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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS FILHOS DE MATUSALÉM / Robert Anson
OS FILHOS DE MATUSALÉM / Robert Anson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS FILHOS DE MATUSALÉM

 

   — Mary Sperling, és uma louca em não te casares com ele!

   Mary Sperling fez a soma do que perdera e passou um cheque antes de responder.

   — Há uma diferença de idade demasiado grande. — Ignorou o cartão de crédito. — Não devia jogar contigo. Às vezes penso que és sensitiva.

   — Disparate! Estás só a tentar mudar de assunto. Deves ter quase trinta... e não serás sempre bonita.

   Mary mostrou um sorriso amarelo.

   — E eu não sei!

   — Bork Vanning não deve ter muito mais de quarenta e é um cidadão eminente. Devias dar saltos peia oportunidade.

   — Salta tu. Tenho de me ir embora. Serviço, Ven.

   — Serviço — respondeu Ven, depois franziu o sobrolho para a porta enquanto esta se contraía sobre Mary. Estava em pulgas para saber por que é que Mary não casava com um homem de primeira apanha como o Honorável Bork Vanning, mas o costume da privacidade refreava-a.

   Mary não tinha a mínima intenção de deixar que alguém soubesse para onde ia. Fora do apartamento da amiga deixou-se escorregar por um tubo de ressalto até à cave, pediu o carro do parque-robot, guiou-o pela rampa acima e programou o controlo para a Costa Norte. O carro esperou por uma aberta no tráfego, depois mergulhou na corrente de alta velocidade e acelerou em direcção ao norte. Mary recostou-se para uma soneca.

   Quando a programação estava quase a esgotar-se, o carro apitou por mais instruções; Mary acordou e olhou para fora. O lago Michigão era uma tira mais escura de escuridão do lado direito. Fez sinal ao controlo de tráfego para a deixar entrar na via de tráfego local; o controlo desviou-lhe o carro e colocou-a lá, depois deixou-a retomar o controlo manual. Vasculhou no compartimento das luvas.

   O número de matrícula que o controlo de tráfego automaticamente fotografara quando ela deixara a controlestrada já não era o mesmo que o carro exibia.

   Durante várias milhas seguiu por uma estrada lateral não controlada, virou para Um caminho de terra batida que conduzia à margem e parou. Ficou ali à espera, de luzes apagadas, é escutou. Para sul brilhavam as luzes de Chicago; umas quantas centenas de metros para o interior guinchavam as controlestradas, mas, aqui, não havia nada a não sei Os barulhinhos tímidos das criaturas da noite. Mexeu no compartimento das luvas e agarrou um interruptor; o painel de instrumentos acendeu-se, revelando novos mostradores por detrás. Estudou-os enquanto fazia ajustamentos. Satisfeita por nenhum radar a estar a observar e por nada se mover ali perto, desligou os instrumentos, selou a janela do seu lado e pôs o carro a trabalhar de novo.

   O que parecia ser um normal Camden de alta velocidade elevou-se silenciosamente, dirigiu-se para o meio do lago, roçando-lhe a superfície — deixou-se cair na água e afundou-se. Mary esperou até estar a um quarto de milha da costa, a cinquenta pés de profundidade, e então chamou uma estação.

   — Responda — disse uma voz.

   -”A vida é curta...”

   “...mas os anos são longos.”

   “Não” respondeu Mary —, “enquanto os dias do mal não chegarem.”

   As vezes fico sem saber — respondeu, coloquialmente, a voz. — Esta bem, ^ Já te localizei.

   — Tommy!

   Não... Cecil Hedrick. Tens os controlos soltos?

— Sim. Toma tu conta.

Dezassete minutos mais tarde, o carro subiu à superfície, num lago que ocupava grande parte de uma caverna artificial. Quando o carro acostou, Mary saiu, cumprimentou os guardas e seguiu por um túnel até uma grande sala subterrânea, onde cinquenta ou sessenta homens e mulheres estavam sentados. Esteve a conversar até que um relógio anunciou a meia-noite, e então subiu a uma tribuna e enfrentou-os.

— Tenho — declarou ela — cento e oitenta e três anos de idade. Há aqui alguém que seja mais velho?

Ninguém falou. Depois de uma pausa conveniente, prosseguiu:

— Então, de acordo com os nossos costumes, declaro aberta a sessão. Querem escolher um moderador?

Alguém disse.

— Continua Mary.

Como ninguém mais falou, ela prosseguiu:

— Muito bem.

Parecia indiferente a honra, e o grupo parecia partilhar com ela a atitude descuidada — um ar de nenhuma pressa, de libertação da tensão da vida moderna.

— Estamos reunidos, como de costume — anunciou —, para discutir o nosso bem-estar e o das nossas irmãs e irmãos. Algum representante das Famílias tem qualquer mensagem da sua família? Ou alguém quer falar em seu próprio nome?

   Um homem chamou-lhe a atenção e falou:

   — Ira Weatheral, falando em nome da Família Johnson. Reunimo-nos há aproximadamente dois meses. Os administradores devem ter uma razão. Ouçamo-la.

   Ela fez que sim com a cabeça e virou-se para um homenzinho empertigado na primeira fila.

   — Justin... se quiseres, por favor.

   O homenzinho empertigado levantou-se e fez uma vénia rígida. Pernas escanzeladas saíam de debaixo do kilt[1] mal cortado. Parecia e agia como um idoso e poeirento funcionário público, mas o cabelo preto e o tom firme e saudável da pele diziam que era um homem no apogeu da vida.

   — Justin Foote — disse concisamente —, a falar em nome dos administradores. Passaram onze anos desde que as Famílias sê decidiram pela experiência de deixar que o público soubesse que havia, vivendo no meio dele, pessoas que possuíam uma expectativa de vida provável muito para além daquela com que o homem comum pode contar, assim como outras pessoas que demonstraram a verdade científica de tais expectativas, ao viverem mais do dobro do período normal de vida dos seres humanos.

   Embora falasse sem apontamentos, a voz dele soava como se estivesse a ler um relatório preparado de antemão. O que estava a dizer todos sabiam, mas ninguém o apressou; aquele público não tinha nada da impaciência febril tão comum em qualquer outro lado.

   — Ao decidir — continuou ele zumbindo — alterar a anterior e antiquíssima política de silêncio e ocultação quanto a este aspecto peculiar, no qual diferimos do equilíbrio da vida humana, as Famílias foram movidas por considerações várias. Deve-se atentar no que motivou a primitiva adopção da política de segredo.

   “Os primeiros rebentos resultantes das uniões assistidas pela Fundação Howard nasceram em 1875. Não suscitaram comentários porque não eram, de modo algum, notáveis. A Fundação era uma corporação legal, não lucrativa...

   No dia 17 de Março de 1874, Ira Johnson, estudante de Medicina, estava sentado no consultório de Deems, Wingate, Alden & Deems, advogados, e escutava uma proposta invulgar. Por fim, interrompeu o sócio mais velho.

   — Só um momento! Terei entendido bem que estão a tentar contratar-me para casar com uma destas mulheres?

   O advogado pareceu chocado.

   — Por favor, Sr. Johnson. De modo nenhum.

   — Bem, certamente era o que parecia.

   — Não, não, tal contrato seria nulo, contra o interesse público. Como administradores de um consórcio, estamos simplesmente a informá-lo de que, se viesse a acontecer que o senhor casasse, de facto, com uma das jovens desta lista, seria então nosso agradável dever dotar cada filho de tal união de acordo com a escala aqui apresentada. Mas não estaria envolvido em nenhum contrato connosco, nem lhe está a ser feita nenhuma “proposta”... e não lhe impomos absolutamente nenhuma actuação. Estamos simplesmente a informá-lo de certos factos.

   Ira Johnson franziu o sobrolho e arrastou os pés.

   — Que vem a ser isto? Porquê?

   — Isso é com a Fundação. Poder-se-ia dizer que os seus avós merecem a nossa aprovação.

   — Estiveram a falar com eles a meu respeito? — perguntou Johnson rispidamente. Não sentia afeição pelos avós. Quatro forretas: se qualquer deles tivesse tido a gentileza de morrer numa idade razoável, não estaria agora preocupado com o dinheiro para acabar o curso de Medicina.

   — Falámos com eles, sim. Mas não a seu respeito.

   O advogado deu a conversa por encerrada e o jovem Johnson aceitou graciosamente uma lista de mulheres jovens, todas desconhecidas, com a intenção de a rasgar no momento em que saísse do consultório. Em vez disso, nessa noite escreveu sete rascunhos antes de encontrar as palavras certas que lhe permitissem começar a arrefecer a relação entre ele e a namorada lá da terra. Estava contente por nunca lhe ter apresentado uma proposta concreta — seria tremendamente embaraçoso.

   Quando de facto casou com uma das jovens da lista pareceu uma coincidência curiosa, mas não demasiado extraordinária, que a mulher tivesse, tal como ele, quatro avós vivos, saudáveis, activos.

   — ...uma corporação legal, não lucrativa — continuou Foote —, e o seu propósito confesso de encorajar os nascimentos de gente de boa cepa americana estava de acordo com os costumes daquele século. Pelo simples expediente de calar o verdadeiro propósito da Fundação, não foram necessários métodos invulgares de ocultação até quase ao fim daquele período, durante as guerras mundiais, às vezes pouco cientificamente denominado “Os Anos Loucos”.

 

     Cabeçalhos seleccionados de Abril a Junho de 1969:

BEBÉ BILL LEVA BANCA A FALÊNCIA

Tatibitate de dois anos, o mais jovem vencedor da taluda ($1.000.000) da TV Casa Branca telefona parabéns

TRIBUNAL ORDENA VENDA DE CASA DO ESTADO

Supremo Tribunal do Colorado Regulamenta

as Pensões Oficiais de Velhice Primeiro Hipotecou Todos os Bens do Estado

A JUVENTUDE DE NOVA IORQUE SATISFAZ AS EXIGÊNCIAS DE MAIOR LIMITE AO DIREITO DE VOTO

TAXA DE NASCIMENTOS DOS E.U. “TOP SECRET” - MINISTÉRIO DA DEFESA

DEPUTADA POR CAROLINA VENCE CONCURSO DE BELEZA

“Disponível para candidatura à Presidência”, anuncia ao iniciar uma digressão para exibir as suas habilitações

IOWA AUMENTA A IDADE DE VOTAR PARA QUARENTA E UM Motins na Cidade Universitária de Des Moines

A MANIA DE COMER TERRA AVANÇA PARA OESTE: PASTOR DE CHICAGO COME SANDUÍCHE DE ARGILA NO PÚLPITO

“O regresso às coisas simples”, aconselha ele ao seu rebanho

TURBA DE LICEU DE LOS ANGELES DESAFIA A DIRECÇÃO DA ESCOLA

“Salários Mais Altos, Menos Horas, Nenhum Trabalho de Casa — Exigimos o Direito de Eleger os Professores e os Treinadores”

A TAXA DE SUICÍDIO SOBE ININTERRUPTAMENTE DESDE HÁ NOVE ANOS

A Comissão de Energia Atómica Nega Qualquer Influência da Chuva de Partículas Atómicas

 

     — ...Os Anos Loucos. Os administradores da altura decidiram (correctamente, sabemo-lo agora) que qualquer minoria era, durante aquele período de desorientação semântica e histeria de massas, um alvo provável de perseguição, legislação discriminatória e mesmo violência da turba. Além do mais, a perturbada condição financeira do país e, em particular, a troca forçada dos títulos das companhias por títulos do Governo ameaçava a solvência da Fundação.

   “Duas linhas de acção foram adoptadas: os bens da Fundação foram convertidos em riqueza imobiliária e largamente distribuídos pelos membros das Famílias, para que como proprietários legítimos os conservassem; e a chamada “Mascarada” foi adoptada como politica permanente. Descobriram-se maneiras de simular a morte de qualquer membro das Famílias que vivesse até uma idade socialmente embaraçosa e de o munir de uma nova identidade noutro local do país.

   “A sabedoria desta última política, se bem que penosa para alguns, tornou-se imediatamente evidente durante o Interregno dos Profetas. No começo do reinado do Primeiro Profeta, as Famílias tinham noventa e sete por cento dos seus membros com idades confessas de menos de cinquenta anos. O apertado registo público, organizado sob pressão da polícia secreta dos Profetas, tornou difíceis as mudanças de identidade pública, embora umas quantas fossem conseguidas com a ajuda da Cabala revolucionária.

   “Assim, uma combinação de sorte e previsão salvou o nosso segredo de revelação pública. O que foi bom. Podemos ter a certeza de que na altura as coisas teriam sido muito difíceis para qualquer grupo que possuísse um bem que o poder do Profeta não pudesse confiscar.

   “As Famílias, enquanto grupo, não tomaram parte nos acontecimentos que conduziram à Segunda Revolução Americana, mas muitos membros participaram e serviram com mérito na Cabala e na luta que precedeu a queda de Nova Jerusalém. Aproveitámo-nos do período de desorientação que se seguiu para reajustar as idades dos nossos irmãos que se tornaram manifestamente velhos. Nisto fomos ajudados por certos membros das Famílias, que, como membros da Cabala, detinham postos-chave na Reconstrução.

   “Na reunião de Famílias de 2075, o ano do Pacto, muitos argumentaram que nos devíamos revelar, visto a liberdade civil ter sido firmemente restabelecida. A maioria não concordou na altura... talvez pelos velhos hábitos de segredo e prudência. Mas o renascimento da cultura nos cinquenta anos que se seguiram, o aumento estável da tolerância e da boa-educação, a orientação semanticamente boa da educação, o aumento do respeito pelo costume da privacidade e pela dignidade do indivíduo... todas estas coisas nos levaram a acreditar que chegara finalmente a altura em que poderíamos com segurança revelar-nos e ocupar o nosso legítimo lugar de minoria social estranha, mas não menos respeitada.

   “Havia razões de peso para o fazer. Um número cada vez maior dos nossos achava a Mascarada socialmente intolerável numa nova e melhor sociedade. Não só era perturbador desenraizar-se e procurar um novo “solo” de tantos em tantos anos, como também era enervante ter de viver uma mentira, numa sociedade em que a franca honestidade e as relações correctas eram habituais entre a maioria das pessoas. Além disso, as Famílias, enquanto grupo, aprenderam muitas coisas através de investigações em biociências, coisas que poderiam ser de grande beneficio para os nossos pobres irmãos de vidas breves. Precisávamos de liberdade para os ajudar.

   “Estas razões e outras semelhantes foram objecto de discussão. Mas o retomar do costume da identificação física categórica tornou a Mascarada quase insustentável. Sob a nova orientação, um cidadão são e pacífico acolhe bem a identificação categórica em circunstâncias adequadas, mesmo se zeloso do seu direito à privacidade em todas as outras... portanto, não nos atrevíamos a objectar; teria suscitado curiosidade, distinguir-nos-ia como um grupo excêntrico, à parte, e destruiria assim o próprio objectivo da Mascarada.

   “Tivemos de nos submeter à identificação pessoal. Por alturas da reunião de 2125, há onze anos, tornara-se extremamente difícil falsificar novas identidades para o número crescente dos nossos que tinham idades públicas incompatíveis com a aparência pessoal; decidimos fazer a experiência de deixar que voluntários desse grupo, até dez por cento do total de membros das Famílias, se revelassem e observar as consequências, guardando no entanto todos os outros segredos da organização das Famílias.

   “Os resultados foram lamentavelmente diferentes das nossas expectativas.

   Justin Foote parou de falar. O silêncio durava já há uns momentos, quando um homem de meia-altura, bem constituído, falou. O cabelo era ligeiramente grisalho — invulgar naquele grupo — e o rosto parecia bronzeado pelo espaço. Mary Sperling já reparara nele e estivera a pensar quem poderia ser — o rosto vivo e a gargalhada vigorosa tinham-na interessado. Mas qualquer membro era livre de assistir às reuniões do Conselho das Famílias; depois não pensara mais nisso.

   Ele disse:

   — Fala, mano. Qual é o teu relatório?

   Foote respondeu enquanto se dirigia para a cadeira:

   — O nosso psicometrista deve fazer melhor o balanço do relatório. As minhas observações foram um preliminar.

   — Pelo amor de... — exclamou o forasteiro grisalho. — Mano, quer dizer que estás a admitir que tudo o que tinhas a dizer eram coisas que nós já sabíamos?

   — As minhas observações foram uma base... e o meu nome é Justin Foote, e não Mano.

   Mary Sperling interrompeu com firmeza:

   — Irmão — disse ao estranho —, visto que estás a dirigir-te às Famílias, importas-te de te apresentar? Lamento dizer que não te reconheço .

   — Desculpa, irmã. Lazarus Long, falando em meu nome.

   Mary abanou a cabeça.

   — Continuo a não conseguir Localizar-te.

   — Desculpa outra vez... isso é um nome da Mascarada que eu adoptei no tempo do Primeiro Profeta... achei-o divertido. O meu nome de família é SMITH... Woodrow Wilson Smith.

   — Woodrow Wilson Sm... Que idade tens?

   — Hã? Porquê, não tenho feito as contas ultimamente. Cen... não, duzentos e treze anos. Sim, é isso, duzentos e treze.

   Houve um silêncio súbito, total. Depois Mary disse suavemente:

   — Ouviste-me perguntar por alguém mais velho do que eu?

   — Sim. Mas, bolas, irmã, estavas a ir bem. Há mais de um século que não venho a uma reunião das Famílias. Houve ‘mas mudanças.

   — Vou-te pedir que prossigas. — Ela desceu do estrado.

   — Oh, não! — protestou ele. Mas ela não lhe prestou atenção e arranjou um lugar. Ele olhou à volta, encolheu os ombros e cedeu. Com uma anca apoiada num canto da mesa do orador, anunciou: — ‘tá bem, continuemos com isto. Quem se segue?

   Ralph Schulz, da Família Schulz, parecia mais um banqueiro do que um psicometrista. Não era nem tímido nem distraído, e tinha uma maneira de falar directa e sem ênfase que canalizava autoridade.

   — Fiz parte do grupo que propôs o fim da Mascarada. Estava errado. Acreditei que a grande maioria dos nossos concidadãos, criados sob os novos métodos educacionais, pudesse avaliar quaisquer dados sem excessiva perturbação emocional. Calculava que uns quantos anormais não gostassem de nós, nos odiassem mesmo; cheguei a prever que muitos nos invejariam... todos os que apreciam a vida gostariam de viver muito tempo. Mas não contei com nenhum problema grave. As atitudes modernas acabaram com a fricção inter-racial. Alguém que ainda conserve preconceitos raciais tem vergonha de o mostrar. Acreditei que a nossa sociedade era tão tolerante que podíamos viver pacífica e abertamente com os de vida breve.

   “Enganei-me.

   “Os negros odiaram e invejaram o branco enquanto o branco gozou de privilégios proibidos aos negros em função da cor. Era uma reacção sã e normal. Quando a discriminação foi abolida, o problema resolveu-se por si e deu-se uma assimilação cultural. Há uma tendência semelhante da parte dos de vida breve para invejar os de vida longa. Presumimos que esta reacção previsível não teria importância social na maioria das pessoas, uma vez que ficasse claro que devemos esta peculiaridade aos nossos genes... não por culpa ou virtude nossa, apenas sorte com os antepassados.

   “Não foi mais do que sonhar alto. Olhando para trás é fácil ver que a aplicação correcta da análise matemática aos dados mostraria uma resposta diferente, teria dado com a falsa analogia. Não defendo o erro de cálculo, não há defesa possível. Fomos desencaminhados pelas nossas esperanças.

   “0 que de facto aconteceu foi isto: mostrámos aos nossos primos de vida breve a maior bênção que é possível a um homem imaginar... depois dissemos-lhes que nunca poderia ser deles. Isto colocou-os perante um dilema insolúvel. Recusaram os factos insuportáveis, recusaram-se a acreditar-nos. A inveja deles está a transformar-se agora em ódio, com a convicção emocional de que os estamos a privar dos seus direitos... deliberadamente, maldosamente.

   “Essa torrente de ódio cresceu numa inundação, que ameaça agora o bem-estar e mesmo as vidas de todos os nossos irmãos declarados... e que é potencialmente perigosa para os restantes. O perigo é muito grande e muito urgente. — Sentou-se de um modo brusco.

   Ouviram-no calmamente, com o sereno hábito de anos. Pouco depois, uma delegada levantou-se.

   — Eve Barstow, pela Família Cooper. Ralph Schultz, tenho cento e noventa anos, mais, creio, do que tu. Não tenho o teu talento para as matemáticas e o comportamento humano, mas conheci uma quantidade de gente. Os seres humanos são inerentemente bons e gentis e amáveis. Oh! Têm as suas fraquezas, mas a maioria é suficientemente decente se lhe derem um mínimo de oportunidade. Não acredito que me odiassem e me destruíssem simplesmente por eu ter vivido muito. Que é que tu tens para prosseguir? Admitiste um erro... por que não dois?

   Schultz olhou-a gravemente e alisou o kilt.

   — Tens razão, Eve. Eu poderia facilmente enganar-me de novo. É o mal da psicologia; é uma matéria tão terrivelmente complexa, tantas incógnitas, tantas relações envolvidas, que os nossos melhores esforços parecem às vezes idiotas, à luz gelada dos factos posteriores. — Levantou-se de novo, encarou os outros e de novo falou com uma autoridade simples. — Mas não estou a fazer uma previsão de longo alcance desta vez; estou a falar de factos, não de adivinhas, não de sonhos... e, com esses factos, duma previsão tão próxima que é como prever que um ovo se vai partir ao vê-lo já a caminho do chão. Mas Eve tem razão... tanto quanto disse. Os indivíduos são amáveis e decentes... como indivíduos e para com outros indivíduos. Eve não corre perigo em relação aos seus amigos e vizinhos e eu não corro perigo em relação aos meus. Mas corre perigo em relação aos meus vizinhos e amigos... e eu em relação aos dela. A psicologia de massas não é uma simples soma de psicologias individuais; isto é um teorema básico da psicodinâmica social, não apenas a minha opinião; nunca se descobriu excepção a este teorema. É a regra de acção-de-massas social, a lei da histeria da turba, conhecida e usada por militares, políticos e chefes religiosos, pelos homens da publicidade e profetas e propagandistas, por agitadores e actores e chefes de bando, gerações antes de ser formulada em símbolos matemáticos. Funciona. Está a funcionar agora.

   “Os meus colegas e eu começámos a suspeitar que uma corrente de histeria da turba estava a ganhar corpo contra nós, já há alguns anos. Não trouxemos as nossas suspeitas ao conselho para uma actuação porque não podíamos provar nada. O que então observávamos podia ser simplesmente o rosnar da minoria desorientada, presente mesmo, nas sociedades mais saudáveis. A corrente era a princípio tão diminuta que não podíamos ter a certeza que existisse, porque todas as correntes sociais se interligam com outras correntes sociais, emaranhados como um prato de esparguete... pior do que isso, porque é preciso um espaço topológico abstracto de muitas dimensões (dez ou doze não são invulgares e são dificilmente suficientes), para descrever matematicamente a inter-relação de forças sociais. Nunca poderei dar demasiada ênfase à complexidade do problema.

   “Portanto, esperámos e preocupámo-nos e tentámos amostragens estatísticas, montando o nosso universo estatístico com grande cuidado.

   “Na altura em que tivemos a certeza, era quase tarde de mais. As correntes sociopsicológicas crescem e morrem por uma lei de “fermentação”, uma complexa lei de poder. Continuámos a ter esperança de que outros factores favoráveis invertessem a corrente: o trabalho de Nelson na simbiótica, a nossa própria contribuição para a geriatria, o grande interesse público na abertura dos satélites jovianos à imigração. Qualquer saída de monta que oferecesse aos de vida breve uma vida mais longa e maior esperança poderia pôr fim ao ressentimento latente contra nós.

   “Em vez disso, a brasa inflamou-se num fogo florestal incontrolável. Tão aproximadamente quanto podemos medir, a proporção duplicou nos últimos trinta e sete dias e a apropria proporção está acelerada. Não posso adivinhar até onde e a que velocidade seguirá ... e é por isso que podemos esta sessão de emergência. Porque podemos esperar sarilhos a qualquer momento. — Deixou-se cair no assento, com um ar cansado.

   Eve não discutiu mais com ele e também mais ninguém o fez; não só Ralph Schultz era considerado um perito no seu campo, mas também todos eles, cada um do seu ponto de vista, já observara os aspectos mais grosseiros da corrente que se formava contra os irmãos a descoberto. Mas enquanto a aceitação do problema era unânime, havia tantas opiniões acerca do que fazer quantas as pessoas presentes. Lazarus deixou que a discussão se embrulhasse por duas horas antes de levantar a mão.

— Não estamos a chegar a lado nenhum — afirmou ele — e parece que não vamos chegar a lado nenhum esta noite. Vamos considerar o caso no geral, tocando apenas nos pontos importantes:

“Podemos — começou a contar pelos dedos — não fazer nada, manter-nos rigidamente na mesma situação e ver o que acontece.

“Podemos atirar a Mascarada de vez para o lixo, revelar o nosso número total e exigir politicamente os nossos direitos.

“Podemos ficar como estamos à superfície e usar a nossa organização e o nosso dinheiro para proteger os nossos irmãos a descoberto, talvez pescá-los de volta à Mascarada.

“Podemos revelar-nos e pedir um lugar para colonizar, onde possamos viver sozinhos.

“Ou podemos fazer qualquer outra coisa. Sugiro que nos dividamos de acordo com estes quatro pontos de vista principais (digamos nos cantos da sala, no sentido dos ponteiros do relógio, a começar naquele canto direito mais afastado), cada grupo alinha um plano e apronta-o para o submeter às Famílias. E os que não apoiam nenhuma destas quatro coisas juntem-se no meio da sala e comecem a escrevinhar o que pensam. Agora, se não ouvir nenhuma objecção, vou declarar esta tenda suspensa até amanhã à noite, à meia-noite. Que acham?

Ninguém falou. A versão aerodinâmica do procedimento parlamentar de Lazarus Long sobressaltara-os um tanto; estavam habituados a discussões longas e repousadas até se tornar evidente que um ponto de vista se tornara unânime. Fazer as coisas à pressa era ligeiramente chocante.

Mas a personalidade do homem era poderosa, os anos davam-lhe prestígio e o modo levemente arcaico de falar aumentava-lhe a autoridade patriarcal; ninguém discutiu.

— ‘tá bem — anunciou Lazarus, dando uma palmada com as mãos. — A igreja está fechada até amanhã à noite. — Desceu da plataforma.

Mary Sperling veio ter com ele.

— Gostaria de te conhecer melhor — disse ela, olhando-o nos olhos.

— Certamente, mana. Por que não?

— Vais ficar para a discussão?

— Não.

— Podes vir para casa comigo?

— Gostava. Não tenho assuntos urgentes noutro lado.

— Então vem. — Conduziu-o através do túnel ao lago subterrâneo ligado ao lago Michigão. Ele esbugalhou os olhos à vista do pseudo Camden, mas não disse nada até terem submergido.

— Belo carrinho que tu tens.

— Sim.

— Tem algumas características invulgares.

   Ela sorriu.

   — Sim. Entre outras coisas, explode, de um modo muito radical, se alguém tenta investigá-lo.

   — Bom — acrescentou: — És engenheira projectista, Mary?

   — Eu? Meu Deus, não! Não neste último século, pelo menos, e já não tento manter-me a par com essas coisas. Mas podes encomendar um carro com estas modificações, por intermédio das Famílias, se quiseres um. Fala com...

   — Deixa lá, não preciso. Gosto apenas de objectos que fazem aquilo para que foram desenhados e o fazem silenciosa e eficientemente. Um bom cérebro deve ter suado neste.

   — Sim. — Ela estava ocupada nessa altura a vir à superfície, a fazer uma inspecção por radar e a voltar à margem sem atrair as atenções.

   Quando chegaram ao apartamento dela, ela pôs tabaco e bebidas ao alcance dele, depois foi para o quarto, atirou com as roupas de sair e vestiu uma túnica macia e solta, que a tornava ainda mais pequena e mais jovem do que parecera. Quando foi ter com Lazarus, ele levantou-se, acendeu-lhe um cigarro, depois fez uma pausa enquanto lho entregava e deu um assobio, galante e indelicado.

   Ela fez um sorriso ligeiro, aceitou o cigarro e sentou-se numa cadeira ampla, puxando os pés para debaixo dela.

   — Lazarus, tu tranquilizas-me.

   — Não tens um espelho, rapariga?

   — Não é isso — disse ela com impaciência. — És tu. Sabes que ultrapassei a expectativa de vida média da nossa gente. Tenho estado à espera de morrer, resignada a isso, nestes últimos dez anos. Contudo, aí estás tu... anos e anos mais velho do que eu. Dás-me esperança.

   Ele endireitou-se na cadeira.

   — Tu à espera de morrer? Que raio, rapariga... tu estás boa para mais um século.

   Ela fez um gesto de cansaço.

   — Não tentes animar-me. Sabes que a aparência não tem nada a ver com isso. Lazarus, não quero morrer!

   Lazarus respondeu sobriamente.

   — Eu não estava a tentar enganar-te, mana. Simplesmente tu não pareces nada uma candidata a cadáver.

   Ela encolheu os ombros, graciosamente.

   — Um caso de biotécnica. Conservo a minha aparência no princípio dos trinta.

   — Ou menos, diria eu. Calculo que não estou a par das últimas habilidades, Mary. Ouviste-me dizer que não venho a um encontro há mais de um século. Na realidade, estive esse tempo todo sem contacto nenhum com as Famílias.

   Verdade? Posso perguntar porquê?

   — É uma história longa e aborrecida. Para resumir, aborreci-me com eles. Costumava ser delegado às reuniões anuais. Mas eles tornaram-se enfadonhos e rígidos nos seus modos... ou, pelo menos, assim me pareceu. Portanto, vagueei por outros lados. Passei o Interregno quase todo em Vénus. Voltei por uns tempos, depois da assinatura do Pacto, mas não creio que tenha passado dois anos na Terra desde então. Gosto de andar por aí.

   Os olhos dela iluminaram-se.

   — Oh, conta-me! Nunca estive no espaço profundo. Só em Luna City, uma vez.

   — Claro — concordou ele. — Noutra altura. Mas quero saber mais desse assunto do teu aspecto. Rapariga, não aparentas de modo nenhum a tua idade.

   — Suponho que não. Ou melhor, claro que não. Quanto ao modo como se consegue, não te posso dizer muito. Hormonas e simbiótica e terapia glandular e alguma psicoterapia... coisas desse género. Isto traduz-se em que, para os membros das Famílias, a senilidade é adiada e a senescência pode ser travada, pelo menos cosmeticamente. — Ficou a cismar por uns momentos. — Uma vez, pensaram que estavam na pista do segredo da imortalidade, a verdadeira Fonte da Juventude. Mas foi um engano. A senilidade é simplesmente adiada... e abreviada. Cerca de noventa dias desde o primeiro aviso claro... então a morte por velhice. — Estremeceu. — Claro que a maioria dos nossos primos não espera... duas semanas para se ter a certeza do diagnóstico, então a eutanásia.

   — É o diabo o que estás a dizer! Bem, eu não irei dessa maneira. Quando a Velha me vier buscar, a mim, terá de me arrastar... e vou dar pontapés e arrancar olhos a cada passo do caminho!

   Ela levantou um canto da boca, num sorriso.

   — Faz-me bem ouvir-te falar assim. Lazarus, eu não baixaria as minhas defesas perante alguém mais novo do que eu. Mas o teu exemplo dá-me coragem.

   — Vamos durar mais qu’eles todos, Mary, não tenhas receio. Mas acerca da reunião desta noite: não prestei nenhuma atenção às notícias e só recentemente vim para as bandas da Terra... aquele tipo, o Ralph Schultz, sabe de que é que está a falar?

   — Acho que deve saber. O avô dele era um homem brilhante e o pai também.

   — Presumo que conheces o Ralph.

   — Superficialmente. É um dos meus netos.

   — É engraçado. Ele parece mais velho do que tu.

   — Ralph achou que era melhor para ele fazer parar o seu aspecto nos quarenta, só isso. O pai dele foi o meu vigésimo sétimo filho. Ralph deve ter... deixa ver... oh, oitenta ou noventa anos menos do que eu, pelo menos. Assim, é mais velho do que alguns dos meus filhos.

— Tu contribuíste bem para as Famílias, Mary.

— Suponho que sim. Mas eles também me fizeram bem a mim. Gostei de ter filhos e os benefícios da organização pelos meus trinta e tais fazem uma boa quantia. Tenho todos os luxos que alguém poderia desejar. — Estremeceu de novo. — Suponho que é por isso que tenho tanto medo... gosto de viver.

— Pára com isso! Pensei que o meu sólido exemplo e o meu riso juvenil te curassem desse disparate.

— Bem... ajudaste.

— Hum... olha, Mary, por que não te casas outra vez e tens mais uns fedelhos gritões? Mantinham-te demasiado ocupada para te preocupares.

— O quê? Na minha idade? Olha que realmente, Lazarus!

— Não há nada de mal com a tua idade. És mais nova do que eu.

Ela estudou-o por um momento.

— Lazarus, estás a propor-me um contrato? Se assim é, gostaria que falasses mais claramente.

Ele abriu a boca e engoliu em seco.

— Eh. espera aí! Devagar! Eu estava a falar em termos gerais... não sou do tipo doméstico. O quê, cada vez que me casei, em poucos anos a minha mulher ficava enjoada só de olhar para mim. Não, mas o que... bem, quero dizer que és uma rapariga muito bonita e um homem devia...

Ela calou-o inclinando-se para a frente e pondo-lhe uma mão sobre a boca, com um sorriso endiabrado.

— Não queria que ficasses em pânico, primo. Ou talvez quisesse... os homens são tão engraçados quando pensam que estão prestes a ser encurralados.

— Bom — disse ele carrancudo.

— Esquece, querido. Diz-me, que plano é que achas que eles irão adoptar?

— Aquela malta de hoje à noite?

— Sim.

— Nenhum, claro. Não chegarão a lado nenhum. Mary, uma comissão é a única forma conhecida de vida com cem barrigas e nenhum cérebro. Mas, dentro de pouco tempo, alguém com o seu próprio cérebro os levará a aceitar o seu plano. Não sei qual será.

— Bem... que linha de acção é que tu preferes?

— Eu? O quê, nenhuma. Mary, se houve uma coisa que eu aprendesse nestes dois últimos séculos foi esta: estas coisas passam. Guerras e depressões e profetas e pactos... passam. O truque é ficar-se vivo enquanto elas duram.

Ela acenou pensativamente.

— Acho que tens razão.

— Claro que tenho razão. Leva-se cem anos, mais ou menos, para se compreender como a vida é boa. — Levantou-se e espreguiçou-se. — Mas, neste momento, um sono faria bem a este rapaz em crescimento.

   — A mim também.

   O apartamento de Mary era no último andar, com vista para o céu. Quando ela voltara à sala, desligara a iluminação interior e abrira os estores do tecto; estavam sentados sob as estrelas, separados apenas por um invisível lençol de plástico. Quando Lazarus levantou a cabeça ao espreguiçar-se, o seu olhar pousou na constelação favorita.

   — Estranho — comentou ele. — A Orion parece ter ganho mais uma Maria[2].

   Ela olhou para cima.

   — Deve ser a grande nave para a Segunda Expedição a Centauro. Vê se a consegues ver deslocar-se.

   — Não a posso ver sem instrumentos.

   — Suponho que não — concordou ela. — Espertos em a terem construído no espaço, não foram?

   — Não havia outro modo de o fazer. Era demasiado grande para ser montada na Terra. Posso encostar-me aqui mesmo, Mary. Ou tens um quarto extra?

   — O teu quarto é a segunda porta do lado direito. Chama se não conseguires encontrar tudo o que precisares. — Ergueu o rosto e deu-lhe um rápido beijo de boa-noite, uma bicada. — B’noite.

   Lazarus seguiu-a e foi para o seu quarto.

   Mary Sperling acordou à hora do costume no dia seguinte. Levantou-se em silêncio para não acordar Lazarus, mergulhou na banheira, tomou um duche e fez uma massagem, engoliu um grão de substituto do sono para compensar a noite curta, seguido de um pequeno-almoço igualmente rápido, tudo o que a cintura lhe permitia, depois, com um soco, esperou as chamadas que não se dera ao trabalho de receber na noite anterior. O telefone passou diversas chamadas, que ela esqueceu rapidamente, depois reconheceu a voz de Bork Vanning.

   — Olá — disse o instrumento. — Mary, daqui Bork, a falar às vinte e uma horas. Passarei por aí às dez horas da manhã de amanhã, para um mergulho no lago e almoço em qualquer lado. A menos que digas alguma coisa, fica marcado. Adeus, minha querida. Serviço.

   — Serviço — repetiu ela automaticamente. — Diabos levem o homem! Não era capaz de se ficar com um não? Mary Sperling, estás a decair! — Um quarto da tua idade e não és capaz de o manobrar. Telefona-lhe e deixa-lhe recado de que... não, demasiado tarde; estará aqui a qualquer momento. Bolas!

 

Quando foi para a cama, Lazarus tirou o kilt e atirou-o descuidadamente para o guarda-fatos... que o sacudiu, virou e pendurou direitinho. “Boa”, comentou ele, depois olhou para baixo, para as coxas peludas, e sorriu de esguelha; o kilt ocultara uma pistola de explosivos presa a uma coxa, uma faca na outra. Sabia do gentil costume actual contra as armas pessoais, mas sentia-se nu sem elas. Tais costumes eram um disparate de qualquer modo, maluqueiras de velhotas — não há nenhuma “arma perigosa”, só há homens perigosos.

   Quando saiu da casa de banho pôs as armas onde as pudesse alcançar, antes de cair no sono.

   Acordou, instantânea e completamente, uma arma em cada mão... depois lembrou-se onde estava, descontraiu-se e olhou à volta para ver o que o teria acordado.

   Era um murmúrio de vozes, através da conduta do ar. Mau isolamento acústico, apercebeu-se ele, e Mary deve estar a receber visitas — nesse caso, ele não devia ficar a pastelar na cama. Levantou-se, lavou-se, prendeu novamente as suas melhores amigas às coxas e foi à procura da anfitriã.

   Quando a porta da sala se dilatou na sua frente sem ruído, o som das vozes tornou-se mais alto e muito interessante. A sala era em forma de L e ele não estava à vista; inclinou-se para trás e escutou descaradamente. Já tinha salvo a pele várias vezes por escutar às portas; não o preocupava nada... até gostava.

   Um homem estava a dizer:

   — Mary, não está a fazer sentido absolutamente nenhum! Sabes que gostas de mim, admites que o casamento comigo só te traria vantagens. Portanto, por que é que não queres?

   — Já te disse, Bork. Diferença de idade.

   — Isso é tolice. Que é que esperas? Um romance adolescente? Oh, admito que não sou tão novo como tu... mas uma mulher precisa de um homem mais velho em quem se refugie e que lhe dê estabilidade. Não sou demasiado velho para ti; estou apenas no começo.

Lazarus decidiu que já conhecia o tipo o suficiente para não gostar dele. Voz enjoada...

   Mary não respondeu. O homem continuou:

   De qualquer modo, tenho uma surpresa para ti nesse ponto.

   Quem dera poder dizer-te agora, mas... bem, é um segredo de estado.

   — Então não me digas. Em todo o caso, não me vai fazer mudar de ideias, Bork.

   — Oh, isso é que vai! Hum ... Vou dizer-te... sei que posso confiar em ti.

   — Agora, Bork, não devias presumir que...

   — Não tem importância; será do domínio público dentro de alguns dias, de qualquer modo. Mary... eu nunca serei um velho ao pé de ti.

   — Que queres dizer? — Lazarus achou que o tom dela se tornara subitamente desconfiado.

   — Exactamente o que disse. Mary, acharam o segredo da eterna juventude!

   — O quê? Quem? Como? Quando?

   — Ah, então agora estás interessada, hã? Bem, não te faço esperar. Sabes daqueles velhotes que se intitulam Famílias Howard?

   — Sim... ouvi falar neles, claro — admitiu ela lentamente. — Mas que é que isso tem? São aldrabões.

   — De modo nenhum. Eu sei. A administração tem estado a investigar discretamente as afirmações deles. Alguns deles têm inquestionavelmente mais de cem anos... e são ainda jovens!

   — Isso é muito difícil de acreditar.

   — No entanto, é verdade.

   — Bem... como é que eles conseguem?

   — Ah! Aí é que bate o ponto. Eles afirmam que é um simples caso de hereditariedade, que vivem muito porque descendem de gente que viveu muito. Mas isso é absurdo, cientificamente incompatível com os factos estabelecidos. A administração verificou com o máximo cuidado e a resposta é certa: eles têm o segredo para manter a juventude.

   — Não podes ter a certeza disso.

   — Oh, vamos, Mary! És uma rapariga amorosa, mas estás a pôr em causa a opinião pericial dos melhores cérebros científicos do mundo,. Deixa lá. Aqui vai a parte que é confidencial. Ainda não temos o segredo deles... mas tê-lo-emos em breve. Sem qualquer alarido, sem aviso público, eles vão ser apanhados e interrogados. Descobriremos o segredo... e eu e tu nunca seremos velhos! Que achas disto? Hã?

   Mary respondeu muito lentamente, quase inaudivelmente:

   — Seria bom se toda a gente pudesse viver muito tempo.

   — Hum? Sim, suponho que seria. Mas em todo o caso tu e eu receberemos o tratamento, seja ele qual for. Pensa em nós, querida. Ano após ano de um casamento feliz, jovem. Não menos de um século. Talvez mesmo...

   — Espera um bocadinho, Bork. Este “segredo” não seria para toda a gente?

   — Bem, agora... isso é um caso de alta política. A densidade de população é um problema difícil, mesmo agora. Na prática podia ser necessário restringi-lo ao pessoal essencial... e às esposas. Mas não preocupes a tua linda cabecinha com isso; tu e eu tê-lo-emos.

   — Queres dizer que eu o terei se casar contigo?

   — Hum... isso é um modo desagradável de pôr as coisas, Mary. Faria tudo por ti, porque te amo. Mas seria extremamente simples se estivesses casada comigo. Portanto diz que sim.

   — Deixemos isso por agora. Como é que se propõem extrair-lhes esse “segredo”?

   Lazarus quase conseguiu ouvir a cabeça a acenar, como quem sabe.

   — Oh, falarão!

   — Queres dizer que os mandariam para Coventry, se não falassem?

   — Coventry? Hum! Não compreendes mesmo a situação, Mary; isto não é uma qualquer ofensa social menor. Isto é traição... traição contra toda a raça humana. Usaremos meios! Métodos que os Profetas usaram... se eles não cooperarem voluntariamente.

   — Queres mesmo dizer isso? Mas isso é contra o Pacto!

   — O Pacto que se dane! Isto é um caso de vida ou de morte; achas que nós deixaríamos um pedaço de papel atravessar-se-nos no caminho? Não nos podemos incomodar com míseras legalidades nas coisas fundamentais pelas quais os homens vivem... não em relação a algo pelo qual eles lutarão até à morte. E isso é precisamente o que isto é. Esses patifes... esses cães raivosos estão a tentar afastar de nós a vida. Achas que nos vergaremos aos “costumes” numa emergência como esta?

   Mary respondeu num murmúrio horrorizado:

   — Achas realmente que o conselho violará o Pacto?

   — Acho? A acção do conselho foi gravada a noite passada. Autorizámos o administrador a usar “todos os recursos”.

   Lazarus apurou os ouvidos durante um longo silêncio. Por fim, Mary falou.

   — Bork...

   — Dize, minha querida.

   — Tens de fazer alguma coisa. Tens de o impedir.

   — Impedir? Não sabes o que estás a dizer. Não poderia... e não o faria se o pudesse.

   — Mas tens de o fazer. Tens de convencer o conselho. Eles estão a cometer um erro, um erro trágico. Não vão ganhar nada em tentar exercer coerção sobre essa pobre gente. Não há segredo nenhum!

   — O quê? Estás a ficar excitada, minha querida. É o teu raciocínio contra alguns dos melhores e mais sábios homens do planeta.

Acredita-me, sabemos o que estamos a fazer. Gostamos tanto como tu de usar métodos duros, mas é para o bem geral. Ouve, lamento ter levantado o assunto. E natural que sejas doce e gentil e generosa, e amo-te por isso. Por que não te casas comigo e deixas de atormentar a cabeça com assuntos de política pública?

— Casar contigo? Nunca!

— Oh, Mary... estás perturbada. Dá-me uma única razão válida para o não fazeres?

— Vou dizer-te porquê; porque eu sou uma dessas pessoas que tu queres perseguir!

Houve outra pausa.

— Mary... não estás bem.

— Não estou bem, não é? Estou tão bem quanto uma pessoa pode estar na minha idade. Ouve-me bem, idiota! Tenho netos com o dobro da tua idade. Estava cá quando o Primeiro Profeta tomou o poder. Estava cá quando Harriman lançou o primeiro foguete lunar. Ainda nem sequer eras um fedelho gritão... os teus avós ainda nem se tinham encontrado quando eu já era uma mulher adulta e casada. E tu ficas aí a propor, sem hesitação, maltratar, mesmo torturar, a mim e à minha gente. Casar contigo? Antes casar com um dos meus próprios netos!

Lazarus mudou o peso do corpo e enfiou a mão direita pela abertura do kilt; estava à espera de sarilhos de um momento para o outro. Pode-se confiar numa mulher, reflectiu ele, para perder a cabeça no momento errado.

Esperou. A resposta de Bork foi calma; o tom de homem de autoridade experiente substituiu o de paixão contrariada.

— Calma, Mary. Senta-te, eu tomo conta de ti. Primeiro, quero que tomes um sedativo. Depois arranjo-te o melhor psicoterapeuta da cidade... do país todo. Vais ficar bem.

— Tira as mãos de cima de mim!

— Então, Mary...

Lazarus passou para o meio da sala e apontou a pistola a Vanning.

— Este macaco está a incomodar-te, mana?

Vanning virou a cabeça num sobressalto.

— Quem é você? — perguntou ele com indignação. — Que está a fazer aqui?

Lazarus continuou a dirigir-se a Mary.

— Diz uma palavra, mana, e eu corto-o em bocadinhos suficientemente pequenos para se esconderem.

— Não, Lazarus — respondeu ela, agora com a voz controlada. — Obrigada na mesma. Por favor, afasta a arma. Não gostaria que nada desse género acontecesse.

— Está bem. — Lazarus colocou a pistola no coldre, mas deixou a mão em repouso na coronha.

— Quem é você? — repetiu Vanning. — Que significa esta intrusão?

— Eu estava mesmo para lhe perguntar isso, mano — disse Lazarus amenamente —, mas deixemos correr o marfim. Sou outro dos velhotes que você procura... aqui como a Mary.

Vanning olhou para ele penetrantemente.

— Pergunto-me ... — disse ele. Voltou a olhar para Mary. — Não pode ser, é absurdo. Contudo... não fará mal investigar a vossa história. Tenho bastantes razões para vos deter; em qualquer caso, nunca vi um caso mais evidente de atavismo anti-social. — Moveu-se em direcção ao videofone.

— É melhor afastar-se desse vídeo, mano — disse Lazarus rapidamente, depois acrescentou para Mary: — Não tocarei na arma, mana. Vou usar a faca.

Vanning parou.

— Muito bem — disse ele num tom enfadado —, afaste essa vibrolâmina. Não falo daqui.

— Olhe outra vez, não é uma vibrolâmina. É aço. Embotado.

Vanning virou-se para Mary Sperling.

— Vou-me embora. Se fores sensata, vens comigo. — Ela abanou a cabeça. Ele pareceu aborrecido, encolheu os ombros e encarou Lazarus Long. — Quanto a si, meu caro senhor, os seus modos primitivos meteram-no em sérios embaraços. Será preso em breve.

Lazarus olhou para cima, para os estores do tecto.

— Faz-me lembrar um patrono, em Venusburg, que me queria prender.

— E então?

— Vivi bastante mais que ele.

Vanning abriu a boca para responder, depois virou-se subitamente e saiu tão depressa que a porta da rua mal teve tempo de se abrir no seu nariz. Quando a porta se fechou com um estalido, Lazarus disse sonhadoramente:

— Há anos que não encontrava um homem tão difícil de chegar à razão. Aposto que nunca viu uma arma sem ser esterilizada em toda a sua vida.

Mary pareceu sobressaltar-se, depois deu uma gargalhadinha. Ele virou-se para ela.

— Folgo em ver-te animada, Mary. A modos que pensei que estavas perturbada.

— Estava. Não sabia que estavas a ouvir. Fui forçada a improvisar à medida que prosseguia.

— Achas que estraguei tudo?

— Não. Ainda bem que entraste... obrigada. Mas agora temos de nos apressar.

— Suponho que sim. Penso que ele falou a sério... em breve anilará um vigilante à minha procura. A tua também, talvez.

   — Era isso que eu queria dizer. Portanto, vamo-nos embora.

   Mary ficou pronta para sair em poucos minutos, mas quando saíram para o hall público encontraram um homem, cuja braçadeira e hipoequipamento mostrava ser vigilante.

   — Serviço — disse ele. — Estou à procura de um cidadão acompanhado da cidadã Mary Sperling. Podiam dar-me alguma indicação?

   — Com certeza — concordou Lazarus. — Ela vive mesmo ali. — Apontou o extremo do corredor. Enquanto o guardião da paz olhava naquela direcção, Lazarus bateu-lhe cuidadosamente na parte de trás da cabeça, um pouco para a esquerda, com a coronha da pistola de explosivos e apanhou-o quando ele se afundou.

   Mary ajudou Lazarus a empurrar a massa desajeitada para dentro do apartamento. Ele ajoelhou-se sobre o chui, vasculhou o hipoequipamento, tirou uma seringa cheia e deu-lhe uma injecção.

   — Já está — disse ele —, isto vai mantê-lo sonolento por umas horas. — Depois pestanejou pensativamente, olhando o hipoequipamento, e tirou-o do cinto do vigilante. — Isto pode vir a fazer jeito novamente. De qualquer modo, não faz mal levar. — Pensando melhor, tirou a braçadeira da paz do vigilante e colocou-a também no bolso.

   Abandonaram novamente o apartamento e deixaram-se escorregar até ao piso de estacionamento. Enquanto rolavam em direcção à rampa, Lazarus notou que Mary marcava a combinação da Costa Norte.

   — Para onde vamos? — perguntou ele.

   — Para a sede das Famílias. Não há mais nenhum lado em que não sejamos inspeccionados. Mas teremos de nos esconder algures no campo até escurecer.

   Assim que, sob o controlo dos feixes luminosos, o carro ficou na direcção do norte, Mary pediu licença e dormiu uns minutos. Lazarus olhou a paisagem durante algumas milhas, depois também ele cabeceou.

   Foram acordados pelo ruído do alarme de emergência e pelo bólide que abrandava para parar. Mary esticou-se e calou o alarme. “Que todos os carros retomem o controlo local”, entoava uma voz. “Prossigam à velocidade de vinte para a torre de controlo de tráfego mais próxima para serem inspeccionados. Que todos os carros retomem o controlo local. Prossigam à...”

   Ela também o desligou.

   — Bem, aquilo é connosco — disse Lazarus alegremente. — Tens alguma ideia?

   Mary não respondeu. Espreitou para fora e estudou os arredores. A vedação de aço que separava a controlestrada de alta velocidade em que eles estavam da faixa de tráfego local não controlado estava a cerca de cinquenta jardas para a direita, mas nenhuma rampa de

desvio interrompia a vedação durante pelo menos mais uma milha — onde houvesse uma, haveria, claro, a torre de controlo onde os tinham mandado submeter-se à inspecção. Ela pôs o carro novamente a trabalhar, operando-o manualmente, e esgueirou-se por entre o tráfego, parando ou movendo-se devagar enquanto acelerava. Quando se aproximaram da barreira, Lazarus sentiu-se puxado para dentro das almofadas; o carro oscilou e elevou-se, não tocando na barreira por umas polegadas. Ela fê-lo descer, rolando, no lado mais afastado.

   Um carro aproximava-se, do norte, e eles andavam aos sacões no meio da faixa dele. O outro carro não vinha a mais de noventa, mas o condutor fora apanhado de surpresa — não havia nenhuma razão que fizesse prever que outro carro ia aparecer, vindo não se sabe de onde, em direcção a ele, numa estrada sem ninguém. Mary foi forçada a mergulhar para a esquerda, depois para a direita, e novamente para a esquerda; o carro girou e empinou-se sobre a roda traseira, contorcendo-se contra a garra de aço dos giros. Mary lutou para recuperar o controlo, acompanhada do triturar arrepiante de herculeno contra o vidro, enquanto a roda traseira lutava pela tracção.

   Lazarus deixou que os músculos do maxilar se descontraíssem e expirou com prazer.

   — Ufa! — suspirou ele. — Espero que não tenhamos de voltar a fazer isso.

   Mary olhou para ele com um sorriso aberto.

   — As mulheres ao volante põem-te nervoso?

   — Oh, não, não, de modo nenhum! Só gostava que me avisasses quando algo como aquilo estiver para acontecer.

   — Eu própria não sabia — admitiu ela, depois continuou preocupada. — Não sei mesmo o que fazer agora. Pensei que pudéssemos ficar sossegados, fora da cidade, até escurecer... mas tive de me mostrar quando tomei por aquela vedação. Agora já alguém deve estar a informar a torre. Hum...

   — Porquê esperar até escurecer? — perguntou ele. — Por que não saltar simplesmente para o lago nesta tua engenhoca à James Bond e deixar que ela nos leve a nado para casa?

   — Não gostaria — enervou-se ela. — Já atraí demasiada atenção. Um trimóvel disfarçado para parecer um veículo de terra dá jeito, mas... bem, se alguém nos vê a conduzi-lo para debaixo de água e os vigilantes são postos ao corrente, alguém adivinhará a resposta. Então vão começar a pescar... com tudo, desde sismó ao sonar, e Deus sabe que mais.

   — Mas a sede não tem um escudo?

   — Claro. Mas eles podem descobrir qualquer coisa daquele tamanho... se souberem o que procuram e não abandonarem a busca.

   — Tens razão, claro — admitiu Lazarus lentamente. — Bem, certamente não queremos conduzir vigilantes bisbilhoteiros à sede das

Famílias. Mary, penso que é melhor abandonar o carro e afastarmo-nos. — Franziu o sobrolho. — Para qualquer lado menos para a sede.

   — Não, tem de ser para a sede — respondeu ela secamente.

   — Porquê? Quando se caça uma raposa, ela...

   — Cala-te um bocadinho! Quero experimentar uma coisa. — Lazarus calou-se e Mary conduziu com uma mão enquanto vasculhava no compartimento das luvas.

   — Responda — disse uma voz.

   — “A vida é curta...” — respondeu Mary.

   Completaram a fórmula.

   — Ouve — continuou Mary apressadamente. — Estou metida em sarilhos... localiza-me.

   — Certo.

   — Está algum sub no lago? — Sim.

   — Ainda bem! Fixa-me e manda-os para cá. — Ela explicou apressadamente os pormenores do que queria, parando uma vez para perguntar a Lazarus se sabia nadar. — E tudo — disse por fim —, mas mexam-se! Temos poucos minutos.

   — Aguenta aí, Mary! — protestou a voz. — Sabes que não podemos mandar um sub durante o dia, ainda para mais num dia calmo. É demasiado fácil...

   — Mandas ou não mandas?

   Uma terceira voz intrometeu-se.

   — Eu estava a ouvir, Mary... Ira Barstow. Vamos apanhar-te.

   — Mas... — objectou a primeira voz.

. — Deixa isso, Tom. Ocupa-te apenas dos teus queimadores e leva-me para dentro. Até já, Mary!

   — Certo, Ira!

   Enquanto estivera a falar com a sede, Mary saíra da faixa de tráfego local para a estrada não pavimentada que seguira na noite anterior, sem abrandar e, aparentemente, sem olhar. Lazarus rangeu os dentes e agarrou-se. Passaram por um sinal gasto que dizia ÁREA CONTAMINADA — PROSSIGA SOB SUA RESPONSABILIDADE, e que era embelezado pelo tradicional trevo púrpura. Lazarus pestanejou e encolheu os ombros — não conseguia ver como é que, naquele momento, um neutrão ou dois poderiam aumentar-lhe o azar.

   O carro inclinou-se para a frente quando Mary parou num maciço de árvores atrofiadas, perto da estrada abandonada. O lago ficava-lhes aos pés, logo atrás de uma escarpa baixa. Ela desapertou o cinto de segurança, acendeu um cigarro e descontraiu-se.

   — Agora ficamos à espera. Levam pelo menos uma hora a chegar cá, por muito que o Ira se esforce. Lazarus, achas que nos viram virar para aqui?

   — Para falar verdade, Mary, eu estava demasiado ocupado para olhar.

   — Bem... nunca ninguém vem para aqui, a não ser uns quantos rapazes irrequietos.

   (“E raparigas”, acrescentou Lazarus para consigo.) Depois continuou em voz alta:

   — Reparei num sinal “quente” ali atrás. Qual é a percentagem?

   — Aquilo? Oh, puf. Nada de importante, a menos que decidisses construir aqui uma casa. Nós é que estamos quentes. Se não tivéssemos de ficar junto do comunicador...

   O comunicador falou.

   — Tudo bem, Mary. Mesmo na tua frente.

   Ela pareceu sobressaltar-se.

   — Ira?

   — É o Ira que está a falar, mas ainda estou na sede. O Pete Hardy estava disponível na baía de Evanston, portanto mandámo-lo ter contigo. Mais depressa.

   — Está bem, obrigada! — Ia-se virar para falar com Lazarus quando ele lhe tocou no braço.

   — Olha para trás de nós.

   Um helicóptero estava a pousar a menos de cem metros dali. Três homens saltaram. Estavam vestidos como vigilantes.

   Mary atirou com a porta do carro e fez voar o vestido num movimento único. Virou-se e gritou: “Anda!”, enquanto metia uma mão dentro do carro e soltava uma alavanca do painel de instrumentos. Desatou a correr.

   Lazarus correu o fecho do cinto do kilt e deixou-o cair enquanto corria, atrás dela, para a escarpa. Ela ia dançando por ali abaixo; ele vinha atrás, ligeiramente mais cauteloso, praguejando contra as pedras aguçadas. A deslocação de ar abalou-os quando o carro explodiu, mas foram salvos pela escarpa.

   Chegaram juntos à água.

   A comporta do pequeno submarino mal chegava para um de cada vez; Lazarus enfiou Mary primeiro lá para dentro e tentou empurrá-la à pancada, quando ela resistiu, e descobriu que a pancada não resulta debaixo de água. Depois perdeu um tempo infinito, ou que pelo menos assim pareceu, a decidir se conseguia ou não respirar água. “Que é que um peixe tem a mais do que eu?”, dizia ele para consigo, quando o ferrolho exterior se moveu sob a sua mão e ele conseguiu serpentear lá para dentro.

   Onze arrastados segundos para bombear a água da comporta e teve oportunidade de ver que danos a água tinha ou não feito à pistola de explosivos.

   Mary estava a falar ao capitão com urgência.

   — Ouve, Pete... lá em cima estão três vigilantes com um pião. O meu carro rebentou-lhes na cara quando estávamos mesmo a chegar à água. Se não estão todos mortos ou feridos, haverá um esperto que perceberá que nós só tínhamos um lugar para onde ir... para debaixo de água. Temos de nos afastar daqui antes que eles levantem para nos procurar.

   — É uma corrida perdida — queixou-se Pete Hardy, martelando os controlos enquanto falava. — Mesmo se for só uma busca visual, terei de sair e permanecer fora do círculo de reflexão total antes que ele consiga ganhar altitude... e não posso. — Mas o pequeno sub precipitou-se em frente de um modo tranquilizador.

   Mary preocupava-se se devia ou não chamar a sede dali do sub. Decidiu-se pelo não; serviria apenas para aumentar as probabilidades contra o sub e a própria sede. Portanto, acalmou-se e esperou, toda encolhida no assento de um passageiro, demasiado pequeno para dois. Pete Hardy dirigiu-se num movimento largo para águas profundas, apertando-se contra o fundo, arrastando os sinalizadores de profundidade de Muskegon-Gary, e conduziu às escuras.

   Quando vieram à superfície, no lago dentro da sede, ela tinha-se decidido contra qualquer meio de comunicação físico, mesmo o equipamento cuidadosamente escudado da sede. Em vez disso, esperava encontrar um sensitivo telepático, pronto e disponível, entre os dependentes de que a Família ali tomava conta. Os sensitivos eram tão raros entre os membros saudáveis das Famílias Howard como entre o resto da população, mas a própria consanguinidade que conservara e reforçara a sua anormal longevidade também conservara e reforçara os maus genes ao mesmo tempo que os bons; tinham uma percentagem invulgarmente alta de deficientes mentais e físicos. O quadro de controlo genético concentrava-se no problema de se verem livres dos maus ascendentes, conservando simultaneamente o ascendente de longevidade, mas, por muitas gerações, continuariam a pagar as vidas longas com um excesso de deficientes.

   Porém, quase cinco por cento desses deficientes eram telepaticamente sensitivos.

   Mary foi direita ao santuário da sede, onde esses dependentes eram assistidos, com Lazarus nos calcanhares. Apertou a matrona.

   — Onde está o pequeno Stephen? Preciso dele.

   — Fala baixo — ralhou a matrona. — Hora de descanso... não podes.

   — Janice, tenho de o ver — insistiu Mary. — Isto não pode esperar. Tenho de passar uma mensagem a todas as Famílias... imediatamente.

   A matrona plantou as mãos nas ancas.

   — Leva-a ao centro de comunicações. Não podes vir aqui perturbar as minhas crianças a toda a hora. Não admito.

   — Janice, por favor! Não me atrevo a usar senão a telepatia. Sabes que não faria isto desnecessariamente. Agora leva-me ao Stephen.

— Não te adiantava nada se te levasse. O pequeno Stephen teve hoje um dos seus maus bocados.

— Então leva-me ao sensitivo mais forte que tenha possibilidade de trabalhar. Depressa, Janice! A segurança de todos os membros pode depender disso.

— Foram os administradores que te enviaram?

— Não, não! Não houve tempo!

A matrona ainda parecia duvidosa. Enquanto Lazarus estava a tentar recordar há quanto tempo não socava uma senhora, ela cedeu.

— Está bem, podem ver o Billy, embora eu não devesse deixar. E vejam lá se o cansam de mais. — Ainda eriçada, conduziu-os por um corredor, passando uma série de quartos alegres, para um deles. Lazarus olhou para a coisa na cama e desviou o olhar.

A matrona foi a um armário e regressou com uma seringa hipodérmica.

— Ele trabalha sob hipnóticos? — perguntou Lazarus.

— Não — respondeu a matrona friamente —, tem de se lhe dar um estimulante para que dê pela nossa presença. — Beliscou a pele do braço da tosca figura e deu a injecção. — Andem lá — disse para Mary, e remeteu-se a um silêncio carrancudo.

A figura na cama agitou-se, os olhos rolaram nas órbitas e depois pareceram focar-se. Sorriu.

— Tia Mary! — disse aquela coisa. — Oh! Trouxe alguma coisa ao Billyzinho?

— Não — disse ela suavemente. — Desta vez não, querido. A Tia Mary estava com demasiada pressa. Da próxima vez? Uma surpresa? Serve?

— Está bem — disse aquilo docilmente.

— Lindo menino. — Ela esticou-se e afagou-lhe o cabelo; Lazarus desviou novamente o olhar. — Agora o Billyzinho é capaz de fazer uma coisa à Tia Mary? Um favor grande, grande?

— Claro.

— És capaz de ouvir os teus amigos?

— Oh, claro.

— Todos eles?

— Hum, hum. A maioria não diz nada — acrescentou.

— Chama-os.

Houve um silêncio muito breve.

— Ouviram-me.

— Óptimo! Agora ouve com cuidado, Billyzinho: a todas as Famílias... aviso urgente! A anciã Mary Sperling fala. Ao abrigo de uma acção do conselho, o administrador está prestes a prender todos os membros declarados. As directivas que o conselho lhe deu foram para usar “todos os recursos”... e é minha Firme opinião que eles estão decididos a usar absolutamente todos os meios, sem olhar ao

Pacto, para tentar obter de nós o pseudo-segredo das nossas longas vidas. Tencionam mesmo usar torturas desenvolvidas pelos Profetas!

— A voz faltou-lhe. Parou e recompôs-se. — Agora, despachem-se! Encontrem-nos, avisem-nos, escondam-nos! Podem ter apenas alguns minutos para os salvar!

Lazarus tocou-lhe no braço e murmurou qualquer coisa; ela acenou com a cabeça e continuou:

— Se qualquer primo for preso, salvem-no seja por que meio for! Não tentem apelar com o Pacto, não percam tempo a discutir a justiça... salvem-no! Agora despachem-se!

Ela parou e depois falou numa voz cansada e suave:

— Ouviram-nos, Billyzinho?

— Claro.

— Estão a contar aos pais?

— Hum, hum. Todos menos Jimmie-o-Cavalo. Está fulo comigo — acrescentou confidencialmente.

— Jimmie-o-Cavalo? Onde está ele?

— Oh, onde ele vive.

— Em Montreal — interpôs a matrona. — Há lá mais dois sensitivos. A tua mensagem passou. Acabaste?

— Sim... — disse Mary duvidosamente. — Mas talvez fosse melhor que outra sede a retransmitisse.

— Não!

— È — Mas, Janice...

— Não o permito. Parece-me que tinhas mesmo de a enviar, mas agora quero dar o antídoto ao Billy. Portanto, saiam.

Lazarus pegou-lhe no braço.

— Anda, miúda. Ou passou ou não passou; fizeste o máximo. Um bom trabalho, rapariga.

Mary prosseguiu para fazer um relatório completo ao secretário residente; Lazarus deixou-a para se entregar a um assunto seu. Voltou sobre os seus passos, à procura de um homem que não estivesse demasiado ocupado, para o ajudar; os guardas à entrada do lago foram os primeiros que encontrou.

— Serviço — começou ele.

— Ao seu serviço — respondeu um deles. — À procura de alguém? — Olhou curiosamente para a quase completa nudez de Long, desviou depois os olhos; o modo como qualquer pessoa se vestia, ou não se vestia, era um assunto privado.

— De certo modo — admitiu Lazarus. — Diz-me, mano, sabes de alguém aqui que me empreste um kilt?

— Está a olhar para um — respondeu o guarda agradavelmente.

— Substitui-me, Dick... volto num minuto. — Conduziu Lazarus para os aposentos dos solteiros, calculou-lhe as medidas, ajudou-o a secar a bolsa e o que estava lá dentro, e não fez comentários acerca do arsenal preso às coxas peludas. O modo como os anciães se comportavam não era da sua conta, e muitos deles eram mesmo mais sensíveis quanto à sua privacidade do que a maioria das pessoas. Vira a Tia Mary Sperling chegar despida, por ter nadado, mas não ficara surpreendido porque ouvira Ira Barstow dar instruções a Pete acerca da recolha subaquática; que o ancião que estava com ela tivesse optado por dar um mergulho no lago, carregado com quinquilharia, surpreendia-o, mas não o bastante para o fazer esquecer-se da boa educação.

   — Precisa de mais alguma coisa? — perguntou ele. — Esses sapatos servem-lhe?

   — O suficiente. Muitíssimo obrigado, mano. — Lazarus alisou o kilt emprestado. Estava-lhe um pouco comprido, mas era um conforto. Uma cinta à volta dos rins estava bem, supunha... se se estivesse em Vénus. Mas ele nunca gostara muito dos costumes de Vénus. Raios! Um homem gostava de andar vestido. — Sinto-me melhor — confessou ele. — Mais uma vez obrigado. A propósito, qual é o teu nome?

   — Edmund Hardy, da Família Foote.

   — Ah, sim? De que ramo?

   — Charles Hardy e Evelyn Foote. Edward Hardy-Alice Johnson e Terence Briggs-Eleanor Weatheral. Oliver...

   — Chega. A modos que já calculava. És um dos meus trinetos.

   — O quê, isso é interessante — comentou Hardy simpaticamente. — Dá-nos dezasseis avos de parentesco, não dá?... não contando com a convergência. Posso perguntar-lhe o nome?

   — Lazarus Long.

   Hardy abanou a cabeça.

   — Algum engano. Não na minha linha.

   — Então tenta Woodrow Wilson Smith. Foi com esse que comecei.

   — Oh, esse! Sim, certamente. Mas pensei que tinha... hum...

   — Morrido? Bem, não morri.

   — Oh, não quis dizer isso, de maneira nenhuma — protestou Hardy, corando com a rudeza da palavra. Acrescentou apressadamente: — Estou contente por o ter encontrado, ‘vô. Sempre quis ouvir a verdade da história da Assembleia das Famílias de 2012.

   — Isso foi antes de nasceres, Ed — disse Lazarus rudemente —, e não me chames ‘vó.

   — Desculpe, senhor... quero dizer, desculpe, Lazarus. Há qualquer outro serviço que lhe possa prestar?

   — Não me devia ter irritado. Não... sim, há, sim. Onde é que me posso bater com um pedaço de pequeno-almoço? A modos que estava com pressa esta manhã.

   — Certamente. — Hardy levou-o à copa dos solteiros, accionou por ele o autochefe, serviu-se de café para o seu colega de vigia e para si, e partiu.

   Lazarus consumiu o seu “pedaço” de pequeno-almoço — cerca de três mil calorias de salsichas, ainda a chiar da fritura, ovos, compota, pães quentes, café com natas, e itens auxiliares, porque ele trabalhava na base de encher sempre os tanques de reserva, já que nunca se sabia até onde se poderia ter de viajar antes de se ter outra oportunidade de atestar. Em devido tempo, encostou-se, arrotou, juntou os pratos e enfiou-os pelo incinerador, depois foi à procura de uma caixa de notícias.

   Encontrou uma na biblioteca dos solteiros, à saída do salão. A sala estava vazia, à excepção de um homem que lá se encontrava a que parecia ter a mesma idade da que a aparência de Lazarus sugeria. Ali parava a semelhança; o estranho era delgado, de traços suaves, e era encimado por um cabelo delicadamente fiado, cor de cenoura, muito diferente do arbusto de arame grisalho que encimava Lazarus. O estranho dobrava-se sobre o receptor de notícias com os olhos comprimidos contra o microvisor.

   Lazarus pigarreou alto e disse:

   — Viva!

   O homem levantou a cabeça de repelão e exclamou:

   — Oh, desculpe... sobressaltei-me. Posso prestar-lhe um serviço?

   — Estava à procura da caixa de notícias. Importa-se que projectemos no écran?

   — Absolutamente nada. — O homem, mais pequeno, levantou-se, carregou no botão de rebobinar e programou os controlos para projecção. — Algum assunto em especial?

   — Queria ver — disse Lazarus — se havia algumas notícias sobre nós... as Famílias.

   — Eu próprio tenho estado a ver se vejo isso. Talvez fosse melhor usar a pista de som e deixá-la caçar.

   — Está bem — concordou Lazarus, avançando e mudando a programação para áudio. — Qual é a palavra de código?

   — Matusalém.

   Lazarus esmurrou o programador; a máquina tagarelou e chiou enquanto examinava ê rejeitava a fita que a atravessava velozmente, depois parou com um clique triunfante. “Os FACTOS DO DIA”, anunciou ela. “O único serviço noticioso do Médio Oeste a subscrever todas as redes principais. Concessionário do videocanal para Luna City. Correspondentes de Tri-S por todo o sistema. Primeiro, Mais Rápido, Melhor! Lincoln, Nebraska — Sábio denuncia Velhotes! O Dr. Witwell Oscarsen, Presidente Emérito do Bryan Liceum, pede reconsideração oficial do estatuto da irmandade que se auto-intitula ‘Famílias Howard’. ‘Está provado’, diz, ‘que estas pessoas resolveram o problema antiquíssimo do prolongamento, talvez indefinido, da média de vida humana. Por isso devem ser louvados; é uma pesquisa valiosa e potencialmente fértil. Mas a afirmação de que a solução não é mais do que predisposição hereditária desafia tanto a ciência como o bom senso. O moderno conhecimento das leis estabelecidas da genética permitem-nos deduzir, com segurança, que eles escondem do público alguma técnica, ou técnicas, secreta pela qual obtêm êxito.

   “‘É contrário aos nossos costumes permitir que o conhecimento científico seja mantido como monopólio por alguns. Quando a ocultação de tal conhecimento atinge a própria vida, a acção torna-se traição à raça. Como cidadão, exijo que a administração aja energicamente quanto a este assunto, e quero lembrar-lhes de que esta situação não podia possivelmente ter sido prevista pelos sábios que fizeram o Pacto e codificaram os nossos costumes básicos. Qualquer costume é feito pelo homem e é portanto uma tentativa limitada de descrever uma infinidade de relações. Segue-se, como a noite ao dia, que qualquer costume tem necessariamente excepções. Estar a ele amarrado à face da nova...’”

   Lazarus carregou no botão de paragem.

   — Já se fartou do tipo?

   — Sim, já o tinha ouvido. — O estranho suspirou. — Raramente ouvi uma ausência tão completa de rigor semântico. Surpreende-me. O Dr. Oscarsen fez bom trabalho no passado.

   — Atingiu a senilidade — afirmou Lazarus, enquanto dizia à máquina para tentar de novo. — Quer o que quer, quando o quer, e acha que isso constitui lei natural.

   A máquina zumbiu e estalou e falou de novo: “Os FACTOS DO DIA, o único serviço noticioso do...”

   — Não podemos arrumar o anúncio? — sugeriu Lazarus.

   O seu companheiro espreitou o painel de controlo.

   — Não parece estar equipado para isso.

   “Ensenada, Baixa Califórnia. Jeffers e Lucy Weatheral requereram hoje aos vigilantes protecção especial, alegando que um grupo de cidadãos lhes invadira a casa, os submetera a indignidades pessoais e cometera outros actos associais. Os Weatheral fazem parte, segundo eles próprios admitiram, das notórias Famílias Howard e afirmam que o alegado incidente estaria relacionado com esse suposto facto. O presidente da municipalidade sublinha que eles não apresentaram provas e decidiu ouvir conselho sobre o assunto. Foi anunciada para hoje à noite uma assembleia municipal, na qual se ventilará...”

   O outro homem virou-se para Lazarus.

   — Primo, ouvimos mesmo o que me pareceu ouvir? É o primeiro caso de violência de um grupo social em mais de vinte anos... no entanto, eles anunciaram-na com a falha de um integrador de clima.

   — Não exactamente — respondeu Lazarus, lugubremente. — As conotações das palavras usadas para nos descrever estavam bem carregadas.

   — Sim, é verdade, mas carregadas com esperteza. Duvido que houvesse naquele enunciado uma palavra que, tomada isoladamente, tivesse um índice emocional maior do que um vírgula cinco. O pessoal das notícias pode ir até dois, sabe.

   — É psicometrista?

   — Hum, não. Devia ter-me apresentado. Sou Andrew Jackson Libby.

   — Lazarus Long.

   — Eu sei. Estive na reunião de ontem à noite.

   — Libby... Libby — pôs-se Lazarus a meditar. — Parece-me que não consigo localizá-lo nas Famílias. Parece familiar, no entanto.

   — O meu caso é um pouco como o seu...

   — Mudou-o durante o Interregno, hem?

   — Sim e não. Nasci depois da Segunda Revolução. Mas os meus converteram-se à Nova Cruzada, cortaram com as Famílias e mudaram o nome. Já era um homem quando soube que era um membro.

   — Que raio de coisa! É interessante; como é que foi localizado... se a minha pergunta não o incomoda?

   — Bem, compreende, eu estava nas Forças Espaciais e um dos meus superiores...

   — Descobri! Descobri! Parecia-me que você era um espaçonauta. É Libby, o Alavanca de Lançamento, o Calculador.

   Libby ergueu os cantos da boca num sorriso acanhado.

   — Chamaram-me assim.

   — Claro, claro. A última lata que eu pilotei estava equipado com o teu rectificador paragravítico. E a mesa de controlo usava o teu diferencial fraccionado nos jactos de direcção. Mas fui eu mesmo que os instalei... a modos que te pedi emprestada a patente.

   Libby pareceu não ficar perturbado com o roubo. O rosto iluminou-se-lhe.

   — Interessas-te pela lógica simbólica?

   — Só pragmaticamente. Mas olha, fiz uma modificação no teu aparelho, que deriva das alternativas rejeitadas na sua décima terceira equação. Funciona assim: suponhamos que viajas num campo de densidade x com um gradiente de ordem n normal na tua rota e queres estabelecer a tua rota óptima para um projectado ponto de encontro A maiúsculo, com vector de união P, usando selecção automática durante todo o salto; então, se...

   Desviaram-se completamente do inglês básico, tal como é usado pelos leigos amarrados à Terra. A caixa de notícias junto deles continuou à caça; três vezes falou, de cada vez Libby tocou no botão de rejeição sem que conscientemente a ouvisse.

   — Estou a ver o que queres dizer — disse ele por fim. — Pensei numa modificação um tanto semelhante, mas concluí que comercialmente não era fabricável, demasiado cara, a não ser para entusiastas como tu. Mas a tua solução é mais barata do que a minha.

   — Como é que calculaste isso?

   — O quê? É evidente a partir dos dados. A tua engenhoca contém sessenta e duas partes móveis, o que requereria, se partirmos de processos de fabricação estandardizados, um provável — Libby hesitou momentaneamente, como se estivesse a programar o problema —, um provável máxi-óptimo de cinco mil duzentas e onze operações na manufactura, pressupondo automatização de zero-therblig, enquanto a minha...

   Lazarus interrompeu.

   — Andy — perguntou ele solicitamente —, nunca te dói a cabeça?

   Libby pareceu novamente acanhado.

   — Não há nada de anormal quanto ao meu talento — protestou ele. — Teoricamente é possível a qualquer pessoa desenvolvê-lo.

   — Claro — concordou Lazarus —, e pode-se ensinar uma serpente a bater o ritmo da música, desde que a calquemos. Deixa lá, estou contente por o acaso nos ter juntado. Ouvi histórias a teu respeito quase desde que eras miúdo. Estiveste no Corpo de Construção Cósmica, não estiveste?

   Libby acenou com a cabeça.

   — Terra-Marte Ponto Três.

   — Hum, foi isso... um tipo de Marte contou-me a história. Comerciante em Drywater. Conheci o teu avô materno, também. Velho pateta casmurro.

   — Parece que era.

   — Era, sim senhor. Tive cá um combate com ele, na Assembleia de 2012. Ele tinha um vocabulário poderoso. — Lazarus franziu ligeiramente o sobrolho. — É engraçado, Andy... Lembro-me nitidamente disso, sempre tive boa memória, contudo parece que estou a ter mais dificuldade em alinhar as coisas. Especialmente neste último século.

   — Inexorável necessidade matemática — disse Libby.

   — Hum? O quê?

   — A experiência da vida é linearmente aditiva, mas a correlação das impressões da memória é uma expansão ilimitada. Se a humanidade chegasse a viver até aos mil anos, seria necessário inventar um método totalmente diferente da associação da memória, de modo que acompanhasse, efectivamente, a curva do tempo. De outro modo, um homem debater-se-ia, indefeso, na riqueza do seu próprio conhecimento, incapaz de fazer avaliações. Insanidade ou debilidade mental.

   — É isso? — Lazarus pareceu subitamente preocupado. — Então é melhor desatarmos a trabalhar nisso.

   — Oh, muito possivelmente tem solução.

   — Vamos trabalhar nisso. Não vamos ser apanhados desprevenidos.

   A caixa de notícias exigiu novamente que lhe prestassem atenção, desta vez com o besouro e o clarão de um boletim de última hora: “Escutai os FACTOS. Última hora! O alto conselho suspende o Pacto! Ao abrigo da cláusula de emergência de situação do Pacto, uma acção do conselho sem precedentes foi hoje anunciada, ordenando ao administrador que detivesse e interrogasse todos os membros das chamadas Famílias Howard... usando todos os recursos! O administrador deu autorização para que a seguinte declaração fosse passada em todos os emissores de notícias legalizados (passo a citar): ‘A suspensão das garantias civis do Pacto aplica-se somente ao grupo conhecido como Famílias Howard, mas os agentes do Governo têm poderes para agir de acordo com as circunstâncias, de modo a prenderem rapidamente as pessoas afectadas pela acção do conselho. Os cidadãos são incitados a tolerar alegremente qualquer inconveniente menor que isto lhes possa causar; o direito à privacidade será respeitado de todas as maneiras possíveis; o direito à livre movimentação poderá ser momentaneamente interrompido, mas proceder-se-á à integral restituição económica.’

   “Agora, amigos e cidadãos, que é que isto significa?... para si, e para si, e também para si! Os FACTOS DO DIA apresentam-lhe agora o seu popular comentador, Albert Reifsnider:

   “‘Aqui Reifsnider: serviço, cidadãos! Não há motivo para alarme. Para o cidadão livre médio esta emergência será ainda menos preocupante do que um mínimo de baixa pressão, demasiado alto para as máquinas do clima. Acalmem-se! Descontraiam-se! Ajudem os vigilantes quando lhes for pedido e ocupem-se dos vossos assuntos. Se forem incomodados, não se entrincheirem no costume, cooperem com o serviço! Isto é o significado de hoje. Que significará amanhã e depois de amanhã? Significa que os vossos servidores públicos deram um passo decisivo para obter para vós a dádiva de uma vida mais longa e mais feliz! Não esperem demasiado... mas parece que se aproxima a aurora de um novo dia. Ah, isso parece! O segredo ciosamente guardado por uns quantos egoístas em breve...’”

   Long interrogou Libby com um erguer de sobrancelha, depois desligou.

   — Suponho que isso — disse Libby amargamente — é um exemplo de imparcialidade factual na apresentação de notícias.

   Lazarus abriu a bolsa e acendeu um cigarro antes de replicar.

   — Calma, Andy. Há bocados maus e bocados bons. Nós vamos ter um mau bocado. As pessoas recomeçaram a marchar... desta vez, contra nós.

A toca conhecida como sede das Famílias foi ficando superlotada à medida que o dia passava. Pingavam membros, chegando pelos túneis do centro do estado de Indiana. Assim que escureceu, formou-se um engarrafamento na entrada do lago subterrâneo — subs de desporto, falsos carros de terra como o de Mary, cruzadores ostensivamente de superfície, modificados para mergulhar, cada aparelho carregado de refugiados, alguns meio sufocados por terem passado quase todo o dia escondidos no leito mais profundo, esperando uma oportunidade de se esgueirarem lá para dentro.

   A sala de reuniões habitual era de longe demasiado pequena para suportar a multidão; o pessoal residente tirou os móveis da sala maior, o refeitório, e removeu os tabiques que a separavam do átrio principal. Aí, à meia-noite, Lazarus subiu a uma tribuna improvisada.

   — Bom — anunciou ele —, vamos despejar. Vocês, aqui à frente, sentem-se no chão para que o resto possa ver. Nasci em 1912. Alguém mais velho?

   Fez uma pausa, depois acrescentou:

   — Propostas para a presidência da assembleia... falem.

   Foram propostos três; antes que um quarto pudesse ser oferecido, o último homem proposto pôs-se de pé.

   — Áxel Johnson, da Família Johnson. Quero que retirem o meu nome e sugiro que os outros façam o mesmo. Lazarus desembaraçou bem a meada ontem à noite; deixem-no fazer. Não é altura para políticas de Famílias.

   Os outros nomes foram retirados; não foram propostos mais. Lazarus disse:

   — Está bem, se é assim que querem. Antes de começarmos a discutir, quero um relatório do administrador-chefe. Que tal, Zack? Algum dos nossos foi preso?

   Zaccur Barstow não precisou de se identificar; disse simplesmente:

   — Vou falar em nome dos administradores: o nosso relatório não está completo, mas não sabemos, por enquanto, de nenhum membro que tenha sido preso. Quando saí da sala de comunicações, há dez minutos, sabia-se que dos nove mil duzentos e oitenta e cinco membros confessos, nove mil cento e seis conseguiram esconder-se em baluartes de outras Famílias, ou nas casas de membros não confessos, ou em quaisquer outros lugares. O aviso de Mary Sperling foi extraordinariamente bem sucedido, considerando o pouco tempo que houve entre o alarme e a execução pública da acção do conselho, mas ainda não temos notícias de cento e setenta e nove primos expostos. Provavelmente a maioria deles irá aparecendo durante os próximos dias. Outros estão provavelmente a salvo, mas sem possibilidade de contactar connosco.

   — Sê directo, Zack — insistiu Lazarus. — Há alguma hipótese razoável de todos eles chegarem a salvo?

   — Absolutamente nenhuma.

   — Porquê?

   — Porque se sabe que três deles estão em transportes públicos daqui para a Lua, viajando com a sua própria identidade. Outros de que não sabemos estão quase de certeza em situações semelhantes.

   — Pergunta! — Um homenzinho pretensioso, perto da frente, levantou-se e apontou o administrador chefe. — Todos esses membros, agora em perigo, estavam protegidos com inibição hipnótica?

   — Não. Não havia...

   — Exijo saber por que não!

   — Cale-se! — comandou Lazarus. — Está fora da ordem de trabalhos. Ninguém está a ser julgado aqui e não podemos perder tempo com leite entornado. Continua, Zack.

   — Muito bem. Mas responderei à pergunta até este ponto: todos sabem que uma proposta para proteger os nossos segredos por meios hipnóticos foi rejeitada na assembleia que abrandou a Mascarada. Parece-me estar lembrado de que o primo que agora põe objecções ajudou a rejeitá-la.

   — Isso não é verdade! E insisto...

   — CORTA! — Lazarus fulminou o provocador com os olhos, depois olhou-o de cima a baixo cuidadosamente. — Mano, impressionas-me. És a prova clara de que a Fundação devia ter feito criação com vista aos miolos e não à idade. — Lazarus olhou à roda para a multidão. — Toda a gente poderá falar, mas na ordem aceite pela presidência. Se ele voltar a pôr objecções, amordaço-o com os próprios dentes. Apoiam a minha orientação?

Houve um murmúrio misto de choque e aprovação; mas ninguém pôs objecções. Zaccur Barstow continuou:

   — A conselho de Ralph Schultz, desde há três meses que os administradores têm actuado discretamente para persuadir os membros expostos a submeterem-se a instrução hipnótica. Tivemos bastante êxito. — Fez uma pausa.

   — Anda lá com isso, Zack — apressou Lazarus. — Estamos a coberto ou não?

   — Não estamos. Pelo menos dois dos nossos primos de certeza presos não estão protegidos.

   Lazarus encolheu os ombros.

   — Isso deita tudo abaixo. Parentela, o jogo acabou. Uma injecção de sumo de pairar no braço e é o fim da Mascarada. É uma situação nova... ou será, dentro de poucas horas. Que é que propõem que sé faça?

Na sala de controlo do foguetão antipodal Wallaby, Voo do Sul, o telecom zumbiu, fez pong!, e deitou uma fita de fora como uma língua descarada. O co-piloto balançou-se para a frente, puxou a mensagem para fora e rasgou-a da fita.

   Leu-a, releu-a depois.

   — Capitão, segure-se.

   — Sarilhos?

— Leia.

   O comandante fê-lo e assobiou.

— Raios! Nunca prendi ninguém. Nem creio que tenha visto alguém ser preso. Como é que se começa?

   — Curvo-me perante a sua superior autoridade.

   — Ah, é assim? — disse o comandante em tom picado. — Agora, que já acabou de se curvar, pode fazer marcha à ré e proceder à prisão.

   — Hã? Não foi isso que eu quis dizer. O senhor é o comandante, o senhor é que detém a autoridade. Eu substituo-o é na pilotagem.

   — Não me compreendeu. Estou a delegar a autoridade. Cumpra as ordens.

   — Um momento, Al, não me alistei para...

   — Cumpra as ordens!

   — Sim, Sr. Comandante!

   O co-piloto dirigiu-se para a popa. A nave havia completado a reentrada, estava no deslize de aproximação, longo, plano, estridente; podia andar — perguntou a si mesmo como seria uma prisão em queda livre. Caçava-se o homem com uma rede de borboletas? Localizou o passageiro por uma inspecção de lugares e tocou-lhe no braço.

   — Serviço, senhor. Houve um engano de copista. Dá-me licença que veja o seu bilhete?

   — Claro, certamente.

   — Importa-se de vir ao camarote de luxo de reserva? Lá é mais sossegado e podemos ambos sentar-nos.

   — De maneira nenhuma.

   Uma vez no compartimento privado, o oficial-chefe pediu ao passageiro que se sentasse, depois pareceu aborrecido.

   — Que estúpido!... Deixei as listas na sala de controlo. — Virou-se e saiu. Quando a porta deslizou atrás dele, o passageiro ouviu um clique inesperado. Subitamente desconfiado, experimentou a porta. Estava trancada.

   Em Melburne, dois vigilantes vieram buscá-lo. Enquanto o escoltavam através do espaçoporto, ouviu observações de uma multidão curiosa e surpreendentemente hostil:

   — Ali vai um dos rapazinhos!

   — Aquele? Palavra que não parece velho.

   — Qual é o preço, glândulas de macaco?

   — Não fiques a olhar, Herbert.

   — Por que não? Não é nem metade do que ele merecia.

   Levaram-no ao gabinete do vigilante-chefe, que o convidou a

sentar-se com uma civilidade formal.

   — Então, agora — disse o vigilante, com um ligeiro sotaque fanhoso local —, se o senhor nos ajudar, deixando que a ordenança lhe dê uma pequena injecção no braço...

   — Para que finalidade?

   — O senhor quer ser socialmente cooperante, tenho a certeza. Não vai doer.

   — Isso não vem ao caso. Insisto numa explicação. Sou um cidadão dos Estados Unidos.

   — Lá isso é, mas a Federação tem jurisdição simultânea em qualquer estado membro .. e estou a actuar sob essa autoridade. Agora descubra o braço, por favor.

   — Recuso-me. Apoio-me nos meus direitos civis.

   — Agarrem-no, rapazes.

   Foram precisos quatro homens para o fazer. Mesmo antes de o injector lhe tocar a pele, os maxilares imobilizaram-se e um ar de súbita agonia apareceu-lhe no rosto. Então ficou sentado sossegadamente, apaticamente, enquanto os guardas esperavam que a droga fizesse efeito. Pouco tempo depois, o vigilante levantou suavemente uma das pálpebras do prisioneiro e disse:

   — Penso que ele está pronto. Não pesa mais de sessenta e três quilos; atingiu-o muito depressa. Onde está a lista das perguntas?

   Um delegado entregou-lha; ele começou:

   — Horace Foote, ouve-me?

   Os lábios do homem moveram-se, pareceu prestes a falar. A boca abriu-se e o sangue escorreu em golfadas pelo peito abaixo.

   O vigilante dobrou-se e agarrou na cabeça do prisioneiro, fez um exame rápido.

   — O médico! Ele cortou a língua em duas!

   O comandante do Moonbeam, dos foguetões espaciais de transporte de Luna City, franziu o sobrolho à mensagem que tinha na mão.

   — Que brincadeira é esta? — Fitou o terceiro-oficial. — Explique-me, caro senhor.

O terceiro-oficial estudava as despesas gerais. Fulo, o comandante, que segurava a mensagem com o braço esticado, espreitou e leu em voz alta: “Imperioso que as ditas pessoas sejam impedidas de se ferir. Tem ordens para as pôr inconscientes sem avisar.” Empurrou a nota para longe.

 

   — Que é que eles pensam que eu comando? Coventry? Quem pensam eles que são?... a dizerem-me a mim, na minha nave, o que devo fazer com os passageiros! Não faço... valha-me, não faço! Não há regra que me exija... ou há, caro senhor?

   O terceiro-oficial continuou a estudar silenciosamente a estrutura da nave.

   O comandante parou de andar de um lado para o outro.

   — Comissário! Comissário! Por que é que aquele homem nunca está quando preciso dele?

— Estou aqui, comandante.

   — Já não era sem tempo!

   — Tenho estado sempre aqui, Sr. Comandante.

   — Não discuta comigo. Venha cá... trato disto. — Deu o despacho ao comissário e saiu.

   Um mecânico, supervisado por um oficial do casco e o médico de bordo, fez uma ligeira alteração nas condutas de ar condicionado de uma cabina; dois preocupados passageiros despojaram-se dos seus cuidados, sob a influência de uma dose não letal de gás soporífero.

   — Outro relatório, Sr. Administrador.

   — Deixe ficar — disse o administrador em voz cansada.

   — E o conselheiro Bork Vanning apresenta os seus cumprimentos e pede uma entrevista.

   — Diga-lhe que lamento estar demasiado ocupado.

   — Ele insiste em vê-lo, Sr. Administrador.

   O administrador Ford respondeu de mau humor:

   — Então pode dizer ao Honorável Sr. Vanning que ele não dá ordens neste gabinete! — O ajudante não disse nada: o administrador Ford apertou cansadamente a testa com as pontas dos dedos e continuou devagar: — Não, Gerry, não lhe diga isso. Seja diplomático... mas não o deixe entrar.

   — Sim, Sr. Administrador.

   Quando ficou só, o administrador pegou no relatório. Os olhos saltaram por cima do cabeçalho oficial, da data e do número de arquivo; “Sinopse da entrevista com o cidadão condicionalmente proscrito Arthur Sperling, transcrição integral em anexo. Condições da entrevista: O entrevistado recebeu uma dose normal de neo-sco., tendo previamente recebido uma dose não mensurada de hipnotal gasoso. Antídoto...” Como diabo se pode curar a verbosidade dos subordinados? Haveria alguma coisa na alma de um funcionário público de carreira que amasse a fita vermelha? O olhar saltou mais para baixo: “...afirmou que o seu nome era Arthur Sperling, da Família Foote, e deu a idade de cento e trinta e sete anos. (A idade aparente do entrevistado é de quarenta e cinco anos, mais ou menos quatro: ver biorrelatório em anexo. O entrevistado admitiu ser membro das Famílias Howard. Afirmou que as Famílias têm ligeiramente mais de cem mil membros. Foi-lhe pedido que corrigisse esta afirmação e foi-lhe sugerido que o número correcto estava perto dos dez mil. Persistiu na anterior afirmação.”

   O administrador parou e releu esta parte.

   Saltou mais para baixo, procurando a parte-chave: “...insistiu que a longa vida era resultado dos ascendentes e não tinha outra causa. Admitiu que usara meios artificiais para preservar a aparência jovem, mas manteve firmemente que a sua expectativa de vida era inerente, não adquirida. Foi-lhe sugerido que, sem seu conhecimento, os parentes mais velhos o teriam submetido a tratamento na primeira infância para aumentar o seu tempo de vida. O entrevistado admitiu a possibilidade. Ao ser pressionado a revelar os nomes das pessoas que poderiam ter efectuado, ou estar a efectuar, tal tratamento, regressou à afirmação anterior de que tal tratamento não existia.

   “Deu os nomes (técnica de associação de surpresa) e em alguns casos as moradas de quase duzentos membros da irmandade não identificados como tal anteriormente nos nossos registos. (Lista em anexo.) As forças fraquejaram-lhe sob esta árdua técnica e mergulhou em apatia completa, da qual não pôde ser retirado por quaisquer dos estímulos dentro dos limites da sua tolerância previsível (ver biorrelatório).

   “Conclusões da análise acelerada, método de aproximação de Kelly-Holmes: o entrevistado não possui e não acredita no objecto da investigação. Não se lembra de ter experimentado o objecto da investigação, mas está enganado. O conhecimento do objecto da investigação está limitado a um pequeno grupo, da ordem dos vinte. Uma busca por eliminação de triplaconcatenação permitirá localizar um membro deste grupo principal. (Probabilidade da unidade sujeita a hipóteses: primeiro, que o espaço social topológico é contínuo e está incluído no espaço fisico da Federação Ocidental e, segundo, que existe, pelo menos, um caminho concatenativo entre as pessoas apreendidas e o grupo principal. Nenhuma das hipóteses tem fundamentos neste escrito, mas a primeira hipótese é fortemente apoiada pela análise estatística da lista de nomes fornecidos pelo entrevistado, de membros anteriormente insuspeitos da irmandade Howard, análise essa que também apoia os cálculos do entrevistado sobre o tamanho total do grupo, e a segunda hipótese, quando tomada negativamente, postula que o grupo principal que detém o objecto da investigação o pôde aplicar sem espaço social de contacto, um absurdo.)

   “Tempo calculado para a investigação: 71 horas, mais ou menos 20 horas. O gabinete competente responde pela previsão, mas não pela estimativa do tempo. A estimativa temporal será...”

   Ford atirou com o relatório para uma pilha que atravancava a antiquada secretária de controlo. Uns idiotas chapados! Não reconhecerem um relatório negativo quando se lhes deparava um... contudo intitulavam-se psicógrafos!

   Enterrou o rosto nas mãos, num cansaço e numa frustração extremos.

   Lazarus bateu na mesa ao lado, usando a coronha da pistola como martelo.

   — Não interrompam o orador — ribombou ele, e depois acrescentou: — Continua, mas encurta isso.

   Bertram Hardy acenou concisamente.

   — Volto a dizer, estas meigas que vemos à nossa volta não têm nenhuns direitos que nós das Famílias tenhamos de respeitar. Devíamos lidar com elas sub-repticiamente, com astúcia, com manha, e quando eventualmente consolidássemos a nossa posição... com a força! Temos tanta obrigação de respeitar o bem-estar delas quanto o caçador tem de gritar para avisar a sua presa. O...

   Houve um assobio na parte de trás da sala. Lazarus voltou a martelar a pedir ordem e tentou descobrir a proveniência. Hardy continuou a lavrar firmemente:

   — A pseudo-raça humana dividiu-se em duas; é altura de o admitirmos. De um lado o Homo vivens, nós... do outro... Homo morituris! Como para os grandes lagartos, como para o tigre dente-de-sabre, e o bisonte, o tempo deles acabou. Não quereríamos misturar o nosso sangue vivo com o deles, tal como não tentaríamos acasalar-nos com macacos. Eu digo: contemporizemos com eles, contemos-lhe uma história qualquer, asseguremos-lhe que os mergulharemos na fonte da juventude... ganhemos tempo, para que quando estas duas raças, naturalmente inimigas, se encontrarem na batalha, como inevitavelmente terão de fazer, a vitória seja nossa!

   Não houve aplausos, mas Lazarus viu uma insegurança presente em muitos rostos. As ideias de Bertram Hardy iam contra os padrões de pensamento de muitos anos de uma vida doce, contudo as palavras dele pareciam ter um timbre de destino. Lazarus não acreditava no destino; acreditava... bem, não tem importância — mas perguntava a si mesmo qual seria o aspecto do irmão Bertram com os dois braços partidos.

   Eve Barstow levantou-se.

   — Se isso é o que Bertram quer dizer com a sobrevivência dos mais aptos — disse ela amargamente —, vou viver com os associais em Coventry. No entanto, ele deu-nos um plano; terei de dar outro, se não aceito este. Não aceitarei nenhum piano que nos faça viver à custa dos nossos pobres vizinhos transitórios. Ainda mais, parece-me agora que a nossa mera presença, o simples facto da nossa rica herança de vida, está a danificar o espírito do nosso vizinho pobre. O tempo maior e as oportunidades mais ricas que nós temos fazem com que os melhores esforços dele pareçam fúteis... todos os esforços, menos o da luta inútil contra a morte marcada. A nossa simples presença mina-lhe a força, destrói-lhe o juízo, enche-o do pânico da morte.

   “Portanto, proponho um plano. Revelemo-nos, contemos toda a verdade e peçamos o nosso quinhão da Terra, um cantinho onde possamos viver à parte. Se os nossos pobres amigos o quiserem cercar com uma grande barreira como a que cerca Coventry, assim seja... é melhor que nunca nos encontremos face a face.

   Algumas expressões de dúvida modificaram-se para aprovação. Ralph Schultz levantou-se.

   — Sem preconceitos contra o plano básico de Eve, devo avisar - -vos de que a minha opinião profissional é a de que o isolamento psicológico que ela propõe não pode ser realizado assim tão facilmente. Enquanto continuarmos neste planeta eles não conseguirão afastar-nos da ideia. As comunicações modernas...

   — Então mudemo-nos para outro planeta! — retorquiu ela.

   — Para onde? — perguntou Bertram Hardy. — Para Vénus? Preferia viver num banho de vapor. Para Marte? Esgotado e sem valor.

   — Reconstruí-lo-emos — insistiu ela.

   — Não enquanto tu ou eu estivermos vivos. Não, minha querida Eve, a tua bondade soa bem, mas não faz sentido. Há somente um planeta no sistema onde podemos viver... este em que estamos.

   Algo nas palavras de Bertram Hardy deflagrou uma resposta no cérebro de Lazarus, depois o pensamento fugiu-lhe. Alguma coisa... alguma coisa que ele ouvira dizer apenas há um ou dois dias... ou fora há mais tempo? De algum modo parecia estar também associado à sua primeira viagem no espaço, há bem mais de um século. Raios e coriscos! Era de enlouquecer que a memória lhe pregasse partidas daquelas...

   Então lembrou-se — a nave estelar! A nave interestelar a que estavam a dar os retoques finais, lá em cima, entre a Terra e Luna.

   — Ó malta — disse vagarosamente —, antes de arquivarmos esta ideia de nos mudarmos para outro planeta, vamos considerar todas as possibilidades. — Esperou até todos estarem com atenção. — Já alguma vez pararam para pensar que nem todos os planetas giram à volta aqui deste sol?

   Zaccur Barstow quebrou o silêncio.

   — Lazarus... essa sugestão é a sério?

   — Mortalmente a sério.

   — Não parece. Talvez seja melhor explicares.

   — Explico. — Lazarus enfrentou a multidão. — Há uma nave espacial pairando lá fora, no céu, uma coisa espaçosa, construída para fazer os grandes saltos entre estrelas. Por que não a tomamos e vamos á procura do nosso bocado de bens imobiliários?

   Bertram Hardy foi o primeiro a recompor-se.

   — Não sei se o presidente da assembleia está a aligeirar a soturnidade do ambiente com uma das suas piadas ou não, mas, partindo do princípio de que está a falar a sério, vou responder. A minha objecção a Marte aplica-se dez vezes mais a este esquema louco. Se bem entendi, os malucos ousados que de facto tencionam ir ocupar aquela nave pensam fazer o salto em cerca de um século... então talvez os netos deles encontrem alguma coisa, ou talvez não. De qualquer das maneiras, não estou interessado. Não me interessa passar um século fechado num tanque de aço, nem sequer conto viver tanto. Não vou nessa.

   — Aguenta aí — disse-lhe Lazarus. — Onde está Andy Libby?

   — Aqui — respondeu Libby, levantando-se.

   — Anda aqui para a frente, Alavanca de Lançamento, tiveste alguma coisa a ver com os projectos da nova nave Centaurus?

   — Não. Nem com esta, nem com a primeira.

   Lazarus falou para a multidão.

   — Assunto arrumado. Se o dedo do Alavanca de Lançamento não está nos projectos de construção dessa nave, então ela não é tão rápida quanto podia ser, e por uma larga margem. Alavanca de Lançamento, é melhor começares já a tratar do problema, filho. É provável que necessitemos de uma solução.

   — Mas, Lazarus, não deves partir do princípio de que...

   — Não existem possibilidades teóricas?

   — Bem, tu sabes que há, mas...

   — Então põe essa tua cabeça de cenoura a trabalhar.

   — Bom... está bem. — Libby ficou tão vermelho quanto o cabelo.

   — Só um momento, Lazarus. — Era Zaccur Barstow. — Gosto desta proposta e penso que a devíamos discutir pormenorizadamente... não nos deixarmos assustar pelo desagrado que o irmão Bertram tem por ela. Mesmo que o irmão Libby não consiga achar uma propulsão melhor... e francamente não creio que ele consiga; sei um pouco de mecânica de campo..’, mesmo assim, não consentirei que um século me assuste. Usando sono-frio e tripulando a nave por turnos, a maior parte de nós deverá completar um salto. Há...

   — Que é que te leva a pensar — perguntou Bertram Hardy — que eles nos deixarão tripular a nave?

   — Bert — disse Lazarus friamente —, dirige-te ao presidente quando quiseres falar para a plateia. Nem sequer és delegado de Família. Último aviso.

   — Como estava a dizer — continuou Barstow —, há uma certa propriedade em que sejam os de vida longa a explorar as estrelas. Um místico poder-lhe-ia chamar a nossa verdadeira vocação. — Fez uma pausa para ponderar. — Quanto à nave que Lazarus sugeriu, talvez que não no-la cedam... mas as Famílias sâo ricas. Se precisamos de uma nave, ou naves, estelares, podemos construí-las, podemos pagá-las. Penso que é melhor termos esperança de que nos deixem fazê-lo ... porque pode ser que não haja nenhuma saída, nenhuma outra saída de espécie nenhuma, para o nosso dilema, que não inclua a nossa própria exterminação.

   Barstow disse estas últimas palavras lenta e suavemente, com uma grande tristeza. Atingiram o grupo como uma corrente de ar húmida e fria. Para a maioria deles, o problema era tão novo que ainda não era real; ninguém ainda dera voz à consequência possível de não conseguirem encontrar uma solução que satisfizesse a maioria de vida breve. Que o administrador mais velho falasse sobriamente do seu receio de que as Famílias pudessem ser exterminadas — perseguidas e mortas — evocava em cada um deles o fantasma que nunca tinham mencionado.

   — Bem — disse Lazarus bruscamente, quando o silêncio se tornara penoso —, antes de acabarmos de explorar esta ideia, ouçamos que outro plano alguém tem para oferecer. Falem.

   Um mensageiro entrou, apressado, e falou com Zaccur Barstow. Este pareceu sobressaltar-se e pedir que a mensagem fosse repetida. Depois dirigiu-se apressadamente para a tribuna, para Lazarus, e murmurou-lhe qualquer coisa. Lazarus pareceu sobressaltar-se. Barstow apressou-se a sair.

   Lazarus olhou novamente para a multidão.

   — Vamos fazer uma pausa — anunciou ele. — Dá-lhes tempo para pensar acerca de outros planos... e tempo para esticar as pernas e fumar um cigarro. — Agarrou na bolsa.

   — Que é que há? — gritou alguém.

   Lazarus acendeu um cigarro, puxou uma longa “passa”, deixou-a sair.

   — Vamos esperar para ver — disse ele. — Não sei. Mas, pelo menos, não nos teremos de incomodar a votar meia dúzia dos planos aqui avançados esta noite. A situação mudou novamente... quanto, não posso dizer.

   — Que é que queres dizer?

   — Bem — arrastou Lazarus —, parece que o administrador da Federação queria falar imediatamente com Zack Barstow. Chamou-o pelo nome... e chamou pelo circuito secreto das Famílias.

   — Ah? Isso é impossível!

   — Pois. Também um bebé, filho.

 

   Zaccur Barstow tentou acalmar-se, enquanto corria para a cabina videofónica.

   No outro extremo do mesmo circuito videofónico, o Honorável Slayton Ford estava a fazer a mesma coisa — a tentar acalmar os nervos. Uma longa e brilhante carreira pública coroada pelos anos de administrador pelo conselho e sob o Pacto da Administração Ocidental tornaram Ford consciente da sua habilidade superior e da sua experiência inigualável; nenhum homem comum poderia possivelmente fazê-lo sentir-se em desvantagem numa negociação.

   Mas isto era diferente.

   Como seria um homem que vivera mais do dobro de uma vida normal? Pior que isso — um homem que tivera quatro ou cinco vezes a experiência adulta que o próprio Ford acumulara? Slayton Ford sabia que as suas opiniões tinham mudado e voltado a mudar desde a infância; sabia que o rapaz que fora, ou mesmo o jovem capaz que tinha sido, não estaria à altura do homem maduro em que se tornara. Portanto, como seria este Barstow? Provavelmente era o mais capaz o mais astuto, de um grupo em que todos tinham agora muito mais experiência do que Ford poderia possivelmente ter. Como é que ele podia adivinhar as apreciações, as intenções, as maneiras de pensar, os recursos possíveis de um tal homem?

   Ford só tinha a certeza de uma coisa: não tencionava trocar a ilha de Manhattan por vinte e quatro dólares e uma caixa de uísque, nem vender os direitos de nascimento da humanidade por um prato de lentilhas.

Estudou o rosto de Barstow quando a imagem apareceu no vídeo. Um rosto bom e forte... seria inútil tentar assustar aquele homem. E o homem parecia jovem — o quê, parecia mais novo que o próprio Ford! A imagem subconsciente do rígido e implacável avô do administrador esfumou-se na sua mente e a tensão diminuiu. Disse tranquilamente:

   — É o cidadão Zaccur Barstow?

   — Sim, Sr. Administrador.

   — É o executivo chefe das Famílias Howard?

   — Sou o porta-voz corrente dos administradores da Fundação, das nossas Famílias. Mas sou mais um responsável perante os meus primos do que uma autoridade.

   Ford varreu o argumento.

   — Presumo que a sua posição acarreta chefia. Não posso negociar com cem mil pessoas.

   Barstow não pestanejou. Viu a jogada de poder na súbita admissão de que a administração conhecia os números reais das Famílias, mas descontou-a. Já se adaptara ao choque de saber que o quartel-general secreto das Famílias deixara de o ser e ao facto, ainda mais perturbador, de o administrador saber mexer no sistema de comunicações; provava simplesmente que um ou mais membros haviam sido apanhados e forçados a falar.

   Portanto, agora era quase certo que as autoridades já sabiam todos os factos importantes acerca das Famílias.

   Por isso era inútil tentar enganá-los — “mesmo assim, não dês nenhuma informação; podem não ter ainda todos os factos”.

   Barstow respondeu sem uma pausa perceptível.

   — Que deseja discutir comigo, Sr. Administrador?

   — A política da Administração em relação à sua irmandade. O seu bem-estar e o dos seus parentes.

   Barstow encolheu os ombros.

   — Que poderemos discutir? O Pacto foi atirado para o lado e foram-lhe concedidos poderes para fazer o que quiser connosco... para nos fazer revelar um segredo que não possuímos. Que podemos nós fazer a não ser rezar por misericórdia?

   — Por favor! — O administrador gesticulou a sua irritação. — Porquê esgrimir comigo? Temos um problema, você e eu. Discutamo-lo abertamente e tentemos chegar a uma solução. Sim?

   Barstow respondeu lentamente.

   — Eu gostaria... e creio que o senhor também gostaria. Mas o problema baseia-se numa falsa hipótese, a de que nós, as Famílias Howard, sabemos como prolongar a vida humana. Não sabemos.

   — Suponha que eu lhe digo que sei que tal segredo não existe?

   — Hum... gostaria de acreditarem si. Mas como é que o senhor concilia isso com a perseguição à minha gente? Têm estado a caçar-nos como a ratos.

   Ford fez uma careta cansada.

   — Há uma velha, velha história, acerca de um teólogo a quem foi pedido que conciliasse a doutrina da Misericórdia Divina com a doutrina da condenação das crianças. “O Todo Poderoso”, explicou ele, “acha necessário fazer coisas no seu estatuto oficial e público que no Seu foro privado e pessoal deplora.”

   Barstow sorriu contra vontade.

   — Estou a ver a analogia. É realmente pertinente?

   — Acho que é.

   — Está bem. Não me chamou apenas para me apresentar as desculpas de um chefe?

   — Não, espero que não. Mantém-se a par da política? Tenho a certeza de que sim; a sua posição deve requerê-lo. — Barstow acenou que sim; Ford explicou longamente: a administração de Ford era a mais longa desde a assinatura do Pacto; aguentara-se durante quatro conselhos. No entanto, o seu controlo estava agora tão inseguro que não se podia arriscar a forçar um voto de confiança... certamente não acerca das Famílias Howard. Nesse assunto, a sua maioria nominal era já uma minoria. Se ele recusasse a presente decisão do conselho e o forçasse a um voto de confiança, Ford teria de se retirar e o actual dirigente da minoria tomaria conta do lugar de administrador.

   — Está a seguir-me? Uma das duas, ou fico no gabinete e tento aguentar este problema, obrigado por uma directiva da assembleia com a qual não concordo, ou saio e deixo que o meu sucessor trate do caso.

   — Certamente não me está a pedir uma opinião?

— Não, não! Não acerca disso. Tomei uma decisão. A acção do conselho teria sido executada de qualquer modo, quer por mim quer pelo Sr. Vanning... portanto, decidi ser eu a fazê-lo. A questão é: terei ou não a sua ajuda?

   Barstow hesitou, enquanto revia rapidamente, em pensamento, a carreira política de Ford. A primeira parte da longa administração de Ford fora quase uma idade de ouro do Governo. Homem sábio e prático, Ford dera forma praticável aos princípios de liberdade humana estabelecidos por Novak na linguagem do Pacto. Fora um período de boa vontade, de expansão próspera, de processos civilizados, que se julgavam permanentes, irreversíveis.

   Contudo, houvera um recuo, e Barstow compreendia as razões, pelo menos tão bem quanto Ford. Quando os cidadãos fixam a sua atenção num assunto, com exclusão dos outros, a situação está madura para os biltres, os demagogos, os ambiciosos. As Famílias Howard, com toda a inocência, criaram na moral pública a crise com a qual agora sofriam, através da sua própria acção, de há uns anos terem deixado que os de vida breve soubessem da sua existência. Não tinha importância nenhuma que o segredo não existisse; o efeito corruptor existia.

   Ford, ao menos, compreendia a verdadeira situação...

   — Ajudamos — respondeu Barstow subitamente.

   — Bom. Que é que sugere?

   Barstow mordeu o lábio.

   — Não há nenhuma maneira de conseguir afastar esta acção drástica, esta violação do próprio Pacto?

   Ford abanou a cabeça.

   — É demasiado tarde.

   — Mesmo que se apresentasse ao público e dissesse aos cidadãos, cara a cara, que sabe que...

   Ford cortou-lhe a palavra.

   — Não ficaria no gabinete o tempo suficiente para fazer o discurso. Nem me acreditariam. Além disso... compreenda-me bem, Zaccur Barstow, por mais solidariedade que eu pessoalmente sinta por si e pela sua gente, não o faria se pudesse. Todo este assunto é um cancro que consome partes vitais da nossa sociedade; tem de ser travado. Forçaram-me a mão, é certo... mas não há regresso. Tem de ser conduzido a uma solução.

   Em pelo menos um aspecto Barstow era um homem sábio; sabia que outro homem se lhe podia opor e não ser um vilão. No entanto protestou:

   — A minha gente está a ser perseguida.

   — A sua gente — disse Ford energicamente — é uma fracção de um décimo de um por cento de toda a gente... e eu tenho de achar uma solução para todos! Convoquei-o para saber se tem algumas sugestões para uma solução para todos. Tem?

   — Não tenho a certeza — respondeu Barstow lentamente. — Suponha que eu aceito que o senhor tem de continuar com esta feia história de prender a minha gente, de a interrogar por meios ilegais... creio que aí não tenho escolha...

   — Não tem. Nem eu tenho. — Ford franziu o sobrolho. — Será levada a cabo tão humanamente quanto eu puder influir... não sou um agente livre.

   — Obrigado. Mas, mesmo que me diga que seria inútil falar às pessoas, mesmo assim o senhor tem meios de propaganda imensos à sua disposição. Seria possível montar uma campanha para convencer as pessoas dos verdadeiros factos, enquanto nós nos afastamos? Provar-lhes que não existe nenhum segredo?

   Ford respondeu:

   — Pergunte a si mesmo: resultará?

   Barstow suspirou.

   — Provavelmente, não.

   — Nem eu o consideraria uma solução, mesmo que resultasse! As pessoas, mesmo os meus assistentes de confiança, agarram-se com unhas e dentes à crença na fonte da juventude, porque a única alternativa é demasiado amarga para ser considerada. Sabe o que significaria para eles? Que significaria crerem na verdade nua?

   — Continue.

   — A Morte tem-me sido tolerável somente porque a Morte tem sido a grande Democrata, tratando todos como iguais. Mas agora a Morte tem favoritos. Zaccur Barstow, consegue compreender a amarga, amarga inveja do homem comum de... oh, digamos cinquenta anos... que olha para um da sua espécie? Cinquenta anos... vinte deles ele é uma criança, tem bem mais de trinta antes de estar perfeitamente dentro da sua profissão. Tem quarenta antes de estar estabelecido e ser respeitado. Só durante os últimos dez anos desses cinquenta é que ele conseguiu ser alguém.

   Ford inclinou-se para o écran e falou com uma ênfase sóbria:

   — E agora que ele atingiu os seus objectivos, qual é a recompensa? A vista falta-lhe, a bela força da juventude foi-se, o coração e o fôlego “não são o que costumavam ser”. Ainda não está senil... mas sente o arrepio da primeira geada. Ele sabe o que o espera. Sabe... ele sabe!

   — Mas era inevitável e cada homem aprendia a resignar-se.

   — Agora vocês aparecem — continuou Ford amargamente. — Envergonham-no na sua fraqueza, humilham-no perante os filhos. Não se atreve a planear para o futuro; vocês empreendem jovialmente planos que não amadurecerão antes de cinquenta anos... antes de cem. Independentemente do êxito que ele consiga, da perfeição que atinja, vocês apanhá-lo-ão, ultrapassá-lo-ão... sobrevivem-lhe. Na sua fraqueza, vocês são amáveis para com ele.

   “É alguma coisa extraordinária que ele vos odeie?

   Barstow levantou pesadamente a cabeça.

   — Você odeia-me, Slayton Ford?

   — Não. Não. Não me posso dar ao luxo de odiar quem quer que seja. Mas digo-lhe o seguinte — acrescentou Ford subitamente —, houvesse um segredo e eu extrair-lho-ia, nem que o tivesse de cortar aos bocados!

   — Sim. Compreendo-o. — Barstow parou para pensar. — Há pouca coisa que nós, as Famílias Howard, possamos fazer. Não planeámos as coisas desta maneira; estava planeado para nós. Mas há uma coisa que posso oferecer.

   — Sim?

   Barstow explicou.

   Ford abanou a cabeça.

   — Clinicamente o que sugere é realizável, e não duvido que a comparticipação da vossa herança aumentasse a expectativa de vida humana. Mas mesmo que as mulheres aceitassem o plasma dos germes dos vossos homens (não digo que o fariam), seria a morte psíquica para todos os outros homens. Haveria uma eclosão de frustração e ódio que dividiria a raça humana até à ruína. Não, independentemente do que nós desejaríamos, os nossos costumes são o que são. Não podemos criar homens como animais; eles não o apoiarão.

   — Sei disso — concordou Barstow —, mas é tudo o que nós podemos oferecer... um quinhão da nossa fortuna através da inseminação artificial.

   — Sim. Suponho que lhe devia agradecer, mas não me sinto grato e não o farei. Agora, sejamos práticos. Individualmente, vocês, velhotes, são sem dúvida homens honoráveis, adoráveis. Mas, enquanto grupo, são tão perigosos como portadores de peste. Portanto, têm de ser postos de quarentena.

   Barstow acenou.

   — Os meus primos e eu já tínhamos chegado a essa conclusão.

   Ford pareceu aliviado.

   — Fico satisfeito com a vossa sensatez.

   — Não temos escolha. Então? Uma colónia segregada? Algum lugar remoto que fosse um Coventry só para nós? Madagáscar, talvez? Ou poderíamos tomar as Ilhas Britânicas, reconstruí-las e dali espalharmo-nos pela Europa à medida que a radioactividade fosse desaparecendo.

   Ford abanou a cabeça.

   — Impossível. Isso seria apenas deixar o problema para os meus netos resolverem. Por essa altura, você e os seus já terão aumentado as forças; poderiam derrotar-nos. Não, Zaccur Barstow, você e a sua irmandade terão de abandonar completamente o planeta!

   Barstow pareceu gelado.

   — Sabia que era aí que íamos chegar. Bom, para onde devemos ir?

   — Escolham no sistema solar. Para onde quiserem.

   — Mas onde? Vénus não é nenhuma recompensa, mas mesmo que a escolhêssemos, aceitar-nos-iam? Os Venusianos não aceitarão ordens da Terra; isso ficou assente em 2020. Sim, eles agora aceitam emigrantes escolhidos a dedo, ao abrigo da Convenção dos Quatro Planetas... iriam aceitar cem mil que a Terra achou demasiado perigoso conservar? Duvido.

   — Também eu. É melhor escolher outro planeta.

   — Que planeta? Em todo o sistema não existe outro corpo que suporte a vida humana tal como está... Seria necessário um esforço sobre-humano, mesmo sem restrições de dinheiro, e o melhor da engenharia moderna para tornar o mais prometedor habitável.

   — Façam o esforço. Seremos generosos nas ajudas.

   — Tenho a certeza de que seriam. Mas existe melhor solução a longo prazo que a de nos darem uma reserva na Terra? Vâo pôr fim às viagens espaciais?

   Ford endireitou-se subitamente na cadeira.

   — Ah! Estou a ver a sua ideia. Não a tinha seguido até ao fim, mas encaremo-la. Por que não? Não seria melhor desistir das viagens

! espaciais do que deixar que esta situação degenerasse em guerra aberta? Já se desistiu uma vez.

   — Sim, quando os Venusianos se livraram dos senhorios absentistas. Mas recomeçaram de novo, e Luna City foi reconstruída e move-se com dez vezes mais tonelagem pelos céus do que alguma vez se deslocou. Consegue pôr-lhe fim? Se conseguir, conservar-se-á parado?

   Ford deu voltas e voltas à ideia. Não podia parar as viagens espaciais. Nenhuma administração podia. Mas poder-se-ia lançar uma interdição sobre o planeta para onde os velhotes fossem enviados? E isso ajudaria? Uma geração, duas, três... que diferença faria? O Japão antigo tentara uma solução semelhante; e os demónios estrangeiros continuaram a aportar de qualquer modo. As culturas não podiam ser mantidas à parte para sempre e, quando chegassem a entrar em contacto, os mais duros eliminariam os mais fracos; era uma lei natural.

   Uma quarentena permanente e eficaz era impossível. Isso deixava apenas uma solução — desagradável. Mas Ford era duro; era capaz de aceitar o que era necessário. Começou a fazer planos, esquecido da presença de Barstow no écran. Uma vez que desse ao vigilante-chefe a localização do quartel-general das Famílias Howard, devia ficar reduzido a uma hora, duas no máximo... a menos que eles tivessem defesas extraordinárias — mas de qualquer maneira era apenas um problema de tempo. Pelos que seriam presos no quartel-general seria possível localizar e prender todos os membros do grupo. Com sorte, tê-los-ia a todos dentro de vinte e quatro a quarenta e oito horas.

   O único ponto ainda por decidir, na mente dele, era se os liquidaria a todos ou se simplesmente os esterilizaria. Qualquer destas seria uma solução definitiva, e não havia terceira solução. Mas qual seria mais humana?

   Ford sabia que isto poria fim à sua carreira. Sairia do gabinete em desgraça, seria talvez enviado para Coventry, mas nem pensou nisso; era constituído de um modo que era incapaz de pesar o seu próprio bem-estar contra o seu conceito de dever público.

   Barstow não podia ler o pensamento de Ford, mas sentiu que Ford chegara a uma conclusão e presumiu, correctamente, que essa conclusão era má para ele e para os irmãos. Era agora a altura, decidiu ele, de arriscar o único trunfo que tinha.

   — Sr. Administrador...

   — Hã? Ah, desculpe! Estava preocupado. — A frase reflectia muito mal a realidade; estava chocadíssimo e embaraçado por ainda se encontrar perante um homem que acabara de condenar à morte. Envolveu-se em formalidade como numa capa. — Obrigado, Zaccur Barstow, por falar comigo. Lamento que...

   — Sr. Administrador!

   — Diga!

   — Proponho que nos afaste completamente do sistema solar.

   — O quê? — Ford pestanejou. — Está a falar a sério?

   Barstow falou rapidamente, persuasivamente, explicando o esquema meio concebido de Lazarus Long, improvisando pormenores à medida que avançava, saltando obstáculos e realçando as vantagens.

   — Talvez resultasse — disse por fim Ford lentamente. — Há dificuldades que não mencionou, dificuldades políticas e uma terrível jogada de tempo. Contudo, talvez resultasse. — Ergueu-se. — Volte para a sua gente. Não lhes fale nisto por enquanto. Falarei consigo mais tarde.

   Barstow regressou lentamente, perguntado-se o que poderia dizer aos membros. Exigir-lhe-iam um relatório completo; tecnicamente não tinha o direito de recusar. Mas sentia-se fortemente inclinado a

cooperar com o administrador enquanto existisse uma possibilidade de o resultado ser favorável. Subitamente, decidindo-se, virou-se, foi para o seu gabinete e mandou chamar Lazarus.

— Viva, Zack — disse Lazarus quando entrou. — Como é que correu a conferência com os nativos?

— Bem e mal — replicou Barstow. — Ouve... — Fez-lhe um resumo breve e exacto. — És capaz de voltar lá dentro e contar-lhes qualquer coisa que os aguente?

— Hum... penso que sim.

— Então vai e volta depressa.

Eles não gostaram do pretexto que Lazarus lhes deu. Não quiseram ficar sossegados e não quiseram adiar a reunião.

— Onde está Zaccur?

— Exigimos um relatório!

— Porquê esta mistificação?

Lazarus calou-os com um rugido.

— Ouçam-me, seus idiotas chapados! Zack falará quando estiver pronto... não lhe sacudam o cotovelo. Ele sabe o que está a fazer.

Um homem na parte de trás da sala levantou-se.

— Eu vou para casa!

— Vai — incentivou-o Lazarus docemente. — Dá cumprimentos meus aos vigilantes.

O homem pareceu sobressaltar-se e sentou-se.

— Mais alguém quer ir para casa? — perguntou Lazarus. — Não deixem que eu vos impeça. Mas é altura de os vossos anestesiados cérebros de pássaro entenderem que vocês foram proscritos. A única coisa entre vocês e o vigilante é Zack Barstow, com a sua capacidade de falar com tacto ao administrador. Portanto, façam como quiserem. A reunião fica adiada.

— Ouve lá, Zack — disse Lazarus uns minutos depois —, vamos esclarecer isto. O Ford vai usar os seus poderes extraordinários para nos ajudar a juntarmo-nos na nave grande e a escapulir. Está certo?

— Praticamente comprometeu-se a isso.

— Hum... terá de o fazer fingindo ao mesmo tempo perante o conselho que está apenas a dar os passos necessários para nos extrair o “segredo”... vai atraiçoá-los. ‘tá certo?

— Ainda não tinha chegado aí. Eu...

— Mas é verdade, não é?

— Bem... sim, deve ser.

— Está bem. Será o rapaz, Ford, suficientemente esperto para perceber no que se está a meter e suficientemente duro para ir até ao fim?

Barstow reviu o que sabia de Ford e somou-lhe as impressões da entrevista.

— Sim — decidiu-se ele —, sabe e é suficientemente forte para o enfrentar.

   — Bem. E agora tu, camarada? Estarás tu também à altura? — A voz de Lazarus era acusadora.

   — Eu? Que queres dizer?

   — Também estás a planear atraiçoar a tua malta, não estás? És homem para ir até ao fim quando as coisas se complicarem?

   — Não te estou a compreender, Lazarus — respondeu Barstow preocupado. — Não estou a planear enganar ninguém... pelo menos nenhum membro das Famílias.

   — É melhor olhares novamente para as tuas cartas — continuou Lazarus desapiedadamente. — A tua parte no negócio é assegurar que todos os homens, mulheres e crianças tomem parte no êxodo. Esperas impingir a ideia a cada um deles separadamente e conseguir que cem mil pessoas estejam de acordo? Unanimemente? Ora bolas, não serias capaz de os pôr a todos a assobiar o Yankee Doodle unanimemente.

   — Mas eles vão ter de concordar — protestou Barstow. — Não têm alternativa. Ou emigramos ou nos perseguem e nos matam. Tenho a certeza de que é o que Ford tenciona fazer. E fá-lo-á.

   — Então por que não foste à reunião dizer isso? Por que me enviaste a mim para lhes impingir um pretexto?

   Barstow esfregou os olhos com a mão.

   — Não sei.

   — Eu digo-te porquê — continuou Lazarus. — Raciocinas melhor com os teus palpites que a maioria dos homens com o cérebro. Mandaste-me lá contar-lhes histórias porque sabias bem de mais que a verdade não servia. Se lhes dissesses que era sair ou morrer, alguns entrariam em pânico e outros tornar-se-iam teimosos. E alguma velhota de kilt havia de decidir ir para casa e exigir o cumprimento dos direitos do Pacto. Então, o idiota revelaria o esquema antes mesmo de se aperceber de que a jogada do Governo era definitiva. Bate certo, não bate?

   Barstow encolheu os ombros e riu com um riso infeliz.

   — Tens razão. Não tinha pensado nisso, mas tens toda a razão.

   — Mas foi o que pensaste — assegurou-lhe Lazarus. — Tinhas as respostas certas. Zack, gosto dos teus palpites; é por isso que continuo por aqui. Então está bem, tu e o Ford estão a pensar levar à certa todos os tipos do globo... pergunto-te novamente: és homem bastante para o levar a cabo?

Os membros estavam por ali em grupos, irritáveis.

   — Não consigo compreender — dizia a arquivista residente para o preocupado grupo que a circundava. — O administrador sénior nunca interferiu antes com o meu trabalho. Mas entrou de rompante no meu escritório, com o Lazarus Long atrás, e mandou-me sair.

   — Que é que ele disse? — perguntou um dos ouvintes.

   — Bem, eu é que disse: “Posso prestar-lhe algum serviço, Zaccur Barstow?”, e ele disse: “Pode, sim. Saia e leve as raparigas consigo.” Nem uma banal palavra de cortesia!

   — Tens muito que te queixar — acrescentou outra voz lugubremente. Era Cecil Hedrick, da Família Johnson, engenheiro-chefe das comunicações. — A mim foi o Lazarus Long que me visitou e foi muito menos delicado.

   — Que é que ele fez?

   — Entra pela célula de comunicação e diz-me que me vem substituir no quadro: ordens de Zaccur. Disse-lhe que ninguém tocava nos meus queimadores a não ser eu e os meus operadores, e de qualquer modo, que autoridade é que ele tinha? Sabem o que ele fez? Não vão acreditar, mas apontou-me uma pistola de explosivos.

   — Não estás a falar a sério!

   — Certamente que estou. Digo-vos, aquele homem é perigoso. Devia ser submetido a psicajustamento. Se alguma vez vi um atavismo, ele é um.

   A cara de Lazarus Long fitava do écran a do administrador.

   — Está tudo enlatado? — perguntou ele.

   Ford cortou a ligação no fac-simulador da secretária.

   — Tudo — confirmou.

   — ‘tá bem — replicou a imagem de Lazarus. — Vou sair. — Quando o écran ficou em branco, Ford falou pelo circuito interno do gabinete.

   — Diga ao alto-chefe dos vigilantes para vir aqui imediatamente apresentar-me um relatório... pessoalmente.

   O patrão da segurança pública apareceu, como lhe fora ordenado, com uma expressão na cara enrugada em que o aborrecimento lutava com a disciplina. Estava a passar a noite mais ocupada da sua carreira, contudo o Velho tinha dado ordens para se apresentar em carne e osso. De qualquer modo, para que serviam os videofones, pensava ele zangado — e perguntava a si mesmo por que é que teria escolhido a polícia. Repreendeu o patrão, conservando-se frio e formal e fazendo desnecessariamente continência.

   — Mandou-me chamar, Sr. Administrador.

Ford ignorou a encenação.

   — Sim, obrigado. Tome. — Carregou num botão e uma bobina de filme saltou do fac-simulador. — É uma lista completa das Famílias Howard. Prenda-as.

   — Sim, Sr. Administrador. — O chefe da polícia da Federação fitou a bobina e interrogou-se se devia ou não perguntar como é que ele a obtivera. De certeza que não fora através do seu gabinete... será que o Velho possuía um serviço secreto de que nem sequer tinha conhecimento?

   — Está por ordem alfabética, mas arrumado geograficamente — disse-lhe o administrador. — Depois de o ter passado nos separadores, envie-me... não, traga-me o original de volta. Pode parar com as psicoentrevistas também — acrescentou. — Limite-se a trazê-los e a guardá-los. Mais tarde, dar-lhe-ei mais instruções.

   O alto-chefe dos vigilantes decidiu que não era boa altura de mostrar curiosidade.

   — Sim, Sr. Administrador. — Saudou rigidamente e saiu.

   Ford virou-se para os controlos da secretária e mandou dizer que

queria ver os chefes de gabinete dos recursos de terra e de controlo de transportes. Pensando melhor, acrescentou o chefe da logística de consumo.

   Na sede das Famílias decorria uma frouxa reunião de administradores. Barstow não estava.

   — Não gosto disto — dizia Andrew Weatheral. — Posso perceber que o Zaccur decidisse adiar o relatório aos membros, mas pensava que ele queria simplesmente falar connosco antes. Estava mesmo à espera que nos consultasse. Que pensas disto, Philip?

   Philip Hardy mordeu o lábio.

   — Não sei. O Zaccur tem a cabeça bem assente nos ombros... mas certamente que acho que nos devia ter chamado e pedido conselho. Ele falou contigo, Justin?

   — Não, não falou — respondeu Justin Foote frigidamente.

   — Bem, que é que devemos fazer? Não podemos propriamente chamá-lo e pedir-lhe contas, a menos que estejamos preparados para lhe retirar o cargo, e, se ele recusar, eu, pela minha parte, tenho relutância em fazer isso.

   Ainda estavam a discutir quando os vigilantes chegaram.

   Lazarus ouviu a algazarra e interpretou-a correctamente — proeza nenhuma, visto que possuía informações que os irmãos não tinham. Sabia que se devia submeter pacífica e conspicuamente à prisão — dar um bom exemplo. Mas os velhos hábitos custam a morrer; adiou o inevitável, enfiando-se nos lavabos de homens mais próximos.

   Era um beco sem saída. Espreitou para a conduta do ar — não, demasiado pequena. Enquanto pensava, rebuscou a bolsa à procura de um cigarro; a mão encontrou um objecto estranho, tirou-o para fora. Era a braçadeira que ele “pedira emprestada” ao vigilante de Chicago.

   Quando o vigilante ponta avançada do esquadrão de limpeza que cobria aquela ala da sede enfiou a cabeça naqueles lavabos, encontrou já lá outro vigilante.

   — Ninguém aqui — anunciou Lazarus. — Já vi.

   — Como diabo me passou à frente?

   — Rodeei-lhe o flanco. Túnel de Stoney Island e pelas condutas de ar. — Lazarus confiava que o verdadeiro chui não soubesse que não existia nenhum túnel de Stoney Island. — Tens aí um cigarro?

   — Hum? Isto não é altura de fumar.

   — Bolas — disse Lazarus —, o meu legado está a bem mais de uma milha.

   — Talvez — replicou o vigilante —, mas o meu está mesmo atrás de nós.

   — E depois? Bem, deixa isso... de qualquer modo tenho algo a dizer-lhe. — Lazarus começou a andar, mas o vigilante não lhe saiu da frente. Estava a olhar com curiosidade para o kilt de Lazarus. Este virara-o do avesso e o forro azul era uma boa imitação de um uniforme de serviço de vigilante — se não fosse inspeccionado de perto.

   — De que esquadra é que disse que era? — inquiriu o pretor.

   — Desta — respondeu Lazarus, e desferiu-lhe um golpe seco sob o esterno. O treinador de pancadaria de Lazarus explicara-lhe que era mais difícil esquivar-se a um golpe no plexo solar do que a um nos maxilares; o treinador estava morto desde as greves de estradas de 1966, mas o seus conhecimentos continuavam vivos.

   Lazarus sentiu-se mais chui com o kilt de uniforme próprio e com bombas paralisantes a tiracolo, sob o braço esquerdo. Além disso, o kilt do vigilante era mais o tamanho dele. Cá fora, a passagem da direita levava à sede e a um beco sem saída; foi para a da esquerda porque não tinha escolha, embora soubesse que se lhe ia deparar o legado do seu inconsciente benfeitor. A passagem dava para um átrio que estava cheio de membros, formados em rebanho por vigilantes. Lazarus ignorou os irmãos e procurou o atarefado oficial.

   — Meu oficial — apresentou-se ele, fazendo elegantemente continência. — Há uma espécie de hospital lá atrás. Vai precisar de cinquenta ou sessenta macas.

   — Não me incomode, diga ao seu legado. Temos as mãos ocupadas.

   Lazarus quase não respondeu; vira o olhar de Mary Sperling na multidão. — ela fitou-o, depois desviou os olhos. Ele recompôs-se e respondeu:

   — Não lhe posso dizer, meu oficial. Não está disponível.

   — Bom, vá lá fora e diga à equipa de primeiros socorros.

   — Sim, meu oficial. — Afastou-se, pavoneando-se um pouco, o polegar enfiado no bordo do kilt. Já ia muito adiante, na passagem que levava ao túnel transestreito que servia a saída de Waukegan, quando ouviu os gritos atrás de si. Dois vigilantes vinham a correr para o apanhar.

   Lazarus parou na arcada que dava para o túnel transestreito e esperou por eles.

   — Qual é o azar? — perguntou ele calmamente quando eles vinham a chegar.

   — O legado — começou um. Não adiantou mais; uma bomba paralisante tiniu e estalou-lhe aos pés. Pareceu surpreso quando as radiações lhe limparam da cara toda a expressão; o companheiro caiu, atravessado por cima dele.

   Lazarus esperou atrás de um dos lados do arco, contou os segundos até quinze:

   — Jacto número um! Jacto número dois! Jacto número três! — Juntou mais dois para ter a certeza de que o efeito paralisante se dissipara. Tinha sido demasiado em cima da hora para o gosto dele. Não se abrigara suficientemente depressa e o pé esquerdo estava dormente da exposição.

   Depois foi ver. Estavam os dois inconscientes, não havia mais ninguém à vista. Subiu para o transestreito. Talvez não estivessem à procura dele pessoalmente, talvez ninguém o tivesse denunciado. Mas não ia ficar ali à espera de o descobrir. De uma coisa tinha a certeza absoluta, disse para consigo mesmo, se alguém dera com a língua nos dentes não fora Mary Sperling.

   Foram-lhe necessárias mais duas parabombas e umas duzentas palavras de pura ficção para o fazer chegar ao ar livre. Uma vez ali e fora de observação imediata, a braçadeira e as restantes bombas foram para dentro da bolsa e a alça que as carregara acabou atrás de uns arbustos; então, procurou com os olhos uma loja de roupas em Waukegan.

   Sentou-se numa tenda de vendas e discou o código dos kilts. Deixou que os padrões de tecido se sucedessem no écran, enquanto ignorava a voz persuasiva do catálogo, até que apareceu um padrão que era nitidamente não militar e não azul, pelo que parou com a exibição e bateu uma encomenda do seu tamanho. Tomou nota do preço, rasgou um recibo de crédito livre da carteira, meteu-o na máquina e empurrou o interruptor. Depois, gozou uma cigarrada enquanto o kilt era costurado.

   Dez minutos depois enfiou o kilt do vigilante no funil do lixo da cabina de vendas e partiu, elegante e vistosamente ataviado. Há um século que não ia a Waukegan, mas encontrou um hotel de preço médio, sem atrair atenções a fazer perguntas, discou o quadro da recepção a pedir uma suite padrão e instalou-se para sete horas de sono profundo.

   Tomou o pequeno-almoço na suite, prestando meio ouvido à caixa de notícias; estava moderadamente interessado em ouvir o que seria dito em relação ao assalto às Famílias. Mas era um interesse desprendido; mentalmente já se desligara. Fora um erro, compreendia-o agora, ter voltado a contactar com as Famílias — um raio de uma sorte ele estar livre daquilo tudo, com a sua actual identidade pública totalmente limpa de ligações à confusão.

   Uma frase chamou-lhe a atenção: “...incluindo Zaccur Barstow, o alegado chefe tribal.

   “Os prisioneiros estão a ser enviados para uma reserva em oklahoma, perto das ruínas da cidade da Estrada Okla-Orleães, a cerca de vinte e cinco milhas para oriente do Harriman Memorial Park. O chefe dos vigilantes descreveu-a como um ‘Pequeno Coventry’ e ordenou que todo o tráfego aéreo a evite num círculo lateral de dez milhas. Não conseguimos nenhuma declaração do administrador, mas uma fonte da administração, habitualmente bem informada, disse-nos que a prisão em massa fora efectuada a fim de acelerar as investigações pelas quais a administração espera obter o ‘Segredo das Famílias Howard’ — as técnicas de prolongamento indefinido da vida. Espera-se que a presente acção de prisão e transporte de todos os membros do grupo proscrito tenha um efeito salutar em quebrar a resistência dos seus dirigentes às legítimas exigências da sociedade. Levá-los-á a reconhecer forçosamente que os direitos civis de que o cidadão decente goza não são uma capa atrás da qual se prejudique a sociedade no seu todo.

   “Os bens móveis e acções dos membros desta criminosa conspiração foram declarados sujeitos ao conservador-geral e serão administrados pelos seus agentes durante o encarceramento...”

   Lazarus desligou o aparelho. “Maldição!”, pensou ele. “Não te arrelies com coisas que não podes remediar.” Claro que ele esperava ser preso... mas escapara. Ponto final. Não ajudaria nada as Famílias se se entregasse... e além disso, não devia nada às Famílias, nem a ponta de um...

   De qualquer modo estavam melhor presos de uma vez e colocados sob guarda. Se tivessem apanhado o rastro a um de cadá vez tudo podia ter acontecido — linchamentos, pogroms mesmo. Lazarus sabia por dura experiência como a lei de Lynch e a violência de massas se encontrava mesmo por baixo da pele dos mais docemente civilizados; fora por isso que ele aconselhara Zack a montar aquilo — isso e o facto de Zack e o administrador terem de manter as Famílias num grupo compacto, para terem uma hipótese de levar a cabo o plano deles. Estavam melhor assim... e ele não se queimara.

   Mas perguntava-se como é que Zack se estaria a desenvencilhar e o que pensaria da desaparição de Lazarus. E o que pensava Mary Sperling — devia ter tido um choque quando ele aparecera a barafustar, como vigilante. Isso era uma coisa que gostaria de esclarecer com ela.

   Não que tivesse importância o que qualquer deles pensasse. Em breve todos eles estariam a anos-luz de distância... ou mortos. Um capítulo encerrado.

   Virou-se para o telefone e pediu os correios.

   — Comandante Aaron Sheffield — anunciou, e deu o código postal. — Último registo nos correios do Campo Goddard. Podem fazer-me o favor de enviar a minha correspondência para... — inclinou-se e leu o número de código da caixa de correio da suite.

   — Serviço — anuiu a voz do empregado. — Imediatamente, comandante.

   — Obrigado.

   A correspondência ainda levaria umas horas a chegar, calculou ele — meia hora no trajecto, três vezes mais em burocracias. Assim como assim, podia esperar ali... sem dúvida que os seus perseguidores se tinham perdido na distância, mas não havia nada em Waukegan que ele quisesse. Assim que a correspondência aparecesse alugaria um deslizador subterrâneo e pisgava-se para...

   Para onde? Que é que ia fazer agora?

   Andou às voltas com várias possibilidades e chegou por fim à compreensão clara de que, de uma ponta à outra do sistema solar, não havia nada que ele quisesse verdadeiramente fazer.

   Isso assustou-o um pouco. Outrora tinha ouvido, e estava inclinado a acreditá-lo, de que a perda de interesse em viver marcava a verdadeira viragem na batalha entre anabolismo e catabolismo — a velhice. Subitamente invejou as pessoas normais de vida curta — ao menos podiam infernar a vida dos filhos. A afeição filial não era habitual entre membros das Famílias; não era uma relação que se pudesse manter por um século ou mais. E a amizade, excepto entre os membros, tendia a ser considerada como um caso transitório e pouco profundo. Não havia ninguém que Lazarus quisesse ver.

   Espera aí... quem era aquele plantador em Vénus? Aquele que sabia tantas canções de folclore e que era tão cómico quando estava bêbedo? Ia à procura dele. Daria um bom salto e seria divertido, por muito que ele detestasse Vénus.

   Depois recordou-se com um choque frio de que não via o homem há... quanto tempo seria? De qualquer modo, certamente que já desaparecera do número dos vivos.

   Libby tinha razão, devaneou ele lugubremente, quando falara da necessidade de um novo tipo de associação para a memória dos de longa vida. Esperava que o rapaz fizesse avançar a necessária investigação antes que Lazarus ficasse reduzido a contar pelos dedos. Pensou naquilo por uns minutos, antes de se lembrar que era altamente improvável que voltasse a ver o Libby.

   A correspondência chegou e não continha nada de importante. Não ficou surpreendido; não esperava cartas pessoais. As bobinas de publicidade foram para o cano do lixo; leu apenas uma carta da Corporação das Docas Pan-Terra, dizendo-lhe que o seu cruzador convertível Espião já fora inspeccionado e que se encontrava numa doca de estacionamento, passando a partir daquele momento a pagar renda. De acordo com as instruções, não tinham tocado nos controlos astrogacionais da nave — ainda era essa a vontade do comandante?

   Decidiu ir buscá-lo mais tarde nesse dia e dirigir-se para o espaço. Tudo era melhor que ficar sentado, amarrado à Terra, e confessar que se aborrecia.

   Pagar a conta e encontrar um jacto para alugar tomou-lhe menos de vinte minutos. Descolou e dirigiu-se para o Campo Goddard, usando o nível baixo de tráfego local, para evitar ter de meter um plano de voo no padrão de controlo. Não estava a evitar conscientemente a polícia porque não tinha razão para pensar que ela estivesse à procura do “comandante Sheffield”; era simplesmente o hábito, e ele em breve o poria no Campo Goddard.

   Mas muito antes de lá chegar, quando sobrevoava o Cansas oriental, decidiu aterrar, e aterrou.

   Escolheu o campo de uma cidade tão pequena que era improvável que empregasse um vigilante em tempo inteiro e ali procurou uma cabina vídeo, longe do campo. Lá dentro, hesitou. Como é que se pedia para falar com o chefe de toda a Federação — e se conseguia, de facto, falar com ele? Se se limitasse a falar para a Torre Novak e perguntasse pelo administrador Ford, não só não o ligariam a ele como a chamada seria passada para o Departamento de Segurança Pública para umas perguntas indesejáveis, tão certas como os impostos.

   Bem, só havia uma maneira de iludir isso, e essa era ligar para o próprio Departamento de Segurança e conseguir, de qualquer modo, que o chefe dos vigilantes aparecesse no écran... depois disso tocaria de ouvido.

   — Departamento de Segurança Pública — respondeu uma voz. — Que serviço, cidadão?

   — Ao seu serviço — começou ele, na sua melhor voz de ponte de controlo. — Sou o comandante Sheffield. Passe-me o chefe. — Não estava a forçar; os seus modos simplesmente presumiam obediência.

   Um curto silêncio.

   — Qual é o assunto, por favor?

   — Eu disse que era o comandante Sheffield. — Desta vez a voz de Lazarus mostrava uma irritação contida.

   Outra curta pausa.

   — Vou ligar a chamada ao gabinete do delegado-chefe — disse duvidosamente a voz.

   Desta vez o écran animou-se.

   — Sim? — perguntou o delegado-chefe, olhando-o de alto a baixo.

   — Passe-me o chefe... depressa.

   — Qual é o assunto?

   — Santo Deus, homem... passe-me o chefe! Sou o comandante Sheffield!

   Deve-se desculpar ao delegado-chefe o tê-lo ligado; não dormira e tinham acontecido nas últimas vinte e quatro horas mais coisas confusas do que as que ele pudera assimilar. Quando o alto-chefe dos vigilantes apareceu no écran, Lazarus foi o primeiro a falar.

   — Oh, até que enfim! Tive um trabalhão para passar o seu arame farpado. Passe-me o Velho e despache-se! Use o seu circuito fechado.

   — Mas que diabo quer você? Quem é você?

   — Ouve, irmão — disse Lazarus num tom de lenta exasperação —, eu não teria atravessado o maldito do teu departamento de segredos se não estivesse numa enrascada. Liga-me ao Velho. É acerca das Famílias Howard.

   O chefe da polícia ficou instantaneamente alerta.

   — Faça o seu relatório.

   — Olha — disse Lazarus num tom cansado —, eu sei que gostarias de espreitar por sobre o ombro do Velho, mas esta não é uma boa altura para tentares. Se me pões impedimentos e me forças a perder duas horas para me apresentar pessoalmente, fá-lo-ei. Mas o Velho quererá saber porquê, e podes apostar a tua bonita farda de cerimónia em como eu lhe digo.

   O chefe dos vigilantes decidiu correr o risco — fazer a ligação deste personagem em três sentidos; então, se o Velho não corresse com o palhaço do écran em três segundos, saberia que tinha jogado pelo seguro e tido um palpite feliz. Se o fizesse... bem, podia sempre culpar um cruzamento de comunicações. Marcou a combinação.

   O administrador Ford pareceu confundido quando reconheceu Lazarus no écran.

   — Você? — exclamou ele. — Como diabo... Zaccur Barstow...

   — Isole o seu circuito! — interrompeu Lazarus.

   O vigilante-chefe pestanejou quando o écran se apagou e silenciou. Portanto, o Velho possuía, de facto, agentes secretos estranhos ao departamento... interessante e a não esquecer.

   Lazarus apresentou a Ford um relato rápido e bastante honesto dos motivos por que se encontrava à solta, depois acrescentou:

   — Portanto, compreende, eu podia ter ficado na clandestinidade e escapado inteiramente. Na realidade, ainda posso. Mas há uma coisa que quero saber: mantém-se a combinação feita com Zaccur Barstow de nos deixar emigrar a todos?

   — Sim, mantém-se.

   — Faz alguma ideia de como conseguir meter cem mil pessoas a bordo no Novas Fronteiras sem deixar ver o jogo? Não pode confiar na sua própria gente, sabe disso.

   — Sei. A presente situação é um expediente temporário, enquanto resolvemos isso.

— E eu sou o homem para esse trabalho. Tenho de ser, sou o único agente à solta em que vocês os dois se podem dar ao luxo de confiar. Agora ouça...

   Oito minutos mais tarde, Ford acenava lentamente com a cabeça e dizia:

   — Pode ser que resulte. Pode ser. De qualquer modo, comece os seus preparativos. Eu terei uma letra de crédito à sua espera no Campo Goddard.

   — Pode encobrir-lhe a pista? Não posso exibir uma carta de crédito do administrador; as pessoas fariam perguntas.

   — Conceda-me o crédito de alguma inteligência. Na altura em que chegar a si parecerá uma transacção bancária de rotina.

   — Desculpe. Agora, como é que posso ligar para si quando precisar?

— Oh, sim... não, por esta combinação de código. — Ford recitou devagar. — Essa liga-o à minha secretária sem demora. Não, não a escreva; decore-a.

   — E como é que posso falar com Zaccur Barstow?

   — Ligue-me e eu faço a ligação. Não pode ligar para ele directamente, a menos que possa conseguir um circuito sensitivo.

   — Mesmo que pudesse, hão posso andar com um sensitivo atrás. Bem, adeusinho... vou desligar.

   — Boa sorte!

   Lazarus deixou a cabina vídeo com uma pressa refreada e despachou-se a ir buscar a sua nave alugada. Não conhecia o suficiente da prática policial corrente para saber se o alto-chefe dos vigilantes localizara a chamada para o administrador ou não; contava simplesmente com isso, porque ele próprio teria feito o mesmo se estivesse na pele dele. Por isso o vigilante disponível mais próximo estava-lhe provavelmente no encalço — altura de se mexer, altura de emaranhar um pouco a pista.

   Descolou novamente e dirigiu-se para ocidente, mantendo-se no plano baixo, não controlado, local, até atingir um banco de nevoeiro que murava o horizonte a ocidente. Então fez meia volta e cortou o ar para Kansas City, permanecendo cuidadosamente abaixo do limite de velocidade e voando tão baixo quanto o regulamento de tráfego local o permitia. Em Kansas City entregou a nave à agência local de deslizador subterrâneo e fez sinal a um táxi de terra, que o transportou à controlestrada para Joplin. Ali entrou num autocarro a jacto local que vinha de St. Louis, sem comprar previamente o bilhete, assegurando-se assim de que o seu voo não seria registado até os registos de viagem do autocarro serem entregues na costa ocidental.

   Em vez de se preocupar, passou o tempo a fazer planos.

   Cem mil pessoas com uma massa média de setenta quilos — não, façamos sessenta e cinco quilos, reconsiderou Lazarus —, sessenta e cinco quilos cada um fazem uma carga de seis milhões e quinhentos mil quilos, cerca de sete mil toneladas. O Espião podia içar uma tal carga contra uma gravidade, mas estaria tão vulnerável quanto feijões cozidos. De qualquer modo estava fora de questão; as pessoas não se empilhavam como carga; o Espião podia levantar esse peso morto — mas “morto” era a palavra correcta, porque era o que eles seriam.

   Precisava de um transporte.

   Comprar uma nave de passageiros suficientemente grande para levar as Famílias da Terra para cima, para onde a Novas Fronteiras estava suspensa na sua órbita de construção, não era difícil; o Serviço de Passageiros dos Quatro Planetas ceder-lhes-ia alegremente uma tal nave a um preço jeitoso. Sendo a competição do transporte de passageiros o que era, eles estariam ansiosos por compensar as perdas com as naves mais velhas que já não eram populares entre os’ turistas. Mas uma nave de passageiros não servia; não só haveria uma curiosidade malsã quanto ao que ele tencionava fazer com a nave, mas — e isso arrumava o assunto — ele não poderia pilotá-la sozinho. Segundo o Decreto Espacial Preventivo Revisto, requeria-se das naves de passageiros que fossem construídas para controlo humano de acordo com a teoria de que nenhum engenho de segurança automático poderia substituir o raciocínio humano numa emergência.

   Teria de ser uma nave de carga.

   Lazarus conhecia o melhor lugar para arranjar uma. Apesar dos esforços para tornar a colónia da Lua ecologicamente auto-suficiente, Luna City ainda importava muitíssimo mais tonelagem do que exportava. Na Terra isto teria resultado em “vazios no regresso”; no transporte espacial era por vezes mais barato deixar que os vazios se acumulassem, especialmente em Luna, onde uma nave de carga vazia valia mais como metal do que o que originariamente custara na Terra enquanto nave.

   Abandonou o autocarro quando este aterrou na cidade de Goddard, foi para o espaçocampo, pagou as contas e tomou posse do Espião; preencheu um pedido de partida o mais rápida possível, para Luna. A aberta que lhe foi atribuída era para dali a dois dias, mas Lazarus não deixou que isso o preocupasse; limitou-se a voltar à companhia das docas e a mostrar que estava disposto a pagar liberalmente por uma troca no tempo da partida. Dali a vinte minutos tinha a confirmação de que podia levantar para Luna nessa noite.

   Passou as restantes horas no enlouquecedor arame farpado da vigilância interplanetária. Primeiro foi buscar a carta de crédito que Ford lhe prometera e converteu-a em dinheiro. Lazarus estava bastante desejoso de usar uma larga fatia do dinheiro para acelerar o seu j processo, tal como tinha pago (muito legalmente) para uma troca de aberta com outra nave. Mas acabou por ser incapaz de o fazer. Dois séculos de sobrevivência ensinaram-lhe que um suborno deve ser oferecido tão gentil e indirectamente quanto uma sugestão galante feita a uma senhora orgulhosa; em poucos minutos chegou à sombria conclusão de que a virtude cívica e a honestidade pública conseguiam penetrar o chão — os funcionários do Campo Goddard pareciam inteiramente inocentes até da própria noção de luvas, suborno ou do lubrificante efeito do dinheiro em transacções de rotina. Admirava a incorruptibilidade deles: não tinha de gostar dela... muito especialmente quando preencher impressos inúteis lhe custava o tempo que tencionava dedicar a um festim de gastrónomo na Sala das Portas do Céu.

   Chegou mesmo a deixar-se vacinar novamente, de preferência a ter de voltar ao Espião e desencantar o bocado de papel que provava que já fora vacinado à chegada à Terra, umas semanas antes.

   No entanto, vinte minutos antes do tempo previsto da aberta estava aos controlos do Espião, o bolso protuberante com papéis selados e o estômago nada protuberante com as sanduíches que conseguira arranjar. Aprontara a trajectória “Hohmann’s-S” que iria usar; e fornecera o seu resultado ao autopiloto. Todas as luzes do quadro estavam verdes, salvo a que pestanejaria em verde quando o controlo de campo começasse a contagem decrescente. Esperou com a quente felicidade que o dominava sempre que prestes a levantar.

   Teve uma ideia e ergueu-se de encontro às tiras. Soltou então a tira do peito e sentou-se, esticou-se para apanhar a cópia do Suplemento do Piloto da Terra e dos Acasos da Navegação. Hum...

   A Novas Fronteiras estava suspensa numa órbita circular de exactamente vinte e quatro horas, mantendo-se sempre sobre o meridiano 106° oeste, à declinação zero, a uma distância de aproximadamente vinte e seis mil milhas do centro da Terra.

   Por que não fazer-lhe uma visita, descobrir a topografia da região?

   O Espião, com os retoques finais dados nos tanques e os espaços de carga vazios, tinha muitos segundos-milhas de energia de reserva. Certo, o campo dera-lhe abertura para Luna City, não para a nave interestelar... mas, com a Lua na presente fase, o desvio do esquema de voo aprovado mal seria perceptível até o registo em filme ser analisado algum tempo depois... altura em que Lazarus receberia uma multa, talvez tivesse mesmo a carta apreendida. Mas as multas nunca o tinham preocupado... e valia certamente a pena fazer um reconhecimento.

   Já estava a colocar o problema ao calculador balístico. À parte a verificação dos elementos da órbita da Novas Fronteiras no Piloto da Terra, Lazarus poderia tê-lo feito a dormir; as manobras de aproximação a satélites eram canja para qualquer piloto, e uma trajectória de tangente dupla para uma órbita de vinte e quatro horas era daquelas que qualquer piloto aprendiz sabia de cor.

   Forneceu as respostas ao autopiloto durante a contagem decrescente, acabou com um avanço de três minutos, amarrou-se de novo e descontraiu-se quando a aceleração o atingiu. Quando a nave entrou em queda livre, verificou a posição e termo de vectores com o trans- pondente do campo. Satisfeito, trancou o quadro, marcou o alarme para a aproximação e adormeceu.

 

   Cerca de quatro horas mais tarde, o alarme despertou-o. Desligou-o; continuou a tocar — uma olhadela ao ecrã mostrou-lhe porquê. O gargantuano corpo cilíndrico da Novas Fronteiras estava muito próximo. Desligou também o circuito de alarme do radar e completou a aproximação por si mesmo, sem se preocupar com o calculador balístico. Antes de completar a manobra, o alarme das comunicações começou a emitir bips. Bateu num interruptor; o aparelho caçou frequências e o ecrã de visão animou-se. Um homem olhou-o.

   — Aqui Novas Fronteiras: que nave é essa?

   — Nave privada Espião, comandante Sheffield. Os meus cumprimentos ao vosso comandante. Posso ir a bordo e fazer uma visita?

   Eles tinham prazer em ter visitas. A nave estava terminada, à parte inspecção, provas e aceitação; o enorme grupo que a construíra tinha ido para a Terra e não havia ninguém a bordo, a não ser os representantes da Fundação Jordan e uma meia dúzia de engenheiros, empregados da corporação. Esses poucos aborreciam-se com a inactividade, aborreciam-se uns com os outros, ansiosos por deixar de marcar o tempo e por voltar aos prazeres da Terra; um visitante era uma diversão bem recebida.

   Quando a comporta de ar do Espião foi selada à da grande nave, Lazarus foi recebido pelo engenheiro a cargo do qual a nave se encontrava — tecnicamente “comandante”, já que a Novas Fronteiras era uma nave em trânsito, mesmo quando não em movimento. O engenheiro apresentou-se e levou Lazarus a dar uma volta pela nave. Flutuaram por milhas de corredores, visitaram laboratórios, armazéns, bibliotecas contendo centenas de milhares de bobinas, acres de tanques hidropónicos para produção de comida e reabastecimento de oxigénio e instalações confortáveis, espaçosas, luxuosas mesmo, para uma tripulaçâo-colónia de dez mil pessoas.

   — Acreditamos que a expedição Vanguarda foi um tanto subtripulada — explicou o engenheiro-comandante. — Os sócio-dinamicistas calculam que esta colónia poderá manter as bases do presente nível cultural.

   — Não parece que seja bastante — comentou Lazarus. — Não existem mais que dez mil tipos de especialização?

   — Oh, certamente! Mas a ideia é arranjar peritos em todas as artes básicas e ramos indispensáveis do conhecimento. Depois, poder-se-ão acrescentar especializações com o auxílio das bibliotecas de referência... tudo, desde sapateado à feitura de tapeçarias. É esta a ideia geral, embora esteja fora do meu campo. Um assunto interessante, sem dúvida, para os que gostam.

   — Está ansioso por que a viagem comece? — Perguntou Lazarus.

   O homem pareceu quase chocado.

   — Eu? Está a sugerir que eu era capaz de seguir nesta coisa? Meu caro senhor, sou engenheiro, não um idiota chapado.

   — Desculpe.

   — Oh, não me importo de fazer uma viagem espacial razoavelmente grande quando há razão para isso. Estive em Luna City mais vezes do que as que posso contar e estive em Vénus. Mas não crê que o homem que construiu o Mayflower viajou nele, pois não? Aposto o meu dinheiro em que a única coisa que impedirá as pessoas que se inscreveram de ficar malucas antes do fim da viagem é que é evidente que elas já eram todas malucas antes de partir.

   Lazarus mudou de assunto. Não visitaram a câmara principal de energia nem a cela blindada que albergava o conversor atómico gigante, assim que Lazarus soube que não precisavam de operadores, eram inteiramente automatizados. A total ausência de partes móveis em cada uma dessas divisões, tornada possível pelo recente desenvolvimento da parestática, fazia que o seu funcionamento interno tivesse apenas um interesse intelectual que podia esperar. O que Lazarus queria de facto ver era a sala de controlo, e aí permaneceu fazendo perguntas intermináveis, até que só a boa educação do seu anfitrião, obviamente maçado, fazia continuar.

   Finalmente, Lazarus calou-se, não porque se importasse de maçar o anfitrião, mas porque estava confiante em que aprendera o suficiente acerca dos controlos para desejar arriscar-se a guiar a nave.

Recolheu mais dois dados importantes antes de abandonar a nave: dali a nove dias da Terra, o esqueleto de tripulação estava a planear um fim-de-semana na Terra, a seguir ao qual os testes de aceitação seriam realizados. Mas, por três dias, a grande nave estaria deserta, à excepção possivelmente de um operador de comunicações — Lazarus era demasiado prudente para fazer perguntas sobre esse ponto. Mas não deviam deixar nenhum guarda, porque não havia necessidade de guarda que se pudesse imaginar. Era como guardar o rio Mississípi.

   A outra coisa que ficou a saber foi como entrar na nave do exterior sem auxílio do interior; descobriu-o ao observar a chegada do foguetão do correio, mesmo quando estava para sair da nave.

   Em Luna City, Joseph McFee, agente da Diana Terminal Corp., subsidiária das Linhas de Carga Diana, acolheu Lazarus cordialmente.

   — Ora viva! Entre, comandante, e puxe uma cadeira. Que é que toma? — Já estava a servir enquanto falava... um analgésico, livre de impostos, do seu alambique de vácuo. — Não o vejo desde... bom, há demasiado tempo. De onde é que vem e que coscuvilhices há por lá? Ouviu algumas novas?

   — De Goddard — respondeu Lazarus, e contou-lhe o que o capitão dissera ao VIP.

   McFee respondeu com a da solteirona em queda livre, que Lazarus fingiu nunca ter ouvido. As histórias levam à política, e McFee expôs a sua ideia da “única solução possível” para as questões europeias, uma solução que implicava uma complicada teoria de McFee quanto à razão pela qual o Pacto não podia ser aplicado a nenhuma cultura abaixo de um certo nível de industrialização. Lazarus não piou em qualquer sentido, mas sabia de mais para apressar McFee; fez que sim com a cabeça nas alturas certas, aceitou mais sumo de foguetão rejeitado quando lhe foi oferecido e esperou pelo momento certo para chegar ao que interessava.

   — Algumas naves da companhia para venda agora, Joe?

   — Se há? Gostaria de gritar. Tenho mais aço assentado naquela planície e a desordenar-me o inventário do que alguma vez tive. Quer algum? Posso fazer-lhe um bom preço.

   — Talvez sim. Talvez não. Depende de ter ou não o que quero.

   — Diga o que quer, eu tenho. Nunca vi um mercado tão parado. Há dias em que não se consegue arranjar um crédito honesto. — McFee franziu o sobrolho. — Sabe qual é o problema? Bom, vou-lhe dizer... é este abalo das Famílias Howard. Ninguém quer arriscar dinheiro até saber em que pé é que fica. Como é que um homem pode fazer planos, quando não sabe se vai planear para dez anos, se para cem? Tome nota do que lhe digo: se a administração conseguir espremer o segredo daqueles meninos, assistirá à maior explosão de investimentos a longo prazo de todos os tempos. Mas se não... bom, as acções a longo prazo não valerão um tostão e haverá uma loucura de come-bebe-e-diverte-te que fará a Reconstrução parecer um chá das cinco.

   Voltou a franzir o sobrolho.

   — De que espécie de metal é que anda à procura?

   — Não quero metal. Quero uma nave.

   O franzido desapareceu das sobrancelhas de McFee quando estas se endireitaram de um golpe.

   — Ah, sim? De que género?

   — Não posso dizer com exactidão. Tem tempo para ir comigo dar-lhes uma vista de olhos?

   Estavam de acordo e deixaram a cúpula pelo túnel do norte, depois passearam à volta de naves estacionadas, nas longas e fáceis passadas da baixa gravidade. Lazarus depressa viu que apenas duas naves tinham tanto a força como o espaço de ar necessários. Uma era uma nave-cisterna, a mais barata, mas um cálculo mental mostrou-lhe que lhe faltava espaço de convés, mesmo incluindo as bases dos tanques, para acomodar oito mil toneladas de passageiros. A outra era uma velha nave com contadores de injecção do tipo de pistão, mas estava adaptada a mercadorias gerais e tinha suficiente espaço de convés. A tara que podia carregar era maior do que a necessária naquele caso, já que os passageiros pesam pouco em relação ao volume que ocupam — mas isso torná-la-ia viva, o que poderia ser terrivelmente importante.

   Quanto aos injectores, ele poderia tratar deles — já tinha conduzido piores latarias.

   Lazarus regateou com McFee as condições, não porque quisesse poupar dinheiro, mas porque não o fazer seria deslocado. Finalmente chegaram a um complicado acordo com três ângulos, pelo qual McFee comprava o Espião para si próprio, Lazarus lhe entregava o título não hipotecado e aceitava de McFee uma nota de pagamento não visada, depois comprava a nave de carga, devolvendo a McFee a nota e acrescentando dinheiro. Por sua vez McFee poderia hipotecar o Espião ao Banco Abertura Comercial de Luna City, usando o que obtivesse, mais dinheiro ou crédito seu, para redimir a sua própria nota — presumivelmente antes de a contabilidade ser submetida a inspecção, embora Lazarus se abstivesse de o mencionar.

   Não era bem um suborno. Lazarus limitava-se a tirar partido do facto de McFee há muito querer uma nave sua e considerar o Espião como o veículo ligeiro ideal para um solteirão, quer para negócios, quer para o prazer; Lazarus limitou-se a manter o preço a um nível no qual McFee podia fazer negócio. Mas os termos do acordo garantiam que McFee não falaria dele, pelo menos enquanto não redimisse a sua nota. Lazarus baralhou ainda mais o assunto ao pedir a McFee que mantivesse os olhos bem abertos para uma boa compra de tabaco comerciável... o que deu a McFee a certeza de que a misteriosa nova aventura do comandante Sheffield envolvia Vénus, já que era o único mercado importante para tais mercadorias.

   Em apenas três horas, Lazarus recebeu o cargueiro pronto para o espaço, por meio de bónus generosos e pagamento de horas extraordinárias. Por fim, deixou Luna City caída para trás, proprietário e comandante da Cidade de Chillicothe. Mentalmente encurtou o nome para Chili, em honra de um prato favorito que não provava há muito tempo — gordos feijões encarnados, montes de pimentão em pó, bocados de carne... carne verdadeira, não aquela papa sintética a que os mais novos chamavam “carne”. Pensou nisso e cresceu-lhe água na boca.

   Não tinha uma única preocupação.

   Quando se aproximou da Terra chamou o controlo de tráfego e pediu uma órbita de estacionamento, porque não queria que a C/w’// descesse; gastaria combustível e atrairia a atenção. Não tinha escrúpulos em estacionar sem permissão, mas havia uma hipótese de que a Chili pudesse ser notada, marcada no mapa e investigada como nave abandonada durante a ausência dele; era mais seguro jogar legalmente.

   Deram-lhe uma órbita; colocou-se nela e parou, depois ajustou o sinal luminoso à sua combinação pessoal, certificou-se de que o radar do vaivém da nave a poderia fazer mover e levou o arpéu para baixo, para a pequena nave de campo auxiliar em Goddard. Teve o cuidado de levar todos os papéis necessários com ele desta vez; deixando que o vaivém fosse selado no entreposto alfandegário, evitou a alfândega e pôde passar rapidamente pelo espaçoporto. Não tinha nenhum destino em mente, a não ser encontrar um fone público e falar com Zack e Ford — então, se tivesse tempo, tentar encontrar chili a sério. Não falara com o administrador do espaço porque nave-a-terra requeria retransmissor, e o costume da privacidade certamente não os protegeria, se o intermediário que tratava da chamada ouvisse alguma menção às Famílias Howard.

   O administrador atendeu a chamada de imediato, embora fosse noite alta na longitude da Torre Novak. Pelos círculos inchados sob os olhos de Ford, Lazarus calculou que ele tivesse vivido à secretária.

   — Olá — disse Lazarus —, é melhor pôr o Zack em linha. Tenho coisas para contar.

   — Então é você — disse Ford severamente. — Pensei que nos tivesse abandonado. Onde esteve?

   — A comprar um navio — respondeu Lazarus. — Como o senhor sabia. Vamos chamar o Barstow.

   Ford franziu o sobrolho, mas virou-se para a secretária. Com o ecrã dividido, Barstow juntou-se-lhes. Parecia surpreendido por ver Lazarus, e não inteiramente aliviado. Lazarus falou rapidamente:

   — Que se passa, camarada? Ford não te disse o que é que eu estava a tentar fazer?

   — Disse, sim — admitiu Barstow —, mas não sabíamos onde estavas ou o que estavas a fazer. O tempo arrastou-se e tu não apareceste... portanto pensámos que te tínhamos visto pela última vez.

   — Bolas — queixou-se Lazarus —, sabes que eu nunca faria uma coisa dessas. De qualquer modo estou aqui, e isto é o que fiz até agora. — Contou-lhes da Chili e do reconhecimento à Novas Fronteiras. — Agora aqui vai como eu vejo as coisas: algures neste fim-de-semana, enquanto a Novas Fronteiras estiver para ali sem ninguém a bordo, eu desço a Chili na reserva-prisão, carregamos à pressa, fugimos para a Novas Fronteiras, tomamo-la e disparamos. Sr. Administrador, isto vai requerer uma grande ajuda sua. Os seus vigilantes terão de olhar para outro lado quando eu aterrar e carregar. Depois precisamos de a modos que nos esgueirar pela patrulha de tráfego. Depois disso, seria muito melhor se nenhuma nave militar estivesse em posição de fazer qualquer coisa drástica quanto à Novas Fronteiras... se lá ficar alguém de vigia nas comunicações, pode ter a possibilidade de gritar por socorro antes de o podermos silenciar.

   — Conceda-me alguma previsão — respondeu Ford azedamente: — Sei que terá de ter uma diversão para ter alguma hipótese de levar isto a cabo. O esquema é, no mínimo, fantástico.

   — Não demasiado fantástico — discordou Lazarus —, se o senhor estiver disposto a usar os seus poderes de emergência até ao limite no último minuto.

   — É possível. Mas não podemos esperar quatro dias.

   — Por que não?

   — A situação não se aguenta tanto tempo.

   — Nem a minha — interveio Barstow.

   Lazarus olhou de um para outro.

   — Hum? Qual é o problema? Que se passa?

   Eles explicaram:

Ford e Barstow estavam empenhados numa tarefa absurdamente improvável, a de montar uma fraude complexa e subtil, uma fraude tripla, com uma face diferente para as Famílias, o público e o conselho da Federação. Cada aspecto apresentava dificuldades aparentemente insuperáveis e únicas.

     Ford não tinha ninguém em quem ousasse confiar, porque ; mesmo os membros mais leais da sua equipa pessoal podiam já estar afectados pela mania da ilusória Fonte da Juventude... ou podiam não estar, mas não havia maneira de o descobrir sem comprometer a conspiração. Apesar disso, precisava de convencer o conselho de que as medidas que tomava eram as melhores para atingir os objectivos propostos.

Além disso, tinha de entregar notícias diárias para convencer os cidadãos de que o seu governo estava prestes a conseguir para eles o “segredo” da vida eterna. Cada dia os depoimentos tinham de ser mais pormenorizados, as mentiras mais bem montadas. As pessoas estavam a ficar irrequietas com o atraso; estavam a libertar-se do casaco da civilização, a tornar-se populaça.

   O conselho estava a sentir a pressão do povo. Por duas vezes Ford fora compelido a um voto de confiança; vencera o segundo apenas por dois votos.

   — Não conseguirei obter outro... temos de nos mexer. Os problemas de Barstow eram diferentes, mas igualmente espinhosos. Tinham de ter confederados, porque a tarefa dele era preparar todos os cem mil membros para o êxodo. Eles tinham de saber antes da altura de embarcar, se se queria que partissem silenciosa e rapidamente. No entanto, não ousava dizer-lhes a verdade tão depressa, porque entre tanta gente haveria forçosamente alguns estúpidos e teimosos... e bastava apenas um idiota para arruinar o esquema, soprando-o aos vigilantes que os vigiavam.

   Em vez disso, era forçado a tentar encontrar chefes em quem pudesse confiar, a convencê-los e a depender deles para convencer os outros. Precisava de quase mil “pastores” de confiança para ter a certeza de conseguir que a sua gente o seguisse quando chegasse a altura. Contudo, o próprio número de confederados de que necessitava era tão grande que garantia que alguém se mostraria fraco.

   Pior que isso, precisava de outros confederados para um fim ainda mais delicado. Ford e ele tinham acordado um esquema, no mínimo fraco, para ganhar tempo. Estavam a racionar as técnicas usadas pelas Famílias para adiar os sintomas da senilidade, fingindo que a soma total dessas técnicas era o “segredo”. Para montar essa fraude Barstow tinha de ter a ajuda de bioquímicos, terapeutas de glândulas, especialistas em simbiótica e metabolismo, e outros peritos de entre as Famílias, e estes, por sua vez, tinham de ser preparados para a investigação policial pelos mais competentes psicotécnicos das Famílias... porque tinham de ser capazes de encobrir a fraude mesmo sob a influência de drogas da verdade. A falsa indoutrinação hipnótica que isto requeria era imensamente mais complexa do que a necessária a um simples bloqueio contra a fala. Até então a intrujice resultara... razoavelmente bem. Mas as discrepâncias tornavam-se cada dia mais difíceis de explicar.

   Barstow não conseguiria continuar a escamotear aqueles assuntos muito mais tempo. A grande massa das Famílias, necessariamente mantida na ignorância, estava a fugir ao controlo ainda mais rapidamente do que o público lá fora. Estavam legitimamente encolerizados com o que lhes tinham feito; esperavam que alguém com autoridade fizesse alguma coisa quanto a isso... e a fizesse já!

   A influência de Barstow sobre os irmãos estava a derreter-se tão rapidamente quanto a de Ford sobre o conselho.

   — Não podem ser quatro dias — repetiu Ford. — Antes doze horas... vinte e quatro no máximo. O conselho volta a reunir amanhã à tarde.

   Barstow pareceu preocupado.

   — Não tenho a certeza de os poder preparar num tempo tão curto. Posso ter problemas em metê-los a bordo.

   — Não se preocupe com isso — disparou Ford.

   — Por que não?

   — Porque — disse Ford rudemente — quem quer que fique para trás será morto... se tiver sorte.

   Barstow não disse nada e desviou o olhar. Era a primeira vez que qualquer deles admitia explicitamente que isto não era trafulhice política relativamente inócua, mas uma tentativa, desesperada e quase sem esperança, para evitar um massacre... e que o próprio Ford estava dos dois lados da barricada.

   — Bem — cortou Lazarus bruscamente —, agora que vocês, rapazes, assentaram nisso, vamos prosseguir. Eu posso fazer a Chili aterrar dentro de... — parou e fez rapidamente os cálculos de onde ele estaria em órbita, de quanto tempo levaria a chegar lá — ...bem, cerca das vinte e duas, tempo de Greenwich. Juntem uma hora para jogar pelo seguro. Que tal dezassete horas, tempo de Oklahoma, amanhã à tarde? Hoje, na realidade.

   Os outros dois pareceram aliviados.

   — Está bem — concordou Barstow. — Tê-los-ei na melhor forma que me for possível.

   — Certo — concordou Ford —, se isso é o mais depressa que se pode arranjar. — Pensou por uns momentos. — Barstow, vou retirar imediatamente todos os vigilantes e pessoal do Governo de dentro da barreira da reserva e isolar-vos. Assim que o portão se contrair pode dizer-lhes a todos.

   — Certo. Farei o melhor possível.

   — Mais alguma coisa antes de irmos? — perguntou Lazarus. — Oh, sim... Zack, era melhor escolhermos um lugar para aterrar, ou posso encurtar uma data de vidas com o meu escape.

   — Ah, sim. Aproxima-te pelo ocidente. Vou arranjar um sinalizador de pista. Está bem?

   — Está bem?

   — Não está bem — negou Ford. — Vamos ter de lhe dar um sinal luminoso piloto para a descida.

   — Que disparate — objectou Lazarus. — Podia fazê-la descer no topo do monumento ao Washington.

   — Não desta vez, não podia. Não fique surpreendido com o tempo.

   Quando Lazarus se aproximou do encontro com a Chili fez sinais do vaivém; o transpondente da Chili fez-lhe eco, para seu alívio — tinha pouca fé em engenhocas que não tivesse pessoalmente inspeccionado e, nesta altura, uma longa revista à Chili teria sido desastrosa.

   Calculou o vector relativo, disparou o vaivém, deu um sacão e disparou para travar — acostou em menos três minutos do que os cálculos, sentindo-se inchado. Recolheu o vaivém, correu para dentro e levou-o para baixo.

   Entrar na estratosfera e circundar dois terços do globo não demorou mais tempo do que o que previra. Usou parte da deriva de uma hora que concedera a si mesmo, muito avaro de manobras, de modo a poupar os gastos e obsoletos medidores de injecção. Depois estava em baixo, na troposfera, com temperaturas superficiais altas, mas não perigosas. Em breve percebeu o que Ford quisera dizer acerca do tempo. Oklahoma e metade do Texas estavam cobertos de fundas nuvens espessas. Lazarus estava espantado e um tanto satisfeito; lembrava-lhe outros tempos, quando o clima era uma coisa que era vivida mais que controlada. A vida perdera um certo sabor, na sua opinião, quando os engenheiros de clima aprenderam a dominar os elementos. Esperava que o planeta deles — se encontrassem um! — tivesse um belo e animado clima.

   Depois, estava mesmo dentro dele e demasiado ocupado para meditar. Apesar do tamanho, a nave espinoteou e queixou-se. Safa! Ford devia ter encomendado aquele pequeno charivari, mesmo na altura do tempo programado — e, aí, os integradores deviam ter tido uma grande área de baixa pressão bem à mão como material.

   Algures um controlador-padrão estava a gritar-lhe; desligou-o e deu toda a sua atenção ao radar de aproximação e às imagens fantasmagóricas no rectificador infravermelho, enquanto comparava o que eles lhe diziam com o seu batedor de inércia. A nave passou sobre uma cicatriz quilométrica na paisagem — as ruínas da Cidade da Estrada Okla-Orleães. Quando Lazarus a vira pela última vez, era barulhenta de vida. De todas as monstruosidades mecânicas com que a humanidade se carregara, discorreu ele, aqueles dinossauros facilmente teriam o primeiro prémio.

   Depois as ideias foram cortadas bruscamente por um guincho do quadro; a nave apanhara o sinal luminoso piloto.

   Fê-la aterrar, cortou o último jacto enquanto ela arranhava o chão e deu um safanão numa série de interruptores; as grandes portas do cargueiro abriram-se com estrondo e a chuva entrou.

   Eleanor Johnson era uma concha, meio agachada contra a tempestade, e tentou puxar a capa mais apertadamente à volta do bebé, no ângulo do braço esquerdo. Quando a tempestade rebentara a criança chorara sem parar, deixando-lhe os nervos como cordas de violino. Agora estava sossegada, mas isso apenas parecia um novo motivo para alarme.

   Ela própria chorara, embora tentasse não o mostrar. Nos seus vinte e sete anos de vida nunca estivera exposta a um tempo daqueles; parecia um símbolo da tempestade que lhe dera volta à vida, que a varrera da primeira casa que ela amara, com a acolhedora lareira antiquada, a brilhante cela de serviço, o termostato que ela podia regular para a temperatura que queria — sem consultar os outros —, uma tempestade que a varrera entre dois vigilantes sinistros, presa como uma pobre psicótica qualquer, para a deixar aqui, depois de terríveis indignidades, na fria argila vermelha e peganhenta deste campo de Oklahoma.

   Era verdade? Podia ser verdade? Ou ainda não teria sequer tido o bebé e isto era outro dos estranhos sonhos que a assaltavam enquanto estava grávida?

   Mas a chuva molhava de um modo demasiado frio, o trovão era demasiado forte; nunca poderia dormir durante tal sonho. E depois, o que o administrador sénior lhes dissera devia ser também verdade; vira com seus próprios olhos a nave aterrar, os gases do motor brilhantes contra o negrume da tempestade. Já não a conseguia ver, mas a multidão que a rodeava avançava lentamente; devia estar lá à frente. Ela estava perto das margens da multidão; seria uma das ultimeis a embarcar.

   Era importantíssimo entrar na nave — o ancião Zaccur Barstow dissera-lhes muito gravemente o que lhes estava reservado se não embarcassem. Acreditara na sinceridade dele; no entanto, perguntava-se se seria de facto verdade — podia alguém ser tão mau a ponto de querer matar alguém tão inofensivo e desamparado como ela e o bebé?

   Entrou em pânico — supondo que já não havia lugar na altura em que chegasse à nave? Apertou mais o bebé; à pressão do aperto o bebé desatou novamente a chorar.

   Uma mulher na multidão aproximou-se e falou com ela.

   — Deve estar cansada. Posso pegar no bebé um bocadinho?

   — Não, não, obrigada. Estou bem. — Um relâmpago iluminou o rosto da mulher; Eleanor Johnson reconheceu-a: a anciã Mary Sperling.

   Mas a amabilidade da proposta acalmou-a. Agora sabia o que devia fazer. Se a nave estivesse cheia e não pudessem levar mais ninguém, ela passaria o bebé para a frente, de mão em mão, por sobre as cabeças das pessoas. Não poderiam recusar espaço a algo tão pequeno quanto um bebé.

   Alguma coisa raspou por ela na escuridão. A multidão estava de novo a avançar.

   Quando Barstow viu que o embarque estaria terminado dentro de alguns minutos, deixou o seu posto numa das portas do cargueiro e correu, tão depressa quanto pôde, pela lama peganhenta e mole, até à cabana das comunicações. Ford dissera-lhe para o avisar quando estivessem prestes a descolar; era necessário para o plano de diversão de Ford. Barstow atrapalhou-se com uma porta não automática, abriu-a e correu para dentro. Marcou a combinação privada que o ligaria directamente à secretária de Ford e carregou na tecla.

   Atenderam imediatamente, mas não era o rosto de Ford que estava no ecrã. Barstow disparou com “Onde está o administrador? Quero falar com ele” antes de reconhecer a face que estava à sua frente.

   Era um rosto bem conhecido do público — Boro Ranking, líder da minoria no conselho.

   — Está a falar com o administrador — disse Ranking, e mostrou um sorriso frio. — O novo administrador. Agora quem demónio é você e por que ligou?

   Barstow agradeceu a todos os deuses, do passado e do presente, por o reconhecimento ser unilateral. Cortou a ligação à queima-roupa e atirou-se para fora do edifício.

   Duas das portas do porão já estavam fechadas; retardatários entravam pelas outras duas. Barstow apressou o último com pragas e seguiu-os; fechou-se atabalhoadamente na sala de controlo.

   — Levantar! — gritou para Lazarus. — Depressa!

   — Para quê tanta alambança? — perguntou Lazarus, mas já estava a fechar e a selar as comportas. Desengatou o acelerador guinchão, esperou uns escassos dez segundos... e deu-lhe força.

   — Bem — disse coloquialmente, seis minutos depois —, espero que todos estivessem deitados. Se não, temos alguns ossos partidos entre mãos. Que era aquilo que estavas a dizer?

   Barstow contou-lhe da tentativa de comunicar com Ford.

   Lazarus pestanejou e assobiou uns compassos do Peru na Palha.

   — Parece que esgotámos o tempo. Parece que sim. — Calou-se e deu atenção aos instrumentos, um olho na pista de balística, um na popa-radar.

 

   Lazarus estava ocupadíssimo a dirigir a Chili para a posição correcta, contra o lado da Novas Fronteiras; os medidores, sob demasiada pressão, tornavam a nave mais pequena travessa como um cavalo novo. Mas conseguiu. As âncoras magnéticas estrondearam metalicamente no seu lugar, os selos de pressão a gás saltaram no sítio certo e os ouvidos estalaram-lhes enquanto a pressão da Chili se ajustava à da nave gigante. Lazarus mergulhou pelo buraco de queda no convés da sala de controlo, moveu-se rapidamente a pulso até à escotilha de ligação e atingiu a comporta de passageiros da Novas Fronteiras para se achar cara a cara com o engenheiro comandante.

   O homem olhou para ele e rosnou.

   — Você outra vez, hem? Por que diabo não respondeu à nossa intimação? Não se pode atracar a nós sem permissão; isto é propriedade privada. Que pretende com isso?

   — Pretendo — disse Lazarus — que você e os seus rapazes vão para a Terra alguns dias mais cedo... nesta nave.

   — O quê?, isso é ridículo!

   — Irmão — disse Lazarus gentilmente, a pistola de explosivos crescendo-lhe subitamente do punho esquerdo —, é certo que eu detestaria feri-lo depois de ter sido tão simpático para mim... mas é certo que o farei, a menos que ceda muito depressinha.

   O oficial limitava-se a fitá-lo incredulamente. Vários dos seus subordinados tinham-se juntado à volta dele; um deles pareceu querer ir ver se chovia, começou a retirar-se. Lazarus atingiu-o na perna, a baixa energia; ele saltou e não agarrou nada.

   — Agora vai ter de tomar conta dele — observou Lazarus.

   Aquilo arrumou a questão. O comandante convocou os seus homens pelo microfone do sistema de avisos da comporta de passageiros; Lazarus contou-os à medida que chegavam — vinte e nove, um número que tivera o cuidado de aprender na sua primeira visita. Nomeou dois homens para segurar cada um deles. Depois deu uma olhadela ao homem que atingira.

   — Não estás ferido a sério, pá — disse ele concisamente e virou-se para o engenheiro-comandante. — Assim que vos transferirmos, ponha bálsamo de radiações na queimadura. O equipamento da Cruz Vermelha está na antepara de trás da sala de controlo.

   — Isto é pirataria! Não vai conseguir escapar.

   — Provavelmente não — concordou Lazarus pensativamente. — Mas a modos que tenho esperança que sim. — Desviou a atenção para a sua tarefa. — Despachem-se aí em cima! Não demorem o dia todo.

   A Chili estava a ser esvaziada lentamente. Só podia ser usada a única saída, mas a pressão da multidão meio histérica, atrás, forçava a avançar os que estavam no gargalo da estrutura que unia as duas naves; fervilhavam dali para fora como abelhas de uma colmeia perturbada.

   A maioria nunca estivera em queda livre antes daquela viagem; saltavam para o espaço maior da nave gigante e ficavam à deriva desamparadamente, completamente desorientados. Lazarus tentou impor alguma ordem agarrando quem quer que visse que parecesse ser capaz de tomar conta de si em gravidade zero, ordenando-lhe que apressasse as coisas, levando consigo os desamparados.

   — Empurrem-nos para qualquer lado, de lá detrás para a nave grande, tirem-nos do caminho, arranjem lugar para os milhares ainda para vir.

   Após recrutar mais ou menos uma dúzia de “pastores”, viu Barstow na multidão que emergia, agarrou-o e pô-lo no comando.

   — Fá-los mexer, de qualquer maneira. Tenho que ir prà frente, prà sala de controlo. Se vires Andy Libby, manda-o ter comigo.

   Um homem soltou-se da corrente e aproximou-se de Barstow.

   — Está uma nave a tentar atracar à nossa. Vi pela porta.

   — Onde? — perguntou Lazarus.

   O homem era diminuído pelo seu pouco conhecimento de naves e de termos náuticos, mas conseguiu fazer-se entender.

   — Eu volto — disse Lazarus a Barstow. — Mantém-nos em movimento... e não deixes fugir nenhum desses meninos... aí os nossos convidados. — Pôs a pistola no coldre e lutou para abrir caminho entre a multidão redemoinhante do gargalo.

   A porta número três parecia ser a que o homem dissera. Sim, havia ali qualquer coisa. A porta tinha uma vigia de vidro blindado, mas para além dela, em vez de estrelas, Lazarus viu um espaço iluminado. Uma nave de qualquer espécie tentava atracar de encontro a ela.

   Os ocupantes ou não tinham tentado abrir a porta da Chili ou talvez simplesmente não soubessem como. A porta não estava fechada por dentro; não houvera razão para se preocuparem com isso. Devia-se ter aberto facilmente dos dois lados assim que a pressão estivesse equilibrada... o que o axiómetro, de um luminoso verde, junto do fecho, mostrava ser o caso.

   Lazarus estava intrigado.

   Quer fosse um veículo do controlo de tráfego, das forças armadas, ou qualquer outra coisa, a sua presença significava más notícias. Mas por que não abriam simplesmente a porta e entravam? Esteve tentado a fechar a porta do lado de dentro, correr e fechar todas as outras, acabar o carregamento e tentar a fuga.

   Mas o antepassado macaco levou a melhor; não podia deixar em paz algo que não compreendia. Chegou a um acordo dando um pontapé que pôs o fecho no lugar, o que impediria a abertura da porta do exterior, depois deslizou cuidadosamente ao longo da vigia e arriscou uma espreitadela com um olho.

   Achou-se a olhar para Slayton Ford.

   Desviou-se para o lado, abriu o fecho com um pontapé e carregou no interruptor que abria a porta. Ficou à espera, um dedo do pé preso num manipulo, pistola numa das mãos, faca na outra.

   Uma figura saiu. Lazarus viu que era Ford, carregou novamente no interruptor para fechar a porta, recolocou o fecho no lugar com um pontapé, sem nunca desviar a pistola do visitante.

   — Agora, que demónio? — perguntou. — Que está a fazer aqui? E quem mais está cá? A patrulha?

   — Estou só.

   — Hum.

   — Quero ir com vocês... se me quiserem.

   Lazarus olhou para ele e não respondeu. Depois voltou à vigia e inspeccionou tudo o que conseguia ver. Ford parecia estar a dizer a verdade porque não havia mais ninguém à vista. Mas não foi isso o que prendeu a atenção de Lazarus.

   O quê, a nave não era de modo nenhum um veículo próprio para o espaço exterior. Não tinha comporta de ar, mas um mero selo para se agarrar a uma nave maior; Lazarus estava a olhar directamente para o corpo da nave. Parecia... sim, era um Júnior Alegre, um pequeno estrato-iate privado, destinado apenas a trajectórias de ponto-a-ponto ou, no máximo, para uma ida até um satélite, desde que o satélite lhe pudesse fornecer combustível para a viagem de regresso.

   Aqui não havia combustível para ele. Um piloto iluminado talvez pudesse levar aquela tampa de lata para a Terra sem energia e safar-se por cima... contanto que fosse capaz de jogar Skipto-M’Lou dentro e fora da atmosfera, cuidando simultaneamente das temperaturas superficiais — mas Lazarus não gostaria de experimentar. Ah, isso não! Virou-se para Ford.

   — Suponha que o recusamos. Como é que imaginou o regresso?

   — Não imaginei — respondeu Ford simplesmente.

   — Hum... conte-me, mas ande depressa; temos tempo de menos.

   Ford queimara todas as pontes. Corrido do gabinete apenas

umas horas antes, soubera que, uma vez todos os factos conhecidos, a prisão perpétua em Coventry era o melhor que poderia esperar — se conseguisse evitar a violência das massas ou os enlouquecedores interrogatórios.

   Criar a diversão foi o que lhe fez perder, por fim, a pequena margem de controlo. As explicações das suas acções não convenceram o conselho. Tinha desculpado a tempestade e a retirada dos vigilantes da reserva como uma tentativa drástica de quebrar o moral das Famílias — uma desculpa possível, mas não muito plausível. As ordens que dera às forças armadas para se manterem afastadas da Novas Fronteiras não tinham aparentemente sido associadas por ninguém com a história das Famílias Howard; no entanto, a aparente falta de motivo para elas fora aproveitada pela oposição como outra arma para o derrubar. Estavam alerta para tudo o que o pudesse atingir — no conselho foi feita uma pergunta que dizia respeito a uns dinheiros do fundo discricionário do administrador que foram entregues indirectamente a um comandante Aaron Sheffield; teriam esses dinheiros sido efectivamente gastos no interesse público?

   Os olhos de Lazarus abriram-se mais.

   — Quer dizer que eles estavam atrás de mim?

   — Não exactamente. Ou não estaria aqui. Mas estavam a aproximar-se muito. Acho que foram ajudados por muitos dos meus, no mínimo.

   — Provavelmente. Mas conseguimos, portanto não temos que nos preocupar. Venha. No minuto em que toda a gente tiver saído desta nave para a grande temos de partir. — Lazarus virou-se para sair.

   — Vai deixar-me ir também?

   Lazarus verificou o caminho, torceu-se para encarar Ford.

   — Tem outra hipótese? — Primeiro tencionara enviar Ford para baixo na Chili. Não foi a gratidão que o fez mudar de ideias, mas o respeito. Uma vez perdido o gabinete, Ford fora direito ao Campo Huxlei, a norte da Torre Novak, pedir aberta para o satélite de recreio Monte Carto e, em vez disso, saltara para a Novas Fronteiras. Lazarus gostara daquilo. “Arriscar a camisa” requeria coragem e carácter, que a maioria das pessoas não tinham. Não agarre numa escova de dentes, não deixe sair o gato... faça-o! — Claro que também vem — disse ele cordialmente. — Você é o meu tipo de rapaz, Slayton.

   A Chili estava agora mais de meio esvaziada, mas os espaços perto da ligação continuavam engarrafados por uma multidão frenética. Lazarus esbracejou e empurrou, tentando não magoar mulheres e crianças desnecessariamente, mas sem deixar que a possibilidade o atrasasse. Lutou através da estrutura de ligação, com Ford pendurado no cinto, desviou-se para o lado assim que passou, e parou em frente de Barstow.

   Este fitou esgazeado um ponto atrás dele.

   — Sim, é ele — confirmou Lazarus. — Não fiques a olhar... é malcriado. Vai connosco. Viste o Libby?

   — Estou aqui, Lazarus. — Libby separou-se da multidão e aproximou-se com a facilidade de um veterano, há muito habituado a queda livre. Tinha um pequeno saco amarrado a um pulso.

   — Bom. Fica por aqui. Zack, quanto tempo até estar carregada?

   — Deus sabe. Não os consigo contar. Uma hora, talvez.

   — Faz isso por menos. Se puseres alguns brutos de cada lado da abertura, podem puxá-los mais depressa do que estão a vir. Temos de os tirar dali um pouco antes do que é humanamente possível. Vou para a sala de controlo. Telefona-me para lá no instante em que tiveres toda a gente cá dentro, os nossos convidados na rua e a Chili solta. Andy! Slayton! Vamos.

   — Lazarus...

   — Daqui a bocado, Andy. Falamos quando lá chegarmos.

   Lazarus levou Slayton Ford com ele porque não sabia o que lhe

havia de fazer e achava melhor mantê-lo escondido até inventar uma desculpa plausível para o ter ali. Até então ninguém parecia ter olhado para ele duas vezes, mas uma vez que se acalmassem, o rosto bem conhecido de Ford exigiria explicação.

   A sala de controlo era a cerca de oitocentos metros do sítio por onde entraram na nave. Lazarus sabia que havia uma cintura para passageiros que levava até lá, mas não tinha tempo para a procurar; limitou-se a seguir a primeira passagem naquela direcção. Assim que se libertaram da multidão fizeram um bom tempo, embora Ford não tivesse tanta habilidade para as manobras de peixe da queda livre como os outros dois.

   Uma vez lá, Lazarus passou a espera forçada a explicar a Libby os controlos extremamente engenhosos mas nada ortodoxos da nave estelar. Libby estava fascinado e em breve se pôs a fazer experiências. Lazarus virou-se para Ford.

— E então você, Slayton? Não fazia mal ter um segundo-piloto auxiliar.

Ford abanou a cabeça.

— Tenho estado a ouvir, mas não conseguiria aprender. Não sou piloto.

— Ah! Como é que chegou aqui?

— Oh! Tenho carta, mas não tive tempo para praticar. É sempre o meu chauffeur que me conduz. Há muitos anos que não calculo uma trajectória.

Lazarus mirou-o da cabeça aos pés.

— E contudo calculou uma órbita de atracagem? Sem combustível de reserva?

— Ah, isso. Tinha de o fazer.

— Estou a ver. O modo como o gato aprendeu a nadar. Bem, é uma maneira. — Virou-se para falar com Libby, mas foi interrompido pela voz de Barstow no sistema de comunicação interna.

— Cinco minutos, Lazarus! Responde.

Lazarus encontrou o microfone, cobriu a luz da base com a mão e respondeu:

— Está bem, Zack! Cinco minutos. — Depois disse: — Gaita, não escolhi uma rota. Que achas, Andy? Direitos para fora da Terra para sacudirmos os activos da nossa peugada? E depois escolher o destino? Que tal, Slayton? Está de acordo com o que ordenou às forças armadas?

— Não, Lazarus, não! — protestou Libby.

— Ah? Por que não?

— Devíamos seguir directamente para o Sol.

— Para o Sol? Pelos deuses, porquê?

— Tentei dizer-te quando te encontrei. E por causa da propulsão espacial que me pediste para desenvolver.

— Mas, Andy, não a temos.

— Ai isso é que temos. Aqui! — Libby empurrou o saquinho que até aí não o abandonara para Lazarus.

Este abriu-o.

Feito de estranhos pedaços reunidos de outro equipamento, parecendo mais o produto de uma oficina de rapaz do que o resultado de um laboratório de cientista, o instrumento a que Libby se referia como “propulsão espacial” foi submetido ao exame crítico de Lazarus. Perante a polida perfeição sofisticada da sala de controlo, parecia tosco, patético, ridiculamente inadequado.

Lazarus apalpou-o para experimentar.

— Que é? — perguntou ele. — O modelo?

— Não, não. E a propulsão. A propulsão espacial.

Lazarus olhou para o homem mais novo não sem simpatia.

   — Filho — perguntou lentamente —, perdeste algum parafuso?

   — Não, não, não! — disse Libby atabalhoadamente. — Estou tão são como tu. Isso é uma concepção radicalmente nova. É por isso que quero que sigamos para perto do Sol. Se funcionar, funciona melhor onde a pressão da luz for maior.

   — E se não funcionar — inquiriu Lazarus —, que é que nos fará? Manchas solares?

   — Não mesmo na direcção do Sol. Mas dirigimo-nos para lá agora, e tão depressa consiga os dados, dou-te as correcções para te rebocar para a trajectória correcta. Quero passar o Sol numa hipérbole muito achatada, bem por dentro da órbita de Mercúrio, tão perto da fotosfera quanto a nave possa suportar. Não sei até que ponto perto, por isso não pude resolver isto antes. Mas os dados estarão aqui na nave e teremos tempo para os relacionar no caminho.

   Lazarus olhou de novo para a porcariazinha de aparelho.

   — Andy... se tens a certeza de ainda teres os parafusos todos no lugar, eu arrisco. Amarrem-se para baixo, vocês os dois. — Amarrou-se a si mesmo no divã do piloto e chamou Barstow. — Então, Zack?

   — Agora mesmo!

   — Agarrem-se bem! — Com uma das mãos Lazarus cobriu uma luz no painel de controlo do lado esquerdo; o aviso de aceleração guinchou por toda a nave. Com a outra mão cobriu outra; o hemisfério à frente deles ficou subitamente cintilante com o firmamento estrelado, e Ford arquejou.

   Lazarus estudou-o. O círculo escuro do lado nocturno da Terra fazia desaparecer bem uns vinte graus.

   — Temos de mergulhar contornando uma esquina, Andy. Usaremos um pouco da correcção de trajectória de Tenessi. — Começou facilmente com um quarto da gravidade, apenas o bastante para agitar os passageiros e os tornar cautelosos, enquanto iniciava a lenta operação de processar a enorme nave na direcção para a qual precisava de a empurrar, de modo a deixar a sombra da Terra. Elevou a aceleração para meio g e depois para um g.

   A Terra passou subitamente de silhueta negra para um estreito crescente de prata quando o disco esbranquiçado do Sol saiu de detrás dela.

   — Quero firmá-la a cerca de duas mil milhas daqui, Alavanca de Lançamento — disse Lazarus tensamente —, a dois g. Dá-me um vector temporário.

   Libby hesitou apenas momentaneamente e deu-lho. Lazarus fez soar novamente o aviso de aceleração e passou a duas vezes a gravidade normal da Terra. Lazarus esteve tentado a elevar a aceleração para o máximo de emergência, mas não se atreveu a fazê-lo com uma carga de marinheiros de água doce; mesmo dois g suportados por um período longo poderiam ser uma tensão demasiado grande

para alguns deles. Qualquer nave perseguidora da Força Espacial podia acelerar para um g muito mais elevado e a sua tripulação de elite podia aguentá-lo. Mas era apenas um risco que teriam de correr... e, de qualquer modo, recordou a si próprio, uma nave da Força Espacial não poderia manter uma aceleração elevada por muito tempo; os seus segundos-milhas eram estritamente limitados pelos seus tanques de reacção-massa.

   A Novas Fronteiras não possuía limites tão antiquados, não tinha tanques; o seu conversor aceitava qualquer massa, transformava-a em pura e radiante energia. Tudo servia — meteoros, poeira cósmica, átomos dispersos apanhados pelo vaivém dos campos de limpeza, ou tudo o que proviesse da própria nave, tal como lixo, cadáveres, cotão, absolutamente tudo. Massa era energia. Ao morrer, cada grama torturado cedia um impulso de nove mil milhões de triliões de ergs.

   O crescente da Terra aumentou e inchou e deslizou na direcção da margem esquerda do ecrã hemisférico, enquanto o Sol permanecia imóvel adiante. Cerca de vinte minutos mais tarde, quando a proximidade era máxima e o crescente, agora um semicírculo, escorregava para fora da tigela do ecrã, o circuito nave-a-nave animou-se.

   — Novas Fronteiras! — soou uma voz enérgica. — Manobrem para permanência em órbita! Isto é uma ordem oficial do controlo de tráfego.

   Lazarus desligou.

   — De qualquer maneira — disse alegremente —, se tentarem apanhar-nos, não vão gostar de nos perseguir até ao Sol! Andy, a estrada está livre agora e talvez seja altura de fazer as correcções. Queres computar tu? Ou dás-me os dados?

   — Eu computo — respondeu Libby. Já descobrira que as características da nave pertinentes para a astrogação, incluindo o comportamento de “corpo negro”, estavam à disposição nos dois postos de pilotagem. Armado com esse conhecimento e com os dados que saíam de instrumentos, iniciou os cálculos da hiperbolóide pela qual tencionava passar o Sol. Fez uma tentativa tímida de usar o calculador balístico da nave, mas este desorientou-o; era um modelo a que não estava habituado, que não tinha partes móveis de qualquer espécie, mesmo nos controlos exteriores. Portanto desistiu dessa perda de tempo e recaiu no estranho talento para cálculos que se lhe alojava no cérebro. O cérebro também não tinha partes móveis, mas a esse já estava habituado.

   Lazarus decidiu investigar o grau de popularidade dos fugitivos. Ligou novamente o circuito nave-a-nave, descobriu que continuava a grasnar furiosamente, embora com um pouco menos de força. Agora já sabiam o nome dele — um dos nomes dele —, o que o fez calcular que os rapazes da Chili deviam ter avisado o controlo de tráfego quase imediatamente. Deixou ouvir um ts-ts-ts desanimado quando soube que a licença de pilotagem do comandante Sheffield fora suspensa. Desligou e tentou as frequências da Força Espacial... depois também as desligou, quando viu que era incapaz de apanhar algo que não fosse código ou interferências, à excepção das palavras “Novas Fronteiras”, que se fizeram ouvir uma vez com clareza.

   Disse algo acerca de “antes quebrar que torcer” e tentou outra linha de investigação. Podia dizer, quer pelo radar de longo alcance, quer pelo detector paragravítico, que havia naves na vizinhança, mas só isto dizia-lhe muito pouco, era de esperar que houvesse naves tão perto da Terra e não havia uma maneira fácil de distinguir, apenas com aqueles dados, um transpacial ou um cargueiro desarmados, entregues às suas ocupações legítimas, de um cruzador da Força Espacial em perseguição raivosa.

   Mas a Novas Fronteiras tinha mais recursos para analisar o que a cercava do que uma nave normal; fora especialmente equipada para enfrentar, sem auxílio externo, qualquer estranha situação imaginável. A sala de controlo hemisférica na qual estavam deitados era um enorme receptor de televisão de ecrãs múltiplos, que podia duplicar os céus estrelados, atrás ou à frente, de acordo com a selecção do piloto. Mas também tinha outros circuitos muito mais subtis; podia igualmente actuar, simultânea ou separadamente, como um enorme ecrã de radar, oferecendo os sinais sonoros de qualquer corpo dentro do seu alcance.

   Mas isso era só o começo. Os seus sentidos não humanos eram capazes de aplicar análise diferencia] aos dados doppler e oferecer o resultado em análogo visual. Lazarus estudou a mesa de controlo da mão esquerda, tentou recordar tudo o que ouvira acerca dela e fez uma alteração na disposição dos comandos.

   As estrelas simuladas e o próprio Sol esmaeceram até à escuridão; cerca de uma dúzia de luzes irradiava um brilho forte.

   Ordenou ao quadro que verificasse a velocidade angular; as luzes brilhantes passaram a um vermelho-cereja, tornaram-se pequenos cometas arrastando caudas cor-de-rosa — todas menos uma, que permaneceu branca e não deixou crescer cauda. Estudou as outras por uns momentos, viu que os seus vectores eram tais que nunca se encontrariam, e ordenou ao quadro que investigasse a dopplerização da linha de mira da que permanecia firme.

   Passou a violeta, percorreu metade do espectro e estacou no verde-azulado. Lazarus pensou um momento, subtraiu à informação os dois g de aceleração da sua própria nave; tornou ao branco. Satisfeito, experimentou os mesmos testes com a imagem da ré.

   — Lazarus...

   — Sim, Lib!

   — Interfiro no que estás a fazer se te der agora a correcção?

   — De maneira nenhuma. Estava só a dar uma olhadela. Se esta lanterna mágica sabe o que está a dizer, não conseguiram montar-nos uma perseguição de jeito a tempo.

   — Ainda bem. Bom, aqui estão os cálculos...

   — Aplica-os tu, ‘tá bem? Toma o comando por um bocado. Quero desencantar café e sanduíches. E vocês? Apetece-lhes um pequeno-almoço?

   Libby acenou distraidamente, já a começar a rever a trajectória da nave. Ford falou ansiosamente, a primeira coisa que dizia em muito tempo.

   — Deixe-me ir. Gostava de ir. — Parecia pateticamente ansioso por ser útil.

   — Hum... pode meter-se em sarilhos, Slayton. Independentemente do que o Zack lhes possa ter impingido, o seu nome é provavelmente “lama” para a maioria dos membros. Eu telefono para a popa e chamo alguém.

   — Provavelmente ninguém me reconheceria nestas circunstâncias — argumentou Ford. — De qualquer modo, é um recado legítimo... posso explicar isso.

   Lazarus viu pela cara dele que aquilo era necessário ao moral do homem.

— Está bem... se conseguir dar conta de si sob dois g.

   Ford esbracejou pesadamente para sair do divã em que estava.

   — Tenho pernas espaciais. Que tipo de sanduíches?

   — Eu ia dizer de carne, mas provavelmente saía uma porcaria de um substituto. As minhas, de queijo, mas com pão de centeio, se tiverem, e montes de mostarda. E uns cinco litros de café. Que é que vais querer, Andy?

   — Eu? Oh! Qualquer coisa que der jeito.

   Ford ia para sair, fazendo toda a força que podia contra o peso dobrado, mas depois acrescentou:

   — Ah!... podia poupar tempo se me dissesse aonde ir.

   — Irmão — disse Lazarus —, se esta nave não está bem atafulhada de comida, cometemos todos um erro terrível. Faça um reconhecimento do terreno. Há-de encontrar alguma.

   Para baixo, para baixo, para baixo em direcção ao Sol, com uma velocidade que aumentava de trezentos e vinte e quatro metros por segundo a cada segundo que passava. Para baixo e cada vez mais para baixo, durante quinze intermináveis horas de peso redobrado. Durante esse tempo viajaram dezassete milhões de milhas e atingiram a inconcebível velocidade de seiscentas e quarenta milhas por segundo. Os números dizem pouco — em vez disso, pensem na distância de Nova Iorque a Chicago, meia hora de viagem mesmo de estratocorreio feita no tempo de uma única pulsação.

   Barstow passou um mau bocado com o aumento de peso. Para todos os outros foi um tempo em que estiveram deitados, tentaram desesperadamente dormir, respiraram penosamente e procuraram novas posições para tentar descansar dos fardos dos seus próprios corpos. Mas Zaccur Barstow era guiado pelo seu sentido da responsabilidade; continuou sempre a andar, embora o Velho do Mar estivesse sentado sobre o seu pescoço e fizesse o seu peso subir para cento e cinquenta quilos.

   Não que pudesse fazer alguma coisa por eles, excepto arrastar-se pesadamente, de um compartimento para outro, e perguntar como estavam. Nada se podia fazer, nenhuma organização poderia aliviar-lhes o sofrimento enquanto continuasse a aceleração elevada. Deitavam-se onde podiam, homens, mulheres e crianças, amontoados como gado, sem espaço sequer para se estenderem em espaços que não tinham sido planeados para uma tão extrema superlotação.

   A única coisa boa daquilo, reflectiu Barstow fatigadamente, era que estavam todos demasiadamente mal para se preocuparem com o que não fosse os minutos que se arrastavam. Estavam demasiado moídos para arranjarem sarilhos. Mais tarde surgiriam dúvidas, tinha a certeza, acerca da sensatez da fuga; far-se-iam perguntas embaraçosas sobre a presença de Ford na nave, sobre a actuação peculiar e por vezes suspeita de Lazarus, sobre o seu próprio papel contraditório. Mas não por enquanto.

   Na verdade tinha de organizar uma campanha de propaganda, decidiu com relutância, antes que os problemas surgissem. Se surgissem ... e certamente surgiriam se não se despachasse a contrabalançá-los, e... bem, seriam a última gota. A última gota.

   Viu uma escada de mão na sua frente, cerrou os maxilares e lutou até ao convés seguinte. Ali, ao passar cuidadosamente por entre os corpos, quase pisou uma mulher que segurava um bebé com demasiada força. Barstow reparou que a criança estava molhada e suja e pensou dizer à mãe que tratasse disso, já que ela parecia acordada. Mas deixou passar — tanto quanto sabia, não havia uma fralda limpa num diâmetro de milhões de milhas. Ou poderia haver dez mil no convés de cima... o que parecia igualmente distante.

   Continuou a arrastar-se sem falar com ela. Eleanor Johnson também não dera pela preocupação dele. Depois do primeiro grande alívio, de compreender que ela e o bebé estavam a salvo dentro da nave, delegara todas as preocupações nos anciãos e agora não sentia nada a não ser a apatia de reacção emocional e do iniludível peso. O bebé chorara quando aquele horrível peso os atingira, depois ficara sossegado, demasiado sossegado. Erguera-se o suficiente para lhe ouvir o coração; depois, certa de que estava vivo, voltara a mergulhar em letargia.

   Quinze horas passadas, com a órbita de Vénus a apenas quatro horas de distância, Libby cortou a aceleração. A nave continuou o mergulho em queda livre, a tremenda velocidade ainda a aumentar sob a firme e crescente atracção do Sol. Lazarus foi acordado pela ausência de peso. Olhou para o divã do co-piloto e disse:

   — Sobre a curva?

   — Como programado.

   Lazarus olhou-o de cima a baixo.

   — Pronto, para mim já chegou. Agora sai daqui e dorme um pouco. Bolas, pareces uma toalha usada.

   — Fico só aqui a descansar.

   — Uma ova é que ficas. Não dormiste nem quando eu estava aos comandos; se ficas aqui, vais ficar a observar os instrumentos e a fazer cálculos. Portanto, desaparece! Slayton, atire-o lá para fora.

   Libby sorriu timidamente e saiu. Descobriu que os espaços atrás da sala de controlo enxameavam de corpos a flutuar, mas conseguiu achar um canto desocupado, passou o cinto do kilt por uma pega e adormeceu de imediato.

   A queda livre devia ter sido um grande alívio para todos os outros; não foi, excepto para a fracção de um por cento que eram espaçonautas experientes. O enjoo por queda livre, como o enjoo por mar, serve de anedota só para os que não são afectados por ele; seria preciso um Dante para descrever os cem mil casos. Havia medicamentos contra enjoo a bordo, mas não foram logo encontrados; havia médicos nas Famílias, mas também eles estavam enjoados. O sofrimento continuou.

   O próprio Barstow, de há muito habituado à queda livre, flutuou até à sala de controlo para pedir alívio para os menos afortunados.

   — Eles estão em mau estado — disse a Lazarus. — Não podes pôr a nave em rotação e dar-lhes umas tréguas? Ajudava muito.

   — E também dificultava as manobras. Lamento. Olha, Zack, se houver um aperto vai ser mais importante para eles uma nave rápida do que conservarem os jantares dentro do estômago. Ninguém morre de enjoo... só se deseja morrer.

   A nave continuou o mergulho, ainda a ganhar velocidade, enquanto caía em direcção ao Sol. Os poucos que se sentiam capazes continuavam lentamente a cuidar da enorme maioria que estava doente.

   Libby continuou a dormir, o luxuoso sono do regresso-ao-útero dos que aprenderam a gostar da queda livre. Quase não dormira desde o dia em que as Famílias foram presas; a sua mente excessivamente activa passara todo o tempo ocupada com o problema da nova propulsão espacial.

   A grande nave processava em torno dele; ele mexia-se suavemente e não acordava. Estabilizou numa nova atitude e o aviso de aceleração acordou-o instantaneamente. Orientou-se, achatou-se de encontro à antepara detrás e esperou; o peso atingiu-o quase de imediato — três g desta vez, e ele soube que algo estava muito mal. Andara quase quatrocentos metros na direcção da popa antes de achar um esconderijo; no entanto, lutou para se pôr de pé e iniciou a improvável empresa de tentar trepar aquela distância — endireita-te agora — com o triplo do peso, enquanto se censurava por ter deixado que Lazarus o convencesse a sair da sala de controlo.

   Conseguira efectuar apenas uma parte da viagem... mas uma parte heróica, que era igual a subir as escadas de um prédio de dez andares carregando um homem em cada ombro... quando o retomar da queda livre o libertou. Engoliu o resto do caminho como um salmão de regresso ao rio e em breve estava na sala de controlo.

   — Que aconteceu?

   Lazarus disse pesarosamente:

   — Tive de vectorizar, Andy.

   Slayton Ford não disse nada, mas parecia preocupado.

   — Sim, eu sei. Mas porquê? — Libby já se estava a amarrar ao divã do co-piloto, ao mesmo tempo que estudava a situação astrogacional.

   — Luzes vermelhas no ecrã. — Lazarus descreveu o que surgira, dando coordenadas e vectores relativos.

   Libby acenou pensativamente.

   — Uma nave da Força Espacial. Nessas trajectórias não podiam ser naves comerciais. Um lança-minas.

   — Foi o que eu calculei. Não tive tempo de te consultar; tive de usar segundos-milhas bastantes para ter a certeza de que eles não poderiam acelerar o suficiente para voltarem a determinar a nossa posição.

   — Sim, tinhas de o fazer. — Libby parecia preocupado. — Pensei que estávamos livres de qualquer interferência da Força Espacial.

   — Não são dos nossos — intrometeu-se Slayton Ford. — Não podem ser dos nossos, sejam quais forem as ordens que lhes deram desde que eu... hã, desde que eu parti. Devem ser venusianas.

   — Pois — concordou Lazarus —, devem ser. O teu colega, o novo administrador, gritou por socorro a Vénus e eles deram-lho... apenas um gesto de boa-vontade interplanetária.

   Libby mal o ouvia. Estava a examinar dados e a processá-los no calculador que tinha dentro do crânio.

   — Lazarus... esta nova órbita não é lá muito boa.

   — Eu sei — concordou Lazarus tristemente. — Tive de me desviar... portanto, desviei-me na única direcção que me deixaram aberta... a mais próxima do Sol.

   — Demasiado próxima talvez.

   O Sol não é uma grande estrela, nem é muito quente. Mas é quente em relação aos homens, suficientemente quente para os fulminar se são descuidados num meio-dia tropical, a noventa e dois milhões de milhas de distância, suficientemente quente para que os que são criados sob os seus raios não ousem olhar directamente para ele.

   A uma distância de dois milhões e meio de milhas, o Sol arrasa, com um clarão mil e quatrocentas vezes mais brilhante do que o pior alguma vez sentido no Vale da Morte, no Sara ou em Adem. Uma tal irradiação não seria sentida sob a forma de calor ou luz; seria uma morte mais súbita do que a que resultaria do uso de uma carga de explosivos. O Sol é uma bomba de hidrogénio, uma bomba’ que surgiu naturalmente; a Novas Fronteiras roçava os limites do seu ciclo de destruição total.

   Estava calor dentro da nave. As Famílias estavam protegidas da instantânea morte resplandecente pelas paredes blindadas, mas a temperatura do ar continuava a subir. Tinham-nos aliviado do sofrimento da queda livre, mas estavam duplamente desconfortáveis, tanto por causa do calor como por causa das anteparas que se inclinavam loucamente; não havia nenhum lugar plano para se estar de pé ou deitado. Agora a nave girava sobre o seu eixo e acelerava também; não fora concebida para fazer as duas coisas ao mesmo tempo, e a soma das duas acelerações, a angular e a linear, fazia que fosse “para baixo” a direcção em que as anteparas, exterior e posterior, se encontravam. A nave girava pela necessidade de deixar que parte da energia resplandecente que com ela colidia reirradiasse no lado “frio”. A aceleração para a frente provinha igualmente da necessidade, uma manobra desesperada — e vã —, de passar o Sol tão longe quanto possível e tão depressa quanto possível, de modo a passar o mínimo de tempo no periélio, o ponto de máxima aproximação.

Estava calor na sala de controlo. Até Lazarus se separara voluntariamente do kilt e se descascara à moda de Vénus. O metal estava quente ao toque. No grande ecrã estelar um enorme círculo negro marcava o lugar onde deveria estar o disco do Sol; os receptores tinham-se desligado automaticamente a exigência tão ridícula.

   Lazarus repetiu as últimas palavras de Libby:

   — “Trinta e sete minutos para o periélio.” Não vamos aguentar, Andy. A nave não aguenta.

   — Eu sei. Nunca pensei passarmos tão perto.

— Claro que não pensaste. Talvez eu não devesse ter manobrado. Talvez acabássemos por evitar as minas de qualquer modo. Ah! Bem... — Lazarus endireitou os ombros com os “se... talvez...”. — Parece-me, filho, que é mais que tempo de experimentar o teu aparelho. — Apontou para a tosca “propulsão espacial” de Libby. — Dizes que tudo o que se tem de fazer é enganchar aquela ligação?

   — Foi o que planeei. Ligar o único borne a qualquer porção de massa que se queira atingir. Claro que não sei se na realidade resulta — admitiu Libby. — Não há maneira de fazer testes.

   — Supondo que não resulta?

— Há três possibilidades — respondeu Libby metodicamente. — Em primeiro lugar, pode não suceder nada.

   — Caso em que fritamos.

— Em segundo lugar, nós e a nave podemos deixar de existir como matéria tal como a conhecemos.

— Morremos, queres tu dizer. Mas, provavelmente, de um modo mais agradável.

   — Suponho que sim. Não sei como é a morte. Em terceiro lugar, se as minhas hipóteses estiverem correctas, afastamo-nos do Sol a uma velocidade mesmo abaixo da da luz.

   Lazarus olhou para o aparelho e limpou o suor dos ombros.

   — Está a ficar mais calor, Andy. Engancha isso... e é melhor que isso seja bom!

   Andy fez a ligação.

   — Vá lá — apressou Lazarus. — Carrega no botão, liga o interruptor, interrompe o feixe. Faz isso funcionar.

   — Já fiz — insistiu Libby. — Olha para o Sol.

   — Ah? Oh!

   O grande círculo de escuridão que marcara a posição do Sol no estelário sardento de estrelas estava a encolher rapidamente. Em doze pulsações perdeu metade do seu diâmetro; vinte segundos depois estava reduzido a um quarto da largura original.

   — Resultou — disse Lazarus suavemente. — Olhe para aquilo, Slayton! Eu seja cão... resultou!

   — Eu achava que ia resultar — respondeu Libby com seriedade. — Devia resultar, sabem?

   — Hum... isso pode ser evidente para ti, Andy. Para mim não é. A que velocidade vamos?

   — Relativamente a quê?

   — Hum, relativamente ao Sol.

   — Não tive ocasião de medir, mas parece ser mesmo abaixo da velocidade da luz. Não pode ser superior.

   — Por que não? À parte as considerações teóricas.

   — Ainda vemos. — Libby apontou para a curva do estelário.

   — Pois vemos — reflectiu Lazarus. — Eh! Não devíamos poder ver. Devia ter deixado de dopplerizar.

   Libby pareceu desorientado, depois sorriu.

   — Mas é novamente dopplerizado. Em cima, daquele lado, na direcção do Sol, estamos a ver por meio de curtas radiações, esticadas até à visibilidade. Do lado oposto estamos a apanhar algo nos comprimentos de onda do rádio dopplerizadas em luz.

   — E no meio?

   — Deixa de gozar comigo, Lazarus. Tenho a certeza de que consegues fazer somas de vectores relativos tão bem quanto eu.

   — Fá-las tu — disse Lazarus com firmeza. — Eu limito-me a ficar aqui e a admirar. Hem, Slayton?

   — Sim. Sim, de facto.

   Libby sorriu delicadamente.

   — Já agora, podemos parar de desperdiçar massa no motor principal. — Fez soar o aviso e depois desligou o motor.

   — Agora podemos restabelecer as condições normais.

   Começou a desligar o aparelho.

   Lazarus disse apressadamente:

   — Espera aí, Andy! Ainda nem sequer saímos da órbita de Mercúrio. Para quê travar?

   — O quê? Isto não nos vai parar. Adquirimos velocidade; vamos mantê-la.

   Lazarus apertou uma bochecha e fixou o olhar.

   — Normalmente, eu concordaria contigo. A Primeira Lei do Movimento. Mas com esta pseudovelocidade não tenho tanta certeza. Recebemo-la de graça e não pagámos... em termos de energia, quero eu dizer. Pareces ter decretado férias no que diz respeito à inércia; quando as férias acabarem, toda essa velocidade grátis não vai voltar para o lugar donde veio?

   — Não me parece — respondeu Libby: — A nossa velocidade não é “pseudo” coisa nenhuma; é tão real quanto a velocidade o pode ser. Estás a tentar aplicar a lógica verbal antropomórfica a um campo em que ela não é pertinente. Não esperas que sejamos instantaneamente transportados de volta a um potencial gravitacional mais baixo de onde partimos, ou esperas?

   — De volta ao ponto em que enganchaste a tua propulsão espacial? Não, avançámos.

   — E vamos continuar a avançar. A nossa recém-adquirida energia potencial gravitacional de maior altitude em relação ao Sol não é mais real do que a presente energia cinética de velocidade. Ambas existem.

   Lazarus pareceu confundido. Era uma expressão que não se lhe adaptava.

   — Acho que me apanhaste, Andy. Não interessa as voltas que lhe dê, a mim parece-me que tirámos a energia que apanhámos de algum lado. Mas donde? Quando andei na escola, ensinaram-me a honrar a

Bandeira, a votar no programa oficial do partido e a acreditar na lei da conservação da energia. Parece que tu a violaste. E agora?

   — Não te preocupes com isso — sugeriu Libby. — A chamada lei da conservação da energia era uma mera hipótese de trabalho, não provada e improvável, usada para descrever fenómenos grosseiros. Os seus termos só se aplicam à antiga concepção dinâmica do mundo. Num espaço pleno cheio de matéria concebida como uma rede estática de relações, uma “violação” dessa “lei” não é mais espantosa do que uma função descontínua, a ser anotada e descrita. Foi o que eu fiz. Vi uma descontinuidade no modelo matemático do aspecto de massa-energia chamado “inércia”. Apliquei-o. O modelo matemático revelou-se como semelhante ao mundo real. Foi, de facto, o único risco. Nunca sabemos se um modelo matemático é semelhante ao mundo real até o experimentarmos.

   — Pois, pois, claro, não podes saber o gosto antes de provares... mas, Andy, continuo a não ver qual foi a causa! — Virou-se para Ford. — Você vê, Slayton?

   Ford abanou a cabeça.

   — Não. Gostaria de saber... mas duvido que conseguisse entender.

   — Já somos dois. Então, Andy?

   Agora Libby parecia confuso.

   — Mas, Lazarus, a causalidade não tem nada a ver com o pleno da matéria real. Um facto é, simplesmente. A causalidade é um mero postulado antiquado de uma filosofia pré-científica.

   — Deve ser isso — disse Lazarus lentamente —, sou antiquado.

   Libby não disse nada. Desligou o aparelho.

   O disco de escuridão continuou a encolher. Após encolher para cerca de um sexto do seu diâmetro máximo, passou subitamente de negro a um branco brilhante, visto que a distância da nave ao Sol voltara a ser suficientemente grande para permitir aos receptores aguentar a carga.

   Lazarus tentou calcular mentalmente a energia cinética da nave — metade do quadrado da velocidade da luz (um nadinha menos, corrigiu ele) vezes a enorme tonelagem da Novas Fronteiras. O resultado não o consolou, quer lhe chamasse ergs ou maçãs.

 

   — As primeiras coisas em primeiro lugar — interrompeu Barstow. — Estou tão fascinado com os espantosos aspectos científicos da nossa situação actual como qualquer de vocês, mas há trabalho a fazer. Temos de planificar imediatamente um padrão para o dia-a-dia. Portanto, vamos deixar a física matemática e falar de organização.

   Não estava a falar aos administradores, mas aos seus ajudantes pessoais, as pessoas-chave que o ajudaram a montar as complexas manobras que lhes permitiram a fuga — Ralph Schultz, Eve Barstow, Mary Sperling, Justin Foote, Clive Johnson e cerca de uma dúzia de outros.

   Lazarus e Libby estavam lá. Lazarus deixara Slayton Ford a guardar a sala de controlo, com ordens para recambiar todos os visitantes e, acima de tudo, para não deixar ninguém tocar nos controlos. Era uma tarefa de “faz-de-conta” a noção de Lazarus de terapia ocupacional temporária. Sentira em Ford uma atitude mental que não lhe agradava. Ford parecia ter-se retirado para dentro de si mesmo. Respondia quando lhe falava, mas era tudo. E isso preocupava Lazarus.

   — Precisamos de um executivo — continuou Barstow —, alguém que, nos tempos mais próximos, terá poderes muito amplos para dar ordens e as fazer cumprir. Terá de tomar decisões, organizar-nos, distribuir deveres e responsabilidades, pôr a funcionar a economia da nave. É uma pesada tarefa, e eu gostaria de o fazer democraticamente e de proporcionar aos nossos irmãos uma eleição. Isso terá de esperar; alguém tem de dar ordens agora. Estamos a gastar comida e a nave... bem, gostaria que tivessem visto os lavabos que eu hoje tentei utilizar.

   — Zaccur... . — Sim, Eve?

   — Parece-me que o que há a fazer é submeter o caso aos administradores. Nós não temos qualquer autoridade; formámos apenas um grupo de emergência para uma coisa que já acabou.

   — Hum... — Era Justin Foote, numa entoação tão seca e formal quanto o rosto dele. — Eu discordo um tanto da nossa irmã. Os administradores não estão familiarizados com todos os antecedentes; gastar-se-ia tempo que não podemos dispensar a pô-los ao corrente antes de eles poderem resolver o assunto. Ainda mais, sendo eu um dos administradores, estou capacitado para afirmar sem rodeios que os administradores, enquanto grupo organizado, não exercem nenhuma jurisdição porque legalmente deixaram de existir.

   Lazarus pareceu interessado.

   — Como chegaste a essa conclusão, Justin?

   — Deste modo: o quadro de administradores tinha à sua guarda uma fundação que existia como parte de e em relação a uma sociedade. Os administradores nunca foram um governo; os seus únicos deveres diziam respeito à relação entre as Famílias e o resto da sociedade. Com o fim da relação entre as Famílias e a sociedade terrestre, o quadro de administradores deixa, ipso facto, de existir. Ele está unido à história. Agora nós, nesta nave, ainda não somos uma sociedade, somos um grupo anarquista. Este grupo aqui reunido tem tanta (ou tão pouca) autoridade para iniciar uma sociedade como qualquer facção.

   Lazarus deu vivas e bateu palmas.

   — Justin — aplaudiu ele —, essa foi a peça mais asseada de malabarismo verbal que ouvi num século. Vamos juntar-nos um dia destes e experimentar o solipsismo.

   Justin Foote pareceu penalizado.

   — Obviamente... — começou ele.

   — Ná! Nem mais uma palavra! Convenceste-me, não estragues. Se as coisas são assim, vamos lá ao trabalho de escolher um chefe de manada. Então e tu, Zack? Parece-me que és o candidato lógico.

   Barstow abanou a cabeça.

   — Conheço as minhas limitações. Sou um engenheiro, não um quadro político; as Famílias foram apenas um passatempo para mim. Precisamos de um perito em administração social.

   Quando Barstow os convenceu de que falava a sério, outros nomes foram propostos e as respectivas qualificações longamente debatidas. Num grupo tão grande como o das Famílias, havia muitos que se tinham especializado em ciências políticas, muitos que serviram a administração pública com mérito.

   Lazarus ouviu com atenção; conhecia quatro dos candidatos. Por fim, chamou Eve Barstow à parte e sussurrou-lhe qualquer coisa. Ela pareceu sobressaltar-se, depois ficou pensativa e finalmente acenou um sim.

   Pediu a palavra.

   — Tenho um candidato a propor — começou ela no tom sempre suave que era o seu — que normalmente não vos ocorreria, mas que está incomparavelmente mais bem preparado para este trabalho, por temperamento, treino e experiência, do que qualquer dos que foram até agora apresentados. Para administrador civil desta nave proponho Slayton Ford.

   O assombro reduziu-os ao silêncio, depois todos tentaram falar ao mesmo tempo.

   — Eve perdeu a cabeça? Ford ficou na Terra!

   — Não, não, não ficou. Eu vi-o: aqui... na nave.

   — Mas está fora de questão!

   — Ele? As Famílias nunca o aceitariam!

   — Mesmo que o aceitassem, não é um de nós.

   Eve esperou pacientemente até se calarem.

   — Sei que a minha proposta parece ridícula e reconheço as dificuldades. Mas considerem as vantagens. Todos conhecemos Slayton Ford de reputação e por actuação. Vocês sabem, todos os membros das Famílias sabem, que Ford é um génio no seu campo. Vai ser terrivelmente difícil elaborar planos para uma vida em comum, numa nave tão excessivamente superlotada como esta; nem o maior talento que consigamos arranjar estará à altura.

   As palavras dela impressionaram-nos porque Ford era uma coisa rara na história, um estadista cujo valor era quase universalmente reconhecido em vida. Os historiadores contemporâneos atribuíam-lhe os louros de ter salvo a Federação Ocidental em, pelo menos, duas das suas mais graves crises de desenvolvimento; fora a falta de sorte e não um fracasso pessoal que lhe destruíra a carreira numa crise, insolúvel pelos meios normais.

   — Eve — disse Zaccur Barstow —, concordo com a tua opinião de Ford, e eu próprio gostaria de o ter como executivo. Mas e os outros todos? Para as Famílias... para todos, à excepção de nós aqui presentes... o Sr. Administrador Ford simboliza a perseguição que sofreram. Penso que isso faz dele um candidato impossível.

   Eve mostrou-se gentilmente teimosa.

   — Não me parece. Já chegámos à conclusão de que teremos de preparar uma campanha para explicar uma quantidade de factos embaraçosos acerca dos últimos dias. Por que é que não a fazemos de uma maneira total e não os convencemos de que Ford é um mártir que se sacrificou para os salvar? Ele é um mártir, sabem?

   — Hum... sim, é. Não se sacrificou primordialmente por nós, mas para mim não há dúvida de que foi o seu sacrifício pessoal que nos salvou. Mas se conseguimos ou não convencer os outros, convencê-los o bastante para o aceitarem e receberem ordens dele... quando ele é para eles agora uma espécie de demónio pessoal... bem, francamente não sei. Penso que precisamos do conselho de um perito. Que achas, Ralph? Pode ser feito?

   Ralph Schultz hesitou.

   — A verdade da proposição tem pouco ou nada a ver com a psicodinâmica. A ideia de que “a verdade prevalecerá” não passa de um desejo piedoso; a história não o prova. O facto de Ford ser na realidade um mártir a quem devemos gratidão é irrelevante para a questão puramente técnica que me puseram. — Parou para pensar. — Mas a proposição tem per se certos aspectos sentimentalmente dramáticos que se prestam a manipulação de propaganda, mesmo perante a forte contraproposição correntemente aceite. Sim... sim, penso que pode ser vendável.

   — De quanto tempo precisarias para o fazer?

   — Hum... o espaço social envolvido é simultaneamente “apertado” e “quente”, no calão que nós usamos; era capaz de conseguir um alto factor k positivo na reacção em cadeia... se chegar a funcionar. Mas é um campo por pesquisar e não sei quais os boatos que circulam pela nave. Se decidirem ir por diante, quero preparar alguns boatos, boatos esses que restaurem a reputação de Ford antes de esta sessão terminar; então, daqui a doze horas, posso lançar outro de que Ford está realmente a bordo... porque tencionava, desde o primeiro momento, juntar a sua à nossa sorte.

   — Hum, não acredito muito que ele tivesse essa intenção, Ralph.

   — Tens a certeza, Zaccur?

   — Não, mas... Bem...

   — Estás a ver? A verdade acerca das intenções originais dele é um segredo entre ele e o deus dele. Tu não sabes, e eu também não. Mas a dinâmica da proposição é um assunto diferente. Zaccur, na altura em que o boato te chegue pela terceira ou quarta vez, mesmo tu começarás a interrogar-te. — O psicometrista fez uma pausa, com os olhos em alvo, enquanto consultava uma intuição, apurada por quase um século de estudo matemático do comportamento humano. — Sim, vai resultar. Se todos vocês quiserem, poderão fazer a comunicação pública dentro de vinte e quatro horas.

   — Eu apoio a proposta! — gritou alguém.

   Alguns minutos mais tarde, Barstow mandou Lazarus ir buscar Ford. Lazarus não lhe explicou a razão por que a presença dele se tornava necessária; Ford entrou na sala como um homem comparece a um julgamento, tendo a amarga certeza de que o veredicto será contra si. Os seus modos mostravam força de ânimo, mas não esperança. Os olhos estavam infelizes.

   Lazarus já estudara aqueles olhos nas longas horas em que estiveram juntos, fechados na sala de controlo. Exibiam uma expressão que Lazarus vira muitas vezes no decurso da sua longa vida. O condenado que perdera o último recurso, o suicida inteiramente decidido, pequenas coisas peludas, exaustas e derrotadas na luta contra o inquebrantável aço das armadilhas — os olhos de cada um deles exibira uma mesma expressão, nascida da convicção sem esperança de que o tempo se lhes acabara.

   Ela estava nos olhos de Ford.

   Lazarus vira-a crescer e ficara intrigado. Era certo que se encontravam todos numa situação perigosa, mas Ford não mais que os restantes. Além disso, a consciência do perigo traz consigo uma expressão viva; por que é que os olhos de Ford exibiam um sinal de morte?

   Lazarus chegou finalmente à conclusão de que só podia ser porque Ford chegara ao estado de espírito sem saída em que o suicídio se torna necessário. Mas porquê? Lazarus revolveu o problema durante as longas horas de vigia na sala de controlo e, para sua própria satisfação, reconstituiu uma lógica. Lá na Terra, Ford fora importante entre a sua própria gente, os de vida curta. A posição de superioridade tornara-o quase imune ao sentimento de derrotada inferioridade que os de longa vida despertavam nos homens normais. Mas agora ele era o único efémero numa raça de Matusaléns.

   Ford não tinha nem a experiência dos mais velhos, nem as expectativas dos jovens; sentia-se inferior a ambos, um marginal sem esperança. Correctamente ou não, sentia que era um pensionista inútil, um impotente objecto de caridade.

   Para uma pessoa com os antecedentes de Ford, uma vida ocupada e útil, a situação era intolerável. Eram o seu próprio orgulho e força de carácter que o estavam a levar ao suicídio.

   Quando entrou na sala de conferências, o olhar de Ford procurou Zaccur Barstow.

   — O senhor mandou-me chamar?

   — Sim, Sr. Administrador. — Barstow explicou resumidamente a situação e a responsabilidade que queriam que ele assumisse. — Nada o obriga — concluiu ele —, mas precisamos dos seus serviços se estiver disposto a servir. Está?

   O coração de Lazarus ficou leve à medida que observava a expressão de Ford transformar-se em espanto.

   — Está mesmo a falar a sério — perguntou Ford lentamente. — Não está a brincar comigo?

   — Certamente que estou a falar a sério!

   Ford não respondeu logo, e quando o fez, a resposta pareceu irrelevante.

   — Posso sentar-me?

   Arranjaram-lhe um lugar; instalou-se pesadamente na cadeira e cobriu o rosto com as mãos. Ninguém falou. Pouco tempo depois, levantou a cabeça e disse em voz firme:

   — Se é essa a vossa vontade, farei o meu melhor para realizar os vossos desejos.

   Tal como de um administrador civil, a nave precisava de um comandante. Lazarus tinha sido, até então, o comandante de um modo muito prático, à pirata, mas opôs-se à proposta de Barstow de lhe atribuírem o título formal.

   — Não, não! Eu não. Eu posso muito bem passar a viagem a jogar às damas. Libby é o homem que vocês querem. Sério, consciencioso, já foi oficial espacial... exactamente a pessoa indicada para o lugar.

   Libby corou quando os olhos se viraram para ele.

   — Agora, francamente — protestou ele —, embora seja verdade que já tive de comandar naves no desempenho dos meus deveres, isso nunca foi para mim. Sou um oficial subordinado por temperamento. Não me sinto como oficial de comando.

   — Não vejo como possas escapar — persistiu Lazarus. — Inventaste o aparelho para andar depressa e és o único que compreende como ele funciona. Foste tu que conseguiste o emprego, rapaz.

   — Mas isso não é uma consequência lógica — argumentou Libby. — Não me importo nada de ser astrogador, porque isso está de acordo com as minhas capacidades. Mas realmente prefiro servir sob as ordens de um oficial superior.

   Lazarus sentiu-se então presunçosamente contente ao ver como Slayton Ford se interpôs de imediato e assumiu a autoridade; o homem doente desaparecera, ali estava de novo o executivo.

   — Não é um assunto de preferência pessoal, comandante Libby; cada um de nós deve fazer aquilo que pode fazer. Concordei em dirigir a organização social e civil; isso está de acordo com a minha preparação. Mas não posso comandar a nave enquanto nave; não tenho preparação para isso. O senhor tem. O senhor deve fazê-lo.

   Libby corou ainda mais e gaguejou.

   — Fá-lo-ia se fosse o único. Mas há centenas de espaçonautas entre as Famílias e dúzias deles terão certamente mais experiência e talento para comandar do que eu. Se procurarem, encontrarão o homem certo.

   Ford disse:

   — Que acha, Lazarus?

   — Hum. Andy tem uma certa razão. Um comandante é a espinha dorsal da nave... ou não é, consoante o caso. Se Libby não se sente atraído pelo comando, talvez fosse melhor procurarmos noutro lado.

   Justin Foote tinha consigo uma microlista, mas não havia nenhum seleccionador à mão para a poderem utilizar. No entanto, as memórias dos doze ou mais presentes apresentaram muitos candidatos. Por fim acordaram no comandante Rufus King, o Impiedoso.

   Libby estava a explicar ao novo oficial superior as consequências da sua propulsão por pressão-luz.

   — As localizações dos destinos atingíveis estão contidas num feixe de parabolóides com os vértices tangentes à presente rota. Isto pressupõe que a aceleração que se obtém da tracção normal da nave será sempre aplicada de modo que a grandeza do presente vector, mesmo abaixo da velocidade da luz, seja mantida constante. Exige também que a nave seja processada lentamente durante toda a manobra de aceleração. Mas não é uma grande exigência devido à enorme diferença de grandeza entre o presente vector e os vectores de manobra que adquiriu. Podemos concebê-lo grosseiramente como acelerar nos ângulos certos da nossa rota.

   — Sim, sim, isso eu entendo — interrompeu o comandante King —, mas por que é que presume que os vectores resultantes devem ser iguais ao vector presente?

   — O quê? Não é necessário que o sejam, se o comandante decide em contrário — respondeu Libby, parecendo confuso —, mas aplicar uma componente que reduzisse o vector resultante a menos da presente velocidade faria apenas que nos atrasássemos um pouco sem aumentar com isso o leque presente de localizações de destinos possíveis. O efeito limitar-se-ia a aumentar o nosso tempo de voo, em gerações, de séculos mesmo, se a resultante...

   — Certo, certo! Tenho bases de balística, meu caro senhor. Mas por que é que rejeita a outra alternativa? Por que não aumentar a nossa velocidade? Por que é que não posso acelerar directamente na presente rota, se me apetecer?

   Libby pareceu preocupado.

   — O comandante pode, se são essas as suas ordens. Mas seria uma tentativa de exceder a velocidade da luz. Pressupõe-se que isso é impossível...

   — Era aí exactamente que eu queria chegar. “Pressupõe-se.” Sempre me perguntei se essa pressuposição seria justificada. Agora parece ser uma boa altura para o descobrir.

   Libby hesitou; o sentido do dever em luta contra a curiosidade científica.

   — Se isto fosse uma nave de pesquisa, comandante, eu estaria ansioso por experimentar. Não consigo visualizar as condições se passássemos a velocidade da luz, mas parece-me que ficaríamos inteiramente desligados do espectro tanto quanto diz respeito a outros corpos. Como poderíamos ver para astrogar? — Era mais do que teoria o que preocupava Libby; já estavam a “ver” só por visão electrónica. Para a própria vista humana o hemisfério que lhes ficara para trás era uma negrura imensa; as mais pequenas radiações tinham sido dopplerizadas em comprimentos de onda demasiado grandes para os olhos. Em frente, as estrelas ainda podiam ser vistas, mas a sua “luz” visível era composta por ondas hertzianas, aglomeradas pela incompreensível velocidade da nave. Negras “estrelas de rádio” brilhavam em primeira grandeza; estrelas pobres em rádio mergulhavam na obscuridade. As constelações familiares estavam tão modificadas que não permitiam um reconhecimento fácil. O facto de estarem a ver com a visão distorcida pelo efeito de Doppler era confirmado pela análise do espectro; as linhas de Fraunhofer não se tinham meramente deslocado para o fim do violeta, mas passado além, para fora de visão, e padrões anteriormente desconhecidos tinham-nas substituído.

   — Hum... — replicou King. — Estou a ver o que quer dizer. Mas certamente que gostaria de tentar, diabos me levem se não gostava; mas admito que está fora de questão, com passageiros a bordo’. Muito bem, prepare-me esboços de rotas para estrelas do tipo G, que estejam na estufa dessas suas localizações e não muito distantes. Digamos a dez anos-luz, nesta primeira pesquisa.

   — Sim, Sr. Comandante. Já está feito. A essa distância não posso apresentar nenhuma do tipo G.

   — Ah, não? Lugar isolado, não é? Então?

   — Temos Tau Ceti dentro das localizações, a onze anos-luz.

   — Uma G5, hem? Não chega.

   — Não, Sr. Comandante. Mas temos uma G2, tipo sol verdadeiro... catálogo ZD9817. Mas está a mais do dobro da distância.

   O comandante King mordeu o nó de um dedo.

   — Suponho que terei de falar com os anciãos. De que vantagem gozamos em tempo subjectivo?

   — Não sei, Sr. Comandante.

   — Hã? Então calcule-a! Ou dê-me os dados e calculo eu. Não pretendo ser o matemático que você é, mas qualquer cadete era capaz de resolver essa. As equações são bastante simples.

   — São sim, Sr. Comandante. Mas não tenho os dados para a substituição na equação tempo-contracção... porque não tenho maneira de medir agora a velocidade da nave. A deslocação violeta[3] não pode ser usada; não sabemos o que as linhas significam. Receio que tenhamos de esperar até termos conseguido uma base bastante maior.

   King suspirou.

   — Meu caro senhor, às vezes pergunto-me por que é que me meti nisto. Bem, está disposto a aventurar um palpite melhor? Muito tempo? Pouco tempo?

   — Hum... muito tempo, Sr. Comandante. Anos.

   — Ah, sim? Bem, já suei em naves piores. Anos, hem? Joga xadrez?

   — Joguei, Sr. Comandante. — Libby não referiu que desistira do jogo há muito tempo, por falta de um competidor à sua altura.

   — Parece que vamos ter muito tempo para jogar. Peão do rei para rei quatro.

   — Cavalo do rei para bispo três.

   — Um jogador não ortodoxo, hem? Bem, respondo-lhe depois. Suponho que era melhor tentar impingir-lhes a G2, embora leve mais tempo... e suponho que era melhor avisar o Ford para começar com uns concursos e coisas assim. Não podemos deixar que eles apanhem febre de caixão.

   — Sim, Sr. Comandante. Eu referi o tempo de desaceleração? Deve ser um pouco menos de um ano subjectivo da Terra, a um g negativo, para nos fazer abrandar para velocidades estelares.

   — Hem? Vamos desacelerar da mesma maneira que acelerámos... com a sua propulsão de pressão-luz.

   Libby abanou a cabeça.

   — Lamento, Sr. Comandante. A desvantagem da propulsão de pressão-luz é que não distingue a rota anterior e a velocidade; se perder a inércia na vizinhança próxima de uma estrela, a pressão da luz atira-o para longe dela como uma rolha numa corrente de água. A velocidade anterior é cancelada quando cancela a inércia.

   — Bem — concedeu King —, partamos do princípio de que vamos seguir o seu esquema. Ainda não posso discutir consigo; ainda há algumas coisas acerca desse seu aparelho que não compreendo.

— Há muitas coisas acerca dele que eu também não compreendo — respondeu Libby com gravidade.

   A nave passara pela órbita da Terra menos de dez minutos depois de Libby ter ligado a sua direcção espacial, Lazarus e ele tinham discutido os aspectos físicos esotéricos da questão durante todo o caminho para a órbita de Marte — menos de um quarto de hora. Há muito que o carreiro de Júpiter ficara para trás, quando Barstow convocara a conferência de organização. Mas gastou uma hora a encontrá-los a todos na nave superlotada; na altura em que iniciou a ordem de trabalhos, estavam a biliões de milhas, para além da órbita de Saturno — tempo decorrido desde o “tiro” que iniciara a corrida, menos de hora e meia.

   Mas as discussões prosseguiram para lá de Saturno. Úrano encontrou-os ainda a discutir. No entanto, acordaram no nome de Ford, e ele aceitara, antes de a nave estar tão longe do Sol quanto Neptuno. King fora nomeado comandante, inspeccionara o seu novo comando com Lazarus por guia e já estava em conferência com o astrogador quando a nave passou a órbita de Plutão, perto de quatro biliões de milhas pelo espaço dentro, mas ainda menos de seis horas depois de a luz do Sol os ter cuspido para longe.

   Mesmo então não estavam ainda fora do sistema solar, mas entre eles e as estrelas não havia nada a não ser as residências de Inverno dos cometas do Sol e os esconderijos de hipotéticos planetas trans-plutonianos — espaço onde o Sol tem opções, mas onde dificilmente se poderá dizer que detém a propriedade total. Mas mesmo as estrelas mais próximas estavam ainda a anos-luz de distância. A Novas Fronteiras dirigia-se para elas numa passada que lhe envolvia os calcanhares em luz — tempo frio, pista rápida.

   Para longe, para longe, e cada vez mais para longe... para longe, para as solitárias profundidades onde as linhas do mundo são quase direitas, não distorcidas pela gravitação. Cada dia, cada mês... cada ano... aquele voo temerário levava-os cada vez para mais longe de toda a humanidade.

 

   A nave precipitava-se em frente, só no deserto da noite, cada ano-luz tão vazio como o anterior. Dentro dela as Famílias construíram um estilo de vida.

   A Novas Fronteiras era aproximadamente cilíndrica. Quando não vogava sob aceleração, girava no seu eixo para dar pseudopeso aos passageiros perto da pele exterior da nave; os compartimentos exteriores, ou “inferiores”, eram a zona habitada, enquanto os interiores, ou “superiores”, eram armazéns, e assim por diante. Entre os compartimentos havia lojas, quintas hidropónicas e similares. Ao longo do eixo, da proa à popa, ficavam a sala de controlo, o conversor, a tracção principal.

   É de reconhecer que a planta era semelhante às das maiores naves interplanetárias de voo livre hoje em uso, mas é necessário ter em mente o seu enorme tamanho. Era uma cidade, com espaço suficiente para uma colónia de vinte mil, o que teria permitido o complemento planeado de dez mil para duplicar o número durante a longa viagem à Próxima Centauro.

   Assim, grande como era, os cem mil ou mais das Famílias acharam-se quintuplamente superlotados.

   Aguentaram-no o tempo suficiente para montar o sono-frio. Por meio da conversão de algum espaço de recreio, nos pisos inferiores, em armazém, conseguiu-se inventar espaço suficiente para esse fim. Os adormecidos requeriam cerca de um por cento do espaço necessário aos humanos activos, a trabalhar; com o tempo, a nave tornou-se suficientemente espaçosa para os ainda acordados. Os voluntários para o sono-frio não foram numerosos a princípio — aquela gente tinha mais consciência da morte do que é vulgar, por causa da sua herança única; o sono-frio parecia-se demasiado com o Último Sono. Mas o grande desconforto da superlotação extrema, aliado à igualmente extrema monotonia da infindável viagem, fê-los mudar de ideias com a rapidez suficiente para assegurar à pequena morte um fornecimento estável, tão depressa quanto podiam ser acomodados.

   Os que ficavam acordados continuavam a aborrecer-se simplesmente para que o trabalho fosse feito — a limpeza e arrumação da nave, o cuidado das quintas hidropónicas e da maquinaria auxiliar da nave e, muito especialmente, o tratamento dos próprios adormecidos. Os biomecânicos tinham elaborado complexas fórmulas empíricas, que descreviam a deterioração do corpo, e as medidas que deviam ser tomadas para a evitar sob condições várias de sujeição à aceleração, temperatura ambiente, drogas usadas e outros factores tais como idade metabólica, massa do corpo, sexo e assim por diante. Pelo uso dos compartimentos superiores, de baixo peso, a deterioração causada pela aceleração (quer dizer, o simples peso que os tecidos do corpo fazem sobre si mesmos, o desgaste que conduz ao pé-chato ou a escaras pôde ser mantida num mínimo. Mas todo o cuidado dos adormecidos tinha de ser feito à mão — virá-los, massajá-los, procurar açúcar no sangue, verificar a acção de câmara lenta do coração, todos os testes e serviços necessários a assegurar que o metabolismo extremamente reduzido não recai na morte. À parte uma dúzia de mesas na enfermaria da nave, esta não tinha lugar para passageiros em sono-frio; não havia maquinaria automática. Todo este fastidioso tratamento a dezenas de milhares de adormecidos tinha de ser feito à mão.

   Eleanor Johnson encontrou, por acaso, uma amiga, Nancy Weatheral, no Refeitório 9-D — chamado “O Clube” pelos frequentadores habituais, outras coisas menos lisonjeiras pelos que o evitavam. A maioria dos frequentadores era jovem e barulhenta. Lazarus era o único ancião que ali comia muitas vezes. Não o incomodava o barulho, até gostava.

   Eleanor caiu sobre a amiga e beijou-lhe a nuca.

   — Nancy! Então estás outra vez acordada! Meu Deus, estou contente por te ver!

   Nancy libertou-se.

   — Olá, rapariga. Não me entornes o café.

   — Bom! Não estás contente por me ver?

   — Claro que estou. Mas esqueces-te que enquanto para ti foi um ano, para mim foi só ontem. E ainda estou com sono.

   — Há quanto tempo estás acordada, Nancy?

   — Há umas horas. Como está o teu miúdo?

   — Oh, está óptimo! — O rosto de Eleanor Johnson iluminou-se. — Não o conheces... cresceu tanto neste último ano. Quase me chega ao ombro e parece-se cada dia mais com o pai.

   Nancy mudou de assunto. Os amigos de Eleanor levavam a peito manter o falecido marido de Eleanor fora das conversas.

   — Que é que fizeste enquanto eu estive a passar pelas brasas? Ainda a ensinar na primária?

   — Sim. Ou, antes, “não”. Continuo com o grupo etário em que está o meu Hubert. Ele agora está no primeiro ciclo da secundária.

   — Por que é que não dormes uns quantos meses e saltas por cima dessa maçada, Eleanor? Ficas uma velha se continuas assim.

— Não — recusou Eleanor —, não até o Hubert ter idade suficiente para não precisar de mim.

— Não sejas sentimental. Metade das voluntárias são mulheres com filhos pequenos. E não as censuro nem um bocadinho. Olha para mim... do meu ponto de vista a viagem não durou até agora mais do que sete meses. Era capaz de fazer o resto de pernas para o ar.

Eleanor tinha uma expressão teimosa.

— Não, obrigada. Pode estar muito bem para ti, mas eu estou muito bem assim.

Lazarus estava sentado no mesmo balcão, a infligir danos drásticos a um substituto de bife de lombo de vaca.

— Ela tem receio de perder alguma coisa — explicou ele. — Não a censuro. Eu também tenho.

Nancy mudou de política.

— Então tem outro filho, Eleanor. Isso aliviar-te-ia das obrigações rotineiras.

— São precisos dois para isso — salientou Eleanor.

— Isso não é nada difícil. Tens aqui o Lazarus, por exemplo. Ele’ daria um óptimo pai.

Eleanor agitou-se. Lazarus corou sob o bronzeado permanente.

— Na realidade — afirmou Eleanor calmamente —, já me declarei, mas ele recusou-me.

Nancy engasgou-se com o café e olhou rapidamente de Lazarus para Eleanor.

— Desculpa. Não sabia.

— Não tem mal — respondeu Eleanor. — É simplesmente porque eu sou uma das netas dele, quatro vezes afastada.

— Mas... — Nancy travou um combate vão contra o costume da privacidade. — Então, ó céus, isso está bem dentro dos limites da consanguinidade permissível. Qual é o problema? Ou devia estar calada?

— Devias — concordou Eleanor.

Lazarus agitou-se desconfortavelmente.

— Sei que sou antiquado — reconheceu ele —, mas bebi algumas das minhas ideias há muito tempo. Genética ou não genética, não me sentiria bem casando-me com uma das minhas próprias netas.

Nancy parecia espantada.

— E verdade que é antiquado! — acrescentou. — Ou talvez seja apenas tímido. Estou tentada a declarar-me e a descobrir por mim.

Lazarus olhou-a ferozmente.

— Continue e vai ver a surpresa que tem!

Nancy olhou-o de cima a baixo calmamente.

— Hum... — reflectiu ela.

Lazarus tentou sustentar-lhe o olhar, por fim baixou os olhos.

— Sou obrigado a pedir às senhoras que me desculpem — disse nervosamente. — Trabalho a fazer.

   Eleanor pôs-lhe suavemente a mão no braço.

   — Não vá, Lazarus. Nancy é uma gata e não o pode evitar. Conte-lhe dos planos para a aterragem.

   — Que é isso? Vamos aterrar? Quando? Onde?

   Lazarus, desejoso de ser apaziguado, contou-lhe. O tipo C2, ou estrela do tipo do Sol, na direcção da qual eles desviaram a rota anos antes, estava agora a menos de um ano-luz — pouco mais de sete meses-luz — e era agora possível inferir por métodos parainterferométricos que a estrela ZD9817, ou simplesmente a “nossa” estrela, tinha planetas de alguma espécie.

Dentro de um mês, quando a estrela estivesse a meio ano-luz, a desaceleração começaria. Deixar-se-ia de imprimir rotação à nave e durante um ano ela seria impulsionada para trás a uma gravidade, terminando perto da estrela a uma velocidade mais interplanetária do que estelar, e procurar-se-ia um planeta que se prestasse a sustentar a vida humana. A busca seria rápida e fácil, já que os únicos planetas em que eles estavam interessados brilhariam pois intensamente, como Vénus visto da Terra; não estavam interessados em planetas frios e esquivos, como Neptuno ou Plutão, ocultos em sombras distantes, nem em cinzas ressequidas como Mercúrio, escondido entre as flamejantes saias da estrela-mãe.

   Se não achassem nenhum planeta semelhante à Terra, então deviam continuar a queda até bem perto do estranho sol e serem novamente pontapeados pela pressão da luz, para retomar a caça a um lar algures — com a diferença de que, desta vez, sem a ameaça da polícia, podiam escolher a rota com cuidado.

   Lazarus explicou que a Novas Fronteiras não poderia aterrar em nenhum dos casos; era grande de mais para o fazer, o seu peso destruí-la-ia.

   Por outro lado, se encontrassem um planeta, ela seria atirada para uma órbita estacionária e seriam enviados grupos expedicionários em naves.

   Tão cedo quanto o orgulho permitiu, Lazarus deixou as duas jovens mulheres e foi para o laboratório, onde as Famílias prosseguiam as pesquisas sobre metabolismo e gerontologia. Esperava encontrar ali Mary Sperling; a questão com Nancy Weatheral fizera-lhe sentir a necessidade de companhia. Se alguma vez voltasse a casar, pensou para consigo, Mary era mais o seu estilo. Não que pensasse seriamente no assunto; sentia que a ligação entre Mary e ele teria um ridículo sabor a alfazema e rendas velhas.

   Mary Sperling, ao ver-se engaiolada na nave e não querendo aceitar a simbólica morte do sono-frio, canalizara o seu medo da morte para uma via construtiva, oferecendo-se como assistente de laboratório na continuada pesquisa sobre longevidade. Não era uma bióloga habilitada, mas tinha dedos hábeis e uma mente ágil; os pacientes anos da viagem tornaram-na uma valiosa assistente para o Dr. Gordon Hardy, o director da investigação.

   Lazarus encontrou-a a assistir os tecidos imortais de coração de galinha, conhecidos entre o pessoal do laboratório como “Sra Awkins”. A Sra. Awkins era mais velha do que qualquer dos membros das Famílias, ã excepção, possivelmente, do próprio Lazarus; era um pedaço, em crescimento, do tecido original obtido pelas Famílias do Instituto Rockfeller, no século xx, e mesmo então ‘já estava viva desde o princípio do século. O Sr. Hardy e os seus predecessores mantinham aquele bocado vivo há mais de dois séculos, por meio das técnicas de Carrel-Lindbergh-0’Shaug — e a Sra. Awkins continuava florescente.

   Gordon Hardy insistira em levar o tecido e a aparelhagem que o assistia com ele para a reserva quando fora preso; fora igualmente teimoso e carregara com o tecido vivo aquando da fuga na Chili. Agora os vinte e tal quilos da Sra. Awkins continuavam a viver e a desenvolver-se na Novas Fronteiras — cega, surda e sem cérebro, mas ainda viva.

   Mary Sperling estava a reduzir-lhe o tamanho.

   — Olá, Lazarus — cumprimentou ela. — Não te aproximes. Tenho o tanque aberto.

   Ele ficou a vê-la cortar o tecido em excesso.

   — Mary — brincou ele —, que é que mantém essa idiota viva?

   — Puseste a questão ao contrário — respondeu ela, sem levantar os olhos —; a forma correcta seria: por que é que ela havia de morrer? Por que é que não pode continuar para sempre?

   — Quem me dera que ela morresse! — proferiu, por detrás deles, a voz do Dr. Hardy. — Então poderíamos observar e descobrii porquê.

   — Pela Sra. Awkins nunca o descobrirá, patrão — respondeu Mary, com os olhos e as mãos ainda ocupados. — A chave do segredo está nas gónadas... e ela não as tem.

   — Hum! Que é que sabe disso?

   — Intuição feminina. Que é que o senhor sabe disso?

   — Nada, absolutamente nada!... o que me põe à frente de si e da sua intuição.

   — Talvez. Pelo menos — acrescentou Mary maliciosamente —, conheci-o antes de lhe terem invadido a casa.

   — Um típico argumento feminino. Mary, aquele pedaço de músculo cacarejou e pôs ovos antes de qualquer de nós ter nascido, no entanto, não sabe coisa nenhuma. — Lançou um olhar carrancudo ao objecto referido. — Lazarus, eu trocava-a alegremente por um par de carpas, macho e fêmea.

   — Porquê carpas? — perguntou Lazarus.

   — Porque as carpas parece que não morrem. São mortas, ou comidas, ou sucumbem à fome ou a uma infecção, mas, tanto quanto sabemos, não morrem.

   — Porquê?

   — Era o que eu estava a tentar descobrir quando correram connosco para este maldito safari. Têm uma flora intestinal invulgar e pode estar relacionado com isso. Mas penso que tem a ver com o facto de nunca pararem de crescer.

   Mary disse algo inaudível. Hardy disse:

   — Que é que está a murmurar? Outra intuição?

   — Eu disse: “As amebas não morrem.” Foi o senhor que disse que qualquer ameba hoje viva vive há, oh, cinquenta milhões de anos, ou uma coisa assim. Contudo, não crescem indefinidamente, e certamente que não têm flora intestinal.

   — Não têm estômago — disse Lazarus e pestanejou.

— Que desgraça de trocadilho, Lazarus. Mas o que eu disse é verdade. Elas não morrem. Limitam-se a geminar e a continuar a viver.

   — Com ou sem vísceras — disse Hardy impacientemente —, pode haver um paralelo estrutural. Mas sinto-me frustrado com a falta de cobaias. O que me faz recordar: Lazarus, ainda bem que apareceu. Quero que me faça um favor.

   — Fale. Pode ser que eu seja simpático.

   — Você é um caso interessante, sabe? Não seguiu o seu padrão genético; antecipou-se-lhe. Não quero que o seu corpo vá para o conversor; quero examiná-lo.

   Lazarus rosnou:

   — Por mim tudo bem, mano. Mas é melhor dizer ao seu sucessor o que quer procurar... pode não viver o suficiente. E aposto consigo o que quiser em como ninguém o descobrirá por remexer no meu cadáver!

   O planeta que eles tinham esperança de encontrar estava lá quando o procuraram, verde, viçoso e jovem, e parecendo-se tanto com a Terra quanto um planeta podia parecer. Não só se assemelhava à Terra, como o resto do sistema duplicava grosseiramente o padrão do sistema solar — pequenos planetas terrestres perto desse sol, grandes planetas jupiterianos mais longe. Os cosmólogos nunca foram capazes de explicar o sistema solar; oscilavam entre as teorias da origem, que não conseguiram aguentar-se, e “sólidas provas” físico? -matemáticas, de que, em primeiro lugar, um tal sistema nunca poderia ter sido originado. Contudo, aqui estava outro, suficientemente semelhante, para sugerir que aqueles paradoxos não eram únicos, e podiam até ser comuns.

   Mas, ainda mais assombroso e mesmo mais estimulante, e certamente mais perturbador, era outro facto revelado por observação telescópica quando se aproximaram do planeta. Nele havia vida... vida inteligente... vida civilizada.

   Podiam-se ver as cidades. As obras de engenharia, estranhas na forma e nos objectivos, eram suficientemente grandes para serem vistas do espaço, tal como as nossas o podem ser também.

   No entanto, embora isso pudesse significar que eles deviam prosseguir a penosa hégira, a raça dominante não parecia ter ocupado todo o espaço habitável vago. Poderia haver lugar para a pequena colónia naqueles amplos continentes. Se uma colónia fosse bem-vinda...

   — Para dizer a verdade — inquietava-se o comandante King —, não esperava nada disto. Aborígenes primitivos, talvez, e certamente que poderíamos contar com animais perigosos, mas suponho que inconscientemente presumi que o. Homem era a única raça realmente civilizada. Vamos ter de ser muito cautelosos.

   King formou um grupo de batedores chefiado por Lazarus; adquirira confiança no senso prático de Lazarus e no seu desejo de sobreviver. King queria chefiar pessoalmente o grupo, mas a sua noção de dever como comandante da nave forçou-o a renunciar. Mas Slayton Ford podia ir; Lazarus escolheu-o e a Ralph Schultz como lugares-tenentes. O resto do grupo era constituído por especialistas — bioquímicos, geólogos, ecologistas, estereógrafos, diversos tipos de psicólogos e sociólogos para estudar os nativos, inclusive uma autoridade na teoria estrutural de comunicação de McKelvy, cuja tarefa seria a de descobrir algum modo de falar com os nativos.

   King recusou-se terminantemente a armá-los.

   — Podemos bem dispensar o vosso grupo — disse ele a Lazarus, sem rodeios —, porque não podemos arriscar-nos a ofendê-los com qualquer tipo de luta, seja qual for o motivo, mesmo que seja em autodefesa. Vocês são embaixadores, não soldados. Não o esqueçam.

   Lazarus regressou ao camarote, voltou e entregou gravemente a King uma pistola de explosivos. Não achou necessário mencionar a outra, ainda amarrada à perna, debaixo do kilt.

   Quando King lhes ia dizer para embarcarem e cumprirem as ordens, foram interrompidos por Janice Smith, enfermeira-chefe dos deficientes congénitos das Famílias. Abriu caminho à força e exigiu que o comandante lhe desse atenção.

   Só uma enfermeira o podia ter conseguido naquele momento; tinha uma teimosia profissional que igualava a dele e mais meio século de prática de obstinação do que ele. Ele olhou-a iradamente.

   — Que significa esta interrupção?

   — Comandante, tenho de falar consigo a respeito de uma das minhas crianças.

   — Sra. Enfermeira, decididamente está fora da ordem de trabalhos. Saia. Procure-me no meu gabinete... depois de ter falado com o médico-chefe.

   Ela pôs as mãos nas ancas.

   — Vai receber-me agora. Este é o grupo que vai aterrar, não é? Há uma coisa que eles têm de saber antes de partirem.

   King ia começar a falar, mas mudou de ideias, disse simplesmente:

   — Seja breve.

   Ela foi. Hans Weatheral, um jovem de uns dezanove anos e ainda adolescente de aspecto, devido a um timo hiperactivo, era um dos que estavam a cargo dela. Tinha uma mentalidade inferior, mas não idiota, uma apatia crónica, e uma deficiência neuromuscular que o tornava demasiado fraco para se alimentar sozinho — e uma aguda sensibilidade à telepatia.

   Dissera a Janice que sabia tudo do planeta em redor do qual estavam em órbita. Os seus amigos do planeta tinham-lhe contado... e estavam à espera dele.

   A partida da nave que aterraria foi adiada enquanto King e Lazarus investigavam. Hans foi terminante quanto à informação que dera e o pouco que eles podiam verificar estava certo. Mas ele não ajudou muito quanto aos “amigos”.

   — Oh, é gente — disse, encolhendo os ombros com a estupidez ideies. — Como lá na Terra. Gente boa. Vão trabalhar, vão à escola, vão u igreja. Têm filhos e divertem-se. Vão gostar deles.

   Mas foi muito claro quanto a um ponto: os amigos estavam à espera dele; por isso devia ir também.

   Contra sua vontade e opinião, Lazarus viu o grupo ser acrescido de Hans Weatheral, Janice Smith e uma maca para Hans.

   Quando o grupo regressou, três dias depois, Lazarus apresentou um longo relatório privado a King, enquanto os relatórios dos especialistas estavam a ser analisados e reunidos.

   — É espantosamente parecido com a Terra, comandante, o bastante para se ficar com saudades. Mas também é diferente, o suficiente para se ficar nervoso... como olhar para a nossa cara no espelho e ver que se tem três olhos e não se tem nariz. Perturbante.

   — Mas, e os nativos?

   — Deixe-me contar. Demos uma volta rápida pelo lado do dia, para uma olhadela à vista desarmada. Nada que não tenhamos visto pelos ‘scópios. Depois aterrei onde o Hans me disse, num espaço aberto perto do centro de uma das cidades. Eu não teria escolhido aquele lugar; teria preferido aterrar na mata e fazer um reconhecimento. Mas disse-me para seguir os palpites do Hans.

   — Era livre de seguir a sua opinião — lembrou-lhe King.

— Sim, sim. De qualquer maneira foi assim. Mal os técs acabaram de tirar amostras do ar e após verificarem que não haveria perigo, juntou-se uma multidão considerável à nossa volta. Eles... bem, já viu as estereografias.

   — Sim. Incrivelmente andróides.

   — Andróides uma ova! São homens. Não humanos, mas homens na mesma. — Lazarus parecia baralhado. — Não me agrada.

   King não discutiu. As imagens mostravam bípedes, de cerca de dois metros de altura, bilateralmente simétricos, possuidores de uma estrutura esquelética interna, cabeças salientes, olhos de lente-e-câmara. Aqueles olhos eram o traço mais humano e atraente; eram grandes, límpidos e trágicos, como os de um são-bernardo.

   Era bom que a atenção se concentrasse nos olhos; os outros traços não eram tão toleráveis. King desviou o olhar das bocas moles e desdentadas, dos lábios superiores bifurcados. Acho que talvez levasse muito, muito tempo, a aprender a gostar daquelas criaturas.

   — Continue — disse a Lazarus.

   — Abrimos a nave e eu saí sozinho, de mãos vazias e tentando parecer amigável e pacífico. Três deles avançaram... sofregamente, diria eu. Mas desinteressaram-se imediatamente de mim; pareciam esperar que outra pessoa saísse. Portanto dei ordens para trazerem o Hans.

   “Comandante, o senhor não acreditaria. Atiraram-se ao Hans e acariciaram-no como a um irmão perdido há muito. Não, isso não descreve bem. Mais como a um rei que regressasse a casa em triunfo. Foram delicados connosco, de uma maneira não cerimoniosa, mas derreteram-se com o Hans. — Lazarus hesitou. — Comandante? Acredita na reencarnação?

   — Não propriamente. Não tenho ideias assentes acerca disso. Li o relatório da Comissão Frawling, claro.

   — Nunca precisei de pensar no assunto. Mas de que outro modo se pode explicar a recepção que fizeram a Hans?

   — Eu não a explico. Continue com o relatório. Acha que nos vai ser possível estabelecer aqui uma colónia?

   — Oh — disse Lazarus —, eles não deixaram dúvidas quanto a esse ponto. Está a ver, Hans pode realmente falar com eles telepaticamente. Hans diz-nos que os deuses deles nos autorizaram a viver aqui e que os nativos já fizeram planos para nos receber.

   — Hã?

   — É isso mesmo. Querem-nos.

   — Bem! Isso é um alívio.

   — Sim?

   King estudou as feições carrancudas de Lazarus.

   — Apresentou um relatório favorável, sob todos os aspectos. Porquê essa expressão carregada?

   — Não sei. Preferia que achássemos um planeta só para nós. Comandante, tudo o que seja assim tão fácil traz qualquer coisa na manga.

 

   Os Jockaira (ou Zhacheira, como alguns preferem) ofereceram uma cidade inteira aos colonizadores.

   Uma tão surpreendente cooperação, adicionada à descoberta súbita por parte de quase todos os membros das Famílias Howard de que morriam de saudades da sensação de terra sobre os pés e de ar livre nos pulmões, acelerou grandemente a mudança da nave para terra. Cálculos anteriores previam que seria necessário pelo menos um ano terrestre para essa transição e que os adormecidos seriam acordados à medida que pudessem ser alojados no planeta. Mas, agora, o factor limitativo era a reduzida capacidade das naves pequenas para transferirem cem mil pessoas à medida que estas se erguiam.

   A cidade dos Jockaira não fora planificada para se adaptar às necessidades dos seres humanos. Os Jockaira não eram seres humanos, as suas exigências físicas eram um tanto diferentes e as necessidades culturais, tal como eram expressas pela engenharia, eram muitíssimo diferentes. Mas uma cidade, qualquer cidade, é uma máquina que concretiza certos objectivos práticos: abrigo, fornecimento de comida, sanidade, comunicação; a lógica interna destas exigências primárias, quando aplicadas por criaturas diversas a meios ambientes diversos, produzirá um ilimitado número de respostas. Mas, quando aplicada por qualquer raça de criaturas andróides, que respiram oxigénio, de sangue quente, a um meio ambiente específico, os resultados, embora estranhos, são necessariamente tais que os humanos terrenos os podem usar. Nalgumas coisas, a cidade dos Jockaira parecia tão desordenada como uma pintura pararrealista, mas os humanos já viveram em igloos, em cabanas de colmo, e mesmo na toca cibernautomatizada sob a Antárctida; estes humanos podiam mudar-se para a cidade dos Jockaira e fizeram-no — e, evidentemente, começaram de imediato a dar-lhe uma forma diferente, que se lhes adaptasse melhor.

   Não foi difícil, embora houvesse muito a fazer. Já havia edifícios de pé-abrigos com telhados, a caverna artificial básica de todas as exigências humanas de abrigo. Não interessava para que é que os Jockaira teriam usado uma tal estrutura; os humanos podiam usá-la para quase tudo; para dormir, para recreação, para comer, para armazenagem, para produção. Havia igualmente “cavernas” verdadeiras, pois os Jockaira cavavam mais do que nós. Mas os humanos transformam-se ocasionalmente e com facilidade em trogloditas, em Nova Iorque tão prontamente como na Antárctida.

   Havia água, fresca e potável, canalizada para beber e para lavagens limitadas. A maior lacuna era na canalização; a cidade não tinha uma rede geral de esgotos. Os Jocks não tomavam banho e as suas exigências sanitárias pessoais diferiam das nossas e eram atendidas de modo diferente. Um esforço enorme foi feito para improvisar instrumentos semelhantes aos sanitários de bordo e os adaptar, a fim de serem ligados aos dispositivos dos Jockaira. Reinava a necessidade do mínimo; os banhos permaneceriam um luxo racionado até que o fornecimento de água e os esgotos pudessem ser aumentados pelo menos dez vezes. Mas os banhos não são uma necessidade.

   Mas tais esforços de modificação eram pouco importantes comparados com o esmagador programa para montagem de uma quinta hidropónica, visto que a maioria dos adormecidos não poderia ser despertada até o fornecimento de comida estar assegurado. A multidão dos faz-se-já queria arrancar todos os pedaços de equipamento hidropónico da Novas Fronteiras de uma vez, enviá-lo para o planeta, montá-lo e toca a andar, enquanto dependiam das provisões armazenadas durante a mudança; uma minoria mais cautelosa queria transferir apenas uma plantação-piloto, continuando a produzir comida na nave; salientavam que insuspeitos fungos ou vírus do planeta estranho poderiam resultar em catástrofe... a morte pela fome.

   A minoria, vigorosamente chefiada por Ford e Barstow e apoiada pelo comandante King, prevaleceu; uma das quintas hidropónicas da nave foi drenada e paralisada. A maquinaria foi dividida em bocados suficientemente minúsculos para carregar as pequenas naves.

   Mas nem mesmo essa chegou ao planeta. Os produtos das quintas nativas acabaram por se revelar apropriados para comida dos humanos e os Jockaira pareciam quase ofegantemente ansiosos de os oferecer. Em compensação, foram feitos esforços para implantar culturas da Terra no solo nativo, de modo a criar um suplemento às comidas jockairanas de espécies a que os humanos estivessem habituados. Os Jockaira avançaram e quase que se apropriaram desse esforço; eram soberbos agricultores “naturais” (não tinham nenhuma necessidade de sintéticos no seu descongestionado planeta) e pareciam radiantes por tentar produzir tudo o que os seus convidados queriam.

   Ford transferiu o seu quartel-general civil para a cidade assim que foi possível assegurar um fornecimento de comida que desse para mais do que o grupo pioneiro, enquanto King continuou na nave. Os adormecidos eram acordados e enviados para baixo assim que as acomodações estavam prontas e os seus serviços eram necessários. Apesar da comida, abrigo e água potável já assegurados, muito faltava ainda fazer para garantir um mínimo de conforto e de decência. As duas culturas eram basicamente diferentes. Os Jockaira pareciam sempre ansiosos por ser infatigavelmente úteis, mas, muitas vezes, ficavam obviamente confusos com o que os humanos tentavam fazer. A cultura jockairana não parecia conter a ideia de privacidade; os edifícios da cidade não tinham divisórias, a não ser as de suporte — e essas eram poucas; tendiam a usar colunas ou postes. Não conseguiam compreender por que é que os humanos iriam quebrar aqueles encantadores espaços abertos com cubículos e corredores; não conseguiam pura e simplesmente entender para que é que um indivíduo quereria alguma vez estar só, fosse qual fosse o objectivo.

   Aparentemente (isto não é certo, visto que a comunicação abstracta com eles nunca atingiu um nível subtil), chegaram em pouco tempo à conclusão de que estar só continha um significado religioso para a gente da Terra. De qualquer modo, foram de novo prestáveis; forneceram-lhes finas chapas de material que podia ser moldado em divisórias — com as ferramentas deles e exclusivamente com as ferramentas deles. Aquele material frustrava os engenheiros humanos quase até ao colapso nervoso. Nenhum corrosivo conhecido da nossa tecnologia o afectava; mesmo as reacções que vergariam os duros plásticos de fluorina, usados no manuseamento dos compostos de urânio, não faziam efeito. Quebrou serras de diamante, não derreteu com o calor, não estalou com o frio. Não deixava passar a luz, o som e todas as radiações que eles podiam produzir com o equipamento que tinham e que experimentaram nele. Contudo, as ferramentas jockairanas, mesmo quando usadas por humanos, podiam cortá-lo, dar-lhe forma, voltar a soldá-lo.

   Os engenheiros humanos tinham simplesmente que se habituar a tais frustrações. Segundo o critério de controlo sobre o meio ambiente, os Jockaira eram tão civilizados quanto os humanos. Mas o seu desenvolvimento seguira outras linhas.

   As diferenças importantes entre as duas culturas iam mais fundo do que a tecnologia da engenharia. Embora ubiquamente amigáveis e prestáveis, os Jockaira não eram humanos. Pensavam de um modo diverso, julgavam as coisas de um modo diverso; a sua estrutura social e a estrutura de linguagem reflectiam a qualidade não humana, e ambas eram incompreensíveis para os seres humanos.

   Oliver Johnson, o semântico que tinha a seu cargo a elaboração de uma língua comum, achou a sua tarefa imediata tornada absurdamente fácil devido ao canal de comunicação que passava por Hans Weatheral.

   — Claro que — explicou ele a Slayton Ford e a Lazarus — o Hans não é exactamente um génio; por pouco que não é um idiota. Isso limita as palavras que posso traduzir através dele a ideias que ele é capaz de entender. Mas dá-me um vocabulário básico como ponto de partida.

   — Isso não basta? — perguntou Ford. — Parece-me ter ouvido que oitocentas palavras bastam para transmitir qualquer ideia.

   — Há uma certa verdade nisso — admitiu Johnson. — Menos de mil palavras cobrirão todas as situações comuns. Seleccionei perto de setecentos dos termos deles operacionais e substantivos, para nos dar uma língua franca de trabalho. Mas distinções subtis e discriminações requintadas terão de esperar até eu os conhecer e compreender melhor. Um vocabulário pequeno não pode tratar de altas abstracções.

   — Bolas — disse Lazarus —, setecentas palavras deviam chegar. Eu cá não tenciono fazer amor com eles ou discutir poesia.

   Esta opinião parecia ser justificada; a maioria dos membros apanhou o jockairano básico num espaço de tempo que variava entre duas semanas e um mês, a contar do momento da aterragem, e tagarelava com os anfitriões como se o tivesse falado toda a vida. Todos os terrestres tinham tido a sólida preparação habitual em mnemónica e semântica; uma linguagem auxiliar de vocabulário reduzido foi rapidamente aprendida sob o estímulo da necessidade e a circunstância de haver muitas oportunidades de praticar — excepto, claro, a percentagem habitual de inabaláveis provincianos que achavam que era aos “nativos” que competia aprender inglês.

   Os Jockaira não aprenderam inglês. Em primeiro lugar, nem um deles mostrou o menor interesse nisso. Nem era razoável esperar que os milhões que eles eram aprendessem a linguagem de uns tantos mil. Mas, de qualquer modo, a racha do lábio superior de um jockaira não lhe permitiria pronunciar o m, p e b, enquanto as guturais, sibilantes, dentais e cliques que eles empregavam podiam ser imitadas pela garganta humana.

   Lazarus foi forçado a rever a sua primeira má impressão dos Jockaira. Era impossível não gostar deles, uma vez gasta a estranheza que a sua aparência causava. Eram tão hospitaleiros, tão generosos, tão amigáveis, tão ansiosos de agradar. Ligou-se particularmente a Kreel Sarloo, que agia como uma espécie de oficial de ligação entre as Famílias e os Jockaira. Entre o seu próprio povo, Sarloo detinha uma posição que podia ser grosseiramente traduzida como “chefe”, “pai”, “sacerdote” ou “dirigente” da família ou tribo Kreel. Convidou Lazarus a visitá-lo na cidade jockairana mais próxima da colónia.

   — A minha gente vai gostar de te ver e de cheirar a tua pele — disse ele. — Será um acontecimento feliz. Os deuses vão ficar contentes.

   Sarloo parecia quase incapaz de formar uma frase que não fizesse referência aos deuses. Lazarus não se importava; era tolerantemente indiferente à religião de outrem.

   — Irei, Sarloo, meu velho. Será um acontecimento feliz para mim também.

   Sarloo levou-o no veículo, vulgar entre os Jockaira, um carro sem rodas, com uma forma muito semelhante à de uma terrina, que se movia silenciosa e rapidamente sobre o chão, roçando a superfície num contacto aparente. Lazarus acocorou-se no chão da vasilha, enquanto Sarloo fazia que ela andasse a uma velocidade que fazia vir lágrimas aos olhos de Lazarus.

   — Sarloo — perguntou Lazarus, gritando para se fazer ouvir contra o vento —, como é que esta coisa trabalha? Que é que a move?

   — Os deuses respiram-no — Sarloo usou uma palavra que não pertencia à linguagem comum — e fazem que ele sinta a necessidade de mudar de lugar.

   Lazarus começou a pedir uma explicação completa, depois calou-se. Houvera algo de familiar na resposta, e agora localizara-o; dera uma vez uma resposta muito semelhante a um dos da gente da água de Vénus quando lhe fora pedido que explicasse o motor a diesel, de um tipo primitivo de tractor dos pântanos. Lazarus não quisera ser misterioso; ficara simplesmente amarrado pela inadequada linguagem comum.

   Bem, havia um modo de contornar a dificuldade...

   — Sarloo, quero ver imagens do que acontece cá dentro — persistiu Lazarus, apontando. — Tens imagens?

   — Há imagens — reconheceu Sarloo — no templo. Tu não podes entrar no templo. — Os seus grandes olhos olharam lamentosamente para Lazarus, dando-lhe a forte sensação de que o chefe jockaira sofria com o estado de ausência de graça do amigo. Lazarus abandonou o assunto apressadamente.

   Mas pensar nos Venusianos trouxe-lhe à memória outra coisa intrigante. A gente da água, separada do mundo exterior pelas eternas nuvens de Vénus, não acreditava pura e simplesmente na astronomia. A chegada de terrestres tinha-os feito reajustar um pouco o seu conceito do cosmos, mas havia razões para crer que a explicação revista não estava mais perto da verdade. Lazarus perguntou a si mesmo o que pensariam os Jockaira dos Visitantes do espaço. Não se mostravam muito surpreendidos... ou estavam?

   — Sarloo — perguntou ele —, sabes de onde os meus irmãos e eu viemos?

   — Sei — respondeu Sarloo. — Vieram de um sol distante... tão distante que muitas estações chegariam e partiriam enquanto a luz fizesse essa longa viagem.

   Lazarus sentiu-se ligeiramente surpreso.

   — Quem te contou isso?

   — Os deuses contam-nos. O teu irmão Libby falou disso.

   Lazarus estava disposto a apostar em grande em como os deuses

não se tinham despachado a mencioná-lo antes de Libby o ter explicado a Kreel Sarloo. Mas manteve-se calado. Ainda queria perguntar a Sarloo se ficara surpreendido por ter visitas vindas do céu, mas não se conseguia lembrar de nenhum termo jockairano para surpresa ou admiração. Estava ainda a tentar formar a pergunta quando Sarloo falou de novo:

   — Os pais do meu povo voaram pelos céus como vocês, mas isso foi antes da chegada dos deuses. Os deuses, na sua sabedoria, convidaram-nos a parar.

   E isso, pensou Lazarus, é um diabo de uma grande mentira, por pura gabarolice. Não havia o menor indício de que os Jockaira tivessem alguma vez abandonado a superfície do planeta.

   Em casa de Sarloo, nessa noite, Lazarus aguentou, sentado, uma longa sessão do que ele calculou que fosse entretenimento para o convidado de honra, ele. Estava de cócoras ao lado de Sarloo, numa parte elevada do soalho da vasta sala comum do clã Kreel, e ouviu duas horas de uivos, cuja intenção devia ser o canto. Lazarus achou que, pisando as caudas de cinquenta cães variados se obteria melhor música, mas tentou levar aquilo com o espírito com que parecia estar a ser oferecido.

   Libby, lembrou-se Lazarus, insistia que estes uivos em massa de que os Jockaira se tinham habituado a gostar era, de facto, música, e que os homens podiam aprender a gostar dela através do estudo das relações das pausas.

   Lazarus duvidava disso.

   Mas tinha de admitir que Libby compreendia os Jockaira melhor do que ele nalgumas coisas. Libby ficara radiante ao descobrir que os Jockaira eram matemáticos excelentes e subtis. Mostravam ern especial uma compreensão para os números que emparceirava com o seu próprio talento selvagem. A aritmética deles era incrivelmente complexa para os humanos normais. Um número, qualquer número, pequeno ou grande, era para eles uma entidade única, para ser compreendida por si mesma e não como um aglomerado de números mais pequenos. Em consequência com uma base qualquer, racional, irracional ou variável — ou nenhuma.

   Era a sorte suprema, reflectiu Lazarus, que Libby estivesse disponível para actuar como intérprete matemático entre os Jockaira e as Famílias, ou teria sido impossível apreender uma quantidade de tecnologias novas que os Jockaira lhes iam mostrando.

   Intrigava-o o facto de os Jockaira não mostrarem interesse em aprender as tecnologias humanas que lhes eram oferecidas em troca.

   Os desacordes uivantes cessaram e Lazarus trouxe o pensamento de volta à cena que o rodeava. Trouxeram-lhe comida; a família Kreel deitou-lhe a mão com o entusiasmo acotovelador com que os Jockaira faziam tudo. A dignidade, pensou Lazarus, é uma ideia que nunca pegou aqui. Uma tigela grande, com bem mais de meio metro, e cheia até à borda de uma massa amorfa, foi colocada em frente de Kreel Sarloo. Uma dúzia de Kreels amontoou-se à volta e começou a tirar, sem dar precedência ao mais velho. Mas Sarloo esbofeteou com indiferença uns quantos que se tinham posto à sua frente e mergulhou uma mão no prato, tirou um bocado viscoso de ração e formou rapidamente uma bola na palma da sua mão de dois polegares. Feito isto, empurrou-a na direcção da boca de Lazarus.

   Lazarus não era biquento, mas teve de recordar a si mesmo que, em primeiro lugar, a comida que servia para os Jockaira servia para os homens, e, em segundo, que não podia apanhar nenhuma doença através deles de qualquer maneira, antes de conseguir obrigar-se a provar o bocado oferecido.

   Deu uma grande dentada. Hum... não era mau de todo — bastante insípido e pegajoso, sem sabor especial. Também não era bom, mas podia ser engolido. Sombriamente decidido a manter a honra da raça, continuou a comer, enquanto prometia a si mesmo uma refeição de jeito no futuro próximo. Quando sentiu que engolir outro bocado seria um convite ao desastre físico e social, pensou numa saída possível. Esticando-se para o prato comum, rapou uma grande mão-cheia da mistela, moldou uma bola e ofereceu-a a Sarloo.

   Foi diplomacia inspirada. Durante o resto da refeição Lazarus alimentou Sarloo, alimentou-o até ter os braços cansados, até se maravilhar com a capacidade do anfitrião em se regalar com aquilo.

   Depois de comer, dormiram, e Lazarus dormiu com a família, no sentido literal. Dormiram onde tinham comido, sem camas e numa disposição tão acidental quanto a de folhas num caminho ou de cachorrinhos num cercado. Para sua surpresa, Lazarus dormiu bem, e não acordou até que falsos sóis brilharam no tecto da caverna, em misteriosa solidariedade com a nova aurora. Sarloo ainda estava profundamente adormecido, perto dele, a ressonar de um modo muito humano. Lazarus descobriu que uma criança jockairana se lhe aninhara em concha contra o estômago.

   Sentiu um movimento atrás das costas, um restolhar na coxa. Virou-se cautelosamente e descobriu que outro jockaira — de seis anos, em equivalência humana — lhe tirara a pistola do coldre e estava agora a espreitar curiosamente para a boca da arma.

   Com apressada precaução, Lazarus removeu o brinquedo mortal dos dedos contrariados da criança, observou com alívio que estava travada e recolocou-a no coldre. Lazarus recebeu um olhar de censura; o miúdo parecia prestes a chorar.

   — Shiu — murmurou Lazarus —, vais acordar o teu velhote. Anda cá. — Pegou na criança com o braço esquerdo e encostou-a a si. O pequeno jockaira aconchegou-se mais, encostou-lhe à cara a boca húmida e doce e adormeceu prontamente.

   Lazarus curvou a cabeça para o olhar.

   — És um diabito amoroso — disse ele suavemente. — Eras capaz de me prender a sério se alguma vez me conseguisse habituar ao teu cheiro.

 

   Alguns dos incidentes entre as duas raças seriam anedóticos se não estivessem carregados de sarilhos potenciais: por exemplo, o caso do filho de Eleanor Johnson, Hubert. Aquele adolescente nervoso era o chefe confirmado dos passeios. Um dia estava a observar dois icónicos, um humano e um jockaira, que adaptavam uma fonte de energia jockairana às necessidades de maquinaria do tipo terrestre. 0 jockaira estava visivelmente divertido com o rapaz, e em espírito obviamente amigável pegou nele.

   Hubert começou a gritar.

   A mãe, nunca longe dele, atirou-se ao jockaira. Faltavam-lhe a força e a habilidade para a destruição completa em que estava empenhada; o grande não humano não ficou magoado, mas criou-se uma situação desagradável.

   O administrador Ford e Oliver Johnson tentaram ao máximo explicar o incidente aos espantados Jockaira. Felizmente, estes pareciam mais magoados que vingativos.

   Ford chamou então Eleanor Johnson.

   — Com a sua estupidez pôs toda a colónia em perigo...

   — Mas eu...

   — Esteja calada! Se não tivesse estragado o rapaz com mimo, ele leria sabido comportar-se. Se não fosse uma idiota lamechas, teria mantido as mãos em paz e sossego. De hoje em diante o rapaz vai para as aulas de desenvolvimento regular e a senhora vai deixá-lo em paz. Ao mínimo sinal de animosidade da sua parte em relação aos nativos, submeto-a a uns anos de sono-frio. Agora saia!

   Ford foi forçado a usar medidas quase tão fortes em relação a lanice Schmidt. O interesse que os Jockaira mostravam por Hans Weatheral estendeu-se a todos os outros deficientes telepáticos. Os nativos pareciam reduzidos a um estado de adoração trémula pelo simples facto de aqueles poderem comunicar com eles directamente. Kreel Sarloo informou Ford de que queria que os sensitivos fossem alojados em separado dos outros deficientes no templo evacuado da cidade dos terrestres e que os Jockaira queriam servi-los pessoalmente. Era mais uma ordem do que um pedido.

   Janice Schmidt submeteu-se deselegantemente à insistência de l’ord para que se fizesse a vontade aos Jockaira naquele caso, em troca de tudo o que eles tinham feito, e, sob o olhar ciumento dela, enfermeiras jockairanas ocuparam o cargo.

   Todos os sensitivos com um nível de inteligência superior ao do semi-idiota Hans Weatheral desenvolveram prontamente psicoses espontâneas e extremas, enquanto assistidos por jockairanas.

Portanto, Ford teve outra dor de cabeça para tratar. Janice Schmidt era mais poderosa e mais inteligentemente vingativa do que EIeanor Johnson. Ford viu-se compelido a impor a Janice que mantivesse a paz, sob a ameaça de lhe retirar por completo o cuidado dos seus adorados “filhos”. Kreel Sarloo, desanimado e aparentemente abalado até ao mais fundo de si mesmo, aceitou uma solução de compromisso, pela qual Janice e as enfermeiras suas subordinadas retomavam a assistência aos pobres psicóticos, enquanto os Jockaira continuavam a cuidar dos sensitivos a nível de idiotas ou abaixo dele.

   Mas a maior dificuldade foi a que se levantou quanto a... apelidos.

   Cada jockaira tinha um nome individual e um apelido. O número de apelidos era limitado, tal como acontecia entre as Famílias. O apelido de um nativo referia-se igualmente à sua tribo e ao templo no qual ele prestava culto.

   Kreel Sarloo levantou o assunto junto de Ford.

   — Grande Pai dos Irmãos Estranhos — disse ele —, chegou a altura de tu e os teus filhos escolherem os vossos apelidos. (A passagem do discurso de Sarloo para inglês contém necessariamente erros inerentes.)

   Ford estava habituado a dificuldades de entendimento no trato com os Jockaira.

   — Sarloo, irmão e amigo — respondeu ele —, ouço as tuas palavras, mas não compreendo. Fala mais claramente.

   Sarloo recomeçou:

   — Estranho irmão, as estações vêm e as estações vão e há um tempo para amadurecimento. Os deuses dizem-nos que tu, Irmão Estranho, chegaste à altura da tua educação (?) em que deves escolher a tua tribo e o teu templo. Eu vim para combinar contigo os preparativos (cerimónias?) pelos quais cada um de vocês escolherá o seu apelido. Nisto falo pelos deuses. Mas deixa que diga em meu nome que ficaria feliz se tu, meu irmão Ford, viesses a escolher o templo Kreel.

   Ford evitou responder claramente à pergunta enquanto tentava entender o que ela implicava.

   — Sinto-me feliz por desejares que eu tenha o teu apelido. Mas o meu povo já tem apelidos próprios.

   Sarloo arrumou o argumento com um trejeito.

   — Os presentes apelidos deles são palavras e nada mais. Agora devem escolher os seus apelidos verdadeiros, cada um o nome de um templo e do deus que adorará. As crianças crescem e deixam de ser crianças.

   Ford resolveu que precisava de conselho.

   — Isso tem de ser feito já?

   — Não hoje, mas no futuro próximo. Os deuses são pacientes.

   Ford convocou Zaccur Barstow, Oliver Johnson, Lazarus Long e Ralph Schultz e descreveu a entrevista. Johnson passou a gravação da conversa e esforçou-se por apanhar o sentido das palavras. Preparou várias traduções possíveis, mas fracassou no que respeitava a lançar alguma luz nova sobre o assunto.

   — Parece — disse Lazarus — ser um caso de junta-te à igreja ou desaparece.

   — Sim — concordou Zaccur Barstow —, isso parece saltar à vista. Bem, parece que nos podemos dar ao luxo de fingir. Muito poucos dos nossos têm preconceitos religiosos suficientemente fortes para os impedir de prestar uma homenagem hipócrita aos deuses nativos no interesse do bem comum.

   — Imagino que tem razão — disse Ford. — Eu, pela minha parte, não ponho objecções a acrescentar Kreel ao meu nome e a tomar parte nas genuflexões deles, se isso nos ajudar a viver em paz. — Franziu o sobrolho. — Mas não gostaria de ver a nossa cultura submersa na deles.

   — Pode esquecer-se disso — assegurou-lhe Ralph Schultz. — Independentemente do que tivermos de fazer para lhes agradar, não há’ hipótese absolutamente nenhuma de qualquer assimilação cultural real. Os nossos cérebros não são como os deles... e até que ponto são diferentes só agora me começo a aperceber.

   — Pois — disse Lazarus —, até que ponto vai a diferença.

   Ford virou-se para Lazarus.

   — Que quer dizer com isso? Que é que o preocupa?

— Nada. É só que — acrescentou ele — eu nunca partilhei o entusiasmo geral por este lugar.

   Concordaram em que um homem devia mergulhar primeiro e depois fazer o relato. Lazarus tentou conseguir a nomeação por antiguidade, Schultz exigiu-a como um direito profissional; Ford ignorou-os e autonomeou-se, afirmando que era um dever enquanto executivo responsável.

   Lazarus foi com ele para a porta do templo onde a iniciação se devia realizar. Ford estava tão despido quanto os Jockaira, mas Lazarus, já que não ia entrar no templo, pôde usar o kilt. Muitos dos colonos, famintos de sol depois dos anos na nave, andavam despidos quando lhes apetecia, tal como faziam os Jockaira. Mas Lazarus, nunca. Não só os seus hábitos iam contra isso, como também uma pistola é um objecto extremamente conspícuo numa coxa nua.

   Kreel Sarloo cumprimentou-os e escoltou Ford para o interior. Lazarus gritou-lhes nas costas.

   — Mantenha a cabeça erguida, camarada!

   Esperou. Acendeu um cigarro e fumou-o. Andou de trás para diante. Não tinha nenhuma maneira de calcular quanto tempo levaria; em consequência, pareceu-lhe muito mais do que foi.

   Por fim as portas deslizaram para trás e os nativos aglomeraram-se na saída. Pareciam seriamente perturbados com qualquer coisa e nenhum se aproximou de Lazarus. A multidão que ainda estava na ampla ombreira separou-se, formando alas, e uma figura saiu correndo precipitadamente para o ar livre.

Lazarus reconheceu Ford.

Ford não parou no sítio em que Lazarus estava à espera, mas passou por ele num mergulho cego. Tropeçou e caiu. Lazarus apressou-se a chegar junto dele.

Ford não fez esforços para se levantar. Ficou estatelado, de rosto para baixo, os ombros ondulando violentamente, o corpo sacudido por soluços.

Lazarus ajoelhou-se junto dele e abanou-o.

— Slayton — perguntou ele —, que aconteceu? Que tem?

Ford virou para ele os olhos húmidos e horrorizados, suspendendo momentaneamente os soluços. Não falou, mas pareceu reconhecer Lazarus. Atirou-se a Lazarus, agarrou-se a ele, chorou ainda mais violentamente do que antes.

Lazarus lutou para se libertar e esbofeteou Ford com força.

— Reaja! — ordenou ele. — Diga-me o que se passa.

A cabeça de Ford saltou com a bofetada e ele parou de gritar, mas não disse nada. Os olhos tinham um ar desorientado. Uma sombra atravessou o campo de visão de Lazarus; este girou sobre si mesmo, cobrindo-se com a pistola de explosivos. Kreel Sarloo parou a alguns passos e não se aproximou — não por causa da arma; nunca vira nenhuma.

— Tu! — disse Lazarus. — Pelo... Que lhe fizeram?

Controlou-se e mudou para um discurso que Sarloo pudesse entender.

— Que aconteceu ao meu irmão Ford?

— Leva-o — disse Sarloo, os lábios franzidos. — Isto é uma coisa má. É uma coisa muito má.

— Estás-me a dizer isso a mim! — disse Lazarus. Não se incomodou a traduzir.

 

A mesma conferência de antes, menos o presidente, reuniu tão depressa quanto possível. Lazarus contou a sua história, Schultz deu informações do estado de Ford.

— A equipa médica não consegue descobrir nada de errado. Tudo o que posso dizer com segurança é que o administrador sofre de uma psicose grave não diagnosticada. Não conseguimos estabelecer comunicação com ele.

— Ele não diz nada? — perguntou Barstow.

— Uma palavra ou duas, sobre assuntos simples como comida ou água. Qualquer tentativa para atingir a causa do problema leva-o à histeria incoerente.

   — Nenhum diagnóstico?

   — Bem, se querem um palpite não profissional em linguagem livre, eu diria que está louco de terror. Mas — acrescentou Schultz — já vi síndromes de medo anteriormente. Nunca nada como isto.

   — Eu já — disse Lazarus subitamente.

   — Já viste? Onde? Em que circunstâncias?

   — Uma vez — disse Lazarus —, quando era miúdo, há um par de séculos, apanhei um coiote castanho e pu-lo numa cerca. Achava que o podia treinar para ser um cão de caça. Não resultou.

   “Ford está a agir da maneira que o coiote agiu.

   Houve um silêncio desagradável. Schultz quebrou-o com:

   — Não consigo perceber muito bem o que queres dizer. Qual é o paralelo?

   — Bem — respondeu Lazarus lentamente —, é só um palpite. Slayton é o único que sabe a verdadeira resposta e ele não pode falar. Mas esta é a minha opinião: fizemos uma ideia errada dos Jockaira desde o princípio. Cometemos o erro de pensar que, porque se pareciam connosco de um modo geral, e eram tão civilizados como nós, eram pessoas. Mas não são pessoas de modo nenhum. São... animais domésticos.

   “Esperem aí um bocadinho! — acrescentou ele. — Não se apressem. Há pessoas neste planeta, há, sim senhor. Pessoas verdadeiras. Vivem nos templos e os Jockaira chamam-lhes deuses. São deuses!

   Lazarus continuou antes que alguém o interrompesse.

   — Sei o que estão a pensar. Esqueçam-no. Não vos estou a impingir metafísica; estou a pôr isto da melhor maneira que posso. Quero dizer que há algo que vive naqueles templos, e, seja o que for, é um remédio tão forte que pode imitar deuses, portanto, já agora, podemos chamá-los assim. Seja o que for que eles sejam, são a verdadeira raça dominante deste planeta... são pessoas! Para eles, nós todos, jocks ou homens, somos apenas animais, selvagens ou domesticados. Cometemos o erro de presumir que a religião local seria somente superstição. Não é.

   Barstow disse lentamente:

   — E achas que isso explica o que aconteceu a Ford?

   — Acho. Ele viu um, o que se chama Kreel, e isso enlouqueceu-o.

   — Presumo — disse Schultz — que, segundo a tua teoria, qualquer homem exposto a essa... a essa presença... ficaria psicótico?

   — Não é bem isso — respondeu Lazarus. — O que me assusta tremendamente mais é o receio de que pudesse não ficar maluco!

   Nesse mesmo dia, os Jockaira cortaram todos os contactos com os terrestres. Foi bom que o fizessem, de outro modo teria havido violência. O medo pairava sobre a cidade, medo de um horror pior que a morte, medo de -uma terrível coisa sem nome, cujo simples conhecimento podia transformar um homem num animal irracional despedaçado. Os Jockaira já não pareciam amigos inofensivos, bastante apalhaçados apesar das suas conquistas científicas, mas fantoches, armadilhas, iscas para os poderosos seres invisíveis que se escondiam nos “templos”.

   Não houve necessidade de votar; com a unanimidade de uma multidão fugindo de um edifício em chamas, os terrestres queriam sair deste lugar terrível. Zaccur Barstow assumiu o comando.

   — Chamem King ao ecrã. Digam-lhe para mandar para baixo todas as naves imediatamente. Vamos sair daqui o mais depressa possível. — Passou os dedos no cabelo, num gesto preocupado. — Qual é o máximo que podemos carregar em cada viagem, Lazarus? Quanto tempo demorará a evacuação?

   Lazarus resmungou qualquer coisa.

   — Que disseste?

   — Disse: “Não se trata de quanto tempo demorará; trata-se de nos ser permitido ou não.” Aquelas coisas dos templos podem querer mais animais domésticos... nós!

   Precisavam de Lazarus para pilotar uma nave, mas ainda precisavam mais urgentemente da sua capacidade de manobrar multidões. Zaccur Barstow estava a dizer-lhe para reunir um grupo de polícia de emergência, quando Lazarus olhou por cima do ombro de Zaccur e exclamou:

   — Oh, oh! Aguenta aí, Zack... a escola fechou.

   Zaccur virou rapidamente a cabeça e viu, aproximando-se com dignidade oficial pelo salão de reuniões, Kreel Sarloo. Ninguém se lhe atravessou no caminho.

   Depressa descobriram porquê. Zaccur avançou para o cumprimentar e não conseguiu continuar quando chegou a cerca de três metros do jockaira. Nenhuma pista quanto ao motivo; apenas isso — não conseguiu avançar.

   — Saúdo-te, infeliz irmão — começou Sarloo.

   — Saúdo-te, Kreel Sarloo.

   — Os deuses falaram. A vossa espécie nunca poderá ser civilizada (?). Tu e os teus irmãos têm de deixar este mundo.

   Lazarus deixou escapar um fundo suspiro de alívio.

   — Estamos de partida, Kreel Sarloo — respondeu Zaccur sobriamente.

   — Os deuses exigem que partam. Envia-me o teu irmão Libby.

   Zaccur mandou chamar Libby, depois virou-se de novo para Sarloo. Mas o jockaira não tinha mais nada a dizer-lhes; parecia indiferente à presença deles.

   Esperaram.

   Libby chegou. Sarloo manteve com ele uma longa conversa. Barstow e Lazarus estavam ambos a uma distância em que poderiam ouvir facilmente e viam os lábios a mexer-se, mas não ouviram nada. Lazarus achou que a circunstância era muito inquietante. “Diabos levem os meus olhos”, pensou ele, “sei de várias maneiras de fazer aquele truque, com o equipamento adequado, mas aposto que nenhuma delas é a resposta certa... e não vejo equipamento nenhum.”

   A discussão silenciosa terminou, Sarloo afastou-se a passos largos sem um adeus. Libby virou-se para os outros e falou; agora conseguia-se ouvir a voz dele.

   — Sarloo disse-me — começou ele, o sobrolho franzido de confusão — que temos de ir para um planeta, ah, a mais de trinta e dois anos-luz daqui. Os deuses decidiram-no. — Parou e mordeu os lábios.

   — Não te preocupes com isso — aconselhou Lazarus. — Limita-te a ficar contente por nos deixarem sair. Palpita-me que nos poderiam ter esmagado com a mesma facilidade. Uma vez no espaço, escolheremos o nosso destino.

— Suponho que sim. Mas o que me intriga é que ele mencionou um tempo, daqui a três horas, como sendo o da nossa partida deste sistema.

   — O quê? Isso é extremamente irrazoável — protestou Barstow. — Impossível. Não temos naves que cheguem.

   Lazarus não disse nada. Estava a deixar de ter opiniões.

   Zaccur mudou de opinião rapidamente. Lazarus adquiriu uma, filha da experiência. Quando apressava os primos na direcção do campo onde estavam a ser embarcados, deu por si erguido no ar, liberto do chão. Lutou, os braços e as pernas não encontraram resistência, mas o chão afastava-se. Fechou os olhos, contou até dez, abriu-os de novo. Estava a pelo menos três quilómetros de altura.

   Abaixo dele, elevando-se, fervilhando da cidade como morcegos de uma caverna, havia inúmeros pontos e formas escuras contra o chão iluminado pelo sol. Alguns estavam suficientemente perto dele para poder ver que eram homens, terrestres, as Famílias.

   O horizonte mergulhava rapidamente, o planeta tornou-se uma esfera, ‘o céu ficou negro. Contudo, a respiração parecia normal, os vasos sanguíneos não rebentaram.

   Foram sugados, formando cachos, em redor das portas abertas da Novas Fronteiras, como abelhas enxameando em redor da rainha. Uma vez dentro da nave, Lazarus entregou-se a um ataque de tremuras. “Ufa!”, suspirou para com ele, “cuidado com esse primeiro passo... é uma delícia!”

   Libby procurou o comandante King assim que se achou a bordo c recuperou a calma. Comunicou a mensagem de Sarloo.

   King parecia indeciso.

   — Não sei — disse ele. — Você sabe mais dos nativos do que eu, considerando que mal pus os pés em terra. Mas, aqui para nós, meu caro senhor, o modo como eles me enviaram os passageiros de volta põe-me a falar sozinho. Foi a manobra mais notável que alguma vez vi efectuar.

   — Eu posso acrescentar que foi uma experiência notável, Sr. Comandante — respondeu Libby, sem querer fazer humor. — Pessoalmente, preferia entregar-me a saltos de esqui. Ainda bem que o senhor tinha as portas de acesso abertas.

   — Não tinha — disse King sobriamente. — Abriram-se por si.

   Foram para a sala de controlo na intenção de acelerar a nave e

colocar uma distância grande entre ela e o planeta do qual acabavam de ser despejados; depois disso, considerariam o destino e a rota.

   — Este planeta que Sarloo lhe descreveu — disse King — pertence a uma estrela do tipo G?

   — Sim — confirmou Libby —, um planeta do tipo da Terra, que acompanha uma estrela do tipo do Sol. Tenho as coordenadas e identifiquei-a no catálogo. Mas podemos esquecê-la; fica demasiado longe.

   — Então... — King activou o sistema de visão do estelário. Depois nenhum dos dois disse nada durante um grande bocado. As imagens dos corpos celestiais contavam a sua própria história.

   Sem o comandante King dar qualquer ordem, sem ninguém nos controlos, a Novas Fronteiras reiniciara a sua longa viagem, decidida, como se tivesse uma inteligência própria.

   — Não vos posso dizer muito — confessou Libby algumas horas mais tarde a um grupo composto por King, Zaccur Barstow e Lazarus Long. — Pude determinar, antes de termos ultrapassado a velocidade da luz (ou de nos parecer que a tínhamos ultrapassado), que a nossa rota era então compatível com a ideia de que estávamos a ser dirigidos para a estrela indicada por Kreel Sarloo como sendo o destino que os deuses nos tinham ordenado. Continuámos a acelerar e as estrelas desvaneceram-se. Já não tenho quaisquer pontos de referência astrogacionais e sou incapaz de dizer onde estamos ou para onde vamos.

   — Descontrai-te, Andy — sugeriu Lazarus. — Manda um palpite.

   — Bem... se a linha do nosso mundo é uma função plana (se o é, e não temos dados), então podemos chegar perto da estrela PK3722, para onde Kreel Sarloo disse que íamos.

   — Hum! — Lazarus virou-se para King. — Tentou abrandar a velocidade?

   — Sim — disse King laconicamente. — Os controlos estão mortos.

   — Hum... Andy, quando é que lá chegamos?

   Libby encolheu os ombros com desespero. — Não tenho nenhum enquadramento de referência. Que é o tempo sem uma referência de espaço?

   Tempo e espaço, inseparáveis e unos... Libby ficou a pensar no assunto muito depois de os outros terem saído. Na verdade, ele tinha o enquadramento da própria nave e por isso havia necessariamente um tempo da nave. Os relógios da nave tiquetaqueavam ou zumbiam ou moviam-se simplesmente; as pessoas tinham fome, alimentavam-se, cansavam-se, descansavam. Os radioactivos deterioravam-se, os processos físico-químicos avançavam para estados de maior entropia, a própria consciência de Libby tinha a percepção da duração.

   Mas o pano de fundo das estrelas, contra o qual todas as funções de tempo da história do homem tinham sido medidas, desaparecera. Tanto quanto os seus olhos ou qualquer instrumento da nave lhe podiam dizer, tinham perdido a relação com o resto do universo.

   Que universo?

   Não havia universo. Desaparecera.

   Estariam em movimento? Pode haver movimento quando não há nada para ultrapassar?

   Contudo, o falso peso conseguido pela rotação da nave persistia. Rotação em relação a quê?, pensou Libby. Seria que o espaço possuía uma textura verdadeira, absoluta, não relacional própria, como a que fora postulada para o de há muito abandonado éter que as experiências clássicas de Michelson-Morley não tinham conseguido detectar? Não, mais que isso — cuja própria possibilidade de existência tinham negado?

   Lá por isso, também tinham negado a possibilidade de uma velocidade superior à da luz. Teria a nave realmente passado a velocidade da luz? Não seria mais provável que ela fosse um caixão, tendo fantasmas por passageiros, dirigindo-se para lugar nenhum em tempo nenhum?

   Mas Libby teve comichão nas costas e foi forçado a coçar-se; a perna esquerda ficou dormente; o estômago começava a falar insistentemente em comida — se isto era a morte, concluiu ele, não parecia materialmente diferente da vida.

   Com renovada tranquilidade, deixou a sala de controlo e dirigiu-se para o seu refeitório favorito, enquanto iniciava a abordagem do problema da invenção de uma nova matemática que incluísse todos os novos fenómenos. Não deu atenção ao mistério de como os hipotéticos deuses dos Jockaira tinham teletransportado as Famílias do chão para a nave. Não houvera oportunidade de obter dados significativos, dados medidos; o máximo que qualquer cientista honesto podia fazer, com rigor epistemológico, era incluir uma nota que registasse o facto e afirmasse que estava por explicar. Era um facto; aqui estava ele, que pouco tempo antes estivera no planeta; ainda agora os assistentes de Schultz estavam sobrecarregados de trabalho, tentando ministrar sedativos aos milhares que se tinham ido abaixo, emocionalmente, com a chocante experiência.

   Mas Libby não o podia explicar e, por falta de dados, não sentia nenhuma vontade de tentar. O que realmente queria era ocupar-se de linhas do mundo num pleno de matéria, o problema básico da física de campos.

   À parte a sua inclinação para as matemáticas, Libby era uma pessoa simples. Preferia a atmosfera barulhenta do Clube, o Refeitório 9-D, por razões diferentes das de Lazarus. A companhia de gente mais nova do que ele tranquilizava-o; Lazarus era o único ancião com o qual se sentia à vontade.

   Soube que não haveria logo comida no Clube; o comissário ainda estava a fazer ajustamentos à súbita mudança. Mas Lazarus estava lá e outros que ele conhecia; Nancy Weatheral parou de mastigar e apertou-se para lhe dar lugar.

   — És exactamente o homem que eu queria ver — disse ela. — Lazarus está a ser muito prestável. Para onde é que vamos desta vez e quando é que chegamos?

   Libby explicou o dilema tão bem quanto podia. Nancy franziu o nariz.

   — Que linda perspectiva, na realidade! Bem, calculo que isso significa que aqui a Nancy volta para aquela estufa.

   — De que é que estás a falar?

   — Já alguma vez trataste de sonolentos? Não, claro que não. Torna-se cansativo. Temos de os virar, dobrar-lhes os braços, mexer-lhes os pezinhos, mover-lhes a cabeça, fechar o tanque e passar ao seguinte. Fico tão farta de corpos humanos que sinto a tentação de fazer voto de castidade.

   — Não vás demasiado longe com a promessa — aconselhou Lazarus.

   — E a ti que te importa, meu velho falso alarme?

   Eleanor Johnson falou.

   — Estou contente por estar de novo na nave. Aqueles pegajosos guiáramos... hum!

   Nancy encolheu os ombros.

   — Estás a ser tendenciosa, Eleanor. Os jocks são “fixes” à maneira deles. Claro, não são exactamente como nós, mas os cães também não. Tu não embirras com cães, pois não?

   — É isso que eles são — disse Lazarus laconicamente. — Cães.

   — Hã?

   — Não quero dizer que eles sejam como cães na maioria das coisas... nem sequer são vagamente caninos e certamente que são nossos iguais ou até possivelmente superiores a nós nalgumas coisas... mas são cães na mesma. Aquelas coisas a que eles chamam “deuses” São simplesmente os senhores, os donos. Nós não podíamos ser domesticados, portanto os donos deitaram-nos fora.

   Libby estava a pensar na extraordinária telecinesia que os Jockaia — ou os seus donos — tinham usado.

   — Pergunto-me como é que seria — disse pensativamente — se tivessem sido capazes de nos domesticar. Poderiam ensinar-nos uma data de coisas maravilhosas.

   — Deixa-te disso — disse Lazarus secamente. — A escravatura não é para o homem.

   — Que é então para o homem?

   — Ao homem compete ser aquilo que é... e sê-lo com classe! — Lazarus levantou-se. — Tenho de ir.

   Libby fez também menção de se retirar, mas Nancy não o deixou.

   — Não vás. Quero perguntar-te umas coisas. Que ano é lá na ferra?

   Libby começou a responder, mas calou-se. Começou a responder uma segunda vez, e finalmente disse:

   — Não sei como responder a essa pergunta. É como dizer: “A que altura fica lá em cima?”

   — Eu sei que provavelmente fiz mal a pergunta — reconheceu Nancy. — Não fui muito boa aluna em Física Básica, mas chegou para compreender que a ideia de tempo é relativa e que a simultaneidade é uma ideia que só se aplica a dois pontos que fiquem perto um do outro no mesmo enquadramento. Mas mesmo assim, quero saber uma coisa. Viajámos bastante mais depressa e para muito mais longe do que alguém já viajou, não foi? Os nossos relógios não se atrasam ou coisa assim?

   Libby ficou com aquele olhar completamente confundido que os tísicos matemáticos costumam ter quando os leigos tentam falar de tísica em linguagem não matemática.

   — Estás a referir-te à contracção de Lorentz-FitzGerald. Mas, se me permites, tudo o que se possa dizer acerca dela em palavras é necessariamente disparate.

   — Porquê? — insistiu ela.

   — Porque... bem, porque a linguagem não é apropriada. As fórmulas usadas para descrever o efeito, grosseiramente chamado “contracção”, pressupõem que o observador é parte do fenómeno. Mas a linguagem verbal contém a presunção implícita de que podemos ficar de fora e observar o que se passa. A linguagem matemática nega a própria possibilidade de qualquer ponto de vista exterior. Todos os observadores têm a sua linha do mundo própria; não podem sair para miradouros à parte.

   — Mas supondo que podiam? Supondo que agora mesmo podíamos ver a Terra?

   — Lá vou eu outra vez — disse Libby infelicíssimo. — Tentei falar no assunto por palavras e tudo o que fiz foi aumentar a confusão. Não há maneira nenhuma de medir o tempo num sentido absoluto quando dois acontecimentos estão separados num contínuo. Tudo o que se pode medir é o intervalo.

   — Bem, que é o intervalo? Tanto de espaço e tanto de tempo.

   — Não, não, não! Não é nada disso. O intervalo é... Bem, é intervalo. Posso escrever as fórmulas e mostrar-te como as usar, mas não posso defini-lo em palavras. Olha, Nancy, podes escrever a partitura de toda a orquestração de uma sinfonia em palavras?

   — Não. Bom, talvez se pudesse, mas demoraria milhares de vezes mais.

   — E os músicos continuariam a não poder tocar até a reconverteres em notação musical. Era isso o que eu queria dizer — continuou Libby — quando disse que a linguagem não era apropriada. Já uma vez me meti numa dificuldade destas, ao tentar descrever a propulsão por pressão da luz. Perguntaram-me por que é que as pessoas dentro da nave não sentiam a perda da inércia, se a propulsão depende da perda de inércia. Não há resposta por palavras. A inércia não é uma palavra; é um conceito matemático usado em certos aspectos matemáticos do pleno. Fiquei entalado.

   Nancy pareceu não ter percebido, mas persistiu teimosamente.

   — A minha pergunta continua a querer dizer alguma coisa, mesmo que não tenha sido bem feita. Não te podes limitar a dizer-me para ir brincar. Suponhamos que virávamos e voltávamos para trás pelo caminho que viemos, de volta até à Terra, exactamente a mesma viagem, mas no sentido inverso... era só o dobro do tempo que a nave demorou até agora Bem, que ano seria na Terra, quando lá chegássemos?

   — Seria... deixa-me ver, então. — Os processos quase automáticos do cérebro de Libby começaram a lidar com o incrivelmente enorme e complexo problema, passando acelerações, intervalos, movimento disforme. Estava a chegar à solução numa quente irradiação de sonho matemático quando o problema subitamente se desfez, se tornou indefinido. Apercebera-se, abruptamente, de que o problema tinha um número ilimitado de respostas igualmente válidas.

   Mas isso era impossível. No mundo real, não no mundo de fantasia da matemática, uma tal situação era absurda. A pergunta de Nancy tinha de ter uma resposta, única e real.

   Seria toda a bela estrutura da relatividade um absurdo? Ou aquilo significaria que era impossível percorrer uma distância interestelar em sentido inverso?

   — Tenho de pensar um bocado no assunto — disse Libby apressadamente, e partiu, antes que Nancy pudesse opor-se.

   Mas a solidão e a contemplação não lhe deram nenhuma pista em relação ao problema. Não era uma falha da sua capacidade matemática; ele sabia que era capaz de inventar uma descrição matemática de qualquer grupo de factos. A dificuldade estava em que ele tinha factos a menos. Enquanto um observador atravessasse distâncias interestelares a velocidades próximas da da luz e regressasse ao planeta do qual tinha partido não poderia haver resposta.

   Libby deu consigo a perguntar-se se as colinas dos seus Ozarks natais ainda estariam verdes, se o cheiro do fumo de lenha ainda se agarraria às árvores no Outono, e depois lembrou-se de que a pergunta não tinha sentido, segundo todas as regras que conhecia. Rendeu-se a um ataque de saudades tal como não experimentava desde que era um jovem e fizera o seu primeiro salto no espaço exterior, nos Corpos de Construção Cósmica.

   Esta sensação de dúvida e de incerteza, a sensação de desorientação e de nostalgia, espalhou-se pela nave. No primeiro troço da viagem, as Famílias tiveram o incentivo que fizera com que as carroças cobertas atravessassem as planícies. Mas agora não iam para lado nenhum, um dia conduzia apenas ao dia seguinte. As suas vidas longas tornaram-se um fardo sem sentido.

   Ira Howard, cuja fortuna estabelecera a Fundação Howard, nascera em 1825 e morrera em 1873... de velhice. Vendeu mercearias na Rua Quarenta e Nove de São Francisco, tornou-se vivandeiro por atacado na Guerra da Secessão Americana, multiplicou a fortuna durante a trágica Reconstrução.

   Howard tinha um mortal medo de morrer. Contratou os melhores médicos do seu tempo para que lhe prolongassem a vida. No entanto, a velhice colheu-o numa idade em que a maioria dos homens .linda são jovens. Mas no seu testamento ordenou que o seu dinheiro fosse usado “para prolongamento da vida humana”. Os administradores do consórcio não acharam melhor maneira de cumprir a ordem do que procurar pessoas cujas árvores genealógicas mostrassem uma predisposição congénita para uma vida longa, e depois induzi-las a reproduzirem-se dentro dessa casta. O método deles antecipou-se à obra de Burbank; podem ter tido conhecimento, ou não, das esclarecedoras pesquisas do monge Gregor Mendel.

   Mary Sperling pousou o livro que estava a ler quando Lazarus entrou no camarote dela. Ele levantou-o.

   — Que estás a ler, mana? Eclesiastes. Hum... não sabia que eras religiosa. — Leu em voz alta: — “E, mesmo que alguém vivesse dois mil anos, se não gozou dos seus bens, acaso não vão todos para um mesmo lugar?”

   “Coisa mais lúgubre, Mary. Não consegues arranjar nada mais alegre? Mesmo no Pregador? — Os olhos continuaram a seguir as linhas. — Que tal esta? “Porque, enquanto um homem permanece entre os vivos, há esperança...” Ou... hum, não há muitas passagens alegres. Tentemos esta: “Lança fora do teu coração a tristeza, poupa o sofrimento ao teu corpo, porque a juventude e a adolescência são vaidade.” Esta é mais o meu género; não queria ser novo nem que me pagassem horas extraordinárias.

   — Eu queria.

   — Mary, que é que te preocupa? Dou contigo aqui sentada, a ler o livro mais deprimente da Bíblia, nada a não ser morte e funerais. Porquê?

   Ela passou uma mão cansada pelos olhos.

   — Lazarus, estou a ficar velha. Em que mais posso pensar?

— Tu? O quê, estás fresca como uma rosa!

   Ela olhou para ele. Sabia que ele mentia; o espelho mostrava-lhe os cabelos brancos, a pele flácida; sentia-o nos ossos. Contudo, Lazarus era mais velho que ela... embora ela soubesse, do que aprendera de biologia nos anos em que trabalhara na pesquisa de longevidade, que Lazarus não poderia chegar até àquela idade. Quando ele nascera, o programa apenas atingira a terceira geração, gerações de menos para eliminar os ramos menos duráveis — a não ser por meio de alguma ocasional mistura desordenada de genes, altamente improvável.

   Mas ali estava ele.

   — Lazarus — perguntou ela —, quanto tempo esperas ainda viver?

   — Eu? Isso agora é uma pergunta esquisita. Lembrei-me de uma altura em que fiz exactamente a mesma pergunta a um tipo... a meu respeito, quero eu dizer, não acerca dele. Alguma vez ouviste falar do Dr. Hugo Pinero?

   — Pinero... Pinero... Ah, sim, Pinero, o Charlatão.

   — Mary, não era um charlatão. Ele fazia-o, sério. Era capaz de prever com exactidão quando é que um homem ia morrer.

   — Mas... continua. Que é que ele te disse?

   — Espera aí. Quero que compreendas que ele não era um aldrabão. As previsões dele acertavam mesmo no alvo... se não tivesse morrido, as companhias de seguros de vida teriam ficado arruinadas. Isto foi antes de tu nasceres, mas eu estava cá e sei. De qualquer modo, Pinero fez a minha leitura e pareceu incomodado. Portanto leu outra vez. Depois devolveu-me o dinheiro.

   — Que é que ele disse?

   — Não consegui arrancar-lhe uma palavra. Olhou-me e olhou para a máquina dele, limitou-se a franzir o sobrolho e fechou-se na concha. Portanto, não posso responder correctamente à tua pergunta.

   — Mas que é que tu achas, Lazarus? Decerto que não esperas viver sempre.

   — Mary — disse ele docemente —, morrer não está nos meus planos. Nem sequer penso no assunto.

   Houve um silêncio. Por fim ela disse:

   — Lazarus, não quero morrer. Mas para que é que servem as nossas vidas longas? Não parece que nos tornemos mais sábios à medida que ficamos velhos. Limitamo-nos a andar para aqui depois do nosso tempo ter passado? Permanecemos no jardim infantil, quando deveríamos prosseguir? Teremos de morrer e nascer de novo?

   — Não sei — disse Lazarus — e não tenho maneira de descobrir ... e raios me partam se vejo alguma utilidade em preocupar-me com isso nem em tu te preocupares. Estou decidido a agarrar-me a esta vida durante tanto tempo quanto possa e a aprender tanto tempo quanto possa. Talvez que a sabedoria e a compreensão estejam reservadas para uma existência posterior, ou talvez não sejam nunca para nós. Em qualquer dos casos, estou contente por estar vivo e apreciar a vida. Mary, minha linda, carpe o velho diem.. é o único jogo nesta cidade.

   A nave escorregou para a mesma rotina monótona que eles já conheciam dos cansativos anos do primeiro salto. A maioria dos membros foi para o sono-frio; os outros tratavam deles, tratavam da nave, tratavam dos hidrolagos. Entre os adormecidos estava Slayton Ford; o sono-frio era uma terapia comum de último recurso para as psicoses funcionais.

   O voo para a estrela PK3722 demorou dezassete meses e três dias, tempo da nave.

   Os oficiais da nave tinham tão pouca possibilidade de escolha quanto ao fim da viagem quanta tiveram no início. Umas horas antes da estrela de chegada, as imagens voltaram aos ecrãs do estelário e a nave desacelerou rapidamente para velocidades interplanetárias. Não se sentiu nenhuma sensação de travagem; fossem quais fossem as forças misteriosas que estavam a actuar sobre eles, actuavam igualmente sobre todas as massas. A Novas Fronteiras deslizou para uma órbita que rodeava um planeta verde-vivo, a uns mil milhões de milhas do seu sol; Libby anunciou dali a pouco ao comandante King que estavam numa órbita estável de estacionamento.

   Cautelosamente, King experimentou os controlos, mortos desde a partida. A nave correspondeu; o piloto fantasmagórico abandonara-os.

   Libby achou a comparação incorrecta; indubitavelmente alguém planeara a viagem por eles, mas não era necessário presumir que alguém ou alguma coisa os tinha pastoreado até ali. Libby suspeitava que os “deuses” da gente-câo viam o pleno como estático; a deportação era um facto provado, mas lamentavelmente cheio de desconhecidos — não havia linguagem adequada. Inadequada e incorrectamente posta em palavras, a ideia dele era a de um “excêntrico cósmico”, uma linha do mundo formada para eles, que saía do espaço normal e voltava a ele; quando a nave chegara ao fim do seu excêntrico, regressara aos processos normais.

   Tentou explicar este conceito a Lazarus e ao comandante King, mas não se saiu bem. Faltavam-lhe dados e também não tivera tempo de dar mais elegância à descrição matemática; não o satisfez nem a ele nem aos outros.

   Nem King nem Lazarus tiveram tempo de pensar muito no assunto. O rosto de Barstow apareceu no ecrã visual interno.

   — Comandante! — chamou ele. — Pode vir à popa fechar a sete? Temos visitas!

   Barstow exagerara; era só um. A criatura recordou a Lazarus uma criança mascarada de coelho. Aquela coisinha era mais andróide que os Jockaira, embora possivelmente não mamífera. Não tinha roupas, mas não estava nua, já que o corpinho infantil estava maravilhosamente revestido de um pêlo dourado, curto, lustroso. Os olhos eram brilhantes e pareciam simultaneamente alegres e inteligentes.

   Mas King estava demasiado assombrado para reparar em tais pormenores. Uma voz, um pensamento, cantava-lhe na cabeça: “...então o senhor é o chefe do grupo...”, dizia ela. “...bem-vindos ao nosso mundo... temos estado à vossa espera... os (lacuna) avisaram-nos da vossa vinda...”

   Telepatia controlada...

   Uma criatura, uma raça, tão gentil, tão civilizada, tão livre de inimigos, de perigos e conflitos, que se podia dar ao luxo de partilhar os seus pensamentos com os outros — de partilhar mais do que pensamentos; estas criaturas eram tão gentis e tão generosas que estavam a oferecer aos humanos um lar no seu planeta. Era por isso que o mensageiro viera: para fazer a oferta.

   Na mente de King, aquilo assemelhava-se notavelmente à embalagem de presente que os Jockaira lhes tinham oferecido; perguntava-se qual seria a armadilha da proposta.

   O mensageiro pareceu ler-lhe os pensamentos, “...olha para os nossos corações... não existe maldade contra vocês... partilhamos o vosso amor pela vida e amamos a vida que há em vós...”

   — Nós agradecemos-vos — respondeu King formalmente e em voz alta. — Teremos de nos reunir. — Virou-se para falar com Barstow, olhou para trás. O mensageiro partira.

   O comandante disse a Lazarus:

   — Para onde é que ele foi?

   — Ah? Não me perguntes a mim.

   — Mas estavas em frente da comporta.

   — Estava a olhar para os indicadores. Não há nenhuma nave acostada do lado de fora desta comporta... segundo eles dizem. Eslava a pensar se estarão avariados. Não estão. Como é que ele entrou na nave? Onde está o aparelho dele?

   — Como é que ele partiu?

   — Não passou por mim!

   — Zaccur, ele entrou por esta comporta, não foi?

   — Não sei.

   — Mas de certo que saiu por ela.

   — Ná — negou Lazarus. — Esta comporta não foi aberta. Os selos do espaço exterior ainda estão no lugar. Vê por ti.

   Foi o que King fez.

   — Não supões — disse ele lentamente — que ele pode passar através...

   — Não olhes para mim — disse Lazarus. — Neste assunto não tenho mais preconceitos do que a rainha de copas. Para onde vai a imagem do vídeo quando cortas o circuito? — Foi-se embora, a assobiar baixinho para si mesmo. King não reconheceu a música. A letra, que Lazarus não cantou, começava assim:

Ontem à noite vi numas escadas Um homenzinho que não estava lá...

 

   Mas não havia nenhuma rasteira na oferta. A gente do planeta — não tinham nome, visto que não tinham linguagem falada, e os terrestres chamavam-lhes simplesmente “a gente pequenina”—, as pequenas criaturas, acolheram-nos realmente bem e ajudaram-nos. Não tiveram dificuldades em convencer disso as Famílias porque não havia problemas de comunicação como houvera com os Jockaira. A gente pequenina conseguia mesmo dar a conhecer aos terrestres pensamentos subtis e, por sua vez, conseguia entender correctamente qualquer pensamento que lhes fosse dirigido. Pareciam ignorar ou não ser capazes de ler qualquer pensamento que não se lhes dirigisse; a comunicação com eles era tão controlada como o discurso falado. Nem os terrestres adquiriram poderes telepáticos entre si.

   O planeta era ainda mais parecido com a Terra do que o dos Jockaira. Era um pouco maior que a Terra, mas tinha uma gravitação de superfície ligeiramente mais baixa, que sugeria uma densidade média mais baixa — a cultura da gente pequenina quase não fazia uso de metais, o que podia ser revelador.

   O planeta girava direito na sua órbita; não tinha a libertina inclinação do eixo da Terra. A órbita era quase circular; o afélio tinha uma diferença de menos de um por cento em relação ao periélio. Não havia estações.

   Nem havia uma grande e pesada lua, como havia na Terra, para lhe agitar os oceanos e perturbar o equilíbrio isostático da sua crosta. As elevações eram baixas, os ventos suaves, os mares plácidos. Para desapontamento de Lazarus, o seu novo lar não tinha um tempo animado; quase não tinha tempo; possuía clima, e duma espécie que os patriotas da Califórnia gostariam de fazer crer ao resto da Terra que existe naquela parte do globo.

   Mas no planeta da gente pequenina existe de facto.

   Eles indicaram à gente da Terra onde deveria aterrar, uma ampla extensão arenosa de praia que corria para o mar. Para trás da fractura da margem estendiam-se milhas e milhas de prados luxuriantes, salpicados de maciços irregulares de arbustos e árvores. A paisagem tinha uma ordem descuidada, como se fosse um parque planeado, embora não houvesse sinais evidentes de cultivo.

   Era aqui, disse um mensageiro ao primeiro grupo de reconhecimento, que eles podiam viver.

   Parecia que havia sempre um dos pequeninos presente quando podiam precisar de ajuda — não com o inexorável e acotovelante excesso de amabilidade dos Jockaira, mas uma presteza discreta em passar um fone ou um canivete. O que acompanhou o primeiro grupo de exploradores perturbou Lazarus e Barstow, ao presumir com naturalidade que já os conhecia, da altura em que tinha visitado a nave. Uma vez que o pêlo dele era de um belo tom de mogno e não dourado, Barstow atribuiu o engano a uma falha na comunicação, com a reserva mental de que esta gente talvez fosse capaz de mudar de cor, como os camaleões. Lazarus reservou o seu juízo.

   Barstow perguntou ao guia se a gente dele teria, ou não, preferência quanto ao lugar e ao modo por que os terrestres deviam erigir cidades. A questão incomodava-o porque uma observação preliminar feita da nave não revelara quaisquer cidades. Parecia provável que os nativos viviam em subterrâneos — e, nesse caso, queria evitar entrar com o pé esquerdo, dando início a algo que o governo local poderia considerar um pardieiro...

   Falou alto, por palavras, com o guia, tendo já aprendido que essa era a melhor maneira de ter a certeza que os nativos apanhariam o pensamento.

   Na resposta que o pequenino lhe enviou, Barstow captou a emoção de surpresa:

   — “...têm mesmo de conspurcar o doce campo com interrupções?... Para que fim precisam de formar edifícios?...”

   — Precisamos de edifícios para muitos fins — explicou Barstow. — Precisamos deles como abrigo diário, como lugar para dormir de noite. Precisamos deles para criar a nossa comida e prepará-la para ser consumida. — Pensou tentar explicar as técnicas de produção hidropónica, do tratamento da comida, da culinária, depois desistiu, confiando no subtil sentido da telepatia para fazer o seu “ouvinte” entender. — Precisamos de edifícios para muitos outros fins, para oficinas e laboratórios, para abrigar as máquinas com as quais comunicamos, para quase tudo o que fazemos na nossa vida diária.

   — “...sejam pacientes comigo...” — veio o pensamento — “...visto que eu sei tão pouco dos vossos costumes... mas digam-me... preferem dormir numa coisa daquelas?...” — Gesticulou na direcção das naves em que tinham descido, cujos bojos se erguiam por cima da baixa margem. O pensamento que ele usou para as naves era demasiado forte para ser explicado por uma palavra; à mente de Lazarus chegou um pensamento de um espaço morto, apertado — uma prisão que o tinha uma vez albergado, uma malcheirosa cabina pública.

   — É nosso costume.

   A criatura curvou-se e deu umas palmadinhas na relva

   — “...este não é um bom lugar para dormir?...”

   Lazarus reconheceu para consigo que era. O chão estava coberto com uma relva macia de Primavera, que não era bem relva, mas mais fina, mais macia, mais lisa e mais apertada. Lazarus descalçou-se e deixou que os pés nus a gozassem, os dedos afastados e a mover-se. Era mais como um pesado tapete de peies do que como um relvado, concluiu ele.

   — “...quanto à comida...” — prosseguiu 0 guia — “...para quê lutar por aquilo que o bom solo dá livremente?... venham comigo...”

   Levou-os através de uma extensão de prado até um lugar onde arbustos altos pendiam sobre um regato serpenteante. As “folhas” eram apêndices do tamanho de mãos humanas, de forma irregular e com uma polegada ou mais de espessura. O pequenino partiu uma e mordiscou-a delicadamente.

   Lazarus tirou uma e examinou-a. Partia-se facilmente, como um bolo bem cozido. O interior era de um amarelo suave, esponjoso mas estaladiço, e tinha um odor forte e agradável, que recordava mangas.

— Lazarus, não comas isso! — avisou Barstow. Não foi analisado.

   — “...está em harmonia com o vosso corpo...”

   Lazarus cheirou-o de novo.

   — Estou disposto a ser cobaia, Zack.

   — Oh, está bem... — Barstow encolheu os ombros. — Avisei-te. Vais prová-lo de qualquer maneira.

   Lazarus provou. Aquela coisa era estranhamente agradável, suficientemente firme para os dentes, picante embora esquiva ao paladar. Assentou-lhe alegremente no estômago e ficou à vontade. Barstow recusou-se a permitir que mais alguém provasse o fruto até que se visse o efeito sobre Lazarus. Este aproveitou-se da posição vulnerável e privilegiada para fazer uma refeição completa — a melhor que fizera em muitos anos, concluiu ele.

   “ — ...fazem o favor de me dizer o que é que estão habituados a comer?...” — inquiriu o pequeno amigo. Barstow começou a responder, mas ficou chocado com o pensamento da criatura: — “...todos... pensem nisso...” — Não emitiu mais nenhuma mensagem durante alguns momentos, depois disparou: — “... Já chega... as minhas mulheres tratarão disso...”

   Lazarus não tinha a certeza de que a imagem significasse “esposas”, mas uma relação estreita semelhante estava implicada. Ainda não sabiam que os pequeninos eram bissexuais... ou o que quer que fosse.

   Lazarus dormiu nessa noite ao ar livre, sob as estrelas, e deixou que a limpa luz impessoal o lavasse da claustrofobia da nave. Aqui, as constelações estavam demasiado distorcidas para poderem ser facilmente reconhecíveis, embora conseguisse reconhecer, concluiu ele, o calmo azul de Vega e o brilho laranja de Antares. A única certeza era a Via Láctea, derramando o seu arco nebuloso através do céu exactamente como na Terra. O Sol, sabia que não era visível à vista desarmada, mesmo que soubesse onde procurar; a baixa magnitude absoluta não o deixaria mostrar-se através dos anos-luz. “Tenho de pegar no Andy”, pensou sonolentamente, “descobrir quais as coordenadas e apanhá-lo com os instrumentos.” Adormeceu antes de ter tempo de se interrogar por que é que se iria dar a esse trabalho.

   Visto que não havia necessidade de abrigos para a noite, trouxeram toda a gente para baixo tão depressa quanto as naves permitiram. As multidões eram despejadas no solo amigável e deixadas a descansar, à laia de piquenique, até que a colónia pudesse ser organizada. A princípio comeram as provisões trazidas da nave, mas a continuada boa saúde de Lazarus fez que a regra contra correr riscos com a comida natural nativa fosse em breve afrouxada. Depois disso comiam mais vezes da ilimitada prodigalidade das plantas e usavam a comida da nave apenas para variar a dieta.

   Alguns dias depois da chegada dos últimos colonos, Lazarus andava em exploração, sozinho, a alguma distância do acampamento. Deparou-se-lhe um dos pequeninos; o nativo cumprimentou-o, com a mesma pressuposição de um conhecimento anterior que todos eles pareciam ter, e conduziu Lazarus a uma pequena mata de árvores baixas ainda mais afastada da base. Indicou a Lazarus que queria que ele comesse.

   Lazarus não tinha uma fome por aí além, mas sentiu-se obrigado a fazer a vontade a uma tal gentileza, portanto apanhou o fruto e comeu.

   Quase ficou engasgado com o espanto. Puré de batatas com molho de carne!

   — “... não nos saímos bem?...” — chegou um pensamento ansioso.

   — Camarada — disse Lazarus solenemente —, não sei o que é que vocês planeavam fazer, mas isto é óptimo!

   Uma quente explosão de prazer invadiu-lhe a mente.

   — “... Tente a próxima árvore...”

   Lazarus fê-lo, com cautelosa sofreguidão. Parecia ser uma combinação de pão saloio fresco com doce e manteiga, embora parecesse haver um toque de gelado vindo de qualquer lado. Já quase não se surpreendeu quando a terceira árvore apresentou fortes provas de ter entre os seus antepassados cogumelos e bife grelhado nas brasas.

   — “... usámos quase só as tuas imagens...” — explicou o companheiro. — “...eram muito mais fortes do que as das tuas mulheres...”

   Lazarus não se deu ao trabalho de explicar que não era casado. O pequenino acrescentou: — “...ainda não houve tempo para imitar o aspecto e a cor que os teus pensamentos mostravam... tem muita importância para ti?...”

   Lazarus assegurou-lhe gravemente que tinha muito pouca.

   Quando regressou à base, teve uma dificuldade considerável em convencer os outros da seriedade do seu relato.

   Um dos que beneficiou largamente da despreocupação e indolência do novo lar foi Slayton Ford. Acordara do sono-frio aparentemente recuperado da crise, excepto numa coisa: não fazia nenhuma ideia da experiência por que passara no templo de Kreel. Ralph Schultz considerou que isso era um ajustamento saudável a uma experiência intolerável e deixou de o considerar como paciente.

   Ford parecia mais jovem e mais feliz do que antes da crise. Já não detinha nenhum cargo formal entre os membros — na verdade não havia quase governo de espécie nenhuma; as Famílias viviam numa anarquia despreocupada neste planeta favorecido — mas continuavam a tratá-lo pelo título e a considerá-lo como um ancião, a quem se pedia conselho, a cuja opinião se submetiam, tal como faziam com Zaccur Barstow, Lazarus, o comandante King e outros. As Famílias não ligavam muito às idades; amigos íntimos podiam fazer uma diferença de um século. Durante anos tinham beneficiado da hábil administração de Ford; agora continuavam a tratá-lo como a um estadista idoso, embora dois terços deles fossem mais velhos.

   O eterno piquenique prolongou-se por semanas, por meses. Depois de terem estado fechados na nave durante tanto tempo, a dormir ou a trabalhar, a tentação de tirar umas férias grandes era demasiado forte para ser afastada e não havia nada que o proibisse. Comida em abundância, pronta a comer e fácil de manusear, crescia quase por todo o lado; a água das numerosas correntes era limpa e potável. Quanto a roupas, tinham muitas se se quisessem vestir, mas a necessidade era mais estética do que utilitária. O clima elísio fazia que as roupas de protecção fossem tão disparatadas como um fato de calças e casaco para nadar. Aqueles que gostavam de roupas, usavam-nas; pulseiras e colares e flores no cabelo eram o bastante para a maioria e não incomodavam nada se se resolvia dar um mergulho no mar.

   Lazarus conservou o kilt.

   A cultura e grau de conhecimentos dos pequeninos era difícil de compreender de uma vez, porque os seus modos eram subtis. Visto que não tinham sinais exteriores, em termos da Terra, de grandes realizações científicas — nem edifícios grandes, nem complexas máquinas mecânicas de transporte, nem trepidantes centrais de energia —, era fácil confundi-los erradamente com os filhos da Mãe Natureza vivendo no Jardim do Éden.

   Só um oitavo de um icebergue aparece acima de água.

   Os seus conhecimentos de física não eram inferiores aos dos colonos; eram incrivelmente superiores. Deram uma volta pelas naves com um interesse delicado, mas confundiram os guias ao indagar por que é que as coisas eram feitas desta maneira e não doutra? — e a maneira sugerida era sempre mais simples e eficiente do que a técnica da Terra... quando os atónitos técnicos humanos conseguiam entender o que eles queriam dizer.

   Os pequeninos entendiam a maquinaria e tudo o que a maquinaria implica, mas simplesmente não tinham grande aplicação para ela. Não necessitavam, obviamente, de comunicação e não precisavam muito de transportes (embora a razão disso não fosse imediatamente evidente), e necessitavam muito pouco de maquinaria para qualquer das suas actividades. Mas, quando necessitavam especificamente de um engenho mecânico, eram capazes de o inventar, de o construir, de o usar logo e de o destruir, efectuando assim todo o processo, com uma cooperação doce muito diferente da dos homens.

Mas era em biologia que a proeminência deles era mais assombrosa. Os pequeninos eram senhores da manipulação das formas de vida. Desenvolver, no espaço de dias, plantas que davam frutos que reproduziam as comidas habituais dos humanos, não só em sabor mas também em valor calórico, não era para eles um milagre, mas uma tarefa de rotina que qualquer dos seus biotécnicos podia efectuar. Faziam-no mais facilmente do que um horticultor da Terra cria uma flor de uma cor ou tamanho diferentes.

   Mas os seus métodos eram diversos dos de qualquer criador de plantas humano. Diga-se em abono deles que bem se esforçaram por explicar os seus métodos, mas as explicações limitavam-se a não chegar ao receptor. Nos nossos termos, eles afirmavam “pensar” uma planta na forma e carácter que desejavam. O que quer que fosse que eles queriam dizer com isso, é certamente verdade que, sem tocar ou agir de qualquer modo perceptível aos estudantes humanos, podiam fazer que uma dormente planta de sementeira florescesse e atingisse a maturidade no espaço de algumas horas — com novas características não existentes na linha de ancestrais... e que a partir de então se reproduziam.

   Contudo, era só em grau que os pequeninos diferiam dos terrenos quanto a conhecimentos científicos. Num sentido extremamente básico, diferiam dos humanos quanto à natureza.

   Não eram indivíduos.

   Não havia um discreto indivíduo alojado no corpo de um nativo. Os indivíduos eram multicorporais; tinham “almas” de grupo. A unidade social básica era um grupo de relações telepáticas, de muitas partes. O número de corpos e cérebros que alojava um indivíduo chegava a noventa, ou mais, e nunca a menos de trinta e tal.

   Só depois de saberem deste facto é que os colonos começaram a compreender muito do que era extremamente intrigante nos pequeninos. Há bastantes razões para crer que os pequeninos achavam os terrenos igualmente intrigantes, que também eles presumiam que os outros deviam ser espelho do seu padrão de existência. A descoberta eventual dos verdadeiros factos acerca de cada um dos lados, acarretada pelos mútuos enganos quanto a identidade, pareceu encher de horror os pequeninos. Retiraram-se da vizinhança da colónia das Famílias e permaneceram afastados por alguns dias.

   Finalmente, um mensageiro entrou no local do acampamento e procurou Barstow.

   — “...pedimos desculpa por ter fugido... na nossa precipitação, tomámos a vossa infelicidade por um defeito de que seriam responsáveis... queremos ajudar-vos... oferecemo-nos para vos ensinar a tornarem-se como nós...”

   Barstow meditou na resposta a dar à generosa proposta.

   — Agradecemos-vos o vosso desejo de nos ajudar — disse por fim —, mas o que chamam a nossa infelicidade parece ser uma parte necessária da nossa constituição. Nós não somos como vocês. Não penso que nós vos possamos compreender.

   O pensamento que lhe chegou era muito perturbador.

   — “...auxiliámos os animais do ar e do chão a parar com os seus conflitos... mas se não querem a nossa ajuda, não vo-la imporemos...”

   O mensageiro partiu, deixando Zaccur Barstow perturbado interiormente. Talvez, pensou ele, tivesse sido demasiado apressado na resposta, sem ter pedido tempo para consultar os outros anciãos. A telepatia não era certamente uma prenda de que se escarnecesse; talvez que os pequeninos os pudessem treinar em telepatia, sem perda da individualidade humana. Mas o que ele sabia dos sensitivos das Famílias não encorajava semelhante esperança; não havia um que fosse emocionalmente saudável, muitos eram também mentalmente deficientes — não parecia ser um caminho seguro para os humanos.

   Podia ser discutido mais tarde, decidiu ele; não havia pressa.

   “Não há pressa” era o estado de espírito da colónia. Não havia necessidade de se esforçarem, pouco havia para fazer e raramente havia pressa quanto a esse pouco. O sol era quente e agradável, cada dia muito semelhante ao dia seguinte, e havia sempre o dia depois desse. Os membros, predispostos pela sua herança a ver as coisas a longo prazo, passaram a vê-las a eterno prazo. O tempo já não tinha importância. Mesmo a pesquisa de longevidade, que ao longo das suas memórias fora uma constante, estiolou. Gordon Hardy arrumou as experiências em curso para se entregar à ocupação muito mais fértil de aprender o que os pequeninos sabiam da natureza da vida. Foi forçado a levar as coisas devagar, gastando longas horas na digestão dos novos conhecimentos. À medida que o tempo, lentamente, passava, ele mal tinha consciência de que as suas horas de contemplação se tornavam mais longas, as erupções de estudo activo cada vez menos frequentes.

   Uma coisa aprendeu, e as implicações dela abriram-lhe um campo de pensamentos inteiramente novo: os pequeninos tinham, em certo sentido, conquistado a morte.

   Uma vez que cada um dos seus egos estava repartido por muitos corpos, a morte de um corpo não envolvia a morte do ego. Todas as experiências da memória daquele corpo permaneciam intactas, a personalidade a ele ligada não se perdia, a perca física podia ser compensada, permitindo a um nativo jovem que “casasse” com o grupo. Mas um ego de grupo, uma das personalidades que falavam com os terrestres, não podia morrer, salvo talvez pela destruição de todos os corpos em que vivia. Limitavam-se a continuar, aparentemente para sempre.

   Os jovens, até à altura do “casamento” ou assimilação pelo grupo, pareciam ter pouca personalidade e processos mentais apenas rudimentares ou possivelmente instintivos. Os mais velhos esperavam tanto deles no que respeita a comportamento inteligente quanto um humano espera de uma criança ainda no útero. Havia sempre muitas dessas pessoas incompletas ligadas a cada grupo-ego; eram tratadas como animais de estimação muito queridos ou bebés indefesos, embora fossem muitas vezes tão grandes e aparentemente tão maduros aos olhos da Terra quanto os seus seniores.

   Lazarus fartou-se de paraíso mais cedo do que a maioria dos seus primos.

   — Não pode ser sempre hora do chá — queixou-se ele a Libby, que estava deitado na erva fina, perto dele.

   — Que é que te arrelia, Lazarus?

   — Nada de especial. — Lazarus colocou a faca de ponta para baixo no cotovelo direito, com a outra mão fê-la dar um piparote e observou como a ponta se enterrava no solo. — É só que este sítio me faz pensar num zoo bem dirigido. E tem o mesmo futuro. — Resmungou escarninhamente. — E a “Terra do Nunca-Nunca”.

   — Mas que é que te preocupa em particular?

   — Nada. É isso que me preocupa. A falar a sério, Andy, não vês nada de mal em andarmos assim a pastar?

I Libby sorriu timidamente.

   — Deve ser do meu sangue de deixa-andar. “Quando não chove,

0 telhado não verte; quando chove, não o posso consertar” — citou ele. — A mim parece-me que estamos razoavelmente bem. Que é que te aborrece?

— Bem. — Os olhos azul-claros de Lazarus olhavam para muito longe; parou com a indolente distracção da faca. — Quando era novo, há muito tempo, estive ancorado nos mares do Sul...

   — Havai?

   — Não. Mais para o sul. Diabos me levem se sei o nome actual. Fiquei teso, mesmo muito teso, e vendi o sextante. Pouco depois (ou talvez tivesse levado algum tempo) podia passar por um nativo. Vivia como tal. Não parecia ter importância. Mas um dia vi-me num espelho. — Lazarus suspirou profundamente. — Fugi dali para fora embarcado num cargueiro de peles por curtir, o que te poderá dar uma ideia de como estava assustado e desesperado!

   Libby não fez comentários.

   — Que é que tu fazes do teu tempo? — persistiu Lazarus.

   — Eu? O mesmo que sempre. Penso na matemática. Tento inventar um truque para a propulsão espacial que nos trouxe até aqui.

   — Conseguiste alguma coisa? — Lazarus ficou subitamente alerta.

   — Ainda não. Dá-me tempo. Ou então fico cá a ver as nuvens formarem-se. Há relações matemáticas divertidas em todo o lado, se as procurarmos. Na ondulação da água, ou nas formas dos bustos... elegantes funções de quinto grau.

   — Hã? Queres dizer de “quarto grau”.

   — Quinto grau. Omitiste a variável do tempo. Gosto de equações de quinto grau — disse Libby sonhadoramente. — Também se encontram nos peixes.

   — Hum! — disse Lazarus, e levantou-se de repente. — Isso pode estar bem para ti, mas não é o meu ramo.

   — Vais a algum lado?

   — Passear.

   Lazarus caminhou para norte. Andou o resto do dia, dormiu no chão, como de costume, nessa noite, e já estava a pé e a andar, ainda mais para o norte, ao romper da aurora. Ao dia seguinte sucedeu-se outro igual, e outro ainda. A marcha era fácil, muito semelhante a um passeio num parque... demasiado fácil, na opinião de Lazarus. Estava disposto a pagar um dólar e mais uma faca de mato de brinde pela visão de um vulcão ou de uma queda de água de jeito.

   As plantas de comida eram às vezes estranhas, mas abundantes e satisfatórias. Ocasionalmente encontrava um ou mais dos pequeninos ocupados nos seus misteriosos assuntos. Nunca o incomodavam, nem lhe perguntavam porque viajava, mas cumprimentavam-no simplesmente com o pressuposto habitual de conhecimento anterior. Começou a desejar encontrar um que fosse desconhecido; sentia-se observado.

   Em breve as noites se tornaram mais frias, os dias menos balsâmicos, e os pequeninos menos numerosos. Quando, por fim, não viu um único todo o dia, acampou nessa noite, ficou nesse lugar todo o dia seguinte — tirou a alma e observou-a.

   Tinha de admitir que não conseguia descobrir nenhuma falta considerável no planeta e nos seus habitantes. Mas, decisivamente, não era para o gosto dele. Nenhuma filosofia que ele conhecesse dava qualquer objectivo razoável para a existência de um homem, nem qualquer pista racional para uma conduta adequada. Aquecer-se ao sol podia ser uma coisa tão boa para fazer na vida como qualquer outra — mas não era para ele, e ele sabia-o, mesmo que não conseguisse definir como é que sabia.

   A hégira das Famílias fora em erro. Teria sido mais humano, mais maduro e mais viril ter ficado e lutado pelos seus direitos, mesmo se tivessem morrido a teimar neles. Em vez disso fugiram por meio universo (Lazarus não ligava às grandezas), procurando um lugar para descer. Encontraram um, um bom lugar — mas já estava ocupado por seres tão superiores que se tornavam intoleráveis para os homens... contudo tão supremamente indiferentes na sua superioridade que nem se incomodaram a varrê-los, mas passaram-nos a toda a velocidade para aqui... para este clube de campo, excessivamente maquilhado.

   E isso, em si, era a humilhação insuportável. A Novas Fronteiras era o cume de quinhentos anos de pesquisa científica humana, o melhor que o homem fora capaz de fazer — mas fora atirada com um piparote através das profundezas do espaço, tão naturalmente como um homem repõe um pássaro pequeno no ninho.

   Os pequeninos não pareciam querer correr com eles, mas os pequeninos eram, à sua maneira, tão desmoralizantes para os homens como os deuses dos Jockaira. Tomados separadamente, podiam ser idiotas, mas como grupo, cada grupo era um génio que punha na sombra as melhores mentes que os homens pudessem dar. Mesmo Andy. Os seres humanos não podiam esperar competir com aquele tipo de organização, tal como uma lojeca não podia competir com uma fábrica cibernética automatizada. Contudo, formar tais identidades de grupo, se o conseguisse, do que ele duvidava, seria, Lazarus estava certo, desistir do que quer que fosse que fazia deles homens.

   Reconhecia que tinha um preconceito que favorecia os homens. Ele era um homem.

   Sem que os contasse, os dias passavam enquanto ele discutia sozinho as coisas que o incomodavam — problemas que tinham entristecido a alma da espécie, desde que o primeiro homem-macaco chegara à consciência de si mesmo, questões nunca resolvidas, quer por instinto, quer por maquinaria sofisticada. E os intermináveis dias tranquilos não lhe trouxeram mais respostas decisivas do que todas as pesquisas interiores dos seus antepassados. Porquê? Para que é que serve um homem? Nenhuma resposta chegou — salvo uma: uma firme convicção disparatada de que não fora feito ou não estava preparado para este confortável e intemporal porto de facilidades, f O devaneio perturbado foi interrompido pelo aparecimento de um dos pequeninos.

   — “...saudações, velho amigo... a tua mulher King deseja que tu regresses... tem necessidade do teu conselho...”

— Qual é o problema? — indagou Lazarus.

   Mas a criaturinha não soube ou não quis dizer. Lazarus apertou o cinto com um puxão e dirigiu-se para sul. — “...não há necessidade de ir devagar...” — perseguiu-o o pensamento.

   Lazarus deixou-se conduzir a uma clareira atrás de um maciço de árvores. Aí encontrou um objecto em forma de ovo, com cerca de dois metros de comprimento, sem traços especiais, a não ser uma porta num lado. O nativo passou a porta, Lazarus, de maior arcaboiço, encolheu-se para o seguir; a porta fechou-se.

   Abriu-se quase imediatamente e Lazarus viu que estavam na praia, mesmo por baixo da colónia humana. Tinha de reconhecer que era um bom truque.

   Lazarus correu para a nave estacionada na praia, na qual o comandante King partilhava com Barstow um arremedo de quartel-general da comunidade.

   — Mandou-me chamar, patrão. Qu’é que há?

   O rosto austero de King estava sério.

   — É acerca de Mary Sperling.

   Lazarus sentiu um súbito aperto frio no coração.

   — Morta?

   — Não. Não exactamente. Passou-se para os pequeninos. “Casou-se” num dos grupos.

   — O quê? Mas é impossível!

   Lazarus estava enganado. Não havia a mais remota possibilidade de acasalamento entre os terrenos e os nativos, mas não havia obstáculos, se houvesse uma afinidade emocional, a que um humano mergulhasse num dos grupos, afogando a personalidade no ego dos muitos.

Mary Sperling, levada pela convicção da morte iminente, viu nos imortais egos de grupo uma saída. Confrontada com o eterno problema da vida e da morte, fugira ao problema sem escolher nenhuma das duas... o desprendimento. Encontrara um grupo desejoso de a receber, e integrara-se nele.

— Levanta uma quantidade de problemas novos — concluiu King. — Slayton, Zaccur e eu achámos melhor que estivesse cá.

— Sim, sim, claro... mas onde está Mary? — indagou Lazarus, e depois correu para fora da sala sem esperar pela resposta. Avançou pela colónia, ignorando tanto os cumprimentos como as tentativas de o fazer parar. A uma curta distância do acampamento tropeçou num nativo. Parou com uma derrapagem. — Onde está Mary Sperling?

— “...eu sou Mary Sperling...”

— Pelo amor de... Não podes ser.

— “...eu sou Mary Sperling e Mary Sperling é eu próprio... não me conheces, Lazarus?... eu conheço-te...”

Lazarus agitou as mãos.

— Não! Quero ver a Mary Sperling que tem aspecto terreno... como eu!

O nativo hesitou.

— “...segue-me, então...”

Lazarus encontrou-a a uma grande distância do acampamento; era evidente que ela evitava os outros colonos.

— Mary!

Ela respondeu-lhe, de mente a mente:

— “...lamento ver-te perturbado... Mary Sperling desapareceu, excepto no que dela é parte de nós...”

— Oh, deixa-te disso, Mary! Não me venhas com essas coisas! Não me conheces?

— “...claro que te conheço, Lazarus... és tu que não me conheces... não perturbes a tua alma nem faças sofrer o teu coração com a vista deste corpo à tua frente... não pertenço à tua espécie... sou nativa deste planeta...”

— Mary — insistiu ele —, tens de desfazer isto. Tens de sair daí!

Ela abanou a cabeça, um gesto estranhamente humano, porque a

face não conservava nenhum traço de expressão humana; era uma máscara de alienação.

— “...isso é impossível... Mary Sperling partiu... a que fala contigo é inextrincavelmente eu mesmo, e não da tua espécie...” — A criatura que fora Mary Sperling virou-se e partiu.

— Mary! — gritou ele. O coração saltou por sobre uma vala de séculos, até à noite em que a mãe morrera. Cobriu o rosto com as mãos e chorou a inconsolável dor de uma criança.

 

Lazarus encontrou King e Barstow à espera dele, quando regressou. King olhou-lhe para a face.

— Podia ter-te dito — disse, sobriamente —, mas tu não quiseste esperar.

— Esquece — disse Lazarus rispidamente. — E, agora?

— Lazarus, há outra coisa que tens de ver antes de falarmos — respondeu Barstow.

— Está bem. Que é?

— Vem ver. — Conduziram-no a um compartimento da nave que era usada como quartel-general. Contrariamente aos costumes das Famílias, estava fechado à chave. King abriu a porta e deixou-os entrar. Estava lá dentro uma mulher, que, quando os viu, se retirou silenciosamente, trancando novamente a porta quando saiu.

— Olha para aquilo — ordenou Barstow.

Era uma criatura viva numa incubadora — uma criança, mas lima criança como nunca fora vista nenhuma antes. Lazarus olhou-a esgazeado, depois disse zangado: — Que diabo é aquilo?

— Vê por ti. Pega-lhe. Não a magoas.

Lazarus obedeceu, cautelosamente a princípio, depois sem evitar o contacto, à medida que a curiosidade aumentava. Q que era aquilo, não sabia dizer. Não era humano; também não era certamente descendência dos pequeninos. Teria este planeta, como o anterior, uma raça até ali não suspeitada? Era semelhante ao homem, no entanto não era certamente cria dos homens. Faltava-lhe até o narizinho em botão dos bebés, nem tinha orelhas visíveis. Havia órgãos na localização habitual de cada uma, mas embutidos no crânio, protegidos por saliências ósseas. As mãos tinham dedos a mais e um extra grande, perto de cada pulso, que terminava num aglomerado de vermes cor-de-rosa.

Havia algo estranho quanto ao tronco da criança que Lazarus não conseguia definir. Mas dois outros factos de peso eram evidentes: as pernas não acabavam em pés humanos, mas em terminações calosas, sem dedos... cascos. E a criatura era hermafrodita — não como deformação, mas num desenvolvimento saudável, um andrógino.

— Que é isto? — repetiu ele, o espírito cheio de viva suspeita.

— Isso — disse Zaccur — é Marion Schmidt, nascida há três semanas.

— Hã? Que queres dizer?

— Quero dizer que os pequeninos são tão espertos a manipular-nos como a manipular plantas.

— O quê? Mas eles concordaram em deixar-nos em paz!

   — Não tenhas muita pressa em censurá-los. Nós prestámo-nos a isso. A ideia original era fazer apenas alguns melhoramentos.

   — “Melhoramentos!” Aquela coisa é uma obscenidade.

   — Sim e não. O meu ‘estômago revolve-se de cada vez que a tenho de olhar... mas, na realidade... bem, é uma espécie de super-homem. A arquitectura do corpo foi redesenhada para uma maior eficiência, os nossos inúteis apêndices simiescos desapareceram e os órgãos foram rearranjados de um modo mais sensato. Não podes dizer que não é humano, porque é... um modelo aperfeiçoado. Repara naquele apêndice extra, no pulso. É outra mão, em miniatura... reforçada com um olho microscópico. Vês que útil seria, uma vez que te habituasses à ideia. — Barstow fitou-a. — Mas, a mim, parece-me horroroso.

   — Pareceria horroroso a toda a gente — afirmou Lazarus. — Pode ser que seja um melhoramento, mas, raios o partam, não é humano.

   — De qualquer modo, cria um problema.

   — Ai, lá isso! — Lazarus olhou novamente. — Tu dizes que tem um segundo conjunto de olhos naquelas mãos pequeninas? Não parece possível.

   Barstow encolheu os ombros.

   — Não sou biólogo. Mas cada célula do corpo contém um feixe completo de cromossomas. Suponho que se poderia fazer crescer olhos, ou ossos, ou qualquer outra coisa que se quisesse, em qualquer lado, se soubéssemos como manipular os genes dos cromossomas. E eles sabem.

   — Eu não quero ser manipulado!

   — Nem eu!

   Lazarus estava de pé na encosta e olhava a enorme praia, numa reunião geral das Famílias.

   — Tenho — começou ele formalmente, depois pareceu confuso. — Chega aqui, Andy. — Murmurou qualquer coisa a Libby; este pareceu triste e murmurou em resposta. Lazarus pareceu exasperado e voltou a murmurar. Finalmente, endireitou-se e recomeçou.

   — Tenho duzentos e quarenta e um anos... pelo menos — afirmou ele. — Há aqui alguém mais velho? — Era uma formalidade sem sentido; sabia que era o mais velho; sentia-se com o dobro da idade. — A sessão está aberta — continuou, a voz forte ressoando pela praia, com o auxílio dos sistemas de som da nave. — Quem é o presidente?

   — Anda lá com isso — gritou alguém do meio da multidão.

   — Muito bem — disse Lazarus —, Zaccur Barstow!

   Por trás de Lazarus, um técnico apontou um microfone direccional a Barstow.

   — Zaccur Barstow — ressoou a voz —, falando em meu próprio nome. Alguns de nós começaram a crer que este planeta, agradável como é, não é lugar para nós. Todos sabemos de Mary Sperling; viram estéreos da Marion Schmidt; tem havido outras coisas e não quero complicar. Mas emigrar levanta outra questão, a questão de para onde? Lazarus Long propõe que regressemos à Terra. Numa tal... — As palavras dele foram afogadas pelo barulho da multidão.

   Lazarus gritou que se calassem.

   — Ninguém será forçado a partir. Mas se o número dos que querem partir justificar que se leve a nave, então podemos levá-la. Eu digo voltemos para a Terra. Alguns dizem procure-se outro planeta. É isso que terá de se decidir. Mas, primeiro... quantos pensam como eu quanto a sair daqui?

   — Eu! — Muitos outros fizeram eco a este grito. Lazarus olhou na direcção do primeiro homem a gritar, tentou localizá-lo, olhou por cima do ombro para o téc, depois apontou:

   — Prossegue, mano — ordenou ele. — O resto não pia.

   — Nome: Oliver Schmidt. Há meses que estou à espera que alguém sugira isto. Pensei que era o único desmancha-prazeres das Famílias. Não tenho nenhuma razão especial para partir... não me assusta o caso da Mary Sperling, nem a Marion Schmidt. Quem gostar dessas coisas é livre para as fazer... vive e deixa viver. Mas tenho uma vontade louca de rever Cincinnati. Estou farto deste sítio. Estou cansado de não fazer nada. Que raio, quero trabalhar para viver! De acordo com os geneticistas das Famílias ainda estou aqui para outro século. Não consigo ver-me a passar todo esse tempo deitado ao sol e a sonhar acordado.

   Quando ele se calou, pelo menos mil outros tentaram ter a palavra.

   — Calma! Calma! — comandou Lazarus. — Se toda a gente quiser falar, serei obrigado a ouvir só os representantes das Famílias. Mas vamos fazer uma amostragem ao acaso. — Escolheu outro homem, disse-lhe para falar.

   — Não demoro muito tempo — disse o novo orador —, visto que concordo com Oliver Schmidt. Queria só mencionar a minha razão pessoal. Alguns de vocês têm saudades da Lua? Lá na Terra eu costumava sentar-me na varanda, nas noites quentes de Verão, e fumar e olhar para a Lua. Não sabia que era importante para mim, mas é. Quero um planeta com uma lua.

   O orador seguinte só disse:

   — Este caso da Mary Sperling deu-me cabo dos nervos. Tenho pesadelos em que me vejo a integrar-me.

   Os argumentos prosseguiram. Alguém sublinhou que eles tinham sido corridos da Terra; que é que os fazia pensar que os deixariam voltar? Lazarus respondeu:

   — Aprendemos’ bastante com os Jockaira e agora aprendemos muito mais com os pequeninos... coisas que nos colocam muito à frente de tudo o que os cientistas lá da Terra tenham sonhado. Podemos voltar à Terra equipados para aguentar. Estaremos em posição de exigir o cumprimento dos nossos direitos, suficientemente fortes para os defender.

   — Lazarus Long... — era outra voz.

   — Sim — aceitou Lazarus. — Tu aí, continua.

   — Estou demasiado velho para fazer mais saltos de estrela em estrela, e ainda mais velho para lutar no final de um salto assim. Seja o que for que os outros fizerem, eu fico.

   — Nesse caso — disse Lazarus —, não há necessidade nenhuma de discutir, ou há?

   — Tenho o direito de falar.

   — Está bem, já falaste. Agora dá oportunidade a outros.

   O sol pôs-se e as estrelas surgiram e ainda continuava a conversa. Lazarus sabia que não acabaria, a menos que ele fizesse alguma coisa por isso.

   — Está bem — gritou ele, ignorando os muitos que ainda queriam falar. — Talvez tenhamos de entregar isto aos conselhos de Famílias, mas vamos fazer uma votação experimental e ver com o que contamos. Todos os que querem voltar para a Terra afastem-se para a minha direita. Todos os que querem ficar vão pela praia para a minha esquerda. Todos os que querem partir à procura de outro planeta juntem-se aqui mesmo à minha frente. — Deixou-se cair para trás e disse ao téc de som. — Põe música para se despacharem.

   O tec acenou e a melodia saudosa da Valsa Triste suspirou por sobre a praia. Seguiu-se-lhe As Verdes Colinas da Terra. Zaccur Barstow virou-se para Lazarus.

   — Foste tu que escolheste a música.

   — Eu? — respondeu Lazarus com uma inocência impávida. — Sabes que não tenho ouvido musical, Zack.

   Mesmo com a música, a separação levou muito tempo. O último movimento da imortal Quinta tinha morrido muito antes de se terem finalmente dividido em três multidões.

   À esquerda estava reunido cerca de um décimo do número total, mostrando assim a intenção de ficar. Eram, na maioria, os velhos e os cansados, cuja areia estava prestes a acabar de correr. Com eles, uns quantos jovens que nunca tinham visto a Terra, mais uns salpicos das outras idades.

   No centro estava um grupo muito pequeno, não mais de trezentos, na maioria homens e umas quantas mulheres mais jovens, que assim votavam em fronteiras ainda mais novas.

   Mas a grande massa estava à direita de Lazarus. Ele olhou-os e viu uma nova vida nos rostos; isso aliviou-lhe o coração, porque tivera um medo terrível de ser quase o único a querer partir.

   Olhou de novo para o pequeno grupo, mais perto dele.

   — Parece que perderam a votação — disse só para eles, sem amplificação da voz. — Mas deixem lá, há sempre um novo dia. — Ficou à espera.

   Lentamente o grupo do meio começou a separar-se. Aos dois e aos três afastaram-se. Uns poucos, muito poucos, derivaram e foram juntar-se aos que ficavam; a maioria mergulhou no grupo da direita.

   Quando a divisão secundária terminou, Lazarus falou ao grupo mais pequeno, que estava à esquerda.

   — Está bem — disse muito docemente —, vocês... vocês, velhinhos, podem voltar para os prados e dormir. Nós temos planos para fazer.

   Lazarus deu então a palavra a Libby e deixou-o explicar à multidão maioritária que a viagem para casa não seria a cansativa viagem que fora a fuga da Terra, nem sequer o monótono segundo salto. Libby atribuiu todo o mérito a quem quase todo ele cabia, aos pequeninos. Tinham-lhe resolvido as dificuldades em lidar com o problema das velocidades, que aparentemente excediam a velocidade da luz. Se os pequeninos sabiam do que estavam a falar — e Libby tinha a certeza que sabiam —, parecia não haver limites para o que Libby decidiu chamar a “paraceleração” — “para” porque, como a propulsão de pressão da luz do próprio Libby, actuava em toda a massa uniformemente e era tão imperceptível aos sentidos como a gravitação, e “para” também porque a nave não passaria “através”, mas antes “à volta de” ou “para além do” espaço normal.

   — Não é tanto um caso de propulsão da nave, como de selecção no nível potencial adequado num hiperpleno n-dimensional de rt-mais-um possíveis...

   Lazarus interrompeu-o com firmeza.

   — Isso é do teu departamento, filho, e aí toda a gente confia em ti. Não temos preparação para discutir pontos subtis.

   — Eu ia só acrescentar...

   — Eu sei. Mas já estavas fora deste mundo quando te fiz parar.

   Alguém da multidão gritou mais uma pergunta.

   — Quando é que lá chegamos?

   — Não sei — confessou Libby, pensando na questão da maneira que Nancy Weatheral lha tinha posto há muito tempo. — Não posso dizer em que ano será... mas parecerão três semanas a contar de agora.

   Os preparativos consumiram muitos dias, simplesmente porque foram necessárias muitas idas e vindas das naves para os pôr a bordo. Houve uma falta ostensiva de despedidas cerimoniosas, porque os que ficavam tendiam a evitar os que partiam. A frieza alastrará entre os dois grupos; a divisão da praia destruíra amizades, desfizera mesmo casamentos temporários, causara muitos sentimentos magoados, amargura irrespondível. Talvez que o único aspecto desejável da divisão fosse o facto de os pais da mutante Marion Schmidt terem escolhido ficar.

   Lazarus tinha a seu cargo a última nave a sair. Pouco antes da altura em que contava levantar, sentiu que lhe tocavam no cotovelo.

   — Desculpe — disse um jovem. — O meu nome é Hubert Johnson. Eu quero ir também, mas tive de ficar com o outro grupo para evitar que a minha mãe tivesse um ataque. Se eu aparecer no último momento ainda posso ir?

   Lazarus olhou-o de cima a baixo.

   — Pareces-me suficientemente crescido para decidires sem me perguntares.

   — O senhor não compreende. Sou filho único e a minha mãe anda sempre em cima de mim. Tenho de me esgueirar antes que dê pela minha falta. Quanto tempo ainda...

   — Esta nave não espera por ninguém. E tu nunca mais consegues escapar. Entra para a nave.

   — Mas...

   — Entra! — O jovem entrou, com uma olhadela preocupada para trás, para a encosta. Havia muito a dizer quanto à ectogénese.

   Uma vez a bordo da Novas Fronteiras, Lazarus apresentou-se ao comandante King na sala de controlo.

   — Todos a bordo? — perguntou King.

   — Pois. Alguns que se decidiram à última hora, a favor e contra, e mais um passageiro no último décimo de segundo... uma mulher chamada Eleanor Johnson. Embora!

   King virou-se para Libby.

   — Embora, meu caro senhor.

   As estrelas piscaram e desvaneceram-se.

   Voaram sem visão, apenas com o talento único de Libby para os guiar. Se ele tinha dúvidas quanto à sua capacidade para os conduzir através da escuridão incaracterística do espaço exterior, guardou-as para si. No vigésimo terceiro dia da nave e décimo primeiro de para- celeração, as estrelas reapareceram todas nas velhas formações familiares — a Ursa Maior, a gigantesca Orion, a assimétrica Cruzeiro, a encantadora Plêiades, e mesmo em frente deles, resplandecendo de encontro à gelada gota da Via Láctea, estava uma luz dourada que tinha de ser o Sol.

   Lazarus tinha lágrimas nos olhos, pela segunda vez num mês.

   Não podiam limitar-se a ir ao encontro da Terra, estabelecer uma órbita de estacionamento e desembarcar; tinham primeiro que fazer as apostas. Além disso, precisavam primeiro de saber que tempo era.

   Libby pôde estabelecer rapidamente, pelas deslocações próprias das estrelas mais próximas, que deviam estar à volta do ano 3700 d. C.; sem instrumentos de observação precisos, recusou-se a comprometer-se mais. Mas uma vez chegados suficientemente perto do sistema solar, teve outro relógio; os próprios planetas formam um relógio de nove ponteiros.

   Para qualquer data há uma única configuração desses ponteiros, visto que nenhum período planetário é exactamente proporcional a outro. Plutão marca uma “hora” de um quarto de milénio; Júpiter faz o tiquetaque do “minuto” cósmico de doze anos; Mercúrio zune “ um “segundo” de cerca de noventa dias. Os outros “ponteiros” podem corrigir estas leituras — o período de Neptuno é tão rabugentamente diferente do de Plutão, que os dois apenas caem numa configuração aproximadamente repetida uma vez em cada setecentos e cinquenta e oito anos. O grande relógio pode ser lido com qualquer grau de exactidão desejada, em qualquer período — mas não é fácil de ler.

   Libby começou a consultá-lo assim que qualquer dos planetas podia ser visto. Resmungou com o problema.

   — Não há hipótese de conseguirmos apanhar Plutão — queixou-se a Lazarus —, e duvido que tenhamos Neptuno. Os planetas interiores dão-me uma série infinita de aproximações; sabes tão bem como eu que “infinito” é um termo que suplica por uma resposta. Que aborrecido!

   — Não estás a ver isso da maneira mais difícil, filho? Podes conseguir uma resposta prática. Ou deixa-me fazer a mim, e eu arranjo uma.

   — Claro que consigo arranjar uma resposta prática — disse Libby petulantemente —, se te satisfazes com isso. Mas...

   — Não me venhas com “mas”... que ano é, homem?

   — Hum? Vamos pôr isto assim. A estimativa de tempo na nave e a duração na Terra estiveram três vezes não relacionadas. Mas agora estão efectivamente síncronas de novo, de tal modo que passaram pouco mais de setenta e quatro anos desde que partimos.

   Lazarus deu um suspiro.

   — Por que é que não dizias isso? — Estivera a preocupar-se pensando que a Terra podia não estar reconhecível... podiam ter deitado abaixo Nova Iorque ou qualquer coisa assim. — Bolas, Andy, não me devias ter assustado tanto.

— Hum... — disse Libby. Não lhe interessava muito. Ficava apenas o delicioso problema de inventar uma matemática que descrevesse elegantemente dois grupos de factos aparentemente irreconciliáveis; as experiências de Michelson-Morley e o salto da Novas Fronteiras. Atirou-se a ele com satisfação. Hum... qual era o número mínimo de paradimensões indispensavelmente necessário para conter o pleno aumentado, usando um feixe de postulados que afirmassem ...

   Aquilo manteve-o satisfeito por um tempo considerável — tempo subjectivo, claro.

   A nave estava colocada numa órbita temporária a meio bilião de milhas do Sol, com um raio vector normal ao plano da elipse. Assim estacionados nos ângulos certos e suficientemente distantes da panqueca do sistema solar, estavam a salvo da mais remota hipótese de serem descobertos. Uma nave pequena encontrava-se equipada com a neopropulsão-Libby durante o salto e um grupo negociador foi enviado para baixo.

   Lazarus queria ir também; King recusou-se a permiti-lo, o que deixou Lazarus amuado. King dissera laconicamente:

   — Isto não é um grupo de assalto, Lazarus; isto é uma missão diplomática.

   — Que diabo, homem, eu sei ser diplomático quando compensa!

   — Sem dúvida. Mas vamos mandar um homem que não vá armado para a casa de banho.

   Ralph Schultz encabeçava o grupo, visto que os factores psicodinâmicos na Terra eram da máxima importância, mas acompanhavam-no especialistas legais, militares e técnicos. Se as Famílias tivessem de lutar por um espaço vital era necessário saber que espécie de tecnologia, que espécie de armas, iriam encontrar — mas era ainda mais necessário descobrir se era possível ou não achar uma plataforma pacífica. Schultz tinha autorização dos anciãos para oferecer um plano segundo o qual as Famílias colonizariam o escassamente povoado e retrógrado continente europeu. Mas era possível, e mesmo provável, que isso já tivesse sido feito na sua ausência, tendo em vista as meias-vidas radioactivas envolvidas. Schultz teria provavelmente de improvisar outro compromisso, dependendo das condições que encontrasse.

   Não havia novamente nada a fazer a não ser esperar.

   Lazarus aguentou-se na incerteza, roendo as unhas. Defendera publicamente que as Famílias tinham uma vantagem científica tão grande que podiam enfrentar e derrotar o melhor que a Terra pudesse oferecer. Interiormente, sabia que era um sofisma, tal como o sabiam todos os membros que tinham competência para julgar a matéria. Só o conhecimento não vence guerras. Os fanáticos ignorantes da Europa da Idade Média derrotaram a incomparavelmente mais elevada cultura islâmica; Arquimedes fora abatido por um soldado vulgar; os Bárbaros saquearam Roma. Libby, ou outro, podia inventar uma arma invencível a partir da sua massa de conhecimentos novos — ou não. E quem sabia que avanços teria feito a arte militar na Terra em três quartos de século?

   King, que tinha uma preparação militar, preocupava-se com a mesma coisa e ainda se preocupava mais com o pessoal com o qual teria de trabalhar. As Famílias seriam tudo menos legiões treinadas; a perspectiva de inculcar naqueles rabugentos individualistas qualquer arremedo de uma máquina de luta disciplinada tirava-lhe o sono.

   Nem sequer um ao outro King e Lazarus mencionaram estas dúvidas e receios; cada um deles tinha medo de que mencionar tais coisas fosse espalhar um veneno de medo pela nave. Mas não eram os únicos a preocupar-se; metade da população da nave compreendia a fraqueza da sua posição e calava-se apenas porque uma amarga resolução de voltar para casa, fosse como fosse, os dispunha a aceitar os riscos.

   — Comandante — disse Lazarus a King, duas semanas depois do grupo de Schultz se ter dirigido para a Terra —, já pensaste no que eles sentirão quanto à própria Novas Fronteiras?

   — Hã? Que queres dizer com isso?

   — Bem, nós roubámo-la. Pirataria.

   King pareceu ficar estupefacto.

   — Valha-me Deus! Pois roubámos! Sabes, foi há tanto tempo que me é difícil entender que houve tempo em que ela não foi a minha nave... ou lembrar-me que entrei nela a primeira vez por uma acção de pirataria. — Ficou pensativo, depois sorriu lugubremente. — Como serão as condições em Coventry nesta altura?

   — Rações muito magrinhas, imagino — disse Lazarus. — Mas nós juntamo-nos e safamo-nos. Não te rales... ainda não nos apanharam.

   — Achas que ligarão Slayton Ford ao caso? Seria duro depois de tudo o que ele passou.

   — Talvez não haja problema quanto a isso — respondeu Lazarus calmamente. — Enquanto o modo por que nos apoderámos da nave foi irregular, usámo-la de facto para os fins para que foi construída... para explorar as estrelas. E estamos a devolvê-la, intacta, muito antes de eles poderem contar com quaisquer resultados, e com uma nova propulsão espacial para acelerar. É mais do que eles teriam razão para esperar pelo preço que pagaram; portanto, podem decidir simplesmente esquecer o assunto e exibir o vitelo mais gordo.

   — Espero que sim — respondeu King com um ar de dúvida.

   O grupo de reconhecimento estava dois dias atrasado. Nenhum sinal deles foi recebido até emergirem no tempo espacial normal, mesmo antes da abordagem, já que ainda não fora inventado nenhum método de comunicação do parespaço para o ortoespaço. Enquanto procediam às manobras de abordagem, King recebeu o rosto de Ralph Schultz no ecrã da sala de controlo.

   — Olá, comandante! Daqui a pouco apresentamo-nos para fazer o relatório.

   — Dá-me já um resumo!

   — Não sei por onde começar. Mas está tudo bem... podemos voltar para casa!

   — Hã? Que foi isso? Repete!

   — Está tudo bem. Pertencemos outra vez ao Pacto. Compreende, já não há qualquer diferença. Toda a gente pertence às Famílias, agora...

   — Que é que isso quer dizer? — indagou King.

   — Eles têm-no.

   — Têm o quê?

   — O segredo da longevidade.

   — Hã? Fala que se entenda. Não há segredo nenhum. Nunca houve segredo nenhum.

   — Nós não tínhamos segredo nenhum... mas eles pensaram que sim. Portanto descobriram-no.

   — Explica-te melhor — insistiu o comandante King.

   — Comandante, isto não pode esperar até termos voltado à nave? — protestou Ralph Schultz. — Não sou nenhum biólogo. Trouxemos um representante do Governo... pode interrogá-lo a ele.

 

   King recebeu o representante da Terra no seu camarote. Notificara Zaccur Barstow e Justin Foote para estarem presentes em nome das Famílias e convidou o Dr. Gordon Hardy porque a natureza das espantosas notícias eram assunto para um biólogo. Libby estava lá enquanto oficial-chefe da nave; Slayton Ford foi convidado por causa do seu estatuto único, embora não conservasse nenhum cargo público nas Famílias desde a crise no templo de Kreel.

   Lazarus estava lá porque Lazarus queria estar lá, em funções estritamente privadas. Não fora convidado, mas mesmo o comandante King tinha relutância em interferir com as prerrogativas assumidas pelo membro mais velho.

   Ralph Schultz apresentou o embaixador da Terra à companhia reunida.

   — Este é o comandante King, o oficial no comando... e este é Miles Rodney, representante do conselho da Federação, ministro plenipotenciário e embaixador extraordinário, penso que é o que se lhe chamaria.

   — Muito longe disso — disse Rodney —, embora eu possa concordar com a parte do “extraordinário”. A situação carece absolutamente de precedentes. É uma honra conhecê-lo, Sr. Comandante.

   — Muito prazer em tê-lo a bordo, Sr. Embaixador.

   — E este é Zaccur Barstow, representando os administradores das Famílias Howard e Justin Foote, secretário dos administradores...

   — Serviço.

   — Ao serviço dos senhores.

   — Andrew Jackson Libby, oficial astrogador-chefe. Dr. Gordon Hardy, biólogo, que tem a seu cargo a investigação sobre as causas da velhice e da morte.

   — Posso prestar-lhe um serviço? — assentiu Hardy formalmente.

   — Ao serviço do senhor. Portanto o senhor é o biólogo-chefe. Houve uma altura em que podia ter prestado um serviço a toda a raça humana. Pense nisso... pense como as coisas poderiam ter sido diferentes. Mas, felizmente, a raça humana foi capaz de descobrir o segredo do prolongamento de vida sem o auxílio das Famílias Howard.

   Hardy pareceu vexado.

   — Que é que o senhor quer dizer? Quer dizer que ainda estão debaixo da ilusão de que nós tínhamos um segredo miraculoso para partilhar se quiséssemos?

   Rodney encolheu os ombros e esticou as mãos.

   — Na verdade, agora não há qualquer necessidade de manter a farsa, pois não? Os vossos resultados foram duplicados, independentemente.

   O comandante King interrompeu.

   — Só um momento... Ralph Schultz, a Federação ainda está convencida de que as nossas vidas longas têm um “segredo”? Não lhes disseste?

   Schultz ficou confuso.

   — Hum... isto é ridículo. O assunto quase não se pôs. Eles próprios já tinham longevidade controlada; já não estavam interessados em nós nesse aspecto. É verdade que ainda existia a crença de que as nossas vidas longas derivavam de uma manipulação e não da hereditariedade, mas eu corrigi essa impressão.

   — Aparentemente de uma maneira não muito completa, pelo que Miles Rodney acaba de dizer.

   — Aparentemente não. Não pus muito empenho nisso; era chover no molhado. As Famílias Howard e as suas vidas prolongadas já não são notícia na Terra. O interesse, tanto público como privado, está concentrado no facto de termos efectuado um salto interestelar bem sucedido.

   — Isso posso eu confirmar — asseverou Miles Rodney. — Cada cientista do sistema, cada cidadão aguarda com a maior sofreguidão a chegada da Novas Fronteiras. É a coisa mais importante, mais sensacional que aconteceu desde a primeira viagem á Lua. Os senhores são famosos... todos vós.

   Lazarus puxou Zaccur Barstow à parte e segredou qualquer coisa. Barstow ficou perturbado, depois acenou pensativamente.

   — Comandante — disse Barstow a King.

   — Sim, Zack.

   — Sugiro que peçamos ao nosso convidado que nos desculpe enquanto ouvimos a comunicação de Ralph Schultz.

   — Porquê?

   Barstow olhou para Rodney.

   — Penso que estaremos mais bem preparados para a discussão dos assuntos se tivermos sido informados pelo nosso próprio representante.

   King virou-se para Rodney.

   — Dá-nos licença, Sr. Embaixador?

   Lazarus intrometeu-se.

   — Deixa lá, comandante. O Zack falou bem, mas é demasiado delicado. Podemos deixar que o camarada Rodney fique por aqui e nós estendemos a linha. Diga-me, Miles: que prova tem de que o senhor e os seus compinchas descobriram uma maneira de viver tanto como nós?

   — Prova? — Rodney parecia estupefacto. — Por que é que pergunta... Com quem estou a falar? Quem é o senhor?

   Ralph Schultz interveio.

   — Desculpem... não tive oportunidade de acabar as apresentações. Miles Rodney, este é Lazarus Long, o mais velho.

   — Serviço. “O mais velho” quê?

   — Ele quis dizer apenas “o mais velho”, ponto — respondeu Lazarus. — Sou o membro mais velho. Quanto ao resto sou um cidadão normal.

   — O mais velho das Famílias Howard? O quê... o quê, o senhor deve ser o mais velho homem vivo... imagine!

   — Imagine o senhor — retorquiu Lazarus. — Eu deixei de me preocupar há cerca de duzentos anos. E que tal responder à minha pergunta?

   — Não posso deixar de me sentir impressionado. Faz-me sentir uma criancinha... e eu próprio não sou um jovem; faço cento e cinco anos em Junho.

   — Se puder provar a sua idade, pode responder à minha pergunta. Eu diria que tem quarenta. E então?

   — Bem, valha-me Deus, não esperava ser interrogado acerca deste ponto. Quer ver o meu bilhete de identidade?

   — Está a brincar? Tive cinquenta e tal bilhetes de identidade no meu tempo, todos com datas de nascimento falsas. Que mais é que nos pode dar?

   — Um momento, Lazarus — interveio o comandante King. — Qual é a finalidade da tua pergunta?

   Lazarus desviou a atenção de Rodney.

   — É assim, comandante: pirámo-nos do sistema solar para salvar a pele, porque os outros palermas pensavam que tínhamos inventado uma maneira de viver para sempre e se propunham arrancar-no-la mesmo que nos tivessem de matar a todos. Agora tudo é doçura e luz... é o que dizem. Mas é muito curioso que o pássaro que nos enviaram para fumar o cachimbo da paz connosco ainda esteja convencido de que nós temos o chamado “segredo”.

“Isso deu-me que pensar.

“Suponham que eles não descobriram maneira de evitar a morte por velhice, mas ainda estão agarrados à ideia de que nós a temos. Que melhor maneira de nos acalmar e nos tirar as suspeitas do que dizer-nos que já a têm até nos terem onde querem para nos fazerem novamente a pergunta?

Rodney resmungou:

— Que ideia disparatada! Comandante, não me parece que a minha missão seja aturar isto.

Lazarus olhou friamente.

— Era disparatada da primeira vez, camarada... mas aconteceu. Gato escaldado de água fria tem medo.

— Um momento, vocês os dois — ordenou King. — Ralph, que achas? Podias ter sido levado numa farsa?

Schultz, penalizado, pensou no caso.

— Não acho. — Fez uma pausa. — É difícil de dizer. Não posso julgar pelo aspecto, como não poderia distinguir os membros no meio de uma multidão de gente normal.

— Mas tu és psicólogo. Certamente terias detectado indicações de fraude, se ela existisse.

— Posso ser psicólogo, mas não sou fazedor de milagres e não sou telepata. Não estava à procura de fraude. — Sorriu timidamente. — E havia outro factor. Estava tão excitado com o regresso a casa que não estava nas melhores condições emocionais para notar discrepâncias, se as havia.

— Então não tens a certeza?

— Não. Estou emocionalmente convencido de que Miles Rodney está a falar verdade...

— E estou!

— ...e creio que algumas perguntas poderiam esclarecer o assunto. Ele afirma ter cento e cinco anos. Podemos verificar isso.

— Estou a ver — concordou King. — Hum... fazes tu as perguntas, Ralph?

— Devia ter cerca de trinta anos quando nós abandonámos a Terra, visto que estivemos ausentes quase setenta e cinco anos, tempo da Terra. Lembra-se do facto?

— Com muita nitidez. Eu trabalhava na Torre Novak na altura, nos escritórios do administrador.

SIayton Ford ficara afastado durante a discussão e não fizera nada que chamasse a atenção sobre ele. Com a resposta de Rodney, endireitou-se na cadeira.

— Um momento, comandante...

— Ah? Sim?

   — Talvez eu possa encurtar isto. Dá-me licença, Ralph? — Virou-se para o representante da Terra: — Quem sou eu?

   Rodney olhou para ele com algum espanto. A expressão passou de simples surpresa com a estranha pergunta para a de completo e incrédulo assombro.

   — Mas o senhor... o senhor é o administrador Ford!

 

   — Um de cada vez! Um de cada vez — dizia o comandante King. — Não tentem falar todos ao mesmo tempo. Continue, Slayton; tem a palavra. Conhece este homem?

   Ford olhou Rodney da cabeça aos pés.

   — Não, não posso dizer que o conheça.

   — Então é uma aldrabice. — King virou-se para Rodney. — Suponho que reconheceu Ford de estéreos históricos... Acertei?

   Rodney parecia prestes a explodir.

   — Não! Reconheci-o. Ele mudou, mas eu conhecia-o. Sr. Administrador... olhe para mim, por favor! Não me conhece? Trabalhei para si!

   — Parece bastante evidente que ele não o conhece — disse King secamente.

   Ford abanou a cabeça.

   — Isso não prova nada, de uma maneira ou de outra, comandante. Havia mais de dois mil funcionários civis no meu ministério. Rodney pode ter sido um deles. A cara dele é-me vagamente familiar, mas muitas caras o são.

   — Comandante... — era o Dr. Gordon Hardy que falava. — Se eu puder interrogar Miles Rodney, talvez possa dar uma opinião quanto à veracidade da afirmação de que descobriram algo de novo sobre as causas da velhice e da morte.

   Rodney abanou a cabeça.

   — Não sou biólogo. Conseguia baralhar-me em menos de um segundo. Comandante King, peço-lhe que trate do meu regresso à Terra, o mais depressa possível. Não me sujeito mais a isto. E deixe-me acrescentar que não me interessa nem um bocadinho que o senhor e a sua... a sua bela tripulação voltem algum dia à civilização. Vim cá para ajudar, mas estou profundamente chocado. — E levantou-se.

   Slayton Ford foi ter com ele.

   — Calma, Miles Rodney, por favor! Seja paciente. Coloque-se na nossa posição. Seria igualmente cauteloso se tivesse passado pelo que nós passámos.

   Rodney hesitou.

   — Sr. Administrador, que está o senhor a fazer aqui?

   — É uma história longa e complicada. Conto-lha depois.

— É membro das Famílias Howard... tem de ser. Isso explica uma porção de coisas estranhas.

   Ford abanou a cabeça.

— Não, Miles Rodney, não sou. Depois, por favor... eu explico-lhe. Trabalhou para mim outrora... quando?

   — De 2109 até o senhor... hum, desaparecer.

   — Que é que fazia?

   — Na altura da crise de 2113 era assistente de correlação na Divisão de Estatísticas Económicas, Secção de Controlo.

   — Quem era o seu chefe de secção?

   — Leslie Waldron.

   — O velho Waldron, hem? De que cor era o cabelo dele?

   — O cabelo dele? O Walrus era careca como um ovo.

   Lazarus segredou a Zaccur Barstow:

   — Parece que eu não tinha razão, Zack.

   — Espere um bocadinho — segredou Barstow em resposta. — Pode ter sido bem preparado... eles podem ter sabido que Ford fugiu connosco.

   Ford continuava:

   — Que era A Vaca Sagrada?

   — A Vaca... chefe, o senhor não devia nem sequer sonhar que existia semelhante publicação!

   — Conceda ao meu serviço secreto o mérito de alguma actividade, pelo menos — disse Ford secamente. — Todas as semanas recebia o meu exemplar.

   — Mas que era isso? — indagou Lazarus.

   Rodney respondeu:

   — Uma folha cómica e bisbilhoteira do ministério, que era passada de mão em mão.

   — Dedicada a desancar os chefes — acrescentou Ford —, a mim, em especial. — Rodeou os ombros de Rodney com um braço. — Amigos, não há dúvida. Miles e eu fomos colegas de trabalho.

   — Ainda quero saber do novo processo de rejuvenescimento — insistiu o Dr. Hardy, algum tempo depois.

   — Penso que todos queremos — concordou King. Esticou-se e encheu de vinho o copo do convidado. — O senhor quer-nos falar disso?

   — Tentarei — respondeu Miles Rodney —, embora deva pedir ao Dr. Hardy que seja paciente comigo. Não é um processo, mas sim vários... um processo básico e várias dúzias de outros, alguns dos quais puramente cosméticos, especialmente para as mulheres. Nem o processo básico é verdadeiramente um processo de rejuvenescimento. Pode-se impedir o avanço da velhice, mas não é possível invertê-la a um grau significativo. Não se pode transformar um velho senil num rapaz.

   — Sim, sim — concordou Hardy. — Naturalmente... mas qual é o processo básico?

   — Consiste na substituição de todo o tecido de sangue de uma pessoa velha por sangue novo, jovem. A velhice, segundo me disseram, é basicamente um caso de acumulação progressiva dos venenos descarregados pelo metabolismo. O sangue devia eliminá-los, mas com o tempo fica tão sobrecarregado de venenos que o processo de desintoxicação não se faz eficazmente. É isto, Dr. Hardy?

   — Isso é uma maneira estranha de pôr as coisas, mas...

   — Eu disse-lhe que não era biotécnico.

   — ...essencialmente correcto. É um caso de défice da pressão difusora... o d.p.d. no sangue da parede de uma célula deve ser tal que mantenha uma inclinação bastante acentuada ou ocorrerá uma auto-intoxicação progressiva das células individuais. Mas devo dizer que me sinto um tanto desapontado, Miles Rodney. A ideia básica de afastar a morte, assegurando a eliminação dos produtos a eliminar, não é nova: tenho um bocado de coração de galinha que está vivo há dois séculos e meio através de técnicas equivalentes. Quanto ao uso de sangue jovem... sim, isso resulta. Mantive cobaias vivas por meio de doações de sangue até ao dobro do seu tempo de vida normal. — Parou e pareceu perturbado.

   — Sim, Dr. Hardy?

   Hardy mordeu os lábios.

   — Desisti dessa linha de investigação. Eram necessários vários dadores jovens para manter um beneficiário livre da velhice. Houve um efeito desfavorável, pequeno mas mensurável, em cada um dos dadores. Racialmente estava condenado ao fracasso; nunca haveria dadores em número suficiente para o aplicar. Devo compreender, Sr. Embaixador, que este método está por isso limitado a uma pequena parte selecta da população?

   — Oh, não! Não me fiz compreender, Dr. Hardy. Não há dadores.

   — Hum?

   — Sangue novo, que chega para todos, criado no exterior do corpo. O Serviço Público de Saúde e Longevidade pode fornecer quaisquer quantidades, qualquer grupo.

   Hardy pareceu sobressaltar-se.

   — Pensar que chegámos tão perto... então é isso. — Fez uma pausa e depois continuou: — Tentámos a cultura de tecidos da medula óssea in vitro. Devíamos ter persistido.

   — Não se sinta mal por isso. Biliões de créditos e dezenas de milhares de técnicos estiveram envolvidos neste projecto, antes de se obter qualquer resultado. Disseram-me que a massa de conhecimentos aplicados neste campo representa mais esforço do que as próprias técnicas de engenharia atómica. — Rodney sorriu. — Compreende, eles tinham de obter resultados; era politicamente necessário... portanto fez-se um esforço brutal. — Rodney virou-se para Ford. — Quando as notícias da fuga das Famílias Howard chegaram ao público, chefe, o seu precioso sucessor teve de ser protegido das multidões enfurecidas.

   Hardy insistiu com perguntas sobre as técnicas subsidiárias — enxertos de dentes, inibição de crescimento, terapia hormonal e muitas outras —, até que King veio em socorro de Rodney, salientando que o objectivo principal da visita era combinar os pormenores do regresso à Terra das Famílias.

   Rodney acenou.

   — Penso que nos devíamos atirar ao trabalho. Segundo depreendi, comandante, uma larga proporção da sua gente está agora em sonolência de temperatura reduzida?

   (— Por que é que ele não há de dizer “sono-frio”? — disse Lazarus a Libby.)

   — Sim, isso é verdade.

   — Então não seria mau para eles permanecerem nesse estado por algum tempo.

   — Hã? Por que é que o senhor diz isso?

   Rodney esticou as mãos.

   — A administração acha-se numa posição um tanto embaraçosa. Para falar claramente, há falta de casas. A absorção de cento e dez mil pessoas sem lar não pode ser feita de um dia para o outro.

   King teve novamente de os calar. Depois acenou a Zaccur Barstow, que se dirigiu a Rodney.

   — Não consigo ver o problema, Sr. Embaixador. Qual é a actual população da América do Norte?

   — Cerca de setecentos milhões.

   — E não consegue arranjar lugar para enfiar um sétimo de um por cento desse número? Parece absurdo.

   — O senhor não está a compreender — protestou Rodney. — A pressão demográfica tornou-se o nosso maior problema. Simultaneamente, o direito de não se ser incomodado no gozo da casa ou do apartamento tornou-se o mais zelosamente observado dos direitos civis. Antes de vos conseguirmos arranjar espaço habitacional adequado, teremos de transformar alguma extensão desértica ou outra solução qualquer.

   — Já entendi — disse Lazarus. — Política. Não se atrevem a incomodar ninguém com medo que eles refilem.

Isso é uma afirmação nada adequada ao caso.

   — Não é, hem? Será que vai haver alguma eleição geral dentro em breve?

   — Na realidade vai, mas não tem nada a ver com o assunto.

   Lazarus soprou desdenhosamente.

   Justin Foote falou:

   — A mim parece-me que a administração considerou este problema do modo mais superficial. Não é como se nós fôssemos imigrantes sem lar. A maioria dos membros possui casa própria. Como indubitavelmente sabe, as Famílias eram abastadas, mesmo ricas, e por razões óbvias construímos as nossas casas para durar. Tenho a certeza de que muitas dessas estruturas ainda estão de pé.

   — Sem dúvida — concedeu Rodney —, mas estão ocupadas.

   Justin Foote encolheu os ombros.

   — Que é que nós temos a ver com isso? Isso é um problema para o Governo resolver com as pessoas a quem ilegalmente permitiu que ocupassem as nossas casas. Quanto a mim, desembarcarei o mais cedo possível, obterei uma ordem de despejo do tribunal mais próximo e reocuparei a minha casa.

   — Isso não é fácil. Pode fazer omoletes com os ovos, mas não ovos a partir de uma omolete. Os senhores estão legalmente mortos há muitos anos; o presente ocupante da casa detém um título de propriedade válido.

   Justin Foote levantou-se e fulminou o enviado da Federação com o aspecto de “um rato entalado num canto”.

   — Legalmente mortos! Por decisão de quem, senhor, por decisão de quem? Minha? Eu era um advogado respeitado, exercendo tranquila e honrosamente a minha profissão, quando fui preso sem culpa formada e forçado a fugir para salvar a vida. Agora dizem-me descaradamente que os meus bens foram confiscados e que a minha própria existência legal, enquanto pessoa e cidadão, me foi retirada por causa da sequência dos acontecimentos. Que aplicação de justiça é esta? O Pacto ainda vigora?

   — O senhor entendeu-me mal. Eu...

   — Não entendi mal coisa nenhuma. Se a justiça só é ministrada quando é conveniente, então o Pacto não vale o pergaminho em que foi escrito. Farei de mim um teste, caro senhor, um teste para todos os membros das Famílias. A menos que os meus bens me sejam restituídos na totalidade e imediatamente, apresentarei queixa contra todos os funcionários que exerçam obstrução. Transformarei o caso numa cause célebre. Durante muitos anos suportei incómodos e indignidades e perigos; não me dissuadirão com palavras. Gritarei de cima dos telhados. — Parou para respirar.

   — Ele tem razão, Miles — intrometeu-se Slayton Ford tranquilamente. — O Governo faria melhor em arranjar algum modo adequado à resolução disto... e depressa.

Lazarus procurou o olhar de Libby e dirigiu-se silenciosamente para a porta. Os dois esgueiraram-se para fora.

— Justin vai mantê-los ocupados durante uma hora — disse ele. — Vamos até ao Clube agarrar umas calorias.

   — Tu realmente achas que fazemos bem em sair?

   — Descontrai-te. Se o patrão precisar de nós, pode gritar.

 

   Lazarus enfiou três sanduíches, duas doses de gelado e alguns biscoitos, enquanto Libby se contentou com um tanto menos. Lazarus ainda comia mais, mas foi forçado a responder a uma barragem de perguntas dos outros habitues do Clube.

   — O departamento do delegado ainda não está de facto a funcionar a cem por cento — queixou-se ele, enquanto enchia a terceira chávena de café. — Os pequeninos facilitaram-lhes demasiado a vida. Andy, gostas de chili com carne?

— Gosto.

   Lazarus limpou a boca.

   — Havia um restaurante em Tijuana que servia o melhor chili que alguma vez comi. Será que ainda lá está?

   — Onde é Tijuana? — indagou Margaret Weatheral.

   — Tu não te lembras da Terra, pois não, Peggy? Bem, querida, é na Baixa Califórnia. Sabes onde isso é?

   — Pensa que eu não estudei geografia? É em Los Angeles.

   — Aproximaste-te bastante. Talvez tenhas razão... agora.

   O sistema de comunicação da nave emitiu:

   “Astrogador-chefe... apresente-se ao comandante na sala de controlo!”

   — Sou eu! — disse Libby, e levantou-se apressadamente.

   A chamada repetiu-se, depois foi seguida por: “A todos... preparar para aceleração! A todos... preparar para aceleração!”

   — Aí vamos nós de novo, meninos. — Lazarus levantou-se, sacudiu o kilt e seguiu Libby, assobiando enquanto andava:

Califórnia, aqui vou eu De volta aonde parti...

   A nave estava a caminho, as estrelas desvaneciam-se. O comandante King deixara a sala de controlo, levando consigo o convidado, o enviado da Terra. Miles Rodney ficara muito impressionado; era muito provável que precisasse de uma bebida.

   Lazarus e Libby ficaram na sala de controlo. Não havia nada para fazer; durante aproximadamente quatro horas, tempo da nave, esta permaneceria no parespaço, antes de regressar ao espaço normal perto da Terra.

   Lazarus acendeu um cigarro.

   — Que estás a pensar fazer quando voltares, Andy?

   — Não pensei nisso.

   — É melhor começares a pensar. Houve mudanças.

   — Provavelmente volto para casa durante uns tempos. Não consigo acreditar que os Ozarks tenham mudado muito.

   — Os montes vão estar na mesma, creio eu. Podes descobrir é que as pessoas mudaram.

   — Como?

   — Lembras-te de eu te ter contado que ficara farto das Famílias e a modos que perdi o contacto com elas por um século? Em geral, tornaram-se tão enfatuadas e obstinadas que não as pude suportar. Receio que vás achar quase toda a gente assim, agora que contam viver para sempre. Investimentos a longo prazo, não te esqueças de levar as botas de borracha quando estiver a chover... esse género de coisas.

   — A ti não te afectou dessa maneira.

   — A minha aproximação foi diferente. Nunca tive uma razão de peso para viver para sempre. Afinal, como Gordon Hardy sublinhou, sou o resultado de apenas três gerações do plano Howard. Fiz a minha vida à medida que ia vivendo e não matei a cabeça com essas coisas. Mas não é a atitude habitual. Vê o Miles Rodney... com um medo de morte de agarrar uma situação nova com as duas mãos, por medo de criar um precedente e de pisar os privilégios estabelecidos.

   — Fiquei contente por ver o Justin fazer-lhe frente — Libby deu uma gargalhadinha abafada. — Não pensei que o Justin fosse capaz.

   — Nunca viste um cãozinho dizer a um canzarrâo para ir para o Inferno e sair do pátio do cãozinho?

   — Achas que o Justin vai ganhar?

   — Claro que vai, com a tua ajuda.

   — Com a minha?

   — Quem é que sabe alguma coisa da parapropulsão, para além do que me ensinaste?

   — Ditei as notas todas nos registos.

   — Mas não entregaste esses registos a Miles Rodney. A Terra precisa da tua propulsão para naves estelares, Andy. Ouviste o que Rodney disse acerca da pressão demográfica. Ralph esteve a contar-me que tem de se ter uma licença do Governo para se poder ter um bebé.

   — Que disparate!

   — Verdade. Podes ter a certeza de que haveria uma emigração tremenda se apenas houvesse alguns planetas decentes para emigrar. E é aí que entra a tua propulsão. Com ela, torna-se realmente fácil espalharmo-nos pelas estrelas. Vão ter de negociar.

— Não é bem a minha propulsão, claro. Os pequeninos é que a inventaram.

— Não sejas tão modesto. Tu é que a tens. E queres apoiar o Justin, não queres?

— Oh, claro.

— Então vamos usá-la para negociar. Talvez eu, pessoalmente, conduza as negociações. Mas isso não interessa. Alguém tem de se dedicar a um pouco de exploração antes de a emigração em larga escala começar. Vamos entrar no negócio de propriedade imobiliária, Andy. Marcamos este lado da galáxia e vemos o que é que tem para dar.

Libby coçou o nariz e pensou no assunto.

— Parece boa ideia, acho eu... depois de eu ir a casa.

— Não há pressa. Eu descubro um iatezinho simpático, perfeito, de cerca de dez mil toneladas, e adaptamos-lhe a tua propulsão.

— E que é que vamos usar como dinheiro?

— Arranjamos dinheiro. Eu monto uma sociedade-mãe, já que estou com a mão na massa, com estatutos suficientemente soltos para nos deixarem fazer o que quisermos. Haverá filiais para vários fins e descarregamos o lucro menor em cada uma. Depois...

— Isso está a ficar com ar de trabalho, Lazarus. Pensei que ia ser divertido.

— Bolas, nós não nos ralamos com estas coisas. Agarro alguém para dirigir a sede e se preocupar com os livros e as leis... alguém como o Justin. Talvez o próprio Justin.

— Bem, então está bem.

— Tu e eu vamos esbravejar por aí fora e ver o que há para ver. Vai ser divertido, sim senhor.

Ficaram ambos calados muito tempo, sem necessidade de falar. Então Lazarus disse:

— Andy...

— Hum?

— Vais-te meter naquela alambança do sangue-novo-para-os-velhos?

— Suponho que sim, se calhar.

— Estive a pensar nisso. Aqui para nós, já não sou tão rápido com os punhos como era há um século atrás. Talvez que o meu tempo natural se esteja a acabar. Uma coisa eu sei: não comecei a planear a nossa incursão na propriedade imobiliária antes de ouvir falar neste novo processo. Deu-me uma nova perspectiva. Dou por mim a pensar em termos de milhares de anos... e não era meu hábito preocupar-me com nada que fosse além de quarta-feira a oito dias.

Libby deu nova gargalhadinha.

   — Parece que estás a crescer.

   “Não é sem tempo. A sério, Andy, acho que é o que está a acontecer. Os últimos dois séculos e meio foram apenas a minha adolescência, por assim dizer. Há tanto tempo que cá ando e não sei mais acerca das respostas finais, das respostas importantes, do que a Peggy Weatheral. Os homens (a nossa espécie de homens), os homens da Terra, nunca tiveram tempo suficiente para agarrar as questões importantes. Montes de capacidade e tempo a menos para a usar como deve ser. No que respeita às questões importantes podíamos igualmente ser macacos.

   — De que maneira te propões agarrar as questões importantes?

   — Como hei-de eu saber? Pergunta-me outra vez daqui a quinhentos anos.

   — Achas que fará diferença?

   — Acho. De qualquer modo dá-me tempo para meter o nariz por aí e tirar alguns factos importantes. Vê os deuses dos Jockaira...

   — Não eram deuses, Lazarus. Não lhes devias chamar isso.

   — Claro que não eram... acho eu. O meu palpite é de que eram criaturas que tiveram o tempo suficiente para pensar a sério. Um dia, daqui a mil anos, tenciono ir direito ao templo de Kreel, olhá-lo nos olhos e dizer: “Viva, camarada! Que é que tu sabes que eu não saiba?”

   — Talvez não seja muito saudável.

   — De qualquer maneira, exibimo-nos. Nunca fiquei satisfeito com o resultado que lá tivemos. Não devia haver nada no universo inteiro em que o homem não pudesse meter o nariz... é assim que somos feitos, e presumo que há alguma razão para isso.

   — Talvez não haja razões.

   — Sim, talvez seja apenas uma piada monstra, sem sentido. — Lazarus levantou-se, espreguiçou-se e coçou as costelas. — Mas digo-te uma coisa, Andy: sejam quais forem as respostas, este é um macaco que vai continuar a trepar e a olhar à volta para ver o que puder durante tanto tempo quanto a árvore se aguentar.

 

1 Carpe diem, expressão latina que significa “goza o dia”. (N. do T.)

1 Em inglês foi usada a palavra guts, que significa “tripas” mas que, em sentido coloquial, é sinónimo de “coragem”. Daí o trocadilho. (N. da T.)

2 Trocadilho entre o nome próprio Waldron e walrus, que significa morsa, vaca-marinha. (N. da T.)

 

 

[1] Saiote de pregas usado pelos homens da Alta Escócia. (TV. da T.)

[2] As três estrelas visíveis no centro da constelação de Orion sâo vulgarmente designadas “Três Marias”. (N. do T.)

[3] 1 Em inglês, o autor usa um neologismo semelhante a partir de Doppler, nome de um físico e matemático austríaco da primeira metade do século XIX que se celebrizou com o princípio que tem o seu nome: se um corpo emissor de ondas se afasta do corpo que as recebe, o número de ondulações diminui. Se se aproxima, o número de ondulações aumenta. Em 1848, Fízeau precisou o princípio de Doppler, criando o princípio de Doppler-Fízeau, que se aplica em astronomia: quando uma estrela se aproxima de nós, as riscas espectrais deslocam-se para o violeta e quando se afasta deslocam-se para o vermelho e o desvio da risca é directamente proporcional à velocidade radial da estrela (entendendo-se por velocidade radial a componente do vector velocidade da estrela segundo a direcção do raio visual).

   Extraído da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. (N. da T.)

 

                                                                                            Robert Anson  

 

                      

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