Nada poderia escapar-lhe! Especialmente as actividades políticas do marido.

Servília não se preocupava com Carbão, ainda que reconhecesse que ele não era propriamente uma pessoa sem importância. Porém, tinha feito um juízo correcto ao considerá-lo um homem que poria os seus próprios interesses à frente dos de Roma; e não estava certa de que Bruto fosse suficientemente perspicaz para enxergar as deficiências de Carbão. A presença de Sila em Itália inquietava-a profundamente, pois ela era senhora de uma mente genuinamente política e conseguia discernir os acontecimentos futuros com muito mais argúcia que a maior parte dos homens que tinham passado metade da sua vida no Senado. De uma coisa estava ela certa: Carbão não tinha em si a força suficiente para manter Roma unida face à ameaça de um homem como Sila.

Desistindo nesse momento de espreitar, Servília encostou de novo a orelha às gelosias e ajoelhou sobre as lajes horrrivelmente geladas. Ah, ia começar a nevar outra vez — uma dádiva dos céus! Os flocos de neve formavam um véu entre o seu corpo encoberto e o enxame de criados que passava no extremo oposto do jardim do peristilo, onde ficavam as cozinhas. Não que o medo de ser vista a preocupasse; o pessoal de Bruto nunca se atreveria a questionar o seu direito a estar onde quisesse e como muito bem entendesse. O que se passava era que ela queria ser vista naquela casa como um ser superior, e os seres superiores não ajoelham encostados às janelas para escutarem conversas.

De súbito retesou-se contra a parede e colou com mais força a orelha à janela. Carbão e o marido estavam a falar de novo!

— Há alguns homens com qualidades entre aqueles que podem disputar o cargo de pretor — dizia Bruto. — Carrinas e Damasipo são tão capazes como populares.

— Hum! — fez Carbão. — Como eu, deixaram que um jovem imberbe os derrotasse. Porém, ao contrário do que sucedeu comigo, tinham sido avisados de que Pompeu era tão impiedoso como o pai e dez vezes mais astuto. Se Pompeu disputasse o cargo de pretor, teria mais votos que Carrinas e Damasipo juntos.

— Quem venceu foram os veteranos de Pompeu — disse Bruto procurando mostrar-se razoável.

— Talvez. Mas se assim foi, então Pompeu deixou-os fazer o seu trabalho sem interferir. — Carbão, aparentemente impaciente por tratar das questões do futuro, mudou de assunto. — Não são os pretores que me preocupam, Bruto. O que me preocupa é o consulado — e devido às tuas sombrias previsões! Se necessário, eu próprio me candidato a cônsul. Mas quem poderei apresentar como colega? Quem, nesta maldita cidade, será capaz de me apoiar e não de me deitar abaixo? Haverá guerra na Primavera, com toda a certeza. Sila não tem passado bem de saúde, mas as minhas fontes da espionagem dizem-me que estará em perfeitas condições quando começar a próxima campanha.

— A doença não foi o único motivo que o levou a arrastar as coisas este ano — disse Bruto. — Segundo alguns boatos, ele manteve-se parado a fim de dar a Roma a possibilidade de capitular sem haver guerra.

— Então ficou parado em vão! — exclamou, furioso, Carbão. — bom, mas já chega de especulações! Quem é que eu poderei apresentar como meu colega no consulado?

— Não tens nenhuma ideia? — perguntou Bruto.

— Nem uma sequer. Preciso de alguém que seja capaz de estimular, de atiçar os espíritos! Alguém que consiga levar os jovens a alistar-se e os velhos a desejar alistar-se. Um homem como Sertório. Mas tu já disseste de forma muito clara que ele não está de acordo.

— E Marco Mário Gratidiano?

— Ele é um Mário por adopção, o que não chega. Eu queria Sertório, porque Sertório é um Mário pelo sangue.

Seguiu-se uma pausa, mas não tão excessiva que fizesse Servília desesperar; apercebendo-se de que o marido tinha respirado fundo, Servília pôs-se tão quieta como uma estátua, decidida a não perder uma única palavra do que estava para vir.

— Se é um Mário que queres — disse Bruto lentamente — porque não o jovem Mário?

Seguiu-se uma outra pausa, mas esta prenunciava tempestade.

— Mas isso não é possível! — exclamou por fim Carbão. — Edepol, Bruto, que idade tem ele? Pouco mais de vinte anos!

— Na realidade tem vinte e seis anos.

— Faltam-lhe quatro anos para poder entrar para o Senado!

— Constitucionalmente, não há nenhuma idade oficial, apesar da lex Villia annalls. Neste caso, é o costume que tem mandado. Sugiro-te, por isso, que digas a Perperna que o nomeie imediatamente para o Senado.

— Ele não chega aos calcanhares do pai! — exclamou Carbão.

— Mas será que isso interessa, Cneu Papírio? Francamente, achas que isso tem algum peso? Admito que terias encontrado em Sertório o teu membro ideal da linhagem dos Mários: não há ninguém em Roma que comande um exército melhor do que ele, não há em toda a Roma um comandante mais respeitado pelos soldados. Mas ele não está de acordo em disputar o consulado. De maneira que só nos resta o jovem Mário.

— O jovem Mário talvez fosse capaz de atrair multidões de voluntários — disse Carbão como que apalpando o terreno.

— Multidões capazes de lutar por ele como os Espartanos lutaram por Leónidas.

— Achas que ele conseguia?

— Acho que gostaria de tentar.

— Queres dizer com isso que ele já expressou o desejo de ser cônsul?

Bruto riu-se, e rir-se era coisa que não fazia muitas vezes.

— Não, Carbão, claro que não! Embora seja um indivíduo algo presunçoso, a verdade é que não tem grandes ambições. O que eu quero dizer é que acho que se fores ter com ele e lhe ofereceres esta oportunidade, ele ficará radiante. O jovem Mário nunca teve até agora uma única oportunidade de mostrar que vale tanto como o pai. E pelo menos num aspecto, uma oferta destas dar-lhe-á a possibilidade de ultrapassar o pai. Caio Mário só chegou a cargos elevados com uma certa idade. O jovem Mário será cônsul com menos idade ainda que Cipião Asiágeno. Seja qual for o seu comportamento, é uma oportunidade que, por si só, já lhe promete a fama.

— Bastará que ele faça metade do que fez Cipião Africano para que Roma se veja livre do perigo que Sila representa.

— Não estejas à espera de que o jovem Mário seja um Cipião Africano — advertiu Bruto. — A única maneira que Cipião Africano arranjou para impedir Catão, o Cônsul, de perder uma batalha, consistiu em apunhalá-lo pelas costas.

Carbão desatou a rir-se, coisa que ele fazia muitas vezes.

— bom, pelo menos isso foi bom para Cina! O velho Mário pagou-lhe uma fortuna para não ter de responder pela acusação de assassínio.

— Sim — disse Bruto, muito sério. — Mas esse episódio pode servir para te revelar algumas das dificuldades que terás de enfrentar, tendo o jovem Mário ao teu lado no consulado.

— Queres dizer que não devo virar as costas?

— Quero dizer que não lhe deves dar as tuas melhores tropas. Deixa-o provar antes que pode ser um bom general.

Servília ouviu então o ruído de pernas de cadeira roçando pelo chão; levantou-se imediatamente e correu para o calor do seu quarto de trabalho, onde a jovem que lavava a roupa do bebê desfrutava de uma oportunidade única para pegar na criança.

A chama ardente do ciúme atiçou-se de súbito no coração de Servília, com uma violência que a razão não poderia controlar; num ápice, correu para a criada e esbofeteou-a com tanta força que a jovem se desequilibrou e caiu, deixando ao mesmo tempo cair o bebê. O qual só não chegou a bater com o corpo no chão porque a mãe mergulhou para o apanhar. Depois, estreitando-o contra o seu peito, Servília pôs a rapariga fora do quarto a pontapé.

— Amanhã vais ser vendida! — guinchou ela, fazendo-se ouvir por toda a colunata que rodeava o jardim do peristilo. A sua voz mudou num instante. Agora apenas gritava: — Dito! Dito!

O chefe dos criados, que se chamava Epafrodito, mas que normalmente era tratado por Dito, correu a toda a pressa.

— Domina?

— Aquela rapariga, a gaulesa que me arranjaste para lavar a roupa do bebê! Açoita-a e vende-a como uma má escrava!

O chefe dos criados fitava-a boquiaberto.

— Mas domina, ela é excelente! Além de lavar bem a roupa, sempre mostrou a maior dedicação pelo bebê!

Servília esbofeteou Epafrodito com tanta força como fizera à rapariga, após o que demonstrou que também ela sabia usar obscenidades quando era preciso.

— Fellator grego, ouve-me com atenção! Escuta bem o que te digo, porco inchado! Quando eu te dou uma ordem, é para obedeceres! Sem uma palavra, ouviste?! Pouco me importa quem é o teu senhor, de modo que escusas de te ir queixar! E se fores queixar, arrependes-te! Agora leva a rapariga para o teu gabinete e espera por mim. Como gostas dela, és muito capaz de não a açoitar como deve ser. Por isso, o melhor é eu ir ver.

O rosto de Epafrodito exibia a marca carmim dos cinco dedos de Servília. Mas não era a violência da bofetada que o aterrorizava: era a violência das palavras. Epafrodito, obedecendo às ordens, correu para o seu gabinete.

Servília não chamou outra criada; em vez disso, embrulhou o bebê num xaile de lã muito quente e, com a criança ao colo, desceu até ao gabinete do chefe dos criados. A rapariga foi amarrada e Epafrodito, de lágrimas nos olhos, viu-se forçado, sob o olhar de basilisco da patroa, a açoitá-la até as suas costas se transformarem numa espécie de gelatina vermelho-viva de que se desprendiam retalhos de carne. A neve continuava a cair, mas nem a neve poderia esbater os gritos incessantes que saíam daquele gabinete. Quanto ao senhor da casa, não iria aparecer a perguntar o que se passava, pois, como Servília adivinhara, tinha ido com Carbão fazer uma visita ao jovem Mário.

Finalmente, Servília, com um ligeiro aceno, indicou que estava satisfeita. O chefe dos criados deixou cair o braço.

— Óptimo! Assim a pele dela nunca mais volta a ser escura. Não vale a pena oferecê-la para venda, nem por um sestércio a compravam. Crucifica-a. Lá fora, no peristilo. Vai servir de aviso para todos. E não lhe partas as pernas! Deixa-a morrer lentamente.

Servília voltou para o seu quarto de trabalho, despiu o filho e mudou-lhe a fralda de linho. Depois, pegou nele e manteve-o a alguma distância para o adorar e beijou-o ternamente e falou-lhe num murmúrio.

Faziam um belo quadro, aquela mulher pequena e morena com o seu pequeno bebê moreno ao colo. Servília era uma bela mulher, dotada de uma figura voluptuosa e de um daqueles rostos pequenos e com traços salientes que têm ar de esconder muitos segredos por detrás de uma boca suavemente moldada e das fartas pestanas. A criança, contudo, tinha apenas a beleza que qualquer criança tem, pois, na verdade, não possuía nenhum traço físico especial e revelava uma forte tendência para a apatia — aquilo a que as pessoas chamariam um ”bom bebê”, pois raramente chorava e não causava qualquer problema.

Assim os encontrou Bruto quando regressou a casa, depois da visita ao jovem Mário. Sem comentários, escutou a história, friamente narrada, da negligente lavadeira e do castigo que recebera. Como nunca se atreveria a interferir na eficiente organização doméstica de Servília (a sua casa, disso estava certo, nunca estivera tão bem cuidada), não se opôs minimamente à sentença pronunciada pela mulher. E quando, mais tarde, chamou o chefe dos criados à sua presença, não fez qualquer observação sobre a figura coberta de neve que pendia de uma cruz no meio do jardim.

— César! Onde estás, César?

César saiu, num passo vagaroso, sem nada calçado, daquele que fora o gabinete do pai, com a pena numa mão e um rolo de papel na outra, vestindo apenas uma túnica de tecido muito fino. A testa franzia-se-lhe de irritação, pois a voz da mãe tinha interrompido as suas reflexões.

Mas ela, envolta em várias camadas de um requintado tecido de lã de fabrico caseiro, estava mais preocupada com o bem-estar físico do filho do que com os resultados das suas reflexões e, por isso, repreendeu-o com veemência:

— Mas por que razão ignoras o frio? É como se o frio não existisse para ti, César! E ainda por cima sem sandálias! César, o teu horóscopo diz que vais ter uma doença terrível nesta altura da tua vida e tu sabes isso perfeitamente. Porque hás-de tu provocar a deusa Fortuna e dar-lhe todos os motivos para que esse mau augúrio se cumpra? Os horóscopos são feitos quando uma pessoa nasce precisamente para se tentar evitar que os riscos potenciais se tornem reais. Porta-te bem!

A perturbação dela era absolutamente genuína e ele sabia-o. Por isso sorriu para ela, com aquele sorriso que já o tinha tornado famoso, uma espécie de pedido de desculpas sem palavras que não ameaçava o seu orgulho.

— Que se passa? — perguntou ele, resignado perante o facto de que o seu trabalho teria de esperar; ela estava vestida para sair.

— Mandaram-nos chamar a casa da tua tia Júlia.

— A esta hora? com este tempo?

— Ah, ainda bem que reparas no tempo! Embora isso não te leve a usar o vestuário apropriado — retorquiu Aurélia.

— Eu tenho um braseiro, Mater. Aliás, até tenho dois.

— Então vai para o calor do teu quarto e veste outra roupa — disse ela. — Isto aqui está um gelo, até se ouve o vento a assobiar junto à clarabóia. — Antes de sair do gabinete, Aurélia acrescentou: — Será melhor chamar o Lúcio Decúmio. Pediram-nos que fôssemos todos.

Todos significava que também iriam as irmãs, o que não deixou de o surpreender — devia ser uma conferência familiar muito importante! Quase abriu a boca para dizer à mãe que não era preciso levar Lúcio Decúmio, que uma centena de mulheres estariam em segurança sob a sua protecção; mas nada disse. Não levaria a sua avante, por isso para quê tentar? Aurélia sabia sempre impor a sua vontade.

Quando saiu dos seus aposentos, César vinha com o traje de flamen Dialis, embora, com um tempo tão frio, tivesse de usar três túnicas debaixo dele, calções de lã amarrados abaixo do joelho e umas meias grossas dentro de um par de botas largas sem correias nem atilhos. A sua laena de sacerdote fazia as vezes da toga; esta deselegante peça de vestuário, com duas camadas de tecido e um corte rigorosamente circular, continha um buraco no meio, pelo qual se enfiava a cabeça, e possuía uma grande riqueza de cor devido às faixas alternadamente escarlates e roxas que lhe eram aplicadas. A laena chegava-lhe aos joelhos e tapava-lhe por completo os braços e as mãos, o que significava, pensou ele, pesaroso, ao procurar encontrar coisas positivas numa peça de vestuário que tanto detestava, que não precisava de usar luvas apesar da tempestade gelada que fazia lá fora. Na cabeça tinha o apex, um capacete de marfim apertado e encimado por um espigão em que era espetado um espesso disco de lã.

Dado que, oficialmente, se tornara um homem, César aceitara os tabus que tolhiam os movimentos e a vida do flamen Dialis; abandonara as práticas militares no Campo de Marte, não se permitia tocar em ferro, não usava laços, atacadores ou fivelas, nunca brincava com cães, tinha sapatos feitos com o couro de um animal acidentalmente morto, e comia apenas os alimentos que o cargo de flamen Dialis permitia. No seu queixo não se notava um único pêlo da barba, mas isso era apenas porque usava uma navalha de bronze para se barbear; e se usava botas quando o frio apertava e os seus tamancos de sacerdote se transformavam numa verdadeira tortura, era apenas porque tinha concebido um estilo de botas que se ajustavam bem ao pé, sem ser preciso usar as correias e outros adereços que as apertavam nos tornozelos e nas barrigas das pernas.

Nem mesmo a sua mãe sabia o quanto detestava a sentença que o condenara a ser Sacerdote de Júpiter durante toda a vida. Quando, com quinze anos e meio, se tornara um homem e assumira os disparatados princípios e comportamentos decorrentes do seu cargo sem um murmúrio ou um olhar de reprovação, Aurélia deixara escapar um suspiro de alívio. A rebelião dos primeiros anos de juventude não durara muito. Aquilo que ela não podia saber era a verdadeira razão da sua obediência: ele era um romano de alma e coração, o que significava que respeitaria integralmente os costumes do seu país, para além de ser excessivamente supersticioso. Ele tinha de obedecer! Se não obedecesse, nunca obteria os favores da deusa Fortuna. Ela não se mostraria benévola em relação à sua pessoa, nem em relação aos seus comportamentos; enfim, César não teria a sorte pelo seu lado. É que, apesar daquela hedionda sentença, César acreditava ainda que a deusa Fortuna encontraria um meio para o libertar — mas para tal, era preciso que ele servisse o melhor possível Júpiter Optimus Maximus, na sua qualidade de sacerdote especial.

Assim, a obediência não significava aceitação total, ao contrário do que Aurélia pensava. A obediência significava apenas que, de dia para dia, César odiava cada vez mais o cargo de flamen Dialis. E odiava-o ainda mais porque, segundo as leis vigentes, não teria escapatória possível. O velho Caio Mário conseguira de facto agrilhoá-lo para sempre. A menos que a deusa Fortuna o salvasse.

César tinha 17 anos, faltavam-lhe sete meses para fazer 18; mas parecia mais velho e o seu ar era o de um cônsul que também já fora censor. A sua altura e uns ombros largos ajudavam a dar essa impressão, tanto mais que ele dispunha de uma constituição ao mesmo tempo musculada e esbelta. O pai havia morrido ia para dois anos e meio, o que significava que César assumira muito cedo o título de paterfamilias, um título que, agora, se ajustava à sua pessoa da forma mais natural. A extrema beleza do seu rosto de rapaz não se tinha desvanecido, ainda que os seus traços fossem agora mais varonis. O seu nariz ganhara uma forma mais rotunda, mais romana, salvando-o de uma delicadeza de feições que teria sido uma grande carga para quem desejava tão ardentemente ser tudo o que um homem deveria ser — um soldado, um homem de estado, um amante de mulheres sem levantar a suspeita de que também era um amante de homens.

A sua família estava reunida na sala de estar, enroupada para uma caminhada longa e fria. Só a sua mulher, Cinila, não estava vestida para esse efeito. com 11 anos de idade, Cinila não era considerada suficientemente adulta para participar nestas raras assembleias do clã. Contudo, Cinila estava presente, a única criatura morena e de baixa estatura daquela casa; quando César entrou, os olhos muito negros de Cinila fixaram-se no rosto do marido, como sempre faziam. Ele adorava-a. Aproximou-se dela, ergueu-a nos seus braços e beijou-lhe as faces rosadas com os olhos cerrados, para melhor sentir a exótica fragrância de um corpo de criança que a mãe ainda lavava e perfumava.

— Obrigada a ficar em casa, não é? — perguntou ele, beijando-lhe uma vez mais as faces.

— Um destes dias já sou grande e já posso assistir a estas reuniões — disse ela, com um sorriso encantador que lhe revelava as covinhas do rosto.

— Não tenho a mínima dúvida! E então serás mais importante que a Mater, porque serás a dona da casa — retorquiu ele, pondo a criança no chão e afagando-lhe a cabeleira negra. Depois, piscou o olho a Aurélia.

— Eu não serei a dona desta casa — replicou solenemente Cinila. — Eu serei a flaminica Dialis e dona de uma casa do Estado.

— Claro — disse ele, algo divertido. — Como posso ter-me esquecido disso?

César encaminhou-se então para a rua e para a neve que não parava de cair, passou as lojas que se amontoavam na face exterior do edifício de Aurélia e parou no vértice arredondado dessa construção triangular. Aí ficava aquilo que parecia ser uma taberna, mas que não o era; era a sede do Colégio dos Confrades das Encruzilhadas, que tinha a seu cargo velar pelo bem-estar e pela vida espiritual das encruzilhadas e, em particular, pelo santuário em forma de torre consagrado aos Lares e pela enorme fonte cuja água, naquele Inverno tão rigoroso, fluía indolentemente por entre uma desordenada massa de pingentes de gelo de um azul etéreo.

Lúcio Decúmio estava à mesa do costume, no canto do fundo, à esquerda, daquela sala enorme e muito limpa. Grisalho já, mas mantendo um rosto livre de rugas, admitira pouco tempo antes os seus dois filhos como membros do Colégio, e estava a treiná-los nas multifacetadas actividades que os esperavam. Os dois filhos ladeavam-no com o mesmo ar dos dois leões que ladeavam sempre as estátuas da Magna Mater — um ar grave, a pele fulva, a juba farta, os olhos amarelos, as garras encolhidas. Não que Lúcio Decúmio tivesse alguma semelhança com a Magna Mater! Era um homem baixo, magro, com um ar perfeitamente anônimo; os filhos saíam à mãe, uma dama céltica, de corpulenta constituição, originária do Ager Gallicus. Quem não o conhecesse, dificilmente adivinharia o que aquele homem de facto era: corajoso, de uma subtileza extrema, amoral, muitíssimo inteligente, e leal.

Os rostos dos três Decúmios encheram-se de alegria quando viram César entrar, mas só Lúcio Decúmio se levantou. Abrindo caminho entre mesas e bancos, chegou-se a César, pôs-se na ponta dos pés e beijou o jovem nos lábios, com mais amor do que beijava os seus próprios filhos. Aquele era um beijo de um pai, embora fosse dado a um homem a quem só o ligava um coração muito generoso.

— Meu rapaz! — disse ele, exultante, pegando na mão de César.

— Olá, pai — respondeu César com um sorriso, após o que ergueu os dedos de Lúcio Decúmio e apertou-os contra o seu rosto frio.

— Vieste de casa de algum morto? — perguntou Lúcio Decúmio, referindo-se às vestes sacerdotais de César. — Mau tempo para morrer! Que tal um copo de vinho para aquecer?

César fez uma careta. Nunca conseguira cultivar o gosto pelo vinho, apesar de Lúcio Decúmio e os seus confrades muito terem feito por isso.

— Não tenho tempo, pai. Vim cá porque preciso de uns quantos confrades. Tenho de levar a minha mãe e as minhas irmãs a casa de Caio Mário, e a minha mãe, como seria de esperar, não confia em mim para as proteger.

— A tua mãe é uma mulher sensata — retorquiu Lúcio Decúmio com um ar de perverso júbilo. Chamou então os filhos, que se levantaram imediatamente e foram ter com ele. — Vistam-se, rapazes! Vamos levar as senhoras a casa de Caio Mário.

Nos corações de Lúcio Decúmio Júnior ou do jovem Marco Decúmio, não morava o mínimo ressentimento pela preferência que o pai demonstrava por Caio Júlio César; limitaram-se a aquiescer à ordem do pai, abraçaram César com grande afeição e correram a procurar as roupas mais quentes.

— Não venhas, pai — disse César. — Afasta-te do frio. Mas essa ideia não agradava a Lúcio Decúmio, o qual deixou

que os seus filhos lhe enfiassem tanta roupa como a que uma mãe babada vestiria ao seu bebê com um tempo assim.

— Onde é que anda esse imbecil do Burgundo? — perguntou ele, enquanto se faziam ao vento e à neve.

César riu-se a bom rir.

— Neste momento, Burgundo não nos pode ajudar! A minha mãe mandou-o para o vilas com Cardixa. É verdade que ela começou a parir tarde, mas desde que pôs os olhos no Burgundo dá à luz um bebê enorme todos os anos. Este é o quarto, como vocês sabem.

— Quando fores cônsul não te faltarão os guarda-costas. César estremeceu, mas não de frio.

— Eu nunca serei cônsul — disse ele asperamente, mas logo encolheu os ombros e tentou mostrar-se agradável: — A minha mãe diz que dar de comer àquela gente é como dar de comer a uma tribo de Titãs. Por todos os deuses, o que eles comem!

— São boa gente.

— Sim, sem dúvida — disse César.

Tinham já chegado ao portão do edifício de Aurélia. Chamaram então pelas mulheres. Outras damas da aristocracia teriam preferido seguir de liteira, em especial com um tempo assim. Mas não as mulheres de linhagem juliana: essas iam a pé. Os filhos de Decúmio, que seguiam à frente, tornaram mais fácil a caminhada pela Faces Suburae, pois foram abrindo caminho por entre a neve entretanto acumulada.

O Fórum Romano estava completamente deserto e parecia estranhamente despojado de colunas, paredes, telhados e estátuas, cujas vividas cores a neve cobrira; tudo apresentava uma cor de mármore branco, tudo parecia ter mergulhado num sono profundo e sem sonhos. E a imponente estátua de Caio Mário, perto dos rostra, tinha um banco de neve empoleirado em cada uma das espessas sobrancelhas, cobrindo o feroz fulgor dos seus olhos negros.

Subiram, com alguma dificuldade, a Colina dos Banqueiros, atravessaram os vastos portais da Porta Fontinal, e, momentos depois, estavam já à porta da casa de Caio Mário. Como o jardim do peristilo ficava nas traseiras da mansão, encaminharam-se directamente para o salão de entrada, onde puderam despir os seus abafos (só César, obrigado a usar o seu traje, nada despiu). Lúcio Decúmio e os filhos foram conduzidos pelo chefe dos criados, Estrofantes, que os convidou a provar um vinho e uns petiscos excelentes, enquanto César e as mulheres penetravam no átrio.

Se o tempo não estivesse tão desusadamente gélido, poderiam ter permanecido no átrio, pois a hora da refeição já ia longe. Porém, o rectângulo do compluvium, aberto no telhado, produzia um verdadeiro vórtice de neve e vento e o tanque que ficava por baixo resumia-se agora a uma crosta cintilante de flocos de neve que rapidamente derretiam.

O jovem Mário apareceu então para os receber e para os conduzir até à sala de jantar, que, segundo ele, estava mais quente. Parecia quase arder de felicidade, pensou César, algo desconfiado, e a emoção que sentia tornava-o mais belo. Tão alto como César (que era seu primo direito), possuía uma constituição mais larga e musculada, cabelo louro e olhos cinzentos, e um tipo de beleza que impressionaria qualquer um. Fisicamente muito mais atraente que o pai, faltava-lhe, porém, aquele elemento vital que tornara Caio Mário um dos imortais de Roma. Muitas gerações hão-de passar, pensava César, e todas elas hão-de aprender as proezas de Caio Mário. Mas o destino do seu filho não será o mesmo.

Aquela era uma casa que César detestava visitar; tinham-lhe acontecido demasiadas coisas naquele espaço. Enquanto os outros rapazes da sua idade passavam descuidadamente o seu tempo, brincando no Campo de Marte, ele tinha de se apresentar naquela casa todos os dias e servir de companhia e de enfermeiro ao velho e vingativo Caio Mário. E embora César tivesse diligentemente varrido aquele chão com a sua vassoura sagrada, logo após a morte de Mário, a verdade é que a sua maligna presença continuava a pairar naquela atmosfera. Pelo menos era o que César pensava. Em tempos, admirara e amara Caio Mário. Mas depois Caio Mário nomeou-o sacerdote especial de Júpiter e, com esse único golpe, impossibilitou-o, para toda a vida, de rivalizar com ele. Nada de ferro, nada de armas, nunca ver ninguém na hora da morte — e era o fim da carreira militar para o flamen Dialis! Membro automático do Senado, sem direito a disputar nenhuma das eleições para magistrado — e era o fim da carreira política para o flamen Dialis! O destino de César era ser respeitado sem nada ter feito para ganhar o respeito dos outros, era ser reverenciado sem nada ter feito para ganhar a reverência alheia. O flamen Dialis era uma criatura que pertencia ao Estado, hospedado, remunerado e alimentado pelo Estado, um prisioneiro da mos maiorum, das práticas estabelecidas pelo costume e pela tradição.

Porém, logo que os seus olhos encontravam os da tia Júlia, a revolta de César esfriava. Irmã do seu pai e viúva de Caio Mário.

E a pessoa que mais amava no mundo, com um amor diferente do que dedicava à mãe. De facto, amava-a mais do que à mãe, se o amor pudesse ser qualificado como um mero transporte de pura emoção. com a mãe era diferente: a mãe, ao contrário da tia, mantinha com ele um permanente relacionamento intelectual — e, a esse nível, era sua adversária, apoiante, crítica, companheira, igual. Ao passo que a tia Júlia o estreitava nos seus braços e beijava-o nos lábios e sorria para ele com aqueles ternos olhos cinzentos, inocentes da mais tênue condenação. Para ele, a vida sem uma daquelas mulheres, a mãe ou a tia, era algo de impensável.

Júlia e Aurélia escolheram sentar-se lado a lado no mesmo divã, pouco à vontade porque eram mulheres e as mulheres não se reclinavam nos divãs. Impedidas pelo costume de se instalarem confortavelmente, empoleiraram-se na beira do divã, com os pés balançando acima do chão e sem nada que lhes apoiasse as costas.

— Não podes trazer cadeiras para as mulheres? — perguntou César ao jovem Mário quando este trouxe almofadas para elas se encostarem.

— Obrigada, sobrinho, agora que temos encosto já estamos melhor — disse Júlia, sempre conciliadora. — Não creio que a casa tenha cadeiras suficientes para todas nós! Isto é uma conferência de mulheres!

Uma verdade incontestável, reconheceu César pesarosamente. O elemento masculino da família limitava-se agora a dois homens: o jovem Mário e César. Ambos sem pai.

Quanto às mulheres, havia mais. Se Roma pudesse estar presente naquela sala, teria desfrutado do espectáculo que era ver juntas duas das suas mais belas mulheres. Embora fossem ambas altas e elegantes, Júlia possuía a graça inata dos Césares, ao passo que Aurélia tinha uma aparência enérgica e grave. Uma, Júlia, tinha um cabelo louro suavemente ondeado e uns grandes olhos cinzentos, e poderia ter posado para a estátua de Clélia no Fórum Romano. A outra, Aurélia, tinha um cabelo castanho muito brilhante e um tipo de beleza que, na sua juventude, levara muita gente a compará-la a Helena de Tróia. Sobrancelhas e pestanas escuras e uns olhos fundos que, segundo muitos dos seus pretendentes, eram cor de púrpura, e o perfil de uma deusa grega.

Júlia tinha agora 45 anos e Aurélia 40. Ambas tinham enviuvado em circunstâncias difíceis, embora muito diversas.

Caio Mário morrera da sua terceira e mais devastadora trombose, mas apenas depois de ter lançado e mantido uma orgia de sangue que ninguém esqueceria mais em Roma. Todos os seus inimigos — e alguns dos seus amigos — tinham morrido e os rostra do Fórum Romano tinham ficado a abarrotar de cabeças espetadas. Júlia vivia com esta tristeza no coração.

O marido de Aurélia, leal a Cina após a morte de Mário (a única alternativa adequada para quem tinha o filho casado com a filha mais nova de Cina), fora para a Etrúria recrutar tropas. Certa manhã de Verão, em Pisa, baixara-se para apertar as correias da bota e morrera. Segundo a autópsia, a causa da morte fora a ruptura de uma veia do cérebro; foi queimado numa pira, sem um único membro da família presente, e as cinzas enviadas para a viúva. Aurélia não sabia sequer que o marido tinha morrido quando o mensageiro de Cina lhe apareceu em casa com a urna funerária. O que tinha sentido, o que tinha pensado, ninguém sabia. Nem mesmo o filho, que assim se tornou chefe de família quando lhe faltava um mês para fazer 15 anos. Ninguém lhe viu uma lágrima e a sua expressão permaneceu inalterável. Porque ela era Aurélia, uma mulher fechada em si mesma, aparentemente mais ligada ao seu trabalho de senhoria de uma movimentada ínsula do que a qualquer ser humano, exceptuando o filho.

O jovem Mário não tinha irmãs, mas César tinha duas, mais velhas do que ele. Ambas eram parecidas com a tia Júlia; havia nítidos ecos de Aurélia no rosto de César, mas não nos rostos das suas duas filhas.

Júlia Major, a quem chamavam Lia, já tinha, aos 21 anos, uma expressão sombria. E não sem razão. O seu primeiro marido, um patrício sem dinheiro, de seu nome Lúcio Pinário, fora o amor da sua vida e por isso fora autorizada — ainda que com alguma relutância — a casar-se com ele. Menos de um ano depois, deu à luz um rapaz. Porém, pouco tempo passado sobre o feliz acontecimento (que, ao contrário do que se esperava, não contribuiu em nada para que o carácter ou o comportamento do marido ganhassem sobriedade), Lúcio Pinário morreu em circunstâncias misteriosas. Aventou-se a hipótese de ter sido morto por algum dos seus supostos amigos, mas não foi possível encontrar provas. E Lia, deste modo, aos 19 anos, viu-se viúva e num tal estado de pobreza que foi forçada a voltar para a casa da mãe. Porém, entre o seu casamento e a viuvez, a identidade do paterfamilias tinha mudado, e, pelo que via agora, o seu irmão era muito menos sensível ou maleável do que o pai. Ela tem de voltar a casar, dizia César — mas com um homem escolhido por ele, porque, segundo as suas próprias palavras, se deixasse a irmã fazer o que quisesse, ela acabaria por escolher outro idiota.

Ninguém sabia como ou onde César teria encontrado Quinto Pédio, ainda que alguns suspeitassem da colaboração de Lúcio Decúmio, o qual, apesar de ser um modestíssimo membro da Quarta Classe, tinha muitos e bons contactos. A verdade é que, certo dia, César apareceu em casa com Quinto Pédio e, passado pouco tempo, casava a irmã viúva com este lerdo e honrado cavaleiro da Campânia, de famílias decentes mas sem sinal de nobreza. Não era um homem bem-parecido. Não dava nas vistas. E, tendo ele 40 anos, nem sequer era jovem. Mas era colossalmente rico e sentia uma gratidão quase patética por lhe ser permitido casar com uma encantadora jovem da mais alta nobreza patrícia. Lia engoliu em seco, olhou para o seu irmãozinho, então com 15 anos, e, com modos afáveis, aceitou o casamento; já nessa idade, César conseguia transformar o seu rosto e os seus olhos numa máscara que sufocava todas as discussões ainda antes de nascerem.

Afortunadamente, o casamento veio a ser bem sucedido. Lúcio Pinário podia ser um homem belo, vistoso e jovem, mas, como marido, tinha sido uma decepção. Lia descobria agora que havia muitas compensações no facto de ser a menina querida de um homem rico e com o dobro da idade dela. E à medida que o tempo foi passando, acabou por dedicar uma forte afeição àquele homem tão pouco atraente. Deu-lhe um filho e estava já tão habituada às delícias de uma vida luxuosa nas propriedades do marido, perto de Teano Sidicino, que, quando Cipião Asiágeno e, posteriormente, Sila, se instalaram nas cercanias, se recusou terminantemente a ir para casa da mãe, a qual, disso estava Lia certa, orientaria as suas tarefas, o seu regime alimentar, os seus filhos, enfim, toda a sua vida, de acordo com as ideias austeras que a caracterizavam. Como seria de esperar, Aurélia foi buscá-la pessoalmente (ao que parece, depois de um inesperado encontro com Sila — um encontro de que pouco falara) e Lia acabou por ser despachada sem cerimónias para Roma. E infelizmente sem os filhos; Quinto Pédio preferira ficar com eles em Teano.

Júlia Minor, a quem chamavam Ju-Ju, casara no início daquele ano, pouco depois do seu décimo oitavo aniversário. Não teve a mínima hipótese de escolher um homem menos recomendável! Foi César quem lhe escolheu marido, embora ela se tivesse manifestado contra aquela arbitrária usurpação, pois considerava-se perfeitamente à altura de escolher um bom marido. É evidente que César venceu. Certo dia, apareceu em casa com outro pretendente colossalmente rico, desta feita um homem de uma velha família senatorial e ele próprio um senador das últimas filas, ou seja, dos mais humildes de todo o Senado. Provinha de Arícia, perto das terras de César em Bovilas, e esse facto tornava-o latino, o que era obviamente melhor que ser campaniano. Depois de ter visto Marco Ácio Balbo, Ju-Ju desposou-o sem um murmúrio de contestação; comparado com Quinto Pédio, podia considerar-se uma escolha razoável, pois tinha apenas 37 anos e, apesar de uma idade tão avançada, ainda era um homem bonito.

Como era senador, Marco Ácio Balbo possuía uma domus em Roma, para além de extensas quintas em Arícia. Ju-Ju podia portanto dar-se por feliz, se comparasse a sua situação com a da irmã: é que ela, pelo menos, vivia em Roma quase todo o ano! Estava grávida, mas a mãe não se comovera com a gravidez dela e obrigara-a também a ir a pé até casa de Caio Mário.

— As mulheres grávidas não devem ser tratadas como inválidas — dissera Aurélia. — É por isso que muitas morrem ao dar à luz.

— Mas tu dizias que elas morriam porque só comiam favas — contrapusera Ju-Ju, despedindo-se com algum pesar da liteira em que fora transportada da casa do marido, nas Carinas, para o edifício da mãe, no bairro de Subura.

— Essas também morrem de parto. Os físicos pitagóricos são um perigo.

Havia mais uma mulher na sala, apesar de nenhum laço de sangue — ou, pelo menos, nenhum laço de sangue próximo — a unir às pessoas presentes. Chamava-se Múcia Tércia e era a esposa do jovem Mário. Filha única de Cévola Pontifex Maximus, tinham-lhe dado aquele nome para a distinguirem das suas duas famosas primas, as filhas de Cévola, o Augure.

Embora não fosse propriamente bela, Múcia Tércia já tinha tirado o sono a muitos homens. Tinha um tom de pele barrento e uns olhos demasiado separados e espessamente cobertos por umas pestanas negras que eram mais longas nos cantos exteriores dos olhos, o que acentuava ainda mais a distância entre eles; embora não o dissesse a ninguém, aparava as pestanas nos cantos interiores dos olhos com uma tesoura de marfim do Velho Egipto. Múcia Tércia tinha total consciência da invulgaridade das suas atracções físicas. O nariz alongado e fino conseguia não ser uma desvantagem, ainda que os puristas preferissem que ele possuísse alguma saliência na ponta ou então uma fenda na cana. A boca também se apartava muito do ideal romano de beleza, pois era muito larga; quando sorria, parecia mostrar cem dentes, aliás todos perfeitos. Mas os lábios eram carnudos e sensuais e a pele era espessa e sedosa e fazia uma bela combinação com o cabelo ruivo-escuro.

César era um dos que a achava muito sedutora. Aos dezassete anos e meio, possuía já uma vasta experiência em questões de sexo. Não havia mulher no bairro de Subura que, através de sugestões mais ou menos veladas, não se tivesse mostrado disposta a ajudar um jovem tão belo nas suas primeiras experiências sexuais. E porcas foram as que se sentiram dissuadidas quando descobriram que César só ia para a cama com uma mulher depois de ela ter tomado um bom banho; espalhara-se celeremente a notícia de que o jovem César estava equipado com poderoso armamento e sabia usá-lo na perfeição.

O interesse que César sentia por Múcia Tércia era motivado, em grande parte, pelo enigma que ela representava; por muito que tentasse, dificilmente conseguiria penetrar na verdadeira personalidade daquela mulher. Ela era uma mulher que facilmente exibia o seu sorriso, e aquela centena de dentes perfeitos, mas o sorriso nunca era acompanhado por qualquer alteração no olhar; e quanto aos seus gestos ou expressões, nunca constituíam pistas para a descoberta do seu pensamento.

Estava casada há quatro anos, quatro anos de aparente indiferença, tanto da sua parte como da parte do jovem Mário. Falavam muito um com o outro, mas sempre dentro dos limites da mais estrita formalidade; nunca trocavam esses olhares de secreto entendimento que são comuns à maior parte dos casais; não se tocavam, nem mesmo quando não estava ninguém por perto; e não tinham filhos. Se aquela era uma união de que estavam ausentes os sentimentos, quem não sofria com isso era por certo o jovem Mário; os seus namoros e aventuras eram bem conhecidos. Mas que se passaria com Múcia Tércia, a quem nunca fora apontada nenhuma imprudência, quanto mais a tentação de infidelidade? Seria feliz, aquela mulher? Amaria o marido? Ou odiá-lo-ia? Impossível saber e, no entanto, instintivamente, César sabia que ela era desesperadamente infeliz.

O grupo estava já convenientemente instalado e todos os olhos se fixavam agora no jovem Mário, o qual, perversamente, tinha optado por sentar-se numa cadeira. Para que o primo não o superasse, César também foi sentar-se numa cadeira, mas muito longe do filho de Caio Mário, que se encontrava no côncavo do U formado pelos três divãs; César sentou-se atrás da mãe, na abertura do U, e, por isso, não podia ver os rostos das duas mulheres que mais amava. Parecia-lhe muito mais importante poder ver o jovem Mário, Múcia Tércia e o chefe dos criados, Estrofantes, que fora convidado a assistir à reunião e que se encontrava de pé, perto da porta, depois de educadamente ter recusado a sugestão do jovem Mário para que se sentasse.

Molhando os lábios — um sinal invulgar de nervosismo —, o jovem Mário começou a falar.

— Ao princípio da tarde, Cneu Papírio Carbão e Marco Júnio Bruto fizeram-me uma visita.

— Ora aí está um estranho par — comentou César, que não queria que o discurso do primeiro fluísse sem interrupções; queria ver o jovem Mário um pouco atarantado.

O jovem Mário lançou-lhe um olhar irado, mas a ira que sentia não chegava para lhe perturbar o pensamento. Fora apenas uma coisa passageira.

Depois, César viu que o seu projecto se tinha frustrado. com efeito, o jovem Mário acrescentou logo de seguida:

— Vieram perguntar-me se eu estaria disposto a disputar o consulado ao lado de Cneu Carbão. Eu respondi que estava.

O espanto era geral. César viu a surpresa estampada nos rostos das irmãs, um súbito espasmo percorrendo a espinha da tia, uma expressão peculiar, mas indecifrável, nos notáveis olhos de Múcia Tércia.

— Mas, meu filho, tu nem sequer estás no Senado! — observou Júlia.

— Estarei a partir de amanhã. Perperna vai registar-me como membro do Senado.

— Tu nem sequer foste questor, quanto mais pretor!

— O Senado está disposto a dispensar os habituais requisitos.

— Mas não tens nem a experiência nem o conhecimento necessários! — persistiu Júlia, com desespero na voz.

— O meu pai foi cônsul sete vezes. Eu cresci rodeado de cônsules e antigos cônsules. Além disso, ninguém pode considerar Carbão inexperiente.

— Porque estamos aqui? — perguntou Aurélia.

O jovem Mário fitou a tia com o mais sério e apelativo dos olhares.

— Para discutirmos o assunto entre nós, é claro! — retorquiu, um tanto confuso.

— Isso não faz sentido! — exclamou Aurélia com brusquidão. — E não faz sentido porque tu já tomaste uma decisão e já disseste a Carbão que ias disputar a seu lado a eleição. Não valia a pena fazer-nos sair do calor das nossas casas para nos dar esta notícia. A esta hora, graças aos mexericos, já todos saberíamos da novidade.

— Isso não é verdade, tia Aurélia!

— Claro que é verdade! — atirou-lhe Aurélia.

Já muito vermelho no rosto, o jovem Mário virou-se para a mãe, o braço estendido num apelo.

— Mamã, não é verdade! Eu sei que disse a Carbão que aceitava, mas sempre tencionei ouvir o que a minha família tinha a dizer! Sempre tencionei fazer isso! Eu posso mudar de opinião!

— Hah! Não acredito que mudes! — retorquiu Aurélia. Os dedos de Júlia estreitaram o pulso de Aurélia.

— Está calada, Aurélia! Não quero que os malefícios da ira invadam esta sala.

— Tem toda a razão, tia Júlia: a ira é a emoção menos desejável neste momento — disse César, metendo-se entre a mãe e a tia. Desse novo e vantajoso local, fitou atentamente o primo. — Por que razão disseste que sim a Carbão? — perguntou.

Uma questão que não embaraçou o jovem Mário nem por um momento.

— Ora, César, podias considerar-me um pouco mais inteligente, não achas? — disse ele com desdém. — Eu respondi que sim pela mesma razão que tu terias dito que sim, se por acaso não usasses laena e apex.

— Entendo que penses que eu teria aceite, mas, na realidade, nunca teria aceite. In suo anno é a melhor maneira.

— É ilegal — disse inesperadamente Múcia Tércia.

— Não, não é — disse César antes que o jovem Mário pudesse responder. — É contra o costume estabelecido e mesmo contra a lex Villia annalis, mas não é propriamente ilegal. Só poderia tornar-se ilegal e, portanto, passível de julgamento em tribunal, se o teu marido usurpasse a posição em causa contra a vontade do Senado e do Povo. O Senado e o Povo podem legislar no sentido de anular a lex Villia. E é isso que vai acontecer. O Senado e o Povo vão aprovar a legislação necessária, o que significa que só Sila declarará ilegal a eleição do meu primo.

Por um momento, todos ficaram calados.

— Isso é o pior de tudo! — disse finalmente Júlia, com a voz embargada. — Vais ter de combater contra Sila.

— Eu acabaria sempre por combater contra Sila — retorquiu o jovem Mário.

— Mas não como representante do Senado e do Povo. Ser cônsul é aceitar a responsabilidade máxima. Tu vais chefiar os exércitos de Roma. — Uma lágrima corria pelo rosto de Júlia. — Vais ser o foco dos pensamentos de Sila e ele é o mais terrível dos homens! Não o conheço tão bem como a tua tia, mas conheço-o o suficiente. Cheguei mesmo a gostar dele, nos tempos em que ele cuidava do teu pai. Não sei se sabes, mas houve um tempo em que ele cuidou do teu pai. Obviava sempre a todas as situações embaraçosas em que o teu pai se via envolvido. Um homem mais paciente e perspicaz que o teu pai. E também um homem de alguma honra. Mas o teu pai e Lúcio Cornélio partilhavam um factor muito importante. São homens — ou deveria dizer ”eram”?— que, quando tudo o mais falha, desde a constituição ao apoio popular, são capazes dos maiores excessos para alcançar os seus objectivos. Foi por isso que, em tempos idos, ambos marcharam sobre Roma. E é por isso que Lúcio Cornélio marchará sobre Roma uma vez mais, se por acaso Roma seguir este rumo, ou seja, se Roma te eleger cônsul. O facto de seres eleito significará, para ele, que Roma tenciona combatê-lo até ao fim, que não poderá haver uma resolução pacífica para o conflito. — Júlia suspirou, limpou a lágrima. — É Sila quem me faz desejar que mudes de opinião, meu querido Caio. Se tivesses a idade e a experiência dele, era possível que o derrotasses. Mas não tens. Não podes vencer. E eu perderei o meu único filho.

Aquele era o apelo de um adulto razoável e maduro, coisa que o jovem Mário não era. Daí que a sua expressão, enquanto escutava o sentido discurso da mãe, não revelasse qualquer reacção. Preparava-se para lhe responder quando César o interrompeu uma vez mais.

— Pois bem, Mater — disse César. — Como a tia Júlia diz, tu conheces Sila melhor do que qualquer de nós! Que achas dele?

Poucas eram as coisas que perturbavam Aurélia e não tinha a mínima intenção de revelar os pormenores da última situação que a deixara seriamente perturbada: aquele trágico e horrível encontro com Sila.

— É verdade. Eu conheço bem Sila. Aliás, como todos sabem, tive mesmo a oportunidade de o ver uma vez há não muito tempo. Mas, em tempos passados, eu era sempre a última pessoa que ele via antes de deixar Roma e a primeira pessoa que ele visitava quando regressava. Entre as suas idas e vindas, quase não o via. Isso é típico de Sila. No fundo, ele é um actor. Não pode viver sem teatro. E soube transformar uma situação que, de outro modo, seria perfeitamente inócua, em algo prenhe de significado. Era por isso que escolhia ver-me unicamente naqueles momentos. Isso dava mais cor e significado à minha presença na sua vida. Em vez de uma vulgar visita a uma senhora com quem gostava de falar de coisas relativamente banais, cada visita transformava-se num adeus ou numa recepção de boas-vindas. Creio que seria correcto dizer que, desse modo, ele acabava por me atribuir um significado invulgar.

César sorriu para a mãe.

— Não respondeste à minha questão, Mater — disse ele afavelmente.

— Eu sei que não — retorquiu aquela mulher extraordinária, sem denunciar perturbação ou culpa. —vou fazê-lo agora. — Olhou gravemente para o jovem Mário, e prosseguiu: — O que tens de compreender é que, se tiveres de enfrentar Sila na qualidade de representante do Senado e do Povo, ou seja, na qualidade de cônsul, acabarás por ter também, aos olhos de Sila, um significado invulgar. Sila utilizará o facto de seres novo e o facto de seres filho de Mário para ampliar o drama da sua luta pelo poder em Roma. E tudo isto, sobrinho, é muito pouco reconfortante para a tua mãe. Por amor dela, desiste desta ideia! Enfrenta Sila no campo de batalha, mas apenas como um qualquer tribuno militar.

— E tu que achas? — perguntou o jovem Mário a César.

— Acho... acho que sim, primo. Sé cônsul antes do tempo.

— Lia?

Lia lançou um olhar perturbado para a tia Júlia e retorquiu:

— Não, primo, por favor não aceites!

— Ju-Ju?

— Concordo com a minha irmã.

— Mulher?

— Deves seguir o que Fortuna mandar.

— Estrofantes?

O velho criado suspirou.

— Domine, não aceite!

Acenando ligeiramente com a cabeça, o jovem Mário sentou-se de novo e deixou cair o braço pelas costas altas da cadeira. Franziu a boca, expirou suavemente.

— bom, de qualquer modo, não tive grandes surpresas — disse. — As mulheres da minha família e o meu chefe dos criados exortam-me a que faça tudo no seu devido tempo e de acordo com o meu estatuto. Exortam-me ainda a que não ponha em perigo a minha reputação. Talvez a minha tia quisesse dizer que poria também em perigo a minha reputação. A minha mulher põe tudo nas mãos da deusa Fortuna — e serei eu um dos seus favoritos? E por fim o meu primo diz que devo ir em frente.

Levantou-se: era de facto uma presença imponente.

— Nãovou voltar atrás com a minha palavra. Se Marco Perperna concordar em fazer-me entrar para o Senado e se o Senado promulgar a legislação necessária, declarar-me-ei candidato ao cargo de cônsul.

— Mas, na verdade, não nos disseste porquê — comentou Aurélia.

— Julguei que as razões eram óbvias. Roma está desesperada. Carbão não consegue encontrar nenhum colega à sua altura. Por isso se virou para o filho de Caio Mário. Roma ama-me! Roma precisa de mim! Essa é a razão! — replicou o jovem.

Apenas o mais velho e o mais leal dos criados teria tido a coragem de dizer o que Estrofantes disse, falando não só em nome da mãe angustiada, mas também em nome do falecido pai:

— É o teu pai que Roma ama, domine. Roma vira-se para ti por causa do teu pai. Roma não te conhece. A única coisa que sabe de ti é que és o filho do homem que a salvou dos Germanos, do homem que obteve as primeiras vitórias na guerra contra os Italianos, do homem que foi cônsul sete vezes. Se fores cônsul, será por seres filho de quem és e não por ti mesmo.

O jovem Mário adorava Estrofantes, e este sabia-o; tendo em conta as implicações daquele discurso, pode dizer-se que o aceitou muito bem. Limitou-se a franzir os lábios, nada mais. Quando Estrofantes terminou, respondeu apenas:

— Eu sei. Mas cabe-me a mim mostrar a Roma que o jovem Mário é feito da mesma fibra que o seu querido pai.

César olhou para o chão e nada disse. Mas por que raio, perguntava para si mesmo, por que raio é que o velho não deu a laena e o apex do flamen Dialis a outra pessoa? Eu era capaz de lidar com esta situação! O jovem Mário, porém, nunca será capaz!

E assim, em fins de Dezembro, os eleitores reunidos nas suas Centúrias concentraram-se no Campo de Marte e elegeram o jovem Mário cônsul sénior e Cneu Papírio Carbão cônsul júnior. O facto de o jovem Mário ter tido muito mais votos que Carbão constituía uma indicação clara do desespero, dos medos e das dúvidas que se tinham apossado de Roma. Contudo, muito dos que votaram sinceramente sentiam que alguma coisa de Caio Mário devia ter ficado no filho e que, sob o comando do jovem Mário, a vitória contra Sila era uma forte possibilidade.

Num aspecto tiveram os resultados eleitorais conseqüências muito gratificantes: o recrutamento, sobretudo na Etrúria e na Úmbria, registou uma aceleração imediata. Os filhos e os netos de Caio Mário correram a alistar-se nas legiões do filho, sentindo-se de súbito muito mais animados, cheios de uma nova confiança.

E quando o jovem Mário visitou as vastas propriedades do pai, foi saudado como um salvador, festejado, adorado.

Roma encheu-se de uma disposição festiva para assistir à tomada de posse dos novos cônsules no primeiro dia de Janeiro. E não ficou desapontada. O jovem Mário exibiu em todas as cerimónias uma felicidade transparente, uma felicidade que o tornava ainda mais querido de todos; tinha um ar magnificente, e sorria, acenava, saudava rostos conhecidos por entre a multidão. E como toda a gente sabia onde estava a sua mãe (aos pés da grave estátua do falecido marido, perto dos rostra), todos puderam ver o novo cônsul sénior deixar o seu lugar no desfile para ir beijar-lhe as mãos e os lábios. E para fazer uma garbosa saudação ao pai.

Talvez o povo de Roma precisasse de ter a juventude no poder neste momento crítico, pensou cinicamente Carbão. O que é certo é que já há muitos anos que não via uma multidão saudando de forma tão entusiástica um cônsul no primeiro dia do seu mandato. E por todos os deuses, concluiu Carbão, só espero que Roma não se venha a arrepender deste negócio eleitoral! É que, até àquele momento, a atitude do jovem Mário se caracterizara pela maior despreocupação; parecia considerar como um dado adquirido que tudo iria parar às suas mãos, que não teria necessidade de se esforçar, que todas as batalhas a haver estavam já ganhas.

Os augúrios não eram bons, embora os novos cônsules não tivessem testemunhado nada de desagradável durante a sua noite de vigília no Capitólio. O mau augúrio decorria de uma ausência — uma ausência tão importante que ninguém poderia esquecê-la ou ignorá-la. No ponto mais alto do monte Capitolino, onde, durante quinhentos anos, existira o grande templo de Júpiter, mais não havia agora do que uma pilha de detritos enegrecidos, irreconhecíveis. No sexto dia de Quinctilis do ano que findara, um incêndio que começara no interior da casa do Grande Deus tinha lavrado durante sete longos dias. Do templo, nada restava. Nada. O grande problema é que o templo fora construído numa época em que se recorria muito à madeira: por isso, só o pódio era de pedra. Os maciços tambores das suas colunas dóricas eram de madeira, tal como eram de madeira as paredes, os tectos, os painéis interiores. Só o seu descomunal tamanho e solidez, as raras e dispendiosas cores usadas na pintura, os gloriosos murais e a copiosa ornamentação dourada tinham levado os Romanos a considerar aquele templo como uma residência adequada para Júpiter, o mais poderoso de todos os deuses, que aliás não tinha outra; a ideia de o grande Júpiter ter a sua residência no alto da mais alta montanha — tal como sucedia com Zeus, o deus máximo dos Gregos — era absolutamente inaceitável para qualquer romano ou italiano.

Depois de as cinzas terem esfriado, os sacerdotes foram inspeccionar o local e deram com um monte de restos. Da gigantesca estátua de terracota do Deus, feita pelo escultor etrusco Vulca, durante o reinado do velho Tarquínio, não havia sinal. As estátuas de marfim da mulher de Júpiter, Juno, e da sua filha Minerva, também tinham desaparecido; o mesmo sucedera às estátuas dos dois misteriosos intrusos do templo, os deuses Término e Juventas, que se tinham recusado a mover-se do local quando o rei Tarquínio iniciara a construção do lar de Júpiter Optimus Maximus. O fogo tinha também consumido tábuas de leis e arquivos antiquíssimos, tal como os Livros Sibilinos e muitos outros documentos proféticos em que Roma confiava como os mais adequados guias em tempos de crise. Inúmeros tesouros feitos de ouro e prata tinham-se derretido, incluindo a sólida estátua de ouro de Vitória, dada por Hierão de Siracusa depois de Trasimene, e uma outra estátua maciça, de bronze dourado, de Vitória conduzindo uma biga — um carro puxado por dois cavalos. Os fragmentos de metal, distorcidos e cheios de impurezas, encontrados no meio dos detritos tinham sido reunidos e entregues aos ferreiros para refinação, mas o metal que os ferreiros conseguiram extrair (e que foi rapidamente para o Tesouro, quando poderia ter sido usado para fazer outras obras artísticas) nunca poderia substituir os nomes imortais dos autores das esculturas perdidas — Praxíteles e Mirão, Estronguilião e Policleto, Escopas e Lisipo. A Arte e a História tinham sido consumidas pelas mesmas chamas que destruíram o lar terreno de Júpiter Optimus Maximus.

Os templos adjacentes tinham também sido atingidos pelo incêndio, em particular o templo de Ops, a misteriosa guardiã da riqueza pública de Roma, que não tinha rosto nem corpo; o templo teria de ser reconstruído e reconsagrado, tão grande fora o prejuízo.

O templo de Fé Pública também sofrera bastante. O calor do fogo próximo reduzira a cinzas todos os tratados e pactos afixados nas suas paredes interiores, bem como as faixas de linho atadas à mão direita de uma estátua muito antiga, que se pensava ser a própria Fé Pública. O outro edifício afectado pelo incêndio era novo e fora construído em mármore e, por isso, precisava apenas de uma nova pintura. Tratava-se do templo dedicado à Honra e à Virtude erigido por Caio Mário para albergar os seus troféus de guerra, as suas condecorações militares e as ofertas que fizera a Roma. O que perturbava todos os Romanos era o significado da distribuição dos prejuízos: Júpiter Optimus Maximus era o espírito que guiava Roma; Ops era a prosperidade pública de Roma; Fé Pública era o espírito de boa-fé entre os Romanos e os seus deuses; e Honra e Virtude eram as duas principais características da glória militar de Roma. Daí que todos os Romanos se perguntassem a si mesmos: teria sido o fogo um sinal de que a supremacia de Roma chegara ao fim? Seria o fogo um sinal de que Roma estava acabada?

Desta forma, os cônsules daquele ano eram os primeiros a ser empossados sem a protecção de Júpiter Optimus Maximus. Um santuário provisório fora erigido sob um dossel, aos pés do pódio de pedra enegrecido que sustentava o antigo templo, e foi nesse local que os novos cônsules fizeram as suas oferendas e os seus juramentos.

com o seu cabelo claro escondido pelo apertado capacete de marfim, e o corpo oculto pelas sufocantes dobras da laena, César, o flamen Dialis, participou nos ritos, ainda que não tivesse qualquer papel activo a desempenhar. As cerimónias foram conduzidas pelo sacerdote-chefe da República, o Pontifex Maximus, Quinto Múcio Cévola, sogro do jovem Mário.

Enquanto assistia aos ritos, dois tipos diferentes de sofrimento perturbaram César: o primeiro, causado pelo facto de a destruição do Grande Templo ter roubado ao sacerdote de Júpiter o seu lar religioso; o segundo, causado pela verificação de que nunca vestiria a toga de debrum púrpura do cônsul. Mas tinha aprendido a lidar com o sofrimento e, ao longo de todos os rituais, conseguiu manter a postura correcta e uma expressão que não denunciava nada do que ia no seu coração.

A reunião do Senado e a festa que se seguia já não se podiam realizar no templo de Júpiter Optimus Maximus: decorriam agora na Cúria Hostília que, para além de sede do Senado, era um templo convenientemente consagrado. Ainda que pela sua idade não pudesse entrar na Cúria Hostília, César, enquanto flamen Dialis, era automaticamente um membro do Senado, e por isso ninguém se opunha à sua entrada. Aí, escutou impassivelmente as breves e formais medidas que o jovem Mário tinha de tomar, na sua qualidade de cônsul sénior. Os diversos governos que iniciariam funções para os próximos doze meses foram distribuídos, por sorteio, aos pretores daquele ano e aos dois cônsules, a data da festa de Júpiter Latiaris no monte Albano foi fixada, e outros dias móveis de natureza pública ou religiosa foram também fixados.

Dado que, entre as deliciosas iguarias servidas após a reunião, poucas eram aquelas em que o flamen Dialis podia tocar, César instalou-se num local recolhido e tratou de ouvir o maior número possível de conversas. Entretanto, os senadores começavam a distribuir-se pelos diversos divãs. Os cargos exercidos ditavam as posições de alguns dos presentes na sala, em particular daqueles que eram magistrados, sacerdotes ou augures, mas a grande massa dos senadores tinha inteira liberdade para se instalar onde quisesse. Daí que muitos optassem por ficar junto de amigos, com eles disputando gulosamente as iguarias que a abastada bolsa do jovem Mário providenciara.

Aquela era uma assembleia escassa. Não estariam presentes mais de cem senadores, tantos eram os que já se tinham juntado a Sila. Por outro lado, nem todos os que tinham assistido à tomada de posse eram adeptos dos cônsules ou dos seus planos. Quinto Lutácio Catulo estava presente, mas não era adepto da causa de Carbão; o seu pai, Catulo César (que morrera durante o banho de sangue lançado por Mário) fora um inimigo implacável de Mário, e o filho era feito da mesma massa, embora não tão dotado ou instruído. Isto, reflectia o observador César, era devido ao facto de o sangue juliano do pai ter sido diluído pelo da mãe de Quinto Lutácio, uma Domícia dos Domícios Aenobarbos — uma família famosa por muitas razões, mas não pelas capacidades intelectuais. César não gostava dele por razões que se prendiam com a mera aparência física; Catulo era muito baixo e magro e, tal como a mãe, tinha cabelo ruivo e sardas. Estava casado com a irmã do homem reclinado ao seu lado no mesmo divã, Quinto Hortênsio, e Quinto Hortênsio (outro nobre que permanecia em Roma mas que se dizia neutral) estava casado com a irmã de Catulo, Lutácia. com trinta e poucos anos, Quinto Hortênsio tornara-se o maior advogado de Roma dos tempos de Cina e Carbão, e era considerado por alguns a maior autoridade em leis que Roma alguma vez tinha produzido. Era um homem bastante atraente; o seu gosto pelos pequenos prazeres da vida era denunciado por um lábio inferior muito sensual; quanto ao seu gosto por belos rapazes, era evidente pela forma como olhava naquele instante para César. Habituado a olhares desses, César levou Hortênsio a desistir rapidamente de qualquer projecto: respondeu-lhe entortando os olhos e chupando os lábios todos para dentro. Hortênsio enrubesceu e virou-se imediatamente para Catulo.

Nesse momento, um criado abeirou-se de César, segredando-lhe que o seu primo pedia a sua presença no outro extremo da sala. César levantou-se do degrau onde se tinha agachado para melhor observar os presentes e, com um andar pouco elegante, por causa dos tamancos de sacerdote, dirigiu-se ao local onde se encontravam o jovem Mário e Carbão. Depois de beijar o primo na cara, sentou-se na beira do pódio curul atrás do divã.

— Não comes? — perguntou-lhe o primo.

— Não há muitas coisas que eu possa comer.

— Tens razão, esqueci-me — disse o jovem Mário, com a boca cheia de peixe. Engoliu o peixe e apontou para a enorme travessa que estava na mesa em frente do seu divã. — Não há nada que te impeça de comer aquilo — disse ele.

César olhou para a carcaça parcialmente desmembrada com muito pouco entusiasmo; era uma lampreia do Tibre.

— Obrigado — disse ele. — Mas nunca encontrei nenhuma virtude em comer merda.

Este comentário provocou o riso do jovem Mário, mas não destruiu o seu apetite por um peixe que se alimentava dos excrementos que saíam dos vastos esgotos de Roma; Carbão, notou César divertido, não tinha um estômago tão forte como o outro cônsul, pois a sua mão, que se abeirava de uma posta de lampreia, mudou subitamente de direcção para se fixar num pequeno frango assado.

Claro que, naquele sítio, César dava muito mais nas vistas; porém, em compensação, também podia ver muito mais caras. Enquanto conversava sobre coisas sem importância com o primo, os seus olhos andavam numa azáfama, saltando de homem para homem. Roma, pensou, podia estar muito contente com a eleição de um cônsul sénior com 26 anos, mas alguns dos homens presentes naquele banquete não estavam nada contentes. Em particular os amigos de Carbão — Bruto Damasipo, Caninas, Marco Fânio, Censorino, Públio Burrieno, Públio Albinovano, o Lucaniano... Claro que havia alguns que estavam muitíssimo satisfeitos, como era o caso de Marco Mário Gratidiano e de Cévola Pontifex Maximus, mas ambos eram parentes do jovem Mário e tinham, por assim dizer, um capital investido na eleição e no êxito do desempenho do novo cônsul.

O jovem Marco Júnio Bruto apareceu do lado do divã ocupado por Carbão. César reparou que Carbão saudou o jovem com um fervor desusado; Carbão, normalmente, não condescendia em mostrar-se tão efusivo. O jovem Mário cedeu então o seu lugar a Bruto e foi à procura de companheiros mais divertidos. Bruto acenou de passagem para César, sem mostrar qualquer interesse por ele. Isso era o que as funções do flamen Dialis tinham de melhor; o sacerdote de Júpiter não despertava nenhum interesse porque, do ponto de vista político, era absolutamente insignificante. Carbão e Bruto deram início à sua conversa sem qualquer constrangimento.

— Creio que podemos congratular-nos com o nosso excelente plano — disse Bruto, enfiando os dedos no esqueleto da lampreia, nesse momento prestes a desintegrar-se.

— Huh — fez Carbão e, com uma careta, pôs de lado o frango, em que apenas mordiscara, e substituiu-o por pão.

— Ora! De vias estar mais animado!

— com quê? com ele? Ora, Bruto, ele é tão vazio como um ovoftacabado de chupar! Já vi que chegue dele neste último mês para saber que assim é. Ele é que vai ficar com os fasces no mês de Janeiro, mas sou eu quevou ter o trabalho todo.

— Não estavas à espera que as coisas fossem de outro modo, pois não?

Carbão encolheu os ombros e atirou o pão para cima da mesa; desde que César falara em merda que o seu apetite se evaporara.

— Ah, não sei... Talvez estivesse à espera de que ele ficasse mais sensato. No fim de contas, é filho de Mário e a mãe é da família dos Júlios. Uma pessoa pensa sempre que esses factos têm algum peso.

— E pelos vistos não têm, é isso?

— Têm tanto peso como o lenço usado da tua avozinha. O máximo que posso dizer dele é que é um ornamento útil — faz-nos parecer a todos muito bonitos e atraentes e é um bom chamariz para o recrutamento.

— Se calhar também é capaz de chefiar tropas — disse Bruto, limpando as mãos engorduradas a um guardanapo de linho que um escravo lhe passara.

— Se calhar. Mas aposto que não é. Tenciono seguir o teu conselho nessa área.

— Que conselho?

— Não lhe dar os melhores soldados.

— Ah. — Bruto deitou fora o guardanapo, sem se preocupar em ver se o criado silencioso que estava perto de César conseguiria apanhá-lo. — Quinto Sertório não está cá hoje. Eu ainda tinha esperanças de que ele viesse a Roma para assistir às cerimónias. É que, no fim de contas, o jovem Mário sempre é primo dele.

Carbão desatou a rir, e o seu riso não era um som agradável.

— Sertório, meu caro Bruto, abandonou a nossa causa. Deixou Sinuessa entregue ao seu destino, partiu para Telamão, recrutou uma legião de clientes etruscos de Caio Mário e embarcou para Tarragona, aproveitando os ventos de Inverno. Por outras palavras, apoderou-se do governo da Hispânia Citerior muito, muito cedo. Espera, sem dúvida, que haja já uma decisão em Itália quando o seu governo chegar ao fim.

— É um cobarde! — exclamou Bruto, indignado. Carbão fez um ruído grosseiro.

— Não, isso ele não é! Preferia considerá-lo um homem estranho. Nunca reparaste que ele não tem amigos? Nem sequer mulher. Mas não possui a ambição de Caio Mário. Todos temos de dar graças por isso. Se ele fosse tão ambicioso como Caio Mário, a esta hora já seria cônsul sénior.

— bom, acho uma pena que ele nos tenha abandonado. A sua presença no campo de batalha teria feito a diferença. Além de tudo o mais, ele sabe como Sila combate.

Carbão arrotou e levou a mão à barriga.

— Acho que mevou retirar para tomar um emético. O prodigioso sortido de comidas do nosso rapaz é demasiado suculento para o meu estômago.

Bruto ajudou o cônsul júnior a erguer-se do divã e conduziu-o a um recanto do salão, atrás do pódio, onde vários criados aguardavam os mais aflitos, dispondo, para o efeito, de uma apreciável quantidade de bacios e bacias.

Lançando um breve olhar, cheio de desprezo, para Carbão, quando este já não podia vê-lo, César decidiu que tinha ouvido a conversa mais importante daquele banquete de tomada de posse dos cônsules. Descalçou os tamancos, pegou neles e, calmamente, abandonou o salão.

Lúcio Decúmio estava escondido num recanto obscuro do vestíbulo da Casa do Senado e abeirou-se de César no momento em que este apareceu no vão da porta. Os seus braços estavam cheios de peças de roupa mais adequadas — botas decentes, uma capa com capuz, meias, calções de lã. César despiu imediatamente o traje de flamen Dialis. Atrás de Lúcio Decúmio, surgiu uma criatura formidável que pegou no apex, na laena e nos tamancos e os meteu numa saca de couro.

— O quê? Já regressaste de Bovilas, Burgundo? — perguntou César, atrapalhado com o frio enquanto se esforçava por calçar uma bota sem correias.

— É verdade, César.

— E como vão as coisas? Cardixa está bem?

— Tenho mais um filho.

Lúcio Decúmio soltou um risinho.

— Eu bem te disse, Pavo! Quando chegares a cônsul, já ele te terá dado uma equipa completa de guarda-costas!

— Eu nunca chegarei a cônsul — retorquiu César, pesaroso, enquanto olhava, pela janela, para os telhados da Basílica Emília, cobertos de neve.

— Disparate! Claro que chegarás a cônsul! — disse Lúcio Decúmio, envolvendo com as mãos o rosto de César. — Acaba já com essa tristeza! Nada no mundo te poderá deter a partir do momento em que tomares uma decisão! Nada, ouviste? — Lúcio Decúmio deixou cair as mãos e uma delas gesticulava já, impaciente, para Burgundo. — Põe-te já a caminho, minha bisarma germânica! Vá, vai à frente para abrires caminho para o senhor!

Aquele Inverno terrível continuou como tinha começado e parecia nunca mais ter fim. O calendário estava agora em perfeita harmonia com as estações, ao fim de vários anos de exercício do cargo de Pontifex Maximus por Cévola; Cévola, tal como Metelo Dalmático, acreditava que devia haver uma harmonia total entre as datas e as estações, enquanto que o Pontifex Maximus que o antecedera, Cneu Domício Aenobarbo, fizera com que o calendário se adiantasse — tinha menos dez dias que o ano solar — porque, segundo as suas próprias palavras, tinha o maior desprezo por certos hábitos amaneirados dos Gregos.

Em Março, finalmente, o degelo começou e a Itália começou a acreditar que o calor voltaria aos campos e às casas. Adormecidas desde Outubro, as legiões acordaram e lançaram-se ao trabalho. Enfrentando os caminhos ainda cheios da neve do princípio de Março, Caio Norbano saiu de Cápua com seis das suas oito legiões e marchou ao encontro de Carbão, que estava de volta a Arimino. A meio do caminho, passou por Sila, que preferiu ignorá-lo; na Via Latina e depois na Via Flamínia, Norbano podia avançar facilmente apesar da neve e depressa chegou a Arimino. A sua chegada fez subir para trinta legiões e vários milhares de soldados de cavalaria as forças de Carbão — uma carga enorme para Roma e para o Ager Gallicus.

Mas antes de rumar a Arimino, Carbão tinha resolvido o mais premente dos seus problemas: arranjar o dinheiro para manter tantos soldados. Foram porventura o ouro e a prata obtidos a partir dos destroços do templo de Júpiter Optimus Maximus que lhe deram a ideia de como resolver o problema. De facto, a primeira coisa que fez foi apoderar-se desses lingotes de ouro e prata depositados entretanto no Tesouro, deixando no seu lugar uma nota promissória que rezava que Roma ficava a dever ao seu Grande Deus um determinado total de talentos de ouro e prata. Muitos dos templos de Roma tinham acumulado riquezas graças aos seus próprios esforços e, dado que a religião era parte integrante do Estado e, para mais, governada pelo Estado, Carbão e o jovem Mário trataram de pedir ”emprestado” algum do dinheiro detido por esses templos. Teoricamente, estes pedidos de empréstimo não eram inconstitucionais, ainda que, na prática, fossem mal vistos, pelo que raramente se recorria a eles. A verdade, porém, é que, nessa altura, muitos foram os baús cheios de moedas que saíram das casas-fortes dos templos. Nada escapou: os sestércios que eram dados a Juno Lucina pelo nascimento de um filho, menino ou menina, de um cidadão romano; os denários que eram dados a Juventas pelo crescimento feliz dos rapazinhos romanos, filhos de cidadãos; os muitos denários doados a Mercúrio depois de um homem de negócios ter molhado o seu ramo de loureiro na fonte sagrada; os sestércios que eram dados a Vénus Libitina por morte de um cidadão romano; os sestércios que eram doados a Vénus Erucina por prostitutas bem sucedidas na vida — todo este dinheiro e muito mais foi requisitado para financiar a máquina de guerra de Carbão. O ouro e a prata em barras ou lingotes também foram levados e todas as oferendas de prata ou ouro doadas aos templos (desde que não fossem consideradas obras de arte) foram fundidas.

O pretor Quinto António Balbo, que não pertencia à família nobre dos Antónios, ficou com a tarefa de cunhar novas moedas e de pôr fora da circulação as velhas. Era possível que muitos considerassem aquela operação um sacrilégio, mas a verdade é que o valor total dos despojes era absolutamente impressionante. Assim, Carbão pôde deixar o jovem Mário a tomar conta de Roma e da campanha no Sul, e viajar para Arimino sem preocupações a atormentá-lo.

Embora nenhum dos campos estivesse consciente de que partilhava algo com o outro, a verdade é que Sila e Carbão tinham tomado uma resolução similar — aquela guerra civil não poderia arruinar a Itália, todos os mantimentos de homens e animais envolvidos nas hostilidades teriam de ser pagos com dinheiro na mão, as terras devastadas pelas manobras militares deviam ser reduzidas ao mínimo dos mínimos. A Guerra Italiana tinha deixado todo o país a um passo da extinção; o país não agüentaria outra guerra igual e, para mais, tão pouco tempo depois. E tanto Sila como Carbão sabiam disso.

Sabiam também que, aos olhos do povo, faltava àquela guerra a nobreza de propósitos e as férreas motivações que haviam abundado na Guerra Italiana. Esta fora uma luta entre estados italianos que queriam ser independentes de Roma e uma Roma que queria manter os estados italianos num certo grau de vassalagem. Mas quais eram verdadeiramente as motivações deste novo conflito? As motivações reduziam-se a isto: qual dos dois campos adversários acabaria por dominar e possuir Roma. Era uma luta pela supremacia travada entre dois homens, Sila e Carbão, e nenhuma propaganda conseguiria disfarçar esse facto. E o povo miúdo de Roma e de Itália também não se deixava enganar. Por isso, o país não podia ser submetido a uma provação extrema, nem o bem-estar econômico das comunidades romana e italiana podia ser afectado.

Sila ia buscar o seu dinheiro aos soldados, mas Carbão só podia recorrer aos deuses. E nas mentes de ambos pairava permanentemente um dilema tremendo: como pagar aquela dívida, depois de a guerra acabada?

Nada disto perturbava os pensamentos do jovem Mário, filho de um homem fabulosamente rico e que crescera sem qualquer preocupação relacionada com dinheiro, fosse este para pagar alguma dispendiosa ninharia ou para pagar as legiões. Se o velho Caio Mário tinha falado com alguém acerca dos aspectos fiscais da guerra, esse alguém fora César, durante os meses em que César o ajudara a recuperar da segunda trombose. com o filho, aliás, Caio Mário raramente falava. Na altura em que mais precisara do filho, o jovem Mário estava na idade de se entusiasmar mais com os encantos de Roma do que as lições do pai. César, nove anos mais novo que o primo, tivera acesso a todas as recordações de Caio Mário. E César escutara-as avidamente e aprendera as lições. As lições que, desde que era sacerdote, de nada lhe serviam.

Quando o degelo começou, depois de meados de Março, o jovem Mário e a sua equipa de legados mudaram-se de Roma para um acampamento nas cercanias da pequena cidade de Ad Picta, na Via Labicana, um diverticulum que evitava os montes Albanos e se juntava à Via Latina num local chamado Sacriporto. Aí, numa planície aluvial, oito legiões de voluntários etruscos e úmbrios tinham estado acampadas desde o início do Inverno, sob um programa de treino tão rigoroso e intensivo quanto o frio permitia. Os centuriões destas legiões eram todos veteranos de Mário, e bons instrutores, mas, quando o jovem Mário chegou ao acampamento, em fins de Março, as tropas estavam ainda muito verdes. Não que o jovem Mário se preocupasse com isso; acreditava sinceramente que o mais inexperiente dos recrutas lutaria por ele como os mais duros dos soldados tinham lutado pelo seu pai. E enfrentava a tarefa de deter Sila com uma confiança ilimitada.

Havia homens no seu acampamento que compreendiam muito melhor que ele a grandeza e a dificuldade dessa tarefa, mas nenhum deles tentou esclarecer o cônsul e comandante sobre o assunto. Se lhes tivessem perguntado porquê, teriam respondido provavelmente que, sob uma capa feita de bazófia, o jovem Mário não possuía os recursos internos necessários para enfrentar uma verdade tão dura. Sendo o chefe, pelo menos de nome, o jovem Mário tinha de ser acarinhado e protegido, não poderia sofrer uma beliscadura.

Quando lhe chegaram informações da espionagem segundo as quais Sila se preparava para avançar, o jovem Mário exultou. Ao que parecia, Sila tinha enviado onze das suas dezoito legiões e quase todos os esquadrões de cavalaria, sob o comando de Metelo Pio, o Bacorinho, na direcção da costa adriática e de Carbão, que se encontrava em Arimino. O que deixava Sila apenas com sete legiões, uma força inferior àquela de que o jovem Mário dispunha.

— Posso derrotá-lo! — disse ele para o seu legado sénior, Cneu Domício Aenobarbo.

Casado com a filha mais velha de Cina, Aenobarbo aderira ao partido de Carbão, apesar de uma inclinação natural por Sila; estava demasiado apaixonado pela sua bela esposa e suficientemente dominado por ela para fazer o que ela muito bem entendesse. Procurava, por isso, ignorar o facto de a maior parte dos seus parentes próximos se mostrarem neutrais ou favoráveis a Sila.

E agora que via o jovem Mário tão exultante, Aenobarbo sentia-se, pelo contrário, muito preocupado; talvez devesse começar a pensar na melhor maneira de fugir, e para onde, se o jovem Mário não estivesse à altura da sua jactância e não vencesse a velha raposa vermelha, Sila.

No primeiro dia de Abril, o jovem Mário, ainda com uma disposição excepcionalmente jovial, abandonou o acampamento com o seu exército, atravessou os antigos pilonos de Sacriporto e fez-se à Via Latina, rumando para sudeste, ou seja, para a Campânia e Sila. Não perdia tempo: havia duas pontes a atravessar, distando uma da outra pouco mais de oito quilômetros, e ele queria atravessá-las antes de encontrar o inimigo. Ninguém lhe deu nenhum conselho quanto à imprudência que era marchar ao encontro de Sila em vez de permanecer onde estava, e, embora tivesse viajado pela Via Latina dezenas de vezes, o Jovem Mário não era homem para se lembrar do terreno ou para ver o terreno em termos militares.

Na primeira ponte, sobre o rio Veregis, permaneceu atrás enquanto as suas tropas, muito animadas, a atravessavam. De súbito, apercebeu-se de que o terreno que se avizinhava era pior para o combate do que as cercanias dos pilonos de Sacriporto. Mas não parou. Na segunda ponte, sobre o leito, mais largo e torrencial, do Tolero, deu-se finalmente conta de que avançava a passos largos para uma região onde as suas legiões teriam dificuldades de manobra. Entretanto, os seus batedores surgiram com a informação de que Sila se encontrava a cerca de quinze quilômetros dali e que acabara de passar, a boa velocidade, pela cidade de Ferentino. Ao ouvir isto, o jovem Mário entrou em pânico.

— Creio que será melhor voltarmos para Sacriporto — disse ele a Aenobarbo. — Nesta região, não posso manobrar as tropas à minha vontade e, por outro lado, não posso desviar-me de Sila para procurar um terreno menos acidentado. Por isso, teremos de enfrentá-lo em Sacriporto. Não achas que é melhor?

— Se tu achas que é... — disse Aenobarbo, que estava consciente do efeito que uma ordem de retirada teria naqueles soldados inexperientes, mas decidiu não dizer palavra. — Eu dou a ordem. Regressamos a Sacriporto.

— A toda a pressa! — exclamou o jovem Mário, cada vez menos autoconfiante e cada vez mais em pânico.

Aenobarbo olhou para ele, espantado, mas optou uma vez mais por não dizer nada. Se o jovem Mário queria que o seu exército ficasse exausto depois de uma retirada a toda a velocidade, por que haveria ele de contrariá-lo? Fosse como fosse, não conseguiriam vencer.

E assim, as oito legiões voltaram para Sacriporto em marcha redobrada e os milhares de jovens soldados não escondiam a sua perplexidade ao ouvirem os centuriões exortando-os a todo o momento para que marchassem mais depressa. Também o jovem Mário acabou por ser contaminado por esta pressa desesperada, surgindo no meio das suas hostes a dar ordens para que não abrandassem, sem pensar uma única vez que deveria informá-los de que não estavam a retirar, mas apenas a procurar um terreno mais apropriado para a batalha. O resultado foi que tanto as tropas como o comandante chegaram ao ansiado terreno numa condição mental e física que não lhes permitia tirar partido desse factor.

Tal como todos os seus pares, o jovem Mário aprendera a travar uma batalha. Porém, até esse momento, limitara-se a acreditar que a sagacidade e a destreza do seu pai surgiriam automaticamente na sua mente sempre que necessário; porém, em Sacriporto, rodeado pelos legados e pelos tribunos militares que aguardavam as suas ordens, não conseguia pensar, não conseguia encontrar em si um único resquício da sagacidade e da destreza do pai.

— Ora bem — disse por fim. — Disponham as legiões em xadrez — uma profundidade de oito homens de cada lado de cada quadrado, e mantenham duas legiões em linha, atrás, para servirem de reforço.

Estas não eram as ordens adequadas, mas ninguém tentou obter dele melhores ordens. As suas tropas, sequiosas e ofegantes, não ficaram mais animadas antes da batalha, pois o jovem Mário não lhes fez o discurso habitual; em vez disso, instalou-se num extremo do campo e montou no cavalo, com os ombros curvados e o rosto denunciando a violência do seu dilema.

Discernindo o pouco afortunado plano de batalha do jovem Mário do alto de um monte entre o rio Tolero e Sacriporto, Sila suspirou, encolheu os ombros e mandou avançar as suas cinco legiões de veteranos, sob o comando do velho Dolabela e de Servílio Vátia. Quanto às duas melhores legiões do antigo exército de Cipião Asiáfeno, manteve-as em reserva, sob a chefia de Lúcio Mânlio Torquato, enquanto ele permanecia no cume do monte, assistido por um esquadrão de cavalaria transformado em corpo de mensageiros e encarregado de levar as instruções do general para o campo de batalha caso uma mudança de táctica se tornasse necessária. com Sila estava nem mais nem menos do que o velho Lúcio Valério Flaco Princeps Senatus, o dirigente do Senado; Flaco tomara uma decisão definitiva no pino do Inverno: deixara Roma em meados de Fevereiro e fora juntar-se a Sila.

Quando viu o exército de Sila a aproximar-se, o jovem Mário sentiu que a calma regressava à sua mente, ainda que não o optimismo, e assumiu pessoalmente o comando da sua ala esquerda, sem fazer a mínima ideia do que estava a fazer ou do que devia fazer. Os dois exércitos encontraram-se a meio da tarde e, antes que tivesse passado uma hora, já os jovens camponeses etruscos e úmbrios que, cheios de entusiasmo, se tinham alistado nas hostes do jovem Mário, desatavam a fugir em todas as direcções, enquanto os veteranos de Sila destroçavam facilmente os que os enfrentavam. Uma das duas legiões que o jovem Mário manteve de reserva desertou em massa para as hostes de Servílio Vátia e ficou quieta e parada enquanto, a pouca distância, os seus camaradas eram massacrados.

Foi a visão dessa legião de desertores que acabou com o jovem Mário. Lembrando-se de que a formidável cidade-fortaleza de Preneste não ficava muito longe de Sacriporto, ordenou a retirada para essa cidade. Agora que já tinha algo de tangível para fazer, portou-se muito melhor e conseguiu evacuar as tropas da sua ala esquerda de forma razoavelmente ordenada. Comandando a ala direita de Sila, Ofela foi em perseguição do jovem Mário com uma rapidez e uma selvajaria que Sila, observando do cume do monte, aplaudiu calorosamente. Ao longo de mais de quinze quilômetros, Ofela perseguiu e fustigou, interceptou e retalhou os soldados que ficavam para trás, enquanto o jovem Mário procurava salvar o máximo de homens possível. Porém, quando as enormes portas de Preneste se fecharam atrás dele, contava apenas com sete mil dos seus soldados.

O eixo das tropas do jovem Mário tinha perecido no campo (quase nenhum soldado resistira), mas a sua ala direita, chefiada por Aenobarbo, conseguira fugir para Norba. Esta antiga fortaleza dos Volscos, fanaticamente leal à causa de Carbão, ficava no cume de uma montanha situada trinta quilômetros para sudoeste, e foi com alegria que abriu as portas das suas inexpugnáveis muralhas para receber os dez mil homens de Aenobarbo. Mas não para receber Aenobarbo! Desejando aos seus exaustos soldados a melhor sorte para o futuro, Aenobarbo continuou na direcção da costa e, em Tarracina, embarcou para África, isto é, para o local mais afastado de Itália de que conseguiu lembrar-se depois de ter acalmado.

Ignorando que o seu legado sénior se tinha escapado, o jovem Mário mostrou a maior satisfação por dispor daquele abrigo em Preneste; Sila verificaria que era extremamente difícil, ou mesmo impossível, desalojá-lo daquela cidade. Situada a cerca de cinqüenta quilômetros de Roma, Preneste ficava num cume dos Apeninos; a sua situação geográfica permitira-lhe resistir a muitos assaltos ao longo dos séculos. Nenhum exército conseguiria apossar-se da fortaleza atacando-a por trás, onde o afloramento em que assentava se colava a picos ainda mais altos e abruptos; no entanto, podia ser abastecida por esse lado, pelo que era praticamente impossível reduzir à fome os eventuais sitiados. As nascentes não faltavam dentro da cidadela, e, nas vastas cavernas situadas debaixo do imponente santuário de Fortuna Primigénia, santuário que trouxera fama a Preneste, estavam armazenados muitos medimni de trigo, azeite e vinho, outros alimentos imperecíveis como certos queijos e passas de uva, e também as maçãs e as peras da última colheita.

Embora as suas raízes fossem latinas e o latim que falavam fosse considerado pelos seus orgulhosos cidadãos com o mais antigo e o mais puro, Preneste nunca se tinha aliado a Roma. Combatera do lado dos Aliados Italianos durante a Guerra Italiana, e continuava a defender, com alguma arrogância, que a sua cidadania era superior à de Roma — Roma era uma cidade nova-rica! A sua ferverosa adesão ao jovem Mário era portanto lógica; aos olhos do povo de Preneste, o jovem Mário era o oprimido enfrentando o poder vingativo de Sila; por outro lado, o facto de ser filho de quem era também contribuiu para o calor da recepção. Em sinal de agradecimento, o filho de Caio Mário mandou os seus soldados explorar os caminhos de cabras que havia em volta da cidadela, ordenando-lhes que trouxessem toda a caça e alimentos que encontrassem. Preneste tinha agora muitas bocas novas para alimentar.

— No Verão, o exército de Sila sentirá já tantas faltas que se verá obrigado a retirar; então, poderás partir — disse o supremo magistrado da cidade ao jovem Mário.

Uma profecia que não se cumpriu; menos de oito dias depois da batalha de Sacriporto, o jovem Mário e os habitantes de Preneste testemunharam os preparativos de um cerco demasiado monumental para não fazer ceder a cidade. Os ribeiros que corriam pela montanha na direcção de Roma foram todos conduzidos para o rio Ânio, ao passo que aqueles que corriam na direcção oposta foram conduzidos para as águas do Tolero: Preneste transformava-se na linha divisória entre dois grandes rios. E pouco tempo depois, com uma velocidade que os sitiados consideraram inacreditável, uma enorme muralha com fosso começou a ser construída desde o Ânio até ao Tolero. Terminadas estas obras preparatórias do cerco, a única forma de entrar ou sair de Preneste seria através dos caminhos de cabras das montanhas do lado de trás da fortaleza. Desde que, como é evidente, esses caminhos fossem deixados sem protecção.

As notícias de Sacriporto voaram para Roma antes do ocaso desse dia fatal — mas muito secretamente. A disseminação geral teria de esperar pelo boato. As notícias chegaram através de um correio especial do próprio jovem Mário, o qual, mal chegou a Preneste, ditou apressadamente uma carta dirigida ao pretor urbano de Roma, Lúcio Júnio Bruto Damasipo. Dizia essa carta:

Tudo está perdido a Sul de Roma. Temos de esperar que Carbão, em Arimino, trave o tipo de guerra que Sila não esteja à altura de enfrentar, nem que seja pelo facto de ter muito menos homens que Carbão. As tropas de Carbão são muito melhores do que as minhas. A ausência de treino e experiência dos meus homens perturbou-os tanto que nem uma hora conseguiram resistir aos veteranos de Sila.

Sugiro-te que tentes preparar Roma para um cerco, ainda que isso possa parecer impossível num local tão vasto e tão dividido nas suas lealdades. Se crês que Roma se recusará a suportar um cerco, então o melhor será esperares por uma invasão de Sila dentro de pouco tempo (um intervalo entre mercados, no máximo), já que não há tropas que se oponham às suas entre o sítio onde estou e Roma. Não sei se é intenção dele ocupar Roma. A minha esperança é de que ele ponha de lado Roma e ataque Carbão. Pelo que ouvi ao meu pai sobre Sila, seria muito natural que ele formasse uma tenaz para esmagar Carbão, usando Metelo Pio como o outro braço da tenaz. Quem me dera saber. Mas não sei. Só sei que seria prematuro para Sila ocupar Roma nesta altura e não estou a ver Sila cometer esse erro.

É possível que não possa sair de Preneste tão cedo. A cidade recebeu-me de braços abertos — o seu povo nutre uma grande afeição por Caio Mário e não se recusou a socorrer o filho. Podes estar certo de que, logo que Sila avançar para a guerra contra Carbão, deixarei Preneste e correrei a ajudar Roma. Se eu estivesse em Roma, talvez o povo concordasse em agüentar o cerco.

Para além disto, creio que chegou a hora de destruir todos os ninhos das víboras favoráveis a Sila dentro da nossa querida cidade. Mata-os a todos, Damásipo! Não permitas que o sentimento abrande a tua determinação. Os homens susceptíveis de apoiarem Sila impossibilitarão a resistência de Roma. Por isso, não poderão viver. Estando mortos os grandes que poderão opor-se-nos, os pequenos submeter-se-ão sem hesitar. Todos os homens que possam ajudar militarmente Carbão deverão deixar Roma imediatamente. E tu és um deles, Damásipo.

Quanto às víboras que têm de ser mortas, eis alguns nomes que me vêm à ideia. Sei que me estou a esquecer de muitos, por isso tenta lembrar-te de todos! O nosso Pontifex Maximus. O velho Lúcio Domício Aenobarbo. Carbão Arvina. Públio Antístio Vetus.

Bruto Damásipo cumpriu as ordens. Durante o breve mas vasto massacre que o velho Caio Mário tinha perpetrado antes de morrer, Quinto Múcio Cévola, o Pontifex Maximus, tinha sido apunhalado sem que ninguém conseguisse entender porquê. O homem que o apunhalara (o mesmo Fímbria que fora com Flaco, o cônsul substituto, para o Oriente, com a ordem de afastar Sila do contando da guerra contra Mitridates e que depois assassinara Flaco) não conseguira apresentar melhor desculpa do que dizer, no meio de risos, que Cévola merecia morrer. Mas Cévola não morreu, apesar de o ferimento ser grave. Duro e robusto, o Pontifex Maximus retomava os seus deveres públicos dois meses depois. Agora, contudo, não poderia haver escapatória. Embora fosse o sogro do jovem Mário, foi mortalmente ferido quando tentava abrigar-se no templo de Vesta. Estava totalmente inocente de traição ao jovem Mário.

O velho Lúcio Domício Aenobarbo, cônsul pouco tempo depois do seu irmão, o Pontifex Maximus que procedera a reformas, foi executado em sua casa. E sem dúvida que Pompeu, o Grande, teria dado a sua total aprovação se soubesse que, agora, não precisaria de sujar as mãos com o sangue do sogro; Públio Antístio também foi assassinado, e a mulher, enlouquecida pela dor, suicidou-se.

Quando Bruto Damasipo chegou à conclusão de que livrara já a Roma de Carbão de todos os que poderiam representar um perigo, cerca de trinta cabeças adornavam os rostra no baixo Fórum Romano; os homens que se consideravam neutrais (como Catulo, Lépido e Hortênsio) aferrolharam-se em casa e recusaram-se a sair, não fosse algum dos amigos de Damasipo achar que também eles deviam morrer.

Terminada a sua obra, Bruto Damasipo abandonou Roma a toda a pressa, tal como o seu colega pretor Caio Álbio Carrinas. Ambos foram juntar-se a Carbão. O pretor encarregado da cunhagem de moeda, Quinto António Balbo, também deixou Roma por essa altura, mas comandando uma legião; o seu objectivo era ir para a Sardenha e retirar o poder a Filipe.

Contudo, a mais estranha das deserções foi a de um tribuno da plebe, Quinto Valério Sorano. Grande erudito e conhecido filantropo, Sorano não pôde tolerar aquela matança, tanto mais que nem sequer havia provas da ligação das vítimas à causa de Sila. Mas como fazer um protesto público capaz de impressionar toda a cidade? E como poderia um homem destruir Roma? É que Quinto Valério Sorano tinha chegado à conclusão de que o mundo se tornaria um sítio melhor para viver se Roma deixasse de existir. Ao fim de algum tempo, encontrou uma solução. Subiu aos rostra e aí, rodeado pelos troféus ainda gotejantes de sangue de Bruto Damasipo, pôs-se a gritar bem alto o nome secreto de Roma.

— AMOR! — gritou ele até não poder mais.

Aqueles que ouviram e compreenderam desataram a correr para bem longe, tapando os ouvidos. O nome secreto de Roma não podia nunca ser pronunciado em voz alta! Roma e tudo o que ela representava desabariam como um prédio velho abalado por um terramoto. Quinto Valério Sorano acreditava nisso. Por isso, depois de ter gritado aos quatro ventos o nome secreto de Roma, Sorano fugiu para Óstia, sem perceber por que razão Roma continuava de pé sobre as suas sete colinas. De Óstia, esse homem marcado seguiu para a Sicília.

Virtualmente privada de governo, a cidade não se desintegrou. As pessoas continuaram a fazer a sua vida; os nobres neutrais espreitaram pelos postigos, sentiram que não havia perigo e voltaram a percorrer as ruas de Roma, ainda que de boca calada. Roma estava à espera de ver o que Sila faria.

Sila entrou de facto em Roma, mas tranqüilamente, e sem o exército atrás a protegê-lo.

Não havia nenhuma razão importante para que não entrasse em Roma, mas muitas razões importantes para que entrasse. A problemas como o seu império — e saber se renunciava ou não ao império no momento em que atravessasse o limite sagrado do pomerium — ligava muito pouco. Naquela Roma sem rumo nem governo, que pessoas havia para o contestar, ou para o acusar de ilegalidades, ou para o impugnar de um ponto de vista religioso? Se regressava a Roma, tinha de ser como conquistador e senhor de Roma, com todos os poderes de que precisasse para repor a verdade relativamente à sua carreira passada. Por isso, atravessou o pomerium sem a mínima apreensão e tratou de devolver à cidade algo que se assemelhasse a um governo.

O mais importante dos magistrados que ficara em Roma era um dos dois irmãos Mágios de Eculano, um pretor; foi esse homem que Sila encarregou do governo, assistido dos edis Públio Fúrio Crassipes e Marco Pompónio. Quando soube que Sorano tinha proferido o nome secreto de Roma em voz alta, franziu a testa com um ar lúgubre e estremeceu; no entanto, foi com total serenidade que atentou nas cabeças espetadas em lanças à volta dos rostra, limitando-se a ordenar que retirassem as cabeças e providenciassem os ritos adequados. Não fez qualquer discurso ao povo, não convocou nenhuma reunião do Senado. Menos de um dia depois de ter entrado em Roma, regressava a Preneste. Deixava porém em Roma dois esquadrões de cavalaria sob o comando de Torquato — para ajudarem os magistrados a manter a ordem, disse ele brandamente.

Não fez qualquer diligência no sentido de ver Aurélia, que chegara a pensar nessa possibilidade; quando soube que Sila regressara a Preneste, Aurélia mostrou uma expressão de indiferença perante a família, em particular perante César, que sabia que o encontro da mãe com Sila, perto de Teano, fora extremamente significativo, mas que também sabia que ela nunca lhe contaria nada.

O legado encarregado do cerco a Preneste era o trânsfuga Quinto Lucrécio Ofela, cujas ordens vinham directamente de Sila.

— Quero o jovem Mário preso em Preneste para o resto da vida - dissera Sila a Ofela. — Vais construir uma muralha com trinta pés de altura que vá desde as montanhas do lado do rio Ânio até às montanhas do lado do rio Tolero. A muralha terá uma torre fortificada, com sessenta pés de altura, de duzentos em duzentos passos. Entre a muralha e a cidade, escavarás um fosso com vinte pés de profundidade e vinte pés de largo, e no fundo porás stimuli tão espessos como os juncos das margens do lago Fucino. Quando o cerco estiver completamente montado, disporás acampamentos de homens nos locais certos, de forma a guardarem todos os caminhos que saem de Preneste na direcção dos Altos Apeninos. Ninguém conseguirá entrar, ninguém conseguirá sair. Quero que aquele bonequinho arrogante perceba que Preneste será o seu lar enquanto for vivo. — Um sorriso amargo contorceu os cantos da boca de Sila, um sorriso que teria deixado à vista aqueles longos e ferozes caninos no tempo em que ele tinha dentes; mesmo assim, continuava a ser um sorriso tremendo. — Também quero que os cidadãos de Preneste percebam que vão ficar com o jovem Mário para o resto da sua vida, de maneira que vais dizer aos mensageiros que devem informá-los desse facto seis vezes ao dia. Uma coisa é socorrer um jovem encantador e com um nome famoso, outra coisa é perceber que esse jovem encantador e com um nome famoso trouxe a morte e o sofrimento a Preneste.

Quando Sila seguiu para Veios, a Norte de Roma, deixou Ofela com duas legiões a realizar este trabalho. E de facto realizaram um belo trabalho. Afortunadamente, a região era rica em tufo vulcânico, uma curiosa pedra, tão fácil de cortar como queijo, mas que ganhava a consistência de uma rocha depois de exposta ao ar. com este tipo de pedra, a muralha foi crescendo a um ritmo impressionante e o fosso entre a muralha e Preneste ia aumentando de dia para dia. A terra retirada para fazer o fosso foi usada depois para construir uma segunda muralha e, na vasta terra de ninguém que existia entre estas obras dos sitiantes, não foi deixado de pé nenhum arbusto, árvore ou objecto suficientemente alto para servir de aríete. Nas montanhas por detrás da cidade, foram também deitadas abaixo todas as árvores que existiam entre as muralhas e os acampamentos dos homens que agora guardavam os caminhos de cabras e impediam os Prenestianos de proceder a qualquer missão exploratória.

Ofela revelou-se um capataz duro e persistente; tinha uma reputação a fazer com Sila e aquela era a sua oportunidade. Por isso, não permitiu que os seus homens tivessem pausas ou descanso: só paravam para se queixar das dores nas costas ou nos músculos. Além disso, aqueles homens também tinham uma reputação a fazer com Sila; uma das legiões era a que abandonara o jovem Mário em Sacriporto, e a outra pertencera a Cipião Asiágeno. A sua lealdade era suspeita, pelo que uma muralha tão bem construída e um fosso tão bem escavado serviriam para mostrar a Sila que eram homens valorosos. Para o trabalho, não tinham mais que as mãos e os utensílios de escavação dos legionários; mas havia dez mil pares de mãos e ferramentas mais do que suficientes, e os centuriões eram peritos em cercos e nas suas construções. Organizar tão monumental tarefa não levantou grandes problemas a Ofela, um romano típico no que tocava à eficiência e ao método.

Em dois meses, a muralha e o fosso estavam acabados. Tinha mais de doze quilômetros de comprimento e seccionavam a Via Prenestina e a Via Labicana em dois sítios, interrompendo dessa forma o trânsito nessas duas estradas e tornando-as inutilizáveis para lá de Túsculo e Bola. Os cavaleiros e senadores romanos cujas propriedades foram afectadas pelas fortificações não podiam fazer outra coisa senão esperar que o cerco acabasse — e amaldiçoaj o jovem Mário. Por outro lado, os pequenos proprietários da região exultaram ao verem os blocos de tufo; quando o cerco terminasse, a muralha viria abaixo e eles disporiam de um abastecimento inesgotável de material de construção para cercas, casas, celeiros e estábulos.

Em Norba, assistiu-se ao mesmo tipo de exercícios, ainda que Norba não exigisse obras tão monumentais. Mamerco fora enviado para as cercanias dessa cidade com uma legião de novos recrutas (mandados da região sabina por Marco Crasso) e lançara-se ao trabalho com a severa e discreta eficiência que o tinha ajudado, no passado, a enfrentar muitas situações perigosas.

Quanto a Sila, mal chegou a Veios, dividiu com Públio Servílio Vátia as cinco legiões de que dispunha. Vátia ficou com duas e marchou na direcção do litoral da Etrúria, ao passo que Sila e o velho Dolabela ficaram com as restantes três e subiram pela Via Cássia na direcção de Clúsio, mais para o interior. Estava-se no princípio de Maio e Sila sentia-se muito satisfeito com os progressos que tinha feito. Se Metelo Pio e a sua secção do exército (mais larga que as restantes) se portassem igualmente bem, Sila, no Outono, estaria numa excelente posição para ser o senhor de toda a Itália e de toda a Gália Italiana.

E como se estavam a portar Metelo Pio e as suas forças? Sila tinha ainda poucas notícias dos seus progressos no momento em que encetou a viagem para Clúsio, mas era enorme a sua fé no mais leal dos seus aderentes — para além de sentir uma viva curiosidade relativamente ao comportamento de Pompeu, o Grande. Deliberadamente, dera a Metelo Pio o maior dos exércitos. E também eram deliberadas as suas instruções para que Pompeu, o Grande, chefiasse cinco mil soldados de cavalaria, soldados de que não precisaria (e Sila sabia-o) para as suas manobras num terreno mais povoado e acidentado.

Metelo Pio marchara para a costa adriática com as suas duas próprias legiões (sob o comando do seu legado, Varrão Lúculo), seis legiões que haviam pertencido a Cipião, as três legiões que pertenciam a Pompeu e os cinco mil soldados de cavalaria que Sila dera a Pompeu.

Como seria de esperar, Varrão, o Sabino, seguia com Pompeu, sempre pronto a escutar e compreender (e também a passar para o papel) os pensamentos de Pompeu.

— Tenho de melhorar as minhas relações com Crasso — disse-lhe Pompeu enquanto atravessavam o Piceno. — Metelo Pio e Varrão Lúculo são fáceis de lidar — bom, e de qualquer modo eu gosto bastante deles. Mas Crasso é um brutamontes intratável. Muito mais difícil. Preciso dele do meu lado.

Montado num pônei, Varrão fitou durante um longo momento Pompeu, que montava o seu imponente Cavalo Público.

— Não há dúvida que aprendeste alguma coisa durante o Inverno que passámos com Sila! — disse ele, francamente surpreendido. — Nunca pensei ouvir-te dizer que querias manter boas relações com alguém! Exceptuando Sila, naturalmente.

— Sim, aprendi — admitiu Pompeu com um ar magnânimo. Os seus belos dentes brancos brilharam num sorriso de pura afeição. — Ora, Varrão! Eu sei que estou prestes a tornar-me o mais valioso assistente de Sila, mas sou capaz de compreender que Sila precisa de outros homens para além de mim! Ainda que tu possas ter razão — acrescentou ele com um ar pensativo. — Esta é a primeira vez na minha vida que estou em contacto com um comandante-chefe que não o meu pai. Penso que o meu pai era um grande, um enorme soldado. Mas só dava importância às suas terras. Sila é diferente.

— Em que aspecto? — perguntou Varrão, curioso.

— Ele não dá nenhuma importância à maior parte das coisas — incluindo todos nós, aqueles a quem ele chama seus legados, ou colegas, ou seja lá o que for que ele considere adequado nesta ou naquela altura. Não sei mesmo se dá alguma importância a Roma. Se há alguma coisa a que ele dê importância, essa coisa não é material. Dinheiro, terras — ou mesmo a sua auctoritas ou a qualidade da sua reputação pública. Não, essas coisas não são importantes para Sila.

— Então, o que é que é importante? — perguntou Varrão, fascinado com aquele fenômeno: um Pompeu que conseguia ver para além de si mesmo.

— Talvez apenas a sua dignitas — respondeu Pompeu. Varrão matutou no assunto. Teria Pompeu razão? Dignitas!

A mais intangível de todos as possessões de um nobre romano: dignitas. A auctoritas era a sua capacidade de influência política, a sua capacidade de influenciar a opinião pública e todas as instituições públicas, desde o Senado aos sacerdotes, passando pelo TeSouro.

Dignitas era outra coisa. Era algo de intensamente pessoal e muito privado, e, no entanto, estendia-se a todos os parâmetros da vida pública de um homem. Tão difícil de definir! Era por isso, evidentemente, que existia uma palavra para a designar. Dignitas era... a capacidade que um homem tinha de se elevar acima dos outros... a sua capacidade de glória? Dignitas eqüivalia àquilo que um homem era, enquanto homem e enquanto líder da sua sociedade. Era o total do seu orgulho, da sua integridade, da sua palavra, da sua inteligência, dos seus feitos, das suas capacidades, do seu conhecimento, da sua posição, do seu valor como homem... A dignitas sobrevivia à morte de um homem, era a única forma que ele tinha de triunfar sobre a morte. Sim, essa era a melhor definição. Dignitas era o triunfo de um homem sobre a extinção do seu ser físico. E, vendo as coisas sob esse prisma, Varrão achava a afirmação de Pompeu rigorosamente correcta. Se alguma coisa tinha importância para Sila, era a dignitas. Tinha dito que bateria Mitridates. Tinha dito que regressaria a Itália e que se vingaria. Tinha dito que devolveria à República a sua antiga e tradicional forma. E, se dizia, fazia. Se não fizesse o que prometia, a sua dignitas sairia diminuída; no banimento e no opróbrio oficial não podia haver dignitas. Por isso tinha de ir buscar a si mesmo a energia necessária para cumprir o que dizia. E, cumprida a sua palavra, ficaria satisfeito. Até lá, Sila não podia descansar. Não descansava.

— Ao dizeres isso — comentou Varrão — concedeste a Sila o maior dos louvores.

— Ha? — fez Pompeu, com a surpresa estampada nos olhos muito azuis.

— Quero dizer — acrescentou Varrão pacientemente — que me demonstraste que Sila não pode perder. Sila está a lutar por uma coisa que Carbão nunca conseguiria entender.

— Ah, sim, claro! Sem dúvida! — disse Pompeu, todo contente. Estavam já muito perto do rio Ésis, de novo no coração do feudo de Pompeu. A impetuosidade juvenil do ano anterior não tinha desaparecido, mas fora integrada por uma ampla superestrutura de novas e estimulantes experiências; por outras palavras, Pompeu tinha crescido. Na realidade, todos os dias crescia um pouco mais. A oferta do comando da cavalaria levara-o a interessar-se por um tipo de actividade militar a que nunca tinha dedicado muita atenção. Isso era tipicamente romano. Os Romanos acreditavam nas potencialidades da infantaria, considerando de certo modo a cavalaria como uma força mais decorativa que útil, uma maçada, mais do que um trunfo. Varrão estava convencido de que os Romanos só utilizavam a cavalaria porque os seus inimigos o faziam.

Noutras eras, nos tempos dos reis de Roma e nos primeiros anos da República, o soldado a cavalo formara a elite militar, era a ponta de lança do exército romano. Assim nascera e crescera a classe dos cavaleiros — a Ordo Equester, como Caio Graco lhe chamara. Mas os cavalos tornaram-se extremamente dispendiosos — demasiado caros para que muitos homens os pudessem comprar particularmente. Deste facto nasceu o costume do Cavalo Público, a montada do cavaleiro comprada e sustentada pelo Estado.

Agora, muito tempo passado, o soldado de cavalaria romano tinha deixado de existir, excepto em termos sociais e econômicos. O cavaleiro — homem de negócios ou proprietário de terras, membro da Primeira Classe das Centúrias — era a relíquia romana do soldado montado. E o Estado continuava a comprar cavalos para os seus mil e oitocentos cavaleiros séniores.

Habituado à exploração dos tortuosos meandros do pensamento, Varrão verificou que se desviara, e muito, da sua reflexão inicial, e a ela regressou resolutamente. Pompeu e o seu interesse pela cavalaria. Cavalaria que já não era romana. Sila trouxera aqueles soldados da Grécia e, portanto, não havia entre eles Gauleses; se os tivesse recrutado em Itália, a esmagadora maioria seria gaulesa, homens vindos das planícies do Pó, na Gália Italiana, ou do grande vale do Ródano, na Gália Transalpina. Daí que os homens de Sila fossem, na sua maior parte, Trácios, para além de algumas centenas de Galácios. Bons combatentes e tão leais quanto podiam ser homens que não eram romanos. No exército romano, tinham um estatuto de aliados, e podiam ser recompensados, no final de uma dura campanha, com a cidadania romana ou um bocado de terra.

Desde Teano Sidicino que Pompeu andava numa grande azáfama com a sua cavalaria, mantendo-se em estreito contacto com aqueles homens de calças e jaquetas de couro que brandiam longas danças e se defendiam com pequenos escudos redondos; as suas espadas também eram longas, mais adequadas ao combate a partir da sela do que as espadas curtas da infantaria. Pelo menos Pompeu tinha capacidade para pensar, disse Varrão para si mesmo enquanto avançavam na direcção do Ésis. Pompeu estava a descobrir as qualidades dos soldados-cavaleiros e a ponderar as possibilidades. Estava a planear. A ver se haveria alguma maneira de melhorar a sua actuação ou os equipamentos. Os soldados-cavaleiros de Pompeu distribuíam-se por regimentos de quinhentos homens, consistindo cada regimento de dez esquadrões de cinqüenta homens, e eram chefiados pelos seus próprios oficiais; o único romano que os comandava era o general, neste caso Pompeu. Um Pompeu extremamente envolvido e fascinado — e decidido a comandá-los com um talento e uma competência invulgares para um romano. Se Varrão, em privado, pensava que uma parte do interesse de Pompeu decorria do muito sangue gaulês que lhe corria nas veias, era suficientemente sensato para não revelar a Pompeu essa sua teoria.

Era extraordinário! Ali estavam eles, o Ésis à vista, e o velho acampamento de Pompeu à sua frente. Voltavam ao ponto de partida, como se os muitos quilômetros que tinham percorrido se resumissem a nada. Uma jornada para ver um velho sem dentes nem cabelo, e que se caracterizara apenas por algumas batalhas menores e por muitas horas de marcha.

— Gostava de saber — disse Varrão, cismando — se os homens alguma vez perguntam a si mesmos o que é que andam a fazer nestas guerras.

Pompeu pestanejou, virou a cabeça para Varrão.

— Mas que questão mais estranha! Porque é que eles haviam de se perguntar o que quer que seja? Têm tudo feito! Eu faço-lhes tudo! Tudo o que têm a fazer é cumprir as ordens. — E fez uma careta para aquela hipótese revolucionária segundo a qual algum dos seus veteranos seria capaz de pensar.

Mas Varrão não estava com disposição de desistir.

— Ora, ora, Magno! Eles são homens — iguais a nós nesse aspecto, se não noutros. E, sendo homens, pensam. Ainda que muitos deles não saibam ler nem escrever. Uma coisa é nunca questionar as ordens, outra coisa é não perguntar o que andam para aqui a fazer.

— Não entendo isso — retorquiu Pompeu, que de facto não entendia.

— Magno, esse fenômeno chama-se curiosidade humana! Faz parte da natureza de um homem interrogar-se sobre as razões seja do que for! Mesmo que esse homem seja um soldado raso picentino que nunca foi a Roma e que não compreende a diferença entre Roma e Itália. Aquilo que fizemos até agora foi ir a Teano e voltar. Ali está o nosso velho acampamento. Não achas que alguns deles são capazes de estar a perguntar para si mesmos o que é que foram a fazer a Teano e porque é que regressámos menos de um ano depois?

— Ah, mas eles sabem a resposta! — retorquiu Pompeu, impaciente. — Além disso, são veteranos. Se eles recebessem mil sestércios por cada quilômetro que fizeram nos últimos dez anos, podiam viver no Palatino e dedicar-se à criação de peixes decorativos. Até podiam mijar na fonte e cagar na horta do cozinheiro!

Saíste-me cá um excêntrico, Varrão! Nunca deixas de me surpreender — as coisas em que tu matutas! — Pompeu incitou o seu cavalo e desatou a descer a galope a última colina. De repente, soltou uma gargalhada tremenda, agitou as mãos num aceno; as suas palavras chegaram claramente aos ouvidos de Varrão. — O último a chegar é um ovo podre!

Ah, que criança!, pensou Varrão. Que estou eu a fazer aqui? Qual a minha utilidade? Tudo isto é um jogo, uma imensa e magnificente aventura.

Talvez fosse isso mesmo, mas nessa noite, a altas horas, Metelo Pio convocou uma reunião com os seus três legados e Varrão, como sempre, acompanhou Pompeu. A atmosfera era de grande excitação: tinham chegado notícias.

— Carbão não está longe daqui — disse o Bacorinho. Fez uma pausa para pensar no que tinha dito e rectificou: — bom, pelo menos Carrinas está, e Censorino juntar-se-á a ele muito em breve. Aparentemente, Carbão pensou que oito legiões bastariam para deter os nossos progressos. Depois, deu-se conta da grandeza do nosso exército e enviou Censorino com mais quatro legiões. Vão chegar ao Ésis primeiro que nós e será aí que teremos de enfrentá-los.

— E Carbão? Onde é que ele está? — perguntou Marco Crasso.

— Continua em Arimino. Imagino que está à espera para ver o que Sila tenciona fazer.

— E de que modo o jovem Mário se comportará — disse Pompeu.

— É verdade — concordou o Bacorinho, erguendo as sobrancelhas. — No entanto, não nos compete a nós preocuparmo-nos com isso. Aquilo que nos compete fazer é vermo-nos livres de Carbão. Pompeu, este é o teu território. Achas que devemos levar Carrinas a atravessar o rio ou que devemos mantê-lo na outra margem?

— Isso na realidade não tem importância — disse Pompeu, calmamente. — As margens são praticamente iguais. Há imenso espaço para manobrar as tropas, alguma cobertura proporcionada pelas árvores, um bom terreno plano para uma batalha que envolva todos os homens, caso possamos provocá-la. — com um ar angélico, acrescentou docemente: — Tu é que tens de tomar uma decisão, Pio. Eu sou apenas o teu legado.

— bom, como o nosso objectivo é chegar a Arimino, faz mais sentido que conduzamos os nossos homens para a outra margem — disse Metelo Pio, muito pouco perturbado. — Se conseguirmos obrigar Carrinas a uma retirada, não teremos de atravessar o Ésis para o perseguir. Segundo as nossas informações, dispomos de uma grande vantagem no que toca à cavalaria. Pompeu, se achas que o terreno e o rio o permitem, gostaria que fosses o primeiro a atravessar o rio e que mantivesses os teus soldados montados entre o inimigo e a nossa infantaria. Depois, conduzirei a infantaria para a outra margem, tu retirarás a cavalaria do caminho, e atacaremos. Não há muito que possamos fazer em termos de subterfúgios. Será uma batalha normal. No entanto, se conseguires dar a volta com a cavalaria de modo a colocá-la atrás do inimigo, depois de eu o ter atacado pela frente, então Carrinas e Censorino ficarão entalados e sofrerão uma derrota tremenda.

Ninguém levantou objecções a esta estratégia, que era imprecisa o suficiente para que se ficasse com a ideia de que Metelo Pio tinha algum talento como general. Quando foi sugerido que Varrão Lúculo comandasse as três legiões de veteranos de Pompeu, dando assim inteira liberdade a este para dirigir a sua cavalaria, Pompeu concordou sem hesitar.

— Eu comandarei o centro — disse Metelo Pio em conclusão. — Crasso comandará a ala direita e Varrão Lúculo a esquerda.

Como o dia estava bom e o terreno não estava demasiado molhado, as coisas correram praticamente como Metelo Pio planeara. Pompeu atravessou o rio facilmente e os combates de infantaria que se seguiram demonstraram a grande vantagem que as tropas veteranas representavam para um general quando soava a hora da batalha. Embora as legiões de Cipião fossem bastante inexperientes, Varrão Lúculo e Crasso conduziram soberbamente as cinco legiões de veteranos e a sua confiança acabou por contagiar os homens de Cipião. Carrinas e Censorino não tinham tropas veteranas e foram derrotados sem que Metelo Pio tivesse de se esforçar muito. O resultado final teria sido uma derrota fragorosa se Pompeu tivesse conseguido cair sobre a retaguarda do inimigo. Porém, ao dar a volta ao campo para o fazer, deparou com um novo factor. Carbão tinha chegado com mais seis legiões — e três mil cavalos — para impedir o avanço de Pompeu.

Carrinas e Censorino conseguiram retirar sem perderem mais do que três ou quatro mil homens, após o que acamparam perto de Carbão, a pouco mais de um quilômetro do campo de batalha. O avanço de Metelo Pio e dos seus legados deteve-se aí.

— Vamos voltar para o nosso primeiro campo, a sul do rio — disse Metelo Pio, tomando rapidamente uma decisão. — Prefiro que eles pensem que estamos com receio de avançar e também creio que nos convém manter uma boa distância entre as nossas tropas e as deles.

Apesar do resultado algo decepcionante da batalha, o moral entre os soldados era elevado; mais moralizados ainda estavam os chefes, que se reuniram ao crepúsculo na tenda do general. A mesa estava cheia de mapas, desordenadamente espalhados, o que indicava que o Bacorinho tinha estado a examiná-los atentamente.

— Muito bem — disse ele, erguendo-se atrás da mesa. — Quero que examinem isto e que vejam qual será o melhor processo para derrotarmos Carbão.

Juntaram-se todos à volta da mesa. Varrão Lúculo segurava num castiçal de cinco velas por sobre os mapas, feitos em pele de ovelha e cuidadosamente desenhados a tinta. O mapa representava a costa adriática entre Ancona e Ravena e também a região interior que se entendia para lá da crista dos Apeninos.

— Nós estamos aqui — disse o Bacorinho, apontando para um local a sul do Ésis. — Para norte, o próximo grande rio é o Metauro, um rio de travessia muito traiçoeira. Toda esta terra pertence ao Ager Gallicus — aqui — e aqui também — Arimino fica na parte norte do Ager Gallicus — alguns rios, mas nenhum, segundo este mapa, apresenta uma travessia difícil. Até que chegamos a este aqui — entre Arimino e Ravena, estão a ver? É o Rubicão, a nossa fronteira natural com a Gália Italiana. — O Bacorinho, metodicamente, procurava abordar todos os aspectos do problema. — Percebe-se perfeitamente porque é que Carbão se instalou em Arimino. Pode subir pela Via Emília na direcção da Gália Italiana, sem grandes problemas; pode seguir pela estrada do Sápis até à Via Cássia, em Arécio, e ameaçar Roma a partir do vale do alto Tibre; pode atingir a Via Flamínia e Roma dessa maneira; pode marchar junto à costa do Adriático até Piceno e, se necessário, deslocar-se até à Campânia através da Apúlia e do Sâmnio.

— Nesse caso, vamos ter de desalojá-lo — disse Crasso, constatando o óbvio. — É possível de se fazer.

— Mas há um obstáculo — disse Metelo Pio, franzindo o sobrolho. — Parece que Carbão já não está inteiramente confinado a Arimino. Carbão tomou a inteligente decisão de enviar oito legiões, sob o comando de Caio Norbano, para Fórum Cornélios, na Via Emília — estão a ver? Não muito longe de Favência. Ora bem, Fórum Cornélios não dista muito de Arimino — talvez uns sessenta quilômetros.

— O que significa que ele poderia fazer regressar essas oito legiões a Arimino num dia só, em marcha rápida, se se visse obrigado a isso — disse Pompeu.

— Precisamente. Ou conduzi-las para Arécio ou Placência em dois ou três dias — disse Varrão Lúculo, que nunca perdia de vista a situação geral. — Temos Carbão instalado do outro lado do Ésis com Carrinas e Censorino — e dezoito legiões, mais três mil soldados de cavalaria. Há mais oito legiões em Fórum Cornélios, sob o comando de Norbano, e outras quatro, acompanhadas por vários milhares de soldados de cavalaria, defendendo Arimino.

— Preciso de uma estratégia global antes de avançar um passo que seja — disse Metelo Pio, olhando para os seus legados.

— É fácil — disse Crasso, fazendo lentamente as suas contas. — Temos de impedir que Carbão se junte a Norbano, temos de separar Carbão de Carrinas e Censorino, temos de separar Carrinas de Censorino. Temos de impedi-los a todos de se juntarem novamente. Aquilo que Sila disse. Fragmentação.

— Um de nós — eu, provavelmente — terá de conduzir cinco legiões para lá de Arimino. Depois, terá de isolar Norbano e de tentar ocupar a Gália Italiana — disse Metelo Pio, sempre de testa franzida. — Não será fácil.

— É fácil! — exclamou Pompeu, impaciente. — Repara — aqui é Ancona, o segundo melhor porto do Adriático. Nesta altura do ano, Ancona está cheia de navios à espera de partirem para o Oriente e para o comércio de Verão. Se levares as tuas cinco legiões para Ancona, Pio, poderás embarcá-las nesses navios e dirigi-las para Ravena. A viagem é fácil, com terra à vista e sem tempestades.

Não são mais do que cem milhas — poderás fazer essa viagem em oito ou nove dias, mesmo que tenhas de remar. Se apanhares vento de feição — o que não é improvável nesta altura do ano — conseguirás fazer a viagem em quatro dias. — A sua mão estava fincada no mapa. — Uma marcha rápida de Ravena até Favência, e impedirás que Norbano volte a Arimino.

— Tudo isso terá de ser feito em segredo — disse o Bacorinho, com um brilho nos olhos. — Sim, sim, Pompeu, isto vai resultar! A eles nunca lhes passará pela cabeça que haverá tropas nossas a caminho de Ancona — porque têm todos os seus batedores a norte do Ésis! Pompeu, Crasso, vocês vão ter de ficar aqui, fingindo que têm mais cinco legiões, até que Varrão Lúculo e eu possamos deixar Ancona. Depois, avançam. Tentam alcançar Carrinas, fazendo com que a coisa pareça séria. Se possível, mantenham-no parado — e a Censorino também. Carbão estará com eles de início, mas quando souber que eu desembarquei em Ravena, marchará na direcção de Norbano a fim de o ajudar. É claro que ele pode optar por ficar nesta região e enviar Carrinas ou Censorino para ajudar Norbano. Mas não creio. Carbão precisa de uma localização central.

— Ah, isto vai ser muito divertido! — exclamou Pompeu. Tal era o contentamento na tenda de comando que ninguém achou esta afirmação exagerada; nem mesmo Marco Terêncio Varrão, tranqüilamente sentado num canto a tirar notas.

A estratégia resultou. Enquanto Metelo Pio e Varrão Lúculo conduziam rapidamente as suas cinco legiões para Ancona, as outras seis, mais a cavalaria, fingiam que eram onze. Depois, Pompeu e Crasso abandonaram o acampamento e atravessaram o Ésis sem oposição; pelos vistos, Carbão decidira atraí-los a Arimino, planeando, sem dúvida, uma batalha decisiva num terreno que conhecia melhor.

Pompeu ia à frente, com a sua cavalaria, sempre no encalço da retaguarda de Carbão, constituída por cavalaria chefiada por Censorino; com uma regularidade satisfatória, lançava escaramuças contra essa retaguarda. Esta táctica irritava Censorino, que nunca fora um homem paciente; perto da cidade de Sena Gálica, deu meia-volta e fez-se ao combate, cavalaria contra cavalaria. Pompeu venceu; estava a desenvolver um verdadeiro talento para comandante de cavalaria. Censorino, ferido no seu orgulho, retirou então para Sena Gálica com a infantaria e a cavalaria — mas não por muito tempo. Pompeu tomou de assalto as modestas fortificações da cidade.

Censorino tomou então uma decisão sensata. Sacrificou o cavalo, saiu de Sena Gálica pelas portas traseiras da fortaleza e, com oito legiões de infantaria, seguiu para a Via Flamínia.

Por esta altura, Carbão já sabia da indesejável presença do Bacorinho em Favência; Norbano, agora, não podia voltar para Arimino. E assim, Carbão marchou sobre Favência, deixando Carrinas segui-lo com mais oito legiões; em relação a Censorino, decidiu que ele teria de valer-se a si mesmo.

Porém, a meio da marcha, Bruto Damasipo veio ao seu encontro, com a notícia de que Sila tinha aniquilado o exército do jovem Mário em Sacriporto. Sila subia agora a Via Cássia, na direcção da fronteira da Gália Italiana, em Arécio, apesar de não ter mais do que três legiões. Nesse momento, Carbão alterou os seus planos. Só havia uma coisa a fazer. Norbano teria de defender a Gália Italiana sozinho, contra as arremetidas de Metelo Pio; Carbão e os seus legados tinham de deter Sila em Arécio, o que, em princípio, não seria difícil, dado que Sila dispunha apenas de três legiões.

Pompeu e Crasso souberam da vitória de Sila sobre o jovem Mário, mais ou menos na mesma altura em que Carbão soube, e saudaram-na com grande júbilo. Viraram então para oeste, a fim de perseguirem Carrinas e Censorino, cada um dos quais levava oito legiões para Carbão, que havia de esperá-los em Arécio. O ritmo da marcha era imparável, a perseguição determinada. Aquela não seria uma campanha adequada para a cavalaria, decidiu Pompeu quando se dirigia, com Crasso, para a Via Flamínia; de facto, iam entrar nas montanhas. Assim, mandou regressar ao Ésis a sua cavalaria e retomou o comando dos veteranos do pai. Pompeu apercebeu-se entretanto de que Crasso parecia gostar que fosse ele a comandar, desde que aquilo que Pompeu sugerisse não andasse longe do que aquela cabeça dura pensava.

Uma vez mais, foi a presença dos veteranos que fez a diferença; Pompeu e Crasso alcançaram Censorino num diverticulum da Via Flamínia, entre Fulgino e Espoleto, e nem sequer precisaram de travar batalha. Exaustas, esfomeadas e cheias de medo, as tropas de Censorino desintegraram-se. Censorino conseguiu reter apenas três das suas oito legiões e estes tão preciosos soldados tinham de ser salvos. com eles abandonou a estrada e cortou pelos campos na direcção de Arécio e de Carbão. Os homens das restantes cinco legiões tinham ficado de tal modo dispersos que nenhum deles conseguiu, posteriormente, integrar-se em novas unidades.

Três dias depois, Pompeu e Crasso detiveram Caninas à saída de Espoleto, uma grande e bem fortificada cidade. Desta feita, registou-se uma batalha, mas as tropas de Caninas portaram-se tão mal que ele se viu obrigado a fechar-se na cidade com três das suas oito legiões; das cinco legiões que perdeu, três fugiram para Túder, onde foram capturadas; as duas restantes desapareceram e nunca mais foram encontradas.

— Que maravilha! — exclamou Pompeu, exultante, em conversa com Varrão. — Já sei como é que mevou ver livre daquele pateta do Crasso!

Para se ver livre de Crasso, Pompeu sugeriu-lhe que levasse as suas três legiões para Túder a fim de cercar a cidade, deixando Pompeu sozinho a conduzir o cerco de Espoleto. Crasso dirigiu-se para Túder, todo contente por poder conduzir a sua própria campanha. E Pompeu montou o cerco a Espoleto com o mais elevado dos morais, sabendo que toda a glória iria para quem cercasse Espoleto, pois era o general Caninas em pessoa quem lá estava dentro. Infortunadamente, as coisas não lhe correram de feição! Astuto e ousado, Carrinas, aproveitando uma tempestade nocturna, escapuliu-se de Espoleto e pôs-se a caminho de Arécio, com três das suas legiões intactas.

Pompeu assumiu como um desaire pessoal a fuga de Carrinas; fascinado, Varrão ficou a saber como eram os ataques de cólera de Pompeu: chorava, mordia os nós dos dedos, anancava os cabelos, batia com os calcanhares e com os punhos no chão, partia chávenas e pratos, destruía cadeiras e outras peças de mobiliário. Até que, tal como a tempestade nocturna que tão benéfica fora a Caninas, a raiva de Pompeu amansou.

— Vamos ter com Sila! Vamos para Clúsio! — anunciou. — Despacha-te, Varrão! Não fiques para aí especado!

Abanando a cabeça, Varrão tratou de despachar-se.

Foi no princípio de Junho que Pompeu e os seus veteranos chegaram ao acampamento de Sila, nas margens do rio Clânis, encontrando o comandante-chefe algo irritado e desanimado. As coisas não lhe tinham corrido muito bem quando Carbão descera de Arécio na direcção de Clúsio, pois Carbão quase vencera uma batalha que resultara de um encontro casual e que, portanto, não poderia ter sido planeada. Só a presença de espírito de Sila, que decidiu parar com as hostilidades e retirar para um campo bem fortificado, tinha salvo o dia.

— Mas isso não interessa — disse Sila, agora muito mais animado. — Tu agora estás comigo, Pompeu, e Crasso não anda longe. O facto de os ter aos dois comigo vai alterar tudo. Carbão está acabado.

— E como é que as coisas correram com Metelo Pio? — perguntou Pompeu, pouco satisfeito por Sila ter mencionado Crasso.

— Metelo Pio assegurou a conquista da Gália Italiana. Obrigou Norbano a travar batalha nas cercanias de Favência, ao passo que Varrão Lúculo, que teve de fazer um longo caminho até Placência, encarregou-se de Lúcio Quíncio e Públio Albinovano perto de Fidência. Tudo correu muitíssimo bem. O inimigo, ou dispersou, ou morreu.

— E Norbano? Que lhe aconteceu?

Sila encolheu os ombros; nunca se preocupava muito com o que acontecia aos seus inimigos militares depois de os ter derrotado e Norbano nunca fora seu inimigo pessoal.

— Imagino que foi para Arimino — retorquiu Sila, e virou-lhe as costas para dar instruções acerca do acampamento de Pompeu.

Crasso chegaria de Túder no dia seguinte, à frente de três legiões de homens furiosos; de facto, corria nas suas hostes o boato de que, após a queda de Túder, Crasso encontrara uma fortuna em ouro e ficara com ela, sem sequer pensar em dar algum aos seus soldados.

— Isso é verdade? — perguntou Sila, franzindo muito os sulcos que lhe percorriam o rosto e apertando tanto os lábios que estes quase não se viam.

Mas não havia nada que pudesse alterar a expressão bovina de Crasso. Limitou-se a abrir muito os olhos pachorrentos: parecia surpreendido, mas não preocupado.

— Não — respondeu.

— Tens a certeza?

— Não havia nada para arrebanhar em Túder, a não ser uma quantas velhas, e nenhuma delas me agradou.

Sila atirou-lhe um olhar desconfiado, perguntando-se se Crasso não estaria a ser intencionalmente insolente; se assim era, não o poderia saber.

— Tu és tão astuto como sinuoso, Marco Crasso — disse Sila, por fim. —vou levar em conta a família de onde vens e a posição que ocupas e por isso opto por acreditar em ti. Mas toma bem atenção! Se descubro que, à custa do Estado, tiras proveito do meu trabalho e dos meus objectivos, nunca mais te quero ver à minha frente!

— Perfeitamente — retorquiu Crasso, aquiescendo, e logo se foi embora.

Públio Servílio Vátia tinha ouvido a conversa. Sorria agora para Sila.

— Não se pode gostar deste tipo — disse.

— Há poucos homens de quem eu goste — disse Sila, pondo o braço à volta dos ombros de Vátia. — És um homem com sorte, não és, Vátia?

— Porquê?

— Porque eu gosto de ti. Tu és um bom camarada — nunca excedes a tua autoridade e nunca discutes comigo. Fazes tudo o que te peço. — Sila bocejou tanto que os seus olhos se alagaram. — Estou seco. Um copo de vinho, é disso que preciso!

Vátia, um homem elegante e atraente de tez mate, não pertencia aos patrícios Servílios; no entanto, a sua família era antiga o suficiente para passar nos mais rigorosos dos exames sociais; por outro lado, a sua mãe era uma das mais augustas Cecílias Metelas, filha de Metelo Macedónico — o que significava que Vátia era parente, mais ou menos próximo, das pessoas mais importantes de Roma. Era inclusivamente parente de Sila, pelo casamento. Sentia-se por isso perfeitamente à vontade com aquele braço pesado à volta dos ombros e foi assim que os dois se encaminharam para a tenda de comando; Sila já tinha bebido muito naquele dia e precisava de se equilibrar.

— Que vamos fazer com esta gente quando Roma for minha? — perguntou Sila enquanto Vátia lhe enchia uma taça com o seu vinho especial; Vátia serviu-se de uma garrafa diferente e tratou de misturar água bastante no vinho.

— Que gente, Sila? É a Crasso que te referes?

— Sim, é a Crasso que me refiro. E Pompeu Magno. — Os lábios de Sila abriram-se e franziram-se, deixando à mostra as gengivas. — Repara só, Vátia! Magno! com a idade que ele tem!

Vátia sorriu, sentou-se numa cadeira de desarmar.

— bom, se ele é demasiado jovem, eu sou demasiado velho. Eu devia ter sido cônsul há seis anos. Agora, suponho eu, nunca mais serei.

— Se eu vencer, serás cônsul. Não duvides. Eu sou um péssimo inimigo, Vátia, mas também sei ser um óptimo amigo.

— Eu sei, Lúcio Cornélio — disse Vátia, com um ar terno.

— Que farei com eles? — perguntou de novo Sila.

— com Pompeu, posso perceber a tua dificuldade. Não consigo imaginá-lo a regressar à inércia depois de terminada esta guerra. E não sei como conseguirás impedi-lo de aspirar a cargos para que não tem a idade necessária.

Sila riu-se.

— Mas não é cargos que ele quer! O que ele quer é a glória militar! E acho quevou tentar dar-lha. Ele pode ser-me muito útil. — Estendeu a taça para que Vátia a enchesse de novo, e acrescentou: — E Crasso? Que hei-de fazer com Crasso?

— Ah, esse sabe tratar de si mesmo — disse Vátia, servindo o vinho. — Vai ganhar muito dinheiro. É uma coisa que eu percebo. Quando o pai e o irmão, o Lúcio, morreram, Crasso deveria ter herdado mais do que uma viúva rica. A fortuna dos Licínios Crassos chegava aos trezentos talentos. Mas foi confiscada. A mão de Cina! Não lhe escapava nada. E o pobre Crasso não tinha nenhuma influência política, se comparado com Catulo.

Sila riu-se com desdém.

— Sim, pobre Crasso! Ele roubou o ouro de Túder, sei muito bem que roubou.

— Provavelmente — disse Vátia, com a maior calma. — Mas agora não podes persegui-lo. Precisas dele! E ele sabe disso. É um risco irremediável.

A chegada das tropas de Pompeu e Crasso foi levada imediatamente ao conhecimento de Carbão. Perante os seus legados, mostrou uma expressão calma e não referiu uma única vez a hipótese de dar uma nova localização às suas tropas. Continuava a ter muito mais homens que Sila, e isso implicava que Sila não saísse do seu acampamento para provocar outra batalha. E enquanto Carbão esperava que os acontecimentos se consolidassem e lhe ditassem o que havia de fazer, chegaram notícias da Gália Italiana: Norbano e os seus legados Quíncio e Albinovano tinham sido derrotados, Metelo Pio e Varrão Lúculo haviam conquistado a Gália Italiana. Poucos dias depois, chegaram mais notícias da Gália Italiana: notícias mais deprimentes que as primeiras, ainda que talvez não tão importantes. O legado lucaniano Públio Albinovano tinha atraído Norbano e os restantes membros do seu comando a uma conferência em Arimino e assassinado todos eles à excepção de Norbano; depois, Albinovano entregara Arimino a Metelo Pio em troca de um perdão. Tendo expresso o desejo de viver no exílio algures no Oriente, Norbano pudera embarcar num navio. Só um legado escapara: Lúcio Quíncio, que se encontrava sob a custódia de Varrão Lúculo aquando dos assassínios.

O desalento abateu-se sobre o acampamento de Carbão; homens mais dados à acção, como Censorino, começaram a ficar inquietos. Mas Sila continuava a não provocar a batalha. Desesperado, Carbão resolveu dar trabalho a Censorino: teria de levar oito legiões para Preneste, a fim de acabar com o cerco montado ao jovem Mário. Dez dias depois de ter partido, Censorino regressava. Segundo ele, era impossível acabar com o cerco: as fortificações que Ofela construíra eram, pura e simplesmente, inexpugnáveis. Carbão enviou uma segunda expedição a Preneste, mas a única coisa que conseguiu foi perder dois mil bons soldados em conseqüência da emboscada que Sila lhes montou. Finalmente, enviou uma terceira força, sob o comando de Bruto Damasipo, com a missão de encontrar uma estrada que atravessasse as montanhas e de entrar em Preneste através dos caminhos de cabras situados nas traseiras da fortaleza. Esta expedição também falhou; Bruto Damasipo olhou, perdeu todas as esperanças e regressou a Clúsio.

Nem mesmo as notícias de que o chefe samnita, Caio Pápio Mutilo, paralisado da cintura para baixo, reunira quarenta mil homens em Esérnia com a intenção de libertar Preneste, tiveram o poder de animar Carbão; a sua depressão agravava-se de dia para dia. A sua disposição nem sequer melhorou quando Mutilo lhe mandou uma carta, dizendo que a sua força seria afinal constituída por setenta mil homens, pois a Lucânia e Marco Lampónio iam-lhe enviar vinte mil homens e Cápua e Tibério Guta iam pôr à sua disposição mais dez mil.

Havia apenas um homem em que Carbão realmente confiava: o velho Marco Júnio Bruto, seu proquestor. Assim, no início de Julho, foi ter com o velho Bruto, mas continuava incapaz de tomar uma decisão que lhe permitisse ter alguma paz de espírito.

— Se Albinovano foi capaz de assassinar homens com quem tinha comido e rido durante meses a fio, como é que poderei confiar nos meus legados? — perguntou.

Caminhavam pela Via Principalis, uma das duas principais estradas dentro do campo, e suficientemente larga para lhes permitir manter uma conversa privada.

Pestanejando ligeiramente por causa do sol, o velho Bruto, com os seus lábios azulados, não lhe deu uma resposta rápida, capaz de o tranqüilizar; em vez disso, matutou no problema e, no momento de responder, disse, com um ar muito grave:

— Não creio que possas confiar, Cneu Papírio. Carbão soprou por entre os dentes, estremeceu.

— Por todos os deuses, Marco, que hei-de fazer?

— Por ora, nada. Mas creio que deves abandonar esta triste história antes que o assassínio se transforme numa alternativa desejável para um ou mais dos teus” legados.

— Abandonar.

— Sim, abandonar — insistiu o velho Bruto.

— Eles não mo vão permitir! — exclamou Carbão, tremendo agora.

— É provável que não. Mas eles não precisam de saber.vou começar a fazer os preparativos. Entretanto, deveras dar a ideia de que a única coisa que te preocupa é o destino do exército samnita. — O velho Bruto levou a sua mão ao braço do general. — Não desesperes. Tudo vai ficar bem no fim.

Em meados de Julho, o velho Bruto tinha concluído os seus preparativos. A meio da noite, sem fazerem o mínimo ruído, ele e Carbão escapuliram-se do acampamento, sem bagagem nem criados ou animais, à excepção de uma mula carregada de lingotes de ouro inocentemente disfarçados com uma camada de chumbo, e uma bolsa cheia de denários para as despesas da viagem. com um ar de mercadores exaustos, seguiram para a costa etrusca e, em Telamão, embarcaram para África. Ninguém os molestou, ninguém manifestou o mínimo interesse pela mula ou pelos sacos que carregava. A deusa Fortuna, pensou Carbão no momento em que o navio se fez ao mar, estava do seu lado!

Devido à sua paralisia, Caio Pápio Mutilo não podia conduzir o exército formado por samnitas, lucanianos e capuanos. No entanto, viajou com a força samnita desde Esérnia até Teano Sidicino, onde a totalidade do exército ocupou os velhos acampamentos de Sila e Cipião. Depois, Mutilo regressou à sua casa de Teano.

A sua riqueza não parara de crescer desde a Guerra Italiana; agora, possuía villas em meia dúzia de localidades do Sâmnio e da Campânia e era mais rico do que nunca: uma compensação irônica — pensava ele, por vezes — para a perda de todos os movimentos e sensações abaixo da cintura.

Esérnia e Boviano eram as suas cidades favoritas, mas a mulher, Bastia, preferia viver em Teano, onde nascera. O facto de Mutilo não levantar objecções a esta separação quase constante devia-se exclusivamente ao seu estado físico; ele sabia que, como marido, pouco presumo tinha e, por isso, se a sua mulher, compreensivelmente, precisasse de algum consolo físico, seria melhor que o procurasse sem que ele estivesse presente. Mas, até então, não tinha ouvido qualquer boato sobre um eventual comportamento escandaloso da esposa; daí que pudesse concluir que Bastia, se não era, voluntariamente, tão continente como ele, pelo menos era de uma discrição exemplar. Não admira que, ao chegar à sua casa em Teano, Mutilo sentisse uma vontade muito grande de estar com Bastia.

— Não esperava ver-te — disse ela, perfeitamente à vontade.

— Não havia razão para tal, já que não te escrevi — disse ele num tom simpático. — Pareces estar bem.

— Sinto-me bem.

— Tendo em conta as minhas limitações, posso dizer que também estou bem de saúde — prosseguiu ele, dando-se conta de que o encontro entre os dois se estava a revelar mais constrangedor do que esperara; Bastia mostrava-se distante, demasiado cortês.

— Que te trouxe a Teano? — perguntou ela.

— Tenho um exército nos arredores da cidade. Vamos combater contra Sila. Ou pelo menos vai o meu exército. Eu ficarei aqui, contigo.

— Até quando? — perguntou ela, educadamente.

— Até que tudo isto tenha um desfecho.

— Estou a ver — retorquiu ela, recostando-se na cadeira. Era uma mulher magnífica, na casa dos trinta, uma mulher que o fitava sem um átomo do desejo ardente que ele costumava encontrar nos olhos dela quando se tinham casado — no tempo em que ele fora um homem por inteiro. — Que posso fazer para que fiques mais confortável, marido? Há alguma coisa especial de que precises?

— Eu tenho o meu criado. Ele sabe o que fazer. Dispondo de um modo mais artístico as faixas de dispendiosa

gaze que envolviam o seu corpo esplêndido, Bastia continuou a fitá-lo com aqueles olhos enormes e negros, tão grandes e tão negros que lhe haviam valido um epíteto homérico: A Dama dos Olhos de Camomila.

— És só tu para o jantar? — perguntou ela.

— Não, vêm também os meus três legados. Algum problema?

— Não, de modo nenhum. Vais ficar satisfeito com a ementa, Caio Pápio.

E tinha razões para ficar. Bastia era uma excelente dona de casa. Conhecia dois dos três homens que tinham vindo jantar com o comandante: Pôncio Telésino e Marco Lampónio. Telésino era um samnita de famílias muito antigas que, na altura da Guerra Italiana, era ainda demasiado jovem para poder ser um dos grandes chefes militares do Sâmnio. Agora com trinta e dois anos, era um homem bem-parecido e suficientemente atrevido para fitar a sua anfitriã com um apetite de que só ela poderia dar-se conta. O bom senso ordenou-lhe que ignorasse esse olhar; Telésino era um samnita e isso significava que odiava os Romanos mais do que poderia admirar alguma mulher.

Marco Lampónio era o chefe máximo da Lucânia e fora um inimigo portentoso de Roma durante a Guerra Italiana. Na casa dos cinqüenta, mostrava-se ainda pronto para a guerra, e desejoso de que o sangue romano corresse. Nunca mudam, estes italianos não romanos, pensou Bastia; destruir Roma significa mais para eles do que a vida, ou a prosperidade, ou a paz. Mais ainda do que os filhos.

O único dos três que Bastia nunca vira era campaniano como ela, o dirigente máximo de Cápua. Chamava-se Tibério Guta, e era um indivíduo gordo, abrutalhado, egoísta e tão ansioso por matar romanos como os outros.

Bastia abandonou o triclinium logo que o marido lhe deu autorização para se retirar, ardendo de raiva, uma raiva que ocultara cuidadosamente. Não era justo! As coisas estavam a correr tão bem, tão bem que até parecia que a Guerra Italiana nunca tinha acontecido, e afinal agora começava tudo de novo. Quisera gritar que nada iria mudar, que Roma iria reduzi-los a pó, a eles e às suas fortunas, uma vez mais; mas controlara-se o suficiente para não abrir a boca. Mesmo que eles se sentissem inclinados a acreditar nela, o patriotismo e o orgulho impedi-los-iam de arrepiar caminho.

A raiva consumia-a, a raiva negava-se a desaparecer. Caminhava de um lado para o outro da sua sala de estar, sufocando o desejo que tinha de bater naqueles homens, naqueles estúpidos homens. Especialmente no marido, dirigente da sua nação, aquele em que todos os Samnitas viam o chefe e o guia. E para onde os guiava ele? Para a guerra contra Roma. Para a ruína. Preocupar-se-ia ele com o facto de que, quando caísse, todos cairiam com ele? Claro que não! Ele era um homem por inteiro, com toda a imbecilidade nacionalista e vingativa de um homem. Um homem por inteiro e, no entanto, apenas metade de um homem. E a metade que lhe restava de nada lhe servia a ela, nem para a procriação nem para o prazer.

Bastia decidiu que tinha de conter-se: era demais aquela raiva que a abrasava. Tinha mordido os lábios, sentia uma gotinha de sangue nos lábios. Ardia, Bastia ardia.

Havia um escravo... Um daqueles gregos da Samotrácia com o cabelo tão negro que, à luz, ganhava um brilho azul, e fartas sobrancelhas que se uniam por sobre a cana do nariz, e olhos da cor de um lago da montanha... E uma pele tão suave, clamando por beijos... Bastia bateu palmas.

Quando o chefe dos criados apareceu, ela olhou para ele com o queixo espetado e os lábios tão cheios e vermelhos como morangos.

— Os senhores que estão na sala de jantar têm tudo o que precisam?

— Sim, domina.

— Óptimo. Continua a atendê-los. E manda-me Hipólito. Preciso dele para uma coisa — disse ela.

A expressão do chefe dos criados permaneceu inalterável; como o seu senhor, ao contrário da senhora, não manifestava qualquer interesse em viver em Teano Sidicino, Bastia era mais importante para ele do que Mutilo. Era preciso que Bastia se sentisse feliz.

— Mandar-lhe-ei Hipólito imediatamente, domina — disse ele, fazendo tantas vénias quantas pôde até deixar os aposentos dela.

No tricünium, Bastia fora esquecida desde que se retirara.

— Carbão garante-me que tem Sila atado de pés e mãos em Clúsio — disse Mutilo aos seus legados.

— Acreditas nisso? — perguntou Lampónio. Mutilo franziu o sobrolho.

— Não tenho nenhuma razão para pensar o contrário, mas, como é evidente, não posso ter a certeza absoluta. Tens alguma razão para achar o contrário?

— Nenhuma, excepto que Carbão é um romano.

— Muito bem! Apoiado! — exclamou Pôncio Telésino.

— Os ventos da fortuna mudam — disse Tibério Guta de Cápua, com a boca e o queixo brilhando da gordura de um capão assado com recheio de castanha. — Por ora, lutamos por Carbão. Depois da derrota de Sila, podemos virar-nos contra Carbão e todos os romanos e dar cabo deles todos.

— Absolutamente — concordou Mutilo, sorrindo.

— Devíamos marchar sobre Preneste imediatamente — disse Lampónio.

— Devíamos ir já amanhã — observou logo Telésino. Mutilo abanou a cabeça.

— Não. Deixamos os homens descansar aqui mais cinco dias. Eles tiveram uma marcha muito dura e ainda têm de percorrer toda a Via Latina. É preciso que estejam frescos quando avistarem o cerco de Ofela.

Tomadas estas decisões — e dada a perspectiva de um relativo descanso nos cinco dias seguintes — o jantar terminou. Muito mais cedo do que o chefe dos criados previra. Ocupado na cozinha, o chefe dos criados não deu pelo fim da reunião. E não estava na sala de jantar quando Mutilo chamou o seu criado germânico, a fim de o levar para o quarto da senhora.

Bastia estava nua, ajoelhada sobre as almofadas do seu divã, as pernas afastadas, e, entre as suas sedosas e brilhantes coxas, estava enterrada uma cabeça com um cabelo muito negro, asa de corvo; o corpo compacto e musculado que pertencia à cabeça estava estirado em cima do divã, num abandono tão completo que parecia pertencer a um gato dormindo um sono profundo. Os dois corpos só se tocavam no sítio onde a cabeça estava enterrada; os braços de Bastia estavam estendidos para trás, as mãos apertando as almofadas, e os braços dele caíam junto ao seu corpo.

A porta fora aberta silenciosamente; o escravo germânico parou, com o senhor ao colo, como se fossem dois noivos a entrar na sua nova casa, e aguardou pelas próximas instruções, com toda a resistência entorpecida que caracterizava esses homens, para sempre longe de casa, sem qualquer conhecimento de latim ou grego, permanentemente atormentados pela dor da perda e sempre incapazes de a exprimirem.

Os olhos do marido e da esposa encontraram-se. Nos dela, surgiu um clarão de triunfo, de júbilo; nos dele, a perplexidade, sem o paliativo amortecedor do choque. Os olhos de Mutilo pareciam não lhe obedecer; e assim percorreram aqueles seios gloriosos e a suavidade do ventre e assim se inundaram de lágrimas.

O jovem grego, totalmente absorvido pelo que estava a fazer, apercebeu-se de súbito de uma mudança, de uma tensão, na sua senhora, que nada tinha a ver com ele; por um momento, ergueu a cabeça. Como duas serpentes lançando-se sobre a vítima, as mãos dela aferraram-se ao cabelo negro e fizeram com que a cabeça voltasse à posição inicial.

— Não pares! — gritou ela. Incapaz de desviar os olhos, Mutilo reparou que o tecido, ingurgitado de sangue, dos mamilos dela, começava a inchar; as coxas moviam-se enquanto a cabeça cavalgava em cima delas. E então, diante do marido, Bastia gritou e gemeu todo o prazer do seu poderoso orgasmo. Aquele momento pareceu a Mutilo durar uma eternidade.

Satisfeita, Bastia largou a cabeça e esbofeteou o jovem grego, que caiu para o lado, dando então pela presença de Mutilo; o seu terror era tão grande que parecia não respirar.

— Não podes fazer nada com aquilo! — disse Bastia, apontando para a erecção do escravo, agora quase inexistente. — Mas não há nenhum problema com a tua língua, Mutilo!

— Tens razão, não há — disse ele, agora que todas as lágrimas tinham já secado. — A minha língua ainda é capaz de saborear e sentir. Mas não tem nenhum apetite por carne podre.

O escravo germânico levou-o então para o seu quarto e, com todo o cuidado, deitou-o na cama. Depois de ter cumprido todos os seus deveres, deixou Caio Pápio Mutilo sozinho. Nenhum comentário, nenhum sinal de compreensão, simpatia, nada. O que era afinal a maior das graças, pensou Mutilo enquanto enterrava o rosto na almofada. Parecia-lhe estar ainda a ver o corpo da mulher incendiado pelo desejo, os seios, os mamilos inchados, e aquela cabeça — aquela cabeça! Aquela cabeça... Abaixo da cintura, nem sinal de vida, nenhum sinal de vida nunca. Mas o resto do seu corpo conhecia tormentos e sonhos e ansiava por tudo o que o amor representava. Por tudo!

— Eu não estou morto! — disse ele para a almofada, sentindo as lágrimas regressar. — Não estou morto! Mas, por todos os deuses, quem me dera estar morto!

No final de Junho, Sila deixou Clúsio. Consigo levou as suas cinco legiões mais três de Cipião; deixou Pompeu a comandar, uma decisão que não deixara deslumbrados os seus outros legados. Mas, como Sila era Sila e ninguém discutia abertamente as suas decisões, tiveram de aceitar Pompeu.

— Limpa isto tudo — disse Sila a Pompeu. — Eles são mais que nós, mas estão desmoralizados. No entanto, quando descobrirem que eu me fui embora para não voltar, é certo e sabido que provocarão a batalha. Toma atenção a Damasipo, é o mais competente de todos. Crasso enfrentará Marco Censorino e Torquato terá de se haver com Carrinas.

— E Carbão? — perguntou Pompeu.

— Carbão é uma nulidade. São os seus legados quem comanda. Mas não percas tempo, Pompeu! Tenho outro trabalho para ti.

Não surpreendeu ninguém que Sila tivesse levado consigo os seus principais legados; nem Vátia nem o velho Dolabela teriam agüentado a humilhação de pedir instruções a um jovem de 23 anos. A partida de Sila surgiu na seqüência das notícias sobre os Samnitas. Precisava de se abeirar urgentemente da região de Preneste. Teria de tomar as necessárias disposições antes que os samnitas se aproximassem demasiado da cidade.

Tendo mandado esquadrinhar cuidadosamente toda essa região próxima de Roma, Sila sabia exactamente o que tencionava fazer. A Via Prenestina e a Via Labicana encontravam-se agora impraticáveis devido à muralha e ao fosso construídos por Ofela, mas a Via Latina e a Via Ápia continuavam abertas e ligavam ainda Roma e o Norte com a Campânia e o Sul. Se queria ganhar a guerra, era vital que todos os acessos militares entre Roma e o Sul pertencessem a Sila; a Etrúria estava exausta, mas o Sâmnio e a Lucânia continuavam a ter muitos recursos, tanto humanos como alimentares.

A região entre Roma e a Campânia não era fácil. Junto à costa, os campos davam lugar aos Pauis Pontinos, que a Via Ápia, vinda da Campânia, atravessava, numa linha recta infestada de mosquitos, até que, perto de Roma, subia pelos flancos dos montes Albanos. Estes montes eram na realidade formidáveis montanhas nascidas de um velho vulcão que fendera e elevara a planície aluvial latina inicialmente existente. O monte Albano propriamente dito, centro dessa antiga actividade vulcânica, erguia-se entre a Via Ápia e uma outra estrada, mais interior, a Via Latina. A sul dos montes Albanos, uma outra cordilheira continuava a separar a Via Ápia da Via Latina, impedindo assim qualquer conexão entre essas duas grandes estradas desde a Campânia até um local muito próximo de Roma. Para a marcha militar, a Via Latina era sempre preferida à Via Ápia; os homens ficavam doentes quando marchavam pela Via Ápia.

Era portanto preferível que Sila se instalasse perto da Via Latina — mas num sítio de onde, se necessário, pudesse transferir rapidamente as suas forças para a Via Ápia. As duas estradas atravessavam os flancos exteriores dos montes Albanos, mas a Via Latina fazia-o através de um desfiladeiro que cavava uma brecha na escarpa oriental da cordilheira e que permitia que a estrada seguisse na direcção de Roma no espaço mais plano situado entre aquela escarpa e o próprio monte Albano. No local onde o desfiladeiro se abria na direcção do monte Albano, uma pequena estrada virava para oeste, dando a volta a este pico central, e ia juntar-se à Via Ápia, muito perto do lago sagrado de Nemi e do seu templo.

Foi nesse desfiladeiro que Sila se instalou, tratando logo de construir, em cada extremidade do mesmo, gigantescas muralhas fortificadas, de novo com blocos de tufo; desta forma, fechava a estrada secundária que conduzia ao lago Nemi e à Via Ápia. Ocupava agora o único sítio da Via Ápia onde todos os progressos, fosse em que direcção fosse, podiam ser detidos. Concluídas em pouco tempo as suas fortificações, colocou uma série de observadores na Via Ápia, a fim de se certificar de que nenhum inimigo tentava flanqueá-lo usando essa estrada, viesse ele de Roma ou da Campânia. Todas as suas provisões eram encaminhadas ao longo da estrada secundária que conduzia à Via Ápia.

Na altura em que as hostes samnito-lucaniano-capuanas chegaram a Sacriporto, toda a gente chamava já a esse exército ”os Samnitas”, apesar da sua natureza heteróclita (reforçada ainda mais por soldados das legiões dispersas por Pompeu e Crasso que tinham decidido ingressar numa força que, para além de forte, tinha bons comandantes. Em Sacriporto, os samnitas optaram pela Via Labicana, mas logo descobriram que Ofela se encontrava protegido por uma segunda linha de fortificações, de onde não poderia ser desalojado. Brilhando nas alturas com uma mirídade de cores, Preneste parecia um local tão longínquo como o Jardim das Hespérides. Pôncio Telésino, Marco Lampónio e Tibério Guta inspeccionaram cuidadosamente as muralhas de Ofela, mas não encontraram nenhum ponto fraco; por outro lado, era impossível realizar uma marcha através dos campos com setenta mil homens sem um sítio concreto para onde ir. Reuniu então um conselho de guerra, do qual resultou uma mudança de estratégia; a única maneira de forçar Ofela a abandonar o seu abrigo era atacar Roma. Assim, o exército samnita seguiria pela Via Latina a caminho de Roma.

Regressaram então a Sacriporto e meteram pela Via Latina, na direcção de Roma. Mas depressa descobriram que Sila, protegido por enormes muralhas, controlava por completo a estrada. A fortaleza de Sila parecia, apesar de tudo, mais frágil que a de Ofela; daí que as hostes samnitas tivessem atacado. Atacado e falhado. Atacaram uma vez mais. Falharam uma vez mais. Do alto das suas muralhas, Sila troçava daquelas investidas, com tanto prazer como o que Ofela sentira.

Depois, surgiram notícias ao mesmo tempo animadoras e desagradáveis; os homens que tinham ficado em CMsio haviam lançado uma batalha contra Pompeu. A notícia triste era que tinham sofrido uma derrota tremenda; no entanto, os sobreviventes, cerca de vinte mil homens, marchavam agora para Sul, sob o comando de Censorino, Caninas e Bruto Damasipo. Carbão tinha desaparecido, mas a guerra, jurava Bruto Damasipo na sua carta a Pôncio Telésino, continuaria. Se a posição de Sila fosse atacada de ambos os lados ao mesmo tempo, ele acabaria por cair. Ele tinha de cair!

— Disparates! — disse Sila a Pompeu, a quem chamara para uma conferência no desfiladeiro logo que fora informado da vitória de Pompeu em Clúsio. — Podem pôr o monte Pélio em cima do monte Ossa que não conseguirão desalojar-me. Esta construção é inexpugnável, é inatacável.

— Se estás tão confiante, para que precisas de mim? — perguntou o jovem, dissipado já o orgulho que sentira por ter sido convocado.

A campanha em Clúsio fora curta, implacável, decisiva; muitos dos soldados inimigos tinham morrido, muitos tinham sido feitos prisioneiros, e aqueles que tinham conseguido escapar distinguiam-se pela qualidade dos homens que haviam comandado a sua retirada; entre os homens que se tinham rendido não havia nenhum legado sénior, o que constituía uma grande decepção. A deserção de Carbão só chegara ao conhecimento de Pompeu depois de a batalha estar terminada. Foi com lágrimas nos olhos que tribunos, centuriões e soldados contaram a história aos homens de Pompeu. Uma terrível traição.

Logo a seguir à batalha, chegou a notícia da convocatória de Sila, que Pompeu recebeu com profundo deleite. Segundo as instruções de Sila, Pompeu teria de levar consigo seis legiões e dois mil soldados de cavalaria; que Varrão deveria acompanhá-lo, era evidente, ao passo que Crasso e Torquato teriam de permanecer em Clúsio. Mas que necessidade tinha Sila de mais tropas num campo que já estava a rebentar pelas costuras? De facto, o exército de Pompeu fora conduzido para um campo nas margens do lago Nemi, e portanto adjacente à Via Ápia!

— Ah, não, eu não preciso de ti aqui — disse Sila, apoiando-se no parapeito de uma torre de observação e perscrutando em vão na direcção de Roma; a sua visão tinha-se deteriorado muito desde que adoecera na Grécia, embora lhe desagradasse reconhecer isso. — Estou cada vez mais perto, Pompeu! Cada vez mais perto!

Pompeu, que normalmente não era um homem retraído, deu por si incapaz de fazer a pergunta que o perseguia: que tencionava Sila fazer quando a guerra acabasse? Como poderia manter a sua autoridade, como conseguiria proteger-se de futuras represálias? Não podia manter o seu exército eternamente: no momento em que este se desfizesse, Sila ficaria à mercê de todos os que tivessem a força e a influência suficientes para o chamar a prestar contas. E alguns desses homens poderiam muito bem ser aqueles que, no momento presente, se apresentavam como seus fiéis adeptos, aqueles que diziam ser capazes de o acompanhar até à morte. Quem sabia o que homens como Vátia e o velho Dolabela realmente pensavam? Ambos tinham idade para ser cônsules, ainda que as circunstâncias os tivessem impedido de o ser. Como poderia Sila defender-se? Os inimigos de um grande homem eram como a Hidra — por muitas cabeças que se conseguisse cortar, havia sempre mais cabeças, cada vez mais ferozes e com dentes mais afiados.

— Se não precisas de mim aqui, Sila, onde é que precisas de mim? — perguntou Pompeu, confuso.

— Estamos no princípio de Sextilis — disse Sila, virando-se e encaminhando-se para a longa escadaria.

Nada mais foi dito até chegarem ao caos controlado que se vivia dentro das muralhas, onde os homens andavam numa azáfama constante, transportando pesadas cargas de rochas, óleo para aquecer e deitar por cima dos que tentassem subir por escadas, projécteis para as balistas e catapultas que espreitavam já no alto das muralhas, bem como lanças, setas e escudos.

— Estamos no princípio de Sextilis? — disse Pompeu, retomando a conversa, mal deixaram para trás o grosso dos soldados e entraram na estrada secundária que conduzia ao lago Nemi.

— Assim é, assim é! — disse Sila, com um ar surpreendido, e logo desatou a rir por causa da expressão de Pompeu.

Se Sila se estava a rir, então também ele deveria rir-se: e foi isso que Pompeu fez. A meio da risada, repetiu:

— Sim, de facto estamos no princípio de Sextilis. Fazendo um esforço para se controlar, Sila decidiu que já se tinha divertido o suficiente. Seria melhor acabar com as dúvidas e confusões daquele futuro Alexandre.

— Tenho um trabalho especial para ti, Pompeu — disse ele bruscamente. — Os outros vão ter de saber, mas por ora ainda é cedo. Eu quero que tu estejas bem longe quando a tempestade de protestos rebentar — porque essa tempestade não há-de faltar! Sabes, o que eu quero que tu faças é algo que eu só deveria pedir a um homem que, pelo menos, já tivesse sido pretor.

Cada vez mais excitado, Pompeu parou, pôs a mão no braço de Sila e virou-se para ele; os seus olhos, de um azul radioso, fixavam os olhos azuis aquosos de Sila. Encontravam-se agora num vale muito belo, e o ruído das actividades do campo era amortecido pelas encostas do vale, abundantemente guarnecidas de silvas, roseiras e amoreiras-pretas.

— Nesse caso, Lúcio Cornélio, porque é que me escolheste? — perguntou Pompeu, intrigado. — Tens tantos legados nessas condições! Vátia, Ápio Cláudio, Dolabela... Até mesmo Mamerco e Crasso parecem mais apropriados... Porquê eu então?

— Não morras de curiosidade, Pompeu, que eu conto-te tudo! Mas primeiro, tenho de te dizer exactamente o que pretendo que faças.

— Sou todo ouvidos — disse Pompeu, exibindo uma calma soberba.

— Disse-te para trazeres seis legiões e dois mil soldados de cavalaria. É um exército respeitável. Vais levá-lo imediatamente para a Sicília e assegurar que a próxima colheita chegue às minhas mãos. Estamos em Sextilis, o que significa que as colheitas começarão muito em breve. A maior parte da frota cerealífera encontra-se ancorada em Putéolos. Centenas e centenas de navios vazios. Transportes prontos a ser usados, Pompeu! Amanhã seguirás pela Via Ápia na direcção de Putéolos, onde terás de chegar antes que a frota cerealífera parta. Terás o meu mandado e dinheiro suficiente para pagar o aluguer dos navios, além do que disporás de um império propretoriano. Conduz a tua cavalaria até Óstia, aí está ancorada uma frota mais pequena. Enviei já mensageiros aos portos de Tarracina e Âncio e disse a todos os pequenos proprietários de navios que se reunissem em Putéolos caso quisessem ser pagos por aquilo que, em circunstâncias normais, seria uma viagem inútil. Garanto-te que vais ter mais navios do que precisas.

Não sonhara ele em tempos com um encontro com um homem chamado Lúcio Cornélio Sila, tão próximo dos deuses como ele? E não se sentira a mais miserável das criaturas ao verificar que o divino Sila tinha tudo de um sátiro, e nada de um deus? Mas que importância tinha o aspecto de um homem, quando abrigava, nas suas duas mãos, um tão vasto armazém de sonhos? O velho Sila, bêbedo e cheio de cicatrizes, cujos olhos não conseguiam sequer ver Roma àquela distância, estava a oferecer-lhe o total comando de uma guerra! Uma guerra longe de todas as interferências, contra um inimigo que ficaria à sua inteira mercê... Ofegante, Pompeu ergueu a sua mão sardenta, os seus dedos curtos e ligeiramente arqueados e apertou a bela mão de Sila.

— Mas isso é maravilhoso, Lúcio Cornélio! Maravilhoso! Ah, podes contar comigo! Eu corro com Perperna Veientão e trago-te trigo que chegue para dez exércitos!

—vou precisar de mais trigo ainda — retorquiu Sila, libertando a sua mão; apesar da sua juventude e dos seus inegáveis atractivos, Pompeu não era de um tipo que agradasse fisicamente a Sila e este não gostava de tocar em homens ou mulheres que não o atraíssem fisicamente. — No final deste ano, Roma será minha. E se quero que Roma me receba de braços abertos, terei de garantir que ela não passe fome. O que significa que precisarei da colheita siciliana, da colheita sarda — e, se possível, da colheita africana. Portanto, logo que tenhas a Sicília nas tuas mãos, deveras partir para a Província de África e fazer o que te for possível, Não chegarás a tempo de apanhar as frotas de Útica e Hadrumeto — julgo que estarás ainda muitos meses na Sicília antes de poderes partir para África. Mas a África tem de estar subjugada antes que voltes para Itália. Segundo as notícias que tenho, Fábio Adriano foi queimado vivo no palácio do governador durante uma revolta em Útica, mas entretanto Cneu Domício Aenobarbo — que se escapuliu em Sacriporto! — dominou todas as revoltas e agora controla a África para o inimigo. Se estiveres na Sicília Ocidental, a distância de Lilibeu a Útica é curta. Tens de conseguir dominar toda a África. Mas a verdade é que não tens nada ar de quem pode vir a fracassar.

Pompeu tremia de excitação; ofegante, sorria.

— Eu não te vou desapontar, Lúcio Cornélio! Prometo que nunca te desapontarei!

— Acredito em ti, Pompeu — disse Sila, sentando-se num tronco. — Mas o que é que tu estás a fazer aqui? Preciso de vinho! — acrescentou, lambendo os lábios.

— Este sítio aqui é bom, ninguém nos vê, ninguém nos ouve — disse Pompeu, tentando sossegá-lo. — Espera um pouco, Lúcio Cornélio! Euvou buscar-te vinho! Deixa-te estar sentado que eu já venho!

Como aquele era um local cheio de sombra, Sila deixou-se ficar sentado, com um sorriso nos lábios, pensando nalguma piada secreta. Ah, que belo dia aquele!

Pompeu não demorou. Vinha a correr, mas respirava como se não tivesse corrido nada. Sila pegou no odre, esguichou vinho para dentro da boca com grande destreza, conseguindo engolir e inspirar ao mesmo tempo. Passou ainda algum tempo até se dar por satisfeito. Finalmente, exclamou:

— Ah, já me sinto melhor! Onde é que eu ia?

— Tu podes enganar algumas pessoas, Lúcio Cornélio, mas a mim não enganas. Tu sabes perfeitamente onde é que ias — disse Pompeu calmamente, sentando-se na relva em frente do tronco de Sila.

— Muito bem! Pompeu, tu és tão raro como uma pérola do oceano do tamanho de um ovo de pomba! E com toda a sinceridade te digo que estou muito contente por poder morrer muito antes de tu te transformares numa dor de cabeça para Roma — disse Sila, antes de pegar de novo no odre e recomeçar a beber.

— Eu nunca serei uma dor de cabeça para Roma — disse Pompeu, com um ar inocente. — Serei apenas o Primeiro Homem de Roma — e não chegarei lá com discursos pretensiosos no Fórum ou no Senado.

— Então como é que chegarás?

— Fazendo o que me mandas fazer. Derrotando os inimigos de Roma no campo de batalha.

— Essa não é nova, meu rapaz — disse Sila. — Foi exactamente assim que eu fiz. E Caio Mário fez o mesmo.

— Sim, mas eu nãovou precisar de lutar pelas minhas comissões — disse Pompeu. — Roma vai pôr-se de joelhos para me dar todas elas!

Sila podia ter interpretado esta observação como uma censura ou mesmo como uma crítica aberta e directa; mas ele já conhecia bem o seu Pompeu e compreendia que a maior parte do que o jovem dizia era fruto do seu egotismo, que Pompeu não fazia a mínima ideia de como era difícil transformar aquela afirmação numa realidade. Por isso, tudo o que Sila fez foi suspirar e dizer:

— Estritamente falando, não te posso dar nenhum tipo de império. Não sou cônsul e não tenho o Senado ou o Povo ao meu lado para promulgar as minhas leis. Terás muito simplesmente de acreditar que, mal regresses, te darei oficialmente o império de pretor.

— Não duvido disso.

— Mas será que duvidas de alguma coisa?

— Não duvido de nada que me diga respeito directamente. Eu posso influenciar os acontecimentos.

— Faço votos para que nunca mudes! — disse Sila, após o que se inclinou um pouco para a frente, apertando as mãos entre os joelhos. — Muito bem, Pompeu, acabaram os cumprimentos. Agora ouve-me com muita atenção. Tenho mais duas coisas para te dizer. A primeira diz respeito a Carbão.

— Estou a ouvir — disse Pompeu.

— Carbão embarcou em Telamão com o velho Bruto. É possível que tenha ido para a Hispânia ou mesmo para Massília. Mas, nesta altura do ano, é mais provável que tenha ido para a Sicília ou para África. Enquanto estiver em liberdade, será ele o cônsul. O cônsul eleito. Isto significa que ele pode passar por cima do império de um governador, requisitar os soldados ou a milícia do governador, convocar auxiliares, enfim, transformar-se num elemento fortemente perturbador enquanto o seu mandato não terminar. E ainda faltam alguns meses para que isso aconteça. Não te vou dizer exactamente o que projecto fazer depois de conquistar Roma, masvou dizer-te isto: é vital para os meus planos que Carbão esteja morto muito antes do final deste ano. E é vital que eu saiba que Carbão está morto! O teu trabalho consiste em localizar e matar Carbão. Da forma mais discreta possível — gostaria que a sua morte parecesse um acidente. Serás capaz de fazer isto?

— Sim — retorquiu Pompeu sem hesitar.

— Óptimo! Óptimo! — Sila remexeu as mãos e inspeccionou-as como se pertencessem a outra pessoa. — Agora vou entrar no último ponto, o qual tem a ver com a razão que me leva a entregar-te esta campanha, em vez de a entregar a um dos meus legados séniores — acrescentou, fitando atentamente o jovem. — Sabes porque é que tomei esta decisão? Chegas lá sem a minha ajuda?

Pompeu reflectiu, encolheu os ombros e disse:

— Tenho as minhas ideias, mas como não sei o que tencionas fazer em Roma, pode ser que esteja enganado. Quais são as tuas razões, afinal?

— Pompeu, tu és o único homem a quem posso confiar esta comissão! Se eu desse seis legiões e dois mil soldados de cavalaria a homens com a idade de Vátia ou Dolabela e os enviasse para a Sicília ou para África, o que é que os impedia de regressar a Roma com a intenção de me suplantar? Não teriam mais que esperar que eu me desfizesse do meu exército. A Sicília e a África não são campanhas que se façam em seis meses. Por isso, é muito provável que eu tenha de me desfazer do meu exército antes que tu regresses. Não posso manter um exército permanente em Itália. Não há dinheiro nem espaço para ele. E o Senado e o Povo de Roma nunca consentiriam. Portanto, tenho de manter sob vigilância todos os homens com idade e posição suficientes para serem meus rivais. É por isso que te mando a ti buscar as colheitas, a fim de que Roma, a ingrata Roma, não tenha de passar fome. Pompeu respirou fundo, pôs os braços à volta dos joelhos e fitou Sila nos olhos.

— E o que é que me vai impedir a mim de fazer isso, Lúcio Cornélio? Se sou capaz de dirigir uma campanha, decerto também sou capaz de pensar que te posso suplantar, não achas?

Esta questão não perturbou minimamente Sila; pelo contrário, desatou a rir.

— Ah, Pompeu, podes pensar o que quiseres! Mas Roma nunca te aceitaria! Nem por um segundo. Mas já era capaz de aceitar Vátia ou Dolabela. Eles têm a idade, as relações, os antepassados, a influência, os clientes. Mas um jovem de vinte e três anos, vindo do Piceno, que Roma nem sequer conhece? Nem pensar!

E assim deixaram o caso e seguiram cada um a sua direcção. Quando encontrou Varrão, Pompeu disse-lhe muito pouco: confiou-lhe apenas que teria de ir para a Sicília a fim de encaminhar as colheitas para Sila. Àquele observador infatigável da vida e da natureza, não falou de impérios, nem de homens mais velhos, nem da morte de Carbão, nem de muita outra coisa. A Sila, pediu apenas um favor: que o deixasse levar o seu cunhado, Caio Mémio, como legado-chefe. Mémio, vários anos mais velho que Pompeu, mas ainda sem idade para ser questor, tinha servido nas legiões de Sila.

— Fazes muito bem, Pompeu — disse-lhe Sila, com um sorriso. — É uma escolha excelente! Fica tudo em família!

O ataque simultâneo aos flancos norte e sul das fortificações de Sila veio a ocorrer dois dias depois de Pompeu ter partido com o seu exército para Putéolos e a frota cerealífera. Ondas homens avançaram contra os dois flancos da muralha, mas pouco se fizeram sentir. Sila continuava a dominar a Via Latina e aqueles que o atacavam ao norte não conseguiam encontrar maneira de se juntar aos que o atacavam pelo lado sul. Ao alvorecer da segunda manhã após o ataque, os observadores das torres norte e sul deixaram de ver inimigos; tinham pegado em armas e bagagens e desaparecido durante a noite. Ao longo do dia, chegaram ao acampamento de Sila notícias de que os vinte mil homens de Censorino, Caninas e Bruto Damasipo seguiam pela Via Ápia rumo à Campânia, ao passo que o exército samnita avançava pela Via Latina na mesma direcção.

— Deixá-los ir — disse Sila, indiferente. — Julgo que vão voltar — unidos. E quando voltarem, estarei à espera deles na Via Ápia.

Em fins de Sextilis, os samnitas e o que restava do exército de Carbão juntaram as suas forças em Fregelas, onde deixaram a Via Latina e rumaram a leste através da garganta de Melfa.

— Vão para Esérnia pensar — disse Sila, decidindo que não era preciso segui-los mais. — Basta colocar observadores na Via Latina, em Ferentino, e na Via Ápia, em Três Tabernas. Não preciso de mais informações. E, além disso, como não quero desperdiçar os meus batedores, nãovou mandá-los espiar samnitas em território samnita como é o caso de Esérnia.

O foco dos acontecimentos mudou subitamente para Preneste, onde o jovem Mário, inquieto e cada vez menos popular dentro da cidade, resolveu abrir as portas e aventurar-se pela terra de ninguém. Na ponta mais ocidental da cordilheira, onde ficava a linha divisória entre os leitos do Tolero e do Ânio, começou a construir uma torre, pois pensava que era nesse ponto que a muralha de Ofela era mais frágil. Não havia uma única árvore de pé nas cercanias e, por isso, os defensores de Preneste tiveram de recorrer a casas e templos, que lhes forneceram a madeira, os pregos, as cavilhas, os painéis e as telhas de que precisavam.

A obra mais perigosa consistia em construir um caminho razoável entre o sítio onde a torre estava a ser erigida e o fosso de Ofela (caminho ao longo do qual a torre seria empurrada), pois os operários ficariam à mercê dos homens que vigiavam nas muralhas de Ofela; o jovem Mário escolheu os soldados mais jovens e rápidos para executar esse trabalho e deu-lhes um telhado improvisado para se abrigarem. Fora do alcance do inimigo, uma outra equipa, usando pranchas de madeira demasiado pequenas para servirem para a construção da torre, fabricavam uma ponte que seria lançada sobre o fosso quando chegasse a hora de empurrar a torre contra a muralha de Ofela. Entretanto, a construção da torre ia avançando e avançou ainda mais rapidamente a partir do momento em que foi possível criar um abrigo no seu interior para os soldados-operários.

Num mês a torre estava pronta, tal como o caminho e a ponte que a torre, empurrada por um milhar de pares de mãos, teria de percorrer. Mas Ofela também estava pronto, pois tivera muito tempo para preparar as suas defesas. A ponte foi colocada sobre o fosso a altas horas da noite, a torre deslizou, rangendo e gemendo, por um caminho coberto por uma mistura de gordura de ovelha e azeite; ao alvorecer, já a torre, vinte pés mais alta que a muralha de Ofela, se encontrava na posição desejada. No fundo da torre, suspensa de cordas endurecidas com pez, encontrava-se um poderoso aríete, feito com a viga-mestra da cella da Deusa do templo de Fortuna Primigénia, a primeira filha de Júpiter e talismã da sorte da Itália.

No entanto, os blocos de tufo da muralha conservavam ainda toda a sua dureza e foi em vão que o aríete bateu e rugiu contra a construção de Ofela; os elásticos blocos de tufo sofreram algum abalo chegaram mesmo a tremer e a vibrar, mas agüentaram perfeitamente até ao momento em que as catapultas de Ofela, disparando projécteis incendiários, propagaram o fogo pela torre e puseram em fuga os atacantes que, vendo-se com os cabelos em chamas, deixaram imediatamente de arremessar lanças e setas. Ao cair da noite, a torre era uma ruína espalhada pelo fosso e aqueles que tinham tentado vencer a muralha ou estavam mortos ou estavam de novo em Preneste.

Durante o mês de Outubro, o jovem Mário tentou por várias vezes usar o fosso, dotado de uma ponte e cheio dos destroços da torre, como base; construiu um telhado entre a muralha de Ofela e o fosso para que os seus homens pudessem laborar em segurança; tentou primeiro abrir caminho debaixo da muralha, depois tentou abrir uma brecha na muralha e, por fim, tentou escalar a muralha. Mas nada disso resultou. O Inverno estava próximo e prometia uma vaga de frio tão intensa como a do ano anterior; Preneste sabia que tinha falta de alimentos e já amaldiçoava o dia em que abrira as suas portas ao filho de Caio Mário.

Afinal, o exército samnita não tinha ido para Esérnia. Os seus noventa mil homens tinham-se instalado nas escarpadas montanhas a sul do lago Fucino e passado quase dois meses a treinar e a procurar alimentos. Pôncio Telésino e Bruto Damasipo tinham-se encontrado com Mutilo em Teano, após o que apareceram com um plano para conquistar Roma de surpresa — e sem o conhecimento de Sila. É que, disse-lhes Mutilo, o jovem Mário teria mesmo de ser deixado à sua sorte. A única hipótese que eles tinham consistia em capturar Roma e levar Sila e Ofela a um cerco que se prolongaria por muito tempo e sobre o qual pairaria uma dúvida terrível — aqueles que viviam em Roma concordariam em juntar-se à causa samnita?

Havia um caminho através das montanhas, entre a garganta de Melfa e a Via Valéria. Este caminho — mais um caminho de cabras que uma estrada — atravessava as montanhas a partir de Atina, nas costas da garganta de Melfa (um deserto), seguia por Sora, junto ao rio Líris, Treba, Subláceo, para finalmente atingir a Via Valéria, a menos de um quilômetro a leste de Vária, numa aldeia chamada Mandela. Era um caminho sem pavimento ou qualquer outra obra, mas existia há séculos e era através dele que os muitos pastores daquelas montanhas conduziam os seus rebanhos todos os Verões. Era também esse o caminho seguido pelos rebanhos quando iam para os matadouros do Campo Lanatário e do vale Camenaro, adjacentes ao monte Aventino, em Roma.

Se Sila tivesse parado um momento para se lembrar dos tempos em que marchara de Fregelas até ao lago Fucino, para ajudar Caio Mário a derrotar Silão e os Marsos, ter-se-ia por certo lembrado desse caminho, pois utilizara-o entre Sora e Treba, e tê-lo-ia incluído nos seus planos. No entanto, Sila tinha-o usado apenas até Treba e nunca pensara se o caminho, depois dessa cidade, tinha ou não continuação. Estava assim eliminada a única hipótese que Sila tinha de fazer gorar a estratégia de Mutilo. Pensando que a única estrada aberta aos samnitas, caso planeassem atacar Roma, era a Via Ápia, Sila permaneceu no seu desfiladeiro da Via Latina e manteve-se vigilante, seguro de que não poderia ser surpreendido.

E enquanto Sila aguardava no desfiladeiro, os samnitas e os seus aliados avançavam pelo caminho das montanhas, sabendo que os habitantes daquelas regiões não gostavam de Roma e que os tentáculos da espionagem de Sila não chegariam a tão recônditas paragens. Passaram por Sora, Treba, Subláceo e chegaram, por fim, à Via Valéria, em Mandela. Estavam agora a apenas um dia de marcha de Roma: cerca de quarenta e cinco quilômetros de óptima estrada, desde a cidade de Tíbur, passando pelo vale do Ânio, e terminando no Campo Esquilino, sob a dupla muralha do Agger de Roma.

Mas aquele não era o melhor local para lançar um ataque a Roma. Por isso, quando o grande exército se abeirou da cidade, Pôncio Telésino e Bruto Damasipo meteram por um diverticulum que os levava à Via Nomentana, junto à Porta Colina. E aí, junto à Porta Colina, tinham, por assim dizer, à sua espera, o acampamento que Pompeu Estrabão construíra durante o cerco de Cina e Caio Mário a Roma. Ao cair da noite do último dia de Outubro, Pôncio Telésino, Bruto Damasipo, Marco Lampónio, Tibério Guta, Censorino e Carrinas estavam já confortavelmente escondidos no interior desse campo; na manhã seguinte, atacariam.

A notícia de que noventa mil homens ocupavam o antigo acampamento de Pompeu Estrabão nas imediações da Porta Colina foi comunicada a Sila no último dia de Outubro, já depois de a noite ter caído. Os mensageiros foram encontrá-lo ainda acordado, mas um tanto ébrio. Momentos depois, já os clarins soavam, os tambores rufavam, os homens erguiam-se estremunhados das suas enxergas e as tochas espalhavam a sua luz por todo o acampamento. Apresentando agora uma sobriedade glacial, Sila convocava os seus legados e fazia o ponto da situação.

— Eles conseguiram avançar sem que nós déssemos por isso — disse ele, com os lábios franzidos. — Como é que eles lá chegaram, não sei. O que sei é que os samnitas estão nas imediações da Porta Colina, prontos para atacar Roma. Marcharemos ao alvorecer. Temos trinta quilômetros à nossa frente e uma parte do terreno é acidentada. Contudo, temos de chegar à Porta Colina a tempo de combater. — Virou-se para o comandante da sua cavalaria, Octávio Balbo. — Quantos cavalos tens no lago Nemi, Balbo?

— Setecentos — retorquiu Balbo.

— Então avança já. Segue pela Via Ápia a toda a velocidade. Chegarás à Porta Colina algumas horas antes da infantaria. Terás, por isso, de agüentá-los. Não me interessa o que tens de fazer ou como tens de o fazer! O que me interessa é que vás imediatamente para lá e que os mantenhas ocupados até eu chegar.

Octávio Balbo não perdeu tempo com conversas. Num ápice, saiu e, com um berro, pediu um cavalo.

Ficaram com Sila quatro legados — Crasso, Vátia, Dolabela e Torquato. Chocados, mas com a serenidade necessária à reflexão.

— Temos oito legiões aqui e estas oito legiões vão ter de se agüentar — disse Sila. — A proporção será de dois para um. Tomarei agora as minhas disposições porque não deve haver tempo para conferências depois de chegarmos à Porta Colina.

Sila calou-se, atentou naqueles homens. Qual deles se portaria melhor? Qual deles teria a força e a frieza necessárias para chefiar as tropas numa batalha que se anunciava desesperada? Pelo direito, tal chefia devia ir para Vátia e Dolabela, mas seriam eles os melhores homens! Os olhos de Sila demoraram-se em Marco Licínio Crasso, enorme, com a solidez de uma rocha, sempre calmo — consumido pela avareza, um verdadeiro ladrão, um vigarista —, sem princípios, sem ética, sem moral nenhuma. E, no entanto, dos quatro, era ele quem mais tinha a perder se aquela guerra fosse perdida. Vátia e Dolabela sobreviveriam, tinham suficiente influência política para sobreviver. Torquato era um bom homem, mas não um verdadeiro chefe.

Sila decidiu-se.

— Avançarei com duas divisões de quatro legiões cada — disse ele, batendo com as mãos nas coxas. — Ficarei com o comando máximo, mas não comandarei nenhuma das divisões. Para as distinguir melhor, chamar-lhes-ei divisão esquerda e divisão direita, e, a menos que altere as minhas instruções depois de chegarmos, será assim que elas combaterão. Esquerda e direita no campo de batalha. Nada de centro. Não tenho homens que cheguem. Vátia, tu comandas a esquerda, com Dolabela como lugar-tenente. Crasso, tu comandas a direita, com Torquato como lugar-tenente.

Enquanto falava, Sila reparou em Dolabela, na raiva que ele estava a sentir; não valia a pena olhar para Marco Crasso: a sua expressão não denunciaria o que estava a sentir.

— É isto o que eu pretendo — disse ele asperamente, cuspindo as palavras porque estas se adaptavam mal a uma boca sem dentes. — Não tenho tempo para discussões. Todos compartilhamos a mesma sorte e as decisões finais estão tomadas. Agora façam o que lhes ordenei. Tudo o que espero de vocês é que combatam de acordo com as minhas instruções.

Dolabela deixou que os outros saíssem e virou-se para Sila.

— Queria falar contigo em privado, Lúcio Cornélio — disse.

— Se for rápido.

Embora fosse um Cornélio e parente afastado de Sila, Dolabela pertencia a um ramo dessa grande família sem o brilho dos Cipiões ou mesmo dos Silas; se tinha alguma coisa em comum com a maior parte dos Cornélios, era a fealdade — bochechas caídas, rosto enrugado, olhos demasiado juntos. Ambicioso e com reputação de depravado, ele e o seu primo direito, o jovem Dolabela, estavam decididos a obter uma maior proeminência para o seu ramo da família.

— Eu podia fazer gorar os teus planos, Sila — disse Dolabela. — Tudo o que tinha a fazer era tornar impossível a tua vitória amanhã. E imagino que compreendes que mudaria de partido logo que a oposição acreditasse que eu sempre estivera com eles.

— Despacha-te! — disse Sila no mais amistoso dos tons quando Dolabela parou para ver como reagira Sila àquele discurso.

— No entanto, desejo aceitar a tua decisão de promover Marco Crasso em meu detrimento. Mas com uma condição.

— Que condição?

— Que eu seja cônsul no próximo ano.

— Concedido! — exclamou Sila com a maior boa vontade. Dolabela pestanejou.

— Não estás zangado? — perguntou.

— Já nada me faz zangar, meu caro Dolabela — disse Sila, acompanhando o legado até à porta. — Neste momento, pouco me importa quem será o cônsul para o ano que vem. O que me importa neste momento é quem comanda no campo de batalha amanhã. E vejo que tinha razão em preferir Marco Crasso. Boa noite!

Os setecentos soldados de cavalaria comandados por Octávio Balbo chegaram às imediações do acampamento de Pompeu Estrabão a meio da manhã do primeiro dia de Novembro. Dadas as condições em que a cavalaria chegou àquele local, Balbo nada poderia fazer; os cavalos estavam arrasados, arquejantes, encharcados em suor, as cabeças pendentes, as bocas espumando; os cavaleiros tentavam confortá-los desapertando as cilhas e falando-lhes com carinho. Por este motivo, Balbo não parara demasiado perto do inimigo — deixá-los pensar que a sua força estava pronta para a acção! Assim, dispôs a cavalaria naquela que parecia ser uma formação de ataque e disse aos seus homens para brandirem as lanças e fingirem que gritavam mensagens para uma infantaria invisível colocada na sua retaguarda.

Era evidente que o ataque a Roma não tinha ainda começado. A Porta Colina erguia-se num majestático isolamento, com a ponte levadiça baixada e as suas duas imponentes portas de madeira de carvalho fechadas; as duas torres que a ladeavam estavam cheias de gente e as muralhas que dela partiam encontravam-se fortemente guarnecidas. A chegada de Balbo provocara uma súbita actividade no campo inimigo: viam-se já soldados saindo pela porta sueste e formando em linha para agüentarem uma investida da cavalaria de Balbo. Este não via sinal de cavalaria inimiga e fazia votos para que ela não aparecesse.

Cada cavaleiro levava um odre atado à traseira da sela, com água para o seu cavalo; enquanto a fila da frente continuava a fazer o seu teatro, dando a entender que o ataque estava iminente e que a infantaria vinha atrás dos cavalos, os outros soldados corriam a encher os odres nas várias fontes da vizinhança. A partir do momento em que houve a segurança necessária para saciar os animais, Octávio Balbo ordenou que isso fosse feito sem demora.

O teatro montado pela cavalaria teve tanto êxito que, quando Sila e a infantaria chegaram, quatro horas depois, ainda nada tinha acontecido. Os soldados de Sila estavam praticamente nas mesmas condições em que tinham chegado os cavalos; exaustos, as pernas tremiam-lhes por causa do esforço dispendido numa marcha veloz por trinta quilômetros de um terreno por vezes acidentado.

— bom, é evidente que não podemos atacar hoje — disse Vátia depois de Sila e os vários legados terem inspeccionado o terreno e verificado que tipo de batalha se ia travar ali.

— Porque não?

Vátia ficou estupefacto.

— Eles estão demasiado cansados para lutar!

— Pode ser que estejam cansados, mas vão lutar! — retorquiu Sila.

— Não podes fazer isso, Lúcio Cornélio! Vais perder!

— Posso, sim, e nãovou perder — ripostou Sila com um ar severo. — Repara bem, Vátia: nós temos de combater hoje! Esta guerra tem de acabar e é aqui e agora que ela tem de acabar. Os samnitas sabem que fizemos uma marcha particularmente dura, os samnitas sabem que o dia de hoje lhes é mais favorável do que qualquer outro dia. Se não desencadearmos a batalha hoje, que é o dia em que eles crêem ter mais possibilidades de vencer, quem sabe o que poderá acontecer amanhã? Há alguma coisa que impeça os samnitas de pegar nas suas bagagens e desaparecer a meio da noite, a fim de escolherem outro local e outro dia? Há alguma coisa que os impeça de desaparecer durante meses? Até à Primavera, ou mesmo até ao Verão? Até ao Outono? Não, Vátia, temos de combater hoje. Porque hoje os samnitas estão doidos por nos ver mortos neste campo de batalha ao pé da Porta Colina.

Enquanto os seus soldados descansavam, comiam e bebiam, Sila percorreu as suas hostes a pé, a fim de lhes comunicar, de uma forma mais pessoal do que o habitual discurso numa tribuna, que tinham de encontrar no fundo de si mesmos toda a força e resistência necessárias para aquele combate. Que se esperassem mais tempo, a guerra poderia prosseguir indefinidamente. Muitos daqueles soldados estavam com ele há anos e podia-se dizer, sem fugir à verdade, que o adoravam. Mas mesmo as legiões que tinham pertencido a Cipião Asiágeno já se consideravam fiéis servidoras de Sila. Ele já não era a maravilhosa e divina criatura que, muitas campanhas antes, recebera a Coroa de Erva nas cercanias de Nola, mas era o general deles — e não estavam muitos daqueles soldados nas mesmas condições físicas de Sila, grisalhos, enrugados e com as articulações já um pouco gastas? Por isso, quando Sila foi ter com eles e lhes pediu que lutassem o melhor que sabiam, eles limitaram-se, muito laconicamente, a erguer as mãos e a dizer-lhe que não se preocupasse, que os samnitas não tinham escapatória possível.

Apenas duas horas antes que a escuridão começasse a cair, travou-se a batalha. As três legiões que tinham pertencido a Cipião Asiágeno formavam a maior parte da divisão esquerda de Sila; por isso, embora não assumindo o comando da esquerda, Sila preferiu ficar nessa área de operações. Em vez de montar a habitual mula, optou por um cavalo branco e disso informou os seus homens. Dessa forma, poderiam reconhecê-lo, e poderiam vê-lo sempre que ele estivesse na sua zona da batalha. Escolhendo um outeiro que lhe proporcionava uma boa perspectiva do campo, Sila montou o seu cavalo branco e preparou-se para assistir ao desenrolar do conflito. Aqueles que estavam dentro da cidade, reparou, tinham aberto as portas da Porta Colina e erguido a ponte levadiça, embora ninguém tivesse saído para participar na batalha.

A divisão inimiga que se encontrava em frente da sua divisão esquerda era a mais poderosa, já que era inteiramente composta por samnitas e comandada por Pôncio Telésino; porém, era a menos numerosa das divisões inimigas — uma espécie de compensação, pensou Sila, tocando no seu ajudante com um pé, sinal de que este deveria conduzir em frente o seu cavalo. Como não era um bom cavaleiro, Sila não confiava naquela força da natureza e preferia que alguém a conduzisse. Sim, a sua esquerda estava a ceder, ele teria de ir até lá. Instalado num local mais baixo, Vátia provavelmente não conseguia ver que um dos seus piores problemas era a porta da cidade aberta; enquanto os samnitas avançavam, despedaçando inimigos com as suas espadas, alguns dos homens de Vátia, em vez de resistirem e combaterem, esgueiravam-se pela porta da cidade.

Um momento antes de se abeirar da confusão da batalha, Sila ouviu a mão do ajudante batendo no cachaço do cavalo e teve a presença de espírito suficiente para se inclinar para a frente e para se agarrar à crina do animal enquanto este corria a bom galope. Olhando de relance para trás, Sila percebeu o que se passara: dois lanceiros samnitas tinham arremessado as suas armas contra ele e, se não fosse a rapidez de reflexos do ajudante, poderiam tê-lo atingido. O ajudante, dando uma corrida, conseguiu agarrar-se à cauda do cavalo e fê-lo parar. Sila nada tinha sofrido.

Após um sorriso de agradecimento para o seu ajudante, Sila integrou-se no grosso da batalha, de espada na mão e um pequeno escudo de cavalaria para proteger o seu lado esquerdo. Encontrou alguns homens que conhecia e ordenou-lhes que fossem baixar a ponte levadiça — e Sila reparou, algo divertido, que esses homens cumpriram a sua ordem sem a mínima preocupação pelos que estavam por baixo quando a ponte caiu. A medida resultou; como não tinham para onde retirar, as legiões de Cipião agüentaram a carga, enquanto a única legião de veteranos presente dava início ao lento e. demorado trabalho de rechaçar o inimigo.

Sila não fazia a mínima ideia de como se estavam a portar Crasso e a ala direita; nem mesmo do outeiro os conseguira ver e, além disso, sabia que a ala esquerda era o seu ponto fraco. Se alguém podia enfrentar os samnitas, esse alguém era Crasso, que dispunha de quatro legiões de veteranos.

A noite caiu, mas a batalha continuou, à luz de milhares de archotes erguidos pelos homens que se encontravam nas muralhas de Roma. Ganhando um novo alento, a ala esquerda de Sila recobrou o ânimo. Ele próprio continuava em pleno campo de batalha, incitando os homens de Cipião, os mais nervosos de todos, e lutando ele também contra os soldados inimigos, apoiado pelo seu ajudante, que impedia que o cavalo se tornasse um empecilho.

Talvez duas horas depois, a divisão samnita que se opunha à ala esquerda de Sila cedeu e retirou para dentro do acampamento de Pompeu Estrabão, onde mostrou estar demasiado exausta para resistir à invasão de Sila. Enrouquecidos de tanto gritar, Sila, Vátia e Dolabela ordenaram uma investida final e os seus homens despedaçaram literalmente os samnitas já no interior do acampamento. Pôncio Telésino caiu com a cara desfeita e, a partir desse instante, os seus homens perderam a coragem.

— Nada de prisioneiros — disse Sila. — Matem-nos a todos. com setas, se por acaso eles se juntarem e tentarem render-se.

Naquele momento, depois de uma batalha tão duramente travada, teria sido mais difícil convencer os soldados a poupar os seus inimigos. Por isso, os samnitas pereceram.

Só depois de ver os samnitas completamente desbaratados é que Sila, já montado na sua mula de confiança, encontrou um momento para pensar em Crasso. Mas da ala direita, nem sinal; tal como não havia o mínimo sinal do inimigo. Crasso e os seus adversários tinham desaparecido.

A meio da noite, chegou um mensageiro. Sila passava revista ao velho campo de Pompeu Estrabão, certificando-se de que todos aqueles corpos eram cadáveres, mas fez uma pausa para ouvir as eventuais notícias.

— É Marco Crasso quem te manda? — perguntou ele ao homem.

— Sim — disse o mensageiro, que não parecia nada abatido.

— Onde está Marco Crasso?

— Em Antemnas.

— Em Antemnas?

— O inimigo pôs-se em fuga antes da noite cair e Marco Crasso foi no encalço deles. Em Antemnas houve nova batalha. E vencemos! Marco Crasso mandou-me porque precisa de vinho e comida para os seus homens.

com um sorriso arreganhado, Sila deu imediatamente ordens aos seus homens para que arranjassem as provisões pedidas; depois, montado na sua mula, acompanhou os soldados e os animais que transportavam os alimentos até Antemnas, que ficava a poucos quilômetros dali. Ele e Vátia encontraram a cidade ainda em estado de choque, depois de, involuntariamente, ter sido palco de uma batalha que a deixara em ruínas. O fogo consumia já muitas casas e os soldados, com baldes de água, tentavam impedir que os incêndios alastrassem; por todo o lado se viam cadáveres, e os habitantes da cidade, em pânico, não hesitavam em pisá-los para fugirem ao fogo com os poucos haveres que tinham salvo.

Crasso aguardava no ponto mais extremo de Antemnas, onde reunira os sobreviventes do inimigo.

— São à volta de seis mil — disse ele a Sila. — Vátia ficou com os samnitas. Eu herdei os lucanianos, os capuanos e o que restou do exército de Carbão. Tibério Guta morreu no campo de batalha. Marco Lampónio, creio que escapou. E tenho Bruto Damasipo, Carrinas e Censorino entre os prisioneiros.

— bom trabalho! — disse Sila, exibindo as gengivas com o mais franco dos sorrisos. — O facto de eu te dar o comando não agradou a Dolabela e tive de prometer-lhe o consulado do próximo ano para que ele se portasse bem. Mas eu sabia que tu eras o homem certo, Marco Crasso!

Vátia virou-se para Sila, estupefacto.

— O quê? Dolabela exigiu isso? Cunnus! Mentula! Verpa! Fellator!

— Não te preocupes, Vátia, que também serás cônsul — sossegou-o Sila, mantendo o seu sorriso. — Dolabela não ganhará nada em ser cônsul. Quando tiver uma província para governar, será uma província longínqua, e passará o resto dos seus dias exilado em Massília, com todos os outros imbecis. — Apontando para as bestas de carga, virou-se então para Crasso: — Ora bem, Marco Crasso, onde é que tu e os teus homens vão comer?

— Se encontrar outro sítio para pôr os prisioneiros, creio que poderemos comer aqui — retorquiu o robusto Crasso, que não tinha nada o aspecto de quem tinha acabado de obter uma grande vitória.

— Eu trouxe a cavalaria de Balbo para escoltar os prisioneiros até à Villa Publica — disse Sila. — Ao alvorecer já lá estarão todos reunidos.

Enquanto Octávio Balbo reunia os exaustos soldados inimigos que tinham sobrevivido à batalha de Antemnas, Sila chamou Censorino, Carrinas e Bruto Damasipo à sua presença. Apesar de derrotados, não havia sinal de derrota nas suas expressões.

— Aha! Pensavam que voltariam a combater um dia, não é verdade? — perguntou Sila, de novo com um sorriso, mas um sorriso sombrio. — Pois bem, meus amigos romanos, não vão voltar a combater. Pôncio Telésino está morto e eu mandei matar com setas os sobreviventes samnitas. Como vocês se aliaram aos samnitas e aos lucanianos, não posso considerá-los Romanos. Por isso, não serão julgados por traição. Serão executados. Imediatamente.

Assim, os três mais implacáveis inimigos de toda a guerra foram degolados num campo dos arredores de Antemnas, sem aviso nem julgamento. Os corpos foram atirados para a enorme vala comum que abrigava os inimigos mortos, mas Sila mandou pôr as cabeças numa saca.

— Catilina, meu amigo — disse ele a Lúcio Sérgio Catilina, que o acompanhara a Antemnas. — Pega nestas cabeças, encontra a cabeça de Tibério Guta, junta a cabeça de Pôncio Telésino quando voltares à Porta Colina, e depois leva-as a Ofela. Diz-lhe que as ponha, uma a uma, na sua mais poderosa peça de artilharia e que as arremesse, uma a uma, para dentro da cidade de Preneste.

O belo rosto moreno de Catilina ganhou um brilho e uma vivacidade novos.

— De bom grado, Lúcio Cornélio! Posso pedir-te um favor?

— Pede, mas não prometo nada.

— Deixa-me ir a Roma! Quero a cabeça de Marco Mário Gratidiano! Quando o jovem Mário vir a cabeça dele, ficará a saber que Roma é tua e que a sua carreira chegou ao fim.

Sila pôs-se a abanar lentamente a cabeça — mas esse não era um sinal de recusa.

— Ah, Catilina, tu és um dos meus mais valiosos bens! Adoro-te! Mas Gratidiano é teu cunhado...

— Era — retorquiu calmamente Catilina, acrescentando: — A minha mulher morreu pouco tempo antes de eu me aliar a ti.

O que Catilina não dizia era que Gratidiano suspeitava que ele tinha morto a sua mulher a fim de poder manter sem problemas uma outra ligação.

— Pois muito bem. Gratidiano teria de desaparecer mais tarde ou mais cedo — disse Sila, virando-lhe as costas com um encolher de ombros. — Acrescenta a cabeça dele à tua colecção, se achas que o jovem Mário vai ficar impressionado.

Tomadas estas decisões, Sila, Vátia e os legados que os tinham acompanhado juntaram-se então a Crasso e Torquato e aos soldados da ala direita, a fim de desfrutarem de um opíparo banquete, enquanto Antemnas ardia e Lúcio Sérgio Catilina se preparava, com a maior alegria, para cometer o seu medonho acto.

Parecendo não precisar de dormir, Sila regressou, depois do banquete, a Roma, mas não entrou logo na cidade. O seu mensageiro foi à frente, a fim de convocar uma reunião do Senado no templo de Belona, no Campo de Marte. A caminho de Belona, fez uma pausa para se certificar de que os seis mil prisioneiros estavam reunidos nos terrenos da Villa Publica (perto do templo de Beloifã) e para comunicar algumas instruções; depois disso, concluiu a sua jornada e desceu da mula, deixando-a nos desolados terrenos em frente ao templo a que sempre chamara ”Território Inimigo”.

Como seria de esperar, ninguém ousou ignorar a convocatória de Sila. Daí que cerca de cem homens esperassem por ele à entrada do templo. Estavam todos de pé; não tinham achado correcto ficar à espera de Sila sentados nos seus bancos desmontáveis. Havia alguns homens com uma expressão serena e descontraída: Catulo, Hortênsio, Lépido. Outros tinham um ar aterrorizado: um ou dois Flacos, um Fímbria, um membro da família Carbão com pouca importância. Mas a grande maioria tinha uma expressão de carneiros, uma expressão vazia mas retraída.

Vestido com a sua armadura mas sem capacete, Sila passou por aqueles homens como se eles não existissem e subiu ao pódio da estátua de Belona, a qual havia sido acrescentada ao templo depois de se ter tornado moda antropomorfizar os velhos deuses romanos; Sila e a deusa faziam um belo par: estavam ambos vestidos para a guerra e o olhar feroz e altivo da deusa assemelhava-se ao de Sila. A deusa, porém, não deixava de ter alguma beleza, ao passo que Sila não tinha nenhuma. Para quase todos os presentes, o seu aspecto constituiu um verdadeiro choque, ainda que nenhum ousasse demonstrá-lo. A peruca de caracóis ruivos estava ligeiramente de lado, a túnica escarlate estava suja, as manchas vermelhas do seu rosto ressaltavam entre resquícios de uma pele semelhante à dos albinos como se fossem lagos de sangue na neve. Muitos deles ficaram tristes, ainda que por razões diferentes: alguns porque o tinham conhecido bem e gostavam dele, outros porque esperavam que o novo Senhor de Roma tivesse um aspecto mais saudável e atraente. Mas, em vez de parecer senhor fosse do que fosse, aquele homem assemelhava-se mais a um travesti fisicamente destroçado. Quando falava os seus lábios atabalhoavam-se e algumas das suas palavras dificilmente poderiam ser ouvidas. Até que os ouvidos se habituaram, pois o instinto de preservação constituía um poderoso estímulo para aquela audiência.

— Estou a ver que cheguei mesmo a tempo! — disse Sila. — O Território Inimigo está cheio de ervas daninhas. Está tudo a precisar de uma pintura nova e de uma boa lavagem. O caminho está reduzido a umas pequenas pedras espreitando no meio da terra. As lavadeiras usavam a Villa Publica para estender a roupa. Mas que belo trabalho que vocês têm feito em Roma! Imbecis! Biltres! Asnos!

O seu discurso continuaria provavelmente no mesmo tom — feroz, sarcástico, amargo. Mas depois de ele ter gritado ”Asnos!”, as suas palavras foram afogadas por uma terrível cacofonia vinda dos lados da Villa Publica — gritos, berros, guinchos. Um barulho pavoroso! De início, fingiram todos que continuavam a ouvi-lo; mas depois, os gritos tornaram-se ainda mais horripilantes; os senadores começaram a mexer-se, a murmurar, trocando olhares aterrados.

Tão repentinamente como tinha começado, o alarido cessou.

— O quê? Os carneirinhos estão assustados? — troçou Sila. — Mas não há razão para estarem assustados! Aquilo que ouviram foi apenas o resultado dos castigos infligidos pelos meus homens a alguns criminosos.

Dito isto, Sila desceu do pódio da estátua e abandonou num ápice o recinto em frente ao templo, parecendo não ver ninguém.

— Ele não está nada bem-disposto! — disse Catulo ao seu cunhado Hortênsio.

— com aquele aspecto, não é para admirar — comentou Hortênsio.

— Ele chamou-nos aqui unicamente para ouvirmos aqueles gritos de terror! — disse Lépido. — Quem é que ele mandou castigar?

— Os prisioneiros — disse Catulo.

E de facto assim era; enquanto Sila falava ao Senado, os seus homens tinham executado os seis mil prisioneiros com espadas e setas, na Villa Publica.

—vou passar a comportar-me o melhor possível em todas as ocasiões — disse Catulo a Hortênsio.

— Ora essa! Mas porquê? — perguntou Hortênsio, que era um homem muito mais positivo e arrogante que o cunhado.

— Porque Lépido tinha razão. Sila só nos chamou aqui para ouvirmos os gritos de terror dos seus adversários. O que ele diz não tem a mínima importância. Mas o que ele faz tem a máxima das importâncias para aqueles de entre nós que queiram viver. Teremos de nos comportar o melhor possível e de procurar não o aborrecer.

Hortênsio encolheu os ombros.

— Creio que estás a ter uma reacção exagerada, meu caro

Quinto Lutácio. Dentro de algumas semanas já ele terá partido. Fará com que o Senado e as Assembleias legalizem os seus feitos e lhe concedam o seu império, após o que regressará às hostes dos consulares e Roma poderá prosseguir a sua vida normal.

— Achas mesmo que sim? — perguntou Catulo, com um estremecimento. — Como ele o fará não sei, mas tenho a sensação de que Sila vai estar no poder durante muito tempo. Sim, tenho a sensação de que vamos ter de agüentar aqueles irritantes olhos fixados em nós ainda durante muito tempo.

Sila chegou a Preneste no dia seguinte, o terceiro do mês de Novembro.

Ofela, depois de jubilosas saudações, apontou para dois homens tristes que se encontravam perto dali, sob prisão.

— Conhecem-nos? — perguntou.

— Creio que sim, mas não me lembro dos nomes deles.

— São dois tribunos júniores das legiões de Cipião. Na manhã a seguir à batalha da Porta Colina, apareceram aqui, galopando a toda a velocidade. Vinham com a história de que tínhamos perdido a batalha e de que tu estavas morto.

— E tu, não acreditaste neles, Ofela? Ofela desatou a rir.

— Eu já te conheço bem, Lúcio Cornélio! Para te matar, são precisos mais do que uns quantos samnitas! — E, com a elegância de um mágico tirando um coelho de um bacio, Ofela esticou o braço e mostrou a cabeça do jovem Mário.

— Ah! — disse Sila, examinando a cabeça atentamente. — Bonito rapaz, não era? Saía à mãe, é claro. Não sei a quem saía ele em perspicácia, mas com certeza que não era ao pai. — Satisfeito, Sila fez um gesto para que Ofela guardasse a cabeça. — Guarda-a, por ora. Então Preneste rendeu-se?

— Rendeu-se momentos depois de eu ter disparado as cabeças que Catilina me trouxe. As portas abriram-se num ápice e lá saíram eles a correr, agitando bandeiras brancas e dando punhadas no peito.

— O jovem Mário também?

— Ah, não! Esse meteu-se pelos esgotos, na esperança de escapar. Mas eu tinha todas as saídas tapadas há já alguns meses. Encontrámo-lo encostado a uma dessas saídas, com a espada espetada na barriga e o criado grego ao pé, a chorar — disse Ofela.

— Pois bem, ele é o último deles! — disse Sila, triunfante. Ofela lançou-lhe um breve e penetrante olhar; não era hábito

de Lúcio Cornélio Sila esquecer-se fosse do que fosse!

— Mas ainda há um em liberdade — disse ele rapidamente, mas logo se arrependeu: Sila não gostava que lhe lembrassem que também ele podia ter lapsos!

Mas Sila ficou impassível. Um sorriso foi-se formando lentamente nos seus lábios.

— Estás a falar de Carbão, suponho eu...

— Sim, estou a falar de Carbão.

— Carbão também está morto, meu caro Ofela. O jovem Pompeu prendeu-o e executou-o por traição na agora de Lilibeu, em fins de Setembro. Um tipo notável, aquele Pompeu! Pensei que ia demorar meses a fio para organizar a Sicília e dar cabo de Carbão, mas fez tudo isso num só mês. E ainda arranjou tempo para me mandar a cabeça de Carbão por intermédio de um mensageiro especial! Mas de Pompeu recebi três cabeças: Carbão, o velho Bruto e Sorano.

— Sorano? Quinto Valério Sorano, o erudito, que foi tribuno da plebe?

— Esse mesmo.

— Mas porquê? Que fez ele? — perguntou Ofela, perplexo.

— Foi para os rostra e pôs-se a gritar o nome secreto de Roma — retorquiu Sila.

Ofela ficou de boca aberta.

— Júpiter! — exclamou, com um estremecimento.

— Felizmente — mentiu Sila, com a intenção de sossegar Ofela — o Grande Deus tapou os ouvidos de todas as pessoas que passavam pelo Fórum nesse momento e, por isso, Sorano gritou para surdos. Tudo está bem, meu caro Ofela. Roma sobreviverá.

— Ah, assim fico mais aliviado! — disse Ofela, ofegante, limpando o suor da testa. — Ouvi falar de estranhos actos, mas dizer o nome secreto de Roma, bom, isso excede tudo o que uma pessoa possa imaginar! — Nesse momento, lembrou-se de outra coisa; não se coibiu de perguntar: — Mas que faz Pompeu na Sicília, Lúcio Cornélio?

— Foi tratar da expedição da colheita de cereais.

— Sim, eu ouvi falar disso, mas confesso que não acreditei. Ele é um miúdo.

— Hummm... — concordou Sila, com um ar pensativo. — Porém, se o jovem Mário não foi buscar nada ao pai, já o mesmo não podemos dizer do jovem Pompeu! Herdou tudo o que Pompeu Estrabão tinha e dispõe de muitas outras coisas que o pai não tinha.

— Nesse caso, o miúdo deve regressar um dia destes — disse Ofela, não muito contente com aquela nova estrela do firmamento de Sila; ele que pensara não ter rival nesse firmamento!

— Ainda é cedo — disse Sila, num tom perfeitamente casual. — Mandei-o a África a fim de controlar essa província. Creio que é isso que ele está a fazer agora. — Apontou para a terra de ninguém, onde uma multidão de homens de aspecto miserável se aquecia ao sol quase invernoso. — Aqueles foram os homens armados que se renderam?

— Sim. À volta de doze mil. Uma mistura — disse Ofela, contente com o facto de terem mudado de assunto. — Alguns romanos que pertenciam ao jovem Mário, muitos prenestinos e alguns samnitas. Queres inspeccioná-los mais de perto?

Parecia que Sila queria. Mas foi uma inspecção breve. Perdoou aos romanos e ordenou que prenestinos e samnitas fossem imediatamente executados. Depois, mandou que os sobreviventes de Preneste — velhos, mulheres, crianças — enterrassem os cadáveres na terra de ninguém. Deu uma volta pela cidade, já que nunca lá tinha estado, e ficou furioso ao ver que o jovem Mário tinha transformado numa ruína o templo de Fortuna Primigénia.

— Eu sou um favorito da deusa Fortuna — disse ele aos membros do conselho municipal que não tinham sido mortos na terra de ninguém. — E quero que a vossa Fortuna Primigénia tenha o templo mais esplêndido de toda a Itália. Mas terá de ser Preneste a custear as despesas.

No quarto dia de Novembro, Sila deslocou-se a Norba, embora soubesse da sorte da cidade muito antes de lá chegar.

— Eles concordaram em render-se — disse Mamerco, furioso.

— Só que, depois, incendiaram a cidade e todos morreram, uns assassinados, outros por suicídio. Mulheres, crianças, os soldados de Aenobarbo, todos os homens da cidade preferiram morrer a render-se. Lamento, Lúcio Cornélio. Não teremos prisioneiros em Norba.

— Não faz mal — disse Sila, indiferente. — Os despejos de Preneste foram suficientemente valiosos. Duvido que Norba tivesse algo de interessante para nos dar.

E, no quinto dia de Novembro, quando o Sol nascente começava a bater nas estátuas douradas dos telhados dos templos e a luz do alvorecer fazia com que a cidade parecesse menos miserável, Lúcio Cornélio Sila entrou em Roma. Foi pela Porta Capena que entrou, e em solene procissão. O seu ajudante conduzia o cavalo branco que lhe servira de montada durante toda a batalha da Porta Colina. Sila vestia a melhor das suas armaduras, com uma couraça de prata com os músculos desenhados e com um relevo que representava os seus soldados oferecendo-lhe a Coroa de Erva nos arrabaldes de Nola. Ao seu lado, e vestido com a toga de debrum púrpura, seguia Lúcio Valério Flaco, o Princeps Senatus, e, atrás dele, vinham os seus legados, aos pares, incluindo Metelo Pio e Varrão Lúculo, que haviam sido convocados quatro dias antes e que tinham feito uma dura viagem desde a Gália Italiana para estarem presentes naquele grandioso momento. De todos os homens que assumiam alguma importância para o futuro, só Pompeu e Varrão, o Sabino, não estavam presentes.

A escolta militar de Sila era constituída apenas pelos setecentos militares que o tinham salvo, derrotando os samnitas; o grosso do exército estava a deitar abaixo as muralhas da Via Latina, a fim de que esta pudesse ser de novo utilizada. Posteriormente, seria preciso deitar abaixo a muralha de Ofela e limpar vários acampamentos de uma grande quantidade de materiais de construção. Sila sabia o que ia fazer com os blocos de tufo de Preneste: ia utilizá-los na construção do novo templo de Fortuna Primigénia em Preneste. Não devia ficar de pé nem um sinal das hostilidades.

Muitas pessoas saíram de casa para o ver entrar na cidade; apesar dos perigos que isso pudesse significar, nenhum romano conseguiria resistir a um tal espectáculo, e aquele era na verdade um momento histórico. Muitos dos que o viram entrar em cima do seu cavalo branco, acreditaram sinceramente que estavam a assistir ao estertor da República; corriam insistentes boatos de que Sila tencionava coroar-se rei de Roma. De que outro modo poderia ele agarrar o poder? É que o poder, depois do que Sila tinha feito, era algo que ele não poderia deixar escapar. Os habitantes de Roma depressa repararam no esquadrão de cavalaria que vinha imediatamente atrás do último par de legados, erguendo bem alto as suas lanças; enterradas nessas lanças estavam as cabeças de Carbão e do jovem Mário, de Caninas e Censorino, do velho Bruto e de Mário Gratidiano, de Bruto Damasipo e de Pôncio Telésino, de Guta de Cápua e de Sorano — e de Caio Pápio Mutilo, dos Samnitas.

Mutilo tivera notícias da batalha da Porta Colina, um dia depois de esta ter terminado. Chorava tão alto que Bastia foi ver o que se passava com o marido.

— Tudo perdido! Tudo perdido! — disse ele à mulher, esquecendo a forma como ela o insultara e atormentara, vendo nela apenas a única pessoa chegada que lhe restava no mundo. — O meu exército foi aniquilado! Sila venceu! Sila será o rei de Roma e o Sâmnio deixará de existir!

Enquanto acendia os poucos pavios de um pequeno candelabro, Bastia limitou-se a fitar o marido. Não fez qualquer movimento para o confortar, não disse nada que o consolasse; limitou-se a fitá-lo, os olhos muito abertos, quieta e calada. Mal acabou de acender o candelabro, o seu olhar encheu-se de um brilho diferente, um brilho de quem sabia muito bem o que havia de fazer naquela situação. A sua expressão tornou-se pétrea. Bateu as palmas.

— Sim, domina? — perguntou o chefe dos criados do vão da porta, fitando consternado o senhor.

— Vai buscar o criado germânico e prepara a liteira dele — disse Bastia.

— Domina? — perguntou o chefe dos criados, espantado.

— Não fiques para aí especado! Faz o que te mando! Imediatamente!

O homem engoliu em seco e desapareceu. com as lágrimas secando-lhe no rosto, Mutilo olhou estupefacto; para a esposa.

— Que significa isto?

— Quero-te fora daqui! — disse ela, de dentes cerrados. — Não quero que esta derrota caia sobre mim! Quero manter a minha casa, o meu dinheiro, a minha vida! Por isso, rua, Caio Pápio! Volta para Esérnia ou para Boviano — ou para outro sítio qualquer onde tenhas casa! Tudo menos esta casa! Não tenho a mínima intenção de cair contigo!

— Não pode ser verdade! — disse ele, ofegante.

— Mas é verdade! Rua!

— Mas eu estou paralisado, Bastia! Sou o teu marido e estou paralisado! Não há em ti um resto de compaixão, porque de amor sei que não há?

— Não te tenho amor, nem sinto a mínima compaixão por ti — ripostou ela, áspera e fria. — Foram as tuas estúpidas e vãs conspirações contra Roma que te roubaram o uso das pernas! Que me roubaram o homem com quem casei! Que me roubaram os filhos que podia ter tido! Que me roubaram todo o prazer que podia ter tido sendo parte da tua vida! Durante quase sete anos, vivi aqui sozinha, enquanto tu conspiravas e intrigavas em Esérnia. E quando finalmente condescendeste em visitar-me, fedias a merda e a mijo e passavas o tempo a dar-me ordens. Ah, não, Caio Pápio Mutilo, contigo nunca mais! Rua!

E porque a sua mente não podia abarcar toda a miséria da sua situação, Mutilo não fez qualquer protesto quando o seu criado germânico o levantou do divã e o levou até à liteira. Bastia seguiu-o como uma imagem de uma Górgona, bela e diabólica, com uns olhos que podiam transformar um homem em pedra. com tanta pressa fechou a porta que a capa do marido ficou presa nela. O criado passou então Mutilo para o seu braço esquerdo e, com a mão direita, tratou de puxar a capa.

Caio Pápio Mutilo tinha no seu cinto uma adaga, uma recordação muda dos tempos em que fora um guerreiro samnita. Num ápice, tirou a adaga do cinto, comprimiu a cabeça contra a porta e cortou a garganta. O sangue espalhou-se por todo o lado, encharcou a porta e desceu pelos degraus; o criado germânico, aterrado, coberto de sangue, desatou aos gritos. Depressa se juntou gente à porta. A última coisa que Caio Pápio Mutilo viu foi a sua mulher, aquela imagem de Górgona, que tinha aberto a porta a tempo de receber o seu último jorro de sangue.

— Amaldiçoada sejas, mulher! — tentou ele dizer.

Mas ela não ouviu. Nem parecia chocada, assustada, surpreendida. Em vez disso, abriu a porta de par em par e gritou para o criado, desfeito em lágrimas.

— Trá-lo para dentro!

Quando o criado deitou o cadáver no chão da casa, Bastia ordenou-lhe:

— Corta-lhe a cabeça! É a minha prenda para Sila!

Bastia cumpria o que dizia: enviou a cabeça do marido a Sila com os seus cumprimentos. Mas a história que Sila ouviu da boca do chefe dos criados de Bastia, obrigado pela sua senhora a levar aquela macabra oferta ao vencedor, não abonou nada em favor de Bastia. Sila entregou a cabeça do seu velho inimigo a um dos tribunos militares que o assistiam e, com uma expressão impassível, disse-lhe:

— Mata a mulher que me mandou isto. Quero essa mulher morta.

Assim, tinham já sido abatidas quase todas as cabeças que havia a abater. Exceptuando apenas Marco Lampónio, da Lucânia, todos os homens proeminentes que se tinham oposto ao regresso de Sila à Itália estavam já mortos. De facto, se o desejasse, Sila não teria grande dificuldade em intitular-se rei de Roma.

Mas Sila encontrara uma solução mais adequada a alguém que acreditava firmemente em todas as tradições de uma mos maiorum republicana. E assim, foi sem qualquer intenção de se tornar rei que Sila avançou pelo meio do Circus Maximus.

Estava velho e doente e, durante cinqüenta e oito anos, lutara contra uma conspiração de circunstâncias e acontecimentos que o impedira de gozar os prazeres da justiça e da recompensa, que lhe roubara o lugar a que tinha direito por nascimento e por capacidade. Não lhe tinham oferecido nenhuma hipótese de escolha, nenhuma oportunidade de prosseguir legalmente, honradamente, a sua ascensão do cursus honorum. De todas as vezes que o tentara fazer, alguém ou alguma coisa surgira no seu caminho, impossibilitando-o de adoptar uma postura conforme às leis. E por isso ele ali estava agora, seguindo na direcção errada ao longo do Circus Maximus completamente vazio, um destroço de cinqüenta e oito anos, as entranhas consumidas pelos fogos gémeos do triunfo e da derrota. Senhor de Roma. O Primeiro Homem de Roma. Finalmente a vingança. E, no entanto, as decepções da idade e da beleza perdida e também a morte que se aproximava tingiam a sua alegria da mais amarga tristeza, destruíam todo o prazer, exacerbavam a dor. Quão tardia, quão amarga, quão tortuosa fora a sua vitória...

Sila não pensava com amor ou idealismo na Roma que agora tinha à sua mercê; o preço que tivera de pagar fora demasiado alto. Também não desejava o trabalho que sabia que tinha de realizar. O que ele mais desejava era paz, sossego, a realização de mil e uma fantasias sexuais, bebedeiras sem fim, uma total ausência de trabalhos e responsabilidades. Mas por que razão não poderia ter essas coisas? Por causa de Roma, por causa do seu dever, porque não suportava a ideia de deixar tudo para trás quando ainda tinha tanto que fazer. A razão por que seguia na direcção errada, ao longo do Circus Maximus, residia no conhecimento do facto de que havia uma montanha de trabalho a realizar. E ele tinha de o realizar. Não havia rigorosamente mais ninguém à altura de o realizar.

Resolveu reunir o Senado e o Povo juntamente no baixo Fórum Romano e falar a ambos a partir dos rostra. Não lhes diria toda a verdade. Não era Escauro que dizia que ele era um indivíduo que se estava marimbando para a política? Sila não se lembrava.

O certo é que era político o bastante para não dizer toda a verdade. Por isso, ignorou calmamente o facto de que fora ele quem expusera a primeira cabeça nos rostra — a cabeça de Sulpício, para assustar Cina.

— Esta prática hedionda que foi adoptada há tão pouco tempo, e recordo que, quando eu era pretor urbano, Roma ainda não a conhecia — e apontou para as cabeças espetadas nas lanças —, só cessará quando as boas tradições da mos maiorum forem totalmente restauradas e quando a velha e amada República voltar a erguer-se das cinzas a que foi reduzida. Ouvi dizer que tencionava tornar-me rei de Roma! Não, Quirites, não tenciono tal! Condenar-me a viver os anos que me restam no meio de intrigas e conspirações, rebeliões e represálais? Não, não farei tal! Trabalhei demasiado tempo e demasiado duramente ao serviço de Roma e ganhei por isso o direito a passar os meus últimos dias livre de cuidados e de responsabilidades — livre de Roma! Por isso, uma coisa lhes prometo, Senado e Povo de Roma: não me coroarei rei de Roma, nem desfrutarei um só momento do poder que terei de possuir até que o meu trabalho esteja concluído.

Talvez ninguém estivesse realmente à espera deste discurso, nem mesmo homens tão próximos de Sila como Vátia e Metelo Pio; porém, à medida que Sila foi avançando no seu discurso, alguns homens começaram a entender que Sila partilhara os seus segredos com outro homem — o Princeps Senatus, Lúcio Valério Flaco, que se encontrava nos rostra com ele e que não parecia nada surpreendido com aquelas palavras.

— Os cônsules estão mortos. — prosseguiu Sila, apontando as cabeças de Carbão e do jovem Mário. — Os fasces têm de voltar aos sacerdotes, têm de voltar ao seu divã no templo de Vénus Libitina até que sejam eleitos novos cônsules. Roma tem de ter um interrex e a lei é, nesse particular, muito específica. O chefe do Senado, Lúcio Valério Flaco, é o patrício sénior do Senado, da sua decúria, da sua família. — Sila virou-se para o Princeps Senatus. — Tu és o primeiro interrex. Por favor, assume esse cargo e realiza todos os teus deveres durante os cinco dias do teu interregno.

— Até agora, tudo bem — murmurou Hortênsio para Catulo. — Ele fez exactamente o que devia fazer: nomear um interrex.

— Tace! — atirou-lhe Catulo, que estava com dificuldade em entender tudo o que Sila dizia.

— Antes que o chefe do Senado assuma a presidência desta reunião — disse Sila, lenta e cuidadosamente —, há uma ou duas coisas que eu gostaria de dizer. Roma, sob a minha protecção, encontra-se segura e nada de mal acontecerá a quem quer que seja. Sucederá apenas que a lei voltará a ser aplicada. A República regressará aos seus dias de glória. Mas estas são coisas da competência do nosso interrex e por isso não me debruçarei mais sobre elas. O que eu realmente quero dizer é que fui muito bem servido por óptimos homens e que chegou a altura de lhes agradecer. Começarei por aqueles que não estão aqui hoje. Cneu Pompeu, que assegurou os abastecimentos de cereais da Sicília, e que, dessa forma, garantiu que Roma não passará fome este Inverno... Lúcio Márcio Filipe, que no ano passado assegurou os abastecimentos da Sardenha e que este ano teve de lutar contra o homem que foi enviado para o combater, Quinto António Balbo. E ele lutou contra António, que está morto. A Sardenha está segura... Na Ásia, deixei três homens esplêndidos a tratar dos assuntos da mais rica e preciosa província de Roma — Lúcio Licínio Murena, Lúcio Licínio Lúculo e Caio Escribónio Curió... E aqui, comigo, estão os homens que foram os meus mais leais seguidores em tempos de provação e desespero — Quinto Cecílio Metelo Pio e o seu legado, Marco Terêncio Varrão Lúculo, Públio Servílio Vátia, o velho Cneu Cornélio Dolabela, Marco Licínio Crasso...

— Por todos os deuses, a lista nunca mais tem fim! — resmungou Hortênsio, que só gostava de se ouvir falar e que odiava em especial os discursos em que a retórica era maltratada, como era o caso do discurso de Sila.

— Já acabou, já acabou! — disse Catulo, impaciente. — Vá, anda, Quinto, ele está a chamar o Senado para a Cúria, já não diz mais nada a estes tontos do Fórum! Vá, depressa!

Mas foi Lúcio Valério Flaco Princeps Senatus quem se sentou na cadeira curul, rodeado apenas pelo magro corpo de magistrados que permanecera em Roma e sobrevivera. Sila sentou-se à direita do pódio curul, provavelmente perto do sítio onde normalmente se sentaria, ou seja, perto da fila da frente dos consulares, ex-censores, ex-pretores. No entanto, não despira ainda a sua armadura, e esse facto mostrava que não abandonara o controlo dos procedimentos necessários.

— Nas Calendas de Novembro — disse Flaco com a sua voz ofegante — quase perdemos Roma. Se não fosse o valor e a rapidez de acção de Lúcio Cornélio Sila, dos seus legados e do seu exército, Roma estaria agora nas mãos do Sâmnio e nós estaríamos agora a passar sob o jugo, tal e qual como fizemos depois das Forcas Caudinas. Muito bem, não preciso de me debruçar mais sobre este assunto! Sâmnio perdeu, Lúcio Cornélio venceu e Roma está segura.

— Ah, avança já com isso! — murmurou Hortênsio. — Por todos os deuses, o homem está cada vez mais senil!

Flaco avançou, algo irrequieto porque não estava confortavelmente instalado.

— No entanto, mesmo com a guerra terminada, Roma tem muitos outros problemas a atormentá-la. O Tesouro está vazio. Os cofres dos templos estão vazios. Nas ruas falta o comércio, no Senado faltam os senadores. Os cônsules estão mortos e, dos seis pretores que havia no início do ano, resta apenas um. — Fez uma pausa, respirou fundo e, heroicamente, tratou de dizer o que Sila lhe ordenara. — Na realidade, Pais Conscritos, Roma ultrapassou o ponto em que a governação normal é possível. Roma tem de ser guiada pela mão mais capaz. A única mão capaz de erguer a nossa amada Roma. O meu mandato de interrex dura cinco dias. Não posso convocar eleições. Suceder-me-á um segundo interrex que disporá também de cinco dias. É de esperar que ele possa convocar eleições. Mas pode acontecer que não e, em tal caso, isso terá de ser tentado por um terceiro interrex. E assim por diante. Mas esta frágil governação não nos serve, Senadores. Vivemos tempos de grandes, de profundas urgências, e só vejo um homem capaz de fazer aquilo que tem de ser feito. Mas ele não poderá fazer o que tem de ser feito se for cônsul. Por isso, proponho uma solução diferente — que submeterei ao Povo, nas suas Centúrias, a mais elevada das instituições votantes. Proporei ao Povo, nas suas Centúrias, que promulgue uma lex rogata nomeando e autorizando Lúcio Cornélio Sila como Ditador de Roma.

A Casa agitou-se; os homens olharam uns para os outros, estupefactos.

— O cargo de Ditador é um cargo antigo — prosseguiu Flaco. — E normalmente confinado à condução de uma guerra.

No passado, a tarefa do Ditador consistia em assegurar a chefia de uma guerra quando os cônsules não o podiam fazer. E já passaram mais de cem anos desde que o último Ditador tomou o poder. Porém, a situação actual de Roma é uma situação por que nunca passámos noutros tempos. A guerra acabou. Mas a situação de emergência não acabou. Aquilo que vos garanto, Senadores, é que Roma não poderá erguer-se unicamente com cônsules eleitos. Os remédios necessários não serão agradáveis de tomar e provocarão fortes ressentimentos. No final do seu ano no cargo, um cônsul pode ser obrigado a responder pelas suas acções perante o Povo ou perante a Plebe. Pode ser acusado de traição. Se tudo se virar contra ele, pode ser mandado para o exílio e as suas propriedades poderão ser confiscadas. Sabendo antecipadamente que é vulnerável a tais acusações, nenhum homem pode ter em si a força e a resolução de que Roma precisa neste momento. Um Ditador, porém, não teme a punição do Povo ou da Plebe. A natureza do cargo isenta-o de futuras represálias. Os seus actos, enquanto Ditador, ficam para sempre sancionados. Não pode ser julgado por nenhuma acusação. Escorado no conhecimento da sua imunidade, de que não pode ser vetado por uma tribuna da plebe ou condenado por qualquer assembleia, um Ditador pode utilizar toda a sua força e capacidade para pôr as coisas na ordem. Para fazer erguer a nossa amada Roma.

— Tudo isso me parece muito bem, Princeps Senatus — disse Hortênsio em voz alta. — Mas os cento e vinte anos que decorreram desde que foi nomeado o último Ditador parecem ter afectado a tua memória! Um Ditador é proposto pelo Senado, mas tem de ser nomeado pelos cônsules. Nós não temos cônsules. Os fasces foram para o templo de Vénus Libitina. Um Ditador não pode ser nomeado.

Flaco suspirou.

— Não me estiveste a ouvir com atenção, pois não, Quinto Hortênsio? Eu disse que isso podia ser feito. Através de uma lex rogata aprovada pelas Centúrias. Quando não há cônsules para actuarem como executivos, o Povo, nas suas Centúrias, é o executivo. O único executivo, de facto. O interrex tem de recorrer ao Povo para executar a sua única função, que é organizar eleições curuis. O Povo, nas suas tribos, não é um executivo. Só as Centúrias o são.

— Muito bem, de acordo — disse Hortênsio. — Prossegue, Princeps Senatus.

— É minha intenção convocar para amanhã, ao alvorecer, a Assembleia das Centúrias. Propor-lhe-ei então que elabore uma lei nomeando Ditador Lúcio Cornélio Sila. A lei não precisa de ser muito complicada — de facto, quanto mais simples for, melhor. A partir do momento em que as Centúrias nomeiem legalmente o Ditador, todas as outras leis poderão ser ditadas por ele. O quevou pedir às Centúrias é que nomeiem e autorizem formalmente Lúcio Cornélio Sila como Ditador durante todo o tempo que lhe for necessário para cumprir a sua missão; que sancionem todos os seus anteriores actos como cônsul e procônsul; que anulem todo o opróbrio oficial de que a sua pessoa foi vítima sob a forma de banimento ou exílio; que lhe garantam a imunidade no que toca a todos os seus actos como Ditador, em qualquer momento da sua missão; que protejam os seus actos enquanto Ditador do veto tribunício, da rejeição ou recusa formulada por qualquer Assembleia, da oposição do Senado e do Povo, seja qual for a forma que essa oposição assuma ou quaisquer que sejam os magistrados que a formulem, e do recurso para qualquer Assembleia ou corpo ou magistrados.

— Isso é melhor do que ser rei de Roma! — exclamou Lépido.

— Não é melhor. É apenas diferente — retorquiu Flaco, obstinadamente; Flaco demorara algum tempo a entender e aceitar o que Sila pretendia dele, mas agora estava já perfeitamente identificado com o projecto. — Um Ditador não tem de responder pelas suas acções, mas não governa sozinho. Tem os serviços do Senado e de todos os Comícios, enquanto instituições consultivas, tem o seu Senhor do Cavalo, e tem todos os magistrados que desejar eleger. Por exemplo: de acordo com o costume, os cônsules desempenham as suas funções sob o comando do Ditador.

Lépido falou bem alto.

— O Ditador serve apenas durante seis meses — disse. — Se os meus ouvidos estão a funcionar bem, julgo que aquilo que te propões pedir às Centúrias é que elas nomeiem um Ditador por tempo ilimitado. E isso não é constitucional, Princeps Senatus! Eu não sou contra a nomeação de Lúcio Cornélio Sila como Ditador, mas sou contra a possibilidade de ele exercer o cargo durante mais de seis meses, que é o prazo legal.

— Em seis meses, nem sequer poderei dar início ao meu trabalho — disse Sila, sem se levantar do seu banco. — Acredita em mim, Lépido. Eu não quero ficar um dia a mais do que o necessário neste terrível cargo, quanto mais toda a vida! Quando considerar que o meu trabalho está terminado, abandonarei o cargo de Ditador. Mas seis meses? Impossível.

— Impossível porquê? — perguntou Lépido.

— Pelo seguinte — retorquiu Sila. — As finanças de Roma estão num caos. Para as endireitar precisarei de um ano, talvez mesmo de dois. Temos vinte e sete legiões para desmobilizar; depois da desmobilização, teremos de lhes pagar e de lhes dar terra. Os homens que apoiaram os regimes ilegais de Mário, Cina e Carbão terão de ser procurados e terão de perceber que não poderão fugir a uma justa punição. As leis de Roma são antiquadas, particularmente no que se refere aos tribunais e aos governadores das províncias. Os seus funcionários civis revelam a maior desorganização e são presas fáceis da letargia e da cupidez. Foi roubado tanto dinheiro e ouro e prata dos nossos templos que o Tesouro ainda possui duzentos e oitenta talentos de ouro e cento e vinte talentos de prata, mesmo depois da dissipação deste ano. O templo de Júpiter Optimus Maximus está reduzido a cinzas. — Suspirou bem alto. — Queres que continue, Lépido?

— Muito bem, concedo que a tua missão terá de demorar mais de seis meses. Mas o que é que te impede de seres nomeado todos os seis meses, enquanto tiveres de realizar o teu trabalho?

Sila exibiu um sorriso escarninho, um sorriso ainda mais terrível agora, apesar de lhe faltarem os seus longos caninos, apesar de não ter nenhum dos seus dentes.

— Ah, sim, Lépido, já estou a perceber! — exclamou. — Em cada período de seis meses, teríamos de perder três meses a tentar conciliar as Centúrias! Três meses que passaríamos a fazer exposições, explicações, desculpas, a apresentar belos quadros do nosso trabalho, a servirmo-nos indecentemente das bolsas de todos os cavaleiros-negociantes, três meses em que eu faria o papel da mais velha e miserável de todas as rameiras! — Sila ergueu-se e, de punhos cerrados, virou-se ameaçador para Marco Emílio Lépido. Na expressão de Sila lia-se um ódio que aqueles homens não viam desde que ele partira para a guerra contra o rei Mitridates. — Pois ouve-me bem, Lépido, ouve-me bem, tu que ficaste confortavelmente em casa enquanto nós andávamos em guerra, tu que casaste com a filha de um traidor que, esse sim, tentou impor-se como rei de Roma! Ouve bem o que eu digo: isto será à minha maneira ou não haverá maneira nenhuma! Estão a ouvir-me, miseráveis imbecis, miseráveis poltrões, miseráveis hipócritas? Querem que Roma se reerga das cinzas, mas, ao mesmo tempo, querem ter o imerecido direito de transformar a vida do homem que pretende fazer essa obra numa vida o mais miserável, o mais destroçada, o mais servil que se possa imaginar! Pois bem, Pais Conscritos, de uma coisa podem ficar certos — Lúcio Cornélio Sila está de volta a Roma, e, se ele quiser, se ele se propuser fazer isso, toda a Roma tremerá até se desfazer em ruínas! Nos campos latinos, tenho um exército que poderia ter trazido para esta cidade. Um exército ao qual poderia ordenar que invadisse os vossos odiosos esconderijos e que vos filassem a todos como os lobos fazem às ovelhas! Pois bem, eu não fiz isso! Desde que entrei no Senado, tenho feito tudo para defender os vossos interesses. E continuo a fazer tudo para os defender. Pacificamente. com bons modos. Mas aviso-vos de que estão a abusar da minha paciência. Eu serei Ditador enquanto precisar de ser Ditador. Isto está entendido? Está entendido, Lépido?

O silêncio reinou como senhor absoluto durante longos momentos. Até mesmo Vátia e Metelo Pio permaneceram quietos, lívidos e receosos, de olhos fixos naquele monstro de garras afiadas que, a qualquer momento, parecia ir pôr-se a uivar para a lua? Ah, como poderiam eles ter-se esquecido do que existia dentro de Sila?

Lépido também o fitava de olhos muito abertos, lívido e receoso, mas o cerne do seu terror não era o monstro que vivia dentro de Sila; era na sua amada esposa, Apuleia, que estava a pensar, na sua muito querida Apuleia, mãe dos seus filhos — e filha de Saturnino, o qual tentara de facto tornar-se rei de Roma. Por que razão Sila se referira a ela no meio daquela impressionante explosão de palavras? Que tencionava ele fazer quando se tornasse Ditador?

Farta de guerras civis, da depressão econômica e das muitas legiões que a todo o momento percorriam a Itália de alto a baixo, a Assembleia das Centúrias aprovou uma lei que nomeava Lúcio Cornélio Sila como Ditador durante um período não especificado de tempo. Debatida em contio no sexto dia de Novembro, a lex Valeria dictator legibus scribundis et rei publicae constituendae entrou em vigor no dia 23 de Novembro. O seu texto não continha nenhuma indicação específica; como dava poderes praticamente ilimitados a Sila e considerava que ele não tinha de responder por nenhum dos seus actos, uma tal lei não precisava de especificar nada. Sila poderia fazer tudo o que desejasse.

Muitos dos habitantes da cidade estavam à espera de que Sila se lançasse em frenética actividade a partir do momento em que a sua nomeação fosse aprovada; no entanto, Sila não fez nada enquanto a nomeação não foi ratificada, três nundinae depois, de acordo com a lex Caecilia Didia.

Tendo passado a residir na casa que pertencera a Cneu Domício Aenobarbo (então refugiado em África), Sila, aparentemente, pouco mais fazia do que passear constantemente por toda a cidade. A sua casa fora destruída e incendiada depois de Caio Mário e Cina se terem apoderado de Roma: ia até lá inspeccionar o que restava dela, remexer sem pressas nos montes de entulho, mirar os belos contornos do Aventino a partir dessa zona do Gérmalo do Palatino. A qualquer momento do dia, desde o alvorecer ao crepúsculo, podiam vê-lo sozinho no Fórum Romano, fitando o Capitólio ou a estátua de Caio Mário perto dos rostra, ou qualquer uma das outras estátuas mais pequenas de Mário, fosse na Casa do Senado, fosse no templo de Saturno. Passeava junto às margens do Tibre, desde o grande empório comercial dos Emílios, no porto de Roma, até ao Trigário, onde os jovens nadavam. Passeava desde o Fórum Romano até qualquer uma das dezasseis portas de Roma. Andava todo o dia acima abaixo, acima abaixo.

Não mostrava nunca o menor sinal de medo, fosse pela sua vida ou por qualquer situação difícil, nunca pedia a ninguém que o acompanhasse, nunca levava guarda-costas. Por vezes usava uma toga, mas a maior parte das vezes envolvia-se numa volumosa capa, mais fácil de usar e mais adaptada a um Inverno que se anunciava tão gelado como o anterior. Num dia inesperadamente quente, vestiu apenas a túnica e então era fácil ver como aquele homem era pequeno — embora as pessoas se lembrassem de que, em tempos idos, ele fora um homem de estatura média e bem constituído. Mas encolhera, as costas tinham-se encurvado, e ele arrastava-se como um octogenário. Trazia sempre aquela disparatada cabeleira e, agora que os surtos de irritação da pele estavam controlados, pintava as sobrancelhas e as pestanas, já embranquecidas, com stibium.

Ao fim de oito dias de espera da ratificação, aqueles que tinham presenciado o seu terrível acesso de fúria no Senado, mas não tinham sido, como Lépido, o objecto directo dessa fúria, começavam a sentir-se perfeitamente à vontade para falar com algum desprezo daquele velho que se fartava de passear. A memória é de facto curta.

— É um travesti! — disse Hortênsio a Catulo, fungando de riso.

— Ainda alguém o mata — disse Catulo, preocupado. Hortênsio riu mais abertamente.

— Ou então dá-lhe uma apoplexia e cai para aí no chão. — com a mão direita, Hortênsio agarrou o braço esquerdo do cunhado e abanou-o. — Sabes uma coisa? Não percebo por que razão estava com tanto medo! Ele está cá, mas não está cá! No fim de contas, Roma não tem capataz nenhum! Estranho, sem dúvida. Ele está desfeito, Quinto. Está senil.

Uma opinião que começava a prevalecer entre todas as classes à medida que os dias de espera iam passando e aquela figura tão pouco inspiradora de admiração era vista passeando pelas ruas de Roma, de peruca descaída e os olhos espalhafatosamente pintados com stibium. Também usaria esse pó para disfarçar as cicatrizes cor de amora? E murmurava sozinho, por vezes. E abanava a cabeça. E, uma vez por outra, até gritava para ninguém. Estava velho e desfeito, o homem. Senil.

Fora precisa muita coragem para que um homem tão vaidoso expusesse, aos olhos de todos, as rudes realidades da velhice; só Sila sabia o quanto odiava o que a doença lhe tinha feito, só Sila sabia o quanto desejava voltar a ser o homem magnífico que, um dia, partira para combater o rei Mitridates. Porém, dissera ele para si mesmo, evitando o espelho, quanto mais depressa se dispusesse a mostrar a Roma aquilo em que se tinha tornado, tanto mais depressa conseguiria esquecer a imagem que o espelho reflectiria, caso ele se visse ao espelho. E, de facto, foi isso mesmo que aconteceu. Principalmente porque os seus passeios tinham um objectivo, não eram passeios de um velho tonto. Sila, nos seus passeios, pretendia ver que mudanças tinham ocorrido em Roma, aquilo de que Roma precisava, aquilo que ele tinha de fazer. E quanto mais caminhava, mais irado ficava — e mais excitado, porque estava nas suas mãos transformar aquela dama feia e andrajosa na beldade que, noutros tempos, fora.

Sila estava também à espera de algumas pessoas que eram importantes para ele, ainda que não considerasse que as amava, tão pouco que precisava delas — a mulher, os gémeos, a filha, já adulta, os netos, e também Ptolemeu Alexandre, o herdeiro do trono do Egipto. Durante muitos meses, tinham esperado pacientemente, sob a protecção de Crisógono, primeiro na Grécia, depois em Brindísio. Porém, em fins de Dezembro, estariam de volta a Roma. Durante algum tempo, Dalmática teria de viver na casa de Aenobarbo, mas a residência de Sila começara entretanto a ser reconstruída; Filipe — muito moreno e com um óptimo aspecto físico — chegara da Sardenha, convocara o Senado sem seguir qualquer procedimento oficial, e obrigara aquela assembleia de cobardes a votar fundos públicos inexistentes, para devolver a Sila aquilo que o Estado lhe retirara. Obrigado, Filipe!

No vigésimo terceiro dia de Novembro, a ditadura de Sila era formalmente ratificada e transformada em lei. E, nesse dia, quando acordou, Roma verificou que todas as estátuas de Caio Mário tinham desaparecido: a do Fórum Romano, a do Boário, a do Holitório, as que estavam em diversas encruzilhadas e praças ou em pedaços de terra vagos. Também tinham desaparecido os troféus expostos no seu templo à Honra e à Virtude, no Capitólio, danificado pelo fogo mas ainda habitável para armaduras inimigas, as bandeiras, os estandartes, todas as suas condecorações pessoais por valor e bravura, as couraças que usara em África, em Águas Séxtias, em Vercelas, em Alba Fucência. Estátuas de outros homens também tinham desaparecido — Cina, Carbão, o velho Bruto, Norbano, Cipião Asiágeno —, mas talvez por serem muito menos que as de Caio Mário, o seu desaparecimento não chamou tanto as atenções. Das estátuas de Caio Mário, restavam os muitos plintos vazios com o seu nome apagado em todos eles, hermas com os órgãos genitais destruídos.

E, ao mesmo tempo, começavam a circular boatos sobre um outro e muito mais sério desaparecimento; havia homens que também tinham desaparecido! Homens que tinham apoiado fortemente Mário, ou Cina, ou Carbão, ou todos os três. Cavaleiros, na sua maior parte, homens com êxito nos negócios numa altura em que isso era difícil; cavaleiros que tinham obtido lucrativos contratos do Estado, ou emprestado a partidários, ou enriquecido de outra forma graças às suas ligações a Mário, a Cina, a Carbão, ou a todos os três. Não havia nenhuma certeza quanto ao desaparecimento deste ou daquele senador em particular; mas, subitamente, o total de homens desaparecidos era já demasiado grande para passar despercebido. Fosse por causa desta percepção de que algo se passava, fosse por um efeito secundário desta percepção, as pessoas já diziam que tinham visto esses homens a desaparecer; uns dez ou quinze homens, de aspecto corpulento, batiam à porta de um cavaleiro, entravam e, poucos momentos depois, saíam todos, com o cavaleiro no meio deles, e iam-se embora — ninguém sabia para onde!

Roma vivia numa atmosfera de desconfortável agitação, Roma começava a perceber que as peregrinações do seu velho senhor eram algo mais que vulgares passeios; aquilo que fora tristemente divertido ganhava agora um aspecto mais sinistro e as inocentes excentricidades de ontem transformavam-se nos suspeitos desígnios de hoje e nos aterradores objectivos de amanhã. Ele nunca falava para ninguém! Ele falava consigo mesmo! E permanecia num sítio um ror de tempo a olhar sabe-se lá para o quê! E gritara uma ou duas vezes! Que estava ele a fazer afinal? E por que razão o fazia?

Enquanto a apreensão crescia, as estranhas actividades daqueles grupos de homens, aparentemente inócuos, que batiam às portas dos cavaleiros, tornaram-se mais abertas. Eram vistos agora aqui e acolá, tomando notas, ou seguindo como uma sombra um influente banqueiro de Carbão ou um próspero corretor de Mário. E desapareciam homens com uma freqüência cada vez maior. E, um dia, um daqueles grupos bateu à porta de um senador pedarius que sempre votara a favor de Mário, de Cina, de Carbão. Mas o senador não desapareceu com eles. Quando apareceu na rua, uma espada vibrou no ar e a sua cabeça caiu no chão com um ruído seco. O corpo jazia no chão, o sangue jorrando para a sarjeta, mas a cabeça, essa sim, tinha desaparecido.

Toda a gente achou então que o melhor era passar pelos rostra para contar as cabeças — Carbão, o jovem Mário, Carrinas, Censorino, Cipião Asiágeno, o velho Bruto, Mário Gratidiano, Pôncio Telésino, Bruto Damasipo, Tibério Guta de Cápua, Sorano, Mutilo... Não, não havia mais nenhuma cabeça! A cabeça do senador dos bancos de trás não estava lá. Tal como não estava lá nenhuma cabeça dos desaparecidos. E Sila continuava a passear pela cidade com a sua disparatada peruca sempre um bocado de lado e as sobrancelhas e as pestanas pintadas. Mas as pessoas que antes paravam e sorriam ao vê-lo — ainda que sorrissem de piedade —, sentiam agora um buraco terrível crescendo-lhes nas entranhas mal o avistavam ao longe e dispersavam atarantadas em todas as direcções excepto na dele ou disparavam a correr para bem longe. Onde quer que Sila estivesse, nunca havia ninguém por perto. Ninguém se punha a olhar para ele. Ninguém lhe sorria, nem que fosse por piedade. Ninguém o abordava. Ninguém o molestava. Ele deixava no seu rasto um suor frio generalizado, igual ao suor frio que provocavam os espectros saídos do mundus nos dies religiosi.

Nunca nenhuma grande figura pública de Roma estivera envolta em tanto mistério, nunca houvera uma grande figura pública cujos desígnios fossem tão opacos. O seu comportamento não era normal. Deveria ter subido aos rostra para contar a toda a gente, numa linguagem magnificente, quais eram os seus planos, ou para atirar areia retórica aos olhos do Senado. Deveria ter feito discursos que clarificassem os seus intentes, deveria ter proferido litanias de queixas e frases arrebicadas — deveria ter falado! Se não para toda a gente, pelo menos para alguém. Os Romanos não se sentiam inclinados a seguir o seu exemplo. Falavam, falavam, falavam. Os boatos imperavam. Mas Sila, esse, não falava. Apenas dava passeios, aqueles passeios solitários que não evidenciavam a mínima cumplicidade, que não revelavam o mínimo interesse por nada. E no entanto era ele, só podia ser ele, quem comandava os acontecimentos! Sim, aquele homem silencioso, aquele homem que não falava com ninguém, era de facto o senhor de Roma.

Nas Calendas de Dezembro, Sila convocou uma reunião do Senado, a primeira desde que Flaco falara. Ah, com que pressa os Senadores acorreram à Cúria Hostília! Sentindo-se mais frios ainda que o ar invernoso, com pulsações tão rápidas que nem seria possível contá-las, a respiração opressa, as pupilas dilatadas, as entranhas revolvendo-se. Amontoaram-se nos seus bancos como gaivotas atemorizadas pela tempestade, procurando não olhar para o telhado da Cúria, com medo de que lhes acontecesse o mesmo que a Saturnino e aos seus amigos, que haviam sido mortos por uma chuva de telhas.

Nenhum daqueles homens era imune àquele terror inominável: nem mesmo Flaco Princeps Senatus, nem mesmo Metelo Pio, nem mesmo os favoritos militares de Sila, como Ofela, ou os intriguistas como Filipe e Cetego. E no entanto, quando apareceu, Sila tinha um aspecto tão inofensivo! Uma figura patética! A única excepção consistia no facto sem precedentes de ser acompanhado por vinte e quatro lictores, duas vezes mais do que um cônsul poderia ter ou do que qualquer outro ditador tivera.

— É tempo de vos comunicar as minhas intenções — disse Sila do seu assento de marfim, sem se levantar; a sala estava tão fria que as suas palavras eram acompanhadas por jactos de vapor branco. — Eu sou legalmente Ditador, e Lúcio Valério, o Chefe da Casa, é o meu Senhor do Cavalo. De acordo com as cláusulas da lei das Centúrias que me atribuiu este cargo, não sou obrigado a aceitar outros magistrados eleitos, se assim o desejar. Contudo, Roma sempre ligou a passagem dos anos aos nomes dos cônsules de cada ano e eu nada farei para que essa tradição seja anulada. Nem gostaria que as pessoas chamassem a este ano ”O Ano da Ditadura de Lúcio Cornélio Sila”. Por isso, decretarei que sejam eleitos dois cônsules, oito pretores, dois edis curuis e dofe edis plebeus, dez tribunos da plebe e doze questores. E a fim de dar experiência magisterial a homens demasiado jovens para serem admitidos no Senado, determinarei que sejam eleitos vinte e quatro tribunos dos soldados e nomearei três homens como moedeiros e outros três para tratarem das celas e prisões romanas.

Catulo e Hortênsio estavam de tal forma aterrorizados que tinham de apertar com toda a força os esfíncteres anais, não fossem deixar nos bancos algumas marcas da diarréia que lhes atormentava os intestinos; tremiam, mas escondiam as mãos para que os outros não vissem. Incrédulos, ouviam o Ditador dizer que iria realizar eleições para todos os magistrados! Tinham pensado que iriam ser alvejados com telhas ou postos em fila e decapitados, ou então que os mandariam para o exílio e lhes confiscariam todos os bens — estavam à espera de tudo menos daquilo! Estaria Sila inocente? Quem sabe, talvez não soubesse o que se passava em Roma! E, se não sabia, quem era então o responsável pelos desaparecimentos e assassínios?

— Percebem com certeza — prosseguiu o Ditador, com aquela dicção irritantemente indistinta que a falta de dentes provocava — que, quando falo em eleições, não estou a pensar em candidatos. Dir-vos-ei — tal como direi aos vários Comícios — que homens devem eleger. A liberdade de escolha não é possível nestes tempos que vivemos. Eu preciso de homens que me ajudem a realizar o meu trabalho e esses homens têm de ser aqueles que eu quero e não os homens que os eleitores eventualmente quisessem impingir-me. Encontro-me portanto em condições de vos anunciar quais serão os homens que ocuparão todos estes cargos no próximo ano. Escriba, a minha lista! — Recebeu a folha de papel de um funcionário do Senado cuja única função parecia ser guardar a folha, enquanto outro secretário ergueu os olhos do seu trabalho, que consistia em escrever nas tábuas de cera, com um estilete, tudo o que Sila dizia.

— Ora bem. Os cônsules serão Marco Túlio Decula, cônsul sénior, e Cneu Cornélio Dolabela, cônsul júnior.

Não prosseguiu: uma voz ergueu-se para o interromper. Era Quinto Lucrécio Ofela.

— Não! Não! Vais dar o nosso precioso consulado a Decula? Não! Quem é Decula? Uma nulidade que ficou em Roma, longe de todos os perigos, enquanto os melhores homens de Roma lutaram por ti, Sila! Que fez Decula para se distinguir entre todos nós? Tanto quanto eu sei, ele nem sequer teve a oportunidade de limpar o teu podex com a esponja dele! Nunca vi manobra mais miserável, maliciosa e injusta! Quanto a Dolabela, posso entender — todos os teus legados conhecem o contrato que fizeste com ele, Sila! Mas quem é esse Decula? Que fez esse Decula para obter o consulado sénior? Não! Não pode ser!

Ofela parou para respirar. Sila falou então.

— O homem que escolhi para cônsul sénior é Marco Túlio Decula. E assim será.

— Nesse caso, não podes ser autorizado a escolher ninguém, Sila! Teremos candidatos e uma eleição como deve ser. E eu serei candidato!

— Não serás tal — disse calmamente o Ditador.

— Então tenta impedir-me! — gritou-lhe Ofela, abandonando a sala a toda a pressa. Na rua, tinha-se juntado uma multidão, ansiosa por saber os resultados daquela primeira reunião do Senado desde que Sila era Ditador. Essa multidão não era formada por homens que criam ter algo a temer de Sila — esses, tinham ficado em casa. Era uma pequena multidão, mas apesar de tudo uma multidão. Abrindo furiosamente caminho entre aquela gente, Ofela desceu à pressa os degraus do Senado a caminho do anfiteatro dos Comícios.

— Concidadãos romanos! — gritou. — Juntem-se à minha volta e oiçam o que eu tenho a dizer sobre este monarca inconstitucional que, voluntariamente, nomeámos nosso senhor! Ele diz que quer cônsules eleitos. Mas não há candidatos — apenas homens escolhidos por ele! Dois idiotas, dois indivíduos ineficientes e incompetentes — e um deles, Marco Túlio Decula, nem sequer é de família nobre! O primeiro da sua família a sentar-se no Senado, um senador dos bancos de trás que chegou a pretor sob o traiçoeiro regime de Cina e Carbão! E no entanto é ele o cônsul sénior, enquanto homens como eu não são recompensados!

Sila tinha-se levantado e encaminhara-se lentamente até ao pórtico, onde, pestanejando por causa da luz muito forte, seguiu com algum interesse o comportamento de Ofela. Sem chamarem a atenção para as suas pessoas, cerca de quinze homens de aspecto absolutamente normal começaram a juntar-se ao fundo dos degraus do Senado, mesmo em frente dos olhos de Sila.

E, lentamente, os Senadores começaram a sair da Cúria para ver e ouvir o que podiam, fascinados com a calma de Sila, e encorajados também por essa calma — afinal Sila não era o monstro que eles imaginavam, não era, nem podia ser!

— Pois bem, concidadãos romanos! — prosseguiu Ofela, com mais força na voz à medida que avançava no seu discurso. — Eu sou aquele que não se submete a estes insultos! Tenho mais direito a ser cônsul do que uma nulidade chamada Decula! E penso que os eleitores de Roma, se tiverem oportunidade de eleger alguém, acabarão por me preferir aos dois homens de Sila! Tal como haveria outros homens que os eleitores prefeririam se por acaso fizessem como eu, se tivessem a coragem de se apresentar como candidatos!

Os olhos de Sila encontraram-se com os olhos do chefe do grupo de homens vulgares; acentou, suspirou, encostou o seu corpo cansado contra um pilar próximo.

Os homens de aspecto normal avançaram calmamente por entre a escassa multidão, aproximaram-se dos rostra, subiram e agarraram em Ofela. A sua afabilidade era apenas aparente; Ofela lutou desesperadamente, mas isso de nada lhe serviu. Inexoravelmente, dobraram-no até ele cair de joelhos. Depois, um deles pegou numa mancheia do cabelo de Ofela, recuou bastante e puxou até deixar a cabeça e o pescoço perfeitamente expostos. Então, uma espada golpeou os ares. O homem que segurava no cabelo vacilou um pouco, apesar de ter os pés bem assentes, no momento em que a cabeça se separou do corpo de Ofela. Depois, ergueu a cabeça bem alto para que todos pudessem vê-la. Segundos depois, já o Fórum estava vazio de gente, à excepção dos senadores.

— Ponham a cabeça nos rostra — disse Sila, após o que regressou à sala.

Como autômatos, os senadores foram atrás dele.

— Muito bem, onde é que eu ia? — perguntou Sila ao seu secretário que, debruçado sobre as tábuas, murmurou o que tinha escrito. — Ah sim, ia aí! Obrigado! Tinha falado dos cônsules e ia começar com os pretores. Funcionário, a lista! — Sila estendeu a mão, pegou na lista e prosseguiu. — Obrigado! Avancemos... Mamerco Emílio Lépido Liviano. Marco Emílio Lépido. Caio Cláudio Nero. Cneu Cornélio Dolabela o Jovem. Lúcio Fufídio. Quinto Lutácio Catulo. Marco Minúcio Termo. Sexto Nónio Sufenate. Caio Papírio Carbão. Nomeio o jovem Dolabela praetor urbanus e Mamerco pretor peregrinus.

Uma lista verdadeiramente extraordinária! Era evidente que Lépido e Catulo, que, numa eleição normal, poderiam muito bem surgir nos primeiros lugares, não poderiam ser os preferidos, perante dois homens que tinham lutado activamente a favor de Sila. Mas a verdade é que Lépido e Catulo faziam parte da lista dos pretores, quando vários adeptos leais de Sila, com um alto estatuto senatorial e a idade certa, tinham sido preteridos! Fufídio era praticamente um desconhecido. E Nónio Sufenate era o filho mais novo da irmã de Sila. Nero era um Cláudio sem importância. Termo era um bom soldado, mas tão mau orador que se tornara o alvo preferido das piadas do Fórum. E só para irritar todos os partidos, o último lugar da lista dos pretores fora concedido a um membro da família Carbão que apoiara Sila mas que não se distinguira por nenhum feito!

— Pois bem, tu estás na lista — segredou Hortênsio ao ouvido de Catulo. — Só espero que eu faça parte da lista do ano que vem. Ou do ano seguinte. Por todos os deuses, que farsa esta! Como é possível que o suportemos?

— Os pretores não têm importância — murmurou Catulo. — Vão fazer tudo para brilhar! Sila não é parvo, não vai dar o lugar errado ao homem errado. Quem me interessa, no meio disto tudo, é Decula. Um burocrata! Foi por isso que Sila o escolheu. Tinha mesmo de escolhê-lo, pois Dolabela fez chantagem com ele! A política do nosso Ditador será meticulosamente executada e Decula adorará todas as particularidades, todos os momentos, dessa execução.

A reunião prosseguiu na maior monotonia. Um a um, os nomes dos magistrados eram lidos por Sila e nenhuma voz se erguia para protestar. Concluída a lista, Sila devolveu o papel ao funcionário do Senado e assentou as mãos nos joelhos.

— Disse tudo o que queria dizer neste momento. Só me faltou dizer que tomei devida nota da escassez de sacerdotes e augures e que em breve legislarei para resolver o problema. Mas agora escutem-me com atenção! — rugiu ele, repentinamente, provocando um sobressalto geral. — Não haverá mais Religiosos eleitos! É o máximo da irreligiosidade fazer votações para determinar quem servirá os deuses! Transforma algo de solene e formal num circo político e permite a nomeação de homens que não têm qualquer tradição ou gosto pelos deveres sacerdotais. Se os seus deuses não forem adequadamente servidos, Roma não poderá prosperar. — Sila levantou-se então.

Uma voz ergueu-se. com um ar ligeiramente trocista, Sila deixou-se cair na sua cadeira de marfim.

— Queres falar, caro Bacorinho? — perguntou, usando a velha alcunha que Metelo Pio herdara do pai, pois este era chamado de Suíno.

Metelo Pio enrubesceu, mas ergueu-se com um ar muito determinado. Desde que chegara a Roma no quinto dia de Novembro, a sua gaguez — que quase não se fizera sentir nos últimos anos — não cessara de piorar. E ele sabia porquê. A razão era Sila. Que amava, mas temia. Contudo, Metelo Pio continuava a ser o filho de Metelo Pio Numídico, o Suíno, que por duas vezes preferira levar tremendas sovas no Fórum a renegar os seus princípios e que acabara por ir para o exílio para defender esses mesmos princípios. Cumpria-lhe, por isso, seguir as pisadas do pai e manter a honra da família. E a sua própria dignitas.

— Lú-Lú-Lúcio Cornélio, po-po-podes responder a uma per-per-pergunta?

— Estás a gaguejar! — exclamou Sila, quase cantando.

— É ver-ver-verdade. La-la-la-lamento.vou tentar — disse ele com os dentes cerrados. — Tens conhecimento, Lú-Lú-Lúcio Cornélio, de que, em toda a Itália, tal como em Roma, têm sido mortos muitos homens, cujos bens e propriedades têm sido confiscados?

Todo o Senado escutava com a respiração suspensa, aguardando a resposta de Sila: saberia ele do que se passava? era ele o responsável por tudo aquilo?

— Sim, tenho conhecimento — retorquiu Sila.

Um suspiro colectivo, e todos se mexeram e remexeram nos bancos; o Senado sabia já do pior.

Metelo Pio, tenazmente, prosseguiu.

— Eu com-com-com-compreendo que seja necessário castigar os culpados, mas a ninguém foi concedido julga-julgamento. Poderias escla-escla-esclarecer a situação? Poderias, por exemplo, di-di-di-dizer-me que limites vais definir? Ou seja: há alguns homens a quem vai ser concedido julgamento? E quem diz se esses homens cometeram ou não traição, caso não se-se-sejam julgados num tribunal adequado?

— A minha ordem é para que esses homens morram, meu caro Bacorinho — disse o Ditador com voz firme. — Nãovou desperdiçar o dinheiro e o tempo do Estado com julgamentos de homens que são clara e inequivocamente culpados.

O Bacorinho voltou à carga.

— Então po-po-podes dar-me uma ideia de quem tencionas poupar?

— Receio bem que não — disse o Ditador.

— Então, se não sa-sa-sa-sabes quem vai ser poupado, poderás dizer-me quem tencionas punir?

— Sim, meu caro Bacorinho, isso já posso fazer.

— Nesse caso, Lú-Lú-Lúcio Cornélio, serias capaz de partilhar essa informação connosco? — concluiu Metelo Pio, profundamente aliviado por ter acabado.

— Hoje não — disse Sila. — Voltaremos a reunir-nos amanhã. Toda a gente regressou aos primeiros raios de sol do dia

seguinte, mas poucos pareciam ter dormido em condições.

Sila estava à espera dos senadores, sentado na sua cadeira curul. Um escriba estava sentado a uma mesa com o estilete e as tábuas de cera, o outro segurava num rolo de papel. Logo que a reunião foi confirmada pelo sacrifício e pelos augúrios, Sila pediu o rolo. Olhou directamente para o pobre Metelo Pio, desfigurado pela inquietação.

— Esta — disse Sila — é uma lista de homens que ou já morreram como traidores ou morrerão em breve pela mesma razão. Os seus bens e propriedades pertencem agora ao Estado e serão vendidos em hasta pública. E qualquer homem ou mulher que encontre um dos homens que tem o nome nesta lista será protegido contra toda e qualquer retaliação se ele ou ela executar o indivíduo em questão. — O rolo de papel foi então entregue ao chefe dos lictores de Sila. — Afixa este rolo nas paredes dos rostra — disse Sila. — Então todos os homens ficarão a saber a resposta à questão que só o meu querido Bacorinho teve a coragem de levantar,

— Nesse caso, se eu vir um dos homens dessa lista, posso matá-lo? — perguntou ansioso Catilina; embora ainda não fosse senador, Sila tinha-lhe permitido assistir às reuniões

do Senado.

— Claro que podes, meu querido lambe-pratos! E ganhas dois talentos de prata se o fizeres! — disse Sila. — Legislarei ainda um programa de proscrições — como é evidente, não farei nada que não tenha a força da lei! A recompensa será incorporada na legislação e todas essas transacções serão inscritas nos livros, a fim de que a Posteridade venha a saber quem é que, nos nossos dias, lucrou.

Aquilo fora dito gravemente, mas homens como Metelo Pio não tiveram a mínima dificuldade em discernir a malícia de Sila naquelas palavras; como seria de esperar, homens como Lúcio Sérgio Catilina (se é que alguma vez conseguiam aperceber-se da malícia de Sila) não viram mais do que o óbvio.

 

”Catilina” significava precisamente ”aquele que lambia os pratos”. (N. do T.)

 

A primeira lista de homens prescritos incluía quarenta senadores e sessenta e cinco cavaleiros. Os nomes de Caio Norbano e de Cipião Asiágeno vinham à frente, com Carbão e o jovem Mário imediatamente a seguir. Carrinas, Censorino e Bruto Damasipo faziam parte da lista, mas isso já não sucedia com o velho Bruto. A maior parte dos senadores estavam já mortos. No entanto, o grande objectivo das listas era informar Roma acerca das confiscações; elas não referiam quem estava já morto ou quem vivia ainda. A segunda lista foi afixada nos rostra no dia seguinte e incluía duzentos cavaleiros. E uma terceira lista surgiu um dia depois, com duzentos e quinze nomes de cavaleiros. Pelos vistos, Sila tinha saldado as suas contas com o Senado; o seu verdadeiro alvo era a Ordo Equester.

A sua leges Corneliae acerca dos regulamentos e das actividades relacionadas com a prescrição era exaustiva. Contudo, o grosso dessas medidas surgiu por um período de apenas dois dias, no princípio de Dezembro, e, pelas Nonas desse mês, já estavam todas integradas numa directiva de Deculo, tal como Catulo tinha profetizado. Não havia contingência que não tivesse sido levada em conta. Todos os bens da família de um homem proscrito eram agora propriedade do Estado e não poderiam ser transferidos para o nome de um qualquer herdeiro inocente de transgressão; o testamento de um proscrito não podia ser válido e os herdeiros nele nomeados não podiam herdar; o proscrito podia ser legalmente executado por qualquer homem ou mulher que o visse, fosse esse homem ou mulher livre, liberto, ou escravo; a recompensa pelo assassínio ou detenção de um proscrito era de dois talentos de prata, e o Tesouro pagá-la-ia com o dinheiro obtido com as confiscações e assiná-la-ia nos livros da contabilidade pública; um escravo com direito a tal recompensa seria libertado, e um homem liberto nessas condições seria integrado numa tribo rural; todos os homens — civis ou militares — que, depois de Cipião Asiágeno ter rompido a sua trégua, haviam apoiado Carbão ou o jovem Mário eram declarados inimigos públicos; qualquer homem que oferecesse apoio ou amizade a um proscrito era declarado inimigo público; os filhos e os netos dos proscritos eram impedidos de assumir um cargo curul e proibidos de comprar propriedades confiscadas ou de chegar à sua posse através de quaisquer outros meios; os filhos e os netos daqueles que já estavam mortos teriam o mesmo castigo que os filhos e os netos dos que, fazendo parte da lista, ainda se encontravam vivos. A última lei deste love, promulgada no quinto dia de Dezembro, declarava que o processo de proscrição cessaria no primeiro dia do mês de Junho seguinte. Seis meses depois.

Deste modo impôs Sila a sua ditadura, mostrando que era não só o senhor de Roma, mas também um mestre do terror e do suspense. Os muitos dias de agonia causados pela terrível doença de pele não tinham sido inteiramente consumidos pelos tormentos ou pelo estupor causado pela bebida; Sila tinha tido tempo para pensar em muitas e muitas coisas. Tinha tido tempo para pensar na melhor maneira de se tornar o senhor de Roma; no melhor procedimento a seguir logo que se tornasse senhor de Roma; na melhor maneira de criar uma atitude mental em todos os homens, mulheres e crianças que lhe permitisse fazer o que havia a fazer sem oposição, sem revolta. Não seria com soldados patrulhando as ruas que conseguiria os seus intentos, mas sim com sombras que penetrassem nos espíritos, com medos que conduziam à esperança tanto como ao desespero. Os seus apoiantes seriam gente anônima. Aqueles que, sorrateiramente, espreitavam o vizinho ou o amigo, aqueles que apressadamente se escondiam nas sombras da rua, mal o vizinho ou o amigo se virava para trás. Sila tencionava criar um clima, e não um tempo. com o tempo podiam os homens bem. Mas com os climas? Ah, os climas podiam revelar-Se insuportáveis.

E, enquanto coçava a pele da cara e a reduzia a farrapos de carne viva, tinha tido tempo para pensar na sua imagem futura: a de um homem velho, feio e decepcionado com a vida, a quem haviam dado o mais belo brinquedo do mundo: Roma. A quem haviam dado os homens e mulheres de Roma, os cães e os gatos, os escravos e os libertos, a gente de baixa extracção e os cavaleiros e os nobres. No meio de tanta dor, Sila tinha tido tempo para atentar meticulosamente em todos os seus vivos ressentimentos, em todos os seus sombrios rancores. E para alcançar um intenso alívio através da congeminação, muito precisa, da sua vingança.

Agora, o Ditador já estava em Roma.

Agora, o Ditador já tinha nas suas mãos, nas suas jubilosas mãos, o seu novo brinquedo.

 

Tudo estava a correr muito bem, concluiu Lúcio Cornélio Sila no princípio de Dezembro. A maioria dos homens continuava hesitante perante a ideia de matar um proscrito, mas havia uns quantos, como Catilina, que não se coibiam em dar o exemplo. Por outro lado, o total em dinheiro e bens confiscados não parava de crescer. Evidentemente, eram o dinheiro, os bens e as propriedades que tinham levado Sila a escolher aquele caminho particular; de facto, as vastas somas de que Roma precisava para recuperar a solvência financeira teriam de vir de algum lado. Em circunstâncias mais normais, teriam vindo dos cofres das províncias, mas, devido às acções de Mitridates no Oriente e ao facto de Quinto Sertório ter conseguido restringir os rendimentos vindos das Espanhas, não seria possível retirar somas adicionais das províncias durante algum tempo. Portanto, Roma e a Itália teriam de ser as fontes únicas do dinheiro — com a ressalva de que a carga não poderia ser suportada pelo povo comum, nem por aqueles que tinham demonstrado inequivocamente a sua lealdade à causa de Sila.

Sila nunca gostara da Ordo Equester — as noventa e uma Centúrias da Primeira Classe que integravam os cavaleiros-homens de negócios, e especialmente as dezoito Centúrias de cavaleiros séniores que tinham direito ao Cavalo Público. Entre estes cavaleiros, havia muitos que tinham prosperado imenso sob as administrações de Mário, Cina e Carbão; e Sila decidiu que seriam precisamente estes homens quem haveria de pagar a conta da recuperação econômica de Roma. Uma solução perfeita!, pensou o Ditador, exultante de satisfação. com uma só cajadada matava dois coelhos: o Tesouro ficava cheio; os seus inimigos, pura e simplesmente, eram eliminados.

Além disso, tinha tempo para se dedicar a um dos seus outros ódios de estimação — o Sâmnio. Decidindo que o caso do Sâmnio teria de ser tratado da forma mais dura possível, enviou para essa infeliz região os mais cruéis dos seus homens: Cetego e Verres. E quatro legiões de bons soldados.

— Não deixem nada de pé — disse ele. — Quero ver o Sâmnio completamente destroçado, de tal modo que mais ninguém queira viver nessas paragens, nem mesmo o mais velho e o mais patriota dos Samnitas. Deitem abaixo árvores, destruam campos, pomares e cidades. — Sila pôs um sorriso aterrador e acrescentou: — E cortem as cabeças a todas as papoilas mais viçosas...

Isso mesmo! Seria uma boa lição para o Sâmnio! E, ao mesmo tempo, Sila ficava livre de dois homens que, no ano seguinte, poderiam ser muito incômodos para ele. Cetego e Verres não voltariam tão depressa! É que, no Sâmnio, poderiam ganhar muito mais dinheiro do que aquele que mandariam para o Tesouro.

Talvez tivesse sido bom para outras regiões de Itália que a família de Sila tivesse chegado a Roma nesse instante, devolvendo-lhe uma normalidade de cuja necessidade ou falta ele não se apercebera. Em primeiro lugar, porque nunca pensara que, ao rever Dalmática, se sentisse tão fortemente perturbado; sentiu os joelhos a ceder e teve de sentar-se imediatamente, ficando a olhar para ela embasbacado, como se fosse um rapaz imberbe surpreendido com o aparecimento da mulher desejada e inatingível.

Muito bela — mas isso ele sempre soubera —, com os seus grandes olhos cinzentos e a pele morena, da mesma cor do cabelo, e aquela expressão amorosa que nunca parecia mudar ou esbater-se, por muito velho e feio que ele estivesse. E de súbito ali estava ela, sentada no colo dele, com os braços à volta daquele pescoço balofo, os seios encostados à cara dele, acariciando a cabeça cheia de marcas de crostas e beijando-a, sim, beijando-lhe a cabeça como se ele ainda tivesse o seu belo e glorioso cabelo ruivo, de que tanto se orgulhava em jovem — ah, a sua peruca, onde estava a sua peruca? Mas nesse momento já ela lhe puxava a cabeça para trás e beijava-o na boca e aquela doce e bela boca conseguia devolver a vida aos lábios velhos e franzidos de Sila... E a juventude voltava aos braços dele e, ao mesmo tempo que se levantava, erguia-a também e levava-a em triunfo para o seu quarto... Chegados ao quarto, Dalmática transformou-se, aos seus olhos, em algo mais que um triunfo. Talvez afinal eu seja capaz de amar, pensou ele, mergulhando no corpo dela.

— Ah, tive tantas saudades tuas! — disse ele.

— E eu tenho-te tanto amor — disse ela... — Dois anos... Foram dois anos.

— Mais do que dois mil anos.

. Porém, passado o primeiro fervor do reencontro, Dalmática transformou-se na esposa e examinou-o com um prazer imenso. — A tua pele está muito melhor! — Consegui o unguento de Morsimo.

— E já não faz comichão?

— Não, já não faz.

Depois, Dalmática tornou-se a mãe e não descansou enquanto ele não acedeu a acompanhá-la ao quarto das crianças para falar aos gémeos: Fausto e Fausta.

— Não estão muito mais crescidos desde o momento em que nos separámos — disse ele, soltando um suspiro. — Parecem-se com Metelo Numídico.

Ela deu um risinho.

— Eu sei... Pobrezinhos!

E o risinho de Dalmática selou aquele que fora um dos dias mais felizes de toda a vida de Sila: ela ria-se com ele!

Sem saberem por que razão a mamã e aquele velho engraçado se agarravam um ao outro de tanto rirem, os gémeos puseram-se a olhar para eles com um sorriso incerto até que, de tanto os verem rir, não resistiram e juntaram-se ao coro de gargalhadas. E embora não se pudesse dizer que Sila chegava a amá-los no meio daquela explosão de risos, pelo menos decidiu que os dois pequeninos eram criaturas simpáticas — apesar de serem parecidos com o tio-avô, Quinto Cecílio Metelo Numídico, o Suíno. Que o pai deles tinha assassinado. Que ironia!, pensou o pai de Fausto e Fausta: será uma espécie de castigo que os deuses me infligiram? Mas só os Gregos acreditam nisso, e eu não sou grego, sou romano. Além do mais, já estarei morto há muito tempo quando estes dois tiverem idade suficiente para castigar alguém.

Os restantes recém-chegados também estavam bem, designadamente a filha de Sila, Cornélia Sila, já viúva, e os seus dois filhos.

Pompeia, a menina, tinha agora oito anos e era uma criança completamente absorvida pela sua beleza, da qual tinha consciência plena. Aos seis anos de idade, o rapaz, Quinto Pompeu Rufo, prometia justificar totalmente o seu último nome, pois era vermelho em tudo: cabelo, pele, olhos, temperamento.

— E como está o meu convidado que não pode atravessar o pomerium e entrar em Roma? — perguntou Sila ao seu chefe dos criados, Crisógono, que tivera a missão de cuidar do bem-estar da família.

Um pouco mais magro agora (não era uma tarefa fácil cuidar de tantas pessoas tão diferentes entre si, reflectiu Sila), o chefe dos criados ergueu os seus expressivos olhos negros para o tecto e encolheu os ombros.

— Temo, Lúcio Cornélio, que ele se recuse a permanecer fora do pomerium, a menos que tu o visites pessoalmente e lhe expliques as razões exactas. Eu bem tentei! Mas ele considera-me um lacaio, incapaz de merecer o seu desprezo, quanto mais a sua confiança!

Aquela era uma reacção típica de Ptolemeu Alexandre, pensou Sila enquanto saía da cidade a caminho da estalagem da Via Ápia, perto do primeiro marco miliário, onde Crisógono alojara o altivo e hipersensível príncipe do Egipto, o qual, apesar de se encontrar há três anos sob a custódia de Sila, só agora começava a tornar-se um pesado fardo.

”Afirmando ser um refugiado da corte do Ponto, o jovem príncipe aparecera em Pérgamo, pedindo a Sila que lhe concedesse asilo; Sila ficara fascinado. É que aquele jovem era nem mais nem menos do que Ptolemeu Alexandre, o Jovem, único filho legítimo do Faraó, o qual morrera tentando recuperar o trono no mesmo ano em que Mitridates capturara o filho, que vivia em Cos com os seus dois primos bastardos. Os três príncipes do Egipto tinham sido mandados para o Ponto e o Egipto caíra em poder do irmão mais velho do falecido Faraó, Ptolemeu Soter, por alcunha Latiro (que significava ”grão-de-bico”), o qual se atribuíra o título de Faraó.

Logo que vira Ptolemeu Alexandre, o Jovem, Sila compreendera por que razão o Egipto preferira ser governado pelo velho Latiro, o Grão-de-Bico. Ptolemeu Alexandre, o Jovem, era tão efeminado que chegava ao extremo de se vestir como uma reincarnação de ísis, com vaporosos tecidos atados e moldados à maneira das deusas helenizadas do Egipto, com uma coroa dourada sobre a sua cabeleira de caracóis dourados, e uma elaborada maquilhagem. Andava com requebros, lançava olhares amorosos aos homens, falava num tom afectado e ciciado, todo ele era uma vibração, um alvoroço feminino; e no entanto, pensava Sila com alguma perspicácia, sob aquela fachada efeminada vivia uma alma de aço.

Ptolemeu descrevera a Sila os três anos horríveis em que fora prisioneiro da corte daquele que era o mais militante de todos os heterossexuais, Mitridates; o rei do Ponto, que acreditava sinceramente que os homens efeminados podiam ser ”curados”, sujeitara o jovem Ptolemeu Alexandre a uma infindável série de humilhações e degradações, com o intuito de libertar o pobre rapaz das suas inclinações. Mas a obra de Mitridates saldara-se por um rotundo fracasso. Obrigado a ir para a cama com cortesãs do Ponto e mesmo com vulgares prostitutas, Ptolemeu Alexandre não fora capaz de fazer nada com elas, a não ser baixar a cabeça e vomitar para o chão. Obrigado a usar armadura e a fazer marchas com uma centena de soldados que o escarneciam, caíra desmaiado depois de muito chorar; finalmente, bateram-lhe e açoitaram-no, mas, para sua grande surpresa, os soldados que o castigavam verificaram que um tal tratamento o excitava; levado a um tribunal na praça do mercado de Amiso, vestido com o que tinha de melhor e maquilhado a preceito, foi condenado a apanhar com uma chuva de fruta, ovos e legumes podres, e mesmo de pedras, mas a tudo resistiu sem mostrar arrependimento.

A sua grande oportunidade surgiu quando Mitridates começou a vacilar perante Sila e a corte se desintegrou. O jovem Ptolemeu Alexandre tinha fugido.

— Os meus primos bastardos preferiram ficar em Amiso, é claro — disse ele a Sila, no seu tom ciciado. — A atmosfera dessa corte abominável está mesmo bem para eles! Estavam doidos por se casar e casaram mesmo, com as filhas de Mitridates e de Antíoca, a esposa dele que é meio parta, meio selêucida. Pois bem, eles que fiquem com Ponto e com todas as filhas do rei! Ah, o que eu odeio aquela terra!

— E que queres de mim? — perguntara Sila.

— Asilo. Abrigo em Roma quando lá voltares. E, quando Latiro morrer, o trono egípcio. Ele tem uma filha, Berenice, que reina ao lado dele como rainha. Mas, como é evidente, ele não pode casar-se com ela — só poderia casar-se com uma tia, uma prima, ou uma irmã, e tias, primas e irmãs é coisa que ele não tem. Pela ordem natural das coisas, a rainha Berenice sobreviverá ao pai. O trono egípcio é matrilinear, o que significa que um rei só pode ser rei através do casamento com a rainha ou com a mais velha das princesas da linhagem. Eu sou o único Ptolemeu legítimo vivo. Os Alexandrinos — que são os únicos que têm voto na matéria, pois os Ptolemeus da Macedónia estabeleceram a sua capital aí e não em Mênfis — querem que eu suceda a Latiro e consentirão que eu me case com a rainha Berenice. Por isso, quando Latiro morrer, quero que me mandes para Alexandria, a fim de eu reclamar o trono — com a benção de Roma.

Sila reflectiu sobre o assunto por um momento, olhando divertido para Ptolemeu Alexandre. Depois, perguntou-lhe:

— Pode ser que cases com a rainha, mas serás capaz de lhe fazer filhos?

— Provavelmente, não — retorquiu o príncipe sem perder a compostura.

— Nesse caso, que sentido faz casares com ela? — perguntou Sila.

Ptolemeu Alexandre, pelos vistos, não enxergava sentido nenhum no casamento.

— Eu quero ser Faraó do Egipto, Lúcio Cornélio — disse ele solenemente. — O trono, por direito, é meu. O que possa acontecer ao trono depois da minha morte é irrelevante.

— E quais são os outros candidatos ao trono?

— Apenas os meus primos bastardos. Que agora são amigos de Mitridates e Tigranes. Eu consegui fugir quando um mensageiro de Mitridates nos veio dizer que tínhamos de ir os três para a corte de Tigranes, o qual está a alargar o seu reino conquistando a Síria. Suponho que o objectivo desta manobra era impedir que ficássemos sob protecção romana caso o Ponto caísse.

— Nesse caso, os teus primos bastardos podem não estar em Amiso.

— Estavam em Amiso quando eu fugi. Quanto ao que se passou depois, nada sei.

Sila pôs a sua pena de lado e fitou com um olhar frio e sombrio aquela carrancuda e arrebicada criatura.

— Muito bem, príncipe Alexandre, eu concedo-te asilo. Quando regressar a Roma, poderás acompanhar-me. Quanto à tua eventual conquista da Dupla Coroa do Egipto — bom, talvez seja melhor discutir o caso quando chegar o momento certo.

Mas o momento certo ainda não chegara e Sila antevia já que Ptolemeu Alexandre, o Jovem, lhe ia levantar certos problemas. Era evidente que Sila tinha um plano em mente; caso contrário, teria mandado imediatamente o jovem para Alexandria e para o tio Latiro e lavado daí as suas mãos. Mas ocorrera-lhe esse plano logo no primeiro encontro com o príncipe e agora só podia esperar dispor de suficiente tempo de vida para testemunhar os resultados do seu projecto; Latiro era muito mais velho que Sila e, no entanto, parecia gozar da melhor das saúdes. Alexandria tinha um clima saudável, era o que se dizia.

— No entanto, príncipe Alexandre — disse Sila depois de se ter instalado no melhor salão da estalagem —, eu não poderei hospedar-te a expensas de Roma enquanto o teu tio estiver vivo, e pode ser que viva muitos anos ainda. Nem mesmo num sítio como este.

Nos olhos negros do jovem surgiu uma chispa de fúria; Ptolemeu Alexandre ergueu-se como uma serpente pronta a atacar.

— Num sítio como este? Eu preferia voltar a Amiso do que ficar num sítio como este!

— Em Atenas — disse calmamente Sila — ficaste regiamente hospedado, a expensas dos Atenienses, mas isso deveu-se unicamente ao facto de o teu tio ter presenteado Atenas com imensas ofertas, depois de eu ter sido obrigado a saquear uma parte da cidade. bom, mas isso era com Atenas, unicamente. Tu não me custaste nada. O problema é que, aqui, podes custar uma fortuna, uma fortuna que Roma não conseguirá suportar. Por isso, ofereço-te duas hipóteses. Podes embarcar para Alexandria, a expensas de Roma, e fazer as pazes com o teu tio Latiro. Ou então negoceias um empréstimo com um dos banqueiros desta cidade, alugas uma casa e criados no Pinciano ou noutro local aceitável fora do pomerium e permaneces aqui até o teu tio morrer.

Era difícil dizer se Ptolemeu Alexandre estava pálido, tão pesada era a sua maquilhagem; mas Sila imaginou que sim, pois o jovem parecia ter perdido o ardor inicial.

— Eu não posso ir para Alexandria! O meu tio matava-me!

— Então negoceia um empréstimo.

— Está bem, eu faço isso! Mas diz-me como!

-— Eu mando-te Crisógono, ele dar-te-á todas as informações necessárias. É um campo que ele conhece muito bem. — Sila não se tinha sentado e encaminhava-se já para a porta. — A propósito, príncipe Alexandre: não poderás, em circunstância alguma, atravessar os limites sagrados de Roma.

— Morrerei de tédio!

Sila exibiu o seu famoso sorriso trocista.

— Duvido que morras de tédio, quando se souber que tens dinheiro e uma bela casa. A água dos rios encontra sempre o seu caminho para o mar. Alexandria fica muito longe de Roma e eu devo partir do princípio de que serás o rei legítimo depois de Latiro morrer. E a notícia da morte de Latiro ainda demorará algum tempo a chegar a Roma. Portanto, como Roma não tolera nenhum soberano reinante dentro dos seus limites, tu terás de permanecer no exterior desses limites. Não poderás infringir essa regra. Se a infringires, não precisarás de ir a Alexandria para ter uma morte prematura.

Ptolemeu Alexandre desatou num choro.

— És uma pessoa horrenda, uma pessoa odiosa!

Sila saiu nesse instante e encaminhou-se para a Porta Capena; enquanto caminhava, pensava naquela cena e, de quando em quando, soltava um risinho. Que pessoa horrenda e odiosa, aquele Ptolemeu Alexandre! Mas que útil que ele seria se Latiro fizesse o favor e tivesse o bom senso de morrer enquanto Sila fosse Ditador! Sila não se pode impedir de dar um saltinho de prazer ao pensar no que ia fazer quando o trono do Egipto ficasse vago.

Sila não se dava conta, enquanto caminhava, de que os seus risinhos e o seu pulo e a sua própria maneira de andar eram sinais de terror para todos os homens ou mulheres que por acaso o vissem passar. Nem podia dar-se conta: a sua mente estava em Alexandria, na lendária Alexandria.

No entanto, a questão que mais ocupava a mente de Sila era a religião. Como a maior parte dos Romanos, também ele não pensava no nome de um deus, fechava os olhos e visualizava imediatamente uma criatura humana — não, isso era o que os Gregos faziam, isso era ser-se grego. Naqueles tempos, era sinal de cultura e sofisticação mostrar Belona como uma deusa armada, Ceres como uma bela matrona levando um feixe de trigo, Mercúrio com um capacete com asas e sandálias igualmente com asas, porque uma sociedade helenizada era uma sociedade superior, porque uma sociedade helenizada desprezava uma visão dos deuses, por assim dizer, mais ”divina”, considerando que uma tal visão tornava os deuses primitivos, destituídos de uma aura intelectual, incapazes de comportamentos tão complexos como o comportamento humano. Para os Gregos, os deuses eram essencialmente seres humanos dotados de poderes sobre-humanos; os Gregos não conseguiam conceber um ser mais complexo que o homem. Assim, Zeus, que era o rei do panteão grego, funcionava como um censor romano — poderoso mas não omnipotente — e atribuía tarefas aos outros deuses, os quais se deleitavam em enganá-lo, em fazer chantagem com ele, enfim, em comportar-se de certo modo como tribunos da plebe.

Mas Sila, um romano, sabia que os deuses eram muito menos tangíveis do que os Gregos criam: não eram humanóides e não tinham olhos nas cabeças, nem mantinham conversas, nem possuíam poderes sobre-humanos, nem experimentavam a integração e a diferenciação dos processos de pensamento específicos de um homem. Sila, um romano, sabia que os deuses eram forças específicas que desencadeavam eventos específicos ou controlavam outras forças inferiores a eles. Nutriam-se das forças vitais e por isso gostavam que lhes fossem sacrificadas criaturas vivas; necessitavam da ordem e do método no mundo vivo tanto como no seu próprio mundo, porque a ordem e o método no mundo vivo contribuíam para manter a ordem e o método nesse mundo de forças.

Havia forças que impregnavam despensas, armazéns, silos e celeiros e que gostavam de vê-los cheios — eram os Penates. Havia forças que permitiam que os navios navegassem e que velavam pelas encruzilhadas e que davam um sentido aos objectos inanimados — eram os Lares. Havia forças que velavam para que as árvores se desenvolvessem naturalmente, que as obrigavam a crescer com os ramos e as folhas elevando-se nos ares, enquanto as suas raízes se enterravam na terra. Havia forças que faziam com que a água doce e os rios descessem das alturas até ao mar. Havia uma força que a uns quantos homens dava sorte, a outros sorte nenhuma e à maior parte um pequeno quinhão de sorte — e essa força chamava-se fortuna. E a força chamada Júpiter Optimus Maximus era a soma de todas as outras forças, o tecido que as ligava a todas de uma forma que era lógica para essas forças, ainda que misteriosa para os homens.

Aos olhos de Sila, era evidente que Roma estava a perder o contacto com os seus deuses, com as suas forças. Senão, por que razão ardera o Grande Templo? Porque teriam ardido os seus precisos arquivos? Os livros proféticos? Os homens estavam a esquecer-se das coisas secretas, das fórmulas e dos padrões rigorosos que atraíam as forças divinas. A eleição de sacerdotes e augures perturbava o equilíbrio dos colégios sacerdotais, impedia os pequenos ajustamentos que só eram possíveis quando as mesmas famílias ocupavam as mesmas posições religiosas desde há muito, muito tempo, e para toda a eternidade.

Por isso, antes de canalizar as suas energias para uma restauração das débeis instituições e leis de Roma, deveria, em primeiro lugar, purificar o aether de Roma, estabilizar as suas forças divinas, permitir-lhes que exercessem a sua acção sem entraves. Como poderia Roma ter a sorte do seu lado se um dos seus filhos chegara ao ponto de cometer a enormidade de gritar o seu nome secreto? Como poderia Roma aspirar à prosperidade quando os homens saqueavam os seus templos e assassinavam os seus sacerdotes? Claro que Sila não se lembrava de que ele próprio desejara, em tempos, saquear os templos de Roma; lembrava-se apenas de que não o tinha feito, embora fosse combater um verdadeiro inimigo. Também não se lembrava do que sentia em relação aos deuses antes de a doença e o vinho o terem arruinado fisicamente.

No incêndio do Grande Templo havia uma mensagem implícita, disso estava ele certo. E tinha-lhe cabido a ele deter o caos, anular a tendência para a mais completa desordem. Se assim não fosse, as portas que deveriam estar fechadas abrir-se-iam de par em par e as portas que deveriam estar abertas cerrar-se-iam.

Sila decidiu então chamar os sacerdotes e os augures à sua presença, no mais antigo dos templos de Roma, o templo de Júpiter Ferétrio, no Capitólio. Tão antigo que fora dedicado por Rómulo e construído com blocos de tufo, sem estuque nem decorações; tinha apenas duas colunas quadradas para suportar o pórtico e não continha nenhuma imagem. Sobre um simples pedestal quadrado, tão antigo como o templo, encontravam-se um vulgar bastão de prata e ouro tão longo como meio braço de um homem e uma quantidade de objectos de sílica, negros e vítreos. A única luz admitida no seu interior era a que penetrava pela porta e o templo cheirava a séculos e séculos de vida — a excrementos de rato, a bolor, a humidade, a pó. A sua única sala não tinha mais do que três por dois metros e por isso Sila ficou contente com o facto de o Colégio dos Pontífices e o Colégio dos Augures se encontrarem muito desfalcados.

O próprio Sila era augure. Também o eram Marco António, o jovem Dolabela e Catilina. Quanto aos sacerdotes, Caio Aurélio Cota era o que estava há mais tempo no seu Colégio; Metelo Pio vinha logo atrás, tal como Flaco, o Senhor do Cavalo e Princeps Senatus, e que era também o flamen Martialis. Catulo, Mamerco, o Rex Sacrorum Lúcio Cláudio, do único ramo dos Cláudios cujo nome próprio era Lúcio — e um pontífice que se sentia muito pouco à vontade, Bruto, o filho do velho Bruto, que não pensava noutra coisa senão na sua eventual proscrição.

— Não temos Pontifex Maximus — começou Sila. — Por outro lado, somos poucos. Podia ter escolhido um sítio mais confortável para nos reunirmos, mas suspeito que um pouco de desconforto não desagradará aos nossos deuses! Durante algum tempo, considerámo-nos superiores aos nossos deuses e, por isso, os nossos deuses estão infelizes. Consagrado no mesmo ano em que a nossa República nasceu, o nosso templo de Júpiter Optimus Maximus não foi devorado pelo fogo por mero acidente. Estou certo de que isso sucedeu porque Júpiter Optimus Maximus sente que o Senado e o Povo romanos o defraudaram, não lhe dando o que ele merecia. Não somos imaturos e crédulos ao ponto de aderirmos às crenças bárbaras na ira divina. O raio que mata uma pessoa ou o pilar que nos esmaga não passam de fenómenos naturais, limitando-se a indicar a pouca sorte da pessoa atingida. Mas os fenómenos estranhos ou contrários às leis da natureza, os portenti, constituem uma indicação de que os deuses se sentem infelizes e o incêndio do Grande Templo é um terrível portentum. Se tivéssemos conservado os Livros Sibilinos, poderíamos descobrir mais coisas acerca do assunto. Mas os Livros Sibilinos foram também consumidos pelo fogo, tal como os nossos fasti dos cônsules, as Doze Tábuas originais e muito mais coisas.

Havia quinze homens presentes e o espaço era pouco para que orador e audiência se dispusessem adequadamente; por isso, Sila limitou-se a permanecer no meio deles e a falar num tom de voz normal.

— Como Ditador, a minha tarefa consiste em fazer regressar a religião de Roma à sua velha forma, e em fazer com que todos vocês trabalhem para a realização desse objectivo. Ora, eu posso promulgar as leis, mas cabe a vocês executá-las. Há um ponto em que não transijo, porque tenho tido sonhos, porque sou um augure e sei que estou certo. Para ser mais claro: invalidarei a lex Domitia de sacerdotiis, que o nosso Pontifex Maximus de há uns anos atrás, Cneu Domício Aenobarbo, teve tanto prazer em nos impor. E por que razão o fez? Porque sentiu que a sua família fora insultada e que ele próprio fora desprezado. Estas são razões baseadas no orgulho pessoal e não num espírito verdadeiramente religioso. Acredito que Aenobarbo Pontifex Maximus indispôs os deuses, e em especial Júpiter Optimus Maximus. Sendo assim, não haverá mais eleições de sacerdotes. Nem mesmo para o cargo de Pontifex Maximus.

— Mas o Pontifex Maximus sempre foi eleito! — exclamou Lúcio Cláudio, o Rex Sacrorum, surpreendido. — Ele é o Sacerdote Máximo da República! A sua nomeação tem de ser democrática!

— Pois eu respondo que não. A partir de agora, também ele será escolhido pelos seus colegas do Colégio dos Pontífices — disse Sila num tom que não admitia contestação. — E tenho toda a razão para tomar esta medida.

— Não sei... — ia a dizer Flaco, mas desistiu logo que os seus olhos encontraram o terrível olhar de Sila.

— Pois eu sei! Portanto, acabou-se a discussão! — O olhar de Sila passeou por todos aqueles rostos acabrunhados e calou todos os eventuais protestos. — Penso também que desagrada aos nossos deuses que haja tão poucos sacerdotes. Por isso, tenciono dar a cada um dos colégios sacerdotais — tanto os principais como os secundários — um número maior de membros: quinze, em vez dos antigos dez ou doze. Já basta desta tortura de cada homem ter de fazer dois trabalhos ao mesmo tempo! Além disso, quinze é um número de sorte, o fulcro em torno do qual o treze e o dezassete — os números aziagos — giram. A magia é importante. A magia abre caminhos para as forças divinas avançarem. Acredito que os números têm uma magia muito forte. Por isso, desenvolveremos a magia para benefício de Roma, como é nosso dever sagrado.

— Talvez — ousou Metelo Pio — pu-pu-pudéssemos apresentar um ú-ú-único candidato a Pontifex Maximus... Dessa forma, mantinha-se o processo eleitoral.

— Não haverá processo eleitoral! — ripostou Sila. Seguiu-se um pesado silêncio. Nada mexia naquela estreita sala. Momentos depois, Sila reatou o seu discurso.

— Há um sacerdote que não vejo com bons olhos, por uma série de importantes razões. Estou a referir-me ao nosso flamen Dialis, o jovem Caio Júlio César. Depois da morte de Lúcio Cornélio Mérula, Caio Mário e o seu corrupto adepto Cina nomearam o jovem César sacerdote especial de Júpiter. Os homens que o escolheram, só por si, já são suficientemente sinistros! Infringiram o habitual processo de selecção, o qual deveria ter envolvido todos os colégios. Uma outra razão para a minha inquietação tem a ver com os meus próprios antepassados, pois o primeiro Cornélio que foi cognominado Sila era flamen Dialis. Mas o incêndio do Grande Templo é, de longe, a mais ominosa das razões. Por tudo isto, tratei de me informar acerca deste jovem e fiquei a saber que ele se recusou terminantemente a observar os regulamentos relacionados com o seu cargo antes de assumir a toga virilis. Desde então, tanto quanto sei, o seu comportamento tem sido ortodoxo. Ora, o modo como ele se comportou antes pode perfeitamente ter sido um sintoma da sua juventude. Mas aquilo que eu penso não é importante. Que pensa Júpiter Optimus Maximus? Isso é que é importante! Porque, meus colegas sacerdotes e augures, eu verifiquei que o incêndio do templo de Júpiter se extinguiu dois dias antes dos Idos de Quinctilis. Ora o flamen Dialis nasceu nesse mesmo dia do ano. Um presságio!

— Podia ser um bom presságio — disse Cota, que se preocupava com a sorte daquele flamen Dialis.

— Claro que podia — retorquiu Sila. — Mas não é a mim que me cabe dizê-lo. Na minha qualidade de Ditador, tenho liberdade para determinar o método pelo qual os nossos sacerdotes e augures são nomeados, tenho liberdade para abolir as eleições. Mas o flamen Dialis é algo de diverso. São vocês todos quem tem de decidir da sua sorte. Vocês todos! Os feciais, os pontífices, os augures, os sacerdotes dos livros sagrados, até mesmo os epulones e os salii. Cota, encarrego-te da investigação, já que tu és o sacerdote com mais tempo de serviço. Dou-te um prazo até aos Idos de Dezembro, altura em que voltaremos a reunir-nos neste templo para discutirmos a posição religiosa do actual flamen Dialis. — Olhou gravemente para Cota. — Mas nada do que aqui se passou ou venha a passar deve chegar aos ouvidos de outras pessoas e, em especial, aos ouvidos do jovem César.

Terminada a reunião, Sila seguiu imediatamente para casa, soltando risinhos excitados e esfregando as mãos de contente. É que Sila tinha imaginado a mais maravilhosa das brincadeiras! O tipo de brincadeira que daria toda a força necessária a Júpiter Optimus Maximus. Uma oferenda! Uma vítima sacrificial viva, em honra de Roma — em honra da República, de que ele era o Sumo Sacerdote! Sila fora chamado a suplantar o Rex Sacrorum, a garantir que a República superasse os reis, e todos os reis tinham sido também Rex Sacrorum. Ah, que brincadeira soberba!, exclamou para si mesmo, chorando de riso. Oferecerei ao Grande Deus uma vítima que consentirá no sacrifício, e que continuará a sacrificar-se até à sua morte! Dotarei a República e o Grande Deus do melhor segmento da vida de um homem — oferecer-lhe-ei o seu sofrimento, a sua tristeza, a sua dor. E tudo isso com o consentimento dele. Porque ele nunca se recusará a ser sacrificado.

No dia seguinte, Sila publicou as primeiras das suas leis visando a regulamentação da religião do Estado, afixando-as nos rostra e nas paredes da Regia. De início, os freqüentadores desses locais pensaram que era uma nova lista de prescritos e, por isso, os caçadores de prêmios profissionais correram a ler os textos; mas logo abalaram, manifestando a sua decepção: afinal era uma lista dos actuais membros dos vários colégios sacerdotais, principais e secundários. Quinze membros para cada colégio, divididos algo ao acaso entre patrícios e plebeus (com os plebeus em maioria) e criteriosamente distribuídos pelas Famílias Famosas. Naquela lista, só havia nomes famosos: nada de Pompeus, Túlios ou Dídios! Mas sim Júlios, Servílios, Júnios, Emílios, Cornélios, Cláudios, Sulpícios, Valérios, Domícios, Múcios, Licínios, Antónios, Mânlios, Cecílios, Terêncios. Verificava-se também que Sila se tinha atribuído um cargo de sacerdote para complementar as funções de augure que já assumia — e que ele era o único homem que dispunha dos dois cargos.

— Eu tenho de ter um pé nos dois campos — disse ele para si mesmo quando estudou o caso. — Eu sou o Ditador.

No dia seguinte, publicou uma adenda contendo um único nome. O nome do novo Pontifex Maximus. Quinto Cecílio Metelo Pio, o Bacorinho. O Sumo Gago.

O povo de Roma ficou horrorizado quando viu aquele nome aterrador nos rostra e na Regia — o novo Pontifex Maximus era Metelo Pio? Como poderia isso ser? Que se passava com Sila? Teria enlouquecido?

Uma delegação foi ter com ele à casa de Aenobarbo, uma delegação receosa e aflita, constituída por sacerdotes e augures, incluindo o próprio Metelo Pio. Por razões óbvias, Metelo Pio não era o porta-voz; gaguejava tanto ultimamente que ninguém queria passar pela aflição de o ver, frente a Sila, travando uma luta terrível com a sua própria afecção. O porta-voz era Catulo.

— Porquê, Lúcio Cornélio? — lamentou-se Catulo. — Não temos o direito de nos pronunciar sobre isto?

— Eu não que-que-que-quero o car-car-car-cargo! — disse o Bacorinho, gaguejando mais do que nunca, os olhos revirando-se nas órbitas, as mãos numa agitação imparável.

— Não podes fazer uma coisa destas, Lúcio Cornélio! — exclamou Vátia.

— É impossível! — gritou o cunhado de Sila, Mamerco. Sila deixou-os desabafar tudo antes de responder, sem sinal de emoção nem no rosto, nem nos olhos; mandava a brincadeira que congeminara que eles nunca se apercebessem de que era uma brincadeira. Era preciso que eles vissem sempre um Sila sério e grave. E ele estava de facto sério e grave! Estava mesmo! Júpiter tinha-lhe aparecido num sonho, a noite anterior, e dissera-lhe que estava encantado com aquela brincadeira maravilhosa, perfeita. E a delegação lá foi desabafando. Caiu então um silêncio feito de apreensão, um silêncio só interrompido pelo choro do Bacorinho.

— Na realidade — disse Lúcio Cornélio Sila num tom informal —, o meu cargo de Ditador permite-me fazer tudo o que quiser. Mas a questão não é essa. A questão é que eu sonhei que Júpiter Optimus Maximus veio ter comigo e me pediu, muito concretamente, que nomeasse Quinto Cecílio Pontifex Maximus.

Quando acordei, fui verificar os augúrios e concluí que eram muito propícios. A caminho do Fórum, quando fui afixar os pergaminhos nos rostra e na Regia, vi quinze águias voando da esquerda para a direita ao longo do Capitólio. Nenhuma coruja piava, nenhum relâmpago atravessou os céus.

A delegação fitou Sila, mas depois baixou os olhos. Ele estava a falar a sério. E, pelos vistos, Júpiter Optimus Maximus também tinha falado a sério.

— Mas um ritual não pode conter um único erro! — exclamou Vátia. — Nenhum gesto, nenhuma acção, nenhuma palavra podem estar errados! Se alguma coisa é feita ou dita erroneamente, toda a cerimónia tem de recomeçar desde o princípio!

— Estou consciente disso — retorquiu afavelmente Sila.

— Lúcio Cornélio, com certeza que estás a ver o problema! — exclamou Catulo. — Pio gagueja em todas as frases que diz! Por isso, sempre que tiver de falar na sua qualidade de Pontifex Maximus, vamos ter de estar a ouvi-lo uma eternidade.

— Vejo o problema da forma mais clara possível — disse Sila com a maior seriedade. — Lembra-te de que também eu terei de ouvi-lo durante uma eternidade. — Encolhendo os ombros, prosseguiu: — Que poderei eu dizer, a não ser que, provavelmente, se trata de um novo sacrifício que o Grande Deus nos pede, por nós não termos cumprido correctamente os nossos deveres perante os deuses? — Virou-se para Metelo Pio e envolveu nas suas mãos uma das mãos nervosas e inquietas do seu antigo legado. — É claro que podes recusar, caro Bacorinho. Não há nada nas nossas leis religiosas que te impeça de recusar.

E Bacorinho usou a mão que tinha livre para pegar numa dobra da toga e limpar os olhos e o nariz. Respirou fundo e disse:

— Eu aceito o cargo, Lúcio Cornélio, se é isso que o Grande Deus quer de mi-mi-mim.

— Ah, estão a ver?! — disse Sila, acariciando a mão do outro. — Quase não gaguejaste! Pratica, querido Bacorinho! Pratica!

Aquele era um momento extremamente perigoso: Sila quase não conseguia reprimir uma gargalhada. Por isso, despediu-se rapidamente da delegação e correu para o seu estúdio, onde se trancou. Os seus joelhos cederam; caiu em cima de um divã, envolveu o corpo com os braços e uivou de riso, enquanto lágrimas de alegria lhe corriam pela face. Não conseguindo respirar facilmente, rolou para o chão e aí ficou, guinchando, arquejando, as pernas pontapeando o ar, com tantas dores de tanto rir que chegou a pensar que ainda morria. Mas continuou a rir, seguro no conhecimento de que os augúrios tinham de facto sido propícios. E durante o resto do dia, sempre que a expressão de nobre sacrifício do Bacorinho lhe vinha à lembrança, dobrava-se sobre si mesmo, acometido de novo paroxismo de riso; e com a mesma violência se ria sempre que se lembrava das expressões de Catulo, de Vátia, do seu cunhado. Que maravilha, que maravilha! Esta brincadeira jupiteriana era a justiça na sua máxima perfeição. Toda a gente tinha recebido exactamente o que merecia. Incluindo Lúcio Cornélio Sila.

Nos Idos de Dezembro, cerca de sessenta homens — membros de todos os colégios sacerdotais, tanto os principais como os secundários — comprimiam-se no reduzido espaço do templo de Júpiter Ferétrio.

— Já prestámos as devidas homenagens ao deus — disse Sila. — Creio que ele não se importará se nos reunirmos ao ar livre.

Sila sentou-se no muro baixo que separava o velho Asilo dos terrenos que se elevavam, de ambos os lados, na direcção dos montes gémeos do Capitólio e do Arx, e, com um gesto, indicou aos outros que deviam sentar-se na relva.

Aquela era uma das características mais estranhas da personalidade de Sila, pensou o desesperadamente infeliz Bacorinho: era capaz de dar a maior dignidade a coisas sem grande importância e, ao mesmo tempo, como sucedia agora, não tinha qualquer pejo em reduzir situações de uma extrema importância à mais absoluta informalidade. Para os visitantes e turistas do monte Capitólio — para os homens e mulheres que chegavam ofegantes ao alto dos degraus do Asilo ou dos degraus Gemonianos, tomando um atalho entre o Fórum Romano e o Campo de Marte —, aquele conjunto faria por certo lembrar os filósofos que passeavam com os seus discípulos, ou um velho pai do campo com todos os seus irmãos, sobrinhos, filhos e primos.

— Que tens a dizer-nos, Caio Aurélio? — perguntou Sila a Cota, que estava sentado a meio da primeira fila.

— Em primeiro lugar, Lúcio Cornélio, que esta foi, para mim, uma tarefa muito difícil — respondeu Cota. — Sabes com certeza que o jovem César, o flamen Dialis, é meu sobrinho...

— Também é meu sobrinho, ainda que por casamento e não por sangue — retorquiu calmamente o Ditador.

— Então, gostaria de te pôr uma questão. Tencionas proscrever os Césares?

Sem que o desejasse, Sila deu consigo a pensar em Aurélia; com ênfase, abanou a cabeça.

— Não, Cota, não tenciono fazer isso. Os Césares que foram meus cunhados há tantos anos atrás estão ambos mortos. Na realidade, nunca cometeram crimes contra o Estado, apesar de serem homens de Mário. Havia razões para isso. Mário ajudou financeiramente a família e eles sentiam-se ligados a ele pelos laços da gratidão. A viúva do velho Caio Mário é tia do rapaz e a irmã dela foi a minha primeira mulher.

— Mas proscreveste as famílias de Mário e de Cina.

— Sim, isso é verdade.

— Obrigado — disse Cota, com ar de quem se sentia aliviado. Pigarreou e prosseguiu: — O jovem César tinha apenas treze anos quando foi solene e devidamente consagrado como sacerdote de Júpiter Optimus Maximus. Preenchia todos os critérios, excepto um: era um patrício com os pais ainda vivos, mas não se encontrava casado com uma mulher patrícia com ambos os pais vivos. No entanto, Mário arranjou-lhe uma noiva, com a qual o jovem se casou antes das cerimónias de tomada de posse e consagração. A noiva era a filha mais nova de Cina.

— Que idade tinha ela? — perguntou Sila, fazendo um sinal para o criado, que imediatamente lhe trouxe um chapéu de palha de abas largas. O chapéu, depois de convenientemente ajustado à cabeça, dava-lhe um ar dissimulado, realçando a manha do olhar: enfim, o aspecto de um verdadeiro patriarca da província.

— Tinha sete anos.

— Estou a ver. Um casamento de crianças, sem tirar nem pôr. Que nojo! Cina estava faminto de poder, não era?

— Sem sombra de dúvida — retorquiu Cota, pouco à vontade. — Seja como for, a verdade é que o rapaz não recebeu de braços abertos o seu cargo de flâmine. Insistiu que, enquanto não vestisse a toga de homem adulto, deveria dedicar-se às práticas que são comuns entre a juventude nobre romana. Por isso, não deixou de ir fazer os seus exercícios militares no Campo de Marte. Esgrimiu, lançou setas, arremessou lanças — e revelou muito talento em todas essas práticas. Segundo me disseram, costumava fazer algo de notável: cavalgava um cavalo muito veloz, no máximo do seu galope, com as mãos atrás das costas — e sem sela! Os velhos instrutores do Campo de Marte lembram-se muito bem dele e consideram que, dadas as suas naturais aptidões para o exército, é uma pena o rapaz ter sido nomeado flâmine. Quanto a outros pontos do seu comportamento, a minha fonte é a mãe dele — a minha meia-irmã Aurélia. Segundo ela, o jovem César não aderia, nessa altura, ao regime alimentar estipulado, aparava as unhas com uma faca de ferro, mandava que lhe cortassem o cabelo com uma navalha de ferro e usava nós e fivelas no vestuário.

— Que aconteceu depois de ter vestido a toga virilis?

— Mudou radicalmente — disse Cota, expressando uma imensa surpresa. — A rebelião, se é que, de facto, foi rebelião, cessou por completo. Ele sempre cumprira os seus deveres religiosos com o maior escrúpulo. Porém, a partir desse momento, passou a usar permanentemente o apex e a laena e obedeceu a todas as proibições. A mãe diz que ele não passou a gostar mais do seu cargo, mas que acabou por aceitá-lo.

— Estou a ver — disse Sila, batendo ligeiramente com os calcanhares no muro. — bom, parece-me muito satisfatório o teu inquérito, Cota. A que conclusão chegaste acerca do jovem César e do seu cargo de flâmine?

Cota franziu o sobrolho.

— Há um problema. Se pudéssemos dispor agora de todos os livros proféticos que possuíamos, então o caso seria sem dúvida esclarecido. Mas não dispomos desses livros. Por isso, achámos que era impossível formular uma opinião conclusiva. Não há dúvida de que o rapaz é, legalmente, flamen Dialis, mas, do ponto de vista religioso, já não estamos tão certos.

— Porquê?

— Tudo depende do estatuto cívico da mulher de César. Cinila, como lhe chamam. Agora com doze anos. De uma coisa estamos absolutamente certos — o flamen Dialis é uma entidade dual que envolve tanto o marido como a mulher. Ela tem o título religioso de flaminica Dialis, ela tem de respeitar os mesmos tabus, ela tem de cumprir os seus próprios deveres religiosos. Se não preencher os critérios religiosos, então todo o flaminato ficará posto em causa. E nós chegámos à conclusão de que ela não preenche os critérios religiosos, Lúcio Cornélio.

— A sério? Como chegaram a essa conclusão, Cota? — Sila batia com mais força na parede, enquanto pensava noutra coisa. — O casamento foi consumado?

— Não, não foi. Cinila tem vivido com a minha irmã e a família da minha irmã desde que casou com o jovem César. E a minha irmã é uma nobre romana da maior decência — disse Cota.

Um breve sorriso aflorou aos lábios de Sila.

— Eu sei que ela é decente — disse.

— Sim, bom... — Cota mexeu-se, desconfortável, lembrando-se das discussões que houvera em sua casa a propósito da natureza da amizade entre Aurélia e Sila; por outro lado, estava consciente de que teria forçosamente de criticar uma das novas leis de prescrição de Sila. Mas mergulhou corajosamente no assunto, decidido a não deixar nada de lado. — Pensamos que César é o flamen Dialis, mas que a sua mulher não é a flaminica. Pelo menos, foi assim que interpretámos as tuas leis da proscrição, as quais, no caso dos filhos de menor idade dos prescritos, não dizem com clareza se esses filhos estão sujeitos à lex Minicia. O filho de Cina era maior quando o seu pai foi prescrito, logo a sua cidadania não estava em causa. Mas que dizer do estatuto de cidadão dos filhos de menor idade, e especialmente das raparigas? A tua lei implica a aplicação da lex Minicia, ou — como acontece quando um tribunal decide exilar alguém — será que a perda de cidadania por parte do pai o afecta apenas a ele? Era sobre isto que tínhamos de decidir. E, dada a severidade das tuas leis de proscrição no que toca aos direitos dos filhos e de outros herdeiros, chegámos à conclusão de que a lex Minicia de liberis deve ser aplicada.

— Meu caro Bacorinho, que tens tu a dizer? — perguntou, muito sério, Sila, ignorando inteiramente as implicações daquela obscuridade legislativa. — Demora o tempo que for preciso! Eu hoje não tenho mais nada que fazer.

Metelo Pio corou.

— Como diz Caio Cota, a lei relativa ao estatuto de cidadão de uma criança deve ser aplicada. Quando um dos pais não é cidadão romano, então a criança não pode ser cidadã romana. Por isso, a mulher de César não é uma cidadã romana e, por isso, segundo as leis religiosas, não poderá ser flaminica Dialis.

— Brilhante! Brilhante! Disseste isso tudo sem te engasgares uma única vez, Bacorinho! — Os calcanhares de Sila batiam cada vez mais forte no muro. — Nesse caso, a culpa é toda minha, não é? Deixei uma lei aberta a interpretações em vez de definir todos os pormenores, como deveria ter feito. É isso, não é?

Cota respirou fundo.

— É — disse ele, heroicamente.

— É de facto verdade — disse Vátia, juntando a sua pequena acha para a discussão. — No entanto, estamos perfeitamente conscientes de que a nossa interpretação pode estar errada. Por isso, gostaríamos de saber qual a tua orientação.

— Muito bem — disse Sila, descendo do muro. — Parece-me que a melhor maneira de resolver este dilema é permitir que César case com uma nova flaminica. Embora o seu casamento tenha sido por certo confarreatio, do ponto de vista civil e religioso o divórcio é perfeitamente possível. Penso, por isso, que César deve divorciar-se da filha de Cina, pois esta não pode ser aceite pelo Grande Deus como sua flaminica.

— Uma anulação, por certo! — disse Cota.

— Um divórcio — retorquiu firmemente Sila. — Ainda que toda a gente possa jurar que o casamento não foi consumado — e, aliás, até podíamos mandar as Vestais examinar o hímen da jovem —, o problema é que, neste caso, estamos a lidar com Júpiter Optimus Maximus. Disseram-me vocês que as minhas leis estão abertas à interpretação. Na realidade, vocês chegaram mesmo ao ponto de as interpretar — sem me consultarem antes de tomar uma decisão. É aí que reside o vosso erro. Deviam ter-me consultado. Mas como não o fizeram, agora têm de suportar as conseqüências. Um divórcio diffarreatio.

Cota estremeceu.

— Diffarreatio! Isso é terrível!

— A tua dor faz-me chorar, Cota.

— Nesse caso, informarei o rapaz — disse Cota, com a boca seca.

Sila estendeu a mão.

— Não! — disse ele, bruscamente. — Não digam nada ao rapaz! Nada de nada! Digam-lhe apenas que vá a minha casa amanhã, antes do jantar. Prefiro ser eu próprio a dizer-lho. Entendido?

— Tens de ir falar com Sila, sobrinho — disse Cota a César e Aurélia, pouco tempo depois.

Tanto César como a mãe ficaram com um ar apreensivo, mas despediram-se de Cota sem um comentário. Mal o irmão saiu, Aurélia acompanhou o filho ao seu gabinete.

— Senta-te, mãe, por favor — disse-lhe ele com ternura. Ela sentou-se, mas na ponta da cadeira.

— Não estou a gostar disto — disse ela. — Por que razão é que ele te quererá ver em privado?

— Ouviste o que disse o tio Caio. Sila está a reformar as ordens religiosas e quer falar comigo na minha qualidade de flamen Dialis.

— Não acredito nisso — retorquiu a obstinada Aurélia.

Preocupado, César descansou o queixo na mão direita e examinou atentamente a mãe. César não estava preocupado consigo mesmo, pois sabia que estava preparado para enfrentar tudo o que pudesse suceder-lhe. Não, era com ela que ele estava preocupado, com ela e com todas as mulheres da família.

A tragédia avançara inexoravelmente desde o momento em que o jovem Mário convocara a família para discutir a sua eventual aceitação do cargo de cônsul. Depois de um primeiro período, dominado por uma alegria e uma confiança que eram absolutamente artificiais, veio aquele Inverno terrível e, com ele, a lenta e progressiva queda do jovem Mário, até que se abriu sob os seus pés o abismo sem fundo que fora a derrota de Sacriporto. Ninguém o vira desde que se tornara cônsul, incluindo a mãe e a mulher. Uma amante tinha surgido na sua vida, uma bela romana de uma família de cavaleiros, Précia de seu nome, a qual monopolizou todos os momentos livres que o jovem Mário conseguia encontrar. Suficientemente rica para dispor de independência financeira, Précia, quando seduzira o jovem Mário, tinha já 37 anos e não revelava a mínima inclinação para o casamento. Havia casado aos 18 anos, mas apenas para obedecer aos ditames do pai, que morrera pouco tempo depois; Précia envolvera-se depois numa série de casos amorosos e o marido acabara por divorciar-se. O que lhe convinha perfeitamente, pois depressa começou a fazer o tipo de vida que mais lhe agradava: ser dona do seu próprio estabelecimento e amante de alguns interessantes nobres, os quais levavam amigos, problemas e intrigas políticas para o divã e para a cama dela, permitindo-lhe assim combinar a política com a paixão — uma combinação irresistível para Précia, tendo em conta as suas inclinações.

O jovem Mário fora o maior peixe que Précia apanhara na sua rede. Mas aquela mulher de 37 anos acabara por gostar muito dele. Divertiam-na as poses juvenis, fascinava-a o poder inerente ao nome Caio Mário, e agradava-lhe muito o facto de o jovem cônsul sénior a preferir à mãe, Júlia, e à mulher, Múcia. Por isso, abrira as portas da sua casa — uma casa enorme e decorada com muito gosto — a todos os amigos do jovem Mário, e a sua cama a um pequeno e selecto grupo que constituía o círculo mais próximo do cônsul sénior. Logo que Carbão (que ela odiava) partiu para Arimino, Précia tornou-se o principal conselheiro do jovem Mário, e imaginava mesmo que era ela, e não o jovem, quem de facto governava Roma.

Por isso, quando chegou a notícia de que Sila ia deixar Teano Sidicino e o jovem Mário anunciou que era tempo de se ir juntar às suas tropas em Ad Pictas, Précia gracejara com a ideia de se tornar uma cortesã de acampamento guerreiro, acompanhando o jovem cônsul nas manobras da guerra. Mas o gracejo não deu qualquer fruto; o jovem Mário encontrou uma solução típica para o problema em que ela se tinha transformado: deixou Roma já de noite sem lhe dizer para onde ia. Mas Précia não chorou uma lágrima. Pelo contrário, tratou de procurar outra diversão.

Por tudo isto, nem a mãe, nem a mulher de Mário tinham tido oportunidade de se despedir dele, de lhe desejar a sorte de que ele por certo precisaria. Quando deram por isso, já ele tinha partido. E nunca mais voltaria. A notícia de Sacriporto só se espalhara por Roma depois de Bruto Damasipo (um homem demasiado ligado a Carbão para poder gostar de Précia) ter lançado o seu banho de sangue. Entre as suas vítimas, contava-se Quinto Múcio Cévola Pontifex Maximus, o sogro do jovem Mário e um bom amigo de Júlia.

— Foi o meu filho que mandou fazer isto — disse Júlia a Aurélia quando esta a procurou na esperança de que pudesse fazer alguma coisa.

— Ora, Júlia, que disparate! — retorquiu Aurélia, afável e terna. — Foi Bruto Damasipo, mais ninguém.

— Eu vi a carta que o meu filho mandou de Sacriporto — disse Júlia, recuperando por um instante do choro e dos soluços. — Ele não conseguiu aceitar a derrota sem ter de ordenar esta miserável retaliação. E agora, como posso esperar que a minha nora volte a falar comigo?

César tinha-se escondido num recanto da sala e observava, com extrema concentração, os rostos das duas mulheres. Como podia o filho da tia Júlia ter feito uma coisa daquelas à mãe? Em particular, depois de o seu pai, já senil e louco, ter feito o que fez? Júlia estava presa numa teia de tristeza e dor, tão presa como uma mosca num bocado de âmbar. Mas a sua beleza, naquela postura estática em que ela estava, era ainda maior, e a dor parecia não se reflectir nos seus traços, como se tivesse refluído toda para o seu coração. Nem nos seus olhos se reflectia esse imenso sofrimento.

Nesse instante entrou Múcia; Júlia encolheu-se, tratou de evitar o olhar da nora.

Aurélia tinha-se sentado muito direita; os traços do seu rosto tinham ganho uma qualidade acerba, quase pétrea.

— Múcia Tércia, censuras Júlia pelo assassínio do teu pai? — perguntou.

— É claro que não — retorquiu a mulher do jovem Mário, sentando-se perto de Júlia o suficiente para lhe poder envolver as mãos. — Júlia, por favor, olha para mim!

— Não posso!

— Mas tens de olhar para mim! Eu não tenciono mudar-me para casa de meu pai e viver com a minha madrasta. Nem quero ir para casa de minha mãe, onde teria de viver com os horrendos filhos dela. Quero ficar aqui, com a minha querida sogra.

E as coisas acabaram por se compor. Júlia e Múcia Tércia conseguiram ter alguma paz para continuar a fazer a sua vida normal, ainda que não recebessem notícias do jovem Mário, então cercado em Preneste, e que todas as notícias vindas dos vários campos de batalha fossem favoráveis a Sila. Se fosse filho de Aurélia, pensou César, o jovem Mário não se sentiria muito confortado por mandar notícias para a mãe, enquanto os dias em Preneste se arrastavam interminavelmente. Aurélia não era tão terna, tão carinhosa, tão clemente como Júlia — mas se Aurélia o fosse, concluiu César com um sorriso, então ele era muito capaz de se parecer com o jovem Mário! César possuía a capacidade de desapego da mãe. E também a sua dureza.

Mas as más notícias foram-se acumulando: Carbão fugira pela calada da noite; Sila obrigara os Samnitas a recuar; Pompeu e Crasso tinham derrotado os homens que Carbão abandonara em Clúsio; o Bacorinho e Varrão Lúculo controlavam a Gália Italiana; Sila entrara em Roma apenas por algumas horas a fim de nomear um governo provisório — e deixara Torquato com a cavalaria trácia, a fim de garantir o funcionamento desse governo provisório.

Mas Sila não fora visitar Aurélia, facto que fascinou o filho dela o suficiente para tentar levá-la a falar sobre o assunto. Do inesperado encontro que tivera com Sila em Teano Sidicino, Aurélia quase nada dissera; e agora ali estava ela, sempre calma, mas debatendo-se com o rompimento de uma tradição.

— Ele devia ter vindo visitar-te! — disse-lhe nessa altura César.

— Ele nunca mais me vai visitar — retorquiu Aurélia.

— Porque não?

— Essas visitas pertencem a outros tempos, a tempos diferentes destes.

— Pertecem a um tempo em que ele era suficientemente bonito para despertar paixões? — atirou-lhe o filho, deixando que o seu génio, rigidamente controlado, viesse de súbito ao de cima.

Mas ela reagiu glacialmente, lançando-lhe um olhar esmagador.

— Além de estúpido, ainda és grosseiro! Deixa-me! — disse ela. Ele deixou-a. E não mais voltou a tocar no assunto. O que Sila significava para a mãe, era assunto só dela.

Entretanto, souberam da torre que o jovem Mário construíra e do seu miserável fim, bem como das outras tentativas que fez para vencer o cerco de Ofela. Até que, no último dia de Outubro, chegou a terrível notícia de que noventa mil samnitas se encontravam no acampamento de Pompeu Estrabão, à saída da Porta Colina.

Os dois dias que se seguiram foram os piores dias da vida de César. Sufocando debaixo das suas vestes sacerdotais, impossibilitado de tocar numa espada ou de assistir à morte de quem quer que fosse, trancou-se no seu gabinete e começou a trabalhar num novo poema épico — em latim, não em grego —, optando pelo hexâmetro dactílico para tornar a sua tarefa mais difícil. O ruído da batalha chegava de forma nítida aos seus ouvidos, mas ele fazia o possível por se abstrair dele, entregando-se à construção de desvairados espondeus e expressões vazias, ansiando por estar no campo de batalha, admitindo para si mesmo que tanto lhe faria lutar por um lado como lutar pelo outro, o que lhe interessava era combater...

E depois de os ruídos da batalha se terem esbatido durante a noite, saiu disparado do seu gabinete e foi encontrar a mãe no escritório, debruçada sobre as suas contas. Parou no vão da porta, convulsionado por uma raiva imensa.

— Como posso eu escrever aquilo que não faço? — perguntou. — O tema da grande literatura não é a guerra, não são os guerreiros? Será que Homero perdeu o seu tempo com histórias ocas e floreados de estilo? Será que Tucídides considerou a arte da apicultura um assunto adequado à sua pena?

Aurélia sabia muito bem como acalmá-lo. Por isso, respondeu-lhe num tom rigorosamente neutral:

— Provavelmente não. — E logo regressou ao seu trabalho. E essa noite marcou o fim da paz. O filho de Júlia estava morto

— todos estavam mortos e Roma pertencia a Sila. O qual não vinha visitá-los nem mandava qualquer mensagem.

Toda a gente ficou rapidamente a saber que o Senado e a Assembleia das Centúrias o tinham nomeado Ditador. E toda a gente falava do caso a todo o momento. Mas foi Lúcio Decúmio quem informou César e o jovem Caio Macio, que vivia no outro apartamento térreo, acerca do mistério dos cavaleiros desaparecidos.

— Todos os homens que fizeram riqueza sob os governos de Mário, Cina ou Carbão, desapareceram. E não foi por acidente. Sorte para ti que o teu pai tenha morrido há alguns anos, Borbulha — disse Lúcio Decúmio para Caio Macio, que suportava a desagradável alcunha de Pústula — Borbulha — desde que começara a andar. — E tu também tens sorte pelo mesmo motivo, meu jovem Pavão — acrescentou, para César.

— Que queres dizer com isso? — perguntou Macio, intrigado.

— Quero dizer que andam para aí uns tipos, todos com um ar muito discreto, a caçar cavaleiros ricos — disse o zelador das encruzilhadas. — A maior parte desses tipos são homens libertos, mas não têm nada a ver com esses gregos linguarados que andam para aí e que por acaso até andam metidos uns com os outros. Não, a esses tipos chamam-lhes os não sei quê de Lúcio Cornélio, mas eu e os meus confrades chamamos-lhes Silanos. São os Silanos porque pertencem a Sila. Reparem bem no que lhes digo: essa gente não pode trazer nada de bom! E o que eu prevejo é que ainda lhes falta caçar um ror de cavaleiros ricos.

— Mas Sila não pode fazer uma coisa dessas! — disse Macio, com os lábios comprimidos.

— Sila pode fazer tudo o que lhe apetecer — disse César. — Ele tornou-se Ditador. É melhor do que ser rei. Os seus edictos têm força de lei e, além disso, não está preso à lex Caecilia Didia, que prevê um prazo de dezassete dias entre a promulgação e a ratificação. Nem sequer precisa de discutir as suas leis no Senado ou nas Assembleias. E não tem de responder pelas suas acções presentes, nem passadas. — Fez uma pausa e, com um ar pensativo, acrescentou: — No entanto, creio que Roma estaria condenada a morrer se por acaso não fosse dirigida agora com mão de ferro. Por isso, espero que tudo lhe corra bem. E espero que tenha a visão e a coragem para fazer tudo o que é preciso fazer.

— Aquele homem tem desplante suficiente para fazer tudo o que muito bem entender! — disse Lúcio Decúmio.

Vivendo no centro do bairro de Subura — a zona mais pobre e mais poliglota de Roma —, qualquer deles pôde verificar que as proscrições de Sila não tiveram na vida do bairro o mesmo efeito que tiveram em zonas como as Carinas, o Palatino, o alto Quirinal e o Viminal. Embora houvesse em Subura bastantes cavaleiros da Primeira Classe vivendo no meio de gente muito pobre, poucos eram os que tinham um estatuto acima do tribunus aerarius ou os que tinham mantido contactos políticos agora considerados perigosos.

Quando foi publicada a primeira lista e se verificou que o nome do jovem Mário era o segundo, Júlia e Múcia Tércia foram ter com Aurélia; esta não deixou de ficar surpreendida porque normalmente era ela quem as visitava. Surpreenderam-na ainda mais as notícias sobre a lista, as quais não tinham ainda chegado a um local tão distante como era Subura; Sila não tinha mantido Júlia na expectativa quanto ao seu destino.

— O pretor urbano, o jovem Dolabela, trouxe-me a notícia — disse Júlia, estremecendo ao pronunciar aquele nome. — Que homem horrendo! Todos os bens do meu pobre filho foram confiscados. Não há nada que se possa salvar.

— A tua casa também foi confiscada? — perguntou Aurélia, lívida.

— Tudo. Aquele homem tinha uma lista de tudo. Todos os interesses mineiros na Hispânia, as terras da Etrúria, a nossa villa em Cumas, a casa de Roma, outras terras que Caio Mário comprara na Lucânia e na Umbria, os latifúndios, de trigo junto ao rio Brágada, na Província de África, as tinturarias de lã em Hierápole, as fábricas de vidro de Sídon. Nem a quinta de Arpino escapou. Agora pertence tudo a Roma e, segundo me informaram, todos esses bens serão postos em hasta pública.

— Oh, Júlia!

Mas Júlia, sendo a pessoa que era, conseguia ainda ter um sorriso, um sorriso que por momentos lhe iluminou os olhos.

— Ah, mas nem tudo são más notícias! Sila enviou-me uma carta que me autoriza a retirar cem talentos de prata do conjunto dos bens. Enfim, foi o cálculo que ele fez relativamente ao meu eventual dote, eventual porque Caio Mário nunca se preocupou em dar-me um dote. Porque, de facto, e os deuses bem o sabem, quando me casei com ele não tinha uma moeda! Mas terei direito aos cem talentos porque, segundo Sila, sou irmã de Julila. Por respeito por Julila, que foi mulher dele, Sila não quis ver-me na total penúria. Para dizer a verdade, a carta até tinha algum encanto.

— Parece ser muito dinheiro. Mas, depois de tudo o que tiveste, não é nada — disse Aurélia, muito tensa.

— Chega para comprar uma boa casa na Rua Longa ou na Alta Semita e para me proporcionar um rendimento razoável. Claro que os escravos irão com os bens, mas Sila autorizou-me a ficar com Estrofantes. Ah, isso deixou-me tão contente! O pobre velhote já sofreu demais. — Parou por um momento, os olhos cheios de lágrimas, não por ela mas por Estrofantes. — Seja como for — prosseguiu —, creio quevou poder levar uma vida confortável. O mesmo não podem dizer as mães ou esposas de outros homens que vêm na lista. Essas não ficarão com nada.

— E tu, Múcia Tércia? — perguntou César. — És considerada como pertencendo aos Múcios ou aos Mários? — César não notava nela qualquer sinal de tristeza pela morte do marido, nem sequer um pouco de autocomiseração face à sua situação de viúva. Sabia-se que a tia Júlia sofria, e muito, ainda que ela nunca o mostrasse. Mas Múcia Tércia?

— Fui considerada como pertencendo aos Mários — disse ela. — Por isso perdi o meu dote. Os bens do meu pai sofreram uma forte redução nos últimos tempos. Aliás, no testamento dele, não havia nada para mim. E ainda que houvesse, a minha madrasta ter-se-ia encarregado de me afastar da posse de tudo. Quanto à minha mãe, está bem — Metelo Nepo é apoiante de Sila. Mas os dois filhos dela estão à minha frente, como seria de esperar. Eu e Júlia discutimos o problema quando vínhamos para aqui. Eu ficarei com ela. Sila proibiu-me de casar novamente, já que eu era mulher de um Mário. Não que eu quisesse voltar a casar. Não tinha a mínima intenção de o fazer.

— É um pesadelo! — exclamou Aurélia. Olhou para as suas mãos, sujas de tinta e um pouco inchadas nas articulações. Depois, acrescentou: — Provavelmente, também nós acabamos por ir parar à lista. O meu marido sempre apoiou Caio Mário. E apoiava Cina quando morreu.

— Mas esta ínsula está em teu nome, Mater. Como todos os Cotas apoiam Sila, a ínsula deverá continuar na tua posse — disse César. — Quanto a mim, pode ser que perca as minhas terras. Mas pelo menos, enquanto flamen Dialis, terei o meu salário pago pelo Estado e uma casa do Estado no Fórum. Suponho que Cinila perderá o seu dote.

— Julgo que os parentes de Cina perderão todos os seus bens — disse Júlia, com um suspiro. — Sila pretende acabar com todo o tipo de oposição.

— E que vai ser de Ânia? E da filha mais velha, Cornélia Cina? — perguntou Aurélia. — Eu nunca gostei de Ânia. Foi fraca mãe para a Cinila e voltou a casar-se, com uma pressa indecente, após a morte de Cina. Por isso, atrevo-me a dizer que sobreviverá.

— Tens toda a razão. Está casada com Púpio Pisão Frugi há tempo suficiente para ser considerada como membro da família Púpia — disse Júlia. — Eu soube muitas coisas através de Dolabela, ele estava ansioso por me dizer quem é que ia ser castigado! Cornélia Cina, coitada, é considerada como pertencendo aos Cneus Aenobarbos. Logo que Sila chegou, apossou-se da casa dela; e Ânia, por seu lado, não a quis receber. Creio que está a viver com uma velha tia, uma Vestal, na Via Recta.

— Ah, ainda bem que as minhas filhas se casaram com dois homens que pouco mais são que uns zés-ninguéns! — exclamou Aurélia.

— Eu também tenho as minhas notícias — disse César, para desviar as atenções das mulheres dos seus próprios problemas.

— Que notícias? — perguntou Múcia Tércia.

— Lépido deve ter tido uma premonição do que ia acontecer. Ontem, divorciou-se da mulher. Da filha de Saturnino, Apuleia.

— Ah, que coisa terrível! — exclamou Júlia. — Posso aceitar o facto de que aqueles que lutaram contra Sila devem ser castigados. Mas por que motivo hão-de os seus filhos e netos sofrer também? Toda essa história com Saturnino já se passou há tanto tempo! Sila não daria a mínima importância a Saturnino. Sendo assim, por que motivo fez Lépido uma coisa dessas à mulher? Ela deu-lhe três filhos esplêndidos, todos rapazes!

— Não lhe dará mais filhos a ele, nem a mais ninguém — disse César. — Apuleia meteu-se num banho quente e abriu as veias. E agora Lépido anda por aí chorando e soluçando, roído pela dor. Vejam só!

— Ah, mas ele sempre foi assim — disse Aurélia com desprezo. — Não nego que deve haver um lugar no mundo para os homens insignificantes, mas o problema de Marco Emílio Lépido é que ele acredita sinceramente que tem alguma substância dentro de si.

— Pobre Lépido! — suspirou Júlia.

— Pobre Apuleia — disse Múcia Tércia, num tom seco e duro.

Agora, porém, depois do que Cota lhes dissera, parecia que os Césares não seriam efectivamente prescritos. Os seiscentos iugera de Bovilas encontravam-se a salvo, César teria um censo senatorial. Não que ele precisasse de se preocupar com o censo senatorial!, pensou ele, com um ar de superioridade, enquanto via a neve caindo como se fosse uma cascata de pó. O flamen Dialis, de facto, era automaticamente membro do Senado.

Enquanto ele contemplava o súbito aparecimento do Inverno, a mãe observava-o.

Uma pessoa notável, pensava Aurélia — e isso deve-se a mim, unicamente a mim, a mais ninguém. Mas apesar de ter muitas e excelentes qualidades, a verdade é que está longe de ser perfeito. Não é tão compreensivo, ou indulgente, ou terno, como o pai, ainda que tenha coisas do pai. Do pai, mas também minhas. É um homem tão brilhante sob tantos pontos de vista! Se há alguma coisa estragada cá em casa, basta chamá-lo que ele arranja tudo — canos, telhas, estuque, persianas, escoadouros, pinturas, madeira. E as melhorias que ele introduziu nos travões e nas gruas do nosso velho inventor! Até consegue escrever em hebreu e médio! E fala uma dúzia de línguas, porque conviveu com muitos estrangeiros nesta ínsula. Ainda rapaz, já era uma lenda no Campo de Marte, pelo menos é o que diz Lúcio Decúmio. Nada, monta, corre, como o melhor dos atletas. Os poemas e as peças que escreve — tão bons como os de Flauto e Énio, embora eu seja sua mãe e não devesse dizer uma coisa dessas. E domina a retórica como ninguém, segundo Marco António Gnifão. Como é que Gnifão disse? Ah, sim, disse que o meu filho consegue fazer chorar as pedras e irritar as montanhas. E percebe de leis. E consegue ler tudo num ápice, mesmo que a caligrafia seja horrenda! Não há mais ninguém em Roma que consiga uma coisa dessas: nem mesmo aquele prodígio, o Marco Túlio Cícero. Quanto a mulheres — ah, todas atrás dele! Em todo o bairro... não o largam, é uma loucura! Ele pensa que eu não sei, claro. Ele pensa que eu o julgo casto, que eu o imagino à espera da sua querida esposa. Pois bem, antes assim. Os homens são estranhas criaturas quando chegam ao momento de se tornar homens. Mas o meu filho não é perfeito. Apenas soberbamente dotado. Tem um temperamento terrível, mas esconde-o bem. Nalguns aspectos está demasiado virado para si mesmo e nem sempre é sensível aos sentimentos e às necessidades dos outros. Quanto à sua obsessão pela limpeza, bom, agrada-me que ele seja assim, tão niquento, tão picuinhas, mas também não sei onde é que ele foi buscar isso, a mim não foi com certeza. Recusa-se a ir para a cama com uma mulher se ela não vier directamente do banho e imagino que a inspecciona da cabeça aos pés. No bairro de Subura! No entanto, as mulheres são loucas por ele, e por isso essa mania até foi boa para o bairro: desde que ele fez 14 anos, que as mulheres deste bairro andam muito mais limpas! Catorze anos! Mas que precoce! Sempre desejei que o meu marido conhecesse outras mulheres durante os longos anos em que ele esteve fora, mas ele dizia-me sempre que não, que não queria outras mulheres, que preferia esperar por mim. Se havia coisa que eu não gostasse nele, era essa. Porque, para mim, aquela atitude culpabilizava-me. Imagine-se: guardava-se para mim e, afinal, só muito raramente estava comigo. O meu filho nunca fará isso à sua mulher. Espero que ela aprecie a sorte que tem. Sila. Sila mandou-o chamar. Quem me dera saber porquê. Quem me dera.

Aurélia despertou subitamente dos seus pensamentos: César, sentado à secretária, chamava-a e ria-se.

— Mas onde é que tu estás, mãe? — perguntou ele.

— Por todo o lado — respondeu ela, levantando-se, dando-se conta subitamente do frio. —vou pedir a Burgundo para trazer o braseiro, César. Este quarto está um gelo.

— Mas que exagerada! — retorquiu ele, ternamente.

— Não quero que vás ter com Sila a fungar e a espirrar — contrapôs Aurélia.

Mas no dia seguinte César estava perfeitamente bem: nem fungadelas, nem espirros. O jovem apresentou-se na casa de Cneu Aenobarbo uma boa hora antes do jantar, pois preferia esperar no átrio a chegar demasiado tarde. Como seria de esperar, o chefe dos criados — um grego de maneiras muito afectadas que o sujeitou a uma série de subtis e insinuantes olhares — informou-o de que chegara demasiado cedo.

— Não se importa de esperar um pouco? — perguntou-lhe o chefe dos criados. Dando-se conta de que o homem lhe provocava pele de galinha, César fez um breve aceno para lhe dizer que não se importava de esperar e virou imediatamente as costas àquele que, muito em breve, se tornaria famoso, àquele que toda a Roma conheceria como Crisógono.

Mas Crisógono não se ia embora; era evidente que ficara fascinado com César e que não resistira a tentar a sua sorte. César, pelo seu lado, teve o bom senso de não fazer o que lhe apetecia — partir-lhe os dentes todos. Momentos depois, porém, César teve uma inspiração decisiva: bruscamente, encaminhou-se para a varanda; o chefe dos criados detestava demasiado o frio para se dar ao trabalho de o seguir. Aquela casa tinha duas varandas. A que César escolhera, e onde fazia agora desenhos na neve para passar o tempo, não dava para o Fórum Romano, mas sim para o penhasco do Palatino na direcção da Clivus Victoriae. Mesmo acima encontrava-se a varanda de uma outra casa, a qual se projectava literalmente sobre a casa de Aenobarbo.

De quem era aquela casa? César fez um esforço para se lembrar. Ah, sim, era a casa de Marco Lívio Druso, assassinado no átrio dez anos antes. Então aquela é que era a casa onde viviam todos aqueles órfãos, sob o rigoroso controlo de... de quem? Sim, sim, da filha daquele Servílio Cepião que morrera afogado ao regressar da sua província! Cneia? Sim, Cneia. Acompanhada pela mãe, aquela criatura capaz de assustar qualquer um, aquela temível mulher chamada Pórcia Liciniana! Naquela casa, viviam não sei quantos Servílios Cepiões e Pórcios Catões. Os Pórcios Catões do ramo inferior, do ramo Salónio. Descendentes de um escravo. Ah, ali estava um deles! César debruçou-se sobre a balaustrada de mármore para melhor ver um rapaz muito magro, quase esquelético, com um pescoço tão alto que fazia lembrar uma cegonha, e um nariz suficientemente grande para se tornar notado àquela distância. Uma cabeleira farta, escorrida, ruiva. Sim, aquele não podia enganar ninguém: pertencia à prole de Catão, o Censor!

Todos estes pensamentos indicavam um elemento da personalidade de César que Aurélia, durante o seu devaneio, não catalogara: ele adorava bisbilhotices e não se esquecia de nenhum mexerico.

— Ilustre sacerdote, o meu senhor está pronto a recebê-lo.

César virou-se com um sorriso e um aceno simpático para o rapaz que estava na varanda de Druso; divertido, reparou que o rapaz não lhe retribuiu o aceno. O jovem Catão, provavelmente, ficara demasiado espantado para retribuir a gentileza; e tinha razões para ficar espantado: com certeza que, na residência temporária de Sila, poucos seriam os que tinham tempo para manifestar simpatia ou amizade por um rapazito que era descendente de um proprietário rural tusculano e de um escravo celtibero.

Embora estivesse preparado para se avistar com o Ditador, César não deixou de se sentir chocado com o aspecto físico de Sila. Não admirava que ele não tivesse procurado a mãe! Se eu estivesse no lugar dele, também não a procurava, pensou César, avançando tão silenciosamente quanto os seus tamancos lhe permitiam.

A reacção inicial de Sila foi a de que estava perante uma pessoa totalmente desconhecida; mas isso devia-se à feia capa vermelho-púrpura e ao peculiar efeito criado pelo capacete de marfim de cor creme num homem com o crânio rapado.

— Tira essas roupagens — disse-lhe Sila e logo voltou a concentrar-se nos muitos papéis que tinha na secretária.

Quando voltou a olhar, o sacerdote tinha desaparecido. Em vez do sacerdote, era o seu filho que ali estava. Sila sentiu os pêlos dos braços e da nuca a arrepiar-se; emitiu um som como o de ar saindo de um balão e tropegamente levantou-se. O cabelo muito louro, os olhos azuis muito grandes, o rosto alongado dos Césares, a notável estatura... Só então é que os olhos de Sila, nublados pelas lágrimas, puderam ver as diferenças: os ossos da face muito marcados, como os de Aurélia, e as covas sob os ossos, e a estranha e bela boca de Aurélia com aqueles vincos nos cantos. Mais velho que o jovem Sila, mais homem que rapaz. Oh, Lúcio Cornélio, meu filho, porque morreste?

Recompondo-se, Sila limpou as lágrimas.

— Por um momento pensei que eras o meu filho — disse ele,, com aspereza, e estremeceu.

— Ele era meu primo direito.

— Lembro-me que tu gostavas dele.

— E gostava, de facto.

— Gostavas mais dele do que do jovem Mário, disseste tu.

— Disse.

— E escreveste um poema sobre ele depois de ele morrer, mas disseste que o poema não era bom, por isso não mo mostraste.

— Sim, é verdade.

Sila deixou-se cair na cadeira, as mãos tremiam-lhe.

— Senta-te, meu rapaz. Aqui, onde a luz é melhor e eu posso ver-te. Os meus olhos já não são o que eram. — Sim, pensou Sila,vou deleitar-me com a sua visão! Foi o Grande Deus que mo mandou, o Grande Deus de quem ele é o sacerdote. — O teu tio Caio Cota explicou-te o motivo deste encontro?

— Disse-me apenas que me querias ver, Lúcio Cornélio.

— Trata-me por Sila, é assim que toda a gente me chama.

— E a mim todos me chamam César, até a minha mãe.

— Tu és o flamen Dialis.

Uma súbita chama brilhou naqueles olhos inquietantemente familiares — porquê tão familiares, se os do seu filho eram muito mais azuis e alegres? Um olhar de raiva. Sofrimento? Não, sofrimento não. Raiva.

— Sim, sou o flamen Dialis — respondeu César.

— Os homens que te nomearam eram inimigos de Roma.

— Não o eram na altura em que me nomearam.

— Bem observado. — Sila pegou na sua pena de cana revestida a ouro, mas voltou a pô-la na secretária. — Tens uma esposa.

— Tenho.

— Que é filha de Cina.

— É, de facto.

— Consumaste o casamento?

— Não.

Sila levantou-se e encaminhou-se para a janela, aberta de par em par apesar do frio muito agreste. César sorriu ao pensar no que a sua mãe teria dito — ali estava mais um que não se preocupava com a violência dos elementos!

— Tomei a meu cargo a tarefa de restaurar a República

— disse Sila, olhando pela janela para a estátua de Cipião Africano, em cima de uma alta coluna; àquela altitude, ele e o atarracado Cipião Africano encontravam-se ao mesmo nível. — Por razões que imagino que compreenderás, optei por começar pela religião. Nós perdemos os nossos velhos valores e precisamos de recuperá-los. Aboli a eleição de sacerdotes e augures, incluindo o Pontifex Maximus. Em Roma, a política e a religião encontram-se inextricavelmente ligadas, mas eu não quero que a religião esteja ao serviço da política, pois o contrário é que está certo.

— Eu compreendo essa posição — disse César, da sua cadeira.

— No entanto, creio que o Pontifex Maximus deveria ser eleito.

— Aquilo que tu crês, rapaz, não me interessa!

— Nesse caso, por que me chamaste?

— Certamente não foi para me aborreceres com a esperteza das tuas observações!

— Peço desculpa.

Sila virou-se e fitou-o com um olhar ameaçador.

— Não tens nem um bocadinho de medo de mim, pois não, rapaz?

E então, nos lábios de César, desenhou-se aquele sorriso — o mesmo sorriso! — que, ao mesmo tempo, atingia o coração e a mente dos outros.

— Em tempos, eu costumava esconder-me no tecto falso da nossa sala de jantar e via-te a conversar com a minha mãe. Os tempos mudaram e, com eles, todas as circunstâncias. Mas é difícil ter medo de um homem de quem, de um momento para o outro, passei a gostar, porque descobri que ele, afinal, não era o amante da minha mãe.

Aquela observação fez com que Sila desatasse numa gargalhada pegada; o riso afastava as lágrimas que uma vez mais ameaçavam explodir.

— Sim, é verdade! Eu não era o amante da tua mãe. Tentei uma vez, mas ela era demasiado inteligente para me querer. A tua mãe pensa como um homem. Eu não trago sorte às mulheres, nunca trouxe. — Os olhos inquietos de Sila miraram César de alto a baixo. — Tu também não trarás sorte nenhuma às mulheres, embora vás ter muitas.

— Por que razão me chamaste, se não precisas das minhas opiniões? — perguntou César.

— Chamei-te porque é necessário corrigir certos procedimentos religiosos que não primam propriamente pela correcção. Segundo me disseram, tu nasceste no mesmo dia do ano em que se extinguiu o incêndio do templo de Júpiter.

— É verdade.

— E como interpretas isso?

— Como um bom augúrio.

— Infortunadamente, o Colégio dos Pontífices e o Colégio dos Augures não estão de acordo, jovem César. Tu e o teu cargo têm sido o principal tema dos seus debates nos últimos tempos. E os dois Colégios concluíram que uma determinada irregularidade no teu flaminato foi responsável pela destruição do templo do Grande Deus.

César tinha a alegria estampada no rosto.

— Ah, que bom que é ouvir-te dizer isso!

— Ha? Ouvir-me dizer o quê?

— Que eu não sou o flamen Dialis.

— Eu não disse isso.

— Disseste, sim!

— Interpretaste mal as minhas palavras. Tu és inequivocamente o flamen Dialis. Quinze padres e quinze augures chegaram a essa conclusão e não emitiram qualquer dúvida.

A expressão de César não revela agora o menor sinal de alegria.

— Preferia ser soldado — disse ele, desabridamente. — Tenho mais qualidades de soldado do que de sacerdote.

— O que tu preferes não interessa. O que interessa é aquilo que és. E aquilo que a tua mulher é.

César franziu a testa, intrigado, perscrutando algum sinal no rosto de Sila.

— É a segunda vez que mencionas a minha mulher.

— Tens de te divorciar dela — disse bruscamente Sila.

— Divorciar-me dela? Mas como, se não posso?

— Porque não?

— Porque casámos confarreatio.

— Mas existe uma coisa chamada diffarreatio.

— E por que motivo tenho de me divorciar dela?

— Porque ela é filha de Cina. Verificou-se que as minhas leis relativas aos homens proscritos e às suas famílias tinham uma deficiência no que toca ao estatuto de cidadão das crianças de menor idade. Os sacerdotes e os augures decidiram que, nesse caso, deveria ser aplicada a lex Minicia. O que significa que a tua mulher — que é flaminica Dialis — não é nem romana, nem patrícia. Portanto, não pode ser flaminica Dialis. Como o flaminato é uma entidade dual, a legalidade da posição dela é tão importante como a tua. Eis a razão por que tens de te divorciar.

— Não farei tal — retorquiu César, começando a enxergar uma possibilidade de escapar ao seu odiado cargo.

— Tu farás tudo o que eu te mandar fazer, rapaz! i

— Não farei nada que ache que não devo fazer. Os lábios franzidos de Sila abriram-se lentamente.

— Eu sou o Ditador — disse ele num tom normal. — Tu vais divorciar-te da tua mulher.

— Recuso — replicou César.

— Se for preciso, obrigo-te.

— Como? — perguntou César, com um ar de desdém. — Os ritos do diffarreatio exigem o meu total consentimento e cooperação.

 

 

                                                                CONTINUA

 

 

Tinha chegado o momento de meter na ordem aquela peste de rapaz: Sila teria de mostrar a César a besta fera que vivia dentro dele, o animal que uivava à luz da Lua. Mas no instante em que a besta se preparava para exibir as suas garras, Sila percebeu porque é que os olhos de César lhe eram tão familiares. É que aqueles olhos eram iguais aos seus! Eram olhos que o fitavam com a frieza e a fixidez desprendida de uma serpente. E a besta fera encolheu as garras, impotente. Pela primeira vez na sua vida, Sila não conseguia submeter outro homem ao seu poder. A raiva que, naquele instante, deveria possuí-lo, não era raiva, porque logo se esfumara; obrigado a contemplar a sua própria imagem no rosto de outro homem, Lúcio Cornélio perdia todo o seu poder.

Tinha de lutar com palavras, apenas com palavras.

 

 

 

 

— Eu decidi consagrar-me à restauração da ética religiosa da mos maiorum — disse ele. — Roma honrará e cuidará dos seus deuses exactamente da mesma maneira que o fez nos primórdios da República. Júpiter Optimus Maximus está descontente. Contigo — ou melhor, com a tua esposa. Tu és o sacerdote especial de Júpiter, mas a tua esposa é uma parte inseparável do teu sacerdócio. Tens de separar-te dessa mulher, porque ela é inaceitável. Tens de casar-te com outra. Tens de te divorciar da filha de Cina porque ela não é romana.

— Não me divorcio — replicou César.

— Nesse caso, terei de encontrar outra solução.

— Solução? Dou-te já uma — retorquiu num instante César. — Deixa que Júpiter Optimus Maximus se divorcie de mim. Cancela o meu flaminato.

— Na minha qualidade de Ditador, poderia fazer isso. O problema é que envolvi os colégios sacerdotais na discussão do caso. E como fiz isso, agora tenho de atender às suas conclusões.

— Nesse caso — disse calmamente César — parece que estamos num beco sem saída, não é?

— Não, não estamos nada. Há uma saída.

— Matar-me.

— Precisamente.

— As tuas mãos ficariam manchadas com o sangue do flamen Dialis.

— Não ficariam se por acaso fosse outra pessoa a matar-te. Eu não subscrevo a metáfora grega, Caio Júlio César. E os nossos deuses romanos também não. A culpa não pode ser transferida para outrem.

César reflectiu no que acabava de ouvir.

— Sim, creio que tens razão. Se conseguires que seja outra pessoa a matar-me, será sobre essa pessoa que a culpa recairá. — César ergueu-se e...

 

 

                                                                                                    

 

                                         

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