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OS INGLESES NO POLO NORTE / Júlio Verne
OS INGLESES NO POLO NORTE / Júlio Verne

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Aventuras do Capitão Hatteras

Volume I

OS INGLESES NO POLO NORTE

 

           O «FORWARD»

«Amanhã, na vazante, parte de New Princes Docks, com destino desconhecido, o brigue "Forward", comandado pelo capitão K. Z., tendo como imediato Ricardo Shandon.»

 

O que deixamos transcrito podia ler-se no Liverpool Herald de 5 de Abril de 1860.

No porto mais comercial de Inglaterra é acontecimento de pouca importância a saída de um brigue. No meio de navios de todas as tonelagens e nacionalidades que mal cabem em duas léguas de docas, quem daria por tal?

E, no entanto, considerável multidão cobria, no dia 6 de Abril, desde pela manhã, o cais de New Princes Docks. Parecia que a numerosa corporação dos marítimos da cidade se tinha combinado encontrar-se ali. Os operários dos estaleiros circunvizinhos haviam abandonado os trabalhos, enquanto os comerciantes saíram detrás dos sombrios balcões e os armazenistas deixaram os seus armazéns desertos. Os ónibus de todas as cores, que seguem ao longo da parede exterior das docas, vazavam, minuto a minuto, dezenas e dezenas de curiosos. Parecia que a cidade inteira se preocupava então com um assunto único: assistir à saída do «Forward».

Era o «Forward» um brigue de cento e setenta toneladas, munido de uma hélice e de uma máquina a vapor de força de cento e vinte cavalos, que facilmente poderia ser confundido com os outros brigues do porto. Se não apresentava, porém, nada de extraordinário aos olhos do público, notavam nele, os conhecedores, certas particularidades, que eram indício seguro para os homens do mar.

A bordo do "Nautilus", ancorado próximo, entregava-se um grupo de marujos a mil conjecturas acerca do destino do "Forward".

- Que quererá dizer - observava um - aquela mastreação, que, na verdade, não é uso terem os navios a vapor tanto pano?

- Aquele navio-respondeu um cabo de marinheiros de cara larga e vermelhusca-decerto conta mais com os mastros do que com a máquina, e se deu tanto desenvolvimento às velas altas é porque as baixas têm de estar muitas vezes a coberto. Por consequência, cá por mim não há dúvida que o "Forward" é destinado aos mares árcticos ou antárcticos, que é onde as montanhas de gelo cobrem do vento mais do que convém a um sólido e valente navio.

- Parece-me que mestre Cornhill tem razão - acudiu um terceiro marinheiro. - E já notaste também aquela roda de proa como cai a direito no mar?

- E acrescento a isso - continuou mestre Cornhill - que está revestida de um gume de aço fundido, afiado como uma navalha de barba e capaz de abrir ao meio qualquer nau que o "Forward", lançado a toda a velocidade, apanhasse pelo costado.

- Com certeza - asseverou um piloto do Mersey - que o tal briguezinho, com a sua hélice, deita bem as suas catorze milhas por hora. Quando fez as viagens de experiência cortava a corrente que era uma maravilha vê-lo. Asseguro-vos que é um bom navio para correr.

- E à vela, então - prosseguiu mestre Cornhill-, isso é que é andar! Corta o vento a direito e governa-se à mão! É tão certo aquela embarcação ir provar dos mares polares como eu chamar-me Cornhill! E, senão, olhem mais uma prova. Já repararam na grande abertura por onde passa a cabeça do leme?

- É verdade - responderam os interlocutores de mestre Cornhill -, mas o que prova isso?

- Tudo isso é muito tentador - disse um dos marinheiros.

- O que isso prova, meus rapazes - replicou o mestre, com desdenhosa satisfação -, é que nenhum de vós sabe ver nem reflectir; o que isso prova é que quiseram dar folga à cabeça do leme para que facilmente se possa tirar e pôr. E então não sabem que é esta uma manobra que se repete muitas vezes no meio dos gelos?

- Bem pensado - concordaram todos os marinheiros do "Nautilus".

- E demais - acudiu um deles-, a carga do tal brigue não faz senão confirmar a opinião de mestre Cornhill. O que me disse Clifton, que teve a coragem de embarcar nele, é que o "Forward" leva mantimentos para cinco ou seis anos e carvão em proporção. Mantimentos, carvão e mais uma provisão de fatos de lã e de peles de foca, é em que consiste a carga toda.

- Que dizia eu? - disse mestre Cornhill.- Não há de que duvidar; mas enfim, ó amigo, visto que conheces Clifton, talvez que Clifton te tenha dito alguma coisa acerca do destino do navio?

- Nada me podia dizer; ele próprio o ignorava, e nessa mesma ignorância foi engajada toda a tripulação. Aonde vão? Só o hão-de saber quando lá chegarem.

- E é se o chegarem a saber - volveu um incrédulo. -Que talvez os leve o diabo antes disso, que é o que me está parecendo.

- Mas também que soldada - prosseguiu o amigo de Clifton, tomando calor-, que bela soldada! Cinco vezes a soldada usual! Ah, que se não fora isso, não teria Ricardo Shandon achado quem se quisesse engajar com tais condições! Um navio de forma estranha, que ninguém sabe para onde vai e que não parece ter grandes desejos de voltar! Cá por mim, era coisa que me não convinha.

, -Também, amigo, quer te conviesse, quer não-replicou mestre Cornhill-, nunca poderias fazer parte da tripulação do "Forward".

- Então porquê?

- Porque não estás nas condições requeridas. Chegaram-me cá uns zunzuns de que não admitem lá gente casada. E, como tu pertences à grande confraria, escusas de te estar a fazer de manto de seda, ou a fazer boquinhas de desdenhoso, o que aliás em ti seria uma habilidade de força.

O marinheiro assim interpelado pôs-se a rir com os camaradas, abrindo uma bocarra que demonstrava a boa aplicação do dito de mestre Cornhill.

- Até no nome - prosseguiu Cornhill, satisfeito da própria pessoa -, até no nome o tal navio é terrivelmente audacioso! O "Forward" *1, forward até onde? E, demais a mais, ninguém lhe conhece o capitão, ao tal brigue...

- Estais enganado, que é conhecido - rectificou um jovem marinheiro, de fisionomia assaz ingénua.

- Pois tu, pequeno - disse Cornhill -, ainda crês que Shandon seja o capitão do "Forward"?

- Mas... - objectou o jovem marinheiro.

- Fica, pois, sabendo que Shandon é apenas imediato, nada mais. É um valente e ousado marinheiro, um baleeiro que já deu provas de quanto vale, um firme companheiro em tudo digno de comandar, mas o facto é que não é ele quem comanda. Com o devido respeito, é tão capitão como tu ou eu! E enquanto àquele que depois de Deus há-de mandar a bordo, conhece-o ele tanto como nós outros. Quando chegar o momento oportuno, aparecerá o verdadeiro capitão, ninguém sabe como, nem eu sei de que praia dos dois mundos, porque Ricardo Shandon não disse, nem lhe deram licença para dizer, para que ponto do Globo havia de dirigir o navio.

- Asseguro-vos, todavia, mestre Cornhill - replicou o jovem marinheiro -, que alguém foi apresentado a bordo e se anunciou na carta em que era oferecido a Mr. Shandon o lugar de imediato!

- Como! - volveu Cornhill, franzindo o sobrolho. - Queres teimar que o "Forward" tem capitão a bordo?

- Tem, mestre Cornhill.

- Dizes-me isso, a mim?

- Certamente, porque o ouvi a Johnson, mestre a bordo do brigue.

- A mestre Johnson?

- Sim; disse-mo ele, a mim próprio!

 

*1. "Forward", avante.

 

- Disse-to ele, Johnson?

- Não só mo disse, mas até me mostrou o capitão.

- Mostrou-to! - estranhou Cornhill, estupefacto.

- Mostrou-mo!

- E viste-o, tu?

- Vi-o com os meus próprios olhos.

- Então quem é?

- É um cão.

- Um cão?!

- Um cão de quatro patas?

- É verdade!

Grande foi a estupefacção entre os marinheiros do "Nautilus". Em qualquer outra conjuntura teriam todos rebentado a rir. Um cão, capitão de um brigue de cento e setenta toneladas! O caso não era para menos! Mas, à fé, que era tão extraordinário navio o "Forward", que o caso, antes de ser negado e chasqueado, merecia reflexão. E, demais, nem o próprio mestre Cornhill se rira.

- E foi Johnson quem te mostrou esse capitão de tão novo género, esse cão? - insistiu o mestre, dirigindo-se ao jovem marinheiro. - E viste-o tu?...

- Com o devido respeito, como os estou agora vendo!

- Então, que vos parece? - perguntaram os marinheiros a mestre Cornhill.

- Não me parece nada - respondeu com rudeza este último -, não me parece nada senão que o "Forward" é um navio do diabo, ou de doidos dignos de irem para Bedlam *1!

Os marinheiros continuaram a contemplar em silêncio o "Forward", cujos preparativos de partida estavam quase a terminar; e não houve um só de entre eles que se lembrasse sequer de pensar que o mestre Johnson tinha zombado do jovem marinheiro.

Já a história do cão tinha corrido toda a cidade e, entre a multidão de curiosos, mais de um buscava com os olhos o tal capitain dog*2, não estando longe de acreditar que era algum animal sobrenatural.

Acrescente-se que havia muitos meses que o "Forward"

 

*1. Hospital de alienados em Londres.

  1. Cão capitão.

 

atraía sobre si a atenção pública. O que havia de tão extraordinário na construção daquele navio, o mistério que o envolvia, o incógnito que o capitão guardava, a forma por que Ricardo Shandon recebera a proposta de lhe dirigir o armamento, a cuidadosa escolha que se fizera para compor a tripulação, aquele destino desconhecido e apenas suspeitado por alguns, tudo contribuía para dar àquele brigue uma aparência mais que estranha. E para o pensador, para o filósofo, nada há que mais comova do que um navio a sair. A imaginação presta-se voluntária a segui-lo em todas as suas lutas com o mar, em todos os combates que trava com os ventos naquela carreira aventurosa, que nem sempre termina no porto, e por insignificante que seja o incidente desacostumado, que nessa conjuntura se ofereça, o navio apresenta-se sob forma fantástica, mesmo aos espíritos mais rebeldes no género fantasia.

Assim sucedeu ao "Forward". Se o vulgo dos espectadores não pôde nem soube fazer os sensatos comentários de mestre Cornhill, os diz-se, acumulados pelo espaço de três meses, foram vasta matéria para todas as conversações liverpulianas.

O brigue fora construído num estaleiro de Birkenhead, verdadeiro arrabalde da cidade, situado na margem esquerda do Mersey, e que está em comunicação com o porto pelo incessante vaivém de barcaças a vapor. O construtor Scott &: C.a, um dos mais hábeis de Inglaterra, recebera de Ricardo Shandon uma descrição e um plano pormenorizado, em que eram indicadas, com o maior cuidado, a tonelagem, as dimensões e o modelo do brigue.

Adivinha-se naquele projecto a perspicácia de um consumado marinheiro. E como Shandon tinha à sua disposição fundos consideráveis, começaram os trabalhos com rapidez, segundo a recomendação do proprietário desconhecido do navio.

O brigue ficou construído com uma solidez a toda a prova. Era evidentemente destinado a resistir a enormes pressões, porque, além de ser de madeira de teca, que é uma espécie de carvalho da índia, notável pela sua extrema dureza, era ligado por fortes cintas de ferro.

No mundo dos homens do mar até muitos perguntavam porque não seria todo de chapa de ferro, como o dos demais navios a vapor, o casco de um navio construído com tais condições de resistência. Ao que alguns respondiam que o misterioso engenheiro lá tinha as suas razões para assim proceder.

Pouco a pouco, foi o brigue tomando forma no estaleiro, e as suas qualidades de força e de finura deram na vista aos entendedores.

A sua roda de proa, como tinham notado os marinheiros do "Nautilus", fazia ângulo recto com a quilha e era revestida, não de um esporão, mas de um gume de aço fundido nas oficinas de R. Hawthorn, de Newcastle. Aquela proa de metal, a resplandecer ao sol, dava ao brigue, que aliás nada absolutamente tinha de navio de guerra, um aspecto particular. No entanto, instalou-se no castelo de proa um canhão de calibre 16, de rodízio, que facilmente poderia fazer pontaria em todas as direcções. Devemos acrescentar que tanto o canhão como a roda de proa, por mais que fizessem e se juntassem, não logravam apresentar aspecto positivamente guerreiro.

A 5 de Fevereiro de 1860 foi o estranho navio lançado ao mar, no meio de imensa concorrência de espectadores, com perfeito êxito.

Porém, se o brigue não era navio de guerra, nem navio mercante, nem iate de recreio, que não se fazem viagens de recreio com seis anos de mantimentos, que era então?

Seria navio destinado a procurar o "Erebus" e o "Terror" e Sir John Franklin? Ainda menos, porque no ano antecedente, 1859, voltara o comandante Mac Clintock dos mares árcticos, trazendo provas do malogro daquela expedição.

Quereria acaso o "Forward" tentar de novo a famosa passagem de noroeste? Para quê? Já o capitão Mac Clure a tinha descoberto em 1853, e o seu imediato Creswel foi o primeiro que teve a honra de seguir o contorno do continente americano, desde o estreito de Béringue até ao estreito de Davis.

E, todavia, era certo, para todas as pessoas competentes, que o "Forward" se preparava para afrontar a região dos gelos.

Tentaria ele ir para o lado do Pólo Sul, mais além do que o baleeiro Wedell, mais adiante do que o capitão James Ross? Mas para quê? Com que fim?

Apesar de ser muito restrito o campo das conjecturas, a imaginação ainda assim achava meio de nele se perder.

No dia seguinte àquele em que o brigue flutuou sobre as águas, chegou-lhe a máquina, expedida das oficinas de R. Hawthorn, de Newcastle.

Essa máquina, da força de cento e vinte cavalos e de cilindros oscilantes, ocupava pouco espaço. A sua força era considerável para um navio de cento e setenta toneladas, demais a mais abundante em pano, e que já à vela conseguia uma marcha notável. As viagens de ensaio não deixaram a menor dúvida a tal respeito, e até o mestre Johnson julgou conveniente exprimir ao amigo de Clifton a sua opinião da seguinte forma:

«Quando o "Forward" navega ao mesmo tempo à vela e a vapor, à vela é que chega mais depressa.»

O amigo de Clifton nada compreendera de tal proposição, mas da parte de um navio comandado por um cão em pessoa tudo reputava possível.

Depois da instalação da máquina a bordo, começou a arrumação dos aprovisionamentos, e não era coisa de pouca monta, que só mantimentos levava o navio para seis anos. Consistiam os víveres em carnes salgadas e secas, peixe fumado, bolacha e farinha. Lançaram-se nas despensas, em avalanchas, enormes montanhas de café e de chá. Ricardo Shandon presidia à distribuição daquela preciosa carga como homem entendido no assunto. Todos aqueles diferentes objectos ficaram arrumados, com seus rótulos e números, em perfeita ordem. Embarcou também uma grande provisão daquela preparação da índia a que chamam permmican *1, e que, num pequeno volume, contém grande número de elementos nutritivos.

A natureza destes mantimentos não deixava dúvida alguma acerca da longa duração da viagem. Um espírito observador, porém, compreendia, logo à primeira, que o "Forward" ia navegar nos mares polares,

 

*1. Conserva feita de carne seca, açúcar, passas e sebo.

 

à vista dos barris de lime juice*1, das pastilhas de cal, dos pacotes de mostarda, das sementes de azedas e de cocleária, numa palavra, à vista da abundância daqueles poderosos antiescorbúticos, cuja influência tão necessária é nas navegações austrais e boreais. Shandon recebera certamente ordem para ligar particular cuidado a esta parte da carga, porque muito se preocupam com ela, não menos do que com a farmácia de viagem.

Não eram numerosas as armas a bordo, circunstância própria para dar ânimo aos espíritos tímidos; em contrapartida, porém, ia atulhado, a deitar por fora, o paiol da pólvora, facto que os devia assustar.

O único canhão do castelo da proa não podia ter a pretensão de gastar aquele aprovisionamento.

O caso dava que pensar. Iam também a bordo seTras gigantescas e possantes maquinismos, tais como alavancas, maços de chumbo, serras de mão, machados enormes, etc, sem contar uma notável quantidade de blasting cylindefs *2, cuja explosão seria bastante para fazer voar pelos ares a alfândega de Liverpul. Tudo aquilo era estranho, senão assustador, não falando mesmo nos foguetes de sinais, fogos de artifício e faróis de mil diferentes espécies.

Os numerosos espectadores do cais de New Princes Docks admiravam também uma comprida baleeira de madeira do Brasil, uma piroga de folha, coberta de guta-percha, um certo número de halkett-boats, espécie de capotes de cauchu, que se podiam transformar em canoas, soprando-lhes no forro. Todos se sentiam cada vez mais enredados, e mesmo comovidos, porque com a baixa-mar ia em breve sair o "Forward" para o seu destino misterioso.

 

 

*1. Sumo de limão.

  1. Espécie de petardos.

 

               UMA CARTA INESPERADA

Eis o texto da carta que Ricardo Shandon recebera oito meses antes:

«Aberdeen, 2 de Agosto de 1859. Sr. Ricardo Shandon. Senhor:

Liverpul.

Tem a presente por fim notificar-vos um depósito de dezasseis mil libras esterlinas feito em mãos dos Srs. Mar-cuart & C.a, banqueiros em Liverpul. Incluso remeto um livro de cheques, por mim assinados, por meio dos quais podereis sacar sobre os ditos Srs. Marcuart as quantias que forem necessárias até perfazer a de dezasseis mil libras esterlinas supramencionadas.

Não me conheceis. Importa pouco. Conheço-vos eu, que é realmente o importante.

Ofereço-vos o lugar de imediato, a bordo do brigue "Forward", para uma campanha que pode ser longa e cheia de perigos.

Se dizeis não, nada feito. Se dizeis sim, estipulam-se-vos quinhentas libras de ordenado, que no fim de cada ano que durar a campanha será aumentado com um décimo.

O brigue "Forward" ainda não existe. Tereis vós de o fazer construir, por forma que esteja pronto a seguir viagem nos primeiros dias de Abril de 1860, o mais tardar. Remeto incluso um plano pormenorizado e memória descritiva para a construção. Deveis segui-lo escrupulosamente. O navio deve ser construído nos estaleiros dos Srs. Scott & C.a, que convosco se ajustarão.

Especialmente vos recomendo a tripulação do "Forward", que deve ser composta de um capitão, eu, de um imediato, vós, de um terceiro-oficial, de um mestre, de dois engenheiros maquinistas, de um icemaster*1, de oito marinheiros e de dois chegadores; ao todo dezoito homens, compreendendo neste número o Dr. Clawbonny, dessa cidade, que se vos há-de apresentar em tempo oportuno.

Convém que a gente escolhida para empreender campanha no "Forward" seja toda composta de ingleses, livres, sem família, celibatários, sóbrios, porque a bordo não será tolerado o uso das bebidas espirituosas, nem mesmo da cerveja, e prontos a meterem-se em todas as empresas, como a tudo aguentar e sofrer. Deveis escolher os homens de preferência entre os dotados de temperamento sanguíneo, que por isso mesmo têm em si próprios, em mais alto grau, o princípio gerador do calor animal.

Oferecer-lhes-eis uma soldada quíntupla da usual, com aumento de um décimo por cada ano de serviço. No fim da campanha cada um deles terá seguras quinhentas libras, e vós duas mil. Estas somas estão já depositadas em casa dos Srs. Marcuart &: C.a já mencionados.

A campanha há-de ser longa e trabalhosa, mas honrosa. Por consequência, Sr. Shandon, não tendes que hesitar.

Resposta pelo correio para Gotteborg (Suécia), com as iniciais K. Z.

  1. S. - A 15 de Fevereiro próximo haveis de receber um grande cão dinamarquês, de lábios pendentes, pêlo fulvo-escuro, transversalmente listrado de riscas negras. Instalá-lo-eis a bordo, e fá-lo-eis alimentar de sopas de pão de cevada feitas em caldo de sebo.

 

*1. Piloto de gelo.

 

Deveis acusar a recepção do sobredito cão para Livorno (Itália), com as mesmas iniciais acima.

O capitão do "Forward" apresentar-se-á e far-se-á conhecer em tempo útil. No momento da partida recebereis novas instruções.

     O capitão do "Forward", K. Z.»

 

                   O DR. CLAWBONNY

Ricardo Shandon era um bom marinheiro. Largo tempo comandara navios baleeiros nos mares árcticos, com reputação solidamente estabelecida em todo o Lancastre.

Com justo fundamento lhe devia causar espanto semelhante carta, e o facto é que lho causou, mas conservando ele a presença de espírito de quem tem corrido e visto muito mundo. Demais a mais, Shandon estava nas condições requeridas: não tinha mulher, nem filhos, nem pais. Homem inteiramente livre, se é que os há. Consequentemente, como não tinha de consultar ninguém, foi direito a casa dos banqueiros Marcuart & C.a.

«Se lá está o dinheiro», ia ele dizendo entre si, «o resto pouco custa a fazer.»

Foi recebido na casa bancária com as atenções devidas a um homem a quem esperam tranquilamente, num cofre, dezasseis mil libras esterlinas. Verificado este ponto, Shandon pediu uma folha de papel limpo e escreveu, com a sua letra graúda de homem do mar, uma aceitação em forma, que sobrescritou para a direcção indicada.

No mesmo dia entabulou negociações com os construtores de Birkenhead, e vinte e quatro horas depois estendia-se sobre os cavaletes do estaleiro a quilha do «For-ward".

Era Ricardo Shandon homem de uns quarenta anos, robusto, enérgico e valente, três excelentes qualidades para um homem do mar, porque dão confiança, vigor e presença de espírito.

Era geralmente conhecido o seu carácter cioso e áspero; por isso também entre os marinheiros era mais temido do que querido.

Não chegava, todavia, esta reputação a ser causa bastante, porque todos o conheciam como hábil em vencer dificuldades e perigos.

Arreceava-se Shandon de que o lado misterioso da empresa fosse de natureza a embaraçá-lo nas suas diligências.

Pensou, por consequência, entre si, que o melhor era não fazer muito barulho com o negócio, que podia dar com algum velho marinheiro amigo de saber o porquê e para quê de tudo; e como ele nada sabia, havia de ver-se em apuros para lhe dar réplica.

Nesta resolução, tratou Shandon de recrutar a tripulação, seguindo à risca as condições de família e estado de saúde exigidas pelo capitão.

Conhecia ele um belo rapaz, muito dedicado, bom marinheiro, chamado James Wall. Andaria pelos trinta anos, e não era aquela a primeira viagem que Wall fazia para os mares do Norte. Propôs-lhe Shandon o lugar de terceiro-oficial, que o outro aceitou a olhos fechados, porque o que Wall queria era navegar, pois do coração amava a vida do mar. Shandon contou-lhe o negócio com todas as suas particularidades, assim como a certo Johnson, que escolhera para mestre.

- Será o que Deus quiser - respondeu James Wall. - Para mim tudo é o mesmo. Se for para procurar a passagem de noroeste... ora!... outros de lá têm voltado.

- Nem todos - respondeu mestre Johnson. - Mas, enfim, não é isso razão para lá não ir.

- E demais - prosseguiu Shandon-, se é que não nos enganamos nas conjecturas que estamos fazendo, força é confessar que esta viagem é empreendida em condições boas. O tal "Forward" há-de ser um navio fino e, com uma boa máquina, pode ir longe. Dezoito homens de tripulação, é quanto basta.

- Dezoito homens - replicou mestre Johnson -, que eram tantos quantos o americano Kane tinha a bordo quando tentou a sua famosa exploração ao pólo.

- Apesar de tudo, sempre é bem singular que ainda haja um particular que tente atravessar o mar desde o estreito de Davis até ao de Béringue.

As expedições mandadas a procurar o almirante Franklin já têm custado à Inglaterra mais de sete milhões e sessenta mil libras, sem dar resultado prático algum! Quem diabo se meterá ainda a arriscar a fortuna própria em tal empresa?

- Em primeiro lugar, Johnson - tornou Shandon -, deves ter notado que estamos formando juízo por simples hipótese. Iremos nós, efectivamente, para os mares boreais ou austrais? Ignoro-o. Talvez se trate de tentar alguma descoberta nova. E, demais, qualquer destes dias há-de apresentar-se um tal Dr. Clawbonny, que sempre saberá mais alguma coisa do negócio e que decerto tem a seu cargo instruir-nos. Veremos.

- Esperemos então - disse mestre Johnson. - Cá por mim, comandante, vou em busca de rapazes firmes; e quanto ao princípio de calor animal, como o capitão diz, desde já fico por eles. Podeis fiar-vos de mim.

Este Johnson era um homem precioso; conhecia perfeitamente a navegação das altas latitudes. Servira como cabo de marinheiros a bordo do "Phenix", navio que fazia parte das expedições mandadas, em 1853, em busca de Franklin. Fora até testemunha, o valente marinheiro, da morte do tenente francês Bellot, de quem era companheiro da sua excursão através dos gelos. Johnson, que conhecia bem o pessoal marítimo do porto de Liverpul, pôs-se imediatamente em campo para recrutar a sua gente.

Tanto fizeram Shandon, Wall e ele que nos primeiros dias de Dezembro tinham a tripulação completa, mas não sem trabalho. Muitos houve que, sentindo-se, aliás, tentados pelo engodo de tão grande soldada, se assustavam com o futuro da expedição, e até alguns que, tendo-se resolutamente engajado, vieram depois, dissuadidos pelos amigos de se arrojarem a semelhante empresa, quebrar a palavra dada e tornar a entregar os adiantamentos já recebidos. O facto é que todos tentavam penetrar o mistério e apertavam com perguntas o comandante Ricardo, que os empurrava para mestre Johnson.

- Que queres que te diga, amigo? - respondia este invariavelmente. - Não sei mais do negócio do que tu. O caso é que hás-de ir em boa companhia; é tudo rapaziada firme e de boa feição. E já não é pouco, hem?! Portanto, basta de reflexões: é pegar ou largar!

E a maior parte aceitava.

- Bem deves perceber-acrescentava às vezes o mestre-que o meu trabalho é escolher. Uma boa soldada, como marinheiro algum se lembra de ter visto, e com a certeza de encontrar um bonito capital à volta. É caso para fazer vontade.

- De facto é - concordavam os marinheiros - que a coisa é de tentar! Ganhar numa viagem com que viver honradamente até ao fim da vida!

- Não te quero ocultar - prosseguiu Johnson - que a campanha há-de ser longa, trabalhosa e perigosa. Tudo isto está claramente explicado nas instruções que temos. Por consequência, é necessário que cada um saiba a que se obriga; muito provavelmente a tentar tudo quanto é humanamente possível fazer-se, ou talvez ainda mais! E, assim, se te não sentes com ânimo arrojado, com temperamento a toda a prova, se não assentas que tens vinte probabilidades de lá ficar contra uma, se tens empenho em deixar os ossos em qualquer lugar de preferência a outro, com mais gosto aqui do que além, meia volta à direita sobre os calcanhares, e é deixar lugar a algum mais atrevido!

- Mas, mestre Johnson - insistia o marinheiro, levado à parede-, ao menos conheceis o capitão?

- O capitão, amigo, até que se apresente outro, é Ricardo Shandon.

E, devemos dizê-lo, este era na realidade o verdadeiro pensamento do comandante, que facilmente se deixava embalar pela ideia de que, no último momento, receberia instruções bem precisas acerca do fim da viagem, ficando na qualidade de chefe a bordo do "Forward". Comprazia-se até em dar corpo àquela opinião, exprimindo-a ora em conversa com os seus oficiais, ora vigiando os trabalhos da construção do brigue, cujos primeiros braços das cavernas se erguiam no estaleiro, como costelas de uma baleia deitada de costas.

Tanto Shandon como Johnson tinham seguido estritamente as recomendações do capitão, no que dizia respeito ao estado de saúde dos homens da tripulação.

Todos eles tinham uma presença de tranquilizar e possuíam um princípio de calor capaz de aquecer a máquina do "Forward". Pela elasticidade dos membros, pela tez clara e corada, demonstravam ser próprios para reagir contra os frios mais intensos. Eram homens cheios de confiança e de resolução, enérgicos e de robusta construção. Nem todos tinham, porém, igual vigor. Com respeito a alguns até tinha Shandon hesitado em ajustá-los, tais como os marinheiros Gripper e Garry e o fisgador Simpson, que lhe pareceram um pouco magros; mas como, no fim de contas, a ossadura era boa e o ânimo rijo, assinou-se também a admissão destes.

Toda a tripulação pertencia à mesma seita da religião protestante. Nas longas campanhas é bom que a oração em comum e a leitura da Bíblia juntem num só pensar tantos espíritos diversos e os levantem nas horas de abatimento moral. Importa, pois, que não seja possível sequer a dissidência.

Conhecia Shandon, por experiência, a utilidade de tais práticas e a sua influência sobre o moral de uma tripulação, práticas aliás usadas a bordo de todos os navios que vão invernar nos mares polares.

Composta a equipagem, Shandon e os seus dois oficiais começaram a tratar de provisões, no que seguiram à risca as instruções do capitão, instruções claras, precisas, circunstanciadas, em que até o mais insignificante artigo estava indicado em quantidade e qualidade. O comandante, graças aos cheques que tinha em seu poder, pôde comprar tudo a pronto pagamento, o que lhe rendeu um bónus de oito por cento, que Ricardo escrupulosamente escriturou no haver de K. Z.

Tripulação, provimentos, cargas, tudo estava pronto em Janeiro de 1860; o "Forward" também já ia tomando forma de navio. Não passava um só dia que Shandon não fosse a Birkenhead.

A 23 de Janeiro, de manhã, segundo o costume, ia ele numa daquelas grandes barcaças a vapor, que têm dois lemes, um em cada extremidade, para evitarem o virar de bordo, e que fazem sem cessar o serviço da carreira, entre as duas margens do Mersey. Reinava então um daqueles nevoeiros habituais, que obrigam os marinheiros do rio a dirigir-se por meio da bússola, apesar de a viagem ser apenas de dez minutos.

O nevoeiro, todavia, apesar de cerrado, não pôde impedir a Shandon de ver um homem baixinho, gordo, de fisionomia fina e alegre, de olhar amável, que se dirigiu para ele e lhe tomou as duas mãos, apertando-as e sacudindo-as com um ardor, uma petulância, uma familiaridade «inteiramente meridional». Dir-se-ia francês.

Aquela personagem, porém, não era do Meio-Dia, mas ninguém o havia de crer; falava e gesticulava com extrema volubilidade. Parecia que, se qualquer pensamento, que internamente o agitasse, se não traduzisse no exterior, a máquina corria perigo de com ele rebentar. Os olhos pequenos, como os de todo o homem de engenho, e a boca grande e móvel, eram como outras tantas válvulas de segurança, que lhe davam saída àquele excedente de si próprio. Falava tanto e com tanta vivacidade, força é confessá-lo, que Shandon não percebia palavra.

Apesar disto, não tardou que o imediato do "Forward" reconhecesse aquele homenzinho que nunca vira. Fez-se-lhe repentina luz no espírito e, no momento em que o outro começava a tomar fôlego, Shandon pôde encaixar rapidamente estas palavras:

- O Dr. Clawbonny?

- O próprio em pessoa, comandante! Há já bem um quarto de hora que por vós procuro, que pergunto por vós por toda a parte e a toda a gente! Compreendeis a minha impaciência?! Se passam mais cinco minutos, perdia a cabeça! Afinal sois vós, comandante Ricardo? Existis realmente? Não sois um mito? Dai-me a vossa mão, que quero apertá-la ainda mais uma vez nas minhas! Sim, é esta na realidade a mão de Ricardo Shandon! E, havendo um comandante Ricardo, é porque existe também um brigue "Forward", que ele comanda; e se ele comanda, o brigue há-de partir; levará o Dr. Clawbonny a bordo!

- Efectivamente, doutor, sou Ricardo Shandon, existe um brigue chamado "Forward", e há-de partir!

- Tudo isso é lógico-respondeu o doutor, depois de tomar um bom fôlego-, é tudo lógico.

E é por isso que me vedes tão satisfeito: cheguei ao auge dos meus desejos! Há muito que esperava por uma ocorrência desta ordem para empreender uma viagem semelhante. E convosco, comandante...

- Se me dais licença... - interrompeu Shandon.

- Convosco - prosseguiu o Dr. Clawbonny, sem o atender -, estamos seguros de chegar longe e de não recuar sequer um passo.

- Porém... - ia dizendo Shandon.

- Porque já mostraste quanto valíeis, comandante, e eu conheço os vossos serviços. Ah, que sois um famoso marinheiro!

- Se me permitísseis...

- Não, não consinto que alguém, nem mesmo vós, por um instante sequer, ponha em dúvida a vossa audácia, a vossa bravura e a vossa habilidade! O capitão que vos escolheu para imediato é homem que sabe da poda, por isso fico eu!

- Mas não se trata disso agora - conseguiu dizer Shandon, já impaciente.

- De que se trata então? Não me façais consumir por muito tempo.

- Cos diabos, se me não deixais falar! Dizei-me, se fazeis favor, doutor, por que forma fostes convidado para fazer parte da expedição do "Forward"?

- Por carta, por uma estimável carta, que aqui tenho comigo, carta de um digno capitão, muito lacónica, mas muito suficiente!

E, dizendo isto, o doutor deu a Shandon uma carta concebida nos seguintes termos:

 

«Inverness, 22 de Janeiro de 1860.

Dr. Clawbonny.

Liverpul.

Se o Dr. Clawbonny quiser embarcar no "Forward", para uma longa campanha, pode apresentar-se ao imediato Ricardo Shandon, que já recebeu as devidas instruções a seu respeito.

   O capitão do "Forward", K. Z.»

 

- Chegou a carta esta manhã, e aqui estou eu já pronto a tomar lugar a bordo do "Forward".

- Mas, doutor - continuou Shandon -, sabeis ao menos qual é o fim desta viagem?

- A tal respeito nada sei; mas que me importa isso, contanto que vá a alguma parte! Dizem que sou um sábio e enganam-se, comandante: nada sei; e se alguns livros tenho publicado, que têm menos má venda, fiz mal. O público que os compra é que me faz muito favor! Repito-vos que nada sei, senão que sou um ignorante. E ofereceram-me meio de completar, ou, antes, de refazer os meus conhecimentos em medicina, em cirurgia, em história, em geografia, em botânica, em mineralogia, em conquiliologia, em geodesia, em química, em física, em mecânica e em hidrografia. Por consequência aceito, e asseguro-vos que me não faço rogado!

- Com que então - prosseguiu Shandon, tristemente desenganado -, também não sabeis para onde vai o "Forward"?

- Sei, comandante; sei que vai para onde haja que aprender, que descobrir, para onde haja em que se instruir, que comprar, para onde se encontrem outros costumes, outras regiões, outros povos para estudar no exercício das suas funções. Sei, numa palavra, que vai aonde eu nunca fui.

- Mas mais especialmente? - insistiu Shandon.

- Mais especialmente - replicou o doutor -, ouvi dizer que se fazia de vela para os mares boreais. Pois vá, vamos lá para o setentrião!

- Ao menos - inquiriu Shandon -, conheceis o capitão?

- Nem de longe nem de perto. Mas é um valente, que vo-lo asseguro eu!

Tendo o comandante e o doutor desembarcado em Birkenhead, o primeiro pôs o segundo ao facto da situação, cujo mistério mais incendiou a imaginação do doutor. A vista do brigue causou-lhe arrebatamentos de alegria. Desde aquele dia nunca mais largou Shandon, e todas as manhãs fazia a sua visita ao casco do "Forward".

Acrescente-se que foi especialmente encarregado de vigiar e fiscalizar a instalação da farmácia de bordo.

Porque o tal Clawbonny era médico, e até bom médico, verdade é que pouco prático. Doutor aos vinte e cinco anos, como qualquer outro, aos quarenta era um sábio; e, conhecido como era da cidade inteira, tornou-se membro influente da sociedade literária e filosófica de Liverpul. Permitia-lhe a sua pequena fortuna dar algumas consultas que, por serem gratuitas, nem por isso tinham menos valor. Benquisto como o deve ser um homem eminente, amável, nunca fizera mal a ninguém, nem a si próprio. Vivo e falador era ele, se quiserem, mas com o coração nas mãos e as mãos nas de toda a gente.

Logo que se espalhou a notícia da sua instalação a bordo do "Forward", os amigos, que tinha em grande número, tudo fizeram para o dissuadir, o que ainda mais o fez agarrar à sua ideia, e, quando o doutor se agarrava firmemente a qualquer coisa, era necessário ser mais que hábil para o desprender dela!

Desde aquele dia foram sempre crescendo os boatos, as suposições e os receios, o que não impediu o "Forward" de ser lançado à água em 5 de Fevereiro de 1860. Dois meses depois estava pronto a fazer-se ao mar.

A 15 de Março, como o anunciara a carta do capitão, foi expedido pelo caminho de ferro de Edimburgo a Liverpul, ao destinatário Ricardo Shandon, um cão de raça dinamarquesa. O animal parecia rosnador, pouco dado, e até um tanto sinistro pelo singular modo de olhar que tinha. Lia-se-lhe na coleira de cobre a palavra "Forward". O comandante instalou-o a bordo naquele mesmo dia e acusou a recepção do animal para Livorno com as iniciais indicadas.

Desta forma, exceptuando o capitão, estava completa a tripulação do "Forward", que se pode enumerar pela seguinte maneira:

 

1., K. Z., capitão; 2., Ricardo Shandon, imediato; 3., James Wall, terceiro-oficial; 4., Dr. Clawbonny; 5., Johnson, mestre; 6., Simpson, fisgador; 7., Bell, carpinteiro; 8., Brunton, primeiro-engenheiro maquinista; 9., Plover, segundo-engenheiro; 10., Strong (de cor negra), cozinheiro; 11.. Foker, icemaster; 12., Wolsten armeiro; 13., 14., 15., 16. e 17., Bolton, Garry, Clifton, Gripper e Pen, grumetes; 18., Waren, chegador.

 

                     O CÃO CAPITÃO

Com o alvorecer de 5 de Abril chegara o dia da saída. A admissão do doutor a bordo a todos fizera cobrar algum ânimo, que aonde o estimável sábio pretendesse ir todos podiam segui-lo. Sem embargo, continuava em inquietação o espírito da maioria da tripulação, e Shandon, temendo que a deserção lhe fizesse vagas a bordo, desejava vivamente achar-se no mar alto, pois que, em perdendo de vista a costa, a tripulação não tinha outro remédio senão conformar-se.

O camarote do Dr. Clawbonny estava situado no fundo do tombadilho e ocupava toda a popa do navio. Os camarotes do capitão e do imediato, esses, eram laterais e abriam para a coberta. A câmara do capitão, depois de guarnecida dos diversos instrumentos, de móveis, de vestuários de viagem, de livros, de fatos de sobresselente e de utensílios, tudo por ele especificado numa relação circunstanciada, permaneceu hermeticamente fechada. Segundo recomendara o desconhecido, remeteram-lhe para Lubeck a chave dessa câmara. Só ele, por consequência, podia entrar em sua casa.

Esta circunstância contrariava Shandon e tirava muitas probabilidades às suas esperanças de ser primeiro-comandante. O seu camarote tinha-o Ricardo apropriado perfeitamente às necessidades da suposta viagem, que as exigências de uma expedição polar conhecia-as ele bem a fundo.

O camarote do terceiro-oficial era na coberta, que na sua quase totalidade servia à maruja de dormitório, onde os homens estavam tanto à sua vontade, que a bordo de outro qualquer navio dificilmente encontrariam instalações mais cómodas. Tratados eram eles como carga de subido valor: até tinham no centro da sala comum um formidável fogão.

O Dr. Clawbonny, esse, estava todo entregue ao serviço que lhe dizia respeito e tomara posse do camarote, que lhe era destinado, a 6 de Fevereiro, no dia imediato àquele em que o "Forward" caíra na água.

- O caracol - dizia ele - seria o mais feliz de todos os animais se pudesse arranjar a casca a seu jeito; pois eu de que trato é de ser um caracol inteligente.

E o facto é que o camarote do doutor se ia ajeitando perfeitamente para servir de casca onde o animal tinha de viver por muito tempo. Clawbonny tirava da arrumação da sua bagagem científica prazeres de sábio e de criança. Livros, herbários, instrumentos de precisão, aparelhos de física, colecções especiais de termómetros, de barómetros, de higrómetros, de udómetros, de óculos, de agulhas, de sextantes, de cartas e de planos, vidros, pós e frascos da farmácia de viagem, aliás muito completa, tudo ia classificando em ordem tal que era capaz de envergonhar o British Museum. Aquele espaço de seis pés quadrados continha riquezas incalculáveis. O doutor não tinha mais que estender a mão, e isto sem se incomodar, para se tornar instantaneamente em médico, em matemático, em astrónomo, em geógrafo, em botânico ou em conquiliólogo.

Força é confessar que o doutor sentia-se ufano com os seus arranjos e satisfeito naquele seu santuário flutuante, que três amigos dele, e dos mais magros, encheriam se lá entrassem. E o caso é que estes em breve aí afluíram com abundância tal que se tornava incomodativa mesmo para o doutor, apesar da sua extrema tolerância, e que ele próprio chegou a dizer, ao contrário de Sócrates:

«É pequena a casa que tenho; oxalá, porém, que nunca estivesse cheia de amigos!»

Para dar o último traço na descrição do "Forward" bastará dizer que o nicho do canzarrão dinamarquês fora construído mesmo por debaixo da janela da câmara misteriosa.

O selvagem habitante dele, porém, preferia divagar pela coberta e pelo porão do navio. Parecia impossível amansá-lo; pelo menos ninguém até então conseguira domar-lhe o génio arisco. De noite, principalmente, ouviam-se-lhe soltar uivos lamentosos, que ressoavam de maneira sinistra nos ocos do navio.

Seriam saudades do dono ausente? Instinto, na proximidade de empreender perigosa viagem? Pressentimento de futuras desgraças? Era no sentido da última suposição que os marinheiros opinavam, e mais de um, que mofava do caso, muito a sério tinha o cão na conta de animal de espécie diabólica.

Tendo um dia Pen, homem aliás extremamente brutal, corrido para lhe bater, tão desgraçadamente embateu num ângulo do cabrestante que abriu na cabeça uma brecha horrorosa.

E, como é de supor, este incidente foi lançado à conta do fantástico animal.

Junte-se a isto que Clifton, o mais supersticioso de todos os homens da tripulação, fez a observação realmente singular de que o cão, quando estava no tombadilho, passeava sempre do lado de barlavento; e depois, quando o brigue entrou no mar alto e começou a bordejar, o surpreendente animal mudava de lugar depois de cada bordada, conservando-se sempre do lado de barlavento, como o fazia o capitão do "Forward".

Até o Dr. Clawbonny, cuja amenidade e carinho teriam amansado um tigre, tentou debalde alcançar as boas graças do cão, no que perdeu o tempo e o trabalho. Demais a mais, o animal não dava por nome algum dos inscritos no calendário cinegético. E foi assim que a gente de bordo acabou por lhe pôr o nome de "Capitão", porque parecia perfeitamente amestrado nos usos do mar. Evidentemente aquele cão já tinha embarcado.

Nestes termos, percebe-se a resposta zombeteira dada pelo mestre do navio ao amigo de Clifton e a razão por que aquela suposição não encontrou grande número de incrédulos; e mais de um a repetia, por graça, que lá no íntimo ainda esperava ver o cão retomar a forma humana, e com voz retumbante mandar a manobra.

Ricardo Shandon, se não sentia apreensões do mesmo género, não estava todavia livre de inquietações. Ainda na véspera da saída, em 5 de Abril, pela tarde, conversava ele a este respeito com o doutor, Wall e Johnson, no tombadilho.

Saboreavam então estes quatro sujeitos o décimo grogue, e temos por sem dúvida que seria o último, porque, segundo as prescrições da carta de Aberdeen, deviam ser teetotalers *1, isto é, não provariam a bordo vinho nem cerveja, nem bebida espirituosa alguma, excepto em caso de doença e com receita do doutor, todos os homens da tripulação, desde o capitão até ao chegador.

Havia já uma hora bem puxada que a conversação versava acerca da saída. Shandon, se se realizassem até final as instruções do capitão, devia receber no mesmo dia seguinte uma carta com as últimas ordens.

- Essa carta - dizia o comandante -, se me não disser o nome do capitão, ao menos há-de declarar-nos o destino do navio. Sem isso, para onde havia eu de dirigi-lo?

- Cá por mim - respondeu o impaciente doutor -, no vosso lugar, Shandon, saía mesmo sem carta. A carta lá iria atrás de nós. Por isso fico eu.

- Para vós tudo é fácil, doutor! Ora então fazei favor de me dizer para que ponto do Globo vos faríeis de vela?

- Para o Pólo Norte, evidentemente! Está visto, não há dúvida possível.

- Não há dúvida possível! - replicou Wall. - E porque não para o Pólo Sul?

- Para o Pólo Sul - exclamou o doutor -, por forma alguma! Pois o capitão havia de ter a lembrança de expor um brigue a atravessar todo o Atlântico? Ora, por favor, meu caro Wall, meditai um pouco!

- O doutor tem resposta para tudo-tornou este último.

- Pois será para o norte - continuou Shandon.- Mas dizei-me, doutor, será para Spitzberg? Será para a Gronelândia? Para Labrador? Para a baía de Hudson? Se é verdade que todos os caminhos vão dar ao mesmo fim, às montanhas de gelo, que a ninguém foi dado transpor, não é menos certo que são em grande número,

 

*1. Abstémios.

 

e bem embaraçado ficaria eu se tivesse de me decidir por um ou por outro. Tendes alguma resposta categórica a dar-me, doutor?

- Não - admitiu, vexado de nada ter que dizer -, mas enfim, concluamos: se não receberdes carta, que fareis?

- Nada; espero.

- Pois não haveis de partir?! - exclamou Clawbonny, gesticulando desesperadamente com o corpo.

- Decerto que não.

- E é o mais razoável - opinou mansamente mestre Johnson, enquanto o doutor passeava agitado em volta da mesa, por não poder estar quieto. - Sim, é o mais prudente; e, todavia, uma demora muito prolongada pode ter consequências desagradáveis; porque, em primeiro lugar, se a mansão vai boa, e se é do norte que se trata, devemos aproveitar a descongelação para passar o estreito de Davis; e, depois, a tripulação está cada vez mais inquieta. Amigos e camaradas da nossa gente, todos os aconselham a que deixem o "Forward", e com os tais conselhos podem pregar-nos uma grande peça.

- E o mais é - continuou James Wall - que, se se dá pânico na marinhagem, não há um só que não deserte; e ponho em dúvida, comandante, que conseguísseis recompor a tripulação.

- Que fazer então? - exclamou Shandon.

- O que disseste - replicou o doutor. - Esperar, mas esperar até amanhã, sem desesperança. Até hoje têm-se cumprido sempre as promessas do capitão com regularidade de bom agouro. Portanto, não há razão para crer que deixaremos de ser avisados do nosso destino em tempo oportuno. Cá por mim, nem por instantes duvido de que amanhã tenhamos de navegar através do mar da Irlanda; e por consequência, amigos, proponho que bebamos um último grogue à nossa feliz viagem, que começa, é verdade, por uma forma um tanto inexplicável, mas que, com homens do mar como vós sois, tem mil probabilidades contra uma de acabar bem.

E todos quatro fizeram uma última saúde.

- E agora, comandante - acudiu mestre Johnson-, se algum conselho entendo dever dar-vos é o de mandar preparar tudo para sair, pois é necessário que a tripulação vos julgue perfeitamente ao facto de tudo. Amanhã, venha ou não venha carta, é fazer-se de vela. É escusado acender fornalhas, que o vento parece estar de feição, e nada será mais fácil que navegar a todo o pano; à hora da maré, é meter o piloto a bordo, sair das docas e ir fundear além da ponte de Birkenhead. Assim não terão os nossos homens nenhuma espécie de comunicação com a terra. A diabólica carta, quando enfim chegar, tanto nos encontra aqui como noutra parte.

- Isto é que é falar, estimável Johnson! - interrompeu o doutor, estendendo a mão ao velho marinheiro..

- Pois seja como disse! - acedeu Shandon.

Em seguida, cada um tratou de se recolher ao seu camarote, esperando em agitado sono o nascer do Sol.

No dia seguinte, nenhuma das cartas das primeiras distribuições já feitas na cidade era sobrescritada para o comandante Ricardo Shandon.

Este, sem embargo, fez os seus preparativos para a saída. Espalhou-se logo a notícia em Liverpul e, como já vimos, correu ao cais de New Princes Docks uma afluência extraordinária de espectadores.

Muitos destes vieram a bordo do brigue, já para abraçar pela última vez um camarada, já para tentar ainda dissuadir um amigo; uns para lançar uma vista de olhos sobre aquele navio estranho, outros para conhecerem afinal o fim da viagem, e todos murmuravam por verem o comandante mais taciturno que nunca.

Razões tinha ele, e de sobejo, para proceder assim.

Soaram dez horas. Depois onze. A maré baixa era por volta da uma depois do meio-dia. Shandon lançava de cima do tombadilho um olhar rápido e inquieto pela multidão, procurando surpreender num qualquer daqueles semblantes o segredo do seu destino. Mas debalde. A marinhagem do "Forward" executava-lhe em silêncio as ordens, com os olhos fitos nele, esperando sempre a sua comunicação, que não havia maneira de chegar.

Mestre Johnson terminava os preparativos para largar. O tempo estava encoberto e o mar forte fora das docas; o vento soprava de sueste com certa insolência, mas não tornava difícil sair do Mersey.

Ao meio-dia, ainda nada. O Dr. Clawbonny passeava agitado, deitando o óculo, gesticulando, impaciente do mar, como ele próprio dizia, com certa elegância latina. Por mais que fizesse não podia tolher a comoção que o assaltava. Shandon mordia os lábios a ponto de fazer sangue.

Naquele momento aproximou-se Johnson e disse-lhe:

- Comandante, se quisermos aproveitar a maré, não temos tempo a perder, que o sair das docas ainda leva uma boa hora.

Shandon lançou em torno um último olhar e consultou o relógio. Era meio-dia exacto.

- Ala! - disse o comandante ao mestre.

- Safa! Safa! - gritou este, significando assim aos espectadores que saíssem do convés do "Forward".

Produziu-se então um certo movimento na multidão, que se atropelava na direcção dos portalós para sair do navio e voltar ao cais, enquanto a gente do brigue suspendia as últimas amarras.

A confusão inevitável dos curiosos, repelidos pela maruja sem mais formalidades, aumentou ainda mais com os uivos do cão. O animal saltou de um pulo do castelo de proa, através da massa compacta de visitantes, ladrando com voz surda.

Todos se afastaram diante dele, que saltou ao tombadilho, e, facto incrível, que mil testemunhas aliás puderam verificar, o "Capitão" trazia entre dentes uma carta.

- Uma carta! - exclamou Shandon. - Então está ele a bordo?

- Decerto que cá esteve, ele, mas já cá não está - replicou Johnson, mostrando-lhe a tolda completamente limpa da incómoda multidão de visitantes.

- Aqui! "Capitão"! Aqui! - exclamava o doutor, tentando tirar a carta, que o cão lhe distanciava das mãos, dando enormes saltos. Só a Shandon é que ele parecia querer entregar a missiva.

- Aqui, "Capitão"! - disse este.

O cão aproximou-se. Shandon tomou-lhe a carta, sem dificuldade, fazendo então "Capitão" ouvir três latidos no meio do silêncio profundo que reinava a bordo e no cais.

Shandon tinha a carta na mão, mas não se decidia a abri-la.

- Leia! Então, leia! - exclamou o doutor.

Shandon mirou o sobrescrito, sem data e sem indicação de lugar, que continha somente o seguinte:

«Comandante Ricardo Shandon, a bordo do brigue "Forward".»

Abriu a carta e leu:

 

"Dirigir-vos-eis para o cabo Farewell e esperareis até 20 de Abril. Se até então não aparecer o capitão a bordo, franqueareis o estreito de Davis e, navegando pelo mar de Baffin, demandareis a baía de Melville.

   O capitão do "Forward", K. Z.»

 

Shandon tornou a dobrar com o maior cuidado esta lacónica carta, meteu-a no bolso e deu ordem para largar. A voz do comandante, que então retumbou sozinha no meio dos silvos do vento leste, tinha o seu tanto de solene.

Em breve espaço o "Forward" saiu das docas e seguiu a corrente do Mersey, dirigido por um prático de Liverpul, cujo bote seguia a pouca distância. A turba dirigiu-se ao cais exterior, que corre ao longo das docas Vitória, a fim de enxergar pela última vez o estranho navio. Gáveas, traquete e velame desfraldaram-se num momento, e com este pano o "Forward", digno do seu nome, depois de dobrar a ponta de Birkenhead, entrou a toda a velocidade no mar da Irlanda.

 

                   O MAR ALTO

O vento, desigual, porém favorável, soprava fresco e de rajadas, como é costume em Abril.

O "Forward" sulcava as águas com rapidez, que a hélice solta não lhe servia de obstáculo à marcha. Por volta das três horas cruzou-se com o barco a vapor que serve a carreira entre Liverpul e a ilha de Man e que traz por brasão, nas caixas das rodas, as três pernas da Sicília. O capitão do vapor, lá de bordo do seu navio, saudou-os com o seu porta-voz, e foi este o último adeus que a tripulação do "Forward" logrou ouvir.

Às cinco, o prático entregou o comando a Ricardo Shandon e tratou de embarcar no seu barco, que virou de pronto, e em breve desapareceu para as bandas de sudoeste.

Ao anoitecer, dobrou o brigue o cabo de Man, no extremo meridional da ilha deste nome. O mar, durante a noite, esteve muito picado; o "Forward" portou-se admiravelmente, e, deixando pelo noroeste a ponte de Ayr, dirigiu-se para o canal do Norte.

Johnson tinha razão. No mar, o instinto marítimo dos homens do ofício recobrou o seu império. A marinhagem, ao ver as boas qualidades do navio, esqueceu tudo quanto a situação tinha de estranho, e a vida de bordo estabeleceu-se com regularidade.

O doutor aspirava inebriado o vento do mar, passeando com vigor, apesar das rajadas, e aguentando-se no balanço melhor do que era esperar de um sábio.

- Que bela coisa é o mar! - dizia ele a mestre Johnson quando subiu à tolda depois do almoço. - Tomo conhecimento com ele um pouco tarde, é verdade, mas espero desforrar-me.

- Tendes razão, Sr. Clawbonny. Eu cá por um bocado de mar dava todos os continentes do mundo. Diz-se que a gente do mar se aborrece depressa do ofício. Eu cá há quarenta anos que embarco, e tão bem me dou hoje como no primeiro dia.

- Que verdadeiro prazer é sentir um bom navio debaixo dos pés! E, pelo que eu posso avaliar, o "Forward" porta-se famosamente.

- Assim é, doutor - concordou Shandon, que chegou então junto dos dois interlocutores. - O "Forward" é um belo barco, e confesso que nunca navio algum destinado a navegar por entre os gelos foi tão bem abastecido nem tão bem tripulado. Este caso está-me lembrando que, há mais de trinta anos, o capitão James Ross, navegando em busca da passagem do noroeste...

- A bordo do "Vitória" - interrompeu vivamente o doutor-, brigue de tonelagem pouco mais ou menos igual à do nosso, e também munido de máquina.

- Como sabeis isso?

- Fora o mais - retorquiu o doutor. - As máquinas estavam então na infância da arte e a do "Vitória" ocasionou-lhe mais de um atraso prejudicial. O capitão James Ross, depois de a ter mandado reparar, peça por peça, acabou por a desmontar e abandonou-a no primeiro ponto em que teve de invernar.

- Diacho! - exclamou Shandon. - Vejo que estais perfeitamente ao facto!

- Que quereis? - continuou o doutor. - À força de ler, li também as obras de Parry, de Ross, de Franklin, e até os relatórios de Mac Clure, de Kennedy, de Kane e de Mac Clintock, e sempre cá me ficou alguma coisa. Posso até acrescentar que este mesmo Mac Clintock alcançou mais fácil e directamente o fim que se propôs, a bordo do "Fox", brigue de hélice, no género do nosso, do que quantos o precederam.

- Isso é que é perfeitamente verdade - respondeu Shandon. - É um grande marinheiro o tal Mac Clintock.

Já o vi com as mãos na massa. E podeis acrescentar também que, como ele, nos acharemos no estreito de Davis ainda em Abril, e que, se conseguirmos transpor os gelos, teremos conseguido um grande avanço para a nossa viagem.

- A não ser - retorquiu o doutor - que nos suceda o que sucedeu com o "Fox", em 1857, que foi ficar preso, logo no primeiro ano da campanha, pelos gelos do norte do mar de Baffin, e ter de invernar no meio do banco de gelo.

-Melhor sorte devemos esperar - disse Johnson. - Se com um barco como o "Forward" não vai a gente onde quer, o melhor é renunciar à empresa.

- E demais - prosseguiu o doutor -, quando o capitão estiver a bordo, melhor que nós saberá o que há-de fazer, tanto mais que nós é que estamos a tal respeito em absoluta ignorância. A carta dele é tão singularmente lacónica que não nos deixa adivinhar o fim da viagem.

- Já não é pouco - observou Shandon, com vivacidade - conhecer qual o caminho a seguir. Agora, ao menos por um mês, bom, penso eu, podemos bem dispensar a intervenção sobrenatural do tal desconhecido e das suas instruções. E, demais, a minha opinião, a respeito dele, já vós a conheceis.

- Ah, sim! - tornou com ar de dúvida o doutor. - Também eu, como vós, imaginava que o homem vos deixaria o comando do navio e nunca viria a bordo, mas...

- Mas, o quê? - replicou Shandon, visivelmente contrariado.

- Mas, depois que chegou a segunda carta dele, tive de modificar as minhas ideias a esse respeito.

- E por que razão, doutor?

- Porque, se é verdade que essa carta indica a derrota que deveis seguir, por outra parte nada nos diz a respeito do destino do "Forward". E, no fim de contas, sempre é necessário a gente saber aonde vai. Agora, pergunto eu, por que meio imaginais receber terceira carta, estando nós, como estamos, no mar alto? Nas terras da Gronelândia, o serviço do correio não é por certo dos mais perfeitos. Quereis saber o que penso, Shandon? É que o tal maganão está por aí à nossa espera em algum dos estabelecimentos dinamarqueses, em Holsteinborg, por exemplo, ou em Uppernawik. Talvez lá fosse para completar a carga de peles de foca ou comprar trenós e cães, em suma, reunir todos os arranjos e apetrechos que requer uma viagem aos mares árcticos. Eu cá pouco me admiraria se o visse uma bela manhã sair do seu camarote e comandar a manobra, da maneira menos sobrenatural do mundo.

- É possível - admitiu Shandon com secura -; mas enquanto isso não chega, o vento vai refrescando e é pouco prudente arriscar os joanetes com semelhante tempo.

Shandon largou o doutor e mandou carregar os joanetes.

- Está bem agarrado ao comando - observou o doutor ao mestre.

- Sim - confirmou este - e melhor seria que assim não fosse, porque pode muito bem ser que tenhais razão, Sr. Clawbonny.

No sábado, ao cair da noite, o "Forward" dobrou o mull *1 de Galloway, cujo farol foi visto ao nordeste; durante a noite ficou-lhe ao norte o mull de Cantyre e a leste o cabo Fair, na costa da Irlanda. Por volta das três da madrugada, o brigue, deixando a ilha de Batlin pela alheta de estibordo, desembocou no oceano pelo canal do Norte.

Era domingo, 8 de Abril. Os Ingleses, e sobretudo a gente do mar, são muito observadores destes dias; por consequência, gastou-se grande parte da manhã com a leitura da Bíblia, do que o doutor se encarregou de boa vontade.

O vento tendia a transformar-se em borrasca e a atirar o brigue para as costas da Irlanda; o mar era grosso e o balanço muito forte. O doutor, se não enjoou, foi porque não quis, que a coisa não era difícil. Ao meio-dia desaparecia ao sul o cabo Malinhead. Era a última terra europeia que os ousados navegantes tinham de ver. Mais de um a contemplou, por longo espaço, que decerto não havia de tornar a vê-la.

 

*1. Promontório.

 

A latitude observada era então 55 graus 57, a longitude, pelos cronómetros, 7 graus 40 minutos*1. Levantou o tempo por volta das nove da noite. O "Forward", que era veleiro, manteve a sua derrota para o noroeste. Durante aquele dia houve ocasião de julgar das qualidades do navio, que, segundo as considerações dos entendedores de Liverpul, era, primeiro que tudo, navio de vela.

Nos dias seguintes, o "Forward" avançou rapidamente na direcção noroeste. O vento saltou ao sul e o mar engrossou. Navegava então o brigue a todo o pano. Alguns petréis e alguns pufinos vieram esvoaçar por cima da proa, e o doutor atirou com grande habilidade a um dos últimos, que felizmente caiu a bordo.

Deitou-lhe a mão o fisgador Simpson e trouxe-o ao proprietário.

- Insignificante caça, Sr. Clawbonny - comentou Simpson.

- Com que, ao contrário, se há-de fazer um excelente guisado, amigo!

- Quê, ides comer semelhante coisa?

- E também vós haveis de prová-la, camarada - disse o doutor, sorrindo.

- Disso me livrarei eu - replicou Simpson -, que o tal passarolo é oleoso e sabe a ranço, como todas as aves do mar.

- Ora! - replicou o doutor. - Eu tenho cá uma maneira de preparar esta espécie de caça, que se, depois de preparada, vos souber a ave de mar, prometo não matar mais nenhuma em toda a minha vida.

- Sois então cozinheiro, Sr. Clawbonny? - perguntou Johnson.

- Um sábio, de tudo deve saber alguma coisa.

- Acautela-te bem, Simpson - recomendou o mestre-, que o doutor é homem hábil, e é capaz de nos fazer comer o pufino por uma groose*2 das mais saborosas.

E o facto é que o doutor conseguiu preparar perfeitamente o tal volátil; tirou-lhe com todo o cuidado a gordura,

 

*1. Em relação ao meridiano de Greenwich.

  1. Espécie de perdiz.

 

que está toda debaixo da pele e principalmente acumulada nos lombos, e com ela desapareceu o sabor a ranço e o cheiro a peixe que, na realidade, numa ave, são justo motivo de queixa. O pufino, assim preparado, foi por todos declarado excelente, até pelo próprio Simpson. Durante a última tempestade, havia Ricardo Shandon tido ocasião de apreciar as qualidades da tripulação e analisara os homens um por um, como deve fazê-lo todo o comandante que quer estar prevenido para os perigos do futuro. Sabia, portanto, com quem devia contar.

James Wall, oficial inteiramente dedicado a Ricardo, compreendia bem, executava bem, mas faltava-lhe a iniciativa; como terceiro-oficial, estava no lugar que lhe competia.

Johnson, batido nas lutas do mar, velho prático do oceano Árctico, nada tinha que aprender pelo que diz respeito a coragem, presença de espírito e audácia.

O fisgador Simpson e o carpinteiro Bell eram homens seguros, escravos do seu dever e da disciplina. O prático dos gelos, Foker, marinheiro experimentado, feito na escola de Johnson, era homem para prestar serviços importantes.

Dos outros marinheiros, pareciam ser os melhores de todos Bolton, espécie de gracioso, jovial e palrador, e Garry, rapaz dos seus trinta e cinco anos, de semblante enérgico, mas um tanto pálido e triste.

Os três marinheiros, Clifton, Gripper e Pen, pareciam menos ardentes e resolutos e resmungavam por dá cá aquela palha. Gripper tinha até querido quebrar o seu contrato à saída do "Forward", e só por vergonha continuou a bordo.

Marchando as coisas bem, não havendo grandes riscos a correr, nem manobras de mais a executar, podia contar-se com aqueles três homens, com a condição, porém, de lhes fornecer alimentação substancial, porque de todos três podia dizer-se que tinham o coração na barriga. Nenhum deles se conformava de boa vontade com a condição de serem abstémios, e à hora das refeições mostravam sempre saudades do brandy ou do gin. Iam-se contudo desforrando no café e no chá, que eram distribuídos a bordo com certa largueza.

Os dois engenheiros maquinistas, Brunton e Plover, e o fogueiro Waren, estes, até então nada melhor tinham achado que fazer do que estar de braços cruzados.

Sabia por consequência Shandon o que devia pensar a respeito de cada um.

A 14 de Abril, o "Forward" cortou a grande corrente do Gulf-Stream, que, remontando ao longo da costa americana oriental até ao banco da Terra Nova, inclina depois para nordeste, prolongando-se com as praias da Noruega.

Estava então o navio a 51 graus 37 de latitude por 22 graus 58 de longitude, e a duzentas milhas da ponta da Gronelândia. O tempo arrefeceu, o termómetro desceu a 32 graus *1 (0 graus centígrados), isto é, ao ponto de congelação da água.

O doutor ainda não envergara o vestuário próprio dos invernos árcticos, mas tinha vestido fatos de mar, à semelhança dos marinheiros e dos oficiais. Fazia gosto vê-lo com umas botas altas, que lhe entravam à primeira, com o largo chapéu de oleado, com uma calça e uma jaqueta da mesma fazenda. O doutor, debaixo dos grandes aguaceiros ou envolvido pelas enormes vagas, que alagavam o brigue, dava ares de uma espécie de animal marinho, comparação esta com que ficava todo ufano.

O mar conservou-se por espaço de dois dias com grande vaga, o vento saltou ao noroeste e retardou a marcha do "Forward". De 14 a 16 de Abril, manteve-se vaga sempre muito forte; na segunda-feira, porém, sobreveio um famoso aguaceiro, que deu em resultado sossegar o mar quase imediatamente. Shandon fez notar esta particularidade ao doutor.

- Sim - respondeu este-, e esse facto confirma as observações curiosas do baleeiro Scoresby, que fez parte da Sociedade Real de Edimburgo, de que tenho a honra de ser membro correspondente. Como vedes, são pouco sensíveis as vagas enquanto chove, mesmo debaixo da influência de um vento rijo. E, pelo contrário, com um tempo seco,

 

*1. Fahrenheit.

 

estaria o mar mais agitado com uma brisa menos fresca.

- Mas como se explica esse fenómeno, doutor?

- Muito simplesmente: não explica.

Naquele momento, o vigia que estava de quarto nos vaus do joanete deu sinal da aparição de uma massa, que lhe ficava por estibordo e a umas quinze milhas a sotavento,

- Uma montanha de gelo nestas paragens! - exclamou o doutor.

Shandon assestou o óculo na direcção indicada e confirmou o anúncio do prático.

- Esta é curiosa! - declarou o doutor.

- Admirai-vos do caso? - disse o comandante, sorrindo. - Pois quê? Seríamos tão felizes que encontrássemos alguma coisa digna da vossa admiração?

- Espanto-me e não me espanto - respondeu sorrindo o doutor -, visto saber que o brigue "Ann de Poole", de Greenspond, ficou, em 1813, preso em verdadeiros campos de gelo, a quarenta e quatro graus de latitude norte, e que o seu capitão, Dayement, contou as massas de gelo aos centos.

- Bem - disse Shandon -, decerto tendes ainda mais que nos contar a esse respeito!

- Oh! pouca coisa - volveu modestamente o amável Clawbonny -, a não ser que se têm encontrado gelos ainda em latitudes mais baixas.

- Lá isso, escusais vós de mo dizer, meu caro doutor, que, quando eu era grumete do sloop *1 de guerra "Fly"...

- Em 1818 - continuou o doutor -, no fim de Março, que tanto vale dizer em Abril, passastes entre duas grandes ilhas de gelos flutuantes, a quarenta e dois graus de latitude.

- Isto agora é que me parece muito! - exclamou Shandon.

- Mas é verdade; e, por consequência, não tenho razão para me espantar, estando nós dois graus mais ao norte, que o "Forward" encontre uma montanha de gelo.

 

*1. Chalupa.

 

- Mas é um poço de ciência este doutor! É puxar o balde, que vem sempre cheio!

- Nem tanto. Secava mais depressa do que pensais. Ora agora, Shandon, se nós pudéssemos observar de perto esse curioso fenómeno, é que eu era o mais feliz de todos os doutores.

- Com todo o gosto. Johnson - disse Shandon, chamando o mestre -, parece-me que a brisa quer refrescar.

- Sim, comandante - respondeu Johnson -, pouco ganhamos, e em breve se hão-de fazer sentir as correntes do estreito de Davis.

- Tendes razão, Johnson, e se queremos estar, a 20 de Abril, à vista do cabo Farewell, é mister navegar a vapor ou expormo-nos a ser arrojados às costas de Labrador. Sr. Wall, tende a bondade de dar ordem de acender as fornalhas.

Executaram-se as ordens do comandante e, uma hora depois, tinha o vapor adquirido pressão bastante. Ferrou-se o pano todo, e a hélice, torcendo as ondas debaixo das suas folhas, impeliu o "Forward" com força de encontro ao vento de noroeste.

             A GRANDE CORRENTE POLAR

Em breve, bandos de aves, cada vez em maior número, petréis, pufinos e fragatas, que são os habitantes daquelas desoladas paragens, deram sinal de estar próxima a Gronelândia. O "Forward" ganhava rapidamente em latitude, deixando a sotavento um comprido rasto de negro fumo.

Na terça-feira, 17 de Abril, pelas onze da manhã, o vigia deu sinal de avistar, pela primeira vez, o blink *1 do gelo, que estava a vinte milhas, pelo menos, a nor-noroeste. Era como que uma faixa de um banco deslumbrante que, apesar da presença de densas nuvens, alumiava com vivo clarão toda a parte da atmosfera próxima do horizonte. Homens experimentados, como alguns dos que estavam a bordo, não podiam equivocar-se com o fenómeno, e de pronto reconheceram que aquele blink devia vir de algum extenso campo de gelo situado a umas trinta milhas além do alcance da vista, que provinha da reflexão nele dos raios luminosos.

Ao cair da noite, o vento saltou de novo ao sul, tornando-se portanto favorável. Shandon pôde então largar o pano e, por medida económica, mandou apagar as fornalhas. O "Forward", com gáveas, traquete e bujarrona desfraldadas ao vento, seguiu em direcção ao cabo Farewell.

 

*1. Cor particular e brilhante que toma a atmosfera por cima das grandes extensões de gelo.

 

No dia 18, às três horas, reconheceu-se um ice-stream*1 por uma linha branca e delgada, mas de cor deslumbrante, que se destacava vivamente entre as linhas do mar e do céu. Era evidentemente mais provável que procedesse da Gronelândia do que do estreito de Davis, porque os gelos detêm-se de preferência na plaga ocidental do mar de Baffin. Uma hora depois passava o "Forward" pelo meio de pedaços isolados do ice-stream e, na parte mais compacta, os gelos, apesar de soldados entre si, obedeciam ao movimento da vaga.

No dia seguinte, ao raiar da aurora, o vigia deu sinal de navio à vista. Era a "Walkirien", corveta dinamarquesa, que navegava em sentido contrário ao do "Forward", dirigindo-se para o banco da Terra Nova. A corrente do estreito já se ia fazendo sentir, e Shandon teve de fazer força de vela para a vencer.

Naquela ocasião estavam o comandante, o doutor, James Wall e Johnson reunidos à ré, examinando a direcção da corrente.

Perguntou então o doutor se era coisa averiguada que a corrente existisse uniformemente no mar de Baffin.

- Certamente que sim - respondeu Shandon -, e até aos navios de vela bem custa ela a refluir.

- E tanto mais - acrescentou James Wall - que ela se encontra tanto na costa oriental da América como na costa ocidental da Gronelândia.

- Ora bem! - disse o doutor. - Aí está um facto que singularmente dá razão aos que procuram a passagem do noroeste! Custa a crer que uma corrente como esta, que tem uma velocidade de pouco mais ou menos cinco milhas por hora, tenha a sua origem no fundo do golfo.

- Esse raciocínio é tanto mais sensato, doutor, quanto é certo que a par desta corrente, que vai de norte a sul, há, no estreito de Béringue, outra corrente contrária, que corre de sul a norte, e que deve ser a origem desta.

- Em virtude do que dizeis, senhores, é forçoso admitir que a América está completamente separada das terras polares, e que as águas do Pacífico vão ao redor das costas até ao Atlântico. E, demais, também a maior elevação das águas

 

*1. Ice, gelo; stream, corrente, curso, água gelada navegável.

 

do primeiro dá razão de correrem para os mares da Europa.

- Deve, porém - prosseguiu Shandon -, haver alguns factos que abonem essa teoria. E, se os há - acrescentou um tanto ironicamente -, o nosso sábio universal deve conhecê-los.

- Por minha fé - replicou o último com amável satisfação -, que, se isto é coisa que vos possa interessar, posso dizer-vos que baleias tem havido que, feridas no estreito de Davis, foram tempo depois apanhadas na proximidade da Tartária, ainda com a fisga europeia na barriga.

- A não ser que dobrassem o cabo Horn ou o cabo da Boa Esperança - observou Shandon -, força é que rodeassem as costas setentrionais da América. Isto é que não tem discussão, doutor.

- Se ainda assim não estivésseis convencido, meu caro Shandon - prosseguiu o doutor sorrindo -, poderia eu aduzir ainda outros factos, tais como esses madeiros flutuantes de que está cheio o estreito de Davis. Ora nós sabemos que o Gulf-Stream impediria tais madeiros de entrar no estreito; por consequência, se de lá saem, só podiam aí penetrar pelo estreito de Béringue.

- Estou convencido, doutor, e confesso que convosco difícil seria permanecer incrédulo.

- Ora olhai - fez notar Johnson -, acolá vem, a propósito, coisa que vos vai elucidar a discussão. Avisto ao largo um pedaço de madeira de bonitas dimensões. Se o comandante dá licença, vamos pescar o tal tronco de árvore, içá-lo para bordo e perguntar-lhe onde se criou.

- Está a calhar! - disse o doutor. - Depois da regra o exemplo.

Shandon deu as ordens necessárias. O brigue navegou em direcção ao bocado de madeira que fora avistado, e dentro em pouco içava-o a tripulação para bordo, mas não sem trabalho.

Era o madeiro um enorme tronco de mahogany *1, roído dos vermes até à medula, circunstância sem a qual, aliás, não poderia flutuar.

 

*1. Mogno.

 

- Triunfo! - exclamou o doutor com entusiasmo. - Porque, não podendo este tronco ter sido trazido pelas correntes do Atlântico até ao estreito de Davis, não podendo também ter sido impelido até à bacia polar pelos rios da América Setentrional, pois que esta espécie vegeta no equador, claro está que vem direitinho de Béringue. E, senão, olhem, senhores, vejam-me estes vermes que o roeram, se pertencem ou não às espécies próprias dos países quentes.

- O caso é - respondeu Wall - que este facto tira muita força à argumentação dos que negam a existência da famosa passagem.

- Dizei antes que a destrói, e de vez! - respondeu o doutor. - Ora atendei, que vou descrever-vos o itinerário completo deste madeiro de mahogany, trazido primeiro ao oceano Pacífico pelo rio do istmo de Panamá ou da Guatemala; e daí, arrastado pela corrente, ao longo das costas da América, até ao estreito de Béringue, entrou, provavelmente, com vontade ou sem ela, nos mares polares. Não está tão velho, nem tão impregnado de substâncias estranhas, que se lhe não possa fixar a data recente da partida. Provavelmente transpôs com boa sorte os obstáculos da comprida série de estreitos que vão dar ao mar de Baffin, e veio, impelido pela força da corrente boreal, pelo estreito de Davis, fazer-se pescar pela tripulação do "Forward", para completa satisfação do Dr. Clawbonny, que pede licença ao comandante para guardar como amostra um pedacito do tal tronco.

- À vontade, doutor - acedeu Shandon -, mas dai-me licença que também eu vos diga que não ficareis sendo possuidor único de semelhante prenda. O governador dinamarquês da ilha Disko...

- Na costa da Gronelândia - continuou o doutor -,

possui uma mesa de mogno feita de um tronco pescado em idênticas circunstâncias. Bem sei, meu caro Shandon, mas não lhe invejo a sua mesa, que, se não fosse a maçada que dava, tronco tinha eu até para guarnecer todo o meu quarto de cama.

Durante a noite de quarta para quinta-feira soprou o vento com extrema violência; apareceu o drifl wood *1 com mais frequência. O aproximar-se da costa era perigoso em época em que abundam as montanhas de gelo; por consequência, o comandante fez ferrar algum pano, e o "Forward" navegou só com o velacho e traquete.

O termómetro desceu abaixo do ponto de congelação. Shandon mandou distribuir pela tripulação vestuários acomodados ao caso, isto é, a cada homem uma jaqueta e uma calça de lã, uma camisola de flanela e meias de luadmel, tais como as que usam os camponeses da Noruega. Cada homem recebeu também um par de botas de água completamente impermeáveis.

"Capitão" foi o único que se contentou com o seu pêlo natural, parecendo até ser pouco sensível às mudanças de temperatura. Decerto tinha passado por mais de uma prova daquele género, e demais, como dinamarquês que era, não lhe assistia direito de se mostrar mau de contentar. Raro era ver-se tal animal, que quase sempre estava escondido nas partes mais escuras do navio.

Ao cair da noite deixou-se ver, através de uma aberta do nevoeiro, a costa da Gronelândia a 37 graus 27 minutos de longitude. O doutor pôde, armado do seu óculo, distinguir, por alguns instantes, uma série de píncaros sulcados por extensas geleiras. O nevoeiro, porém, cerrou-lhe em breve aquela visão, como um pano de teatro que cai no momento mais interessante da peça.

A 20 de Abril, pela manhã, avistou o "Forward" um icebergue de uns cento e cinquenta pés de altura, encalhado no lugar onde o encontravam há tempos imemoriais, nada podendo com ele os desgelos, que lhe têm respeitado as estranhas formas. Já Snow o viu; James Ross, em 1829, tomou dele uma cópia muito exacta; em 1851, o tenente francês Bellot, embarcado no "Prince Albert", distinguiu-o perfeitamente. O doutor, como era de supor, quis conservar a imagem daquela montanha célebre, e fez dela um esboço que saiu muito perfeito.

Não é para admirar que semelhantes moles encalhem e se fixem, por consequência, inabalàvelmente ao solo; porque, por cada pé que apresentam fora da água,

 

*1. Madeira.

 

têm debaixo pouco mais ou menos dois, proporção que dava àquela, a que nos estamos referindo, uma profundidade de, aproximadamente, oitenta braças.

Finalmente, por uma temperatura que ao meio-dia era apenas de 12 graus (-11 graus centígrados), debaixo de um céu de neve e de nevoeiro, avistou-se o cabo Farewell *1. Chegava o "Forward" no dia prefixo; e o capitão desconhecido, se lhe desse na cabeça vir demarcar-lhe a posição, por aquele tempo diabólico, não teria razão de queixa.

- É este então - dizia entre si o doutor - esse cabo tão célebre, esse cabo tão bem baptizado! Quantos, como nós, o têm passado, que não tinham de o tornar a ver! Será um eterno adeus aos amigos da Europa? Por aqui passastes, Frobisher, Knight, Barlow, Vaugham, Scroggs, Barentz, Hudson, Blosseville, Franklin, Crozier, Bellot, para nunca mais volverdes ao lar doméstico; para vós foi este cabo verdadeiramente o cabo dos Adeus!

Proximamente no ano 970, alguns navegantes saídos da Islândia descobriram a Gronelândia. Em 1498, Sebastião Cabot chegou até ao 56 grau de latitude; de 1500 a 1502, Gaspar e Miguel Corte Real lograram alcançar até ao grau 60, e, em 1576, Martinho Frobisher sulcou a baía que hoje tem o nome dele.

Cabe a João Davis a honra de ter descoberto o estreito em 1585, e este mesmo ousado navegador, este grande pescador de baleias, dois anos depois, em terceira viagem, logrou cortar o paralelo sexagésimo terceiro, a vinte e sete graus do pólo.

Em 1596, Barentz; em 1602, Weymouth; em 1605 e 1607, James Hall e Hudson, cujo nome foi dado àquela ampla baía que tão profundamente recorta as terras da América, e, em 1611, James Poole, avançaram todos mais ou menos pelo estreito dentro, em busca dessa passagem do noroeste, cuja descoberta teria abreviado notavelmente as vias de comunicação entre os dois mundos.

Em 1616, Baffin descobriu, no mar deste nome, o estreito de Lancastre; foi seguido, em 1619, por James Munk,

 

*1. Farewell significa "adeus".

 

e em 1719 por Knight, Barlow, Vaugham e Scroggs, de que nunca mais houve notícia.

Em 1776, o tenente Pickersgill, que fora mandado ao encontro do capitão Cook, que tentava voltar ao norte pelo estreito de Béringue, apontou até ao sexagésimo oitavo grau; no ano seguinte Young navegou com o mesmo fim até à ilha das Mulheres, ainda mais ao norte. Em 1818, apareceu James Ross, que fez uma viagem completa em redor das costas do mar de Baffin, corrigindo os erros hidrográficos dos seus predecessores.

Finalmente, em 1819 e 1820, arroja-se o célebre Parry pelo estreito de Lancastre, consegue chegar através de mil dificuldades até à ilha Melville, e ganha o prémio de cinco mil libras esterlinas prometido por acto do Parlamento aos navegantes ingleses que cortassem o meridiano de 170 graus de longitude a uma latitude mais alta que o paralelo septuagésimo sétimo.

Em 1826, toca Beechey na ilha Chamisso; James Ross invernia, desde 1829 a 1833, no estreito do Príncipe Regente, e, entre outros trabalhos importantes, realiza a descoberta do pólo magnético.

Durante este mesmo tempo, reconhecia Franklin, pela via de terra, as costas setentrionais da América, desde as margens do Mackenzie até à ponta Turnagain; seguia-lhe o rasto, de 1823 a 1835, o capitão Back, e em 1839 completavam estas explorações os Srs. Dease e Simpson e o Dr. Rae.

Finalmente, Sir John Franklin, com o vivo desejo de ser o primeiro a descobrir a passagem de noroeste, largou a Inglaterra em 1815, com o "Erebus" e o "Terror", e penetrou no mar de Baffin, não havendo mais notícias desta expedição depois que passou pela ilha Disko.

Este desaparecimento foi a causa de numerosas expedições de busca, que tiveram como resultado a descoberta da passagem e o reconhecimento desses continentes polares tão profundamente recortados. Arrojaram-se então a navegar para aquelas terríveis paragens os mais intrépidos marinheiros da Inglaterra, da França e dos Estados Unidos. Graças aos esforços de todos, pôde enfim figurar nos arquivos da Real Sociedade Geográfica de Londres o mapa tão difícil e acidentado daqueles países.

Acudia, por esta forma, à imaginação do doutor esta curiosa história daquelas regiões, quando, encostado à amurada, seguia com fixo olhar a comprida esteira do navio. Acudiam-lhe de tropel à memória os nomes daqueles ousados navegantes e julgou enxergar, debaixo dos arcos de gelo do banco, os pálidos espectros dos que não voltaram.

 

                 O ESTREITO DE DAVIS

No decurso daquele dia conseguiu o "Forward" abrir fácil caminho por entre os gelos despedaçados. Havia bom vento, mas a temperatura estava muito baixa, porque as correntes do ar, ao passarem por sobre os ice-fields *1, impregnavam-se de suas frias penetrações.

Durante a noite, toda a atenção era pouca; as montanhas flutuantes iam-se apinhando cada vez mais naquela estranha passagem, a ponto de, por vezes, se avistarem no horizonte mais de cem. Estas montanhas, que das elevadas costas destacava a influência da estação de Abril e o roer continuado da vaga, vinham fundir-se ou abismar-se nas profundezas do oceano. Encontravam-se também compridas procissões de madeiros, cujo choque convinha evitar. Por estas razões foi colocado no seu lugar próprio o crow nest *2, que consiste num túnel de fundo móvel, dentro do qual o icemaster, em parte abrigado do vento, vigia o mar, dá sinal dos gelos à vista e comanda a manobra em caso de necessidade.

As noites eram curtas; o Sol reaparecera passado o dia 31 de Janeiro em virtude da refracção, e tendia cada vez mais a manter-se constantemente acima do horizonte. A neve, porém, reduzira o alcance da vista, e, ainda que não produzisse completa obscuridade, tornava a navegação extremamente difícil.

 

*1. Campos de gelo.

  1. Literalmente: ninho de pega.

 

A 21 de Abril apareceu, por entre as brumas, o cabo Desolação. A manobra cansava a tripulação; os marinheiros, desde que o brigue entrara no meio dos gelos, não tinham tido um só momento de descanso, e em breve foi forçoso recorrer ao vapor para abrir caminho por entre aquelas moles acumuladas.

O doutor e mestre Johnson estavam a conversar um com o outro à ré, enquanto Shandon dormia um sono de algumas horas no seu camarote. Clawbonny gostava de conversar com o velho marinheiro, a quem as suas numerosas viagens tinham educado de uma maneira interessante e cordata. Ia-lhe o doutor tomando, pouco a pouco, grande amizade, e o mestre não lhe ficava a dever nada.

- Esta região, Sr. Clawbonny - dizia Johnson -, esta região é diferente das outras. Deram-lhe o nome de Terra Verde, mas poucas semanas há no ano em que ela dê justa razão do nome que tem...

- Quem sabe, meu caro Johnson - respondeu o doutor -, quem sabe se no século X tinha esta terra direito a que lhe chamassem assim? No nosso Globo tem-se realizado mais de uma transformação deste género, e muitos vos havíeis de admirar se vos dissesse que, segundo os cronistas islandeses, floresciam neste mesmo continente, há oitocentos ou novecentos anos, as suas duzentas povoações.

- Admirar-me-ia tanto, Sr. Clawbonny, que nem poderia acreditar-vos, porque a região é na realidade triste coisa.

- Ora! Por triste que seja, ainda oferece condições bastantes para albergar alguns habitantes, e até a europeus civilizados.

- Não há dúvida! Em Disko, por exemplo, e em Uppernawik, havemos nós de encontrar homens que se resignam a viver em semelhantes climas. O que imagino, porém, e o que sempre imaginei, é que vivem lá por força e não por vontade.

- Não me custa a crê-lo: o homem, todavia, a tudo se acostuma, e até me parece que estes gronelandeses não têm tantas razões de queixa como os nossos operários das grandes cidades. Aqueles poderão ser pouco felizes, mas o que decerto não são é miseráveis. E note-se que, quando digo pouco felizes, é por não ter palavra que melhor me traduza o pensamento; porque, na verdade, os Gronelandeses, se não gozam do bem-estar dos países temperados, afeitos como estão à rudeza do clima, nela mesmo encontram evidentemente prazeres que nós nem sequer podemos conceber.

- Assim devemos crê-lo, Sr. Clawbonny, para não acusar o céu da injustiça; mas o facto é que, nas muitas viagens que tenho feito para estas costas, sempre se me apertou o coração ao ver estas tristes solidões. Parece-me, por exemplo, que se poderiam tornar mais alegres todos estes cabos, estes promontórios, todas estas baías, quando mais não fosse pela imposição de nomes mais convidativos e atraentes, que, na verdade, o tal cabo dos Adeus, o da Desolação e outros que tais, não são nomes que atraiam os navegadores!

- Também eu já notei isso mesmo - respondeu o doutor -, mas essas denominações têm uma certa importância geográfica, que não devemos menosprezar. Descrevem, por assim dizer, as aventuras dos navegadores que as impuseram. Quando ao lado dos nomes dos Davis, dos Baffin, dos Hudson, dos Ross, dos Parry, dos Franklin e dos Bellot, vejo o do cabo da Desolação, acho logo o da baía da Mercê; o cabo Providência faz parelha com o porto da Ansiedade; a baía Repulse *1 lembra-me logo o cabo Éden, e depois de dobrar a ponta Turnagain *2 vou-me repousar na baía do Refúgio. Estas denominações no mapa põem-me debaixo dos olhos a incessante sucessão de perigos, de catástrofes, de obstáculos, de felizes êxitos, de desesperações e de venturas, de mistura com os nomes grandes da minha pátria, e esta nomenclatura é como uma colecção de medalhas antigas; cada nome está contando um facto da história destes mares.

- Bem discorrido, Sr. Clawbonny. Oxalá que nós, na nossa viagem, deparemos com mais baías de Bom Êxito de que cabos do Desespero!

 

*1. Baía que repele o navegante, que este não pode alcançar.

  1. Literalmente, "volta para trás". Pode dizer-se: "cabo do regresso forçado".

 

- Assim seja, Johnson; mas dizei-me uma coisa: a tripulação já se recobrou um pouco dos seus terrores?

- Sim, um pouco, senhor; mas, para falar a verdade, depois que entrámos no estreito, os homens começam outra vez a preocupar-se com o tal capitão fantástico. Mais de um esperava vê-lo aparecer no extremo da Gronelândia, e até agora nada. Aqui entre nós, Sr. Clawbonny, o caso não vos dá também alguma coisa de pensar?

- Confesso que sim, Johnson.

- Acreditais na existência do tal capitão?

- Com certeza.

- Mas que razões podem tê-lo levado a proceder como vemos?

- Se quereis que vos diga todo o meu pensamento, Johnson, o que imagino é que o homem quis levar a tripulação suficientemente longe para que ninguém se pudesse lembrar de voltar atrás. E, se o capitão tivesse aparecido a bordo no momento de levantar ferro, como todos haviam de querer saber o destino do navio, ter-se-ia visto atrapalhado.

-- Mas porquê?

- Na verdade, imaginais que, se o homem quer tentar alguma empresa sobre-humana, se quer penetrar onde tantos outros não lograram chegar, o desse a saber à tripulação conseguiria segurá-la? Não; ao passo que, uma vez a caminho, pode-se ir tão longe que depois o andar para diante torna-se até uma necessidade.

- É possível, Sr. Clawbonny, e mais de um intrépido aventureiro tenho eu conhecido cujo nome, só de per si, era bastante para assustar, e que não teria achado um único homem que o acompanhasse nas suas arriscadas expedições...

- Com excepção da minha pessoa - interrompeu o doutor.

- E também da minha, se me dais licença, para ter o prazer de vos acompanhar! Voltando à minha, digo que o nosso capitão pertence certamente ao número dos tais aventureiros. Enfim, nós veremos. O que eu suponho é que, lá para as bandas de Uppernawik ou da baía Melville, virá esse valente desconhecido instalar-se com todo o sossego a bordo e dizer-nos até onde o seu capricho conta levar este navio.

- Também assim o creio, Johnson. A dificuldade, porém, está em alcançarmos a baía Melville. Olhai como já nos circundam por todos os lados os gelos, que mal deixam abertas suficientes para passar o "Forward". Ora reparai, examinai esse plaino imenso.

- Na nossa linguagem de baleeiros, Sr. Clawbonny, chamamos a isto um ice-field, isto é, uma superfície contínua de gelos, cujos limites se não enxergam.

- E daquele lado, aquele campo despedaçado, aqueles grandes pedaços mais ou menos reunidos pelas bordas?

- Aquilo é um pack. Se a forma é circular, chamamos-lhe palch; quando alongada, stream.

- E aqueles gelos flutuantes, além?

- Chamam-se drift-ice; se fossem um pouco mais altos, seriam icebergues, ou montanhas. O contacto destes é perigoso para os navios. Deve haver todo o cuidado em o evitar. Olhai, acolá em baixo, naquele ice-field, aquela protuberância produzida pela pressão dos gelos: àquilo chamamos nós um hummock; se a tal protuberância tivesse a base debaixo de água, o seu nome era calf. Se se não pusessem nomes a tudo isto, não podia a gente entender-se.

- Ah! É na verdade um espectáculo curioso! - exclamou o doutor, em contemplação perante aquelas maravilhas dos mares boreais. - Que impressão não fazem na imaginação estes diversos quadros!

- E é verdade - concordou Johnson -, os pedaços de gelo tomam às vezes formas fantásticas, que cá a gente do mar explica com muita facilidade, lá a seu modo.

- Olhai, Johnson, admirai aquele conjunto de penhas de gelos! Não parece uma cidade estranha, uma cidade do Oriente, ostentando os seus minaretes e as suas mesquitas ao pálido clarão da Lua? Vede, mais além, uma longa série de arcadas góticas, que fazem lembrar a capela fúnebre de Henrique VII ou o palácio do Parlamento *1.

 

*1. Refere-se à Inglaterra.

 

- É verdade, Sr. Clawbonny, há aqui arquitectura ao gosto de cada um; mas o caso é que são cidades ou igrejas perigosas de habitar; nem é bom passar muito perto delas. Há ali um minaretezinho que está oscilando sobre a sua base, e que, mesmo sem ser dos maiores, esmagava bem qualquer navio como o "Forward".

- E houve quem ousasse aventurar-se a estes mares sem ter às suas ordens o vapor! Como se há-de imaginar que um navio de vela possa governar no meio destes escolhos movediços?

- Caso é que a coisa tem-se feito, Sr. Clawbonny. Quando o vento era contrário, como mais de uma vez aconteceu a mim, que vos estou falando, largava a gente com toda a paciência o ferro numa dessas penhas de gelo e ia descaindo mais ou menos com ela do rumo, mas esperando sempre a hora propícia para novamente se fazer de vela. Verdade é que com tal maneira de viajar gastavam-se meses onde, com uma aragem de felicidade, bastava gastar alguns dias.

- Parece-me - disse o doutor - que a temperatura quer ainda baixar.

- Não será das coisas melhores - observou Johnson -, porque, para que essas moles de gelo se dividam e vão perder-se no Atlântico, precisamos do desgelo. Além disso, são mais numerosas aqui no estreito de Davis, porque entre o cabo Walsingham e Holsteinborg as terras aproximam-se sensivelmente; mas para além do sexagésimo sétimo grau havemos nós de encontrar, na estação de Maio e Junho, mares muito mais navegáveis.

- Sim; mas o caso é primeiro passar o estreito.

- É necessário passar é, Sr. Clawbonny. Se fosse em Junho ou Julho, achávamos nós a passagem livre, como acontece aos baleeiros, mas as ordens eram terminantes: devíamos estar aqui em Abril. Por isso, ou eu me engano muito, ou o nosso capitão é um maganão de boa têmpera, que lá tem a sua ferrada. Quem começa a viagem tão cedo é porque quer ir longe. Enfim, quem viver há-de ver.

Tivera o doutor razão quando imaginara sentir que a temperatura baixava; ao meio-dia marcava o termómetro 6 graus (-14 graus centígrados) apenas, e soprava uma brisa de noroeste que, ao passo que limpava o céu, ia ajudando a corrente a arremessar os gelos flutuantes para o caminho do "Forward".

De resto, nem todos obedeciam ao mesmo impulso; não era raro encontrar alguns, e dos mais altos, que descaíam do rumo em sentido contrário, porque haviam sido apanhados na base por alguma corrente submarina.

Compreende-se quais seriam as dificuldades de semelhante navegação; os engenheiros maquinistas não tinham um momento de descanso. A manobra do vapor fazia-se mesmo no convés, por meio de alavancas, que lhe aceleravam, suspendiam ou invertiam a acção instantaneamente, ao mando do oficial de quarto. Umas vezes era necessário tomar a toda a pressa por uma aberta dos campos de gelo, outras lutar em velocidade com um icebergue que ameaçava fechar a única saída praticável. Outras ainda, algum penhasco, derrubado de improviso, forçava o navio a recuar de súbito para não ficar esmagado. Apinhavam-se na estreita passagem aqueles imensos montões de gelo, arrastados, amontoados e amalgamados pela corrente do norte, e, se os frios ali os apanhassem, podiam bem opor obstáculo insuperável à passagem do "Forward".

Encontravam-se naquelas paragens bandos inumeráveis de aves; petréis e fragatas volteavam por um e outro lado, dando gritos de ensurdecer. Havia também grande número de gaivotas, de cabeça volumosa, pescoço e bico achatado, que, abrindo as grandes asas, arrostavam, brincando, com os frocos de neve açoutados pela borrasca. O movimento daquela turba alada é que dava certa vida à paisagem.

Flutuavam, ao sabor das ondas, grande número de madeiros, que, por vezes, davam de encontro uns aos outros com enorme ruído; acercavam-se do navio alguns baleotes de enorme cabeça; ninguém se lembrou, porém, de lhes dar caça, apesar de não faltar vontade a Simpson, o fisgador. Ao cair da noite apareceram também muitas focas, que nadavam por entre os penhascos de gelo, com as ventas fora da água.

No dia 22 continuou a temperatura ainda a baixar.

O "Forward" deu mais força à máquina para chegar a tempo às passagens favoráveis. Como o vento estava decididamente fixo do noroeste, ferraram-se as velas.

Neste domingo, pouco trabalho de manobra teve a marinhagem. A tripulação, depois da leitura do ofício divino, feita por Shandon, entreteve-se a caçar urias, e apanharam-se muitas. Estas aves, convenientemente preparadas segundo o método clawbonnyano, forneceram uma agradável comida para o rancho dos oficiais e da marinhagem.

Às três da tarde tinha o "Forward" alcançado o Kin de Sael por leste-quarta-de-nordeste, e a montanha de Sukkertop por sueste-quarta-de-leste-semi-leste; o mar estava muito picado. De tempos a tempos caía do céu pardacento como que um véu de nevoeiro. Ao meio-dia, porém, pôde fazer-se uma observação exacta. O navio estava a 65 graus 20 minutos de latitude por 54 graus 22 minutos de longitude. Era mister ganhar ainda dois graus em latitude para encontrar mais fácil navegação num mar mais livre.

Os três dias seguintes, 24, 25 e 26 de Abril, correram em continuada luta com os gelos. O manobrar da máquina era de estafar; a cada instante era mister interromper ou inverter a acção do vapor, que se escapava aos silvos pelas válvulas.

Como o nevoeiro era denso, a aproximação dos icebergues reconhecia-se unicamente pelas detonações surdas, que provinham das avalanchas. O navio virava logo de bordo; corria-se risco de ir de encontro a moles de gelo de água doce, notáveis pela transparência do seu cristal e pela sua dureza de rocha. Ricardo Shandon aproveitou a ocasião para completar a sua aguada, mantendo todos os dias a bordo muitas toneladas daquele gelo.

O doutor não podia habituar-se às ilusões de óptica que a retracção produz naquelas paragens. Com efeito, havia icebergue que lhe aparecia qual pequena massa branca a pouca distância, e que estava a mais de dez ou doze milhas do brigue. Procurava o doutor acostumar a vista àquele singular fenómeno, para mais tarde poder rapidamente corrigir o erro dos próprios olhos.

Finalmente, quer fosse por ter de levar o navio à sirga, ao longo dos campos de gelo, quer por ter de afastar à viva força, com compridas varas, os penhascos que mais ameaçadores se tornavam, dentro em pouco estava a tripulação exausta de forças, sem embargo de que o "For-ward", ainda na sexta-feira, 27 de Abril, estava detido no limite insuperável do circo polar.

 

                 PALESTRAS DA TRIPULAÇÃO

O "Forward", contudo, seguiu, deslizando com destreza nas passagens, para ganhar alguns minutos em latitude. Dentro em pouco, porém, em vez de evitar o inimigo, havia de ser forçoso atacá-lo. Iam-se aproximando os icebergues de muitas milhas de extensão, e como estas moles em movimento representam por vezes uma pressão de mais de dez mil toneladas, força era pôr-se em guarda, com cuidado, contra tão temíveis complexos. Instalaram-se, por consequência, a bordo do navio as serras de cortar gelo, de modo que pudessem funcionar imediatamente.

Uma parte da tripulação aceitava com filosofia aqueles duros trabalhos; a outra, porém, queixava-se amargamente quando, por grande favor, não se recusava a obedecer. Garry, Bolton, Pen e Gripper, enquanto tratavam de instalar os instrumentos, trocavam algumas palavras, donde se traduzia o modo de pensar de cada um.

- Com mil diabos! - dizia jovialmente Bolton -, não sei porque me está agora passando pela ideia uma bela taberna, que há em Water-Street, onde a gente dorme menos mal o seu bocado entre um copo de gin e uma garrafa de porter. Vês a coisa daqui, Gripper?

- Para te falar a verdade - retorquiu o interpelado, em quem o mau humor era coisa habitual -, afirmo-te que daqui não vejo coisa que se pareça.

- É modo de falar, Gripper. Certo é que, nestas cidades de gelo, que tanta admiração causam ao Dr. Clawbonny, não há nem a mais insignificante bodega onde um bom marinheiro possa refrescar a goela com alguns decilitros de brandy.

- Lá disso podes tu estar certo, Bolton. Não seria mau que acrescentasses que nem aqui há com que a gente verdadeiramente molhe os lábios. Forte ideia, esta de privar de toda a qualidade de licores espirituosos homens que navegam nos mares do Norte!

- Ora essa - respondeu Garry -, pois já esqueceste o que disse o doutor, Gripper? Se a gente quer rir-se do escorbuto, passar bem e ir longe, é necessário ser sóbrio de toda a bebida excitante.

- Mas cá a mim é que pouco me importa ir longe, Garry. Já não acho feio ter chegado até aqui e teimar em passar onde nem o diabo quer que a gente passe.

- Pois bem, não se passa, e acabou-se! - replicou Pen. - Quando me lembra que até já esqueci o gosto do gin!

- Lembra-te do que disse o doutor - acudiu Bolton.

- Ora! - replicou Pen, com a sua voz grossa e brutal. - Dizer pouco custa. O que resta saber é se, com o pretexto da saúde, não se estão divertindo a fazer economias de líquidos...

- E o caso é que este diabo do Pen talvez tenha razão - sugeriu Gripper.

- Ora vamos! - retorquiu Bolton. - Para isso era preciso que Pen não tivesse a penca tão vermelha como tem, e se com este regime consegue que ela lhe desmaie um poucochito, já não tem grande razão de queixa...

- Que tens tu com o meu nariz? - respondeu com rudeza o marinheiro, ferido na parte mais sensível da sua individualidade. - O meu nariz não precisa dos teus conselhos, nem tos pede. Mete-te lá com o teu, que é quanto basta!

- Vamos, Pen, não te esquentes, que te não julgava tão esquisito das ventas. Olha que eu também, cá por mim, não tenho ódio nenhum a um bom copázio de whisky, principalmente com um frio desta ordem; mas se, no fim de contas, a coisa faz mais mal que bem, de boa vontade a dispenso.

- Dispensa-lo tu - interveio o fogueiro Waren -; pois olha que talvez nem todos assim façam!

- Que queres dizer com isso, Waren? - acudiu Garry, olhando fixamente para o seu interlocutor.

- Quero dizer que, seja lá a razão qual for, o caso é que há licores a bordo e que imagino que lá a gente da popa não se priva muito deles, não!

- Sabes alguma coisa ao certo? - indagou Garry. Waren não pôde responder, porque falara só por falar, como vulgarmente se diz.

- Está visto, Garry, que Waren nada sabe - continuou Bolton.

- Pois bem - volveu Pen -, pede-se uma ração de gin ao comandante, que bem a ganhámos. Sempre havemos de ver o que ele responde.

- Digo-vos eu que não façais tal - aconselhou Garry.

- Mas porquê? - exclamaram Pen e Gripper.

- Porque a recusa do comandante é certa. Bem sabíeis qual era o regime de bordo quando embarcaste. Nessa ocasião é que era reflectir.

- E demais - acrescentou Bolton, que habitualmente tomava o partido de Garry, cujo carácter lhe agradava -, Ricardo Shandon não é quem manda a bordo. Obedece tal e qual como os outros.

- Então a quem? - perguntou Pen.

- Ao capitão.

- Ora que sempre tu hás-de vir com esse malfadado capitão! - exclamou Pen. - Pois não vêem que esse tal capitão existe tanto como a taberna de ainda agora, nestes bancos de gelo? E que não é senão uma maneira decente de nos recusar aquilo que temos direito a exigir?

- Há, sim, há um capitão - insistiu Bolton -; e até apostava dois meses de soldada em como dentro em pouco o havemos de ver.

- Pois sim - resmungou Pen -; sempre gostava de lhe dizer duas palavras, cara a cara, ao tal capitão!

- Quem fala do capitão? - perguntou neste momento um novo interlocutor, Clifton, moço a um tempo sofrivelmente supersticioso e invejoso. - Sabe-se alguma coisa de novo a respeito do capitão?

- Não - responderam todos, em uníssono.

- Pois bem, eu, cá por mim, do que estou à espera é de o ver uma bela manhã instalado no seu camarote, sem ninguém saber como nem por onde ele entrou.

- Ora vamos! - respondeu Bolton -; pois imaginas tu, Clifton, que o tal maganão é algum duende ou diabrete, como os que andam a fazer das suas nas montanhas da Escócia!

- Ri tu à vontade, Bolton, que não me fazes mudar de opinião. Todos os dias, quando passo por aquele camarote, deito um olhar pelo buraco da fechadura e, mais dia menos dia, espero vir contar-vos com quem se parece o tal capitão e que feitio tem.

- Ora! Com mil diabos! - berrou Pen. - Há-de ser feito como a outra gente, o tal capitão! E se for algum patusco que nos queira levar aonde nós não quisermos ir, conta-se-lhe uma história que eu cá sei!

- Esta! - acudiu Bolton. - Nem ainda o conheces, Pen, e já lhe estás a armar questões!?

- Quem é que o não conhece? - replicou Clifton, com ar de quem sabe mais do que quer mostrar. - Se ele o conhece ou não, ainda é caso de dúvida!

- Que diabo queres dizer com isso? - inquiriu Gripper.

- Cá me entendo.

- Mas nós é que te não entendemos!

- Pois então Pen não teve já seus dares e tomares com ele?

- Com o capitão?!

- Sim, com o cão capitão, o que é exactamente a mesma coisa.

Os marinheiros olharam uns para os outros, sem se atreverem a responder.

- Seja homem ou seja cão - resmungou Pen por entre dentes -, o que lhes digo é que o tal animal há-de apanhar a sua conta qualquer destes dias.

- Vejamos, Clifton - observou a sério Bolton -, pois tu dás crédito ao que Johnson disse por brincadeira, que o tal cão é o verdadeiro capitão?

- Decerto - respondeu Clifton com convicção -, se vós fôsseis observadores como eu, havíeis de ter notado os modos singulares desse animal.

- Mas que modos? Vejamos, fala!

- Pois ainda não vistes a maneira como ele passeia no tombadilho, com ares de autoridade, olhando para o pano do navio como se estivesse de quarto?

- É verdade, é - confirmou Gripper -, e até uma noite o apanhei com as patas apoiadas na roda do leme.

- Não é possível! - afirmou Bolton.

- E mais - continuou Clifton -, pois não sabem que ele à noite sai de bordo para ir passear pelos campos de gelo, sem ter medo aos ursos nem ao frio?

- É verdade - confirmou Bolton.

- Vedes acaso esse animal procurar, como qualquer cão decente e honrado, a companhia dos homens, andar rondando para o lado da cozinha, e não tirar os olhos do mestre Strong, quando este traz algum bom pitéu ao comandante? Não o tendes ouvido, porventura, de noite, quando divaga a duas ou três milhas do navio, uivar por forma que faz arrepiar a gente até à medula dos ossos, apesar de não ser coisa fácil pelos frios que fazem? E, finalmente, já alguém o viu comer, ao tal cão? Não aceita nada a ninguém; a comida que lhe preparam aparece sempre intacta. A não ser que alguém a bordo lhe dê que comer em segredo, tenho direito de afirmar que o animal vive sem comer. Ora, se um animal assim não merece o nome fantástico, então confesso que sou muito estúpido.

- Enfim - opinou o carpinteiro Bell, que tinha escutado atentamente toda a argumentação de Clifton -, enfim, a coisa não parece impossível, não.

Os outros marinheiros, porém, calavam-se.

- Afinal - perguntou Bolton - aonde vamos nós com o "Forward"?

- Não sei - respondeu Bell. -, espera-se que num momento dado Ricardo Shandon receba instruções complementares.

- Mas por quem?

- Por quem?

- Sim, e como? - inquiriu Bolton, que apertava com o interlocutor.

- Vamos, Bell, responde-lhe se podes! - intimaram os outros marinheiros.

- Por quem?! Como?! Ora essa! Não sei - replicou o carpinteiro, por sua vez embaraçado.

- Ora, ora! Pelo capitão, não tem que ver! Já escreveu por ele uma vez, não admira que o faça segunda. Oh! que se eu soubesse a metade do que aquele animal sabe, não me havia de custar muito a ser primeiro lorde do Almirantado, não!

- De maneira que - insistiu Bolton, em conclusão - sempre ficas na tua de que o tal cão é que é o capitão?

- Fico, é o mesmo que sempre disse.

- Pois então - disse Pen com voz cava -, se o tal animal não quer que o leve o diabo dentro da pele de um cão, bem se pode despachar em transformar-se em homem, que, à fé de Pen, comigo se vai haver e a vida lhe há-de custar!

- Mas por que razão? - perguntou Garry.

- Porque é da minha vontade - respondeu brutalmente Pen -, e não tenho de dar contas a ninguém.

- Basta de conversas, rapazes! - gritou o mestre Johnson, intervindo no momento em que a conversação parecia querer desviar-se do bom caminho. - Mãos à obra, instalem-me depressa essas serras, madraços! que é mister que passemos o banco!

- Ora essa! À sexta-feira! - resmungou Clifton, erguendo os ombros. - Hão-de ver que não se passa assim o circo polar!

Qualquer que fosse a razão, o facto é que os esforços da tripulação foram pouco menos que improfícuos durante todo aquele dia. O "Forward", apesar de lançado, a toda a força da máquina, de encontro aos ice-fields, não pôde parti-los. Durante a noite teve o navio de fundear.

No sábado baixou a temperatura ainda mais, por influência de uma brisa de leste. O tempo limpou e a vista dos navegantes pôde estender-se ao longe, por sobre aqueles brancos plainos, que a reflexão dos raios solares tornava deslumbrantes. Às sete da manhã marcava o termómetro 8 graus abaixo de zero (-21 graus centígrados).

O doutor esteve quase tentado a ficar sossegado no seu camarote, a reler as viagens árcticas, segundo seu costume, porém, inquiriu de si próprio que coisa lhe seria mais desagradável de fazer naquele momento e a si próprio respondeu que subir à tolda com tal temperatura e ajudar os homens na manobra não era das coisas mais agradáveis. Em consequência, fiel à sua regra de proceder, saiu do seu camarote tão bem aquecido e veio dar a sua contribuição no trabalho de puxar o navio à sirga. O doutor tinha bom aspecto com os seus óculos verdes, com os quais preservava os olhos contra as picadas dos raios reflexos, e nas suas observações futuras teve sempre o cuidado de usar de snow-spectacles, para se livrar das oftalmias, que são muito frequentes naquelas altas latitudes.

Ao cair da noite tinha o "Forward" ganho muitas milhas na direcção norte, graças à actividade dos homens e à habilidade de Shandon, destro no aproveitamento de todas as circunstâncias favoráveis; à meia-noite passava o navio o sexagésimo sexto paralelo e Shandon reconheceu, pelo prumo, que havia vinte e três braças de água e que estava sobre o baixo em que tocou o "Vitória", navio de Sua Majestade. A terra estava só a trinta milhas de distância a leste.

Àquela hora, porém, a mole de gelo, até então imóvel, começou a dividir-se e a pôr-se em movimento. Parecia que de todos os pontos do horizonte surgiam icebergues. O brigue estava metido numa roda de escolhos movediços, cuja força, para esmagar, era irresistível. A manobra tornou-se tão difícil que Shandon mandou para o leme Garry, o melhor timoneiro da tripulação. As montanhas tendiam a unir-se por detrás do brigue. Por consequência, força era atravessar por entre aquela frota de gelos, que não só o dever, como também a prudência, aconselhavam que se caminhasse mais avante. Estas dificuldades cresciam ainda com a impossibilidade em que estava Shandon de verificar a direcção do navio no meio de pontos movediços, que se deslocavam, sem apresentar nenhuma espécie de estabilidade na perspectiva.

Dividiram-se os homens da tripulação em dois turnos, o de estibordo e o de bombordo.

Cada um deles repelia, por meio de compridas varas com ponteira de ferro, as penhas de gelo, que ameaçavam esmagar o navio. Dentro em pouco o "Forward" entrou num canal tão estreito, formado por dois elevados penhascos de gelo, que a extremidade das vergas do navio lhe roçava pelas muralhas, duras como granito; e pouco a pouco foi-se metendo pelo meio de um vale sinuoso, completamente cheio pelo turbilhão dos frocos de neve, enquanto os cerros flutuantes de gelo se despedaçavam, batendo uns de encontro aos outros com sinistro estrépito.

Em breve, porém, foi caso averiguado que aquela garganta não tinha saída. Descaía rapidamente, direito ao "Forward", um enorme cerro de gelo, que entrara pelo canal dentro em sentido contrário ao navio. Parecia tão impossível fugir-lhe como voltar para trás pelo caminho já então obstruído.

Shandon e Johnson, de pé, à proa do brigue, contemplavam aquele espectáculo, reflectindo sobre a situação. Shandon, com a mão direita, indicava ao homem do leme a direcção a seguir, com a esquerda transmitia a James Wall, que se postara junto ao engenheiro, as ordens para a manobra da máquina.

- Como acabará isto? - perguntou o doutor a Johnson.

- Como for da vontade de Deus - respondeu o mestre.

O cerro de gelo, que tinha os seus cem pés de altura, estava então a duas amarras, se tanto, do "Forward", e ameaçava cair sobre ele e fazê-lo em pedaços.

- Maldição! - exclamou Pen, prorrompendo em pragas horrorosas.

- Silêncio! - exclamou uma voz, que ninguém pôde reconhecer entre os rugidos da tempestade.

Houve então um momento de indefinível angústia. O enorme cerro parecia estar a ponto de cair em cima do brigue. A tripulação largou as varas e refluiu toda para a ré, apesar das ordens de Shandon.

De repente ouviu-se um estrépito horrível. Caiu sobre a tolda do navio, levantado por enorme vagalhão, uma verdadeira tromba de água. A tripulação soltou uníssona um grito de terror. Garry, porém, não largou o leme e, apesar do horrível embate, logrou manter o "Forward" na direcção conveniente.

Quando todos, ainda aterrados, tentaram lançar os olhos para a montanha de gelo, esta tinha desaparecido. Estava livre a passagem, e para além dela via-se, iluminado pelos raios oblíquos do Sol, um comprido canal, que consentia que o navio seguisse a sua derrota.

- E então, Sr. Clawbonny - perguntou Johnson -, também me podereis explicar este fenómeno?

- É muito simples, caro amigo - respondeu o doutor -, e reproduz-se com frequência. Estas moles flutuantes, quando se destacam umas das outras, na época de desgelo, vogam isoladamente e em perfeito equilíbrio; pouco a pouco, porém, vão-se chegando ao sul, onde a água é relativamente mais quente, e começa-se-lhes a base, já abalada pelos choques contra as outras penhas de gelo, a derreter, a minar-se. Chega, por consequência, um momento em que se acha deslocado o centro de gravidade de cada uma dessas massas, e então voltam-se de pernas para o ar. É de notar, porém, que, se este icebergue se volta dois minutos mais tarde, caía em cima do brigue e esmagava-o na queda.

 

                   UMA NOTÍCIA

Estava, enfim, transposto o circo polar. A 30 de Abril, pelo meio-dia, passava o "Forward" em frente de Holsteinborg. No horizonte, para a parte de leste, erguiam-se pitorescas montanhas. O mar parecia, por assim dizer, livre de gelos, ou, querendo falar com mais rigor, aos gelos que nele flutuavam era fácil fugir. O vento saltou ao sueste, e o brigue navegou mar de Baffin acima, desfraldando traquete, velacho, gáveas e joanetes.

Reinou, durante todo aquele dia, uma calmaria notável, que permitiu que a tripulação descansasse um pouco. Em redor do navio nadavam ou esvoaçavam numerosos bandos de aves; entre muitas outras, notou o doutor alguns alcaalla, quase semelhante a narcejas, com pescoço, asas e costas negras e peito branco. Mergulhavam com rapidez, prolongando por vezes a imersão além de quarenta segundos.

Nenhum incidente notável teria assinalado aquele dia se não tivesse sucedido a bordo, por extraordinário que pareça, o seguinte facto:

Quando Ricardo Shandon, pela manhã, às seis horas, voltava ao seu camarote, depois de ter feito o quarto da alva, encontrou na mesa uma carta assim sobrescritada:

 

     «Comandante Ricardo Shandon, a bordo do "Forward".

     Mar de Baffin.»

 

Shandon não podia acreditar o que via. Antes, porém, de tomar conhecimento do conteúdo daquela estranha missiva, mandou chamar o doutor, James Wall e o mestre, e mostrou-lhes a carta.

- O caso vai-se tornando singular - declarou Johnson,

"É extremamente agradável!", pensou o doutor.

- Enfim - exclamou Shandon -, vamos afinal conhecer esse segredo...

E, rasgando rapidamente o sobrescrito, leu com atenção o seguinte:

 

«Comandante:

O capitão do "Forward" está contente com a vossa presença de espírito, com a habilidade e coragem de que os vossos homens, os oficiais e vós destes provas nas últimas ocorrências. Rogo-vos que, em meu nome, participeis à tripulação o meu reconhecimento.

Tende a bondade de dirigir-vos direito ao norte, para a baía Melville, de onde tentareis penetrar no estreito

de Smith.

     O capitão do "Forward, K. Z.

Segunda-feira, 30 de Abril, à vista do cabo Walsingham.»

 

- E mais nada? - exclamou o doutor.

- Nada mais - respondeu Shandon. A carta caiu-lhe das mãos.

- Com que então - disse Wall -, esse quimérico capitão nem já fala em vir a bordo. O que daí concluo é que não põe cá os pés.

- E esta carta - acudiu Johnson - como chegou

ela cá?

Shandon emudecia.

- Tem razão o senhor Wall - respondeu o doutor, que apanhara a carta e a remirava por todos os lados. - Há uma razão excelente para que o capitão não venha a bordo...

- Qual é? - perguntou com interesse Shandon.

- É que já cá está - redarguiu simplesmente o doutor.

- Já cá está! - exclamou Shandon. - Que quer isso dizer?

- Pois, não sendo assim, como há-de explicar-se a vinda desta carta?

Johnson dava à cabeça em sinal de aprovação.

- Não é possível! - prorrompeu Shandon com energia. - Era necessário supor que esse capitão estava entre os homens da tripulação desde a saída do navio, e eu conheço-os bem a todos. Não é possível, repito. Não há um só deles que eu não tenha visto mais de cem vezes em Liverpul, e nestes últimos dois anos! A vossa suposição, doutor, é inadmissível!

- Que admitis então, Shandon?

- Tudo, excepto isso. Admito, por exemplo, que esse capitão, ou um homem todo ele - que sei eu? -, pudesse aproveitar-se da obscuridade, do nevoeiro, de tudo quanto quiserdes enfim! para se meter a bordo! Não estamos muito longe da terra. Há caíques dos esquimós que se escoam despercebidos por entre os gelos. Por consequência não é impossível que alguém viesse até ao navio e entregasse a carta... O nevoeiro foi denso bastante para favorecer qualquer plano desses...

- Assim como para impedir que se visse o brigue - replicou o doutor. - Se nós não vimos o intruso meter-se a bordo, como havia ele de avistar o "Forward" no meio do nevoeiro?

- É evidente que não era possível - apoiou Johnson.,

- Insisto, portanto, na minha hipótese - tornou o doutor. - Que pensais acerca do caso, Shandon?

- Tudo quanto quiserdes - respondeu Shandon, com energia -, excepto ser verdadeira a suposição de que esse homem esteja a bordo do navio que comando.

- Na tripulação - sugeriu Wall - é que talvez ele tenha algum homem de sua confiança, que dele recebesse instruções.

- Talvez - resmungou o doutor.

- Mas quem? - perguntou Shandon. - Digo-vos e repito-vos que conheço toda a minha gente, e há muito.

- Em todo o caso - prosseguiu Johnson -, se o tal capitão se apresentar, homem ou diabo, havemos de recebê-lo. Dessa carta, porém, podemos nós tirar ainda outra lição, ou, para melhor dizer, outra indicação.

- Qual? - perguntou Shandon.

- É que devemos dirigir-nos não só para a baía Melville, mas também daí para o estreito de Smith.

- Tendes razão - afirmou o doutor.

- Para o estreito de Smith - repetiu maquinalmente Ricardo Shandon.

- É, por consequência, evidente - prosseguiu Johnson - que o destino do "Forward" não é procurar a passagem do noroeste, visto termos de deixar pela esquerda a única entrada que lá conduz, isto é, o estreito de Lancastre. O que tudo isto significa é um seguro presságio de navegação difícil em mares desconhecidos.

- Sim, o estreito de Smith - respondeu Shandon -, é a derrota que o americano Kane seguiu em 1853, mas com que riscos! Por muito tempo todos o reputaram perdido nessas horríveis latitudes! Enfim, visto ser necessário lá ir, iremos; mas até onde? Será até ao pólo?,

- E porque não? - exclamou o doutor.

A suposição de tentativa tão insensata fez erguer os ombros ao mestre.

- Enfim, voltando ao capitão, se é que existe, não vejo na costa da Gronelândia outro lugar onde ele possa estar à nossa espera senão os estabelecimentos de Disko ou de Uppernawik; por consequência, poucos dias faltam para que saibamos decididamente o que a tal respeito devemos pensar.

- E a carta - perguntou o doutor a Shandon -; não a dais a conhecer à tripulação?

- Se o comandante me dá licença - interpôs Johnson-, dir-lhe-ei que no seu caso não faria tal.

- E porquê? - perguntou Shandon.

- Porque todas estas ocorrências extraordinárias, fantásticas, são mais próprias para fazer desanimar os nossos homens do que para outra coisa. Inquietos de mais já eles estão acerca da sorte de uma expedição que por tal forma se apresenta.

E se os induzem em ideias sobrenaturais, mal vai o negócio; no momento crítico é escusado contar com eles. Que vos parece, comandante?

- E vós, doutor, que pensais do caso? - interrogou Shandon.

- Parece-me que mestre Johnson discorre com prudência.

- E vós, James?

- Salvo melhor conselho, sou da opinião destes senhores.

Shandon ficou-se a reflectir por alguns instantes; tornou a ler mais atentamente a carta, e depois disse:

- Senhores, a vossa opinião é por certo muito sensata, mas é-me impossível adoptá-la.

- Por que razão, Shandon? - perguntou o doutor.

- Porque são formais as instruções da mesma carta; e nelas me ordena o capitão que leve ao conhecimento da tripulação as felicitações que ele lhe enviou. Até aqui tenho sempre obedecido cegamente às ordens recebidas, qualquer que fosse a maneira por que me fossem transmitidas, e não posso...

- Eu, apesar disso... - ia dizendo Johnson, que fundamente tinha receio do efeito de semelhante comunicação sobre o espírito da marinhagem.

- Meu estimável Johnson - retorquiu Shandon -, compreendo a vossa insistência. São excelentes as razões que apontastes, mas lede:

 

«Rogo-vos que, em meu nome, participeis à tripulação o meu reconhecimento.»

 

- Nesse caso é proceder em consequência - respondeu logo Johnson, que, antes de tudo, era estrito observador da disciplina. - Será necessário mandar reunir a tripulação na tolda?

- Mandai - volveu Shandon.

Espalhou-se imediatamente a bordo a notícia de que havia uma comunicação do capitão. Todos os marinheiros se apressaram em tomar os seus respectivos lugares, e o comandante leu-lhes em voz alta a misteriosa carta.

Esta leitura foi acolhida com um silêncio triste, e a

tripulação dispersou, entregue a mil suposições. Clifton tirou dali assunto para quantas divagações lhe cabiam na supersticiosa imaginação, e a parte que em tais acontecimentos ele atribuía ao cão capitão era tão importante que nunca mais deixou de o cumprimentar todas as vezes que por acaso o encontrava de passagem.

- Não vos dizia eu - repetia ele à marinhagem - que o tal animal sabia escrever!

Ninguém dava réplica a semelhante observação; não, que nem o próprio Bell poderia fazê-lo em termos.

No entanto, o caso fez com que todos viessem ao conhecimento de que, na falta do capitão, velava por ele, a bordo, a sua sombra ou o seu espírito. Os mais prudentes, de então por diante, tiveram o cuidado de guardar só para si as respectivas suposições.

No 1 de Maio, ao meio-dia, deu a observação 68 graus de latitude e 56 graus 32 de longitude. A temperatura subira, o termómetro marcava 25 graus acima de zero ( - 4 graus centígrados).

O doutor esteve-se divertindo a contemplar as brincadeiras de uma ursa branca com os seus dois ursinhos, que corriam pela borda de um pack que se prolongava com a terra. Tentou, em companhia de Wall e de Simpson, dar-lhe caça na canoa; mas a ursa, que era de génio pouco belicoso, fugiu rapidamente, levando atrás de si a prole, e o doutor desistiu da empresa.

Durante a noite, por mercê de um vento propício, o navio dobrou o cabo Chidley, e dentro em pouco ergueram-se no horizonte as altas montanhas de Disko; deixaram pela direita a baía de Godavhn, residência do governador-geral dos estabelecimentos dinamarqueses, e, como Shandon não julgou conveniente demorar-se, em breve se distanciou das pirogas de esquimós, que tentavam alcançar o navio.

A ilha Disko tem também o nome de ilha da Baleia. Deste ponto é que, em 12 de Julho de 1845, escreveu pela última vez Sir John Franklin para o Almirantado, e foi também nesta ilha que, no seu regresso, em 27 de Agosto de 1859, tocou o capitão Mac Clintock, que trazia consigo as provas mais que seguras da perda daquela expedição.

Devia ser notada pelo doutor a coincidência daqueles dois factos. Aquela triste aproximação era fecunda em recordações. Dentro em pouco, porém, desapareceram-lhe do alcance da vista as alturas de Disko.

Junto às costas havia então grande número de icebergues, daqueles que os mais fortes desgelos não logram destacar, e aquela série contínua de cristas prestava-se às mais estranhas formas.

No dia seguinte, pelas três horas, avistaram os navegantes, por nordeste, Sanderson-Hope. A terra estava a umas quinze milhas de distância por estibordo. As montanhas pareciam cobertas de uma tinta de bistre avermelhada. Durante a noite vieram muitas baleias, da espécie chamada dos finners, que tem barbatanas nas costas, brincar por entre os gelos, expulsando pelos respiradouros ar e água.

Na noite de 3 de Maio é que o doutor pôde ver, pela vez primeira, o Sol passar rente da linha terminal do horizonte sem nele mergulhar o luminoso disco. Desde 31 de Janeiro que a forma do orbe solar se ia alongando cada dia mais, até que reinava agora uma claridade contínua.

Para espectadores não habituados, aquela persistência do dia é a todo o momento assunto de admiração e ainda de cansaço. Ninguém imagina quão necessária é a obscuridade da noite para a saúde dos olhos. O doutor sofria, para se habituar àquela luz contínua, uma verdadeira dor, que o reflexo dos raios solares, nos plainos de gelo, tornava ainda mais aguda.

A 5 de Maio passou o "Forward" o paralelo septuagésimo segundo. Se chegasse dois meses mais tarde, teria encontrado naquelas latitudes grande número de baleeiros entregues à pesca. Naquela época, porém, o estreito não estava ainda suficientemente desembaraçado de gelos para permitir que as embarcações daquela espécie entrassem no mar de Baffin.

No dia seguinte o brigue, deixando pela popa a ilha das Mulheres, chegou à vista de Uppernawik, que é o estabelecimento mais setentrional que a Dinamarca possui naquelas costas.

 

               NAVEGAÇÃO ARRISCADA

Shandon, o Dr. Clawbonny, Johnson, Foker e Strong, o cozinheiro, meteram-se na baleeira e foram a terra.

O governador, mulher e cinco filhos, todos de raça esquimó, vieram cortesmente ao encontro dos visitantes a cumprimentá-los. O doutor, na sua qualidade de filólogo, sabia um poucochito da língua dinamarquesa, que foi mais que suficiente para entabular relações muito cordiais. Demais, Foker, que não só era icemaster como intérprete da expedição, sabia umas vinte palavras da língua gronelandesa, e com vinte palavras muito se pode fazer, quando se não deseja demasiado.

O tal governador, que nascera na ilha Disko e nunca saíra da sua terra natal, fez aos navegadores as honras da sua cidade, que se compõe de três casas de madeira, para ele e para o ministro luterano, de uma escola e de armazéns, cujo abastecimento está a cargo dos navios que ali naufragam. O resto consiste em choças de neve, nas quais os esquimós entram de rastos por uma abertura, que é a única.

Grande parte da população viera à praia para ver o "Forward", e até muitos dos naturais do sítio avançaram até ao meio da baía nos seus caíques, que têm uns quinze pés de comprido por dois de largura, quando muito.

O doutor sabia que a palavra esquimó quer dizer comedor de peixe cru, e sabia também que tal nome é considerado naquela região como injúria.

Teve por consequência todo o cuidado de chamar aos respectivos habitantes gronelandeses.

Sem embargo, não era difícil reconhecer qual o alimento normal daquelas populações. Estavam-no dizendo claramente aqueles fatos oleosos de peles de foca, aquelas botas da mesma espécie, todo aquele conjunto gorduroso e infecto, que nem permite distinguir os homens das mulheres. Demais a mais estavam em parte comidos de lepra, como sucede a todos os povos ictiófagos, mas nem por isso passavam pior.

O ministro luterano e sua mulher, com os quais o doutor imaginara conversar com mais especialidade, andavam em correição para os lados de Proven, ao sul de Uppernawik; por consequência, não teve outro remédio senão contentar-se com a conversação do governador. Este magistrado era tanto ou tão forte em letras que, por pouco menos, seria um verdadeiro asno; um poucochinho mais e sabia ler.

O doutor, sem embargo, foi-o interrogando acerca do comércio, dos hábitos e dos costumes dos esquimós, e ficou sabendo, por meio da linguagem dos gestos, que as focas valiam pouco mais ou menos quarenta libras esterlinas, postas em Copenhaga; que se pagava uma pele de urso por quarenta dólares dinamarqueses, uma pele de raposa azul por quatro, e de raposa branca por dois ou três.

Quis também o doutor, com o intuito de completar a sua instrução pessoal, visitar uma choça de esquimós. Ninguém imagina de quanto é capaz um sábio que quer saber. Por fortuna, era demasiadamente estreita a abertura das tais cabanotas, e o endiabrado doutor não pôde por lá passar. E escapou de boa, que nada há mais repugnante que aquele monturo de coisas mortas ou vivas, carne morta de foca ou carne viva de esquimós, peixes podres e vestuários infectos, que constituem a mobília de qualquer cabana gronelandesa. Nem uma janela sequer para renovar aquele ambiente irrespirável. Somente, no alto da choça, é que há um buraco, que dá saída ao fumo, mas que não deixa dispersar o fedor.

Foker deu todos estes pormenores ao doutor, que nem por isso deixou de amaldiçoar a sua corpulência, porque desejava avaliar, por si próprio, aquelas emanações sui generis.

- Estou certo de que, com o tempo, vem a gente a acostumar-se àquilo.

"Com o tempo" é uma expressão que, por si só, pinta exactamente o estimável Dr. Clawbonny.

Enquanto o doutor tratava de fazer estudos etnográficos, ocupava-se Shandon, segundo as instruções recebidas, em arranjar meios de transporte adequados para os gelos. Teve de pagar por quatro libras um trenó com os respectivos cães de tiro, e ainda por este preço os indígenas tiveram sua dificuldade em lho ceder.

Desejava também Shandon contratar o hábil condutor de cães Hans Christian, que fizera parte da expedição do capitão Mac Clintock; o tal Hans, porém, estava na Gronelândia Meridional. Veio afinal a grande questão, que era a verdadeira ordem do dia: estaria ou não em Uppernawik algum europeu à espera da passagem do "Forward"? Teria o governador conhecimento do facto de ter fixado residência naquelas paragens algum estrangeiro, provavelmente inglês? A que época remontava as suas últimas relações com os navios baleeiros ou de qualquer outra espécie?

A estas perguntas respondeu o governador que nenhum estrangeiro desembarcara naquela parte da costa havia mais de dez meses.

Shandon fez com que ele lhe comunicasse os nomes de todos os baleeiros que ultimamente tinham ali aportado, e não conheceu nenhum. Era caso para desesperar.

- Haveis de confessar, doutor, que isto é para a gente ficar com a cabeça à razão de juros - dizia ele ao companheiro. - No cabo Farewell, nada! Na ilha Disko, nada! E nada também em Uppernawik!

- Se daqui a alguns dias me repetirdes ainda: "Nada na baía Melville", meu caro Shandon, cumprimentar-vos-ei como o único e verdadeiro capitão do "Forward".

Voltou a baleeira ao brigue, por volta da noite, transportando todos os visitantes. A respeito de novos alimentos frescos, tinha Strong arranjado boa soma de dúzias de ovos de eiderducks, que têm dobrado volume dos de galinha e uma cor esverdeada. Pouco era, de facto, mas o suficiente para refrescar o sangue a uma tripulação submetida ao regime da carne salgada.

No dia seguinte, o vento tornou-se favorável, mas, apesar disso, Shandon conservou-se ali. Quis ainda esperar mais um dia, e assim, por descargo de consciência, dar tempo a que qualquer ente pertencente à raça humana pudesse alcançar o "Forward". Fez até disparar de hora a hora a peça de 16, que troava com estrépito no meio dos icebergues, mas só o que conseguiu foi assustar nuvens de mollymokes *1 e de rotches *2. Lançaram-se também durante a noite muitos foguetes ao ar, mas debalde. Por consequência, forçoso foi decidir-se a partir.

No dia 8 de Maio, às seis horas da manhã, o "Forward", com o traquete, gáveas e joanete grande, perdia de vista o estabelecimento de Uppernawik e aquela horrível estacaria de onde pendem, ao longo da praia, intestinos de focas e de gamos.

O vento soprava de sudeste e a temperatura voltou a 32 graus (0 graus centígrados). O sol atravessava o nevoeiro e, debaixo da sua acção dissolvente, os gelos iam-se desapertando um pouco.

Contudo, a reflexão daqueles raios brancos produziu perniciosos efeitos na vista de muitos dos homens da tripulação.

O armeiro Wolsten, Gripper, Clifton e Bell foram atacados de snow-blindness, espécie de enfermidade dos olhos, muito comum na Primavera, e que entre os esquimós é causa de bastantes casos de cegueira. O doutor aconselhou aos enfermos em particular, e a todos os companheiros em geral, que cobrissem o rosto com um véu de gaze verde, e foi ele o primeiro que usou da própria receita.

Os cães que Shandon comprara em Uppernawik eram de natureza bastante selvagem; no entanto, foram-se aclimando a bordo, e até "Capitão" se deu sofrivelmente com os novos camaradas, de cujos hábitos parecia muito conhecedor.

Não foi Clifton dos últimos a fazer notar esta circunstância,

 

*1. Aves dos mares boreais.

  1. Espécie de perdiz dos rochedos.

 

que provava que, entre "Capitão" e os seus congéneres da Gronelândia, já houvera relações. Estes, que em terra vivem sempre esfomeados e reduzidos a uma alimentação incompleta, não tratavam senão de se refazer com o regime de bordo.

No dia 9 de Maio o "Forward" passou a algumas amarras da mais ocidental das ilhas de Baffin. O doutor notou a singularidade de muitos rochedos da baía, situados entre as ilhas e a terra, daqueles a que chamam Crim-son-cliffs, que se apresentavam cobertos de uma neve tão vermelha como o mais lindo carmim, neve a que o Dr. Kane atribuiu uma origem puramente vegetal. Desejaria Clawbonny contemplar mais de perto aquele raro fenómeno, mas não lhe consentiu o gelo que se aproximasse da costa. Apesar de se ir elevando a temperatura, era fácil de ver que os icebergues e os ice-streams se iam acumulando para a parte do norte do mar de Baffin.

A terra, a partir de Uppernawik, apresentava um aspecto diferente. No horizonte projectavam-se então, sobre um céu pardacento, imensas galerias. No dia 10, o "Forward" deixava pela direita a baía de Kingston, nas proximidades do septuagésimo quarto grau de latitude. A muitos centos de milhas a oeste estava a embocadura do canal de Lancastre.

Naquela altura, porém, desaparecia aquela imensa extensão de águas debaixo dos vastos campos de gelo, por sobre os quais se erguiam hummocks tão regulares como as cristalizações de uma mesma substância. Mandou Shandon acender as fornalhas e desde então, até 11 de Maio, o "Forward" serpenteou por entre aquela rede de canais sinuosos, desenhando no céu, com o negro fumo, a derrota que seguia no mar.

Não tardaram, porém, a apresentar-se novos obstáculos; as passagens iam-se fechando em virtude do deslocamento incessante das massas flutuantes. Havia uma ameaça permanente de falta de água por diante do "Forward", e se este chegasse a ser nipped *1, difícil lhe seria sair dali. Isto sabiam todos e todos nisto pensavam.

Por este motivo, começaram a manifestar-se a bordo daquele navio,

 

*1. Preso entre os gelos.

 

sem termo de viagem determinado, sem destino conhecido, que loucamente buscava o norte, alguns sintomas de hesitação e, entre aqueles homens afeitos a uma existência cheia de perigos, muitos houve que, esquecendo as vantagens oferecidas, se arrependiam já de se ter aventurado tão longe. Reinava já nos espíritos uma certa desmoralização, aumentada ainda pelos terrores de Clifton e pelos ditos de dois ou três cabeças de motim, tais como Pen, Gripper, Waren e Wolsten.

Às inquietações morais da tripulação juntava-se um trabalho de estafar, porque a 12 de Maio o brigue estava preso por todos os lados e a máquina não tinha força bastante para romper. Foi mister abrir caminho através dos campos de gelo. O manobrar das serras naqueles floes*1, alguns dos quais chegavam a ter seis e sete pés de grossura, era extremamente penoso; e ainda depois de feitos no gelo dois entalhes paralelos, que o dividiam no comprimento de uns cem pés, era necessário partir-lhe a parte interna a golpes de machado e de espeque.

Espiaram-se então os ferros fixos num furo feito com uma grande broca, começou depois a manobra do cabrestante e alou-se o navio a braços. A maior dificuldade, em tudo isto, consistia em meter depois debaixo dos floes os pedaços partidos, para abrir passagem ao navio, para o que era necessário empurrá-los por meio de pôles, compridas varas com aguda ponteira de ferro.

Finalmente, manobra de serra, manobra de sirga, manobra de cabrestante, manobra de pôles, manobras incessantes, forçadas e perigosas, no meio do nevoeiro ou dos espessos frocos de neve, temperatura relativamente baixa, sofrimentos oftálmicos, inquietações morais, tudo contribuía para enfraquecer a tripulação do "Forward" e reagir-lhe sobre a imaginação.

A marinhagem, quando tem de se haver com um homem enérgico, audaz, convencido que sabe o que quer, aonde vai, a que fim tende, é aguentada pela confiança, apesar de si própria. Unem-se então os homens do mar de coração a quem os comanda; a força do chefe dá-lhes a eles força; a tranquilidade deste tranquiliza-os. A bordo do brigue,

 

*1. Gelos.

 

porém, era visível que o comandante não estava muito cheio de ânimo, que ele próprio hesitava perante aquele fim, aquele destino misterioso. Apesar da energia de carácter de que era dotado, o seu desânimo traduzia-se-lhe inconscientemente nas mudanças de ordens, no incompleto das manobras, nas reflexões intempestivas, em mil pormenores, enfim, que não podiam escapar à tripulação.

Demais a mais, Shandon não era o capitão do navio, não era quem, logo depois de Deus, ali mandava; e só isto era razão bastante para que lhe discutissem as ordens; e da discussão à recusa de obediência vai apenas um passo.

Em breve os descontentes conseguiram atrair a si o primeiro-engenheiro, que até então fora escravo do dever.

A 16 de Maio, seis dias depois da chegada do "Forward" ao banco dos gelos, Shandon não tinha ganho duas milhas em latitude norte. Estava o navio em risco de ficar encarcerado pelos gelos até à próxima estação. O caso ia-se tornando muito grave.

Por volta das oito da noite, marchavam Shandon e o doutor, acompanhados pelo marinheiro Garry, à descoberta no meio daquelas imensas planícies, tendo tido o cuidado de se não afastarem muito do navio, porque era difícil estabelecer pontos de referência naquelas brancas solidões, cujos aspectos mudavam sem cessar.

A refracção produzia efeitos tão singulares que tinham o poder de espantar o doutor: onde ele julgava ter de dar um salto de um pé apenas, tinha de transpor cinco ou seis pés; e em ambos os casos era certo o resultado: uma queda, se não perigosa, pelo menos desagradável, em cima daquelas estilhas de gelo, duras e aceradas como vidro.

Andavam Shandon e os companheiros à procura de passagens praticáveis. A três milhas do navio conseguiram, não sem incómodo e trabalho, trepar a um icebergue que podia ter uns cem pés de altura. Nesse lugar estendia-se-lhes a vista por sobre aquela acumulação desolada, semelhante às ruínas de alguma cidade gigantesca, com os seus obeliscos caídos, os seus campanários derrubados, os seus palácios arruinados de um só golpe.

Era um verdadeiro caos. O Sol arrastava penosamente os seus orbes em volta de um horizonte cortado de picos, lançando longos raios oblíquos de luz sem calor, como se se tivessem interposto entre o astro e aquela triste região substâncias atérmicas.

O mar parecia estar inteiramente gelado até aos limites mais distantes do alcance da vista.

- Como passaremos nós? - perguntou o doutor.

- Não sei - respondeu Shandon -, mas havemos de passar, ainda que tenhamos de usar da pólvora para fazer saltar estas montanhas. Não, não quero ficar preso nos gelos até à Primavera próxima.

- Como sucedeu ao "Fox", pouco mais ou menos nestas paragens - disse o doutor. - Bah!, mas havemos de passar... com um bocado de filosofia, que vale tanto como todas as máquinas do mundo. E, para mais, veremos!

- É forçoso confessar - afirmou Shandon - que o ano não se apresenta com muito favoráveis auspícios.

- Isso é que se não pode contestar, Shandon, e noto até que o mar de Baffin tem este ano suas tendências para voltar ao estado em que esteve até 1817.

- Então pensais que o estado actual não é o mesmo que existiu sempre, doutor?

- Não é, meu caro Shandon. De tempos a tempos, há enormes desgelos repentinos, que os homens de ciência mal sabem explicar. Por esta razão, este mar esteve sempre obstruído até 1817, época em que houve um grande cataclismo, que repeliu para o oceano estes icebergues, cuja maior parte veio naufragar no banco da Terra Nova.

A partir desta época ficou a baía de Baffin, por assim dizer, livre, e tornou-se o lugar de encontro favorito de grande número de baleeiros.

- Com que então - perguntou Shandon - as viagens ao norte tornaram-se desde essa época mais fáceis?

- Incomparavelmente. Há alguns anos, porém, nota-se que a baía tende a gelar de novo e que ameaça cerrar-se por muito tempo às investigações dos navegadores. Por consequência, mais uma razão para que vamos tão avante quanto possível, sem embargo de que navegamos com ar de gente que vai por galerias desconhecidas, cujas portas se lhe fecham, sem cessar, nas costas.

- E dar-me-eis de conselho que recuasse? - perguntou Shandon, tentando ler no mais profundo do olhar do doutor.

- Eu! Eu que nunca soube pôr um pé atrás do outro!... Ainda que não tivéssemos de voltar, diria que devemos marchar para diante. O que eu pretendo unicamente que fique assente é que, se cometemos imprudências, é com plena consciência dos riscos a que nos expomos.

- E vós, Garry, que dizeis a isto? - perguntou Shandon ao marinheiro.

- Cá por mim, comandante, navegava direito ao norte. Penso exactamente como o Sr. Clawbonny. Em todo o caso, podeis mandar o que melhor vos parecer, que obedeceremos.

- Nem todos dizem o mesmo, Garry - continuou Shandon -, nem todos estão em disposição de obedecer! E se os outros se recusarem a cumprir as minhas ordens?

- Já vos disse o meu parecer, comandante - replicou Garry com ar frio-, porque mo pedistes, mas nem por isso sois obrigado a segui-lo.

Shandon não respondeu. Examinou com atenção o horizonte e tornou a descer com os dois companheiros ao campo de gelo.

 

                     O POLEGAR DO DIABO

Durante a ausência do capitão, os homens tinham executado diversos trabalhos com o fim de evitar ao navio a pressão dos ice-fields. Pen, Clifton, Bolton, Gripper e Simpson é que estavam encarregados desta manobra, tão penosa que até o fogueiro e os dois maquinistas tiveram de vir prestar auxílio aos camaradas, porque, desde o momento em que o serviço da máquina não exigia a presença deles, voltavam à condição de simples marinheiros e, como tais, podiam ser empregados em todos os serviços de bordo.

A coisa, porém, não se fazia sem se promover grande irritação.

- O que eu digo é que já estou farto disto até aos cabelos - declarou Pen. - Se dentro de três dias não chega o desgelo, juro, por Deus, que cruzo os braços!

- Cruzar os braços! - respondeu Gripper. - Mais vale empregá-los em voltar para trás! Pois julgas que nós estamos dispostos a invernar aqui até ao ano que vem?

- Em verdade que seria uma triste invernagem - retorquiu Plover. - O navio está desabrigado de todos os

lados!

- E quem sabe - disse Brunton - se o mar, mesmo na próxima Primavera, estará mais desembaraçado do que está hoje?

- Não se trata da próxima Primavera - replicou Pen. - Estamos hoje em quinta-feira; se domingo, pela manhã, o caminho não estiver livre, voltamos para o sul.

- Isso é que é falar! - apoiou Clifton.

- Convém-vos isto? - perguntou Pen.

- Convém - responderam os camaradas.

- E é muito justo - prosseguiu Waren. - Cá por mim, se temos de continuar a trabalhar por esta forma e de sirgar o navio à força de braços, então acho melhor voltar para trás.

- Veremos domingo - declarou Wolsten.

- E, é darem-me a ordem - acudiu Brunton -, que as fornalhas depressa se acendem!

- Ora! - disse Clifton. - Até nós éramos capazes de as acender.

- Se algum dos oficiais - prosseguiu Pen - se quiser dar ao prazer de invernar aqui, isso é lá com ele. Cá o deixaremos em paz e sossego. Não lhe há-de dar grande trabalho a construir uma pocilga para lá viver à maneira de esquimó.

- Lá isso é que não, Pen - observou Brunton -, abandonar alguém é que nós não devemos fazer. Ouvis bem isto, vós outros? E, demais, creio que o comandante não será difícil de convencer: ele já não anda muito satisfeito, e se lhe propusermos a coisa com bons modos...

- Veremos - interrompeu Plover. - Ricardo Shandon é homem rijo e por vezes cabeçudo; não seria mau sondá-lo com termos.

- Quando me lembra - acudiu Bolton com um suspiro de cobiça - que dentro de um mês podemos estar de volta a Liverpul! A linha dos gelos, ao sul, facilmente se transpõe! No princípio de Junho está aberto o canal do estreito de Davis, e daí por diante não é mais do que deixar-se a gente ir abater pelo Atlântico!

- Não esquecendo - acrescentou o cauteloso Clifton - que, levando nós connosco o comandante e procedendo sob a responsabilidade dele, ficamos com o direito de receber as nossas soldadas e gratificações; ao passo que, se regressássemos sozinhos, a coisa podia ter as suas dúvidas.

- Bem discorrido - afirmou Plover. - Este diabo do Clifton fala como um empregado de contabilidade! O mais seguro é evitar questões com esses senhores lá do Almirantado.

Por consequência, não abandonemos ninguém.

- E se os oficiais recusarem acompanhar-nos? - prosseguiu Pen, que queria obrigar os camaradas a tomar uma resolução definitiva.

Ninguém soube responder categoricamente àquela pergunta tão directa e formal.

- Veremos isso quando chegar a ocasião - replicou Bolton. - Demais, basta que consigamos convencer Ricardo Shandon, o que, segundo creio, não será coisa difícil.

- Alguém há - berrou Pen, praguejando horrivelmente - que há-de cá ficar, dê por onde der, ainda que ele me coma um braço.

- Ah! sim, o cão - disse Plover.

- Sim, o cão, não há-de tardar muito que eu lhe dê cabo da pele!

- Com tanta mais razão - reforçou Clifton, voltando à sua tese favorita - que o tal canzarrão é a única causa de todos os nossos males.

- Foi ele que nos deitou algum malefício - declarou Plover.

- E que nos levou para o banco de gelos - acrescentou Gripper.

- E foi ele também quem acumulou no nosso caminho tantos gelos como nunca se viram nesta época do ano - replicou Wolsten.

- E é o causador da minha doença de olhos - ajuntou Brunton.

- E foi quem suprimiu o gin e o brandy - lembrou Pen.

- É ele o causador de tudo! - exclamou unânime a assembleia, a quem se ia esquentando a imaginação.

- E, demais a mais - insistiu Clifton -, sendo ele o capitão.

- Pois bem, capitão do inferno - clamou Pen, cujo furor sem causa tirava nova força das próprias palavras -, já que quiseste aqui vir, hás-de cá ficar!

- Mas como se há-de apanhar? - perguntou Plover.

- Ora! A ocasião não é nada má - respondeu Clifton. - O comandante não está a bordo; o imediato está a dormir no seu camarote; e o nevoeiro é denso bastante para escaparmos às vistas de Johnson...

- E o cão? - inquiriu Pen.

- "Capitão", neste momento, está por aí a dormir perto do paiol do carvão - informou Clifton -, e se alguém quer...

- Eu me encarrego dele - volveu Pen com furor.

- Cautela, Pen. Olha que tem dentes capazes de partir uma barra de ferro!

- Se se mexe, ponho-lhe as tripas ao sol - replicou Pen, sacando da navalha.

E correu à segunda coberta, seguido por Waren, que o queria ajudar naquela empresa.

Voltaram ambos daí a pouco, trazendo nos braços o animal com o focinho e as patas fortemente ligados. Tinham-no surpreendido durante o sono e o desventurado cão não lograra escapar-se-lhes.

- Hurra por Pen! - exclamou Plover.

- E, agora, que pretendeis fazer dele? - perguntou Clifton.

- Afogá-lo, e se cá volta... - ameaçou Pen com um horrível sorriso de satisfação.

A uns duzentos passos do navio havia um buraco de focas, espécie de abertura circular, feita pelos dentes daqueles anfíbios e sempre escavada do interior para o exterior. É por estes buracos que as focas vêm respirar à superfície do gelo. É-lhes, porém, necessário ter todo o cuidado em que se não feche o orifício deles, porque a disposição das maxilas do animal não lhe consente que torne a abrir o buraco de fora para dentro, e então não poderia escapar, no momento do perigo, aos seus inimigos.

Pen e Waren dirigiram-se para a tal abertura, por onde, apesar da sua enérgica resistência, lançaram ao mar o cão. Depois fecharam ao animal toda a saída, empurrando para cima da abertura do poço um enorme penhasco de gelo, que cerrou de vez aquela prisão líquida.

- Boa viagem, "Capitão"! - gritou o brutal marinheiro.

Poucos momentos depois voltaram a bordo Pen e Waren.

Johnson nem tinha dado por aquela execução. Começava o nevoeiro a tornar-se mais denso em volta do navio e a neve a cair com força.

Ricardo Shandon, o doutor e Garry só uma hora depois voltaram ao "Forward".

Vira Shandon, para o lado do nordeste, uma passagem navegável, de que resolvera aproveitar-se, e deu as suas ordens em consequência disso. A tripulação obedeceu com desusada actividade, porque queria convencer Shandon da impossibilidade de navegar mais avante e também porque lhe restavam ainda três dias de obediência.

Durante uma parte daquela noite e do dia seguinte seguiram as manobras de serra e sirga feitas com actividade, e o "Forward" ganhou perto de duas milhas em latitude norte. No dia 18 estava o navio à vista de terra, a cinco ou seis amarras de um píncaro singular, que por sua forma estranha merecera o nome de Polegar do Diabo. Naquele mesmo lugar estiveram obstinadamente encerrados pelos gelos, por espaço de muitas semanas, o "Prince Albert" em 1851, e em 1853 o "Advance", que levava a bordo o Dr. Kane.

A forma estranha do Polegar do Diabo, os seus arredores desertos e desolados, os extensos circos de icebergues, alguns dos quais tinham mais de trezentos pés de altura, o estalar dos gelos, que o eco repetia em tom sinistro, tudo, enfim, tornava tão horrivelmente triste a situação do "Forward", que Shandon entendeu que era necessário tirá-lo dali e ir mais adiante.

Segundo a estimativa que fez, vinte e quatro horas depois tinha conseguido afastar-se duas milhas daquela funesta costa. Mas ainda era pouco. Shandon sentiu-se invadir pelos receios e a falsa situação em que se achava paralisava-lhe a energia. Levara, por obedecer às instruções recebidas e navegar avante, o navio a uma situação excessivamente arriscada; o trabalho de sirga estafava a marinhagem. Para abrir naquele gelo, que em geral tinha quatro ou cinco pés de espessura, um canal de vinte pés de comprido, gastavam-se mais de três horas; o estado de saúde da tripulação ameaçava alteração. Shandon admirava-se do silêncio de toda a sua gente e da desusada dedicação com que trabalhavam, e por isso mesmo receava que aquela calmaria fosse precursora de tempestade próxima.

Pode-se, pois, imaginar qual seria a desagradável surpresa, o desconsolo, a desesperação até, que se lhe via no ânimo, quando reconheceu que, em virtude de um movimento invencível do ice-field, perdera o "Forward", durante a noite de 18 para 19, tudo quanto ganhara à custa de tantas fadigas. No sábado, pela manhã, estava de novo em frente do Polegar do Diabo, sempre ameaçando o navio, e numa posição ainda mais crítica que a da véspera, porque os icebergues multiplicavam-se e corriam como fantasmas através do nevoeiro.

Shandon perdeu completamente a força moral. Forçoso é dizer, porém, que o susto penetrou ao mesmo tempo no ânimo daquele homem intrépido e no de toda a tripulação. Shandon ouvira falar no desaparecimento do cão, mas não ousou punir os delinquentes, porque receava dar pretexto a alguma revolta.

Durante aquele dia o tempo esteve horrível; a neve, levantada em densos turbilhões, como que envolvia o navio em impenetrável véu. Às vezes rasgava-se o nevoeiro, sob a acção da borrasca, e o olhar assustado divisava, do lado de terra, o Polegar do Diabo, que ali se erguia direito como um espectro.

O "Forward" estava ancorado num imenso pedaço de gelo. Nada havia a fazer, nada a tentar; a obscuridade crescera por forma tal, que o homem do leme nem podia ver James Wall, que estava de quarto à proa.

Shandon recolheu-se ao camarote, cheio de incessantes cuidados; o doutor, esse, tratava de pôr em ordem os seus apontamentos de viagem; dos homens da tripulação, metade estava na tolda, a outra metade na sala comum.

No momento em que a tempestade redobrava de violência, pareceu que o Polegar do Diabo crescia desmedidamente por entre uma aberta do nevoeiro.

- Valha-nos Deus, que é grande! - exclamou Simpson, recuando aterrado.

- Que é isso? - disse Foker.

Soltaram-se logo exclamações de todos os lados.

- Vai-nos esmagar!

- Estamos perdidos!

- Sr. Wall! Sr. Wall!

- Ai de nós, que ficamos aqui todos!

- Comandante! Comandante!

Todos estes clamores eram simultaneamente soltados pelos que estavam de quarto.

Wall correu ao tombadilho; Shandon, acompanhado pelo doutor, saltou ao convés e olhou.

No meio do nevoeiro entreaberto, parecia o Polegar do Diabo ter-se aproximado subitamente do brigue e aparentava ter crescido de um modo fantástico. No cume dele erguia-se um segundo cone invertido e girando sobre o seu vértice, que ameaçava esmagar o navio debaixo da sua enorme massa, porque oscilava prestes a cair. O espectáculo era temeroso. Recuaram todos por instinto e até alguns marinheiros saltaram para o gelo, abandonando o navio.

- Ninguém se mexa! - ordenou o comandante com voz severa. -Cada um ao seu posto!

- Ora esta, meus amigos, não se assustem - recomendou o doutor - que não há perigo! Vede, comandante, vede, Sr. Wall, que é um efeito de miragem, nada mais!

- Tendes razão, Sr. Clawbonny - declarou mestre Johnson. - Foram estes ignorantes que se deixaram intimidar por uma sombra.

A maior parte da marinhagem, depois das palavras do doutor, tinha voltado a aproximar-se e passara do receio à admiração por aquele maravilhoso fenómeno, que não tardou a desvanecer-se.

- Chamam eles a isto miragem! - disse Clifton. - Pois bem! Eu cá, quer me queiram crer, quer não, sempre direi que aquilo é negócio em que o diabo anda metido.

- Decerto - confirmou Gripper.

O nevoeiro, porém, entreabrindo-se, mostrara ao comandante um canal imenso e livre, de cuja existência ele nem sequer suspeitava. Esta passagem tendia a afastá-lo da costa. Resolveu, portanto, Shandon aproveitar-se sem demora daquele ensejo favorável.

Colocaram-se os homens de um e outro lado do canal, deitaram-se-lhes braçadeiras de cabo grosso, e começaram eles a rebocar o navio na direcção do norte.

Durante muitas e longas horas executou-se esta manobra com ardor, mas em silêncio. Shandon mandara também acender as fornalhas, para aproveitar aquele canal, que tão felizmente descobrira.

- Foi um caso providencial - disse o comandante a Johnson-, e se conseguirmos ganhar, quanto mais não seja, algumas milhas, talvez que logremos chegar ao termo dos nossos trabalhos! Sr. Brunton, mais força à máquina. Logo que a pressão chegar à altura conveniente, mande-me prevenir. Visto que todos estão com pressa de se afastar do Polegar do Diabo, aproveitemos-lhes as boas disposições.

De repente suspendeu-se bruscamente a marcha do brigue.

- Que há de novo? - perguntou Shandon. - Acaso se nos quebraram os cabos de reboque, Wall?

- Com certeza que não, comandante - respondeu Wall, inclinando-se por sobre a amurada. - Olhe! Os nossos homens como rodam sobre os calcanhares! Como trepam pelo costado do navio! Parece que foram todos tomados de estranho terror!

- Que é isso, rapazes? - gritou Shandon, saltando à proa do brigue.

- Para bordo! Para bordo!-clamavam os marinheiros com a intonação do mais profundo terror.

Shandon olhou para a parte do norte e, apesar de toda a sua coragem, teve um calafrio de susto.

Aos pulos, a pouco mais de uma amarra do navio, via-se um animal estranho, com movimentos medonhos, e cuja língua parecia sair fumegante de enormes fauces. Parecia ter de altura mais de vinte pés, o pêlo eriçava-se-lhe e perseguia os marinheiros, parando, encarando-os e correndo depois direito sobre eles, enquanto a formidável cauda, de dez pés de comprido, varria e levantava a neve em densos redemoinhos. A vista só de um monstro tal gelava de terror o sangue dos mais intrépidos.

- É um urso! - afirmava um.

- É a fera do Gévaudan!

- É o leão do Apocalipse!!

Shandon correu ao camarote a buscar uma espingarda; o doutor pegou logo de um salto nas suas armas e aprestou-se para fazer fogo sobre aquele animal, que, pelas dimensões, fazia lembrar os quadrúpedes antedi-luvianos.

A fera aproximava-se, dando saltos enormes. Shandon e o doutor dispararam ao mesmo tempo, e de súbito a detonação das duas armas, abalando as camadas da atmosfera, produziu um efeito inesperado.

O doutor olhou com atenção e, não podendo conter uma estrepitosa gargalhada, disse:

- Era a refracção!

- A refracção! - repetiu Shandon. Interrompeu-os, porém, uma terrível exclamação da

tripulação.

- Era o cão! - dizia Clifton.

- O "Capitão"! - repetiram os camaradas.

- Ele! - exclamou Pen. - Sempre ele!

Com efeito, era ele, o cão, que, tendo partido as cordas com que o tinham ligado, conseguira voltar à superfície do campo de gelo por outra abertura. Por um fenómeno muito comum debaixo daquelas latitudes, dera-lhe a refracção, por momentos, dimensões aparentes, formidáveis, que o abalo do ar dissipara; mas nem por isso o efeito pernicioso daquela visão deixara de ficar impresso no espírito da marinhagem, pouco disposta a admitir a explicação do facto por causas puramente físicas. A aventura do Polegar do Diabo, o reaparecimento do cão naquelas circunstâncias fantásticas, acabaram de desvairar o moral da tripulação, e os murmúrios começaram a ouvir-se de todos os lados.

 

                 O CAPITÃO HATTERAS

O"Forward" navegava então rapidamente a vapor por entre os ice-fields e as montanhas de gelo. Era o próprio Johnson quem estava ao leme. Shandon examinava o horizonte com o seu snow-spectacle. Pouco, porém, lhe durou a alegria, porque em breve reconheceu que o canal ia dar a um circo de montanhas.

Sem embargo, o comandante, entre as dificuldades de volver pelo mesmo caminho e o risco de continuar a marcha para a frente, optou pelo último.

O cão acompanhava o brigue, correndo pela planície de gelo, mas mantendo-se sempre a apreciável distância. Porém, quando o animal se ficava muito para trás, ouvia-se um assobio singular, que tinha a propriedade de o fazer logo aproximar.

A primeira vez que se ouviu tal assobio, os marinheiros olharam em roda de si. Estavam eles só na tolda, reunidos em conciliábulo. Nem uma pessoa estranha, nem um desconhecido, e, apesar disso, o assobio tornou a fazer-se ainda ouvir repetidas vezes.

Clifton foi o primeiro que se assustou e deu o alarme.

- Ouvis? - perguntou ele - e vedes como o animal pula e corre quando ouve o assobio?

- Se não o visse, não acreditava - volveu Gripper.

- Acabou-se! - afirmou Pen. - Eu cá é que não vou mais adiante.

- Pen tem razão - concordou Brunton. - Isto é tentar a Deus.

- É tentar mas é ao diabo - corrigiu Clifton.

- Antes quero perder tudo quanto já tenho ganho do que dar nem mais um só passo.

- Desta não saímos nós - resmungou Bolton, desanimado.

A tripulação tinha perdido completamente a força moral.

- Nem mais um passo! - exclamou Wolsten. - Não é esta a vossa opinião?

- Sim! Sim!-respondeu toda a marinhagem.

- Pois então - disse Bolton -, é irmos ter com o comandante, que eu me encarrego de lhe falar.

E os marinheiros dirigiram-se em grupo compacto para o tombadilho.

Penetrava então o "Forward" num vasto circo, que podia ter uns cem pés de diâmetro, completamente fechado, com excepção da única abertura pela qual o navio entrara.

Shandon compreendeu que acabava de encerrar-se por seu moto próprio numa prisão. Mas que fazer? Como voltar atrás? Sentia todo o peso da sua grande responsabilidade; a mão tremia-lhe e os dedos crispavam-se-lhe, agarrando o tubo do óculo.

O doutor mirava aquele espectáculo de braços cruzados e sem dizer palavra; contemplava as muralhas de gelo, cuja altura média passaria talvez de trezentos pés. Por sobre aquele enorme pego estava, como que suspenso, um zimbório de nevoeiros.

Naquele momento é que Bolton dirigiu a palavra ao comandante, dizendo-lhe com voz comovida:

- Comandante, nós não podemos ir mais adiante.

- Que dizeis? - perguntou Shandon, a quem o sentimento da própria autoridade desatendida fez subir ao rosto um rubor de cólera.

- Dizemos, comandante - continuou Bolton -, que já bastante nos sacrificámos por esse invisível capitão, e que estamos decididos a não ir mais adiante.

- Que estais decididos?... - exclamou Shandon. - E falais-me assim, a mim, Bolton! Cautela!

- As vossas ameaças nada farão ao caso - respondeu com brutalidade Pen.

- Dê por onde der, não vamos mais adiante!

- Comandante, se queremos sair daqui, não temos um minuto a perder! Vem aí pelo canal dentro um icebergue, que pode tapar-nos a única saída e deixar-nos aqui encerrados como numa prisão.

Shandon voltou a examinar a situação.

- Mais tarde ajustaremos contas acerca do vosso procedimento, meus rapazes - disse ele, dirigindo-se aos amotinados. - Agora, vira de bordo!

Os marinheiros correram todos a postos e o "Forward" fez a sua evolução com rapidez. Carregaram as fornalhas de carvão, porque era ganhar em velocidade a montanha flutuante. Era uma luta entre o brigue e o icebergue; o primeiro corria para o sul, para passar, o segundo abatia para o norte, pronto a fechar-lhe a única passagem.

- Força à máquina! - exclamou Shandon. - A todo o vapor! Ouves, Brunton?

O "Forward" deslizava, como se tivera asas, pelo meio dos gelos dispersos, que a proa cortava de pronto; sob a acção da hélice, vibrava todo o casco do navio e o manómetro marcava uma tensão prodigiosa do vapor, que assobiava com estrépito de ensurdecer.

- Carrega as válvulas! - mandou Shandon.

E o engenheiro obedeceu, com risco de fazer ir pelos ares o navio.

Tinham, porém, de ficar baldados tantos esforços desesperados: o icebergue marchava com rapidez para a boca do canal, impelido por uma corrente submarina. O brigue estava ainda afastado dela mais de três amarras, quando a montanha, entrando como uma cunha no intervalo livre, aderiu fortemente às que se lhe avizinhavam e fechou a única saída.

- Estamos perdidos! - exclamou Shandon, que não pôde suster esta palavra imprudente.

- Perdidos! - repetiu a tripulação.

- Salve-se quem puder! - bradaram uns.

- Embarcações ao mar! - gritaram outros.

- À despensa! - exclamaram Pen e alguns dos que estavam do seu lado.

- Se temos de morrer afogados, afoguemo-nos em gin!

A desordem chegou então ao auge entre aqueles homens, que haviam quebrado todas as peias. Shandon sentiu-se dominado; quis comandar e apenas balbuciou. Hesitou, porque o pensamento não pôde traduzir-se-lhe em palavras. O doutor passeava de um lado para o outro, agitado. Johnson cruzava estòicamente os braços e calava.

De repente, fez-se ouvir uma voz forte, enérgica e imperiosa, que pronunciou estas palavras:

- Tudo a postos! Orça!

Johnson estremeceu e, mesmo sem consciência do que executava, foi fazendo girar rapidamente a roda do leme.

Era tempo. O brigue, lançado como ia a todo o vapor, corria a esmigalhar-se de encontro às paredes da sua prisão.

Ao passo, porém, que Johnson obedecia imediatamente, Shandon, Clawbonny, a tripulação toda, enfim, o fogueiro Waren, que abandonou as suas fornalhas, e até o negro Strong, que deixou o seu fogão, todos se acharam na tolda e viram sair daquele camarote, de que só alguém possuía a chave, um homem...

Este homem era o marinheiro Garry.

- Senhor! - exclamou Shandon, perdendo a cor. - Garry... vós... com que direito comandais aqui?...,

- "Duck"!-chamou Garry, reproduzindo o assobio que tanto surpreendera a tripulação.

O cão, ao ouvir chamar pelo seu verdadeiro nome, saltou de um pulo ao tombadilho e veio, tranquilo, deitar-se aos pés do dono.

A tripulação não dizia palavra. Aquela chave, que só o capitão do "Forward" podia possuir, aquele cão por ele enviado e que acabava por assim dizer de lhe comprovar a identidade, aquela intonação de comando, que ninguém podia desconhecer, tudo actuou tão fortemente no ânimo dos marinheiros que foi o bastante para fazer aceitar sem contestação a autoridade de Garry.

Demais, Garry estava completamente transfigurado. Cortara as grandes suíças, que antes lhe emolduravam o rosto, e o seu semblante sobressaía assim mais impassível, mais enérgico e mais imperioso; vestira os fatos próprios da sua verdadeira posição, que tinha guardados no camarote, e aparecia agora, ornado com as insígnias do comando.

A tripulação do "Forward", por outra parte, com a mobilidade natural das turbas, e deixando-se levar de involuntário entusiasmo, clamou em uníssono:

- Hurra! Hurra! Hurra pelo capitão!

- Shandon - disse o capitão ao imediato -, fazei formar a tripulação, que lhe quero passar revista.

Shandon obedeceu e deu as ordens convenientes com voz alterada. O capitão avançou para os oficiais e marinheiros e dirigiu a todos algumas palavras, tratando cada um segundo a sua conduta anterior.

Quando acabou de fazer a inspecção, subiu de novo ao tombadilho e pronunciou, com voz pausada e firme, as seguintes palavras:

- Oficiais e marinheiros, sou também inglês, como todos vós, e a minha divisa é a do almirante Nelson: "A Inglaterra espera que cada qual cumpra o seu dever"*1.

"Como inglês que sou, não quero, nenhum de vós quer decerto, que outros, mais ousados que nós, vão aonde nós não formos. Como inglês, não tolero, nenhum de nós tolerará, que a outros caiba a glória de subir mais ao norte. Se alguma vez um pé humano tem de pisar a terra do pólo, é mister que esse pé seja o de um inglês! Eis a bandeira da nossa pátria. Armei eu este navio, consagrei a minha fortuna a este empreendimento, sacrificar-lhe-ei ainda, se tanto for necessário, a minha vida e as vossas, mas este pavilhão há-de tremular no pólo boreal do mundo. Tende confiança.

"Por cada grau de latitude norte que, a partir deste dia, ganharmos, adquirireis direito a receber a quantia de mil libras esterlinas. Estamos no septuagésimo segundo e os graus do quadrante são ao todo noventa. Fazei a conta. Decerto, o meu nome responde por mim. Significa energia e patriotismo. Eu sou o capitão Hatteras!

 

*1. «England expects every one to make his duty».

 

- O capitão Hatteras! - exclamou Shandon.

E este nome, bem conhecido de todo o marinheiro inglês, circulou em voz baixa por entre a tripulação.

- Agora - prosseguiu Hatteras -, é ancorar o brigue nos gelos, apagar as fornalhas, e volte cada um ao seu trabalho habitual. Shandon, temos de falar acerca de coisas de bordo. Vinde ter comigo ao meu camarote e mais o doutor, Wall e o mestre. Johnson, mandai romper fileiras.

E Hatteras, sereno e frio, desceu tranquilamente do tombadilho, enquanto Shandon vigiava pela segura ancoragem do navio.

Quem era, pois, este Hatteras, e por que razões fazia o seu nome tão profunda impressão na tripulação?

John Hatteras, filho único de um fabricante de cerveja de Londres, que morrera em 1852, seis vezes milionário, abraçou, muito novo ainda, a profissão marítima, apesar da brilhante fortuna que o esperava, não porque a isso o impelisse a vocação comercial, mas pelo instinto das descobertas geográficas, que o dominava completamente. O seu sonho dourado foi sempre pôr os pés onde, antes dele, ninguém os pusera.

Aos vinte anos já John possuía a compleixão vigorosa dos homens magros e sanguíneos. Um semblante enérgico, contornado em linhas firmes e geometricamente desenhadas, uma fronte elevada e perpendicular ao plano dos olhos, e estes belos, mas frios; lábios delgados, que desenhava uma boca avara de palavras, corporatura mediana, membros solidamente articulados e movidos por músculos de ferro, formavam o conjunto daquele homem dotado de um temperamento a toda a prova. Bastava vê-lo para lhe reconhecer a audácia, ouvi-lo para compreender a paixão fria e obstinada daquele carácter, que nunca recuava, sempre pronto a arriscar a vida alheia com tanta convicção e firmeza como a própria. Era, portanto, mister reflectir maduramente antes de decidir-se a acompanhá-lo nas suas empresas.

John Hatteras levava ao extremo a altivez britânica. Foi ele quem deu uma vez a um francês a seguinte resposta, onde se mostra o seu orgulho.

Dizia o francês, na presença dele, supondo que usava assim de cortesia e até de amabilidade:

- Se não fosse francês, queria ser inglês.

- E eu, se não fosse inglês - respondeu Hatteras -, queria ser inglês.

Por esta resposta pode avaliar-se o homem.

O que ele, acima de tudo, ambicionava era guardar para os seus compatriotas o monopólio dos descobrimentos geográficos. Com grande desesperação sua, porém, durante os séculos precedentes, relativamente a descobrimentos, os ingleses pouca coisa tinham feito.

A América devêmo-la ao genovês Cristóvão Colombo, as índias ao português Vasco da Gama, a China ao português Fernão de Andrade, a Terra do Fogo ao português Magalhães, o Canadá ao francês Jacques Cartier, as ilhas da Sonda, o Labrador, o Brasil, o cabo da Boa Esperança, os Açores, Madeira, Terra Nova, Guiné, Congo, México, Cabo Branco, Gronelândia, Islândia, mar do Sul, Califórnia, Japão, Camboja, Peru, Kamtchatka, Filipinas, Spitzberg, cabo Horn, estreito de Béringue, Tasmânia, Nova Zelândia, Nova Bretanha, Nova Holanda, Luisiana, ilha de João Mayen, a islandeses, a escandinavos, a russos, a portugueses, a dinamarqueses, a espanhóis, a genoveses e a holandeses. Nem um só inglês, pois, figurava entre eles, e era caso de desesperação para Hatteras ver os seus compatriotas excluídos daquela gloriosa falange de navegadores que fizeram os grandes descobrimentos dos séculos xv e xvi.

Consolava-se um pouco Hatteras volvendo o olhar para os tempos modernos, em que os Ingleses se têm desforrado, apresentando homens tais como Stuart, Doual Stuart, Burke, Wills King e Gray, na Austrália, como Palliser, na América, como Cirilo Graham, Wadington, Cummingham, na índia, e como Burton, Speeke, Grant e Livingstone, na África.

Esta desforra, porém, não a julgara Hatteras suficiente, porque estes viajantes reputava-os ele antes aperfeiçoadores que verdadeiros inventores; era mister, por consequência, procurar coisa melhor, e John era capaz de inventar uma terra qualquer só para ter a honra de a descobrir.

Ele notara que, se os Ingleses não constituíam maioria entre os descobridores antigos, e se era forçoso remontar até Cook para obter a Nova Caledónia em 1774 e as ilhas Sanduíche, onde ele morreu em 1779, existia contudo um cantinho do Globo para o qual os seus compatriotas tinham, ao que parecia, feito convergir todos os seus esforços.

Este cantinho eram precisamente as terras e os mares boreais do norte da América.

Efectivamente, pode escrever-se um quadro das descobertas polares da maneira seguinte:

 

   Nova Zelândia descoberta por Willoughby em 1553

   Ilha de Weigatz "   " Barrough " 1556

   Costa oeste da Gronelândia" " Davis   " 1585

   Estreito de Davis " " Davis   " 1587

   Spitzberg Willoughby " 1596

   Baía de Hudson" " Hudson " 1610

   Baía de Baffin "   " Baffin " 1616

 

Durante estes últimos anos, Hearne, Mackenzie, John Ross, Parry, Franklin, Richardson, Beechey, James Ross, Back, Dease, Sompson, Rae, Inglefield, Belcher, Austin, Kellet, Moore, Mac Clure, Kennedy e Mac Clintock esquadrinharam sem interrupção todos os recantos daquelas terras ignotas.

Tinham-se confrontado e delimitado bem as costas setentrionais da América, tinha-se descoberto, ou coisa que o valha, a passagem do noroeste, mas não era bastante; havia coisa melhor a fazer e esta coisa melhor tinha-as empreendido John Hatteras duas vezes, armando dois navios à sua custa: o que ele ambicionava era chegar ao próprio pólo e coroar assim a série dos descobrimentos ingleses por uma tentativa de estrondo.

Chegar a ir ao Pólo Norte era o supremo fim da sua vida.

Feitas primeiro algumas pequenas viagens nos mares do Sul, tentou Hatteras, pela primeira vez, em 1846, elevar-se ao norte pelo mar de Baffin. Não pôde, porém, passar além do septuagésimo quarto paralelo.

Comandava então o "Halifax". A tripulação sofreu tormentos atrozes e tão longe levou John Hatteras a sua temeridade aventurosa, que de então por diante os marinheiros poucas tentações tinham de repetir tais expedições com semelhante chefe.

Em 1850, todavia, Hatteras conseguiu tripular a escuna "Farewell" com vinte homens resolutos e sobretudo resolvidos pelo elevado prémio oferecido para lhes pagar a audácia. Foi por essa ocasião que o Dr. Clawbonny entabulou correspondência com John Hatteras, que não conhecia, pedindo-lhe para fazer parte da expedição. O lugar de médico, porém, estava preenchido, o que para o doutor foi uma fortuna.

Elevou-se o "Farewell", ao norte do Spitzberg, até ao sexagésimo sexto grau de latitude, seguindo a mesma derrota que seguira o "Neptuno", de Aberdeen, em 1817. Chegados aí os navegantes, forçoso foi invernar; mas tais foram os sofrimentos e tão intenso o frio, que nem um só homem da tripulação tornou a ver a Inglaterra, exceptuando unicamente Hatteras, que um baleeiro dinamarquês recolhera, depois de uma marcha de mais de duzentas milhas através dos gelos.

A sensação produzida pelo facto de regressar um só homem foi imensa. De ora avante quem ousaria acompanhar Hatteras nas suas loucas tentativas? Este, sem embargo, não perdeu as esperanças de recomeçar. Pela morte, que então ocorreu, de seu pai, o fabricante de cerveja, ficou Hatteras possuidor de uma fortuna de nababo.

Entrementes, deu-se um facto geográfico que foi o golpe mais sensível que John Hatteras podia receber.

Em 1853, um brigue, o "Advance", tripulado por dezassete homens, armado pelo negociante Grinnel, comandado pelo Dr. Kane e enviado em busca de Sir John Franklin, navegando pelo mar de Baffin e estreito de Smith acima, chegou além do octogésimo segundo grau de latitude boreal; a maior proximidade do pólo que todos os navios que o tinham precedido.

Ora este navio era americano, e o tal Grinnel e o Dr. Kane americanos também!

Facilmente se conceberá como o desprezo do Inglês pelo Ianque se volveu em ódio no coração de Hatteras, que tomou a resolução de levar a palma ao seu audacioso competidor, e de chegar ao próprio pólo, custasse o que custasse.

Dois anos havia já que Hatteras vivia incógnito em Liverpul, passando por simples marinheiro. Ali teve ocasião de reconhecer que Ricardo Shandon era exactamente o homem de que carecia; fez-lhe as suas propostas por meio de carta anónima, assim como ao Dr. Clawbonny. Construiu-se, armou-se e equipou-se o "Forward". Hatteras teve todo o cuidado em não dar a conhecer o seu nome; aliás, não achava um só homem que o acompanhasse. Resolveu também não assumir o comando do brigue senão em conjuntura que a isso o forçasse e quando a tripulação estivesse tão adiantada na viagem que não pudesse recuar. Como vimos, as ofertas de dinheiro, que se reservara fazer então à tripulação, eram de tal ordem que nenhum dos marinheiros decerto havia de recusar-se a acompanhá-lo, ainda que fosse ao fim do mundo.

E, efectivamente, ao fim do mundo é que ele queria ir.

Tendo-se tornado críticas as circunstâncias, John Hatteras não hesitou mais e descobriu-se.

O seu cão, o fiel "Duck", o companheiro das suas longas viagens, foi o primeiro que o reconheceu e, por fortuna dos valentes e desgraça dos timoratos, ficou devida e positivamente averiguado que o capitão do "Forward" era John Hatteras.

 

             OS PROJECTOS DE HATTERAS

A aparição daquela arrojada personagem foi muito diversamente apreciada pela tripulação: uns, por amor ao dinheiro ou por audácia, prestaram-lhe completa adesão; outros aceitaram em aparência os factos consumados, reservando-se o direito de protestar mais tarde. É que resistir a um homem daqueles, em tal momento, parecia difícil. Por consequência, voltou cada um ao seu posto. O dia 20 de Maio caiu a um domingo e para a tripulação foi o dia de folga.

Celebrou-se na câmara do capitão um conselho de oficiais, composto de Hatteras, Shandon, Wall, Johnson e o doutor.

- Senhores - disse o capitão com aquela voz, a um tempo suave e imperiosa, que o caracterizava-, já tendes conhecimento do meu propósito de ir até ao Pólo Norte. Desejo conhecer a opinião de cada um de vós acerca deste empreendimento. Que pensais dele, Shandon?

- O meu dever não é pensar, capitão, senão obedecer - respondeu Shandon com frieza.

Hatteras não se admirou desta resposta e insistiu, com frieza não menor:

- Ricardo Shandon, peço-vos que vos expliqueis acerca das nossas probabilidades de bom êxito.

- Nesse sentido, capitão - disse Shandon -, respondem os factos por mim. Até hoje todas as tentativas desse género têm tido mau resultado.

Oxalá que nós sejamos mais afortunados!

- Havemos de sê-lo. E vós, senhores, que me dizeis?

- Pela minha parte - declarou o doutor -, creio que é praticável o vosso plano, capitão. E como reputo evidente que, mais tarde ou mais cedo, alguns navegadores hão-de chegar ao pólo boreal, não vejo motivo bastante para que não sejamos desses.

- Até, pelo contrário, há razões para que sejamos nós - respondeu Hatteras -, porque tomámos as nossas medidas em harmonia com esse propósito e porque havemos de tirar proveito da experiência de quem nos precedeu. A propósito disto, Shandon, devo agradecer-vos todo o desvelo que empregastes em tripular o navio. Apesar de haver entre os tripulantes uma ou outra cabeça esquentada, que eu saberei meter no bom caminho, não me mereceis senão elogio.

Shandon inclinou-se friamente. A sua posição a bordo do "Forward", que ele até ali julgara sempre comandar, era falsa. Hatteras percebeu-o e não quis insistir mais.

- Quanto a vós, senhores - continuou o capitão, dirigindo-se a Wall e a Johnson -, direi somente que me seria impossível obter o concurso de oficiais que mais se distinguissem pela sua coragem e experiência.

- Quanto a mim, capitão, dê por onde der, sou todo vosso - respondeu Johnson -, e, apesar de a vossa empresa me parecer em demasia arrojada, podeis contar comigo até ao fim da derrota que empreendeis.

- E comigo também - declarou James Wall.

- Quanto a vós, doutor, sei quanto valeis.

- Ora essa! Pois sabeis mais do que eu - respondeu o doutor com vivacidade.

- Isto posto, meus senhores - continuou Hatteras -, é bom que todos saibam em que factos se apoia a minha pretensão de ir até ao pólo. Passo a narrá-los. Em 1817, o "Neptune", de Aberdeen, elevou-se ao norte do Spitzberg até ao octogésimo segundo grau. Em 1826, o célebre Parry, depois da sua terceira viagem aos mares polares, partiu também da ponta do Spitzberg e, usando de barcas-trenós, subiu cento e cinquenta milhas para o norte. Em 1852, o capitão Inglefield penetrou, pela entrada de Smith, até setenta e oito graus e trinta e cinco minutos de latitude. Estes navios eram todos ingleses e comandados por ingleses, compatriotas nossos. Aqui Hatteras fez uma pausa.

- É dever meu acrescentar - continuou com ar contrafeito e como se as palavras a custo lhe saíssem dos lábios -, devo acrescentar, repito, que em 1854 o americano Kane chegou a latitudes ainda mais elevadas, a bordo do brigue "Advance", que comandava, e que o seu imediato Morton, que avançara pelos campos de gelo fora, fez tremular o pavilhão dos Estados Unidos ainda além do octogésimo segundo grau. E, dito isto, neste ponto não tornarei a tocar. É mister, porém, que se saiba que tanto os capitães do "Neptune", da "Entreprise", do "Isabelle" e do "Advance" verificaram e afirmaram que, a partir daquelas elevadas latitudes, existia uma bacia polar completamente livre de gelos.

- Livre de gelos! - exclamou Shandon, interrompendo o capitão. - Isso é impossível!

- Cumpre que noteis, Shandon - redarguiu tranquilamente Hatteras, cujo olhar brilhou por instantes -, que tudo quanto digo é apoiado com citações de factos e nomes. Direi mais que, em 1851, durante a estação do capitão Penny nas margens do canal Wellington, também o imediato Stewart se achou em presença de um mar livre, particularidade esta que foi confirmada durante a invernagem de Sir Edward Belcher, em 1853, na baía de Northumberland, a setenta e seis graus e cinquenta e dois minutos de latitude por noventa e nove graus e vinte minutos de longitude. Estas relações de viagem são indiscutíveis e seria necessário que alguém estivesse de má-fé para não as admitir.

- Todavia, capitão - insistiu Shandon -, são tão contraditórios esses factos...

- Erro, Shandon, erro! - exclamou o Dr. Clawbonny. - Esses factos não estão em contradição com asserção alguma da ciência. Dais-me licença que me explique, capitão?

- Com muito gosto, doutor! - respondeu Hatteras.

- Pois então atendei, Shandon! Resulta à evidência de todos os factos geográficos e do estudo das linhas isotérmicas que o ponto mais frio do Globo não está exactamente no pólo, antes dele se afasta em muitos graus, como o pólo magnético da Terra. Assim é que os cálculos de Brewster, de Bergham e de alguns físicos mais demonstram que há no nosso hemisfério dois pólos do frio, um dos quais deve ser situado na Ásia, a setenta e nove graus e trinta minutos de latitude norte por cento e vinte graus de longitude leste, e o outro na América, a setenta e oito graus de latitude norte por noventa e sete graus de longitude oeste. É deste último que nós tratamos e, como vedes, Shandon, está a mais de doze graus ao sul do pólo. Nestes termos, perguntarei eu porque não há-de estar no pólo o mar tão desembaraçado de gelos como, porventura, o pode estar no paralelo sexagésimo sexto, isto é, ao sul do mar de Baffin?

- Isto é que é falar! - acudiu Johnson. - O Sr. Clawbonny fala destas coisas como homem cá do ofício.

- A coisa pelo menos parece possível - opinou Wall.

- Quimeras e suposições! Puras hipóteses! - replicou Shandon com teimosia.

- Pois bem, Shandon - prosseguiu Hatteras -, consideremos os dois casos: o mar ou está livre de gelos ou não está, e em qualquer das duas hipóteses nada há que nos possa impedir de ir até ao pólo. Se está livre, leva-nos lá o "Forward" sem dificuldade; se está gelado, tentaremos a aventura nos trenós. Haveis de concordar que nada disto é impraticável. Chegados que sejamos no brigue ao paralelo octogésimo terceiro, não temos mais de seiscentas milhas (278 léguas) a andar para ir até ao pólo!

- E que são seiscentas milhas - apoiou com vivacidade o doutor - quando é notório que um cossaco, Alexis Markoff, percorreu no oceano Árctico, ao longo da costa setentrional do império russo, e em trenós puxados por cães, um espaço de oitocentas milhas, em vinte e quatro dias?

- Ouviste, Shandon? - disse Hatteras. - Ora dizei-me agora se é decente que ingleses como nós fiquem atrás de um cossaco...

- Decerto que não! - exclamou cheio de entusiasmo o Dr. Clawbonny.

- Decerto que não! - repetiu o mestre.

- E então, Shandon? - insistiu o capitão.

- Capitão - respondeu Shandon com frieza -, não posso fazer mais do que repetir-vos as minhas palavras de há pouco: obedecerei, que é esse o meu dever.

- Está bem. E agora - prosseguiu Hatteras - cuidemos da nossa situação actual. Estamos presos nos gelos e este ano parece-me impossível subirmos até ao estreito de Smith. Por consequência, eis o que convém fazer..

Hatteras desdobrou sobre a mesa uma daquelas excelentes cartas mandadas publicar, em 1859, por ordem do Almirantado, e continuou:

- Peço-vos que tenhais a bondade de seguir-me. Se o estreito de Smith está para nós cerrado, não sucede outro tanto com o estreito de Lancastre, situado na costa oeste do mar de Baffin. Segundo penso, devemos subir por esse estreito até ao de Barrow e daí até à ilha Beechey, derrota esta que cem vezes têm seguido até navios de vela. Por consequência, não havemos de ter grandes dificuldades navegando num brique de hélice. Chegados à ilha Beechey, seguiremos o canal Wellington tão avante quanto for possível para o norte, até ao desembocar deste canal, que o põe em comunicação com o canal da Rainha, nesse mesmo lugar onde foi avistado o mar livre. Estamos apenas a 20 de Maio; dentro de um mês, se as circunstâncias nos favorecerem, chegaremos a esse ponto, de onde navegaremos direitos ao pólo. Que pensais deste plano, senhores?

- Evidentemente - respondeu Johnson -, é essa a única derrota a seguir.

- Pois bem, segui-la-emos e a partir de amanhã. Seja este domingo consagrado ao descanso. Shandon, velareis por que se façam regularmente as leituras da Bíblia. Estas práticas religiosas exercem salutar influência sobre o espírito dos homens, e um marinheiro deve, acima de tudo, pôr a sua confiança em Deus.

- Está bem, capitão - declarou Shandon, que saiu com Wall e Johnson.

- Doutor - disse John Hatteras, apontando para Shandon -, aquele homem perdeu-o a ferida que recebeu no seu orgulho; com aquele já eu não posso contar.

No dia seguinte pela manhã, muito cedo, o capitão fez lançar a piroga ao mar e foi reconhecer os icebergues da bacia, cujo diâmetro não era superior a duzentas jardas (182 metros). Notou até que aquela bacia ameaçava ir apertando cada vez mais, em virtude de uma pressão lenta dos gelos, facto este que tornava urgente abrir uma brecha por onde o navio pudesse escapar de ser esmagado por aquele torno de montanhas.

Pelos meios empregados por John Hatteras, bem se viu que era homem de energia. Em primeiro lugar, fez talhar uma escada na muralha de gelo, conseguindo assim chegar ao ponto mais alto de um icebergue. Chegado aí, reconheceu que lhe era fácil abrir caminho para o sudoeste. Depois deu ordens para que abrissem um forno de mina, quase no centro da montanha, trabalho este que, conduzido com rapidez, ficou concluído na segunda-feira, de dia.

Não podia Hatteras contar com os seus blasting-cylinders de oito ou dez libras de pólvora de carga, cuja acção sobre semelhantes moles seria nula, e que serviam apenas para partir os campos de gelo. Fez, por conseguinte, meter na câmara da mina mil libras de pólvora e calculou-lhe, com a possível exactidão, a direcção expansiva. A mina comunicava com o exterior por um comprido rastilho coberto de guta-percha. A galeria que conduzia à câmara da mina encheu-se de neve e pedaços de gelo, misto a que o frio da noite seguinte devia dar a dureza do granito. Efectivamente, a temperatura, por influência do vento leste, desceu a 12 graus -11 graus centígrados).

No dia seguinte, às sete horas, estava o "Forward" de fornalhas acesas, pronto a aproveitar a mais insignificante abertura. Foi Johnson o encarregado de ir lançar o fogo à mina, cujo rastilho fora calculado de forma que devia levar meia hora a comunicar o fogo à pólvora. Teve, pois, Johnson tempo mais que suficiente para regressar para bordo, o que efectivamente fez, voltando ao seu posto dez minutos depois de ter cumprido as ordens de Hatteras.

O tempo estava limpo e seco e a tripulação toda na tolda; a neve cessara de cair. Hatteras, de pé no tombadilho, acompanhado por Shandon e pelo doutor, contava os minutos no seu cronometro.

Às oito horas e trinta e cinco minutos fez-se ouvir uma explosão surda e muito menos estrondosa do que era de supor. O perfil das montanhas modificou-se de repente, como se houvera algum tremor de terra, e dispersou-se em direcção ao céu, até considerável altura, um fumo denso e branco. Compridas brechas listraram de súbito os flancos do icebergue, cuja parte superior, arrojada a distância, caiu em pedaços à volta do "Forward".

O canal, porém, não ficara ainda livre. Enormes fragmentos de gelo tinham ficado suspensos no ar, como que formando abóbada entre as montanhas adjacentes, e era de recear que, caindo eles, se tornasse a cerrar o recinto.

Hatteras, num relance de olhos, avaliou a situação e exclamou:

- Wolsten!

O armeiro correu à chamada, respondendo:

- Capitão!.

- Carrega o rodízio com carga triplicada - ordenou Hatteras - e ataca a carga quanto puder ser.

- Então vamos atacar a montanha com balas de canhão? - perguntou o doutor.

- Não - explicou Hatteras. - É inútil. Nada de bala, Wolsten. Basta uma carga triplicada de pólvora seca. Anda depressa.

Passados instantes estava a peça carregada.

- Que quererá ele fazer sem bala? - resmungou Shandon entre dentes.

- Vamos vê-lo - volveu o doutor.

- Pronto, capitão! - gritou Wolsten.

- Bem - respondeu Hatteras. - Atenção! Brunton! - mandou ao engenheiro. - Algumas braças para a frente.

Brunton soltou o vapor, a hélice pôs-se em movimento e o "Forward" foi-se aproximando da montanha minada.

- Faz bem a pontaria à abertura! - gritou o capitão ao artilheiro.

Este obedeceu e, logo que o brigue chegou a meia amarra do alvo, Hatteras gritou:

- Fogo!

Seguiu-se a esta voz de comando uma detonação formidável: os penhascos, abalados pela comoção atmosférica, despenharam-se de súbito no mar. Bastara para conseguir este resultado a agitação das camadas de ar.

- A todo o vapor, Brunton! - gritou Hatteras. - Navega direito à abertura, Johnson!

Johnson estava ao leme. O brigue, impelido pela hélice, que varava as espumosas ondas, arrojou-se pelo meio do canal já livre. Era tempo. Apenas o "Forward" acabava de transpor aquela abertura, tornava-se a fechar, por detrás dele, o recinto que lhe fora prisão.

O momento foi palpitante. Não havia a bordo senão um coração firme e tranquilo, o do capitão. A tripulação, maravilhada por aquela manobra, não pôde conter um grito de:

- Hurra por John Hatteras!

 

           EXPEDIÇÕES EM BUSCA DE FRANKLIN

Na quarta-feira, 23 de Maio, já o "Forward" recomeçara a sua aventurosa navegação, bordejando com destreza por entre os packs e os icebergues, graças ao vapor, força obediente, que faltou a tantos navegadores dos mares polares. O navio parecia ir brincando no meio daqueles escolhos movediços. Dir-se-ia que reconhecera a mão de experiente dono e que, como um cavalo debaixo das pernas de hábil cavaleiro, obedecia ao pensamento do seu capitão.

A temperatura voltara a subir. O termómetro marcou, às seis horas da manhã, 26 graus (-3 graus centígrados), às seis da tarde, 29 graus (-2 graus centígrados), e, à meia-noite, 25 graus (-4 graus centígrados). O vento soprava brando, de sueste.

Na quinta-feira, pelas três horas da madrugada, chegou o "Forward" à vista da baía Possession, na costa da América, à entrada do estreito de Lancastre. Em breve se avistou o cabo Burney. Dirigiram-se para o navio alguns esquimós, mas Hatteras não se deu ao trabalho de os esperar.

O "Forward" em breve perdeu de vista, por entre as brumas da noite, os picos de Byam-Martin, que dominam o cabo Liverpul, que o navio deixou pela direita. Impediu também o nevoeiro que fosse avistado o cabo Hay, cuja ponta, aliás muito baixa, se confunde com os gelos da costa, circunstância que torna por vezes extremamente difícil a determinação hidrográfica dos mares polares.

Apareciam então em grande número pufinos, patos e gaivotas brancas. A observação da latitude deu 74 graus 01 minutos e a longitude, segundo o cronometro, era 77 graus 15.

As duas montanhas de Catarina e Elizabeth, sobranceiras às nuvens, erguiam, em frente do navio, os seus capelos de neve.

Na sexta-feira, às seis horas, passou-se o cabo Warender, situado na margem direita do estreito, e na esquerda, a Admiralty Inlet, baía ainda pouco explorada pela maior parte dos navegantes, que todos tinham pressa de navegar para oeste. O mar tornou-se bastante forte e as vagas varriam com frequência o convés do brigue, arremessando para lá pedaços de gelo. As terras das costas do norte ofereciam à vista aparências curiosas com as suas altas mesas quase horizontais, que reverbavam os raios do Sol.

Desejava Hatteras prolongar-se com as terras setentrionais, com o fim de chegar o mais depressa possível à ilha Beechey e à entrada do canal Wellington; mas, com grande pesar seu, um grande banco contínuo de gelos forçava-o a seguir pelos canais do sul.

Por esta razão, o "Forward" chegou, em 26 de Maio, num dia de nevoeiro cortado de frocos de neve, às alturas do cabo Iorque, que foi reconhecido pela sua montanha de grande altura e cortada quase a pique. Como limpasse um pouco o tempo, o Sol apareceu, por instantes, por volta do meio-dia, e permitiu que se fizesse uma observação sofrível, que deu 74 graus 4 minutos de latitude e 84 graus 23 de longitude. Estava o "Forward", por consequência, na extremidade do estreito de Lancastre.

Hatteras mostrava ao doutor, nas cartas, a derrota já percorrida e a seguir. E naquele momento a posição do brigue era realmente interessante.

- Bem desejaria eu estar mais ao norte; mas a impossíveis ninguém é obrigado. Ora reparai, doutor: eis a nossa posição rigorosa.

E o capitão marcou na carta um ponto a pouca distância do cabo Iorque.

- Estamos mesmo no centro desta encruzilhada aberta a todos os ventos, formada pelas desembocaduras do estreito de Lancastre, do estreito de Barrow, do canal Wellington e da passagem do Regente. É este um ponto a que necessariamente vieram parar todos os navegadores destes mares.

- Pois a coisa não devia ser-lhes das mais agradáveis - respondeu o doutor -; que o sítio é, como dizeis, uma verdadeira encruzilhada, onde vêm cortar-se quatro estradas reais, e não vejo cá nenhum poste indicador do verdadeiro caminho! Como saíram desta os Parry, os Ross e os Franklin?

- Não saíram, doutor, deixaram-se levar, que vo-lo digo eu. Umas vezes o estreito de Barrow, que num ano estava fechado para um, no ano seguinte estava aberto para outro; outras, sentia-se o navio inevitavelmente arrastado para a passagem do Regente. O que adveio de tudo isto foi que, pela força dos acontecimentos, acabaram por ficar conhecidos estes mares tão embrulhados.

- Que singular região!-comentou o doutor, mirando com atenção a carta. - Como tudo aqui é retalhado, esfarrapado, feito de pedaços, sem ordem alguma, sem nenhuma lógica! Parece que as terras vizinhas do Pólo Norte são assim retalhadas só para tornar difícil ao navegante a aproximação dele, ao passo que no outro hemisfério terminam em pontas tranquilas e afiladas como os cabos Horn e da Boa Esperança e a península indiana! Seria a maior rapidez do equador que assim modificou estas coisas? E que as terras extremas, fluidas ainda nos primeiros dias do mundo, não pudessem condensar-se, aglomerar-se umas às outras, por falta de velocidade de rotação?

- Assim deve ser, que cá neste mundo sublunar tudo é lógico, nada sucede que não tenha os seus motivos, que Deus às vezes consente que os sábios descubram. Por consequência, doutor, é fazer uso da permissão.

- Por meu mal, capitão, tenho de me mostrar discreto. Mas que horrível ventaneira reina neste estreito! - acrescentou o doutor, embrulhando a cabeça no capuz o melhor que pôde.

- Sim, a brisa do norte, principalmente, é a mais rija, e o pior é que nos afasta da nossa derrota.

- Contudo, parece que deveria impelir os gelos para o sul e deixar-nos o caminho livre.

- Assim devia ser, doutor; o vento, porém, nem sempre faz o que deve. Ora reparai neste banco de gelo, como parece impenetrável. Enfim, tentaremos chegar até à ilha Griffith, depois de contornar a ilha Cornwallis para ganhar o canal da Rainha, sem passar pelo canal Wellington. Em todo o caso, na ilha Beechey preciso eu absolutamente tocar, que é para lá me refazer de carvão.

- Como assim? - perguntou o doutor, com espanto.

- Sem dúvida. Por ordem do Almirantado, foram nessa ilha depositadas grandes provisões, para abastecer as expedições futuras; e por maior que fosse a quantidade delas que o capitão Mac Clintock lá adquiriu em Agosto de 1859, asseguro-vos que ainda haviam de ficar bastantes para nós.

- O facto é - observou o doutor - que estas paragens foram exploradas por espaço de quinze anos, e até ao dia em que se adquiriram provas formais da perda de Franklin nunca o Almirantado teve menos de cinco ou seis navios nestes mares. Até, se não me engano, a ilha Griffith, que aqui estou vendo na costa, quase no centro da encruzilhada, foi o ponto de encontro geral dos navegadores.

- É verdade isso, doutor, e a desventurada expedição de Franklin trouxe ao menos um resultado: foi dizer-nos conhecer estas regiões longínquas.

- É exacto, capitão, que as expedições, a partir de 1845, se seguiram em grande número. Só em 1848 é que começou a causar alguma inquietação o desaparecimento do "Erebus" e do "Terror", que eram os dois navios que compunham a expedição de Franklin. Nessa época viu-se o velho amigo do almirante, o Dr. Richardson, correr ao Canadá e navegar pelo rio Coppermine até ao mar do pólo; por outro lado, James Ross aparelha em Uppernawik, em 1848, comandando a "Entreprise" e o "Investigator", e chega até ao cabo Iorque, onde nós estamos neste momento. Todos os dias manda deitar ao mar um barril contendo papéis destinados a fazer conhecer a sua posição; quando há nevoeiro, manda dar tiros de peça; de noite manda deitar foguetes e queimar fogos de Bengala, tendo sempre todo o cuidado de navegar com pouco pano; finalmente, inverna de 1848 para 1849 no porto de Leopoldo, onde consegue apoderar-se de um grande número de raposas brancas, no pescoço das quais faz pôr coleiras de cobre, em que estava gravada a indicação da posição do navio e dos depósitos dos víveres, e obriga-as a dispersar em todas as direcções; mas depois, já na Primavera, dá começo às pesquisas feitas em trenós, nas costas de Sommerset, atravessando perigos e privações tais que quase todos os seus homens enfermaram ou ficaram estropiados. Eleva cairns*1 em que encerra cilindros de cobre, com os necessários apontamentos para que com ele se juntasse a expedição perdida. Durante a sua ausência explorava o tenente Mac Clure, mas debalde, as costas setentrionais do estreito de Barrow. É para notar-se, capitão, que debaixo das ordens de James Ross serviam então dois oficiais destinados a tornarem-se célebres mais tarde: Mac Clure, que foi o primeiro a transpor a passagem de noroeste, e Mac Clintock, o descobridor dos restos de Franklin.

- Hoje dois bons e valentes capitães, dois valentes ingleses. Doutor, continuai a expor a história desses mares, que tão a fundo conheceis. Alguma coisa se ganha sempre em ouvir a narração dessas audazes tentativas.

- Pois bem, para acabar com James Ross, acrescentarei que este navegador tentou ganhar a ilha Melville, seguindo uma derrota mais a oeste; ia, porém, perdendo os navios, ficou preso nos gelos e foi levado, contra sua vontade, até ao mar de Baffin.

- Levado - proferiu Hatteras, encrespando o sobrolho -, levado contra sua vontade!

- E nada lograra descobrir - prosseguiu o doutor. - A partir desse ano de 1850 é que os navios ingleses começaram a sulcar sem cessar estes mares e que foi prometido o prémio de vinte mil libras esterlinas a quem quer que descobrisse as tripulações do "Erebus" e do "Terror", Em 1848 já os capitães Kellet e Moore, que comandavam um o "Herald", outro o "Plover", tentavam penetrar no estreito de Béringue. Acrescentarei também que,

 

*1. Pequenas pirâmides de pedra.

 

no decurso dos anos de 1850 e 1851, invernou o capitão Austin na ilha Cornwallis, o capitão Penny explorou, na "Assistance" e na "Resolute", o canal Wellington, o velho John Ross, o herói do pólo magnético, tornou a sair no seu iate "Felix" em busca do amigo, o brigue "Prince Albert" fez a sua primeira viagem à custa de Lady Franklin, e, finalmente, que dois navios americanos, expedidos por Grinnel com o capitão Haven, arrastados para fora do canal Wellington, foram de novo arrojados para o estreito de Lancastre. Neste mesmo ano é que Mac Clintock, então tenente, servindo debaixo das ordens da Áustria, chegou até à ilha Melville e ao cabo Dundas, pontos extremos a que chegara Parry em 1819, e neste ano ainda foram encontrados na ilha Beechey vestígios da invernada de Franklin em 1845.

- É verdade - confirmou Hatteras - e até três dos marinheiros dele lá tinham ficado enterrados; e esses três foram bem mais favorecidos da sorte que os outros!

- De 1851 a 1852 - continuou o doutor, aprovando com o gesto a reflexão de Hatteras - vemos nós o "Prince Albert" empreender segunda viagem, levando a bordo o tenente francês Bellot. Inverna em Batty-Bay, no estreito do Príncipe Regente, explora o sudoeste de Sommerset e reconhece-lhe a costa até ao cabo de Walker. Neste meio tempo, a "Entreprise" e o "Investigator", de volta a Inglaterra, passavam a ser comandados por Collinson e Mac Clure e iam juntar-se com Kellet e Moore no estreito de Béringue; ao passo que Collinson vinha passar a invernada a Hong-Kong, Mac Clure marchava para a frente e, depois de três invernadas, de 1850 a 1851, de 1851 a 1852 e de 1852 a 1853, descobre a passagem do noroeste, sem nada conseguir saber acerca da sorte de Franklin. De 1852 a 1853 fez-se, debaixo do comando de Sir Edward Belcher e do capitão Kellet, uma nova expedição, composta de três navios à vela, "(Assistance", "Resolute" e "North-Star", e de dois barcos a vapor, o "Pionnier" e o "Intrépide"; Sir Edward visitou o canal Wellington, invernou na baía de Northumberland e percorreu a costa, enquanto Kellet, chegando até Bridport, na ilha Melville, debalde explorava aquela parte das terras boreais. Por este tempo, porém, corria em Inglaterra o boato de que tinham sido avistados, não longe das costas da Nova Escócia, dois navios abandonados no meio dos gelos. Lady Franklin arma imediatamente o pequeno "steamer" de hélice "Isabelle", e o capitão Inglefield, depois de navegar pela baía de Baffin acima até à ponta Vitória, pelo octogésimo paralelo, volta à ilha Beechey sem colher resultado algum. Em princípios de 1855, resolve-se o americano Grinnel a fazer todas as despesas, e o Dr. Kane, procurando penetrar até ao pólo...

- Mas não o conseguiu - exclamou violentamente Hatteras -, e louvado seja Deus por isso! O que ele não fez, havemos nós de fazê-lo!

- Bem o sei, capitão, e se falo em tal expedição é porque está forçosamente ligada às buscas feitas por ocasião do desaparecimento de Franklin. E, demais, tal expedição não colheu resultado algum. Ia-me esquecendo de vos dizer que o Almirantado, considerando a ilha Beechey como ponto de encontro geral das expedições, encarregou em 1853 o "steamer" "Phenix", capitão Inglefield, de para lá transportar provisões. Para ali se dirigiu então este bravo marinheiro, acompanhado pelo tenente Bellot, e por esta ocasião perdeu este valente oficial, que já com esta era a segunda vez que punha toda a sua dedicação ao serviço da Inglaterra. Podemos, em relação a esta catástrofe, obter pormenores tanto mais exactos quanto é certo que o nosso mestre Johnson foi testemunha ocular dessa desgraça.

- O tenente Bellot era um valente francês - afirmou Hatteras - e a sua memória em Inglaterra é respeitada e honrada.

- Por esta época - prosseguiu o doutor - começam a regressar, pouco a pouco, os navios da esquadra de Belcher. Não todos, que Sir Edward teve de abandonar a "Assistance" em 1854, como Mac Clure fizera em 1853 ao "Investigator". Nestas alturas, o Dr. Rae, por carta datada de 29 de Julho de 1854 e escrita em Repulse-Bay, onde tinha ido pela América, fez saber que os esquimós da terra do Rei Guilherme possuíam diferentes objectos provenientes do "Erebus" e do "Terror". Já não havia, pois, dúvida possível acerca do destino da expedição. Regressaram a Inglaterra o "Phenix", o "North-Star" e o navio de Collinson, e dos mares árcticos desapareceram totalmente os navios ingleses. Se o Governo inglês, porém, mostrava ter perdido de todo a esperança, outro tanto não sucedia com Lady Franklin, que, empenhando nisto os restos da sua fortuna, tripulou o "Fox", comandado por Mac Clintock. Partiu este em 1857, invernou nas paragens onde vós, capitão, nos aparecestes, chegou à ilha Beechey a 11 de Agosto de 1858, tornou a invernar no estreito de Bellot, continuou as suas investigações em Fevereiro de 1859, a 6 de Maio descobriu o documento que nenhuma dúvida deixava acerca do destino do "Erebus" e do "Terror", e regressou a Inglaterra no fim deste mesmo ano. Eis tudo quanto no espaço de quinze anos se tem passado nestas regiões funestas. Depois do regresso do "Fox", nem um só navio voltou a tentar fortuna nestes mares perigosos!

- Pois bem! Tentá-la-emos nós - rematou Hatteras.

 

           O "FORWARD" ARROJADO PARA O SUL

Pela tarde aclarou o tempo e a terra deixou-se ver distintamente entre o cabo Sepping e o cabo Clarence, que avança para leste e depois para o sul, ligado à costa por uma lingueta de terra bastante baixa. O mar estava livre de gelos à entrada do estreito do Regente, mas além do porto Leopoldo formava um banco de gelo impenetrável, como se quisera cerrar ao "Forward" o caminho do norte.

Hatteras, extremamente contrariado, mas sem o querer dar a conhecer, teve de recorrer aos foguetes para forçar a entrada do porto Leopoldo, onde conseguiu penetrar ao meio-dia de domingo 27 de Maio, e dentro do qual o "Forward" largou os ferros com segurança, em grandes icebergues, que possuíam a imobilidade, a dureza e a solidez do granito.

Logo depois o capitão, acompanhado pelo doutor, por Johnson e pelo seu cão "Duck", saltou no gelo e em breve chegou a terra. "Duck" dava pulos de alegria, o que não era para admirar, porque o cão, depois do reconhecimento do capitão, tornara-se muito sociável e muito manso, guardando os seus rancores exclusivamente para certos homens da tripulação, de que nem ele nem o dono gostavam.

O porto estava vazio dos gelos que as brisas de leste ali acumulam geralmente; as terras, cortadas a prumo, apresentavam nas cristas graciosas ondulações de neve. A casa e o farol, que James Ross construíra, estavam ainda em bom estado de conservação; as provisões, porém, parecia terem sido saqueadas pelas raposas ou mesmo por alguns ursos, cujas pegadas se viam ainda recentes. Também a mão do homem não era decerto completamente estranha àquela devastação, porque se viam ainda na praia da baía restos de cabanas de esquimós.

Os seis túmulos, que continham os despojos mortais de outros tantos marinheiros da "Entreprise" e do "Investigator", reconheciam-se por uma leve proeminência que a terra apresentava. Tinham sido respeitados por todas as raças nocivas: tanto por homens como por animais.

O doutor, ao pôr pela vez primeira o pé nas terras boreais, sentiu em si um violento abalo. Ninguém pode imaginar que sensações assaltam o coração a quem vê aqueles restos de casas, de barracas, de armazéns, que a Natureza tão maravilhosamente conserva nos países frios.

- Eis aqui - contava o doutor aos companheiros - essa residência que o próprio James Ross apelidou de Campo de Refúgio! Se a expedição de Franklin tem chegado a este sítio, estava salva. Vejam a máquina que neste mesmo lugar foi abandonada, vejam o fogão assente naquela plataforma, ao qual se aqueceu, em 1851, a tripulação do "Prince Albert", tudo está no mesmo estado. Parece que o capitão Kennedy largou ontem deste porto hospitaleiro. Olhem a chalupa que lhe serviu de abrigo durante alguns dias, a ele e aos companheiros, que este Kennedy, separado do seu navio, foi em realidade salvo pelo tenente Bellot, que para ir ter com ele ousou afrontar com a temperatura de Outubro.

- Era um bravo e digno oficial, bem o conheci - disse Johnson.

Enquanto o doutor procurava, com entusiasmo de antiquário, os vestígios das precedentes invernadas, Hatteras tratava de juntar o pouco que havia de provisões e combustível. Gastou-se todo o dia seguinte em transportar estes restos para bordo.

O doutor, esse, percorria aquelas terras sem que se afastasse muito do navio e desenhava os pontos de vista mais notáveis. A temperatura ia gradualmente subindo; a neve amontoada começava a derreter-se. O doutor fez uma colecção bastante completa de aves do Norte, tais como gaivotas, guinchos, mollynochtes e patos de édredon, muito semelhantes aos patos vulgares, com o peito e as costas brancas, a barriga azul, o alto da cabeça azul e o resto da pena branca, matizada de laivos verdes. Muitos deles tinham já o ventre depenado da fina plumagem (édredon) de que tanto o macho como a fêmea se servem para almofadar o ninho. Avistou também o doutor grandes focas, que respiravam à superfície do gelo, mas nem uma só chegou a alcance de tiro.

Numa das suas excursões, descobriu Clawbonny a pedra das marés, onde estão gravados os seguintes sinais:

(E I) 1849

que indicam a passagem da "Entreprise" e do "Investigator", e chegou até ao cabo Clarence, ao mesmo lugar onde John James Ross esperaram, em 1833, com tanta impaciência, o derretimento dos gelos. A terra estava ali juncada de ossadas e de crânios de animais; conheciam-se ainda vestígios de habitações de esquimós.

Lembrara o doutor levantar um cairn no porto Leopoldo e nele deixar depositado um apontamento que indicasse que ali passara o "Forward" e o fim que se propunha a expedição. Hatteras, porém, opôs-se formalmente a isto, porque não queria deixar atrás de si vestígios de que algum antagonista pudesse aproveitar-se. O doutor, apesar de todas as boas razões que dava, foi obrigado a ceder à vontade do capitão. Shandon não foi dos últimos que, por esta ocasião, acharam a teima do capitão digna de censura, fundando-se em que, no caso de haver alguma catástrofe, nenhum navio podia assim correr a prestar socorro ao "Forward".

Hatteras não quis ceder a estas razões. Como na segunda-feira à noite tivesse completado o carregamento, tentou ainda uma vez navegar para o norte, forçando o banco de gelos; mas, apesar de arriscados esforços, teve de resignar-se a descer de novo pelo canal do Regente, visto que de modo algum queria ficar no porto Leopoldo, que, hoje aberto, podia amanhã ser fechado por qualquer inesperado deslocamento dos ice-fields, fenómeno este muito frequente nestes mares e de que os navegadores devem acautelar-se especialmente.

Hatteras, se não deixava que os cuidados e inquietações lhe transparecessem por fora, lá por dentro sentia-os com extrema violência. Queria ir para o norte e achava-se forçado a navegar para o sull Assim, aonde iria ele parar? Recuaria, porventura, até Victoria-Harbour, no golfo de Boothia, onde invernou, em 1833, Sir John Ross? Acaso encontraria naquela época livre o estreito de Bellot e poderia, portanto, costeando North-Sommerset, voltar ao norte pelo estreito de Peei? Ou ver-se-ia, como muitos dos seus predecessores, cativo durante muitos meses e obrigado a exaurir forças e mantimentos?

Todos estes receios fermentavam na cabeça do capitão; mas, como fosse necessário tomar uma resolução, mandou virar de bordo e navegar para o sul.

Desde o porto Leopoldo até à baía Adelaide tem o canal do Príncipe Regente uma largura quase uniforme. O "Forward" navegava com rapidez por entre os gelos, mais favorecido da fortuna que os navios precedentes, cuja maior parte gastou um bom mês para descer aquele canal, mesmo em estação mais propícia. Verdade é que, exceptuando o "Fox", esses navios, como não dispunham da força do vapor, tinham de obedecer aos caprichos de ventos por vezes contrários.

A tripulação em geral mostrava-se satisfeitíssima por deixar as regiões boreais. Parecia não dar grande apreço ao projecto de chegar até ao pólo e naturalmente amedrontava-se com as resoluções de Hatteras, cuja fama de audaz nada tinha de tranquilizadora. Hatteras procurava aproveitar todos os ensejos para navegar para a frente, quaisquer que fossem as consequências, apesar de que, nos mares boreais, bom é avançar, mas o principal é conservar a posição adquirida e não se pôr em risco de a perder.

O "Forward" navegava a todo o vapor. O seu fumo negro ia enrolar-se em espirais nas cristas brilhantes dos icebergues. O tempo variava sem cessar, passando, com extrema rapidez, do frio seco aos nevoeiros de neve. O brigue, que pouco fundo calava, seguia de perto a costa oeste, porque Hatteras não queria perder por equívoco a entrada do estreito de Bellot, visto que o golfo de Boothia, ao sul, não tem outra saída senão o pouco conhecido estreito do Fury e do Hecla. Não se dando com o estreito de Bellot, ou tornando-se este inavegável, o golfo tornava-se num beco sem saída.

Pela noite, avistou o "Forward" a baía de Elwin, que foi reconhecida pelos seus altos rochedos perpendiculares. Na terça-feira de manhã divisou-se a baía Batty, onde, em 10 de Setembro de 1851, fundeou para uma longa invernada o "Prince Albert". O doutor observava com interesse aquela costa, armado do competente óculo, porque daquele ponto irradiaram as expedições que determinaram a configuração de North-Sommerset. O tempo estava tão limpo que permitia ver distintamente as profundas ravinas que cercam a baía.

O doutor e mestre Johnson eram talvez os únicos a quem aquelas regiões desertas interessavam. Hatteras, sempre curvado sobre os mapas, pouco falava, e a sua taciturnidade crescia à proporção que o navio ia navegando mais para o sul. Por vezes subia ao tombadilho, e ali, com os braços cruzados, o olhar perdido no espaço, ficava-se horas e horas a contemplar fixamente o horizonte. Se alguma ordem dava, era sempre em termos concisos e ásperos. Shandon guardava um silêncio frio e, retraindo-se pouco a pouco, acabou por não ter com Hatteras senão as relações exigidas pelas necessidades do serviço. Wall continuava inteiramente dedicado a Shandon, e pela conduta deste modelava a sua. O resto da tripulação esperava os acontecimentos, pronta a aproveitá-los no sentido dos próprios interesses. Desaparecera de bordo aquela unidade de pensamentos, aquela comunhão de ideias que tão necessária é para a realização dos grandes cometimentos. Bem o sabia Hatteras.

Durante aquele dia viram-se duas baleias, que corriam rapidamente para o sul, e avistou-se um urso branco, que foi saudado com alguns tiros de espingarda, mas sem resultado aparente. O capitão, que conhecia o valor de uma hora em tais circunstâncias, não deu licença para perseguir o animal.

Na quarta-feira, pela manhã, passou-se além da extremidade do canal do Regente.

O ângulo da costa oeste era seguido de uma profunda curva no terreno. O doutor, consultando a carta, reconheceu a ponta de Sommerset-House ou ponta Fury.

- É aqui mesmo - disse Clawbonny ao seu habitual interlocutor - o lugar onde se perdeu o primeiro navio inglês mandado a estes mares em 1825, durante a terceira viagem que Parry fez ao pólo. Por tal forma maltratado foi o "Fury" pelos gelos, na segunda invernada que fez, que a tripulação teve de o abandonar e regressar a Inglaterra a bordo do "Hecla", que navegava de conserva.

- Evidente vantagem de ter um segundo navio - observou Johnson. - É uma precaução que os navegadores polares não devem esquecer; mas cá o nosso capitão Hatteras esse é que não é homem que se embarace com companheiros!

- Achais que foi imprudente, Johnson? - perguntou o doutor.

- Eu? Eu não penso coisa nenhuma, Sr. Clawbonny. Ora vede ali na costa aquelas estacas, de onde pendem ainda alguns farrapos de uma barraca meio podre.

- É verdade, Johnson. Foi ali que Parry desembarcou todas as provisões do navio e, se a memória me não falha, o tecto da casa que construiu era feito de uma gávea coberta com as enxárcias do "Fury".

- Desde 1825 tudo isso deve ter mudado muito.

- Não muito, Johnson. John Ross, em 1829, naquela frágil habitação é que encontrou a saúde e a salvação da sua tripulação. Em 1851, quando o príncipe Alberto ali mandou uma expedição, ainda aquela casa estava de pé e o capitão Kennedy mandou-lhe fazer os necessários reparos, haverá uns nove anos. Para nós era interessante visitá-la, mas Hatteras é que não está em disposições de se demorar.

- E decerto tem razão, Sr. Clawbonny. Se em Inglaterra o tempo é dinheiro, aqui é a salvação. Por um dia de demora, por uma hora talvez, pode um comandante expor-se a arriscar o resultado de toda a viagem. Por consequência, deixemo-lo andar como melhor entender.

Durante o dia de quinta-feira, 1 de Junho, cortou o "Forward", em diagonal, a baía que tem o nome de Creswell.

A costa, a partir da ponta Fury, elevava-se para o norte em rochedos perpendiculares de trezentos pés de altura; para a parte do sul tendia a abaixar-se. Algumas cristas cobertas de neve apresentavam à vista formas de mesas perfeitamente talhadas, ao passo que outras projectavam sobre as nuvens os seus agudos píncaros, recortados em formas extraordinárias.

O tempo melhorou durante aquele dia, mas com tanto detrimento da sua clareza que se perdeu a terra de vista; o termómetro subiu de novo a 32 graus (0 graus centígrados). Esvoaçavam por diferentes pontos algumas galinholas e, para o lado do norte, começavam a apontar alguns bandos de gansos bravos. A tripulação teve de largar parte da roupa, porque a influência da estação estival começava a fazer-se sentir naquelas regiões árcticas.

Por volta da noite, o "Forward" dobrou o cabo Garry, a um quarto de milha da praia, com dez a doze braças de fundo, e a partir de então navegou sempre junto da costa até à baía Brentford. Nesta latitude é que devia encontrar-se o estreito de Bellot, estreito de cuja existência Sir John Ross nem sequer suspeitou na sua expedição de 1829. Efectivamente, as cartas de Ross indicam uma costa não interrompida, cujas irregularidades, ainda as mais insignificantes, este navegador indicou e baptizou com o maior cuidado. Por consequência, força é admitir que, na época da sua exploração, o estreito não podia, por estar completamente cerrado pelos gelos, ver-se distintamente de forma alguma, nem mesmo da terra.

Por quem este estreito foi realmente descoberto foi pelo capitão Kennedy, numa excursão que fez em Abril de 1852. Deu-lhe Kennedy o nome do tenente Bellot, para prestar, como ele próprio disse, «justo tributo aos importantes serviços feitos à nossa expedição pelo oficial francês.»

 

                 O PÓLO MAGNÉTICO

HATTERAS, à medida que se ia aproximando do estreito, sentia redobrarem-lhe as inquietações, com razão, porque a sorte da sua viagem ia ali decidir-se. Até então tinha ele realizado mais que todos os seus predecessores, dos quais o mais afortunado, Mac Clintock, gastou quinze meses para chegar àquela parte dos mares polares; mas quanto tinha feito era pouco, nada mesmo, se não conseguisse passar o estreito de Bellot, porque, não podendo voltar pelo mesmo caminho, ficava bloqueado até ao ano seguinte.

Exactamente por este motivo, não quis o capitão confiar de mais ninguém o cuidado de estudar a costa. Subiu ele próprio ao ninho-de-pega, e ali passou muitas horas na manhã de sábado.

A tripulação compreendia perfeitamente a situação do navio. A bordo reinava profundo silêncio. A máquina afrouxou o seu movimento e o "Forward" conservou-se, tanto quanto era possível, próximo da terra. Era a costa toda eriçada daqueles penhascos de gelo que os estios mais calmosos não conseguem derreter; por consequência, era necessário bom e hábil olho para descobrir uma entrada por entre aqueles penhascos.

Hatteras comparava a terra com as suas cartas e, como o Sol se deixasse ver, por instantes, por volta do meio-dia, ordenou a Shandon e a Wall que fizessem observações, que saíram bastante exactas, e cujo resultado estes comunicaram em voz alta.

Na metade daquele dia todos os ânimos estiveram ansiosos, mas, de súbito, por volta das duas horas, caíram do alto do mastro do traquete estas palavras retumbantes:

«Proa a oeste e força ao vapor!»

O brigue obedeceu instantaneamente, voltando a proa para o rumo indicado; as ondas espumaram debaixo das asas da hélice e o "Forward" lançou-se, a toda a velocidade, entre dois ice-streams oscilantes.

Estava encontrado o caminho. Hatteras subiu ao tombadilho e o icemaster voltou para o seu posto.

- Então, capitão - perguntou o doutor -, entrámos finalmente nesse afamado estreito?

- Sim - respondeu Hatteras, baixando a voz -, mas o caso não é só cá entrar, o principal é de cá sair.

E, ditas estas palavras, encaminhou-se para o seu camarote.

- E tem razão, o capitão - disse entre si o doutor. - Estamos aqui como numa ratoeira e com pouco espaço para manobrar; e se temos de fazer invernada neste estreito?!... Ora! Também não éramos os primeiros a quem sucedia tal aventura, e onde outros se tiraram de apuros também nós sabemos sair-nos bem do negócio!

E não se enganava o doutor. Naquele mesmo lugar, num pequeno porto de abrigo, a que o próprio Mac Clintock pôs o nome de porto Kennedy, é que invernou o "Fox" em 1858. Naquele momento fácil era reconhecer as altas cadeias graníticas e os escarpados alcantis das duas ribas.

O estreito de Bellot tem uma milha de largura por dezassete de comprido, uma corrente de seis a sete milhas, e está entalado entre montanhas cuja altitude é avaliada em mil e seiscentos pés. Separa ele o North-Sommerset da terra de Boothia. Fácil é de compreender que neste estreito não podem os navios manobrar à larga. O "Forward" ia avançando com precaução, mas em todo o caso ia avançando. São frequentes as tempestades naquele apertado espaço, e não escapou o brigue à violência habitual delas. Por ordem de Hatteras arriaram-se as vergas de joanetes e de gáveas, assim como os mastros maiores; apesar disso, o navio continuou gemendo excessivamente; os golpes de mar varriam o convés, uns atrás dos outros, a cada rajada de vento; o fumo fugia para leste com rapidez de espantar. O navio navegava, por assim dizer, ao acaso, por entre os gelos em movimento; o barómetro baixou a vinte e nove polegadas. Era difícil segurar-se na tolda e, por esse motivo, a maior parte da tripulação conservava-se nas cobertas, para não sofrer inutilmente.

Hatteras, Johnson e Shandon ficaram no tombadilho, apesar dos turbilhões de neve e de chuva, e devemos acrescentar que também o doutor, que, tendo perguntado a si próprio que coisa lhe seria mais desagradável fazer naquele momento, subiu sem demora ao convés, onde, como não era possível ouvir e mal se podia ver, teve de guardar para si as suas reflexões.

Hatteras tentava penetrar através daquela cortina de brumas, porque, segundo a sua estimativa, devia estar na extremidade do estreito por volta das seis da tarde. Pareceu-lhe, porém, então cerrada toda a saída e, por consequência, foi obrigado a parar e a prender solidamente as âncoras a um icebergue. Toda a noite, porém, conservou a máquina em pressão suficiente para navegar.

Estava um tempo horroroso. O "Forward" ameaçava a cada instante partir as amarras e era até de recear que a montanha de gelo, arrancada pela base com a violência do vento oeste, vogasse à mercê deste, levando consigo o brigue. Os oficiais estiveram constantemente alerta e em extremas apreensões. Às trombas de neve juntava-se um verdadeiro granizo, que a borrasca ia varrer na superfície desgelada dos bancos de gelo, e que era como outras tantas agudas flechas que cortavam a atmosfera.

Durante aquela temerosa noite elevou-se a temperatura notavelmente; o termómetro chegou a marcar 57 graus (+14 graus centígrados), e o doutor, com grande espanto seu, julgou divisar para o lado do sul alguns relâmpagos, seguidos de estrondo de trovão, a grande distância. Este facto parecia corroborar a asserção do baleeiro Scoresby, que observou um fenómeno análogo além do paralelo sexagésimo quinto.

O capitão Parry foi também testemunha de igual irregularidade meteorológica em 1821.

Por volta das cinco horas da manhã o tempo mudou com surpreendente rapidez; a temperatura voltou subitamente ao ponto de congelação e o vento saltou ao norte e caiu. A abertura ocidental do estreito avistava-se então, mas inteiramente obstruída. Hatteras estendia ávidos olhares alternadamente para todos os pontos da costa, inquirindo assim se existia realmente alguma passagem.

No entanto, o brigue largou o pano e deslizou lentamente por entre os ice-streams, ao passo que as penhas de gelo se lhe vinham esmagar, com estrépito, de encontro ao costado. Naquela época ainda os packs tinham seis a sete pés de espessura e era necessário ter o maior cuidado em evitar-lhes a pressão, porque, ainda que o navio lhes resistisse, correria risco de ficar deitado sobre o costado.

Ao meio-dia, e pela primeira vez, pôde-se admirar um magnífico fenómeno solar, um halo com dois periélios, que o doutor observou, apreciando-lhe exactamente as dimensões. O arco exterior era apenas visível numa extensão de trinta graus para cada lado do diâmetro horizontal; as duas imagens do Sol distinguiam-se com admirável perfeição e as cores, que se divisavam nos dois arcos luminosos, eram, por sua ordem e de dentro para fora, a cor vermelha, a amarela, a verde, um pardo-azul muito desmaiado e, finalmente, luz branca sem limite exterior assinalável.

O doutor recordou-se da engenhosa teoria imaginada por Thomas Young, acerca daqueles meteoros. Supõe este físico que estão suspensas na atmosfera certas nuvens, compostas de prismas de gelo, e que os raios do Sol, que caem sobre os prismas, são decompostos sob ângulos de sessenta a noventa graus. Os halos não podem assim formar-se em céus serenos. Esta explicação achava-a o doutor muito engenhosa.

Os marinheiros habituados aos mares boreais consideram geralmente este fenómeno como prenúncio de abundante queda de neve, e, se se realizasse esta previsão, tornar-se-ia a situação do "Forward" extremamente difícil. Hatteras resolveu, pois, navegar para a frente, e durante o resto daquele dia, assim como na noite que se lhe seguiu, não gozou um instante de descanso: ora apontava o óculo para o horizonte, ora subia rápido pela enfrechadura das enxárcias, não perdendo ocasião alguma de se aproximar da saída do estreito.

Ao amanhecer, porém, teve de parar perante o insuperável banco de gelos, e nessa ocasião foi ter com ele o doutor, que Hatteras levou para a ré, onde puderam conversar sem receio de que os ouvissem.

- Estamos colhidos - declarou Hatteras. - É impossível ir mais longe.

- Impossível? - interrogou o doutor.

- Impossível! Sim! Nem toda a pólvora do "For-ward" era capaz de nos fazer ganhar um quarto de milha!

- Então que se há-de fazer? - inquiriu o doutor.

- Que sei eu?! Maldito seja este ano funesto, que com tão desfavoráveis auspícios se apresenta!

- Ora pois, capitão, se força é invernar, invernaremos! Tanto vale este sítio como outro qualquer.

- Isso decerto - respondeu Hatteras, em voz baixa -, mas o que não convinha era que fôssemos forçados a invernar, principalmente no mês de Junho. A invernada abunda em perigos físicos e morais. Nessa longa inacção, em meio de verdadeiros sofrimentos, depressa se deixa abater o ânimo de qualquer tripulação. Por esse e outros motivos é que eu contava parar só numa latitude muito mais próxima do pólo.

- Sim; quis, porém, a fatalidade que estivesse fechada a baía de Baffin.

- Essa mesma baía que esteve aberta para outro - exclamou Hatteras, encolerizado -, para esse americano, esse...

- Vejamos, Hatteras - disse o doutor, interrompendo-o de caso pensado -, estamos apenas em 5 de Junho. Não desesperemos. É possível que de repente se abra em frente de nós alguma passagem. Sabeis muito bem que o gelo, ainda mesmo na calmaria, tem natural tendência a dividir-se em muitos penhascos, como se entre as diferentes massas que o compõem actuasse alguma força repulsiva; por consequência, de uma hora para a outra podemos encontrar livre o mar.

- Pois que se apresente ele assim, que nós o sulcaremos! É possível que, para além do estreito de Bellot, tenhamos facilidade em voltar ao norte pelo estreito de Peei ou pelo canal de Mac Clintock, e nesse caso...

- Capitão - veio prevenir naquele momento James Wall -, corremos o risco de que os gelos nos levem o leme!

- Pois bem, corra-se o risco - respondeu Hatteras. - No que eu não consinto é que o tirem, pois quero, a toda a hora do dia e da noite, estar pronto a navegar. Sr. Wall, cuidai em mandar proteger o leme tanto quanto for possível, afastando as penhas de gelo, mas que fique no seu lugar, ouvis?

- Contudo... - acrescentou Wall.

- Não tenho de ouvir observações, senhor - retorquiu Hatteras com severidade. - Tenho dito.

Wall voltou para o seu posto.

- Ah! - exclamou Hatteras com um movimento de cólera. - Dava cinco anos de vida para estar agora no norte! Não conheço passagem mais arriscada do que esta. E, para cúmulo de dificuldades, a esta curta distância do pólo magnético a bússola não funciona, a agulha torna-se preguiçosa ou louca e muda constantemente de direcção!

- Confesso - concordou o doutor. - que é uma navegação perigosa, mas também quem a empreendeu já devia esperar estes perigos, e até agora não há razão para surpresas.

- Ai! doutor! A minha tripulação está muito mudada. Acabais de ver que até os próprios oficiais já me fazem observações. As vantagens pecuniárias, oferecidas aos marinheiros, eram adequadas para os decidir a engajarem-se, mas também têm o seu lado mau, porque, logo depois da saída, fazem desejar com mais ardor o regresso. Doutor, não me sinto auxiliado por ninguém na minha empresa, e se dela me sair mal, a culpa não vem deste ou daquele marinheiro, que se poderia dominar, vem da má vontade de certos oficiais... Ah! mas há-de custar-lhes caro!

- Isso é exagerar, Hatteras.

- Não exagero, não! Pensais, porventura, que são desagradáveis à tripulação os obstáculos que encontro no meu caminho?

Pelo contrário! O que todos esperam é que tais obstáculos me hão-de fazer abandonar os meus projectos! Por isso é que eles agora não murmuram e outro tanto sucederá enquanto o "Forward" estiver aproado ao sul. Que loucos! Imaginam eles que assim se aproximam de Inglaterra! Mas, se eu chego a voltar ao norte, vereis como tudo muda! Pois juro eu, dê por onde der, que nenhum ser vivo me fará desviar da minha linha de conduta! Apareça uma passagem, uma abertura qualquer, um buraco por onde possa meter o meu brigue, que tudo levarei de vencida, ainda que lá tenha de deixar o cobre que forra o navio!

Até um certo ponto tinham de ser satisfeitos os desejos do capitão. Como o doutor previra, houve uma repentina variação no tempo durante a noite; os ice-fields separaram-se debaixo de uma influência qualquer de vento, de corrente ou de temperatura, e o "Forward" arrojou-se ousado, partindo com a proa de aço os penhascos flutuantes de gelo, e navegou durante toda a noite, desembocando na terça-feira, pelas seis horas, no estreito de Bellot.

Qual foi, porém, a surda irritação de Hatteras quando viu que o caminho para o norte permanecia obstinadamente fechado! Teve contudo força de alma bastante para conter a sua desesperação, e deixou que o "Forward" descesse o estreito de Franklin, como se o único caminho aberto fosse o que ele realmente preferia. Como não podia voltar ao norte pelo estreito de Peei, resolveu seguir os contornos da terra do Príncipe de Gales, para ganhar o canal de Mac Clintock. Bem percebia ele, porém, que Shandon e Wall não eram homens que o seu silêncio iludisse e que muito bem sabiam o que a tal respeito deviam pensar.

O dia 6 de Junho não ofereceu novidade. O céu estava de neve, cumprindo-se assim os prognósticos do halo.

Seguiu assim o "Forward", por espaço de trinta e seis horas, todas as sinuosidades da costa de Boothia, sem conseguir aproximar-se da terra do Príncipe de Gales. Hatteras dava toda a força à máquina, queimando o carvão com prodigalidade, porque continuava a contar refazer a sua provisão na ilha Beechey. Na quinta-feira chegou à extremidade do estreito de Franklin, mas achou também ali impossível de transpor o caminho do norte.

Era caso para desesperar. O navio nem já podia voltar por onde viera, porque o impeliam para a frente os gelos e porque via sem cessar fechar-se-lhe à ré o caminho que acabava de percorrer, como se, no lugar onde uma hora antes acabava de passar, nunca tivesse existido um mar livre.

Assim o "Forward", não somente não podia navegar para o norte, mas nem podia deter-se sequer um instante, sob pena de ficar preso. Fugia o navio diante dos gelos, como outros fogem diante da tormenta.

Na sexta-feira, 8 de Junho, o navio chegou às proximidades da costa de Boothia, à entrada do estreito de James Ross, entrada que era necessário evitar a todo o custo, porque este estreito não tem saída senão para oeste e vai dar directamente às terras da América.

As observações feitas neste ponto, ao meio-dia, deram 70 graus 5 minutos 17 segundos de latitude e 96 graus 46 minutos 45 segundos de longitude. O doutor, quando soube destes algarismos, apontou-os na sua carta e conheceu que se encontrava, enfim, no pólo magnético, naquele mesmo lugar em que James Ross, sobrinho de Sir John, veio determinar aquela posição curiosa.

A terra, junto à costa, era baixa, e à distância de uma milha do mar apenas se elevava uns sessenta pés.

Como havia necessidade de limpar as caldeiras do "Forward", o capitão fez ancorar o navio num campo de gelo e deu licença ao doutor para que fosse a terra em companhia do mestre. Ele, insensível como era a tudo que não tinha imediata relação com os seus projectos, fechou-se no camarote, devorando com o olhar a carta do pólo.

O doutor e o companheiro facilmente conseguiram chegar a terra. O primeiro levava uma agulha destinada às suas experiências, porque tinha a peito reverificar os trabalhos de James Ross. Facilmente descobriu o montículo de pedras calcárias que Ross levantara. Correu direito a ele e encontrou uma abertura, que deixava ver no interior a caixa de estanho em que James Ross depositou a acta autêntica da sua descoberta. Parecia que nenhum ser vivo tinha visitado aquela desolada costa desde há trinta anos.

Uma agulha magnética suspensa de um fio naquele lugar, com a maior delicadeza possível, colocava-se desde logo numa posição quase vertical, debaixo da influência magnética, porque o centro da atracção estava, se não imediatamente debaixo da agulha, pelo menos a muito pequena distância dessa posição.

O doutor realizou com todo o cuidado a sua experiência.

E se James Ross não pôde, por causa da imperfeição dos instrumentos que usava, achar para a sua agulha vertical senão uma inclinação de 89 graus 59 minutos, foi porque o verdadeiro pólo magnético estava a um minuto de distância daquele lugar. Mais feliz foi o Dr. Clawbonny, que, a pequena distância dali, teve a suprema satisfação de ver a sua inclinação de 90 graus.

- Ora eis aqui exactamente o pólo magnético do mundo! - exclamou ele, batendo com o pé no chão.

- Será, com certeza, aqui? - perguntou mestre Johnson.!

- Aqui mesmo, amigo.

- Nesse caso deve ser abandonada toda a hipótese de montanha de íman ou de massa magnetizada? - insistiu o mestre.

- Absolutamente, meu estimável Johnson - respondeu o doutor, rindo-se. - Isso são crendices! Como acabais de ver, não há aqui montanha, pequena nem grande, que possa atrair os navios, roubar-lhes o ferro, âncora a âncora, prego a prego, e até os vossos sapatos estão tão livres disso como em qualquer outro ponto do Globo.

- Como explicar então...

- Não se explica, Johnson, que não nos chega ainda a ciência para tanto. O que, porém, é positivo, exacto, matemático, é que o pólo magnético é aqui mesmo neste lugar!

- Ai! Sr. Clawbonny, como seria feliz o nosso capitão se pudesse dizer outro tanto do pólo boreal!

- Há-de dizê-lo, Johnson, há-de dizê-lo.

- Deus o permita! - concluiu o mestre.

O doutor e o companheiro levantaram um cairn exactamente no lugar onde se realizara a observação e, como ouvissem o sinal de recolher a bordo, voltaram ao navio às cinco horas da tarde.

 

               A CATÁSTROFE DE SIR JOHN FRANKLIN

Conseguiu o "Forward" cortar perpendicularmente em frente do estreito de James Ross, mas não sem custo; foi necessário usar das serras e dos foguetes, trabalho este que fatigou extraordinariamente a tripulação. Felizmente a temperatura estava muito suportável e superior, em trinta graus, à que James Ross encontrou em igual época do ano. Marcava o termómetro 34 graus ( + 2 graus centígrados).

No sábado dobrou-se o cabo Félix, situado no extremo da terra do Rei Guilherme, que é uma das ilhas medianas dos mares boreais.

Experimentava então a tripulação forte e doloroso abalo, relanceando olhares a um tempo de curiosidade e tristeza por sobre aquela ilha, cujas praias iam costeando.

E com razão, porque se encontravam em presença dessa terra do Rei Guilherme, teatro do mais terrível drama dos tempos modernos! A poucas milhas a oeste tinham-se perdido para sempre o "Erebus" e o "Terror".

A marinhagem do "Forward" conhecia as tentativas feitas para encontrar o almirante Franklin e o resultado destas, mas ignorava os pormenores aflitivos daquela catástrofe. Ora, enquanto o doutor seguia na carta a marcha do navio, muitos dos marinheiros, Bell, Bolton e Simpson, acercaram-se dele e meteram-se na conversa. Em breve os outros camaradas, movidos de particular curiosidade, os seguiram. Entretanto o brigue ia navegando com extrema velocidade, e a costa, com as suas baías, com os seus cabos e as suas pontas, passava diante dos olhos, qual gigantesco panorama.

Hatteras passeava de um para outro lado, no tombadilho, com passo rápido. O doutor sentou-se no convés e viu-se rodeado da maioria da tripulação. Compreendeu o interesse daquela situação, o partido que se podia tirar de uma narração feita em circunstâncias tais, e continuou nos seguintes termos a conversação que principiara com Johnson:

- Todos vós sabeis, amigos meus, quais foram os princípios da vida de Franklin: foi grumete, como o foram Cook e Nelson. Depois de ter empregado o melhor da sua mocidade em grandes expedições marítimas, resolveu, em 1845, arrojar-se em busca da passagem de noroeste. Levava ele, nesta empresa, debaixo do seu comando, o "Erebus" e o "Terror", ambos navios já experimentados, que tinham acabado de fazer, em 1840, uma campanha no pólo antárctico, sob o comando de James Ross. O "Erebus", a bordo do qual ia Franklin, era tripulado, entre oficiais e marinhagem, por setenta homens, desigualmente o capitão Fitz-James, os tenentes Gore e Le Vesconte, os mestres Des Voeux, Sargent e Couch, e o cirurgião Stanley. O "Terror" levava sessenta e oito homens, capitão Crozier, tenentes Litte, Hogdson e Irving, mestres Horesby e Thomas, cirurgião Peddie. Nas baías, nos cabos, nos estreitos, nas pontas, nos canais e nas ilhas destas paragens podeis vós ler os nomes da maior parte destes desgraçados, dos quais nem um só tornou a ver a pátria! Nada menos de cento e trinta e oito homens! Sabe-se que as últimas cartas de Franklin foram escritas da ilha Disko e datadas de 12 de Julho de 1845. «Espero, dizia ele numa delas, navegar esta noite para o estreito de Lancastre.» Que se passaria depois da sua saída da baía de Disko? Os capitães dos dois baleeiros "Príncipe de Gales" e "Entreprise" avistaram, pela última vez, os dois navios de Franklin na baía Melville, e desde aquele dia ninguém mais teve deles notícia. Todavia, é possível seguir Franklin na sua marcha para oeste e afirmar que meteu pelos estreitos de Lancastre e de Barrow, para chegar à ilha Beechey, onde passou a invernada de 1845 a 1846.

- E como vieram a saber-se essas particularidades?

- perguntou o carpinteiro Bell.

- Por três túmulos que a expedição de Austin descobriu em 1850 na ilha. Nesses três túmulos estavam inumados três dos marinheiros de Franklin. E depois também por meio de um documento encontrado pelo tenente Hobson, do "Fox", que tem a data de 25 de Abril de 1848. Por ele sabemos que o "Erebus" e o "Terror", depois da invernada, navegaram estreito de Wellington acima, até ao septuagésimo sétimo paralelo. Em vez, porém, de prosseguirem na derrota para o norte, provavelmente por não ser praticável, voltaram de novo ao sul...

- E foi o que os perdeu! - proferiu uma voz grave.

- No norte é que estava a salvação!

Todos se voltaram. Fora Hatteras que, encostado à balaustrada do tombadilho, acabara de arrojar à sua tripulação aquela observação terrível.

- Certamente - prosseguiu o doutor -, a intenção de Franklin era chegar à costa americana. Assaltaram-no, porém, as tempestades naquele funesto caminho e, a 12 de Setembro de 1846, foram os dois navios colhidos pelos gelos, a algumas milhas daqui, a noroeste do cabo Félix. Daí ainda foram arrastados até noroeste da ponta Vitória. Até ali mesmo - disse o doutor, designando um ponto no mar. - Ora - acrescentou ele -, os navios não foram abandonados senão a 22 de Abril de 1848. Que se passaria, pois, durante aqueles dezanove meses? Que fariam aqueles desventurados? Exploraram, por certo, as terras circundantes, tentaram tudo para se salvarem, que o almirante era homem de energia, e, se não colheu feliz resultado...

- Talvez as tripulações o traíssem! - interrompeu Hatteras com voz surda.

Os marinheiros nem ousaram levantar os olhos, porque lhes pesavam na consciência aquelas palavras.

- Para encurtar razões, direi que também o fatal documento nos diz que Sir John Franklin sucumbiu a tantas fadigas em 11 de Junho de 1847. Honra à sua memória! - disse o doutor, descobrindo-se.

Todo o auditório o imitou em silêncio.

- Que sucedeu àqueles desgraçados, privados do seu chefe, no decurso de dez meses? Ficaram a bordo dos navios, não se decidindo a abandoná-los senão em Abril de 1848. De cento e trinta e oito homens, estavam ainda cento e cinco. Tinham morrido trinta e três! Os capitães Crozier e Fitz-James então levantam um cairn na ponta Vitória e ali depositam o último documento que de si deixaram. Olhai, amigos, vamos passando mesmo em frente dessa ponta! Ainda ali se podem ver as ruínas desse cairn, levantado, por assim dizer, no ponto extremo a que John Ross chegou em 1851. Olhem o cabo Jane Franklin! Olhem a ponta Franklin! Olhem a ponta Le Vesconte! Olhem a baía do Erebus, onde foi encontrada a chalupa feita com os restos de um dos navios e assente num trenó! Ali se descobriram colheres de prata, munições em abundância, chocolate, chá, livros religiosos! Porque os cento e cinco, que sobreviveram, puseram-se a caminho para Great-Fish River, conduzidos pelo capitão Crozier! Até onde puderam eles chegar? Lograram porventura ganhar a baía de Hudson? Sobreviveriam alguns? Estarão vivos? Que seria deles depois daquela última saída?

- O que foi feito deles, dir-vo-lo-ei eu! - interrompeu John Hatteras com voz forte. - É verdade, tentaram chegar à baía de Hudson e dividiram-se em muitos grupos! Sim, tomaram o caminho do sul! Sim, em 1854, noticiou uma carta do Dr. Rae que os esquimós tinham encontrado, em 1850, nessa terra do Rei Guilherme, um destacamento de quarenta homens à caça das focas, viajando pelo gelo e puxando um barco, magros, pálidos, extenuados de cansaço e sofrimento. Mais tarde, descobriram também os esquimós trinta cadáveres no continente e cinco numa ilha próxima, uns meio enterrados, outros abandonados, sem sepultura, estes debaixo de um barco de quilha para o ar, aqueles debaixo dos restos de uma tenda, aqui um oficial com o seu telescópio ao ombro e a espingarda ainda carregada ao pé de si, mais além panelas com restos de uma refeição horrível! Ao receber estas notícias, o Almirantado pediu à Companhia da Baía de Hudson que mandasse os seus mais hábeis agentes ao teatro dos acontecimentos. Desceram estes pelo rio de Back até à foz. Visitaram as ilhas de Montreal, Maconochie e ponta Ogle. Mas nada! Todos aqueles desgraçados tinham morrido à míngua, de tanto sofrer, de tanta fome, tentando prolongar a existência pelos horrorosos recursos do canibalismo. Aí está o que foi deles no percurso desse caminho para o sul, juncado dos seus cadáveres mutilados! E então? Ainda tereis vontade de ir-lhes nas pegadas?

A voz vibrante, o gesto apaixonado e a fisionomia ardente de Hatteras produziram indescritível impressão. A tripulação, sobreexcitada e comovida em presença daquelas terras funestas, exclamou como um só homem:

- Para o norte! Para o norte!

- Pois bem! Para o norte, que lá é que estão a salvação e a glória! Para o norte, que se declara o céu em nosso favor! Mudou o vento, está livre a passagem! Vira de bordo!

Os marinheiros correram todos aos seus postos de manobra. Os ice-streams iam-se desembaraçando, pouco a pouco, e o "Forward" virou rapidamente e dirigiu-se a toda a força de vapor para o canal de Mac Clintock.

Tivera Hatteras toda a razão em contar com um mar livre. Navegando por ele acima seguia a presumida derrota de Franklin; costeava a plaga oriental da terra do Príncipe de Gales, então já suficientemente conhecida, ao passo que a praia oposta ainda é desconhecida. Evidentemente, a descida dos gelos para o sul fizera-se pelos sinuosos e estreitos canais de leste, porque aquele estreito parecia estar inteiramente livre. Por este motivo ficou o "Forward" habilitado a ganhar todo o tempo perdido. Deu-se força à máquina e por forma tal que, a 14 de Junho, já o navio passara além da baía Osborne e dos pontos extremos a que tinham chegado as expedições de 1851. Abundavam ainda os gelos no estreito, mas já não havia razão para recear que faltasse água diante da quilha do "Forward".

 

             A DERROTA PARA O NORTE

A tripulação parecia ter voltado aos primeiros hábitos de disciplina e de obediência. As manobras, então raras e de pouco cansaço, deixavam-lhe bons vagares. A temperatura continuava a manter-se acima do ponto de congelação, e o desgelo por certo havia de levar de vencida os maiores obstáculos daquela navegação.

"Duck", fagueiro e sensível agora, tinha tomado relações de sincera amizade com o Dr. Clawbonny. Estavam nos melhores termos. Mas como em amizade há sempre um amigo que se sacrifica ao outro, força é confessar que este outro não era o doutor. "Duck" fazia dele tudo quanto queria, e o doutor é que obedecia como qualquer cão a seu dono. De resto, "Duck" mostrava-se também amável para com a maior parte dos marinheiros e oficiais de bordo; por excepção, e por instinto decerto, fugia da companhia de Shandon. Conservara também - não devemos esquecê-lo - uma tineta, e que tineta! contra Pen e Foker. O seu ódio contra estes dois traduzia-se num rosnar mal contido todas as vezes que algum deles se lhe aproximava. Estes também já se não atreviam a meter-se com o cão do capitão, "com o seu génio familiar", como Clifton dizia.

No fim de contas, o caso era que a tripulação tinha readquirido a confiança e que se portava bem.

- Parece que os nossos homens - disse um dia James Wall a Ricardo Shandon - tomaram o discurso do capitão a sério.

Estão com ares de quem nem sequer duvida do feliz êxito da empresa.

- Fazem muito mal - respondeu Shandon. - Se reflectissem, se examinassem a situação, compreenderiam que não cometemos senão imprudências.

- No entanto, o facto é que navegamos num mar mais livre e que voltamos a caminhos já reconhecidos, Shandon.,

- Não exagero nada, Wall. O ódio, o ciúme, se quiserdes, que Hatteras me inspira, não me cega. Ora respondei-me: já visitastes os paióis do carvão?

- Não.

- Pois bem! Descei até lá, e vereis com que rapidez as nossas provisões diminuem. No começo da viagem dever-se-ia ter navegado quase sempre à vela, reservando a hélice só para navegar com ventos de proa ou contra corrente. No gasto de combustível devia ter havido a mais severa economia, porque ninguém sabe em que lugar destes mares e por quanto tempo podemos ficar detidos. Hatteras, porém, levado pelo frenesi de ir para a frente, de subir até esse inacessível pólo, não se preocupa com tais minúcias. Corram os ventos contrários ou propícios, navega sempre a todo o vapor, e o caso é que se a coisa assim continua, corremos risco de nos vermos em breve muito atrapalhados, perdidos.

- Pois isso é verdade, Shandon? O caso então é grave!

- Sim, Wall, é grave, e não somente em relação à máquina que, por falta de combustível, de nenhuma utilidade seria em qualquer circunstância crítica, mas grave também pelo lado da invernada, que mais tarde ou mais cedo teremos de fazer. Ora, numa região onde por vezes gela o mercúrio nos termómetros, o frio não é coisa que se deva esquecer*1.

- Mas, se me não engano, Shandon, o capitão conta refazer-se de carvão na ilha Beechey, onde devemos encontrá-lo em grande quantidade.

- E nestes mares, Wall, vai a gente porventura aonde quer ir? Pode acaso contar como coisa certa encontrar

 

*1. O mercúrio gela a 52 graus centígrados abaixo de zero.

 

este ou aquele estreito livre de gelos? E se Hatteras não dá com a ilha Beechey, ou se não consegue lá chegar, que será de nós?

- Tendes razão, Shandon. Agora vejo que o capitão anda com menos prudência; mas vós porque lhe não fazeis algumas observações a esse respeito?

- Não, Wall - respondeu Shandon com mal disfarçada amargura. - Resolvi calar-me. Visto já não ser eu o responsável pelo navio, aguardarei os acontecimentos. Mandam-me, obedeço, não dou a minha opinião.

- Permiti-me que vos diga, Shandon, que não fazeis bem, visto tratar-se de um interesse comum e poderem essas imprudências do capitão custar-nos a todos muito caro.

- E se lhe falasse, Wall, ele atendia-me?

Wall não ousou responder pela afirmativa, mas acrescentou:

- Mas talvez desse ouvidos às representações da tripulação.

- Da tripulação!-retorquiu Shandon, erguendo os ombros. - Então não a tendes observado, meu pobre Wall? A tripulação em que menos pensa é em salvar-se! O que ela quer saber é que vai avançando para o septuagésimo segundo paralelo, e que além dessa latitude tem mil libras de prémio por cada grau que ganhar.

- É verdade, é, Shandon, e o facto é que o capitão não podia escolher melhor maneira de ter os seus homens seguros.

- Com certeza - volveu Shandon -, no presente pelo menos!

- Que quereis dizer com isso?

- Quero dizer que, na ausência de riscos e trabalhos e com um mar livre, não admira que tudo corra às mil maravilhas. Hatteras segurou-os com dinheiro, mas o que se faz só pelo dinheiro faz-se mal. Venham as circunstâncias difíceis, os riscos, a miséria, o desânimo e o frio, ao encontro do qual corremos como insensatos, e veremos se então essa gente ainda se lembra do prémio que tem a ganhar!

- Por conseguinte, é vossa opinião, Shandon, que Hatteras não conseguirá o resultado que deseja?

- Não, Wall, não o pode conseguir. Numa empresa destas é necessário que haja entre os chefes uma perfeita comunhão de ideias, uma simpatia que não existem aqui, e acrescento ainda que Hatteras não é mais que um louco, como o prova o seu passado inteiro! Enfim, veremos! Circunstâncias podem apresentar-se de tal ordem que seja forçoso entregar o comando do navio a um capitão menos aventuroso...

- Suceda o que suceder - interrompeu Wall, meneando a cabeça em ar de dúvida -, Hatteras sempre terá do seu lado...

- Há-de ter - replicou Shandon, interrompendo o oficial -, há-de ter o Dr. Clawbonny, que é um sábio que só pensa em saber; Johnson, marinheiro escravo da disciplina e que nem se dá ao trabalho de pensar; e talvez ainda mais um ou dois homens, tais como o carpinteiro Bell; isto é, quando muito serão quatro, sendo nós a bordo dezoito! Não, Wall, Hatteras não goza da confiança da tripulação, e bem o sabe ele; por isso é que tratou de os engodar com dinheiro. Aproveitou-se com habilidade da narração da catástrofe de Franklin para produzir uma reacção repentina nesses ânimos fáceis de virar; mas isso não é coisa que dure, repito, e o que vos digo é que, se não consegue abordar à ilha Beechey, está perdido.

- Ah! Se a tripulação pudesse sequer imaginar...

- Entendo - respondeu Shandon com vivacidade - que não lhe deveis comunicar estas observações; ela as fará por si própria. E, demais, agora até convém continuar na derrota para o norte. Quem sabe, porém, se o que Hatteras julga ser marchar para o pólo não será voltar para trás, pelo mesmo caminho? No extremo do canal Mac Clintock está a baía Melville, onde desembocam todos esses estreitos por onde se pode ir de novo dar à baía de Baffin. Hatteras que tenha cautela! Que o caminho de leste é mais fácil que o do norte.

Destas palavras se depreende quais eram as disposições de Shandon e quanto direito assistia ao capitão de lhe pressentir a traição.

De resto, Shandon discorria com acerto quando atribuía a satisfação actual da tripulação à perspectiva de passar em breve além do septuagésimo segundo paralelo.

Esta sede de dinheiro apoderou-se até dos menos audaciosos dos tripulantes. O próprio Clifton já tinha calculado, com grande exactidão, quanto vinha a caber a cada um.

Tirando o capitão e o doutor, que não podiam ser admitidos a entrar na partilha, restavam no "Forward" dezasseis homens. Ora, sendo o prémio total de mil libras esterlinas, vinha a caber a cada cabeça um prémio de sessenta e duas libras por grau. E, assim, se o navio lograsse chegar ao pólo, os dezoito graus de latitude, que havia a transpor, davam a cada homem a quantia de mil cento e vinte e cinco libras, isto é, uma fortuna. Era uma fantasia tal que haveria de ficar ao capitão por dezoito mil libras. Hatteras, porém, era rico bastante para poder assim pagar semelhante passeio ao pólo.

Todos esses cálculos foram, como é de crer, novo e singular incentivo para a avidez da tripulação, e muitos, que quinze dias antes se regozijavam só com a ideia de que navegavam para o sul, aspiravam agora com ardor a passar além dessa áurea latitude.

No dia 16 de Junho passou o "Forward" a pouca distância do cabo Aworth. O monte Rawlinson erguia para o céu os seus brancos píncaros. A neve e as brumas, exagerando a distância, davam-lhe uma aparência colossal; a temperatura mantinha-se alguns graus acima do ponto de congelação; dos flancos das montanhas nasciam improvisadas cataratas e cascatas e as avalanchas despenhavam-se com um estrondo semelhante a descargas contínuas de artilharia de grande calibre. As geleiras, desdobradas e estendidas, como enormes lençóis brancos, projectavam para o espaço uma reverberação imensa. A natureza boreal, então a braços com o desgelo, apresentava aos olhos um espectáculo esplêndido. O brigue costeava a terra de perto. Num ou noutro rochedo, mal abrigado por alguns tojos, cujas rosadas flores desabrochavam a medo por entre a neve, divisavam-se, arrastados pelo solo, uns definhados líquenes de cor avermelhada e as vergônteas de uma espécie de salgueiro anão.

Dobrou-se, afinal, a 19 de Junho, passando ao mesmo tempo esse famoso septuagésimo segundo paralelo, a ponta de Minto, que forma uma das extremidades da baía Ommaney. O brigue entrou na baía Melville, denominada o mar de prata por Bolton, esse jovial marinheiro, que a este respeito disse mil facécias, que fariam rir com gosto o Dr. Clawbonny.

Foi bastante fácil, apesar de uma fresca brisa de nordeste, a navegação do "Forward", para que a 23 de Junho já o navio tivesse passado o septuagésimo quarto paralelo de latitude. Estava então o navio no meio da baía Melville, que é um dos mais vastos mares daquelas regiões e que, em 1819, foi pela primeira vez navegado pela grande expedição do capitão Parry. Foi ali que a tripulação deste ganhou o prémio de cinco mil libras prometido por acção do Parlamento.

Clifton contentou-se em notar que, do paralelo septuagésimo segundo ao septuagésimo quarto, iam dois graus, o que à sua parte representava um crédito de cento e vinte libras. Alguém, contudo, lhe fez observar que naquelas paragens a fortuna era o menos, pois que ninguém se pode dizer rico senão com a condição de poder beber a própria riqueza, e que nestes termos parecia razoável esperar o momento de rolar para debaixo da mesa de alguma taberna de Liverpul, para se regozijar e esfregar as mãos.

 

               BALEIA À VISTA

A baía Melville, ainda que facilmente navegável, não estava, no entanto, completamente desprovida de gelos; avistavam-se por todos os lados imensos ice-fields, que se prolongavam até aos limites do horizonte; aqui e acolá apareciam também alguns icebergues, mas imóveis e como que fundeados no meio dos campos de gelo. O "Forward" navegava a todo o vapor por largos canais, onde lhe era fácil manobrar.

O vento variava com frequência, saltando repentinamente de um ponto a outro do horizonte. É facto muito para se notar a variabilidade dos ventos nos mares árcticos; por vezes, alguns minutos apenas medeiam entre uma calmaria podre e uma desordenada tempestade. E foi o que aconteceu a Hatteras, a 23 de Junho, mesmo ao centro da imensa baía.

Os ventos mais constantes sopram geralmente do banco de gelo para o mar livre e são muito frios. Naquele dia desceu o termómetro alguns graus. O vento saltou ao sul e veio, em rajadas fortíssimas, passando por sobre os campos de gelo, desembaraçar-se da sua humidade sob a forma de espessa neve. Hatteras fez imediatamente ferrar o pano, com que auxiliava a impulsão da hélice, mas não pôde, porém, fazer tão rapidamente essa manobra que o vento não levasse, num abrir e fechar de olhos, o joanete de proa.

Hatteras comandou toda a manobra com a maior presença de espírito e não largou a tolda enquanto durou a tempestade.

Teve, porém, de fugir ao tempo e de manobrar para oeste. O vento levantava vagalhões enormes, no meio dos quais flutuavam penhascos de gelo de todas as formas, arrancados dos ice-fields circundantes. O brigue era joguete das vagas como se fora um brinquedo de criança, e os pedaços dos packs, esmigalhados pela violência do mar, arremessavam-se-lhe de encontro ao costado. Por momentos, erguia-se o navio a prumo na crista de uma montanha líquida, e a sua proa de aço, apanhando toda a luz difusa, fulgurava como uma barra de metal em fusão; logo depois despenhava-se num abismo, dando de proa em cheio nos turbilhões do próprio fumo, ao passo que a sua hélice, fora de água, girava em seco com sinistro ruído, batendo no ar com as asas imensas. A chuva, de mistura com a neve, caía a potes.

O doutor não podia perder tão excelente ocasião de ficar molhado até aos ossos; ficou, portanto, na tolda, dominado por toda a comovedora admiração que um sábio extrai sempre de espectáculos tais. Como nem a pessoa que dele estava mais próxima lhe podia ouvir a voz, o doutor emudecia e olhava, e naquela contemplação presenciou um fenómeno estranho e peculiar das regiões hiperbóreas.

A tempestade estava circunscrita num espaço restrito, que se não estendia a mais de três ou quatro milhas. Efectivamente, o vento, quando passa por sobre campos de gelo, perde muito em intensidade e não pode levar a grande distância as suas desastrosas violências; e o doutor, de vez em quando, enxergava por alguma aberta, além dos ice-fields, um mar tranquilo e um céu sereno. Bastava, por consequência, que o "Forward" governasse através dos canais para tornar a encontrar uma navegação bonançosa; mas o pior é que corria o risco de ser arremessado de encontro aos bancos movediços, que obedecem ao movimento da vaga. No entanto, Hatteras conseguiu, no fim de algumas horas de luta, levar o seu navio a um mar bonançoso, ao passo que a algumas amarras do "Forward" vinha expirar a violência da borrasca, que no horizonte se desencadeava em fumo.

A baía Melville já não apresentava então o mesmo aspecto. Grande número de montanhas, destacadas da costa pela força das vagas e dos ventos, flutuavam, dirigindo-se para o norte e cruzando-se ou batendo umas de encontro às outras em todas as direcções. Podiam contar-se muitos centos delas, mas, como a baía é muito espaçosa, o brigue facilmente lhe fugiu. Era magnífico o espectáculo daquelas moles flutuantes que, animadas de velocidade desiguais, pareciam empenhadas em porfiada luta naquele vasto campo de corridas.

Estava o doutor entusiasmado com tudo isto, quando dele se acercou o fisgador Simpson e lhe fez notar as tintas cambiantes do mar, que variavam desde o azul carregado até ao verde-azeitona. Do norte para o sul estendiam-se compridas faixas, separadas por arestas tão claramente definidas que tornavam possível seguir-lhes a perder de vista a linha de separação. Em alguns pontos também os líquidos lençóis transparentes seguiam, sem interrupção, outros inteiramente opacos.

- E então, Sr. Clawbonny, que dizeis a esta singularidade? - perguntou Simpson.

- Digo, amigo - respondeu o doutor-, o mesmo que o baleeiro Scoresby dizia acerca destas águas de diverso colorido: é que as águas azuis são desprovidas dos milhares de milhões de animáculos e de medusas de que as águas verdes estão carregadas. A este respeito fez ele muitas e variadas experiências, que para mim têm grande crédito.

- Oh! doutor, ainda se podem tirar do colorido do mar outros indícios.

- Realmente?

- É como vos digo, Sr. Clawbonny, e à fé de fisgador que, se o "Forward" fosse ao menos um navio baleeiro, parece-me que tínhamos pesca certa.

- O caso é - retorquiu o doutor - que eu cá por mim não vejo a mais insignificante baleia.

- Não importa! Não tarda que a vejamos, que vo-lo prometo eu. Encontrar estas faixas verdes nestas latitudes, para o pescador de baleias, é uma grande sorte.

- Mas porquê? - inquiriu o doutor, a quem muito interessavam todas estas observações feitas por homens do ofício.

- Porque é nestas águas verdes - explicou Simpson - que se pescam baleias em maior quantidade.

- E qual é a razão disso, Simpson?

- É porque encontram ali mais abundante alimento.

- Estais seguro desse facto?

- Oh! Cem vezes eu próprio o experimentei no mar de Baffin, Sr. Clawbonny. Não vejo razão para que não suceda o mesmo na baía Melville.

- Deveis ter razão, Simpson.

- Aí tendes - tornou este, debruçando-se por sobre a borda. - Ora olhai, Sr. Clawbonny.

- É verdade - declarou o doutor. - Dir-se-ia que é a esteira de um navio!

- Pois não é senão uma substância gordurenta que a baleia deixa após si. Acreditai, que vo-lo digo eu: o animal que a produziu não pode estar longe!

Efectivamente, a atmosfera estava impregnada de um forte cheiro de peixe fresco. O doutor pôs-se a contemplar com toda a atenção a superfície das águas, onde em breve verificou a predição do fisgador. Do topo do mastro fez-se ouvir a voz de Foker, que gritou:

- Baleia à vista, a sotavento.

Seguiram todos os olhares a direcção indicada e, a cerca de uma milha do brigue, avistou-se uma tromba de água, de pouca elevação, que jorrava do mar.

- Lá está! Lá está! - exclamou Simpson, cuja experiência não deixava que se enganasse.

- Desapareceu - afirmou o doutor.

- Achava-se bem, se necessário fosse - disse Simpson com intonação de sentimento.

Mas, com grande espanto de todos e apesar de ninguém ter ousado pedir-lho, Hatteras deu ordem de armar a baleeira, porque se dava por satisfeito de poder proporcionar assim à tripulação uma distracção que ao mesmo tempo lhe havia de render algumas barricas de óleo. Esta licença para caçar foi recebida com geral satisfação.

Entraram na baleeira quatro marinheiros. À ré, Johnson, encarregado do governo; à proa, Simpson, de arpéu em punho.

Não houve meio de obstar a que o doutor acompanhasse a expedição.

O mar estava bastante sereno. A baleeira largou rapidamente e, passados dez minutos, estava já a uma milha do brigue.

A baleia, que fizera nova provisão de ar, tornara a mergulhar; dentro em pouco, porém, voltou à tona de água para arrojar a uns quinze pés de altura a mistura de vapores e mucosidades que lhe saem pelos respiradouros.

- Acolá! Acolá!-gritou Simpson, indicando um ponto a oitocentas jardas da lancha.

Governou esta rapidamente para o animal, e o brigue, que também por sua parte o avistara, aproximou-se, navegando com pouca pressão.

O enorme cetáceo surgia e desaparecia ao sabor da vaga, mostrando o anegrado dorso, semelhante a um escolho varado mesmo no meio do mar. A baleia não nada depressa enquanto se não sente perseguida, e esta deixava-se embalar com toda a indolência.

A lancha ia-se aproximando silenciosa, seguindo pelas águas verdes, cuja opacidade impedia o animal de ver os seus inimigos. É sempre um espectáculo que comove ver um frágil barquinho atacando um daqueles monstros. Podia aquele, de que estamos tratando, ter cerca de cento e trinta pés de comprimento, mas entre o septuagésimo segundo e o octogésimo paralelo não é raro encontrar baleias cujo comprimento vai além de cento e oitenta pés. Falam até alguns escritores antigos de animais de mais de setecentos pés de comprimento. Estes, porém, devem ser classificados nas espécies chamadas imaginárias.

Pouco tempo era passado e estava a lancha perto da baleia. Simpson fez com a mão um sinal que sustou o movimento dos remos, e o hábil fisgador, brandindo o ferro, arremessou-o com força. O arpéu, armado como ia de setas serrilhadas, enterrou-se na espessa camada de gordura do animal, que, sentindo-se ferido, sacudiu a cauda e mergulhou. Levantaram-se logo perpendicularmente os quatro remos, a corda, presa ao arpéu e enrolada à proa da embarcação, desenrolou-se com rapidez vertiginosa, e a lancha foi arrastada, continuando Johnson a governá-la com destreza.

A baleia, ao passo que ia fugindo, afastava-se cada vez mais do brigue e caminhava direita aos ice-fields em movimento. Por espaço de meia hora correu o animal assim. Era preciso molhar de vez em quando a corda do arpéu para que se não incendiasse com o atrito. Logo que a velocidade do animal pareceu começar a decrescer, puxou-se e enrolou-se gradualmente a corda; daí a pouco a baleia tornou a aparecer ao cimo da água, que sacudia com a formidável cauda. Em cima da lancha caíam, em violenta chuva, verdadeiras mangas de água, que o animal assim levantava. A embarcação aproximava-se rapidamente do animal ferido. Simpson deitara mão de uma comprida lança e aprestava-se para combater corpo a corpo.

A baleia, porém, meteu-se velozmente por uma passagem, que mediava entre duas montanhas de gelo. Continuar a persegui-la por aquele caminho era negócio muito arriscado.

- Esta só pelo diabo! - exclamou Johnson.

- Avante! Avante! Força, amigos, que a baleia é nossa! - gritava Simpson, dominado pelo furor da pesca.

- Mas é que não podemos segui-la por entre os ice-bergues - advertiu Johnson, atravessando a lancha.

- Podemos, sim! Podemos! - gritava Simpson.

- Nada, nada! - gritavam uns.

- Vamos! - exclamavam outros.

No decorrer desta discussão tinha-se a baleia metido entre duas montanhas flutuantes, que tanto o vento como a vaga tendiam a reunir.

A lancha, que ia a reboque do animal, corria o risco de ser arrastada para aquele perigoso canal, quando Johnson, saltando à proa e pegando num machado, cortou a corda.

E era tempo; poucos segundos depois as duas montanhas uniam-se com força irresistível, esmagando entre si o desgraçado animal.

- Perdeu-se a baleia! - exclamou Simpson.

- Mas salvámo-nos nós - respondeu Johnson.

- Por minha fé - disse o doutor, que nem sequer pestanejara - que o caso valeu a pena de se ver!

A força que as montanhas de gelo têm para esmagar é enorme.

A baleia acabava de ser vítima de um acidente muito frequentemente repetido naqueles mares. Conta Scoresby que, no decorrer de um só Estio, pereceram assim trinta baleias no mar de Baffin. Por seus próprios olhos viu ele um navio de três mastros ficar achatado, no espaço de um minuto, entre duas imensas muralhas de gelo, que, aproximando-se com horrorosa rapidez uma da outra, fizeram num instante desaparecer tantas vidas e fazendas. Outros dois navios viu também, varados de costado a costado, como que a golpes de lança, por penhas de gelo terminando em ponta acerada e de mais de cem pés de comprimento, que se uniram, rompendo as cintas do costado do navio.

Passados instantes a lancha atracava ao brigue e era pouco depois suspensa no convés, no lugar do costume.

- É uma boa lição para os imprudentes que se aventuram a navegar por estes canais! - exclamou Shandon em voz alta.

 

             A ILHA BEECHEY

A 25 de Junho chegava o "Forward" à vista do cabo Dundas, na extremidade noroeste da terra do Príncipe de Gales. Ali cresceram as dificuldades no meio de mais numerosos gelos. Naquele lugar o mar estreita-se e a linha das ilhas Crozier, Young, Day, Lowther e Garret, alinhadas como fortes em frente de uma enseada, obriga os ice-streams a acumularem-se no estreito. O que em quaisquer outras circunstâncias o brigue podia fazer num só dia, levou-lhe cinco, de 25 a 30 de Junho. O navio ora tinha de parar, ora de voltar pelo mesmo caminho, aguardando ensejo favorável para ir dar à ilha Beechey, e sempre com grande gasto de carvão, moderando apenas os fogos nas paragens, mas sem nunca apagar as fornalhas, para se manter, a toda a hora do dia e da noite, em pressão bastante.

Hatteras conhecia tão bem como Shandon o estado das provisões. Seguro, porém, como estava, de encontrar combustível na ilha Beechey, não queria perder nem um minuto, por motivos de desnecessária economia. Retardado de mais já ele vinha por causa da volta que fora forçado a dar pelo sul e, apesar de se ter precavido, largando de Inglaterra logo em Abril, não estava agora mais adiantado do que o estavam, em época semelhante, as expedições que o tinham precedido.

No dia 30 avistou-se o cabo Walker, na extremidade nordeste da terra do Príncipe de Gales. É este ponto extremo que Kennedy e Bellot avistaram em 3 de Maio de 1852, depois de uma excursão que fizeram através de todo o North-Sommerset.

Já o capitão Ommaney, da expedição Austin, tivera, em 1851, a felicidade de poder ali refazer-se de provisões de boca.

Este cabo tem grande elevação e é notável pela cor vermelha carregada que apresenta. Dali, em tempo claro, pode a vista estender-se até à entrada do canal Wellington.

Ao cair da noite estava à vista o cabo Bellot, separado do cabo Walker somente pela baía Mac Leon.

O cabo Bellot foi assim denominado na presença do jovem oficial francês, que toda a expedição inglesa saudou com um tríplice hurra. Naquele sítio a costa é formada de uma pedra calcária amarelada, que tem aspecto extremamente áspero, e é defendida por enormes penhas de gelo, que os ventos do norte ali amontoam sob forma imponente. Dali a pouco perdeu o "Forward" de vista aquela costa, abrindo, por entre os gelos mal cimentados, caminho para a ilha Beechey, atravessando o estreito de Barrow.

Hatteras, resolvido a navegar sempre em linha recta para não ser levado para além da ilha, nem um momento largou o seu posto durante os dias que se seguiram, e até frequentemente trepava aos vaus de joanete para dali fazer escolha das passagens mais favoráveis à sua navegação. Tudo quanto a habilidade, a presença de espírito, a audácia e, pode até dizer-se assim, o alto engenho de um homem do mar podem fazer, fê-lo ele durante a travessia do estreito. Verdade é que a sorte não o favorecia muito, porque naquela época devia ter encontrado o mar quase livre. Mas enfim, não poupando nem o carvão, nem a tripulação, nem a si próprio, conseguiu o desejado fito.

A 3 de Julho, às onze horas da manhã, deu o icemaster sinal de estar à vista terra ao norte. Feita a observação conveniente, Hatteras reconheceu a ilha Beechey, que é o ponto de encontro geral de todos os navegadores árcticos. Ali abordaram quase todos os navegadores que se aventuraram àqueles mares. Ali estabeleceu Franklin a sua primeira invernada, antes de se meter pelo estreito de Wellington dentro.

Ali também Creswell e o tenente Mac Clure, depois de terem jorneado quatrocentas e setenta milhas pelos gelos, voltaram ao "Phenix", onde regressaram à Inglaterra. O último navio que fundeou na ilha Beechey, antes do "Forward", foi o "Fox". Ali fez provisões de boca Mac Clintock, a 11 de Agosto de 1858, e reparações nas casas de habitação e armazéns. Ainda não havia dois anos que tudo isto era passado. Hatteras conhecia estas particularidades.

À vista daquela ilha pulsava precipitado o coração de mestre Johnson. A última vez que ali passara era contramestre a bordo do "Phenix". Interrogou-o Hatteras acerca da disposição da costa, da facilidade de fundear e possibilidade de atracar. O tempo ia-se tornando magnífico; a temperatura mantinha-se a 57 graus (+14 graus° centígrados).

- Então, Johnson, reconhecei-la? - perguntou o capitão.

- Se reconheço! Capitão, é a ilha Beechey, é! Convém todavia navegar um pouco mais para o norte, que a costa para aí dá mais facilidade para atracar.

- As habitações e armazéns, que é deles? - inquiriu Hatteras.,

- Oh! Não se podem ver senão de terra. Estão abrigados por aqueles montículos que se vêem lá em baixo.

- E transportastes para ali provisões consideráveis?

- Consideráveis, sim, capitão. Foi aqui que nos mandou em 1853 o Almirantado, comandados pelo capitão Inglefield no navio "Phenix", acompanhado pelo transporte, carregado de provisões, "Breadalbane". Trazíamos mantimentos bastantes para abastecer uma expedição inteira.

- Mas o comandante do "Fox", em 1855, tirou daqui provisões em abundância - observou Hatteras.

- Podeis estar descansado, capitão - replicou Johnson -, que sempre lá haviam de ficar bastantes para nós. Demais, o frio conserva que é uma maravilha, e vamos encontrar tudo tão fresco e em tão bom estado como no primeiro dia.

- Os víveres não me dão cuidado - replicou Hatteras.

- Víveres tenho à farta e para muitos anos. O que falta é carvão.

- Pois também a esse respeito podeis estar descansado, capitão, que lá deixámos mais de mil toneladas dele.

- Aproximemo-nos - continuou Hatteras, que, de óculo em punho, observava sem cessar a costa.

- Vedes aquela ponta? - tornou Johnson. - Logo que a dobrarmos, ficamos bem perto do lugar onde devemos fundear. Sim, foi daquele lugar, foi, que nós levantámos ferro para ir para a Inglaterra, com o tenente Creswell e os doze homens doentes do "Investigator". Se tivemos, porém, a felicidade de trazer de novo à pátria o tenente do capitão Mac Clure, por triste compensação perdemos o oficial Bellot, que nos acompanhava no "Phenix", e que nunca mais tornou a ver a sua pátria! Ai! Que é bem triste esta recordação! Mas, voltando ao que interessa, capitão, entendo que devemos lançar ferro aqui mesmo.

- Bem - concordou Hatteras; e deu ordens em consequência.

Estava então o "Forward" numa pequena baía, naturalmente abrigada dos ventos norte, leste e sul, e a cerca de uma amarra da costa.

- Sr. Wall - ordenou Hatteras -, fazei preparar a lancha e mandai-a a terra com seis homens para trazer carvão para bordo.

- Sim, capitão.

- Eu vou a terra na canoa, com o doutor e o mestre. Quereis ter a bondade de acompanhar-nos, Sr. Shandon?

- Estou às vossas ordens - respondeu Shandon. Passados poucos instantes, tomava o doutor lugar com

os companheiros na canoa, provido de todo o seu trem de caçador e de homem de ciência, e dez minutos depois desembarcavam todos numa praia baixa e pedregosa.

- Servi-nos de guia, Johnson. Não reconheceis o terreno?

- Perfeitamente, capitão. Está, contudo, aqui um monumento que eu não supunha encontrar cá!

- Ah! isto - exclamou o doutor -, sei o que é.

Aproximemo-nos, que a pedra nos vai dizer o que veio fazer até aqui.

Avançaram todos quatro e o doutor informou, descobrindo-se:

- O objecto que vedes, amigos meus, é um monumento erguido em memória de Franklin e dos seus companheiros.

Lady Franklin, efectivamente, que já em 1855 tinha confiado ao Dr. Kane, para ser depositada na ilha Beechey, uma lápida de mármore negro, entregou em 1858 segunda, para o mesmo fim, a Mac Clintock, que desempenhou religiosamente este dever, colocando esta lápida a pouca distância de outro funéreo monumento, já erigido à memória de Bellot pelo cuidado de Sir John Barrow.i

Esta lápida tinha a seguinte inscrição:

 

À MEMÓRIA DE

FRANKLIN, CROZIER, FITZ-JAMES

E DE TODOS OS SEUS VALENTES IRMÃOS

Oficiais e fiéis companheiros que sofreram e pereceram pela causa da ciência

e pela glória da sua pátria.

Está esta pedra erecta perto do lugar onde eles

passaram o seu primeiro Inverno árctico

e donde partiram para triunfar

dos obstáculos ou morrer.

Serve para consagrar a recordação

dos seus compatriotas e amigos, que os admiram,

e a angústia, dominada pela fé,

daquela que no chefe da expedição perdeu o mais dedicado e o mais afectuoso dos esposos.

Assim ele os conduziu ao supremo porto onde todos repousam.

 

Aquela pedra, numa costa perdida daquelas longínquas regiões, falava dolorosamente ao coração, e o doutor, em presença daquela pungitiva saudade, sentiu que lhe acudiam as lágrimas aos olhos. Naquele mesmo sítio onde tinham passado, cheios de energia e de esperança, Franklin e os seus companheiros, restava apenas um pedaço de mármore como recordação! E o "Forward", apesar daquela ameaçadora advertência, ia lançar-se pela mesma derrota do "Erebus" e do "Terror".

Foi Hatteras o primeiro que se arrancou àquela perigosa contemplação, subindo rapidamente a um outeiro bastante elevado e quase completamente descoberto de

neve.

- Lá de cima, capitão - declarou Johnson, seguindo-o -, havemos de avistar os armazéns.

Chegados, porém, ao alto da colina, perderam-se-lhes os olhares por sobre vastas planícies, que não apresentavam vestígio algum de habitação.

- Esta é que é notável! - disse o mestre.

- E então! E esses armazéns, onde estão? - interrogou Hatteras com vivacidade.

- Não sei... não vejo... - balbuciou Johnson.

- Enganaste-vos talvez no caminho - sugeriu o doutor.

- E todavia - insistiu Johnson, depois de reflectir - parece-me que foi neste mesmo lugar...

- Enfim - tornou Hatteras com impaciência - aonde devemos ir?

- Desçamos - propôs o mestre. - É possível que me enganasse. Em sete anos pode ser que se me varresse da memória a disposição destas localidades.

- Principalmente - lembrou o doutor - sendo, como é, a região de uma uniformidade tão monótona.

- E apesar de tudo isso... - murmurou Johnson. Shandon não fizera uma única observação.

Ao fim de mais alguns instantes de marcha, Johnson parou de repente.

- Mas não! - exclamou. - Não me enganei, não!

- Mas então? - disse Hatteras, lançando um olhar em volta de si.

- O que vos move a falar assim, Johnson? - perguntou-lhe o doutor.

- Vedes esta saliência do terreno? - disse o mestre, mostrando debaixo dos próprios pés uma intumescência em que se distinguiam perfeitamente três proeminências.

- E que conclusão tirais daí, Johnson? - perguntou o Dr. Clawbonny.

- Estas três eminências são as três sepulturas dos marinheiros de Franklin! Estou disso bem certo, não me enganei, e a cem passos do sítio onde nos achamos deveriam estar as habitações. Ora, se lá não estão... é porque...,

E não ousou completar a expressão do seu pensamento. Hatteras precipitara-se para a frente e dele se apoderou violento ataque de desespero. Ali deviam erguer-se, efectivamente, os tão desejados armazéns, com aquelas provisões de toda a espécie com que o capitão contava. A ruína, porém, o saque, a desordem e a destruição tinham passado por aquele lugar, onde mãos civilizadas haviam deixado imensos recursos para os navegadores exaustos. Quem teria sido o autor de tais depredações? Porventura os animais daquelas regiões, lobos, raposas, ursos? Não, porque, dado esse caso, estariam apenas destruídos os víveres, e a verdade era que não restava nem um farrapo de barraca, nem um bocado de madeira, nem um pedaço de ferro, nem a menor parcela de um metal qualquer, e - circunstância esta mais terrível para a gente do "Forward" - nem um único fragmento de combustível!

Era evidente que os esquimós, que por vezes têm estado em relações com os navios europeus, haviam acabado por conhecer o valor daqueles objectos, de que estão completamente desprovidos, e que depois da passagem do "Fox" tinham vindo e tornado a vir àquele lugar de abundância, roubando e saqueando sem cessar, com bem deliberada intenção de não deixar ali sequer vestígios do que lá estivera. Agora, cobria o solo um vasto lençol de neve.

Hatteras estava com a cabeça perdida. O doutor olhava meneando a cabeça. Shandon, esse, continuava calado como antes, e qualquer observador atento ter-lhe-ia surpreendido no semblante um sorriso de maldade.

Naquele momento chegaram os homens mandados pelo tenente Wall e tudo compreenderam logo. Shandon avançou para o capitão e disse-lhe:

- Sr. Hatteras, parece-me inútil desesperar. Por felicidade nossa estamos à entrada do estreito de Barrow, que facilmente nos reconduzirá ao mar de Baffin!

- Sr. Shandon, também por felicidade nossa estamos à entrada do estreito de Wellington, que nos há-de levar ao norte!

- Mas como havemos de navegar, capitão?

- À vela, senhor. Temos ainda combustível para dois meses, que é mais do que o necessário para a nossa próxima invernada.

- Haveis de permitir-vos que vos diga... - insistiu Shandon.

- O que vos hei-de permitir, senhor, é que me acompanheis a bordo - respondeu Hatteras.

E, voltando as costas ao seu imediato, regressou ao brigue, onde se encerrou no seu camarote.

Por espaço de dois dias, o vento foi ponteiro. O capitão não tornou a aparecer na tolda. O doutor aproveitou a permanência forçada naquele ponto para percorrer a ilha Beechey, onde colheu algumas plantas que a temperatura, relativamente alta, deixava vegetar aqui e acolá, nos penhascos descobertos de neve, tais como algumas urzes e tojos, uma espécie de ranúnculo amarelo, uma planta semelhante às azedas, com folhas da largura de algumas linhas quando muito, e algumas saxífragas bastante vigorosas.

A fauna daquela região era superior à flora acanhada que acabámos de mencionar. O doutor divisou inúmeros bandos de gansos e de grous, que se iam metendo pelo norte dentro, as perdizes, os eider-ducks de cor azul escuríssima, os cavaleiros, espécie de pernalta da classe dos scolopax, northern-divers, aves mergulhadoras de corpo muito comprido, grande número de ptarmigans, espécie de galinhas bravas de saborosa carne, dovekies com o corpo preto, as asas salpicadas de branco e os pés e o bico vermelhos como coral; ruidosos bandos de kittywakes e os grandes loons de ventre branco representavam condignamente a ordem das aves. Foi o doutor tão afortunado que conseguiu matar algumas lebres pardas, que ainda não tinham revestido a sua branca pelagem de Inverno, e uma raposa azul, que "Duck" forçou com habilidade notável. Alguns ursos, habituados sem dúvida a recear, com justo fundamento, a presença do homem, nem consentiam que se aproximassem deles, e as focas eram extremamente fugidias, provavelmente pela mesma razão que os seus inimigos ursos. Abundava na baía uma espécie de búzios muito gratos ao paladar. A classe dos articulados, ordem dos dípteros, família dos culicídeos, divisão dos nemóceros, estava ali representada por um simples mosquito, um só, do qual o doutor teve a satisfação de apoderar-se depois de lhe sofrer algumas mordeduras. Foi menos favorecido o doutor na sua qualidade de conquiliólogo, porque teve de limitar-se a colher uma espécie de amêijoa e algumas conchas bivalves.

 

                   A MORTE DE BELLOT

A temperatura, durante os dias 3 e 4 de Julho, manteve-se a 57 graus (+14 graus centígrados); foi este o mais alto ponto termométrico que se observou durante aquela campanha. Mas, na quinta-feira 5, o vento saltou a sueste, sendo este salto acompanhado de violentos turbilhões de neve. O termómetro, na noite antecedente, desceu vinte e três graus. Hatteras, sem dar atenção às más disposições da tripulação, deu ordem de navegar. Em treze dias, isto é, desde o cabo Dundas, não pudera o "Forward" ganhar um novo grau em latitude norte, e assim a parcialidade representada por Clifton não estava satisfeita. Verdade é que os seus desejos estavam naquele momento de acordo com a resolução tomada pelo capitão de navegar pelo canal Wellington acima, e por consequência não teve dificuldade na execução da manobra. O brigue não conseguiu, sem dificuldade, fazer-se de vela, mas Hatteras, tendo podido durante a noite largar o traquete, gáveas e joanetes, avançou com resolução pelo meio dos comboios de penhascos de gelo, que a corrente arrastava para o sul. A tripulação fatigou-se muito nesta navegação sinuosa, que a obrigava a rápidas e contínuas

evoluções.

O canal Wellington não tem grande largura; é apertado entre a costa do Devon setentrional a leste, e a ilha Cornwallis a este, passando esta ilha durante muito tempo por uma península. Foi Sir John Franklin quem, em 1846, fez em volta dela uma viagem redonda, partindo da costa ocidental, quando regressava de uma tentativa ao norte do canal.

A exploração do canal Wellington foi feita em 1851 pelo capitão Penny, a bordo dos baleeiros "Lady Franklin" e "Sophie". Um dos tenentes que iam nesta expedição, Stewart, tendo chegado ao cabo Beecher, a 76 graus 20 minutos de latitude, descobriu o mar livre. O mar livre! Por isto é que Hatteras esperava.

- O que Stewart encontrou também eu o hei-de encontrar - dizia ele ao doutor -, e então poderemos navegar à vela para o pólo.

- Mas - objectava o doutor -, não receais que a tripulação?...

- A tripulação o quê? - interrompeu Hatteras com dureza.

E, logo depois, em voz sumida:

- Pobre gente! - murmurou o capitão, com grande espanto do doutor.

Era o primeiro sentimento daquela natureza que Clawbonny surpreendia no coração do capitão.

- Mas não! - prosseguiu logo com energia. - É necessário que me sigam! E hão-de seguir-me!

Naquela ocasião o "Forward", se nada tinha a recear da colisão dos ice-streams, ainda separados por largos intervalos, todavia pouco ganhava em latitude, porque os ventos contrários obrigaram-no muitas vezes a parar. Dobrou, com grande dificuldade, os cabos Spencer e Innis, e a 10, terça-feira, foi finalmente transposto o septuagésimo quinto grau de latitude, com grande gáudio de Clifton.

Estava então o "Forward" no mesmo sítio em que os navios americanos "Rescue" e "Advance", debaixo do comando do capitão Haven, correram tão terríveis perigos. Era esta a expedição de que fazia parte o Dr. Kane, e em que, pelos fins de Setembro de 1850, os navios, envolvidos por um banco de gelos, foram arrojados com irresistível potência pelo estreito de Lancastre dentro.

Shandon encarregou-se de narrar esta catástrofe a James Wall, em presença de alguns homens do brigue.

- O "Advance" e o "Rescue" - contou ele - foram por tal forma sacudidos, levantados e batidos pelos gelos, que foi forçoso desistir de lume aceso a bordo, apesar de baixar a temperatura a dezoito graus abaixo de zero! Durante o Inverno inteiro ficaram as desgraçadas tripulações prisioneiras dentro do banco de gelo, sempre prontas a abandonar o navio, e por mais de três semanas nem a roupa do corpo despiram! Nesta horrorosa situação é que, depois de abaterem mais de quatrocentas léguas, foram arrastadas até ao meio do mar de Baffin!

Avalie-se a impressão produzida por tais narrativas no ânimo de uma tripulação já mal disposta.

Enquanto durava esta conversação, discorria Johnson com o doutor acerca de um acontecimento de que aqueles lugares tinham sido teatro. Preveniu-o o doutor, segundo ele lhe pedira, no momento em que o brigue se encontrava exactamente a 75 graus 30 minutos de latitude.

- É ali! É efectivamente ali! - exclamou Johnson. E, quando assim falava, vinham as lágrimas aos olhos do estimável mestre.

- Aludis talvez à morte do tenente Bellot? - disse o doutor.

- É verdade, Sr. Clawbonny, desse bravo oficial, de tanto ânimo, de tanta coragem!

- E foi aqui, dizeis, que se deu essa catástrofe?

- Aqui mesmo, nesta parte da costa do North-Devon! Oh! Nesse acontecimento funesto cabe uma grande parte à fatalidade! Se o capitão Pullen volta mais cedo a bordo, não tinha sucedido tão grande desgraça!

- Explicai-vos, Johnson!

- Ouvi, Sr. Clawbonny, e vereis do que, por vezes, está dependente a vida. Sabeis decerto que o tenente Bellot fez uma campanha em busca de Franklin, em 1850?

- Sei, Johnson, no "Prince Albert".

- Pois bem, terminada esta campanha e de volta a França, obteve licença para embarcar no "Phenix", onde eu servia então como marinheiro, sob o comando do capitão Inglefield! Navegávamos então de conserva com o "Breadalbane", transportando provisões para a ilha Beechey.

- Essas que por desgraça nossa já lá não achámos!

- Isso mesmo, Sr. Clawbonny. Chegámos à ilha Beechey nos princípios de Agosto. Ai! O desse mês largou o capitão Inglefield o "Phenix" para ir juntar-se com o capitão Pullen, ausente havia um mês do seu navio, o "North-Star". Contava Inglefield, quando voltasse, expedir a Sir Edward Belcher, que então invernava no canal Wellington, os despachos do Almirantado. Ora, pouco depois da saída do nosso capitão, voltara Pullen a bordo do navio do seu comando. Ai! Oxalá que lá tivesse voltado antes da saída do capitão Inglefield! O tenente Bellot, com receio de que se prolongasse a ausência do nosso capitão e sabendo que as ordens do Almirantado eram urgentes, ofereceu-se para as levar ele próprio. Entregou o comando dos dois navios ao capitão Pullen e partiu, a 12 de Agosto, levando um trenó e uma canoa de cauchu. Levava na sua companhia Harvey, contramestre do "North-Star", três marinheiros, Madden, David Hook e eu. Supúnhamos nós que Sir Edward Belcher devia encontrar-se nas proximidades do cabo Beecher, ao norte do canal. Dirigimo-nos, portanto, para esse lado, no nosso trenó, seguindo sempre de perto as praias de leste. No primeiro dia de jornada acampámos a três milhas do cabo Innis, no dia seguinte fizemos paragem num penhasco de gelo, aproximadamente a três milhas do cabo Bowden. Durante a noite, que aliás estava clara como se fora dia, resolveu o tenente Bellot ir acampar à terra, que estava a três milhas de distância. Tentou lá chegar na canoa de cauchu, mas por duas vezes foi repelido por uma brisa violenta de sueste. Harvey e Madden, por sua parte, tentaram a passagem e foram mais afortunados. Tinham-se prevenido, levando um cabo, e assim estabeleceram uma comunicação entre o trenó e a praia. Três objectos conseguiram transportar por meio daquele cabo. À quarta tentativa, porém, sentimos que o penhasco de gelo onde estávamos começava a mover-se. O Sr. Bellot gritou aos companheiros que largassem a corda, e nós (o tenente, David Hook e eu) fomos arrastados até grande distância da costa. Naquela ocasião soprava o vento de sueste com força, e caía muita neve. Não corríamos, porém, ainda grande perigo, e bem podia o nosso tenente de lá voltar, que também nós outros de lá voltámos!

Interrompeu-se Johnson, por um instante, para contemplar aquela costa fatal, e depois prosseguiu:

- Tendo perdido de vista os nossos companheiros, tentámos primeiramente abrigar-nos debaixo do toldo do nosso trenó, mas debalde. Começámos então com as nossas facas a talhar uma casa no gelo. O Sr. Bellot esteve sentado durante boa meia hora, conversando connosco acerca dos perigos da nossa situação. Dizendo-lhe eu que não tinha medo, respondeu-me: «Se Deus nos assistir com a sua protecção, nem um cabelo cairá das nossas cabeças.» Perguntei-lhe então que horas eram, ao que me respondeu: «Perto das seis e um quarto.» Eram, efectivamente, seis horas e um quarto da manhã do dia de quinta-feira, 18 de Agosto. O Sr. Bellot, então, atou os seus livros e disse-nos que queria ir ver como flutuava o gelo. Haveria quatro minutos, se tanto, que ele tinha partido, quando eu, com ideia de procurá-lo, fui dar uma volta pelo mesmo pedaço de gelo em que nos tínhamos abrigado. Não pude, porém, vê-lo, e só quando voltava para o meu abrigo é que divisei o pau ferrado que ele levava, do lado oposto de uma fenda de cinco toesas aproximadamente de largura, onde o gelo estava todo partido. Chamei por ele então, mas não obtive resposta. Naquele instante soprava o vento com grande força. Tornei a procurar em volta de todo o pedaço de gelo, mas nem vestígios logrei descobrir do nosso pobre tenente.

- E qual é a vossa suposição acerca do sucedido? -. perguntou o doutor, comovido pela narrativa.

- Suponho que, quando o Sr. Bellot saiu do esconderijo, o arrastou o vento para a abertura, e que, como levava o paletó abotoado, não pôde nadar para voltar ao cimo da água! Oh! Sr. Clawbonny, digo-vos então que tive o maior desgosto da minha vida! Nem queria acreditá-lo! Aquele bravo oficial, vítima do seu zelo! Porque só por obedecer às instruções do capitão Pullen é que ele quis ir a terra antes do desabamento dos gelos! Valente moço, querido de todos a bordo, serviçal, corajoso!

Foi chorado pela Inglaterra inteira, e até os próprios esquimós, quando souberam pelo capitão Inglefield, na sua volta da baía de Pound, a morte do bom tenente, exclamaram chorando, como eu faço agora: «Pobre Bellot! Pobre Bellot!»

- Mas vós e o vosso companheiro, Johnson - quis saber o doutor, enternecido por aquela narração patética -, como conseguistes voltar para terra?

- Nós, senhor, pouco importava. Ficámos por mais vinte e quatro horas no gelo, sem alimentos e sem fogo, mas afinal fomos dar a um campo de gelo encalhado num baixio. Saltámos nele, e auxiliados por um remo que nos restava, conseguimos agarrar um pedaço de gelo capaz de aguentar connosco e de navegar à maneira de jangada. Assim foi que ganhámos a praia, mas sós, sem o nosso valente oficial!

Ao terminar esta narração, tinha o "Forward" já passado além desta costa funesta, e Johnson perdeu de vista o lugar onde ocorrera aquela terrível catástrofe. No dia seguinte ficava a baía Griffin por estibordo e, dois dias depois, os cabos Grinnel e Helpmman; finalmente, a 14 de Julho, dobrou-se a ponta Osborne, e a 15 o brigue fundeou na baía Baring, no extremo do canal. Não fora a navegação muito difícil. Hatteras encontrou um mar quase tão livre como aquele de que Belcher se aproveitou para ir invernar, com o "Pionnier" e o "Assistance", até junto do septuagésimo sétimo paralelo. Sucedeu isto de 1852 para 1853, na sua primeira invernada, que no ano seguinte passou ele o Inverno naquela mesma baía Baring, onde o "Forward" fundeava naquele momento.

Foi até em consequência das terríveis provas e horrorosos perigos por que ali passou que ele teve de abandonar o seu navio, o "Assistance", no meio daqueles gelos eternos.

Shandon constituiu-se também narrador daquela catástrofe na presença dos marinheiros já descoroçoados. Se Hatteras foi ou não sabedor daquela traição do seu imediato, é impossível dizê-lo; em todo o caso, não abriu boca a tal respeito.

Na altura da baía Baring encontrava-se um estreito canal, que serve de comunicação entre o canal Wellington e o canal da Rainha. Nesta passagem estavam apinhados os comboios de penhascos de gelo. Hatteras empregou baldados esforços para transpor as passagens ao norte da ilha Hamilton, mas o vento era contrário e, por consequência, força era deslizar por entre a ilha Hamilton e a ilha Cornwallis. Gastaram-se cinco dias em esforços inúteis. A temperatura tendia a baixar e em 19 de Julho chegou até a descer a 26 graus (-4 graus centígrados); tornou a subir no dia seguinte, mas aquela antecipada ameaça de inverno árctico era caso para levar Hatteras a não esperar por mais tempo. O vento apresentava certa tendência a conservar-se do oeste e era contrário à marcha do navio. No entanto, o capitão tinha pressa de chegar ao ponto em que Stewart se achou em presença de um mar livre. No dia 19 resolveu avançar a todo o custo pelo canal acima. O vento era ponteiro; o brigue, com a hélice, poderia lutar contra as rajadas violentas carregadas de frocos de neve. Hatteras necessitava, antes de tudo, de atender à economia do combustível. Por outra parte, o canal era largo de mais para se poder levar o navio à sirga. Hatteras, sem atender às fadigas da tripulação, recorreu a um meio que os baleeiros por vezes empregam em circunstâncias idênticas. Fez arriar as embarcações até à tona de água, conservando-as suspensas dos respectivos cadernais pendentes dos flancos do navio. Estavam estas embarcações amarradas com segurança à popa e à proa. Armaram-se os remos a estibordo de umas e a bombordo de outras e todos os homens tomaram alternadamente lugar nos seus bancos de remadores e tiveram de remar com força para fazer andar o brigue contra o vento.

O "Forward" foi avançando vagarosamente pelo canal dentro. Imagine-se o que seriam as fadigas produzidas por aquele género de trabalhos. Começaram os murmúrios a fazer-se ouvir. Por espaço de quatro dias navegou-se daquela forma, até 23 de Julho, dia em que se conseguiu chegar à ilha Baring, no canal da Rainha. O vento continuava contrário. A tripulação já não podia mais.

Pareceu ao doutor que a saúde de alguns dos homens estava bastante abalada e em muitos deles julgou até perceber os primeiros sintomas do escorbuto. Clawbonny usou de todos os meios para combater aquela terrível enfermidade, pois tinha à sua disposição abundantes reservas de lime-juice e de pastilhas de cal.

Hatteras bem compreendeu que já não podia contar com a sua tripulação: bons modos, persuasão, tudo seria baldado. Em vistas disto, resolveu o capitão lutar por meio de severidade e mostrar-se implacável quando a ocasião o exigisse. Desconfiava especialmente de Ricardo Shandon e a ainda de James Wall, que, todavia, não ousava levantar muito alto a voz. Hatteras tinha do seu lado o doutor, Johnson, Bell e Simpson. Estes eram-lhe dedicados de corpo e alma. Entre os indecisos contava Foker, Bolton, o armeiro Wolsten e o primeiro-engenheiro Brunton, que num dado momento podiam voltar-se contra ele. Quanto aos outros, Pen, Gripper, Clifton e Waren, esses tramavam abertamente projectos de revolta. O intento deles era seduzir os camaradas e forçá-los a regressar no "Forward" a Inglaterra.

Hatteras viu bem que não podia já obter daquela mal disposta tripulação, sobretudo exausta pelo cansaço, a continuação das manobras anteriores. Por espaço de vinte e quatro horas o navio conservou-se à vista da ilha Baring, sem dar um passo para a frente. A temperatura, entretanto, ia baixando, e o mês de Julho, naquelas altas latitudes, ressentia-se já da influência do próximo Inverno. No dia 24 o termómetro desceu a 22 graus (-6 graus centígrados). O young-ice (gelo novo) reformava-se durante a noite, adquirindo de seis a oito linhas de espessura. Se lhe nevasse em cima, em breve poderia ganhar força para aguentar o peso de um homem. O mar ia já ganhando aquela cor suja que é indício da formação dos primeiros cristais.

Hatteras não se iludia acerca da significação daqueles sintomas assustadores. Se os canais viessem a obstruir-se, seria forçoso invernar naquele lugar, longe do alvo da sua viagem e sem ter enxergado, ao menos, esse mar livre que, segundo as narrativas dos seus predecessores tão próximo devia estar. Resolveu, por consequência; custasse o que custasse, continuar a navegação para a frente e ganhar alguns graus para o norte. Vendo que não podia usar dos remos com uma tripulação exausta de forças, nem das velas com ventos sempre ponteiros, deu ordem para que acendessem as fornalhas.

 

               PRINCÍPIO DE REVOLTA

Ao ouvir-se esta ordem inesperada, grande foi a surpresa a bordo do "Forward".

- Acender fornalhas! - estranharam uns.

- E com quê? - perguntaram outros.

- Não tendo nós carvão senão para dois meses no bandulho! - exclamou Pen.

- E como nos havemos de aquecer durante o Inverno?

- quis saber Clifton.

- Teremos de queimar o navio até à linha de água?

- acrescentou Gripper.

- E atacar o fogão com os mastros, desde os mastaréus de joanete até à ponta do gurupés! - ajuntou Waren.

Shandon olhava fixamente para Wall. Os engenheiros, estupefactos, hesitavam em descer à câmara da máquina.

- Ouvistes-me? - exclamou o capitão com voz de irritado.

Brunton encaminhou-se para a escotilha, mas no primeiro degrau parou.

- Não vás, Brunton - aconselhou uma voz.

- Quem foi que falou? - gritou Hatteras.

- Fui eu! - declarou Pen, avançando para o capitão.

- E queríeis dizer... - perguntou este.

- Queria dizer... queria dizer - respondeu Pen, gaguejando - e digo que estamos mais que fartos, que não iremos mais longe, que estamos para rebentar de cansados e com o frio no Inverno, e que as fornalhas não se hão-de acender.

- Sr. Shandon - redarguiu Hatteras, sem se alterar -, fazei meter este homem no calabouço.

- Mas, capitão - observou Shandon -, o que este homem disse...

- O que este homem disse - replicou Hatteras -, se vós ousais repeti-lo, faço-vos encerrar no vosso camarote, com guarda à vista! Deitem a mão a esse homem! Ouvem-me ou não!

Johnson, Bell e Simpson encaminharam-se para o marinheiro, que, furioso e como fora de si, exclamou, deitando a mão a um pé-de-cabra e brandindo-o por cima da cabeça:

- O primeiro que me pôr a mão em cima!... Hatteras caminhou direito a ele e disse-lhe com voz serena:

- Pen, se fazes mais um gesto, deito-te os miolos fora!

E, quando assim falava, ia armando um revólver que apontou à cabeça do marinheiro.

Fez-se ouvir um certo murmúrio.

- E a vós outros não quero ouvir nem uma palavra - ameaçou Hatteras -, ou mando este homem para a outra vida!

Naquele momento Johnson e Bell desarmaram Pen, que já então não resistia e que se deixou conduzir ao fundo do porão.

- Vamos, Brunton - insistiu Hatteras.

O engenheiro desceu para o seu posto, seguido de Plover e de Waren. Hatteras subiu de novo ao tombadilho.

- Esse Pen é um miserável - disse o doutor.

- Nunca homem algum esteve tão perto da morte - respondeu simplesmente o capitão.

Em breve o vapor adquiriu pressão suficiente. O "Forward" levantou ferro e, cortando para leste, meteu a proa direita ao cabo Beecher, rompendo com o talha-mar os delgados gelos recentemente coalhados.

Entre a ilha Baring e a ponta Beecher encontra-se um grande número de ilhotas, encalhadas, por assim dizer, no meio dos ice-fields. Nos pequenos estreitos, que abundam naquela parte do mar, apinhavam-se numerosos os streams, que, sob a influência de uma temperatura relativamente baixa, tendiam a aglomerar-se; em diferentes pontos começavam a formar-se hummocks, e era visível que aquelas penhas de gelo, já então mais compactas, mais densas, mais apertadas, dentro em pouco, com o auxílio das primeiras geadas, formariam impenetrável mole.

O "Forward", por consequência, procurava caminho, não sem grandes dificuldades, envolto em turbilhões de neve. Entretanto, o Sol reaparecia de espaço a espaço, com a mobilidade que caracteriza a atmosfera daquelas regiões. A temperatura subia alguns graus; os obstáculos derretiam-se como por encanto, e onde ainda há pouco tantas penhas de gelo obstruíam as passagens, estendia-se agora um belo lençol de água de lindo aspecto. O horizonte revestia-se de magníficas tintas alaranjadas, nas quais descansa complacente a vista da eterna brancura das neves.

Na quinta-feira, 26 de Julho, passou o "Forward" junto à ilha Dundas e meteu proa mais ao norte. Achou-se, porém, então, frente a frente com um banco de gelo de oito a nove pés de altura, formado de pequenos icebergues, arrancados da costa. O navio foi assim forçado a seguir-lhe, por muito tempo, a curva na direcção de oeste. O contínuo estalido dos gelos, juntando-se com o gemer do navio, formava um ruído triste, que a um tempo se assemelhava a uma queixa e a um suspiro. Afinal o brigue encontrou uma passagem e por ela avançou a custo; por vezes paralisava-lhe a marcha, por espaço de longas horas, alguma enorme penha de gelo. O nevoeiro não deixava que o prático alongasse a vista. Enquanto é possível ver a uma milha de distância, facilmente se evitam os obstáculos, mas, no meio daqueles turbilhões de brumas, a vista não alcançava por vezes a uma amarra. O mar era tão forte que fazia gemer o navio.

Por vezes, as nuvens, lisas e polidas, tomavam um aspecto particular, como se reflectissem os bancos de gelo. Dias houve em que nem os amarelados raios do Sol puderam atravessar as teimosas brumas.

Persistia ainda, naquelas paragens, grande número

de aves, que faziam um clamor de ensurdecer; as focas, preguiçosamente deitadas nos pedaços de gelo, que boiavam ao sabor da vaga, levantavam a cabeça com pouco susto, movendo os compridos pescoços quando o navio passava; e este, que lhes passava rente das flutuantes estâncias, mais de uma vez lá deixou folhas do forro, arrancadas pelo atrito.

Finalmente, depois de seis dias de vagarosa navegação, avistou-se ao norte, no 1 de Agosto, a ponta Beecher. Hatteras passara as últimas horas num dos mastaréus de joanete. Não podia estar longe o mar livre, apenas enxergado por Stewart a 30 de Maio de 1851, por 76 graus 20 minutos de latitude, e todavia Hatteras, por mais longe que perscrutasse com o olhar, nenhum indício avistava de uma bacia polar limpa de gelos. Desceu, por conseguinte, sem dizer palavra.

- E vós acreditais no tal mar livre? - perguntou Shandon ao tenente.

- Começo a ter as minhas dúvidas - respondeu James Wall.

- Então, não tinha eu razão quando afirmava que essa suposta descoberta não passava de uma quimera, de uma mera hipótese? E não quiseram dar-me crédito, e até vós mesmo vos pronunciastes contra mim, Wall!

- Dar-vos-ão crédito de ora avante, Shandon.

- Pois sim - respondeu o último -, quando for já

tarde.

E voltou ao seu camarote, onde permanecia quase sempre encerrado, desde a discussão acalorada que tivera com o capitão.

Por volta do anoitecer saltou o vento de novo ao sul. Hatteras fez então desfraldar o pano todo e apagar as fornalhas. Durante grande número de dias voltou a tripulação a recomeçar as manobras mais penosas. Era forçoso, a cada instante, orçar, virar, rizar repentinamente as velas para diminuir a marcha do brigue. Os cabos, já retesados pelo frio, corriam mal nos cadernais apertados, tornando assim mais fatigante a manobra. Gastou-se mais de uma semana para chegar à ponta Barrow. O "Forward" não ganhara nesta navegação, de dez dias, mais de trinta milhas.

Em frente da ponta, o vento saltou de novo ao norte e a hélice voltou a entrar em movimento. Hatteras esperava ainda encontrar, além do septuagésimo sétimo paralelo, um mar livre de obstáculos, tal como o vira Edward Belcher.

E, contudo, a dar crédito às narrações de Penny, aquela parte do mar, que o "Forward" então navegava, devia estar livre, porque Penny, tendo chegado ao limite dos gelos, reconheceu num escaler as margens do canal da Rainha até ao septuagésimo sétimo grau de latitude.

Nestes termos, deveria o capitão reputar apócrifas todas aquelas relações de viagem? Ou antes supor que um Inverno temporão viera cair sobre aquelas regiões boreais?

A 15 de Agosto ergueu o monte Percy, por entre as brumas, os seus píncaros cobertos de neves eternas. O vento, extremamente violento então, impelia adiante de si uma metralha de granizo, que crepitava com estrépito. No dia seguinte, pela vez primeira, se ocultou no horizonte o Sol, terminando assim a longa série de dias de vinte e quatro horas. A tripulação tinha acabado por habituar-se àquela claridade incessante. Os animais, porém, pouco lhe sentiam a influência; os cães gronelandeses deitavam-se às horas habituais e até o próprio "Duck" adormecia regularmente todas as noites, como se as trevas invadissem o horizonte.

A obscuridade, todavia, durante as noites que se seguiram depois de 15 de Agosto, nunca foi profunda, porque o Sol, apesar de oculto, dava ainda luz bastante por via da retracção.

A 19 de Agosto, depois de uma boa observação, avistou-se o cabo Franklin, na costa oriental, e o cabo Lady Franklin, na ocidental. Quis a gratidão dos compatriotas de Franklin que o nome de tão dedicada esposa assim defrontasse com o próprio nome dele, naquele ponto que foi por certo o último alcançado pelo ousado navegador, tocante emblema este da simpatia que uniu sempre aqueles dois esposos!

Esta aproximação, esta união moral de duas pontas de terra no seio daquelas regiões longínquas, comoveu profundamente o doutor.

Clawbonny, seguindo os conselhos de Johnson, ia-se já acostumando a aguentar as baixas temperaturas, permanecendo quase constantemente no convés, desafiando frio, vento e neve. Apesar de ter emagrecido um pouco, a sua constituição nada sofrera com os ataques daquele clima rude. O doutor estava mesmo preparado para outros e maiores perigos e verificava, com alegria até, o aparecimento dos sintomas precursores do Inverno.

- Olhai - dizia ele um dia a Johnson -, vede esses bandos de aves que emigram para o sul! Como fogem, soltando os seus gritos de despedida!

- É verdade, é, Sr. Clawbonny. Foi que alguma coisa lhes disse que era preciso partir, e elas puseram-se logo a caminho.

- Creio que a mais de um dos nossos homens não faltaria vontade de as imitar, Johnson!

- Isso só corações fracos, Sr. Clawbonny. As aves, cos diabos, não têm provisões de alimentos como nós outros, e não têm mais remédio senão ir para outros lugares tratar da vida! Mas um marinheiro, com um bom navio debaixo dos pés, tem obrigação de ir até ao fim do mundo!

- Tendes então esperança de que Hatteras consiga sair-se bem dos seus projectos?

- Tenho toda, Sr. Clawbonny.

- Penso também como vós, Johnson, e ainda que o capitão não conservasse ao seu lado mais que um fiel companheiro...

- Havíamos de ser dois!

- Creio, Johnson, creio - volveu o doutor, apertando a mão ao digno marinheiro.

A terra do Príncipe Alberto, que o "Forward" costeava naquele momento, tem também o nome de terra de Grinnel, e ainda que Hatteras, por ódio aos Ianques, nunca admitisse que se lhe desse tal nome, é contudo aquele por que é mais geralmente designada. Esta dupla denominação vem do seguinte facto: ao mesmo tempo que o inglês Penny lhe dava o nome de Príncipe Alberto, denominava-a o capitão Haven, comandante da "Rescue", terra de Grinnel, em honra do negociante americano que fizera em Nova Iorque as despesas da sua expedição.

O brigue, seguindo o contorno daquela terra, passou por uma série de dificuldades inauditas, navegando ora à vela, ora a vapor. A 18 de Agosto foi avistado o monte Britannia, apenas visível por entre as brumas, e o "For-ward" lançou ferro, no dia seguinte, na baía Northumberland.

Por todos os lados estava cercado, bloqueado.

 

               O ASSALTO DOS GELOS

Hatteras, depois de ter assistido ao fundear do navio, entrou no seu camarote. Pegou na carta e marcou-a com todo o cuidado. Estava o "Forward" a 76 graus 57 minutos de latitude por 99 graus 20 minutos de longitude, isto é, a três minutos apenas do septuagésimo sétimo paralelo. Foi neste mesmo lugar que Sir Edward Belcher passou a sua primeira invernada a bordo do "Pionnier" e do "Assistance". Deste ponto é que ele organizou as suas excursões em trenó e em barco, descobrindo a ilha da Mesa, a Cornualha setentrional, o arquipélago Vitória e o canal Belcher. Chegado que foi além do septuagésimo oitavo paralelo, viu que a costa se inclinava para sueste, parecendo dever ir ligar com o estreito de Jones, cuja entrada deita para a baía de Baffin. A noroeste, pelo contrário, diz a narração de viagem, "estendia-se a perder de vista um mar livre".

Hatteras contemplava, comovido, aquela parte das cartas marítimas, onde um grande espaço em branco representava aquelas regiões desconhecidas, e voltavam-se-lhe sempre os olhos para aquela bacia polar desobstruída de gelos.

«Fundado em tantos testemunhos», dizia ele consigo, «nas relações de Stewart, de Penny e de Belcher, não é lícito duvidar! Necessariamente assim é! Estes ousados marinheiros viram, e viram com os próprios olhos! Poderão, pois, pôr-se em dúvida as asserções que avançaram? Não! Se esse mar, todavia, livre então em virtude de um Inverno precoce, estivesse... Mas não, essas diferentes descobertas foram feitas com muitos anos de intervalo. Essa bacia existe e eu hei-de achá-la! Vê-la!»

Hatteras subiu de novo ao tombadilho. Envolvia o "Forward" uma densa névoa. Do convés mal se avistava o tope dos mastros. Hatteras, apesar disso, fez descer do ninho-de-pega o icemaster e substituiu-o no lugar. Queria assim aproveitar-se da mais pequena aberta do céu para examinar o horizonte a noroeste.

Shandon não se esqueceu também de aproveitar esta ocasião para dizer ao tenente:

- Então, Wall! Que é do tal mar livre?

- Tínheis razão, Shandon, e o pior é que nos paióis não há carvão para mais de seis semanas.

- Talvez o doutor descubra algum processo científico - gracejou Shandon - para nos aquecer sem combustível. Tenho ouvido dizer que se faz gelo com fogo; talvez que ele nos faça lume com gelo.

E Shandon voltou ao seu camarote, erguendo os ombros.

No dia seguinte, 20 de Agosto, abriu o nevoeiro por alguns instantes. Todos viram, do posto elevado em que estava, Hatteras perscrutar vivamente com o olhar todos os pontos do horizonte. Desceu depois, sem dizer palavra, em seguida ao que deu ordem de marchar para a frente. Era, porém, fácil de adivinhar-lhe no gesto que sofrera mais uma decepção.

O "Forward" levantou ferro e começou a sua marcha incerta para o norte. Como o navio jogava muito, arriaram-se, com todo o aparelho respectivo, as vergas de gávea e joanete, e inclinaram-se os mastros. Não era lícito então contar com o vento variável, que por outra parte a sinuosidade dos canais fazia quase inútil. Em diferentes pontos do mar formavam-se manchas esbranquiçadas, semelhantes a nódoas de óleo, sintoma precursor de uma gelada geral e muito próxima. Sempre que a brisa caía, coalhava o mar quase instantaneamente; mas quando voltava a refrescar o vento, o gelo recente partia-se e dissipava-se. Ao cair da noite, o termómetro desceu a 17 graus (-7 graus centígrados).

O brigue, quando chegava ao fundo de alguma passagem fechada, fazia as vezes de aríete, precipitando-se a todo o vapor de encontro ao obstáculo, que arrombava. Mais de uma vez se pensou que o navio ficaria definitivamente detido, mas sempre algum movimento inesperado dos streams lhe abria nova passagem, por onde se arrojava com intrepidez. Durante estas paragens, o vapor, que saía pelas válvulas, condensava-se em contacto com o ar frio e caía em chuva de neve sobre o convés.

Outra causa havia ainda que vinha suspender a marcha do brigue: por vezes metiam-se pedaços de gelo nos braços da hélice, e tal era a dureza deles que nem todo o esforço da máquina conseguia esmigalhá-los. Nestas ocasiões força era inverter o vapor para voltar atrás, e mandar homens desobstruir a hélice, por meio de alavancas e espenques. Daí novas fadigas, novas dificuldades, novas demoras.

Assim decorreu a navegação por espaço de treze dias, arrastando-se o "Forward" penosamente ao longo do estreito de Penny. A tripulação murmurava, mas ia obedecendo, porque compreendia que voltar para trás era agora impossível. A marcha para o norte apresentava-se menos perigosa do que a retirada para o sul, e o que urgia era tratar da invernada.

Os marinheiros conversavam uns com os outros, acerca desta nova situação e até um dia meteram conversa a tal respeito com Ricardo Shandon, que bem sabiam estar com eles. Este, menosprezando os seus deveres de oficial, não receou deixar discutir na sua presença a autoridade do seu capitão.

- Com que então, Sr. Shandon, parece-vos que não podemos voltar pelo mesmo caminho?

- Já é demasiadamente tarde - respondeu Shandon.

- Então não temos mais que fazer senão cuidar da invernada?

- É o único recurso que nos resta! Não quiseram dar-me crédito.

- Para a outra vez vos acreditarão - respondeu Pen, que já voltara ao seu serviço habitual.

- Mas como não serei eu quem mande... - replicou Shandon.

- Quem sabe? - volveu Pen. - John Hatteras está

no seu direito de ir aonde lhe parecer, mas ninguém é obrigado a acompanhá-lo.

- Basta a gente lembrar-se da primeira viagem que ele fez ao mar de Baffin e do que daí resultou! - continuou Gripper.

- E a viagem do "Farewell" - acudiu Clifton -, que debaixo das suas ordens se foi perder nos mares do Spitzberg!

- Sendo ele o único que de lá voltou - recordou Gripper.

- E mais o cão - ajuntou Clifton.

- Nós é que não temos desejo algum de nos sacrificarmos à satisfação dos caprichos desse homem - acrescentou Pen.

- Nem de perder os prémios que tão bem temos ganho!

Nesta observação interesseira fácil é reconhecer Clifton.

- Transposto que seja por nós o septuagésimo oitavo grau - acrescentou -, de que não estamos muito longe, cabem exactamente trezentas e setenta e cinco libras a cada um, seis vezes oito graus!

- Porém - lembrou Gripper -, regressando nós sem o capitão, não as perderemos?

- Não - respondeu Clifton -, desde o momento em que esteja provado que o regresso se tornara indispensável.

- Mas o capitão... entretanto...

- Podes estar descansado, Gripper - assegurou Pen -, que comandante não nos há-de faltar e dos bons, que o Sr. Shandon bem o conhece. Quando um comandante enlouquece, demite-se e nomeia-se outro. Não é assim, Sr. Shandon?

- Meus amigos - declarou Shandon com evasiva -, achareis sempre em mim um coração dedicado. Esperemos, porém, os acontecimentos.

Como se vê, a tempestade ia-se acumulando sobre a cabeça de Hatteras. Este, porém, firme, inabalável, enérgico, sempre cheio de confiança, marchava com audácia. E em suma, se não fora inteiramente senhor da direcção do navio, o caso é que o seu navio se tinha portado com valentia.

O caminho que em cinco meses percorrera representava o que outros navegadores gastaram dois a três anos a percorrer! Estava agora Hatteras forçado a invernar, é verdade, mas tal situação não podia sequer assustar corações fortes e decididos, ânimos experimentados e aguerridos, espíritos intrépidos e de boa têmpera. Por Sir John Ross e Mac Clure não tinham passado três Invernos nas regiões árcticas? E o que uma vez se tinha assim realizado, acaso não podia agora repetir-se?

«Decerto que sim», repetia consigo mesmo Hatteras, «e mais até se necessário for!" Ah! - dizia ele ao doutor com sentimento - que se eu tivera podido forçar a entrada do estreito de Smith, ao norte do mar de Baffin, estava agora no pólo!

- Bem! - respondia invariavelmente o doutor, que era capaz de inventar a confiança, se inventada não estivera já. - Lá havemos de chegar, pelo nonagésimo nono meridiano em vez de septuagésimo quinto, é verdade. Isso, porém, que importa? Se é verdade que todos os caminhos vão dar a Roma, mais certo é que todo o meridiano vai dar ao pólo.

A 31 de Agosto marcou o termómetro 13 graus (-10 graus centígrados). Estava a chegar o fim da estação navegável. O "Forward" deixou a ilha Exmouth a estibordo e, passados três dias, havia ultrapassado a ilha da Mesa, situada no meio do canal de Belcher. Teria talvez sido possível alcançar, em época menos adiantada, o mar de Baffin por este canal, mas não nesta ocasião. Este braço de mar, inteiramente obstruído pelos gelos, não oferecia à quilha do "Forward" uma polegada de água. A vista estendia-se por ice-fields ilimitados, os quais por oito meses ainda se conservariam imóveis.

Todavia, ainda felizmente se podia navegar alguns minutos para o norte, sob condição de quebrar o gelo novo com pesados rolos, ou de o despedaçar por meio de foguetes. O que havia a recear a tão baixa temperatura era a calmaria atmosférica, porque então as passagens fechavam-se rapidamente. Ali recebem-se com alegria até os ventos contrários; basta que uma só noite esteja calma, e gela tudo.

Ora o "Forward" não podia invernar na situação presente, exposto aos ventos, aos icebergues e à corrente do canal. A primeira coisa que se devia procurar era um abrigo, e Hatteras esperava alcançar a costa da Nova Cornualha e encontrar, além do cabo Alberto, uma baía de refúgio, suficientemente abrigada. Por isso continuou perseverantemente a sua derrota para o norte.

Mas, a 8 de Setembro, um banco de gelo contínuo, impenetrável, invencível, veio colocar-se entre o norte e o "Forward". A temperatura desceu a 10 graus (-12 graus centígrados). Hatteras, inquieto, procurou debalde uma passagem, arriscou cem vezes o navio e soube sair das mais difíceis situações, operando prodígios de habilidade. Podê-lo-iam acusar de imprudente e de insensato; o que ele fizera podia ser loucura ou cegueira, mas era, incontestavelmente, um dos melhores marinheiros!

A situação do "Forward" tornou-se realmente perigosa. De facto, atrás dele fechava-se o mar e, dentro de algumas horas, o gelo tornou-se de uma natureza tal que os homens podiam correr-lhe por cima e sirgar o navio sem o menor risco.

Hatteras, que não podia contornar o obstáculo, entendeu que devia afrontá-lo de cara, e por isso empregou os mais fortes blasting-cylinders que possuía, carregados com oito a dez libras de pólvora. Eis como se empregavam: perfurava-se o gelo no sentido da espessura; colocava-se o cilindro horizontalmente, a fim de que uma quantidade de gelo se encontrasse submetida à explosão, e acabava-se de encher de neve o orifício. Depois acendia-se a mecha, protegida por um tubo de guta-percha.

Enfim, como não era possível serrar o banco, visto que as superfícies se tornavam a colar imediatamente, era preciso quebrá-lo.

Hatteras concebeu esperanças de o poder transpor no dia seguinte.

Durante a noite, porém, o vento soltou-se furiosamente. O mar cavava-se debaixo da crusta gelada, como que sacudido por uma comoção submarina, e a voz do prático, aterrado, soltou estas palavras:

- Guarda a ré! Guarda a ré!

Hatteras olhou na direcção indicada e o que viu à luz crepuscular era na verdade espantoso.

Um alto banco, impelido para o norte, corria sobre o navio com a velocidade de uma avalancha.

- Toda a gente para o convés! - gritou o capitão. Aquela montanha movediça estava a uma distância de meia milha apenas. Levantavam-se do gelo estilhaços, que rolavam uns sobre os outros, como se fossem enormes grãos de areia arrastados por um furacão formidável. Um ruído terrível agitava a atmosfera.

- Este, Sr. Clawbonny - disse Johnson ao doutor -, é o perigo maior que até hoje nos tem ameaçado.

- De acordo - confirmou tranquilamente o doutor -, é deveras temeroso.

- É um verdadeiro assalto que temos de repelir - volveu o mestre.

- Realmente, dir-se-ia que vem sobre nós um imenso rebanho de animais antediluvianos, daqueles que, segundo se julga, habitaram outrora o pólo! E como eles caminham! Como se apressam, como correm à porfia!

- E ainda por cima - acrescentou Johnson - há alguns que vêm armados de agudas lanças, das quais dou de conselho que vos acauteleis, Sr. Clawbonny.

- É um cerco em forma - observou o doutor. - Pois bem! Corramos às muralhas.

E correu para a ré, onde a tripulação, armada de varas, de barras de ferro e de espeques, se dispunha a repelir este formidável assalto.

A avalancha, ao passo que se ia aproximando, crescia e avolumava-se à custa dos gelos circunvizinhos, que arrastava consigo. O canhão de proa atirava por ordem de Hatteras, a ver se rompia esta linha ameaçadora, que, apesar de tudo, veio de encontro ao brigue e atirou-se sobre ele. Ouviu-se um estampido, e, como o navio foi abordado por estibordo, uma parte da mastreação quebrou-se.

- Ninguém se mexa! - gritou Hatteras. - Atenção aos gelos!

Estes trepavam com força irresistível. Fragmentos, que pesavam muitos quintais, escalavam o navio; os mais pequenos, atirados à altura do cesto da gávea, caíam em frechas agudas, que partiam os ovéns e cortavam as enxárcias. A tripulação via-se flanqueada por inimigos inumeráveis, que poderiam esmagar só com a sua massa cem barcos como o "Forward". Cada um tratava de expulsar os penedos invasores. Muitos marinheiros foram feridos pelas arestas agudas do gelo. Bolton, entre outros, ficou com a espádua esquerda completamente fracturada. O ruído ia cada vez tomando maiores proporções. "Duck" ladrava raivoso em volta destes inimigos de nova espécie. Breve veio aumentar o terror da situação a escuridão da noite, que não escondia de todo estes gelos irritados, cuja alvura reflectia os últimos lampejos dispersos na atmosfera.

As ordens de Hatteras retumbavam a cada momento no meio desta luta extraordinária, impossível, sobrenatural, do homem contra os gelos. O navio, que não podia deixar de ceder a tão grande pressão, ia tombando para bombordo; a extremidade da verga grande arqueava-se já contra o campo de neve, ameaçando quebrar o seu mastro.

Hatteras viu o perigo. Era terrível o momento. O brigue estava quase a voltar-se de todo e a mastreação podia ser arrastada.

Uma enorme montanha, tão grande como o próprio navio, começou então a elevar-se ao longo do casco. Ia-se levantando com uma pujança irresistível. Subiu, subiu, e já superava o tombadilho. Se ela se precipitasse sobre o "Forward", tudo estava acabado. Em seguida ergueu-se tão alto, que ultrapassava as vergas de joanete, oscilando

na sua base.

Irrompeu um imenso grito de cada peito. Tudo

refluiu para estibordo.

Neste momento, porém, o brigue sentiu-se completamente aliviado, e foi arrastado durante um espaço de tempo inapreciável, flutuando no ar; depois inclinou-se e caiu nos gelos com um balanço que lhe fez estalar as cintas do costado. Que seria isto?

Levantado por esta maré e impelido de ré pelos gelos, transpunha o insuperável banco. Passado um minuto, que pareceu um século, de tão extraordinária navegação, tornou o navio a cair, do outro lado do obstáculo, num plaino de gelo. Rompeu-se com o próprio peso e encontrou-se no seu elemento natural.

- Transpôs-se o banco! - gritou Johnson, que havia corrido à proa.

- Louvado seja Deus! - respondeu Hatteras.

Com efeito, o brigue encontrava-se no centro de uma bacia de gelo, que o circundava. Posto que a quilha mergulhasse na água, não se podia mover, mas, apesar de privado de movimento próprio, o campo marchava com ele.

- Nós abatemos, capitão! - avisou Johnson.

- Deixa abater - retorquiu Hatteras.

Demais, como poderia ele opor-se àquele arrastamento?

Dia claro, verificou-se que o banco de gelo corria de facto rapidamente para norte, debaixo das influências de uma corrente submarina. Esta massa flutuante levava consigo o "Forward", preso no meio do ice-field, cujos limites era impossível avistar. Hatteras, prevendo uma catástrofe, caso o brigue fosse arremessado sobre qualquer costa ou esmagado pela pressão do gelo, mandou vir para a tolda uma porção de mantimentos, os preparativos de acampamento, o vestuário e as cobertas da tripulação. Como tinha feito o capitão Mac Clure em caso idêntico, mandou cingir o navio de sacas impermeáveis, cheias de ar, de modo a preservá-lo das maiores avarias. Pouco tempo depois, o gelo acumulou-se, por influência de uma temperatura de 7 graus (-14 graus centígrados), e o barco ficou cercado por uma muralha donde sobressaía só a mastreação.

Deste modo navegou durante sete dias. O cabo Alberto, que forma a extremidade oeste da Nova Cornualha, avistou-se a 10 de Setembro e logo desapareceu. Notaram então que o campo de gelo deslizava para leste. Aonde iria ele por este andar? Onde pararia? Quem podia adivinhá-lo?

A marinhagem cruzava os braços e esperava. Enfim, a 15 de Setembro, pelas três horas da tarde, o ice-field, precipitado sem dúvida sobre outro campo, parou de repente.

O navio sentiu um abalo violento. Hatteras, que havia feito as suas observações durante o dia, consultou a carta. Achava-se ao norte, sem terra à vista, a 95 graus 35 minutos de longitude e 78 graus 15 minutos de latitude, no centro dessa região, desse mar ignoto, onde os geógrafos colocaram o pólo do frio!

 

             PREPARATIVOS DE INFERNADA

O hemisfério austral é, na mesma latitude, mais frio do que o boreal; a temperatura, porém, do novo continente é ainda 15 graus mais baixa do que a de qualquer outra parte do mundo, e na América as regiões conhecidas pela denominação de pólo do frio são as mais temíveis.

A temperatura média do ano é ali de 2 graus abaixo de zero (-19 graus centígrados) apenas. A tal respeito partilhava o Dr. Clawbonny a opinião dos homens de ciência, que explicam esta singularidade da maneira seguinte:

Os ventos que reinam com mais frequência e com mais força nas regiões setentrionais da América são os de sudoeste, que vêm do oceano Pacífico com uma temperatura igual e suportável. Para chegarem, porém, até aos mares árcticos, têm estes ventos de atravessar o imenso território americano, coberto de neves, com cujo contacto arrefecem, chegando assim às regiões hiperbóreas com a aspereza glacial que ali os caracteriza.

Estava então Hatteras no pólo frio, muito além das regiões apenas entrevistas pelos seus predecessores. Esperava-o, portanto, um Inverno terrível e num navio perdido entre os gelos, com uma tripulação semi-revoltada. Encarou de frente todas as dificuldades da situação, mas nem por isso baixou os olhos.

Auxiliado pela experiência de Johnson, começou o capitão a tomar todas as medidas requeridas pela invernada. O "Forward", segundo os seus cálculos, fora arrastado a duzentas e cinquenta milhas da última terra conhecida, isto é, da Nova Cornualha, e estava a repousar num campo de gelo, como num leito de granito, do qual nenhumas forças humanas poderiam arrancá-lo.

Naqueles vastíssimos mares atacados pelo Inverno, nem uma só gota de água havia descoalhado. Escalonavam-se a perder de vista os ice-fields, mas sem apresentar uma superfície lisa e plana. Antes, pelo contrário, eram numerosos os icebergues que acidentavam a gelada planura. O "Forward" estava abrigado pelos mais altos de entre eles, que se erguiam em três pontos da planície, e era assim o vento de sudoeste o único que podia acometê-lo. Imaginem-se rochedos em lugar de penhas de gelo, verdura em vez de neve, e que o mar recuperava o estado líquido, e teremos o brigue tranquilamente fundeado numa formosa enseada, a coberto dos ventos mais de temer. Mas, sob aquelas latitudes, que solidão! Que triste Natureza! Que contemplação lamentosa!

Apesar de o navio se encontrar imóvel, aconselhava a prudência que o firmassem bem, por meio das âncoras, porque eram para recear possíveis desgelos ou correntes submarinas. Johnson, logo que reconheceu a situação do navio no pólo do frio, redobrou de precauções para a invernada.

- Vamos ver-nos em bons apertos! - dissera ele ao doutor. - A sorte não favorece lá muito o nosso capitão! Ficar preso, e logo no ponto mais desagradável do Globo! Mas, enfim, vamos sempre a ver como havemos de sair desta!

O doutor, esse, lá no fundo da alma, estava nada menos do que encantado com a situação; nem a trocaria por qualquer outra. Invernar mesmo no pólo do frio! Que feliz acaso!

Os trabalhos de preparativos exteriores foram os primeiros de que se ocupou a tripulação. Deixou-se ficar o velame nas respectivas vergas, em vez de guardá-lo no porão, como fizeram os primeiros invernadores. Nada mais se fez do que deixá-lo bem dobrado e empacotado dentro das suas bainhas e bem depressa o gelo as cobriu com outro invólucro bem mais impermeável. Nem sequer se arriaram os mastaréus de joanete, e até o cesto da gávea, ou ninho-de-pega, ficou no seu lugar, que era um observatório natural. Cinicamente foi recolhida ao porão parte da enxárcia.

Foi necessário cortar o gelo em volta do navio, porque o casco sofria com a pressão. Os gelos que se lhe acumulavam no costado pesavam excessivamente e não o deixavam repousar na sua linha de água habitual.

O trabalho foi grande e penoso. Ao cabo, porém, de alguns dias, a quilha ficou livre, circunstância que se aproveitou para a examinar. O "Forward", graças à solidez da sua construção, nada sofrera, apesar de ter quase completamente arrancado o forro de cobre, que lhe cobria a parte inferior do casco.

O navio, agora livre, subiu cerca de nove polegadas. Rebaixou-se o gelo em volta dele, segundo a forma do casco, volvendo deste modo o campo de gelo a formar-se debaixo da quilha do brigue e aguentando toda a pressão.

O doutor tomou parte em todos estes trabalhos, ora manejando com destreza a faca de cortar o gelo, ora distraindo e dando ânimo, com o seu eterno bom humor, aos marinheiros. Instruía os outros e instruía-se a si. Clawbonny aprovou, com entusiasmo, a disposição que se deu ao gelo por debaixo do navio, dizendo:

- É uma boa precaução, é!

- Sem ela, Sr. Clawbonny - explicou Johnson-, é que não havia resistência possível. Agora podemos levantar, sem receio, uma muralha de neve até à altura da borda, e dar-lhe até dez pés de grossura, se assim nos parecer conveniente. Materiais não faltam.

- Excelente ideia! - aprovou o doutor. - A neve é um mau condutor do calórico, e como, por isso mesmo, o reflecte em lugar de o absorver, não deixa que o calor interior se escape para fora.

- É isso mesmo - respondeu Johnson. - Levantemos uma fortificação contra o frio e também contra os animais ferozes destas regiões, para o caso de se lembrarem de nos fazer alguma visita. Depois da obra terminada, vereis a bela aparência que apresenta. Nessa mole de neve talharemos duas escadas, uma à proa, outra à ré. Cortam-se os degraus à faca, deita-se-lhe água em cima, que logo se converte em gelo duro como pedra, e assim temos uma escada feita.

- Muito bem - concordou o doutor - e força é confessar que é uma grande felicidade que o frio gere o gelo e a neve, com que contra ele nos protegemos, que, se assim não fora, mal de nós.

Com efeito, o navio estava destinado a desaparecer debaixo de uma espessa capa de gelo, da qual haveria de vir a conservação da sua temperatura interna. Por cima e a todo o comprimento da coberta construiu-se um toldo, feito de grossas telas embreadas e depois tapadas de neve, baixando dos lados a tela suficiente para cobrir o costado do navio. A coberta, assim abrigada de todas as impressões exteriores, converteu-se num verdadeiro lugar de recreio. Lançaram-lhe em cima do pico dois pés e meio de neve, amachucada e pisada a ponto de ficar perfeitamente dura. Esta camada de neve era mais um obstáculo à irradiação do calor interno. Por cima da neve deitou-se uma camada de areia, que, incrustando-se nela, a converteu numa argamassa extremamente dura.

- Se houvesse aqui meia dúzia de árvores - dizia o doutor - julgar-me-ia, com pequena diferença, em Hyde-Park ou ainda nos jardins suspensos de Babilónia.

A pouca distância do brigue abriu-se um poço, que consistia apenas num espaço circular aberto no campo de gelo, destinado a conservar-se sempre praticável, para o que se partia todas as manhãs o gelo que se lhe formava no orifício. Era este poço destinado a fornecer água em caso de incêndio, e ministrá-la em abundância para os diferentes banhos, ordenados à tripulação, como medida de higiene. Para poupar, neste último caso, combustível, procurava-se tirar água das camadas mais profundas, onde é menos fria. Conseguia-se este resultado por meio de um aparelho inventado por um sábio francês*1, aparelho este que, depois de baixar a certa profundidade dentro da água, dá livre entrada ao líquido circundante por meio de um duplicado fundo móvel dentro de um cilindro.

É costume, durante os meses de Inverno,

 

*1. Arago.

 

tirar todos os objectos que há dentro do navio e guardá-los fora, em armazéns, para obter assim maior espaço. Mas o que é possível fazer-se numa costa qualquer não pode consequentemente praticar-se num navio quando fundeado num campo de gelo.

Internamente tudo se dispôs para combater os dois grandes inimigos do homem naquelas latitudes: o frio e a humidade. O primeiro traz após si o segundo, ainda mais temível.

Ao frio resiste-se ainda; à humidade, porém, necessariamente se sucumbe. Era, portanto, urgente precaverem-se contra ela.

O "Forward", especialmente destinado a uma navegação nos mares árcticos, oferecia as disposições mais convenientes para uma invernada. A câmara grande da tripulação fora perfeitamente delineada e, na concepção da sua forma, tinha-se feito crua guerra aos cantos, onde a humidade se refugia. Quando a temperatura desce, forma-se nas paredes, e especialmente nos ângulos delas, uma camada de gelo que, ao derreter-se, produz uma humidade constante. A sala da tripulação, se tivera a forma circular, melhor seria ainda; mas, enfim, aquecida por um grande fogão e convenientemente ventilada, devia ser muito habitável. As paredes estavam atapetadas de peles de gamo, e não de fazendas de lã, porque esta absorve e conserva a humidade e outros vapores que nela se condensam, impregnando a atmosfera de princípios húmidos. À ré, deitaram-se abaixo as divisórias, e os oficiais tiveram assim uma sala comum maior, mais ventilada e aquecida por um fogão único. Esta sala, assim como a da tripulação, era precedida de uma espécie de antecâmara, que lhe tirava toda a comunicação directa com o exterior. Por esta forma mal podia perder-se o calor e os corpos passavam gradualmente da temperatura interior para a exterior. Nas antecâmaras deixavam-se os fatos carregados de neve, e na parte de fora havia aparelhos próprios para limpar os pés, para que assim ninguém introduzisse no interior elementos insalubres.

O ar necessário para a combustão nos fogões entrava por mangueiras de tela, e por outras mangueiras saía o vapor de água.

Havia, além disto, nas duas câmaras, condensadores que recolhiam os vapores, em vez de deixá-los resolver-se em água, e estes condensadores eram limpos duas vezes por semana e continham por vezes grandes quantidades de gelo, que eram outras tantas forças roubadas ao inimigo.

O fogo regulava-se com perfeição e facilidade por meio de mangas de ar. Reconheceu-se que uma pequena quantidade de carvão bastava para conservar nas salas uma temperatura de 50 graus (+10 graus centígrados). Apesar disto, Hatteras, depois de ter bem vasculhado os paióis, reconheceu que não tinha combustível para dois meses.

Para secar as roupas, que era forçoso lavar com frequência e não podiam secar-se ao ar livre, porque ficavam duras e como que quebradiças, construiu-se uma espécie de estendal.

Desmontaram-se também, com todo o cuidado, as partes mais delicadas da máquina, que foram hermeticamente fechadas no lugar destinado a guardá-las.

A vida a bordo foi objecto de profundas cogitações. Hatteras estabeleceu-lhe as regras com muito tino e fez destas regras um regulamento escrito, que se afixou numa das paredes da sala comum. Os marinheiros levantavam-se às seis da manhã; três vezes por semana eram os catres arejados; o sobrado das duas câmaras era esfregado todas as manhãs com areia quente; o chá a ferver figurava em todas as refeições e a alimentação variava, quanto possível, segundo os dias da semana, compondo-se de pão de farinha, de gordura de boi e de passas para os pudins, de açúcar, de cacau, de chá, de arroz, de limonada, de carne de vaca e de porco conservada em salmoura, de verduras e legumes de conserva em vinagre. A cozinha era situada fora das salas comuns, com o que, ainda que desaproveitando algum calor, se evita a evaporação e a consecutiva humidade de que é manancial a coacção dos alimentos.

A boa saúde da tripulação dependia muito do género da alimentação. Debaixo daquelas altas latitudes deve-se fazer principalmente uso de matérias animais. Neste intuito tinha o doutor presidido à redacção do programa.

- É mister - afirmava ele - buscar o exemplo nos esquimós, que receberam lição da Natureza e que neste ponto podem ser nossos mestres. Se os árabes e os africanos podem contentar-se com algumas tâmaras e um punhado de arroz, aqui importa comer muito. Os esquimós absorvem diariamente dez e até quinze libras de azeite. Se vos não agrada este regime, tendes de recorrer a substâncias ricas em açúcar e em gorduras. Numa palavra, o que nos é necessário é carbono, muito carbono. Justo é que se meta carvão na fornalha, mas não nos esqueçamos também de o introduzir na preciosa fornalha que connosco sempre trazemos.

Juntamente com este regime alimentício impôs-se a toda a tripulação uma grande limpeza e muito asseio. A todos os marinheiros se prescreveu a obrigação de tomarem, dia sim, dia não, um banho em água semi-gelada, que se tirava do poço já mencionado, meio este excelente para conservar o calor natural. O doutor era o primeiro a dar o exemplo. A princípio pareceu-lhe o tal banho coisa muito desagradável; mas dentro em pouco começou a encontrar verdadeiro prazer naquelas imersões extremamente higiénicas.

Quando o trabalho, a caça ou os reconhecimentos obrigavam os tripulantes a ir desafiar lá fora os grandes frios, tinham de cuidar especialmente de não ficarem frost bitten, isto é, com uma parte qualquer do corpo gelada. Quando, apesar de todas as precauções, gelavam, restabelecia-se a circulação do sangue por meio de fricções de neve. De resto, os marinheiros, cuidadosamente vestidos com trajos de lã, que lhes cobriam o corpo todo, usavam capotes de pele de gamo e calças de pele de foca, que são absolutamente impermeáveis ao vento.

Os vários arranjos do navio e a instalação a bordo duraram cerca de três semanas, chegando-se assim ao dia 10 de Outubro sem maior novidade.

 

           UMA VELHA RAPOSA DE JAMES ROSS

Neste dia o termómetro baixou a 3 graus abaixo de zero (-19 graus centígrados). O tempo estava sempre sereno; o frio suportava-se facilmente, porque não havia vento. Hatteras, aproveitando a limpidez da atmosfera, foi fazer um reconhecimento pelas planícies próximas. Subiu a um dos mais altos icebergues ao norte, e só descobriu, no campo do óculo, uma série de montanhas de gelo e de ice-fields. Nem um palmo de terra à vista. Era a verdadeira imagem do caos sob o seu aspecto mais tristonho. Voltou, portanto, o capitão para bordo, tratando de calcular a extensão provável do seu cativeiro.

Os caçadores, e entre eles o doutor, Simpson, Johnson e Bell, não se esqueciam de prover o navio de carne fresca. As aves tinham desaparecido, à procura de um clima menos rigoroso ao sul. Só os ptarmigans, perdizes de rochedos, peculiares destas latitudes, não fugiam do Inverno. Em virtude do grande número, matavam-se facilmente e prometiam uma abundante reserva de caça.

Não faltavam lebres, nem raposas, nem lobos, nem arminhos. Um caçador francês, inglês ou norueguês não tinha de que se queixar. Mas estes animais, que são muito ariscos, não se deixavam alcançar. Demais, só com dificuldade se distinguiam no meio destas planícies esbranquiçadas, cuja alvura imitam, pois que, antes dos grandes frios, mudam de cor e vestem a sua felpa de Inverno. O doutor verificou, em contrário à opinião de alguns naturalistas, que esta mudança não provém do grande abaixamento da temperatura, por isso que se realizava antes do mês de Outubro. Não resulta assim de nenhuma causa física e sim da providência do Criador, que quis pôr os animais árcticos ao abrigo dos rigores do Inverno boreal.

Topava-se frequentemente com vitelos-marinhos, cães-do-mar, e todos esses animais compreendidos sob a denominação geral de focas. Recomendou-se, pois, a conveniência desta caça aos caçadores, tanto por causa das peles como da gordura, que serve optimamente de combustível. Demais, em caso de necessidade, é o fígado destes animais um excelente comestível. Podiam contar-se aos centos e, a duas ou três milhas ao norte do navio, via-se o campo literalmente crivado pelos buracos dos anfíbios. A dificuldade de os caçar consiste só em que estes animais dão conta do caçador com um instinto notável. Foram, no entanto, feridos muitos, mas fugiram facilmente, escondendo-se debaixo dos gelos.

Todavia, a 19, Simpson conseguiu caçar um deles a quatrocentas jardas do navio, para o que houvera tido a precaução de lhe tapar o orifício de retirada, de maneira que o animal ficou à mercê dos caçadores. O anfíbio lutou por muito tempo, e à força de tiros acabaram por matá-lo. Tinha nove pés de comprimento, uma cabeça de buldogue, dezasseis dentes em cada maxila, grandes barbatanas peitorais, em forma de asa, cauda curta com um par de barbatanas. Era um magnífico exemplar da família dos cães-do-mar. O doutor mandou preparar a cabeça e a pele, por um processo rápido e pouco dispendioso, aquela para as suas colecções de história natural e esta para as necessidades futuras. Mergulhou o corpo do animal numa abertura feita no gelo, onde milhares de pequenos animais marítimos lhe comeram toda a carne. Tudo se fez em menos de meio dia, e de tal forma que o mais destro, de entre a respeitável corporação dos curtidores de Liverpul, não o teria feito melhor.

Pode dizer-se que o Inverno começa nas regiões árcticas desde que o Sol passa pelo equinócio do Outono, isto é, a 23 de Setembro. Aquele astro benéfico, depois de ter descido, pouco a pouco, abaixo do horizonte, desapareceu, enfim, a 23 de Outubro, osculando com os seus raios oblíquos o cume das montanhas geladas. O doutor disse-lhe um último adeus de sábio e de viajante. Não o tornaria a ver antes do mês de Fevereiro.

Não se julgue, contudo, que a obscuridade é completa durante a longa ausência do Sol. A Lua vem cada mês substituí-lo o melhor que pode, e acresce ainda a cintilação muito brilhante das estrelas, o brilho dos planetas, as frequentes auroras boreais e as retracções peculiares daqueles brancos horizontes de neve. Além disto, no momento da maior declinação austral, a 21 de Dezembro, o Sol aproxima-se ainda uns treze graus do horizonte polar. Há, portanto, em cada dia, um certo crepúsculo de algumas horas. Só os nevoeiros e os turbilhões de neve é que mergulham muitas vezes estas frias regiões na maior escuridão.

Contudo, até esta época, o tempo foi bastante favorável. Só as perdizes e as lebres tinham que perder, porque os caçadores nem as deixavam descansar. Dispunham também armadilhas para as raposas, mas estes animais, desconfiados, não se deixavam cair no laço. Muitas vezes mesmo raspavam a neve, por debaixo do alçapão, e fugiam com a isca, sem lhes suceder mal algum. O doutor dava-se a perros, e ficava muito pesaroso de lhe haver feito tal presente.

A 25 de Outubro, o termómetro não passou de 4 graus abaixo de zero (-20 graus centígrados). Desencadeou-se um furacão violentíssimo; obstruiu a atmosfera uma neve espessa, que não deixava chegar ao "Forward" um só raio de luz. Esteve-se em cuidados durante muitas horas por causa de Bell e de Simpson, que em busca de caça se haviam afastado bastante. Só no outro dia voltaram a bordo, depois de terem passado um dia inteiro deitados sobre as suas peles de gamo, enquanto o furacão revolvia o espaço e os embrulhava em cinco pés de neve. Por pouco que não gelaram, tendo o doutor grande trabalho para restabelecer neles a circulação do sangue. A tempestade durou oito compridos dias ininterruptamente. Não se podia sair. Durante o espaço de um só dia havia variações de temperatura de quinze e de vinte graus.

Durante este ócio forçado, cada um vivia a seu modo. Este dormia, aquele fumava, outros conversavam em voz baixa, interrompendo-se quando o doutor ou Johnson se aproximavam. Não havia laço algum moral entre os homens daquela tripulação. Só se reuniam por ocasião da oração da tarde, que se fazia em comum, e ao domingo, para a leitura da Bíblia e do ofício divino.

Clifton já havia estado a pensar de si para si que, transposto o septuagésimo oitavo paralelo, a sua parte no prémio ascendia a trezentas e setenta e cinco libras esterlinas. Achou a conta redonda, e não ambicionou mais. Partilhavam de bom grado esta opinião muitos outros e cada um pensava em gozar esta pequena fortuna, adquirida à custa de tantas fadigas.

Hatteras conservava-se quase invisível. Não tomava parte nem nas caçadas nem nos passeios. Os fenómenos meteorológicos, que maravilhavam o doutor, não o impressionavam a ele. Vivia com uma ideia única, que pode resumir-se em três palavras: o Pólo Norte. Só meditava nesse momento em que o "Forward", enfim, liberto, pudesse continuar a sua viagem aventurosa.

Em suma, o sentimento geral a bordo era a tristeza. Nada mais desconsolador, de facto, do que ver esse navio cativo, que não pousava no seu elemento natural, e cujas formas se achavam alteradas por espessa camada de neve. Não se parece com coisa alguma. Feito para o movimento, nem se pode mexer. Metamorfosearam-no em barracão de madeiras, em armazém, em habitação sedentária, a ele que podia desafiar os vendavais! Esta anomalia, esta situação falsa, derramava nos corações um sentimento indefinível de inquietação e de pesar.

Era durante estas horas de ócio que o doutor punha em ordem as suas notas de viagem, cuja reprodução fiel este livro é. Clawbonny nunca estava ocioso e o seu humor inalterável era sempre o mesmo. Verdade seja que foi com satisfação que viu aproximar-se o fim da tempestade, e então dispôs-se para recomeçar as suas caçadas do costume.

A 3 de Novembro, às seis horas da manhã, com um frio de 5 graus abaixo de zero (-21 graus centígrados), partiu na companhia de Johnson e de Bell. Os plainos de gelo estavam lisos e polidos. A neve, que caíra abundantemente durante os dias anteriores e que se tinha solidificado com a geada, oferecia uma boa superfície para a marcha. Sentia-se na atmosfera um frio seco e agudo. A Lua brilhava com incomparável pureza e produzia um jogo de luz brilhante sobre as menores asperezas do campo. O vestígio dos passos iluminava-se nos bordos e traçava com uma linha luminosa o caminho dos caçadores. As suas sombras alongadas estiravam-se no gelo com nitidez surpreendente.

O doutor tinha levado consigo o seu amigo "Duck"; preferia-o aos cães gronelandeses, para a caça, e com razão. Aqueles são pouco úteis em tais circunstâncias e não parecem possuir o fogo sagrado da raça das zonas temperadas. "Duck" corria, farejando o caminho, e amarrava frequentemente sobre os vestígios ainda frescos dos ursos. Todavia, apesar da sua habilidade, nem uma lebre viram os caçadores, no fim de duas horas de caminho.

- Emigraria a caça para o sul? - disse o doutor, fazendo alto junto de um hummock.

- Dir-se-ia que sim, Sr. Clawbonny - respondeu o

carpinteiro.

- Quanto a mim, estou persuadido de que não - retorquiu Johnson. - As lebres, as raposas e os ursos são próprios destes climas. Creio que foi a última tempestade que os fez desaparecer; mas não tardam a voltar, talvez com os ventos do sul. Ora agora, se me falásseis de rangíferos ou de bois almiscarados, então o caso era outro.

- E, todavia, na ilha Melville encontram-se numerosas manadas destes animais - volveu o doutor. - É verdade que esta ilha fica mais para o sul. É por isso que Parry, durante as suas invernadas, teve sempre à discrição esta caça magnífica.

- Cá nós não somos tão afortunados - respondeu Bell. - Se ao menos pudéssemos fazer provisão de carne de urso, podíamos dar-nos por satisfeitos.

- Essa é a principal dificuldade - replicou o doutor. - Parece-me que os ursos são raros e muito selvagens; não estão ainda suficientemente civilizados para se chegarem a tiro de espingarda.

- Bell fala da carne de urso - retorquiu Johnson -, mas neste momento a gordura do animal seria bem preferível à sua pele e até à sua carne...

- Tens razão, Johnson - concordou Bell. - Tu também no que pensas é só no combustível...

- E em que outra coisa havemos nós de pensar? Se nos não resta, por mais que o economizemos, carvão sequer para três semanas!

- É verdade - observou o doutor - e a coisa é muito séria, que estamos apenas em princípios de Novembro, e Fevereiro, na zona glacial, é o mês mais frio do ano. No entanto, na falta de gordura de urso, podemos contar seguramente com a de foca.

- Não por muito tempo, Sr. Clawbonny - esclareceu Johnson. - As focas não tardarão a abandonar-nos; ou por frio ou por medo, em breve deixarão de aparecer à superfície dos gelos.

- Nesse caso - afirmou o doutor -, vejo que é absolutamente indispensável dar caça aos ursos, e força é confessar que o urso é o animal mais útil destas regiões, porque basta para ministrar o alimento, o vestuário, a luz e o combustível de que o homem necessita. Ouves, "Duck"? - disse o doutor, fazendo festas ao cão. - Necessitamos de ursos, meu amigo. Anda!... Busca! Busca!

"Duck", que naquele momento farejava o gelo, açudado pela voz e pelas festas do doutor, partiu de repente com a rapidez da flecha. Gania com força e, apesar de estar já a distância, os seus ganidos chegavam muito claros e distintos aos ouvidos dos caçadores.

O extremo alcance do som nas baixas temperaturas é um facto assombroso, somente comparável à claridade das constelações do céu boreal. Os raios luminosos, como as ondas sonoras, transportam-se ali a distâncias consideráveis, principalmente durante os frios secos das noites hiperbóreas.

Os caçadores, guiados por aquele longínquo latido, lançaram-se após "Duck", de que estavam a uma milha de distância. Chegaram junto dele cansados e anelantes, porque em semelhante atmosfera os pulmões sufocam-se com muita rapidez.

"Duck" estava amarrado a uns cinquenta passos de uma enorme mole, que se movia no cume de uma pequena elevação de terreno.

- A coisa vai correndo mesmo à medida dos nossos desejos! - exclamou o doutor, aperrando a arma.

- É um urso, um famoso urso - anunciou Bell, seguindo o exemplo do doutor.

- Um singular urso - repetiu Johnson, que se reservava para atirar em último lugar.

"Duck" uivava, entretanto, com furor. Bell avançou uns vinte pés e fez fogo; mas não pareceu que tivesse acertado, porque o animal prosseguiu no seu caminho, balançando pausadamente a cabeça.

Johnson aproximou-se por seu turno e, feita a pontaria com cuidado, puxou o gatilho.

- Essa é boa! - exclamou o doutor. - Nada também! Ah, maldita refracção! Pois nós não nos havemos afinal de habituar a ela? Esse urso está fora do alcance de tiro e dista de nós pelo menos mil passos.

- Avante! - incitou Bell.

E os três companheiros correram a bom correr atrás do animal, em quem os tiros disparados não tinham feito a menor impressão. Parecia o urso ser de grandes dimensões e os caçadores, sem calcularem os perigos do ataque, entregavam-se de antemão à alegria da conquista. Chegados a uma distância regular, fizeram fogo, e o urso, ferido sem dúvida mortalmente, deu um enorme salto e caiu ao pé do montículo.

"Duck" correu direito a ele.

- Ora aqui está um urso que se deixou matar sem grande trabalho! - disse o doutor.

- Apenas nos custou três tiros - declarou Bell, desdenhoso - e está a espernear.

- O caso é singular - afirmou Johnson.

- A não ser que chegássemos precisamente no momento em que o pobre animal ia morrer de velho - sugeriu, sorrindo, o doutor.

- Por minha fé que, velho ou moço, a verdade é que fizemos um bom negócio.

Entretanto os caçadores chegaram ao sopé do montículo e, com grande espanto seu, encontraram "Duck" cevando-se no cadáver de uma raposa branca.

- Bom negócio! - exclamou Bell. - Não foi má a caçada, não.

- Coisa rara! - disse o doutor. - Matámos um urso e cai uma raposa!

Johnson não sabia que responder.

- Bom! - exclamou o doutor, com uma risada um tanto despeitada. - Foi a refracçãoi Sempre a tal refracção!

- Que quereis dizer com isso, Sr. Clawbonny? - perguntou o carpinteiro.

- Quero dizer, amigo, que nos enganou a refracção acerca das dimensões do animal, como acerca da distância, pois que nos fez ver um urso debaixo da pele de uma raposa. O que nos sucedeu agora aconteceu mais de uma vez a outros caçadores em circunstâncias idênticas. Está visto que aqui tudo são fantasmas.

- Por minha fé - respondeu Johnson -, que, urso ou raposa, de toda a maneira a havemos de comer. Levemo-la sempre.

O mestre, porém, no momento em que ia lançar o animal aos ombros, exclamou:

- Olhem! Que raridade!.

- Que é? - perguntou o doutor.

- Olhai, Sr. Clawbonny. Vede a coleira que tem o animal.

- Uma coleira! - disse o doutor, inclinando-se para o animal.

E efectivamente sobressaía do pêlo branco da raposa uma coleira de cobre meio gasta, em que o doutor julgou ver gravadas algumas letras. Rapidamente tirou a coleira, em cujo pescoço parecia andar de há muito.

- Que quererá isto dizer? - perguntou Johnson.

- Quer isto dizer - elucidou o doutor - que acabámos, amigos meus, de matar uma raposa que tem mais de doze anos, uma raposa que foi apanhada por James Ross em 1847.

- Será possível!? - exclamou Bell.

- É até indubitável - continuou o doutor - e sinto que tenhamos morto este pobre animal.

Durante a invernada que fez, ocorreu a James Ross a ideia de apanhar com armadilhas um grande número de raposas brancas e, a todas as que se apanharam, mandou pôr uma coleira de cobre em que estava gravada a indicação da situação dos navios do seu comando, a "Entreprise" e o "Investigator", assim como a dos depósitos de víveres. As raposas atravessam imensos tractos de terreno à procura de alimentos, e James Ross tinha esperança de que alguma delas caísse nas mãos de qualquer dos homens da expedição de Franklin. Eis aqui completamente explicada a singularidade que acabais de presenciar. Este pobre animal, que teria podido salvar a vida de duas tripulações, veio colocar-se ao nosso alcance para perder a sua inutilmente.

- Por minha fé, que não a comeremos nós, não - disse Johnson. - Demais a mais, uma raposa de doze anos! Contentar-nos-emos em conservar-lhe a pele, como testemunha de tão curioso encontro!

Johnson lançou a raposa aos ombros, e os três caçadores dirigiram-se para o navio, orientando-se por meio das estrelas. Não foi todavia aquela expedição inteiramente infrutuosa, porque sempre mataram alguns casais de ptarmigans.

Uma hora antes de os caçadores chegarem ao "Forward", presenciaram um fenómeno que excitou no mais alto grau a admiração do doutor. Era uma verdadeira chuva de estrelas cadentes. Podiam contar-se aos milhares, como os foguetes no ramalhete de um fogo de artifício.

A luz da Lua parecia empalidecer. O mesmo meteoro foi observado na Gronelândia, em 1799, pelos irmãos Moraves. Dir-se-ia que era uma verdadeira festa que o céu celebrava, em honra da Terra, naquelas latitudes solitárias. O doutor, de regresso a bordo, passou a noite a contemplar aquele fenómeno, que cessou por volta das sete da manhã, no meio do profundo silêncio da atmosfera.

 

         O ÚLTIMO PEDAÇO DE CARVÃO

Os ursos, decididamente, pareciam impossíveis de apanhar. Nos dias 4, 5 e 6 de Novembro mataram-se algumas focas. Depois, como o vento mudasse, a temperatura subiu muitos graus; os drifts*1 de neve, porém, renovaram-se com incomparável violência. Tornou-se materialmente impossível sair do navio e extremamente trabalhoso combater a humidade. No fim da semana cada condensador continha alguns alqueires de gelo.

No dia 15 de Novembro tornou o tempo a variar, e o termómetro, sob o influxo de certas condições atmosféricas, desceu a 24 graus abaixo de zero (-31 graus centígrados). Foi esta a temperatura mínima até então observada. Numa atmosfera tranquila seria apenas tolerável aquele frio; mas, além disso, soprava então um vento que parecia feito de agudas lâminas, que cortavam o ar.

O doutor sentiu muito estar cativo, porque a neve, consolidada pelo vento, oferecia um terreno seguro para caminhar, e assim poderia ter tentado alguma excursão longínqua.

Convém dizer, todavia, que, com tal frio, todo o exercício violento tem como pronta consequência estafar quem o pratica. Em tais circunstâncias nenhum homem pode produzir nem a quarta parte do seu trabalho normal. Ferramenta de ferro é impossível manejá-la.

 

*1. Turbilhões.

 

A mão que lhe pegue sem precaução sente uma dor semelhante à de uma queimadura e fica-lhe a pele aos bocados, pegada ao objecto em que imprudentemente agarrou.

Em consequência de tudo isto, a tripulação, forçadamente encerrada dentro do navio, estava reduzida a passear duas horas por dia no convés coberto, onde lhe era permitido fumar, o que na sala comum era absolutamente proibido.

Na sala, logo que o fogo esmorecia um pouco, o gelo invadia as paredes e as juntas do sobrado. Não havia uma só cavilha, um só prego de ferro ou chapa de metal que se não cobrisse imediatamente de uma camada de gelo.

A instantaneidade do fenómeno chegava até a maravilhar o doutor. O bafo dos homens da tripulação condensava-se no ar, ao sair-lhes da boca, e, passando de súbito do estado fluido ao estado sólido, caía em pequenos frocos de neve em roda deles. O frio readquiria toda a sua energia a tão pequena distância dos fogões que os homens eram obrigados a permanecer apinhados em redor do lume.

O doutor, sem embargo, dava-lhes de conselho que se habituassem, que se familiarizassem com aquela temperatura, porque o frio por certo ainda não dissera a sua última palavra. Recomendava-lhes especialmente que fossem, pouco a pouco, submetendo a epiderme àquelas sensações intensamente dolorosas e, o que é mais, acompanhava a prédica com o exemplo. A preguiça, porém, ou o torpor, prendia a maior parte deles aos seus respectivos postos, de onde não queriam arredar, preferindo conservar-se em sonolento repouso, no meio daquele calor nocivo.

E todavia, segundo dizia o doutor, nenhum perigo havia em apanhar um grande frio ao sair de uma sala aquecida. Estas transições repentinas não têm efectivamente inconveniente algum senão para quem está transpirando. Para apoiar esta sua opinião, citava o doutor muitos exemplos. As suas lições, porém, eram quase completamente perdidas ou pouco menos.

John Hatteras, esse, nem parecia sentir a influência da temperatura. Continuava nos seus passeios silenciosos, nem mais nem menos apressados do que antes. Seria porque não tinha acção o frio sobre aquela constituição enérgica? Possuiria ele, porventura, em grau supremo aquele princípio de calor natural que tanto recomendara para a escolha dos seus marinheiros? Ou estaria por tal forma couraçado pela sua ideia fixa que lograva subtrair-se às impressões exteriores? Os homens da tripulação não podiam vê-lo, sem profundo espanto, desafiar aqueles vinte e quatro graus abaixo de zero. Estava por vezes ausente de bordo horas inteiras e voltava sem que no semblante mostrasse vestígios sequer de acção do frio.

- Este homem é realmente singular - dizia o doutor a Johnson. - Até a mim me espanta! Em si próprio traz um foco ardente de calor. É uma das naturezas mais enérgicas que na minha vida tenho observado!

- O facto é - respondeu Johnson - que ele vai e vem, circula ao ar livre, sem se vestir com mais agasalho do que se estivéssemos no mês de Junho.

- Oh! A questão de vestuário é o menos - volvia o doutor. - De que vale vestir com agasalho a quem não possa produzir calor por si próprio? Tanto como tentar aquecer um pedaço de gelo, embrulhando-o num cobertor de lã! Hatteras, porém, é que não precisa disso; é tal a sua compleição que não me admira que a seu lado faça tanto calor como ao pé de um pedaço de carvão incandescente.

Johnson, que era o encarregado de destapar todas as manhãs o orifício do poço, observou que o gelo media mais de dez pés de espessura.

O doutor tinha quase todas as noites ocasião de observar magníficas auroras boreais. Das quatro às oito da noite o céu apresentava um ligeiro colorido para o lado do norte; logo depois, este colorido tomava a forma regular de uma orla amarela esmorecida, cujas extremidades pareciam arquear-se, fixadas no campo de gelo. A pouco e pouco ia-se elevando do céu a zona brilhante, segundo o meridiano magnético, e aparecia estriada de faixas anegradas. Rebentavam então como que jorros de matéria luminosa, que cresciam, ora diminuindo, ora reforçando o seu fulgor, e o meteoro, quando atingia o seu zénite, compunha-se por vezes de muitos arcos, que se banhavam em ondas de luz vermelha, amarela ou verde. Era um verdadeiro deslumbramento, um espectáculo sem segundo. Em curto espaço reuniam-se num só ponto as diferentes curvas, formando coroas boreais de uma opulência perfeitamente celeste. Por fim, os arcos começavam a apertar-se uns contra os outros, empalidecia a esplêndida aurora, os raios intensos trocavam-se em pálidos clarões, vagos, indeterminados, indecisos, e o maravilhoso fenómeno, enfraquecido, quase apagado, esmorecia insensivelmente por entre as escuras nuvens do sul.

É impossível imaginar a magia de que se reveste um tal espectáculo nas altas latitudes, a menos de oito graus do pólo. As auroras boreais, entrevistas nas regiões setentrionais, não dão sequer uma fraquíssima ideia do que aquilo é lá. Parece que a Providência quis reservar para aqueles climas as suas mais espantosas maravilhas.

Enquanto a Lua permanecia acima do horizonte, apareciam também numerosos parasselénios, que faziam ver no céu muitas imagens do astro e lhe aumentavam o brilho. Por vezes, também, circundavam o astro da noite simples halos, fazendo-o brilhar no centro de um círculo luminoso com esplêndida intensidade.

A 26 de Novembro houve uma grande maré e a água jorrou com força pela boca do poço. A espessa crusta de gelo foi como que sacudida pela elevação das águas. A luta submarina anunciava-se por estrépitos sinistros. O navio, felizmente, segurou-se no leito de gelo em que descansava; aguentaram-no as amarras de segurança que Hatteras, prevendo os acontecimentos, fizera lançar na véspera.

Os dias seguintes apresentaram-se mais frios ainda; o céu cobriu-se de um nevoeiro penetrante, o vento levantava a neve amontoada e era difícil perceber se aqueles turbilhões nasciam do céu ou dos ice-fields. Era uma confusão indizível.

No interior do navio a tripulação ocupava-se em diferentes trabalhos. O principal consistia em preparar a gordura e o óleo de foca, que se convertiam em penhas de gelo, com que só a machado se entrava; esmigalhavam-se assim estas pedras em pedaços bem miúdos, cuja

dureza era igual à do mármore. Assim se fez uma colheita que equivaleria a uns doze barris.

Claro está que era inútil usar de uma vasilha qualquer, que, demais a mais, se teria despedaçado com o esforço do líquido que a temperatura transformava.

No dia 28 o termómetro desceu a 32 graus abaixo de zero (-36 graus centígrados). Não havia carvão para mais de dez dias e todos viam com terror chegar o momento em que esse pouco combustível viesse a faltar.

Hatteras, por medida de economia, mandou apagar o fogão da câmara da ré, e a partir de então Shandon, o doutor e o próprio capitão tiveram de compartilhar com a marinhagem a sala comum. Hatteras ficou assim mais constantemente em contacto com os seus homens, que o olhavam com ar estúpido e malevolente. Deles ouvia recriminações, arguições e até ameaças, sem poder aplicar-lhes o devido castigo. De resto, o capitão parecia surdo a toda e qualquer observação. Nem reclamava, como lhe competia de direito, o lugar mais próximo do lume. Mantinha-se a um canto, de braços cruzados e sem dar palavra.

Pen e consócios, apesar dos conselhos do doutor, recusavam-se a fazer o mais insignificante exercício. Passavam dias e dias encostados ao fogão ou embrulhados nos cobertores das respectivas macas. Alterou-se-lhes, por consequência, em breve a saúde, não puderam reagir contra a funesta influência do clima, e o terrível escorbuto fez a sua aparição a bordo.

O doutor, todavia, começara de há muito a distribuir todas as manhãs sumo de limão e pastilhas de cal. Estes preservativos, porém, habitualmente de tanta eficácia, tiveram apenas insensível acção sobre os doentes, e a enfermidade, prosseguindo no seu curso, em pouco apresentou os mais horríveis sintomas.

Que espectáculo o daqueles desgraçados, a quem a dor fazia contrair todos os nervos e músculos! Inchavam-lhes extraordinariamente as pernas, cobrindo-se de nódoas de um azul-arroxeado; as gengivas, ensanguentadas e tumefactas, mal deixavam passar alguns sons inarticulados, e a massa do sangue, completamente alterada e desprovida de fibrina, não transmitia já a vida às extremidades do corpo.

Clifton foi o primeiro atacado por aquela cruel enfermidade e, dentro em pouco, Gripper, Brunton e Strong tiveram de desistir de levantar-se das macas. Os que a doença poupava ainda não podiam fugir ao espectáculo daqueles sofrimentos, que outro abrigo não havia mais que a sala comum, onde era forçoso permanecer. Nestes termos, a sala prontamente se transformou em hospital, porque de entre os dezoito marinheiros, tripulantes do "Forward", em poucos dias treze deles foram atacados de escorbuto. Pen parecia ter de escapar ao contágio, de que o preservava a sua robusta natureza; Shandon chegou a sentir os primeiros sintomas da enfermidade, que não prosseguiu, porque com algum exercício logrou manter-se em razoável estado de saúde.

O doutor tratava os seus doentes com a mais inteira dedicação, e o coração apertava-se-lhe em presença de males a que não podia dar remédio. No entanto, Clawbonny tentava fazer surgir de entre aquela tripulação angustiada a maior soma de alegria possível. As suas palavras, as suas consolações, as suas reflexões filosóficas, as suas felizes invenções, quebravam a monotonia daqueles longos dias de dor. Lia às vezes em voz alta, outras vezes a sua espantosa memória fornecia-lhe narrativas interessantes, que os homens ainda válidos ouviam entretidos, apinhados em redor do fogão. Interrompiam-no, porém, bastas vezes, os gemidos dos enfermos, os queixumes, os gritos de desesperação, e, suspendendo logo a narração, voltava a ser o médico atento e dedicado.

De resto, a saúde do doutor resistia a tudo; nem sequer emagrecia, e a sua corpulência fazia-lhe as vezes do melhor vestuário. Segundo ele próprio dizia, sentia-se satisfeitíssimo por estar naturalmente vestido como qualquer foca ou como qualquer baleia, animais que, graças às espessas camadas de gordura que lhes revestem o corpo, aguentam facilmente os ataques de uma atmosfera árctica.

Hatteras é que nada sofria, nem física, nem moralmente; os sofrimentos da tripulação nem pareciam sequer impressioná-lo.

Vedava talvez ao semblante que traduzisse o que lhe ia lá dentro; e, contudo, um observador atento teria por vezes surpreendido um coração de homem a pulsar sob aquele invólucro de ferro.

Analisava-o o doutor, estudava-o, mas sem que lograsse classificar aquela organização estranha, aquele temperamento sobrenatural.

O termómetro continuava a baixar, o passeio da tolda estava deserto, só os cães esquimós é que por ali vagueavam, soltando a espaços lamentosos latidos.

Junto do fogão estava sempre de guarda um homem, que cuidava especialmente de o conservar aceso. Importava não o deixar apagar, porque, logo que o fogo começava a esmorecer, entrava o frio na sala, incrustava-se o gelo nas paredes, e a humidade, que de súbito se condensava, caía em neve sobre os desventurados habitantes do brigue.

No meio destas torturas indizíveis chegou o dia 8 de Dezembro. Na manhã desse dia, o doutor, segundo o costume, foi consultar o termómetro externo e achou o mercúrio completamente gelado no reservatório.

- Quarenta e quatro graus abaixo de zero! - disse ele de si para consigo, aterrado.

E naquele mesmo dia deitou-se no fogão o último pedaço de carvão que havia a bordo.

 

             OS GRANDES FRIOS DO NATAL

Houve então um momento de verdadeiro desespero. A ideia da morte, e da morte pelo frio, apareceu em todo o seu horror. Aquele único pedaço de carvão ardia com um crepitar sinistro. O lume começava já a apagar-se e a temperatura da sala baixava sensivelmente. Johnson, porém, foi buscar alguns pedaços do novo combustível que lhe haviam fornecido os animais marítimos, encheu com eles o fogão e, juntando-lhes alguma estopa impregnada de óleo gelado, em pouco logrou obter um calor razoável. O cheiro da gordura queimada era na verdade insuportável, mas como livrar-se dele? Afinal, o caso era tomar-lhe o hábito, que não havia outro remédio. Johnson foi o primeiro em convir que o seu expediente deixava alguma coisa a desejar e que não tinha decerto probabilidades de ser adoptado nas casas burguesas de Liverpul.

- E, no entanto - acrescentou -, talvez este cheiro desagradável traga até bons resultados.

- Então quais? - perguntou o capitão.

- É que decerto há-de atrair para este lado alguns ursos, que são muito gulosos destas emanações.

- Bem - replicou Bell -, mas que necessidade temos nós de ursos?

- Amigo Bell - tornou Johnson -, com as focas não devemos nós já contar, que desapareceram e para muito tempo. Se não vêm alguns ursos fornecer por sua vez combustível, não sei que será de nós.

- Dizes bem, Johnson. A nossa sorte está bem longe de considerar-se segura; a situação é aterradora. Se nos chegar a faltar esta espécie de combustível, não vejo meio algum...:

- Sempre haveria um!...

- Haveria um? - interrompeu Bell.

- Sim, Bell! Em último caso... mas o capitão é que nunca... E, no entanto, talvez tenhamos de recorrer a esse.

O velho Johnson abanou tristemente a cabeça e engolfou-se em silenciosas reflexões, de que Bell não ousou arrancá-lo.

É porque sabia que aqueles pedaços de gordura, com tanto trabalho alcançados, nem oito dias podiam durar, por mais rigorosa que fosse a economia.

Não se enganara o mestre. Dali a pouco avistavam-se por sotavento do "Forward" alguns ursos, atraídos pelas fétidas exalações da gordura queimada. Deram-lhe caça os homens válidos da tripulação. Os ursos, porém, são dotados de uma finura que torna baldados os estratagemas. Foi impossível aproximarem-se convenientemente deles e as balas dos mais destros não lograram alcançá-los.

A tripulação do brigue esteve seriamente ameaçada de morrer de frio; era-lhe impossível resistir quarenta e oito horas a semelhante temperatura, quando ela chegasse a invadir a sala comum. Todos viam com terror chegar o fim do último pedaço de combustível.

E foi o que sucedeu no dia 20 de Dezembro, às três horas da tarde. O lume apagou-se e os marinheiros, apinhados em círculo em roda do fogão, olhavam-se como que espantados. Hatteras permanecia imóvel no seu canto, e o doutor, segundo o costume, passeava agitado. Já não sabia que havia de inventar.

A temperatura caiu subitamente dentro da sala a 7 graus abaixo de zero (-22 graus° centígrados).

Mas se o doutor não sabia já que imaginar, nem que fazer, outros havia que o sabiam, até de mais. Assim, Shandon, sereno e resoluto, Pen com o olhar iracundo, e dois ou três camaradas destes, que ainda podiam arrastar-se, foram direitos a Hatteras.

- Capitão! - disse Shandon.

Hatteras, absorto como estava em seus pensamentos, nem o ouvia.

- Capitão! - repetiu Shandon, tocando-lhe com a mão.

Hatteras ergueu-se e disse:

- Senhor!

- Capitão, já não há lume.

- E então?

- Se é vossa intenção que morramos de frio - prosseguiu Shandon com ironia terrível -, bom será que disso nos informeis.

- A minha intenção - respondeu Hatteras com voz grave - é que todos aqui cumpram o seu dever até ao fim.

- Alguma coisa há acima do dever, capitão - retorquiu o imediato -: é o direito à própria conservação. Repito-vos que estamos sem lume, e, se isto assim continua, dentro de dois dias nem um de nós está vivo!

- Não tenho lenha - respondeu surdamente Hatteras.

- Pois quando não há lenha - exclamou Pen com violência -, vai-se cortar onde quer que a haja!

Hatteras empalideceu de cólera, e perguntou:

- Então aonde?

- Ao navio!-respondeu com insolência o marinheiro.

- Ao navio! -repetiu o capitão, com os punhos cerrados e o olhar fulgurante.

- Forte dúvida - respondeu Pen. - Navio que já não serve para conduzir quem o tripula, queima-se!

Ao começar desta frase Hatteras pegara num machado; quando Pen a terminou, o machado estava-lhe iminente sobre a cabeça e o capitão exclamava:

- Miserávell!

O doutor lançou-se sobre Pen e empurrou-o. O machado caiu, fazendo no sobrado um profundo entalhe. Johnson, Bell e Simpson estavam agrupados em redor de Hatteras e pareciam dispostos a defendê-lo. Mas daqueles beliches, transformados em leitos mortuários, saíram então vozes lamentáveis, queixosas, dolorosas: eram os desgraçados enfermos que clamavam, sentindo o corpo invadido pelo frio, apesar dos cobertores:

- Lume! Lume!

Hatteras fez sobre si próprio um esforço e, passados alguns instantes de silêncio, pronunciou com intonação serena as seguintes palavras:

- Mas se nós destruirmos o navio, como havemos de voltar a Inglaterra?!

- Senhor - respondeu Johnson -, talvez se pudessem queimar, sem grande inconveniente, as partes menos úteis: a amurada, o empavesamento...

- E daí sempre ficavam as chalupas - acudiu Shandon. - E, demais, quem nos impediria de reconstruir um navio mais pequeno com os restos do antigo?...

- Isso nunca! - redarguiu Hatteras.

- Mas... - insistiram alguns marinheiros, levantando

a voz.

- Trazemos espírito de vinho em grande quantidade - respondeu Hatteras. - Queimem-no até à última gota.

- Pois bem, vamos ao espírito de vinho! - disse Johnson, com afectada confiança, que lhe estava bem longe do coração. E conseguiu, por meio de grandes torcidas embebidas naquele líquido, cuja chama pálida lambia as paredes do fogão, elevar de alguns graus a temperatura da sala.

Durante os dias que se seguiram àquela cena angustiosa, o vento volveu a soprar do sul e o termómetro a subir. A neve rodopiou em turbilhões, mas numa atmosfera menos rigorosa, e até alguns dos tripulantes puderam sair do navio às horas menos húmidas do dia. As oftalmias, porém, e o escorbuto obrigaram a maior parte da tripulação a permanecer a bordo. De resto, não era possível caçar nem pescar.

Mas, no fim de contas, estes factos eram apenas um compasso de espera nas atrozes violências do frio, e no dia 25, depois de um inesperado salto de vento, desapareceu outra vez o mercúrio, congelado no reservatório do termómetro. Daí em diante teve de servir de guia o termómetro de espírito de vinho, líquido que os maiores frios não conseguem solidificar.

O doutor observou aterrado que esse termómetro marcava 66 graus abaixo de zero (-52 graus centígrados). Dificilmente terá sido dado ao homem aguentar uma temperatura de tal ordem.

Pelo sobrado estendia-se o gelo, figurando espelhos embaciados; a sala tinha sido invadida por um nevoeiro espesso; a humidade, transformando-se, caía em densos frocos de neve; os tripulantes não se viam uns aos outros; o calor humano abandonava as extremidades, os pés, as mãos, que tomavam uma cor arroxeada. Parecia que a cabeça estava cingida por um círculo de ferro, e o pensamento, confuso, enfraquecido, gelado, era quase um delírio. Sintoma assustador: a língua não podia já articular uma só palavra!

Hatteras, desde o dia em que o haviam ameaçado de lhe queimar o navio, vagueava longas horas na tolda, espreitando, velando. Aquela madeira era a sua carne! Cortar dali um bocado era cortar-lhe um membro. Passeava sempre armado e vigilante, insensível ao frio, à neve e ao gelo que lhe retesava o fato, envolvendo-o como numa couraça de granito. "Duck", que o compreendia, andava sempre a ladrar após ele e acompanhava-o com os seus uivos.

No dia 25 de Dezembro, todavia, o capitão desceu à sala comum e o doutor, aproveitando-se de um resto de energia, correu direito a ele e comunicou-lhe:

- Hatteras, vamos todos morrer por falta de lume!

- Nunca! - respondeu Hatteras, que bem sabia a que tácita pergunta assim respondia.

- É uma necessidade - insistiu com brandura o doutor.

- Nunca! - tornou Hatteras com mais força. - Nunca consentirei em tal. Desobedeçam-me se quiserem!

Estas palavras equivaliam para a tripulação à liberdade de proceder como melhor entendesse. Johnson e Bell subiram logo ao convés e daí a pouco Hatteras ouvia o madeiramento do seu brigue ressoar debaixo dos golpes do machado. Até chorou!

Era aquele dia o dia de Natal, que em Inglaterra é essencialmente consagrado às festas de família, às reuniões infantis!

Que amarga recordação a daquelas alegres crianças rodeando a árvore do Natal! Quem se não havia de recordar daquelas enormes peças de carne assada, tiradas do boi expressamente cevado para aquela ocasião? E as tortas e os minced-pies, em que entra toda a espécie de ingredientes, propositadamente amalgamados para celebrar aquele dia tão caro aos corações ingleses? Aqui, porém, a dor, o desespero, a miséria no seu último grau, e, em vez do cepo do Natal, esses pedaços de pau, arrancados a um navio perdido nas profundezas da zona glacial!

Entretanto, sob o influxo benéfico do lume, voltou ao coração dos marinheiros o sentimento e a força. As bebidas a escaldar, chá ou café, produziram um bem-estar momentâneo e a esperança é coisa tão arreigada no espírito humano que todos recomeçaram a esperar. No meio destas alternativas, acabou o funesto ano de 1860, cujo Inverno precoce tinha frustrado os ousados planos de Hatteras.,

E sucedeu precisamente ser o 1 de Janeiro de 1861 assinalado por uma descoberta inesperada. Fazia nesse dia um pouco menos frio. O doutor recomeçara os seus estudos habituais e lia as narrativas de viagem de Sir Edward Belcher acerca da expedição que fez aos mares do pólo. De súbito estacou, como que assombrado, à vista de uma passagem que até ali lhe passara despercebida; tornou a ler e reconheceu que o sentido era perfeitamente claro.

Contava Sir Edward Belcher que, depois de ter chegado à extremidade do canal da Rainha, descobrira importantes vestígios de terem por ali passado e habitado homens.

«Consistem estes - dizia - em restos de habitações bem superiores a tudo que é lícito atribuir aos hábitos grosseiros das tribos errantes de esquimós. As paredes destas edificações estão bem assentes no terreno, profundamente escavado; o solo interior, coberto de uma espessa camada de cascalho, bem se conhece que foi calcado. Ali se vê grande quantidade de ossos de rangíferos, de vitelos-marinhos e de focas. Também lá encontrámos carvão.»

Ao ler estas últimas palavras, surgira uma ideia no espírito do doutor.

Pegou no livro e foi mostrá-lo a Hatteras.

- Carvão! - exclamou este.

- Sim, Hatteras, carvão. Tanto vale dizer a salvação de nós todos!

- Carvão! Nesta costa deserta! - tornou Hatteras. - Nada, isso é impossível.

- Porque duvidar, Hatteras? Belcher não era homem que asseverasse um facto de tal ordem sem o ter por certo, sem o ter visto com os próprios olhos.

- E então, e depois, doutor?

- Estamos a menos de cem milhas da costa onde Belcher viu esse carvão. E uma excursão de cem milhas o que é? Nada. Quantas vezes se têm feito excursões mais longas pelos gelos e com frios não menores?! Partamos pois, capitão!

- Partamos! - exclamou Hatteras, que rapidamente tomara uma decisão, em que a mobilidade do seu espírito lhe fazia já ver probabilidades de salvação.

Johnson foi imediatamente prevenido desta resolução e aprovou muito o projecto, que logo comunicou aos camaradas. Destes, uns aplaudiram-no, outros receberam a comunicação com indiferença.

- Carvão nestas costas! Ora! - disse Wall do leito de dor em que estava como que sepultado.

- Deixa-os andar - respondeu misteriosamente Shandon.

Antes, porém, que tivessem começado os preparativos da jornada, Hatteras quis calcular de novo, com toda a exactidão, a posição do "Forward". Facilmente se concebe a importância deste cálculo e qual a razão por que era necessário conhecer, com exactidão matemática, a situação do navio. Os que dele se afastassem não poderiam tornar a encontrá-lo sem estarem munidos de indicações numéricas perfeitamente rigorosas.

Por consequência, Hatteras subiu ao convés; observou grande número de distâncias lunares e as alturas meridianas das estrelas principais.

Estas observações ofereciam sérias dificuldades porque, naquela baixíssima temperatura, os vidros e os espelhos dos instrumentos cobriam-se de uma camada de gelo, proveniente da respiração do observador, e a Hatteras mais de uma vez se lhe queimaram as pálpebras ao encostá-las ao cobre das lunetas.

Conseguiu, todavia, o capitão obter bases extremamente exactas para os seus cálculos, que veio acabar na sala. Quando concluiu o trabalho, levantou a cabeça, estupefacto, pegou na carta, marcou-a e olhou para o doutor.

- Então? - perguntou este.

- Em que latitude estávamos nós no princípio da invernada?

- A setenta e oito graus e quinze minutos de latitude por noventa e cinco graus e trinta e cinco minutos de longitude, precisamente no pólo do frio.

- Pois então - acrescentou Hatteras, em voz baixa - tem abatido o nosso campo de gelo, porque estamos agora dois graus mais ao norte e mais a oeste, pelo menos a trezentas milhas do tal depósito de carvão!

- E estes desgraçados que o não sabem! - exclamou o doutor.

- Silêncio! - recomendou Hatteras, levando um dedo aos lábios.

 

         PREPARATIVOS DE PARTIDA

Não quis Hatteras pôr a tripulação ao facto daquela nova situação. E fez bem. Aqueles infelizes, se soubessem que estavam a ser arrastados para o norte, eram capazes de se entregar a todas as loucuras do desespero. Compreendeu-o também assim o doutor e aprovou o silêncio do capitão.

Hatteras ocultara no mais profundo do seu coração toda a impressão que lhe causara aquela descoberta. Foi aquele primeiro instante feliz que gozou em tantos meses passados em luta incessante contra os elementos. Achava-se transplantado para cem milhas mais ao norte, para oito graus apenas do pólo! Ocultou, porém, o capitão tão profundamente a sua alegria que nem o próprio doutor dela suspeitou. Perguntava Clawbonny a si próprio porque brilharia com tão desusado fulgor o olhar de Hatteras, mas em perguntar ficou, que nem pela cabeça lhe passou sequer tão natural resposta a suas perguntas.

O "Forward", ao passo que se aproximava do pólo, afastava-se do jazigo de carvão observado por Sir Edward Belcher. Para ir dar com ele era necessário andar para o sul, em vez de cem, duzentas e cinquenta milhas. Contudo, depois de curta discussão, acerca do assunto, entre Hatteras e Clawbonny, a ideia da viagem ficou de pé.

Se Belcher falara verdade, e da veracidade dele não era lícito duvidar, as coisas deviam encontrar-se então no mesmo estado em que ele as tinha deixado, porque, a partir de 1853, nenhuma expedição nova fora dirigida para aqueles extremos continentes. Naquela latitude poucos ou nenhuns esquimós se encontravam. E, assim, o triste desengano que os viajantes tinham sofrido na ilha Beechey não podia reproduzir-se nas costas da Nova Cornualha, onde, demais a mais, a baixa temperatura do clima conservava indefinidamente os objectos abandonados à sua influência. Por consequência, todas as probabilidades se reuniram para aconselhar aquela excursão através dos gelos.

Calculou-se que a viagem podia levar, quando muito, quarenta dias, e Johnson começou a fazer todos os preparativos em consequência.

Tratou ele em primeiro lugar do trenó, para o qual escolheu a forma gronelandesa, dando-lhe trinta e cinco polegadas de largura por vinte e quatro pés de comprimento. Os esquimós chegam a construí-los de mais de cento e cinquenta pés de comprido. Compunha-se aquele, que ora descrevemos, de compridas pranchas encurvadas na frente e na traseira e tendidas como um arco por duas cordas muito grossas. Esta disposição supria, até certo ponto, a falta de molas, tornando menos perigosos os choques. Pelo gelo corria este trenó com toda a facilidade, mas quando nevava e que as brancas camadas não estavam ainda endurecidas, adaptavam-se-lhe dois caixilhos verticais justapostos e, assim levantado, podia caminhar sem que a tiragem crescesse sensivelmente. Além disto, a superfície de atrito do trenó era sempre esfregada com um misto de neve e enxofre, receita esquimó, que fazia com que ele escorregasse pelo gelo com facilidade notável.

O tiro do trenó compunha-se de seis cães. Estes animais, robustos apesar da sua magreza, não pareciam sofrer muito com aquele rigoroso Inverno. Os arreios, que eram de pele de gamo, estavam em magnífico estado. Com toda aquela equipagem, conscienciosamente vendida pelos gronelandeses de Uppernawik, podia e devia contar-se. Só aqueles seis animais deviam puxar um peso de duas mil libras, sem se cansarem muito. O trem de acampamento consistia numa barraca, para o caso de ser impossível construir uma snow house*1, numa grande porção de tela de mackintosh, destinada a estender-se em cima da neve, para impedir que esta se derretesse com o calor dos corpos, e, finalmente, em muitos cobertores de lã e de peles de búfalo. Acrescente-se a isto o halkett-boat, que os viajantes levavam também.

As provisões consistiram em cinco caixas de pemmican, que pesavam pouco mais ou menos quatrocentas e cinquenta libras. Era uma libra de pemmican por dia e por cabeça, entrando na conta os cães, que, com "Duck", eram sete, devendo os homens ser quatro. Iam também doze galões, isto é, cento e cinquenta libras de espírito de vinho; chá, biscoito em abundância, uma pequena cozinha portátil, com uma quantidade notável de torcidas e de estopa; pólvora, munições e quatro espingardas de dois canos. Os homens que iam na expedição deviam levar, segundo a invenção do capitão Parry, o corpo cingido por uma cintura de cauchu, dentro da qual o calor do corpo e o movimento da marcha manteriam no estado líquido café, chá e água.

Johnson cuidou com especial atenção da feitura dos snow-shoes*2, solados de pau e guarnecidos de tiras de couro, que faziam as vezes de patins. Nos terrenos perfeitamente gelados e endurecidos, substituía este calçado, com vantagem, as sapatas de pele de gamo. Cada viajante, teve, pois, de levar dois pares de cada qualidade.

Estes preparativos, tão importantes que o menor descuido neles pode ser a causa da ruína de uma expedição, levaram quatro dias inteiros. Em todos eles, ao meio-dia, teve Hatteras o cuidado de marcar por meio de observação a posição do seu navio, que já então não abatia. A certeza absoluta desta situação era necessária para quando se tratasse de regressar.

Tratou então Hatteras de escolher os homens que o deviam acompanhar, sendo esta uma decisão de toda a gravidade. Alguns havia que não era muito conveniente que fossem, mas que também se não podiam deixar a bordo sem grave risco.

 

*1. Casa de neve.

  1. Calçado para andar no gelo.

 

No entanto, como a salvação comum dependia do bom êxito daquela viagem, pareceu oportuno ao capitão antepor a todas as considerações a da escolha de companheiros seguros e provados.

Shandon ficou, por conseguinte, excluído, com o que não manifestou nenhuma espécie de pesar. James Wall, de cama como estava, não podia fazer parte da

expedição.

Diga-se também que o estado dos doentes não se agravara. O tratamento consistia em repetidas fricções e em fortes doses de sumo de limão. Não era, pois, difícil de seguir, nem por forma alguma exigia a presença do doutor. Pôs-se este por consequência à testa dos viajantes, sem que a sua partida desse origem à menor reclamação, Johnson desejaria muito acompanhar o capitão naquela arriscada empresa, mas este chamou-o de parte e, com voz afectuosa, quase enternecida, disse-lhe:

- Johnson, de todos quantos aí ficam, só em vós confio. A nenhum outro oficial posso entregar o navio. Preciso saber que estais aqui para vigiar Shandon e os outros. Agora estão eles aqui acorrentados pelo Inverno. Quem sabe, porém, de que funestas resoluções é capaz a sua malvadez. Deixar-vos-ei as minhas determinações formais, que entregarão, em caso de necessidade, o comando nas vossas mãos. Sereis um outro eu. A nossa ausência durará, quando muito, quatro ou cinco semanas, e ficando vós onde eu não posso estar, vou descansado. Bem sei que haveis de precisar de lenha, Johnson! Poupai o o meu pobre navio quanto couber no possível. Ouvis,

Johnson?

- Bem oiço, capitão - respondeu o velho marinheiro -, e cá ficarei, visto que o julgais conveniente.

- Obrigado! - disse Hatteras, apertando as mãos do

mestre; e acrescentou:

- Se virdes que não volto, Johnson, esperai até ao próximo desabamento dos gelos e tratai de fazer um reconhecimento para as partes do pólo. Se os outros se opuserem a isso, não penseis mais em nós e reconduzi o "Forward" para Inglaterra.

- É essa a vossa vontade, capitão?

- A minha vontade absoluta - asseverou Hatteras.

- As vossas ordens serão cumpridas - prometeu Johnson singelamente.

Tomada esta resolução, o doutor sentiu sinceramente a falta do seu estimável amigo, mas teve de convir em que Hatteras, procedendo como procedera, fizera o que devia.

Os outros dois companheiros da expedição foram o carpinteiro Bell e Simpson. O primeiro, são de corpo, valente e dedicado, devia prestar grandes serviços nos acampamentos sobre a neve; o segundo, apesar de menos resoluto, aceitou todavia lugar numa expedição a que podia ser muito útil na sua dupla qualidade de caçador e pescador.

Assim, o destacamento compôs-se de Hatteras, Clawbonny, Bell, Simpson e do fiel "Duck". Havia, portanto, a alimentar quatro homens e sete cães, e os mantimentos tinham sido calculados em consequência.

Durante os primeiros dias de Janeiro, a temperatura manteve-se, em média, a 33 graus abaixo de zero ( -37 graus centígrados). Hatteras espreitava com impaciência alguma mudança de tempo. Bastas vezes consultou o barómetro; este, porém, pouca confiança merecia; nas altas latitudes parece este instrumento perder a sua habitual exactidão. Naqueles climas, a Natureza infringe, com excepções notáveis, as suas leis gerais. Assim, a limpidez da atmosfera nem sempre era acompanhada de frio, a neve nem sempre era sinal de elevação de temperatura, o barómetro permanecia incerto, como o haviam notado já muitos dos navegadores dos mares polares, e descia quase sempre com o vento de norte ou de leste, indicando assim bom tempo quando estava abaixo, neve ou chuva quando alto. Por consequência não era admissível servirem-se de tais indicações.

Afinal, a 5 de Janeiro, veio com uma brisa de leste uma elevação de temperatura de quinze graus; a coluna termométrica volveu a 18 graus abaixo de zero ( -28 graus centígrados). Hatteras resolveu partir no dia seguinte: já não podia com o triste espectáculo de se fazer em pedaços o seu navio mesmo na sua presença. Todo o castelo de popa tinha já servido de pasto às chamas.

Por conseguinte, no dia 6 de Janeiro, e no meio das rajadas de vento e neve, foi dada ordem de partida. O doutor fez as suas últimas recomendações aos doentes; Bell e Simpson trocaram silenciosos apertos de mão com os companheiros. Hatteras quis fazer as suas despedidas em voz alta, mas viu-se rodeado de olhares pouco benévolos. Pareceu-lhe que surpreeendera nos lábios de Shandon um sorriso de ironia, mas calou-se. Talvez até que hesitasse um instante em partir, quando relanceou para o "Forward" um olhar de despedida.

Mas não era lícito reconsiderar, que o trenó esperava já no campo de gelo, carregado e atrelado. Bell tomou a dianteira e os outros seguiram-no. Johnson acompanhou os viajantes um quarto de milha, mas, como Hatteras lhe pedisse que voltasse sem demora para bordo, o velho marinheiro assim o fez, depois de um prolongado

adeus.

Hatteras, voltando-se naquele momento para contemplar ainda uma vez o seu brigue, viu que o tope dos mastros desaparecia por entre as sombrias neves do céu.

 

             POR ESSES CAMPOS DE GELO FORA

O pequeno grupo desceu para os lados de sueste. A equipagem do trenó dirigia-a Simpson, zelosamente auxiliado por "Duck", a quem não parecia causar a menor admiração o ofício que desempenhavam os seus semelhantes. Hatteras e o doutor iam na retaguarda, ao passo que Bell, encarregado de explorar o caminho, marchava na frente, sondando os gelos com a ponta do seu pau ferrado.

A subida do termómetro anunciara próxima queda de neve, que se não fez esperar, caindo daí a pouco em espessos frocos, cujos opacos turbilhões aumentavam ainda as dificuldades da viagem, porque obrigavam os viajantes a andar devagar e a afastar-se da linha recta; mas, apesar de tudo isto, o andamento da expedição regulava em média por três milhas por hora.

O campo de gelo, actuando em diferentes sentidos pelas pressões da congelação, apresentava uma superfície acidentada e desigual. Eram frequentes agora as topadas do trenó, que se inclinava às vezes, formando ângulos de meter medo, seguindo os naturais declives do caminho; mas afinal sempre os viajantes lograram sair sãos e salvos daquele arriscado passo.

Hatteras e seus companheiros embuçaram-se com todo o cuidado nos trajos de peles, talhados à moda gronelandesa, e que, se não brilhavam pela elegância do corte, pelo menos eram apropriados às necessidades do clima. O rosto dos viajantes ia emoldurado num apertado capuz, impenetrável ao vento e à neve; só a boca, os olhos e o nariz é que estavam em contacto com o ar e nem convinha resguardá-los. Nada há mais incómodo que as golas altas e os cachenez, que em curto espaço endurecem com o gelo e que à noite só se poderiam tirar a machado, maneira esta de se despir que nem nos mares árcticos deixaria de ser pouco admissível. Ali, o que convém é deixar livre passagem à respiração, porque esta, se encontra um obstáculo, congela-se imediatamente.

A planura sem fim seguia, seguia com monotonia de cansar. Por todos os lados penhas de gelo, amontoadas sob aspectos uniformes, hummocks cuja irregularidade acabava por parecer regular, penhascos fundidos todos no mesmo molde, e icebergues, por entre os quais serpenteavam tortuosos vales. Os expedicionários caminhavam com a bússola na mão e pouco falavam. Naquela frígida atmosfera, abrir a boca é um verdadeiro tormento: formam-se de súbito, entre os lábios, agudos cristais de gelo, que o calor do bafo não logra dissolver. A marcha prosseguia pois, mas silenciosa, tenteando cada um com o seu cajado aquele terreno desconhecido. As pegadas de Bell imprimiam-se nas camadas moles, e todos o seguiam atentamente, que onde passava podia também arriscar-se o resto do grupo.

Cruzavam-se em todos os sentidos numerosos vestígios de ursos e de raposas, porém, no primeiro dia de jornada não foi possível pôr a vista em cima de um só dos tais animais. Também dar-lhes caça era então, além de perigoso, perfeitamente inútil, porque o trenó ia já carregado até de mais.

Ordinariamente, nas excursões daquele género, os viajantes têm o cuidado de ir deixando pelo caminho depósitos de víveres, que colocam em esconderijos feitos de neve, para os resguardar dos animais. Estes depósitos são outra tanta carga de menos que se leva na viagem e no regresso são provisões que, pouco a pouco, se vão recolhendo, sem se ter tido o trabalho de as transportar!

Num campo de gelo, porventura móvel, não podia Hatteras recorrer a semelhante expediente; e assim estes depósitos, praticáveis em terra firme, não o eram no meio daqueles ice-fields; além do que, as incertezas do caminho tornavam extremamente problemático o regresso pelos mesmos lugares já percorridos.

Ao meio-dia, Hatteras mandou parar o pequeno grupo, ao abrigo de uma muralha de gelo. O almoço compôs-se de pemmican e de chá a ferver. As qualidades vivificadoras daquela bebida produziram um verdadeiro bem-estar, e os viajantes, depois de beberem à vontade e de descansarem uma hora, meteram-se de novo a caminho. Vinte milhas se tinham andado naquele primeiro dia de jornada; ao anoitecer, homens e cães, estava tudo estafado.

E, todavia, apesar do cansaço, forçoso foi construir uma casa de neve para lá passar a noite, porque a barraca de campanha seria insuficiente. Foi negócio de hora e meia de trabalho. Bell teve ocasião de dar provas da sua destreza. Assentaram-se uns sobre outros, com rapidez, alguns penhascos de gelo talhado à faca, formando uma espécie de cúpula, e um último pedregulho firmou a solidez do edifício, fazendo as vezes de chave da abóbada; a neve, ainda mole, serviu de argamassa, enchendo os interstícios, e em curto espaço, endurecendo, fez de toda a construção uma mole compacta, única.

Dava entrada para aquela improvisada gruta uma estreita abertura, por onde se passava de rastos. Por ali se encaixou o doutor, não sem trabalho, e os companheiros após ele.

A ceia preparou-se rapidamente na cozinha de espírito de vinho. A temperatura interna da snow house era muito tolerável. O vento, que lá fora soprava com violência, não entrava ali.

- Para a mesa! - exclamou daí a pouco o doutor com a sua voz mais amável.

E fez-se em comum aquela refeição, sempre a mesma, pouco variada, mas reconfortante. Terminada esta, ninguém pensou senão em dormir. As telas de mackintosh, estendidas em cima da camada de neve, resguardavam completamente da humidade. As meias e o calçado enxugaram-se ao calor da chama da cozinha portátil. Em seguida, três dos viajantes deitaram-se por turnos a dormir, embrulhados nos seus cobertores de lã e guardados pelo quarto.

Ao que estava de sentinela incumbia velar pela segurança de todos e impedir que se tapasse a entrada, sob pena de ficarem enterrados vivos.

"Duck" ficou na câmara comum; o resto dos cães dormia fora, ao tempo, e, depois de cear, lá se agasalharam como puderam debaixo da neve, que dentro em pouco lhes forneceu um cobertor impenetrável.

O cansaço da jornada em breve trouxe o sono. O doutor começou o seu quarto de vigia pelas três horas da madrugada. A tempestade desencadeava-se então com fúria no meio das trevas. Que estranha situação a daquela pobre gente, isolada, perdida no meio das neves, sepultada naquele túmulo, cujas paredes iam engrossando a cada rajada!

No dia seguinte pela manhã, por volta das seis horas, recomeçou o monótono caminhar. Sempre os mesmos vales, sempre os mesmos icebergues, sempre a mesma uniformidade, que até tornava difícil a escolha dos pontos de referência. No entanto, a marcha dos viajantes tornou-se mais rápida em virtude de um abaixamento de temperatura de alguns graus, que gelou as camadas de neve. Encontravam-se por vezes uns certos montículos, que pareciam cairns ou esconderijos de esquimós. O doutor, por descargo de consciência, fez demolir um deles, mas não encontrou dentro mais que um pedregulho de gelo.

- Que esperáveis encontrar, Clawbonny? - perguntou Hatteras. - Pois não somos nós os primeiros homens que pisam esta parte do Globo?

- É possível - admitiu o doutor -, mas, enfim, quem sabe?

- Não percamos tempo em vãs indagações - prosseguiu o capitão. - Tenho pressa de voltar ao meu navio, ainda mesmo que encontremos esse tão desejado combustível.

- Ah! Lá a esse respeito tenho eu boas esperanças.

- Doutor - dizia por vezes Hatteras -, fiz mal em deixar o "Forward", foi um erro! O lugar do capitão é a bordo do seu navio e não fora dele.

- Lá está Johnson.

- É verdade! Mas, enfim, vamos depressa... Quanto mais depressa formos, melhor!

O trenó caminhava com rapidez. Ouviam-se os gritos de Simpson excitando os cães que, em virtude de estranho fenómeno de fosforescência, corriam num solo inflamado. Os caixilhos do trenó pareciam levantar uma poeira de faíscas. O doutor caminhara um pouco mais para a frente a fim de examinar a natureza daquela neve, quando de repente, ao saltar um hummock, desapareceu. Bell, que estava ali perto, acudiu-lhe logo e gritou, inquieto:

- Então que foi isso? Sr. Clawbonny, onde estais? Neste meio tempo chegavam Hatteras e Simpson.

- Doutor! - chamou o capitão.

- Por aqui! Dentro de um buraco - respondeu uma voz tranquilizadora. - Lancem-me um bocado de corda, que já volto à superfície do Globo.

Lançaram uma corda ao doutor, que estava encaixado no fundo de um funil cavado a uns dez pés de profundidade. Ele próprio se atou pela cintura e os três companheiros içaram-no com algum trabalho.

- Estais ferido? - perguntou Hatteras.

- Nunca! A mim nunca me sucede mal - respondeu o doutor, sacudindo o rosto prazenteiro, todo enfarinhado de neve.

- Mas como caístes?

- Ora! Foi por culpa da retracção! - informou ele, rindo. - Sempre a tal retracção! Cuidei que ia saltar um intervalo de um pé de largura e caí num buraco de dez pés de profundidade! Ah! Estas ilusões de óptica! São as únicas ilusões que me restam, amigos, mas estas hão-de me custar a perder! Sirva-vos este caso de lição e não deis um passo sem ter previamente sondado o terreno, que aqui não pode a gente contar nem com os próprios sentidos! Aqui os ouvidos ouvem tudo trocado e os olhos vêem tudo às avessas! É na realidade uma região de predilecção!

- Podemos prosseguir a marcha? - perguntou o capitão.

- Continuemos, Hatteras, continuemos! Esta pequena queda fez-me mais bem do que mal.

E os viajantes prosseguiram na sua marcha para o lado de sueste. À noite descansaram, depois de vinte e cinco milhas de marcha. Estavam extenuados, o que não impediu que o doutor trepasse a uma montanha de gelo, enquanto se construía a casa de neve.

A Lua, quase cheia ainda, brilhava com extraordinário fulgor num céu puríssimo; as estrelas emitiam raios de surpreendente intensidade. Do cume do icebergue estendia-se a vista por sobre a planura imensa, acidentada de cômoros de estranhas formas. Quem os visse assim dispersos, resplandecendo sob os feixes de raios lunares, recortando os seus nítidos perfis, nas trevas circundantes, semelhantes a colunas de pé, a fustes derrubados, a pedras tumulares, diria que era ali um vasto cemitério, sem árvores, triste, silencioso, infinito, em que cabiam à larga, deitadas para um sono eterno, vinte gerações do mundo inteiro.

O doutor, apesar do frio e do cansaço, ficou-se longo tempo numa contemplação da qual custou aos companheiros arrancá-lo. Força era, porém, tratar de repousar; a cabana de neve estava preparada. Os quatro viajantes meteram-se nela, quais toupeiras, e não tardou que adormecessem.

O dia seguinte e mais alguns passaram sem que ocorresse incidente que mereça mencionar-se. A viagem ia-se fazendo com maior ou menor dificuldade, com mais rapidez ou vagar, segundo os caprichos da temperatura, agora rude e glacial, logo húmida e penetrante. A natureza do terreno ora exigia o uso das sapatas de pele de gamo, ora o do calçado próprio para o gelo.

Assim se chegou ao dia 15 de Janeiro. A Lua, que estava então no seu último quartel, pouco tempo permanecia visível; o Sol, apesar de sempre oculto abaixo do horizonte, dava já diariamente seis horas de luz crepuscular, ainda insuficiente para iluminar o caminho, que era necessário balizar, segundo a direcção indicada pela bússola.

Bell caminhava na vanguarda. Atrás dele, em linha recta, marchava Hatteras. Em seguida Simpson e o doutor, enfiando-se um pelo outro, de maneira que não vissem senão Hatteras, procuravam assim manter-se na linha recta.

Todavia, apesar de tantos cuidados, afastavam-se por vezes dela trinta e quarenta graus, e neste caso era necessário balizar de novo o caminho. Em 15 de Janeiro, que era um domingo, calculava Hatteras ter andado mais de cem milhas para o sul. A manhã daquele dia foi consagrada à reparação do trem de vestuário e de acampamento. Não ficou, porém, no esquecimento a leitura do serviço divino.

Ao meio-dia recomeçou a marcha. A temperatura estava baixíssima; o termómetro marcava apenas 32 graus abaixo de zero (-36 graus centígrados) e a atmosfera apresentava-se puríssima.

De repente, e sem que coisa alguma pudesse fazer pressagiar tão súbita mudança, levantou-se do solo um vapor em completo estado de congelação, que subiu até noventa pés aproximadamente de altura, e aí ficou imóvel. A um passo de distância ninguém se via; aquele vapor pegava-se ao vestuário, cobrindo-o de longos e agudos prismas.

Os viajantes, surpreendidos por este fenómeno do frost-rime*1, só tiveram a princípio uma ideia, reunirem-se; e logo se ouviram diferentes gritos de chamada:

- Simpson!

- Bell! Por aqui!

- Sr. Clawbonny!

- Doutor!

- Capitão! Onde estais?

Procuravam-se uns aos outros, os quatro companheiros de jornada, com os braços estendidos, por entre aquele denso nevoeiro, que não deixava ao olhar visibilidade alguma. O que mais devia desassossegá-los é que nenhum ouvia resposta. Dir-se-ia que aquele vapor era impróprio para transmitir o som.

A todos, por consequência, ocorreu a ideia de descarregarem as armas para darem um sinal de reunir. Mas, se o som da voz parecia muito fraco, as detonações das armas eram excessivamente fortes; porque os ecos, apoderando-se destes sons e repercutindo-os em todas as direcções,

 

*1. Fumo gelado.

 

produziam um ribombar confuso, sem direcção apreciável.

Cada um procedeu então como lho ditava o seu próprio instinto. Hatteras parou e, cruzando os braços, esperou. Simpson contentou-se, não sem custo, em segurar o trenó a seu cargo. Bell voltou para trás, apalpando com todo o cuidado, com as mãos, os vestígios das próprias pegadas. O doutor, às topadas com as penhas de gelo, aqui cai, acolá se levanta, caminhava ora para a direita, ora para a esquerda, cruzando as suas próprias pegadas, e cada vez se desorientava mais.

No fim de cinco minutos, disse para consigo:

«Isto não pode durar muito! Que singular clima! Verdade é que casos imprevistos não faltam, não, pelo contrário! Não sabe a gente com que há-de contar, não falando já nos tais prismazinhos agudos, que rasgam a cara à gente». Depois, em voz alta, o doutor chamou de novo: - Olá! ó capitão!?

Mas não obteve resposta; e, mesmo sem saber para quê, foi tornando a carregar a espingarda, cujo cano frio lhe queimou as mãos, apesar das espessas luvas que trazia. Enquanto nisto se ocupava, pareceu-lhe distinguir, a poucos passos, uma grande massa confusa, que se movia.

- Enfim! - disse. - Hatteras! Simpson! Bell! Sois vós? Vejamos, respondei!

A resposta foi um grunhido surdo.

«Ai! Ai! Ai!», pensou o bom doutor. «Que será isto?!»

A enorme massa ia-se aproximando; e, ao passo que perdia as suas dimensões primeiras, os contornos tornavam-se-lhe mais nítidos. Acudiu de súbito ao espírito do doutor um pensamento terrível.

«É um urso!», disse ele de si para consigo.

Efectivamente devia ser um urso e de boas dimensões, que, desvairado pelos nevoeiros, andava para a direita, para a esquerda, para diante, para trás, em risco de topar com aqueles viajantes, de cuja presença nem suspeitava sequer.

«O caso vai-se complicando!», pensou o doutor, conservando-se imóvel.

E ora sentia o bafo morno do animal, que pouco depois se perdia no frost-rime, ora divisava as enormes patas do monstro, que se agitavam no ar, passando tão perto dele que mais de uma vez lhe rasgaram o fato com as aguçadas garras. Dava então um salto para trás e logo a massa movediça desaparecia como os espectros fantasmagóricos.

O doutor, porém, quando assim recuava, sentiu que o terreno se lhe ia levantando debaixo dos pés e, auxiliando-se com as mãos, agarrando-se às arestas das penhas de gelo, trepou a um penhasco, depois a outro, apalpou com a ponta do cajado, e disse para consigo:

«É um icebergue! Se lá chego acima, estou salvo!»

E, assim monologando, trepou com agilidade surpreendente a aproximadamente oito pés de altura. Ali ficava-lhe a cabeça acima da superfície superior do gelado nevoeiro, que perfeitamente se destacava do ambiente.

«Bom!», disse, continuando a falar consigo mesmo; e, relanceando em volta um olhar, avistou os três companheiros, que a um tempo emergiam daquele denso fluido.

- Hatteras!

- Sr. Clawbonny!

- Bell!

- Simpson!

Estes quatro gritos partiram quase simultâneos. Do céu, iluminado por um halo magnífico, vinham uns pálidos raios de luz, que coloriam como a uma nuvem o frost-rime; o cume dos icebergues parecia sair de uma massa de prata líquida. Os viajantes estavam circunscritos num círculo de menos de cem pés de diâmetro. Graças à pureza das camadas superiores da atmosfera e à frieza da temperatura, as palavras ouviam-se com facilidade extrema e os viajantes puderam conversar do alto da penha de gelo.

Todos eles, depois dos tiros de espingarda, como não ouvissem resposta, acharam por bem que o melhor que tinham a fazer era subir até chegar acima do nevoeiro.

- E o trenó?! - gritou o capitão.

- Está a oitenta pés abaixo de nós - elucidou Simpson.

- Em bom estado?

- Em bom estado.

- E o urso? - perguntou o doutor.

- Qual urso?

- O que eu encontrei, o que me ia esmagando a cabeça.

- Um urso! - exclamou Hatteras. - Toca a descer!

- Nada! Nada - replicou o doutor -, que nos tornávamos a perder e tínhamos de voltar ao princípio...

- E se o animal se lança sobre os cães?!... - lembrou Hatteras.

Naquele momento ouviram-se retumbantes os latidos de "Duck", que vinham de dentro do nevoeiro e facilmente chegavam ao ouvido dos viajantes.

- É "Duck"! - exclamou Hatteras. - Há decerto novidade. Eu cá desço.

Saía então daquela massa confusa um concerto horrível de toda a espécie de uivos. "Duck" e os outros cães ladravam com alma. Aquela confusão de ruídos assemelhava-se a um zumbido formidável, mas abafado, não estrepitoso, tal como o produziriam mil sons confundidos numa sala de paredes estofadas. Percebia-se que ali, no fundo daquela espessa bruma, se digladiava algum combate invisível. O vapor agitava-se por vezes, como o mar durante uma luta de monstros marinhos.

- "Duck"! "Duck"! - gritou o capitão, dispondo-se a entrar de novo no frost-rime.

- Esperai! Hatteras, esperai! - recomendou o doutor. - Parece-me que o nevoeiro se vai dissipando.

Não se dissipava a névoa, mas ia baixando como as águas de um tanque que pouco a pouco se despeja. Parecia que entrava de novo no solo donde nascera; as cumeadas resplandecentes de alguns icebergues iam crescendo acima dela; outros, até então imersos, saíam do nevoeiro como ilhas novas. Os viajantes, agarrados aos seus cones de gelo, julgavam, por uma ilusão de óptica fácil de imaginar, que subiam na atmosfera, quando o nível superior do nevoeiro é que descia por baixo deles.

Daí a pouco começou a aparecer a parte superior do trenó, logo os cães de tiro, depois outros animais, em número de uns trinta, depois ainda enormes massas, que se agitavam, e "Duck" aos saltos, ora elevando a cabeça acima da camada de gelo, ora mergulhando-a de novo.

- São raposas! - exclamou Bell.

- E ursos! - acrescentou o doutor. - Um, três, cinco!

- E os nossos cães! E as nossas provisões!? - exclamou Simpson.

Era um bando de raposas e de ursos, que tendo dado com o trenó, reunidos em perfeita concórdia pelo instinto de pilhagem, abriam grande brecha nos mantimentos. Os cães latiam com fúria. O bando devastador, porém, pouco se importava com os latidos e prosseguia com sanha naquela cena de destruição.

- Fogo! - ordenou o capitão, descarregando a arma.

Os companheiros imitaram-no. Os ursos, porém, ao ouvirem aquela quádrupla descarga, levantando a cabeça e soltando um cómico grunhido, deram o sinal da partida. Meteram a trote curto, mais veloz que o galope de qualquer cavalo, e desapareceram rápidos por entre os gelos do norte, seguidos do bando de raposas.

 

               O "CAIRN"

Durara três quartos de hora aquele fenómeno peculiar dos climas polares. Os ursos e as raposas tinham tido tempo de sobra para fazer das suas e os víveres apareceram mesmo a propósito para realentar aqueles animais, reduzidos à fome por tão rigoroso Inverno. O toldo do trenó, rasgado por garras possantes, caixas de pemmican abertas e arrombadas, sacos de biscoitos roubados, provisões de chá espalhadas pela neve, um barril de espírito de vinho com as aduelas separadas e vazio do seu precioso conteúdo, o trem de acampamento disperso, saqueado, tudo testemunhava a sanha daquelas feras, a sua famélica avidez e a sua insaciável voracidade.

- Que desgraça esta - lamentou Bell, contemplando aquela cena de desolação.

- E provavelmente irreparável - acrescentou Simp-son.

- Primeiro que tudo, tratemos de avaliar os estragos - continuou o doutor -; depois falaremos.

Hatteras, sem dizer palavra, ia já apanhando as caixas e os sacos dispersos. Apanhou-se muito biscoito e pemmican ainda aproveitável. O facto de se ter perdido uma parte do espírito de vinho era muito desagradável porque, faltando o espírito de vinho, adeus bebidas quentes, adeus chá, adeus café. O doutor, procedendo ao inventário dos mantimentos que tinham escapado, verificou o desaparecimento de duzentas libras de pemmican e de cento e cinquenta libras de biscoito. Assim, continuando a viagem, força era que os viajantes se pusessem a meia ração.

Discutiu-se, por conseguinte, o que havia a fazer em tais circunstâncias. Deveriam os viajantes voltar ao navio e tornar depois a empreender a mesma expedição? E as cinquenta milhas já andadas, quem poderia decidir-se a perdê-las? Regressar sem o tão necessário combustível era caso para produzir desastrosíssimos efeitos no espírito da tripulação! Quem sabe mesmo se, depois disso, se achariam ainda homens assaz determinados para recomeçar aquela jornada através dos gelos?

O melhor, evidentemente, era continuar para a frente, ainda à custa das mais duras privações.

O doutor, Hatteras e Bell eram mais favoráveis à última solução. Simpson opinava pelo regresso. As fadigas da viagem tinham-lhe alterado a saúde; ia visivelmente perdendo as forças; mas, enfim, como visse que era o único da sua opinião, voltou a tomar o seu lugar à frente do trenó e a pequena caravana continuou a sua marcha para o sul.

Neste dia e nos dois seguintes, de 15 a 17 de Janeiro, reproduziram-se os monótonos incidentes da viagem. A marcha era mais vagarosa; os viajantes começavam a cansar e o cansaço atacava-lhes especialmente as pernas; os cães de tiro já a custo puxavam o carro. Aquela alimentação insuficiente não era própria para dar forças nem aos homens nem aos animais. O tempo variava com a sua habitual mobilidade, saltando de um frio intenso para nevoeiros húmidos e penetrantes.

Desde 18 de Janeiro mudou de repente o aspecto dos campos de gelo. Ergueram-se no horizonte numerosos píncaros, semelhantes a pirâmides e terminados por uma ponta aguda e muito alta. Em alguns sítios o terreno atravessava a camada de neve, parecendo ser formado de gneisse, de xisto e de quartzo, com alguns vestígios de rochas calcárias. Os viajantes pisavam, afinal, a terra firme e, pela estimativa que então podia fazer-se, aquela terra devia ser o continente chamado a Nova Cornualha. O doutor não pôde deixar de bater com o pé, satisfeito, naquele terreno sólido. Não tinham já os viajantes a transpor senão cem milhas para chegar ao cabo Belcher.

As fadigas da viagem pareciam, todavia, aumentar notavelmente naquele terreno acidentado e semeado de agudas rochas, de perigosos ressaltos, de fendas e de precipícios. Era forçoso meterem-se pelo interior das terras e trepar às altas rochas da costa, através de estreitas gargantas, em que as neves se acumulavam a trinta e quarenta pés de altura.

Dentro em pouco já os viajantes tinham saudades do caminho quase plano, quase fácil dos ice-fields, tão propícios para o escorregar do trenó. Agora, era forçoso puxar com alma; os cães, extenuados, derreados, já não chegavam para tanto, e os homens, obrigados pela necessidade a atrelar-se a par deles, estafavam-se para os aliviar. Mais de uma vez foi necessário tirar do carro toda a carga de provisões para transpor alguns montículos quase a prumo, e cuja superfície, coberta de gelo, nem ao menos dava presa. Houve bocado de caminho, de não mais de dez pés, que levou horas a transpor. Por esta forma, apenas se ganharam, naquele primeiro dia de jornada, umas cinco milhas naquela terra de Cornualha, decerto bem baptizada, porque apresenta as mesmas asperezas, as mesmas agudas pontas, as mesmas arestas vivas, as mesmas rochas convulsionadas que a extremidade sudoeste da Inglaterra.

No dia seguinte, o trenó chegou à parte superior das rochas marginais. Os viajantes tão extenuados estavam que, não podendo construir a sua casa de neve, tiveram de passar a noite ao abrigo da barraca de campanha, embrulhados nas peles de búfalo e aquecendo as meias molhadas no próprio peito. As consequências inevitáveis de tal higiene facilmente se compreendem. Demais a mais, o termómetro, naquela noite, desceu abaixo de zero 44 graus (-42 graus centígrados) e o mercúrio gelou.

A saúde de Simpson continuava em estado de inspirar sérios cuidados. Um defluxo teimoso, violentos reumatismos, dores intoleráveis, obrigavam-no a deitar-se no trenó, que já não podia guiar. Substituiu-o Bell, que também sofria, mas cujos padecimentos não eram tais que o obrigassem a deitar-se.

Também o doutor se ressentia da influência daquela excursão, feita em tão terrível Inverno; mas, apesar disso, nem uma queixa se lhe ouvia; caminhava na frente, apoiando-se no pau ferrado e servindo de guia; em tudo prestava valioso auxílio. Hatteras, impassível, impenetrável, insensível, válido como no primeiro dia, com o seu temperamento de ferro, seguia em silêncio o trenó.

A 20 de Janeiro, tão rigoroso foi o frio que o menor esforço tinha por imediata consequência uma completa prostração. Entretanto as dificuldades do terreno tornaram-se de tal ordem que o doutor, Hatteras e Bell tiveram de se atrelar a par dos cães. A dianteira do trenó tinha-se despedaçado com alguns choques imprevistos e forçoso foi consertá-lo. Estas e outras causas de demora reproduziram-se muitas vezes ao dia.

Os viajantes seguiam por uma profunda ravina, atacados pela neve até à cintura e a suar no meio daquele frio violento. Ninguém dava palavra. De repente, Bell, que caminhava junto do doutor, olha para ele assustado e, sem dizer palavra, apanha uma mão-cheia de neve e começa a esfregar com ela o rosto do companheiro.

- Então, Bell! Então! - gritava o doutor, debatendo-se.

Bell, porém, continuava a esfregar com quanta força

tinha.

- Vejamos, Bell - prosseguiu o doutor, com a boca, nariz e olhos cheios de neve -, estais doido ou o que

é isto?

- O que é? - respondeu Bell. - É que se ainda tendes nariz a mim o deveis.

- Nariz! - repetiu o doutor, levando a mão ao rosto.

- É verdade, Sr. Clawbonny. Estáveis completamente frostbitten. Quando para vós olhei já tínheis o nariz todo branco, e, se vos não aplico o meu tratamento enérgico, ficáveis privado desse ornamento que, apesar de incómodo em viagem, não deixa de ser necessário durante o resto da existência.

E na realidade o doutor por pouco ficava com o nariz gelado. Felizmente, a circulação do sangue restabelecera-se a propósito e, graças às vigorosas fricções de Bell, desaparecera inteiramente o perigo.

- Obrigado, Bell! - disse o doutor. - Em ocasião oportuna pagarei na mesma moeda.

- Com isso conto, Sr. Clawbonny - volveu o carpinteiro. - Oxalá que nunca tivéssemos a temer maiores desgraças!

- Ai! Bell - continuou o doutor -, decerto aludis a Simpson! O pobre rapaz muito deve sofrer!

- Inspira-vos receios o seu estado? - perguntou vivamente Hatteras.

- Inspira, capitão.

- E que temeis?

- Um violento ataque de escorbuto. As pernas já lhe estão a inchar e as gengivas a inflamar-se. O desgraçado está ali deitado debaixo dos cobertores do trenó, meio gelado, e os choques a cada instante avivam as suas dores. Lamento-o, Hatteras, mas não está no meu poder dar-lhe alívio!

- Pobre Simpson! - murmurou Bell.

- Talvez não fosse mau fazermos uma paragem de um ou dois dias - sugeriu o doutor.

- Parar - exclamou Hatteras -, quando do nosso regresso está dependente a vida de dezoito homens!

- Ainda assim... - ia objectar o doutor.

- Clawbonny, Bell, ouvi-me - interrompeu Hatteras -, não nos restam víveres senão para vinte dias! Vede, pois, se podemos perder um instante sequer!

Nem o doutor nem Bell responderam palavra, e o trenó prosseguiu na sua marcha, por um momento interrompida.

Ao anoitecer os viajantes pararam junto a um montículo de gelo, em que Bell talhou prontamente uma caverna onde os viajantes se refugiaram. O doutor passou a noite a tratar do infeliz Simpson, em quem o escorbuto produzia já estragos horrorosos e de cujos lábios tumefactos saía a custo um continuado gemido, resultado de tanto padecer.

- Ai, Sr. Clawbonny!

- Coragem, meu rapaz! - animava o doutor.

- Desta não escapo eu! Sinto-o! Já não posso mais! Antes morrer!

A estas palavras de desespero respondia o doutor com incessantes cuidados. Apesar de moído pelas fadigas do dia, empregava a noite a compor alguma bebida calmante para o enfermo.

O lime-juice, porém, já não tinha acção e as fricções não impediam que o escorbuto se fosse a pouco e pouco desenvolvendo.

No dia seguinte era forçoso tornar a deitar aquele desventurado no trenó, apesar de ele pedir para ficar só, abandonado, e que o deixassem morrer em paz. E em seguida continuava aquela marcha temerosa, no meio de dificuldades sem cessar acumuladas.

Os gélidos nevoeiros penetravam naqueles homens até à medula dos ossos; a neve e o granizo açoutavam-lhes o rosto. Faziam as vezes de besta de carga, sem terem ao menos alimentação suficiente.

"Duck", à imitação do dono, andava de um para outro lado, desafiando todas as fadigas, sempre vigilante, descobrindo sempre instintivamente o melhor caminho a seguir, e o caso é que todos confiavam na sua maravilhosa

sagacidade.

Na manhã do dia 23 de Janeiro, em meio de completa obscuridade, porque era lua nova, "Duck" tomara grande dianteira. Por espaço de muitas horas perderam-no os viajantes de vista. Hatteras começou a sentir-se inquieto e tanto mais que no chão se cruzavam numerosas pegadas de urso. Estava o capitão incerto acerca do que havia de fazer, quando ouviu fortes latidos.

Hatteras fez apressar a marcha do trenó e em breve alcançou o fiel animal no fundo de um barranco.

"Duck", amarrado, imóvel, como se estivera petrificado, ladrava diante de uma espécie de cairn, feito de alguns pedregulhos calcários, cobertos de argamassa de

gelo.

- Desta vez - disse o doutor, desapertando as correias - é que é um cairn. Não há equívoco possível.

- E que nos importa? - volveu Hatteras.

- É que se for um cairn, Hatteras, talvez contenha algum documento para nós precioso. Pode encerrar algum depósito de mantimentos e o caso vale a pena de indagar-se.,

- E qual seria o europeu que viesse até aqui?

perguntou Hatteras, erguendo os ombros.

- Mas, se não foram europeus - replicou o doutor -, não podiam ser alguns esquimós, que fizessem neste sítio um esconderijo para guardar os produtos da sua pesca ou da sua caça? Parece-me que a suposição não desdiz dos hábitos deles, não é assim?

- Pois bem, Clawbonny, vede, vede - concedeu Hatteras. - Receio, porém, que seja trabalho baldado.

Clawbonny e Bell encaminharam-se para o cairn, armados de alviões. "Duck" continuava a ladrar com furor. As pedras calcárias estavam fortemente cimentadas pelo gelo; mas, com alguns golpes de picareta, caíram espalhadas pelo chão.

- Evidentemente aqui há alguma coisa - disse o doutor.

- Assim o creio - concordou Bell.

E num instante deram com o cairn em terra, descobrindo logo um esconderijo, em que estava encerrado um papel muito húmido.

O doutor deitou-lhe a mão com o coração palpitante. Hatteras aproximou-se logo, tomou das mãos do doutor o documento, e leu:

 

«Altam... "Porpoise", 13 Dez... 1860, 21, long... 8 graus 35 lat...»

 

- O "Porpoise"! - disse o doutor.

- O "Porpoise"! - repetiu Hatteras. - Não conheço navio com esse nome que frequente estes mares.

- O que é evidente é que passaram por aqui, há menos de dois meses, alguns navegadores, alguns náufragos talvez.

- Isso é que não há dúvida - apoiou Bell.

- Que faremos? - perguntou o doutor.

- Continuar o nosso caminho - respondeu com frieza Hatteras. - O que o tal navio "Porpoise" é, não sei eu, mas o que sei é que o brigue "Forward" espera pelo nosso regresso.

 

               A MORTE DE SIMPSON

E a viagem continuou. Ao espírito de todos acudiam ideias novas e imprevistas, que naquelas terras boreais um encontro é o mais grave acontecimento que pode dar-se. Hatteras carregava as sobrancelhas, inquieto.

«O "Porpoise"!», perguntava ele a si próprio. «Que qualidade de navio seria esse? Que viria fazer tão perto

do pólo?!»

E só com tal pensamento, apesar do frio, tinha calafrios. O doutor e Bell, esses não cuidavam senão nos dois resultados que a descoberta daquele documento podia trazer: salvar alguns dos seus semelhantes, ou serem salvos

por eles.

As dificuldades, porém, os obstáculos, as fadigas, depressa voltaram, e forçoso foi que pensassem unicamente na própria situação, então melindrosa.

O estado de Simpson piorava, e o doutor, não podendo desconhecer os evidentes sintomas de morte próxima, que o enfermo apresentava, todavia nada podia fazer-lhe, antes ele próprio padecia então de uma oftalmia dolorosa, de que podia cegar, se lhe não acudisse depressa. Dava então o crepúsculo quantidade bastante de luz que, reflectida pelos gelos, queimava os olhos, sendo difícil abrigá-los daquela luz reflexa, porque os vidros dos óculos cobriam-se de uma crosta de gelo, tornavam-se opacos e interceptavam a vista. E como fosse essencial guardar-se cuidadosamente de todos os acidentes do caminho e avistá-los o mais de longe possível, força era correr todos os riscos de oftalmia. Entretanto, Bell e o doutor guiavam alternadamente o trenó e, enquanto um tomava a frente do carro, o outro cobria os olhos,

O trenó escorregava mal nos caixilhos já gastos; a tiragem ia-se tornando cada vez mais penosa; as dificuldades do terreno não diminuíam, e os viajantes, sobre terem de se haver com um continente de natureza vulcânica, ouriçado e sulcado de cristas e arestas vivas, tinham-se visto forçados a subir, pouco a pouco, à altura de mil e quinhentos pés, para transporem as cumeadas das montanhas. A temperatura ali era ainda mais áspera; as ventaneiras e os turbilhões desencadeavam-se com violência sem igual, e era um triste espectáculo ver aqueles desventurados arrastarem-se por tão desoladas alturas.

Demais a mais, todos eles iam atacados do mal de brancura. Aquele brilhar uniforme fazia agonias, entontecia, produzia vertigens; parecia que faltava o terreno, que não oferecia nenhum ponto fixo em todo o imenso lençol branco. A sensação que os viajantes experimentavam era a do balanço de um navio quando o convés foge debaixo dos pés ao marinheiro, e nenhum deles podia acostumar-se àquela sensação, cuja continuidade acabava por lhes entontecer a cabeça. Apoderava-se-lhes então dos membros tal torpor, do espírito tal sonolência, que por vezes caminhavam como homens que estivessem quase adormecidos. Vinha tirá-los daquela inércia um solavanco, uma topada inesperada, às vezes mesmo uma queda. Poucos instantes depois, porém, voltavam à interrompida letargia.

A 25 de Janeiro começaram os viajantes a descer por vertentes quase a prumo e as fadigas da jornada cresceram ainda naqueles gelados declives. Ali, um passo em falso, aliás dificílimo de evitar, podia precipitá-los em barrancos profundíssimos, onde ficariam perdidos irremediavelmente.

Ao anoitecer, uma tempestade extremamente violenta varreu as cumeadas nevadas. Ninguém podia resistir à violência do furacão; era forçoso deitarem-se no chão, mas, como a temperatura era extremamente baixa, corria-se o risco de ficar instantaneamente gelado.

Bell, com o auxílio de Hatteras, construiu, com grande sacrifício, uma snow house, em que aqueles desgraçados procuraram guarida. Logo que se encontraram lá dentro, ingeriram alguns bocados de pemmican e um pouco de chá quente. O espírito de vinho que restava não chegava a quatro galões e era necessário gastar dele para matar a sede, porque convém saber que a neve não pode ser absorvida sob a sua forma natural; é preciso derretê-la. Nas regiões temperadas, onde o frio desce apenas abaixo do ponto de congelação, a neve não produz efeitos nocivos, mas, além do círculo polar, o caso é muito diferente: chega a uma temperatura tão baixa que é tão impossível agarrar-lhe com a mão como num pedaço de ferro em brasa, apesar de a neve ser péssimo condutor do calórico. Assim, há uma diferença tal de temperatura entre a neve e o estômago, que a absorção dela produz uma espécie de sufocação. Os esquimós preferem sofrer os mais longos tormentos a matar a sede com a neve, que por forma alguma pode substituir a água e que, em vez de matar a sede, a aumenta. Por consequência, os viajantes não podiam beber sem derreter a neve, queimando espírito de vinho.

Às três da manhã, na maior força da tempestade, chegou a vez do doutor de fazer o seu quarto de vigia. Estava ele encostado num dos ângulos da casa, quando lhe chamou a atenção um lamentoso queixume de Simpson. Levantou-se para lhe prestar os seus bons ofícios, mas quando ia a levantar-se deu uma grande pancada com a cabeça na abóbada de gelo.

Sem se preocupar de forma alguma com este incidente, inclinou-se para Simpson e pôs-se a dar-lhe fricções nas pernas inchadas e arroxeadas; depois de meia hora deste tratamento o doutor quis levantar-se e bateu pela segunda vez com a cabeça, apesar de estar então ajoelhado.

«É esquisito isto!», disse o doutor de si para consigo.

E, levando a mão à cabeça, notou que a abóbada baixava sensivelmente.

- Meu Deus! - exclamou. - Alerta, amigos! Hatteras e Bell, ao ouvirem estes gritos, levantaram-se com rapidez e, por seu turno, bateram com as cabeças no tecto. A obscuridade era profunda.

- Estamos em risco de ficar esmagados! - advertiu o doutor. - Lá para fora! Lá para fora!

E todos três, arrastando Simpson através da abertura, deixaram aquela perigosa guarida. Era tempo: daí a poucos instantes os penhascos de gelo, mal seguros, aluíam com estrépito.

Acharam-se então aqueles desventurados sem abrigo no meio da tempestade, sob a acção daquele frio extremamente rigoroso. Hatteras tratou imediatamente de armar a barraca, e, como esta não pudesse manter-se contra a violência do vendaval, forçoso foi procurar abrigo nas dobras da tela, que dali a pouco estava carregada de espessa camada de neve; mas aquela neve, ao menos, como impedia o calor de irradiar para fora, livrou os viajantes de perigo de serem gelados vivos.

O vendaval só no dia seguinte acalmou. Bell, quando ia atrelar os cães, insuficientemente alimentados, percebeu que três deles tinham começado a roer os arreios de couro; dois pareciam muito doentes e não podiam ir longe.

A caravana, sem embargo, meteu-se de novo a caminho tão bem como era possível. Faltavam ainda umas sessenta milhas para chegar ao ponto indicado.

No dia 26, Bell, que marchava na frente, chamou de repente os companheiros, e, quando estes chegavam correndo, mostrou-lhes, com ar de profundo pasmo, uma espingarda encostada a um penhasco de gelo.

- Uma espingarda! - disse o doutor.

Hatteras pegou na arma e examinou-a. Estava em bom estado e carregada.

- Os tripulantes do "Porpoise" não podem encontrar-se longe - disse o doutor.

Hatteras, ao examinar a arma, observou que ela era de origem americana. Contorceram-se-lhe as mãos convulsas em torno do cabo gelado e ordenou com voz surda:

- A caminho! A caminho!

E a caravana continuou a descer a vertente das montanhas. Simpson parecia ter perdido inteiramente os sentidos. Já não se queixava, faltavam-lhe as forças.

O vendaval continuava. A marcha do trenó ia-se tornando cada vez mais vagarosa; em vinte e quatro horas apenas se ganhariam algumas milhas, e, apesar da mais estrita economia, os víveres iam sensivelmente diminuindo, mas, enquanto houvesse mais que o necessário para o regresso, Hatteras havia de marchar para a frente. No dia 27 encontrou-se quase enterrado na neve um sextante, mais adiante uma cabaça, contendo aguardente, ou, para melhor dizer, um pedaço de gelo, no centro do qual se refugiara todo o espírito do líquido, sob a forma de uma bola de neve. Assim o líquido de nada podia servir.

Evidentemente, Hatteras ia involuntariamente seguindo os vestígios de uma grande catástrofe; ia caminhando pelo único caminho praticável e recolhendo os despojos de algum naufrágio horrível. O doutor observava com extremo cuidado, a ver se avistava algum novo cairn, mas debalde.

Acudiam-lhe ao espírito tristes pensamentos. Em verdade, se chegasse a descobrir aqueles infelizes, que espécie de socorro poderia prestar-lhes? A ele e aos companheiros começava a faltar de tudo; os fatos rasgavam-se-lhes, os víveres já escasseavam. Se aqueles náufragos fossem numerosos, morria tudo de fome. Hatteras parecia estar inclinado a fugir deles! E não teria razão, ele que era o responsável pela salvação da sua tripulação? Deveria comprometer a segurança de todos, levando estranhos para bordo?

Mas esses estranhos eram homens, semelhantes, compatriotas talvez! Por fraca que fosse a probabilidade de os salvar, haveria direito a roubar-lha? Quis o doutor conhecer o modo de pensar de Bell a este respeito. Bell, porém, não lhe deu resposta. Os sofrimentos próprios tinham-lhe endurecido o coração. Clawbonny não ousou interrogar Hatteras. Entregou-se nas mãos da Providência. Nesse mesmo dia 27, ao cair da noite, Simpson parecia estar na última extremidade. Os membros hirtos e regelados, a respiração arquejante, que lhe formava em volta da cabeça como que um nevoeiro, os sobressaltos convulsos do corpo, eram seguros prenúncios de que estava chegada a sua última hora. A expressão do seu rosto era terrível, desesperada, e os últimos olhares dirigiam-se com cólera impotente para o capitão. Era uma acusação formal, uma colecção completa de exprobrações mudas, mas significativas e talvez merecidas!

Hatteras não se aproximava do moribundo. Evitava-o, fugia dele, mais concentrado, mais metido consigo do que nuncai

A noite seguinte correu temerosa; a tempestade redobrou de violência. A barraca de campanha três vezes foi derrubada, e então o drijt de neve caía sobre aqueles desventurados, cegando-os, gelando-os, e atravessava-os com os agudos dardos que arrancava dos gelos circundantes. Os cães uivavam lamentosos. Simpson permanecia exposto àquela temperatura cruel.

Bell conseguiu restabelecer o miserável abrigo de tela, que, se não abrigava do frio, ao menos protegia contra a neve. Mas uma rajada mais rápida pela quarta vez o levou, arrastando-o no seu turbilhão, no meio de temerosos silvos.

- Ah! isto é sofrer de mais! - exclamou Bell.

- Coragem! Coragem! - recomendou o doutor, agarrando-se a ele para não rolar pelos barrancos.

Simpson estava no estertor, mas de súbito, fazendo um último esforço, sentou-se no chão, estendeu o punho fechado para Hatteras, que olhava para ele fixamente, soltou um grito angustioso e caiu morto no meio da sua ameaça incompleta.

- Morreu! - exclamou o doutor.

- Morreu! - repetiu Bell.

Hatteras, que caminhava direito ao cadáver, teve de recuar ante a violência do vento.

Era Simpson o primeiro de toda aquela tripulação que caía ferido por aquele mortífero clima, o primeiro que não mais veria o porto, o primeiro que, depois de um padecer incalculável, pagava com a vida a intratável teimosia do capitão. Aquele morto tinha-lhe chamado assassino, mas Hatteras não curvou a cabeça sob o peso da tremenda acusação. Contudo, da sua pálpebra inflamada escorregou uma lágrima, que foi gelar-se-lhe na face pálida.

O doutor e Bell olhavam para o capitão com uma espécie de terror.

Hatteras então, apoiado no seu comprido cajado, figurava o génio daquelas regiões hiperbóreas, firme no meio do vendaval desencadeado, sinistro na sua tremenda imobilidade.

Assim permaneceu, de pé, imóvel, até aos primeiros clarões do crepúsculo, ousado, tenaz, indomável, parecendo desafiar a tempestade que em torno dele rebramia.

 

             REGRESSO AO "FORWARD"

Por volta das seis da manhã o vento acalmou e, saltando de súbito ao norte, expulsou as nuvens do céu; o termómetro marcava 33 graus abaixo de zero (-37 graus centígrados). Os primeiros clarões do crepúsculo prateavam então aquele horizonte, que alguns dias mais tarde deviam dourar.

Hatteras acercou-se dos companheiros desalentados e comunicou-lhes com voz suave e triste:

- Amigos, mais de sessenta milhas nos separam ainda do ponto indicado por Sir Edward Belcher. Em mantimentos temos apenas o estritamente necessário para regressar ao nosso navio. Ir mais além seria expor-nos a uma morte certa, sem proveito para ninguém. Voltemos pelo mesmo caminho.

- E é essa uma resolução acertada, Hatteras - respondeu o doutor. - Eu, por mim, ter-vos-ia seguido até onde vos aprouvesse levar-me. A saúde de nós todos, porém, de dia para dia vai enfraquecendo; mal podemos pôr um pé diante do outro. Por consequência aprovo plenamente o projecto de regressar.

- E a vossa opinião é também a mesma, Bell? - perguntou Hatteras.

- É, capitão - respondeu o carpinteiro.

- Pois bem - continuou Hatteras -, descansemos dois dias. Não é de mais. O trenó está a pedir consertos importantes e entendo que também devemos construir uma casa de neve em que possamos refazer-nos das forças.

Decidido este ponto, os três deitaram-se ao trabalho com ardor. Bell tomou todas as precauções necessárias para assegurar a solidez da sua construção, e dali por pouco erguia-se no fundo da ravina, onde por último se fizeram alto, um albergue suficiente.

Hatteras fizera sem dúvida violento esforço sobre si próprio para interromper a viagem. Tantos trabalhos, tantas fadigas perdidas! Uma excursão inútil, que custara a vida de um homem! Regressar a bordo sem um pedaço de carvão! Que seria da tripulação? Que iria ela fazer, instigada por Ricardo Shandon? Hatteras, porém, não podia lutar mais e parecia resignar-se sob mais este contratempo.

Volveu então toda a sua atenção para os preparativos de regresso. O trenó consertou-se. De resto, a carga era agora tão diminuta que nem duzentas libras pesava. Os vestuários, gastos, rotos, impregnados de neve e endurecidos pela geada, consertaram-se também; as sapatas de pele de gamo e os snow-shoes, velhos e incapazes já de uso, foram substituídos por outros novos. Em todos estes trabalhos se passou inteiro o dia 29 e a manhã do dia 30. De resto, os três viajantes iam descansando o melhor que lhes era possível e recuperando forças para o que estava para vir.

Durante aquelas trinta e seis horas, passadas na casa de neve ou nos penhascos da ravina, o doutor observava "Duck", cujo modo de ser singular lhe não parecia natural. Andava o animal sem cessar, fazendo mil circuitos imprevistos, que pareciam ter um centro comum, uma espécie de elevação de terreno produzida por diferentes camadas de gelo sobrepostas. "Duck" andava à volta daquele ponto e latia de mansinho, agitando a cauda com impaciência e olhando para o dono, a quem parecia interrogar.

O doutor, depois de alguma reflexão, atribuiu aquele estado de inquietação à presença do cadáver de Simpson, que os companheiros não tinham enterrado ainda por falta de tempo.

Resolveu, pois, proceder naquele mesmo dia à triste cerimónia, e o caso era urgente porque, no dia seguinte, ao despontar o crepúsculo, tinham de partir.

Bell e o doutor muniram-se de alviões e dirigiram os passos para o fundo da ravina. A eminência tão farejada por "Duck" oferecia um lugar favorável para o enterramento do cadáver, que era necessário inumar a grande profundidade para o subtrair às garras dos ursos.

O doutor e Bell começaram por levantar a camada superficial de neve mole, e em seguida atacaram o gelo endurecido; à terceira pancada, o alvião do doutor encontrou um corpo duro, que se partiu. Clawbonny apanhou do chão os fragmentos e conheceu que eram os restos de uma garrafa de vidro.

Bell, pela sua parte, descobria ao mesmo tempo um saco encoscorado que continha migalhas de bolacha, perfeitamente conservada.

- E esta? - disse o doutor.

- Que quererá isto dizer? - perguntou Bell, suspendendo o trabalho.

O doutor chamou então Hatteras, que veio logo. "Duck" ladrava com força e tentava escavar com as patas a espessa camada de gelo.

- Daríamos nós com algum depósito de mantimentos? - supôs o doutor.

- É natural - admitiu Bell.

- Continuem - ordenou Hatteras.

Tiraram-se ainda alguns restos de alimentos e uma caixa, cuja quarta parte estava ainda cheia de pemmican.

- Se é esconderijo - disse Hatteras-, decerto os ursos já cá vieram antes de nós. Reparem que essas provisões não estão intactas.

- É para recear, é - concordou o doutor - porque...

Não concluiu, porém, a frase começada! Veio interrompê-la um grito de Bell, que, afastando uma grande penha de gelo, mostrava uma perna hirta e gelada, que saía pelo intervalo dos pedregulhos de gelo.

- Um cadáver! - exclamou o doutor.

- Não é um esconderijo de provisões, mas um túmulo - observou Hatteras.

O corpo foi tirado para fora da escavação, e reconheceu-se que era de um marinheiro de uns trinta anos de idade. O cadáver estava em estado de perfeita conservação. O seu vestuário era o usual dos navegadores árcticos, e o doutor não pôde dizer de que época datava o falecimento.

Mas depois daquele cadáver, Bell descobriu outro, de um homem de seus cinquenta e tantos anos, que conservava ainda no semblante os terríveis vestígios dos sofrimentos que o haviam vitimado.

- Isto não são corpos enterrados! - exclamou o doutor. - Estes desgraçados foram surpreendidos pela morte no estado em que agora os encontramos!

- Assim parece, Sr. Clawbonny - opinou Bell.

- Continuem! Continuem! - ordenou Hatteras. Bell nem se atrevia a prosseguir. Quem poderia dizer

quantos cadáveres humanos estariam encerrados naquele cômoro de gelo?

- Estes homens foram vítimas de acidente, que também connosco se ia dando - disse o doutor. - Veio-lhes abaixo a casa de gelo. Vamos a ver se algum respira ainda!

Dali a pouco estava o cômoro desmanchado e Bell tirava da escavação um terceiro corpo, de um homem de seus quarenta anos. Este não tinha a mesma aparência cadavérica dos outros. O doutor inclinou-se para ele, julgou surpreender ainda alguns sintomas de vida e exclamou:

- Está vivo! Está vivo!

E ele e Bell transportaram aquele corpo para dentro da casa de neve, ao passo que Hatteras contemplava imóvel as ruínas da habitação desmoronada.

O doutor despiu completamente o infeliz desenterrado e não lhe achou em todo o corpo sinal de ferimento; então, com o auxílio de Bell, começou a dar-lhe valentes fricções com um pedaço de estopa embebido em espírito de vinho, e percebeu que voltava a vida, pouco a pouco, àquele corpo. O desgraçado, porém, estava num estado de prostração absoluta, sem fala; a língua, como que gelada, aderia-lhe ao céu da boca.

O doutor revistou as algibeiras do enfermo, mas encontrou-as vazias e, por consequência, a respeito de documentos que esclarecessem o caso, nada! Encarregou Bell de continuar as fricções e foi ter com Hatteras.

Este descera à escavação feita no lugar onde fora a casa de neve, remexera o terreno minuciosamente e saía então de lá, trazendo na mão um fragmento de sobrescrito, meio queimado, em que podiam ler-se as seguintes palavras:

 

           ... tamont ... orpoise" ... va Iorque.

 

- Altamont! - exclamou o doutor. - Tripulante do "Porpoise"! De Nova Iorque!

- Um americano! - tornou Hatteras, estremecendo.

- Hei-de salvá-lo! - garantiu o doutor. - Por isso fico eu, e teremos então a chave deste tremendo enigma.

E voltou para junto do corpo de Altamont. Hatteras ficou-se meditabundo.

O infeliz Altamont, graças aos cuidados do doutor, em breve voltou à vida, mas não ao sentimento. Não via, nem ouvia, nem falava, mas enfim estava vivo!

No dia seguinte, de manhã, Hatteras anunciou ao doutor:

- No fim de contas, é necessário partir.

- Pois partamos, Hatteras! E como o trenó vai descarregado, podemos nele levar este desgraçado até ao navio.

- À vontade - disse Hatteras. - Antes de partir, porém, dêmos sepultura a esses cadáveres.

Tornaram-se a colocar os corpos dos dois marinheiros desconhecidos debaixo dos destroços da casa de neve e o corpo de Simpson substituiu o corpo de Altamont.

Os três viajantes, como último adeus ao seu companheiro, rezaram-lhe sobre o túmulo uma fervorosa oração e às sete da manhã prepararam-se para se porem de novo a caminho do navio.

Dois dos cães de tiro haviam morrido, mas "Duck" veio de seu moto próprio oferecer-se para puxar o trenó, missão que desempenhou com a consciência e a resolução de um cão gronelandês.

Por espaço de vinte dias, de 31 de Janeiro a 19 de Fevereiro, a viagem de regresso apresentou pouco mais ou menos as mesmas peripécias que a da ida, com a diferença de que agora, no mês de Fevereiro, que é o mais frio do Inverno, o gelo por toda a parte oferecia uma superfície resistente. Os viajantes continuaram a sofrer terrivelmente por causa da temperatura, mas não por causa de turbilhões nem de vento.

O Sol reapareceu afinal, pela primeira vez depois de 31 de Janeiro, e cada dia se ia mantendo por mais tempo acima do horizonte.

Bell e o doutor estavam completamente exaustos de forças, quase cegos e meio estropiados; o carpinteiro nem já podia andar sem muletas.

Altamont continuava vivo, mas em estado de tão completa insensibilidade que, por vezes, chegaram a desesperar da sua salvação; todavia, os inteligentes cuidados do doutor sempre lograram conservar-lhe a vida. E, no entanto, o doutor do que mais carecia era de se tratar a si próprio, que a saúde ia-se-lhe também abalando com as fadigas.

Hatteras, esse, tinha uma só coisa no pensamento: o "Forward", o seu brigue. Em que estado iria encontrá-lo? Que se teria passado a bordo? Teria Johnson podido resistir a Shandon e consócios? O frio fora terrível. Teriam acaso queimado o mal-aventurado navio? Ter-lhe-iam ao menos respeitado a mastreação, a querena?

E, pensando em tudo isto, Hatteras marchava à frente, como quem queria avistar o "Forward" de mais longe!

No dia 24 de Fevereiro, pela manhã, o capitão estacou de súbito. A trezentos pés, na sua frente, aparecia um clarão avermelhado, por cima do qual flutuava uma imensa coluna de fumo negro, que se ia perder nas pardacentas brumas do céu!

- Este fumo! - exclamou Hatteras.

E o coração palpitou-lhe com tanta força que parecia querer rebentar.

- Olhai! Acolá em baixo! Aquele fumo! - apontou ele aos companheiros, que já então estavam junto dele. - O meu navio está a arder!

- Mas nós ainda estamos a mais de três milhas do brigue!. - redarguiu Bell. - Não pode ser o "Forward".

- Pode, pode - respondeu o doutor -, e não é senão o nosso navio. É um fenómeno de miragem que o faz parecer mais perto de nós.

- Corramos! - exclamou Hatteras, tomando a dianteira aos companheiros.

Estes abandonaram o trenó à guarda de "Duck" e correram velozes atrás do capitão.

Uma hora depois chegavam todos à vista do navio.

Que horrível espectáculo! O brigue estava a arder no meio dos gelos, que se fundiam à volta dele! As chamas envolviam-lhe o casco e a brisa do sul trazia aos ouvidos de Hatteras crepitações desusadas.

A quinhentos passos do navio via-se um homem com os braços erguidos, como que manifestando profundo desespero, e que permanecia ali impotente, em presença daquele incêndio, que contorcia o "Forward" nas suas chamas.

Aquele homem estava só. Aquele homem era o velho Johnson.

Hatteras correu direito a ele e perguntou-lhe com a voz e o gesto demudados:

- O meu navio? Que é do meu navio?

- Sois vós, capitão? - respondeu Johnson. - Vós! Parai! Nem mais um passo!

- E então? - perguntou Hatteras, com temível acento de ameaça.

- Aqueles miseráveis! - volveu Johnson! - Há vinte e quatro horas que partiram, depois de terem posto fogo ao navio!

- Maldição! - exclamou Hatteras.

Naquele momento rebentou uma explosão formidável. A terra tremeu. Os icebergues estenderam-se aluídos no campo de gelo, uma coluna de fumo subiu a enrolar-se nas nuvens, e o "Forward", rebentando pelo esforço do paiol da pólvora inflamada, sumiu-se num abismo de fogo.

O doutor e Bell chegavam naquele momento junto a Hatteras. Este, cheio de desespero, levantou-se de repente e disse com voz enérgica:

- Amigos, os cobardes fugiram! Os fortes, os valentes, hão-de colher a palma da vitória! Vós, Bell e Johnson, possuís a coragem; vós, doutor, a ciência; eu, a fé! O Pólo Norte está além! Mãos à obra, pois! Mãos à obra!

Ao escutar aquelas palavras varonis, os companheiros de Hatteras sentiram renascer em si a esperança.

Todavia, a situação era terrível para aqueles quatro homens e para aquele moribundo, abandonados, sem recursos, perdidos, sós, sob o octogésimo grau de latitude, no mais profundo das regiões polares!

 

                                                                                Júlio Verne  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

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