Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS INSACIÁVEIS / Harold Robbins
OS INSACIÁVEIS / Harold Robbins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS INSACIÁVEIS

Primeira Parte

 

...E na retaguarda do Exército Nortista veio outro tropel de gente. Eram às centenas, e contudo viajavam sozinhos. Vinham a pé, montados em mulas, à garupa de cavalos, em desmanteladas carroças rangentes ou em elegantes cabriolés. Gente de toda a espécie e de todas as idades, oriunda das mais diversas nações. Vestiam roupas escuras, geralmente cobertas pela poeira acinzen­tada dos caminhos, e chapéus negros, de grandes abas para proteger o rosto descorado, do sol quente que lhes não era familiar. E às costas, ou cruzado na sela, ou em cima da carroça vinha o inevi­tável saco multicolor e desbotado feito de retalhos esgaçados de tapete onde se encontravam guardados todos os seus bens mun­danos. Foi por causa dessas sacolas que lhes puseram a alcunha de Os Carpetbaggers...

...E galgaram as estradas poeirentas e as ruas dessas terras exaustas do Sul, os lábios cupidamente apertados, os olhos saltando de um lado para o outro, procurando, calculando, avaliando os des­pojos poupados pelo holocausto da guerra.

...E contudo nem todos eles eram maus, pois realmente os homens não são todos maus. Alguns aprenderam a amar a terra que vinham saquear e lá ficaram tornando-se cidadãos respeitáveis.

 

 

                                     JONAS-1925

O sol tinha principiado a cair do céu sobre o alvo deserto do Nevada quando Reno surgiu lá em baixo. Manobrei o avião para virar lentamente e rumei para leste. Ouvia o vento silvar nos tirantes do biplano e sorri para comigo. O velho ia dar realmente o cavaco quando visse este avião. Mas não teria de que se queixar. Não lhe ia custar nada. Eu ganhara-o aos dados.

Empurrei a alavanca para a frente e baixei gradualmente para os mil e trezentos metros. Encontrava-me agora a sobrevoar a estrada 32 e marginando a estrada o deserto parecia uma mancha de areia em movimento. Ajustei o nariz do aparelho ao horizonte e olhei para baixo. Lá estava ela, a umas oito milhas de distância. Como um sapo feio e chato, espalmado no deserto. A fábrica!

 

                     EXPLOSIVOS CORD

 

Empurrei de novo a alavanca para diante e quando passei como um tiro por cima do telhado não ia a mais de trinta metros de altura. Entrei num immelmann e olhei para trás. 1

Já estavam todos às janelas. Os escuros mexicanos e as raparigas índias com os seus vestidos garridos e os homens com os desbotados macacões azuis de trabalho. Quase lhes avistava o branco dos olhos assustados, seguindo as minhas evoluções. Tornei a sorrir. A vida deles era bastante estúpida. Porque não havia de proporcionar-lhes um espectáculo realmente excitante?

 

1 Immelmann é a volta em sentido contrário que um avião efectua depois de realizar meio loop; de Max Immelmann, aviador alemão. ( N. do T.)

           

Saí do immelmann e levei o aparelho até aos dois mil metros. Então empurrei a alavanca e mergulhei direito ao telhado alca­troado.

O rugido do grande motor Pratt & Whitney engrossou e ensurdeceu-me enquanto o vento me fustigava o rosto e os olhos. Apertei as pálpebras e entalei os lábios entre os dentes. Sentia o sangue correr-me nas veias, o coração a pular e os sucos diges­tivos a formarem-se nos intestinos.

Força, força, força. Aqui no alto onde o mundo era um brinquedo aos meus pés; onde eu segurava a alavanca como se estivesse a empunhar o membro viril entre as mãos sem que ninguém, nem mesmo meu pai, ali estivesse para me dizer não!

O telhado negro da fábrica jazia na areia branca como uma rapariga nos lençóis de uma cama, com a negra mancha do púbis a sussurrar-me o seu convite para mergulhar na obscuri­dade da noite. A respiração prendeu-se-me na garganta. Mãe. Não queria voltar para trás. Queria ir para casa.

Ping! Um dos finos tirantes de arame quebrou-se com um estalido. Pisquei os olhos e humedeci os lábios. O sabor sal­gado das lágrimas alcançou-me a língua. Agora já avistava os seixozinhos de um cinzento desmaiado que polvilhavam a ca­mada de alcatrão negro do telhado. Puxei para mini a alavanca c comecei a sair do mergulho. Quando atingi os duzentos e cin­quenta metros endireitei o aparelho e iniciei uma curva muito aberta que me levaria directamente ao campo por detrás da fábrica. Apontei ao vento e fiz uma aterragem perfeita, de três pontos. Subitamente senti-me cansado. Fora um longo voo desde Los Angeles.

Nevada Smith atravessava o campo dirigindo-se para mim enquanto o avião rolava para o estacionamento. Cortei o con­tacto e o motor parou, tossindo a última gota de óleo dos seus pulmões carburadores. Olhei para fora, para ele.

Nevada nunca mudava. Era sempre o mesmo desde a pri­meira vez que o vi aproximando-se do portão principal da nossa casa. O andar apertado, gingão, de pernas arqueadas, como se nunca se tivesse habituado a caminhar sem ser mon­tado num cavalo, as finas rugazinhas graciosas na pele curtida em tomo dos olhos. Isso fora há dezasseis anos. Em 1909.

Eu brincava no átrio e meu pai lia o semanário de Reno na grande cadeira de balouço perto da porta principal. Eram quase oito horas da manhã e o sol já ia alto no céu. Ouvi o trote de um cavalo e aproximei-me da entrada para ver.

Um homem desmontava. Movia-se com uma graciosidade lenta e enganadora. Atirou as rédeas para cima do poial de atre­lar e encaminhou-se para a casa. Junto do primeiro degrau. parou e ergueu os olhos.                                

Meu pai pousou o jornal e levantou-se. Era um homem grande. Um metro e oitenta e cinco. Musculoso. Rosto duro, queimado pelo sol. Olhou para baixo.

Nevada piscou as pálpebras ao levantar os olhos contra o sol.

— Jonas Cord?

Meu pai fez um gesto de assentimento:

— Sim.  

O homem atirou para a nuca o chapéu de grandes abas, de cow-boy, revelando um cabelo negro como pena de corvo.

— Ouvi dizer que talvez precisasse de um homem.

Meu pai nunca dizia que sim nem que não fosse ao que fosse.

— Que é que você sabe fazer? — perguntou.

Foi nesse momento que notei pela primeira vez o revólver na anca do desconhecido. Usava-o muito baixo e muito justo. O punho era negro, usado, e o tambor e o percutor tinham um brilho baço de óleo.

— Sou vivaço — respondeu ele.

— Como se chama?

— Nevada.

— Nevada quê?

A resposta foi dada sem hesitação:

— Smith. Nevada Smith.

Meu pai estava de novo calado. Desta vez o homem não esperou que ele quebrasse o silêncio para falar. Apontou para mim.

— É o seu pequeno?

Meu pai fez que sim com a cabeça.

— Onde está a mamã dele?

Meu pai olhou para Nevada, depois pegou-me ao colo. Senti-me deliciosamente bem nos seus braços. A voz dele não traía qualquer emoção:

— Morreu há alguns meses.

O homem ergueu os olhos para nós:

— Foi o que me disseram.

Meu pai contemplou-o fixamente um momento. Senti os músculos do seu braço contraírem-se debaixo do meu traseiro. Depois, antes de ter tempo de conter a respiração, encontrei-me a voar por cima da balaustrada do átrio.

O homem apanhou-me com um braço e enovelou-me contra o tronco enquanto flectia um joelho para amortecer o choque. Perdi o fôlego e antes de poder principiar a chorar meu pai falou de novo. Um pálido sorriso brincava-lhe nos lábios.

— Ensine-o a montar — disse ele. Pegou no jornal e entrou em casa sem me lançar sequer um olhar.

Sempre a prender-me com o braço, o homem chamado Nevada principiou a erguer-se. Olhei para ele. O revólver que empunhava na mão livre era como uma cobra negra, apontada para meu pai. De repente o revólver sumiu-se no coldre. Fitei então o rosto de Nevada.

A face do homem rasgou-se num sorriso caloroso e cheio de bondade. Pousou-me no chão com cuidado.

— Bem, Júnior — disse, — Ouviste o teu papá. Vamos.

Levantei os olhos para a casa mas meu pai já havia desa­parecido. Nessa altura não pensei no caso mas foi a última vez que meu pai me pegou ao colo. Desse momento em diante passei como que a ser o filho de Nevada.

Já tinha uma perna fora da carlinga quando Nevada che­gou junto do avião. Ergueu os olhos com a habitual piscadela das pálpebras.

— Fartaste-te de trabalhar.

Saltei para o chão ao lado dele e baixei os olhos para Ne­vada. Era um facto a que nunca conseguira habituar-me; O de eu ter um metro e oitenta e cinco como meu pai e de Nevada continuar sempre com o mesmo metro e sessenta.

— Fartei-me de trabalhar — concedi.

Nevada espreguiçou-se e lançou uma olhadela para o lugar do co-piloto.

— Catita — disse ele. — Onde o arranjaste?

Sorri:

— Ganhei-o a jogar os dados. Lançou-me um olhar inquisitivo.

— Não te preocupes — acrescentei rapidamente. — Dei­xei-o depois ganhar-me quinhentos dólares.

Nevada fez um aceno satisfeito. Isso fora uma das coisas que ele também me ensinara. Nunca nos devemos levantar da mesa onde tirámos a camisa a um homem sem lhe deixar o bastante para comer um bife no dia seguinte. Não perdemos muito com isso e o trouxa fica com a impressão de que sempre nos ganhou qualquer coisa.

Enfiei o braço no assento do co-piloto e retirei uns calços. Atirei um a Nevada e dei a volta para colocar o meu diante de uma roda. Nevada ia fazendo o mesmo no outro lado.

— O teu papá não vai ficar contente. Arruinaste-lhe o tra­balho de um dia.

Endireitei-me.

— Não creio que isso agora tenha muita importância. — Passei pela frente da hélice e aproximei-me de Nevada.

— Como foi que ele soube da coisa, tão depressa?

Nos lábios de Nevada formou-se o familiar sorriso triste.

— Levaste a rapariga para o hospital. Mandaram chamar os pais. Ela contou-lhes antes de morrer.

— Quanto querem eles?

— Vinte mil.

— Cinco mil bastam para calá-los.

Nevada não respondeu. Em vez disso olhou-me para os pés.

— Calça os sapatos e vamos andando — disse ele. — O teu pai espera-te.                          

Principiou a afastar-se e eu olhei para os pés. O calor da terra penetrava-me deliciosamente nas solas nuas. Crispei os dedos na areia um momento, depois voltei à carlinga de onde retirei um par de huarachos mexicanos. Enfiei-os nos pés e comecei a atravessar o campo no encalço de Nevada.

Detesto sapatos. Não nos deixam respirar.

Levantava pequenas nuvens de poeira com os huarachos enquanto caminhava para a fábrica. O cheiro debilmente clí­nico do enxofre que usam para fabricar a pólvora entrou-me pelas narinas. Era o mesmo género de cheiro que havia no hos­pital na noite que a levei lá. Não se parecia nada com o cheiro que havia na noite em que fizemos o nené.

Estava uma noite fria e límpida dessa vez. O cheiro era o do oceano e da ressaca que atravessava as janelas abertas da pequena vivenda que tenho em Malibu. Mas dentro do quarto só se respirava o cheiro excitante da rapariga e do seu desejo.

Tínhamo-nos despojado das roupas mal entráramos no quarto, com a furiosa impaciência da nossa juventude. Ela foi mais rápida que eu e encontrava-se já sobre a cama, ven­do-me abrir a gaveta da cómoda e retirar um par de preser­vativos.

A sua voz quase se confundiu com os murmúrios da noite:

— Não, Joney. Desta vez não.

Olhei para ela. A luz viva da Lua sobre o Pacifico varava a janela. Somente a face da rapariga se mantinha na sombra. Mas, de qualquer modo, aquilo que ela disse excitou-me. A ca­bra devia tê-lo percebido porque me puxou para ela e beijou-me.

— Odeio essas malditas coisas, Joney. Quero sentir-te dentro de mim.

Hesitei um momento. A rapariga puxou-me para cima dela.

— Não acontece nada, Joney. Terei cuidado.

Então não me contive mais e os murmúrios dela trans­formaram-se num grito de dor. Não podia respirar e ouvia-a constantemente a sussurrar-me ao ouvido: — Amo-te, Joney. Amo--te Joney.

Claro que me amava, Amava-me tanto que cinco semanas depois disse-me que tínhamos de casar. Encontrávamo-nos dessa feita sentados no assento dianteiro do meu automóvel, no regresso de uma partida de futebol.

Olhei para ela.

— Porquê?

Ela devolveu-me o olhar. Não se mostrava assustada, pelo menos nesse momento. Estava demasiado segura de si. A voz era quase petulante.

— Pelo motivo do costume. Por que outro motivo haviam de casar um rapaz e uma rapariga?

A minha voz tornou-se ácida. Percebia muito bem quando havia sido apanhado.

— Às vezes é porque querem casar.

— Bem, eu quero casar. — Moveu-se para junto de mim. Tornei a afastá-la com um gesto.

— Bem, eu não quero.

A rapariga principiou a chorar:

— Mas tu disseste que me amavas.

Não olhei para ela.

— Um homem diz uma data de coisas quando está exci­tado. — Encostei o carro à berma da estrada e parei. Voltei-me para ela. — Tive a impressão de me dizeres que ias ter cui­dado.

Ela enxugava as lágrimas com um lencinho pequeno e ineficaz.

— Amo-te, Joney. Queria ter um filho teu.

Pela primeira vez depois de ela me começar a falar naquilo, principiei a sentir-me melhor. Era esse um dos inconvenientes de ser o Jonas Cord, Jr. Muitíssimas meninas, e as suas mamãs também, associavam aquele nome com dinheiro. Muito dinheiro. Desde a guerra, quando meu pai edificou um império com a pólvora.

— Então é simples — disse eu, baixando os olhos para ela. — Tem o filho.

A expressão dela mudou. Aproximou-se de mim.

— Queres dizer... queres dizer que nos casamos?

O pálido brilho de triunfo que lhe iluminara o olhar desa­pareceu rapidamente quando abanei a cabeça.

— Ná, ná. Quis dizer que podes ter o filho, se tanto o desejas.

Ela voltou a afastar-se. O seu rosto tornou-se subitamente determinado e frio. A voz era agora calma e prática.

— Não o desejo assim tanto. Não estou interessada em ser mãe sem uma aliança no dedo. Tenho de me livrar disto.

Sorri e ofereci-lhe um cigarro.

— Agora a menina está a falar com acerto.

Ela aceitou o cigarro e eu acendi-lho.

— Mas vai custar caro — disse ela.

— Quanto? — perguntei.

Ela absorveu uma grande fumaça.

— Há um médico na cidade mexicana. As raparigas dizem que é muito bom. — Ergueu os olhos para mim numa interro­gação: — Duzentos dólares?

— Fixe, já os tens — disse eu, precipitadamente. Aquilo era uma pechincha. A última tinha-me custado trezentos e cin­quenta. Lancei fora o cigarro para a estrada e liguei o motor. Meti o carro na torrente do tráfego e apontei para Malibu.

— Eh!, para onde vais? — perguntou ela.

Olhei para a rapariga.

— Para a casa da praia — respondi. — Já agora não faz mal nenhum tirarmos o melhor partido da situação.

Ela desatou a rir e aconchegou-se a mim. Os seus olhos pousaram no meu rosto.

— Gostaria de saber o que a mamã diria se soubesse até que ponto fui para te apanhar. Ela recomendou-me que me ser­visse de todos os truques.

Ri:

— Não se pode dizer que não te serviste.

Ela sacudiu a cabeça:

— Pobre mãe. Tinha já tudo planeado para o casamento.

Pobre mãe. Talvez se a velha pega não tivesse dado con­selhos à filha a rapariga hoje ainda estivesse viva.

Foi na noite seguinte, cerca das onze e meia, que o meu telefone principiou a tocar. Eu começava a adormecer e pra­guejei, lançando a mão ao auscultador.

A voz dela era um murmúrio assustado:

— Joney, estou a perder muito sangue. Fugiu-me de repente todo o sono:

— Que se passa?

— Fui esta tarde à cidade mexicana e agora há qualquer coisa mal. Nunca mais parei de sangrar e estou com medo.

Sentei-me na cama:

— Onde estás?

— Hospedei-me no Westwood Hotel esta tarde. Quarto novecentos e nove.

— Volta para a cama. Já lá vou ter.

— Por favor, depressa, Joney. Por favor.

O Westwood é um hotel na parte baixa da cidade. (Luisiana). Ninguém olhou sequer duas vezes quando me enca­minhei para o elevador sem me anunciar na recepção. Parei diante do quarto 909 e experimentei a porta. Não estava tran­cada. Entrei.

Nunca tinha visto tanto sangue na minha vida. A alca­tifa barata do chão, a cadeira onde ela se sentara para me tele­fonar, os lençóis da cama — estava tudo ensopado em sangue.

Ela jazia na cama, o rosto tão branco como a almo­fada onde repousava a cabeça. Estivera de olhos fechados mas as pálpebras palpitaram abrindo-se quando me sentiu entrar. Os lábios moveram-se mas não produziram qualquer som.

Debrucei-me para ela:

— Não tentes falar, miúda. Vou arranjar um médico. Tudo há-de correr pelo melhor.

Ela fechou os olhos e eu aproximei-me do telefone. Não servia de nada chamar simplesmente um médico. Meu pai não iria ficar nada contente se eu lançasse de novo o nosso nome para o escândalo dos jornais. Liguei para McAllister. Era o advogado que tratava dos negócios da firma na Califórnia.

O mordomo chamou-o ao telefone. Tentei manter uma voz calma:

— Preciso urgentemente de um médico e de uma ambu­lância.

Compreendi logo porque é que meu pai empregava Mac. Não perdeu um segundo com perguntas inúteis. Nenhum porquê. A voz dele era fria.

— Dentro de dez minutos estará aí um médico com uma ambulância. Aconselho-o a sair imediatamente. Não interessa nada comprometer-se mais do que já está.

Agradeci-lhe e pousei o auscultador. Olhei para a cama. Os olhos dela estavam fechados e parecia adormecida. Comecei a encaminhar-me para a porta e os olhos da rapariga abriram-se.

— Não te vás embora, Joney. Tenho medo.

Dirigi-me para junto da cama e sentei-me ao lado dela. Peguei-lhe na mão e ela tornou a fechar os olhos. A ambulância chegou dez minutos depois. E não me soltou a mão até chegarmos ao hospital.

Entrei na fábrica e o ruído e o cheiro envolveram-me como um casulo. Senti a momentânea suspensão do trabalho enquanto a atravessava e ouvi o murmúrio abafado das vozes que me se­guiam.

— El hijo.

O filho. Era como me conheciam. Falavam de mim com a mesma estima e o mesmo orgulho que os seus antepassados dedicavam aos filhos dos seus patrones. Isso dava-lhes um senti­mento de identidade e de associação que os compensava de certo modo da pobreza em que eram obrigados a viver.

Passei no meio das cubas misturadoras, das prensas e dos moldes e alcancei a escadaria interna que conduzia ao escritório de meu pai. Pus-me a galgar os degraus e olhei para trás, para eles. Uma centena de rostos ergueu-se para me sorrir. Acenei-lhes e correspondi ao sorriso como sempre o fizera, desde que subira pela primeira vez aqueles degraus, quando era um garotinho.

Atravessei a porta no topo da escada e o ruído desapareceu mal a porta se fechou nas minhas costas. Percorri o corredor pouco extenso e entrei no escritório anexo ao gabinete de meu pai.

Denby encontrava-se sentado à secretária, rascunhando uma nota com o seu habitual ar alvoroçado. Diante dele uma rapariga metralhava desesperadamente com uma máquina de escrever. Havia duas outras pessoas sentadas no sofá dos visitantes. Um homem e uma mulher.

A mulher estava vestida de negro e torcia um lencinho entre os dedos. Levantou os olhos para mim quando parei no limiar da porta. Não precisavam dizer-me quem ela era. A rapariga pare­cia-se bastante com a mãe. Os nossos olhares cruzaram-se e a mulher desviou a cara.

Denby levantou-se, muito nervoso:

— Seu pai espera-o.

Não respondi. Ele abriu a porta que dava para o gabinete e entrei. Fechou a porta nas minhas costas. Olhei em volta do gabinete.

Nevada estava apoiado à estante da parede da esquerda, os olhos semicerrados naquela enganadora atitude de alerta que lhe era peculiar. McAllister ocupava uma cadeia diante de meu pai. Voltou a cabeça para me ver. Meu pai estava sentado por detrás da enorme secretária de carvalho e os seus olhos fuzilavam. Tirando isso, o gabinete parecia o mesmo de sempre.

As escuras paredes apaineladas de carvalho, as pesadas ca­deiras de cabedal. As sanefas de veludo verde nas janelas e o retrato de meu pai com o presidente Wilson, pendurado por detrás da secretária. Ao lado de meu pai a mesa telefónica com os três telefones e perto dela a permanente garrafa de água, a garrafa de whisky americano e dois copos. A garrafa de whisky estava um terço cheia. Isso significava que seriam três horas da tarde. Verifiquei pelo relógio. Passavam dez minutos das três. Meu pai bebia uma garrafa por dia.

Atravessei a sala e parei diante dele, baixando os olhos ao encontrar a sua expressão colérica.

— Olá, pai.

O seu rosto duro avermelhou-se ainda mais. As cordoveias do pescoço dilataram-se quando desatou aos gritos:

— É tudo o que tens para me dizer depois de arruinares um dia de produção e de fazeres metade dos auxiliares borra­rem-se de medo com as tuas loucas piruetas?

— O seu recado era para eu vir sem demora. Vim o mais depressa que me foi possível.

Mas nada o faria calar agora. Fervia de raiva. Meu pai era assim. Num instante calmo e manso, no instante seguinte a bater nas nuvens.

— Porque raio não saíste daquele quarto de hotel como o McAllister te recomendou? Que diabo foste cheirar ao hospital? Sabes o que fizeste? Colocaste-te em posição de ser acusado de cumplicidade num crime de aborto.

Fiquei furioso nessa altura. Em matéria de temperamento sou absolutamente igual a meu pai.

— Que acha que devia fazer? A rapariga estava a morrer, a esvair-se em sangue e cheia de medo. Acha que eu devia sim­plesmente pôr-me a andar e deixá-la morre, sozinha?

— Sim. Se tivesses alguns miolos era justamente o que devias ter feito. A rapariga ia morrer de qualquer maneira e não era a tua presença que mudava as coisas. Agora esses malditos idiotas estão lá fora a pedir vinte mil dólares para não irem à polícia. Pensas que tenho vinte mil dólares para pagar cada vez que montas uma pega? Esta é a terceira rapariga num ano com quem te deixas apanhar!

Para ele não fazia grande diferença que a rapariga tivesse morrido. O que o afligia eram os vinte mil. Mas então compreendi que não era também o dinheiro. A coisa tinha raízes muito mais profundas.

A amargura que transpareceu na sua voz deu-me a pista. Olhei para ele com súbita compreensão. Meu pai principiava a envelhecer e isso mordia-o por dentro. Rina devia estar furiosa com ele. Decorrera mais de um ano desde o grande casamento em Reno e nada sucedera.

Voltei-lhe as costas e dirigi-me para a porta, sem palavra. Meu pai gritou-me:

— Aonde pensas tu que vais?

Dei meia volta e olhei para ele:

— Regresso à Luisiana. Não precisa de mim para tomar uma decisão. Ou lhes paga ou não lhes paga. Isso não me faz qualquer diferença. Além disso, tenho um encontro.

Ele saiu detrás da secretária e aproximou-se de mim.

— Para quê? — gritou. — Para dares cabo de outra rapariga?

Fitei-o bem nos olhos. Já estava farto daquilo.

— Deixa-te de lamúrias, velhote. Devias ficar contente de ainda haver alguém viril na família. De outro modo a Rina podia pensar que havia qualquer falha connosco.

O seu rosto contorceu-se de cólera. Ergueu ambas as mãos como se fosse bater-me. Os lábios cravaram-se profundamente nos dentes num esgar, as veias da testa incharam tecendo uma rede de vergões vermelhos. Depois, de súbito, como um comutador corta a corrente eléctrica, desapareceu-lhe toda a expressão do rosto. Tropeçou e caiu para diante sobre mim.

Instintivamente estendi os braços e amparei-o. Por um breve instante os seus olhos lúcidos cravaram-se em mim. Os lábios murmuraram:

— Jonas... meu filho...

Os seus olhos enevoaram-se, apoiou-se a mim com todo o seu peso e deslizou para o chão. Olhei para ele. Percebi que estava morto mesmo antes de Nevada o voltar e de lhe abrir a camisa no peito.

Nevada ajoelhara no chão ao lado do corpo de meu pai. McAllister estava ao telefone a chamar um médico e eu a pegar na garrafa de whisky quando Denby entrou.

Desabou de costas sobre a porta com os papéis a tremerem--lhe nas mãos.

— Meu Deus, Júnior — disse ele num tom horrorizado:

Os seus olhos afastaram-se do chão e fitaram-me. — Quem vai assinar agora os contratos com os alemães?

Lancei uma olhadela a McAllister. Ele fez-me um impercep­tível sinal de cabeça.

— Assino eu — respondi.

No chão Nevada cerrava os olhos de meu pai. Pousei a garrafa de whisky sem chegar a abri-la e voltei a olhar para Denby.

— E deixe de chamar-me Júnior — disse.

Quando o médico chegou já tínhamos colocado o corpo de meu pai num sofá, coberto com uma manta. O médico era um homem magro, rijo, calvo, com óculos de lentes grossas. Le­vantou o cobertor para ver. Deixou-o cair de novo.

— Sim senhor, está morto.

Mantive-me calado. Foi McAllister quem perguntou en­quanto eu me embalava na cadeira de balouço de meu pai:

— De quê?

O médico aproximou-se da secretária:

— Congestão cerebral. Apoplexia. Pelo aspecto é de crer que um coágulo de sangue tenha alcançado o cérebro. — Olhou para mim. — Pode dar graças por ter sido rápido. Ele não sofreu.

Lá rápido, fora. Num minuto meu pai estava vivo, no mi­nuto seguinte não era nada, não lhe restando sequer o poder de enxotar a mosca que principiava a introduzir-se por uma dobra do cobertor e a procurar-lhe o rosto. Conservei-me calado.

O médico deixou-se cair pesadamente na cadeira diante de mim. Sacou de uma caneta e de uma folha de papel. Assentou o papel na secretária. Lendo de pernas para o ar decifrei o titulo que encimava a folha, em letras gordas: CERTIDÃO DE ÓBITO. O aparo principiou a raspar no papel. Passado um momento ergueu a cabeça:

— Acha bem que ponha embolia como causa da morte ou deseja uma autópsia?

Abanei a cabeça.

— Embolia está bem. Uma autópsia agora não adiantava nada.

O médico continuou a escrever, um minuto depois tinha terminado e empurrou a certidão para mim.

— Confira e veja se pus tudo certo.

Levantei o papel. Está tudo certo. Nada mau para um medico que nos via pela primeira vez. Mas toda a gente de Nevada sabia tudo a respeito dos Cords. Idade 67. Sobreviventes: mulher, Rina Marlowe Cord; filho, Jonas Cord, Jr. Devolvi a certidão por cima da secretária:

— Está bem.

Ele pegou na certidão e levantou-se:

— Vou registá-la E direi à minha secretária que lhe mande cópias.  

Ficou ali hesitante, como se procurasse decidir se devia apresentar-me sentimentos. Decidiu evidentemente pela solução negativa visto que saiu sem dizer mais palavra.

Depois Denby voltou a entrar:

— Que faço com aquele casal que está lá fora? Mando-os embora?

Fiz que não com a cabeça. Eles voltariam outra vez.

— Mande-os entrar.

Atravessaram a porta, o pai e a mãe da rapariga, com uma expressão rígida onde havia uma estranha mistura de dor e simpatia.

O pai olhou para mim:

— Lamento que não nos tenhamos encontrado em circuns­tâncias mais felizes, Mr. Cord.

Analisei-o. O homem tinha uma cara honesta. Acreditei na sinceridade das suas palavras.

— Também eu — respondi.

A mulher desatou imediatamente a soluçar.

— É terrível, terrível — uivou ela, olhando para o cobertor que ocultava o corpo de meu pai no sofá.

Olhei para ela. A semelhança da filha com a mãe era apenas superficial. Na rapariga havia uma saudável franqueza; esta mulher era uma autêntica harpia.

— Porque chora? — perguntei. — Até hoje nunca o tinha visto. E se o veio ver foi para lhe pedir dinheiro.

Ela contemplou-me sufocada. A sua voz silvou:

— Como pode dizer uma coisa dessas? Com seu próprio pai ali morto naquele sofá e depois do que fez à minha filha.

Levantei-me. Se há uma coisa que não tolero é fingimento.

— Depois do que eu fiz à sua filha? — bradei. — Não fiz à sua filha nada que ela não quisesse. Se a senhora lhe não tivesse recomendado que não olhasse a meios para me caçar talvez a sua filha ainda estivesse viva. Mas não, a senhora disse-lhe que apanhasse Jonas Cord Jr a todo o custo. Ela contou-me que a senhora já estava a fazer planos para o casamento.

O marido voltou-se para ela. A voz tremia-lhe:

— Isso quer dizer que tu sabias que ela estava grávida?

A mulher olhou para ele, atemorizada.

— Não, Henry, não. Não sabia. Só lhe disse que seria bom se conseguisse casar com ele, e foi tudo.

Os lábios dele apertaram-se e durante um segundo pareceu-me prestes a agredi-la. Mas não o fez. Em vez disso voltou-se para mim.

— Desculpe, Mr. Cord. Não voltamos a incomodá-lo.

Dirigiu-se de cabeça erguida para a porta. A mulher correu atrás dele.

— Mas, Henry — gritou. — Henry.

— Cala-te — bradou ele, abrindo a porta e quase empur­rando a mulher adiante. — Achas que ainda não disseste o bastante?

A porta fechou-se nas costas deles e voltei-me para McAllister.

— Ainda não estou livre de encrencas, ou estou?

Ele abanou a cabeça. Reflecti um momento.

— É melhor você ir procurá-lo amanhã ao trabalho. Acho que ele agora desiste da queixa. Pareceu-me um homem honesto.

McAllister sorriu lentamente:

— E é assim que você imagina que um homem honesto pro­cede?

— Foi uma coisa que aprendi com meu pai. — Involuntaria­mente lancei uma olhadela para o sofá. — Ele costumava dizer que todos os homens tinham o seu preço. Para uns é o dinheiro, para outros as mulheres, para outros ainda é a glória. Mas o homem honesto não é preciso comprar: dá-nos o que queremos e não nos custa nada.

— Seu pai era um homem prático — observou McAllister.

Olhei para o advogado:

— Meu pai era um filho da mãe egoísta e ambicioso que tudo queria dominar — disse eu. — Só desejo ser homem capaz de calçar os sapatos que ele deixou.

McAllister cofiou o queixo pensativamente:

— Você há-de desembaraçar-se bem.

Apontei para o sofá:

— Não o terei sempre ali para me ajudar.

McAllister não falou. Olhei de relance para Nevada, Estivera esse tempo todo em silêncio, apoiado à parede. Os olhos luziram; por debaixo das pálpebras veladas. Retirou do bolso um pacote de tabaco e principiou a enrolar um cigarro. Voltei-me de novo para McAllister.

— Vou precisar de muita ajuda - disse.

Os olhos do advogado mostraram interesse mas manteve-se calado.                                     

— Preciso de um conselheiro, de um consultor e de um advogado — prossegui. — Você está disponível?

Respondeu lentamente:

— Não sei se terei tempo, Jonas. Tenho uma clientela bastante grande.

— Grande como?

— Cerca de sessenta mil dólares por ano.

— Cem mil seriam capazes de fazê-lo mudar-se Nevada?

A sua resposta foi pronta:

— Se você me deixar redigir o contrato.

Puxei de um maço de cigarros e estendi-lho. Ele serviu-se de um e eu enfiei outro na boca. Risquei um fósforo e aproximei-o do cigarro de McAllister.

— Muito bem — concordei.

Ele suspendeu o gesto quando se preparava para aceitar o lume. Olhou para mim com desconfiança:

— Como é que você sabe que me pode pagar tanto dinheiro?

Acendi o meu cigarro e sorri:

— Não sabia enquanto você não aceitou o emprego. Depois fiquei com a certeza.

Um sorriso de retribuição iluminou-lhe um momento o rosto c logo desapareceu. Entrou imediatamente em negócios:

— A primeira coisa que precisa de fazer é convocar uma reunião da mesa da direcção e fazer com que o elejam oficial­mente presidente da companhia. Pensa que pode haver qualquer complicação por esse lado?

Abanei a cabeça:

— Não me parece. Meu pai não acreditava em sociedades. Conservava noventa por cento das acções em nome dele e nos termos do testamento é tudo para mim por sua morte.

— Você tem alguma certidão do testamento?

— Não — respondi. — Mas o Denby deve ter. Possui um arquivo de tudo quanto meu pai fez.

Carreguei no besoiro e Denby entrou.

— Traga-me uma certidão do testamento de meu pai — orde­nei.

Um minuto depois estava sobre a secretária — tudo legal, com o selo branco do notário. Empurrei-o para McAllister, que o leu rapidamente.

— Está em ordem — confirmou. — As acções são com efeito suas. É melhor confirmar isto sem perda de tempo.

Voltei-me para Denby com uma pergunta nos olhos. Denby estava ansioso por responder. As palavras saíram num jorro:

— Está arquivado no cartório do juiz Haskell, de Reno.

— Telefone-lhe e diga-lhe que trato de homologá-lo imediata­mente — disse eu. Denby ia a sair. Fi-lo parar. — E quando tiver acabado de tratar disso convoque os directores e diga-lhes que quero reunir-me com eles amanhã à mesa do pequeno-almoço, em minha casa.

Denby saiu e voltei-me para McAllister:

— Acha que é preciso fazer mais qualquer coisa agora? Abanou a cabeça com lentidão.

— Não, neste momento não. Há apenas o contrato com os alemães. Não conheço muito do que se trata mas sei que seu pai dizia que era uma grande oportunidade. Qualquer coisa que ver com um novo material. Plásticos, parece-me que lhe chamam.

Pousei o cigarro no cinzeiro da secretária.

— Peça ao Denby que lhe dê o processo desse negócio. Estude-o esta noite e dê-me amanhã de manhã um parecer antes da reunião dos directores.

Uma estranha expressão principiou a desenhar-se no rosto de McAllister. Durante um momento não consegui decifrá-la, mas finalmente percebi. Respeito:

— Lá estarei às cinco, Jonas.

Levantou-se e encaminhou-se para a porta. Chamei-o antes de ele cruzar os umbrais:

— Já que vai falar com o Denby peça-lhe que lhe entregue uma lista dos outros accionistas da companhia. Quero conhecer-lhes os nomes antes da reunião.

O olhar de respeito ganhou profundidade no rosto do advogado.

— Muito bem, Jonas — disse ele, saindo por fim.

Voltei-me para Nevada e concentrei nele o olhar.

— Que achas? — perguntei.

Ele esperou um longo momento antes de responder. Pri­meiro teve de cuspinhar um fragmento de mortalha que se lhe colara nos lábios:

— Acho que o teu papá pode realmente descansar em paz — disse.  

Aquilo veio recordar-me o que havia quase esquecido. Levantei-me da cadeira, torneei a secretária e aproximei-me do sofá. Ergui o cobertor e contemplei o corpo.

Tinha os cílios fechados e a boca contraída. Via-se uma ligeira mancha azulada por debaixo da pele da têmpora direita que subia a perder-se no meio dos cabelos. Devia ser isso a embolia, pensei.

Seja como for, lá no fundo, queria ter algumas lágrimas para derramar. Mas não havia nenhumas. Ele tinha-me abandonado havia tanto tempo — no dia em que me atirou por cima da balaustrada para os braços de Nevada.

Ouvi a porta abrir-se e deixei cair o cobertor antes de me voltar. Denby estava parado no limiar.

— Jake Platt quer falar-lhe.

Jake era o gerente da fábrica. Era ele que fazia girar o pessoal. Ele também ouvira a novidade que naquele momento devia estar a espalhar-se por toda a fábrica.

— Mande-o entrar — disse eu.

O homem apareceu no limiar da porta, ao lado de Denby, mal acabei de pronunciar aquelas palavras. Era um homem forte e pesado. Até a sua maneira de andar era pesada. Pene­trou no escritório de mão estendida:

— Acabo de saber da má nova. — Aproximou-se do sofá e ficou a contemplar o corpo de meu pai exibindo no rosto a sua melhor expressão de condolências tipo irlandês. — Uma grande perda, realmente. Seu pai era um grande homem. — Aba­nou a cabeça, melancolicamente. — Um grande homem.

Voltei para a minha secretária. «E tu és um grande actor, Jake Platt», pensei. Mas disse coisa diferente:

— Obrigado, Jake.

Olhou para mim, com o rosto radiante pelo êxito da sua actuação:  

— E desejo que saiba que se houver qualquer coisa que precise de mim, seja o que for, basta chamar-me.

— Obrigado, Jake - repeti.— É agradável poder contar com homens como você no meu negócio.

As minhas palavras envaideceram-no visivelmente. Bai­xou a voz para um tom confidencial:

— Agora toda a fábrica já sabe. Não acha que eu deva dizer-lhes qualquer coisa? Sabe como são os mexicanos e os indianos. São muito sensíveis e nervosos e é preciso saber mano­brá-los.

Fitei-o. Provavelmente tinha razão:

— Boa ideia, Jake. Mas parece-me que fica ainda melhor se for eu a falar-lhes pessoalmente.

Jake teve de concordar comigo, gostasse ou não da ideia. Era essa a sua política. Nunca discutir com o patrão.

— Isso é verdade — disse ele dissimulando o seu descon­tentamento. — Se acaso se sente com disposição para fazê-lo.

— Sinto-me com disposição — respondi.

A voz de Nevada apanhou-me à salda:

— E que se faz com ele?

Voltei-me e segui-lhe o olhar apontado para o sofá:

— Chama os cangalheiros para que cuidem do funeral. Diz-lhes que quero a urna mais rica deste estado.

Nevada esboçou um sinal de assentimento.

— Depois vai ter comigo à entrada, com o carro, e vamos para casa. — Atravessei a porta sem ouvir sequer a resposta. Jake trotava atrás de mim quando cheguei ao corredor das tra­seiras e penetrei no patamar da escada que conduzia à fábrica.

Todos os olhares da fábrica se voltaram para mim quando transpus a porta e entrei na pequena plataforma no alto da escada. Jake ergueu as mãos e o silêncio começou a cair sobre a fábrica. Antes de falar esperei que a última máquina cessasse o funcionamento e tudo ficasse no maior sossego. Havia na­quele silêncio algo de impressionante. Era a primeira vez que ouvia parar as máquinas. Comecei a falar e a minha voz ecoou bizarramente dentro da fábrica.

— Mi padre há muerto — declarei em espanhol. O meu espanhol não era muito bom mas era a língua deles e continuei a falar-lhes nela. - Mas eu, seu filho, estou aqui e espero con­tinuar a sua boa obra. É realmente pena que meu pai não esteja aqui para exprimir ele próprio a todos vós, bons trabalhadores, como vos estava grato por tudo quanto fizestes para o êxito desta companhia. Espero contudo que vos baste saber que antes de morrer autorizou um aumento de cinco por cento nos salá­rios de todos os operários desta fábrica.

Jake prendeu-me o braço nervosamente. Sacudi-lhe a mão e prossegui:                    

— Desejo muito a peito continuar a merecer-vos o mesmo apoio que haveis dado a meu pai. Confio em que sereis pacientes comigo porque ainda lenho de aprender muita coisa. Muito obrigado e que Deus vos proteja a todos.

Comecei a descer a escada e Jake veio atrás de mim. Os operários abriram alas para eu passar. Na sua maioria guar­davam o silêncio mas alguns estendiam a mão para me toca­rem, como se isso os tranquilizasse. Surpreendi lágrimas nal­guns olhos. Afinal meu pai sempre encontrava quem chorasse por ele. Embora as lágrimas proviessem de olhos que mal o conheciam.

Saí da penumbra da fábrica para o ar livre e os meus olhos piscaram. O Sol continuava alto no céu. Quase me esquecera de que ainda era cedo, tudo parecia ter sucedido há tanto tempo.

O majestoso Pierce-Arrow encontrava-se mesmo em frente da porta, com Nevada ao volante. Ia encaminhar-me para o carro quando a mão de Jake, tocando-me no braço, me deteve. Voltei-me para ele.

A sua voz parecia um gemido:

— Para que é que foi dizer aquilo, Jonas? Não conhece aqueles bastardos tão bem como eu. Estenda-lhe a mão e eles querem logo o braço. Seu pai estava sempre a insistir comigo para manter os salários baixos.

Encarei-o friamente. Há pessoas que têm dificuldade em aprender depressa.

— Você ouviu o que eu disse ali dentro, Jake?

— Ouvi o que disse. Jonas. É disso que estou a falar. Eu...

Cortei-lhe a palavra:

— Afinal parece-me que não ouviu, Jake — disse com sua­vidade. — As minhas primeiras palavras foram: Mi padre ha muerto. Meu pai morreu.

— Sim, mas...

— Aquilo tem de ser entendido à letra, Jake. Morreu. Mas eu não. Estou aqui e se há uma coisa que você não deve esquecer é que sou exactamente como ele num aspecto. Não admito que ninguém que trabalhe para mim comente os meus actos e quem não gostar pode pôr-se na alheta!

Jake aprendeu depressa. Quando cheguei junto do carro já ele lá estava a abrir-me a porta:

— Eu não queria intrometer-me, Jonas. Era só...

Não servia de nada explicar-lhe que se pagarmos mais recebemos mais. Ford demonstrara isso quando aumentara os seus operários no ano anterior. A produção mais do que triplicou. Entrei no carro e lancei uma nova olhadela à fábrica. O negro pegajoso do alcatrão do telhado irritou-me. Recordei-me do que sentira quando picara sobre ele com o avião.

— Jake — chamei. — Vê aquele telhado?

Ele voltou-se para onde eu apontava e firmou os olhos. A sua voz tinha um tom de perplexidade:

— Sim... senhor.

Subitamente senti-me muito cansado. Recostei-me nas almofadas e fechei os olhos:

— Mande pintá-lo de branco — ordenei.

Dormitei enquanto o grande Pierce devorava as vinte milhas que separavam a fábrica da casa de meu pai. De vez em quando abria os olhos para surpreender Nevada a obser­var-me pelo espelho retrovisor, depois as minhas pálpebras pesavam como chumbo e voltava a fechar os olhos.

Odiava meu pai e minha mãe e se tivesse tido irmãs e ir­mãos também os teria odiado. Não, não odiava meu pai. Agora já não. Tinha morrido. Não se odeiam os mortos. Apenas nos lembramos deles. E não odiava minha mãe. De qualquer modo não era minha mãe. Eu tinha madrasta. E não a odiava. Ama­va-a.

Fora por isso que eu a levara a minha casa. Queria casar com ela. Só que meu pai disse que eu era demasiado novo. «Com dezanove anos és demasiado novo», tinha dito ele. Mas ele não era demasiado novo. Casou com a rapariga uma semana depois de eu ter regressado à Universidade.

Conheci Rina no Country Club duas semanas antes do termo das férias. Ela era do remoto Leste, de um lugar qual­quer de Massachusetts chamado Brookline, e não se parecia com nenhuma das que eu encontrara até então. Todas as rapa­rigas daqui são morenas e tisnadas pelo sol, andam como homens, falam como homens e até cavalgam como homens. A única vez que me dão a certeza de que não são homens é à noite, quando usam saias em vez de calças, porque mesmo na piscina, obede­cendo à moda, parecem rapazes. Peito chato e ancas escorridas.

Mas Rina era uma rapariga. Não podia haver equívocos. Especialmente em fato de banho, como se apresentou da pri­meira vez que a vi. Esguia, é certo, tinha ombros largos, talvez demasiado largos para mulher. Mas os seios eram fortes e carnudos, a romper o fato de banho que se estava nas tintas para a moda. Impossível contemplá-los sem sentir na boca a imagem da sua doçura, um sabor a leite e mel. Assentavam sem esforço no tórax alto que se afunilava na cintura de onde por sua vez começavam a delinear-se as ancas esguias mas bem arredondadas nas nádegas.

O cabelo que ela usava comprido era de um louro pálido, e prendia-o atrás da cabeça, no que também desobedecia à moda. Tinha a testa alta, os olhos bem destacados e ligeiramente oblíquos, azuis, de um azul que iluminava com o seu reflexo todo o olhar. O nariz era direito e não excessivamente delgado, denunciando a sua ancestralidade finlandesa. O seu único senão estava possivelmente na boca, grande, mas sem generosi­dade, posto que os lábios eram pouco carnudos: uma boca teimosa, que assentava firmemente num queixo afunilado, voluntarioso.

Frequentara colégios na Suíça, ria pouco e tinha maneiras reservadas. Em dois dias prendera-me pelo beicinho. A voz dela era suave e surda com um vago sotaque estrangeiro que nos borbulhava nos ouvidos.

Foi uns dez dias depois, no baile que o clube dava todos os sábados, que eu pela primeira vez compreendi quanto a dese­java. Dançávamos uma valsa lenta, apertada, e as luzes esta­vam baixas, no tom azul. Subitamente ela errou um passo. Levantou os olhos para mim e deu-me aquele seu sorriso lento.

— Você é muito forte — disse ela e apertou-se mais con­tra mim.

Sentia o calor do ventre de Rina penetrar no meu quando continuámos a dançar. Finalmente não consegui resistir mais. Peguei-lhe no braço e saímos do estrado.

Ela seguiu-me em silêncio até ao carro. Entrámos no grande Dusenberg, engatei-o, e meti-me a toda a velocidade na estrada. O ar nocturno do deserto estava quente. Enquanto guiava ia olhando para ela de soslaio. Recostara a nuca no apoio do assento e levava os olhos fechados contra o vento.

Cortei numa transversal e dentro de um pomar de tama­rindos desliguei o motor. Ela continuava recostada no assento. Debrucei-me e beijei-lhe a boca.

A boca de Rina nunca dava nem recebia. Era como uma cisterna num oásis. Estava ali para quem precisasse dela. Colei a minha mão sobre um dos seios; a mão dela cobriu a minha c prendeu-a.

Ergui a cabeça e olhei para a rapariga. Tinha aberto os olhos e contudo era impossível ler neles qualquer indicação.

— Desejo-te — murmurei.

Os olhos de Rina não mudaram de expressão. Mal pude ouvir a sua voz:

— Bem sei.

Aproximei-me mais dela. Desta vez, a mão de Rina espal­mou-se no meu peito, detendo-me.

— Empresta-me o teu lenço — disse ela, retirando-me o lenço do bolso.

O lenço palpitou um momento como uma asa branca a abrir-se antes de desaparecer com as mãos dela. Rina nem sequer ergueu a cabeça do assento, não falou, limitando-se a observar--me com aqueles seus olhos impenetráveis.

Senti os dedos operosos e inclinei-me para ela mas de novo fui mantido à distância. Depois, subitamente, foi o espasmo que me percorreu a espinha e quase me lançou fora do assento.

Tirei um cigarro do bolso e acendi-o com os dedos tré­mulos enquanto ela depois de enovelar o lenço o lançava fora do carro. Feito isso, tirou-me o cigarro da boca e levou-o aos lábios.

— Continuo a desejar-te — disse.

Ela devolveu-me o cigarro e fez que não com a cabeça.

— Porquê? — perguntei.    

Rina voltou a face para o meu lado. Era uma mancha branca nas trevas.

— Porque dentro de dois dias regresso a casa. Porque na falência do mercado de valores em 1923 meu pai perdeu tudo.

Porque tenho de encontrar um homem rico e casar com ele. Não devo fazer nada que possa pôr em risco esse plano.

Olhei para ela um momento antes de ligar o motor. Fiz marcha atrás para sair do pomar de tamarindos e meti-me a caminho de casa. Não disse nada mas possuía tudo quanto ela queria. Era rico. Ou havia de sê-lo, um dia.

Deixei Rina na sala e dirigi-me ao gabinete de meu pai. Como de costume ele trabalhava à secretária, com um único candeeiro aceso sobre a mesa lançando luz sobre a papelada. Ergueu os olhos quando entrei.

— Sim? — fez ele, como se se tratasse de um empregado que aparecesse a interrompê-lo no meio dos seus problemas.

Carreguei no comutador da entrada e inundei o gabinete de luz.

— Quero casar-me — declarei-lhe.

Ele olhou-me por um momento como se estivesse muito longe dali. Estivera, com efeito, mas voltou depressa.

— Estás doido — respondeu-me num tom sem emoção. — Vai para a cama e não me maces.

Não me movi.

— Estou falando a sério, papá — insisti.              

Era a primeira vez que o tratava por «papá» desde miúdo.

Ele ergueu-se lentamente.

— Não. És demasiado novo.

Foi tudo quanto disse. Não lhe ocorreu perguntar-me do que se tratava, de quem se tratava, dos motivos. Não, só aquilo de eu ser demasiado novo.

— Muito bem, pai — respondi, voltando-me para a porta. — Não te esqueças de que te pedi.

— Espera aí — disse ele. Parei com a mão na maçaneta. — Onde está ela?

— À espera na sala — respondi.

Olhou para mim desconfiadamente.

— Quando tomaste essa decisão?

— Esta noite — respondi-lhe. — Só esta noite.

— Imagino que se trata de uma dessas rapariguinhas idiotas que costumam aparecer pelo clube e agora está toda ansiosa por conhecer aqui o velhote? — perguntou meu pai.

Acudi em defesa de Rina:

— Ela não é nada desse tipo. Para falar a verdade nem sequer sabe o que vim aqui pedir-lhe.

— Queres então dizer que nem sequer lhe propuseste casa­mento?

— Não era preciso — repliquei com a suprema confiança da minha juventude. — Sei qual seria a resposta.

Meu pai abanou a cabeça:

— Só por uma questão de forma não achas melhor pergun­tar-lhe?

Saí e regressei com Rina ao gabinete:

— Rina, apresento-te meu pai; pai, a Rina Marlowe.

Rina cumprimentou delicadamente com a cabeça. Tanto quanto me pareceu pelas suas maneiras aquilo para ela era como se estivesse a passar-se em pleno meio-dia e não às duas da madrugada.

Meu pai observava-a meditativamente. Havia no seu rosto uma curiosa expressão que eu via pela primeira vez. Saiu de trás da secretária e estendeu-lhe a mão. «Como passa, Miss Mar­lowe?», perguntou numa voz amável. Olhei para ele. Nunca o vira até então mostrar tamanha cortesia com os meus amigos habituais.

— Como passa? — cumprimentou ela apertando-lhe a mão.

Sem lhe soltar a mão, meu pai falou num tom de branda ironia:

— Meu filho pensa que quer casar consigo, Miss Marlowe, mas eu acho que é demasiado jovem. Não concorda?

Rina olhou para mim. Durante um momento consegui ler uma expressão no seu olhar: uma expressão viva e radiante. Mas logo os olhos ficavam novamente fechados e indeci­fráveis.

Falou para meu pai.

— Tudo isto é muito embaraçoso, Mr. Cord. Poderia ter a bondade de acompanhar-me a casa?

Fulminado, incapaz de falar, vi meu pai dar-lhe o braço e sair do gabinete. Pouco depois ouvi o rugido do Duesenberg e olhei em torno, furioso, procurando um objecto em que cevar a minha cólera. A única coisa que se prestava era o candeeiro da secretária: despedacei-o contra a parede.

Duas semanas depois, na Universidade, recebi um telegrama de meu pai.

 

RINA E EU CASÁMOS ESTA MANHÃ. ESTAMOS NO WALDORF- ASTORIA DE NOVA IORQUE.

PAR­TIMOS AMANHÃ NO «LEVIATHAN» PARA LUA-DE-MEL NA EUROPA.

 

Peguei no telefone e chamei-o.

— Não há tão grande idiota como um velho idiota — gri­tei-lhe através das três mil milhas de fio que nos separavam. — Não vê que se ela se casou consigo foi pelo dinheiro?

Meu pai nem sequer se irritou. Deu até uma risadinha.

— Tu é que és idiota. Tudo o que ela queria era um homem e não um rapazinho. Ela insistiu até que assinássemos uma escri­tura antenupcial.

— Oh, sim? E quem minutou a escritura? — perguntei. — O advogado dela?

Meu pai soltou outra risadinha.

— Não, o meu. — A sua voz mudou bruscamente. Tornou-se pesada e grosseira, cheia de intenções; — Agora volta para os teus estudos, filho, e não te metas em coisas que te não dizem respeito. Aqui já é quase meia-noite e vou meter-me na cama.

O telefone calou-se nas minhas mãos. Fiquei um momento paralisado a contemplá-lo, depois pousei lentamente o auscul­tador. Nessa noite não consegui dormir. Quadros de violento erotismo entre meu pai e Rina atravessavam-me a mente. Acordei várias vezes encharcado em suores frios.

Senti que alguém me sacudia suavemente. Abri os olhos.

A primeira coisa que vi foi o rosto de Nevada.

— Acorda, Jonas — dizia ele. — Chegámos a casa.

Pisquei os olhos para limpar os restos de sono. O Sol estava agora a desaparecer por detrás do grande casarão. Sacudi a cabeça e saí do carro. Contemplei o edifício.

Para mim uma casa desconhecida. Não creio que tenha passado lá mais de duas semanas depois de meu pai a ter construído e agora era minha. Como tudo o mais que meu pai fizera.

Encaminhei-me para os degraus. Rina havia pensado em tudo. Excepto nisto. Meu pai morrera. E era eu quem lhe ia dar a noticia.

A porta principal abriu-se quando atravessei a varanda. Meu pai construíra um desses típicos solares sulistas e para governá-lo tinha trazido Robair de Nova Orleães. Robair era um mordomo crioulo de velha cepa. Um homem gigantesco, ultra­passando-me bem uma cabeça, mas tão delicado e capaz como grande. Seu pai e seu avô haviam sido mordomos e muito embora fossem escravos tinham incutido nele o brio profissional. Robair possuía um sexto sentido no que se referia ao serviço. Encontrava-se sempre no ponto onde precisávamos dele.

Desviou-se para me deixar entrar.

— Como passa master Cord? — foi como me acolheu no seu suave inglês crioulo.                                

— Como passa, Robair? — perguntei voltando-me para ele enquanto fechava a porta. — Vem comigo.

Seguiu-me em silêncio ao gabinete de meu pai. O seu rosto mantinha-se impassível quando fechou a porta:

— Sim, Mr. Cord?

Era a primeira vez que me tratava por «mister»; até então eu fora o «master», o «menino».

— Meu pai morreu — disse-lhe.

— Já sei — fez ele. — Mr. Denby telefonou.

— Os outros sabem? — perguntei.

Robair abanou a cabeça:

— Disse a Mr. Denby que Mrs. Cord tinha saído e não comu­niquei nada aos outros criados.

Ouviu-se um som abafado do lado de fora. Robair continuou a falar enquanto se movia rapidamente para a porta.

— Pensei que quisesse ser o senhor a dar a má noticia, pessoalmente.

Escancarou a porta de repente.

Não havia ali ninguém. Robair saiu rapidamente. Fui atrás dele. Um vulto corria pela grande escadaria que parte do grande vestíbulo da entrada para o primeiro andar.

A voz de Robair não se elevou mas foi cortante e autoritária como um chicote:

— Louise!

O vulto parou. Era a criada particular de Rina.

— Vem cá — ordenou ele.

Louise desceu os degraus hesitante. Via-lhe a expressão de terror nos olhos à medida que se aproximava.

— Sim. Mr. Robair? — a sua voz denunciava também o medo que sentia.

Pela primeira vez Robair deixou-me apreciar os meios de que se servia para manter o pessoal na linha. O seu gesto foi quase imperceptível mas a mão alcançou a face da rapariga com um impacto tremendo. A voz com que lhe falou estava saturada de desprezo:

— Quantas vezes te recomendei que não escutasses às portas?

Ela mantinha a face coberta com a mão. As lágrimas princi­piaram a correr-lhe pelo rosto.

— Volta para a cozinha. Falarei contigo mais tarde.

Louise correu para a cozinha, sempre com a mão a aper­tar a face. Robair voltou-se para mim:        

— Peço que a desculpe, Mr. Cord — disse ele, na sua voz que de novo se tornara amável e profunda. — Em geral os meus criados não procedem assim, mas esta tem sido muito difícil de manter na ordem.

Tirei um cigarro e antes mesmo de ter tido tempo de metê-lo na boca Robair riscou um fósforo para acendê-lo. Inspirei uma grande fumaça:        

— Está bem, Robair. Além disso não creio que ela fique connosco muito tempo.

Robair apagou o fósforo e depositou-o num cinzeiro.

— Sim, senhor.

Olhei para a escadaria especulativamente. Embora fosse um sentimento bizarro, hesitava.

— Mrs. Cord encontra-se no quarto — disse a voz de Robair a meu lado.

Voltei-me para ele. A sua face era a máscara impenetrável de um mordomo:

— Obrigado, Robair. Vou lá acima dizer-lhe.

Comecei a subir os degraus. A voz de Robair deteve-me:

— Mr. Cord?

Fiz um quarto de volta para olhá-lo. O seu rosto negro dir-se-ia que lançava luz:

— A que horas sirvo o jantar, senhor?

Reflecti um segundo.

— Cerca das oito horas — respondi.

— Muito obrigado — e encaminhou-se para a cozinha.

Bati suavemente à porta de Rina. Não houve resposta. Abri e entrei. A voz dela veio da casa de banho.

— Louise, traz-me uma toalha de banho.

Encaminhei-me para o banheiro e retirei uma enorme toalha da rima que se encontrava na prateleira por cima do toucador. Avancei para a banheira no momento em que ela fez deslizar a porta de vidro.

Era toda oiro e alvura, e brilhava, com as gotinhas de água a escorrerem-lhe pelo corpo. Estacou um momento surpreen­dida. A maior parte das mulheres teriam instintivamente tentado cobrir a nudez. Rina não era dessas. Estendeu a mão para a toalha.

Passou-a habilmente em torno do corpo e saiu da banheira.

— Onde está a Louise? — perguntou, sentando-se diante do toucador.

— Lá em baixo — respondi.

Pôs-se a enxugar o rosto com outra toalha.

— Teu pai não gostaria se soubesse disto.

— Mas não saberá — fiz eu.

— Como sabes que eu não lhe digo?

— Não dirás — respondi afirmativamente.

Foi nessa altura que ela começou a sentir que se passava qualquer coisa. Ergueu os olhos, procurando os meus no espelho. O rosto dela tornou-se bruscamente sério.

— Aconteceu alguma coisa entre ti e teu pai, Jonas?

Esteve a observar-me um momento; havia ainda uma sombra de perplexidade no seu olhar. Entregou-me uma toalha.

— Trata de ser bom menino, se fazes favor, Jonas, e seca-me as costas? Não consigo lá chegar. — Sorriu para o espelho. — Já vês que preciso realmente da Louise.

Peguei na toalha e aproximei-me dela. Rina com um gesto fez a toalha de banho deslizar-lhe dos ombros. Retirei as ca­madas de espuma da sua pele sem mácula. O aroma do seu per­fume subiu-me às narinas, com toda a pujança que lhe dava o banho quente.

Colei os meus lábios no pescoço de Rina. Ela voltou-se para mim num sobressalto:  

— Pára com isso, Jonas! Teu pai disse esta manhã que eras um maníaco sexual mas não tens necessidade nenhuma de prová-lo.

Procurei-lhe os olhos. Não havia medo neles. Sentia-se muito segura de si própria. Sorri lentamente:

— Talvez ele tivesse razão — concedi. — Ou talvez estivesse simplesmente esquecido do que é ser-se novo.

Arranquei-a do tamborete e puxei-a para mim. A toalha deslizou ainda mais e ficou presa apenas pela pressão dos nossos corpos. Cobri-lhe a boca com a minha e pousei a mão sobre um dos seios. Era firme, flexível e forte e por debaixo dele sentia o palpitar acelerado do seu coração.

Talvez me enganasse mas por um momento pareceu-me que ela ia ceder. Depois, raivosamente, desembaraçou-se do abraço. A toalha jazia agora abandonada no chão.

— Enlouqueceste? — silvou ela, com o peito a arfar pesada­mente. — Bem sabes que de um momento para o outro ele pode passar aquela porta.

Fiquei imóvel um instante e depois deixei o ar acumulado dentro dos meus pulmões escapar-se num silvo lento.

— Ele nunca mais voltará a atravessar aquela porta — disse eu.

A cor principiou a abandonar-lhe gradualmente o rosto:

— Que é... que é que queres dizer? — gaguejou.

Os meus olhos dirigiram-se para os dela. Pela primeira vez fui capaz de ler neles. Estava com medo. Como sucederia com qualquer mulher posta diante de um futuro incerto.

— Mrs. Cord — disse lentamente. — Seu marido morreu.

As suas pupilas dilataram-se enormemente e deixou-se cair devagar sobre o tamborete. Com um gesto reflexo ergueu a toalha e tornou a envolver-se nela.

— Não posso acreditar — disse numa voz apagada.

— Em que é que não podes acreditar, Rina? — perguntei cruelmente. — Que ele morreu ou na asneira que fizeste casando com ele em vez de casares comigo?

Não creio que ela tenha sequer ouvido o que eu disse. Ergueu para mim os olhos — secos, mas havia neles uma expres­são de dócil tristeza, de compaixão. Nunca a imaginara capaz de tal.

— Sofreu? — perguntou.

— Não — respondi. — Foi fulminante. Uma congestão ce­rebral. Estava cheio de vida a rugir como um leão e de repente — dei um estalinho com os dedos — zás, estava morto.

Os olhos dela não largavam os meus.

— Sinto-me feliz por ter sido assim — murmurou. — Pena­lizar-me-ia se ele tivesse sofrido.

Pôs-se de pé devagar. O véu tornou a cobrir-lhe os olhos.

— Acho agora preferível que saias — disse ela.

Era esta a Rina familiar, aquela que eu queria apanhar a jeito. A Rina distante, inacessível, calculista.

— Não — opus eu. — Ainda não acabei.

Ela começou a andar para me abrir a porta:

— Que é que há para acabar?

Agarrei-lhe no braço e puxei-a para mim.

— Nós ainda não acabámos — disse-lhe junto do rosto lançado para trás. — Tu e eu. Trouxe-te uma noite a casa porque te desejava. Mas tu preferiste meu pai porque ele representava um negócio mais imediato para ti. Acho que esperei já bastante!

Ela fitou-me. Não tinha medo agora. Estava no campo onde costumava lutar:

— Não te atreves!

Como resposta arranquei-lhe a toalha. Ela voltou-se para correr para fora do quarto mas prendi-lhe o braço e trouxe-a de novo para mim. Com a mão livre puxei-lhe o cabelo de forma a obrigá-la a erguer o rosto.

— Não?

— Eu grito — arquejou ela roucamente. — Os criados virão a correr!

Sorri:

— Não, não virão. Pensarão apenas que é um grito de des­gosto. Robair meteu-os na cozinha e nenhum de lá sai sem eu chamar.                

— Espera! — suplicou ela. - Espera, por favor. Pela me­mória de teu pai.                    

— Que motivo tenho eu? — perguntei. — Ele não esperou por mim.

Peguei nela e transportei-a para o quarto. Rina arranhava-me o rosto com os dedos e batia-me com os punhos no peito.

Atirei com ela para a cama ainda com a coberta de seda branca. Ela tentou rolar e fugir pelo outro lado mas segurei-lhe um ombro e firmei-a de costas. Mordeu-me a mão e tentou escapu­lir-se quando a retirei. Meti os joelhos entre os dela e dei-lhe um bofetão brutal. A pancada lançou-lhe a cabeça sobre a almo­fada. Viam-se as marcas lívidas deixadas pêlos meus dedos.

Ela fechou os olhos; quando tornou a abri-los estavam enevoados e havia neles uma intensidade que eu nunca lhes surpreendera. Sorriu, os seus braços vieram envolver-me o pes­coço e puxaram-me para ela. A sua boca apertou-se contra a minha. Senti o corpo começar a mover-se debaixo do meu.

— Vem, Jonas! — arquejou ela junto da minha boca. — Já! Não posso esperar mais. Esperei tanto. — Os seus dedos percorreram-me as coxas até encontrarem o membro. Voltou o rosto na almofada e os movimentos tornaram-se mais frenéticos. Mal conseguia ouvir o seu silvo insistente, brutal. — Depressa, Jonas. Depressa!

Principiei a levantar-me mas ela não queria esperar que eu me despisse. Tornou a puxar-me e com um gesto meteu-me dentro dela. Era como entrar numa fornalha de carvões ao rubro. Obrigou-me a afundar a cabeça no pescoço.

— Faz-me um nené, Jonas — murmurava-me ela ao ouvido. — Engravida-me como fizeste com aquelas três raparigas de Los Angeles. Faz-me conceber!

Olhei para o rosto de Rina. Os seus olhos estavam límpidos e havia neles um vitorioso ar de provocação. Não reflectiam de forma alguma a paixão do corpo que eu estreitava. As suas pernas e os seus braços apertaram-me num torniquete.

Sorriu, os olhos postos nos meus:

— Faz-me um nené, Jonas — insistiu. — Teu pai nunca quis. Tinha receio que alguém te tirasse o que era teu.

— O quê? O quê? — Tentei levantar-me mas ela era como uma cisterna sem fundo de onde eu não podia fugir.

— Sim, Jonas — disse ela, continuando a sorrir, o seu corpo a devorar-me. — Teu pai nunca quis correr riscos. Por isso me obrigou a assinar aquela escritura antes de casarmos. Queria tudo para o seu precioso filho!

Tentei de novo erguer-me mas ela prendera-me com as pernas. Rindo, triunfante, disse:

— Mas tu vais engravidar-me, não vais, Jonas? Quem poderá saber que foste tu? Partilharás a tua fortuna com o teu filho embora toda a gente pense que é o filho de teu pai.

Arqueou-se debaixo de mim, procurando e solicitando o meu sémen. Com um arranco súbito safei-me dela no mo­mento em que ia principiar a ejacular. Caí cruzado na cama, aos pés de Rina.

A agonia passou e abri os olhos. Ela enterrara a cabeça na almofada e chorava. Levantei-me em silêncio e saí do quarto.

Enquanto percorria a galeria que conduzia ao meu quarto ia pensando que meu pai gostava de mim, realmente gostava. Embora ele próprio o não percebesse, amava-me.

Amara-me. Mas nunca o suficiente para me dar essa impressão.

Quando entrei no quarto as lágrimas caíam-me pelo rosto abaixo.

Ia montado no meu pónei indiano — tinha nessa altura dez anos — galopando loucamente por entre as dunas. Dentro de mim instalara-se o pânico dos que fogem mas não sabia do que estava a fugir. Olhei para trás por cima do ombro.

Meu pai seguia-me no grande ruão malhado. Trazia o casaco aberto batido pelo vento e vi a pesada corrente do relógio que lhe cruzava o peito. Ouvia a sua voz estranha e arrepiante, defor­mada pelo vento.

— Vem cá, Jonas. Diabos te levem, rapaz, volta!

Olhei para diante e meti esporas ao pónei. Usava-as sem pie­dade e nos flancos da montada havia rasgões sangrentos nos pontos onde os dentes das esporas haviam penetrado. Gradual­mente principiei a afastar-me.

De súbito, como se caísse do céu, Nevada encontrava-se ao meu lado, galopando sem esforço no seu grande cavalo preto. Olhou-me de soslaio calmamente. A sua voz não se elevou.

— Volta para trás, Jonas. Teu pai chama-te. Então que espé­cie de filho és tu?

Não respondi e continuei a impelir o pónei para a frente. Olhei para trás por cima do ombro.

Meu pai estava a parar o cavalo. No seu rosto havia uma profunda expressão de mágoa.

— Olha por ele, Nevada. — Mal o podia ouvir porque a distância era agora muita. — Olha por ele que eu não tenho tempo. — Rodou o ruão e afastou-se a galopar.

Parei o pónei e voltei-me para olhá-lo. Ele já ia diminuindo à distância. Mesmo o seu vulto começava a perder a firmeza de contornos, visto através das lágrimas que me saltavam dos olhos. Apetecia-me gritar-lhe «Não vás embora, pai». Mas as palavras não me passaram da garganta.

Sentei-me na cama cheio de suores. Sacudi a cabeça para afastar os vestígios do sonho. Através da janela aberta chegava-me o som dos cavalos vindo da cavalariça nas traseiras da casa.

Encaminhei-me para a janela e olhei lá para fora. Eram cinco horas e o Sol, já no horizonte, começava a sua tarefa de varrer as pesadas sombras da madrugada. No curral alguns homens encostados à paliçada viam um cavaleiro tentando domar um potro baio. Os meus olhos piscaram quando encontraram a luz do Sol.

Afastei-me rapidamente da janela. Ali estava a espécie de remédio de que eu precisava. Qualquer coisa que expulsasse de dentro de mim o sentimento de vazio, que limpasse o sabor amargo que tinha na boca. Enfiei um par de calças e uma velha blusa azul e saí do quarto.

Meti-me pela galeria dirigindo-me para a escada das traseiras. Encontrei Robair exactamente quando estava a alcançá-la. Trazia uma bandeja com um copo de sumo de laranja e uma chávena de café fumegante. Olhou para mim surpreendido.

— Bom dia, Mr. Jonas.

— Bom dia, Robair — respondi.

— Mr. McAllister chegou. Está no gabinete.

Hesitei um momento. O curral teria de esperar. Havia coisas mais importantes para fazer.

— Obrigado, Robair — disse, voltando-me para a esca­daria principal.

— Mr. Jonas — chamou Robair.

Voltei-me para saber o que havia.      

— Se vai tratar de negócios, Mr. Jonas, acho que é melhor levar qualquer coisa no estômago.    

Olhei para ele, depois para a bandeja. Fiz um gesto afirma­tivo e sentei-me no primeiro degrau. Robair colocou a bandeja ao meu lado. Peguei no copo de sumo de laranja e esvaziei-o. Robair serviu o café e levantou a tampa da torradeira. Sorvi o café. Robair tinha razão. O sentimento de vazio vinha-me do estômago. Estava a desaparecer. Peguei numa torrada.

Se McAllister reparou na forma como eu estava vestido, não fez qualquer comentário. Foi directamente ao ponto:

— Os dez por cento de accionistas minoritários estão divi­didos deste modo — disse ele, espalhando alguns papéis sobre a secretária. — Dois e meio por cento em nome de Rina Cord e dois e meio por cento em nome de Nevada Smith; o juiz Samuel Haskell e Peter Commack, presidente do Banco Industrial de Reno, possuem dois por cento, cada; Eugene Denby tem um por cento.

Fitei-o com interesse.

— Quanto valem essas acções?

— Em que base? — perguntou. — Dos lucros ou do valor nominal?

— De ambos — respondi.

McAllister voltou a olhar para os papéis:

— Considerando como base os lucros médios dos últimos cinco anos, as acções minoritárias valem uns quarenta e cinco mil dólares; na base do valor nominal talvez uns sessenta mil dólares. — Acendeu um cigarro. — O potencial de lucros da corporação tem diminuído depois do fim da guerra.

— Que quer isso dizer?

— Não se gasta tanta pólvora em tempo de paz como em tempo de guerra — respondeu.

Tirei um cigarro e acendi-o. Principiava a ter dúvidas sobre os cem mil dólares por ano que lhe ia pagar:

— Diga-me qualquer coisa que eu ainda não saiba — pedi. Ele voltou a olhar para os papéis e depois para mim:

— O banco do Commack recusou o empréstimo de duzentos mil dólares que seu pai pedira para financiar o contrato com os alemães que você assinou ontem.

Coloquei o cigarro lentamente no cinzeiro:

— Penso que isso nos deixa um pouco atrapalhados, não deixa?

McAllister fez um gesto afirmativo:

— Sim.

A minha pergunta seguinte tomou-o de surpresa:

— Bem, e que fez você para remediar isso?

Ele fitou-me num pasmo, julgando-me adivinho:

— Que o leva a pensar que fiz qualquer coisa?

— Você estava no gabinete de meu pai quando eu entrei e sei que ele o não chamava só para resolver o problema com os pais da rapariga. Isso era ele capaz de fazer sozinho. E além disso você aceitou o emprego. Quer dizer que tinha a certeza de arranjar o dinheiro.

McAllister principiou a sorrir:

— Consegui outro empréstimo na Companhia de Crédito Nacional em Los Angeles. Arranjei trezentos mil dólares para jogarmos pelo seguro.

— Excelente — disse eu. — Isso dá-me o dinheiro de que necessito para comprar as acções minoritárias.

Ele estava ainda a observar-me com aquela expressão de surpresa nos olhos quando me deixei cair na poltrona ao lado dele.

— Agora — disse — conte-me tudo o que conseguiu des­cobrir sobre essa nova coisa que meu pai tinha tanto interesse em conseguir. Como é que lhe chamam? Plásticos?

Robair serviu um pequeno-almoço de fazendeiro: bife com ovos e bolachas. Olhei em torno da mesa. Tinha sido levan­tado o último talher e Robair retirava-se discretamente fechando atrás de si os batentes da porta. Sorvi o conteúdo da minha chávena de café e ergui-me.

— Cavalheiros — principiei —, não preciso dizer-vos o que senti quando ontem me encontrei subitamente com a respon­sabilidade de uma grande empresa como é a Explosivos Cord. Por isso lhes pedi, cavalheiros, para virem aqui esta manhã a fim de me ajudarem a decidir o que mais convém para a com­panhia.

A voz fina de Commack chegou até mim do outro lado da mesa:

— Podes contar connosco para fazer o que for direito, rapaz.

— Obrigado, Mr. Commack — respondi. — Parece-me que a primeira coisa que temos de fazer é eleger o novo presidente. Alguém que se dedique à companhia do mesmo modo que meu pai.

Olhei em volta da mesa. Denby encontrava-se num extremo escrevinhando apontamentos num bloco. Nevada enrolava um cigarro. Lançou-me uma olhadela e os seus olhos sorriam. McAllister estava sentado calmamente ao lado dele. Haskell e Commack mantinham-se calados. Deixei o silêncio adensar-se. Adensou-se. Não precisava que me dissessem quem eram os meus amigos.

— Têm alguma sugestão, cavalheiros? — perguntei.

Commack voltou os olhos para mim:

— Tens?

— Ontem pensava que sim — respondi. — Mas dormi sobre o caso e cheguei à conclusão de que a tarefa é muito pe­sada para uma pessoa com a minha pouca experiência.

Pela primeira vez nessa manhã Haskell, Commack e Denby mostraram vivacidade. Trocaram olhadelas rápidas. Commack falou:

— Isso é muito sensato da tua parte, rapaz — disse. — Que achas do juiz Haskell? Está reformado mas acho que pode­ria assumir as funções só para te ajudar.

Voltei-me para o juiz:

— Está de acordo, juiz?

O juiz sorriu demoradamente.

— Só para te ajudar, rapaz — disse; — Só para te ajudar nos primeiros tempos.

Olhei para Nevada. Agora abria um sorriso aberto. Correspondi ao sorriso e voltei-me para os outros:

— Vamos então votar, cavalheiros?

Denby falou pela primeira vez:

— De acordo com os estatutos desta companhia o presi­dente só pode ser eleito por uma assembleia de accionistas. E só pela maioria das acções não resgatadas.

— Tenhamos então uma assembleia de accionistas — disse Commack. — A maioria das acções encontra-se aqui repre­sentada.

— Boa ideia — concordei. Voltei-me com um sorriso para o juiz: — Isto é, se eu puder votar pela minha parte — acres­centei.

— Claro que podes, rapaz — exclamou radiante o juiz retirando um papel do bolso e entregando-mo. — Está tudo ai no testamento de teu pai. Fi-lo homologar esta manhã. Agora é tudo legalmente teu.

Peguei no testamento e prossegui:

— Muito bem, então, está encerrada a sessão da direcção e aberta a assembleia de accionistas. O primeiro artigo da agenda é a eleição de um presidente e tesoureiro da compa­nhia para substituir o falecido Jonas Cord.

Commack sorriu:

— Voto pelo juiz Samuel Haskell.

Denby falou rapidamente. Demasiado depressa:

— Apoio o voto.

Esbocei um gesto de assentimento.

— Registam-se os votos para o juiz Haskell. Há mais alguns votos antes de encerrar o escrutínio?

Nevada levantou-se:

— Nomeio Jonas Cord, Júnior — lançou.

Sorri-lhe.

— Obrigado. — Voltei-me para o juiz e a minha voz tornou-se dura e impessoal: — Mais alguém apoia este voto?

A face do juiz estava apopléctica. Olhou de soslaio para Commack e depois para Denby. A face de Denby tornara-se lívida.

— Mais alguém apoia este voto? — repeti friamente.

Sabia que os tinha na mão:

— Apoio o voto — disse finalmente o juiz com voz débil.

— Obrigado, juiz — disse eu.

Depois disso foi fácil. Comprei-lhes as acções por vinte e cinco mil dólares e a primeira coisa que fiz foi despedir Denby.

Se havia de ter um secretário, não queria que fosse uma ressequida serpente venenosa como ele. Queria que tivesse mamas.

Robair entrou no gabinete onde eu trabalhava com McAllister. Levantei os olhos:

— Que é, Robair?

Ele inclinou a cabeça respeitosamente:

— Mrs. Rina gostaria de falar-lhe no quarto dela, senhor.

Ergui-me e espreguicei-me. Estar sentado a uma secre­tária durante metade de um dia era pior do que tudo o que eu já fizera.

— Muito bem, vou já.

McAllister olhou para mim interrogando.

— Espere por mim — disse. — Não demoro.

Robair manteve a porta aberta para eu passar e subi a escada para o quarto de Rina. Bati à porta.

— Entre — gritou ela.

Encontrava-se sentada ao toucador, defronte do espe­lho. Louise escovava-lhe o cabelo com uma grande escova branca. Os olhos de Rina procuraram os meus no espelho.

— Queres falar-me? — perguntei.

— Sim — respondeu. Voltou-se para Louise. — Por agora é tudo. Sai.

A rapariga fez um sinal de cabeça e encaminhou-se para a porta.  

— Espera no patamar. Chamo-te quando precisar.

Rina olhou para mim e sorriu:

— Tem o costume de escutar às portas.

— Eu sei — disse, fechando a porta. — Qual o assunto que queres tratar comigo?

Rina levantou-se. O penteador preto rodopiou em torno do corpo. Isso permitiu-me ver que usava roupa interior igual­mente preta. Os seus olhos surpreenderam a direcção dos meus. Sorriu outra vez:

— Que pensas do meu enxoval de viúva?

— Muito viúva-alegre — respondi. — Mas não foi para me perguntar isso que me chamaste.

Ela colheu um cigarro e acendeu-o:

— Quero sair daqui logo depois do funeral.

— Porquê? — perguntei. — A casa é tua. Ele deixou-ta.

Os olhos de Rina encontraram os meus através da nuvem de fumo que ela exalou:

— Queria que me comprasses esta casa.

— E não me dizes onde vou arranjar o dinheiro?

— Arranjas — disse ela sem rodeios. — Teu pai arran­java sempre quando precisava.

Analisei-a. Rina parecia saber exactamente o que estava a fazer.

— Quanto queres? — perguntei cautelosamente.

— Cem mil dólares — respondeu em tom calmo.

— O quê! — exclamei. — A casa não vale mais de cin­quenta e cinco mil.

— Bem sei — concordou Rina. — Mas vendo também algo mais: as minhas acções na Companhia de Explosivos Cord.

— As tuas acções não valem a diferença! — protestei. — Comprei esta manhã o dobro disso por vinte e cinco mil dólares.

Ela levantou-se e caminhou para mim. Os seus olhos cra­varam-se friamente nos meus:

— Olha, Jonas. Estou a ser amável neste caso. Nos termos da legislação do estado do Nevada tenho direito a um terço dos bens de teu pai, com ou sem testamento. Podia anular a homologação do testamento num ápice, se quisesse. E mesmo que não pudesse, havia de amarrar-te aos tribunais durante cinco anos. Que seria então de todos os teus projectos?

Contemplei-a em silêncio.

— Se não acreditas em mim porque não vais perguntar a esse teu amigo advogado que está lá em baixo? — acres­centou.

— Tu já te informaste, não?

— Claro que sim! — ripostou. — O juiz Haskell telefo­nou-me logo que chegou ao tribunal!

Sustive a respiração. Devia ter calculado que o velho filho da mãe não se submeteria sem espernear.

— Não tenho tanto dinheiro — disse por fim. — Nem tão-pouco a companhia.

— Sei isso perfeitamente — admitiu Rina.— Mas tentarei ser razoável. Aceitarei cinquenta mil dólares no dia seguinte ao do funeral e letras anuais de dez mil dólares a liquidar em cinco anos, avalizadas pela companhia.                

Não precisava de consultar um advogado para perceber que ela tinha sido bem aconselhada.                  

— Muito bem — disse eu caminhando para a porta. — Vem cá abaixo. Mandarei o McAllister preparar os papéis.  

— Impossível — disse ela sorrindo de novo.

— Porquê? — perguntei.

— Estou de luto — replicou Rina. — Que diriam da viúva de Jonas Cord se descesse para tratar de negócios? — Voltou para junto do toucador e sentou-se. — Quando os papéis estiverem prontos manda-os cá acima.

Eram cinco horas quando descemos do táxi em frente do edifício do banco no centro de Los Angeles. Atravessámos a porta principal e encaminhámo-nos para os gabinetes da direc­ção nas traseiras do banco. McAllister fez-me atravessar outra porta com a tabuleta PARTICULAR. Era uma sala de recepção.

Uma secretária levantou a cabeça.

— Mr. McAllister — sorriu ela. — Pensávamos que esti­vesse no Nevada.

— Estive — respondeu ele — E Mr. Moroni, está...?

— Deixe-me verificar — disse ela. — Ele tem às vezes o costume de sair do gabinete sem me prevenir. — Desapareceu por detrás de outra porta.

Olhei para McAllister:

— É o tipo de secretária que me convém. Tem cabeça e um belo par de pernas a condizer. McAllister sorriu;

— Uma rapariga destas ganha entre setenta e cinco e oi­tenta dólares por semana. Saem caras.

— O que é bom paga-se — observei.

A secretária surgiu no limiar da porta, sorrindo para nós:

— Mr. Moroni recebe-o agora, Mr. McAllister.

Segui-o até ao gabinete. Era amplo, com paredes escuras, apaineladas. No meio havia uma enorme secretária e por detrás dela um homenzinho de cabelos grisalhos e olhos negros e pers­picazes. Levantou-se quando entrámos no gabinete.

— Mr. Moroni — disse McAllister —, apresento-lhe Jonas Cord.

Moroni estendeu a mão. Apertei-a. Não era a habitual mão macia de banqueiro mas dura e calosa e apertava com força. Havia muitos anos de trabalho concentrados naquela mão e a maior parte não tinham sido passados atrás de uma secre­tária.

— Tenho muito prazer em conhecê-lo, Mr. Cord — disse, com vestígios de sotaque italiano.

— Muito prazer — fiz eu respeitosamente.

Ele apontou-nos as poltronas em frente da secretária e sentámo-nos todos. McAllister foi direito ao assunto. Quando acabou, Moroni debruçou-se sobre a secretária e fixou os olhos em mim:

— Lastimo saber da perda que sofreu — disse. — Por tudo quanto me contaram dele, era um homem invulgar.

Fiz um sinal de assentimento:

— Com efeito.

— Percebe, com certeza, que isso faz grande diferença?

Continuava a olhar para ele:

— Sem pretender manter-me no domínio puramente técnico, Mr. Moroni, pensei contudo que o empréstimo fosse conce­dido à Companhia de Explosivos Cord e não a meu pai ou a mim.

Moroni sorriu:

— Um bom banqueiro empresta a companhias mas tem sempre em vista os homens que estão por detrás das compa­nhias.

— A minha experiência é limitada, senhor, mas creio que o primeiro objectivo de um bom banqueiro é conseguir garantias acessórias para os empréstimos. Creio que isso ficou incluso no contrato de financiamento que McAllister fez com o banco.

Moroni continuava a sorrir. Recostou-se na cadeira e pes­cou um charuto. Acendeu-o e olhou para mim através de uma nuvem de fumo:

— Mr. Cord, diga-me qual julga ser a principal responsa­bilidade de quem recebe um empréstimo?

— Obter lucro com esse dinheiro.

— Eu disse quem recebe o empréstimo; não me referi ao credor, Mr. Cord.

— Bem sei, Mr. Moroni — repliquei. — Mas se eu não sentisse que ia tirar lucro com o dinheiro que o senhor me vai emprestar, não havia o menor interesse em contrair o emprés­timo.

— E como é que espera conseguir esse lucro? Até que ponto está inteirado do seu negócio, Mr. Cord?

— Não tanto quanto devia, Mr. Moroni. Certamente não tanto como estarei na próxima semana, no próximo mês, no próximo ano. Mas isto pelo menos sei. Aproxima-se o amanhã e com ele um mundo inteiramente novo. Encontrarei oportu­nidades de ganhar dinheiro que nunca existiram no tempo de meu pai. E hei-de aproveitá-las.    

— Presumo que se refere a esse novo produto que vai obter pelo contrato com os alemães?    

— Em parte a isso — disse eu, embora não tivesse pen­sado no caso até ele o mencionar.

— Que conhece o senhor de plásticos? — perguntou.

— Muito pouco — confessei.

— Que o faz pensar então que tenham qualquer valor?

— O interesse de Eastman e da Du Pont nos direitos ameri­canos. Uma coisa que lhes interessa tem forçosamente de valer. E o facto de o senhor concordar em emprestar-nos dinheiro para adquirir os direitos. Depois de arrumar os assuntos mais urgentes por cá, tenciono ir passar dois ou três meses na Alemanha e aprender tudo o que houver sobre plásticos.

— Quem dirigirá a companhia na sua ausência? — per­guntou Moroni. — Em três meses pode suceder muita coisa.

— McAllister — disse eu. — Ele já concordou em juntar-se à companhia.

Uma expressão que se aproximava do respeito revelou-se na face do banqueiro.

— Bem sei que os meus directores podem não concordar comigo mas decidi fazer-lhe o empréstimo, Mr. Cord. O negócio contém certos aspectos especulativos que não se coadunam com o que é considerado uma transacção bancária regular e segura, mas a Companhia Exploradora de Crédito Nacional fundou-se praticando empréstimos desse tipo. Fomos o primeiro banco a emprestar dinheiro aos produtores cinematográficos e não há negócio mais especulativo do que esse.

— Obrigado, Mr. Moroni — agradeci.

Levantou o auscultador:

— Traga-me o contrato de financiamento Cord e o cheque.              

— Notará — prosseguiu ele — que embora o empréstimo seja de trezentos mil dólares elevámos o seu crédito nos termos deste contrato a um máximo de quinhentos mil dólares. — Sorriu-me.

— É um dos meus princípios em negócios bancários. Não sou apologista de financiar os meus clientes muito à justa. Às vezes uns dólares a mais são a diferença entre o êxito e o malogro.

Subitamente senti que simpatizava com aquele homem. Só um jogador de poker é capaz de reconhecer o seu semelhante. Aquele homem era um, dos bons. Sorri-lhe:

— Obrigado, Mr. Moroni. Esperemos que eu ganhe bas­tante dinheiro para nós dois. — Levantei-me e assinei o contrato.        

— Tenho a certeza de que ganhará — disse Moroni, passan­do-me o cheque por cima da secretária.

Peguei no cheque e passei-o a McAllister, sem lhe dar sequer uma olhadela. Levantei-me:

— Volto a agradecer-lhe, Mr. Moroni. Lastimo ter de apressar-me mas sou forçado a voltar ainda esta noite para o Nevada.

— Esta noite? Mas só tem comboio amanhã de manhã,

— Tenho um avião pessoal, Mr. Moroni. Foi nele que vim. Estarei em casa às nove horas da noite.

Moroni torneou a secretária. Havia uma expressão apreensiva nos seus olhos:                                      

— É preferível não andar lá muito pelo alto, Mr. Cord — aconselhou. — Afinal de contas acabámos de entregar-lhe uma grande quantia.

Ri com vontade:

— Não se aflija. Mr. Moroni. É tão seguro como um auto­móvel. Além disso, se alguma coisa nos suceder nesta viagem, basta-lhe mandar cancelar o pagamento do cheque.

Riram ambos. Apercebi-me do olhar de nervosismo que atravessou a face de McAllister mas para seu crédito não fez qualquer observação.

Apertámos as mãos e Moroni acompanhou-nos à porta.

— Felicidades — desejou-nos ele quando Íamos a entrar na sala de recepção.

Um homem estava sentado no sofá. Levantou-se lentamente. Reconheci Buzz Dalton, o piloto a quem eu ganhara o avião a jogar os dados.

— Olá, Buzz — chamei. — Não cumprimentas os amigos?

A face dele abriu-se num sorriso.

— Jonas! — exclamou. — Que diabo fazes aqui?

— Vim mendigar uma esmolinha — disse eu, apertando-lhe a mão. — E tu?                                  

— O mesmo — respondeu, com uma expressão subitamente desanimada. — Mas até agora não tive sorte.

— De que se trata?

Buzz encolheu os ombros:

— Consegui um contrato para transportar correio. Luisiana para S. Francisco. Doze meses garantidos a dez mil dólares por mês. Mas penso que terei de desistir. Não consigo arranjar o dinheiro para comprar os três aviões de que necessito. Os bancos acham muito arriscado.  

— Quanto precisas?

— Cerca de vinte e cinco mil dólares. Vinte mil para os aviões e cinco mil para as despesas até chegar o primeiro cheque.

— Tens o contrato?

— No meu bolso — disse ele exibindo-o.

Passei-lhe a vista:

— Parece-me um bom negócio.

— E é — respondeu. — Estudei tudo muito bem. Posso ganhar cinco mil dólares limpos por mês depois de descontadas as despesas e amortizações. Olha, aqui tens o orçamento que eu fiz.

Os cálculos pareciam-me bem feitos. Eu já sabia razoavel­mente bem quanto custa a manutenção de um aeroplano. Voltei-me e olhei para Moroni:

— Estava a falar a sério? Sobre o meu crédito adicional? Não tem quaisquer condições?

O banqueiro sorriu:

— Não tem nenhumas condições.

Encarei Buzz:

— Terás o dinheiro, com duas condições — disse eu. — Fico com cinquenta por cento das acções da tua companhia e hipoteca sobre os teus aviões amortizáveis em doze meses, ambas pagáveis à Companhia de Explosivos Cord.

A face de Buzz contraiu-se:

— Rapaz, fizeste um grande negócio!

— Muito bem. — E voltei-me para Moroni: — Poderia ter a bondade de me tratar das minúcias? Tenho de partir imedia­tamente.

— Com muito gosto, Mr. Cord — anuiu com um sorriso.

— Faça-lhe um empréstimo de trinta mil dólares — acres­centei.

— Eh, espera lá — interrompeu Buzz. — Só pedi vinte e cinco mil.

— Bem sei — respondi voltando-me para ele com um sorriso. — Mas aprendi hoje uma coisa.

— E que foi? — perguntou Buzz.

— Que é mau negócio emprestar a um tipo o mínimo de que ele necessita. É correr um risco e ambos podemos perder. Se quisermos que a coisa resulte deve emprestar-se o bastante para lhe permitir realizar o negócio.

Meu pai teve o maior funeral jamais visto nesta região do estado. Até veio o governador. Eu fechara a fábrica e a igrejinha estava atulhada até ao tecto, com o excesso de fiéis a transbor­dar para a rua.

Rina e eu ficámos ajoelhados sozinhos, no pequeno banco junto do altar. Ela mantinha-se direita e esguia no seu vestido negro, o cabelo louro e o rosto ocultos pelo véu de luto. Eu lan­çava olhadelas disfarçadas para os sapatos pretos que trazia calçados. Eram de meu pai e magoavam-me. No último momento descobrira que não tinha nada para calçar em casa senão huarachos. Robair fora buscar os sapatos ao armário de meu pai. Ele nunca os usara. Prometi a mim mesmo que também eu nunca os usaria.

Ouvi um suspiro percorrer os presentes e ergui os olhos. Estavam a fechar a urna de meu pai. Vi a sua face, de relance, e depois desapareceu; no meu espírito produziu-se então uma curiosa espécie de vazio e durante um momento nem sequer consegui recordar como eram as suas feições.

Depois chegou-me aos ouvidos o som do choro e olhei em torno pelos cantos dos olhos. As mulheres mexicanas da fábrica choravam. Ouvi fungar atrás de mim. Voltei ligeiramente a cabeça. Eram as lágrimas de Jake Platt a correr dos seus olhos saturados de whisky.

Olhei para Rina imóvel ao meu lado. Via-lhe os olhos através do véu negro. Estavam límpidos e calmos. Atrás de nós ouvia-se o som de muita gente que chorava por meu pai.

Mas Rina, a sua mulher, não chorava. Nem tão-pouco eu, que era o seu filho.

A noite estava quente, mesmo com a brisa que atravessava as janelas vinda do deserto. Movia-me inquieto na cama e repeli os lençóis. Fora um dia muito grande, principiando com o funeral e depois continuando a trabalhar com McAllister até alta noite. Estava fatigado mas não conseguia adormecer. Demasiados pen­samentos me cruzavam a mente. Talvez fossem pensamentos desses que me faziam outrora ouvir os passos de meu pai de um lado para o outro no quarto, muito depois de toda a gente se ter deitado.

Senti mexer na porta. Sentei-me na cama. A minha voz ras­gou a imobilidade da noite:

— Quem está aí?

A porta abriu-se mais e distingui-lhe o rosto; o resto dela dissolvia-se nas trevas onde o seu penteador negro não formava contraste. A sua voz falou, muito baixinho, quando fechou a porta depois de entrar:

— Pensei que estivesses acordado, Jonas. Também não consegui adormecer.

— Preocupada com o teu dinheiro? — perguntei amarga­mente. — O cheque está sobre a cómoda, justamente com os contratos. Basta assinares a quitação e é teu.

— Não se trata do dinheiro — disse ela continuando a avançar.

— Então de que se trata? — perguntei com frieza. — Vieste dizer que tens pena? Solidarizar-te com a minha dor? É uma visita de pêsames?

Ela encontrava-se agora junto da cama e olhava para mim:

— Não precisas falar assim, Jonas. Embora fosse teu pai, eu era a mulher dele. Sim, vim dizer que tenho pena.

Mas não me contentei com isso:

— Pena de quê? Pena de que ele não te tivesse dado mais do que deu? Pena de não teres casado comigo em vez de casares com ele? — Ri com amargura. — Tu não o amavas.

— Não, não o amava — confessou Rina. — Mas respeitava-o. Ele era mais homem do que qualquer outro dos que conheci.

Mantive-me calado.

Subitamente ela desatou a chorar. Sentou-se na beira da cama e escondeu o rosto nas mãos.

— Deixa-te disso — protestei com rudeza. — É demasiado tarde para lágrimas.

Ela afastou as mãos do rosto e olhou para mim. Nas trevas via as húmidas pérolas colhendo reflexos enquanto lhe rolavam pela face.

— Demasiado tarde para quê? — soluçou ela. — Para amá-lo? Não é que não o tenha tentado. Simplesmente eu não sou capaz de amar. Não sei porquê. È a minha maneira de ser. Teu pai sabia-o e compreendia. Por isso casei com ele. Não foi pelo seu dinheiro. Ele também sabia isso. E sentia-se contente com aquilo que eu lhe podia dar.

— Se isso é verdade — perguntei —, então porque choras?

— Porque tenho medo.

— Medo? — Ri. Aquilo não era mesmo nada dela. — De que tens medo?

Ela retirou um cigarro do bolso do penteador e meteu-o na boca, apagado. Os seus olhos lançaram para mim o lam­pejo que devem reflectir os olhos de uma pantera colhidos de noite pela luz de uma fogueira.

— Dos homens — respondeu secamente.

— Dos homens? — repeti. — Tu... medo dos homens? Mas se tu própria os provocas...

— É verdade, idiota sem miolos! — replicou, irada.— Tenho medo dos homens, de escutar-lhes as súplicas, de defender-me das suas mãos libidinosas e das suas mentes que só pensam numa coisa. De ouvi-los dissimular o desejo com palavras de amor quando todos eles só querem uma coisa. Mete­rem-se dentro de mim!                      

— Estás louca! — retorqui irritado. — Não é isso a única coisa em que pensamos.                              

— Não? — Ouvi raspar um fósforo e a chama quebrou as trevas. Ela desceu os olhos sobre o meu corpo descomposto. — Então contempla-te a ti próprio, Jonas. Contempla-te a ti próprio desejando a mulher de teu pai!

Não precisava de olhar para saber que ela tinha razão. Com uma palmada irritada fiz-lhe soltar o fósforo.

E de repente ela agarrara-se a mim, dando-me pequenos beijos na face e no queixo, o corpo a tremer de todos os seus temores.

— Jonas, Jonas. Por favor, deixa-me ficar contigo. Só por esta noite — soluçava. — Tenho medo de estar sozinha.

Ergui as mãos para a repelir. Estava nua debaixo do pen­teador. A sua pele era fresca e suave como a brisa estival do deserto e os bicos eriçados do seio picaram-me as palmas das mãos.

O meu gesto petrificou-se e fiquei a contemplá-la na escuri­dão. Diante de mim havia apenas o seu rosto, depois o sabor das suas lágrimas quando os nossos lábios se conjugaram. A cólera dissolveu-se dentro de mim numa incontida torrente de desejo. E com o meu demónio vencedor, mergulhámos ambos nos prazeres frenéticos do nosso inferno particular.

Acordei e olhei para a janela. A aurora principiava a insi­nuar-se, trémula, dentro do quarto. Voltei-me para Rina. Tinha a cabeça na minha almofada e o braço a cobrir os olhos. Toquei-lhe ao de leve no ombro.                        

Ela afastou o braço. Tinha os olhos abertos: lúcidos e calmos.

Saiu da cama com um movimento suave, fluido. O corpo brilhou jovem, diáfano e doirado. Pegou no penteador aban­donado aos pés da cama, vestiu-o e eu fiquei sentado na cama a vê-la encaminhar-se para a cómoda.

— Há uma caneta na primeira gaveta da direita — disse eu.

Ela agarrou na caneta e assinou a quitação.

— Nem sequer lês? — perguntei.

— Para quê? — sacudiu os ombros. — Não podes obter mais do que aquilo que concordei em dar-te.

Tinha razão. Desistia de todos os direitos a quaisquer bens da herança. Pegando no cheque e nas notas encaminhou-se para a porta. Aí voltou-se e olhou para mim.

— Já cá não estarei quando voltares da fábrica.

Contemplei-a um momento:            

— Não precisas ir embora — disse.

Os seus olhos encontraram os meus. Creio ter-lhe surpreen­dido uma expressão de tristeza.

— Não, Jonas — disse ela suavemente. — Não dava re­sultado.

— Talvez desse — sugeri.

— Não, Jonas. É já tempo de saíres debaixo da sombra de teu pai. Ele era um grande homem. Mas também tu hás-de sê-lo. À tua maneira.

Lancei mão a um cigarro do maço que ficara sobre a mesa-de-cabeceira e acendi-o. O fumo queimou-me os pulmões.

— Adeus, Jonas — disse ela. — Felicidades.

Estive a olhá-la ainda durante um segundo, antes de falar. A minha voz saiu enrouquecida pelo fumo:

— Obrigado. Adeus, Rina.

Ela abriu a porta e fechou-a sem rumor, indo-se embora. Saltei então da cama e encaminhei-me para a janela. O sol avermelhava o horizonte. Íamos ter um dia de grande calor.

Ouvi a porta abrir-se e o meu coração saltou. Ela regres­sara. Voltei-me...

Robair entrou no quarto com uma bandeja. Os seus den­tes brancos brilhavam num sorriso agradável:

— Pensei que lhe havia de saber bem um cafézinho.

Quando cheguei à fábrica, Jake Platt dirigia um grupo de trabalhadores que estava a pintar de branco o telhado da grande construção. Sorri para comigo e entrei.

O primeiro dia foi frenético. Parecia que nada corria bem. As cabeças dos detonadores que enviámos para as Minas Endicott não funcionavam e tivemos de enviar outras a todo o vapor. Pela terceira vez nesse ano éramos batidos pela Du Pont que obtinha um contrato do governo oferecendo cordite a preço mais barato.

Passei metade do dia a analisar as cifras e a coisa final­mente resumia-se à nossa política de percentagens e lucros. Quando sugeri que era melhor rever a nossa política se em consequência dela perdíamos contratos, Jake Platt protestou. Meu pai, disse ele, afirmava não ser compensador traba­lhar numa base de menos de doze por cento. Explodi e disse a Jake Platt que era eu quem dirigia agora a fábrica e que o que meu pai fizera era lá com ele. No próximo concurso eu tinha absoluta certeza de poder bater a Du Pont oferecendo mais barato três cents a libra, no mínimo.

Nessa altura eram já cinco horas e o contramestre veio mostrar-me o mapa da produção desse dia. Ia começar a ana­lisá-lo quando Nevada interrompeu.

— Jonas — disse ele.

Levantei a cabeça. Ele passara ali o dia no gabinete, mas tão sossegado no seu canto que quase me esquecera da sua presença.

— Que é? — perguntei.

— Importas-te que eu saia um pouco mais cedo? Tenho coisas para tratar.

— Claro que podes sair mais cedo — respondi, voltando a ocupar-me do mapa da produção. — Leva o Duesenberg. Pedirei ao Jake que me leve a casa.

— Não preciso dele — respondeu Nevada.— Tenho cá o meu carro.  

— Nevada — chamei, quando ele já saia. — Diz ao Robair que estarei em casa para jantar às oito.    

Teve um momento de hesitação antes de responder.

— Certamente, Jonas. Digo-lhe.

Despachei-me mais cedo do que esperava e parei o Due­senberg em frente de casa às sete e meia, no momento em que Nevada descia os degraus da entrada com uma maleta em cada mão.

Olhou para mim com uma espécie de surpresa:

— Vieste cedo para casa.

— Sim — respondi. — Despachei-me mais cedo do que pensava.

— Oh — disse Nevada, e continuou a encaminhar-se para o seu carro. Colocou as maletas nas traseiras.

Segui-o e vi que tinha o automóvel carregado de baga­gens.

— Aonde vais com toda essa tralha, Nevada?

— É minha — respondeu com rudeza.

— Não disse que não era — fiz eu. — Perguntei-te apenas aonde ias?

— Vou-me embora.

— Vais caçar? — perguntei. Nesta época, Nevada e eu íamos para as montanhas, quando eu era catraio.

— Ná — disse ele. — Vou de vez.          

— Espera lá — fiz eu. — Não podes ir assim embora sem mais nem menos.

Os seus olhos negros penetraram nos meus.

— Quem diz que não posso?  

— Digo eu. Como é que me hei-de arranjar sem ti?

Nevada sorriu tristemente.

— Muito bem, se queres que te diga. Não precisas mais de ama-seca. Tenho-te observado nos últimos dias.

— Mas... mas... — protestei.

O sorriso de Nevada abriu-se mais:

— Todos os empregos acabam mais tarde ou mais cedo, Jonas. Estive dezasseis anos neste e agora não há mais nada que fazer. Não me agrada a ideia de ganhar um salário que não mereço.

Contemplei-o um momento. Tinha razão. Ele era dema­siado homem para se deixar ficar sem fazer nada:

— Tens bastante dinheiro?

— Nunca gastei um cent meu em dezasseis anos. Teu paizinho não me deixava.

— E que vais fazer?

— Juntar-me com dois velhos companheiros. Vamos exi­bir uma Cavalgada do Oeste na Califórnia. Estou convencido de que me vou divertir.

Ficámos um momento embaraçados, depois Nevada esten­deu a mão:

— Até à vista, Jonas.

Agarrei-lhe na mão. Sentia as lágrimas subirem-me aos olhos.

— Até à vista. Nevada.

Ele encaminhou-se para o carro e instalou-se ao vo­lante. Quando o carro arrancou agitou ainda a mão, num adeus.

— Dá notícias, Nevada — gritei-lhe, e fiquei a olhar até o carro desaparecer.

Entrei em casa e encaminhei-me para a sala de jantar. Sentei-me à mesa vazia.

Robair apareceu com um sobrescrito que me entregou.

— Mr. Nevada deixou isto para o senhor — disse o mor­domo.

Com os olhos enevoados abri o sobrescrito e retirei uma folha de papel com uma mensagem laboriosamente redigida a lápis:

Querido filho

Não sou homem de despedidas e portanto isto é assim. Não tenho muito em que me empregar por cá, por isso acho que é altura de partir. Toda a minha vida quis oferecer-te qualquer coisa no dia dos teus anos mas o teu paizinho ofere­cia sempre melhor. O teu paizinho dava-te tudo quanto querias. Portanto até agora nunca houve nada que realmente desejasses que eu te pudesse dar. Neste sobrescrito encontrarás uma coisa que desejas de facto. Não tens que te preocupar com isso. Fui a um advogado de Reno e está tudo bem e legalizado.

Feliz aniversário.

Teu amigo, Nevada Smith

Examinei os outros papéis que o sobrescrito continha. Eram acções da Companhia de Explosivos Cord endossadas em meu nome.

Coloquei-as sobre a mesa e comecei a sentir um nó na garganta. Subitamente a casa encontrava-se vazia. Todos tinham partido. Meu pai, Rina, Nevada. Todos. A casa prin­cipiava a viver de recordações.

Lembrei-me do que Rina dissera de eu sair debaixo da sombra de meu pai. Tinha razão. Não podia viver nesta casa. Não me pertencia. Era dele. Para mim seria sempre a casa de meu pai.

A minha decisão estava tomada. Arranjaria um aparta­mento em Reno. No apartamento não haveria quaisquer recor­dações. McAllister poderia ocupar a casa. Tinha família e a minha oferta poupava-lhe o trabalho de procurar instalação.

Tornei a ler o bilhete de Nevada. A última linha surpreen­deu-me. Feliz aniversário! Uma dor principiou a apertar-me as entranhas. Eu próprio me esquecera e fora Nevada o único a lembrar-se.

Realmente era o dia do meu aniversário.

Fazia vinte e um anos.

 

                     A História de NEVADA SMITH

Passava das nove horas quando Nevada saiu com o carro da estrada principal metendo-se por um atalho sujo que con­duzia ao rancho. Travou diante do edifício principal e saiu. Ficou um momento parado a ouvir o som de gargalhadas que vinha do casino.

Um homem apareceu na entrada e olhou para ele.

— Olá Nevada.

Nevada respondeu sem se voltar.

— Olá, Charles. Parece que as divorciadas se estão a diver­tir à bruta.

Charlie sorriu:

— E porque não? Para muitas delas o divórcio é um bom negócio.

Nevada voltou-se e olhou para ele:

— Creio que sim. Somente não posso habituar-me à ideia de um rancho de mulheres em vez de animais.

— Talvez acabes por te habituar — disse Charlie. — Afi­nal de contas ganhas cinquenta por cento do que elas cá desperdiçam. Chegou a altura de assentares e trabalhar aqui.

— Não sei — murmurou Nevada. — Deu-me na mania de viajar. Acho que da última vez conservei o emprego por demasiado tempo.

— Para onde hás-de viajar? — perguntou Charlie. — Não há mais sítio para onde ir. Todo o país está coberto de estradas. Chegaste trinta anos atrasado.

Nevada fez um gesto de assentimento. Charlie tinha razão mas o mais estranho era que ele se não sentia trinta anos atra­sado. Sentia-se o mesmo de sempre. Pronto para tudo.

— Instalei a mulher na tua cabana — disse Charlie — A Martha e eu temos estado à espera para cear contigo.

Nevada regressou ao carro:

— Então será melhor ir buscá-la. Voltamos logo que eu me tenha lavado.

Charlie esboçou um gesto de aquiescência e voltou para dentro quando o carro arrancou. À porta ficou a ver o automóvel galgar o pequeno outeiro que cobria as traseiras do rancho. Abanou a cabeça e entrou em casa.

Martha esperava-o.

— Como está ele? — perguntou ansiosamente.

— Não sei — respondeu, abanando de novo a cabeça. — Parece-me complicado e distante. Francamente, não sei.

A cabana estava sem luz quando Nevada entrou. Alcançou o candeeiro de petróleo ao lado da porta e colocou-o sobre a mesa. Riscou um fósforo e aproximou-o da torcida. A torcida fumegou e depois lançou uma chama. Tornou a colocar a cha­miné e pousou o candeeiro na prateleira.

A voz de Rina ergueu-se por detrás dele:

— Porque não acendes antes a luz eléctrica, Nevada?

— Gosto da luz dos candeeiros — respondeu ele com sim­plicidade. — A luz eléctrica não é natural. Fere a vista.

Ela encontrava-se numa poltrona, voltada para a porta, o rosto pálido e luminoso. Vestia um pesado camisolão de lã que cobria parte das calças de ganga azul desbotada que lhe envolviam as pernas.

— Tem frio? — perguntou ele. — Posso acender a lareira.

Rina fez um gesto negativo:

— Não tenho frio.

Ele manteve-se um momento calado.

— Vou buscar as minhas coisas — disse por fim — e la­var-me. Charlie e Martha esperam-nos para cear.

— Eu ajudo-te a trazê-las.

— Muito bem.

Saíram para a noite. As estrelas estavam muito vivas no céu de um negro aveludado e do sopé do outeiro subia o som ténue de música e das gargalhadas.

Rina olhou na direcção do casino:

— Sinto-me feliz por não ser uma delas. Ele estendeu-lhe uma maleta.

— Nunca poderia ser. Não é desse género.

— Pensei divorciar-me dele — disse Rina. — Mas houve qualquer coisa dentro de mim que me impediu de fazê-lo, em­bora soubesse que estava tudo errado desde o princípio.

— Um contrato é um contrato — observou Nevada seca­mente dirigindo-se para a cabana com os braços carregados.

— Creio que é isso.

Realizaram mais duas viagens em silêncio, depois ela sen­tou-se na beira da cama enquanto ele despia a camisa e se vol­tava para o lavatório que se encontrava a um dos cantos do pequeno quarto.

Os músculos moviam-se por debaixo da sua pele pasmosamente branca. O cabelo que lhe cobria o peito era de um negro sedoso e descia-lhe sobre o ventre liso e duro. Cobriu a cara e o pescoço com a espuma de sabão e depois enxaguou tudo com grandes mãos-cheias de água. Estendeu um braço a procurar às cegas uma toalha.

Ela estendeu-lha e Nevada friccionou-se vigorosamente. Em seguida poisou a toalha, procurou uma camisa limpa, enfiou-a e pôs-se a abotoá-la.

— Espera — pediu ela. — Deixa-me ajudar-te.

Os dedos dela eram rápidos e hábeis. Nevada sentiu o afago das polpas contra a pele como ternas carícias. Rina ergueu os olhos, com uma expressão curiosa:

— Que idade tens. Nevada? A tua pele parece a de um rapazinho.

Ele sorriu.

— Que idade tens? — insistiu Rina.

— Tanto quanto sei nasci em 1882 — respondeu ele. — Minha mãe era uma kiowa e eles não costumam fazer regis tos de nascimento. Isso dá-me quarenta e três. — Acabou en­fiando a camisa nas calças.

— Não pareces ter mais de trinta.

Ele riu, lisonjeado, a despeito de si próprio.

— Vamos comer qualquer coisa.

Ela deu-lhe o braço:

— Vamos — concordou. — Também estou com uma fome tremenda.

Passava da meia-noite quando regressaram à cabana. Ne­vada abriu a porta para deixá-la entrar primeiro. Dirigiu-se para a lareira e acendeu um fósforo. Rina aproximou-se dele e Nevada levantou os olhos.

— Você vai para a cama — disse ele.

Rina encaminhou-se silenciosamente para o quarto en­quanto Nevada abanava o fogo. A chama pegou à madeira c começou a crescer. Juntou-lhe mais alguns paus de lenha e atra­vessou o quarto dirigindo-se para um guarda-louça. Agarrou numa garrafa de whisky e num copo e foi sentar-se diante do fogo.

Serviu-se de uma dose e contemplou o whisky no copo. O fogo dava-lhe uma cor quente, radiante. Bebeu-o devagar, a saboreá-lo.

Quando acabou pousou o copo e principiou a soltar os atacadores das botas. Deixou-as ao lado da cadeira e foi esten­der-se no sofá. Tinha acabado de acender um cigarro quando a voz dela chegou do limiar da porta:

— Nevada?

Ele sentou-se e voltou-se para a porta:

— Sim?

— Jonas disse alguma coisa a meu respeito?

— Não.                

— Ele pagou-me cem mil dólares pelas acções e pela casa.

— Bem sei — respondeu ele.

Ela hesitou um momento, depois deu uns passos dentro do quarto:

— Não preciso de tanto dinheiro. Se necessitas de algum...

Ele soltou uma risadinha surda:

— Estou servido. De qualquer maneira, obrigado.

— Com certeza?

Nevada riu outra vez, imaginando o que ela diria se sou­besse do rancho de seis mil acres que ele possuía no Texas e da metade das acções que lhe pertenciam no Caravana do Oeste Selvagem. Também ele aprendera muita coisa com o velho Cord. O dinheiro só serve de alguma coisa quando trabalha para nós.

— Com certeza — afirmou. Levantou-se e aproximou-se dela. — E agora vá para a cama, Rina. Está descalça.

Acompanhou-a ao quarto e tirou um cobertor do armário, ao mesmo tempo que ela se metia na cama. Rina prendeu-lhe as mãos quando se aproximou do leito.

— Fala-me enquanto adormeço — pediu:

Ele sentou-se na borda da cama:

— De quê? — perguntou.

Ela não lhe soltou a mão:

— De ti. De onde nasceste, de donde vieste... de tudo.

Ele sorriu:

— Não tenho muito que contar — disse. — Tanto quanto sei nasci no Texas. Meu pai era um caçador de búfalos chamado John Smith e minha mãe uma princesa kiowa chamada...

— Não me digas — interrompeu ela sonolenta. — Sei o nome dela. Pocahontas.

— Foi alguém que lhe disse — riu Nevada em tom de irónica repreensão. — Pocahontas. Isso mesmo.

— Ninguém me disse — murmurou ela a resvalar para o sono. — Li em qualquer parte.

A mão dela desprendeu-se a pouco e pouco e Nevada ficou a observá-la. Tinha os olhos fechados e dormia profunda­mente.

Levantou-se com precaução e depois de lhe aconchegar o cobertor deu meia volta e saiu do quarto. Lançou uma manta sobre o sofá, despiu-se rapidamente, deitou-se e envolveu-se com a manta.

John Smith e Pocahontas. Nem sabia quantas vezes con­tara aquela história com pormenores inventados. Porque a ver­dade era ainda mais incrível. Provavelmente ninguém acreditaria nela.

Acontecera há tanto tempo que às vezes nem ele próprio acreditava. Nessa altura não se chamava Nevada Smith mas Max Sand.

E era procurado por assalto à mão armada e assassínio em três estados da União.

Foi em Maio de 1882 que Samuel Sand entrou na pequena cabana a que chamava casa e se sentou pesadamente numa caixa que lhe servia de cadeira. Em silêncio, a sua mulher squaw aqueceu um pouco de café e colocou-o defronte dele. Movia-se pesadamente pois estava grávida.

Ficou ali sentado muito tempo enquanto o café arrefecia. De vez em quando olhava através da porta para a pradaria, com as últimas manchas desmaiadas de neve ainda a resistir nas reentrâncias das escarpas.

A squaw principiou a cozinhar o jantar. Feijões e carne de búfalo salgada. Era ainda cedo para principiar a cozinhar o jantar porque o sol ainda não atingira o meio-dia mas ela sentia-se vaga­mente incomodada e tinha de fazer qualquer coisa. De vez em quando lançava uma olhadela de soslaio a Sam mas este encon­trava-se perdido no mundo perturbado que é vedado às mu­lheres penetrar. Portanto continuou a mexer os feijões e a carne na panela e esperou que o dia e a má disposição do marido passassem.

Kaneha fizera dezasseis anos nessa Primavera e fora apenas no Verão anterior que o caçador de búfalos aparecera no acam­pamento da sua tribo para escolher mulher. Viera num cavalo preto que trazia à trela uma mula pesadamente carregada de fardos.

O chefe e o conselho dos bravos adiantaram-se para recebê-lo. Sentaram-se num círculo de paz em torno do fogo com a panela da carne a cozer nas chamas.

O chefe puxou do cachimbo e Sam de uma garrafa de whisky. O chefe aproximou lentamente o cachimbo dos carvões incandescentes e uma vez aceso levou-o à boca e aspirou profundamente. Passou-o a Sam que tirou uma fumaça e por sua vez o passou ao bravo que se encontrava sen­tado a seu lado no círculo.

Quando o cachimbo regressou ao chefe, Sam abriu a garrafa de whisky. Limpou cuidadosamente a borda do gargalo e depois de empinar a garrafa na boca ofereceu-a ao chefe. Este fez o mesmo e tomou uma grande golada. O líquido queimou-lhe a garganta e fez as lágrimas brilharem-lhe nos olhos e apeteceu--lhe tossir, mas sufocou a tosse e passou a garrafa ao bravo que se encontrava sentado ao seu lado.

Quando a garrafa regressou a Sam ele colocou-a no chão diante do chefe. Inclinou-se para diante e retirou um pedaço de carne de dentro da panela. Mastigou lentamente o naco gor­duroso, com grande ruído de lábios, e depois engoliu-o!

Voltou-se para o chefe:

— Rico pedaço de cão.

O chefe fez um sinal de assentimento:

— Cortámos-lhe a língua e mantivemo-lo amarrado a um poste para que engordasse bem.

Seguiu-se uma pausa e o chefe pegou de novo na garrafa de whisky. Sam sabia que tinha chegado para ele o momento de falar.

— Sou um poderoso caçador — declarou com ênfase. — A minha espingarda abateu já milhares de búfalos. As minhas proezas são conhecidas em toda a extensão da planície. Não há nenhum bravo capaz de apanhar tanta caça como eu.

O chefe fez um sinal de solene concordância:

— Os feitos de Barba Vermelha são nossos conhecidos. É uma honra recebê-lo na nossa tribo.

— Vim procurar os meus irmãos por causa de uma donzela chamada Kaneha — disse Sam. — Quero-a para minha squaw.

O chefe suspirou de alívio. Kaneha era a mais jovem das suas filhas e a menos favorecida. Alta para mulher, quase tão alta como o mais alto guerreiro, e magra, com uma cintura tão delgada que se podia envolver com as duas mãos. Não tinha corpo para criar filhos e o rosto e feições eram lisos e magros, sem as redondezas rechonchudas que quadram a uma donzela. O chefe tornou a suspirar de alívio. Deixava de ter problemas com Kaneha.

— É uma escolha sábia — disse em voz alta. — Kaneha está apta para ter filhos. Já o seu sangue corre grosso para o chão quando a lua vai cheia.

Sam levantou-se e encaminhou-se para a mula. Abriu um dos fardos e retirou seis garrafas de whisky e uma pequena caixa de madeira. Transportou-as para o círculo e colocou-as no chão, diante dele. Voltou a sentar-se.

— Trouxe presentes para os meus irmãos Kiowa — anunciou. — Para manifestar quanto aprecio a honra que me dão permi­tindo-me tomar assento no seu conselho.

Colocou as garrafas de whisky diante do chefe e abriu a cai­xinha. Estava cheia de contas de cores vivas e de berloques. Ergueu a caixa para que todos vissem e colocou-a também aos pés do chefe.

O chefe cumprimentou:

— Os Kiowa sentem-se gratos pelos presentes de Barba Vermelha. Mas a perda da donzela Kaneha será muito difícil de sofrer pela nossa tribo. Ela já ganhara crédito entre nós pelas suas prendas e artes feminis. Cozinha e cose muito bem e é habilíssima nos trabalhos de coiro.

— Tenho consciência do alto apreço que os Kiowa dão à sua filha Kaneha — respondeu Sam cerimoniosamente. — E ve­nho preparado para compensá-los da grande perda.    

Tornou a levantar-se.                          

— Pela perda da sua contribuição para alimentar a tribo, dou como penhor a carne de dois búfalos — disse Sam voltando-se para o círculo. — Pela perda do seu trabalho, entrego aos meus irmãos esta mula que trouxe comigo. E para compensá-los da perda da sua beleza trago-lhes...

Fez uma pausa dramática e aproximou-se da mula. Silen­ciosamente desapertou o pesado fardo cilíndrico que se encon­trava na garupa. Transportou-o para o meio do conselho e pousou-o no chão. Com modos lentos desenrolou-o.

Um suspiro de pasmo subiu irreprimível de todos os peitos. Os olhos do chefe coriscaram.

— ...A pele do sagrado búfalo branco — concluiu Sam. Voltou-se para o círculo dos homens. Os olhos de todos estavam cravados na bela pele branca que brilhava diante deles como uma mancha de neve no solo.

O búfalo albino é uma raridade. O chefe que pudesse ser sepultado em tal mortalha tinha assegurada a entrada do seu espírito no paraíso das grandes caçadas. Para um negociante de peles valia dez peles normais. Mas Sam sabia o que queria.

Queria uma mulher. Durante cinco anos vivera naquelas planícies e o mais que conseguia era comprar os serviços de uma prostituta uma vez por ano, quando ia vender as peles, num pequeno cubículo das traseiras do armazém do peleiro. Chegara a altura de ter uma mulher sua.

O chefe ficou tão impressionado com a munificência do pre­sente de Sam que se esqueceu de regatear mais e ergueu os olhos:

— É com muita honra que entregamos ao caçador Barba Vermelha a nossa filha Kaneha para sua squaw.

Levantou-se dando assim sinal que estava encerrado o con­selho.

— Preparem a minha filha Kaneha para o marido — ordenou. Depois voltou as costas e encaminhou-se para a sua tenda seguido de Sam.

Noutra tenda, Kaneha esperava sentada. Instintivamente percebera que Barba Vermelha viera pedi-la. De acordo com a modéstia virginal dirigira-se para a tenda das mulheres, a fim de não ouvir o regateio. Sentou-se calmamente porque não temia Barba Vermelha. Observara-lhe o rosto muitas vezes quando ele vinha visitar seu pai.

Agora chegou-lhe o som das mulheres palreiras aproxi­mando-se da tenda. Espreitou pela fenda. O debate terminara. Só esperava que Barba Vermelha tivesse oferecido ao menos um búfalo por ela. As mulheres invadiram a tenda. Falavam todas ao mesmo tempo. Nunca uma noiva tinha trazido tantos presentes. A mula. Os colares. O whisky. A pele do sagrado búfalo branco. A carne de dois búfalos.

Kaneha sorriu intimamente saturada de orgulho. Nesse instante ficou a saber que Barba Vermelha a amava. Lá fora os tambores principiaram a executar o cântico dos esponsais.

Fez a camisa deslizar para o chão e as mulheres aproxi­maram-se. Uma de cada lado, puseram-se a desembaraçar as longas tranças que lhe caíam abaixo dos ombros. Duas outras começaram a untar-lhe o corpo com banha de urso para tor­ná-la fértil. Finalmente terminaram e afastaram-se às arrecuas.

Ela ficou nua, no meio da tenda, voltada para a entrada. O corpo luzia com a camada de banha e era alto e escorreito, de seios erectos e estômago liso, pernas finas e bem torneadas.

Abriu-se a aba da tenda e entrou o físico. Numa das mãos transportava a varinha mágica e na outra o bastão matrimonial. Agitou a varinha nos quatro cantos da tenda e fê-la vibrar duas vezes no ar para se garantir contra a presença de eventuais de­mónios pairando por ali e depois avançou para a noiva suspen­dendo o bastão matrimonial acima da cabeça de Kaneha.

A rapariga levantou os olhos. Era um objecto de madeira muito polida, esculpido de forma a reproduzir um falo erecto e os testículos. O físico baixou o bastão lentamente até assentar na cabeça de Kaneha. Ela fechou os olhos porque não convinha a uma donzela contemplar tão de perto a fonte da força dos bravos.

O físico principiou a dançar em torno dela, dando saltos e murmurando fórmulas mágicas. Comprimiu o falo contra os seios, o estômago, as costas, as nádegas, as faces e os olhos da rapariga, até o bastão ficar todo coberto com a banha que lhe untava o corpo. Por fim, saltou com um uivo horroroso e quando os seus pés voltaram a assentar no solo estava tudo silencioso, até os tambores.

Como num transe ela recebeu o bastão matrimonial das mãos do físico. Silenciosamente levou-o ao rosto, aos seios, depois ao estômago.

Os tambores recomeçaram a cadência, em surdina. Ao som dessa cadência ela baixou o bastão entre as pernas. Os pés de Kaneha começaram a acompanhar o ritmo dos tambores, lenta­mente a princípio, depois com mais vivacidade à medida que os tambores aceleravam. O seu cabelo negro que lhe cobria as nádegas principiou a esvoaçar à solta quando ela se pôs a correr à roda das mulheres exibindo o bastão matrimonial para colher as bênçãos e os gritos de desejo das outras.

Completado o círculo ela ficou uma vez mais sozinha no centro, com os pés a acompanharem o ritmo dos tambores. Se­gurando o bastão entre as pernas começou a acocorar-se lenta­mente, baixando sobre ele.

— Ai-ee — suspiravam as mulheres embalando-se no ritmo dos tambores.

— Ai-ee — tornaram a suspirar em sinal de aprovação quando ela se ergueu e se afastou do falo. Não era próprio de uma donzela mostrar demasiada impaciência pelo contacto com o esposo.

Agora suspenderam a respiração quando uma vez mais o bastão principiou a penetrá-la. Todas se recordavam dos res­pectivos casamentos e se tinham também encontrado no meio do círculo de mulheres a implorar socorro com os olhos. Mas nenhuma ousava acudir. Isso é uma coisa que só compete à noiva fazer.

No meio da dor de Kaneha os tambores principiaram a pal­pitar. Os seus lábios apertaram-se. Ali estava o seu marido, Barba Vermelha, o valente caçador. Não podia envergonhá-lo ali na tenda das mulheres. Quando ele a procurasse em pessoa, e não em espírito como agora, devia encontrar o caminho aberto e fácil.

Fechou os olhos e fez um movimento súbito e convulsivo. O hímen rasgou-se e ela cambaleou enquanto uma onda de dor lhe percorria o corpo. Os tambores tocavam agora frenéticos. Lentamente Kaneha ergueu-se, retirou o bastão matrimonial e apresentou-o com orgulho ao físico.

O físico arrebatou-lho e partiu vivamente da tenda. As mu­lheres vieram formar um círculo em torno de Kaneha. Nua, no meio das outras de forma a ocultar-se de olhos estranhos, encami­nhou-se para a tenda do chefe.

As mulheres afastaram-se à sua entrada. À luz mor­tiça da tenda o chefe e Sam ergueram os olhos para ela. Kaneha ficou imóvel, cheia de orgulho, o queixo erguido, olhando acima da cabeça dos homens, por respeito. Os seios arfavam e as pernas tremiam ligeiramente. Fazia votos para que Barba Vermelha ficasse contente com o que via.

Foi o chefe o primeiro a falar, segundo o costume.

— Repara como ela sangrou profusamente — disse. — Vai dar-te muitos filhos.

— Sim, ela há-de dar-me muitos filhos—concordou Sam, com os olhos postos no rosto da rapariga. — E visto que estou contente com ela, ofereço aos meus irmãos a carne de mais um búfalo.

Kaneha sorriu satisfeita e saiu da tenda para descer ao rio, a banhar-se. As suas preces tinham sido atendidas. Barba Vermelha estava contente com ela.

Agora ela movia-se lentamente, pesada com a sua gravi­dez, enquanto ele sentado à mesa tentava perceber porque é que os búfalos não apareciam. Algo dentro dele lhe dizia que nunca mais voltariam. Demasiados animais haviam sido chaci­nados nos anos mais recentes.

Por fim levantou os olhos da mesa:

— Reúne tudo o que é nosso — disse. — Vamos partir.

Kaneha obedientemente principiou a reunir os bens domés­ticos enquanto ele saía para atrelar as mulas ao carro. Quando terminou regressou à cabana.

Kaneha pegou no primeiro fardo e estava a encaminhar-se para a porta sentiu a dor chegar. O fardo caiu-lhe das mãos e ela dobrou-se. Ergueu para Sam um olhar cheio de compre­ensão.

— Queres dizer já? — perguntou ele, quase incrédulo.

Kaneha fez que sim.

— Bem, deixa-me ajudar-te.

Ela endireitou-se, dominando a dor:

— Não — disse em kiowa. — Isto compete à mulher, não é trabalho para um bravo.

Sam fez um gesto de assentimento. Dirigiu-se para a porta:

— Ficarei lá fora — disse.

Eram duas horas da madrugada quando ouviu dentro da cabana o primeiro vagido do filho. Estava a cabecear de sono e o vagido despertou-o no meio da noite pejada de estrelas. Ficou ali sentado, a escutar, nervoso.

Decorridos uns vinte minutos a porta da cabana abriu-se e Kaneha apareceu. Ele levantou-se precipitadamente e entrou na cabana.

A um dos cantos, sobre um cobertor estendido ao lado da lareira, estava um bebé nu. Sam parou, a olhar.

— Um filho — anunciou Kaneha orgulhosamente.

— Ora esta, raios me partam. — Sam tocou no bebé e este vagiu, abrindo os olhos. — Um filho — disse Sam. — Hem, que tal está ele? — Debruçou-se para ver mais de perto.  

A barba roçou o menino que se pôs a berrar. Tinha a pele branca e os olhos azuis como os do pai, mas o cabelo era negro e espesso na sua pequenina cabeça. Na manhã seguinte partiram da cabana.

Instalaram-se a umas vinte milhas de Dodge City e Sam dedicou-se a fazer recovagens para as carreiras de diligências. Sendo na zona o único homem que dispunha de mulas não tar­dou que principiasse a ganhar muito dinheiro.

Viviam numa pequena barraca e foi ali que Max princi­piou a crescer. Kaneha sentia-se muito feliz com o filho. Uma vez por outra tentava descobrir o motivo por que os espíritos não lhe haviam concedido mais filhos mas não se apoquentava com isso. Devido ao facto de ela ser indiana não mantinham quaisquer relações.

Sam no fundo também preferia assim. Era um homem vis­ceralmente tímido e todos aqueles longos anos passados sozinho nas pradarias não haviam contribuído para torná-lo comuni­cativo. Na cidade formou-se a reputação de que era taciturno e avarento. Corriam rumores de que ocultava em casa uma arca carregada de oiro aforrado nos seus tempos de caçador.

Ao atingir os onze anos, Max era tão ágil e rápido andari­lho como os seus antepassados índios. Montava qualquer cavalo que lhe apetecesse, sem sela, e era capaz de acertar no olho de uma tartaruga da pradaria a cem metros com uma carabina. Usava o cabelo liso e comprido, à moda índia, e os olhos eram azuis escuros, quase negros, na face bronzeada.

Uma noite, estavam sentados à mesa, ceando, Sam olhou para o filho:

— Vão abrir uma escola em Dodge — anunciou.

Max olhou para o pai quando Kaneha se aproximou da mesa vinda de junto do forno. Não sabia se devia falar ou não. Continuou a comer em silêncio.

— Inscrevi-te lá — disse Sam. — Paguei dez dólares.

Max achou que dessa vez devia falar:

— Para quê?

— Para te ensinarem a ler e a escrever — respondeu o pai.

— E tenho de aprender isso para quê? — perguntou Max.

— Um homem precisa de saber essas coisas — retorquiu Sam.

— Tu não sabes — observou Max com a lógica muito espe­cial das crianças. — E não te tem feito falta.

— Os tempos mudaram — disse Sam. — Quando eu era rapaz não se precisava disso. Mas agora tudo o que se faz fica escrito e escarrado.

— Não quero ir.                                   

— Tu vais — disse Sam, rugindo. — Já preparei tudo. Podes dormir nas traseiras da estrebaria do Olsen durante a semana.

Kaneha não tinha a certeza de ter compreendido o que o marido dissera:

— Que é? — perguntou em kiowa.

Sam respondeu no mesmo idioma:

— Uma fonte de grande conhecimento. Sem ele o teu filho nunca poderá ser um grande chefe entre os Olhos Brancos.

Era razão bastante para Kaneha.

— Ele irá — disse simplesmente. Muita ciência significa muito proveito. Regressou para junto do forno.

Na segunda-feira seguinte Sam levou Max para o colégio. A professora, uma dama sulista arruinada, veio à porta e sorriu para Sam.

— Bom dia, Mr. Sand — disse ela.

— Bom dia, minha senhora. Trago o meu filho para a escola.

A professora olhou para ele, depois para Max, finalmente para o pátio em frente da escola.

— Onde está ele? — perguntou num tom de perplexidade.

Sam empurrou Max para diante. Max tropeçou ligeira­mente e ergueu os olhos para a professora.

— Cumprimenta a tua professora — ordenou-lhe o pai.

Max, sentindo-se mal na blusa limpa e nas calças com­pridas, enterrou os pés nus na terra antes de proferir timida­mente um «Como está, minha senhora?»

A professora contemplou-o num pasmo. O nariz enru­gou-se-lhe contrafeito.

— Mas ele é um índio! — exclamou. — Não recebemos índios neste colégio.

Sam encarou-a muito firme:

— É meu filho, minha senhora.

A professora apertou os lábios com determinação.

— Também não aceitamos mestiços. Este colégio é só para brancos. — Principiou a voltar as costas.

A voz de Sam fê-la parar. Era cortante e fria como gelo quando fez aquilo que foi provavelmente o mais longo dis­curso de toda a sua vida:

— Não sei nada da sua religião, minha senhora, nem me importam as suas crenças. Tudo quanto sei é que está a duas mil milhas da Virgínia e que aceitou os meus dez dólares do mesmo modo que aceitou o dinheiro dos outros na reunião que houve no armazém. Se não o vai ensinar como combinámos acho melhor tomar a primeira diligência que a leve de volta para Leste.

A professora encarou-o com indignação:

— Mr. Sand, como se atreve a falar-me nesses termos? Acha que os pais das outras crianças consentirão em ter aqui os filhos juntamente com o seu?  

— Estavam todos na reunião — disse Sam. - Não ouvi nenhum dizer que não.

A professora olhou-o. Sam percebeu que a havia quebrado.

— Nunca hei-de compreender esta gente do Oeste — disse ela com expressão de desânimo.

Tornou a analisar Max com um olhar de censura:

— Seja como for não pode frequentar o colégio com essas roupas. Terá de vestir-se decentemente, como as outras crianças.

— Muito bem, minha senhora. Agradeço-lhe a ideia. — Anda, vamos ao armazém comprar roupas como as dos outros.

— Já que vai tratar disso — aconselhou a mestra — cor­te-lhe o cabelo. Assim não parecerá diferente dos outros.

Sam fez um gesto de assentimento. Percebera a intenção dela:

— Muito bem, minha senhora. Agradeço-lhe a ideia.

Max caminhava ao lado do pai que se dirigia a grandes passadas para o armazém. Ergueu os olhos para Sam. Era a primeira vez que enfrentava o problema:

— Pai, então eu sou diferente dos outros?

Sam olhou para o filho. Também pela primeira vez o problema lhe era apresentado. Uma súbita tristeza apode­rou-se dele. Ajoelhou no pó da estrada ao lado do filho. Falou com a sabedoria espontânea que se adquire na solidão.

— Claro que és diferente — disse, os olhos cravados nos olhos de Max. — Todos somos diferentes neste mundo, do mesmo modo que não há dois búfalos completamente iguais, nem duas mulas. Toda a gente se parece e toda a gente é diferente.

No final do primeiro ano escolar a professora sentia-se muito orgulhosa de Max. Com grande surpresa dela revelara-se o seu melhor aluno. Tinha um espírito vivo, interessado, e aprendia depressa. Quando acabou o ano lectivo insistiu com Sam para que o rapaz voltasse no Outono.

Durante as férias estivais Max trouxe as suas velhas rou­pas da estrebaria de Olsen e instalou-se em casa. Passou a primeira semana a reparar os danos causados na barraca doméstica pela passagem do Inverno.

Certa noite, depois de Max se ter ido deitar, Kaneha diri­giu-se em inglês ao marido:

— Sam.

Sam quase deixou cair os arreios que estava a reparar. Era a primeira vez depois de tantos anos que ela o chamava pelo seu próprio nome.

Kaneha sentiu o sangue subir-lhe ao rosto. Admirou-se da sua própria temeridade. As squaws nunca falavam aos ma­ridos senão em resposta a perguntas directas. Pôs os olhos no chão:

— É verdade que o nosso filho se portou bem na escola dos Olhos Brancos?

Sentiu o olhar do marido penetrá-la.            

— É verdade — ouviu-o responder.

— Tenho orgulho no nosso filho — declarou ela, voltando a falar kiowa. — E sinto-me grata ao pai, um poderoso caçador e grande chefe de família.

— Sim? — fez Sam, ainda na expectativa.

— Embora seja verdade que o nosso filho aprende muitas coisas na escola dos Olhos Brancos que o tornam mais sábio, há também outras coisas que aprende e que o perturbam gran­demente.

— Como por exemplo? — perguntou Sam em tom bon­doso.

Ela olhou-o de frente, com orgulho:

— Há alguns Olhos Brancos que dizem ao nosso filho que é menos que eles, que o seu sangue não corre vermelho como o deles.

Os lábios de Sam contraíram-se. Como teria ela sabido? Nunca ia à cidade, nunca saía dali. Sentiu-se vagamente res­ponsável.

— São crianças estúpidas — observou.

— Bem sei — disse ela com simplicidade.

Sam estendeu a mão e afagou-lhe o rosto com reconhe­cimento. Ela prendeu-a contra a face:

— Acho que é altura de mandar o nosso filho para as ten­das do poderoso chefe, seu avô, para que ele conheça a ver­dadeira força do seu sangue.

Sam olhou para a mulher. Ali estava uma sugestão inte­ligente, sob muitos aspectos. Num Estio com os Kiowa, Max aprenderia tudo o que precisava para sobreviver naquela terra. Aprenderia também que descendia de uma família que tinha antepassados mais nobres e muito mais remotos que toda essa escumalha que o atormentava. Fez um gesto de concordância:

— Levarei Max para as tendas dos meus irmãos Kiowas.

Voltou a contemplar Kaneha. Sam tinha agora cinquenta e dois anos e a mulher pouco mais de metade dessa idade. Era ainda esguia e elegante; embora forte nunca adquirira a gor­dura que com o tempo deforma as mulheres índias. Sam sentiu que o coração principiava a dilatar-se-lhe no peito.

Deixou os arreios caírem e puxou a cabeça de Kaneha para o peito. Com a mão livre afagou-lhe suavemente o cabelo. De súbito descobriu aquilo que sentira profundamente durante tantos anos. Ergueu-lhe o rosto:

— Amo-te, Kaneha — disse ele.

Os olhos dela estavam muito negros e marejados de lágrimas.

— Também te amo, meu marido.

E, pela primeira vez, ele beijou-a na boca.

Cerca das duas horas, numa tarde de sábado de Verão três anos depois, Max encontrava-se em cima de uma carrada, defronte da estrebaria de Olsen, lançando molhos de feno com um forcado para o sótão que se abria sobre a sua cabeça. Vestia calções de antílope mas exibia o tronco nu e bron­zeado, de um tom carregado que lhe dava o sol caindo a pino a esbrasear--lhe o corpo. Os músculos do dorso jogavam com facilidade acompanhando os movimentos que executava colhendo e lançando feno.

Os três homens entraram montados no pátio e pararam ­os cavalos junto do carro. Não desmontaram e ficaram ali a observá-lo.

Max não interrompeu o trabalho e decorrido um momento um deles falou:

— Eh, índio — perguntou. — Onde está o filho do Sand?

Max atirou outro molho para o sótão. Depois cravou o forcado no feno e olhou para eles:

— Sou o Max Sand — disse com simplicidade, descansando sobre o cabo do forcado.

Os homens trocaram olhares significativos:

— Procuramos o teu papá — disse o homem que falara antes.

Max olhou para eles sem responder. Os seus olhos azuis estavam carregados e impenetráveis.

— Estivemos na estação das diligências mas o escritório estava fechado. Lemos num letreiro que o teu papá se encar­regava de recovagens.

— Assim é — disse Max. — Mas hoje é sábado e ele já recolheu a casa.

Um dos outros adiantou-se.

— Temos um carro carregado de carga que precisamos de entregar em Virgínia City — disse. — Estamos cheios de pressa. Gostaríamos de falar com ele.

Max tornou a erguer o forcado. Lançou um molho para o sótão:

— Dir-lhe-ei quando regressar a casa esta noite.

— Não podemos esperar tanto tempo — disse o primeiro que falara. — Queremos combinar com ele e sair de cá esta noite. Como se vai ter a tua casa?

Max olhou para eles atentamente. Não pareciam emigran­tes nem mineiros nem tinham nada que se assemelhasse com a gente que costumava encarregar o pai de transportar carrega­mentos. Pareciam mais pistoleiros ou vadios, pela maneira como usavam os revólveres descaídos sobre as coxas e como cobriam o rosto com as abas dos chapéus.

— Eu despacho isto dentro de duas horas — disse Max. — Depois mostro-lhes o caminho.                      

— Já te explicámos que estamos com pressa, rapaz. Teu pai também não gostaria de saber que por tua causa perdeu um bom carregamento.

Max encolheu os ombros:

— Sigam durante vinte milhas a estrada que vai para Norte. Sem mais palavra eles rodaram os cavalos e começaram a trotar para fora do pátio. As vozes deles ficaram a flutuar na brisa lenta.

— Sempre pensei que com tanto dinheiro enterrado esse Sand poderia ter arranjado coisa melhor do que uma reles squaw — observou um deles.

Max ouviu os outros rirem enquanto ele enfiava, irri­tado, o garfo do forcado na meda de feno.  

Foi Kaneha quem primeiro os surpreendeu. Os ouvidos dela estavam sempre atentos à estrada nas tardes de sábado, que era quando Max regressava da escola. Dirigiu-se à porta e abriu-a.

— Aproximam-se três homens — anunciou.

Sam ergueu-se da mesa e veio espreitar por detrás dela.

— Sim — disse ele. — Que quererão?

Kaneha teve o pressentimento do perigo:

— Tranca a porta e não os deixes entrar — pediu ela.

— Vêm silenciosamente como um apache na senda da guerra e não abertamente como gente honesta.

Sam riu:

— O que não estás é acostumada a ver pessoas — disse. — Com certeza andam à procura do caminho da cidade.

— Eles vêm da direcção da cidade — disse Kaneha. Mas era demasiado tarde: o marido já se encontrava fora da porta.

— Como estão? — fez ele enquanto os homens paravam os cavalos diante da barraca.

— Você é Sam Sand? — perguntou o que viera adiante.

— Sim, sou eu — respondeu Sam com um gesto de reforço. — Em que lhes posso ser útil, rapazes?

— Temos um carregamento que queremos entregar em Virgínia City — respondeu o sujeito. Tirou o chapéu e enxugou a face na manga. — Hoje está um calor de rachar.

— Isso está — concordou Sam. — Entrem e descansem um pouco enquanto falamos.                

Os homens desmontaram e Sam entrou na barraca.

— Traz uma garrafa de whisky — pediu a Kaneha. Vol­tou-se para os homens. — Sentem-se. Que espécie de carga têm vocês?            

— Oiro.        

— Oiro? — perguntou Sam. — Não há oiro que che­gue para carregar um vagão.

— Não foi isso o que ouvimos dizer — observou um dos homens. — Disseram-nos que você tem aqui enterrado oiro que chega para carregar um vagão.

O primeiro homem aproximou-se lentamente dele. O braço voou e o punho do revólver atingiu em cheio o rosto de Sam. Sam caiu de costas contra à parede. Ergueu os olhos incrédulos para o agressor.

— Vais dizer-nos onde está, antes de começarmos a ser duros de verdade — ordenou o homem num tom cortante.

O ar dentro da cabana estava quase intoleravelmente quente. Os três homens tinham-se concentrado num canto e murmu­ravam entre eles. De vez em quando lançavam através do quarto olhadelas aos seus cativos.

Sam pendia inerte, amarrado à viga de suporte no centro da barraca. A cabeça descaía-lhe sobre o peito nu e o sangue escorria-lhe pelo rosto, tingindo os cabelos ruivos, a encanecer, da barba e do peito. Tinha os olhos tumefactos e quase fechados, o nariz quebrado e achatado contra a face.

Kaneha estava amarrada a uma cadeira. Os olhos conser­vavam-se cravados, sem pestanejar sequer, no marido. Esfor­çou-se por ouvir o que os homens diziam por detrás dela mas não se conseguiu mover, tão apertada estava contra a cadeira.

— Talvez ele não tenha realmente o oiro — sugeriu um dos homens.

— Tem, com certeza. É que o tipo é duro. Não conheces como eu de que massa são feitos estes caçadores de búfalos, — disse o que parecia o chefe.

— Bem, nunca conseguirás fazê-lo falar da maneira que disseste — respondeu o outro. — Antes disso, morre.

— Ele fala — respondeu o primeiro do grupo. Dirigiu-se ao fogão e retirou de dentro um carvão incandescente com uma tenaz. Regressou junto de Sam e obrigou-o a erguer a cabeça contra o poste segurando-lha pelos cabelos. Colocou-lhe o carvão em brasa diante do rosto.

Os olhos de Sam abriram-se. A sua voz era agora apenas um rouco crocitar:

— Não há nenhum oiro. Pelo amor de Deus, se houvesse eu já não teria dito?

O homem encostou o carvão em brasa ao pescoço e ao ombro de Sam. Sam gritou de dor:

— Não há nenhum oiro!

A cabeça caiu-lhe para o lado. O homem afastou o carvão incandescente e o sangue começou a brotar na carne aberta pelo fogo e a correr para o peito e para o braço.

O homem pegou na garrafa de whisky que ficara em cima da mesa e tomou uma golada.                          

— Atirem-lhe com água — disse. — Se ele não falar por si próprio talvez fale pela sua squaw.                      

O mais novo pegou num balde e atirou com a água à cara de Sam. Este sacudiu a cabeça e abriu os olhos. Ficou a olhar fixamente para eles.

O chefe do grupo pousou a garrafa e encaminhou-se para Kaneha. Retirou uma faca de caça do bolso. Os olhos dos outros homens seguiam-no. Cortou a corda que a prendia à cadeira.

— Levanta-te — ordenou num tom brutal.

Kaneha ergueu-se silenciosamente. A faca do homem moveu-se com rapidez nas costas dela e a túnica caiu no chão. Ficou completamente nua no meio deles. O mais novo do bando lambeu os beiços. Lançou a mão ao whisky e bebeu uma grande golada sem nunca tirar os olhos da índia.

Prendendo Kaneha pelos cabelos, a faca apoiada nas cos­tas da mulher, o chefe do grupo empurrou-a para junto de Sam. Pararam diante dele.

— Já passaram quinze anos desde a última vez que esfolei uma índia, homem da squaw — disse ele —, mas ainda não esqueci como é. — Rodopiou nos calcanhares voltando-se para ela e a lâmina da faca subiu e desceu, rente à pele de Kaneha.

Uma finíssima linha de sangue apareceu a assinalar o per­curso da faca desde a base do pescoço, passando pelo meio dos seios, atravessando o estômago e parando no ponto onde prin­cipiavam os pêlos púbicos.

Sam desatou a chorar, esquecido dos seus sofrimentos, o corpo despedaçado por amargos soluços:                

— Não lhe façam mal — pediu. — Por favor, não a matem. Não temos oiro.                                      

Kaneha estendeu a mão. Tocou suavemente no rosto de Sam:

— Eu não tenho medo, meu marido — disse ela em kiowa. — Os espíritos voltarão o mal contra aqueles que o praticam.

A face de Sam caiu para diante, as lágrimas correndo-lhe dos olhos pelo meio da barba e das faces que sangravam:

— Desculpa-me, meu amor — disse ele também em kiowa.

— Amarrem-lhe as mãos aos pés da mesa — comandou o chefe.

Aquilo não demorou e ele ajoelhou por cima de Kaneha, a faca encostada ao pescoço. Voltou-se para trás e olhou para Sam:

— O oiro? — perguntou.

Sam abanou a cabeça. Já não podia falar.

— Meu Deus — exclamou o mais novo. — Estou com uma vontade...

— É uma ideia — disse o homem da faca. Levantou os olhos para Sam. — Tenho a certeza de que ele se não importa se usarmos a sua squaw antes de a esfolarmos. As índias costu­mam ser muito boas para isso.

Pôs-se de pé. Pousou a faca e desapertou o cinturão onde trazia o revólver.                

Kaneha encolheu as pernas e desferiu-lhe um pontapé. O homem rosnou uma praga:

— Prendam-lhe as pernas — ordenou. — Eu vou primeiro.

Eram quase sete horas quando Max chegou junto da bar­raca montado no cavalo que Olsen lhe emprestara. A barraca estava silenciosa e não saia fumo da chaminé. Estranho! Em geral a mãe cozinhava quando ele chegava a casa.

Desmontou e encaminhou-se para a barraca. Parou brus­camente, com os olhos muito fixos. A porta estava aberta e oscilava devagarinho tocada pela ligeira aragem. Um temor inex­plicável apoderou-se dele e desatou a correr.

Atravessou num rompante a porta e parou com o choque da surpresa, os olhos dilatando-se--lhe diante do horror. O pai estava atado ao poste central com os olhos e a boca abertos na morte, a parte de trás do cérebro arrancada pelo tiro do «45» que lhe haviam metido na boca e disparado.

Os olhos de Max baixaram lentamente ao chão. Havia uma massa pastosa e sangrenta jazendo numa poça de sangue, com a forma daquela que havia sido sua mãe.

A paralisia abandonou-o e no mesmo instante desatou a gritar mas o vómito que lhe subiu à garganta sufocou o som. As convulsões só cessaram quando não tinha mais nada dentro dele. Apoiou-se pesadamente à umbreira da porta com o cheiro pestilencial dos vómitos a subir-lhe às narinas.

Voltou-se e saiu da barraca a cambalear. Acabou por deixar-se cair no chão, a chorar. Minutos depois as lágrimas cessaram. Ergueu-se com esforço e dirigiu-se para as trasei­ras da casa onde se encontrava o poço hertziano.

Mergulhou a cabeça na água e lavou-se dos resíduos, do vómito que tinham ficado colados ao rosto e às roupas. De­pois, escorrendo água, ergueu-se e olhou em volta.

Haviam levado o cavalo do pai mas as seis mulas pasta­vam indiferentes na estrebaria e o carro continuava debaixo do telheiro das traseiras da casa. Os quatro carneiros e as gali­nhas que a mãe criava com tanto brio tinham ficado no redil.

Passou os braços pelos olhos. Tinha de fazer qualquer coisa, pensou vagamente. Mas não se sentia com forças para sepultar o que vira dentro da barraca. Não eram nem seu pai nem sua mãe que ali estavam; seus pais nunca poderiam ter sido aquilo. Só havia uma solução.                    

Encaminhou-se para o depósito da lenha e pegou num braçado. Regressou à casa e espalhou os toros no chão. Gas­tou quase meia hora para dispor a lenha no soalho da bar­raca, em três camadas. Contemplou tudo pensativamente e tornou a sair.

Retirou o arreio da suspensão da parede do telheiro e atrelou as mulas ao carro. Em seguida, pegou num caixote, dirigiu-se para o redil e meteu todas as galinhas lá dentro. Colocou o caixote-galinheiro no carro. Depois, um a um, levou os carneiros para o carro e amarrou-os às argolas do soalho.

Conduziu o tiro de mulas e o carro para diante da casa e atrelou o cavalo de Olsen pelas rédeas às traseiras do veículo. Depois levou tudo até uns duzentos metros da casa, prendeu as mulas a um arbusto e regressou à barraca. Tinha pegado no balde do breu e lentamente foi espalhando o produto sobre a lenha. Manteve os olhos afastados dos corpos dos pais. Parou à porta onde derramou os restos do breu.

Hesitou um momento, depois, recordando-se de qualquer coisa, voltou a entrar. Dirigiu-se à prateleira onde o pai guar­dava a espingarda e o revólver mas não os encontrou. Intro­duziu a mão mais profundamente na prateleira e sentiu um objecto mole que retirou.

Era uma camisa nova de pele de gamo e calças de mon­tar que a mãe lhe confeccionara. Frescas e macias, de cor castanho-claro. De novo as lágrimas lhe encheram os olhos. Meteu tudo debaixo do braço e encaminhou-se para a porta.

Chegou um fósforo a um pau embebido no breu até pro­duzir uma chama viva. Depois de aguentá-lo por mais um segundo para não haver dúvidas lançou-o para o interior da barraca e recuou, diante da porta aberta.

Ergueu os olhos para o céu numa súbita surpresa. O Sol acabava de pôr-se e a noite caíra bruscamente. As estrelas prin­cipiaram a surgir como pontas de alfinete.

Uma coluna de fumo denso, ondeante, começou a escapar-se da porta. Subitamente ouviu-se um ruído de trovão e uma chama irrompeu para fora quando a madeira seca pegou fogo.

Max desceu o caminho, subiu para o carro e pôs-se a guiar para a cidade. Não voltou a olhar para trás senão depois de ter percorrido três milhas e alcançado a crista de uma pe­quena elevação.

No sítio onde fora a sua casa elevava-se para o céu uma chama viva, cor de laranja.

Conduziu o carro para o pátio que ficava por detrás da estrebaria de Olsen. Desceu de um salto, encaminhou-se para a casa anexa, subiu a escada e bateu à porta.

— Mister Olsen — chamou.

Uma sombra projectou-se na luz da vidraça. A porta abriu-se e Olsen surgiu no limiar:

— Max! — exclamou. — Que vieste cá fazer outra vez?

Max fitou o rosto de Olsen:

— Mataram o meu pai e a minha mãe — disse.

— Mataram? — fez Olsen perplexo. — Quem?

Atraída pelo som da voz do marido a mulher de Olsen aproximou-se, postando-se atrás dele.

— Os três homens — disse Max. — Pediram-me que lhes indicasse onde ficava a minha casa. E mataram-nos. — Hesi­tou um momento e a sua voz quase desfaleceu: — Roubaram o cavalo do pai e levaram também o revólver.

Mrs. Olsen percebeu que por detrás da fachada de calma o rapaz se encontrava num estado tremendo de choque. Afas­tou o marido e aproximou-se de Max.

— Entra para eu te arranjar uma bebida quente.

O rapaz ergueu os olhos para ela:

— Não há tempo, minha senhora — disse. — Tenho de ir atrás deles. — Voltou-se para Olsen. — Trouxe as mulas e o carro e mais quatro carneiros e dezasseis galinhas. Paga-me cem dólares e entrega-me um cavalo em troca de tudo?

Olsen fez um sinal de assentimento;

— Mas, claro, rapaz — anuiu. Só as mulas e o carro valiam três vezes isso. — Posso entregar-te o baio se quiseres. É o melhor cavalo. E também lhe ponho sela.

Max fez um gesto negativo:

— Não, obrigado, Mr. Olsen. Quero um cavalo que possa ser montado sem sela e que esteja habituado à pradaria. Não levará muita carga e desse modo andarei mais depressa.

— Muito bem, se é assim que queres.

— Pode dar-me o dinheiro já? — perguntou Max.

— Claro, rapaz — respondeu Olsen. Voltou-se para entrar em casa.

A voz da mulher deteve-o:

— Oh, não, não vais — disse ela. Arrastou Max firme­mente para dentro de casa. — Primeiro comerás qualquer coisa; Depois vais dormir. Tens bastante tempo de manhã para partir.

— Mas nessa altura eles estarão muito longe — protestou Max.

— Não, não estarão — disse ela com a sua lógica feminina. — Também terão de parar para dormir. Não estarão mais longe do que se encontram neste momento.

Fechou a porta e encaminhou-se para a mesa. Obrigou-o a sentar-se numa cadeira e colocou diante dele um prato de sopa. O rapaz principiou automaticamente a comer.

— Vou lá fora desatrelar as mulas — disse Mr. Olsen.

Quando entrou de novo em casa Max dormia com a cabeça sobre os braços cruzados.

A mulher fez-lhe um gesto para que se mantivesse calado:

— Não podes deixá-lo ir sozinho atrás desses homens — murmurou ela.

— Tenho de ir, minha senhora — disse Max erguendo a cabeça.

Ela voltou-se e olhou-o.                  

— Não podes — exclamou. — São adultos e vão fazer-te mal. Tu és ainda um rapazinho!                

Ele ergueu o rosto para a Sr.ª Olsen e esta teve pela primeira vez consciência do imenso orgulho que ardia no fundo daqueles olhos azuis-escuros:

— Eles já fizeram todo o mal que tinham de fazer-me — disse ele. — Estou quase com dezasseis e entre o povo de minha mãe um rapaz de dezasseis anos já não é um rapaz. É um homem.

No dia seguinte àquele em que partiu de Dodge afrouxou o andamento do cavalo e estudou com atenção o piso da estrada. Decorridos alguns minutos parou e desmontou. Exa­minou minuciosamente todos os sinais.

Os quatro cavalos haviam parado ali. Depois de escar­varem a terra durante alguns momentos, dois deles tinham tomado o caminho para Virgínia City. Os outros dois haviam-se dirigido para Leste, através da pradaria.

Max voltou a montar e seguiu pela pradaria, com os olhos postos na trilha até encontrar o que procurava. Um dos cavalos era o de seu pai. Reconheceu a marca da ferradura na terra mole. Eram mais leves que as marcas deixadas pelo outro cavalo, o que significava que ia desmontado, levado à trela. Significava também que o homem que perseguia devia ser o chefe, pois de outro modo não lhe consentiriam que levasse o animal, a coisa mais valiosa que haviam roubado.                          

Algumas milhas mais adiante, na trilha que seguia, encon­trou bosta de cavalo. Deteve a montada e saltou para o chão. Deu um pontapé na bosta. Não tinha mais de sete horas. Haviam perdido mais tempo na trilha do que ele supunha. Tor­nou a montar e continuou a progredir.

Trotou a maior parte da noite seguindo a trilha iluminada pela lua cheia. Na tarde do dia seguinte encontrava-se a menos de uma hora de distância da sua presa.

Ergueu os olhos para o céu. Eram quase sete horas e não tardava que anoitecesse. O homem havia de parar para acampar, se é que já não tinha parado. Max desmontou e esperou que a noite caísse completamente.

Enquanto ali esteve à espera cortou uma forquilha de um arbusto e encaixou-lhe uma pedra redonda. Depois amarrou a pedra ao garfo da forquilha com fios de couro que enro­lou em torno da pega obtendo assim uma maça de armas tão boa como qualquer outra do modelo que aprendera a con­feccionar durante o seu estágio entre os Kiowa.

Anoiteceu e Max levantou-se prendendo a maça no cin­turão. Pegou no cavalo pelo cabresto e pôs-se a avançar cuidadosamente a pé.

Caminhava devagar, com os ouvidos atentos a qualquer som estranho, as narinas farejando na aragem qualquer sinal de fogo.

Estava com sorte porque surpreendeu o odor da lenha quei­mada a um quarto de milha de distância. Amarrou o cavalo a um arbusto e retirou a carabina da mochila que trazia no dorso do animal. Em silêncio moveu-se para diante.

Um relincho chegou-lhe aos ouvidos e Max lançou-se ao chão espreitando para a frente. Calculou que os cavalos se encontrassem a uns trezentos metros dele. Procurou a fogueira mas não conseguiu avistá-la.

Cautelosamente progrediu contra o vento que vinha do lado dos cavalos, descrevendo um amplo círculo. O cheiro da fogueira penetrava-lhe agora com força nas narinas. Ergueu a cabeça do alto capim da pradaria. A fogueira ardia a uns duzentos metros dali. Avistou o homem acocorado diante do fogo, comendo de uma caçarola. O homem não era nenhum tolo. Escolhera para acampar um lugar entre dois rochedos, de forma a só poder ser atacado pela frente.

Max afundou-se de novo no capim. Teria de esperar que o outro adormecesse. Estendeu-se e olhou para o céu. Quando dentro de algumas horas a Lua fosse alta, seria o momento de avançar. Até lá não perdia nada em descansar. Fechou os olhos. Um momento depois estava a dormir profundamente.

Quando abriu os olhos viu a Lua suspensa no céu, alta e luminosa, por cima dele. Sentou-se com todo o vagar e espreitou.

A fogueira brilhava agora mortiça, apagando-se aos poucos. Via a sombra do homem estendido junto dos rochedos. Principiou a rastejar para diante. O homem ressonava ligeiramente e moveu-se no sono. Max ficou paralisado um momento, até o vulto se imobilizar de novo e então continuou a progredir. Avistava agora a mão estendida do homem com um revólver na ponta dos dedos.

Rastejou em volta e colheu uma pequena pedra do chão. Sem ruído, retirou a maça de armas do cinto e acocorou-se. Sustendo tanto quanto podia a respiração, atirou a pedra aos pés do homem. Este resmungou uma praga e sentou-se, olhando para diante, o revólver pronto na mão. Nunca chegou a saber o que o atingiu quando Max lhe desferiu por detrás a maça de armas sobre a cabeça.

Max voltou junto do cavalo já o novo dia começava a romper a leste. Amarrou o animal a um arbusto, junto dos outros, e foi outra vez observar o homem.

Tinha os olhos ainda fechados. Respirava contudo nor­malmente embora houvesse um rastro de sangue no rosto e na orelha onde fora atingido pelo pau. Jazia de costas no chão, nu, com as pernas e os braços estendidos e amarrados fortemente a estacas cravadas no solo.

Max sentou-se sobre a rocha e pôs-se a afiar a faca na superfície macia. Quando o sol surgiu o homem abriu os olhos. A princípio baços, começaram lentamente a tornar-se lúcidos. Tentou sentar-se e compreendeu que estava amarrado. Voltou a cabeça e olhou para Max.

— Que vem a ser isto? — perguntou.

Max olhou para ele. Continuou a amolar a faca:

— Chamo-me Max Sand — disse. — Lembra-se de mim?

Aproximou-se do homem. Ficou a olhá-lo de cima, com a faca frouxamente suspensa na mão. Sentiu-se um tanto per­turbado quando cruzou os olhos com os da sua presa mas re­cordou-se do que devia ter ocorrido dentro da cabana. Essa imagem expulsou de dentro dele qualquer bom sentimento. Quando falou a sua voz estava calma e sem emoção.

— Porque foi que matou meus pais?

— Não lhes fiz nada — respondeu o homem, cujos olhos se não afastavam da faca.                    

— Você tem ali atrelado o cavalo de meu pai.

— Ele vendeu-mo — replicou o homem.    

— Nunca venderia o único cavalo que tinha -disse Max.

— Deixe-me sair daqui — gritou subitamente o homem.

Max encostou a faca ao pescoço do prisioneiro:

— Não quer contar-me o que sucedeu?

— Foram os outros! — berrou o homem. — Eu não me meti em nada. Eles queriam o oiro! — Os olhos saíam-lhe das órbitas histéricamente. Com o medo principiou a urinar-se, o líquido escorrendo-lhe pelas pernas nuas. — Solta-me daqui, seu bastardo índio.

Max procedeu com rapidez. Qualquer indecisão que ainda sentisse, abandonou-o. Era o filho de Barba Vermelha e de Kaneha e dentro dele fervia o instinto terrível e vingativo dos índios. A faca luziu no sol da manhã e quando terminou o tra­balho o homem estava silencioso e imóvel.

Max contemplou impassível a sua obra. O homem havia apenas desmaiado embora os seus olhos se mantivessem abertos e sem ver. Cortara-lhe as pálpebras de modo a que nunca mais pudesse fechá-las e a carne pendia como tiras de fitilho de alto a baixo, desde os ombros até às coxas.

Max afastou-se à procura de um formigueiro. Com as mãos nuas remexeu num deles e foi colocar a colheita sobre o púbis da sua presa. Pouco depois as pequenas formigas ver­melhas cobriam o homem. Penetraram nos rasgões sangrentos do corpo, nos olhos martirizados, na boca e nas narinas.

O homem principiou a tossir e a gemer. O seu corpo estremeceu. Max observava-o em silêncio. Era este o castigo dos índios para um ladrão, violador e assassino.

O homem levou três dias para morrer. Três dias sob um sol abrasador que lhe queimava os olhos e mordia a carne destroçada enquanto as formigas iam industriosamente minando-lhe o corpo. Três dias a gritar por água e três noites de agonia enquanto as formigas e os mosquitos, arrastados pelo cheiro do sangue, vinham banquetear-se nele.

Por fim tinha perdido a razão e na manhã do quarto dia, quando Max foi vê-lo, estava morto. Esteve a contemplá-lo um instante e depois arrancou-lhe a cabeleira com a faca.

Voltou para junto dos cavalos e montou o que trouxera. Levando à trela os outros dois animais, encaminhou-se para norte, para a terra dos Kiowa.

O velho chefe, seu avô, saiu da tenda e esteve a vê-lo des­montar. Esperou em silêncio até o neto se aproximar. Max mergulhou os olhos nos do velho:

— Venho de luto às tendas do meu povo— disse em kiowa.

O chefe não falou.                

— Meu pai e minha mãe morreram — prosseguiu Max.

O avô continuou calado.  

Max levou a mão ao cinturão e retirou o escalpo pendente. Lançou-o aos pés do chefe:

— Arranquei o escalpo de um dos assassinos — anun­ciou. — E vim passar o tempo do meu luto na tenda do meu avô, o grande chefe.

O chefe contemplou o escalpo e depois ergueu os olhos para Max:

— Já não somos livres de percorrer as pradarias — disse. — Vivemos na porção de terra que os Olhos Brancos nos dei­xaram. Algum deles viu-te quando vinhas para cá?

— Ninguém me viu — respondeu Max. — Vim pelas coli­nas, atrás deles.

O chefe voltou a contemplar o troféu. Já havia muito tempo desde a última vez que o escalpo de um inimigo pendera do poste em frente da sua tenda. Sentiu o coração dilatar-se de orgulho. Olhou para Max. Os Olhos Brancos podiam acor­rentar os corpos, mas não os espíritos. Levantou o troféu e foi pendurá-lo no poste; voltou-se em seguida para Max.

— Uma árvore tem muitos ramos — disse lentamente. — E quando alguns ramos caem ou são cortados, outros devem crescer para tornar-lhes o lugar, para que os seus espíritos encon­trem onde viver.

Retirou uma pena do capacete e estendeu-a a Max:

— Existe uma donzela cujo bravo morreu há dois sóis caindo do cavalo. Ela já tinha utilizado o bastão do casamento e tem de viver numa tenda junto do rio até que o espírito do bravo seja substituído. Vai e toma-a.

Max olhou para o avô:

— Agora? — perguntou.

O chefe meteu-lhe a pena na mão:

— Agora — disse, com toda a ciência dos seus muitos anos. — É o melhor momento, enquanto o espírito da guerra e da vingança ferve em cachão no teu sangue. É o melhor mo­mento para possuir uma mulher.

Max voltou-se, pegou nas rédeas e atravessou o acampa­mento com os cavalos à trela. Os índios observavam-no em silêncio enquanto ele passava. Caminhava lentamente, com a cabeça bem levantada. Alcançou a margem de um pequeno rio e seguiu o cotovelo que ali fazia.

Havia nesse local uma única tenda, longe das vistas do resto do acampamento. Max encaminhou-se para lá. Amarrou os cavalos a uma árvore e afastando as cortinas da tenda entrou.

A tenda estava vazia. Tomou a erguer o pano da entrada e olhou para fora. Não se avistava ninguém. Dirigiu-se então para o fundo da tenda e sentou-se numa cama de peles estendi­das no chão.

Pouco depois a rapariga entrou. Tinha o cabelo e o corpo húmidos do banho do rio e o vestido moldava-lhe as formas. Os olhos arregalaram-se quando o viu. Parou preparada para fugir.

Max reparou que pouco mais era que uma criança. Catorze anos, quinze no máximo. Subitamente percebeu por que motivo o chefe o mandara ali. Pegou na pena e mostrou-lha:

— Não tenhas medo — disse com bondade. — O poderoso chefe juntou-nos para que expulsássemos os demónios um do outro.

Escarranchado no potro nervoso, Max desceu a rampa do vagão de caminho de ferro atrás dos últimos animais. Espe­rou um momento até o último bezerro entrar na cerca e depois deixou cair a cancela que a fechava. Tirou o chapéu, enxugou o suor da testa com a manga e olhou para o Sol.

Estava quase a pino, escaldante, recozendo as últimas poeiras primaveris das cercas. O gado ia-se deitando no chão como se também, de certo modo, percebesse que a viagem havia terminado: a longa viagem que os trouxera do Texas até ao caminho de ferro que por sua vez os levara a Kansas City e ao seu iminente destino.

Max voltou a colocar o chapéu e olhou através da cerca para o local onde o patrão se encontrava sobre a paliçada com os mercadores de gado. Trotou para junto deles.

Farrar voltou-se quando Max estacou o cavalo ao lado dele:

— Estão todos dentro?            

— Estão todos dentro — respondeu Max.

— Bom — disse Farrar. Voltou-se para um dos merca­dores: — Acha bem a conta? Contei mil cento e dez cabeças.

— Contei o mesmo — confirmou o mercador.

Farrar saltou da paliçada:

— Irei ao seu escritório esta tarde receber o cheque.

O mercador fez um sinal de assentimento:

— Estará pronto.

Farrar montou:

— Vamos, rapaz — disse por cima do ombro. — Toca a andar para o hotel para nos lavarmos deste cheiro a trampa de novilho.

— Senhor — disse Farrar depois do banho —, sinto-me dez quilos mais leve.

Max levantou-se depois de calçar as botas e voltou-se:

— Sim — concordou. — Eu também.

Os olhos de Farrar dilataram-se e assobiou. Max vestira uma blusa e umas calças de pele de gamo quase brancas. As suas botas de cow-boy, de tacão alto, brilhavam como um espelho e o lenço que trazia ao pescoço parecia uma mancha de oiro contra a pele escura e tisnada pelo sol. O cabelo, de um negro azulado, pendia-lhe sobre os ombros:

Farrar tornou a assobiar:

— Rapaz, onde desencantaste essas roupas?

Max sorriu:

— Foram as últimas que minha mãe me fez.

Farrar riu:

— Bem, com elas pareces realmente bastante índio.

— Sou índio — disse calmamente.

O sorriso de Farrar extinguiu-se:

— Meio índio, rapaz — emendou. — Teu pai era um branco e um bom homem. Cacei com Sam Sand demasiados anos para poder admitir que não sintas orgulho nele.

— Sinto orgulho nele, Mr. Farrar — disse Max. — Mas nunca me esquecerei de que foram homens brancos que o mata­ram e à minha mãe.

Levantou o cinturão do revólver de cima de uma cadeira e afivelou-o. Farrar observava-o enquanto ele prendia o coldre à coxa.

— Ainda não desististe de encontrá-los? — perguntou.

Max ergueu a cabeça:

— Não senhor, não desisti.

— Kansas City é uma grande cidade — observou Farrar. — Como é que sabes que os hás-de encontrar aqui?

— Se cá estiver hei-de encontrá-lo — respondeu Max. — É aqui que consta que um deles está. Depois irei ao Texas apanhar o outro.

Farrar manteve-se calado um momento:

— Bem, assim vestido terás muita sorte se ele não te en­contrar e reconhecer primeiro.

— Espero que assim seja — disse Max tranquilamente. — Quero que ele saiba porque é que vai morrer.

Farrar afastou o olhar da expressão sombria que atra­vessou os olhos do rapaz e pegou numa camisa. Max esperou calmamente que ele acabasse de vestir-se.

— Gostava de receber agora a minha soldada, Mr. Farrar — disse o rapaz, quando o outro acabou de abotoar as calças.

Farrar encaminhou-se para o toucador e tirou de lá a car­teira:

— Aí tens — disse. — A soldada de quatro meses, oitenta dólares, e os sessenta dólares que ganhaste ao poker.

Max meteu o dinheiro no bolso traseiro, sem contar.

— Obrigado, Mr. Farrar.    

— Tens a certeza de que não te posso convencer a voltar comigo? — perguntou Farrar.

— Não, obrigado, Mr. Farrar.

— Não podes viver com esse ódio todo dentro de ti, rapaz — aconselhou o outro. — Não faz bem. Só serve para fazeres mal a ti próprio.

— É mais forte que eu, Mr. Farrar — disse Max lenta­mente. Os seus olhos estavam inexpressivos e frios. — Não posso esquecer que o mesmo peito que me deu de mamar serve agora de bolsa de tabaco àquele bastardo.

Mary Grady sorriu para o rapaz:

— Acaba o teu whisky — disse ela — enquanto me dispo.

O rapaz observou-a um momento, depois bebeu o whisky rapidamente. Tossia quando se encaminhava para a cama onde se sentou.

Mary olhava-o enquanto tirava o vestido pela cabeça:

— Como te sentes?

O rapaz fixou-a. Via-se já um princípio de névoa nos seus olhos:

— Parece-me que bem — respondeu. — Não estou habi­tuado a tanta bebida.

Ela deu a volta e aproximou-se dele, com o vestido pen­dente no braço:

— Deita-te e fecha os olhos — aconselhou, — Estarás bem dentro de poucos minutos.

Ele olhou-a nebulosamente, sem responder.

A mulher estendeu a mão e empurrou-lhe o ombro. Uma centelha de lucidez faiscou nos olhos do rapaz. Tentou levan­tar-se, a mão procurou a coronha do revólver, mas o esforço era demasiado para ele. Caiu de través sobre a cama, inconsciente.

Com um gesto experiente Mary debruçou-se sobre o garoto e ergueu-lhe uma pálpebra. Estava realmente fora do mundo. Sorriu e dirigindo-se à janela olhou para a rua.

O amante encontrava-se postado em frente de um bar. A mulher ergueu e baixou duas vezes a persiana dando o sinal combinado, e o tipo avançou para o hotel.

Ela já estava de novo vestida quando o amante entrou no quarto:

— Demoraste que te fartaste para conseguir trazê-1o aqui — observou ele sombriamente. — Que podia eu fazer? — desculpou-se ela. — Não queria beber. É apenas um garoto.                

— Quanto tem ele? — perguntou o chulo.

— Não sei — respondeu Mary. — O dinheiro está no bolso de trás. Tira-o e vamos embora. Este hotel dá-me sempre arrepios.

O homem dirigiu-se para a cama e retirou o dinheiro do bolso do rapaz. Contou-o rapidamente:

— Cento e trinta dólares — disse.

Mary aproximou-se dele e abraçou-o:

— Cento e trinta dólares. Talvez possamos acabar a noite por aqui — disse ela, beijando-o no queixo. — Íamos para o meu quarto e passávamos toda a noite juntos.

O chulo olhou-a sobranceiro:

— O quê? Estás louca? — rugiu. — São apenas onze horas. Podes ainda aplicar o mesmo truque a mais três tipos esta noite.

Voltou-se para observar o rapaz enquanto ela pegava na carteira:

— Não te esqueças da garrafa de whisky — recomendou ele por cima do ombro.

— Está descansado.

— O rapaz não parece um cow-boy — disse — Tem ares de índio.

— E é — confirmou a mulher. — Anda à procura de um tipo que usa uma bolsa de tabaco feito com a pele de uma mulher índia. — Riu. — Penso que nem sequer desejava deitar-se comigo. Consegui trazê-lo aqui porque lhe dei a entender que conhecia quem ele procurava.

O madraço voltou a contemplar o rapaz pensativamente;

— Ele vem armado. Deve valer alguma coisa para o tipo que ele procura saber que o rapaz está aqui.

— Sabes de quem é que ele anda à procura?

— Talvez — respondeu. — Vamos.

Eram quase duas horas da manhã quando o chulo conse­guiu encontrar o homem que procurava. Estava a jogar cartas nas traseiras do Golden Eagle. Aproximou-se dele e tocou--lhe no ombro ao de leve.

— Mr. Dort — murmurou.

— Que diabo queres?

O outro lambeu os beiços nervosamente:

— Desculpe, Mr. Dort — apressou-se a dizer. — Obtive uma informação que suponho interessar-lhe.

O chulo olhou em redor da mesa, nervoso. Os outros homens ergueram os olhos para ele:

— Talvez seja preferível em particular, Mr. Dort — acres­centou. — É por causa dessa bolsa de tabaco.

Apontou para a mesa onde jazia a bolsa.

Dort riu:

— A minha bolsa índia de tabaco? Há alguém a querer comprá-la? Não está à venda.

— Não se trata disso, Mr. Dort.

Dort voltou-se para ele:

— Que raio estás a tentar dizer-me?

— Pensei que valeria alguma coisa...

Dort ergueu-se rapidamente. Lançou as mãos à lapela do casaco do chulo e lançou-o com força contra a parede onde o apertou.

— Qual é essa informação que me pode interessar? — per­guntou.

— A informação vale qualquer coisa — disse o outro, os olhos dilatados de pavor. Dort era um dos mais perigosos assassinos da cidade.

— Sim, vai valer qualquer coisa — ripostou Dort ameaçadoramente. — Se não falares depressa...

— Está na cidade um rapaz índio à sua procura — disse o chulo cheio de terror. — E vem armado.

— Um rapaz índio? — perguntou Dort. A pressão das mãos afrouxou. — Qual o aspecto do rapaz?

O homem descreveu Max.

— Tem olhos azuis? — perguntou Dort asperamente.

O outro confirmou:                              

— Sim. Vi-os quando ele engatou uma das minhas rapa­rigas no bar. Por isso não percebi logo que ele era índio. Conhe­ce-o?

Dort fez um gesto silencioso de afirmação:

— Conheço-o. Aquilo era da mãe dele.

Todos os olhares se concentraram na bolsa de tabaco.

— Que vai agora fazer? — perguntou o chulo.

— Fazer? — repetiu Dort sombriamente. Olhou para ela e depois para os homens sentados em volta da mesa. — Vou fazer o que devia ter feito há um ano. Matá-lo. — En­carou-o de novo: — Onde está ele?

— Levo-o até lá — ofereceu-se o chulo cheio de boa von­tade.

Os outros parceiros entreolharam-se, e depois puseram-se lentamente de pé:                          

— Espera por nós. Tom — pediu um deles. — Pode ser que a coisa tenha piada.

Quando chegaram ao hotel, Max já havia partido. Mas o empregado da recepção disse-lhes onde o podiam encontrar no dia seguinte. Junto dos currais, às duas horas. O empregado devia ir ter com ele a essa hora para receber o dólar do quarto.

Dort atirou um dólar de prata para cima do balcão:

— Aí tens o teu dinheiro — disse. — Eu vou recebê-lo por ti.

Farrar encontrava-se debruçado na paliçada vendo Max conduzir os primeiros novilhos para a manjedoura. Havia outro homem encostado à paliçada, a seu lado.

— Esse rapaz possui um sexto sentido para os cavalos — observou Farrar sem olhar para o vizinho.

A voz do homem era inexpressiva:

— Sim. — Acabou de enrolar um cigarro e meteu-o na boca. — Tem um fósforo?

— Tenho, claro — disse Farrar procurando no bolso. Acen­deu um fósforo e segurou-o próximo do homem. A mão ficou gelada quando viu a bolsa entre os dedos do outro.

O homem seguiu-lhe o olhar:

— Que é que o está a interessar?

— A bolsa de tabaco — disse Farrar. — Nunca vi outra igual.

O tipo riu:

— É apenas uma mama de squaw — disse. — São o melhor para manter o tabaco fresco. Mas não duram muito. Esta está a ficar no fio.

Subitamente Farrar voltou-se na paliçada para dar sinal a Max.

— No seu caso eu não faria isso — preveniu o homem.

Houve um rumor e Farrar teve a súbita noção da presença de outros homens. Ficou a olhar impotente enquanto Max, depois de fechar a cancela sobre o último novilho, principiou a trotar para onde eles se encontravam.

Max desmontou e prendeu o cavalo a um poste:

— Tudo pronto, Mr. Farrar — anunciou com um sorriso.

— Montas muito bem, rapaz — disse o homem. Atirou a bolsa de tabaco na direcção dele. — Toma, serve-te de um cigarro.

Max apanhou a bolsa com agilidade.

— Obrigado, senhor — murmurou. Desceu os olhos para abrir a bolsa. Depois fitou o homem e de novo a bolsa, en­quanto o rosto empalidecia.

A bolsa caiu-lhe das mãos e o tabaco espalhou-se pelo chão. Dirigiu-se ao homem:

— Nunca o teria reconhecido se não tivesse feito isso — declarou suavemente.

Dort soltou uma gargalhada grosseira:

— Aposto que é da barba.

Max principiou a recuar lentamente:

— Sim, você é um deles. Agora reconheço-o.

— Sou um deles — confirmou Dort com a mão suspensa sobre o revólver. — Que é que tencionas fazer agora?

Instintivamente Farrar e os outros haviam-se afastado.

— Não faças nada, Max — preveniu Farrar. — É Tom Dort. Não imaginas como é rápido.

Max não afastava os olhos da face de Dort:

— Não me faz qualquer diferença que ele seja rápido, Mr. Farrar — disse. — Vou matá-lo.

— Saca o revólver, índio — incitou Dort pesadamente.

— Não tenho pressa — replicou Max suave. — Quero que morras devagar, como a minha mãe.

A face de Dort principiava a tornar-se vermelha e con­gestionada na ardência do sol:

— Saca — intimou brutalmente. — Saca, maldito mestiço filho de uma cabra índia de pataco. Saca, raios te partam!

— Não tenho pressa de matar-te — respondeu Max em tom brando. — Nem sequer te vou atirar à cabeça ou ao cora­ção. Primeiro vou atirar-te ai para baixo — apontou-lhe para os testículos —, depois meto-te duas ameixas na barriga. Quero ver-te morrer.

Dort principiou a sentir medo. Pelo canto dos olhos viu os homens que o observavam. Olhou para Max. A face do rapaz chispava ódio; tinha os lábios crispados.

«Agora, pensou Dort, agora. Agora consigo arrumá-lo.» A sua mão procurou vivamente o revólver.

Farrar viu o movimento mas embora voltasse com rapidez os olhos não foi suficientemente rápido para ver o revólver de Max surgir-lhe na mão. Disparou quase antes de Dort ter tido tempo de retirar a arma do coldre.

O revólver caiu das mãos do bandido quando este tombou de joelhos levando as mãos aos testículos.

Max aproximou-se dele, devagar.

Dort esteve ajoelhado um momento, como se a rezar, de­pois ergueu a mão e levou-a diante dos olhos. O sangue corria--lhe entre os dedos. Fitou Max num pasmo.

— Seu filho duma cabra! — gritou e procurou a arma do chão poeirento.                                          

Max esperou que Dort voltasse o cano para ele, e só então disparou mais duas vezes.

As balas lançaram Dort de costas e ali ficou, com o corpo a estrebuchar. Max aproximou-se e contemplou-o de cima, com o revólver ainda a fumegar.

Dois dias depois deram a Max a oportunidade de escolher entre alistar-se no exército ou ser julgado. Falava-se muito numa guerra com Cuba e o juiz era dos patriotas. As proba­bilidades eram todas de que Max fosse absolvido por ter agido em legítima defesa, mas o rapaz não queria correr riscos, nem mesmo com testemunhas.

Tinha um encontro marcado com um homem de quem nem sequer sabia o nome.

Nevada agitava-se inquieto com a sensação vaga de que havia mais alguém no quarto com ele. Automaticamente procurou os cigarros mas quando a sua mão só encontrou o vazio e caiu ao lado do sofá, acordou.

Não tardou que se recordasse de onde estava e logo atirou as pernas para fora do sofá procurando as calças. Os cigarros encontravam-se no bolso da direita. Meteu um na boca e acendeu-o.

A chama flamejou nas trevas e Nevada viu Rina sentada na poltrona, a olhar para ele. Aspirou uma profunda fumaça e soprou o fósforo.

— Porque não está a dormir? — perguntou.

Ela respirou fundo:

— Não conseguia dormir — disse. — Tenho medo.

— Medo, Rina. Medo de quê? — fitou-a com curiosidade.

— Ela manteve-se imóvel na poltrona.

— Estou com medo do que me acontecerá.

Nevada riu, um riso calmo, tranquilizador:

— Você tem dinheiro e é nova. E tem toda a vida diante de si.

A face dela era uma mancha luminosa nas trevas:

— Bem sei — murmurou. — É o que repito a mim mesma. Mas o pior é que não consigo convencer-me.

Subitamente encontrou-se de joelhos diante dele:

— Tens de ajudar-me, Nevada!

Ele estendeu o braço e afagou-lhe o cabelo:

— As coisas levam o seu tempo, Rina.

As mãos de Rina procuraram as dele.

— Não compreendes. Nevada — disse ela numa voz rouca. — Sempre me senti assim. Mesmo antes de casar com o Corá, mesmo antes de vir para cá. Até quando era pequenina.

— Penso, Rina, que uma vez por outra todos temos os nossos medos.

A voz dela continuava rouca de terror:

— Mas comigo é diferente! Vou morrer de qualquer doença terrível. Sei-o, Nevada. Sinto-o cá dentro.

Nevada ficou sentado, com a mão a afagar-lhe distraidamente o cabelo enquanto ela chorava.                      

— As coisas serão diferentes quando voltares para o Leste — disse ele com bondade. — Encontrarás rapazes novos e...

Ela ergueu a cabeça e fitou-o. Os primeiros e débeis alvores da madrugada iluminavam-lhe as feições. Os seus olhos estavam dilatados e brilhantes de lágrimas.

— Rapazes novos, Nevada? — fez ela numa voz que pare­cia carregada de desdém. — É uma das coisas que temo. Não vês que se não fosse assim ter-me-ia casado com Jonas em vez de casar com o pai?                  

Nevada não respondeu.

— Os rapazes são todo os mesmos — prosseguiu ela. De mim só querem uma coisa. — Os lábios arrepanharam-se contra os dentes quando ela cuspiu as palavras: — Fornicar. Nada mais além de fornicar, fornicar, fornicar!    

Ele ficou perplexo, a olhá-la, com uma sensação de cho­que ouvindo na voz límpida e irritada de Rina aquela palavra dura. Mas a surpresa passou e ele sorriu.

— Que esperavas, Rina? — perguntou. — E porque me contas tudo isso?

Os olhos dela procuraram-lhe o rosto:

— Porque quero que me conheças — disse. — Que per­cebas como eu sou. Nenhum homem me compreendeu.

O cigarro chamuscou os lábios de Nevada. Pousou-o vivamente:

— E porque hei-de ser eu a saber?

— Porque tu não és um rapaz — foi a resposta pronta. — És um adulto.

— E tu, Rina?

Os seus olhos assumiram uma expressão de desafio mas a voz traía o embaraço:

— Penso que sou uma lésbica.

Nevada riu.

— Não rias! — disse ela com vivacidade. — Não é assim tão absurdo. Estive com mulheres e com homens. E nunca consegui com um homem, com nenhum homem, sentir o que senti com as mulheres. — Riu amargamente. — Os homens são tão tolos. É tão fácil fazê-los crer no que querem acreditar. E eu conheço todos os truques.

A vaidade masculina de Nevada fora despertada:

— Talvez seja porque nunca encontraste um homem a valer.

Uma nota de desafio atravessou a voz de Rina:

— Oh, não?

Nevada sentiu os dedos dela percorrerem-lhe as coxas, à procura do falo por debaixo do cobertor. Com um gesto brusco ela arredou a coberta e afundou a cabeça entre as pernas de Nevada. Ele sentiu-lhe os movimentos dos lábios e ficou furioso.

Afastou-lhe a cabeça puxando-lhe pelo cabelo:

— Que é que pretendes provar com isso? — perguntou com dureza.

A respiração dela tornara-se ofegante e desigual:

— Que tu és o homem — murmurou ela. — O único homem que me pode fazer sentir.

Ele ficou a contemplá-la em silêncio.

— Tu és o único, Nevada — insistiu Rina. — Sei-o. Sinto-o dentro de mim. Poderás fazer de mim novamente uma mulher. Nunca mais terei medo.

Voltou de novo a cabeça mas a mão dele segurava-a com firmeza. Os olhos dela estavam dilatados de desespero:

— Por favor, Nevada, por favor. Deixa-me provar até que ponto sou capaz de amar-te! — Desatou outra vez a chorar.

Nevada levantou-se de repente e encaminhou-se para a lareira. Espevitou os carvões, deitou-lhes mais estopa e outro toro. Pouco depois um calor crepitante entrou a lançar reflexos no quarto. Nevada voltou-se para Rina. Continuava sentada no chão, diante do sofá, observando-o.

Lentamente Nevada aproximou-se dela:

— Quando te disse que viesses para cá pensava estar a fazer o que devia, Rina.

Sentou-se e alcançou um cigarro. Ela acendeu rapida­mente um fósforo:

— Sim, Nevada? — perguntou numa voz meiga.

A chama brilhou nos olhos dele enquanto o fósforo se ia apagando devagar:

— Não sou o homem que procuras, Rina.

Os dedos dela afagaram-lhe ao de leve o rosto:

— Não, Nevada — interrompeu ela. — Isso não é verdade.

— Talvez não — disse ele, e um sorriso lento encrespou--lhe os lábios. — Mas acho que sou demasiado novo. Bem vez, tudo quanto quero fazer contigo é... fornicar, fornicar, fornicar!

Ela observou-o durante um momento e depois principiou a sorrir. Levantou-se de um salto e tirou-lhe o cigarro da boca. Os lábios dela esvoaçaram sobre os dele por um instante; em seguida aproximou-te do fogo e voltou-se para ele. Meteu o cigarro entre os lábios e aspirou profundamente.

Depois fez um ligeiro movimento e o penteador deslizou para o chão. O fogo saltitante cobriu-lhe de ouro rubro o corpo nu. Atirou com gesto rápido o cigarro para trás das costas, para a lareira, e pôs-se a caminhar para ele.

— Talvez seja melhor assim — concordou ela caindo-lhe nos braços estendidos. — Assim podemos continuar amigos.

— O espectáculo vai mal — disse o caixa.

Nevada olhou para Rina. Ela espreitava pela janela do carro-bilheteira, vendo o último acto do Oeste Selvagem a decorrer na arena. Os sons abafados dos chicotes e dos gritos arrastavam-se até eles no ar quente.

— Até que ponto? — perguntou Nevada, afastando os olhos de Rina. — Andamos uma semana atrasados à companhia de Buffalo Bill Cody por todo o Verão. Se estas duas semanas podem servir de indicação, vamos perder quarenta mil dólares.

Uma trombeta tocando à carga rasgou o ar. Nevada mo­veu-se na sua inconfortável cadeira de madeira e principiou a enrolar um cigarro. O espectáculo estava a terminar. A cava­laria chegava em socorro dos sitiados. Enfiou o cigarro na boca.

— Como consentiste que uma coisa dessas sucedesse? — perguntou, com o cigarro a girar--lhe entre os lábios.

— Não foi por minha culpa, Nevada — respondeu o caixa rapidamente. — Creio que foi o agente que nos tramou.

Nevada não respondeu. Acendeu o cigarro.

— Que vai fazer? — perguntou o caixa apreensivo.

Nevada encheu os pulmões de fumo:

— Levar até final a temporada.

— A perder quarenta mil? — A voz do caixa revelava in­dignação. — Não nos podemos permitir perder tanto dinheiro!

Nevada observava-o. A face do caixa estava vermelha e embaraçada. Porque seria que o homem parecia preocupado? Afinal não era o dinheiro dele que se ia perder.

— O que não podemos permitir-nos é não perdê-lo — disse Nevada. — Se desistimos ficamos sem os nossos principais intérpretes. Não virão connosco na próxima temporada se os largarmos, agora.

Nevada levantou-se, encaminhou-se para a janela e olhou para fora. Os índios estavam a sair da arena com a cavalaria uivando-lhes na peugada. Voltou-se para o caixa:

— Vou levar Mrs. Cord à estação de caminho de ferro. Depois passo pelo escritório do agente. Você espere aqui por mim que eu volto.

— Muito bem, Nevada — respondeu o caixa.

Nevada deu o braço a Rina para ajudá-la a descer os de­graus do carro. Em volta deles atarefavam-se os actores, chou­tando os cavalos para a cavalariça, correndo para as carroças para mudar de roupas, gritando uns para os outros os seus pla­nos para a noite.

Rina voltou-se para ele quando chegaram junto do auto­móvel:              

— Deixa-me ficar contigo, Nevada. Por favor.

Ele sorriu lentamente:

— Pensei que isso já tivesse ficado combinado.

— Mas Nevada... — Os olhos dela cresceram muito sérios. — Não tenho nada que me prenda, no Leste. Aqui, sinto-me viva, interessada...

— Deixa de proceder como uma criança — disse ele. — Agora és uma mulher. Isto não é vida para ti. Numa semana estavas farta.

— Pago metade dos prejuízos que tiveres esta temporada se me deixares ficar.

Nevada olhou-a vivamente. Pensava que ela nem sequer tivesse ouvido a conversa do caixa, tão absorvida pelo espec­táculo lhe parecera.

— Não poderias suportá-los — declarou.

— E tu podes? — perguntou ela.

— Melhor que tu. Estou metido em mais de um negócio.

Ela fitou-o um momento, depois entrou no carro. Não falou senão quando chegaram à estação e Rjna se preparava para entrar no comboio.

— Escreves-me, Nevada? — perguntou.

— Não sou de muitas letras — respondeu ele.

— Mas manténs contacto comigo, sim? — insistiu Rina. — Respondes-me se eu te escrever?

Ele fez um gesto de assentimento.

— Deixas-me vir aqui visitar-te uma vez por outra? — per­guntou a mulher. — Se me sentir sozinha e assustada?

— Para isso são os amigos — disse ele.

Os olhos de Rina humedeceram:

— Tens sido um bom amigo, Nevada — murmurou num tom sério.

Beijou-o no rosto e subiu a escada do Pullman. À porta voltou-se para acenar com vivacidade antes de desaparecer no corredor. Nevada avistou-lhe o rosto através da vidraça quando o comboio principiou a afastar-se. Depois... tinha partido e Nevada caminhou para fora da estação.

Subiu um lanço de arruinados degraus que conduzia a um corredor poeirento. A pintura da porta estava raspada e comida e o letreiro começava a desvanecer-se:

 

           DANIEL PIERCE

           AGENTE DE ESPECTÁCULOS

 

O escritório condizia com o corredor. Uma rapariga olhou para ele por cima de uma escrivaninha atulhada de papéis. No cabelo viam-se vestígios da última descoloração e a pastilha-elástica estalou-lhe na boca quando ela perguntou quase com hostilidade:

— Que é que quer?

— Dan Pierce está?

A rapariga analisou Nevada durante um momento, os olhos estudando-lhe a coçada jaqueta de cabedal, a desbotada blusa, o chapéu de cow-boy de abas largas:

— Se você procura emprego — disse muito depressa — não há nada.

— Não procuro emprego — respondeu Nevada rapida­mente. — Procuro Mr. Pierce.

— Marcou entrevista?

Nevada sacudiu a cabeça:

— Não.

— Ele não recebe ninguém sem marcar hora — disse ela com brusquidão.

— Pertenço ao espectáculo do Oeste Selvagem — declarou Nevada. — Ele recebe-me.

Na face da empregada surgiu uma centelha de interesse:

— Do espectáculo do Buffalo Bill?

Nevada abanou a cabeça:

— Não. Do Rodeo do Grande Sudoeste.

— Oh. — O interesse esmoreceu-lhe no rosto. — O outro.

Nevada fez um sinal afirmativo:

— Sim, o outro.

— Bem, ele não está.

— Onde posso encontrá-lo?

— Não sei. Saiu para ir a uma reunião.

A voz de Nevada era insistente:

— Onde?

Houve algo nos olhos dele que a fez responder:

— Foi às Norman Pictures. Está a tentar vender-lhes um cliente qualquer para um filme do Oeste.

— Como é que se vai lá ter?

— Fica no Boulevard Lankershim, depois da Universal e da Warner's.

— Obrigado — disse ele, e saiu.

Avistou o grande letreiro da Universal logo que entrou em Lankershim.

 

       Universal Pictures

       A CASA DE TOM MIX E DE TONY

       vejam

       CAVALEIROS DAS FLORES VERMELHAS

       Um filme da Universal

 

Minutos depois passou diante de outro letreiro em frente da Warner Bros.

 

         A Warner Bros. apresenta

         Milton Sills

         em

         O FALCÃO DO MAR

         Um filme Vitagraph

 

O estúdio de Norman ficava umas cinco milhas além. Também tinha na fachada o habitual letreiro:

 

         Produções Bernard B. Norman

         Apresentam

         O XERIFE DA ALDEIA TRANQUILA

         Com um elenco completo de estrelas

 

Dirigiu o carro para o portão onde o porteiro o man­dou parar.

— Dan Pierce está cá? — perguntou Nevada.

— Um momento, vou saber. — O guarda dirigiu-se para um bloco e verificou. — Você deve ser o homem que ele espera — disse. — Está lá atrás. Siga o caminho sempre a direito. Não pode deixar de encontrá-lo.

Nevada agradeceu-lhe e engatou o carro. Guiava lenta­mente porque o caminho estava cheio de gente. Alguns eram actores com roupas de fantasias mas a maior parte pareciam actores com roupas de trabalho. Passou por alguns grandes hangares e pouco depois encontrou-se em terreno livre. Por ali só havia mato e colinas.

Encontrou outro letreiro quando alcançou o sopé da pri­meira colina.

CENÁRIO DA ALDEIA TRANQUILA

Estacionem os carros aqui

Seguiu a direcção da seta. Na berma da estrada havia um certo número de camiões e de automóveis. Parou a seguir a um deles e saiu do carro.

— Dan Pierce está por aqui? — perguntou Nevada a um homem que se encontrava sentado num dos camiões.

— Ele está com o grupo da Aldeia Tranquila? — perguntou o motorista.

— Assim penso — disse Nevada.

— Então encontra-o no alto da colina.

Na crista da colina Nevada parou e olhou para baixo, para o outro lado. Viu um grupo de gente.

— Filma, eles aproximam-se — bradou uma voz pesada.

Subitamente uma diligência apareceu rugindo no cami­nho poeirento por debaixo dele. Quando descrevia a curva Nevada viu o condutor saltar e enrodilhar-se na estrada. Um momento depois os cavalos libertaram-se dos arreios e a car­ruagem desequilibrou-se acabando por cair aos tombos numa ravina.

Mal tinha assentado de novo a poeira quando uma voz bradou:

— Corta! Corta! Raios, Russell. Saltaste cedo de mais. A carruagem gastou-nos muita película antes de se despenhar!

O condutor levantou-se e avançou lentamente para o grupo de homens sacudindo com o chapéu as calças de montar.    

Nevada principiou a descer a colina. Procurou Pierce no meio daquela gente mas não o avistou.

Um homem passou por ele com uma lata de película.

— Dan Pierce está por aqui? — perguntou-lhe.

O homem encolheu os ombros:

— Sei lá. Pergunte àquele — disse, indicando um sujeito novo que usava calções.

— Dan Pierce está por aqui?

O rapaz olhou para Nevada.

— Ele teve de ir telefonar ao escritório.

— Obrigado — fez Nevada. — Espero por ele.

Pôs-se a enrolar um cigarro.

A voz estentórea voltou a berrar:

— O Pierce ainda não voltou com esse maldito acrobata?

— Foi telefonar-lhe — disse o jovem. Uma expressão de surpresa atravessou-lhe o rosto quando voltou a olhar para Nevada: — Você é o rapaz que o Pierce esperava?

— Creio que sim.

— Venha comigo — disse o outro.

Nevada seguiu-o até um grupo de homens que formavam um cacho junto de um sujeito alto, perto da máquina de filmar.

O jovem parou diante dele:

— Aqui está o homem de Pierce.

O homem voltou-se e olhou para Nevada, depois apontou para um despenhadeiro na colina seguinte. No fundo do despe­nhadeiro corria um largo lençol de água.

— Você é capaz de saltar, com um cavalo, daquele despe­nhadeiro para dentro de água?

Nevada seguiu a direcção que o dedo do outro apontava. Era uma queda de cerca de vinte metros e o cavalo teria que saltar em comprimento pelo menos quatro metros e meio para cair na água.

— O rio tem nesse ponto sete metros e meio de profundi­dade — esclareceu o director.

Nevada fez um sinal afirmativo. A profundidade era su­ficiente.

— Acho que se pode fazer — disse.

O director sorriu:

— Bem, c'um raio! — rugiu. — Encontro finalmente um homem teso. — Deu uma palmada nas costas de Nevada. — Você vai lá para cima e o tratador entrega-lhe o cavalo.

Nós estamos prontos logo que metermos este rolo de película na máquina.

Voltou-se para o operador. Nevada tocou-lhe no ombro:

— Eu disse que acho que se pode fazer. Não disse que ia fazê-lo.

O director fitou-o com curiosidade:

— Pagamos três vezes a média dos duplos: chegam-lhe noventa dólares? Bem, bem, sejam cem dólares.

Nevada sorriu:

— Entendeu-me mal. Vim aqui procurar Dan Pierce. Não sou o cavaleiro-acrobata.

A boca do director contorceu-se desdenhosamente.

— Vocês, os cow-boys, são todos iguais. Muita conversa e nada de valentia.

Nevada olhou para ele um minuto. Sentiu dentro de si a cólera crescer como um punho fechado. Estava farto daquilo, de andar à procura de Pierce. A sua voz tornou-se fria:

— Se quiser que eu salte tem de pagar-me quinhentos dó­lares.

O outro olhou para ele e de repente sorriu:

— Você deve ter ouvido dizer que nenhum tipo de cá quis saltar o despenhadeiro.

Nevada não respondeu.

— Muito bem. Sejam quinhentos — anuiu o director num tom indiferente; e voltou-se para o operador.

Nevada colocou-se junto do cavalo, dando-lhe de vez em quando uma pedra de açúcar. O cavalo lambeu-lhe a mão e ele fez-lhe uma festinha no pescoço. Era um belo animal. Reagia depressa e não havia um único nervo crispado no seu corpo.

— Estamos quase prontos — disse o director. — Tenho máquinas a cobri-lo de todos os ângulos, portanto não deve preocupar-se. Parte quando eu der o sinal.

Nevada fez um aceno de compreensão e montou no cavalo. O director postou-se na beira do precipício, a mão erguida no ar. Subitamente baixou-a e Nevada afundou as esporas no cavalo. O animal saltou para diante quase num galope. Ne­vada afrouxou as rédeas e guiou a montada para o abismo.

Depois puxou-as e o cavalo principiou a saltar, as pernas rígidas, preparado para uma pequena queda. Nevada sentiu o coração do animal palpitar junto às pernas quando as ferra­duras não encontraram o solo. Sentiu-o estremecer num sú­bito pavor ao cair para diante. Rapidamente Nevada soltou as esporas e libertou-se do cavalo. Viu a água erguer-se por cima dele e fez uma prece para cair suficientemente longe, de modo a não ser atingido pelo animal.

Mergulhando no riacho deixou o impulso arrastá-lo até ao fundo. Sentiu a água borbulhar por cima dele. Devia ser o cavalo. Os pulmões queimavam mas deixou-se estar no fundo tanto tempo quanto pôde.

Finalmente teve de vir à tona. Parecia que nunca mais che­gava à superfície, ofegante. Voltou a cabeça e avistou o cavalo flutuando a seu lado, a cabeça torcida de uma forma bizarra. Nos olhos do bicho havia a expressão de uma intensa agonia.

Nadou vigorosamente para a margem. Em seguida diri­giu-se para o director, cheio de irritação.

O director sorria:

— Foi formidável. A melhor filmagem de todos os tempos.

— O cavalo tem o pescoço partido! — gritou Nevada. Vol­tou-se a fim de olhar de novo o cavalo. O bicho lutava para manter a cabeça fora da água.

— Porque não dão um tiro no pobre diabo? — perguntou Nevada.

— Já mandámos chamar o tratador para trazer uma espingarda. Está do lado de lá da colina.

— O cavalo afoga-se antes dele cá chegar — sibilou Nevada. — Ninguém tem um revólver?

— Claro, mas ninguém é capaz de acertar-lhe. Um revól­ver não serve a esta distância.

Nevada fitou o director:

— Dê-me um revólver.

Nevada recebeu a arma e sopesou-a. Verificou o tambor.

— É de pólvora seca — disse. Entregaram-lhe balas. Carre­gou o revólver rapidamente e encaminhou-se para a margem do riacho. Disparou contra um pedaço de madeira flutuante. A arma tinha um ligeiro desvio para a esquerda. Esperou um momento até que o cavalo erguesse outra vez a cabeça e então atirou entre os olhos do animal.

Nevada retrocedeu e entregou o revólver ao director. O ho­menzarrão aceitou-a e estendeu um maço de cigarros. Nevada retirou um e o director ofereceu-lhe um fósforo. Nevada encheu os pulmões de fumo.

Um homem aproximou-se a correr, ofegante.

— Desculpe, Mr. Von Elster — disse com voz rouca. — Não consigo descobrir o duplo. Mas arranjar-lhe-ei outro ama­nhã.

— Ninguém lhe disse? O homem já apareceu, Pierce. Aca­bámos a filmagem agora mesmo. Pierce olhou-o perplexo:

— Impossível. Acabo de deixá-lo em...

O director deu um passo para o lado descobrindo Nevada:

— Aqui está o homem. Veja com os seus próprios olhos.

Pierce olhou para Nevada, depois para o director.

— Mas esse não é o homem. É Nevada Smith. O proprie­tário do Grande Rodeo do Sudoeste e do Oeste Selvagem. — Estendeu a mão a Nevada: — Prazer em vê-lo. — Sorriu.

— Que é que o traz cá?

Nevada lançou-lhe um olhar fuzilante. A cólera fervia dentro dele. Despediu uma bofetada brusca e Pierce caiu no chão fulminado de surpresa.

— Que lhe deu, Nevada?

— O que quero saber é quanto o Cody lhe pagou?!

Von Elster meteu-se de permeio:

— Há muito tempo que procuro uma pessoa como você, Smith — disse ele. — Venda o seu negócio e venha trabalhar connosco. Pago-lhe duzentos e cinquenta dólares por semana, para começar.

A voz de Pierce ergueu-se do chão:

— Oh, não, assim não, Von Elster. Mil por semana ou nada!

Nevada principiou a falar.

— Cale-se! — gritou-lhe Dan Pierce autoritariamente. — Sou o seu agente, não se esqueça. — Voltou-se para Von Elster: — Dentro de uma hora toda a gente saberá em Hollywood deste salto. Poderia ir oferecê-lo à Universal ou à Warner's. Apanhavam-no num abrir e fechar de olhos.

Von Elster fixou o agente.

— Quinhentos — berrou. — E é a minha última oferta.

Pierce pegou no braço de Nevada.

— Vamos, Nevada. Iremos à Warner's. Todos os estúdios andam à procura de um rival de Tom Mix.

— Setecentos e cinquenta — berrou Von Elster.

— Por seis meses, depois mil e iguais aumentos semestrais a partir dessa altura.

— Combinado — disse Von Elster. Apertou a mão de Pierce e depois voltou-se para Nevada. Sorriu e estendeu a mão. — Como disse que se chamava?

— Smith. Nevada Smith.

Apertaram as mãos:

— E que idade tem, rapaz?

Pierce respondeu antes de Nevada ter tempo de falar:

— Trinta anos, Mr. Von Elster.

Nevada ainda quis protestar mas a pressão da mão de Pierce manteve-o calado.

— Bem, digamos vinte e nove para a publicidade. — Von Elster sorriu. — Agora vocês dois vêm comigo ao escritório. Quero dizer ao Norman que encontrámos finalmente o xerife da aldeia tranquila!

Nevada voltou a cara para esconder um sorriso. Pensava no que diria o guarda do campo de presidiários, anos atrás, se o visse agora a exibir o distintivo da ordem. Mesmo no cinema.

— Meu Deus! — disse o carcereiro quando trouxeram Max. — Que pensam eles que estão a fazer? Isto é uma prisão, não um reformatório.

— Não te deixes enganar pelo ar dele, carcereiro — pre­veniu o beleguim que mascava tabaco lançando sobre a mesa a guia para o outro assinar. — É um bom malandro. Assassi­nou um homem em Nova Orleães.

O guarda empunhou a guia:

— Condenado por quê? Assassínio?

— Ná — replicou o beleguim. — Porte de arma ilegal. Conseguiu anular a acusação de homicídio: autodefesa. — Lan­çou um pedaço de tabaco triturado para o escarrador. — Este moço liquidou um tipo no quarto de uma pega de luxo.

— Eu era o guarda-costas dessa senhora, carcereiro — ex­plicou Max.

O carcereiro elevou os olhos para ele:

— Isso não te dava o direito de matar um homem.

— Fui obrigado, carcereiro — disse Max. — Ele avançou para mim com uma faca e eu tinha de defender-me. Estava nu.

— Isso é verdade — acudiu o beleguim. — Nu como um passarinho.

— A mim parece um caso de genuína autodefesa — disse o carcereiro. — Como foi que lhe pregaram uma pena tão pesada?

— O tipo que ele despachou era primo do Darcy — ex­plicou o beleguim.

— Oh! — fez o carcereiro. Isso explicava tudo. Os Darcys eram gente muito importante em Nova Orleães.

— Nesse caso teve muita sorte em não o enforcarem. — As­sinou a guia e atirou-a por cima da mesa: — Aí tem.

O beleguim pegou nos papéis e soltou as algemas de Max:

— Até à vista, pato-bravo.      

O carcereiro ergueu-se pesadamente:

— Que idade tens, rapaz?

— Penso que ando pelos dezanove — respondeu Max.

— Demasiado novo para andar a guardar uma pega de luxo de Nova Orleães — observou o carcereiro. — Como con­seguiste isso?

— Precisava de emprego quando saí da tropa — respondeu Max. — E ela precisava de um tipo rápido a atirar. Devo con­fessar que sou bastante rápido.

— Demasiado rápido — comentou o carcereiro. Tor­neou a secretária. — Sou um homem justo mas não tolero tipos que armam sarilhos. A malta levanta-se cedo, faz o trabalho que lhe mandam e não tem complicações comigo.

— Compreendo, carcereiro — disse Max.

O carcereiro encaminhou-se para a porta do gabinete.

— Mike! — rugiu.

Um gigantesco guarda negro meteu a cabeça na porta:

— Sim, senhor guarda.

— Leva este homem e dá-lhe dez chicotadas.

No rosto de Max surgiu uma expressão de surpresa.

— Não há nenhuma animosidade nisto — disse o carce­reiro rapidamente. — É uma dose preventiva, como eu costumo dizer. A coisa fica na memória e nunca mais pensas em fazer qualquer marotice.

Voltou a sentar-se à secretária.

— Vamos, rapaz — disse o negro.

A porta fechou-se atrás deles e principiaram a descer um corredor. A voz do guarda era suave e animadora:

— Não te preocupes com essa história das dez chibatadas, rapaz. Ponho-te a dormir com a primeira e já não sentes as outras.

Max tinha chegado a Nova Orleães na Terça-Feira Gorda desse ano. Nas ruas havia gargalhadas, pessoas animadas e de certo modo deixou-se absorver pelo ambiente. Houve qualquer coisa na cidade que o atraiu e resolveu ficar um dia ou dois antes de seguir para o Texas.

Deixou o cavalo numa cavalariça, hospedou-se num pe­queno hotel e dirigiu-se para o Bairro Latino à procura de dis­tracção.

Seis horas mais tarde mostrou um par de dez contra três setes e ficou pronto. Perdera o dinheiro, o cavalo, tudo menos as roupas que vestia. Arredou a cadeira e levantou-se.

— Com isto fiquei limpo, amigos — disse ele. — Vou à cavalariça buscar o meu cavalo.

Um dos jogadores ergueu os olhos para ele.

— Permite-me que lhe pergunte, senhor, que tenciona fazer depois disto? — interrogou, com um leve sotaque de sulista.

Max encolheu os ombros e sorriu:

— Não sei. Arranjar emprego, penso eu.

— Que emprego?

— Qualquer. Sou bastante bom com cavalos. A conduzir gado. Qualquer coisa.

O jogador apontou para o revólver de Max:

— E com isso?

— Não sou mau.

O jogador ergueu-se com ar indiferente:

— A Deusa da Sorte não foi muito amável consigo esta noite.

— Você não lhe deu grande ajuda — retorquiu Max.

A mão do jogador principiou a avançar para dentro do casaco. Ficou de repente paralisado diante do cano do revól­ver de Max. Tinha sido tão rápido que nem vira o movi­mento.

— Um homem pode morrer fazendo asneiras desse género — preveniu Max suavemente.

A face do jogador descontraiu-se num sorriso.

— Você é dos bons — disse com um tom de respeito.

Max tornou a enfiar o revólver no coldre.

— Penso que encontrei emprego para si — tornou o joga­dor. — Isto é, se você não se importar de trabalhar para uma senhora.

— Um emprego é um emprego — considerou Max. — Não estou em posição de me fazer esquisito.

Na manhã seguinte Max e o jogador encontravam-se sen­tados na sala do mais elegante clube de Nova Orleães. Uma criada crioula entrou no quarto:

— Miss Pluvier recebe-o agora. — Fez uma vénia. — Faça o favor de seguir-me.

Seguiram-na por uma extensa e bem lançada escadaria. A criada abriu uma porta e fez uma vénia quando eles a ultra­passaram. Max deu dois passos dentro do quarto e estacou, estupefacto.

Nunca vira quarto assim. Tudo era branco. As paredes forradas de seda, as cortinas nas janelas, as madeiras, os móveis, o dossel de seda radiante sobre a cama. Até a alcatifa luxuriantemente estendida no chão era branca.

— É esse o rapaz? — perguntou uma voz doce.

Max voltou-se na direcção da voz. A mulher causou-lhe maior surpresa ainda que o quarto. Era alta, quase tão alta como ele, e o seu rosto era jovem, muito jovem mesmo; mas o mais impressionante era o cabelo. Comprido, chegando quase à cintura, e branco, de um branco azulado que dava a ideia de cordões de mica cintilante.

O jogador falou num tom de respeito:

— Miss Pluvier, permite-me que lhe apresente Max Sand?

Miss Pluvier estudou Max por um instante:

— Como está?

Max baixou a cabeça:

— Minha senhora.

Miss Pluvier fez um giro em volta dele, olhando-o de todos os ângulos.

— Parece muito jovem — observou indecisa.

— É extremamente capaz, garanto-lhe — disse o jogador. — É veterano da recente guerra contra a Espanha.

Ela ergueu a mão num gesto indolente, cortando-lhe a palavra:

— Tenho a certeza de que é competente se você o recomenda — disse ela. — Mas parece-me pouco limpo.

— Vim a cavalo desde a Florida, minha senhora — expli­cou Max, recuperando a fala.

— Mas tem uma boa figura — prosseguiu ela como se o rapaz não tivesse falado. Voltou a dar um giro em tomo dele. — Ombros muito largos e quase sem ancas. As roupas devem cair-lhe bem. Penso que serve.

Instalou-se junto do toucador onde havia estado antes dos outros entrarem. Ficou voltada de rosto para eles.

— Rapaz — perguntou-lhe —, sabes qual o trabalho que esperam de ti?

Max fez um gesto negativo:

— Não, minha senhora.

— Vais ser o meu guarda-costas — disse num tom indi­ferente. — Possuo aqui um grande negócio. No rés-do-chão temos várias salas de jogo para cavalheiros. Claro que lhes pro­porcionamos outras distracções discretas. A nossa casa desfruta no sul da mais elevada reputação e em consequência disso muita gente nos inveja. Algumas vezes essas pessoas vão a extre­mos no seu desejo de causar perturbações. Os meus amigos con­venceram-me a procurar protecção.

— Compreendo, minha senhora — disse Max.

A voz dela tomou-se mais comercial.

— As minhas horas serão as suas — prosseguiu— e viverá aqui connosco. Ganhará cem dólares por mês. Serão desconta­dos vinte dólares mensais para o quarto e a comida. E em cir­cunstância alguma manterá qualquer espécie de relações com as jovens que trabalham aqui.

Max fez um aceno:

— Sim, minha senhora.

Miss Pluvier sorriu. Voltou-se para o jogador:

— E agora peço-lhe o favor de levá-lo ao nosso alfaiate para lhe fazer seis fatos, três brancos e três pretos. Com isso penso que fica tudo em ordem.

— Tratarei disso imediatamente — disse o jogador.

Max seguiu-o. À porta parou para olhar para trás. Ela estava sentada no toucador, diante do espelho, escovando o cabelo. Os seus olhos ergueram-se e cruzaram-se com os de Max.

— Obrigado, minha senhora — disse ele.

— Faça o favor de me tratar por Miss Pluvier.

Sucedeu certa madrugada, depois das três horas, quando Max entrou no foyer vindo das salas de jogo na sua ronda de inspecção. Já as mulheres da limpeza se atarefavam nas salas do rés-do-chão. Parou diante da porta principal.

— Está tudo fechado, Jacob? — perguntou ao corpulento porteiro negro.

— Estanque como um tambor, siô Sand.

— Bom — fez Max sorrindo e principiou a subir a escada. De repente parou e olhou para trás: — Mr. Darcy já partiu?

— Não siô — respondeu o negro. — Está a passar a noite com Miss Eleanor. Não têm de que se preocupar. Meti-os no quarto doirado.

Max acenou com a cabeça e continuou a subir. Darcy fora a sua única preocupação nos últimos meses. O jovem estava deci­dido a não desistir de passar uma noite com a dona da casa. E nessa noite fora bastante impertinente nas suas diligências.

Deteve-se no patamar da escada. Bateu à porta e entrou. A sua patroa encontrava-se sentada defronte do toucador e uma criada escovava-lhe o cabelo. Os olhos dos dois encontra­ram-se no espelho.

— Tudo fechado, Miss Pluvier — disse ele.

Os sobrolhos dela ergueram-se numa interrogação:

— Darcy?

— No quarto doirado com Eleanor, na outra extremidade da casa.

— Bon — fez ela.

Max manteve-se imóvel olhando-a com uma expressão preo­cupada. Ela surpreendeu-lhe no espelho a seriedade do rosto e fez sinal com a mão à criada para que saísse do quarto:

— Estás apoquentado, chéri?

Max abanou a cabeça.

— É o Darcy — admitiu. — Não gosto da maneira como se comporta. Acho que devíamos impedir-lhe a entrada.

— Deixa lá — exclamou ela rindo. — Não podemos fazer isso. A família dele é demasiado importante.

Soltou outra risadinha feliz e caminhou para ele. Colo­cando os braços em torno do pescoço de Max, beijou-o:

— O meu jovem indien é ciumento. — Sorriu. — Não te preocupes com ele. Aquilo passa-lhe depressa. Sucede assim com todos os rapazes. Já vi a mesma coisa suceder antes.

Pouco depois ele encontrava-se ao lado dela no grande leito branco, os olhos a deleitarem-se na maravilha do corpo extraor­dinário da mulher. Sentiu-lhe os dedos tocando-o ao de leve, reacendendo o fogo dentro dele. Cerrou os olhos.

Os lábios dela, macios, afloraram-lhe a pele; a sua voz mur­murante parecia pairar como uma nuvem: «Mon coeur, mon indien, mon chéri». Escutou os gemidos de prazer da amante quando ela soltou os lábios. Embora com os olhos semicerrados, via-lhe a extrema sensualidade do rosto.

— A arma que trazes transformou-se num canhão — disse ela sem deixar de continuar a tocá-lo levemente com os dedos.

A mão avançou e alcançou-lhe o cabelo. Uma expressão de êxtase, quase de medo, torturou o rosto da mulher e Max fechou os olhos. Começou a sentir o estremecimento do desejo que crescia dentro dele. Como era possível uma mulher ser tão hábil? De que profunda fonte brotava tamanha torrente de prazer? Suspendeu a respiração. Tornava-se quase intolerável aquela estranha delícia. Não se assemelhava a nada do que já experimentara.

Ouviu-se um ruído ténue na porta. Max voltou a cabeça ligeiramente, tentando descobrir o que poderia ter sido. De súbito a porta escancarou-se e Darcy encontrava-se dentro do quarto.

Sentiu-a afastar-se dele quando se sentou; depois a voz dela aos pés da cama:  

— Saia daqui, seu maldito idiota!

Darcy fitou-a com ar estúpido. Cambaleou lentamente, com os olhos ofuscados. Meteu a mão no bolso e um maço de notas caiu no chão.

— Estás a ver, tenho comigo mil dólares — disse ele numa voz de ébrio.

Ela saltou da cama. Encaminhou-se para ele regiamente, inconsciente da sua nudez. Ergueu a mão apontando para a porta:

— Saia — gritou-lhe.

Darcy ficou no meio do quarto a fitá-la.

— Meu Deus — exclamou ele roucamente. — Quero-te para mim.

Max conseguiu por fim falar:

— Você ouviu Miss Pluvier. Saia.

Darcy deu então pela primeira vez pela presença dele. O rosto principiou a avermelhar-se de cólera.

— Tu — disse pastosamente. — Tu! Enquanto eu supli­cava e pedia, eras tu! Vocês estiveram a rir-se de mim todo este tempo!

De súbito surgiu uma faca na mão de Darcy. Atirou-se para diante com rapidez e Max rolou para o chão enquanto a arma se ia cravar nos lençóis de cetim. Max agarrou uma almo­fada da cama e colocou-a diante do corpo como um escudo en­quanto recuava para a cadeira onde pendia o cinturão com o revólver.

Os olhos de Darcy cintilavam de cólera:

— Estiveram a rir-se todo o tempo — murmurou. — Sempre que iam para a cama riam-se de mim.

— É melhor sair daqui antes de se magoar — preveniu Max.

Darcy fez um gesto negativo:

— E deixar que vocês continuem a rir-se de mim? Oh! não. Agora sou eu quem se vai rir.

Lançou de novo a faca. Desta vez alcançou a almofada e caiu sobre Max que foi projectado contra a parede. O revólver fez fogo e um olhar de surpresa cobriu o rosto de Darcy quando dobrou os joelhos antes de estatelar-se no chão. A mulher nua olhava fixamente para Max. De um salto foi ajoelhar junto de Darcy. Palpou-lhe o pulso mas deixou a mão cair.

— Não era preciso matá-lo, seu idiota — disse Miss Plu­vier cheia de irritação.

Max olhou-a. Os seios arfavam excitados e havia uma ligeira humidade entre eles. Nunca a vira parecendo tão bela.

— Que havia de fazer? — perguntou. — Ele vinha contra mim com uma faca.

— Podias tê-lo posto a dormir — sibilou a mulher.    

— Com quê? — Max sentia a cólera principiar a subir dentro do peito. — Com o revólver?

Ela manteve-se completamente imóvel um momento, olhando para Max. Depois voltou-se e encaminhou-se para a porta. A casa estava adormecida, O tiro fora abafado pela almofada. Fechou a porta devagar e encaminhou-se para ele.

Max continuou imóvel, vendo a expressão de desejo formar-se de novo no rosto da mulher. Caiu de joelhos diante dele e sentiu os lábios dela colarem-se-lhe às ancas.

— Não te zangues com a Anne-Louise, meu valentão, meu garanhão bravo — murmurou ela. — Faz amor comigo.

Ele inclinou-se para pegar nela e conduzi-la ao leito:

— Não — pediu a mulher empurrando-o para o chão onde se estendeu. — Aqui.

Amaram-se pela última vez no chão, ao lado de um homem morto. Na manhã seguinte, Anne-Louise Pluvier entregou-o calmamente à polícia.

A prisão estava rodeada a leste, oeste e sul por um pân­tano, na orla do qual cresciam os ciprestes que deixavam cair as folhas sobre a lúgubre superfície das águas. A única saída era pelo norte através dos arrozais cultivados por rendeiros cajun. Havia uma aldeola umas dezoito milhas a norte da prisão e ali é que muitos prisioneiros que tentavam fugir eram apanhados e restituídos à prisão pelos cajuns que recebiam dez dólares pela entrega. Os que não eram apanhados supunha-se que haviam mor­rido no pântano. Nos registos da prisão só se conheciam, nos últimos vinte anos, dois casos desses.

Certa manhã de Maio, Max já lá estava há alguns meses, o guarda que passava a ronda na sua cela descobriu que fal­tava um preso chamado Jim Reeves.

O carcereiro olhou em torno:

— Não está aqui?

— Nem nas latrinas — disse o guarda. — Fui lá ver.

— Então fugiu. Penso que saltou o muro durante a noite.

— Esse Jim Reeves é com certeza um louco — observou o guarda. Rodopiou sobre os calcanhares. — É melhor prevenir o director.

Encontravam-se alinhados defronte da cozinha recebendo o café e as papas de aveia quando um dos guardas saiu a cavalo da prisão e se meteu na estrada da aldeia.

Max sentou-se contra a parede de uma das cabanas que serviam de celas e esteve a ver o guarda afastar-se enquanto ia comendo. Mike, o gigantesco guarda negro que lhe dera dez chibatadas no dia que ele chegou, aproximou-se e sentou-se ao seu lado.

Max olhou para ele.

— É tudo o que fazem quando um homem foge?

Mike fez um aceno afirmativo.

— Que pensavas que fizessem? — perguntou com a boca cheia de papa. — Apanham-no. Espera e verás.

Tinha razão. Na manhã seguinte, quando tomavam todos o pequeno-almoço, Jim Reeves voltou. Vinha sentado numa carroça entre dois cajuns, que traziam as compridas cara­binas apoiadas na curva do braço. Os prisioneiros olhavam o grupo que desfilava diante deles.

Quando voltaram nessa tarde do trabalho Jim Reeves encon­trava-se atado ao pelourinho, nu. Os guardas conduziram os presos silenciosamente para o pátio a fim de assistirem ao castigo antes de jantarem.

O director manteve-se no pátio até os prisioneiros se encon­trarem todos alinhados:

— Vocês sabem qual é a punição para quem tenta fugir: dez chicotadas e quinze dias na gaiola por cada dia fora. — Vol­tou-se para Mike postado junto dele: — Não quero que desmaie. É preciso que sinta toda a insensatez da sua acção.

Mike fez um gesto de assentimento e avançou. Os músculos do dorso encresparam-se e a serpente de couro foi enrodilhar-se em tornmo do corpo do preso. Parecia que se limitara a acariciá-la mas quando Mike a levantou das costas da vítima, um vergão de sangue borbulhou e subiu à superfície.

Pouco depois o supliciado gritava. A serpente voltou a envolver-lhe o corpo. Desta vez o seu grito foi de autêntica agonia. O preso desmaiou três vezes antes de terminar o castigo. De cada vez que desmaiava o director avançava e lançava-lhe um balde de água no rosto para ressuscitá-lo, depois ordenava que con­tinuassem a chibatá-lo.

No final Jim Reeves ficou pendente do poste, sem cons­ciência. O sangue escorria-lhe pelas costas caindo-lhe dos ombros, alcançava-lhe as nádegas e o alto das coxas.

— Desamarra-o e mete-o na gaiola — disse o guarda.

Os homens desfizeram silenciosamente as fileiras e alinharam para o rancho. A gaiola era exactamente isso: barras de aço formando um cubo de um metro e vinte de aresta. Uma pessoa não podia andar, nem ficar de pé nem mesmo estender-se ao comprido. Havia apenas espaço para ficar sentado ou a quatro patas como um animal. Não havia cobertura nem contra o sol nem contra a chuva.

Nos trinta dias seguintes Jim Reeves viveria ali como um animal — sem roupas, sem cuidados médicos, só comendo pão e bebendo água. Viveria ali no meio das suas dores e dos seus excrementos e ninguém podia falar-lhe ou prestar-lhe qualquer auxílio sob pena de submeter-se a igual castigo.

Max levou o seu prato de carne e feijões para junto da cabana, onde não tinha de olhar forçosamente para a gaiola. Sentou-se no chão e principiou a comer lentamente.

Mike sentou-se junto dele. O carão do negro transpirava. Começou a comer em silêncio. Max ergueu o olhar para ele e o apetite desapareceu. Arredou o prato, enrolou um cigarro e acendeu-o.

— Não tens fome, homem? — perguntou Mike. — Se assim é, eu como a tua comida.

Max olhou para ele durante um momento, depois, sem nada dizer, despejou o conteúdo do prato no chão.

Mike encarou-o num pasmo.

— Porque fizeste isso, homem? — perguntou.

— Agora compreendo porque ficaste aqui como guarda em vez de ir viver lá fora — disse Max. — Ajustas contas com o mundo quando desferes chibatadas nas costas dos outros.

Uma expressão de compreensão estampou-se no rosto do guarda.

— Então é isso que tu pensas? — observou Mike friamente.

— É isso que eu penso.

O negro fitou Max bem nos olhos.

— Não percebes nada — disse lentamente. — Há anos, quando aqui cheguei pela primeira vez, vi chibatar um homem. Quando o desamarraram estava todo cortado, peito e costas. Morreu em menos de dois dias. Desde que peguei na corda nunca mais um homem morreu. Já lá vão mais de doze anos. E se reparares bem verás que não lhes ficou cicatriz no peito e que não houve duas chibatadas uma sobre a outra. Sei que o meu trabalho é sujo mas alguém tem de fazê-lo. E custa-me ser eu porque não gosto de maltratar pessoas. Nem mesmo patifes como Jim Reeves.

Max olhou para o chão reflectindo no que acabava de ouvir. Uma centelha de compreensão principiou a aliviar o amargor do seu estômago. Empurrou lentamente o saco de tabaco para o guarda. Sem falar, Mike pegou-lhe e enrolou um cigarro. Tran­quilamente os dois homens encostaram a cabeça à barraca e puseram-se a fumar.

Jim Reeves entrou na cabana. Havia um mês que tinha sido retirado da gaiola, incrustado nos próprios excrementos, dobra­do, com os olhos loucos de um animal Naquele momento os seus olhos perscrutavam as trevas localizando a tarimba de Max de quem se aproximou afagando-lhe um ombro. Max sentou-se.

— Tenho de sair daqui — disse.

Max fitou-o no escuro:

— Não é o que sucede a todos?

— Não brinques comigo, índio — ripostou Reeves acintosa­mente. — Estou a falar a sério.

— E eu também — volveu Max. — Mas ninguém o conse­guiu ainda.

— Tenho uma ideia — insistiu Reeves. — Mas é preciso dois homens para realizá-la. Por isso vim ter contigo.

— Porquê eu? — perguntou Max. — Porque não um dos homens com condenações mais longas?

— Porque a maior parte deles são homens das cidades — disse Reeves — e não duravam dois dias no pântano.

Max acabou por sentar-se.

— Agora tenho a certeza de que és louco — disse ele. — Ninguém pode atravessar o pântano. São quarenta milhas de areias movediças, jacarés, mocassinas e rorquais. A única saída é pelo norte, através da aldeia.

Um sorriso amargo cruzou o rosto de Reeves:

— Isso pensava eu. Era fácil transpor a paliçada e seguir pela estrada. Fácil, pensava eu. Nem sequer largaram os cães. Não precisavam. Até ao último maldito cajun das redondezas estavam à minha espera.

Ajoelhou ao lado da tarimba de Max.

— O pântano — disse. — É a única saída. Estudei tudo. Arranjemos um barco e...

— Um barco! — exclamou Max. — Onde raio vamos encon­trar um barco?

— Leva tempo — disse Reeves cautelosamente. — Mas apro­xima-se a época da colheita do rícino. Os guardas arrendam-nos nessa época aos grandes plantadores. O trabalho dos presos é barato e enche os bolsos dos guardas. Os campos de arroz en­contram-se então meio alagados. Há sempre barcos por ali.

— Não sei — murmurou Max duvidoso.

Os olhos de Reeves brilharam como os de um animal.

— Queres desperdiçar dois anos de vida numa prisão, rapaz? Tens assim tanto tempo para desperdiçar?

— Deixa-me pensar no caso — pediu Max um tanto hesitante. — Depois te digo.

Reeves deslizou nas trevas quando Mike penetrou na ca­bana. O guarda encaminhou-se directamente para a tarimba de Max.

— Ele veio convidar-te para fugirem pelo pântano? — per­guntou.          

A voz de Max traía a surpresa:

— Como sabes?

— Ele já convidou todos os outros presos c todos disseram que não. Calculei que não tardasse em procurar-te.

— Ora! — fez Max.

— Não faças isso, rapaz — pediu o gigantesco guarda, bon­dosamente. — Por mais atraente que te pareça não o faças. Reeves está tão cheio de ódio que não se importa do que os outros possam sofrer desde que ele saia.

Max estendeu-se na tarimba. Os olhos ficaram abertos nas trevas. A única coisa que fazia sentido no que Reeves dissera era essa coisa dos dois anos. Max não podia desperdiçar dois anos. Dentro de dois anos teria vinte e um.

— Caramba, isto é comida autêntica — exclamou Mike entu­siasticamente quando se sentou ao lado de Max, o prato atulhado de entrecosto, linguiças, feijões-verdes e batatas.

Max contemplou-o apreensivo. Com esforço foi metendo a comida na boca. Era com efeito melhor que a comida da prisão. Numa semana inteira não comiam tanto quanto agora se encontrava nos seus pratos. Mas não tinha fome. Estava fatigado, partido a meio, em consequência de ter passado o dia inteiro a colher arroz. Sentia-se como se nunca mais fosse capaz de erguer-se.

Reeves e outro preso sentaram-se a seu lado. Reeves olhou-o por cima do prato, mastigando a carne gordurosa.

— Ainda não arranjaste uma pequena, rapaz?

Max abanou a cabeça. Eram engraçadas, as raparigas cajuns, jovens e fortes, com as saias curtas e pernas e coxas mus­culosas. Muitas delas andavam pelos campos trabalhando com os homens, cabelos esvoaçando e dentes cintilando e sempre o cheiro da fêmea a penetrar nas narinas dos machos. Elas não pareciam importar-se com o facto de se tratar de presidiários. Apenas interessava que eram homens e que pelo menos dessa vez havia bastantes por ali.

— Estou muito cansado — disse Max. Pousou o prato e coçou a coxa. Estava dorida da grilheta e de andar metido na água todo o dia.

— Eu não — disse o prisioneiro a seguir a Reeves. — Estive a poupar as forças um ano inteiro para este momento. Vou fartar-me para aguentar outro ano.

— É melhor não desperdiçares, índio — aconselhou Reeves. — Não há nada neste mundo como as raparigas cajun.

— Isso é verdade, homem — confirmou o outro preso cheio de entusiasmo.

— Arranjaste alguma? — perguntou Reeves a Mike. Os seus olhos eram frios e desdenhosos.

Mike não respondeu. Continuou a comer.

A face de Reeves ensombreceu:

— Vi-te no campo. Passando de cá para lá com a cara­bina na mão. Exibindo às raparigas o que tens aí debaixo das calças.

Mike continuou sem responder. Principiou a limpar o molho do prato com pedacinhos de miolo.

O riso de Reeves foi mau:

— Há sempre uma rapariga meio maluca à procura de um negralhão com um vergalho do tamanho do meu braço. E aposto que estás ansioso por metê-lo numa branca. É o que todos vocês negros pensam.                          

Mike enfiou o último pedaço de pão na boca e engoliu-o. Olhando com pena para o prato vazio, levantou-se.

— Homem, isto estava bom!

— Estou a falar contigo, negro — insistiu Reeves.

Pela primeira vez Mike olhou-o com altivez. Quase indolentemente debruçou-se sobre Max e pegou em Reeves pelo pescoço. Manteve-o a espernear no ar ao nível da sua cabeça:

— Estás a falar comigo, cadastrado?

Reeves estertorava com a voz sufocada na garganta. Mike principiou a abaná-lo suavemente.

— Recorda-te de uma coisa, cadastrado — sibilou. — Sou um guarda e tu não passas de um preso. Se queres conservar a saúde é melhor calares a boca.

Os braços de Reeves agitaram-se débilmente no espaço. Mike sacudiu-o umas vezes mais e depois com um gesto indolente lançou-o contra a parede da camarata a metro e meio de dis­tância.

Depois de chocar com a parede, Reeves escorregou para o chão. Os seus olhos voltaram-se, fuzilantes, para Mike. Moveu os lábios mas nenhum som saiu deles.

Mike sorriu-lhe:

— Já aprendeste, cadastrado — disse. — Já aprendeste. — Pegou no prato vazio. — Vou ver se consigo que me sirvam um pouco mais desta comida. Palavra que é o melhor que já provei.

Reeves pôs-se de pé com dificuldade quando o guarda só afastou.

— Hei-de matá-lo — praguejou. — Por Deus juro que hei-de matá-lo um dia, antes de sair de cá.

Havia nessa noite uma atmosfera de expectativa na cama­rata. Max encontrava-se estendido na tarimba e sentia o con­tágio do ambiente. Subitamente deixou de estar cansado. Não podia dormir.

O guarda viera verificar as grilhetas que prendiam cada homem à cama. Dirigiu-se em seguida para a porta e ficou ali um momento. Depois soltou uma gargalhada para as trevas

e afastou-se.

Quase imediatamente Max ouviu raspar um fósforo e uma chamazinha débil abrir-se na escuridão. Max voltou-se para a luz. Um homem conseguira de qualquer modo uma vela. Ardia quase com vivacidade à cabeceira da cama.

Havia um som de riso sufocado na camarata. Max ouviu alguém dizer:

— Pelo menos desta vez podemos ver como elas são.

— Não me importa como são desde que tenham boas ma­mas — respondeu com modos sacudidos outra voz.

Outra voz ainda proferiu roucamente:

— Vocês nem sabem o que hão-de fazer: já não estão habituados às mulheres.

Uma pequena gargalhada adejou na camarata. Decorreu cerca de meia hora. Max escutava os sons dos homens moven­do-se inquietos nas tarimbas.

— Querem ver que elas não vêm? — disse uma voz ner­vosa.

— Vêm, está descansado — respondeu outro preso. — Têm tanta vontade disto como nós.

— Santo Deus! — gemeu uma voz angustiada na outra extremidade da camarata. — Não posso aguentar mais. Passei o dia inteiro a falar nas mulheres, nesta noite... — A sua voz perdeu-se num gemido rouco.

Por um momento a camarata ficou cheia dos sons dos homens movendo-se nervosamente nas tarimbas. Max sentia o suor escorrer-lhe da testa e o coração principiou a pulsar a custo. Voltou-se de bruços, sentindo espalhar-se-lhe no ventre o pesado calor do cio. Contraiu-se, colhido no fogo de um vio­lento desejo, depois voltou à posição de costas. Enrolou um cigarro com os dedos trémulos. Pedacinhos de tabaco caíam em torno dele mas por fim acendeu o cigarro e aspirou uma pro­funda fumaça.

— Elas não vêm — gritou uma voz à beira das lágrimas.

— Elas não passam de umas safadas que nos excitaram! — disse outra voz cheia de cólera. — Que o diabo as leve.

Max manteve-se calmo na sua tarimba, deixando o fumo escapar-se-lhe pelas narinas. A vela tremeluziu e apagou-se e a camarata ficou outra vez negra de breu. A voz de Mike er­gueu-se suavemente da tarimba vizinha:

— Como estás a aguentar-te, rapaz?

— Bem.

— Deixa-me tirar uma fumaça.

As suas mãos tocaram-se um instante quando Max esten­deu o cigarro. O cigarro cintilou e lançou um ténue clarão sobre o rosto de Mike enquanto este o sugava.

— Não te preocupes, rapaz. — A sua voz era branda e tranquilizadora. — Elas aparecerão agora que a vela se apagou. O que esses idiotas não percebem é que as mulheres não que­rem vê-los nem ser vistas por eles.

Um momento depois a porta da camarata abriu-se e as mulheres principiaram a chegar. Entravam em silêncio, com os pés nus fazendo uma ligeira restolhada no chão.

Max voltou-se na tarimba, na esperança de poder surpre­ender uma ténue visão da que vinha para ele. Mas tudo quanto conseguiu ver foram sombras a entrar e que logo se perdiam nas trevas. Uns dedos tocaram--lhe no rosto. Sobressaltou-se:

— És novo ou velho? — sussurrou uma voz.

— Novo — respondeu num murmúrio.

A mão dela encontrou a sua e levou-a ao peito. Durante um momento os dedos de Max percorreram o rosto da rapariga, com suavidade. A pele dela era macia e tépida. Sentiu os lábios dela estremecerem sob a pressão dos seus dedos.

— Queres que fique contigo? — murmurou ela.

— Sim.

Ela deitou-se com modos felinos na tarimba ao lado de Max que afundou a cabeça no regaço da rapariga. Uma onda de calor e de ternura percorreu-lhe o corpo. Vindo da outra extremidade da camarata, como se fosse a grande distância, ouviu um homem começar a soluçar.

— Meu amor — disse —, meu amor. Não sabes quanto senti a tua falta.

Max voltou o rosto para a rapariga. Quando ela se debru­çou sobre os seus lábios sentiu as lágrimas que lhe corriam do rosto e compreendeu que ela também tinha ouvido.

Fechou os olhos. Como poderia dizer a essa rapariga, que nem sequer via, tudo quanto lhe ia na alma? Como lhe poderia explicar todo o amor e ternura que ela trouxera àquela tarimba de presídio?

— Obrigado — murmurou cheio de gratidão. — Obrigado, obrigado, obrigado.

No quarto dia depois de chegarem aos campos de arroz, Reeves foi procurá-lo.

— Quero falar-te — disse vivamente. — Mas tive de espe­rar que o maldito negro se afastasse. Arranjei um barco!

— O quê?

— Fala baixo — insistiu Reeves com dureza. — Está tudo arranjado. Estará naquela grande mata de ciprestes, a sul da prisão no dia seguinte ao do nosso regresso.

— Como sabes?

— Combinei com a minha rapariga — disse Reeves.

— Tens a certeza de que ela te não está a enganar?

— Tenho — respondeu Reeves rapidamente. — Estas ra­parigas cajuns são todas a mesma coisa. Disse-lhe que a levava comigo para Nova Orleães se me ajudasse a fugir. O barco estará lá. A casa dela fica no meio dos pântanos. Um bom lugar para nos ocultarmos até desistirem de andar à nossa procura.

Lançou uma rápida olhadela em volta e principiou a afas­tar-se.

Nessa tarde Mike sentou-se ao lado de Max à hora do jantar. Durante um longo momento só se ouviram os sons da mastigação e das colheres a rasparem os pratos.

— Tencionas fugir com Reeves agora que ele conseguiu arranjar barco? — perguntou Mike subitamente.

Max olhou para ele:

— Já sabes isso?

— Num lugar destes não há segredos.

— Não sei — respondeu Max.

— Acredita-me, rapaz — disse o negro sinceramente —, trinta dias na gaiola custam muito mais a passar do que o ano e meio que ainda tens por cumprir.

— Mas é possível que consigamos fugir.

— Não conseguem — afirmou Mike com tristeza. — A pri­meira coisa que o director faz é mandar os cães. Se eles os não apanharem apanha-os o pântano.

— Como poderá ele saber que vamos pelo pântano? — per­guntou Max vivamente. — Não lhe vais dizer?

Os olhos do negro mostraram uma expressão magoada.

— Devias conhecer-me melhor, rapaz. Posso ser um guarda mas não sou um delator. O director saberá sem que ninguém lhe diga. Um homem, só, vai sempre pela estrada. Dois homens vão sempre pelo pântano. A regra é essa.

Max ia engolindo o fumo.

— Por favor, não vás, rapaz — pediu Mike. — Não faças nada que me obrigue a maltratar-te. Quero ser teu amigo.

Max olhou para ele e depois sorriu. Estendeu a mão que pousou no ombro do gigante:

— Aconteça o que acontecer, és meu amigo.

— Tu vais — disse Mike. — Já decidiste.

Mike ergueu-se e afastou-se vagarosamente. Max ficou a vê-lo, perplexo. Como poderia Mike saber o que ele próprio não sabia?

Levantou-se e jogou fora as migalhas do prato.

Mas só quando atravessou a paliçada na noite seguinte e se encontrou a correr como um louco para a mata de ciprestes com Reeves a seu lado, descobriu até que ponto Mike tinha razão.                                    

Reeves encontrava-se com efeito afundado até aos joelhos no pântano procurando em vão a canoa e praguejando:

— A cabra! Não há maior mentirosa que uma pega cajun.

Não estava ali nenhum barco.

Abriram caminho no meio dos canaviais, chapinhando na água que lhes chegava à cintura, até alcançarem um cabeço. Afundaram-se até às ancas, os peitos arfando, os pulmões aspirando grandes golfadas de ar. Muito longe, ouviam os uivos de um cão de caça.

Reeves lançava palmadas aos mosquitos que lhe zumbiam em torno da cabeça.

— Estão a devorar-nos — rosnou através dos lábios tume­factos.

Max olhou para o companheiro. A face de Reeves estava inchada e deformada de mordeduras de insectos, as roupas rasgadas. Reeves voltou-se para ele, desabrido:

— Como podes ter a certeza que não temos andado a dar voltas? Já passaram três dias e ainda não vimos nada.

— Tenho, porque se andássemos a dar voltas eles já nos tinham caído em cima.

— Não aguento isto muito mais tempo — protestou Reeves. — As mordeduras dos insectos põem-me louco. Prefiro deixar-me agarrar.

— Talvez tu prefiras — disse Max —, mas eu não. Não vim tão longe para voltar a ser metido numa gaiola. — Pôs-se de pé. — Vamos. Já descansámos o bastante.

Reeves olhou bem para ele.

— Porque será que os insectos te não mordem? — per­guntou com azedume. — Deve ser do teu sangue índio ou coisa parecida.

— Talvez — concordou Max. — Mas pode ser também porque não estou sempre a coçar-me. Vamos.

Lançou-se à água. Não olhou para trás mas um momento decorrido ouviu o chapinhar de Reeves na água por detrás dele. Era quase noite quando encontraram outro cabeço.

Reeves estendeu-se no chão. Max olhou para o compa­nheiro e por um instante quase sentiu pena dele; mas recor­dou-se do ódio que se albergava no coração de Reeves e deixou de sentir pena. Ele sabia o que estava a fazer.

Max sacou da faca, cortou um dos caniços e afiou uma das extremidades confeccionando assim uma lança. Em seguida mergulhou-a na água. Manteve-a imóvel uns quinze minutos até avistar uma forma indistinta nadando quase à superfície. Susteve a respiração e esperou que ela se aproximasse. Quando a viu perto tomou rápido impulso e a lança voou para a água. Ao sentir o esticão nos braços retirou-a da água. Um enorme peixe-gato a debater-se apareceu empalado no caniço.

— Apanhámos um grande, desta vez — gritou ele, vol­tando-se para Reeves. Acocorou-se ao lado do companheiro e pôs-se a escamar o peixe.

Reeves sentou-se.

— Acende uma fogueira — disse. — Este cozinha-se.

Max já estava a mastigar um bocado. Abanou a cabeça:

— O fumo pode ver-se a muitas milhas.

O outro ergueu-se, furioso.

— Estou-me nas tintas — rosnou, com o rosto a enru­bescer. — Eu não sou um reles índio como tu. Quero cozinhar o meu peixe.

Remexeu em volta, procurando cavacos. Por fim encontrou o bastante para fazer a fogueira. Levou a mão ao bolso, à pro­cura de fósforos, e encontrou um que riscou num tronco. Não acendeu. Tornou a riscá-lo, com fúria. Examinou o fósforo:

— Ainda estão húmidos.

— Sim — disse Max, mascando resignadamente o peixe cru. Tinha a consistência da borracha e era oleoso mas masti­gava-o devagarinho e engolia apenas uma pequena porção de cada vez.

— Tu podes acender uma fogueira — sibilou Reeves.

Max fitou-o:

— Como?

— No estilo índio — insistiu Reeves. — Esfregando dois paus.

Max riu:

— Não dá resultado. Os paus têm demasiada humidade. — Pegou num pedaço do peixe e estendeu-o a Reeves. — Vá, come. Não é tão mau se o mastigares devagar.

Reeves pegou no peixe, acocorou-se ao lado do compa­nheiro e pôs-se a mastigá-lo. Pouco depois cuspiu-o.

— Não consigo comê-lo. — Manteve-se calado um instante com os braços a envolver o tronco. — Está a ficar muito frio — disse, estremecendo.

Max observava-o. Não fazia frio. Pequenas pérolas de suor surgiam na face de Reeves e todo ele começava a tremer.

— Deita-te — aconselhou Max. — Depois cubro-te com ervas para te conservares quente.

Reeves deitou-se e Max debruçou-se palpando-lhe as faces. Ardiam de febre. Ergueu-se sem pressa e foi cortar ervas.

Era uma coisa estúpida aquela de Reeves ter apanhado paludismo. De má vontade retirou um dos fósforos do invó­lucro de pele de foca e acendeu a fogueira.

Reeves continuava a tremer espasmódicamente debaixo do cobertor e a gemer entre os dentes que chocalhavam. Max olhou para o céu. A noite quase passara. Inconscientemente suspirou. Pensava quanto tempo faltaria agora para o director da prisão os apanhar.

Cabeceou, balanceando ao de leve, quando se sentou. Um som estranho alarmou-lhe o subconsciente e de súbito encontrou-se bem desperto. Procurou a lança de pesca e aco­corou-se. O som repetiu-se. Fosse o que fosse, era grande. Tor­nou a ouvir o som, agora mais próximo. As pernas contraíram-se-lhe debaixo do corpo. Estava pronto para atirar a lança. Não valia grande coisa mas era a única arma de que dispunha.

De repente Mike apareceu como por acaso com a carabina na dobra do braço.

— Foste um idiota, rapaz — disse ele. — Nunca esperei de ti que fosses acender uma fogueira num sítio destes.

Max levantou-se. Agora que tudo estava acabado sentia a fadiga apoderar-se dele. Apontou para Reeves:

— Ele apanhou as febres.

Mike aproximou-se do doente.

— Certo e sabido — comentou num tom de voz maravi­lhado. — O director tinha razão. Garantiu que Reeves as apa­nharia depois de três dias no pântano.

Sentou-se junto da fogueira a aquecer as mãos:

— Homem, como sabe bem o calor do fogo — exclamou. — Mas vocês não se deviam ter demorado aqui.

— Que mais podia eu fazer?

— Se fosse ele não teria esperado por ti.

— Mas eu não sou ele — disse Max.

O negro olhou para o chão:

— É melhor ires andando, rapaz.

Max arregalou os olhos para ele:

— Que queres dizer?

— Vai andando — insistiu Mike num tom duro.

— E o resto da malta?

— Não chegam aqui antes de decorridas duas horas — disse Mike. — Contentam-se com apanhar o Reeves.

Max olhou outra vez para ele e depois para o pântano. Em seguida abanou a cabeça.

— Não posso fazer isso — declarou.

— Ainda és mais idiota do que eu pensava, rapaz — disse Mike pesadamente. — Se fosse ele já ia pelo pântano adiante.

— Fugimos juntos — respondeu Max. — É justo que vol­temos juntos.

— Muito bem, rapaz — aceitou Mike numa voz resignada, ao mesmo tempo que se punha de pé. — Apaga esse lume.

Max atirou as achas à água, onde crepitaram e se apa­garam. Voltou-se e viu Mike pegar em Reeves como se fosse numa criança e lançá-lo ao ombro. Max começou a caminhar no pântano tomando o caminho da prisão.

— Aonde vais, rapaz? — ouviu-se a voz de Mike por detrás dele.

Max voltou-se, olhando-o. O outro apontou no sentido oposto:

— A orla do pântano fica a umas vinte milhas nesta direcção.

Max compreendeu nesse mesmo instante.

— Não podes fazer isso, Mike. Oficialmente nem sequer já és um presidiário.

A cabeça do gigante moveu-se:

— Tens razão, rapaz. Já não sou um presidiário. Isso signi­fica que posso ir para onde me apetecer e se não voltar para o presídio não têm nada com isso.

— Mas é diferente se te apanham a ajudar-me.

— Se apanharem, apanharam — disse Mike com simpli­cidade. — Seja como for não quero ser eu a chibatar-te. Não posso. Bem vês, somos de facto amigos.

Oito dias depois saíram do pântano. Lançaram-se sobre a terra dura e seca, ofegantes, procurando recuperar o fôlego. Max ergueu a cabeça. Longe, no horizonte, viu fumo.

— Há ali uma cidade — disse, excitado, pondo-se de pé. — Conseguiremos arranjar alguma comida decente.

— Mais devagar — exclamou Reeves, obrigando-o a bai­xar-se. Reeves continuava amarelo mas o paludismo já passara. — Se é uma cidade, há lá um armazém. Assaltamo-lo esta noite. Não vale a pena correr riscos. Podem ter sido alertados e estar à nossa espera.

Max lançou uma olhadela a Mike. O grande negro fez um gesto de assentimento.

Assaltaram o armazém às duas da madrugada. Quando saíram vinham todos vestidos com roupas novas, traziam armas nos cinturões e quase dezoito dólares que haviam encontrado na caixa.

Max pretendia, roubar três cavalos para fugirem.

— Não é mesmo ideia de um índio? — observou Reeves, sarcástico. — A cavalo localizavam-nos num instante. Seguimos a pé pela estrada durante dois ou três dias e então pensaremos nos cavalos.

Dois dias depois tinham os cavalos. Quatro dias mais tarde assaltavam um banco numa pequena cidade, apoderavam-se de mil e oitocentos dólares e punham-se a caminho do Texas.

Max foi a Fort Worth esperar o comboio que devia trazer a filha de Jim Reeves de Nova Orleães. Sentou-se na cadeira do barbeiro e contemplou o seu próprio rosto no espelho. Já não era o rosto de um rapaz. A barba negra servia para disfarçar os malares salientes. Não parecia sequer um índio.

— Quanto lhe devo? — perguntou, saltando da cadeira.

— Meio dólar pelo corte de cabelo e vinte cents por aparar a barba.

Max atirou-lhe uma moeda de prata.    

Entretanto, Mike desencostou-se da parede do edifício onde estivera apoiado e pôs-se a caminhar.

— Está quase na hora da chegada do comboio — disse Max. — Penso que é melhor ir andando para a estação.

Tinham chegado a Fort Worth três anos e meio antes, certa noite, com sete mil dólares nos alforges. Atrás deles haviam deixado dois bancos vazios e dois homens mortos. Mas tinham tido sorte. Nenhum deles fora ainda identificado e eram pro­curados pela designação vaga de pessoas desconhecidas.

— Parece uma boa cidade — dissera Max entusiasmado. — Já reparei que há dois bancos.

Reeves erguera os olhos para ele da cadeira do hotel barato onde se haviam instalado.

— Essa história acabou — dissera ele.

Max arregalou os olhos:

— Porquê? Parecem fáceis.

Reeves sacudira a cabeça:

— Foi aí que eu cometi o meu erro da última vez. Não parar a tempo. — Enfiara um cigarro na boca.

— Que vais então fazer? — perguntara Max.

Reeves acendera um cigarro:

— Procurar arranjar um bom negócio legal. Há por aqui muitas oportunidades. A terra é barata e o Texas progride.

Reeves descobrira o negócio que procurava numa pequena cidade a sessenta e cinco milhas a sul de Fort Worth. Um bar e uma sala de jogo. Em menos de dois anos tornara-se no homem mais importante da cidade. Depois abriu um banco numa depen­dência da sala de jogo e pouco depois começou a comprar terras. Falava-se até em elegê-lo para mayor.

Comprou um pequeno rancho fora da cidade, restaurou a casa e mudou-se do apartamento por cima do bar. Pouco depois destacou o banco da sala de jogo, que era dirigida por Max, e instalou-o num pequeno edifício na rua principal. Em menos de um ano as pessoas já se tinham esquecido de que ele fora o proprietário do bar e começavam a pensar nele como o banqueiro da cidade. Começou a enriquecer tranquilamente.

Só precisava de mais uma coisa para completar a sua fachada de respeitabilidade: uma família. Mandou proceder a discretas investigações em Nova Orleães. Soube que a mulher tinha morrido e que a filha vivia com os avós maternos. Enviou-lhe um telegrama e recebeu resposta de que ela chegaria a Fort Worth em cinco de Março.

Max manteve o olhar atento na plataforma de desembarque dos passageiros:

— Sabes como ela é? — perguntou Mike.

— Só aquilo que Jim me disse e ele não a vê há dez anos.

A pouco e pouco os passageiros foram saindo e só ficou na estação uma jovem rodeada de maletas e de um pequeno baú. Os olhos da rapariga percorriam a plataforma. Mike dirigiu ao companheiro um olhar de indecisão:

— Achas que pode ser ela?

Max encolheu os ombros e aproximou-se da jovem tirando o chapéu:

— Miss Reeves?

Um sorriso de alívio surgiu na face da mulher.

— Oh!, como me sinto feliz por encontrá-lo! — respondeu ela calorosamente. — Começava a pensar que o meu pai não tinha recebido o telegrama.

Max devolveu-lhe o sorriso.

— Sou Max Sand — apresentou-se. — Seu pai mandou-me vir esperá-la.

Uma ligeira sombra escureceu o olhar da jovem.

— Já esperava isso — murmurou. — Meu pai tem andado tão ocupado que durante dez anos não voltou a casa.

Max calculou logo que ela ignorava que o pai estivera esses anos todos na prisão.

— Venha — disse simplesmente. — Arranjei-lhe um quarto no Palace Hotel. Pode tomar banho e dormir lá esta noite. Temos uma viagem de dois dias até a casa e portanto só partiremos amanhã.

Ao chegarem ao hotel, vinte minutos depois, Max estava apaixonado pela primeira vez na sua vida.

Max prendeu o cavalo no poste em frente da casa de Reeves, no rancho. Subiu os degraus e bateu à porta. Quando a filha de Reeves abriu tinha o rosto fatigado e alterado como se tivesse estado a chorar.

— Oh, é você— disse em voz baixa. — Entre.

Max acompanhou-a ao salão. Estendeu-lhe as mãos, de súbito preocupado:

— Betty, que há?

Ela esquivou-se:

— Porque não me disse que era um presidiário evadido? — perguntou, sem o olhar de frente.

O rosto dele cristalizou-se numa expressão gelada:

— Isso teria feito alguma diferença?

— Sim — respondeu. — Nunca me teria deixado enamorar de si se o soubesse.

— E agora que sabe — insistiu ele —, isso tem qualquer im­portância?

— Tem – devolveu ela. — Oh, não me pergunte. Estou tão confusa!      

— E que mais lhe disse seu pai?

Ela baixou os olhos sobre as mãos:  

— Disse que não podia casar consigo. Não só por esse facto mas também porque você é... é meio índio.

— E só por isso você deixou de amar-me?

A rapariga fixou o olhar outra vez nas mãos crispadas, sem responder.

— Não sei o que sinto — disse por fim.

Max tentou aproximar-se e enlaçá-la.

— Betty, Betty — suplicou em voz rouca. — No baile de ontem beijaste-me e disseste que me amavas. Não mudei desde ontem.

Durante um momento ela manteve-se inerte mas depois afas­tou-se vivamente.

— Não me toque! — exclamou com brusquidão.

Max fitou-a, curioso:

— Não precisa de ter medo de mim.

A rapariga estremeceu afastando-se da mão que ele lhe estendia.

— Não me toque — repetiu, e desta vez o medo na sua voz era demasiado familiar para Max o não reconhecer. Sem mais palavra voltou as costas e saiu do quarto.

Montou e encaminhou-se directamente para o banco pene­trando na dependência das traseiras que servia de gabinete a Reeves. Este ergueu os olhos por trás da escrivaninha.

— Que raio vem a ser essa ideia de entrar por aqui dentro? — perguntou.

Max fitou-o:

— Não tentes armar comigo, Reeves. Já a fizeste bonita com tua filha.

O outro recostou-se na cadeira e riu:

— Só isso?

— É bastante — afirmou Max. — A noite passada ela pro­meteu casar comigo.

Reeves inclinou-se para diante:

— Sempre pensei que tivesses melhores miolos que isso, Max.

— Agora isso já não interessa, Reeves. Vou-me embora.

Reeves fitou-o um momento:        

— Falas a sério?

Max fez que sim:

— Falo a sério.

— O negro vai contigo?

— Sim — disse Max. — Depois de nos pagares a nossa parte.

Reeves fez girar a cadeira rotativa e tirou algumas notas do cofre que tinha por detrás dele. Atirou-as sobre a secretária para diante de Max:

— Aí tens.          

Max olhou para o dinheiro e em seguida para Reeves. Levantou o dinheiro e contou-o:  

— Só aqui estão quinhentos dólares.

— Que esperavas? — perguntou Reeves.

— Chegámos a Fort Worth com sete mil. A minha parte eram dois mil e trezentos e no bar não temos estado a perder di­nheiro. — Retirou uma cigarrilha de cima da escrivaninha de Reeves e acendeu-a. — Acho que eu e Mike temos direito a pelo menos cinco mil.

Reeves encolheu os ombros.

— Não discuto — disse. — Afinal de contas, eu e tu passámos muita coisa Juntos. Se é isso que calculas é o que te vou pagar.

Contou o dinheiro em cima da secretária. Max pegou nele e meteu-o no bolso.

— Nunca pensei que o pagasses com tanta facilidade — ­observou.                                              

A meio caminho do bar alguém o chamou pela retaguarda. Voltou-se lentamente. O xerife e dois ajudantes avançaram para ele, de revólveres em punho. Reeves estava com eles.

— Que se passa, xerife? — perguntou Max.

— Revistem-no — bradou Reeves muito excitado, — Devem encontrar nele o dinheiro que me roubou.

— Roubou? — exclamou Max. — Está louco. O dinheiro é meu. Devia-mo.

— Mantém as mãos longe do revólver — disse o xerife, avançando com cautela. Enfiou a mão no bolso de Max, e tirou-a segurando um maço de notas.

— Está a ver! — uivou Reeves. Que lhe tinha dito eu?

— Seu filho da mãe! — explodiu Max. Atirou-se a Reeves. Antes porém de conseguir alcançá-lo o xerife descarregou-lhe o punho da arma sobre a cabeça. Foi nesse preciso momento que Mike espreitou através da janela do primeiro andar do bar.

Reeves avançou sobre Max e olhou para ele:

— Devia saber que não se pode confiar num mestiço.

— Segurem-no, rapazes, e metam-no na cadeia — ordenou o xerife.

— É melhor ir ao bar e prender o negro – aconselhou Reeves. — Ele deve estar por lá.

Mike viu o xerife olhar para o lado do bar e em seguida começar a encaminhar-se para lá. Não esperou mais. Saiu pela porta das traseiras e fugiu da cidade.

Reeves seguia a cavalo para o seu rancho, assobiando baixinho. Sentia-se bem. Pela primeira vez estava seguro. Max não ousaria falar; só serviria para piorar a situação. E o negro fugira. Muito próprio de um negro, pôr-se a andar quando as coisas se tornam perigosas. Ia tão embebido nos seus pensamentos que não ouviu o estalo do chicote que partiu de trás das árvores e o fez caiu da montanha.

Rastejou e tentou apoderar-se do revólver mas a chicotada seguinte arrancou-lho dos dedos. Mike aproximou-se lentamente dele, com o grande chicote a balançar na extremidade do braço erguido.

Reeves gritou de terror. A grande serpente voltou a estalar e ele rodopiou caindo de costas no chão. Ajoelhou-se apoiado nas mãos e levantou-se tentando correr. A serpente estalou e atingiu-o nas pernas, derrubando-o. Rodou a cabeça e viu o braço de Mike erguer-se, o grande chicote acompanhar o gesto.

Gritou quando a chibata voltou a retalhar-lhe as carnes.

Cedo, na manhã seguinte, o xerife e os seus ajudantes encontraram um corpo que jazia na berma da estrada. Durante a noite alguém torcera as grades da única cela da prisão e Max fugira.

Um dos ajudantes foi o primeiro a avistar o corpo. Fez o cavalo rodopiar em torno enquanto olhava para o chão.

O xerife e o outro ajudante aproximaram-se também. Ficaram durante um momento a contemplar o corpo mutilado. Em seguida um deles tirou o chapéu e limpou o suor da testa:

— Parece o banqueiro Reeves.

O xerife voltou-se para ele.

— Era o banqueiro Reeves – emendou. Tirou também o chapéu para enxugar o suor do rosto. – Curioso – acrescentou. – A única coisa que eu conheço capaz de pôr um homem neste estado é o chicote que usam nas prisões de Luisiana.

O nome espanhol da aldeia era muito comprido e difícil para os americanos pronunciarem e portanto em pouco tempo crismaram-no: Esconderijo. Tratava-se do lugar para onde se ia quando não havia mais por onde fugir, quando a lei andava no encalço de uma pessoa e o foragido se achava cansado de comer carne seca e feijões frios de conserva. Caro, sim, mas valia a pena. Ficava quatro milhas além da fronteira e a lei não podia ir lá buscar ninguém.

E era o único local do México onde se conseguia whisky americano. Embora custasse quatro vezes mais caro.

O alcalde, sentado na sua mesa ao fundo da cantina, viu os dois americanos entrar. Sentaram-se na mesa junto da porta e o mais baixo pediu tequila.

O alcalde observava-os com interesse. Não ficariam muito tempo por ali. Era sempre assim. Quando chegavam só queriam do melhor. O melhor whisky, os melhores quartos, as raparigas mais caras. Depois o dinheiro principiava a faltar-lhes e eles a reduzir as despesas. Primeiro mudavam para um quarto mais barato; a seguir acabavam-se as raparigas. Por fim o whisky. Quando começavam a ingerir tequila isso significava que pouco faltava para levantarem ferro.

Ergueu o cálice e emborcou rapidamente a tequila. Coisas da vida. Voltou a olhar para o homem mais pequeno. Havia nele qualquer coisa que lhe despertava a atenção. Suspirou ao recordar-se da sua mocidade.

Juárez teria gostado daquele tipo: o sangue índio do jefe dizia-lhe instintivamente quem eram os guerreiros. Voltou a suspirar. Pobre Juárez, quisera dar tanto ao seu povo e tão pouco conseguira. Sempre gostaria de saber se, antes de morrer, o jefe teria compreendido que a única razão do seu malogro fora o facto de o próprio povo não querer tanto quanto ele desejava dar-lhe. Observou outra vez os americanos, ao mesmo tempo que se recordava da primeira vez que os vira. Tinham entrado na cantina tranquilamente, fatigados e cobertos pela poeira de uma longa caminhada. Dessa vez, tal como agora, haviam-se sentado a uma mesa perto da porta.

A garrafa e os copos encontravam-se na mesa quando o homenzarrão que estivera sentado no bar se aproximou deles. Dirigiu-se ao sujeito mais pequeno, ignorando o outro:

— Não se admite a entrada de negros neste bar.

O homem mais pequeno nem sequer ergueu os olhos. Encheu primeiro o copo do amigo e depois o dele. Levou-o aos lábios.

O copo foi despedaçar-se no chão e na cantina estabeleceu-se subitamente um grande silêncio.

— Leva o teu negro daqui para fora — ordenou o homen­zarrão. Fitou-o um momento e voltando-lhes as costas regressou ao seu lugar no balcão do bar.

O negro começava a levantar-se mas o homem mais pequeno deteve-o com um olhar. Lentamente o negro voltou a ocupar a cadeira.

Só quando o homem mais pequeno se levantou da mesa para se dirigir ao bar o alcalde percebeu que não era tão baixo quanto parecia à primeira vista. Só o contraste com o negro o tornava pequeno.

— Quem manda aqui? — perguntou ao taberneiro.

O taberneiro apontou para o fundo:

— O alcalde, señor.

O americano voltou-se e dirigiu-se para a mesa. Os seus olhos surpreenderam os do alcalde; eram duros, de um azul muito escuro. Falou em espanhol com sotaque cubano:

— Aquele suíno disse a verdade, señor?

— Não, señor — replicou o alcalde. — Todos os que têm dinheiro para pagar as suas despesas são bem-vindos aqui.

O homem esboçou um gesto de compreensão e regressou ao bar. Parou diante do homenzarrão.

— O alcalde diz que o meu amigo pode ficar – declarou.

O homem voltou-se furioso:

— Que interessa o que ele diz? Só porque estamos do outro lado da fronteira não implica que tenha de beber juntamente com negros.

A voz do rapaz era fria:

— O meu amigo come comigo, bebe comigo e dorme no meu quarto, portanto não vai sair.

Voltou as costas com toda a calma e dirigiu-se para a sua mesa.

Estava já a sentar-se quando o americano, furioso, arrancou para ele:

— Se gostas assim tanto de negros, seu amante de pretos, terás de dormir com um negro morto! – bradou o homenzarrão sacando do revólver.

O rapaz mal pareceu mover-se mas o revólver encontrou-se de repente na sua mão, o fumo a sair do cano, o eco do tiro a perder-se nos recessos da cantina. E o provocador jazia morto no chão, junto do bar.

— Peço desculpa pela perturbação que causámos nesta aldeia hospitaleira – disse o rapaz no seu estranho espanhol.

O alcalde olhou para o homem que jazia no chão e encolheu os ombros.

— De nada – respondeu. – Não teve importância. Você estava no seu direito. O patife não merecia perdão.

Agora, decorridos quase três anos, o alcalde suspirou, recordando-se. O mais pequeno era ágil, muito ágil — como uma pantera. E quanto ao revólver! Caramba! Nunca vira ninguém tão rápido. Como se a arma possuísse vida própria. Que pistolero ele teria dado. Juárez sentiria orgulho dele.

Por várias vezes, todos os anos, os dois amigos desapareciam tranquilamente da aldeia e reapareciam depois, decorridas algumas semanas ou até meses. E sempre que voltavam vinham com dinheiro para pagar os quartos, o whisky e as mulheres.

Mas de cada vez que isso sucedia o alcalde notava neles uma crescente e mais profunda solidão, um maior afastamento. Havia ocasiões em que sentia uma estranha piedade por eles. Não eram como os outros que vinham à aldeia. Essa forma de vida não lhes dava prazer.

E agora estavam de novo a beber tequila. Quantas vezes sucederia ainda partirem e voltarem até ao dia em que deixariam de voltar? Não só à aldeia mas a qualquer terra deste mundo?

Max engoliu a tequila e mordeu a rodela de limão. O sumo ácido penetrou-lhe na garganta, deixando-lhe na boca um sabor fresco e agradável. Olhou para Mike:

— Quanto nos resta?

O outro reflectiu um momento:

— Talvez para mais três semanas.

Max enrolou um cigarro e acendou-o:

— O que temos de fazer é dar um grande golpe. Depois talvez possamos ir para a Califórnia ou para o Nevada ou para qualquer outro lagar onde não nos conheçam e seja possível entrarmos na vida direita. O dinheiro não rende muito neste lugar.

O negro fez um gesto de assentimento.

— Pois sim — concordou. — Mas a solução não é essa. Temos de separar-nos. Andam à nossa procura. Quanto te vêem comigo é como se trouxesses um grande letreiro com o teu nome.

Max tornou a encher o copo:

— Estás a tentar livrar-te de mim?

Sorriu, lançando a bebida às goelas e alcançando o limão.

Mike falou com gravidade:

— Talvez, sem mim, pudesses assentar e fazer vida sozinho. Não deves continuar a fugir.

Max cuspiu uma grainha de limão.

— Nós combinámos ficar sempre juntos. Se arranjarmos desta vez bastante dinheiro vamos para a Califórnia.

A porta abriu-se e um cow-boy alto, de cabelo ruivo, entrou. Encaminhou-se para a mesa deles e deixou-se cair na cadeira vazia.

— Olá! Charlie Dobbs estará cá pelas nove horas, penso eu. — Riu. — Essa tequila corrói o estômago de um parceiro. Taberneiro, sirva-nos uma garrafa de whisky.              

O taberneiro colocou a garrafa e os copos na mesa e afas­tou-se. Charlie serviu-os e beberam.                      

— Que te trouxe de volta, Charlie? — perguntou Max. — Pensei que estivesses a caminho de Reno.

— Estava. Mas topei com o melhor negócio que vocês possam imaginar. Demasiado bom para desistir.

— Que espécie de negócio? — perguntou Max debruçando-se por cima da mesa.

Charlie baixou a voz:

— Um novo banco. Recordam-se de lhes ter falado o ano passado que estavam a cavar poços de petróleo no Texas? Pois bem, resolvi fazer-lhes uma visita no meu caminho para o Norte. — Serviu-se de outra bebida e engoliu-a com avidez. — Bem, eles descobriram petróleo. A coisa mais maluca que já se viu. Cavam um poço na terra e em vez de água sai petróleo. Extraem-no, metem-no em tambores e despacham-no para o Leste. Há petróleo por todo o lado e o banco está a abarrotar de di­nheiro.

— Parece-me bom — murmurou Max. — Qual é a ideia?

— Um tipo de lá organizou o golpe mas precisa de colabo­radores. Ele quer duas partes e nós ficamos cada um com uma parte.        

— É justo — admitiu Max. Voltou-se para Mike: — Que pensas tu?

O negro fez um gesto de assentimento.

— Para quando é o golpe? — perguntou.

Charlie olhou para ele:              

— Logo depois do Ano-Bom. O banco nessa altura está cheio de dinheiro das novas extracções. — Encheu outra vez os copos. — Temos de partir amanhã. Gastei três semanas a cavalo para cá chegar.

Max abriu caminho para dentro do bar atrás de Charlie Dobbs. Estava cheio de gente do petróleo e de cow-boys e as mesas de dados e do faraó trabalhavam em cheio. Havia filas de homens fazendo bicha para uma oportunidade de jogar.

— Que te disse eu? — rosnou Charlie. — É uma cidade em plena prosperidade. — Abriu caminho para o balcão onde se encontrava um homem.

Este voltou-se e contemplou Dobbs,

— Demoraste muito a cá chegar — disse em voz baixa.

— A viagem foi de muito longe, Ed — replicou Charlie.

— Esperem-me lá fora—disse Ed atirando com uma moeda de prata para cima do balcão e afastando-se. Olhou Max de soslaio ao passar por ele.

Max surpreendeu de relance uns olhinhos matreiros, sem expressão. O homem parecia ter quase cinquenta anos e usava um grande bigode amarelado que lhe cobria o lábio superior. Havia nele qualquer coisa de familiar mas não conseguiu situá-lo nas suas recordações. Tinha apenas a impressão de que já o vira antes.

O homem esperava-os à porta do bar. Depois pôs-se a ca­minhar e os outros seguiram-no até um beco escuro. Voltou-se para encará-los.

— Disse que precisávamos de quatro homens — observou num tom irritado.

— Há outro homem, Ed — atalhou Charlie. — Espera-nos fora da cidade.

— Ah, bem. Chegaram mesmo na altura. Amanhã à noite, que é sexta-feira, o presidente e o tesoureiro do banco trabalham até tarde preparando as folhas de pagamento para sábado. Em geral acabam cerca das dez horas. Apanhamo-los à saída e obri­gamo-los a voltar para dentro. Assim serão eles a abrir-nos o cofre: não seremos forçados a rebentá-lo.

— Por mim acho bem — concordou Charlie. — E tu que dizes, Max?

Max olhou para Ed:

— Eles andam armados?

— Penso que sim. Tens medo de tiros?

Max fez que não com a cabeça:

— Não. Apenas gosto de saber com o que posso contar.

— Quanto achas que apanharemos? — interrompeu Charlie.

— Cinquenta mil, talvez mais.

Charlie assobiou:

— Cinquenta mil!

— Agora separamo-nos e sai um de cada vez. Na calma. Não quero que nos vejam juntos. Encontramo-nos nas traseiras do banco às nove e meia em ponto. — Ed olhou para os outros que fizeram sinais de entendimento. Começou a afastar-se mas depois voltou atrás. Os seus olhos percorreram Max:

— Não nos conhecemos já de qualquer parte?

Max encolheu os ombros:

— Talvez. Tenho viajado. A sua cara também não me parece estranha.

— Talvez amanhã me lembre — disse e principiou a afastar-se no beco.

Max não tirou os olhos dele até vê-lo dobrar a esquina. Voltou-se para Charlie:

— Há qualquer coisa neste tipo que me dá a impressão de que o conheço.

Charlie riu:

— Vamos, Mike deve estar a pensar no que nos teria sucedido.

— Preparem-se — comandou Ed num murmúrio rouco. — Eles aproximam-se!

Max apertou-se contra a parede junto da porta. Do outro lado dos umbrais Ed e Charlie esperavam. Ouviam-se as vozes de dois homens que se aproximavam, vindos do interior do banco.

Actuaram todos ao mesmo tempo quando a porta se abriu, empurrando-a com súbito impulso.

— Que raio vem a ser... — fez uma voz no interior sem luz. Seguiu-se uma pancada e o som da queda de um corpo.

— Cale a boca, cavalheiro, se quer continuar vivo! — Houve um soluço de terror e seguiu-se o silêncio. — Metam-nos no compartimento do cofre — ordenou a voz violenta de Ed.

Max debruçou-se rapidamente, e arrastou o homem caído pelo chão até um dos compartimentos das traseiras. Ouviu riscar um fósforo atrás dele e depois o ténue clarão de um candeeiro quebrou as trevas do aposento. Largou o homem deixando-o estendido no soalho.                            

— Vigia a porta da frente! — silvou Ed.              

Max correu para lá e espreitou. A rua estava calma e deserta.

— Ninguém lá fora — disse.

— Bom — fez Ed. — Vamos ao trabalho. — Voltou-se para o outro dos dois homens: — Abre o cofre.

O homem andava na casa dos sessenta. Apavorado, olhava para o companheiro, estendido no chão.

— Não... não posso — disse. — Só Mr. Gordon é que sabe. Ele é o presidente e o único que conhece a combinação do segredo.

Ed voltou-se para Max e ordenou:

— Acorda-o.

Max ajoelhou junto do homem. Voltou-lhe o rosto. A ca­beça tinha um aspecto esquisito, a mandíbula pendia frouxa. Olhou para Ed:

— Não há nada capaz de acordá-lo. Você rebentou-lhe a cabeça.

— Meu Deus! — exclamou o outro. Parecia quase a des­maiar.

Ed colocou-se diante dele:

— Penso que afinal de contas terás tu próprio de abrir o cofre.

— Mas não posso — disse. — Não conheço o segredo.

Ed bateu-lhe no rosto com violência. O homem foi cair de joelhos contra uma escrivaninha.

— Bem, trata de descobri-lo!

— Verdade, cavalheiro — soluçou. — Não sei. Só Mr. Gordon sabia. Ele era…

Ed agrediu-o outra vez:

— Abre o cofre!

— Escute, cavalheiro — suplicou o homem. — Há mais de quatro mil dólares naquela escrivaninha! Leve-os e por favor não me bata mais. Não conheço o segredo…

Ed rodeou a escrivaninha e abriu a gaveta do meio. Retirou um maço de notas que meteu no bolso do casaco. Regressou em seguida para junto do homem ainda ajoelhado.

— Agora abre o cofre — ordenou, voltando a agredi-lo.

O homem estatelou-se no chão.

— Não sei, cavalheiro. Não sei!

Quando Ed ia desferir-lhe um pontapé, Max tocou-lhe no ombro:

— Talvez ele esteja a falar verdade.

Ed contemplou-o um momento, depois baixou o pé.

— Talvez. Mas conheço uma maneira de sabermos depressa. — Fez um gesto para Max. — Volta para a porta.

Max atravessou a sala e encaminhou-se para a porta da saída. A rua continuava deserta. Só ao fundo, na sombra, estava Mike com os cavalos. Ficou ali vigiando calmamente.

A voz de Ed veio lá de dentro:

— Amarra o bastardo a uma cadeira.

— Que vão fazer-me? — protestou o empregado do banco numa voz quebrada.

Max voltou para dentro e contemplou a cena. Ed encontrava-se acocorado junto da lareira movendo o atiçador entre os carvões ao rubro. Charlie acabou de amarrar o tesoureiro e perguntou com curiosidade a Ed:

— Que vais fazer?

— Ele falará se sentir este ferro em brasa aproximar-se-lhe dos olhos — explicou o outro com um sorriso mau.

— Espera — protestou Charlie. — Se pensas que o tipo está a mentir mata-o.

Ed levantou-se e encarou Charlie, cheio de cólera:

— É o mal de vocês, os tipos novos. Não têm coragem, são uns medricas. Além disso, se o matarmos não pode abrir o cofre.

— Também não o fará se não conhecer o segredo!

— Se não querem ver, saiam! — gritou Ed num tom violento. — Há cinquenta mil dólares naquele cofre e eu vou apanhá-los.

Max voltou costas e principiou a caminhar para a saída do banco. Mal tinha dado dois passos quando a voz de Ed o fez parar:

— Podem crer que dá resultado. Há uns dez ou doze anos, Rusty Harris, Tom Dort e eu demos este tratamento a um caçador de búfalos e à sua squaw…

Max sentiu o estômago embrulhar-se e apoiou-se à parede para não cair. Fechou os olhos por um momento e reviu toda a cena da cabana — o pai pendurado sem vida, a mãe enrodilhada no chão, o clarão alaranjado do fogo contra o céu nocturno.

A cabeça principiou a clarear. Sacudiu-a. Um sentimento frio e mortal sucedera à náusea. Entrou outra vez na dependência das traseiras. Ed continuava ajoelhado diante da lareira e Charlie, no meio do compartimento, mostrava o rosto pálido de agonia.

— O velho miserável tinha o oiro escondido num lugar qualquer. Toda a gente sabia disso em Dodge…

Ed ergueu os olhos e viu Max que atravessara o aposento e se encontrava de pé, junto dele.

— Que estás a fazer aqui? — rugiu. — Não te disse que ficasses a guardar a porta?

Max tinha o olhar cravado no outro. A sua voz saiu cava e soturna:

— Encontraste esse oiro?

No rosto de Ed formou-se uma expressão de perplexidade.

— Não encontraste — afirmou Max — porque, para começar, não havia lá nenhum.

Ed fitou-o:

— Como sabes?

— Sei — disse Max lentamente —, porque sou o Max Sand.

Aquilo foi como se um relâmpago atravessasse o cérebro de Ed. Afinal reconhecia-o. Lançou a mão ao revólver enquanto dava um salto para se afastar de Max. Este, com um pontapé, fez-lhe cair a arma e Ed rastejou para apanhá-la ao mesmo tempo que Max tirava o atiçador do fogo. Ed voltou-se, já com o re­vólver em punho, mas nesse exacto momento Max enterrava-lhe o atiçador nos olhos.

O homem soltou um grito de intensa dor quando o ferro em brasa lhe penetrou nas carnes. O revólver disparou-se, a bala perdeu-se no tecto e a arma caiu-lhe das mãos.

Max ficou um momento imóvel, a olhar. O cheiro da carne queimada entrou-lhe nas narinas. Estava tudo acabado. Tinham passado doze anos e a obra completara-se.

Voltou-se como um sonâmbulo quando sentiu Charlie pu­xar-lhe pelo braço.

— Vamos embora — gritava Charlie. — Vamos embora. Não tarda que esteja aqui toda a cidade.

— Sim — disse Max lentamente. Deixou cair o atiçador e encaminhou-se para a porta. Mike, um pouco afastado, segurava os cavalos e montaram rapidamente. Saíram da cidade no meio de uma saraivada de balas com os perseguidores a menos de meia hora de distância.

Três dias mais tarde estavam escondidos numa pequena ca­verna no sopé das colinas. Max penetrou na caverna e dirigiu-se ao amigo:

— Como vai isso, Mike?

A face geralmente luzidia de Mike estava fatigada e cor de cinza:

— Mal, rapaz, mal.

Max debruçou-se e enxugou-lhe o rosto.

— Desculpa — disse. — Já não há mais água.

O negro abanou a cabeça:

— Isso não tem importância, rapaz. Desta vez fui apanhado a sério.

A voz de Charlie veio do fundo da caverna:

— Dentro de uma hora será manhã. É melhor andarmos.

— Vai tu, Charlie. Eu fico com o Mike.

Mike esforçou-se para se sentar, as costas apoiadas à rocha.

— Não sejas idiota, rapaz — disse.

Max abanou a cabeça:

— Fico contigo.

O outro sorriu. A sua mão procurou a de Max e apertou-a com bondade:

— Somos amigos, rapaz, não somos? Amigos verdadeiros?

Max fez um gesto de assentimento.

— E nunca te deixei mal, pois não? Vou morrer e nada pode evitá-lo.

Max enrolou um cigarro e enfiou-o na boca de Mike:

— Cala-te e descansa.

— Desaperta-me o cinto.

Max debruçou-se diante do amigo e soltou a fivela, Mike gemeu quando o cinto caiu.

— Estou melhor assim — disse ele. — Agora olha para dentro do cinto.

Max voltou o cinturão do avesso. Havia uma bolsa de di­nheiro pregada desse lado.

Mike sorriu:

— Estão cinco mil dólares nessa bolsa. Estive a guardá-los para o momento oportuno, para agora. Para quando deixássemos esta vida.

Max enrolou outro cigarro e acendeu-o. Observava o amigo, em silêncio. Mike tossiu:

— Nasceste trinta anos atrasado para esta vida. Já não há lugar no mundo para pistoleiros. Chegámos no fim e só apanhámos os restos.

Max continuava em silêncio, fitando o rosto do negro.

— Mesmo assim não vou embora.

Mike ergueu os olhos para ele:

— Não me digas que me enganei quando me tomei teu amigo naquela prisão. E agora quando estou a morrer. Na face de Max surgiu um súbito sorriso:

— Estás ainda para lavar e durar, Mike.

Mike correspondeu com outro sorriso — um sorriso crispado:

— Posso aguentar os perseguidores durante um dia inteiro. Nessa altura vocês estarão bastante longe e nunca mais vos conseguem agarrar. — Pôs-se a rir mas parou subitamente quando principiou a cuspir sangue. Estendeu a mão para Max:

— Ajuda-me a levantar, rapaz.

Max aproximou-se e puxou por Mike. O gigantesco negro apoiou-se nele enquanto caminhavam para a porta da caverna. Saíram para a noite onde uma ligeira brisa soprava por cima das escarpas.

Ficaram ali um momento saboreando o prazer da aproxi­mação física, esse estranho sentimento de solidariedade que os homens partilham; depois Max ajudou o amigo a estender-se no chão.

Mike espreitou para além da escarpa.

— Sou capaz de detê-los ali para sempre — disse. — Agora recorda-te do que eu te disse, rapaz. Vai-te embora e entra no bom caminho. Nada mais de roubos. Nada mais de tiros. Dás-me a tua palavra, rapaz?

— Tens a minha palavra, Mike.

— Se faltares eu voltarei para te perseguir! — disse o homen­zarrão. Girou a cabeça e olhou por cima da escarpa. — E agora, desanda — pediu em voz rouca. — A aurora está a despontar. — Lançou a mão à carabina pousada a seu lado.

O amigo deitou-lhe costas e, encaminhou-se para o cavalo. Montou e ficou ali um momento a olhar para Mike. O negro não voltou sequer a cabeça. Então Max picou de esporas o cavalo e este arrancou.

Somente uma hora mais tarde, com o sol alto, quando Max já ia a ultrapassar o cabeço seguinte, ele começou a estranhar a calma. Nessa altura já devia estar a ouvir sons de tiros por detrás dele.

O que nunca soube foi que Mike morrera no momento em que e1e o tinha perdido de vista.

A princípio, sem barba, sentia-se nu. Passando os dedos pelo rosto escanhoado, encaminhou-se para a cozinha. Charlie, sentado à mesa, ergueu os olhos.                        

— Meu Deus! — exclamou. — Nunca te reconheceria!

Martha, sua mulher, voltou de junto do forno. Sorriu:

— Você é muito mais novo do que parecia. E muito mais bonito!

Max sentiu-se corar. Sentou-se, embaraçado:

— Acho que chegou a altura de me ir embora.

Charlie e a mulher trocaram uma olhadela rápida.

— Porquê? — perguntou Charlie. — És dono de metade desta propriedade. Não podes partir e deixar as coisas assim.

Max pôs-se a observá-lo. Enrolou um cigarro e acen­deu-o:                                          

— Estamos aqui há três meses. Deixemo-nos de ilusões. Este lugar não chega para manter-nos aos dois.

Seguiu-se um silêncio. Max tinha razão. Muito embora tivesse adiantado o dinheiro para comprar o rancho este ainda não produzia osuficiente para todos.

— E se alguém o reconhece? — perguntou Martha. — O seu retrato encontra-se em todos os comissariados do Sudoeste.

Cofiando novamente o queixo, Max sorriu:

— Não me reconhecem. Sem a barba é impossível.

— É melhor pensares em arranjar outro nome — aconselhou Charlie.  

Max soprou uma nuvem de fumo.

— Sim. Penso que sim. Já é tempo. Tenho de mudar tudo.

Mas o novo nome não lhe ocorreu senão no dia em que se encontrou sob o forte sol do Nevada diante do velho Cord e do jovem Jonas. Depois foi fácil. Como se lhe tivesse pertencido toda a vida.

Smith. Nevada Smith.

Era um bom nome. E não o denunciava.

Baixou os olhos para o rapazinho que o fitava com expressão assustada, em seguida para a arma que empunhava na outra mão. Viu que os olhos da criança seguiam os dele. Enfiou o revólver no coldre. Sorriu com franqueza.

— Bem, júnior — disse. — Ouviste o teu papá.

Voltou-se para o cavalo e conduziu-o para a casa do pessoal com o rapazinho a trotar-lhe obedientemente na peugada. A casa do pessoal estava vazia. A vozinha do garoto ergueu-se por detrás dele:

— Vais viver aqui, com Wong Toy?

Nevada tornou a sorrir:

— Penso que sim.

Puxou uma das tarimbas e lançou-lhe em cima as roupas. Rapidamente arrumou o que lhe pertencia. Quando se voltou, o miúdo continuava a observá-lo com os olhos arregalados.

— Vais ficar realmente? — perguntou.

— Sim.

— Realmente? — insistiu o rapaz. — Para sempre? — A sua voz tremia um pouco. — Não te irás embora como os outros? Como a mamã?

Algo na expressão da criança comoveu Nevada. Ajoelhou, ao lado do rapazinho:

— Ficarei enquanto quiseres que eu fique.

De repente a criança lançou os braços em torno do pescoço de Nevada e apertou o rosto contra o dele. Tinha um hálito doce e tépido.

— Estou contente — disse. — Assim poderás ensinar-me a andar a cavalo.

Nevada levantou-se, com o rapazinho sempre a prender-lhe as pernas. Saiu e colocou o pequeno sobre a sela. Quando se preparava para montar ao lado dele sentiu subitamente o peso do revólver contra a coxa.

— Não me demoro — disse, e regressou ao barracão. Com gestos rápidos puxou os cordões e soltou o coldre. Pendurou-o num prego sobre a tarimba e voltou para o dia luminoso lá de fora.

E nunca mais tornou a usar a arma.

Rina saltou do comboio para a plataforma rendilhada pelas sombras da tarde rutilante e clara. Um motorista uniformizado avançou levando a mão ao quépi:

— Miss Marlowe?

Rina fez um gesto afirmativo.

— Mr. Smith pede desculpa de não ter vindo esperá-la. Está ocupado no estúdio. Diz que a encontrará à hora do cocktail.

— Obrigada — disse Rina. Voltou o rosto um momento para ocultar o seu despeito. Três anos eram muito tempo.

O motorista pegou-lhe nas malas:

— Faça o favor de acompanhar-me ao carro, minha senhora.

Rina esboçou novo gesto de assentimento. Seguiu o uniforme alto através da estação até um reluzente Pierce-Arrow. O motorista arrumou rapidamente as maletas e abriu a porta. No puxador havia uma pequena insígnia brasonada:

               N

               S

Rina acomodou-se e procurou um cigarro. A voz do motorista através do telefone interno sobressaltou-a:

— Encontra-os na caixinha à sua direita, minha senhora.

Surpreendeu no espelho retrovisor o sorriso breve do homem quando deu o arranque ao carro. A insígnia doirada encontrava-se em toda a parte, mesmo nos estofos, descobriu Rina que se pusera a estudar o interior do espaçoso automóvel.

Reclinou a cabeça para trás. Não havia motivo para sur­presas. Tinha lido bastante nos jornais a respeito dele. O rancho de quarenta acres e a mansão com trinta dependências que ele construíra em Beverly Hills. Mas ter as coisas não é o mesmo que vê-las. Fechou os olhos para recordar como é que isso se tornara numa realidade para ela.

Acontecera uns cinco meses depois de ela regressar ao Leste. Fora a Nova Iorque passar uma semana a fazer compras e um bananeiro amigo do pai pedira-lhe que assistisse à estreia de um filme produzido por uma companhia onde investira capitais importantes.

— Como se chama o filme? — perguntara ela.

— O Xerife da Aldeia Tranquila — respondera o banqueiro. — É uma produção Norman. Bernie Norman diz que é o melhor western jamais produzido.                        

— Os filmes do Oeste aborrecem-me — dissera ela. — Fi­quei farta do Oeste quando lá vivi.

— Norman afirma que o homem que desempenha o prin­cipal papel é uma estrela de primeira. Nevada Smith. Diz que se tomará no maior...

— Como se chama? — interrompeu Rina. Podia ter ouvido mal.

— Nevada Smith — repetiu o banqueiro. — Um nome esquisito mas esses actores de cinema arranjam sempre uns nomes pouco comuns.

— Irei ver — prometeu Rina.

Recordava-se de ter entrado no cinema — a multidão, as luzes dos projectores do lado de fora, os homens abrilhantinados e as mulheres com jóias. E depois foi como se o mundo real desaparecesse diante da magia das imagens da tela.

A fita estava quase no fim: sozinho numa alcova lúgubre o xerife empunhava o revólver que havia jurado nunca mais usar. A máquina aproximava-se do seu rosto, tanto que Rina quase podia ver-lhe os poros da pele, respirar-lhe o hálito tépido. O xerife ergueu a arma e olhou para ela.

Rina via-lhe no rosto a angústia, a tortura da decisão com­primir-lhe os lábios, endurecer a mandíbula forte, encovar os salientes malares de índio, acentuar as linhas que lhe cruzavam as faces. Mas eram os olhos dele que mais a fascinavam. Eram os olhos de um homem que conhecera a morte. Não uma, mas várias vezes. Os olhos de um homem que compreendia a sua futilidade, que sentia a sua dor e tristeza.

Lentamente, o xerife encaminhou-se para a porta e deu um passo para fora. A luz forte do sol bateu-lhe de chapa no rosto. Puxou a aba do chapéu para os olhos a fim de prote­gê-los e principiou a descer a rua deserta. A gente da cidade espreitava por detrás das gelosias e das cortinas. Ele não retri­buía os olhares; continuava a avançar, decidido, e na sua camisa desbotada começava a surgir o suor que o calor provocava, enquanto os calções desbotados e coçados pareciam colados às pernas esguias e levemente arqueadas. A estrela de xerife brilhava-lhe no peito.

A morte, pelo contrário, vestia roupas caras. Nem um grão de poeira maculava as botas luzidias e o revólver que usava tinha o punho de marfim reluzente. Havia ódio no seu rosto, nos olhos o desejo ansioso de matar, e a mão balouçava como uma cobra rateira sobre o coldre.

Os olhos dos dois homens cruzaram-se e fitaram-se pro­fundamente. Os olhos da Morte brilhavam com o prazer da luta. Os do xerife estavam carregados de dó.

A Morte fez o primeiro gesto, a mão correndo para a arma; mas com uma rapidez tal que os olhos mal podiam seguir o movimento, o revólver do xerife surgiu-lhe na mão. A Morte foi lançada violentamente em terra, deixando cair a arma, os olhos já embaciados. O seu corpo contorceu-se quando foi atravessado por mais duas balas, depois ficou imóvel.

O xerife ficou ainda ali um momento. Por fim, com gestos lentos, meteu a arma no coldre. Voltou as costas ao morto e começou a descer devagar a rua.

Gente afluía agora dos edifícios. Olhavam para o xerife e nos seus olhos havia o fulgor da luta. Mas ele não retribuía os olhares.

A rapariga apareceu num portal. O xerife parou diante dela, vendo-lhe os olhos húmidos de lágrimas. Os dele estavam dilatados e não pestanejavam. Uma expressão de desprezo atra­vessou-lhe subitamente o rosto. Desprezo pelo sangue que ela desejara, desprezo por uma cidade cheia de gente que só ansiava desfrutar o habitual sacrifício humano.

A mão do xerife alcançou a insígnia que lançou por terra, aos pés da rapariga, e voltou-lhe as costas. Ela olhou para a insígnia, sufocada, depois para as costas do xerife que se afas­tava. Principiou a segui-lo mas acabou por se deter. Viu-o mon­tar no cavalo, ao fundo da rua, e dirigir-se para as montanhas. Os ombros a bambolear e a cabeça descaída, afastava-se melan­colicamente daquelas vidas, no meio da luz radiante do sol, enquanto a imagem na tela principiava a apagar-se.

Quando se acenderam as luzes o cinema encontrava-se em silêncio. Rina voltou-se para o banqueiro que sorriu embara­çado, pigarreando:

— É a primeira vez que um filme me produz este efeito.

Também Rina sentia uma bola na garganta.

— E a mim — confessou ela numa voz rouca.

Ele pegou-lhe no braço:

— Está ali o Bernie Norman. Quero ir dar-lhe os parabéns. Abriram caminho no meio de uma multidão de admira­dores entusiastas. Norman era um homem troncudo com boche­chas escuras; os seus olhos brilhavam de entusiasmo:

— Que acha do rapaz, do Nevada Smith? — perguntava. — Já viu algum como ele? Ainda quer que eu meta o Tom Mix num filme?

O banqueiro riu e Rina observou-o. Não era muito fre­quente rir.

— Tom Mix? — lançou uma casquinada. — Quem é?

Norman deu uma palmada nas costas do banqueiro.

— Este filme vai dar dois milhões líquidos — disse ele eufórico. — E Nevada Smith vai começar imediatamente a rodar outro filme.

O automóvel penetrou numa estrada particular no sopé da colina. Atravessou um portão de ferro onde a insígnia já familiar surgia como um brasão e começou a subir a estreita rodovia que conduzia ao alto da colina. Rina espreitou e viu a grande casa, com o telhado branco a tomar tons de sangue e laranja lançados pelo sol-poente.

Começou a sentir-se embaraçada. Que viera fazer ali? Este não era o Nevada que ela conhecera. De súbito, frenética, abriu a carteira e pôs-se a procurar o telegrama de Nevada. Depois de encontrá-lo e de voltar a lê-lo sentiu-se mais calma.

Recordava-se de lhe ter enviado um telegrama da Suíça no mês anterior. Já haviam decorrido três anos desde a última vez que o vira. Três anos em que estivera sempre em movimento. Passara os primeiros seis meses em Boston mas depressa se fatigara. Seguiu-se Nova Iorque, Londres, Paris, Roma, Madrid, Constantinopla, Berlim. Festas, bacanais, aventuras delirantes, homens apaixonados, mulheres vorazes. E quanto mais fugia mais assustada e sozinha se achava.

E depois foi aquela manhã em Zurique quando acordou com o sol a bater-lhe nos olhos. Estava nua na cama, com um lençol a cobri-la. Sentia a boca seca e amarga; parecia-lhe que não bebia água há meses. Tentou alcançar a garrafa na mesinha-de-cabeceira e não a encontrando percebeu pela primeira vez que não se encontrava no seu quarto.

Sentou-se e olhando em volta verificou que se tratava de um quarto mobilado com requinte, no estilo europeu, e que não lhe era nada familiar. Procurou o roupão mas não encontrou uma única peça de roupa que lhe pertencesse. Tentou vaga­mente descobrir onde estava. Havia cigarros e fósforos na mesa-de-cabeceira e acendeu um. O fumo acre penetrou-lhe nos pulmões no instante em que a porta se abriu.

Entrou no quarto uma morena bonita. Ao avistar Rina sentada na cama, parou a meio do aposento. Um sorriso encres­pou-lhe os lábios. Aproximou-se então da cama:

— Ah, acordou, ma chérie — disse suavemente, debru­çando-se e beijando Rina na boca.

Rina ergueu para ela um olhar de surpresa:

— Quem é você?

— Ah, meu amor, não te recordas de mim?

Rina fez que não com a cabeça.

— Talvez isto te refresque a memória, meu amor — disse a mulher, deixando cair o roupão e apertando a cabeça de Rina contra o regaço nu. — Isto não te faz recordar o muito que nos amámos? — Afagava-lhe o rosto. Com um gesto de cólera Rina repeliu-a.

A porta abriu-se outra vez e um homem entrou. Vinha completamente nu e exibia uma garrafa de champanhe numa das mãos. Sorriu-lhes.

— Ah — disse ele. — Estamos outra vez todos acordados. A festa começava a tomar-se monótona.

Atravessou o quarto e ofereceu a garrafa de champanhe a Rina.

— Tome um pouco, querida — convidou-a. — O mal do que você fez é acordarmos depois com uma sede terrível, não é?

Rina levou as mãos às têmporas. Sentia as veias dilatarem-se-lhe sob os dedos. Vivia um pesadelo. Aquilo não era real. Não podia ser.

O homem afagou-lhe a cabeça carinhosamente:

— Uma enxaqueca, não é? Vou arranjar-lhe aspirinas.

Afastou-se e saiu do quarto. Aterrada, Rina olhou para a mulher.

— Por favor — suplicou. — Creio que vou enlouquecer. Onde me encontro?

— Em Zurique, claro, na casa de Philippe.

— Em Zurique? — perguntou Rina. — Philippe? — Fitou-a com mais interesse. — Philippe era o que aqui esteve?

— Mais non, claro que não. Esse é Karl, o meu marido. Não te recordas?

Rina abanou a cabeça:

— Não me recordo de nada.

— Encontrámo-nos nas corridas, há três semanas em Paris — disse a mulher. — Você estava sozinha no camarote ao lado do de Philippe. O seu amigo não tinha podido vir, recorda-se?

Rina fechou os olhos. Principiava a recordar-se. Tinha apostado no ruão e o homem do camarote vizinho debruçara-se:

— Foi uma escolha muito inteligente — dissera. — Aquele cavalo é meu. Eu sou o conde de Chaen.

— O conde do camarote vizinho! — exclamou Rina.    

A mulher fez um gesto de assentimento e sorriu de novo.

— Você lembra-se — disse ela com um tom de satisfação. — A festa começou em Paris mas estava demasiado calor e viemos de carro para o chalé de Philippe. Isso foi há quase duas semanas.

— Duas semanas?

A outra esboçou um gesto afirmativo.

— Foi uma festa maravilhosa — afirmou. Sentou-se na cama ao lado de Rina. — Você é uma rapariga muito bela.

Rina contemplou-a, muda. A porta voltou a abrir-se e Karl entrou com uma embalagem de aspirina numa das mãos e a garrafa de champanhe na outra. Um homem louro e alto vestindo roupão de seda seguia-o. Atirou umas fotografias para cima da cama.

— Que tal as achas, Rina?

Ela olhou para as fotografias. Um sentimento de angústia principiou a apertar-lhe a garganta. Aquilo não podia ser ela. Não naquelas posições. Nua. Com a outra mulher e com aqueles homens. Ergueu para eles um olhar de desespero.  

O conde sorria.

— Devia ter feito melhor — disse em tom de desculpa. — Mas creio que os flashes não estavam bem sincronizados.

A mulher pegou nos retratos.

— Acho-os muito bem, Philippe. — Riu.— Que piada: fazer amor com a maquineta na mão para poder tirar os retratos.

Rina continuava calada. Karl debruçou-se sobre ela.

— A nossa américaine continua doente — observou com gentileza. Apresentou-lhe duas aspirinas. — Vá, tome isto. Sentir-se-á melhor.

Rina ergueu os olhos para o trio.

— Gostaria que me deixassem vestir — pediu numa voz débil.

A mulher assentiu com um gesto breve.

— Mas decerto — disse. — As suas roupas estão no ar­mário.

Os três saíram do quarto.

Rina saltou da cama e lavou a cara. Apeteceu-lhe tomar um banho mas decidiu não o fazer. Tinha demasiada pressa de partir. Vestiu-se e passou para o quarto vizinho.

A mulher continuava de penteador mas os homens vestiam camisas abertas e calças de flanela. Dispôs-se a sair sem mesmo olhar para eles.

— Mistress Cord — chamou o homem que se chamava Karl. — Esqueceu-se da sua bolsa.

Silenciosamente ela voltou-se para pegar na mala, evitando encontrar o olhar do homem.

— Meti lá dentro uma colecção de fotografias como recor­dação da nossa festa.                        

Rina abriu a carteira. As fotografias ali estavam em toda a sua obscenidade.

— Não as quero — disse, fazendo menção de entregar-lhas.

Ele esboçou um gesto de recusa:  

— Guarde-as. Podemos sempre tirar mais cópias dos nega­tivos.

Rina ergueu lentamente os olhos. O sujeito sorria.  

— Talvez lhe apeteça uma chávena de café enquanto fala­mos de negócios? — perguntou com delicadeza.

Os negativos custaram-lhe dez mil dólares e ela queimou-os numa bandeja antes de sair da casa. Enviou o telegrama a Ne­vada mal chegou ao hotel:

 

           ESTOU SOZINHA E MAIS

           ASSUSTADA QUE NUNCA.

           CONTINUAS MEU AMIGO?

 

A resposta dele chegou no dia seguinte com uma ordem de crédito de cinco mil dólares e passagem reservada de Zurique para a Califórnia.

Rina amarfanhou o telegrama entre os dedos enquanto o lia e o carro subia a colina. O telegrama era bem típico do Nevada de que se lembrava. Mas não se parecia nada com o Nevada que estava prestes a encontrar.

           CONTINUO TEU AMIGO

E vinha assinado: Nevada.

 

 

Nevada reclinou-se na poltrona e percorreu com os olhos o grande gabinete. Uma atmosfera de tensão introduzira-se no aposento. A face de Dan Pierce mostrava-se branda e sor­ridente.

— Desta vez não se trata de dinheiro, Bernie — disse ele. — É só por sentirmos ser o momento oportuno. Façamos um filme sobre o Oeste e deixemos toda essa tralha que andamos a filmar há anos.

Norman baixou os olhos para a secretária ao mesmo tempo que tamborilava os dedos sobre a capa de cartolina azul do guião. Assumiu uma expressão matreira.

— Não se trata do argumento, Dan — declarou ele vol­tando-se para Von Elster à procura de apoio. — Achamo-lo grandioso, não é verdade?

O esgrouviado e calvo director confirmou:

— Um dos melhores que já li.

— Então porque hesitam? — perguntou o agente.

Norman abanou a cabeça:

— Não é oportuno. A indústria está a atravessar uma crise. A Warner vai lançar em breve um filme falado. Luzes de Nova Iorque. Muitos pensam que quando os filmes falados aparecerem os mudos estão arrumados.

Dan Pierce riu:

— Baboseiras! O cinema é o cinema. Quem quer ouvir os actores falar vai ao teatro que é onde domina a palavra.

Norman voltou-se para Nevada, com um tom paternal na voz:

— Escute, Nevada, alguma vez o ludibriámos? Desde que você veio trabalhar connosco temo-lo tratado com lisura. Se é uma questão de dinheiro não há problema. Basta dizer quanto é.

Nevada sorriu-lhe:

— Não se trata de dinheiro, Bernie. Bem sabes. Dez mil por semana basta para qualquer homem, mesmo com os im­postos a levarem sete por cento. É o argumento. É a primeira história autêntica que li desde que estou no cinema.

Norman estendeu a mão para um charuto. Nevada recli­nou-se na cadeira. Recordava-se da primeira vez que o argu­mento lhe caíra nas mãos. Fora no ano anterior, quando fil­mava Gunfire at Sundown.

Um dos argumentistas, um jovem de óculos e muito pálido, aproximara-se dele.

— Mr. Smith — pedira com deferência. — Permite-me que lhe roube um minuto?

Nevada encarou-o:

— Sim, certamente... — Hesitou.

— Mark Weiss — apresentou-se rapidamente o escritor.

Nevada sorriu:                              

— Claro, Mark, em que lhe posso ser útil?

— Tenho um argumento e gostaria que o senhor o lesse. Passei dois anos a efectuar investigações. É a história de um dos últimos pistoleiros do Sudoeste. Creio que é diferente de qual­quer coisa até agora feita.

— Terei muito gosto em lê-lo. — Ali estava um dos incon­venientes de ser estrela. Todos tinham um argumento para ser lido e todos julgavam que o argumento era o melhor até então produzido. — Como se chama?

— O Renegado. — Apresentou uma pasta de cartolina azul.

A pasta era compacta. Nevada abriu-a na última página e olhou para o escritor com ar de dúvida. O guião era três vezes mais volumoso que o habitual.

— Bastante extenso, não acha?

Weiss concordou com um gesto:

— É extenso mas não encontrei forma de reduzi-lo. Tudo o que aí está é verdade. Passei os últimos dois anos consultando velhos arquivos jornalísticos no Sudoeste.

Nevada voltou-se de novo para o homem que estava a pre­pará-lo para a cena e perguntou por cima do ombro:

— E que lhe sucedeu?

— Parece que ninguém sabe. Um dia desapareceu e mais ninguém ouviu falar dele. Perseguiram-no e crê-se que morreu nas montanhas.

— Uma nova história vale sempre a pena — disse Nevada. — As pessoas começam a cansar-se dos mesmos velhos heróis. Que nome dá à sua personagem?

A voz do escritor pareceu suspensa no ar.

— Sand — disse. — Max Sand.

A pasta fugiu dos dedos de Nevada. Sentiu o sangue aban­donar-lhe o rosto.

— Que disse? — perguntou em voz cava.

Weiss olhou para ele, um tanto sério.

— Max Sand. Podemos mudá-lo mas esse é o verdadeiro nome.

Nevada abanou a cabeça e baixou o olhar para a pasta que jazia no chão. Weiss debruçou-se rapidamente e apa­nhou-a.

— Está bem, Mr. Smith? — perguntou com voz apre­ensiva.

Nevada respirou fundo. Sentia que voltava a dominar-se. Pegou no original que lhe apresentavam e procurou sorrir.

O rosto de Weiss manifestou uma expressão de alívio:

— Obrigado, Mr. Smith — disse com gratidão. — Fico-lhe realmente muito obrigado.

Durante uma semana Nevada não conseguiu ânimo para ler a história. De certo modo sentia que se o fizesse estaria a arris­car-se. Até que, uma noite, entrou na biblioteca onde Von Elster o esperava e encontrou-o profundamente embrenhado na leitura do argumento.

— Há quanto tempo tem isto em seu poder? — perguntou o director.

Nevada encolheu os ombros:

— Há coisa de uma semana. Sabe como é. Esses escritores estão sempre a aparecer-nos com argumentos. Esse vale alguma coisa?

Von Elster pousou lentamente a pasta.

— É melhor que bom. É excelente. Quero dirigi-lo se você o interpretar.

Tarde nessa noite, com o candeeiro de cabeceira ainda aceso. Nevada compreendeu o que o director queria dizer. Weiss imprimira profundidade e intenção ao retrato de um homem que vivia solitário e desenvolvera uma filosofia nascida da dor e da tristeza. Não havia beleza nos seus crimes que eram apenas produto de uma luta desesperada pela sobrevivência.

À medida que lia, Nevada ia compreendendo que aquele filme tinha de ser feito. O argumento era demasiado bom para ser desperdiçado. Para sua própria protecção devia ser ele a desempenhar o papel. Se caísse nas mãos de outro, ninguém poderia saber até que ponto iriam aprofundar a vida de Max Sand.

No dia seguinte comprou o argumento a Weiss por mil dólares.

Bernie Norman regressou subitamente à realidade.

— Deixemos a coisa esperar um ano — dizia ele. — Nessa altura saberemos com que contar.

Dan Pierce olhou-o de soslaio. Nevada conhecia aquele olhar. Significava que Pierce sentia ter ido tão longe quanto possível.

— Chaplin e a Pickford tiveram uma boa ideia quando formaram a United Artists — disse Nevada. — Penso que é a única maneira de um artista poder fazer os filmes que deseja.

Os olhos de Norman acusaram uma mudança subtil.

— Não tiveram um ano de sorte — afirmou. — Perderam dinheiro.                              

— Talvez — disse Nevada. — Somente o tempo o dirá. É uma companhia ainda recente.

Norman fitou Pierce um momento e em seguida voltou-se para Nevada:

— Muito bem. Farei uma combinação com vocês. Pomos meio milhão de dólares na película e vocês garantem o que exceder essa quantia.

— É um milhão e meio mais! — respondeu Pierce. — Onde é que o Nevada vai buscar esse dinheiro todo?

Norman sorriu:

— Ao mesmo lugar que nós. Ao banco. Não terá dificuldades. Eu trato disso. Vocês serão os donos do filme. Tudo quanto que­remos é a percentagem de distribuição e recuperar o nosso dinheiro. É uma proposta melhor que qualquer que a United Artists pode fazer. Isto para lhe mostrar até que ponto o que­remos ajudar, Nevada. É justo?

Nevada não tinha ilusões. Se o filme não resultasse, seria o seu nome que se encontraria nas letras do banco e não o de Nor­man. Teria perdido tudo quanto possuía e ainda mais. Baixou os olhos para o argumento na sua capa de cartolina azul. Uma resolução principiou a formar-se dentro dele.

O pai de Jonas dissera-lhe de certa vez que não havia qual­quer prazer em perder ou ganhar quando o dinheiro não era nosso e que ninguém enriquecia jogando a feijões. Esse filme não podia falhar. Sabia-o. Sentia-o dentro de si.

Tornou a olhar para Norman.

— Muito bem, Bernie — disse. — Está combinado.

Quando saíram para a luz do dia que começava já a extin­guir-se, em frente do escritório de Norman, Nevada olhou para o seu agente. O rosto de Pierce estava tenso.

— É melhor você vir ao meu escritório — murmurou. — Temos muito de que falar.

— Isso pode esperar para amanhã — retorquiu Nevada. — Tenho à minha espera em casa alguém que veio do Leste.

— Você está a tentar engolir um bocado demasiado grande — disse o agente.

Encaminharam-se para os respectivos carros.

— Acho que chegou a altura — declarou Nevada confidencialmente. — A única maneira de ganhar muito dinheiro é arris­cando muito dinheiro.

— Também se pode perder muito por esse processo — disse Pierce com ar sombrio.

Nevada parou diante do seu Stutz Bearcat. Pousou a mão afectuosamente sobre a porta como fazia quando lidava com cavalos:

— Não perderemos.

O agente lançou-lhe uma olhadela:

— Espero que você saiba o que está a fazer. Não me agradou ver o Norman ceder tão depressa e prometer-nos todos os lucros. Há marosca em qualquer ponto.

— O mal consigo, Dan — Nevada sorriu—, é que você é um agente. Todos os agentes são desconfiados. Bernie cedeu porque tinha de ceder. Não queria arriscar-se a perder-me. — Abriu a porta e entrou no carro: — Amanhã estarei no seu escritório, às dez da manhã.

— Muito bem — concordou o agente. Encaminhou-se para o seu carro, depois deteve-se e voltou atrás. — Essa história dos filmes falados aborrece-me. Duas outras companhias já anun­ciaram que iam fazer fitas sonoras.

— Deixa-os fazer — disse Nevada. — O problema é deles. — Ligou o motor que principiou a rugir surdamente. — É uma novidade passageira — gritou para o agente. — Quando o nosso filme sair já o público se esqueceu das fitas faladas.

O telefone em cima da mesinha-de-cabeceira tocou suave­mente. Rina aproximou-se para atender. Era um desses telefones franceses, o primeiro que via desde que regressara da Europa. A insígnia, agora familiar, salientava-se no centro do marcador onde de um modo geral se encontra impresso o número.

— Sim?!

A voz familiar de Nevada penetrou-lhe no ouvido:

— Como vai isso, compincha? Já te instalaste?

— Nevada! — exclamou ela.

— Tens outros amigos?

Ela riu:

— Estive a desfazer as malas. E estou pasmada.

— De quê?

— De tudo. Do lugar. É fabuloso. Nunca vi coisa assim.

A voz dele murmurava-lhe calmamente ao ouvido:

— Não é nada de especial. Uma reles propriedadezita, mas considero-a o meu lar.

— Oh, Nevada — riu ela outra vez. — Ainda me custa a crer. Porque construíste uma casa tão fantástica? Não parece nada do teu género.

— Faz parte da representação, Rina — disse ele. — Como o grande chapéu branco, as camisas de fantasia e as botas de cor. Uma pessoa sem isso não é realmente uma estrela.

— Com um esse-traço-esse gravado em tudo? — perguntou ela.

— Com um esse-traço-esse gravado em tudo, sim — repetiu Nevada. — Mas não te deixes impressionar por isso. Há coisas ainda mais loucas em Hollywood.

— Tenho tanto para te dizer — desabafou ela. — A que horas chegas a casa?

— A casa? — Nevada riu. — Estou em casa. Encontro-me no bar à tua espera.

— Oh! Estarei lá dentro de um minuto. — Depois hesitou: — Mas, Nevada, como hei-de encontrar o bar? É um lugar tão grande.

— Temos guias índios para ocasiões como esta — explicou-lhe. — Enviarei um aí acima.

Rina pousou o auscultador e encaminhou-se para o espelho. Quando acabava de aplicar o bâton nos lábios soou uma leve pancadinha na porta.

Ela atravessou o quarto e abriu-a. Nevada ali estava, sor­rindo.

— Desculpe, minha senhora — disse com simulada ceri­mónia —, mas procurei por toda a propriedade e, acredite ou não, sou o único índio que existe por cá!  

— Oh, Nevada! — exclamou ela docemente.

E de súbito encontrou-se nos braços dele, o rosto afundado nos músculos fortes do seu peito, as lágrimas a empaparem-lhe o peitilho branco da camisa de rendas.

 

               JONAS - 1930

As luzes de Los Angeles apareceram sob a asa direita. Olhei para Buzz sentado a meu lado na cabina do comando:

— Estamos quase em casa.

O seu rosto chato contraiu-se num sorriso. Olhou para o relógio:

— Penso que conseguimos também um novo récord.

— Que se lixe o récord — gritei. — Tudo o que quero é o contrato da mala.

O outro assentiu com um movimento da cabeça:

— Havemos de consegui-lo. — Debruçou-se e deu uma palmadinha no painel. — Este menino prestou-nos esse favor.  

Descrevi um grande arco sobre a cidade apontando para Burbank. Se conseguíssemos o contrato da mala de Chicago para Los Angeles não tardaria muito que a Intercontinental cobrisse todo o país. A próxima etapa era de Chicago para Nova Iorque.

— Li nos jornais que o Ford está a fabricar um trimotor com capacidade para trinta e dois passageiros — disse Buzz.

— E quando estará pronto?

— Dentro de dois ou três anos — respondeu. — É a próxima etapa.

— Sim — admiti. — Mas não nos podemos permitir esperar pelo Ford. É capaz de levar uns cinco anos antes deles produzirem qualquer coisa prática. Temos de estar prontos em dois anos.

Buzz olhou-me com modos esgazeados:

— Dois anos? Como vais conseguir isso? É impossível.

Olhei-o de soslaio:

— Quantos aviões-correios temos agora em serviço?

— Uns trinta e quatro — disse ele.

— E se obtivermos o novo contrato?

— Dobramos ou talvez triplicamos esse número — escla­receu. Olhou-me penetrantemente: — Em que pensas?

— Os fabricantes desses aparelhos estão a ganhar mais com os nossos contratos do correio que nós — disse eu.

— Se pensas construir os nossos próprios aparelhos estás lucas! — gritou Buzz. — Só para montar a fábrica iam-se dois anos.

— Não, se comprássemos uma fábrica já em funcionamento — respondi.

Ele reflectiu um momento.

— A Lockheed, a Martin, a Curtiss-Wright, estão todas demasiado ocupadas. Não vendem. A única possível é a Winthrop. Estão a perder dinheiro desde que lhes falhou aquele con­trato do Exército.

Sorri-lhe:            

— Estás a raciocinar com acerto, Buzz.

Ele fitou-me na luz difusa da cabina:

— Oh, não. Trabalhei com o velho Winthrop. Ele jurou que nunca...

Sobrevoávamos agora o aeroporto de Burbank. Descrevi um grande círculo e dirigi o aparelho para o fim do campo onde ficava a fábrica Winthrop. Efectuei uma viragem de forma a que Buzz pudesse ver do seu lado.

— Olha lá para baixo — gritei-lhe.

As letras gigantescas pintadas no telhado alcatroado viam-se do céu, iluminadas por dois holofotes:

 

                 CORD AIRCRAFT, INC.

 

Os repórteres rodearam-nos assim que descemos. Os flashes não cessavam de ferir-me os olhos e fui forçado a piscá-los.

— Está cansado, Mr. Cord? — uivou um deles.

Esfreguei o queixo barbudo e fiz uma careta.

— Fresco como uma margarida — disse. Uma pedra da pista feriu-me um pé. Voltei-me para o aparelho e gritei a Buzz: — Eh, atira-me os sapatos, sim?

Ele riu, atirou-mos, e os repórteres precipitaram-se para tirar-me fotografias enquanto me calçava.

Buzz veio colocar-se ao meu lado. Fizeram mais algumas fotografias e principiámos a caminhar para o hangar.

— Que tal lhe sabe estar de regresso a casa? — uivou outro dos repórteres.

— Bem.

— Muito bem — reforçou Buzz.

E era verdade. Cinco dias antes tínhamos partido de Le Bourget, em Paris. Newfoundland, Nova Iorque, Chicago, Los Angeles — cinco dias.

Um jornalista aproximou-se a correr agitando uma folha de papel.                                                      

— Acaba de bater o record de Chicago-Los Angeles! — disse ele. — Isso significa que bateu cinco récords neste voo.

— Um por dia — sorri. — Não há de que me queixar.

— Isso quer dizer que obteve o contrato do correio? — inter­rogou um repórter.

Por detrás deles, à entrada do hangar, avistei McAllister acenando freneticamente.

— Isso é o aspecto negócio — disse eu. — Deixo-o para o meu colega Buzz. Ele vos informará, cavalheiros.

Afastei-me deles rapidamente, deixando-os em torno de Buzz, e aproximei-me de McAllister. No rosto deste havia uma expressão apreensiva:

— Pensei que não chegasse a tempo.

— Eu disse que chegava às nove.

Pegou-me no braço.

— Tenho um carro à espera. Vamos daqui direitos ao banco. Disse-lhes que o levava lá.

— Espere aí — exclamei sacudindo o braço. — Disse a quem?

— Ao grupo que concordou em aceitar o seu preço para sublocar o alvará do carburador de injecção de alta-velocidade.

Até veio com eles o Du Pont. — Tornou a pegar-me no braço tentando arrastar-me para o carro.

Sacudi outra vez a mão.

— Espere lá — disse. — Há mais de cinco dias que não vejo uma cama e estou estoirado. Falo-lhes amanhã.

— Amanhã! — uivou o advogado. — Mas eles esperam-no agora!

— Que se lixem — protestei. — Deixe-os esperar.

— Mas eles estão a dar-lhe dez milhões de dólares!

— Eles não estão a dar-me nada — emendei. — Eles ti­veram a mesma oportunidade de comprar a patente que nós. Estiveram todos na Europa nesse ano mas mostraram-se muito agarrados. Agora, que precisam dela, podem esperar até amanhã.

Entrei no carro:

— Para o Beverly Hills Hotel.

McAllister saltou para o meu lado. Parecia aterrado.

— Amanhã? — exclamou ele. — Não esperam até lá.

O motorista pôs o carro em andamento. Olhei para McAllis­ter e sorri. Comecei a sentir certa pena dele. Sabia que não for a fácil o que ele conseguira.                

— Ouça — disse-lhe com bondade. — Deixe-me dormir seis horas e depois procuro-os.

— Isso quer dizer às três da manhã! — exclamou ele.

Fiz que sim:

— Traga-os ao meu quarto no hotel. Estarei então pronto para recebê-los.

Monica Winthrop esperava-me na sala do apartamento. Ergueu-se do sofá e pousou o cigarro quando entrei. Correu a beijar-me:

— Oh, que barba! — protestou ela, simulando surpresa.

— Que fazes aqui? — perguntei. — Pensava encontrar-te no aeroporto.

— Gostaria de ter ido mas receei que meu pai aparecesse — disse ela vivamente.

Tinha razão. Amos Winthrop era demasiado diabólico para não reconhecer os sintomas. O mal estava em que não sabia dividir o seu tempo.

Deixava que as mulheres interferissem com o seu trabalho e que o trabalho interferisse com as suas mulheres. Mas Mónica era a sua única filha e ele, como todos os devassos, considerava-a qualquer coisa de especial. O que era verdade. Mas não no sentido que ele pensava.

— Prepara-me uma bebida — pedi eu, encaminhando-me para o quarto de cama. — Vou tomar um banho quente. Cheiro tão mal que até me dá náuseas.

Ela pegou num misturador com whisky e gelo e seguiu-me até ao quarto.

— Tenho a tua bebida pronta. E a banheira está cheia.

Peguei na bebida:

— Como soubeste que eu chegava?

Mónica voltou a sorrir:

— Ouvi pela rádio.

Estava a sorver a bebida quando ela se aproximou de mim:

— Por minha causa não precisas de tomar banho. Esse cheiro é excitante.

Pousei a bebida e entrei na casa de banho, tirando a camisa. Ao voltar-me para fechar a porta, ela estava mesmo atrás de mim.

— Não te metas ainda na banheira — pediu. — É uma pena perder-se todo esse odor viril.

Envolveu-me o pescoço com os braços e colou o corpo ao meu. Procurei-lhe os lábios mas ela voltou o rosto enterrando-o no meu ombro. Senti-a aspirar profundamente, a tremer. Gemia e do seu corpo desprendia-se mais calor do que da boca de um forno.

Ergui-lhe o rosto pelo queixo. Os olhos estavam quase cer­rados. Continuava a gemer e o corpo era sacudido por contor­ções. Soltei o cinto e as calças caíram no chão. Afastei-as com um pontapé e encostei-a à mesa do toucador enquanto ela se pendurava em mim como um macaco a trepar um coqueiro.

— Respira devagar, jóia — disse-lhe quando ela se pôs a soltar gritinhos torturados e roucos. — É possível que não tornes a apanhar um cheirinho destes nos anos mais próximos.

A água estava quente e suave e o cansaço começava a abandonar-me à medida que ia mergulhando no banho. Tentei alcançar as costas para ensaboá-las mas não consegui. Nunca o conseguia.

— Deixa-me fazer isso — pediu ela.

Ergui os olhos para Mónica quando ela se apoderou da esponja e principiou a esfregar-me as costas. O movimento lento e circular era calmante e inclinei-me para a frente fechando os olhos.

— Não pares — pedi. — Está a saber-me bem.

— És um bebézinho. Precisas que tomem conta de ti.

Abri os olhos e ergui-os para ela.

— Tenho estado também a pensar nisso — declarei. — Acho que vou contratar um criado japonês.

— Um criado japonês não te fazia isto — disse ela. Senti-a dar-me uma palmadinha no ombro. — Deita-te. Quero tirar-te o sabão.

Deitei-me de costas na banheira, com os olhos de novo fe­chados. Ela passou a esponja no meu peito e depois no ventre. Abri os olhos e vi que ela me fitava.

Conhecia aquele olhar. Soergui-me e passando o braço em torno do pescoço dela puxei-a para a beira da banheira. Senti a mão de Mónica descer e cobrir-me com a esponja enquanto nos beijávamos.

Nesse momento o telefone tocou. Voltámo-nos brusca­mente, sobressaltados, e a água saltou molhando-lhe a frente do vestido. Mónica retirou o telefone da mesa do toucador e esten­deu-mo, em silêncio.

Era McAllister. Estava no vestíbulo.

— Disse às três horas — gritei.

— São três horas — respondeu ele. — Podemos subir? O Winthrop está também connosco. Diz que precisa falar-te.

Olhei para Mónica. Só faltava aquilo. O pai subir e encon­trá-la no meu quarto.                  

— Não — respondi vivamente. — Estou ainda no banho. Leva-os ao bar e oferece-lhes uma bebida.                

— Os bares estão fechados.

— Muito bem, então vou ter com vocês ao vestíbulo.

— O vestíbulo não é lugar para tratar de negócios. Não há isolamento. Eles não vão gostar nada da ideia. Não compreendo porque não podemos ir aí.

— Porque tenho uma rapariga no quarto.

— E depois? — exclamou ele. — Somos todos gente de vistas largas. — Soltou uma risadinha.

— A rapariga chama-se Mónica Winthrop.

Fez-se silêncio no outro telefone. Depois ouvi o suspiro apreensivo de McAllister.

— Cristo! — exclamou. — O seu pai tinha razão. Você nunca pára, pois não?

— Tenho tempo de parar quando chegar à sua idade.

— Não sei — disse ele preocupado. — Eles não apreciarão a ideia de uma reunião no vestíbulo.

— Se é isolamento que eles querem, conheço o lugar conve­niente.

— Onde?

— Nos lavabos para homens, junto dos elevadores. Encon­trar-me-ei com vocês aí, dentro de cinco minutos. Há lá bastante isolamento!

Pousei o telefone e levantei-me. Olhei para Mónica:

— Passa-me uma toalha — pedi. — Tenho de descer para falar com teu pai.

Entrei nos lavabos esfregando o queixo. Trazia ainda a barba de cinco dias, pois não tivera tempo para barbear-me. Fiz uma careta quando os vi, absortos nos seus papéis, sem mesmo erguerem os olhos quando entrei.

— A sessão está aberta, cavalheiros — anunciei.

Eles olharam-me por cima dos ombros, com uma expressão sobressaltada nos rostos. Ouvi um deles murmurar uma débil praga e tentei adivinhar que pequena tragédia íntima o levara a praguejar.

McAllister aproximou-se de mim.

— Devo dizer, Jonas — declarou em tom pomposo —, que escolheste um lugar muito estranho para a reunião.    

Voltei-me para ele. Sabia que falava para os outros e por isso não me zanguei. Olhei-lhe para as calças.            

— Eh, Mac. Aperta a braguilha antes de falares — acon­selhei.                                                     

O advogado corou e a mão dirigiu-se instintivamente, para a frente das calças. Ri-me e voltei-me então para os outros.

— Lastimo muito forçá-los a vir aqui — disse. — Mas no meu quarto há um pequeno problema de espaço. Tenho lá uma grande caixa que ocupa quase todo o aposento.

O único que percebeu foi Amos Winthrop. Surpreendi-lhe uma careta de compreensão. Gostaria de saber qual teria sido a expressão se ele soubesse que se tratava de Mónica.

Entretanto Mac recobrara a presença de espírito e moveu-se para tomar o comando das operações. Houve apresentações e passámos logo a tratar de negócios.

Conforme Mac me explicou, as três grandes sociedades químicas tinham constituído uma com­panhia para arrendar o meu alvará. Era esta companhia que ia efectuar o primeiro pagamento e garantir as prestações.

Só quis fazer uma pergunta:

— Quem garante o dinheiro?

Mac indicou um dos homens:

— Aqui o Sheffield é um dos sócios de George Stewart, Inc.

Observei Sheffield. Stewart, Morgan, Lehman, eram todos nomes conceituados na Wall Street. Financeiramente não se encontrava melhor. Havia qualquer coisa na cara do homem que me parecia familiar. Procurei recordar-me. E lembrei-me: F. Martin Sheffield. Nova Iorque, Boston, Southampton, Palm Beach. Escola Comercial de Harvard, summa cum laude, antes da guerra. Major do Exército dos Estados Unidos, 1917-18. Três condecorações por bravura debaixo do fogo. Jogador de pólo. Homem de sociedade. Idade actual: pela aparência, uns trinta e cinco anos; no registo civil, quarenta e dois.

Recordava-me de ele ter vindo visitar meu pai, há coisa de uns dez anos, para convencê-lo a fundar uma companhia por acções. Meu pai recusara.

— Por melhor que eles façam parecer as coisas. Júnior — dissera meu pai —, nunca os deixes lançarem-te o anzol. Porque então são eles que passam a comandar o negócio e não tu. Tudo quanto te podem dar é dinheiro mas o que conta é o poder. E este conservam-no eles sempre.

Fitei Sheffield:

— Como tencionam garantir os pagamentos?

Os seus olhos escuros e perspicazes brilharam por detrás das lunetas.

— Entramos no Contrato com os outros, Mr. Cord — afir­mou.                                                  

A sua voz era surpreendentemente profunda para um homem tão magro. E muito segura de si. Como se não se dignasse responder à minha pergunta, como se toda a gente soubesse que o nome de Stewart num contrato era garantia suficiente.

Talvez fosse mas havia nele qualquer coisa que me irritava extraordinariamente.

— Não respondeu à minha pergunta, Mr. Sheffield — insisti em tom cortês. — Perguntei-lhe como tencionava garantir os pagamentos. Não sou banqueiro nem um homem de Wall Street, não passo de um pobre rapazinho que teve de abandonar a Uni­versidade e meter-se a trabalhar porque lhe morreu o pai. Não percebo dessas coisas. Só sei que quando entro num banco e me pedem para garantir qualquer coisa, tenho de apresentar garantias reais, como por exemplo terras, hipotecas, apólices, coisas de valor, antes de me darem um cent. É isso que quero dizer.

Um sorriso frio apareceu-lhe nos lábios:

— Certamente, Mr. Cord, não quer dizer que todas essas companhias não valem a soma prometida?

Mantive o tom calmo:

— Não quis dizer nada disso, Mr. Sheffield. É só que homens com mais experiência do que eu, homens mais velhos e mais sabedores, me dizem constantemente que vivemos numa época muito insegura. Por todo o país os mercados vão-se abaixo e os bancos estão a falir. Ninguém pode prever o que se seguirá. Gostaria de saber como é que me vão pagar, e é tudo.

— O seu dinheiro será garantido com os lucros da nova companhia — afirmou Sheffield num ar de quem faz paciente­mente uma explicação.

— Estou a perceber — disse eu fazendo um gesto de cabeça. — Quer dizer que serei pago com o dinheiro que ganharão se eu conceder o alvará.

— Mais ou menos isso.

Retirei um cigarro do bolso e acendi-o.

— Continuo a não compreender — insisti. — Porque não podem pagar-me a pronto?

— Dez milhões de dólares é uma grande quantia em dinheiro mesmo para estas companhias — respondeu. — Têm grandes necessidades de capital. Por isso é que nós entramos na sociedade.

— Oh — exclamei, continuando a desempenhar o papel de tolo. — Quer dizer que vai adiantar o dinheiro?

— Não, não — respondeu ele prontamente. — Nada disso. Estamos apenas a subscrever as acções, a fornecer o capital inicial para possibilitar a formação da nova companhia. Só isso anda em muitos milhões.                  

— Incluindo os seus emolumentos de corretagem?

— Claro — afirmou ele. — É o costume.

— Claro.

Lançou-me uma olhadela astuta:

— Mr. Cord, faz objecções à nossa posição?

— De modo algum. — Encolhi os ombros. — Porque havia de objectar? Não me compete ensinar aos outros como devem gerir os seus negócios. Já me basta o trabalho que tenho com o meu.

— Mas parece ter algumas dúvidas sobre a nossa proposta?

— Tenho — afirmei. — Estava com a impressão de que ia receber dez milhões de dólares por esses direitos. Agora descubro que apenas me garantem dez milhões de dólares. Há uma diferença entre as duas coisas. Numa delas sou pago a pronto, na outra sou um associado acidental nos vossos negócios, sujeito aos mesmos riscos que os senhores mas com uma limitação posta às vantagens da sociedade.

— Opõe-se a esse arranjo?

— De modo nenhum. O que quero é saber o terreno que piso.

— Excelente. Então podemos descer e assinar os contratos — propôs Sheffield com um sorriso de alívio.

— Ainda não — objectei, e o sorriso dele desapareceu tão depressa como aparecera. — Estou disposto a ser um associado nas condições que sugeriu mas se vou correr riscos acho que me devem ser garantidos quinze milhões e não apenas dez.

Durante um momento estabeleceu-se um silêncio sufocado, depois desataram todos a falar ao mesmo tempo.

— Mas já tinha concordado em receber dez! — protestou Sheffield.

Fitei-o:

— Não, não tinha. Este é o nosso primeiro encontro.

Mac parecia prestes a explodir:

— Um minuto, Jonas. Você deixou-me a impressão de que estava disposto a ouvi-los se lhe pagassem dez milhões de dólares.

— Pois bem, ouvi-os.

Pela primeira vez vi perturbar-se a sua calma de advo­gado:

— Procedi de boa fé em seu nome. Não quero participar neste negócio manhoso. Se o negócio não se fizer nos termos convencionados, ponho-me de parte. Demito-me.

Fitei-o, impassível:      

— Faça como lhe aprouver.

Mac fervia:

— O seu mal é estar a tornar-se demasiado grande para as roupas que veste! Recordo-me de quando ainda mijava nos cueiros...

Foi a minha vez de ficar furioso; a minha voz ergueu-se fria e cortante como gelo:

— Pior ainda é você ser apenas um advogado e a proprie­dade que está a negociar ser a minha. Compete-me decidir o que hei-de fazer com ela: vendê-la, dá-la, ou seja lá o que me aprouver. É minha, pertence-me, e você trabalha para mim. Recorde-se disso!

O rosto de Mac ficou lívido. Quase conseguia ler a luta que lhe ia na mente. Os cem mil dólares anuais que eu lhe pa­gava. A participação nos lucros. A casa onde vivia. Os bons colégios que os filhos frequentavam. A sua posição social. Gos­taria de saber se nesse momento ele não estaria a lastimar os sessenta mil dólares anuais a que renunciara para se juntar à minha empresa.

Mas não conseguia chegar a ponto de lastimá-lo. Ele sabia o que fazia. Ele próprio redigira o contrato que o prendia a mim. Queria dinheiro, conseguira dinheiro. Era demasiado tarde para vir com lamentações.

Observei por instantes os outros. Tinham os olhos pre­gados em nós. Percebi então, lastimasse ou não o Mac, que me competia dar o primeiro passo.

— Vamos, deixe-se disso, Mac — pedi, dando um tom caloroso e amigável à voz. — Estamos demasiado ligados para permitir que uma tolice destas se meta de permeio. Esqueçamos a coisa. Hão-de aparecer outras ofertas. O que importa é assinar o novo contrato consigo para eu ficar descansado quanto à possibilidade de algum destes piratas querer roubar-me a sua colaboração.

Vi no rosto de Mac desenhar-se uma expressão de alívio:

— Claro, Jonas — disse. Hesitou. — Creio que estamos ambos demasiado fatigados. Eu com o negócio, você com o voo. Tenho a impressão de que afinal de contas não compreendi bem as suas instruções.

Voltou-se para os outros.

— Desculpem, cavalheiros — disse no seu tom brando, habitual. — A culpa foi minha. Não pretendi iludi-los mas compreendi mal o que Mr. Cord me disse. Peço desculpas.

Caiu no aposento um silêncio embaraçoso. Durante um momento ninguém falou e eu, sorrindo, encaminhei-me para o urinol:

— Isto é só para não ter vindo aqui em pura perda de tempo — declarei por cima do ombro.              

Foi Sheffield o primeiro a abrir o jogo. Ouvi-o a segredar vivamente com os outros. Quando me voltei ele fitou-me.

— Partamos a coisa a meio — propôs. — Doze milhões e meio.

Eles desejavam deveras o alvará para principiar a ceder com tanta facilidade. Comecei por abanar a cabeça mas de repente ocorreu-me uma ideia.

— Meu pai falou-me muito de si — expliquei. — Con­tou-me que o senhor era um autêntico desportista capaz de entrar em qualquer jogo.

Um meio sorriso encrespou-lhe os lábios finos:

— Em tempos tive fama de gostar de apostas — admitiu.

— Aposto dois milhões e meio de dólares em como do sítio onde está não é capaz de mijar para aquele urinol — disse eu apontando para o mictório que ficava a cerca de um metro e vinte distante dele. — Se o conseguir aceito o negócio por doze milhões e meio. Se não, são quinze milhões.        

Ficou de boca aberta, com os olhos a fuzilarem por detrás das lunetas.

— Mr. Cord — protestou.

— Pode tratar-me por Jonas. Lembre-se de que são dois milhões e meio de dólares.

Sheffield relanceou o olhar pelos outros. Procurou os olhos de Mac mas este evitou-o. Voltou-se lentamente para o urinol levando a mão à braguilha. Olhou para mim. Fiz um gesto de assentimento. Nada sucedeu. Absolutamente nada. Limitou-se a ficar ali, enquanto do pescoço subia uma onda rubra que lhe cobria a face. Passou um momento, até que o rosto de Sheffield ficou vermelho.

Quebrei o silêncio.

— Muito bem, Mr. Sheffield — proferi, impassível. — Cedo. Ganhou a aposta. O negócio faz-se por doze milhões e meio.

Ele fitou-me, tentando ler o que ia no meu espírito. Man­tive a minha face imperscrutável. Estendi-lhe a mão. Ele hesitou um momento e depois apertou-a.

— Posso tratá-lo por Martin? — perguntei.

Ele abanou a cabeça com um débil sorriso a nascer-lhe nos lábios sumidos:

— Com certeza.

Apertei-lhe a mão.

— Martin — disse solenemente —, tens a braguilha desa­pertada.

McAllister introduziu as necessárias alterações nos con­tratos e assinámo-los ali mesmo. Descemos para o vestíbulo já passava das quatro e meia. Quando me dirigia para o ele­vador, Amos Winthrop tocou-me no ombro. Não me apetecia falar-lhe.

— Isso não pode esperar para amanhã, Amos? — per­guntei. — Preciso de dormir.

O rosto de Winthrop quebrou-se num sorriso cúmplice. Bateu-me jovialmente no ombro:

— Sei o que queres dizer com isso de dormir, rapaz, mas o assunto é importante.

— Nada pode ser assim tão importante.

A porta do elevador abriu-se e eu entrei. Amos seguiu-me. O rapaz do elevador preparava-se para fechar as portas.

— Um momento — pedi.

As portas tornaram a abrir-se e saí.

— Muito bem, Amos. De que se trata? — perguntei.

Encaminhámo-nos para um sofá onde nos sentámos:

— Preciso de mais dez mil — disse ele.

Fitei-o. Não admirava que estivesse sempre arruinado. Gastava-o mais depressa do que a casa da moeda o imprimia.

— Que sucedeu ao dinheiro que recebeu pela venda das acções?

Uma expressão de embaraço tornou-lhe o rosto.

— Foi-se — declarou simplesmente. — Sabias que eu devia um dinheirão.

Sabia. Devia a todos. Depois de pagar aos credores e às ex-mulheres, dos cinquenta mil dólares pouco podia restar. Começava a lastimar tê-lo deixado entrar no contrato mas pensara que ele podia de certo modo ser útil à companhia. Outrora fora o melhor desenhador de aviões de todo o país.

— O seu contrato não prevê adiantamentos desses — observei.

— Bem sei — respondeu. — Mas isto é importante. Não voltará a suceder, prometo. É para a Mónica.              

— Mónica? — Olhei bem para ele. A coisa começava a ter graça. — Que se passa com ela? Amos abanou a cabeça:

— Quero mandá-la para Inglaterra, para junto da mãe. Não me entendo com ela. Já não posso ter mão na rapariga. Encontra-se às ocultas com um tipo qualquer e tenho a impres­são de que se já não dormiu com ele não tarda que o faça.

Continuei a fitá-lo com intensidade. Pensei se não se tra­taria de uma forma subtil de chantagem. Era possível que ele já soubesse e usasse este meio para mo dar a entender.

— Sabe quem é o tipo?

Amos sacudiu a cabeça.

— Se soubesse, matava-o — declarou com veemência. — Uma rapariguinha doce e inocente como ela!

Mantive o rosto impassível. O amor é cego mas os pais ainda são mais cegos. Até um trapaceiro como Amos, com todo o seu conhecimento da vida, não se mostrava mais esperto que Joe Doakes de Pomona.

— Falou com ela?

Winthrop tornou a abanar a cabeça:

— Tentei mas não me deu ouvidos. Você sabe como é hoje a gente nova. Aprendem tudo no colégio; não fica nada para lhes ensinarmos. Quando ela tinha dezasseis anos encon­trei-lhe um pacote de preservativos dentro da carteira.

Era nessa altura que ele devia ter procedido. Chegava atrasado três anos. Agora, que ela tinha dezanove, já se eman­cipara.

— Os tipos como você nunca aprendem.

— Que havia de fazer? — perguntou de modo truculento. — Fechá-la à chave num quarto? Sacudi a cabeça:

— Poderia ter tentado ser um pai para ela.

— De onde é que te vem essa experiência? — sibilou Amos. — Quando tiveres filhos já não falas assim.

Poderia ter-lhe contado que tivera um pai que andava demasiado ocupado com os negócios para olhar por mim. Mas sentia-me fatigado. Levantei-me,

— E o dinheiro? — perguntou ansiosamente.

— Tê-lo-á — prometi. Senti-me de súbito invadido por uma vaga de nojo. Para que precisava de ter tipos como este em volta de mim? Eram como sanguessugas. Uma vez agarra­dos a uma pessoa nunca mais a largam. — Para dizer tudo, decidi entregar-lhe vinte e cinco mil dólares.

Uma expressão de surpreendido alívio formou-se-lhe na face:

— Verdade, Jonas?  

Fiz um gesto de assentimento:

— Com uma condição.      

Nos seus olhos surgiu pela primeira vez uma centelha de desconfiança:

— Que queres dizer?

— Exijo que se demita.

— Da Winthrop Aircraft? — a voz ganhara um tom de incredulidade.

— Da Cord Aircraft — disse eu com ênfase.

A cor começou a fugir-lhe do rosto:

— Mas... mas eu fundei a companhia. Sei tudo a seu res­peito. Estava justamente a planear um novo aparelho que o Exército daria tudo para...

— Aceite o dinheiro. Amos — aconselhei friamente. — Precisa dele.

Encaminhei-me para o elevador, entrei e o rapaz fechou as portas na cara de Amos.

— Sobe, Mr. Cord? — perguntou.

Fitei-o. Era uma pergunta estúpida. Que estaria a fazer ali se não fosse subir?

— Até ao último — disse.

Mónica encontrava-se deitada na cama com um dos meus pijamas vestido e semiadormecida. Abriu os olhos e fitou-me:

— Correu tudo bem?

Esbocei um movimento afirmativo de cabeça e ela ficou a observar-me enquanto eu atirava com a camisa para cima de uma cadeira:

— Que queria meu pai?

Tirei as calças e apanhei as do pijama, que Mónica me atirou.

— Apresentou a sua demissão — disse eu, ao mesmo tempo que me livrava das cuecas com um pontapé e enfiava as calças do pijama.

A rapariga sentou-se na cama, com os olhos arregalados de surpresa:

— Verdade?

Fiz que sim.

— Porque seria?

— Diz que é por tua causa — respondi, olhando para ela. — Que quer dispor de mais tempo para se dedicar a ti.

Mónica fitou-me durante um momento e depois desatou a rir.

— Bem, que se lixe — disse. — Toda a minha vida desejei que ele se dedicasse a mim e agora, quando não preciso mais dele, é que lhe apetece brincar aos papás.

— Não precisas mais dele?

Ela confirmou, falando lentamente:

— Não, já não preciso. — Estendeu-se na cama e encostou a cabeça ao meu peito. A sua voz parecia a de uma criança a fazer uma confidência: — Desde que te tenho já não preciso. Tu és tudo para mim: pai, irmão, amante.

Afaguei-lhe com meiguice o cabelo castanho e sedoso. Subitamente fui invadido por um acesso de simpatia e com­preensão. Sabia como uma pessoa se pode sentir sozinha aos dezanove anos.

Ela tinha os olhos cerrados e havia em torno deles olheiras azuladas de cansaço. Comprimi os meus lábios contra a testa de Mónica.

— Vem deitar-te, garota — pedi com suavidade. — É quase dia.

No minuto seguinte estava a dormir, com a cabeça a des­cansar sobre o meu ombro, o pescoço na prega do meu braço. Durante muito tempo não consegui adormecer. Fiquei ali a contemplar-lhe o rosto tranquilo enquanto o sol subia e espa­lhava a sua luz pelo quarto.

Raios partissem Amos Winthrop! Raios partissem Jonas Cord! Amaldiçoei todos os homens demasiado ocupados para serem pais dos seus filhos.

O cansaço principiou a apoderar-de mim. Meio adorme­cido, senti-a mover-se e o calor do seu corpo longo e gracioso espalhou-se pelo meu flanco. Depois veio o sono. Essa noite negra e sem estrelas de um sono maravilhoso.

Casámos no dia seguinte numa igrejinha de Reno.

Vi a fosforescência cintilante mover-se na água e atirei a isca através da corrente, mesmo por cima da truta. O instinto des­pertou dentro de mim. Sabia que a apanhara. Estava tudo certo. A água, as sombras oscilantes das árvores da margem, e a cor verde-garrafa, azul e vermelha da isca na extremidade da linha. Um segundo mais e tê-la-ia içado. Imobilizei-me quando ouvi a voz de Mónica na outra margem:

— Jonas!

O grito dela provocou agitação e a truta mergulhou para o fundo da corrente. O anzol principiou a descair e antes de me voltar já sabia que a lua-de-mel tinha terminado.

— Que se passa? — bradei.

Ela estava ali nos seus calções, com os joelhos vermelhos e o nariz a pelar.

— Chamam-te ao telefone. De Los Angeles.

— Quem é?

— Não sei — respondeu. — É uma mulher. Não disse o nome.

Voltei a olhar para o riacho. Agora não havia cintila­ções na água. O peixe desaparecera. Era o fim da pescaria. Nesse dia não valia a pena tentar mais nada.

Encaminhei-me para a margem.

— Diz-lhe que espere — pedi. — Atendo dentro de um minuto.

Ela fez um sinal de assentimento e pôs-se a encaminhar para a vivenda. Comecei a enrolar a linha. Quem diabo me chamaria? Não havia muita gente que conhecesse a existência daquela vivenda no meio das montanhas.

Quando era modo costumava ir para ali com Nevada. Meu pai prometia sempre vir visitar-nos mas nunca cumprira.

Saí do riacho c chapinhei no caminho. Começavam já a ouvir-se os sons da noite próxima. No meio das árvores ele­vava-se o canto das cigarras.

Pousei o aparelho de pesca do lado de fora da vivenda e entrei. Mónica folheava uma revista, sentada numa cadeira porto do telefone. Peguei no auscultador:

— Estou!

— Mr. Cord?

— Sim.

— Um momento — pediu a telefonista. — Los Angeles, a pessoa pedida está ao telefone.

Ouvi um estalido e depois uma voz familiar:

— Jonas?

— Rina?

— Sim — disse ela. — Há três dias que tento contactar contigo. Ninguém queria dizer-me onde te encontravas até que me recordei da vivenda na montanha.

— Excelente — falei olhando por cima do telefone para Mónica. Tinha os olhos postos na revista mas eu sabia que estava à escuta.

— A propósito — disse Rina na sua voz rouca e contida. — Parabéns. Espero que sejas muito feliz. A tua noiva é uma jovem deveras interessante.

— Conhece-la?

— Não — respondeu Rina. — Vi os retratos nos jornais.

— Oh — exclamei. — Mas não foi por isso que telefonaste.

— Não, não foi — respondeu ela com a sua habitual fran­queza. — Preciso do teu auxílio.

— Se precisas de outros dez mil podes contar com eles.

— É muito mais que isso. Muito mais.

— Quanto?

— Dois milhões de dólares.

— Quê? — uivei. — Para que precisas tu de tanto dinheiro?

— Não é para mim — disse ela. Parecia muito preocupada. — É para o Nevada. Ele está numa aflição. Arrisca-se a perder tudo quanto tem,

— Mas eu pensava que ele ia de vento em popa. Os jornais dizem que ganha meio milhão por ano.

— Ganha — afirmou Rina —, mas...                          

— Mas o quê? — Tirei um cigarro e procurei um fósforo em volta. Sabia que Mónica me observava mas conservava o nariz sobre a revista. — Estou a ouvir — disse por fim, aspirando uma fumaça.

— Nevada empenhou tudo quanto tinha para fazer um filme. Tem trabalhado nele todo este ano mas agora as coisas correm mal e não querem distribuí-lo.

— Porquê? — perguntei. — Não presta?

— Não — interrompeu ela vivamente. — Não é isso. É mag­nífico. Mas agora só pegam as fitas faladas. Os cinemas não aceitam outras.

— Porque não fez ele a fita falada? — perguntei.

— Começou-a há mais de um ano. Ninguém esperava que o cinema sonoro pegasse como pegou — respondeu ela. — Agora o banco quer ser reembolsado e Norman não adianta mais massa. Diz que precisa de dinheiro para os seus próprios filmes.

— Percebo — murmurei.

— Tens de ajudá-lo, Jonas. É toda a vida dele que se encontra comprometida nessa fita. Se perder nunca mais se recompõe.

— Nevada nunca se importou muito com o dinheiro.

— Não é o dinheiro — afirmou ela. — É aquilo que ele sente em relação ao filme. Acredita nele. Finalmente conseguiu uma oportunidade de mostrar o que o Oeste foi na realidade.

— Ninguém dá um chavo para saber o que o Oeste de facto foi.

— Viste algum dos filmes dele? — perguntou.

— Não.      

Na voz feminina havia uma tonalidade de descrença:

— Não tiveste curiosidade de ver como ele era no cinema?

— Porque havia de ter? — perguntei. — Sei muito bem como ele é.

A voz de Rina tornou-se inexpressiva:

— Vais ajudá-lo?

— É muito dinheiro — repeti. — Porque havia de meter-me nisso?

— Recordo-me de quando desejaste muito uma certa coisa e a recebeste dele.

Percebi do que ela estava a falar. Das acções de Nevada da Companhia de Explosivos Cord.

— Não lhe custaram dois milhões de dólares — retorqui.

— Não? — exclamou ela. — E quanto valem agora?

Aquilo engasgou-me. Talvez ainda não valessem tanto mas dentro de cinco anos valeriam.

— Se ele está assim tão atrapalhado porque não me fala directamente? — perguntei.

— Nevada é orgulhoso. Tu sabe-lo.

— E porque estás tão interessada?

— Porque ele é meu amigo — respondeu Rina. — Quando precisei de ajuda ele não me fez perguntas.

— Não prometo nada — disse eu. — Mas sigo esta noite de avião para Los Angeles. Onde poderei encontrar-te?

— Estou em casa de Nevada — respondeu. — Mas é melhor encontrarmo-nos noutro lugar. Não quero que ele saiba que te chamei.

— Muito bem. Estarei no Beverly Hills Hotel cerca da meia-noite.

Pousei o auscultador.

— Quem era? — perguntou Mónica.

— A viúva de meu pai — respondi, enquanto passava diante dela a caminho do quarto de cama. — Faz as malas. Vou levar-te para o rancho. Tenho de ir esta noite a Los Angeles tratar de negócios.

— Mas só passaram cinco dias — protestou ela. — Tinhas prometido uma lua-de-mel de duas semanas.          

— Trata-se de uma emergência.

Ela seguiu-me ao quarto onde me sentei à beira da cama e tirei as botas de água.

— Que pensarão as pessoas se interrompermos a nossa lua-de-mel no fim de cinco dias? — disse ela.

Fitei-a:

— Que diabo me importa o que pensem?

Mónica principiou a chorar:

— Não vou — disse, batendo com o pé.

Levantei-me e dispus-me a sair do quarto.

— Então fica — respondi irado. — Vou lá abaixo buscar o carro. Se não estiveres pronta quando voltar parto sozinho.

Que raio se passa com as mulheres? Um tipo ajoelha-se com uma delas diante de um padreco qualquer durante cinco reles minutos e quando a palhaçada acabou está tudo voltado do avesso.

Antes de casarmos é maravilhoso. O homem é o rei. A mulher fica a seu lado com uma mão sobre a braguilha para nos dizer que nos deseja, enquanto com a outra mão nos acende o ci­garro, nos lava as costas, nos afaga o rosto e ajeita a almofada, tudo ao mesmo tempo.

Depois são as palavras sacramentais e um sujeito tem de mendigar tudo. Obedecer a leis. Afagá-las, acarinhá-las, ser gentil. Tem de ficar de cócoras, acender-lhes os cigarros, pegar--lhes na cauda e abrir-lhes as portas. E ainda é preciso agradecer-lhes quando elas concedem aquilo que antes de casar estavam constantemente a oferecer.

Estacionei o carro diante da vivenda e premi o klaxon. Mónica apareceu com uma maleta e ficou à espera que eu lhe abrisse a porta do carro. Decorrido um momento ela própria a abriu e entrou com ar ofendido. E manteve o mesmo ar durante as duas horas que levei a conduzi-la ao rancho.

Eram nove horas, travei em frente da casa. Como de costume, Robair encontrava-se à porta. A sua expressão não se alterou quando eu fiquei no carro depois de ele retirar a maleta de Mónica. O seu olhar passou sobre o meu rosto no instante em que se voltou para cumprimentar Mónica.

— Boa noite, Mistress Cord — disse… — O seu quarto está preparado para recebê-la.                

Robair olhou outra vez para mim e depois, voltando-se, principiou a subir os degraus.

Quando Mónica falou a sua voz estava tensa como a corda de uma guitarra:

— Quanto tempo te demoras?

Encolhi os ombros:

— O que for necessário para concluir o meu negócio. — De repente senti um acesso de ternura. Raios, afinal de con­tas éramos casados apenas há cinco dias: — Voltarei logo que me seja possível.

— Não tenhas pressa! — disse ela, e galgou os degraus entrando em casa sem se voltar uma única vez.

Praguejei, engatei o carro e tomei o caminho da fábrica. Guardava o velho Waco no campo vizinho. Estava ainda furioso ao entrar na carlinga e só principiei a sentir-me melhor quando me encontrei a mil metros de altitude, rumo a Los Angeles.

Ergui os olhos do argumento que tinha na mão e voltei-os para Rina. O tempo em nada a prejudicara. Continuava esbelta e forte e os seios erectos como rochedos protuberantes. A única alteração observava-se nos olhos. Havia neles uma firmeza que outrora faltava.

— Não sou muito para leituras — declarei.

— Calculei que dirias isso — retorquiu Rina. — Por isso providenciei no estúdio para que projectassem o filme. Estão neste momento à tua espera.

— Há quanto tempo estás aqui?

— Há cerca de ano e meio. Desde que regressei da Europa.

— Sempre em casa do Nevada?

Ela fez um gesto afirmativo.

— Dormes com ele?

— Sim. Ele é muito bondoso comigo.

— E tu és bondosa com ele? — perguntei.

Os seus olhos continuavam postos nos meus.

— Espero que sim — respondeu tranquilamente. — Mas isso não tem qualquer importância. Para ti tanto dá que eu durma com ele como não.

— Foi apenas curiosidade — declarei, levantando-me e deixando cair sobre a cadeira a pasta com o argumento. — Estava somente a tentar compreender o que te pode prender aqui.

— Não é o que pensas — atalhou Rina.

— Que é, então? — repliquei. — Dinheiro?

— Não — respondeu ela sacudindo a cabeça. — Nevada é um homem. Um verdadeiro homem. Nunca consegui entender-me com rapazes.

Atingira o alvo.

— Talvez eu com o tempo possa tomar-me num homem — observei.

— Casaste apenas há cinco dias.

Fitei-a um momento. Sentia reacender-se dentro de mim o velho desejo.

— Vamos — disse resolutamente. — Não disponho da noite toda.

Sentei-me na sala de projecção entre Rina e Von Elster, o director.

Rina não mentira. O filme era grande, mas apenas por um motivo: Nevada. Só ele dava coesão à película imprimin­do-lhe uma força interior comunicativa, que iluminava a tela.

Era a força que eu sempre sentira nele mas ali mostrava-se mais ampla, mais significativa, e ninguém podia deixar de sen­tir-lhe o impacto. Ele principiava como um garotinho de dezas­seis anos e desaparecia nos montes como um homem de vinte e cinco. Nem uma só vez, durante toda a película, dava a impres­são da sua verdadeira idade.

Recostei-me na cadeira com um suspiro quando as luzes se acenderam. Procurei um cigarro ainda sob a impressão do filme. Acendi-o e aspirei uma fumaça. A emoção penetrou-me nas entranhas. Faltava ali qualquer coisa, pareceu-me vaga­mente. Foi quando senti o calor invadir-me as coxas que percebi o que era.

Voltei-me para Von Elster:

— Além da pequena passagem com a pega de Nova Orleães e com a filha do presidiário na cidade dos vaqueiros não há mulheres no filme.

Von Elster sorriu:

— Há coisas que nunca entram num western. Uma delas são as mulheres.

— Porquê?

— Porque a indústria acha que deve preservar-se a ima­gem do homem puro e forte. O herói pode cometer todos os crimes menos esse.

Ri e levantei-me.

— Desculpe a pergunta — disse. — Mas porque não pode juntar vozes ao filme como fez com a música? Porque não fez as duas coisas?

— Oxalá fosse possível — respondeu Von Elster. — Mas a velocidade de projecção de um filme silencioso é diferente da do filme sonoro. O filme falado é projectado à velocidade da voz enquanto o filme mudo corre muito mais depressa, depen­dendo das legendas e da gesticulação mais viva para ilustrar a acção.

Esbocei um gesto de compreensão. Mecanicamente, o que ele dizia fazia sentido. Como em tudo o mais neste mundo, havia uma tecnologia para esta indústria e começava a interessar--me. Sem mecânica nada era possível.

— Vem comigo ao hotel. Gostaria de trocar algumas im­pressões mais sobre este assunto.

Surpreendi uma súbita centelha de prudência nos olhos de Rina. Olhou de soslaio para Von Elster e depois voltou-se para mim.

— São quase quatro horas — disse ela. — E acho que fomos tão longe quanto podíamos sem a intervenção de Nevada.

— Muito bem — assenti com indiferença. — Podes trazê-lo ao hotel às oito horas. Está bem?

— Está bem.

— Posso deixá-lo no seu hotel, Mr. Cord — propôs Von Elster cheio de boa vontade.

Lancei uma breve olhadela a Rina que me dirigiu um imper­ceptível sinal negativo com a cabeça.

— Obrigado — disse eu. — Rina deixa-me no caminho para casa.

Rina não falou até o carro parar diante do hotel:  

— Von Elster está comprometido — explicou-me. — Anda preocupado. Nunca fez um filme falado e quer fazer este. É uma grande película: se for exibida ele volta a adquirir prestígio.

— Queres dizer que ele está em dificuldades? — perguntei.

— Toda a gente em Hollywood está. Desde a Greta Garbo e o John Gilbert até aos de menos reputação. Ninguém sabe o que o cinema falado fará das suas carreiras. Ouvi dizer que a voz de John Gilbert é tão má que a Metro não o quer contratar para mais nenhuma película.

— E a voz de Nevada?

— É boa — disse ela. — Muito boa. Fizemos uma prova de som há dias.

— Bem, sempre é menos um motivo de preocupação.

— Vais ajudá-lo? — perguntou-me.      

— E que ganho eu se o fizer? — repliquei.

— Poderias ganhar muito dinheiro.

— Não preciso. Ganho muito dinheiro noutras coisas.

Os olhos dela voltaram-se para mim e a sua voz tornou-se fria:

— Ainda não mudaste, pois não?

Sacudi a cabeça:

— Não. Porque havia de mudar? Alguém muda? Tu mu­daste? — Segurei-lhe na mão. Parecia de gelo. — Que estás tu disposta a dar para safar o Nevada da encrenca?

Os olhos dela fitaram-me com toda a calma:

— Daria tudo para ajudá-lo.

Senti-me dominado pela tristeza. Pensei que poucas pes­soas diriam aquelas palavras por mim. E de momento não me ocorria nenhuma para lhe responder. Soltei-lhe a mão e saí do carro.

Ela debruçou-se para mim:

— Bem, Jonas, já te decidiste?

— Ainda não. Preciso de saber muitas coisas.

— Oh! — exclamou ela, recuando desapontada.

— Mas não te preocupes — tranquilizei-a. — Se o fizer serei o primeiro a vir receber a paga.

Ela fez sinal ao motorista que ligou o carro.

— Conhecendo-te — disse Rina calmamente — não podia esperar outra coisa de ti.

O automóvel afastou-se e eu voltei costas entrando em seguida no hotel. Subi para o meu quarto e aí abri a pasta com o argumento. Levei quase hora e meia para lê-lo todo. Eram seis horas quando fechei os olhos.

O telefone não cessou de tocar até que me acordou. Sacudi a cabeça para aclarar ideias e olhei para o relógio. Passavam poucos minutos das sete. Levantei o auscultador.

— Mr. Cord? Fala Von Elster. Desculpe incomodá-lo tão cedo mas estou no vestíbulo com Mr. Norman. É impor­tantíssimo que nos fale antes do seu encontro com Nevada.

— Quem é Norman? — perguntei, tentando ordenar as minhas ideias.

— Bernard B. Norman das Norman Pictures. É a compa­nhia que distribui o filme. Mr. Norman pensa que pode ser-lhe útil indicando o acordo que convém fazer com Nevada.

— Para que preciso eu de conselhos? — perguntei. — Conheço Nevada desde miúdo.

A voz tornou-se confidencial:

— Nevada é fixe, Mr. Cord. Mas o seu agente, Dan Pierce, é um sujeito muito matreiro. Mr. Norman deseja apenas dar--lhe algumas indicações antes de se envolver com Pierce.

Procurei um cigarro. Von Elster não perdera tempo. Fora a correr ter com o patrão logo que farejara o meu dinheiro. Não sabia o que eles pretendiam mas tinha a certeza de que não era nada de bom para Nevada.

— Esperem aí até eu me vestir. Depois chamo-os.

Desliguei o telefone e acabei de acender o cigarro. A capa azul do argumento caiu-me debaixo dos olhos. Tornei a pegar no telefone. Dei ao telefonista o número da casa de Tony Moroni.

— Desculpa acordar-te, Tony. É o Jonas.

A voz suave de Tony riu ao telefone:

— Não faz mal, Jonas, costumo acordar cedo. E, a propó­sito, parabéns pelo teu casamento.

— Obrigado — disse automaticamente, ocorrendo-me que nunca mais me tinha lembrado de Mónica desde que chegara a Los Angeles. — O teu banco financiou o novo filme de Nevada Smith?

— O Renegado?

— Sim.

— Sim, com efeito — respondeu.

— Que se passa com o filme? — perguntei.

— É um bom filme — disse Tony. — Teria melhor sorte se fosse falado mas de qualquer maneira é um grande filme.

— Então por que motivo vocês estão a exigir a restituição do empréstimo?                                        

— Deixa-me fazer-te primeiro uma pergunta, Jonas — pe­diu ele. — Qual é exactamente o teu interesse nisso?

— Ainda não sei — respondi com franqueza. — Sou amigo de Nevada. Quero descobrir o que se passa. Porque estão a exi­gir a restituição? — insisti.

— Sabes como trabalhamos — explicou. — Fizemos o em­préstimo ao Smith garantido com a propriedade dele e com o aval da Norman Pictures Company. Agora o Bernie Norman precisa de créditos para realizar os seus próprios filmes e retira o aval. Isso significa que automaticamente temos de exigir a restituição do empréstimo.

Não era portanto de admirar que Von Elster e Bernie Nor­man estivessem no vestíbulo à minha espera. Não queriam que ninguém os impedisse de manobrar Nevada.

— E que sucede a Nevada? — perguntei.

— Se ele não puder pagar arrestamos o filme e penho­ramos-lhe a propriedade. Depois vendemos até recuperarmos o capital.

— E que fazem com a película? — perguntei. — Deitam-na fora?

— Oh, não — riu Tony suavemente. — Restituímo-la ao Norman para distribuição. Isso dá-lhe uma possibilidade de reaver o seu dinheiro.

Meteu na história cerca de quatrocentos mil dólares. Depois de ele estar reembolsado, o saldo é para nós. Logo que o nosso empréstimo estiver pago entregamos o res­tante ao Smith.

A coisa começava a tomar forma. Quando chegasse a altura de Nevada receber, o rapaz já estaria arruinado.

— Quais as probabilidades de um saldo positivo? — per­guntei.

— Poucas — respondeu Tony. — Segundo o contrato, as percentagens de distribuição são muito baixas e o dinheiro de Nevada Smith é o primeiro a pagar. Quando tivermos recupe­rado, as percentagens triplicam e ele começa a receber.

— E quem fica com as percentagens?... O banco?

Tony riu de novo:

— Claro que não. É o Bernie. É ele o distribuidor.

Agora eu percebera tudo. Os rapazes que me esperavam lá em baixo não faziam a coisa por menos. Liquidavam Nevada. Desse modo podiam apanhar o bolo grande praticamente de graça. Gostaria de saber até que ponto o agente de Nevada era arguto para deixá-lo cair numa ratoeira dessas.

— Mais uma pergunta, Tony — pedi — e não te incomodo mais. Quanto dinheiro seria preciso para transformar O Rene­gado num filme falado?

Tony manteve-se calado um momento.

— Vejamos — disse. — Os cenários ainda não foram des­manchados e o guarda-roupa está intacto. Deve reduzir o custo a metade. Digamos, outro milhão, se tiverem sorte.

— Achas que vale?

Ele hesitou:

— Geralmente não arrisco opiniões sobre filmes. Podem acontecer demasiadas coisas.

— Arrisca desta vez — pedi. — Preciso da opinião de uma pessoa desinteressada.

— Por tudo quanto sei poderia ser um bom investimento.

— Obrigado — disse eu. — Agora faz-me um favor. Sus­pende qualquer acção relacionada com o empréstimo até eu te falar esta tarde. Talvez me disponha a suprir a garantia de Norman.

— Mesmo depois disso precisarás de outro milhão.

— Bem sei — respondi. — Mas a minha mão direita ainda sabe escrever. Poderei sempre assinar um cheque.

Moroni riu com agrado quando nos despedimos. Não es­tava preocupado. Sabia que eu podia facilmente levantar esse dinheiro do sindicato que arrendara as patentes do meu molde de plástico. Os banqueiros emprestam-nos todo o dinheiro que quisermos se lhes pudermos oferecer garantias reais.

Olhei para o relógio quando pousei o auscultador. Eram quase sete e meia e sentia-me atordoado. Comecei a levantar de novo o auscultador mas mudei de ideias. Que o diabo os levasse. Se me queriam ver que esperassem. Voltei-me e enca­minhei-me para a casa de banho, a fim de tomar um duche.

O telefone tocou três vezes enquanto me encontrava de­baixo do chuveiro. Deixei a água quente embeber-se na minha pele até me libertar de toda a fadiga. Quase às oito horas saí do banheiro e nessa altura o telefone principiou outra vez a tocar.

Era de novo Von Elster. Falou em voz baixa, num tom confidencial:

— Nevada, o agente e Rina estão a subir para aí — mur­murou. — Não nos viram.

— Excelente! — disse eu.

— Mas como havemos de encontrar-nos?

— Acho que é tarde demais agora — resmunguei com certa indiferença. — Terei de correr os meus riscos com o agente de Nevada, parece-me. Contudo diga a Mr. Norman que apreciei a sua oferta. Se precisar dele chamo-o.

Ouvi o som sufocado de surpresa quando desliguei. Ri pensando como havia ele de explicar aquilo ao patrão. Enfiei as calças, e preparava-me para vestir a camisa quando soou uma pan­cada na porta.

— Entrem — gritei de dentro do quarto. Ouvi a porta abrir-se enquanto acabei de abotoar a camisa. Procurei os sa­patos mas estes encontravam-se do outro lado da cama e não valia a pena dar a volta para ir buscá-los; portanto encami­nhei-me descalço para a sala.

Rina sentara-se já no amplo sofá. Nevada falava com outro sujeito, de pé, no meio da sala. Um sorriso lento foi-se for­mando no rosto de Nevada. Estendeu a mão, efusivo:

— Jonas!

Apertei-lhe a mão, embaraçado. Parecia estranho trocar um aperto de mão com ele, como se fôssemos estranhos:

— Nevada.

Nos cantos dos olhos viam-se rugazinhas de apreensão e de fadiga mas que desapareceram quando me fitou:

— Estás cada vez mais parecido com o teu pai, filho.

— Também tu estás com excelente aspecto. Onde arran­jaste esse ar importante?

No rosto apareceu-lhe uma expressão matreira.

— Faz parte da comédia — explicou. — Tenho de armar à importância. A malta espera isso de mim. — Meteu a mão no bolso com o velho gesto familiar e pescou uma bolsa de tabaco. Começou a enrolar um cigarro. — Tenho lido muita coisa a teu respeito nos jornais. Voando de Paris para Los Ange­les, casando... Tua mulher veio contigo?

Fiz um movimento negativo de cabeça. Nevada lançou-me entretanto um olhar penetrante. Nesse momento percebi que ele sabia como iam as coisas entre mim e Mónica. Lia em mim como num livro aberto. Nunca conseguia ocultar-lhe nada.

— É pena — disse. — Gostaria de conhecê-la.

Olhei para o outro homem a fim de mudar de assunto. Nevada caiu em si prontamente:

— Oh, este é Dan Pierce, o meu agente.

Apertámos a mão e entrei directamente na questão:

— Vi o teu filme a noite passada. Gostei. É pena teres de perdê-lo.

— Pensei que os filmes falados não pegavam — disse Ne­vada.

— Isso não é tudo. Nevada — interrompeu Pierce coleri­camente. Voltou-se para mim: — Nevada queria fazer um filme mudo mas quando começou a rodagem viu que se tinha enganado. Tentámos realizar uma fita falada mas não foi possível.

— Porquê?

— Norman não nos consentiu — esclareceu Pierce. — Nessa altura dispunha só de um palco de som e estava a usá-lo para os seus próprios filmes. Insistiu para que principiássemos a filmar imediatamente ou então retirava o aval.

O quadro ficava agora completo. Tudo aquilo fora desde o princípio uma armadilha para trouxas. Olhei para Nevada. Não compreendia como tal coisa lhe pudera suceder. Ele era muito mais esperto do que aquilo.

Nevada leu de novo nos meus pensamentos.

— Sei o que estás a pensar, rapaz — disse precipitada­mente. — Mas eu queria fazer essa fita. Tinha para mim mais interesse que todas as outras fantasias que interpretei.

— E o Norman? — perguntei. — Porque será que não adiantam o dinheiro para tornar a filmar?

— Estão sem crédito — respondeu Nevada. — Para isso é que o banco está a exigir a restituição do empréstimo.

— Uma data de baboseiras! — voltou a explodir Pierce. — Estamos a ser sufocados. Bernie Norman faz o banco retirar o empréstimo e depois o banco entrega-lhe o filme. Ele fica com o filme quase de borla: por cerca de um terço do que lhe teria custado se fosse ele a fazê-lo.

— Quanto custaria filmar outra vez a história? — per­guntei.

Nevada olhou para mim, sério:

— Cerca de um milhão de dólares.

— Além do empréstimo que o banco exige — acrescentou vivamente Pierce.

Voltei-me para ele:

— Têm interesse em ser o Norman a distribuir o filme?

— Claro — assentiu Pierce. — Possuem dez mil contratos e se o filme for falado nem um cinema o rejeitará.

— E se for mudo?

— Teremos sorte se o passarmos em mil e quinhentos — explicou. — Todos querem filmes falados.

— Que acham que devo fazer?

Nevada hesitou um momento antes de cravar os olhos nos meus:

 

— Se fosse a ti não fazia nada — disse com franqueza. — Arriscas-te a perder dinheiro.

Vi o olhar que Pierce lhe lançou. Cheio de cólera mas também com uma certa dose de respeito. Para Pierce eu não passava de mais um trouxa. Mas, para seu crédito, reconhecia que eu era um pouco mais que isso para Nevada.

Fitei-o por um momento e em seguida voltei-me para Rina aninhada no sofá. O rosto dela mantinha-se impassível. Somente os olhos pediam.

Dirigi-me a Nevada.

— Vou correr o risco — disse. — Com uma condição: safo-te mas o filme fica a ser meu. E quando o filmarmos de novo será da maneira que eu quiser. Não haverá discussões; toda a gente fará o que lhe for ordenado. Incluindo tu. Se vou perder a parada quero ser pelo menos eu a dar as cartas.

Nevada concordou com um movimento de cabeça. Ouvira meu pai proferir frases idênticas, muitas vezes. E fora ele próprio quem sempre me aconselhara a empunhar o baralho quando a parada era alta.

— Mas que sabe o senhor de filmes? — perguntou Pierce.

— Nada — respondi-lhe. — Mas quantas pessoas conhece que tenham realizado um filme falado?

Aquilo calou-o. Vi a compreensão entrar-lhe nos olhos. O que eu dissera era verdade. Tratava-se de uma nova indústria. Já não havia ali veteranos. Voltei-me para Nevada:

— Então?

— Não sei — fez ele lentamente. — É deixar-te assumir todos os riscos. Eu não perco nada.

— Enganas-te! — obtemperou Pierce. — Se o filme não prestar a tua carreira está liquidada!

Nevada sorriu para mim.

— Dantes arranjava-me muito bem — disse. — Estou já demasiado velho para me afligir com qualquer coisa que possa suceder-me.                  

— Bem, Nevada?

Ele estendeu a mão; de repente desapareceram as rugas de apreensão em torno dos olhos, de novo pareceu um jovem.

— Está combinado, Júnior.

Apertei-lhe a mão e encaminhei-me para o telefone. Chamei Moroni para o banco:

— Manda transferir o aval do empréstimo para a Companhia de Explosivos Cord — indiquei-lhe.

— Felicidades, Jonas — disse ele com uma risadinha. — Fiquei com a impressão de que ias fazer isso mesmo.      

— Então era porque sabias mais do que eu.

— É isso que me faz ser um bom banqueiro — comentou.

Desliguei e voltei-me para os dois homens:

— Para começar, vamos despedir o Von Elster.

O rosto de Nevada mostrou surpresa.

— Mas o Von Elster é um dos melhores directores — protestou. — Tem dirigido todas as minhas películas. Foi ele que me descobriu.

— Não passa de um reles intriguista — atalhei. — Logo que pensou que estavas atrapalhado tentou passar-te a perna. Veio aqui esta manhã com o Bernie Norman, às sete horas. Queriam dar-me conselhos. Não os atendi.

— Agora talvez me acredites quando te dizia que o Bernie estava por detrás da maroteira — observou Pierce.

— Quer gostes quer não, Nevada — disse eu —, fizemos um contrato. O filme é meu e o que eu disser faz-se.

Nevada anuiu silenciosamente.

— Agora quero que Pierce providencie para que eu veja o maior número de filmes falados nos próximos três dias. Na pró­xima semana tomamos todos um avião para Nova Iorque. Vamos passar uns três ou quatro dias indo aos teatros. Talvez se arranje até um director de cena por lá. Veremos. — Abri uma pausa para acender o cigarro e surpreendi uma expressão curiosa no rosto de Nevada. — De que te ris?

— Como já disse, estás a parecer-te cada dia mais com o teu pai.

Devolvi-lhe o sorriso. Nessa altura entrou o criado com o pequeno-almoço. Nevada e Pierce dirigiram-se ao quarto de banho para lavar as mãos e fiquei sozinho com Rina.

Havia no rosto dela uma expressão amável.

— Se ouvisses sempre os teus sentimentos, Jonas — disse ela com suavidade —, acho que poderias tornar-te numa pessoa humana.

Procurei-lhe os olhos:

— Não tentes levar-me — disse. — Ambos sabemos porque fiz isto. Eu e tu fizemos o nosso contrato a noite passada.

A expressão amável apagou-se-lhe no rosto.

— Queres que te pague imediatamente? — perguntou.

Pela maneira de falar percebi que a tinha ofendido. Sorri.

— Sei esperar.

— E eu também — respondeu. — Até morrer, se for preciso.

Nesse momento o telefone tocou:

— Atende — pedi.

Rina pegou no auscultador, ouvi uma voz crepitar no aparelho, depois ela passou-me o telefone:

— Tua mulher.

— Olá, Mónica.

A voz dela estalava de cólera:

— Negócios — gritou. — E quando te telefono responde uma pega qualquer. Suponho que me vais dizer que é a tua ma­drasta.

— E é!

Ouvi o estalido brusco e o telefone emudeceu na minha mão. Contemplei-o um momento e acabei por desatar a rir. Corria tudo tão bem.

E tão mal.

Contemplei o campo através da vidraça. Havia uma fila de aparelhos ao sol, com o distintivo ICA a brilhar nos flancos e sob as asas. Olhei de novo para a prancheta e depois para o desenhador.

Morrissey era jovem, mais novo até que eu. Formara-se em engenharia especializando-se em planificação de aviões. Não era um aviador; pertencia à nova geração que passeava no céu. O que ele propunha era revolucionário. Um avião monoplano, com dois motores, capaz de ultrapassar tudo no ar.

Apoiou os óculos na ponta do nariz.

— Para mim, Mr. Cord — disse com a habitual concisão —, baixando as asas obtemos todo o apoio de que necessitamos e aumentamos a nossa capacidade de combustível. E mais, temos a vantagem acessória de permitir contrôle visual directo ao piloto.

— O que me interessa é a capacidade de transporte e a velo­cidade — disse eu.

— Se os meus cálculos estão certos — continuou Morrissey — poderemos transportar vinte passageiros além do piloto e do auxiliar a uma velocidade de cerca de duzentos e cinquenta qui­lómetros. Com uma autonomia de voo de seis horas.

— Quer dizer que poderíamos ir daqui a Nova Iorque só com uma paragem em Chicago? — perguntou Buzz, céptico. — Não creio!

— É o que mostram os meus cálculos, Mr. Dalton — disse Morrissey delicadamente.

Buzz voltou-se para mim:

— Pode desperdiçar o seu dinheiro, se lhe apetecer, nestes planos loucos, mas não o meu. Já conheci muitos destes sonhadores.

— Quanto custaria a construção do primeiro? — perguntei a Morrissey.

— Quatrocentos, talvez quinhentos mil. Depois poderemos produzi-los a duzentos e cinquenta mil dólares a unidade.

Dalton riu sarcásticamente:

— Meio milhão de dólares por um aparelho? É uma lou­cura. Nunca mais amortizávamos esse dinheiro.

O preço de uma passagem de primeira classe em comboio de costa a costa andava por quatrocentos dólares. Levava quase quatro dias. Incluindo as refeições ultrapassava os quinhentos dólares por passageiro. Num avião desses teríamos sete mil dólares de passagens mais o transporte da mala, o que daria uns oito mil e quinhentos dólares. Fazendo três voos semanais, em menos de vinte semanas poderíamos recuperar o capital empa­tado mais as despesas de exploração. A partir desse ponto seria lucrativo. Seria possível até oferecermos a bordo refeições gratuitas.

Olhei para o meu relógio. Eram quase nove horas. Levantei-me:

— Tenho de regressar ao estúdio. Vão filmar hoje a primeira cena.

A face de Dalton ficou rubra de cólera:            

— Deixa-te disso, Jonas. Vamos a negócios. Há mês e meio que não sais dos estúdios. Enquanto perdes tempo com essa fita reles temos de descobrir um avião que nos convenha. Se o não fizermos seremos batidos por todos os outros.

Fitei-o, sem sorrir.

— No que me diz respeito — declarei —, descobrimos o gavião.

— Não descobrimos — protestou ele incrédulo —, não queres dizer que vais arriscar-te com este.

Fiz que sim, depois voltei-me para Morrissey:

— Pode iniciar imediatamente a construção do apa­relho.

— Espera aí — esbravejou Dalton. — Se pensas que a ICA vai pagar a conta, estás louco. Não te esqueças de que possuo metade das acções.

— E a Companhia de Explosivos Cord possui a outra me­tade — disse eu. — E a Explosivos Cord possui também meio milhão de dólares de hipotecas sobre os aviões da ICA a maior parte dos quais já vencidas. Se eu as executasse ficaria senhor exclusivo da Inter-Continental Airlines.

Ele fitou-me colérico um momento, a seguir descontraiu-se, sorrindo:

— Eu já devia saber, Jonas. Devia ter aprendido a minha lição quando perdi aquele Waco jogando ao poker contigo.

Devolvi o sorriso:

— És um grande aviador, Buzz. Continua a voar e deixa o sector negócios comigo. Ainda acabo por te tornar num homem rico.

Pegou num cigarro:

— Está bem — anuiu com indiferença —, mas continuo a pensar que és louco em querer construir este aparelho. Podemos perder nele a camisa.

Não respondi e dirigi-me para o meu carro. De nada servia explicar ao Buzz as regras simples do crédito. A ICA encomen­dava vinte aparelhos daqueles à Cord Aircraft. As duas compa­nhias hipotecavam-nos à Explosivos Cord. E a Explosivos Cord descontava as hipotecas nos bancos, mesmo antes de os aparelhos estarem construídos. O pior que podia suceder, se o avião não prestasse, era a Explosivos Cord beneficiar numa redução de impostos.

Entrei no carro.

— Felicidades com a fita! — gritou-me Buzz quando arran­quei.

Atravessei o portão dos estúdios Norman. O guarda espreitou e acenou-me.

— Bom dia, Mr. Cord — gritou-me. — Muitas felicidades.

Sorri e conduzi para o estacionamento. Havia ali um pe­queno rectângulo com o meu nome: MR. CORD. Não ignoravam nada na arte de dar manteiga.

Na casa de jantar dos directores havia uma mesa reservada com o meu nome. Possuía também um pavilhão privativo com uma série de gabinetes, duas secretárias, uma garrafeira atulhada, um quarto de vestir, uma sala de conferências e dois gabinetes para as secretárias anexos ao meu.

Entrei pela porta das traseiras do pavilhão e fui directamente para o meu gabinete. Mal me sentara, apareceu uma das secre­tárias. Sentou-se diante de mim, com um ar muito compene­trado, empunhando o papel e o lápis, e disse com toda a viva­cidade:

— Bom dia, Mr. Cord. Deseja ditar?

Fiz um sinal negativo. Já era tempo de ela ter aprendido.

Nas últimas cinco semanas a cena repetia-se idêntica, todas as manhãs. Eu nunca escrevo nada: mensagens, memorandos, ins­truções. Se quero qualquer coisa escrita chamo McAllister. Para isso é que servem os advogados.

O telefone tocou. Ela ergueu o auscultador:

— Gabinete de Mr. Cord.

Escutou um momento e depois voltou-se para mim:

— Completaram o ensaio no palco nove. Estão prontos para filmar a primeira cena. Perguntam se deseja assistir. Levantei-me:

— Diga-lhes que vou a caminho.

O palco nove ficava na extremidade do estúdio. Cons­truímos o cenário de Nova Orleães ali porque nos pareceu mais calmo e não havia o risco de interferência de sons produzidos noutros palcos. Apressei o passo pelo caminho de saibro, prague­jando contra a distância, até que avistei a bicicleta de um boletineiro encostada à parede de um dos pavilhões da direcção. Um momento mais tarde estava a pedalar como um louco pelo carreiro. Ouvia os gritos do boletineiro nas minhas costas.

Travei em frente do palco nove e quase fui chocar com um homem que abria a porta. Ficou paralisado, numa surpresa feita de indignação. Era Bernie Norman.

— Mas, Mr. Cord — disse ele. — Não tinha necessidade de fazer isso. Porque não pediu que lhe mandássemos um carro?

Encostei a bicicleta à parede:

— Não tinha tempo, Mr. Norman. Disseram-me que aguar­davam a minha chegada para começar. É o meu dinheiro e o meu tempo que correm aqui.

Estavam prontos para filmar a primeira cena, aquela onde Max ainda jovem tem a primeira entrevista com a dona do bordel de luxo. Não era por ali que a fita começava mas é assim que se fazem as coisas. Filmam primeiro todos os interiores e depois os exteriores. Quando tudo está acabado então pro­cedem à montagem pela devida ordem.

A actriz que desempenhava a pega era Cynthia Randall, a estrela número um de Norman — considerada a coisa mais excitante que aparecia na tela. Pessoalmente não a achava boa. Gosto de mulheres com seios. Dois maquilhadores e um cabe­leireiro andavam em redor dela, já sentada diante do toucador que fazia parte do cenário.

Nevada encontrava-se na outra extremidade, de costas para mim, falando com Rina. Voltou-se quando apareci e um arrepio percorreu-me o corpo ante o quadro remoto que a minha memória de súbito evocou. Parecia ainda mais novo do que quando o vi pela primeira vez. Não percebia como é que ele conseguia aquilo; até os olhos eram os de um rapaz.

Sorriu-me:

— Olá, Júnior. Lá vamos nós.

— Sim — afirmei, sem deixar de o fitar. — Lá vamos nós.

Alguém gritou:

— Todos aos seus lugares!

— Creio que isso me diz respeito — declarou Nevada.

O rosto de Rina voltou-se para o cenário, com uma expressão de encantamento. Eu afastei-me de um homem que empurrava uma mesa, e quase fui cair em cima de outro sujeito. Decidi sair dali antes de causar qualquer dano. Postei-me, pois, perto da cabina do som. Dali podia ver e ouvir tudo. Agora percebia por­que é que os filmes custavam tanto dinheiro. Íamos na décima primeira filmagem dessa mesma cena quando reparei no operador do som na cabina Estava inclinado sobre o painel de comando, os auscultadores apertados nos ouvidos, e movia os manípulos como um louco. No momento seguinte vi os lábios dele moverem-se e praguejar, depois as mãos accionarem de novo os maní­pulos.

— Alguma encrenca com a máquina? — perguntei.

Levantou os olhos para mim. Pela expressão percebi que não sabia quem eu era.

— A máquina está bem — respondeu.

— Mas há alguma coisa que o preocupa?

— Escute, amigo — disse ele. — Eu e você precisamos de conservar os nossos empregos, percebe?

Fiz que sim.

— Quando o patrão nos manda que façamos as coisas parecerem bem, temos de obedecer sem perguntas. Certo?

— Certo — disse eu.

— Bem, estou a fazer o que posso. Mas não sou um deus. Não posso mudar o tom das vozes.

Olhei para ele e principiei a sentir-me desfalecer. Só tinha a palavra de Rina de que a voz de Nevada era boa.

— Refere-se a Nevada Smith?

O homem abanou a cabeça.

— Não — disse num tom desdenhoso. — Ele é bom. É a tipa. Tem a voz tão nasalada que dá a impressão que as palavras lhe saem pelos olhos.

O operador debruçou-se de novo para a máquina. Então avancei e arranquei-lhe os auscultadores dos ouvidos. Ele voltou-se, furioso:

— Que raio vem a ser isso?

Mas eu já os colocara e ele não podia fazer mais nada senão esperar. Nevada estava a falar. A sua voz soava bem, tinha um bom timbre. Depois ouvi Cynthia Randall e confesso que não sabia se devia acreditar nos meus ouvidos: a sua voz tinha a qualidade irritante de um gato a arranhar uma chapa de zinco, sem qualquer atractivo sexual. Provocava arrepios na espinha. Uma voz daquelas era capaz de extinguir qualquer desejo, mesmo num bordel de Nova Orleães. Arranquei os auscul­tadores e atirei-os para as mãos do perplexo operador. Encami­nhei-me para o cenário. Um homem tentou deter-me mas sacudi-o raivosamente.

Uma voz uivou «Corta» e de repente fez-se silêncio no palco. Todos me fitavam com expressões de surpresa e de inquie­tação.

Eu fumegava. Tudo quanto sabia era que alguém quisera pregar-me uma partida e disso não gostava eu. Penso que a rapa­riga sabia qual o motivo por que eu me encontrava ali. Uma expressão de receio apareceu-lhe nos olhos, embora tentasse sorrir com a boca.

Bernie Norman precipitou-se para o cenário. Uma centelha de alívio surgiu no rosto da rapariga e eu percebi tudo. Ela agar­rou-se ao braço de Bernie quando este se voltou para mim.

— Mr. Cord — perguntou —, alguma coisa está mal?

— Sim — respondi sombrio. — Ela. Corra com ela. Está despedida!

— Não pode fazer isso, Mr, Cord! — exclamou. — Ela tem contrato para este filme!

— Talvez tenha — concedi —, mas não comigo. Não foi com a tinta da minha caneta que ela o assinou.    

Bernie fitou-me, começando a empalidecer. Percebia muito bem o que eu queria dizer.

— Isto é altamente irregular — protestou. — Miss Randall é uma estrela muito conceituada.

— Para mim pode ser até a Mãe de Deus — interrompi. Olhei para o meu relógio de pulso. — Dou-lhe exactamente cinco minutos para a pôr fora deste palco sob pena de interromper a filmagem e lhe atirar para as costas com a maior acção judicial que jamais lhe caiu em cima.

Sentei-me na cadeira de lona com o meu nome gravado e contemplei o cenário agora deserto. Apenas alguns sujeitos an­davam por ali, movendo-se como fantasmas num banquete. Olhei para o operador do som dobrado sobre o painel de registo, os auscultadores ainda colados à cabeça. Fechei os olhos, fatigado. Passava das dez horas da noite.

Ouvi passos e abri os olhos. Era Dan Pierce. Estivera a telefonar tentando conseguir uma estrela dos outros estúdios.

— Então? — perguntei.

Abanou a cabeça:

— Nada. A Metro não nos cede a Garbo. Estão a reser­vá-la para um filme falado.

— E a. Marion Davies?

— Acabo de falar-lhe. Apreciou o papel mas acha que não lhe quadra. Talvez fizéssemos mal em despedir a Cynthia Randall. Está a custar-lhe trinta mil dólares por dia ter isto parado.

Acendi um cigarro e observei-o:

— Prefiro desistir já do que tornar-me alvo de risota e perder tudo mais tarde.

— Talvez pudéssemos trazer uma artista de Nova Iorque.

— Não temos tempo — protestei. — Dez dias são trezentos mil dólares.

Nesse momento Rina apareceu com sanduíches.

— Calculei que tivesses fome—disse ela—e trouxe-te isto.              

Peguei numa sanduíche e mordi-a sombriamente. Rina ofe­receu uma ao operador.

— Obrigado, Miss Marlowe.

— Nada que agradecer — disse ela, e voltou pára o canto onde estivera sentada junto de Nevada.          

— É pena não encontrarem uma com a voz dela — observou o operador com a boca atulhada de sanduíche.

Olhei para ele:

— Que quer dizer?                          

— Ela tem um timbre de voz excelente — disse. — Com uma voz destas no cinema a malta até caía dos balcões abaixo.

Fitei-o intensamente:

— Refere-se a Rina?

Ele fez que sim e engoliu o pedaço mastigado.

— Sim. — Nos seus lábios foi-se formando um lento sorriso significativo. — E se não me engano muito ela deve ser também bastante fotogénica. É toda mulher.

Voltei-me para Dan:

— Que pensa disto?

— É possível — admitiu com certa reserva.

— Então vamos lá — disse eu, levantando-me. — Trinta mil por dia é muito dinheiro.

Rina considerou a coisa uma brincadeira quando lhe pedi que lesse umas linhas do papel ao microfone. Continuou a pensar que eu brincava no momento em que convoquei todo o pessoal para um teste completo. Creio que só me tomou a sério quando nos sentámos, às duas da madrugada, na sala de projecção para vê-la desempenhar com Nevada a primeira cena.

Na verdade, nunca encontrara alguém que se lhe comparasse. Todos os seus encantos surgiam duplicados na tela. Era de fazer crescer água na boca.

Aproximei-me dela e ordenei-lhe:

— Vai para casa e mete-te na cama. Quero-te no guarda-roupa amanhã às seis da manhã. Começamos a filmar às nove.

Rina sacudiu a cabeça:

— Deixa-te de coisas, Jonas. A brincadeira já foi longe de mais. Não quero colaborar nela.

— Tens de estar no palco às nove para filmar — insisti com azedume. — Lembra-te que foste tu que me chamaste.

Vi no rosto de Nevada uma expressão de perplexidade. E havia algo mais na transparente inocência do seu olhar que me irritou.

— E farás bem em providenciar para que ela não falte! — gritei-lhe furioso.

Voltei-lhes as costas e saí da sala, deixando-os a olhar para mim, boquiabertos.

Abri lentamente um olho e fitei o relógio de pulso. Duas horas! Sentei-me de um salto e a dor quase me rachou o crânio. Gemi alto e a porta abriu-se.

Era Dan, já com as suas calças cremes e camisa desportiva. Trazia um copo que parecia conter sumo de tomate.          

— Pronto — disse. — Beba isto, amigo. Vai fazer-lhe bem.

Levei o copo aos lábios. Sabia tremendamente mal mas produziu efeito. Um momento depois a minha cabeça começou a sentir alívio, as ideias a aclararem. Olhei em torno do quarto. Tudo de pernas para o ar.

— Onde estão as pequenas? — perguntei.

— Paguei-lhes e mandei-as para casa.

— Excelente. — Ergui-me atordoado. — Tenho de ir ao estúdio. Iam começar a filmar às nove.

Dan sorriu:

— Telefonei a dizer-lhes que você tinha compromissos mas que aparecia esta tarde. Pensei que seria melhor você dormir um pouco. Foi uma noite tremenda.

Fiz uma careta. Lá isso fora!

Dan e eu tínhamos passado uma noite, em cheio, a noite passada. Encontrara-o à saída do palco e ofereci-lhe uma boleia para a cidade. No caminho decidimos parar para comer. Sentia-me mais tenso que uma corda de relógio e ele propôs-se ajudar-me. Bifes num sítio que ele conhecia e que já devia estar fechado mas não estava, juntamente com whisky e mais tarde as raparigas.

As raparigas saíram do seu livrinho de bolso, coisa que todos os agentes trazem com eles, ao que parece. Eu tinha-me descon­traído tanto que desconfiava agora ser impossível pôr de novo a corda a trabalhar.

O criado japonês de Pierce tinha já preparado os ovos mexidos e as salsichas quando saí do chuveiro. Estava cheio de fome. Comi seis ovos e cerca de uma dúzia de salsichas. Quando pousei a minha quarta chávena de café Dan sorriu e perguntou:

— Como se sente agora?  

Retribuí o sorriso:

— Nunca me senti melhor em toda a minha vida. — Era verdade. Pela primeira vez sentia-me descontraído e repousado. Não notava a habitual tensão nas entranhas que sempre me acompanhava. — Acho que podemos falar agora de negócios.

Tínhamos falado a noite anterior e eu fora mais conversador do que é costume quando me encontro junto de estranhos. Mas Dan Pierce era diferente. Pertencia a um tipo que eu ignorara até então e fascinou-me. Duro, matreiro, sabia o que queria. Eu estava a trabalhar fora do meu sector e não o ignorava. A coisa não duraria muito, mas enquanto durasse poderia utilizar um tipo como ele.

— Vendi esta manhã a minha agência.

— Porquê?

— Porque vou trabalhar consigo.

— Não se está a precipitar de mais? — perguntei. — Eu só me meti nisto para este filme. Que fará você depois?

Dan sorriu:

— Isso é o que você diz. Pode ser até que acredite estar a ser sincero, neste minuto. Mas eu sei que não é assim. Você tem faro para este negócio, um jeito natural que não é comum a muita gente. E há um incentivo a que não pode resistir. Você acaba de descobrir um novo jogo e vai jogá-lo.

Sorvi o café. Forte e negro, como eu gostava dele.

— E como julga que me pode ser útil? — quis saber.

— Conheço todos os aspectos de negócios, todos os golpes baixos que você só depois de muita perda de tempo aprenderia por si próprio. Você é um homem ocupado e o tempo é o seu maior valor. Eu não lhe serviria nem de metade se os filmes fossem o seu único negócio. Mas não é. E nunca será. É apenas um jogo de dados.

Fitei-o com atenção.

— Dê-me uma amostra da sua utilidade.

— Em primeiro lugar — disse vivamente —, não começaria um filme sonoro sem ter feito previamente um teste de voz a todos os artistas.

— Isso já eu aprendi. Quero uma amostra do que ainda não sei.

Pierce estendeu a mão para a pasta de cartolina azul:

— Se Rina entrar no filme como o teste indica, podemos fazer umas mudançazinhas no argumento e poupar quatrocentos mil dólares.

— Como?

— Dando mais realce à parte dela e desenvolvendo a pelí­cula em torno do episódio de Nova Orleães. Poupa-nos cinco semanas de exteriores e ninguém sabe por enquanto como esses microfones trabalham lá fora.            

Peguei num cigarro.                    

— Se fizermos isso — disse calmamente —, que sucede a Nevada? A parte dele fica reduzida.

Os olhos de Dan procuraram os meus:

— Já não trabalho para Nevada, trabalho para si. Sou seu empregado e acho que já pôs nesta película todo o sentimento que é legítimo poder esperar-se. Agora trata-se de negócio. O que importa é ganhar dinheiro.

Aspirei uma fumaça e tomei outra golada de café. Pela pri­meira vez desde que ouvira a chamada telefónica de Rina estava a voltar ao normal. Durante uns dias ela mantivera-me nas nuvens. Não sabia o que fazia. Agora sentia-me diferente.

— Que espécie de acordo tem você em mente?

— Nenhum salário. Apenas dez por cento de comissão e uma verba para gastos.

Ri:

— Pareceu-me ouvi-lo dizer que tinha vendido a agência.

— É este o único meio de eu obter uma compensação sem aumentar a sua conta de gastos gerais.

— Não brinque comigo — disse. — A verba das despesas chegava-lhe para viver.

— Por certo. Mas também podia viver com um salário. Como espera que possa trabalhar para si sem gastar dinheiro? O dinheiro é a única coisa nesta cidade que ninguém recusa.

— Dou-lhe dez por cento dos lucros. Mas não lhe dou acções.

Ele estudou-me durante um momento:

— E quanto à verba para gastos?

— Está bem.

Pierce estendeu a mão:

— Toque!

Passava das três horas quando entrámos no palco nove. A cena estava cheia de movimento e de ruído enquanto tudo se preparava para a próxima tomada de vistas e de sons. Nevada encontrava-se de pé junto do cenário; não avistei Rina. Parei junto do operador do som:

— Como vai isto?

Ele sorriu-me.

— Magnífico — disse, dando uma palmada nos ausculta­dores.

Devolvi o sorriso e aproximei-me de Nevada. Falava com o director e voltaram-se os dois para mim quando cheguei junto deles e lhes perguntei:

— Como está ela a portar-se?

O novo director encolheu os ombros:

— Estava um pouco nervosa no princípio mas agora pa­rece mais calma. Vai sair-se bem, com certeza.

— Vai sair-se estupendamente — emendou Nevada com calor. — Nunca imaginei, quando ela ensaiava comigo os meus papéis, que a coisa poderia ser útil também para ela.

Um dos assistentes surgiu afogueado:

— Estamos prontos, Mr. Carrol.

O director esboçou um sinal de assentimento e o assistente voltou-se para gritar:

— Todos para os seus lugares!

Enquanto o director se encaminhou para a máquina de filmar, Nevada dirigiu-se para a cena. Voltei-me e vi Rina entrar. Fiquei esgazeado, incapaz de acreditar no que os meus olhos viam. O cabelo, de um louro platinado, fora preso no alto da cabeça e os seios estavam tão apertados que ela parecia um rapazinho. A boca pintada em forma de coração e as sobrancelhas reduzidas a uma linha, davam-lhe um ar artificial. Não era uma mulher — era uma caricatura de Vanity Fair.

A face de Dan estava impassível. Olhou para mim com uns olhos inexpressivos.

— Fizeram um bom trabalho — disse. — Fica bem na ima­gem.

— Mas não parece uma mulher.

— É o que o público gosta.

— Não me interessa o que o público gosta! Eu não gosto. Tipas com esse aspecto encontram-se às dúzias nesta cidade.                                                    

No rosto de Dan Pierce formou-se um ténue sorriso.

— Se não gosta, mude — disse ele. — Você é o patrão. O filme é seu.

Encarei-o um momento. Apetecia-me invadir a cena e des­truir tudo. Mas contive-me. Sabia que uma nova explosão como a da véspera desmoralizaria todos.

— Diga ao Carrol que lhe quero falar — ordenei a Dan.

Pierce concordou:

— Muito bem. Assim é que se faz. Parece-me que você não precisa de mim tanto quanto eu julgava!

Foi falar com o director que um momento depois decretou um intervalo de dez minutos. Percebi que estava nervoso quando se aproximou de mim:

— Que se passa, Mr. Cord?

— Quem aprovou a maquilhagem e as roupas de Rina?

Por cima do ombro, o director olhou para Rina.

— Tenho a certeza de que a maquilhagem e os trajes foram aprovados pela secção competente — esclareceu. — Nevada pediu que lhe dedicassem todo o cuidado.

— Nevada?

Carrol fez um gesto afirmativo. Olhei para Dan.

— Quero todos no meu gabinete dentro de dez minutos — gritei-lhe.

— Muito bem, Jonas.

Voltei as costas e saí do palco.

Percorri o gabinete com um olhar. Parecia-me que o estúdio sabia o que fazia. Tinha as dimensões exactas para nos conter a todos.

Dan sentou-se numa poltrona à esquerda da minha secretária com o novo director a seu lado. Rina e Nevada estavam sentados no sofá, e no meio do aposento o operador. No outro extremo encontravam-se o maquilhador e a directora da secção de guarda-roupa, uma mulher esguia, de idade indeterminada, com um rosto jovem e cabelo prematuramente grisalho, vestindo um saia-e-casaco. E perto de mim, à direita, a minha secretária com o inevitável lápis pousado sobre o bloco.

Acendi um cigarro.

— Todos vocês viram o teste a noite passada — disse eu. — Magnífico. Porque foi que não apareceu a mesma rapariga na cena desta tarde?

Ninguém respondeu.

— Levanta-te, Rina.

Ela ergueu-se em silêncio e ficou a olhar para mim. Eu per­corri com a vista a reunião:

— Como se chama esta?

O director tossiu e riu nervosamente:

— Mr. Cord, todos sabem como ela se chama.

— Sim, então como é?

— Rina Marlowe.

— Então porque é que não se parece com Rina Marlowe em vez de parecer uma mistura de Clara Bow, Marion Davies e Cynthia Randall? Com Rina Marlowe é que ela não se pa­rece, com certeza.

— Receio que não esteja a perceber, Mr. Cord.

Olhei para quem me falava:

— Como se chama?

Ela fitou-me nos olhos.

— Sou Ilene Gaillard — disse. — Desenho os modelos do guarda-roupa.

— Muito bem, Miss Gaillard. Diga-me então aquilo que eu não estou a perceber.

— Miss Marlowe deve ser vestida segundo a última moda — explicou ela com calma. — Bem vê, Mr. Cord, embora fa­çamos algumas concessões ao período em que decorre a acção do filme, o vestido deve fundamentalmente conformar-se com a última moda. A maior parte das mulheres vai ao cinema por causa dos vestidos. Os filmes ditam a moda.

Pisquei os olhos:

— Moda ou não moda, Miss Gaillard, não faz sentido que uma rapariga tenha de parecer-se com um rapaz para estar na moda. Nenhum homem normal se poderá interessar por uma figura dessas.                  

— Não censures Miss Gaillard, Jonas. Fui eu que lhe disse para fazer assim.

Voltei-me para Nevada:

— Disseste-lhe?

Ele acenou a cabeça numa afirmação.

Tinha de suceder mais cedo ou mais tarde. Falei em tom frio:

— É o meu dinheiro que está a correr agora e ficou com­binado que eu dirigia tudo. Portanto, doravante preocupa-te apenas com representar. Tudo o mais me diz respeito.

Os lábios de Nevada contraíram-se e no fundo dos seus olhos vi quanto o magoara. Desviei o olhar para não ter de observar aquilo. Rina mantinha-se numa espécie de curiosa indiferença.                    

— Rina! — Ela voltou-se para mim assumindo rápida­mente uma expressão impassível. — Vai à casa de banho e lava a cara. Pinta-te como de costume.

Rina saiu do aposento sem proferir uma palavra e eu acomodei-me melhor na cadeira. Ninguém disse nada até ela voltar, a boca de novo generosa, os lábios cheios e as sobrancelhas seguindo o traço natural das arcadas superciliares. O cabelo espalhava-se como uma cascata de oiro sobre os ombros. Mas havia algo que não estava bem. Por baixo do roupão o corpo continuava rígido.

— Volta lá dentro e despe o espartilho que te puseram.

Sempre calada, obedeceu. E desta vez, quando regressou, os seus movimentos tinham ritmo. Ninguém podia ignorar que existia um corpo de mulher debaixo daquele penteador.

— Assim está melhor — disse eu. — Vamos agora filmar outra vez aquelas cenas.

Rina fez um gesto afirmativo e voltou-se. A voz de Miss Gaillard deteve-a:

— Não a podemos filmar assim.

Fitei a desenhadora:

— Que disse?

— Não podemos filmá-la assim — repetiu Miss Gaillard levantando-se. — O busto salta.

Ri:

— E que tem isso? As mamas devem saltar.

— Claro — respondeu vivamente. — Mas na tela tudo aparece exagerado. — Voltou-se para o operador: — Não é verdade, Lee?

O operador fez que sim:

— Ela tem razão, Mr. Cord. Não pareceria natural.

— Temos de arranjar-lhe um soutien — disse Miss Gaillard.

— Muito bem. Veja lá o que consegue arranjar.

Pouco tempo depois Rina e a desenhadora saíam da casa de banho. Encaminharam-se para mim. Ficava melhor do que com o espartilho mas pior do que sem nada. Não me agradava.

Levantei-me da secretária e aproximei-me de Rina:

— Deixa ver.

Ela fixou em mim um olhar sem expressão. Deixou cair o penteador dos ombros, prendendo-o na curva dos braços.

— Volta-te para a direita — ordenei-lhe. — Agora para a esquerda.

Recuei um pouco e contemplei-a. Sabia agora do que se tratava. Fosse qual fosse o ângulo, o soutien comprimia e achatava o peito dando aos seios aquele aspecto pouco natural. Voltei-me para a desenhadora:

— Talvez se tirássemos as alças… ? — propus.

Ilene Gaillard encolheu os ombros:

— Podemos tentar.

Deu um passo à frente e retirou as alças.

Rina ficou imóvel fixando um ponto qualquer acima do meu ombro.

— Agora volta-te.

O soutien continuava a comprimir-lhe os seios.

— Continuo a não gostar.

— Ainda posso tentar outra solução.

— Muito bem — disse eu.

Minutos depois reapareciam no gabinete. Rina envergava uma espécie de corpete de arame que não lhe cobria as ancas. E quando se movia, os seios não balançavam. Eram realmente visíveis mas pareciam moldados em gesso.

— Não seria possível eliminar alguns desses arames? — perguntei à desenhadora.

— Acho que assim está bem, Mr. Cord. Além disso não vejo porque se preocupa tanto com o busto dela. As pernas são bem bonitas e no filme mostra-as bastante.

— Miss Gaillard, visto que não é um homem não espero que me compreenda. Posso ver todas as pernas que me apetecer: basta-me sair à rua. Limite-se, por favor, a responder à minha pergunta.

— Não, não podemos cortar os arames, Mr. Cord — respondeu num tom cortês. — Se o fizermos é o mesmo que não usar nada. O corpete deixa de ter rigidez suficiente para sustentar-lhe os seios.

— Talvez se eu lhe mostrar o que desejo a senhora compreenda. Despe isso, Rina — disse, encaminhando-me para ela.

Indiferente, Rina voltou-se por um momento. Quando se virou de novo para mim segurava o corpete numa das mãos e com a outra apertava as abas do penteador.

Peguei no corpete e lancei-o sobre a secretária. Em seguida, segurei na orla do penteador de Rina e puxei-o até formar uma linha sobre os seios, um pouco acima dos bicos. Os seios er­gueram-se como duas luas cheias contra os meus punhos cur­tidos. Olhei para a desenhista.

— Vê o que eu quero?

Talvez ela não visse mas não havia naquele gabinete um único homem cujos olhos não estivessem a saltar das órbitas.

— O que o senhor quer é impossível, Mr. Cord. Rina é uma rapariga forte. Número trinta e oito. Não há soutien capaz de suportar-lhe o busto dessa forma. Sou uma desenhista, Mr. Cord, não sou engenheiro de pontes.

Larguei o penteador de Rina e encarei Miss Gaillard.

— Obrigado — disse-lhe, dirigindo-me para o telefone. — É a primeira ideia aproveitável que me dão depois de termos entrado aqui.

Morrissey apareceu em menos de vinte minutos.

— Tenho um pequeno problema, Morrissey. Preciso da sua ajuda.

O seu nervosismo principiou a acalmar e o rapaz olhou em redor, um tanto tímido:

— Às suas ordens, Mr. Cord.

— Levanta-te, Rina — pedi. Ela levantou-se lentamente e fez um giro em volta de nós. Os olhos de Morrissey dilata­ram-se por detrás das lentes. Agradou-me verificar que era capaz de interessar-se por outras coisas além dos aeroplanos.

— Não existe soutien capaz de impedir os seios de bam­bolear sem lhes retirar a naturalidade — expliquei. — Quero que desenhe um que o consiga.

O rapaz voltou-se para mim com uma expressão de sur­presa:

— Está a brincar, Mr. Cord.

— Nunca falei tão a sério na minha vida.

— Mas... mas eu não percebo nada de seios. Sou um enge­nheiro aeronáutico — balbuciou ele pondo-se vermelho como um tomate.

— Por isso o chamei — declarei-lhe calmamente. — Pen­sei, se pode desenhar aviões capazes de suportar milhares de quilos de pressão, saberia desenhar qualquer coisa capaz de suportar um pequeno par de mamas. — Voltei-me para a dese­nhista. — Explique-lhe o que ele precisa de saber.

Miss Gaillard olhou para mim, depois para Morrissey:

— Talvez fosse melhor irmos para o meu gabinete no guarda-roupa. Tenho lá tudo aquilo de que possa necessitar.

Morrissey não tirara os olhos dos seios de Risa enquanto a desenhadora falava. Por um momento supus que tivesse ficado paralisado, mas finalmente reagiu;

— Penso que será possível fazer qualquer coisa.

— Eu sabia que você podia — disse eu sorrindo.

— Não prometo nada, claro. Mas é um problema muito curioso.

Mantive o rosto impassível.

— Muito — concordei solenemente.

Morrissey pediu à desenhista:

— Tem por acaso um compasso?

— Um compasso? Para que precisa o senhor de um com­passo?

O engenheiro olhou para ela com pasmo:

— Para medir a profundidade e a circunferência dos seios, claro.

Ela contemplou-o durante um momento, e em seguida, travando-lhe do braço, encaminhou--o para a porta:

— Acho que no gabinete de desenho se há-de arranjar um compasso. É melhor vires connosco, Rina.

Morrissey regressou uma hora depois. Trazia na mão uma folha de papel:

— Creio que consegui! No fundo, muito simples, uma vez descoberto o ponto de pressão. O peso de cada seio exerce pres­são lateral. Isso significa que a fonte da pressão se encontra no meio deles, justamente no centro da clivagem.

Eu olhava para ele, divertido e interessado. Na sua lingua­gem havia uma mistura de termos de engenharia e de calão de guarda-roupa. Mas ele estava demasiado embebido nas suas explicações para dar qualquer atenção ao meu olhar.

— Tudo se reduzia a um problema de compensação. Tínhamos de descobrir maneira de utilizar a pressão para manter os seios imóveis. Inseri um arame em V na clivagem servindo-me do princípio da suspensão. Compreendeu?

Abanei a cabeça:

— Você ultrapassou-me.

— Conhece o princípio das pontes suspensas?

— Vagamente — respondi.

— Segundo esse princípio, quanto maior pressão a massa exerce contra si própria, mais pressão cria para se manter firme.

Fiz um gesto de ter compreendido. Quer dizer, ainda não compreendia muito bem mas tinha por agora tudo quanto queria. O que me interessava saber era se a engenhoca dava resultado.

Não tive de esperar muito pela resposta. Rina entrou pouco depois no gabinete, com Ilene Gaillard. Deliberadamente dei­xou cair a parte superior do roupão e parou, nua da cintura para cima.

— Caminhe para Mr. Cord — disse a desenhista.

Rina dirigiu-se para mim lentamente. Eu não conseguia afastar os meus olhos dela. Era o mais belo seio que jamais fora dado a um homem contemplar. Parou diante da minha secretária e só então os seus olhos procuraram os meus.

— Está bem? — perguntou, falando pela primeira vez nessa tarde.

Tive noção do esforço de que necessitei para olhá-la no rosto. Os olhos de Rina mostravam-se frios e calculistas. A cabra sabia sempre o efeito que produzia em mim. Principiou a voltar-se.

— Uma outra coisa, Miss Gaillard — disse eu. — Amanhã, quando começarmos a filmar, quero-a num penteador negro, em vez deste branco. Quero que todos compreendam que ela é uma pega e não uma noiva virginal.

— Sim, Mr. Cord. — Ilene aproximou-se da minha secretária com os olhos a cintilar. — Penso que vamos realmente lançar uma nova moda com Miss Marlowe. A não ser que me engane redondamente, as mulheres de todo o mundo vão imi­tá-la quando o filme aparecer. Sorri-lhe.

— Nós não ditamos a moda, Miss Gaillard — declarei-lhe. — As mulheres já eram mulheres muito antes de qualquer de nós ter nascido.

Ela cumprimentou e saiu. Olhei em volta. A reunião tinha terminado e todos se levantavam. Nevada foi o último e chamei-o.

Aproximou-se da mesa. Entretanto verifiquei que a minha secretária continuava sentada, o bloco cheio de sinais estenográficos.

— Que escreveu aí? — perguntei-lhe.

— A acta da reunião.

— Para quê?

— É uma regra da companhia — explicou. — Fazem-se actas de todas as reuniões e são distribuídas cópias.

— Dê-me esse livro.

Suspendi-o sobre o balde dos papéis e cheguei-lhe um fósforo. Quando a chama pegou deixei-o cair no balde e olhei para ela. A rapariga fitava-me com uma expressão de terror.

— Agora ponha esse rabinho a andar daqui para fora — ordenei. — E se alguma vez eu ouvir dizer que o que se pas­sou dentro destas paredes chegou lá fora, pode ir procurando outro emprego.

Nevada sorria quando me voltei para ele:

— Desculpa ter-te falado naqueles termos, Nevada.

— Não teve importância. Júnior. Eu devia ter ficado calado.

— Há muita gente nesta cidade que pensa que eu sou um trouxa e que me deixei levar. Tu e eu sabemos que isso não é verdade mas temos de pôr cobro ao falatório. Não o tolero.

— Compreendo, Júnior. O teu papá era o mesmo. Onde ele estava só havia um patrão.

De repente compreendi até que ponto nos havíamos dis­tanciado. Senti uma momentânea saudade da minha infância, quando podia procurar Nevada sempre que me sentia infeliz. Agora já não era assim. Era exactamente o contrário. Nevada apoiava-se em mim.

— Obrigado, Nevada — disse eu, forçando um sorriso. — E não te preocupes. Tudo correrá bem a partir de agora.

Afastei-me enquanto ele saía do gabinete. Daí a instantes apareceu Dan Pierce. Agarrei num cigarro e acendi-o:

— Pensei no que me disse esta manhã e acho que devemos alterar o argumento. É melhor convocar os argumentistas sem perda de tempo.

Dan sorriu:

— Já os chamei.

Completámos o filme em quatro semanas. Nevada sabia o que se estava a passar mas não disse palavra. Duas semanas depois realizámos a anteestreia num cinema do vale.

Cheguei tarde e o agente de publicidade do estúdio acom­panhou-me:                                        

— Restam apenas uns lugares laterais, Mr. Cord — des­culpou-se ele.

Olhei para o proscénio. Havia um sector isolado para os convidados do estúdio. À cunha! Todo o pessoal da firma, in­cluindo Norman, se encontrava ali. Estavam à minha espera para me lamberem o rabo.

Dirigi-me para o balcão no momento em que as luzes se apagaram e principiou a correr o filme. Procurei o caminho às escuras e encontrei um lugar no meio de um grupo de jovens.

Visto na tela o meu nome parecia bizarro:

 

         JONAS CORD APRESENTA

 

Mas esse sentimento de estranheza desapareceu após a apresentação, logo que a acção principiou. Decorridos dez minutos percebi que a rapaziada à minha volta começava a irri­tar-se.

— Ora bolas — barafustou um. — Pensei que vinha ver uma coisa diferente e é mais um desses malditos filmes do Oeste.

Depois apareceu Rina. Cinco minutos mais tarde, quando olhei à minha volta as caras dos rapazes ofereciam expressões extasiadas, bocas entreabertas, olhos arregalados. Não se ouvia nenhum som além das respirações ofegantes.

Ao meu lado estava sentado um rapaz que comprimia for­temente a mão da companheira contra o regaço. Quando Rina puxou Nevada para a cama, senti o rapazola estremecer.

— Jesus! — suspirou.

Puxei de um cigarro e comecei a sorrir. Não precisava que ninguém me dissesse que este filme era um êxito de bilhe­teira. No final, quando desci ao vestíbulo, encontrei Nevada a um canto, rodeado de rapazitos, assinando autógrafos. Pro­curei Rina. Estava na outra extremidade do vestíbulo, no meio dos repórteres. Bernie Norman pairava junto dela como um pai orgulhoso.

Dan encontrava-se no centro do círculo dos homens. Levan­tou os olhos quando eu apareci.

— Você tinha razão, Jonas — bradou cheio de júbilo. — Ela papou-os. Vamos embolsar dez milhões de dólares!

Fiz-lhe sinal e ele acompanhou-me ao carro.

— Quando isto estiver acabado — disse-lhe — traga a Rina ao meu hotel.

Ele fitou-me:

— A coisa ainda lhe morde, hem?

— Deixe-se de observações, faça o que eu disse.

— E se ela não quiser vir?

— Ela vem. Basta dizer-lhe que é o dia do pagamento.

Era uma hora da madrugada e eu já tomara meia garrafa de whisky quando ouvi uma pancada na porta. Levantei-me e fui abrir.

Rina entrou no quarto e eu fechei a porta. Olhou-me de frente:

— Então?

Apontei o quarto de cama. Ela contemplou-me um mo­mento, depois, encolhendo os ombros, avançou com ar indi­ferente.

— Disse ao Nevada que vinha cá — declarou ela por cima do ombro.

Lancei-lhe o braço à cintura e fi-la rodopiar violenta­mente:

— Porque diabo fizeste uma loucura dessas?

Os olhos dela analisaram-me de alto a baixo:

— Vou casar com Nevada; disse-lhe que queria ser a pri­meira a dar-te a noticia.

Não podia crer no que ouvia.

— Não! — bradei roucamente. — Não podes. Não te deixo. Ele é um velho e está acabado. Tu serás a maior estrela do ci­nema quando este filme for exibido.

— Bem sei.                                        

— Se sabes, então porquê...? Não precisas dele. Não precisas de ninguém.

— Caso com ele porque, quando precisei dele, ajudou-me — disse Rina com toda a calma. — Agora é a minha vez. Ele precisa de mim.

— Ele precisa de ti? Porquê? Porque é demasiado orgu­lhoso para rastejar?

— Isso não é verdade e tu sabe-lo muito bem.

— Fui eu que tive a ideia de fazer de ti uma estrela!

— Não te pedi — ripostou Rina desabridamente. — Nem sequer o desejava. Não penses que não percebi o que fizeste. Cortaste partes do papel dele, erigindo-me como um monu­mento ao teu próprio ego enquanto o arruinavas!

— Não notei que tentasses impedir-me — disse. — Sabe­mos ambos que ele está a acabar. Apareceu um novo tipo de cow-boy. O cow-boy cantor. Usa uma guitarra em vez de um revólver.

— Sabes tudo, não sabes? — A mão dela esbofeteou-me violentamente. Senti a ferroada dos dedos enquanto ela esbra­vejava. — Por isso é que ele precisa de mim mais do que nunca.

Então explodi, agarrando-lhe os ombros e sacudindo-a com violência.

— E eu? Porque julgas que me meti nisto? Não foi pelo Nevada. Foi por ti! Pensaste porventura que quando vim cor­rendo para cá podia precisar também de ti?

Rina olhava-me cheia de cólera.

— Tu nunca precisas de ninguém, Jonas. Se precisasses não terias deixado tua mulher sozinha. Se tivesses quaisquer senti­mentos, mesmo de piedade, terias ido ter com ela ou mandavas chamá-la para cá.

— Não metas minha mulher nisto.

Ela voltou-se para fugir mas a frente do vestido rasgou-se até à cintura. Os seios oscilaram nus e senti então o desejo acen­der-se dentro de mim. Agarrei-a e apertei-a nos braços.

— Rina! — Esmaguei a minha boca contra os lábios dela. — Rina, por favor!

A boca dela debateu-se durante um momento para libertar-se da minha, depois cedeu enquanto os braços me envolviam o pescoço e o corpo se colava ao meu. Estávamos assim quando a porta se abriu.

— Ponham-se lá fora! — bradei, sem me dar ao incómodo de olhar.

— Não desta vez, Jonas!

Empurrei Rina para o quarto; em seguida, voltei-me lenta­mente para dar de cara com meu sogro e outro homem. Por detrás deles encontrava-se Mónica no limiar da porta. Fitei-a. Tinha uma barriga enorme.              

Quando Amos Winthrop falou havia na sua voz o tom cavo do triunfo.

— Dez mil dólares era muito para me dares para a mandar daqui para fora. — Riu com calma. — Quanto pensas que terás de dar para te livrares dela agora?

Ao olhar para Mónica principiei a amaldiçoar-me silenciosa­mente. Amos Winthrop bem podia rir. Eu encontrara Mónica cerca de um mês antes de nos casarmos. Mesmo para os meus olhos leigos ela estava grávida de pelo menos cinco meses. Isso significava que já estava à espera de menino dois meses antes de casarmos.

Voltei a amaldiçoar-me. Não há idiota maior do que um jovem idiota — costumava dizer meu pai. E, como de costume, meu pai tinha razão.

O pão que ela trazia no forno não fora amassado por mim.

 

               A História de RINA MARLOWE

Rina fechou a revista que estivera a ler, dobrando cuida­dosamente o canto da página onde ficara, e deixou-a cair sobre o lenço branco que a cobria.

— Precisas de alguma coisa, querida? — perguntou Ilene, instalada na funda poltrona postada à cabeceira da cama.

Rina observou-a. O rosto de Ilene estava emagrecido pelo sofrimento.

— Vamos — animou Rina. — Que horas são?

Ilene olhou para o relógio:

— Três horas.

— A que horas disse o médico que vinha?

— Às quatro. Precisas de alguma coisa?

Rina sacudiu a cabeça:      

— Não, obrigada. Estou bem. — Pegou outra vez na revista, folheou-a e tornou a atirá-la para cima da colcha. — Muito gostava que me deixassem sair daqui.

Ilene levantara-se e estava à beira da cama olhando para ela.

— Não te impacientes — pediu-lhe. — Em breve sairás. Depois vais lastimar ter saído de cá. Ouvi dizer que no estúdio só esperam que tenhas alta para iniciarem as filmagens de Madame Pompadour.

Rina suspirou:

— Não me digas que vão voltar à velha anedota. Sempre que lhes faltam ideias para um filme vão buscar uma à prateleira e escovam-lhe o pó. Depois fazem grandes anúncios e logo que obtêm toda a publicidade que desejam voltam a arrumá-la no cacifo.

— Desta vez não — disse Ilene com entusiasmo. — Falei ontem com o Bernie Norman em Nova Iorque. Ele tem um novo argumentista a trabalhar na história e garante que desta vez vai sair coisa grandiosa. Diz que tem um fundo social.

Rina sorriu:

— Um fundo social? Quem é o argumentista: Eugene O'Neill?

Ilene arregalou os olhos para ela:

— Afinal já sabias.

— Não. Não sabia — confessou Rina. — Foi apenas um palpite. Verdade que o Bernie contratou o O'Neill?

Ilene moveu a cabeça afirmativamente:

— O Bernie vai mandar-te uma cópia do argumento logo que o O'Neill tenha terminado.

Rina sentiu-se impressionada. Talvez agora Bernie pensasse nele a sério. Um impulso de entusiasmo percorreu-lhe o espírito. O'Neill era um escritor, não um vulgar argumentista de Hollywood. Podia fazer muito com uma história. Mas tão de­pressa como chegara, o entusiasmo abandonou-a deixando-a ainda mais deprimida. Fundo social! Tudo o que se fazia agora trazia esse rótulo. Depois que Roosevelt assumira a presidência.

— Que horas são?

— Três e dez — respondeu Ilene.

Rina recostou-se contra a almofada:

— Porque não vais tomar uma chávena de café?

— Ora! — sorriu. — Não me apetece.

— Passaste aqui o dia todo.        

— Gosto de estar contigo.

— Vai — fez Rina, fechando os olhos. — Penso que vou dormir uma soneca antes de o médico chegar.

Ilene conservou-se junto da cama até ouvir a suave e calma respiração do sono. Ajeitou a colcha e contemplou o rosto de Rina. Os grandes olhos estavam fechados, as faces emaciadas, destacando-se sob a pele tensa os fortes malares. Por debaixo do tom acobreado da Califórnia discernia-se uma palidez azulada.

Debruçou-se e afastou-lhe da testa uma madeixa de cabelo plati­nado; em seguida beijou ao de leve a boca torturada da amiga e saiu do quarto.

A enfermeira, sentada na antecâmara, levantou os olhos.

— Vou lá abaixo tomar um café — disse Ilene. — Ela dorme.

A enfermeira sorriu com a calma profissional.

— Não se preocupe, Miss Gaillard — disse. — O sono é o melhor que lhe pode suceder.                              

Ilene fez um gesto de entendimento e saiu para o corredor. Sentia aquela pressão no peito, a névoa que nas últimas semanas lhe envolvia constantemente os olhos. Deixou o elevador e diri­giu-se para a cantina. Perdida nos seus pensamentos só ouvia a voz do médico quando este lançou a mão ao batente da porta:

— Miss Gaillard?

Momentâneamente sem fala, tudo quanto conseguiu foi responder-lhe com um movimento de cabeça.

— Dá-me licença que lhe faça companhia?

— Com certeza — aquiesceu ela.

Ele sorriu e abriu-lhe a porta. Na cantina escolheram uma mesa a um canto afastado. O doutor fez um sinal a um empre­gado e daí a pouco surgiram diante deles duas chávenas de café.

— E que me diz a um bolo? — perguntou ele. — Pelo seu ar parece-me que não tem comido grande coisa nos últimos dias. — Riu num tom profissional: — Não vale a pena arran­jar uma nova doente neste momento.

— Não, obrigada — disse ela. — O café chega.

O médico pousou a chávena:

— Bom café.

Ela concordou. Depois, dando expressão à primeira ideia que lhe ocorreu, disse:

— Rina está a dormir.

— Excelente — exclamou o médico. Os seus olhos negros cintilaram por detrás das lentes fortes: — Miss Marlowe tem alguns parentes próximos?

— Não — respondeu Ilene vivamente. Depois a inferência atingiu-a. Olhou para o médico: — Quer dizer... ? — A voz per­deu-se.    

— Não quero dizer nada — respondeu o doutor. — Ê apenas porque em casos graves desejamos sempre conhecer a identidade do parente mais próximo para a hipótese de um desenlace.

— Que eu saiba, Rina não tem família.

— E o marido?

— Qual? — perguntou a voz perplexa de Ilene.

— Ela não é casada com Nevada Smith? — perguntou o médico.

— Foi — respondeu Ilene. — Mas divorciaram-se há três anos. Mais tarde casou com Claude Dunbar, o realizador.

— E acabou também em divórcio?

— Não — respondeu Ilene contraindo-se. Os lábios sumiram-se: — Ele suicidou-se pouco depois do casamento.

— Oh — exclamou o médico. — Lastimo a minha ignorância mas nos últimos anos não tenho tido muito tempo para me ocupar de assuntos mundanos.

— Se alguma coisa for preciso fazer penso que é a mim que se devem dirigir — disse Ilene. — Sou a sua maior amiga e além disso ela passou-me procuração.

O doutor fitou-a silenciosamente. Ilene lia o que se passava no espírito do médico, através das grossas lentes das lunetas. Ergueu a cabeça num gesto de desafio. Que importava o que ele pensasse? Que importava afinal o que os outros pensam?

— Já tem os resultados das análises de sangue?

O médico fez que não com a cabeça. Ela tentou evitar que a voz tremesse:

— É leucemia?

— Não — disse ele e viu a esperança renascer nos olhos de Ilene. Falou então rapidamente para lhe evitar a dor do maior desapontamento. — É o que pensávamos. Encefalite. — Notou que ela não percebera. — Às vezes chamam-lhe doença do sono.

Ilene não queria abandonar a esperança:

— Ela tem alguma probabilidade...?

— Muito fraca — disse o médico sem deixar de observá-la. — Mas se sobreviver não poderemos saber em que estado ficará.

— Que quer dizer? — perguntou Ilene num tom rouco.

— A encefalite é um vírus que se instala no cérebro — expli­cou pausadamente. — Nos próximos quatro ou cinco dias, enquanto o vírus se desenvolve com intensidade dentro dela, fica sujeita a elevadíssimas temperaturas. Durante esses ataques febris o vírus ataca o cérebro. Sómente depois de desaparecer a febre poderemos saber até que ponto ficou afectada.

— Quer dizer que ela pode perder a razão? — Os olhos de Ilene estavam dilatados de terror.                          

— Não sei — disse o médico. — O dano é susceptível de assumir várias formas. A mente; pode ficar total ou parcialmente paralisada; poderá até esquecer-se do próprio nome. Os efeitos residuais assemelham-se aos de uma congestão. Depende da parte do cérebro que foi atingida.

Um terror histérico apoderou-se de Ilene. Para dominá-lo susteve a respiração, empalidecendo.

— Respire fundo e tome um golinho de água — recomendou o médico.      

Ela seguiu o conselho e a cor voltou-lhe ao rosto.

— Façam tudo o que puderem, sim?

— Estamos a fazer tudo o que podemos. Conhecemos muito pouco dessa doença; tão-pouco sabemos como se transmite. Na sua forma mais comum, nos países tropicais, pensa-se que é transportada por insectos e inoculada pelas suas picadas. Mas aparecem muitos casos nos Estados Unidos e noutros países sem que se descubra a causa.

— Regressámos da África há três meses — contou Ilene. — Estivemos lá a fazer um filme.

— Bem sei. Miss Marlowe falou-me nisso. Foi por aí que comecei a suspeitar.

— Mas mais ninguém adoeceu — referiu Ilene. — E esti­vemos todos lá, durante três meses, vivendo exactamente da mesma maneira, nos mesmos lugares.

O médico encolheu os ombros:  

— Como lhe disse, não temos conhecimento exacto do que causa a doença.                  

Ela fitou-o. Uma nota de desespero atravessou a sua voz:

— Porque não me sucedeu a mim? A vida ainda lhe ofe­recia tanto!

O médico debruçou-se e afagou-lhe a mão. Aquele gesto meigo desfez as prevenções de Ilene contra ele, como homem.

— Quantas vezes já ouvi eu essa pergunta! — observou ele. — E ainda hoje sou tão incapaz de lhe responder como quando comecei a minha carreira.

Ilene fitou-o cheia de gratidão e viu os olhos negros do médico dilatarem-se por detrás dos óculos.

— De que servia? — disse ele. — Deixemo-la sonhar os seus sonhos.

Rina ouviu as vozes confusas do outro lado da porta. Sentia-se cansada — cansada e desinteressada—, e tudo em volta dela era uma nuvem esborratada, suave. Vagamente pensou que talvez o sonho tornasse a procurá-la. As suas arestas cortantes principiavam a penetrar-lhe na mente. Bom. Estava a chegar.

Suavemente, confortávelmente, deixava-se agora deslizar para dentro do sonho. E cada vez mais se sentia penetrar nele. Sorriu, de modo inconsciente, e ocultou o rosto na almofada. Agora o sonho envolvia-a. O sonho da morte que sonhara sempre, desde menina.

Fazia frio no pátio à sombra das grandes macieiras. Rina, sentada na relva, brincava com as bonecas em torno da pequena prancha de madeira que servia de mesa.

— Vamos, Susie — recomendou à boneca de cabelos negros. — Não deves engolir a comida sem mastigar.

Os olhos negros da boneca fitavam-na inexpressivamente.

— Oh, Susie! — disse ela fingindo aborrecimento. — Sujaste o vestido todo! Agora tens de mudar de roupa outra vez.

Pegou na boneca e despiu-a rapidamente. Depois lavou as roupas num tanque imaginário e passou-as a ferro.

— Agora conserva-te limpa — recomendou simulando irri­tação.

Voltou-se para a outra boneca, com um sorriso:

— Estás a gostar da papinha, Mary? Come-a toda. Ficarás grande e forte.

De vez em quando lançava um olhar à mansão. Gostava de ficar sozinha. Isso não sucedia com frequência. Em geral uma ou outra das criadas vinha chamá-la para dentro, e a mãe repreen­dia-a dizendo-lhe que não devia afastar-se para o pátio, que devia ficar perto da porta da cozinha.

Mas ela não gostava de estar ali. Era um sítio demasiado quente e em vez de relva só havia pó. Além disso ficava perto da cavalariça e do cheiro dos cavalos. Não compreendia o motivo por que a mãe se zangava tanto. Mr. e Mrs. Marlowe nunca diziam nada quando a encontravam cá fora. Uma vez, até, Mr. Marlowe pegara-lhe e levantara-a acima da cabeça, fazen­do-lhe cócegas, com o bigode, e ela soltara risadas histéricas.

Mas quando regressara a casa a mãe zangara-se, dera-lhe açoites e mandara-a passar o resto da tarde fechada no quarto. Esse era o pior dos castigos. Gostava de ficar na cozinha en­quanto a mãe cozinhava o jantar. Cheirava tão bem. Todos diziam que a mãe era a melhor cozinheira que os Marlowes tinham tido nos últimos anos.

Ouviu passos e ergueu os olhos. Ronald Marlowe atirou-se para a relva, ao lado dela. Rina voltou a ocupar-se de Susie e depois perguntou num tom natural:

— Queres jantar, Laddie?

Ele fungou desdenhosamente do alto da superioridade dos seus oito anos:        

— Não vejo nada de comer.

Rina virou-se para ele.

— É porque não tens olhos — disse. Meteu-lhe na mão um prato de boneca. — Come. Faz--te bem.

Com relutância, ele fingiu comer. Mas aborreceu-se depressa e levantou-se.                                          

— Tenho fome — declarou. — Vou a casa ver se arranjo comida a valer.  

— Não há!

— Porquê?  

— Porque a minha mamã continua doente e não há ninguém para cozinhar.

— Arranjarei qualquer coisa — disse ele num tom con­fidencial.

Rina viu-o voltar as costas e afastar-se. Começava a anoitecer quando Molly, a criada de quartos, veio procurá-la. Trazia a cara vermelha de chorar.        

— Vem, querida — disse ela pegando em Rina ao colo — A tua mamã quer ver-te.

Peters, o cocheiro, estava lá, bem como Mary, a criada de fora, e Annie, a criada da copa. Estavam todos de pé em volta da cama da mãe e abriram caminho para ela quando chegou. Havia também um homem de negro empunhando um crucifixo.

Rina ficou muito quieta à beira da cama, contemplando sole­nemente a mãe. Parecia linda, com o rosto muito branco e calmo, o cabelo platinado muito bem escovado para trás. Rina aproximou-se mais da cama. Os lábios da mãe moveram-se mas a criança não conseguiu ouvir o que diziam. O homem de negro pegou nela:

— Beija tua mãe, minha filha — ordenou.

Obedientemente Rina beijou a face da mãe. Sentiu frio nos lábios. A mãe sorriu e fechou os olhos, depois, de súbito, tornou a abri-los e ficaram pregados no tecto, sem expressão. Com um gesto rápido o homem de negro transferiu Rina para o outro braço e debruçando-se fechou os olhos da mãe.

Molly estendeu os braços e o homem entregou-lhe Rina. Esta olhou para a mãe. Dormia agora. Parecia tão bela como nas madrugadas em que Rina acordava mais cedo e ia postar-se na beira da cama a contemplar-lhe o rosto.

A menina olhou em volta do quarto para os outros. As rapa­rigas choravam e o próprio Peters, o cocheiro, tinha lágrimas nos olhos. Voltou-se para Molly.

— Porque choram? — perguntou solenemente. — A mamã morreu?              

Novas lágrimas irromperam dos olhos de Molly. Apertou Rina contra o peito.  

— Sossega, minha filha — murmurou. — Estamos a chorar porque gostamos dela.

Saiu do quarto com a criança nos braços. Quando a porta se fechou Rina procurou-lhe o rosto com os olhos:

— A mamã levanta-se amanhã para fazer o pequeno-almoço?

Molly fitou-a numa súbita compreensão. Caiu de joelhos no patamar no alto da escada de serviço. Toda ela tremia com a criança nos braços.

— Oh, minha pobre filhinha, minha pobre órfã — soluçou.

Rina olhava para ela e pouco depois, contagiada pelas lá­grimas, desatou também a chorar. Mas não sabia muito bem porquê.

Peters entrou na cozinha quando o pessoal estava a jantar. Rina ergueu os olhos e sorriu.

— Olha, Mr. Peters. — Riu muito feliz. — Tenho três sobre­mesas!

Molly olhou para ela.

— Quietinha, filha — disse, com os olhos a encherem-se novamente de lágrimas. — Come o sorvete.

— Falei com o patrão — disse Peters. — Ele diz que podemos levá-la para o meu quarto, por cima da estrebaria. E o padre Nolan acha que podemos sepultá-la em St. Thomas.

— Mas como pode ser isso? — exclamou Molly. — Nem sabemos se ela era católica? Se nem uma única vez, nos três anos que cá passou, foi à missa.

— Que é que isso tem? — perguntou Peters irritado. — Não se confessou ela ao padre Nolan? Não recebeu dele os últimos sacramentos? O padre Nolan considera-a católica.        

Mary, a criada de fora, a mais velha das três, fez com a cabeça um gesto de assentimento e disse em seguida:        

— Acho que o padre Nolan tem razão. Talvez ela tivesse cometido um pecado e tivesse medo de ir à missa mas no fim voltou para a Igreja.

Peters encolheu os ombros num gesto de enfática concor­dância.

— Está portanto arrumado o assunto — disse, dirigindo-se para a porta. Parou e olhou mais uma vez para as criadas. — Molly, a criança dorme esta noite contigo. Eu vou ao bar pedir aos rapazes uma ajuda para a mudarmos. O padre Nolan disse-me que mandaria Mr. Collins para amortalhá-la. Garantiu-me que a igreja paga.

— Oh, o padre é muito bom — disse Mary.

— Bendito seja — fez Annie, benzendo-se.

— Posso comer mais sorvete? — perguntou Rina.

Bateram à porta e Molly foi abri-la.

— Oh, minha senhora — murmurou ela.

— Vim ver se a menina está bem — disse Geraldine Marlowe.

Molly recuou um passo:

— Não quer entrar, minha senhora?

Mrs. Marlowe olhou para a cama. Rina dormia profunda­mente no meio das bonecas, Susie e Mary. O cabelo platinado caía-lhe em caracóis sobre o rosto:            

— Como está ela?

— Bem, minha senhora. A pobrezinha ficou tão cansada com todo aquele burburinho que adormeceu como uma pedra. Felizmente não compreendeu. É muito novinha.

Geraldine Marlowe baixou de novo o olhar para a menina. Por um momento pensou no que seria se tivesse sido ela a partir deixando o seu Laddie só e sem mãe. Embora, de certo modo, isso fosse diferente, pois a Laddie restaria o pai.

Recordava-se do dia em que contratara a mãe de Rina. As suas credenciais eram muito boas embora não trabalhasse há vários anos.

— Tenho uma filha — dissera ela no seu inglês correcto que aprendera num colégio. — Uma menina de dois anos.

— E seu marido, Mistress Osterlaag?

— Foi para o fundo com o navio. Nunca viu a filha. — Pusera os olhos no chão. — Tivemos esta filha já tarde, minha senhora. Nós os finlandeses não casamos novos; esperamos até ter meios para poder fazê-lo. Vivi das nossas economias enquanto me foi possível mas agora preciso de trabalhar.

Mrs. Marlowe hesitara, uma criança de dois anos podia tor­nar-se num embaraço.

— Rina não causará problemas, minha senhora. É boa me­nina e muito sossegada. Pode dormir no meu quarto e concordo que a alimentação dela seja descontada do meu ordenado.

Mrs. Marlowe sempre desejara ter uma filha mas quando Laddie nasceu o médico disse-lhe que não podia gerar mais filhos. Seria bom para o Laddie ter alguém com quem brincar, pois estava a ficar estragado com mimos.

Subitamente sorriu:

— Não se desconta nada no seu ordenado, Mistress Oster­laag. Afinal de contas que pode comer uma pequerrucha?

Isso fora há quase três anos. E a mãe de Rina falara ver­dade. A menina não causava embaraços.

— Que vai ser da criança, minha senhora? — murmurou Molly.

Mrs. Marlowe voltou-se para a criada.

— Não sei — respondeu, pensando no caso pela primeira vez. — Mr. Marlowe vai tentar saber amanhã na cidade se ela tem parentes.

Molly sacudiu a cabeça:

— A mãe sempre disse que não tinham qualquer família. — Os olhos principiaram a encher-se de lágrimas. — Oh, a pobre queridinha. Agora terá de ir para o orfanato.

Mrs. Marlowe sentiu uma bola apertar-lhe a garganta. Olhou para Rina que dormia tranquilamente na cama. Sentia as lágrimas a formarem-se-lhe nos olhos.

— Pare de chorar, Molly — disse com forçada rispidez. — Tenho a certeza de que ela não irá para o orfanato. Mr. Marlowe há-de descobrir alguém da família.

— Mas se não descobrir?

— Pensaremos noutra solução — disse ela. Atravessou o quarto e penetrou na passagem estreita do corredor. Ouviu um som de movimentos produzidos atrás dela. Voltou-se.    

— Cuidado agora, rapazes — ouviu ela Peters recomendar. Depois o cocheiro apareceu nos umbrais do vestíbulo. Ela apertou-se contra a parede para deixá-los passar.

— Desculpe, minha senhora — disse ele, o rosto vermelho do esforço. — Um dever muito penoso.

Passaram por ela com o fardo amortalhado, impregnando a atmosfera saturada de calor com um ténue mas inequí­voco odor a cerveja. Ela pensou se teria feito bem quando convenceu o marido a deixá-los usar o quarto por cima da estre­baria como câmara-ardente. Uma velada fúnebre com irlandeses podia muito bem terminar numa bebedeira escandalosa.

Ficou a ouvi-los subir a escada com Bertha Osterlaag nascida numa pequena aldeia do litoral finlandês, que ia ser sepultada em terra que não era a dela.

Harrison Marlowe avistou através da porta a cabeça da mulher debruçada sobre o bordado. Atravessou o quarto na ponta dos pés e curvando-se sobre a cadeira beijou-a de sur­presa na face. A voz da mulher reagiu, como sempre, deliciada:

— Oh, Harry! Se as criadas vêem?

— Esta noite não vêem. — Riu. — Estão todas ocupadas na festa. Vi a Mary vestida a rigor.

Na voz da mulher havia agora uma nota de censura:

— Sabes muito bem que não é uma festa.

Ele postou-se diante da mulher, sempre a sorrir.

— Bem sei que não lhe chamam assim — disse ele. — Mas os irlandeses fazem de tudo uma festa. — Encaminhou-se para o aparador: — Tomas um sherry antes de jantar?          

— Acho que hoje prefiro um martini, se não te importares, querido — disse Geraldine hesitante.

Ele observou-a, surpreendido. Quando tinham ido passar a lua-de-mel na Europa, um empregado de bar iniciara-os na nova bebida e desde então aquilo servira sempre como unia espécie de sinal entre eles.

— Certamente, minha querida — anuiu ele. Puxou o cordão da campainha. Mary apareceu à entrada da porta. — Faça favor traz-nos gelo pilado, Mary.

A rapariga cumprimentou e desapareceu. Ele tornou ao aparador de onde retirou uma garrafa de gin, uma de vermute francês e uma garrafinha de bitter. Servindo-se de um misturador graduado lançou dentro três medidas de gin e uma de vermute.

Em seguida deixou cair quatro gotas de bitter. Nessa altura já o gelo chegara e encheu com ele o misturador, até à borda. Colocou-lhe a tampa, com jeito, e principiou a agitá-lo vigo-rosamente. Quando sentiu que a bebida se encontrava bastante gelada desatarraxou cuidadosamente a tampa do misturador e deitou o conteúdo nos cálices. Em seguida, lançou uma azeitona verde dentro de cada cálice, e recuou para apreciar, satisfeito, o resultado. Os cálices estavam muito cheios — nem uma gota mais levariam.

Geraldine Marlowe levou o dela aos lábios. Enrugou o nariz.

— Está delicioso — murmurou.                        

— Obrigado — disse ele erguendo o seu cálice. — À tua saúde, minha querida.

Em seguida, poisando o cálice, olhou com curiosidade para a mulher. Talvez fosse verdade o que se dizia — que as mulheres só florescem com a idade e que então o desejo delas aumenta. Fez rápidos cálculos mentais. Ele tinha trinta e quatro anos; Geraldine trinta e um. Casados há sete anos, com excepção da lua-de-mel a vida deles pautara-se pela regu­laridade. Mas agora, duas vezes em menos de uma semana. Talvez fosse verdade.

Se assim fosse, encantado da vida. Amava a mulher. Somente por essa razão se mudara para aquela casa de South Street. Para lhe poupar a humilhação de ter de tolerá-lo para além do que ela própria desejasse. Tornou a erguer o cálice.

— Descobriste hoje alguma coisa sobre a família de Bertha? — perguntou ela.

Harrison Marlowe sacudiu a cabeça:

— Não se encontra ninguém. Talvez vivam parentes na Europa mas nem sequer sabemos de que cidade vieram.

Geraldine olhou para a bebida. A sua cor de um doirado pálido cintilou no pequeno copo.  

— Que coisa horrível — fez ela. — Que vai suceder agora à menina?

Harrison encolheu os ombros:

— Não sei. Suponho que tenho de notificar as autoridades. É provável que tenha de ir para o orfanato distrital.

— Mas podemos consentir numa coisa dessas? — As palavras brotaram espontâneamente dos lábios de Geraldine.

Harrison fitou-a surpreso.

— Porque não? — perguntou. — Não vejo outra solução.

— Não podemos ficar com ela?

— Não é simples — disse ele. — Há certas formalidades. Uma criança órfã não é propriamente uma coisa. Não se pode ficar com ela pelo simples facto de ter sido deixada na nossa casa.

— Tu podias falar às autoridades — disse Geraldine. — Tenho a certeza de que preferirão deixá-la connosco a trans­formá-la num encargo público.

— Não sei. Podem exigir que a adoptemos para se garantirem contra a possibilidade de a repelirmos mais tarde.

— Harry, que ideia maravilhosa! — Geraldine sorriu e le­vantando-se aproximou-se do marido. — Imagina tu, nunca me ter ocorrido isso.

— Isso o quê?

— Adoptar Rina. Sinto tanto orgulho por ti. Tens sempre ideias maravilhosas. Pensas em tudo.

Harrison ficou a olhá-la, sem falar.

Ela passou-lhe os braços em torno do pescoço.

— Além disso sempre quiseste uma menina na casa, não é verdade? E Laddie sentir-se-ia muito feliz com uma irmãzinha.

Harrison notou a pressão insistente do corpo da mulher e o despertar do desejo dentro dele. Geraldine deu-lhe um beijo breve nos lábios e, rapidamente, voltou a cara com um acesso de timidez ao sentir a reacção imediata do marido.

— Não sei o que tenho — murmurou ela ocultando o rosto no ombro dele. — Importas-te que eu tome outro martini?

Dandy Jim Gallahan encontrava-se no meio do gabinete, olhando para eles. Cofiava pensativamente o queixo.

— Não sei — murmurou. — O que vocês pedem é difícil.

— Mas, senhor mayor — interveio rapidamente Geraldine Marlowe —, o senhor pode consegui-lo.

O mayor sacudiu a cabeça:

— Não é tão fácil como julga, minha cara senhora. Esque­ceu-se de que a Igreja também tem a palavra. Afinal de contas a mãe era católica e não se pode entregar sem mais nem menos uma criança católica a uma família protestante. Pelo menos não em Boston. Nunca o tolerariam.

Geraldine mostrava abertamente no rosto o desaponta­mento que sentia. Foi então que viu que o marido era algo mais do que o bonito rapagão de Harvard com quem casara.

Harrison deu um passo em frente e na sua voz havia um tom dominador que ela nunca escutara até então:

— A Igreja ficaria ainda menos contente se eu provasse que a mãe dela nunca foi católica. Então, sim, é que ficariam a fazer uma triste figura, não acha?

O mayor voltou-se para ele:

— E tem essa prova?

— Tenho — disse Marlowe. Tirou do bolso uma folha de papel. — O passaporte da mãe e a certidão de nascimento da criança. Os dois documentos declaram insofismávelmente que são protestantes.

Dandy Jim pegou nos papéis e analisou-os.

— Se sabia isto porque não impediu o funeral católico?

— Como podia fazê-lo? — respondeu Marlowe. — Só re­cebi estes documentos hoje. Os criados e o padre Nolan tra­taram de tudo a noite passada. Demais, que diferença faz isso para a pobre mulher? Foi sepultada como cristã, é o que interessa.

Dandy Jim fez um gesto de aprovação e devolveu os do­cumentos.

— Isso vai tornar-se muito embaraçoso para o padre Nolan — disse ele. — Um jovem pároco cometer um erro desses! O bispo não vai ficar nada satisfeito.

— O bispo não precisa saber — afirmou Marlowe.

Dandy Jim fitou-o com ar pensativo mas manteve-se calado.

Marlowe insistiu:

— No próximo ano temos eleições.

Dandy Jim confirmou com um gesto:

— Há sempre eleições.

— É verdade — disse Marlowe. — E haverá mais eleições e mais campanhas. Um candidato necessita de fundos quase tanto como de votos.

Dandy Jim sorriu:

— Já alguma vez lhe contei que fui procurar seu pai?

Marlowe correspondeu ao sorriso:

— Não, não contou. Mas meu pai falou-me no caso muitas vezes. Disse-me como é que tinha corrido consigo para fora do gabinete.

Dandy Jim abanou a cabeça afirmativamente:

— É verdade. Seu pai possuía um temperamento irascível. A gente quase o tomava por irlandês. E tudo o que fiz foi pedir-lhe uma pequena contribuição para a minha campanha. Isso foi há cerca de vinte anos. Nessa altura eu concorria ao Conselho Municipal. Sabe o que ele me disse então?

Marlowe abanou a cabeça.

— Jurou que se eu conseguisse qualquer cargo, ainda que fosse o de apanha-cães, ele saía da cidade com a família. — Dandy Jim sorria. — O velhote não gostará de saber que o filho contribui com fundos para a minha campanha.

Marlowe manteve-se firme.

— Meu pai é meu pai e respeito-o muito — declarou —, mas o que eu faço com o meu dinheiro e com a minha orienta­ção política não lhe diz respeito.

— Têm outros filhos? — perguntou Dandy Jim.

— Um rapaz — respondeu Geraldine. — Laddie tem oito anos.

Dandy Jim sorria:

— Não sei — disse. — Um destes dias as mulheres vão ter direito de voto e se essa pequerrucha for criada no orfanato é um voto que eu perco.

— Prometo-lhe uma coisa, senhor mayor — atalhou Geral­dine vivamente. — Se esse dia chegar, o meu pessoal feminino votará todo por si.

O sorriso de Dandy Jim alargou-se. Curvou-se numa pe­quena vénia:

— O fraco dos políticos é estarem sempre a aceitar com­promissos.

No dia seguinte, Timothy Kelly, o secretário do mayor, passou pelo banco de Marlowe onde recebeu um cheque de quinhentos dólares. Sugeriu a Marlowe que falasse com um determinado juiz do tribunal distrital.

Foi aí que se realizou a adopção. Rápida, calma e legal­mente. Quando Marlowe saiu do gabinete do juiz deixou nos arquivos uma certidão de nascimento de uma criança branca, do sexo feminino, chamada Katrina Osterlaag.

No seu bolso trazia uma certidão de nascimento em nome de sua filha, Rina Marlowe.

Debaixo do guarda-sol aberto e cravado na areia, Geraldine Marlowe encontrava-se sentada numa cadeira de lona com a sombrinha ao lado. Lentamente, refrescava-se com o leque.

— Não me lembro de outro Estio tão quente — murmurou ofegante. — Devemos ter mais de quarenta aqui à sombra.

O marido resmungou na cadeira vizinha, ainda mergu­lhado nos jornais de Boston que chegavam a Cape com um dia de atraso.                  

— Que disseste, Harry?

Marlowe dobrou os jornais e voltou-se para a mulher:

— Que este Wilson é um imbecil.

Geraldine continuava a olhar para o mar:  

— Porque dizes isso, querido?

Ele desferiu uma palmada vigorosa no jornal:

— Essa história da Sociedade das Nações. Ele diz agora que vai à Europa para garantir a estabilidade da paz.

Geraldine desviou o olhar na direcção do marido.

— Acho isso uma ideia maravilhosa — disse em tom brando. — Afinal de contas tivemos sorte desta vez. Laddie era dema­siado novo para ser convocado. Da próxima vez pode ser dife­rente.

Marlowe resmungou de novo:

— Não haverá próxima vez. A Alemanha ficou de rastos para sempre. Além disso, que podem eles contra nós? Estão do outro lado do oceano. Podemos ficar aqui na calma dei­xando-os matarem-se uns aos outros à vontade se lhes apete­cer desencadear nova guerra.

Geraldine encolheu os ombros.

— É melhor chegares-te mais para a sombra, querido. — disse ela. — Sabes que o sol te faz mal.

Harrison Marlowe levantou-se e deslocou a cadeira mais para debaixo da sombrinha. Acomodou-se de novo com um suspiro e tornou a desdobrar o jornal.

Rina apareceu nesse instante diante da mãe.

— Já almocei há uma hora, mãe — disse. — Não podo ir tomar banho agora?

— Não posso — emendou Geraldine automáticamente. Olhou para Rina. Crescera muito nesse Verão. Ninguém diria que tinha apenas treze anos.

Era alta para a idade, apenas dois centímetros mais baixa que Laddie. O cabelo ficara completamente prateado com o sol e a pele estava tão bronzeada que, por contraste, os olhos em forma de amêndoa pareciam claros. As pernas eram esguias e graciosas, as ancas principiavam a tomar vulto e os seios debaixo do fato de banho dir-se-iam os de uma rapariga de dezasseis anos.

— Posso, mãe? — insistiu Rina.

— Podes — respondeu Geraldine. — Mas tem cuidado, querida, não nades para muito longe. Não quero que te canses.

Mas Rina já tinha partido. Geraldine Marlowe sorriu. A pequena era assim; não se parecia com nenhuma das outras raparigas que conhecia. Rina não se comportava como uma rapariga. Nadava e vencia qualquer dos amigos de Laddie e eles sabiam-no. Não fingia receio da água nem dos efeitos do sol. Não se importava de ficar com a pele queimada.

Harrison Marlowe ergueu os olhos do jornal:  

— Tenho de ir amanha à cidade. Vamos concluir o emprés­timo Standish.

— Sim, querido. — As vozes agudas das crianças chega­vam-lhe aos ouvidos. — Temos de fazer qualquer coisa pela Rina — disse ela num tom pensativo.

— Rina? — exclamou ele. — Que se passa com a Rina?

Geraldine voltou-se para o marido:

— Não reparaste? A nossa menina cresceu.

Harrison pigarreou:

— Hum, sim. Mas continua a ser uma criança.

Geraldine Marlowe sorriu. Era verdade o que se dizia dos pais. Falavam mais dos filhos mas intimamente eram mais cegos com as filhas.

— Ela já é mulherzinha desde o ano passado — revelou Geraldine.

O rosto do marido enrubesceu enquanto desviava os olhos para o jornal. De uma maneira vaga ele sabia-o mas nunca haviam falado do caso abertamente. Pôs-se a contemplar o mar tentando descobrir Rina no meio daquela multidão esbracejante.

— Não achas que devíamos chamá-la? — perguntou. — É perigoso nadar tão fora de pé.

Geraldine sorriu para o marido. Pobre Harrison. Lia nele como num livro aberto. Não era da água que ele tinha receio, era dos rapazes. Sacudiu a cabeça:

— Não. Ela está perfeitamente segura ali. Nada como um peixe.

O olhar embaraçado do marido cruzou o dela.

— Não te parece que devias ter uma conversazinha com ela? Explicar-lhe umas coisas. Sabes, como eu fiz com o Laddie há dois anos.

O sorriso de Geraldine tornou-se maldoso. Adorava ver o marido, geralmente muito seguro de si, muito firme nas suas convicções, hesitar e tornear o assunto como desta vez.

— Não sejas tolo, Harry. — Riu. — Não há necessidade de explicar-lhe seja o que for agora. Quando uma coisa daque­las sucede é natural elucidar uma rapariga sobre tudo o que deve conhecer.

— Oh, bem — fez ele num tom de alívio.

Geraldine assumiu de novo um ar pensativo:

— Penso que Rina é uma dessas felizes raparigas que transi­tam da infância para a adolescência sem passarem pelas habi­tuais fases embaraçosas — disse ela. — Não se vislumbra nela a timidez da idade e a pele não apresenta uma única espi­nha. O contrário do que sucedeu com o Laddie na idade dela.

Voltou-se para o mar:

— Mas precisamos mesmo assim de fazer qualquer coisa pela Rina. Por exemplo, temos de comprar-lhe soutiens.

Marlowe manteve-se calado e Geraldine olhou outra vez para ele:

— Penso que ela já tem tanto busto como eu. Espero que não se torne excessivamente grande. Vai ser uma rapariga muito linda.

Harrison sorriu:                          

— Porque não havia de ser?

Ela procurou-lhe a mão retribuindo o sorriso. Ambos sabiam o que ele queria dizer. Nenhum sequer pensava que Rina não fosse filha deles.

— Importavas-te que eu fosse passar a noite à cidade con­tigo? — perguntou Geraldine. — Seria bom passarmos uma noite num hotel.

O marido apertou-lhe a mão:

— Seria até muito bom.

— A Molly poderia olhar pelas crianças — disse ela. — E amanhã, antes de regressarmos, eu teria tempo de fazer umas compras.

Harrison fingiu um tom solene:

— De acordo. A vivenda aqui está demasiado cheia. Telefonarei para o hotel e providenciarei para que tenham um misturador cheio de martinis quando chegarmos.

Ela soltou-lhe a mão.

— Seu patife! — exclamou sorrindo.

Rina nadava com braçadas enérgicas e certas, os olhos cravados na jangada de mergulhos que ficava para além da ressaca. Laddie devia lá estar com o amigo, Tommy Randall. Ela emergiu da água quase por debaixo dos pés deles. Os rapazes estavam deitados de costas, caras ao sol, e sentaram-se quando Rina principiou a subir para a prancha.

O rosto de Laddie traiu o aborrecimento que sentia pela invasão dos seus domínios.

— Porque não voltas para junto das raparigas? — per­guntou.

— Tenho tanto direito a estar aqui como vocês — respon­deu depois de retomar fôlego e de apertar as alças do fato de banho demasiado pequeno.

— Ah, deixa lá — disse Tommy erguendo os olhos. — Ela pode ficar.

Rina lançou-lhe uma olhadela de soslaio e surpreendeu-o a contemplar-lhe os seios seminus. Foi nesse momento exacto que ela se transformou numa mulher.

O próprio Laddie lançava-lhe miradas estranhas que até então Rina nunca surpreendera nos olhos do rapaz. Instintiva­mente baixou as mãos sobre os flancos. Se o preço de estar ali fosse deixar-se olhar, então que olhassem. Sentou-se diante deles, sentindo sempre no corpo o peso da curiosidade dos rapazes.

Uma dor aguda começou a palpitar-lhe nos seios e Rina baixou os olhos para contemplá-los. Os bicos ressaltavam agora nitidamente debaixo do tecido de lã negra. Ergueu de novo os olhos para os rapazes. Eles fitavam-na com ares apreciadores.

— Para onde estão a olhar?

Os dois rapazes trocaram uma olhadela rápida, emba­raçada, e voltaram a cara. Tommy fixou a atenção no mar e Laddie na prancha da jangada.

Rina insistiu com Laddie:

— Então?

O rapaz principiou a corar.

— Bem vi. Vocês estavam a olhar para o meu peito — insis­tiu ela acusadoramente.

Os rapazes trocaram novas olhadelas rápidas. Laddie pôs-se de pé.

— Vamos, Tommy — disse. — Há gente de mais por aqui.

Mergulhou da prancha e pouco depois o amigo seguiu-o. Rina ficou um momento a vê-los nadar para terra, em seguida estendeu-se de costas na jangada fitando o céu rutilante. Os ra­pazes sempre eram criaturas muito bizarras, pensou.

O fato de banho apertado magoava-lhe os seios. Com um gesto de ombros libertou-os e pôs-se a analisar-se. Os seios salientavam-se brancos contra a pele acobreada dos braços e da garganta e os mamilos estavam rosados e cheios, como nunca os vira.

Quase timidamente tocou-lhes com os dedos. Estavam duros como caroços e sentiu uma ligeira dor, tépida e agradável, percorrer-lhe o corpo. O calor do sol principiava a penetrá-los causando-lhe uma singular irritação. Começou a acariciá-los e o calor foi-se derramando pouco a pouco pelo corpo. Sentia-se envolvida por um atordoamento estranho que lhe proporcionava um prazer até então ignorado.

Defronte do espelho, Rina ajustava as alças do soutien. Respirou fundo. Voltou-se para a mãe sentada à beira da cama.

— Pronto, mamã — anunciou orgulhosamente. — Que achas?

Geraldine contemplou a filha com um ar de dúvida:

— Talvez se apertasses um pouco mais... — sugeriu, hesitante.

— Tentei, mãe — respondeu a rapariga. — Mas não posso. Corta-me o peito.

Geraldine aprovou com um gesto de compreensão. Para a próxima vez compraria um tamanho acima — mas quem poderia adivinhar que o número trinta e quatro ficasse apertado num busto tão gracioso?

Rina tornou a examinar com satisfação a sua imagem no espelho. Agora começava a exteriorizar mais aquilo que sentia. Surpreendeu o olhar da mãe a observá-la.

— Também podias comprar-me novos fatos de banho, mãe? — perguntou. — Os que tenho ficam-me muito apertados.

— Estava a pensar nisso — respondeu a senhora. — E uns vestidos novos também. Talvez o pai nos leve de carro a Hyannis Port depois do pequeno-almoço.

Rina sorriu feliz e correu para a mãe. Abraçou-a.

— Oh, obrigada, mãe! — exclamou cheia de contentamento.

Geraldine puxou a cabeça da filha para o seio. Beijou a cabeça loura e ergueu-lhe o rosto com gesto meigo. Contemplou os olhos da filha enquanto com a ponta dos dedos lhe afagava suavemente o queixo.

— Que sucede com a minha pequenina? — perguntou quase triste.

Rina pegou na mão da mãe e beijou-lhe a palma aberta.

— Nada, mãe — disse com a confiança e a certeza que se haviam tornado parte do seu ser. — Nada senão aquilo que me disseste. Estou a crescer.

Geraldine contemplou o rosto da filha. Sentiu os olhos ve­larem-se.

— Não tenhas muita pressa, minha pequerrucha — pediu apertando mais a cabeça de Rina contra o peito. — A infância não dura muitos anos.

Mas Rina mal a ouviu. E se a tivesse ouvido dificilmente teria compreendido o sentido daquelas palavras. Porque não passavam de palavras e as palavras eram tão impotentes contra as estranhas forças que nela despertavam como as vagas batendo em vão contra os rochedos por debaixo da sua janela.

Laddie voltou-se e atirou rapidamente a bola para a primeira base. O corredor rodopiou e deslizou para desatar a correr, levantando com os calcanhares uma fina nuvem de pó. Quando a poeira assentou ouviu-se o árbitro apitar e o jogo estava ter­minado.

Os rapazes juntaram-se em volta dele dando-lhe palmadinhas de felicitações:

— Belo jogo, Laddie! Bela bola!

Depois dispersaram e Laddie encontrou-se sózinho com Tommy no caminho da praia.

— Que fazes esta tarde? — perguntou Tommy.

Laddie encolheu os ombros:

— Nada.

— No Bijou estrearam um filme novo — insinuou Tommy.

— Vi-o em Boston — disse Laddie olhando para o amigo. — Quando é que a Joan volta?

— A minha prima? — perguntou Tommy.

— Conheces mais alguém com esse nome?

— Talvez neste fim-de-semana — respondeu Tommy.

— Então vamos com ela ao cinema.

— Combinado! — concordou Tommy. — Tu ficas servido, mas eu? Não tem piada nenhuma ficar ao lado de vocês a vê-los namorar. Quem há-de ir comigo?

— Sei lá — respondeu Laddie.

Tommy deu mais alguns passos em silêncio, depois estalou os dedos.

— Já sei! — exclamou, muito excitado.

— Quem?

— Tua irmã. Rina.

— Rina? Mas ela é ainda uma miúda.

Tommy riu:

— Não é assim tão miúda. Já começa a ter peito. Mais ainda do que quando foi ter connosco à jangada.

— Mas tem apenas treze anos — disse Laddie.

— A minha prima Joan só tem catorze. O Verão passado, quando andavas às beijocas com ela, tinha apenas treze.

Laddie olhou para o amigo. Talvez Tommy tivesse razão. Rina crescera. Encolheu os ombros.

— Está bem — disse por fim. — Pede-lhe. Mas não creio que sirva de nada. Minha mãe não a deixará ir.

— Deixa se lhe pedires — afirmou Tommy.

— Vou tomar um duche e vestir o fato de banho — anunciou Laddie. — Encontramo-nos na praia.

— Combinado — disse Tommy. — Até à vista.

A vivenda estava fresca e silenciosa em comparação com o calor e o barulho do campo de jogos. Laddie atravessou lenta­mente a cozinha.

— Molly! — chamou.

Ninguém respondeu e lembrou-se então de que era terça--feira. Dia de folga de Molly. Ouviu um ruído no andar de cima e aproximou-se do patamar.

— Mãe?

A voz de Rina respondeu-lhe:

— Foram jantar a Hyannis Port com uns amigos.

— Oh!

Regressou à cozinha e abriu a geleira. Retirou uma garrafa de leite e uma fatia de bolo de chocolate que colocou sobre a mesa, bebeu o leite pela garrafa e comeu o bolo com os dedos.

Só quando acabou é que se recordou que tinha prometido a si próprio não comer bolos na esperança de melhorar a pele.

Ficou ali sentado numa espécie de letargia. Ouviu a porta da casa de banho bater e passos na direcção do quarto de Rina. Que estaria ela a fazer em casa àquela hora da tarde? Em geral estava na praia com o seu bando de amiguinhas idiotas e baru­lhentas.

Talvez Tommy tivesse razão. Ela estava a crescer. Decerto que a forma como se sentara na jangada com os seios quase a saltar do fato de banho e eles a arregalarem os olhos não era mesmo nada de uma miúda. Tommy tinha razão, pelo menos numa coisa: os seios de Rina eram maiores que os de Joan.

A recordação de Rina sentada na jangada atravessou-lhe a mente numa rápida imagem; o ar dela e a maneira como eles a haviam fitado; o cabelo a cair húmido e liso para os ombros e o lábio inferior ligeiramente descaído.

Sentiu uma onda de calor invadi-lo. Quase gemeu em voz alta, Oh, não, nunca mais. Prometera da última vez que nunca mais voltaria a fazê-lo. Ergueu-se de repelão. Desta vez não. Pegou no prato vazio, colocou-o no lavadoiro e começou a subir as escadas. Ia tomar um duche frio e depois seguiria para a praia.

O quarto de Rina ficava em frente do patamar e a porta estava entreaberta. Ia a meio da escada quando a luz que vinha do quarto o surpreendeu. Houve um movimento lá dentro e ele deteve-se a meio da escada, com o coração a palpitar. Ajoelhou de forma a que só os seus olhos ultrapassavam o nível do patamar.

Rina acabava de atravessar o quarto e encontrava-se diante do espelho, de costas para a porta, vestindo apenas o soutien e calcinhas. Viu-a voltar-se ligeiramente, soltar o soutien e tirar as alças. Levando as roupas consigo atravessou o quarto e logo reapareceu com um fato de banho. Parou de novo diante do espelho e vestiu-o. Cobrindo lentamente os seios, apertou as alças.

Laddie sentiu finas gotas de transpiração na testa. Era a primeira vez que via uma rapariga completamente nua. Nunca pensara que pudesse ser tão belo e excitante.

Caminhando na ponta dos pés passou diante do quarto de Rina e entrou no seu. Fechou a porta e caiu a tremer sobre a cama. Durante longo tempo ficou ali, dobrado em dois, sentindo um calor intolerável nas entranhas.

Pouco a pouco foi procurando convencer-se a si próprio. Não. Não devia. Mais nenhuma vez. Se o fizesse agora nunca mais pararia. Finalmente começou a sentir-se melhor. Secou a testa com o braço e levantou-se.

Tudo quanto precisava era de autodomínio e de um pouco de vontade. Principiou a sentir orgulho de si próprio. O que era necessário era afastar-se das tentações. De todas, incluindo a dos retratos franceses que comprara na doçaria de Lobstertown.

Sem perda de tempo abriu uma gaveta da cómoda e pro­curando debaixo da roupa retirou os retratos. Colocou-os sobre o tampo, voltados de face para baixo. Nem sequer os olharia uma última vez. Atirá-los-ia pela retrete abaixo e tomaria o seu duche.

Despiu-se rapidamente e vestiu o roupão. Frente ao toucador viu de relance o rosto no espelho. Estava impregnado de uma nobre decisão. Era pasmoso como uma resolução podia comuni­car-se tão depressa ao rosto. Daí a pouco saiu para a casa de banho deixando as fotografias esquecidas sobre a cómoda.

Estava a enxugar-se quando ouviu os passos dela a atra­vessar o vestíbulo a caminho do seu quarto. Subitamente ficou paralisado, ao recordar-se de que deixara as fotografias sobre a cómoda. Lançou a mão ao roupão. Mas era demasiado tarde. Quando entrou no quarto ela estava diante da cómoda, vendo as fotografias. Rina ergueu os olhos surpreendida.

— Laddie, onde arranjaste estas fotografias? — perguntou excitada.

— Dá-mas — pediu ele encaminhando-se para Rina.

— Não dou! — replicou ela, voltando-lhe as costas. — Ainda não acabei de vê-las.                                      

Esquivou-se vivamente à mão estendida de Laddie e foi colocar-se na outra extremidade do quarto:

— Deixa-me acabar — pediu já mais calma. — Depois devolvo-tas.

— Não! — bradou ele num tom rouco, saltando sobre a cama para alcançá-la.

Ela quis evitá-lo mas a mão de Laddie prendeu-a pelo ombro. Os retratos saltaram das mãos de Rina que foi cair na cama ao lado do rapaz. Ela tentou ainda alcançar as fotografias. A mão dele agarrou-lhe, porém, na alça para evitar que lhe fugisse e a alça partiu-se. Laddie ficou subitamente paralisado diante de um seio branco que emergiu do fato de banho.

— Partiste-me a alça — disse ela com toda a calma, não fa­zendo qualquer gesto para compor-se e observando o rosto de Laddie.

O rapaz não respondeu. Ela então sorriu e levou a mão ao peito afagando suavemente o bico.

— Sou tão bonita como qualquer das raparigas desses re­tratos, não sou?

Ele estava fascinado, incapaz de falar, seguindo-lhe os mo­vimentos da mão.

— Não sou? — insistiu ela. — Podes dizer-me. Não conto a ninguém. Pois porque pensas que te deixei ver-me enquanto me despia?

— Sabias que eu estava a ver? — perguntou ele surpreendido.

Ela riu:

— Claro, estúpido. Via-te no espelho. Quase deitei a rir. Pensei até que te iam saltar os olhos.

Laddie sentiu a tensão principiar a crescer dentro dele.

— Não acho graça nenhuma — proferiu.

— Olha para mim — pediu ela. — Gosto que me vejas. Gostaria que todos vissem.

— Isso não é decente — protestou o rapaz.

— Porque não? Que mal há nisso? Gosto de olhar para ti; porque não hás-de olhar para mim.

— Mas nunca olhaste — disse ele vivamente.

Um sorriso maldoso formou-se nos lábios de Rina:

— Oh, sim, olhei.

— Olhaste? Quando?

— Há dias, quando voltaste da praia. Não estava ninguém em casa e espreitei-te pela janela da casa de banho. Vi tudo o que fizeste.

— Tudo? — exclamou ele num tom desfalecido.

— Tudo — insistiu Rina. — Brincavas com o teu órgão.

Laddie sentia a garganta apertada e mal podia falar. Princi­piou a levantar-se da cama.

— Acho melhor saíres daqui — disse num tom rouco.

Ela procurou-lhe os olhos, sorrindo:

— Gostarias de olhar outra vez para mim?

Ele não respondeu. Então a mão de Rina ergueu-se e soltou a outra alça. Despiu o fato de banho. Ele contemplou-lhe o corpo nu e sentiu as pernas principiarem a tremer. Viu os olhos de Rina percorrerem-no de alto a baixo. O roupão abriu-se-lhe. Fixou de novo a rapariga.

— Agora tira o roupão e deixa-me olhar para ti — pediu ela.

Como que atordoado ele deixou cair o roupão e ajoelhou junto da cama, contendo-se, com um gemido.            

Ela rolou rapidamente sobre a cama para olhá-lo. Um débil som de triunfo perpassou na sua voz:

— Agora — pediu — mexe-me.

A mão dele ergueu-se para os seios de Rina. Ela consentiu mas de súbito afastou-se.

— Não — disse. — Não me toques.

Laddie ficou a olhá-la empolgado por uma estranha angústia.

Os olhos de Rina não se afastavam dele.

— Mexes em mim — pediu na sua voz rouca. — Eu mexo em ti. Mas não te encostes.                  

Enquanto a película ia sendo projectada, Laddie ouvia-os a rir e a murmurar. Embora sem poder ver imaginava o que estariam a fazer nas trevas do cinema. A sua mente estava incen­diada por visões.

Nesse momento Tommy oferecia a Rina um caramelo. Viu-o a estender-lhe o saco de rebuçados, roçando-lhe como por acaso as costas da mão pelos seios. Laddie movia-se nervoso na cadeira, tentando penetrar com um olhar de soslaio a escuridão, mas era tempo perdido. Não conseguia ver nada.

— Dão-me um rebuçado? — pediu Joan.        

— O quê? — fez Laddie sobressaltado. — Oh, sim, claro. — Estendeu-lhe o saco.

Joan voltou-se para aceitar o rebuçado e o rapaz sentiu a pressão suave dos seus seios. Mas isso só serviu para recordar-se de Rina. Afundou-se mais na cadeira, muito infeliz.

No regresso pararam diante da casa de Tommy.

— Querem vir comer pipocas? — perguntou Joan. — Tenho uma grande caixa cheia, na geleira.

Laddie fez um gesto negativo:                  

— Não, obrigado — disse com vivacidade. — São quase oito horas e prometemos à minha mãe não demorar.

Rina manteve-se calada.

— Talvez possas voltar mais tarde — sugeriu Joan dirigin­do-se a Laddie. — Depois de deixares Rina em casa.

Rina olhou para ele. O rapaz corou:

— Não me parece — respondeu. — Sinto-me cansado. Quero ir cedo para a cama.

Joan endereçou-lhe um olhar desconfiado; depois voltou as costas e encaminhou-se para casa. Houve um silêncio embaraçoso que Tommy quebrou dizendo:

— Bem, então boa noite. Encontramo-nos amanhã na praia.

Percorreram em silêncio o resto do caminho para casa. Anoitecia quando subiram os degraus da entrada. Laddie abriu a porta de rede para Rina passar. Mas mal entrou, ela deteve-se ao verificar que o rapaz não fazia nenhum movimento para segui-la.

— Não entras?

Laddie fez que não.

— Não entro já. Quero ficar um pouco cá fora.

— Então também fico — disse ela rapidamente, retroce­dendo para o átrio.

Laddie deixou a porta fechar-se. O estalo do batente ecoou por toda a casa.

— São vocês, filhos? — perguntou Geraldine Marlowe.

— Sim, mãe — respondeu Rina. Lançou uma olhadela a Laddie. — Podemos ficar um pouco cá fora, mãe? Faz tanto calor.

— Pois sim. Mas só por meia hora, Rina. Quero-os na cama às oito e meia.

— Muito bem, mamã.

Laddie atravessou o átrio e foi sentar-se no grande sofá de palha. Rina seguiu-o e sentou-se ao lado dele.

— Porque queria a Joan que voltasses lá? — perguntou ela bruscamente.

Laddie respondeu sem olhar para Rina:

— Não sei.

— Ela queria que lhe fizesses aquilo?

— Claro que não! — respondeu ele indignado.

— Não gosto da Joan — confessou Rina. — É uma hipó­crita.

O rapaz ficou surpreendido pela observação inesperada mas justa.

— Porque dizes isso?

— Tommy queria que eu lhe tocasse, no cinema, mas como eu não deixei pegou na mão de Joan e ela fez.

— Não! — A palavra escapou-lhe involuntariamente. Rina tinha razão. A pegazita era uma hipócrita.

— E nunca olhou para ele — prosseguiu Rina. — Estava sempre a olhar para a tela e de uma vez até te pediu um rebuçado.

Laddie fitou-a com expressão meditativa.  

— Penso se não estarão a fazer aquilo agora — continuou ela em tom de quem pretende adivinhar.

Uma imagem de Joan e Tommy atravessou a mente do rapaz. Principiou a ficar excitado.

— Eu não sou hipócrita, pois não? — protestou ela. Um débil sorriso atravessou-lhe os lábios. Aproximou-se de Laddie e este sentiu os dedos de Rina moverem-se sobre a coxa. — Queres agora? — murmurou.

— Agora? — exclamou ele um tanto perplexo. Olhou para a casa por cima do ombro de Rina.

— Eles não aparecem — disse ela calmamente. — O pai está a ler os jornais e a mãe a fazer meia. Vejo-os pela porta.

— Mas — gaguejou ele. — Mas... como?

Ela voltou a sorrir e tirou-lhe o lenço do bolso.

Geraldine olhou para o relógio da lareira. Eram oito horas e meia. Ouviu a porta da rua bater e os passos de Rina entrando no quarto. Os olhos da filha estavam dilatados e brilhantes e exibia no rosto um sorriso feliz. O sorriso é contagioso e Geraldine sorriu também.

— Divertiste-te no cinema, querida?

Rina fez um gesto de assentimento.

— Foi maravilhoso, mãe — respondeu com entusiasmo. — Tão divertido. Nem imagina como é agradável ver uma fita sem todos aqueles miúdos a berrar e a correr pelas coxias como acontece nas matinées.

Geraldine riu mais:

— Ainda ontem tu eras um desses miúdos.

— Mas já não sou, pois não, mãe?

— Não, minha querida. Agora já és crescida.

— Isso mesmo, mãe — disse com vivacidade e ao mesmo tempo rodopiando com alegria. — Agora já cresci.

Geraldine continuava a rir:

— Agora, jovem senhora, vai para a cama. Ainda precisas de deitar cedo.

— Muito bem, mamã. — Rina debruçou-se e beijou-a na face. — Boa noite.

Saiu da sala e ouviram-se os seus passos subindo a escada Harrison Marlowe pousou o jornal.

— Ela parece muito contente.

— Como não havia de estar? — disse Geraldine. A sua primeira saída com um rapaz. Sucede o mesmo com todas as raparigas.

Harrison levantou-se:

— E se fôssemos lá fora tomar um pouco de ar?

Saíram da sala.

— Laddie? — chamou Geraldine.

— Estou aqui, mãe.

Quando se voltou para a direcção da voz viu-o a levantar-se do sofá.                                          

— Divertiram-se?

— Não foi mal — disse com secura.

— Rina não vos incomodou? — Não.

— Parece que não ficaste contente por ela ter ido contigo.

— Tudo correu bem, mamã — insistiu ele no mesmo tom crispado.

— Uma vez por outra, filho — disse o pai temos de fazer coisas que não nos apetecem. Uma delas é tomar conta de uma irmã. É a obrigação de um irmão.

— Eu já disse que tudo correu bem, pai — respondeu Laddie em tom enfadado.

— Laddie! — exclamou a mãe surpreendida.

O rapaz baixou os olhos.              

— Desculpe, pai — murmurou.

Geraldine aproximou-se do filho e fitou-o no rosto.

— Sentes-te bem, Laddie? — perguntou com apreensão. — Estás quente e afogueado e com a testa a transpirar. Deixa-me secar-te o suor. — A mão dela encaminhou-se para o bolso do filho. — Mas onde tens o teu lenço, Laddie? Antes de saíres estava neste bolso.

Durante um momento houve no olhar do rapaz uma expressão que lembrava a de um animal encurralado:

— Eu... eu penso que o perdi.

A mãe palpou-lhe a testa:

— Não te sentes com febre?

— Acho melhor ires para a cama, filho — aconselhou Harrison.

— Sim, pai. — Voltou-se para a mãe e beijou-a. — Boa noite — disse, e quase a correr entrou em casa.

— Gostaria de saber o que se passa com ele — disse Geraldine.

Harrison Marlowe pigarreou:

— Sei o que se passa com ele.

— Sabes?

Ele fez um gesto afirmativo:

— Está estragado de mimos, é o que é. Habituado a fazer o que quer fica amuado quando tem de ocupar-se da irmã. Está furioso porque isso o impediu de ficar em casa dos Randall a fazer poucas vergonhas com essa prima do Tommy, a Joan.

— Harry, estás a ser horrível!

— Não, não estou — disse ele. — Crê no que te digo. Conheço rapazes. O que ele precisa é de disciplina. — Pôs-se a encher o cachimbo. — E com Rina procedes da mesma forma. Dás-lhe tudo o que ela quer. Em breve também estará estragada.

— Sei o que te aflige — acentuou ela. — Não gostas da ideia de vê-los crescer. Gostarias que ficassem para sempre crianças.

— Não. Mas tens de admitir que estão estragados com mimos.

— Talvez estejam um pouco — concedeu Geraldine.  

Harrison sorriu:                                        

— Bem, seja como for faz-lhes bem regressar ao colégio no próximo mês. Barrington fará bem ao Laddie.

— Sim — concordou a esposa. — E alegra-me que a Rina vá para Jane Vincent's. Farão dela uma senhora.

Para Laddie foi um Estio de dor e de tortura, de violentas sensações físicas e de angústias de consciência. Não podia dormir, não conseguia comer, receava vê-la todas as manhãs e depois, quando a encontrava, não era capaz de afastar os olhos dela. Ciúmes cruciantes dilaceravam-no se a surpreendia a sorrir para os outros rapazes. Visões geradas pelo que dela conhecia enchiam-lhe a mente e via-a a fazer com os outros o mesmo que fizera com ele. Se estavam juntos sentia-se trespassado por um prazer onde havia muito temor.

E espreitando constantemente, nos recessos mais íntimos da sua mente pairava o medo — o medo de ser descoberto, o medo de ver no rosto dos pais a dor, o sofrimento e o desprezo quando soubessem.

Mas quando ela o olhava, lhe sorria, lhe tocava, tudo isso se apagava e sentia-se disposto a cometer todas as loucuras para lhe dar satisfação. Humilhava-se, rastejava diante dela, chorava na dor da sua autoflagelação. Depois voltava o medo. Porque se tornava impossível iludir um facto: ela era sua irmã. O que faziam era pecaminoso.

Foi com um sentimento de alívio que viu chegar ao fim esse Verão trágico. Estava tudo acabado, pensou. Longe dela conse­guiria dominar-se, vencer a febre que ela lhe despertava no sangue. Quando no Verão seguinte tornassem à casa da praia seria diferente. Ele seria diferente, ela seria diferente.

Nunca mais, dir-lhe-ia. Nunca mais. Era mal feito.

Assim pensava Laddie quando regressou ao colégio no prin­cípio do Outono.

— Estou grávida — disse ela. — Vou ter um bebé.

Laddie sentiu uma dor horrorosa comprimir-lhe o peito. De certo modo confuso, sempre pensara que isso viesse a suceder, desde aquele primeiro Estio, havia dois anos. Ergueu os olhos para Rina, piscando contra o sol:

— Como é que sabes?

Ela falava calmamente, como se estivesse a referir-se apenas ao tempo.                                        

— Estou atrasada— explicou. — Nunca me sucedeu até agora.

O rapaz analisou as mãos bronzeadas contra a areia clara.

— Que tencionas fazer?

— Não sei — respondeu ela. O seu cabelo platinado cintilou chispas quando voltou a cabeça para o mar: — Se nada suceder até amanhã penso que terei de dizer à mãe.

— Vais... vais dizer-lhe que fui eu?

— Não — respondeu Rina vivamente, em voz baixa. E como se adivinhasse a próxima pergunta: — Direi que foi o Tommy, o Bill ou o Joe.

Laddie sentiu a ferroada do ciúme.

— Estiveste... com todos eles? — perguntou hesitante.

Os olhos escuros de Rina fitaram-no:

— Não. Claro que não. Só contigo.

— E se a mãe lhes fala? Ficará a saber que mentiste.

— Não fala — garantiu Rina com firmeza. — Especialmente quando lhe disser que não sei qual deles foi.

Laddie fitou-a. Sob muitos aspectos Rina era mais adulta que ele.

— Que pensas que a mãe vai fazer?

Rina encolheu os ombros:

— Não sei. Não tem muito por onde escolher, pare­ce-me.

Ficou a vê-la descer a praia para ir ao encontro de umas amigas; depois, deitando-se de bruços, escondeu a cabeça nos braços. Gemeu. Aquilo sucedera. Algures, nos recessos da sua mente, sempre soubera que ia suceder. Recordou-se da noite fatal, algumas semanas atrás.

Tinham ido passar o Verão na praia, como faziam todos os anos. Mas desta vez ia ser diferente. Laddie jurara a si próprio. E havia comunicado as suas intenções a Rina.

— Nunca mais — disse. — É estúpido, é uma criancice. Tu andas com as tuas amigas e eu com os meus amigos. Se conti­nuamos assim só podemos arranjar sarilhos.

Rina concordara. Prometera até. E Laddie tinha de admitir que ela mantivera a palavra. Ele é que quebrara o juramento. E tudo por causa da maldita garrafa de laranjada.

Fora uma tarde de chuva e tinham ficado sózinhos na vi­venda. Fazia calor e humidade e o ar pegava-se pesadamente ao corpo de Laddie, sufocando-o num cobertor invisível. A camisa c os calções estavam empapados de suor quando entrou na cozi­nha. Abriu a geleira mas a garrafa de laranjada não se encon­trava lá. Fechou a porta da geleira, irritado.

Subiu a escada e passou pela porta aberta de Rina, sem que o seu espírito conseguisse aperceber-se logo do que os olhos haviam visto. Voltou atrás e deteve-se nos umbrais. Ela estava nua sobre a cama, semi-reclinada, com a garrafa de laranjada numa das mãos. Olhava intensamente para a gar­rafa.            

Laddie sentiu as veias das têmporas começarem a palpi­tar com toda a força e o suor a brotar-lhe do corpo.

— Que estás a fazer com a minha garrafa de laranjada? — perguntou.

Compreendeu que a pergunta era estúpida, mesmo antes de completá-la.

Ela moveu a cabeça na almofada para o fitar. Tinha os olhos pesados e cobertos de bruma.

— A bebê-la — respondeu num tom rouco, levando o gargalo aos lábios. — Que pensavas?

A soda inundou-lhe os lábios e escapou-se em gotas ala­ranjadas, num riacho que lhe desceu entre os seios até ao cavado do ventre, humedecendo os lençóis. Rina sorriu-lhe e estendeu--lhe a garrafa:

— Queres um pouco?

Como se estivesse a observar outra pessoa, viu-se a atra­vessar o quarto e a levar a garrafa à boca. No gargalo conser­vava-se o calor dos lábios de Rina. Laddie sentiu a doçura do líquido na boca. Baixou os olhos para ela. A rapariga sorria-lhe.

— Estás excitado — disse-lhe ela. — E garantiste que não tornavas a fazer. Mas vais fazer.

Uma parte da laranjada espalhou-se pela camisa de Laddie e subitamente ele descobriu que se havia traído a si próprio. Voltou-se para sair mas a mão dela prendeu-o. Laddie quase gritou com a angústia daquele contacto.

— Só esta vez — pediu ela. — E depois nunca mais.

Ele ficou paralisado, com receio de mover-se, temendo tropeçar e cair, tão grande tremor se apoderara dele.

— Não — disse em tom rouco.

— Por favor — insistiu ela com os dedos a abrir-lhe as roupas, a procurar.

Laddie parecia petrificado. Um gemido angustioso escapou-se-lhe do peito. Não queria mais aquilo, não queria mais humilhações, mais servilismo perante Rina. Havia de ensiná-la a deixá-lo em paz.

Com uma das mãos prendeu-lhe os pulsos e forçou-a a cair de costas sobre a cama. Os olhos dela conservavam-se confiantes, sem medo, fitando-o. Subitamente Laddie colou os lábios à boca de Rina. Os lábios da rapariga estavam mornos e macios exalando ainda um sabor a laranjada. Laddie moveu a cabeça e os seus lábios começaram a percorrer o corpo de Rina, o pescoço, os seios...

Foi ai que ela principiou a debater-se.

— Não! — murmurou, esquivando-se. — Não! Não me toques!

Mas ele nem a escutava. Sentia o fogo palpitar-lhe nas têmporas; o coração dir-se-ia prestes a estalar. Uma das mãos da rapariga libertou-se e arranhou-lhe o peito, deixando no caminho sulcos vermelhos de dor. Desorientado, Laddie olhou para si próprio e viu as marcas sangrentas das unhas de Rina. Um furor terrível apoderou-se dele.

— Sua cabrita! — uivou, despedindo uma bofetada com a mão livre. Atingida no rosto, Rina caiu de costas contra a cama. Os seus olhos revelavam agora pavor.

— Sua pega! — sibilou outra vez, arrancando o cinto. Ergueu-lhe os braços acima da cabeça e amarrou-lhe os pulsos ao varão da cabeceira da cama. Em seguida pegou na garrafa de laranjada que tombara no meio da cama.

— Ainda tens sede?

Rina abanou a cabeça negativamente.

Então o rapaz virou a garrafa e desatou a rir enquanto a laranjada se derramava sobre o corpo dela.

— Bebe — disse. — Bebe toda a que puderes.

A garrafa voou-lhe das mãos com o pontapé que Rina atirou. Laddie segurou-lhe as pernas e prendeu-as contra a cama com os joelhos. Riu:

— Agora, minha querida irmãzinha, acabaram-se as brin­cadeiras.

— Acabaram-se as brincadeiras — repetiu ela ofegante, procurando os olhos de Laddie. O rosto dele baixou para bei­já-la na boca. Rina principiou a sentir que a tensão a abandonava.

Depois foi a dor, aguda, penetrante, varando-lhe o corpo. A mão dele tapou-lhe a boca para sufocar os gritos.

E tudo o que restou foi o som da voz de Rina, gritando silenciosamente nos confins da garganta e a fealdade e o hor­ror do corpo dele sobre o dela.

Laddie rolou na areia. Estava tudo acabado. No dia se­guinte a mãe saberia. E tudo por culpa dele. Censurá-lo-iam e com razão. Nunca devia ter deixado suceder aquilo. Uma sombra cobriu-o e ele levantou os olhos.

Rina estava a seu lado. Deixou-se cair na areia ao lado dele:

— Que tencionas fazer?

— Não sei — respondeu taciturno.

Ela pegou-lhe na mão:

— Não devia ter-te permitido fazer aquilo.

— Não pude evitá-lo — disse o rapaz. — Eu devia estar louco. — Olhou para ela. — Se não fôssemos irmãos poderíamos fugir e casar.

— Bem sei.

A voz dele tornou-se amarga:

— E afinal não somos realmente irmão e irmã. Se ao menos não te tivessem adoptado...

— Mas adoptaram. Não os podemos censurar por isso. Não tiveram culpa do que se passou. — Sentiu as lágrimas subi­rem-lhe aos olhos. Ficou ali sentada, em silêncio, enquanto as lágrimas lhe corriam pelas faces.

— Não chores.            

— Não... não posso evitá-lo — murmurou ela. — Tenho medo.

— Eu também — confessou ele. — Mas chorar não serve de nada.

As lágrimas continuavam a rolar pelas faces de Rina. Um minuto depois ouviu a voz de Laddie. Ele fitava-a. Os seus lábios moviam-se com embaraço:

— Mesmo que fosses minha irmã, quero que saibas que te amo.

Ela não respondeu.

— Sempre te amei, creio eu — prosseguiu Laddie. — Foi inevitável. Quando te comparava com as outras raparigas achava que as outras não valiam nada.

— Penso que o motivo de eu ser tão má eram os ciúmes que sentia das outras raparigas que andavam contigo — con­fessou ela. — Não queria que te tivessem. Por isso fiz o que fiz. Não consentia que qualquer outro rapaz me tocasse. Não tole­rava tal coisa.

A mão dele contraiu-se entre os dedos de Rina.

— Talvez tudo acabe ainda em bem — murmurou ele pro­curando uma esperança.

— Talvez — disse a rapariga com uma melancolia que des­mentia as esperanças de Laddie.

Depois calaram-se e voltaram-se para o mar a ver a ressaca levar com ela os dias descuidados da sua juventude.

Laddie ia sentado ao leme do pequeno veleiro e obser­vava a mãe instalada na proa. Sentiu a rajada de vento na vela e compensou automaticamente rodando o leme e perscrutando o céu. Começavam a formar-se à vante nuvens de borrasca. Era altura de regressar à doca. Começou lentamente a virar.

— Voltamos? — perguntou a mãe.

— Sim, mãe — respondeu. Parecia-lhe estranho o facto de ela se encontrar no barco. Mas insistira em vir, como se pressentisse que alguma coisa o atormentava.

— Esta manhã tens estado muito pouco comunicativo — observou ela.

Laddie evitou-lhe os olhos:

— Tenho de concentrar-me no governo do barco.

— Não sei o que se passa com vocês, filhos — tornou ela. — Nos últimos tempos têm andado muito tristonhos.

Laddie não respondeu. Conservava os olhos nas nuvens de borrasca que se iam adensando. Pensou em Rina. Depois em si próprio. E também nos pais. Uma grande tristeza foi-se acumulando dentro dele. Os olhos principiaram a arder.

A voz da mãe revelava sincera surpresa:

— Mas, Laddie, estás a chorar.

A barragem cedeu e os soluços despedaçaram-lhe o peito. Sentiu a mão da mãe puxar-lhe a cabeça para o peito como tantas vezes fizera quando ele era pequenino.

— Que se passa, Laddie? Que sucedeu? — perguntou com suavidade.

— Nada — soluçava ele, tentando conter as lágrimas. — Nada.

Ela afagou-lhe a cabeça.

— Alguma coisa vai mal — insistiu a mãe docemente. — Tenho a certeza. Podes contar-me, Laddie. Seja o que for, podes contar-me. Compreenderei e tentarei ajudar.

— Não há nada que possas fazer — gritou ele. — Nem tu nem ninguém.

— Experimenta e veremos. — Ele manteve-se calado, pro­curando com os olhos no rosto da mãe qualquer coisa que ela não sabia o que fosse. Um estranho temor apoderou-se da se­nhora. — É qualquer coisa relacionada com Rina?

Foi como se todos os músculos que mantinham imóvel o rosto de Laddie se dissolvessem ao mesmo tempo.

— Sim, sim! — gritou o rapaz. — Ela vai ter um filho! Um filho meu! — acrescentou com os lábios tensos. — Eu vio­lei-a e ela agora vai ter uma criança.

— Oh, não! Não!

— Sim, mãe — fez ele com o rosto subitamente endure­cido.

As lágrimas brotaram então dos olhos de Geraldine que cobriu o rosto com as mãos. Uma coisa daquelas não podia suceder com os seus filhos. Não, não podia. Desejara dar-lhes tanto, desejara que eles conseguissem tanto! De repente domi­nou-se.

— Penso que é melhor voltarmos — conseguiu articular, a custo mas num tom calmo.

— Estamos de volta, mãe — disse Laddie.

Fitou as mãos presas à cana do leme. As palavras brotavam-lhe agora espontâneas dos lábios:

— Não sei o que me deu, mãe. — Fitou-a com um olhar de intensa angústia. — Crescer não é aquilo que eu pensava, não é como dizem nos livros. Crescer é uma trampa. — Dete-ve-se surpreendido pela linguagem. — Desculpa, mãe.

— Não faz mal, meu filho.

Mantiveram-se em silêncio durante um momento enquanto as vagas iam batendo com violência contra o casco.

— Não deves censurar Rina, mãe — disse Laddie ele­vando a voz. — É uma miúda apenas. O que sucedeu foi por minha culpa.

A senhora ergueu os olhos para o filho. Um lampejo de intuição rasgou o véu escuro que parecia cobrir-lhe os olhos.

— Rina é uma rapariga muito bela, Laddie — disse Geral­dine. — Acho difícil uma pessoa poder deixar de amar tua irmã.

O rapaz cruzou o olhar com o da mãe.

— Eu amo-a, mãe — declarou com firmeza. — E ela não é verdadeiramente minha irmã. Geraldine não respondeu.

— Achas que é mal feito dizer o que disse? — perguntou Laddie. — Eu não a amo como a uma irmã. Amo-a... — pro­curou as palavras — amo-a de forma diferente.

Diferente, pensou Geraldine. Uma palavra que exprimia a situação como qualquer outra.

— Foi terrivelmente mal feito, não foi, mãe? — insistiu Laddie.

Ela tentava perscrutar o íntimo do filho, sentindo por ele uma pena que não conseguia explicar a si própria.

— Não, Laddie — respondeu em tom calmo. — Foi ape­nas uma dessas coisas que acontecem.

Ele respirou fundo começando a sentir-se melhor. A mãe tinha-o compreendido, não o condenava.

— Que vais fazer, mãe? — perguntou.

Ela procurou-lhe os olhos:

— A primeira coisa que temos de fazer é dar a entender a Rina que compreendemos. A pobre rapariga deve estar louca de medo.

Laddie debruçou-se e pegou na mão da mãe, levando aos lábios.                                              

— És tão boa para nós, mãe — murmurou, fitando-a com gratidão nos olhos.

Foram as últimas palavras que proferiu. Porque justa­mente nesse momento caiu-lhes em cima a borrasca por esti­bordo e o barco voltou-se.

Rina assistiu estóicamente ao transporte dos corpos que os pescadores pousaram sobre a areia da praia. Fitou-os. Laddie e a mãe.

Uma vaga dor principiou a corroer-lhe o peito. De súbito, como se recebesse uma pancada no ventre, contraiu-se e caiu de joelhos na praia ao lado dos corpos imóveis. Fechou os olhos e chorou as lágrimas abundantes que lhe brotavam dos olhos, a escaldar.

Margaret Bradley observou com apreensão os papéis que estavam em cima da secretária, cobertos com os hieróglifos das rapariguinhas que frequentavam a sua classe. Repeliu-os com brusquidâo e levantou-se. Aproximou-se da janela e olhou nervosamente para fora. Sentia-se cansada, farta da enfadonha e interminável rotina do dia a dia.

Com os olhos postos na penumbra do entardecer tentava explicar a si própria o motivo por que não chegara ainda a carta de Sally. Havia mais de duas semanas que não tinha notí­cias dela quando o costume era chegarem duas cartas por semana. Teria a Sally encontrado outra amiga? Outra amiga com quem partilhasse aqueles íntimos segredos?

Soou uma pancadinha ao de leve na porta e ela voltou-se:

— Sim?

— Uma carta registada para si, Miss Bradley. — Era a voz trémula de Thomas, o porteiro.

Abriu vivamente a porta e apoderou-se da carta:

— Muito obrigada, Thomas — disse, fechando em seguida a porta.

Encostou-se ao batente olhando para a carta que tinha entre os dedos. Começou a sentir-se melhor. A letra era de Sally. Dirigiu-se para a escrivaninha e rasgou o sobrescrito:

Querida Peggy

Ontem casei-me…

Outra pancadinha na porta mas tão débil que a princípio nem a ouviu. Repetiu-se, um pouco mais alta. Ergueu a cabeça da escrivaninha.

— Quem é? — perguntou em voz rouca.

— Rina Marlowe, Miss Bradley. Posso falar-lhe um mo­mento?

A professora levantou-se lentamente.

— Um instante — gritou.

Dirigiu-se para a casa de banho e olhou-se ao espelho. Tinha os olhos avermelhados e inchados, o bâton ligeiramente esborratado. Parecia mais velha do que os seus vinte e seis anos. Abriu a torneira e tirou a pintura da cara com uma toa­lha e depois olhou para a sua figura no espelho. Durante dez anos ela e Sally tinham sido inseparáveis. Agora estava tudo terminado.

Deixou a toalha no cabide próprio e encaminhou-se para a porta.

— Entre — disse, abrindo-a.

Rina olhou para o rosto da professora. Parecia que Miss Bradley estivera a chorar.

— Desculpe incomodá-la — murmurou. — Volto mais tarde, se preferir.

A professora abanou a cabeça.             

— Não, está bem — respondeu. Encaminhou-se para a escrivaninha e sentou-se: — Que se passa?          

Rina fechou a porta:

— Vinha perguntar se podia ser dispensada do baile de sábado à noite.

Margaret Bradley olhou-a perplexa. Não queria acreditar no que ouvia. Faltar ao baile mensal causava sempre a maior surpresa. As raparigas faziam tudo para não perder esse privilégio. Era a única vez que se admitiam rapazes dentro dos limites do colégio.

— Não compreendo — disse.

Rina pôs os olhos no chão:

— Não me apetece ir.

Não porque os rapazes a não apreciassem. A professora bem sabia que sucedia exactamente o contrário. A esguia loura de dezasseis anos que estava ali diante dela era assediada pêlos rapazes em todos os bailes. Vinha de boa família, dos Marlowes, bem conhecidos em Boston. O pai era um banqueiro, viúvo.

— É um pedido muito estranho — observou. — Deves ter um motivo.

Rina continuava com os olhos postos no chão. Não res­pondia.

Margaret Bradley forçou um sorriso.

— Ora vamos lá — disse num tom amigável. — Podes confiar em mim. Não sou muito mais velha que tu e sou capaz de compreender.

Rina olhou para a professora e esta sentiu-se surpreendida pelo temor que leu nos olhos da rapariga. Depois aquilo desa­pareceu e Rina voltou a fitar o chão.

A professora levantou-se e rodeou a escrivaninha. Pegando na mão de Rina encaminhou-se com ela para uma cadeira.

— Estás com medo de qualquer coisa — disse com bondade.

— Não tolero que eles me toquem — murmurou.

— Eles? — perguntou Margaret Bradley perplexa. — Quem?

— Os rapazes. Todos querem tocar-me e sinto-me mal. — Rina ergueu subitamente os olhos. — Não fazia mal se eles quisessem apenas dançar ou falar mas estão sempre a procurar levar-me para qualquer sítio.

— Que rapazes? — A voz da professora endurecera de repente. — Quero saber, para impedi-los de cá vir.

Rina levantou-se.

— É melhor eu ir andando — disse, nervosa. — De qual­quer maneira não creio que servisse de alguma coisa.

Começou a andar para a porta.

— Espera um minuto! — ordenou a voz de Margaret Bradley. Rina voltou-se e fitou-a. — Algum deles fez mais que... que tentar tocar-te?

Rina abanou a cabeça.

— Que idade tens?

— Dezasseis — respondeu.

— Penso que deves saber que os rapazes são todos iguais.

Rina fez um gesto afirmativo.

— Eu sentia da mesma maneira quando tinha a tua idade.

— Sim? — exclamou. Na sua voz notava-se um tom de alívio. — Pensava que era só comigo. Nenhuma das outras raparigas sente como eu.

— São idiotas! — A voz da professora estava irritada, mas conteve-se. Não havia qualquer interesse em denunciar-se revelando incontida amargura. — Ia fazer chá — disse. — Tomas uma chávena comigo?

Rina hesitou:

— Se não incomodo.              

— Não incomodas nada — volveu Margaret Bradley. — Agora senta-te e põe-te à vontade. Terei o chá pronto num minuto.

Dirigiu-se para a pequena cozinha. Com surpresa sua encontrou-se a assobiar quando acendeu o gás debaixo da chaleira.

— Penso que um Estio na Europa antes de ir para a Facul­dade faria muito bem — explicou Margaret Bradley.

Harrison Marlowe recostou-se na cadeira e olhou para a professora através da alvura da mesa de jantar e depois para Rina, em frente dela. O que observava despertou nele um sen­timento de confiança. Uma jovem simples, não de todo des­provida de atractivos, perto da casa dos trinta, imaginou ele. Vestia roupas simples, saia-e-casaco, quase masculinas, que pareciam denunciar a sua profissão. Não possuía nenhum dos loucos maneirismos da maior parte das jovens da época. Não havia nada de espalhafatoso nela. Parecia muito séria e prática.

— Eu e minha mulher falámos muitas vezes na possibili­dade de Rina ir à Europa — principiou ele, hesitante.

— A educação de uma rapariga não pode considerar-se concluída se não passar alguns meses lá — afirmou a professora.

Marlowe fez um gesto de assentimento. Educar uma filha era uma grande responsabilidade. Só dera por isso quando meses atrás entrara na sala e encontrara Rina.

Ela vestia de azul-escuro, o que de certo modo a fazia parecer mais velha. O cabelo louro cintilava na semipenumbra.

— Olá, pai.

— Rina! — exclamou. — Que fazes em casa?

— Pensei que seria terrível para si estar sozinho nesta grande casa vazia — disse ela. — Pedi portanto uns dias de licença na escola.

— Mas... mas os teus estudos? — perguntou ele.

— Ponho-os em dia sem dificuldade.

— Mas...

— Não estás contente por me ver, papá? — perguntou a rapariga, interrompendo-o.

— Claro que estou — respondeu ele vivamente.

— Então porque não me beijas? — Ofereceu-lhe a face. Ele beijou-a. Quando o pai principiava a levantar-se ela deteve-o com o braço: — Agora dou-te eu um beijo.

Beijou-o na boca com os lábios tépidos. Riu bruscamente:

— O bigode faz cócegas!

Ele sorriu-lhe.

— Sempre disseste isso — observou. — Mesmo quando oras pequenina.

— Mas já não sou uma pequenina, pois não, pai? Ele olhou-a, bela, quase uma mulher no seu vestido azul-escuro:

— Penso que não — disse.

Rina voltou-se para o aparador:

— Pensei que talvez te apetecesse uma bebida antes de jantar.

As garrafas estavam alinhadas. Marlowe encaminhou-se para o aparador e verificou que Rina até preparara gelo pilado no balde.

— Que temos para o jantar? — perguntou o pai.

— Disse à Molly que preparasse o teu prato favorito. Gali­nha corada e batatas rissolé.

— Excelente — disse ele, estendendo a mão para uma garrafa de whisky. A voz de Rina deteve-lhe o gesto:

— Não preferes um martini? Há muito tempo que não tomas martini.

Ele hesitou um momento, depois alcançou a garrafa de gin. Só quando se voltou descobriu que acabara de preparar automaticamente dois cocktails. O hábito tinha muita força. Colocou um dos cálices sobre o aparador.

— Não me deixas, pai? Já tenho mais de dezasseis anos. Há muitas raparigas no colégio a quem os pais deixam tomar um cocktail antes do jantar.

Marlowe fitou-a, depois vazou metade do cálice no misturador. Entregou-lhe o restante e em seguida ergueu o cálice num brinde.

Ela sorriu sorvendo o líquido.

— É delicioso — disse, usando as mesmas palavras e o mesmo tom de voz que Marlowe ouvira à mulher, tantas vezes.

Sentiu as cálidas e incontidas lágrimas que lhe subiam aos olhos e voltou a cara para a filha não ver. A mão dela segu­rou-lhe na manga e forçou-o a encará-la. Os olhos de Rina estavam cheios de compreensão. Marlowe deixou-a arrastá-lo para o sofá onde se sentaram lado a lado.

E então, por um momento, ele não foi o pai. Era apenas um homem abandonado chorando no regaço da mãe, da mulher, da filha. Sentiu os braços dela, fortes e jovens, envolvê-lo, os dedos percorrerem-lhe levemente o cabelo. Ouviu a voz dela murmurando roucamente: «Pobre papá, pobre papá».

E tão depressa como chegara, o momento de desvario passou e ele teve consciência dos seios fortes de Rina contra a sua face. Ergueu a cabeça.  

— Creio que fiz uma triste figura — declarou num tom embaraçado.                                            

— Não, papá — respondeu ela tranquilamente. — Pela pri­meira vez na minha vida não me senti criança. Senti-me adulta e útil.

Ele forçou um sorriso:          

— Tens tempo de sobra para crescer.

Nessa noite, depois de jantar, Rina foi sentar-se junto dele, no braço da poltrona.

— Não volto à escola — anunciou-lhe. — Fico em casa a tomar conta de ti.

Com um sorriso, o pai observou-lhe:

— Depressa te cansarias. Sentirias a falta do colégio, dos rapazes...

— Rapazes! — riu ela com desdém. — Passo bem sem eles. São um bando de bichos sempre atrás das nossas saias. Não os tolero.

— Não os toleras? — exclamou Harrison. — Que espécie de homem agradaria a Sua Majestade?

Rina fitou-o, muito séria.

— Creio que um homem mais velho — explicou. — Al­guém como tu, talvez. Alguém que me faça sentir em segurança, feliz e necessária. Os rapazes estão sempre a tentar obter qual­quer coisa de nós, a mostrar que são mais fortes, mais impor­tantes.

Ele riu:

— Isso sucede justamente porque são novos.

— Bem sei — disse a filha com gravidade. — Por isso me assustam. Só se interessam por aquilo que querem; não se importam comigo. — Inclinou-se e beijou-lhe o alto da cabeça. — O teu cabelo é tão bonito, assim grisalho. — Uma nota de tristeza apareceu na voz de Rina. — É uma pena que não possa casar contigo. Amo-te, pai.

— Não! — exclamou o homem vivamente, tão vivamente que se surpreendeu até com a violência da sua reacção.

— Não o quê, pai? — perguntou ela sobressaltada.

Marlowe ergueu-se e voltou-se para Rina:

— Não, tu não ficas cá. Voltas amanhã para a escola. Peters leva-te no carro.

A jovem ergueu os olhos que principiaram a encher-se de lágrimas. Subitamente foi de novo uma rapariguinha.

— Não gostas de mim, pai? — chorou. — Não queres que eu fique contigo?

Ele fitou-a durante um momento, depois sentiu-se tomado de compaixão.                                       

— Claro que gosto de ti, minha querida — afirmou num tom calmo. — Mas não vês que não podemos meter-nos numa concha para nos protegermos do mundo que nos rodeia?

— Mas eu só quero ficar contigo, papá!

— Não, filha, não — volveu ele pacientemente. — Sei o que sentes agora mas um dia, quando fores mais velha, e possí­velmente casada e com filhos, compreenderás.

Ela arrancou-se com violência dos braços do pai e fitou-o, colérica.

— Não! — bradou. — Nunca me casarei, nunca terei filhos. Nunca deixarei nenhum rapaz pôr as imundas mãos em mim!

— Rina! — exclamou Marlowe em tom magoado.

Rina fitou-o, atordoada, depois desatou de novo a chorar:

— Oh, pai! Não consegues ver? Não sou eu, mas tu, quem não compreende.

— Rina, meu amor — disse ele, estendendo os braços. Mas ela já saíra do quarto. Marlowe ouviu-lhe os passos na escada e a porta bater.

Marlowe regressou lentamente ao presente, olhando atra­vés da grande mesa da casa de jantar para a professora, depois para Rina. Os olhos dela brilhavam de expectativa.

— Tenho a certeza de que se a mãe de Rina fosse viva, Miss Bradley — disse ele com a sua maneira formalista já desu­sada —, teria muito prazer em confiar a nossa filha aos seus bons cuidados.

Margaret Bradley olhou vivamente para o prato de forma a esconder a expressão de triunfo dos seus olhos:

— Muito obrigada, Mr. Marlowe — proferiu com modéstia.

Ficaram no convés até passarem a Estátua da Liberdade e Ellis Island, até a água tornar-se verde-garrafa ao longo do costado e não avistarem terra.

— Excitada? — perguntou Margaret Bradley.

Os olhos de Rina fulgiram:

— É como um sonho.

Margaret sorriu:

— Cada vez será melhor. Agora acho preferível descermos à cabina e descansarmos um pouco antes do jantar.

— Mas não me sinto cansada — protestou Rina.

— Acabarás por sentir-te — disse Margaret em tom agra­dável mas firme. — Passaremos seis dias a bordo do Leviathan. Tens tempo de sobra para ver tudo.

Fez um gesto de silenciosa aprovação ao entrarem no camarote. Harrison Marlowe não era mesquinho quando fazia qualquer coisa pela filha. Era um camarote de primeira classe com camas gémeas e casa de banho privativa. Não hesitara sequer quando ela sugerira que Rina precisava de novo enxo­val. Limitara-se a passar um cheque de mil dólares e a dizer que se fosse necessário mais pedisse.

Haviam comprado apenas o indispensável em Nova Iorque; o resto comprariam em Paris. Mas sem dizer nada a Rina tinha encomendado em segredo alguns artigos que mandou entregar directamente a bordo. Queria surpreender a expressão da rapa­riga quando visse.

As caixas estavam sobre a cama mas não lhe chamou a atenção para elas. Esperava o justo momento. Despiu o ligeiro casaco estival e acomodou-se numa poltrona fofa. Abrindo a carteira extraiu o maço de cigarros. Só depois de ter acendido um teve consciência de que Rina a fitava. Recordou-se então de que a rapariga nunca a vira fumar.

Estendeu o maço:

— Tira um.

Rina hesitou.

— Tira — insistiu. — Não faz mal; verás que muitas mulhe­res europeias fumam; não são tão provincianas como nós.

Observou os gestos de Rina a acender o cigarro e riu quando a viu tossir.

— Não engulas o fumo.

A jovem conteve o fumo na boca e depois deixou-o esca­par-se lentamente.

— Que tal? — perguntou.

Margaret sorriu:

— Muito bem.

— É engraçado, Miss Bradley.

Margaret continuava a observá-la.

— Agora que estamos sózinhas, acho que podemos dis­pensar as formalidades. Doravante chamas-me Peggy. — Levan­tou-se. — Tomas tu o banho primeiro, Rina?      

Rina abanou a cabeça:                      

— Não, Miss Bradley, pode ir primeiro, se preferir.

Margaret sorriu:

— Peggy.

— Sim, Peggy.

— Assim é melhor — disse Margaret.

Ergueu os olhos quando Rina regressou da casa de banho prendendo o cinto do roupão. O cabelo louro e comprido caía-lhe sobre os ombros, parecendo ainda mais prateado contra a pele acobreada. Soou uma ligeira pancadinha na porta; Rina olhou-a numa interrogação.

— Mandei servir sherry — disse Margaret. — Além de abrir o apetite evita o enjoo.

Aceitou a bandeja do criado e ofereceu um cálice a Rina.

— À tua — disse, sorvendo lentamente a bebida.

— É bom — comentou Rina.

— Ainda bem que gostas.

Rina pousou o cálice.

— Posso estrear esta noite o meu vestido azul?

Margaret assumiu um ar ofendido:

— O jantar na primeira classe exige vestido de noite.

— Tenho alguns vestidos que me serviam para as festas — disse Rina. — Posso usar um deles.

— Não me digas que são esses horríveis vestidos que usa­vas nos bailes do colégio?

No rosto de Rina surgiu uma expressão magoada:

— Pensava que fossem muito bonitos.

Margaret riu:

— Para garotas, talvez. Mas não para uma jovem de via­gem para a Europa.

— Então não sei o que hei-de vestir — confessou Rina.

Miss Bradley já brincara demais com a rapariga:

— Essas caixas em cima da cama pertencem-te — disse num tom indiferente. — Talvez encontres numa delas qualquer coisa que te sirva.                                              

A expressão de Rina ao abrir as caixas correspondeu a todas as expectativas de Margaret. Rina vestiu um vestido escuro, de cocktail, que se moldava perfeitamente ao corpo e revelava os ombros nus. Quando se encaminharam para a sala de jantar uma hora mais tarde, todos os olhos masculinos estavam postos nela. Com um gesto de posse, Margaret inclinou-se sobre a mesa e fez uma festinha na mão da jovem:

— Estás adorável, minha querida.

Margaret pousou a toalha e voltou-se para se ver ao espelho do guarda-vestidos. Satisfeita com a sua imagem passou as mãos pelos flancos e espreguiçou-se voluptuosamente. Os seios pequenos, com os bicos minúsculos, não eram maiores que o peito de muitos homens e as ancas eram escorridas e as per­nas lisas.

Enfiou o pijama de seda, abotoou as calças de corte masculino e depois o casaco. Escovou para trás o cabelo liso e negro e pren­deu-o com ganchos. Voltou a ver-se ao espelho. À primeira vista, seria difícil distinguir-se de um homem.

Satisfeita, saiu da casa de banho e entrou no camarote:

— Podes ir agora, Rina.

Rina contemplou-a com pasmo:

— Miss Bradley... Peggy, que pijama!

Margaret sorriu-lhe:

— Gostas dele?

Rina inclinou a cabeça num gesto de assentimento.

Margaret sentiu-se contente:

— São de genuíno brocado chinês. Uma amiga enviou-me o tecido de S. Francisco. O modelo desenhei-o eu.

Havia uma coisa em Sally que ninguém podia negar: tinha gosto. De todas as coisas que dela recebera, aquele pijama me­recera a sua preferência.

Rina levantou-se da cadeira e tirou uma camisa de algodão da gaveta. Em seguida dirigiu-se para a casa de banho.

— Espera — disse Margaret. Encaminhou-se para a cómoda, de onde retirou uma pequena caixa.

— Quando fui fazer compras — tornou — escolhi-te também umas camisas de noite.

Observou o rosto de Rina enquanto esta abria a caixa:

— São de seda pura!

— Receava que trouxesses essas horríveis camisas do colégio.

Rina mirou o conteúdo da caixa:

— São de uma cor diferente para cada noite da semana — disse. — E tão belas todas que nem sei por qual principiar.

Margaret sorriu:

— Porque não vestes esta noite a branca?

— Está bem — concordou Rina. Pegou na camisa e enca­minhou-se para a casa de banho. Deteve-se à porta. — Não sei como agradecer, Peggy — declarou num tom de gratidão. — Con­segues tornar tudo tão maravilhoso.

Margaret riu, feliz.

— É assim que quero que as coisas sejam para ti — disse. Fitou Rina como se a ideia lhe ocorresse nesse momento. — Que dizes se festejássemos esta noite? Enquanto te despes vou pedir champanhe. Teremos uma pequena festa as duas.

— Boa ideia — volveu Rina. Riu. — Sempre me apeteceu beber champanhe mas o pai nunca consentiu.

— Bem, será um segredo entre nós duas — disse Margaret, rindo. Pegou no telefone. — Prometo não lhe dizer.

Rina pousou a taça e começou a rir.

Margaret reclinou-se na cadeira, com a taça entre os dedos:

— Onde está a graça?

— A minha camisa de noite enruga-se e chispa quando me mexo.

— É a electricidade estática — afirmou Margaret. — A seda é boa condutora.

— Bem sei — respondeu Rina vivamente. — Recordo-me das suas lições. — Fez descer a mão ao longo da camisa. — Solta pequenas chispas azuis. Consegues vê-las?

— Não.

Rina pôs-se de pé:

— Vou fechar as luzes — disse. — Então poderás vê-las.

Fechou as luzes e postou-se diante de Margaret.

— Vê — disse, passando as mãos pela camisa. Ouviu-se um ténue crepitar e surgiram pequenas faíscas na ponta dos seus dedos. Rina pegou na taça e esvaziou-a. Estendeu a taça a Mar­garet: — Posso beber um pouco mais?

— Decerto — respondeu Margaret, enchendo a taça.

Rina levou-a aos lábios e sorveu o líquido.

— O champanhe não é mais do que laranjada feita de vinho — disse em tom grave. — Mas sabe melhor. Não é tão doce.

— Está a ficar quente, não achas?

— Sim, é verdade — respondeu Rina. — Queres que ponha a ventoinha a funcionar?

— Oh, não — atalhou Margaret vivamente. — Isso serviria apenas para nos constipar. Prefiro despir o casaco.

Sentiu os olhos de Rina no regaço e ergueu a taça:

— Importas-te?

Rina sacudiu a cabeça. Bebeu novo gole.

— Ouves a música?

Margaret fez um gesto afirmativo:

— É a orquestra do salão de baile. Estão a tocar uma valsa.

Rina levantou-se. Moveu-se ao ritmo da valsa.

— Adoro dançar — disse. Deslizou com leveza pelo cama­rote, com a camisa a esvoaçar enquanto rodopiava, revelando as pernas esguias e bronzeadas.

Margaret sentiu uma fraqueza na cova do estômago quando se ergueu.

— Também gosto de dançar — disse esboçando uma vénia. — Permite que dance consigo, Miss Marlowe?

Rina fitou-a, sorrindo.

— Só esta dança. Todas as outras estão reservadas, Miss Bradley.

Margaret sacudiu um dedo em ar de censura:

— Mr. Bradley, se faz favor.

Rina riu:

— Claro. Só esta, Mr. Bradley.

Margaret enlaçou Rina pela cintura. Riram muito quando da camisa de noite de Rina se soltaram pequeninas chispas. Mar­garet sentiu tremer as pernas quando o calor dos seios de Rina trespassou a camisa. Conduzindo a jovem com firmeza, principiou a dançar. Rodopiaram furiosamente num círculo à medida que a música atingia um crescendo; depois, detiveram-se bruscamente.

Rina ergueu os olhos para a amiga. Margaret sorriu-lhe.

— É melhor bebermos um pouco mais de champanhe. — Encheu a taça de Rina e ergueu a sua. — Danças muito bem, Rina.

— Obrigada. Conduzes-me melhor que qualquer dos rapazes que iam aos bailes do colégio. Fazes tudo muito bem. — Rina vacilou ligeiramente. — A dança atordoa-me.

— Talvez fosse preferível deitares-te um pouco.

Rina sacudiu a cabeça.                            

— Para estragares a nossa festa?                

— Deita-te só por um momento. Não estragarás a nossa festa. Sentar-me-ei junto de ti.

— Muito bem — anuiu Rina. Encaminhou-se para a cama, colocou a taça sobre a mesa-de--cabeceira e estendeu-se sobre a colcha branca.

Margaret sentou-se ao lado dela.

— Sentes-te melhor?

— O camarote continua a rodopiar — disse Rina.

Margaret debruçou-se e afagou-lhe levemente a testa.

— Fecha os olhos por um instante.

Obediente, Rina fechou os olhos. Mantiveram-se em silêncio durante alguns minutos enquanto Margaret continuava a afa­gar-lhe a testa.

— Sinto-me melhor — disse Rina. — O atordoamento desa­pareceu.

Margaret não respondeu e continuou a acariciá-la. Rina abriu os olhos e fitou-a. Margaret ergueu a taça.

— Um pouco mais de champanhe?

Rina fez um gesto afirmativo.

Sorveu um gole e passou a taça a Margaret, que sorriu.

— Estou contente por irmos juntas para a Europa — disse súbitamente Rina. — Até agora nunca tive uma amiga. As colegas do colégio pareceram-me sempre umas tolinhas. Sempre a falar de rapazes.

— A maior parte delas não passam de umas garotas estú­pidas — disse Margaret. — Por isso é que gostei de ti logo que entraste na minha sala, naquela noite. Sabia que eras diferente, mais madura.

— Desde a morte de Laddie que não consigo tolerar rapazes — disse Rina.

— Laddie

— O meu irmão — explicou Rina. — Ele e o meu pai são os dois únicos homens de quem gostei realmente até agora.

— Devia ser muito bonito — disse Margaret.

— Era. — Rina voltou a cabeça. — Creio que o amava.

— Isso nada significa — volveu rapidamente Margaret. — Todas as raparigas amam os irmãos.

— Na verdade, ele não era meu irmão. Fui adoptada.

— Como sabes que o amavas? — perguntou Margaret, com uma leve ponta de ciúme.    

— Sei — respondeu Rina. — E creio que ele também me amava.

— Sim? — tornou Margaret cada vez mais enciumada. — Ele e tu...?

Rina afastou os olhos.

— Nunca falei disto a ninguém.

— Podes falar comigo sem reservas — disse Margaret. — Sou tua amiga. Não existem segredos entre nós.

— Não te zangarás comigo?

— Não me zangarei contigo — retorquiu Margaret quase com azedume. — Conta-me!

A voz de Rina era abafada pela almofada.

— Não permiti que me tocasse porque tive medo do que poderia acontecer. Certo dia, porém, ele entrou no meu quarto, ligou as minhas mãos à cama, com o cinto, e fez-me aquilo. Magoou-me tanto!

— Ele não podia amar-te muito se te magoou.

— Mas amava! — exclamou Rina com extrema vivacidade. — Não compreendes, Peggy? Desejei que ele o fizesse. Sempre o desafiei, e quando o fez apercebi-me de que o amava. Todavia, partiu no barco com a mãe e morreram ambos. — Começou a soluçar. — A culpa foi minha porque desejei que o fizesse. Não consegues compreender que era eu que devia morrer e não a mãe? Ela ocupou o meu lugar no sonho. Agora já nem sequer tenho aquele sonho.

— Terás de novo todos os teus sonhos — disse lenta­mente Margaret, puxando a cabeça de Rina contra o seu peito,

— Não, não terei!

— Sim, terás — replicou Margaret com firmeza. — Conta-me tudo, que te ajudarei.

Rina deixou de soluçar.                        

— Pensas que poderás ajudar-me? — perguntou ela, pro­curando com os olhos o rosto de Margaret.        

— Conta-me e veremos.

Rina respirou profundamente.

— Sonhei que estava morta e que todos se encontravam em redor do meu leito, chorando. Podia sentir quanto me amavam e queriam, pois pediam-me sem cessar que não morresse. Porém, nada podia fazer. Estava morta.

Margaret sentiu um arrepio gélido de excitação percorrer-lhe o corpo. Lentamente, pôs-se de pé.

— Fecha os olhos, Rina — disse ela com serenidade —, para representarmos o teu sonho. Quem desejas que eu seja?

Rina ergueu os olhos e fitou-a timidamente.

— Queres ser o Laddie? — perguntou.

— Serei o Laddie — respondeu Margaret. — Agora fecha os olhos.

Margaret baixou a vista e fitou a jovem. De súbito, os seus olhos começaram a encher-se de lágrimas. Um medo brusco prin­cipiou a invadi-la. Rina estava morta. Rina estava na verdade morta.

— Rina! — gritou ela roucamente. — Suplico-te que não morras! Sim!

Rina não se mexeu e Margaret tombou sobre os joelhos, ao lado da cama.

— Suplico-te, Rina. Não posso viver sem ti.

Inclinou-se sobre a cama e cobriu de beijos o rosto de Rina.

Rina abriu bruscamente os olhos. Tinha um sorriso leve mas altivo no rosto.

— Estás realmente a chorar — disse ela, tocando com os dedos as faces de Margaret. Fechou de novo os olhos, feliz. Lentamente, Margaret fez descer a camisa de noite.

— És bela — murmurou. — És a mulher mais bela do mundo. És demasiado bela para morrer.

Rina ergueu os olhos e fitou-a.

— Crês na verdade que sou bela?

Margaret inclinou a cabeça num gesto afirmativo. Tirou as cuecas e deixou-as tombar.              

— Tudo o que deves fazer é olhar-me se queres ver como és realmente bela. — Pegou na mão de Rina e levou-a aos seios, que apertou, e fê-la descer em seguida ao ventre e às coxas.

— Repara como sou lisa. Como um homem.

Lentamente, afundou-se na cama, ao lado de Rina, acari­ciando com doçura os seios da companheira, colando os lábios às suas faces macias e frescas.

— Sinto-me tão segura contigo, tão bem! — murmurou Rina. — És diferente dos outros rapazes. Não gosto que me toquem. Tenho medo deles. Contudo, não tenho medo de ti,

Com um grito de êxtase, Margaret rolou na cama, abrindo com os joelhos as pernas de Rina.

— Amo-te, Rina! Não morras, suplico-te!

Colou com vigor a boca à de Rina. Durante um momento, sentiu o fogo da língua dela e depois ouviu-a murmurar com voz rouca:

— Laddie, ama-me, ama-me! Adoro-te, Laddie!

Rina consultou o relógio. Eram duas e meia.

— Tenho realmente de partir — disse ela.

— Partir subitamente depois de um almoço destes? — re­torquiu Jacques Deschamps, estendendo as mãos. — É um sacri­légio. Tem de beber um licor antes.

Rina sorriu para o avocat delgado e grisalho.

— Mas... eu...

— Está em Paris há mais de um ano — interrompeu Jacques — e ainda não aprendeu que não se deve partir apressadamente. Seja o que for, esperará. — Chamou um criado que passava.

— Pst!

O criado deteve-se e curvou-se respeitosamente.

— Monsieur?

Rina recostou-se na cadeira. Jacques fitou-a interrogativa­mente.

— Pernod. Com muito gelo.

Jacques encolheu os ombros.

— Com muito gelo — repetiu ele ao criado. — Ouviu mademoiselle.

O criado fitou-a com aquele rápido olhar de avaliação que parece peculiar a todos os franceses.

— Com muito gelo, monsieur — disse ele. — O costume...

Jacques inclinou a cabeça num gesto afirmativo e voltou-se para Rina, depois de o criado se afastar.

— E que tal vai a pintura? — perguntou. — Faz pro­gressos?

Rina riu

— Conhece perfeitamente a situação. Receio jamais alcançar êxito na pintura.

— E tem-se divertido?

Ela voltou-se e olhou para a rua. O leve odor de Maio que só Paris conhecia flutuava no ar. Os motoristas de camião anda­vam já de camisa arregaçada e as mulheres há muito que tinham começado a abandonar os fatos cinzentos, espessos, e os casacos negros de Inverno.

— Não responde — tornou ele.

A jovem voltou-se para Jacques no momento em que o criado entrava com as bebidas.            

— Tenho-me divertido — disse, pegando no seu copo.

— Está certa disso? — persistiu ele.        

Rina sorriu bruscamente.

— Claro que estou.

Jacques ergueu o copo.

— A votre santé.

— A votre santé — repetiu ela.

Jacques pousou o copo

— E a sua amiga? — perguntou. — Como vai?

— A Peggy está óptima — volveu automaticamente Rina. Fitou-o com firmeza. — A Peggy é muito boa para mim. Não sei o que faria sem ela.

— Como sabe? — retorquiu rapidamente Jacques. — Nunca tentou. Podia ser muitas coisas. É jovem, bela. Podia casar, ter filhos, podia mesmo...

— Ser sua amante — interrompeu ela, sorrindo.

Jacques inclinou a cabeça num gesto afirmativo.

— Mesmo minha amante. Não é essa a coisa pior que poderia acontecer. Porém, recorde-se das condições que impus.

Rina fitou-o nos olhos.

— É muito gentil, Jacques — disse, lembrando-se da tarde em que as escutara pela primeira vez.

Ela e Peggy estavam em Paris há alguns meses e tinham aca­bado de alugar um apartamento depois de o pai a ter autorizado a permanecer em Paris durante um ano. Peggy levara-a a uma festa dada por um professor da universidade, onde tinha conse­guido um lugar.

Rina sentia-se muito só na festa. O seu francês bastante irre­gular não permitia uma rápida relacionação com os presentes e retirara-se para um canto. Folheava um magazine quando ouviu uma voz.

— Miss américaine?

Ergueu os olhos. Um homem delgado, moreno, com uma nuance de cinzento nas têmporas, estava de pé diante dela. Sorria docemente.

— Non parle fran...

— Falo inglês — interveio ela bruscamente.

Rina sorriu.                

— E que faz uma jovem bonita como você só com um ma­gazine? — perguntou ele. — Quem foi o louco que a trouxe a esta festa e depois... — Fez um gesto expressivo.

— Foi uma amiga que me trouxe — retorquiu Rina, indi­cando Peggy. — Acaba de conseguir um lugar na universidade.

Peggy conversava animadamente com um dos professores. Parecia muito atraente no seu fato saia-e-casaco estreito.

— Oh — fez ele, com uma expressão de perplexidade nos olhos.

— E quem o trouxe a você?

— Ninguém. — Encolheu os ombros. — Vim na esperança de a encontrar. É verdade.

Rina mirou as mãos do desconhecido e notou que ele trazia uma aliança no dedo, como tantos franceses.

— Crê que acredito nisso? — declarou ela. — Que diria a sua mulher?

Ele sorriu — e riu depois com Rina.

— A minha mulher mostrar-se-ia muito compreensiva. Não pôde acompanhar-me. Está muito, muito grávida.

Estendeu os braços num círculo exagerado.

Ela riu de novo e nesse mesmo momento a voz de Peggy chegou-lhe aos ouvidos.

— Tens-te divertido, querida?

Um dia, algumas semanas depois, estava ela só no apar­tamento, o telefone retiniu. Era Jacques, com quem foi almoçar. E diversas vezes depois.

Certa tarde — num dia precisamente como este —, encontra­vam-se tranquilamente inclinados sobre o copo de licor, ele per­guntou de súbito:

— Porque tem tanto medo dos homens?

Rina sentiu uma chama rubra subir-lhe à garganta e estam­par-se-lhe no rosto.

— Que o faz dizer isso?

— É uma impressão — volveu ele. — Interior. Eu sei.

Rina baixou os olhos sobre o copo e manteve-se ca­lada.

— A sua amiga não é a resposta — tornou ele.

Rina ergueu os olhos e fitou-o.

— A Peggy nada tem a ver com isso. É uma boa amiga, nada mais.

Ele sorriu intencionalmente.

— Recorde-se de que está em França. Não vejo nada de mau nisso. Compreendemos essas coisas. Porém, não a entendo. Você não é do género das que levam uma vida assim.

Rina sentiu o rosto chamejar.

— Creio que é muito pouco gentil da sua parte falar-me desta maneira.

Ele riu.

— Sim, é verdade — admitiu francamente. — Todavia, não me agrada vê-la destruir-se.

— Preferia que eu dormisse com um inepto que nada sou­besse e pouco se importasse com os meus sentimentos? — re­torquiu ela com cólera.

Ele sacudiu a cabeça.

— Não. Não me agradaria também isso. Gostaria que fosse para a cama comigo.

— Que o faz pensar que tudo seria diferente consigo?

Ele mergulhou os olhos nos dela.

— Sou um homem, não um rapaz. Desejo sastisfazê-la. Os rapazes são como os touros; pensam apenas em si mesmos. Nisto tem você razão. Mas, por isso mesmo, não pense que é a única mulher que sabe fazer amor. Existem também homens que têm consciência dos requintes da sensibilidade.

— Como você? — perguntou com sarcasmo a jovem.

— Como eu. Crê que a vejo com tanta frequência apenas porque tenho um interesse puramente intelectual em si?

Ela riu.

— Pelo menos é honesto — disse.

— Tenho uma grande fé na verdade.

Alguns meses depois, numa tarde chuvosa, Rina diri­giu-se ao apartamento dele e aconteceu o que Jacques dissera. Ele foi doce e gentil e não feriu a sua sensibilidade. Rina sentiu em si o poder de o conduzir a um ponto de êxtase do qual Jacques jamais poderia voltar, um poder que, para si, nunca se converteria em terror, porque o poderia controlar sempre, ou controlá-lo a ele.

Rina observava o amante, que abotoava a camisa diante do espelho.

— Jacques.

Ele voltou-se.

— Que é, minha querida?

— Vem cá — disse ela, estendendo-lhe os braços.        

Jacques aproximou-se da cama, inclinou-se rapidamente e beijou-lhe o seio nu.                                      

— Quando fazes amor, minha querida — disse ele —, os botões dos teus seios enchem-se como ameixas púrpura em flor. Agora parecem pequenas papoulas cor-de-rosa.

— Tudo aconteceu como previste, Jacques.

— Sinto-me muito feliz por isso.

Rina pegou nas grandes mãos castanhas do amante, e mi­rou-as. A aliança brilhava diante dos seus olhos. Fitou-o.

— Creio que gostaria de continuar tua amante — disse, suavemente.

— Bom — volveu ele. — Esperava que dissesses isso. Eis porque aluguei este pequeno apartamento. Podes mudar-te para cá esta noite.

— Mudar-me para cá? — murmurou ela, surpreendida.

Jacques inclinou a cabeça num gesto afirmativo.

— Se não gostas deste apartamento alugarei outro.

— É impossível! E Peggy?

— E Peggy? — encolheu os ombros. — Fini, com ela.

— Não poderemos continuar assim? Encontrar-me-ei con­tigo sempre que o desejares.

— Queres dizer que não te mudarás para este apartamento?

Rina sacudiu a cabeça.

— Não posso. Que faria Peggy? Ela necessita do meu auxílio para manter o apartamento. Além disso, se o meu pai descobrisse este affaire matar-me-ia.

— Mas não o preocupa o facto de viveres com aquela... ... aquela lesbienne—replicou ele com azedume.

— Não conheces o meu pai. Em Boston jamais pensam em coisas destas.

— Que supõe o teu pai que é a Peggy?

— O que sempre tem sido — respondeu Rina. — Minha pro­fessora, minha companheira.

Jacques soltou uma curta risada.

— Tem sido tua professora, sim.

— Oh, Jacques — volveu ela, num tom de amargura. — Não estragues tudo agora. Porque não podemos continuar assim?

Ele fitou-a.

— Então, não te queres mudar para aqui?

— Não posso — respondeu a jovem. — Não compreendes.

Ele ergueu-se e voltou à mesa de toilette. Acabou de abo­toar a camisa e pegou na gravata.

— Não vejo que diferença faria. Afinal, és casado. A pro­pósito, quanto tempo pensas que poderias passar aqui?

Jacques estudou-a.

— É diferente — disse por fim, com frieza.

— Diferente? — replicou ela com cólera. — Diferente para ti e não para mim?

Ele olhou-a fixamente.

— Um homem pode ser infiel à mulher, como ela o pode ser a ele, se o desejar. Porém, um homem nunca é infiel à amante, nem uma mulher ao amante.

— Mas a Peggy não é um homem!

— Não é, sim — retorquiu ele com azedume. — É ainda pior que um homem.

Rina fitou-o durante um instante e ergueu a cabeça com altivez.

— São essas as tuas condições? — perguntou tranquila­mente.

Rina manteve-se sentada, altiva, as costas direitas, os seios nus, magníficos, sobre o peito profundo. Ele podia ver o perfil das costelas de Rina, contra a carne, à medida que se erguiam e tombavam com a respiração.

«Nunca na minha vida vi tanta beleza», pensou ele.

Depois, disse em voz alta:

— Se é assim que pões as coisas, são essas as minhas con­dições.

Rina não respondeu.    

— Mas não compreendo — retorquiu passado um mo­mento. Ergueu os olhos e fitou-o. — É melhor dares-me o vestido.

Isto acontecera muitos meses antes e, o que parece bas­tante singular, tinham continuado amigos. Ela levou o pernod aos lábios e esvaziou o copo.                        

— E agora tenho de partir — disse. — Prometi a Pavan estar no seu estúdio cerca das três horas.

Ele ergueu uma sobrancelha.

— Pavan? Decidiste dedicar-te à escultura?

Ela sacudiu a cabeça.

— Não, sirvo apenas de modelo.

Jacques sabia como trabalhava Pavan. Usava muitos mode­los apenas para uma estátua. Tentava, com persistência, criar o ideal. Jamais tivera êxito.

Rina sentiu o olhar interrogativo do amante perpassar-lhe pelos seios. Riu.

— Não, não é o que pensas.

— Ele é um louco — volveu apressadamente Jacques. — A verdade, porém, é que todos os artistas são loucos. De que se trata então?

Rina pôs-se de pé.

— Da minha púbis — disse.

Pela primeira vez, desde que o conhecera, ele mostra­va-se estupefacto.

Rina riu.

Jacques quebrou por fim a sua estupefacção.

— Mas porquê?                    

— É a mais alta montanha que um homem jamais poderá escalar, diz ele. Muitos mais homens do que aqueles que tom­baram na ascensão do Everest morrerão tentando escalá-la. — Sorriu e inclinou-se para ele. — Mas não lhe diremos que sobreviveste à ascensão, não é verdade, Jacques?

A jovem beijou-o rapidamente na face, voltou-se e saiu. Jacques observou-a até ela se perder na rua movimentada, e depois -voltou-se para o criado.

— Psst! — fez ele. — Traz outra bebida.

Ela afastou-se pressurosamente após ouvir a saudação cortês da porteira e subiu os três estreitos lanços de escada. Ficara no estúdio até mais tarde do que pensara. Disporia ape­nas do tempo estritamente necessário para preparar o jantar antes do regresso de Peggy.

Rina atravessou a pequena saleta e entrou na cozinha. Acendeu imediatamente o gás no esquentador, para o banho, e com o mesmo fósforo acendeu também o fogão, deixando a chama baixa. Tirou o pequeno frango que comprara pouco antes, na rotisserie da esquina, e pô-lo num tacho, colocando-o depois a aquecer no fogão. Rapidamente, cortou um pão em fatias, que guarneceu de queijo, e começou a pôr a mesa. Volvidos alguns minutos terminou a sua tarefa.

Consultou o relógio. Dispunha de tempo suficiente para um banho, se a água estivesse suficientemente quente. Dirigiu-se para o reservatório, cujo conteúdo aflorou com os dedos. A água estava morna. Teria a suficiente se enchesse a banheira apenas até meio.

Voltou à saleta, a caminho da casa de banho, os dedos já ocupados com os botões da blusa. A porta abriu-se. Voltou-se para ela.

— Chegas cedo — disse.

Peggy fitou-a com frieza e, sem responder, fechou a porta atrás de si. Rina encolheu os ombros. Peggy tinha destes estados de espírito. Em dado momento mostrava-se afectuosa, ale­gre, volvidos alguns instantes fria, taciturna mesmo.

— Há vinho e queijo na mesa, se queres comer alguma coisa antes de jantar — tornou ela, dirigindo-se de novo para a casa de banho.

Com a mão, Peggy fê-la girar.

— Supunha que te tinha dito para não te encontrares mais com o Deschamps!

Rina olhou-a fixamente. Então era isto. Alguém devia tê-los visto no restaurante e referido o caso a Peggy. Era es­tranho que, dentre os homens que conheciam, Peggy só tivesse ciúmes de Jacques. Os jovens nunca a preocupavam, mas Jacques, com o seu sorriso curioso e confiado, e o cabelo de um cinzento luzidio nas têmporas, conseguia sempre inquietá-la.

— Encontrei-o por acaso e ele convidou-me para almoçar — disse Rina. Não era que tivesse medo dos ciúmes e das fúrias de Peggy, mas não se sentia com disposição para uma disputa. — Não podia mostrar-me descortês.

— Então onde estiveste tu toda a tarde? — perguntou Peggy. — Não na escola de arte, não em casa. Telefonei sem cessar para ambos os lugares, até ao desespero.

— Não me apeteceu ir à escola de arte — declarou.

Peggy olhou-a de viés.

— Não terias ido, por acaso, ao apartamento dele?

Rina fitou-a com os olhos esbugalhados.

— Não, não fui.

— Viram-no entrar no apartamento, cerca das quatro horas, com uma loura.

Rina ergueu uma sobrancelha. Jacques não perdera tempo.

— Não sou a única loura de Paris — disse ela.

— Ele não atendeu o telefone — tornou Peggy acusadora­mente,

Rina sorriu.

— Não o devemos censurar por isso, não achas?

Peggy esbofeteou a amiga.

— Estás a mentir!

Rina levou imediatamente a mão à face. Fitou Peggy com assombro. A outra face de Rina chamejou quando Peggy a esbofeteou de novo. Depois fincou as mãos nos ombros da companheira e começou a sacudi-la.

— Agora, quero saber a verdade!

— Disse-te a verdade! — exclamou a jovem, lançando-se furiosamente sobre Peggy, que tombou para trás, surpreendida, ante o súbito ataque de Rina. Uma expressão de dor aflorou aos seus olhos.

— Porque me fazes isto sabendo que te amo muito?

Rina olhou-a com espanto. Pela primeira vez, uma sensação de repugnância percorreu-a. Primeiro por Peggy, depois por si. Quase instantaneamente, Peggy lançou-se aos joelhos da amiga e colocou os braços em redor das coxas dela.

— Suplico-te, suplico-te, querida, que não me olhes dessa maneira. Não te zangues comigo. Perdoa-me. Senti uns ciúmes loucos.

As faces de Rina doíam-lhe devido às bofetadas da amiga. De súbito, sentiu-se exausta.

— Não tornes a fazer isto... nunca — murmurou, fatigada.

— Não, não, prometo — volveu Peggy, freneticamente. — Mas não posso suportar a ideia de que as mãos imundas desse devasso te toquem de novo.

— Ele não é um devasso mas um homem — retorquiu Rina. Baixou os olhos e fitou Peggy. Um leve tom de desdém insinuara-se-lhe na voz. — Um homem autêntico. Não uma imitação!

— Aprendeste comigo o que jamais aprenderás com qual­quer homem neste mundo.

Rina teve uma brusca percepção — a primeira, se bem que ténue, revelação da verdade. Um arrepio gélido percorreu-a. Baixou os olhos sobre a cabeça castanho-escuro que fazia pres­são na parte da frente da sua saia.

— Eis o que me parece errado. Mostras-te muito ávida em revelar-me o amor, em ensinar-me o amor. Mas tudo a partir do exterior. Porque não me ensinas a sentir o amor, a dar amor?

Lentamente, afastou Peggy de si. Depois, como não hou­vesse melhor momento para o demonstrar, caiu de joelhos, voltou o rosto para o peito de Peggy e começou a chorar.

— Chora, amor, chora — murmurou Peggy. — Chora todas as tuas penas. Cuidarei sempre de ti. É para isso que serve o amor.

Amru Singh chegou cedo à festa que Pavan dava para cele­brar o descerramento da sua estátua magistral. Eram cerca de seis horas quando Amru Singh apresentou os seus cumprimentos ao anfitrião, recusou cortêsmente uma bebida e ocupou o seu lugar habitual contra a parede da sala vazia.

Como era seu costume, tirou a camisa, dobrou-a cuidado­samente e colocou-a no chão. Em seguida, descalçou os sapa­tos — não usava meias — e colocou-os junto da camisa. Res­pirou profundamente, encostou as costas à parede e depois dei­xou-se deslizar até ficar sentado sobre a camisa, com as pernas cruzadas debaixo de si.

Era assim que podia observar, sem voltar a cabeça, os actos de todas as pessoas que se encontravam na sala. Era tam­bém nesta posição que podia mais fácilmente ocupar o espí­rito. Reflectiu em muitas coisas, em especial nas vaidades e am­bições dos homens. Amru Singh procurava um homem cujas vaidades e ambições transcendessem o pessoal, que aspirasse apenas à glória que fora enterrada profundamente pelos séculos no espírito humano. Embora não tivesse ainda encontrado um homem assim, não se mostrava desencorajado.

Sentia os músculos fechados na tensão familiar, ao mesmo tempo de descontracção e alívio, e a respiração cada vez mais lenta, mais cava. Durante alguns minutos cerrou um recanto do espírito, embora conservasse os olhos abertos e alerta. Poderia talvez acontecer que, numa noite qualquer, mesmo nesta, a sua procura terminasse.

Todavia, sentia já o espirito maléfico da deusa Kali à solta nesta sala. Com um encolher de ombros interior, expulsou de si o sentimento de decepção. Havia ali muita gente insigni­ficante.

No chão, a um canto atrás do amplo sofá, um homem e uma mulher estavam envolvidos num acto de fornicação, escon­didos, ou assim supunham, dos outros. Pensou nas posições obscenas gravadas bem alto nas paredes do templo da deusa e experimentou uma sensação de repugnância.

Este feio acto de cópula, que podia observar por entre as altas pernas, em estilo Regência, do móvel, não era justificado sequer pela vene­ração sagrada da deusa maléfica.

Num nicho perto da porta, com uma única luz brilhando, de cima, sobre ela, encontrava-se a estátua, envolvida em pano sobre um pedestal. Estava absolutamente imóvel, como um cadá­ver numa mortalha, e nem mesmo estremeceu quando a porta se abriu para dar entrada a mais dois convidados. Sem mexer os olhos, Amru reconheceu-os. A jovem americana loura e a sua amiga morena. O espírito de Amru procurou ignorá-las. Nesse momento o relógio começou a dar horas e Pavan prin­cipiou o seu discurso.

Era apenas uma repetição do que fora dito durante toda a noite, e muitas vezes antes; porém, quando terminou, Pavan começou bruscamente a chorar. Achava-se bastante embria­gado e quase caiu quando, com um gesto vivo, retirou a cober­tura da estátua. Esta tinha cerca de dois terços do tamanho de uma pessoa normal e era de um mármore italiano levemente rosado que captava a coloração doce e quente reflectida pela luz da sala. A figura, apoiada sobre os bicos dos pés, tinha as mãos erguidas acima da cabeça levantada, as quais estendia para o seu amante, o Sol.

O silêncio foi quebrado pouco depois quando os presentes começaram, a uma voz, a fazer comentários sobre a obra e a apresentar congratulações ao escultor. Todos, excepto um — Leocadia, negociante de arte, um homem baixo e grisalho com lábios finos e franzidos de cambista.

No fim, não importa o que dissesse qualquer deles, o jul­gamento final era seu. Ele é que determinava o seu valor. Pouco importava que o preço que marcasse pudesse para sempre proibir uma venda; a sua avaliação distinguia a excelência da obra de arte.

Pavan aproximou-se dele com ansiedade.

— Bem, monsieur? — perguntou. — Em que pensa?

Leocadia não olhou para Pavan. Nunca olhava para os outros sempre que falava. Os artistas afirmavam que ele não podia suportar o seu olhar porque era um parasita que vivia melhor dos produtos do sangue da sua vida do que eles próprios.

— O mercado da escultura está muito fraco — afirmou.

— Bah — grunhiu Pavan. — O mercado pouco me importa. Interessa-me o que pensa sobre o meu trabalho!

— O seu trabalho é o que sempre foi — retorquiu evasi­vamente o negociante.

Pavan voltou-se e fez um gesto — o braço estendido para a estátua imóvel.

— Olhe aqueles seios. Inspirei-me nos de jovens diferentes a fim de alcançar a simetria que a natureza não concede. E o rosto. Sem falhas! Repare na fronte, nos olhos, nas maçãs, no nariz! — Calou-se bruscamente, fitando a estátua. — O nariz — disse quase num murmúrio.

Voltou-se para os modelos comprimidos contra a parede.

— Tragam uma garrafa de vinho para monsieur!... O nariz, monsieur! — tornou de modo acusador. — Porque me não falou acerca do nariz?

Leocadia ficou calado. Não era altura de dizer a Pavan que não vira qualquer falha no nariz. Tinha uma reputação para manter.

— O meu cinzel! — bradou Pavan.

Trepou para uma cadeira e pôs delicadamente o cinzel em posição. Raspou a pedra com leveza e depois poliu a superfície com a manga. O mármore brilhou uma vez mais. O artista desceu e contemplou-o.

De súbito soltou um grito de frustração.

— Está errado! — exclamou. — Está todo errado! Porque não mo disse, monsieur? Porque permitiu que eu me ridicula­rizasse?

Leocadia manteve-se ainda calado.

Pavan fitou com espanto o negociante; as lágrimas asso­maram-lhe aos olhos; depois, voltou-se e desferiu um golpe violento com o macete na cabeça da estátua. O mármore esta­lou e a cabeça caiu em pedaços no chão. Pavan continuou, com fúria, a desferir golpes no resto da estátua. Os braços caíram, depois um ombro; surgiu uma fenda de um lado ao outro do busto, que foi, também, desfeito. A estátua balançou loucamente no seu pedestal e depois tombou, esmagando-se sobre o solo.

Pavan ajoelhou sobre os fragmentos, brandindo o macete como um possesso.

— Amei-te! — exclamou, as lágrimas deslizando pelas suas faces. — Amei-te e traíste-me!

Por fim, afundou-se, exausto, no chão, entre os destroços.

Com a mesma rapidez com que tinham surgido, as lágrimas desapareceram e Pavan começou a procurar furiosamente entre os fragmentos de mármore desfeito. Por fim, encontrou o que procurava. Ergueu-se. Com o fragmento na mão, brandiu-o nervosamente na direcção do negociante. Em seguida, estendeu-o, a fim de que todos o pudessem distinguir.

— Compreendo agora onde errei. Compreende também?

Leocadia mirou o pedaço de pedra. Nem sequer sabia a que este representava. Porém, continuava a não ser altura de falar. Cautelosamente, inclinou a cabeça num gesto afirmativo.

— Graças a Deus! — exclamou Pavan. — Graças ao bom Deus, não destrui a única coisa bela neste estúpido instante de desapontamento!

Os presentes avançaram a fim de ver o que Pavan conser­vava na mão. Parecia tratar-se apenas de um pedaço de mármore quebrado.

— Que é? — murmurou um deles para outro.

— Estúpidos! Não vêem de onde vieram? A própria alma da beleza de uma mulher? — rugiu Pavan.

Pôs-se de pé e fitou-os com rancor.

— Apenas os deuses merecem repousar sobre isto! — Baixou os olhos sobre a pedra que tinha nas mãos e uma expressão de ternura surgiu-lhe no rosto.

— Compreendo agora o meu erro — disse. — Em redor deste minúsculo centro cinzelarei na pedra a Mulher perfeita.

Circunvagou os olhos em redor, fitando com dramatismo os presentes.

Leocadia mirou de novo o pedaço de mármore. E viu o que representava. Quase imediatamente, pensou no jovem e obesso príncipe egípcio que entrara na sua galeria. Ali estava uma coisa que ele devia apreciar.

— Mil francos — disse.

Pavan fitou o negociante; bruscamente, readquiriu a sua confiança.

— Mil francos! — exclamou com desdém.

— Mil e quinhentos, então — murmurou Leocadia. Pavan encontrava-se agora envolvido na eterna disputa entre artista e negociante. Voltou-se para os seus camaradas artistas.

— Ele oferece-me apenas mil e quinhentos francos!

Voltou-se precipitadamente para o negociante.

— Dois mil e quinhentos francos, nem menos um cêntimo, e um contrato para fazer a escultura da mulher que serviu de modelo a isto! — bradou.

Leocadia baixou os olhos.

— Como posso eu responsabilizar-me por tal contrato se não conheço o modelo?

Pavan rodou sobre os calcanhares. Os modelos entreo­lharam-se com curiosidade, perguntando-se qual deles posara para aquela parte da estátua. Chegaram porém à conclusão de que não fora nenhuma das presentes.        

De súbito, Pavan estendeu o braço.        

— Tu! — exclamou, apontando. — Vem cá!

Voltaram-se todos e seguiram a direcção que o dedo tomava.

Rina ficou pregada ao chão, imóvel. O seu rosto começou a cobrir-se de rubor, e em seguida mãos firmes empurraram-na para a frente, para o escultor.

Pavan pegou na mão da jovem e voltou-se para o negociante. Leocadia olhou. Quase imediatamente, afastou de novo a vista.

— Combinado! — disse num murmúrio.

Um profundo grito de triunfo elevou-se da garganta do escultor, que ergueu Rina nos braços e beijou excitadamente em ambas as faces.

— Viverás eternamente, minha muito querida! — exclamou com orgulho. — Esculpirei na pedra a tua beleza para que toda a eternidade a venere!

Rina começou a rir. Era uma loucura. Estavam todos loucos. Pavan começou a cantar voluptuosamente, arrastando-a consigo numa dança errática. Ergueu-a e depô-la no pedestal onde estivera colocada a estátua.

Rina sentiu que lhe puxavam com força o vestido, todo o vestuário. Estendeu os braços para se proteger, para evitar uma queda. Um momento depois achava-se completamente nua em cima do pedestal. A sala mergulhou num estranho silêncio.

Foi o próprio Pavan quem a fez descer. Envolveu-a numa cobertura no momento em que ela se encaminhava para a casa de banho. Um dos modelos passou-lhe o vestuário rasgado. Rina pegou nele e fechou a porta atrás de si. Um momento mais tarde reapareceu.

Peggy esperava Rina. Quase a arrastou até à porta, que bateu com violência atrás delas, volvido um instante.

De súbito, uma das cortinas do espírito de Amru Singh ergueu-se. Através da fina divisória colocada atrás da sua cabeça, conseguiu escutar vozes indistintas.

— Estás louca?

— Mas que importância teve, Peggy?

E se a história aparecer na Imprensa? Uma coisa é certa: será enviada imediatamente para Boston e estampada na primeira página dos jornais.

Rina riu jovialmente.

— Parece-me que estou a ver o título — disse ela. — Uma jovem de Boston escolhida como a mais bela estouvada de Paris!

— Dás a impressão de sentires orgulho nisso.

— Porque não? É a única coisa que fiz até hoje por mim mesma.

— Uma vez que principie a constar, todos os homens de Paris começarão a perseguir-te. Creio que isto te agradará.

— Talvez sim. É tempo de principiar a crescer, de deixar de seguir a tua palavra em tudo.

Ouviu-se o estalar de uma bofetada violenta, depois uma voz cheia de cólera.

— És uma cadela, uma rameira barata, e eis como deves ser tratada!

Seguiu-se um momento de silêncio.

— Disse-te que nunca repetisses isto!

Amru ouviu o estalo de outra bofetada.

— Cadela, meretriz! É a única linguagem que compreendes! — Uma pausa. Depois, um grito: — Rina! — O som dissimulado do medo repercutia nesta voz. Amru Singh supôs que parecia muito mais a voz do treinador de um tigre quando, ao entrar na jaula, descobre que o pequeno animal domesticado que lá deixara se tornara uma fera autêntica. — Que estás a fazer? Pousa esse sapato!

Em seguida, ouviu-se um grito e o ruído produzido por um corpo aos tombos pelos degraus de uma escada longa e íngreme. E pela primeira vez na sua vida — os presentes pelos menos não se recordavam de outra — Amru Singh deixou uma festa antes do último convidado ter partido.

Rina estava de pé junto do parapeito, o rosto pálido como cinza, os olhos fixos no vão da escada, com o sapato de salto alto e pontiagudo ainda mão. Amru tirou o sapato dos dedos da jovem e, curvando-se, colocou-lho no pé.

— Não toquei nela uma só vez!

— Eu sei — volveu ele, calmo.

De súbito, Rina deixou-se tombar contra o corpo de Amru, que sentiu o pulsar violento, assustado, do coração da jovem contra o seu peito.

— Ela perdeu o equilíbrio e caiu sobre o corrimão!

— Não diga uma palavra a ninguém! — murmurou ele, com voz autoritária. — Encarregar-me-ei das explicações!

Um momento depois a porta atrás de ambos abriu-se e dois convidados, que se preparavam para partir, surgiram no hall. Amru Singh voltou-se para eles e, com uma das mãos, puxou o rosto de Rina contra o peito, de maneira que ela mal conseguia respirar e muito menos falar.

— Houve um acidente — disse com calma. — Chamem um médico.

Rina começou a chorar contra o seu ombro. Amru baixou os olhos e mirou a cabeça de cabelos louros cintilantes. Uma estranha expressão de contentamento aflorou-lhe aos olhos escuros e profundos. O seu augúrio verificara-se. A maléfica deusa Kali atacara. Desta vez, porém, não receberia a inocente como mais um sacrifício ao seu poder, não importa com que cuidado preparara o crime.

Rina encontrava-se de cabeça para baixo, apoiada a toda altura do corpo contra a parede, no momento em que Jacques entrou no apartamento. Ele ficou imóvel durante alguns instantes, mirando o corpo delgado da amante coberto com a indumentária usada pelas acrobatas, os cabelos louros brilhantes tocando o solo.

 

— Que estás a fazer? — perguntou cortesmente.

Ele lançou-lhe um sorriso de baixo para cima.

— Estou apoiada sobre a cabeça.

— Isso vejo eu — retorquiu ele. — Mas porquê?

— Amru Singh afirma que este exercício faz muito bem ao cérebro. O sangue lava-o e ganha-se uma nova perspectiva do mundo. Ele tem razão. Não sabes como tudo parece diferente quando se está de cabeça para baixo.

— Amru também te disse como se beija uma jovem que se encontra de cabeça para baixo? — perguntou Jacques com um sorriso.

— Não — respondeu Rina. Um sorriso travesso aflorou ao seu rosto. — Eu própria reflecti nisso! — Fez rápidamente um arco com as costas e moveu as pernas.

Jacques desatou a rir alto. Não podia haver engano com o convite do Y que ela fazia contra a parede. Curvou-se sem demora para a frente, colocando a cabeça entre as pernas estendidas, e beijou-a.

Ela tombou no solo, rindo a bandeiras despregadas.

— É bom ver-te rir — disse ele. — A princípio não rias muito.

— A princípio não era feliz.

— E és feliz agora?                          

O riso ainda se mantinha nos seus olhos quando os ergueu e o fitou.

— Muito feliz.

Ela era muito diferente da jovem confusa que vira naquela noite, meses antes. Recordou-se do telefone, que retinia ao lado da cama.

— Monsieur Deschamps? — perguntara uma voz profunda e tranquila.

— Oui? — respondera ele, ainda meio ensonado.

— Perdoe-me se perturbo o seu repouso — continuara a voz com a pronúncia peculiar dos ingleses e contudo não de todo britânica. — Chamo-me Amru Singh. Estou com uma amiga sua, Mademoiselle Rina Marlowe. Ela necessita do seu auxílio.

Despertara então.

— É grave?

— Muito grave — respondera Amru Singh. — Mademoiselle Bradley teve um acidente. Morreu devido a uma queda e a polícia mostra-se muito difícil.

— Permita que fale com Mademoiselle Marlowe.

— Infelizmente, não pode vir ao telefone. Está num pro­fundo estado de choque.

— Onde se encontra?

— No estúdio de Monsieur Pavan, o escultor. Sabe onde fica?

— Sim — respondeu imediatamente Jacques. — Estarei aí dentro de meia hora. Entretanto, não a deixe falar com ninguém.                              

— Já me encarreguei disso — volveu Amru Singh. — Não falará com ninguém antes de chegar.    

Jacques não compreendera inteiramente o que Amru Singh dissera antes de ver o rosto pálido de Rina e uma expressão vazia que ela tinha nos olhos. A polícia isolara-a eficientemente na pequena sala de toilette do estúdio.

— A sua amiga parece encontrar-se num profundo estado de choque, Monsieur — dissera o inspector quando Jacques se apresentou. — Mandei chamar um médico.

Jacques inclinou-se.

— É muito gentil, inspector. Talvez possa dizer-me o que aconteceu. Acabo de chegar, depois de ter recebido um telefonema de um amigo comum.

O inspector fez um gesto largo.                          

— Trata-se apenas de um caso de rotina, Monsieur. Made­moiselle Bradley caiu pelas escadas. Exigimos apenas uma declaração de Mademoiselle Marlowe, a única pessoa que na altura se encontrava com ela.

Jacques inclinou a cabeça num gesto afirmativo. «Deve haver mais qualquer coisa», pensou. De outro modo, porque o teria Amru Singh chamado?

— Posso entrar na sala de toilette?

O inspector inclinou-se.

— Decerto, Monsieur.

Jacques entrou na pequena sala. Rina estava sentada numa cadeira, meio escondida atrás de um homem alto que usava turbante.

— Monsieur Deschamps?

Jacques inclinou-se.

— Às suas ordens, Monsieur Singh.

Olhou de relance para Rina. Parecia não o ver.          

Amru começou a falar, com doçura, como se se dirigisse a uma criança.                                          

— O seu amigo Monsieur Deschamps está aqui, Mademoiselle.              

Rina ergueu os olhos, vazios, irreconhecíveis.

Jacques fitou inquisitivamente Amru Singh. Os olhos do homem eram indecifráveis.                                

— Encontrava-me no local do acidente, Monsieur Deschamps. Ela achava-se muito abalada e parecia querer aceitar compulsivamente a culpa pelo acidente da amiga.

— Ela teve interferência nele? — perguntou Jacques.

— Como já expliquei à polícia — disse Amru Singh bran­damente —, nada do que vi me leva a concluir que sim.

— Que declarou ela?

— Supus que seria melhor que ela não falasse com eles — respondeu Amru Singh.

— É médico?

— Apenas um estudante, Monsieur.

Jacques fitou-o.

— Então como conseguiu evitar que ela falasse à polícia?

O rosto de Amru Singh continuava impassível.

— Disse-lhe que o não fizesse.

— E obedeceu? — perguntou Jacques.

Amru Singh inclinou a cabeça num gesto afirmativo.

— Pouco mais podia fazer.

— Posso falar com ela?

— Se o desejar — respondeu Amru Singh. — Porém, sugiro outro lugar e não este. Poderiam talvez não interpretar bem as suas palavras.

— Todavia, a polícia mandou já chamar um médico — disse Jacques. — Ele não...

Amru Singh sorriu.

— O médico confirmará apenas que ela se encontra em estado de choque.

E foi exactamente isto que aconteceu. Jacques voltou-se para o inspector.

— Se me permite, inspector, levarei Mademoiselle Marlowe a casa. Conduzi-la-ei amanhã à tarde ao seu gabinete, depois de o seu médico a ter examinado, para que preste declarações.

O inspector anuiu.

No táxi, Jacques inclinou-se sobre o motorista e deu-lhe o endereço de Rina.

— Creio que será melhor que Mademoiselle Marlowe não fosse para o seu próprio apartamento — disse vivamente Amru Singh. — Existe lá muita coisa que lhe despertará a recordação da sua falecida amiga.

Jacques reflectiu durante um momento e depois deu ao mo­torista o endereço do seu outro apartamento.

Amru Singh entrou no apartamento e Rina seguiu-o dócil­mente. Jacques fechou a porta. Amru Singh conduziu-a até uma cadeira. Fez um gesto e ela sentou-se.

— A partir deste momento não posso mais falar por si — disse ele tranquilamente. — Você deve falar em seu próprio nome.

Rina ergueu lentamente a cabeça. Os seus olhos pestane­javam como se estivesse a despertar de um sono profundo. E nesse momento viu-o.                    

Instantâneamente, as lágrimas brotaram-lhe dos olhos e lançou-se nos braços dele.                  

— Jacques! Jacques! — exclamou, chorando. — Tinha a certeza de que virias!                            

Começou a soluçar, o corpo tremendo contra o do amante. As palavras irrompiam-lhe dos lábios em frases veementes e soltas.

— Psiu — murmurou ele, docemente, apertando-a contra si. — Nada receies. Tudo se explicará.

Ouviu a porta abrir-se e fechar-se em seguida. Voltou ligei­ramente a cabeça. Amru Singh partira.

No dia seguinte, dirigiram-se ao gabinete do inspector. Daí, foram ao apartamento de Rina, cujas coisas mudaram para o apartamento de Jacques. Duas noites mais tarde, entrava ele inesperadamente no apartamento, Amru Singh ergueu-se de uma cadeira.

— Amru Singh é meu amigo — disse Rina, titubeante.

Jacques fitou-a e em seguida fitou o indiano. Depois deu alguns passos em frente, de mão estendida.

— Se é teu amigo — disse —, então é também meu amigo.

Os dentes brancos do indiano brilharam num sorriso en­quanto as mãos de ambos se apertavam calorosamente. A partir desse momento, os três começaram a jantar juntos pelo menos uma vez por semana.

Jacques deu volta à chave na porta. Em seguida, deu um passo para o lado, a fim de deixar entrar Rina, e seguiu-a até à casa de banho. Uma vez aí, ela descalçou os sapatos com um piparote. Depois, já no quarto, sentou-se na borda da cama, esfregando o pé.

— Oh, que bom!

Jacques ajoelhou-se em frente dela e massajou-lhe o pé. Volvido um momento, ergueu os olhos, sorrindo.

— Estás muito bonita esta noite.

Rina fitou-o, travessa.

— Monsieur le Ministre declarou o mesmo — retorquiu, para o acicatar. — Disse que se alguma vez pensasse noutra ligação não me esquecesse dele.

— O velho devasso! — exclamou Jacques. — Deve ter uns bons oitenta anos...

Ela ergueu-se da cama e tirou o vestido; depois, sen­tou-se, à maneira ioga, no chão. Tinha as pernas cruza­das debaixo de si, os braços formando um quadrado diante do peito.

— Que estás a fazer? — perguntou ele surpreendido.

— A preparar-me para meditar — respondeu Rina. — Amru Singh diz que cinco minutos de meditação antes de dormir aliviam o espírito e o corpo de todas as tensões.

Jacques tirou os botões do colarinho da camisa e colo­cou-os em cima da mesa de toilette. Observou-a no espelho.

— Ser-me-ia muito fácil ter ciúmes de Amru Singh.

— Isso tornar-me-ia muito infeliz — retorquiu ela com uma expressão sombria —, pois nesse caso teria de deixar de ver Amru.

— Farias isso por mim?

— Decerto — volveu a jovem. — Amo-te. Ele é apenas meu amigo, meu professor.

— É meu amigo, também — volveu Jacques, com ar sério. — Sentir-me-ia muito infeliz se permitisses que um gracejo per­turbasse essa relação.

Rina sorriu. Ele sorriu também e voltou-se para a mesa de toilette, começando a tirar a camisa.

— Que aprendeste hoje com o nosso amigo?

— Existe uma boa possibilidade de que em breve possa estar liberta do desejo de morrer que tem governado muitas das minhas acções desde a infância — respondeu ela.

— Bom — volveu Jacques. — E como acontecerá isso?

— Está a ensinar-me os exercícios ioga para o parto. Adquirirei o contrôle de todo o meu corpo.

— Não sei para que servirá isso. Os exercícios são impor­tantes apenas quando se vai ter um filho.

— Eu sei — declarou ela.

Alguma coisa na voz da amante fez com que Jacques a fitasse no espelho. O rosto dela estava impassível na meditação.

— Que te faz falar nisso? — perguntou ele.

Rina fitou-o com os olhos lucilando.  

— Tu — respondeu. — O Dr. Fornay afirma que me puseste einceinte 1.

De súbito, ele encontrava-se no solo, ao lado dela, aper­tando-a nos braços e beijando-a, falando em divorciar-se da mulher, de maneira que a criança nascesse na vivenda da família no Sul da França.

Rina colocou um dedo sobre os lábios dele. Jacques teve a impressão de que a jovem se tornara de repente mais velha do que ele.

— Ora — disse Rina —, estás a comportar-te como um americano, com ideias estúpidas, provincianas. Sabemos ambos que um divórcio arruinaria a tua carreira; assim, não falemos mais nisso. Terei o bebé e continuaremos como até aqui.  

— E se o teu pai descobre a verdade?              

Rina sorriu.                                        

— Ele não necessita de saber. Quando for a casa de visita direi apenas que fiz um casamento desastroso e ninguém pro­curará saber mais.

Ela riu e conduziu-o até à casa de banho.

— Agora, toma o teu banho. Tiveste já emoções bastantes hoje. Compraste-me os jornais de Boston?

— Estão na minha pasta.

Jacques afundou-se na banheira. A água estava quente e relaxante, e a pouco e pouco sentiu que o pulsar do seu coração se aproximava do normal. Lentamente, e com uma sensação de grande vigor e voluptuosidade, começou a ensaboar-se.

Saiu da casa de banho a atar o roupão. Como Rina não se encontrasse no quarto de cama, dirigiu-se para a sala de estar.

Grávida.

Alguma coisa na maneira como estava sentada à mesa, com os olhos fixos no jornal, fez com que um arrepio de medo o percorresse.

— Rina!

Ela voltou-se. Lentamente, ergueu os olhos. Durante a sua vida, ele jamais vira tão viva tortura. Dava a impressão de que a jovem perdera toda a esperança na redenção.

— Não posso ter o bebé, Jacques — murmurou ela com voz vazia.

A voz dele feriu-lhe a garganta.

— Quê?

As lágrimas começavam a encher os olhos de Rina.

— Tenho de partir para casa — disse, num sussurro.

— Porquê? — exclamou ele, um tanto magoado já.

Apontou para o jornal.

Jacques aproximou-se e olhou sobre o ombro da amante. Um título estendia-se a toda a largura da página:

 

         HARRISON MARLOWE

         BANQUEIRO BOSTONIANO

         DE QUINTA GERAÇÃO

         CRIMINOSA­MENTE IMPLICADO

         NA FALÊNCIA DO BANCO DA FAMÍLIA

 

Abaixo, via-se uma fotografia a três colunas de Harrison Marlowe.

Jacques ergueu os ombros.

— Oh, minha querida! — exclamou.

Mal ouviu o murmúrio dela.

— E desejei tanto este bebé!

Compreendeu que era melhor não se opor. Uma coisa per­cebia muito bem, como francês — o amor filial.

— Teremos outro bebé — disse. — Quando isto terminar, voltarás a França.

Sentiu-a mover-se no círculo dos seus braços.

— Não — gritou ela. — O Dr. Fornay disse-me que não poderia ter outro bebé!

A grande ventoinha sussurrava sem cessar e o sol de Agosto, pesado e húmido, fazia-se sentir no gabinete do governador. O magro e nervoso secretário indicou a Rina uma cadeira defronte da sólida escrivaninha.

Ela sentou-se e observou o jovem que se encontrava de pé, junto do governador, erguer folha após folha de papel à medida que o dirigente as assinava. Terminada a tarefa, o secretário pegou na última folha de papel e saiu apressadamente, fechando a porta atrás de si.

Rina fitou o governador quando ele estendeu a mão sobre a escrivaninha e tirou um charuto de uma caixa. Durante um mo­mento, ela mirou uns olhos escuros, penetrantes, num rosto belo.

A voz do governador era levemente rouca.

— Importa-se que fume, Miss Marlowe?

Rina sacudiu a cabeça.

Ele sorriu, pegou num pequeno canivete e aparou cuidadosa­mente a ponta do charuto. Colocou-o na boca e acendeu um fósforo. Surgiu uma chama amarelo-vivo, larga e pequena, à medida que ele chupava o charuto. Rina sentiu o aroma ligei­ramente agradável do havano quando o governador lançou o fósforo para dentro do cinzeiro.

Ele sorriu.

— Um dos poucos prazeres que o meu médico ainda me per­mite — disse. Tinha uma voz simples e contudo extraordiná­riamente clara que enchia a sala, embora falasse calmamente, como um actor bem ensaiado, a fim de que os seus murmúrios se ouvissem nos pontos mais afastados do segundo balcão.

Ele inclinou-se sobre a secretária e baixou a voz quase ao tom de um murmúrio confidencial.

— Sabe, espero viver cento e vinte e cinco anos. O meu próprio médico é de opinião que isto poderá acontecer se eu cortar o tabaco.

Rina sentiu o calor convincente e a paixão que fluíam da voz do governador, e durante um momento acreditou também.

— Estou certa que sim, senhor governador.

Ele recostou-se na cadeira, com um ténue olhar de satisfação.

— Aqui entre nós, pouco me preocupa o facto de viver ou não todo esse tempo — disse ele. — Trata-se apenas do seguinte: quando morrer, não desejo deixar inimigos, e penso que a única maneira de isso acontecer é viver mais do que eles.

O governador riu e Rina imitou-o, esquecendo de momento o motivo que a trouxera. Notava-se nele qualquer coisa de incrívelmente jovem e vital que contrastava com os fiapos cinzentos do seu cabelo negro, espesso e lustroso.    

Ele fitou-a, por sobre a sólida secretária, sentindo uma vez mais o ímpeto do tempo contra si. Chupou o charuto e expeliu lentamente o fumo. Gostava do que via. Nada de tolices modernas, dietas e cabelos curtos à rapaz, nela.

O cabelo da jovem tombava-lhe, longo e espesso, sobre os ombros.

O governador ergueu os olhos e de súbito encontrou os dela fitos nos seus. Imediatamente, compreendeu que a jovem se apercebera de que a estudava. Sorriu com despreocupação.

— Você era um bebé quando aprovei os seus papéis de adopção.

As palavras de Rina puseram-no à vontade.

— A minha mãe e o meu pai disseram-me muitas vezes que o senhor se mostrou muito gentil quando tornou possível a minha adopção.

Ele inclinou lentamente a cabeça num gesto afirmativo. Fora um gesto inteligente esse de terem contado a verdade. Mais cedo ou mais tarde ela tê-lo-ia descoberto.

— Tem dezoito anos agora?

— Faço dezanove no próximo mês — volveu Rina.

— Você cresceu muito desde a última vez que a vi. — O go­vernador tinha uma expressão solene quando colocou cuidadosa­mente o charuto no cinzeiro. — Sei porque veio procurar--me — acrescentou com a sua voz ressoante. — Antes de mais, não quero deixar de exprimir a minha simpatia em face do transe pelo qual passa o seu pai.

— Examinou as acusações que lhe fazem? — perguntou viva­mente Rina.

— Li os jornais — admitiu ele.

— Considera-o culpado?

— As actividades bancárias são como a política — retorquiu o governador, fitando-a. — Há muitas coisas moralmente justas e juridicamente erradas. Que sejam uma e a mesma coisa, não importa. O julgamento é emitido apenas em face do resultado final.

— Quer dizer — observou ela rapidamente — que a questão é não se ser surpreendido!

O governador sentiu uma certa satisfação. Gostava de pessoas vivas, brilhantes, gostava da livre troca de ideias com elas. Era pena que a política atraísse tão poucas pessoas deste género.

— Não quero mostrar-me hipócrita — retorquiu ele calma­mente. — Não é tão simples como isso. A lei não é uma coisa inflexível. É viva e reflecte as esperanças e os desejos das pessoas. Eis porque as leis são muitas vezes modificadas e emendadas. No final de contas, temos esperança de que, eventualmente, o moral e o jurídico se unirão como linhas paralelas que se encon­tram no infinito.

— O infinito... Porém um homem como o meu pai não pode esperar tanto tempo — replicou ela. — Ninguém dispõe de um tempo assim. Nem mesmo o senhor, embora possa viver cento e vinte e cinco anos.

— Infelizmente, a decisão será sempre o maior risco dos dirigentes — respondeu ele. — O seu pai assumiu esse risco quando autorizou aqueles empréstimos. A sua justificação, a si mesmo, residiu no seguinte: sem eles, certas fábricas teriam de fechar, muitas pessoas ficariam sem trabalho e outras perderiam os seus investimentos ou os principais meios de apoio.

Assim, sob o ponto de vista, moral, justificava-se inteiramente o que o seu pai fez. O problema jurídico, porém, é outra história. A principal obrigação de um banco é cuidar dos interesses dos seus deposi­tantes. A lei toma isto em conta e o Estado tem normas que governa tais empréstimos. De acordo com a lei, o sei pai nunca devia ter autorizado aqueles empréstimos, pois as garantias não eram adequadas. Claro, se as fábricas não tivessem fechado e os empréstimos tivessem sido pagos considerá-lo-iam um benfeitor público, um homem de negócios de vistas largas. Todavia, acon­teceu o contrário e agora estas mesmas pessoas que o poderiam ter exaltado reclamam a sua cabeça.

— Não conta o facto de ter perdido toda a sua fortuna ao tentar salvar o banco? — perguntou Rina.

O governador sacudiu a cabeça.

— Infelizmente, não.

— Então, nada pode fazer por ele? — perguntou a jovem com desespero.

— Um bom político não se opõe à maré da opinião pública — volveu ele lentamente. — E o público exige agora um bode expiatório. Mesmo que se defenda, o seu pai perderá, e deve apa­nhar quinze anos. Nesse caso as minhas funções terão cessado há muito, quando surgir a oportunidade de lhe ser concedida liberdade vigiada.

Tirou o charuto do cinzeiro e fê-lo rolar suavemente entre os dedos brancos e fortes.

— Se você pudesse convencer o seu pai a confessar-se culpado e a desistir de julgamento com júri, eu poderia arranjar as coisas de modo a que um juiz lhe aplicasse uma pena de um a três anos. Dentro de quinze meses conceder-lhe-ia o perdão.

Ela fitou-o fixamente.

— E se alguma coisa acontece ao senhor?

Ele riu.

— Viverei cento e vinte e cinco anos, recorda-se? Mesmo que não exercesse então estas funções, o seu pai nada perderia. Ele poderia ter direito à liberdade vigiada dentro de vinte meses.

Rina ergueu-se e estendeu a mão.

— Muito obrigada por me ter recebido — disse sem desfitar o governador. — Aconteça o que acontecer, tenho esperança de que o senhor viva cento e vinte e cinco anos.

Do seu lado das grades de ferro, Rina viu o pai aproxi­mar-se de si. Os olhos dele estavam embaciados, o cabelo tornara-se grisalho, o próprio rosto parecia ter-se coberto de uma coloração cinzenta que condizia um tanto com o uniforme do mesmo tom da prisão.

— Olá, pai — disse docemente Rina, enquanto ele se sentava na cadeira que se encontrava defronte de si.

O velho esboçou um sorriso

— Olá, Rina.

— Vai tudo bem, pai? — perguntou ela com ansiedade. — Estão...

— Tratam-me muito bem — interrompeu ele. — Tenho uma ocupação na biblioteca. Encarregaram-me de estabelecer una novo contrôle do inventário. Têm perdido muitos livros.

Ela fitou-o de relance. Estava a gracejar, com certeza. Um silêncio embaraçoso interpôs-se a ambos.

— Recebi uma carta de Stan White — disse ele por fim. — Fizeram uma oferta de sessenta mil dólares pela casa.

Stan White era o advogado do pai.

— Muito bom — volveu ela. — De acordo com o que afirmavam, não acreditava que nos dessem tanto. As casas grandes encontram-se em excesso no mercado.

— Alguns judeus desejam-nas — declarou ele sem rancor. — Eis porque pagarão tanto.

— Era demasiado grande para nós e de uma maneira ou de outra não poderíamos viver lá quando sair.

Ele fitou-a.

— Não nos restará muito. Talvez dez mil, depois de pagarmos aos credores e a Stan.

— Não precisaremos de muito — volveu ela. — Consegui­remos aguentar-nos até voltar à actividade.

Desta vez, ele falou num tom mais amargo.

— Quem é que me daria uma oportunidade? Agora, não sou um banqueiro, mas um condenado.

— Não fale dessa maneira! — retorquiu ela com azedume. — Toda a gente sabe que não tem culpa do que aconteceu; demais, não roubou nada.

— Isso complica ainda mais as coisas — observou o pai com secura. — Uma coisa é ser-se condenado por roubo e outra, bem diferente, ser-se tolo.

— Eu não deveria ter ido à Europa. Devia ter ficado consigo. Talvez nada disto tivesse acontecido.

— Fui eu que faltei nas minhas obrigações para con­tigo.

— Nunca fez isso, pai.

— Disponho de muito tempo aqui para pensar em tudo. Passo noites em claro a reflectir no que irás fazer agora.

— Cuidarei de mim, pai — disse ela. — Arranjarei um em­prego.

— Em quê?                        

— Não sei — retorquiu rapidamente Rina. — Encontrarei alguma coisa.

— Não é tão fácil como isso. Não estás preparada para um emprego qualquer. — Ele mirou as mãos. — Destruí as tuas possibilidades de um bom casamento.

Ela riu.

— Não pensava em casar. Todos os jovens de Boston são apenas isso — jovens. Parecem-me simples rapazes. Não tenho paciência para os aturar. Quando me casar será com um homem maduro, como o pai.

— Umas férias, eis do que necessitas — disse ele. — Pareces fatigada, exausta.

— Teremos ambos férias quando voltar a casa — retorquiu Rina. — Iremos à Europa. Conheço um lugar na Riviera onde podemos viver durante todo um ano com menos de dois mil dó­lares.

— Ainda falta muito tempo — tornou ele. — Precisas de férias imediatamente.

— Que está a insinuar, pai? — perguntou a jovem.

— Escrevi ao meu primo Foster. Ele e a mulher, a Betty, querem que vás viver com eles. Dizem que a vida é encantadora lá e que podias ficar com eles até eu sair.

— Mas nesse caso não poderia visitá-lo — volveu imediata­mente Rina, estendendo as mãos para tocar as dele no espaço estreito entre as barras.

O velho apertou os dedos de Rina.

— Será melhor assim. Teremos ambos menos coisas dolorosas a recordar.

— Mas, pai... — começou ela a protestar.

O guarda aproximou-se e o pai pôs-se de pé.

— Dei já instruções a Stan White — disse ele. — Agora, faz como te digo e parte para casa de Foster.

Ele voltou-se; Rina viu-o afastar-se: os olhos começaram a encher-se-lhe de lágrimas.

Rina só o viu alguns meses mais tarde, quando se preparava para partir de novo para a Europa, em lua-de-mel. Levou o marido à prisão.

— Pai — disse quase com timidez —, apresento-lhe Jonas Cord.

Harrison Marlowe viu um homem da sua idade, talvez mais velho, mas com a altura e a vitalidade juvenil que pareciam características dos homens do Oeste.

— Há alguma coisa que possamos trazer-lhe, pai? — perguntou ela.                                        

— Alguma coisa que possamos fazer, Mr. Marlowe? — acres­centou Jonas Cord.

— Não, não, obrigado.

Cord fitou-o e Harrison Marlowe notou uns olhos azuis profundos e penetrantes.

— Os meus negócios estão a expandir-se, Mr. Marlowe disse ele. — Antes de fazer quaisquer planos, depois de sair daqui, gostaria que falasse comigo. Preciso de um homem com a sua experiência para me ajudar a orientar as finanças.

— É muito gentil, Mr. Cord.

Jonas Cord voltou-se para Rina.

— Sei que gostarias de estar alguns momentos só com o teu pai. Assim, se mo permites, esperarei lá fora.

Rina inclinou a cabeça num gesto afirmativo e os dois homens despediram-se. Durante alguns segundos, pai e filha fitaram-se; depois, Rina disse:

— Que pensa dele, pai?

— Ora, é da minha idade!

Ela riu.

— Afirmei que casaria com um homem maduro, pai. Nunca consegui suportar rapazes.

— Mas... mas... — tartamudeou o pai. — És jovem. Tens a vida toda à tua frente. Porque casaste com ele?

Rina sorria com doçura.

— Ele é um homem extremamente rico, pai — volveu com tranquilidade. — E muito só.

— Queres dizer que casaste com ele por causa disso? — Nesse momento compreendeu o motivo da oferta do marido de Rina. — Para que tomasse conta de mim? — perguntou.

— Não, pai — retorquiu apressadamente a jovem. — Não foi por isso que casei com ele.

— Então porquê?... Porquê?

— Para que cuidasse de mim, pai.

— Mas, Rina... — começou ele a protestar.

Ela interrompeu-o.

— Afinal, o pai disse que eu não podia tomar conta de mim mesma. Não foi por isso que me aconselhou a partir para casa dos Foster?

Ele não respondeu. Não tinha mais nada a dizer. Após mais alguns momentos de constrangimento, separaram-se.

O velho estendeu-se na estreita tarimba da sua cela e fixou os olhos no tecto. Sentiu um arrepio gélido percorrê-lo. Estremeceu levemente e puxou o fino cobertor sobre as pernas. Qual a na­tureza das suas faltas para com Rina? Onde errara ele?

Voltou o rosto para o travesseiro duro, cheio de palha, e lágrimas ardentes começaram a descer-lhe pelas faces. Estremecia à medida que o arrepio se tornava mais gélido. Mais tarde, na­quela noite, vieram à cela e levaram-no para o hospital da prisão. Morreu de pneumonia brônquica três dias depois, com uma febre de quarenta graus, enquanto Rina e Jonas Cord iam ainda no alto mar.

A dor começou a ecoar nas suas têmporas, retalhando-a como uma faca afiada, no sonho. Começou a sentir o pesadelo afastar-se, e depois surgiu a terrível solidão do despertar. Agi­tou-se inquieta. Todas as figuras se dissipavam, todas excepto ela. Suspendeu a respiração durante um momento, esforçando-se por voltar à realidade. Em vão, porém. Os últimos vestígios cálidos do sonho tinham-se dissipado. Estava desperta.

Abriu os olhos e circunvagou-os durante um instante pelo quarto do hospital; depois, recordou-se onde estava. Encontravam-se novas flores na mesa de toilette, um pouco para lá dos pés da cama. Deviam tê-las trazido enquanto dormia.

Moveu lentamente a cabeça. Ilene dormitava na grande cadeira de braços, perto da janela. Estava escuro lá fora. Devia ter dormitado durante toda a tarde.

— Sinto uma terrível dor de cabeça — murmurou docemente. — Posso tomar uma aspirina, por favor?

Ilene inclinou a cabeça para a frente e com ar interrogativo fitou Rina.

Rina sorriu.

— Dormi durante toda a tarde.

— Durante toda a tarde? — Era a primeira vez, em quase uma semana, que Rina estava consciente. — Toda a tarde — re­petiu Ilene. — Sim.

— Encontrava-me tão cansada — murmurou Rina. — E dói-me sempre a cabeça quando durmo durante todo o dia. Gostava de tomar uma aspirina.

— Vou chamar a enfermeira.

— Não se incomode. Chamá-la-ei — declarou rapidamente Rina. Começou a erguer a mão para premir o botão acima da cabeça. Porém, não conseguiu levantar o braço.

Mirou-o. Estava ligado ao lado da cama. Tinha uma agulha na veia, no antebraço, ligada a um longo tubo que conduzia a uma garrafa, a qual se encontrava, de gargalo para baixo, sus­pensa de um suporte.

— Para que é isto?

— O médico achou melhor não perturbarem o teu repouso para te alimentar — volveu Ilene que se inclinou sobre a cama e premiu um botão.

A enfermeira surgiu quase instantaneamente no limiar da porta. Ela dirigiu-se célere para a cama e postou-se junto de Ilene, observando Rina.

— Estamos acordadas? — perguntou, com vivacidade pro­fissional.

Rina esboçou um sorriso.                      

— Estamos acordadas — retorquiu com voz débil. — Você é nova cá, não é verdade? Não me recordo de si.

A enfermeira lançou um olhar rápido a Ilene. Encontra­va-se de serviço desde que Rina entrara no hospital.

— Sou a enfermeira da noite — respondeu calmamente. — Acabo de chegar.

— Tenho sempre uma dor de cabeça quando durmo de tarde — disse Rina. — Desejo saber se me podem dar aspirina.

— Vou chamar o médico — decidiu a enfermeira.

Rina voltou a cabeça.

— Deves estar exausta — murmurou ela para Ilene. — Por­que não vais para casa e descansas um pouco? Tens estado aqui durante todo o dia.

— Não me sinto cansada. Dormi uma soneca esta tarde.

O médico entrou na sala nesse mesmo momento e Rina voltou-se para a porta. Ele piscava os olhos atrás dos óculos de vidros brilhantes.

— Boa noite, Miss Marlowe. Repousou muito?

Rina sorriu.

— Demasiado, doutor. Fiquei com uma dor de cabeça. — Franziu a testa. — Com uma dor de cabeça bastante esquisita.

Ele aproximou-se da borda da cama e tomou o pulso de Rina.

— Esquisita? — perguntou, baixando os olhos sobre o relógio. — Que significa isso?

— A cabeça parece doer-me mais quando tento recordar nomes. Conheço-o e conheço esta minha amiga — fez um gesto indicando Ilene —, mas quando tento pronunciar o nome dela a dor de cabeça volta e não consigo recordar-me.

O médico riu e largou o pulso da jovem.

— Não é uma coisa muito invulgar. Certos tipos de dor de cabeça fazem com que as pessoas esqueçam o seu próprio nome. A sua não deve ser assim tão má, creio.

— Não, não é — retorquiu Rina.

O médico tirou um oftalmoscópio do bolso e inclinou-se.

— Vou observar-lhe os olhos com isto— disse ele. — Posso assim ver por trás deles, e descobriremos que a sua dor de ca­beça é apenas devida a simples tensão ocular. Não se assuste.

— Não estou assustada, doutor — respondeu Rina. — Um médico observou-me uma vez, em Paris, com um objecto desses. Pensou que eu estava em estado de choque. Mas não era verdade. Encontrava-me apenas hipnotizada.

Ele colocou o polegar ao canto dum dos olhos de Rina e ergueu a pálpebra. Premiu um botão no instrumento e uma luz brilhante reflectiu através de um buraco do tamanho da cabeça duma agulha.

— Como se chama? — perguntou ele casualmente.

— Katrina Osterlaag — respondeu ela sem demora. Depois riu. — Vê, doutor, disse que a minha dor de cabeça não era muito má. Sei ainda o meu nome.

— Como se chama o seu pai? — perguntou ele, movendo o instrumento para observar o outro olho.

— Harrison Marlowe. Vê, sei esse também.

— Como se chama? — perguntou ele de novo; a luz descrevia um semicírculo no canto superior do olho.  

— Rina Marlowe — respondeu ela. Riu alto. — Não con­segue enganar-me, doutor.

Ele apagou a luz e endireitou-se.

— Não consigo, na verdade — volveu, sorrindo.

Notou-se um movimento à porta; duas serventes empurra­vam uma máquina larga e quadrada, que fizeram aproximar da beira da cama, junto do médico.

— Isto é um electroencefalógrafo — explicou ele calmamente. — Usa-se para medir os impulsos eléctricos que emanam do cérebro. É muito útil, por vezes, para localizar a origem das dores e para as tratar.

— Parece muito complicado — disse Rina.

— Não é — retorquiu o médico. — Muito simples, na verdade. Explicá-lo-ei à medida que o formos utilizando.

— E eu que pensei que precisava apenas de tomar umas aspi­rinas para fazer desaparecer as dores de cabeça.

O médico riu com ela.

— Bem, sabe como nós, os médicos, somos — disse ele. — Como poderíamos justificar os nossos honorários se recomendássemos apenas alguns comprimidos?

Ela riu de novo, o médico voltou-se para Ilene e inclinou silenciosamente a cabeça; os seus olhos indicavam a porta. Já se ocupava outra vez de Rina quando Ilene a abriu.

— Virás mais tarde, não é verdade? — perguntou Rina.

Ilene voltou-se. As serventes estavam já a pôr a máquina a funcionar e a enfermeira ajudava o médico a preparar Rina.

— Sim, virei — prometeu Ilene.

Saiu e fechou suavemente a porta atrás de si.

Quase uma hora mais tarde, o médico saiu do quarto e dei­xou-se tombar sobre uma cadeira diante de Ilene, a mão pro­curando no bolso. Tirou um maço de cigarros amarrotado, que ofereceu. Ilene tirou um e ele riscou um fósforo, com que acen­deram, um após outro, os cigarros.

— Então? — perguntou ela, com os lábios quase unidos.

— Poderemos pronunciar-nos mais concretamente quando estudarmos o electroencefalograma — respondeu ele, tirando uma fumaça. — Porém, há vestígios definidos de deterioração em certas áreas neurais.

— Por favor, doutor — rogou Ilene. — Diga palavras que eu possa compreender.

— Decerto — volveu ele. Respirou profundamente. — O cé­rebro mostra já vestígios de deterioração em certas áreas ner­vosas. É esta deterioração que a impossibilita de recordar certas coisas — coisas simples e comezinhas: nomes, lugares, tempo. Tudo é presente na sua memória; nela não há passado, nem talvez hoje. Faz um esforço inconsciente para relembrar pequenas coisas que causam a tensão e provoca as dores de cabeça.

— Mas não é um bom sinal? — perguntou ela esperançada — É esta a primeira vez, em semanas, que parece um tanto normal.

— Compreendo a sua inquietação — retorquiu o doutor, cautelosamente. — Não quero parecer de todo pessimista, mas o mecanismo humano é bastante singular. Deve-se à sua vitalidade física o facto de ter resistido tão bem. Ela atravessa vagas recorrentes de febre extremamente alta, uma febre que destrói tudo no seu caminho. Quase por milagre, quando a febre abranda ligeiramente, mesmo por um momento, como já tem acontecido, ela pode por vezes recuperar o que parece ser a lucidez.

— Quer dizer que está de novo a deslizar para o delírio?

— Quero dizer que a temperatura está outra vez a subir — respondeu ele.

Ilene pôs-se rapidamente de pé e aproximou-se da porta.

— Crê que posso falar com ela, antes de voltar ao delírio?

— Lamento — o médico sacudiu a cabeça. Ergueu-se. — A temperatura começou a subir vinte minutos depois de deixar o quarto. Administrei-lhe sedativos para suavizar a dor. Ilene fitou fixamente o médico.

— Oh, meu Deus! — disse em voz baixa. — Por quanto tempo, doutor? Por quanto tempo tem ela de sofrer assim?

— Não sei — volveu lentamente o médico. Pegou-lhe no braço. — Porque não me deixa conduzi-la a casa? Não há nada que possa fazer esta noite, acredite-me. Ela dorme.

— Gostaria de vê-la durante um momento — insistiu Ilene, hesitante.

— Muito bem, mas permita que a advirta. Não se deixe in­quietar devido à aparência dela. Tivemos de lhe cortar a maior parte do cabelo a fim de fazermos o electroencefalograma.

Ilene fechou a porta do seu gabinete e dirigiu-se para a secretária. Alguns esboços preliminares dos vestidos para um novo filme esperavam a sua aprovação. Acendeu a luz e encami­nhou-se para o bar.

Tirou uma garrafa de whisky e encheu um copo com cubos de gelo. Depois de cobrir o gelo com whisky voltou à secretária, sentou-se e pegou nos esboços. Bebeu um gole e estudou-os.

Premiu um botão no braço da cadeira e a luz de um projector de tecto incidiu sobre os desenhos. Voltou a cadeira para o pedestal à sua esquerda, tentando imaginar o vestido no modelo.

Porém, tinha os olhos embaciados de lágrimas. Os esboços pareciam desaparecer, e conseguia apenas ver Rina nesse pedestal, a luz branca brilhando sobre os seus longos cabelos louros — os cabelos de um louro prateado em tufos pousados sobre a almofada debaixo da cabeça rapada.

— Porque fizeste isto, meu Deus? — gritou ela num assomo de cólera, com os olhos fixos no tecto. — Porque tens sempre de destruir as coisas belas? Não há bastante fealdade no mundo?

As lágrimas continuavam a embaciar-lhe os olhos; porém, através delas, podia ainda ver Rina no pedestal, pela primeira vez, a seda branca luzindo-lhe sobre o corpo.

Não se tinha passado muito tempo. Cinco anos. E a seda branca era para um vestido de noiva. Pouco antes do casamento de Rina com Nevada Smith.

Começou com um noivado tranquilo mas transformou-se numa farsa, o maior golpe publicitário jamais desferido em Hollywood. E tudo porque David Woolf o divisara na cama com uma extra ruiva que tinha um pequeno papel em O Renegado.

Embora fosse um publicista de menor importância, apenas um furo acima do mais ínfimo amanuense do departamento, e ganhasse somente trinta e cinco dólares por semana, David era muito querido pelas raparigas. Isto podia explicar-se com uma palavra. Nepotismo. Bernie Norman era tio dele.

Não que lucrasse muito com isso. Todavia, as raparigas não conheciam este facto. Como poderiam elas saber que Norman não conseguia tolerar a presença do filho da irmã e que lhe dera o lugar apenas para a calar? Para evitar que o sobrinho o incomo­dasse, dera instruções às três secretárias para que impedissem a entrada do jovem no seu gabinete, não importava qual a emergência.

A princípio isto aborrecera David, mas agora pouco o preo­cupava. Tinha vinte e três anos e coisas mais importantes em que pensar. Que diferença havia entre as garotas daqui e as da sua cidade? Pensava nas arrumadoras do Bijou Theater de Nova Iorque, nas pequenas italianas assustadiças e nas irlandesas re­chonchudas, e nas pequenas cenas de amor que se faziam no segundo balcão deserto ou no palco vazio atrás da grande tela, enquanto o filme se desenrolava sobre as suas cabeças nervosas. Mesmo aí, o nome de Bernie Norman fora de muita utilidade para ele. Porque teriam tirado um garoto de dezoito anos de um lugar sem importância para o transformarem num director-adjunto?

A jovem falava. A princípio David não a ouvia.

— Que dizes? — perguntou ele.

— Gostava de ir ao casamento de Nevada Smith.

A sua posição poderia ser oblíqua mas as suas tentativas não o eram. Ele reconheceu esse facto.

— Será uma coisa de pouco relevo — retorquiu.

A voz dela era agora mais clara, à medida que volvia para ele os olhos.

— Irão muitas pessoas importantes que, de outra maneira, jamais me notariam.

— Verei o que posso fazer — disse ele.

Foi pouco depois, quando a ruiva fazia a terceira ávida tentativa para o convencer, que aquela ideia acudiu a David.

— Uhuh! — exclamou ele de súbito, enquanto as implicações mais remotas se lhe desdobravam na mente.

Trémula, a jovem ergueu os olhos e viu uma expressão de profundo êxtase no rosto do companheiro.          

— Calma, querido. Podes acordar os vizinhos — murmurou ela docemente, pensando que David atingira o clímax.

E de certa maneira isso tinha acontecido.

Bernie Norman sentia todos os dias orgulho em ser o pri­meiro director do estúdio. Todas as manhãs, às sete horas, a sua longa limusina, conduzida por um motorista, transpunha os sólidos portões de ferro da entrada dos directores e parava diante do edifício onde se encontrava o seu gabinete. Gostava de começar cedo, dizia sempre, porque assim tinha a possibili­dade de examinar a correspondência, que era pelo menos duas vezes mais volumosa do que a de qualquer outra pessoa do estúdio, antes de as suas três secretárias entrarem. Teria o resto do dia livre para receber os que o procuravam. A sua porta estava sempre aberta, afirmava.

Na verdade, ele chegava vedo porque era um bisbilhoteiro nato. Embora nunca ninguém se tivesse referido a isso, todos no estúdio sabiam o que ele fazia no momento em que a porta da frente se fechava atrás de si. Começava a passear-se pelos gabinetes silenciosos, tanto dos directores como das secretá­rias, observando os papéis que se encontravam em cima das escrivaninhas, metendo o nariz em todas as gavetas que por acaso estavam abertas e examinando o conteúdo de todas as cartas e memorandos. Assim, sempre que um director dese­java certificar-se de que alguma coisa mereceria a atenção de Norman, deixava inocentemente um rascunho em cima da sua secretária quando ia para casa.

Norman justificava facilmente tudo isto de si para si. Como poderia um homem controlar, de outro modo, uma orga­nização tão complicada?

Naquela manhã, eram oito horas quando chegou à porta do seu gabinete particular. A inspecção fora um pouco mais demorada que de costume. Respirou profundamente e abriu a porta. Problemas, sempre problemas.

Dirigiu-se para a secretária; em dado momento, porém, deteve-se cheio de horror. O sobrinho David dormia na sua poltrona, folhas e folhas de papel espalhadas no chão à sua volta. Bernie sentiu uma onda de cólera possuí-lo.

Atravessou o gabinete e puxou David da poltrona.

— Por que diabo estás tu a dormir no meu gabinete, grande parasita?! — gritou.

David endireitou-se, espantado, e esfregou os olhos.

— Não quis adormecer. Passava os olhos sobre alguns papéis quando devia ter começado a dormitar.

— Papéis! — bradou Norman. — Que papéis? — Rápido, pegou num, voltando, cheio de horror, os olhos para o sobri­nho. — O contrato de produção de O Renegado! — acusou ele. — Do meu arquivo particular!

— Posso explicar tudo — volveu imediatamente David, já desperto.

— Dispenso as explicações! — exclamou Norman com dramatismo. Apontou para a porta. — Rua! Se não estiveres fora deste estúdio dentro de cinco minutos chamarei os guardas para te expulsarem. Estás despedido. Uma coisa não tole­ramos neste estúdio: malandrins e espiões. O filho da minha irmã! Rua!

— Ora, deixe-se de fitas, tio Bernie — disse David, pon­do-se de pé.

— Deixe-se de fitas, diz-me ele! — rugiu Norman. — Du­rante metade da noite a sua mamã assedia-me com telefonemas. — A voz imitava inconscientemente o ruído nasal da irmã. — «O meu rapaz não chegou ainda; não apareceu durante toda a noite em casa. Talvez tivesse havido um acidente.» Um aci­dente, ah! Devia dizer-lhe que o seu pequeno estivera a fornicar durante toda a noite com a extra ruiva do estúdio! Rua!    

David fitou fixamente o tio.

— Como sabe?

— Como sei? — rugiu o tio. — Conheço tudo o que se passa neste estúdio; Pensas que constituí uma empresa como esta fornicando durante toda a noite em quartos mobilados? Não! Trabalhei! Trabalhei como um cão. Dia e noite!

Dirigiu-se para a cadeira atrás da secretária e afundou-se nela. Bateu com a mão sobre o coração num gesto exagerado.

— Com um agravo destes, de alguém com o meu sangue, logo pela manhã, necessito de outro luch im kopf! — Abriu uma gaveta da secretária, fechada à chave, e tirou um frasco de comprimidos. Engoliu imediatamente dois e recostou-se na cadeira, de olhos fechados.

David fitou o tio.

— Sente-se bem, tio Bernie?

Lentamente, Norman abiu os olhos.

— Estás ainda aqui? — perguntou com a voz de quem faz um esforço supremo para se dominar. — Rua! — Os seus olhos fixaram-se nos papéis ainda no chão. — Primeiro apanha esses papéis. Depois, some-te da minha vista! — acrescentou vivamente.

— Nem sequer sabe porque vim cá esta manhã — disse David, hesitante. — Tive uma grande ideia!    

O tio abriu os olhos e fitou-o.

— Se é coisa importante procura-me como toda a gente. Sabes bem que a minha porta está sempre aberta.

— Aberta? — David riu sarcásticamente. — Se o próprio Cristo entrasse no estúdio aquelas três harpias não o deixavam entrar neste gabinete.

— Não metas a religião nisto. — Norman ergueu a mão, numa advertência. — Conheces a minha política. Todos são iguais. Se alguém deseja avistar-se comigo, fala com a minha «número três», que fala com a minha «número dois», que por sua vez fala com a minha «número um». Se a «minha número um» pensar que é suficientemente importante, fala comigo e volvido um momento a pessoa que me procura encontra-se na minha presença! — Fez estalar os dedos. — Assim mesmo! Mas não gosto que se introduzam aqui de noite para ler os meus papéis confidenciais. Agora, rua!

— Muito bem — retorquiu David, dirigindo-se para a porta. Era inútil tentar fazer alguma coisa pelo velho cana­lha. — Cá vou — tornou com azedume. — Porém, quando ultrapassar esta porta, olhe bem para mim, pois comigo está a lançar para a rua um milhão de dólares!

— Um momento! — bradou o tio. — Quero ser justo. Disseste que tinhas alguma coisa muito importante para mim. Vá, fala. Sou todo ouvidos.

David fechou a porta.

— No próximo mês, antes da estreia do filme, Nevada Smith e Rina Marlowe casam-se — disse ele.

— É essa a coisa muito importante que tinhas para me contar? — Os olhos do tio chamejaram. — Que interessa? Eles nem sequer me convidaram para a cerimónia. Além disso, Nevada está liquidado.

— Talvez — retorquiu David. — Mas ela não. Viu o filme?

— Decerto que vi o filme! — exclamou Norman. — Vamos estreá-lo esta noite.

— Bem, depois da estreia ela será a maior celebridade de Hollywood.

O tio fitou-o, agora com certo respeito.

— E então?

— Segundo os jornais, não está ligada por contrato a ninguém — volveu David. — Assine um com ela esta manhã. Depois...

O tio inclinava já a cabeça, aprovadoramente.

— Depois diz a ambos que quer oferecer-lhes a boda. Um presente do estúdio. Faremos dela o acontecimento mais sensacional de Hollywood, uma coisa que nos trará mais cinco milhões de lucro.

— Mas que vantagem nos trará isso? — perguntou Norman. — Não temos participação no filme, parte nos lucros.

— Temos os direitos de distribuição, não é verdade? — perguntou David, com crescente confiança, uma vez que via o olhar atento no rosto do tio. — Vinte e cinco por cento de cinco milhões são um milhão e um quarto de dólares. O sufi­ciente para cobrir as despesas de distribuição durante um ano. E o mais bonito em tudo isto é que podemos cobrir todas as despesas da boda com a publicidade destinada ao filme. Desta maneira não nos custará um cent. Cord paga tudo da sua parte nos lucros.

Norman pôs-se de pé, com lágrimas nos olhos.

— Bem o imaginei! É o sangue que fala! — exclamou ele com dramatismo. — A partir deste momento trabalhas para mim. És meu assistente! Direi às raparigas que mandem pre­parar para ti o gabinete ao lado do meu. Mais do que isto não poderia pedir a um filho — se o tivesse!

— Uma coisa mais.

— Sim? — Norman sentou-se. — Quê?

— Penso que devíamos firmar um contrato com Cord, para que ele fizesse um filme por ano para nós.

Norman sacudiu a cabeça.

— Oh, não! Já cá temos bastantes loucos. Dispensamo-lo bem.

— Ele tem nervo. Pode verificá-lo em O Renegado.

— Foi um acidente feliz.

— Não, não foi — insistiu David. — Assisti a toda a fil­magem. Tudo o que se encontra no filme é obra sua ou resul­tado da sua colaboração. Se não fosse ele, Marlowe jamais seria a estrela que vai ser. Nunca na minha vida vi um homem com mais jeito para descobrir vedetas.

— Ele é um goy — retorquiu Norman depreciativamente — Que é que eles sabem sobre vedetas?

— Os goyim sabiam muito sobre isso antes de Adão e Eva deixarem o Paraíso.

— Não — retorquiu Norman.

— Porquê?

— Não me agrada ver por cá um homem daquele género — disse Norman. — Não ficaria satisfeito somente em fazer o filme. Muito em breve quereria dirigir tudo. É um ganan­cioso e não desejaria trabalhar em colaboração com outros.

Ele ergueu-se e tornejou a secretária, aproximando-se do sobrinho.

— Não — repetiu. — Não quero negócios com ele. Mas gosto das tuas outras ideias. Esta manhã iremos firmar o contrato com essa jovem. Em seguida falaremos da boda. A ideia não agradará a Nevada, mas creio que ele não se vai opor. No fim de contas, empregou o seu dinheiro ao filme e não quererá correr riscos.

David deu ordem para que enviassem uma cópia especial do documentário a Cord, que na altura se encontrava na Europa. Quando Jonas entrou na pequena sala de projecção, em Lon­dres, onde conseguira que o filme fosse passado, as luzes apa­garam-se imediatamente e a banda musical encheu a sala. Na tela, as legendas brotavam de uma objectiva em rotação até nada mais se ver.

 

                 ACTUALIDADES NORMAN

                 A PRIMEIRA COM

                 O MELHOR EM FILMES!

 

A voz dramaticamente lúgubre do narrador surgiu com o plano de uma igreja, em redor da qual giravam verdadeiras multidões.

Toda a Hollywood, todo o mundo, se encontram extrema­mente emocionados com o casamento — um autêntico conto de fadas—, realizado hoje, em Hollywood, de Nevada Smith e Rina Marlowe, estrelas da próxima distribuição de Bernard B. Norman, O Renegado.

Via-se um plano em que Nevada se dirigia até à igreja esplendidamente vestido com um traje escuro de cow-boy e montado num cavalo branco como a neve.

Eis o noivo, o mundialmente famoso cow-boy Nevada Smith, ao chegar à igreja com o seu igualmente famoso cavalo Whitey.

Nevada subiu a escadaria e entrou na igreja, enquanto a polícia continha milhares de pessoas em delírio. Em seguida surgiu uma limusina preta. Bernie Norman saiu e voltou-se para ajudar Rina. Ela deteve-se um momento a sorrir à multi­dão; depois, tomou o braço que Norman ofereceu e começou a entrar na igreja à medida que a objectiva fazia um grande plano.

E eis a noiva, a encantadora Rina Marlowe, estrela de Q Re­negado, dando o braço a Bernard B. Norman, o famoso produtor de Hollywood. O vestido de noivado de Miss Marlowe é de renda de Alençon, desenhada especialmente por Ilene Gaillard, célebre couturière, que também desenhou os excitantes trajes que Miss Marlowe usa no filme de Bernard B. Norman O Renegado.

A objectiva mostrou em seguida o exterior da casa de Nevada em Beverly Hills, onde se via uma vasta tenda com gran­des grupos passando em redor dela.

Aqui, no relvado da casa palaciana de Nevada Smith, encon­tra-se a tenda erguida pelo estúdio de Bernard B. Norman, como tributo de todos os seus colaboradores ao famoso casal. Tem espaço suficiente para albergar mil convidados e é a mais vasta do seu género erguida até hoje em qualquer parte do mundo. E agora saudemos alguns dos famosos convidados.

A objectiva circunvagou o relvado enquanto o locutor apre­sentava muitas estrelas e jornalistas famosos, que fizeram uma pausa no meio dos seus grupos, obviamente em pose estudada, a fim de sorrir e fazer uma mesura na direcção da objectiva. Esta moveu-se até aos degraus de entrada da casa enquanto Nevada e Rina surgiam à porta. Volvido um momento, Nor­man encontrava-se no meio de ambos. Rina tinha um grande bouquet de rosas e de orquídeas nos braços.

Eis de novo os felizes noivos, juntamente com o seu amigo, o famoso produtor Bernard B. Norman. A noiva prepara-se para lançar o bouquet à multidão em ávida expectativa.

Viu-se um plano de Rina lançando o bouquet e um grupo de jovens bonitas. As flores foram por fim apanhadas por uma jovem ruiva de olhos cor de abrunho que a objectiva apresen­tou cm grande plano.

O bouquet foi apanhado por Miss Aune Barry, amiga íntima da noiva. Miss Barry, uma bela ruiva, tem também um papel importante em O Renegado e acaba de ser contratada por Filmes Norman devido à sua bela figura.

A objectiva moveu-se em seguida para fazer um grande plano final. Rina, Norman e Nevada sorriam dentro do tea­tro. Norman estava entre o casal, com um braço colocado de maneira paternal em torno do ombro de Nevada, o outro escon­dido atrás da noiva. Todos riam, felizes, à medida que a cena esmaecia.

As luzes acenderam-se na sala de projecção quando Jonas se pôs de pé e, de cara fechada, saiu da sala. Experimentava uma sensação de frialdade na cova do estômago. Se Rina dese­java assim as coisas, era lá com ela.

Mas o que Jonas não viu, como aliás ninguém que estivera a olhar para a tela, fora a mão esquerda de Bernie Norman, escondida atrás das costas de Rina.  

Ele explorava, deliciado e naturalmente, os contornos redondos das nádegas da jovem.

Passava já das oito horas quando Ilene ouviu abrir-se a porta do seu gabinete exterior. Pousou a pequena paleta e lim­pou as manchas de tinta, que tinha nas mãos, na sua blusa cinzenta, larga. Voltou-se para a porta no próprio momento em que Rina entrava.

— Lamento ter-te retido durante tanto tempo, Ilene — desculpou-se Rina. — Demorámo-nos set (1) esta noite.

Ilene sorriu.

— Não tem importância. De uma maneira ou de outra, precisava de acabar alguns trabalhos. — Fitou Rina. — Pare­ces fatigada. Porque não te sentas e descansas durante alguns minutos? No gabinete de produção disseram-me que ficarias até tarde; assim, mandei vir café e sanduíches.

Rina teve um sorriso de gratidão.

— Obrigada — disse ela, deixando-se tombar sobre o amplo divã e tirando os sapatos com um piparote. — Estou fatigada.

Ilene conduziu uma mesa de café até junto do divã. Abriu o pequeno frigorífico e tirou uma bandeja com sanduíches, que colocou diante de Rina. Em seguida, abriu um grande termo com café, e encheu a chávena destinada à amiga. Rina levou-a aos lábios.

 

(l) Local dos cenários e da acção, numa filmagem.

 

— É bom — disse, sobre o rebordo. Bebeu novo gole e depois recostou a cabeça no divã. — Estou realmente tão exausta que nem sequer sinto fome.

— Não admira — respondeu Ilene. — Não tiveste sequer uma semana de descanso depois de teres terminado O Renegado. Três filmes, seguidos, e na próxima semana começas ainda outro. É de surpreender que não tenhas tido um colapso.

Rina fitou-a.

— Gosto de trabalhar.

— Também eu — retorquiu vivamente Ilene. — Todavia, tudo tem limites.

Rina não respondeu. Bebeu novo gole e pegou num exem­plar de Variety. Com indolência, voltou a página. Deteve-se num título, leu durante um momento, e depois passou o jornal a Ilene.

— Viste isto?

 

             O RENEGADO

             O MAIOR ÊXITO DE BILHETEIRA

 

— Durante um ano pleno de lamentos de exibidores e produ­tores angustiados no que se refere ao fosso aparentemente sem fundo no qual as finanças das companhias estão caindo, é encorajador notar um raio de sol. Através de fontes dignas de crédito, sabe-se que o lucro de O Renegado ultrapassou, só nos Estados-Unidos, os cinco milhões, na semana anterior, menos de um ano após a sua estreia. Com base nestes números, espera-se que o filme de Rina Marlowe, cuja exibição ainda continuará por muito tempo nos E. U. A. bem como no resto do mundo, alcance um lucro de dez milhões de dólares. O Renegado, uma dis­tribuição de Norman, foi produzido e financiado por Jonas Cord, jovem milionário do Oeste mais conhecido pelo seu voo record de Paris a Los Angeles, no ano passado. Na película participa ainda Nevada Smith.»

Ilene ergueu os olhos.

— Li isso, na verdade.

— Quer dizer que toda a gente pode reaver o seu dinheiro?

— Creio que sim — disse Ilene. — Isto é, se Bernie não vos roubar.

Rina sorriu. Sentia grande alívio. Pelo menos, Nevada Smith não tinha agora com que se inquietar. Pegou numa san­duíche e começou a comer com voracidade.

— De súbito, senti fome — disse ela.

Silenciosamente, Ilene tornou a encher a chávena de Rina. Em seguida, encheu a sua. Rina comia com vontade e volvidos alguns momentos terminava. Depois, tirou um cigarro da pe­quena caixa que se encontrava em cima da mesa e acendeu-o.

Recostou-se no divã e soltou uma baforada para o tecto. Um leve rubor coloriu-lhe as faces.

— Sinto-me melhor agora. Podemos provar estes vestidos logo que termine o cigarro.

— Não há pressa — disse Ilene. — Tenho tempo.

Rina pôs-se de pé.

— É melhor começarmos — volveu, esmagando o cigarro no cinzeiro. — Recordei-me agora que tenho uma entrevista com os repórteres do magazine Screen Stars às seis da manhã.

Ilene dirigiu-se para o guarda-vestidos, cujas portas fez deslizar. Seis fatos justos, à maneira dos acrobatas, cada um de cor diferente, achavam-se aí suspensos. Rina tirou um e voltou-se para Ilene, com ele diante de si.

— Estão cada vez mais pequenos.

Ilene sorriu.

— Foi o próprio Bernie quem os mandou confeccionar. No fim de contas o filme chama-se A Rapariga do Trapézio Voador.

Pegou no fato e estendeu-o enquanto Rina começava a despir-se. Rina voltou as costas, quando tirou o vestido, e principiou, com esforço, a introduzir-se no fato, muito justo.

— Uf! — fez ela, arfando. — Talvez não devesse ter comido aquelas sanduíches!

Ilene recuou um pouco e estudou o fato.

— É melhor subires para o pedestal — disse. — Tenho de alterar algumas coisas.

Rapidamente, marcou a giz as alterações.

— Muito bem — tornou ela. — Vejamos o que se segue.

Rina levou a mão atrás de si para desapertar os ganchos. Um deles não quis sair.

— Tens de me ajudar, Ilene. Não consigo libertar-me disto.

Rina desceu do pedestal e voltou-lhe as costas. Hábil, Ilene desapertou o gancho. O tecido separou-se imediata­mente e os dedos dela roçaram as costas nuas de Rina e estre­meceram ao contacto com a carne firme e quente da jovem. Ilene sentiu o sangue afluir-lhe precipitadamente às têmporas. Recuou um passo, como se tivesse tocado ferro em brasa. Vira-se muitas vezes tentada a ceder a um impulso destes, que poderia talvez envolvê-la em dificuldades. Todavia, tinham sido necessários tantos anos para conseguir a sua presente situa­ção...

Rina deixou tombar o topo do fato até à cintura e esfor­çou-se por fazer deslizar o calção sobre as ancas. Fitou Ilene.

— Tens de me ajudar de novo, suponho.

Ilene manteve a máscara que tinha no rosto.

— Torna a subir para o pedestal — disse ela, com os lá­bios quase cerrados.

Rina assim fez e voltou-se para a amiga. Ilene passou a mão sobre o tecido. Os dedos arderam-lhe ao tocar em Rina. Por fim, o calção cedeu e Ilene sentiu Rina estremecer quando a sua mão lhe roçou a púbis macia e sedosa.

— Sentes frio? — perguntou Ilene, recuando.

Rina fitou-a fixamente durante um momento, depois des­viou os olhos.

— Não — respondeu em voz baixa, libertando-se do calção, que estendeu a Ilene.

Ilene levantou o braço e, ao pegar no fato, tocou a mão de Rina; de súbito, não conseguiu desprendê-la. Ergueu, sem receio, os olhos para a outra, o coração sufocando dentro de si.

Rina estremeceu uma vez mais.

— Não — murmurou ela, os olhos ainda afastados. — Não, suplico-te.

Ilene sentiu-se num sonho. Nada parecia real.    

— Olha para mim — pediu.                      

Lentamente, Rina voltou a cabeça. Os olhos de ambas en­contraram-se e Ilene sentiu-a tremer. Viu-lhe os bicos dos seios de Rina despontar como flores vermelhas num campo branco.

Aproximou-se dela e enterrou o rosto no linho alvo e macio, entre as suas coxas. Ficaram assim durante um momento; depois, sentiu a mão de Rina acariciar-lhe docemente os cabelos. Recuou e a amiga tombou-lhe nos braços.

Ilene sentiu lágrimas ardentes irromperem-lhe bruscamente do fundo dos olhos.

— Porquê? — perguntou com vigor. — Porque casaste com ele?

Como de costume, Nevada despertou às quatro e meia da manhã, vestiu umas calças coçadas e desceu ao estábulo. Como de costume também, fechou a porta de ligação entre os seus quartos, para que Rina se apercebesse de que saíra.

O tratador esperava com uma tigela de café negro bem quente. A conversa entre ambos seguiu o padrão de todas as manhãs, enquanto Nevada sentia o café quente escaldá-lo até atingir o estômago.

Uma vez vazia a tigela, e com Nevada à frente, atravessaram o estábulo olhando para dentro de cada compartimento. Na extremidade, estava o de Whitey. Nevada deteve-se defronte do dele.

— Bom dia, rapaz — murmurou.

O animal esticou a cabeça sobre a cancela e fitou Nevada com olhos grandes e inteligentes. Resfolegou contra a mão de Nevada, procurando o torrão de açúcar que sabia encon­trar-se ali. Não ficou desiludido.

Nevada abriu a cancela e entrou no compartimento. Cor­reu as mãos sobre os flancos reluzentes do animal.

— Estamos a engordar um pouco, rapaz — murmurou ele. — E isto porque não temos tido muito que fazer ultimamente. É melhor sairmos. Um pouco de exercício far-te-á bem.

Sem pronunciar uma palavra, o tratador passou-lhe a grande sela que se encontrava sobre a divisória entre os compar­timentos. Nevada lançou-a por cima do dorso do cavalo e apertou--a bem. Colocou o freio na boca do animal c conduziu-o para fora do estábulo, montando-o defronte do edifício de madeira pintado de branco.

Desceu a vereda em direcção do campo de exercícios que preparara no sopé da colina, por trás da casa. Enquanto caval­gava, via as espirais cinzentas do telhado. Mecanicamente, fez o cavalo segui-las.

O artigo que lera no Variety acudiu-lhe ao espírito. Os seus lábios curvaram-se ante a ironia da situação. Ei-lo, com o filme mais lucrativo do ano, e nem sequer uma vez durante todo aquele período fora contratado para começar outro. A era dos grandes westerns terminara. Eram demasiado dispendiosos.

Pelo menos não era o único, pensou. Mix, Maynard, Gibson, Holt — tinham todos as mesmas dificuldades. Maynard ten­tara enfrentar a situação. Fizera uma série de filmes curtos para a Universal, os quais demoravam cerca de cinco dias a comple­tar. Nevada vira um deles. Não lhe agradara. O filme era desli­gado e o som muito mau. Durante metade da película não compreendera o que os actores diziam.

Tom Mix tentara outra coisa. Levara um show sobre o Oeste à Europa e, se os jornais contavam a verdade, ele e o seu ca­valo, Tony, tinham alcançado um êxito retumbante. Talvez fosse uma coisa em que pensar a sério. Os cavaleiros que man­tinha sob contrato continuavam em forma. Se saísse com eles, seria ainda melhor. Ou isso ou pegar na guitarra.

Era assim o novo western — um cow-boy cantor e uma gui­tarra. Sentia uma vaga repugnância só de pensar em tal. O pe­queno e rechonchudo Gene Autry dera nome àquilo. O único problema, como ouvira um tratador dizer, era evitar que ele caísse do cavalo. Tex Ritter alcançava êxito na Columbia, também.

Nevada ergueu de novo os olhos para a casa. Aquela era a maior estupidez de todas — uma ratoeira de um quarto de milhão de dólares. Eram precisos mais de vinte criados para a manter e comia dinheiro como um par de lobos da pradaria devorando um vitelo perdido. Reflectiu nos seus rendimentos.

O rancho no Texas começara a dar lucro pouco antes de eclodir a depressão, e teria agora muita sorte se não desse prejuízo.

Os seus direitos na venda de brinquedos e trajes de cow-boy tinham decrescido, uma vez que os garotos deslocavam as suas simpatias para outros motivos. Restava apenas a sua parte num show sobre motivos do Oeste e um rancho em Nevada. Isto trazia-lhe pelo menos dois mil dólares mensalmente. Mas para manter a casa precisava pelo menos de seis mil dólares por mês.

Rina oferecera-se para participar nas despesas, mas recusara, pois sentia que era ao homem que competia pagar as contas. Agora, porém, mesmo com os empréstimos bancários para O Renegado pagos, compreendia que não seria possível manter a casa sem entrar muito no seu capital. A coisa mais sensata seria vendê-la.

Teria de perder dinheiro na transacção. Thalberg, da Metro, oferecera-lhe cento e cinquenta mil. Dessa maneira, pelo menos, economizaria a percentagem do intermediário.

Tomou uma decisão. Não adiantava postar-se diante do telefone à espera que este tocasse. Iria para a rua com o show e venderia a casa. Começou a sentir-se melhor. Resolveu comu­nicar isto a Rina quando ela voltasse do estúdio naquela noite.

O telefone colocado no poste mais afastado da sebe come­çou a retinir. Dirigiu para lá o cavalo.

— Está?

— Mr. Smith?

Era a voz do mordomo.

— Sim, James — disse ele.

— Mrs. Smith gostaria que fosse tomar o pequeno-almoço com ela na Sala do Sol.

Nevada hesitou. Era estranho como os criados depressa com­preendiam qual era a pessoa que tinha mais importância na família. James utilizava agora com ele a mesma maneira de falar, distante e formal, que usara antes com Rina.

Ouviu o mordomo aclarar a garganta.

— Quer que diga a Mrs. Smith que virá? — perguntou ele. — Creio que espera alguns fotógrafos do magazine Screen Stars.

Então era isso. Nevada sentiu-se invadido por uma vaga de ressentimento. Era a primeira vez, em meses, que Rina o convidava para o pequeno-almoço — e agora para fins publicitários. Quase imediatamente, lamentou o que sentira. Afinal, a culpa não era dela. Trabalhara dia e noite durante meses.

— Diga que irei logo que conduza o cavalo ao estábulo — disse ele.

— Apenas mais um instantâneo sobre o acto de servir o café a Nevada — declarou o fotógrafo — e terminaremos.

Nevada pegou na chávena e passou-a, por cima da mesa, a Rina. Ela ergueu a cafeteira de prata e suspendeu-a sobre a chávena, em pose. Profissional e automaticamente, esboçaram um sorriso.

Tinham cumprido toda a rotina daqueles momentos: Rina a fritar presunto e ovos enquanto ele olhava por sobre o ombro dela, para o fogão; as torradas; os dois a meter comida na boca um do outro... Tudo aquilo que os leitores de magazines cinematográficos esperavam das vedetas do cinema — a sensa­ção do lar.                  

Após alguns momentos de silêncio, os fotógrafos pega­ram nas máquinas e partiram. Foi Nevada quem falou pri­meiro:

— Estou contente por isto ter já acabado.

— Eu também — retorquiu Rina. Após uma hesitação, ergueu os olhos para o relógio de parede. — Tenho de me arranjar. Esperam-me às sete e meia para a caracterização.

Ia a levantar-se, quando o telefone principiou a retinir. Sentou-se de novo e pegou no auscultador.

— Está?

Nevada ouviu uma voz fanhosa, no outro lado da linha. Rina lançou-lhe um olhar de mofa e tornou em seguida ao tele­fone.

— Bom dia, Louella — disse com voz doce. — Não, não me acordou. Nevada e eu tomámos o pequeno-almoço... Sim, é verdade... A Rapariga do Trapézio Voador. É um papel mara­vilhoso... Não, Norman decidiu não pedir o Gable emprestado à Metro. Afirma que apenas um homem poderia desempenhar com fidelidade aquele papel. Decerto. Nevada... É uma coisa natural para ele. Espere um minuto, vou passar-lhe o auscultador, e ele contará tudo.

Cobriu o bocal com a mão.

— É a Parsons — murmurou ela rapidamente. — Bernie decidiu ontem que fizesses o papel do cavaleiro acrobata. A Louella procura a confirmação.

— De que se trata? — perguntou secamente Nevada. — A Metro não quis emprestar o Gable?

— Não sejas estúpido! Pega no telefone.

— Olá, Louella.

A voz familiar, de um doce pegajoso, perpassou-lhe pelo ouvido.

— Parabéns, Nevada! É maravilhoso que represente de novo com a sua encantadora esposa!

— Um momento, Louella. — Riu. — Mais devagar. Não farei esse filme.

— Não?! — Estava em preparação um outro furo jornalís­tico da Parsons. — Porquê?

— Tinha já decidido sair com o meu show sobre o Oeste — volveu ele. — E isso mantém-me ocupado pelo menos durante uns seis meses. Enquanto estiver fora, Rina procurará outra casa para nós. Creio que nos sentiremos melhor numa casa mais pequena.

A voz da interlocutora parecia agora mais interessada.

— Vai vender Hilltop?

— Sim.

— A Thalberg? — perguntou ela. — Afirmaram-me que ele estava interessado.

— Não sei — retorquiu Nevada. — Diversas pessoas expri­miram também interesse.

— Dir-me-á no momento em que decidir?

— Decerto.

— Passa-se alguma coisa entre vocês dois? — tornou ela com astúcia.

— Louella! — riu. — Claro que não.        

— Ainda bem! Vocês são tão simpáticos — retorquiu.

Hesitou durante um momento. — Ponha-se em contacto comigo, se houver alguma novidade.

— Sem dúvida, Louella.

— Felicidades para ambos!

Nevada colocou o auscultador no descanso e fitou Rina. Não quisera fazer aquelas revelações, mas não o conseguira evi­tar. Agora não havia remédio.

O rosto de Rina estava lívido de cólera.

— Podias ter-me contado isso antes de o comunicares a todo o mundo!

— E uma oportunidade para tal? — retorquiu ele tam­bém furioso, contra vontade. — É esta a primeira vez, em alguns meses, que trocamos uma palavra. Além disso, devias ter-me falado do que havia sobre o filme.

— Ontem o Bernie tentou diversas vezes avistar-se contigo, mas nunca atendeste o telefone.

— Isso é mentira — retorquiu ele. — Estive em casa du­rante todo o dia e ele não telefonou. Além disso, não me agrada ser um joguete dele ou mesmo teu.

— Se te afastares uma vez por outra do estábulo talvez descubras o que se passa.

— Sei o que se passa — volveu ele com cólera. — Não é preciso começares a comportar-te como uma estrela.

— Oh, mas porquê isto? — disse ela com azedume. — Porque casaste comigo?

— Ou tu comigo? — perguntou ele com igual tom.

Enquanto se olhavam fixamente, compreenderam a verdade. Tinham-se casado porque sabiam ambos que se encontravam sós e desejavam desesperadamente reter o que já parecia perdido. Ao aperceberem-se deste facto, a cólera evolou-se com a mesma rapidez com que surgira.

— Lamento — declarou ele.

Ela baixou os olhos sobre a cafeteira.

— Lamento também. Afirmei-te que era uma dissipadora, que não te traria nada de bom.

— Não sejas pateta — retorquiu ele. — Isto teria acontecido de uma maneira ou de outra. O cinema está a modificar-se.

— Não falo do cinema — respondeu Rina. — Falo de ti e de mim. Devias ter casado com alguém que te pudesse dar uma família. Não te dei nada.

— A culpa não é toda tua. Tentámos ambos, à nossa maneira, mas nenhum de nós tinha aquilo de que o outro realmente ne­cessitava. Cometemos apenas um erro, eis tudo.

— Não poderei pedir o divórcio antes de terminar este filme — disse ela em voz baixa. — Concordo, porém, que o peças tu, antes.

— Não, posso esperar — volveu ele calmamente.

Rina olhou de relance para o relógio de parede.

— Meu Deus! Estou atrasada! — exclamou. — Tenho de me apressar.

À porta, ela deteve-se e fitou-o.

— És ainda meu amigo?

Nevada inclinou lentamente a cabeça num gesto afirmativo, e sorriu também. Contudo, a sua voz era mais grave.

— Serei sempre teu amigo.

Ela ficou imóvel durante um momento e Nevada viu-lhe os olhos marejados de lágrimas. Depois, Rina voltou-se e afastou-se a correr do quarto.

Ele dirigiu-se para a janela e, erguendo a cortina, fixou os olhos na vereda da frente. Viu-a sair de casa a correr, e o mo­torista fechar a porta. O carro desapareceu ao fundo da colina, a caminho do estúdio. Deixou tombar a cortina.

Rina não voltou mais a casa. Ficou nessa noite no aparta­mento de Ilene. No dia seguinte, mudou-se para um hotel e três meses mais tarde fez um pedido de divórcio em Reno. Motivo: incompatibilidade.

E foi assim, à parte as questões jurídicas, que tudo terminou.

David ouviu a porta do gabinete do tio bater com violên­cia. Pôs-se rapidamente de pé e dirigiu-se para a porta de ligação. Abriu-a e encontrou Bernie sentado na sua cadeira, com a cara vermelha vincada pela ira, arfando. Tentava retirar alguns comprimidos do frasco que tinha na mão.

David encheu à pressa um copo com água de uma garrafa que se encontrava em cima da mesa e passou-o a Norman.

— Que aconteceu?

Norman engoliu as duas pílulas e pousou o copo. Ergueu os olhos para David.

— Porque não me dediquei àquele negócio de alfaiataria com o meu irmão, o teu tio Louie?                        

David sabia que não era necessário responder; assim, esperou pacientemente que Norman continuasse.

— Cinquenta, cem fatos, eis o que fazem por dia. Tudo tranquilo, tudo silencioso. À noite, ele vai para casa. Come. Dorme. Não tem inquietações, úlceras. Não sofre agravos. É desta maneira que um homem deve viver. Não como um cão. Nem como eu.

— Que aconteceu? — tornou David a perguntar.

— Como se não tivesse já muitas preocupações, os nossos accionistas dizem que estamos a perder muito dinheiro — decla­rou Norman. — Corro a Nova Iorque para explicar. A União ameaça fazer uma greve nos teatros. Sento-me e elaboro uma proposta, e por fim decidem não fechar os teatros. Depois chegam notícias da Europa: Hitler apoderou-se de todos os nossos interesses na Alemanha, escritórios, teatros, tudo! Mais de dois milhões de dólares, eis quanto os anti-semitas nos roubam.

Em seguida são os accionistas e os banqueiros que se queixam — os filmes não obtêm prestígio. Assim, compro a peça de maior êxito, a mais artística da Broadway. Manchas Solares, eis o seu título. É tão artística que nem sei sobre o que é... Agora vejo-me com uma bomba artística. Falo dela a todos os directores de Hollywood. Não sou tão tolo que não entenda que eles também a não compreendem, e por fim contrato o homem que a dirigiu no palco, Claude Dunbar; cinquenta mil, é quanto me leva... Cento e cinquenta mil estão já empa­tados e nada de ficha técnica. Assim, telefono ao Louie e peço que me empreste a Garbo. Ri na minha cara. «Não tens dinheiro suficiente», diz ele. «Além disso, pre­cisamos dela. Anna Christie, de Eugene O'Neill, é no que traba­lha de momento. «Adeus», digo, e telefono ao Jack Warner. «E então a Bette Davis?» «Espera um momento», responde ele. E espero dez minutos ao telefone... Ele pensa que não sei o que está a fazer? Telefona para o irmão, Harry, de Nova Iorque. Aqui estou, numa chamada interurbana para Nova Iorque, as despesas a correr por minha conta, minuto a minuto, enquanto ele fala com o irmão, que se encontra a algumas centenas de metros daqui. Desliga, eis o que sinto ganas de lhe dizer. Posso falar com o teu irmão só por alguns cents... Por fim. o Jack volta ao telefone noventa e nove dólares mais tarde. «Tens sorte», diz ele. «Não está indicada para qualquer dos nossos filmes até Setembro. Custa-te cento e cinquenta mil. «Por cento e cinquenta mil não é preciso ficar a dever favores», digo. «Trinta, trinta e cinco mil, é o mais que ela ganha por filme. Nem isso...» «Quanto desejas pagar?» — per­gunta o Jack. «Cinquenta», respondo. «Nem pensar nisso», torna ele. «Muito bem, então setenta e cinco.» «Cento e vinte e cinco mil», diz. «Cem mil e fecha-se já contrato», proponho. «Combinado», declara ele. Desligo. Cento e trinta e cinco dó­lares, foi quanto me custou uma conversa de dois minutos... Volto a Wall Street e digo aos accionistas e aos banqueiros que agora adquirimos prestígio. Este filme vai ser tão artístico que teremos muita sorte se alguém entrar num cinema para o ver. Ficam muito contentes e felicitam-me, meto-me no comboio e volto a Hollywood.

Bernie ficou de súbito sem respiração e pegou no copo de água, que esvaziou.

— Não são preocupações bastantes para uma pessoa?

David inclinou a cabeça num gesto afirmativo.

— E com muitas preocupações entro no meu gabinete esta manhã... Quem hei-de ver então? Rina Marlowe. «Rina, querida», digo, «estás positivamente deslumbrante esta manhã.» Nem sequer me cumprimenta. Põe-me o Repórter debaixo do nariz e pergunta: «Que é isto? É verdade?»

Baixo os olhos e vejo o artigo sobre a Davis, em Manchas Solares. «Porque estás tão excitada, querida?», inquiro. «Não é para uma actriz como tu uma coisa daquelas. Tenho um papel magnífico reservado para ti. Scheherazade. Trajes como nunca viste na tua vida.» E sabes o que me responde Rina? — sacudiu tristemente a cabeça.

— Quê? — perguntou David.

— Depois de tudo o que fiz por ela, vem-me com uma conversa tão grosseira! — disse o tio num tom de quem se encontra muito ferido na sua dignidade. «Tira as mãos das minhas mamas», diz ela. «Se não me dás aquele papel, podes meter a Scheherazade no cu!» Bem, ela sai, mal pronuncia isto. Que tal? — perguntou Norman num tom de agravo. Acal­má-la um pouco, foi tudo o que tentei fazer. Praticamente, vai para a cama com toda a gente em Hollywood; porém, comigo fala daquela maneira.

David inclinou a cabeça num gesto afirmativo. Ouvira também as histórias que corriam acerca dela. No ano que se seguira à sua separação de Nevada parecera ter pintado o diabo. As festas que dava na sua nova casa de Beverly Hills eram clas­sificadas de orgias. Falava-se mesmo que ela e Ilene Gaillard, a figurinista, tinham relações bastante íntimas. Mas como a Imprensa não se referia a isso, tudo parecia de pouca impor­tância. O que ela fazia só a si dizia respeito, enquanto não os afectasse a eles, claro.

— Que vai fazer agora?

— Que posso eu fazer? — perguntou Bernie. — Dou-lhe o papel. Se ela nos abandonasse perderíamos o dobro do que estamos a perder neste momento.

Procurou um charuto.

— Chamá-la-ei esta tarde para lhe comunicar a minha decisão. — Deteve-se quando estava a acender o charuto. — Não, tenho uma ideia melhor. Vai tu a casa dela esta tarde e in­forma-a. Raios me partam se permito que ela pense que lhe quero beijar o rabo.

— Muito bem — assentiu David, dirigindo-se para o seu gabinete.

— Espera um momento — disse o tio.

David voltou-se.

— Sabes quem vi por acaso no Waldorf, na minha última noite em Nova Iorque? — perguntou Bernie. — O teu amigo.

— O meu amigo?

— Sim, bem sabes a quem me refiro. Ao maluco. O aviador. Jonas Cord.

— Oh — fez David. Gostou da maneira como o tio men­cionou aquilo. Recordou-se da primeira conversa que tinham travado acerca de Cord, alguns anos antes. Ele e Cord nunca haviam trocado sequer uma palavra. Duvidava mesmo que Cord soubesse que se encontrava vivo.

— Que tal o aspecto dele?

— O mesmo de sempre — retorquiu o tio. — Parece um vagabundo. De alparcatas e sem gravata. Não sei como lá consegue entrar. Poriam no olho da rua qualquer outra pessoa que se apresentasse assim, mas quanto a ele...? O que é pre­ciso é ter dinheiro, creio

— Falou com ele? — perguntou David com certa curio­sidade.

— Claro — respondeu Norman. — Li nos jornais que vai fazer outro filme. Quem sabe, disse para mim mesmo, se o malandro não terá outra vez sorte. Além do mais, com o pres­tígio de que dispomos, podíamos utilizá-lo, e pagar muitas contas com o dinheiro dele.

«São duas horas da manhã e ele traz duas actrizes pelo braço. Aproximo-me e digo; «Olá, Jonas.» Ele fita-me como se nunca me tivesse visto na sua vida. «Recorda-se de mim?» acrescento. «Bernie Norman, de Hollywood?» «Oh, decerto», responde Jonas.

«Mas na cara dele não consigo ver se realmente se recorda de mim ou não. Tem a barba muito crescida. «Estas duas pe­quenas são actrizes», diz ele, «mas não revelo o nome delas. De outro modo, você próprio poderia contratá-las. Se gosto de uma rapariga», continuou, «ponho-a sob contrato com a Explosivos Cord. Não corro mais riscos nem permito que elas se me escapem como aquela Marlowe, que você me palmou.» Após isto, deu-me uma pancada tão violenta no braço que durante duas horas não fui capaz de levantar a mão.

«Obriguei-me a sorrir, apesar de não ter gostado nada da graça. «No nosso negócio temos de andar depressa», volvi eu, «se não passam-nos as palhetas. Mas isso são águas passa­das. Agora, desejo falar consigo sobre o filme que está a fazer. Servimos bem os seus interesses com o último e penso que devíamos ter um encontro.»

«E que tal se conversássemos agora mesmo?», perguntou ele. «Cá por mim, estou de acordo.» — Voltou-se para as pe­quenas. «Esperem um momento», disse. Volta-se para mim e pega-me pelo braço. «Vamos», diz, arrastando-me. «Suba ao meu gabinete.» Olho para ele, surpreendido. «Tem um gabi­nete aqui mesmo, no Waldorf?», pergunto. «Tenho um gabinete em todos os hotéis dos Estados Unidos», responde ele. Entra­mos num elevador e Jonas diz, «Mezzanine, por favor». «Saí­mos e descemos ao hall. Detemo-nos diante de uma porta, na qual leio: «Homens». Fito-o. Ele sorri. «O meu gabinete», declara, abrindo a porta. Entramos. Está vazio. Há uma mesa e uma cadeira para o servente. Ele senta-se na cadeira e de súbito vejo que está muito calmo e sorridente.

«Ainda não decidi a quem entregar a distribuição do filme», disse ele. «Depende das melhores condições que conseguir. «Bem, é uma coisa muito sensata, essa, mas não posso falar antes de saber de que trata o filme.» «Vou informá-lo», res­ponde ele. «É sobre os aviadores da Grande Guerra. Comprei cerca de cinquenta aviões velhos — Spads, Fokkers, Nieuports, De Havillands—, e vou fazer uma coisa de estalo com eles.

«Oh, um filme de guerra», digo eu. «Não tem interesse. Os filmes de guerra não compensam desde Nada de Novo na Frente Oriental. Ninguém os quer ver. Mas como já colaborámos uma vez e tivemos sorte, talvez me decida a arriscar-me agora. Quais são as suas condições?» Ele fita-me bem nos olhos. «Des­pesas de estúdio, dez por cento», responde. «Distribuição, quinze por cento com todas as despesas deduzidas do lucro bruto antes de calcular os direitos de distribuição». «É impos­sível», digo eu. «As minhas despesas gerais elevam-se, no mí­nimo, a vinte e cinco por cento.» «Não é verdade», opõe ele. «No entanto, não quero discussões acerca disso. Desejo ape­nas lembrar-lhe algumas noções simples de aritmética. Segundo o relatório anual que apresentou, as suas despesas gerais du­rante os últimos anos foram em média de vinte e um por cento. Durante esse período, O Renegado contribuiu com vinte e cinco por cento dos lucros brutos. Deduza isso, e verificará que as des­pesas vão até quase trinta e seis por cento, neste caso. O mesmo se aplica quanto ao estúdio», disse ele. «O volume governa as percentagens, e se eu fornecer o volume não ficarei com a so­brecarga das percentagens comuns. Quero parte do «molho», como vocês chamam a isso.»

— «Impossível» — respondo eu. — «Da maneira como correm as coisas na indústria cinematográfica — diz ele — não se pode permitir recusá-lo.» «O meu conselho de administração nunca aprovaria» — respondo. Ele levanta-se, sorrindo. «Aprovarão — afirma. — Dê-lhes um ou dois anos, que isso sucederá. Já que está aqui, porque não mija?», diz ele. Fico tão surpreendido que mijo mesmo. Quando voltei, ele tinha já desaparecido. Na manhã seguinte, antes de me meter no comboio, tento locali­zá-lo, mas ninguém parece saber onde se encontra. No escritório, não sabem mesmo se está em Nova Iorque. Desaparecera completamente. — David fixou os olhos na secretária. — Um ver­dadeiro malabarista, afirmo-te.

David sorriu.

— Disse que ele aprenderia depressa. A aritmética de Cord está certa, como sabe.

O tio fitou-o.

— Sei muito bem que está certa — retorquiu. — Mas ele é assim tão pobre que tenha de lhe dar pão da minha própria boca?

— Queira seguir-me, senhor — disse o mordomo cortes­mente. — Miss Marlowe está no solário.

David inclinou a cabeça num gesto afirmativo e subiu em silêncio a escadaria que dava acesso às traseiras da casa. O mor­domo deteve-se diante de uma porta e bateu.

— Mr. Woolf está aqui, minha senhora.

— Diga-lhe que entre — declarou Rina do outro lado da porta fechada.

O mordomo abriu-a. David piscou os olhos ante o sol bri­lhante da Califórnia. O telhado do solário era constituído por uma cúpula de vidro branco, sendo os lados também de vidro.

Havia um biombo alto na extremidade mais afastada da sala. A voz de Rina veio de trás dele.

— Beba qualquer coisa no bar. Demoro apenas um minuto.

David olhou em redor e localizou o bar a um canto. Viam-se cadeiras de lona pela sala; um vasto tapete branco cobria quase todo o soalho.

Ilene Gaillard surgiu de trás do biombo. Trazia uma ca­misa branca, com as mangas arregaçadas até pouco acima dos cotovelos, e umas calças pretas de corte masculino coladas às ancas estreitas. O cabelo branco, raiado de prata, estava pu­xado bem para trás.

— Olá, David. Permita que o ajude.

— Obrigado, Ilene.                    

— Faz outro martini para mim — disse Rina detrás do biombo.

Ilene não respondeu. Fitou David.

— Que deseja?

— Whisky e água — volveu ele. — E um pouco de gelo.

— Muito bem — retorquiu ela, movendo com presteza as mãos do outro lado do bar. Ergueu o copo.

— Ei-lo. Que tal?

David provou-o.

— Óptimo.

— Já preparaste o meu martini? — perguntou Rina, pró­ximo.

David voltou-se. Ela acabara de sair de trás do biombo, e atava o cinto do roupão. Com um olhar rápido, conseguiu ainda ver uma coxa bronzeada sob o roupão, enquanto caminhava, e compreendeu que Rina não trazia nada por baixo.

— Olá, Rina.

— Olá, David — respondeu ela. Fitou Ilene. — Onde está a minha bebida?

— Obviamente, David está aqui para tratar de qualquer assunto — disse Ilene. — Porque não falas primeiro com ele?

— Não sejas tão mandona! — retorquiu Rina. — Prepara a bebida! — Voltou-se para David. — O meu pai dava-me martinis quando era pequena. Bebo-os como água. Ilene parece não compreender isso.                

— Toma. — A voz de Ilene manifestava desagrado.

Rina pegou no copo.

— À nossa, David.

— À nossa — volveu ele.

Rina bebeu de um trago quase metade do martini, depois conduziu David até uma das cadeiras.

— Sente-se — disse, deixando-se tombar sobre outra.

— Você tem uma casa encantadora — disse ele com polidez.

— É interessante — volveu Rina. — Ilene e eu passámos um bom bocado a mobilá-la. — Estendeu a mão e acariciou o rosto da amiga. — Ilene tem um maravilhoso sentido da cor. Devia falar com o seu tio e pedir que a deixasse mostrar os seus ta­lentos como directora artística. Tenho a certeza de que ele aca­baria por verificar que a Ilene pode fazer grandes coisas nesse sector.

— Rina — interveio Ilene, com um tom de satisfação na voz. — Estou certa de que David não veio cá para falar de mim.

— Conversarei com o tio Bernie — disse cortesmente David. — Tenho também a certeza de que ela se sairia bem.

— Vês?! — exclamou Rina. — A única dificuldade da Ilene reside no facto de ser demasiado modesta. É uma das pessoas mais talentosas que tenho conhecido.

Ergueu o copo vazio e voltou-se para Ilene.

— Torna a enchê-lo.

David observou-lhe de relance os seios voluptuosos e tú­midos. Seria necessário mais qualquer coisa do que simples massagens se continuasse a beber assim.

Rina interrompeu os pensamentos de David.

— Esse velho canalha decidiu dar-me aquele papel em Manchas Solares?    

David fitou-a.

— Tem de compreender o ponto de vista do meu tio, Rina — retorquiu ele com calma. — Você é o valor mais positivo que o estúdio possui. Não pode censurá-lo se não a quer pôr num filme que não oferece êxito seguro.

Rina pegou no copo que Ilene lhe passava.

— Tudo se resume nisto: o Bernie pensa que não sei re­presentar — replicou ela com azedume. — Presto apenas para me exibir nua, ou quase.

— Ele crê que você é uma óptima actriz, Rina. Mas mais importante do que tudo, você é uma estrela de excepção. Tenta apenas protegê-la, eis tudo.

— Proteger-me-ei a mim mesma — retorquiu ela com cólera. — Dá-me o papel ou não?

— Dá.              

— Bom — volveu Rina, sorvendo o martini. Levantou-se, e David compreendeu que ela estava um tanto embriagada. — Diga em meu nome ao seu tio que não levarei soutien na pró­xima vez que entrar no gabinete dele.

— Estou certo de que ficará contente. — David sorriu. Depois, pousou o copo e ergueu-se.

— Creio que o Bernie quer ir para a cama comigo — disse ela, vacilando ligeiramente.

O sorriso de David tomou-se atrevido.

— Quem não quer? — retorquiu. — Pelo menos sessenta milhões de homens pensaram já nisso.

— Mas você não — disse ela, fitando-o bem nos olhos.

— Quem é que diz uma coisa dessas?

— Eu — volveu Rina, com ar sério. — Nunca me falou nisso.

— Alguma vez será...  

— E que tal se for agora? — perguntou ela, puxando o cinto do roupão, que tombou, aberto, no solo, revelando-lhe o corpo nu. David olhou-a tão espantado que não se sentiu capaz de falar.

— Vai para baixo, Ilene — disse Rina, sem tirar dele a vista. — E vê se o jantar é preparado a tempo.

David viu de relance os olhos de Ilene, quando ela passou apressadamente por si, dirigindo--se para a porta. Mesmo que vivesse cem anos jamais esqueceria a profunda dor e a tremenda angústia que observou neles.

Até conhecer Rina Marlowe, Claude Dunbar amara apenas trêa coisas na vida — a mãe, ele mesmo e o teatro, por esta ordem. O seu Hamlet à moderna fora a produção shakespea-reana de maior êxito jamais representada num teatro de Nova Iorque. Contudo, atingira o pináculo da sua carreira com a encenação de Manchas Solares, uma peça medíocre.

Manchas Solares tinha apenas três personagens e contava a odisseia de dois pesquisadores que viviam isolados na orla de um grande deserto e de uma jovem amnésica que apare­cera, perdida, no seu campo. Gera-se uma contenda entre os homens — o mais novo tenta proteger a jovem da luxúria do mais velho para, depois de levar a bom termo os seus intentos, sucumbir ele próprio à luxúria da jovem.      

Era quase tudo diálogo e muito pouca acção. Apesar de um ano de exibição na Broadway, Dunbar ficara tão surpreen­dido quando Norman telefonara para dizer que adquirira os di­reitos da peça, com vista à sua adaptação ao cinema, e para o convidar a dirigir o filme, que concordara sem hesitação. Ao chegar à Califórnia, porém, soube quem ia ser a protagonista da película.

— Rina Marlowe! — exclamou ele ao ser informado por Norman. — Pensava que era a Davis.

O produtor fitou-o com brandura.

— O Warner não acedeu — retorquiu, baixando a voz até um murmúrio confidencial. — Assim, pensei imediatamente na Rina.

— Mas não tem mais ninguém a quem dar o papel, Mr. Norman? — perguntou ele, tartamudeando ligeiramente, o que acontecia sempre que se sentia perturbado. — E a jovem que o desempenhou no palco?

— Não tem nome — volveu logo Norman. — É uma coisa importante, esta sua peça. Temos de a proteger com a fama das vedetas que possuímos. A Rina nunca fez um filme que não desse dinheiro.

— Talvez — admitiu Dunbar. — Mas sabe representar?

— Não há melhor actriz em Hollywood do que essa rapa­riga. Você é um realizador. Vá a casa dela esta tarde, com o argu­mento, e veja por si mesmo.

— Mr. Norman...      

Mas Norman pegara já no braço de Dunbar e conduzia-o à porta.

— Seja justo, Mr. Dunbar. Dê uma oportunidade à jovem, trabalhe um pouco com ela. Depois, se pensar ainda que a Rina não é capaz de dar conta do recado, veremos.

O produtor mostrara-se tão eficiente em desembaraçar-se dele, que Claude só deu por si quando se encontrava do outro lado da porta fechada, com as três secretárias fitando-o estupe­factas.

Sentiu-se corar e para esconder o seu embaraço dirigiu-se à jovem que se encontrava à escrivaninha mais próxima da porta.

— Pode dizer-me onde vive Miss Marlowe? — perguntou. — E como lá chegar?

A secretária sorriu.

— Farei melhor do que isso, Mr. Dunbar — respondeu ela com presteza, pegando no telefone. — Um carro conduzi-lo-á a casa de Miss Marlowe.

Naquela tarde, antes de se dirigir a casa de Rina, Claude Dunbar entrou num cinema que exibia o último filme dela. Fi­xou os olhos na tela com um misto de fascinação e horror. Não restavam dúvidas de que era bela. Via mesmo que tinha o tipo de animalidade que atraía um certo género de espectadores. Mas não era a jovem que o papel exigia.

A jovem da peça era soturna, introspectiva, assustadiça. À medida que tentava readquirir a memória, parecia esquelética, torturada e queimada pelo sol do deserto. O facto de ser fêmea é que provocava desejo nos homens e não a sua aparência física. E era apenas no clímax da peça que se descobria que a raiz dos seus terrores residia na sua própria tendência para a luxúria.

Na tela, Rina parecia excitante e ousada; consciente da sua sexualidade exibia-a continuamente ante os espectadores. A jovem não representava com subtileza. No entanto, Dun­bar sentiu o ímpeto da vitalidade que fluía dela. Quando estava em cena, pouco importa quem se encontrava diante de si, não conseguia tirar dela os olhos.

Deixou o cinema e voltou ao hotel, onde o carro o ia buscar. Como de costume, sempre que se sentia inquieto, telefonou à mãe.

— Sabe quem desempenha o papel principal, mãe?

— Diz — retorquiu ela com a sua calma habitual.

— Rina Marlowe.

A voz da mãe exprimiu profundo espanto.

— Não!

— Sim, mãe. Mr. Norman afirmou-me que não conseguira obter o concurso de Bette Davis.

— Bem, impõe-te e volta para casa — retorquiu com fir­meza a mãe. — Diz a Mr. Norman que tens uma reputação a defender, que ele te prometeu a Davis e que não aceitas essa cria­tura loura como substituta!

— Mas já disse a Mr. Norman que falaria com Miss Mar­lowe. Afirmou que se eu não ficasse satisfeito após o meu encontro com Rina, tentaria conseguir outra artista.

— Muito bem — volveu ela. — Recorda-te, porém, de uma coisa: a integridade vale mais do que qualquer outra coisa. Se não ficares completamente satisfeito, volta sem demora para casa.

— Sim, mãe — disse Claude. — Beijos.

— Beijos e toma cautela — volveu a mãe, completando o seu ritual das despedidas.

Rina entrou na sala onde ele esperava, vestida com um traje de acrobata que lhe cobria o corpo dos pés ao pescoço. O cabelo de um louro pálido estava puxado bem para trás e atado na nuca. Não trazia maquilhagem.

— Mr. Dunbar — disse, aproximando sem sorrir a mão estendida.

— Miss Marlowe — respondeu ele, tomando a mão de Rina. Surpreendeu-o o vigor dos dedos da vedeta.

— Sentia grande desejo em conhecê-lo — tornou ela. — Ouvi falar muito de si.

Claude sorriu, satisfeito.

— Também ouvi falar muito de si.

Rina ergueu os olhos e sorriu pela primeira vez.

— Aposto que sim — disse sem rancor. — É por isso que se encontra aqui no seu primeiro dia em Hollywood. Provavel­mente, pergunta-se porque diabo desejo eu desempenhar aquele papel de Manchas Solares.                          

Surpreendeu-o a franqueza de Rina.

— Porque deseja o papel, Miss Marlowe? Supunha que não quereria arriscar-se. Tem uma grande popularidade aqui.

Ela deixou-se tombar sobre uma cadeira.

— Sou uma actriz, creio. Quero descobrir até que ponto. E você é o único director que poderá ajudar-me.

Ele fitou-a durante um momento.

— Já leu o argumento?

Rina inclinou a cabeça num gesto afirmativo.

— Recorda-se das primeiras palavras que a jovem diz quando vagueia no campo?

— Sim.

— Leia-mas — pediu Dunbar, passando-lhe o argumento.

Ela pegou no argumento mas não o abriu.

— Chamo-me Mary. Sim, creio que me chamo Mary.

— Está a pronunciar as palavras, Miss Marlowe — disse de, franzindo as sobrancelhas —, mas não a pensar nelas. Não senti o esforço que experimenta a jovem ao tentar recor­dar o seu nome. Pense desta maneira: «Não consigo recordar-me do meu nome, mas creio que é um nome comum.

É o nome por que tenho sido chamada durante toda a minha vida, e contudo é-me difícil recordá-lo, embora seja um nome muitas vezes men­cionado na igreja e eu o tenha dito nas minhas orações. Estou agora a recordar-me. É verdade... Chamo-me Mary. Sim, creio que me chamo Mary.»

Rina fitou-o espantada. Em seguida, ergueu-se e dirigiu-se para a lareira. Colocou as mãos sobre a cornija, de costas para Claude. Desapertou o nó do cabelo, que tombou sobre os seus ombros, à medida que se voltava para o encarar.

Com o rosto de súbito tenso, começou a falar, num mur­múrio rouco.

— «Chamo-me Mary. Sim, creio que me chamo Mary.» Claude sentiu a pele estremecer, enquanto a fitava. Experimen­tava esta sensação sempre que no teatro alguma coisa magnífica o invadia.

Bernie Norman desceu ao set no último dia das filmagens. Sacudiu a cabeça ao abrir a porta. Teria feito melhor se houvesse contratado aquele artolas para dirigir a película. Pior ainda, devia ter consultado um psiquiatra antes de se deixar convencer a comprar tal história. Estava tudo louco.

Primeiro, a agenda das filmagens fora adiada durante um mês. O director desejara trinta dias para ensaiar Rina. Norman cedera quando Rina disse que não começaria a representar antes de Dunbar dizer que estava preparada para tal. Isso só por si custara cento e cinquenta mil dólares em salários.

Depois, o director insistira em fazer tudo, como acontecera no palco. Para o diabo com o orçamento. Mais cinquenta mil nisto. E para coroar tudo, Dunbar insistira em que o som de cada cena fosse perfeito, tão perfeito como no palco, não importa quantas tomadas tivessem de ser feitas. Que canalha! — pensou Norman. O dinheiro não era dele.

O filme foi completado com três meses de atraso. Um milhão e meio de dólares fora por água abaixo. Piscou os olhos no momento em que penetrou naquela secção bastante iluminada do set.

Graças a Deus era a última cena. A que decorria de­fronte da cabana quando, de manhã, a jovem abre a porta e encontra os dois homens mortos — o mais novo liquidara o mais velho e acabara em seguida consigo mesmo quando com­preendera que a jovem o lançara no abismo. Tudo o que tinha a fazer era olhar para os dois homens e chorar um pouco, e de­pois afastar-se no deserto. Simples. Nada podia ir mal aqui. Dez minutos e estaria tudo terminado.

— Aos vossos lugares!

Os dois actores estenderam-se diante da porta da cabana. Um director-ajudante e a anotadora verificaram imediatamente a posição de ambos em relação à que mostravam as fotografias tiradas no momento e fizeram algumas correcções. A mão de um dos actores estava em posição errada; uma sombra apa­recera no rosto do outro.

Norman viu Dunbar inclinar a cabeça num gesto de apro­vação. Houve silêncio durante um momento. Em seguida, Dunbar disse calmamente:  

— Acção.

Norman sorriu para si mesmo. A cena era garantida. Não tinha sequer som. Pouco a pouco, a porta da cabana começou a abrir-se. Rina saiu e olhou para os dois homens.

Norman soltou uma praga. Seria de pensar que Dunbar teria senso suficiente para decotar um pouco o vestido de Rina. Afinal, a cena passava-se no deserto. Mas não, o vestido subia até ao pescoço, como se se estivesse em pleno Inverno. O mais belo par de mamas do cinema e Dunbar queria mantê-las escondidas.

A objectiva começou a fazer um grande plano. Rina ergueu lentamente a cabeça e fixou a câmara.

— Chora, cos diabos! — gritou Dunbar. — Chora?

Rina piscou os olhos. Nada aconteceu.

— Corta! — uivou Dunbar. Dirigiu-se para o set e saltou sobre um dos homens prostrados, a fim de se aproximar dela. Fitou Rina.

— Nesta cena, deves chorar. Recordas-te? — perguntou ele com sarcasmo.

Ela inclinou a cabeça num gesto afirmativo.

Dunbar tornou ao seu lugar, ao lado da objectiva. Rina entrou na cabana, fechando a porta atrás de si. De novo o director-adjunto e a anotadora verificaram as posições.

— Cena três dezassete, tomada dois! — exclamaram os platemen, afastando-se rapidamente da frente da objectiva.

— Acção!

Tudo se passou como antes até ao momento em que Rina olhou para a objectiva, que fixou durante um momento. Não piscou sequer os olhos, os quais manteve completamente enxutos. De súbito, porém, deu um passo para o lado.

— Corta! — exclamou Dunbar, dirigindo-se de novo para o set.

— Perdoe-me, Claude — disse Rina —, mas não sou capaz. É melhor usarmos a caracterização.

— Caracterização! — bradou com veemência o director-adjunto. — Tragam as lágrimas!              

Norman inclinou a cabeça. Para quê desperdiçar dinheiro? Na tela, ninguém daria pela diferença. Além disso, as lágrimas artificiais obtinham maior efeito na fotografia — rolavam sobre as faces como pérolas oleosas.

Dunbar voltou-se.

— Não quero caracterização.

— Fica sem efeito a caracterização! — exclamou o adjunto.

Dunbar fitou Rina.

— Esta é a última cena do filme — disse ele. — Dois homens morreram por sua causa e desejo apenas uma pequena lágrima. Não porque sinta piedade por eles ou por si mesma. É apenas para que se saiba que tem alguma coisa dentro de si, que ainda possui alma. Não muita, mas o suficiente para mostrar que é uma mulher e não um animal. Compreende?

Rina inclinou a cabeça.

— Muito bem, então — disse ele, calmo. Voltou ao seu lugar ao lado da objectiva. Curvou--se um tanto para a frente, fitando fixamente Rina à medida que ela saía da cabana. Rina olhou para os dois homens, e a objectiva começou a fazer um grande plano.

— Agora! — A voz de Dunbar era quase um murmúrio. — Chora!

Rina fixou a objectiva, que se aproximava. Nada acon­teceu.

— Corta! — uivou Dunbar. Uma vez mais, penetrou no set.

— Que espécie de mulher é você? — gritou ele.

— Oh, perdoe-me, Claude — suplicou Rina.

Ele fitou-a com frieza.

— Filmámos durante cinco meses esta película. Trabalhei dia e noite, por uma única razão. Você desejava provar que era uma actriz. Bem, fiz tudo o que pude. Não vou destruir a in­tegridade deste filme na última cena devido às suas insuficiências. Deseja ser uma actriz... Bem, prove-o! Represente!

Voltou-lhe as costas e afastou-se. Norman cobriu o rosto com as mãos. Dez mil dólares por dia, eis quanto isto custava. Devia ter adivinhado...

— Acção!

Abriu os dedos e espreitou a cena através deles. Desta vez, ouvia Dunbar falar em voz sumida a Rina.

— Muito bem, muito bem, agora fale. Baixe os olhos e contemple-os. Primeiro Paul, depois Joseph. Vê a arma na mão de Joseph e compreende o que sucedeu. Agora, começa a erguer os olhos. Pensa, eles estão mortos. Talvez não os tivesse amado, mas viveu com eles, utilizou-os. Talvez durante um momento um deles faça que desperte a memória que perdeu e jamais recobrou. Durante uma fracção de segundo o véu ergue-se. E é o seu pai, ou o seu irmão, ou talvez o filho que nunca teve que jazem, ali na areia, a seus pés. As lágrimas começam a descer-lhe dos olhos.

Lentamente, Norman afastou as mãos do rosto. Conteve a respiração à medida que se aproximava da objectiva, do lado que lhe bloqueava a vista. Rina chorava. Lágrimas autênticas.

Dunbar murmurava ainda:

— As lágrimas vêm mas o véu desceu de novo e não se con­segue recordar por que motivo está a chorar. As lágrimas termi­nam e fica com os olhos secos. Agora volta-se e fixa o deserto. Ao longe, na areia solitária, alguém espera, alguém com a sua memória. Vai ao encontro dessa pessoa. Depois, compreende quem é na realidade. Começa a caminhar no deserto... lenta­mente...

A voz de Dunbar começou a extinguir-se à medida que Rina principiava a afastar-se. Norman circunvagou os olhos pelo set. Todos fixavam Rina, esquecidos de tudo, menos dela. Sentiu humedecerem-se-lhe os olhos. Aquela maldita cena tocara-o.

— Corta!

A voz de Dunbar era um grito rouco, triunfante. Por fim, afundou-se na cadeira, exausto.

O set convertera-se num pandemónio. Todos aplaudiam. Mesmo os veteranos endurecidos dos estúdios sorriam como­vidos. Norman correu para o set e pegou, excitado, nas mãos de Rina.

— Foste maravilhosa, querida! Magnífica! — exclamou ele.

Rina fitou-o. Durante um momento, Bernie teve a sensação de que o espírito dela se encontrava muito longe. Em seguida, os olhos de Rina iluminaram-se; fixou-os em Dunbar, sentado na sua cadeira, cercado pelos operadores e pelos assistentes, e depois em Norman.

— Pensas que sim?

— Di-lo-ia se o não pensasse, querida? — retorquiu ele, sorrindo. — Conheces-me bem, creio. Agora, dispões de duas semanas de repouso, antes de iniciarmos as filmagens de Scheherazade.

Ela afastou-se de Norman e fitou Dunbar, que se aproximava lentamente deles, a fadiga evidenciando-se-lhe bem no rosto fino.

— Obrigado — disse ela, pegando na mão de Dunbar.

Claude sorriu levemente.

— É uma grande actriz, Miss Marlowe — disse, uma vez mais com formalismo, pois tudo terminara. — Foi uma honra trabalhar consigo.

Rina fitou-o durante um momento; uma nova vitalidade fluía de si.

— Você está esgotado— observou, com inquietação na voz.

— Estarei bem depois de um breve período de repouso — disse ele rapidamente. — Suponho que não dormi uma noite inteira desde que começaram as filmagens.

— Já vamos tratar disso — volveu Rina, confidencialmente. — Ilene.

Ilene surgiu de súbito dentre a multidão.

— Telefona ao James e diz-lhe que prepare o quarto de hóspedes para Mr. Dunbar.

— Mas, Miss Marlowe — protestou o realizador. — Não quero incomodá-la.

— Você julga que o deixaria regressar a esse quarto vazio do hotel no estado em que se encontra? — perguntou Rina.

— Mas prometi à mãe que telefonaria mal terminasse o filme.

— Pode telefonar mais tarde — riu Rina, — Na realidade, nós temos telefones.

Norman deu uma palmada no ombro de Dunbar.

— Faça como a Rina diz, Dunbar. Repouse durante uns dias, pois tem ainda na sua frente a montagem da película. Mas não se preocupe. Fez um grande filme. Não ficaria surpreendido se vocês dois recebessem prémios da Academia!

Norman não acreditava nisto quando o afirmou, mas foi exactamente o que aconteceu.

Nelia Dunbar, de sessenta e três anos e forte como a pro­verbial rocha, atravessou a sala e olhou para o filho.

— Aquela horrível criatura! — disse calmamente.

Recostou-se no assento ao lado de Claude e puxou a cabeça dele contra o seu ombro. Acariciou-lhe distraidamente a testa,

— Perguntava a mim mesma quanto tempo te seria necessário para a veres tal como é. Disse-te que não casasses com ela.

Claude não respondeu. Não era necessário. Sentia-se em absoluta segurança nos braços da mãe. Sempre se sentira. Mesmo quando era criança e vinha a correr da escola, com os rapazes atrás de si. Não precisara de dizer à mãe quanto o perturbara tudo aquilo. Instintivamente, ela saíra da Califórnia depois do seu casamento com Rina.

Fora sempre frágil e franzino, e o intenso nervosismo provocado pela sua explosão criadora deixara-o completamente esgotado. Em momentos como esse, a mãe dizia que recolhesse à cama, por vezes durante semanas seguidas. Servia-lhe as refei­ções, trazia-lhe os jornais, lia para ele os livros de que ambos gostavam.

Sentia com frequência que eram estes os momentos mais fe­lizes da sua vida. Aqui, neste quarto confortável e alegre, que sua mãe decorara, sentia-se quente e tranquilo. Tudo quanto quisesse estaria ao alcance das suas mãos. A porcaria e a mes­quinhez do mundo estavam para lá das paredes daquela sala.

O pai nunca fora mais do que uma sombra vaga e nebulosa. Mal se conseguia lembrar dele, pois morrera quando tinha cerca de cinco anos. A morte do pai não perturbara a quietude da sua existência, pois tinham ficado bem. Não eram ricos mas nunca lhes faltou nada.

— Volta a casa e junta as coisas de que precisas — disse a mãe. — Podes passar aqui a noite. De manhã trataremos do divórcio.

Levantou a cabeça, do ombro da mãe, e olhou para ela.

— Mas, mãe, eu nem saberia sequer o que dizer a um advo­gado!

— Não te preocupes — volveu a mãe em tom de confidência. — Eu encarrego-me de tudo.

Sentiu um grande peso tombar-lhe dos ombros. Mais uma vez, a mãe pronunciara as palavras mágicas. Mas quando parou na rua, diante de casa, e viu o carro de Rina estacionado em frente, teve medo de entrar. Haveria decerto outra cena e não estava preparado para a enfrentar. Já não tinha forças.

Olhou para o relógio de pulso. Eram quase onze horas. Ela devia sair cedo, porque tinha um almoço comemorativo no estúdio. Voltou para trás e desceu a colina, até ao bar exacta­mente à esquina de Sunset. Tomaria uma bebida enquanto esperava. Poderia ver o carro dela quando descesse a colina.

A sala de cocktail estava ensombrecida, quando entrou; as cadeiras achavam-se ainda em cima das mesas. Contudo, o bar estava aberto e um cliente encontrava-se sentado diante de um copo de cerveja. Claude pulou para um banco, perto da janela, donde podia vigiar a rua.

Estremeceu ligeiramente. Tinha começado a chuviscar quando descera a colina e preparava-se uma dessas tardes desa­gradáveis e frescas bem características da soalheira Califórnia. Estremeceu de novo. Esperava não se constipar.

— Whisky e água quente — pediu ao barman, lembrando-se da bebida que a mãe sempre lhe dava ao primeiro sinal de cons­tipação.

O barman fitou-o com certa estranheza.

— Água quente?

Claude confirmou.

— Sim, por favor. — Olhou para o lado e verificou que o único cliente também o fixava — um jovem com um velho blusão amarelo. — E uma rodela de limão, se tiver — pediu depois ao barman.

Claude ergueu a pequena caneca fumegante. Sorveu o lí­quido e sentiu o seu calor descer até ao estômago. Voltou-se e olhou através da janela. Agora chovia realmente. Ergueu outra vez a caneca e verificou, surpreendido, que estava vazia. Decidiu tomar outra. Tinha tempo. Sabia bem o que Rina fazia naquele mesmo momento. Acenou ao barman.

Nesse preciso instante, ela estaria sentada diante do tou­cador, penteando-se até ficar exactamente como queria. Depois apoquentar-se-ia com o cabelo, frisando-o até que caísse descuidadamente, mas com cada um dos fios no seu devido lugar.

De costume, nunca comparecia a horas certas a parte alguma. Pelo menos, chegava sempre com uma hora de atraso, a maioria das vezes ainda com mais. Costumava perder a cabeça por ter de esperar por ela, mas nunca pareceu perturbar qualquer outra pessoa. Limitavam-se a admiti-lo.

Claude fitou a caneca. Estava de novo vazia. Pediu outra bebida. Começava a sentir-se melhor. Rina ficaria surpreendida quando regressasse a casa e não visse as suas coisas. Nunca mais lhe chamaria amostra de homem. Descobriria que era de facto homem quando o advogado lhe entregasse os documentos de divórcio. Dar-se-ia então conta de que não podia manobrá-lo.

E nunca mais o fitaria como na noite de núpcias — com pie­dade e desprezo. Os olhos dela revelaram que o tinham exa­minado em profundidade, que tinham desvendado os próprios segredos da sua alma, segredos que ele escondia até de si mesmo.

Entrara no quarto escurecido com uma bandeja que con­tinha uma garrafa de champanhe gelado e dois copos nas mãos.

« — Vim trazer vinho à minha amada.»

Começaram a fazer amor. De maneira delicada e bela, como sempre acreditara que seria, pois era virgem. E havia calor na curva feminil do corpo sobre a cama, tão passivo e quieto. Começara mesmo a compor um poema à sua beleza quando sentiu a mão dela explorando a sua carne.

Durante um breve instante, ficou gelado, sob a pressão estranha dos seus dedos. Depois, distendeu-se, pois as carícias dela eram tão leves e delicadas que mal as sentia. Um frémito sacudira o corpo de Rina e uma súbita explosão de voluptuosidade pareceu possuí-la.

Rina soltou um grito profundo e puxou-o para debaixo de si, rasgando com as mãos a parte da frente do seu pijama. Não se mostrava mais suplicante e gentil, não a importavam já os sentimentos dele; era presa dum frenesi provindo do fundo de si mesma. Os seus dedos magoaram-no ao tentarem guiá-lo.

De súbito, sentiu um terror selvagem. Invadiu-o o medo da sexualidade exigente do corpo dela, que esperara, dormente, por este momento para se alimentar da sua virilidade e para o devorar. Uma vez mais possuído pelo pânico, furtou-se-lhe e pôs-se de pé, trémulo, ao lado da cama.

Tentou cobrir-se com o pijama despedaçado e ouviu o ruído da respiração de Rina tornar-se mais brando. Fitou-a. Ela tinha-se voltado e olhava-o fixamente, a camisa cobrindo descuidadamente as ancas. Tinha os seios duros, os bicos ainda entumecidos pela paixão. Os olhos pareciam chamejar.

«— És a espécie de homem de que algumas pessoas falam?»

Sentiu o fogo devorar-lhe as faces. Não desconhecia as afirmações pejorativas que lhe faziam pelas costas, mas as pessoas vulgares não compreendiam quanto o trabalho o absorvia.

«— Não!» — volveu rapidamente.

«— Então que espécie de homem és?»

Tombou de joelhos ao lado da cama e fitou-a.

«— Por favor» — gritou. «Por favor, tens de compreender. Casei contigo porque te amo mas não sou como os outros. A minha mãe diz que sou mais nervoso e susceptível.»

Rina não respondeu e ele viu o horrível misto de piedade, desprezo e percepção surgir-lhe rapidamente nos olhos.

«— Não me olhes assim» — implorou. — «Será melhor da próxima vez... Não me enervarei tanto. Amo-te. Amo-te.»

Sentiu a mão dela tocar-lhe gentilmente a cabeça, depois acariciar-lhe com doçura as têmporas. As lágrimas cessaram gradualmente e ela tomou-lhe as mãos, beijando-as com gra­tidão.

«— Será melhor, querida» — prometeu.

Mas jamais foi melhor. Qualquer coisa da feminilidade total do corpo de Rina, da sua aterrorizante sexualidade, reduziu-o a uma absoluta impotência.

— Que disse? — As palavras voaram do passado ao presente. Olhou para o lado. O outro cliente, o jovem do blusão amarelo, dirigia-lhe a palavra. — Pensei que tinha dito alguma coisa. Desculpe.                    

Claude sentiu-se tonto. Não havia qualquer dúvida de que falara.  

— Sim — disse, tentando disfarçar rapidamente o seu embaraço. — Disse que está um dia muito desagradável, não é verdade?

Os olhos do jovem desviaram-se de Claude para a janela, depois tornaram a ele.

— Sim — volveu com delicadeza. — Decerto.

Claude fitou-o. Parecia um jovem bastante simpático. Belo também, de certo modo. Provavelmente, um astro em má situação que entrara para beber uma cerveja enquanto não dei­xava de chover. Ergueu a caneca. Estava outra vez vazia.

— Permita que lhe ofereça uma bebida — disse.

O rapaz aceitou.

— Gostaria de tomar outra cerveja. Obrigado.

— Barman, uma cerveja para este jovem — ordenou Claude. Tocou na caneca. — E eu vou tomar outra destas.

Após ter ingerido mais três bebidas viu o automóvel de Rina descer para Sunset e teve a ideia. Afinal de contas, havia mesmo algumas coisas que queria levar consigo e não podia levá-las todas sózinho.

Depois de ter premido pela segunda vez o botão da campainha lembrou-se de que era quinta-feira e que todos os criados estavam de folga. Tirou a chave. Subiram as escadas, até ao seu quarto. Abriu o armário e puxou uma mala.

— Você esvazia aquelas gavetas — disse ao rapaz. — Eu vou buscar outra mala.

Saiu da sala por um momento e, quando voltou, o compa­nheiro tinha na mão um retrato de Rina que estivera colocado no escritório.

— Quem é?

— A minha mulher — respondeu Claude polidamente. Ficará surpreendida quando chegar a casa e descobrir que me fui embora.                          

— Você é o marido de Rina Marlowe?

Claude confirmou.                  

— Mas não por muito tempo já, graças a Deus!

O jovem lançou-lhe um olhar estranho.

— De que anda à procura, para abandonar uma iguaria como aquela? — perguntou.

Claude arrancou furiosamente o retrato das mãos do outro e atirou-o contra a parede. O vidro despedaçou-se e caiu em pe­quenos pedaços sobre o tapete. Voltou-se e entrou na casa de banho. Tirou a camisola e desapertou a gravata. Abriu a torneira para lavar as mãos, mas o ruído da água a correr no lavatório recordou-lhe de súbito o momento em que entrara no solário. Lembrou-se do ruído produzido pela água na fonte, ao descobrir Rina, nua, em cima da mesa, a ser massajada por Ilene.

Ilene estava nua da cintura para cima, com a metade inferior do corpo enfiada nas calças pretas, justas, que nor­malmente usava. Observou os músculos fibrosos moverem-se ao longo das costas, enquanto as suas mãos deslizavam com delicadeza pelo corpo de Rina.

Rina tinha um braço estendido diante do rosto, a fim de defender os olhos do sol. O seu corpo contorcia-se voluptuosa­mente sob as mãos de Ilene. Quando deram pela sua pre­sença, Rina levantou o braço. Ele sentiu uma vaga surpresa ao ver que o peito de Ilene era completamente liso.

«— Não pares, querida», disse Rina em voz rouca a Ilene.

Obediente, Ilene recomeçou a massagem. O ritmo sensual pareceu regressar ao corpo de Rina quando ela ficou, de cabeça voltada, fitando-o. Passado um momento, ergueu os braços e puxou a cabeça de Ilene até às suas ancas.

— Beija-me, amor — ordenou, continuando a observar Claude.                                        

Ele voltou-se subitamente e fugiu da sala; nos ouvidos levava o som de uma risada de mofa, misturado com o ruído da água da fonte.

Ao recordar isto, passou as mãos pelo rosto. Estavam banhadas em suor. Começava a sentir picadas na pele. Deci­diu tomar um duche.

A água quente do chuveiro começou a acalmá-lo. Parecia trazer a ardência interior do whisky à flor da pele. Ensaboou-se voluptuosamente com o sabonete perfumado que a mãe man­dava vir de Londres especialmente para ele.

Afastou-se do chuveiro esfregando-se com vigor. Mirou com satisfação a pele rosada, trémula. Gostava de se sentir limpo. Procurou o roupão, mas este não estava no cabide habi­tual.

— Por favor traga-me do armário o roupão azul — disse automáticamente, sem pensar.

Tirou a garrafa de água-de-colónia da prateleira e cobriu prodigamente a mão com o líquido; depois começou a esfre­gar-se. Instintivamente, olhou para o espelho. O rapaz estava de pé, no limiar da porta, a observá-lo. Tinha o roupão sus­penso do braço. Despira a camisola amarela, revelando uma camisa branca suja, de mangas curtas.

Claude viu o espesso cabelo preto, hirsuto, que o jovem tinha nos braços, nos ombros e no peito. Experimentou uma sensação de repugnância.

— Pode deixá-lo na cadeira — disse, cobrindo-se parcial­mente com a toalha.            

Em vez disso, o jovem sorriu com astúcia, e fechou a porta atrás de si, com um piparote.  

Claude voltou-se, irado.

— Saia daqui!

O jovem não se moveu. Alargou mais o sorriso.

— Oh, deixa-te disso, velhote — disse. — Não querias realmente trazer-me aqui para te ajudar a levar as coisas, não é verdade?

— Saia ou chamo por socorro — retorquiu Claude, sen­tindo um pavor estranho e excitante. O rapaz riu-se.

— Quem te ouvirá? — perguntou. — Percebi-te logo quando me disseste que os criados estavam de folga.

— Nojento! — gritou Claude. Sentiu uma pancada vio­lenta na cabeça e caiu, debatendo-se. Arrastou-se sobre a mãos e os joelhos. — Por favor, vá-se embora — murmurou, com a voz sufocada.

O jovem levantou a mão de modo ameaçador. Instintiva­mente, Claude recuou mas não foi bastante rápido. A palma aberta estalou-lhe no rosto: a cabeça bateu de lado contra o toucador. Fitou o jovem nos olhos, com terror.

— Não queres realmente que me vá embora, pois não? — disse aquele, puxando o cinto de cabedal, em volta da cin­tura. — És dos que gostam de se mostrar primeiro difíceis.

— Não!

— Não? — o rapaz riu irónico, levantando o cinto. — Não mintas, bem te percebo.

Por um momento, Claude não o compreendeu, depois olhou para si próprio. Um louco pensamento acudiu-lhe ao espírito. Se ao menos Rina o pudesse ver agora, saberia que era um homem. O cinto estalou-lhe sobre as costas; sentiu um arrepio de agonia ao longo da espinha.

— Basta! — soluçou. — Por favor não me bata mais!

Levantou-se, com fadiga, e circunvagou os olhos. O jovem tinha-se ido embora levando consigo todo o dinheiro que Claude trazia. Encaminhou-se de novo, vagarosamente, para o chu­veiro, e deixou correr a água quente.

Sentiu as forças voltarem-lhe quando a água tombou sobre a sua pele. Que coisa horrível acontecera, pensou, ao recordar as indignidades a que o jovem o sujeitara. Sentiu uma ardente satisfação. Se fosse mais forte ter-lhe-ia mostrado quem era. Sentiu o coração palpitar de excitação no peito ao ima­ginar que teria arrebatado o cinto ao jovem e tê-lo-ia açoitado até o fazer sangrar. Sentiu de súbito uma onda de vigor nos rins. Foi precisamente nesse momento que descobriu a verdade.

— Oh, não! — gritou chocado pela revelação. O que todos diziam de si era verdade. Desconhecera apenas esse facto até o corpo o denunciar.

Invadiu-o uma raiva confusa. Deixando a água a correr, saiu debaixo do chuveiro. Abriu o armário dos medicamentos e tirou uma velha navalha de barba — a navalha que conver­tera orgulhosamente no símbolo da sua virilidade.

Uma raiva, selvagem e louca, cegou-o, impelindo-o a gol­pear-se. Se não existia como homem, ao menos poderia trans­formar-se em mulher. Golpeou-se repetidas vezes, até que, desfalecido, tombou por fim no chão.

— Maldita! — gritou. — Maldita sejas, mãe!

Foram estas as suas últimas palavras.

David Woolf parou à entrada da casa de banho, com uma crescente náusea na boca do estômago. Havia sangue por todo o lado, nos azulejos azuis e brancos do chão e das paredes, na banheira, na sentina e no toucador.

Custava a acreditar que apenas trinta minutos antes a porta do seu gabinete se tinha aberto com estrondo, para dar entrada ao tio, de rosto escarlate, como acontecia sempre que estava perturbado.

— Vai direito a casa de Rina Marlowe — disse Bernie Norman. — Um dos rapazes da publicidade foi avisado pelo posto da polícia de Beverly Hills de que Dunbar se suicidou.

David estava já a caminho da porta.

— Assegura-te de que protegeu Rina! — gritou o velho, atrás dele. — Temos dois milhões de dólares em negativos investidos nela!

Ao passar pelo portão exterior levou consigo Harry Ri­chards, chefe dos guardas do estúdio. Richards, um antigo sar­gento da polícia, dava-se bem com todos os chuis. Meteu pelas estradas de Goldwater Canyon a Sunset. Vinte minutos depois chegava a casa de Rina.

Agora, os dois empregados da casa mortuária, de blusas brancas, depositavam o corpo de Dunbar, um tanto encolhido, na pequena padiola, e cobriam-no com um alvo lençol de brim.

Os empregados ergueram a padiola e David desviou-se para os deixar passar. Acendeu um cigarro enquanto transportavam o corpo do quarto para o corredor.

O primeiro sabor acre do fumo chegou-lhe ao estômago. Do fundo das escadas, no vestíbulo, vinha uma vozearia confusa, e ele dirigiu-se apressa­damente para a porta, perguntando-se se, por acaso, Rina conseguira libertar-se do médico. Mas quando chegou ao cimo das escadas viu que não se tratava de Rina. Era a mãe de Dunbar.

Ela esforçava-se por se libertar de dois polícias, de rosto vermelho, no momento em que a padiola coberta com um len­çol branco passou.

— O meu filho! — gritou. — Deixem-me ver o meu filho!

Os empregados da casa funerária passaram por ela, impassíveis, e transpuseram a porta. David podia ver o grupo de repórteres, no exterior, fazendo pressão contra a porta quando esta se abria e fechava. Começou a descer as escadas; a velha pusera-se de novo a gritar.                                  

Tinha-se libertado parcialmente de um dos polícias e apon­tava com uma das mãos para a balaustrada.

— Mataste o meu filho, cadela! — A voz, muito firme, pareceu encher toda a casa. — Mataste-o porque descobriste que queria voltar para mim!

A velha tinha agora a outra mão livre. Dava a impressão de que tentava manter-se afastada das escadas.

— Levem daqui essa velha louca! — David voltou-se, es­pantado, ao ouvir a voz áspera que vinha do cimo das escadas, atrás dele.

Ilene tinha uma expressão selvagem, irada, no rosto.

Levem-na daqui para fora! — bradou com aspereza. — O mé­dico, tão inquieto por causa da Rina, tem agora de suportar esta velha cadela!

David captou o olhar de Richards e enviou-lhe um rápido aceno. Richards aproximou-se de um dos polícias e falou-lhe em voz baixa. Desaparecidas todas as pretensões de delicadeza, os dois polícias seguraram novamente a velha, e, enquanto um deles lhe tapava a boca com a mão, conduziram-na para fora da sala, quase de rastos. Um momento mais tarde uma porta lateral bateu e fez-se silêncio.              

David voltou-se e subiu as escadas. Ilene, todavia, tinha já desaparecido. Dirigiu-se a Richards.

— Disse aos rapazes que a levassem para o Sanatório Colton — murmurou o ex-polícia.

David acenou aprovadoramente. O Dr. Colton sabia o que devia fazer. O estúdio já lhe enviara muitas das suas estrelas. Assegurou-se também de que não falaria com pessoa alguma até que a tivesse acalmado.

— Telefone para o estúdio e peça que enviem dois dos seus homens ali para fora. Não quero que nenhum jornalista entre quando a polícia se for embora.

— Já o fiz — replicou Richards, pegando-lhe no braço. — Acompanhe-me à sala de estar. Quero que se aviste com o tenente Stanley.

O tenente Stanley estava sentado à pequena secretária do telefone, com o feitio de um rim, e tinha um bloco-notas aberto na sua frente. Levantou-se e apertou a mão de David. Era um homem magro, de cara e cabelo cinzentos, e David pensou que ele parecia mais um guarda--livros do que um detective.

— Isto é uma coisa muito má, tenente — disse David. — Já imaginou, por acaso, o que terá acontecido?

O tenente inclinou-se.

— Creio que chegámos a uma conclusão. Não há dúvidas quanto a isso — matou-se. Contudo, há uma coisa que me preocupa.

— De que se trata?

— Como habitualmente, investigámos os movimentos de Dunbar — disse o detective. — Ele saiu com um jovem do bar, precisamente antes de se dirigir para cá. No bar, exibiu um maço de notas e não encontrámos nenhum dinheiro nesta sala. Além disso, tem duas escoriações na cabeça, cuja origem o coroner não conseguiu explicar. Conseguimos uma descrição muito boa dele por intermédio do barman. Vamos capturá-lo.

David fitou-o.

— Mas para que serve isso? — perguntou. — Você tem a certeza de que Dunbar se matou; que mais poderia esse jovem dizer.                                                    

— Não custa nada, a alguns tipos, manietar um homossexual, aplicar-lhe uns bons pontapés e depois revolvê-lo, à procura da massa.

— E então?

— Então, Dunbar não é o único homossexual do nosso distrito — replicou o tenente. — No posto, temos uma lista deles com um metro de comprimento. A maioria trata da sua vida e goza de alguma protecção.

David fitou Richards de soslaio. O chefe dos guardas do estúdio dirigiu-lhe um olhar impassível. David voltou-se para o polícia.

— Muito obrigado por ter falado comigo — disse. — Estou muito impressionado com a maneira eficiente com que trata disto.

Saiu da sala, deixando sozinhos Richards e o polícia. Podia ouvir os murmúrios de Richards, ao sair.

— Ouve, Stan — dizia o ex-polícia. — Se isto chega aos Jornais, vai haver uma embrulhada dos diabos e o estúdio corre o risco de ser duramente atingido. Já é bastante mau o efeito do suicídio.

David passou pela porta e atravessou o vestíbulo, em direc­ção das escadas. Trazer o velho sargento, eis a coisa mais inte­ligente que podia ter feito. Agora tinha a certeza de que não apareceria nos jornais nenhuma referência ao outro homem. Subiu as escadas e entrou na pequena sala de visitas contígua ao quarto de Rina. Ilene estava afundada, exausta, numa ca­deira. Fitou-o quando entrou.

— Como está ela?

— Apagada como uma lâmpada — respondeu Ilene com voz de cansaço. — O médico aplicou-lhe uma injecção de der­rubar um cavalo.

— Você devia tomar uma bebida — disse ele. Dirigiu-se ao pequeno armário, que abriu. — E eu também — acres­centou. — Scotch, está bem?

Ela não respondeu e David encheu dois copos de Haig &. Haig. Entregou-lhe um e sentou-se diante dela. Um leve rubor coloriu-lhe o rosto quando o whisky lhe chegou ao estô­mago.

— Foi horrível — disse.

Ele não respondeu.

Ilene bebeu outro gole.

— Rina comprometera-se a participar num almoço no estúdio, e por isso chegámos a casa cerca das quatro horas. Subimos as escadas, a fim de nos vestirmos, por volta das quatro e meia, e Rina afirmou que pensara ter ouvido a água a correr na casa de banho de Claude. Os criados estavam de folga e ela pediu-me que fosse ver. Devia ter-se apercebido de que alguma coisa corria mal devido ao facto de eu não ter voltado ime­diatamente. Entrou no quarto ainda eu estava a telefonar à policia. Tentei fazer com que não se apercebesse do que acontecera, mas achava-se já à porta da casa de banho quando voltei.

Pousou o copo e procurou, às cegas, um cigarro. David acendeu um, que ela colocou entre os lábios, o fumo enove­lando-se-lhe em volta do rosto.

— Estava de pé, ali, olhando-o, olhando aquele horrível lamaçal de sangue, e dizia sem cessar para si mesma: «Matei-o, matei-o! Matei-o, assim como matei todos quantos me amaram.» Depois começou a gritar. — Ilene tapou os ouvidos com as mãos.

David fitou o seu copo. Estava vazio. Sem ruído, ergueu-se e encheu-o. De novo sentado pensativamente, mirou o líquido cor de âmbar.

— Sabe — disse —, não consigo compreender como é que casou com ele.

— É isso mesmo que me parece insólito — retorquiu irada. — Nenhum de vocês tentou compreendê-la. Para qualquer de vós ela sempre significou um êxito na bilheteira, dinheiro no banco. A nenhum de vós interessou aquilo de que ela real­mente gostava. Rina casou com Claude apenas porque tinha pena dele, porque queria fazer dele um homem. Foi por isso que casou com ele, sim. E é por isso que jaz ali na cama, gri­tando mesmo quando dorme. Grita porque falhou.

O telefone começou a retinir. David fitou-a.

— Vou atender — disse. — Está?

— Quem fala?

— David Woolf — disse, automaticamente,

— Jonas Cord — replicou a voz.

— Mr. Cord! — exclamou David. — Trabalho com Norman...

— Eu sei — interrompeu Cord. — Lembro-me bem de você. É o jovem que faz todo o trabalho difícil de Bernie. Acabo de ouvir na rádio a notícia do acidente. Como está Rina?

— Neste momento, a dormir. O médico pô-la fora de acção.

Houve um silêncio na linha e David pensou que a ligação fora cortada. Mas a voz de Cord voltou a ouvir-se:

— Está tudo em ordem?

— Penso que sim — respondeu David.

— Bem. Mantenha isso assim. Se precisar de alguma coisa telefone.

— Assim farei.

— Não me esquecerei da sua intervenção — disse Cord.

Ouviu-se um estalido. Jonas desligara. Vagarosamente, David pousou o auscultador.

— Era Jonas Cord — disse.

Ilene não tirou a cabeça de entre as mãos. David voltou-se e fitou o telefone. Não fazia sentido. De acordo com o que ouvira acerca de Cord, este não era homem que perdesse tempo a fazer telefonemas de simpatia. Muito pelo contrário.

Inconscientemente, olhou de relance para a porta fechada do quarto de Rina. «Existe qualquer outra coisa», pensou.

Fora quatro meses antes que tornara a ver Rina. Olhou-a da poltrona, no escritório do tio, quando ela entrou na sala.

— Rina querida! — disse Bernie Norman, levantando-se da secretária e apertando-a com entusiasmo nos braços.

O produtor recuou e passeou em volta dela como se se tratasse de uma vitela premiada numa exposição de gado.

— Mais esbelta e mais bela do que nunca.

Rina olhou por cima dele.

— Olá, David — disse calmamente.

— Viva, Rina. — Levantou-se. — Como está?

— Estou bem — respondeu ela. — Quem não estaria depois de três meses de repouso numa quinta?

Ele riu.

— E o teu próximo filme constituirá um novo período de férias — interrompeu Norman.

Rina voltou-se para ele, com um débil sorriso no rosto.

— Continua, velho bastardo — disse. — Explica-me tudo.

Norman riu, feliz.

— Por um momento, perguntei-me se era a minha antiga namorada que entrara no escritório, tão bonita me parecia.

Rina riu também.

— Que férias? — perguntou.                

— África! — disse Norman, triunfantemente. — A melhor descrição sobre a selva que li desde Trader Horn.

— Eu sabia — disse Rina, voltando-se para David. — Sa­bia que a próxima coisa que ele me obrigaria a fazer seria um Tarzan fêmea!

Depois de Rina ter saído, David fitou o tio.

— Ela parece mais calma, mais doce.

Norman observou-o com um olhar astuto.

— O quê! — exclamou. — Talvez esteja a tornar-se bisse­xual e a fixar-se nisso. Já é tempo. — Levantou-se da secretária e aproximou-se de David. — Faltam apenas seis meses para a reunião dos accionistas. Efectua-se em Março.

— Ainda não sabe quem nos quer arruinar?

— Não. — Norman sacudiu a cabeça. — Tentei por todos os lados. Corretores, subscritores, bancos. Todavia, ninguém sabe. Mas as acções descem diariamente. — Chupou o charuto apagado. — Comprei todas as acções que pude mas não consegui dinheiro suficiente para lhe fazer frente. Todo o dinheiro que consegui juntar ou pedir emprestado desapareceu.

— Talvez as acções subam quando anunciarmos o pró­ximo filme de Rina. Toda a gente sabe que ela é uma autêntica máquina de fazer dinheiro.

— Espero que sim — disse Norman. — Estamos a perder dinheiro em todo o lado. Até nos teatros. — Voltou à cadeira e afundou-se nela. — Foi esse o meu erro. Nunca os devia ter comprado. Por causa disso, tive de pôr a circular as acções, pedir emprestado todo aquele dinheiro aos bancos. De filmes percebo; imóveis e o resto, não... Nunca devia ter dado ouvidos a esses manhosos de Wall Street, há dez anos. Agora, vendi a minha companhia e não consegui mais dinheiro. E nem sei quem possui mais interesses nela!

David levantou-se.

Bem, não vale a pena preocuparmo-nos com isso. Ainda faltam seis meses para a reunião. Entretanto, podem acontecer muitas coisas.

— Sim — murmurou Norman com desalento. — Pode acon­tecer o pior!

David fechou atrás de si a porta do escritório. Sentou-se à secretária e percorreu a lista dos inimigos que o tio tinha feito no decurso da sua vida. A lista era longa, mas não havia nenhum que possuísse o dinheiro necessário para a operação. Além disso, muitos trabalhavam na indústria de filmes e tinham feito pelo tio tanto quanto este fizera por eles. Uma espécie de jogo entre membros de um clube. Barafustava-se muito, mas jamais algum o levara a sério. Tal animosidade era improvável da parte dos concorrentes.

De súbito, David lembrou-se de alguma coisa. Rina. Olhou para a porta e estendeu automaticamente a mão para o telefone. Retirou-a logo. Não fazia sentido portar-se como um louco.

Mas tinha um palpite. Por muitas razões que tivesse, só o soube no momento em que Ilene inscreveu Rina no hospital, com um nome falso, seis meses mais tarde. Ela tinha acabado de chegar de África, depois das filmagens de A Rainha da Selva, e de súbito adoecera gravemente. Não quisera que a imprensa o soubesse antes de o filme estar pronto.

— Jonas Cord — disse Norman amargamente. — Jonas Cord, hem? Porque não mo disseste?

David voltou-se, perto da janela do hotel, donde observava p Central Park.

— Não sabia. Suspeitava apenas.

— Soubesses, que não soubesses — volveu o produtor, chu­pando o charuto apagado. — De qualquer maneira devias ter-me dito.

— Para quê? — perguntou David. — Não o poderia pro­var, e, ainda que pudesse, o tio não tinha dinheiro para lutar contra ele.

Norman tirou o charuto da boca e fitou-o de mau humor. Com um gesto brusco lançou-o para o tapete.

— Que lhe teria eu feito para que me quisesse arruinar? — perguntou, furioso.

David não respondeu.

— Nada! Comigo, só ganhou dinheiro. Mais do que aquele que utilizou para me cortar o pescoço! — Bernie Norman tirou do bolso outro charuto e agitou-o diante do rosto de David. — Isto deve servir-te de lição. Nunca faças um favor a nin­guém, nunca faças dinheiro para ninguém, só para ti. De outro modo descobrirás um belo dia que tiveste, cravada nas costas, uma faca feita com a tua própria prata!

David fitou o rosto irado, purpúreo, do tio, recordando a cena que se desenrolara na reunião dos accionistas.

Norman assistira mais confiante do que em qualquer outro momento nos últimos meses. A percentagem de vogais eleitos era aproximadamente a de todos os anos. Apenas cerca de vinte e cinco por cento dos accionistas lhe fizeram perder tempo com propostas sem importância.

Todos eles estavam interessados em saber quando receberiam de novo os dividendos. Mas aqueles vogais, mais os oito por cento das acções que tinha em seu nome, garantiam a Norman uns confortáveis trinta e três por cento na votação.

A assistência à reunião era a de sempre. Alguns comerciantes retirados, algumas mulheres que haviam entrado por possuírem dez acções — tinham assim alguma coisa com que se ocupar — , os directores da companhia que se encontravam ocasionalmente na cidade e os empregados de escritório da companhia, em Nova Iorque.                                      

Só depois de terem terminado as formalidades e quando requeria a nomeação dos principais directores, Norman teve a sensação de que alguma coisa corria mal. Quando estava a falar, Dan Pierce, o agente, e outro homem cujo rosto lhe era familiar mas de que não recordava o nome, entraram na sala e sentaram-se na fila da frente do pequeno auditório.

Um vice-presidente, encarregado das vendas, leu, em voz alta, respeitosamente, a lista de Norman referente às nomeações para a direcção. Outro vice-presidente, encarregado das operações teatrais, secundou com vigor as nomeações. Um terceiro vice-presidente, encarregado das operações no estrangeiro, propôs em seguida que as nomeações fossem aprovadas.

Nesse momento, Pierce ergueu-se.

— Sr. Presidente — disse —, tenho mais algumas nomeações a fazer para directores da União.

— Não pode — rugiu Norman do seu lugar.          

— De acordo com os regulamentos da companhia — redarguiu Dan Pierce —, qualquer accionista, devidamente documentado, pode propor para directores as pessoas que quiser, dentro dos devidos limites.                          

Norman voltou-se para o seu vice-presidente e conselheiro.

— Aquilo é verdade?    

O interpelado confirmou nervosamente.

— Está demitido, seu estúpido canalha! — exclamou Norman.

Voltou-se para Pierce.

— É ilegal — gritou. — Um ardil para liquidar a com­panhia!

O homem sentado ao lado de Pierce levantou-se.

— As nomeações de Mr. Pierce estão perfeitamente em regra e eu, pessoalmente, posso atestar o seu direito legal de as fazer.

Foi então que Norman se recordou do nome: McAllister, procurador de Jonas Cord. Acalmou-se imediatamente.

— Suponho que podem provar que são accionistas? — per­guntou sagazmente.

McAllister sorriu.

— Certamente.

— Deixe-me examinar a sua prova. Tenho o direito de o fazer.

— Decerto que tem — disse McAllister. Subiu à mesa da presidência e entregou um certificado.

Norman examinou-o. Era um certificado de dez acções, devidamente passado em nome de Daniel Pierce.

— Possui apenas estas acções? — perguntou inocente­mente.

McAllister voltou a sorrir.

— É toda a prova de que preciso — disse, iludindo a tenta­tiva do produtor de descobrir quantas acções representava exac­tamente. — Posso prosseguir com as nomeações?

Norman assentiu em silêncio e Pierce levantou-se e propôs seis nomes para os nove cargos principais. Precisamente o sufi­ciente para assegurar um contrôle absoluto. Excepto o seu e o de McAllister, todos os nomes eram estranhos a Norman.

Quando tudo estava preparado para a contagem dos votos, McAllister apresentou à assembleia procurações representando quarenta e um por cento das acções da companhia — vinte e seis por cento em nome de Jonas Cord e quinze por cento no de várias firmas de corretagem. Todos os seus seis directores pro­postos foram aprovados.

Norman voltou-se para os auxiliares.

Estudou-os em silêncio, durante um momento, depois retirou seis dos nomes propostos, por si, conservando apenas o seu, o de David e o do vice-presidente e tesoureiro do conselho de administração. Terminada a reunião, marcou outra, de directores, nos escritórios da companhia, nessa tarde, para a eleição dos funcionários superiores.

Saiu em silêncio da sala, com o rosto, normalmente vermelho, agora pálido e lívido. Pierce interpelou-o à porta.

— Bernie — disse ele —, gostaria que me concedesses um minuto antes da reunião de directores.

Norman encarou-o.

— Não quero falar com traidores da sua espécie — ripostou friamente. — Vá falar com o Hitler! — Saiu da sala.

Dan Pierce voltou-se para David.                      

— David, faça-o voltar à razão — pediu. — Cord autorizou-me a oferecer três milhões de dólares pelas acções do velhote. É o dobro do que valem. Se ele não vender, Cord diz que levará a companhia à falência e que todas as acções não passarão a valer mais do que papel de parede.

Vou ver o que posso fazer — disse David, seguindo na cola do tio.

Norman vociferava de novo, passeando na sala e amea­çando opor-se com vigor aos antagonistas. Mostraria a esse louco chamado Cord que Bernie Norman não era doido, que não tinha erguido do nada uma empresa com as mãos nuas.

— Espere um momento! — disse vivamente David. Tinha recebido do tio algo mais do que insensatez. Chegara a altura de alguém falar ao velho sobre as realidades da vida. — Com que é que o vai enfrentar? Com cuspo em vez de dinheiro? E se lutar, acredita honestamente que alguém o acompanhará? Nos últimos quatro anos, esta companhia tem perdido sempre dinheiro. O melhor filme que produzimos, entretanto, foi O Renegado, filme de Cord e não nosso. E a melhor película actual­mente no mercado é Diabos no Céu — também dele; a única película de Cord que não distribuímos, porque não tinha bastante koom-shaw para si! Pensa que alguém no seu perfeito juízo vai secundá-lo contra Cord?

O produtor fixou o sobrinho.

— Pensar — gritou — que da minha própria carne e do meu sangue viriam tais palavras!

— Deixe-se disso, tio Bernie — retorquiu David. — A família não tem nada a ver com isto. Estou apenas a basear-me em factos.

— Factos? — exclamou Norman. — Queres factos? Bem, ei-los. Quem é que comprou Manchas Solares, um filme que ganhou quase todos os prémios? Quem? Eu.

— Também perdeu um milhão de dólares.

— A culpa foi minha? — replicou amargamente o tio. — Não os informei antes de o produzir? Queriam prestígio e tiveram prestígio.

— Isso são águas passadas, tio Bernie — volveu David. — Não tem nada a ver com o presente. Já ninguém se importa com uma coisa dessas.

— Eu importo-me — retorquiu Norman. — É o meu sangue que estão a derramar. Sou eu o sacrificado. Mas ainda não morri. Quando me referir aos filmes que estou a fazer com Rina Marlowe terei do meu lado quantos delegados quiser.

David fitou o tio durante uns momentos; depois, dirigiu-se para o telefone.

— Interurbana, por favor — disse. — Quero fazer uma chamada para o Hospital Colton, Santa Monica, Califórnia, quatro três-zero-nove.

Fitou o tio, que olhava pela janela.

— Ilene? É David. Como está ela?

— Mal — respondeu Ilene, com uma voz tão baixa que quase não se podia ouvir.                  

— Que disse o médico? — David ouviu-a soluçar sobre o bocal. — Calma — disse. — Não é momento de se deixar sucum­bir.

— Afirma que ela está a morrer. É um milagre que tenha durado tanto. Não sabe o que a mantém viva.

David ouviu um estalido e o telefone ficou mudo na sua mão. Voltou-se para o tio.

— Rina não fará mais nenhum filme para si ou para qual­quer outra pessoa — disse. — Está a morrer.

O produtor fitou-o, lívido. Afundou-se numa cadeira.

— Meu Deus! Que acontecerá então à companhia? Rina constituía a única possibilidade que tínhamos de continuar de pé.

Sem ela, as acções irão para o fundo. Acabou-se tudo. — Enxugou o rosto com um lenço. — Agora nem o Cord se preocupará connosco.

David fitou o tio.

— Que quer dizer com isso?

— Idiota — zombou Norman. — Não compreendes ainda? Tenho de te mostrar diagramas?

— Compreender? — perguntou David, desorientado. — Com­preender o quê?

— Que o Cord, na realidade, não queria mal à companhia — afirmou o velho. — Desejava apenas a jovem.

— A jovem?

— Certamente — disse Norman. — Rina Marlowe. Lem­bras-te do encontro que tive com ele nos lavabos do Waldorf? Recordas-te do que ele disse? Que não me dizia o nome das actrizes porque eu lhe palmara a Marlowe.

De súbito, David compreendeu. Porque não pensara nisso antes? Depreendia-se tudo da chamada telefónica de Cord na noite em que Dunbar se suicidara. Fitou o tio com certo res­peito.

— Que tenciona fazer?

— Fazer? — exclamou o velho. — Fazer? Vamos manter a boca fechada antes dessa reunião. Pode partir-se-me o cora­ção, mas se oferece três milhões pelas minhas acções, chegará aos cinco!

O sonho não se escapuliu dessa vez, quando Rina abriu os olhos. Mesmo assim, parecia mais real do que sempre fora. Ficou ainda durante uns momentos imóvel, fitando a tenda de plástico branco que lhe cobria a cabeça e o peito. Voltou vagarosamente a cabeça.

Ilene estava sentada na cadeira. Desejava poder dizer-lhe que não se preocupasse, pois não havia na realidade nada que recear. Examinara detidamente isto muitas vezes durante o sonho.

— Ilene! — murmurou.

Ilene sobressaltou-se e ergueu-se da cadeira. Rina sorriu.

— Sou eu mesmo, Ilene — disse num sussurro. — Não estou louca.

— Rina!

A jovem sentiu a mão de Ilene sob a camisa.

— Rina!

— Não chores, Ilene — murmurou. Voltou a cabeça para tentar observar o calendário sobre a parede, mas este estava demasiado afastado. — Que dia é hoje?

— Sexta-feira.

— Treze? — Rina tentou sorrir. Viu um sorriso iluminar o rosto de Ilene, a despeito das lágrimas que lhe rolavam nas faces. — Telefona ao Jonas — disse débilmente. — Quero vê-lo.

Cerrou os olhos durante um momento e abriu-os quando Ilene se aproximou mais da cama.

— Conseguiste falar com ele?

Ilene sacudiu a cabeça.      

— Do escritório informaram que estava em Nova Iorque, mas não sabem onde encontrá-lo.

— Encontra-o onde quer que esteja! — sorriu Rina. — Já não podes iludir-me — disse. — Representei esta cena muitas vezes. Telefona-lhe. Não quero morrer antes de ele chegar. — Um ténue sorriso de ironia surgiu-lhe no rosto. — De qual­quer modo ninguém morre aqui num fim-de-semana. O obi­tuário já seguiu para a Imprensa.

 

                                                                                CONTINUA

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

           Voltar à Página do Autor